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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SERPENTE EMPLUMADA
A SERPENTE EMPLUMADA

     

                                                                                                                                                  

 

 

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Dez dias haviam decorrido desde a chegada de Kate a Sayula sem que Don Ramon desse sinal de vida. No entanto, quando passeava de barco, vira a casa dele na outra banda da ponta oeste do lago. Era um edifício alaranjado de dois andares, com alpendre para embarcações e bosquete de mangueiras rente à margem. Entre as árvores distinguiam-se duas filas de cabanas de adobe, a habitação dos peóns.
A hacienda fora outrora das mais importantes. Regavam-na então com a água captada nas colinas, mas as revoluções haviam destruído todos os aquedutos. Don Ramon tinha inimigos no Governo, de modo que grande parte das suas terras fora dividida entre os peóns e só lhe ficaram cerca de trezentos acres de terreno, dos quais duzentos marginavam o lago e lhe eram inúteis. Cultivava um pomar em volta da casa e cana-de-açúcar num valezito entre as colinas. Na encosta do monte viam-se campos de milho.
'Dona Carlota era rica; tirava bons rendimentos das minas de Torreon, seu berço natal.
Chegou um portador com uma carta de Don Ramon em que este pedia a Kate licença para a visitar com a esposa.
Dona Carlota era uma mulher franzina, suave, de grandes olhos um tanto assustadiços e sedosos cabelos castanhos. Filha de pai espanhol e de mãe francesa, de origem puramente europeia, em nada se assemelhava às corpulentas mexicanas de faces cobertas de pó-de-arroz. De rosto pálido, sem artifício, a figura delgada tinha qualquer coisa de inglês, que os grandes olhos castanhos desmentiam. Só falava espanhol e francês, mas o seu espanhol soava tão lento e distinto (com um leve tom de queixume) que Kate a compreendeu sem dificuldade.
As duas mulheres entenderam-se depressa, mas sentiam-se um tanto nervosas na presença uma da outra. Dona Carlota era frágil e sensível como um cão chihuahua.
Em toda a sua vida, Kate raras vezes encontrara criatura tão doce e delicada. Conversaram uma com a outra, enquanto Don Ramon se mantinha calado. Dir-se-ia que ambas se arremessavam contra aquela barreira de silêncio.
Kate percebeu logo que Dona Carlota amava Ramon, mas com um amor que se tornara voluntário. Adorara-o, e acabara-se a adoração. Duvidara dele, e duvidaria sempre.
Sentado um pouco à parte, de ar constrangido, Don Ramon baixava a bela cabeça e deixava pender as mãos entre as coxas.
- Sabe que passei há dias bons momentos? - disse Kate, dirigindo-se-lhe de súbito. - Dancei de roda do tambor com os homens de Quetzalcoatl.
- Assim me constou - respondeu ele com um sorriso forçado.
Embora não falasse inglês, Dona Carlota compreendia essa língua
- Dançou com os homens de Quetzalcoatl! - exclamou em espanhol. - Porque fez isso? Porquê?
- Estava fascinada.
- Não se deixe fascinar. Afirmo-lhe que lastimo muito que meu marido se interesse por esse movimento. É para mim um desgosto.
Juana apareceu nesse momento com uma garrafa de vermute, a única coisa que Kate podia oferecer aos visitantes.
- Foi aos Estados Unidos ver os seus filhos? - perguntou Kate. - Como vão eles?
- Bem, obrigada. Embora o mais novo continue fraquito...
- Não os trouxe consigo?
- Não. Acho que estão melhor no colégio. Aqui... aqui há muita coisa que os perturbaria. Mas hei-de cá tê-los no próximo mês a passar as férias.
- Então terei oportunidade de os conhecer - disse Kate. Virão para a casa do lago, não é verdade?
- Ainda não sei. Talvez passemos aqui alguns dias. Ando tão ocupada na Cidade do México com a minha Cuna!
- Cuna? Que é isso? - indagou Kate.
Tratava-se de um hospício de enjeitados assistido por algumas obscuras carmelitas. Dona Carlota era a directora, e Kate chegou à conclusão de que a mulher de Ramon devia ser católica fervorosa, quase exaltada. Entregava-se de corpo e alma à Igreja e àquela obra de beneficência.
- Nascem tantas crianças no México e são tão numerosas as que morrem! Se as pudéssemos salvar e preparar para a vida! Fazemos tudo o que é possível, mas ainda é pouco.
Segundo parecia, todos os nenés indesejáveis eram entregues na Cuna, como embrulhos. A mãe só tinha de bater à porta e depositar noutras mãos o pacote vivo.
- Assim, impedimos que muitas mães negligentes deixem morrer os filhos - prosseguiu Dona Carlota. - Se não nos dizem o nome da criança, sou eu que a baptizo. Já o tenho feito muitas vezes. É vulgar entregarem-nos meninos absolutamente nus, sem um trapo a cobri-los... e sem nome. E nós nunca perguntamos nada.
Nem todos os expostos ficavam no hospício. Na maior parte eram confiados a índias decentes, a quem pagavam para os criar em casa. No fim do mês, cada qual se apresentava com o seu protegido e recebia o ordenado. As índias podem ser descuidadas mas não maltratam as crianças.
Noutro tempo, informou Dona Carlota, quase todas as senhoras do México recebiam na sua casa um ou dois desses enjeitados e tratavam-nos como família. Mas perdera-se a generosidade patriarcal dos espanhóis-mexicanos e actualmente adoptavam poucas crianças. Em vez disso, preparavam-nas para ganhar a vida, ensinando-lhes qualquer ofício.
Kate ouvia com-interesse e certo constrangimento. Não lobrigava sentimentos humanos nessa caridade mexicana, e quase discordava dela. Talvez Dona Carlota fizesse tudo o que podia nesse país semibárbaro, mas fazia-o sem nenhuma esperança de êxito. Embora com a consciência de que procedia bem, tinha um pouco o ar de vítima, de uma vítima sensível, branda, um tanto assustada. Dir-se-ia que um mal secreto lhe roía o coração.
Don Ramon escutava impassível, num silêncio que se opunha ao entusiasmo caritativo da mulher. Deixava-a agir como entendia, mas contra a sua obra e a sua loquacidade mantinha-se calado, duro, numa hostilidade surda e permanente. Dona Carlota percebia-o e tremia nervosamente enquanto falava do hospício de enjeitados. Kate acabou por achar cruel a atitude de Don Ramon; parecia um ídolo de pedra.
- Porque não vem passar um dia connosco, enquanto estamos em Sayula? - sugeriu Dona Carlota. - A casa é pouco confortável, já não é como foi, mas teremos muito gosto em recebê-la.
Kate aceitou o convite e disse que preferia ir a pé. Eram apenas quatro milhas de percurso e, com a Juana, iria bem acompanhada.
-. - Mandarei um homem buscá-las - declarou Don Ramon. Será mais seguro.
- Onde está o general Viedma? - perguntou Kate.
- Faremos o possível por tê-lo connosco quando a senhora lá for - replicou Dona Carlota. - Gosto deveras de Don Cipriano, que há muitos anos conheço. Por sinal que é o padrinho do meu filho mais novo. Presentemente, comanda a divisão de Guadalajara, por isso nem sempre se encontra livre.
- Admira-me que seja general - observou Kate. - Acho-o humano em excesso.
- E, de facto, é cheio de humanidade. Mas é general, e gosta de comandar os soldados. Deixe-me dizer-lhe que se trata de uma pessoa de muita influência. Exerce grande ascendente na tropa. Crêem nele, isso não se pode negar. Possui aquele poder, inato nos chefes índios, de afeiçoar a si os militares e de os levar ao combate. Pois é assim mesmo Don Cipriano. Ninguém conseguiria modificá-lo. Julgo, porém, que lhe seria de utilidade a presença de uma mulher. Nunca teve nenhuma na sua vida! Elas não lhe interessam...
- Que lhe interessa então?
- Ah! - exclamou Dona Carlota, estremecendo como se a picassem. Lançou um olhar rápido ao marido e declarou: - Não sei. Palavra que não sei.
- Os homens de Quetzalcoatl - declarou Don Ramon com
um leve sorriso.
Mas Dona Carlota dir-se-ia tirar-lhe todo o desembaraço. Parecia contrafeito, e um tanto estúpido.
- Ah, sim, sim, os homens de Quetzalcoatl - bradou Dona Carlota, amável mas com ar de censura. - Linda coisa para ele se ocupar! - Kate percebeu que a sua interlocutora adorava esses dois homens e que tremia à ideia de se opor aos seus erros, embora jamais transigisse com qualquer deles.
Para Don Ramon representava um pesado fardo aquela cega adoração da mulher e a sua não menos cega oposição.
Certa manhã, às nove horas, apareceu o criado para acompanhar Kate à fazenda, que chamavam de Jamiltepec. Trazia um cabaz e vinha do mercado. Era um velhote de bigode grisalho e olhos juvenis, cheios de vida. Os pés, metidos em huafaches, pareciam negros de tão queimados do sol, mas o fato resplandecia de alvura.
Kate ficou radiante com essa excursão a pé. O que tornava tão aborrecida a sua existência na aldeia era a impossibilidade de passear no campo. Havia sempre o risco de um assalto. Acompanhada de Ezequiel, dera algumas voltas pelos arredores, mas já começava a sentir-se prisioneira. Foi, por conseguinte, uma alegria sair de casa.
A manhã estava clara e quente, o lago brilhava quieto, espectral. Moviam-se pessoas na margem, minúsculas àquela distância, meros pontinhos brancos: peóns que seguiam os seus burros envoltos numa leve nuvem de poeira. Kate perguntava a si mesma porque seria que os homens apareciam sempre na paisagem mexicana como pequeninas manchas; pequeninas manchas de vida.
Entraram na estrada poeirenta que levava para oeste, entre a vertente alcantilada das colinas e a nesga de planície junto ao lago. Por espaço de milha foram encontrando vivendas, muitas delas fechadas, outras destruídas, já sem muros nem janelas. Todavia desabrochavam flores entre os montes de cascalho.
Nos terrenos vagos havia delgadas cabanas de palha dos indígenas - como que nascidas ali, ao acaso. Perto do caminho por baixo de um outeiro viam-se choças de adobe, semelhantes a caixas cinzento-escuras. Em volta corriam aves domésticas, grunhiam e refocilavam porcos pardacentos ou malhados de preto. Crianças seminuas, de um tom castanho-alaranjado, brincavam ou jaziam estiradas no chão, a dormir, com as nádegas à mostra.
Muitas das casas estavam a ser cobertas de colmo novo ou reteIhadas por indivíduos que assumiam ares de importância por se encarregarem desse trabalho. Mostravam-se também apressados, pois não tardariam a vir as chuvas torrenciais. E, na banda do lago, havia quem andasse a lavrar a terra dura com uma junta de bois e um pau forte e aguçado.
Mas Kate conhecia essa parte do caminho. Vira já a bela vivenda da colina, com os seus tufos de palmeiras que ladeavam as alamedas desertas. A estrada descia novamente para o lago, entre árvores frondosas de vagens retorcidas. À esquerda, a água mansa, gelatinosa, lambia as pedras amareladas. Numa poça da praia estavam mulheres a lavar roupa, e, nos baixios, banhavam-se duas raparigas com os cabelos negros pendentes e gotejantes. Mais adiante, um homem patinhava lentamente, detendo-se para arremessar com perícia a rede à água e depois recolhê-la cheia desses peixinhos luzidios a que chamam charales. Tudo estranhamente silencioso e remoto na manhã cintilante.
Vinha do lago uma leve brisa, mas a poeira da estrada queimava os pés. À direita erguia-se o monte, abrupto, ressequido e amarelo, exalando calor e aquele cheiro característico do México que se diria ser a evaporação duma terra cada vez mais calcinada.
Desfilavam continuamente filas de burros carregados, trotando na poeira e seguidos pelos condutores que marchavam erectos e rápidos, olhando com olhos semelhantes a buracos negros mas respondendo sempre à saudação de Kate com um respeitoso adiós. E Juana ecoava com o seu lacónico adiósm. Caminhava coxeando e achava tristíssima aquela ideia da niña de percorrer quatro milhas a pé, quando poderiam ir num automóvel de aluguer, de barco ou mesmo de burro.
Mas a pé! Kate percebia todos os sentimentos da criada no seu arrastado e sardónico adiósn. Em compensação, o homem de Ramon vinha animadamente atrás delas, dirigindo saudações alegres, com a pistola bem em evidência no cinto.
A estrada contornava um rochedo amarelo e escarpado para desembocar num campo aberto, onde se alastravam espinheiros e cactos poeirentos. À esquerda, distinguia-se a mancha verde dos salgueiros à beira do lago. À direita, as colinas inclinavam-se sobre o flanco árido das montanhas. Em frente, os outeiros ladeavam as margens do lago e afastavam-se, descobrindo uma espécie de garganta que conduzia à casa de Don Ramon e à sua plantação de cana-de-açúcar.
- Aqui temos Jamiltepec, a hacienda de Don Ramon, señorita - anunciou o homem.
Os olhos luziam-lhe ao proferir estas palavras. Era um peón orgulhoso e sem dúvida feliz com a sua sorte.
- Que lonjura! - exclamou Juana.
- Para outra vez virei só ou com o Ezequiel - replicou Kate.
- Não diga isso, niña! Só me queixo do pé, que me dói hoje a valer.
- Por isso mesmo é melhor não vires comigo.
- Não, niña. Gosto muito de vir.
Giravam alegremente as asas do moinho que puxava a água do lago. Entre as colinas descia o valezito onde deslizava um riacho e na parte mais larga viam-se bananeiras que uma cortina de salgueiros resguardava da brisa lacustre. No cimo da encosta, onde o caminho se embrenhava na sombra de mangueiras, elevavam-se dois renques de casas de adobe, tal uma aldeia um pouco recuada.
Surgiam mulheres entre as árvores, que vinham do lago com seus cântaros de água ao ombro. De roda das portas brincavam crianças, arrastando o traseiro nu na poeira do chão. Aqui e ali, uma cabra amarrada. E, apoiados na esquina da casa, ou encostados à parede, estavam homens de braços e pernas cruzados, mas não em dolce far niente. Pareciam esperar, esperar eternamente por qualquer coisa.
- Por aqui, señorita ! - disse o homem do cabaz, indicando um caminho que descia entre árvores frondosas até ao portão branco da hacienda. - Já cá estamos.
Mostrava-se tão contente como se houvesse chegado ao Paraíso.
Encontravam-se abertas as portas do zaguán, ou entrada, a cuja sombra descansavam dois soldados. No espaço em frente do portão, passavam nesse momento dois peóns, cada qual com um cacho de bananas à cabeça. Os soldados disseram qualquer coisa e aqueles detiveram-se e voltaram-se lentamente com a sua carga verde para observarem Kate, Juana e Martin - o homem que as acompanhava. Depois retomaram a sua marcha.
Os soldados levantaram-se e Martin conduziu Kate pela passagem abobadada, onde as rodas dos carros haviam cavado fundos sulcos. Juana seguia-os com expressão lastimosa.
Kate achou-se num pátio enorme, cercado em três lados por muros altos, alpendres e estábulos. Ao fundo era a casa de residência, com as suas janelas gradeadas e, em vez de porta, outro zaguán de batentes fechados, espécie de corredor ao longo do edifício.
Martin avançou para tocar a aldraba, e Kate olhou entretanto à sua volta. Num alpendre, estavam homens seminus a empacar cachos de bananas. Noutro lado, serravam paus e descarregavam telhas de cima dum burro. A um canto viam-se bois atrelados a uma carroça, de cabeça pendida sob a canga, como se esperassem.
Abriram-se as portas e Kate entrou no segundo zaguán. Era uma entrada larga, com seu lanço de escadas a um lado e um portão gradeado ao fundo, através do qual se via o jardim orlado de mangueiras e, mais abaixo, o lago com o seu porto artificial onde baloiçavam dois barcos.
Nas costas dos recém-vindos, a criada fechou a porta que dava para o pátio e indicou a Kate as escadas.
- Por aqui, señorita.
Badalava uma sineta lá no cimo. Kate subiu os degraus de pedra, ao encontro de Dona Carlota, que a esperava no patamar, vestida de musselina branca, o que, pelo contraste, lhe dava um tom amarelo às faces. Estendeu os braços magros e bronzeados, acolhendo Kate com extraordinária efusão.
- Muito prazer em vê-la aqui! E veio todo o caminho a pé, com este sol! Entre, entre e descanse.
Pegou na mão de Kate e levou-a através do terraço, no topo da escada.
- Que linda vista! - exclamou Kate, contemplando o lago para além das mangueiras. Na água pálida, irreal, vogava ao longe um barco de vela. Para além, elevavam-se as montanhas de gargantas azuladas, com a mancha branca duma aldeia. Dir-se-ia outro mundo, perdido na luz da manhã, outra vida.
- Que povoação é aquela? - perguntou Kate.
- Acolá? É San Ildefonso - respondeu Dona Carlota.
- Como este sítio é belo! - disse Kate.
- Hermoso, si! Si, bonito - retorquiu a outra em espanhol, conforme o seu costume.
A casa, de um vermelho-alaranjado, tinha duas alas voltadas para o lago. com o seu murinho coroado de plantas verdes, o terraço cercava três lados do edifício; suportavam o telhado largos pilares que partiam do solo, formando em baixo uma espécie de claustro ocupado ao centro por um tanque cheio de água.
- Venha - disse Dona Carlota. - Precisa de descansar.
- Gostaria de mudar de sapatos - declarou Kate. Levaram-na a um quarto espaçoso, um tanto vazio, de chão de
tijolos. Aí, Kate calçou as meias e os sapatos que Juana trouxera num embrulho e estendeu-se um momento para repousar.
E, enquanto repousava, ouvia o rufar surdo do tambor, no profundo silêncio da manhã, só perturbado pelo canto dum galo longínquo. Aquele som contínuo, insistente, enchia-a de mal-estar. Parecia o ribombo duma tempestade desencadeando-se no horizonte.
Kate levantou-se e dirigiu-se para o salão onde Dona Carlota estava sentada a conversar com um homem vestido de preto. com as suas três portas envidraçadas abertas sobre o terraço, chão de ladrilhos vermelhos, paredes pintadas de verde-claro, tecto de barrotes caiados e escassez de mobília, aquilo parecia mais um caramanchel do que um salão. Como em muitas casas dos países quentes, tinha-se a impressão de não se estar dentro de quatro paredes, mas sim de três; um lugar de passagem, e não para ficar.
À chegada de Kate, o homem de preto levantou-se, apertou a mão a Dona Carlota e, baixando a cabeça num comprimento cerimonioso, desapareceu por uma das portas do terraço.
- Entre, entre! - disse Dona Carlota a Kate. - Já não se sente cansada? - acrescentou, avançando uma das cadeiras de junco que estava negligentemente colocada no meio da sala.
- Absolutamente nada - respondeu Kate. - Como esta região é silenciosa! Só se ouve o tambor, o que talvez nos faça notar mais o silêncio.
- Ah, esse tambor! - exclamou Dona Carlota, erguendo a mão num movimento de exaspero. - Não posso com isso! Detesto ouvi-lo.
E moveu-se na cadeira de baloiço, com súbito nervosismo.
- É um som realmente impressionante - redarguiu Kate. - Que significa, afinal?
- Não mo pergunte! São coisas de meu marido. - E Dona Carlota fez novo gesto de desespero.
- Don Ramon é que toca o tambor?
- Não, não! - Dona Carlota pareceu sobressaltada àquela pergunta. - Não é ele que toca. Trouxe dois índios do Norte para se desempenharem desse trabalho.
- Ah, sim? - volveu Kate, sem se comprometer. Mas Dona Carlota balançava-se numa espécie de semi-inconsciência e só daí a instantes pareceu voltar a si.
- Tenho de desabafar com alguém! - disse, de repente, endireitando-se na cadeira, com uma expressão de angústia espelhada nos grandes olhos castanhos e no rosto cor de nata. - Posso desabafar consigo?
- Certamente - respondeu Kate, constrangida.
- Sabe o que Ramon anda a fazer?
- Julgo que pretende ressuscitar o culto dos deuses antigos.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, com outro aceno de mão desesperado. - Como se isso fosse possível! Os deuses antigos! Imagine-se! Que são eles senão ilusões mortas? E feias, repulsivas! Sempre pensei que meu marido fosse inteligente, muito superior a mim, e é triste ter de mudar de opinião. Tudo aquilo é um disparate. E ele atreve-se a tomar a sério o que não passa de um disparate!
- Talvez Don Ramon creia...
- Mas como pode ele crer? - replicou a dona da casa, com um sorriso desdenhoso. - É instruído, não pode acreditar em semelhante tolice.
- Então qual é o seu objectivo?
- Isso é que eu gostaria de saber. - Na voz de Dona Carlota transparecia indizível cansaço. - Penso que está louco, como acontece a tantos mexicanos. Louco como o bandido Francisco Villa.
Lembrando-se do rosto simiesco do famoso Pancho Villa, Kate não foi capaz de o associar a Don Ramon.
- Desde que se elevam na sociedade os mexicanos perdem a cabeça, o orgulho transtorna-os. Não pensam em mais nada senão na sua importância. Pura vaidade masculina. Não acha, señora, que a vaidade é o começo e o fim do homem? Jesus veio ao mundo para combater esse perigo, ensinando-nos a ser humildes. Por isso odeiam Cristo e os Seus ensinamentos, e deixam-se guiar pela vaidade durante toda a vida.
A mesma reflexão ocorrera a Kate muitas vezes, e concluíra que nos homens só existia vaidade. Precisavam de ser lisonjeados, de sentir a sua grandeza, nada mais.
- O que meu marido pretende é opor-se a Jesus, elevar o orgulho e a vaidade acima de Deus. Ah, é horrível! Horrível e infantil. Que são os homens senão crianças que necessitam dos cuidados da mãe? Ah, señora, é mais do que posso suportar!
Dona Carlota cobriu a cara com as mãos.
- Em todo o caso, acho o seu marido uma pessoa excepcional - disse Kate para a consolar, embora nesse momento detestasse Don Ramon.
- Sim, possui grandes qualidades, mas de que lhe servem se estão pervertidas?
- Explique-me ao certo: o que é que ele pretende, afinal?
- O poder, o poder absurdo e maléfico, como se já não houvesse bastantes poderes maléficos por todo este país. Quer ser mais do que os outros, adorado, venerado. Um deus! Ele, a quem embalei nos braços como uma criança, querer que o adorem!
E Dona Carlota desatou num riso estridente pontuado de soluços.
Kate esperou que ela se acalmasse.
- No fim de contas - disse, quando a viu mais sossegada - não somos responsáveis pelo que fazem os maridos. Aprendi à minha custa que todo o amor é impotente perante a vontade dos homens. Meu marido quis morrer, e não pude impedi-lo... Temos de os deixar fazer tudo o que querem, até as coisas que nos parecem insensatas.
Dona Carlota ergueu os olhos para Kate.
- Gostava muito do seu marido... e ele morreu? - perguntou em voz suave.
- Amei-o deveras, e não tornarei a gostar doutro homem. Perdi a faculdade de amar.
- De que morreu?
- Por sua culpa. Despedaçou o coração e a alma com a política irlandesa. Eu sabia que ele fazia mal em se ocupar disso. Que nos importava a Irlanda, o nacionalismo, as revoluções e todas essas tolices? Ah, se o Joachim se limitasse a viver em paz comigo, poderíamos ser tão felizes! Em vão tentei convencê-lo. Queria matar-se com aquela estúpida política, e não consegui evitá-lo. Foram inúteis todos os meus esforços.
Dona Carlota olhou fixamente para Kate.
- Assim como são os meus para impedir que Ramon proceda mal e se mate... E depois de morto, de que servirá tudo aquilo?
- De nada. Depois de eles morrerem, ficamos a saber que foi inútil todo o trabalho que tiveram.
- Oh, señora! Se pode ajudar-me a salvar Ramon, ajude-me! É uma questão de vida ou de morte para nós ambos. Porque eu morrerei se ele levar a sua avante...
- Explique-me bem qual é a ideia de Don Ramon. A do meu marido era libertar a Irlanda e engrandecer o povo. Mas eu nunca acreditei que os irlandeses fossem jamais um grande povo nem que se pudesse torná-lo livre. Só sabe destruir, e destruir estupidamente. Não se pode fazer livre um povo que o não é. Existe nele qualquer coisa que o impele à destruição.
- Bem sei, bem sei. Da mesma forma é Ramon. Até quer destruir Jesus e a Virgem Maria por amor do povo. Imagine! Derrotar Jesus e a Virgem! A última coisa que se podia pensar...
- Mas o que diz ele quanto ao seu projecto?
- Diz que pretende estabelecer um novo nexo entre o povo e Deus. Declara, por seu lado, que Deus é sempre Deus, mas que o homem perdeu a sua união com a divindade... e que não é possível restaurá-la sem que venha um novo Deus. E que qualquer novo nexo tem de ser diferente do antigo, embora Deus continue a ser Deus. Neste momento, declara meu marido, o povo perdeu o seu Deus. O Salvador já não será capaz de o reconduzir a Si. Precisa-se de outro Salvador, com uma nova visão. Ah, señora, eu não creio nisto! Deus é amor e, se Ramon se submetesse, ao menos, ao amor, compreenderia que aí é que estava Deus. Mas qual! É tão perverso! Poderíamos, ambos, com amor calmo, gozando a beleza do mundo, esperar pelo amor de Deus... Porque é, señora, que ele não vê isto? Oh, porque não compreende? Em vez de fazer estas coisas...
Acudiram lágrimas aos olhos de Dona Carlota, as quais se lhe espalharam pelo rosto. Kate também chorava.
- É inútil! - disse ela, soluçando. - Sei que é inútil, faça-se o que se fizer. Não querem ser felizes e estar em paz, mas sim esta luta e esses falsos e horríveis nexos... Sim, é inútil, de qualquer forma. E nisto é que está o pior.
E as duas mulheres, sentadas nas cadeiras de baloiço, soluçavam amargamente quando ouviram passos no terraço, leve ruído de pés calçados de sandálias.
Era Don Ramon, atraído inconscientemente pelo clamor daquelas criaturas pesarosas.
Dona Carlota limpou a toda a pressa os olhos e o nariz; Kate assoou-se com estrondo. No limiar da porta, Don Ramon deteve-se.
Trajava como os camponeses, todo de branco, de casaco largo e calças muito amplas. O fato era de linho, com certa goma, e tinha um brilho estranho, fora do vulgar. Por baixo do casaco, à frente, uniam-se as pontas duma faixa estreita de lã, também branca, franjada de vermelho e riscada de azul e preto. Nos pés sem meias trazia huaraches de coiro azul e negro, entrançado, com espessas solas tingidas de vermelhão. As calças estavam presas aos tornozelos por alamares de lã pretos, azuis e encarnados.
Kate, vendo-o assim à claridade do sol, vestido de uma alvura tão ofuscante, teve a impressão de que o rosto dele, escuro e emoldurado de cabelos escuros, fazia como que um buraco na atmosfera.
Don Ramon aproximou-se, com as pontas da faixa a baterem-lhe nas pernas, e as sandálias rangendo de leve.
- Muito prazer em encontrá-la - murmurou, apertando a mão da visitante. - Como veio?
Deixou-se cair numa cadeira e ficou imóvel. As duas senhoras baixaram a cabeça, como se quisessem esconder a cara. A presença do homem ainda as constrangia mais, porém o dono da casa fingiu não reparar na comoção que sentiam e fê-lo por um acto de pura vontade. Da sua presença emanava certa força e elas experimentaram um pouco de alívio.
- Não sabia que o meu marido se tornara num aldeão, num verdadeiro peón? - perguntou Dona Carlota, irónica, à sua hóspeda. - É um señor peón, como o conde Tolstoi se fez señor mujique...
- Mas fica-lhe bem - observou Kate.
- Ora aí está... Ao diabo o que é do diabo... - replicou Don Ramon.
Havia nele algo de tenaz, de inflexível. Riu, e falou às senhoras, mas sem se revelar muito, apenas superficialmente. O seu ser íntimo, insondável e poderoso, não entrava em contacto com elas.
Assim foi durante o almoço. Houve conversa esvoaçante, com intervalos de silêncio. Nesse silêncio percebia-se que Don Ramon vivia noutro mundo; e a sua vontade calma, obrando noutra esfera, fazia recuar as mulheres para a sombra.
- A señora é como eu, Ramon - disse Dona Carlota. - Não tolera o rufar do tambor. Irá continuar aquilo, pela tarde adiante?
Seguiu-se uma pausa antes que ele respondesse:
- Só depois das quatro horas.
- Temos, então, de aturar hoje esse barulho? - insistiu Dona Carlota.
- Porque não há-de ser hoje como nos outros dias? - ripostou o marido. Notava-se-lhe um ar contrariado. Era evidente que pretendia subtrair-se à presença daquelas duas.
- Porque a senhora está cá, e eu estou também, e porque nenhuma de nós gosta daquele som. Amanhã já ela se vai embora, e eu regresso à cidade. Porque não nos poupas esse tormento? E
Ramon fitou a mulher, e em seguida Kate. Os olhos denotavam cólera. Kate quase ouvia, naquele peito forte, o coração inchar de furor. Mas calou-se e a outra também se calou. No fundo, estavam satisfeitas por terem podido despertar a ira do homem.
Mantendo o sangue-frio, Don Ramon inquiriu da esposa (não sem que se lhe percebesse a indignação):
- Porque não levas a senhora Leslie até ao lago?
- Não nos apetece.
Ele então fez o que a irlandesa nunca vira ninguém fazer. Encerrou-se dentro de si mesmo, deixando às duas comensais a impressão de se encontrarem diante duma porta que se fechou. Kate sentiu-se abandonada e deprimida, mas a pouco e pouco a irritação tingiu-lhe as faces pálidas dum rubor de fogo.
- Posso ir-me embora antes das quatro horas - declarou.
- Não, não! - acudiu, suplicante, a dona da casa. - Não me deixe. Fique comigo até à noite e ajude-me a distrair Don Cipriano, que vem jantar connosco.

XI
Acabado o almoço, Ramon recolheu ao quarto para dormir a sesta. A tarde estava quente, pesada. No extremo oeste do lago erguiam-se nuvens cintilantes, quais mensageiros da tempestade. Ramon fechou as janelas do seu aposento de modo a obter negrume total; apenas aqui e ali, filtrando-se pelos interstícios da porta, os raios de luz pousavam nas trevas como uma coisa tangível.
Despiu a roupa e ergueu acima da cabeça os punhos fechados, como se orasse intensamente e de pé. Nos seus olhos só havia escuridão, e a pouco e pouco essa escuridão atingiu-lhe o cérebro, apagando-lhe todos os pensamentos. Só uma vontade poderosa se distendia e emanava da espinha dorsal, numa tensão sobre-humana até que as flechas da alma atingiram o alvo e a oração a sua meta.
Então, bruscamente, tombaram os braços trémulos, o corpo readquiriu a flexibilidade. O homem recuperara a sua força. Quebrara as cordas do mundo e sentia-se livre e senhor da outra força.
Devagarinho, com precaução, esforçando-se por não pensar, não se recordar, não despertar as serpentes venenosas da consciência, enrolou-se num cobertor delgado e estendeu-se no chão sobre uma pilha de coxins. Daí a instantes, adormecia.
Dormiu profundamente cerca de uma hora. Abriu os olhos de repente, viu as trevas aveludadas e as frechas de luz diminuídas: o sol mudara. Pôs-se à escuta. Parecia não haver um único som no mundo. Talvez não existisse mundo...
Então começou a ouvir. Distinguiu o débil rumor duma carroça, folhas sussurrando ao vento, o som distante de pancadas, o pio duma ave.
Levantou-se, vestiu-se com rapidez às escuras e foi abrir as janelas. A tarde ia em meio; soprava uma aragem quente, amontoavam-se a oeste nuvens escuras, mas a chuva não se decidia a cair. Ramon pôs na cabeça um chapéu de palha, que tinha à frente um enfeite de penas brancas, pretas e azuis dispostas em forma de olho, ou de sol. Ouviu vozes femininas. Ah, a estrangeira! Esquecera-a por completo. E Carlota! Carlota encontrava-se ali. Por um momento, pensou nela e na sua caprichosa oposição. Depois, antes que a ira o dominasse, soergueu o peito, em nova oração muda, os olhos sombrearam-se-lhe - e perdeu a impressão de contrariedade.
Seguiu pelo terraço até à escada de pedra que conduzia à entrada e atravessou o pátio, onde dois homens, debaixo dum alpendre, carregavam azêmolas com fardos de bananas. No zaguán dormiam soldados. Pelas portas abertas, Ramon viu ao fundo da alameda um carro de bois afastando-se lentamente. No pátio ressoavam marteladas numa bigorna: era um homem e um rapazito ocupados na forja. Noutro alpendre, um carpinteiro aplainava tábuas.
Don Ramon deteve-se um momento para olhar em volta. Aquele era o seu mundo. O espírito dele espraiava-se nesse mundo como uma sombra fomentadora, e o silêncio do seu próprio poder dava-lhe paz.
Os homens que trabalhavam tiveram quase instantaneamente consciência da presença do patrão. Um após outro, os rostos escuros e ardentes ergueram-se para ele e voltaram a baixar-se. Gostavam de o ver ali, mas temiam aproximar-se e nem se atreviam a um olhar mais prolongado. Retomaram o trabalho com mais ardor, como se a presença do patrão lhes desse novo alento.
Ramon dirigiu-se para a forja, onde o rapazinho dava ao fole e o homem batia pancadas leves e rápidas num pedaço de ferro.
- É a ave? - perguntou Ramon.
- Sim, patrón, é a ave. Está bem! - E o homem levantou os olhos pretos, luzidios, expectantes. com uma tenaz, brandiu a tira de metal, negra, em forma de língua achatada, e Ramon observou-a demoradamente. - As asas ponho-as depois - explicou o ferreiro.
com as mãos escuras e nervosas, Don Ramon traçou uma linha imaginária em volta do pedaço de ferro. Três vezes fez esse gesto, que parecia fascinar o ferreiro.
- Um pouco mais alongado. Assim... - disse Ramon.
- Sim, patrón, compreendo.
- E o resto?
- Está ali. - O homem apontou para dois arcos, um maior que outro, e para várias chapas de ferro triangulares.
- Coloca tudo isso no chão.
O ferreiro pousou os arcos, um dentro do outro, e em seguida dispôs com perícia os triângulos de modo que as bases ficassem sobre o arco exterior e os vértices no círculo interior. Eram sete.
Assim formaram um sol de sete pontas.
- Agora, a ave - ordenou Ramon.
O homem pegou logo na peça comprida: era a forma rudimentar dum pássaro, com dois pés mas ainda sem asas. Colocou-a no centro da roda interior, de maneira que as patas tocassem no círculo e a cabeça atingisse a parte oposta.
- Está tudo certo!
Ramon contemplava o símbolo de ferro armado no chão quando ouviu abrir a porta de casa. Kate e Carlota avançaram através do pátio.
- Retiro isto? - inquiriu o ferreiro.
- Deixa, não faz mal - respondeu Don Ramon tranquilamente.
Kate deteve-se a observar aquela coisa estendida no chão.
- Que é isso? - perguntou.
- A ave dentro do sol.
- Representa uma ave?
- Quando tiver asas.
- Ah, faltam-lhe as asas! E de que serve?
- É um símbolo para o povo.
- é bem bonito...
- Sim, é bonito.
- Ramon, não te importas dar-me a chave para tirar o barco?
- disse Dona Carlota. - Vamos dar um passeio no lago, e Martin remará.
O marido tirou a chave da cinta.
- Onde descobriu essa linda faixa? - indagou Kate. Era branca, com riscas azuis e pretas e franjadade vermelho.
- Teceram-na aqui - informou Don Ramon.
- E as sandálias? Também as fizeram cá?
- Sim, foi obra do Manuel. Mais tarde lho mostrarei...
- Gostaria bastante de ver. São belíssimas, não acha, Dona Carlota?
- Acho, mas não sei se as coisas belas são sensatas. Não sei. E a señora, sabe o que é sensato?
- Eu? - volveu Kate. - Não me preocupo muito com isso.
- Ah, não se preocupa! Afigura-se-lhe então sensato da parte de Ramon usar traje de camponês e huaraches?
Pela primeira vez, Dona Carlota exprimira-se em língua inglesa, falando com lentidão.
- Fica-lhe tão bem! - replicou Kate. - O fato de homem é medonho e Don Ramon parece magnífico com este.
De facto, com o largo chapéu pousado na cabeça ele tinha certo ar de nobreza e autoridade.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, fixando na companheira o seu olhar inteligente, enquanto brincava com a chave. - Vamos para o lago?
As duas mulheres afastaram-se. Rindo consigo mesmo, Ramon atravessou o pátio e dirigiu-se a uma granja construída perto das árvores. Entrou e assobiou baixinho. Soou outro assobio como resposta e abriu-se um alçapão. Don Ramon subiu a escada e encontrou-se numa espécie de oficina de carpinteiro. Acolheu-o um rapaz corpulento, de cabelo encaracolado, que empunhava maço e escopro.
- Que tal vai isso? - perguntou Ramon.
- Vai bem.
O artista esculpia uma cabeça de madeira. Uma cabeça avantajada, convencional, mas que, apesar do convencionalismo, revelava semelhança com Ramon.
- Sirva-me de modelo durante meia hora - disse o escultor. Ramon sentou-se e ficou silencioso, enquanto o outro, curvado
sobre a sua obra, se concentrava no trabalho. Durante todo aquele tempo, Don Ramon conservou-se erecto, quase imóvel, sem pensar em nada, mas irradiando um halo sombrio de poder que fascinava o artista.
- Basta - declarou por fim, levantando-se.
- Mas ponha-se na posição antes de se ir embora - pediu o artista.
Ramon despiu lentamente o casaco e ficou de torso nu, com a faixa raiada de azul e preto de roda da cintura. Por uns instantes pareceu recolher-se e, em seguida, como se numa oração intensa e orgulhosa, ergueu o braço direito por cima da cabeça e ficou transfigurado. O braço esquerdo pendia molemente ao longo do quadril. E no rosto, esse ar de orgulho fixo e intenso que era em si mesmo uma oração.
O escultor observava-o admirado e quase temeroso. Aquele homem grande e enérgico, com os seus olhos negros dilatados pelo orgulho e no entanto cheios de oração, despertava no escultor um frémito de alegria e de medo.
Don Ramon voltou-se para ele.
- Agora, você!
O artista, assustado, quis esquivar-se, mas encontrou o olhar de Ramon e, no mesmo instante, a calma da concentração desceu sobre ele, como um êxtase. Então, bruscamente, ergueu o braço, e a face pálida e nédia adquiriu uma expressão de paz e dignidade. Os olhos cinzento-azulados, serenos e altivos, dirigiam ao Além a sua oração. E embora estivesse com a bata de trabalho, e não fosse esbelto, apresentava uma imobilidade perfeita, plena de nobreza.
- Muito bem - disse Ramon, baixando a cabeça.
O escultor moveu-se de súbito. Ramon estendeu-lhe as duas mãos e ele, levantando-lhe a dextra, pousou-a na fronte.
- Adiós! - disse Ramon, depois de enfiar o casaco.
- Adiós - respondeu o artista. E com a felicidade estampada no rosto, voltou para o trabalho.
Don Ramon visitou a casa de adobe, cujo pátio era rodeado duma paliçada de canas e sombreado por uma gigantesca mangueira. Manuel, a mulher, os filhos e dois ajudantes estavam a fiar e a tecer. Debaixo das bananeiras, duas pequenas cardavam lã branca e castanha. A mulher e uma rapariga fiavam. Numa corda secava lã tingida, vermelha, azul e verde. E, no alpendre, Manuel e um rapaz manobravam dois pesados teares.
- Como vai isso? - inquiriu Don Ramon.
- Muy bien! Muy bien! - respondeu Manuel, com uma expressão transfigurada cintilando-lhe nas pupilas negras. - Muito bem, señor!
Ramon examinou a serape que estavam a tecer. Tinha uma barra em ziguezague de lã preta natural e, em cada ponta, um ornato complicado, azul e preto. O homem começara o centro, a que chamam boca, e olhava de instante a instante para o desenho pregado no tear. Aliás, era um desenho simples, igual ao símbolo de que o ferreiro se ocupava: uma serpente a morder a cauda e, de volta, triângulos negros cujas bases se apoiavam num círculo exterior; ao meio uma águia azul, com as asas e os pés tocando no arco formado pela serpente.
Ramon voltou a casa, dirigindo-se para a ala onde se encontrava o seu quarto. Lançou uma manta dobrada sobre o ombro e seguiu pelo terraço. No extremo dessa ala, projectando-se para o lago, havia outro terraço, este quadrado, com uma bignónia cor de coral pendente dos pilares maciços. A loggia estava juncada de esteiras e, a um canto, via-se um tambor e respectiva baqueta. No ângulo mais afastado mergulhava uma escada de pedra, fechada em baixo por uma porta de ferro.
Ramon ficou uns momentos a olhar para o lago. As nuvens dispersavam-se e o lençol de água reflectiu uma claridade esbranquiçada. Ao longe, via-se a mancha de um barco, onde provavelmente se encontravam Martin e as duas senhoras.
Tirou o chapéu e o casaco, e permaneceu imóvel, nu da cintura para cima. Então pegou na baqueta e, depois de esperar uns segundos, até adquirir paz de alma, fez soar o apelo do tambor, num ritmo alternado, forte e fraco. Captara o antigo poder bárbaro de certos rufos.
Assim esteve durante algum tempo, sozinho, tocando tambor com a mão direita, de face inexpressiva.
Acorreu um homem, de cabeça descoberta, vindo do outro terraço. Trazia fato de brancura imaculada, serape escura ao ombro, e uma chave na mão. Saudou Ramon, levando à testa as costas da mão direita, e depois desceu a escada e abriu a porta de ferro.
Imediatamente chegaram homens, todos vestidos de branco, cada qual com a sua serape dobrada em cima dos ombros. Mas as faixas eram azuis, e as sandálias azuis e brancas. O escultor apareceu, assim como Martin.
Eram sete, além de Ramon. No topo da escada saudaram-no, um apôs outro. Em seguida, depuseram a manta e o chapéu no murinho do terraço e despiram o casaco, que atiraram para cima dos chapéus.
Ramon largou o tambor e sentou-se sobre a sua manta raiada de azul e preto. Todos o imitaram, formando círculo, de pernas cruzadas e torso nu. Uns eram cor de café, outros brancos; Ramon tinha a pele dum tom castanho-claro. Conservaram-se em silêncio, só perturbado pelo som igual e hipnótico do tambor que um dos homens tocava. Então este começou a cantar numa vozinha estranha, contida, essa antiga voz de falsete dos índios:
"Quem dorme despertará. Quem dorme despertará. Quem segue o caminho da serpente há-de chegar ao seu destino; há-de chegar ao seu destino e ficará revestido com a pele da serpente."
Uma por uma, outras vozes se juntaram, até que todos se fizeram ouvir, naquele ritmo cego, infalível, do antigo mundo bárbaro. E todos com idêntica voz interior, como se a alma cantasse para si própria.
Cantaram por momentos, em uníssono, qual bando de pássaros a voar levados pelo mesmo instinto. E quando o tambor vibrou num rufo que era o final da cerimónia, as vozes extinguiram-se também, simultâneas, com um estrangulamento na garganta.
Houve um silêncio. Depois os homens principiaram a conversar uns com os outros, rindo em surdina. Mas a voz deles e a expressão já não eram as mesmas de há pouco.
Don Ramon ia falar e todos se calaram, inclinando a cabeça. Aquele sentara-se, de face erguida, visando ao longe, na dignidade da oração.
- Não há Passado nem Futuro, só existe o Presente - disse em tom surdo, majestoso. - A Serpente magna dobra e desdobra os seus anéis, as estrelas surgem, os mundos desaparecem. Há somente a mudança e o repouso do plasma.
Eu sou sempre, diz o seu sono.
Assim como o homem, enquanto dorme, não tem conhecimento, mas é, também a Serpente enroscada do eterno Cosmos prolonga o seu existir de Agora.
Agora, agora só, e para sempre Agora.
Contudo os sonhos despertam e esmorecem no sono da Serpente.
E o Universo eleva-se como os sonhos e como eles expira.
E o homem é um sonho no sono da Serpente.
E apenas o sono que não tem sonhos murmura: Eu sou!
E no Agora sem sonhos, Eu sou.
Os sonhos despertam, como devem, e o homem é um sonho desperto.
Mas o plasma sem sonhos da Serpente é o plasma do homem, do seu corpo e ao mesmo tempo da sua alma.
E o sonho perfeito da Serpente Eu sou é o plasma do homem, que é íntegro.
Quando o plasma do corpo e o da alma só fazem um, Eu sou na Serpente.
Agora Eu sou.
Não foi é um sonho, assim como será, quais dois pés trôpegos e separados.
Mas Agora. Eu sou.
As árvores desdobram as folhas no sono, e a floração emerge dos sonhos no mais puro Eu sou.
Os pássaros esquecem o peso dos seus sonhos e cantam no Agora: Eu sou! Eu sou!
Porque os sonhos têm asas e pés e caminhos a percorrer, e esforços a realizar.
Mas a Serpente luzidia do Agora não tem asas nem pés, é una, perfeitamente enrolada.
Nos pés dum sonho, a lebre sobe o monte numa corrida. Mas quando se detém o sonho desaparece e ela entra no Presente e os seus olhos são o vasto Eu sou.
Só o homem sonha, sonha, e vai de sonho em sonho, como alguém que, dormindo, se agita no leito.
Sonha com os olhos e a boca, com as mãos e os pés, com o falo, o coração e o ventre, com o corpo e a alma, numa tempestade de sonhos.
E precipita-se de sonho para sonho, na esperança de alcançar o sonho perfeito.
Mas eu afirmo-vos que nenhum sonho é perfeito, porque em todos eles há sofrimento e desejo.
Nada é perfeito, excepto o sonho que falece no sono. Eu sou.
Quando o sonho dos olhos se obscurece, cercado pelo Agora,
E quando o sonho da boca ressoa no último Eu sou,
E quando o sonho das mãos dormita como uma ave no mar, que é erguida, e levada, sem que ela o saiba,
E os sonhos dos pés atingem o centro do mundo, onde a Serpente dorme,
E o sonho do corpo é a calma duma flor oculta,
E o sonho da alma se dissipou no perfume do Agora,
E o sonho do espírito se apazigua e descansa na Estrela da Manhã,
Porque cada sonho começa e termina no Presente,
No âmago da flor está a Serpente que alumia e não desperta.
E o que se apaga é um sonho, e o que se aumenta é um sonho. Há sempre, e somente Agora. Agora e Eu sou."
Reinava o maior silêncio no círculo de homens. Lá fora, rangia um carro de bois e, do lago, elevava-se o débil som de remos a fender a água. Mas os sete homens, de cabeça baixa, escutavam interiormente, numa espécie de transe.
Então o tambor começou, suavemente, e um dos homens cantou, num fio de voz:
O senhor da Estrela da Manhã
Estava entre o dia e a noite:
Tal um pássaro que ergue as asas e espera
com a asa luminosa à direita
E a das trevas à esquerda,
A Estrela de Alva apareceu.
- Olhai! Estou sempre aqui!
Longe, no espaço
Roço a asa do dia
E ilumino o vosso rosto.
com a outra asa roço a sombra.
Mas eu estou sempre aqui.
Estou sempre aqui. Sou o senhor. E os senhores entre os homens Vêem-me no cintilar das minhas asas. E perdem-me outra vez. Mas, olhai! Estou sempre aqui.
As multidões não me vêem. Só vêem o bater de asas, As idas e vindas das coisas, O calor e o frio.
Mas a vós que me vedes entre
O frémito da noite e do dia,
Faço-vos senhores do Caminho Invisível.
Caminho entre abismos de trevas e vales de luz; Caminho que segue tal rasto de serpente, tal a mecha dum rastilho
Que incendiará à substância das trevas e explodirá à vista de todos.
Jamais me afasto. Estou sempre aqui Entre as asas dum voo sem fim, Nas profundezas da paz e da luta.
Profundo no relento da paz,
Longe da orla do combate,
Haveis de encontrar-me, eu que não sou
Nem sou destruição.
Para além eu estou Dos horizontes de amor e de luta, Como uma estrela, como uma fonte Que lava os senhores da vida.
"Ouvi! - disse Ramon, no meio do silêncio. - Seremos senhores entre os homens, não os senhores dos homens. Somos senhores da noite. Senhores do dia e da noite. Filhos da Estrela da Manhã e da Estrela da Tarde.
Não somos senhores dos homens. Eu, porém, sou a Estrela da Manhã e Senhor do dia e da noite. com o poder que me foi concedido à mão esquerda e com o poder que obtive com a mão direita, sou senhor dos dois rumos.
E a minha flor na terra é o jasmim, e no céu a hespéride.
Não vos darei ordens, nem vos servirei, porque a serpente se arqueia em direcção à sua casa.
Contudo, estarei convosco, para que não vos desvieis de vós próprios.
Não há nada a dar nem a receber. Quando os dedos que dão afloram os que recebem, cintila a Estrela da Manhã a esse contacto, e o jasmim brilha entre as mãos. E assim não há dom nem aceitação, nem mão que oferece nem mão que recebe, mas a estrela encontra-se entre elas e a mão escura e a mão clara permanecem invisíveis de cada lado. O jasmim recolhe na corola o dom e a aceitação, e o seu perfume espalha-se no ar.
Não penseis em dar nem em receber, deixai isso à flor do jasmineiro.
Não vos desperdiceis, que nada vos seja arrancado.
E não percais nada, nem o aroma da rosa, nem o sumo da romã, nem o calor do fogo.
Mas dizei à rosa: - Olha, colho-te, e o teu perfume enche-me as narinas e o meu hálito penetra no teu coração. Que isso seja entre nós como um sacramento.
E tomai cuidado quando abrirdes a romã; é o Sol poente que tendes nas mãos. Dizei: - Eis-me aqui, vem! Que a Estrela da Tarde fique entre nós.
E quando a chama se eleva ao sopro do vento frio e estendeis as mãos para o calor, ouvi o que a chama diz: - Ah! És tu? És tu que vens para mim? Eu realizava a grande viagem, seguindo o caminho da serpente magna. Mas visto que vens até mim, de ti me aproximo. E se caíres nas minhas mãos cairei nas tuas, e a flor do jasmineiro perfumará o nosso encontro.
Não repilais nada nem deixeis que vos despojem. Porque repelir ou ser despojado quebra a raiz do jasmim e conspurca a Estrela da Tarde.
Não vos apodereis de nada para dizer: - Isto pertence-me. Nada existe que vos seja dado possuir, nem sequer a paz.
Nada; nem o ouro, nem a terra, nem o amor, nem a vida, nem a dor, nem a morte, nem a salvação.
De nada direis: - Isto é meu.
Dizei apenas: - Isto está comigo.
Porque o ouro só permanece convosco o espaço duma lua, e olha-vos e diz: - Encontramo-nos ligados por este breve instante.
E a terra diz-vos: - Ah, filho meu, de pai longínquo! Vem, revolve-me um pouco, para que as papoulas e o trigo cresçam e ondulem ao vento que sopra entre o meu e o teu peito. Depois, abisma-te em mim, e ambos formaremos um outeiro.
E ouvi o que diz o vosso amor: - A tua espada ceifou-me como à erva, e sobre mim está a sombra e o bruxulear da Estrela da Tarde. Não é mais do que trevas e nada. Ó tu, quando te levantares e prosseguires o teu caminho, fala-me, dize-me simplesmente: - A estrela despontou entre nós.
E dizei à vida: - Sou teu? És minha? Sou a orla do dia em volta da noite? São os meus olhos o crepúsculo onde a estrela se suspende? É o meu lábio superior o pôr do Sol e o meu lábio inferior o raiar da manhã? Tremula a estrela na minha boca?
E dizei à vossa paz: Ergue-te, estrela imortal! Já as águas da aurora te alagam e me levam no seu curso.
E dizei à dor: Machado, abates-me. E, contudo, brota uma centelha do teu gume e da minha ferida. Corta, então, que eu velarei a face, ó pai da estrela!
E dizei à vossa força: A espuma da noite sobe-me dos pés até aos rins, a espuma do dia salta-me dos olhos e da boca para o mar do meu peito. As minhas entranhas são um manancial de poder que corre pela espinha dorsal. E uma estrela flutua sobre esse fluxo.
E dizei à vossa morte: Pois seja! Eu e a minha alma iremos para ti, Estrela da Tarde. Carne, desaparece na sombra da noite. Espírito, chegou o teu dia. Deixai-me agora. Na minha nudez suprema me encaminho para a Estrela mais nua."

XII
Os homens envergaram o casaco, puseram o chapéu e, depois de cobrirem os olhos por um momento numa saudação a Ramon, desceram a escada de pedra. Fechou-se a porta com estrondo e o porteiro, voltando com a chave, pousou-a sobre o tambor e retirou-se discretamente.
Ramon ficou sentado em cima da manta, com os ombros nus apoiados à parede e de pálpebras cerradas. Sentia-se fatigado, nesse estado de abstracção que torna difícil o regresso ao mundo normal. Ouvia de modo vago os rumores na casa, tilintar de colheres de chá, vozes femininas conversando, o ronco dum automóvel que se aproximava pelo caminho desnivelado e se detinha no pátio.
Custava-lhe voltar à terra. Ressoava-lhe aos ouvidos o barulho do exterior, mas dentro dele mesmo escutava o murmúrio confuso do universo, como se num búzio. Era-lhe penoso retomar contacto com as coisas da vida corrente quando o corpo e a alma mergulhavam no cosmos.
Gostaria de se conservar ainda uns instantes no seu isolamento, mas não era possível. Reclamavam a sua presença, especialmente Carlota.
Já ela o chamava: "Ramon! Isso terminou? Cipriano está aqui." Sentia-se-lhe na voz receio e temeridade.
Ramon puxou os cabelos para trás, ergueu-se e, em passo rápido, acudiu ao chamamento tal como se encontrava, de torso nu. Não tinha vontade de se vestir, de reentrar nos pormenores da vida quotidiana.
Cipriano, fardado, achava-se no terraço abancado à mesa do chá. Levantou-se prontamente e avançou para Ramon de braços abertos, perscrutando o rosto do amigo com os seus olhos negros e brilhantes.


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Os dois homens abraçaram-se, peito contra peito, e, por momentos, Cipriano deixou estar as mãos morenas nas espáduas nuas de Ramon. Então afastou-se devagar e fitou-o sem proferir uma palavra.
Ramon pousou distraidamente a mão no ombro de Cipriano.
- Que tal? - perguntou. - Como vai isso?
- Bien. Muy bien - respondeu Cipriano, fixando-o sempre como se se procurasse a si mesmo no semblante de Ramon. Este correspondeu ao olhar do índio com um leve sorriso, enquanto Cipriano baixava a cabeça e os cabelos longos lhe tombavam na testa.
As duas mulheres observavam a cena em silêncio absoluto. Quando os dois homens se aproximaram da mesa, Carlota começou a servir o chá. Mas as mãos tremiam-lhe e ela tratou de pousar o bule e cruzá-las no regaço.
- Passearam de barco? - indagou Ramon, com ar alheado.
- Passeámos, e foi muito agradável - disse Kate. - Um bocado quente, quando o sol apareceu...
Ramon esboçou um sorriso e alisou o cabelo. Em seguida, descansando a mão no parapeito do terraço, olhou para o lago e suspirou inconscientemente.
Nu da cintura para cima, voltava costas às mulheres, contemplando a vastidão da água. Cipriano estava a seu lado.
Kate observava as espáduas lisas, morenas, que emanavam sensualidade, os ombros largos, o porte altivo da cabeça - e não podia deixar de imaginar uma lâmina cravada nessas costas magníficas, nem que fosse só para destruir a sua arrogância distante.
Porque até a sua nudez parecia distante, intangível. Pensar nela e contemplada daquele modo representava quase uma violação. Kate sentiu de súbito o coração estremecer-lhe de vergonha. Fora assim que Salomé olhara para João Baptista, e Ramon possuía essa mesma beleza que evocava uma romã destacando-se na verdura sombria da árvore.
Soprava branda a aragem da tarde. Na luz nacarada deslizavam barcos, enquanto o Sol luzia ainda no horizonte. Distinguia-se a margem oposta, a cerca de vinte milhas, embora velasse a atmosfera uma bruma opalina que se confundia com a água do lago. Kate lobrigava a mancha clara da igreja de Tuliapan.
No jardim da casa havia um bosquete de mangueiras, onde voavam cá e lá passarinhos escarlates, como botões de papoula, e outros dum amarelo cintilante. Contudo, quando pousavam por um momento e fechavam as asas, desapareciam da vista, pois eram escuros por cima.
- Neste país, os pássaros só são coloridos por baixo das asas - observou Kate.
Ramon voltou-se bruscamente para ela.
- Dizem que a palavra México significa "por baixo" - replicou, sorrindo, enquanto se afundava numa cadeira de balouço.
Dona Carlota fizera um esforço sobre si mesma e, de olhos fixos nas chávenas, servia o chá. Apresentou uma xícara ao marido, sem sequer o relancear. Tremia de cólera quase histérica. Ela, que era sua esposa desde tantos anos e que o conhecia tão bem (ah, se o conhecia!), nada possuía desse homem.
- Passa-me o açúcar, Carlota - disse Ramon na sua voz calma.
A mulher sobressaltou-se como se a beliscassem de repente.
- O açúcar? - repetiu, distraída.
Ramon estava sentado na cadeira, pendido para a frente e de xícara na mão. A tela fina que lhe cobria as coxas revelava-lhe mais o corpo do que a nudez do torso. Kate percebeu porque é que era proibido usar calças de algodão naplaza. Tornavam mais sensível a presença da carne.
Verdadeiramente belo, duma beleza que chegava a ser assustadora, irradiava uma sensualidade pura, hostil ao género de pureza de Kate, com a sua faixa azul de roda da cinta e as calças brancas parecendo fremir de vida cingidas aos quadris e às coxas. Tão poderoso fluido emitia esse ente másculo que Kate se sentia como que fascinada.
E ele, perfeitamente tranquilo, dentro do seu próprio ambiente. O mesmo acontecia a Cipriano. Ambos tão calmos, tão sombrios, dir-se-iam esmagar as duas mulheres.
Kate compreendeu então os sentimentos de Salomé. Compreendeu como João Baptista, com a sua beleza distante e inacessível, exercera tamanho poder.
"Ah! disse ela consigo mesma. - Tenho de fechar os olhos e abrir a alma. Fechar os olhos para não ver e ficar na escuridão e no silêncio junto destes dois homens. Possuem uma riqueza que me falta. Conseguiram libertar-se do desejo que a vista suscita. Sou atormentada pelo desejo, pela minha imaginação lasciva. É a maldição de Eva. Os meus olhos, a minha experiência são como um anzol que me repuxa a carne e me desperta espasmos de desejo. Oh, quem me dera libertar-me da impureza do olhar! Filha de Eva, porque é que estes homens me não arrancam às visões impuras?"
Levantou-se e dirigiu-se à beira do terraço. Amarelos como narcisos, emergiam dois pássaros da sua própria invisibilidade. Na praia de seixos, onde estava um barco varado, dois homens apanhavam à rede os peixinhos denominados chcirales, que cintilavam na água acastanhada como lascas de vidro.
- Ramon! - disse Dona Carlota. - Não vais vestir-te? Já não podia suportar aquela vista.
- vou. Obrigado pelo chá - respondeu o marido, pondo-se de pé. E seguiu pelo terraço adiante, com as sandálias a ranger de leve no pavimento de tijolos.
- señora Caterina! - chamou Carlota. - Venha beber o seu chá.
Kate voltou para a mesa, dizendo:
- Que paz se sente aqui!
- Paz! - repetiu Carlota. - Não acho paz nenhuma. O que há é um silêncio pavoroso que me causa arrepios.
- Vem cá frequentemente? - perguntou Kate a Cipriano.
- Sim, uma ou duas vezes por semana - respondeu ele, fixando-a com singular expressão nos olhos negros.
Dir-se-ia que esses homens procuravam anular-lhe a vontade.
- São horas de eu voltar para casa - declarou ela. - Não tarda que o Sol desapareça.
- Ya va? - redarguiu Cipriano, com a sua voz aveludada em que transparecia certa pena. - Já!
- Oh, não, señora! - exclamou Carlota. - Fique connosco até amanhã.
- Mas estão em casa à minha espera.
- Mandarei um rapaz prevenir que só regressa amanhã. Fica, não é verdade? Ah, ainda bem.
E Carlota, depois de pousar a mão carinhosa no braço de Kate, levantou-se a fim de avisar os criados.
Cipriano puxou da cigarreira e ofereceu-a a Kate.
- Não se escandalizará se eu fumar? - disse ela. - É um dos meus vícios.
- Fume. Não é bom sermos perfeitos.
- Acha que não? - E Kate, rindo-se, puxou uma fumaça do cigarro.
- Experimenta realmente essa paz? -inquiriu ele, irónico.
- Porquê?
- Porque é que os brancos andam sempre em busca da paz?
- Pois não é natural que todos desejem paz?
- Paz é apenas o descanso depois da guerra. Não é mais natural do que a luta; talvez até seja menos.
- Mas existe outra paz, aquela que ultrapassa o entendimento. Não sabia?
- Parece-me que não - respondeu Cipriano. - Que pena!
: - Ah! Quer ensinar-me? Mas para mim é diferente... Cada
homem tem dois espíritos. Um assemelha-se à aurora na época das chuvas, suave, fresca, húmida, com pássaros chilreando. O outro é como a estação seca, com a sua luz forte e ardente que parece nunca mais abrandar.
- Decerto prefere o primeiro.
- Não sei - replicou Cipriano. - O outro dura mais.
- Tenho a certeza que prefere a frescura da manhã - insistiu Kate.
- Não sei, não sei. - E esboçou um sorriso, deixando Kate
convencida de que ele de facto não sabia. - Na primeira fase vemos as flores nas suas hastes transbordantes de seiva. A flor desa brocha como uma face de mulher perfumada pelo desejo. Mas o sol começa a aquecer, e então tudo se modifica. As flores murcham e o peito do homem torna-se como um espelho de aço. Dentro dele tudo
- é escuridão, enroscando-se e desenroscando-se como uma cobra. As flores secaram nas hastes, as mulheres já não existem para o homem. Umas e outras desapareceram.
- Que pretende ele então? - perguntou Kate.
- Não sei. Talvez queira ser uma grande personagem, senhor de todos os povos...
- E porque não realiza essas aspirações?
Cipriano encolheu os ombros.
A señora assemelha-se à manhã de que lhe falei há pouco -
disse ele.
- Tenho quarenta anos - replicou Kate com um risinho amarelo.
O general tornou a encolher os ombros.
- Isso não interessa. O seu corpo parece o caule da flor a que
aludi, e o seu rosto será sempre a aurora na estação das chuvas.
- Porque me diz essas coisas? - volveu Kate, com involuntário e estranho tremor.
- E porque não hei-de dizer? A señora é tal uma manhã cheia de frescura, e estamos no fim da época seca...
Observava-a, e nos seus olhos brilhava o desejo, aliado a certa insolência.
Kate baixou a cabeça e balançou-se na cadeira.
- Gostaria de casar consigo - continuou Cipriano. - Se estivesse disposta a isso, desposá-la-ia.
- Não me parece que me torne a casar - ripostou Kate, anelante e de faces afogueadas.
- Quem sabe?
Ramon surgiu no terraço, com a sua bela serape dobrada sobre o ombro nu. Apoiou-se num dos pilares e contemplou Kate e Cipriano, o qual ergueu a vista e lhe dirigiu um sorriso em que transparecia a amizade que os ligava.
- Disse à señora Caterina que a desposaria se ela estivesse disposta a casar-se - declarou ele.
- É o que se chama falar sem rodeios - replicou Ramon, olhando para Cipriano com o mesmo sorriso amigo. Em seguida, o seu olhar pousou-se em Kate, enquanto o sorriso se alastrava e todo o seu rosto respirava compreensão. Cruzou os braços, como fazem os índios quando querem defender-se do frio; e a carne, dum tom castanho-claro, como ópio, formava saliências no peito largo, cheio e liso.
- Diz Don Cipriano que os Brancos só desejam a paz - proferiu Kate, fitando Ramon com deliberada impertinência. - Não se consideram brancos?
- Não mais brancos do que somos - respondeu Ramon, sorrindo. - Pelo menos, não duma brancura de lírio...
- E não buscam a paz?
- Por mim não penso nisso. Os mansos herdarão a terra, segundo a professia. Mas quem sou eu para lhes invejar a sua paz? Não señora. Por acaso pareço um evangelho de paz? Ou de guerra? A vida para mim não se resume nessas duas coisas.
- Não sei afinal o que desejam - disse Kate.
- Nós próprios não o sabemos senão em parte - replicou Ramon, mudando de expressão.
Havia nele uma espécie de bondade paternal que enchia Kate de espanto e a sobressaltava como se só agora compreendesse o verdadeiro significado de tal sentimento. Mistério, nobreza, inacessibilidade, e a vulnerável compaixão de homem na sua amizade desinteressada...
- Não gosta das pessoas de pele escura? - perguntou Ramon em tom suave.
- Acho-as belas à vista - respondeu Kate. - Mas - acrescentou, com um leve arrepio - estou contente por ser branca.
- Sente que não é possível nenhum contacto?
- Exactamente.
- É a sua impressão - volveu Ramon, e, enquanto ele falava, Kate percebeu que o considerava mais atraente do que a qualquer homem loiro e que, por muito vago que fosse, o contacto que tinha com ele lhe era mais precioso do que todos os que até aí conhecera.
Contudo, embora lhe lançasse certa sombra, não tentava influenciá-la, nem queria maior aproximação - ao passo que Cipriano, sentindo-se incompleto, a procurava e parecia violar-lhe a personalidade.
À voz de Ramon, Dona Carlota assomou a uma das portas mas, ouvindo falar inglês, tornou a sumir-se, num brusco acesso de cólera. Daí a pouco reaparecia, trazendo um vaso de flores carnudas, dum branco leitoso, semelhantes a frésias no tom e no perfume.
- Que lindas! - exclamou Kate. - São flores de igreja! No Ceilão, os indígenas entram nos seus templos e depõem uma flor num tabuleiro aos pés do Buda. E os tabuleiros das oferendas ficam cobertos dessas flores, todas muito bem arranjadas, dispostas com delicadeza oriental...
- Mas eu não as trouxe para homenagear deuses - replicou Carlota, pousando o vaso na mesa. - Trouxe-as para si, señora. Cheiram tão bem!
- De facto, têm um aroma delicioso - concordou Kate. Os dois homens afastaram-se, rindo.
- Ah, señora! - disse Carlota, sentando-se à mesa. - Pode entender Ramon? Seria capaz de renunciar à Santa Virgem? Eu antes queria morrer.
- Não precisamos doutros deuses, realmente - redarguiu Kate, com certo enfado.
- Outros deuses! - repetiu Carlota, escandalizada. - Como se fosse possível! Ramon comete um pecado mortal.
Kate conservou-se calada.
- E quer induzir o povo a fazer o mesmo - prosseguiu Carlota. - É pecado de orgulho... o pecado cardeal. Ainda bem que a señora pensa como eu. Receio as americanas que, para se apoderarem do espírito dos homens, aceitam todas as suas loucuras e perversidades... É católica, señora?
- Fui educada num convento.
- Ah, señora! Qual a mulher que tendo conhecido a Santíssima Virgem se afasta dela? Que mulher teria ânimo de crucificar Jesus novamente? Mas os homens, os homens! Aquela história de Quetzalcoatl seria coisa para rir se não fosse um pecado mortal. E da parte de dois homens inteligentes e instruídos tanta presunção!
- Os homens são assim - observou Kate.
Intensificava-se o crepúsculo; o horizonte estava ainda luminoso, mas o Sol afundara-se numa bruma cor-de-rosa, por trás das arestas da montanha. As colinas erguiam-se azuladas numa atmosfera cor de salmão que se reflectia na água. Lá adiante, onde o clarão rubro se adensava, banhavam-se homens e crianças.
Kate e Carlota subiram à azotea, o terraço que cobria a casa. Dali podiam ver a hacienda com o seu pátio semelhante a uma fortaleza, o caminho ladeado de árvores frondosas, as cabanas de adobe perto da estrada e as fogueiras já bruxuleando junto das casas. No ar róseo os salgueiros da margem pareciam mais verdes e cintilantes. Ao longe, luziam entre as árvores as duas torres brancas de Sayula. Deslizavam barcos em direcção à parte sombreada do lago.
E num desses barcos, deveras desconsolada, regressava Juana a casa.

XIII
Ramon e Cipriano encontravam-se à beira do lago. O general envergara também fato branco e sandálias, o que lhe ia melhor do que a farda.
- Tive uma conversa com Montes quando ele foi a Guadalajara - declarou Cipriano.
Montes era o presidente da República.
- E que te disse?
- Não se alarga muito a falar, mas depreendi que não simpatiza com os colegas e se sente isolado. Julgo que gostaria de te conhecer melhor.
- Porquê?
- Talvez pudesses dar-lhe apoio moral. Talvez chegasses a ser ministro; e até presidente, depois de Montes acabar o seu mandato.
- Montes agrada-me - replicou Ramon. - É sincero e ardente. Gostaste dele?
- Sim, mais ou menos - respondeu Cipriano. - É desconfiado, teme que outros pretendam compartilhar com ele o poder. Tem instintos de ditador. Quis saber se eu lhe era afecto.
- Deste-lhe a entender que sim?
- Disse-lhe que tudo o que me interessava verdadeiramente eras tu e o México.
- E que te respondeu?
- Ele não é tolo. Respondeu: "Don Ramon vê o mundo com olhos diferentes dos meus. Qual de nós terá razão? Eu quero salvar o país da pobreza e da ignorância, ele quer salvar-lhe a alma. Mas afirmo que um homem esfomeado e ignorante não tem lugar para a alma. Um ventre e um cérebro vazios roem-se a si mesmos, e a alma não existe. Don Ramon acha que um homem desprovido de alma pode passar sem o alimento do corpo e do intelecto. Pois que siga o seu caminho, que eu sigo o meu! Não nos embaraçaremos um ao outro. Dou a minha palavra que não interferirei em nada. Ele varre o pátio, eu trato da limpeza da rua.
- É sensato - comentou Ramon - e honesto nas suas convicções.
- Porque não serias ministro daqui a uns meses? E mais tarde presidente?
- Bem sabes que não é isso o que pretendo. Devo poupar-me e agir noutra esfera. A política que se mantenha ou evolua como eles entendem, a sociedade que faça o que quiser. Deixa-me em paz, Cipriano. Gostarias que eu fosse outro Porfirio Diaz, ou alguém do mesmo género, mas isso para mim seria pura e simplesmente soçobrar na vida.
Cipriano observava Ramon com os seus olhos negros e vigilantes, onde transparecia amizade, receio, confiança, mas também incompreensão, e a dúvida que sempre a acompanha.
- Não chego a perceber o que desejas - murmurou.
- Percebes, sim. A política e toda essa religião social com que Montes se preocupa equivale a lavar a casca dum ovo para lhe dar aspecto limpo. A mim, porém, só interessa o interior... Ah, Cipriano! O México é tal um ovo que o Tempo choca desde séculos neste ninho do mundo e que parece ser goro. Parece, mas não é. O que precisa é de calor que ajude a formação da ave. Montes quer limpar o ninho e lavar o ovo... Que aconteceria se tirassem um ovo de baixo duma águia para o lavar? Arrefeceria de vez. Pois quanto mais se empenharem em arrancar este povo da pobreza e da ignorância mais depressa ele morrerá. Pobre Montes! Todas as suas ideias são americanas ou europeias. E a velha pomba da Europa jamais poderá chocar com êxito o ovo escuro da América. Os Estados Unidos não morrem porque não estão vivos. É um ninho de ovos de loiça e por isso se conservam limpos. Mas aqui, Cipriano, aqui é necessário incubá-los antes da limpeza do ninho.
Cipriano baixava a cabeça. Experimentava sempre Ramon para ver se conseguia fazê-lo mudar de ideias e, depois de verificar a inutilidade dos seus esforços, submetia-se ao amigo e novas chamas de felicidade se alteavam dentro dele. Mas, entretanto, ia-o experimentando...
- Não serve de nada querer misturar as duas coisas. No ponto em que estão, não se misturam. Temos de fechar os olhos e mergulhar até ao fundo, como pescadores de pérolas. Mas andamos a flutuar à superfície, semelhantes a bocados de cortiça...
Cipriano mostrou um sorriso subtil. Tudo aquilo ele sabia!
- Temos de abrir a ostra do cosmos e extrair dela a nossa força.
Enquanto não arrancarmos a pérola não seremos mais do que mosquitos no cimo do oceano - concluiu Ramon.
- A minha força é como um demónio dentro de mim - disse Cipriano.
- Porque a ostra a retém fechada, como uma pérola negra. A ti compete libertá-la.
- Ramon, não acharias bom ser uma serpente, uma serpente enorme que se enrolasse em volta do globo e o esmagasse... como a esse ovo?
Ramon olhou-o e pôs-se a rir.
- Não me parece coisa impossível - continuou Cipriano. E não seria bom?
O outro meneou a cabeça, rindo-se.
- Pelo menos seria um momento bom.
- Que mais se pode desejar?
Brilhou nos olhos de Ramon uma centelha que logo se apagou.
- Para quê? - disse em voz surda. - Depois de esmagado o ovo que havíamos de fazer senão errar nos corredores de trevas e lamentar-nos? Para quê?
Ramon pôs-se de pé e afastou-se. O Sol desaparecera, a noite descia. Na alma daquele homem fervia uma cólera imensa, e Carlota é que a provocava. A mulher parecia incutir vida ao monstro da sua raiva íntima, e Cipriano exasperava-o.
"A minha força é como um demónio a rugir dentro de mim", disse Ramon consigo mesmo, repetindo a frase de Cipriano.
Reconhecia o direito de gritar a esse demónio humilhado e ridicularizado que vivia preso dentro dele. E a fúria apoderou-se de Ramon, contra Carlota, contra Cipriano, contra a humanidade inteira. Os seus partidários traí-lo-iam, tinha a certeza. Cipriano acabaria por traí-lo. Desde que lhe encontrassem o mínimo ponto fraco, todos saltariam sobre ele como tarântulas e infectá-lo-iam com a sua peçonha.
E qual o homem absolutamente invulnerável, sem o menor ponto fraco?
Ramon subiu ao seu quarto pela escada exterior, no lado da casa, e sentou-se na cama. A noite estava quente, pesada, e duma calma aflitiva.
- Prepara-se chuva - ouviu ele dizer a um dos criados. Fechou as portas do quarto e ficou às escuras. Então despiu-se todo, murmurando: "Repudio o mundo juntamente com esta roupa." E de pé, nu e invisível no meio do quarto, ergueu ao ar o punho fechado, com tal força que teve a sensação de que lhe estalavam as paredes do peito. A mão esquerda pendia ao longo do corpo, mole, com os dedos levemente curvados.
Tenso como o jacto duma fonte silenciosa, distendeu-se até abranger o âmago impalpável das trevas. E as vagas de escuridão começaram a lavar-lhe o espírito, a consciência; ondas de negrume rebentando-lhe na memória, em todo o seu ser, como uma maré que sobe. Até que foi maré cheia e ele, tremendo, se deixou cair por terra, para descansar. Invisível nas trevas, ficou a olhar para o vácuo, sentindo o misterioso fluxo interior purificar-lhe as entranhas e o coração, sentindo o espírito dissolver-se no Espírito maior que nenhum pensamento perturba.
Cobriu o rosto com as mãos e ali esteve imóvel, inconsciente, já sem nada sentir nem ouvir, semelhante a uma alga submersa no mar. Abolira-se o Tempo, abolira-se o Mundo, submerso nas profundezas que são intemporais e inespaciais.
Quando o coração e as entranhas despertaram para a vida, o espírito principiou a bruxulear tal uma chamazinha que vacila e não se apaga.
Enxugou a cara com as mãos, pôs a serape na cabeça e em silêncio, numa aura de sofrimento, desceu a escada, levando consigo o tambor.
Martin, o servo devotado, andava cá e lá no zaguán.
- Ya, patrón? - perguntou.
- Ya! - respondeu Ramon.
O homem correu à vasta cozinha onde ardia uma candeia, e voltou com um braçado de esteiras.
- Onde as colocamos, patrão?
Ramon hesitou no meio do pátio, olhando para o céu.
- Viene el agua?
- Creo que si, patrón.
Dirigiram-se para o alpendre onde haviam carregado as azémolas com os fardos de bananas. Aí, Martin arremessou ao chão as petates, que Ramon dispôs em ordem. Guisleno apareceu, trazendo canas para fazer tochas, das mais primitivas: três canas amarradas em cima com um cordel, formando tripé de cintura alta, e, na parte superior, uma pedra de lava mais ou menos oca. Realizado esse trabalho,
Guisleno foi a casa e voltou a correr com um pedaço de madeira inflamada. Três ou quatro pauzinhos de ocote colocados na pedra - e as chamas ergueram-se, enchendo o pátio de sombras vacilantes.
Ramon dobrou a serape e sentou-se em cima. Guisleno acendeu outro tripé-archote. A luz bailava nas sobrancelhas carregadas de Ramon, dava-lhe ao peito cintilações de ouro.
Agarrou no tambor e fez soar o apelo monótono, lento, um tanto melancólico. Passados instantes, chegou o tocador habitual, que levou o instrumento para a alameda sombria, onde então se ouviu um rufo vivo e forte.
Ramon enfiou a serape, cujas franjas lhe roçavam os joelhos, e ficou imóvel, com os cabelos em desordem. Rodeava-lhe os ombros a serpente do tecido, o pescoço erguia-se-lhe no meio do pássaro azul.
Cipriano apareceu, vindo da casa. Trazia serape castanha e vermelha, ornamentada com um sol escarlate. Postou-se ao lado de Ramon, e olhou-lhe de relance para a cara. Mas, de sobrancelhas franzidas, o outro fixava a sombra dos alpendres no extremo do pátio. Olhava para o coração do mundo; porque a face dos homens e o coração dos homens são areias movediças, e só no coração do cosmos pode alguém encontrar força.
Cipriano voltou os olhos negros para a banda do pátio. Os seus soldados aproximavam-se em grupo. Três ou quatro homens de mantas pardas rodeavam o lume. De pé, junto de Ramon, Cipriano parecia um cardeal, um pássaro de cor vistosa. Até as sandálias eram escarlates, e encarnadas as fitas que atavam as calças de linho branco aos tornozelos. Ao clarão das tochas tinha um ar demoníaco, com a pele muito escura, a barbicha preta e as pupilas cintilando sardonicamente.
Chegavam peóns, pelo portão da entrada, balançando os chapéus largos. Acorriam mulheres descalças, com as saias a oscilar, transportando os seus nenés envoltos nos rebozos e seguidas por uma caterva de garotos. Todos se agrupavam em volta dos archotes, como animais bravios, contemplando o círculo de homens de serape, do qual se destacavam Ramon e Cipriano, um de azul e branco, outro de vermelho.
Carlota e Kate emergiram de casa. Carlota, porém, ficou junto da porta, embrulhada num xaile de seda preta. Sentou-se num banco de pau aquém do clarão avermelhado, e pôs-se a observar os homens escuros, a beleza altaneira de Ramon, o traje escarlate de Cipriano, o grupo de soldados e a massa compacta de peóns, mulheres e crianças. Enquanto desfilava gente através do portão, soou o tambor e uma voz elevou-se, cantando:
Alguém vai franquear a porta, Agora, agora mesmo, ay! E verá a luz no homem que espera. Serás tu? Serei eu?
Alguém vai aproximar-se do fogo, Agora, agora mesmo, ay! E escutarás as palavras do seu coração. Serás tu? Serei eu?
Alguém baferá quando a porta se fechar, Ay, num momento, ay! Ouvirá dizer: Não te conheço. Serás tu? Serei eu?
De cada vez o ay se elevava num grito selvático que fazia calafrios a Carlota.
Envolta num xaile amarelo, Kate aproximou-se lentamente do grupo.
O tambor calou-se e o homem, entrando no pátio, fechou o portão e misturou-se aos assistentes.
Ramon continuava a olhar para o vácuo, de sobrolho carregado. Então, no meio do silêncio, disse em voz baixa, contida:
- Assim como tiro este abafo me liberto eu do dia que passou. Despiu a serape e pô-la no braço. Todos os homens do círculo o
imitaram, ficando de torso nu. Cipriano, muito escuro e com ar sólido apesar do tamanho reduzido, conservava-se ao lado de Ramon.
- Afasto de mim o dia que passou - prosseguiu Ramon - e fico de coração descoberto na noite dos deuses.
Em seguida olhou para o chão e disse:
- Vem, serpente da terra, serpente que jazes no fogo do coração do mundo. Vem, serpente do fogo no coração do mundo, enrola-te como ouro em volta dos meus artelhos, ergue a cabeça e apoia-a na minha coxa. Vem, descansa a cabeça na minha mão, serpente dos abismos. Beija-me os pés e os tornozelos com a tua boca de ouro, beija-me os joelhos e as coxas, serpente marcada de luz e de sombra. Vem, repousa a cabeça na concha da minha mão.
A voz suave e hipnótica extinguiu-se no silêncio envolvente. E parecia que na verdade uma presença misteriosa emergia do mundo subterrâneo, que uma serpente mosqueada de ouro e negro se enroscava nas pernas de Ramon e lhe lambia a palma da mão com a língua bifurcada...
Circunvagou a vista pela assistência boquiaberta e de olhos dilatados, e prosseguiu:
- Digo-vos, e com absoluta certeza. No coração desta terra dorme uma grande serpente no meio do fogo. Aqueles que descem às minas sentem-lhe o calor e o suor, ouvem-na mover-se. É o fogo vital da terra, porque a terra vive. A serpente do mundo é enorme, as rochas são as suas escamas, e entre elas crescem as árvores. Digo-vos que a terra que cavais está viva como uma serpente adormecida. Sobre ela andais, e este lago descansa nos seus anéis como uma gota de chuva numa cobra cascavel. Contudo, tem vida. A terra vive. Se a serpente morresse, todos morreríamos. Só a sua vida assegura a humidade do solo que faz germinar o nosso milho. Das suas escamas extraímos prata e ouro, e as árvores têm nela as suas raízes como os cabelos têm a raiz sob a nossa pele. A terra vive. Mas a serpente é grande, e nós somos mais pequenos do que um grão de poeira. E por vezes ela zanga-se e diz: Estes entes, mais insignificantes do que átomos de pó, espezinham-me e asseveram que estou morta. Até às bestas costumam falar, gritando: Arre, burro! A mim, porém, não dirigem uma palavra. Por isso lhes voltarei costas, como uma mulher volta costas ao marido e lhe consome o espírito com a sua cólera... Eis o que a terra nos diz, e a tristeza e o desânimo avassalam-nos os pés e os rins. Porque assim como uma mulher irritada tira o entusiasmo e a alegria ao homem, assim a terra pode enregelar-nos a alma e tornar a existência fatigante aos nossos membros. Falai, pois, à serpente do coração do mundo, banhai de óleo os vossos dedos e abaixai-os para que ela experimente o óleo da terra e deixe que a vida nos suba ao longo das pernas, como a seiva do milho novo faz estalar a casca e brotar o leite da planta entre as barbas. Do coração da terra o homem sente subir nele a sua força; tal o milho que, ufano, ergue as suas folhas verdes, erguei-vos vós também e deixai aprofundarem-se as vossas raízes cada vez mais, porque não tardam as chuvas e é tempo de produzir no México.
Calou-se Ramon, ensurdeceu o tambor, e todos os homens do círculo fitaram a terra, deixando pender molemente a mão esquerda.
Dona Carlota, que não conseguira ouvir, aproximou-se do lado de Kate, como se fascinada pelo marido. A irlandesa, num movimento inconsciente, olhou para o chão e, às ocultas, baixou os dedos de encontro à saia. Mas teve medo do que lhe poderia acontecer e escondeu a mão no xaile.
De repente o tambor vibrou numa nota muito forte, seguida de outra mais fraca: estranho, impressionante efeito.
Os circunstantes levantaram a cabeça. Ramon alçara o braço direito, num gesto enérgico, e espiava o negrume do firmamento. Imitaram-no os do círculo, e os braços nus, erguidos, semelhavam uma série de rochedos.
- Assim, acima, acima! - gritou uma voz bárbara.
- Acima, acima! - repetiram todos, num coro feroz. Involuntariamente, brandiram o braço, voltando o rosto para o
céu sombrio. Algumas das mulheres, mais audazes, fizeram o mesmo, e, com esse gesto, experimentaram uma sensação de paz.
Kate não alçou o braço.
Reinou profundo silêncio; até o tambor se calara. Ouviu-se então a voz de Ramon, dirigindo-se ao céu tenebroso:
- As tuas asas estão escuras, Pássaro, voas muito baixo esta noite. Voas baixo sobre o México, e em breve sentiremos roçar em nossas faces o leque das tuas asas. Ah, Pássaro! Voas onde queres. Ultrapassas as estrelas e empoleiras-te no Sol. Desapareces da vista e dissipas-te no além do rio branco do céu, mas voltas como os patos do Norte, em busca de água e do Inverno. Poisas no centro do Sol e alisas as penas... Banhas-te na corrente de estrelas e ergues em teu redor uma poalha de ouro. Voas nas profundezas do céu donde parece que jamais se volta. Mas regressas, e pairas sobre nós, e sentimos no rosto a aragem das tuas asas...
Enquanto ele falava levantou-se vento em rajadas, uma porta bateu, vibraram vidraças e as árvores pareceram rasgar-se.
- Vem, ó ave dos vastos céus! - bradou Ramon num apelo selvático. - Vem, pousa no meu punho, na minha cabeça, dá-me o poder divino e a sabedoria. Ó Pássaro, ainda que o trovão ribombe quando sacodes as asas, ainda que deixes cair na terra a serpente de fogo que tens no bico, ainda que venhas como fulminador, vem, ó Pássaro! Empoleira-te um momento no meu punho, estende as asas sobre a minha cabeça, toca-me a fronte com o teu peito. Pássaro errante, ave do Além, com o trovão nas garras e a serpente no bico, com o azul nas asas e a nuvem no colo, com o sol no peito e a sabedoria no voo, vem sobre mim, vem!
O vento agitava a chama das tochas e o lago começou a falar numa voz cavernosa que dominava o sussurro das árvores. Ao longe, por cima das colinas, os raios sulcavam o céu.
Soou o tambor, e Ramon desceu o braço que mantivera erguido. E disse então:
- Sentai-vos um instante, antes que o Pássaro sacuda a água das asas, o que não tardará. Sentai-vos.
A assistência moveu-se. Os homens puxaram as serapes para a testa, as mulheres cingiram mais a si os rebozos, e todos se sentaram no chão. Só Kate e Carlota ficaram de pé, a certa distância.
- A terra é viva, o céu é vivo, e entre ambos vivemos nós - prosseguiu Ramon na sua voz habitual. - A terra beijou-me os joelhos e concedeu-me força às entranhas. O céu descansou-me no punho e transmitiu o seu poder para o meu peito.
Assim como a Estrela de Alva brilha entre o céu e a terra, uma estrela pode surgir em nós entre o coração e os rins.
É a virilidade do homem e a feminilidade da mulher.
Ainda não sois homens. E vós, mulheres, ainda não sois mulheres.
Correis, agitais-vos, morreis, mas ainda não encontraste a estrela da vossa virilidade surgida de vós mesmos; nem a estrela da vossa feminilidade cintilando entre os vossos seios, ó mulheres!
Digo-vos no entanto: para aquele que desejar, nascerá nele a estrela da sua virilidade, e então será perfeito como é perfeita a Estrela da Manhã.
E a estrela da mulher aparecerá entre a orla espessa da terra e o vácuo cinzento do céu. Mas como conseguiremos isso? Como poderá ser?
Baixai os dedos para a carícia da Serpente da terra. Erguei o punho para que aí pouse a Ave distante.
Tende a coragem de ambos, a coragem do raio e a do sismo.
E a sabedoria de ambos, a da serpente e a da águia.
E a serenidade de ambos, a da serpente e a do sol. E o poder de ambos, o das profundezas da terra e o do céu que tudo cobre.
Mas que na vossa fronte, ó homens, resplandeça a Estrela da Manhã que nem o dia nem a noite, nem a terra nem o céu podem engolir e apagar.
E entre os vossos seios, ó mulheres, que esteja a Estrela de Alva que nada pode ofuscar.
A vossa derradeira morada é a Estrela da Manhã. Nem o céu nem a terra vos hão-de tragar, mas ireis para essa estrela solitária que no entanto jamais sente a sua solidão.
A Estrela da Manhã envia-nos um mensageiro, um deus que morreu no México. Mas, enquanto dormia o seu sono, os Seres invisíveis lavaram-lhe o corpo com a água da ressurreição. E ele levantou-se, derrubou a pedra à entrada do sepulcro, e agora galopa através do horizonte, mais depressa do que caiu por terra a laje do túmulo para esmagar aqueles que a selaram.
O filho da Estrela volta para os filhos dos homens.
Preparai-vos para o receber. Lavai-vos, ungi as mãos e os pés, a boca e os olhos, as orelhas e as narinas, o peito, o umbigo e as partes secretas do vosso corpo. Que nada dos dias passados, que nenhuma poeira do mal subsista em vós e vos torne impuros.
Não olheis com olhos de ontem, não escuteis como ontem, não respireis, não cheireis, não engulais alimentos nem bebidas; não beijeis com lábios de ontem, não toqueis com mãos de ontem. Aproximai-vos das vossas mulheres com um corpo novo, e com esse corpo novo penetrai nelas. Porque o corpo de ontem morreu, e Xopilote, devorador de cadáveres, já paira sobre ele.
Libertai-vos do corpo da véspera e adquiri um novo, tal como o deus que vem até vós. Quetzalcoatl surge-nos com um novo corpo, como uma nova estrela, saído das sombras da morte.
Sim, neste mesmo momento em que estais sentados e que o vosso corpo toca na terra, dizei-lhe: Terra, terra, latejas de vida como eu. Insufla em mim o bafo das tuas entranhas.
E assim a terra se move por baixo de vós, e por cima de vós o céu agita as suas asas.
Regressai aos vossos lares, enfrentando as águas que vão cair e separar-vos para sempre do "ontem".
Ide, com a esperança de vos tornardes homens da Estrela da Manhã e mulheres da Estrela de Alva.
Ainda não sois homens, ainda não sois mulheres...
Ramon levantou-se, dando o sinal de retirada. Logo todos se puseram de pé, empurrando-se, acotovelando-se, com a silenciosa pressa mexicana que parece deslizar rente ao solo.
O vento desencadeado uivava de encontro às mangueiras. Os homens seguravam o chapéu na cabeça e corriam de joelhos curvados, com as serapes a flutuar, enquanto as mulheres, cingindo a si o rebozo, fugiam, descalças, para ozaguán.
Junto do portão aberto estava um soldado de espingarda a tiracolo e lanterna na mão, alumiando aqueles que passavam calados e velozes e se dispersavam na alameda escura como pedacinhos de papel levados pelo vento. Num instante todos desapareceram.
Martin fechou o portão. O soldado pousou a lanterna no banco de pau e juntou-se aos camaradas alapardados nos seus capotes pretos, semelhantes a um molho de cogumelos na caverna do zaguán.
- Vai chover! - gritaram as servas excitadas quando Kate subia os degraus com Dona Carlota.
O lago, absolutamente negro, parecia uma cratera enorme. Em rajadas violentas, o vento traspassava as mangueiras com um som de membrana a rasgar-se. Os loendros curvavam-se no jardim, varriam o solo com as suas flores brancas, espectrais à luz do candeeiro que brilhava na parede junto da porta da entrada. Uma palmeira nova sacudia-se, dobrada, juncando o chão com as suas folhas. Nas trevas para além do mundo rolava um carro invisível...
Ao longe, na outra banda do lago, os raios traçavam no céu inscrições fulgurantes. E o trovão dir-se-ia ribombar nas entranhas da terra, surdo, aveludado.
- Isto chega a meter medo! - exclamou Dona Carlota, tapando os olhos com a mão e correndo a refugiar-se num canto recuado da sala deserta.
Cipriano e Kate demoraram-se no terraço olhando para as flores que voavam dos vasos e desapareciam no vácuo de trevas. Kate agarrava no xaile, mas o vento engolfou-se na serape de Cipriano, levantou-a ao ar e em seguida deixou-lha cair sobre a cabeça, tal uma chama rubra. Kate viu-lhe o peito escuro e musculado enquanto os seus braços lutavam por desenvencilhar a cabeça. Como a sua beleza era primitiva e toda física, com aquela carne lisa e cheia!
Mas não emitia nenhuma radiação exterior; fechava-se dentro de si mesmo.
- Eis a chuva! - exclamou ele! - baixando a serape.
Grossas, pesadas, as primeiras gotas tombavam como dardos sobre as plantas. Kate recuou para o vão da porta. Um raio ziguezagueou sobre as montanhas, pareceu deter-se um instante e reentrou nas trevas.
Então a chuva desabou, como se lá em cima houvessem aberto um reservatório imenso, e com ela veio uma lufada de ar frio. Ora num lado ora noutro, sucediam-se os relâmpagos, enchendo a atmosfera duma claridade azul e fugaz. Surgiam as árvores e o jardim fantasma, e logo desapareciam, enquanto o trovão ribombava.
Kate olhava pasmada para aquele dilúvio. Ao clarão momentâneo via o jardim já transformado em poço, as alamedas em ribeiras. Sentindo frio, recolheu-se dentro de casa.
Munido de lanterna, um criado pesquisava todos os aposentos para ver se andariam por ali escorpiões. Encontrou um a passear no quarto de Kate e outro em cima da cama de Carlota, caído duma viga do tecto.
Sentadas na sala, Kate e Carlota baloiçavam-se nas cadeiras, aspirando o bom ar fresco e húmido. Kate quase já se esquecera do que era frescura e humidade. Aconchegou o xaile ao pescoço.
- Ah, sente frio! Agora é preciso tomar cuidado com as noites... Às vezes, na época das chuvas, as noites são frigidíssimas. Devemos ter sempre à mão um cobertor suplementar. Os servos, coitados, limitam-se a tiritar, estendidos no chão, e de manhã estão gelados como cadáveres. Mas o sol depressa os aquece. Parecem julgar que são obrigados a suportar tudo o que vier, pois nunca tomam providências, embora se queixem.
O vento acalmara-se de repente, Kate sentia-se inquieta, mal disposta, com o bafo da água, quase de gelo, nas narinas, e o sangue ainda a arder-lhe nas veias. Levantou-se e foi para o terraço. Cipriano continuava ali, imóvel e impassível, envolto na sua serape vermelha e preta.
A chuva diminuía. Em baixo, no jardim, duas criadas corriam descalças, à débil claridade do candeeiro do zaguán; colocaram latas vazias debaixo dos fios de água que tombavam do telhado, e depois foram buscar os recipientes cheios. Isso poupava-lhes o trabalho de acarretar água do lago.
- Que pensa a nosso respeito? - perguntou Cipriano a Kate.
- Acho um povo muito estranho...
- Mas bom, não é verdade? - volveu o general em tom jubiloso.
- Um tanto assustador - replicou ela, rindo.
- Depois de se habituar parecer-lhe-á natural. E quando estiver num país como a Inglaterra, onde tudo é tão seguro e tão fácil, sentirá saudades e passará o tempo a perguntar a si mesma: O que é que me falta? O que é que falta aqui?
Dir-se-ia exprimir-se com maligna satisfação. E era curioso que ele, embora falasse bom inglês, parecesse sempre estrangeiro aos ouvidos de Kate, muito mais do que Dona Carlota com o seu espanhol castiço.
- Não compreendo que as pessoas queiram ter tudo, a vida inteira. Tudo tão seguro, tão pronto como na Inglaterra e na América. É bom estar alerta, no que vive, não?
- Talvez - concordou ela.
- Por isso gosto de ouvir Ramon dizer ao povo que a terra é viva, que o céu tem uma ave enorme lá dentro, mas que se não vê. Acredito nisso. E convém sabê-lo, pois assim continuamos no que vive.
- Não será fatigante?
- Ora, porquê? Pelo contrário, é repousante. Ah, a senhora devia casar e residir no México. Estou certo de que acabaria por gostar disto. Em cada manhã despertaria mais encantada.
- Ou cada vez mais enterrada. É o que sucede, julgo eu, a muitos estrangeiros.
- Enterrar-se? Como? Isto é um país onde a noite é noite e a chuva que cai é realmente chuva. E tem aqui um povo com o qual precisa de estar sempre alerta. Não acha admirável? Não poderá deixar-se adormecer. Veja, por exemplo, Ramon. Que pensa dele?
- Não sei. Não quero dizer nada, mas acho-o... longínquo. Custa a crer que seja mexicano.
- Pois é mexicano, não tenha dúvida.
- Não como o senhor. Dá-me a impressão de pertencer à velha Europa.
- Eu então considero-o pertencente ao velho México... E também ao novo - acrescentou de súbito.
- Todavia não acredita nele.
- Como?
- Não acredita nele. Considera aquilo, como tudo o mais, uma espécie de jogo. Aliás, para vós, mexicanos, tudo é uma espécie de jogo... No fundo, não crê em nada.
- Não creio em Ramon? Talvez não seja uma fé que me leve a ajoelhar à sua frente e a derramar-lhe lágrimas nos pés. Mas creio nele, e vou dizer-lhe o motivo: porque tem o poder de me fazer acreditar.
- Estranha fé, imposta pelos outros.
- Como se há-de crer, se não nos compelirem a isso? Quando eu era muito novo sentia-me infeliz porque o meu padrinho me não forçava a crer. Mas Ramon força-me... E é para mim uma felicidade saber que não posso escapar... como será também para si...
- Saber que não posso escapar a Don Ramon? - replicou
Kate ironicamente.
- Sim, e saber que não poderá evadir-se do México, nem fugir
de um homem como eu...
Kate ficou um instante calada antes de responder em tom sardónico:
- Não me parece que me cause muita alegria saber que não posso sair do México. Pelo contrário, não suportaria estar aqui se não tivesse a certeza de partir mais dia menos dia.
E disse consigo mesma: "Ramon talvez seja o único homem a quem eu não possa escapar completamente, porque deveras me impressiona. Mas de ti, Ciprianozinho, não precisarei de escapar porque não me apanhas."
- Ah, julga isso! - volveu ele rapidamente. - Mas é porque não sabe. Só pensa com ideias americanas. Devido à sua educação, só tem pensamentos americanos, pensamentos engendrados nos Estados Unidos. Quase todas as mulheres são assim, até as mexicanas da classe hispano-mexicana. Só possuem ideias dos Estados Unidos porque são as que condizem com os seus penteados. E o mesmo quanto a si, senhora Leslie. Pensa como uma mulher moderna porque pertence ao mundo anglo-saxónio ou teutão, e se penteia de certa maneira, e tem dinheiro, e é inteiramente livre. Mas tudo isso provém do facto de lhe haverem metido essas ideias na cabeça e não possuir outras, da mesma forma que, no México, se vê obrigada a gastar centavos e pesos por serem as moedas do país. Todavia, quando se declara livre, na realidade não o é. Vê-se forçada a pensar sempre com pensamentos americanos. Não tem maior faculdade de escolha do que uma serva. Assim como não pode deixar de comer diariamente tortillas... até que se lembre de que pode gostar doutra coisa.
- De que mais poderia eu gostar? - retorquiu Kate, escarninha.
- De outros pensamentos, de outras sensações. Receia homens como eu porque julga que a não tratariam "à americana". Tem razão. Eu não a trataria como se tratam as senhoras americanas. Porquê? Porque não o desejo, porque não me parece justo.
- Prefere tratar as mulheres como as mexicanas de outrora, não é verdade? Mantendo-as na ignorância, no cativeiro? - A voz de Kate assumira um tom sarcástico.
- Não as manteria na ignorância se elas já não fossem ignorantes. Mas o que lhes ensinaria não havia de ser conforme à educação americana.
- Então qual?
- Quien sabe! Ce reste à voir.
- Et continuera à y rester - concluiu a irlandesa, rindo.

CONTINUA

x
Dez dias haviam decorrido desde a chegada de Kate a Sayula sem que Don Ramon desse sinal de vida. No entanto, quando passeava de barco, vira a casa dele na outra banda da ponta oeste do lago. Era um edifício alaranjado de dois andares, com alpendre para embarcações e bosquete de mangueiras rente à margem. Entre as árvores distinguiam-se duas filas de cabanas de adobe, a habitação dos peóns.
A hacienda fora outrora das mais importantes. Regavam-na então com a água captada nas colinas, mas as revoluções haviam destruído todos os aquedutos. Don Ramon tinha inimigos no Governo, de modo que grande parte das suas terras fora dividida entre os peóns e só lhe ficaram cerca de trezentos acres de terreno, dos quais duzentos marginavam o lago e lhe eram inúteis. Cultivava um pomar em volta da casa e cana-de-açúcar num valezito entre as colinas. Na encosta do monte viam-se campos de milho.
'Dona Carlota era rica; tirava bons rendimentos das minas de Torreon, seu berço natal.
Chegou um portador com uma carta de Don Ramon em que este pedia a Kate licença para a visitar com a esposa.
Dona Carlota era uma mulher franzina, suave, de grandes olhos um tanto assustadiços e sedosos cabelos castanhos. Filha de pai espanhol e de mãe francesa, de origem puramente europeia, em nada se assemelhava às corpulentas mexicanas de faces cobertas de pó-de-arroz. De rosto pálido, sem artifício, a figura delgada tinha qualquer coisa de inglês, que os grandes olhos castanhos desmentiam. Só falava espanhol e francês, mas o seu espanhol soava tão lento e distinto (com um leve tom de queixume) que Kate a compreendeu sem dificuldade.
As duas mulheres entenderam-se depressa, mas sentiam-se um tanto nervosas na presença uma da outra. Dona Carlota era frágil e sensível como um cão chihuahua.
Em toda a sua vida, Kate raras vezes encontrara criatura tão doce e delicada. Conversaram uma com a outra, enquanto Don Ramon se mantinha calado. Dir-se-ia que ambas se arremessavam contra aquela barreira de silêncio.
Kate percebeu logo que Dona Carlota amava Ramon, mas com um amor que se tornara voluntário. Adorara-o, e acabara-se a adoração. Duvidara dele, e duvidaria sempre.
Sentado um pouco à parte, de ar constrangido, Don Ramon baixava a bela cabeça e deixava pender as mãos entre as coxas.
- Sabe que passei há dias bons momentos? - disse Kate, dirigindo-se-lhe de súbito. - Dancei de roda do tambor com os homens de Quetzalcoatl.
- Assim me constou - respondeu ele com um sorriso forçado.
Embora não falasse inglês, Dona Carlota compreendia essa língua
- Dançou com os homens de Quetzalcoatl! - exclamou em espanhol. - Porque fez isso? Porquê?
- Estava fascinada.
- Não se deixe fascinar. Afirmo-lhe que lastimo muito que meu marido se interesse por esse movimento. É para mim um desgosto.
Juana apareceu nesse momento com uma garrafa de vermute, a única coisa que Kate podia oferecer aos visitantes.
- Foi aos Estados Unidos ver os seus filhos? - perguntou Kate. - Como vão eles?
- Bem, obrigada. Embora o mais novo continue fraquito...
- Não os trouxe consigo?
- Não. Acho que estão melhor no colégio. Aqui... aqui há muita coisa que os perturbaria. Mas hei-de cá tê-los no próximo mês a passar as férias.
- Então terei oportunidade de os conhecer - disse Kate. Virão para a casa do lago, não é verdade?
- Ainda não sei. Talvez passemos aqui alguns dias. Ando tão ocupada na Cidade do México com a minha Cuna!
- Cuna? Que é isso? - indagou Kate.
Tratava-se de um hospício de enjeitados assistido por algumas obscuras carmelitas. Dona Carlota era a directora, e Kate chegou à conclusão de que a mulher de Ramon devia ser católica fervorosa, quase exaltada. Entregava-se de corpo e alma à Igreja e àquela obra de beneficência.
- Nascem tantas crianças no México e são tão numerosas as que morrem! Se as pudéssemos salvar e preparar para a vida! Fazemos tudo o que é possível, mas ainda é pouco.
Segundo parecia, todos os nenés indesejáveis eram entregues na Cuna, como embrulhos. A mãe só tinha de bater à porta e depositar noutras mãos o pacote vivo.
- Assim, impedimos que muitas mães negligentes deixem morrer os filhos - prosseguiu Dona Carlota. - Se não nos dizem o nome da criança, sou eu que a baptizo. Já o tenho feito muitas vezes. É vulgar entregarem-nos meninos absolutamente nus, sem um trapo a cobri-los... e sem nome. E nós nunca perguntamos nada.
Nem todos os expostos ficavam no hospício. Na maior parte eram confiados a índias decentes, a quem pagavam para os criar em casa. No fim do mês, cada qual se apresentava com o seu protegido e recebia o ordenado. As índias podem ser descuidadas mas não maltratam as crianças.
Noutro tempo, informou Dona Carlota, quase todas as senhoras do México recebiam na sua casa um ou dois desses enjeitados e tratavam-nos como família. Mas perdera-se a generosidade patriarcal dos espanhóis-mexicanos e actualmente adoptavam poucas crianças. Em vez disso, preparavam-nas para ganhar a vida, ensinando-lhes qualquer ofício.
Kate ouvia com-interesse e certo constrangimento. Não lobrigava sentimentos humanos nessa caridade mexicana, e quase discordava dela. Talvez Dona Carlota fizesse tudo o que podia nesse país semibárbaro, mas fazia-o sem nenhuma esperança de êxito. Embora com a consciência de que procedia bem, tinha um pouco o ar de vítima, de uma vítima sensível, branda, um tanto assustada. Dir-se-ia que um mal secreto lhe roía o coração.
Don Ramon escutava impassível, num silêncio que se opunha ao entusiasmo caritativo da mulher. Deixava-a agir como entendia, mas contra a sua obra e a sua loquacidade mantinha-se calado, duro, numa hostilidade surda e permanente. Dona Carlota percebia-o e tremia nervosamente enquanto falava do hospício de enjeitados. Kate acabou por achar cruel a atitude de Don Ramon; parecia um ídolo de pedra.
- Porque não vem passar um dia connosco, enquanto estamos em Sayula? - sugeriu Dona Carlota. - A casa é pouco confortável, já não é como foi, mas teremos muito gosto em recebê-la.
Kate aceitou o convite e disse que preferia ir a pé. Eram apenas quatro milhas de percurso e, com a Juana, iria bem acompanhada.
-. - Mandarei um homem buscá-las - declarou Don Ramon. Será mais seguro.
- Onde está o general Viedma? - perguntou Kate.
- Faremos o possível por tê-lo connosco quando a senhora lá for - replicou Dona Carlota. - Gosto deveras de Don Cipriano, que há muitos anos conheço. Por sinal que é o padrinho do meu filho mais novo. Presentemente, comanda a divisão de Guadalajara, por isso nem sempre se encontra livre.
- Admira-me que seja general - observou Kate. - Acho-o humano em excesso.
- E, de facto, é cheio de humanidade. Mas é general, e gosta de comandar os soldados. Deixe-me dizer-lhe que se trata de uma pessoa de muita influência. Exerce grande ascendente na tropa. Crêem nele, isso não se pode negar. Possui aquele poder, inato nos chefes índios, de afeiçoar a si os militares e de os levar ao combate. Pois é assim mesmo Don Cipriano. Ninguém conseguiria modificá-lo. Julgo, porém, que lhe seria de utilidade a presença de uma mulher. Nunca teve nenhuma na sua vida! Elas não lhe interessam...
- Que lhe interessa então?
- Ah! - exclamou Dona Carlota, estremecendo como se a picassem. Lançou um olhar rápido ao marido e declarou: - Não sei. Palavra que não sei.
- Os homens de Quetzalcoatl - declarou Don Ramon com
um leve sorriso.
Mas Dona Carlota dir-se-ia tirar-lhe todo o desembaraço. Parecia contrafeito, e um tanto estúpido.
- Ah, sim, sim, os homens de Quetzalcoatl - bradou Dona Carlota, amável mas com ar de censura. - Linda coisa para ele se ocupar! - Kate percebeu que a sua interlocutora adorava esses dois homens e que tremia à ideia de se opor aos seus erros, embora jamais transigisse com qualquer deles.
Para Don Ramon representava um pesado fardo aquela cega adoração da mulher e a sua não menos cega oposição.
Certa manhã, às nove horas, apareceu o criado para acompanhar Kate à fazenda, que chamavam de Jamiltepec. Trazia um cabaz e vinha do mercado. Era um velhote de bigode grisalho e olhos juvenis, cheios de vida. Os pés, metidos em huafaches, pareciam negros de tão queimados do sol, mas o fato resplandecia de alvura.
Kate ficou radiante com essa excursão a pé. O que tornava tão aborrecida a sua existência na aldeia era a impossibilidade de passear no campo. Havia sempre o risco de um assalto. Acompanhada de Ezequiel, dera algumas voltas pelos arredores, mas já começava a sentir-se prisioneira. Foi, por conseguinte, uma alegria sair de casa.
A manhã estava clara e quente, o lago brilhava quieto, espectral. Moviam-se pessoas na margem, minúsculas àquela distância, meros pontinhos brancos: peóns que seguiam os seus burros envoltos numa leve nuvem de poeira. Kate perguntava a si mesma porque seria que os homens apareciam sempre na paisagem mexicana como pequeninas manchas; pequeninas manchas de vida.
Entraram na estrada poeirenta que levava para oeste, entre a vertente alcantilada das colinas e a nesga de planície junto ao lago. Por espaço de milha foram encontrando vivendas, muitas delas fechadas, outras destruídas, já sem muros nem janelas. Todavia desabrochavam flores entre os montes de cascalho.
Nos terrenos vagos havia delgadas cabanas de palha dos indígenas - como que nascidas ali, ao acaso. Perto do caminho por baixo de um outeiro viam-se choças de adobe, semelhantes a caixas cinzento-escuras. Em volta corriam aves domésticas, grunhiam e refocilavam porcos pardacentos ou malhados de preto. Crianças seminuas, de um tom castanho-alaranjado, brincavam ou jaziam estiradas no chão, a dormir, com as nádegas à mostra.
Muitas das casas estavam a ser cobertas de colmo novo ou reteIhadas por indivíduos que assumiam ares de importância por se encarregarem desse trabalho. Mostravam-se também apressados, pois não tardariam a vir as chuvas torrenciais. E, na banda do lago, havia quem andasse a lavrar a terra dura com uma junta de bois e um pau forte e aguçado.
Mas Kate conhecia essa parte do caminho. Vira já a bela vivenda da colina, com os seus tufos de palmeiras que ladeavam as alamedas desertas. A estrada descia novamente para o lago, entre árvores frondosas de vagens retorcidas. À esquerda, a água mansa, gelatinosa, lambia as pedras amareladas. Numa poça da praia estavam mulheres a lavar roupa, e, nos baixios, banhavam-se duas raparigas com os cabelos negros pendentes e gotejantes. Mais adiante, um homem patinhava lentamente, detendo-se para arremessar com perícia a rede à água e depois recolhê-la cheia desses peixinhos luzidios a que chamam charales. Tudo estranhamente silencioso e remoto na manhã cintilante.
Vinha do lago uma leve brisa, mas a poeira da estrada queimava os pés. À direita erguia-se o monte, abrupto, ressequido e amarelo, exalando calor e aquele cheiro característico do México que se diria ser a evaporação duma terra cada vez mais calcinada.
Desfilavam continuamente filas de burros carregados, trotando na poeira e seguidos pelos condutores que marchavam erectos e rápidos, olhando com olhos semelhantes a buracos negros mas respondendo sempre à saudação de Kate com um respeitoso adiós. E Juana ecoava com o seu lacónico adiósm. Caminhava coxeando e achava tristíssima aquela ideia da niña de percorrer quatro milhas a pé, quando poderiam ir num automóvel de aluguer, de barco ou mesmo de burro.
Mas a pé! Kate percebia todos os sentimentos da criada no seu arrastado e sardónico adiósn. Em compensação, o homem de Ramon vinha animadamente atrás delas, dirigindo saudações alegres, com a pistola bem em evidência no cinto.
A estrada contornava um rochedo amarelo e escarpado para desembocar num campo aberto, onde se alastravam espinheiros e cactos poeirentos. À esquerda, distinguia-se a mancha verde dos salgueiros à beira do lago. À direita, as colinas inclinavam-se sobre o flanco árido das montanhas. Em frente, os outeiros ladeavam as margens do lago e afastavam-se, descobrindo uma espécie de garganta que conduzia à casa de Don Ramon e à sua plantação de cana-de-açúcar.
- Aqui temos Jamiltepec, a hacienda de Don Ramon, señorita - anunciou o homem.
Os olhos luziam-lhe ao proferir estas palavras. Era um peón orgulhoso e sem dúvida feliz com a sua sorte.
- Que lonjura! - exclamou Juana.
- Para outra vez virei só ou com o Ezequiel - replicou Kate.
- Não diga isso, niña! Só me queixo do pé, que me dói hoje a valer.
- Por isso mesmo é melhor não vires comigo.
- Não, niña. Gosto muito de vir.
Giravam alegremente as asas do moinho que puxava a água do lago. Entre as colinas descia o valezito onde deslizava um riacho e na parte mais larga viam-se bananeiras que uma cortina de salgueiros resguardava da brisa lacustre. No cimo da encosta, onde o caminho se embrenhava na sombra de mangueiras, elevavam-se dois renques de casas de adobe, tal uma aldeia um pouco recuada.
Surgiam mulheres entre as árvores, que vinham do lago com seus cântaros de água ao ombro. De roda das portas brincavam crianças, arrastando o traseiro nu na poeira do chão. Aqui e ali, uma cabra amarrada. E, apoiados na esquina da casa, ou encostados à parede, estavam homens de braços e pernas cruzados, mas não em dolce far niente. Pareciam esperar, esperar eternamente por qualquer coisa.
- Por aqui, señorita ! - disse o homem do cabaz, indicando um caminho que descia entre árvores frondosas até ao portão branco da hacienda. - Já cá estamos.
Mostrava-se tão contente como se houvesse chegado ao Paraíso.
Encontravam-se abertas as portas do zaguán, ou entrada, a cuja sombra descansavam dois soldados. No espaço em frente do portão, passavam nesse momento dois peóns, cada qual com um cacho de bananas à cabeça. Os soldados disseram qualquer coisa e aqueles detiveram-se e voltaram-se lentamente com a sua carga verde para observarem Kate, Juana e Martin - o homem que as acompanhava. Depois retomaram a sua marcha.
Os soldados levantaram-se e Martin conduziu Kate pela passagem abobadada, onde as rodas dos carros haviam cavado fundos sulcos. Juana seguia-os com expressão lastimosa.
Kate achou-se num pátio enorme, cercado em três lados por muros altos, alpendres e estábulos. Ao fundo era a casa de residência, com as suas janelas gradeadas e, em vez de porta, outro zaguán de batentes fechados, espécie de corredor ao longo do edifício.
Martin avançou para tocar a aldraba, e Kate olhou entretanto à sua volta. Num alpendre, estavam homens seminus a empacar cachos de bananas. Noutro lado, serravam paus e descarregavam telhas de cima dum burro. A um canto viam-se bois atrelados a uma carroça, de cabeça pendida sob a canga, como se esperassem.
Abriram-se as portas e Kate entrou no segundo zaguán. Era uma entrada larga, com seu lanço de escadas a um lado e um portão gradeado ao fundo, através do qual se via o jardim orlado de mangueiras e, mais abaixo, o lago com o seu porto artificial onde baloiçavam dois barcos.
Nas costas dos recém-vindos, a criada fechou a porta que dava para o pátio e indicou a Kate as escadas.
- Por aqui, señorita.
Badalava uma sineta lá no cimo. Kate subiu os degraus de pedra, ao encontro de Dona Carlota, que a esperava no patamar, vestida de musselina branca, o que, pelo contraste, lhe dava um tom amarelo às faces. Estendeu os braços magros e bronzeados, acolhendo Kate com extraordinária efusão.
- Muito prazer em vê-la aqui! E veio todo o caminho a pé, com este sol! Entre, entre e descanse.
Pegou na mão de Kate e levou-a através do terraço, no topo da escada.
- Que linda vista! - exclamou Kate, contemplando o lago para além das mangueiras. Na água pálida, irreal, vogava ao longe um barco de vela. Para além, elevavam-se as montanhas de gargantas azuladas, com a mancha branca duma aldeia. Dir-se-ia outro mundo, perdido na luz da manhã, outra vida.
- Que povoação é aquela? - perguntou Kate.
- Acolá? É San Ildefonso - respondeu Dona Carlota.
- Como este sítio é belo! - disse Kate.
- Hermoso, si! Si, bonito - retorquiu a outra em espanhol, conforme o seu costume.
A casa, de um vermelho-alaranjado, tinha duas alas voltadas para o lago. com o seu murinho coroado de plantas verdes, o terraço cercava três lados do edifício; suportavam o telhado largos pilares que partiam do solo, formando em baixo uma espécie de claustro ocupado ao centro por um tanque cheio de água.
- Venha - disse Dona Carlota. - Precisa de descansar.
- Gostaria de mudar de sapatos - declarou Kate. Levaram-na a um quarto espaçoso, um tanto vazio, de chão de
tijolos. Aí, Kate calçou as meias e os sapatos que Juana trouxera num embrulho e estendeu-se um momento para repousar.
E, enquanto repousava, ouvia o rufar surdo do tambor, no profundo silêncio da manhã, só perturbado pelo canto dum galo longínquo. Aquele som contínuo, insistente, enchia-a de mal-estar. Parecia o ribombo duma tempestade desencadeando-se no horizonte.
Kate levantou-se e dirigiu-se para o salão onde Dona Carlota estava sentada a conversar com um homem vestido de preto. com as suas três portas envidraçadas abertas sobre o terraço, chão de ladrilhos vermelhos, paredes pintadas de verde-claro, tecto de barrotes caiados e escassez de mobília, aquilo parecia mais um caramanchel do que um salão. Como em muitas casas dos países quentes, tinha-se a impressão de não se estar dentro de quatro paredes, mas sim de três; um lugar de passagem, e não para ficar.
À chegada de Kate, o homem de preto levantou-se, apertou a mão a Dona Carlota e, baixando a cabeça num comprimento cerimonioso, desapareceu por uma das portas do terraço.
- Entre, entre! - disse Dona Carlota a Kate. - Já não se sente cansada? - acrescentou, avançando uma das cadeiras de junco que estava negligentemente colocada no meio da sala.
- Absolutamente nada - respondeu Kate. - Como esta região é silenciosa! Só se ouve o tambor, o que talvez nos faça notar mais o silêncio.
- Ah, esse tambor! - exclamou Dona Carlota, erguendo a mão num movimento de exaspero. - Não posso com isso! Detesto ouvi-lo.
E moveu-se na cadeira de baloiço, com súbito nervosismo.
- É um som realmente impressionante - redarguiu Kate. - Que significa, afinal?
- Não mo pergunte! São coisas de meu marido. - E Dona Carlota fez novo gesto de desespero.
- Don Ramon é que toca o tambor?
- Não, não! - Dona Carlota pareceu sobressaltada àquela pergunta. - Não é ele que toca. Trouxe dois índios do Norte para se desempenharem desse trabalho.
- Ah, sim? - volveu Kate, sem se comprometer. Mas Dona Carlota balançava-se numa espécie de semi-inconsciência e só daí a instantes pareceu voltar a si.
- Tenho de desabafar com alguém! - disse, de repente, endireitando-se na cadeira, com uma expressão de angústia espelhada nos grandes olhos castanhos e no rosto cor de nata. - Posso desabafar consigo?
- Certamente - respondeu Kate, constrangida.
- Sabe o que Ramon anda a fazer?
- Julgo que pretende ressuscitar o culto dos deuses antigos.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, com outro aceno de mão desesperado. - Como se isso fosse possível! Os deuses antigos! Imagine-se! Que são eles senão ilusões mortas? E feias, repulsivas! Sempre pensei que meu marido fosse inteligente, muito superior a mim, e é triste ter de mudar de opinião. Tudo aquilo é um disparate. E ele atreve-se a tomar a sério o que não passa de um disparate!
- Talvez Don Ramon creia...
- Mas como pode ele crer? - replicou a dona da casa, com um sorriso desdenhoso. - É instruído, não pode acreditar em semelhante tolice.
- Então qual é o seu objectivo?
- Isso é que eu gostaria de saber. - Na voz de Dona Carlota transparecia indizível cansaço. - Penso que está louco, como acontece a tantos mexicanos. Louco como o bandido Francisco Villa.
Lembrando-se do rosto simiesco do famoso Pancho Villa, Kate não foi capaz de o associar a Don Ramon.
- Desde que se elevam na sociedade os mexicanos perdem a cabeça, o orgulho transtorna-os. Não pensam em mais nada senão na sua importância. Pura vaidade masculina. Não acha, señora, que a vaidade é o começo e o fim do homem? Jesus veio ao mundo para combater esse perigo, ensinando-nos a ser humildes. Por isso odeiam Cristo e os Seus ensinamentos, e deixam-se guiar pela vaidade durante toda a vida.
A mesma reflexão ocorrera a Kate muitas vezes, e concluíra que nos homens só existia vaidade. Precisavam de ser lisonjeados, de sentir a sua grandeza, nada mais.
- O que meu marido pretende é opor-se a Jesus, elevar o orgulho e a vaidade acima de Deus. Ah, é horrível! Horrível e infantil. Que são os homens senão crianças que necessitam dos cuidados da mãe? Ah, señora, é mais do que posso suportar!
Dona Carlota cobriu a cara com as mãos.
- Em todo o caso, acho o seu marido uma pessoa excepcional - disse Kate para a consolar, embora nesse momento detestasse Don Ramon.
- Sim, possui grandes qualidades, mas de que lhe servem se estão pervertidas?
- Explique-me ao certo: o que é que ele pretende, afinal?
- O poder, o poder absurdo e maléfico, como se já não houvesse bastantes poderes maléficos por todo este país. Quer ser mais do que os outros, adorado, venerado. Um deus! Ele, a quem embalei nos braços como uma criança, querer que o adorem!
E Dona Carlota desatou num riso estridente pontuado de soluços.
Kate esperou que ela se acalmasse.
- No fim de contas - disse, quando a viu mais sossegada - não somos responsáveis pelo que fazem os maridos. Aprendi à minha custa que todo o amor é impotente perante a vontade dos homens. Meu marido quis morrer, e não pude impedi-lo... Temos de os deixar fazer tudo o que querem, até as coisas que nos parecem insensatas.
Dona Carlota ergueu os olhos para Kate.
- Gostava muito do seu marido... e ele morreu? - perguntou em voz suave.
- Amei-o deveras, e não tornarei a gostar doutro homem. Perdi a faculdade de amar.
- De que morreu?
- Por sua culpa. Despedaçou o coração e a alma com a política irlandesa. Eu sabia que ele fazia mal em se ocupar disso. Que nos importava a Irlanda, o nacionalismo, as revoluções e todas essas tolices? Ah, se o Joachim se limitasse a viver em paz comigo, poderíamos ser tão felizes! Em vão tentei convencê-lo. Queria matar-se com aquela estúpida política, e não consegui evitá-lo. Foram inúteis todos os meus esforços.
Dona Carlota olhou fixamente para Kate.
- Assim como são os meus para impedir que Ramon proceda mal e se mate... E depois de morto, de que servirá tudo aquilo?
- De nada. Depois de eles morrerem, ficamos a saber que foi inútil todo o trabalho que tiveram.
- Oh, señora! Se pode ajudar-me a salvar Ramon, ajude-me! É uma questão de vida ou de morte para nós ambos. Porque eu morrerei se ele levar a sua avante...
- Explique-me bem qual é a ideia de Don Ramon. A do meu marido era libertar a Irlanda e engrandecer o povo. Mas eu nunca acreditei que os irlandeses fossem jamais um grande povo nem que se pudesse torná-lo livre. Só sabe destruir, e destruir estupidamente. Não se pode fazer livre um povo que o não é. Existe nele qualquer coisa que o impele à destruição.
- Bem sei, bem sei. Da mesma forma é Ramon. Até quer destruir Jesus e a Virgem Maria por amor do povo. Imagine! Derrotar Jesus e a Virgem! A última coisa que se podia pensar...
- Mas o que diz ele quanto ao seu projecto?
- Diz que pretende estabelecer um novo nexo entre o povo e Deus. Declara, por seu lado, que Deus é sempre Deus, mas que o homem perdeu a sua união com a divindade... e que não é possível restaurá-la sem que venha um novo Deus. E que qualquer novo nexo tem de ser diferente do antigo, embora Deus continue a ser Deus. Neste momento, declara meu marido, o povo perdeu o seu Deus. O Salvador já não será capaz de o reconduzir a Si. Precisa-se de outro Salvador, com uma nova visão. Ah, señora, eu não creio nisto! Deus é amor e, se Ramon se submetesse, ao menos, ao amor, compreenderia que aí é que estava Deus. Mas qual! É tão perverso! Poderíamos, ambos, com amor calmo, gozando a beleza do mundo, esperar pelo amor de Deus... Porque é, señora, que ele não vê isto? Oh, porque não compreende? Em vez de fazer estas coisas...
Acudiram lágrimas aos olhos de Dona Carlota, as quais se lhe espalharam pelo rosto. Kate também chorava.
- É inútil! - disse ela, soluçando. - Sei que é inútil, faça-se o que se fizer. Não querem ser felizes e estar em paz, mas sim esta luta e esses falsos e horríveis nexos... Sim, é inútil, de qualquer forma. E nisto é que está o pior.
E as duas mulheres, sentadas nas cadeiras de baloiço, soluçavam amargamente quando ouviram passos no terraço, leve ruído de pés calçados de sandálias.
Era Don Ramon, atraído inconscientemente pelo clamor daquelas criaturas pesarosas.
Dona Carlota limpou a toda a pressa os olhos e o nariz; Kate assoou-se com estrondo. No limiar da porta, Don Ramon deteve-se.
Trajava como os camponeses, todo de branco, de casaco largo e calças muito amplas. O fato era de linho, com certa goma, e tinha um brilho estranho, fora do vulgar. Por baixo do casaco, à frente, uniam-se as pontas duma faixa estreita de lã, também branca, franjada de vermelho e riscada de azul e preto. Nos pés sem meias trazia huaraches de coiro azul e negro, entrançado, com espessas solas tingidas de vermelhão. As calças estavam presas aos tornozelos por alamares de lã pretos, azuis e encarnados.
Kate, vendo-o assim à claridade do sol, vestido de uma alvura tão ofuscante, teve a impressão de que o rosto dele, escuro e emoldurado de cabelos escuros, fazia como que um buraco na atmosfera.
Don Ramon aproximou-se, com as pontas da faixa a baterem-lhe nas pernas, e as sandálias rangendo de leve.
- Muito prazer em encontrá-la - murmurou, apertando a mão da visitante. - Como veio?
Deixou-se cair numa cadeira e ficou imóvel. As duas senhoras baixaram a cabeça, como se quisessem esconder a cara. A presença do homem ainda as constrangia mais, porém o dono da casa fingiu não reparar na comoção que sentiam e fê-lo por um acto de pura vontade. Da sua presença emanava certa força e elas experimentaram um pouco de alívio.
- Não sabia que o meu marido se tornara num aldeão, num verdadeiro peón? - perguntou Dona Carlota, irónica, à sua hóspeda. - É um señor peón, como o conde Tolstoi se fez señor mujique...
- Mas fica-lhe bem - observou Kate.
- Ora aí está... Ao diabo o que é do diabo... - replicou Don Ramon.
Havia nele algo de tenaz, de inflexível. Riu, e falou às senhoras, mas sem se revelar muito, apenas superficialmente. O seu ser íntimo, insondável e poderoso, não entrava em contacto com elas.
Assim foi durante o almoço. Houve conversa esvoaçante, com intervalos de silêncio. Nesse silêncio percebia-se que Don Ramon vivia noutro mundo; e a sua vontade calma, obrando noutra esfera, fazia recuar as mulheres para a sombra.
- A señora é como eu, Ramon - disse Dona Carlota. - Não tolera o rufar do tambor. Irá continuar aquilo, pela tarde adiante?
Seguiu-se uma pausa antes que ele respondesse:
- Só depois das quatro horas.
- Temos, então, de aturar hoje esse barulho? - insistiu Dona Carlota.
- Porque não há-de ser hoje como nos outros dias? - ripostou o marido. Notava-se-lhe um ar contrariado. Era evidente que pretendia subtrair-se à presença daquelas duas.
- Porque a senhora está cá, e eu estou também, e porque nenhuma de nós gosta daquele som. Amanhã já ela se vai embora, e eu regresso à cidade. Porque não nos poupas esse tormento? E
Ramon fitou a mulher, e em seguida Kate. Os olhos denotavam cólera. Kate quase ouvia, naquele peito forte, o coração inchar de furor. Mas calou-se e a outra também se calou. No fundo, estavam satisfeitas por terem podido despertar a ira do homem.
Mantendo o sangue-frio, Don Ramon inquiriu da esposa (não sem que se lhe percebesse a indignação):
- Porque não levas a senhora Leslie até ao lago?
- Não nos apetece.
Ele então fez o que a irlandesa nunca vira ninguém fazer. Encerrou-se dentro de si mesmo, deixando às duas comensais a impressão de se encontrarem diante duma porta que se fechou. Kate sentiu-se abandonada e deprimida, mas a pouco e pouco a irritação tingiu-lhe as faces pálidas dum rubor de fogo.
- Posso ir-me embora antes das quatro horas - declarou.
- Não, não! - acudiu, suplicante, a dona da casa. - Não me deixe. Fique comigo até à noite e ajude-me a distrair Don Cipriano, que vem jantar connosco.

XI
Acabado o almoço, Ramon recolheu ao quarto para dormir a sesta. A tarde estava quente, pesada. No extremo oeste do lago erguiam-se nuvens cintilantes, quais mensageiros da tempestade. Ramon fechou as janelas do seu aposento de modo a obter negrume total; apenas aqui e ali, filtrando-se pelos interstícios da porta, os raios de luz pousavam nas trevas como uma coisa tangível.
Despiu a roupa e ergueu acima da cabeça os punhos fechados, como se orasse intensamente e de pé. Nos seus olhos só havia escuridão, e a pouco e pouco essa escuridão atingiu-lhe o cérebro, apagando-lhe todos os pensamentos. Só uma vontade poderosa se distendia e emanava da espinha dorsal, numa tensão sobre-humana até que as flechas da alma atingiram o alvo e a oração a sua meta.
Então, bruscamente, tombaram os braços trémulos, o corpo readquiriu a flexibilidade. O homem recuperara a sua força. Quebrara as cordas do mundo e sentia-se livre e senhor da outra força.
Devagarinho, com precaução, esforçando-se por não pensar, não se recordar, não despertar as serpentes venenosas da consciência, enrolou-se num cobertor delgado e estendeu-se no chão sobre uma pilha de coxins. Daí a instantes, adormecia.
Dormiu profundamente cerca de uma hora. Abriu os olhos de repente, viu as trevas aveludadas e as frechas de luz diminuídas: o sol mudara. Pôs-se à escuta. Parecia não haver um único som no mundo. Talvez não existisse mundo...
Então começou a ouvir. Distinguiu o débil rumor duma carroça, folhas sussurrando ao vento, o som distante de pancadas, o pio duma ave.
Levantou-se, vestiu-se com rapidez às escuras e foi abrir as janelas. A tarde ia em meio; soprava uma aragem quente, amontoavam-se a oeste nuvens escuras, mas a chuva não se decidia a cair. Ramon pôs na cabeça um chapéu de palha, que tinha à frente um enfeite de penas brancas, pretas e azuis dispostas em forma de olho, ou de sol. Ouviu vozes femininas. Ah, a estrangeira! Esquecera-a por completo. E Carlota! Carlota encontrava-se ali. Por um momento, pensou nela e na sua caprichosa oposição. Depois, antes que a ira o dominasse, soergueu o peito, em nova oração muda, os olhos sombrearam-se-lhe - e perdeu a impressão de contrariedade.
Seguiu pelo terraço até à escada de pedra que conduzia à entrada e atravessou o pátio, onde dois homens, debaixo dum alpendre, carregavam azêmolas com fardos de bananas. No zaguán dormiam soldados. Pelas portas abertas, Ramon viu ao fundo da alameda um carro de bois afastando-se lentamente. No pátio ressoavam marteladas numa bigorna: era um homem e um rapazito ocupados na forja. Noutro alpendre, um carpinteiro aplainava tábuas.
Don Ramon deteve-se um momento para olhar em volta. Aquele era o seu mundo. O espírito dele espraiava-se nesse mundo como uma sombra fomentadora, e o silêncio do seu próprio poder dava-lhe paz.
Os homens que trabalhavam tiveram quase instantaneamente consciência da presença do patrão. Um após outro, os rostos escuros e ardentes ergueram-se para ele e voltaram a baixar-se. Gostavam de o ver ali, mas temiam aproximar-se e nem se atreviam a um olhar mais prolongado. Retomaram o trabalho com mais ardor, como se a presença do patrão lhes desse novo alento.
Ramon dirigiu-se para a forja, onde o rapazinho dava ao fole e o homem batia pancadas leves e rápidas num pedaço de ferro.
- É a ave? - perguntou Ramon.
- Sim, patrón, é a ave. Está bem! - E o homem levantou os olhos pretos, luzidios, expectantes. com uma tenaz, brandiu a tira de metal, negra, em forma de língua achatada, e Ramon observou-a demoradamente. - As asas ponho-as depois - explicou o ferreiro.
com as mãos escuras e nervosas, Don Ramon traçou uma linha imaginária em volta do pedaço de ferro. Três vezes fez esse gesto, que parecia fascinar o ferreiro.
- Um pouco mais alongado. Assim... - disse Ramon.
- Sim, patrón, compreendo.
- E o resto?
- Está ali. - O homem apontou para dois arcos, um maior que outro, e para várias chapas de ferro triangulares.
- Coloca tudo isso no chão.
O ferreiro pousou os arcos, um dentro do outro, e em seguida dispôs com perícia os triângulos de modo que as bases ficassem sobre o arco exterior e os vértices no círculo interior. Eram sete.
Assim formaram um sol de sete pontas.
- Agora, a ave - ordenou Ramon.
O homem pegou logo na peça comprida: era a forma rudimentar dum pássaro, com dois pés mas ainda sem asas. Colocou-a no centro da roda interior, de maneira que as patas tocassem no círculo e a cabeça atingisse a parte oposta.
- Está tudo certo!
Ramon contemplava o símbolo de ferro armado no chão quando ouviu abrir a porta de casa. Kate e Carlota avançaram através do pátio.
- Retiro isto? - inquiriu o ferreiro.
- Deixa, não faz mal - respondeu Don Ramon tranquilamente.
Kate deteve-se a observar aquela coisa estendida no chão.
- Que é isso? - perguntou.
- A ave dentro do sol.
- Representa uma ave?
- Quando tiver asas.
- Ah, faltam-lhe as asas! E de que serve?
- É um símbolo para o povo.
- é bem bonito...
- Sim, é bonito.
- Ramon, não te importas dar-me a chave para tirar o barco?
- disse Dona Carlota. - Vamos dar um passeio no lago, e Martin remará.
O marido tirou a chave da cinta.
- Onde descobriu essa linda faixa? - indagou Kate. Era branca, com riscas azuis e pretas e franjadade vermelho.
- Teceram-na aqui - informou Don Ramon.
- E as sandálias? Também as fizeram cá?
- Sim, foi obra do Manuel. Mais tarde lho mostrarei...
- Gostaria bastante de ver. São belíssimas, não acha, Dona Carlota?
- Acho, mas não sei se as coisas belas são sensatas. Não sei. E a señora, sabe o que é sensato?
- Eu? - volveu Kate. - Não me preocupo muito com isso.
- Ah, não se preocupa! Afigura-se-lhe então sensato da parte de Ramon usar traje de camponês e huaraches?
Pela primeira vez, Dona Carlota exprimira-se em língua inglesa, falando com lentidão.
- Fica-lhe tão bem! - replicou Kate. - O fato de homem é medonho e Don Ramon parece magnífico com este.
De facto, com o largo chapéu pousado na cabeça ele tinha certo ar de nobreza e autoridade.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, fixando na companheira o seu olhar inteligente, enquanto brincava com a chave. - Vamos para o lago?
As duas mulheres afastaram-se. Rindo consigo mesmo, Ramon atravessou o pátio e dirigiu-se a uma granja construída perto das árvores. Entrou e assobiou baixinho. Soou outro assobio como resposta e abriu-se um alçapão. Don Ramon subiu a escada e encontrou-se numa espécie de oficina de carpinteiro. Acolheu-o um rapaz corpulento, de cabelo encaracolado, que empunhava maço e escopro.
- Que tal vai isso? - perguntou Ramon.
- Vai bem.
O artista esculpia uma cabeça de madeira. Uma cabeça avantajada, convencional, mas que, apesar do convencionalismo, revelava semelhança com Ramon.
- Sirva-me de modelo durante meia hora - disse o escultor. Ramon sentou-se e ficou silencioso, enquanto o outro, curvado
sobre a sua obra, se concentrava no trabalho. Durante todo aquele tempo, Don Ramon conservou-se erecto, quase imóvel, sem pensar em nada, mas irradiando um halo sombrio de poder que fascinava o artista.
- Basta - declarou por fim, levantando-se.
- Mas ponha-se na posição antes de se ir embora - pediu o artista.
Ramon despiu lentamente o casaco e ficou de torso nu, com a faixa raiada de azul e preto de roda da cintura. Por uns instantes pareceu recolher-se e, em seguida, como se numa oração intensa e orgulhosa, ergueu o braço direito por cima da cabeça e ficou transfigurado. O braço esquerdo pendia molemente ao longo do quadril. E no rosto, esse ar de orgulho fixo e intenso que era em si mesmo uma oração.
O escultor observava-o admirado e quase temeroso. Aquele homem grande e enérgico, com os seus olhos negros dilatados pelo orgulho e no entanto cheios de oração, despertava no escultor um frémito de alegria e de medo.
Don Ramon voltou-se para ele.
- Agora, você!
O artista, assustado, quis esquivar-se, mas encontrou o olhar de Ramon e, no mesmo instante, a calma da concentração desceu sobre ele, como um êxtase. Então, bruscamente, ergueu o braço, e a face pálida e nédia adquiriu uma expressão de paz e dignidade. Os olhos cinzento-azulados, serenos e altivos, dirigiam ao Além a sua oração. E embora estivesse com a bata de trabalho, e não fosse esbelto, apresentava uma imobilidade perfeita, plena de nobreza.
- Muito bem - disse Ramon, baixando a cabeça.
O escultor moveu-se de súbito. Ramon estendeu-lhe as duas mãos e ele, levantando-lhe a dextra, pousou-a na fronte.
- Adiós! - disse Ramon, depois de enfiar o casaco.
- Adiós - respondeu o artista. E com a felicidade estampada no rosto, voltou para o trabalho.
Don Ramon visitou a casa de adobe, cujo pátio era rodeado duma paliçada de canas e sombreado por uma gigantesca mangueira. Manuel, a mulher, os filhos e dois ajudantes estavam a fiar e a tecer. Debaixo das bananeiras, duas pequenas cardavam lã branca e castanha. A mulher e uma rapariga fiavam. Numa corda secava lã tingida, vermelha, azul e verde. E, no alpendre, Manuel e um rapaz manobravam dois pesados teares.
- Como vai isso? - inquiriu Don Ramon.
- Muy bien! Muy bien! - respondeu Manuel, com uma expressão transfigurada cintilando-lhe nas pupilas negras. - Muito bem, señor!
Ramon examinou a serape que estavam a tecer. Tinha uma barra em ziguezague de lã preta natural e, em cada ponta, um ornato complicado, azul e preto. O homem começara o centro, a que chamam boca, e olhava de instante a instante para o desenho pregado no tear. Aliás, era um desenho simples, igual ao símbolo de que o ferreiro se ocupava: uma serpente a morder a cauda e, de volta, triângulos negros cujas bases se apoiavam num círculo exterior; ao meio uma águia azul, com as asas e os pés tocando no arco formado pela serpente.
Ramon voltou a casa, dirigindo-se para a ala onde se encontrava o seu quarto. Lançou uma manta dobrada sobre o ombro e seguiu pelo terraço. No extremo dessa ala, projectando-se para o lago, havia outro terraço, este quadrado, com uma bignónia cor de coral pendente dos pilares maciços. A loggia estava juncada de esteiras e, a um canto, via-se um tambor e respectiva baqueta. No ângulo mais afastado mergulhava uma escada de pedra, fechada em baixo por uma porta de ferro.
Ramon ficou uns momentos a olhar para o lago. As nuvens dispersavam-se e o lençol de água reflectiu uma claridade esbranquiçada. Ao longe, via-se a mancha de um barco, onde provavelmente se encontravam Martin e as duas senhoras.
Tirou o chapéu e o casaco, e permaneceu imóvel, nu da cintura para cima. Então pegou na baqueta e, depois de esperar uns segundos, até adquirir paz de alma, fez soar o apelo do tambor, num ritmo alternado, forte e fraco. Captara o antigo poder bárbaro de certos rufos.
Assim esteve durante algum tempo, sozinho, tocando tambor com a mão direita, de face inexpressiva.
Acorreu um homem, de cabeça descoberta, vindo do outro terraço. Trazia fato de brancura imaculada, serape escura ao ombro, e uma chave na mão. Saudou Ramon, levando à testa as costas da mão direita, e depois desceu a escada e abriu a porta de ferro.
Imediatamente chegaram homens, todos vestidos de branco, cada qual com a sua serape dobrada em cima dos ombros. Mas as faixas eram azuis, e as sandálias azuis e brancas. O escultor apareceu, assim como Martin.
Eram sete, além de Ramon. No topo da escada saudaram-no, um apôs outro. Em seguida, depuseram a manta e o chapéu no murinho do terraço e despiram o casaco, que atiraram para cima dos chapéus.
Ramon largou o tambor e sentou-se sobre a sua manta raiada de azul e preto. Todos o imitaram, formando círculo, de pernas cruzadas e torso nu. Uns eram cor de café, outros brancos; Ramon tinha a pele dum tom castanho-claro. Conservaram-se em silêncio, só perturbado pelo som igual e hipnótico do tambor que um dos homens tocava. Então este começou a cantar numa vozinha estranha, contida, essa antiga voz de falsete dos índios:
"Quem dorme despertará. Quem dorme despertará. Quem segue o caminho da serpente há-de chegar ao seu destino; há-de chegar ao seu destino e ficará revestido com a pele da serpente."
Uma por uma, outras vozes se juntaram, até que todos se fizeram ouvir, naquele ritmo cego, infalível, do antigo mundo bárbaro. E todos com idêntica voz interior, como se a alma cantasse para si própria.
Cantaram por momentos, em uníssono, qual bando de pássaros a voar levados pelo mesmo instinto. E quando o tambor vibrou num rufo que era o final da cerimónia, as vozes extinguiram-se também, simultâneas, com um estrangulamento na garganta.
Houve um silêncio. Depois os homens principiaram a conversar uns com os outros, rindo em surdina. Mas a voz deles e a expressão já não eram as mesmas de há pouco.
Don Ramon ia falar e todos se calaram, inclinando a cabeça. Aquele sentara-se, de face erguida, visando ao longe, na dignidade da oração.
- Não há Passado nem Futuro, só existe o Presente - disse em tom surdo, majestoso. - A Serpente magna dobra e desdobra os seus anéis, as estrelas surgem, os mundos desaparecem. Há somente a mudança e o repouso do plasma.
Eu sou sempre, diz o seu sono.
Assim como o homem, enquanto dorme, não tem conhecimento, mas é, também a Serpente enroscada do eterno Cosmos prolonga o seu existir de Agora.
Agora, agora só, e para sempre Agora.
Contudo os sonhos despertam e esmorecem no sono da Serpente.
E o Universo eleva-se como os sonhos e como eles expira.
E o homem é um sonho no sono da Serpente.
E apenas o sono que não tem sonhos murmura: Eu sou!
E no Agora sem sonhos, Eu sou.
Os sonhos despertam, como devem, e o homem é um sonho desperto.
Mas o plasma sem sonhos da Serpente é o plasma do homem, do seu corpo e ao mesmo tempo da sua alma.
E o sonho perfeito da Serpente Eu sou é o plasma do homem, que é íntegro.
Quando o plasma do corpo e o da alma só fazem um, Eu sou na Serpente.
Agora Eu sou.
Não foi é um sonho, assim como será, quais dois pés trôpegos e separados.
Mas Agora. Eu sou.
As árvores desdobram as folhas no sono, e a floração emerge dos sonhos no mais puro Eu sou.
Os pássaros esquecem o peso dos seus sonhos e cantam no Agora: Eu sou! Eu sou!
Porque os sonhos têm asas e pés e caminhos a percorrer, e esforços a realizar.
Mas a Serpente luzidia do Agora não tem asas nem pés, é una, perfeitamente enrolada.
Nos pés dum sonho, a lebre sobe o monte numa corrida. Mas quando se detém o sonho desaparece e ela entra no Presente e os seus olhos são o vasto Eu sou.
Só o homem sonha, sonha, e vai de sonho em sonho, como alguém que, dormindo, se agita no leito.
Sonha com os olhos e a boca, com as mãos e os pés, com o falo, o coração e o ventre, com o corpo e a alma, numa tempestade de sonhos.
E precipita-se de sonho para sonho, na esperança de alcançar o sonho perfeito.
Mas eu afirmo-vos que nenhum sonho é perfeito, porque em todos eles há sofrimento e desejo.
Nada é perfeito, excepto o sonho que falece no sono. Eu sou.
Quando o sonho dos olhos se obscurece, cercado pelo Agora,
E quando o sonho da boca ressoa no último Eu sou,
E quando o sonho das mãos dormita como uma ave no mar, que é erguida, e levada, sem que ela o saiba,
E os sonhos dos pés atingem o centro do mundo, onde a Serpente dorme,
E o sonho do corpo é a calma duma flor oculta,
E o sonho da alma se dissipou no perfume do Agora,
E o sonho do espírito se apazigua e descansa na Estrela da Manhã,
Porque cada sonho começa e termina no Presente,
No âmago da flor está a Serpente que alumia e não desperta.
E o que se apaga é um sonho, e o que se aumenta é um sonho. Há sempre, e somente Agora. Agora e Eu sou."
Reinava o maior silêncio no círculo de homens. Lá fora, rangia um carro de bois e, do lago, elevava-se o débil som de remos a fender a água. Mas os sete homens, de cabeça baixa, escutavam interiormente, numa espécie de transe.
Então o tambor começou, suavemente, e um dos homens cantou, num fio de voz:
O senhor da Estrela da Manhã
Estava entre o dia e a noite:
Tal um pássaro que ergue as asas e espera
com a asa luminosa à direita
E a das trevas à esquerda,
A Estrela de Alva apareceu.
- Olhai! Estou sempre aqui!
Longe, no espaço
Roço a asa do dia
E ilumino o vosso rosto.
com a outra asa roço a sombra.
Mas eu estou sempre aqui.
Estou sempre aqui. Sou o senhor. E os senhores entre os homens Vêem-me no cintilar das minhas asas. E perdem-me outra vez. Mas, olhai! Estou sempre aqui.
As multidões não me vêem. Só vêem o bater de asas, As idas e vindas das coisas, O calor e o frio.
Mas a vós que me vedes entre
O frémito da noite e do dia,
Faço-vos senhores do Caminho Invisível.
Caminho entre abismos de trevas e vales de luz; Caminho que segue tal rasto de serpente, tal a mecha dum rastilho
Que incendiará à substância das trevas e explodirá à vista de todos.
Jamais me afasto. Estou sempre aqui Entre as asas dum voo sem fim, Nas profundezas da paz e da luta.
Profundo no relento da paz,
Longe da orla do combate,
Haveis de encontrar-me, eu que não sou
Nem sou destruição.
Para além eu estou Dos horizontes de amor e de luta, Como uma estrela, como uma fonte Que lava os senhores da vida.
"Ouvi! - disse Ramon, no meio do silêncio. - Seremos senhores entre os homens, não os senhores dos homens. Somos senhores da noite. Senhores do dia e da noite. Filhos da Estrela da Manhã e da Estrela da Tarde.
Não somos senhores dos homens. Eu, porém, sou a Estrela da Manhã e Senhor do dia e da noite. com o poder que me foi concedido à mão esquerda e com o poder que obtive com a mão direita, sou senhor dos dois rumos.
E a minha flor na terra é o jasmim, e no céu a hespéride.
Não vos darei ordens, nem vos servirei, porque a serpente se arqueia em direcção à sua casa.
Contudo, estarei convosco, para que não vos desvieis de vós próprios.
Não há nada a dar nem a receber. Quando os dedos que dão afloram os que recebem, cintila a Estrela da Manhã a esse contacto, e o jasmim brilha entre as mãos. E assim não há dom nem aceitação, nem mão que oferece nem mão que recebe, mas a estrela encontra-se entre elas e a mão escura e a mão clara permanecem invisíveis de cada lado. O jasmim recolhe na corola o dom e a aceitação, e o seu perfume espalha-se no ar.
Não penseis em dar nem em receber, deixai isso à flor do jasmineiro.
Não vos desperdiceis, que nada vos seja arrancado.
E não percais nada, nem o aroma da rosa, nem o sumo da romã, nem o calor do fogo.
Mas dizei à rosa: - Olha, colho-te, e o teu perfume enche-me as narinas e o meu hálito penetra no teu coração. Que isso seja entre nós como um sacramento.
E tomai cuidado quando abrirdes a romã; é o Sol poente que tendes nas mãos. Dizei: - Eis-me aqui, vem! Que a Estrela da Tarde fique entre nós.
E quando a chama se eleva ao sopro do vento frio e estendeis as mãos para o calor, ouvi o que a chama diz: - Ah! És tu? És tu que vens para mim? Eu realizava a grande viagem, seguindo o caminho da serpente magna. Mas visto que vens até mim, de ti me aproximo. E se caíres nas minhas mãos cairei nas tuas, e a flor do jasmineiro perfumará o nosso encontro.
Não repilais nada nem deixeis que vos despojem. Porque repelir ou ser despojado quebra a raiz do jasmim e conspurca a Estrela da Tarde.
Não vos apodereis de nada para dizer: - Isto pertence-me. Nada existe que vos seja dado possuir, nem sequer a paz.
Nada; nem o ouro, nem a terra, nem o amor, nem a vida, nem a dor, nem a morte, nem a salvação.
De nada direis: - Isto é meu.
Dizei apenas: - Isto está comigo.
Porque o ouro só permanece convosco o espaço duma lua, e olha-vos e diz: - Encontramo-nos ligados por este breve instante.
E a terra diz-vos: - Ah, filho meu, de pai longínquo! Vem, revolve-me um pouco, para que as papoulas e o trigo cresçam e ondulem ao vento que sopra entre o meu e o teu peito. Depois, abisma-te em mim, e ambos formaremos um outeiro.
E ouvi o que diz o vosso amor: - A tua espada ceifou-me como à erva, e sobre mim está a sombra e o bruxulear da Estrela da Tarde. Não é mais do que trevas e nada. Ó tu, quando te levantares e prosseguires o teu caminho, fala-me, dize-me simplesmente: - A estrela despontou entre nós.
E dizei à vida: - Sou teu? És minha? Sou a orla do dia em volta da noite? São os meus olhos o crepúsculo onde a estrela se suspende? É o meu lábio superior o pôr do Sol e o meu lábio inferior o raiar da manhã? Tremula a estrela na minha boca?
E dizei à vossa paz: Ergue-te, estrela imortal! Já as águas da aurora te alagam e me levam no seu curso.
E dizei à dor: Machado, abates-me. E, contudo, brota uma centelha do teu gume e da minha ferida. Corta, então, que eu velarei a face, ó pai da estrela!
E dizei à vossa força: A espuma da noite sobe-me dos pés até aos rins, a espuma do dia salta-me dos olhos e da boca para o mar do meu peito. As minhas entranhas são um manancial de poder que corre pela espinha dorsal. E uma estrela flutua sobre esse fluxo.
E dizei à vossa morte: Pois seja! Eu e a minha alma iremos para ti, Estrela da Tarde. Carne, desaparece na sombra da noite. Espírito, chegou o teu dia. Deixai-me agora. Na minha nudez suprema me encaminho para a Estrela mais nua."

XII
Os homens envergaram o casaco, puseram o chapéu e, depois de cobrirem os olhos por um momento numa saudação a Ramon, desceram a escada de pedra. Fechou-se a porta com estrondo e o porteiro, voltando com a chave, pousou-a sobre o tambor e retirou-se discretamente.
Ramon ficou sentado em cima da manta, com os ombros nus apoiados à parede e de pálpebras cerradas. Sentia-se fatigado, nesse estado de abstracção que torna difícil o regresso ao mundo normal. Ouvia de modo vago os rumores na casa, tilintar de colheres de chá, vozes femininas conversando, o ronco dum automóvel que se aproximava pelo caminho desnivelado e se detinha no pátio.
Custava-lhe voltar à terra. Ressoava-lhe aos ouvidos o barulho do exterior, mas dentro dele mesmo escutava o murmúrio confuso do universo, como se num búzio. Era-lhe penoso retomar contacto com as coisas da vida corrente quando o corpo e a alma mergulhavam no cosmos.
Gostaria de se conservar ainda uns instantes no seu isolamento, mas não era possível. Reclamavam a sua presença, especialmente Carlota.
Já ela o chamava: "Ramon! Isso terminou? Cipriano está aqui." Sentia-se-lhe na voz receio e temeridade.
Ramon puxou os cabelos para trás, ergueu-se e, em passo rápido, acudiu ao chamamento tal como se encontrava, de torso nu. Não tinha vontade de se vestir, de reentrar nos pormenores da vida quotidiana.
Cipriano, fardado, achava-se no terraço abancado à mesa do chá. Levantou-se prontamente e avançou para Ramon de braços abertos, perscrutando o rosto do amigo com os seus olhos negros e brilhantes.


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Os dois homens abraçaram-se, peito contra peito, e, por momentos, Cipriano deixou estar as mãos morenas nas espáduas nuas de Ramon. Então afastou-se devagar e fitou-o sem proferir uma palavra.
Ramon pousou distraidamente a mão no ombro de Cipriano.
- Que tal? - perguntou. - Como vai isso?
- Bien. Muy bien - respondeu Cipriano, fixando-o sempre como se se procurasse a si mesmo no semblante de Ramon. Este correspondeu ao olhar do índio com um leve sorriso, enquanto Cipriano baixava a cabeça e os cabelos longos lhe tombavam na testa.
As duas mulheres observavam a cena em silêncio absoluto. Quando os dois homens se aproximaram da mesa, Carlota começou a servir o chá. Mas as mãos tremiam-lhe e ela tratou de pousar o bule e cruzá-las no regaço.
- Passearam de barco? - indagou Ramon, com ar alheado.
- Passeámos, e foi muito agradável - disse Kate. - Um bocado quente, quando o sol apareceu...
Ramon esboçou um sorriso e alisou o cabelo. Em seguida, descansando a mão no parapeito do terraço, olhou para o lago e suspirou inconscientemente.
Nu da cintura para cima, voltava costas às mulheres, contemplando a vastidão da água. Cipriano estava a seu lado.
Kate observava as espáduas lisas, morenas, que emanavam sensualidade, os ombros largos, o porte altivo da cabeça - e não podia deixar de imaginar uma lâmina cravada nessas costas magníficas, nem que fosse só para destruir a sua arrogância distante.
Porque até a sua nudez parecia distante, intangível. Pensar nela e contemplada daquele modo representava quase uma violação. Kate sentiu de súbito o coração estremecer-lhe de vergonha. Fora assim que Salomé olhara para João Baptista, e Ramon possuía essa mesma beleza que evocava uma romã destacando-se na verdura sombria da árvore.
Soprava branda a aragem da tarde. Na luz nacarada deslizavam barcos, enquanto o Sol luzia ainda no horizonte. Distinguia-se a margem oposta, a cerca de vinte milhas, embora velasse a atmosfera uma bruma opalina que se confundia com a água do lago. Kate lobrigava a mancha clara da igreja de Tuliapan.
No jardim da casa havia um bosquete de mangueiras, onde voavam cá e lá passarinhos escarlates, como botões de papoula, e outros dum amarelo cintilante. Contudo, quando pousavam por um momento e fechavam as asas, desapareciam da vista, pois eram escuros por cima.
- Neste país, os pássaros só são coloridos por baixo das asas - observou Kate.
Ramon voltou-se bruscamente para ela.
- Dizem que a palavra México significa "por baixo" - replicou, sorrindo, enquanto se afundava numa cadeira de balouço.
Dona Carlota fizera um esforço sobre si mesma e, de olhos fixos nas chávenas, servia o chá. Apresentou uma xícara ao marido, sem sequer o relancear. Tremia de cólera quase histérica. Ela, que era sua esposa desde tantos anos e que o conhecia tão bem (ah, se o conhecia!), nada possuía desse homem.
- Passa-me o açúcar, Carlota - disse Ramon na sua voz calma.
A mulher sobressaltou-se como se a beliscassem de repente.
- O açúcar? - repetiu, distraída.
Ramon estava sentado na cadeira, pendido para a frente e de xícara na mão. A tela fina que lhe cobria as coxas revelava-lhe mais o corpo do que a nudez do torso. Kate percebeu porque é que era proibido usar calças de algodão naplaza. Tornavam mais sensível a presença da carne.
Verdadeiramente belo, duma beleza que chegava a ser assustadora, irradiava uma sensualidade pura, hostil ao género de pureza de Kate, com a sua faixa azul de roda da cinta e as calças brancas parecendo fremir de vida cingidas aos quadris e às coxas. Tão poderoso fluido emitia esse ente másculo que Kate se sentia como que fascinada.
E ele, perfeitamente tranquilo, dentro do seu próprio ambiente. O mesmo acontecia a Cipriano. Ambos tão calmos, tão sombrios, dir-se-iam esmagar as duas mulheres.
Kate compreendeu então os sentimentos de Salomé. Compreendeu como João Baptista, com a sua beleza distante e inacessível, exercera tamanho poder.
"Ah! disse ela consigo mesma. - Tenho de fechar os olhos e abrir a alma. Fechar os olhos para não ver e ficar na escuridão e no silêncio junto destes dois homens. Possuem uma riqueza que me falta. Conseguiram libertar-se do desejo que a vista suscita. Sou atormentada pelo desejo, pela minha imaginação lasciva. É a maldição de Eva. Os meus olhos, a minha experiência são como um anzol que me repuxa a carne e me desperta espasmos de desejo. Oh, quem me dera libertar-me da impureza do olhar! Filha de Eva, porque é que estes homens me não arrancam às visões impuras?"
Levantou-se e dirigiu-se à beira do terraço. Amarelos como narcisos, emergiam dois pássaros da sua própria invisibilidade. Na praia de seixos, onde estava um barco varado, dois homens apanhavam à rede os peixinhos denominados chcirales, que cintilavam na água acastanhada como lascas de vidro.
- Ramon! - disse Dona Carlota. - Não vais vestir-te? Já não podia suportar aquela vista.
- vou. Obrigado pelo chá - respondeu o marido, pondo-se de pé. E seguiu pelo terraço adiante, com as sandálias a ranger de leve no pavimento de tijolos.
- señora Caterina! - chamou Carlota. - Venha beber o seu chá.
Kate voltou para a mesa, dizendo:
- Que paz se sente aqui!
- Paz! - repetiu Carlota. - Não acho paz nenhuma. O que há é um silêncio pavoroso que me causa arrepios.
- Vem cá frequentemente? - perguntou Kate a Cipriano.
- Sim, uma ou duas vezes por semana - respondeu ele, fixando-a com singular expressão nos olhos negros.
Dir-se-ia que esses homens procuravam anular-lhe a vontade.
- São horas de eu voltar para casa - declarou ela. - Não tarda que o Sol desapareça.
- Ya va? - redarguiu Cipriano, com a sua voz aveludada em que transparecia certa pena. - Já!
- Oh, não, señora! - exclamou Carlota. - Fique connosco até amanhã.
- Mas estão em casa à minha espera.
- Mandarei um rapaz prevenir que só regressa amanhã. Fica, não é verdade? Ah, ainda bem.
E Carlota, depois de pousar a mão carinhosa no braço de Kate, levantou-se a fim de avisar os criados.
Cipriano puxou da cigarreira e ofereceu-a a Kate.
- Não se escandalizará se eu fumar? - disse ela. - É um dos meus vícios.
- Fume. Não é bom sermos perfeitos.
- Acha que não? - E Kate, rindo-se, puxou uma fumaça do cigarro.
- Experimenta realmente essa paz? -inquiriu ele, irónico.
- Porquê?
- Porque é que os brancos andam sempre em busca da paz?
- Pois não é natural que todos desejem paz?
- Paz é apenas o descanso depois da guerra. Não é mais natural do que a luta; talvez até seja menos.
- Mas existe outra paz, aquela que ultrapassa o entendimento. Não sabia?
- Parece-me que não - respondeu Cipriano. - Que pena!
: - Ah! Quer ensinar-me? Mas para mim é diferente... Cada
homem tem dois espíritos. Um assemelha-se à aurora na época das chuvas, suave, fresca, húmida, com pássaros chilreando. O outro é como a estação seca, com a sua luz forte e ardente que parece nunca mais abrandar.
- Decerto prefere o primeiro.
- Não sei - replicou Cipriano. - O outro dura mais.
- Tenho a certeza que prefere a frescura da manhã - insistiu Kate.
- Não sei, não sei. - E esboçou um sorriso, deixando Kate
convencida de que ele de facto não sabia. - Na primeira fase vemos as flores nas suas hastes transbordantes de seiva. A flor desa brocha como uma face de mulher perfumada pelo desejo. Mas o sol começa a aquecer, e então tudo se modifica. As flores murcham e o peito do homem torna-se como um espelho de aço. Dentro dele tudo
- é escuridão, enroscando-se e desenroscando-se como uma cobra. As flores secaram nas hastes, as mulheres já não existem para o homem. Umas e outras desapareceram.
- Que pretende ele então? - perguntou Kate.
- Não sei. Talvez queira ser uma grande personagem, senhor de todos os povos...
- E porque não realiza essas aspirações?
Cipriano encolheu os ombros.
A señora assemelha-se à manhã de que lhe falei há pouco -
disse ele.
- Tenho quarenta anos - replicou Kate com um risinho amarelo.
O general tornou a encolher os ombros.
- Isso não interessa. O seu corpo parece o caule da flor a que
aludi, e o seu rosto será sempre a aurora na estação das chuvas.
- Porque me diz essas coisas? - volveu Kate, com involuntário e estranho tremor.
- E porque não hei-de dizer? A señora é tal uma manhã cheia de frescura, e estamos no fim da época seca...
Observava-a, e nos seus olhos brilhava o desejo, aliado a certa insolência.
Kate baixou a cabeça e balançou-se na cadeira.
- Gostaria de casar consigo - continuou Cipriano. - Se estivesse disposta a isso, desposá-la-ia.
- Não me parece que me torne a casar - ripostou Kate, anelante e de faces afogueadas.
- Quem sabe?
Ramon surgiu no terraço, com a sua bela serape dobrada sobre o ombro nu. Apoiou-se num dos pilares e contemplou Kate e Cipriano, o qual ergueu a vista e lhe dirigiu um sorriso em que transparecia a amizade que os ligava.
- Disse à señora Caterina que a desposaria se ela estivesse disposta a casar-se - declarou ele.
- É o que se chama falar sem rodeios - replicou Ramon, olhando para Cipriano com o mesmo sorriso amigo. Em seguida, o seu olhar pousou-se em Kate, enquanto o sorriso se alastrava e todo o seu rosto respirava compreensão. Cruzou os braços, como fazem os índios quando querem defender-se do frio; e a carne, dum tom castanho-claro, como ópio, formava saliências no peito largo, cheio e liso.
- Diz Don Cipriano que os Brancos só desejam a paz - proferiu Kate, fitando Ramon com deliberada impertinência. - Não se consideram brancos?
- Não mais brancos do que somos - respondeu Ramon, sorrindo. - Pelo menos, não duma brancura de lírio...
- E não buscam a paz?
- Por mim não penso nisso. Os mansos herdarão a terra, segundo a professia. Mas quem sou eu para lhes invejar a sua paz? Não señora. Por acaso pareço um evangelho de paz? Ou de guerra? A vida para mim não se resume nessas duas coisas.
- Não sei afinal o que desejam - disse Kate.
- Nós próprios não o sabemos senão em parte - replicou Ramon, mudando de expressão.
Havia nele uma espécie de bondade paternal que enchia Kate de espanto e a sobressaltava como se só agora compreendesse o verdadeiro significado de tal sentimento. Mistério, nobreza, inacessibilidade, e a vulnerável compaixão de homem na sua amizade desinteressada...
- Não gosta das pessoas de pele escura? - perguntou Ramon em tom suave.
- Acho-as belas à vista - respondeu Kate. - Mas - acrescentou, com um leve arrepio - estou contente por ser branca.
- Sente que não é possível nenhum contacto?
- Exactamente.
- É a sua impressão - volveu Ramon, e, enquanto ele falava, Kate percebeu que o considerava mais atraente do que a qualquer homem loiro e que, por muito vago que fosse, o contacto que tinha com ele lhe era mais precioso do que todos os que até aí conhecera.
Contudo, embora lhe lançasse certa sombra, não tentava influenciá-la, nem queria maior aproximação - ao passo que Cipriano, sentindo-se incompleto, a procurava e parecia violar-lhe a personalidade.
À voz de Ramon, Dona Carlota assomou a uma das portas mas, ouvindo falar inglês, tornou a sumir-se, num brusco acesso de cólera. Daí a pouco reaparecia, trazendo um vaso de flores carnudas, dum branco leitoso, semelhantes a frésias no tom e no perfume.
- Que lindas! - exclamou Kate. - São flores de igreja! No Ceilão, os indígenas entram nos seus templos e depõem uma flor num tabuleiro aos pés do Buda. E os tabuleiros das oferendas ficam cobertos dessas flores, todas muito bem arranjadas, dispostas com delicadeza oriental...
- Mas eu não as trouxe para homenagear deuses - replicou Carlota, pousando o vaso na mesa. - Trouxe-as para si, señora. Cheiram tão bem!
- De facto, têm um aroma delicioso - concordou Kate. Os dois homens afastaram-se, rindo.
- Ah, señora! - disse Carlota, sentando-se à mesa. - Pode entender Ramon? Seria capaz de renunciar à Santa Virgem? Eu antes queria morrer.
- Não precisamos doutros deuses, realmente - redarguiu Kate, com certo enfado.
- Outros deuses! - repetiu Carlota, escandalizada. - Como se fosse possível! Ramon comete um pecado mortal.
Kate conservou-se calada.
- E quer induzir o povo a fazer o mesmo - prosseguiu Carlota. - É pecado de orgulho... o pecado cardeal. Ainda bem que a señora pensa como eu. Receio as americanas que, para se apoderarem do espírito dos homens, aceitam todas as suas loucuras e perversidades... É católica, señora?
- Fui educada num convento.
- Ah, señora! Qual a mulher que tendo conhecido a Santíssima Virgem se afasta dela? Que mulher teria ânimo de crucificar Jesus novamente? Mas os homens, os homens! Aquela história de Quetzalcoatl seria coisa para rir se não fosse um pecado mortal. E da parte de dois homens inteligentes e instruídos tanta presunção!
- Os homens são assim - observou Kate.
Intensificava-se o crepúsculo; o horizonte estava ainda luminoso, mas o Sol afundara-se numa bruma cor-de-rosa, por trás das arestas da montanha. As colinas erguiam-se azuladas numa atmosfera cor de salmão que se reflectia na água. Lá adiante, onde o clarão rubro se adensava, banhavam-se homens e crianças.
Kate e Carlota subiram à azotea, o terraço que cobria a casa. Dali podiam ver a hacienda com o seu pátio semelhante a uma fortaleza, o caminho ladeado de árvores frondosas, as cabanas de adobe perto da estrada e as fogueiras já bruxuleando junto das casas. No ar róseo os salgueiros da margem pareciam mais verdes e cintilantes. Ao longe, luziam entre as árvores as duas torres brancas de Sayula. Deslizavam barcos em direcção à parte sombreada do lago.
E num desses barcos, deveras desconsolada, regressava Juana a casa.

XIII
Ramon e Cipriano encontravam-se à beira do lago. O general envergara também fato branco e sandálias, o que lhe ia melhor do que a farda.
- Tive uma conversa com Montes quando ele foi a Guadalajara - declarou Cipriano.
Montes era o presidente da República.
- E que te disse?
- Não se alarga muito a falar, mas depreendi que não simpatiza com os colegas e se sente isolado. Julgo que gostaria de te conhecer melhor.
- Porquê?
- Talvez pudesses dar-lhe apoio moral. Talvez chegasses a ser ministro; e até presidente, depois de Montes acabar o seu mandato.
- Montes agrada-me - replicou Ramon. - É sincero e ardente. Gostaste dele?
- Sim, mais ou menos - respondeu Cipriano. - É desconfiado, teme que outros pretendam compartilhar com ele o poder. Tem instintos de ditador. Quis saber se eu lhe era afecto.
- Deste-lhe a entender que sim?
- Disse-lhe que tudo o que me interessava verdadeiramente eras tu e o México.
- E que te respondeu?
- Ele não é tolo. Respondeu: "Don Ramon vê o mundo com olhos diferentes dos meus. Qual de nós terá razão? Eu quero salvar o país da pobreza e da ignorância, ele quer salvar-lhe a alma. Mas afirmo que um homem esfomeado e ignorante não tem lugar para a alma. Um ventre e um cérebro vazios roem-se a si mesmos, e a alma não existe. Don Ramon acha que um homem desprovido de alma pode passar sem o alimento do corpo e do intelecto. Pois que siga o seu caminho, que eu sigo o meu! Não nos embaraçaremos um ao outro. Dou a minha palavra que não interferirei em nada. Ele varre o pátio, eu trato da limpeza da rua.
- É sensato - comentou Ramon - e honesto nas suas convicções.
- Porque não serias ministro daqui a uns meses? E mais tarde presidente?
- Bem sabes que não é isso o que pretendo. Devo poupar-me e agir noutra esfera. A política que se mantenha ou evolua como eles entendem, a sociedade que faça o que quiser. Deixa-me em paz, Cipriano. Gostarias que eu fosse outro Porfirio Diaz, ou alguém do mesmo género, mas isso para mim seria pura e simplesmente soçobrar na vida.
Cipriano observava Ramon com os seus olhos negros e vigilantes, onde transparecia amizade, receio, confiança, mas também incompreensão, e a dúvida que sempre a acompanha.
- Não chego a perceber o que desejas - murmurou.
- Percebes, sim. A política e toda essa religião social com que Montes se preocupa equivale a lavar a casca dum ovo para lhe dar aspecto limpo. A mim, porém, só interessa o interior... Ah, Cipriano! O México é tal um ovo que o Tempo choca desde séculos neste ninho do mundo e que parece ser goro. Parece, mas não é. O que precisa é de calor que ajude a formação da ave. Montes quer limpar o ninho e lavar o ovo... Que aconteceria se tirassem um ovo de baixo duma águia para o lavar? Arrefeceria de vez. Pois quanto mais se empenharem em arrancar este povo da pobreza e da ignorância mais depressa ele morrerá. Pobre Montes! Todas as suas ideias são americanas ou europeias. E a velha pomba da Europa jamais poderá chocar com êxito o ovo escuro da América. Os Estados Unidos não morrem porque não estão vivos. É um ninho de ovos de loiça e por isso se conservam limpos. Mas aqui, Cipriano, aqui é necessário incubá-los antes da limpeza do ninho.
Cipriano baixava a cabeça. Experimentava sempre Ramon para ver se conseguia fazê-lo mudar de ideias e, depois de verificar a inutilidade dos seus esforços, submetia-se ao amigo e novas chamas de felicidade se alteavam dentro dele. Mas, entretanto, ia-o experimentando...
- Não serve de nada querer misturar as duas coisas. No ponto em que estão, não se misturam. Temos de fechar os olhos e mergulhar até ao fundo, como pescadores de pérolas. Mas andamos a flutuar à superfície, semelhantes a bocados de cortiça...
Cipriano mostrou um sorriso subtil. Tudo aquilo ele sabia!
- Temos de abrir a ostra do cosmos e extrair dela a nossa força.
Enquanto não arrancarmos a pérola não seremos mais do que mosquitos no cimo do oceano - concluiu Ramon.
- A minha força é como um demónio dentro de mim - disse Cipriano.
- Porque a ostra a retém fechada, como uma pérola negra. A ti compete libertá-la.
- Ramon, não acharias bom ser uma serpente, uma serpente enorme que se enrolasse em volta do globo e o esmagasse... como a esse ovo?
Ramon olhou-o e pôs-se a rir.
- Não me parece coisa impossível - continuou Cipriano. E não seria bom?
O outro meneou a cabeça, rindo-se.
- Pelo menos seria um momento bom.
- Que mais se pode desejar?
Brilhou nos olhos de Ramon uma centelha que logo se apagou.
- Para quê? - disse em voz surda. - Depois de esmagado o ovo que havíamos de fazer senão errar nos corredores de trevas e lamentar-nos? Para quê?
Ramon pôs-se de pé e afastou-se. O Sol desaparecera, a noite descia. Na alma daquele homem fervia uma cólera imensa, e Carlota é que a provocava. A mulher parecia incutir vida ao monstro da sua raiva íntima, e Cipriano exasperava-o.
"A minha força é como um demónio a rugir dentro de mim", disse Ramon consigo mesmo, repetindo a frase de Cipriano.
Reconhecia o direito de gritar a esse demónio humilhado e ridicularizado que vivia preso dentro dele. E a fúria apoderou-se de Ramon, contra Carlota, contra Cipriano, contra a humanidade inteira. Os seus partidários traí-lo-iam, tinha a certeza. Cipriano acabaria por traí-lo. Desde que lhe encontrassem o mínimo ponto fraco, todos saltariam sobre ele como tarântulas e infectá-lo-iam com a sua peçonha.
E qual o homem absolutamente invulnerável, sem o menor ponto fraco?
Ramon subiu ao seu quarto pela escada exterior, no lado da casa, e sentou-se na cama. A noite estava quente, pesada, e duma calma aflitiva.
- Prepara-se chuva - ouviu ele dizer a um dos criados. Fechou as portas do quarto e ficou às escuras. Então despiu-se todo, murmurando: "Repudio o mundo juntamente com esta roupa." E de pé, nu e invisível no meio do quarto, ergueu ao ar o punho fechado, com tal força que teve a sensação de que lhe estalavam as paredes do peito. A mão esquerda pendia ao longo do corpo, mole, com os dedos levemente curvados.
Tenso como o jacto duma fonte silenciosa, distendeu-se até abranger o âmago impalpável das trevas. E as vagas de escuridão começaram a lavar-lhe o espírito, a consciência; ondas de negrume rebentando-lhe na memória, em todo o seu ser, como uma maré que sobe. Até que foi maré cheia e ele, tremendo, se deixou cair por terra, para descansar. Invisível nas trevas, ficou a olhar para o vácuo, sentindo o misterioso fluxo interior purificar-lhe as entranhas e o coração, sentindo o espírito dissolver-se no Espírito maior que nenhum pensamento perturba.
Cobriu o rosto com as mãos e ali esteve imóvel, inconsciente, já sem nada sentir nem ouvir, semelhante a uma alga submersa no mar. Abolira-se o Tempo, abolira-se o Mundo, submerso nas profundezas que são intemporais e inespaciais.
Quando o coração e as entranhas despertaram para a vida, o espírito principiou a bruxulear tal uma chamazinha que vacila e não se apaga.
Enxugou a cara com as mãos, pôs a serape na cabeça e em silêncio, numa aura de sofrimento, desceu a escada, levando consigo o tambor.
Martin, o servo devotado, andava cá e lá no zaguán.
- Ya, patrón? - perguntou.
- Ya! - respondeu Ramon.
O homem correu à vasta cozinha onde ardia uma candeia, e voltou com um braçado de esteiras.
- Onde as colocamos, patrão?
Ramon hesitou no meio do pátio, olhando para o céu.
- Viene el agua?
- Creo que si, patrón.
Dirigiram-se para o alpendre onde haviam carregado as azémolas com os fardos de bananas. Aí, Martin arremessou ao chão as petates, que Ramon dispôs em ordem. Guisleno apareceu, trazendo canas para fazer tochas, das mais primitivas: três canas amarradas em cima com um cordel, formando tripé de cintura alta, e, na parte superior, uma pedra de lava mais ou menos oca. Realizado esse trabalho,
Guisleno foi a casa e voltou a correr com um pedaço de madeira inflamada. Três ou quatro pauzinhos de ocote colocados na pedra - e as chamas ergueram-se, enchendo o pátio de sombras vacilantes.
Ramon dobrou a serape e sentou-se em cima. Guisleno acendeu outro tripé-archote. A luz bailava nas sobrancelhas carregadas de Ramon, dava-lhe ao peito cintilações de ouro.
Agarrou no tambor e fez soar o apelo monótono, lento, um tanto melancólico. Passados instantes, chegou o tocador habitual, que levou o instrumento para a alameda sombria, onde então se ouviu um rufo vivo e forte.
Ramon enfiou a serape, cujas franjas lhe roçavam os joelhos, e ficou imóvel, com os cabelos em desordem. Rodeava-lhe os ombros a serpente do tecido, o pescoço erguia-se-lhe no meio do pássaro azul.
Cipriano apareceu, vindo da casa. Trazia serape castanha e vermelha, ornamentada com um sol escarlate. Postou-se ao lado de Ramon, e olhou-lhe de relance para a cara. Mas, de sobrancelhas franzidas, o outro fixava a sombra dos alpendres no extremo do pátio. Olhava para o coração do mundo; porque a face dos homens e o coração dos homens são areias movediças, e só no coração do cosmos pode alguém encontrar força.
Cipriano voltou os olhos negros para a banda do pátio. Os seus soldados aproximavam-se em grupo. Três ou quatro homens de mantas pardas rodeavam o lume. De pé, junto de Ramon, Cipriano parecia um cardeal, um pássaro de cor vistosa. Até as sandálias eram escarlates, e encarnadas as fitas que atavam as calças de linho branco aos tornozelos. Ao clarão das tochas tinha um ar demoníaco, com a pele muito escura, a barbicha preta e as pupilas cintilando sardonicamente.
Chegavam peóns, pelo portão da entrada, balançando os chapéus largos. Acorriam mulheres descalças, com as saias a oscilar, transportando os seus nenés envoltos nos rebozos e seguidas por uma caterva de garotos. Todos se agrupavam em volta dos archotes, como animais bravios, contemplando o círculo de homens de serape, do qual se destacavam Ramon e Cipriano, um de azul e branco, outro de vermelho.
Carlota e Kate emergiram de casa. Carlota, porém, ficou junto da porta, embrulhada num xaile de seda preta. Sentou-se num banco de pau aquém do clarão avermelhado, e pôs-se a observar os homens escuros, a beleza altaneira de Ramon, o traje escarlate de Cipriano, o grupo de soldados e a massa compacta de peóns, mulheres e crianças. Enquanto desfilava gente através do portão, soou o tambor e uma voz elevou-se, cantando:
Alguém vai franquear a porta, Agora, agora mesmo, ay! E verá a luz no homem que espera. Serás tu? Serei eu?
Alguém vai aproximar-se do fogo, Agora, agora mesmo, ay! E escutarás as palavras do seu coração. Serás tu? Serei eu?
Alguém baferá quando a porta se fechar, Ay, num momento, ay! Ouvirá dizer: Não te conheço. Serás tu? Serei eu?
De cada vez o ay se elevava num grito selvático que fazia calafrios a Carlota.
Envolta num xaile amarelo, Kate aproximou-se lentamente do grupo.
O tambor calou-se e o homem, entrando no pátio, fechou o portão e misturou-se aos assistentes.
Ramon continuava a olhar para o vácuo, de sobrolho carregado. Então, no meio do silêncio, disse em voz baixa, contida:
- Assim como tiro este abafo me liberto eu do dia que passou. Despiu a serape e pô-la no braço. Todos os homens do círculo o
imitaram, ficando de torso nu. Cipriano, muito escuro e com ar sólido apesar do tamanho reduzido, conservava-se ao lado de Ramon.
- Afasto de mim o dia que passou - prosseguiu Ramon - e fico de coração descoberto na noite dos deuses.
Em seguida olhou para o chão e disse:
- Vem, serpente da terra, serpente que jazes no fogo do coração do mundo. Vem, serpente do fogo no coração do mundo, enrola-te como ouro em volta dos meus artelhos, ergue a cabeça e apoia-a na minha coxa. Vem, descansa a cabeça na minha mão, serpente dos abismos. Beija-me os pés e os tornozelos com a tua boca de ouro, beija-me os joelhos e as coxas, serpente marcada de luz e de sombra. Vem, repousa a cabeça na concha da minha mão.
A voz suave e hipnótica extinguiu-se no silêncio envolvente. E parecia que na verdade uma presença misteriosa emergia do mundo subterrâneo, que uma serpente mosqueada de ouro e negro se enroscava nas pernas de Ramon e lhe lambia a palma da mão com a língua bifurcada...
Circunvagou a vista pela assistência boquiaberta e de olhos dilatados, e prosseguiu:
- Digo-vos, e com absoluta certeza. No coração desta terra dorme uma grande serpente no meio do fogo. Aqueles que descem às minas sentem-lhe o calor e o suor, ouvem-na mover-se. É o fogo vital da terra, porque a terra vive. A serpente do mundo é enorme, as rochas são as suas escamas, e entre elas crescem as árvores. Digo-vos que a terra que cavais está viva como uma serpente adormecida. Sobre ela andais, e este lago descansa nos seus anéis como uma gota de chuva numa cobra cascavel. Contudo, tem vida. A terra vive. Se a serpente morresse, todos morreríamos. Só a sua vida assegura a humidade do solo que faz germinar o nosso milho. Das suas escamas extraímos prata e ouro, e as árvores têm nela as suas raízes como os cabelos têm a raiz sob a nossa pele. A terra vive. Mas a serpente é grande, e nós somos mais pequenos do que um grão de poeira. E por vezes ela zanga-se e diz: Estes entes, mais insignificantes do que átomos de pó, espezinham-me e asseveram que estou morta. Até às bestas costumam falar, gritando: Arre, burro! A mim, porém, não dirigem uma palavra. Por isso lhes voltarei costas, como uma mulher volta costas ao marido e lhe consome o espírito com a sua cólera... Eis o que a terra nos diz, e a tristeza e o desânimo avassalam-nos os pés e os rins. Porque assim como uma mulher irritada tira o entusiasmo e a alegria ao homem, assim a terra pode enregelar-nos a alma e tornar a existência fatigante aos nossos membros. Falai, pois, à serpente do coração do mundo, banhai de óleo os vossos dedos e abaixai-os para que ela experimente o óleo da terra e deixe que a vida nos suba ao longo das pernas, como a seiva do milho novo faz estalar a casca e brotar o leite da planta entre as barbas. Do coração da terra o homem sente subir nele a sua força; tal o milho que, ufano, ergue as suas folhas verdes, erguei-vos vós também e deixai aprofundarem-se as vossas raízes cada vez mais, porque não tardam as chuvas e é tempo de produzir no México.
Calou-se Ramon, ensurdeceu o tambor, e todos os homens do círculo fitaram a terra, deixando pender molemente a mão esquerda.
Dona Carlota, que não conseguira ouvir, aproximou-se do lado de Kate, como se fascinada pelo marido. A irlandesa, num movimento inconsciente, olhou para o chão e, às ocultas, baixou os dedos de encontro à saia. Mas teve medo do que lhe poderia acontecer e escondeu a mão no xaile.
De repente o tambor vibrou numa nota muito forte, seguida de outra mais fraca: estranho, impressionante efeito.
Os circunstantes levantaram a cabeça. Ramon alçara o braço direito, num gesto enérgico, e espiava o negrume do firmamento. Imitaram-no os do círculo, e os braços nus, erguidos, semelhavam uma série de rochedos.
- Assim, acima, acima! - gritou uma voz bárbara.
- Acima, acima! - repetiram todos, num coro feroz. Involuntariamente, brandiram o braço, voltando o rosto para o
céu sombrio. Algumas das mulheres, mais audazes, fizeram o mesmo, e, com esse gesto, experimentaram uma sensação de paz.
Kate não alçou o braço.
Reinou profundo silêncio; até o tambor se calara. Ouviu-se então a voz de Ramon, dirigindo-se ao céu tenebroso:
- As tuas asas estão escuras, Pássaro, voas muito baixo esta noite. Voas baixo sobre o México, e em breve sentiremos roçar em nossas faces o leque das tuas asas. Ah, Pássaro! Voas onde queres. Ultrapassas as estrelas e empoleiras-te no Sol. Desapareces da vista e dissipas-te no além do rio branco do céu, mas voltas como os patos do Norte, em busca de água e do Inverno. Poisas no centro do Sol e alisas as penas... Banhas-te na corrente de estrelas e ergues em teu redor uma poalha de ouro. Voas nas profundezas do céu donde parece que jamais se volta. Mas regressas, e pairas sobre nós, e sentimos no rosto a aragem das tuas asas...
Enquanto ele falava levantou-se vento em rajadas, uma porta bateu, vibraram vidraças e as árvores pareceram rasgar-se.
- Vem, ó ave dos vastos céus! - bradou Ramon num apelo selvático. - Vem, pousa no meu punho, na minha cabeça, dá-me o poder divino e a sabedoria. Ó Pássaro, ainda que o trovão ribombe quando sacodes as asas, ainda que deixes cair na terra a serpente de fogo que tens no bico, ainda que venhas como fulminador, vem, ó Pássaro! Empoleira-te um momento no meu punho, estende as asas sobre a minha cabeça, toca-me a fronte com o teu peito. Pássaro errante, ave do Além, com o trovão nas garras e a serpente no bico, com o azul nas asas e a nuvem no colo, com o sol no peito e a sabedoria no voo, vem sobre mim, vem!
O vento agitava a chama das tochas e o lago começou a falar numa voz cavernosa que dominava o sussurro das árvores. Ao longe, por cima das colinas, os raios sulcavam o céu.
Soou o tambor, e Ramon desceu o braço que mantivera erguido. E disse então:
- Sentai-vos um instante, antes que o Pássaro sacuda a água das asas, o que não tardará. Sentai-vos.
A assistência moveu-se. Os homens puxaram as serapes para a testa, as mulheres cingiram mais a si os rebozos, e todos se sentaram no chão. Só Kate e Carlota ficaram de pé, a certa distância.
- A terra é viva, o céu é vivo, e entre ambos vivemos nós - prosseguiu Ramon na sua voz habitual. - A terra beijou-me os joelhos e concedeu-me força às entranhas. O céu descansou-me no punho e transmitiu o seu poder para o meu peito.
Assim como a Estrela de Alva brilha entre o céu e a terra, uma estrela pode surgir em nós entre o coração e os rins.
É a virilidade do homem e a feminilidade da mulher.
Ainda não sois homens. E vós, mulheres, ainda não sois mulheres.
Correis, agitais-vos, morreis, mas ainda não encontraste a estrela da vossa virilidade surgida de vós mesmos; nem a estrela da vossa feminilidade cintilando entre os vossos seios, ó mulheres!
Digo-vos no entanto: para aquele que desejar, nascerá nele a estrela da sua virilidade, e então será perfeito como é perfeita a Estrela da Manhã.
E a estrela da mulher aparecerá entre a orla espessa da terra e o vácuo cinzento do céu. Mas como conseguiremos isso? Como poderá ser?
Baixai os dedos para a carícia da Serpente da terra. Erguei o punho para que aí pouse a Ave distante.
Tende a coragem de ambos, a coragem do raio e a do sismo.
E a sabedoria de ambos, a da serpente e a da águia.
E a serenidade de ambos, a da serpente e a do sol. E o poder de ambos, o das profundezas da terra e o do céu que tudo cobre.
Mas que na vossa fronte, ó homens, resplandeça a Estrela da Manhã que nem o dia nem a noite, nem a terra nem o céu podem engolir e apagar.
E entre os vossos seios, ó mulheres, que esteja a Estrela de Alva que nada pode ofuscar.
A vossa derradeira morada é a Estrela da Manhã. Nem o céu nem a terra vos hão-de tragar, mas ireis para essa estrela solitária que no entanto jamais sente a sua solidão.
A Estrela da Manhã envia-nos um mensageiro, um deus que morreu no México. Mas, enquanto dormia o seu sono, os Seres invisíveis lavaram-lhe o corpo com a água da ressurreição. E ele levantou-se, derrubou a pedra à entrada do sepulcro, e agora galopa através do horizonte, mais depressa do que caiu por terra a laje do túmulo para esmagar aqueles que a selaram.
O filho da Estrela volta para os filhos dos homens.
Preparai-vos para o receber. Lavai-vos, ungi as mãos e os pés, a boca e os olhos, as orelhas e as narinas, o peito, o umbigo e as partes secretas do vosso corpo. Que nada dos dias passados, que nenhuma poeira do mal subsista em vós e vos torne impuros.
Não olheis com olhos de ontem, não escuteis como ontem, não respireis, não cheireis, não engulais alimentos nem bebidas; não beijeis com lábios de ontem, não toqueis com mãos de ontem. Aproximai-vos das vossas mulheres com um corpo novo, e com esse corpo novo penetrai nelas. Porque o corpo de ontem morreu, e Xopilote, devorador de cadáveres, já paira sobre ele.
Libertai-vos do corpo da véspera e adquiri um novo, tal como o deus que vem até vós. Quetzalcoatl surge-nos com um novo corpo, como uma nova estrela, saído das sombras da morte.
Sim, neste mesmo momento em que estais sentados e que o vosso corpo toca na terra, dizei-lhe: Terra, terra, latejas de vida como eu. Insufla em mim o bafo das tuas entranhas.
E assim a terra se move por baixo de vós, e por cima de vós o céu agita as suas asas.
Regressai aos vossos lares, enfrentando as águas que vão cair e separar-vos para sempre do "ontem".
Ide, com a esperança de vos tornardes homens da Estrela da Manhã e mulheres da Estrela de Alva.
Ainda não sois homens, ainda não sois mulheres...
Ramon levantou-se, dando o sinal de retirada. Logo todos se puseram de pé, empurrando-se, acotovelando-se, com a silenciosa pressa mexicana que parece deslizar rente ao solo.
O vento desencadeado uivava de encontro às mangueiras. Os homens seguravam o chapéu na cabeça e corriam de joelhos curvados, com as serapes a flutuar, enquanto as mulheres, cingindo a si o rebozo, fugiam, descalças, para ozaguán.
Junto do portão aberto estava um soldado de espingarda a tiracolo e lanterna na mão, alumiando aqueles que passavam calados e velozes e se dispersavam na alameda escura como pedacinhos de papel levados pelo vento. Num instante todos desapareceram.
Martin fechou o portão. O soldado pousou a lanterna no banco de pau e juntou-se aos camaradas alapardados nos seus capotes pretos, semelhantes a um molho de cogumelos na caverna do zaguán.
- Vai chover! - gritaram as servas excitadas quando Kate subia os degraus com Dona Carlota.
O lago, absolutamente negro, parecia uma cratera enorme. Em rajadas violentas, o vento traspassava as mangueiras com um som de membrana a rasgar-se. Os loendros curvavam-se no jardim, varriam o solo com as suas flores brancas, espectrais à luz do candeeiro que brilhava na parede junto da porta da entrada. Uma palmeira nova sacudia-se, dobrada, juncando o chão com as suas folhas. Nas trevas para além do mundo rolava um carro invisível...
Ao longe, na outra banda do lago, os raios traçavam no céu inscrições fulgurantes. E o trovão dir-se-ia ribombar nas entranhas da terra, surdo, aveludado.
- Isto chega a meter medo! - exclamou Dona Carlota, tapando os olhos com a mão e correndo a refugiar-se num canto recuado da sala deserta.
Cipriano e Kate demoraram-se no terraço olhando para as flores que voavam dos vasos e desapareciam no vácuo de trevas. Kate agarrava no xaile, mas o vento engolfou-se na serape de Cipriano, levantou-a ao ar e em seguida deixou-lha cair sobre a cabeça, tal uma chama rubra. Kate viu-lhe o peito escuro e musculado enquanto os seus braços lutavam por desenvencilhar a cabeça. Como a sua beleza era primitiva e toda física, com aquela carne lisa e cheia!
Mas não emitia nenhuma radiação exterior; fechava-se dentro de si mesmo.
- Eis a chuva! - exclamou ele! - baixando a serape.
Grossas, pesadas, as primeiras gotas tombavam como dardos sobre as plantas. Kate recuou para o vão da porta. Um raio ziguezagueou sobre as montanhas, pareceu deter-se um instante e reentrou nas trevas.
Então a chuva desabou, como se lá em cima houvessem aberto um reservatório imenso, e com ela veio uma lufada de ar frio. Ora num lado ora noutro, sucediam-se os relâmpagos, enchendo a atmosfera duma claridade azul e fugaz. Surgiam as árvores e o jardim fantasma, e logo desapareciam, enquanto o trovão ribombava.
Kate olhava pasmada para aquele dilúvio. Ao clarão momentâneo via o jardim já transformado em poço, as alamedas em ribeiras. Sentindo frio, recolheu-se dentro de casa.
Munido de lanterna, um criado pesquisava todos os aposentos para ver se andariam por ali escorpiões. Encontrou um a passear no quarto de Kate e outro em cima da cama de Carlota, caído duma viga do tecto.
Sentadas na sala, Kate e Carlota baloiçavam-se nas cadeiras, aspirando o bom ar fresco e húmido. Kate quase já se esquecera do que era frescura e humidade. Aconchegou o xaile ao pescoço.
- Ah, sente frio! Agora é preciso tomar cuidado com as noites... Às vezes, na época das chuvas, as noites são frigidíssimas. Devemos ter sempre à mão um cobertor suplementar. Os servos, coitados, limitam-se a tiritar, estendidos no chão, e de manhã estão gelados como cadáveres. Mas o sol depressa os aquece. Parecem julgar que são obrigados a suportar tudo o que vier, pois nunca tomam providências, embora se queixem.
O vento acalmara-se de repente, Kate sentia-se inquieta, mal disposta, com o bafo da água, quase de gelo, nas narinas, e o sangue ainda a arder-lhe nas veias. Levantou-se e foi para o terraço. Cipriano continuava ali, imóvel e impassível, envolto na sua serape vermelha e preta.
A chuva diminuía. Em baixo, no jardim, duas criadas corriam descalças, à débil claridade do candeeiro do zaguán; colocaram latas vazias debaixo dos fios de água que tombavam do telhado, e depois foram buscar os recipientes cheios. Isso poupava-lhes o trabalho de acarretar água do lago.
- Que pensa a nosso respeito? - perguntou Cipriano a Kate.
- Acho um povo muito estranho...
- Mas bom, não é verdade? - volveu o general em tom jubiloso.
- Um tanto assustador - replicou ela, rindo.
- Depois de se habituar parecer-lhe-á natural. E quando estiver num país como a Inglaterra, onde tudo é tão seguro e tão fácil, sentirá saudades e passará o tempo a perguntar a si mesma: O que é que me falta? O que é que falta aqui?
Dir-se-ia exprimir-se com maligna satisfação. E era curioso que ele, embora falasse bom inglês, parecesse sempre estrangeiro aos ouvidos de Kate, muito mais do que Dona Carlota com o seu espanhol castiço.
- Não compreendo que as pessoas queiram ter tudo, a vida inteira. Tudo tão seguro, tão pronto como na Inglaterra e na América. É bom estar alerta, no que vive, não?
- Talvez - concordou ela.
- Por isso gosto de ouvir Ramon dizer ao povo que a terra é viva, que o céu tem uma ave enorme lá dentro, mas que se não vê. Acredito nisso. E convém sabê-lo, pois assim continuamos no que vive.
- Não será fatigante?
- Ora, porquê? Pelo contrário, é repousante. Ah, a senhora devia casar e residir no México. Estou certo de que acabaria por gostar disto. Em cada manhã despertaria mais encantada.
- Ou cada vez mais enterrada. É o que sucede, julgo eu, a muitos estrangeiros.
- Enterrar-se? Como? Isto é um país onde a noite é noite e a chuva que cai é realmente chuva. E tem aqui um povo com o qual precisa de estar sempre alerta. Não acha admirável? Não poderá deixar-se adormecer. Veja, por exemplo, Ramon. Que pensa dele?
- Não sei. Não quero dizer nada, mas acho-o... longínquo. Custa a crer que seja mexicano.
- Pois é mexicano, não tenha dúvida.
- Não como o senhor. Dá-me a impressão de pertencer à velha Europa.
- Eu então considero-o pertencente ao velho México... E também ao novo - acrescentou de súbito.
- Todavia não acredita nele.
- Como?
- Não acredita nele. Considera aquilo, como tudo o mais, uma espécie de jogo. Aliás, para vós, mexicanos, tudo é uma espécie de jogo... No fundo, não crê em nada.
- Não creio em Ramon? Talvez não seja uma fé que me leve a ajoelhar à sua frente e a derramar-lhe lágrimas nos pés. Mas creio nele, e vou dizer-lhe o motivo: porque tem o poder de me fazer acreditar.
- Estranha fé, imposta pelos outros.
- Como se há-de crer, se não nos compelirem a isso? Quando eu era muito novo sentia-me infeliz porque o meu padrinho me não forçava a crer. Mas Ramon força-me... E é para mim uma felicidade saber que não posso escapar... como será também para si...
- Saber que não posso escapar a Don Ramon? - replicou
Kate ironicamente.
- Sim, e saber que não poderá evadir-se do México, nem fugir
de um homem como eu...
Kate ficou um instante calada antes de responder em tom sardónico:
- Não me parece que me cause muita alegria saber que não posso sair do México. Pelo contrário, não suportaria estar aqui se não tivesse a certeza de partir mais dia menos dia.
E disse consigo mesma: "Ramon talvez seja o único homem a quem eu não possa escapar completamente, porque deveras me impressiona. Mas de ti, Ciprianozinho, não precisarei de escapar porque não me apanhas."
- Ah, julga isso! - volveu ele rapidamente. - Mas é porque não sabe. Só pensa com ideias americanas. Devido à sua educação, só tem pensamentos americanos, pensamentos engendrados nos Estados Unidos. Quase todas as mulheres são assim, até as mexicanas da classe hispano-mexicana. Só possuem ideias dos Estados Unidos porque são as que condizem com os seus penteados. E o mesmo quanto a si, senhora Leslie. Pensa como uma mulher moderna porque pertence ao mundo anglo-saxónio ou teutão, e se penteia de certa maneira, e tem dinheiro, e é inteiramente livre. Mas tudo isso provém do facto de lhe haverem metido essas ideias na cabeça e não possuir outras, da mesma forma que, no México, se vê obrigada a gastar centavos e pesos por serem as moedas do país. Todavia, quando se declara livre, na realidade não o é. Vê-se forçada a pensar sempre com pensamentos americanos. Não tem maior faculdade de escolha do que uma serva. Assim como não pode deixar de comer diariamente tortillas... até que se lembre de que pode gostar doutra coisa.
- De que mais poderia eu gostar? - retorquiu Kate, escarninha.
- De outros pensamentos, de outras sensações. Receia homens como eu porque julga que a não tratariam "à americana". Tem razão. Eu não a trataria como se tratam as senhoras americanas. Porquê? Porque não o desejo, porque não me parece justo.
- Prefere tratar as mulheres como as mexicanas de outrora, não é verdade? Mantendo-as na ignorância, no cativeiro? - A voz de Kate assumira um tom sarcástico.
- Não as manteria na ignorância se elas já não fossem ignorantes. Mas o que lhes ensinaria não havia de ser conforme à educação americana.
- Então qual?
- Quien sabe! Ce reste à voir.
- Et continuera à y rester - concluiu a irlandesa, rindo.

CONTINUA

x
Dez dias haviam decorrido desde a chegada de Kate a Sayula sem que Don Ramon desse sinal de vida. No entanto, quando passeava de barco, vira a casa dele na outra banda da ponta oeste do lago. Era um edifício alaranjado de dois andares, com alpendre para embarcações e bosquete de mangueiras rente à margem. Entre as árvores distinguiam-se duas filas de cabanas de adobe, a habitação dos peóns.
A hacienda fora outrora das mais importantes. Regavam-na então com a água captada nas colinas, mas as revoluções haviam destruído todos os aquedutos. Don Ramon tinha inimigos no Governo, de modo que grande parte das suas terras fora dividida entre os peóns e só lhe ficaram cerca de trezentos acres de terreno, dos quais duzentos marginavam o lago e lhe eram inúteis. Cultivava um pomar em volta da casa e cana-de-açúcar num valezito entre as colinas. Na encosta do monte viam-se campos de milho.
'Dona Carlota era rica; tirava bons rendimentos das minas de Torreon, seu berço natal.
Chegou um portador com uma carta de Don Ramon em que este pedia a Kate licença para a visitar com a esposa.
Dona Carlota era uma mulher franzina, suave, de grandes olhos um tanto assustadiços e sedosos cabelos castanhos. Filha de pai espanhol e de mãe francesa, de origem puramente europeia, em nada se assemelhava às corpulentas mexicanas de faces cobertas de pó-de-arroz. De rosto pálido, sem artifício, a figura delgada tinha qualquer coisa de inglês, que os grandes olhos castanhos desmentiam. Só falava espanhol e francês, mas o seu espanhol soava tão lento e distinto (com um leve tom de queixume) que Kate a compreendeu sem dificuldade.
As duas mulheres entenderam-se depressa, mas sentiam-se um tanto nervosas na presença uma da outra. Dona Carlota era frágil e sensível como um cão chihuahua.
Em toda a sua vida, Kate raras vezes encontrara criatura tão doce e delicada. Conversaram uma com a outra, enquanto Don Ramon se mantinha calado. Dir-se-ia que ambas se arremessavam contra aquela barreira de silêncio.
Kate percebeu logo que Dona Carlota amava Ramon, mas com um amor que se tornara voluntário. Adorara-o, e acabara-se a adoração. Duvidara dele, e duvidaria sempre.
Sentado um pouco à parte, de ar constrangido, Don Ramon baixava a bela cabeça e deixava pender as mãos entre as coxas.
- Sabe que passei há dias bons momentos? - disse Kate, dirigindo-se-lhe de súbito. - Dancei de roda do tambor com os homens de Quetzalcoatl.
- Assim me constou - respondeu ele com um sorriso forçado.
Embora não falasse inglês, Dona Carlota compreendia essa língua
- Dançou com os homens de Quetzalcoatl! - exclamou em espanhol. - Porque fez isso? Porquê?
- Estava fascinada.
- Não se deixe fascinar. Afirmo-lhe que lastimo muito que meu marido se interesse por esse movimento. É para mim um desgosto.
Juana apareceu nesse momento com uma garrafa de vermute, a única coisa que Kate podia oferecer aos visitantes.
- Foi aos Estados Unidos ver os seus filhos? - perguntou Kate. - Como vão eles?
- Bem, obrigada. Embora o mais novo continue fraquito...
- Não os trouxe consigo?
- Não. Acho que estão melhor no colégio. Aqui... aqui há muita coisa que os perturbaria. Mas hei-de cá tê-los no próximo mês a passar as férias.
- Então terei oportunidade de os conhecer - disse Kate. Virão para a casa do lago, não é verdade?
- Ainda não sei. Talvez passemos aqui alguns dias. Ando tão ocupada na Cidade do México com a minha Cuna!
- Cuna? Que é isso? - indagou Kate.
Tratava-se de um hospício de enjeitados assistido por algumas obscuras carmelitas. Dona Carlota era a directora, e Kate chegou à conclusão de que a mulher de Ramon devia ser católica fervorosa, quase exaltada. Entregava-se de corpo e alma à Igreja e àquela obra de beneficência.
- Nascem tantas crianças no México e são tão numerosas as que morrem! Se as pudéssemos salvar e preparar para a vida! Fazemos tudo o que é possível, mas ainda é pouco.
Segundo parecia, todos os nenés indesejáveis eram entregues na Cuna, como embrulhos. A mãe só tinha de bater à porta e depositar noutras mãos o pacote vivo.
- Assim, impedimos que muitas mães negligentes deixem morrer os filhos - prosseguiu Dona Carlota. - Se não nos dizem o nome da criança, sou eu que a baptizo. Já o tenho feito muitas vezes. É vulgar entregarem-nos meninos absolutamente nus, sem um trapo a cobri-los... e sem nome. E nós nunca perguntamos nada.
Nem todos os expostos ficavam no hospício. Na maior parte eram confiados a índias decentes, a quem pagavam para os criar em casa. No fim do mês, cada qual se apresentava com o seu protegido e recebia o ordenado. As índias podem ser descuidadas mas não maltratam as crianças.
Noutro tempo, informou Dona Carlota, quase todas as senhoras do México recebiam na sua casa um ou dois desses enjeitados e tratavam-nos como família. Mas perdera-se a generosidade patriarcal dos espanhóis-mexicanos e actualmente adoptavam poucas crianças. Em vez disso, preparavam-nas para ganhar a vida, ensinando-lhes qualquer ofício.
Kate ouvia com-interesse e certo constrangimento. Não lobrigava sentimentos humanos nessa caridade mexicana, e quase discordava dela. Talvez Dona Carlota fizesse tudo o que podia nesse país semibárbaro, mas fazia-o sem nenhuma esperança de êxito. Embora com a consciência de que procedia bem, tinha um pouco o ar de vítima, de uma vítima sensível, branda, um tanto assustada. Dir-se-ia que um mal secreto lhe roía o coração.
Don Ramon escutava impassível, num silêncio que se opunha ao entusiasmo caritativo da mulher. Deixava-a agir como entendia, mas contra a sua obra e a sua loquacidade mantinha-se calado, duro, numa hostilidade surda e permanente. Dona Carlota percebia-o e tremia nervosamente enquanto falava do hospício de enjeitados. Kate acabou por achar cruel a atitude de Don Ramon; parecia um ídolo de pedra.
- Porque não vem passar um dia connosco, enquanto estamos em Sayula? - sugeriu Dona Carlota. - A casa é pouco confortável, já não é como foi, mas teremos muito gosto em recebê-la.
Kate aceitou o convite e disse que preferia ir a pé. Eram apenas quatro milhas de percurso e, com a Juana, iria bem acompanhada.
-. - Mandarei um homem buscá-las - declarou Don Ramon. Será mais seguro.
- Onde está o general Viedma? - perguntou Kate.
- Faremos o possível por tê-lo connosco quando a senhora lá for - replicou Dona Carlota. - Gosto deveras de Don Cipriano, que há muitos anos conheço. Por sinal que é o padrinho do meu filho mais novo. Presentemente, comanda a divisão de Guadalajara, por isso nem sempre se encontra livre.
- Admira-me que seja general - observou Kate. - Acho-o humano em excesso.
- E, de facto, é cheio de humanidade. Mas é general, e gosta de comandar os soldados. Deixe-me dizer-lhe que se trata de uma pessoa de muita influência. Exerce grande ascendente na tropa. Crêem nele, isso não se pode negar. Possui aquele poder, inato nos chefes índios, de afeiçoar a si os militares e de os levar ao combate. Pois é assim mesmo Don Cipriano. Ninguém conseguiria modificá-lo. Julgo, porém, que lhe seria de utilidade a presença de uma mulher. Nunca teve nenhuma na sua vida! Elas não lhe interessam...
- Que lhe interessa então?
- Ah! - exclamou Dona Carlota, estremecendo como se a picassem. Lançou um olhar rápido ao marido e declarou: - Não sei. Palavra que não sei.
- Os homens de Quetzalcoatl - declarou Don Ramon com
um leve sorriso.
Mas Dona Carlota dir-se-ia tirar-lhe todo o desembaraço. Parecia contrafeito, e um tanto estúpido.
- Ah, sim, sim, os homens de Quetzalcoatl - bradou Dona Carlota, amável mas com ar de censura. - Linda coisa para ele se ocupar! - Kate percebeu que a sua interlocutora adorava esses dois homens e que tremia à ideia de se opor aos seus erros, embora jamais transigisse com qualquer deles.
Para Don Ramon representava um pesado fardo aquela cega adoração da mulher e a sua não menos cega oposição.
Certa manhã, às nove horas, apareceu o criado para acompanhar Kate à fazenda, que chamavam de Jamiltepec. Trazia um cabaz e vinha do mercado. Era um velhote de bigode grisalho e olhos juvenis, cheios de vida. Os pés, metidos em huafaches, pareciam negros de tão queimados do sol, mas o fato resplandecia de alvura.
Kate ficou radiante com essa excursão a pé. O que tornava tão aborrecida a sua existência na aldeia era a impossibilidade de passear no campo. Havia sempre o risco de um assalto. Acompanhada de Ezequiel, dera algumas voltas pelos arredores, mas já começava a sentir-se prisioneira. Foi, por conseguinte, uma alegria sair de casa.
A manhã estava clara e quente, o lago brilhava quieto, espectral. Moviam-se pessoas na margem, minúsculas àquela distância, meros pontinhos brancos: peóns que seguiam os seus burros envoltos numa leve nuvem de poeira. Kate perguntava a si mesma porque seria que os homens apareciam sempre na paisagem mexicana como pequeninas manchas; pequeninas manchas de vida.
Entraram na estrada poeirenta que levava para oeste, entre a vertente alcantilada das colinas e a nesga de planície junto ao lago. Por espaço de milha foram encontrando vivendas, muitas delas fechadas, outras destruídas, já sem muros nem janelas. Todavia desabrochavam flores entre os montes de cascalho.
Nos terrenos vagos havia delgadas cabanas de palha dos indígenas - como que nascidas ali, ao acaso. Perto do caminho por baixo de um outeiro viam-se choças de adobe, semelhantes a caixas cinzento-escuras. Em volta corriam aves domésticas, grunhiam e refocilavam porcos pardacentos ou malhados de preto. Crianças seminuas, de um tom castanho-alaranjado, brincavam ou jaziam estiradas no chão, a dormir, com as nádegas à mostra.
Muitas das casas estavam a ser cobertas de colmo novo ou reteIhadas por indivíduos que assumiam ares de importância por se encarregarem desse trabalho. Mostravam-se também apressados, pois não tardariam a vir as chuvas torrenciais. E, na banda do lago, havia quem andasse a lavrar a terra dura com uma junta de bois e um pau forte e aguçado.
Mas Kate conhecia essa parte do caminho. Vira já a bela vivenda da colina, com os seus tufos de palmeiras que ladeavam as alamedas desertas. A estrada descia novamente para o lago, entre árvores frondosas de vagens retorcidas. À esquerda, a água mansa, gelatinosa, lambia as pedras amareladas. Numa poça da praia estavam mulheres a lavar roupa, e, nos baixios, banhavam-se duas raparigas com os cabelos negros pendentes e gotejantes. Mais adiante, um homem patinhava lentamente, detendo-se para arremessar com perícia a rede à água e depois recolhê-la cheia desses peixinhos luzidios a que chamam charales. Tudo estranhamente silencioso e remoto na manhã cintilante.
Vinha do lago uma leve brisa, mas a poeira da estrada queimava os pés. À direita erguia-se o monte, abrupto, ressequido e amarelo, exalando calor e aquele cheiro característico do México que se diria ser a evaporação duma terra cada vez mais calcinada.
Desfilavam continuamente filas de burros carregados, trotando na poeira e seguidos pelos condutores que marchavam erectos e rápidos, olhando com olhos semelhantes a buracos negros mas respondendo sempre à saudação de Kate com um respeitoso adiós. E Juana ecoava com o seu lacónico adiósm. Caminhava coxeando e achava tristíssima aquela ideia da niña de percorrer quatro milhas a pé, quando poderiam ir num automóvel de aluguer, de barco ou mesmo de burro.
Mas a pé! Kate percebia todos os sentimentos da criada no seu arrastado e sardónico adiósn. Em compensação, o homem de Ramon vinha animadamente atrás delas, dirigindo saudações alegres, com a pistola bem em evidência no cinto.
A estrada contornava um rochedo amarelo e escarpado para desembocar num campo aberto, onde se alastravam espinheiros e cactos poeirentos. À esquerda, distinguia-se a mancha verde dos salgueiros à beira do lago. À direita, as colinas inclinavam-se sobre o flanco árido das montanhas. Em frente, os outeiros ladeavam as margens do lago e afastavam-se, descobrindo uma espécie de garganta que conduzia à casa de Don Ramon e à sua plantação de cana-de-açúcar.
- Aqui temos Jamiltepec, a hacienda de Don Ramon, señorita - anunciou o homem.
Os olhos luziam-lhe ao proferir estas palavras. Era um peón orgulhoso e sem dúvida feliz com a sua sorte.
- Que lonjura! - exclamou Juana.
- Para outra vez virei só ou com o Ezequiel - replicou Kate.
- Não diga isso, niña! Só me queixo do pé, que me dói hoje a valer.
- Por isso mesmo é melhor não vires comigo.
- Não, niña. Gosto muito de vir.
Giravam alegremente as asas do moinho que puxava a água do lago. Entre as colinas descia o valezito onde deslizava um riacho e na parte mais larga viam-se bananeiras que uma cortina de salgueiros resguardava da brisa lacustre. No cimo da encosta, onde o caminho se embrenhava na sombra de mangueiras, elevavam-se dois renques de casas de adobe, tal uma aldeia um pouco recuada.
Surgiam mulheres entre as árvores, que vinham do lago com seus cântaros de água ao ombro. De roda das portas brincavam crianças, arrastando o traseiro nu na poeira do chão. Aqui e ali, uma cabra amarrada. E, apoiados na esquina da casa, ou encostados à parede, estavam homens de braços e pernas cruzados, mas não em dolce far niente. Pareciam esperar, esperar eternamente por qualquer coisa.
- Por aqui, señorita ! - disse o homem do cabaz, indicando um caminho que descia entre árvores frondosas até ao portão branco da hacienda. - Já cá estamos.
Mostrava-se tão contente como se houvesse chegado ao Paraíso.
Encontravam-se abertas as portas do zaguán, ou entrada, a cuja sombra descansavam dois soldados. No espaço em frente do portão, passavam nesse momento dois peóns, cada qual com um cacho de bananas à cabeça. Os soldados disseram qualquer coisa e aqueles detiveram-se e voltaram-se lentamente com a sua carga verde para observarem Kate, Juana e Martin - o homem que as acompanhava. Depois retomaram a sua marcha.
Os soldados levantaram-se e Martin conduziu Kate pela passagem abobadada, onde as rodas dos carros haviam cavado fundos sulcos. Juana seguia-os com expressão lastimosa.
Kate achou-se num pátio enorme, cercado em três lados por muros altos, alpendres e estábulos. Ao fundo era a casa de residência, com as suas janelas gradeadas e, em vez de porta, outro zaguán de batentes fechados, espécie de corredor ao longo do edifício.
Martin avançou para tocar a aldraba, e Kate olhou entretanto à sua volta. Num alpendre, estavam homens seminus a empacar cachos de bananas. Noutro lado, serravam paus e descarregavam telhas de cima dum burro. A um canto viam-se bois atrelados a uma carroça, de cabeça pendida sob a canga, como se esperassem.
Abriram-se as portas e Kate entrou no segundo zaguán. Era uma entrada larga, com seu lanço de escadas a um lado e um portão gradeado ao fundo, através do qual se via o jardim orlado de mangueiras e, mais abaixo, o lago com o seu porto artificial onde baloiçavam dois barcos.
Nas costas dos recém-vindos, a criada fechou a porta que dava para o pátio e indicou a Kate as escadas.
- Por aqui, señorita.
Badalava uma sineta lá no cimo. Kate subiu os degraus de pedra, ao encontro de Dona Carlota, que a esperava no patamar, vestida de musselina branca, o que, pelo contraste, lhe dava um tom amarelo às faces. Estendeu os braços magros e bronzeados, acolhendo Kate com extraordinária efusão.
- Muito prazer em vê-la aqui! E veio todo o caminho a pé, com este sol! Entre, entre e descanse.
Pegou na mão de Kate e levou-a através do terraço, no topo da escada.
- Que linda vista! - exclamou Kate, contemplando o lago para além das mangueiras. Na água pálida, irreal, vogava ao longe um barco de vela. Para além, elevavam-se as montanhas de gargantas azuladas, com a mancha branca duma aldeia. Dir-se-ia outro mundo, perdido na luz da manhã, outra vida.
- Que povoação é aquela? - perguntou Kate.
- Acolá? É San Ildefonso - respondeu Dona Carlota.
- Como este sítio é belo! - disse Kate.
- Hermoso, si! Si, bonito - retorquiu a outra em espanhol, conforme o seu costume.
A casa, de um vermelho-alaranjado, tinha duas alas voltadas para o lago. com o seu murinho coroado de plantas verdes, o terraço cercava três lados do edifício; suportavam o telhado largos pilares que partiam do solo, formando em baixo uma espécie de claustro ocupado ao centro por um tanque cheio de água.
- Venha - disse Dona Carlota. - Precisa de descansar.
- Gostaria de mudar de sapatos - declarou Kate. Levaram-na a um quarto espaçoso, um tanto vazio, de chão de
tijolos. Aí, Kate calçou as meias e os sapatos que Juana trouxera num embrulho e estendeu-se um momento para repousar.
E, enquanto repousava, ouvia o rufar surdo do tambor, no profundo silêncio da manhã, só perturbado pelo canto dum galo longínquo. Aquele som contínuo, insistente, enchia-a de mal-estar. Parecia o ribombo duma tempestade desencadeando-se no horizonte.
Kate levantou-se e dirigiu-se para o salão onde Dona Carlota estava sentada a conversar com um homem vestido de preto. com as suas três portas envidraçadas abertas sobre o terraço, chão de ladrilhos vermelhos, paredes pintadas de verde-claro, tecto de barrotes caiados e escassez de mobília, aquilo parecia mais um caramanchel do que um salão. Como em muitas casas dos países quentes, tinha-se a impressão de não se estar dentro de quatro paredes, mas sim de três; um lugar de passagem, e não para ficar.
À chegada de Kate, o homem de preto levantou-se, apertou a mão a Dona Carlota e, baixando a cabeça num comprimento cerimonioso, desapareceu por uma das portas do terraço.
- Entre, entre! - disse Dona Carlota a Kate. - Já não se sente cansada? - acrescentou, avançando uma das cadeiras de junco que estava negligentemente colocada no meio da sala.
- Absolutamente nada - respondeu Kate. - Como esta região é silenciosa! Só se ouve o tambor, o que talvez nos faça notar mais o silêncio.
- Ah, esse tambor! - exclamou Dona Carlota, erguendo a mão num movimento de exaspero. - Não posso com isso! Detesto ouvi-lo.
E moveu-se na cadeira de baloiço, com súbito nervosismo.
- É um som realmente impressionante - redarguiu Kate. - Que significa, afinal?
- Não mo pergunte! São coisas de meu marido. - E Dona Carlota fez novo gesto de desespero.
- Don Ramon é que toca o tambor?
- Não, não! - Dona Carlota pareceu sobressaltada àquela pergunta. - Não é ele que toca. Trouxe dois índios do Norte para se desempenharem desse trabalho.
- Ah, sim? - volveu Kate, sem se comprometer. Mas Dona Carlota balançava-se numa espécie de semi-inconsciência e só daí a instantes pareceu voltar a si.
- Tenho de desabafar com alguém! - disse, de repente, endireitando-se na cadeira, com uma expressão de angústia espelhada nos grandes olhos castanhos e no rosto cor de nata. - Posso desabafar consigo?
- Certamente - respondeu Kate, constrangida.
- Sabe o que Ramon anda a fazer?
- Julgo que pretende ressuscitar o culto dos deuses antigos.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, com outro aceno de mão desesperado. - Como se isso fosse possível! Os deuses antigos! Imagine-se! Que são eles senão ilusões mortas? E feias, repulsivas! Sempre pensei que meu marido fosse inteligente, muito superior a mim, e é triste ter de mudar de opinião. Tudo aquilo é um disparate. E ele atreve-se a tomar a sério o que não passa de um disparate!
- Talvez Don Ramon creia...
- Mas como pode ele crer? - replicou a dona da casa, com um sorriso desdenhoso. - É instruído, não pode acreditar em semelhante tolice.
- Então qual é o seu objectivo?
- Isso é que eu gostaria de saber. - Na voz de Dona Carlota transparecia indizível cansaço. - Penso que está louco, como acontece a tantos mexicanos. Louco como o bandido Francisco Villa.
Lembrando-se do rosto simiesco do famoso Pancho Villa, Kate não foi capaz de o associar a Don Ramon.
- Desde que se elevam na sociedade os mexicanos perdem a cabeça, o orgulho transtorna-os. Não pensam em mais nada senão na sua importância. Pura vaidade masculina. Não acha, señora, que a vaidade é o começo e o fim do homem? Jesus veio ao mundo para combater esse perigo, ensinando-nos a ser humildes. Por isso odeiam Cristo e os Seus ensinamentos, e deixam-se guiar pela vaidade durante toda a vida.
A mesma reflexão ocorrera a Kate muitas vezes, e concluíra que nos homens só existia vaidade. Precisavam de ser lisonjeados, de sentir a sua grandeza, nada mais.
- O que meu marido pretende é opor-se a Jesus, elevar o orgulho e a vaidade acima de Deus. Ah, é horrível! Horrível e infantil. Que são os homens senão crianças que necessitam dos cuidados da mãe? Ah, señora, é mais do que posso suportar!
Dona Carlota cobriu a cara com as mãos.
- Em todo o caso, acho o seu marido uma pessoa excepcional - disse Kate para a consolar, embora nesse momento detestasse Don Ramon.
- Sim, possui grandes qualidades, mas de que lhe servem se estão pervertidas?
- Explique-me ao certo: o que é que ele pretende, afinal?
- O poder, o poder absurdo e maléfico, como se já não houvesse bastantes poderes maléficos por todo este país. Quer ser mais do que os outros, adorado, venerado. Um deus! Ele, a quem embalei nos braços como uma criança, querer que o adorem!
E Dona Carlota desatou num riso estridente pontuado de soluços.
Kate esperou que ela se acalmasse.
- No fim de contas - disse, quando a viu mais sossegada - não somos responsáveis pelo que fazem os maridos. Aprendi à minha custa que todo o amor é impotente perante a vontade dos homens. Meu marido quis morrer, e não pude impedi-lo... Temos de os deixar fazer tudo o que querem, até as coisas que nos parecem insensatas.
Dona Carlota ergueu os olhos para Kate.
- Gostava muito do seu marido... e ele morreu? - perguntou em voz suave.
- Amei-o deveras, e não tornarei a gostar doutro homem. Perdi a faculdade de amar.
- De que morreu?
- Por sua culpa. Despedaçou o coração e a alma com a política irlandesa. Eu sabia que ele fazia mal em se ocupar disso. Que nos importava a Irlanda, o nacionalismo, as revoluções e todas essas tolices? Ah, se o Joachim se limitasse a viver em paz comigo, poderíamos ser tão felizes! Em vão tentei convencê-lo. Queria matar-se com aquela estúpida política, e não consegui evitá-lo. Foram inúteis todos os meus esforços.
Dona Carlota olhou fixamente para Kate.
- Assim como são os meus para impedir que Ramon proceda mal e se mate... E depois de morto, de que servirá tudo aquilo?
- De nada. Depois de eles morrerem, ficamos a saber que foi inútil todo o trabalho que tiveram.
- Oh, señora! Se pode ajudar-me a salvar Ramon, ajude-me! É uma questão de vida ou de morte para nós ambos. Porque eu morrerei se ele levar a sua avante...
- Explique-me bem qual é a ideia de Don Ramon. A do meu marido era libertar a Irlanda e engrandecer o povo. Mas eu nunca acreditei que os irlandeses fossem jamais um grande povo nem que se pudesse torná-lo livre. Só sabe destruir, e destruir estupidamente. Não se pode fazer livre um povo que o não é. Existe nele qualquer coisa que o impele à destruição.
- Bem sei, bem sei. Da mesma forma é Ramon. Até quer destruir Jesus e a Virgem Maria por amor do povo. Imagine! Derrotar Jesus e a Virgem! A última coisa que se podia pensar...
- Mas o que diz ele quanto ao seu projecto?
- Diz que pretende estabelecer um novo nexo entre o povo e Deus. Declara, por seu lado, que Deus é sempre Deus, mas que o homem perdeu a sua união com a divindade... e que não é possível restaurá-la sem que venha um novo Deus. E que qualquer novo nexo tem de ser diferente do antigo, embora Deus continue a ser Deus. Neste momento, declara meu marido, o povo perdeu o seu Deus. O Salvador já não será capaz de o reconduzir a Si. Precisa-se de outro Salvador, com uma nova visão. Ah, señora, eu não creio nisto! Deus é amor e, se Ramon se submetesse, ao menos, ao amor, compreenderia que aí é que estava Deus. Mas qual! É tão perverso! Poderíamos, ambos, com amor calmo, gozando a beleza do mundo, esperar pelo amor de Deus... Porque é, señora, que ele não vê isto? Oh, porque não compreende? Em vez de fazer estas coisas...
Acudiram lágrimas aos olhos de Dona Carlota, as quais se lhe espalharam pelo rosto. Kate também chorava.
- É inútil! - disse ela, soluçando. - Sei que é inútil, faça-se o que se fizer. Não querem ser felizes e estar em paz, mas sim esta luta e esses falsos e horríveis nexos... Sim, é inútil, de qualquer forma. E nisto é que está o pior.
E as duas mulheres, sentadas nas cadeiras de baloiço, soluçavam amargamente quando ouviram passos no terraço, leve ruído de pés calçados de sandálias.
Era Don Ramon, atraído inconscientemente pelo clamor daquelas criaturas pesarosas.
Dona Carlota limpou a toda a pressa os olhos e o nariz; Kate assoou-se com estrondo. No limiar da porta, Don Ramon deteve-se.
Trajava como os camponeses, todo de branco, de casaco largo e calças muito amplas. O fato era de linho, com certa goma, e tinha um brilho estranho, fora do vulgar. Por baixo do casaco, à frente, uniam-se as pontas duma faixa estreita de lã, também branca, franjada de vermelho e riscada de azul e preto. Nos pés sem meias trazia huaraches de coiro azul e negro, entrançado, com espessas solas tingidas de vermelhão. As calças estavam presas aos tornozelos por alamares de lã pretos, azuis e encarnados.
Kate, vendo-o assim à claridade do sol, vestido de uma alvura tão ofuscante, teve a impressão de que o rosto dele, escuro e emoldurado de cabelos escuros, fazia como que um buraco na atmosfera.
Don Ramon aproximou-se, com as pontas da faixa a baterem-lhe nas pernas, e as sandálias rangendo de leve.
- Muito prazer em encontrá-la - murmurou, apertando a mão da visitante. - Como veio?
Deixou-se cair numa cadeira e ficou imóvel. As duas senhoras baixaram a cabeça, como se quisessem esconder a cara. A presença do homem ainda as constrangia mais, porém o dono da casa fingiu não reparar na comoção que sentiam e fê-lo por um acto de pura vontade. Da sua presença emanava certa força e elas experimentaram um pouco de alívio.
- Não sabia que o meu marido se tornara num aldeão, num verdadeiro peón? - perguntou Dona Carlota, irónica, à sua hóspeda. - É um señor peón, como o conde Tolstoi se fez señor mujique...
- Mas fica-lhe bem - observou Kate.
- Ora aí está... Ao diabo o que é do diabo... - replicou Don Ramon.
Havia nele algo de tenaz, de inflexível. Riu, e falou às senhoras, mas sem se revelar muito, apenas superficialmente. O seu ser íntimo, insondável e poderoso, não entrava em contacto com elas.
Assim foi durante o almoço. Houve conversa esvoaçante, com intervalos de silêncio. Nesse silêncio percebia-se que Don Ramon vivia noutro mundo; e a sua vontade calma, obrando noutra esfera, fazia recuar as mulheres para a sombra.
- A señora é como eu, Ramon - disse Dona Carlota. - Não tolera o rufar do tambor. Irá continuar aquilo, pela tarde adiante?
Seguiu-se uma pausa antes que ele respondesse:
- Só depois das quatro horas.
- Temos, então, de aturar hoje esse barulho? - insistiu Dona Carlota.
- Porque não há-de ser hoje como nos outros dias? - ripostou o marido. Notava-se-lhe um ar contrariado. Era evidente que pretendia subtrair-se à presença daquelas duas.
- Porque a senhora está cá, e eu estou também, e porque nenhuma de nós gosta daquele som. Amanhã já ela se vai embora, e eu regresso à cidade. Porque não nos poupas esse tormento? E
Ramon fitou a mulher, e em seguida Kate. Os olhos denotavam cólera. Kate quase ouvia, naquele peito forte, o coração inchar de furor. Mas calou-se e a outra também se calou. No fundo, estavam satisfeitas por terem podido despertar a ira do homem.
Mantendo o sangue-frio, Don Ramon inquiriu da esposa (não sem que se lhe percebesse a indignação):
- Porque não levas a senhora Leslie até ao lago?
- Não nos apetece.
Ele então fez o que a irlandesa nunca vira ninguém fazer. Encerrou-se dentro de si mesmo, deixando às duas comensais a impressão de se encontrarem diante duma porta que se fechou. Kate sentiu-se abandonada e deprimida, mas a pouco e pouco a irritação tingiu-lhe as faces pálidas dum rubor de fogo.
- Posso ir-me embora antes das quatro horas - declarou.
- Não, não! - acudiu, suplicante, a dona da casa. - Não me deixe. Fique comigo até à noite e ajude-me a distrair Don Cipriano, que vem jantar connosco.

XI
Acabado o almoço, Ramon recolheu ao quarto para dormir a sesta. A tarde estava quente, pesada. No extremo oeste do lago erguiam-se nuvens cintilantes, quais mensageiros da tempestade. Ramon fechou as janelas do seu aposento de modo a obter negrume total; apenas aqui e ali, filtrando-se pelos interstícios da porta, os raios de luz pousavam nas trevas como uma coisa tangível.
Despiu a roupa e ergueu acima da cabeça os punhos fechados, como se orasse intensamente e de pé. Nos seus olhos só havia escuridão, e a pouco e pouco essa escuridão atingiu-lhe o cérebro, apagando-lhe todos os pensamentos. Só uma vontade poderosa se distendia e emanava da espinha dorsal, numa tensão sobre-humana até que as flechas da alma atingiram o alvo e a oração a sua meta.
Então, bruscamente, tombaram os braços trémulos, o corpo readquiriu a flexibilidade. O homem recuperara a sua força. Quebrara as cordas do mundo e sentia-se livre e senhor da outra força.
Devagarinho, com precaução, esforçando-se por não pensar, não se recordar, não despertar as serpentes venenosas da consciência, enrolou-se num cobertor delgado e estendeu-se no chão sobre uma pilha de coxins. Daí a instantes, adormecia.
Dormiu profundamente cerca de uma hora. Abriu os olhos de repente, viu as trevas aveludadas e as frechas de luz diminuídas: o sol mudara. Pôs-se à escuta. Parecia não haver um único som no mundo. Talvez não existisse mundo...
Então começou a ouvir. Distinguiu o débil rumor duma carroça, folhas sussurrando ao vento, o som distante de pancadas, o pio duma ave.
Levantou-se, vestiu-se com rapidez às escuras e foi abrir as janelas. A tarde ia em meio; soprava uma aragem quente, amontoavam-se a oeste nuvens escuras, mas a chuva não se decidia a cair. Ramon pôs na cabeça um chapéu de palha, que tinha à frente um enfeite de penas brancas, pretas e azuis dispostas em forma de olho, ou de sol. Ouviu vozes femininas. Ah, a estrangeira! Esquecera-a por completo. E Carlota! Carlota encontrava-se ali. Por um momento, pensou nela e na sua caprichosa oposição. Depois, antes que a ira o dominasse, soergueu o peito, em nova oração muda, os olhos sombrearam-se-lhe - e perdeu a impressão de contrariedade.
Seguiu pelo terraço até à escada de pedra que conduzia à entrada e atravessou o pátio, onde dois homens, debaixo dum alpendre, carregavam azêmolas com fardos de bananas. No zaguán dormiam soldados. Pelas portas abertas, Ramon viu ao fundo da alameda um carro de bois afastando-se lentamente. No pátio ressoavam marteladas numa bigorna: era um homem e um rapazito ocupados na forja. Noutro alpendre, um carpinteiro aplainava tábuas.
Don Ramon deteve-se um momento para olhar em volta. Aquele era o seu mundo. O espírito dele espraiava-se nesse mundo como uma sombra fomentadora, e o silêncio do seu próprio poder dava-lhe paz.
Os homens que trabalhavam tiveram quase instantaneamente consciência da presença do patrão. Um após outro, os rostos escuros e ardentes ergueram-se para ele e voltaram a baixar-se. Gostavam de o ver ali, mas temiam aproximar-se e nem se atreviam a um olhar mais prolongado. Retomaram o trabalho com mais ardor, como se a presença do patrão lhes desse novo alento.
Ramon dirigiu-se para a forja, onde o rapazinho dava ao fole e o homem batia pancadas leves e rápidas num pedaço de ferro.
- É a ave? - perguntou Ramon.
- Sim, patrón, é a ave. Está bem! - E o homem levantou os olhos pretos, luzidios, expectantes. com uma tenaz, brandiu a tira de metal, negra, em forma de língua achatada, e Ramon observou-a demoradamente. - As asas ponho-as depois - explicou o ferreiro.
com as mãos escuras e nervosas, Don Ramon traçou uma linha imaginária em volta do pedaço de ferro. Três vezes fez esse gesto, que parecia fascinar o ferreiro.
- Um pouco mais alongado. Assim... - disse Ramon.
- Sim, patrón, compreendo.
- E o resto?
- Está ali. - O homem apontou para dois arcos, um maior que outro, e para várias chapas de ferro triangulares.
- Coloca tudo isso no chão.
O ferreiro pousou os arcos, um dentro do outro, e em seguida dispôs com perícia os triângulos de modo que as bases ficassem sobre o arco exterior e os vértices no círculo interior. Eram sete.
Assim formaram um sol de sete pontas.
- Agora, a ave - ordenou Ramon.
O homem pegou logo na peça comprida: era a forma rudimentar dum pássaro, com dois pés mas ainda sem asas. Colocou-a no centro da roda interior, de maneira que as patas tocassem no círculo e a cabeça atingisse a parte oposta.
- Está tudo certo!
Ramon contemplava o símbolo de ferro armado no chão quando ouviu abrir a porta de casa. Kate e Carlota avançaram através do pátio.
- Retiro isto? - inquiriu o ferreiro.
- Deixa, não faz mal - respondeu Don Ramon tranquilamente.
Kate deteve-se a observar aquela coisa estendida no chão.
- Que é isso? - perguntou.
- A ave dentro do sol.
- Representa uma ave?
- Quando tiver asas.
- Ah, faltam-lhe as asas! E de que serve?
- É um símbolo para o povo.
- é bem bonito...
- Sim, é bonito.
- Ramon, não te importas dar-me a chave para tirar o barco?
- disse Dona Carlota. - Vamos dar um passeio no lago, e Martin remará.
O marido tirou a chave da cinta.
- Onde descobriu essa linda faixa? - indagou Kate. Era branca, com riscas azuis e pretas e franjadade vermelho.
- Teceram-na aqui - informou Don Ramon.
- E as sandálias? Também as fizeram cá?
- Sim, foi obra do Manuel. Mais tarde lho mostrarei...
- Gostaria bastante de ver. São belíssimas, não acha, Dona Carlota?
- Acho, mas não sei se as coisas belas são sensatas. Não sei. E a señora, sabe o que é sensato?
- Eu? - volveu Kate. - Não me preocupo muito com isso.
- Ah, não se preocupa! Afigura-se-lhe então sensato da parte de Ramon usar traje de camponês e huaraches?
Pela primeira vez, Dona Carlota exprimira-se em língua inglesa, falando com lentidão.
- Fica-lhe tão bem! - replicou Kate. - O fato de homem é medonho e Don Ramon parece magnífico com este.
De facto, com o largo chapéu pousado na cabeça ele tinha certo ar de nobreza e autoridade.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, fixando na companheira o seu olhar inteligente, enquanto brincava com a chave. - Vamos para o lago?
As duas mulheres afastaram-se. Rindo consigo mesmo, Ramon atravessou o pátio e dirigiu-se a uma granja construída perto das árvores. Entrou e assobiou baixinho. Soou outro assobio como resposta e abriu-se um alçapão. Don Ramon subiu a escada e encontrou-se numa espécie de oficina de carpinteiro. Acolheu-o um rapaz corpulento, de cabelo encaracolado, que empunhava maço e escopro.
- Que tal vai isso? - perguntou Ramon.
- Vai bem.
O artista esculpia uma cabeça de madeira. Uma cabeça avantajada, convencional, mas que, apesar do convencionalismo, revelava semelhança com Ramon.
- Sirva-me de modelo durante meia hora - disse o escultor. Ramon sentou-se e ficou silencioso, enquanto o outro, curvado
sobre a sua obra, se concentrava no trabalho. Durante todo aquele tempo, Don Ramon conservou-se erecto, quase imóvel, sem pensar em nada, mas irradiando um halo sombrio de poder que fascinava o artista.
- Basta - declarou por fim, levantando-se.
- Mas ponha-se na posição antes de se ir embora - pediu o artista.
Ramon despiu lentamente o casaco e ficou de torso nu, com a faixa raiada de azul e preto de roda da cintura. Por uns instantes pareceu recolher-se e, em seguida, como se numa oração intensa e orgulhosa, ergueu o braço direito por cima da cabeça e ficou transfigurado. O braço esquerdo pendia molemente ao longo do quadril. E no rosto, esse ar de orgulho fixo e intenso que era em si mesmo uma oração.
O escultor observava-o admirado e quase temeroso. Aquele homem grande e enérgico, com os seus olhos negros dilatados pelo orgulho e no entanto cheios de oração, despertava no escultor um frémito de alegria e de medo.
Don Ramon voltou-se para ele.
- Agora, você!
O artista, assustado, quis esquivar-se, mas encontrou o olhar de Ramon e, no mesmo instante, a calma da concentração desceu sobre ele, como um êxtase. Então, bruscamente, ergueu o braço, e a face pálida e nédia adquiriu uma expressão de paz e dignidade. Os olhos cinzento-azulados, serenos e altivos, dirigiam ao Além a sua oração. E embora estivesse com a bata de trabalho, e não fosse esbelto, apresentava uma imobilidade perfeita, plena de nobreza.
- Muito bem - disse Ramon, baixando a cabeça.
O escultor moveu-se de súbito. Ramon estendeu-lhe as duas mãos e ele, levantando-lhe a dextra, pousou-a na fronte.
- Adiós! - disse Ramon, depois de enfiar o casaco.
- Adiós - respondeu o artista. E com a felicidade estampada no rosto, voltou para o trabalho.
Don Ramon visitou a casa de adobe, cujo pátio era rodeado duma paliçada de canas e sombreado por uma gigantesca mangueira. Manuel, a mulher, os filhos e dois ajudantes estavam a fiar e a tecer. Debaixo das bananeiras, duas pequenas cardavam lã branca e castanha. A mulher e uma rapariga fiavam. Numa corda secava lã tingida, vermelha, azul e verde. E, no alpendre, Manuel e um rapaz manobravam dois pesados teares.
- Como vai isso? - inquiriu Don Ramon.
- Muy bien! Muy bien! - respondeu Manuel, com uma expressão transfigurada cintilando-lhe nas pupilas negras. - Muito bem, señor!
Ramon examinou a serape que estavam a tecer. Tinha uma barra em ziguezague de lã preta natural e, em cada ponta, um ornato complicado, azul e preto. O homem começara o centro, a que chamam boca, e olhava de instante a instante para o desenho pregado no tear. Aliás, era um desenho simples, igual ao símbolo de que o ferreiro se ocupava: uma serpente a morder a cauda e, de volta, triângulos negros cujas bases se apoiavam num círculo exterior; ao meio uma águia azul, com as asas e os pés tocando no arco formado pela serpente.
Ramon voltou a casa, dirigindo-se para a ala onde se encontrava o seu quarto. Lançou uma manta dobrada sobre o ombro e seguiu pelo terraço. No extremo dessa ala, projectando-se para o lago, havia outro terraço, este quadrado, com uma bignónia cor de coral pendente dos pilares maciços. A loggia estava juncada de esteiras e, a um canto, via-se um tambor e respectiva baqueta. No ângulo mais afastado mergulhava uma escada de pedra, fechada em baixo por uma porta de ferro.
Ramon ficou uns momentos a olhar para o lago. As nuvens dispersavam-se e o lençol de água reflectiu uma claridade esbranquiçada. Ao longe, via-se a mancha de um barco, onde provavelmente se encontravam Martin e as duas senhoras.
Tirou o chapéu e o casaco, e permaneceu imóvel, nu da cintura para cima. Então pegou na baqueta e, depois de esperar uns segundos, até adquirir paz de alma, fez soar o apelo do tambor, num ritmo alternado, forte e fraco. Captara o antigo poder bárbaro de certos rufos.
Assim esteve durante algum tempo, sozinho, tocando tambor com a mão direita, de face inexpressiva.
Acorreu um homem, de cabeça descoberta, vindo do outro terraço. Trazia fato de brancura imaculada, serape escura ao ombro, e uma chave na mão. Saudou Ramon, levando à testa as costas da mão direita, e depois desceu a escada e abriu a porta de ferro.
Imediatamente chegaram homens, todos vestidos de branco, cada qual com a sua serape dobrada em cima dos ombros. Mas as faixas eram azuis, e as sandálias azuis e brancas. O escultor apareceu, assim como Martin.
Eram sete, além de Ramon. No topo da escada saudaram-no, um apôs outro. Em seguida, depuseram a manta e o chapéu no murinho do terraço e despiram o casaco, que atiraram para cima dos chapéus.
Ramon largou o tambor e sentou-se sobre a sua manta raiada de azul e preto. Todos o imitaram, formando círculo, de pernas cruzadas e torso nu. Uns eram cor de café, outros brancos; Ramon tinha a pele dum tom castanho-claro. Conservaram-se em silêncio, só perturbado pelo som igual e hipnótico do tambor que um dos homens tocava. Então este começou a cantar numa vozinha estranha, contida, essa antiga voz de falsete dos índios:
"Quem dorme despertará. Quem dorme despertará. Quem segue o caminho da serpente há-de chegar ao seu destino; há-de chegar ao seu destino e ficará revestido com a pele da serpente."
Uma por uma, outras vozes se juntaram, até que todos se fizeram ouvir, naquele ritmo cego, infalível, do antigo mundo bárbaro. E todos com idêntica voz interior, como se a alma cantasse para si própria.
Cantaram por momentos, em uníssono, qual bando de pássaros a voar levados pelo mesmo instinto. E quando o tambor vibrou num rufo que era o final da cerimónia, as vozes extinguiram-se também, simultâneas, com um estrangulamento na garganta.
Houve um silêncio. Depois os homens principiaram a conversar uns com os outros, rindo em surdina. Mas a voz deles e a expressão já não eram as mesmas de há pouco.
Don Ramon ia falar e todos se calaram, inclinando a cabeça. Aquele sentara-se, de face erguida, visando ao longe, na dignidade da oração.
- Não há Passado nem Futuro, só existe o Presente - disse em tom surdo, majestoso. - A Serpente magna dobra e desdobra os seus anéis, as estrelas surgem, os mundos desaparecem. Há somente a mudança e o repouso do plasma.
Eu sou sempre, diz o seu sono.
Assim como o homem, enquanto dorme, não tem conhecimento, mas é, também a Serpente enroscada do eterno Cosmos prolonga o seu existir de Agora.
Agora, agora só, e para sempre Agora.
Contudo os sonhos despertam e esmorecem no sono da Serpente.
E o Universo eleva-se como os sonhos e como eles expira.
E o homem é um sonho no sono da Serpente.
E apenas o sono que não tem sonhos murmura: Eu sou!
E no Agora sem sonhos, Eu sou.
Os sonhos despertam, como devem, e o homem é um sonho desperto.
Mas o plasma sem sonhos da Serpente é o plasma do homem, do seu corpo e ao mesmo tempo da sua alma.
E o sonho perfeito da Serpente Eu sou é o plasma do homem, que é íntegro.
Quando o plasma do corpo e o da alma só fazem um, Eu sou na Serpente.
Agora Eu sou.
Não foi é um sonho, assim como será, quais dois pés trôpegos e separados.
Mas Agora. Eu sou.
As árvores desdobram as folhas no sono, e a floração emerge dos sonhos no mais puro Eu sou.
Os pássaros esquecem o peso dos seus sonhos e cantam no Agora: Eu sou! Eu sou!
Porque os sonhos têm asas e pés e caminhos a percorrer, e esforços a realizar.
Mas a Serpente luzidia do Agora não tem asas nem pés, é una, perfeitamente enrolada.
Nos pés dum sonho, a lebre sobe o monte numa corrida. Mas quando se detém o sonho desaparece e ela entra no Presente e os seus olhos são o vasto Eu sou.
Só o homem sonha, sonha, e vai de sonho em sonho, como alguém que, dormindo, se agita no leito.
Sonha com os olhos e a boca, com as mãos e os pés, com o falo, o coração e o ventre, com o corpo e a alma, numa tempestade de sonhos.
E precipita-se de sonho para sonho, na esperança de alcançar o sonho perfeito.
Mas eu afirmo-vos que nenhum sonho é perfeito, porque em todos eles há sofrimento e desejo.
Nada é perfeito, excepto o sonho que falece no sono. Eu sou.
Quando o sonho dos olhos se obscurece, cercado pelo Agora,
E quando o sonho da boca ressoa no último Eu sou,
E quando o sonho das mãos dormita como uma ave no mar, que é erguida, e levada, sem que ela o saiba,
E os sonhos dos pés atingem o centro do mundo, onde a Serpente dorme,
E o sonho do corpo é a calma duma flor oculta,
E o sonho da alma se dissipou no perfume do Agora,
E o sonho do espírito se apazigua e descansa na Estrela da Manhã,
Porque cada sonho começa e termina no Presente,
No âmago da flor está a Serpente que alumia e não desperta.
E o que se apaga é um sonho, e o que se aumenta é um sonho. Há sempre, e somente Agora. Agora e Eu sou."
Reinava o maior silêncio no círculo de homens. Lá fora, rangia um carro de bois e, do lago, elevava-se o débil som de remos a fender a água. Mas os sete homens, de cabeça baixa, escutavam interiormente, numa espécie de transe.
Então o tambor começou, suavemente, e um dos homens cantou, num fio de voz:
O senhor da Estrela da Manhã
Estava entre o dia e a noite:
Tal um pássaro que ergue as asas e espera
com a asa luminosa à direita
E a das trevas à esquerda,
A Estrela de Alva apareceu.
- Olhai! Estou sempre aqui!
Longe, no espaço
Roço a asa do dia
E ilumino o vosso rosto.
com a outra asa roço a sombra.
Mas eu estou sempre aqui.
Estou sempre aqui. Sou o senhor. E os senhores entre os homens Vêem-me no cintilar das minhas asas. E perdem-me outra vez. Mas, olhai! Estou sempre aqui.
As multidões não me vêem. Só vêem o bater de asas, As idas e vindas das coisas, O calor e o frio.
Mas a vós que me vedes entre
O frémito da noite e do dia,
Faço-vos senhores do Caminho Invisível.
Caminho entre abismos de trevas e vales de luz; Caminho que segue tal rasto de serpente, tal a mecha dum rastilho
Que incendiará à substância das trevas e explodirá à vista de todos.
Jamais me afasto. Estou sempre aqui Entre as asas dum voo sem fim, Nas profundezas da paz e da luta.
Profundo no relento da paz,
Longe da orla do combate,
Haveis de encontrar-me, eu que não sou
Nem sou destruição.
Para além eu estou Dos horizontes de amor e de luta, Como uma estrela, como uma fonte Que lava os senhores da vida.
"Ouvi! - disse Ramon, no meio do silêncio. - Seremos senhores entre os homens, não os senhores dos homens. Somos senhores da noite. Senhores do dia e da noite. Filhos da Estrela da Manhã e da Estrela da Tarde.
Não somos senhores dos homens. Eu, porém, sou a Estrela da Manhã e Senhor do dia e da noite. com o poder que me foi concedido à mão esquerda e com o poder que obtive com a mão direita, sou senhor dos dois rumos.
E a minha flor na terra é o jasmim, e no céu a hespéride.
Não vos darei ordens, nem vos servirei, porque a serpente se arqueia em direcção à sua casa.
Contudo, estarei convosco, para que não vos desvieis de vós próprios.
Não há nada a dar nem a receber. Quando os dedos que dão afloram os que recebem, cintila a Estrela da Manhã a esse contacto, e o jasmim brilha entre as mãos. E assim não há dom nem aceitação, nem mão que oferece nem mão que recebe, mas a estrela encontra-se entre elas e a mão escura e a mão clara permanecem invisíveis de cada lado. O jasmim recolhe na corola o dom e a aceitação, e o seu perfume espalha-se no ar.
Não penseis em dar nem em receber, deixai isso à flor do jasmineiro.
Não vos desperdiceis, que nada vos seja arrancado.
E não percais nada, nem o aroma da rosa, nem o sumo da romã, nem o calor do fogo.
Mas dizei à rosa: - Olha, colho-te, e o teu perfume enche-me as narinas e o meu hálito penetra no teu coração. Que isso seja entre nós como um sacramento.
E tomai cuidado quando abrirdes a romã; é o Sol poente que tendes nas mãos. Dizei: - Eis-me aqui, vem! Que a Estrela da Tarde fique entre nós.
E quando a chama se eleva ao sopro do vento frio e estendeis as mãos para o calor, ouvi o que a chama diz: - Ah! És tu? És tu que vens para mim? Eu realizava a grande viagem, seguindo o caminho da serpente magna. Mas visto que vens até mim, de ti me aproximo. E se caíres nas minhas mãos cairei nas tuas, e a flor do jasmineiro perfumará o nosso encontro.
Não repilais nada nem deixeis que vos despojem. Porque repelir ou ser despojado quebra a raiz do jasmim e conspurca a Estrela da Tarde.
Não vos apodereis de nada para dizer: - Isto pertence-me. Nada existe que vos seja dado possuir, nem sequer a paz.
Nada; nem o ouro, nem a terra, nem o amor, nem a vida, nem a dor, nem a morte, nem a salvação.
De nada direis: - Isto é meu.
Dizei apenas: - Isto está comigo.
Porque o ouro só permanece convosco o espaço duma lua, e olha-vos e diz: - Encontramo-nos ligados por este breve instante.
E a terra diz-vos: - Ah, filho meu, de pai longínquo! Vem, revolve-me um pouco, para que as papoulas e o trigo cresçam e ondulem ao vento que sopra entre o meu e o teu peito. Depois, abisma-te em mim, e ambos formaremos um outeiro.
E ouvi o que diz o vosso amor: - A tua espada ceifou-me como à erva, e sobre mim está a sombra e o bruxulear da Estrela da Tarde. Não é mais do que trevas e nada. Ó tu, quando te levantares e prosseguires o teu caminho, fala-me, dize-me simplesmente: - A estrela despontou entre nós.
E dizei à vida: - Sou teu? És minha? Sou a orla do dia em volta da noite? São os meus olhos o crepúsculo onde a estrela se suspende? É o meu lábio superior o pôr do Sol e o meu lábio inferior o raiar da manhã? Tremula a estrela na minha boca?
E dizei à vossa paz: Ergue-te, estrela imortal! Já as águas da aurora te alagam e me levam no seu curso.
E dizei à dor: Machado, abates-me. E, contudo, brota uma centelha do teu gume e da minha ferida. Corta, então, que eu velarei a face, ó pai da estrela!
E dizei à vossa força: A espuma da noite sobe-me dos pés até aos rins, a espuma do dia salta-me dos olhos e da boca para o mar do meu peito. As minhas entranhas são um manancial de poder que corre pela espinha dorsal. E uma estrela flutua sobre esse fluxo.
E dizei à vossa morte: Pois seja! Eu e a minha alma iremos para ti, Estrela da Tarde. Carne, desaparece na sombra da noite. Espírito, chegou o teu dia. Deixai-me agora. Na minha nudez suprema me encaminho para a Estrela mais nua."

XII
Os homens envergaram o casaco, puseram o chapéu e, depois de cobrirem os olhos por um momento numa saudação a Ramon, desceram a escada de pedra. Fechou-se a porta com estrondo e o porteiro, voltando com a chave, pousou-a sobre o tambor e retirou-se discretamente.
Ramon ficou sentado em cima da manta, com os ombros nus apoiados à parede e de pálpebras cerradas. Sentia-se fatigado, nesse estado de abstracção que torna difícil o regresso ao mundo normal. Ouvia de modo vago os rumores na casa, tilintar de colheres de chá, vozes femininas conversando, o ronco dum automóvel que se aproximava pelo caminho desnivelado e se detinha no pátio.
Custava-lhe voltar à terra. Ressoava-lhe aos ouvidos o barulho do exterior, mas dentro dele mesmo escutava o murmúrio confuso do universo, como se num búzio. Era-lhe penoso retomar contacto com as coisas da vida corrente quando o corpo e a alma mergulhavam no cosmos.
Gostaria de se conservar ainda uns instantes no seu isolamento, mas não era possível. Reclamavam a sua presença, especialmente Carlota.
Já ela o chamava: "Ramon! Isso terminou? Cipriano está aqui." Sentia-se-lhe na voz receio e temeridade.
Ramon puxou os cabelos para trás, ergueu-se e, em passo rápido, acudiu ao chamamento tal como se encontrava, de torso nu. Não tinha vontade de se vestir, de reentrar nos pormenores da vida quotidiana.
Cipriano, fardado, achava-se no terraço abancado à mesa do chá. Levantou-se prontamente e avançou para Ramon de braços abertos, perscrutando o rosto do amigo com os seus olhos negros e brilhantes.


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Os dois homens abraçaram-se, peito contra peito, e, por momentos, Cipriano deixou estar as mãos morenas nas espáduas nuas de Ramon. Então afastou-se devagar e fitou-o sem proferir uma palavra.
Ramon pousou distraidamente a mão no ombro de Cipriano.
- Que tal? - perguntou. - Como vai isso?
- Bien. Muy bien - respondeu Cipriano, fixando-o sempre como se se procurasse a si mesmo no semblante de Ramon. Este correspondeu ao olhar do índio com um leve sorriso, enquanto Cipriano baixava a cabeça e os cabelos longos lhe tombavam na testa.
As duas mulheres observavam a cena em silêncio absoluto. Quando os dois homens se aproximaram da mesa, Carlota começou a servir o chá. Mas as mãos tremiam-lhe e ela tratou de pousar o bule e cruzá-las no regaço.
- Passearam de barco? - indagou Ramon, com ar alheado.
- Passeámos, e foi muito agradável - disse Kate. - Um bocado quente, quando o sol apareceu...
Ramon esboçou um sorriso e alisou o cabelo. Em seguida, descansando a mão no parapeito do terraço, olhou para o lago e suspirou inconscientemente.
Nu da cintura para cima, voltava costas às mulheres, contemplando a vastidão da água. Cipriano estava a seu lado.
Kate observava as espáduas lisas, morenas, que emanavam sensualidade, os ombros largos, o porte altivo da cabeça - e não podia deixar de imaginar uma lâmina cravada nessas costas magníficas, nem que fosse só para destruir a sua arrogância distante.
Porque até a sua nudez parecia distante, intangível. Pensar nela e contemplada daquele modo representava quase uma violação. Kate sentiu de súbito o coração estremecer-lhe de vergonha. Fora assim que Salomé olhara para João Baptista, e Ramon possuía essa mesma beleza que evocava uma romã destacando-se na verdura sombria da árvore.
Soprava branda a aragem da tarde. Na luz nacarada deslizavam barcos, enquanto o Sol luzia ainda no horizonte. Distinguia-se a margem oposta, a cerca de vinte milhas, embora velasse a atmosfera uma bruma opalina que se confundia com a água do lago. Kate lobrigava a mancha clara da igreja de Tuliapan.
No jardim da casa havia um bosquete de mangueiras, onde voavam cá e lá passarinhos escarlates, como botões de papoula, e outros dum amarelo cintilante. Contudo, quando pousavam por um momento e fechavam as asas, desapareciam da vista, pois eram escuros por cima.
- Neste país, os pássaros só são coloridos por baixo das asas - observou Kate.
Ramon voltou-se bruscamente para ela.
- Dizem que a palavra México significa "por baixo" - replicou, sorrindo, enquanto se afundava numa cadeira de balouço.
Dona Carlota fizera um esforço sobre si mesma e, de olhos fixos nas chávenas, servia o chá. Apresentou uma xícara ao marido, sem sequer o relancear. Tremia de cólera quase histérica. Ela, que era sua esposa desde tantos anos e que o conhecia tão bem (ah, se o conhecia!), nada possuía desse homem.
- Passa-me o açúcar, Carlota - disse Ramon na sua voz calma.
A mulher sobressaltou-se como se a beliscassem de repente.
- O açúcar? - repetiu, distraída.
Ramon estava sentado na cadeira, pendido para a frente e de xícara na mão. A tela fina que lhe cobria as coxas revelava-lhe mais o corpo do que a nudez do torso. Kate percebeu porque é que era proibido usar calças de algodão naplaza. Tornavam mais sensível a presença da carne.
Verdadeiramente belo, duma beleza que chegava a ser assustadora, irradiava uma sensualidade pura, hostil ao género de pureza de Kate, com a sua faixa azul de roda da cinta e as calças brancas parecendo fremir de vida cingidas aos quadris e às coxas. Tão poderoso fluido emitia esse ente másculo que Kate se sentia como que fascinada.
E ele, perfeitamente tranquilo, dentro do seu próprio ambiente. O mesmo acontecia a Cipriano. Ambos tão calmos, tão sombrios, dir-se-iam esmagar as duas mulheres.
Kate compreendeu então os sentimentos de Salomé. Compreendeu como João Baptista, com a sua beleza distante e inacessível, exercera tamanho poder.
"Ah! disse ela consigo mesma. - Tenho de fechar os olhos e abrir a alma. Fechar os olhos para não ver e ficar na escuridão e no silêncio junto destes dois homens. Possuem uma riqueza que me falta. Conseguiram libertar-se do desejo que a vista suscita. Sou atormentada pelo desejo, pela minha imaginação lasciva. É a maldição de Eva. Os meus olhos, a minha experiência são como um anzol que me repuxa a carne e me desperta espasmos de desejo. Oh, quem me dera libertar-me da impureza do olhar! Filha de Eva, porque é que estes homens me não arrancam às visões impuras?"
Levantou-se e dirigiu-se à beira do terraço. Amarelos como narcisos, emergiam dois pássaros da sua própria invisibilidade. Na praia de seixos, onde estava um barco varado, dois homens apanhavam à rede os peixinhos denominados chcirales, que cintilavam na água acastanhada como lascas de vidro.
- Ramon! - disse Dona Carlota. - Não vais vestir-te? Já não podia suportar aquela vista.
- vou. Obrigado pelo chá - respondeu o marido, pondo-se de pé. E seguiu pelo terraço adiante, com as sandálias a ranger de leve no pavimento de tijolos.
- señora Caterina! - chamou Carlota. - Venha beber o seu chá.
Kate voltou para a mesa, dizendo:
- Que paz se sente aqui!
- Paz! - repetiu Carlota. - Não acho paz nenhuma. O que há é um silêncio pavoroso que me causa arrepios.
- Vem cá frequentemente? - perguntou Kate a Cipriano.
- Sim, uma ou duas vezes por semana - respondeu ele, fixando-a com singular expressão nos olhos negros.
Dir-se-ia que esses homens procuravam anular-lhe a vontade.
- São horas de eu voltar para casa - declarou ela. - Não tarda que o Sol desapareça.
- Ya va? - redarguiu Cipriano, com a sua voz aveludada em que transparecia certa pena. - Já!
- Oh, não, señora! - exclamou Carlota. - Fique connosco até amanhã.
- Mas estão em casa à minha espera.
- Mandarei um rapaz prevenir que só regressa amanhã. Fica, não é verdade? Ah, ainda bem.
E Carlota, depois de pousar a mão carinhosa no braço de Kate, levantou-se a fim de avisar os criados.
Cipriano puxou da cigarreira e ofereceu-a a Kate.
- Não se escandalizará se eu fumar? - disse ela. - É um dos meus vícios.
- Fume. Não é bom sermos perfeitos.
- Acha que não? - E Kate, rindo-se, puxou uma fumaça do cigarro.
- Experimenta realmente essa paz? -inquiriu ele, irónico.
- Porquê?
- Porque é que os brancos andam sempre em busca da paz?
- Pois não é natural que todos desejem paz?
- Paz é apenas o descanso depois da guerra. Não é mais natural do que a luta; talvez até seja menos.
- Mas existe outra paz, aquela que ultrapassa o entendimento. Não sabia?
- Parece-me que não - respondeu Cipriano. - Que pena!
: - Ah! Quer ensinar-me? Mas para mim é diferente... Cada
homem tem dois espíritos. Um assemelha-se à aurora na época das chuvas, suave, fresca, húmida, com pássaros chilreando. O outro é como a estação seca, com a sua luz forte e ardente que parece nunca mais abrandar.
- Decerto prefere o primeiro.
- Não sei - replicou Cipriano. - O outro dura mais.
- Tenho a certeza que prefere a frescura da manhã - insistiu Kate.
- Não sei, não sei. - E esboçou um sorriso, deixando Kate
convencida de que ele de facto não sabia. - Na primeira fase vemos as flores nas suas hastes transbordantes de seiva. A flor desa brocha como uma face de mulher perfumada pelo desejo. Mas o sol começa a aquecer, e então tudo se modifica. As flores murcham e o peito do homem torna-se como um espelho de aço. Dentro dele tudo
- é escuridão, enroscando-se e desenroscando-se como uma cobra. As flores secaram nas hastes, as mulheres já não existem para o homem. Umas e outras desapareceram.
- Que pretende ele então? - perguntou Kate.
- Não sei. Talvez queira ser uma grande personagem, senhor de todos os povos...
- E porque não realiza essas aspirações?
Cipriano encolheu os ombros.
A señora assemelha-se à manhã de que lhe falei há pouco -
disse ele.
- Tenho quarenta anos - replicou Kate com um risinho amarelo.
O general tornou a encolher os ombros.
- Isso não interessa. O seu corpo parece o caule da flor a que
aludi, e o seu rosto será sempre a aurora na estação das chuvas.
- Porque me diz essas coisas? - volveu Kate, com involuntário e estranho tremor.
- E porque não hei-de dizer? A señora é tal uma manhã cheia de frescura, e estamos no fim da época seca...
Observava-a, e nos seus olhos brilhava o desejo, aliado a certa insolência.
Kate baixou a cabeça e balançou-se na cadeira.
- Gostaria de casar consigo - continuou Cipriano. - Se estivesse disposta a isso, desposá-la-ia.
- Não me parece que me torne a casar - ripostou Kate, anelante e de faces afogueadas.
- Quem sabe?
Ramon surgiu no terraço, com a sua bela serape dobrada sobre o ombro nu. Apoiou-se num dos pilares e contemplou Kate e Cipriano, o qual ergueu a vista e lhe dirigiu um sorriso em que transparecia a amizade que os ligava.
- Disse à señora Caterina que a desposaria se ela estivesse disposta a casar-se - declarou ele.
- É o que se chama falar sem rodeios - replicou Ramon, olhando para Cipriano com o mesmo sorriso amigo. Em seguida, o seu olhar pousou-se em Kate, enquanto o sorriso se alastrava e todo o seu rosto respirava compreensão. Cruzou os braços, como fazem os índios quando querem defender-se do frio; e a carne, dum tom castanho-claro, como ópio, formava saliências no peito largo, cheio e liso.
- Diz Don Cipriano que os Brancos só desejam a paz - proferiu Kate, fitando Ramon com deliberada impertinência. - Não se consideram brancos?
- Não mais brancos do que somos - respondeu Ramon, sorrindo. - Pelo menos, não duma brancura de lírio...
- E não buscam a paz?
- Por mim não penso nisso. Os mansos herdarão a terra, segundo a professia. Mas quem sou eu para lhes invejar a sua paz? Não señora. Por acaso pareço um evangelho de paz? Ou de guerra? A vida para mim não se resume nessas duas coisas.
- Não sei afinal o que desejam - disse Kate.
- Nós próprios não o sabemos senão em parte - replicou Ramon, mudando de expressão.
Havia nele uma espécie de bondade paternal que enchia Kate de espanto e a sobressaltava como se só agora compreendesse o verdadeiro significado de tal sentimento. Mistério, nobreza, inacessibilidade, e a vulnerável compaixão de homem na sua amizade desinteressada...
- Não gosta das pessoas de pele escura? - perguntou Ramon em tom suave.
- Acho-as belas à vista - respondeu Kate. - Mas - acrescentou, com um leve arrepio - estou contente por ser branca.
- Sente que não é possível nenhum contacto?
- Exactamente.
- É a sua impressão - volveu Ramon, e, enquanto ele falava, Kate percebeu que o considerava mais atraente do que a qualquer homem loiro e que, por muito vago que fosse, o contacto que tinha com ele lhe era mais precioso do que todos os que até aí conhecera.
Contudo, embora lhe lançasse certa sombra, não tentava influenciá-la, nem queria maior aproximação - ao passo que Cipriano, sentindo-se incompleto, a procurava e parecia violar-lhe a personalidade.
À voz de Ramon, Dona Carlota assomou a uma das portas mas, ouvindo falar inglês, tornou a sumir-se, num brusco acesso de cólera. Daí a pouco reaparecia, trazendo um vaso de flores carnudas, dum branco leitoso, semelhantes a frésias no tom e no perfume.
- Que lindas! - exclamou Kate. - São flores de igreja! No Ceilão, os indígenas entram nos seus templos e depõem uma flor num tabuleiro aos pés do Buda. E os tabuleiros das oferendas ficam cobertos dessas flores, todas muito bem arranjadas, dispostas com delicadeza oriental...
- Mas eu não as trouxe para homenagear deuses - replicou Carlota, pousando o vaso na mesa. - Trouxe-as para si, señora. Cheiram tão bem!
- De facto, têm um aroma delicioso - concordou Kate. Os dois homens afastaram-se, rindo.
- Ah, señora! - disse Carlota, sentando-se à mesa. - Pode entender Ramon? Seria capaz de renunciar à Santa Virgem? Eu antes queria morrer.
- Não precisamos doutros deuses, realmente - redarguiu Kate, com certo enfado.
- Outros deuses! - repetiu Carlota, escandalizada. - Como se fosse possível! Ramon comete um pecado mortal.
Kate conservou-se calada.
- E quer induzir o povo a fazer o mesmo - prosseguiu Carlota. - É pecado de orgulho... o pecado cardeal. Ainda bem que a señora pensa como eu. Receio as americanas que, para se apoderarem do espírito dos homens, aceitam todas as suas loucuras e perversidades... É católica, señora?
- Fui educada num convento.
- Ah, señora! Qual a mulher que tendo conhecido a Santíssima Virgem se afasta dela? Que mulher teria ânimo de crucificar Jesus novamente? Mas os homens, os homens! Aquela história de Quetzalcoatl seria coisa para rir se não fosse um pecado mortal. E da parte de dois homens inteligentes e instruídos tanta presunção!
- Os homens são assim - observou Kate.
Intensificava-se o crepúsculo; o horizonte estava ainda luminoso, mas o Sol afundara-se numa bruma cor-de-rosa, por trás das arestas da montanha. As colinas erguiam-se azuladas numa atmosfera cor de salmão que se reflectia na água. Lá adiante, onde o clarão rubro se adensava, banhavam-se homens e crianças.
Kate e Carlota subiram à azotea, o terraço que cobria a casa. Dali podiam ver a hacienda com o seu pátio semelhante a uma fortaleza, o caminho ladeado de árvores frondosas, as cabanas de adobe perto da estrada e as fogueiras já bruxuleando junto das casas. No ar róseo os salgueiros da margem pareciam mais verdes e cintilantes. Ao longe, luziam entre as árvores as duas torres brancas de Sayula. Deslizavam barcos em direcção à parte sombreada do lago.
E num desses barcos, deveras desconsolada, regressava Juana a casa.

XIII
Ramon e Cipriano encontravam-se à beira do lago. O general envergara também fato branco e sandálias, o que lhe ia melhor do que a farda.
- Tive uma conversa com Montes quando ele foi a Guadalajara - declarou Cipriano.
Montes era o presidente da República.
- E que te disse?
- Não se alarga muito a falar, mas depreendi que não simpatiza com os colegas e se sente isolado. Julgo que gostaria de te conhecer melhor.
- Porquê?
- Talvez pudesses dar-lhe apoio moral. Talvez chegasses a ser ministro; e até presidente, depois de Montes acabar o seu mandato.
- Montes agrada-me - replicou Ramon. - É sincero e ardente. Gostaste dele?
- Sim, mais ou menos - respondeu Cipriano. - É desconfiado, teme que outros pretendam compartilhar com ele o poder. Tem instintos de ditador. Quis saber se eu lhe era afecto.
- Deste-lhe a entender que sim?
- Disse-lhe que tudo o que me interessava verdadeiramente eras tu e o México.
- E que te respondeu?
- Ele não é tolo. Respondeu: "Don Ramon vê o mundo com olhos diferentes dos meus. Qual de nós terá razão? Eu quero salvar o país da pobreza e da ignorância, ele quer salvar-lhe a alma. Mas afirmo que um homem esfomeado e ignorante não tem lugar para a alma. Um ventre e um cérebro vazios roem-se a si mesmos, e a alma não existe. Don Ramon acha que um homem desprovido de alma pode passar sem o alimento do corpo e do intelecto. Pois que siga o seu caminho, que eu sigo o meu! Não nos embaraçaremos um ao outro. Dou a minha palavra que não interferirei em nada. Ele varre o pátio, eu trato da limpeza da rua.
- É sensato - comentou Ramon - e honesto nas suas convicções.
- Porque não serias ministro daqui a uns meses? E mais tarde presidente?
- Bem sabes que não é isso o que pretendo. Devo poupar-me e agir noutra esfera. A política que se mantenha ou evolua como eles entendem, a sociedade que faça o que quiser. Deixa-me em paz, Cipriano. Gostarias que eu fosse outro Porfirio Diaz, ou alguém do mesmo género, mas isso para mim seria pura e simplesmente soçobrar na vida.
Cipriano observava Ramon com os seus olhos negros e vigilantes, onde transparecia amizade, receio, confiança, mas também incompreensão, e a dúvida que sempre a acompanha.
- Não chego a perceber o que desejas - murmurou.
- Percebes, sim. A política e toda essa religião social com que Montes se preocupa equivale a lavar a casca dum ovo para lhe dar aspecto limpo. A mim, porém, só interessa o interior... Ah, Cipriano! O México é tal um ovo que o Tempo choca desde séculos neste ninho do mundo e que parece ser goro. Parece, mas não é. O que precisa é de calor que ajude a formação da ave. Montes quer limpar o ninho e lavar o ovo... Que aconteceria se tirassem um ovo de baixo duma águia para o lavar? Arrefeceria de vez. Pois quanto mais se empenharem em arrancar este povo da pobreza e da ignorância mais depressa ele morrerá. Pobre Montes! Todas as suas ideias são americanas ou europeias. E a velha pomba da Europa jamais poderá chocar com êxito o ovo escuro da América. Os Estados Unidos não morrem porque não estão vivos. É um ninho de ovos de loiça e por isso se conservam limpos. Mas aqui, Cipriano, aqui é necessário incubá-los antes da limpeza do ninho.
Cipriano baixava a cabeça. Experimentava sempre Ramon para ver se conseguia fazê-lo mudar de ideias e, depois de verificar a inutilidade dos seus esforços, submetia-se ao amigo e novas chamas de felicidade se alteavam dentro dele. Mas, entretanto, ia-o experimentando...
- Não serve de nada querer misturar as duas coisas. No ponto em que estão, não se misturam. Temos de fechar os olhos e mergulhar até ao fundo, como pescadores de pérolas. Mas andamos a flutuar à superfície, semelhantes a bocados de cortiça...
Cipriano mostrou um sorriso subtil. Tudo aquilo ele sabia!
- Temos de abrir a ostra do cosmos e extrair dela a nossa força.
Enquanto não arrancarmos a pérola não seremos mais do que mosquitos no cimo do oceano - concluiu Ramon.
- A minha força é como um demónio dentro de mim - disse Cipriano.
- Porque a ostra a retém fechada, como uma pérola negra. A ti compete libertá-la.
- Ramon, não acharias bom ser uma serpente, uma serpente enorme que se enrolasse em volta do globo e o esmagasse... como a esse ovo?
Ramon olhou-o e pôs-se a rir.
- Não me parece coisa impossível - continuou Cipriano. E não seria bom?
O outro meneou a cabeça, rindo-se.
- Pelo menos seria um momento bom.
- Que mais se pode desejar?
Brilhou nos olhos de Ramon uma centelha que logo se apagou.
- Para quê? - disse em voz surda. - Depois de esmagado o ovo que havíamos de fazer senão errar nos corredores de trevas e lamentar-nos? Para quê?
Ramon pôs-se de pé e afastou-se. O Sol desaparecera, a noite descia. Na alma daquele homem fervia uma cólera imensa, e Carlota é que a provocava. A mulher parecia incutir vida ao monstro da sua raiva íntima, e Cipriano exasperava-o.
"A minha força é como um demónio a rugir dentro de mim", disse Ramon consigo mesmo, repetindo a frase de Cipriano.
Reconhecia o direito de gritar a esse demónio humilhado e ridicularizado que vivia preso dentro dele. E a fúria apoderou-se de Ramon, contra Carlota, contra Cipriano, contra a humanidade inteira. Os seus partidários traí-lo-iam, tinha a certeza. Cipriano acabaria por traí-lo. Desde que lhe encontrassem o mínimo ponto fraco, todos saltariam sobre ele como tarântulas e infectá-lo-iam com a sua peçonha.
E qual o homem absolutamente invulnerável, sem o menor ponto fraco?
Ramon subiu ao seu quarto pela escada exterior, no lado da casa, e sentou-se na cama. A noite estava quente, pesada, e duma calma aflitiva.
- Prepara-se chuva - ouviu ele dizer a um dos criados. Fechou as portas do quarto e ficou às escuras. Então despiu-se todo, murmurando: "Repudio o mundo juntamente com esta roupa." E de pé, nu e invisível no meio do quarto, ergueu ao ar o punho fechado, com tal força que teve a sensação de que lhe estalavam as paredes do peito. A mão esquerda pendia ao longo do corpo, mole, com os dedos levemente curvados.
Tenso como o jacto duma fonte silenciosa, distendeu-se até abranger o âmago impalpável das trevas. E as vagas de escuridão começaram a lavar-lhe o espírito, a consciência; ondas de negrume rebentando-lhe na memória, em todo o seu ser, como uma maré que sobe. Até que foi maré cheia e ele, tremendo, se deixou cair por terra, para descansar. Invisível nas trevas, ficou a olhar para o vácuo, sentindo o misterioso fluxo interior purificar-lhe as entranhas e o coração, sentindo o espírito dissolver-se no Espírito maior que nenhum pensamento perturba.
Cobriu o rosto com as mãos e ali esteve imóvel, inconsciente, já sem nada sentir nem ouvir, semelhante a uma alga submersa no mar. Abolira-se o Tempo, abolira-se o Mundo, submerso nas profundezas que são intemporais e inespaciais.
Quando o coração e as entranhas despertaram para a vida, o espírito principiou a bruxulear tal uma chamazinha que vacila e não se apaga.
Enxugou a cara com as mãos, pôs a serape na cabeça e em silêncio, numa aura de sofrimento, desceu a escada, levando consigo o tambor.
Martin, o servo devotado, andava cá e lá no zaguán.
- Ya, patrón? - perguntou.
- Ya! - respondeu Ramon.
O homem correu à vasta cozinha onde ardia uma candeia, e voltou com um braçado de esteiras.
- Onde as colocamos, patrão?
Ramon hesitou no meio do pátio, olhando para o céu.
- Viene el agua?
- Creo que si, patrón.
Dirigiram-se para o alpendre onde haviam carregado as azémolas com os fardos de bananas. Aí, Martin arremessou ao chão as petates, que Ramon dispôs em ordem. Guisleno apareceu, trazendo canas para fazer tochas, das mais primitivas: três canas amarradas em cima com um cordel, formando tripé de cintura alta, e, na parte superior, uma pedra de lava mais ou menos oca. Realizado esse trabalho,
Guisleno foi a casa e voltou a correr com um pedaço de madeira inflamada. Três ou quatro pauzinhos de ocote colocados na pedra - e as chamas ergueram-se, enchendo o pátio de sombras vacilantes.
Ramon dobrou a serape e sentou-se em cima. Guisleno acendeu outro tripé-archote. A luz bailava nas sobrancelhas carregadas de Ramon, dava-lhe ao peito cintilações de ouro.
Agarrou no tambor e fez soar o apelo monótono, lento, um tanto melancólico. Passados instantes, chegou o tocador habitual, que levou o instrumento para a alameda sombria, onde então se ouviu um rufo vivo e forte.
Ramon enfiou a serape, cujas franjas lhe roçavam os joelhos, e ficou imóvel, com os cabelos em desordem. Rodeava-lhe os ombros a serpente do tecido, o pescoço erguia-se-lhe no meio do pássaro azul.
Cipriano apareceu, vindo da casa. Trazia serape castanha e vermelha, ornamentada com um sol escarlate. Postou-se ao lado de Ramon, e olhou-lhe de relance para a cara. Mas, de sobrancelhas franzidas, o outro fixava a sombra dos alpendres no extremo do pátio. Olhava para o coração do mundo; porque a face dos homens e o coração dos homens são areias movediças, e só no coração do cosmos pode alguém encontrar força.
Cipriano voltou os olhos negros para a banda do pátio. Os seus soldados aproximavam-se em grupo. Três ou quatro homens de mantas pardas rodeavam o lume. De pé, junto de Ramon, Cipriano parecia um cardeal, um pássaro de cor vistosa. Até as sandálias eram escarlates, e encarnadas as fitas que atavam as calças de linho branco aos tornozelos. Ao clarão das tochas tinha um ar demoníaco, com a pele muito escura, a barbicha preta e as pupilas cintilando sardonicamente.
Chegavam peóns, pelo portão da entrada, balançando os chapéus largos. Acorriam mulheres descalças, com as saias a oscilar, transportando os seus nenés envoltos nos rebozos e seguidas por uma caterva de garotos. Todos se agrupavam em volta dos archotes, como animais bravios, contemplando o círculo de homens de serape, do qual se destacavam Ramon e Cipriano, um de azul e branco, outro de vermelho.
Carlota e Kate emergiram de casa. Carlota, porém, ficou junto da porta, embrulhada num xaile de seda preta. Sentou-se num banco de pau aquém do clarão avermelhado, e pôs-se a observar os homens escuros, a beleza altaneira de Ramon, o traje escarlate de Cipriano, o grupo de soldados e a massa compacta de peóns, mulheres e crianças. Enquanto desfilava gente através do portão, soou o tambor e uma voz elevou-se, cantando:
Alguém vai franquear a porta, Agora, agora mesmo, ay! E verá a luz no homem que espera. Serás tu? Serei eu?
Alguém vai aproximar-se do fogo, Agora, agora mesmo, ay! E escutarás as palavras do seu coração. Serás tu? Serei eu?
Alguém baferá quando a porta se fechar, Ay, num momento, ay! Ouvirá dizer: Não te conheço. Serás tu? Serei eu?
De cada vez o ay se elevava num grito selvático que fazia calafrios a Carlota.
Envolta num xaile amarelo, Kate aproximou-se lentamente do grupo.
O tambor calou-se e o homem, entrando no pátio, fechou o portão e misturou-se aos assistentes.
Ramon continuava a olhar para o vácuo, de sobrolho carregado. Então, no meio do silêncio, disse em voz baixa, contida:
- Assim como tiro este abafo me liberto eu do dia que passou. Despiu a serape e pô-la no braço. Todos os homens do círculo o
imitaram, ficando de torso nu. Cipriano, muito escuro e com ar sólido apesar do tamanho reduzido, conservava-se ao lado de Ramon.
- Afasto de mim o dia que passou - prosseguiu Ramon - e fico de coração descoberto na noite dos deuses.
Em seguida olhou para o chão e disse:
- Vem, serpente da terra, serpente que jazes no fogo do coração do mundo. Vem, serpente do fogo no coração do mundo, enrola-te como ouro em volta dos meus artelhos, ergue a cabeça e apoia-a na minha coxa. Vem, descansa a cabeça na minha mão, serpente dos abismos. Beija-me os pés e os tornozelos com a tua boca de ouro, beija-me os joelhos e as coxas, serpente marcada de luz e de sombra. Vem, repousa a cabeça na concha da minha mão.
A voz suave e hipnótica extinguiu-se no silêncio envolvente. E parecia que na verdade uma presença misteriosa emergia do mundo subterrâneo, que uma serpente mosqueada de ouro e negro se enroscava nas pernas de Ramon e lhe lambia a palma da mão com a língua bifurcada...
Circunvagou a vista pela assistência boquiaberta e de olhos dilatados, e prosseguiu:
- Digo-vos, e com absoluta certeza. No coração desta terra dorme uma grande serpente no meio do fogo. Aqueles que descem às minas sentem-lhe o calor e o suor, ouvem-na mover-se. É o fogo vital da terra, porque a terra vive. A serpente do mundo é enorme, as rochas são as suas escamas, e entre elas crescem as árvores. Digo-vos que a terra que cavais está viva como uma serpente adormecida. Sobre ela andais, e este lago descansa nos seus anéis como uma gota de chuva numa cobra cascavel. Contudo, tem vida. A terra vive. Se a serpente morresse, todos morreríamos. Só a sua vida assegura a humidade do solo que faz germinar o nosso milho. Das suas escamas extraímos prata e ouro, e as árvores têm nela as suas raízes como os cabelos têm a raiz sob a nossa pele. A terra vive. Mas a serpente é grande, e nós somos mais pequenos do que um grão de poeira. E por vezes ela zanga-se e diz: Estes entes, mais insignificantes do que átomos de pó, espezinham-me e asseveram que estou morta. Até às bestas costumam falar, gritando: Arre, burro! A mim, porém, não dirigem uma palavra. Por isso lhes voltarei costas, como uma mulher volta costas ao marido e lhe consome o espírito com a sua cólera... Eis o que a terra nos diz, e a tristeza e o desânimo avassalam-nos os pés e os rins. Porque assim como uma mulher irritada tira o entusiasmo e a alegria ao homem, assim a terra pode enregelar-nos a alma e tornar a existência fatigante aos nossos membros. Falai, pois, à serpente do coração do mundo, banhai de óleo os vossos dedos e abaixai-os para que ela experimente o óleo da terra e deixe que a vida nos suba ao longo das pernas, como a seiva do milho novo faz estalar a casca e brotar o leite da planta entre as barbas. Do coração da terra o homem sente subir nele a sua força; tal o milho que, ufano, ergue as suas folhas verdes, erguei-vos vós também e deixai aprofundarem-se as vossas raízes cada vez mais, porque não tardam as chuvas e é tempo de produzir no México.
Calou-se Ramon, ensurdeceu o tambor, e todos os homens do círculo fitaram a terra, deixando pender molemente a mão esquerda.
Dona Carlota, que não conseguira ouvir, aproximou-se do lado de Kate, como se fascinada pelo marido. A irlandesa, num movimento inconsciente, olhou para o chão e, às ocultas, baixou os dedos de encontro à saia. Mas teve medo do que lhe poderia acontecer e escondeu a mão no xaile.
De repente o tambor vibrou numa nota muito forte, seguida de outra mais fraca: estranho, impressionante efeito.
Os circunstantes levantaram a cabeça. Ramon alçara o braço direito, num gesto enérgico, e espiava o negrume do firmamento. Imitaram-no os do círculo, e os braços nus, erguidos, semelhavam uma série de rochedos.
- Assim, acima, acima! - gritou uma voz bárbara.
- Acima, acima! - repetiram todos, num coro feroz. Involuntariamente, brandiram o braço, voltando o rosto para o
céu sombrio. Algumas das mulheres, mais audazes, fizeram o mesmo, e, com esse gesto, experimentaram uma sensação de paz.
Kate não alçou o braço.
Reinou profundo silêncio; até o tambor se calara. Ouviu-se então a voz de Ramon, dirigindo-se ao céu tenebroso:
- As tuas asas estão escuras, Pássaro, voas muito baixo esta noite. Voas baixo sobre o México, e em breve sentiremos roçar em nossas faces o leque das tuas asas. Ah, Pássaro! Voas onde queres. Ultrapassas as estrelas e empoleiras-te no Sol. Desapareces da vista e dissipas-te no além do rio branco do céu, mas voltas como os patos do Norte, em busca de água e do Inverno. Poisas no centro do Sol e alisas as penas... Banhas-te na corrente de estrelas e ergues em teu redor uma poalha de ouro. Voas nas profundezas do céu donde parece que jamais se volta. Mas regressas, e pairas sobre nós, e sentimos no rosto a aragem das tuas asas...
Enquanto ele falava levantou-se vento em rajadas, uma porta bateu, vibraram vidraças e as árvores pareceram rasgar-se.
- Vem, ó ave dos vastos céus! - bradou Ramon num apelo selvático. - Vem, pousa no meu punho, na minha cabeça, dá-me o poder divino e a sabedoria. Ó Pássaro, ainda que o trovão ribombe quando sacodes as asas, ainda que deixes cair na terra a serpente de fogo que tens no bico, ainda que venhas como fulminador, vem, ó Pássaro! Empoleira-te um momento no meu punho, estende as asas sobre a minha cabeça, toca-me a fronte com o teu peito. Pássaro errante, ave do Além, com o trovão nas garras e a serpente no bico, com o azul nas asas e a nuvem no colo, com o sol no peito e a sabedoria no voo, vem sobre mim, vem!
O vento agitava a chama das tochas e o lago começou a falar numa voz cavernosa que dominava o sussurro das árvores. Ao longe, por cima das colinas, os raios sulcavam o céu.
Soou o tambor, e Ramon desceu o braço que mantivera erguido. E disse então:
- Sentai-vos um instante, antes que o Pássaro sacuda a água das asas, o que não tardará. Sentai-vos.
A assistência moveu-se. Os homens puxaram as serapes para a testa, as mulheres cingiram mais a si os rebozos, e todos se sentaram no chão. Só Kate e Carlota ficaram de pé, a certa distância.
- A terra é viva, o céu é vivo, e entre ambos vivemos nós - prosseguiu Ramon na sua voz habitual. - A terra beijou-me os joelhos e concedeu-me força às entranhas. O céu descansou-me no punho e transmitiu o seu poder para o meu peito.
Assim como a Estrela de Alva brilha entre o céu e a terra, uma estrela pode surgir em nós entre o coração e os rins.
É a virilidade do homem e a feminilidade da mulher.
Ainda não sois homens. E vós, mulheres, ainda não sois mulheres.
Correis, agitais-vos, morreis, mas ainda não encontraste a estrela da vossa virilidade surgida de vós mesmos; nem a estrela da vossa feminilidade cintilando entre os vossos seios, ó mulheres!
Digo-vos no entanto: para aquele que desejar, nascerá nele a estrela da sua virilidade, e então será perfeito como é perfeita a Estrela da Manhã.
E a estrela da mulher aparecerá entre a orla espessa da terra e o vácuo cinzento do céu. Mas como conseguiremos isso? Como poderá ser?
Baixai os dedos para a carícia da Serpente da terra. Erguei o punho para que aí pouse a Ave distante.
Tende a coragem de ambos, a coragem do raio e a do sismo.
E a sabedoria de ambos, a da serpente e a da águia.
E a serenidade de ambos, a da serpente e a do sol. E o poder de ambos, o das profundezas da terra e o do céu que tudo cobre.
Mas que na vossa fronte, ó homens, resplandeça a Estrela da Manhã que nem o dia nem a noite, nem a terra nem o céu podem engolir e apagar.
E entre os vossos seios, ó mulheres, que esteja a Estrela de Alva que nada pode ofuscar.
A vossa derradeira morada é a Estrela da Manhã. Nem o céu nem a terra vos hão-de tragar, mas ireis para essa estrela solitária que no entanto jamais sente a sua solidão.
A Estrela da Manhã envia-nos um mensageiro, um deus que morreu no México. Mas, enquanto dormia o seu sono, os Seres invisíveis lavaram-lhe o corpo com a água da ressurreição. E ele levantou-se, derrubou a pedra à entrada do sepulcro, e agora galopa através do horizonte, mais depressa do que caiu por terra a laje do túmulo para esmagar aqueles que a selaram.
O filho da Estrela volta para os filhos dos homens.
Preparai-vos para o receber. Lavai-vos, ungi as mãos e os pés, a boca e os olhos, as orelhas e as narinas, o peito, o umbigo e as partes secretas do vosso corpo. Que nada dos dias passados, que nenhuma poeira do mal subsista em vós e vos torne impuros.
Não olheis com olhos de ontem, não escuteis como ontem, não respireis, não cheireis, não engulais alimentos nem bebidas; não beijeis com lábios de ontem, não toqueis com mãos de ontem. Aproximai-vos das vossas mulheres com um corpo novo, e com esse corpo novo penetrai nelas. Porque o corpo de ontem morreu, e Xopilote, devorador de cadáveres, já paira sobre ele.
Libertai-vos do corpo da véspera e adquiri um novo, tal como o deus que vem até vós. Quetzalcoatl surge-nos com um novo corpo, como uma nova estrela, saído das sombras da morte.
Sim, neste mesmo momento em que estais sentados e que o vosso corpo toca na terra, dizei-lhe: Terra, terra, latejas de vida como eu. Insufla em mim o bafo das tuas entranhas.
E assim a terra se move por baixo de vós, e por cima de vós o céu agita as suas asas.
Regressai aos vossos lares, enfrentando as águas que vão cair e separar-vos para sempre do "ontem".
Ide, com a esperança de vos tornardes homens da Estrela da Manhã e mulheres da Estrela de Alva.
Ainda não sois homens, ainda não sois mulheres...
Ramon levantou-se, dando o sinal de retirada. Logo todos se puseram de pé, empurrando-se, acotovelando-se, com a silenciosa pressa mexicana que parece deslizar rente ao solo.
O vento desencadeado uivava de encontro às mangueiras. Os homens seguravam o chapéu na cabeça e corriam de joelhos curvados, com as serapes a flutuar, enquanto as mulheres, cingindo a si o rebozo, fugiam, descalças, para ozaguán.
Junto do portão aberto estava um soldado de espingarda a tiracolo e lanterna na mão, alumiando aqueles que passavam calados e velozes e se dispersavam na alameda escura como pedacinhos de papel levados pelo vento. Num instante todos desapareceram.
Martin fechou o portão. O soldado pousou a lanterna no banco de pau e juntou-se aos camaradas alapardados nos seus capotes pretos, semelhantes a um molho de cogumelos na caverna do zaguán.
- Vai chover! - gritaram as servas excitadas quando Kate subia os degraus com Dona Carlota.
O lago, absolutamente negro, parecia uma cratera enorme. Em rajadas violentas, o vento traspassava as mangueiras com um som de membrana a rasgar-se. Os loendros curvavam-se no jardim, varriam o solo com as suas flores brancas, espectrais à luz do candeeiro que brilhava na parede junto da porta da entrada. Uma palmeira nova sacudia-se, dobrada, juncando o chão com as suas folhas. Nas trevas para além do mundo rolava um carro invisível...
Ao longe, na outra banda do lago, os raios traçavam no céu inscrições fulgurantes. E o trovão dir-se-ia ribombar nas entranhas da terra, surdo, aveludado.
- Isto chega a meter medo! - exclamou Dona Carlota, tapando os olhos com a mão e correndo a refugiar-se num canto recuado da sala deserta.
Cipriano e Kate demoraram-se no terraço olhando para as flores que voavam dos vasos e desapareciam no vácuo de trevas. Kate agarrava no xaile, mas o vento engolfou-se na serape de Cipriano, levantou-a ao ar e em seguida deixou-lha cair sobre a cabeça, tal uma chama rubra. Kate viu-lhe o peito escuro e musculado enquanto os seus braços lutavam por desenvencilhar a cabeça. Como a sua beleza era primitiva e toda física, com aquela carne lisa e cheia!
Mas não emitia nenhuma radiação exterior; fechava-se dentro de si mesmo.
- Eis a chuva! - exclamou ele! - baixando a serape.
Grossas, pesadas, as primeiras gotas tombavam como dardos sobre as plantas. Kate recuou para o vão da porta. Um raio ziguezagueou sobre as montanhas, pareceu deter-se um instante e reentrou nas trevas.
Então a chuva desabou, como se lá em cima houvessem aberto um reservatório imenso, e com ela veio uma lufada de ar frio. Ora num lado ora noutro, sucediam-se os relâmpagos, enchendo a atmosfera duma claridade azul e fugaz. Surgiam as árvores e o jardim fantasma, e logo desapareciam, enquanto o trovão ribombava.
Kate olhava pasmada para aquele dilúvio. Ao clarão momentâneo via o jardim já transformado em poço, as alamedas em ribeiras. Sentindo frio, recolheu-se dentro de casa.
Munido de lanterna, um criado pesquisava todos os aposentos para ver se andariam por ali escorpiões. Encontrou um a passear no quarto de Kate e outro em cima da cama de Carlota, caído duma viga do tecto.
Sentadas na sala, Kate e Carlota baloiçavam-se nas cadeiras, aspirando o bom ar fresco e húmido. Kate quase já se esquecera do que era frescura e humidade. Aconchegou o xaile ao pescoço.
- Ah, sente frio! Agora é preciso tomar cuidado com as noites... Às vezes, na época das chuvas, as noites são frigidíssimas. Devemos ter sempre à mão um cobertor suplementar. Os servos, coitados, limitam-se a tiritar, estendidos no chão, e de manhã estão gelados como cadáveres. Mas o sol depressa os aquece. Parecem julgar que são obrigados a suportar tudo o que vier, pois nunca tomam providências, embora se queixem.
O vento acalmara-se de repente, Kate sentia-se inquieta, mal disposta, com o bafo da água, quase de gelo, nas narinas, e o sangue ainda a arder-lhe nas veias. Levantou-se e foi para o terraço. Cipriano continuava ali, imóvel e impassível, envolto na sua serape vermelha e preta.
A chuva diminuía. Em baixo, no jardim, duas criadas corriam descalças, à débil claridade do candeeiro do zaguán; colocaram latas vazias debaixo dos fios de água que tombavam do telhado, e depois foram buscar os recipientes cheios. Isso poupava-lhes o trabalho de acarretar água do lago.
- Que pensa a nosso respeito? - perguntou Cipriano a Kate.
- Acho um povo muito estranho...
- Mas bom, não é verdade? - volveu o general em tom jubiloso.
- Um tanto assustador - replicou ela, rindo.
- Depois de se habituar parecer-lhe-á natural. E quando estiver num país como a Inglaterra, onde tudo é tão seguro e tão fácil, sentirá saudades e passará o tempo a perguntar a si mesma: O que é que me falta? O que é que falta aqui?
Dir-se-ia exprimir-se com maligna satisfação. E era curioso que ele, embora falasse bom inglês, parecesse sempre estrangeiro aos ouvidos de Kate, muito mais do que Dona Carlota com o seu espanhol castiço.
- Não compreendo que as pessoas queiram ter tudo, a vida inteira. Tudo tão seguro, tão pronto como na Inglaterra e na América. É bom estar alerta, no que vive, não?
- Talvez - concordou ela.
- Por isso gosto de ouvir Ramon dizer ao povo que a terra é viva, que o céu tem uma ave enorme lá dentro, mas que se não vê. Acredito nisso. E convém sabê-lo, pois assim continuamos no que vive.
- Não será fatigante?
- Ora, porquê? Pelo contrário, é repousante. Ah, a senhora devia casar e residir no México. Estou certo de que acabaria por gostar disto. Em cada manhã despertaria mais encantada.
- Ou cada vez mais enterrada. É o que sucede, julgo eu, a muitos estrangeiros.
- Enterrar-se? Como? Isto é um país onde a noite é noite e a chuva que cai é realmente chuva. E tem aqui um povo com o qual precisa de estar sempre alerta. Não acha admirável? Não poderá deixar-se adormecer. Veja, por exemplo, Ramon. Que pensa dele?
- Não sei. Não quero dizer nada, mas acho-o... longínquo. Custa a crer que seja mexicano.
- Pois é mexicano, não tenha dúvida.
- Não como o senhor. Dá-me a impressão de pertencer à velha Europa.
- Eu então considero-o pertencente ao velho México... E também ao novo - acrescentou de súbito.
- Todavia não acredita nele.
- Como?
- Não acredita nele. Considera aquilo, como tudo o mais, uma espécie de jogo. Aliás, para vós, mexicanos, tudo é uma espécie de jogo... No fundo, não crê em nada.
- Não creio em Ramon? Talvez não seja uma fé que me leve a ajoelhar à sua frente e a derramar-lhe lágrimas nos pés. Mas creio nele, e vou dizer-lhe o motivo: porque tem o poder de me fazer acreditar.
- Estranha fé, imposta pelos outros.
- Como se há-de crer, se não nos compelirem a isso? Quando eu era muito novo sentia-me infeliz porque o meu padrinho me não forçava a crer. Mas Ramon força-me... E é para mim uma felicidade saber que não posso escapar... como será também para si...
- Saber que não posso escapar a Don Ramon? - replicou
Kate ironicamente.
- Sim, e saber que não poderá evadir-se do México, nem fugir
de um homem como eu...
Kate ficou um instante calada antes de responder em tom sardónico:
- Não me parece que me cause muita alegria saber que não posso sair do México. Pelo contrário, não suportaria estar aqui se não tivesse a certeza de partir mais dia menos dia.
E disse consigo mesma: "Ramon talvez seja o único homem a quem eu não possa escapar completamente, porque deveras me impressiona. Mas de ti, Ciprianozinho, não precisarei de escapar porque não me apanhas."
- Ah, julga isso! - volveu ele rapidamente. - Mas é porque não sabe. Só pensa com ideias americanas. Devido à sua educação, só tem pensamentos americanos, pensamentos engendrados nos Estados Unidos. Quase todas as mulheres são assim, até as mexicanas da classe hispano-mexicana. Só possuem ideias dos Estados Unidos porque são as que condizem com os seus penteados. E o mesmo quanto a si, senhora Leslie. Pensa como uma mulher moderna porque pertence ao mundo anglo-saxónio ou teutão, e se penteia de certa maneira, e tem dinheiro, e é inteiramente livre. Mas tudo isso provém do facto de lhe haverem metido essas ideias na cabeça e não possuir outras, da mesma forma que, no México, se vê obrigada a gastar centavos e pesos por serem as moedas do país. Todavia, quando se declara livre, na realidade não o é. Vê-se forçada a pensar sempre com pensamentos americanos. Não tem maior faculdade de escolha do que uma serva. Assim como não pode deixar de comer diariamente tortillas... até que se lembre de que pode gostar doutra coisa.
- De que mais poderia eu gostar? - retorquiu Kate, escarninha.
- De outros pensamentos, de outras sensações. Receia homens como eu porque julga que a não tratariam "à americana". Tem razão. Eu não a trataria como se tratam as senhoras americanas. Porquê? Porque não o desejo, porque não me parece justo.
- Prefere tratar as mulheres como as mexicanas de outrora, não é verdade? Mantendo-as na ignorância, no cativeiro? - A voz de Kate assumira um tom sarcástico.
- Não as manteria na ignorância se elas já não fossem ignorantes. Mas o que lhes ensinaria não havia de ser conforme à educação americana.
- Então qual?
- Quien sabe! Ce reste à voir.
- Et continuera à y rester - concluiu a irlandesa, rindo.

CONTINUA

x
Dez dias haviam decorrido desde a chegada de Kate a Sayula sem que Don Ramon desse sinal de vida. No entanto, quando passeava de barco, vira a casa dele na outra banda da ponta oeste do lago. Era um edifício alaranjado de dois andares, com alpendre para embarcações e bosquete de mangueiras rente à margem. Entre as árvores distinguiam-se duas filas de cabanas de adobe, a habitação dos peóns.
A hacienda fora outrora das mais importantes. Regavam-na então com a água captada nas colinas, mas as revoluções haviam destruído todos os aquedutos. Don Ramon tinha inimigos no Governo, de modo que grande parte das suas terras fora dividida entre os peóns e só lhe ficaram cerca de trezentos acres de terreno, dos quais duzentos marginavam o lago e lhe eram inúteis. Cultivava um pomar em volta da casa e cana-de-açúcar num valezito entre as colinas. Na encosta do monte viam-se campos de milho.
'Dona Carlota era rica; tirava bons rendimentos das minas de Torreon, seu berço natal.
Chegou um portador com uma carta de Don Ramon em que este pedia a Kate licença para a visitar com a esposa.
Dona Carlota era uma mulher franzina, suave, de grandes olhos um tanto assustadiços e sedosos cabelos castanhos. Filha de pai espanhol e de mãe francesa, de origem puramente europeia, em nada se assemelhava às corpulentas mexicanas de faces cobertas de pó-de-arroz. De rosto pálido, sem artifício, a figura delgada tinha qualquer coisa de inglês, que os grandes olhos castanhos desmentiam. Só falava espanhol e francês, mas o seu espanhol soava tão lento e distinto (com um leve tom de queixume) que Kate a compreendeu sem dificuldade.
As duas mulheres entenderam-se depressa, mas sentiam-se um tanto nervosas na presença uma da outra. Dona Carlota era frágil e sensível como um cão chihuahua.
Em toda a sua vida, Kate raras vezes encontrara criatura tão doce e delicada. Conversaram uma com a outra, enquanto Don Ramon se mantinha calado. Dir-se-ia que ambas se arremessavam contra aquela barreira de silêncio.
Kate percebeu logo que Dona Carlota amava Ramon, mas com um amor que se tornara voluntário. Adorara-o, e acabara-se a adoração. Duvidara dele, e duvidaria sempre.
Sentado um pouco à parte, de ar constrangido, Don Ramon baixava a bela cabeça e deixava pender as mãos entre as coxas.
- Sabe que passei há dias bons momentos? - disse Kate, dirigindo-se-lhe de súbito. - Dancei de roda do tambor com os homens de Quetzalcoatl.
- Assim me constou - respondeu ele com um sorriso forçado.
Embora não falasse inglês, Dona Carlota compreendia essa língua
- Dançou com os homens de Quetzalcoatl! - exclamou em espanhol. - Porque fez isso? Porquê?
- Estava fascinada.
- Não se deixe fascinar. Afirmo-lhe que lastimo muito que meu marido se interesse por esse movimento. É para mim um desgosto.
Juana apareceu nesse momento com uma garrafa de vermute, a única coisa que Kate podia oferecer aos visitantes.
- Foi aos Estados Unidos ver os seus filhos? - perguntou Kate. - Como vão eles?
- Bem, obrigada. Embora o mais novo continue fraquito...
- Não os trouxe consigo?
- Não. Acho que estão melhor no colégio. Aqui... aqui há muita coisa que os perturbaria. Mas hei-de cá tê-los no próximo mês a passar as férias.
- Então terei oportunidade de os conhecer - disse Kate. Virão para a casa do lago, não é verdade?
- Ainda não sei. Talvez passemos aqui alguns dias. Ando tão ocupada na Cidade do México com a minha Cuna!
- Cuna? Que é isso? - indagou Kate.
Tratava-se de um hospício de enjeitados assistido por algumas obscuras carmelitas. Dona Carlota era a directora, e Kate chegou à conclusão de que a mulher de Ramon devia ser católica fervorosa, quase exaltada. Entregava-se de corpo e alma à Igreja e àquela obra de beneficência.
- Nascem tantas crianças no México e são tão numerosas as que morrem! Se as pudéssemos salvar e preparar para a vida! Fazemos tudo o que é possível, mas ainda é pouco.
Segundo parecia, todos os nenés indesejáveis eram entregues na Cuna, como embrulhos. A mãe só tinha de bater à porta e depositar noutras mãos o pacote vivo.
- Assim, impedimos que muitas mães negligentes deixem morrer os filhos - prosseguiu Dona Carlota. - Se não nos dizem o nome da criança, sou eu que a baptizo. Já o tenho feito muitas vezes. É vulgar entregarem-nos meninos absolutamente nus, sem um trapo a cobri-los... e sem nome. E nós nunca perguntamos nada.
Nem todos os expostos ficavam no hospício. Na maior parte eram confiados a índias decentes, a quem pagavam para os criar em casa. No fim do mês, cada qual se apresentava com o seu protegido e recebia o ordenado. As índias podem ser descuidadas mas não maltratam as crianças.
Noutro tempo, informou Dona Carlota, quase todas as senhoras do México recebiam na sua casa um ou dois desses enjeitados e tratavam-nos como família. Mas perdera-se a generosidade patriarcal dos espanhóis-mexicanos e actualmente adoptavam poucas crianças. Em vez disso, preparavam-nas para ganhar a vida, ensinando-lhes qualquer ofício.
Kate ouvia com-interesse e certo constrangimento. Não lobrigava sentimentos humanos nessa caridade mexicana, e quase discordava dela. Talvez Dona Carlota fizesse tudo o que podia nesse país semibárbaro, mas fazia-o sem nenhuma esperança de êxito. Embora com a consciência de que procedia bem, tinha um pouco o ar de vítima, de uma vítima sensível, branda, um tanto assustada. Dir-se-ia que um mal secreto lhe roía o coração.
Don Ramon escutava impassível, num silêncio que se opunha ao entusiasmo caritativo da mulher. Deixava-a agir como entendia, mas contra a sua obra e a sua loquacidade mantinha-se calado, duro, numa hostilidade surda e permanente. Dona Carlota percebia-o e tremia nervosamente enquanto falava do hospício de enjeitados. Kate acabou por achar cruel a atitude de Don Ramon; parecia um ídolo de pedra.
- Porque não vem passar um dia connosco, enquanto estamos em Sayula? - sugeriu Dona Carlota. - A casa é pouco confortável, já não é como foi, mas teremos muito gosto em recebê-la.
Kate aceitou o convite e disse que preferia ir a pé. Eram apenas quatro milhas de percurso e, com a Juana, iria bem acompanhada.
-. - Mandarei um homem buscá-las - declarou Don Ramon. Será mais seguro.
- Onde está o general Viedma? - perguntou Kate.
- Faremos o possível por tê-lo connosco quando a senhora lá for - replicou Dona Carlota. - Gosto deveras de Don Cipriano, que há muitos anos conheço. Por sinal que é o padrinho do meu filho mais novo. Presentemente, comanda a divisão de Guadalajara, por isso nem sempre se encontra livre.
- Admira-me que seja general - observou Kate. - Acho-o humano em excesso.
- E, de facto, é cheio de humanidade. Mas é general, e gosta de comandar os soldados. Deixe-me dizer-lhe que se trata de uma pessoa de muita influência. Exerce grande ascendente na tropa. Crêem nele, isso não se pode negar. Possui aquele poder, inato nos chefes índios, de afeiçoar a si os militares e de os levar ao combate. Pois é assim mesmo Don Cipriano. Ninguém conseguiria modificá-lo. Julgo, porém, que lhe seria de utilidade a presença de uma mulher. Nunca teve nenhuma na sua vida! Elas não lhe interessam...
- Que lhe interessa então?
- Ah! - exclamou Dona Carlota, estremecendo como se a picassem. Lançou um olhar rápido ao marido e declarou: - Não sei. Palavra que não sei.
- Os homens de Quetzalcoatl - declarou Don Ramon com
um leve sorriso.
Mas Dona Carlota dir-se-ia tirar-lhe todo o desembaraço. Parecia contrafeito, e um tanto estúpido.
- Ah, sim, sim, os homens de Quetzalcoatl - bradou Dona Carlota, amável mas com ar de censura. - Linda coisa para ele se ocupar! - Kate percebeu que a sua interlocutora adorava esses dois homens e que tremia à ideia de se opor aos seus erros, embora jamais transigisse com qualquer deles.
Para Don Ramon representava um pesado fardo aquela cega adoração da mulher e a sua não menos cega oposição.
Certa manhã, às nove horas, apareceu o criado para acompanhar Kate à fazenda, que chamavam de Jamiltepec. Trazia um cabaz e vinha do mercado. Era um velhote de bigode grisalho e olhos juvenis, cheios de vida. Os pés, metidos em huafaches, pareciam negros de tão queimados do sol, mas o fato resplandecia de alvura.
Kate ficou radiante com essa excursão a pé. O que tornava tão aborrecida a sua existência na aldeia era a impossibilidade de passear no campo. Havia sempre o risco de um assalto. Acompanhada de Ezequiel, dera algumas voltas pelos arredores, mas já começava a sentir-se prisioneira. Foi, por conseguinte, uma alegria sair de casa.
A manhã estava clara e quente, o lago brilhava quieto, espectral. Moviam-se pessoas na margem, minúsculas àquela distância, meros pontinhos brancos: peóns que seguiam os seus burros envoltos numa leve nuvem de poeira. Kate perguntava a si mesma porque seria que os homens apareciam sempre na paisagem mexicana como pequeninas manchas; pequeninas manchas de vida.
Entraram na estrada poeirenta que levava para oeste, entre a vertente alcantilada das colinas e a nesga de planície junto ao lago. Por espaço de milha foram encontrando vivendas, muitas delas fechadas, outras destruídas, já sem muros nem janelas. Todavia desabrochavam flores entre os montes de cascalho.
Nos terrenos vagos havia delgadas cabanas de palha dos indígenas - como que nascidas ali, ao acaso. Perto do caminho por baixo de um outeiro viam-se choças de adobe, semelhantes a caixas cinzento-escuras. Em volta corriam aves domésticas, grunhiam e refocilavam porcos pardacentos ou malhados de preto. Crianças seminuas, de um tom castanho-alaranjado, brincavam ou jaziam estiradas no chão, a dormir, com as nádegas à mostra.
Muitas das casas estavam a ser cobertas de colmo novo ou reteIhadas por indivíduos que assumiam ares de importância por se encarregarem desse trabalho. Mostravam-se também apressados, pois não tardariam a vir as chuvas torrenciais. E, na banda do lago, havia quem andasse a lavrar a terra dura com uma junta de bois e um pau forte e aguçado.
Mas Kate conhecia essa parte do caminho. Vira já a bela vivenda da colina, com os seus tufos de palmeiras que ladeavam as alamedas desertas. A estrada descia novamente para o lago, entre árvores frondosas de vagens retorcidas. À esquerda, a água mansa, gelatinosa, lambia as pedras amareladas. Numa poça da praia estavam mulheres a lavar roupa, e, nos baixios, banhavam-se duas raparigas com os cabelos negros pendentes e gotejantes. Mais adiante, um homem patinhava lentamente, detendo-se para arremessar com perícia a rede à água e depois recolhê-la cheia desses peixinhos luzidios a que chamam charales. Tudo estranhamente silencioso e remoto na manhã cintilante.
Vinha do lago uma leve brisa, mas a poeira da estrada queimava os pés. À direita erguia-se o monte, abrupto, ressequido e amarelo, exalando calor e aquele cheiro característico do México que se diria ser a evaporação duma terra cada vez mais calcinada.
Desfilavam continuamente filas de burros carregados, trotando na poeira e seguidos pelos condutores que marchavam erectos e rápidos, olhando com olhos semelhantes a buracos negros mas respondendo sempre à saudação de Kate com um respeitoso adiós. E Juana ecoava com o seu lacónico adiósm. Caminhava coxeando e achava tristíssima aquela ideia da niña de percorrer quatro milhas a pé, quando poderiam ir num automóvel de aluguer, de barco ou mesmo de burro.
Mas a pé! Kate percebia todos os sentimentos da criada no seu arrastado e sardónico adiósn. Em compensação, o homem de Ramon vinha animadamente atrás delas, dirigindo saudações alegres, com a pistola bem em evidência no cinto.
A estrada contornava um rochedo amarelo e escarpado para desembocar num campo aberto, onde se alastravam espinheiros e cactos poeirentos. À esquerda, distinguia-se a mancha verde dos salgueiros à beira do lago. À direita, as colinas inclinavam-se sobre o flanco árido das montanhas. Em frente, os outeiros ladeavam as margens do lago e afastavam-se, descobrindo uma espécie de garganta que conduzia à casa de Don Ramon e à sua plantação de cana-de-açúcar.
- Aqui temos Jamiltepec, a hacienda de Don Ramon, señorita - anunciou o homem.
Os olhos luziam-lhe ao proferir estas palavras. Era um peón orgulhoso e sem dúvida feliz com a sua sorte.
- Que lonjura! - exclamou Juana.
- Para outra vez virei só ou com o Ezequiel - replicou Kate.
- Não diga isso, niña! Só me queixo do pé, que me dói hoje a valer.
- Por isso mesmo é melhor não vires comigo.
- Não, niña. Gosto muito de vir.
Giravam alegremente as asas do moinho que puxava a água do lago. Entre as colinas descia o valezito onde deslizava um riacho e na parte mais larga viam-se bananeiras que uma cortina de salgueiros resguardava da brisa lacustre. No cimo da encosta, onde o caminho se embrenhava na sombra de mangueiras, elevavam-se dois renques de casas de adobe, tal uma aldeia um pouco recuada.
Surgiam mulheres entre as árvores, que vinham do lago com seus cântaros de água ao ombro. De roda das portas brincavam crianças, arrastando o traseiro nu na poeira do chão. Aqui e ali, uma cabra amarrada. E, apoiados na esquina da casa, ou encostados à parede, estavam homens de braços e pernas cruzados, mas não em dolce far niente. Pareciam esperar, esperar eternamente por qualquer coisa.
- Por aqui, señorita ! - disse o homem do cabaz, indicando um caminho que descia entre árvores frondosas até ao portão branco da hacienda. - Já cá estamos.
Mostrava-se tão contente como se houvesse chegado ao Paraíso.
Encontravam-se abertas as portas do zaguán, ou entrada, a cuja sombra descansavam dois soldados. No espaço em frente do portão, passavam nesse momento dois peóns, cada qual com um cacho de bananas à cabeça. Os soldados disseram qualquer coisa e aqueles detiveram-se e voltaram-se lentamente com a sua carga verde para observarem Kate, Juana e Martin - o homem que as acompanhava. Depois retomaram a sua marcha.
Os soldados levantaram-se e Martin conduziu Kate pela passagem abobadada, onde as rodas dos carros haviam cavado fundos sulcos. Juana seguia-os com expressão lastimosa.
Kate achou-se num pátio enorme, cercado em três lados por muros altos, alpendres e estábulos. Ao fundo era a casa de residência, com as suas janelas gradeadas e, em vez de porta, outro zaguán de batentes fechados, espécie de corredor ao longo do edifício.
Martin avançou para tocar a aldraba, e Kate olhou entretanto à sua volta. Num alpendre, estavam homens seminus a empacar cachos de bananas. Noutro lado, serravam paus e descarregavam telhas de cima dum burro. A um canto viam-se bois atrelados a uma carroça, de cabeça pendida sob a canga, como se esperassem.
Abriram-se as portas e Kate entrou no segundo zaguán. Era uma entrada larga, com seu lanço de escadas a um lado e um portão gradeado ao fundo, através do qual se via o jardim orlado de mangueiras e, mais abaixo, o lago com o seu porto artificial onde baloiçavam dois barcos.
Nas costas dos recém-vindos, a criada fechou a porta que dava para o pátio e indicou a Kate as escadas.
- Por aqui, señorita.
Badalava uma sineta lá no cimo. Kate subiu os degraus de pedra, ao encontro de Dona Carlota, que a esperava no patamar, vestida de musselina branca, o que, pelo contraste, lhe dava um tom amarelo às faces. Estendeu os braços magros e bronzeados, acolhendo Kate com extraordinária efusão.
- Muito prazer em vê-la aqui! E veio todo o caminho a pé, com este sol! Entre, entre e descanse.
Pegou na mão de Kate e levou-a através do terraço, no topo da escada.
- Que linda vista! - exclamou Kate, contemplando o lago para além das mangueiras. Na água pálida, irreal, vogava ao longe um barco de vela. Para além, elevavam-se as montanhas de gargantas azuladas, com a mancha branca duma aldeia. Dir-se-ia outro mundo, perdido na luz da manhã, outra vida.
- Que povoação é aquela? - perguntou Kate.
- Acolá? É San Ildefonso - respondeu Dona Carlota.
- Como este sítio é belo! - disse Kate.
- Hermoso, si! Si, bonito - retorquiu a outra em espanhol, conforme o seu costume.
A casa, de um vermelho-alaranjado, tinha duas alas voltadas para o lago. com o seu murinho coroado de plantas verdes, o terraço cercava três lados do edifício; suportavam o telhado largos pilares que partiam do solo, formando em baixo uma espécie de claustro ocupado ao centro por um tanque cheio de água.
- Venha - disse Dona Carlota. - Precisa de descansar.
- Gostaria de mudar de sapatos - declarou Kate. Levaram-na a um quarto espaçoso, um tanto vazio, de chão de
tijolos. Aí, Kate calçou as meias e os sapatos que Juana trouxera num embrulho e estendeu-se um momento para repousar.
E, enquanto repousava, ouvia o rufar surdo do tambor, no profundo silêncio da manhã, só perturbado pelo canto dum galo longínquo. Aquele som contínuo, insistente, enchia-a de mal-estar. Parecia o ribombo duma tempestade desencadeando-se no horizonte.
Kate levantou-se e dirigiu-se para o salão onde Dona Carlota estava sentada a conversar com um homem vestido de preto. com as suas três portas envidraçadas abertas sobre o terraço, chão de ladrilhos vermelhos, paredes pintadas de verde-claro, tecto de barrotes caiados e escassez de mobília, aquilo parecia mais um caramanchel do que um salão. Como em muitas casas dos países quentes, tinha-se a impressão de não se estar dentro de quatro paredes, mas sim de três; um lugar de passagem, e não para ficar.
À chegada de Kate, o homem de preto levantou-se, apertou a mão a Dona Carlota e, baixando a cabeça num comprimento cerimonioso, desapareceu por uma das portas do terraço.
- Entre, entre! - disse Dona Carlota a Kate. - Já não se sente cansada? - acrescentou, avançando uma das cadeiras de junco que estava negligentemente colocada no meio da sala.
- Absolutamente nada - respondeu Kate. - Como esta região é silenciosa! Só se ouve o tambor, o que talvez nos faça notar mais o silêncio.
- Ah, esse tambor! - exclamou Dona Carlota, erguendo a mão num movimento de exaspero. - Não posso com isso! Detesto ouvi-lo.
E moveu-se na cadeira de baloiço, com súbito nervosismo.
- É um som realmente impressionante - redarguiu Kate. - Que significa, afinal?
- Não mo pergunte! São coisas de meu marido. - E Dona Carlota fez novo gesto de desespero.
- Don Ramon é que toca o tambor?
- Não, não! - Dona Carlota pareceu sobressaltada àquela pergunta. - Não é ele que toca. Trouxe dois índios do Norte para se desempenharem desse trabalho.
- Ah, sim? - volveu Kate, sem se comprometer. Mas Dona Carlota balançava-se numa espécie de semi-inconsciência e só daí a instantes pareceu voltar a si.
- Tenho de desabafar com alguém! - disse, de repente, endireitando-se na cadeira, com uma expressão de angústia espelhada nos grandes olhos castanhos e no rosto cor de nata. - Posso desabafar consigo?
- Certamente - respondeu Kate, constrangida.
- Sabe o que Ramon anda a fazer?
- Julgo que pretende ressuscitar o culto dos deuses antigos.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, com outro aceno de mão desesperado. - Como se isso fosse possível! Os deuses antigos! Imagine-se! Que são eles senão ilusões mortas? E feias, repulsivas! Sempre pensei que meu marido fosse inteligente, muito superior a mim, e é triste ter de mudar de opinião. Tudo aquilo é um disparate. E ele atreve-se a tomar a sério o que não passa de um disparate!
- Talvez Don Ramon creia...
- Mas como pode ele crer? - replicou a dona da casa, com um sorriso desdenhoso. - É instruído, não pode acreditar em semelhante tolice.
- Então qual é o seu objectivo?
- Isso é que eu gostaria de saber. - Na voz de Dona Carlota transparecia indizível cansaço. - Penso que está louco, como acontece a tantos mexicanos. Louco como o bandido Francisco Villa.
Lembrando-se do rosto simiesco do famoso Pancho Villa, Kate não foi capaz de o associar a Don Ramon.
- Desde que se elevam na sociedade os mexicanos perdem a cabeça, o orgulho transtorna-os. Não pensam em mais nada senão na sua importância. Pura vaidade masculina. Não acha, señora, que a vaidade é o começo e o fim do homem? Jesus veio ao mundo para combater esse perigo, ensinando-nos a ser humildes. Por isso odeiam Cristo e os Seus ensinamentos, e deixam-se guiar pela vaidade durante toda a vida.
A mesma reflexão ocorrera a Kate muitas vezes, e concluíra que nos homens só existia vaidade. Precisavam de ser lisonjeados, de sentir a sua grandeza, nada mais.
- O que meu marido pretende é opor-se a Jesus, elevar o orgulho e a vaidade acima de Deus. Ah, é horrível! Horrível e infantil. Que são os homens senão crianças que necessitam dos cuidados da mãe? Ah, señora, é mais do que posso suportar!
Dona Carlota cobriu a cara com as mãos.
- Em todo o caso, acho o seu marido uma pessoa excepcional - disse Kate para a consolar, embora nesse momento detestasse Don Ramon.
- Sim, possui grandes qualidades, mas de que lhe servem se estão pervertidas?
- Explique-me ao certo: o que é que ele pretende, afinal?
- O poder, o poder absurdo e maléfico, como se já não houvesse bastantes poderes maléficos por todo este país. Quer ser mais do que os outros, adorado, venerado. Um deus! Ele, a quem embalei nos braços como uma criança, querer que o adorem!
E Dona Carlota desatou num riso estridente pontuado de soluços.
Kate esperou que ela se acalmasse.
- No fim de contas - disse, quando a viu mais sossegada - não somos responsáveis pelo que fazem os maridos. Aprendi à minha custa que todo o amor é impotente perante a vontade dos homens. Meu marido quis morrer, e não pude impedi-lo... Temos de os deixar fazer tudo o que querem, até as coisas que nos parecem insensatas.
Dona Carlota ergueu os olhos para Kate.
- Gostava muito do seu marido... e ele morreu? - perguntou em voz suave.
- Amei-o deveras, e não tornarei a gostar doutro homem. Perdi a faculdade de amar.
- De que morreu?
- Por sua culpa. Despedaçou o coração e a alma com a política irlandesa. Eu sabia que ele fazia mal em se ocupar disso. Que nos importava a Irlanda, o nacionalismo, as revoluções e todas essas tolices? Ah, se o Joachim se limitasse a viver em paz comigo, poderíamos ser tão felizes! Em vão tentei convencê-lo. Queria matar-se com aquela estúpida política, e não consegui evitá-lo. Foram inúteis todos os meus esforços.
Dona Carlota olhou fixamente para Kate.
- Assim como são os meus para impedir que Ramon proceda mal e se mate... E depois de morto, de que servirá tudo aquilo?
- De nada. Depois de eles morrerem, ficamos a saber que foi inútil todo o trabalho que tiveram.
- Oh, señora! Se pode ajudar-me a salvar Ramon, ajude-me! É uma questão de vida ou de morte para nós ambos. Porque eu morrerei se ele levar a sua avante...
- Explique-me bem qual é a ideia de Don Ramon. A do meu marido era libertar a Irlanda e engrandecer o povo. Mas eu nunca acreditei que os irlandeses fossem jamais um grande povo nem que se pudesse torná-lo livre. Só sabe destruir, e destruir estupidamente. Não se pode fazer livre um povo que o não é. Existe nele qualquer coisa que o impele à destruição.
- Bem sei, bem sei. Da mesma forma é Ramon. Até quer destruir Jesus e a Virgem Maria por amor do povo. Imagine! Derrotar Jesus e a Virgem! A última coisa que se podia pensar...
- Mas o que diz ele quanto ao seu projecto?
- Diz que pretende estabelecer um novo nexo entre o povo e Deus. Declara, por seu lado, que Deus é sempre Deus, mas que o homem perdeu a sua união com a divindade... e que não é possível restaurá-la sem que venha um novo Deus. E que qualquer novo nexo tem de ser diferente do antigo, embora Deus continue a ser Deus. Neste momento, declara meu marido, o povo perdeu o seu Deus. O Salvador já não será capaz de o reconduzir a Si. Precisa-se de outro Salvador, com uma nova visão. Ah, señora, eu não creio nisto! Deus é amor e, se Ramon se submetesse, ao menos, ao amor, compreenderia que aí é que estava Deus. Mas qual! É tão perverso! Poderíamos, ambos, com amor calmo, gozando a beleza do mundo, esperar pelo amor de Deus... Porque é, señora, que ele não vê isto? Oh, porque não compreende? Em vez de fazer estas coisas...
Acudiram lágrimas aos olhos de Dona Carlota, as quais se lhe espalharam pelo rosto. Kate também chorava.
- É inútil! - disse ela, soluçando. - Sei que é inútil, faça-se o que se fizer. Não querem ser felizes e estar em paz, mas sim esta luta e esses falsos e horríveis nexos... Sim, é inútil, de qualquer forma. E nisto é que está o pior.
E as duas mulheres, sentadas nas cadeiras de baloiço, soluçavam amargamente quando ouviram passos no terraço, leve ruído de pés calçados de sandálias.
Era Don Ramon, atraído inconscientemente pelo clamor daquelas criaturas pesarosas.
Dona Carlota limpou a toda a pressa os olhos e o nariz; Kate assoou-se com estrondo. No limiar da porta, Don Ramon deteve-se.
Trajava como os camponeses, todo de branco, de casaco largo e calças muito amplas. O fato era de linho, com certa goma, e tinha um brilho estranho, fora do vulgar. Por baixo do casaco, à frente, uniam-se as pontas duma faixa estreita de lã, também branca, franjada de vermelho e riscada de azul e preto. Nos pés sem meias trazia huaraches de coiro azul e negro, entrançado, com espessas solas tingidas de vermelhão. As calças estavam presas aos tornozelos por alamares de lã pretos, azuis e encarnados.
Kate, vendo-o assim à claridade do sol, vestido de uma alvura tão ofuscante, teve a impressão de que o rosto dele, escuro e emoldurado de cabelos escuros, fazia como que um buraco na atmosfera.
Don Ramon aproximou-se, com as pontas da faixa a baterem-lhe nas pernas, e as sandálias rangendo de leve.
- Muito prazer em encontrá-la - murmurou, apertando a mão da visitante. - Como veio?
Deixou-se cair numa cadeira e ficou imóvel. As duas senhoras baixaram a cabeça, como se quisessem esconder a cara. A presença do homem ainda as constrangia mais, porém o dono da casa fingiu não reparar na comoção que sentiam e fê-lo por um acto de pura vontade. Da sua presença emanava certa força e elas experimentaram um pouco de alívio.
- Não sabia que o meu marido se tornara num aldeão, num verdadeiro peón? - perguntou Dona Carlota, irónica, à sua hóspeda. - É um señor peón, como o conde Tolstoi se fez señor mujique...
- Mas fica-lhe bem - observou Kate.
- Ora aí está... Ao diabo o que é do diabo... - replicou Don Ramon.
Havia nele algo de tenaz, de inflexível. Riu, e falou às senhoras, mas sem se revelar muito, apenas superficialmente. O seu ser íntimo, insondável e poderoso, não entrava em contacto com elas.
Assim foi durante o almoço. Houve conversa esvoaçante, com intervalos de silêncio. Nesse silêncio percebia-se que Don Ramon vivia noutro mundo; e a sua vontade calma, obrando noutra esfera, fazia recuar as mulheres para a sombra.
- A señora é como eu, Ramon - disse Dona Carlota. - Não tolera o rufar do tambor. Irá continuar aquilo, pela tarde adiante?
Seguiu-se uma pausa antes que ele respondesse:
- Só depois das quatro horas.
- Temos, então, de aturar hoje esse barulho? - insistiu Dona Carlota.
- Porque não há-de ser hoje como nos outros dias? - ripostou o marido. Notava-se-lhe um ar contrariado. Era evidente que pretendia subtrair-se à presença daquelas duas.
- Porque a senhora está cá, e eu estou também, e porque nenhuma de nós gosta daquele som. Amanhã já ela se vai embora, e eu regresso à cidade. Porque não nos poupas esse tormento? E
Ramon fitou a mulher, e em seguida Kate. Os olhos denotavam cólera. Kate quase ouvia, naquele peito forte, o coração inchar de furor. Mas calou-se e a outra também se calou. No fundo, estavam satisfeitas por terem podido despertar a ira do homem.
Mantendo o sangue-frio, Don Ramon inquiriu da esposa (não sem que se lhe percebesse a indignação):
- Porque não levas a senhora Leslie até ao lago?
- Não nos apetece.
Ele então fez o que a irlandesa nunca vira ninguém fazer. Encerrou-se dentro de si mesmo, deixando às duas comensais a impressão de se encontrarem diante duma porta que se fechou. Kate sentiu-se abandonada e deprimida, mas a pouco e pouco a irritação tingiu-lhe as faces pálidas dum rubor de fogo.
- Posso ir-me embora antes das quatro horas - declarou.
- Não, não! - acudiu, suplicante, a dona da casa. - Não me deixe. Fique comigo até à noite e ajude-me a distrair Don Cipriano, que vem jantar connosco.

XI
Acabado o almoço, Ramon recolheu ao quarto para dormir a sesta. A tarde estava quente, pesada. No extremo oeste do lago erguiam-se nuvens cintilantes, quais mensageiros da tempestade. Ramon fechou as janelas do seu aposento de modo a obter negrume total; apenas aqui e ali, filtrando-se pelos interstícios da porta, os raios de luz pousavam nas trevas como uma coisa tangível.
Despiu a roupa e ergueu acima da cabeça os punhos fechados, como se orasse intensamente e de pé. Nos seus olhos só havia escuridão, e a pouco e pouco essa escuridão atingiu-lhe o cérebro, apagando-lhe todos os pensamentos. Só uma vontade poderosa se distendia e emanava da espinha dorsal, numa tensão sobre-humana até que as flechas da alma atingiram o alvo e a oração a sua meta.
Então, bruscamente, tombaram os braços trémulos, o corpo readquiriu a flexibilidade. O homem recuperara a sua força. Quebrara as cordas do mundo e sentia-se livre e senhor da outra força.
Devagarinho, com precaução, esforçando-se por não pensar, não se recordar, não despertar as serpentes venenosas da consciência, enrolou-se num cobertor delgado e estendeu-se no chão sobre uma pilha de coxins. Daí a instantes, adormecia.
Dormiu profundamente cerca de uma hora. Abriu os olhos de repente, viu as trevas aveludadas e as frechas de luz diminuídas: o sol mudara. Pôs-se à escuta. Parecia não haver um único som no mundo. Talvez não existisse mundo...
Então começou a ouvir. Distinguiu o débil rumor duma carroça, folhas sussurrando ao vento, o som distante de pancadas, o pio duma ave.
Levantou-se, vestiu-se com rapidez às escuras e foi abrir as janelas. A tarde ia em meio; soprava uma aragem quente, amontoavam-se a oeste nuvens escuras, mas a chuva não se decidia a cair. Ramon pôs na cabeça um chapéu de palha, que tinha à frente um enfeite de penas brancas, pretas e azuis dispostas em forma de olho, ou de sol. Ouviu vozes femininas. Ah, a estrangeira! Esquecera-a por completo. E Carlota! Carlota encontrava-se ali. Por um momento, pensou nela e na sua caprichosa oposição. Depois, antes que a ira o dominasse, soergueu o peito, em nova oração muda, os olhos sombrearam-se-lhe - e perdeu a impressão de contrariedade.
Seguiu pelo terraço até à escada de pedra que conduzia à entrada e atravessou o pátio, onde dois homens, debaixo dum alpendre, carregavam azêmolas com fardos de bananas. No zaguán dormiam soldados. Pelas portas abertas, Ramon viu ao fundo da alameda um carro de bois afastando-se lentamente. No pátio ressoavam marteladas numa bigorna: era um homem e um rapazito ocupados na forja. Noutro alpendre, um carpinteiro aplainava tábuas.
Don Ramon deteve-se um momento para olhar em volta. Aquele era o seu mundo. O espírito dele espraiava-se nesse mundo como uma sombra fomentadora, e o silêncio do seu próprio poder dava-lhe paz.
Os homens que trabalhavam tiveram quase instantaneamente consciência da presença do patrão. Um após outro, os rostos escuros e ardentes ergueram-se para ele e voltaram a baixar-se. Gostavam de o ver ali, mas temiam aproximar-se e nem se atreviam a um olhar mais prolongado. Retomaram o trabalho com mais ardor, como se a presença do patrão lhes desse novo alento.
Ramon dirigiu-se para a forja, onde o rapazinho dava ao fole e o homem batia pancadas leves e rápidas num pedaço de ferro.
- É a ave? - perguntou Ramon.
- Sim, patrón, é a ave. Está bem! - E o homem levantou os olhos pretos, luzidios, expectantes. com uma tenaz, brandiu a tira de metal, negra, em forma de língua achatada, e Ramon observou-a demoradamente. - As asas ponho-as depois - explicou o ferreiro.
com as mãos escuras e nervosas, Don Ramon traçou uma linha imaginária em volta do pedaço de ferro. Três vezes fez esse gesto, que parecia fascinar o ferreiro.
- Um pouco mais alongado. Assim... - disse Ramon.
- Sim, patrón, compreendo.
- E o resto?
- Está ali. - O homem apontou para dois arcos, um maior que outro, e para várias chapas de ferro triangulares.
- Coloca tudo isso no chão.
O ferreiro pousou os arcos, um dentro do outro, e em seguida dispôs com perícia os triângulos de modo que as bases ficassem sobre o arco exterior e os vértices no círculo interior. Eram sete.
Assim formaram um sol de sete pontas.
- Agora, a ave - ordenou Ramon.
O homem pegou logo na peça comprida: era a forma rudimentar dum pássaro, com dois pés mas ainda sem asas. Colocou-a no centro da roda interior, de maneira que as patas tocassem no círculo e a cabeça atingisse a parte oposta.
- Está tudo certo!
Ramon contemplava o símbolo de ferro armado no chão quando ouviu abrir a porta de casa. Kate e Carlota avançaram através do pátio.
- Retiro isto? - inquiriu o ferreiro.
- Deixa, não faz mal - respondeu Don Ramon tranquilamente.
Kate deteve-se a observar aquela coisa estendida no chão.
- Que é isso? - perguntou.
- A ave dentro do sol.
- Representa uma ave?
- Quando tiver asas.
- Ah, faltam-lhe as asas! E de que serve?
- É um símbolo para o povo.
- é bem bonito...
- Sim, é bonito.
- Ramon, não te importas dar-me a chave para tirar o barco?
- disse Dona Carlota. - Vamos dar um passeio no lago, e Martin remará.
O marido tirou a chave da cinta.
- Onde descobriu essa linda faixa? - indagou Kate. Era branca, com riscas azuis e pretas e franjadade vermelho.
- Teceram-na aqui - informou Don Ramon.
- E as sandálias? Também as fizeram cá?
- Sim, foi obra do Manuel. Mais tarde lho mostrarei...
- Gostaria bastante de ver. São belíssimas, não acha, Dona Carlota?
- Acho, mas não sei se as coisas belas são sensatas. Não sei. E a señora, sabe o que é sensato?
- Eu? - volveu Kate. - Não me preocupo muito com isso.
- Ah, não se preocupa! Afigura-se-lhe então sensato da parte de Ramon usar traje de camponês e huaraches?
Pela primeira vez, Dona Carlota exprimira-se em língua inglesa, falando com lentidão.
- Fica-lhe tão bem! - replicou Kate. - O fato de homem é medonho e Don Ramon parece magnífico com este.
De facto, com o largo chapéu pousado na cabeça ele tinha certo ar de nobreza e autoridade.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, fixando na companheira o seu olhar inteligente, enquanto brincava com a chave. - Vamos para o lago?
As duas mulheres afastaram-se. Rindo consigo mesmo, Ramon atravessou o pátio e dirigiu-se a uma granja construída perto das árvores. Entrou e assobiou baixinho. Soou outro assobio como resposta e abriu-se um alçapão. Don Ramon subiu a escada e encontrou-se numa espécie de oficina de carpinteiro. Acolheu-o um rapaz corpulento, de cabelo encaracolado, que empunhava maço e escopro.
- Que tal vai isso? - perguntou Ramon.
- Vai bem.
O artista esculpia uma cabeça de madeira. Uma cabeça avantajada, convencional, mas que, apesar do convencionalismo, revelava semelhança com Ramon.
- Sirva-me de modelo durante meia hora - disse o escultor. Ramon sentou-se e ficou silencioso, enquanto o outro, curvado
sobre a sua obra, se concentrava no trabalho. Durante todo aquele tempo, Don Ramon conservou-se erecto, quase imóvel, sem pensar em nada, mas irradiando um halo sombrio de poder que fascinava o artista.
- Basta - declarou por fim, levantando-se.
- Mas ponha-se na posição antes de se ir embora - pediu o artista.
Ramon despiu lentamente o casaco e ficou de torso nu, com a faixa raiada de azul e preto de roda da cintura. Por uns instantes pareceu recolher-se e, em seguida, como se numa oração intensa e orgulhosa, ergueu o braço direito por cima da cabeça e ficou transfigurado. O braço esquerdo pendia molemente ao longo do quadril. E no rosto, esse ar de orgulho fixo e intenso que era em si mesmo uma oração.
O escultor observava-o admirado e quase temeroso. Aquele homem grande e enérgico, com os seus olhos negros dilatados pelo orgulho e no entanto cheios de oração, despertava no escultor um frémito de alegria e de medo.
Don Ramon voltou-se para ele.
- Agora, você!
O artista, assustado, quis esquivar-se, mas encontrou o olhar de Ramon e, no mesmo instante, a calma da concentração desceu sobre ele, como um êxtase. Então, bruscamente, ergueu o braço, e a face pálida e nédia adquiriu uma expressão de paz e dignidade. Os olhos cinzento-azulados, serenos e altivos, dirigiam ao Além a sua oração. E embora estivesse com a bata de trabalho, e não fosse esbelto, apresentava uma imobilidade perfeita, plena de nobreza.
- Muito bem - disse Ramon, baixando a cabeça.
O escultor moveu-se de súbito. Ramon estendeu-lhe as duas mãos e ele, levantando-lhe a dextra, pousou-a na fronte.
- Adiós! - disse Ramon, depois de enfiar o casaco.
- Adiós - respondeu o artista. E com a felicidade estampada no rosto, voltou para o trabalho.
Don Ramon visitou a casa de adobe, cujo pátio era rodeado duma paliçada de canas e sombreado por uma gigantesca mangueira. Manuel, a mulher, os filhos e dois ajudantes estavam a fiar e a tecer. Debaixo das bananeiras, duas pequenas cardavam lã branca e castanha. A mulher e uma rapariga fiavam. Numa corda secava lã tingida, vermelha, azul e verde. E, no alpendre, Manuel e um rapaz manobravam dois pesados teares.
- Como vai isso? - inquiriu Don Ramon.
- Muy bien! Muy bien! - respondeu Manuel, com uma expressão transfigurada cintilando-lhe nas pupilas negras. - Muito bem, señor!
Ramon examinou a serape que estavam a tecer. Tinha uma barra em ziguezague de lã preta natural e, em cada ponta, um ornato complicado, azul e preto. O homem começara o centro, a que chamam boca, e olhava de instante a instante para o desenho pregado no tear. Aliás, era um desenho simples, igual ao símbolo de que o ferreiro se ocupava: uma serpente a morder a cauda e, de volta, triângulos negros cujas bases se apoiavam num círculo exterior; ao meio uma águia azul, com as asas e os pés tocando no arco formado pela serpente.
Ramon voltou a casa, dirigindo-se para a ala onde se encontrava o seu quarto. Lançou uma manta dobrada sobre o ombro e seguiu pelo terraço. No extremo dessa ala, projectando-se para o lago, havia outro terraço, este quadrado, com uma bignónia cor de coral pendente dos pilares maciços. A loggia estava juncada de esteiras e, a um canto, via-se um tambor e respectiva baqueta. No ângulo mais afastado mergulhava uma escada de pedra, fechada em baixo por uma porta de ferro.
Ramon ficou uns momentos a olhar para o lago. As nuvens dispersavam-se e o lençol de água reflectiu uma claridade esbranquiçada. Ao longe, via-se a mancha de um barco, onde provavelmente se encontravam Martin e as duas senhoras.
Tirou o chapéu e o casaco, e permaneceu imóvel, nu da cintura para cima. Então pegou na baqueta e, depois de esperar uns segundos, até adquirir paz de alma, fez soar o apelo do tambor, num ritmo alternado, forte e fraco. Captara o antigo poder bárbaro de certos rufos.
Assim esteve durante algum tempo, sozinho, tocando tambor com a mão direita, de face inexpressiva.
Acorreu um homem, de cabeça descoberta, vindo do outro terraço. Trazia fato de brancura imaculada, serape escura ao ombro, e uma chave na mão. Saudou Ramon, levando à testa as costas da mão direita, e depois desceu a escada e abriu a porta de ferro.
Imediatamente chegaram homens, todos vestidos de branco, cada qual com a sua serape dobrada em cima dos ombros. Mas as faixas eram azuis, e as sandálias azuis e brancas. O escultor apareceu, assim como Martin.
Eram sete, além de Ramon. No topo da escada saudaram-no, um apôs outro. Em seguida, depuseram a manta e o chapéu no murinho do terraço e despiram o casaco, que atiraram para cima dos chapéus.
Ramon largou o tambor e sentou-se sobre a sua manta raiada de azul e preto. Todos o imitaram, formando círculo, de pernas cruzadas e torso nu. Uns eram cor de café, outros brancos; Ramon tinha a pele dum tom castanho-claro. Conservaram-se em silêncio, só perturbado pelo som igual e hipnótico do tambor que um dos homens tocava. Então este começou a cantar numa vozinha estranha, contida, essa antiga voz de falsete dos índios:
"Quem dorme despertará. Quem dorme despertará. Quem segue o caminho da serpente há-de chegar ao seu destino; há-de chegar ao seu destino e ficará revestido com a pele da serpente."
Uma por uma, outras vozes se juntaram, até que todos se fizeram ouvir, naquele ritmo cego, infalível, do antigo mundo bárbaro. E todos com idêntica voz interior, como se a alma cantasse para si própria.
Cantaram por momentos, em uníssono, qual bando de pássaros a voar levados pelo mesmo instinto. E quando o tambor vibrou num rufo que era o final da cerimónia, as vozes extinguiram-se também, simultâneas, com um estrangulamento na garganta.
Houve um silêncio. Depois os homens principiaram a conversar uns com os outros, rindo em surdina. Mas a voz deles e a expressão já não eram as mesmas de há pouco.
Don Ramon ia falar e todos se calaram, inclinando a cabeça. Aquele sentara-se, de face erguida, visando ao longe, na dignidade da oração.
- Não há Passado nem Futuro, só existe o Presente - disse em tom surdo, majestoso. - A Serpente magna dobra e desdobra os seus anéis, as estrelas surgem, os mundos desaparecem. Há somente a mudança e o repouso do plasma.
Eu sou sempre, diz o seu sono.
Assim como o homem, enquanto dorme, não tem conhecimento, mas é, também a Serpente enroscada do eterno Cosmos prolonga o seu existir de Agora.
Agora, agora só, e para sempre Agora.
Contudo os sonhos despertam e esmorecem no sono da Serpente.
E o Universo eleva-se como os sonhos e como eles expira.
E o homem é um sonho no sono da Serpente.
E apenas o sono que não tem sonhos murmura: Eu sou!
E no Agora sem sonhos, Eu sou.
Os sonhos despertam, como devem, e o homem é um sonho desperto.
Mas o plasma sem sonhos da Serpente é o plasma do homem, do seu corpo e ao mesmo tempo da sua alma.
E o sonho perfeito da Serpente Eu sou é o plasma do homem, que é íntegro.
Quando o plasma do corpo e o da alma só fazem um, Eu sou na Serpente.
Agora Eu sou.
Não foi é um sonho, assim como será, quais dois pés trôpegos e separados.
Mas Agora. Eu sou.
As árvores desdobram as folhas no sono, e a floração emerge dos sonhos no mais puro Eu sou.
Os pássaros esquecem o peso dos seus sonhos e cantam no Agora: Eu sou! Eu sou!
Porque os sonhos têm asas e pés e caminhos a percorrer, e esforços a realizar.
Mas a Serpente luzidia do Agora não tem asas nem pés, é una, perfeitamente enrolada.
Nos pés dum sonho, a lebre sobe o monte numa corrida. Mas quando se detém o sonho desaparece e ela entra no Presente e os seus olhos são o vasto Eu sou.
Só o homem sonha, sonha, e vai de sonho em sonho, como alguém que, dormindo, se agita no leito.
Sonha com os olhos e a boca, com as mãos e os pés, com o falo, o coração e o ventre, com o corpo e a alma, numa tempestade de sonhos.
E precipita-se de sonho para sonho, na esperança de alcançar o sonho perfeito.
Mas eu afirmo-vos que nenhum sonho é perfeito, porque em todos eles há sofrimento e desejo.
Nada é perfeito, excepto o sonho que falece no sono. Eu sou.
Quando o sonho dos olhos se obscurece, cercado pelo Agora,
E quando o sonho da boca ressoa no último Eu sou,
E quando o sonho das mãos dormita como uma ave no mar, que é erguida, e levada, sem que ela o saiba,
E os sonhos dos pés atingem o centro do mundo, onde a Serpente dorme,
E o sonho do corpo é a calma duma flor oculta,
E o sonho da alma se dissipou no perfume do Agora,
E o sonho do espírito se apazigua e descansa na Estrela da Manhã,
Porque cada sonho começa e termina no Presente,
No âmago da flor está a Serpente que alumia e não desperta.
E o que se apaga é um sonho, e o que se aumenta é um sonho. Há sempre, e somente Agora. Agora e Eu sou."
Reinava o maior silêncio no círculo de homens. Lá fora, rangia um carro de bois e, do lago, elevava-se o débil som de remos a fender a água. Mas os sete homens, de cabeça baixa, escutavam interiormente, numa espécie de transe.
Então o tambor começou, suavemente, e um dos homens cantou, num fio de voz:
O senhor da Estrela da Manhã
Estava entre o dia e a noite:
Tal um pássaro que ergue as asas e espera
com a asa luminosa à direita
E a das trevas à esquerda,
A Estrela de Alva apareceu.
- Olhai! Estou sempre aqui!
Longe, no espaço
Roço a asa do dia
E ilumino o vosso rosto.
com a outra asa roço a sombra.
Mas eu estou sempre aqui.
Estou sempre aqui. Sou o senhor. E os senhores entre os homens Vêem-me no cintilar das minhas asas. E perdem-me outra vez. Mas, olhai! Estou sempre aqui.
As multidões não me vêem. Só vêem o bater de asas, As idas e vindas das coisas, O calor e o frio.
Mas a vós que me vedes entre
O frémito da noite e do dia,
Faço-vos senhores do Caminho Invisível.
Caminho entre abismos de trevas e vales de luz; Caminho que segue tal rasto de serpente, tal a mecha dum rastilho
Que incendiará à substância das trevas e explodirá à vista de todos.
Jamais me afasto. Estou sempre aqui Entre as asas dum voo sem fim, Nas profundezas da paz e da luta.
Profundo no relento da paz,
Longe da orla do combate,
Haveis de encontrar-me, eu que não sou
Nem sou destruição.
Para além eu estou Dos horizontes de amor e de luta, Como uma estrela, como uma fonte Que lava os senhores da vida.
"Ouvi! - disse Ramon, no meio do silêncio. - Seremos senhores entre os homens, não os senhores dos homens. Somos senhores da noite. Senhores do dia e da noite. Filhos da Estrela da Manhã e da Estrela da Tarde.
Não somos senhores dos homens. Eu, porém, sou a Estrela da Manhã e Senhor do dia e da noite. com o poder que me foi concedido à mão esquerda e com o poder que obtive com a mão direita, sou senhor dos dois rumos.
E a minha flor na terra é o jasmim, e no céu a hespéride.
Não vos darei ordens, nem vos servirei, porque a serpente se arqueia em direcção à sua casa.
Contudo, estarei convosco, para que não vos desvieis de vós próprios.
Não há nada a dar nem a receber. Quando os dedos que dão afloram os que recebem, cintila a Estrela da Manhã a esse contacto, e o jasmim brilha entre as mãos. E assim não há dom nem aceitação, nem mão que oferece nem mão que recebe, mas a estrela encontra-se entre elas e a mão escura e a mão clara permanecem invisíveis de cada lado. O jasmim recolhe na corola o dom e a aceitação, e o seu perfume espalha-se no ar.
Não penseis em dar nem em receber, deixai isso à flor do jasmineiro.
Não vos desperdiceis, que nada vos seja arrancado.
E não percais nada, nem o aroma da rosa, nem o sumo da romã, nem o calor do fogo.
Mas dizei à rosa: - Olha, colho-te, e o teu perfume enche-me as narinas e o meu hálito penetra no teu coração. Que isso seja entre nós como um sacramento.
E tomai cuidado quando abrirdes a romã; é o Sol poente que tendes nas mãos. Dizei: - Eis-me aqui, vem! Que a Estrela da Tarde fique entre nós.
E quando a chama se eleva ao sopro do vento frio e estendeis as mãos para o calor, ouvi o que a chama diz: - Ah! És tu? És tu que vens para mim? Eu realizava a grande viagem, seguindo o caminho da serpente magna. Mas visto que vens até mim, de ti me aproximo. E se caíres nas minhas mãos cairei nas tuas, e a flor do jasmineiro perfumará o nosso encontro.
Não repilais nada nem deixeis que vos despojem. Porque repelir ou ser despojado quebra a raiz do jasmim e conspurca a Estrela da Tarde.
Não vos apodereis de nada para dizer: - Isto pertence-me. Nada existe que vos seja dado possuir, nem sequer a paz.
Nada; nem o ouro, nem a terra, nem o amor, nem a vida, nem a dor, nem a morte, nem a salvação.
De nada direis: - Isto é meu.
Dizei apenas: - Isto está comigo.
Porque o ouro só permanece convosco o espaço duma lua, e olha-vos e diz: - Encontramo-nos ligados por este breve instante.
E a terra diz-vos: - Ah, filho meu, de pai longínquo! Vem, revolve-me um pouco, para que as papoulas e o trigo cresçam e ondulem ao vento que sopra entre o meu e o teu peito. Depois, abisma-te em mim, e ambos formaremos um outeiro.
E ouvi o que diz o vosso amor: - A tua espada ceifou-me como à erva, e sobre mim está a sombra e o bruxulear da Estrela da Tarde. Não é mais do que trevas e nada. Ó tu, quando te levantares e prosseguires o teu caminho, fala-me, dize-me simplesmente: - A estrela despontou entre nós.
E dizei à vida: - Sou teu? És minha? Sou a orla do dia em volta da noite? São os meus olhos o crepúsculo onde a estrela se suspende? É o meu lábio superior o pôr do Sol e o meu lábio inferior o raiar da manhã? Tremula a estrela na minha boca?
E dizei à vossa paz: Ergue-te, estrela imortal! Já as águas da aurora te alagam e me levam no seu curso.
E dizei à dor: Machado, abates-me. E, contudo, brota uma centelha do teu gume e da minha ferida. Corta, então, que eu velarei a face, ó pai da estrela!
E dizei à vossa força: A espuma da noite sobe-me dos pés até aos rins, a espuma do dia salta-me dos olhos e da boca para o mar do meu peito. As minhas entranhas são um manancial de poder que corre pela espinha dorsal. E uma estrela flutua sobre esse fluxo.
E dizei à vossa morte: Pois seja! Eu e a minha alma iremos para ti, Estrela da Tarde. Carne, desaparece na sombra da noite. Espírito, chegou o teu dia. Deixai-me agora. Na minha nudez suprema me encaminho para a Estrela mais nua."

XII
Os homens envergaram o casaco, puseram o chapéu e, depois de cobrirem os olhos por um momento numa saudação a Ramon, desceram a escada de pedra. Fechou-se a porta com estrondo e o porteiro, voltando com a chave, pousou-a sobre o tambor e retirou-se discretamente.
Ramon ficou sentado em cima da manta, com os ombros nus apoiados à parede e de pálpebras cerradas. Sentia-se fatigado, nesse estado de abstracção que torna difícil o regresso ao mundo normal. Ouvia de modo vago os rumores na casa, tilintar de colheres de chá, vozes femininas conversando, o ronco dum automóvel que se aproximava pelo caminho desnivelado e se detinha no pátio.
Custava-lhe voltar à terra. Ressoava-lhe aos ouvidos o barulho do exterior, mas dentro dele mesmo escutava o murmúrio confuso do universo, como se num búzio. Era-lhe penoso retomar contacto com as coisas da vida corrente quando o corpo e a alma mergulhavam no cosmos.
Gostaria de se conservar ainda uns instantes no seu isolamento, mas não era possível. Reclamavam a sua presença, especialmente Carlota.
Já ela o chamava: "Ramon! Isso terminou? Cipriano está aqui." Sentia-se-lhe na voz receio e temeridade.
Ramon puxou os cabelos para trás, ergueu-se e, em passo rápido, acudiu ao chamamento tal como se encontrava, de torso nu. Não tinha vontade de se vestir, de reentrar nos pormenores da vida quotidiana.
Cipriano, fardado, achava-se no terraço abancado à mesa do chá. Levantou-se prontamente e avançou para Ramon de braços abertos, perscrutando o rosto do amigo com os seus olhos negros e brilhantes.


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Os dois homens abraçaram-se, peito contra peito, e, por momentos, Cipriano deixou estar as mãos morenas nas espáduas nuas de Ramon. Então afastou-se devagar e fitou-o sem proferir uma palavra.
Ramon pousou distraidamente a mão no ombro de Cipriano.
- Que tal? - perguntou. - Como vai isso?
- Bien. Muy bien - respondeu Cipriano, fixando-o sempre como se se procurasse a si mesmo no semblante de Ramon. Este correspondeu ao olhar do índio com um leve sorriso, enquanto Cipriano baixava a cabeça e os cabelos longos lhe tombavam na testa.
As duas mulheres observavam a cena em silêncio absoluto. Quando os dois homens se aproximaram da mesa, Carlota começou a servir o chá. Mas as mãos tremiam-lhe e ela tratou de pousar o bule e cruzá-las no regaço.
- Passearam de barco? - indagou Ramon, com ar alheado.
- Passeámos, e foi muito agradável - disse Kate. - Um bocado quente, quando o sol apareceu...
Ramon esboçou um sorriso e alisou o cabelo. Em seguida, descansando a mão no parapeito do terraço, olhou para o lago e suspirou inconscientemente.
Nu da cintura para cima, voltava costas às mulheres, contemplando a vastidão da água. Cipriano estava a seu lado.
Kate observava as espáduas lisas, morenas, que emanavam sensualidade, os ombros largos, o porte altivo da cabeça - e não podia deixar de imaginar uma lâmina cravada nessas costas magníficas, nem que fosse só para destruir a sua arrogância distante.
Porque até a sua nudez parecia distante, intangível. Pensar nela e contemplada daquele modo representava quase uma violação. Kate sentiu de súbito o coração estremecer-lhe de vergonha. Fora assim que Salomé olhara para João Baptista, e Ramon possuía essa mesma beleza que evocava uma romã destacando-se na verdura sombria da árvore.
Soprava branda a aragem da tarde. Na luz nacarada deslizavam barcos, enquanto o Sol luzia ainda no horizonte. Distinguia-se a margem oposta, a cerca de vinte milhas, embora velasse a atmosfera uma bruma opalina que se confundia com a água do lago. Kate lobrigava a mancha clara da igreja de Tuliapan.
No jardim da casa havia um bosquete de mangueiras, onde voavam cá e lá passarinhos escarlates, como botões de papoula, e outros dum amarelo cintilante. Contudo, quando pousavam por um momento e fechavam as asas, desapareciam da vista, pois eram escuros por cima.
- Neste país, os pássaros só são coloridos por baixo das asas - observou Kate.
Ramon voltou-se bruscamente para ela.
- Dizem que a palavra México significa "por baixo" - replicou, sorrindo, enquanto se afundava numa cadeira de balouço.
Dona Carlota fizera um esforço sobre si mesma e, de olhos fixos nas chávenas, servia o chá. Apresentou uma xícara ao marido, sem sequer o relancear. Tremia de cólera quase histérica. Ela, que era sua esposa desde tantos anos e que o conhecia tão bem (ah, se o conhecia!), nada possuía desse homem.
- Passa-me o açúcar, Carlota - disse Ramon na sua voz calma.
A mulher sobressaltou-se como se a beliscassem de repente.
- O açúcar? - repetiu, distraída.
Ramon estava sentado na cadeira, pendido para a frente e de xícara na mão. A tela fina que lhe cobria as coxas revelava-lhe mais o corpo do que a nudez do torso. Kate percebeu porque é que era proibido usar calças de algodão naplaza. Tornavam mais sensível a presença da carne.
Verdadeiramente belo, duma beleza que chegava a ser assustadora, irradiava uma sensualidade pura, hostil ao género de pureza de Kate, com a sua faixa azul de roda da cinta e as calças brancas parecendo fremir de vida cingidas aos quadris e às coxas. Tão poderoso fluido emitia esse ente másculo que Kate se sentia como que fascinada.
E ele, perfeitamente tranquilo, dentro do seu próprio ambiente. O mesmo acontecia a Cipriano. Ambos tão calmos, tão sombrios, dir-se-iam esmagar as duas mulheres.
Kate compreendeu então os sentimentos de Salomé. Compreendeu como João Baptista, com a sua beleza distante e inacessível, exercera tamanho poder.
"Ah! disse ela consigo mesma. - Tenho de fechar os olhos e abrir a alma. Fechar os olhos para não ver e ficar na escuridão e no silêncio junto destes dois homens. Possuem uma riqueza que me falta. Conseguiram libertar-se do desejo que a vista suscita. Sou atormentada pelo desejo, pela minha imaginação lasciva. É a maldição de Eva. Os meus olhos, a minha experiência são como um anzol que me repuxa a carne e me desperta espasmos de desejo. Oh, quem me dera libertar-me da impureza do olhar! Filha de Eva, porque é que estes homens me não arrancam às visões impuras?"
Levantou-se e dirigiu-se à beira do terraço. Amarelos como narcisos, emergiam dois pássaros da sua própria invisibilidade. Na praia de seixos, onde estava um barco varado, dois homens apanhavam à rede os peixinhos denominados chcirales, que cintilavam na água acastanhada como lascas de vidro.
- Ramon! - disse Dona Carlota. - Não vais vestir-te? Já não podia suportar aquela vista.
- vou. Obrigado pelo chá - respondeu o marido, pondo-se de pé. E seguiu pelo terraço adiante, com as sandálias a ranger de leve no pavimento de tijolos.
- señora Caterina! - chamou Carlota. - Venha beber o seu chá.
Kate voltou para a mesa, dizendo:
- Que paz se sente aqui!
- Paz! - repetiu Carlota. - Não acho paz nenhuma. O que há é um silêncio pavoroso que me causa arrepios.
- Vem cá frequentemente? - perguntou Kate a Cipriano.
- Sim, uma ou duas vezes por semana - respondeu ele, fixando-a com singular expressão nos olhos negros.
Dir-se-ia que esses homens procuravam anular-lhe a vontade.
- São horas de eu voltar para casa - declarou ela. - Não tarda que o Sol desapareça.
- Ya va? - redarguiu Cipriano, com a sua voz aveludada em que transparecia certa pena. - Já!
- Oh, não, señora! - exclamou Carlota. - Fique connosco até amanhã.
- Mas estão em casa à minha espera.
- Mandarei um rapaz prevenir que só regressa amanhã. Fica, não é verdade? Ah, ainda bem.
E Carlota, depois de pousar a mão carinhosa no braço de Kate, levantou-se a fim de avisar os criados.
Cipriano puxou da cigarreira e ofereceu-a a Kate.
- Não se escandalizará se eu fumar? - disse ela. - É um dos meus vícios.
- Fume. Não é bom sermos perfeitos.
- Acha que não? - E Kate, rindo-se, puxou uma fumaça do cigarro.
- Experimenta realmente essa paz? -inquiriu ele, irónico.
- Porquê?
- Porque é que os brancos andam sempre em busca da paz?
- Pois não é natural que todos desejem paz?
- Paz é apenas o descanso depois da guerra. Não é mais natural do que a luta; talvez até seja menos.
- Mas existe outra paz, aquela que ultrapassa o entendimento. Não sabia?
- Parece-me que não - respondeu Cipriano. - Que pena!
: - Ah! Quer ensinar-me? Mas para mim é diferente... Cada
homem tem dois espíritos. Um assemelha-se à aurora na época das chuvas, suave, fresca, húmida, com pássaros chilreando. O outro é como a estação seca, com a sua luz forte e ardente que parece nunca mais abrandar.
- Decerto prefere o primeiro.
- Não sei - replicou Cipriano. - O outro dura mais.
- Tenho a certeza que prefere a frescura da manhã - insistiu Kate.
- Não sei, não sei. - E esboçou um sorriso, deixando Kate
convencida de que ele de facto não sabia. - Na primeira fase vemos as flores nas suas hastes transbordantes de seiva. A flor desa brocha como uma face de mulher perfumada pelo desejo. Mas o sol começa a aquecer, e então tudo se modifica. As flores murcham e o peito do homem torna-se como um espelho de aço. Dentro dele tudo
- é escuridão, enroscando-se e desenroscando-se como uma cobra. As flores secaram nas hastes, as mulheres já não existem para o homem. Umas e outras desapareceram.
- Que pretende ele então? - perguntou Kate.
- Não sei. Talvez queira ser uma grande personagem, senhor de todos os povos...
- E porque não realiza essas aspirações?
Cipriano encolheu os ombros.
A señora assemelha-se à manhã de que lhe falei há pouco -
disse ele.
- Tenho quarenta anos - replicou Kate com um risinho amarelo.
O general tornou a encolher os ombros.
- Isso não interessa. O seu corpo parece o caule da flor a que
aludi, e o seu rosto será sempre a aurora na estação das chuvas.
- Porque me diz essas coisas? - volveu Kate, com involuntário e estranho tremor.
- E porque não hei-de dizer? A señora é tal uma manhã cheia de frescura, e estamos no fim da época seca...
Observava-a, e nos seus olhos brilhava o desejo, aliado a certa insolência.
Kate baixou a cabeça e balançou-se na cadeira.
- Gostaria de casar consigo - continuou Cipriano. - Se estivesse disposta a isso, desposá-la-ia.
- Não me parece que me torne a casar - ripostou Kate, anelante e de faces afogueadas.
- Quem sabe?
Ramon surgiu no terraço, com a sua bela serape dobrada sobre o ombro nu. Apoiou-se num dos pilares e contemplou Kate e Cipriano, o qual ergueu a vista e lhe dirigiu um sorriso em que transparecia a amizade que os ligava.
- Disse à señora Caterina que a desposaria se ela estivesse disposta a casar-se - declarou ele.
- É o que se chama falar sem rodeios - replicou Ramon, olhando para Cipriano com o mesmo sorriso amigo. Em seguida, o seu olhar pousou-se em Kate, enquanto o sorriso se alastrava e todo o seu rosto respirava compreensão. Cruzou os braços, como fazem os índios quando querem defender-se do frio; e a carne, dum tom castanho-claro, como ópio, formava saliências no peito largo, cheio e liso.
- Diz Don Cipriano que os Brancos só desejam a paz - proferiu Kate, fitando Ramon com deliberada impertinência. - Não se consideram brancos?
- Não mais brancos do que somos - respondeu Ramon, sorrindo. - Pelo menos, não duma brancura de lírio...
- E não buscam a paz?
- Por mim não penso nisso. Os mansos herdarão a terra, segundo a professia. Mas quem sou eu para lhes invejar a sua paz? Não señora. Por acaso pareço um evangelho de paz? Ou de guerra? A vida para mim não se resume nessas duas coisas.
- Não sei afinal o que desejam - disse Kate.
- Nós próprios não o sabemos senão em parte - replicou Ramon, mudando de expressão.
Havia nele uma espécie de bondade paternal que enchia Kate de espanto e a sobressaltava como se só agora compreendesse o verdadeiro significado de tal sentimento. Mistério, nobreza, inacessibilidade, e a vulnerável compaixão de homem na sua amizade desinteressada...
- Não gosta das pessoas de pele escura? - perguntou Ramon em tom suave.
- Acho-as belas à vista - respondeu Kate. - Mas - acrescentou, com um leve arrepio - estou contente por ser branca.
- Sente que não é possível nenhum contacto?
- Exactamente.
- É a sua impressão - volveu Ramon, e, enquanto ele falava, Kate percebeu que o considerava mais atraente do que a qualquer homem loiro e que, por muito vago que fosse, o contacto que tinha com ele lhe era mais precioso do que todos os que até aí conhecera.
Contudo, embora lhe lançasse certa sombra, não tentava influenciá-la, nem queria maior aproximação - ao passo que Cipriano, sentindo-se incompleto, a procurava e parecia violar-lhe a personalidade.
À voz de Ramon, Dona Carlota assomou a uma das portas mas, ouvindo falar inglês, tornou a sumir-se, num brusco acesso de cólera. Daí a pouco reaparecia, trazendo um vaso de flores carnudas, dum branco leitoso, semelhantes a frésias no tom e no perfume.
- Que lindas! - exclamou Kate. - São flores de igreja! No Ceilão, os indígenas entram nos seus templos e depõem uma flor num tabuleiro aos pés do Buda. E os tabuleiros das oferendas ficam cobertos dessas flores, todas muito bem arranjadas, dispostas com delicadeza oriental...
- Mas eu não as trouxe para homenagear deuses - replicou Carlota, pousando o vaso na mesa. - Trouxe-as para si, señora. Cheiram tão bem!
- De facto, têm um aroma delicioso - concordou Kate. Os dois homens afastaram-se, rindo.
- Ah, señora! - disse Carlota, sentando-se à mesa. - Pode entender Ramon? Seria capaz de renunciar à Santa Virgem? Eu antes queria morrer.
- Não precisamos doutros deuses, realmente - redarguiu Kate, com certo enfado.
- Outros deuses! - repetiu Carlota, escandalizada. - Como se fosse possível! Ramon comete um pecado mortal.
Kate conservou-se calada.
- E quer induzir o povo a fazer o mesmo - prosseguiu Carlota. - É pecado de orgulho... o pecado cardeal. Ainda bem que a señora pensa como eu. Receio as americanas que, para se apoderarem do espírito dos homens, aceitam todas as suas loucuras e perversidades... É católica, señora?
- Fui educada num convento.
- Ah, señora! Qual a mulher que tendo conhecido a Santíssima Virgem se afasta dela? Que mulher teria ânimo de crucificar Jesus novamente? Mas os homens, os homens! Aquela história de Quetzalcoatl seria coisa para rir se não fosse um pecado mortal. E da parte de dois homens inteligentes e instruídos tanta presunção!
- Os homens são assim - observou Kate.
Intensificava-se o crepúsculo; o horizonte estava ainda luminoso, mas o Sol afundara-se numa bruma cor-de-rosa, por trás das arestas da montanha. As colinas erguiam-se azuladas numa atmosfera cor de salmão que se reflectia na água. Lá adiante, onde o clarão rubro se adensava, banhavam-se homens e crianças.
Kate e Carlota subiram à azotea, o terraço que cobria a casa. Dali podiam ver a hacienda com o seu pátio semelhante a uma fortaleza, o caminho ladeado de árvores frondosas, as cabanas de adobe perto da estrada e as fogueiras já bruxuleando junto das casas. No ar róseo os salgueiros da margem pareciam mais verdes e cintilantes. Ao longe, luziam entre as árvores as duas torres brancas de Sayula. Deslizavam barcos em direcção à parte sombreada do lago.
E num desses barcos, deveras desconsolada, regressava Juana a casa.

XIII
Ramon e Cipriano encontravam-se à beira do lago. O general envergara também fato branco e sandálias, o que lhe ia melhor do que a farda.
- Tive uma conversa com Montes quando ele foi a Guadalajara - declarou Cipriano.
Montes era o presidente da República.
- E que te disse?
- Não se alarga muito a falar, mas depreendi que não simpatiza com os colegas e se sente isolado. Julgo que gostaria de te conhecer melhor.
- Porquê?
- Talvez pudesses dar-lhe apoio moral. Talvez chegasses a ser ministro; e até presidente, depois de Montes acabar o seu mandato.
- Montes agrada-me - replicou Ramon. - É sincero e ardente. Gostaste dele?
- Sim, mais ou menos - respondeu Cipriano. - É desconfiado, teme que outros pretendam compartilhar com ele o poder. Tem instintos de ditador. Quis saber se eu lhe era afecto.
- Deste-lhe a entender que sim?
- Disse-lhe que tudo o que me interessava verdadeiramente eras tu e o México.
- E que te respondeu?
- Ele não é tolo. Respondeu: "Don Ramon vê o mundo com olhos diferentes dos meus. Qual de nós terá razão? Eu quero salvar o país da pobreza e da ignorância, ele quer salvar-lhe a alma. Mas afirmo que um homem esfomeado e ignorante não tem lugar para a alma. Um ventre e um cérebro vazios roem-se a si mesmos, e a alma não existe. Don Ramon acha que um homem desprovido de alma pode passar sem o alimento do corpo e do intelecto. Pois que siga o seu caminho, que eu sigo o meu! Não nos embaraçaremos um ao outro. Dou a minha palavra que não interferirei em nada. Ele varre o pátio, eu trato da limpeza da rua.
- É sensato - comentou Ramon - e honesto nas suas convicções.
- Porque não serias ministro daqui a uns meses? E mais tarde presidente?
- Bem sabes que não é isso o que pretendo. Devo poupar-me e agir noutra esfera. A política que se mantenha ou evolua como eles entendem, a sociedade que faça o que quiser. Deixa-me em paz, Cipriano. Gostarias que eu fosse outro Porfirio Diaz, ou alguém do mesmo género, mas isso para mim seria pura e simplesmente soçobrar na vida.
Cipriano observava Ramon com os seus olhos negros e vigilantes, onde transparecia amizade, receio, confiança, mas também incompreensão, e a dúvida que sempre a acompanha.
- Não chego a perceber o que desejas - murmurou.
- Percebes, sim. A política e toda essa religião social com que Montes se preocupa equivale a lavar a casca dum ovo para lhe dar aspecto limpo. A mim, porém, só interessa o interior... Ah, Cipriano! O México é tal um ovo que o Tempo choca desde séculos neste ninho do mundo e que parece ser goro. Parece, mas não é. O que precisa é de calor que ajude a formação da ave. Montes quer limpar o ninho e lavar o ovo... Que aconteceria se tirassem um ovo de baixo duma águia para o lavar? Arrefeceria de vez. Pois quanto mais se empenharem em arrancar este povo da pobreza e da ignorância mais depressa ele morrerá. Pobre Montes! Todas as suas ideias são americanas ou europeias. E a velha pomba da Europa jamais poderá chocar com êxito o ovo escuro da América. Os Estados Unidos não morrem porque não estão vivos. É um ninho de ovos de loiça e por isso se conservam limpos. Mas aqui, Cipriano, aqui é necessário incubá-los antes da limpeza do ninho.
Cipriano baixava a cabeça. Experimentava sempre Ramon para ver se conseguia fazê-lo mudar de ideias e, depois de verificar a inutilidade dos seus esforços, submetia-se ao amigo e novas chamas de felicidade se alteavam dentro dele. Mas, entretanto, ia-o experimentando...
- Não serve de nada querer misturar as duas coisas. No ponto em que estão, não se misturam. Temos de fechar os olhos e mergulhar até ao fundo, como pescadores de pérolas. Mas andamos a flutuar à superfície, semelhantes a bocados de cortiça...
Cipriano mostrou um sorriso subtil. Tudo aquilo ele sabia!
- Temos de abrir a ostra do cosmos e extrair dela a nossa força.
Enquanto não arrancarmos a pérola não seremos mais do que mosquitos no cimo do oceano - concluiu Ramon.
- A minha força é como um demónio dentro de mim - disse Cipriano.
- Porque a ostra a retém fechada, como uma pérola negra. A ti compete libertá-la.
- Ramon, não acharias bom ser uma serpente, uma serpente enorme que se enrolasse em volta do globo e o esmagasse... como a esse ovo?
Ramon olhou-o e pôs-se a rir.
- Não me parece coisa impossível - continuou Cipriano. E não seria bom?
O outro meneou a cabeça, rindo-se.
- Pelo menos seria um momento bom.
- Que mais se pode desejar?
Brilhou nos olhos de Ramon uma centelha que logo se apagou.
- Para quê? - disse em voz surda. - Depois de esmagado o ovo que havíamos de fazer senão errar nos corredores de trevas e lamentar-nos? Para quê?
Ramon pôs-se de pé e afastou-se. O Sol desaparecera, a noite descia. Na alma daquele homem fervia uma cólera imensa, e Carlota é que a provocava. A mulher parecia incutir vida ao monstro da sua raiva íntima, e Cipriano exasperava-o.
"A minha força é como um demónio a rugir dentro de mim", disse Ramon consigo mesmo, repetindo a frase de Cipriano.
Reconhecia o direito de gritar a esse demónio humilhado e ridicularizado que vivia preso dentro dele. E a fúria apoderou-se de Ramon, contra Carlota, contra Cipriano, contra a humanidade inteira. Os seus partidários traí-lo-iam, tinha a certeza. Cipriano acabaria por traí-lo. Desde que lhe encontrassem o mínimo ponto fraco, todos saltariam sobre ele como tarântulas e infectá-lo-iam com a sua peçonha.
E qual o homem absolutamente invulnerável, sem o menor ponto fraco?
Ramon subiu ao seu quarto pela escada exterior, no lado da casa, e sentou-se na cama. A noite estava quente, pesada, e duma calma aflitiva.
- Prepara-se chuva - ouviu ele dizer a um dos criados. Fechou as portas do quarto e ficou às escuras. Então despiu-se todo, murmurando: "Repudio o mundo juntamente com esta roupa." E de pé, nu e invisível no meio do quarto, ergueu ao ar o punho fechado, com tal força que teve a sensação de que lhe estalavam as paredes do peito. A mão esquerda pendia ao longo do corpo, mole, com os dedos levemente curvados.
Tenso como o jacto duma fonte silenciosa, distendeu-se até abranger o âmago impalpável das trevas. E as vagas de escuridão começaram a lavar-lhe o espírito, a consciência; ondas de negrume rebentando-lhe na memória, em todo o seu ser, como uma maré que sobe. Até que foi maré cheia e ele, tremendo, se deixou cair por terra, para descansar. Invisível nas trevas, ficou a olhar para o vácuo, sentindo o misterioso fluxo interior purificar-lhe as entranhas e o coração, sentindo o espírito dissolver-se no Espírito maior que nenhum pensamento perturba.
Cobriu o rosto com as mãos e ali esteve imóvel, inconsciente, já sem nada sentir nem ouvir, semelhante a uma alga submersa no mar. Abolira-se o Tempo, abolira-se o Mundo, submerso nas profundezas que são intemporais e inespaciais.
Quando o coração e as entranhas despertaram para a vida, o espírito principiou a bruxulear tal uma chamazinha que vacila e não se apaga.
Enxugou a cara com as mãos, pôs a serape na cabeça e em silêncio, numa aura de sofrimento, desceu a escada, levando consigo o tambor.
Martin, o servo devotado, andava cá e lá no zaguán.
- Ya, patrón? - perguntou.
- Ya! - respondeu Ramon.
O homem correu à vasta cozinha onde ardia uma candeia, e voltou com um braçado de esteiras.
- Onde as colocamos, patrão?
Ramon hesitou no meio do pátio, olhando para o céu.
- Viene el agua?
- Creo que si, patrón.
Dirigiram-se para o alpendre onde haviam carregado as azémolas com os fardos de bananas. Aí, Martin arremessou ao chão as petates, que Ramon dispôs em ordem. Guisleno apareceu, trazendo canas para fazer tochas, das mais primitivas: três canas amarradas em cima com um cordel, formando tripé de cintura alta, e, na parte superior, uma pedra de lava mais ou menos oca. Realizado esse trabalho,
Guisleno foi a casa e voltou a correr com um pedaço de madeira inflamada. Três ou quatro pauzinhos de ocote colocados na pedra - e as chamas ergueram-se, enchendo o pátio de sombras vacilantes.
Ramon dobrou a serape e sentou-se em cima. Guisleno acendeu outro tripé-archote. A luz bailava nas sobrancelhas carregadas de Ramon, dava-lhe ao peito cintilações de ouro.
Agarrou no tambor e fez soar o apelo monótono, lento, um tanto melancólico. Passados instantes, chegou o tocador habitual, que levou o instrumento para a alameda sombria, onde então se ouviu um rufo vivo e forte.
Ramon enfiou a serape, cujas franjas lhe roçavam os joelhos, e ficou imóvel, com os cabelos em desordem. Rodeava-lhe os ombros a serpente do tecido, o pescoço erguia-se-lhe no meio do pássaro azul.
Cipriano apareceu, vindo da casa. Trazia serape castanha e vermelha, ornamentada com um sol escarlate. Postou-se ao lado de Ramon, e olhou-lhe de relance para a cara. Mas, de sobrancelhas franzidas, o outro fixava a sombra dos alpendres no extremo do pátio. Olhava para o coração do mundo; porque a face dos homens e o coração dos homens são areias movediças, e só no coração do cosmos pode alguém encontrar força.
Cipriano voltou os olhos negros para a banda do pátio. Os seus soldados aproximavam-se em grupo. Três ou quatro homens de mantas pardas rodeavam o lume. De pé, junto de Ramon, Cipriano parecia um cardeal, um pássaro de cor vistosa. Até as sandálias eram escarlates, e encarnadas as fitas que atavam as calças de linho branco aos tornozelos. Ao clarão das tochas tinha um ar demoníaco, com a pele muito escura, a barbicha preta e as pupilas cintilando sardonicamente.
Chegavam peóns, pelo portão da entrada, balançando os chapéus largos. Acorriam mulheres descalças, com as saias a oscilar, transportando os seus nenés envoltos nos rebozos e seguidas por uma caterva de garotos. Todos se agrupavam em volta dos archotes, como animais bravios, contemplando o círculo de homens de serape, do qual se destacavam Ramon e Cipriano, um de azul e branco, outro de vermelho.
Carlota e Kate emergiram de casa. Carlota, porém, ficou junto da porta, embrulhada num xaile de seda preta. Sentou-se num banco de pau aquém do clarão avermelhado, e pôs-se a observar os homens escuros, a beleza altaneira de Ramon, o traje escarlate de Cipriano, o grupo de soldados e a massa compacta de peóns, mulheres e crianças. Enquanto desfilava gente através do portão, soou o tambor e uma voz elevou-se, cantando:
Alguém vai franquear a porta, Agora, agora mesmo, ay! E verá a luz no homem que espera. Serás tu? Serei eu?
Alguém vai aproximar-se do fogo, Agora, agora mesmo, ay! E escutarás as palavras do seu coração. Serás tu? Serei eu?
Alguém baferá quando a porta se fechar, Ay, num momento, ay! Ouvirá dizer: Não te conheço. Serás tu? Serei eu?
De cada vez o ay se elevava num grito selvático que fazia calafrios a Carlota.
Envolta num xaile amarelo, Kate aproximou-se lentamente do grupo.
O tambor calou-se e o homem, entrando no pátio, fechou o portão e misturou-se aos assistentes.
Ramon continuava a olhar para o vácuo, de sobrolho carregado. Então, no meio do silêncio, disse em voz baixa, contida:
- Assim como tiro este abafo me liberto eu do dia que passou. Despiu a serape e pô-la no braço. Todos os homens do círculo o
imitaram, ficando de torso nu. Cipriano, muito escuro e com ar sólido apesar do tamanho reduzido, conservava-se ao lado de Ramon.
- Afasto de mim o dia que passou - prosseguiu Ramon - e fico de coração descoberto na noite dos deuses.
Em seguida olhou para o chão e disse:
- Vem, serpente da terra, serpente que jazes no fogo do coração do mundo. Vem, serpente do fogo no coração do mundo, enrola-te como ouro em volta dos meus artelhos, ergue a cabeça e apoia-a na minha coxa. Vem, descansa a cabeça na minha mão, serpente dos abismos. Beija-me os pés e os tornozelos com a tua boca de ouro, beija-me os joelhos e as coxas, serpente marcada de luz e de sombra. Vem, repousa a cabeça na concha da minha mão.
A voz suave e hipnótica extinguiu-se no silêncio envolvente. E parecia que na verdade uma presença misteriosa emergia do mundo subterrâneo, que uma serpente mosqueada de ouro e negro se enroscava nas pernas de Ramon e lhe lambia a palma da mão com a língua bifurcada...
Circunvagou a vista pela assistência boquiaberta e de olhos dilatados, e prosseguiu:
- Digo-vos, e com absoluta certeza. No coração desta terra dorme uma grande serpente no meio do fogo. Aqueles que descem às minas sentem-lhe o calor e o suor, ouvem-na mover-se. É o fogo vital da terra, porque a terra vive. A serpente do mundo é enorme, as rochas são as suas escamas, e entre elas crescem as árvores. Digo-vos que a terra que cavais está viva como uma serpente adormecida. Sobre ela andais, e este lago descansa nos seus anéis como uma gota de chuva numa cobra cascavel. Contudo, tem vida. A terra vive. Se a serpente morresse, todos morreríamos. Só a sua vida assegura a humidade do solo que faz germinar o nosso milho. Das suas escamas extraímos prata e ouro, e as árvores têm nela as suas raízes como os cabelos têm a raiz sob a nossa pele. A terra vive. Mas a serpente é grande, e nós somos mais pequenos do que um grão de poeira. E por vezes ela zanga-se e diz: Estes entes, mais insignificantes do que átomos de pó, espezinham-me e asseveram que estou morta. Até às bestas costumam falar, gritando: Arre, burro! A mim, porém, não dirigem uma palavra. Por isso lhes voltarei costas, como uma mulher volta costas ao marido e lhe consome o espírito com a sua cólera... Eis o que a terra nos diz, e a tristeza e o desânimo avassalam-nos os pés e os rins. Porque assim como uma mulher irritada tira o entusiasmo e a alegria ao homem, assim a terra pode enregelar-nos a alma e tornar a existência fatigante aos nossos membros. Falai, pois, à serpente do coração do mundo, banhai de óleo os vossos dedos e abaixai-os para que ela experimente o óleo da terra e deixe que a vida nos suba ao longo das pernas, como a seiva do milho novo faz estalar a casca e brotar o leite da planta entre as barbas. Do coração da terra o homem sente subir nele a sua força; tal o milho que, ufano, ergue as suas folhas verdes, erguei-vos vós também e deixai aprofundarem-se as vossas raízes cada vez mais, porque não tardam as chuvas e é tempo de produzir no México.
Calou-se Ramon, ensurdeceu o tambor, e todos os homens do círculo fitaram a terra, deixando pender molemente a mão esquerda.
Dona Carlota, que não conseguira ouvir, aproximou-se do lado de Kate, como se fascinada pelo marido. A irlandesa, num movimento inconsciente, olhou para o chão e, às ocultas, baixou os dedos de encontro à saia. Mas teve medo do que lhe poderia acontecer e escondeu a mão no xaile.
De repente o tambor vibrou numa nota muito forte, seguida de outra mais fraca: estranho, impressionante efeito.
Os circunstantes levantaram a cabeça. Ramon alçara o braço direito, num gesto enérgico, e espiava o negrume do firmamento. Imitaram-no os do círculo, e os braços nus, erguidos, semelhavam uma série de rochedos.
- Assim, acima, acima! - gritou uma voz bárbara.
- Acima, acima! - repetiram todos, num coro feroz. Involuntariamente, brandiram o braço, voltando o rosto para o
céu sombrio. Algumas das mulheres, mais audazes, fizeram o mesmo, e, com esse gesto, experimentaram uma sensação de paz.
Kate não alçou o braço.
Reinou profundo silêncio; até o tambor se calara. Ouviu-se então a voz de Ramon, dirigindo-se ao céu tenebroso:
- As tuas asas estão escuras, Pássaro, voas muito baixo esta noite. Voas baixo sobre o México, e em breve sentiremos roçar em nossas faces o leque das tuas asas. Ah, Pássaro! Voas onde queres. Ultrapassas as estrelas e empoleiras-te no Sol. Desapareces da vista e dissipas-te no além do rio branco do céu, mas voltas como os patos do Norte, em busca de água e do Inverno. Poisas no centro do Sol e alisas as penas... Banhas-te na corrente de estrelas e ergues em teu redor uma poalha de ouro. Voas nas profundezas do céu donde parece que jamais se volta. Mas regressas, e pairas sobre nós, e sentimos no rosto a aragem das tuas asas...
Enquanto ele falava levantou-se vento em rajadas, uma porta bateu, vibraram vidraças e as árvores pareceram rasgar-se.
- Vem, ó ave dos vastos céus! - bradou Ramon num apelo selvático. - Vem, pousa no meu punho, na minha cabeça, dá-me o poder divino e a sabedoria. Ó Pássaro, ainda que o trovão ribombe quando sacodes as asas, ainda que deixes cair na terra a serpente de fogo que tens no bico, ainda que venhas como fulminador, vem, ó Pássaro! Empoleira-te um momento no meu punho, estende as asas sobre a minha cabeça, toca-me a fronte com o teu peito. Pássaro errante, ave do Além, com o trovão nas garras e a serpente no bico, com o azul nas asas e a nuvem no colo, com o sol no peito e a sabedoria no voo, vem sobre mim, vem!
O vento agitava a chama das tochas e o lago começou a falar numa voz cavernosa que dominava o sussurro das árvores. Ao longe, por cima das colinas, os raios sulcavam o céu.
Soou o tambor, e Ramon desceu o braço que mantivera erguido. E disse então:
- Sentai-vos um instante, antes que o Pássaro sacuda a água das asas, o que não tardará. Sentai-vos.
A assistência moveu-se. Os homens puxaram as serapes para a testa, as mulheres cingiram mais a si os rebozos, e todos se sentaram no chão. Só Kate e Carlota ficaram de pé, a certa distância.
- A terra é viva, o céu é vivo, e entre ambos vivemos nós - prosseguiu Ramon na sua voz habitual. - A terra beijou-me os joelhos e concedeu-me força às entranhas. O céu descansou-me no punho e transmitiu o seu poder para o meu peito.
Assim como a Estrela de Alva brilha entre o céu e a terra, uma estrela pode surgir em nós entre o coração e os rins.
É a virilidade do homem e a feminilidade da mulher.
Ainda não sois homens. E vós, mulheres, ainda não sois mulheres.
Correis, agitais-vos, morreis, mas ainda não encontraste a estrela da vossa virilidade surgida de vós mesmos; nem a estrela da vossa feminilidade cintilando entre os vossos seios, ó mulheres!
Digo-vos no entanto: para aquele que desejar, nascerá nele a estrela da sua virilidade, e então será perfeito como é perfeita a Estrela da Manhã.
E a estrela da mulher aparecerá entre a orla espessa da terra e o vácuo cinzento do céu. Mas como conseguiremos isso? Como poderá ser?
Baixai os dedos para a carícia da Serpente da terra. Erguei o punho para que aí pouse a Ave distante.
Tende a coragem de ambos, a coragem do raio e a do sismo.
E a sabedoria de ambos, a da serpente e a da águia.
E a serenidade de ambos, a da serpente e a do sol. E o poder de ambos, o das profundezas da terra e o do céu que tudo cobre.
Mas que na vossa fronte, ó homens, resplandeça a Estrela da Manhã que nem o dia nem a noite, nem a terra nem o céu podem engolir e apagar.
E entre os vossos seios, ó mulheres, que esteja a Estrela de Alva que nada pode ofuscar.
A vossa derradeira morada é a Estrela da Manhã. Nem o céu nem a terra vos hão-de tragar, mas ireis para essa estrela solitária que no entanto jamais sente a sua solidão.
A Estrela da Manhã envia-nos um mensageiro, um deus que morreu no México. Mas, enquanto dormia o seu sono, os Seres invisíveis lavaram-lhe o corpo com a água da ressurreição. E ele levantou-se, derrubou a pedra à entrada do sepulcro, e agora galopa através do horizonte, mais depressa do que caiu por terra a laje do túmulo para esmagar aqueles que a selaram.
O filho da Estrela volta para os filhos dos homens.
Preparai-vos para o receber. Lavai-vos, ungi as mãos e os pés, a boca e os olhos, as orelhas e as narinas, o peito, o umbigo e as partes secretas do vosso corpo. Que nada dos dias passados, que nenhuma poeira do mal subsista em vós e vos torne impuros.
Não olheis com olhos de ontem, não escuteis como ontem, não respireis, não cheireis, não engulais alimentos nem bebidas; não beijeis com lábios de ontem, não toqueis com mãos de ontem. Aproximai-vos das vossas mulheres com um corpo novo, e com esse corpo novo penetrai nelas. Porque o corpo de ontem morreu, e Xopilote, devorador de cadáveres, já paira sobre ele.
Libertai-vos do corpo da véspera e adquiri um novo, tal como o deus que vem até vós. Quetzalcoatl surge-nos com um novo corpo, como uma nova estrela, saído das sombras da morte.
Sim, neste mesmo momento em que estais sentados e que o vosso corpo toca na terra, dizei-lhe: Terra, terra, latejas de vida como eu. Insufla em mim o bafo das tuas entranhas.
E assim a terra se move por baixo de vós, e por cima de vós o céu agita as suas asas.
Regressai aos vossos lares, enfrentando as águas que vão cair e separar-vos para sempre do "ontem".
Ide, com a esperança de vos tornardes homens da Estrela da Manhã e mulheres da Estrela de Alva.
Ainda não sois homens, ainda não sois mulheres...
Ramon levantou-se, dando o sinal de retirada. Logo todos se puseram de pé, empurrando-se, acotovelando-se, com a silenciosa pressa mexicana que parece deslizar rente ao solo.
O vento desencadeado uivava de encontro às mangueiras. Os homens seguravam o chapéu na cabeça e corriam de joelhos curvados, com as serapes a flutuar, enquanto as mulheres, cingindo a si o rebozo, fugiam, descalças, para ozaguán.
Junto do portão aberto estava um soldado de espingarda a tiracolo e lanterna na mão, alumiando aqueles que passavam calados e velozes e se dispersavam na alameda escura como pedacinhos de papel levados pelo vento. Num instante todos desapareceram.
Martin fechou o portão. O soldado pousou a lanterna no banco de pau e juntou-se aos camaradas alapardados nos seus capotes pretos, semelhantes a um molho de cogumelos na caverna do zaguán.
- Vai chover! - gritaram as servas excitadas quando Kate subia os degraus com Dona Carlota.
O lago, absolutamente negro, parecia uma cratera enorme. Em rajadas violentas, o vento traspassava as mangueiras com um som de membrana a rasgar-se. Os loendros curvavam-se no jardim, varriam o solo com as suas flores brancas, espectrais à luz do candeeiro que brilhava na parede junto da porta da entrada. Uma palmeira nova sacudia-se, dobrada, juncando o chão com as suas folhas. Nas trevas para além do mundo rolava um carro invisível...
Ao longe, na outra banda do lago, os raios traçavam no céu inscrições fulgurantes. E o trovão dir-se-ia ribombar nas entranhas da terra, surdo, aveludado.
- Isto chega a meter medo! - exclamou Dona Carlota, tapando os olhos com a mão e correndo a refugiar-se num canto recuado da sala deserta.
Cipriano e Kate demoraram-se no terraço olhando para as flores que voavam dos vasos e desapareciam no vácuo de trevas. Kate agarrava no xaile, mas o vento engolfou-se na serape de Cipriano, levantou-a ao ar e em seguida deixou-lha cair sobre a cabeça, tal uma chama rubra. Kate viu-lhe o peito escuro e musculado enquanto os seus braços lutavam por desenvencilhar a cabeça. Como a sua beleza era primitiva e toda física, com aquela carne lisa e cheia!
Mas não emitia nenhuma radiação exterior; fechava-se dentro de si mesmo.
- Eis a chuva! - exclamou ele! - baixando a serape.
Grossas, pesadas, as primeiras gotas tombavam como dardos sobre as plantas. Kate recuou para o vão da porta. Um raio ziguezagueou sobre as montanhas, pareceu deter-se um instante e reentrou nas trevas.
Então a chuva desabou, como se lá em cima houvessem aberto um reservatório imenso, e com ela veio uma lufada de ar frio. Ora num lado ora noutro, sucediam-se os relâmpagos, enchendo a atmosfera duma claridade azul e fugaz. Surgiam as árvores e o jardim fantasma, e logo desapareciam, enquanto o trovão ribombava.
Kate olhava pasmada para aquele dilúvio. Ao clarão momentâneo via o jardim já transformado em poço, as alamedas em ribeiras. Sentindo frio, recolheu-se dentro de casa.
Munido de lanterna, um criado pesquisava todos os aposentos para ver se andariam por ali escorpiões. Encontrou um a passear no quarto de Kate e outro em cima da cama de Carlota, caído duma viga do tecto.
Sentadas na sala, Kate e Carlota baloiçavam-se nas cadeiras, aspirando o bom ar fresco e húmido. Kate quase já se esquecera do que era frescura e humidade. Aconchegou o xaile ao pescoço.
- Ah, sente frio! Agora é preciso tomar cuidado com as noites... Às vezes, na época das chuvas, as noites são frigidíssimas. Devemos ter sempre à mão um cobertor suplementar. Os servos, coitados, limitam-se a tiritar, estendidos no chão, e de manhã estão gelados como cadáveres. Mas o sol depressa os aquece. Parecem julgar que são obrigados a suportar tudo o que vier, pois nunca tomam providências, embora se queixem.
O vento acalmara-se de repente, Kate sentia-se inquieta, mal disposta, com o bafo da água, quase de gelo, nas narinas, e o sangue ainda a arder-lhe nas veias. Levantou-se e foi para o terraço. Cipriano continuava ali, imóvel e impassível, envolto na sua serape vermelha e preta.
A chuva diminuía. Em baixo, no jardim, duas criadas corriam descalças, à débil claridade do candeeiro do zaguán; colocaram latas vazias debaixo dos fios de água que tombavam do telhado, e depois foram buscar os recipientes cheios. Isso poupava-lhes o trabalho de acarretar água do lago.
- Que pensa a nosso respeito? - perguntou Cipriano a Kate.
- Acho um povo muito estranho...
- Mas bom, não é verdade? - volveu o general em tom jubiloso.
- Um tanto assustador - replicou ela, rindo.
- Depois de se habituar parecer-lhe-á natural. E quando estiver num país como a Inglaterra, onde tudo é tão seguro e tão fácil, sentirá saudades e passará o tempo a perguntar a si mesma: O que é que me falta? O que é que falta aqui?
Dir-se-ia exprimir-se com maligna satisfação. E era curioso que ele, embora falasse bom inglês, parecesse sempre estrangeiro aos ouvidos de Kate, muito mais do que Dona Carlota com o seu espanhol castiço.
- Não compreendo que as pessoas queiram ter tudo, a vida inteira. Tudo tão seguro, tão pronto como na Inglaterra e na América. É bom estar alerta, no que vive, não?
- Talvez - concordou ela.
- Por isso gosto de ouvir Ramon dizer ao povo que a terra é viva, que o céu tem uma ave enorme lá dentro, mas que se não vê. Acredito nisso. E convém sabê-lo, pois assim continuamos no que vive.
- Não será fatigante?
- Ora, porquê? Pelo contrário, é repousante. Ah, a senhora devia casar e residir no México. Estou certo de que acabaria por gostar disto. Em cada manhã despertaria mais encantada.
- Ou cada vez mais enterrada. É o que sucede, julgo eu, a muitos estrangeiros.
- Enterrar-se? Como? Isto é um país onde a noite é noite e a chuva que cai é realmente chuva. E tem aqui um povo com o qual precisa de estar sempre alerta. Não acha admirável? Não poderá deixar-se adormecer. Veja, por exemplo, Ramon. Que pensa dele?
- Não sei. Não quero dizer nada, mas acho-o... longínquo. Custa a crer que seja mexicano.
- Pois é mexicano, não tenha dúvida.
- Não como o senhor. Dá-me a impressão de pertencer à velha Europa.
- Eu então considero-o pertencente ao velho México... E também ao novo - acrescentou de súbito.
- Todavia não acredita nele.
- Como?
- Não acredita nele. Considera aquilo, como tudo o mais, uma espécie de jogo. Aliás, para vós, mexicanos, tudo é uma espécie de jogo... No fundo, não crê em nada.
- Não creio em Ramon? Talvez não seja uma fé que me leve a ajoelhar à sua frente e a derramar-lhe lágrimas nos pés. Mas creio nele, e vou dizer-lhe o motivo: porque tem o poder de me fazer acreditar.
- Estranha fé, imposta pelos outros.
- Como se há-de crer, se não nos compelirem a isso? Quando eu era muito novo sentia-me infeliz porque o meu padrinho me não forçava a crer. Mas Ramon força-me... E é para mim uma felicidade saber que não posso escapar... como será também para si...
- Saber que não posso escapar a Don Ramon? - replicou
Kate ironicamente.
- Sim, e saber que não poderá evadir-se do México, nem fugir
de um homem como eu...
Kate ficou um instante calada antes de responder em tom sardónico:
- Não me parece que me cause muita alegria saber que não posso sair do México. Pelo contrário, não suportaria estar aqui se não tivesse a certeza de partir mais dia menos dia.
E disse consigo mesma: "Ramon talvez seja o único homem a quem eu não possa escapar completamente, porque deveras me impressiona. Mas de ti, Ciprianozinho, não precisarei de escapar porque não me apanhas."
- Ah, julga isso! - volveu ele rapidamente. - Mas é porque não sabe. Só pensa com ideias americanas. Devido à sua educação, só tem pensamentos americanos, pensamentos engendrados nos Estados Unidos. Quase todas as mulheres são assim, até as mexicanas da classe hispano-mexicana. Só possuem ideias dos Estados Unidos porque são as que condizem com os seus penteados. E o mesmo quanto a si, senhora Leslie. Pensa como uma mulher moderna porque pertence ao mundo anglo-saxónio ou teutão, e se penteia de certa maneira, e tem dinheiro, e é inteiramente livre. Mas tudo isso provém do facto de lhe haverem metido essas ideias na cabeça e não possuir outras, da mesma forma que, no México, se vê obrigada a gastar centavos e pesos por serem as moedas do país. Todavia, quando se declara livre, na realidade não o é. Vê-se forçada a pensar sempre com pensamentos americanos. Não tem maior faculdade de escolha do que uma serva. Assim como não pode deixar de comer diariamente tortillas... até que se lembre de que pode gostar doutra coisa.
- De que mais poderia eu gostar? - retorquiu Kate, escarninha.
- De outros pensamentos, de outras sensações. Receia homens como eu porque julga que a não tratariam "à americana". Tem razão. Eu não a trataria como se tratam as senhoras americanas. Porquê? Porque não o desejo, porque não me parece justo.
- Prefere tratar as mulheres como as mexicanas de outrora, não é verdade? Mantendo-as na ignorância, no cativeiro? - A voz de Kate assumira um tom sarcástico.
- Não as manteria na ignorância se elas já não fossem ignorantes. Mas o que lhes ensinaria não havia de ser conforme à educação americana.
- Então qual?
- Quien sabe! Ce reste à voir.
- Et continuera à y rester - concluiu a irlandesa, rindo.

CONTINUA

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Dez dias haviam decorrido desde a chegada de Kate a Sayula sem que Don Ramon desse sinal de vida. No entanto, quando passeava de barco, vira a casa dele na outra banda da ponta oeste do lago. Era um edifício alaranjado de dois andares, com alpendre para embarcações e bosquete de mangueiras rente à margem. Entre as árvores distinguiam-se duas filas de cabanas de adobe, a habitação dos peóns.
A hacienda fora outrora das mais importantes. Regavam-na então com a água captada nas colinas, mas as revoluções haviam destruído todos os aquedutos. Don Ramon tinha inimigos no Governo, de modo que grande parte das suas terras fora dividida entre os peóns e só lhe ficaram cerca de trezentos acres de terreno, dos quais duzentos marginavam o lago e lhe eram inúteis. Cultivava um pomar em volta da casa e cana-de-açúcar num valezito entre as colinas. Na encosta do monte viam-se campos de milho.
'Dona Carlota era rica; tirava bons rendimentos das minas de Torreon, seu berço natal.
Chegou um portador com uma carta de Don Ramon em que este pedia a Kate licença para a visitar com a esposa.
Dona Carlota era uma mulher franzina, suave, de grandes olhos um tanto assustadiços e sedosos cabelos castanhos. Filha de pai espanhol e de mãe francesa, de origem puramente europeia, em nada se assemelhava às corpulentas mexicanas de faces cobertas de pó-de-arroz. De rosto pálido, sem artifício, a figura delgada tinha qualquer coisa de inglês, que os grandes olhos castanhos desmentiam. Só falava espanhol e francês, mas o seu espanhol soava tão lento e distinto (com um leve tom de queixume) que Kate a compreendeu sem dificuldade.
As duas mulheres entenderam-se depressa, mas sentiam-se um tanto nervosas na presença uma da outra. Dona Carlota era frágil e sensível como um cão chihuahua.
Em toda a sua vida, Kate raras vezes encontrara criatura tão doce e delicada. Conversaram uma com a outra, enquanto Don Ramon se mantinha calado. Dir-se-ia que ambas se arremessavam contra aquela barreira de silêncio.
Kate percebeu logo que Dona Carlota amava Ramon, mas com um amor que se tornara voluntário. Adorara-o, e acabara-se a adoração. Duvidara dele, e duvidaria sempre.
Sentado um pouco à parte, de ar constrangido, Don Ramon baixava a bela cabeça e deixava pender as mãos entre as coxas.
- Sabe que passei há dias bons momentos? - disse Kate, dirigindo-se-lhe de súbito. - Dancei de roda do tambor com os homens de Quetzalcoatl.
- Assim me constou - respondeu ele com um sorriso forçado.
Embora não falasse inglês, Dona Carlota compreendia essa língua
- Dançou com os homens de Quetzalcoatl! - exclamou em espanhol. - Porque fez isso? Porquê?
- Estava fascinada.
- Não se deixe fascinar. Afirmo-lhe que lastimo muito que meu marido se interesse por esse movimento. É para mim um desgosto.
Juana apareceu nesse momento com uma garrafa de vermute, a única coisa que Kate podia oferecer aos visitantes.
- Foi aos Estados Unidos ver os seus filhos? - perguntou Kate. - Como vão eles?
- Bem, obrigada. Embora o mais novo continue fraquito...
- Não os trouxe consigo?
- Não. Acho que estão melhor no colégio. Aqui... aqui há muita coisa que os perturbaria. Mas hei-de cá tê-los no próximo mês a passar as férias.
- Então terei oportunidade de os conhecer - disse Kate. Virão para a casa do lago, não é verdade?
- Ainda não sei. Talvez passemos aqui alguns dias. Ando tão ocupada na Cidade do México com a minha Cuna!
- Cuna? Que é isso? - indagou Kate.
Tratava-se de um hospício de enjeitados assistido por algumas obscuras carmelitas. Dona Carlota era a directora, e Kate chegou à conclusão de que a mulher de Ramon devia ser católica fervorosa, quase exaltada. Entregava-se de corpo e alma à Igreja e àquela obra de beneficência.
- Nascem tantas crianças no México e são tão numerosas as que morrem! Se as pudéssemos salvar e preparar para a vida! Fazemos tudo o que é possível, mas ainda é pouco.
Segundo parecia, todos os nenés indesejáveis eram entregues na Cuna, como embrulhos. A mãe só tinha de bater à porta e depositar noutras mãos o pacote vivo.
- Assim, impedimos que muitas mães negligentes deixem morrer os filhos - prosseguiu Dona Carlota. - Se não nos dizem o nome da criança, sou eu que a baptizo. Já o tenho feito muitas vezes. É vulgar entregarem-nos meninos absolutamente nus, sem um trapo a cobri-los... e sem nome. E nós nunca perguntamos nada.
Nem todos os expostos ficavam no hospício. Na maior parte eram confiados a índias decentes, a quem pagavam para os criar em casa. No fim do mês, cada qual se apresentava com o seu protegido e recebia o ordenado. As índias podem ser descuidadas mas não maltratam as crianças.
Noutro tempo, informou Dona Carlota, quase todas as senhoras do México recebiam na sua casa um ou dois desses enjeitados e tratavam-nos como família. Mas perdera-se a generosidade patriarcal dos espanhóis-mexicanos e actualmente adoptavam poucas crianças. Em vez disso, preparavam-nas para ganhar a vida, ensinando-lhes qualquer ofício.
Kate ouvia com-interesse e certo constrangimento. Não lobrigava sentimentos humanos nessa caridade mexicana, e quase discordava dela. Talvez Dona Carlota fizesse tudo o que podia nesse país semibárbaro, mas fazia-o sem nenhuma esperança de êxito. Embora com a consciência de que procedia bem, tinha um pouco o ar de vítima, de uma vítima sensível, branda, um tanto assustada. Dir-se-ia que um mal secreto lhe roía o coração.
Don Ramon escutava impassível, num silêncio que se opunha ao entusiasmo caritativo da mulher. Deixava-a agir como entendia, mas contra a sua obra e a sua loquacidade mantinha-se calado, duro, numa hostilidade surda e permanente. Dona Carlota percebia-o e tremia nervosamente enquanto falava do hospício de enjeitados. Kate acabou por achar cruel a atitude de Don Ramon; parecia um ídolo de pedra.
- Porque não vem passar um dia connosco, enquanto estamos em Sayula? - sugeriu Dona Carlota. - A casa é pouco confortável, já não é como foi, mas teremos muito gosto em recebê-la.
Kate aceitou o convite e disse que preferia ir a pé. Eram apenas quatro milhas de percurso e, com a Juana, iria bem acompanhada.
-. - Mandarei um homem buscá-las - declarou Don Ramon. Será mais seguro.
- Onde está o general Viedma? - perguntou Kate.
- Faremos o possível por tê-lo connosco quando a senhora lá for - replicou Dona Carlota. - Gosto deveras de Don Cipriano, que há muitos anos conheço. Por sinal que é o padrinho do meu filho mais novo. Presentemente, comanda a divisão de Guadalajara, por isso nem sempre se encontra livre.
- Admira-me que seja general - observou Kate. - Acho-o humano em excesso.
- E, de facto, é cheio de humanidade. Mas é general, e gosta de comandar os soldados. Deixe-me dizer-lhe que se trata de uma pessoa de muita influência. Exerce grande ascendente na tropa. Crêem nele, isso não se pode negar. Possui aquele poder, inato nos chefes índios, de afeiçoar a si os militares e de os levar ao combate. Pois é assim mesmo Don Cipriano. Ninguém conseguiria modificá-lo. Julgo, porém, que lhe seria de utilidade a presença de uma mulher. Nunca teve nenhuma na sua vida! Elas não lhe interessam...
- Que lhe interessa então?
- Ah! - exclamou Dona Carlota, estremecendo como se a picassem. Lançou um olhar rápido ao marido e declarou: - Não sei. Palavra que não sei.
- Os homens de Quetzalcoatl - declarou Don Ramon com
um leve sorriso.
Mas Dona Carlota dir-se-ia tirar-lhe todo o desembaraço. Parecia contrafeito, e um tanto estúpido.
- Ah, sim, sim, os homens de Quetzalcoatl - bradou Dona Carlota, amável mas com ar de censura. - Linda coisa para ele se ocupar! - Kate percebeu que a sua interlocutora adorava esses dois homens e que tremia à ideia de se opor aos seus erros, embora jamais transigisse com qualquer deles.
Para Don Ramon representava um pesado fardo aquela cega adoração da mulher e a sua não menos cega oposição.
Certa manhã, às nove horas, apareceu o criado para acompanhar Kate à fazenda, que chamavam de Jamiltepec. Trazia um cabaz e vinha do mercado. Era um velhote de bigode grisalho e olhos juvenis, cheios de vida. Os pés, metidos em huafaches, pareciam negros de tão queimados do sol, mas o fato resplandecia de alvura.
Kate ficou radiante com essa excursão a pé. O que tornava tão aborrecida a sua existência na aldeia era a impossibilidade de passear no campo. Havia sempre o risco de um assalto. Acompanhada de Ezequiel, dera algumas voltas pelos arredores, mas já começava a sentir-se prisioneira. Foi, por conseguinte, uma alegria sair de casa.
A manhã estava clara e quente, o lago brilhava quieto, espectral. Moviam-se pessoas na margem, minúsculas àquela distância, meros pontinhos brancos: peóns que seguiam os seus burros envoltos numa leve nuvem de poeira. Kate perguntava a si mesma porque seria que os homens apareciam sempre na paisagem mexicana como pequeninas manchas; pequeninas manchas de vida.
Entraram na estrada poeirenta que levava para oeste, entre a vertente alcantilada das colinas e a nesga de planície junto ao lago. Por espaço de milha foram encontrando vivendas, muitas delas fechadas, outras destruídas, já sem muros nem janelas. Todavia desabrochavam flores entre os montes de cascalho.
Nos terrenos vagos havia delgadas cabanas de palha dos indígenas - como que nascidas ali, ao acaso. Perto do caminho por baixo de um outeiro viam-se choças de adobe, semelhantes a caixas cinzento-escuras. Em volta corriam aves domésticas, grunhiam e refocilavam porcos pardacentos ou malhados de preto. Crianças seminuas, de um tom castanho-alaranjado, brincavam ou jaziam estiradas no chão, a dormir, com as nádegas à mostra.
Muitas das casas estavam a ser cobertas de colmo novo ou reteIhadas por indivíduos que assumiam ares de importância por se encarregarem desse trabalho. Mostravam-se também apressados, pois não tardariam a vir as chuvas torrenciais. E, na banda do lago, havia quem andasse a lavrar a terra dura com uma junta de bois e um pau forte e aguçado.
Mas Kate conhecia essa parte do caminho. Vira já a bela vivenda da colina, com os seus tufos de palmeiras que ladeavam as alamedas desertas. A estrada descia novamente para o lago, entre árvores frondosas de vagens retorcidas. À esquerda, a água mansa, gelatinosa, lambia as pedras amareladas. Numa poça da praia estavam mulheres a lavar roupa, e, nos baixios, banhavam-se duas raparigas com os cabelos negros pendentes e gotejantes. Mais adiante, um homem patinhava lentamente, detendo-se para arremessar com perícia a rede à água e depois recolhê-la cheia desses peixinhos luzidios a que chamam charales. Tudo estranhamente silencioso e remoto na manhã cintilante.
Vinha do lago uma leve brisa, mas a poeira da estrada queimava os pés. À direita erguia-se o monte, abrupto, ressequido e amarelo, exalando calor e aquele cheiro característico do México que se diria ser a evaporação duma terra cada vez mais calcinada.
Desfilavam continuamente filas de burros carregados, trotando na poeira e seguidos pelos condutores que marchavam erectos e rápidos, olhando com olhos semelhantes a buracos negros mas respondendo sempre à saudação de Kate com um respeitoso adiós. E Juana ecoava com o seu lacónico adiósm. Caminhava coxeando e achava tristíssima aquela ideia da niña de percorrer quatro milhas a pé, quando poderiam ir num automóvel de aluguer, de barco ou mesmo de burro.
Mas a pé! Kate percebia todos os sentimentos da criada no seu arrastado e sardónico adiósn. Em compensação, o homem de Ramon vinha animadamente atrás delas, dirigindo saudações alegres, com a pistola bem em evidência no cinto.
A estrada contornava um rochedo amarelo e escarpado para desembocar num campo aberto, onde se alastravam espinheiros e cactos poeirentos. À esquerda, distinguia-se a mancha verde dos salgueiros à beira do lago. À direita, as colinas inclinavam-se sobre o flanco árido das montanhas. Em frente, os outeiros ladeavam as margens do lago e afastavam-se, descobrindo uma espécie de garganta que conduzia à casa de Don Ramon e à sua plantação de cana-de-açúcar.
- Aqui temos Jamiltepec, a hacienda de Don Ramon, señorita - anunciou o homem.
Os olhos luziam-lhe ao proferir estas palavras. Era um peón orgulhoso e sem dúvida feliz com a sua sorte.
- Que lonjura! - exclamou Juana.
- Para outra vez virei só ou com o Ezequiel - replicou Kate.
- Não diga isso, niña! Só me queixo do pé, que me dói hoje a valer.
- Por isso mesmo é melhor não vires comigo.
- Não, niña. Gosto muito de vir.
Giravam alegremente as asas do moinho que puxava a água do lago. Entre as colinas descia o valezito onde deslizava um riacho e na parte mais larga viam-se bananeiras que uma cortina de salgueiros resguardava da brisa lacustre. No cimo da encosta, onde o caminho se embrenhava na sombra de mangueiras, elevavam-se dois renques de casas de adobe, tal uma aldeia um pouco recuada.
Surgiam mulheres entre as árvores, que vinham do lago com seus cântaros de água ao ombro. De roda das portas brincavam crianças, arrastando o traseiro nu na poeira do chão. Aqui e ali, uma cabra amarrada. E, apoiados na esquina da casa, ou encostados à parede, estavam homens de braços e pernas cruzados, mas não em dolce far niente. Pareciam esperar, esperar eternamente por qualquer coisa.
- Por aqui, señorita ! - disse o homem do cabaz, indicando um caminho que descia entre árvores frondosas até ao portão branco da hacienda. - Já cá estamos.
Mostrava-se tão contente como se houvesse chegado ao Paraíso.
Encontravam-se abertas as portas do zaguán, ou entrada, a cuja sombra descansavam dois soldados. No espaço em frente do portão, passavam nesse momento dois peóns, cada qual com um cacho de bananas à cabeça. Os soldados disseram qualquer coisa e aqueles detiveram-se e voltaram-se lentamente com a sua carga verde para observarem Kate, Juana e Martin - o homem que as acompanhava. Depois retomaram a sua marcha.
Os soldados levantaram-se e Martin conduziu Kate pela passagem abobadada, onde as rodas dos carros haviam cavado fundos sulcos. Juana seguia-os com expressão lastimosa.
Kate achou-se num pátio enorme, cercado em três lados por muros altos, alpendres e estábulos. Ao fundo era a casa de residência, com as suas janelas gradeadas e, em vez de porta, outro zaguán de batentes fechados, espécie de corredor ao longo do edifício.
Martin avançou para tocar a aldraba, e Kate olhou entretanto à sua volta. Num alpendre, estavam homens seminus a empacar cachos de bananas. Noutro lado, serravam paus e descarregavam telhas de cima dum burro. A um canto viam-se bois atrelados a uma carroça, de cabeça pendida sob a canga, como se esperassem.
Abriram-se as portas e Kate entrou no segundo zaguán. Era uma entrada larga, com seu lanço de escadas a um lado e um portão gradeado ao fundo, através do qual se via o jardim orlado de mangueiras e, mais abaixo, o lago com o seu porto artificial onde baloiçavam dois barcos.
Nas costas dos recém-vindos, a criada fechou a porta que dava para o pátio e indicou a Kate as escadas.
- Por aqui, señorita.
Badalava uma sineta lá no cimo. Kate subiu os degraus de pedra, ao encontro de Dona Carlota, que a esperava no patamar, vestida de musselina branca, o que, pelo contraste, lhe dava um tom amarelo às faces. Estendeu os braços magros e bronzeados, acolhendo Kate com extraordinária efusão.
- Muito prazer em vê-la aqui! E veio todo o caminho a pé, com este sol! Entre, entre e descanse.
Pegou na mão de Kate e levou-a através do terraço, no topo da escada.
- Que linda vista! - exclamou Kate, contemplando o lago para além das mangueiras. Na água pálida, irreal, vogava ao longe um barco de vela. Para além, elevavam-se as montanhas de gargantas azuladas, com a mancha branca duma aldeia. Dir-se-ia outro mundo, perdido na luz da manhã, outra vida.
- Que povoação é aquela? - perguntou Kate.
- Acolá? É San Ildefonso - respondeu Dona Carlota.
- Como este sítio é belo! - disse Kate.
- Hermoso, si! Si, bonito - retorquiu a outra em espanhol, conforme o seu costume.
A casa, de um vermelho-alaranjado, tinha duas alas voltadas para o lago. com o seu murinho coroado de plantas verdes, o terraço cercava três lados do edifício; suportavam o telhado largos pilares que partiam do solo, formando em baixo uma espécie de claustro ocupado ao centro por um tanque cheio de água.
- Venha - disse Dona Carlota. - Precisa de descansar.
- Gostaria de mudar de sapatos - declarou Kate. Levaram-na a um quarto espaçoso, um tanto vazio, de chão de
tijolos. Aí, Kate calçou as meias e os sapatos que Juana trouxera num embrulho e estendeu-se um momento para repousar.
E, enquanto repousava, ouvia o rufar surdo do tambor, no profundo silêncio da manhã, só perturbado pelo canto dum galo longínquo. Aquele som contínuo, insistente, enchia-a de mal-estar. Parecia o ribombo duma tempestade desencadeando-se no horizonte.
Kate levantou-se e dirigiu-se para o salão onde Dona Carlota estava sentada a conversar com um homem vestido de preto. com as suas três portas envidraçadas abertas sobre o terraço, chão de ladrilhos vermelhos, paredes pintadas de verde-claro, tecto de barrotes caiados e escassez de mobília, aquilo parecia mais um caramanchel do que um salão. Como em muitas casas dos países quentes, tinha-se a impressão de não se estar dentro de quatro paredes, mas sim de três; um lugar de passagem, e não para ficar.
À chegada de Kate, o homem de preto levantou-se, apertou a mão a Dona Carlota e, baixando a cabeça num comprimento cerimonioso, desapareceu por uma das portas do terraço.
- Entre, entre! - disse Dona Carlota a Kate. - Já não se sente cansada? - acrescentou, avançando uma das cadeiras de junco que estava negligentemente colocada no meio da sala.
- Absolutamente nada - respondeu Kate. - Como esta região é silenciosa! Só se ouve o tambor, o que talvez nos faça notar mais o silêncio.
- Ah, esse tambor! - exclamou Dona Carlota, erguendo a mão num movimento de exaspero. - Não posso com isso! Detesto ouvi-lo.
E moveu-se na cadeira de baloiço, com súbito nervosismo.
- É um som realmente impressionante - redarguiu Kate. - Que significa, afinal?
- Não mo pergunte! São coisas de meu marido. - E Dona Carlota fez novo gesto de desespero.
- Don Ramon é que toca o tambor?
- Não, não! - Dona Carlota pareceu sobressaltada àquela pergunta. - Não é ele que toca. Trouxe dois índios do Norte para se desempenharem desse trabalho.
- Ah, sim? - volveu Kate, sem se comprometer. Mas Dona Carlota balançava-se numa espécie de semi-inconsciência e só daí a instantes pareceu voltar a si.
- Tenho de desabafar com alguém! - disse, de repente, endireitando-se na cadeira, com uma expressão de angústia espelhada nos grandes olhos castanhos e no rosto cor de nata. - Posso desabafar consigo?
- Certamente - respondeu Kate, constrangida.
- Sabe o que Ramon anda a fazer?
- Julgo que pretende ressuscitar o culto dos deuses antigos.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, com outro aceno de mão desesperado. - Como se isso fosse possível! Os deuses antigos! Imagine-se! Que são eles senão ilusões mortas? E feias, repulsivas! Sempre pensei que meu marido fosse inteligente, muito superior a mim, e é triste ter de mudar de opinião. Tudo aquilo é um disparate. E ele atreve-se a tomar a sério o que não passa de um disparate!
- Talvez Don Ramon creia...
- Mas como pode ele crer? - replicou a dona da casa, com um sorriso desdenhoso. - É instruído, não pode acreditar em semelhante tolice.
- Então qual é o seu objectivo?
- Isso é que eu gostaria de saber. - Na voz de Dona Carlota transparecia indizível cansaço. - Penso que está louco, como acontece a tantos mexicanos. Louco como o bandido Francisco Villa.
Lembrando-se do rosto simiesco do famoso Pancho Villa, Kate não foi capaz de o associar a Don Ramon.
- Desde que se elevam na sociedade os mexicanos perdem a cabeça, o orgulho transtorna-os. Não pensam em mais nada senão na sua importância. Pura vaidade masculina. Não acha, señora, que a vaidade é o começo e o fim do homem? Jesus veio ao mundo para combater esse perigo, ensinando-nos a ser humildes. Por isso odeiam Cristo e os Seus ensinamentos, e deixam-se guiar pela vaidade durante toda a vida.
A mesma reflexão ocorrera a Kate muitas vezes, e concluíra que nos homens só existia vaidade. Precisavam de ser lisonjeados, de sentir a sua grandeza, nada mais.
- O que meu marido pretende é opor-se a Jesus, elevar o orgulho e a vaidade acima de Deus. Ah, é horrível! Horrível e infantil. Que são os homens senão crianças que necessitam dos cuidados da mãe? Ah, señora, é mais do que posso suportar!
Dona Carlota cobriu a cara com as mãos.
- Em todo o caso, acho o seu marido uma pessoa excepcional - disse Kate para a consolar, embora nesse momento detestasse Don Ramon.
- Sim, possui grandes qualidades, mas de que lhe servem se estão pervertidas?
- Explique-me ao certo: o que é que ele pretende, afinal?
- O poder, o poder absurdo e maléfico, como se já não houvesse bastantes poderes maléficos por todo este país. Quer ser mais do que os outros, adorado, venerado. Um deus! Ele, a quem embalei nos braços como uma criança, querer que o adorem!
E Dona Carlota desatou num riso estridente pontuado de soluços.
Kate esperou que ela se acalmasse.
- No fim de contas - disse, quando a viu mais sossegada - não somos responsáveis pelo que fazem os maridos. Aprendi à minha custa que todo o amor é impotente perante a vontade dos homens. Meu marido quis morrer, e não pude impedi-lo... Temos de os deixar fazer tudo o que querem, até as coisas que nos parecem insensatas.
Dona Carlota ergueu os olhos para Kate.
- Gostava muito do seu marido... e ele morreu? - perguntou em voz suave.
- Amei-o deveras, e não tornarei a gostar doutro homem. Perdi a faculdade de amar.
- De que morreu?
- Por sua culpa. Despedaçou o coração e a alma com a política irlandesa. Eu sabia que ele fazia mal em se ocupar disso. Que nos importava a Irlanda, o nacionalismo, as revoluções e todas essas tolices? Ah, se o Joachim se limitasse a viver em paz comigo, poderíamos ser tão felizes! Em vão tentei convencê-lo. Queria matar-se com aquela estúpida política, e não consegui evitá-lo. Foram inúteis todos os meus esforços.
Dona Carlota olhou fixamente para Kate.
- Assim como são os meus para impedir que Ramon proceda mal e se mate... E depois de morto, de que servirá tudo aquilo?
- De nada. Depois de eles morrerem, ficamos a saber que foi inútil todo o trabalho que tiveram.
- Oh, señora! Se pode ajudar-me a salvar Ramon, ajude-me! É uma questão de vida ou de morte para nós ambos. Porque eu morrerei se ele levar a sua avante...
- Explique-me bem qual é a ideia de Don Ramon. A do meu marido era libertar a Irlanda e engrandecer o povo. Mas eu nunca acreditei que os irlandeses fossem jamais um grande povo nem que se pudesse torná-lo livre. Só sabe destruir, e destruir estupidamente. Não se pode fazer livre um povo que o não é. Existe nele qualquer coisa que o impele à destruição.
- Bem sei, bem sei. Da mesma forma é Ramon. Até quer destruir Jesus e a Virgem Maria por amor do povo. Imagine! Derrotar Jesus e a Virgem! A última coisa que se podia pensar...
- Mas o que diz ele quanto ao seu projecto?
- Diz que pretende estabelecer um novo nexo entre o povo e Deus. Declara, por seu lado, que Deus é sempre Deus, mas que o homem perdeu a sua união com a divindade... e que não é possível restaurá-la sem que venha um novo Deus. E que qualquer novo nexo tem de ser diferente do antigo, embora Deus continue a ser Deus. Neste momento, declara meu marido, o povo perdeu o seu Deus. O Salvador já não será capaz de o reconduzir a Si. Precisa-se de outro Salvador, com uma nova visão. Ah, señora, eu não creio nisto! Deus é amor e, se Ramon se submetesse, ao menos, ao amor, compreenderia que aí é que estava Deus. Mas qual! É tão perverso! Poderíamos, ambos, com amor calmo, gozando a beleza do mundo, esperar pelo amor de Deus... Porque é, señora, que ele não vê isto? Oh, porque não compreende? Em vez de fazer estas coisas...
Acudiram lágrimas aos olhos de Dona Carlota, as quais se lhe espalharam pelo rosto. Kate também chorava.
- É inútil! - disse ela, soluçando. - Sei que é inútil, faça-se o que se fizer. Não querem ser felizes e estar em paz, mas sim esta luta e esses falsos e horríveis nexos... Sim, é inútil, de qualquer forma. E nisto é que está o pior.
E as duas mulheres, sentadas nas cadeiras de baloiço, soluçavam amargamente quando ouviram passos no terraço, leve ruído de pés calçados de sandálias.
Era Don Ramon, atraído inconscientemente pelo clamor daquelas criaturas pesarosas.
Dona Carlota limpou a toda a pressa os olhos e o nariz; Kate assoou-se com estrondo. No limiar da porta, Don Ramon deteve-se.
Trajava como os camponeses, todo de branco, de casaco largo e calças muito amplas. O fato era de linho, com certa goma, e tinha um brilho estranho, fora do vulgar. Por baixo do casaco, à frente, uniam-se as pontas duma faixa estreita de lã, também branca, franjada de vermelho e riscada de azul e preto. Nos pés sem meias trazia huaraches de coiro azul e negro, entrançado, com espessas solas tingidas de vermelhão. As calças estavam presas aos tornozelos por alamares de lã pretos, azuis e encarnados.
Kate, vendo-o assim à claridade do sol, vestido de uma alvura tão ofuscante, teve a impressão de que o rosto dele, escuro e emoldurado de cabelos escuros, fazia como que um buraco na atmosfera.
Don Ramon aproximou-se, com as pontas da faixa a baterem-lhe nas pernas, e as sandálias rangendo de leve.
- Muito prazer em encontrá-la - murmurou, apertando a mão da visitante. - Como veio?
Deixou-se cair numa cadeira e ficou imóvel. As duas senhoras baixaram a cabeça, como se quisessem esconder a cara. A presença do homem ainda as constrangia mais, porém o dono da casa fingiu não reparar na comoção que sentiam e fê-lo por um acto de pura vontade. Da sua presença emanava certa força e elas experimentaram um pouco de alívio.
- Não sabia que o meu marido se tornara num aldeão, num verdadeiro peón? - perguntou Dona Carlota, irónica, à sua hóspeda. - É um señor peón, como o conde Tolstoi se fez señor mujique...
- Mas fica-lhe bem - observou Kate.
- Ora aí está... Ao diabo o que é do diabo... - replicou Don Ramon.
Havia nele algo de tenaz, de inflexível. Riu, e falou às senhoras, mas sem se revelar muito, apenas superficialmente. O seu ser íntimo, insondável e poderoso, não entrava em contacto com elas.
Assim foi durante o almoço. Houve conversa esvoaçante, com intervalos de silêncio. Nesse silêncio percebia-se que Don Ramon vivia noutro mundo; e a sua vontade calma, obrando noutra esfera, fazia recuar as mulheres para a sombra.
- A señora é como eu, Ramon - disse Dona Carlota. - Não tolera o rufar do tambor. Irá continuar aquilo, pela tarde adiante?
Seguiu-se uma pausa antes que ele respondesse:
- Só depois das quatro horas.
- Temos, então, de aturar hoje esse barulho? - insistiu Dona Carlota.
- Porque não há-de ser hoje como nos outros dias? - ripostou o marido. Notava-se-lhe um ar contrariado. Era evidente que pretendia subtrair-se à presença daquelas duas.
- Porque a senhora está cá, e eu estou também, e porque nenhuma de nós gosta daquele som. Amanhã já ela se vai embora, e eu regresso à cidade. Porque não nos poupas esse tormento? E
Ramon fitou a mulher, e em seguida Kate. Os olhos denotavam cólera. Kate quase ouvia, naquele peito forte, o coração inchar de furor. Mas calou-se e a outra também se calou. No fundo, estavam satisfeitas por terem podido despertar a ira do homem.
Mantendo o sangue-frio, Don Ramon inquiriu da esposa (não sem que se lhe percebesse a indignação):
- Porque não levas a senhora Leslie até ao lago?
- Não nos apetece.
Ele então fez o que a irlandesa nunca vira ninguém fazer. Encerrou-se dentro de si mesmo, deixando às duas comensais a impressão de se encontrarem diante duma porta que se fechou. Kate sentiu-se abandonada e deprimida, mas a pouco e pouco a irritação tingiu-lhe as faces pálidas dum rubor de fogo.
- Posso ir-me embora antes das quatro horas - declarou.
- Não, não! - acudiu, suplicante, a dona da casa. - Não me deixe. Fique comigo até à noite e ajude-me a distrair Don Cipriano, que vem jantar connosco.

XI
Acabado o almoço, Ramon recolheu ao quarto para dormir a sesta. A tarde estava quente, pesada. No extremo oeste do lago erguiam-se nuvens cintilantes, quais mensageiros da tempestade. Ramon fechou as janelas do seu aposento de modo a obter negrume total; apenas aqui e ali, filtrando-se pelos interstícios da porta, os raios de luz pousavam nas trevas como uma coisa tangível.
Despiu a roupa e ergueu acima da cabeça os punhos fechados, como se orasse intensamente e de pé. Nos seus olhos só havia escuridão, e a pouco e pouco essa escuridão atingiu-lhe o cérebro, apagando-lhe todos os pensamentos. Só uma vontade poderosa se distendia e emanava da espinha dorsal, numa tensão sobre-humana até que as flechas da alma atingiram o alvo e a oração a sua meta.
Então, bruscamente, tombaram os braços trémulos, o corpo readquiriu a flexibilidade. O homem recuperara a sua força. Quebrara as cordas do mundo e sentia-se livre e senhor da outra força.
Devagarinho, com precaução, esforçando-se por não pensar, não se recordar, não despertar as serpentes venenosas da consciência, enrolou-se num cobertor delgado e estendeu-se no chão sobre uma pilha de coxins. Daí a instantes, adormecia.
Dormiu profundamente cerca de uma hora. Abriu os olhos de repente, viu as trevas aveludadas e as frechas de luz diminuídas: o sol mudara. Pôs-se à escuta. Parecia não haver um único som no mundo. Talvez não existisse mundo...
Então começou a ouvir. Distinguiu o débil rumor duma carroça, folhas sussurrando ao vento, o som distante de pancadas, o pio duma ave.
Levantou-se, vestiu-se com rapidez às escuras e foi abrir as janelas. A tarde ia em meio; soprava uma aragem quente, amontoavam-se a oeste nuvens escuras, mas a chuva não se decidia a cair. Ramon pôs na cabeça um chapéu de palha, que tinha à frente um enfeite de penas brancas, pretas e azuis dispostas em forma de olho, ou de sol. Ouviu vozes femininas. Ah, a estrangeira! Esquecera-a por completo. E Carlota! Carlota encontrava-se ali. Por um momento, pensou nela e na sua caprichosa oposição. Depois, antes que a ira o dominasse, soergueu o peito, em nova oração muda, os olhos sombrearam-se-lhe - e perdeu a impressão de contrariedade.
Seguiu pelo terraço até à escada de pedra que conduzia à entrada e atravessou o pátio, onde dois homens, debaixo dum alpendre, carregavam azêmolas com fardos de bananas. No zaguán dormiam soldados. Pelas portas abertas, Ramon viu ao fundo da alameda um carro de bois afastando-se lentamente. No pátio ressoavam marteladas numa bigorna: era um homem e um rapazito ocupados na forja. Noutro alpendre, um carpinteiro aplainava tábuas.
Don Ramon deteve-se um momento para olhar em volta. Aquele era o seu mundo. O espírito dele espraiava-se nesse mundo como uma sombra fomentadora, e o silêncio do seu próprio poder dava-lhe paz.
Os homens que trabalhavam tiveram quase instantaneamente consciência da presença do patrão. Um após outro, os rostos escuros e ardentes ergueram-se para ele e voltaram a baixar-se. Gostavam de o ver ali, mas temiam aproximar-se e nem se atreviam a um olhar mais prolongado. Retomaram o trabalho com mais ardor, como se a presença do patrão lhes desse novo alento.
Ramon dirigiu-se para a forja, onde o rapazinho dava ao fole e o homem batia pancadas leves e rápidas num pedaço de ferro.
- É a ave? - perguntou Ramon.
- Sim, patrón, é a ave. Está bem! - E o homem levantou os olhos pretos, luzidios, expectantes. com uma tenaz, brandiu a tira de metal, negra, em forma de língua achatada, e Ramon observou-a demoradamente. - As asas ponho-as depois - explicou o ferreiro.
com as mãos escuras e nervosas, Don Ramon traçou uma linha imaginária em volta do pedaço de ferro. Três vezes fez esse gesto, que parecia fascinar o ferreiro.
- Um pouco mais alongado. Assim... - disse Ramon.
- Sim, patrón, compreendo.
- E o resto?
- Está ali. - O homem apontou para dois arcos, um maior que outro, e para várias chapas de ferro triangulares.
- Coloca tudo isso no chão.
O ferreiro pousou os arcos, um dentro do outro, e em seguida dispôs com perícia os triângulos de modo que as bases ficassem sobre o arco exterior e os vértices no círculo interior. Eram sete.
Assim formaram um sol de sete pontas.
- Agora, a ave - ordenou Ramon.
O homem pegou logo na peça comprida: era a forma rudimentar dum pássaro, com dois pés mas ainda sem asas. Colocou-a no centro da roda interior, de maneira que as patas tocassem no círculo e a cabeça atingisse a parte oposta.
- Está tudo certo!
Ramon contemplava o símbolo de ferro armado no chão quando ouviu abrir a porta de casa. Kate e Carlota avançaram através do pátio.
- Retiro isto? - inquiriu o ferreiro.
- Deixa, não faz mal - respondeu Don Ramon tranquilamente.
Kate deteve-se a observar aquela coisa estendida no chão.
- Que é isso? - perguntou.
- A ave dentro do sol.
- Representa uma ave?
- Quando tiver asas.
- Ah, faltam-lhe as asas! E de que serve?
- É um símbolo para o povo.
- é bem bonito...
- Sim, é bonito.
- Ramon, não te importas dar-me a chave para tirar o barco?
- disse Dona Carlota. - Vamos dar um passeio no lago, e Martin remará.
O marido tirou a chave da cinta.
- Onde descobriu essa linda faixa? - indagou Kate. Era branca, com riscas azuis e pretas e franjadade vermelho.
- Teceram-na aqui - informou Don Ramon.
- E as sandálias? Também as fizeram cá?
- Sim, foi obra do Manuel. Mais tarde lho mostrarei...
- Gostaria bastante de ver. São belíssimas, não acha, Dona Carlota?
- Acho, mas não sei se as coisas belas são sensatas. Não sei. E a señora, sabe o que é sensato?
- Eu? - volveu Kate. - Não me preocupo muito com isso.
- Ah, não se preocupa! Afigura-se-lhe então sensato da parte de Ramon usar traje de camponês e huaraches?
Pela primeira vez, Dona Carlota exprimira-se em língua inglesa, falando com lentidão.
- Fica-lhe tão bem! - replicou Kate. - O fato de homem é medonho e Don Ramon parece magnífico com este.
De facto, com o largo chapéu pousado na cabeça ele tinha certo ar de nobreza e autoridade.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, fixando na companheira o seu olhar inteligente, enquanto brincava com a chave. - Vamos para o lago?
As duas mulheres afastaram-se. Rindo consigo mesmo, Ramon atravessou o pátio e dirigiu-se a uma granja construída perto das árvores. Entrou e assobiou baixinho. Soou outro assobio como resposta e abriu-se um alçapão. Don Ramon subiu a escada e encontrou-se numa espécie de oficina de carpinteiro. Acolheu-o um rapaz corpulento, de cabelo encaracolado, que empunhava maço e escopro.
- Que tal vai isso? - perguntou Ramon.
- Vai bem.
O artista esculpia uma cabeça de madeira. Uma cabeça avantajada, convencional, mas que, apesar do convencionalismo, revelava semelhança com Ramon.
- Sirva-me de modelo durante meia hora - disse o escultor. Ramon sentou-se e ficou silencioso, enquanto o outro, curvado
sobre a sua obra, se concentrava no trabalho. Durante todo aquele tempo, Don Ramon conservou-se erecto, quase imóvel, sem pensar em nada, mas irradiando um halo sombrio de poder que fascinava o artista.
- Basta - declarou por fim, levantando-se.
- Mas ponha-se na posição antes de se ir embora - pediu o artista.
Ramon despiu lentamente o casaco e ficou de torso nu, com a faixa raiada de azul e preto de roda da cintura. Por uns instantes pareceu recolher-se e, em seguida, como se numa oração intensa e orgulhosa, ergueu o braço direito por cima da cabeça e ficou transfigurado. O braço esquerdo pendia molemente ao longo do quadril. E no rosto, esse ar de orgulho fixo e intenso que era em si mesmo uma oração.
O escultor observava-o admirado e quase temeroso. Aquele homem grande e enérgico, com os seus olhos negros dilatados pelo orgulho e no entanto cheios de oração, despertava no escultor um frémito de alegria e de medo.
Don Ramon voltou-se para ele.
- Agora, você!
O artista, assustado, quis esquivar-se, mas encontrou o olhar de Ramon e, no mesmo instante, a calma da concentração desceu sobre ele, como um êxtase. Então, bruscamente, ergueu o braço, e a face pálida e nédia adquiriu uma expressão de paz e dignidade. Os olhos cinzento-azulados, serenos e altivos, dirigiam ao Além a sua oração. E embora estivesse com a bata de trabalho, e não fosse esbelto, apresentava uma imobilidade perfeita, plena de nobreza.
- Muito bem - disse Ramon, baixando a cabeça.
O escultor moveu-se de súbito. Ramon estendeu-lhe as duas mãos e ele, levantando-lhe a dextra, pousou-a na fronte.
- Adiós! - disse Ramon, depois de enfiar o casaco.
- Adiós - respondeu o artista. E com a felicidade estampada no rosto, voltou para o trabalho.
Don Ramon visitou a casa de adobe, cujo pátio era rodeado duma paliçada de canas e sombreado por uma gigantesca mangueira. Manuel, a mulher, os filhos e dois ajudantes estavam a fiar e a tecer. Debaixo das bananeiras, duas pequenas cardavam lã branca e castanha. A mulher e uma rapariga fiavam. Numa corda secava lã tingida, vermelha, azul e verde. E, no alpendre, Manuel e um rapaz manobravam dois pesados teares.
- Como vai isso? - inquiriu Don Ramon.
- Muy bien! Muy bien! - respondeu Manuel, com uma expressão transfigurada cintilando-lhe nas pupilas negras. - Muito bem, señor!
Ramon examinou a serape que estavam a tecer. Tinha uma barra em ziguezague de lã preta natural e, em cada ponta, um ornato complicado, azul e preto. O homem começara o centro, a que chamam boca, e olhava de instante a instante para o desenho pregado no tear. Aliás, era um desenho simples, igual ao símbolo de que o ferreiro se ocupava: uma serpente a morder a cauda e, de volta, triângulos negros cujas bases se apoiavam num círculo exterior; ao meio uma águia azul, com as asas e os pés tocando no arco formado pela serpente.
Ramon voltou a casa, dirigindo-se para a ala onde se encontrava o seu quarto. Lançou uma manta dobrada sobre o ombro e seguiu pelo terraço. No extremo dessa ala, projectando-se para o lago, havia outro terraço, este quadrado, com uma bignónia cor de coral pendente dos pilares maciços. A loggia estava juncada de esteiras e, a um canto, via-se um tambor e respectiva baqueta. No ângulo mais afastado mergulhava uma escada de pedra, fechada em baixo por uma porta de ferro.
Ramon ficou uns momentos a olhar para o lago. As nuvens dispersavam-se e o lençol de água reflectiu uma claridade esbranquiçada. Ao longe, via-se a mancha de um barco, onde provavelmente se encontravam Martin e as duas senhoras.
Tirou o chapéu e o casaco, e permaneceu imóvel, nu da cintura para cima. Então pegou na baqueta e, depois de esperar uns segundos, até adquirir paz de alma, fez soar o apelo do tambor, num ritmo alternado, forte e fraco. Captara o antigo poder bárbaro de certos rufos.
Assim esteve durante algum tempo, sozinho, tocando tambor com a mão direita, de face inexpressiva.
Acorreu um homem, de cabeça descoberta, vindo do outro terraço. Trazia fato de brancura imaculada, serape escura ao ombro, e uma chave na mão. Saudou Ramon, levando à testa as costas da mão direita, e depois desceu a escada e abriu a porta de ferro.
Imediatamente chegaram homens, todos vestidos de branco, cada qual com a sua serape dobrada em cima dos ombros. Mas as faixas eram azuis, e as sandálias azuis e brancas. O escultor apareceu, assim como Martin.
Eram sete, além de Ramon. No topo da escada saudaram-no, um apôs outro. Em seguida, depuseram a manta e o chapéu no murinho do terraço e despiram o casaco, que atiraram para cima dos chapéus.
Ramon largou o tambor e sentou-se sobre a sua manta raiada de azul e preto. Todos o imitaram, formando círculo, de pernas cruzadas e torso nu. Uns eram cor de café, outros brancos; Ramon tinha a pele dum tom castanho-claro. Conservaram-se em silêncio, só perturbado pelo som igual e hipnótico do tambor que um dos homens tocava. Então este começou a cantar numa vozinha estranha, contida, essa antiga voz de falsete dos índios:
"Quem dorme despertará. Quem dorme despertará. Quem segue o caminho da serpente há-de chegar ao seu destino; há-de chegar ao seu destino e ficará revestido com a pele da serpente."
Uma por uma, outras vozes se juntaram, até que todos se fizeram ouvir, naquele ritmo cego, infalível, do antigo mundo bárbaro. E todos com idêntica voz interior, como se a alma cantasse para si própria.
Cantaram por momentos, em uníssono, qual bando de pássaros a voar levados pelo mesmo instinto. E quando o tambor vibrou num rufo que era o final da cerimónia, as vozes extinguiram-se também, simultâneas, com um estrangulamento na garganta.
Houve um silêncio. Depois os homens principiaram a conversar uns com os outros, rindo em surdina. Mas a voz deles e a expressão já não eram as mesmas de há pouco.
Don Ramon ia falar e todos se calaram, inclinando a cabeça. Aquele sentara-se, de face erguida, visando ao longe, na dignidade da oração.
- Não há Passado nem Futuro, só existe o Presente - disse em tom surdo, majestoso. - A Serpente magna dobra e desdobra os seus anéis, as estrelas surgem, os mundos desaparecem. Há somente a mudança e o repouso do plasma.
Eu sou sempre, diz o seu sono.
Assim como o homem, enquanto dorme, não tem conhecimento, mas é, também a Serpente enroscada do eterno Cosmos prolonga o seu existir de Agora.
Agora, agora só, e para sempre Agora.
Contudo os sonhos despertam e esmorecem no sono da Serpente.
E o Universo eleva-se como os sonhos e como eles expira.
E o homem é um sonho no sono da Serpente.
E apenas o sono que não tem sonhos murmura: Eu sou!
E no Agora sem sonhos, Eu sou.
Os sonhos despertam, como devem, e o homem é um sonho desperto.
Mas o plasma sem sonhos da Serpente é o plasma do homem, do seu corpo e ao mesmo tempo da sua alma.
E o sonho perfeito da Serpente Eu sou é o plasma do homem, que é íntegro.
Quando o plasma do corpo e o da alma só fazem um, Eu sou na Serpente.
Agora Eu sou.
Não foi é um sonho, assim como será, quais dois pés trôpegos e separados.
Mas Agora. Eu sou.
As árvores desdobram as folhas no sono, e a floração emerge dos sonhos no mais puro Eu sou.
Os pássaros esquecem o peso dos seus sonhos e cantam no Agora: Eu sou! Eu sou!
Porque os sonhos têm asas e pés e caminhos a percorrer, e esforços a realizar.
Mas a Serpente luzidia do Agora não tem asas nem pés, é una, perfeitamente enrolada.
Nos pés dum sonho, a lebre sobe o monte numa corrida. Mas quando se detém o sonho desaparece e ela entra no Presente e os seus olhos são o vasto Eu sou.
Só o homem sonha, sonha, e vai de sonho em sonho, como alguém que, dormindo, se agita no leito.
Sonha com os olhos e a boca, com as mãos e os pés, com o falo, o coração e o ventre, com o corpo e a alma, numa tempestade de sonhos.
E precipita-se de sonho para sonho, na esperança de alcançar o sonho perfeito.
Mas eu afirmo-vos que nenhum sonho é perfeito, porque em todos eles há sofrimento e desejo.
Nada é perfeito, excepto o sonho que falece no sono. Eu sou.
Quando o sonho dos olhos se obscurece, cercado pelo Agora,
E quando o sonho da boca ressoa no último Eu sou,
E quando o sonho das mãos dormita como uma ave no mar, que é erguida, e levada, sem que ela o saiba,
E os sonhos dos pés atingem o centro do mundo, onde a Serpente dorme,
E o sonho do corpo é a calma duma flor oculta,
E o sonho da alma se dissipou no perfume do Agora,
E o sonho do espírito se apazigua e descansa na Estrela da Manhã,
Porque cada sonho começa e termina no Presente,
No âmago da flor está a Serpente que alumia e não desperta.
E o que se apaga é um sonho, e o que se aumenta é um sonho. Há sempre, e somente Agora. Agora e Eu sou."
Reinava o maior silêncio no círculo de homens. Lá fora, rangia um carro de bois e, do lago, elevava-se o débil som de remos a fender a água. Mas os sete homens, de cabeça baixa, escutavam interiormente, numa espécie de transe.
Então o tambor começou, suavemente, e um dos homens cantou, num fio de voz:
O senhor da Estrela da Manhã
Estava entre o dia e a noite:
Tal um pássaro que ergue as asas e espera
com a asa luminosa à direita
E a das trevas à esquerda,
A Estrela de Alva apareceu.
- Olhai! Estou sempre aqui!
Longe, no espaço
Roço a asa do dia
E ilumino o vosso rosto.
com a outra asa roço a sombra.
Mas eu estou sempre aqui.
Estou sempre aqui. Sou o senhor. E os senhores entre os homens Vêem-me no cintilar das minhas asas. E perdem-me outra vez. Mas, olhai! Estou sempre aqui.
As multidões não me vêem. Só vêem o bater de asas, As idas e vindas das coisas, O calor e o frio.
Mas a vós que me vedes entre
O frémito da noite e do dia,
Faço-vos senhores do Caminho Invisível.
Caminho entre abismos de trevas e vales de luz; Caminho que segue tal rasto de serpente, tal a mecha dum rastilho
Que incendiará à substância das trevas e explodirá à vista de todos.
Jamais me afasto. Estou sempre aqui Entre as asas dum voo sem fim, Nas profundezas da paz e da luta.
Profundo no relento da paz,
Longe da orla do combate,
Haveis de encontrar-me, eu que não sou
Nem sou destruição.
Para além eu estou Dos horizontes de amor e de luta, Como uma estrela, como uma fonte Que lava os senhores da vida.
"Ouvi! - disse Ramon, no meio do silêncio. - Seremos senhores entre os homens, não os senhores dos homens. Somos senhores da noite. Senhores do dia e da noite. Filhos da Estrela da Manhã e da Estrela da Tarde.
Não somos senhores dos homens. Eu, porém, sou a Estrela da Manhã e Senhor do dia e da noite. com o poder que me foi concedido à mão esquerda e com o poder que obtive com a mão direita, sou senhor dos dois rumos.
E a minha flor na terra é o jasmim, e no céu a hespéride.
Não vos darei ordens, nem vos servirei, porque a serpente se arqueia em direcção à sua casa.
Contudo, estarei convosco, para que não vos desvieis de vós próprios.
Não há nada a dar nem a receber. Quando os dedos que dão afloram os que recebem, cintila a Estrela da Manhã a esse contacto, e o jasmim brilha entre as mãos. E assim não há dom nem aceitação, nem mão que oferece nem mão que recebe, mas a estrela encontra-se entre elas e a mão escura e a mão clara permanecem invisíveis de cada lado. O jasmim recolhe na corola o dom e a aceitação, e o seu perfume espalha-se no ar.
Não penseis em dar nem em receber, deixai isso à flor do jasmineiro.
Não vos desperdiceis, que nada vos seja arrancado.
E não percais nada, nem o aroma da rosa, nem o sumo da romã, nem o calor do fogo.
Mas dizei à rosa: - Olha, colho-te, e o teu perfume enche-me as narinas e o meu hálito penetra no teu coração. Que isso seja entre nós como um sacramento.
E tomai cuidado quando abrirdes a romã; é o Sol poente que tendes nas mãos. Dizei: - Eis-me aqui, vem! Que a Estrela da Tarde fique entre nós.
E quando a chama se eleva ao sopro do vento frio e estendeis as mãos para o calor, ouvi o que a chama diz: - Ah! És tu? És tu que vens para mim? Eu realizava a grande viagem, seguindo o caminho da serpente magna. Mas visto que vens até mim, de ti me aproximo. E se caíres nas minhas mãos cairei nas tuas, e a flor do jasmineiro perfumará o nosso encontro.
Não repilais nada nem deixeis que vos despojem. Porque repelir ou ser despojado quebra a raiz do jasmim e conspurca a Estrela da Tarde.
Não vos apodereis de nada para dizer: - Isto pertence-me. Nada existe que vos seja dado possuir, nem sequer a paz.
Nada; nem o ouro, nem a terra, nem o amor, nem a vida, nem a dor, nem a morte, nem a salvação.
De nada direis: - Isto é meu.
Dizei apenas: - Isto está comigo.
Porque o ouro só permanece convosco o espaço duma lua, e olha-vos e diz: - Encontramo-nos ligados por este breve instante.
E a terra diz-vos: - Ah, filho meu, de pai longínquo! Vem, revolve-me um pouco, para que as papoulas e o trigo cresçam e ondulem ao vento que sopra entre o meu e o teu peito. Depois, abisma-te em mim, e ambos formaremos um outeiro.
E ouvi o que diz o vosso amor: - A tua espada ceifou-me como à erva, e sobre mim está a sombra e o bruxulear da Estrela da Tarde. Não é mais do que trevas e nada. Ó tu, quando te levantares e prosseguires o teu caminho, fala-me, dize-me simplesmente: - A estrela despontou entre nós.
E dizei à vida: - Sou teu? És minha? Sou a orla do dia em volta da noite? São os meus olhos o crepúsculo onde a estrela se suspende? É o meu lábio superior o pôr do Sol e o meu lábio inferior o raiar da manhã? Tremula a estrela na minha boca?
E dizei à vossa paz: Ergue-te, estrela imortal! Já as águas da aurora te alagam e me levam no seu curso.
E dizei à dor: Machado, abates-me. E, contudo, brota uma centelha do teu gume e da minha ferida. Corta, então, que eu velarei a face, ó pai da estrela!
E dizei à vossa força: A espuma da noite sobe-me dos pés até aos rins, a espuma do dia salta-me dos olhos e da boca para o mar do meu peito. As minhas entranhas são um manancial de poder que corre pela espinha dorsal. E uma estrela flutua sobre esse fluxo.
E dizei à vossa morte: Pois seja! Eu e a minha alma iremos para ti, Estrela da Tarde. Carne, desaparece na sombra da noite. Espírito, chegou o teu dia. Deixai-me agora. Na minha nudez suprema me encaminho para a Estrela mais nua."

XII
Os homens envergaram o casaco, puseram o chapéu e, depois de cobrirem os olhos por um momento numa saudação a Ramon, desceram a escada de pedra. Fechou-se a porta com estrondo e o porteiro, voltando com a chave, pousou-a sobre o tambor e retirou-se discretamente.
Ramon ficou sentado em cima da manta, com os ombros nus apoiados à parede e de pálpebras cerradas. Sentia-se fatigado, nesse estado de abstracção que torna difícil o regresso ao mundo normal. Ouvia de modo vago os rumores na casa, tilintar de colheres de chá, vozes femininas conversando, o ronco dum automóvel que se aproximava pelo caminho desnivelado e se detinha no pátio.
Custava-lhe voltar à terra. Ressoava-lhe aos ouvidos o barulho do exterior, mas dentro dele mesmo escutava o murmúrio confuso do universo, como se num búzio. Era-lhe penoso retomar contacto com as coisas da vida corrente quando o corpo e a alma mergulhavam no cosmos.
Gostaria de se conservar ainda uns instantes no seu isolamento, mas não era possível. Reclamavam a sua presença, especialmente Carlota.
Já ela o chamava: "Ramon! Isso terminou? Cipriano está aqui." Sentia-se-lhe na voz receio e temeridade.
Ramon puxou os cabelos para trás, ergueu-se e, em passo rápido, acudiu ao chamamento tal como se encontrava, de torso nu. Não tinha vontade de se vestir, de reentrar nos pormenores da vida quotidiana.
Cipriano, fardado, achava-se no terraço abancado à mesa do chá. Levantou-se prontamente e avançou para Ramon de braços abertos, perscrutando o rosto do amigo com os seus olhos negros e brilhantes.


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Os dois homens abraçaram-se, peito contra peito, e, por momentos, Cipriano deixou estar as mãos morenas nas espáduas nuas de Ramon. Então afastou-se devagar e fitou-o sem proferir uma palavra.
Ramon pousou distraidamente a mão no ombro de Cipriano.
- Que tal? - perguntou. - Como vai isso?
- Bien. Muy bien - respondeu Cipriano, fixando-o sempre como se se procurasse a si mesmo no semblante de Ramon. Este correspondeu ao olhar do índio com um leve sorriso, enquanto Cipriano baixava a cabeça e os cabelos longos lhe tombavam na testa.
As duas mulheres observavam a cena em silêncio absoluto. Quando os dois homens se aproximaram da mesa, Carlota começou a servir o chá. Mas as mãos tremiam-lhe e ela tratou de pousar o bule e cruzá-las no regaço.
- Passearam de barco? - indagou Ramon, com ar alheado.
- Passeámos, e foi muito agradável - disse Kate. - Um bocado quente, quando o sol apareceu...
Ramon esboçou um sorriso e alisou o cabelo. Em seguida, descansando a mão no parapeito do terraço, olhou para o lago e suspirou inconscientemente.
Nu da cintura para cima, voltava costas às mulheres, contemplando a vastidão da água. Cipriano estava a seu lado.
Kate observava as espáduas lisas, morenas, que emanavam sensualidade, os ombros largos, o porte altivo da cabeça - e não podia deixar de imaginar uma lâmina cravada nessas costas magníficas, nem que fosse só para destruir a sua arrogância distante.
Porque até a sua nudez parecia distante, intangível. Pensar nela e contemplada daquele modo representava quase uma violação. Kate sentiu de súbito o coração estremecer-lhe de vergonha. Fora assim que Salomé olhara para João Baptista, e Ramon possuía essa mesma beleza que evocava uma romã destacando-se na verdura sombria da árvore.
Soprava branda a aragem da tarde. Na luz nacarada deslizavam barcos, enquanto o Sol luzia ainda no horizonte. Distinguia-se a margem oposta, a cerca de vinte milhas, embora velasse a atmosfera uma bruma opalina que se confundia com a água do lago. Kate lobrigava a mancha clara da igreja de Tuliapan.
No jardim da casa havia um bosquete de mangueiras, onde voavam cá e lá passarinhos escarlates, como botões de papoula, e outros dum amarelo cintilante. Contudo, quando pousavam por um momento e fechavam as asas, desapareciam da vista, pois eram escuros por cima.
- Neste país, os pássaros só são coloridos por baixo das asas - observou Kate.
Ramon voltou-se bruscamente para ela.
- Dizem que a palavra México significa "por baixo" - replicou, sorrindo, enquanto se afundava numa cadeira de balouço.
Dona Carlota fizera um esforço sobre si mesma e, de olhos fixos nas chávenas, servia o chá. Apresentou uma xícara ao marido, sem sequer o relancear. Tremia de cólera quase histérica. Ela, que era sua esposa desde tantos anos e que o conhecia tão bem (ah, se o conhecia!), nada possuía desse homem.
- Passa-me o açúcar, Carlota - disse Ramon na sua voz calma.
A mulher sobressaltou-se como se a beliscassem de repente.
- O açúcar? - repetiu, distraída.
Ramon estava sentado na cadeira, pendido para a frente e de xícara na mão. A tela fina que lhe cobria as coxas revelava-lhe mais o corpo do que a nudez do torso. Kate percebeu porque é que era proibido usar calças de algodão naplaza. Tornavam mais sensível a presença da carne.
Verdadeiramente belo, duma beleza que chegava a ser assustadora, irradiava uma sensualidade pura, hostil ao género de pureza de Kate, com a sua faixa azul de roda da cinta e as calças brancas parecendo fremir de vida cingidas aos quadris e às coxas. Tão poderoso fluido emitia esse ente másculo que Kate se sentia como que fascinada.
E ele, perfeitamente tranquilo, dentro do seu próprio ambiente. O mesmo acontecia a Cipriano. Ambos tão calmos, tão sombrios, dir-se-iam esmagar as duas mulheres.
Kate compreendeu então os sentimentos de Salomé. Compreendeu como João Baptista, com a sua beleza distante e inacessível, exercera tamanho poder.
"Ah! disse ela consigo mesma. - Tenho de fechar os olhos e abrir a alma. Fechar os olhos para não ver e ficar na escuridão e no silêncio junto destes dois homens. Possuem uma riqueza que me falta. Conseguiram libertar-se do desejo que a vista suscita. Sou atormentada pelo desejo, pela minha imaginação lasciva. É a maldição de Eva. Os meus olhos, a minha experiência são como um anzol que me repuxa a carne e me desperta espasmos de desejo. Oh, quem me dera libertar-me da impureza do olhar! Filha de Eva, porque é que estes homens me não arrancam às visões impuras?"
Levantou-se e dirigiu-se à beira do terraço. Amarelos como narcisos, emergiam dois pássaros da sua própria invisibilidade. Na praia de seixos, onde estava um barco varado, dois homens apanhavam à rede os peixinhos denominados chcirales, que cintilavam na água acastanhada como lascas de vidro.
- Ramon! - disse Dona Carlota. - Não vais vestir-te? Já não podia suportar aquela vista.
- vou. Obrigado pelo chá - respondeu o marido, pondo-se de pé. E seguiu pelo terraço adiante, com as sandálias a ranger de leve no pavimento de tijolos.
- señora Caterina! - chamou Carlota. - Venha beber o seu chá.
Kate voltou para a mesa, dizendo:
- Que paz se sente aqui!
- Paz! - repetiu Carlota. - Não acho paz nenhuma. O que há é um silêncio pavoroso que me causa arrepios.
- Vem cá frequentemente? - perguntou Kate a Cipriano.
- Sim, uma ou duas vezes por semana - respondeu ele, fixando-a com singular expressão nos olhos negros.
Dir-se-ia que esses homens procuravam anular-lhe a vontade.
- São horas de eu voltar para casa - declarou ela. - Não tarda que o Sol desapareça.
- Ya va? - redarguiu Cipriano, com a sua voz aveludada em que transparecia certa pena. - Já!
- Oh, não, señora! - exclamou Carlota. - Fique connosco até amanhã.
- Mas estão em casa à minha espera.
- Mandarei um rapaz prevenir que só regressa amanhã. Fica, não é verdade? Ah, ainda bem.
E Carlota, depois de pousar a mão carinhosa no braço de Kate, levantou-se a fim de avisar os criados.
Cipriano puxou da cigarreira e ofereceu-a a Kate.
- Não se escandalizará se eu fumar? - disse ela. - É um dos meus vícios.
- Fume. Não é bom sermos perfeitos.
- Acha que não? - E Kate, rindo-se, puxou uma fumaça do cigarro.
- Experimenta realmente essa paz? -inquiriu ele, irónico.
- Porquê?
- Porque é que os brancos andam sempre em busca da paz?
- Pois não é natural que todos desejem paz?
- Paz é apenas o descanso depois da guerra. Não é mais natural do que a luta; talvez até seja menos.
- Mas existe outra paz, aquela que ultrapassa o entendimento. Não sabia?
- Parece-me que não - respondeu Cipriano. - Que pena!
: - Ah! Quer ensinar-me? Mas para mim é diferente... Cada
homem tem dois espíritos. Um assemelha-se à aurora na época das chuvas, suave, fresca, húmida, com pássaros chilreando. O outro é como a estação seca, com a sua luz forte e ardente que parece nunca mais abrandar.
- Decerto prefere o primeiro.
- Não sei - replicou Cipriano. - O outro dura mais.
- Tenho a certeza que prefere a frescura da manhã - insistiu Kate.
- Não sei, não sei. - E esboçou um sorriso, deixando Kate
convencida de que ele de facto não sabia. - Na primeira fase vemos as flores nas suas hastes transbordantes de seiva. A flor desa brocha como uma face de mulher perfumada pelo desejo. Mas o sol começa a aquecer, e então tudo se modifica. As flores murcham e o peito do homem torna-se como um espelho de aço. Dentro dele tudo
- é escuridão, enroscando-se e desenroscando-se como uma cobra. As flores secaram nas hastes, as mulheres já não existem para o homem. Umas e outras desapareceram.
- Que pretende ele então? - perguntou Kate.
- Não sei. Talvez queira ser uma grande personagem, senhor de todos os povos...
- E porque não realiza essas aspirações?
Cipriano encolheu os ombros.
A señora assemelha-se à manhã de que lhe falei há pouco -
disse ele.
- Tenho quarenta anos - replicou Kate com um risinho amarelo.
O general tornou a encolher os ombros.
- Isso não interessa. O seu corpo parece o caule da flor a que
aludi, e o seu rosto será sempre a aurora na estação das chuvas.
- Porque me diz essas coisas? - volveu Kate, com involuntário e estranho tremor.
- E porque não hei-de dizer? A señora é tal uma manhã cheia de frescura, e estamos no fim da época seca...
Observava-a, e nos seus olhos brilhava o desejo, aliado a certa insolência.
Kate baixou a cabeça e balançou-se na cadeira.
- Gostaria de casar consigo - continuou Cipriano. - Se estivesse disposta a isso, desposá-la-ia.
- Não me parece que me torne a casar - ripostou Kate, anelante e de faces afogueadas.
- Quem sabe?
Ramon surgiu no terraço, com a sua bela serape dobrada sobre o ombro nu. Apoiou-se num dos pilares e contemplou Kate e Cipriano, o qual ergueu a vista e lhe dirigiu um sorriso em que transparecia a amizade que os ligava.
- Disse à señora Caterina que a desposaria se ela estivesse disposta a casar-se - declarou ele.
- É o que se chama falar sem rodeios - replicou Ramon, olhando para Cipriano com o mesmo sorriso amigo. Em seguida, o seu olhar pousou-se em Kate, enquanto o sorriso se alastrava e todo o seu rosto respirava compreensão. Cruzou os braços, como fazem os índios quando querem defender-se do frio; e a carne, dum tom castanho-claro, como ópio, formava saliências no peito largo, cheio e liso.
- Diz Don Cipriano que os Brancos só desejam a paz - proferiu Kate, fitando Ramon com deliberada impertinência. - Não se consideram brancos?
- Não mais brancos do que somos - respondeu Ramon, sorrindo. - Pelo menos, não duma brancura de lírio...
- E não buscam a paz?
- Por mim não penso nisso. Os mansos herdarão a terra, segundo a professia. Mas quem sou eu para lhes invejar a sua paz? Não señora. Por acaso pareço um evangelho de paz? Ou de guerra? A vida para mim não se resume nessas duas coisas.
- Não sei afinal o que desejam - disse Kate.
- Nós próprios não o sabemos senão em parte - replicou Ramon, mudando de expressão.
Havia nele uma espécie de bondade paternal que enchia Kate de espanto e a sobressaltava como se só agora compreendesse o verdadeiro significado de tal sentimento. Mistério, nobreza, inacessibilidade, e a vulnerável compaixão de homem na sua amizade desinteressada...
- Não gosta das pessoas de pele escura? - perguntou Ramon em tom suave.
- Acho-as belas à vista - respondeu Kate. - Mas - acrescentou, com um leve arrepio - estou contente por ser branca.
- Sente que não é possível nenhum contacto?
- Exactamente.
- É a sua impressão - volveu Ramon, e, enquanto ele falava, Kate percebeu que o considerava mais atraente do que a qualquer homem loiro e que, por muito vago que fosse, o contacto que tinha com ele lhe era mais precioso do que todos os que até aí conhecera.
Contudo, embora lhe lançasse certa sombra, não tentava influenciá-la, nem queria maior aproximação - ao passo que Cipriano, sentindo-se incompleto, a procurava e parecia violar-lhe a personalidade.
À voz de Ramon, Dona Carlota assomou a uma das portas mas, ouvindo falar inglês, tornou a sumir-se, num brusco acesso de cólera. Daí a pouco reaparecia, trazendo um vaso de flores carnudas, dum branco leitoso, semelhantes a frésias no tom e no perfume.
- Que lindas! - exclamou Kate. - São flores de igreja! No Ceilão, os indígenas entram nos seus templos e depõem uma flor num tabuleiro aos pés do Buda. E os tabuleiros das oferendas ficam cobertos dessas flores, todas muito bem arranjadas, dispostas com delicadeza oriental...
- Mas eu não as trouxe para homenagear deuses - replicou Carlota, pousando o vaso na mesa. - Trouxe-as para si, señora. Cheiram tão bem!
- De facto, têm um aroma delicioso - concordou Kate. Os dois homens afastaram-se, rindo.
- Ah, señora! - disse Carlota, sentando-se à mesa. - Pode entender Ramon? Seria capaz de renunciar à Santa Virgem? Eu antes queria morrer.
- Não precisamos doutros deuses, realmente - redarguiu Kate, com certo enfado.
- Outros deuses! - repetiu Carlota, escandalizada. - Como se fosse possível! Ramon comete um pecado mortal.
Kate conservou-se calada.
- E quer induzir o povo a fazer o mesmo - prosseguiu Carlota. - É pecado de orgulho... o pecado cardeal. Ainda bem que a señora pensa como eu. Receio as americanas que, para se apoderarem do espírito dos homens, aceitam todas as suas loucuras e perversidades... É católica, señora?
- Fui educada num convento.
- Ah, señora! Qual a mulher que tendo conhecido a Santíssima Virgem se afasta dela? Que mulher teria ânimo de crucificar Jesus novamente? Mas os homens, os homens! Aquela história de Quetzalcoatl seria coisa para rir se não fosse um pecado mortal. E da parte de dois homens inteligentes e instruídos tanta presunção!
- Os homens são assim - observou Kate.
Intensificava-se o crepúsculo; o horizonte estava ainda luminoso, mas o Sol afundara-se numa bruma cor-de-rosa, por trás das arestas da montanha. As colinas erguiam-se azuladas numa atmosfera cor de salmão que se reflectia na água. Lá adiante, onde o clarão rubro se adensava, banhavam-se homens e crianças.
Kate e Carlota subiram à azotea, o terraço que cobria a casa. Dali podiam ver a hacienda com o seu pátio semelhante a uma fortaleza, o caminho ladeado de árvores frondosas, as cabanas de adobe perto da estrada e as fogueiras já bruxuleando junto das casas. No ar róseo os salgueiros da margem pareciam mais verdes e cintilantes. Ao longe, luziam entre as árvores as duas torres brancas de Sayula. Deslizavam barcos em direcção à parte sombreada do lago.
E num desses barcos, deveras desconsolada, regressava Juana a casa.

XIII
Ramon e Cipriano encontravam-se à beira do lago. O general envergara também fato branco e sandálias, o que lhe ia melhor do que a farda.
- Tive uma conversa com Montes quando ele foi a Guadalajara - declarou Cipriano.
Montes era o presidente da República.
- E que te disse?
- Não se alarga muito a falar, mas depreendi que não simpatiza com os colegas e se sente isolado. Julgo que gostaria de te conhecer melhor.
- Porquê?
- Talvez pudesses dar-lhe apoio moral. Talvez chegasses a ser ministro; e até presidente, depois de Montes acabar o seu mandato.
- Montes agrada-me - replicou Ramon. - É sincero e ardente. Gostaste dele?
- Sim, mais ou menos - respondeu Cipriano. - É desconfiado, teme que outros pretendam compartilhar com ele o poder. Tem instintos de ditador. Quis saber se eu lhe era afecto.
- Deste-lhe a entender que sim?
- Disse-lhe que tudo o que me interessava verdadeiramente eras tu e o México.
- E que te respondeu?
- Ele não é tolo. Respondeu: "Don Ramon vê o mundo com olhos diferentes dos meus. Qual de nós terá razão? Eu quero salvar o país da pobreza e da ignorância, ele quer salvar-lhe a alma. Mas afirmo que um homem esfomeado e ignorante não tem lugar para a alma. Um ventre e um cérebro vazios roem-se a si mesmos, e a alma não existe. Don Ramon acha que um homem desprovido de alma pode passar sem o alimento do corpo e do intelecto. Pois que siga o seu caminho, que eu sigo o meu! Não nos embaraçaremos um ao outro. Dou a minha palavra que não interferirei em nada. Ele varre o pátio, eu trato da limpeza da rua.
- É sensato - comentou Ramon - e honesto nas suas convicções.
- Porque não serias ministro daqui a uns meses? E mais tarde presidente?
- Bem sabes que não é isso o que pretendo. Devo poupar-me e agir noutra esfera. A política que se mantenha ou evolua como eles entendem, a sociedade que faça o que quiser. Deixa-me em paz, Cipriano. Gostarias que eu fosse outro Porfirio Diaz, ou alguém do mesmo género, mas isso para mim seria pura e simplesmente soçobrar na vida.
Cipriano observava Ramon com os seus olhos negros e vigilantes, onde transparecia amizade, receio, confiança, mas também incompreensão, e a dúvida que sempre a acompanha.
- Não chego a perceber o que desejas - murmurou.
- Percebes, sim. A política e toda essa religião social com que Montes se preocupa equivale a lavar a casca dum ovo para lhe dar aspecto limpo. A mim, porém, só interessa o interior... Ah, Cipriano! O México é tal um ovo que o Tempo choca desde séculos neste ninho do mundo e que parece ser goro. Parece, mas não é. O que precisa é de calor que ajude a formação da ave. Montes quer limpar o ninho e lavar o ovo... Que aconteceria se tirassem um ovo de baixo duma águia para o lavar? Arrefeceria de vez. Pois quanto mais se empenharem em arrancar este povo da pobreza e da ignorância mais depressa ele morrerá. Pobre Montes! Todas as suas ideias são americanas ou europeias. E a velha pomba da Europa jamais poderá chocar com êxito o ovo escuro da América. Os Estados Unidos não morrem porque não estão vivos. É um ninho de ovos de loiça e por isso se conservam limpos. Mas aqui, Cipriano, aqui é necessário incubá-los antes da limpeza do ninho.
Cipriano baixava a cabeça. Experimentava sempre Ramon para ver se conseguia fazê-lo mudar de ideias e, depois de verificar a inutilidade dos seus esforços, submetia-se ao amigo e novas chamas de felicidade se alteavam dentro dele. Mas, entretanto, ia-o experimentando...
- Não serve de nada querer misturar as duas coisas. No ponto em que estão, não se misturam. Temos de fechar os olhos e mergulhar até ao fundo, como pescadores de pérolas. Mas andamos a flutuar à superfície, semelhantes a bocados de cortiça...
Cipriano mostrou um sorriso subtil. Tudo aquilo ele sabia!
- Temos de abrir a ostra do cosmos e extrair dela a nossa força.
Enquanto não arrancarmos a pérola não seremos mais do que mosquitos no cimo do oceano - concluiu Ramon.
- A minha força é como um demónio dentro de mim - disse Cipriano.
- Porque a ostra a retém fechada, como uma pérola negra. A ti compete libertá-la.
- Ramon, não acharias bom ser uma serpente, uma serpente enorme que se enrolasse em volta do globo e o esmagasse... como a esse ovo?
Ramon olhou-o e pôs-se a rir.
- Não me parece coisa impossível - continuou Cipriano. E não seria bom?
O outro meneou a cabeça, rindo-se.
- Pelo menos seria um momento bom.
- Que mais se pode desejar?
Brilhou nos olhos de Ramon uma centelha que logo se apagou.
- Para quê? - disse em voz surda. - Depois de esmagado o ovo que havíamos de fazer senão errar nos corredores de trevas e lamentar-nos? Para quê?
Ramon pôs-se de pé e afastou-se. O Sol desaparecera, a noite descia. Na alma daquele homem fervia uma cólera imensa, e Carlota é que a provocava. A mulher parecia incutir vida ao monstro da sua raiva íntima, e Cipriano exasperava-o.
"A minha força é como um demónio a rugir dentro de mim", disse Ramon consigo mesmo, repetindo a frase de Cipriano.
Reconhecia o direito de gritar a esse demónio humilhado e ridicularizado que vivia preso dentro dele. E a fúria apoderou-se de Ramon, contra Carlota, contra Cipriano, contra a humanidade inteira. Os seus partidários traí-lo-iam, tinha a certeza. Cipriano acabaria por traí-lo. Desde que lhe encontrassem o mínimo ponto fraco, todos saltariam sobre ele como tarântulas e infectá-lo-iam com a sua peçonha.
E qual o homem absolutamente invulnerável, sem o menor ponto fraco?
Ramon subiu ao seu quarto pela escada exterior, no lado da casa, e sentou-se na cama. A noite estava quente, pesada, e duma calma aflitiva.
- Prepara-se chuva - ouviu ele dizer a um dos criados. Fechou as portas do quarto e ficou às escuras. Então despiu-se todo, murmurando: "Repudio o mundo juntamente com esta roupa." E de pé, nu e invisível no meio do quarto, ergueu ao ar o punho fechado, com tal força que teve a sensação de que lhe estalavam as paredes do peito. A mão esquerda pendia ao longo do corpo, mole, com os dedos levemente curvados.
Tenso como o jacto duma fonte silenciosa, distendeu-se até abranger o âmago impalpável das trevas. E as vagas de escuridão começaram a lavar-lhe o espírito, a consciência; ondas de negrume rebentando-lhe na memória, em todo o seu ser, como uma maré que sobe. Até que foi maré cheia e ele, tremendo, se deixou cair por terra, para descansar. Invisível nas trevas, ficou a olhar para o vácuo, sentindo o misterioso fluxo interior purificar-lhe as entranhas e o coração, sentindo o espírito dissolver-se no Espírito maior que nenhum pensamento perturba.
Cobriu o rosto com as mãos e ali esteve imóvel, inconsciente, já sem nada sentir nem ouvir, semelhante a uma alga submersa no mar. Abolira-se o Tempo, abolira-se o Mundo, submerso nas profundezas que são intemporais e inespaciais.
Quando o coração e as entranhas despertaram para a vida, o espírito principiou a bruxulear tal uma chamazinha que vacila e não se apaga.
Enxugou a cara com as mãos, pôs a serape na cabeça e em silêncio, numa aura de sofrimento, desceu a escada, levando consigo o tambor.
Martin, o servo devotado, andava cá e lá no zaguán.
- Ya, patrón? - perguntou.
- Ya! - respondeu Ramon.
O homem correu à vasta cozinha onde ardia uma candeia, e voltou com um braçado de esteiras.
- Onde as colocamos, patrão?
Ramon hesitou no meio do pátio, olhando para o céu.
- Viene el agua?
- Creo que si, patrón.
Dirigiram-se para o alpendre onde haviam carregado as azémolas com os fardos de bananas. Aí, Martin arremessou ao chão as petates, que Ramon dispôs em ordem. Guisleno apareceu, trazendo canas para fazer tochas, das mais primitivas: três canas amarradas em cima com um cordel, formando tripé de cintura alta, e, na parte superior, uma pedra de lava mais ou menos oca. Realizado esse trabalho,
Guisleno foi a casa e voltou a correr com um pedaço de madeira inflamada. Três ou quatro pauzinhos de ocote colocados na pedra - e as chamas ergueram-se, enchendo o pátio de sombras vacilantes.
Ramon dobrou a serape e sentou-se em cima. Guisleno acendeu outro tripé-archote. A luz bailava nas sobrancelhas carregadas de Ramon, dava-lhe ao peito cintilações de ouro.
Agarrou no tambor e fez soar o apelo monótono, lento, um tanto melancólico. Passados instantes, chegou o tocador habitual, que levou o instrumento para a alameda sombria, onde então se ouviu um rufo vivo e forte.
Ramon enfiou a serape, cujas franjas lhe roçavam os joelhos, e ficou imóvel, com os cabelos em desordem. Rodeava-lhe os ombros a serpente do tecido, o pescoço erguia-se-lhe no meio do pássaro azul.
Cipriano apareceu, vindo da casa. Trazia serape castanha e vermelha, ornamentada com um sol escarlate. Postou-se ao lado de Ramon, e olhou-lhe de relance para a cara. Mas, de sobrancelhas franzidas, o outro fixava a sombra dos alpendres no extremo do pátio. Olhava para o coração do mundo; porque a face dos homens e o coração dos homens são areias movediças, e só no coração do cosmos pode alguém encontrar força.
Cipriano voltou os olhos negros para a banda do pátio. Os seus soldados aproximavam-se em grupo. Três ou quatro homens de mantas pardas rodeavam o lume. De pé, junto de Ramon, Cipriano parecia um cardeal, um pássaro de cor vistosa. Até as sandálias eram escarlates, e encarnadas as fitas que atavam as calças de linho branco aos tornozelos. Ao clarão das tochas tinha um ar demoníaco, com a pele muito escura, a barbicha preta e as pupilas cintilando sardonicamente.
Chegavam peóns, pelo portão da entrada, balançando os chapéus largos. Acorriam mulheres descalças, com as saias a oscilar, transportando os seus nenés envoltos nos rebozos e seguidas por uma caterva de garotos. Todos se agrupavam em volta dos archotes, como animais bravios, contemplando o círculo de homens de serape, do qual se destacavam Ramon e Cipriano, um de azul e branco, outro de vermelho.
Carlota e Kate emergiram de casa. Carlota, porém, ficou junto da porta, embrulhada num xaile de seda preta. Sentou-se num banco de pau aquém do clarão avermelhado, e pôs-se a observar os homens escuros, a beleza altaneira de Ramon, o traje escarlate de Cipriano, o grupo de soldados e a massa compacta de peóns, mulheres e crianças. Enquanto desfilava gente através do portão, soou o tambor e uma voz elevou-se, cantando:
Alguém vai franquear a porta, Agora, agora mesmo, ay! E verá a luz no homem que espera. Serás tu? Serei eu?
Alguém vai aproximar-se do fogo, Agora, agora mesmo, ay! E escutarás as palavras do seu coração. Serás tu? Serei eu?
Alguém baferá quando a porta se fechar, Ay, num momento, ay! Ouvirá dizer: Não te conheço. Serás tu? Serei eu?
De cada vez o ay se elevava num grito selvático que fazia calafrios a Carlota.
Envolta num xaile amarelo, Kate aproximou-se lentamente do grupo.
O tambor calou-se e o homem, entrando no pátio, fechou o portão e misturou-se aos assistentes.
Ramon continuava a olhar para o vácuo, de sobrolho carregado. Então, no meio do silêncio, disse em voz baixa, contida:
- Assim como tiro este abafo me liberto eu do dia que passou. Despiu a serape e pô-la no braço. Todos os homens do círculo o
imitaram, ficando de torso nu. Cipriano, muito escuro e com ar sólido apesar do tamanho reduzido, conservava-se ao lado de Ramon.
- Afasto de mim o dia que passou - prosseguiu Ramon - e fico de coração descoberto na noite dos deuses.
Em seguida olhou para o chão e disse:
- Vem, serpente da terra, serpente que jazes no fogo do coração do mundo. Vem, serpente do fogo no coração do mundo, enrola-te como ouro em volta dos meus artelhos, ergue a cabeça e apoia-a na minha coxa. Vem, descansa a cabeça na minha mão, serpente dos abismos. Beija-me os pés e os tornozelos com a tua boca de ouro, beija-me os joelhos e as coxas, serpente marcada de luz e de sombra. Vem, repousa a cabeça na concha da minha mão.
A voz suave e hipnótica extinguiu-se no silêncio envolvente. E parecia que na verdade uma presença misteriosa emergia do mundo subterrâneo, que uma serpente mosqueada de ouro e negro se enroscava nas pernas de Ramon e lhe lambia a palma da mão com a língua bifurcada...
Circunvagou a vista pela assistência boquiaberta e de olhos dilatados, e prosseguiu:
- Digo-vos, e com absoluta certeza. No coração desta terra dorme uma grande serpente no meio do fogo. Aqueles que descem às minas sentem-lhe o calor e o suor, ouvem-na mover-se. É o fogo vital da terra, porque a terra vive. A serpente do mundo é enorme, as rochas são as suas escamas, e entre elas crescem as árvores. Digo-vos que a terra que cavais está viva como uma serpente adormecida. Sobre ela andais, e este lago descansa nos seus anéis como uma gota de chuva numa cobra cascavel. Contudo, tem vida. A terra vive. Se a serpente morresse, todos morreríamos. Só a sua vida assegura a humidade do solo que faz germinar o nosso milho. Das suas escamas extraímos prata e ouro, e as árvores têm nela as suas raízes como os cabelos têm a raiz sob a nossa pele. A terra vive. Mas a serpente é grande, e nós somos mais pequenos do que um grão de poeira. E por vezes ela zanga-se e diz: Estes entes, mais insignificantes do que átomos de pó, espezinham-me e asseveram que estou morta. Até às bestas costumam falar, gritando: Arre, burro! A mim, porém, não dirigem uma palavra. Por isso lhes voltarei costas, como uma mulher volta costas ao marido e lhe consome o espírito com a sua cólera... Eis o que a terra nos diz, e a tristeza e o desânimo avassalam-nos os pés e os rins. Porque assim como uma mulher irritada tira o entusiasmo e a alegria ao homem, assim a terra pode enregelar-nos a alma e tornar a existência fatigante aos nossos membros. Falai, pois, à serpente do coração do mundo, banhai de óleo os vossos dedos e abaixai-os para que ela experimente o óleo da terra e deixe que a vida nos suba ao longo das pernas, como a seiva do milho novo faz estalar a casca e brotar o leite da planta entre as barbas. Do coração da terra o homem sente subir nele a sua força; tal o milho que, ufano, ergue as suas folhas verdes, erguei-vos vós também e deixai aprofundarem-se as vossas raízes cada vez mais, porque não tardam as chuvas e é tempo de produzir no México.
Calou-se Ramon, ensurdeceu o tambor, e todos os homens do círculo fitaram a terra, deixando pender molemente a mão esquerda.
Dona Carlota, que não conseguira ouvir, aproximou-se do lado de Kate, como se fascinada pelo marido. A irlandesa, num movimento inconsciente, olhou para o chão e, às ocultas, baixou os dedos de encontro à saia. Mas teve medo do que lhe poderia acontecer e escondeu a mão no xaile.
De repente o tambor vibrou numa nota muito forte, seguida de outra mais fraca: estranho, impressionante efeito.
Os circunstantes levantaram a cabeça. Ramon alçara o braço direito, num gesto enérgico, e espiava o negrume do firmamento. Imitaram-no os do círculo, e os braços nus, erguidos, semelhavam uma série de rochedos.
- Assim, acima, acima! - gritou uma voz bárbara.
- Acima, acima! - repetiram todos, num coro feroz. Involuntariamente, brandiram o braço, voltando o rosto para o
céu sombrio. Algumas das mulheres, mais audazes, fizeram o mesmo, e, com esse gesto, experimentaram uma sensação de paz.
Kate não alçou o braço.
Reinou profundo silêncio; até o tambor se calara. Ouviu-se então a voz de Ramon, dirigindo-se ao céu tenebroso:
- As tuas asas estão escuras, Pássaro, voas muito baixo esta noite. Voas baixo sobre o México, e em breve sentiremos roçar em nossas faces o leque das tuas asas. Ah, Pássaro! Voas onde queres. Ultrapassas as estrelas e empoleiras-te no Sol. Desapareces da vista e dissipas-te no além do rio branco do céu, mas voltas como os patos do Norte, em busca de água e do Inverno. Poisas no centro do Sol e alisas as penas... Banhas-te na corrente de estrelas e ergues em teu redor uma poalha de ouro. Voas nas profundezas do céu donde parece que jamais se volta. Mas regressas, e pairas sobre nós, e sentimos no rosto a aragem das tuas asas...
Enquanto ele falava levantou-se vento em rajadas, uma porta bateu, vibraram vidraças e as árvores pareceram rasgar-se.
- Vem, ó ave dos vastos céus! - bradou Ramon num apelo selvático. - Vem, pousa no meu punho, na minha cabeça, dá-me o poder divino e a sabedoria. Ó Pássaro, ainda que o trovão ribombe quando sacodes as asas, ainda que deixes cair na terra a serpente de fogo que tens no bico, ainda que venhas como fulminador, vem, ó Pássaro! Empoleira-te um momento no meu punho, estende as asas sobre a minha cabeça, toca-me a fronte com o teu peito. Pássaro errante, ave do Além, com o trovão nas garras e a serpente no bico, com o azul nas asas e a nuvem no colo, com o sol no peito e a sabedoria no voo, vem sobre mim, vem!
O vento agitava a chama das tochas e o lago começou a falar numa voz cavernosa que dominava o sussurro das árvores. Ao longe, por cima das colinas, os raios sulcavam o céu.
Soou o tambor, e Ramon desceu o braço que mantivera erguido. E disse então:
- Sentai-vos um instante, antes que o Pássaro sacuda a água das asas, o que não tardará. Sentai-vos.
A assistência moveu-se. Os homens puxaram as serapes para a testa, as mulheres cingiram mais a si os rebozos, e todos se sentaram no chão. Só Kate e Carlota ficaram de pé, a certa distância.
- A terra é viva, o céu é vivo, e entre ambos vivemos nós - prosseguiu Ramon na sua voz habitual. - A terra beijou-me os joelhos e concedeu-me força às entranhas. O céu descansou-me no punho e transmitiu o seu poder para o meu peito.
Assim como a Estrela de Alva brilha entre o céu e a terra, uma estrela pode surgir em nós entre o coração e os rins.
É a virilidade do homem e a feminilidade da mulher.
Ainda não sois homens. E vós, mulheres, ainda não sois mulheres.
Correis, agitais-vos, morreis, mas ainda não encontraste a estrela da vossa virilidade surgida de vós mesmos; nem a estrela da vossa feminilidade cintilando entre os vossos seios, ó mulheres!
Digo-vos no entanto: para aquele que desejar, nascerá nele a estrela da sua virilidade, e então será perfeito como é perfeita a Estrela da Manhã.
E a estrela da mulher aparecerá entre a orla espessa da terra e o vácuo cinzento do céu. Mas como conseguiremos isso? Como poderá ser?
Baixai os dedos para a carícia da Serpente da terra. Erguei o punho para que aí pouse a Ave distante.
Tende a coragem de ambos, a coragem do raio e a do sismo.
E a sabedoria de ambos, a da serpente e a da águia.
E a serenidade de ambos, a da serpente e a do sol. E o poder de ambos, o das profundezas da terra e o do céu que tudo cobre.
Mas que na vossa fronte, ó homens, resplandeça a Estrela da Manhã que nem o dia nem a noite, nem a terra nem o céu podem engolir e apagar.
E entre os vossos seios, ó mulheres, que esteja a Estrela de Alva que nada pode ofuscar.
A vossa derradeira morada é a Estrela da Manhã. Nem o céu nem a terra vos hão-de tragar, mas ireis para essa estrela solitária que no entanto jamais sente a sua solidão.
A Estrela da Manhã envia-nos um mensageiro, um deus que morreu no México. Mas, enquanto dormia o seu sono, os Seres invisíveis lavaram-lhe o corpo com a água da ressurreição. E ele levantou-se, derrubou a pedra à entrada do sepulcro, e agora galopa através do horizonte, mais depressa do que caiu por terra a laje do túmulo para esmagar aqueles que a selaram.
O filho da Estrela volta para os filhos dos homens.
Preparai-vos para o receber. Lavai-vos, ungi as mãos e os pés, a boca e os olhos, as orelhas e as narinas, o peito, o umbigo e as partes secretas do vosso corpo. Que nada dos dias passados, que nenhuma poeira do mal subsista em vós e vos torne impuros.
Não olheis com olhos de ontem, não escuteis como ontem, não respireis, não cheireis, não engulais alimentos nem bebidas; não beijeis com lábios de ontem, não toqueis com mãos de ontem. Aproximai-vos das vossas mulheres com um corpo novo, e com esse corpo novo penetrai nelas. Porque o corpo de ontem morreu, e Xopilote, devorador de cadáveres, já paira sobre ele.
Libertai-vos do corpo da véspera e adquiri um novo, tal como o deus que vem até vós. Quetzalcoatl surge-nos com um novo corpo, como uma nova estrela, saído das sombras da morte.
Sim, neste mesmo momento em que estais sentados e que o vosso corpo toca na terra, dizei-lhe: Terra, terra, latejas de vida como eu. Insufla em mim o bafo das tuas entranhas.
E assim a terra se move por baixo de vós, e por cima de vós o céu agita as suas asas.
Regressai aos vossos lares, enfrentando as águas que vão cair e separar-vos para sempre do "ontem".
Ide, com a esperança de vos tornardes homens da Estrela da Manhã e mulheres da Estrela de Alva.
Ainda não sois homens, ainda não sois mulheres...
Ramon levantou-se, dando o sinal de retirada. Logo todos se puseram de pé, empurrando-se, acotovelando-se, com a silenciosa pressa mexicana que parece deslizar rente ao solo.
O vento desencadeado uivava de encontro às mangueiras. Os homens seguravam o chapéu na cabeça e corriam de joelhos curvados, com as serapes a flutuar, enquanto as mulheres, cingindo a si o rebozo, fugiam, descalças, para ozaguán.
Junto do portão aberto estava um soldado de espingarda a tiracolo e lanterna na mão, alumiando aqueles que passavam calados e velozes e se dispersavam na alameda escura como pedacinhos de papel levados pelo vento. Num instante todos desapareceram.
Martin fechou o portão. O soldado pousou a lanterna no banco de pau e juntou-se aos camaradas alapardados nos seus capotes pretos, semelhantes a um molho de cogumelos na caverna do zaguán.
- Vai chover! - gritaram as servas excitadas quando Kate subia os degraus com Dona Carlota.
O lago, absolutamente negro, parecia uma cratera enorme. Em rajadas violentas, o vento traspassava as mangueiras com um som de membrana a rasgar-se. Os loendros curvavam-se no jardim, varriam o solo com as suas flores brancas, espectrais à luz do candeeiro que brilhava na parede junto da porta da entrada. Uma palmeira nova sacudia-se, dobrada, juncando o chão com as suas folhas. Nas trevas para além do mundo rolava um carro invisível...
Ao longe, na outra banda do lago, os raios traçavam no céu inscrições fulgurantes. E o trovão dir-se-ia ribombar nas entranhas da terra, surdo, aveludado.
- Isto chega a meter medo! - exclamou Dona Carlota, tapando os olhos com a mão e correndo a refugiar-se num canto recuado da sala deserta.
Cipriano e Kate demoraram-se no terraço olhando para as flores que voavam dos vasos e desapareciam no vácuo de trevas. Kate agarrava no xaile, mas o vento engolfou-se na serape de Cipriano, levantou-a ao ar e em seguida deixou-lha cair sobre a cabeça, tal uma chama rubra. Kate viu-lhe o peito escuro e musculado enquanto os seus braços lutavam por desenvencilhar a cabeça. Como a sua beleza era primitiva e toda física, com aquela carne lisa e cheia!
Mas não emitia nenhuma radiação exterior; fechava-se dentro de si mesmo.
- Eis a chuva! - exclamou ele! - baixando a serape.
Grossas, pesadas, as primeiras gotas tombavam como dardos sobre as plantas. Kate recuou para o vão da porta. Um raio ziguezagueou sobre as montanhas, pareceu deter-se um instante e reentrou nas trevas.
Então a chuva desabou, como se lá em cima houvessem aberto um reservatório imenso, e com ela veio uma lufada de ar frio. Ora num lado ora noutro, sucediam-se os relâmpagos, enchendo a atmosfera duma claridade azul e fugaz. Surgiam as árvores e o jardim fantasma, e logo desapareciam, enquanto o trovão ribombava.
Kate olhava pasmada para aquele dilúvio. Ao clarão momentâneo via o jardim já transformado em poço, as alamedas em ribeiras. Sentindo frio, recolheu-se dentro de casa.
Munido de lanterna, um criado pesquisava todos os aposentos para ver se andariam por ali escorpiões. Encontrou um a passear no quarto de Kate e outro em cima da cama de Carlota, caído duma viga do tecto.
Sentadas na sala, Kate e Carlota baloiçavam-se nas cadeiras, aspirando o bom ar fresco e húmido. Kate quase já se esquecera do que era frescura e humidade. Aconchegou o xaile ao pescoço.
- Ah, sente frio! Agora é preciso tomar cuidado com as noites... Às vezes, na época das chuvas, as noites são frigidíssimas. Devemos ter sempre à mão um cobertor suplementar. Os servos, coitados, limitam-se a tiritar, estendidos no chão, e de manhã estão gelados como cadáveres. Mas o sol depressa os aquece. Parecem julgar que são obrigados a suportar tudo o que vier, pois nunca tomam providências, embora se queixem.
O vento acalmara-se de repente, Kate sentia-se inquieta, mal disposta, com o bafo da água, quase de gelo, nas narinas, e o sangue ainda a arder-lhe nas veias. Levantou-se e foi para o terraço. Cipriano continuava ali, imóvel e impassível, envolto na sua serape vermelha e preta.
A chuva diminuía. Em baixo, no jardim, duas criadas corriam descalças, à débil claridade do candeeiro do zaguán; colocaram latas vazias debaixo dos fios de água que tombavam do telhado, e depois foram buscar os recipientes cheios. Isso poupava-lhes o trabalho de acarretar água do lago.
- Que pensa a nosso respeito? - perguntou Cipriano a Kate.
- Acho um povo muito estranho...
- Mas bom, não é verdade? - volveu o general em tom jubiloso.
- Um tanto assustador - replicou ela, rindo.
- Depois de se habituar parecer-lhe-á natural. E quando estiver num país como a Inglaterra, onde tudo é tão seguro e tão fácil, sentirá saudades e passará o tempo a perguntar a si mesma: O que é que me falta? O que é que falta aqui?
Dir-se-ia exprimir-se com maligna satisfação. E era curioso que ele, embora falasse bom inglês, parecesse sempre estrangeiro aos ouvidos de Kate, muito mais do que Dona Carlota com o seu espanhol castiço.
- Não compreendo que as pessoas queiram ter tudo, a vida inteira. Tudo tão seguro, tão pronto como na Inglaterra e na América. É bom estar alerta, no que vive, não?
- Talvez - concordou ela.
- Por isso gosto de ouvir Ramon dizer ao povo que a terra é viva, que o céu tem uma ave enorme lá dentro, mas que se não vê. Acredito nisso. E convém sabê-lo, pois assim continuamos no que vive.
- Não será fatigante?
- Ora, porquê? Pelo contrário, é repousante. Ah, a senhora devia casar e residir no México. Estou certo de que acabaria por gostar disto. Em cada manhã despertaria mais encantada.
- Ou cada vez mais enterrada. É o que sucede, julgo eu, a muitos estrangeiros.
- Enterrar-se? Como? Isto é um país onde a noite é noite e a chuva que cai é realmente chuva. E tem aqui um povo com o qual precisa de estar sempre alerta. Não acha admirável? Não poderá deixar-se adormecer. Veja, por exemplo, Ramon. Que pensa dele?
- Não sei. Não quero dizer nada, mas acho-o... longínquo. Custa a crer que seja mexicano.
- Pois é mexicano, não tenha dúvida.
- Não como o senhor. Dá-me a impressão de pertencer à velha Europa.
- Eu então considero-o pertencente ao velho México... E também ao novo - acrescentou de súbito.
- Todavia não acredita nele.
- Como?
- Não acredita nele. Considera aquilo, como tudo o mais, uma espécie de jogo. Aliás, para vós, mexicanos, tudo é uma espécie de jogo... No fundo, não crê em nada.
- Não creio em Ramon? Talvez não seja uma fé que me leve a ajoelhar à sua frente e a derramar-lhe lágrimas nos pés. Mas creio nele, e vou dizer-lhe o motivo: porque tem o poder de me fazer acreditar.
- Estranha fé, imposta pelos outros.
- Como se há-de crer, se não nos compelirem a isso? Quando eu era muito novo sentia-me infeliz porque o meu padrinho me não forçava a crer. Mas Ramon força-me... E é para mim uma felicidade saber que não posso escapar... como será também para si...
- Saber que não posso escapar a Don Ramon? - replicou
Kate ironicamente.
- Sim, e saber que não poderá evadir-se do México, nem fugir
de um homem como eu...
Kate ficou um instante calada antes de responder em tom sardónico:
- Não me parece que me cause muita alegria saber que não posso sair do México. Pelo contrário, não suportaria estar aqui se não tivesse a certeza de partir mais dia menos dia.
E disse consigo mesma: "Ramon talvez seja o único homem a quem eu não possa escapar completamente, porque deveras me impressiona. Mas de ti, Ciprianozinho, não precisarei de escapar porque não me apanhas."
- Ah, julga isso! - volveu ele rapidamente. - Mas é porque não sabe. Só pensa com ideias americanas. Devido à sua educação, só tem pensamentos americanos, pensamentos engendrados nos Estados Unidos. Quase todas as mulheres são assim, até as mexicanas da classe hispano-mexicana. Só possuem ideias dos Estados Unidos porque são as que condizem com os seus penteados. E o mesmo quanto a si, senhora Leslie. Pensa como uma mulher moderna porque pertence ao mundo anglo-saxónio ou teutão, e se penteia de certa maneira, e tem dinheiro, e é inteiramente livre. Mas tudo isso provém do facto de lhe haverem metido essas ideias na cabeça e não possuir outras, da mesma forma que, no México, se vê obrigada a gastar centavos e pesos por serem as moedas do país. Todavia, quando se declara livre, na realidade não o é. Vê-se forçada a pensar sempre com pensamentos americanos. Não tem maior faculdade de escolha do que uma serva. Assim como não pode deixar de comer diariamente tortillas... até que se lembre de que pode gostar doutra coisa.
- De que mais poderia eu gostar? - retorquiu Kate, escarninha.
- De outros pensamentos, de outras sensações. Receia homens como eu porque julga que a não tratariam "à americana". Tem razão. Eu não a trataria como se tratam as senhoras americanas. Porquê? Porque não o desejo, porque não me parece justo.
- Prefere tratar as mulheres como as mexicanas de outrora, não é verdade? Mantendo-as na ignorância, no cativeiro? - A voz de Kate assumira um tom sarcástico.
- Não as manteria na ignorância se elas já não fossem ignorantes. Mas o que lhes ensinaria não havia de ser conforme à educação americana.
- Então qual?
- Quien sabe! Ce reste à voir.
- Et continuera à y rester - concluiu a irlandesa, rindo.

CONTINUA

x
Dez dias haviam decorrido desde a chegada de Kate a Sayula sem que Don Ramon desse sinal de vida. No entanto, quando passeava de barco, vira a casa dele na outra banda da ponta oeste do lago. Era um edifício alaranjado de dois andares, com alpendre para embarcações e bosquete de mangueiras rente à margem. Entre as árvores distinguiam-se duas filas de cabanas de adobe, a habitação dos peóns.
A hacienda fora outrora das mais importantes. Regavam-na então com a água captada nas colinas, mas as revoluções haviam destruído todos os aquedutos. Don Ramon tinha inimigos no Governo, de modo que grande parte das suas terras fora dividida entre os peóns e só lhe ficaram cerca de trezentos acres de terreno, dos quais duzentos marginavam o lago e lhe eram inúteis. Cultivava um pomar em volta da casa e cana-de-açúcar num valezito entre as colinas. Na encosta do monte viam-se campos de milho.
'Dona Carlota era rica; tirava bons rendimentos das minas de Torreon, seu berço natal.
Chegou um portador com uma carta de Don Ramon em que este pedia a Kate licença para a visitar com a esposa.
Dona Carlota era uma mulher franzina, suave, de grandes olhos um tanto assustadiços e sedosos cabelos castanhos. Filha de pai espanhol e de mãe francesa, de origem puramente europeia, em nada se assemelhava às corpulentas mexicanas de faces cobertas de pó-de-arroz. De rosto pálido, sem artifício, a figura delgada tinha qualquer coisa de inglês, que os grandes olhos castanhos desmentiam. Só falava espanhol e francês, mas o seu espanhol soava tão lento e distinto (com um leve tom de queixume) que Kate a compreendeu sem dificuldade.
As duas mulheres entenderam-se depressa, mas sentiam-se um tanto nervosas na presença uma da outra. Dona Carlota era frágil e sensível como um cão chihuahua.
Em toda a sua vida, Kate raras vezes encontrara criatura tão doce e delicada. Conversaram uma com a outra, enquanto Don Ramon se mantinha calado. Dir-se-ia que ambas se arremessavam contra aquela barreira de silêncio.
Kate percebeu logo que Dona Carlota amava Ramon, mas com um amor que se tornara voluntário. Adorara-o, e acabara-se a adoração. Duvidara dele, e duvidaria sempre.
Sentado um pouco à parte, de ar constrangido, Don Ramon baixava a bela cabeça e deixava pender as mãos entre as coxas.
- Sabe que passei há dias bons momentos? - disse Kate, dirigindo-se-lhe de súbito. - Dancei de roda do tambor com os homens de Quetzalcoatl.
- Assim me constou - respondeu ele com um sorriso forçado.
Embora não falasse inglês, Dona Carlota compreendia essa língua
- Dançou com os homens de Quetzalcoatl! - exclamou em espanhol. - Porque fez isso? Porquê?
- Estava fascinada.
- Não se deixe fascinar. Afirmo-lhe que lastimo muito que meu marido se interesse por esse movimento. É para mim um desgosto.
Juana apareceu nesse momento com uma garrafa de vermute, a única coisa que Kate podia oferecer aos visitantes.
- Foi aos Estados Unidos ver os seus filhos? - perguntou Kate. - Como vão eles?
- Bem, obrigada. Embora o mais novo continue fraquito...
- Não os trouxe consigo?
- Não. Acho que estão melhor no colégio. Aqui... aqui há muita coisa que os perturbaria. Mas hei-de cá tê-los no próximo mês a passar as férias.
- Então terei oportunidade de os conhecer - disse Kate. Virão para a casa do lago, não é verdade?
- Ainda não sei. Talvez passemos aqui alguns dias. Ando tão ocupada na Cidade do México com a minha Cuna!
- Cuna? Que é isso? - indagou Kate.
Tratava-se de um hospício de enjeitados assistido por algumas obscuras carmelitas. Dona Carlota era a directora, e Kate chegou à conclusão de que a mulher de Ramon devia ser católica fervorosa, quase exaltada. Entregava-se de corpo e alma à Igreja e àquela obra de beneficência.
- Nascem tantas crianças no México e são tão numerosas as que morrem! Se as pudéssemos salvar e preparar para a vida! Fazemos tudo o que é possível, mas ainda é pouco.
Segundo parecia, todos os nenés indesejáveis eram entregues na Cuna, como embrulhos. A mãe só tinha de bater à porta e depositar noutras mãos o pacote vivo.
- Assim, impedimos que muitas mães negligentes deixem morrer os filhos - prosseguiu Dona Carlota. - Se não nos dizem o nome da criança, sou eu que a baptizo. Já o tenho feito muitas vezes. É vulgar entregarem-nos meninos absolutamente nus, sem um trapo a cobri-los... e sem nome. E nós nunca perguntamos nada.
Nem todos os expostos ficavam no hospício. Na maior parte eram confiados a índias decentes, a quem pagavam para os criar em casa. No fim do mês, cada qual se apresentava com o seu protegido e recebia o ordenado. As índias podem ser descuidadas mas não maltratam as crianças.
Noutro tempo, informou Dona Carlota, quase todas as senhoras do México recebiam na sua casa um ou dois desses enjeitados e tratavam-nos como família. Mas perdera-se a generosidade patriarcal dos espanhóis-mexicanos e actualmente adoptavam poucas crianças. Em vez disso, preparavam-nas para ganhar a vida, ensinando-lhes qualquer ofício.
Kate ouvia com-interesse e certo constrangimento. Não lobrigava sentimentos humanos nessa caridade mexicana, e quase discordava dela. Talvez Dona Carlota fizesse tudo o que podia nesse país semibárbaro, mas fazia-o sem nenhuma esperança de êxito. Embora com a consciência de que procedia bem, tinha um pouco o ar de vítima, de uma vítima sensível, branda, um tanto assustada. Dir-se-ia que um mal secreto lhe roía o coração.
Don Ramon escutava impassível, num silêncio que se opunha ao entusiasmo caritativo da mulher. Deixava-a agir como entendia, mas contra a sua obra e a sua loquacidade mantinha-se calado, duro, numa hostilidade surda e permanente. Dona Carlota percebia-o e tremia nervosamente enquanto falava do hospício de enjeitados. Kate acabou por achar cruel a atitude de Don Ramon; parecia um ídolo de pedra.
- Porque não vem passar um dia connosco, enquanto estamos em Sayula? - sugeriu Dona Carlota. - A casa é pouco confortável, já não é como foi, mas teremos muito gosto em recebê-la.
Kate aceitou o convite e disse que preferia ir a pé. Eram apenas quatro milhas de percurso e, com a Juana, iria bem acompanhada.
-. - Mandarei um homem buscá-las - declarou Don Ramon. Será mais seguro.
- Onde está o general Viedma? - perguntou Kate.
- Faremos o possível por tê-lo connosco quando a senhora lá for - replicou Dona Carlota. - Gosto deveras de Don Cipriano, que há muitos anos conheço. Por sinal que é o padrinho do meu filho mais novo. Presentemente, comanda a divisão de Guadalajara, por isso nem sempre se encontra livre.
- Admira-me que seja general - observou Kate. - Acho-o humano em excesso.
- E, de facto, é cheio de humanidade. Mas é general, e gosta de comandar os soldados. Deixe-me dizer-lhe que se trata de uma pessoa de muita influência. Exerce grande ascendente na tropa. Crêem nele, isso não se pode negar. Possui aquele poder, inato nos chefes índios, de afeiçoar a si os militares e de os levar ao combate. Pois é assim mesmo Don Cipriano. Ninguém conseguiria modificá-lo. Julgo, porém, que lhe seria de utilidade a presença de uma mulher. Nunca teve nenhuma na sua vida! Elas não lhe interessam...
- Que lhe interessa então?
- Ah! - exclamou Dona Carlota, estremecendo como se a picassem. Lançou um olhar rápido ao marido e declarou: - Não sei. Palavra que não sei.
- Os homens de Quetzalcoatl - declarou Don Ramon com
um leve sorriso.
Mas Dona Carlota dir-se-ia tirar-lhe todo o desembaraço. Parecia contrafeito, e um tanto estúpido.
- Ah, sim, sim, os homens de Quetzalcoatl - bradou Dona Carlota, amável mas com ar de censura. - Linda coisa para ele se ocupar! - Kate percebeu que a sua interlocutora adorava esses dois homens e que tremia à ideia de se opor aos seus erros, embora jamais transigisse com qualquer deles.
Para Don Ramon representava um pesado fardo aquela cega adoração da mulher e a sua não menos cega oposição.
Certa manhã, às nove horas, apareceu o criado para acompanhar Kate à fazenda, que chamavam de Jamiltepec. Trazia um cabaz e vinha do mercado. Era um velhote de bigode grisalho e olhos juvenis, cheios de vida. Os pés, metidos em huafaches, pareciam negros de tão queimados do sol, mas o fato resplandecia de alvura.
Kate ficou radiante com essa excursão a pé. O que tornava tão aborrecida a sua existência na aldeia era a impossibilidade de passear no campo. Havia sempre o risco de um assalto. Acompanhada de Ezequiel, dera algumas voltas pelos arredores, mas já começava a sentir-se prisioneira. Foi, por conseguinte, uma alegria sair de casa.
A manhã estava clara e quente, o lago brilhava quieto, espectral. Moviam-se pessoas na margem, minúsculas àquela distância, meros pontinhos brancos: peóns que seguiam os seus burros envoltos numa leve nuvem de poeira. Kate perguntava a si mesma porque seria que os homens apareciam sempre na paisagem mexicana como pequeninas manchas; pequeninas manchas de vida.
Entraram na estrada poeirenta que levava para oeste, entre a vertente alcantilada das colinas e a nesga de planície junto ao lago. Por espaço de milha foram encontrando vivendas, muitas delas fechadas, outras destruídas, já sem muros nem janelas. Todavia desabrochavam flores entre os montes de cascalho.
Nos terrenos vagos havia delgadas cabanas de palha dos indígenas - como que nascidas ali, ao acaso. Perto do caminho por baixo de um outeiro viam-se choças de adobe, semelhantes a caixas cinzento-escuras. Em volta corriam aves domésticas, grunhiam e refocilavam porcos pardacentos ou malhados de preto. Crianças seminuas, de um tom castanho-alaranjado, brincavam ou jaziam estiradas no chão, a dormir, com as nádegas à mostra.
Muitas das casas estavam a ser cobertas de colmo novo ou reteIhadas por indivíduos que assumiam ares de importância por se encarregarem desse trabalho. Mostravam-se também apressados, pois não tardariam a vir as chuvas torrenciais. E, na banda do lago, havia quem andasse a lavrar a terra dura com uma junta de bois e um pau forte e aguçado.
Mas Kate conhecia essa parte do caminho. Vira já a bela vivenda da colina, com os seus tufos de palmeiras que ladeavam as alamedas desertas. A estrada descia novamente para o lago, entre árvores frondosas de vagens retorcidas. À esquerda, a água mansa, gelatinosa, lambia as pedras amareladas. Numa poça da praia estavam mulheres a lavar roupa, e, nos baixios, banhavam-se duas raparigas com os cabelos negros pendentes e gotejantes. Mais adiante, um homem patinhava lentamente, detendo-se para arremessar com perícia a rede à água e depois recolhê-la cheia desses peixinhos luzidios a que chamam charales. Tudo estranhamente silencioso e remoto na manhã cintilante.
Vinha do lago uma leve brisa, mas a poeira da estrada queimava os pés. À direita erguia-se o monte, abrupto, ressequido e amarelo, exalando calor e aquele cheiro característico do México que se diria ser a evaporação duma terra cada vez mais calcinada.
Desfilavam continuamente filas de burros carregados, trotando na poeira e seguidos pelos condutores que marchavam erectos e rápidos, olhando com olhos semelhantes a buracos negros mas respondendo sempre à saudação de Kate com um respeitoso adiós. E Juana ecoava com o seu lacónico adiósm. Caminhava coxeando e achava tristíssima aquela ideia da niña de percorrer quatro milhas a pé, quando poderiam ir num automóvel de aluguer, de barco ou mesmo de burro.
Mas a pé! Kate percebia todos os sentimentos da criada no seu arrastado e sardónico adiósn. Em compensação, o homem de Ramon vinha animadamente atrás delas, dirigindo saudações alegres, com a pistola bem em evidência no cinto.
A estrada contornava um rochedo amarelo e escarpado para desembocar num campo aberto, onde se alastravam espinheiros e cactos poeirentos. À esquerda, distinguia-se a mancha verde dos salgueiros à beira do lago. À direita, as colinas inclinavam-se sobre o flanco árido das montanhas. Em frente, os outeiros ladeavam as margens do lago e afastavam-se, descobrindo uma espécie de garganta que conduzia à casa de Don Ramon e à sua plantação de cana-de-açúcar.
- Aqui temos Jamiltepec, a hacienda de Don Ramon, señorita - anunciou o homem.
Os olhos luziam-lhe ao proferir estas palavras. Era um peón orgulhoso e sem dúvida feliz com a sua sorte.
- Que lonjura! - exclamou Juana.
- Para outra vez virei só ou com o Ezequiel - replicou Kate.
- Não diga isso, niña! Só me queixo do pé, que me dói hoje a valer.
- Por isso mesmo é melhor não vires comigo.
- Não, niña. Gosto muito de vir.
Giravam alegremente as asas do moinho que puxava a água do lago. Entre as colinas descia o valezito onde deslizava um riacho e na parte mais larga viam-se bananeiras que uma cortina de salgueiros resguardava da brisa lacustre. No cimo da encosta, onde o caminho se embrenhava na sombra de mangueiras, elevavam-se dois renques de casas de adobe, tal uma aldeia um pouco recuada.
Surgiam mulheres entre as árvores, que vinham do lago com seus cântaros de água ao ombro. De roda das portas brincavam crianças, arrastando o traseiro nu na poeira do chão. Aqui e ali, uma cabra amarrada. E, apoiados na esquina da casa, ou encostados à parede, estavam homens de braços e pernas cruzados, mas não em dolce far niente. Pareciam esperar, esperar eternamente por qualquer coisa.
- Por aqui, señorita ! - disse o homem do cabaz, indicando um caminho que descia entre árvores frondosas até ao portão branco da hacienda. - Já cá estamos.
Mostrava-se tão contente como se houvesse chegado ao Paraíso.
Encontravam-se abertas as portas do zaguán, ou entrada, a cuja sombra descansavam dois soldados. No espaço em frente do portão, passavam nesse momento dois peóns, cada qual com um cacho de bananas à cabeça. Os soldados disseram qualquer coisa e aqueles detiveram-se e voltaram-se lentamente com a sua carga verde para observarem Kate, Juana e Martin - o homem que as acompanhava. Depois retomaram a sua marcha.
Os soldados levantaram-se e Martin conduziu Kate pela passagem abobadada, onde as rodas dos carros haviam cavado fundos sulcos. Juana seguia-os com expressão lastimosa.
Kate achou-se num pátio enorme, cercado em três lados por muros altos, alpendres e estábulos. Ao fundo era a casa de residência, com as suas janelas gradeadas e, em vez de porta, outro zaguán de batentes fechados, espécie de corredor ao longo do edifício.
Martin avançou para tocar a aldraba, e Kate olhou entretanto à sua volta. Num alpendre, estavam homens seminus a empacar cachos de bananas. Noutro lado, serravam paus e descarregavam telhas de cima dum burro. A um canto viam-se bois atrelados a uma carroça, de cabeça pendida sob a canga, como se esperassem.
Abriram-se as portas e Kate entrou no segundo zaguán. Era uma entrada larga, com seu lanço de escadas a um lado e um portão gradeado ao fundo, através do qual se via o jardim orlado de mangueiras e, mais abaixo, o lago com o seu porto artificial onde baloiçavam dois barcos.
Nas costas dos recém-vindos, a criada fechou a porta que dava para o pátio e indicou a Kate as escadas.
- Por aqui, señorita.
Badalava uma sineta lá no cimo. Kate subiu os degraus de pedra, ao encontro de Dona Carlota, que a esperava no patamar, vestida de musselina branca, o que, pelo contraste, lhe dava um tom amarelo às faces. Estendeu os braços magros e bronzeados, acolhendo Kate com extraordinária efusão.
- Muito prazer em vê-la aqui! E veio todo o caminho a pé, com este sol! Entre, entre e descanse.
Pegou na mão de Kate e levou-a através do terraço, no topo da escada.
- Que linda vista! - exclamou Kate, contemplando o lago para além das mangueiras. Na água pálida, irreal, vogava ao longe um barco de vela. Para além, elevavam-se as montanhas de gargantas azuladas, com a mancha branca duma aldeia. Dir-se-ia outro mundo, perdido na luz da manhã, outra vida.
- Que povoação é aquela? - perguntou Kate.
- Acolá? É San Ildefonso - respondeu Dona Carlota.
- Como este sítio é belo! - disse Kate.
- Hermoso, si! Si, bonito - retorquiu a outra em espanhol, conforme o seu costume.
A casa, de um vermelho-alaranjado, tinha duas alas voltadas para o lago. com o seu murinho coroado de plantas verdes, o terraço cercava três lados do edifício; suportavam o telhado largos pilares que partiam do solo, formando em baixo uma espécie de claustro ocupado ao centro por um tanque cheio de água.
- Venha - disse Dona Carlota. - Precisa de descansar.
- Gostaria de mudar de sapatos - declarou Kate. Levaram-na a um quarto espaçoso, um tanto vazio, de chão de
tijolos. Aí, Kate calçou as meias e os sapatos que Juana trouxera num embrulho e estendeu-se um momento para repousar.
E, enquanto repousava, ouvia o rufar surdo do tambor, no profundo silêncio da manhã, só perturbado pelo canto dum galo longínquo. Aquele som contínuo, insistente, enchia-a de mal-estar. Parecia o ribombo duma tempestade desencadeando-se no horizonte.
Kate levantou-se e dirigiu-se para o salão onde Dona Carlota estava sentada a conversar com um homem vestido de preto. com as suas três portas envidraçadas abertas sobre o terraço, chão de ladrilhos vermelhos, paredes pintadas de verde-claro, tecto de barrotes caiados e escassez de mobília, aquilo parecia mais um caramanchel do que um salão. Como em muitas casas dos países quentes, tinha-se a impressão de não se estar dentro de quatro paredes, mas sim de três; um lugar de passagem, e não para ficar.
À chegada de Kate, o homem de preto levantou-se, apertou a mão a Dona Carlota e, baixando a cabeça num comprimento cerimonioso, desapareceu por uma das portas do terraço.
- Entre, entre! - disse Dona Carlota a Kate. - Já não se sente cansada? - acrescentou, avançando uma das cadeiras de junco que estava negligentemente colocada no meio da sala.
- Absolutamente nada - respondeu Kate. - Como esta região é silenciosa! Só se ouve o tambor, o que talvez nos faça notar mais o silêncio.
- Ah, esse tambor! - exclamou Dona Carlota, erguendo a mão num movimento de exaspero. - Não posso com isso! Detesto ouvi-lo.
E moveu-se na cadeira de baloiço, com súbito nervosismo.
- É um som realmente impressionante - redarguiu Kate. - Que significa, afinal?
- Não mo pergunte! São coisas de meu marido. - E Dona Carlota fez novo gesto de desespero.
- Don Ramon é que toca o tambor?
- Não, não! - Dona Carlota pareceu sobressaltada àquela pergunta. - Não é ele que toca. Trouxe dois índios do Norte para se desempenharem desse trabalho.
- Ah, sim? - volveu Kate, sem se comprometer. Mas Dona Carlota balançava-se numa espécie de semi-inconsciência e só daí a instantes pareceu voltar a si.
- Tenho de desabafar com alguém! - disse, de repente, endireitando-se na cadeira, com uma expressão de angústia espelhada nos grandes olhos castanhos e no rosto cor de nata. - Posso desabafar consigo?
- Certamente - respondeu Kate, constrangida.
- Sabe o que Ramon anda a fazer?
- Julgo que pretende ressuscitar o culto dos deuses antigos.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, com outro aceno de mão desesperado. - Como se isso fosse possível! Os deuses antigos! Imagine-se! Que são eles senão ilusões mortas? E feias, repulsivas! Sempre pensei que meu marido fosse inteligente, muito superior a mim, e é triste ter de mudar de opinião. Tudo aquilo é um disparate. E ele atreve-se a tomar a sério o que não passa de um disparate!
- Talvez Don Ramon creia...
- Mas como pode ele crer? - replicou a dona da casa, com um sorriso desdenhoso. - É instruído, não pode acreditar em semelhante tolice.
- Então qual é o seu objectivo?
- Isso é que eu gostaria de saber. - Na voz de Dona Carlota transparecia indizível cansaço. - Penso que está louco, como acontece a tantos mexicanos. Louco como o bandido Francisco Villa.
Lembrando-se do rosto simiesco do famoso Pancho Villa, Kate não foi capaz de o associar a Don Ramon.
- Desde que se elevam na sociedade os mexicanos perdem a cabeça, o orgulho transtorna-os. Não pensam em mais nada senão na sua importância. Pura vaidade masculina. Não acha, señora, que a vaidade é o começo e o fim do homem? Jesus veio ao mundo para combater esse perigo, ensinando-nos a ser humildes. Por isso odeiam Cristo e os Seus ensinamentos, e deixam-se guiar pela vaidade durante toda a vida.
A mesma reflexão ocorrera a Kate muitas vezes, e concluíra que nos homens só existia vaidade. Precisavam de ser lisonjeados, de sentir a sua grandeza, nada mais.
- O que meu marido pretende é opor-se a Jesus, elevar o orgulho e a vaidade acima de Deus. Ah, é horrível! Horrível e infantil. Que são os homens senão crianças que necessitam dos cuidados da mãe? Ah, señora, é mais do que posso suportar!
Dona Carlota cobriu a cara com as mãos.
- Em todo o caso, acho o seu marido uma pessoa excepcional - disse Kate para a consolar, embora nesse momento detestasse Don Ramon.
- Sim, possui grandes qualidades, mas de que lhe servem se estão pervertidas?
- Explique-me ao certo: o que é que ele pretende, afinal?
- O poder, o poder absurdo e maléfico, como se já não houvesse bastantes poderes maléficos por todo este país. Quer ser mais do que os outros, adorado, venerado. Um deus! Ele, a quem embalei nos braços como uma criança, querer que o adorem!
E Dona Carlota desatou num riso estridente pontuado de soluços.
Kate esperou que ela se acalmasse.
- No fim de contas - disse, quando a viu mais sossegada - não somos responsáveis pelo que fazem os maridos. Aprendi à minha custa que todo o amor é impotente perante a vontade dos homens. Meu marido quis morrer, e não pude impedi-lo... Temos de os deixar fazer tudo o que querem, até as coisas que nos parecem insensatas.
Dona Carlota ergueu os olhos para Kate.
- Gostava muito do seu marido... e ele morreu? - perguntou em voz suave.
- Amei-o deveras, e não tornarei a gostar doutro homem. Perdi a faculdade de amar.
- De que morreu?
- Por sua culpa. Despedaçou o coração e a alma com a política irlandesa. Eu sabia que ele fazia mal em se ocupar disso. Que nos importava a Irlanda, o nacionalismo, as revoluções e todas essas tolices? Ah, se o Joachim se limitasse a viver em paz comigo, poderíamos ser tão felizes! Em vão tentei convencê-lo. Queria matar-se com aquela estúpida política, e não consegui evitá-lo. Foram inúteis todos os meus esforços.
Dona Carlota olhou fixamente para Kate.
- Assim como são os meus para impedir que Ramon proceda mal e se mate... E depois de morto, de que servirá tudo aquilo?
- De nada. Depois de eles morrerem, ficamos a saber que foi inútil todo o trabalho que tiveram.
- Oh, señora! Se pode ajudar-me a salvar Ramon, ajude-me! É uma questão de vida ou de morte para nós ambos. Porque eu morrerei se ele levar a sua avante...
- Explique-me bem qual é a ideia de Don Ramon. A do meu marido era libertar a Irlanda e engrandecer o povo. Mas eu nunca acreditei que os irlandeses fossem jamais um grande povo nem que se pudesse torná-lo livre. Só sabe destruir, e destruir estupidamente. Não se pode fazer livre um povo que o não é. Existe nele qualquer coisa que o impele à destruição.
- Bem sei, bem sei. Da mesma forma é Ramon. Até quer destruir Jesus e a Virgem Maria por amor do povo. Imagine! Derrotar Jesus e a Virgem! A última coisa que se podia pensar...
- Mas o que diz ele quanto ao seu projecto?
- Diz que pretende estabelecer um novo nexo entre o povo e Deus. Declara, por seu lado, que Deus é sempre Deus, mas que o homem perdeu a sua união com a divindade... e que não é possível restaurá-la sem que venha um novo Deus. E que qualquer novo nexo tem de ser diferente do antigo, embora Deus continue a ser Deus. Neste momento, declara meu marido, o povo perdeu o seu Deus. O Salvador já não será capaz de o reconduzir a Si. Precisa-se de outro Salvador, com uma nova visão. Ah, señora, eu não creio nisto! Deus é amor e, se Ramon se submetesse, ao menos, ao amor, compreenderia que aí é que estava Deus. Mas qual! É tão perverso! Poderíamos, ambos, com amor calmo, gozando a beleza do mundo, esperar pelo amor de Deus... Porque é, señora, que ele não vê isto? Oh, porque não compreende? Em vez de fazer estas coisas...
Acudiram lágrimas aos olhos de Dona Carlota, as quais se lhe espalharam pelo rosto. Kate também chorava.
- É inútil! - disse ela, soluçando. - Sei que é inútil, faça-se o que se fizer. Não querem ser felizes e estar em paz, mas sim esta luta e esses falsos e horríveis nexos... Sim, é inútil, de qualquer forma. E nisto é que está o pior.
E as duas mulheres, sentadas nas cadeiras de baloiço, soluçavam amargamente quando ouviram passos no terraço, leve ruído de pés calçados de sandálias.
Era Don Ramon, atraído inconscientemente pelo clamor daquelas criaturas pesarosas.
Dona Carlota limpou a toda a pressa os olhos e o nariz; Kate assoou-se com estrondo. No limiar da porta, Don Ramon deteve-se.
Trajava como os camponeses, todo de branco, de casaco largo e calças muito amplas. O fato era de linho, com certa goma, e tinha um brilho estranho, fora do vulgar. Por baixo do casaco, à frente, uniam-se as pontas duma faixa estreita de lã, também branca, franjada de vermelho e riscada de azul e preto. Nos pés sem meias trazia huaraches de coiro azul e negro, entrançado, com espessas solas tingidas de vermelhão. As calças estavam presas aos tornozelos por alamares de lã pretos, azuis e encarnados.
Kate, vendo-o assim à claridade do sol, vestido de uma alvura tão ofuscante, teve a impressão de que o rosto dele, escuro e emoldurado de cabelos escuros, fazia como que um buraco na atmosfera.
Don Ramon aproximou-se, com as pontas da faixa a baterem-lhe nas pernas, e as sandálias rangendo de leve.
- Muito prazer em encontrá-la - murmurou, apertando a mão da visitante. - Como veio?
Deixou-se cair numa cadeira e ficou imóvel. As duas senhoras baixaram a cabeça, como se quisessem esconder a cara. A presença do homem ainda as constrangia mais, porém o dono da casa fingiu não reparar na comoção que sentiam e fê-lo por um acto de pura vontade. Da sua presença emanava certa força e elas experimentaram um pouco de alívio.
- Não sabia que o meu marido se tornara num aldeão, num verdadeiro peón? - perguntou Dona Carlota, irónica, à sua hóspeda. - É um señor peón, como o conde Tolstoi se fez señor mujique...
- Mas fica-lhe bem - observou Kate.
- Ora aí está... Ao diabo o que é do diabo... - replicou Don Ramon.
Havia nele algo de tenaz, de inflexível. Riu, e falou às senhoras, mas sem se revelar muito, apenas superficialmente. O seu ser íntimo, insondável e poderoso, não entrava em contacto com elas.
Assim foi durante o almoço. Houve conversa esvoaçante, com intervalos de silêncio. Nesse silêncio percebia-se que Don Ramon vivia noutro mundo; e a sua vontade calma, obrando noutra esfera, fazia recuar as mulheres para a sombra.
- A señora é como eu, Ramon - disse Dona Carlota. - Não tolera o rufar do tambor. Irá continuar aquilo, pela tarde adiante?
Seguiu-se uma pausa antes que ele respondesse:
- Só depois das quatro horas.
- Temos, então, de aturar hoje esse barulho? - insistiu Dona Carlota.
- Porque não há-de ser hoje como nos outros dias? - ripostou o marido. Notava-se-lhe um ar contrariado. Era evidente que pretendia subtrair-se à presença daquelas duas.
- Porque a senhora está cá, e eu estou também, e porque nenhuma de nós gosta daquele som. Amanhã já ela se vai embora, e eu regresso à cidade. Porque não nos poupas esse tormento? E
Ramon fitou a mulher, e em seguida Kate. Os olhos denotavam cólera. Kate quase ouvia, naquele peito forte, o coração inchar de furor. Mas calou-se e a outra também se calou. No fundo, estavam satisfeitas por terem podido despertar a ira do homem.
Mantendo o sangue-frio, Don Ramon inquiriu da esposa (não sem que se lhe percebesse a indignação):
- Porque não levas a senhora Leslie até ao lago?
- Não nos apetece.
Ele então fez o que a irlandesa nunca vira ninguém fazer. Encerrou-se dentro de si mesmo, deixando às duas comensais a impressão de se encontrarem diante duma porta que se fechou. Kate sentiu-se abandonada e deprimida, mas a pouco e pouco a irritação tingiu-lhe as faces pálidas dum rubor de fogo.
- Posso ir-me embora antes das quatro horas - declarou.
- Não, não! - acudiu, suplicante, a dona da casa. - Não me deixe. Fique comigo até à noite e ajude-me a distrair Don Cipriano, que vem jantar connosco.

XI
Acabado o almoço, Ramon recolheu ao quarto para dormir a sesta. A tarde estava quente, pesada. No extremo oeste do lago erguiam-se nuvens cintilantes, quais mensageiros da tempestade. Ramon fechou as janelas do seu aposento de modo a obter negrume total; apenas aqui e ali, filtrando-se pelos interstícios da porta, os raios de luz pousavam nas trevas como uma coisa tangível.
Despiu a roupa e ergueu acima da cabeça os punhos fechados, como se orasse intensamente e de pé. Nos seus olhos só havia escuridão, e a pouco e pouco essa escuridão atingiu-lhe o cérebro, apagando-lhe todos os pensamentos. Só uma vontade poderosa se distendia e emanava da espinha dorsal, numa tensão sobre-humana até que as flechas da alma atingiram o alvo e a oração a sua meta.
Então, bruscamente, tombaram os braços trémulos, o corpo readquiriu a flexibilidade. O homem recuperara a sua força. Quebrara as cordas do mundo e sentia-se livre e senhor da outra força.
Devagarinho, com precaução, esforçando-se por não pensar, não se recordar, não despertar as serpentes venenosas da consciência, enrolou-se num cobertor delgado e estendeu-se no chão sobre uma pilha de coxins. Daí a instantes, adormecia.
Dormiu profundamente cerca de uma hora. Abriu os olhos de repente, viu as trevas aveludadas e as frechas de luz diminuídas: o sol mudara. Pôs-se à escuta. Parecia não haver um único som no mundo. Talvez não existisse mundo...
Então começou a ouvir. Distinguiu o débil rumor duma carroça, folhas sussurrando ao vento, o som distante de pancadas, o pio duma ave.
Levantou-se, vestiu-se com rapidez às escuras e foi abrir as janelas. A tarde ia em meio; soprava uma aragem quente, amontoavam-se a oeste nuvens escuras, mas a chuva não se decidia a cair. Ramon pôs na cabeça um chapéu de palha, que tinha à frente um enfeite de penas brancas, pretas e azuis dispostas em forma de olho, ou de sol. Ouviu vozes femininas. Ah, a estrangeira! Esquecera-a por completo. E Carlota! Carlota encontrava-se ali. Por um momento, pensou nela e na sua caprichosa oposição. Depois, antes que a ira o dominasse, soergueu o peito, em nova oração muda, os olhos sombrearam-se-lhe - e perdeu a impressão de contrariedade.
Seguiu pelo terraço até à escada de pedra que conduzia à entrada e atravessou o pátio, onde dois homens, debaixo dum alpendre, carregavam azêmolas com fardos de bananas. No zaguán dormiam soldados. Pelas portas abertas, Ramon viu ao fundo da alameda um carro de bois afastando-se lentamente. No pátio ressoavam marteladas numa bigorna: era um homem e um rapazito ocupados na forja. Noutro alpendre, um carpinteiro aplainava tábuas.
Don Ramon deteve-se um momento para olhar em volta. Aquele era o seu mundo. O espírito dele espraiava-se nesse mundo como uma sombra fomentadora, e o silêncio do seu próprio poder dava-lhe paz.
Os homens que trabalhavam tiveram quase instantaneamente consciência da presença do patrão. Um após outro, os rostos escuros e ardentes ergueram-se para ele e voltaram a baixar-se. Gostavam de o ver ali, mas temiam aproximar-se e nem se atreviam a um olhar mais prolongado. Retomaram o trabalho com mais ardor, como se a presença do patrão lhes desse novo alento.
Ramon dirigiu-se para a forja, onde o rapazinho dava ao fole e o homem batia pancadas leves e rápidas num pedaço de ferro.
- É a ave? - perguntou Ramon.
- Sim, patrón, é a ave. Está bem! - E o homem levantou os olhos pretos, luzidios, expectantes. com uma tenaz, brandiu a tira de metal, negra, em forma de língua achatada, e Ramon observou-a demoradamente. - As asas ponho-as depois - explicou o ferreiro.
com as mãos escuras e nervosas, Don Ramon traçou uma linha imaginária em volta do pedaço de ferro. Três vezes fez esse gesto, que parecia fascinar o ferreiro.
- Um pouco mais alongado. Assim... - disse Ramon.
- Sim, patrón, compreendo.
- E o resto?
- Está ali. - O homem apontou para dois arcos, um maior que outro, e para várias chapas de ferro triangulares.
- Coloca tudo isso no chão.
O ferreiro pousou os arcos, um dentro do outro, e em seguida dispôs com perícia os triângulos de modo que as bases ficassem sobre o arco exterior e os vértices no círculo interior. Eram sete.
Assim formaram um sol de sete pontas.
- Agora, a ave - ordenou Ramon.
O homem pegou logo na peça comprida: era a forma rudimentar dum pássaro, com dois pés mas ainda sem asas. Colocou-a no centro da roda interior, de maneira que as patas tocassem no círculo e a cabeça atingisse a parte oposta.
- Está tudo certo!
Ramon contemplava o símbolo de ferro armado no chão quando ouviu abrir a porta de casa. Kate e Carlota avançaram através do pátio.
- Retiro isto? - inquiriu o ferreiro.
- Deixa, não faz mal - respondeu Don Ramon tranquilamente.
Kate deteve-se a observar aquela coisa estendida no chão.
- Que é isso? - perguntou.
- A ave dentro do sol.
- Representa uma ave?
- Quando tiver asas.
- Ah, faltam-lhe as asas! E de que serve?
- É um símbolo para o povo.
- é bem bonito...
- Sim, é bonito.
- Ramon, não te importas dar-me a chave para tirar o barco?
- disse Dona Carlota. - Vamos dar um passeio no lago, e Martin remará.
O marido tirou a chave da cinta.
- Onde descobriu essa linda faixa? - indagou Kate. Era branca, com riscas azuis e pretas e franjadade vermelho.
- Teceram-na aqui - informou Don Ramon.
- E as sandálias? Também as fizeram cá?
- Sim, foi obra do Manuel. Mais tarde lho mostrarei...
- Gostaria bastante de ver. São belíssimas, não acha, Dona Carlota?
- Acho, mas não sei se as coisas belas são sensatas. Não sei. E a señora, sabe o que é sensato?
- Eu? - volveu Kate. - Não me preocupo muito com isso.
- Ah, não se preocupa! Afigura-se-lhe então sensato da parte de Ramon usar traje de camponês e huaraches?
Pela primeira vez, Dona Carlota exprimira-se em língua inglesa, falando com lentidão.
- Fica-lhe tão bem! - replicou Kate. - O fato de homem é medonho e Don Ramon parece magnífico com este.
De facto, com o largo chapéu pousado na cabeça ele tinha certo ar de nobreza e autoridade.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, fixando na companheira o seu olhar inteligente, enquanto brincava com a chave. - Vamos para o lago?
As duas mulheres afastaram-se. Rindo consigo mesmo, Ramon atravessou o pátio e dirigiu-se a uma granja construída perto das árvores. Entrou e assobiou baixinho. Soou outro assobio como resposta e abriu-se um alçapão. Don Ramon subiu a escada e encontrou-se numa espécie de oficina de carpinteiro. Acolheu-o um rapaz corpulento, de cabelo encaracolado, que empunhava maço e escopro.
- Que tal vai isso? - perguntou Ramon.
- Vai bem.
O artista esculpia uma cabeça de madeira. Uma cabeça avantajada, convencional, mas que, apesar do convencionalismo, revelava semelhança com Ramon.
- Sirva-me de modelo durante meia hora - disse o escultor. Ramon sentou-se e ficou silencioso, enquanto o outro, curvado
sobre a sua obra, se concentrava no trabalho. Durante todo aquele tempo, Don Ramon conservou-se erecto, quase imóvel, sem pensar em nada, mas irradiando um halo sombrio de poder que fascinava o artista.
- Basta - declarou por fim, levantando-se.
- Mas ponha-se na posição antes de se ir embora - pediu o artista.
Ramon despiu lentamente o casaco e ficou de torso nu, com a faixa raiada de azul e preto de roda da cintura. Por uns instantes pareceu recolher-se e, em seguida, como se numa oração intensa e orgulhosa, ergueu o braço direito por cima da cabeça e ficou transfigurado. O braço esquerdo pendia molemente ao longo do quadril. E no rosto, esse ar de orgulho fixo e intenso que era em si mesmo uma oração.
O escultor observava-o admirado e quase temeroso. Aquele homem grande e enérgico, com os seus olhos negros dilatados pelo orgulho e no entanto cheios de oração, despertava no escultor um frémito de alegria e de medo.
Don Ramon voltou-se para ele.
- Agora, você!
O artista, assustado, quis esquivar-se, mas encontrou o olhar de Ramon e, no mesmo instante, a calma da concentração desceu sobre ele, como um êxtase. Então, bruscamente, ergueu o braço, e a face pálida e nédia adquiriu uma expressão de paz e dignidade. Os olhos cinzento-azulados, serenos e altivos, dirigiam ao Além a sua oração. E embora estivesse com a bata de trabalho, e não fosse esbelto, apresentava uma imobilidade perfeita, plena de nobreza.
- Muito bem - disse Ramon, baixando a cabeça.
O escultor moveu-se de súbito. Ramon estendeu-lhe as duas mãos e ele, levantando-lhe a dextra, pousou-a na fronte.
- Adiós! - disse Ramon, depois de enfiar o casaco.
- Adiós - respondeu o artista. E com a felicidade estampada no rosto, voltou para o trabalho.
Don Ramon visitou a casa de adobe, cujo pátio era rodeado duma paliçada de canas e sombreado por uma gigantesca mangueira. Manuel, a mulher, os filhos e dois ajudantes estavam a fiar e a tecer. Debaixo das bananeiras, duas pequenas cardavam lã branca e castanha. A mulher e uma rapariga fiavam. Numa corda secava lã tingida, vermelha, azul e verde. E, no alpendre, Manuel e um rapaz manobravam dois pesados teares.
- Como vai isso? - inquiriu Don Ramon.
- Muy bien! Muy bien! - respondeu Manuel, com uma expressão transfigurada cintilando-lhe nas pupilas negras. - Muito bem, señor!
Ramon examinou a serape que estavam a tecer. Tinha uma barra em ziguezague de lã preta natural e, em cada ponta, um ornato complicado, azul e preto. O homem começara o centro, a que chamam boca, e olhava de instante a instante para o desenho pregado no tear. Aliás, era um desenho simples, igual ao símbolo de que o ferreiro se ocupava: uma serpente a morder a cauda e, de volta, triângulos negros cujas bases se apoiavam num círculo exterior; ao meio uma águia azul, com as asas e os pés tocando no arco formado pela serpente.
Ramon voltou a casa, dirigindo-se para a ala onde se encontrava o seu quarto. Lançou uma manta dobrada sobre o ombro e seguiu pelo terraço. No extremo dessa ala, projectando-se para o lago, havia outro terraço, este quadrado, com uma bignónia cor de coral pendente dos pilares maciços. A loggia estava juncada de esteiras e, a um canto, via-se um tambor e respectiva baqueta. No ângulo mais afastado mergulhava uma escada de pedra, fechada em baixo por uma porta de ferro.
Ramon ficou uns momentos a olhar para o lago. As nuvens dispersavam-se e o lençol de água reflectiu uma claridade esbranquiçada. Ao longe, via-se a mancha de um barco, onde provavelmente se encontravam Martin e as duas senhoras.
Tirou o chapéu e o casaco, e permaneceu imóvel, nu da cintura para cima. Então pegou na baqueta e, depois de esperar uns segundos, até adquirir paz de alma, fez soar o apelo do tambor, num ritmo alternado, forte e fraco. Captara o antigo poder bárbaro de certos rufos.
Assim esteve durante algum tempo, sozinho, tocando tambor com a mão direita, de face inexpressiva.
Acorreu um homem, de cabeça descoberta, vindo do outro terraço. Trazia fato de brancura imaculada, serape escura ao ombro, e uma chave na mão. Saudou Ramon, levando à testa as costas da mão direita, e depois desceu a escada e abriu a porta de ferro.
Imediatamente chegaram homens, todos vestidos de branco, cada qual com a sua serape dobrada em cima dos ombros. Mas as faixas eram azuis, e as sandálias azuis e brancas. O escultor apareceu, assim como Martin.
Eram sete, além de Ramon. No topo da escada saudaram-no, um apôs outro. Em seguida, depuseram a manta e o chapéu no murinho do terraço e despiram o casaco, que atiraram para cima dos chapéus.
Ramon largou o tambor e sentou-se sobre a sua manta raiada de azul e preto. Todos o imitaram, formando círculo, de pernas cruzadas e torso nu. Uns eram cor de café, outros brancos; Ramon tinha a pele dum tom castanho-claro. Conservaram-se em silêncio, só perturbado pelo som igual e hipnótico do tambor que um dos homens tocava. Então este começou a cantar numa vozinha estranha, contida, essa antiga voz de falsete dos índios:
"Quem dorme despertará. Quem dorme despertará. Quem segue o caminho da serpente há-de chegar ao seu destino; há-de chegar ao seu destino e ficará revestido com a pele da serpente."
Uma por uma, outras vozes se juntaram, até que todos se fizeram ouvir, naquele ritmo cego, infalível, do antigo mundo bárbaro. E todos com idêntica voz interior, como se a alma cantasse para si própria.
Cantaram por momentos, em uníssono, qual bando de pássaros a voar levados pelo mesmo instinto. E quando o tambor vibrou num rufo que era o final da cerimónia, as vozes extinguiram-se também, simultâneas, com um estrangulamento na garganta.
Houve um silêncio. Depois os homens principiaram a conversar uns com os outros, rindo em surdina. Mas a voz deles e a expressão já não eram as mesmas de há pouco.
Don Ramon ia falar e todos se calaram, inclinando a cabeça. Aquele sentara-se, de face erguida, visando ao longe, na dignidade da oração.
- Não há Passado nem Futuro, só existe o Presente - disse em tom surdo, majestoso. - A Serpente magna dobra e desdobra os seus anéis, as estrelas surgem, os mundos desaparecem. Há somente a mudança e o repouso do plasma.
Eu sou sempre, diz o seu sono.
Assim como o homem, enquanto dorme, não tem conhecimento, mas é, também a Serpente enroscada do eterno Cosmos prolonga o seu existir de Agora.
Agora, agora só, e para sempre Agora.
Contudo os sonhos despertam e esmorecem no sono da Serpente.
E o Universo eleva-se como os sonhos e como eles expira.
E o homem é um sonho no sono da Serpente.
E apenas o sono que não tem sonhos murmura: Eu sou!
E no Agora sem sonhos, Eu sou.
Os sonhos despertam, como devem, e o homem é um sonho desperto.
Mas o plasma sem sonhos da Serpente é o plasma do homem, do seu corpo e ao mesmo tempo da sua alma.
E o sonho perfeito da Serpente Eu sou é o plasma do homem, que é íntegro.
Quando o plasma do corpo e o da alma só fazem um, Eu sou na Serpente.
Agora Eu sou.
Não foi é um sonho, assim como será, quais dois pés trôpegos e separados.
Mas Agora. Eu sou.
As árvores desdobram as folhas no sono, e a floração emerge dos sonhos no mais puro Eu sou.
Os pássaros esquecem o peso dos seus sonhos e cantam no Agora: Eu sou! Eu sou!
Porque os sonhos têm asas e pés e caminhos a percorrer, e esforços a realizar.
Mas a Serpente luzidia do Agora não tem asas nem pés, é una, perfeitamente enrolada.
Nos pés dum sonho, a lebre sobe o monte numa corrida. Mas quando se detém o sonho desaparece e ela entra no Presente e os seus olhos são o vasto Eu sou.
Só o homem sonha, sonha, e vai de sonho em sonho, como alguém que, dormindo, se agita no leito.
Sonha com os olhos e a boca, com as mãos e os pés, com o falo, o coração e o ventre, com o corpo e a alma, numa tempestade de sonhos.
E precipita-se de sonho para sonho, na esperança de alcançar o sonho perfeito.
Mas eu afirmo-vos que nenhum sonho é perfeito, porque em todos eles há sofrimento e desejo.
Nada é perfeito, excepto o sonho que falece no sono. Eu sou.
Quando o sonho dos olhos se obscurece, cercado pelo Agora,
E quando o sonho da boca ressoa no último Eu sou,
E quando o sonho das mãos dormita como uma ave no mar, que é erguida, e levada, sem que ela o saiba,
E os sonhos dos pés atingem o centro do mundo, onde a Serpente dorme,
E o sonho do corpo é a calma duma flor oculta,
E o sonho da alma se dissipou no perfume do Agora,
E o sonho do espírito se apazigua e descansa na Estrela da Manhã,
Porque cada sonho começa e termina no Presente,
No âmago da flor está a Serpente que alumia e não desperta.
E o que se apaga é um sonho, e o que se aumenta é um sonho. Há sempre, e somente Agora. Agora e Eu sou."
Reinava o maior silêncio no círculo de homens. Lá fora, rangia um carro de bois e, do lago, elevava-se o débil som de remos a fender a água. Mas os sete homens, de cabeça baixa, escutavam interiormente, numa espécie de transe.
Então o tambor começou, suavemente, e um dos homens cantou, num fio de voz:
O senhor da Estrela da Manhã
Estava entre o dia e a noite:
Tal um pássaro que ergue as asas e espera
com a asa luminosa à direita
E a das trevas à esquerda,
A Estrela de Alva apareceu.
- Olhai! Estou sempre aqui!
Longe, no espaço
Roço a asa do dia
E ilumino o vosso rosto.
com a outra asa roço a sombra.
Mas eu estou sempre aqui.
Estou sempre aqui. Sou o senhor. E os senhores entre os homens Vêem-me no cintilar das minhas asas. E perdem-me outra vez. Mas, olhai! Estou sempre aqui.
As multidões não me vêem. Só vêem o bater de asas, As idas e vindas das coisas, O calor e o frio.
Mas a vós que me vedes entre
O frémito da noite e do dia,
Faço-vos senhores do Caminho Invisível.
Caminho entre abismos de trevas e vales de luz; Caminho que segue tal rasto de serpente, tal a mecha dum rastilho
Que incendiará à substância das trevas e explodirá à vista de todos.
Jamais me afasto. Estou sempre aqui Entre as asas dum voo sem fim, Nas profundezas da paz e da luta.
Profundo no relento da paz,
Longe da orla do combate,
Haveis de encontrar-me, eu que não sou
Nem sou destruição.
Para além eu estou Dos horizontes de amor e de luta, Como uma estrela, como uma fonte Que lava os senhores da vida.
"Ouvi! - disse Ramon, no meio do silêncio. - Seremos senhores entre os homens, não os senhores dos homens. Somos senhores da noite. Senhores do dia e da noite. Filhos da Estrela da Manhã e da Estrela da Tarde.
Não somos senhores dos homens. Eu, porém, sou a Estrela da Manhã e Senhor do dia e da noite. com o poder que me foi concedido à mão esquerda e com o poder que obtive com a mão direita, sou senhor dos dois rumos.
E a minha flor na terra é o jasmim, e no céu a hespéride.
Não vos darei ordens, nem vos servirei, porque a serpente se arqueia em direcção à sua casa.
Contudo, estarei convosco, para que não vos desvieis de vós próprios.
Não há nada a dar nem a receber. Quando os dedos que dão afloram os que recebem, cintila a Estrela da Manhã a esse contacto, e o jasmim brilha entre as mãos. E assim não há dom nem aceitação, nem mão que oferece nem mão que recebe, mas a estrela encontra-se entre elas e a mão escura e a mão clara permanecem invisíveis de cada lado. O jasmim recolhe na corola o dom e a aceitação, e o seu perfume espalha-se no ar.
Não penseis em dar nem em receber, deixai isso à flor do jasmineiro.
Não vos desperdiceis, que nada vos seja arrancado.
E não percais nada, nem o aroma da rosa, nem o sumo da romã, nem o calor do fogo.
Mas dizei à rosa: - Olha, colho-te, e o teu perfume enche-me as narinas e o meu hálito penetra no teu coração. Que isso seja entre nós como um sacramento.
E tomai cuidado quando abrirdes a romã; é o Sol poente que tendes nas mãos. Dizei: - Eis-me aqui, vem! Que a Estrela da Tarde fique entre nós.
E quando a chama se eleva ao sopro do vento frio e estendeis as mãos para o calor, ouvi o que a chama diz: - Ah! És tu? És tu que vens para mim? Eu realizava a grande viagem, seguindo o caminho da serpente magna. Mas visto que vens até mim, de ti me aproximo. E se caíres nas minhas mãos cairei nas tuas, e a flor do jasmineiro perfumará o nosso encontro.
Não repilais nada nem deixeis que vos despojem. Porque repelir ou ser despojado quebra a raiz do jasmim e conspurca a Estrela da Tarde.
Não vos apodereis de nada para dizer: - Isto pertence-me. Nada existe que vos seja dado possuir, nem sequer a paz.
Nada; nem o ouro, nem a terra, nem o amor, nem a vida, nem a dor, nem a morte, nem a salvação.
De nada direis: - Isto é meu.
Dizei apenas: - Isto está comigo.
Porque o ouro só permanece convosco o espaço duma lua, e olha-vos e diz: - Encontramo-nos ligados por este breve instante.
E a terra diz-vos: - Ah, filho meu, de pai longínquo! Vem, revolve-me um pouco, para que as papoulas e o trigo cresçam e ondulem ao vento que sopra entre o meu e o teu peito. Depois, abisma-te em mim, e ambos formaremos um outeiro.
E ouvi o que diz o vosso amor: - A tua espada ceifou-me como à erva, e sobre mim está a sombra e o bruxulear da Estrela da Tarde. Não é mais do que trevas e nada. Ó tu, quando te levantares e prosseguires o teu caminho, fala-me, dize-me simplesmente: - A estrela despontou entre nós.
E dizei à vida: - Sou teu? És minha? Sou a orla do dia em volta da noite? São os meus olhos o crepúsculo onde a estrela se suspende? É o meu lábio superior o pôr do Sol e o meu lábio inferior o raiar da manhã? Tremula a estrela na minha boca?
E dizei à vossa paz: Ergue-te, estrela imortal! Já as águas da aurora te alagam e me levam no seu curso.
E dizei à dor: Machado, abates-me. E, contudo, brota uma centelha do teu gume e da minha ferida. Corta, então, que eu velarei a face, ó pai da estrela!
E dizei à vossa força: A espuma da noite sobe-me dos pés até aos rins, a espuma do dia salta-me dos olhos e da boca para o mar do meu peito. As minhas entranhas são um manancial de poder que corre pela espinha dorsal. E uma estrela flutua sobre esse fluxo.
E dizei à vossa morte: Pois seja! Eu e a minha alma iremos para ti, Estrela da Tarde. Carne, desaparece na sombra da noite. Espírito, chegou o teu dia. Deixai-me agora. Na minha nudez suprema me encaminho para a Estrela mais nua."

XII
Os homens envergaram o casaco, puseram o chapéu e, depois de cobrirem os olhos por um momento numa saudação a Ramon, desceram a escada de pedra. Fechou-se a porta com estrondo e o porteiro, voltando com a chave, pousou-a sobre o tambor e retirou-se discretamente.
Ramon ficou sentado em cima da manta, com os ombros nus apoiados à parede e de pálpebras cerradas. Sentia-se fatigado, nesse estado de abstracção que torna difícil o regresso ao mundo normal. Ouvia de modo vago os rumores na casa, tilintar de colheres de chá, vozes femininas conversando, o ronco dum automóvel que se aproximava pelo caminho desnivelado e se detinha no pátio.
Custava-lhe voltar à terra. Ressoava-lhe aos ouvidos o barulho do exterior, mas dentro dele mesmo escutava o murmúrio confuso do universo, como se num búzio. Era-lhe penoso retomar contacto com as coisas da vida corrente quando o corpo e a alma mergulhavam no cosmos.
Gostaria de se conservar ainda uns instantes no seu isolamento, mas não era possível. Reclamavam a sua presença, especialmente Carlota.
Já ela o chamava: "Ramon! Isso terminou? Cipriano está aqui." Sentia-se-lhe na voz receio e temeridade.
Ramon puxou os cabelos para trás, ergueu-se e, em passo rápido, acudiu ao chamamento tal como se encontrava, de torso nu. Não tinha vontade de se vestir, de reentrar nos pormenores da vida quotidiana.
Cipriano, fardado, achava-se no terraço abancado à mesa do chá. Levantou-se prontamente e avançou para Ramon de braços abertos, perscrutando o rosto do amigo com os seus olhos negros e brilhantes.


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Os dois homens abraçaram-se, peito contra peito, e, por momentos, Cipriano deixou estar as mãos morenas nas espáduas nuas de Ramon. Então afastou-se devagar e fitou-o sem proferir uma palavra.
Ramon pousou distraidamente a mão no ombro de Cipriano.
- Que tal? - perguntou. - Como vai isso?
- Bien. Muy bien - respondeu Cipriano, fixando-o sempre como se se procurasse a si mesmo no semblante de Ramon. Este correspondeu ao olhar do índio com um leve sorriso, enquanto Cipriano baixava a cabeça e os cabelos longos lhe tombavam na testa.
As duas mulheres observavam a cena em silêncio absoluto. Quando os dois homens se aproximaram da mesa, Carlota começou a servir o chá. Mas as mãos tremiam-lhe e ela tratou de pousar o bule e cruzá-las no regaço.
- Passearam de barco? - indagou Ramon, com ar alheado.
- Passeámos, e foi muito agradável - disse Kate. - Um bocado quente, quando o sol apareceu...
Ramon esboçou um sorriso e alisou o cabelo. Em seguida, descansando a mão no parapeito do terraço, olhou para o lago e suspirou inconscientemente.
Nu da cintura para cima, voltava costas às mulheres, contemplando a vastidão da água. Cipriano estava a seu lado.
Kate observava as espáduas lisas, morenas, que emanavam sensualidade, os ombros largos, o porte altivo da cabeça - e não podia deixar de imaginar uma lâmina cravada nessas costas magníficas, nem que fosse só para destruir a sua arrogância distante.
Porque até a sua nudez parecia distante, intangível. Pensar nela e contemplada daquele modo representava quase uma violação. Kate sentiu de súbito o coração estremecer-lhe de vergonha. Fora assim que Salomé olhara para João Baptista, e Ramon possuía essa mesma beleza que evocava uma romã destacando-se na verdura sombria da árvore.
Soprava branda a aragem da tarde. Na luz nacarada deslizavam barcos, enquanto o Sol luzia ainda no horizonte. Distinguia-se a margem oposta, a cerca de vinte milhas, embora velasse a atmosfera uma bruma opalina que se confundia com a água do lago. Kate lobrigava a mancha clara da igreja de Tuliapan.
No jardim da casa havia um bosquete de mangueiras, onde voavam cá e lá passarinhos escarlates, como botões de papoula, e outros dum amarelo cintilante. Contudo, quando pousavam por um momento e fechavam as asas, desapareciam da vista, pois eram escuros por cima.
- Neste país, os pássaros só são coloridos por baixo das asas - observou Kate.
Ramon voltou-se bruscamente para ela.
- Dizem que a palavra México significa "por baixo" - replicou, sorrindo, enquanto se afundava numa cadeira de balouço.
Dona Carlota fizera um esforço sobre si mesma e, de olhos fixos nas chávenas, servia o chá. Apresentou uma xícara ao marido, sem sequer o relancear. Tremia de cólera quase histérica. Ela, que era sua esposa desde tantos anos e que o conhecia tão bem (ah, se o conhecia!), nada possuía desse homem.
- Passa-me o açúcar, Carlota - disse Ramon na sua voz calma.
A mulher sobressaltou-se como se a beliscassem de repente.
- O açúcar? - repetiu, distraída.
Ramon estava sentado na cadeira, pendido para a frente e de xícara na mão. A tela fina que lhe cobria as coxas revelava-lhe mais o corpo do que a nudez do torso. Kate percebeu porque é que era proibido usar calças de algodão naplaza. Tornavam mais sensível a presença da carne.
Verdadeiramente belo, duma beleza que chegava a ser assustadora, irradiava uma sensualidade pura, hostil ao género de pureza de Kate, com a sua faixa azul de roda da cinta e as calças brancas parecendo fremir de vida cingidas aos quadris e às coxas. Tão poderoso fluido emitia esse ente másculo que Kate se sentia como que fascinada.
E ele, perfeitamente tranquilo, dentro do seu próprio ambiente. O mesmo acontecia a Cipriano. Ambos tão calmos, tão sombrios, dir-se-iam esmagar as duas mulheres.
Kate compreendeu então os sentimentos de Salomé. Compreendeu como João Baptista, com a sua beleza distante e inacessível, exercera tamanho poder.
"Ah! disse ela consigo mesma. - Tenho de fechar os olhos e abrir a alma. Fechar os olhos para não ver e ficar na escuridão e no silêncio junto destes dois homens. Possuem uma riqueza que me falta. Conseguiram libertar-se do desejo que a vista suscita. Sou atormentada pelo desejo, pela minha imaginação lasciva. É a maldição de Eva. Os meus olhos, a minha experiência são como um anzol que me repuxa a carne e me desperta espasmos de desejo. Oh, quem me dera libertar-me da impureza do olhar! Filha de Eva, porque é que estes homens me não arrancam às visões impuras?"
Levantou-se e dirigiu-se à beira do terraço. Amarelos como narcisos, emergiam dois pássaros da sua própria invisibilidade. Na praia de seixos, onde estava um barco varado, dois homens apanhavam à rede os peixinhos denominados chcirales, que cintilavam na água acastanhada como lascas de vidro.
- Ramon! - disse Dona Carlota. - Não vais vestir-te? Já não podia suportar aquela vista.
- vou. Obrigado pelo chá - respondeu o marido, pondo-se de pé. E seguiu pelo terraço adiante, com as sandálias a ranger de leve no pavimento de tijolos.
- señora Caterina! - chamou Carlota. - Venha beber o seu chá.
Kate voltou para a mesa, dizendo:
- Que paz se sente aqui!
- Paz! - repetiu Carlota. - Não acho paz nenhuma. O que há é um silêncio pavoroso que me causa arrepios.
- Vem cá frequentemente? - perguntou Kate a Cipriano.
- Sim, uma ou duas vezes por semana - respondeu ele, fixando-a com singular expressão nos olhos negros.
Dir-se-ia que esses homens procuravam anular-lhe a vontade.
- São horas de eu voltar para casa - declarou ela. - Não tarda que o Sol desapareça.
- Ya va? - redarguiu Cipriano, com a sua voz aveludada em que transparecia certa pena. - Já!
- Oh, não, señora! - exclamou Carlota. - Fique connosco até amanhã.
- Mas estão em casa à minha espera.
- Mandarei um rapaz prevenir que só regressa amanhã. Fica, não é verdade? Ah, ainda bem.
E Carlota, depois de pousar a mão carinhosa no braço de Kate, levantou-se a fim de avisar os criados.
Cipriano puxou da cigarreira e ofereceu-a a Kate.
- Não se escandalizará se eu fumar? - disse ela. - É um dos meus vícios.
- Fume. Não é bom sermos perfeitos.
- Acha que não? - E Kate, rindo-se, puxou uma fumaça do cigarro.
- Experimenta realmente essa paz? -inquiriu ele, irónico.
- Porquê?
- Porque é que os brancos andam sempre em busca da paz?
- Pois não é natural que todos desejem paz?
- Paz é apenas o descanso depois da guerra. Não é mais natural do que a luta; talvez até seja menos.
- Mas existe outra paz, aquela que ultrapassa o entendimento. Não sabia?
- Parece-me que não - respondeu Cipriano. - Que pena!
: - Ah! Quer ensinar-me? Mas para mim é diferente... Cada
homem tem dois espíritos. Um assemelha-se à aurora na época das chuvas, suave, fresca, húmida, com pássaros chilreando. O outro é como a estação seca, com a sua luz forte e ardente que parece nunca mais abrandar.
- Decerto prefere o primeiro.
- Não sei - replicou Cipriano. - O outro dura mais.
- Tenho a certeza que prefere a frescura da manhã - insistiu Kate.
- Não sei, não sei. - E esboçou um sorriso, deixando Kate
convencida de que ele de facto não sabia. - Na primeira fase vemos as flores nas suas hastes transbordantes de seiva. A flor desa brocha como uma face de mulher perfumada pelo desejo. Mas o sol começa a aquecer, e então tudo se modifica. As flores murcham e o peito do homem torna-se como um espelho de aço. Dentro dele tudo
- é escuridão, enroscando-se e desenroscando-se como uma cobra. As flores secaram nas hastes, as mulheres já não existem para o homem. Umas e outras desapareceram.
- Que pretende ele então? - perguntou Kate.
- Não sei. Talvez queira ser uma grande personagem, senhor de todos os povos...
- E porque não realiza essas aspirações?
Cipriano encolheu os ombros.
A señora assemelha-se à manhã de que lhe falei há pouco -
disse ele.
- Tenho quarenta anos - replicou Kate com um risinho amarelo.
O general tornou a encolher os ombros.
- Isso não interessa. O seu corpo parece o caule da flor a que
aludi, e o seu rosto será sempre a aurora na estação das chuvas.
- Porque me diz essas coisas? - volveu Kate, com involuntário e estranho tremor.
- E porque não hei-de dizer? A señora é tal uma manhã cheia de frescura, e estamos no fim da época seca...
Observava-a, e nos seus olhos brilhava o desejo, aliado a certa insolência.
Kate baixou a cabeça e balançou-se na cadeira.
- Gostaria de casar consigo - continuou Cipriano. - Se estivesse disposta a isso, desposá-la-ia.
- Não me parece que me torne a casar - ripostou Kate, anelante e de faces afogueadas.
- Quem sabe?
Ramon surgiu no terraço, com a sua bela serape dobrada sobre o ombro nu. Apoiou-se num dos pilares e contemplou Kate e Cipriano, o qual ergueu a vista e lhe dirigiu um sorriso em que transparecia a amizade que os ligava.
- Disse à señora Caterina que a desposaria se ela estivesse disposta a casar-se - declarou ele.
- É o que se chama falar sem rodeios - replicou Ramon, olhando para Cipriano com o mesmo sorriso amigo. Em seguida, o seu olhar pousou-se em Kate, enquanto o sorriso se alastrava e todo o seu rosto respirava compreensão. Cruzou os braços, como fazem os índios quando querem defender-se do frio; e a carne, dum tom castanho-claro, como ópio, formava saliências no peito largo, cheio e liso.
- Diz Don Cipriano que os Brancos só desejam a paz - proferiu Kate, fitando Ramon com deliberada impertinência. - Não se consideram brancos?
- Não mais brancos do que somos - respondeu Ramon, sorrindo. - Pelo menos, não duma brancura de lírio...
- E não buscam a paz?
- Por mim não penso nisso. Os mansos herdarão a terra, segundo a professia. Mas quem sou eu para lhes invejar a sua paz? Não señora. Por acaso pareço um evangelho de paz? Ou de guerra? A vida para mim não se resume nessas duas coisas.
- Não sei afinal o que desejam - disse Kate.
- Nós próprios não o sabemos senão em parte - replicou Ramon, mudando de expressão.
Havia nele uma espécie de bondade paternal que enchia Kate de espanto e a sobressaltava como se só agora compreendesse o verdadeiro significado de tal sentimento. Mistério, nobreza, inacessibilidade, e a vulnerável compaixão de homem na sua amizade desinteressada...
- Não gosta das pessoas de pele escura? - perguntou Ramon em tom suave.
- Acho-as belas à vista - respondeu Kate. - Mas - acrescentou, com um leve arrepio - estou contente por ser branca.
- Sente que não é possível nenhum contacto?
- Exactamente.
- É a sua impressão - volveu Ramon, e, enquanto ele falava, Kate percebeu que o considerava mais atraente do que a qualquer homem loiro e que, por muito vago que fosse, o contacto que tinha com ele lhe era mais precioso do que todos os que até aí conhecera.
Contudo, embora lhe lançasse certa sombra, não tentava influenciá-la, nem queria maior aproximação - ao passo que Cipriano, sentindo-se incompleto, a procurava e parecia violar-lhe a personalidade.
À voz de Ramon, Dona Carlota assomou a uma das portas mas, ouvindo falar inglês, tornou a sumir-se, num brusco acesso de cólera. Daí a pouco reaparecia, trazendo um vaso de flores carnudas, dum branco leitoso, semelhantes a frésias no tom e no perfume.
- Que lindas! - exclamou Kate. - São flores de igreja! No Ceilão, os indígenas entram nos seus templos e depõem uma flor num tabuleiro aos pés do Buda. E os tabuleiros das oferendas ficam cobertos dessas flores, todas muito bem arranjadas, dispostas com delicadeza oriental...
- Mas eu não as trouxe para homenagear deuses - replicou Carlota, pousando o vaso na mesa. - Trouxe-as para si, señora. Cheiram tão bem!
- De facto, têm um aroma delicioso - concordou Kate. Os dois homens afastaram-se, rindo.
- Ah, señora! - disse Carlota, sentando-se à mesa. - Pode entender Ramon? Seria capaz de renunciar à Santa Virgem? Eu antes queria morrer.
- Não precisamos doutros deuses, realmente - redarguiu Kate, com certo enfado.
- Outros deuses! - repetiu Carlota, escandalizada. - Como se fosse possível! Ramon comete um pecado mortal.
Kate conservou-se calada.
- E quer induzir o povo a fazer o mesmo - prosseguiu Carlota. - É pecado de orgulho... o pecado cardeal. Ainda bem que a señora pensa como eu. Receio as americanas que, para se apoderarem do espírito dos homens, aceitam todas as suas loucuras e perversidades... É católica, señora?
- Fui educada num convento.
- Ah, señora! Qual a mulher que tendo conhecido a Santíssima Virgem se afasta dela? Que mulher teria ânimo de crucificar Jesus novamente? Mas os homens, os homens! Aquela história de Quetzalcoatl seria coisa para rir se não fosse um pecado mortal. E da parte de dois homens inteligentes e instruídos tanta presunção!
- Os homens são assim - observou Kate.
Intensificava-se o crepúsculo; o horizonte estava ainda luminoso, mas o Sol afundara-se numa bruma cor-de-rosa, por trás das arestas da montanha. As colinas erguiam-se azuladas numa atmosfera cor de salmão que se reflectia na água. Lá adiante, onde o clarão rubro se adensava, banhavam-se homens e crianças.
Kate e Carlota subiram à azotea, o terraço que cobria a casa. Dali podiam ver a hacienda com o seu pátio semelhante a uma fortaleza, o caminho ladeado de árvores frondosas, as cabanas de adobe perto da estrada e as fogueiras já bruxuleando junto das casas. No ar róseo os salgueiros da margem pareciam mais verdes e cintilantes. Ao longe, luziam entre as árvores as duas torres brancas de Sayula. Deslizavam barcos em direcção à parte sombreada do lago.
E num desses barcos, deveras desconsolada, regressava Juana a casa.

XIII
Ramon e Cipriano encontravam-se à beira do lago. O general envergara também fato branco e sandálias, o que lhe ia melhor do que a farda.
- Tive uma conversa com Montes quando ele foi a Guadalajara - declarou Cipriano.
Montes era o presidente da República.
- E que te disse?
- Não se alarga muito a falar, mas depreendi que não simpatiza com os colegas e se sente isolado. Julgo que gostaria de te conhecer melhor.
- Porquê?
- Talvez pudesses dar-lhe apoio moral. Talvez chegasses a ser ministro; e até presidente, depois de Montes acabar o seu mandato.
- Montes agrada-me - replicou Ramon. - É sincero e ardente. Gostaste dele?
- Sim, mais ou menos - respondeu Cipriano. - É desconfiado, teme que outros pretendam compartilhar com ele o poder. Tem instintos de ditador. Quis saber se eu lhe era afecto.
- Deste-lhe a entender que sim?
- Disse-lhe que tudo o que me interessava verdadeiramente eras tu e o México.
- E que te respondeu?
- Ele não é tolo. Respondeu: "Don Ramon vê o mundo com olhos diferentes dos meus. Qual de nós terá razão? Eu quero salvar o país da pobreza e da ignorância, ele quer salvar-lhe a alma. Mas afirmo que um homem esfomeado e ignorante não tem lugar para a alma. Um ventre e um cérebro vazios roem-se a si mesmos, e a alma não existe. Don Ramon acha que um homem desprovido de alma pode passar sem o alimento do corpo e do intelecto. Pois que siga o seu caminho, que eu sigo o meu! Não nos embaraçaremos um ao outro. Dou a minha palavra que não interferirei em nada. Ele varre o pátio, eu trato da limpeza da rua.
- É sensato - comentou Ramon - e honesto nas suas convicções.
- Porque não serias ministro daqui a uns meses? E mais tarde presidente?
- Bem sabes que não é isso o que pretendo. Devo poupar-me e agir noutra esfera. A política que se mantenha ou evolua como eles entendem, a sociedade que faça o que quiser. Deixa-me em paz, Cipriano. Gostarias que eu fosse outro Porfirio Diaz, ou alguém do mesmo género, mas isso para mim seria pura e simplesmente soçobrar na vida.
Cipriano observava Ramon com os seus olhos negros e vigilantes, onde transparecia amizade, receio, confiança, mas também incompreensão, e a dúvida que sempre a acompanha.
- Não chego a perceber o que desejas - murmurou.
- Percebes, sim. A política e toda essa religião social com que Montes se preocupa equivale a lavar a casca dum ovo para lhe dar aspecto limpo. A mim, porém, só interessa o interior... Ah, Cipriano! O México é tal um ovo que o Tempo choca desde séculos neste ninho do mundo e que parece ser goro. Parece, mas não é. O que precisa é de calor que ajude a formação da ave. Montes quer limpar o ninho e lavar o ovo... Que aconteceria se tirassem um ovo de baixo duma águia para o lavar? Arrefeceria de vez. Pois quanto mais se empenharem em arrancar este povo da pobreza e da ignorância mais depressa ele morrerá. Pobre Montes! Todas as suas ideias são americanas ou europeias. E a velha pomba da Europa jamais poderá chocar com êxito o ovo escuro da América. Os Estados Unidos não morrem porque não estão vivos. É um ninho de ovos de loiça e por isso se conservam limpos. Mas aqui, Cipriano, aqui é necessário incubá-los antes da limpeza do ninho.
Cipriano baixava a cabeça. Experimentava sempre Ramon para ver se conseguia fazê-lo mudar de ideias e, depois de verificar a inutilidade dos seus esforços, submetia-se ao amigo e novas chamas de felicidade se alteavam dentro dele. Mas, entretanto, ia-o experimentando...
- Não serve de nada querer misturar as duas coisas. No ponto em que estão, não se misturam. Temos de fechar os olhos e mergulhar até ao fundo, como pescadores de pérolas. Mas andamos a flutuar à superfície, semelhantes a bocados de cortiça...
Cipriano mostrou um sorriso subtil. Tudo aquilo ele sabia!
- Temos de abrir a ostra do cosmos e extrair dela a nossa força.
Enquanto não arrancarmos a pérola não seremos mais do que mosquitos no cimo do oceano - concluiu Ramon.
- A minha força é como um demónio dentro de mim - disse Cipriano.
- Porque a ostra a retém fechada, como uma pérola negra. A ti compete libertá-la.
- Ramon, não acharias bom ser uma serpente, uma serpente enorme que se enrolasse em volta do globo e o esmagasse... como a esse ovo?
Ramon olhou-o e pôs-se a rir.
- Não me parece coisa impossível - continuou Cipriano. E não seria bom?
O outro meneou a cabeça, rindo-se.
- Pelo menos seria um momento bom.
- Que mais se pode desejar?
Brilhou nos olhos de Ramon uma centelha que logo se apagou.
- Para quê? - disse em voz surda. - Depois de esmagado o ovo que havíamos de fazer senão errar nos corredores de trevas e lamentar-nos? Para quê?
Ramon pôs-se de pé e afastou-se. O Sol desaparecera, a noite descia. Na alma daquele homem fervia uma cólera imensa, e Carlota é que a provocava. A mulher parecia incutir vida ao monstro da sua raiva íntima, e Cipriano exasperava-o.
"A minha força é como um demónio a rugir dentro de mim", disse Ramon consigo mesmo, repetindo a frase de Cipriano.
Reconhecia o direito de gritar a esse demónio humilhado e ridicularizado que vivia preso dentro dele. E a fúria apoderou-se de Ramon, contra Carlota, contra Cipriano, contra a humanidade inteira. Os seus partidários traí-lo-iam, tinha a certeza. Cipriano acabaria por traí-lo. Desde que lhe encontrassem o mínimo ponto fraco, todos saltariam sobre ele como tarântulas e infectá-lo-iam com a sua peçonha.
E qual o homem absolutamente invulnerável, sem o menor ponto fraco?
Ramon subiu ao seu quarto pela escada exterior, no lado da casa, e sentou-se na cama. A noite estava quente, pesada, e duma calma aflitiva.
- Prepara-se chuva - ouviu ele dizer a um dos criados. Fechou as portas do quarto e ficou às escuras. Então despiu-se todo, murmurando: "Repudio o mundo juntamente com esta roupa." E de pé, nu e invisível no meio do quarto, ergueu ao ar o punho fechado, com tal força que teve a sensação de que lhe estalavam as paredes do peito. A mão esquerda pendia ao longo do corpo, mole, com os dedos levemente curvados.
Tenso como o jacto duma fonte silenciosa, distendeu-se até abranger o âmago impalpável das trevas. E as vagas de escuridão começaram a lavar-lhe o espírito, a consciência; ondas de negrume rebentando-lhe na memória, em todo o seu ser, como uma maré que sobe. Até que foi maré cheia e ele, tremendo, se deixou cair por terra, para descansar. Invisível nas trevas, ficou a olhar para o vácuo, sentindo o misterioso fluxo interior purificar-lhe as entranhas e o coração, sentindo o espírito dissolver-se no Espírito maior que nenhum pensamento perturba.
Cobriu o rosto com as mãos e ali esteve imóvel, inconsciente, já sem nada sentir nem ouvir, semelhante a uma alga submersa no mar. Abolira-se o Tempo, abolira-se o Mundo, submerso nas profundezas que são intemporais e inespaciais.
Quando o coração e as entranhas despertaram para a vida, o espírito principiou a bruxulear tal uma chamazinha que vacila e não se apaga.
Enxugou a cara com as mãos, pôs a serape na cabeça e em silêncio, numa aura de sofrimento, desceu a escada, levando consigo o tambor.
Martin, o servo devotado, andava cá e lá no zaguán.
- Ya, patrón? - perguntou.
- Ya! - respondeu Ramon.
O homem correu à vasta cozinha onde ardia uma candeia, e voltou com um braçado de esteiras.
- Onde as colocamos, patrão?
Ramon hesitou no meio do pátio, olhando para o céu.
- Viene el agua?
- Creo que si, patrón.
Dirigiram-se para o alpendre onde haviam carregado as azémolas com os fardos de bananas. Aí, Martin arremessou ao chão as petates, que Ramon dispôs em ordem. Guisleno apareceu, trazendo canas para fazer tochas, das mais primitivas: três canas amarradas em cima com um cordel, formando tripé de cintura alta, e, na parte superior, uma pedra de lava mais ou menos oca. Realizado esse trabalho,
Guisleno foi a casa e voltou a correr com um pedaço de madeira inflamada. Três ou quatro pauzinhos de ocote colocados na pedra - e as chamas ergueram-se, enchendo o pátio de sombras vacilantes.
Ramon dobrou a serape e sentou-se em cima. Guisleno acendeu outro tripé-archote. A luz bailava nas sobrancelhas carregadas de Ramon, dava-lhe ao peito cintilações de ouro.
Agarrou no tambor e fez soar o apelo monótono, lento, um tanto melancólico. Passados instantes, chegou o tocador habitual, que levou o instrumento para a alameda sombria, onde então se ouviu um rufo vivo e forte.
Ramon enfiou a serape, cujas franjas lhe roçavam os joelhos, e ficou imóvel, com os cabelos em desordem. Rodeava-lhe os ombros a serpente do tecido, o pescoço erguia-se-lhe no meio do pássaro azul.
Cipriano apareceu, vindo da casa. Trazia serape castanha e vermelha, ornamentada com um sol escarlate. Postou-se ao lado de Ramon, e olhou-lhe de relance para a cara. Mas, de sobrancelhas franzidas, o outro fixava a sombra dos alpendres no extremo do pátio. Olhava para o coração do mundo; porque a face dos homens e o coração dos homens são areias movediças, e só no coração do cosmos pode alguém encontrar força.
Cipriano voltou os olhos negros para a banda do pátio. Os seus soldados aproximavam-se em grupo. Três ou quatro homens de mantas pardas rodeavam o lume. De pé, junto de Ramon, Cipriano parecia um cardeal, um pássaro de cor vistosa. Até as sandálias eram escarlates, e encarnadas as fitas que atavam as calças de linho branco aos tornozelos. Ao clarão das tochas tinha um ar demoníaco, com a pele muito escura, a barbicha preta e as pupilas cintilando sardonicamente.
Chegavam peóns, pelo portão da entrada, balançando os chapéus largos. Acorriam mulheres descalças, com as saias a oscilar, transportando os seus nenés envoltos nos rebozos e seguidas por uma caterva de garotos. Todos se agrupavam em volta dos archotes, como animais bravios, contemplando o círculo de homens de serape, do qual se destacavam Ramon e Cipriano, um de azul e branco, outro de vermelho.
Carlota e Kate emergiram de casa. Carlota, porém, ficou junto da porta, embrulhada num xaile de seda preta. Sentou-se num banco de pau aquém do clarão avermelhado, e pôs-se a observar os homens escuros, a beleza altaneira de Ramon, o traje escarlate de Cipriano, o grupo de soldados e a massa compacta de peóns, mulheres e crianças. Enquanto desfilava gente através do portão, soou o tambor e uma voz elevou-se, cantando:
Alguém vai franquear a porta, Agora, agora mesmo, ay! E verá a luz no homem que espera. Serás tu? Serei eu?
Alguém vai aproximar-se do fogo, Agora, agora mesmo, ay! E escutarás as palavras do seu coração. Serás tu? Serei eu?
Alguém baferá quando a porta se fechar, Ay, num momento, ay! Ouvirá dizer: Não te conheço. Serás tu? Serei eu?
De cada vez o ay se elevava num grito selvático que fazia calafrios a Carlota.
Envolta num xaile amarelo, Kate aproximou-se lentamente do grupo.
O tambor calou-se e o homem, entrando no pátio, fechou o portão e misturou-se aos assistentes.
Ramon continuava a olhar para o vácuo, de sobrolho carregado. Então, no meio do silêncio, disse em voz baixa, contida:
- Assim como tiro este abafo me liberto eu do dia que passou. Despiu a serape e pô-la no braço. Todos os homens do círculo o
imitaram, ficando de torso nu. Cipriano, muito escuro e com ar sólido apesar do tamanho reduzido, conservava-se ao lado de Ramon.
- Afasto de mim o dia que passou - prosseguiu Ramon - e fico de coração descoberto na noite dos deuses.
Em seguida olhou para o chão e disse:
- Vem, serpente da terra, serpente que jazes no fogo do coração do mundo. Vem, serpente do fogo no coração do mundo, enrola-te como ouro em volta dos meus artelhos, ergue a cabeça e apoia-a na minha coxa. Vem, descansa a cabeça na minha mão, serpente dos abismos. Beija-me os pés e os tornozelos com a tua boca de ouro, beija-me os joelhos e as coxas, serpente marcada de luz e de sombra. Vem, repousa a cabeça na concha da minha mão.
A voz suave e hipnótica extinguiu-se no silêncio envolvente. E parecia que na verdade uma presença misteriosa emergia do mundo subterrâneo, que uma serpente mosqueada de ouro e negro se enroscava nas pernas de Ramon e lhe lambia a palma da mão com a língua bifurcada...
Circunvagou a vista pela assistência boquiaberta e de olhos dilatados, e prosseguiu:
- Digo-vos, e com absoluta certeza. No coração desta terra dorme uma grande serpente no meio do fogo. Aqueles que descem às minas sentem-lhe o calor e o suor, ouvem-na mover-se. É o fogo vital da terra, porque a terra vive. A serpente do mundo é enorme, as rochas são as suas escamas, e entre elas crescem as árvores. Digo-vos que a terra que cavais está viva como uma serpente adormecida. Sobre ela andais, e este lago descansa nos seus anéis como uma gota de chuva numa cobra cascavel. Contudo, tem vida. A terra vive. Se a serpente morresse, todos morreríamos. Só a sua vida assegura a humidade do solo que faz germinar o nosso milho. Das suas escamas extraímos prata e ouro, e as árvores têm nela as suas raízes como os cabelos têm a raiz sob a nossa pele. A terra vive. Mas a serpente é grande, e nós somos mais pequenos do que um grão de poeira. E por vezes ela zanga-se e diz: Estes entes, mais insignificantes do que átomos de pó, espezinham-me e asseveram que estou morta. Até às bestas costumam falar, gritando: Arre, burro! A mim, porém, não dirigem uma palavra. Por isso lhes voltarei costas, como uma mulher volta costas ao marido e lhe consome o espírito com a sua cólera... Eis o que a terra nos diz, e a tristeza e o desânimo avassalam-nos os pés e os rins. Porque assim como uma mulher irritada tira o entusiasmo e a alegria ao homem, assim a terra pode enregelar-nos a alma e tornar a existência fatigante aos nossos membros. Falai, pois, à serpente do coração do mundo, banhai de óleo os vossos dedos e abaixai-os para que ela experimente o óleo da terra e deixe que a vida nos suba ao longo das pernas, como a seiva do milho novo faz estalar a casca e brotar o leite da planta entre as barbas. Do coração da terra o homem sente subir nele a sua força; tal o milho que, ufano, ergue as suas folhas verdes, erguei-vos vós também e deixai aprofundarem-se as vossas raízes cada vez mais, porque não tardam as chuvas e é tempo de produzir no México.
Calou-se Ramon, ensurdeceu o tambor, e todos os homens do círculo fitaram a terra, deixando pender molemente a mão esquerda.
Dona Carlota, que não conseguira ouvir, aproximou-se do lado de Kate, como se fascinada pelo marido. A irlandesa, num movimento inconsciente, olhou para o chão e, às ocultas, baixou os dedos de encontro à saia. Mas teve medo do que lhe poderia acontecer e escondeu a mão no xaile.
De repente o tambor vibrou numa nota muito forte, seguida de outra mais fraca: estranho, impressionante efeito.
Os circunstantes levantaram a cabeça. Ramon alçara o braço direito, num gesto enérgico, e espiava o negrume do firmamento. Imitaram-no os do círculo, e os braços nus, erguidos, semelhavam uma série de rochedos.
- Assim, acima, acima! - gritou uma voz bárbara.
- Acima, acima! - repetiram todos, num coro feroz. Involuntariamente, brandiram o braço, voltando o rosto para o
céu sombrio. Algumas das mulheres, mais audazes, fizeram o mesmo, e, com esse gesto, experimentaram uma sensação de paz.
Kate não alçou o braço.
Reinou profundo silêncio; até o tambor se calara. Ouviu-se então a voz de Ramon, dirigindo-se ao céu tenebroso:
- As tuas asas estão escuras, Pássaro, voas muito baixo esta noite. Voas baixo sobre o México, e em breve sentiremos roçar em nossas faces o leque das tuas asas. Ah, Pássaro! Voas onde queres. Ultrapassas as estrelas e empoleiras-te no Sol. Desapareces da vista e dissipas-te no além do rio branco do céu, mas voltas como os patos do Norte, em busca de água e do Inverno. Poisas no centro do Sol e alisas as penas... Banhas-te na corrente de estrelas e ergues em teu redor uma poalha de ouro. Voas nas profundezas do céu donde parece que jamais se volta. Mas regressas, e pairas sobre nós, e sentimos no rosto a aragem das tuas asas...
Enquanto ele falava levantou-se vento em rajadas, uma porta bateu, vibraram vidraças e as árvores pareceram rasgar-se.
- Vem, ó ave dos vastos céus! - bradou Ramon num apelo selvático. - Vem, pousa no meu punho, na minha cabeça, dá-me o poder divino e a sabedoria. Ó Pássaro, ainda que o trovão ribombe quando sacodes as asas, ainda que deixes cair na terra a serpente de fogo que tens no bico, ainda que venhas como fulminador, vem, ó Pássaro! Empoleira-te um momento no meu punho, estende as asas sobre a minha cabeça, toca-me a fronte com o teu peito. Pássaro errante, ave do Além, com o trovão nas garras e a serpente no bico, com o azul nas asas e a nuvem no colo, com o sol no peito e a sabedoria no voo, vem sobre mim, vem!
O vento agitava a chama das tochas e o lago começou a falar numa voz cavernosa que dominava o sussurro das árvores. Ao longe, por cima das colinas, os raios sulcavam o céu.
Soou o tambor, e Ramon desceu o braço que mantivera erguido. E disse então:
- Sentai-vos um instante, antes que o Pássaro sacuda a água das asas, o que não tardará. Sentai-vos.
A assistência moveu-se. Os homens puxaram as serapes para a testa, as mulheres cingiram mais a si os rebozos, e todos se sentaram no chão. Só Kate e Carlota ficaram de pé, a certa distância.
- A terra é viva, o céu é vivo, e entre ambos vivemos nós - prosseguiu Ramon na sua voz habitual. - A terra beijou-me os joelhos e concedeu-me força às entranhas. O céu descansou-me no punho e transmitiu o seu poder para o meu peito.
Assim como a Estrela de Alva brilha entre o céu e a terra, uma estrela pode surgir em nós entre o coração e os rins.
É a virilidade do homem e a feminilidade da mulher.
Ainda não sois homens. E vós, mulheres, ainda não sois mulheres.
Correis, agitais-vos, morreis, mas ainda não encontraste a estrela da vossa virilidade surgida de vós mesmos; nem a estrela da vossa feminilidade cintilando entre os vossos seios, ó mulheres!
Digo-vos no entanto: para aquele que desejar, nascerá nele a estrela da sua virilidade, e então será perfeito como é perfeita a Estrela da Manhã.
E a estrela da mulher aparecerá entre a orla espessa da terra e o vácuo cinzento do céu. Mas como conseguiremos isso? Como poderá ser?
Baixai os dedos para a carícia da Serpente da terra. Erguei o punho para que aí pouse a Ave distante.
Tende a coragem de ambos, a coragem do raio e a do sismo.
E a sabedoria de ambos, a da serpente e a da águia.
E a serenidade de ambos, a da serpente e a do sol. E o poder de ambos, o das profundezas da terra e o do céu que tudo cobre.
Mas que na vossa fronte, ó homens, resplandeça a Estrela da Manhã que nem o dia nem a noite, nem a terra nem o céu podem engolir e apagar.
E entre os vossos seios, ó mulheres, que esteja a Estrela de Alva que nada pode ofuscar.
A vossa derradeira morada é a Estrela da Manhã. Nem o céu nem a terra vos hão-de tragar, mas ireis para essa estrela solitária que no entanto jamais sente a sua solidão.
A Estrela da Manhã envia-nos um mensageiro, um deus que morreu no México. Mas, enquanto dormia o seu sono, os Seres invisíveis lavaram-lhe o corpo com a água da ressurreição. E ele levantou-se, derrubou a pedra à entrada do sepulcro, e agora galopa através do horizonte, mais depressa do que caiu por terra a laje do túmulo para esmagar aqueles que a selaram.
O filho da Estrela volta para os filhos dos homens.
Preparai-vos para o receber. Lavai-vos, ungi as mãos e os pés, a boca e os olhos, as orelhas e as narinas, o peito, o umbigo e as partes secretas do vosso corpo. Que nada dos dias passados, que nenhuma poeira do mal subsista em vós e vos torne impuros.
Não olheis com olhos de ontem, não escuteis como ontem, não respireis, não cheireis, não engulais alimentos nem bebidas; não beijeis com lábios de ontem, não toqueis com mãos de ontem. Aproximai-vos das vossas mulheres com um corpo novo, e com esse corpo novo penetrai nelas. Porque o corpo de ontem morreu, e Xopilote, devorador de cadáveres, já paira sobre ele.
Libertai-vos do corpo da véspera e adquiri um novo, tal como o deus que vem até vós. Quetzalcoatl surge-nos com um novo corpo, como uma nova estrela, saído das sombras da morte.
Sim, neste mesmo momento em que estais sentados e que o vosso corpo toca na terra, dizei-lhe: Terra, terra, latejas de vida como eu. Insufla em mim o bafo das tuas entranhas.
E assim a terra se move por baixo de vós, e por cima de vós o céu agita as suas asas.
Regressai aos vossos lares, enfrentando as águas que vão cair e separar-vos para sempre do "ontem".
Ide, com a esperança de vos tornardes homens da Estrela da Manhã e mulheres da Estrela de Alva.
Ainda não sois homens, ainda não sois mulheres...
Ramon levantou-se, dando o sinal de retirada. Logo todos se puseram de pé, empurrando-se, acotovelando-se, com a silenciosa pressa mexicana que parece deslizar rente ao solo.
O vento desencadeado uivava de encontro às mangueiras. Os homens seguravam o chapéu na cabeça e corriam de joelhos curvados, com as serapes a flutuar, enquanto as mulheres, cingindo a si o rebozo, fugiam, descalças, para ozaguán.
Junto do portão aberto estava um soldado de espingarda a tiracolo e lanterna na mão, alumiando aqueles que passavam calados e velozes e se dispersavam na alameda escura como pedacinhos de papel levados pelo vento. Num instante todos desapareceram.
Martin fechou o portão. O soldado pousou a lanterna no banco de pau e juntou-se aos camaradas alapardados nos seus capotes pretos, semelhantes a um molho de cogumelos na caverna do zaguán.
- Vai chover! - gritaram as servas excitadas quando Kate subia os degraus com Dona Carlota.
O lago, absolutamente negro, parecia uma cratera enorme. Em rajadas violentas, o vento traspassava as mangueiras com um som de membrana a rasgar-se. Os loendros curvavam-se no jardim, varriam o solo com as suas flores brancas, espectrais à luz do candeeiro que brilhava na parede junto da porta da entrada. Uma palmeira nova sacudia-se, dobrada, juncando o chão com as suas folhas. Nas trevas para além do mundo rolava um carro invisível...
Ao longe, na outra banda do lago, os raios traçavam no céu inscrições fulgurantes. E o trovão dir-se-ia ribombar nas entranhas da terra, surdo, aveludado.
- Isto chega a meter medo! - exclamou Dona Carlota, tapando os olhos com a mão e correndo a refugiar-se num canto recuado da sala deserta.
Cipriano e Kate demoraram-se no terraço olhando para as flores que voavam dos vasos e desapareciam no vácuo de trevas. Kate agarrava no xaile, mas o vento engolfou-se na serape de Cipriano, levantou-a ao ar e em seguida deixou-lha cair sobre a cabeça, tal uma chama rubra. Kate viu-lhe o peito escuro e musculado enquanto os seus braços lutavam por desenvencilhar a cabeça. Como a sua beleza era primitiva e toda física, com aquela carne lisa e cheia!
Mas não emitia nenhuma radiação exterior; fechava-se dentro de si mesmo.
- Eis a chuva! - exclamou ele! - baixando a serape.
Grossas, pesadas, as primeiras gotas tombavam como dardos sobre as plantas. Kate recuou para o vão da porta. Um raio ziguezagueou sobre as montanhas, pareceu deter-se um instante e reentrou nas trevas.
Então a chuva desabou, como se lá em cima houvessem aberto um reservatório imenso, e com ela veio uma lufada de ar frio. Ora num lado ora noutro, sucediam-se os relâmpagos, enchendo a atmosfera duma claridade azul e fugaz. Surgiam as árvores e o jardim fantasma, e logo desapareciam, enquanto o trovão ribombava.
Kate olhava pasmada para aquele dilúvio. Ao clarão momentâneo via o jardim já transformado em poço, as alamedas em ribeiras. Sentindo frio, recolheu-se dentro de casa.
Munido de lanterna, um criado pesquisava todos os aposentos para ver se andariam por ali escorpiões. Encontrou um a passear no quarto de Kate e outro em cima da cama de Carlota, caído duma viga do tecto.
Sentadas na sala, Kate e Carlota baloiçavam-se nas cadeiras, aspirando o bom ar fresco e húmido. Kate quase já se esquecera do que era frescura e humidade. Aconchegou o xaile ao pescoço.
- Ah, sente frio! Agora é preciso tomar cuidado com as noites... Às vezes, na época das chuvas, as noites são frigidíssimas. Devemos ter sempre à mão um cobertor suplementar. Os servos, coitados, limitam-se a tiritar, estendidos no chão, e de manhã estão gelados como cadáveres. Mas o sol depressa os aquece. Parecem julgar que são obrigados a suportar tudo o que vier, pois nunca tomam providências, embora se queixem.
O vento acalmara-se de repente, Kate sentia-se inquieta, mal disposta, com o bafo da água, quase de gelo, nas narinas, e o sangue ainda a arder-lhe nas veias. Levantou-se e foi para o terraço. Cipriano continuava ali, imóvel e impassível, envolto na sua serape vermelha e preta.
A chuva diminuía. Em baixo, no jardim, duas criadas corriam descalças, à débil claridade do candeeiro do zaguán; colocaram latas vazias debaixo dos fios de água que tombavam do telhado, e depois foram buscar os recipientes cheios. Isso poupava-lhes o trabalho de acarretar água do lago.
- Que pensa a nosso respeito? - perguntou Cipriano a Kate.
- Acho um povo muito estranho...
- Mas bom, não é verdade? - volveu o general em tom jubiloso.
- Um tanto assustador - replicou ela, rindo.
- Depois de se habituar parecer-lhe-á natural. E quando estiver num país como a Inglaterra, onde tudo é tão seguro e tão fácil, sentirá saudades e passará o tempo a perguntar a si mesma: O que é que me falta? O que é que falta aqui?
Dir-se-ia exprimir-se com maligna satisfação. E era curioso que ele, embora falasse bom inglês, parecesse sempre estrangeiro aos ouvidos de Kate, muito mais do que Dona Carlota com o seu espanhol castiço.
- Não compreendo que as pessoas queiram ter tudo, a vida inteira. Tudo tão seguro, tão pronto como na Inglaterra e na América. É bom estar alerta, no que vive, não?
- Talvez - concordou ela.
- Por isso gosto de ouvir Ramon dizer ao povo que a terra é viva, que o céu tem uma ave enorme lá dentro, mas que se não vê. Acredito nisso. E convém sabê-lo, pois assim continuamos no que vive.
- Não será fatigante?
- Ora, porquê? Pelo contrário, é repousante. Ah, a senhora devia casar e residir no México. Estou certo de que acabaria por gostar disto. Em cada manhã despertaria mais encantada.
- Ou cada vez mais enterrada. É o que sucede, julgo eu, a muitos estrangeiros.
- Enterrar-se? Como? Isto é um país onde a noite é noite e a chuva que cai é realmente chuva. E tem aqui um povo com o qual precisa de estar sempre alerta. Não acha admirável? Não poderá deixar-se adormecer. Veja, por exemplo, Ramon. Que pensa dele?
- Não sei. Não quero dizer nada, mas acho-o... longínquo. Custa a crer que seja mexicano.
- Pois é mexicano, não tenha dúvida.
- Não como o senhor. Dá-me a impressão de pertencer à velha Europa.
- Eu então considero-o pertencente ao velho México... E também ao novo - acrescentou de súbito.
- Todavia não acredita nele.
- Como?
- Não acredita nele. Considera aquilo, como tudo o mais, uma espécie de jogo. Aliás, para vós, mexicanos, tudo é uma espécie de jogo... No fundo, não crê em nada.
- Não creio em Ramon? Talvez não seja uma fé que me leve a ajoelhar à sua frente e a derramar-lhe lágrimas nos pés. Mas creio nele, e vou dizer-lhe o motivo: porque tem o poder de me fazer acreditar.
- Estranha fé, imposta pelos outros.
- Como se há-de crer, se não nos compelirem a isso? Quando eu era muito novo sentia-me infeliz porque o meu padrinho me não forçava a crer. Mas Ramon força-me... E é para mim uma felicidade saber que não posso escapar... como será também para si...
- Saber que não posso escapar a Don Ramon? - replicou
Kate ironicamente.
- Sim, e saber que não poderá evadir-se do México, nem fugir
de um homem como eu...
Kate ficou um instante calada antes de responder em tom sardónico:
- Não me parece que me cause muita alegria saber que não posso sair do México. Pelo contrário, não suportaria estar aqui se não tivesse a certeza de partir mais dia menos dia.
E disse consigo mesma: "Ramon talvez seja o único homem a quem eu não possa escapar completamente, porque deveras me impressiona. Mas de ti, Ciprianozinho, não precisarei de escapar porque não me apanhas."
- Ah, julga isso! - volveu ele rapidamente. - Mas é porque não sabe. Só pensa com ideias americanas. Devido à sua educação, só tem pensamentos americanos, pensamentos engendrados nos Estados Unidos. Quase todas as mulheres são assim, até as mexicanas da classe hispano-mexicana. Só possuem ideias dos Estados Unidos porque são as que condizem com os seus penteados. E o mesmo quanto a si, senhora Leslie. Pensa como uma mulher moderna porque pertence ao mundo anglo-saxónio ou teutão, e se penteia de certa maneira, e tem dinheiro, e é inteiramente livre. Mas tudo isso provém do facto de lhe haverem metido essas ideias na cabeça e não possuir outras, da mesma forma que, no México, se vê obrigada a gastar centavos e pesos por serem as moedas do país. Todavia, quando se declara livre, na realidade não o é. Vê-se forçada a pensar sempre com pensamentos americanos. Não tem maior faculdade de escolha do que uma serva. Assim como não pode deixar de comer diariamente tortillas... até que se lembre de que pode gostar doutra coisa.
- De que mais poderia eu gostar? - retorquiu Kate, escarninha.
- De outros pensamentos, de outras sensações. Receia homens como eu porque julga que a não tratariam "à americana". Tem razão. Eu não a trataria como se tratam as senhoras americanas. Porquê? Porque não o desejo, porque não me parece justo.
- Prefere tratar as mulheres como as mexicanas de outrora, não é verdade? Mantendo-as na ignorância, no cativeiro? - A voz de Kate assumira um tom sarcástico.
- Não as manteria na ignorância se elas já não fossem ignorantes. Mas o que lhes ensinaria não havia de ser conforme à educação americana.
- Então qual?
- Quien sabe! Ce reste à voir.
- Et continuera à y rester - concluiu a irlandesa, rindo.

CONTINUA

x
Dez dias haviam decorrido desde a chegada de Kate a Sayula sem que Don Ramon desse sinal de vida. No entanto, quando passeava de barco, vira a casa dele na outra banda da ponta oeste do lago. Era um edifício alaranjado de dois andares, com alpendre para embarcações e bosquete de mangueiras rente à margem. Entre as árvores distinguiam-se duas filas de cabanas de adobe, a habitação dos peóns.
A hacienda fora outrora das mais importantes. Regavam-na então com a água captada nas colinas, mas as revoluções haviam destruído todos os aquedutos. Don Ramon tinha inimigos no Governo, de modo que grande parte das suas terras fora dividida entre os peóns e só lhe ficaram cerca de trezentos acres de terreno, dos quais duzentos marginavam o lago e lhe eram inúteis. Cultivava um pomar em volta da casa e cana-de-açúcar num valezito entre as colinas. Na encosta do monte viam-se campos de milho.
'Dona Carlota era rica; tirava bons rendimentos das minas de Torreon, seu berço natal.
Chegou um portador com uma carta de Don Ramon em que este pedia a Kate licença para a visitar com a esposa.
Dona Carlota era uma mulher franzina, suave, de grandes olhos um tanto assustadiços e sedosos cabelos castanhos. Filha de pai espanhol e de mãe francesa, de origem puramente europeia, em nada se assemelhava às corpulentas mexicanas de faces cobertas de pó-de-arroz. De rosto pálido, sem artifício, a figura delgada tinha qualquer coisa de inglês, que os grandes olhos castanhos desmentiam. Só falava espanhol e francês, mas o seu espanhol soava tão lento e distinto (com um leve tom de queixume) que Kate a compreendeu sem dificuldade.
As duas mulheres entenderam-se depressa, mas sentiam-se um tanto nervosas na presença uma da outra. Dona Carlota era frágil e sensível como um cão chihuahua.
Em toda a sua vida, Kate raras vezes encontrara criatura tão doce e delicada. Conversaram uma com a outra, enquanto Don Ramon se mantinha calado. Dir-se-ia que ambas se arremessavam contra aquela barreira de silêncio.
Kate percebeu logo que Dona Carlota amava Ramon, mas com um amor que se tornara voluntário. Adorara-o, e acabara-se a adoração. Duvidara dele, e duvidaria sempre.
Sentado um pouco à parte, de ar constrangido, Don Ramon baixava a bela cabeça e deixava pender as mãos entre as coxas.
- Sabe que passei há dias bons momentos? - disse Kate, dirigindo-se-lhe de súbito. - Dancei de roda do tambor com os homens de Quetzalcoatl.
- Assim me constou - respondeu ele com um sorriso forçado.
Embora não falasse inglês, Dona Carlota compreendia essa língua
- Dançou com os homens de Quetzalcoatl! - exclamou em espanhol. - Porque fez isso? Porquê?
- Estava fascinada.
- Não se deixe fascinar. Afirmo-lhe que lastimo muito que meu marido se interesse por esse movimento. É para mim um desgosto.
Juana apareceu nesse momento com uma garrafa de vermute, a única coisa que Kate podia oferecer aos visitantes.
- Foi aos Estados Unidos ver os seus filhos? - perguntou Kate. - Como vão eles?
- Bem, obrigada. Embora o mais novo continue fraquito...
- Não os trouxe consigo?
- Não. Acho que estão melhor no colégio. Aqui... aqui há muita coisa que os perturbaria. Mas hei-de cá tê-los no próximo mês a passar as férias.
- Então terei oportunidade de os conhecer - disse Kate. Virão para a casa do lago, não é verdade?
- Ainda não sei. Talvez passemos aqui alguns dias. Ando tão ocupada na Cidade do México com a minha Cuna!
- Cuna? Que é isso? - indagou Kate.
Tratava-se de um hospício de enjeitados assistido por algumas obscuras carmelitas. Dona Carlota era a directora, e Kate chegou à conclusão de que a mulher de Ramon devia ser católica fervorosa, quase exaltada. Entregava-se de corpo e alma à Igreja e àquela obra de beneficência.
- Nascem tantas crianças no México e são tão numerosas as que morrem! Se as pudéssemos salvar e preparar para a vida! Fazemos tudo o que é possível, mas ainda é pouco.
Segundo parecia, todos os nenés indesejáveis eram entregues na Cuna, como embrulhos. A mãe só tinha de bater à porta e depositar noutras mãos o pacote vivo.
- Assim, impedimos que muitas mães negligentes deixem morrer os filhos - prosseguiu Dona Carlota. - Se não nos dizem o nome da criança, sou eu que a baptizo. Já o tenho feito muitas vezes. É vulgar entregarem-nos meninos absolutamente nus, sem um trapo a cobri-los... e sem nome. E nós nunca perguntamos nada.
Nem todos os expostos ficavam no hospício. Na maior parte eram confiados a índias decentes, a quem pagavam para os criar em casa. No fim do mês, cada qual se apresentava com o seu protegido e recebia o ordenado. As índias podem ser descuidadas mas não maltratam as crianças.
Noutro tempo, informou Dona Carlota, quase todas as senhoras do México recebiam na sua casa um ou dois desses enjeitados e tratavam-nos como família. Mas perdera-se a generosidade patriarcal dos espanhóis-mexicanos e actualmente adoptavam poucas crianças. Em vez disso, preparavam-nas para ganhar a vida, ensinando-lhes qualquer ofício.
Kate ouvia com-interesse e certo constrangimento. Não lobrigava sentimentos humanos nessa caridade mexicana, e quase discordava dela. Talvez Dona Carlota fizesse tudo o que podia nesse país semibárbaro, mas fazia-o sem nenhuma esperança de êxito. Embora com a consciência de que procedia bem, tinha um pouco o ar de vítima, de uma vítima sensível, branda, um tanto assustada. Dir-se-ia que um mal secreto lhe roía o coração.
Don Ramon escutava impassível, num silêncio que se opunha ao entusiasmo caritativo da mulher. Deixava-a agir como entendia, mas contra a sua obra e a sua loquacidade mantinha-se calado, duro, numa hostilidade surda e permanente. Dona Carlota percebia-o e tremia nervosamente enquanto falava do hospício de enjeitados. Kate acabou por achar cruel a atitude de Don Ramon; parecia um ídolo de pedra.
- Porque não vem passar um dia connosco, enquanto estamos em Sayula? - sugeriu Dona Carlota. - A casa é pouco confortável, já não é como foi, mas teremos muito gosto em recebê-la.
Kate aceitou o convite e disse que preferia ir a pé. Eram apenas quatro milhas de percurso e, com a Juana, iria bem acompanhada.
-. - Mandarei um homem buscá-las - declarou Don Ramon. Será mais seguro.
- Onde está o general Viedma? - perguntou Kate.
- Faremos o possível por tê-lo connosco quando a senhora lá for - replicou Dona Carlota. - Gosto deveras de Don Cipriano, que há muitos anos conheço. Por sinal que é o padrinho do meu filho mais novo. Presentemente, comanda a divisão de Guadalajara, por isso nem sempre se encontra livre.
- Admira-me que seja general - observou Kate. - Acho-o humano em excesso.
- E, de facto, é cheio de humanidade. Mas é general, e gosta de comandar os soldados. Deixe-me dizer-lhe que se trata de uma pessoa de muita influência. Exerce grande ascendente na tropa. Crêem nele, isso não se pode negar. Possui aquele poder, inato nos chefes índios, de afeiçoar a si os militares e de os levar ao combate. Pois é assim mesmo Don Cipriano. Ninguém conseguiria modificá-lo. Julgo, porém, que lhe seria de utilidade a presença de uma mulher. Nunca teve nenhuma na sua vida! Elas não lhe interessam...
- Que lhe interessa então?
- Ah! - exclamou Dona Carlota, estremecendo como se a picassem. Lançou um olhar rápido ao marido e declarou: - Não sei. Palavra que não sei.
- Os homens de Quetzalcoatl - declarou Don Ramon com
um leve sorriso.
Mas Dona Carlota dir-se-ia tirar-lhe todo o desembaraço. Parecia contrafeito, e um tanto estúpido.
- Ah, sim, sim, os homens de Quetzalcoatl - bradou Dona Carlota, amável mas com ar de censura. - Linda coisa para ele se ocupar! - Kate percebeu que a sua interlocutora adorava esses dois homens e que tremia à ideia de se opor aos seus erros, embora jamais transigisse com qualquer deles.
Para Don Ramon representava um pesado fardo aquela cega adoração da mulher e a sua não menos cega oposição.
Certa manhã, às nove horas, apareceu o criado para acompanhar Kate à fazenda, que chamavam de Jamiltepec. Trazia um cabaz e vinha do mercado. Era um velhote de bigode grisalho e olhos juvenis, cheios de vida. Os pés, metidos em huafaches, pareciam negros de tão queimados do sol, mas o fato resplandecia de alvura.
Kate ficou radiante com essa excursão a pé. O que tornava tão aborrecida a sua existência na aldeia era a impossibilidade de passear no campo. Havia sempre o risco de um assalto. Acompanhada de Ezequiel, dera algumas voltas pelos arredores, mas já começava a sentir-se prisioneira. Foi, por conseguinte, uma alegria sair de casa.
A manhã estava clara e quente, o lago brilhava quieto, espectral. Moviam-se pessoas na margem, minúsculas àquela distância, meros pontinhos brancos: peóns que seguiam os seus burros envoltos numa leve nuvem de poeira. Kate perguntava a si mesma porque seria que os homens apareciam sempre na paisagem mexicana como pequeninas manchas; pequeninas manchas de vida.
Entraram na estrada poeirenta que levava para oeste, entre a vertente alcantilada das colinas e a nesga de planície junto ao lago. Por espaço de milha foram encontrando vivendas, muitas delas fechadas, outras destruídas, já sem muros nem janelas. Todavia desabrochavam flores entre os montes de cascalho.
Nos terrenos vagos havia delgadas cabanas de palha dos indígenas - como que nascidas ali, ao acaso. Perto do caminho por baixo de um outeiro viam-se choças de adobe, semelhantes a caixas cinzento-escuras. Em volta corriam aves domésticas, grunhiam e refocilavam porcos pardacentos ou malhados de preto. Crianças seminuas, de um tom castanho-alaranjado, brincavam ou jaziam estiradas no chão, a dormir, com as nádegas à mostra.
Muitas das casas estavam a ser cobertas de colmo novo ou reteIhadas por indivíduos que assumiam ares de importância por se encarregarem desse trabalho. Mostravam-se também apressados, pois não tardariam a vir as chuvas torrenciais. E, na banda do lago, havia quem andasse a lavrar a terra dura com uma junta de bois e um pau forte e aguçado.
Mas Kate conhecia essa parte do caminho. Vira já a bela vivenda da colina, com os seus tufos de palmeiras que ladeavam as alamedas desertas. A estrada descia novamente para o lago, entre árvores frondosas de vagens retorcidas. À esquerda, a água mansa, gelatinosa, lambia as pedras amareladas. Numa poça da praia estavam mulheres a lavar roupa, e, nos baixios, banhavam-se duas raparigas com os cabelos negros pendentes e gotejantes. Mais adiante, um homem patinhava lentamente, detendo-se para arremessar com perícia a rede à água e depois recolhê-la cheia desses peixinhos luzidios a que chamam charales. Tudo estranhamente silencioso e remoto na manhã cintilante.
Vinha do lago uma leve brisa, mas a poeira da estrada queimava os pés. À direita erguia-se o monte, abrupto, ressequido e amarelo, exalando calor e aquele cheiro característico do México que se diria ser a evaporação duma terra cada vez mais calcinada.
Desfilavam continuamente filas de burros carregados, trotando na poeira e seguidos pelos condutores que marchavam erectos e rápidos, olhando com olhos semelhantes a buracos negros mas respondendo sempre à saudação de Kate com um respeitoso adiós. E Juana ecoava com o seu lacónico adiósm. Caminhava coxeando e achava tristíssima aquela ideia da niña de percorrer quatro milhas a pé, quando poderiam ir num automóvel de aluguer, de barco ou mesmo de burro.
Mas a pé! Kate percebia todos os sentimentos da criada no seu arrastado e sardónico adiósn. Em compensação, o homem de Ramon vinha animadamente atrás delas, dirigindo saudações alegres, com a pistola bem em evidência no cinto.
A estrada contornava um rochedo amarelo e escarpado para desembocar num campo aberto, onde se alastravam espinheiros e cactos poeirentos. À esquerda, distinguia-se a mancha verde dos salgueiros à beira do lago. À direita, as colinas inclinavam-se sobre o flanco árido das montanhas. Em frente, os outeiros ladeavam as margens do lago e afastavam-se, descobrindo uma espécie de garganta que conduzia à casa de Don Ramon e à sua plantação de cana-de-açúcar.
- Aqui temos Jamiltepec, a hacienda de Don Ramon, señorita - anunciou o homem.
Os olhos luziam-lhe ao proferir estas palavras. Era um peón orgulhoso e sem dúvida feliz com a sua sorte.
- Que lonjura! - exclamou Juana.
- Para outra vez virei só ou com o Ezequiel - replicou Kate.
- Não diga isso, niña! Só me queixo do pé, que me dói hoje a valer.
- Por isso mesmo é melhor não vires comigo.
- Não, niña. Gosto muito de vir.
Giravam alegremente as asas do moinho que puxava a água do lago. Entre as colinas descia o valezito onde deslizava um riacho e na parte mais larga viam-se bananeiras que uma cortina de salgueiros resguardava da brisa lacustre. No cimo da encosta, onde o caminho se embrenhava na sombra de mangueiras, elevavam-se dois renques de casas de adobe, tal uma aldeia um pouco recuada.
Surgiam mulheres entre as árvores, que vinham do lago com seus cântaros de água ao ombro. De roda das portas brincavam crianças, arrastando o traseiro nu na poeira do chão. Aqui e ali, uma cabra amarrada. E, apoiados na esquina da casa, ou encostados à parede, estavam homens de braços e pernas cruzados, mas não em dolce far niente. Pareciam esperar, esperar eternamente por qualquer coisa.
- Por aqui, señorita ! - disse o homem do cabaz, indicando um caminho que descia entre árvores frondosas até ao portão branco da hacienda. - Já cá estamos.
Mostrava-se tão contente como se houvesse chegado ao Paraíso.
Encontravam-se abertas as portas do zaguán, ou entrada, a cuja sombra descansavam dois soldados. No espaço em frente do portão, passavam nesse momento dois peóns, cada qual com um cacho de bananas à cabeça. Os soldados disseram qualquer coisa e aqueles detiveram-se e voltaram-se lentamente com a sua carga verde para observarem Kate, Juana e Martin - o homem que as acompanhava. Depois retomaram a sua marcha.
Os soldados levantaram-se e Martin conduziu Kate pela passagem abobadada, onde as rodas dos carros haviam cavado fundos sulcos. Juana seguia-os com expressão lastimosa.
Kate achou-se num pátio enorme, cercado em três lados por muros altos, alpendres e estábulos. Ao fundo era a casa de residência, com as suas janelas gradeadas e, em vez de porta, outro zaguán de batentes fechados, espécie de corredor ao longo do edifício.
Martin avançou para tocar a aldraba, e Kate olhou entretanto à sua volta. Num alpendre, estavam homens seminus a empacar cachos de bananas. Noutro lado, serravam paus e descarregavam telhas de cima dum burro. A um canto viam-se bois atrelados a uma carroça, de cabeça pendida sob a canga, como se esperassem.
Abriram-se as portas e Kate entrou no segundo zaguán. Era uma entrada larga, com seu lanço de escadas a um lado e um portão gradeado ao fundo, através do qual se via o jardim orlado de mangueiras e, mais abaixo, o lago com o seu porto artificial onde baloiçavam dois barcos.
Nas costas dos recém-vindos, a criada fechou a porta que dava para o pátio e indicou a Kate as escadas.
- Por aqui, señorita.
Badalava uma sineta lá no cimo. Kate subiu os degraus de pedra, ao encontro de Dona Carlota, que a esperava no patamar, vestida de musselina branca, o que, pelo contraste, lhe dava um tom amarelo às faces. Estendeu os braços magros e bronzeados, acolhendo Kate com extraordinária efusão.
- Muito prazer em vê-la aqui! E veio todo o caminho a pé, com este sol! Entre, entre e descanse.
Pegou na mão de Kate e levou-a através do terraço, no topo da escada.
- Que linda vista! - exclamou Kate, contemplando o lago para além das mangueiras. Na água pálida, irreal, vogava ao longe um barco de vela. Para além, elevavam-se as montanhas de gargantas azuladas, com a mancha branca duma aldeia. Dir-se-ia outro mundo, perdido na luz da manhã, outra vida.
- Que povoação é aquela? - perguntou Kate.
- Acolá? É San Ildefonso - respondeu Dona Carlota.
- Como este sítio é belo! - disse Kate.
- Hermoso, si! Si, bonito - retorquiu a outra em espanhol, conforme o seu costume.
A casa, de um vermelho-alaranjado, tinha duas alas voltadas para o lago. com o seu murinho coroado de plantas verdes, o terraço cercava três lados do edifício; suportavam o telhado largos pilares que partiam do solo, formando em baixo uma espécie de claustro ocupado ao centro por um tanque cheio de água.
- Venha - disse Dona Carlota. - Precisa de descansar.
- Gostaria de mudar de sapatos - declarou Kate. Levaram-na a um quarto espaçoso, um tanto vazio, de chão de
tijolos. Aí, Kate calçou as meias e os sapatos que Juana trouxera num embrulho e estendeu-se um momento para repousar.
E, enquanto repousava, ouvia o rufar surdo do tambor, no profundo silêncio da manhã, só perturbado pelo canto dum galo longínquo. Aquele som contínuo, insistente, enchia-a de mal-estar. Parecia o ribombo duma tempestade desencadeando-se no horizonte.
Kate levantou-se e dirigiu-se para o salão onde Dona Carlota estava sentada a conversar com um homem vestido de preto. com as suas três portas envidraçadas abertas sobre o terraço, chão de ladrilhos vermelhos, paredes pintadas de verde-claro, tecto de barrotes caiados e escassez de mobília, aquilo parecia mais um caramanchel do que um salão. Como em muitas casas dos países quentes, tinha-se a impressão de não se estar dentro de quatro paredes, mas sim de três; um lugar de passagem, e não para ficar.
À chegada de Kate, o homem de preto levantou-se, apertou a mão a Dona Carlota e, baixando a cabeça num comprimento cerimonioso, desapareceu por uma das portas do terraço.
- Entre, entre! - disse Dona Carlota a Kate. - Já não se sente cansada? - acrescentou, avançando uma das cadeiras de junco que estava negligentemente colocada no meio da sala.
- Absolutamente nada - respondeu Kate. - Como esta região é silenciosa! Só se ouve o tambor, o que talvez nos faça notar mais o silêncio.
- Ah, esse tambor! - exclamou Dona Carlota, erguendo a mão num movimento de exaspero. - Não posso com isso! Detesto ouvi-lo.
E moveu-se na cadeira de baloiço, com súbito nervosismo.
- É um som realmente impressionante - redarguiu Kate. - Que significa, afinal?
- Não mo pergunte! São coisas de meu marido. - E Dona Carlota fez novo gesto de desespero.
- Don Ramon é que toca o tambor?
- Não, não! - Dona Carlota pareceu sobressaltada àquela pergunta. - Não é ele que toca. Trouxe dois índios do Norte para se desempenharem desse trabalho.
- Ah, sim? - volveu Kate, sem se comprometer. Mas Dona Carlota balançava-se numa espécie de semi-inconsciência e só daí a instantes pareceu voltar a si.
- Tenho de desabafar com alguém! - disse, de repente, endireitando-se na cadeira, com uma expressão de angústia espelhada nos grandes olhos castanhos e no rosto cor de nata. - Posso desabafar consigo?
- Certamente - respondeu Kate, constrangida.
- Sabe o que Ramon anda a fazer?
- Julgo que pretende ressuscitar o culto dos deuses antigos.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, com outro aceno de mão desesperado. - Como se isso fosse possível! Os deuses antigos! Imagine-se! Que são eles senão ilusões mortas? E feias, repulsivas! Sempre pensei que meu marido fosse inteligente, muito superior a mim, e é triste ter de mudar de opinião. Tudo aquilo é um disparate. E ele atreve-se a tomar a sério o que não passa de um disparate!
- Talvez Don Ramon creia...
- Mas como pode ele crer? - replicou a dona da casa, com um sorriso desdenhoso. - É instruído, não pode acreditar em semelhante tolice.
- Então qual é o seu objectivo?
- Isso é que eu gostaria de saber. - Na voz de Dona Carlota transparecia indizível cansaço. - Penso que está louco, como acontece a tantos mexicanos. Louco como o bandido Francisco Villa.
Lembrando-se do rosto simiesco do famoso Pancho Villa, Kate não foi capaz de o associar a Don Ramon.
- Desde que se elevam na sociedade os mexicanos perdem a cabeça, o orgulho transtorna-os. Não pensam em mais nada senão na sua importância. Pura vaidade masculina. Não acha, señora, que a vaidade é o começo e o fim do homem? Jesus veio ao mundo para combater esse perigo, ensinando-nos a ser humildes. Por isso odeiam Cristo e os Seus ensinamentos, e deixam-se guiar pela vaidade durante toda a vida.
A mesma reflexão ocorrera a Kate muitas vezes, e concluíra que nos homens só existia vaidade. Precisavam de ser lisonjeados, de sentir a sua grandeza, nada mais.
- O que meu marido pretende é opor-se a Jesus, elevar o orgulho e a vaidade acima de Deus. Ah, é horrível! Horrível e infantil. Que são os homens senão crianças que necessitam dos cuidados da mãe? Ah, señora, é mais do que posso suportar!
Dona Carlota cobriu a cara com as mãos.
- Em todo o caso, acho o seu marido uma pessoa excepcional - disse Kate para a consolar, embora nesse momento detestasse Don Ramon.
- Sim, possui grandes qualidades, mas de que lhe servem se estão pervertidas?
- Explique-me ao certo: o que é que ele pretende, afinal?
- O poder, o poder absurdo e maléfico, como se já não houvesse bastantes poderes maléficos por todo este país. Quer ser mais do que os outros, adorado, venerado. Um deus! Ele, a quem embalei nos braços como uma criança, querer que o adorem!
E Dona Carlota desatou num riso estridente pontuado de soluços.
Kate esperou que ela se acalmasse.
- No fim de contas - disse, quando a viu mais sossegada - não somos responsáveis pelo que fazem os maridos. Aprendi à minha custa que todo o amor é impotente perante a vontade dos homens. Meu marido quis morrer, e não pude impedi-lo... Temos de os deixar fazer tudo o que querem, até as coisas que nos parecem insensatas.
Dona Carlota ergueu os olhos para Kate.
- Gostava muito do seu marido... e ele morreu? - perguntou em voz suave.
- Amei-o deveras, e não tornarei a gostar doutro homem. Perdi a faculdade de amar.
- De que morreu?
- Por sua culpa. Despedaçou o coração e a alma com a política irlandesa. Eu sabia que ele fazia mal em se ocupar disso. Que nos importava a Irlanda, o nacionalismo, as revoluções e todas essas tolices? Ah, se o Joachim se limitasse a viver em paz comigo, poderíamos ser tão felizes! Em vão tentei convencê-lo. Queria matar-se com aquela estúpida política, e não consegui evitá-lo. Foram inúteis todos os meus esforços.
Dona Carlota olhou fixamente para Kate.
- Assim como são os meus para impedir que Ramon proceda mal e se mate... E depois de morto, de que servirá tudo aquilo?
- De nada. Depois de eles morrerem, ficamos a saber que foi inútil todo o trabalho que tiveram.
- Oh, señora! Se pode ajudar-me a salvar Ramon, ajude-me! É uma questão de vida ou de morte para nós ambos. Porque eu morrerei se ele levar a sua avante...
- Explique-me bem qual é a ideia de Don Ramon. A do meu marido era libertar a Irlanda e engrandecer o povo. Mas eu nunca acreditei que os irlandeses fossem jamais um grande povo nem que se pudesse torná-lo livre. Só sabe destruir, e destruir estupidamente. Não se pode fazer livre um povo que o não é. Existe nele qualquer coisa que o impele à destruição.
- Bem sei, bem sei. Da mesma forma é Ramon. Até quer destruir Jesus e a Virgem Maria por amor do povo. Imagine! Derrotar Jesus e a Virgem! A última coisa que se podia pensar...
- Mas o que diz ele quanto ao seu projecto?
- Diz que pretende estabelecer um novo nexo entre o povo e Deus. Declara, por seu lado, que Deus é sempre Deus, mas que o homem perdeu a sua união com a divindade... e que não é possível restaurá-la sem que venha um novo Deus. E que qualquer novo nexo tem de ser diferente do antigo, embora Deus continue a ser Deus. Neste momento, declara meu marido, o povo perdeu o seu Deus. O Salvador já não será capaz de o reconduzir a Si. Precisa-se de outro Salvador, com uma nova visão. Ah, señora, eu não creio nisto! Deus é amor e, se Ramon se submetesse, ao menos, ao amor, compreenderia que aí é que estava Deus. Mas qual! É tão perverso! Poderíamos, ambos, com amor calmo, gozando a beleza do mundo, esperar pelo amor de Deus... Porque é, señora, que ele não vê isto? Oh, porque não compreende? Em vez de fazer estas coisas...
Acudiram lágrimas aos olhos de Dona Carlota, as quais se lhe espalharam pelo rosto. Kate também chorava.
- É inútil! - disse ela, soluçando. - Sei que é inútil, faça-se o que se fizer. Não querem ser felizes e estar em paz, mas sim esta luta e esses falsos e horríveis nexos... Sim, é inútil, de qualquer forma. E nisto é que está o pior.
E as duas mulheres, sentadas nas cadeiras de baloiço, soluçavam amargamente quando ouviram passos no terraço, leve ruído de pés calçados de sandálias.
Era Don Ramon, atraído inconscientemente pelo clamor daquelas criaturas pesarosas.
Dona Carlota limpou a toda a pressa os olhos e o nariz; Kate assoou-se com estrondo. No limiar da porta, Don Ramon deteve-se.
Trajava como os camponeses, todo de branco, de casaco largo e calças muito amplas. O fato era de linho, com certa goma, e tinha um brilho estranho, fora do vulgar. Por baixo do casaco, à frente, uniam-se as pontas duma faixa estreita de lã, também branca, franjada de vermelho e riscada de azul e preto. Nos pés sem meias trazia huaraches de coiro azul e negro, entrançado, com espessas solas tingidas de vermelhão. As calças estavam presas aos tornozelos por alamares de lã pretos, azuis e encarnados.
Kate, vendo-o assim à claridade do sol, vestido de uma alvura tão ofuscante, teve a impressão de que o rosto dele, escuro e emoldurado de cabelos escuros, fazia como que um buraco na atmosfera.
Don Ramon aproximou-se, com as pontas da faixa a baterem-lhe nas pernas, e as sandálias rangendo de leve.
- Muito prazer em encontrá-la - murmurou, apertando a mão da visitante. - Como veio?
Deixou-se cair numa cadeira e ficou imóvel. As duas senhoras baixaram a cabeça, como se quisessem esconder a cara. A presença do homem ainda as constrangia mais, porém o dono da casa fingiu não reparar na comoção que sentiam e fê-lo por um acto de pura vontade. Da sua presença emanava certa força e elas experimentaram um pouco de alívio.
- Não sabia que o meu marido se tornara num aldeão, num verdadeiro peón? - perguntou Dona Carlota, irónica, à sua hóspeda. - É um señor peón, como o conde Tolstoi se fez señor mujique...
- Mas fica-lhe bem - observou Kate.
- Ora aí está... Ao diabo o que é do diabo... - replicou Don Ramon.
Havia nele algo de tenaz, de inflexível. Riu, e falou às senhoras, mas sem se revelar muito, apenas superficialmente. O seu ser íntimo, insondável e poderoso, não entrava em contacto com elas.
Assim foi durante o almoço. Houve conversa esvoaçante, com intervalos de silêncio. Nesse silêncio percebia-se que Don Ramon vivia noutro mundo; e a sua vontade calma, obrando noutra esfera, fazia recuar as mulheres para a sombra.
- A señora é como eu, Ramon - disse Dona Carlota. - Não tolera o rufar do tambor. Irá continuar aquilo, pela tarde adiante?
Seguiu-se uma pausa antes que ele respondesse:
- Só depois das quatro horas.
- Temos, então, de aturar hoje esse barulho? - insistiu Dona Carlota.
- Porque não há-de ser hoje como nos outros dias? - ripostou o marido. Notava-se-lhe um ar contrariado. Era evidente que pretendia subtrair-se à presença daquelas duas.
- Porque a senhora está cá, e eu estou também, e porque nenhuma de nós gosta daquele som. Amanhã já ela se vai embora, e eu regresso à cidade. Porque não nos poupas esse tormento? E
Ramon fitou a mulher, e em seguida Kate. Os olhos denotavam cólera. Kate quase ouvia, naquele peito forte, o coração inchar de furor. Mas calou-se e a outra também se calou. No fundo, estavam satisfeitas por terem podido despertar a ira do homem.
Mantendo o sangue-frio, Don Ramon inquiriu da esposa (não sem que se lhe percebesse a indignação):
- Porque não levas a senhora Leslie até ao lago?
- Não nos apetece.
Ele então fez o que a irlandesa nunca vira ninguém fazer. Encerrou-se dentro de si mesmo, deixando às duas comensais a impressão de se encontrarem diante duma porta que se fechou. Kate sentiu-se abandonada e deprimida, mas a pouco e pouco a irritação tingiu-lhe as faces pálidas dum rubor de fogo.
- Posso ir-me embora antes das quatro horas - declarou.
- Não, não! - acudiu, suplicante, a dona da casa. - Não me deixe. Fique comigo até à noite e ajude-me a distrair Don Cipriano, que vem jantar connosco.

XI
Acabado o almoço, Ramon recolheu ao quarto para dormir a sesta. A tarde estava quente, pesada. No extremo oeste do lago erguiam-se nuvens cintilantes, quais mensageiros da tempestade. Ramon fechou as janelas do seu aposento de modo a obter negrume total; apenas aqui e ali, filtrando-se pelos interstícios da porta, os raios de luz pousavam nas trevas como uma coisa tangível.
Despiu a roupa e ergueu acima da cabeça os punhos fechados, como se orasse intensamente e de pé. Nos seus olhos só havia escuridão, e a pouco e pouco essa escuridão atingiu-lhe o cérebro, apagando-lhe todos os pensamentos. Só uma vontade poderosa se distendia e emanava da espinha dorsal, numa tensão sobre-humana até que as flechas da alma atingiram o alvo e a oração a sua meta.
Então, bruscamente, tombaram os braços trémulos, o corpo readquiriu a flexibilidade. O homem recuperara a sua força. Quebrara as cordas do mundo e sentia-se livre e senhor da outra força.
Devagarinho, com precaução, esforçando-se por não pensar, não se recordar, não despertar as serpentes venenosas da consciência, enrolou-se num cobertor delgado e estendeu-se no chão sobre uma pilha de coxins. Daí a instantes, adormecia.
Dormiu profundamente cerca de uma hora. Abriu os olhos de repente, viu as trevas aveludadas e as frechas de luz diminuídas: o sol mudara. Pôs-se à escuta. Parecia não haver um único som no mundo. Talvez não existisse mundo...
Então começou a ouvir. Distinguiu o débil rumor duma carroça, folhas sussurrando ao vento, o som distante de pancadas, o pio duma ave.
Levantou-se, vestiu-se com rapidez às escuras e foi abrir as janelas. A tarde ia em meio; soprava uma aragem quente, amontoavam-se a oeste nuvens escuras, mas a chuva não se decidia a cair. Ramon pôs na cabeça um chapéu de palha, que tinha à frente um enfeite de penas brancas, pretas e azuis dispostas em forma de olho, ou de sol. Ouviu vozes femininas. Ah, a estrangeira! Esquecera-a por completo. E Carlota! Carlota encontrava-se ali. Por um momento, pensou nela e na sua caprichosa oposição. Depois, antes que a ira o dominasse, soergueu o peito, em nova oração muda, os olhos sombrearam-se-lhe - e perdeu a impressão de contrariedade.
Seguiu pelo terraço até à escada de pedra que conduzia à entrada e atravessou o pátio, onde dois homens, debaixo dum alpendre, carregavam azêmolas com fardos de bananas. No zaguán dormiam soldados. Pelas portas abertas, Ramon viu ao fundo da alameda um carro de bois afastando-se lentamente. No pátio ressoavam marteladas numa bigorna: era um homem e um rapazito ocupados na forja. Noutro alpendre, um carpinteiro aplainava tábuas.
Don Ramon deteve-se um momento para olhar em volta. Aquele era o seu mundo. O espírito dele espraiava-se nesse mundo como uma sombra fomentadora, e o silêncio do seu próprio poder dava-lhe paz.
Os homens que trabalhavam tiveram quase instantaneamente consciência da presença do patrão. Um após outro, os rostos escuros e ardentes ergueram-se para ele e voltaram a baixar-se. Gostavam de o ver ali, mas temiam aproximar-se e nem se atreviam a um olhar mais prolongado. Retomaram o trabalho com mais ardor, como se a presença do patrão lhes desse novo alento.
Ramon dirigiu-se para a forja, onde o rapazinho dava ao fole e o homem batia pancadas leves e rápidas num pedaço de ferro.
- É a ave? - perguntou Ramon.
- Sim, patrón, é a ave. Está bem! - E o homem levantou os olhos pretos, luzidios, expectantes. com uma tenaz, brandiu a tira de metal, negra, em forma de língua achatada, e Ramon observou-a demoradamente. - As asas ponho-as depois - explicou o ferreiro.
com as mãos escuras e nervosas, Don Ramon traçou uma linha imaginária em volta do pedaço de ferro. Três vezes fez esse gesto, que parecia fascinar o ferreiro.
- Um pouco mais alongado. Assim... - disse Ramon.
- Sim, patrón, compreendo.
- E o resto?
- Está ali. - O homem apontou para dois arcos, um maior que outro, e para várias chapas de ferro triangulares.
- Coloca tudo isso no chão.
O ferreiro pousou os arcos, um dentro do outro, e em seguida dispôs com perícia os triângulos de modo que as bases ficassem sobre o arco exterior e os vértices no círculo interior. Eram sete.
Assim formaram um sol de sete pontas.
- Agora, a ave - ordenou Ramon.
O homem pegou logo na peça comprida: era a forma rudimentar dum pássaro, com dois pés mas ainda sem asas. Colocou-a no centro da roda interior, de maneira que as patas tocassem no círculo e a cabeça atingisse a parte oposta.
- Está tudo certo!
Ramon contemplava o símbolo de ferro armado no chão quando ouviu abrir a porta de casa. Kate e Carlota avançaram através do pátio.
- Retiro isto? - inquiriu o ferreiro.
- Deixa, não faz mal - respondeu Don Ramon tranquilamente.
Kate deteve-se a observar aquela coisa estendida no chão.
- Que é isso? - perguntou.
- A ave dentro do sol.
- Representa uma ave?
- Quando tiver asas.
- Ah, faltam-lhe as asas! E de que serve?
- É um símbolo para o povo.
- é bem bonito...
- Sim, é bonito.
- Ramon, não te importas dar-me a chave para tirar o barco?
- disse Dona Carlota. - Vamos dar um passeio no lago, e Martin remará.
O marido tirou a chave da cinta.
- Onde descobriu essa linda faixa? - indagou Kate. Era branca, com riscas azuis e pretas e franjadade vermelho.
- Teceram-na aqui - informou Don Ramon.
- E as sandálias? Também as fizeram cá?
- Sim, foi obra do Manuel. Mais tarde lho mostrarei...
- Gostaria bastante de ver. São belíssimas, não acha, Dona Carlota?
- Acho, mas não sei se as coisas belas são sensatas. Não sei. E a señora, sabe o que é sensato?
- Eu? - volveu Kate. - Não me preocupo muito com isso.
- Ah, não se preocupa! Afigura-se-lhe então sensato da parte de Ramon usar traje de camponês e huaraches?
Pela primeira vez, Dona Carlota exprimira-se em língua inglesa, falando com lentidão.
- Fica-lhe tão bem! - replicou Kate. - O fato de homem é medonho e Don Ramon parece magnífico com este.
De facto, com o largo chapéu pousado na cabeça ele tinha certo ar de nobreza e autoridade.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, fixando na companheira o seu olhar inteligente, enquanto brincava com a chave. - Vamos para o lago?
As duas mulheres afastaram-se. Rindo consigo mesmo, Ramon atravessou o pátio e dirigiu-se a uma granja construída perto das árvores. Entrou e assobiou baixinho. Soou outro assobio como resposta e abriu-se um alçapão. Don Ramon subiu a escada e encontrou-se numa espécie de oficina de carpinteiro. Acolheu-o um rapaz corpulento, de cabelo encaracolado, que empunhava maço e escopro.
- Que tal vai isso? - perguntou Ramon.
- Vai bem.
O artista esculpia uma cabeça de madeira. Uma cabeça avantajada, convencional, mas que, apesar do convencionalismo, revelava semelhança com Ramon.
- Sirva-me de modelo durante meia hora - disse o escultor. Ramon sentou-se e ficou silencioso, enquanto o outro, curvado
sobre a sua obra, se concentrava no trabalho. Durante todo aquele tempo, Don Ramon conservou-se erecto, quase imóvel, sem pensar em nada, mas irradiando um halo sombrio de poder que fascinava o artista.
- Basta - declarou por fim, levantando-se.
- Mas ponha-se na posição antes de se ir embora - pediu o artista.
Ramon despiu lentamente o casaco e ficou de torso nu, com a faixa raiada de azul e preto de roda da cintura. Por uns instantes pareceu recolher-se e, em seguida, como se numa oração intensa e orgulhosa, ergueu o braço direito por cima da cabeça e ficou transfigurado. O braço esquerdo pendia molemente ao longo do quadril. E no rosto, esse ar de orgulho fixo e intenso que era em si mesmo uma oração.
O escultor observava-o admirado e quase temeroso. Aquele homem grande e enérgico, com os seus olhos negros dilatados pelo orgulho e no entanto cheios de oração, despertava no escultor um frémito de alegria e de medo.
Don Ramon voltou-se para ele.
- Agora, você!
O artista, assustado, quis esquivar-se, mas encontrou o olhar de Ramon e, no mesmo instante, a calma da concentração desceu sobre ele, como um êxtase. Então, bruscamente, ergueu o braço, e a face pálida e nédia adquiriu uma expressão de paz e dignidade. Os olhos cinzento-azulados, serenos e altivos, dirigiam ao Além a sua oração. E embora estivesse com a bata de trabalho, e não fosse esbelto, apresentava uma imobilidade perfeita, plena de nobreza.
- Muito bem - disse Ramon, baixando a cabeça.
O escultor moveu-se de súbito. Ramon estendeu-lhe as duas mãos e ele, levantando-lhe a dextra, pousou-a na fronte.
- Adiós! - disse Ramon, depois de enfiar o casaco.
- Adiós - respondeu o artista. E com a felicidade estampada no rosto, voltou para o trabalho.
Don Ramon visitou a casa de adobe, cujo pátio era rodeado duma paliçada de canas e sombreado por uma gigantesca mangueira. Manuel, a mulher, os filhos e dois ajudantes estavam a fiar e a tecer. Debaixo das bananeiras, duas pequenas cardavam lã branca e castanha. A mulher e uma rapariga fiavam. Numa corda secava lã tingida, vermelha, azul e verde. E, no alpendre, Manuel e um rapaz manobravam dois pesados teares.
- Como vai isso? - inquiriu Don Ramon.
- Muy bien! Muy bien! - respondeu Manuel, com uma expressão transfigurada cintilando-lhe nas pupilas negras. - Muito bem, señor!
Ramon examinou a serape que estavam a tecer. Tinha uma barra em ziguezague de lã preta natural e, em cada ponta, um ornato complicado, azul e preto. O homem começara o centro, a que chamam boca, e olhava de instante a instante para o desenho pregado no tear. Aliás, era um desenho simples, igual ao símbolo de que o ferreiro se ocupava: uma serpente a morder a cauda e, de volta, triângulos negros cujas bases se apoiavam num círculo exterior; ao meio uma águia azul, com as asas e os pés tocando no arco formado pela serpente.
Ramon voltou a casa, dirigindo-se para a ala onde se encontrava o seu quarto. Lançou uma manta dobrada sobre o ombro e seguiu pelo terraço. No extremo dessa ala, projectando-se para o lago, havia outro terraço, este quadrado, com uma bignónia cor de coral pendente dos pilares maciços. A loggia estava juncada de esteiras e, a um canto, via-se um tambor e respectiva baqueta. No ângulo mais afastado mergulhava uma escada de pedra, fechada em baixo por uma porta de ferro.
Ramon ficou uns momentos a olhar para o lago. As nuvens dispersavam-se e o lençol de água reflectiu uma claridade esbranquiçada. Ao longe, via-se a mancha de um barco, onde provavelmente se encontravam Martin e as duas senhoras.
Tirou o chapéu e o casaco, e permaneceu imóvel, nu da cintura para cima. Então pegou na baqueta e, depois de esperar uns segundos, até adquirir paz de alma, fez soar o apelo do tambor, num ritmo alternado, forte e fraco. Captara o antigo poder bárbaro de certos rufos.
Assim esteve durante algum tempo, sozinho, tocando tambor com a mão direita, de face inexpressiva.
Acorreu um homem, de cabeça descoberta, vindo do outro terraço. Trazia fato de brancura imaculada, serape escura ao ombro, e uma chave na mão. Saudou Ramon, levando à testa as costas da mão direita, e depois desceu a escada e abriu a porta de ferro.
Imediatamente chegaram homens, todos vestidos de branco, cada qual com a sua serape dobrada em cima dos ombros. Mas as faixas eram azuis, e as sandálias azuis e brancas. O escultor apareceu, assim como Martin.
Eram sete, além de Ramon. No topo da escada saudaram-no, um apôs outro. Em seguida, depuseram a manta e o chapéu no murinho do terraço e despiram o casaco, que atiraram para cima dos chapéus.
Ramon largou o tambor e sentou-se sobre a sua manta raiada de azul e preto. Todos o imitaram, formando círculo, de pernas cruzadas e torso nu. Uns eram cor de café, outros brancos; Ramon tinha a pele dum tom castanho-claro. Conservaram-se em silêncio, só perturbado pelo som igual e hipnótico do tambor que um dos homens tocava. Então este começou a cantar numa vozinha estranha, contida, essa antiga voz de falsete dos índios:
"Quem dorme despertará. Quem dorme despertará. Quem segue o caminho da serpente há-de chegar ao seu destino; há-de chegar ao seu destino e ficará revestido com a pele da serpente."
Uma por uma, outras vozes se juntaram, até que todos se fizeram ouvir, naquele ritmo cego, infalível, do antigo mundo bárbaro. E todos com idêntica voz interior, como se a alma cantasse para si própria.
Cantaram por momentos, em uníssono, qual bando de pássaros a voar levados pelo mesmo instinto. E quando o tambor vibrou num rufo que era o final da cerimónia, as vozes extinguiram-se também, simultâneas, com um estrangulamento na garganta.
Houve um silêncio. Depois os homens principiaram a conversar uns com os outros, rindo em surdina. Mas a voz deles e a expressão já não eram as mesmas de há pouco.
Don Ramon ia falar e todos se calaram, inclinando a cabeça. Aquele sentara-se, de face erguida, visando ao longe, na dignidade da oração.
- Não há Passado nem Futuro, só existe o Presente - disse em tom surdo, majestoso. - A Serpente magna dobra e desdobra os seus anéis, as estrelas surgem, os mundos desaparecem. Há somente a mudança e o repouso do plasma.
Eu sou sempre, diz o seu sono.
Assim como o homem, enquanto dorme, não tem conhecimento, mas é, também a Serpente enroscada do eterno Cosmos prolonga o seu existir de Agora.
Agora, agora só, e para sempre Agora.
Contudo os sonhos despertam e esmorecem no sono da Serpente.
E o Universo eleva-se como os sonhos e como eles expira.
E o homem é um sonho no sono da Serpente.
E apenas o sono que não tem sonhos murmura: Eu sou!
E no Agora sem sonhos, Eu sou.
Os sonhos despertam, como devem, e o homem é um sonho desperto.
Mas o plasma sem sonhos da Serpente é o plasma do homem, do seu corpo e ao mesmo tempo da sua alma.
E o sonho perfeito da Serpente Eu sou é o plasma do homem, que é íntegro.
Quando o plasma do corpo e o da alma só fazem um, Eu sou na Serpente.
Agora Eu sou.
Não foi é um sonho, assim como será, quais dois pés trôpegos e separados.
Mas Agora. Eu sou.
As árvores desdobram as folhas no sono, e a floração emerge dos sonhos no mais puro Eu sou.
Os pássaros esquecem o peso dos seus sonhos e cantam no Agora: Eu sou! Eu sou!
Porque os sonhos têm asas e pés e caminhos a percorrer, e esforços a realizar.
Mas a Serpente luzidia do Agora não tem asas nem pés, é una, perfeitamente enrolada.
Nos pés dum sonho, a lebre sobe o monte numa corrida. Mas quando se detém o sonho desaparece e ela entra no Presente e os seus olhos são o vasto Eu sou.
Só o homem sonha, sonha, e vai de sonho em sonho, como alguém que, dormindo, se agita no leito.
Sonha com os olhos e a boca, com as mãos e os pés, com o falo, o coração e o ventre, com o corpo e a alma, numa tempestade de sonhos.
E precipita-se de sonho para sonho, na esperança de alcançar o sonho perfeito.
Mas eu afirmo-vos que nenhum sonho é perfeito, porque em todos eles há sofrimento e desejo.
Nada é perfeito, excepto o sonho que falece no sono. Eu sou.
Quando o sonho dos olhos se obscurece, cercado pelo Agora,
E quando o sonho da boca ressoa no último Eu sou,
E quando o sonho das mãos dormita como uma ave no mar, que é erguida, e levada, sem que ela o saiba,
E os sonhos dos pés atingem o centro do mundo, onde a Serpente dorme,
E o sonho do corpo é a calma duma flor oculta,
E o sonho da alma se dissipou no perfume do Agora,
E o sonho do espírito se apazigua e descansa na Estrela da Manhã,
Porque cada sonho começa e termina no Presente,
No âmago da flor está a Serpente que alumia e não desperta.
E o que se apaga é um sonho, e o que se aumenta é um sonho. Há sempre, e somente Agora. Agora e Eu sou."
Reinava o maior silêncio no círculo de homens. Lá fora, rangia um carro de bois e, do lago, elevava-se o débil som de remos a fender a água. Mas os sete homens, de cabeça baixa, escutavam interiormente, numa espécie de transe.
Então o tambor começou, suavemente, e um dos homens cantou, num fio de voz:
O senhor da Estrela da Manhã
Estava entre o dia e a noite:
Tal um pássaro que ergue as asas e espera
com a asa luminosa à direita
E a das trevas à esquerda,
A Estrela de Alva apareceu.
- Olhai! Estou sempre aqui!
Longe, no espaço
Roço a asa do dia
E ilumino o vosso rosto.
com a outra asa roço a sombra.
Mas eu estou sempre aqui.
Estou sempre aqui. Sou o senhor. E os senhores entre os homens Vêem-me no cintilar das minhas asas. E perdem-me outra vez. Mas, olhai! Estou sempre aqui.
As multidões não me vêem. Só vêem o bater de asas, As idas e vindas das coisas, O calor e o frio.
Mas a vós que me vedes entre
O frémito da noite e do dia,
Faço-vos senhores do Caminho Invisível.
Caminho entre abismos de trevas e vales de luz; Caminho que segue tal rasto de serpente, tal a mecha dum rastilho
Que incendiará à substância das trevas e explodirá à vista de todos.
Jamais me afasto. Estou sempre aqui Entre as asas dum voo sem fim, Nas profundezas da paz e da luta.
Profundo no relento da paz,
Longe da orla do combate,
Haveis de encontrar-me, eu que não sou
Nem sou destruição.
Para além eu estou Dos horizontes de amor e de luta, Como uma estrela, como uma fonte Que lava os senhores da vida.
"Ouvi! - disse Ramon, no meio do silêncio. - Seremos senhores entre os homens, não os senhores dos homens. Somos senhores da noite. Senhores do dia e da noite. Filhos da Estrela da Manhã e da Estrela da Tarde.
Não somos senhores dos homens. Eu, porém, sou a Estrela da Manhã e Senhor do dia e da noite. com o poder que me foi concedido à mão esquerda e com o poder que obtive com a mão direita, sou senhor dos dois rumos.
E a minha flor na terra é o jasmim, e no céu a hespéride.
Não vos darei ordens, nem vos servirei, porque a serpente se arqueia em direcção à sua casa.
Contudo, estarei convosco, para que não vos desvieis de vós próprios.
Não há nada a dar nem a receber. Quando os dedos que dão afloram os que recebem, cintila a Estrela da Manhã a esse contacto, e o jasmim brilha entre as mãos. E assim não há dom nem aceitação, nem mão que oferece nem mão que recebe, mas a estrela encontra-se entre elas e a mão escura e a mão clara permanecem invisíveis de cada lado. O jasmim recolhe na corola o dom e a aceitação, e o seu perfume espalha-se no ar.
Não penseis em dar nem em receber, deixai isso à flor do jasmineiro.
Não vos desperdiceis, que nada vos seja arrancado.
E não percais nada, nem o aroma da rosa, nem o sumo da romã, nem o calor do fogo.
Mas dizei à rosa: - Olha, colho-te, e o teu perfume enche-me as narinas e o meu hálito penetra no teu coração. Que isso seja entre nós como um sacramento.
E tomai cuidado quando abrirdes a romã; é o Sol poente que tendes nas mãos. Dizei: - Eis-me aqui, vem! Que a Estrela da Tarde fique entre nós.
E quando a chama se eleva ao sopro do vento frio e estendeis as mãos para o calor, ouvi o que a chama diz: - Ah! És tu? És tu que vens para mim? Eu realizava a grande viagem, seguindo o caminho da serpente magna. Mas visto que vens até mim, de ti me aproximo. E se caíres nas minhas mãos cairei nas tuas, e a flor do jasmineiro perfumará o nosso encontro.
Não repilais nada nem deixeis que vos despojem. Porque repelir ou ser despojado quebra a raiz do jasmim e conspurca a Estrela da Tarde.
Não vos apodereis de nada para dizer: - Isto pertence-me. Nada existe que vos seja dado possuir, nem sequer a paz.
Nada; nem o ouro, nem a terra, nem o amor, nem a vida, nem a dor, nem a morte, nem a salvação.
De nada direis: - Isto é meu.
Dizei apenas: - Isto está comigo.
Porque o ouro só permanece convosco o espaço duma lua, e olha-vos e diz: - Encontramo-nos ligados por este breve instante.
E a terra diz-vos: - Ah, filho meu, de pai longínquo! Vem, revolve-me um pouco, para que as papoulas e o trigo cresçam e ondulem ao vento que sopra entre o meu e o teu peito. Depois, abisma-te em mim, e ambos formaremos um outeiro.
E ouvi o que diz o vosso amor: - A tua espada ceifou-me como à erva, e sobre mim está a sombra e o bruxulear da Estrela da Tarde. Não é mais do que trevas e nada. Ó tu, quando te levantares e prosseguires o teu caminho, fala-me, dize-me simplesmente: - A estrela despontou entre nós.
E dizei à vida: - Sou teu? És minha? Sou a orla do dia em volta da noite? São os meus olhos o crepúsculo onde a estrela se suspende? É o meu lábio superior o pôr do Sol e o meu lábio inferior o raiar da manhã? Tremula a estrela na minha boca?
E dizei à vossa paz: Ergue-te, estrela imortal! Já as águas da aurora te alagam e me levam no seu curso.
E dizei à dor: Machado, abates-me. E, contudo, brota uma centelha do teu gume e da minha ferida. Corta, então, que eu velarei a face, ó pai da estrela!
E dizei à vossa força: A espuma da noite sobe-me dos pés até aos rins, a espuma do dia salta-me dos olhos e da boca para o mar do meu peito. As minhas entranhas são um manancial de poder que corre pela espinha dorsal. E uma estrela flutua sobre esse fluxo.
E dizei à vossa morte: Pois seja! Eu e a minha alma iremos para ti, Estrela da Tarde. Carne, desaparece na sombra da noite. Espírito, chegou o teu dia. Deixai-me agora. Na minha nudez suprema me encaminho para a Estrela mais nua."

XII
Os homens envergaram o casaco, puseram o chapéu e, depois de cobrirem os olhos por um momento numa saudação a Ramon, desceram a escada de pedra. Fechou-se a porta com estrondo e o porteiro, voltando com a chave, pousou-a sobre o tambor e retirou-se discretamente.
Ramon ficou sentado em cima da manta, com os ombros nus apoiados à parede e de pálpebras cerradas. Sentia-se fatigado, nesse estado de abstracção que torna difícil o regresso ao mundo normal. Ouvia de modo vago os rumores na casa, tilintar de colheres de chá, vozes femininas conversando, o ronco dum automóvel que se aproximava pelo caminho desnivelado e se detinha no pátio.
Custava-lhe voltar à terra. Ressoava-lhe aos ouvidos o barulho do exterior, mas dentro dele mesmo escutava o murmúrio confuso do universo, como se num búzio. Era-lhe penoso retomar contacto com as coisas da vida corrente quando o corpo e a alma mergulhavam no cosmos.
Gostaria de se conservar ainda uns instantes no seu isolamento, mas não era possível. Reclamavam a sua presença, especialmente Carlota.
Já ela o chamava: "Ramon! Isso terminou? Cipriano está aqui." Sentia-se-lhe na voz receio e temeridade.
Ramon puxou os cabelos para trás, ergueu-se e, em passo rápido, acudiu ao chamamento tal como se encontrava, de torso nu. Não tinha vontade de se vestir, de reentrar nos pormenores da vida quotidiana.
Cipriano, fardado, achava-se no terraço abancado à mesa do chá. Levantou-se prontamente e avançou para Ramon de braços abertos, perscrutando o rosto do amigo com os seus olhos negros e brilhantes.


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Os dois homens abraçaram-se, peito contra peito, e, por momentos, Cipriano deixou estar as mãos morenas nas espáduas nuas de Ramon. Então afastou-se devagar e fitou-o sem proferir uma palavra.
Ramon pousou distraidamente a mão no ombro de Cipriano.
- Que tal? - perguntou. - Como vai isso?
- Bien. Muy bien - respondeu Cipriano, fixando-o sempre como se se procurasse a si mesmo no semblante de Ramon. Este correspondeu ao olhar do índio com um leve sorriso, enquanto Cipriano baixava a cabeça e os cabelos longos lhe tombavam na testa.
As duas mulheres observavam a cena em silêncio absoluto. Quando os dois homens se aproximaram da mesa, Carlota começou a servir o chá. Mas as mãos tremiam-lhe e ela tratou de pousar o bule e cruzá-las no regaço.
- Passearam de barco? - indagou Ramon, com ar alheado.
- Passeámos, e foi muito agradável - disse Kate. - Um bocado quente, quando o sol apareceu...
Ramon esboçou um sorriso e alisou o cabelo. Em seguida, descansando a mão no parapeito do terraço, olhou para o lago e suspirou inconscientemente.
Nu da cintura para cima, voltava costas às mulheres, contemplando a vastidão da água. Cipriano estava a seu lado.
Kate observava as espáduas lisas, morenas, que emanavam sensualidade, os ombros largos, o porte altivo da cabeça - e não podia deixar de imaginar uma lâmina cravada nessas costas magníficas, nem que fosse só para destruir a sua arrogância distante.
Porque até a sua nudez parecia distante, intangível. Pensar nela e contemplada daquele modo representava quase uma violação. Kate sentiu de súbito o coração estremecer-lhe de vergonha. Fora assim que Salomé olhara para João Baptista, e Ramon possuía essa mesma beleza que evocava uma romã destacando-se na verdura sombria da árvore.
Soprava branda a aragem da tarde. Na luz nacarada deslizavam barcos, enquanto o Sol luzia ainda no horizonte. Distinguia-se a margem oposta, a cerca de vinte milhas, embora velasse a atmosfera uma bruma opalina que se confundia com a água do lago. Kate lobrigava a mancha clara da igreja de Tuliapan.
No jardim da casa havia um bosquete de mangueiras, onde voavam cá e lá passarinhos escarlates, como botões de papoula, e outros dum amarelo cintilante. Contudo, quando pousavam por um momento e fechavam as asas, desapareciam da vista, pois eram escuros por cima.
- Neste país, os pássaros só são coloridos por baixo das asas - observou Kate.
Ramon voltou-se bruscamente para ela.
- Dizem que a palavra México significa "por baixo" - replicou, sorrindo, enquanto se afundava numa cadeira de balouço.
Dona Carlota fizera um esforço sobre si mesma e, de olhos fixos nas chávenas, servia o chá. Apresentou uma xícara ao marido, sem sequer o relancear. Tremia de cólera quase histérica. Ela, que era sua esposa desde tantos anos e que o conhecia tão bem (ah, se o conhecia!), nada possuía desse homem.
- Passa-me o açúcar, Carlota - disse Ramon na sua voz calma.
A mulher sobressaltou-se como se a beliscassem de repente.
- O açúcar? - repetiu, distraída.
Ramon estava sentado na cadeira, pendido para a frente e de xícara na mão. A tela fina que lhe cobria as coxas revelava-lhe mais o corpo do que a nudez do torso. Kate percebeu porque é que era proibido usar calças de algodão naplaza. Tornavam mais sensível a presença da carne.
Verdadeiramente belo, duma beleza que chegava a ser assustadora, irradiava uma sensualidade pura, hostil ao género de pureza de Kate, com a sua faixa azul de roda da cinta e as calças brancas parecendo fremir de vida cingidas aos quadris e às coxas. Tão poderoso fluido emitia esse ente másculo que Kate se sentia como que fascinada.
E ele, perfeitamente tranquilo, dentro do seu próprio ambiente. O mesmo acontecia a Cipriano. Ambos tão calmos, tão sombrios, dir-se-iam esmagar as duas mulheres.
Kate compreendeu então os sentimentos de Salomé. Compreendeu como João Baptista, com a sua beleza distante e inacessível, exercera tamanho poder.
"Ah! disse ela consigo mesma. - Tenho de fechar os olhos e abrir a alma. Fechar os olhos para não ver e ficar na escuridão e no silêncio junto destes dois homens. Possuem uma riqueza que me falta. Conseguiram libertar-se do desejo que a vista suscita. Sou atormentada pelo desejo, pela minha imaginação lasciva. É a maldição de Eva. Os meus olhos, a minha experiência são como um anzol que me repuxa a carne e me desperta espasmos de desejo. Oh, quem me dera libertar-me da impureza do olhar! Filha de Eva, porque é que estes homens me não arrancam às visões impuras?"
Levantou-se e dirigiu-se à beira do terraço. Amarelos como narcisos, emergiam dois pássaros da sua própria invisibilidade. Na praia de seixos, onde estava um barco varado, dois homens apanhavam à rede os peixinhos denominados chcirales, que cintilavam na água acastanhada como lascas de vidro.
- Ramon! - disse Dona Carlota. - Não vais vestir-te? Já não podia suportar aquela vista.
- vou. Obrigado pelo chá - respondeu o marido, pondo-se de pé. E seguiu pelo terraço adiante, com as sandálias a ranger de leve no pavimento de tijolos.
- señora Caterina! - chamou Carlota. - Venha beber o seu chá.
Kate voltou para a mesa, dizendo:
- Que paz se sente aqui!
- Paz! - repetiu Carlota. - Não acho paz nenhuma. O que há é um silêncio pavoroso que me causa arrepios.
- Vem cá frequentemente? - perguntou Kate a Cipriano.
- Sim, uma ou duas vezes por semana - respondeu ele, fixando-a com singular expressão nos olhos negros.
Dir-se-ia que esses homens procuravam anular-lhe a vontade.
- São horas de eu voltar para casa - declarou ela. - Não tarda que o Sol desapareça.
- Ya va? - redarguiu Cipriano, com a sua voz aveludada em que transparecia certa pena. - Já!
- Oh, não, señora! - exclamou Carlota. - Fique connosco até amanhã.
- Mas estão em casa à minha espera.
- Mandarei um rapaz prevenir que só regressa amanhã. Fica, não é verdade? Ah, ainda bem.
E Carlota, depois de pousar a mão carinhosa no braço de Kate, levantou-se a fim de avisar os criados.
Cipriano puxou da cigarreira e ofereceu-a a Kate.
- Não se escandalizará se eu fumar? - disse ela. - É um dos meus vícios.
- Fume. Não é bom sermos perfeitos.
- Acha que não? - E Kate, rindo-se, puxou uma fumaça do cigarro.
- Experimenta realmente essa paz? -inquiriu ele, irónico.
- Porquê?
- Porque é que os brancos andam sempre em busca da paz?
- Pois não é natural que todos desejem paz?
- Paz é apenas o descanso depois da guerra. Não é mais natural do que a luta; talvez até seja menos.
- Mas existe outra paz, aquela que ultrapassa o entendimento. Não sabia?
- Parece-me que não - respondeu Cipriano. - Que pena!
: - Ah! Quer ensinar-me? Mas para mim é diferente... Cada
homem tem dois espíritos. Um assemelha-se à aurora na época das chuvas, suave, fresca, húmida, com pássaros chilreando. O outro é como a estação seca, com a sua luz forte e ardente que parece nunca mais abrandar.
- Decerto prefere o primeiro.
- Não sei - replicou Cipriano. - O outro dura mais.
- Tenho a certeza que prefere a frescura da manhã - insistiu Kate.
- Não sei, não sei. - E esboçou um sorriso, deixando Kate
convencida de que ele de facto não sabia. - Na primeira fase vemos as flores nas suas hastes transbordantes de seiva. A flor desa brocha como uma face de mulher perfumada pelo desejo. Mas o sol começa a aquecer, e então tudo se modifica. As flores murcham e o peito do homem torna-se como um espelho de aço. Dentro dele tudo
- é escuridão, enroscando-se e desenroscando-se como uma cobra. As flores secaram nas hastes, as mulheres já não existem para o homem. Umas e outras desapareceram.
- Que pretende ele então? - perguntou Kate.
- Não sei. Talvez queira ser uma grande personagem, senhor de todos os povos...
- E porque não realiza essas aspirações?
Cipriano encolheu os ombros.
A señora assemelha-se à manhã de que lhe falei há pouco -
disse ele.
- Tenho quarenta anos - replicou Kate com um risinho amarelo.
O general tornou a encolher os ombros.
- Isso não interessa. O seu corpo parece o caule da flor a que
aludi, e o seu rosto será sempre a aurora na estação das chuvas.
- Porque me diz essas coisas? - volveu Kate, com involuntário e estranho tremor.
- E porque não hei-de dizer? A señora é tal uma manhã cheia de frescura, e estamos no fim da época seca...
Observava-a, e nos seus olhos brilhava o desejo, aliado a certa insolência.
Kate baixou a cabeça e balançou-se na cadeira.
- Gostaria de casar consigo - continuou Cipriano. - Se estivesse disposta a isso, desposá-la-ia.
- Não me parece que me torne a casar - ripostou Kate, anelante e de faces afogueadas.
- Quem sabe?
Ramon surgiu no terraço, com a sua bela serape dobrada sobre o ombro nu. Apoiou-se num dos pilares e contemplou Kate e Cipriano, o qual ergueu a vista e lhe dirigiu um sorriso em que transparecia a amizade que os ligava.
- Disse à señora Caterina que a desposaria se ela estivesse disposta a casar-se - declarou ele.
- É o que se chama falar sem rodeios - replicou Ramon, olhando para Cipriano com o mesmo sorriso amigo. Em seguida, o seu olhar pousou-se em Kate, enquanto o sorriso se alastrava e todo o seu rosto respirava compreensão. Cruzou os braços, como fazem os índios quando querem defender-se do frio; e a carne, dum tom castanho-claro, como ópio, formava saliências no peito largo, cheio e liso.
- Diz Don Cipriano que os Brancos só desejam a paz - proferiu Kate, fitando Ramon com deliberada impertinência. - Não se consideram brancos?
- Não mais brancos do que somos - respondeu Ramon, sorrindo. - Pelo menos, não duma brancura de lírio...
- E não buscam a paz?
- Por mim não penso nisso. Os mansos herdarão a terra, segundo a professia. Mas quem sou eu para lhes invejar a sua paz? Não señora. Por acaso pareço um evangelho de paz? Ou de guerra? A vida para mim não se resume nessas duas coisas.
- Não sei afinal o que desejam - disse Kate.
- Nós próprios não o sabemos senão em parte - replicou Ramon, mudando de expressão.
Havia nele uma espécie de bondade paternal que enchia Kate de espanto e a sobressaltava como se só agora compreendesse o verdadeiro significado de tal sentimento. Mistério, nobreza, inacessibilidade, e a vulnerável compaixão de homem na sua amizade desinteressada...
- Não gosta das pessoas de pele escura? - perguntou Ramon em tom suave.
- Acho-as belas à vista - respondeu Kate. - Mas - acrescentou, com um leve arrepio - estou contente por ser branca.
- Sente que não é possível nenhum contacto?
- Exactamente.
- É a sua impressão - volveu Ramon, e, enquanto ele falava, Kate percebeu que o considerava mais atraente do que a qualquer homem loiro e que, por muito vago que fosse, o contacto que tinha com ele lhe era mais precioso do que todos os que até aí conhecera.
Contudo, embora lhe lançasse certa sombra, não tentava influenciá-la, nem queria maior aproximação - ao passo que Cipriano, sentindo-se incompleto, a procurava e parecia violar-lhe a personalidade.
À voz de Ramon, Dona Carlota assomou a uma das portas mas, ouvindo falar inglês, tornou a sumir-se, num brusco acesso de cólera. Daí a pouco reaparecia, trazendo um vaso de flores carnudas, dum branco leitoso, semelhantes a frésias no tom e no perfume.
- Que lindas! - exclamou Kate. - São flores de igreja! No Ceilão, os indígenas entram nos seus templos e depõem uma flor num tabuleiro aos pés do Buda. E os tabuleiros das oferendas ficam cobertos dessas flores, todas muito bem arranjadas, dispostas com delicadeza oriental...
- Mas eu não as trouxe para homenagear deuses - replicou Carlota, pousando o vaso na mesa. - Trouxe-as para si, señora. Cheiram tão bem!
- De facto, têm um aroma delicioso - concordou Kate. Os dois homens afastaram-se, rindo.
- Ah, señora! - disse Carlota, sentando-se à mesa. - Pode entender Ramon? Seria capaz de renunciar à Santa Virgem? Eu antes queria morrer.
- Não precisamos doutros deuses, realmente - redarguiu Kate, com certo enfado.
- Outros deuses! - repetiu Carlota, escandalizada. - Como se fosse possível! Ramon comete um pecado mortal.
Kate conservou-se calada.
- E quer induzir o povo a fazer o mesmo - prosseguiu Carlota. - É pecado de orgulho... o pecado cardeal. Ainda bem que a señora pensa como eu. Receio as americanas que, para se apoderarem do espírito dos homens, aceitam todas as suas loucuras e perversidades... É católica, señora?
- Fui educada num convento.
- Ah, señora! Qual a mulher que tendo conhecido a Santíssima Virgem se afasta dela? Que mulher teria ânimo de crucificar Jesus novamente? Mas os homens, os homens! Aquela história de Quetzalcoatl seria coisa para rir se não fosse um pecado mortal. E da parte de dois homens inteligentes e instruídos tanta presunção!
- Os homens são assim - observou Kate.
Intensificava-se o crepúsculo; o horizonte estava ainda luminoso, mas o Sol afundara-se numa bruma cor-de-rosa, por trás das arestas da montanha. As colinas erguiam-se azuladas numa atmosfera cor de salmão que se reflectia na água. Lá adiante, onde o clarão rubro se adensava, banhavam-se homens e crianças.
Kate e Carlota subiram à azotea, o terraço que cobria a casa. Dali podiam ver a hacienda com o seu pátio semelhante a uma fortaleza, o caminho ladeado de árvores frondosas, as cabanas de adobe perto da estrada e as fogueiras já bruxuleando junto das casas. No ar róseo os salgueiros da margem pareciam mais verdes e cintilantes. Ao longe, luziam entre as árvores as duas torres brancas de Sayula. Deslizavam barcos em direcção à parte sombreada do lago.
E num desses barcos, deveras desconsolada, regressava Juana a casa.

XIII
Ramon e Cipriano encontravam-se à beira do lago. O general envergara também fato branco e sandálias, o que lhe ia melhor do que a farda.
- Tive uma conversa com Montes quando ele foi a Guadalajara - declarou Cipriano.
Montes era o presidente da República.
- E que te disse?
- Não se alarga muito a falar, mas depreendi que não simpatiza com os colegas e se sente isolado. Julgo que gostaria de te conhecer melhor.
- Porquê?
- Talvez pudesses dar-lhe apoio moral. Talvez chegasses a ser ministro; e até presidente, depois de Montes acabar o seu mandato.
- Montes agrada-me - replicou Ramon. - É sincero e ardente. Gostaste dele?
- Sim, mais ou menos - respondeu Cipriano. - É desconfiado, teme que outros pretendam compartilhar com ele o poder. Tem instintos de ditador. Quis saber se eu lhe era afecto.
- Deste-lhe a entender que sim?
- Disse-lhe que tudo o que me interessava verdadeiramente eras tu e o México.
- E que te respondeu?
- Ele não é tolo. Respondeu: "Don Ramon vê o mundo com olhos diferentes dos meus. Qual de nós terá razão? Eu quero salvar o país da pobreza e da ignorância, ele quer salvar-lhe a alma. Mas afirmo que um homem esfomeado e ignorante não tem lugar para a alma. Um ventre e um cérebro vazios roem-se a si mesmos, e a alma não existe. Don Ramon acha que um homem desprovido de alma pode passar sem o alimento do corpo e do intelecto. Pois que siga o seu caminho, que eu sigo o meu! Não nos embaraçaremos um ao outro. Dou a minha palavra que não interferirei em nada. Ele varre o pátio, eu trato da limpeza da rua.
- É sensato - comentou Ramon - e honesto nas suas convicções.
- Porque não serias ministro daqui a uns meses? E mais tarde presidente?
- Bem sabes que não é isso o que pretendo. Devo poupar-me e agir noutra esfera. A política que se mantenha ou evolua como eles entendem, a sociedade que faça o que quiser. Deixa-me em paz, Cipriano. Gostarias que eu fosse outro Porfirio Diaz, ou alguém do mesmo género, mas isso para mim seria pura e simplesmente soçobrar na vida.
Cipriano observava Ramon com os seus olhos negros e vigilantes, onde transparecia amizade, receio, confiança, mas também incompreensão, e a dúvida que sempre a acompanha.
- Não chego a perceber o que desejas - murmurou.
- Percebes, sim. A política e toda essa religião social com que Montes se preocupa equivale a lavar a casca dum ovo para lhe dar aspecto limpo. A mim, porém, só interessa o interior... Ah, Cipriano! O México é tal um ovo que o Tempo choca desde séculos neste ninho do mundo e que parece ser goro. Parece, mas não é. O que precisa é de calor que ajude a formação da ave. Montes quer limpar o ninho e lavar o ovo... Que aconteceria se tirassem um ovo de baixo duma águia para o lavar? Arrefeceria de vez. Pois quanto mais se empenharem em arrancar este povo da pobreza e da ignorância mais depressa ele morrerá. Pobre Montes! Todas as suas ideias são americanas ou europeias. E a velha pomba da Europa jamais poderá chocar com êxito o ovo escuro da América. Os Estados Unidos não morrem porque não estão vivos. É um ninho de ovos de loiça e por isso se conservam limpos. Mas aqui, Cipriano, aqui é necessário incubá-los antes da limpeza do ninho.
Cipriano baixava a cabeça. Experimentava sempre Ramon para ver se conseguia fazê-lo mudar de ideias e, depois de verificar a inutilidade dos seus esforços, submetia-se ao amigo e novas chamas de felicidade se alteavam dentro dele. Mas, entretanto, ia-o experimentando...
- Não serve de nada querer misturar as duas coisas. No ponto em que estão, não se misturam. Temos de fechar os olhos e mergulhar até ao fundo, como pescadores de pérolas. Mas andamos a flutuar à superfície, semelhantes a bocados de cortiça...
Cipriano mostrou um sorriso subtil. Tudo aquilo ele sabia!
- Temos de abrir a ostra do cosmos e extrair dela a nossa força.
Enquanto não arrancarmos a pérola não seremos mais do que mosquitos no cimo do oceano - concluiu Ramon.
- A minha força é como um demónio dentro de mim - disse Cipriano.
- Porque a ostra a retém fechada, como uma pérola negra. A ti compete libertá-la.
- Ramon, não acharias bom ser uma serpente, uma serpente enorme que se enrolasse em volta do globo e o esmagasse... como a esse ovo?
Ramon olhou-o e pôs-se a rir.
- Não me parece coisa impossível - continuou Cipriano. E não seria bom?
O outro meneou a cabeça, rindo-se.
- Pelo menos seria um momento bom.
- Que mais se pode desejar?
Brilhou nos olhos de Ramon uma centelha que logo se apagou.
- Para quê? - disse em voz surda. - Depois de esmagado o ovo que havíamos de fazer senão errar nos corredores de trevas e lamentar-nos? Para quê?
Ramon pôs-se de pé e afastou-se. O Sol desaparecera, a noite descia. Na alma daquele homem fervia uma cólera imensa, e Carlota é que a provocava. A mulher parecia incutir vida ao monstro da sua raiva íntima, e Cipriano exasperava-o.
"A minha força é como um demónio a rugir dentro de mim", disse Ramon consigo mesmo, repetindo a frase de Cipriano.
Reconhecia o direito de gritar a esse demónio humilhado e ridicularizado que vivia preso dentro dele. E a fúria apoderou-se de Ramon, contra Carlota, contra Cipriano, contra a humanidade inteira. Os seus partidários traí-lo-iam, tinha a certeza. Cipriano acabaria por traí-lo. Desde que lhe encontrassem o mínimo ponto fraco, todos saltariam sobre ele como tarântulas e infectá-lo-iam com a sua peçonha.
E qual o homem absolutamente invulnerável, sem o menor ponto fraco?
Ramon subiu ao seu quarto pela escada exterior, no lado da casa, e sentou-se na cama. A noite estava quente, pesada, e duma calma aflitiva.
- Prepara-se chuva - ouviu ele dizer a um dos criados. Fechou as portas do quarto e ficou às escuras. Então despiu-se todo, murmurando: "Repudio o mundo juntamente com esta roupa." E de pé, nu e invisível no meio do quarto, ergueu ao ar o punho fechado, com tal força que teve a sensação de que lhe estalavam as paredes do peito. A mão esquerda pendia ao longo do corpo, mole, com os dedos levemente curvados.
Tenso como o jacto duma fonte silenciosa, distendeu-se até abranger o âmago impalpável das trevas. E as vagas de escuridão começaram a lavar-lhe o espírito, a consciência; ondas de negrume rebentando-lhe na memória, em todo o seu ser, como uma maré que sobe. Até que foi maré cheia e ele, tremendo, se deixou cair por terra, para descansar. Invisível nas trevas, ficou a olhar para o vácuo, sentindo o misterioso fluxo interior purificar-lhe as entranhas e o coração, sentindo o espírito dissolver-se no Espírito maior que nenhum pensamento perturba.
Cobriu o rosto com as mãos e ali esteve imóvel, inconsciente, já sem nada sentir nem ouvir, semelhante a uma alga submersa no mar. Abolira-se o Tempo, abolira-se o Mundo, submerso nas profundezas que são intemporais e inespaciais.
Quando o coração e as entranhas despertaram para a vida, o espírito principiou a bruxulear tal uma chamazinha que vacila e não se apaga.
Enxugou a cara com as mãos, pôs a serape na cabeça e em silêncio, numa aura de sofrimento, desceu a escada, levando consigo o tambor.
Martin, o servo devotado, andava cá e lá no zaguán.
- Ya, patrón? - perguntou.
- Ya! - respondeu Ramon.
O homem correu à vasta cozinha onde ardia uma candeia, e voltou com um braçado de esteiras.
- Onde as colocamos, patrão?
Ramon hesitou no meio do pátio, olhando para o céu.
- Viene el agua?
- Creo que si, patrón.
Dirigiram-se para o alpendre onde haviam carregado as azémolas com os fardos de bananas. Aí, Martin arremessou ao chão as petates, que Ramon dispôs em ordem. Guisleno apareceu, trazendo canas para fazer tochas, das mais primitivas: três canas amarradas em cima com um cordel, formando tripé de cintura alta, e, na parte superior, uma pedra de lava mais ou menos oca. Realizado esse trabalho,
Guisleno foi a casa e voltou a correr com um pedaço de madeira inflamada. Três ou quatro pauzinhos de ocote colocados na pedra - e as chamas ergueram-se, enchendo o pátio de sombras vacilantes.
Ramon dobrou a serape e sentou-se em cima. Guisleno acendeu outro tripé-archote. A luz bailava nas sobrancelhas carregadas de Ramon, dava-lhe ao peito cintilações de ouro.
Agarrou no tambor e fez soar o apelo monótono, lento, um tanto melancólico. Passados instantes, chegou o tocador habitual, que levou o instrumento para a alameda sombria, onde então se ouviu um rufo vivo e forte.
Ramon enfiou a serape, cujas franjas lhe roçavam os joelhos, e ficou imóvel, com os cabelos em desordem. Rodeava-lhe os ombros a serpente do tecido, o pescoço erguia-se-lhe no meio do pássaro azul.
Cipriano apareceu, vindo da casa. Trazia serape castanha e vermelha, ornamentada com um sol escarlate. Postou-se ao lado de Ramon, e olhou-lhe de relance para a cara. Mas, de sobrancelhas franzidas, o outro fixava a sombra dos alpendres no extremo do pátio. Olhava para o coração do mundo; porque a face dos homens e o coração dos homens são areias movediças, e só no coração do cosmos pode alguém encontrar força.
Cipriano voltou os olhos negros para a banda do pátio. Os seus soldados aproximavam-se em grupo. Três ou quatro homens de mantas pardas rodeavam o lume. De pé, junto de Ramon, Cipriano parecia um cardeal, um pássaro de cor vistosa. Até as sandálias eram escarlates, e encarnadas as fitas que atavam as calças de linho branco aos tornozelos. Ao clarão das tochas tinha um ar demoníaco, com a pele muito escura, a barbicha preta e as pupilas cintilando sardonicamente.
Chegavam peóns, pelo portão da entrada, balançando os chapéus largos. Acorriam mulheres descalças, com as saias a oscilar, transportando os seus nenés envoltos nos rebozos e seguidas por uma caterva de garotos. Todos se agrupavam em volta dos archotes, como animais bravios, contemplando o círculo de homens de serape, do qual se destacavam Ramon e Cipriano, um de azul e branco, outro de vermelho.
Carlota e Kate emergiram de casa. Carlota, porém, ficou junto da porta, embrulhada num xaile de seda preta. Sentou-se num banco de pau aquém do clarão avermelhado, e pôs-se a observar os homens escuros, a beleza altaneira de Ramon, o traje escarlate de Cipriano, o grupo de soldados e a massa compacta de peóns, mulheres e crianças. Enquanto desfilava gente através do portão, soou o tambor e uma voz elevou-se, cantando:
Alguém vai franquear a porta, Agora, agora mesmo, ay! E verá a luz no homem que espera. Serás tu? Serei eu?
Alguém vai aproximar-se do fogo, Agora, agora mesmo, ay! E escutarás as palavras do seu coração. Serás tu? Serei eu?
Alguém baferá quando a porta se fechar, Ay, num momento, ay! Ouvirá dizer: Não te conheço. Serás tu? Serei eu?
De cada vez o ay se elevava num grito selvático que fazia calafrios a Carlota.
Envolta num xaile amarelo, Kate aproximou-se lentamente do grupo.
O tambor calou-se e o homem, entrando no pátio, fechou o portão e misturou-se aos assistentes.
Ramon continuava a olhar para o vácuo, de sobrolho carregado. Então, no meio do silêncio, disse em voz baixa, contida:
- Assim como tiro este abafo me liberto eu do dia que passou. Despiu a serape e pô-la no braço. Todos os homens do círculo o
imitaram, ficando de torso nu. Cipriano, muito escuro e com ar sólido apesar do tamanho reduzido, conservava-se ao lado de Ramon.
- Afasto de mim o dia que passou - prosseguiu Ramon - e fico de coração descoberto na noite dos deuses.
Em seguida olhou para o chão e disse:
- Vem, serpente da terra, serpente que jazes no fogo do coração do mundo. Vem, serpente do fogo no coração do mundo, enrola-te como ouro em volta dos meus artelhos, ergue a cabeça e apoia-a na minha coxa. Vem, descansa a cabeça na minha mão, serpente dos abismos. Beija-me os pés e os tornozelos com a tua boca de ouro, beija-me os joelhos e as coxas, serpente marcada de luz e de sombra. Vem, repousa a cabeça na concha da minha mão.
A voz suave e hipnótica extinguiu-se no silêncio envolvente. E parecia que na verdade uma presença misteriosa emergia do mundo subterrâneo, que uma serpente mosqueada de ouro e negro se enroscava nas pernas de Ramon e lhe lambia a palma da mão com a língua bifurcada...
Circunvagou a vista pela assistência boquiaberta e de olhos dilatados, e prosseguiu:
- Digo-vos, e com absoluta certeza. No coração desta terra dorme uma grande serpente no meio do fogo. Aqueles que descem às minas sentem-lhe o calor e o suor, ouvem-na mover-se. É o fogo vital da terra, porque a terra vive. A serpente do mundo é enorme, as rochas são as suas escamas, e entre elas crescem as árvores. Digo-vos que a terra que cavais está viva como uma serpente adormecida. Sobre ela andais, e este lago descansa nos seus anéis como uma gota de chuva numa cobra cascavel. Contudo, tem vida. A terra vive. Se a serpente morresse, todos morreríamos. Só a sua vida assegura a humidade do solo que faz germinar o nosso milho. Das suas escamas extraímos prata e ouro, e as árvores têm nela as suas raízes como os cabelos têm a raiz sob a nossa pele. A terra vive. Mas a serpente é grande, e nós somos mais pequenos do que um grão de poeira. E por vezes ela zanga-se e diz: Estes entes, mais insignificantes do que átomos de pó, espezinham-me e asseveram que estou morta. Até às bestas costumam falar, gritando: Arre, burro! A mim, porém, não dirigem uma palavra. Por isso lhes voltarei costas, como uma mulher volta costas ao marido e lhe consome o espírito com a sua cólera... Eis o que a terra nos diz, e a tristeza e o desânimo avassalam-nos os pés e os rins. Porque assim como uma mulher irritada tira o entusiasmo e a alegria ao homem, assim a terra pode enregelar-nos a alma e tornar a existência fatigante aos nossos membros. Falai, pois, à serpente do coração do mundo, banhai de óleo os vossos dedos e abaixai-os para que ela experimente o óleo da terra e deixe que a vida nos suba ao longo das pernas, como a seiva do milho novo faz estalar a casca e brotar o leite da planta entre as barbas. Do coração da terra o homem sente subir nele a sua força; tal o milho que, ufano, ergue as suas folhas verdes, erguei-vos vós também e deixai aprofundarem-se as vossas raízes cada vez mais, porque não tardam as chuvas e é tempo de produzir no México.
Calou-se Ramon, ensurdeceu o tambor, e todos os homens do círculo fitaram a terra, deixando pender molemente a mão esquerda.
Dona Carlota, que não conseguira ouvir, aproximou-se do lado de Kate, como se fascinada pelo marido. A irlandesa, num movimento inconsciente, olhou para o chão e, às ocultas, baixou os dedos de encontro à saia. Mas teve medo do que lhe poderia acontecer e escondeu a mão no xaile.
De repente o tambor vibrou numa nota muito forte, seguida de outra mais fraca: estranho, impressionante efeito.
Os circunstantes levantaram a cabeça. Ramon alçara o braço direito, num gesto enérgico, e espiava o negrume do firmamento. Imitaram-no os do círculo, e os braços nus, erguidos, semelhavam uma série de rochedos.
- Assim, acima, acima! - gritou uma voz bárbara.
- Acima, acima! - repetiram todos, num coro feroz. Involuntariamente, brandiram o braço, voltando o rosto para o
céu sombrio. Algumas das mulheres, mais audazes, fizeram o mesmo, e, com esse gesto, experimentaram uma sensação de paz.
Kate não alçou o braço.
Reinou profundo silêncio; até o tambor se calara. Ouviu-se então a voz de Ramon, dirigindo-se ao céu tenebroso:
- As tuas asas estão escuras, Pássaro, voas muito baixo esta noite. Voas baixo sobre o México, e em breve sentiremos roçar em nossas faces o leque das tuas asas. Ah, Pássaro! Voas onde queres. Ultrapassas as estrelas e empoleiras-te no Sol. Desapareces da vista e dissipas-te no além do rio branco do céu, mas voltas como os patos do Norte, em busca de água e do Inverno. Poisas no centro do Sol e alisas as penas... Banhas-te na corrente de estrelas e ergues em teu redor uma poalha de ouro. Voas nas profundezas do céu donde parece que jamais se volta. Mas regressas, e pairas sobre nós, e sentimos no rosto a aragem das tuas asas...
Enquanto ele falava levantou-se vento em rajadas, uma porta bateu, vibraram vidraças e as árvores pareceram rasgar-se.
- Vem, ó ave dos vastos céus! - bradou Ramon num apelo selvático. - Vem, pousa no meu punho, na minha cabeça, dá-me o poder divino e a sabedoria. Ó Pássaro, ainda que o trovão ribombe quando sacodes as asas, ainda que deixes cair na terra a serpente de fogo que tens no bico, ainda que venhas como fulminador, vem, ó Pássaro! Empoleira-te um momento no meu punho, estende as asas sobre a minha cabeça, toca-me a fronte com o teu peito. Pássaro errante, ave do Além, com o trovão nas garras e a serpente no bico, com o azul nas asas e a nuvem no colo, com o sol no peito e a sabedoria no voo, vem sobre mim, vem!
O vento agitava a chama das tochas e o lago começou a falar numa voz cavernosa que dominava o sussurro das árvores. Ao longe, por cima das colinas, os raios sulcavam o céu.
Soou o tambor, e Ramon desceu o braço que mantivera erguido. E disse então:
- Sentai-vos um instante, antes que o Pássaro sacuda a água das asas, o que não tardará. Sentai-vos.
A assistência moveu-se. Os homens puxaram as serapes para a testa, as mulheres cingiram mais a si os rebozos, e todos se sentaram no chão. Só Kate e Carlota ficaram de pé, a certa distância.
- A terra é viva, o céu é vivo, e entre ambos vivemos nós - prosseguiu Ramon na sua voz habitual. - A terra beijou-me os joelhos e concedeu-me força às entranhas. O céu descansou-me no punho e transmitiu o seu poder para o meu peito.
Assim como a Estrela de Alva brilha entre o céu e a terra, uma estrela pode surgir em nós entre o coração e os rins.
É a virilidade do homem e a feminilidade da mulher.
Ainda não sois homens. E vós, mulheres, ainda não sois mulheres.
Correis, agitais-vos, morreis, mas ainda não encontraste a estrela da vossa virilidade surgida de vós mesmos; nem a estrela da vossa feminilidade cintilando entre os vossos seios, ó mulheres!
Digo-vos no entanto: para aquele que desejar, nascerá nele a estrela da sua virilidade, e então será perfeito como é perfeita a Estrela da Manhã.
E a estrela da mulher aparecerá entre a orla espessa da terra e o vácuo cinzento do céu. Mas como conseguiremos isso? Como poderá ser?
Baixai os dedos para a carícia da Serpente da terra. Erguei o punho para que aí pouse a Ave distante.
Tende a coragem de ambos, a coragem do raio e a do sismo.
E a sabedoria de ambos, a da serpente e a da águia.
E a serenidade de ambos, a da serpente e a do sol. E o poder de ambos, o das profundezas da terra e o do céu que tudo cobre.
Mas que na vossa fronte, ó homens, resplandeça a Estrela da Manhã que nem o dia nem a noite, nem a terra nem o céu podem engolir e apagar.
E entre os vossos seios, ó mulheres, que esteja a Estrela de Alva que nada pode ofuscar.
A vossa derradeira morada é a Estrela da Manhã. Nem o céu nem a terra vos hão-de tragar, mas ireis para essa estrela solitária que no entanto jamais sente a sua solidão.
A Estrela da Manhã envia-nos um mensageiro, um deus que morreu no México. Mas, enquanto dormia o seu sono, os Seres invisíveis lavaram-lhe o corpo com a água da ressurreição. E ele levantou-se, derrubou a pedra à entrada do sepulcro, e agora galopa através do horizonte, mais depressa do que caiu por terra a laje do túmulo para esmagar aqueles que a selaram.
O filho da Estrela volta para os filhos dos homens.
Preparai-vos para o receber. Lavai-vos, ungi as mãos e os pés, a boca e os olhos, as orelhas e as narinas, o peito, o umbigo e as partes secretas do vosso corpo. Que nada dos dias passados, que nenhuma poeira do mal subsista em vós e vos torne impuros.
Não olheis com olhos de ontem, não escuteis como ontem, não respireis, não cheireis, não engulais alimentos nem bebidas; não beijeis com lábios de ontem, não toqueis com mãos de ontem. Aproximai-vos das vossas mulheres com um corpo novo, e com esse corpo novo penetrai nelas. Porque o corpo de ontem morreu, e Xopilote, devorador de cadáveres, já paira sobre ele.
Libertai-vos do corpo da véspera e adquiri um novo, tal como o deus que vem até vós. Quetzalcoatl surge-nos com um novo corpo, como uma nova estrela, saído das sombras da morte.
Sim, neste mesmo momento em que estais sentados e que o vosso corpo toca na terra, dizei-lhe: Terra, terra, latejas de vida como eu. Insufla em mim o bafo das tuas entranhas.
E assim a terra se move por baixo de vós, e por cima de vós o céu agita as suas asas.
Regressai aos vossos lares, enfrentando as águas que vão cair e separar-vos para sempre do "ontem".
Ide, com a esperança de vos tornardes homens da Estrela da Manhã e mulheres da Estrela de Alva.
Ainda não sois homens, ainda não sois mulheres...
Ramon levantou-se, dando o sinal de retirada. Logo todos se puseram de pé, empurrando-se, acotovelando-se, com a silenciosa pressa mexicana que parece deslizar rente ao solo.
O vento desencadeado uivava de encontro às mangueiras. Os homens seguravam o chapéu na cabeça e corriam de joelhos curvados, com as serapes a flutuar, enquanto as mulheres, cingindo a si o rebozo, fugiam, descalças, para ozaguán.
Junto do portão aberto estava um soldado de espingarda a tiracolo e lanterna na mão, alumiando aqueles que passavam calados e velozes e se dispersavam na alameda escura como pedacinhos de papel levados pelo vento. Num instante todos desapareceram.
Martin fechou o portão. O soldado pousou a lanterna no banco de pau e juntou-se aos camaradas alapardados nos seus capotes pretos, semelhantes a um molho de cogumelos na caverna do zaguán.
- Vai chover! - gritaram as servas excitadas quando Kate subia os degraus com Dona Carlota.
O lago, absolutamente negro, parecia uma cratera enorme. Em rajadas violentas, o vento traspassava as mangueiras com um som de membrana a rasgar-se. Os loendros curvavam-se no jardim, varriam o solo com as suas flores brancas, espectrais à luz do candeeiro que brilhava na parede junto da porta da entrada. Uma palmeira nova sacudia-se, dobrada, juncando o chão com as suas folhas. Nas trevas para além do mundo rolava um carro invisível...
Ao longe, na outra banda do lago, os raios traçavam no céu inscrições fulgurantes. E o trovão dir-se-ia ribombar nas entranhas da terra, surdo, aveludado.
- Isto chega a meter medo! - exclamou Dona Carlota, tapando os olhos com a mão e correndo a refugiar-se num canto recuado da sala deserta.
Cipriano e Kate demoraram-se no terraço olhando para as flores que voavam dos vasos e desapareciam no vácuo de trevas. Kate agarrava no xaile, mas o vento engolfou-se na serape de Cipriano, levantou-a ao ar e em seguida deixou-lha cair sobre a cabeça, tal uma chama rubra. Kate viu-lhe o peito escuro e musculado enquanto os seus braços lutavam por desenvencilhar a cabeça. Como a sua beleza era primitiva e toda física, com aquela carne lisa e cheia!
Mas não emitia nenhuma radiação exterior; fechava-se dentro de si mesmo.
- Eis a chuva! - exclamou ele! - baixando a serape.
Grossas, pesadas, as primeiras gotas tombavam como dardos sobre as plantas. Kate recuou para o vão da porta. Um raio ziguezagueou sobre as montanhas, pareceu deter-se um instante e reentrou nas trevas.
Então a chuva desabou, como se lá em cima houvessem aberto um reservatório imenso, e com ela veio uma lufada de ar frio. Ora num lado ora noutro, sucediam-se os relâmpagos, enchendo a atmosfera duma claridade azul e fugaz. Surgiam as árvores e o jardim fantasma, e logo desapareciam, enquanto o trovão ribombava.
Kate olhava pasmada para aquele dilúvio. Ao clarão momentâneo via o jardim já transformado em poço, as alamedas em ribeiras. Sentindo frio, recolheu-se dentro de casa.
Munido de lanterna, um criado pesquisava todos os aposentos para ver se andariam por ali escorpiões. Encontrou um a passear no quarto de Kate e outro em cima da cama de Carlota, caído duma viga do tecto.
Sentadas na sala, Kate e Carlota baloiçavam-se nas cadeiras, aspirando o bom ar fresco e húmido. Kate quase já se esquecera do que era frescura e humidade. Aconchegou o xaile ao pescoço.
- Ah, sente frio! Agora é preciso tomar cuidado com as noites... Às vezes, na época das chuvas, as noites são frigidíssimas. Devemos ter sempre à mão um cobertor suplementar. Os servos, coitados, limitam-se a tiritar, estendidos no chão, e de manhã estão gelados como cadáveres. Mas o sol depressa os aquece. Parecem julgar que são obrigados a suportar tudo o que vier, pois nunca tomam providências, embora se queixem.
O vento acalmara-se de repente, Kate sentia-se inquieta, mal disposta, com o bafo da água, quase de gelo, nas narinas, e o sangue ainda a arder-lhe nas veias. Levantou-se e foi para o terraço. Cipriano continuava ali, imóvel e impassível, envolto na sua serape vermelha e preta.
A chuva diminuía. Em baixo, no jardim, duas criadas corriam descalças, à débil claridade do candeeiro do zaguán; colocaram latas vazias debaixo dos fios de água que tombavam do telhado, e depois foram buscar os recipientes cheios. Isso poupava-lhes o trabalho de acarretar água do lago.
- Que pensa a nosso respeito? - perguntou Cipriano a Kate.
- Acho um povo muito estranho...
- Mas bom, não é verdade? - volveu o general em tom jubiloso.
- Um tanto assustador - replicou ela, rindo.
- Depois de se habituar parecer-lhe-á natural. E quando estiver num país como a Inglaterra, onde tudo é tão seguro e tão fácil, sentirá saudades e passará o tempo a perguntar a si mesma: O que é que me falta? O que é que falta aqui?
Dir-se-ia exprimir-se com maligna satisfação. E era curioso que ele, embora falasse bom inglês, parecesse sempre estrangeiro aos ouvidos de Kate, muito mais do que Dona Carlota com o seu espanhol castiço.
- Não compreendo que as pessoas queiram ter tudo, a vida inteira. Tudo tão seguro, tão pronto como na Inglaterra e na América. É bom estar alerta, no que vive, não?
- Talvez - concordou ela.
- Por isso gosto de ouvir Ramon dizer ao povo que a terra é viva, que o céu tem uma ave enorme lá dentro, mas que se não vê. Acredito nisso. E convém sabê-lo, pois assim continuamos no que vive.
- Não será fatigante?
- Ora, porquê? Pelo contrário, é repousante. Ah, a senhora devia casar e residir no México. Estou certo de que acabaria por gostar disto. Em cada manhã despertaria mais encantada.
- Ou cada vez mais enterrada. É o que sucede, julgo eu, a muitos estrangeiros.
- Enterrar-se? Como? Isto é um país onde a noite é noite e a chuva que cai é realmente chuva. E tem aqui um povo com o qual precisa de estar sempre alerta. Não acha admirável? Não poderá deixar-se adormecer. Veja, por exemplo, Ramon. Que pensa dele?
- Não sei. Não quero dizer nada, mas acho-o... longínquo. Custa a crer que seja mexicano.
- Pois é mexicano, não tenha dúvida.
- Não como o senhor. Dá-me a impressão de pertencer à velha Europa.
- Eu então considero-o pertencente ao velho México... E também ao novo - acrescentou de súbito.
- Todavia não acredita nele.
- Como?
- Não acredita nele. Considera aquilo, como tudo o mais, uma espécie de jogo. Aliás, para vós, mexicanos, tudo é uma espécie de jogo... No fundo, não crê em nada.
- Não creio em Ramon? Talvez não seja uma fé que me leve a ajoelhar à sua frente e a derramar-lhe lágrimas nos pés. Mas creio nele, e vou dizer-lhe o motivo: porque tem o poder de me fazer acreditar.
- Estranha fé, imposta pelos outros.
- Como se há-de crer, se não nos compelirem a isso? Quando eu era muito novo sentia-me infeliz porque o meu padrinho me não forçava a crer. Mas Ramon força-me... E é para mim uma felicidade saber que não posso escapar... como será também para si...
- Saber que não posso escapar a Don Ramon? - replicou
Kate ironicamente.
- Sim, e saber que não poderá evadir-se do México, nem fugir
de um homem como eu...
Kate ficou um instante calada antes de responder em tom sardónico:
- Não me parece que me cause muita alegria saber que não posso sair do México. Pelo contrário, não suportaria estar aqui se não tivesse a certeza de partir mais dia menos dia.
E disse consigo mesma: "Ramon talvez seja o único homem a quem eu não possa escapar completamente, porque deveras me impressiona. Mas de ti, Ciprianozinho, não precisarei de escapar porque não me apanhas."
- Ah, julga isso! - volveu ele rapidamente. - Mas é porque não sabe. Só pensa com ideias americanas. Devido à sua educação, só tem pensamentos americanos, pensamentos engendrados nos Estados Unidos. Quase todas as mulheres são assim, até as mexicanas da classe hispano-mexicana. Só possuem ideias dos Estados Unidos porque são as que condizem com os seus penteados. E o mesmo quanto a si, senhora Leslie. Pensa como uma mulher moderna porque pertence ao mundo anglo-saxónio ou teutão, e se penteia de certa maneira, e tem dinheiro, e é inteiramente livre. Mas tudo isso provém do facto de lhe haverem metido essas ideias na cabeça e não possuir outras, da mesma forma que, no México, se vê obrigada a gastar centavos e pesos por serem as moedas do país. Todavia, quando se declara livre, na realidade não o é. Vê-se forçada a pensar sempre com pensamentos americanos. Não tem maior faculdade de escolha do que uma serva. Assim como não pode deixar de comer diariamente tortillas... até que se lembre de que pode gostar doutra coisa.
- De que mais poderia eu gostar? - retorquiu Kate, escarninha.
- De outros pensamentos, de outras sensações. Receia homens como eu porque julga que a não tratariam "à americana". Tem razão. Eu não a trataria como se tratam as senhoras americanas. Porquê? Porque não o desejo, porque não me parece justo.
- Prefere tratar as mulheres como as mexicanas de outrora, não é verdade? Mantendo-as na ignorância, no cativeiro? - A voz de Kate assumira um tom sarcástico.
- Não as manteria na ignorância se elas já não fossem ignorantes. Mas o que lhes ensinaria não havia de ser conforme à educação americana.
- Então qual?
- Quien sabe! Ce reste à voir.
- Et continuera à y rester - concluiu a irlandesa, rindo.

CONTINUA

x
Dez dias haviam decorrido desde a chegada de Kate a Sayula sem que Don Ramon desse sinal de vida. No entanto, quando passeava de barco, vira a casa dele na outra banda da ponta oeste do lago. Era um edifício alaranjado de dois andares, com alpendre para embarcações e bosquete de mangueiras rente à margem. Entre as árvores distinguiam-se duas filas de cabanas de adobe, a habitação dos peóns.
A hacienda fora outrora das mais importantes. Regavam-na então com a água captada nas colinas, mas as revoluções haviam destruído todos os aquedutos. Don Ramon tinha inimigos no Governo, de modo que grande parte das suas terras fora dividida entre os peóns e só lhe ficaram cerca de trezentos acres de terreno, dos quais duzentos marginavam o lago e lhe eram inúteis. Cultivava um pomar em volta da casa e cana-de-açúcar num valezito entre as colinas. Na encosta do monte viam-se campos de milho.
'Dona Carlota era rica; tirava bons rendimentos das minas de Torreon, seu berço natal.
Chegou um portador com uma carta de Don Ramon em que este pedia a Kate licença para a visitar com a esposa.
Dona Carlota era uma mulher franzina, suave, de grandes olhos um tanto assustadiços e sedosos cabelos castanhos. Filha de pai espanhol e de mãe francesa, de origem puramente europeia, em nada se assemelhava às corpulentas mexicanas de faces cobertas de pó-de-arroz. De rosto pálido, sem artifício, a figura delgada tinha qualquer coisa de inglês, que os grandes olhos castanhos desmentiam. Só falava espanhol e francês, mas o seu espanhol soava tão lento e distinto (com um leve tom de queixume) que Kate a compreendeu sem dificuldade.
As duas mulheres entenderam-se depressa, mas sentiam-se um tanto nervosas na presença uma da outra. Dona Carlota era frágil e sensível como um cão chihuahua.
Em toda a sua vida, Kate raras vezes encontrara criatura tão doce e delicada. Conversaram uma com a outra, enquanto Don Ramon se mantinha calado. Dir-se-ia que ambas se arremessavam contra aquela barreira de silêncio.
Kate percebeu logo que Dona Carlota amava Ramon, mas com um amor que se tornara voluntário. Adorara-o, e acabara-se a adoração. Duvidara dele, e duvidaria sempre.
Sentado um pouco à parte, de ar constrangido, Don Ramon baixava a bela cabeça e deixava pender as mãos entre as coxas.
- Sabe que passei há dias bons momentos? - disse Kate, dirigindo-se-lhe de súbito. - Dancei de roda do tambor com os homens de Quetzalcoatl.
- Assim me constou - respondeu ele com um sorriso forçado.
Embora não falasse inglês, Dona Carlota compreendia essa língua
- Dançou com os homens de Quetzalcoatl! - exclamou em espanhol. - Porque fez isso? Porquê?
- Estava fascinada.
- Não se deixe fascinar. Afirmo-lhe que lastimo muito que meu marido se interesse por esse movimento. É para mim um desgosto.
Juana apareceu nesse momento com uma garrafa de vermute, a única coisa que Kate podia oferecer aos visitantes.
- Foi aos Estados Unidos ver os seus filhos? - perguntou Kate. - Como vão eles?
- Bem, obrigada. Embora o mais novo continue fraquito...
- Não os trouxe consigo?
- Não. Acho que estão melhor no colégio. Aqui... aqui há muita coisa que os perturbaria. Mas hei-de cá tê-los no próximo mês a passar as férias.
- Então terei oportunidade de os conhecer - disse Kate. Virão para a casa do lago, não é verdade?
- Ainda não sei. Talvez passemos aqui alguns dias. Ando tão ocupada na Cidade do México com a minha Cuna!
- Cuna? Que é isso? - indagou Kate.
Tratava-se de um hospício de enjeitados assistido por algumas obscuras carmelitas. Dona Carlota era a directora, e Kate chegou à conclusão de que a mulher de Ramon devia ser católica fervorosa, quase exaltada. Entregava-se de corpo e alma à Igreja e àquela obra de beneficência.
- Nascem tantas crianças no México e são tão numerosas as que morrem! Se as pudéssemos salvar e preparar para a vida! Fazemos tudo o que é possível, mas ainda é pouco.
Segundo parecia, todos os nenés indesejáveis eram entregues na Cuna, como embrulhos. A mãe só tinha de bater à porta e depositar noutras mãos o pacote vivo.
- Assim, impedimos que muitas mães negligentes deixem morrer os filhos - prosseguiu Dona Carlota. - Se não nos dizem o nome da criança, sou eu que a baptizo. Já o tenho feito muitas vezes. É vulgar entregarem-nos meninos absolutamente nus, sem um trapo a cobri-los... e sem nome. E nós nunca perguntamos nada.
Nem todos os expostos ficavam no hospício. Na maior parte eram confiados a índias decentes, a quem pagavam para os criar em casa. No fim do mês, cada qual se apresentava com o seu protegido e recebia o ordenado. As índias podem ser descuidadas mas não maltratam as crianças.
Noutro tempo, informou Dona Carlota, quase todas as senhoras do México recebiam na sua casa um ou dois desses enjeitados e tratavam-nos como família. Mas perdera-se a generosidade patriarcal dos espanhóis-mexicanos e actualmente adoptavam poucas crianças. Em vez disso, preparavam-nas para ganhar a vida, ensinando-lhes qualquer ofício.
Kate ouvia com-interesse e certo constrangimento. Não lobrigava sentimentos humanos nessa caridade mexicana, e quase discordava dela. Talvez Dona Carlota fizesse tudo o que podia nesse país semibárbaro, mas fazia-o sem nenhuma esperança de êxito. Embora com a consciência de que procedia bem, tinha um pouco o ar de vítima, de uma vítima sensível, branda, um tanto assustada. Dir-se-ia que um mal secreto lhe roía o coração.
Don Ramon escutava impassível, num silêncio que se opunha ao entusiasmo caritativo da mulher. Deixava-a agir como entendia, mas contra a sua obra e a sua loquacidade mantinha-se calado, duro, numa hostilidade surda e permanente. Dona Carlota percebia-o e tremia nervosamente enquanto falava do hospício de enjeitados. Kate acabou por achar cruel a atitude de Don Ramon; parecia um ídolo de pedra.
- Porque não vem passar um dia connosco, enquanto estamos em Sayula? - sugeriu Dona Carlota. - A casa é pouco confortável, já não é como foi, mas teremos muito gosto em recebê-la.
Kate aceitou o convite e disse que preferia ir a pé. Eram apenas quatro milhas de percurso e, com a Juana, iria bem acompanhada.
-. - Mandarei um homem buscá-las - declarou Don Ramon. Será mais seguro.
- Onde está o general Viedma? - perguntou Kate.
- Faremos o possível por tê-lo connosco quando a senhora lá for - replicou Dona Carlota. - Gosto deveras de Don Cipriano, que há muitos anos conheço. Por sinal que é o padrinho do meu filho mais novo. Presentemente, comanda a divisão de Guadalajara, por isso nem sempre se encontra livre.
- Admira-me que seja general - observou Kate. - Acho-o humano em excesso.
- E, de facto, é cheio de humanidade. Mas é general, e gosta de comandar os soldados. Deixe-me dizer-lhe que se trata de uma pessoa de muita influência. Exerce grande ascendente na tropa. Crêem nele, isso não se pode negar. Possui aquele poder, inato nos chefes índios, de afeiçoar a si os militares e de os levar ao combate. Pois é assim mesmo Don Cipriano. Ninguém conseguiria modificá-lo. Julgo, porém, que lhe seria de utilidade a presença de uma mulher. Nunca teve nenhuma na sua vida! Elas não lhe interessam...
- Que lhe interessa então?
- Ah! - exclamou Dona Carlota, estremecendo como se a picassem. Lançou um olhar rápido ao marido e declarou: - Não sei. Palavra que não sei.
- Os homens de Quetzalcoatl - declarou Don Ramon com
um leve sorriso.
Mas Dona Carlota dir-se-ia tirar-lhe todo o desembaraço. Parecia contrafeito, e um tanto estúpido.
- Ah, sim, sim, os homens de Quetzalcoatl - bradou Dona Carlota, amável mas com ar de censura. - Linda coisa para ele se ocupar! - Kate percebeu que a sua interlocutora adorava esses dois homens e que tremia à ideia de se opor aos seus erros, embora jamais transigisse com qualquer deles.
Para Don Ramon representava um pesado fardo aquela cega adoração da mulher e a sua não menos cega oposição.
Certa manhã, às nove horas, apareceu o criado para acompanhar Kate à fazenda, que chamavam de Jamiltepec. Trazia um cabaz e vinha do mercado. Era um velhote de bigode grisalho e olhos juvenis, cheios de vida. Os pés, metidos em huafaches, pareciam negros de tão queimados do sol, mas o fato resplandecia de alvura.
Kate ficou radiante com essa excursão a pé. O que tornava tão aborrecida a sua existência na aldeia era a impossibilidade de passear no campo. Havia sempre o risco de um assalto. Acompanhada de Ezequiel, dera algumas voltas pelos arredores, mas já começava a sentir-se prisioneira. Foi, por conseguinte, uma alegria sair de casa.
A manhã estava clara e quente, o lago brilhava quieto, espectral. Moviam-se pessoas na margem, minúsculas àquela distância, meros pontinhos brancos: peóns que seguiam os seus burros envoltos numa leve nuvem de poeira. Kate perguntava a si mesma porque seria que os homens apareciam sempre na paisagem mexicana como pequeninas manchas; pequeninas manchas de vida.
Entraram na estrada poeirenta que levava para oeste, entre a vertente alcantilada das colinas e a nesga de planície junto ao lago. Por espaço de milha foram encontrando vivendas, muitas delas fechadas, outras destruídas, já sem muros nem janelas. Todavia desabrochavam flores entre os montes de cascalho.
Nos terrenos vagos havia delgadas cabanas de palha dos indígenas - como que nascidas ali, ao acaso. Perto do caminho por baixo de um outeiro viam-se choças de adobe, semelhantes a caixas cinzento-escuras. Em volta corriam aves domésticas, grunhiam e refocilavam porcos pardacentos ou malhados de preto. Crianças seminuas, de um tom castanho-alaranjado, brincavam ou jaziam estiradas no chão, a dormir, com as nádegas à mostra.
Muitas das casas estavam a ser cobertas de colmo novo ou reteIhadas por indivíduos que assumiam ares de importância por se encarregarem desse trabalho. Mostravam-se também apressados, pois não tardariam a vir as chuvas torrenciais. E, na banda do lago, havia quem andasse a lavrar a terra dura com uma junta de bois e um pau forte e aguçado.
Mas Kate conhecia essa parte do caminho. Vira já a bela vivenda da colina, com os seus tufos de palmeiras que ladeavam as alamedas desertas. A estrada descia novamente para o lago, entre árvores frondosas de vagens retorcidas. À esquerda, a água mansa, gelatinosa, lambia as pedras amareladas. Numa poça da praia estavam mulheres a lavar roupa, e, nos baixios, banhavam-se duas raparigas com os cabelos negros pendentes e gotejantes. Mais adiante, um homem patinhava lentamente, detendo-se para arremessar com perícia a rede à água e depois recolhê-la cheia desses peixinhos luzidios a que chamam charales. Tudo estranhamente silencioso e remoto na manhã cintilante.
Vinha do lago uma leve brisa, mas a poeira da estrada queimava os pés. À direita erguia-se o monte, abrupto, ressequido e amarelo, exalando calor e aquele cheiro característico do México que se diria ser a evaporação duma terra cada vez mais calcinada.
Desfilavam continuamente filas de burros carregados, trotando na poeira e seguidos pelos condutores que marchavam erectos e rápidos, olhando com olhos semelhantes a buracos negros mas respondendo sempre à saudação de Kate com um respeitoso adiós. E Juana ecoava com o seu lacónico adiósm. Caminhava coxeando e achava tristíssima aquela ideia da niña de percorrer quatro milhas a pé, quando poderiam ir num automóvel de aluguer, de barco ou mesmo de burro.
Mas a pé! Kate percebia todos os sentimentos da criada no seu arrastado e sardónico adiósn. Em compensação, o homem de Ramon vinha animadamente atrás delas, dirigindo saudações alegres, com a pistola bem em evidência no cinto.
A estrada contornava um rochedo amarelo e escarpado para desembocar num campo aberto, onde se alastravam espinheiros e cactos poeirentos. À esquerda, distinguia-se a mancha verde dos salgueiros à beira do lago. À direita, as colinas inclinavam-se sobre o flanco árido das montanhas. Em frente, os outeiros ladeavam as margens do lago e afastavam-se, descobrindo uma espécie de garganta que conduzia à casa de Don Ramon e à sua plantação de cana-de-açúcar.
- Aqui temos Jamiltepec, a hacienda de Don Ramon, señorita - anunciou o homem.
Os olhos luziam-lhe ao proferir estas palavras. Era um peón orgulhoso e sem dúvida feliz com a sua sorte.
- Que lonjura! - exclamou Juana.
- Para outra vez virei só ou com o Ezequiel - replicou Kate.
- Não diga isso, niña! Só me queixo do pé, que me dói hoje a valer.
- Por isso mesmo é melhor não vires comigo.
- Não, niña. Gosto muito de vir.
Giravam alegremente as asas do moinho que puxava a água do lago. Entre as colinas descia o valezito onde deslizava um riacho e na parte mais larga viam-se bananeiras que uma cortina de salgueiros resguardava da brisa lacustre. No cimo da encosta, onde o caminho se embrenhava na sombra de mangueiras, elevavam-se dois renques de casas de adobe, tal uma aldeia um pouco recuada.
Surgiam mulheres entre as árvores, que vinham do lago com seus cântaros de água ao ombro. De roda das portas brincavam crianças, arrastando o traseiro nu na poeira do chão. Aqui e ali, uma cabra amarrada. E, apoiados na esquina da casa, ou encostados à parede, estavam homens de braços e pernas cruzados, mas não em dolce far niente. Pareciam esperar, esperar eternamente por qualquer coisa.
- Por aqui, señorita ! - disse o homem do cabaz, indicando um caminho que descia entre árvores frondosas até ao portão branco da hacienda. - Já cá estamos.
Mostrava-se tão contente como se houvesse chegado ao Paraíso.
Encontravam-se abertas as portas do zaguán, ou entrada, a cuja sombra descansavam dois soldados. No espaço em frente do portão, passavam nesse momento dois peóns, cada qual com um cacho de bananas à cabeça. Os soldados disseram qualquer coisa e aqueles detiveram-se e voltaram-se lentamente com a sua carga verde para observarem Kate, Juana e Martin - o homem que as acompanhava. Depois retomaram a sua marcha.
Os soldados levantaram-se e Martin conduziu Kate pela passagem abobadada, onde as rodas dos carros haviam cavado fundos sulcos. Juana seguia-os com expressão lastimosa.
Kate achou-se num pátio enorme, cercado em três lados por muros altos, alpendres e estábulos. Ao fundo era a casa de residência, com as suas janelas gradeadas e, em vez de porta, outro zaguán de batentes fechados, espécie de corredor ao longo do edifício.
Martin avançou para tocar a aldraba, e Kate olhou entretanto à sua volta. Num alpendre, estavam homens seminus a empacar cachos de bananas. Noutro lado, serravam paus e descarregavam telhas de cima dum burro. A um canto viam-se bois atrelados a uma carroça, de cabeça pendida sob a canga, como se esperassem.
Abriram-se as portas e Kate entrou no segundo zaguán. Era uma entrada larga, com seu lanço de escadas a um lado e um portão gradeado ao fundo, através do qual se via o jardim orlado de mangueiras e, mais abaixo, o lago com o seu porto artificial onde baloiçavam dois barcos.
Nas costas dos recém-vindos, a criada fechou a porta que dava para o pátio e indicou a Kate as escadas.
- Por aqui, señorita.
Badalava uma sineta lá no cimo. Kate subiu os degraus de pedra, ao encontro de Dona Carlota, que a esperava no patamar, vestida de musselina branca, o que, pelo contraste, lhe dava um tom amarelo às faces. Estendeu os braços magros e bronzeados, acolhendo Kate com extraordinária efusão.
- Muito prazer em vê-la aqui! E veio todo o caminho a pé, com este sol! Entre, entre e descanse.
Pegou na mão de Kate e levou-a através do terraço, no topo da escada.
- Que linda vista! - exclamou Kate, contemplando o lago para além das mangueiras. Na água pálida, irreal, vogava ao longe um barco de vela. Para além, elevavam-se as montanhas de gargantas azuladas, com a mancha branca duma aldeia. Dir-se-ia outro mundo, perdido na luz da manhã, outra vida.
- Que povoação é aquela? - perguntou Kate.
- Acolá? É San Ildefonso - respondeu Dona Carlota.
- Como este sítio é belo! - disse Kate.
- Hermoso, si! Si, bonito - retorquiu a outra em espanhol, conforme o seu costume.
A casa, de um vermelho-alaranjado, tinha duas alas voltadas para o lago. com o seu murinho coroado de plantas verdes, o terraço cercava três lados do edifício; suportavam o telhado largos pilares que partiam do solo, formando em baixo uma espécie de claustro ocupado ao centro por um tanque cheio de água.
- Venha - disse Dona Carlota. - Precisa de descansar.
- Gostaria de mudar de sapatos - declarou Kate. Levaram-na a um quarto espaçoso, um tanto vazio, de chão de
tijolos. Aí, Kate calçou as meias e os sapatos que Juana trouxera num embrulho e estendeu-se um momento para repousar.
E, enquanto repousava, ouvia o rufar surdo do tambor, no profundo silêncio da manhã, só perturbado pelo canto dum galo longínquo. Aquele som contínuo, insistente, enchia-a de mal-estar. Parecia o ribombo duma tempestade desencadeando-se no horizonte.
Kate levantou-se e dirigiu-se para o salão onde Dona Carlota estava sentada a conversar com um homem vestido de preto. com as suas três portas envidraçadas abertas sobre o terraço, chão de ladrilhos vermelhos, paredes pintadas de verde-claro, tecto de barrotes caiados e escassez de mobília, aquilo parecia mais um caramanchel do que um salão. Como em muitas casas dos países quentes, tinha-se a impressão de não se estar dentro de quatro paredes, mas sim de três; um lugar de passagem, e não para ficar.
À chegada de Kate, o homem de preto levantou-se, apertou a mão a Dona Carlota e, baixando a cabeça num comprimento cerimonioso, desapareceu por uma das portas do terraço.
- Entre, entre! - disse Dona Carlota a Kate. - Já não se sente cansada? - acrescentou, avançando uma das cadeiras de junco que estava negligentemente colocada no meio da sala.
- Absolutamente nada - respondeu Kate. - Como esta região é silenciosa! Só se ouve o tambor, o que talvez nos faça notar mais o silêncio.
- Ah, esse tambor! - exclamou Dona Carlota, erguendo a mão num movimento de exaspero. - Não posso com isso! Detesto ouvi-lo.
E moveu-se na cadeira de baloiço, com súbito nervosismo.
- É um som realmente impressionante - redarguiu Kate. - Que significa, afinal?
- Não mo pergunte! São coisas de meu marido. - E Dona Carlota fez novo gesto de desespero.
- Don Ramon é que toca o tambor?
- Não, não! - Dona Carlota pareceu sobressaltada àquela pergunta. - Não é ele que toca. Trouxe dois índios do Norte para se desempenharem desse trabalho.
- Ah, sim? - volveu Kate, sem se comprometer. Mas Dona Carlota balançava-se numa espécie de semi-inconsciência e só daí a instantes pareceu voltar a si.
- Tenho de desabafar com alguém! - disse, de repente, endireitando-se na cadeira, com uma expressão de angústia espelhada nos grandes olhos castanhos e no rosto cor de nata. - Posso desabafar consigo?
- Certamente - respondeu Kate, constrangida.
- Sabe o que Ramon anda a fazer?
- Julgo que pretende ressuscitar o culto dos deuses antigos.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, com outro aceno de mão desesperado. - Como se isso fosse possível! Os deuses antigos! Imagine-se! Que são eles senão ilusões mortas? E feias, repulsivas! Sempre pensei que meu marido fosse inteligente, muito superior a mim, e é triste ter de mudar de opinião. Tudo aquilo é um disparate. E ele atreve-se a tomar a sério o que não passa de um disparate!
- Talvez Don Ramon creia...
- Mas como pode ele crer? - replicou a dona da casa, com um sorriso desdenhoso. - É instruído, não pode acreditar em semelhante tolice.
- Então qual é o seu objectivo?
- Isso é que eu gostaria de saber. - Na voz de Dona Carlota transparecia indizível cansaço. - Penso que está louco, como acontece a tantos mexicanos. Louco como o bandido Francisco Villa.
Lembrando-se do rosto simiesco do famoso Pancho Villa, Kate não foi capaz de o associar a Don Ramon.
- Desde que se elevam na sociedade os mexicanos perdem a cabeça, o orgulho transtorna-os. Não pensam em mais nada senão na sua importância. Pura vaidade masculina. Não acha, señora, que a vaidade é o começo e o fim do homem? Jesus veio ao mundo para combater esse perigo, ensinando-nos a ser humildes. Por isso odeiam Cristo e os Seus ensinamentos, e deixam-se guiar pela vaidade durante toda a vida.
A mesma reflexão ocorrera a Kate muitas vezes, e concluíra que nos homens só existia vaidade. Precisavam de ser lisonjeados, de sentir a sua grandeza, nada mais.
- O que meu marido pretende é opor-se a Jesus, elevar o orgulho e a vaidade acima de Deus. Ah, é horrível! Horrível e infantil. Que são os homens senão crianças que necessitam dos cuidados da mãe? Ah, señora, é mais do que posso suportar!
Dona Carlota cobriu a cara com as mãos.
- Em todo o caso, acho o seu marido uma pessoa excepcional - disse Kate para a consolar, embora nesse momento detestasse Don Ramon.
- Sim, possui grandes qualidades, mas de que lhe servem se estão pervertidas?
- Explique-me ao certo: o que é que ele pretende, afinal?
- O poder, o poder absurdo e maléfico, como se já não houvesse bastantes poderes maléficos por todo este país. Quer ser mais do que os outros, adorado, venerado. Um deus! Ele, a quem embalei nos braços como uma criança, querer que o adorem!
E Dona Carlota desatou num riso estridente pontuado de soluços.
Kate esperou que ela se acalmasse.
- No fim de contas - disse, quando a viu mais sossegada - não somos responsáveis pelo que fazem os maridos. Aprendi à minha custa que todo o amor é impotente perante a vontade dos homens. Meu marido quis morrer, e não pude impedi-lo... Temos de os deixar fazer tudo o que querem, até as coisas que nos parecem insensatas.
Dona Carlota ergueu os olhos para Kate.
- Gostava muito do seu marido... e ele morreu? - perguntou em voz suave.
- Amei-o deveras, e não tornarei a gostar doutro homem. Perdi a faculdade de amar.
- De que morreu?
- Por sua culpa. Despedaçou o coração e a alma com a política irlandesa. Eu sabia que ele fazia mal em se ocupar disso. Que nos importava a Irlanda, o nacionalismo, as revoluções e todas essas tolices? Ah, se o Joachim se limitasse a viver em paz comigo, poderíamos ser tão felizes! Em vão tentei convencê-lo. Queria matar-se com aquela estúpida política, e não consegui evitá-lo. Foram inúteis todos os meus esforços.
Dona Carlota olhou fixamente para Kate.
- Assim como são os meus para impedir que Ramon proceda mal e se mate... E depois de morto, de que servirá tudo aquilo?
- De nada. Depois de eles morrerem, ficamos a saber que foi inútil todo o trabalho que tiveram.
- Oh, señora! Se pode ajudar-me a salvar Ramon, ajude-me! É uma questão de vida ou de morte para nós ambos. Porque eu morrerei se ele levar a sua avante...
- Explique-me bem qual é a ideia de Don Ramon. A do meu marido era libertar a Irlanda e engrandecer o povo. Mas eu nunca acreditei que os irlandeses fossem jamais um grande povo nem que se pudesse torná-lo livre. Só sabe destruir, e destruir estupidamente. Não se pode fazer livre um povo que o não é. Existe nele qualquer coisa que o impele à destruição.
- Bem sei, bem sei. Da mesma forma é Ramon. Até quer destruir Jesus e a Virgem Maria por amor do povo. Imagine! Derrotar Jesus e a Virgem! A última coisa que se podia pensar...
- Mas o que diz ele quanto ao seu projecto?
- Diz que pretende estabelecer um novo nexo entre o povo e Deus. Declara, por seu lado, que Deus é sempre Deus, mas que o homem perdeu a sua união com a divindade... e que não é possível restaurá-la sem que venha um novo Deus. E que qualquer novo nexo tem de ser diferente do antigo, embora Deus continue a ser Deus. Neste momento, declara meu marido, o povo perdeu o seu Deus. O Salvador já não será capaz de o reconduzir a Si. Precisa-se de outro Salvador, com uma nova visão. Ah, señora, eu não creio nisto! Deus é amor e, se Ramon se submetesse, ao menos, ao amor, compreenderia que aí é que estava Deus. Mas qual! É tão perverso! Poderíamos, ambos, com amor calmo, gozando a beleza do mundo, esperar pelo amor de Deus... Porque é, señora, que ele não vê isto? Oh, porque não compreende? Em vez de fazer estas coisas...
Acudiram lágrimas aos olhos de Dona Carlota, as quais se lhe espalharam pelo rosto. Kate também chorava.
- É inútil! - disse ela, soluçando. - Sei que é inútil, faça-se o que se fizer. Não querem ser felizes e estar em paz, mas sim esta luta e esses falsos e horríveis nexos... Sim, é inútil, de qualquer forma. E nisto é que está o pior.
E as duas mulheres, sentadas nas cadeiras de baloiço, soluçavam amargamente quando ouviram passos no terraço, leve ruído de pés calçados de sandálias.
Era Don Ramon, atraído inconscientemente pelo clamor daquelas criaturas pesarosas.
Dona Carlota limpou a toda a pressa os olhos e o nariz; Kate assoou-se com estrondo. No limiar da porta, Don Ramon deteve-se.
Trajava como os camponeses, todo de branco, de casaco largo e calças muito amplas. O fato era de linho, com certa goma, e tinha um brilho estranho, fora do vulgar. Por baixo do casaco, à frente, uniam-se as pontas duma faixa estreita de lã, também branca, franjada de vermelho e riscada de azul e preto. Nos pés sem meias trazia huaraches de coiro azul e negro, entrançado, com espessas solas tingidas de vermelhão. As calças estavam presas aos tornozelos por alamares de lã pretos, azuis e encarnados.
Kate, vendo-o assim à claridade do sol, vestido de uma alvura tão ofuscante, teve a impressão de que o rosto dele, escuro e emoldurado de cabelos escuros, fazia como que um buraco na atmosfera.
Don Ramon aproximou-se, com as pontas da faixa a baterem-lhe nas pernas, e as sandálias rangendo de leve.
- Muito prazer em encontrá-la - murmurou, apertando a mão da visitante. - Como veio?
Deixou-se cair numa cadeira e ficou imóvel. As duas senhoras baixaram a cabeça, como se quisessem esconder a cara. A presença do homem ainda as constrangia mais, porém o dono da casa fingiu não reparar na comoção que sentiam e fê-lo por um acto de pura vontade. Da sua presença emanava certa força e elas experimentaram um pouco de alívio.
- Não sabia que o meu marido se tornara num aldeão, num verdadeiro peón? - perguntou Dona Carlota, irónica, à sua hóspeda. - É um señor peón, como o conde Tolstoi se fez señor mujique...
- Mas fica-lhe bem - observou Kate.
- Ora aí está... Ao diabo o que é do diabo... - replicou Don Ramon.
Havia nele algo de tenaz, de inflexível. Riu, e falou às senhoras, mas sem se revelar muito, apenas superficialmente. O seu ser íntimo, insondável e poderoso, não entrava em contacto com elas.
Assim foi durante o almoço. Houve conversa esvoaçante, com intervalos de silêncio. Nesse silêncio percebia-se que Don Ramon vivia noutro mundo; e a sua vontade calma, obrando noutra esfera, fazia recuar as mulheres para a sombra.
- A señora é como eu, Ramon - disse Dona Carlota. - Não tolera o rufar do tambor. Irá continuar aquilo, pela tarde adiante?
Seguiu-se uma pausa antes que ele respondesse:
- Só depois das quatro horas.
- Temos, então, de aturar hoje esse barulho? - insistiu Dona Carlota.
- Porque não há-de ser hoje como nos outros dias? - ripostou o marido. Notava-se-lhe um ar contrariado. Era evidente que pretendia subtrair-se à presença daquelas duas.
- Porque a senhora está cá, e eu estou também, e porque nenhuma de nós gosta daquele som. Amanhã já ela se vai embora, e eu regresso à cidade. Porque não nos poupas esse tormento? E
Ramon fitou a mulher, e em seguida Kate. Os olhos denotavam cólera. Kate quase ouvia, naquele peito forte, o coração inchar de furor. Mas calou-se e a outra também se calou. No fundo, estavam satisfeitas por terem podido despertar a ira do homem.
Mantendo o sangue-frio, Don Ramon inquiriu da esposa (não sem que se lhe percebesse a indignação):
- Porque não levas a senhora Leslie até ao lago?
- Não nos apetece.
Ele então fez o que a irlandesa nunca vira ninguém fazer. Encerrou-se dentro de si mesmo, deixando às duas comensais a impressão de se encontrarem diante duma porta que se fechou. Kate sentiu-se abandonada e deprimida, mas a pouco e pouco a irritação tingiu-lhe as faces pálidas dum rubor de fogo.
- Posso ir-me embora antes das quatro horas - declarou.
- Não, não! - acudiu, suplicante, a dona da casa. - Não me deixe. Fique comigo até à noite e ajude-me a distrair Don Cipriano, que vem jantar connosco.

XI
Acabado o almoço, Ramon recolheu ao quarto para dormir a sesta. A tarde estava quente, pesada. No extremo oeste do lago erguiam-se nuvens cintilantes, quais mensageiros da tempestade. Ramon fechou as janelas do seu aposento de modo a obter negrume total; apenas aqui e ali, filtrando-se pelos interstícios da porta, os raios de luz pousavam nas trevas como uma coisa tangível.
Despiu a roupa e ergueu acima da cabeça os punhos fechados, como se orasse intensamente e de pé. Nos seus olhos só havia escuridão, e a pouco e pouco essa escuridão atingiu-lhe o cérebro, apagando-lhe todos os pensamentos. Só uma vontade poderosa se distendia e emanava da espinha dorsal, numa tensão sobre-humana até que as flechas da alma atingiram o alvo e a oração a sua meta.
Então, bruscamente, tombaram os braços trémulos, o corpo readquiriu a flexibilidade. O homem recuperara a sua força. Quebrara as cordas do mundo e sentia-se livre e senhor da outra força.
Devagarinho, com precaução, esforçando-se por não pensar, não se recordar, não despertar as serpentes venenosas da consciência, enrolou-se num cobertor delgado e estendeu-se no chão sobre uma pilha de coxins. Daí a instantes, adormecia.
Dormiu profundamente cerca de uma hora. Abriu os olhos de repente, viu as trevas aveludadas e as frechas de luz diminuídas: o sol mudara. Pôs-se à escuta. Parecia não haver um único som no mundo. Talvez não existisse mundo...
Então começou a ouvir. Distinguiu o débil rumor duma carroça, folhas sussurrando ao vento, o som distante de pancadas, o pio duma ave.
Levantou-se, vestiu-se com rapidez às escuras e foi abrir as janelas. A tarde ia em meio; soprava uma aragem quente, amontoavam-se a oeste nuvens escuras, mas a chuva não se decidia a cair. Ramon pôs na cabeça um chapéu de palha, que tinha à frente um enfeite de penas brancas, pretas e azuis dispostas em forma de olho, ou de sol. Ouviu vozes femininas. Ah, a estrangeira! Esquecera-a por completo. E Carlota! Carlota encontrava-se ali. Por um momento, pensou nela e na sua caprichosa oposição. Depois, antes que a ira o dominasse, soergueu o peito, em nova oração muda, os olhos sombrearam-se-lhe - e perdeu a impressão de contrariedade.
Seguiu pelo terraço até à escada de pedra que conduzia à entrada e atravessou o pátio, onde dois homens, debaixo dum alpendre, carregavam azêmolas com fardos de bananas. No zaguán dormiam soldados. Pelas portas abertas, Ramon viu ao fundo da alameda um carro de bois afastando-se lentamente. No pátio ressoavam marteladas numa bigorna: era um homem e um rapazito ocupados na forja. Noutro alpendre, um carpinteiro aplainava tábuas.
Don Ramon deteve-se um momento para olhar em volta. Aquele era o seu mundo. O espírito dele espraiava-se nesse mundo como uma sombra fomentadora, e o silêncio do seu próprio poder dava-lhe paz.
Os homens que trabalhavam tiveram quase instantaneamente consciência da presença do patrão. Um após outro, os rostos escuros e ardentes ergueram-se para ele e voltaram a baixar-se. Gostavam de o ver ali, mas temiam aproximar-se e nem se atreviam a um olhar mais prolongado. Retomaram o trabalho com mais ardor, como se a presença do patrão lhes desse novo alento.
Ramon dirigiu-se para a forja, onde o rapazinho dava ao fole e o homem batia pancadas leves e rápidas num pedaço de ferro.
- É a ave? - perguntou Ramon.
- Sim, patrón, é a ave. Está bem! - E o homem levantou os olhos pretos, luzidios, expectantes. com uma tenaz, brandiu a tira de metal, negra, em forma de língua achatada, e Ramon observou-a demoradamente. - As asas ponho-as depois - explicou o ferreiro.
com as mãos escuras e nervosas, Don Ramon traçou uma linha imaginária em volta do pedaço de ferro. Três vezes fez esse gesto, que parecia fascinar o ferreiro.
- Um pouco mais alongado. Assim... - disse Ramon.
- Sim, patrón, compreendo.
- E o resto?
- Está ali. - O homem apontou para dois arcos, um maior que outro, e para várias chapas de ferro triangulares.
- Coloca tudo isso no chão.
O ferreiro pousou os arcos, um dentro do outro, e em seguida dispôs com perícia os triângulos de modo que as bases ficassem sobre o arco exterior e os vértices no círculo interior. Eram sete.
Assim formaram um sol de sete pontas.
- Agora, a ave - ordenou Ramon.
O homem pegou logo na peça comprida: era a forma rudimentar dum pássaro, com dois pés mas ainda sem asas. Colocou-a no centro da roda interior, de maneira que as patas tocassem no círculo e a cabeça atingisse a parte oposta.
- Está tudo certo!
Ramon contemplava o símbolo de ferro armado no chão quando ouviu abrir a porta de casa. Kate e Carlota avançaram através do pátio.
- Retiro isto? - inquiriu o ferreiro.
- Deixa, não faz mal - respondeu Don Ramon tranquilamente.
Kate deteve-se a observar aquela coisa estendida no chão.
- Que é isso? - perguntou.
- A ave dentro do sol.
- Representa uma ave?
- Quando tiver asas.
- Ah, faltam-lhe as asas! E de que serve?
- É um símbolo para o povo.
- é bem bonito...
- Sim, é bonito.
- Ramon, não te importas dar-me a chave para tirar o barco?
- disse Dona Carlota. - Vamos dar um passeio no lago, e Martin remará.
O marido tirou a chave da cinta.
- Onde descobriu essa linda faixa? - indagou Kate. Era branca, com riscas azuis e pretas e franjadade vermelho.
- Teceram-na aqui - informou Don Ramon.
- E as sandálias? Também as fizeram cá?
- Sim, foi obra do Manuel. Mais tarde lho mostrarei...
- Gostaria bastante de ver. São belíssimas, não acha, Dona Carlota?
- Acho, mas não sei se as coisas belas são sensatas. Não sei. E a señora, sabe o que é sensato?
- Eu? - volveu Kate. - Não me preocupo muito com isso.
- Ah, não se preocupa! Afigura-se-lhe então sensato da parte de Ramon usar traje de camponês e huaraches?
Pela primeira vez, Dona Carlota exprimira-se em língua inglesa, falando com lentidão.
- Fica-lhe tão bem! - replicou Kate. - O fato de homem é medonho e Don Ramon parece magnífico com este.
De facto, com o largo chapéu pousado na cabeça ele tinha certo ar de nobreza e autoridade.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, fixando na companheira o seu olhar inteligente, enquanto brincava com a chave. - Vamos para o lago?
As duas mulheres afastaram-se. Rindo consigo mesmo, Ramon atravessou o pátio e dirigiu-se a uma granja construída perto das árvores. Entrou e assobiou baixinho. Soou outro assobio como resposta e abriu-se um alçapão. Don Ramon subiu a escada e encontrou-se numa espécie de oficina de carpinteiro. Acolheu-o um rapaz corpulento, de cabelo encaracolado, que empunhava maço e escopro.
- Que tal vai isso? - perguntou Ramon.
- Vai bem.
O artista esculpia uma cabeça de madeira. Uma cabeça avantajada, convencional, mas que, apesar do convencionalismo, revelava semelhança com Ramon.
- Sirva-me de modelo durante meia hora - disse o escultor. Ramon sentou-se e ficou silencioso, enquanto o outro, curvado
sobre a sua obra, se concentrava no trabalho. Durante todo aquele tempo, Don Ramon conservou-se erecto, quase imóvel, sem pensar em nada, mas irradiando um halo sombrio de poder que fascinava o artista.
- Basta - declarou por fim, levantando-se.
- Mas ponha-se na posição antes de se ir embora - pediu o artista.
Ramon despiu lentamente o casaco e ficou de torso nu, com a faixa raiada de azul e preto de roda da cintura. Por uns instantes pareceu recolher-se e, em seguida, como se numa oração intensa e orgulhosa, ergueu o braço direito por cima da cabeça e ficou transfigurado. O braço esquerdo pendia molemente ao longo do quadril. E no rosto, esse ar de orgulho fixo e intenso que era em si mesmo uma oração.
O escultor observava-o admirado e quase temeroso. Aquele homem grande e enérgico, com os seus olhos negros dilatados pelo orgulho e no entanto cheios de oração, despertava no escultor um frémito de alegria e de medo.
Don Ramon voltou-se para ele.
- Agora, você!
O artista, assustado, quis esquivar-se, mas encontrou o olhar de Ramon e, no mesmo instante, a calma da concentração desceu sobre ele, como um êxtase. Então, bruscamente, ergueu o braço, e a face pálida e nédia adquiriu uma expressão de paz e dignidade. Os olhos cinzento-azulados, serenos e altivos, dirigiam ao Além a sua oração. E embora estivesse com a bata de trabalho, e não fosse esbelto, apresentava uma imobilidade perfeita, plena de nobreza.
- Muito bem - disse Ramon, baixando a cabeça.
O escultor moveu-se de súbito. Ramon estendeu-lhe as duas mãos e ele, levantando-lhe a dextra, pousou-a na fronte.
- Adiós! - disse Ramon, depois de enfiar o casaco.
- Adiós - respondeu o artista. E com a felicidade estampada no rosto, voltou para o trabalho.
Don Ramon visitou a casa de adobe, cujo pátio era rodeado duma paliçada de canas e sombreado por uma gigantesca mangueira. Manuel, a mulher, os filhos e dois ajudantes estavam a fiar e a tecer. Debaixo das bananeiras, duas pequenas cardavam lã branca e castanha. A mulher e uma rapariga fiavam. Numa corda secava lã tingida, vermelha, azul e verde. E, no alpendre, Manuel e um rapaz manobravam dois pesados teares.
- Como vai isso? - inquiriu Don Ramon.
- Muy bien! Muy bien! - respondeu Manuel, com uma expressão transfigurada cintilando-lhe nas pupilas negras. - Muito bem, señor!
Ramon examinou a serape que estavam a tecer. Tinha uma barra em ziguezague de lã preta natural e, em cada ponta, um ornato complicado, azul e preto. O homem começara o centro, a que chamam boca, e olhava de instante a instante para o desenho pregado no tear. Aliás, era um desenho simples, igual ao símbolo de que o ferreiro se ocupava: uma serpente a morder a cauda e, de volta, triângulos negros cujas bases se apoiavam num círculo exterior; ao meio uma águia azul, com as asas e os pés tocando no arco formado pela serpente.
Ramon voltou a casa, dirigindo-se para a ala onde se encontrava o seu quarto. Lançou uma manta dobrada sobre o ombro e seguiu pelo terraço. No extremo dessa ala, projectando-se para o lago, havia outro terraço, este quadrado, com uma bignónia cor de coral pendente dos pilares maciços. A loggia estava juncada de esteiras e, a um canto, via-se um tambor e respectiva baqueta. No ângulo mais afastado mergulhava uma escada de pedra, fechada em baixo por uma porta de ferro.
Ramon ficou uns momentos a olhar para o lago. As nuvens dispersavam-se e o lençol de água reflectiu uma claridade esbranquiçada. Ao longe, via-se a mancha de um barco, onde provavelmente se encontravam Martin e as duas senhoras.
Tirou o chapéu e o casaco, e permaneceu imóvel, nu da cintura para cima. Então pegou na baqueta e, depois de esperar uns segundos, até adquirir paz de alma, fez soar o apelo do tambor, num ritmo alternado, forte e fraco. Captara o antigo poder bárbaro de certos rufos.
Assim esteve durante algum tempo, sozinho, tocando tambor com a mão direita, de face inexpressiva.
Acorreu um homem, de cabeça descoberta, vindo do outro terraço. Trazia fato de brancura imaculada, serape escura ao ombro, e uma chave na mão. Saudou Ramon, levando à testa as costas da mão direita, e depois desceu a escada e abriu a porta de ferro.
Imediatamente chegaram homens, todos vestidos de branco, cada qual com a sua serape dobrada em cima dos ombros. Mas as faixas eram azuis, e as sandálias azuis e brancas. O escultor apareceu, assim como Martin.
Eram sete, além de Ramon. No topo da escada saudaram-no, um apôs outro. Em seguida, depuseram a manta e o chapéu no murinho do terraço e despiram o casaco, que atiraram para cima dos chapéus.
Ramon largou o tambor e sentou-se sobre a sua manta raiada de azul e preto. Todos o imitaram, formando círculo, de pernas cruzadas e torso nu. Uns eram cor de café, outros brancos; Ramon tinha a pele dum tom castanho-claro. Conservaram-se em silêncio, só perturbado pelo som igual e hipnótico do tambor que um dos homens tocava. Então este começou a cantar numa vozinha estranha, contida, essa antiga voz de falsete dos índios:
"Quem dorme despertará. Quem dorme despertará. Quem segue o caminho da serpente há-de chegar ao seu destino; há-de chegar ao seu destino e ficará revestido com a pele da serpente."
Uma por uma, outras vozes se juntaram, até que todos se fizeram ouvir, naquele ritmo cego, infalível, do antigo mundo bárbaro. E todos com idêntica voz interior, como se a alma cantasse para si própria.
Cantaram por momentos, em uníssono, qual bando de pássaros a voar levados pelo mesmo instinto. E quando o tambor vibrou num rufo que era o final da cerimónia, as vozes extinguiram-se também, simultâneas, com um estrangulamento na garganta.
Houve um silêncio. Depois os homens principiaram a conversar uns com os outros, rindo em surdina. Mas a voz deles e a expressão já não eram as mesmas de há pouco.
Don Ramon ia falar e todos se calaram, inclinando a cabeça. Aquele sentara-se, de face erguida, visando ao longe, na dignidade da oração.
- Não há Passado nem Futuro, só existe o Presente - disse em tom surdo, majestoso. - A Serpente magna dobra e desdobra os seus anéis, as estrelas surgem, os mundos desaparecem. Há somente a mudança e o repouso do plasma.
Eu sou sempre, diz o seu sono.
Assim como o homem, enquanto dorme, não tem conhecimento, mas é, também a Serpente enroscada do eterno Cosmos prolonga o seu existir de Agora.
Agora, agora só, e para sempre Agora.
Contudo os sonhos despertam e esmorecem no sono da Serpente.
E o Universo eleva-se como os sonhos e como eles expira.
E o homem é um sonho no sono da Serpente.
E apenas o sono que não tem sonhos murmura: Eu sou!
E no Agora sem sonhos, Eu sou.
Os sonhos despertam, como devem, e o homem é um sonho desperto.
Mas o plasma sem sonhos da Serpente é o plasma do homem, do seu corpo e ao mesmo tempo da sua alma.
E o sonho perfeito da Serpente Eu sou é o plasma do homem, que é íntegro.
Quando o plasma do corpo e o da alma só fazem um, Eu sou na Serpente.
Agora Eu sou.
Não foi é um sonho, assim como será, quais dois pés trôpegos e separados.
Mas Agora. Eu sou.
As árvores desdobram as folhas no sono, e a floração emerge dos sonhos no mais puro Eu sou.
Os pássaros esquecem o peso dos seus sonhos e cantam no Agora: Eu sou! Eu sou!
Porque os sonhos têm asas e pés e caminhos a percorrer, e esforços a realizar.
Mas a Serpente luzidia do Agora não tem asas nem pés, é una, perfeitamente enrolada.
Nos pés dum sonho, a lebre sobe o monte numa corrida. Mas quando se detém o sonho desaparece e ela entra no Presente e os seus olhos são o vasto Eu sou.
Só o homem sonha, sonha, e vai de sonho em sonho, como alguém que, dormindo, se agita no leito.
Sonha com os olhos e a boca, com as mãos e os pés, com o falo, o coração e o ventre, com o corpo e a alma, numa tempestade de sonhos.
E precipita-se de sonho para sonho, na esperança de alcançar o sonho perfeito.
Mas eu afirmo-vos que nenhum sonho é perfeito, porque em todos eles há sofrimento e desejo.
Nada é perfeito, excepto o sonho que falece no sono. Eu sou.
Quando o sonho dos olhos se obscurece, cercado pelo Agora,
E quando o sonho da boca ressoa no último Eu sou,
E quando o sonho das mãos dormita como uma ave no mar, que é erguida, e levada, sem que ela o saiba,
E os sonhos dos pés atingem o centro do mundo, onde a Serpente dorme,
E o sonho do corpo é a calma duma flor oculta,
E o sonho da alma se dissipou no perfume do Agora,
E o sonho do espírito se apazigua e descansa na Estrela da Manhã,
Porque cada sonho começa e termina no Presente,
No âmago da flor está a Serpente que alumia e não desperta.
E o que se apaga é um sonho, e o que se aumenta é um sonho. Há sempre, e somente Agora. Agora e Eu sou."
Reinava o maior silêncio no círculo de homens. Lá fora, rangia um carro de bois e, do lago, elevava-se o débil som de remos a fender a água. Mas os sete homens, de cabeça baixa, escutavam interiormente, numa espécie de transe.
Então o tambor começou, suavemente, e um dos homens cantou, num fio de voz:
O senhor da Estrela da Manhã
Estava entre o dia e a noite:
Tal um pássaro que ergue as asas e espera
com a asa luminosa à direita
E a das trevas à esquerda,
A Estrela de Alva apareceu.
- Olhai! Estou sempre aqui!
Longe, no espaço
Roço a asa do dia
E ilumino o vosso rosto.
com a outra asa roço a sombra.
Mas eu estou sempre aqui.
Estou sempre aqui. Sou o senhor. E os senhores entre os homens Vêem-me no cintilar das minhas asas. E perdem-me outra vez. Mas, olhai! Estou sempre aqui.
As multidões não me vêem. Só vêem o bater de asas, As idas e vindas das coisas, O calor e o frio.
Mas a vós que me vedes entre
O frémito da noite e do dia,
Faço-vos senhores do Caminho Invisível.
Caminho entre abismos de trevas e vales de luz; Caminho que segue tal rasto de serpente, tal a mecha dum rastilho
Que incendiará à substância das trevas e explodirá à vista de todos.
Jamais me afasto. Estou sempre aqui Entre as asas dum voo sem fim, Nas profundezas da paz e da luta.
Profundo no relento da paz,
Longe da orla do combate,
Haveis de encontrar-me, eu que não sou
Nem sou destruição.
Para além eu estou Dos horizontes de amor e de luta, Como uma estrela, como uma fonte Que lava os senhores da vida.
"Ouvi! - disse Ramon, no meio do silêncio. - Seremos senhores entre os homens, não os senhores dos homens. Somos senhores da noite. Senhores do dia e da noite. Filhos da Estrela da Manhã e da Estrela da Tarde.
Não somos senhores dos homens. Eu, porém, sou a Estrela da Manhã e Senhor do dia e da noite. com o poder que me foi concedido à mão esquerda e com o poder que obtive com a mão direita, sou senhor dos dois rumos.
E a minha flor na terra é o jasmim, e no céu a hespéride.
Não vos darei ordens, nem vos servirei, porque a serpente se arqueia em direcção à sua casa.
Contudo, estarei convosco, para que não vos desvieis de vós próprios.
Não há nada a dar nem a receber. Quando os dedos que dão afloram os que recebem, cintila a Estrela da Manhã a esse contacto, e o jasmim brilha entre as mãos. E assim não há dom nem aceitação, nem mão que oferece nem mão que recebe, mas a estrela encontra-se entre elas e a mão escura e a mão clara permanecem invisíveis de cada lado. O jasmim recolhe na corola o dom e a aceitação, e o seu perfume espalha-se no ar.
Não penseis em dar nem em receber, deixai isso à flor do jasmineiro.
Não vos desperdiceis, que nada vos seja arrancado.
E não percais nada, nem o aroma da rosa, nem o sumo da romã, nem o calor do fogo.
Mas dizei à rosa: - Olha, colho-te, e o teu perfume enche-me as narinas e o meu hálito penetra no teu coração. Que isso seja entre nós como um sacramento.
E tomai cuidado quando abrirdes a romã; é o Sol poente que tendes nas mãos. Dizei: - Eis-me aqui, vem! Que a Estrela da Tarde fique entre nós.
E quando a chama se eleva ao sopro do vento frio e estendeis as mãos para o calor, ouvi o que a chama diz: - Ah! És tu? És tu que vens para mim? Eu realizava a grande viagem, seguindo o caminho da serpente magna. Mas visto que vens até mim, de ti me aproximo. E se caíres nas minhas mãos cairei nas tuas, e a flor do jasmineiro perfumará o nosso encontro.
Não repilais nada nem deixeis que vos despojem. Porque repelir ou ser despojado quebra a raiz do jasmim e conspurca a Estrela da Tarde.
Não vos apodereis de nada para dizer: - Isto pertence-me. Nada existe que vos seja dado possuir, nem sequer a paz.
Nada; nem o ouro, nem a terra, nem o amor, nem a vida, nem a dor, nem a morte, nem a salvação.
De nada direis: - Isto é meu.
Dizei apenas: - Isto está comigo.
Porque o ouro só permanece convosco o espaço duma lua, e olha-vos e diz: - Encontramo-nos ligados por este breve instante.
E a terra diz-vos: - Ah, filho meu, de pai longínquo! Vem, revolve-me um pouco, para que as papoulas e o trigo cresçam e ondulem ao vento que sopra entre o meu e o teu peito. Depois, abisma-te em mim, e ambos formaremos um outeiro.
E ouvi o que diz o vosso amor: - A tua espada ceifou-me como à erva, e sobre mim está a sombra e o bruxulear da Estrela da Tarde. Não é mais do que trevas e nada. Ó tu, quando te levantares e prosseguires o teu caminho, fala-me, dize-me simplesmente: - A estrela despontou entre nós.
E dizei à vida: - Sou teu? És minha? Sou a orla do dia em volta da noite? São os meus olhos o crepúsculo onde a estrela se suspende? É o meu lábio superior o pôr do Sol e o meu lábio inferior o raiar da manhã? Tremula a estrela na minha boca?
E dizei à vossa paz: Ergue-te, estrela imortal! Já as águas da aurora te alagam e me levam no seu curso.
E dizei à dor: Machado, abates-me. E, contudo, brota uma centelha do teu gume e da minha ferida. Corta, então, que eu velarei a face, ó pai da estrela!
E dizei à vossa força: A espuma da noite sobe-me dos pés até aos rins, a espuma do dia salta-me dos olhos e da boca para o mar do meu peito. As minhas entranhas são um manancial de poder que corre pela espinha dorsal. E uma estrela flutua sobre esse fluxo.
E dizei à vossa morte: Pois seja! Eu e a minha alma iremos para ti, Estrela da Tarde. Carne, desaparece na sombra da noite. Espírito, chegou o teu dia. Deixai-me agora. Na minha nudez suprema me encaminho para a Estrela mais nua."

XII
Os homens envergaram o casaco, puseram o chapéu e, depois de cobrirem os olhos por um momento numa saudação a Ramon, desceram a escada de pedra. Fechou-se a porta com estrondo e o porteiro, voltando com a chave, pousou-a sobre o tambor e retirou-se discretamente.
Ramon ficou sentado em cima da manta, com os ombros nus apoiados à parede e de pálpebras cerradas. Sentia-se fatigado, nesse estado de abstracção que torna difícil o regresso ao mundo normal. Ouvia de modo vago os rumores na casa, tilintar de colheres de chá, vozes femininas conversando, o ronco dum automóvel que se aproximava pelo caminho desnivelado e se detinha no pátio.
Custava-lhe voltar à terra. Ressoava-lhe aos ouvidos o barulho do exterior, mas dentro dele mesmo escutava o murmúrio confuso do universo, como se num búzio. Era-lhe penoso retomar contacto com as coisas da vida corrente quando o corpo e a alma mergulhavam no cosmos.
Gostaria de se conservar ainda uns instantes no seu isolamento, mas não era possível. Reclamavam a sua presença, especialmente Carlota.
Já ela o chamava: "Ramon! Isso terminou? Cipriano está aqui." Sentia-se-lhe na voz receio e temeridade.
Ramon puxou os cabelos para trás, ergueu-se e, em passo rápido, acudiu ao chamamento tal como se encontrava, de torso nu. Não tinha vontade de se vestir, de reentrar nos pormenores da vida quotidiana.
Cipriano, fardado, achava-se no terraço abancado à mesa do chá. Levantou-se prontamente e avançou para Ramon de braços abertos, perscrutando o rosto do amigo com os seus olhos negros e brilhantes.


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Os dois homens abraçaram-se, peito contra peito, e, por momentos, Cipriano deixou estar as mãos morenas nas espáduas nuas de Ramon. Então afastou-se devagar e fitou-o sem proferir uma palavra.
Ramon pousou distraidamente a mão no ombro de Cipriano.
- Que tal? - perguntou. - Como vai isso?
- Bien. Muy bien - respondeu Cipriano, fixando-o sempre como se se procurasse a si mesmo no semblante de Ramon. Este correspondeu ao olhar do índio com um leve sorriso, enquanto Cipriano baixava a cabeça e os cabelos longos lhe tombavam na testa.
As duas mulheres observavam a cena em silêncio absoluto. Quando os dois homens se aproximaram da mesa, Carlota começou a servir o chá. Mas as mãos tremiam-lhe e ela tratou de pousar o bule e cruzá-las no regaço.
- Passearam de barco? - indagou Ramon, com ar alheado.
- Passeámos, e foi muito agradável - disse Kate. - Um bocado quente, quando o sol apareceu...
Ramon esboçou um sorriso e alisou o cabelo. Em seguida, descansando a mão no parapeito do terraço, olhou para o lago e suspirou inconscientemente.
Nu da cintura para cima, voltava costas às mulheres, contemplando a vastidão da água. Cipriano estava a seu lado.
Kate observava as espáduas lisas, morenas, que emanavam sensualidade, os ombros largos, o porte altivo da cabeça - e não podia deixar de imaginar uma lâmina cravada nessas costas magníficas, nem que fosse só para destruir a sua arrogância distante.
Porque até a sua nudez parecia distante, intangível. Pensar nela e contemplada daquele modo representava quase uma violação. Kate sentiu de súbito o coração estremecer-lhe de vergonha. Fora assim que Salomé olhara para João Baptista, e Ramon possuía essa mesma beleza que evocava uma romã destacando-se na verdura sombria da árvore.
Soprava branda a aragem da tarde. Na luz nacarada deslizavam barcos, enquanto o Sol luzia ainda no horizonte. Distinguia-se a margem oposta, a cerca de vinte milhas, embora velasse a atmosfera uma bruma opalina que se confundia com a água do lago. Kate lobrigava a mancha clara da igreja de Tuliapan.
No jardim da casa havia um bosquete de mangueiras, onde voavam cá e lá passarinhos escarlates, como botões de papoula, e outros dum amarelo cintilante. Contudo, quando pousavam por um momento e fechavam as asas, desapareciam da vista, pois eram escuros por cima.
- Neste país, os pássaros só são coloridos por baixo das asas - observou Kate.
Ramon voltou-se bruscamente para ela.
- Dizem que a palavra México significa "por baixo" - replicou, sorrindo, enquanto se afundava numa cadeira de balouço.
Dona Carlota fizera um esforço sobre si mesma e, de olhos fixos nas chávenas, servia o chá. Apresentou uma xícara ao marido, sem sequer o relancear. Tremia de cólera quase histérica. Ela, que era sua esposa desde tantos anos e que o conhecia tão bem (ah, se o conhecia!), nada possuía desse homem.
- Passa-me o açúcar, Carlota - disse Ramon na sua voz calma.
A mulher sobressaltou-se como se a beliscassem de repente.
- O açúcar? - repetiu, distraída.
Ramon estava sentado na cadeira, pendido para a frente e de xícara na mão. A tela fina que lhe cobria as coxas revelava-lhe mais o corpo do que a nudez do torso. Kate percebeu porque é que era proibido usar calças de algodão naplaza. Tornavam mais sensível a presença da carne.
Verdadeiramente belo, duma beleza que chegava a ser assustadora, irradiava uma sensualidade pura, hostil ao género de pureza de Kate, com a sua faixa azul de roda da cinta e as calças brancas parecendo fremir de vida cingidas aos quadris e às coxas. Tão poderoso fluido emitia esse ente másculo que Kate se sentia como que fascinada.
E ele, perfeitamente tranquilo, dentro do seu próprio ambiente. O mesmo acontecia a Cipriano. Ambos tão calmos, tão sombrios, dir-se-iam esmagar as duas mulheres.
Kate compreendeu então os sentimentos de Salomé. Compreendeu como João Baptista, com a sua beleza distante e inacessível, exercera tamanho poder.
"Ah! disse ela consigo mesma. - Tenho de fechar os olhos e abrir a alma. Fechar os olhos para não ver e ficar na escuridão e no silêncio junto destes dois homens. Possuem uma riqueza que me falta. Conseguiram libertar-se do desejo que a vista suscita. Sou atormentada pelo desejo, pela minha imaginação lasciva. É a maldição de Eva. Os meus olhos, a minha experiência são como um anzol que me repuxa a carne e me desperta espasmos de desejo. Oh, quem me dera libertar-me da impureza do olhar! Filha de Eva, porque é que estes homens me não arrancam às visões impuras?"
Levantou-se e dirigiu-se à beira do terraço. Amarelos como narcisos, emergiam dois pássaros da sua própria invisibilidade. Na praia de seixos, onde estava um barco varado, dois homens apanhavam à rede os peixinhos denominados chcirales, que cintilavam na água acastanhada como lascas de vidro.
- Ramon! - disse Dona Carlota. - Não vais vestir-te? Já não podia suportar aquela vista.
- vou. Obrigado pelo chá - respondeu o marido, pondo-se de pé. E seguiu pelo terraço adiante, com as sandálias a ranger de leve no pavimento de tijolos.
- señora Caterina! - chamou Carlota. - Venha beber o seu chá.
Kate voltou para a mesa, dizendo:
- Que paz se sente aqui!
- Paz! - repetiu Carlota. - Não acho paz nenhuma. O que há é um silêncio pavoroso que me causa arrepios.
- Vem cá frequentemente? - perguntou Kate a Cipriano.
- Sim, uma ou duas vezes por semana - respondeu ele, fixando-a com singular expressão nos olhos negros.
Dir-se-ia que esses homens procuravam anular-lhe a vontade.
- São horas de eu voltar para casa - declarou ela. - Não tarda que o Sol desapareça.
- Ya va? - redarguiu Cipriano, com a sua voz aveludada em que transparecia certa pena. - Já!
- Oh, não, señora! - exclamou Carlota. - Fique connosco até amanhã.
- Mas estão em casa à minha espera.
- Mandarei um rapaz prevenir que só regressa amanhã. Fica, não é verdade? Ah, ainda bem.
E Carlota, depois de pousar a mão carinhosa no braço de Kate, levantou-se a fim de avisar os criados.
Cipriano puxou da cigarreira e ofereceu-a a Kate.
- Não se escandalizará se eu fumar? - disse ela. - É um dos meus vícios.
- Fume. Não é bom sermos perfeitos.
- Acha que não? - E Kate, rindo-se, puxou uma fumaça do cigarro.
- Experimenta realmente essa paz? -inquiriu ele, irónico.
- Porquê?
- Porque é que os brancos andam sempre em busca da paz?
- Pois não é natural que todos desejem paz?
- Paz é apenas o descanso depois da guerra. Não é mais natural do que a luta; talvez até seja menos.
- Mas existe outra paz, aquela que ultrapassa o entendimento. Não sabia?
- Parece-me que não - respondeu Cipriano. - Que pena!
: - Ah! Quer ensinar-me? Mas para mim é diferente... Cada
homem tem dois espíritos. Um assemelha-se à aurora na época das chuvas, suave, fresca, húmida, com pássaros chilreando. O outro é como a estação seca, com a sua luz forte e ardente que parece nunca mais abrandar.
- Decerto prefere o primeiro.
- Não sei - replicou Cipriano. - O outro dura mais.
- Tenho a certeza que prefere a frescura da manhã - insistiu Kate.
- Não sei, não sei. - E esboçou um sorriso, deixando Kate
convencida de que ele de facto não sabia. - Na primeira fase vemos as flores nas suas hastes transbordantes de seiva. A flor desa brocha como uma face de mulher perfumada pelo desejo. Mas o sol começa a aquecer, e então tudo se modifica. As flores murcham e o peito do homem torna-se como um espelho de aço. Dentro dele tudo
- é escuridão, enroscando-se e desenroscando-se como uma cobra. As flores secaram nas hastes, as mulheres já não existem para o homem. Umas e outras desapareceram.
- Que pretende ele então? - perguntou Kate.
- Não sei. Talvez queira ser uma grande personagem, senhor de todos os povos...
- E porque não realiza essas aspirações?
Cipriano encolheu os ombros.
A señora assemelha-se à manhã de que lhe falei há pouco -
disse ele.
- Tenho quarenta anos - replicou Kate com um risinho amarelo.
O general tornou a encolher os ombros.
- Isso não interessa. O seu corpo parece o caule da flor a que
aludi, e o seu rosto será sempre a aurora na estação das chuvas.
- Porque me diz essas coisas? - volveu Kate, com involuntário e estranho tremor.
- E porque não hei-de dizer? A señora é tal uma manhã cheia de frescura, e estamos no fim da época seca...
Observava-a, e nos seus olhos brilhava o desejo, aliado a certa insolência.
Kate baixou a cabeça e balançou-se na cadeira.
- Gostaria de casar consigo - continuou Cipriano. - Se estivesse disposta a isso, desposá-la-ia.
- Não me parece que me torne a casar - ripostou Kate, anelante e de faces afogueadas.
- Quem sabe?
Ramon surgiu no terraço, com a sua bela serape dobrada sobre o ombro nu. Apoiou-se num dos pilares e contemplou Kate e Cipriano, o qual ergueu a vista e lhe dirigiu um sorriso em que transparecia a amizade que os ligava.
- Disse à señora Caterina que a desposaria se ela estivesse disposta a casar-se - declarou ele.
- É o que se chama falar sem rodeios - replicou Ramon, olhando para Cipriano com o mesmo sorriso amigo. Em seguida, o seu olhar pousou-se em Kate, enquanto o sorriso se alastrava e todo o seu rosto respirava compreensão. Cruzou os braços, como fazem os índios quando querem defender-se do frio; e a carne, dum tom castanho-claro, como ópio, formava saliências no peito largo, cheio e liso.
- Diz Don Cipriano que os Brancos só desejam a paz - proferiu Kate, fitando Ramon com deliberada impertinência. - Não se consideram brancos?
- Não mais brancos do que somos - respondeu Ramon, sorrindo. - Pelo menos, não duma brancura de lírio...
- E não buscam a paz?
- Por mim não penso nisso. Os mansos herdarão a terra, segundo a professia. Mas quem sou eu para lhes invejar a sua paz? Não señora. Por acaso pareço um evangelho de paz? Ou de guerra? A vida para mim não se resume nessas duas coisas.
- Não sei afinal o que desejam - disse Kate.
- Nós próprios não o sabemos senão em parte - replicou Ramon, mudando de expressão.
Havia nele uma espécie de bondade paternal que enchia Kate de espanto e a sobressaltava como se só agora compreendesse o verdadeiro significado de tal sentimento. Mistério, nobreza, inacessibilidade, e a vulnerável compaixão de homem na sua amizade desinteressada...
- Não gosta das pessoas de pele escura? - perguntou Ramon em tom suave.
- Acho-as belas à vista - respondeu Kate. - Mas - acrescentou, com um leve arrepio - estou contente por ser branca.
- Sente que não é possível nenhum contacto?
- Exactamente.
- É a sua impressão - volveu Ramon, e, enquanto ele falava, Kate percebeu que o considerava mais atraente do que a qualquer homem loiro e que, por muito vago que fosse, o contacto que tinha com ele lhe era mais precioso do que todos os que até aí conhecera.
Contudo, embora lhe lançasse certa sombra, não tentava influenciá-la, nem queria maior aproximação - ao passo que Cipriano, sentindo-se incompleto, a procurava e parecia violar-lhe a personalidade.
À voz de Ramon, Dona Carlota assomou a uma das portas mas, ouvindo falar inglês, tornou a sumir-se, num brusco acesso de cólera. Daí a pouco reaparecia, trazendo um vaso de flores carnudas, dum branco leitoso, semelhantes a frésias no tom e no perfume.
- Que lindas! - exclamou Kate. - São flores de igreja! No Ceilão, os indígenas entram nos seus templos e depõem uma flor num tabuleiro aos pés do Buda. E os tabuleiros das oferendas ficam cobertos dessas flores, todas muito bem arranjadas, dispostas com delicadeza oriental...
- Mas eu não as trouxe para homenagear deuses - replicou Carlota, pousando o vaso na mesa. - Trouxe-as para si, señora. Cheiram tão bem!
- De facto, têm um aroma delicioso - concordou Kate. Os dois homens afastaram-se, rindo.
- Ah, señora! - disse Carlota, sentando-se à mesa. - Pode entender Ramon? Seria capaz de renunciar à Santa Virgem? Eu antes queria morrer.
- Não precisamos doutros deuses, realmente - redarguiu Kate, com certo enfado.
- Outros deuses! - repetiu Carlota, escandalizada. - Como se fosse possível! Ramon comete um pecado mortal.
Kate conservou-se calada.
- E quer induzir o povo a fazer o mesmo - prosseguiu Carlota. - É pecado de orgulho... o pecado cardeal. Ainda bem que a señora pensa como eu. Receio as americanas que, para se apoderarem do espírito dos homens, aceitam todas as suas loucuras e perversidades... É católica, señora?
- Fui educada num convento.
- Ah, señora! Qual a mulher que tendo conhecido a Santíssima Virgem se afasta dela? Que mulher teria ânimo de crucificar Jesus novamente? Mas os homens, os homens! Aquela história de Quetzalcoatl seria coisa para rir se não fosse um pecado mortal. E da parte de dois homens inteligentes e instruídos tanta presunção!
- Os homens são assim - observou Kate.
Intensificava-se o crepúsculo; o horizonte estava ainda luminoso, mas o Sol afundara-se numa bruma cor-de-rosa, por trás das arestas da montanha. As colinas erguiam-se azuladas numa atmosfera cor de salmão que se reflectia na água. Lá adiante, onde o clarão rubro se adensava, banhavam-se homens e crianças.
Kate e Carlota subiram à azotea, o terraço que cobria a casa. Dali podiam ver a hacienda com o seu pátio semelhante a uma fortaleza, o caminho ladeado de árvores frondosas, as cabanas de adobe perto da estrada e as fogueiras já bruxuleando junto das casas. No ar róseo os salgueiros da margem pareciam mais verdes e cintilantes. Ao longe, luziam entre as árvores as duas torres brancas de Sayula. Deslizavam barcos em direcção à parte sombreada do lago.
E num desses barcos, deveras desconsolada, regressava Juana a casa.

XIII
Ramon e Cipriano encontravam-se à beira do lago. O general envergara também fato branco e sandálias, o que lhe ia melhor do que a farda.
- Tive uma conversa com Montes quando ele foi a Guadalajara - declarou Cipriano.
Montes era o presidente da República.
- E que te disse?
- Não se alarga muito a falar, mas depreendi que não simpatiza com os colegas e se sente isolado. Julgo que gostaria de te conhecer melhor.
- Porquê?
- Talvez pudesses dar-lhe apoio moral. Talvez chegasses a ser ministro; e até presidente, depois de Montes acabar o seu mandato.
- Montes agrada-me - replicou Ramon. - É sincero e ardente. Gostaste dele?
- Sim, mais ou menos - respondeu Cipriano. - É desconfiado, teme que outros pretendam compartilhar com ele o poder. Tem instintos de ditador. Quis saber se eu lhe era afecto.
- Deste-lhe a entender que sim?
- Disse-lhe que tudo o que me interessava verdadeiramente eras tu e o México.
- E que te respondeu?
- Ele não é tolo. Respondeu: "Don Ramon vê o mundo com olhos diferentes dos meus. Qual de nós terá razão? Eu quero salvar o país da pobreza e da ignorância, ele quer salvar-lhe a alma. Mas afirmo que um homem esfomeado e ignorante não tem lugar para a alma. Um ventre e um cérebro vazios roem-se a si mesmos, e a alma não existe. Don Ramon acha que um homem desprovido de alma pode passar sem o alimento do corpo e do intelecto. Pois que siga o seu caminho, que eu sigo o meu! Não nos embaraçaremos um ao outro. Dou a minha palavra que não interferirei em nada. Ele varre o pátio, eu trato da limpeza da rua.
- É sensato - comentou Ramon - e honesto nas suas convicções.
- Porque não serias ministro daqui a uns meses? E mais tarde presidente?
- Bem sabes que não é isso o que pretendo. Devo poupar-me e agir noutra esfera. A política que se mantenha ou evolua como eles entendem, a sociedade que faça o que quiser. Deixa-me em paz, Cipriano. Gostarias que eu fosse outro Porfirio Diaz, ou alguém do mesmo género, mas isso para mim seria pura e simplesmente soçobrar na vida.
Cipriano observava Ramon com os seus olhos negros e vigilantes, onde transparecia amizade, receio, confiança, mas também incompreensão, e a dúvida que sempre a acompanha.
- Não chego a perceber o que desejas - murmurou.
- Percebes, sim. A política e toda essa religião social com que Montes se preocupa equivale a lavar a casca dum ovo para lhe dar aspecto limpo. A mim, porém, só interessa o interior... Ah, Cipriano! O México é tal um ovo que o Tempo choca desde séculos neste ninho do mundo e que parece ser goro. Parece, mas não é. O que precisa é de calor que ajude a formação da ave. Montes quer limpar o ninho e lavar o ovo... Que aconteceria se tirassem um ovo de baixo duma águia para o lavar? Arrefeceria de vez. Pois quanto mais se empenharem em arrancar este povo da pobreza e da ignorância mais depressa ele morrerá. Pobre Montes! Todas as suas ideias são americanas ou europeias. E a velha pomba da Europa jamais poderá chocar com êxito o ovo escuro da América. Os Estados Unidos não morrem porque não estão vivos. É um ninho de ovos de loiça e por isso se conservam limpos. Mas aqui, Cipriano, aqui é necessário incubá-los antes da limpeza do ninho.
Cipriano baixava a cabeça. Experimentava sempre Ramon para ver se conseguia fazê-lo mudar de ideias e, depois de verificar a inutilidade dos seus esforços, submetia-se ao amigo e novas chamas de felicidade se alteavam dentro dele. Mas, entretanto, ia-o experimentando...
- Não serve de nada querer misturar as duas coisas. No ponto em que estão, não se misturam. Temos de fechar os olhos e mergulhar até ao fundo, como pescadores de pérolas. Mas andamos a flutuar à superfície, semelhantes a bocados de cortiça...
Cipriano mostrou um sorriso subtil. Tudo aquilo ele sabia!
- Temos de abrir a ostra do cosmos e extrair dela a nossa força.
Enquanto não arrancarmos a pérola não seremos mais do que mosquitos no cimo do oceano - concluiu Ramon.
- A minha força é como um demónio dentro de mim - disse Cipriano.
- Porque a ostra a retém fechada, como uma pérola negra. A ti compete libertá-la.
- Ramon, não acharias bom ser uma serpente, uma serpente enorme que se enrolasse em volta do globo e o esmagasse... como a esse ovo?
Ramon olhou-o e pôs-se a rir.
- Não me parece coisa impossível - continuou Cipriano. E não seria bom?
O outro meneou a cabeça, rindo-se.
- Pelo menos seria um momento bom.
- Que mais se pode desejar?
Brilhou nos olhos de Ramon uma centelha que logo se apagou.
- Para quê? - disse em voz surda. - Depois de esmagado o ovo que havíamos de fazer senão errar nos corredores de trevas e lamentar-nos? Para quê?
Ramon pôs-se de pé e afastou-se. O Sol desaparecera, a noite descia. Na alma daquele homem fervia uma cólera imensa, e Carlota é que a provocava. A mulher parecia incutir vida ao monstro da sua raiva íntima, e Cipriano exasperava-o.
"A minha força é como um demónio a rugir dentro de mim", disse Ramon consigo mesmo, repetindo a frase de Cipriano.
Reconhecia o direito de gritar a esse demónio humilhado e ridicularizado que vivia preso dentro dele. E a fúria apoderou-se de Ramon, contra Carlota, contra Cipriano, contra a humanidade inteira. Os seus partidários traí-lo-iam, tinha a certeza. Cipriano acabaria por traí-lo. Desde que lhe encontrassem o mínimo ponto fraco, todos saltariam sobre ele como tarântulas e infectá-lo-iam com a sua peçonha.
E qual o homem absolutamente invulnerável, sem o menor ponto fraco?
Ramon subiu ao seu quarto pela escada exterior, no lado da casa, e sentou-se na cama. A noite estava quente, pesada, e duma calma aflitiva.
- Prepara-se chuva - ouviu ele dizer a um dos criados. Fechou as portas do quarto e ficou às escuras. Então despiu-se todo, murmurando: "Repudio o mundo juntamente com esta roupa." E de pé, nu e invisível no meio do quarto, ergueu ao ar o punho fechado, com tal força que teve a sensação de que lhe estalavam as paredes do peito. A mão esquerda pendia ao longo do corpo, mole, com os dedos levemente curvados.
Tenso como o jacto duma fonte silenciosa, distendeu-se até abranger o âmago impalpável das trevas. E as vagas de escuridão começaram a lavar-lhe o espírito, a consciência; ondas de negrume rebentando-lhe na memória, em todo o seu ser, como uma maré que sobe. Até que foi maré cheia e ele, tremendo, se deixou cair por terra, para descansar. Invisível nas trevas, ficou a olhar para o vácuo, sentindo o misterioso fluxo interior purificar-lhe as entranhas e o coração, sentindo o espírito dissolver-se no Espírito maior que nenhum pensamento perturba.
Cobriu o rosto com as mãos e ali esteve imóvel, inconsciente, já sem nada sentir nem ouvir, semelhante a uma alga submersa no mar. Abolira-se o Tempo, abolira-se o Mundo, submerso nas profundezas que são intemporais e inespaciais.
Quando o coração e as entranhas despertaram para a vida, o espírito principiou a bruxulear tal uma chamazinha que vacila e não se apaga.
Enxugou a cara com as mãos, pôs a serape na cabeça e em silêncio, numa aura de sofrimento, desceu a escada, levando consigo o tambor.
Martin, o servo devotado, andava cá e lá no zaguán.
- Ya, patrón? - perguntou.
- Ya! - respondeu Ramon.
O homem correu à vasta cozinha onde ardia uma candeia, e voltou com um braçado de esteiras.
- Onde as colocamos, patrão?
Ramon hesitou no meio do pátio, olhando para o céu.
- Viene el agua?
- Creo que si, patrón.
Dirigiram-se para o alpendre onde haviam carregado as azémolas com os fardos de bananas. Aí, Martin arremessou ao chão as petates, que Ramon dispôs em ordem. Guisleno apareceu, trazendo canas para fazer tochas, das mais primitivas: três canas amarradas em cima com um cordel, formando tripé de cintura alta, e, na parte superior, uma pedra de lava mais ou menos oca. Realizado esse trabalho,
Guisleno foi a casa e voltou a correr com um pedaço de madeira inflamada. Três ou quatro pauzinhos de ocote colocados na pedra - e as chamas ergueram-se, enchendo o pátio de sombras vacilantes.
Ramon dobrou a serape e sentou-se em cima. Guisleno acendeu outro tripé-archote. A luz bailava nas sobrancelhas carregadas de Ramon, dava-lhe ao peito cintilações de ouro.
Agarrou no tambor e fez soar o apelo monótono, lento, um tanto melancólico. Passados instantes, chegou o tocador habitual, que levou o instrumento para a alameda sombria, onde então se ouviu um rufo vivo e forte.
Ramon enfiou a serape, cujas franjas lhe roçavam os joelhos, e ficou imóvel, com os cabelos em desordem. Rodeava-lhe os ombros a serpente do tecido, o pescoço erguia-se-lhe no meio do pássaro azul.
Cipriano apareceu, vindo da casa. Trazia serape castanha e vermelha, ornamentada com um sol escarlate. Postou-se ao lado de Ramon, e olhou-lhe de relance para a cara. Mas, de sobrancelhas franzidas, o outro fixava a sombra dos alpendres no extremo do pátio. Olhava para o coração do mundo; porque a face dos homens e o coração dos homens são areias movediças, e só no coração do cosmos pode alguém encontrar força.
Cipriano voltou os olhos negros para a banda do pátio. Os seus soldados aproximavam-se em grupo. Três ou quatro homens de mantas pardas rodeavam o lume. De pé, junto de Ramon, Cipriano parecia um cardeal, um pássaro de cor vistosa. Até as sandálias eram escarlates, e encarnadas as fitas que atavam as calças de linho branco aos tornozelos. Ao clarão das tochas tinha um ar demoníaco, com a pele muito escura, a barbicha preta e as pupilas cintilando sardonicamente.
Chegavam peóns, pelo portão da entrada, balançando os chapéus largos. Acorriam mulheres descalças, com as saias a oscilar, transportando os seus nenés envoltos nos rebozos e seguidas por uma caterva de garotos. Todos se agrupavam em volta dos archotes, como animais bravios, contemplando o círculo de homens de serape, do qual se destacavam Ramon e Cipriano, um de azul e branco, outro de vermelho.
Carlota e Kate emergiram de casa. Carlota, porém, ficou junto da porta, embrulhada num xaile de seda preta. Sentou-se num banco de pau aquém do clarão avermelhado, e pôs-se a observar os homens escuros, a beleza altaneira de Ramon, o traje escarlate de Cipriano, o grupo de soldados e a massa compacta de peóns, mulheres e crianças. Enquanto desfilava gente através do portão, soou o tambor e uma voz elevou-se, cantando:
Alguém vai franquear a porta, Agora, agora mesmo, ay! E verá a luz no homem que espera. Serás tu? Serei eu?
Alguém vai aproximar-se do fogo, Agora, agora mesmo, ay! E escutarás as palavras do seu coração. Serás tu? Serei eu?
Alguém baferá quando a porta se fechar, Ay, num momento, ay! Ouvirá dizer: Não te conheço. Serás tu? Serei eu?
De cada vez o ay se elevava num grito selvático que fazia calafrios a Carlota.
Envolta num xaile amarelo, Kate aproximou-se lentamente do grupo.
O tambor calou-se e o homem, entrando no pátio, fechou o portão e misturou-se aos assistentes.
Ramon continuava a olhar para o vácuo, de sobrolho carregado. Então, no meio do silêncio, disse em voz baixa, contida:
- Assim como tiro este abafo me liberto eu do dia que passou. Despiu a serape e pô-la no braço. Todos os homens do círculo o
imitaram, ficando de torso nu. Cipriano, muito escuro e com ar sólido apesar do tamanho reduzido, conservava-se ao lado de Ramon.
- Afasto de mim o dia que passou - prosseguiu Ramon - e fico de coração descoberto na noite dos deuses.
Em seguida olhou para o chão e disse:
- Vem, serpente da terra, serpente que jazes no fogo do coração do mundo. Vem, serpente do fogo no coração do mundo, enrola-te como ouro em volta dos meus artelhos, ergue a cabeça e apoia-a na minha coxa. Vem, descansa a cabeça na minha mão, serpente dos abismos. Beija-me os pés e os tornozelos com a tua boca de ouro, beija-me os joelhos e as coxas, serpente marcada de luz e de sombra. Vem, repousa a cabeça na concha da minha mão.
A voz suave e hipnótica extinguiu-se no silêncio envolvente. E parecia que na verdade uma presença misteriosa emergia do mundo subterrâneo, que uma serpente mosqueada de ouro e negro se enroscava nas pernas de Ramon e lhe lambia a palma da mão com a língua bifurcada...
Circunvagou a vista pela assistência boquiaberta e de olhos dilatados, e prosseguiu:
- Digo-vos, e com absoluta certeza. No coração desta terra dorme uma grande serpente no meio do fogo. Aqueles que descem às minas sentem-lhe o calor e o suor, ouvem-na mover-se. É o fogo vital da terra, porque a terra vive. A serpente do mundo é enorme, as rochas são as suas escamas, e entre elas crescem as árvores. Digo-vos que a terra que cavais está viva como uma serpente adormecida. Sobre ela andais, e este lago descansa nos seus anéis como uma gota de chuva numa cobra cascavel. Contudo, tem vida. A terra vive. Se a serpente morresse, todos morreríamos. Só a sua vida assegura a humidade do solo que faz germinar o nosso milho. Das suas escamas extraímos prata e ouro, e as árvores têm nela as suas raízes como os cabelos têm a raiz sob a nossa pele. A terra vive. Mas a serpente é grande, e nós somos mais pequenos do que um grão de poeira. E por vezes ela zanga-se e diz: Estes entes, mais insignificantes do que átomos de pó, espezinham-me e asseveram que estou morta. Até às bestas costumam falar, gritando: Arre, burro! A mim, porém, não dirigem uma palavra. Por isso lhes voltarei costas, como uma mulher volta costas ao marido e lhe consome o espírito com a sua cólera... Eis o que a terra nos diz, e a tristeza e o desânimo avassalam-nos os pés e os rins. Porque assim como uma mulher irritada tira o entusiasmo e a alegria ao homem, assim a terra pode enregelar-nos a alma e tornar a existência fatigante aos nossos membros. Falai, pois, à serpente do coração do mundo, banhai de óleo os vossos dedos e abaixai-os para que ela experimente o óleo da terra e deixe que a vida nos suba ao longo das pernas, como a seiva do milho novo faz estalar a casca e brotar o leite da planta entre as barbas. Do coração da terra o homem sente subir nele a sua força; tal o milho que, ufano, ergue as suas folhas verdes, erguei-vos vós também e deixai aprofundarem-se as vossas raízes cada vez mais, porque não tardam as chuvas e é tempo de produzir no México.
Calou-se Ramon, ensurdeceu o tambor, e todos os homens do círculo fitaram a terra, deixando pender molemente a mão esquerda.
Dona Carlota, que não conseguira ouvir, aproximou-se do lado de Kate, como se fascinada pelo marido. A irlandesa, num movimento inconsciente, olhou para o chão e, às ocultas, baixou os dedos de encontro à saia. Mas teve medo do que lhe poderia acontecer e escondeu a mão no xaile.
De repente o tambor vibrou numa nota muito forte, seguida de outra mais fraca: estranho, impressionante efeito.
Os circunstantes levantaram a cabeça. Ramon alçara o braço direito, num gesto enérgico, e espiava o negrume do firmamento. Imitaram-no os do círculo, e os braços nus, erguidos, semelhavam uma série de rochedos.
- Assim, acima, acima! - gritou uma voz bárbara.
- Acima, acima! - repetiram todos, num coro feroz. Involuntariamente, brandiram o braço, voltando o rosto para o
céu sombrio. Algumas das mulheres, mais audazes, fizeram o mesmo, e, com esse gesto, experimentaram uma sensação de paz.
Kate não alçou o braço.
Reinou profundo silêncio; até o tambor se calara. Ouviu-se então a voz de Ramon, dirigindo-se ao céu tenebroso:
- As tuas asas estão escuras, Pássaro, voas muito baixo esta noite. Voas baixo sobre o México, e em breve sentiremos roçar em nossas faces o leque das tuas asas. Ah, Pássaro! Voas onde queres. Ultrapassas as estrelas e empoleiras-te no Sol. Desapareces da vista e dissipas-te no além do rio branco do céu, mas voltas como os patos do Norte, em busca de água e do Inverno. Poisas no centro do Sol e alisas as penas... Banhas-te na corrente de estrelas e ergues em teu redor uma poalha de ouro. Voas nas profundezas do céu donde parece que jamais se volta. Mas regressas, e pairas sobre nós, e sentimos no rosto a aragem das tuas asas...
Enquanto ele falava levantou-se vento em rajadas, uma porta bateu, vibraram vidraças e as árvores pareceram rasgar-se.
- Vem, ó ave dos vastos céus! - bradou Ramon num apelo selvático. - Vem, pousa no meu punho, na minha cabeça, dá-me o poder divino e a sabedoria. Ó Pássaro, ainda que o trovão ribombe quando sacodes as asas, ainda que deixes cair na terra a serpente de fogo que tens no bico, ainda que venhas como fulminador, vem, ó Pássaro! Empoleira-te um momento no meu punho, estende as asas sobre a minha cabeça, toca-me a fronte com o teu peito. Pássaro errante, ave do Além, com o trovão nas garras e a serpente no bico, com o azul nas asas e a nuvem no colo, com o sol no peito e a sabedoria no voo, vem sobre mim, vem!
O vento agitava a chama das tochas e o lago começou a falar numa voz cavernosa que dominava o sussurro das árvores. Ao longe, por cima das colinas, os raios sulcavam o céu.
Soou o tambor, e Ramon desceu o braço que mantivera erguido. E disse então:
- Sentai-vos um instante, antes que o Pássaro sacuda a água das asas, o que não tardará. Sentai-vos.
A assistência moveu-se. Os homens puxaram as serapes para a testa, as mulheres cingiram mais a si os rebozos, e todos se sentaram no chão. Só Kate e Carlota ficaram de pé, a certa distância.
- A terra é viva, o céu é vivo, e entre ambos vivemos nós - prosseguiu Ramon na sua voz habitual. - A terra beijou-me os joelhos e concedeu-me força às entranhas. O céu descansou-me no punho e transmitiu o seu poder para o meu peito.
Assim como a Estrela de Alva brilha entre o céu e a terra, uma estrela pode surgir em nós entre o coração e os rins.
É a virilidade do homem e a feminilidade da mulher.
Ainda não sois homens. E vós, mulheres, ainda não sois mulheres.
Correis, agitais-vos, morreis, mas ainda não encontraste a estrela da vossa virilidade surgida de vós mesmos; nem a estrela da vossa feminilidade cintilando entre os vossos seios, ó mulheres!
Digo-vos no entanto: para aquele que desejar, nascerá nele a estrela da sua virilidade, e então será perfeito como é perfeita a Estrela da Manhã.
E a estrela da mulher aparecerá entre a orla espessa da terra e o vácuo cinzento do céu. Mas como conseguiremos isso? Como poderá ser?
Baixai os dedos para a carícia da Serpente da terra. Erguei o punho para que aí pouse a Ave distante.
Tende a coragem de ambos, a coragem do raio e a do sismo.
E a sabedoria de ambos, a da serpente e a da águia.
E a serenidade de ambos, a da serpente e a do sol. E o poder de ambos, o das profundezas da terra e o do céu que tudo cobre.
Mas que na vossa fronte, ó homens, resplandeça a Estrela da Manhã que nem o dia nem a noite, nem a terra nem o céu podem engolir e apagar.
E entre os vossos seios, ó mulheres, que esteja a Estrela de Alva que nada pode ofuscar.
A vossa derradeira morada é a Estrela da Manhã. Nem o céu nem a terra vos hão-de tragar, mas ireis para essa estrela solitária que no entanto jamais sente a sua solidão.
A Estrela da Manhã envia-nos um mensageiro, um deus que morreu no México. Mas, enquanto dormia o seu sono, os Seres invisíveis lavaram-lhe o corpo com a água da ressurreição. E ele levantou-se, derrubou a pedra à entrada do sepulcro, e agora galopa através do horizonte, mais depressa do que caiu por terra a laje do túmulo para esmagar aqueles que a selaram.
O filho da Estrela volta para os filhos dos homens.
Preparai-vos para o receber. Lavai-vos, ungi as mãos e os pés, a boca e os olhos, as orelhas e as narinas, o peito, o umbigo e as partes secretas do vosso corpo. Que nada dos dias passados, que nenhuma poeira do mal subsista em vós e vos torne impuros.
Não olheis com olhos de ontem, não escuteis como ontem, não respireis, não cheireis, não engulais alimentos nem bebidas; não beijeis com lábios de ontem, não toqueis com mãos de ontem. Aproximai-vos das vossas mulheres com um corpo novo, e com esse corpo novo penetrai nelas. Porque o corpo de ontem morreu, e Xopilote, devorador de cadáveres, já paira sobre ele.
Libertai-vos do corpo da véspera e adquiri um novo, tal como o deus que vem até vós. Quetzalcoatl surge-nos com um novo corpo, como uma nova estrela, saído das sombras da morte.
Sim, neste mesmo momento em que estais sentados e que o vosso corpo toca na terra, dizei-lhe: Terra, terra, latejas de vida como eu. Insufla em mim o bafo das tuas entranhas.
E assim a terra se move por baixo de vós, e por cima de vós o céu agita as suas asas.
Regressai aos vossos lares, enfrentando as águas que vão cair e separar-vos para sempre do "ontem".
Ide, com a esperança de vos tornardes homens da Estrela da Manhã e mulheres da Estrela de Alva.
Ainda não sois homens, ainda não sois mulheres...
Ramon levantou-se, dando o sinal de retirada. Logo todos se puseram de pé, empurrando-se, acotovelando-se, com a silenciosa pressa mexicana que parece deslizar rente ao solo.
O vento desencadeado uivava de encontro às mangueiras. Os homens seguravam o chapéu na cabeça e corriam de joelhos curvados, com as serapes a flutuar, enquanto as mulheres, cingindo a si o rebozo, fugiam, descalças, para ozaguán.
Junto do portão aberto estava um soldado de espingarda a tiracolo e lanterna na mão, alumiando aqueles que passavam calados e velozes e se dispersavam na alameda escura como pedacinhos de papel levados pelo vento. Num instante todos desapareceram.
Martin fechou o portão. O soldado pousou a lanterna no banco de pau e juntou-se aos camaradas alapardados nos seus capotes pretos, semelhantes a um molho de cogumelos na caverna do zaguán.
- Vai chover! - gritaram as servas excitadas quando Kate subia os degraus com Dona Carlota.
O lago, absolutamente negro, parecia uma cratera enorme. Em rajadas violentas, o vento traspassava as mangueiras com um som de membrana a rasgar-se. Os loendros curvavam-se no jardim, varriam o solo com as suas flores brancas, espectrais à luz do candeeiro que brilhava na parede junto da porta da entrada. Uma palmeira nova sacudia-se, dobrada, juncando o chão com as suas folhas. Nas trevas para além do mundo rolava um carro invisível...
Ao longe, na outra banda do lago, os raios traçavam no céu inscrições fulgurantes. E o trovão dir-se-ia ribombar nas entranhas da terra, surdo, aveludado.
- Isto chega a meter medo! - exclamou Dona Carlota, tapando os olhos com a mão e correndo a refugiar-se num canto recuado da sala deserta.
Cipriano e Kate demoraram-se no terraço olhando para as flores que voavam dos vasos e desapareciam no vácuo de trevas. Kate agarrava no xaile, mas o vento engolfou-se na serape de Cipriano, levantou-a ao ar e em seguida deixou-lha cair sobre a cabeça, tal uma chama rubra. Kate viu-lhe o peito escuro e musculado enquanto os seus braços lutavam por desenvencilhar a cabeça. Como a sua beleza era primitiva e toda física, com aquela carne lisa e cheia!
Mas não emitia nenhuma radiação exterior; fechava-se dentro de si mesmo.
- Eis a chuva! - exclamou ele! - baixando a serape.
Grossas, pesadas, as primeiras gotas tombavam como dardos sobre as plantas. Kate recuou para o vão da porta. Um raio ziguezagueou sobre as montanhas, pareceu deter-se um instante e reentrou nas trevas.
Então a chuva desabou, como se lá em cima houvessem aberto um reservatório imenso, e com ela veio uma lufada de ar frio. Ora num lado ora noutro, sucediam-se os relâmpagos, enchendo a atmosfera duma claridade azul e fugaz. Surgiam as árvores e o jardim fantasma, e logo desapareciam, enquanto o trovão ribombava.
Kate olhava pasmada para aquele dilúvio. Ao clarão momentâneo via o jardim já transformado em poço, as alamedas em ribeiras. Sentindo frio, recolheu-se dentro de casa.
Munido de lanterna, um criado pesquisava todos os aposentos para ver se andariam por ali escorpiões. Encontrou um a passear no quarto de Kate e outro em cima da cama de Carlota, caído duma viga do tecto.
Sentadas na sala, Kate e Carlota baloiçavam-se nas cadeiras, aspirando o bom ar fresco e húmido. Kate quase já se esquecera do que era frescura e humidade. Aconchegou o xaile ao pescoço.
- Ah, sente frio! Agora é preciso tomar cuidado com as noites... Às vezes, na época das chuvas, as noites são frigidíssimas. Devemos ter sempre à mão um cobertor suplementar. Os servos, coitados, limitam-se a tiritar, estendidos no chão, e de manhã estão gelados como cadáveres. Mas o sol depressa os aquece. Parecem julgar que são obrigados a suportar tudo o que vier, pois nunca tomam providências, embora se queixem.
O vento acalmara-se de repente, Kate sentia-se inquieta, mal disposta, com o bafo da água, quase de gelo, nas narinas, e o sangue ainda a arder-lhe nas veias. Levantou-se e foi para o terraço. Cipriano continuava ali, imóvel e impassível, envolto na sua serape vermelha e preta.
A chuva diminuía. Em baixo, no jardim, duas criadas corriam descalças, à débil claridade do candeeiro do zaguán; colocaram latas vazias debaixo dos fios de água que tombavam do telhado, e depois foram buscar os recipientes cheios. Isso poupava-lhes o trabalho de acarretar água do lago.
- Que pensa a nosso respeito? - perguntou Cipriano a Kate.
- Acho um povo muito estranho...
- Mas bom, não é verdade? - volveu o general em tom jubiloso.
- Um tanto assustador - replicou ela, rindo.
- Depois de se habituar parecer-lhe-á natural. E quando estiver num país como a Inglaterra, onde tudo é tão seguro e tão fácil, sentirá saudades e passará o tempo a perguntar a si mesma: O que é que me falta? O que é que falta aqui?
Dir-se-ia exprimir-se com maligna satisfação. E era curioso que ele, embora falasse bom inglês, parecesse sempre estrangeiro aos ouvidos de Kate, muito mais do que Dona Carlota com o seu espanhol castiço.
- Não compreendo que as pessoas queiram ter tudo, a vida inteira. Tudo tão seguro, tão pronto como na Inglaterra e na América. É bom estar alerta, no que vive, não?
- Talvez - concordou ela.
- Por isso gosto de ouvir Ramon dizer ao povo que a terra é viva, que o céu tem uma ave enorme lá dentro, mas que se não vê. Acredito nisso. E convém sabê-lo, pois assim continuamos no que vive.
- Não será fatigante?
- Ora, porquê? Pelo contrário, é repousante. Ah, a senhora devia casar e residir no México. Estou certo de que acabaria por gostar disto. Em cada manhã despertaria mais encantada.
- Ou cada vez mais enterrada. É o que sucede, julgo eu, a muitos estrangeiros.
- Enterrar-se? Como? Isto é um país onde a noite é noite e a chuva que cai é realmente chuva. E tem aqui um povo com o qual precisa de estar sempre alerta. Não acha admirável? Não poderá deixar-se adormecer. Veja, por exemplo, Ramon. Que pensa dele?
- Não sei. Não quero dizer nada, mas acho-o... longínquo. Custa a crer que seja mexicano.
- Pois é mexicano, não tenha dúvida.
- Não como o senhor. Dá-me a impressão de pertencer à velha Europa.
- Eu então considero-o pertencente ao velho México... E também ao novo - acrescentou de súbito.
- Todavia não acredita nele.
- Como?
- Não acredita nele. Considera aquilo, como tudo o mais, uma espécie de jogo. Aliás, para vós, mexicanos, tudo é uma espécie de jogo... No fundo, não crê em nada.
- Não creio em Ramon? Talvez não seja uma fé que me leve a ajoelhar à sua frente e a derramar-lhe lágrimas nos pés. Mas creio nele, e vou dizer-lhe o motivo: porque tem o poder de me fazer acreditar.
- Estranha fé, imposta pelos outros.
- Como se há-de crer, se não nos compelirem a isso? Quando eu era muito novo sentia-me infeliz porque o meu padrinho me não forçava a crer. Mas Ramon força-me... E é para mim uma felicidade saber que não posso escapar... como será também para si...
- Saber que não posso escapar a Don Ramon? - replicou
Kate ironicamente.
- Sim, e saber que não poderá evadir-se do México, nem fugir
de um homem como eu...
Kate ficou um instante calada antes de responder em tom sardónico:
- Não me parece que me cause muita alegria saber que não posso sair do México. Pelo contrário, não suportaria estar aqui se não tivesse a certeza de partir mais dia menos dia.
E disse consigo mesma: "Ramon talvez seja o único homem a quem eu não possa escapar completamente, porque deveras me impressiona. Mas de ti, Ciprianozinho, não precisarei de escapar porque não me apanhas."
- Ah, julga isso! - volveu ele rapidamente. - Mas é porque não sabe. Só pensa com ideias americanas. Devido à sua educação, só tem pensamentos americanos, pensamentos engendrados nos Estados Unidos. Quase todas as mulheres são assim, até as mexicanas da classe hispano-mexicana. Só possuem ideias dos Estados Unidos porque são as que condizem com os seus penteados. E o mesmo quanto a si, senhora Leslie. Pensa como uma mulher moderna porque pertence ao mundo anglo-saxónio ou teutão, e se penteia de certa maneira, e tem dinheiro, e é inteiramente livre. Mas tudo isso provém do facto de lhe haverem metido essas ideias na cabeça e não possuir outras, da mesma forma que, no México, se vê obrigada a gastar centavos e pesos por serem as moedas do país. Todavia, quando se declara livre, na realidade não o é. Vê-se forçada a pensar sempre com pensamentos americanos. Não tem maior faculdade de escolha do que uma serva. Assim como não pode deixar de comer diariamente tortillas... até que se lembre de que pode gostar doutra coisa.
- De que mais poderia eu gostar? - retorquiu Kate, escarninha.
- De outros pensamentos, de outras sensações. Receia homens como eu porque julga que a não tratariam "à americana". Tem razão. Eu não a trataria como se tratam as senhoras americanas. Porquê? Porque não o desejo, porque não me parece justo.
- Prefere tratar as mulheres como as mexicanas de outrora, não é verdade? Mantendo-as na ignorância, no cativeiro? - A voz de Kate assumira um tom sarcástico.
- Não as manteria na ignorância se elas já não fossem ignorantes. Mas o que lhes ensinaria não havia de ser conforme à educação americana.
- Então qual?
- Quien sabe! Ce reste à voir.
- Et continuera à y rester - concluiu a irlandesa, rindo.

CONTINUA

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Dez dias haviam decorrido desde a chegada de Kate a Sayula sem que Don Ramon desse sinal de vida. No entanto, quando passeava de barco, vira a casa dele na outra banda da ponta oeste do lago. Era um edifício alaranjado de dois andares, com alpendre para embarcações e bosquete de mangueiras rente à margem. Entre as árvores distinguiam-se duas filas de cabanas de adobe, a habitação dos peóns.
A hacienda fora outrora das mais importantes. Regavam-na então com a água captada nas colinas, mas as revoluções haviam destruído todos os aquedutos. Don Ramon tinha inimigos no Governo, de modo que grande parte das suas terras fora dividida entre os peóns e só lhe ficaram cerca de trezentos acres de terreno, dos quais duzentos marginavam o lago e lhe eram inúteis. Cultivava um pomar em volta da casa e cana-de-açúcar num valezito entre as colinas. Na encosta do monte viam-se campos de milho.
'Dona Carlota era rica; tirava bons rendimentos das minas de Torreon, seu berço natal.
Chegou um portador com uma carta de Don Ramon em que este pedia a Kate licença para a visitar com a esposa.
Dona Carlota era uma mulher franzina, suave, de grandes olhos um tanto assustadiços e sedosos cabelos castanhos. Filha de pai espanhol e de mãe francesa, de origem puramente europeia, em nada se assemelhava às corpulentas mexicanas de faces cobertas de pó-de-arroz. De rosto pálido, sem artifício, a figura delgada tinha qualquer coisa de inglês, que os grandes olhos castanhos desmentiam. Só falava espanhol e francês, mas o seu espanhol soava tão lento e distinto (com um leve tom de queixume) que Kate a compreendeu sem dificuldade.
As duas mulheres entenderam-se depressa, mas sentiam-se um tanto nervosas na presença uma da outra. Dona Carlota era frágil e sensível como um cão chihuahua.
Em toda a sua vida, Kate raras vezes encontrara criatura tão doce e delicada. Conversaram uma com a outra, enquanto Don Ramon se mantinha calado. Dir-se-ia que ambas se arremessavam contra aquela barreira de silêncio.
Kate percebeu logo que Dona Carlota amava Ramon, mas com um amor que se tornara voluntário. Adorara-o, e acabara-se a adoração. Duvidara dele, e duvidaria sempre.
Sentado um pouco à parte, de ar constrangido, Don Ramon baixava a bela cabeça e deixava pender as mãos entre as coxas.
- Sabe que passei há dias bons momentos? - disse Kate, dirigindo-se-lhe de súbito. - Dancei de roda do tambor com os homens de Quetzalcoatl.
- Assim me constou - respondeu ele com um sorriso forçado.
Embora não falasse inglês, Dona Carlota compreendia essa língua
- Dançou com os homens de Quetzalcoatl! - exclamou em espanhol. - Porque fez isso? Porquê?
- Estava fascinada.
- Não se deixe fascinar. Afirmo-lhe que lastimo muito que meu marido se interesse por esse movimento. É para mim um desgosto.
Juana apareceu nesse momento com uma garrafa de vermute, a única coisa que Kate podia oferecer aos visitantes.
- Foi aos Estados Unidos ver os seus filhos? - perguntou Kate. - Como vão eles?
- Bem, obrigada. Embora o mais novo continue fraquito...
- Não os trouxe consigo?
- Não. Acho que estão melhor no colégio. Aqui... aqui há muita coisa que os perturbaria. Mas hei-de cá tê-los no próximo mês a passar as férias.
- Então terei oportunidade de os conhecer - disse Kate. Virão para a casa do lago, não é verdade?
- Ainda não sei. Talvez passemos aqui alguns dias. Ando tão ocupada na Cidade do México com a minha Cuna!
- Cuna? Que é isso? - indagou Kate.
Tratava-se de um hospício de enjeitados assistido por algumas obscuras carmelitas. Dona Carlota era a directora, e Kate chegou à conclusão de que a mulher de Ramon devia ser católica fervorosa, quase exaltada. Entregava-se de corpo e alma à Igreja e àquela obra de beneficência.
- Nascem tantas crianças no México e são tão numerosas as que morrem! Se as pudéssemos salvar e preparar para a vida! Fazemos tudo o que é possível, mas ainda é pouco.
Segundo parecia, todos os nenés indesejáveis eram entregues na Cuna, como embrulhos. A mãe só tinha de bater à porta e depositar noutras mãos o pacote vivo.
- Assim, impedimos que muitas mães negligentes deixem morrer os filhos - prosseguiu Dona Carlota. - Se não nos dizem o nome da criança, sou eu que a baptizo. Já o tenho feito muitas vezes. É vulgar entregarem-nos meninos absolutamente nus, sem um trapo a cobri-los... e sem nome. E nós nunca perguntamos nada.
Nem todos os expostos ficavam no hospício. Na maior parte eram confiados a índias decentes, a quem pagavam para os criar em casa. No fim do mês, cada qual se apresentava com o seu protegido e recebia o ordenado. As índias podem ser descuidadas mas não maltratam as crianças.
Noutro tempo, informou Dona Carlota, quase todas as senhoras do México recebiam na sua casa um ou dois desses enjeitados e tratavam-nos como família. Mas perdera-se a generosidade patriarcal dos espanhóis-mexicanos e actualmente adoptavam poucas crianças. Em vez disso, preparavam-nas para ganhar a vida, ensinando-lhes qualquer ofício.
Kate ouvia com-interesse e certo constrangimento. Não lobrigava sentimentos humanos nessa caridade mexicana, e quase discordava dela. Talvez Dona Carlota fizesse tudo o que podia nesse país semibárbaro, mas fazia-o sem nenhuma esperança de êxito. Embora com a consciência de que procedia bem, tinha um pouco o ar de vítima, de uma vítima sensível, branda, um tanto assustada. Dir-se-ia que um mal secreto lhe roía o coração.
Don Ramon escutava impassível, num silêncio que se opunha ao entusiasmo caritativo da mulher. Deixava-a agir como entendia, mas contra a sua obra e a sua loquacidade mantinha-se calado, duro, numa hostilidade surda e permanente. Dona Carlota percebia-o e tremia nervosamente enquanto falava do hospício de enjeitados. Kate acabou por achar cruel a atitude de Don Ramon; parecia um ídolo de pedra.
- Porque não vem passar um dia connosco, enquanto estamos em Sayula? - sugeriu Dona Carlota. - A casa é pouco confortável, já não é como foi, mas teremos muito gosto em recebê-la.
Kate aceitou o convite e disse que preferia ir a pé. Eram apenas quatro milhas de percurso e, com a Juana, iria bem acompanhada.
-. - Mandarei um homem buscá-las - declarou Don Ramon. Será mais seguro.
- Onde está o general Viedma? - perguntou Kate.
- Faremos o possível por tê-lo connosco quando a senhora lá for - replicou Dona Carlota. - Gosto deveras de Don Cipriano, que há muitos anos conheço. Por sinal que é o padrinho do meu filho mais novo. Presentemente, comanda a divisão de Guadalajara, por isso nem sempre se encontra livre.
- Admira-me que seja general - observou Kate. - Acho-o humano em excesso.
- E, de facto, é cheio de humanidade. Mas é general, e gosta de comandar os soldados. Deixe-me dizer-lhe que se trata de uma pessoa de muita influência. Exerce grande ascendente na tropa. Crêem nele, isso não se pode negar. Possui aquele poder, inato nos chefes índios, de afeiçoar a si os militares e de os levar ao combate. Pois é assim mesmo Don Cipriano. Ninguém conseguiria modificá-lo. Julgo, porém, que lhe seria de utilidade a presença de uma mulher. Nunca teve nenhuma na sua vida! Elas não lhe interessam...
- Que lhe interessa então?
- Ah! - exclamou Dona Carlota, estremecendo como se a picassem. Lançou um olhar rápido ao marido e declarou: - Não sei. Palavra que não sei.
- Os homens de Quetzalcoatl - declarou Don Ramon com
um leve sorriso.
Mas Dona Carlota dir-se-ia tirar-lhe todo o desembaraço. Parecia contrafeito, e um tanto estúpido.
- Ah, sim, sim, os homens de Quetzalcoatl - bradou Dona Carlota, amável mas com ar de censura. - Linda coisa para ele se ocupar! - Kate percebeu que a sua interlocutora adorava esses dois homens e que tremia à ideia de se opor aos seus erros, embora jamais transigisse com qualquer deles.
Para Don Ramon representava um pesado fardo aquela cega adoração da mulher e a sua não menos cega oposição.
Certa manhã, às nove horas, apareceu o criado para acompanhar Kate à fazenda, que chamavam de Jamiltepec. Trazia um cabaz e vinha do mercado. Era um velhote de bigode grisalho e olhos juvenis, cheios de vida. Os pés, metidos em huafaches, pareciam negros de tão queimados do sol, mas o fato resplandecia de alvura.
Kate ficou radiante com essa excursão a pé. O que tornava tão aborrecida a sua existência na aldeia era a impossibilidade de passear no campo. Havia sempre o risco de um assalto. Acompanhada de Ezequiel, dera algumas voltas pelos arredores, mas já começava a sentir-se prisioneira. Foi, por conseguinte, uma alegria sair de casa.
A manhã estava clara e quente, o lago brilhava quieto, espectral. Moviam-se pessoas na margem, minúsculas àquela distância, meros pontinhos brancos: peóns que seguiam os seus burros envoltos numa leve nuvem de poeira. Kate perguntava a si mesma porque seria que os homens apareciam sempre na paisagem mexicana como pequeninas manchas; pequeninas manchas de vida.
Entraram na estrada poeirenta que levava para oeste, entre a vertente alcantilada das colinas e a nesga de planície junto ao lago. Por espaço de milha foram encontrando vivendas, muitas delas fechadas, outras destruídas, já sem muros nem janelas. Todavia desabrochavam flores entre os montes de cascalho.
Nos terrenos vagos havia delgadas cabanas de palha dos indígenas - como que nascidas ali, ao acaso. Perto do caminho por baixo de um outeiro viam-se choças de adobe, semelhantes a caixas cinzento-escuras. Em volta corriam aves domésticas, grunhiam e refocilavam porcos pardacentos ou malhados de preto. Crianças seminuas, de um tom castanho-alaranjado, brincavam ou jaziam estiradas no chão, a dormir, com as nádegas à mostra.
Muitas das casas estavam a ser cobertas de colmo novo ou reteIhadas por indivíduos que assumiam ares de importância por se encarregarem desse trabalho. Mostravam-se também apressados, pois não tardariam a vir as chuvas torrenciais. E, na banda do lago, havia quem andasse a lavrar a terra dura com uma junta de bois e um pau forte e aguçado.
Mas Kate conhecia essa parte do caminho. Vira já a bela vivenda da colina, com os seus tufos de palmeiras que ladeavam as alamedas desertas. A estrada descia novamente para o lago, entre árvores frondosas de vagens retorcidas. À esquerda, a água mansa, gelatinosa, lambia as pedras amareladas. Numa poça da praia estavam mulheres a lavar roupa, e, nos baixios, banhavam-se duas raparigas com os cabelos negros pendentes e gotejantes. Mais adiante, um homem patinhava lentamente, detendo-se para arremessar com perícia a rede à água e depois recolhê-la cheia desses peixinhos luzidios a que chamam charales. Tudo estranhamente silencioso e remoto na manhã cintilante.
Vinha do lago uma leve brisa, mas a poeira da estrada queimava os pés. À direita erguia-se o monte, abrupto, ressequido e amarelo, exalando calor e aquele cheiro característico do México que se diria ser a evaporação duma terra cada vez mais calcinada.
Desfilavam continuamente filas de burros carregados, trotando na poeira e seguidos pelos condutores que marchavam erectos e rápidos, olhando com olhos semelhantes a buracos negros mas respondendo sempre à saudação de Kate com um respeitoso adiós. E Juana ecoava com o seu lacónico adiósm. Caminhava coxeando e achava tristíssima aquela ideia da niña de percorrer quatro milhas a pé, quando poderiam ir num automóvel de aluguer, de barco ou mesmo de burro.
Mas a pé! Kate percebia todos os sentimentos da criada no seu arrastado e sardónico adiósn. Em compensação, o homem de Ramon vinha animadamente atrás delas, dirigindo saudações alegres, com a pistola bem em evidência no cinto.
A estrada contornava um rochedo amarelo e escarpado para desembocar num campo aberto, onde se alastravam espinheiros e cactos poeirentos. À esquerda, distinguia-se a mancha verde dos salgueiros à beira do lago. À direita, as colinas inclinavam-se sobre o flanco árido das montanhas. Em frente, os outeiros ladeavam as margens do lago e afastavam-se, descobrindo uma espécie de garganta que conduzia à casa de Don Ramon e à sua plantação de cana-de-açúcar.
- Aqui temos Jamiltepec, a hacienda de Don Ramon, señorita - anunciou o homem.
Os olhos luziam-lhe ao proferir estas palavras. Era um peón orgulhoso e sem dúvida feliz com a sua sorte.
- Que lonjura! - exclamou Juana.
- Para outra vez virei só ou com o Ezequiel - replicou Kate.
- Não diga isso, niña! Só me queixo do pé, que me dói hoje a valer.
- Por isso mesmo é melhor não vires comigo.
- Não, niña. Gosto muito de vir.
Giravam alegremente as asas do moinho que puxava a água do lago. Entre as colinas descia o valezito onde deslizava um riacho e na parte mais larga viam-se bananeiras que uma cortina de salgueiros resguardava da brisa lacustre. No cimo da encosta, onde o caminho se embrenhava na sombra de mangueiras, elevavam-se dois renques de casas de adobe, tal uma aldeia um pouco recuada.
Surgiam mulheres entre as árvores, que vinham do lago com seus cântaros de água ao ombro. De roda das portas brincavam crianças, arrastando o traseiro nu na poeira do chão. Aqui e ali, uma cabra amarrada. E, apoiados na esquina da casa, ou encostados à parede, estavam homens de braços e pernas cruzados, mas não em dolce far niente. Pareciam esperar, esperar eternamente por qualquer coisa.
- Por aqui, señorita ! - disse o homem do cabaz, indicando um caminho que descia entre árvores frondosas até ao portão branco da hacienda. - Já cá estamos.
Mostrava-se tão contente como se houvesse chegado ao Paraíso.
Encontravam-se abertas as portas do zaguán, ou entrada, a cuja sombra descansavam dois soldados. No espaço em frente do portão, passavam nesse momento dois peóns, cada qual com um cacho de bananas à cabeça. Os soldados disseram qualquer coisa e aqueles detiveram-se e voltaram-se lentamente com a sua carga verde para observarem Kate, Juana e Martin - o homem que as acompanhava. Depois retomaram a sua marcha.
Os soldados levantaram-se e Martin conduziu Kate pela passagem abobadada, onde as rodas dos carros haviam cavado fundos sulcos. Juana seguia-os com expressão lastimosa.
Kate achou-se num pátio enorme, cercado em três lados por muros altos, alpendres e estábulos. Ao fundo era a casa de residência, com as suas janelas gradeadas e, em vez de porta, outro zaguán de batentes fechados, espécie de corredor ao longo do edifício.
Martin avançou para tocar a aldraba, e Kate olhou entretanto à sua volta. Num alpendre, estavam homens seminus a empacar cachos de bananas. Noutro lado, serravam paus e descarregavam telhas de cima dum burro. A um canto viam-se bois atrelados a uma carroça, de cabeça pendida sob a canga, como se esperassem.
Abriram-se as portas e Kate entrou no segundo zaguán. Era uma entrada larga, com seu lanço de escadas a um lado e um portão gradeado ao fundo, através do qual se via o jardim orlado de mangueiras e, mais abaixo, o lago com o seu porto artificial onde baloiçavam dois barcos.
Nas costas dos recém-vindos, a criada fechou a porta que dava para o pátio e indicou a Kate as escadas.
- Por aqui, señorita.
Badalava uma sineta lá no cimo. Kate subiu os degraus de pedra, ao encontro de Dona Carlota, que a esperava no patamar, vestida de musselina branca, o que, pelo contraste, lhe dava um tom amarelo às faces. Estendeu os braços magros e bronzeados, acolhendo Kate com extraordinária efusão.
- Muito prazer em vê-la aqui! E veio todo o caminho a pé, com este sol! Entre, entre e descanse.
Pegou na mão de Kate e levou-a através do terraço, no topo da escada.
- Que linda vista! - exclamou Kate, contemplando o lago para além das mangueiras. Na água pálida, irreal, vogava ao longe um barco de vela. Para além, elevavam-se as montanhas de gargantas azuladas, com a mancha branca duma aldeia. Dir-se-ia outro mundo, perdido na luz da manhã, outra vida.
- Que povoação é aquela? - perguntou Kate.
- Acolá? É San Ildefonso - respondeu Dona Carlota.
- Como este sítio é belo! - disse Kate.
- Hermoso, si! Si, bonito - retorquiu a outra em espanhol, conforme o seu costume.
A casa, de um vermelho-alaranjado, tinha duas alas voltadas para o lago. com o seu murinho coroado de plantas verdes, o terraço cercava três lados do edifício; suportavam o telhado largos pilares que partiam do solo, formando em baixo uma espécie de claustro ocupado ao centro por um tanque cheio de água.
- Venha - disse Dona Carlota. - Precisa de descansar.
- Gostaria de mudar de sapatos - declarou Kate. Levaram-na a um quarto espaçoso, um tanto vazio, de chão de
tijolos. Aí, Kate calçou as meias e os sapatos que Juana trouxera num embrulho e estendeu-se um momento para repousar.
E, enquanto repousava, ouvia o rufar surdo do tambor, no profundo silêncio da manhã, só perturbado pelo canto dum galo longínquo. Aquele som contínuo, insistente, enchia-a de mal-estar. Parecia o ribombo duma tempestade desencadeando-se no horizonte.
Kate levantou-se e dirigiu-se para o salão onde Dona Carlota estava sentada a conversar com um homem vestido de preto. com as suas três portas envidraçadas abertas sobre o terraço, chão de ladrilhos vermelhos, paredes pintadas de verde-claro, tecto de barrotes caiados e escassez de mobília, aquilo parecia mais um caramanchel do que um salão. Como em muitas casas dos países quentes, tinha-se a impressão de não se estar dentro de quatro paredes, mas sim de três; um lugar de passagem, e não para ficar.
À chegada de Kate, o homem de preto levantou-se, apertou a mão a Dona Carlota e, baixando a cabeça num comprimento cerimonioso, desapareceu por uma das portas do terraço.
- Entre, entre! - disse Dona Carlota a Kate. - Já não se sente cansada? - acrescentou, avançando uma das cadeiras de junco que estava negligentemente colocada no meio da sala.
- Absolutamente nada - respondeu Kate. - Como esta região é silenciosa! Só se ouve o tambor, o que talvez nos faça notar mais o silêncio.
- Ah, esse tambor! - exclamou Dona Carlota, erguendo a mão num movimento de exaspero. - Não posso com isso! Detesto ouvi-lo.
E moveu-se na cadeira de baloiço, com súbito nervosismo.
- É um som realmente impressionante - redarguiu Kate. - Que significa, afinal?
- Não mo pergunte! São coisas de meu marido. - E Dona Carlota fez novo gesto de desespero.
- Don Ramon é que toca o tambor?
- Não, não! - Dona Carlota pareceu sobressaltada àquela pergunta. - Não é ele que toca. Trouxe dois índios do Norte para se desempenharem desse trabalho.
- Ah, sim? - volveu Kate, sem se comprometer. Mas Dona Carlota balançava-se numa espécie de semi-inconsciência e só daí a instantes pareceu voltar a si.
- Tenho de desabafar com alguém! - disse, de repente, endireitando-se na cadeira, com uma expressão de angústia espelhada nos grandes olhos castanhos e no rosto cor de nata. - Posso desabafar consigo?
- Certamente - respondeu Kate, constrangida.
- Sabe o que Ramon anda a fazer?
- Julgo que pretende ressuscitar o culto dos deuses antigos.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, com outro aceno de mão desesperado. - Como se isso fosse possível! Os deuses antigos! Imagine-se! Que são eles senão ilusões mortas? E feias, repulsivas! Sempre pensei que meu marido fosse inteligente, muito superior a mim, e é triste ter de mudar de opinião. Tudo aquilo é um disparate. E ele atreve-se a tomar a sério o que não passa de um disparate!
- Talvez Don Ramon creia...
- Mas como pode ele crer? - replicou a dona da casa, com um sorriso desdenhoso. - É instruído, não pode acreditar em semelhante tolice.
- Então qual é o seu objectivo?
- Isso é que eu gostaria de saber. - Na voz de Dona Carlota transparecia indizível cansaço. - Penso que está louco, como acontece a tantos mexicanos. Louco como o bandido Francisco Villa.
Lembrando-se do rosto simiesco do famoso Pancho Villa, Kate não foi capaz de o associar a Don Ramon.
- Desde que se elevam na sociedade os mexicanos perdem a cabeça, o orgulho transtorna-os. Não pensam em mais nada senão na sua importância. Pura vaidade masculina. Não acha, señora, que a vaidade é o começo e o fim do homem? Jesus veio ao mundo para combater esse perigo, ensinando-nos a ser humildes. Por isso odeiam Cristo e os Seus ensinamentos, e deixam-se guiar pela vaidade durante toda a vida.
A mesma reflexão ocorrera a Kate muitas vezes, e concluíra que nos homens só existia vaidade. Precisavam de ser lisonjeados, de sentir a sua grandeza, nada mais.
- O que meu marido pretende é opor-se a Jesus, elevar o orgulho e a vaidade acima de Deus. Ah, é horrível! Horrível e infantil. Que são os homens senão crianças que necessitam dos cuidados da mãe? Ah, señora, é mais do que posso suportar!
Dona Carlota cobriu a cara com as mãos.
- Em todo o caso, acho o seu marido uma pessoa excepcional - disse Kate para a consolar, embora nesse momento detestasse Don Ramon.
- Sim, possui grandes qualidades, mas de que lhe servem se estão pervertidas?
- Explique-me ao certo: o que é que ele pretende, afinal?
- O poder, o poder absurdo e maléfico, como se já não houvesse bastantes poderes maléficos por todo este país. Quer ser mais do que os outros, adorado, venerado. Um deus! Ele, a quem embalei nos braços como uma criança, querer que o adorem!
E Dona Carlota desatou num riso estridente pontuado de soluços.
Kate esperou que ela se acalmasse.
- No fim de contas - disse, quando a viu mais sossegada - não somos responsáveis pelo que fazem os maridos. Aprendi à minha custa que todo o amor é impotente perante a vontade dos homens. Meu marido quis morrer, e não pude impedi-lo... Temos de os deixar fazer tudo o que querem, até as coisas que nos parecem insensatas.
Dona Carlota ergueu os olhos para Kate.
- Gostava muito do seu marido... e ele morreu? - perguntou em voz suave.
- Amei-o deveras, e não tornarei a gostar doutro homem. Perdi a faculdade de amar.
- De que morreu?
- Por sua culpa. Despedaçou o coração e a alma com a política irlandesa. Eu sabia que ele fazia mal em se ocupar disso. Que nos importava a Irlanda, o nacionalismo, as revoluções e todas essas tolices? Ah, se o Joachim se limitasse a viver em paz comigo, poderíamos ser tão felizes! Em vão tentei convencê-lo. Queria matar-se com aquela estúpida política, e não consegui evitá-lo. Foram inúteis todos os meus esforços.
Dona Carlota olhou fixamente para Kate.
- Assim como são os meus para impedir que Ramon proceda mal e se mate... E depois de morto, de que servirá tudo aquilo?
- De nada. Depois de eles morrerem, ficamos a saber que foi inútil todo o trabalho que tiveram.
- Oh, señora! Se pode ajudar-me a salvar Ramon, ajude-me! É uma questão de vida ou de morte para nós ambos. Porque eu morrerei se ele levar a sua avante...
- Explique-me bem qual é a ideia de Don Ramon. A do meu marido era libertar a Irlanda e engrandecer o povo. Mas eu nunca acreditei que os irlandeses fossem jamais um grande povo nem que se pudesse torná-lo livre. Só sabe destruir, e destruir estupidamente. Não se pode fazer livre um povo que o não é. Existe nele qualquer coisa que o impele à destruição.
- Bem sei, bem sei. Da mesma forma é Ramon. Até quer destruir Jesus e a Virgem Maria por amor do povo. Imagine! Derrotar Jesus e a Virgem! A última coisa que se podia pensar...
- Mas o que diz ele quanto ao seu projecto?
- Diz que pretende estabelecer um novo nexo entre o povo e Deus. Declara, por seu lado, que Deus é sempre Deus, mas que o homem perdeu a sua união com a divindade... e que não é possível restaurá-la sem que venha um novo Deus. E que qualquer novo nexo tem de ser diferente do antigo, embora Deus continue a ser Deus. Neste momento, declara meu marido, o povo perdeu o seu Deus. O Salvador já não será capaz de o reconduzir a Si. Precisa-se de outro Salvador, com uma nova visão. Ah, señora, eu não creio nisto! Deus é amor e, se Ramon se submetesse, ao menos, ao amor, compreenderia que aí é que estava Deus. Mas qual! É tão perverso! Poderíamos, ambos, com amor calmo, gozando a beleza do mundo, esperar pelo amor de Deus... Porque é, señora, que ele não vê isto? Oh, porque não compreende? Em vez de fazer estas coisas...
Acudiram lágrimas aos olhos de Dona Carlota, as quais se lhe espalharam pelo rosto. Kate também chorava.
- É inútil! - disse ela, soluçando. - Sei que é inútil, faça-se o que se fizer. Não querem ser felizes e estar em paz, mas sim esta luta e esses falsos e horríveis nexos... Sim, é inútil, de qualquer forma. E nisto é que está o pior.
E as duas mulheres, sentadas nas cadeiras de baloiço, soluçavam amargamente quando ouviram passos no terraço, leve ruído de pés calçados de sandálias.
Era Don Ramon, atraído inconscientemente pelo clamor daquelas criaturas pesarosas.
Dona Carlota limpou a toda a pressa os olhos e o nariz; Kate assoou-se com estrondo. No limiar da porta, Don Ramon deteve-se.
Trajava como os camponeses, todo de branco, de casaco largo e calças muito amplas. O fato era de linho, com certa goma, e tinha um brilho estranho, fora do vulgar. Por baixo do casaco, à frente, uniam-se as pontas duma faixa estreita de lã, também branca, franjada de vermelho e riscada de azul e preto. Nos pés sem meias trazia huaraches de coiro azul e negro, entrançado, com espessas solas tingidas de vermelhão. As calças estavam presas aos tornozelos por alamares de lã pretos, azuis e encarnados.
Kate, vendo-o assim à claridade do sol, vestido de uma alvura tão ofuscante, teve a impressão de que o rosto dele, escuro e emoldurado de cabelos escuros, fazia como que um buraco na atmosfera.
Don Ramon aproximou-se, com as pontas da faixa a baterem-lhe nas pernas, e as sandálias rangendo de leve.
- Muito prazer em encontrá-la - murmurou, apertando a mão da visitante. - Como veio?
Deixou-se cair numa cadeira e ficou imóvel. As duas senhoras baixaram a cabeça, como se quisessem esconder a cara. A presença do homem ainda as constrangia mais, porém o dono da casa fingiu não reparar na comoção que sentiam e fê-lo por um acto de pura vontade. Da sua presença emanava certa força e elas experimentaram um pouco de alívio.
- Não sabia que o meu marido se tornara num aldeão, num verdadeiro peón? - perguntou Dona Carlota, irónica, à sua hóspeda. - É um señor peón, como o conde Tolstoi se fez señor mujique...
- Mas fica-lhe bem - observou Kate.
- Ora aí está... Ao diabo o que é do diabo... - replicou Don Ramon.
Havia nele algo de tenaz, de inflexível. Riu, e falou às senhoras, mas sem se revelar muito, apenas superficialmente. O seu ser íntimo, insondável e poderoso, não entrava em contacto com elas.
Assim foi durante o almoço. Houve conversa esvoaçante, com intervalos de silêncio. Nesse silêncio percebia-se que Don Ramon vivia noutro mundo; e a sua vontade calma, obrando noutra esfera, fazia recuar as mulheres para a sombra.
- A señora é como eu, Ramon - disse Dona Carlota. - Não tolera o rufar do tambor. Irá continuar aquilo, pela tarde adiante?
Seguiu-se uma pausa antes que ele respondesse:
- Só depois das quatro horas.
- Temos, então, de aturar hoje esse barulho? - insistiu Dona Carlota.
- Porque não há-de ser hoje como nos outros dias? - ripostou o marido. Notava-se-lhe um ar contrariado. Era evidente que pretendia subtrair-se à presença daquelas duas.
- Porque a senhora está cá, e eu estou também, e porque nenhuma de nós gosta daquele som. Amanhã já ela se vai embora, e eu regresso à cidade. Porque não nos poupas esse tormento? E
Ramon fitou a mulher, e em seguida Kate. Os olhos denotavam cólera. Kate quase ouvia, naquele peito forte, o coração inchar de furor. Mas calou-se e a outra também se calou. No fundo, estavam satisfeitas por terem podido despertar a ira do homem.
Mantendo o sangue-frio, Don Ramon inquiriu da esposa (não sem que se lhe percebesse a indignação):
- Porque não levas a senhora Leslie até ao lago?
- Não nos apetece.
Ele então fez o que a irlandesa nunca vira ninguém fazer. Encerrou-se dentro de si mesmo, deixando às duas comensais a impressão de se encontrarem diante duma porta que se fechou. Kate sentiu-se abandonada e deprimida, mas a pouco e pouco a irritação tingiu-lhe as faces pálidas dum rubor de fogo.
- Posso ir-me embora antes das quatro horas - declarou.
- Não, não! - acudiu, suplicante, a dona da casa. - Não me deixe. Fique comigo até à noite e ajude-me a distrair Don Cipriano, que vem jantar connosco.

XI
Acabado o almoço, Ramon recolheu ao quarto para dormir a sesta. A tarde estava quente, pesada. No extremo oeste do lago erguiam-se nuvens cintilantes, quais mensageiros da tempestade. Ramon fechou as janelas do seu aposento de modo a obter negrume total; apenas aqui e ali, filtrando-se pelos interstícios da porta, os raios de luz pousavam nas trevas como uma coisa tangível.
Despiu a roupa e ergueu acima da cabeça os punhos fechados, como se orasse intensamente e de pé. Nos seus olhos só havia escuridão, e a pouco e pouco essa escuridão atingiu-lhe o cérebro, apagando-lhe todos os pensamentos. Só uma vontade poderosa se distendia e emanava da espinha dorsal, numa tensão sobre-humana até que as flechas da alma atingiram o alvo e a oração a sua meta.
Então, bruscamente, tombaram os braços trémulos, o corpo readquiriu a flexibilidade. O homem recuperara a sua força. Quebrara as cordas do mundo e sentia-se livre e senhor da outra força.
Devagarinho, com precaução, esforçando-se por não pensar, não se recordar, não despertar as serpentes venenosas da consciência, enrolou-se num cobertor delgado e estendeu-se no chão sobre uma pilha de coxins. Daí a instantes, adormecia.
Dormiu profundamente cerca de uma hora. Abriu os olhos de repente, viu as trevas aveludadas e as frechas de luz diminuídas: o sol mudara. Pôs-se à escuta. Parecia não haver um único som no mundo. Talvez não existisse mundo...
Então começou a ouvir. Distinguiu o débil rumor duma carroça, folhas sussurrando ao vento, o som distante de pancadas, o pio duma ave.
Levantou-se, vestiu-se com rapidez às escuras e foi abrir as janelas. A tarde ia em meio; soprava uma aragem quente, amontoavam-se a oeste nuvens escuras, mas a chuva não se decidia a cair. Ramon pôs na cabeça um chapéu de palha, que tinha à frente um enfeite de penas brancas, pretas e azuis dispostas em forma de olho, ou de sol. Ouviu vozes femininas. Ah, a estrangeira! Esquecera-a por completo. E Carlota! Carlota encontrava-se ali. Por um momento, pensou nela e na sua caprichosa oposição. Depois, antes que a ira o dominasse, soergueu o peito, em nova oração muda, os olhos sombrearam-se-lhe - e perdeu a impressão de contrariedade.
Seguiu pelo terraço até à escada de pedra que conduzia à entrada e atravessou o pátio, onde dois homens, debaixo dum alpendre, carregavam azêmolas com fardos de bananas. No zaguán dormiam soldados. Pelas portas abertas, Ramon viu ao fundo da alameda um carro de bois afastando-se lentamente. No pátio ressoavam marteladas numa bigorna: era um homem e um rapazito ocupados na forja. Noutro alpendre, um carpinteiro aplainava tábuas.
Don Ramon deteve-se um momento para olhar em volta. Aquele era o seu mundo. O espírito dele espraiava-se nesse mundo como uma sombra fomentadora, e o silêncio do seu próprio poder dava-lhe paz.
Os homens que trabalhavam tiveram quase instantaneamente consciência da presença do patrão. Um após outro, os rostos escuros e ardentes ergueram-se para ele e voltaram a baixar-se. Gostavam de o ver ali, mas temiam aproximar-se e nem se atreviam a um olhar mais prolongado. Retomaram o trabalho com mais ardor, como se a presença do patrão lhes desse novo alento.
Ramon dirigiu-se para a forja, onde o rapazinho dava ao fole e o homem batia pancadas leves e rápidas num pedaço de ferro.
- É a ave? - perguntou Ramon.
- Sim, patrón, é a ave. Está bem! - E o homem levantou os olhos pretos, luzidios, expectantes. com uma tenaz, brandiu a tira de metal, negra, em forma de língua achatada, e Ramon observou-a demoradamente. - As asas ponho-as depois - explicou o ferreiro.
com as mãos escuras e nervosas, Don Ramon traçou uma linha imaginária em volta do pedaço de ferro. Três vezes fez esse gesto, que parecia fascinar o ferreiro.
- Um pouco mais alongado. Assim... - disse Ramon.
- Sim, patrón, compreendo.
- E o resto?
- Está ali. - O homem apontou para dois arcos, um maior que outro, e para várias chapas de ferro triangulares.
- Coloca tudo isso no chão.
O ferreiro pousou os arcos, um dentro do outro, e em seguida dispôs com perícia os triângulos de modo que as bases ficassem sobre o arco exterior e os vértices no círculo interior. Eram sete.
Assim formaram um sol de sete pontas.
- Agora, a ave - ordenou Ramon.
O homem pegou logo na peça comprida: era a forma rudimentar dum pássaro, com dois pés mas ainda sem asas. Colocou-a no centro da roda interior, de maneira que as patas tocassem no círculo e a cabeça atingisse a parte oposta.
- Está tudo certo!
Ramon contemplava o símbolo de ferro armado no chão quando ouviu abrir a porta de casa. Kate e Carlota avançaram através do pátio.
- Retiro isto? - inquiriu o ferreiro.
- Deixa, não faz mal - respondeu Don Ramon tranquilamente.
Kate deteve-se a observar aquela coisa estendida no chão.
- Que é isso? - perguntou.
- A ave dentro do sol.
- Representa uma ave?
- Quando tiver asas.
- Ah, faltam-lhe as asas! E de que serve?
- É um símbolo para o povo.
- é bem bonito...
- Sim, é bonito.
- Ramon, não te importas dar-me a chave para tirar o barco?
- disse Dona Carlota. - Vamos dar um passeio no lago, e Martin remará.
O marido tirou a chave da cinta.
- Onde descobriu essa linda faixa? - indagou Kate. Era branca, com riscas azuis e pretas e franjadade vermelho.
- Teceram-na aqui - informou Don Ramon.
- E as sandálias? Também as fizeram cá?
- Sim, foi obra do Manuel. Mais tarde lho mostrarei...
- Gostaria bastante de ver. São belíssimas, não acha, Dona Carlota?
- Acho, mas não sei se as coisas belas são sensatas. Não sei. E a señora, sabe o que é sensato?
- Eu? - volveu Kate. - Não me preocupo muito com isso.
- Ah, não se preocupa! Afigura-se-lhe então sensato da parte de Ramon usar traje de camponês e huaraches?
Pela primeira vez, Dona Carlota exprimira-se em língua inglesa, falando com lentidão.
- Fica-lhe tão bem! - replicou Kate. - O fato de homem é medonho e Don Ramon parece magnífico com este.
De facto, com o largo chapéu pousado na cabeça ele tinha certo ar de nobreza e autoridade.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, fixando na companheira o seu olhar inteligente, enquanto brincava com a chave. - Vamos para o lago?
As duas mulheres afastaram-se. Rindo consigo mesmo, Ramon atravessou o pátio e dirigiu-se a uma granja construída perto das árvores. Entrou e assobiou baixinho. Soou outro assobio como resposta e abriu-se um alçapão. Don Ramon subiu a escada e encontrou-se numa espécie de oficina de carpinteiro. Acolheu-o um rapaz corpulento, de cabelo encaracolado, que empunhava maço e escopro.
- Que tal vai isso? - perguntou Ramon.
- Vai bem.
O artista esculpia uma cabeça de madeira. Uma cabeça avantajada, convencional, mas que, apesar do convencionalismo, revelava semelhança com Ramon.
- Sirva-me de modelo durante meia hora - disse o escultor. Ramon sentou-se e ficou silencioso, enquanto o outro, curvado
sobre a sua obra, se concentrava no trabalho. Durante todo aquele tempo, Don Ramon conservou-se erecto, quase imóvel, sem pensar em nada, mas irradiando um halo sombrio de poder que fascinava o artista.
- Basta - declarou por fim, levantando-se.
- Mas ponha-se na posição antes de se ir embora - pediu o artista.
Ramon despiu lentamente o casaco e ficou de torso nu, com a faixa raiada de azul e preto de roda da cintura. Por uns instantes pareceu recolher-se e, em seguida, como se numa oração intensa e orgulhosa, ergueu o braço direito por cima da cabeça e ficou transfigurado. O braço esquerdo pendia molemente ao longo do quadril. E no rosto, esse ar de orgulho fixo e intenso que era em si mesmo uma oração.
O escultor observava-o admirado e quase temeroso. Aquele homem grande e enérgico, com os seus olhos negros dilatados pelo orgulho e no entanto cheios de oração, despertava no escultor um frémito de alegria e de medo.
Don Ramon voltou-se para ele.
- Agora, você!
O artista, assustado, quis esquivar-se, mas encontrou o olhar de Ramon e, no mesmo instante, a calma da concentração desceu sobre ele, como um êxtase. Então, bruscamente, ergueu o braço, e a face pálida e nédia adquiriu uma expressão de paz e dignidade. Os olhos cinzento-azulados, serenos e altivos, dirigiam ao Além a sua oração. E embora estivesse com a bata de trabalho, e não fosse esbelto, apresentava uma imobilidade perfeita, plena de nobreza.
- Muito bem - disse Ramon, baixando a cabeça.
O escultor moveu-se de súbito. Ramon estendeu-lhe as duas mãos e ele, levantando-lhe a dextra, pousou-a na fronte.
- Adiós! - disse Ramon, depois de enfiar o casaco.
- Adiós - respondeu o artista. E com a felicidade estampada no rosto, voltou para o trabalho.
Don Ramon visitou a casa de adobe, cujo pátio era rodeado duma paliçada de canas e sombreado por uma gigantesca mangueira. Manuel, a mulher, os filhos e dois ajudantes estavam a fiar e a tecer. Debaixo das bananeiras, duas pequenas cardavam lã branca e castanha. A mulher e uma rapariga fiavam. Numa corda secava lã tingida, vermelha, azul e verde. E, no alpendre, Manuel e um rapaz manobravam dois pesados teares.
- Como vai isso? - inquiriu Don Ramon.
- Muy bien! Muy bien! - respondeu Manuel, com uma expressão transfigurada cintilando-lhe nas pupilas negras. - Muito bem, señor!
Ramon examinou a serape que estavam a tecer. Tinha uma barra em ziguezague de lã preta natural e, em cada ponta, um ornato complicado, azul e preto. O homem começara o centro, a que chamam boca, e olhava de instante a instante para o desenho pregado no tear. Aliás, era um desenho simples, igual ao símbolo de que o ferreiro se ocupava: uma serpente a morder a cauda e, de volta, triângulos negros cujas bases se apoiavam num círculo exterior; ao meio uma águia azul, com as asas e os pés tocando no arco formado pela serpente.
Ramon voltou a casa, dirigindo-se para a ala onde se encontrava o seu quarto. Lançou uma manta dobrada sobre o ombro e seguiu pelo terraço. No extremo dessa ala, projectando-se para o lago, havia outro terraço, este quadrado, com uma bignónia cor de coral pendente dos pilares maciços. A loggia estava juncada de esteiras e, a um canto, via-se um tambor e respectiva baqueta. No ângulo mais afastado mergulhava uma escada de pedra, fechada em baixo por uma porta de ferro.
Ramon ficou uns momentos a olhar para o lago. As nuvens dispersavam-se e o lençol de água reflectiu uma claridade esbranquiçada. Ao longe, via-se a mancha de um barco, onde provavelmente se encontravam Martin e as duas senhoras.
Tirou o chapéu e o casaco, e permaneceu imóvel, nu da cintura para cima. Então pegou na baqueta e, depois de esperar uns segundos, até adquirir paz de alma, fez soar o apelo do tambor, num ritmo alternado, forte e fraco. Captara o antigo poder bárbaro de certos rufos.
Assim esteve durante algum tempo, sozinho, tocando tambor com a mão direita, de face inexpressiva.
Acorreu um homem, de cabeça descoberta, vindo do outro terraço. Trazia fato de brancura imaculada, serape escura ao ombro, e uma chave na mão. Saudou Ramon, levando à testa as costas da mão direita, e depois desceu a escada e abriu a porta de ferro.
Imediatamente chegaram homens, todos vestidos de branco, cada qual com a sua serape dobrada em cima dos ombros. Mas as faixas eram azuis, e as sandálias azuis e brancas. O escultor apareceu, assim como Martin.
Eram sete, além de Ramon. No topo da escada saudaram-no, um apôs outro. Em seguida, depuseram a manta e o chapéu no murinho do terraço e despiram o casaco, que atiraram para cima dos chapéus.
Ramon largou o tambor e sentou-se sobre a sua manta raiada de azul e preto. Todos o imitaram, formando círculo, de pernas cruzadas e torso nu. Uns eram cor de café, outros brancos; Ramon tinha a pele dum tom castanho-claro. Conservaram-se em silêncio, só perturbado pelo som igual e hipnótico do tambor que um dos homens tocava. Então este começou a cantar numa vozinha estranha, contida, essa antiga voz de falsete dos índios:
"Quem dorme despertará. Quem dorme despertará. Quem segue o caminho da serpente há-de chegar ao seu destino; há-de chegar ao seu destino e ficará revestido com a pele da serpente."
Uma por uma, outras vozes se juntaram, até que todos se fizeram ouvir, naquele ritmo cego, infalível, do antigo mundo bárbaro. E todos com idêntica voz interior, como se a alma cantasse para si própria.
Cantaram por momentos, em uníssono, qual bando de pássaros a voar levados pelo mesmo instinto. E quando o tambor vibrou num rufo que era o final da cerimónia, as vozes extinguiram-se também, simultâneas, com um estrangulamento na garganta.
Houve um silêncio. Depois os homens principiaram a conversar uns com os outros, rindo em surdina. Mas a voz deles e a expressão já não eram as mesmas de há pouco.
Don Ramon ia falar e todos se calaram, inclinando a cabeça. Aquele sentara-se, de face erguida, visando ao longe, na dignidade da oração.
- Não há Passado nem Futuro, só existe o Presente - disse em tom surdo, majestoso. - A Serpente magna dobra e desdobra os seus anéis, as estrelas surgem, os mundos desaparecem. Há somente a mudança e o repouso do plasma.
Eu sou sempre, diz o seu sono.
Assim como o homem, enquanto dorme, não tem conhecimento, mas é, também a Serpente enroscada do eterno Cosmos prolonga o seu existir de Agora.
Agora, agora só, e para sempre Agora.
Contudo os sonhos despertam e esmorecem no sono da Serpente.
E o Universo eleva-se como os sonhos e como eles expira.
E o homem é um sonho no sono da Serpente.
E apenas o sono que não tem sonhos murmura: Eu sou!
E no Agora sem sonhos, Eu sou.
Os sonhos despertam, como devem, e o homem é um sonho desperto.
Mas o plasma sem sonhos da Serpente é o plasma do homem, do seu corpo e ao mesmo tempo da sua alma.
E o sonho perfeito da Serpente Eu sou é o plasma do homem, que é íntegro.
Quando o plasma do corpo e o da alma só fazem um, Eu sou na Serpente.
Agora Eu sou.
Não foi é um sonho, assim como será, quais dois pés trôpegos e separados.
Mas Agora. Eu sou.
As árvores desdobram as folhas no sono, e a floração emerge dos sonhos no mais puro Eu sou.
Os pássaros esquecem o peso dos seus sonhos e cantam no Agora: Eu sou! Eu sou!
Porque os sonhos têm asas e pés e caminhos a percorrer, e esforços a realizar.
Mas a Serpente luzidia do Agora não tem asas nem pés, é una, perfeitamente enrolada.
Nos pés dum sonho, a lebre sobe o monte numa corrida. Mas quando se detém o sonho desaparece e ela entra no Presente e os seus olhos são o vasto Eu sou.
Só o homem sonha, sonha, e vai de sonho em sonho, como alguém que, dormindo, se agita no leito.
Sonha com os olhos e a boca, com as mãos e os pés, com o falo, o coração e o ventre, com o corpo e a alma, numa tempestade de sonhos.
E precipita-se de sonho para sonho, na esperança de alcançar o sonho perfeito.
Mas eu afirmo-vos que nenhum sonho é perfeito, porque em todos eles há sofrimento e desejo.
Nada é perfeito, excepto o sonho que falece no sono. Eu sou.
Quando o sonho dos olhos se obscurece, cercado pelo Agora,
E quando o sonho da boca ressoa no último Eu sou,
E quando o sonho das mãos dormita como uma ave no mar, que é erguida, e levada, sem que ela o saiba,
E os sonhos dos pés atingem o centro do mundo, onde a Serpente dorme,
E o sonho do corpo é a calma duma flor oculta,
E o sonho da alma se dissipou no perfume do Agora,
E o sonho do espírito se apazigua e descansa na Estrela da Manhã,
Porque cada sonho começa e termina no Presente,
No âmago da flor está a Serpente que alumia e não desperta.
E o que se apaga é um sonho, e o que se aumenta é um sonho. Há sempre, e somente Agora. Agora e Eu sou."
Reinava o maior silêncio no círculo de homens. Lá fora, rangia um carro de bois e, do lago, elevava-se o débil som de remos a fender a água. Mas os sete homens, de cabeça baixa, escutavam interiormente, numa espécie de transe.
Então o tambor começou, suavemente, e um dos homens cantou, num fio de voz:
O senhor da Estrela da Manhã
Estava entre o dia e a noite:
Tal um pássaro que ergue as asas e espera
com a asa luminosa à direita
E a das trevas à esquerda,
A Estrela de Alva apareceu.
- Olhai! Estou sempre aqui!
Longe, no espaço
Roço a asa do dia
E ilumino o vosso rosto.
com a outra asa roço a sombra.
Mas eu estou sempre aqui.
Estou sempre aqui. Sou o senhor. E os senhores entre os homens Vêem-me no cintilar das minhas asas. E perdem-me outra vez. Mas, olhai! Estou sempre aqui.
As multidões não me vêem. Só vêem o bater de asas, As idas e vindas das coisas, O calor e o frio.
Mas a vós que me vedes entre
O frémito da noite e do dia,
Faço-vos senhores do Caminho Invisível.
Caminho entre abismos de trevas e vales de luz; Caminho que segue tal rasto de serpente, tal a mecha dum rastilho
Que incendiará à substância das trevas e explodirá à vista de todos.
Jamais me afasto. Estou sempre aqui Entre as asas dum voo sem fim, Nas profundezas da paz e da luta.
Profundo no relento da paz,
Longe da orla do combate,
Haveis de encontrar-me, eu que não sou
Nem sou destruição.
Para além eu estou Dos horizontes de amor e de luta, Como uma estrela, como uma fonte Que lava os senhores da vida.
"Ouvi! - disse Ramon, no meio do silêncio. - Seremos senhores entre os homens, não os senhores dos homens. Somos senhores da noite. Senhores do dia e da noite. Filhos da Estrela da Manhã e da Estrela da Tarde.
Não somos senhores dos homens. Eu, porém, sou a Estrela da Manhã e Senhor do dia e da noite. com o poder que me foi concedido à mão esquerda e com o poder que obtive com a mão direita, sou senhor dos dois rumos.
E a minha flor na terra é o jasmim, e no céu a hespéride.
Não vos darei ordens, nem vos servirei, porque a serpente se arqueia em direcção à sua casa.
Contudo, estarei convosco, para que não vos desvieis de vós próprios.
Não há nada a dar nem a receber. Quando os dedos que dão afloram os que recebem, cintila a Estrela da Manhã a esse contacto, e o jasmim brilha entre as mãos. E assim não há dom nem aceitação, nem mão que oferece nem mão que recebe, mas a estrela encontra-se entre elas e a mão escura e a mão clara permanecem invisíveis de cada lado. O jasmim recolhe na corola o dom e a aceitação, e o seu perfume espalha-se no ar.
Não penseis em dar nem em receber, deixai isso à flor do jasmineiro.
Não vos desperdiceis, que nada vos seja arrancado.
E não percais nada, nem o aroma da rosa, nem o sumo da romã, nem o calor do fogo.
Mas dizei à rosa: - Olha, colho-te, e o teu perfume enche-me as narinas e o meu hálito penetra no teu coração. Que isso seja entre nós como um sacramento.
E tomai cuidado quando abrirdes a romã; é o Sol poente que tendes nas mãos. Dizei: - Eis-me aqui, vem! Que a Estrela da Tarde fique entre nós.
E quando a chama se eleva ao sopro do vento frio e estendeis as mãos para o calor, ouvi o que a chama diz: - Ah! És tu? És tu que vens para mim? Eu realizava a grande viagem, seguindo o caminho da serpente magna. Mas visto que vens até mim, de ti me aproximo. E se caíres nas minhas mãos cairei nas tuas, e a flor do jasmineiro perfumará o nosso encontro.
Não repilais nada nem deixeis que vos despojem. Porque repelir ou ser despojado quebra a raiz do jasmim e conspurca a Estrela da Tarde.
Não vos apodereis de nada para dizer: - Isto pertence-me. Nada existe que vos seja dado possuir, nem sequer a paz.
Nada; nem o ouro, nem a terra, nem o amor, nem a vida, nem a dor, nem a morte, nem a salvação.
De nada direis: - Isto é meu.
Dizei apenas: - Isto está comigo.
Porque o ouro só permanece convosco o espaço duma lua, e olha-vos e diz: - Encontramo-nos ligados por este breve instante.
E a terra diz-vos: - Ah, filho meu, de pai longínquo! Vem, revolve-me um pouco, para que as papoulas e o trigo cresçam e ondulem ao vento que sopra entre o meu e o teu peito. Depois, abisma-te em mim, e ambos formaremos um outeiro.
E ouvi o que diz o vosso amor: - A tua espada ceifou-me como à erva, e sobre mim está a sombra e o bruxulear da Estrela da Tarde. Não é mais do que trevas e nada. Ó tu, quando te levantares e prosseguires o teu caminho, fala-me, dize-me simplesmente: - A estrela despontou entre nós.
E dizei à vida: - Sou teu? És minha? Sou a orla do dia em volta da noite? São os meus olhos o crepúsculo onde a estrela se suspende? É o meu lábio superior o pôr do Sol e o meu lábio inferior o raiar da manhã? Tremula a estrela na minha boca?
E dizei à vossa paz: Ergue-te, estrela imortal! Já as águas da aurora te alagam e me levam no seu curso.
E dizei à dor: Machado, abates-me. E, contudo, brota uma centelha do teu gume e da minha ferida. Corta, então, que eu velarei a face, ó pai da estrela!
E dizei à vossa força: A espuma da noite sobe-me dos pés até aos rins, a espuma do dia salta-me dos olhos e da boca para o mar do meu peito. As minhas entranhas são um manancial de poder que corre pela espinha dorsal. E uma estrela flutua sobre esse fluxo.
E dizei à vossa morte: Pois seja! Eu e a minha alma iremos para ti, Estrela da Tarde. Carne, desaparece na sombra da noite. Espírito, chegou o teu dia. Deixai-me agora. Na minha nudez suprema me encaminho para a Estrela mais nua."

XII
Os homens envergaram o casaco, puseram o chapéu e, depois de cobrirem os olhos por um momento numa saudação a Ramon, desceram a escada de pedra. Fechou-se a porta com estrondo e o porteiro, voltando com a chave, pousou-a sobre o tambor e retirou-se discretamente.
Ramon ficou sentado em cima da manta, com os ombros nus apoiados à parede e de pálpebras cerradas. Sentia-se fatigado, nesse estado de abstracção que torna difícil o regresso ao mundo normal. Ouvia de modo vago os rumores na casa, tilintar de colheres de chá, vozes femininas conversando, o ronco dum automóvel que se aproximava pelo caminho desnivelado e se detinha no pátio.
Custava-lhe voltar à terra. Ressoava-lhe aos ouvidos o barulho do exterior, mas dentro dele mesmo escutava o murmúrio confuso do universo, como se num búzio. Era-lhe penoso retomar contacto com as coisas da vida corrente quando o corpo e a alma mergulhavam no cosmos.
Gostaria de se conservar ainda uns instantes no seu isolamento, mas não era possível. Reclamavam a sua presença, especialmente Carlota.
Já ela o chamava: "Ramon! Isso terminou? Cipriano está aqui." Sentia-se-lhe na voz receio e temeridade.
Ramon puxou os cabelos para trás, ergueu-se e, em passo rápido, acudiu ao chamamento tal como se encontrava, de torso nu. Não tinha vontade de se vestir, de reentrar nos pormenores da vida quotidiana.
Cipriano, fardado, achava-se no terraço abancado à mesa do chá. Levantou-se prontamente e avançou para Ramon de braços abertos, perscrutando o rosto do amigo com os seus olhos negros e brilhantes.


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Os dois homens abraçaram-se, peito contra peito, e, por momentos, Cipriano deixou estar as mãos morenas nas espáduas nuas de Ramon. Então afastou-se devagar e fitou-o sem proferir uma palavra.
Ramon pousou distraidamente a mão no ombro de Cipriano.
- Que tal? - perguntou. - Como vai isso?
- Bien. Muy bien - respondeu Cipriano, fixando-o sempre como se se procurasse a si mesmo no semblante de Ramon. Este correspondeu ao olhar do índio com um leve sorriso, enquanto Cipriano baixava a cabeça e os cabelos longos lhe tombavam na testa.
As duas mulheres observavam a cena em silêncio absoluto. Quando os dois homens se aproximaram da mesa, Carlota começou a servir o chá. Mas as mãos tremiam-lhe e ela tratou de pousar o bule e cruzá-las no regaço.
- Passearam de barco? - indagou Ramon, com ar alheado.
- Passeámos, e foi muito agradável - disse Kate. - Um bocado quente, quando o sol apareceu...
Ramon esboçou um sorriso e alisou o cabelo. Em seguida, descansando a mão no parapeito do terraço, olhou para o lago e suspirou inconscientemente.
Nu da cintura para cima, voltava costas às mulheres, contemplando a vastidão da água. Cipriano estava a seu lado.
Kate observava as espáduas lisas, morenas, que emanavam sensualidade, os ombros largos, o porte altivo da cabeça - e não podia deixar de imaginar uma lâmina cravada nessas costas magníficas, nem que fosse só para destruir a sua arrogância distante.
Porque até a sua nudez parecia distante, intangível. Pensar nela e contemplada daquele modo representava quase uma violação. Kate sentiu de súbito o coração estremecer-lhe de vergonha. Fora assim que Salomé olhara para João Baptista, e Ramon possuía essa mesma beleza que evocava uma romã destacando-se na verdura sombria da árvore.
Soprava branda a aragem da tarde. Na luz nacarada deslizavam barcos, enquanto o Sol luzia ainda no horizonte. Distinguia-se a margem oposta, a cerca de vinte milhas, embora velasse a atmosfera uma bruma opalina que se confundia com a água do lago. Kate lobrigava a mancha clara da igreja de Tuliapan.
No jardim da casa havia um bosquete de mangueiras, onde voavam cá e lá passarinhos escarlates, como botões de papoula, e outros dum amarelo cintilante. Contudo, quando pousavam por um momento e fechavam as asas, desapareciam da vista, pois eram escuros por cima.
- Neste país, os pássaros só são coloridos por baixo das asas - observou Kate.
Ramon voltou-se bruscamente para ela.
- Dizem que a palavra México significa "por baixo" - replicou, sorrindo, enquanto se afundava numa cadeira de balouço.
Dona Carlota fizera um esforço sobre si mesma e, de olhos fixos nas chávenas, servia o chá. Apresentou uma xícara ao marido, sem sequer o relancear. Tremia de cólera quase histérica. Ela, que era sua esposa desde tantos anos e que o conhecia tão bem (ah, se o conhecia!), nada possuía desse homem.
- Passa-me o açúcar, Carlota - disse Ramon na sua voz calma.
A mulher sobressaltou-se como se a beliscassem de repente.
- O açúcar? - repetiu, distraída.
Ramon estava sentado na cadeira, pendido para a frente e de xícara na mão. A tela fina que lhe cobria as coxas revelava-lhe mais o corpo do que a nudez do torso. Kate percebeu porque é que era proibido usar calças de algodão naplaza. Tornavam mais sensível a presença da carne.
Verdadeiramente belo, duma beleza que chegava a ser assustadora, irradiava uma sensualidade pura, hostil ao género de pureza de Kate, com a sua faixa azul de roda da cinta e as calças brancas parecendo fremir de vida cingidas aos quadris e às coxas. Tão poderoso fluido emitia esse ente másculo que Kate se sentia como que fascinada.
E ele, perfeitamente tranquilo, dentro do seu próprio ambiente. O mesmo acontecia a Cipriano. Ambos tão calmos, tão sombrios, dir-se-iam esmagar as duas mulheres.
Kate compreendeu então os sentimentos de Salomé. Compreendeu como João Baptista, com a sua beleza distante e inacessível, exercera tamanho poder.
"Ah! disse ela consigo mesma. - Tenho de fechar os olhos e abrir a alma. Fechar os olhos para não ver e ficar na escuridão e no silêncio junto destes dois homens. Possuem uma riqueza que me falta. Conseguiram libertar-se do desejo que a vista suscita. Sou atormentada pelo desejo, pela minha imaginação lasciva. É a maldição de Eva. Os meus olhos, a minha experiência são como um anzol que me repuxa a carne e me desperta espasmos de desejo. Oh, quem me dera libertar-me da impureza do olhar! Filha de Eva, porque é que estes homens me não arrancam às visões impuras?"
Levantou-se e dirigiu-se à beira do terraço. Amarelos como narcisos, emergiam dois pássaros da sua própria invisibilidade. Na praia de seixos, onde estava um barco varado, dois homens apanhavam à rede os peixinhos denominados chcirales, que cintilavam na água acastanhada como lascas de vidro.
- Ramon! - disse Dona Carlota. - Não vais vestir-te? Já não podia suportar aquela vista.
- vou. Obrigado pelo chá - respondeu o marido, pondo-se de pé. E seguiu pelo terraço adiante, com as sandálias a ranger de leve no pavimento de tijolos.
- señora Caterina! - chamou Carlota. - Venha beber o seu chá.
Kate voltou para a mesa, dizendo:
- Que paz se sente aqui!
- Paz! - repetiu Carlota. - Não acho paz nenhuma. O que há é um silêncio pavoroso que me causa arrepios.
- Vem cá frequentemente? - perguntou Kate a Cipriano.
- Sim, uma ou duas vezes por semana - respondeu ele, fixando-a com singular expressão nos olhos negros.
Dir-se-ia que esses homens procuravam anular-lhe a vontade.
- São horas de eu voltar para casa - declarou ela. - Não tarda que o Sol desapareça.
- Ya va? - redarguiu Cipriano, com a sua voz aveludada em que transparecia certa pena. - Já!
- Oh, não, señora! - exclamou Carlota. - Fique connosco até amanhã.
- Mas estão em casa à minha espera.
- Mandarei um rapaz prevenir que só regressa amanhã. Fica, não é verdade? Ah, ainda bem.
E Carlota, depois de pousar a mão carinhosa no braço de Kate, levantou-se a fim de avisar os criados.
Cipriano puxou da cigarreira e ofereceu-a a Kate.
- Não se escandalizará se eu fumar? - disse ela. - É um dos meus vícios.
- Fume. Não é bom sermos perfeitos.
- Acha que não? - E Kate, rindo-se, puxou uma fumaça do cigarro.
- Experimenta realmente essa paz? -inquiriu ele, irónico.
- Porquê?
- Porque é que os brancos andam sempre em busca da paz?
- Pois não é natural que todos desejem paz?
- Paz é apenas o descanso depois da guerra. Não é mais natural do que a luta; talvez até seja menos.
- Mas existe outra paz, aquela que ultrapassa o entendimento. Não sabia?
- Parece-me que não - respondeu Cipriano. - Que pena!
: - Ah! Quer ensinar-me? Mas para mim é diferente... Cada
homem tem dois espíritos. Um assemelha-se à aurora na época das chuvas, suave, fresca, húmida, com pássaros chilreando. O outro é como a estação seca, com a sua luz forte e ardente que parece nunca mais abrandar.
- Decerto prefere o primeiro.
- Não sei - replicou Cipriano. - O outro dura mais.
- Tenho a certeza que prefere a frescura da manhã - insistiu Kate.
- Não sei, não sei. - E esboçou um sorriso, deixando Kate
convencida de que ele de facto não sabia. - Na primeira fase vemos as flores nas suas hastes transbordantes de seiva. A flor desa brocha como uma face de mulher perfumada pelo desejo. Mas o sol começa a aquecer, e então tudo se modifica. As flores murcham e o peito do homem torna-se como um espelho de aço. Dentro dele tudo
- é escuridão, enroscando-se e desenroscando-se como uma cobra. As flores secaram nas hastes, as mulheres já não existem para o homem. Umas e outras desapareceram.
- Que pretende ele então? - perguntou Kate.
- Não sei. Talvez queira ser uma grande personagem, senhor de todos os povos...
- E porque não realiza essas aspirações?
Cipriano encolheu os ombros.
A señora assemelha-se à manhã de que lhe falei há pouco -
disse ele.
- Tenho quarenta anos - replicou Kate com um risinho amarelo.
O general tornou a encolher os ombros.
- Isso não interessa. O seu corpo parece o caule da flor a que
aludi, e o seu rosto será sempre a aurora na estação das chuvas.
- Porque me diz essas coisas? - volveu Kate, com involuntário e estranho tremor.
- E porque não hei-de dizer? A señora é tal uma manhã cheia de frescura, e estamos no fim da época seca...
Observava-a, e nos seus olhos brilhava o desejo, aliado a certa insolência.
Kate baixou a cabeça e balançou-se na cadeira.
- Gostaria de casar consigo - continuou Cipriano. - Se estivesse disposta a isso, desposá-la-ia.
- Não me parece que me torne a casar - ripostou Kate, anelante e de faces afogueadas.
- Quem sabe?
Ramon surgiu no terraço, com a sua bela serape dobrada sobre o ombro nu. Apoiou-se num dos pilares e contemplou Kate e Cipriano, o qual ergueu a vista e lhe dirigiu um sorriso em que transparecia a amizade que os ligava.
- Disse à señora Caterina que a desposaria se ela estivesse disposta a casar-se - declarou ele.
- É o que se chama falar sem rodeios - replicou Ramon, olhando para Cipriano com o mesmo sorriso amigo. Em seguida, o seu olhar pousou-se em Kate, enquanto o sorriso se alastrava e todo o seu rosto respirava compreensão. Cruzou os braços, como fazem os índios quando querem defender-se do frio; e a carne, dum tom castanho-claro, como ópio, formava saliências no peito largo, cheio e liso.
- Diz Don Cipriano que os Brancos só desejam a paz - proferiu Kate, fitando Ramon com deliberada impertinência. - Não se consideram brancos?
- Não mais brancos do que somos - respondeu Ramon, sorrindo. - Pelo menos, não duma brancura de lírio...
- E não buscam a paz?
- Por mim não penso nisso. Os mansos herdarão a terra, segundo a professia. Mas quem sou eu para lhes invejar a sua paz? Não señora. Por acaso pareço um evangelho de paz? Ou de guerra? A vida para mim não se resume nessas duas coisas.
- Não sei afinal o que desejam - disse Kate.
- Nós próprios não o sabemos senão em parte - replicou Ramon, mudando de expressão.
Havia nele uma espécie de bondade paternal que enchia Kate de espanto e a sobressaltava como se só agora compreendesse o verdadeiro significado de tal sentimento. Mistério, nobreza, inacessibilidade, e a vulnerável compaixão de homem na sua amizade desinteressada...
- Não gosta das pessoas de pele escura? - perguntou Ramon em tom suave.
- Acho-as belas à vista - respondeu Kate. - Mas - acrescentou, com um leve arrepio - estou contente por ser branca.
- Sente que não é possível nenhum contacto?
- Exactamente.
- É a sua impressão - volveu Ramon, e, enquanto ele falava, Kate percebeu que o considerava mais atraente do que a qualquer homem loiro e que, por muito vago que fosse, o contacto que tinha com ele lhe era mais precioso do que todos os que até aí conhecera.
Contudo, embora lhe lançasse certa sombra, não tentava influenciá-la, nem queria maior aproximação - ao passo que Cipriano, sentindo-se incompleto, a procurava e parecia violar-lhe a personalidade.
À voz de Ramon, Dona Carlota assomou a uma das portas mas, ouvindo falar inglês, tornou a sumir-se, num brusco acesso de cólera. Daí a pouco reaparecia, trazendo um vaso de flores carnudas, dum branco leitoso, semelhantes a frésias no tom e no perfume.
- Que lindas! - exclamou Kate. - São flores de igreja! No Ceilão, os indígenas entram nos seus templos e depõem uma flor num tabuleiro aos pés do Buda. E os tabuleiros das oferendas ficam cobertos dessas flores, todas muito bem arranjadas, dispostas com delicadeza oriental...
- Mas eu não as trouxe para homenagear deuses - replicou Carlota, pousando o vaso na mesa. - Trouxe-as para si, señora. Cheiram tão bem!
- De facto, têm um aroma delicioso - concordou Kate. Os dois homens afastaram-se, rindo.
- Ah, señora! - disse Carlota, sentando-se à mesa. - Pode entender Ramon? Seria capaz de renunciar à Santa Virgem? Eu antes queria morrer.
- Não precisamos doutros deuses, realmente - redarguiu Kate, com certo enfado.
- Outros deuses! - repetiu Carlota, escandalizada. - Como se fosse possível! Ramon comete um pecado mortal.
Kate conservou-se calada.
- E quer induzir o povo a fazer o mesmo - prosseguiu Carlota. - É pecado de orgulho... o pecado cardeal. Ainda bem que a señora pensa como eu. Receio as americanas que, para se apoderarem do espírito dos homens, aceitam todas as suas loucuras e perversidades... É católica, señora?
- Fui educada num convento.
- Ah, señora! Qual a mulher que tendo conhecido a Santíssima Virgem se afasta dela? Que mulher teria ânimo de crucificar Jesus novamente? Mas os homens, os homens! Aquela história de Quetzalcoatl seria coisa para rir se não fosse um pecado mortal. E da parte de dois homens inteligentes e instruídos tanta presunção!
- Os homens são assim - observou Kate.
Intensificava-se o crepúsculo; o horizonte estava ainda luminoso, mas o Sol afundara-se numa bruma cor-de-rosa, por trás das arestas da montanha. As colinas erguiam-se azuladas numa atmosfera cor de salmão que se reflectia na água. Lá adiante, onde o clarão rubro se adensava, banhavam-se homens e crianças.
Kate e Carlota subiram à azotea, o terraço que cobria a casa. Dali podiam ver a hacienda com o seu pátio semelhante a uma fortaleza, o caminho ladeado de árvores frondosas, as cabanas de adobe perto da estrada e as fogueiras já bruxuleando junto das casas. No ar róseo os salgueiros da margem pareciam mais verdes e cintilantes. Ao longe, luziam entre as árvores as duas torres brancas de Sayula. Deslizavam barcos em direcção à parte sombreada do lago.
E num desses barcos, deveras desconsolada, regressava Juana a casa.

XIII
Ramon e Cipriano encontravam-se à beira do lago. O general envergara também fato branco e sandálias, o que lhe ia melhor do que a farda.
- Tive uma conversa com Montes quando ele foi a Guadalajara - declarou Cipriano.
Montes era o presidente da República.
- E que te disse?
- Não se alarga muito a falar, mas depreendi que não simpatiza com os colegas e se sente isolado. Julgo que gostaria de te conhecer melhor.
- Porquê?
- Talvez pudesses dar-lhe apoio moral. Talvez chegasses a ser ministro; e até presidente, depois de Montes acabar o seu mandato.
- Montes agrada-me - replicou Ramon. - É sincero e ardente. Gostaste dele?
- Sim, mais ou menos - respondeu Cipriano. - É desconfiado, teme que outros pretendam compartilhar com ele o poder. Tem instintos de ditador. Quis saber se eu lhe era afecto.
- Deste-lhe a entender que sim?
- Disse-lhe que tudo o que me interessava verdadeiramente eras tu e o México.
- E que te respondeu?
- Ele não é tolo. Respondeu: "Don Ramon vê o mundo com olhos diferentes dos meus. Qual de nós terá razão? Eu quero salvar o país da pobreza e da ignorância, ele quer salvar-lhe a alma. Mas afirmo que um homem esfomeado e ignorante não tem lugar para a alma. Um ventre e um cérebro vazios roem-se a si mesmos, e a alma não existe. Don Ramon acha que um homem desprovido de alma pode passar sem o alimento do corpo e do intelecto. Pois que siga o seu caminho, que eu sigo o meu! Não nos embaraçaremos um ao outro. Dou a minha palavra que não interferirei em nada. Ele varre o pátio, eu trato da limpeza da rua.
- É sensato - comentou Ramon - e honesto nas suas convicções.
- Porque não serias ministro daqui a uns meses? E mais tarde presidente?
- Bem sabes que não é isso o que pretendo. Devo poupar-me e agir noutra esfera. A política que se mantenha ou evolua como eles entendem, a sociedade que faça o que quiser. Deixa-me em paz, Cipriano. Gostarias que eu fosse outro Porfirio Diaz, ou alguém do mesmo género, mas isso para mim seria pura e simplesmente soçobrar na vida.
Cipriano observava Ramon com os seus olhos negros e vigilantes, onde transparecia amizade, receio, confiança, mas também incompreensão, e a dúvida que sempre a acompanha.
- Não chego a perceber o que desejas - murmurou.
- Percebes, sim. A política e toda essa religião social com que Montes se preocupa equivale a lavar a casca dum ovo para lhe dar aspecto limpo. A mim, porém, só interessa o interior... Ah, Cipriano! O México é tal um ovo que o Tempo choca desde séculos neste ninho do mundo e que parece ser goro. Parece, mas não é. O que precisa é de calor que ajude a formação da ave. Montes quer limpar o ninho e lavar o ovo... Que aconteceria se tirassem um ovo de baixo duma águia para o lavar? Arrefeceria de vez. Pois quanto mais se empenharem em arrancar este povo da pobreza e da ignorância mais depressa ele morrerá. Pobre Montes! Todas as suas ideias são americanas ou europeias. E a velha pomba da Europa jamais poderá chocar com êxito o ovo escuro da América. Os Estados Unidos não morrem porque não estão vivos. É um ninho de ovos de loiça e por isso se conservam limpos. Mas aqui, Cipriano, aqui é necessário incubá-los antes da limpeza do ninho.
Cipriano baixava a cabeça. Experimentava sempre Ramon para ver se conseguia fazê-lo mudar de ideias e, depois de verificar a inutilidade dos seus esforços, submetia-se ao amigo e novas chamas de felicidade se alteavam dentro dele. Mas, entretanto, ia-o experimentando...
- Não serve de nada querer misturar as duas coisas. No ponto em que estão, não se misturam. Temos de fechar os olhos e mergulhar até ao fundo, como pescadores de pérolas. Mas andamos a flutuar à superfície, semelhantes a bocados de cortiça...
Cipriano mostrou um sorriso subtil. Tudo aquilo ele sabia!
- Temos de abrir a ostra do cosmos e extrair dela a nossa força.
Enquanto não arrancarmos a pérola não seremos mais do que mosquitos no cimo do oceano - concluiu Ramon.
- A minha força é como um demónio dentro de mim - disse Cipriano.
- Porque a ostra a retém fechada, como uma pérola negra. A ti compete libertá-la.
- Ramon, não acharias bom ser uma serpente, uma serpente enorme que se enrolasse em volta do globo e o esmagasse... como a esse ovo?
Ramon olhou-o e pôs-se a rir.
- Não me parece coisa impossível - continuou Cipriano. E não seria bom?
O outro meneou a cabeça, rindo-se.
- Pelo menos seria um momento bom.
- Que mais se pode desejar?
Brilhou nos olhos de Ramon uma centelha que logo se apagou.
- Para quê? - disse em voz surda. - Depois de esmagado o ovo que havíamos de fazer senão errar nos corredores de trevas e lamentar-nos? Para quê?
Ramon pôs-se de pé e afastou-se. O Sol desaparecera, a noite descia. Na alma daquele homem fervia uma cólera imensa, e Carlota é que a provocava. A mulher parecia incutir vida ao monstro da sua raiva íntima, e Cipriano exasperava-o.
"A minha força é como um demónio a rugir dentro de mim", disse Ramon consigo mesmo, repetindo a frase de Cipriano.
Reconhecia o direito de gritar a esse demónio humilhado e ridicularizado que vivia preso dentro dele. E a fúria apoderou-se de Ramon, contra Carlota, contra Cipriano, contra a humanidade inteira. Os seus partidários traí-lo-iam, tinha a certeza. Cipriano acabaria por traí-lo. Desde que lhe encontrassem o mínimo ponto fraco, todos saltariam sobre ele como tarântulas e infectá-lo-iam com a sua peçonha.
E qual o homem absolutamente invulnerável, sem o menor ponto fraco?
Ramon subiu ao seu quarto pela escada exterior, no lado da casa, e sentou-se na cama. A noite estava quente, pesada, e duma calma aflitiva.
- Prepara-se chuva - ouviu ele dizer a um dos criados. Fechou as portas do quarto e ficou às escuras. Então despiu-se todo, murmurando: "Repudio o mundo juntamente com esta roupa." E de pé, nu e invisível no meio do quarto, ergueu ao ar o punho fechado, com tal força que teve a sensação de que lhe estalavam as paredes do peito. A mão esquerda pendia ao longo do corpo, mole, com os dedos levemente curvados.
Tenso como o jacto duma fonte silenciosa, distendeu-se até abranger o âmago impalpável das trevas. E as vagas de escuridão começaram a lavar-lhe o espírito, a consciência; ondas de negrume rebentando-lhe na memória, em todo o seu ser, como uma maré que sobe. Até que foi maré cheia e ele, tremendo, se deixou cair por terra, para descansar. Invisível nas trevas, ficou a olhar para o vácuo, sentindo o misterioso fluxo interior purificar-lhe as entranhas e o coração, sentindo o espírito dissolver-se no Espírito maior que nenhum pensamento perturba.
Cobriu o rosto com as mãos e ali esteve imóvel, inconsciente, já sem nada sentir nem ouvir, semelhante a uma alga submersa no mar. Abolira-se o Tempo, abolira-se o Mundo, submerso nas profundezas que são intemporais e inespaciais.
Quando o coração e as entranhas despertaram para a vida, o espírito principiou a bruxulear tal uma chamazinha que vacila e não se apaga.
Enxugou a cara com as mãos, pôs a serape na cabeça e em silêncio, numa aura de sofrimento, desceu a escada, levando consigo o tambor.
Martin, o servo devotado, andava cá e lá no zaguán.
- Ya, patrón? - perguntou.
- Ya! - respondeu Ramon.
O homem correu à vasta cozinha onde ardia uma candeia, e voltou com um braçado de esteiras.
- Onde as colocamos, patrão?
Ramon hesitou no meio do pátio, olhando para o céu.
- Viene el agua?
- Creo que si, patrón.
Dirigiram-se para o alpendre onde haviam carregado as azémolas com os fardos de bananas. Aí, Martin arremessou ao chão as petates, que Ramon dispôs em ordem. Guisleno apareceu, trazendo canas para fazer tochas, das mais primitivas: três canas amarradas em cima com um cordel, formando tripé de cintura alta, e, na parte superior, uma pedra de lava mais ou menos oca. Realizado esse trabalho,
Guisleno foi a casa e voltou a correr com um pedaço de madeira inflamada. Três ou quatro pauzinhos de ocote colocados na pedra - e as chamas ergueram-se, enchendo o pátio de sombras vacilantes.
Ramon dobrou a serape e sentou-se em cima. Guisleno acendeu outro tripé-archote. A luz bailava nas sobrancelhas carregadas de Ramon, dava-lhe ao peito cintilações de ouro.
Agarrou no tambor e fez soar o apelo monótono, lento, um tanto melancólico. Passados instantes, chegou o tocador habitual, que levou o instrumento para a alameda sombria, onde então se ouviu um rufo vivo e forte.
Ramon enfiou a serape, cujas franjas lhe roçavam os joelhos, e ficou imóvel, com os cabelos em desordem. Rodeava-lhe os ombros a serpente do tecido, o pescoço erguia-se-lhe no meio do pássaro azul.
Cipriano apareceu, vindo da casa. Trazia serape castanha e vermelha, ornamentada com um sol escarlate. Postou-se ao lado de Ramon, e olhou-lhe de relance para a cara. Mas, de sobrancelhas franzidas, o outro fixava a sombra dos alpendres no extremo do pátio. Olhava para o coração do mundo; porque a face dos homens e o coração dos homens são areias movediças, e só no coração do cosmos pode alguém encontrar força.
Cipriano voltou os olhos negros para a banda do pátio. Os seus soldados aproximavam-se em grupo. Três ou quatro homens de mantas pardas rodeavam o lume. De pé, junto de Ramon, Cipriano parecia um cardeal, um pássaro de cor vistosa. Até as sandálias eram escarlates, e encarnadas as fitas que atavam as calças de linho branco aos tornozelos. Ao clarão das tochas tinha um ar demoníaco, com a pele muito escura, a barbicha preta e as pupilas cintilando sardonicamente.
Chegavam peóns, pelo portão da entrada, balançando os chapéus largos. Acorriam mulheres descalças, com as saias a oscilar, transportando os seus nenés envoltos nos rebozos e seguidas por uma caterva de garotos. Todos se agrupavam em volta dos archotes, como animais bravios, contemplando o círculo de homens de serape, do qual se destacavam Ramon e Cipriano, um de azul e branco, outro de vermelho.
Carlota e Kate emergiram de casa. Carlota, porém, ficou junto da porta, embrulhada num xaile de seda preta. Sentou-se num banco de pau aquém do clarão avermelhado, e pôs-se a observar os homens escuros, a beleza altaneira de Ramon, o traje escarlate de Cipriano, o grupo de soldados e a massa compacta de peóns, mulheres e crianças. Enquanto desfilava gente através do portão, soou o tambor e uma voz elevou-se, cantando:
Alguém vai franquear a porta, Agora, agora mesmo, ay! E verá a luz no homem que espera. Serás tu? Serei eu?
Alguém vai aproximar-se do fogo, Agora, agora mesmo, ay! E escutarás as palavras do seu coração. Serás tu? Serei eu?
Alguém baferá quando a porta se fechar, Ay, num momento, ay! Ouvirá dizer: Não te conheço. Serás tu? Serei eu?
De cada vez o ay se elevava num grito selvático que fazia calafrios a Carlota.
Envolta num xaile amarelo, Kate aproximou-se lentamente do grupo.
O tambor calou-se e o homem, entrando no pátio, fechou o portão e misturou-se aos assistentes.
Ramon continuava a olhar para o vácuo, de sobrolho carregado. Então, no meio do silêncio, disse em voz baixa, contida:
- Assim como tiro este abafo me liberto eu do dia que passou. Despiu a serape e pô-la no braço. Todos os homens do círculo o
imitaram, ficando de torso nu. Cipriano, muito escuro e com ar sólido apesar do tamanho reduzido, conservava-se ao lado de Ramon.
- Afasto de mim o dia que passou - prosseguiu Ramon - e fico de coração descoberto na noite dos deuses.
Em seguida olhou para o chão e disse:
- Vem, serpente da terra, serpente que jazes no fogo do coração do mundo. Vem, serpente do fogo no coração do mundo, enrola-te como ouro em volta dos meus artelhos, ergue a cabeça e apoia-a na minha coxa. Vem, descansa a cabeça na minha mão, serpente dos abismos. Beija-me os pés e os tornozelos com a tua boca de ouro, beija-me os joelhos e as coxas, serpente marcada de luz e de sombra. Vem, repousa a cabeça na concha da minha mão.
A voz suave e hipnótica extinguiu-se no silêncio envolvente. E parecia que na verdade uma presença misteriosa emergia do mundo subterrâneo, que uma serpente mosqueada de ouro e negro se enroscava nas pernas de Ramon e lhe lambia a palma da mão com a língua bifurcada...
Circunvagou a vista pela assistência boquiaberta e de olhos dilatados, e prosseguiu:
- Digo-vos, e com absoluta certeza. No coração desta terra dorme uma grande serpente no meio do fogo. Aqueles que descem às minas sentem-lhe o calor e o suor, ouvem-na mover-se. É o fogo vital da terra, porque a terra vive. A serpente do mundo é enorme, as rochas são as suas escamas, e entre elas crescem as árvores. Digo-vos que a terra que cavais está viva como uma serpente adormecida. Sobre ela andais, e este lago descansa nos seus anéis como uma gota de chuva numa cobra cascavel. Contudo, tem vida. A terra vive. Se a serpente morresse, todos morreríamos. Só a sua vida assegura a humidade do solo que faz germinar o nosso milho. Das suas escamas extraímos prata e ouro, e as árvores têm nela as suas raízes como os cabelos têm a raiz sob a nossa pele. A terra vive. Mas a serpente é grande, e nós somos mais pequenos do que um grão de poeira. E por vezes ela zanga-se e diz: Estes entes, mais insignificantes do que átomos de pó, espezinham-me e asseveram que estou morta. Até às bestas costumam falar, gritando: Arre, burro! A mim, porém, não dirigem uma palavra. Por isso lhes voltarei costas, como uma mulher volta costas ao marido e lhe consome o espírito com a sua cólera... Eis o que a terra nos diz, e a tristeza e o desânimo avassalam-nos os pés e os rins. Porque assim como uma mulher irritada tira o entusiasmo e a alegria ao homem, assim a terra pode enregelar-nos a alma e tornar a existência fatigante aos nossos membros. Falai, pois, à serpente do coração do mundo, banhai de óleo os vossos dedos e abaixai-os para que ela experimente o óleo da terra e deixe que a vida nos suba ao longo das pernas, como a seiva do milho novo faz estalar a casca e brotar o leite da planta entre as barbas. Do coração da terra o homem sente subir nele a sua força; tal o milho que, ufano, ergue as suas folhas verdes, erguei-vos vós também e deixai aprofundarem-se as vossas raízes cada vez mais, porque não tardam as chuvas e é tempo de produzir no México.
Calou-se Ramon, ensurdeceu o tambor, e todos os homens do círculo fitaram a terra, deixando pender molemente a mão esquerda.
Dona Carlota, que não conseguira ouvir, aproximou-se do lado de Kate, como se fascinada pelo marido. A irlandesa, num movimento inconsciente, olhou para o chão e, às ocultas, baixou os dedos de encontro à saia. Mas teve medo do que lhe poderia acontecer e escondeu a mão no xaile.
De repente o tambor vibrou numa nota muito forte, seguida de outra mais fraca: estranho, impressionante efeito.
Os circunstantes levantaram a cabeça. Ramon alçara o braço direito, num gesto enérgico, e espiava o negrume do firmamento. Imitaram-no os do círculo, e os braços nus, erguidos, semelhavam uma série de rochedos.
- Assim, acima, acima! - gritou uma voz bárbara.
- Acima, acima! - repetiram todos, num coro feroz. Involuntariamente, brandiram o braço, voltando o rosto para o
céu sombrio. Algumas das mulheres, mais audazes, fizeram o mesmo, e, com esse gesto, experimentaram uma sensação de paz.
Kate não alçou o braço.
Reinou profundo silêncio; até o tambor se calara. Ouviu-se então a voz de Ramon, dirigindo-se ao céu tenebroso:
- As tuas asas estão escuras, Pássaro, voas muito baixo esta noite. Voas baixo sobre o México, e em breve sentiremos roçar em nossas faces o leque das tuas asas. Ah, Pássaro! Voas onde queres. Ultrapassas as estrelas e empoleiras-te no Sol. Desapareces da vista e dissipas-te no além do rio branco do céu, mas voltas como os patos do Norte, em busca de água e do Inverno. Poisas no centro do Sol e alisas as penas... Banhas-te na corrente de estrelas e ergues em teu redor uma poalha de ouro. Voas nas profundezas do céu donde parece que jamais se volta. Mas regressas, e pairas sobre nós, e sentimos no rosto a aragem das tuas asas...
Enquanto ele falava levantou-se vento em rajadas, uma porta bateu, vibraram vidraças e as árvores pareceram rasgar-se.
- Vem, ó ave dos vastos céus! - bradou Ramon num apelo selvático. - Vem, pousa no meu punho, na minha cabeça, dá-me o poder divino e a sabedoria. Ó Pássaro, ainda que o trovão ribombe quando sacodes as asas, ainda que deixes cair na terra a serpente de fogo que tens no bico, ainda que venhas como fulminador, vem, ó Pássaro! Empoleira-te um momento no meu punho, estende as asas sobre a minha cabeça, toca-me a fronte com o teu peito. Pássaro errante, ave do Além, com o trovão nas garras e a serpente no bico, com o azul nas asas e a nuvem no colo, com o sol no peito e a sabedoria no voo, vem sobre mim, vem!
O vento agitava a chama das tochas e o lago começou a falar numa voz cavernosa que dominava o sussurro das árvores. Ao longe, por cima das colinas, os raios sulcavam o céu.
Soou o tambor, e Ramon desceu o braço que mantivera erguido. E disse então:
- Sentai-vos um instante, antes que o Pássaro sacuda a água das asas, o que não tardará. Sentai-vos.
A assistência moveu-se. Os homens puxaram as serapes para a testa, as mulheres cingiram mais a si os rebozos, e todos se sentaram no chão. Só Kate e Carlota ficaram de pé, a certa distância.
- A terra é viva, o céu é vivo, e entre ambos vivemos nós - prosseguiu Ramon na sua voz habitual. - A terra beijou-me os joelhos e concedeu-me força às entranhas. O céu descansou-me no punho e transmitiu o seu poder para o meu peito.
Assim como a Estrela de Alva brilha entre o céu e a terra, uma estrela pode surgir em nós entre o coração e os rins.
É a virilidade do homem e a feminilidade da mulher.
Ainda não sois homens. E vós, mulheres, ainda não sois mulheres.
Correis, agitais-vos, morreis, mas ainda não encontraste a estrela da vossa virilidade surgida de vós mesmos; nem a estrela da vossa feminilidade cintilando entre os vossos seios, ó mulheres!
Digo-vos no entanto: para aquele que desejar, nascerá nele a estrela da sua virilidade, e então será perfeito como é perfeita a Estrela da Manhã.
E a estrela da mulher aparecerá entre a orla espessa da terra e o vácuo cinzento do céu. Mas como conseguiremos isso? Como poderá ser?
Baixai os dedos para a carícia da Serpente da terra. Erguei o punho para que aí pouse a Ave distante.
Tende a coragem de ambos, a coragem do raio e a do sismo.
E a sabedoria de ambos, a da serpente e a da águia.
E a serenidade de ambos, a da serpente e a do sol. E o poder de ambos, o das profundezas da terra e o do céu que tudo cobre.
Mas que na vossa fronte, ó homens, resplandeça a Estrela da Manhã que nem o dia nem a noite, nem a terra nem o céu podem engolir e apagar.
E entre os vossos seios, ó mulheres, que esteja a Estrela de Alva que nada pode ofuscar.
A vossa derradeira morada é a Estrela da Manhã. Nem o céu nem a terra vos hão-de tragar, mas ireis para essa estrela solitária que no entanto jamais sente a sua solidão.
A Estrela da Manhã envia-nos um mensageiro, um deus que morreu no México. Mas, enquanto dormia o seu sono, os Seres invisíveis lavaram-lhe o corpo com a água da ressurreição. E ele levantou-se, derrubou a pedra à entrada do sepulcro, e agora galopa através do horizonte, mais depressa do que caiu por terra a laje do túmulo para esmagar aqueles que a selaram.
O filho da Estrela volta para os filhos dos homens.
Preparai-vos para o receber. Lavai-vos, ungi as mãos e os pés, a boca e os olhos, as orelhas e as narinas, o peito, o umbigo e as partes secretas do vosso corpo. Que nada dos dias passados, que nenhuma poeira do mal subsista em vós e vos torne impuros.
Não olheis com olhos de ontem, não escuteis como ontem, não respireis, não cheireis, não engulais alimentos nem bebidas; não beijeis com lábios de ontem, não toqueis com mãos de ontem. Aproximai-vos das vossas mulheres com um corpo novo, e com esse corpo novo penetrai nelas. Porque o corpo de ontem morreu, e Xopilote, devorador de cadáveres, já paira sobre ele.
Libertai-vos do corpo da véspera e adquiri um novo, tal como o deus que vem até vós. Quetzalcoatl surge-nos com um novo corpo, como uma nova estrela, saído das sombras da morte.
Sim, neste mesmo momento em que estais sentados e que o vosso corpo toca na terra, dizei-lhe: Terra, terra, latejas de vida como eu. Insufla em mim o bafo das tuas entranhas.
E assim a terra se move por baixo de vós, e por cima de vós o céu agita as suas asas.
Regressai aos vossos lares, enfrentando as águas que vão cair e separar-vos para sempre do "ontem".
Ide, com a esperança de vos tornardes homens da Estrela da Manhã e mulheres da Estrela de Alva.
Ainda não sois homens, ainda não sois mulheres...
Ramon levantou-se, dando o sinal de retirada. Logo todos se puseram de pé, empurrando-se, acotovelando-se, com a silenciosa pressa mexicana que parece deslizar rente ao solo.
O vento desencadeado uivava de encontro às mangueiras. Os homens seguravam o chapéu na cabeça e corriam de joelhos curvados, com as serapes a flutuar, enquanto as mulheres, cingindo a si o rebozo, fugiam, descalças, para ozaguán.
Junto do portão aberto estava um soldado de espingarda a tiracolo e lanterna na mão, alumiando aqueles que passavam calados e velozes e se dispersavam na alameda escura como pedacinhos de papel levados pelo vento. Num instante todos desapareceram.
Martin fechou o portão. O soldado pousou a lanterna no banco de pau e juntou-se aos camaradas alapardados nos seus capotes pretos, semelhantes a um molho de cogumelos na caverna do zaguán.
- Vai chover! - gritaram as servas excitadas quando Kate subia os degraus com Dona Carlota.
O lago, absolutamente negro, parecia uma cratera enorme. Em rajadas violentas, o vento traspassava as mangueiras com um som de membrana a rasgar-se. Os loendros curvavam-se no jardim, varriam o solo com as suas flores brancas, espectrais à luz do candeeiro que brilhava na parede junto da porta da entrada. Uma palmeira nova sacudia-se, dobrada, juncando o chão com as suas folhas. Nas trevas para além do mundo rolava um carro invisível...
Ao longe, na outra banda do lago, os raios traçavam no céu inscrições fulgurantes. E o trovão dir-se-ia ribombar nas entranhas da terra, surdo, aveludado.
- Isto chega a meter medo! - exclamou Dona Carlota, tapando os olhos com a mão e correndo a refugiar-se num canto recuado da sala deserta.
Cipriano e Kate demoraram-se no terraço olhando para as flores que voavam dos vasos e desapareciam no vácuo de trevas. Kate agarrava no xaile, mas o vento engolfou-se na serape de Cipriano, levantou-a ao ar e em seguida deixou-lha cair sobre a cabeça, tal uma chama rubra. Kate viu-lhe o peito escuro e musculado enquanto os seus braços lutavam por desenvencilhar a cabeça. Como a sua beleza era primitiva e toda física, com aquela carne lisa e cheia!
Mas não emitia nenhuma radiação exterior; fechava-se dentro de si mesmo.
- Eis a chuva! - exclamou ele! - baixando a serape.
Grossas, pesadas, as primeiras gotas tombavam como dardos sobre as plantas. Kate recuou para o vão da porta. Um raio ziguezagueou sobre as montanhas, pareceu deter-se um instante e reentrou nas trevas.
Então a chuva desabou, como se lá em cima houvessem aberto um reservatório imenso, e com ela veio uma lufada de ar frio. Ora num lado ora noutro, sucediam-se os relâmpagos, enchendo a atmosfera duma claridade azul e fugaz. Surgiam as árvores e o jardim fantasma, e logo desapareciam, enquanto o trovão ribombava.
Kate olhava pasmada para aquele dilúvio. Ao clarão momentâneo via o jardim já transformado em poço, as alamedas em ribeiras. Sentindo frio, recolheu-se dentro de casa.
Munido de lanterna, um criado pesquisava todos os aposentos para ver se andariam por ali escorpiões. Encontrou um a passear no quarto de Kate e outro em cima da cama de Carlota, caído duma viga do tecto.
Sentadas na sala, Kate e Carlota baloiçavam-se nas cadeiras, aspirando o bom ar fresco e húmido. Kate quase já se esquecera do que era frescura e humidade. Aconchegou o xaile ao pescoço.
- Ah, sente frio! Agora é preciso tomar cuidado com as noites... Às vezes, na época das chuvas, as noites são frigidíssimas. Devemos ter sempre à mão um cobertor suplementar. Os servos, coitados, limitam-se a tiritar, estendidos no chão, e de manhã estão gelados como cadáveres. Mas o sol depressa os aquece. Parecem julgar que são obrigados a suportar tudo o que vier, pois nunca tomam providências, embora se queixem.
O vento acalmara-se de repente, Kate sentia-se inquieta, mal disposta, com o bafo da água, quase de gelo, nas narinas, e o sangue ainda a arder-lhe nas veias. Levantou-se e foi para o terraço. Cipriano continuava ali, imóvel e impassível, envolto na sua serape vermelha e preta.
A chuva diminuía. Em baixo, no jardim, duas criadas corriam descalças, à débil claridade do candeeiro do zaguán; colocaram latas vazias debaixo dos fios de água que tombavam do telhado, e depois foram buscar os recipientes cheios. Isso poupava-lhes o trabalho de acarretar água do lago.
- Que pensa a nosso respeito? - perguntou Cipriano a Kate.
- Acho um povo muito estranho...
- Mas bom, não é verdade? - volveu o general em tom jubiloso.
- Um tanto assustador - replicou ela, rindo.
- Depois de se habituar parecer-lhe-á natural. E quando estiver num país como a Inglaterra, onde tudo é tão seguro e tão fácil, sentirá saudades e passará o tempo a perguntar a si mesma: O que é que me falta? O que é que falta aqui?
Dir-se-ia exprimir-se com maligna satisfação. E era curioso que ele, embora falasse bom inglês, parecesse sempre estrangeiro aos ouvidos de Kate, muito mais do que Dona Carlota com o seu espanhol castiço.
- Não compreendo que as pessoas queiram ter tudo, a vida inteira. Tudo tão seguro, tão pronto como na Inglaterra e na América. É bom estar alerta, no que vive, não?
- Talvez - concordou ela.
- Por isso gosto de ouvir Ramon dizer ao povo que a terra é viva, que o céu tem uma ave enorme lá dentro, mas que se não vê. Acredito nisso. E convém sabê-lo, pois assim continuamos no que vive.
- Não será fatigante?
- Ora, porquê? Pelo contrário, é repousante. Ah, a senhora devia casar e residir no México. Estou certo de que acabaria por gostar disto. Em cada manhã despertaria mais encantada.
- Ou cada vez mais enterrada. É o que sucede, julgo eu, a muitos estrangeiros.
- Enterrar-se? Como? Isto é um país onde a noite é noite e a chuva que cai é realmente chuva. E tem aqui um povo com o qual precisa de estar sempre alerta. Não acha admirável? Não poderá deixar-se adormecer. Veja, por exemplo, Ramon. Que pensa dele?
- Não sei. Não quero dizer nada, mas acho-o... longínquo. Custa a crer que seja mexicano.
- Pois é mexicano, não tenha dúvida.
- Não como o senhor. Dá-me a impressão de pertencer à velha Europa.
- Eu então considero-o pertencente ao velho México... E também ao novo - acrescentou de súbito.
- Todavia não acredita nele.
- Como?
- Não acredita nele. Considera aquilo, como tudo o mais, uma espécie de jogo. Aliás, para vós, mexicanos, tudo é uma espécie de jogo... No fundo, não crê em nada.
- Não creio em Ramon? Talvez não seja uma fé que me leve a ajoelhar à sua frente e a derramar-lhe lágrimas nos pés. Mas creio nele, e vou dizer-lhe o motivo: porque tem o poder de me fazer acreditar.
- Estranha fé, imposta pelos outros.
- Como se há-de crer, se não nos compelirem a isso? Quando eu era muito novo sentia-me infeliz porque o meu padrinho me não forçava a crer. Mas Ramon força-me... E é para mim uma felicidade saber que não posso escapar... como será também para si...
- Saber que não posso escapar a Don Ramon? - replicou
Kate ironicamente.
- Sim, e saber que não poderá evadir-se do México, nem fugir
de um homem como eu...
Kate ficou um instante calada antes de responder em tom sardónico:
- Não me parece que me cause muita alegria saber que não posso sair do México. Pelo contrário, não suportaria estar aqui se não tivesse a certeza de partir mais dia menos dia.
E disse consigo mesma: "Ramon talvez seja o único homem a quem eu não possa escapar completamente, porque deveras me impressiona. Mas de ti, Ciprianozinho, não precisarei de escapar porque não me apanhas."
- Ah, julga isso! - volveu ele rapidamente. - Mas é porque não sabe. Só pensa com ideias americanas. Devido à sua educação, só tem pensamentos americanos, pensamentos engendrados nos Estados Unidos. Quase todas as mulheres são assim, até as mexicanas da classe hispano-mexicana. Só possuem ideias dos Estados Unidos porque são as que condizem com os seus penteados. E o mesmo quanto a si, senhora Leslie. Pensa como uma mulher moderna porque pertence ao mundo anglo-saxónio ou teutão, e se penteia de certa maneira, e tem dinheiro, e é inteiramente livre. Mas tudo isso provém do facto de lhe haverem metido essas ideias na cabeça e não possuir outras, da mesma forma que, no México, se vê obrigada a gastar centavos e pesos por serem as moedas do país. Todavia, quando se declara livre, na realidade não o é. Vê-se forçada a pensar sempre com pensamentos americanos. Não tem maior faculdade de escolha do que uma serva. Assim como não pode deixar de comer diariamente tortillas... até que se lembre de que pode gostar doutra coisa.
- De que mais poderia eu gostar? - retorquiu Kate, escarninha.
- De outros pensamentos, de outras sensações. Receia homens como eu porque julga que a não tratariam "à americana". Tem razão. Eu não a trataria como se tratam as senhoras americanas. Porquê? Porque não o desejo, porque não me parece justo.
- Prefere tratar as mulheres como as mexicanas de outrora, não é verdade? Mantendo-as na ignorância, no cativeiro? - A voz de Kate assumira um tom sarcástico.
- Não as manteria na ignorância se elas já não fossem ignorantes. Mas o que lhes ensinaria não havia de ser conforme à educação americana.
- Então qual?
- Quien sabe! Ce reste à voir.
- Et continuera à y rester - concluiu a irlandesa, rindo.

CONTINUA

x
Dez dias haviam decorrido desde a chegada de Kate a Sayula sem que Don Ramon desse sinal de vida. No entanto, quando passeava de barco, vira a casa dele na outra banda da ponta oeste do lago. Era um edifício alaranjado de dois andares, com alpendre para embarcações e bosquete de mangueiras rente à margem. Entre as árvores distinguiam-se duas filas de cabanas de adobe, a habitação dos peóns.
A hacienda fora outrora das mais importantes. Regavam-na então com a água captada nas colinas, mas as revoluções haviam destruído todos os aquedutos. Don Ramon tinha inimigos no Governo, de modo que grande parte das suas terras fora dividida entre os peóns e só lhe ficaram cerca de trezentos acres de terreno, dos quais duzentos marginavam o lago e lhe eram inúteis. Cultivava um pomar em volta da casa e cana-de-açúcar num valezito entre as colinas. Na encosta do monte viam-se campos de milho.
'Dona Carlota era rica; tirava bons rendimentos das minas de Torreon, seu berço natal.
Chegou um portador com uma carta de Don Ramon em que este pedia a Kate licença para a visitar com a esposa.
Dona Carlota era uma mulher franzina, suave, de grandes olhos um tanto assustadiços e sedosos cabelos castanhos. Filha de pai espanhol e de mãe francesa, de origem puramente europeia, em nada se assemelhava às corpulentas mexicanas de faces cobertas de pó-de-arroz. De rosto pálido, sem artifício, a figura delgada tinha qualquer coisa de inglês, que os grandes olhos castanhos desmentiam. Só falava espanhol e francês, mas o seu espanhol soava tão lento e distinto (com um leve tom de queixume) que Kate a compreendeu sem dificuldade.
As duas mulheres entenderam-se depressa, mas sentiam-se um tanto nervosas na presença uma da outra. Dona Carlota era frágil e sensível como um cão chihuahua.
Em toda a sua vida, Kate raras vezes encontrara criatura tão doce e delicada. Conversaram uma com a outra, enquanto Don Ramon se mantinha calado. Dir-se-ia que ambas se arremessavam contra aquela barreira de silêncio.
Kate percebeu logo que Dona Carlota amava Ramon, mas com um amor que se tornara voluntário. Adorara-o, e acabara-se a adoração. Duvidara dele, e duvidaria sempre.
Sentado um pouco à parte, de ar constrangido, Don Ramon baixava a bela cabeça e deixava pender as mãos entre as coxas.
- Sabe que passei há dias bons momentos? - disse Kate, dirigindo-se-lhe de súbito. - Dancei de roda do tambor com os homens de Quetzalcoatl.
- Assim me constou - respondeu ele com um sorriso forçado.
Embora não falasse inglês, Dona Carlota compreendia essa língua
- Dançou com os homens de Quetzalcoatl! - exclamou em espanhol. - Porque fez isso? Porquê?
- Estava fascinada.
- Não se deixe fascinar. Afirmo-lhe que lastimo muito que meu marido se interesse por esse movimento. É para mim um desgosto.
Juana apareceu nesse momento com uma garrafa de vermute, a única coisa que Kate podia oferecer aos visitantes.
- Foi aos Estados Unidos ver os seus filhos? - perguntou Kate. - Como vão eles?
- Bem, obrigada. Embora o mais novo continue fraquito...
- Não os trouxe consigo?
- Não. Acho que estão melhor no colégio. Aqui... aqui há muita coisa que os perturbaria. Mas hei-de cá tê-los no próximo mês a passar as férias.
- Então terei oportunidade de os conhecer - disse Kate. Virão para a casa do lago, não é verdade?
- Ainda não sei. Talvez passemos aqui alguns dias. Ando tão ocupada na Cidade do México com a minha Cuna!
- Cuna? Que é isso? - indagou Kate.
Tratava-se de um hospício de enjeitados assistido por algumas obscuras carmelitas. Dona Carlota era a directora, e Kate chegou à conclusão de que a mulher de Ramon devia ser católica fervorosa, quase exaltada. Entregava-se de corpo e alma à Igreja e àquela obra de beneficência.
- Nascem tantas crianças no México e são tão numerosas as que morrem! Se as pudéssemos salvar e preparar para a vida! Fazemos tudo o que é possível, mas ainda é pouco.
Segundo parecia, todos os nenés indesejáveis eram entregues na Cuna, como embrulhos. A mãe só tinha de bater à porta e depositar noutras mãos o pacote vivo.
- Assim, impedimos que muitas mães negligentes deixem morrer os filhos - prosseguiu Dona Carlota. - Se não nos dizem o nome da criança, sou eu que a baptizo. Já o tenho feito muitas vezes. É vulgar entregarem-nos meninos absolutamente nus, sem um trapo a cobri-los... e sem nome. E nós nunca perguntamos nada.
Nem todos os expostos ficavam no hospício. Na maior parte eram confiados a índias decentes, a quem pagavam para os criar em casa. No fim do mês, cada qual se apresentava com o seu protegido e recebia o ordenado. As índias podem ser descuidadas mas não maltratam as crianças.
Noutro tempo, informou Dona Carlota, quase todas as senhoras do México recebiam na sua casa um ou dois desses enjeitados e tratavam-nos como família. Mas perdera-se a generosidade patriarcal dos espanhóis-mexicanos e actualmente adoptavam poucas crianças. Em vez disso, preparavam-nas para ganhar a vida, ensinando-lhes qualquer ofício.
Kate ouvia com-interesse e certo constrangimento. Não lobrigava sentimentos humanos nessa caridade mexicana, e quase discordava dela. Talvez Dona Carlota fizesse tudo o que podia nesse país semibárbaro, mas fazia-o sem nenhuma esperança de êxito. Embora com a consciência de que procedia bem, tinha um pouco o ar de vítima, de uma vítima sensível, branda, um tanto assustada. Dir-se-ia que um mal secreto lhe roía o coração.
Don Ramon escutava impassível, num silêncio que se opunha ao entusiasmo caritativo da mulher. Deixava-a agir como entendia, mas contra a sua obra e a sua loquacidade mantinha-se calado, duro, numa hostilidade surda e permanente. Dona Carlota percebia-o e tremia nervosamente enquanto falava do hospício de enjeitados. Kate acabou por achar cruel a atitude de Don Ramon; parecia um ídolo de pedra.
- Porque não vem passar um dia connosco, enquanto estamos em Sayula? - sugeriu Dona Carlota. - A casa é pouco confortável, já não é como foi, mas teremos muito gosto em recebê-la.
Kate aceitou o convite e disse que preferia ir a pé. Eram apenas quatro milhas de percurso e, com a Juana, iria bem acompanhada.
-. - Mandarei um homem buscá-las - declarou Don Ramon. Será mais seguro.
- Onde está o general Viedma? - perguntou Kate.
- Faremos o possível por tê-lo connosco quando a senhora lá for - replicou Dona Carlota. - Gosto deveras de Don Cipriano, que há muitos anos conheço. Por sinal que é o padrinho do meu filho mais novo. Presentemente, comanda a divisão de Guadalajara, por isso nem sempre se encontra livre.
- Admira-me que seja general - observou Kate. - Acho-o humano em excesso.
- E, de facto, é cheio de humanidade. Mas é general, e gosta de comandar os soldados. Deixe-me dizer-lhe que se trata de uma pessoa de muita influência. Exerce grande ascendente na tropa. Crêem nele, isso não se pode negar. Possui aquele poder, inato nos chefes índios, de afeiçoar a si os militares e de os levar ao combate. Pois é assim mesmo Don Cipriano. Ninguém conseguiria modificá-lo. Julgo, porém, que lhe seria de utilidade a presença de uma mulher. Nunca teve nenhuma na sua vida! Elas não lhe interessam...
- Que lhe interessa então?
- Ah! - exclamou Dona Carlota, estremecendo como se a picassem. Lançou um olhar rápido ao marido e declarou: - Não sei. Palavra que não sei.
- Os homens de Quetzalcoatl - declarou Don Ramon com
um leve sorriso.
Mas Dona Carlota dir-se-ia tirar-lhe todo o desembaraço. Parecia contrafeito, e um tanto estúpido.
- Ah, sim, sim, os homens de Quetzalcoatl - bradou Dona Carlota, amável mas com ar de censura. - Linda coisa para ele se ocupar! - Kate percebeu que a sua interlocutora adorava esses dois homens e que tremia à ideia de se opor aos seus erros, embora jamais transigisse com qualquer deles.
Para Don Ramon representava um pesado fardo aquela cega adoração da mulher e a sua não menos cega oposição.
Certa manhã, às nove horas, apareceu o criado para acompanhar Kate à fazenda, que chamavam de Jamiltepec. Trazia um cabaz e vinha do mercado. Era um velhote de bigode grisalho e olhos juvenis, cheios de vida. Os pés, metidos em huafaches, pareciam negros de tão queimados do sol, mas o fato resplandecia de alvura.
Kate ficou radiante com essa excursão a pé. O que tornava tão aborrecida a sua existência na aldeia era a impossibilidade de passear no campo. Havia sempre o risco de um assalto. Acompanhada de Ezequiel, dera algumas voltas pelos arredores, mas já começava a sentir-se prisioneira. Foi, por conseguinte, uma alegria sair de casa.
A manhã estava clara e quente, o lago brilhava quieto, espectral. Moviam-se pessoas na margem, minúsculas àquela distância, meros pontinhos brancos: peóns que seguiam os seus burros envoltos numa leve nuvem de poeira. Kate perguntava a si mesma porque seria que os homens apareciam sempre na paisagem mexicana como pequeninas manchas; pequeninas manchas de vida.
Entraram na estrada poeirenta que levava para oeste, entre a vertente alcantilada das colinas e a nesga de planície junto ao lago. Por espaço de milha foram encontrando vivendas, muitas delas fechadas, outras destruídas, já sem muros nem janelas. Todavia desabrochavam flores entre os montes de cascalho.
Nos terrenos vagos havia delgadas cabanas de palha dos indígenas - como que nascidas ali, ao acaso. Perto do caminho por baixo de um outeiro viam-se choças de adobe, semelhantes a caixas cinzento-escuras. Em volta corriam aves domésticas, grunhiam e refocilavam porcos pardacentos ou malhados de preto. Crianças seminuas, de um tom castanho-alaranjado, brincavam ou jaziam estiradas no chão, a dormir, com as nádegas à mostra.
Muitas das casas estavam a ser cobertas de colmo novo ou reteIhadas por indivíduos que assumiam ares de importância por se encarregarem desse trabalho. Mostravam-se também apressados, pois não tardariam a vir as chuvas torrenciais. E, na banda do lago, havia quem andasse a lavrar a terra dura com uma junta de bois e um pau forte e aguçado.
Mas Kate conhecia essa parte do caminho. Vira já a bela vivenda da colina, com os seus tufos de palmeiras que ladeavam as alamedas desertas. A estrada descia novamente para o lago, entre árvores frondosas de vagens retorcidas. À esquerda, a água mansa, gelatinosa, lambia as pedras amareladas. Numa poça da praia estavam mulheres a lavar roupa, e, nos baixios, banhavam-se duas raparigas com os cabelos negros pendentes e gotejantes. Mais adiante, um homem patinhava lentamente, detendo-se para arremessar com perícia a rede à água e depois recolhê-la cheia desses peixinhos luzidios a que chamam charales. Tudo estranhamente silencioso e remoto na manhã cintilante.
Vinha do lago uma leve brisa, mas a poeira da estrada queimava os pés. À direita erguia-se o monte, abrupto, ressequido e amarelo, exalando calor e aquele cheiro característico do México que se diria ser a evaporação duma terra cada vez mais calcinada.
Desfilavam continuamente filas de burros carregados, trotando na poeira e seguidos pelos condutores que marchavam erectos e rápidos, olhando com olhos semelhantes a buracos negros mas respondendo sempre à saudação de Kate com um respeitoso adiós. E Juana ecoava com o seu lacónico adiósm. Caminhava coxeando e achava tristíssima aquela ideia da niña de percorrer quatro milhas a pé, quando poderiam ir num automóvel de aluguer, de barco ou mesmo de burro.
Mas a pé! Kate percebia todos os sentimentos da criada no seu arrastado e sardónico adiósn. Em compensação, o homem de Ramon vinha animadamente atrás delas, dirigindo saudações alegres, com a pistola bem em evidência no cinto.
A estrada contornava um rochedo amarelo e escarpado para desembocar num campo aberto, onde se alastravam espinheiros e cactos poeirentos. À esquerda, distinguia-se a mancha verde dos salgueiros à beira do lago. À direita, as colinas inclinavam-se sobre o flanco árido das montanhas. Em frente, os outeiros ladeavam as margens do lago e afastavam-se, descobrindo uma espécie de garganta que conduzia à casa de Don Ramon e à sua plantação de cana-de-açúcar.
- Aqui temos Jamiltepec, a hacienda de Don Ramon, señorita - anunciou o homem.
Os olhos luziam-lhe ao proferir estas palavras. Era um peón orgulhoso e sem dúvida feliz com a sua sorte.
- Que lonjura! - exclamou Juana.
- Para outra vez virei só ou com o Ezequiel - replicou Kate.
- Não diga isso, niña! Só me queixo do pé, que me dói hoje a valer.
- Por isso mesmo é melhor não vires comigo.
- Não, niña. Gosto muito de vir.
Giravam alegremente as asas do moinho que puxava a água do lago. Entre as colinas descia o valezito onde deslizava um riacho e na parte mais larga viam-se bananeiras que uma cortina de salgueiros resguardava da brisa lacustre. No cimo da encosta, onde o caminho se embrenhava na sombra de mangueiras, elevavam-se dois renques de casas de adobe, tal uma aldeia um pouco recuada.
Surgiam mulheres entre as árvores, que vinham do lago com seus cântaros de água ao ombro. De roda das portas brincavam crianças, arrastando o traseiro nu na poeira do chão. Aqui e ali, uma cabra amarrada. E, apoiados na esquina da casa, ou encostados à parede, estavam homens de braços e pernas cruzados, mas não em dolce far niente. Pareciam esperar, esperar eternamente por qualquer coisa.
- Por aqui, señorita ! - disse o homem do cabaz, indicando um caminho que descia entre árvores frondosas até ao portão branco da hacienda. - Já cá estamos.
Mostrava-se tão contente como se houvesse chegado ao Paraíso.
Encontravam-se abertas as portas do zaguán, ou entrada, a cuja sombra descansavam dois soldados. No espaço em frente do portão, passavam nesse momento dois peóns, cada qual com um cacho de bananas à cabeça. Os soldados disseram qualquer coisa e aqueles detiveram-se e voltaram-se lentamente com a sua carga verde para observarem Kate, Juana e Martin - o homem que as acompanhava. Depois retomaram a sua marcha.
Os soldados levantaram-se e Martin conduziu Kate pela passagem abobadada, onde as rodas dos carros haviam cavado fundos sulcos. Juana seguia-os com expressão lastimosa.
Kate achou-se num pátio enorme, cercado em três lados por muros altos, alpendres e estábulos. Ao fundo era a casa de residência, com as suas janelas gradeadas e, em vez de porta, outro zaguán de batentes fechados, espécie de corredor ao longo do edifício.
Martin avançou para tocar a aldraba, e Kate olhou entretanto à sua volta. Num alpendre, estavam homens seminus a empacar cachos de bananas. Noutro lado, serravam paus e descarregavam telhas de cima dum burro. A um canto viam-se bois atrelados a uma carroça, de cabeça pendida sob a canga, como se esperassem.
Abriram-se as portas e Kate entrou no segundo zaguán. Era uma entrada larga, com seu lanço de escadas a um lado e um portão gradeado ao fundo, através do qual se via o jardim orlado de mangueiras e, mais abaixo, o lago com o seu porto artificial onde baloiçavam dois barcos.
Nas costas dos recém-vindos, a criada fechou a porta que dava para o pátio e indicou a Kate as escadas.
- Por aqui, señorita.
Badalava uma sineta lá no cimo. Kate subiu os degraus de pedra, ao encontro de Dona Carlota, que a esperava no patamar, vestida de musselina branca, o que, pelo contraste, lhe dava um tom amarelo às faces. Estendeu os braços magros e bronzeados, acolhendo Kate com extraordinária efusão.
- Muito prazer em vê-la aqui! E veio todo o caminho a pé, com este sol! Entre, entre e descanse.
Pegou na mão de Kate e levou-a através do terraço, no topo da escada.
- Que linda vista! - exclamou Kate, contemplando o lago para além das mangueiras. Na água pálida, irreal, vogava ao longe um barco de vela. Para além, elevavam-se as montanhas de gargantas azuladas, com a mancha branca duma aldeia. Dir-se-ia outro mundo, perdido na luz da manhã, outra vida.
- Que povoação é aquela? - perguntou Kate.
- Acolá? É San Ildefonso - respondeu Dona Carlota.
- Como este sítio é belo! - disse Kate.
- Hermoso, si! Si, bonito - retorquiu a outra em espanhol, conforme o seu costume.
A casa, de um vermelho-alaranjado, tinha duas alas voltadas para o lago. com o seu murinho coroado de plantas verdes, o terraço cercava três lados do edifício; suportavam o telhado largos pilares que partiam do solo, formando em baixo uma espécie de claustro ocupado ao centro por um tanque cheio de água.
- Venha - disse Dona Carlota. - Precisa de descansar.
- Gostaria de mudar de sapatos - declarou Kate. Levaram-na a um quarto espaçoso, um tanto vazio, de chão de
tijolos. Aí, Kate calçou as meias e os sapatos que Juana trouxera num embrulho e estendeu-se um momento para repousar.
E, enquanto repousava, ouvia o rufar surdo do tambor, no profundo silêncio da manhã, só perturbado pelo canto dum galo longínquo. Aquele som contínuo, insistente, enchia-a de mal-estar. Parecia o ribombo duma tempestade desencadeando-se no horizonte.
Kate levantou-se e dirigiu-se para o salão onde Dona Carlota estava sentada a conversar com um homem vestido de preto. com as suas três portas envidraçadas abertas sobre o terraço, chão de ladrilhos vermelhos, paredes pintadas de verde-claro, tecto de barrotes caiados e escassez de mobília, aquilo parecia mais um caramanchel do que um salão. Como em muitas casas dos países quentes, tinha-se a impressão de não se estar dentro de quatro paredes, mas sim de três; um lugar de passagem, e não para ficar.
À chegada de Kate, o homem de preto levantou-se, apertou a mão a Dona Carlota e, baixando a cabeça num comprimento cerimonioso, desapareceu por uma das portas do terraço.
- Entre, entre! - disse Dona Carlota a Kate. - Já não se sente cansada? - acrescentou, avançando uma das cadeiras de junco que estava negligentemente colocada no meio da sala.
- Absolutamente nada - respondeu Kate. - Como esta região é silenciosa! Só se ouve o tambor, o que talvez nos faça notar mais o silêncio.
- Ah, esse tambor! - exclamou Dona Carlota, erguendo a mão num movimento de exaspero. - Não posso com isso! Detesto ouvi-lo.
E moveu-se na cadeira de baloiço, com súbito nervosismo.
- É um som realmente impressionante - redarguiu Kate. - Que significa, afinal?
- Não mo pergunte! São coisas de meu marido. - E Dona Carlota fez novo gesto de desespero.
- Don Ramon é que toca o tambor?
- Não, não! - Dona Carlota pareceu sobressaltada àquela pergunta. - Não é ele que toca. Trouxe dois índios do Norte para se desempenharem desse trabalho.
- Ah, sim? - volveu Kate, sem se comprometer. Mas Dona Carlota balançava-se numa espécie de semi-inconsciência e só daí a instantes pareceu voltar a si.
- Tenho de desabafar com alguém! - disse, de repente, endireitando-se na cadeira, com uma expressão de angústia espelhada nos grandes olhos castanhos e no rosto cor de nata. - Posso desabafar consigo?
- Certamente - respondeu Kate, constrangida.
- Sabe o que Ramon anda a fazer?
- Julgo que pretende ressuscitar o culto dos deuses antigos.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, com outro aceno de mão desesperado. - Como se isso fosse possível! Os deuses antigos! Imagine-se! Que são eles senão ilusões mortas? E feias, repulsivas! Sempre pensei que meu marido fosse inteligente, muito superior a mim, e é triste ter de mudar de opinião. Tudo aquilo é um disparate. E ele atreve-se a tomar a sério o que não passa de um disparate!
- Talvez Don Ramon creia...
- Mas como pode ele crer? - replicou a dona da casa, com um sorriso desdenhoso. - É instruído, não pode acreditar em semelhante tolice.
- Então qual é o seu objectivo?
- Isso é que eu gostaria de saber. - Na voz de Dona Carlota transparecia indizível cansaço. - Penso que está louco, como acontece a tantos mexicanos. Louco como o bandido Francisco Villa.
Lembrando-se do rosto simiesco do famoso Pancho Villa, Kate não foi capaz de o associar a Don Ramon.
- Desde que se elevam na sociedade os mexicanos perdem a cabeça, o orgulho transtorna-os. Não pensam em mais nada senão na sua importância. Pura vaidade masculina. Não acha, señora, que a vaidade é o começo e o fim do homem? Jesus veio ao mundo para combater esse perigo, ensinando-nos a ser humildes. Por isso odeiam Cristo e os Seus ensinamentos, e deixam-se guiar pela vaidade durante toda a vida.
A mesma reflexão ocorrera a Kate muitas vezes, e concluíra que nos homens só existia vaidade. Precisavam de ser lisonjeados, de sentir a sua grandeza, nada mais.
- O que meu marido pretende é opor-se a Jesus, elevar o orgulho e a vaidade acima de Deus. Ah, é horrível! Horrível e infantil. Que são os homens senão crianças que necessitam dos cuidados da mãe? Ah, señora, é mais do que posso suportar!
Dona Carlota cobriu a cara com as mãos.
- Em todo o caso, acho o seu marido uma pessoa excepcional - disse Kate para a consolar, embora nesse momento detestasse Don Ramon.
- Sim, possui grandes qualidades, mas de que lhe servem se estão pervertidas?
- Explique-me ao certo: o que é que ele pretende, afinal?
- O poder, o poder absurdo e maléfico, como se já não houvesse bastantes poderes maléficos por todo este país. Quer ser mais do que os outros, adorado, venerado. Um deus! Ele, a quem embalei nos braços como uma criança, querer que o adorem!
E Dona Carlota desatou num riso estridente pontuado de soluços.
Kate esperou que ela se acalmasse.
- No fim de contas - disse, quando a viu mais sossegada - não somos responsáveis pelo que fazem os maridos. Aprendi à minha custa que todo o amor é impotente perante a vontade dos homens. Meu marido quis morrer, e não pude impedi-lo... Temos de os deixar fazer tudo o que querem, até as coisas que nos parecem insensatas.
Dona Carlota ergueu os olhos para Kate.
- Gostava muito do seu marido... e ele morreu? - perguntou em voz suave.
- Amei-o deveras, e não tornarei a gostar doutro homem. Perdi a faculdade de amar.
- De que morreu?
- Por sua culpa. Despedaçou o coração e a alma com a política irlandesa. Eu sabia que ele fazia mal em se ocupar disso. Que nos importava a Irlanda, o nacionalismo, as revoluções e todas essas tolices? Ah, se o Joachim se limitasse a viver em paz comigo, poderíamos ser tão felizes! Em vão tentei convencê-lo. Queria matar-se com aquela estúpida política, e não consegui evitá-lo. Foram inúteis todos os meus esforços.
Dona Carlota olhou fixamente para Kate.
- Assim como são os meus para impedir que Ramon proceda mal e se mate... E depois de morto, de que servirá tudo aquilo?
- De nada. Depois de eles morrerem, ficamos a saber que foi inútil todo o trabalho que tiveram.
- Oh, señora! Se pode ajudar-me a salvar Ramon, ajude-me! É uma questão de vida ou de morte para nós ambos. Porque eu morrerei se ele levar a sua avante...
- Explique-me bem qual é a ideia de Don Ramon. A do meu marido era libertar a Irlanda e engrandecer o povo. Mas eu nunca acreditei que os irlandeses fossem jamais um grande povo nem que se pudesse torná-lo livre. Só sabe destruir, e destruir estupidamente. Não se pode fazer livre um povo que o não é. Existe nele qualquer coisa que o impele à destruição.
- Bem sei, bem sei. Da mesma forma é Ramon. Até quer destruir Jesus e a Virgem Maria por amor do povo. Imagine! Derrotar Jesus e a Virgem! A última coisa que se podia pensar...
- Mas o que diz ele quanto ao seu projecto?
- Diz que pretende estabelecer um novo nexo entre o povo e Deus. Declara, por seu lado, que Deus é sempre Deus, mas que o homem perdeu a sua união com a divindade... e que não é possível restaurá-la sem que venha um novo Deus. E que qualquer novo nexo tem de ser diferente do antigo, embora Deus continue a ser Deus. Neste momento, declara meu marido, o povo perdeu o seu Deus. O Salvador já não será capaz de o reconduzir a Si. Precisa-se de outro Salvador, com uma nova visão. Ah, señora, eu não creio nisto! Deus é amor e, se Ramon se submetesse, ao menos, ao amor, compreenderia que aí é que estava Deus. Mas qual! É tão perverso! Poderíamos, ambos, com amor calmo, gozando a beleza do mundo, esperar pelo amor de Deus... Porque é, señora, que ele não vê isto? Oh, porque não compreende? Em vez de fazer estas coisas...
Acudiram lágrimas aos olhos de Dona Carlota, as quais se lhe espalharam pelo rosto. Kate também chorava.
- É inútil! - disse ela, soluçando. - Sei que é inútil, faça-se o que se fizer. Não querem ser felizes e estar em paz, mas sim esta luta e esses falsos e horríveis nexos... Sim, é inútil, de qualquer forma. E nisto é que está o pior.
E as duas mulheres, sentadas nas cadeiras de baloiço, soluçavam amargamente quando ouviram passos no terraço, leve ruído de pés calçados de sandálias.
Era Don Ramon, atraído inconscientemente pelo clamor daquelas criaturas pesarosas.
Dona Carlota limpou a toda a pressa os olhos e o nariz; Kate assoou-se com estrondo. No limiar da porta, Don Ramon deteve-se.
Trajava como os camponeses, todo de branco, de casaco largo e calças muito amplas. O fato era de linho, com certa goma, e tinha um brilho estranho, fora do vulgar. Por baixo do casaco, à frente, uniam-se as pontas duma faixa estreita de lã, também branca, franjada de vermelho e riscada de azul e preto. Nos pés sem meias trazia huaraches de coiro azul e negro, entrançado, com espessas solas tingidas de vermelhão. As calças estavam presas aos tornozelos por alamares de lã pretos, azuis e encarnados.
Kate, vendo-o assim à claridade do sol, vestido de uma alvura tão ofuscante, teve a impressão de que o rosto dele, escuro e emoldurado de cabelos escuros, fazia como que um buraco na atmosfera.
Don Ramon aproximou-se, com as pontas da faixa a baterem-lhe nas pernas, e as sandálias rangendo de leve.
- Muito prazer em encontrá-la - murmurou, apertando a mão da visitante. - Como veio?
Deixou-se cair numa cadeira e ficou imóvel. As duas senhoras baixaram a cabeça, como se quisessem esconder a cara. A presença do homem ainda as constrangia mais, porém o dono da casa fingiu não reparar na comoção que sentiam e fê-lo por um acto de pura vontade. Da sua presença emanava certa força e elas experimentaram um pouco de alívio.
- Não sabia que o meu marido se tornara num aldeão, num verdadeiro peón? - perguntou Dona Carlota, irónica, à sua hóspeda. - É um señor peón, como o conde Tolstoi se fez señor mujique...
- Mas fica-lhe bem - observou Kate.
- Ora aí está... Ao diabo o que é do diabo... - replicou Don Ramon.
Havia nele algo de tenaz, de inflexível. Riu, e falou às senhoras, mas sem se revelar muito, apenas superficialmente. O seu ser íntimo, insondável e poderoso, não entrava em contacto com elas.
Assim foi durante o almoço. Houve conversa esvoaçante, com intervalos de silêncio. Nesse silêncio percebia-se que Don Ramon vivia noutro mundo; e a sua vontade calma, obrando noutra esfera, fazia recuar as mulheres para a sombra.
- A señora é como eu, Ramon - disse Dona Carlota. - Não tolera o rufar do tambor. Irá continuar aquilo, pela tarde adiante?
Seguiu-se uma pausa antes que ele respondesse:
- Só depois das quatro horas.
- Temos, então, de aturar hoje esse barulho? - insistiu Dona Carlota.
- Porque não há-de ser hoje como nos outros dias? - ripostou o marido. Notava-se-lhe um ar contrariado. Era evidente que pretendia subtrair-se à presença daquelas duas.
- Porque a senhora está cá, e eu estou também, e porque nenhuma de nós gosta daquele som. Amanhã já ela se vai embora, e eu regresso à cidade. Porque não nos poupas esse tormento? E
Ramon fitou a mulher, e em seguida Kate. Os olhos denotavam cólera. Kate quase ouvia, naquele peito forte, o coração inchar de furor. Mas calou-se e a outra também se calou. No fundo, estavam satisfeitas por terem podido despertar a ira do homem.
Mantendo o sangue-frio, Don Ramon inquiriu da esposa (não sem que se lhe percebesse a indignação):
- Porque não levas a senhora Leslie até ao lago?
- Não nos apetece.
Ele então fez o que a irlandesa nunca vira ninguém fazer. Encerrou-se dentro de si mesmo, deixando às duas comensais a impressão de se encontrarem diante duma porta que se fechou. Kate sentiu-se abandonada e deprimida, mas a pouco e pouco a irritação tingiu-lhe as faces pálidas dum rubor de fogo.
- Posso ir-me embora antes das quatro horas - declarou.
- Não, não! - acudiu, suplicante, a dona da casa. - Não me deixe. Fique comigo até à noite e ajude-me a distrair Don Cipriano, que vem jantar connosco.

XI
Acabado o almoço, Ramon recolheu ao quarto para dormir a sesta. A tarde estava quente, pesada. No extremo oeste do lago erguiam-se nuvens cintilantes, quais mensageiros da tempestade. Ramon fechou as janelas do seu aposento de modo a obter negrume total; apenas aqui e ali, filtrando-se pelos interstícios da porta, os raios de luz pousavam nas trevas como uma coisa tangível.
Despiu a roupa e ergueu acima da cabeça os punhos fechados, como se orasse intensamente e de pé. Nos seus olhos só havia escuridão, e a pouco e pouco essa escuridão atingiu-lhe o cérebro, apagando-lhe todos os pensamentos. Só uma vontade poderosa se distendia e emanava da espinha dorsal, numa tensão sobre-humana até que as flechas da alma atingiram o alvo e a oração a sua meta.
Então, bruscamente, tombaram os braços trémulos, o corpo readquiriu a flexibilidade. O homem recuperara a sua força. Quebrara as cordas do mundo e sentia-se livre e senhor da outra força.
Devagarinho, com precaução, esforçando-se por não pensar, não se recordar, não despertar as serpentes venenosas da consciência, enrolou-se num cobertor delgado e estendeu-se no chão sobre uma pilha de coxins. Daí a instantes, adormecia.
Dormiu profundamente cerca de uma hora. Abriu os olhos de repente, viu as trevas aveludadas e as frechas de luz diminuídas: o sol mudara. Pôs-se à escuta. Parecia não haver um único som no mundo. Talvez não existisse mundo...
Então começou a ouvir. Distinguiu o débil rumor duma carroça, folhas sussurrando ao vento, o som distante de pancadas, o pio duma ave.
Levantou-se, vestiu-se com rapidez às escuras e foi abrir as janelas. A tarde ia em meio; soprava uma aragem quente, amontoavam-se a oeste nuvens escuras, mas a chuva não se decidia a cair. Ramon pôs na cabeça um chapéu de palha, que tinha à frente um enfeite de penas brancas, pretas e azuis dispostas em forma de olho, ou de sol. Ouviu vozes femininas. Ah, a estrangeira! Esquecera-a por completo. E Carlota! Carlota encontrava-se ali. Por um momento, pensou nela e na sua caprichosa oposição. Depois, antes que a ira o dominasse, soergueu o peito, em nova oração muda, os olhos sombrearam-se-lhe - e perdeu a impressão de contrariedade.
Seguiu pelo terraço até à escada de pedra que conduzia à entrada e atravessou o pátio, onde dois homens, debaixo dum alpendre, carregavam azêmolas com fardos de bananas. No zaguán dormiam soldados. Pelas portas abertas, Ramon viu ao fundo da alameda um carro de bois afastando-se lentamente. No pátio ressoavam marteladas numa bigorna: era um homem e um rapazito ocupados na forja. Noutro alpendre, um carpinteiro aplainava tábuas.
Don Ramon deteve-se um momento para olhar em volta. Aquele era o seu mundo. O espírito dele espraiava-se nesse mundo como uma sombra fomentadora, e o silêncio do seu próprio poder dava-lhe paz.
Os homens que trabalhavam tiveram quase instantaneamente consciência da presença do patrão. Um após outro, os rostos escuros e ardentes ergueram-se para ele e voltaram a baixar-se. Gostavam de o ver ali, mas temiam aproximar-se e nem se atreviam a um olhar mais prolongado. Retomaram o trabalho com mais ardor, como se a presença do patrão lhes desse novo alento.
Ramon dirigiu-se para a forja, onde o rapazinho dava ao fole e o homem batia pancadas leves e rápidas num pedaço de ferro.
- É a ave? - perguntou Ramon.
- Sim, patrón, é a ave. Está bem! - E o homem levantou os olhos pretos, luzidios, expectantes. com uma tenaz, brandiu a tira de metal, negra, em forma de língua achatada, e Ramon observou-a demoradamente. - As asas ponho-as depois - explicou o ferreiro.
com as mãos escuras e nervosas, Don Ramon traçou uma linha imaginária em volta do pedaço de ferro. Três vezes fez esse gesto, que parecia fascinar o ferreiro.
- Um pouco mais alongado. Assim... - disse Ramon.
- Sim, patrón, compreendo.
- E o resto?
- Está ali. - O homem apontou para dois arcos, um maior que outro, e para várias chapas de ferro triangulares.
- Coloca tudo isso no chão.
O ferreiro pousou os arcos, um dentro do outro, e em seguida dispôs com perícia os triângulos de modo que as bases ficassem sobre o arco exterior e os vértices no círculo interior. Eram sete.
Assim formaram um sol de sete pontas.
- Agora, a ave - ordenou Ramon.
O homem pegou logo na peça comprida: era a forma rudimentar dum pássaro, com dois pés mas ainda sem asas. Colocou-a no centro da roda interior, de maneira que as patas tocassem no círculo e a cabeça atingisse a parte oposta.
- Está tudo certo!
Ramon contemplava o símbolo de ferro armado no chão quando ouviu abrir a porta de casa. Kate e Carlota avançaram através do pátio.
- Retiro isto? - inquiriu o ferreiro.
- Deixa, não faz mal - respondeu Don Ramon tranquilamente.
Kate deteve-se a observar aquela coisa estendida no chão.
- Que é isso? - perguntou.
- A ave dentro do sol.
- Representa uma ave?
- Quando tiver asas.
- Ah, faltam-lhe as asas! E de que serve?
- É um símbolo para o povo.
- é bem bonito...
- Sim, é bonito.
- Ramon, não te importas dar-me a chave para tirar o barco?
- disse Dona Carlota. - Vamos dar um passeio no lago, e Martin remará.
O marido tirou a chave da cinta.
- Onde descobriu essa linda faixa? - indagou Kate. Era branca, com riscas azuis e pretas e franjadade vermelho.
- Teceram-na aqui - informou Don Ramon.
- E as sandálias? Também as fizeram cá?
- Sim, foi obra do Manuel. Mais tarde lho mostrarei...
- Gostaria bastante de ver. São belíssimas, não acha, Dona Carlota?
- Acho, mas não sei se as coisas belas são sensatas. Não sei. E a señora, sabe o que é sensato?
- Eu? - volveu Kate. - Não me preocupo muito com isso.
- Ah, não se preocupa! Afigura-se-lhe então sensato da parte de Ramon usar traje de camponês e huaraches?
Pela primeira vez, Dona Carlota exprimira-se em língua inglesa, falando com lentidão.
- Fica-lhe tão bem! - replicou Kate. - O fato de homem é medonho e Don Ramon parece magnífico com este.
De facto, com o largo chapéu pousado na cabeça ele tinha certo ar de nobreza e autoridade.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, fixando na companheira o seu olhar inteligente, enquanto brincava com a chave. - Vamos para o lago?
As duas mulheres afastaram-se. Rindo consigo mesmo, Ramon atravessou o pátio e dirigiu-se a uma granja construída perto das árvores. Entrou e assobiou baixinho. Soou outro assobio como resposta e abriu-se um alçapão. Don Ramon subiu a escada e encontrou-se numa espécie de oficina de carpinteiro. Acolheu-o um rapaz corpulento, de cabelo encaracolado, que empunhava maço e escopro.
- Que tal vai isso? - perguntou Ramon.
- Vai bem.
O artista esculpia uma cabeça de madeira. Uma cabeça avantajada, convencional, mas que, apesar do convencionalismo, revelava semelhança com Ramon.
- Sirva-me de modelo durante meia hora - disse o escultor. Ramon sentou-se e ficou silencioso, enquanto o outro, curvado
sobre a sua obra, se concentrava no trabalho. Durante todo aquele tempo, Don Ramon conservou-se erecto, quase imóvel, sem pensar em nada, mas irradiando um halo sombrio de poder que fascinava o artista.
- Basta - declarou por fim, levantando-se.
- Mas ponha-se na posição antes de se ir embora - pediu o artista.
Ramon despiu lentamente o casaco e ficou de torso nu, com a faixa raiada de azul e preto de roda da cintura. Por uns instantes pareceu recolher-se e, em seguida, como se numa oração intensa e orgulhosa, ergueu o braço direito por cima da cabeça e ficou transfigurado. O braço esquerdo pendia molemente ao longo do quadril. E no rosto, esse ar de orgulho fixo e intenso que era em si mesmo uma oração.
O escultor observava-o admirado e quase temeroso. Aquele homem grande e enérgico, com os seus olhos negros dilatados pelo orgulho e no entanto cheios de oração, despertava no escultor um frémito de alegria e de medo.
Don Ramon voltou-se para ele.
- Agora, você!
O artista, assustado, quis esquivar-se, mas encontrou o olhar de Ramon e, no mesmo instante, a calma da concentração desceu sobre ele, como um êxtase. Então, bruscamente, ergueu o braço, e a face pálida e nédia adquiriu uma expressão de paz e dignidade. Os olhos cinzento-azulados, serenos e altivos, dirigiam ao Além a sua oração. E embora estivesse com a bata de trabalho, e não fosse esbelto, apresentava uma imobilidade perfeita, plena de nobreza.
- Muito bem - disse Ramon, baixando a cabeça.
O escultor moveu-se de súbito. Ramon estendeu-lhe as duas mãos e ele, levantando-lhe a dextra, pousou-a na fronte.
- Adiós! - disse Ramon, depois de enfiar o casaco.
- Adiós - respondeu o artista. E com a felicidade estampada no rosto, voltou para o trabalho.
Don Ramon visitou a casa de adobe, cujo pátio era rodeado duma paliçada de canas e sombreado por uma gigantesca mangueira. Manuel, a mulher, os filhos e dois ajudantes estavam a fiar e a tecer. Debaixo das bananeiras, duas pequenas cardavam lã branca e castanha. A mulher e uma rapariga fiavam. Numa corda secava lã tingida, vermelha, azul e verde. E, no alpendre, Manuel e um rapaz manobravam dois pesados teares.
- Como vai isso? - inquiriu Don Ramon.
- Muy bien! Muy bien! - respondeu Manuel, com uma expressão transfigurada cintilando-lhe nas pupilas negras. - Muito bem, señor!
Ramon examinou a serape que estavam a tecer. Tinha uma barra em ziguezague de lã preta natural e, em cada ponta, um ornato complicado, azul e preto. O homem começara o centro, a que chamam boca, e olhava de instante a instante para o desenho pregado no tear. Aliás, era um desenho simples, igual ao símbolo de que o ferreiro se ocupava: uma serpente a morder a cauda e, de volta, triângulos negros cujas bases se apoiavam num círculo exterior; ao meio uma águia azul, com as asas e os pés tocando no arco formado pela serpente.
Ramon voltou a casa, dirigindo-se para a ala onde se encontrava o seu quarto. Lançou uma manta dobrada sobre o ombro e seguiu pelo terraço. No extremo dessa ala, projectando-se para o lago, havia outro terraço, este quadrado, com uma bignónia cor de coral pendente dos pilares maciços. A loggia estava juncada de esteiras e, a um canto, via-se um tambor e respectiva baqueta. No ângulo mais afastado mergulhava uma escada de pedra, fechada em baixo por uma porta de ferro.
Ramon ficou uns momentos a olhar para o lago. As nuvens dispersavam-se e o lençol de água reflectiu uma claridade esbranquiçada. Ao longe, via-se a mancha de um barco, onde provavelmente se encontravam Martin e as duas senhoras.
Tirou o chapéu e o casaco, e permaneceu imóvel, nu da cintura para cima. Então pegou na baqueta e, depois de esperar uns segundos, até adquirir paz de alma, fez soar o apelo do tambor, num ritmo alternado, forte e fraco. Captara o antigo poder bárbaro de certos rufos.
Assim esteve durante algum tempo, sozinho, tocando tambor com a mão direita, de face inexpressiva.
Acorreu um homem, de cabeça descoberta, vindo do outro terraço. Trazia fato de brancura imaculada, serape escura ao ombro, e uma chave na mão. Saudou Ramon, levando à testa as costas da mão direita, e depois desceu a escada e abriu a porta de ferro.
Imediatamente chegaram homens, todos vestidos de branco, cada qual com a sua serape dobrada em cima dos ombros. Mas as faixas eram azuis, e as sandálias azuis e brancas. O escultor apareceu, assim como Martin.
Eram sete, além de Ramon. No topo da escada saudaram-no, um apôs outro. Em seguida, depuseram a manta e o chapéu no murinho do terraço e despiram o casaco, que atiraram para cima dos chapéus.
Ramon largou o tambor e sentou-se sobre a sua manta raiada de azul e preto. Todos o imitaram, formando círculo, de pernas cruzadas e torso nu. Uns eram cor de café, outros brancos; Ramon tinha a pele dum tom castanho-claro. Conservaram-se em silêncio, só perturbado pelo som igual e hipnótico do tambor que um dos homens tocava. Então este começou a cantar numa vozinha estranha, contida, essa antiga voz de falsete dos índios:
"Quem dorme despertará. Quem dorme despertará. Quem segue o caminho da serpente há-de chegar ao seu destino; há-de chegar ao seu destino e ficará revestido com a pele da serpente."
Uma por uma, outras vozes se juntaram, até que todos se fizeram ouvir, naquele ritmo cego, infalível, do antigo mundo bárbaro. E todos com idêntica voz interior, como se a alma cantasse para si própria.
Cantaram por momentos, em uníssono, qual bando de pássaros a voar levados pelo mesmo instinto. E quando o tambor vibrou num rufo que era o final da cerimónia, as vozes extinguiram-se também, simultâneas, com um estrangulamento na garganta.
Houve um silêncio. Depois os homens principiaram a conversar uns com os outros, rindo em surdina. Mas a voz deles e a expressão já não eram as mesmas de há pouco.
Don Ramon ia falar e todos se calaram, inclinando a cabeça. Aquele sentara-se, de face erguida, visando ao longe, na dignidade da oração.
- Não há Passado nem Futuro, só existe o Presente - disse em tom surdo, majestoso. - A Serpente magna dobra e desdobra os seus anéis, as estrelas surgem, os mundos desaparecem. Há somente a mudança e o repouso do plasma.
Eu sou sempre, diz o seu sono.
Assim como o homem, enquanto dorme, não tem conhecimento, mas é, também a Serpente enroscada do eterno Cosmos prolonga o seu existir de Agora.
Agora, agora só, e para sempre Agora.
Contudo os sonhos despertam e esmorecem no sono da Serpente.
E o Universo eleva-se como os sonhos e como eles expira.
E o homem é um sonho no sono da Serpente.
E apenas o sono que não tem sonhos murmura: Eu sou!
E no Agora sem sonhos, Eu sou.
Os sonhos despertam, como devem, e o homem é um sonho desperto.
Mas o plasma sem sonhos da Serpente é o plasma do homem, do seu corpo e ao mesmo tempo da sua alma.
E o sonho perfeito da Serpente Eu sou é o plasma do homem, que é íntegro.
Quando o plasma do corpo e o da alma só fazem um, Eu sou na Serpente.
Agora Eu sou.
Não foi é um sonho, assim como será, quais dois pés trôpegos e separados.
Mas Agora. Eu sou.
As árvores desdobram as folhas no sono, e a floração emerge dos sonhos no mais puro Eu sou.
Os pássaros esquecem o peso dos seus sonhos e cantam no Agora: Eu sou! Eu sou!
Porque os sonhos têm asas e pés e caminhos a percorrer, e esforços a realizar.
Mas a Serpente luzidia do Agora não tem asas nem pés, é una, perfeitamente enrolada.
Nos pés dum sonho, a lebre sobe o monte numa corrida. Mas quando se detém o sonho desaparece e ela entra no Presente e os seus olhos são o vasto Eu sou.
Só o homem sonha, sonha, e vai de sonho em sonho, como alguém que, dormindo, se agita no leito.
Sonha com os olhos e a boca, com as mãos e os pés, com o falo, o coração e o ventre, com o corpo e a alma, numa tempestade de sonhos.
E precipita-se de sonho para sonho, na esperança de alcançar o sonho perfeito.
Mas eu afirmo-vos que nenhum sonho é perfeito, porque em todos eles há sofrimento e desejo.
Nada é perfeito, excepto o sonho que falece no sono. Eu sou.
Quando o sonho dos olhos se obscurece, cercado pelo Agora,
E quando o sonho da boca ressoa no último Eu sou,
E quando o sonho das mãos dormita como uma ave no mar, que é erguida, e levada, sem que ela o saiba,
E os sonhos dos pés atingem o centro do mundo, onde a Serpente dorme,
E o sonho do corpo é a calma duma flor oculta,
E o sonho da alma se dissipou no perfume do Agora,
E o sonho do espírito se apazigua e descansa na Estrela da Manhã,
Porque cada sonho começa e termina no Presente,
No âmago da flor está a Serpente que alumia e não desperta.
E o que se apaga é um sonho, e o que se aumenta é um sonho. Há sempre, e somente Agora. Agora e Eu sou."
Reinava o maior silêncio no círculo de homens. Lá fora, rangia um carro de bois e, do lago, elevava-se o débil som de remos a fender a água. Mas os sete homens, de cabeça baixa, escutavam interiormente, numa espécie de transe.
Então o tambor começou, suavemente, e um dos homens cantou, num fio de voz:
O senhor da Estrela da Manhã
Estava entre o dia e a noite:
Tal um pássaro que ergue as asas e espera
com a asa luminosa à direita
E a das trevas à esquerda,
A Estrela de Alva apareceu.
- Olhai! Estou sempre aqui!
Longe, no espaço
Roço a asa do dia
E ilumino o vosso rosto.
com a outra asa roço a sombra.
Mas eu estou sempre aqui.
Estou sempre aqui. Sou o senhor. E os senhores entre os homens Vêem-me no cintilar das minhas asas. E perdem-me outra vez. Mas, olhai! Estou sempre aqui.
As multidões não me vêem. Só vêem o bater de asas, As idas e vindas das coisas, O calor e o frio.
Mas a vós que me vedes entre
O frémito da noite e do dia,
Faço-vos senhores do Caminho Invisível.
Caminho entre abismos de trevas e vales de luz; Caminho que segue tal rasto de serpente, tal a mecha dum rastilho
Que incendiará à substância das trevas e explodirá à vista de todos.
Jamais me afasto. Estou sempre aqui Entre as asas dum voo sem fim, Nas profundezas da paz e da luta.
Profundo no relento da paz,
Longe da orla do combate,
Haveis de encontrar-me, eu que não sou
Nem sou destruição.
Para além eu estou Dos horizontes de amor e de luta, Como uma estrela, como uma fonte Que lava os senhores da vida.
"Ouvi! - disse Ramon, no meio do silêncio. - Seremos senhores entre os homens, não os senhores dos homens. Somos senhores da noite. Senhores do dia e da noite. Filhos da Estrela da Manhã e da Estrela da Tarde.
Não somos senhores dos homens. Eu, porém, sou a Estrela da Manhã e Senhor do dia e da noite. com o poder que me foi concedido à mão esquerda e com o poder que obtive com a mão direita, sou senhor dos dois rumos.
E a minha flor na terra é o jasmim, e no céu a hespéride.
Não vos darei ordens, nem vos servirei, porque a serpente se arqueia em direcção à sua casa.
Contudo, estarei convosco, para que não vos desvieis de vós próprios.
Não há nada a dar nem a receber. Quando os dedos que dão afloram os que recebem, cintila a Estrela da Manhã a esse contacto, e o jasmim brilha entre as mãos. E assim não há dom nem aceitação, nem mão que oferece nem mão que recebe, mas a estrela encontra-se entre elas e a mão escura e a mão clara permanecem invisíveis de cada lado. O jasmim recolhe na corola o dom e a aceitação, e o seu perfume espalha-se no ar.
Não penseis em dar nem em receber, deixai isso à flor do jasmineiro.
Não vos desperdiceis, que nada vos seja arrancado.
E não percais nada, nem o aroma da rosa, nem o sumo da romã, nem o calor do fogo.
Mas dizei à rosa: - Olha, colho-te, e o teu perfume enche-me as narinas e o meu hálito penetra no teu coração. Que isso seja entre nós como um sacramento.
E tomai cuidado quando abrirdes a romã; é o Sol poente que tendes nas mãos. Dizei: - Eis-me aqui, vem! Que a Estrela da Tarde fique entre nós.
E quando a chama se eleva ao sopro do vento frio e estendeis as mãos para o calor, ouvi o que a chama diz: - Ah! És tu? És tu que vens para mim? Eu realizava a grande viagem, seguindo o caminho da serpente magna. Mas visto que vens até mim, de ti me aproximo. E se caíres nas minhas mãos cairei nas tuas, e a flor do jasmineiro perfumará o nosso encontro.
Não repilais nada nem deixeis que vos despojem. Porque repelir ou ser despojado quebra a raiz do jasmim e conspurca a Estrela da Tarde.
Não vos apodereis de nada para dizer: - Isto pertence-me. Nada existe que vos seja dado possuir, nem sequer a paz.
Nada; nem o ouro, nem a terra, nem o amor, nem a vida, nem a dor, nem a morte, nem a salvação.
De nada direis: - Isto é meu.
Dizei apenas: - Isto está comigo.
Porque o ouro só permanece convosco o espaço duma lua, e olha-vos e diz: - Encontramo-nos ligados por este breve instante.
E a terra diz-vos: - Ah, filho meu, de pai longínquo! Vem, revolve-me um pouco, para que as papoulas e o trigo cresçam e ondulem ao vento que sopra entre o meu e o teu peito. Depois, abisma-te em mim, e ambos formaremos um outeiro.
E ouvi o que diz o vosso amor: - A tua espada ceifou-me como à erva, e sobre mim está a sombra e o bruxulear da Estrela da Tarde. Não é mais do que trevas e nada. Ó tu, quando te levantares e prosseguires o teu caminho, fala-me, dize-me simplesmente: - A estrela despontou entre nós.
E dizei à vida: - Sou teu? És minha? Sou a orla do dia em volta da noite? São os meus olhos o crepúsculo onde a estrela se suspende? É o meu lábio superior o pôr do Sol e o meu lábio inferior o raiar da manhã? Tremula a estrela na minha boca?
E dizei à vossa paz: Ergue-te, estrela imortal! Já as águas da aurora te alagam e me levam no seu curso.
E dizei à dor: Machado, abates-me. E, contudo, brota uma centelha do teu gume e da minha ferida. Corta, então, que eu velarei a face, ó pai da estrela!
E dizei à vossa força: A espuma da noite sobe-me dos pés até aos rins, a espuma do dia salta-me dos olhos e da boca para o mar do meu peito. As minhas entranhas são um manancial de poder que corre pela espinha dorsal. E uma estrela flutua sobre esse fluxo.
E dizei à vossa morte: Pois seja! Eu e a minha alma iremos para ti, Estrela da Tarde. Carne, desaparece na sombra da noite. Espírito, chegou o teu dia. Deixai-me agora. Na minha nudez suprema me encaminho para a Estrela mais nua."

XII
Os homens envergaram o casaco, puseram o chapéu e, depois de cobrirem os olhos por um momento numa saudação a Ramon, desceram a escada de pedra. Fechou-se a porta com estrondo e o porteiro, voltando com a chave, pousou-a sobre o tambor e retirou-se discretamente.
Ramon ficou sentado em cima da manta, com os ombros nus apoiados à parede e de pálpebras cerradas. Sentia-se fatigado, nesse estado de abstracção que torna difícil o regresso ao mundo normal. Ouvia de modo vago os rumores na casa, tilintar de colheres de chá, vozes femininas conversando, o ronco dum automóvel que se aproximava pelo caminho desnivelado e se detinha no pátio.
Custava-lhe voltar à terra. Ressoava-lhe aos ouvidos o barulho do exterior, mas dentro dele mesmo escutava o murmúrio confuso do universo, como se num búzio. Era-lhe penoso retomar contacto com as coisas da vida corrente quando o corpo e a alma mergulhavam no cosmos.
Gostaria de se conservar ainda uns instantes no seu isolamento, mas não era possível. Reclamavam a sua presença, especialmente Carlota.
Já ela o chamava: "Ramon! Isso terminou? Cipriano está aqui." Sentia-se-lhe na voz receio e temeridade.
Ramon puxou os cabelos para trás, ergueu-se e, em passo rápido, acudiu ao chamamento tal como se encontrava, de torso nu. Não tinha vontade de se vestir, de reentrar nos pormenores da vida quotidiana.
Cipriano, fardado, achava-se no terraço abancado à mesa do chá. Levantou-se prontamente e avançou para Ramon de braços abertos, perscrutando o rosto do amigo com os seus olhos negros e brilhantes.


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Os dois homens abraçaram-se, peito contra peito, e, por momentos, Cipriano deixou estar as mãos morenas nas espáduas nuas de Ramon. Então afastou-se devagar e fitou-o sem proferir uma palavra.
Ramon pousou distraidamente a mão no ombro de Cipriano.
- Que tal? - perguntou. - Como vai isso?
- Bien. Muy bien - respondeu Cipriano, fixando-o sempre como se se procurasse a si mesmo no semblante de Ramon. Este correspondeu ao olhar do índio com um leve sorriso, enquanto Cipriano baixava a cabeça e os cabelos longos lhe tombavam na testa.
As duas mulheres observavam a cena em silêncio absoluto. Quando os dois homens se aproximaram da mesa, Carlota começou a servir o chá. Mas as mãos tremiam-lhe e ela tratou de pousar o bule e cruzá-las no regaço.
- Passearam de barco? - indagou Ramon, com ar alheado.
- Passeámos, e foi muito agradável - disse Kate. - Um bocado quente, quando o sol apareceu...
Ramon esboçou um sorriso e alisou o cabelo. Em seguida, descansando a mão no parapeito do terraço, olhou para o lago e suspirou inconscientemente.
Nu da cintura para cima, voltava costas às mulheres, contemplando a vastidão da água. Cipriano estava a seu lado.
Kate observava as espáduas lisas, morenas, que emanavam sensualidade, os ombros largos, o porte altivo da cabeça - e não podia deixar de imaginar uma lâmina cravada nessas costas magníficas, nem que fosse só para destruir a sua arrogância distante.
Porque até a sua nudez parecia distante, intangível. Pensar nela e contemplada daquele modo representava quase uma violação. Kate sentiu de súbito o coração estremecer-lhe de vergonha. Fora assim que Salomé olhara para João Baptista, e Ramon possuía essa mesma beleza que evocava uma romã destacando-se na verdura sombria da árvore.
Soprava branda a aragem da tarde. Na luz nacarada deslizavam barcos, enquanto o Sol luzia ainda no horizonte. Distinguia-se a margem oposta, a cerca de vinte milhas, embora velasse a atmosfera uma bruma opalina que se confundia com a água do lago. Kate lobrigava a mancha clara da igreja de Tuliapan.
No jardim da casa havia um bosquete de mangueiras, onde voavam cá e lá passarinhos escarlates, como botões de papoula, e outros dum amarelo cintilante. Contudo, quando pousavam por um momento e fechavam as asas, desapareciam da vista, pois eram escuros por cima.
- Neste país, os pássaros só são coloridos por baixo das asas - observou Kate.
Ramon voltou-se bruscamente para ela.
- Dizem que a palavra México significa "por baixo" - replicou, sorrindo, enquanto se afundava numa cadeira de balouço.
Dona Carlota fizera um esforço sobre si mesma e, de olhos fixos nas chávenas, servia o chá. Apresentou uma xícara ao marido, sem sequer o relancear. Tremia de cólera quase histérica. Ela, que era sua esposa desde tantos anos e que o conhecia tão bem (ah, se o conhecia!), nada possuía desse homem.
- Passa-me o açúcar, Carlota - disse Ramon na sua voz calma.
A mulher sobressaltou-se como se a beliscassem de repente.
- O açúcar? - repetiu, distraída.
Ramon estava sentado na cadeira, pendido para a frente e de xícara na mão. A tela fina que lhe cobria as coxas revelava-lhe mais o corpo do que a nudez do torso. Kate percebeu porque é que era proibido usar calças de algodão naplaza. Tornavam mais sensível a presença da carne.
Verdadeiramente belo, duma beleza que chegava a ser assustadora, irradiava uma sensualidade pura, hostil ao género de pureza de Kate, com a sua faixa azul de roda da cinta e as calças brancas parecendo fremir de vida cingidas aos quadris e às coxas. Tão poderoso fluido emitia esse ente másculo que Kate se sentia como que fascinada.
E ele, perfeitamente tranquilo, dentro do seu próprio ambiente. O mesmo acontecia a Cipriano. Ambos tão calmos, tão sombrios, dir-se-iam esmagar as duas mulheres.
Kate compreendeu então os sentimentos de Salomé. Compreendeu como João Baptista, com a sua beleza distante e inacessível, exercera tamanho poder.
"Ah! disse ela consigo mesma. - Tenho de fechar os olhos e abrir a alma. Fechar os olhos para não ver e ficar na escuridão e no silêncio junto destes dois homens. Possuem uma riqueza que me falta. Conseguiram libertar-se do desejo que a vista suscita. Sou atormentada pelo desejo, pela minha imaginação lasciva. É a maldição de Eva. Os meus olhos, a minha experiência são como um anzol que me repuxa a carne e me desperta espasmos de desejo. Oh, quem me dera libertar-me da impureza do olhar! Filha de Eva, porque é que estes homens me não arrancam às visões impuras?"
Levantou-se e dirigiu-se à beira do terraço. Amarelos como narcisos, emergiam dois pássaros da sua própria invisibilidade. Na praia de seixos, onde estava um barco varado, dois homens apanhavam à rede os peixinhos denominados chcirales, que cintilavam na água acastanhada como lascas de vidro.
- Ramon! - disse Dona Carlota. - Não vais vestir-te? Já não podia suportar aquela vista.
- vou. Obrigado pelo chá - respondeu o marido, pondo-se de pé. E seguiu pelo terraço adiante, com as sandálias a ranger de leve no pavimento de tijolos.
- señora Caterina! - chamou Carlota. - Venha beber o seu chá.
Kate voltou para a mesa, dizendo:
- Que paz se sente aqui!
- Paz! - repetiu Carlota. - Não acho paz nenhuma. O que há é um silêncio pavoroso que me causa arrepios.
- Vem cá frequentemente? - perguntou Kate a Cipriano.
- Sim, uma ou duas vezes por semana - respondeu ele, fixando-a com singular expressão nos olhos negros.
Dir-se-ia que esses homens procuravam anular-lhe a vontade.
- São horas de eu voltar para casa - declarou ela. - Não tarda que o Sol desapareça.
- Ya va? - redarguiu Cipriano, com a sua voz aveludada em que transparecia certa pena. - Já!
- Oh, não, señora! - exclamou Carlota. - Fique connosco até amanhã.
- Mas estão em casa à minha espera.
- Mandarei um rapaz prevenir que só regressa amanhã. Fica, não é verdade? Ah, ainda bem.
E Carlota, depois de pousar a mão carinhosa no braço de Kate, levantou-se a fim de avisar os criados.
Cipriano puxou da cigarreira e ofereceu-a a Kate.
- Não se escandalizará se eu fumar? - disse ela. - É um dos meus vícios.
- Fume. Não é bom sermos perfeitos.
- Acha que não? - E Kate, rindo-se, puxou uma fumaça do cigarro.
- Experimenta realmente essa paz? -inquiriu ele, irónico.
- Porquê?
- Porque é que os brancos andam sempre em busca da paz?
- Pois não é natural que todos desejem paz?
- Paz é apenas o descanso depois da guerra. Não é mais natural do que a luta; talvez até seja menos.
- Mas existe outra paz, aquela que ultrapassa o entendimento. Não sabia?
- Parece-me que não - respondeu Cipriano. - Que pena!
: - Ah! Quer ensinar-me? Mas para mim é diferente... Cada
homem tem dois espíritos. Um assemelha-se à aurora na época das chuvas, suave, fresca, húmida, com pássaros chilreando. O outro é como a estação seca, com a sua luz forte e ardente que parece nunca mais abrandar.
- Decerto prefere o primeiro.
- Não sei - replicou Cipriano. - O outro dura mais.
- Tenho a certeza que prefere a frescura da manhã - insistiu Kate.
- Não sei, não sei. - E esboçou um sorriso, deixando Kate
convencida de que ele de facto não sabia. - Na primeira fase vemos as flores nas suas hastes transbordantes de seiva. A flor desa brocha como uma face de mulher perfumada pelo desejo. Mas o sol começa a aquecer, e então tudo se modifica. As flores murcham e o peito do homem torna-se como um espelho de aço. Dentro dele tudo
- é escuridão, enroscando-se e desenroscando-se como uma cobra. As flores secaram nas hastes, as mulheres já não existem para o homem. Umas e outras desapareceram.
- Que pretende ele então? - perguntou Kate.
- Não sei. Talvez queira ser uma grande personagem, senhor de todos os povos...
- E porque não realiza essas aspirações?
Cipriano encolheu os ombros.
A señora assemelha-se à manhã de que lhe falei há pouco -
disse ele.
- Tenho quarenta anos - replicou Kate com um risinho amarelo.
O general tornou a encolher os ombros.
- Isso não interessa. O seu corpo parece o caule da flor a que
aludi, e o seu rosto será sempre a aurora na estação das chuvas.
- Porque me diz essas coisas? - volveu Kate, com involuntário e estranho tremor.
- E porque não hei-de dizer? A señora é tal uma manhã cheia de frescura, e estamos no fim da época seca...
Observava-a, e nos seus olhos brilhava o desejo, aliado a certa insolência.
Kate baixou a cabeça e balançou-se na cadeira.
- Gostaria de casar consigo - continuou Cipriano. - Se estivesse disposta a isso, desposá-la-ia.
- Não me parece que me torne a casar - ripostou Kate, anelante e de faces afogueadas.
- Quem sabe?
Ramon surgiu no terraço, com a sua bela serape dobrada sobre o ombro nu. Apoiou-se num dos pilares e contemplou Kate e Cipriano, o qual ergueu a vista e lhe dirigiu um sorriso em que transparecia a amizade que os ligava.
- Disse à señora Caterina que a desposaria se ela estivesse disposta a casar-se - declarou ele.
- É o que se chama falar sem rodeios - replicou Ramon, olhando para Cipriano com o mesmo sorriso amigo. Em seguida, o seu olhar pousou-se em Kate, enquanto o sorriso se alastrava e todo o seu rosto respirava compreensão. Cruzou os braços, como fazem os índios quando querem defender-se do frio; e a carne, dum tom castanho-claro, como ópio, formava saliências no peito largo, cheio e liso.
- Diz Don Cipriano que os Brancos só desejam a paz - proferiu Kate, fitando Ramon com deliberada impertinência. - Não se consideram brancos?
- Não mais brancos do que somos - respondeu Ramon, sorrindo. - Pelo menos, não duma brancura de lírio...
- E não buscam a paz?
- Por mim não penso nisso. Os mansos herdarão a terra, segundo a professia. Mas quem sou eu para lhes invejar a sua paz? Não señora. Por acaso pareço um evangelho de paz? Ou de guerra? A vida para mim não se resume nessas duas coisas.
- Não sei afinal o que desejam - disse Kate.
- Nós próprios não o sabemos senão em parte - replicou Ramon, mudando de expressão.
Havia nele uma espécie de bondade paternal que enchia Kate de espanto e a sobressaltava como se só agora compreendesse o verdadeiro significado de tal sentimento. Mistério, nobreza, inacessibilidade, e a vulnerável compaixão de homem na sua amizade desinteressada...
- Não gosta das pessoas de pele escura? - perguntou Ramon em tom suave.
- Acho-as belas à vista - respondeu Kate. - Mas - acrescentou, com um leve arrepio - estou contente por ser branca.
- Sente que não é possível nenhum contacto?
- Exactamente.
- É a sua impressão - volveu Ramon, e, enquanto ele falava, Kate percebeu que o considerava mais atraente do que a qualquer homem loiro e que, por muito vago que fosse, o contacto que tinha com ele lhe era mais precioso do que todos os que até aí conhecera.
Contudo, embora lhe lançasse certa sombra, não tentava influenciá-la, nem queria maior aproximação - ao passo que Cipriano, sentindo-se incompleto, a procurava e parecia violar-lhe a personalidade.
À voz de Ramon, Dona Carlota assomou a uma das portas mas, ouvindo falar inglês, tornou a sumir-se, num brusco acesso de cólera. Daí a pouco reaparecia, trazendo um vaso de flores carnudas, dum branco leitoso, semelhantes a frésias no tom e no perfume.
- Que lindas! - exclamou Kate. - São flores de igreja! No Ceilão, os indígenas entram nos seus templos e depõem uma flor num tabuleiro aos pés do Buda. E os tabuleiros das oferendas ficam cobertos dessas flores, todas muito bem arranjadas, dispostas com delicadeza oriental...
- Mas eu não as trouxe para homenagear deuses - replicou Carlota, pousando o vaso na mesa. - Trouxe-as para si, señora. Cheiram tão bem!
- De facto, têm um aroma delicioso - concordou Kate. Os dois homens afastaram-se, rindo.
- Ah, señora! - disse Carlota, sentando-se à mesa. - Pode entender Ramon? Seria capaz de renunciar à Santa Virgem? Eu antes queria morrer.
- Não precisamos doutros deuses, realmente - redarguiu Kate, com certo enfado.
- Outros deuses! - repetiu Carlota, escandalizada. - Como se fosse possível! Ramon comete um pecado mortal.
Kate conservou-se calada.
- E quer induzir o povo a fazer o mesmo - prosseguiu Carlota. - É pecado de orgulho... o pecado cardeal. Ainda bem que a señora pensa como eu. Receio as americanas que, para se apoderarem do espírito dos homens, aceitam todas as suas loucuras e perversidades... É católica, señora?
- Fui educada num convento.
- Ah, señora! Qual a mulher que tendo conhecido a Santíssima Virgem se afasta dela? Que mulher teria ânimo de crucificar Jesus novamente? Mas os homens, os homens! Aquela história de Quetzalcoatl seria coisa para rir se não fosse um pecado mortal. E da parte de dois homens inteligentes e instruídos tanta presunção!
- Os homens são assim - observou Kate.
Intensificava-se o crepúsculo; o horizonte estava ainda luminoso, mas o Sol afundara-se numa bruma cor-de-rosa, por trás das arestas da montanha. As colinas erguiam-se azuladas numa atmosfera cor de salmão que se reflectia na água. Lá adiante, onde o clarão rubro se adensava, banhavam-se homens e crianças.
Kate e Carlota subiram à azotea, o terraço que cobria a casa. Dali podiam ver a hacienda com o seu pátio semelhante a uma fortaleza, o caminho ladeado de árvores frondosas, as cabanas de adobe perto da estrada e as fogueiras já bruxuleando junto das casas. No ar róseo os salgueiros da margem pareciam mais verdes e cintilantes. Ao longe, luziam entre as árvores as duas torres brancas de Sayula. Deslizavam barcos em direcção à parte sombreada do lago.
E num desses barcos, deveras desconsolada, regressava Juana a casa.

XIII
Ramon e Cipriano encontravam-se à beira do lago. O general envergara também fato branco e sandálias, o que lhe ia melhor do que a farda.
- Tive uma conversa com Montes quando ele foi a Guadalajara - declarou Cipriano.
Montes era o presidente da República.
- E que te disse?
- Não se alarga muito a falar, mas depreendi que não simpatiza com os colegas e se sente isolado. Julgo que gostaria de te conhecer melhor.
- Porquê?
- Talvez pudesses dar-lhe apoio moral. Talvez chegasses a ser ministro; e até presidente, depois de Montes acabar o seu mandato.
- Montes agrada-me - replicou Ramon. - É sincero e ardente. Gostaste dele?
- Sim, mais ou menos - respondeu Cipriano. - É desconfiado, teme que outros pretendam compartilhar com ele o poder. Tem instintos de ditador. Quis saber se eu lhe era afecto.
- Deste-lhe a entender que sim?
- Disse-lhe que tudo o que me interessava verdadeiramente eras tu e o México.
- E que te respondeu?
- Ele não é tolo. Respondeu: "Don Ramon vê o mundo com olhos diferentes dos meus. Qual de nós terá razão? Eu quero salvar o país da pobreza e da ignorância, ele quer salvar-lhe a alma. Mas afirmo que um homem esfomeado e ignorante não tem lugar para a alma. Um ventre e um cérebro vazios roem-se a si mesmos, e a alma não existe. Don Ramon acha que um homem desprovido de alma pode passar sem o alimento do corpo e do intelecto. Pois que siga o seu caminho, que eu sigo o meu! Não nos embaraçaremos um ao outro. Dou a minha palavra que não interferirei em nada. Ele varre o pátio, eu trato da limpeza da rua.
- É sensato - comentou Ramon - e honesto nas suas convicções.
- Porque não serias ministro daqui a uns meses? E mais tarde presidente?
- Bem sabes que não é isso o que pretendo. Devo poupar-me e agir noutra esfera. A política que se mantenha ou evolua como eles entendem, a sociedade que faça o que quiser. Deixa-me em paz, Cipriano. Gostarias que eu fosse outro Porfirio Diaz, ou alguém do mesmo género, mas isso para mim seria pura e simplesmente soçobrar na vida.
Cipriano observava Ramon com os seus olhos negros e vigilantes, onde transparecia amizade, receio, confiança, mas também incompreensão, e a dúvida que sempre a acompanha.
- Não chego a perceber o que desejas - murmurou.
- Percebes, sim. A política e toda essa religião social com que Montes se preocupa equivale a lavar a casca dum ovo para lhe dar aspecto limpo. A mim, porém, só interessa o interior... Ah, Cipriano! O México é tal um ovo que o Tempo choca desde séculos neste ninho do mundo e que parece ser goro. Parece, mas não é. O que precisa é de calor que ajude a formação da ave. Montes quer limpar o ninho e lavar o ovo... Que aconteceria se tirassem um ovo de baixo duma águia para o lavar? Arrefeceria de vez. Pois quanto mais se empenharem em arrancar este povo da pobreza e da ignorância mais depressa ele morrerá. Pobre Montes! Todas as suas ideias são americanas ou europeias. E a velha pomba da Europa jamais poderá chocar com êxito o ovo escuro da América. Os Estados Unidos não morrem porque não estão vivos. É um ninho de ovos de loiça e por isso se conservam limpos. Mas aqui, Cipriano, aqui é necessário incubá-los antes da limpeza do ninho.
Cipriano baixava a cabeça. Experimentava sempre Ramon para ver se conseguia fazê-lo mudar de ideias e, depois de verificar a inutilidade dos seus esforços, submetia-se ao amigo e novas chamas de felicidade se alteavam dentro dele. Mas, entretanto, ia-o experimentando...
- Não serve de nada querer misturar as duas coisas. No ponto em que estão, não se misturam. Temos de fechar os olhos e mergulhar até ao fundo, como pescadores de pérolas. Mas andamos a flutuar à superfície, semelhantes a bocados de cortiça...
Cipriano mostrou um sorriso subtil. Tudo aquilo ele sabia!
- Temos de abrir a ostra do cosmos e extrair dela a nossa força.
Enquanto não arrancarmos a pérola não seremos mais do que mosquitos no cimo do oceano - concluiu Ramon.
- A minha força é como um demónio dentro de mim - disse Cipriano.
- Porque a ostra a retém fechada, como uma pérola negra. A ti compete libertá-la.
- Ramon, não acharias bom ser uma serpente, uma serpente enorme que se enrolasse em volta do globo e o esmagasse... como a esse ovo?
Ramon olhou-o e pôs-se a rir.
- Não me parece coisa impossível - continuou Cipriano. E não seria bom?
O outro meneou a cabeça, rindo-se.
- Pelo menos seria um momento bom.
- Que mais se pode desejar?
Brilhou nos olhos de Ramon uma centelha que logo se apagou.
- Para quê? - disse em voz surda. - Depois de esmagado o ovo que havíamos de fazer senão errar nos corredores de trevas e lamentar-nos? Para quê?
Ramon pôs-se de pé e afastou-se. O Sol desaparecera, a noite descia. Na alma daquele homem fervia uma cólera imensa, e Carlota é que a provocava. A mulher parecia incutir vida ao monstro da sua raiva íntima, e Cipriano exasperava-o.
"A minha força é como um demónio a rugir dentro de mim", disse Ramon consigo mesmo, repetindo a frase de Cipriano.
Reconhecia o direito de gritar a esse demónio humilhado e ridicularizado que vivia preso dentro dele. E a fúria apoderou-se de Ramon, contra Carlota, contra Cipriano, contra a humanidade inteira. Os seus partidários traí-lo-iam, tinha a certeza. Cipriano acabaria por traí-lo. Desde que lhe encontrassem o mínimo ponto fraco, todos saltariam sobre ele como tarântulas e infectá-lo-iam com a sua peçonha.
E qual o homem absolutamente invulnerável, sem o menor ponto fraco?
Ramon subiu ao seu quarto pela escada exterior, no lado da casa, e sentou-se na cama. A noite estava quente, pesada, e duma calma aflitiva.
- Prepara-se chuva - ouviu ele dizer a um dos criados. Fechou as portas do quarto e ficou às escuras. Então despiu-se todo, murmurando: "Repudio o mundo juntamente com esta roupa." E de pé, nu e invisível no meio do quarto, ergueu ao ar o punho fechado, com tal força que teve a sensação de que lhe estalavam as paredes do peito. A mão esquerda pendia ao longo do corpo, mole, com os dedos levemente curvados.
Tenso como o jacto duma fonte silenciosa, distendeu-se até abranger o âmago impalpável das trevas. E as vagas de escuridão começaram a lavar-lhe o espírito, a consciência; ondas de negrume rebentando-lhe na memória, em todo o seu ser, como uma maré que sobe. Até que foi maré cheia e ele, tremendo, se deixou cair por terra, para descansar. Invisível nas trevas, ficou a olhar para o vácuo, sentindo o misterioso fluxo interior purificar-lhe as entranhas e o coração, sentindo o espírito dissolver-se no Espírito maior que nenhum pensamento perturba.
Cobriu o rosto com as mãos e ali esteve imóvel, inconsciente, já sem nada sentir nem ouvir, semelhante a uma alga submersa no mar. Abolira-se o Tempo, abolira-se o Mundo, submerso nas profundezas que são intemporais e inespaciais.
Quando o coração e as entranhas despertaram para a vida, o espírito principiou a bruxulear tal uma chamazinha que vacila e não se apaga.
Enxugou a cara com as mãos, pôs a serape na cabeça e em silêncio, numa aura de sofrimento, desceu a escada, levando consigo o tambor.
Martin, o servo devotado, andava cá e lá no zaguán.
- Ya, patrón? - perguntou.
- Ya! - respondeu Ramon.
O homem correu à vasta cozinha onde ardia uma candeia, e voltou com um braçado de esteiras.
- Onde as colocamos, patrão?
Ramon hesitou no meio do pátio, olhando para o céu.
- Viene el agua?
- Creo que si, patrón.
Dirigiram-se para o alpendre onde haviam carregado as azémolas com os fardos de bananas. Aí, Martin arremessou ao chão as petates, que Ramon dispôs em ordem. Guisleno apareceu, trazendo canas para fazer tochas, das mais primitivas: três canas amarradas em cima com um cordel, formando tripé de cintura alta, e, na parte superior, uma pedra de lava mais ou menos oca. Realizado esse trabalho,
Guisleno foi a casa e voltou a correr com um pedaço de madeira inflamada. Três ou quatro pauzinhos de ocote colocados na pedra - e as chamas ergueram-se, enchendo o pátio de sombras vacilantes.
Ramon dobrou a serape e sentou-se em cima. Guisleno acendeu outro tripé-archote. A luz bailava nas sobrancelhas carregadas de Ramon, dava-lhe ao peito cintilações de ouro.
Agarrou no tambor e fez soar o apelo monótono, lento, um tanto melancólico. Passados instantes, chegou o tocador habitual, que levou o instrumento para a alameda sombria, onde então se ouviu um rufo vivo e forte.
Ramon enfiou a serape, cujas franjas lhe roçavam os joelhos, e ficou imóvel, com os cabelos em desordem. Rodeava-lhe os ombros a serpente do tecido, o pescoço erguia-se-lhe no meio do pássaro azul.
Cipriano apareceu, vindo da casa. Trazia serape castanha e vermelha, ornamentada com um sol escarlate. Postou-se ao lado de Ramon, e olhou-lhe de relance para a cara. Mas, de sobrancelhas franzidas, o outro fixava a sombra dos alpendres no extremo do pátio. Olhava para o coração do mundo; porque a face dos homens e o coração dos homens são areias movediças, e só no coração do cosmos pode alguém encontrar força.
Cipriano voltou os olhos negros para a banda do pátio. Os seus soldados aproximavam-se em grupo. Três ou quatro homens de mantas pardas rodeavam o lume. De pé, junto de Ramon, Cipriano parecia um cardeal, um pássaro de cor vistosa. Até as sandálias eram escarlates, e encarnadas as fitas que atavam as calças de linho branco aos tornozelos. Ao clarão das tochas tinha um ar demoníaco, com a pele muito escura, a barbicha preta e as pupilas cintilando sardonicamente.
Chegavam peóns, pelo portão da entrada, balançando os chapéus largos. Acorriam mulheres descalças, com as saias a oscilar, transportando os seus nenés envoltos nos rebozos e seguidas por uma caterva de garotos. Todos se agrupavam em volta dos archotes, como animais bravios, contemplando o círculo de homens de serape, do qual se destacavam Ramon e Cipriano, um de azul e branco, outro de vermelho.
Carlota e Kate emergiram de casa. Carlota, porém, ficou junto da porta, embrulhada num xaile de seda preta. Sentou-se num banco de pau aquém do clarão avermelhado, e pôs-se a observar os homens escuros, a beleza altaneira de Ramon, o traje escarlate de Cipriano, o grupo de soldados e a massa compacta de peóns, mulheres e crianças. Enquanto desfilava gente através do portão, soou o tambor e uma voz elevou-se, cantando:
Alguém vai franquear a porta, Agora, agora mesmo, ay! E verá a luz no homem que espera. Serás tu? Serei eu?
Alguém vai aproximar-se do fogo, Agora, agora mesmo, ay! E escutarás as palavras do seu coração. Serás tu? Serei eu?
Alguém baferá quando a porta se fechar, Ay, num momento, ay! Ouvirá dizer: Não te conheço. Serás tu? Serei eu?
De cada vez o ay se elevava num grito selvático que fazia calafrios a Carlota.
Envolta num xaile amarelo, Kate aproximou-se lentamente do grupo.
O tambor calou-se e o homem, entrando no pátio, fechou o portão e misturou-se aos assistentes.
Ramon continuava a olhar para o vácuo, de sobrolho carregado. Então, no meio do silêncio, disse em voz baixa, contida:
- Assim como tiro este abafo me liberto eu do dia que passou. Despiu a serape e pô-la no braço. Todos os homens do círculo o
imitaram, ficando de torso nu. Cipriano, muito escuro e com ar sólido apesar do tamanho reduzido, conservava-se ao lado de Ramon.
- Afasto de mim o dia que passou - prosseguiu Ramon - e fico de coração descoberto na noite dos deuses.
Em seguida olhou para o chão e disse:
- Vem, serpente da terra, serpente que jazes no fogo do coração do mundo. Vem, serpente do fogo no coração do mundo, enrola-te como ouro em volta dos meus artelhos, ergue a cabeça e apoia-a na minha coxa. Vem, descansa a cabeça na minha mão, serpente dos abismos. Beija-me os pés e os tornozelos com a tua boca de ouro, beija-me os joelhos e as coxas, serpente marcada de luz e de sombra. Vem, repousa a cabeça na concha da minha mão.
A voz suave e hipnótica extinguiu-se no silêncio envolvente. E parecia que na verdade uma presença misteriosa emergia do mundo subterrâneo, que uma serpente mosqueada de ouro e negro se enroscava nas pernas de Ramon e lhe lambia a palma da mão com a língua bifurcada...
Circunvagou a vista pela assistência boquiaberta e de olhos dilatados, e prosseguiu:
- Digo-vos, e com absoluta certeza. No coração desta terra dorme uma grande serpente no meio do fogo. Aqueles que descem às minas sentem-lhe o calor e o suor, ouvem-na mover-se. É o fogo vital da terra, porque a terra vive. A serpente do mundo é enorme, as rochas são as suas escamas, e entre elas crescem as árvores. Digo-vos que a terra que cavais está viva como uma serpente adormecida. Sobre ela andais, e este lago descansa nos seus anéis como uma gota de chuva numa cobra cascavel. Contudo, tem vida. A terra vive. Se a serpente morresse, todos morreríamos. Só a sua vida assegura a humidade do solo que faz germinar o nosso milho. Das suas escamas extraímos prata e ouro, e as árvores têm nela as suas raízes como os cabelos têm a raiz sob a nossa pele. A terra vive. Mas a serpente é grande, e nós somos mais pequenos do que um grão de poeira. E por vezes ela zanga-se e diz: Estes entes, mais insignificantes do que átomos de pó, espezinham-me e asseveram que estou morta. Até às bestas costumam falar, gritando: Arre, burro! A mim, porém, não dirigem uma palavra. Por isso lhes voltarei costas, como uma mulher volta costas ao marido e lhe consome o espírito com a sua cólera... Eis o que a terra nos diz, e a tristeza e o desânimo avassalam-nos os pés e os rins. Porque assim como uma mulher irritada tira o entusiasmo e a alegria ao homem, assim a terra pode enregelar-nos a alma e tornar a existência fatigante aos nossos membros. Falai, pois, à serpente do coração do mundo, banhai de óleo os vossos dedos e abaixai-os para que ela experimente o óleo da terra e deixe que a vida nos suba ao longo das pernas, como a seiva do milho novo faz estalar a casca e brotar o leite da planta entre as barbas. Do coração da terra o homem sente subir nele a sua força; tal o milho que, ufano, ergue as suas folhas verdes, erguei-vos vós também e deixai aprofundarem-se as vossas raízes cada vez mais, porque não tardam as chuvas e é tempo de produzir no México.
Calou-se Ramon, ensurdeceu o tambor, e todos os homens do círculo fitaram a terra, deixando pender molemente a mão esquerda.
Dona Carlota, que não conseguira ouvir, aproximou-se do lado de Kate, como se fascinada pelo marido. A irlandesa, num movimento inconsciente, olhou para o chão e, às ocultas, baixou os dedos de encontro à saia. Mas teve medo do que lhe poderia acontecer e escondeu a mão no xaile.
De repente o tambor vibrou numa nota muito forte, seguida de outra mais fraca: estranho, impressionante efeito.
Os circunstantes levantaram a cabeça. Ramon alçara o braço direito, num gesto enérgico, e espiava o negrume do firmamento. Imitaram-no os do círculo, e os braços nus, erguidos, semelhavam uma série de rochedos.
- Assim, acima, acima! - gritou uma voz bárbara.
- Acima, acima! - repetiram todos, num coro feroz. Involuntariamente, brandiram o braço, voltando o rosto para o
céu sombrio. Algumas das mulheres, mais audazes, fizeram o mesmo, e, com esse gesto, experimentaram uma sensação de paz.
Kate não alçou o braço.
Reinou profundo silêncio; até o tambor se calara. Ouviu-se então a voz de Ramon, dirigindo-se ao céu tenebroso:
- As tuas asas estão escuras, Pássaro, voas muito baixo esta noite. Voas baixo sobre o México, e em breve sentiremos roçar em nossas faces o leque das tuas asas. Ah, Pássaro! Voas onde queres. Ultrapassas as estrelas e empoleiras-te no Sol. Desapareces da vista e dissipas-te no além do rio branco do céu, mas voltas como os patos do Norte, em busca de água e do Inverno. Poisas no centro do Sol e alisas as penas... Banhas-te na corrente de estrelas e ergues em teu redor uma poalha de ouro. Voas nas profundezas do céu donde parece que jamais se volta. Mas regressas, e pairas sobre nós, e sentimos no rosto a aragem das tuas asas...
Enquanto ele falava levantou-se vento em rajadas, uma porta bateu, vibraram vidraças e as árvores pareceram rasgar-se.
- Vem, ó ave dos vastos céus! - bradou Ramon num apelo selvático. - Vem, pousa no meu punho, na minha cabeça, dá-me o poder divino e a sabedoria. Ó Pássaro, ainda que o trovão ribombe quando sacodes as asas, ainda que deixes cair na terra a serpente de fogo que tens no bico, ainda que venhas como fulminador, vem, ó Pássaro! Empoleira-te um momento no meu punho, estende as asas sobre a minha cabeça, toca-me a fronte com o teu peito. Pássaro errante, ave do Além, com o trovão nas garras e a serpente no bico, com o azul nas asas e a nuvem no colo, com o sol no peito e a sabedoria no voo, vem sobre mim, vem!
O vento agitava a chama das tochas e o lago começou a falar numa voz cavernosa que dominava o sussurro das árvores. Ao longe, por cima das colinas, os raios sulcavam o céu.
Soou o tambor, e Ramon desceu o braço que mantivera erguido. E disse então:
- Sentai-vos um instante, antes que o Pássaro sacuda a água das asas, o que não tardará. Sentai-vos.
A assistência moveu-se. Os homens puxaram as serapes para a testa, as mulheres cingiram mais a si os rebozos, e todos se sentaram no chão. Só Kate e Carlota ficaram de pé, a certa distância.
- A terra é viva, o céu é vivo, e entre ambos vivemos nós - prosseguiu Ramon na sua voz habitual. - A terra beijou-me os joelhos e concedeu-me força às entranhas. O céu descansou-me no punho e transmitiu o seu poder para o meu peito.
Assim como a Estrela de Alva brilha entre o céu e a terra, uma estrela pode surgir em nós entre o coração e os rins.
É a virilidade do homem e a feminilidade da mulher.
Ainda não sois homens. E vós, mulheres, ainda não sois mulheres.
Correis, agitais-vos, morreis, mas ainda não encontraste a estrela da vossa virilidade surgida de vós mesmos; nem a estrela da vossa feminilidade cintilando entre os vossos seios, ó mulheres!
Digo-vos no entanto: para aquele que desejar, nascerá nele a estrela da sua virilidade, e então será perfeito como é perfeita a Estrela da Manhã.
E a estrela da mulher aparecerá entre a orla espessa da terra e o vácuo cinzento do céu. Mas como conseguiremos isso? Como poderá ser?
Baixai os dedos para a carícia da Serpente da terra. Erguei o punho para que aí pouse a Ave distante.
Tende a coragem de ambos, a coragem do raio e a do sismo.
E a sabedoria de ambos, a da serpente e a da águia.
E a serenidade de ambos, a da serpente e a do sol. E o poder de ambos, o das profundezas da terra e o do céu que tudo cobre.
Mas que na vossa fronte, ó homens, resplandeça a Estrela da Manhã que nem o dia nem a noite, nem a terra nem o céu podem engolir e apagar.
E entre os vossos seios, ó mulheres, que esteja a Estrela de Alva que nada pode ofuscar.
A vossa derradeira morada é a Estrela da Manhã. Nem o céu nem a terra vos hão-de tragar, mas ireis para essa estrela solitária que no entanto jamais sente a sua solidão.
A Estrela da Manhã envia-nos um mensageiro, um deus que morreu no México. Mas, enquanto dormia o seu sono, os Seres invisíveis lavaram-lhe o corpo com a água da ressurreição. E ele levantou-se, derrubou a pedra à entrada do sepulcro, e agora galopa através do horizonte, mais depressa do que caiu por terra a laje do túmulo para esmagar aqueles que a selaram.
O filho da Estrela volta para os filhos dos homens.
Preparai-vos para o receber. Lavai-vos, ungi as mãos e os pés, a boca e os olhos, as orelhas e as narinas, o peito, o umbigo e as partes secretas do vosso corpo. Que nada dos dias passados, que nenhuma poeira do mal subsista em vós e vos torne impuros.
Não olheis com olhos de ontem, não escuteis como ontem, não respireis, não cheireis, não engulais alimentos nem bebidas; não beijeis com lábios de ontem, não toqueis com mãos de ontem. Aproximai-vos das vossas mulheres com um corpo novo, e com esse corpo novo penetrai nelas. Porque o corpo de ontem morreu, e Xopilote, devorador de cadáveres, já paira sobre ele.
Libertai-vos do corpo da véspera e adquiri um novo, tal como o deus que vem até vós. Quetzalcoatl surge-nos com um novo corpo, como uma nova estrela, saído das sombras da morte.
Sim, neste mesmo momento em que estais sentados e que o vosso corpo toca na terra, dizei-lhe: Terra, terra, latejas de vida como eu. Insufla em mim o bafo das tuas entranhas.
E assim a terra se move por baixo de vós, e por cima de vós o céu agita as suas asas.
Regressai aos vossos lares, enfrentando as águas que vão cair e separar-vos para sempre do "ontem".
Ide, com a esperança de vos tornardes homens da Estrela da Manhã e mulheres da Estrela de Alva.
Ainda não sois homens, ainda não sois mulheres...
Ramon levantou-se, dando o sinal de retirada. Logo todos se puseram de pé, empurrando-se, acotovelando-se, com a silenciosa pressa mexicana que parece deslizar rente ao solo.
O vento desencadeado uivava de encontro às mangueiras. Os homens seguravam o chapéu na cabeça e corriam de joelhos curvados, com as serapes a flutuar, enquanto as mulheres, cingindo a si o rebozo, fugiam, descalças, para ozaguán.
Junto do portão aberto estava um soldado de espingarda a tiracolo e lanterna na mão, alumiando aqueles que passavam calados e velozes e se dispersavam na alameda escura como pedacinhos de papel levados pelo vento. Num instante todos desapareceram.
Martin fechou o portão. O soldado pousou a lanterna no banco de pau e juntou-se aos camaradas alapardados nos seus capotes pretos, semelhantes a um molho de cogumelos na caverna do zaguán.
- Vai chover! - gritaram as servas excitadas quando Kate subia os degraus com Dona Carlota.
O lago, absolutamente negro, parecia uma cratera enorme. Em rajadas violentas, o vento traspassava as mangueiras com um som de membrana a rasgar-se. Os loendros curvavam-se no jardim, varriam o solo com as suas flores brancas, espectrais à luz do candeeiro que brilhava na parede junto da porta da entrada. Uma palmeira nova sacudia-se, dobrada, juncando o chão com as suas folhas. Nas trevas para além do mundo rolava um carro invisível...
Ao longe, na outra banda do lago, os raios traçavam no céu inscrições fulgurantes. E o trovão dir-se-ia ribombar nas entranhas da terra, surdo, aveludado.
- Isto chega a meter medo! - exclamou Dona Carlota, tapando os olhos com a mão e correndo a refugiar-se num canto recuado da sala deserta.
Cipriano e Kate demoraram-se no terraço olhando para as flores que voavam dos vasos e desapareciam no vácuo de trevas. Kate agarrava no xaile, mas o vento engolfou-se na serape de Cipriano, levantou-a ao ar e em seguida deixou-lha cair sobre a cabeça, tal uma chama rubra. Kate viu-lhe o peito escuro e musculado enquanto os seus braços lutavam por desenvencilhar a cabeça. Como a sua beleza era primitiva e toda física, com aquela carne lisa e cheia!
Mas não emitia nenhuma radiação exterior; fechava-se dentro de si mesmo.
- Eis a chuva! - exclamou ele! - baixando a serape.
Grossas, pesadas, as primeiras gotas tombavam como dardos sobre as plantas. Kate recuou para o vão da porta. Um raio ziguezagueou sobre as montanhas, pareceu deter-se um instante e reentrou nas trevas.
Então a chuva desabou, como se lá em cima houvessem aberto um reservatório imenso, e com ela veio uma lufada de ar frio. Ora num lado ora noutro, sucediam-se os relâmpagos, enchendo a atmosfera duma claridade azul e fugaz. Surgiam as árvores e o jardim fantasma, e logo desapareciam, enquanto o trovão ribombava.
Kate olhava pasmada para aquele dilúvio. Ao clarão momentâneo via o jardim já transformado em poço, as alamedas em ribeiras. Sentindo frio, recolheu-se dentro de casa.
Munido de lanterna, um criado pesquisava todos os aposentos para ver se andariam por ali escorpiões. Encontrou um a passear no quarto de Kate e outro em cima da cama de Carlota, caído duma viga do tecto.
Sentadas na sala, Kate e Carlota baloiçavam-se nas cadeiras, aspirando o bom ar fresco e húmido. Kate quase já se esquecera do que era frescura e humidade. Aconchegou o xaile ao pescoço.
- Ah, sente frio! Agora é preciso tomar cuidado com as noites... Às vezes, na época das chuvas, as noites são frigidíssimas. Devemos ter sempre à mão um cobertor suplementar. Os servos, coitados, limitam-se a tiritar, estendidos no chão, e de manhã estão gelados como cadáveres. Mas o sol depressa os aquece. Parecem julgar que são obrigados a suportar tudo o que vier, pois nunca tomam providências, embora se queixem.
O vento acalmara-se de repente, Kate sentia-se inquieta, mal disposta, com o bafo da água, quase de gelo, nas narinas, e o sangue ainda a arder-lhe nas veias. Levantou-se e foi para o terraço. Cipriano continuava ali, imóvel e impassível, envolto na sua serape vermelha e preta.
A chuva diminuía. Em baixo, no jardim, duas criadas corriam descalças, à débil claridade do candeeiro do zaguán; colocaram latas vazias debaixo dos fios de água que tombavam do telhado, e depois foram buscar os recipientes cheios. Isso poupava-lhes o trabalho de acarretar água do lago.
- Que pensa a nosso respeito? - perguntou Cipriano a Kate.
- Acho um povo muito estranho...
- Mas bom, não é verdade? - volveu o general em tom jubiloso.
- Um tanto assustador - replicou ela, rindo.
- Depois de se habituar parecer-lhe-á natural. E quando estiver num país como a Inglaterra, onde tudo é tão seguro e tão fácil, sentirá saudades e passará o tempo a perguntar a si mesma: O que é que me falta? O que é que falta aqui?
Dir-se-ia exprimir-se com maligna satisfação. E era curioso que ele, embora falasse bom inglês, parecesse sempre estrangeiro aos ouvidos de Kate, muito mais do que Dona Carlota com o seu espanhol castiço.
- Não compreendo que as pessoas queiram ter tudo, a vida inteira. Tudo tão seguro, tão pronto como na Inglaterra e na América. É bom estar alerta, no que vive, não?
- Talvez - concordou ela.
- Por isso gosto de ouvir Ramon dizer ao povo que a terra é viva, que o céu tem uma ave enorme lá dentro, mas que se não vê. Acredito nisso. E convém sabê-lo, pois assim continuamos no que vive.
- Não será fatigante?
- Ora, porquê? Pelo contrário, é repousante. Ah, a senhora devia casar e residir no México. Estou certo de que acabaria por gostar disto. Em cada manhã despertaria mais encantada.
- Ou cada vez mais enterrada. É o que sucede, julgo eu, a muitos estrangeiros.
- Enterrar-se? Como? Isto é um país onde a noite é noite e a chuva que cai é realmente chuva. E tem aqui um povo com o qual precisa de estar sempre alerta. Não acha admirável? Não poderá deixar-se adormecer. Veja, por exemplo, Ramon. Que pensa dele?
- Não sei. Não quero dizer nada, mas acho-o... longínquo. Custa a crer que seja mexicano.
- Pois é mexicano, não tenha dúvida.
- Não como o senhor. Dá-me a impressão de pertencer à velha Europa.
- Eu então considero-o pertencente ao velho México... E também ao novo - acrescentou de súbito.
- Todavia não acredita nele.
- Como?
- Não acredita nele. Considera aquilo, como tudo o mais, uma espécie de jogo. Aliás, para vós, mexicanos, tudo é uma espécie de jogo... No fundo, não crê em nada.
- Não creio em Ramon? Talvez não seja uma fé que me leve a ajoelhar à sua frente e a derramar-lhe lágrimas nos pés. Mas creio nele, e vou dizer-lhe o motivo: porque tem o poder de me fazer acreditar.
- Estranha fé, imposta pelos outros.
- Como se há-de crer, se não nos compelirem a isso? Quando eu era muito novo sentia-me infeliz porque o meu padrinho me não forçava a crer. Mas Ramon força-me... E é para mim uma felicidade saber que não posso escapar... como será também para si...
- Saber que não posso escapar a Don Ramon? - replicou
Kate ironicamente.
- Sim, e saber que não poderá evadir-se do México, nem fugir
de um homem como eu...
Kate ficou um instante calada antes de responder em tom sardónico:
- Não me parece que me cause muita alegria saber que não posso sair do México. Pelo contrário, não suportaria estar aqui se não tivesse a certeza de partir mais dia menos dia.
E disse consigo mesma: "Ramon talvez seja o único homem a quem eu não possa escapar completamente, porque deveras me impressiona. Mas de ti, Ciprianozinho, não precisarei de escapar porque não me apanhas."
- Ah, julga isso! - volveu ele rapidamente. - Mas é porque não sabe. Só pensa com ideias americanas. Devido à sua educação, só tem pensamentos americanos, pensamentos engendrados nos Estados Unidos. Quase todas as mulheres são assim, até as mexicanas da classe hispano-mexicana. Só possuem ideias dos Estados Unidos porque são as que condizem com os seus penteados. E o mesmo quanto a si, senhora Leslie. Pensa como uma mulher moderna porque pertence ao mundo anglo-saxónio ou teutão, e se penteia de certa maneira, e tem dinheiro, e é inteiramente livre. Mas tudo isso provém do facto de lhe haverem metido essas ideias na cabeça e não possuir outras, da mesma forma que, no México, se vê obrigada a gastar centavos e pesos por serem as moedas do país. Todavia, quando se declara livre, na realidade não o é. Vê-se forçada a pensar sempre com pensamentos americanos. Não tem maior faculdade de escolha do que uma serva. Assim como não pode deixar de comer diariamente tortillas... até que se lembre de que pode gostar doutra coisa.
- De que mais poderia eu gostar? - retorquiu Kate, escarninha.
- De outros pensamentos, de outras sensações. Receia homens como eu porque julga que a não tratariam "à americana". Tem razão. Eu não a trataria como se tratam as senhoras americanas. Porquê? Porque não o desejo, porque não me parece justo.
- Prefere tratar as mulheres como as mexicanas de outrora, não é verdade? Mantendo-as na ignorância, no cativeiro? - A voz de Kate assumira um tom sarcástico.
- Não as manteria na ignorância se elas já não fossem ignorantes. Mas o que lhes ensinaria não havia de ser conforme à educação americana.
- Então qual?
- Quien sabe! Ce reste à voir.
- Et continuera à y rester - concluiu a irlandesa, rindo.

CONTINUA

x
Dez dias haviam decorrido desde a chegada de Kate a Sayula sem que Don Ramon desse sinal de vida. No entanto, quando passeava de barco, vira a casa dele na outra banda da ponta oeste do lago. Era um edifício alaranjado de dois andares, com alpendre para embarcações e bosquete de mangueiras rente à margem. Entre as árvores distinguiam-se duas filas de cabanas de adobe, a habitação dos peóns.
A hacienda fora outrora das mais importantes. Regavam-na então com a água captada nas colinas, mas as revoluções haviam destruído todos os aquedutos. Don Ramon tinha inimigos no Governo, de modo que grande parte das suas terras fora dividida entre os peóns e só lhe ficaram cerca de trezentos acres de terreno, dos quais duzentos marginavam o lago e lhe eram inúteis. Cultivava um pomar em volta da casa e cana-de-açúcar num valezito entre as colinas. Na encosta do monte viam-se campos de milho.
'Dona Carlota era rica; tirava bons rendimentos das minas de Torreon, seu berço natal.
Chegou um portador com uma carta de Don Ramon em que este pedia a Kate licença para a visitar com a esposa.
Dona Carlota era uma mulher franzina, suave, de grandes olhos um tanto assustadiços e sedosos cabelos castanhos. Filha de pai espanhol e de mãe francesa, de origem puramente europeia, em nada se assemelhava às corpulentas mexicanas de faces cobertas de pó-de-arroz. De rosto pálido, sem artifício, a figura delgada tinha qualquer coisa de inglês, que os grandes olhos castanhos desmentiam. Só falava espanhol e francês, mas o seu espanhol soava tão lento e distinto (com um leve tom de queixume) que Kate a compreendeu sem dificuldade.
As duas mulheres entenderam-se depressa, mas sentiam-se um tanto nervosas na presença uma da outra. Dona Carlota era frágil e sensível como um cão chihuahua.
Em toda a sua vida, Kate raras vezes encontrara criatura tão doce e delicada. Conversaram uma com a outra, enquanto Don Ramon se mantinha calado. Dir-se-ia que ambas se arremessavam contra aquela barreira de silêncio.
Kate percebeu logo que Dona Carlota amava Ramon, mas com um amor que se tornara voluntário. Adorara-o, e acabara-se a adoração. Duvidara dele, e duvidaria sempre.
Sentado um pouco à parte, de ar constrangido, Don Ramon baixava a bela cabeça e deixava pender as mãos entre as coxas.
- Sabe que passei há dias bons momentos? - disse Kate, dirigindo-se-lhe de súbito. - Dancei de roda do tambor com os homens de Quetzalcoatl.
- Assim me constou - respondeu ele com um sorriso forçado.
Embora não falasse inglês, Dona Carlota compreendia essa língua
- Dançou com os homens de Quetzalcoatl! - exclamou em espanhol. - Porque fez isso? Porquê?
- Estava fascinada.
- Não se deixe fascinar. Afirmo-lhe que lastimo muito que meu marido se interesse por esse movimento. É para mim um desgosto.
Juana apareceu nesse momento com uma garrafa de vermute, a única coisa que Kate podia oferecer aos visitantes.
- Foi aos Estados Unidos ver os seus filhos? - perguntou Kate. - Como vão eles?
- Bem, obrigada. Embora o mais novo continue fraquito...
- Não os trouxe consigo?
- Não. Acho que estão melhor no colégio. Aqui... aqui há muita coisa que os perturbaria. Mas hei-de cá tê-los no próximo mês a passar as férias.
- Então terei oportunidade de os conhecer - disse Kate. Virão para a casa do lago, não é verdade?
- Ainda não sei. Talvez passemos aqui alguns dias. Ando tão ocupada na Cidade do México com a minha Cuna!
- Cuna? Que é isso? - indagou Kate.
Tratava-se de um hospício de enjeitados assistido por algumas obscuras carmelitas. Dona Carlota era a directora, e Kate chegou à conclusão de que a mulher de Ramon devia ser católica fervorosa, quase exaltada. Entregava-se de corpo e alma à Igreja e àquela obra de beneficência.
- Nascem tantas crianças no México e são tão numerosas as que morrem! Se as pudéssemos salvar e preparar para a vida! Fazemos tudo o que é possível, mas ainda é pouco.
Segundo parecia, todos os nenés indesejáveis eram entregues na Cuna, como embrulhos. A mãe só tinha de bater à porta e depositar noutras mãos o pacote vivo.
- Assim, impedimos que muitas mães negligentes deixem morrer os filhos - prosseguiu Dona Carlota. - Se não nos dizem o nome da criança, sou eu que a baptizo. Já o tenho feito muitas vezes. É vulgar entregarem-nos meninos absolutamente nus, sem um trapo a cobri-los... e sem nome. E nós nunca perguntamos nada.
Nem todos os expostos ficavam no hospício. Na maior parte eram confiados a índias decentes, a quem pagavam para os criar em casa. No fim do mês, cada qual se apresentava com o seu protegido e recebia o ordenado. As índias podem ser descuidadas mas não maltratam as crianças.
Noutro tempo, informou Dona Carlota, quase todas as senhoras do México recebiam na sua casa um ou dois desses enjeitados e tratavam-nos como família. Mas perdera-se a generosidade patriarcal dos espanhóis-mexicanos e actualmente adoptavam poucas crianças. Em vez disso, preparavam-nas para ganhar a vida, ensinando-lhes qualquer ofício.
Kate ouvia com-interesse e certo constrangimento. Não lobrigava sentimentos humanos nessa caridade mexicana, e quase discordava dela. Talvez Dona Carlota fizesse tudo o que podia nesse país semibárbaro, mas fazia-o sem nenhuma esperança de êxito. Embora com a consciência de que procedia bem, tinha um pouco o ar de vítima, de uma vítima sensível, branda, um tanto assustada. Dir-se-ia que um mal secreto lhe roía o coração.
Don Ramon escutava impassível, num silêncio que se opunha ao entusiasmo caritativo da mulher. Deixava-a agir como entendia, mas contra a sua obra e a sua loquacidade mantinha-se calado, duro, numa hostilidade surda e permanente. Dona Carlota percebia-o e tremia nervosamente enquanto falava do hospício de enjeitados. Kate acabou por achar cruel a atitude de Don Ramon; parecia um ídolo de pedra.
- Porque não vem passar um dia connosco, enquanto estamos em Sayula? - sugeriu Dona Carlota. - A casa é pouco confortável, já não é como foi, mas teremos muito gosto em recebê-la.
Kate aceitou o convite e disse que preferia ir a pé. Eram apenas quatro milhas de percurso e, com a Juana, iria bem acompanhada.
-. - Mandarei um homem buscá-las - declarou Don Ramon. Será mais seguro.
- Onde está o general Viedma? - perguntou Kate.
- Faremos o possível por tê-lo connosco quando a senhora lá for - replicou Dona Carlota. - Gosto deveras de Don Cipriano, que há muitos anos conheço. Por sinal que é o padrinho do meu filho mais novo. Presentemente, comanda a divisão de Guadalajara, por isso nem sempre se encontra livre.
- Admira-me que seja general - observou Kate. - Acho-o humano em excesso.
- E, de facto, é cheio de humanidade. Mas é general, e gosta de comandar os soldados. Deixe-me dizer-lhe que se trata de uma pessoa de muita influência. Exerce grande ascendente na tropa. Crêem nele, isso não se pode negar. Possui aquele poder, inato nos chefes índios, de afeiçoar a si os militares e de os levar ao combate. Pois é assim mesmo Don Cipriano. Ninguém conseguiria modificá-lo. Julgo, porém, que lhe seria de utilidade a presença de uma mulher. Nunca teve nenhuma na sua vida! Elas não lhe interessam...
- Que lhe interessa então?
- Ah! - exclamou Dona Carlota, estremecendo como se a picassem. Lançou um olhar rápido ao marido e declarou: - Não sei. Palavra que não sei.
- Os homens de Quetzalcoatl - declarou Don Ramon com
um leve sorriso.
Mas Dona Carlota dir-se-ia tirar-lhe todo o desembaraço. Parecia contrafeito, e um tanto estúpido.
- Ah, sim, sim, os homens de Quetzalcoatl - bradou Dona Carlota, amável mas com ar de censura. - Linda coisa para ele se ocupar! - Kate percebeu que a sua interlocutora adorava esses dois homens e que tremia à ideia de se opor aos seus erros, embora jamais transigisse com qualquer deles.
Para Don Ramon representava um pesado fardo aquela cega adoração da mulher e a sua não menos cega oposição.
Certa manhã, às nove horas, apareceu o criado para acompanhar Kate à fazenda, que chamavam de Jamiltepec. Trazia um cabaz e vinha do mercado. Era um velhote de bigode grisalho e olhos juvenis, cheios de vida. Os pés, metidos em huafaches, pareciam negros de tão queimados do sol, mas o fato resplandecia de alvura.
Kate ficou radiante com essa excursão a pé. O que tornava tão aborrecida a sua existência na aldeia era a impossibilidade de passear no campo. Havia sempre o risco de um assalto. Acompanhada de Ezequiel, dera algumas voltas pelos arredores, mas já começava a sentir-se prisioneira. Foi, por conseguinte, uma alegria sair de casa.
A manhã estava clara e quente, o lago brilhava quieto, espectral. Moviam-se pessoas na margem, minúsculas àquela distância, meros pontinhos brancos: peóns que seguiam os seus burros envoltos numa leve nuvem de poeira. Kate perguntava a si mesma porque seria que os homens apareciam sempre na paisagem mexicana como pequeninas manchas; pequeninas manchas de vida.
Entraram na estrada poeirenta que levava para oeste, entre a vertente alcantilada das colinas e a nesga de planície junto ao lago. Por espaço de milha foram encontrando vivendas, muitas delas fechadas, outras destruídas, já sem muros nem janelas. Todavia desabrochavam flores entre os montes de cascalho.
Nos terrenos vagos havia delgadas cabanas de palha dos indígenas - como que nascidas ali, ao acaso. Perto do caminho por baixo de um outeiro viam-se choças de adobe, semelhantes a caixas cinzento-escuras. Em volta corriam aves domésticas, grunhiam e refocilavam porcos pardacentos ou malhados de preto. Crianças seminuas, de um tom castanho-alaranjado, brincavam ou jaziam estiradas no chão, a dormir, com as nádegas à mostra.
Muitas das casas estavam a ser cobertas de colmo novo ou reteIhadas por indivíduos que assumiam ares de importância por se encarregarem desse trabalho. Mostravam-se também apressados, pois não tardariam a vir as chuvas torrenciais. E, na banda do lago, havia quem andasse a lavrar a terra dura com uma junta de bois e um pau forte e aguçado.
Mas Kate conhecia essa parte do caminho. Vira já a bela vivenda da colina, com os seus tufos de palmeiras que ladeavam as alamedas desertas. A estrada descia novamente para o lago, entre árvores frondosas de vagens retorcidas. À esquerda, a água mansa, gelatinosa, lambia as pedras amareladas. Numa poça da praia estavam mulheres a lavar roupa, e, nos baixios, banhavam-se duas raparigas com os cabelos negros pendentes e gotejantes. Mais adiante, um homem patinhava lentamente, detendo-se para arremessar com perícia a rede à água e depois recolhê-la cheia desses peixinhos luzidios a que chamam charales. Tudo estranhamente silencioso e remoto na manhã cintilante.
Vinha do lago uma leve brisa, mas a poeira da estrada queimava os pés. À direita erguia-se o monte, abrupto, ressequido e amarelo, exalando calor e aquele cheiro característico do México que se diria ser a evaporação duma terra cada vez mais calcinada.
Desfilavam continuamente filas de burros carregados, trotando na poeira e seguidos pelos condutores que marchavam erectos e rápidos, olhando com olhos semelhantes a buracos negros mas respondendo sempre à saudação de Kate com um respeitoso adiós. E Juana ecoava com o seu lacónico adiósm. Caminhava coxeando e achava tristíssima aquela ideia da niña de percorrer quatro milhas a pé, quando poderiam ir num automóvel de aluguer, de barco ou mesmo de burro.
Mas a pé! Kate percebia todos os sentimentos da criada no seu arrastado e sardónico adiósn. Em compensação, o homem de Ramon vinha animadamente atrás delas, dirigindo saudações alegres, com a pistola bem em evidência no cinto.
A estrada contornava um rochedo amarelo e escarpado para desembocar num campo aberto, onde se alastravam espinheiros e cactos poeirentos. À esquerda, distinguia-se a mancha verde dos salgueiros à beira do lago. À direita, as colinas inclinavam-se sobre o flanco árido das montanhas. Em frente, os outeiros ladeavam as margens do lago e afastavam-se, descobrindo uma espécie de garganta que conduzia à casa de Don Ramon e à sua plantação de cana-de-açúcar.
- Aqui temos Jamiltepec, a hacienda de Don Ramon, señorita - anunciou o homem.
Os olhos luziam-lhe ao proferir estas palavras. Era um peón orgulhoso e sem dúvida feliz com a sua sorte.
- Que lonjura! - exclamou Juana.
- Para outra vez virei só ou com o Ezequiel - replicou Kate.
- Não diga isso, niña! Só me queixo do pé, que me dói hoje a valer.
- Por isso mesmo é melhor não vires comigo.
- Não, niña. Gosto muito de vir.
Giravam alegremente as asas do moinho que puxava a água do lago. Entre as colinas descia o valezito onde deslizava um riacho e na parte mais larga viam-se bananeiras que uma cortina de salgueiros resguardava da brisa lacustre. No cimo da encosta, onde o caminho se embrenhava na sombra de mangueiras, elevavam-se dois renques de casas de adobe, tal uma aldeia um pouco recuada.
Surgiam mulheres entre as árvores, que vinham do lago com seus cântaros de água ao ombro. De roda das portas brincavam crianças, arrastando o traseiro nu na poeira do chão. Aqui e ali, uma cabra amarrada. E, apoiados na esquina da casa, ou encostados à parede, estavam homens de braços e pernas cruzados, mas não em dolce far niente. Pareciam esperar, esperar eternamente por qualquer coisa.
- Por aqui, señorita ! - disse o homem do cabaz, indicando um caminho que descia entre árvores frondosas até ao portão branco da hacienda. - Já cá estamos.
Mostrava-se tão contente como se houvesse chegado ao Paraíso.
Encontravam-se abertas as portas do zaguán, ou entrada, a cuja sombra descansavam dois soldados. No espaço em frente do portão, passavam nesse momento dois peóns, cada qual com um cacho de bananas à cabeça. Os soldados disseram qualquer coisa e aqueles detiveram-se e voltaram-se lentamente com a sua carga verde para observarem Kate, Juana e Martin - o homem que as acompanhava. Depois retomaram a sua marcha.
Os soldados levantaram-se e Martin conduziu Kate pela passagem abobadada, onde as rodas dos carros haviam cavado fundos sulcos. Juana seguia-os com expressão lastimosa.
Kate achou-se num pátio enorme, cercado em três lados por muros altos, alpendres e estábulos. Ao fundo era a casa de residência, com as suas janelas gradeadas e, em vez de porta, outro zaguán de batentes fechados, espécie de corredor ao longo do edifício.
Martin avançou para tocar a aldraba, e Kate olhou entretanto à sua volta. Num alpendre, estavam homens seminus a empacar cachos de bananas. Noutro lado, serravam paus e descarregavam telhas de cima dum burro. A um canto viam-se bois atrelados a uma carroça, de cabeça pendida sob a canga, como se esperassem.
Abriram-se as portas e Kate entrou no segundo zaguán. Era uma entrada larga, com seu lanço de escadas a um lado e um portão gradeado ao fundo, através do qual se via o jardim orlado de mangueiras e, mais abaixo, o lago com o seu porto artificial onde baloiçavam dois barcos.
Nas costas dos recém-vindos, a criada fechou a porta que dava para o pátio e indicou a Kate as escadas.
- Por aqui, señorita.
Badalava uma sineta lá no cimo. Kate subiu os degraus de pedra, ao encontro de Dona Carlota, que a esperava no patamar, vestida de musselina branca, o que, pelo contraste, lhe dava um tom amarelo às faces. Estendeu os braços magros e bronzeados, acolhendo Kate com extraordinária efusão.
- Muito prazer em vê-la aqui! E veio todo o caminho a pé, com este sol! Entre, entre e descanse.
Pegou na mão de Kate e levou-a através do terraço, no topo da escada.
- Que linda vista! - exclamou Kate, contemplando o lago para além das mangueiras. Na água pálida, irreal, vogava ao longe um barco de vela. Para além, elevavam-se as montanhas de gargantas azuladas, com a mancha branca duma aldeia. Dir-se-ia outro mundo, perdido na luz da manhã, outra vida.
- Que povoação é aquela? - perguntou Kate.
- Acolá? É San Ildefonso - respondeu Dona Carlota.
- Como este sítio é belo! - disse Kate.
- Hermoso, si! Si, bonito - retorquiu a outra em espanhol, conforme o seu costume.
A casa, de um vermelho-alaranjado, tinha duas alas voltadas para o lago. com o seu murinho coroado de plantas verdes, o terraço cercava três lados do edifício; suportavam o telhado largos pilares que partiam do solo, formando em baixo uma espécie de claustro ocupado ao centro por um tanque cheio de água.
- Venha - disse Dona Carlota. - Precisa de descansar.
- Gostaria de mudar de sapatos - declarou Kate. Levaram-na a um quarto espaçoso, um tanto vazio, de chão de
tijolos. Aí, Kate calçou as meias e os sapatos que Juana trouxera num embrulho e estendeu-se um momento para repousar.
E, enquanto repousava, ouvia o rufar surdo do tambor, no profundo silêncio da manhã, só perturbado pelo canto dum galo longínquo. Aquele som contínuo, insistente, enchia-a de mal-estar. Parecia o ribombo duma tempestade desencadeando-se no horizonte.
Kate levantou-se e dirigiu-se para o salão onde Dona Carlota estava sentada a conversar com um homem vestido de preto. com as suas três portas envidraçadas abertas sobre o terraço, chão de ladrilhos vermelhos, paredes pintadas de verde-claro, tecto de barrotes caiados e escassez de mobília, aquilo parecia mais um caramanchel do que um salão. Como em muitas casas dos países quentes, tinha-se a impressão de não se estar dentro de quatro paredes, mas sim de três; um lugar de passagem, e não para ficar.
À chegada de Kate, o homem de preto levantou-se, apertou a mão a Dona Carlota e, baixando a cabeça num comprimento cerimonioso, desapareceu por uma das portas do terraço.
- Entre, entre! - disse Dona Carlota a Kate. - Já não se sente cansada? - acrescentou, avançando uma das cadeiras de junco que estava negligentemente colocada no meio da sala.
- Absolutamente nada - respondeu Kate. - Como esta região é silenciosa! Só se ouve o tambor, o que talvez nos faça notar mais o silêncio.
- Ah, esse tambor! - exclamou Dona Carlota, erguendo a mão num movimento de exaspero. - Não posso com isso! Detesto ouvi-lo.
E moveu-se na cadeira de baloiço, com súbito nervosismo.
- É um som realmente impressionante - redarguiu Kate. - Que significa, afinal?
- Não mo pergunte! São coisas de meu marido. - E Dona Carlota fez novo gesto de desespero.
- Don Ramon é que toca o tambor?
- Não, não! - Dona Carlota pareceu sobressaltada àquela pergunta. - Não é ele que toca. Trouxe dois índios do Norte para se desempenharem desse trabalho.
- Ah, sim? - volveu Kate, sem se comprometer. Mas Dona Carlota balançava-se numa espécie de semi-inconsciência e só daí a instantes pareceu voltar a si.
- Tenho de desabafar com alguém! - disse, de repente, endireitando-se na cadeira, com uma expressão de angústia espelhada nos grandes olhos castanhos e no rosto cor de nata. - Posso desabafar consigo?
- Certamente - respondeu Kate, constrangida.
- Sabe o que Ramon anda a fazer?
- Julgo que pretende ressuscitar o culto dos deuses antigos.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, com outro aceno de mão desesperado. - Como se isso fosse possível! Os deuses antigos! Imagine-se! Que são eles senão ilusões mortas? E feias, repulsivas! Sempre pensei que meu marido fosse inteligente, muito superior a mim, e é triste ter de mudar de opinião. Tudo aquilo é um disparate. E ele atreve-se a tomar a sério o que não passa de um disparate!
- Talvez Don Ramon creia...
- Mas como pode ele crer? - replicou a dona da casa, com um sorriso desdenhoso. - É instruído, não pode acreditar em semelhante tolice.
- Então qual é o seu objectivo?
- Isso é que eu gostaria de saber. - Na voz de Dona Carlota transparecia indizível cansaço. - Penso que está louco, como acontece a tantos mexicanos. Louco como o bandido Francisco Villa.
Lembrando-se do rosto simiesco do famoso Pancho Villa, Kate não foi capaz de o associar a Don Ramon.
- Desde que se elevam na sociedade os mexicanos perdem a cabeça, o orgulho transtorna-os. Não pensam em mais nada senão na sua importância. Pura vaidade masculina. Não acha, señora, que a vaidade é o começo e o fim do homem? Jesus veio ao mundo para combater esse perigo, ensinando-nos a ser humildes. Por isso odeiam Cristo e os Seus ensinamentos, e deixam-se guiar pela vaidade durante toda a vida.
A mesma reflexão ocorrera a Kate muitas vezes, e concluíra que nos homens só existia vaidade. Precisavam de ser lisonjeados, de sentir a sua grandeza, nada mais.
- O que meu marido pretende é opor-se a Jesus, elevar o orgulho e a vaidade acima de Deus. Ah, é horrível! Horrível e infantil. Que são os homens senão crianças que necessitam dos cuidados da mãe? Ah, señora, é mais do que posso suportar!
Dona Carlota cobriu a cara com as mãos.
- Em todo o caso, acho o seu marido uma pessoa excepcional - disse Kate para a consolar, embora nesse momento detestasse Don Ramon.
- Sim, possui grandes qualidades, mas de que lhe servem se estão pervertidas?
- Explique-me ao certo: o que é que ele pretende, afinal?
- O poder, o poder absurdo e maléfico, como se já não houvesse bastantes poderes maléficos por todo este país. Quer ser mais do que os outros, adorado, venerado. Um deus! Ele, a quem embalei nos braços como uma criança, querer que o adorem!
E Dona Carlota desatou num riso estridente pontuado de soluços.
Kate esperou que ela se acalmasse.
- No fim de contas - disse, quando a viu mais sossegada - não somos responsáveis pelo que fazem os maridos. Aprendi à minha custa que todo o amor é impotente perante a vontade dos homens. Meu marido quis morrer, e não pude impedi-lo... Temos de os deixar fazer tudo o que querem, até as coisas que nos parecem insensatas.
Dona Carlota ergueu os olhos para Kate.
- Gostava muito do seu marido... e ele morreu? - perguntou em voz suave.
- Amei-o deveras, e não tornarei a gostar doutro homem. Perdi a faculdade de amar.
- De que morreu?
- Por sua culpa. Despedaçou o coração e a alma com a política irlandesa. Eu sabia que ele fazia mal em se ocupar disso. Que nos importava a Irlanda, o nacionalismo, as revoluções e todas essas tolices? Ah, se o Joachim se limitasse a viver em paz comigo, poderíamos ser tão felizes! Em vão tentei convencê-lo. Queria matar-se com aquela estúpida política, e não consegui evitá-lo. Foram inúteis todos os meus esforços.
Dona Carlota olhou fixamente para Kate.
- Assim como são os meus para impedir que Ramon proceda mal e se mate... E depois de morto, de que servirá tudo aquilo?
- De nada. Depois de eles morrerem, ficamos a saber que foi inútil todo o trabalho que tiveram.
- Oh, señora! Se pode ajudar-me a salvar Ramon, ajude-me! É uma questão de vida ou de morte para nós ambos. Porque eu morrerei se ele levar a sua avante...
- Explique-me bem qual é a ideia de Don Ramon. A do meu marido era libertar a Irlanda e engrandecer o povo. Mas eu nunca acreditei que os irlandeses fossem jamais um grande povo nem que se pudesse torná-lo livre. Só sabe destruir, e destruir estupidamente. Não se pode fazer livre um povo que o não é. Existe nele qualquer coisa que o impele à destruição.
- Bem sei, bem sei. Da mesma forma é Ramon. Até quer destruir Jesus e a Virgem Maria por amor do povo. Imagine! Derrotar Jesus e a Virgem! A última coisa que se podia pensar...
- Mas o que diz ele quanto ao seu projecto?
- Diz que pretende estabelecer um novo nexo entre o povo e Deus. Declara, por seu lado, que Deus é sempre Deus, mas que o homem perdeu a sua união com a divindade... e que não é possível restaurá-la sem que venha um novo Deus. E que qualquer novo nexo tem de ser diferente do antigo, embora Deus continue a ser Deus. Neste momento, declara meu marido, o povo perdeu o seu Deus. O Salvador já não será capaz de o reconduzir a Si. Precisa-se de outro Salvador, com uma nova visão. Ah, señora, eu não creio nisto! Deus é amor e, se Ramon se submetesse, ao menos, ao amor, compreenderia que aí é que estava Deus. Mas qual! É tão perverso! Poderíamos, ambos, com amor calmo, gozando a beleza do mundo, esperar pelo amor de Deus... Porque é, señora, que ele não vê isto? Oh, porque não compreende? Em vez de fazer estas coisas...
Acudiram lágrimas aos olhos de Dona Carlota, as quais se lhe espalharam pelo rosto. Kate também chorava.
- É inútil! - disse ela, soluçando. - Sei que é inútil, faça-se o que se fizer. Não querem ser felizes e estar em paz, mas sim esta luta e esses falsos e horríveis nexos... Sim, é inútil, de qualquer forma. E nisto é que está o pior.
E as duas mulheres, sentadas nas cadeiras de baloiço, soluçavam amargamente quando ouviram passos no terraço, leve ruído de pés calçados de sandálias.
Era Don Ramon, atraído inconscientemente pelo clamor daquelas criaturas pesarosas.
Dona Carlota limpou a toda a pressa os olhos e o nariz; Kate assoou-se com estrondo. No limiar da porta, Don Ramon deteve-se.
Trajava como os camponeses, todo de branco, de casaco largo e calças muito amplas. O fato era de linho, com certa goma, e tinha um brilho estranho, fora do vulgar. Por baixo do casaco, à frente, uniam-se as pontas duma faixa estreita de lã, também branca, franjada de vermelho e riscada de azul e preto. Nos pés sem meias trazia huaraches de coiro azul e negro, entrançado, com espessas solas tingidas de vermelhão. As calças estavam presas aos tornozelos por alamares de lã pretos, azuis e encarnados.
Kate, vendo-o assim à claridade do sol, vestido de uma alvura tão ofuscante, teve a impressão de que o rosto dele, escuro e emoldurado de cabelos escuros, fazia como que um buraco na atmosfera.
Don Ramon aproximou-se, com as pontas da faixa a baterem-lhe nas pernas, e as sandálias rangendo de leve.
- Muito prazer em encontrá-la - murmurou, apertando a mão da visitante. - Como veio?
Deixou-se cair numa cadeira e ficou imóvel. As duas senhoras baixaram a cabeça, como se quisessem esconder a cara. A presença do homem ainda as constrangia mais, porém o dono da casa fingiu não reparar na comoção que sentiam e fê-lo por um acto de pura vontade. Da sua presença emanava certa força e elas experimentaram um pouco de alívio.
- Não sabia que o meu marido se tornara num aldeão, num verdadeiro peón? - perguntou Dona Carlota, irónica, à sua hóspeda. - É um señor peón, como o conde Tolstoi se fez señor mujique...
- Mas fica-lhe bem - observou Kate.
- Ora aí está... Ao diabo o que é do diabo... - replicou Don Ramon.
Havia nele algo de tenaz, de inflexível. Riu, e falou às senhoras, mas sem se revelar muito, apenas superficialmente. O seu ser íntimo, insondável e poderoso, não entrava em contacto com elas.
Assim foi durante o almoço. Houve conversa esvoaçante, com intervalos de silêncio. Nesse silêncio percebia-se que Don Ramon vivia noutro mundo; e a sua vontade calma, obrando noutra esfera, fazia recuar as mulheres para a sombra.
- A señora é como eu, Ramon - disse Dona Carlota. - Não tolera o rufar do tambor. Irá continuar aquilo, pela tarde adiante?
Seguiu-se uma pausa antes que ele respondesse:
- Só depois das quatro horas.
- Temos, então, de aturar hoje esse barulho? - insistiu Dona Carlota.
- Porque não há-de ser hoje como nos outros dias? - ripostou o marido. Notava-se-lhe um ar contrariado. Era evidente que pretendia subtrair-se à presença daquelas duas.
- Porque a senhora está cá, e eu estou também, e porque nenhuma de nós gosta daquele som. Amanhã já ela se vai embora, e eu regresso à cidade. Porque não nos poupas esse tormento? E
Ramon fitou a mulher, e em seguida Kate. Os olhos denotavam cólera. Kate quase ouvia, naquele peito forte, o coração inchar de furor. Mas calou-se e a outra também se calou. No fundo, estavam satisfeitas por terem podido despertar a ira do homem.
Mantendo o sangue-frio, Don Ramon inquiriu da esposa (não sem que se lhe percebesse a indignação):
- Porque não levas a senhora Leslie até ao lago?
- Não nos apetece.
Ele então fez o que a irlandesa nunca vira ninguém fazer. Encerrou-se dentro de si mesmo, deixando às duas comensais a impressão de se encontrarem diante duma porta que se fechou. Kate sentiu-se abandonada e deprimida, mas a pouco e pouco a irritação tingiu-lhe as faces pálidas dum rubor de fogo.
- Posso ir-me embora antes das quatro horas - declarou.
- Não, não! - acudiu, suplicante, a dona da casa. - Não me deixe. Fique comigo até à noite e ajude-me a distrair Don Cipriano, que vem jantar connosco.

XI
Acabado o almoço, Ramon recolheu ao quarto para dormir a sesta. A tarde estava quente, pesada. No extremo oeste do lago erguiam-se nuvens cintilantes, quais mensageiros da tempestade. Ramon fechou as janelas do seu aposento de modo a obter negrume total; apenas aqui e ali, filtrando-se pelos interstícios da porta, os raios de luz pousavam nas trevas como uma coisa tangível.
Despiu a roupa e ergueu acima da cabeça os punhos fechados, como se orasse intensamente e de pé. Nos seus olhos só havia escuridão, e a pouco e pouco essa escuridão atingiu-lhe o cérebro, apagando-lhe todos os pensamentos. Só uma vontade poderosa se distendia e emanava da espinha dorsal, numa tensão sobre-humana até que as flechas da alma atingiram o alvo e a oração a sua meta.
Então, bruscamente, tombaram os braços trémulos, o corpo readquiriu a flexibilidade. O homem recuperara a sua força. Quebrara as cordas do mundo e sentia-se livre e senhor da outra força.
Devagarinho, com precaução, esforçando-se por não pensar, não se recordar, não despertar as serpentes venenosas da consciência, enrolou-se num cobertor delgado e estendeu-se no chão sobre uma pilha de coxins. Daí a instantes, adormecia.
Dormiu profundamente cerca de uma hora. Abriu os olhos de repente, viu as trevas aveludadas e as frechas de luz diminuídas: o sol mudara. Pôs-se à escuta. Parecia não haver um único som no mundo. Talvez não existisse mundo...
Então começou a ouvir. Distinguiu o débil rumor duma carroça, folhas sussurrando ao vento, o som distante de pancadas, o pio duma ave.
Levantou-se, vestiu-se com rapidez às escuras e foi abrir as janelas. A tarde ia em meio; soprava uma aragem quente, amontoavam-se a oeste nuvens escuras, mas a chuva não se decidia a cair. Ramon pôs na cabeça um chapéu de palha, que tinha à frente um enfeite de penas brancas, pretas e azuis dispostas em forma de olho, ou de sol. Ouviu vozes femininas. Ah, a estrangeira! Esquecera-a por completo. E Carlota! Carlota encontrava-se ali. Por um momento, pensou nela e na sua caprichosa oposição. Depois, antes que a ira o dominasse, soergueu o peito, em nova oração muda, os olhos sombrearam-se-lhe - e perdeu a impressão de contrariedade.
Seguiu pelo terraço até à escada de pedra que conduzia à entrada e atravessou o pátio, onde dois homens, debaixo dum alpendre, carregavam azêmolas com fardos de bananas. No zaguán dormiam soldados. Pelas portas abertas, Ramon viu ao fundo da alameda um carro de bois afastando-se lentamente. No pátio ressoavam marteladas numa bigorna: era um homem e um rapazito ocupados na forja. Noutro alpendre, um carpinteiro aplainava tábuas.
Don Ramon deteve-se um momento para olhar em volta. Aquele era o seu mundo. O espírito dele espraiava-se nesse mundo como uma sombra fomentadora, e o silêncio do seu próprio poder dava-lhe paz.
Os homens que trabalhavam tiveram quase instantaneamente consciência da presença do patrão. Um após outro, os rostos escuros e ardentes ergueram-se para ele e voltaram a baixar-se. Gostavam de o ver ali, mas temiam aproximar-se e nem se atreviam a um olhar mais prolongado. Retomaram o trabalho com mais ardor, como se a presença do patrão lhes desse novo alento.
Ramon dirigiu-se para a forja, onde o rapazinho dava ao fole e o homem batia pancadas leves e rápidas num pedaço de ferro.
- É a ave? - perguntou Ramon.
- Sim, patrón, é a ave. Está bem! - E o homem levantou os olhos pretos, luzidios, expectantes. com uma tenaz, brandiu a tira de metal, negra, em forma de língua achatada, e Ramon observou-a demoradamente. - As asas ponho-as depois - explicou o ferreiro.
com as mãos escuras e nervosas, Don Ramon traçou uma linha imaginária em volta do pedaço de ferro. Três vezes fez esse gesto, que parecia fascinar o ferreiro.
- Um pouco mais alongado. Assim... - disse Ramon.
- Sim, patrón, compreendo.
- E o resto?
- Está ali. - O homem apontou para dois arcos, um maior que outro, e para várias chapas de ferro triangulares.
- Coloca tudo isso no chão.
O ferreiro pousou os arcos, um dentro do outro, e em seguida dispôs com perícia os triângulos de modo que as bases ficassem sobre o arco exterior e os vértices no círculo interior. Eram sete.
Assim formaram um sol de sete pontas.
- Agora, a ave - ordenou Ramon.
O homem pegou logo na peça comprida: era a forma rudimentar dum pássaro, com dois pés mas ainda sem asas. Colocou-a no centro da roda interior, de maneira que as patas tocassem no círculo e a cabeça atingisse a parte oposta.
- Está tudo certo!
Ramon contemplava o símbolo de ferro armado no chão quando ouviu abrir a porta de casa. Kate e Carlota avançaram através do pátio.
- Retiro isto? - inquiriu o ferreiro.
- Deixa, não faz mal - respondeu Don Ramon tranquilamente.
Kate deteve-se a observar aquela coisa estendida no chão.
- Que é isso? - perguntou.
- A ave dentro do sol.
- Representa uma ave?
- Quando tiver asas.
- Ah, faltam-lhe as asas! E de que serve?
- É um símbolo para o povo.
- é bem bonito...
- Sim, é bonito.
- Ramon, não te importas dar-me a chave para tirar o barco?
- disse Dona Carlota. - Vamos dar um passeio no lago, e Martin remará.
O marido tirou a chave da cinta.
- Onde descobriu essa linda faixa? - indagou Kate. Era branca, com riscas azuis e pretas e franjadade vermelho.
- Teceram-na aqui - informou Don Ramon.
- E as sandálias? Também as fizeram cá?
- Sim, foi obra do Manuel. Mais tarde lho mostrarei...
- Gostaria bastante de ver. São belíssimas, não acha, Dona Carlota?
- Acho, mas não sei se as coisas belas são sensatas. Não sei. E a señora, sabe o que é sensato?
- Eu? - volveu Kate. - Não me preocupo muito com isso.
- Ah, não se preocupa! Afigura-se-lhe então sensato da parte de Ramon usar traje de camponês e huaraches?
Pela primeira vez, Dona Carlota exprimira-se em língua inglesa, falando com lentidão.
- Fica-lhe tão bem! - replicou Kate. - O fato de homem é medonho e Don Ramon parece magnífico com este.
De facto, com o largo chapéu pousado na cabeça ele tinha certo ar de nobreza e autoridade.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, fixando na companheira o seu olhar inteligente, enquanto brincava com a chave. - Vamos para o lago?
As duas mulheres afastaram-se. Rindo consigo mesmo, Ramon atravessou o pátio e dirigiu-se a uma granja construída perto das árvores. Entrou e assobiou baixinho. Soou outro assobio como resposta e abriu-se um alçapão. Don Ramon subiu a escada e encontrou-se numa espécie de oficina de carpinteiro. Acolheu-o um rapaz corpulento, de cabelo encaracolado, que empunhava maço e escopro.
- Que tal vai isso? - perguntou Ramon.
- Vai bem.
O artista esculpia uma cabeça de madeira. Uma cabeça avantajada, convencional, mas que, apesar do convencionalismo, revelava semelhança com Ramon.
- Sirva-me de modelo durante meia hora - disse o escultor. Ramon sentou-se e ficou silencioso, enquanto o outro, curvado
sobre a sua obra, se concentrava no trabalho. Durante todo aquele tempo, Don Ramon conservou-se erecto, quase imóvel, sem pensar em nada, mas irradiando um halo sombrio de poder que fascinava o artista.
- Basta - declarou por fim, levantando-se.
- Mas ponha-se na posição antes de se ir embora - pediu o artista.
Ramon despiu lentamente o casaco e ficou de torso nu, com a faixa raiada de azul e preto de roda da cintura. Por uns instantes pareceu recolher-se e, em seguida, como se numa oração intensa e orgulhosa, ergueu o braço direito por cima da cabeça e ficou transfigurado. O braço esquerdo pendia molemente ao longo do quadril. E no rosto, esse ar de orgulho fixo e intenso que era em si mesmo uma oração.
O escultor observava-o admirado e quase temeroso. Aquele homem grande e enérgico, com os seus olhos negros dilatados pelo orgulho e no entanto cheios de oração, despertava no escultor um frémito de alegria e de medo.
Don Ramon voltou-se para ele.
- Agora, você!
O artista, assustado, quis esquivar-se, mas encontrou o olhar de Ramon e, no mesmo instante, a calma da concentração desceu sobre ele, como um êxtase. Então, bruscamente, ergueu o braço, e a face pálida e nédia adquiriu uma expressão de paz e dignidade. Os olhos cinzento-azulados, serenos e altivos, dirigiam ao Além a sua oração. E embora estivesse com a bata de trabalho, e não fosse esbelto, apresentava uma imobilidade perfeita, plena de nobreza.
- Muito bem - disse Ramon, baixando a cabeça.
O escultor moveu-se de súbito. Ramon estendeu-lhe as duas mãos e ele, levantando-lhe a dextra, pousou-a na fronte.
- Adiós! - disse Ramon, depois de enfiar o casaco.
- Adiós - respondeu o artista. E com a felicidade estampada no rosto, voltou para o trabalho.
Don Ramon visitou a casa de adobe, cujo pátio era rodeado duma paliçada de canas e sombreado por uma gigantesca mangueira. Manuel, a mulher, os filhos e dois ajudantes estavam a fiar e a tecer. Debaixo das bananeiras, duas pequenas cardavam lã branca e castanha. A mulher e uma rapariga fiavam. Numa corda secava lã tingida, vermelha, azul e verde. E, no alpendre, Manuel e um rapaz manobravam dois pesados teares.
- Como vai isso? - inquiriu Don Ramon.
- Muy bien! Muy bien! - respondeu Manuel, com uma expressão transfigurada cintilando-lhe nas pupilas negras. - Muito bem, señor!
Ramon examinou a serape que estavam a tecer. Tinha uma barra em ziguezague de lã preta natural e, em cada ponta, um ornato complicado, azul e preto. O homem começara o centro, a que chamam boca, e olhava de instante a instante para o desenho pregado no tear. Aliás, era um desenho simples, igual ao símbolo de que o ferreiro se ocupava: uma serpente a morder a cauda e, de volta, triângulos negros cujas bases se apoiavam num círculo exterior; ao meio uma águia azul, com as asas e os pés tocando no arco formado pela serpente.
Ramon voltou a casa, dirigindo-se para a ala onde se encontrava o seu quarto. Lançou uma manta dobrada sobre o ombro e seguiu pelo terraço. No extremo dessa ala, projectando-se para o lago, havia outro terraço, este quadrado, com uma bignónia cor de coral pendente dos pilares maciços. A loggia estava juncada de esteiras e, a um canto, via-se um tambor e respectiva baqueta. No ângulo mais afastado mergulhava uma escada de pedra, fechada em baixo por uma porta de ferro.
Ramon ficou uns momentos a olhar para o lago. As nuvens dispersavam-se e o lençol de água reflectiu uma claridade esbranquiçada. Ao longe, via-se a mancha de um barco, onde provavelmente se encontravam Martin e as duas senhoras.
Tirou o chapéu e o casaco, e permaneceu imóvel, nu da cintura para cima. Então pegou na baqueta e, depois de esperar uns segundos, até adquirir paz de alma, fez soar o apelo do tambor, num ritmo alternado, forte e fraco. Captara o antigo poder bárbaro de certos rufos.
Assim esteve durante algum tempo, sozinho, tocando tambor com a mão direita, de face inexpressiva.
Acorreu um homem, de cabeça descoberta, vindo do outro terraço. Trazia fato de brancura imaculada, serape escura ao ombro, e uma chave na mão. Saudou Ramon, levando à testa as costas da mão direita, e depois desceu a escada e abriu a porta de ferro.
Imediatamente chegaram homens, todos vestidos de branco, cada qual com a sua serape dobrada em cima dos ombros. Mas as faixas eram azuis, e as sandálias azuis e brancas. O escultor apareceu, assim como Martin.
Eram sete, além de Ramon. No topo da escada saudaram-no, um apôs outro. Em seguida, depuseram a manta e o chapéu no murinho do terraço e despiram o casaco, que atiraram para cima dos chapéus.
Ramon largou o tambor e sentou-se sobre a sua manta raiada de azul e preto. Todos o imitaram, formando círculo, de pernas cruzadas e torso nu. Uns eram cor de café, outros brancos; Ramon tinha a pele dum tom castanho-claro. Conservaram-se em silêncio, só perturbado pelo som igual e hipnótico do tambor que um dos homens tocava. Então este começou a cantar numa vozinha estranha, contida, essa antiga voz de falsete dos índios:
"Quem dorme despertará. Quem dorme despertará. Quem segue o caminho da serpente há-de chegar ao seu destino; há-de chegar ao seu destino e ficará revestido com a pele da serpente."
Uma por uma, outras vozes se juntaram, até que todos se fizeram ouvir, naquele ritmo cego, infalível, do antigo mundo bárbaro. E todos com idêntica voz interior, como se a alma cantasse para si própria.
Cantaram por momentos, em uníssono, qual bando de pássaros a voar levados pelo mesmo instinto. E quando o tambor vibrou num rufo que era o final da cerimónia, as vozes extinguiram-se também, simultâneas, com um estrangulamento na garganta.
Houve um silêncio. Depois os homens principiaram a conversar uns com os outros, rindo em surdina. Mas a voz deles e a expressão já não eram as mesmas de há pouco.
Don Ramon ia falar e todos se calaram, inclinando a cabeça. Aquele sentara-se, de face erguida, visando ao longe, na dignidade da oração.
- Não há Passado nem Futuro, só existe o Presente - disse em tom surdo, majestoso. - A Serpente magna dobra e desdobra os seus anéis, as estrelas surgem, os mundos desaparecem. Há somente a mudança e o repouso do plasma.
Eu sou sempre, diz o seu sono.
Assim como o homem, enquanto dorme, não tem conhecimento, mas é, também a Serpente enroscada do eterno Cosmos prolonga o seu existir de Agora.
Agora, agora só, e para sempre Agora.
Contudo os sonhos despertam e esmorecem no sono da Serpente.
E o Universo eleva-se como os sonhos e como eles expira.
E o homem é um sonho no sono da Serpente.
E apenas o sono que não tem sonhos murmura: Eu sou!
E no Agora sem sonhos, Eu sou.
Os sonhos despertam, como devem, e o homem é um sonho desperto.
Mas o plasma sem sonhos da Serpente é o plasma do homem, do seu corpo e ao mesmo tempo da sua alma.
E o sonho perfeito da Serpente Eu sou é o plasma do homem, que é íntegro.
Quando o plasma do corpo e o da alma só fazem um, Eu sou na Serpente.
Agora Eu sou.
Não foi é um sonho, assim como será, quais dois pés trôpegos e separados.
Mas Agora. Eu sou.
As árvores desdobram as folhas no sono, e a floração emerge dos sonhos no mais puro Eu sou.
Os pássaros esquecem o peso dos seus sonhos e cantam no Agora: Eu sou! Eu sou!
Porque os sonhos têm asas e pés e caminhos a percorrer, e esforços a realizar.
Mas a Serpente luzidia do Agora não tem asas nem pés, é una, perfeitamente enrolada.
Nos pés dum sonho, a lebre sobe o monte numa corrida. Mas quando se detém o sonho desaparece e ela entra no Presente e os seus olhos são o vasto Eu sou.
Só o homem sonha, sonha, e vai de sonho em sonho, como alguém que, dormindo, se agita no leito.
Sonha com os olhos e a boca, com as mãos e os pés, com o falo, o coração e o ventre, com o corpo e a alma, numa tempestade de sonhos.
E precipita-se de sonho para sonho, na esperança de alcançar o sonho perfeito.
Mas eu afirmo-vos que nenhum sonho é perfeito, porque em todos eles há sofrimento e desejo.
Nada é perfeito, excepto o sonho que falece no sono. Eu sou.
Quando o sonho dos olhos se obscurece, cercado pelo Agora,
E quando o sonho da boca ressoa no último Eu sou,
E quando o sonho das mãos dormita como uma ave no mar, que é erguida, e levada, sem que ela o saiba,
E os sonhos dos pés atingem o centro do mundo, onde a Serpente dorme,
E o sonho do corpo é a calma duma flor oculta,
E o sonho da alma se dissipou no perfume do Agora,
E o sonho do espírito se apazigua e descansa na Estrela da Manhã,
Porque cada sonho começa e termina no Presente,
No âmago da flor está a Serpente que alumia e não desperta.
E o que se apaga é um sonho, e o que se aumenta é um sonho. Há sempre, e somente Agora. Agora e Eu sou."
Reinava o maior silêncio no círculo de homens. Lá fora, rangia um carro de bois e, do lago, elevava-se o débil som de remos a fender a água. Mas os sete homens, de cabeça baixa, escutavam interiormente, numa espécie de transe.
Então o tambor começou, suavemente, e um dos homens cantou, num fio de voz:
O senhor da Estrela da Manhã
Estava entre o dia e a noite:
Tal um pássaro que ergue as asas e espera
com a asa luminosa à direita
E a das trevas à esquerda,
A Estrela de Alva apareceu.
- Olhai! Estou sempre aqui!
Longe, no espaço
Roço a asa do dia
E ilumino o vosso rosto.
com a outra asa roço a sombra.
Mas eu estou sempre aqui.
Estou sempre aqui. Sou o senhor. E os senhores entre os homens Vêem-me no cintilar das minhas asas. E perdem-me outra vez. Mas, olhai! Estou sempre aqui.
As multidões não me vêem. Só vêem o bater de asas, As idas e vindas das coisas, O calor e o frio.
Mas a vós que me vedes entre
O frémito da noite e do dia,
Faço-vos senhores do Caminho Invisível.
Caminho entre abismos de trevas e vales de luz; Caminho que segue tal rasto de serpente, tal a mecha dum rastilho
Que incendiará à substância das trevas e explodirá à vista de todos.
Jamais me afasto. Estou sempre aqui Entre as asas dum voo sem fim, Nas profundezas da paz e da luta.
Profundo no relento da paz,
Longe da orla do combate,
Haveis de encontrar-me, eu que não sou
Nem sou destruição.
Para além eu estou Dos horizontes de amor e de luta, Como uma estrela, como uma fonte Que lava os senhores da vida.
"Ouvi! - disse Ramon, no meio do silêncio. - Seremos senhores entre os homens, não os senhores dos homens. Somos senhores da noite. Senhores do dia e da noite. Filhos da Estrela da Manhã e da Estrela da Tarde.
Não somos senhores dos homens. Eu, porém, sou a Estrela da Manhã e Senhor do dia e da noite. com o poder que me foi concedido à mão esquerda e com o poder que obtive com a mão direita, sou senhor dos dois rumos.
E a minha flor na terra é o jasmim, e no céu a hespéride.
Não vos darei ordens, nem vos servirei, porque a serpente se arqueia em direcção à sua casa.
Contudo, estarei convosco, para que não vos desvieis de vós próprios.
Não há nada a dar nem a receber. Quando os dedos que dão afloram os que recebem, cintila a Estrela da Manhã a esse contacto, e o jasmim brilha entre as mãos. E assim não há dom nem aceitação, nem mão que oferece nem mão que recebe, mas a estrela encontra-se entre elas e a mão escura e a mão clara permanecem invisíveis de cada lado. O jasmim recolhe na corola o dom e a aceitação, e o seu perfume espalha-se no ar.
Não penseis em dar nem em receber, deixai isso à flor do jasmineiro.
Não vos desperdiceis, que nada vos seja arrancado.
E não percais nada, nem o aroma da rosa, nem o sumo da romã, nem o calor do fogo.
Mas dizei à rosa: - Olha, colho-te, e o teu perfume enche-me as narinas e o meu hálito penetra no teu coração. Que isso seja entre nós como um sacramento.
E tomai cuidado quando abrirdes a romã; é o Sol poente que tendes nas mãos. Dizei: - Eis-me aqui, vem! Que a Estrela da Tarde fique entre nós.
E quando a chama se eleva ao sopro do vento frio e estendeis as mãos para o calor, ouvi o que a chama diz: - Ah! És tu? És tu que vens para mim? Eu realizava a grande viagem, seguindo o caminho da serpente magna. Mas visto que vens até mim, de ti me aproximo. E se caíres nas minhas mãos cairei nas tuas, e a flor do jasmineiro perfumará o nosso encontro.
Não repilais nada nem deixeis que vos despojem. Porque repelir ou ser despojado quebra a raiz do jasmim e conspurca a Estrela da Tarde.
Não vos apodereis de nada para dizer: - Isto pertence-me. Nada existe que vos seja dado possuir, nem sequer a paz.
Nada; nem o ouro, nem a terra, nem o amor, nem a vida, nem a dor, nem a morte, nem a salvação.
De nada direis: - Isto é meu.
Dizei apenas: - Isto está comigo.
Porque o ouro só permanece convosco o espaço duma lua, e olha-vos e diz: - Encontramo-nos ligados por este breve instante.
E a terra diz-vos: - Ah, filho meu, de pai longínquo! Vem, revolve-me um pouco, para que as papoulas e o trigo cresçam e ondulem ao vento que sopra entre o meu e o teu peito. Depois, abisma-te em mim, e ambos formaremos um outeiro.
E ouvi o que diz o vosso amor: - A tua espada ceifou-me como à erva, e sobre mim está a sombra e o bruxulear da Estrela da Tarde. Não é mais do que trevas e nada. Ó tu, quando te levantares e prosseguires o teu caminho, fala-me, dize-me simplesmente: - A estrela despontou entre nós.
E dizei à vida: - Sou teu? És minha? Sou a orla do dia em volta da noite? São os meus olhos o crepúsculo onde a estrela se suspende? É o meu lábio superior o pôr do Sol e o meu lábio inferior o raiar da manhã? Tremula a estrela na minha boca?
E dizei à vossa paz: Ergue-te, estrela imortal! Já as águas da aurora te alagam e me levam no seu curso.
E dizei à dor: Machado, abates-me. E, contudo, brota uma centelha do teu gume e da minha ferida. Corta, então, que eu velarei a face, ó pai da estrela!
E dizei à vossa força: A espuma da noite sobe-me dos pés até aos rins, a espuma do dia salta-me dos olhos e da boca para o mar do meu peito. As minhas entranhas são um manancial de poder que corre pela espinha dorsal. E uma estrela flutua sobre esse fluxo.
E dizei à vossa morte: Pois seja! Eu e a minha alma iremos para ti, Estrela da Tarde. Carne, desaparece na sombra da noite. Espírito, chegou o teu dia. Deixai-me agora. Na minha nudez suprema me encaminho para a Estrela mais nua."

XII
Os homens envergaram o casaco, puseram o chapéu e, depois de cobrirem os olhos por um momento numa saudação a Ramon, desceram a escada de pedra. Fechou-se a porta com estrondo e o porteiro, voltando com a chave, pousou-a sobre o tambor e retirou-se discretamente.
Ramon ficou sentado em cima da manta, com os ombros nus apoiados à parede e de pálpebras cerradas. Sentia-se fatigado, nesse estado de abstracção que torna difícil o regresso ao mundo normal. Ouvia de modo vago os rumores na casa, tilintar de colheres de chá, vozes femininas conversando, o ronco dum automóvel que se aproximava pelo caminho desnivelado e se detinha no pátio.
Custava-lhe voltar à terra. Ressoava-lhe aos ouvidos o barulho do exterior, mas dentro dele mesmo escutava o murmúrio confuso do universo, como se num búzio. Era-lhe penoso retomar contacto com as coisas da vida corrente quando o corpo e a alma mergulhavam no cosmos.
Gostaria de se conservar ainda uns instantes no seu isolamento, mas não era possível. Reclamavam a sua presença, especialmente Carlota.
Já ela o chamava: "Ramon! Isso terminou? Cipriano está aqui." Sentia-se-lhe na voz receio e temeridade.
Ramon puxou os cabelos para trás, ergueu-se e, em passo rápido, acudiu ao chamamento tal como se encontrava, de torso nu. Não tinha vontade de se vestir, de reentrar nos pormenores da vida quotidiana.
Cipriano, fardado, achava-se no terraço abancado à mesa do chá. Levantou-se prontamente e avançou para Ramon de braços abertos, perscrutando o rosto do amigo com os seus olhos negros e brilhantes.


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Os dois homens abraçaram-se, peito contra peito, e, por momentos, Cipriano deixou estar as mãos morenas nas espáduas nuas de Ramon. Então afastou-se devagar e fitou-o sem proferir uma palavra.
Ramon pousou distraidamente a mão no ombro de Cipriano.
- Que tal? - perguntou. - Como vai isso?
- Bien. Muy bien - respondeu Cipriano, fixando-o sempre como se se procurasse a si mesmo no semblante de Ramon. Este correspondeu ao olhar do índio com um leve sorriso, enquanto Cipriano baixava a cabeça e os cabelos longos lhe tombavam na testa.
As duas mulheres observavam a cena em silêncio absoluto. Quando os dois homens se aproximaram da mesa, Carlota começou a servir o chá. Mas as mãos tremiam-lhe e ela tratou de pousar o bule e cruzá-las no regaço.
- Passearam de barco? - indagou Ramon, com ar alheado.
- Passeámos, e foi muito agradável - disse Kate. - Um bocado quente, quando o sol apareceu...
Ramon esboçou um sorriso e alisou o cabelo. Em seguida, descansando a mão no parapeito do terraço, olhou para o lago e suspirou inconscientemente.
Nu da cintura para cima, voltava costas às mulheres, contemplando a vastidão da água. Cipriano estava a seu lado.
Kate observava as espáduas lisas, morenas, que emanavam sensualidade, os ombros largos, o porte altivo da cabeça - e não podia deixar de imaginar uma lâmina cravada nessas costas magníficas, nem que fosse só para destruir a sua arrogância distante.
Porque até a sua nudez parecia distante, intangível. Pensar nela e contemplada daquele modo representava quase uma violação. Kate sentiu de súbito o coração estremecer-lhe de vergonha. Fora assim que Salomé olhara para João Baptista, e Ramon possuía essa mesma beleza que evocava uma romã destacando-se na verdura sombria da árvore.
Soprava branda a aragem da tarde. Na luz nacarada deslizavam barcos, enquanto o Sol luzia ainda no horizonte. Distinguia-se a margem oposta, a cerca de vinte milhas, embora velasse a atmosfera uma bruma opalina que se confundia com a água do lago. Kate lobrigava a mancha clara da igreja de Tuliapan.
No jardim da casa havia um bosquete de mangueiras, onde voavam cá e lá passarinhos escarlates, como botões de papoula, e outros dum amarelo cintilante. Contudo, quando pousavam por um momento e fechavam as asas, desapareciam da vista, pois eram escuros por cima.
- Neste país, os pássaros só são coloridos por baixo das asas - observou Kate.
Ramon voltou-se bruscamente para ela.
- Dizem que a palavra México significa "por baixo" - replicou, sorrindo, enquanto se afundava numa cadeira de balouço.
Dona Carlota fizera um esforço sobre si mesma e, de olhos fixos nas chávenas, servia o chá. Apresentou uma xícara ao marido, sem sequer o relancear. Tremia de cólera quase histérica. Ela, que era sua esposa desde tantos anos e que o conhecia tão bem (ah, se o conhecia!), nada possuía desse homem.
- Passa-me o açúcar, Carlota - disse Ramon na sua voz calma.
A mulher sobressaltou-se como se a beliscassem de repente.
- O açúcar? - repetiu, distraída.
Ramon estava sentado na cadeira, pendido para a frente e de xícara na mão. A tela fina que lhe cobria as coxas revelava-lhe mais o corpo do que a nudez do torso. Kate percebeu porque é que era proibido usar calças de algodão naplaza. Tornavam mais sensível a presença da carne.
Verdadeiramente belo, duma beleza que chegava a ser assustadora, irradiava uma sensualidade pura, hostil ao género de pureza de Kate, com a sua faixa azul de roda da cinta e as calças brancas parecendo fremir de vida cingidas aos quadris e às coxas. Tão poderoso fluido emitia esse ente másculo que Kate se sentia como que fascinada.
E ele, perfeitamente tranquilo, dentro do seu próprio ambiente. O mesmo acontecia a Cipriano. Ambos tão calmos, tão sombrios, dir-se-iam esmagar as duas mulheres.
Kate compreendeu então os sentimentos de Salomé. Compreendeu como João Baptista, com a sua beleza distante e inacessível, exercera tamanho poder.
"Ah! disse ela consigo mesma. - Tenho de fechar os olhos e abrir a alma. Fechar os olhos para não ver e ficar na escuridão e no silêncio junto destes dois homens. Possuem uma riqueza que me falta. Conseguiram libertar-se do desejo que a vista suscita. Sou atormentada pelo desejo, pela minha imaginação lasciva. É a maldição de Eva. Os meus olhos, a minha experiência são como um anzol que me repuxa a carne e me desperta espasmos de desejo. Oh, quem me dera libertar-me da impureza do olhar! Filha de Eva, porque é que estes homens me não arrancam às visões impuras?"
Levantou-se e dirigiu-se à beira do terraço. Amarelos como narcisos, emergiam dois pássaros da sua própria invisibilidade. Na praia de seixos, onde estava um barco varado, dois homens apanhavam à rede os peixinhos denominados chcirales, que cintilavam na água acastanhada como lascas de vidro.
- Ramon! - disse Dona Carlota. - Não vais vestir-te? Já não podia suportar aquela vista.
- vou. Obrigado pelo chá - respondeu o marido, pondo-se de pé. E seguiu pelo terraço adiante, com as sandálias a ranger de leve no pavimento de tijolos.
- señora Caterina! - chamou Carlota. - Venha beber o seu chá.
Kate voltou para a mesa, dizendo:
- Que paz se sente aqui!
- Paz! - repetiu Carlota. - Não acho paz nenhuma. O que há é um silêncio pavoroso que me causa arrepios.
- Vem cá frequentemente? - perguntou Kate a Cipriano.
- Sim, uma ou duas vezes por semana - respondeu ele, fixando-a com singular expressão nos olhos negros.
Dir-se-ia que esses homens procuravam anular-lhe a vontade.
- São horas de eu voltar para casa - declarou ela. - Não tarda que o Sol desapareça.
- Ya va? - redarguiu Cipriano, com a sua voz aveludada em que transparecia certa pena. - Já!
- Oh, não, señora! - exclamou Carlota. - Fique connosco até amanhã.
- Mas estão em casa à minha espera.
- Mandarei um rapaz prevenir que só regressa amanhã. Fica, não é verdade? Ah, ainda bem.
E Carlota, depois de pousar a mão carinhosa no braço de Kate, levantou-se a fim de avisar os criados.
Cipriano puxou da cigarreira e ofereceu-a a Kate.
- Não se escandalizará se eu fumar? - disse ela. - É um dos meus vícios.
- Fume. Não é bom sermos perfeitos.
- Acha que não? - E Kate, rindo-se, puxou uma fumaça do cigarro.
- Experimenta realmente essa paz? -inquiriu ele, irónico.
- Porquê?
- Porque é que os brancos andam sempre em busca da paz?
- Pois não é natural que todos desejem paz?
- Paz é apenas o descanso depois da guerra. Não é mais natural do que a luta; talvez até seja menos.
- Mas existe outra paz, aquela que ultrapassa o entendimento. Não sabia?
- Parece-me que não - respondeu Cipriano. - Que pena!
: - Ah! Quer ensinar-me? Mas para mim é diferente... Cada
homem tem dois espíritos. Um assemelha-se à aurora na época das chuvas, suave, fresca, húmida, com pássaros chilreando. O outro é como a estação seca, com a sua luz forte e ardente que parece nunca mais abrandar.
- Decerto prefere o primeiro.
- Não sei - replicou Cipriano. - O outro dura mais.
- Tenho a certeza que prefere a frescura da manhã - insistiu Kate.
- Não sei, não sei. - E esboçou um sorriso, deixando Kate
convencida de que ele de facto não sabia. - Na primeira fase vemos as flores nas suas hastes transbordantes de seiva. A flor desa brocha como uma face de mulher perfumada pelo desejo. Mas o sol começa a aquecer, e então tudo se modifica. As flores murcham e o peito do homem torna-se como um espelho de aço. Dentro dele tudo
- é escuridão, enroscando-se e desenroscando-se como uma cobra. As flores secaram nas hastes, as mulheres já não existem para o homem. Umas e outras desapareceram.
- Que pretende ele então? - perguntou Kate.
- Não sei. Talvez queira ser uma grande personagem, senhor de todos os povos...
- E porque não realiza essas aspirações?
Cipriano encolheu os ombros.
A señora assemelha-se à manhã de que lhe falei há pouco -
disse ele.
- Tenho quarenta anos - replicou Kate com um risinho amarelo.
O general tornou a encolher os ombros.
- Isso não interessa. O seu corpo parece o caule da flor a que
aludi, e o seu rosto será sempre a aurora na estação das chuvas.
- Porque me diz essas coisas? - volveu Kate, com involuntário e estranho tremor.
- E porque não hei-de dizer? A señora é tal uma manhã cheia de frescura, e estamos no fim da época seca...
Observava-a, e nos seus olhos brilhava o desejo, aliado a certa insolência.
Kate baixou a cabeça e balançou-se na cadeira.
- Gostaria de casar consigo - continuou Cipriano. - Se estivesse disposta a isso, desposá-la-ia.
- Não me parece que me torne a casar - ripostou Kate, anelante e de faces afogueadas.
- Quem sabe?
Ramon surgiu no terraço, com a sua bela serape dobrada sobre o ombro nu. Apoiou-se num dos pilares e contemplou Kate e Cipriano, o qual ergueu a vista e lhe dirigiu um sorriso em que transparecia a amizade que os ligava.
- Disse à señora Caterina que a desposaria se ela estivesse disposta a casar-se - declarou ele.
- É o que se chama falar sem rodeios - replicou Ramon, olhando para Cipriano com o mesmo sorriso amigo. Em seguida, o seu olhar pousou-se em Kate, enquanto o sorriso se alastrava e todo o seu rosto respirava compreensão. Cruzou os braços, como fazem os índios quando querem defender-se do frio; e a carne, dum tom castanho-claro, como ópio, formava saliências no peito largo, cheio e liso.
- Diz Don Cipriano que os Brancos só desejam a paz - proferiu Kate, fitando Ramon com deliberada impertinência. - Não se consideram brancos?
- Não mais brancos do que somos - respondeu Ramon, sorrindo. - Pelo menos, não duma brancura de lírio...
- E não buscam a paz?
- Por mim não penso nisso. Os mansos herdarão a terra, segundo a professia. Mas quem sou eu para lhes invejar a sua paz? Não señora. Por acaso pareço um evangelho de paz? Ou de guerra? A vida para mim não se resume nessas duas coisas.
- Não sei afinal o que desejam - disse Kate.
- Nós próprios não o sabemos senão em parte - replicou Ramon, mudando de expressão.
Havia nele uma espécie de bondade paternal que enchia Kate de espanto e a sobressaltava como se só agora compreendesse o verdadeiro significado de tal sentimento. Mistério, nobreza, inacessibilidade, e a vulnerável compaixão de homem na sua amizade desinteressada...
- Não gosta das pessoas de pele escura? - perguntou Ramon em tom suave.
- Acho-as belas à vista - respondeu Kate. - Mas - acrescentou, com um leve arrepio - estou contente por ser branca.
- Sente que não é possível nenhum contacto?
- Exactamente.
- É a sua impressão - volveu Ramon, e, enquanto ele falava, Kate percebeu que o considerava mais atraente do que a qualquer homem loiro e que, por muito vago que fosse, o contacto que tinha com ele lhe era mais precioso do que todos os que até aí conhecera.
Contudo, embora lhe lançasse certa sombra, não tentava influenciá-la, nem queria maior aproximação - ao passo que Cipriano, sentindo-se incompleto, a procurava e parecia violar-lhe a personalidade.
À voz de Ramon, Dona Carlota assomou a uma das portas mas, ouvindo falar inglês, tornou a sumir-se, num brusco acesso de cólera. Daí a pouco reaparecia, trazendo um vaso de flores carnudas, dum branco leitoso, semelhantes a frésias no tom e no perfume.
- Que lindas! - exclamou Kate. - São flores de igreja! No Ceilão, os indígenas entram nos seus templos e depõem uma flor num tabuleiro aos pés do Buda. E os tabuleiros das oferendas ficam cobertos dessas flores, todas muito bem arranjadas, dispostas com delicadeza oriental...
- Mas eu não as trouxe para homenagear deuses - replicou Carlota, pousando o vaso na mesa. - Trouxe-as para si, señora. Cheiram tão bem!
- De facto, têm um aroma delicioso - concordou Kate. Os dois homens afastaram-se, rindo.
- Ah, señora! - disse Carlota, sentando-se à mesa. - Pode entender Ramon? Seria capaz de renunciar à Santa Virgem? Eu antes queria morrer.
- Não precisamos doutros deuses, realmente - redarguiu Kate, com certo enfado.
- Outros deuses! - repetiu Carlota, escandalizada. - Como se fosse possível! Ramon comete um pecado mortal.
Kate conservou-se calada.
- E quer induzir o povo a fazer o mesmo - prosseguiu Carlota. - É pecado de orgulho... o pecado cardeal. Ainda bem que a señora pensa como eu. Receio as americanas que, para se apoderarem do espírito dos homens, aceitam todas as suas loucuras e perversidades... É católica, señora?
- Fui educada num convento.
- Ah, señora! Qual a mulher que tendo conhecido a Santíssima Virgem se afasta dela? Que mulher teria ânimo de crucificar Jesus novamente? Mas os homens, os homens! Aquela história de Quetzalcoatl seria coisa para rir se não fosse um pecado mortal. E da parte de dois homens inteligentes e instruídos tanta presunção!
- Os homens são assim - observou Kate.
Intensificava-se o crepúsculo; o horizonte estava ainda luminoso, mas o Sol afundara-se numa bruma cor-de-rosa, por trás das arestas da montanha. As colinas erguiam-se azuladas numa atmosfera cor de salmão que se reflectia na água. Lá adiante, onde o clarão rubro se adensava, banhavam-se homens e crianças.
Kate e Carlota subiram à azotea, o terraço que cobria a casa. Dali podiam ver a hacienda com o seu pátio semelhante a uma fortaleza, o caminho ladeado de árvores frondosas, as cabanas de adobe perto da estrada e as fogueiras já bruxuleando junto das casas. No ar róseo os salgueiros da margem pareciam mais verdes e cintilantes. Ao longe, luziam entre as árvores as duas torres brancas de Sayula. Deslizavam barcos em direcção à parte sombreada do lago.
E num desses barcos, deveras desconsolada, regressava Juana a casa.

XIII
Ramon e Cipriano encontravam-se à beira do lago. O general envergara também fato branco e sandálias, o que lhe ia melhor do que a farda.
- Tive uma conversa com Montes quando ele foi a Guadalajara - declarou Cipriano.
Montes era o presidente da República.
- E que te disse?
- Não se alarga muito a falar, mas depreendi que não simpatiza com os colegas e se sente isolado. Julgo que gostaria de te conhecer melhor.
- Porquê?
- Talvez pudesses dar-lhe apoio moral. Talvez chegasses a ser ministro; e até presidente, depois de Montes acabar o seu mandato.
- Montes agrada-me - replicou Ramon. - É sincero e ardente. Gostaste dele?
- Sim, mais ou menos - respondeu Cipriano. - É desconfiado, teme que outros pretendam compartilhar com ele o poder. Tem instintos de ditador. Quis saber se eu lhe era afecto.
- Deste-lhe a entender que sim?
- Disse-lhe que tudo o que me interessava verdadeiramente eras tu e o México.
- E que te respondeu?
- Ele não é tolo. Respondeu: "Don Ramon vê o mundo com olhos diferentes dos meus. Qual de nós terá razão? Eu quero salvar o país da pobreza e da ignorância, ele quer salvar-lhe a alma. Mas afirmo que um homem esfomeado e ignorante não tem lugar para a alma. Um ventre e um cérebro vazios roem-se a si mesmos, e a alma não existe. Don Ramon acha que um homem desprovido de alma pode passar sem o alimento do corpo e do intelecto. Pois que siga o seu caminho, que eu sigo o meu! Não nos embaraçaremos um ao outro. Dou a minha palavra que não interferirei em nada. Ele varre o pátio, eu trato da limpeza da rua.
- É sensato - comentou Ramon - e honesto nas suas convicções.
- Porque não serias ministro daqui a uns meses? E mais tarde presidente?
- Bem sabes que não é isso o que pretendo. Devo poupar-me e agir noutra esfera. A política que se mantenha ou evolua como eles entendem, a sociedade que faça o que quiser. Deixa-me em paz, Cipriano. Gostarias que eu fosse outro Porfirio Diaz, ou alguém do mesmo género, mas isso para mim seria pura e simplesmente soçobrar na vida.
Cipriano observava Ramon com os seus olhos negros e vigilantes, onde transparecia amizade, receio, confiança, mas também incompreensão, e a dúvida que sempre a acompanha.
- Não chego a perceber o que desejas - murmurou.
- Percebes, sim. A política e toda essa religião social com que Montes se preocupa equivale a lavar a casca dum ovo para lhe dar aspecto limpo. A mim, porém, só interessa o interior... Ah, Cipriano! O México é tal um ovo que o Tempo choca desde séculos neste ninho do mundo e que parece ser goro. Parece, mas não é. O que precisa é de calor que ajude a formação da ave. Montes quer limpar o ninho e lavar o ovo... Que aconteceria se tirassem um ovo de baixo duma águia para o lavar? Arrefeceria de vez. Pois quanto mais se empenharem em arrancar este povo da pobreza e da ignorância mais depressa ele morrerá. Pobre Montes! Todas as suas ideias são americanas ou europeias. E a velha pomba da Europa jamais poderá chocar com êxito o ovo escuro da América. Os Estados Unidos não morrem porque não estão vivos. É um ninho de ovos de loiça e por isso se conservam limpos. Mas aqui, Cipriano, aqui é necessário incubá-los antes da limpeza do ninho.
Cipriano baixava a cabeça. Experimentava sempre Ramon para ver se conseguia fazê-lo mudar de ideias e, depois de verificar a inutilidade dos seus esforços, submetia-se ao amigo e novas chamas de felicidade se alteavam dentro dele. Mas, entretanto, ia-o experimentando...
- Não serve de nada querer misturar as duas coisas. No ponto em que estão, não se misturam. Temos de fechar os olhos e mergulhar até ao fundo, como pescadores de pérolas. Mas andamos a flutuar à superfície, semelhantes a bocados de cortiça...
Cipriano mostrou um sorriso subtil. Tudo aquilo ele sabia!
- Temos de abrir a ostra do cosmos e extrair dela a nossa força.
Enquanto não arrancarmos a pérola não seremos mais do que mosquitos no cimo do oceano - concluiu Ramon.
- A minha força é como um demónio dentro de mim - disse Cipriano.
- Porque a ostra a retém fechada, como uma pérola negra. A ti compete libertá-la.
- Ramon, não acharias bom ser uma serpente, uma serpente enorme que se enrolasse em volta do globo e o esmagasse... como a esse ovo?
Ramon olhou-o e pôs-se a rir.
- Não me parece coisa impossível - continuou Cipriano. E não seria bom?
O outro meneou a cabeça, rindo-se.
- Pelo menos seria um momento bom.
- Que mais se pode desejar?
Brilhou nos olhos de Ramon uma centelha que logo se apagou.
- Para quê? - disse em voz surda. - Depois de esmagado o ovo que havíamos de fazer senão errar nos corredores de trevas e lamentar-nos? Para quê?
Ramon pôs-se de pé e afastou-se. O Sol desaparecera, a noite descia. Na alma daquele homem fervia uma cólera imensa, e Carlota é que a provocava. A mulher parecia incutir vida ao monstro da sua raiva íntima, e Cipriano exasperava-o.
"A minha força é como um demónio a rugir dentro de mim", disse Ramon consigo mesmo, repetindo a frase de Cipriano.
Reconhecia o direito de gritar a esse demónio humilhado e ridicularizado que vivia preso dentro dele. E a fúria apoderou-se de Ramon, contra Carlota, contra Cipriano, contra a humanidade inteira. Os seus partidários traí-lo-iam, tinha a certeza. Cipriano acabaria por traí-lo. Desde que lhe encontrassem o mínimo ponto fraco, todos saltariam sobre ele como tarântulas e infectá-lo-iam com a sua peçonha.
E qual o homem absolutamente invulnerável, sem o menor ponto fraco?
Ramon subiu ao seu quarto pela escada exterior, no lado da casa, e sentou-se na cama. A noite estava quente, pesada, e duma calma aflitiva.
- Prepara-se chuva - ouviu ele dizer a um dos criados. Fechou as portas do quarto e ficou às escuras. Então despiu-se todo, murmurando: "Repudio o mundo juntamente com esta roupa." E de pé, nu e invisível no meio do quarto, ergueu ao ar o punho fechado, com tal força que teve a sensação de que lhe estalavam as paredes do peito. A mão esquerda pendia ao longo do corpo, mole, com os dedos levemente curvados.
Tenso como o jacto duma fonte silenciosa, distendeu-se até abranger o âmago impalpável das trevas. E as vagas de escuridão começaram a lavar-lhe o espírito, a consciência; ondas de negrume rebentando-lhe na memória, em todo o seu ser, como uma maré que sobe. Até que foi maré cheia e ele, tremendo, se deixou cair por terra, para descansar. Invisível nas trevas, ficou a olhar para o vácuo, sentindo o misterioso fluxo interior purificar-lhe as entranhas e o coração, sentindo o espírito dissolver-se no Espírito maior que nenhum pensamento perturba.
Cobriu o rosto com as mãos e ali esteve imóvel, inconsciente, já sem nada sentir nem ouvir, semelhante a uma alga submersa no mar. Abolira-se o Tempo, abolira-se o Mundo, submerso nas profundezas que são intemporais e inespaciais.
Quando o coração e as entranhas despertaram para a vida, o espírito principiou a bruxulear tal uma chamazinha que vacila e não se apaga.
Enxugou a cara com as mãos, pôs a serape na cabeça e em silêncio, numa aura de sofrimento, desceu a escada, levando consigo o tambor.
Martin, o servo devotado, andava cá e lá no zaguán.
- Ya, patrón? - perguntou.
- Ya! - respondeu Ramon.
O homem correu à vasta cozinha onde ardia uma candeia, e voltou com um braçado de esteiras.
- Onde as colocamos, patrão?
Ramon hesitou no meio do pátio, olhando para o céu.
- Viene el agua?
- Creo que si, patrón.
Dirigiram-se para o alpendre onde haviam carregado as azémolas com os fardos de bananas. Aí, Martin arremessou ao chão as petates, que Ramon dispôs em ordem. Guisleno apareceu, trazendo canas para fazer tochas, das mais primitivas: três canas amarradas em cima com um cordel, formando tripé de cintura alta, e, na parte superior, uma pedra de lava mais ou menos oca. Realizado esse trabalho,
Guisleno foi a casa e voltou a correr com um pedaço de madeira inflamada. Três ou quatro pauzinhos de ocote colocados na pedra - e as chamas ergueram-se, enchendo o pátio de sombras vacilantes.
Ramon dobrou a serape e sentou-se em cima. Guisleno acendeu outro tripé-archote. A luz bailava nas sobrancelhas carregadas de Ramon, dava-lhe ao peito cintilações de ouro.
Agarrou no tambor e fez soar o apelo monótono, lento, um tanto melancólico. Passados instantes, chegou o tocador habitual, que levou o instrumento para a alameda sombria, onde então se ouviu um rufo vivo e forte.
Ramon enfiou a serape, cujas franjas lhe roçavam os joelhos, e ficou imóvel, com os cabelos em desordem. Rodeava-lhe os ombros a serpente do tecido, o pescoço erguia-se-lhe no meio do pássaro azul.
Cipriano apareceu, vindo da casa. Trazia serape castanha e vermelha, ornamentada com um sol escarlate. Postou-se ao lado de Ramon, e olhou-lhe de relance para a cara. Mas, de sobrancelhas franzidas, o outro fixava a sombra dos alpendres no extremo do pátio. Olhava para o coração do mundo; porque a face dos homens e o coração dos homens são areias movediças, e só no coração do cosmos pode alguém encontrar força.
Cipriano voltou os olhos negros para a banda do pátio. Os seus soldados aproximavam-se em grupo. Três ou quatro homens de mantas pardas rodeavam o lume. De pé, junto de Ramon, Cipriano parecia um cardeal, um pássaro de cor vistosa. Até as sandálias eram escarlates, e encarnadas as fitas que atavam as calças de linho branco aos tornozelos. Ao clarão das tochas tinha um ar demoníaco, com a pele muito escura, a barbicha preta e as pupilas cintilando sardonicamente.
Chegavam peóns, pelo portão da entrada, balançando os chapéus largos. Acorriam mulheres descalças, com as saias a oscilar, transportando os seus nenés envoltos nos rebozos e seguidas por uma caterva de garotos. Todos se agrupavam em volta dos archotes, como animais bravios, contemplando o círculo de homens de serape, do qual se destacavam Ramon e Cipriano, um de azul e branco, outro de vermelho.
Carlota e Kate emergiram de casa. Carlota, porém, ficou junto da porta, embrulhada num xaile de seda preta. Sentou-se num banco de pau aquém do clarão avermelhado, e pôs-se a observar os homens escuros, a beleza altaneira de Ramon, o traje escarlate de Cipriano, o grupo de soldados e a massa compacta de peóns, mulheres e crianças. Enquanto desfilava gente através do portão, soou o tambor e uma voz elevou-se, cantando:
Alguém vai franquear a porta, Agora, agora mesmo, ay! E verá a luz no homem que espera. Serás tu? Serei eu?
Alguém vai aproximar-se do fogo, Agora, agora mesmo, ay! E escutarás as palavras do seu coração. Serás tu? Serei eu?
Alguém baferá quando a porta se fechar, Ay, num momento, ay! Ouvirá dizer: Não te conheço. Serás tu? Serei eu?
De cada vez o ay se elevava num grito selvático que fazia calafrios a Carlota.
Envolta num xaile amarelo, Kate aproximou-se lentamente do grupo.
O tambor calou-se e o homem, entrando no pátio, fechou o portão e misturou-se aos assistentes.
Ramon continuava a olhar para o vácuo, de sobrolho carregado. Então, no meio do silêncio, disse em voz baixa, contida:
- Assim como tiro este abafo me liberto eu do dia que passou. Despiu a serape e pô-la no braço. Todos os homens do círculo o
imitaram, ficando de torso nu. Cipriano, muito escuro e com ar sólido apesar do tamanho reduzido, conservava-se ao lado de Ramon.
- Afasto de mim o dia que passou - prosseguiu Ramon - e fico de coração descoberto na noite dos deuses.
Em seguida olhou para o chão e disse:
- Vem, serpente da terra, serpente que jazes no fogo do coração do mundo. Vem, serpente do fogo no coração do mundo, enrola-te como ouro em volta dos meus artelhos, ergue a cabeça e apoia-a na minha coxa. Vem, descansa a cabeça na minha mão, serpente dos abismos. Beija-me os pés e os tornozelos com a tua boca de ouro, beija-me os joelhos e as coxas, serpente marcada de luz e de sombra. Vem, repousa a cabeça na concha da minha mão.
A voz suave e hipnótica extinguiu-se no silêncio envolvente. E parecia que na verdade uma presença misteriosa emergia do mundo subterrâneo, que uma serpente mosqueada de ouro e negro se enroscava nas pernas de Ramon e lhe lambia a palma da mão com a língua bifurcada...
Circunvagou a vista pela assistência boquiaberta e de olhos dilatados, e prosseguiu:
- Digo-vos, e com absoluta certeza. No coração desta terra dorme uma grande serpente no meio do fogo. Aqueles que descem às minas sentem-lhe o calor e o suor, ouvem-na mover-se. É o fogo vital da terra, porque a terra vive. A serpente do mundo é enorme, as rochas são as suas escamas, e entre elas crescem as árvores. Digo-vos que a terra que cavais está viva como uma serpente adormecida. Sobre ela andais, e este lago descansa nos seus anéis como uma gota de chuva numa cobra cascavel. Contudo, tem vida. A terra vive. Se a serpente morresse, todos morreríamos. Só a sua vida assegura a humidade do solo que faz germinar o nosso milho. Das suas escamas extraímos prata e ouro, e as árvores têm nela as suas raízes como os cabelos têm a raiz sob a nossa pele. A terra vive. Mas a serpente é grande, e nós somos mais pequenos do que um grão de poeira. E por vezes ela zanga-se e diz: Estes entes, mais insignificantes do que átomos de pó, espezinham-me e asseveram que estou morta. Até às bestas costumam falar, gritando: Arre, burro! A mim, porém, não dirigem uma palavra. Por isso lhes voltarei costas, como uma mulher volta costas ao marido e lhe consome o espírito com a sua cólera... Eis o que a terra nos diz, e a tristeza e o desânimo avassalam-nos os pés e os rins. Porque assim como uma mulher irritada tira o entusiasmo e a alegria ao homem, assim a terra pode enregelar-nos a alma e tornar a existência fatigante aos nossos membros. Falai, pois, à serpente do coração do mundo, banhai de óleo os vossos dedos e abaixai-os para que ela experimente o óleo da terra e deixe que a vida nos suba ao longo das pernas, como a seiva do milho novo faz estalar a casca e brotar o leite da planta entre as barbas. Do coração da terra o homem sente subir nele a sua força; tal o milho que, ufano, ergue as suas folhas verdes, erguei-vos vós também e deixai aprofundarem-se as vossas raízes cada vez mais, porque não tardam as chuvas e é tempo de produzir no México.
Calou-se Ramon, ensurdeceu o tambor, e todos os homens do círculo fitaram a terra, deixando pender molemente a mão esquerda.
Dona Carlota, que não conseguira ouvir, aproximou-se do lado de Kate, como se fascinada pelo marido. A irlandesa, num movimento inconsciente, olhou para o chão e, às ocultas, baixou os dedos de encontro à saia. Mas teve medo do que lhe poderia acontecer e escondeu a mão no xaile.
De repente o tambor vibrou numa nota muito forte, seguida de outra mais fraca: estranho, impressionante efeito.
Os circunstantes levantaram a cabeça. Ramon alçara o braço direito, num gesto enérgico, e espiava o negrume do firmamento. Imitaram-no os do círculo, e os braços nus, erguidos, semelhavam uma série de rochedos.
- Assim, acima, acima! - gritou uma voz bárbara.
- Acima, acima! - repetiram todos, num coro feroz. Involuntariamente, brandiram o braço, voltando o rosto para o
céu sombrio. Algumas das mulheres, mais audazes, fizeram o mesmo, e, com esse gesto, experimentaram uma sensação de paz.
Kate não alçou o braço.
Reinou profundo silêncio; até o tambor se calara. Ouviu-se então a voz de Ramon, dirigindo-se ao céu tenebroso:
- As tuas asas estão escuras, Pássaro, voas muito baixo esta noite. Voas baixo sobre o México, e em breve sentiremos roçar em nossas faces o leque das tuas asas. Ah, Pássaro! Voas onde queres. Ultrapassas as estrelas e empoleiras-te no Sol. Desapareces da vista e dissipas-te no além do rio branco do céu, mas voltas como os patos do Norte, em busca de água e do Inverno. Poisas no centro do Sol e alisas as penas... Banhas-te na corrente de estrelas e ergues em teu redor uma poalha de ouro. Voas nas profundezas do céu donde parece que jamais se volta. Mas regressas, e pairas sobre nós, e sentimos no rosto a aragem das tuas asas...
Enquanto ele falava levantou-se vento em rajadas, uma porta bateu, vibraram vidraças e as árvores pareceram rasgar-se.
- Vem, ó ave dos vastos céus! - bradou Ramon num apelo selvático. - Vem, pousa no meu punho, na minha cabeça, dá-me o poder divino e a sabedoria. Ó Pássaro, ainda que o trovão ribombe quando sacodes as asas, ainda que deixes cair na terra a serpente de fogo que tens no bico, ainda que venhas como fulminador, vem, ó Pássaro! Empoleira-te um momento no meu punho, estende as asas sobre a minha cabeça, toca-me a fronte com o teu peito. Pássaro errante, ave do Além, com o trovão nas garras e a serpente no bico, com o azul nas asas e a nuvem no colo, com o sol no peito e a sabedoria no voo, vem sobre mim, vem!
O vento agitava a chama das tochas e o lago começou a falar numa voz cavernosa que dominava o sussurro das árvores. Ao longe, por cima das colinas, os raios sulcavam o céu.
Soou o tambor, e Ramon desceu o braço que mantivera erguido. E disse então:
- Sentai-vos um instante, antes que o Pássaro sacuda a água das asas, o que não tardará. Sentai-vos.
A assistência moveu-se. Os homens puxaram as serapes para a testa, as mulheres cingiram mais a si os rebozos, e todos se sentaram no chão. Só Kate e Carlota ficaram de pé, a certa distância.
- A terra é viva, o céu é vivo, e entre ambos vivemos nós - prosseguiu Ramon na sua voz habitual. - A terra beijou-me os joelhos e concedeu-me força às entranhas. O céu descansou-me no punho e transmitiu o seu poder para o meu peito.
Assim como a Estrela de Alva brilha entre o céu e a terra, uma estrela pode surgir em nós entre o coração e os rins.
É a virilidade do homem e a feminilidade da mulher.
Ainda não sois homens. E vós, mulheres, ainda não sois mulheres.
Correis, agitais-vos, morreis, mas ainda não encontraste a estrela da vossa virilidade surgida de vós mesmos; nem a estrela da vossa feminilidade cintilando entre os vossos seios, ó mulheres!
Digo-vos no entanto: para aquele que desejar, nascerá nele a estrela da sua virilidade, e então será perfeito como é perfeita a Estrela da Manhã.
E a estrela da mulher aparecerá entre a orla espessa da terra e o vácuo cinzento do céu. Mas como conseguiremos isso? Como poderá ser?
Baixai os dedos para a carícia da Serpente da terra. Erguei o punho para que aí pouse a Ave distante.
Tende a coragem de ambos, a coragem do raio e a do sismo.
E a sabedoria de ambos, a da serpente e a da águia.
E a serenidade de ambos, a da serpente e a do sol. E o poder de ambos, o das profundezas da terra e o do céu que tudo cobre.
Mas que na vossa fronte, ó homens, resplandeça a Estrela da Manhã que nem o dia nem a noite, nem a terra nem o céu podem engolir e apagar.
E entre os vossos seios, ó mulheres, que esteja a Estrela de Alva que nada pode ofuscar.
A vossa derradeira morada é a Estrela da Manhã. Nem o céu nem a terra vos hão-de tragar, mas ireis para essa estrela solitária que no entanto jamais sente a sua solidão.
A Estrela da Manhã envia-nos um mensageiro, um deus que morreu no México. Mas, enquanto dormia o seu sono, os Seres invisíveis lavaram-lhe o corpo com a água da ressurreição. E ele levantou-se, derrubou a pedra à entrada do sepulcro, e agora galopa através do horizonte, mais depressa do que caiu por terra a laje do túmulo para esmagar aqueles que a selaram.
O filho da Estrela volta para os filhos dos homens.
Preparai-vos para o receber. Lavai-vos, ungi as mãos e os pés, a boca e os olhos, as orelhas e as narinas, o peito, o umbigo e as partes secretas do vosso corpo. Que nada dos dias passados, que nenhuma poeira do mal subsista em vós e vos torne impuros.
Não olheis com olhos de ontem, não escuteis como ontem, não respireis, não cheireis, não engulais alimentos nem bebidas; não beijeis com lábios de ontem, não toqueis com mãos de ontem. Aproximai-vos das vossas mulheres com um corpo novo, e com esse corpo novo penetrai nelas. Porque o corpo de ontem morreu, e Xopilote, devorador de cadáveres, já paira sobre ele.
Libertai-vos do corpo da véspera e adquiri um novo, tal como o deus que vem até vós. Quetzalcoatl surge-nos com um novo corpo, como uma nova estrela, saído das sombras da morte.
Sim, neste mesmo momento em que estais sentados e que o vosso corpo toca na terra, dizei-lhe: Terra, terra, latejas de vida como eu. Insufla em mim o bafo das tuas entranhas.
E assim a terra se move por baixo de vós, e por cima de vós o céu agita as suas asas.
Regressai aos vossos lares, enfrentando as águas que vão cair e separar-vos para sempre do "ontem".
Ide, com a esperança de vos tornardes homens da Estrela da Manhã e mulheres da Estrela de Alva.
Ainda não sois homens, ainda não sois mulheres...
Ramon levantou-se, dando o sinal de retirada. Logo todos se puseram de pé, empurrando-se, acotovelando-se, com a silenciosa pressa mexicana que parece deslizar rente ao solo.
O vento desencadeado uivava de encontro às mangueiras. Os homens seguravam o chapéu na cabeça e corriam de joelhos curvados, com as serapes a flutuar, enquanto as mulheres, cingindo a si o rebozo, fugiam, descalças, para ozaguán.
Junto do portão aberto estava um soldado de espingarda a tiracolo e lanterna na mão, alumiando aqueles que passavam calados e velozes e se dispersavam na alameda escura como pedacinhos de papel levados pelo vento. Num instante todos desapareceram.
Martin fechou o portão. O soldado pousou a lanterna no banco de pau e juntou-se aos camaradas alapardados nos seus capotes pretos, semelhantes a um molho de cogumelos na caverna do zaguán.
- Vai chover! - gritaram as servas excitadas quando Kate subia os degraus com Dona Carlota.
O lago, absolutamente negro, parecia uma cratera enorme. Em rajadas violentas, o vento traspassava as mangueiras com um som de membrana a rasgar-se. Os loendros curvavam-se no jardim, varriam o solo com as suas flores brancas, espectrais à luz do candeeiro que brilhava na parede junto da porta da entrada. Uma palmeira nova sacudia-se, dobrada, juncando o chão com as suas folhas. Nas trevas para além do mundo rolava um carro invisível...
Ao longe, na outra banda do lago, os raios traçavam no céu inscrições fulgurantes. E o trovão dir-se-ia ribombar nas entranhas da terra, surdo, aveludado.
- Isto chega a meter medo! - exclamou Dona Carlota, tapando os olhos com a mão e correndo a refugiar-se num canto recuado da sala deserta.
Cipriano e Kate demoraram-se no terraço olhando para as flores que voavam dos vasos e desapareciam no vácuo de trevas. Kate agarrava no xaile, mas o vento engolfou-se na serape de Cipriano, levantou-a ao ar e em seguida deixou-lha cair sobre a cabeça, tal uma chama rubra. Kate viu-lhe o peito escuro e musculado enquanto os seus braços lutavam por desenvencilhar a cabeça. Como a sua beleza era primitiva e toda física, com aquela carne lisa e cheia!
Mas não emitia nenhuma radiação exterior; fechava-se dentro de si mesmo.
- Eis a chuva! - exclamou ele! - baixando a serape.
Grossas, pesadas, as primeiras gotas tombavam como dardos sobre as plantas. Kate recuou para o vão da porta. Um raio ziguezagueou sobre as montanhas, pareceu deter-se um instante e reentrou nas trevas.
Então a chuva desabou, como se lá em cima houvessem aberto um reservatório imenso, e com ela veio uma lufada de ar frio. Ora num lado ora noutro, sucediam-se os relâmpagos, enchendo a atmosfera duma claridade azul e fugaz. Surgiam as árvores e o jardim fantasma, e logo desapareciam, enquanto o trovão ribombava.
Kate olhava pasmada para aquele dilúvio. Ao clarão momentâneo via o jardim já transformado em poço, as alamedas em ribeiras. Sentindo frio, recolheu-se dentro de casa.
Munido de lanterna, um criado pesquisava todos os aposentos para ver se andariam por ali escorpiões. Encontrou um a passear no quarto de Kate e outro em cima da cama de Carlota, caído duma viga do tecto.
Sentadas na sala, Kate e Carlota baloiçavam-se nas cadeiras, aspirando o bom ar fresco e húmido. Kate quase já se esquecera do que era frescura e humidade. Aconchegou o xaile ao pescoço.
- Ah, sente frio! Agora é preciso tomar cuidado com as noites... Às vezes, na época das chuvas, as noites são frigidíssimas. Devemos ter sempre à mão um cobertor suplementar. Os servos, coitados, limitam-se a tiritar, estendidos no chão, e de manhã estão gelados como cadáveres. Mas o sol depressa os aquece. Parecem julgar que são obrigados a suportar tudo o que vier, pois nunca tomam providências, embora se queixem.
O vento acalmara-se de repente, Kate sentia-se inquieta, mal disposta, com o bafo da água, quase de gelo, nas narinas, e o sangue ainda a arder-lhe nas veias. Levantou-se e foi para o terraço. Cipriano continuava ali, imóvel e impassível, envolto na sua serape vermelha e preta.
A chuva diminuía. Em baixo, no jardim, duas criadas corriam descalças, à débil claridade do candeeiro do zaguán; colocaram latas vazias debaixo dos fios de água que tombavam do telhado, e depois foram buscar os recipientes cheios. Isso poupava-lhes o trabalho de acarretar água do lago.
- Que pensa a nosso respeito? - perguntou Cipriano a Kate.
- Acho um povo muito estranho...
- Mas bom, não é verdade? - volveu o general em tom jubiloso.
- Um tanto assustador - replicou ela, rindo.
- Depois de se habituar parecer-lhe-á natural. E quando estiver num país como a Inglaterra, onde tudo é tão seguro e tão fácil, sentirá saudades e passará o tempo a perguntar a si mesma: O que é que me falta? O que é que falta aqui?
Dir-se-ia exprimir-se com maligna satisfação. E era curioso que ele, embora falasse bom inglês, parecesse sempre estrangeiro aos ouvidos de Kate, muito mais do que Dona Carlota com o seu espanhol castiço.
- Não compreendo que as pessoas queiram ter tudo, a vida inteira. Tudo tão seguro, tão pronto como na Inglaterra e na América. É bom estar alerta, no que vive, não?
- Talvez - concordou ela.
- Por isso gosto de ouvir Ramon dizer ao povo que a terra é viva, que o céu tem uma ave enorme lá dentro, mas que se não vê. Acredito nisso. E convém sabê-lo, pois assim continuamos no que vive.
- Não será fatigante?
- Ora, porquê? Pelo contrário, é repousante. Ah, a senhora devia casar e residir no México. Estou certo de que acabaria por gostar disto. Em cada manhã despertaria mais encantada.
- Ou cada vez mais enterrada. É o que sucede, julgo eu, a muitos estrangeiros.
- Enterrar-se? Como? Isto é um país onde a noite é noite e a chuva que cai é realmente chuva. E tem aqui um povo com o qual precisa de estar sempre alerta. Não acha admirável? Não poderá deixar-se adormecer. Veja, por exemplo, Ramon. Que pensa dele?
- Não sei. Não quero dizer nada, mas acho-o... longínquo. Custa a crer que seja mexicano.
- Pois é mexicano, não tenha dúvida.
- Não como o senhor. Dá-me a impressão de pertencer à velha Europa.
- Eu então considero-o pertencente ao velho México... E também ao novo - acrescentou de súbito.
- Todavia não acredita nele.
- Como?
- Não acredita nele. Considera aquilo, como tudo o mais, uma espécie de jogo. Aliás, para vós, mexicanos, tudo é uma espécie de jogo... No fundo, não crê em nada.
- Não creio em Ramon? Talvez não seja uma fé que me leve a ajoelhar à sua frente e a derramar-lhe lágrimas nos pés. Mas creio nele, e vou dizer-lhe o motivo: porque tem o poder de me fazer acreditar.
- Estranha fé, imposta pelos outros.
- Como se há-de crer, se não nos compelirem a isso? Quando eu era muito novo sentia-me infeliz porque o meu padrinho me não forçava a crer. Mas Ramon força-me... E é para mim uma felicidade saber que não posso escapar... como será também para si...
- Saber que não posso escapar a Don Ramon? - replicou
Kate ironicamente.
- Sim, e saber que não poderá evadir-se do México, nem fugir
de um homem como eu...
Kate ficou um instante calada antes de responder em tom sardónico:
- Não me parece que me cause muita alegria saber que não posso sair do México. Pelo contrário, não suportaria estar aqui se não tivesse a certeza de partir mais dia menos dia.
E disse consigo mesma: "Ramon talvez seja o único homem a quem eu não possa escapar completamente, porque deveras me impressiona. Mas de ti, Ciprianozinho, não precisarei de escapar porque não me apanhas."
- Ah, julga isso! - volveu ele rapidamente. - Mas é porque não sabe. Só pensa com ideias americanas. Devido à sua educação, só tem pensamentos americanos, pensamentos engendrados nos Estados Unidos. Quase todas as mulheres são assim, até as mexicanas da classe hispano-mexicana. Só possuem ideias dos Estados Unidos porque são as que condizem com os seus penteados. E o mesmo quanto a si, senhora Leslie. Pensa como uma mulher moderna porque pertence ao mundo anglo-saxónio ou teutão, e se penteia de certa maneira, e tem dinheiro, e é inteiramente livre. Mas tudo isso provém do facto de lhe haverem metido essas ideias na cabeça e não possuir outras, da mesma forma que, no México, se vê obrigada a gastar centavos e pesos por serem as moedas do país. Todavia, quando se declara livre, na realidade não o é. Vê-se forçada a pensar sempre com pensamentos americanos. Não tem maior faculdade de escolha do que uma serva. Assim como não pode deixar de comer diariamente tortillas... até que se lembre de que pode gostar doutra coisa.
- De que mais poderia eu gostar? - retorquiu Kate, escarninha.
- De outros pensamentos, de outras sensações. Receia homens como eu porque julga que a não tratariam "à americana". Tem razão. Eu não a trataria como se tratam as senhoras americanas. Porquê? Porque não o desejo, porque não me parece justo.
- Prefere tratar as mulheres como as mexicanas de outrora, não é verdade? Mantendo-as na ignorância, no cativeiro? - A voz de Kate assumira um tom sarcástico.
- Não as manteria na ignorância se elas já não fossem ignorantes. Mas o que lhes ensinaria não havia de ser conforme à educação americana.
- Então qual?
- Quien sabe! Ce reste à voir.
- Et continuera à y rester - concluiu a irlandesa, rindo.

CONTINUA

x
Dez dias haviam decorrido desde a chegada de Kate a Sayula sem que Don Ramon desse sinal de vida. No entanto, quando passeava de barco, vira a casa dele na outra banda da ponta oeste do lago. Era um edifício alaranjado de dois andares, com alpendre para embarcações e bosquete de mangueiras rente à margem. Entre as árvores distinguiam-se duas filas de cabanas de adobe, a habitação dos peóns.
A hacienda fora outrora das mais importantes. Regavam-na então com a água captada nas colinas, mas as revoluções haviam destruído todos os aquedutos. Don Ramon tinha inimigos no Governo, de modo que grande parte das suas terras fora dividida entre os peóns e só lhe ficaram cerca de trezentos acres de terreno, dos quais duzentos marginavam o lago e lhe eram inúteis. Cultivava um pomar em volta da casa e cana-de-açúcar num valezito entre as colinas. Na encosta do monte viam-se campos de milho.
'Dona Carlota era rica; tirava bons rendimentos das minas de Torreon, seu berço natal.
Chegou um portador com uma carta de Don Ramon em que este pedia a Kate licença para a visitar com a esposa.
Dona Carlota era uma mulher franzina, suave, de grandes olhos um tanto assustadiços e sedosos cabelos castanhos. Filha de pai espanhol e de mãe francesa, de origem puramente europeia, em nada se assemelhava às corpulentas mexicanas de faces cobertas de pó-de-arroz. De rosto pálido, sem artifício, a figura delgada tinha qualquer coisa de inglês, que os grandes olhos castanhos desmentiam. Só falava espanhol e francês, mas o seu espanhol soava tão lento e distinto (com um leve tom de queixume) que Kate a compreendeu sem dificuldade.
As duas mulheres entenderam-se depressa, mas sentiam-se um tanto nervosas na presença uma da outra. Dona Carlota era frágil e sensível como um cão chihuahua.
Em toda a sua vida, Kate raras vezes encontrara criatura tão doce e delicada. Conversaram uma com a outra, enquanto Don Ramon se mantinha calado. Dir-se-ia que ambas se arremessavam contra aquela barreira de silêncio.
Kate percebeu logo que Dona Carlota amava Ramon, mas com um amor que se tornara voluntário. Adorara-o, e acabara-se a adoração. Duvidara dele, e duvidaria sempre.
Sentado um pouco à parte, de ar constrangido, Don Ramon baixava a bela cabeça e deixava pender as mãos entre as coxas.
- Sabe que passei há dias bons momentos? - disse Kate, dirigindo-se-lhe de súbito. - Dancei de roda do tambor com os homens de Quetzalcoatl.
- Assim me constou - respondeu ele com um sorriso forçado.
Embora não falasse inglês, Dona Carlota compreendia essa língua
- Dançou com os homens de Quetzalcoatl! - exclamou em espanhol. - Porque fez isso? Porquê?
- Estava fascinada.
- Não se deixe fascinar. Afirmo-lhe que lastimo muito que meu marido se interesse por esse movimento. É para mim um desgosto.
Juana apareceu nesse momento com uma garrafa de vermute, a única coisa que Kate podia oferecer aos visitantes.
- Foi aos Estados Unidos ver os seus filhos? - perguntou Kate. - Como vão eles?
- Bem, obrigada. Embora o mais novo continue fraquito...
- Não os trouxe consigo?
- Não. Acho que estão melhor no colégio. Aqui... aqui há muita coisa que os perturbaria. Mas hei-de cá tê-los no próximo mês a passar as férias.
- Então terei oportunidade de os conhecer - disse Kate. Virão para a casa do lago, não é verdade?
- Ainda não sei. Talvez passemos aqui alguns dias. Ando tão ocupada na Cidade do México com a minha Cuna!
- Cuna? Que é isso? - indagou Kate.
Tratava-se de um hospício de enjeitados assistido por algumas obscuras carmelitas. Dona Carlota era a directora, e Kate chegou à conclusão de que a mulher de Ramon devia ser católica fervorosa, quase exaltada. Entregava-se de corpo e alma à Igreja e àquela obra de beneficência.
- Nascem tantas crianças no México e são tão numerosas as que morrem! Se as pudéssemos salvar e preparar para a vida! Fazemos tudo o que é possível, mas ainda é pouco.
Segundo parecia, todos os nenés indesejáveis eram entregues na Cuna, como embrulhos. A mãe só tinha de bater à porta e depositar noutras mãos o pacote vivo.
- Assim, impedimos que muitas mães negligentes deixem morrer os filhos - prosseguiu Dona Carlota. - Se não nos dizem o nome da criança, sou eu que a baptizo. Já o tenho feito muitas vezes. É vulgar entregarem-nos meninos absolutamente nus, sem um trapo a cobri-los... e sem nome. E nós nunca perguntamos nada.
Nem todos os expostos ficavam no hospício. Na maior parte eram confiados a índias decentes, a quem pagavam para os criar em casa. No fim do mês, cada qual se apresentava com o seu protegido e recebia o ordenado. As índias podem ser descuidadas mas não maltratam as crianças.
Noutro tempo, informou Dona Carlota, quase todas as senhoras do México recebiam na sua casa um ou dois desses enjeitados e tratavam-nos como família. Mas perdera-se a generosidade patriarcal dos espanhóis-mexicanos e actualmente adoptavam poucas crianças. Em vez disso, preparavam-nas para ganhar a vida, ensinando-lhes qualquer ofício.
Kate ouvia com-interesse e certo constrangimento. Não lobrigava sentimentos humanos nessa caridade mexicana, e quase discordava dela. Talvez Dona Carlota fizesse tudo o que podia nesse país semibárbaro, mas fazia-o sem nenhuma esperança de êxito. Embora com a consciência de que procedia bem, tinha um pouco o ar de vítima, de uma vítima sensível, branda, um tanto assustada. Dir-se-ia que um mal secreto lhe roía o coração.
Don Ramon escutava impassível, num silêncio que se opunha ao entusiasmo caritativo da mulher. Deixava-a agir como entendia, mas contra a sua obra e a sua loquacidade mantinha-se calado, duro, numa hostilidade surda e permanente. Dona Carlota percebia-o e tremia nervosamente enquanto falava do hospício de enjeitados. Kate acabou por achar cruel a atitude de Don Ramon; parecia um ídolo de pedra.
- Porque não vem passar um dia connosco, enquanto estamos em Sayula? - sugeriu Dona Carlota. - A casa é pouco confortável, já não é como foi, mas teremos muito gosto em recebê-la.
Kate aceitou o convite e disse que preferia ir a pé. Eram apenas quatro milhas de percurso e, com a Juana, iria bem acompanhada.
-. - Mandarei um homem buscá-las - declarou Don Ramon. Será mais seguro.
- Onde está o general Viedma? - perguntou Kate.
- Faremos o possível por tê-lo connosco quando a senhora lá for - replicou Dona Carlota. - Gosto deveras de Don Cipriano, que há muitos anos conheço. Por sinal que é o padrinho do meu filho mais novo. Presentemente, comanda a divisão de Guadalajara, por isso nem sempre se encontra livre.
- Admira-me que seja general - observou Kate. - Acho-o humano em excesso.
- E, de facto, é cheio de humanidade. Mas é general, e gosta de comandar os soldados. Deixe-me dizer-lhe que se trata de uma pessoa de muita influência. Exerce grande ascendente na tropa. Crêem nele, isso não se pode negar. Possui aquele poder, inato nos chefes índios, de afeiçoar a si os militares e de os levar ao combate. Pois é assim mesmo Don Cipriano. Ninguém conseguiria modificá-lo. Julgo, porém, que lhe seria de utilidade a presença de uma mulher. Nunca teve nenhuma na sua vida! Elas não lhe interessam...
- Que lhe interessa então?
- Ah! - exclamou Dona Carlota, estremecendo como se a picassem. Lançou um olhar rápido ao marido e declarou: - Não sei. Palavra que não sei.
- Os homens de Quetzalcoatl - declarou Don Ramon com
um leve sorriso.
Mas Dona Carlota dir-se-ia tirar-lhe todo o desembaraço. Parecia contrafeito, e um tanto estúpido.
- Ah, sim, sim, os homens de Quetzalcoatl - bradou Dona Carlota, amável mas com ar de censura. - Linda coisa para ele se ocupar! - Kate percebeu que a sua interlocutora adorava esses dois homens e que tremia à ideia de se opor aos seus erros, embora jamais transigisse com qualquer deles.
Para Don Ramon representava um pesado fardo aquela cega adoração da mulher e a sua não menos cega oposição.
Certa manhã, às nove horas, apareceu o criado para acompanhar Kate à fazenda, que chamavam de Jamiltepec. Trazia um cabaz e vinha do mercado. Era um velhote de bigode grisalho e olhos juvenis, cheios de vida. Os pés, metidos em huafaches, pareciam negros de tão queimados do sol, mas o fato resplandecia de alvura.
Kate ficou radiante com essa excursão a pé. O que tornava tão aborrecida a sua existência na aldeia era a impossibilidade de passear no campo. Havia sempre o risco de um assalto. Acompanhada de Ezequiel, dera algumas voltas pelos arredores, mas já começava a sentir-se prisioneira. Foi, por conseguinte, uma alegria sair de casa.
A manhã estava clara e quente, o lago brilhava quieto, espectral. Moviam-se pessoas na margem, minúsculas àquela distância, meros pontinhos brancos: peóns que seguiam os seus burros envoltos numa leve nuvem de poeira. Kate perguntava a si mesma porque seria que os homens apareciam sempre na paisagem mexicana como pequeninas manchas; pequeninas manchas de vida.
Entraram na estrada poeirenta que levava para oeste, entre a vertente alcantilada das colinas e a nesga de planície junto ao lago. Por espaço de milha foram encontrando vivendas, muitas delas fechadas, outras destruídas, já sem muros nem janelas. Todavia desabrochavam flores entre os montes de cascalho.
Nos terrenos vagos havia delgadas cabanas de palha dos indígenas - como que nascidas ali, ao acaso. Perto do caminho por baixo de um outeiro viam-se choças de adobe, semelhantes a caixas cinzento-escuras. Em volta corriam aves domésticas, grunhiam e refocilavam porcos pardacentos ou malhados de preto. Crianças seminuas, de um tom castanho-alaranjado, brincavam ou jaziam estiradas no chão, a dormir, com as nádegas à mostra.
Muitas das casas estavam a ser cobertas de colmo novo ou reteIhadas por indivíduos que assumiam ares de importância por se encarregarem desse trabalho. Mostravam-se também apressados, pois não tardariam a vir as chuvas torrenciais. E, na banda do lago, havia quem andasse a lavrar a terra dura com uma junta de bois e um pau forte e aguçado.
Mas Kate conhecia essa parte do caminho. Vira já a bela vivenda da colina, com os seus tufos de palmeiras que ladeavam as alamedas desertas. A estrada descia novamente para o lago, entre árvores frondosas de vagens retorcidas. À esquerda, a água mansa, gelatinosa, lambia as pedras amareladas. Numa poça da praia estavam mulheres a lavar roupa, e, nos baixios, banhavam-se duas raparigas com os cabelos negros pendentes e gotejantes. Mais adiante, um homem patinhava lentamente, detendo-se para arremessar com perícia a rede à água e depois recolhê-la cheia desses peixinhos luzidios a que chamam charales. Tudo estranhamente silencioso e remoto na manhã cintilante.
Vinha do lago uma leve brisa, mas a poeira da estrada queimava os pés. À direita erguia-se o monte, abrupto, ressequido e amarelo, exalando calor e aquele cheiro característico do México que se diria ser a evaporação duma terra cada vez mais calcinada.
Desfilavam continuamente filas de burros carregados, trotando na poeira e seguidos pelos condutores que marchavam erectos e rápidos, olhando com olhos semelhantes a buracos negros mas respondendo sempre à saudação de Kate com um respeitoso adiós. E Juana ecoava com o seu lacónico adiósm. Caminhava coxeando e achava tristíssima aquela ideia da niña de percorrer quatro milhas a pé, quando poderiam ir num automóvel de aluguer, de barco ou mesmo de burro.
Mas a pé! Kate percebia todos os sentimentos da criada no seu arrastado e sardónico adiósn. Em compensação, o homem de Ramon vinha animadamente atrás delas, dirigindo saudações alegres, com a pistola bem em evidência no cinto.
A estrada contornava um rochedo amarelo e escarpado para desembocar num campo aberto, onde se alastravam espinheiros e cactos poeirentos. À esquerda, distinguia-se a mancha verde dos salgueiros à beira do lago. À direita, as colinas inclinavam-se sobre o flanco árido das montanhas. Em frente, os outeiros ladeavam as margens do lago e afastavam-se, descobrindo uma espécie de garganta que conduzia à casa de Don Ramon e à sua plantação de cana-de-açúcar.
- Aqui temos Jamiltepec, a hacienda de Don Ramon, señorita - anunciou o homem.
Os olhos luziam-lhe ao proferir estas palavras. Era um peón orgulhoso e sem dúvida feliz com a sua sorte.
- Que lonjura! - exclamou Juana.
- Para outra vez virei só ou com o Ezequiel - replicou Kate.
- Não diga isso, niña! Só me queixo do pé, que me dói hoje a valer.
- Por isso mesmo é melhor não vires comigo.
- Não, niña. Gosto muito de vir.
Giravam alegremente as asas do moinho que puxava a água do lago. Entre as colinas descia o valezito onde deslizava um riacho e na parte mais larga viam-se bananeiras que uma cortina de salgueiros resguardava da brisa lacustre. No cimo da encosta, onde o caminho se embrenhava na sombra de mangueiras, elevavam-se dois renques de casas de adobe, tal uma aldeia um pouco recuada.
Surgiam mulheres entre as árvores, que vinham do lago com seus cântaros de água ao ombro. De roda das portas brincavam crianças, arrastando o traseiro nu na poeira do chão. Aqui e ali, uma cabra amarrada. E, apoiados na esquina da casa, ou encostados à parede, estavam homens de braços e pernas cruzados, mas não em dolce far niente. Pareciam esperar, esperar eternamente por qualquer coisa.
- Por aqui, señorita ! - disse o homem do cabaz, indicando um caminho que descia entre árvores frondosas até ao portão branco da hacienda. - Já cá estamos.
Mostrava-se tão contente como se houvesse chegado ao Paraíso.
Encontravam-se abertas as portas do zaguán, ou entrada, a cuja sombra descansavam dois soldados. No espaço em frente do portão, passavam nesse momento dois peóns, cada qual com um cacho de bananas à cabeça. Os soldados disseram qualquer coisa e aqueles detiveram-se e voltaram-se lentamente com a sua carga verde para observarem Kate, Juana e Martin - o homem que as acompanhava. Depois retomaram a sua marcha.
Os soldados levantaram-se e Martin conduziu Kate pela passagem abobadada, onde as rodas dos carros haviam cavado fundos sulcos. Juana seguia-os com expressão lastimosa.
Kate achou-se num pátio enorme, cercado em três lados por muros altos, alpendres e estábulos. Ao fundo era a casa de residência, com as suas janelas gradeadas e, em vez de porta, outro zaguán de batentes fechados, espécie de corredor ao longo do edifício.
Martin avançou para tocar a aldraba, e Kate olhou entretanto à sua volta. Num alpendre, estavam homens seminus a empacar cachos de bananas. Noutro lado, serravam paus e descarregavam telhas de cima dum burro. A um canto viam-se bois atrelados a uma carroça, de cabeça pendida sob a canga, como se esperassem.
Abriram-se as portas e Kate entrou no segundo zaguán. Era uma entrada larga, com seu lanço de escadas a um lado e um portão gradeado ao fundo, através do qual se via o jardim orlado de mangueiras e, mais abaixo, o lago com o seu porto artificial onde baloiçavam dois barcos.
Nas costas dos recém-vindos, a criada fechou a porta que dava para o pátio e indicou a Kate as escadas.
- Por aqui, señorita.
Badalava uma sineta lá no cimo. Kate subiu os degraus de pedra, ao encontro de Dona Carlota, que a esperava no patamar, vestida de musselina branca, o que, pelo contraste, lhe dava um tom amarelo às faces. Estendeu os braços magros e bronzeados, acolhendo Kate com extraordinária efusão.
- Muito prazer em vê-la aqui! E veio todo o caminho a pé, com este sol! Entre, entre e descanse.
Pegou na mão de Kate e levou-a através do terraço, no topo da escada.
- Que linda vista! - exclamou Kate, contemplando o lago para além das mangueiras. Na água pálida, irreal, vogava ao longe um barco de vela. Para além, elevavam-se as montanhas de gargantas azuladas, com a mancha branca duma aldeia. Dir-se-ia outro mundo, perdido na luz da manhã, outra vida.
- Que povoação é aquela? - perguntou Kate.
- Acolá? É San Ildefonso - respondeu Dona Carlota.
- Como este sítio é belo! - disse Kate.
- Hermoso, si! Si, bonito - retorquiu a outra em espanhol, conforme o seu costume.
A casa, de um vermelho-alaranjado, tinha duas alas voltadas para o lago. com o seu murinho coroado de plantas verdes, o terraço cercava três lados do edifício; suportavam o telhado largos pilares que partiam do solo, formando em baixo uma espécie de claustro ocupado ao centro por um tanque cheio de água.
- Venha - disse Dona Carlota. - Precisa de descansar.
- Gostaria de mudar de sapatos - declarou Kate. Levaram-na a um quarto espaçoso, um tanto vazio, de chão de
tijolos. Aí, Kate calçou as meias e os sapatos que Juana trouxera num embrulho e estendeu-se um momento para repousar.
E, enquanto repousava, ouvia o rufar surdo do tambor, no profundo silêncio da manhã, só perturbado pelo canto dum galo longínquo. Aquele som contínuo, insistente, enchia-a de mal-estar. Parecia o ribombo duma tempestade desencadeando-se no horizonte.
Kate levantou-se e dirigiu-se para o salão onde Dona Carlota estava sentada a conversar com um homem vestido de preto. com as suas três portas envidraçadas abertas sobre o terraço, chão de ladrilhos vermelhos, paredes pintadas de verde-claro, tecto de barrotes caiados e escassez de mobília, aquilo parecia mais um caramanchel do que um salão. Como em muitas casas dos países quentes, tinha-se a impressão de não se estar dentro de quatro paredes, mas sim de três; um lugar de passagem, e não para ficar.
À chegada de Kate, o homem de preto levantou-se, apertou a mão a Dona Carlota e, baixando a cabeça num comprimento cerimonioso, desapareceu por uma das portas do terraço.
- Entre, entre! - disse Dona Carlota a Kate. - Já não se sente cansada? - acrescentou, avançando uma das cadeiras de junco que estava negligentemente colocada no meio da sala.
- Absolutamente nada - respondeu Kate. - Como esta região é silenciosa! Só se ouve o tambor, o que talvez nos faça notar mais o silêncio.
- Ah, esse tambor! - exclamou Dona Carlota, erguendo a mão num movimento de exaspero. - Não posso com isso! Detesto ouvi-lo.
E moveu-se na cadeira de baloiço, com súbito nervosismo.
- É um som realmente impressionante - redarguiu Kate. - Que significa, afinal?
- Não mo pergunte! São coisas de meu marido. - E Dona Carlota fez novo gesto de desespero.
- Don Ramon é que toca o tambor?
- Não, não! - Dona Carlota pareceu sobressaltada àquela pergunta. - Não é ele que toca. Trouxe dois índios do Norte para se desempenharem desse trabalho.
- Ah, sim? - volveu Kate, sem se comprometer. Mas Dona Carlota balançava-se numa espécie de semi-inconsciência e só daí a instantes pareceu voltar a si.
- Tenho de desabafar com alguém! - disse, de repente, endireitando-se na cadeira, com uma expressão de angústia espelhada nos grandes olhos castanhos e no rosto cor de nata. - Posso desabafar consigo?
- Certamente - respondeu Kate, constrangida.
- Sabe o que Ramon anda a fazer?
- Julgo que pretende ressuscitar o culto dos deuses antigos.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, com outro aceno de mão desesperado. - Como se isso fosse possível! Os deuses antigos! Imagine-se! Que são eles senão ilusões mortas? E feias, repulsivas! Sempre pensei que meu marido fosse inteligente, muito superior a mim, e é triste ter de mudar de opinião. Tudo aquilo é um disparate. E ele atreve-se a tomar a sério o que não passa de um disparate!
- Talvez Don Ramon creia...
- Mas como pode ele crer? - replicou a dona da casa, com um sorriso desdenhoso. - É instruído, não pode acreditar em semelhante tolice.
- Então qual é o seu objectivo?
- Isso é que eu gostaria de saber. - Na voz de Dona Carlota transparecia indizível cansaço. - Penso que está louco, como acontece a tantos mexicanos. Louco como o bandido Francisco Villa.
Lembrando-se do rosto simiesco do famoso Pancho Villa, Kate não foi capaz de o associar a Don Ramon.
- Desde que se elevam na sociedade os mexicanos perdem a cabeça, o orgulho transtorna-os. Não pensam em mais nada senão na sua importância. Pura vaidade masculina. Não acha, señora, que a vaidade é o começo e o fim do homem? Jesus veio ao mundo para combater esse perigo, ensinando-nos a ser humildes. Por isso odeiam Cristo e os Seus ensinamentos, e deixam-se guiar pela vaidade durante toda a vida.
A mesma reflexão ocorrera a Kate muitas vezes, e concluíra que nos homens só existia vaidade. Precisavam de ser lisonjeados, de sentir a sua grandeza, nada mais.
- O que meu marido pretende é opor-se a Jesus, elevar o orgulho e a vaidade acima de Deus. Ah, é horrível! Horrível e infantil. Que são os homens senão crianças que necessitam dos cuidados da mãe? Ah, señora, é mais do que posso suportar!
Dona Carlota cobriu a cara com as mãos.
- Em todo o caso, acho o seu marido uma pessoa excepcional - disse Kate para a consolar, embora nesse momento detestasse Don Ramon.
- Sim, possui grandes qualidades, mas de que lhe servem se estão pervertidas?
- Explique-me ao certo: o que é que ele pretende, afinal?
- O poder, o poder absurdo e maléfico, como se já não houvesse bastantes poderes maléficos por todo este país. Quer ser mais do que os outros, adorado, venerado. Um deus! Ele, a quem embalei nos braços como uma criança, querer que o adorem!
E Dona Carlota desatou num riso estridente pontuado de soluços.
Kate esperou que ela se acalmasse.
- No fim de contas - disse, quando a viu mais sossegada - não somos responsáveis pelo que fazem os maridos. Aprendi à minha custa que todo o amor é impotente perante a vontade dos homens. Meu marido quis morrer, e não pude impedi-lo... Temos de os deixar fazer tudo o que querem, até as coisas que nos parecem insensatas.
Dona Carlota ergueu os olhos para Kate.
- Gostava muito do seu marido... e ele morreu? - perguntou em voz suave.
- Amei-o deveras, e não tornarei a gostar doutro homem. Perdi a faculdade de amar.
- De que morreu?
- Por sua culpa. Despedaçou o coração e a alma com a política irlandesa. Eu sabia que ele fazia mal em se ocupar disso. Que nos importava a Irlanda, o nacionalismo, as revoluções e todas essas tolices? Ah, se o Joachim se limitasse a viver em paz comigo, poderíamos ser tão felizes! Em vão tentei convencê-lo. Queria matar-se com aquela estúpida política, e não consegui evitá-lo. Foram inúteis todos os meus esforços.
Dona Carlota olhou fixamente para Kate.
- Assim como são os meus para impedir que Ramon proceda mal e se mate... E depois de morto, de que servirá tudo aquilo?
- De nada. Depois de eles morrerem, ficamos a saber que foi inútil todo o trabalho que tiveram.
- Oh, señora! Se pode ajudar-me a salvar Ramon, ajude-me! É uma questão de vida ou de morte para nós ambos. Porque eu morrerei se ele levar a sua avante...
- Explique-me bem qual é a ideia de Don Ramon. A do meu marido era libertar a Irlanda e engrandecer o povo. Mas eu nunca acreditei que os irlandeses fossem jamais um grande povo nem que se pudesse torná-lo livre. Só sabe destruir, e destruir estupidamente. Não se pode fazer livre um povo que o não é. Existe nele qualquer coisa que o impele à destruição.
- Bem sei, bem sei. Da mesma forma é Ramon. Até quer destruir Jesus e a Virgem Maria por amor do povo. Imagine! Derrotar Jesus e a Virgem! A última coisa que se podia pensar...
- Mas o que diz ele quanto ao seu projecto?
- Diz que pretende estabelecer um novo nexo entre o povo e Deus. Declara, por seu lado, que Deus é sempre Deus, mas que o homem perdeu a sua união com a divindade... e que não é possível restaurá-la sem que venha um novo Deus. E que qualquer novo nexo tem de ser diferente do antigo, embora Deus continue a ser Deus. Neste momento, declara meu marido, o povo perdeu o seu Deus. O Salvador já não será capaz de o reconduzir a Si. Precisa-se de outro Salvador, com uma nova visão. Ah, señora, eu não creio nisto! Deus é amor e, se Ramon se submetesse, ao menos, ao amor, compreenderia que aí é que estava Deus. Mas qual! É tão perverso! Poderíamos, ambos, com amor calmo, gozando a beleza do mundo, esperar pelo amor de Deus... Porque é, señora, que ele não vê isto? Oh, porque não compreende? Em vez de fazer estas coisas...
Acudiram lágrimas aos olhos de Dona Carlota, as quais se lhe espalharam pelo rosto. Kate também chorava.
- É inútil! - disse ela, soluçando. - Sei que é inútil, faça-se o que se fizer. Não querem ser felizes e estar em paz, mas sim esta luta e esses falsos e horríveis nexos... Sim, é inútil, de qualquer forma. E nisto é que está o pior.
E as duas mulheres, sentadas nas cadeiras de baloiço, soluçavam amargamente quando ouviram passos no terraço, leve ruído de pés calçados de sandálias.
Era Don Ramon, atraído inconscientemente pelo clamor daquelas criaturas pesarosas.
Dona Carlota limpou a toda a pressa os olhos e o nariz; Kate assoou-se com estrondo. No limiar da porta, Don Ramon deteve-se.
Trajava como os camponeses, todo de branco, de casaco largo e calças muito amplas. O fato era de linho, com certa goma, e tinha um brilho estranho, fora do vulgar. Por baixo do casaco, à frente, uniam-se as pontas duma faixa estreita de lã, também branca, franjada de vermelho e riscada de azul e preto. Nos pés sem meias trazia huaraches de coiro azul e negro, entrançado, com espessas solas tingidas de vermelhão. As calças estavam presas aos tornozelos por alamares de lã pretos, azuis e encarnados.
Kate, vendo-o assim à claridade do sol, vestido de uma alvura tão ofuscante, teve a impressão de que o rosto dele, escuro e emoldurado de cabelos escuros, fazia como que um buraco na atmosfera.
Don Ramon aproximou-se, com as pontas da faixa a baterem-lhe nas pernas, e as sandálias rangendo de leve.
- Muito prazer em encontrá-la - murmurou, apertando a mão da visitante. - Como veio?
Deixou-se cair numa cadeira e ficou imóvel. As duas senhoras baixaram a cabeça, como se quisessem esconder a cara. A presença do homem ainda as constrangia mais, porém o dono da casa fingiu não reparar na comoção que sentiam e fê-lo por um acto de pura vontade. Da sua presença emanava certa força e elas experimentaram um pouco de alívio.
- Não sabia que o meu marido se tornara num aldeão, num verdadeiro peón? - perguntou Dona Carlota, irónica, à sua hóspeda. - É um señor peón, como o conde Tolstoi se fez señor mujique...
- Mas fica-lhe bem - observou Kate.
- Ora aí está... Ao diabo o que é do diabo... - replicou Don Ramon.
Havia nele algo de tenaz, de inflexível. Riu, e falou às senhoras, mas sem se revelar muito, apenas superficialmente. O seu ser íntimo, insondável e poderoso, não entrava em contacto com elas.
Assim foi durante o almoço. Houve conversa esvoaçante, com intervalos de silêncio. Nesse silêncio percebia-se que Don Ramon vivia noutro mundo; e a sua vontade calma, obrando noutra esfera, fazia recuar as mulheres para a sombra.
- A señora é como eu, Ramon - disse Dona Carlota. - Não tolera o rufar do tambor. Irá continuar aquilo, pela tarde adiante?
Seguiu-se uma pausa antes que ele respondesse:
- Só depois das quatro horas.
- Temos, então, de aturar hoje esse barulho? - insistiu Dona Carlota.
- Porque não há-de ser hoje como nos outros dias? - ripostou o marido. Notava-se-lhe um ar contrariado. Era evidente que pretendia subtrair-se à presença daquelas duas.
- Porque a senhora está cá, e eu estou também, e porque nenhuma de nós gosta daquele som. Amanhã já ela se vai embora, e eu regresso à cidade. Porque não nos poupas esse tormento? E
Ramon fitou a mulher, e em seguida Kate. Os olhos denotavam cólera. Kate quase ouvia, naquele peito forte, o coração inchar de furor. Mas calou-se e a outra também se calou. No fundo, estavam satisfeitas por terem podido despertar a ira do homem.
Mantendo o sangue-frio, Don Ramon inquiriu da esposa (não sem que se lhe percebesse a indignação):
- Porque não levas a senhora Leslie até ao lago?
- Não nos apetece.
Ele então fez o que a irlandesa nunca vira ninguém fazer. Encerrou-se dentro de si mesmo, deixando às duas comensais a impressão de se encontrarem diante duma porta que se fechou. Kate sentiu-se abandonada e deprimida, mas a pouco e pouco a irritação tingiu-lhe as faces pálidas dum rubor de fogo.
- Posso ir-me embora antes das quatro horas - declarou.
- Não, não! - acudiu, suplicante, a dona da casa. - Não me deixe. Fique comigo até à noite e ajude-me a distrair Don Cipriano, que vem jantar connosco.

XI
Acabado o almoço, Ramon recolheu ao quarto para dormir a sesta. A tarde estava quente, pesada. No extremo oeste do lago erguiam-se nuvens cintilantes, quais mensageiros da tempestade. Ramon fechou as janelas do seu aposento de modo a obter negrume total; apenas aqui e ali, filtrando-se pelos interstícios da porta, os raios de luz pousavam nas trevas como uma coisa tangível.
Despiu a roupa e ergueu acima da cabeça os punhos fechados, como se orasse intensamente e de pé. Nos seus olhos só havia escuridão, e a pouco e pouco essa escuridão atingiu-lhe o cérebro, apagando-lhe todos os pensamentos. Só uma vontade poderosa se distendia e emanava da espinha dorsal, numa tensão sobre-humana até que as flechas da alma atingiram o alvo e a oração a sua meta.
Então, bruscamente, tombaram os braços trémulos, o corpo readquiriu a flexibilidade. O homem recuperara a sua força. Quebrara as cordas do mundo e sentia-se livre e senhor da outra força.
Devagarinho, com precaução, esforçando-se por não pensar, não se recordar, não despertar as serpentes venenosas da consciência, enrolou-se num cobertor delgado e estendeu-se no chão sobre uma pilha de coxins. Daí a instantes, adormecia.
Dormiu profundamente cerca de uma hora. Abriu os olhos de repente, viu as trevas aveludadas e as frechas de luz diminuídas: o sol mudara. Pôs-se à escuta. Parecia não haver um único som no mundo. Talvez não existisse mundo...
Então começou a ouvir. Distinguiu o débil rumor duma carroça, folhas sussurrando ao vento, o som distante de pancadas, o pio duma ave.
Levantou-se, vestiu-se com rapidez às escuras e foi abrir as janelas. A tarde ia em meio; soprava uma aragem quente, amontoavam-se a oeste nuvens escuras, mas a chuva não se decidia a cair. Ramon pôs na cabeça um chapéu de palha, que tinha à frente um enfeite de penas brancas, pretas e azuis dispostas em forma de olho, ou de sol. Ouviu vozes femininas. Ah, a estrangeira! Esquecera-a por completo. E Carlota! Carlota encontrava-se ali. Por um momento, pensou nela e na sua caprichosa oposição. Depois, antes que a ira o dominasse, soergueu o peito, em nova oração muda, os olhos sombrearam-se-lhe - e perdeu a impressão de contrariedade.
Seguiu pelo terraço até à escada de pedra que conduzia à entrada e atravessou o pátio, onde dois homens, debaixo dum alpendre, carregavam azêmolas com fardos de bananas. No zaguán dormiam soldados. Pelas portas abertas, Ramon viu ao fundo da alameda um carro de bois afastando-se lentamente. No pátio ressoavam marteladas numa bigorna: era um homem e um rapazito ocupados na forja. Noutro alpendre, um carpinteiro aplainava tábuas.
Don Ramon deteve-se um momento para olhar em volta. Aquele era o seu mundo. O espírito dele espraiava-se nesse mundo como uma sombra fomentadora, e o silêncio do seu próprio poder dava-lhe paz.
Os homens que trabalhavam tiveram quase instantaneamente consciência da presença do patrão. Um após outro, os rostos escuros e ardentes ergueram-se para ele e voltaram a baixar-se. Gostavam de o ver ali, mas temiam aproximar-se e nem se atreviam a um olhar mais prolongado. Retomaram o trabalho com mais ardor, como se a presença do patrão lhes desse novo alento.
Ramon dirigiu-se para a forja, onde o rapazinho dava ao fole e o homem batia pancadas leves e rápidas num pedaço de ferro.
- É a ave? - perguntou Ramon.
- Sim, patrón, é a ave. Está bem! - E o homem levantou os olhos pretos, luzidios, expectantes. com uma tenaz, brandiu a tira de metal, negra, em forma de língua achatada, e Ramon observou-a demoradamente. - As asas ponho-as depois - explicou o ferreiro.
com as mãos escuras e nervosas, Don Ramon traçou uma linha imaginária em volta do pedaço de ferro. Três vezes fez esse gesto, que parecia fascinar o ferreiro.
- Um pouco mais alongado. Assim... - disse Ramon.
- Sim, patrón, compreendo.
- E o resto?
- Está ali. - O homem apontou para dois arcos, um maior que outro, e para várias chapas de ferro triangulares.
- Coloca tudo isso no chão.
O ferreiro pousou os arcos, um dentro do outro, e em seguida dispôs com perícia os triângulos de modo que as bases ficassem sobre o arco exterior e os vértices no círculo interior. Eram sete.
Assim formaram um sol de sete pontas.
- Agora, a ave - ordenou Ramon.
O homem pegou logo na peça comprida: era a forma rudimentar dum pássaro, com dois pés mas ainda sem asas. Colocou-a no centro da roda interior, de maneira que as patas tocassem no círculo e a cabeça atingisse a parte oposta.
- Está tudo certo!
Ramon contemplava o símbolo de ferro armado no chão quando ouviu abrir a porta de casa. Kate e Carlota avançaram através do pátio.
- Retiro isto? - inquiriu o ferreiro.
- Deixa, não faz mal - respondeu Don Ramon tranquilamente.
Kate deteve-se a observar aquela coisa estendida no chão.
- Que é isso? - perguntou.
- A ave dentro do sol.
- Representa uma ave?
- Quando tiver asas.
- Ah, faltam-lhe as asas! E de que serve?
- É um símbolo para o povo.
- é bem bonito...
- Sim, é bonito.
- Ramon, não te importas dar-me a chave para tirar o barco?
- disse Dona Carlota. - Vamos dar um passeio no lago, e Martin remará.
O marido tirou a chave da cinta.
- Onde descobriu essa linda faixa? - indagou Kate. Era branca, com riscas azuis e pretas e franjadade vermelho.
- Teceram-na aqui - informou Don Ramon.
- E as sandálias? Também as fizeram cá?
- Sim, foi obra do Manuel. Mais tarde lho mostrarei...
- Gostaria bastante de ver. São belíssimas, não acha, Dona Carlota?
- Acho, mas não sei se as coisas belas são sensatas. Não sei. E a señora, sabe o que é sensato?
- Eu? - volveu Kate. - Não me preocupo muito com isso.
- Ah, não se preocupa! Afigura-se-lhe então sensato da parte de Ramon usar traje de camponês e huaraches?
Pela primeira vez, Dona Carlota exprimira-se em língua inglesa, falando com lentidão.
- Fica-lhe tão bem! - replicou Kate. - O fato de homem é medonho e Don Ramon parece magnífico com este.
De facto, com o largo chapéu pousado na cabeça ele tinha certo ar de nobreza e autoridade.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, fixando na companheira o seu olhar inteligente, enquanto brincava com a chave. - Vamos para o lago?
As duas mulheres afastaram-se. Rindo consigo mesmo, Ramon atravessou o pátio e dirigiu-se a uma granja construída perto das árvores. Entrou e assobiou baixinho. Soou outro assobio como resposta e abriu-se um alçapão. Don Ramon subiu a escada e encontrou-se numa espécie de oficina de carpinteiro. Acolheu-o um rapaz corpulento, de cabelo encaracolado, que empunhava maço e escopro.
- Que tal vai isso? - perguntou Ramon.
- Vai bem.
O artista esculpia uma cabeça de madeira. Uma cabeça avantajada, convencional, mas que, apesar do convencionalismo, revelava semelhança com Ramon.
- Sirva-me de modelo durante meia hora - disse o escultor. Ramon sentou-se e ficou silencioso, enquanto o outro, curvado
sobre a sua obra, se concentrava no trabalho. Durante todo aquele tempo, Don Ramon conservou-se erecto, quase imóvel, sem pensar em nada, mas irradiando um halo sombrio de poder que fascinava o artista.
- Basta - declarou por fim, levantando-se.
- Mas ponha-se na posição antes de se ir embora - pediu o artista.
Ramon despiu lentamente o casaco e ficou de torso nu, com a faixa raiada de azul e preto de roda da cintura. Por uns instantes pareceu recolher-se e, em seguida, como se numa oração intensa e orgulhosa, ergueu o braço direito por cima da cabeça e ficou transfigurado. O braço esquerdo pendia molemente ao longo do quadril. E no rosto, esse ar de orgulho fixo e intenso que era em si mesmo uma oração.
O escultor observava-o admirado e quase temeroso. Aquele homem grande e enérgico, com os seus olhos negros dilatados pelo orgulho e no entanto cheios de oração, despertava no escultor um frémito de alegria e de medo.
Don Ramon voltou-se para ele.
- Agora, você!
O artista, assustado, quis esquivar-se, mas encontrou o olhar de Ramon e, no mesmo instante, a calma da concentração desceu sobre ele, como um êxtase. Então, bruscamente, ergueu o braço, e a face pálida e nédia adquiriu uma expressão de paz e dignidade. Os olhos cinzento-azulados, serenos e altivos, dirigiam ao Além a sua oração. E embora estivesse com a bata de trabalho, e não fosse esbelto, apresentava uma imobilidade perfeita, plena de nobreza.
- Muito bem - disse Ramon, baixando a cabeça.
O escultor moveu-se de súbito. Ramon estendeu-lhe as duas mãos e ele, levantando-lhe a dextra, pousou-a na fronte.
- Adiós! - disse Ramon, depois de enfiar o casaco.
- Adiós - respondeu o artista. E com a felicidade estampada no rosto, voltou para o trabalho.
Don Ramon visitou a casa de adobe, cujo pátio era rodeado duma paliçada de canas e sombreado por uma gigantesca mangueira. Manuel, a mulher, os filhos e dois ajudantes estavam a fiar e a tecer. Debaixo das bananeiras, duas pequenas cardavam lã branca e castanha. A mulher e uma rapariga fiavam. Numa corda secava lã tingida, vermelha, azul e verde. E, no alpendre, Manuel e um rapaz manobravam dois pesados teares.
- Como vai isso? - inquiriu Don Ramon.
- Muy bien! Muy bien! - respondeu Manuel, com uma expressão transfigurada cintilando-lhe nas pupilas negras. - Muito bem, señor!
Ramon examinou a serape que estavam a tecer. Tinha uma barra em ziguezague de lã preta natural e, em cada ponta, um ornato complicado, azul e preto. O homem começara o centro, a que chamam boca, e olhava de instante a instante para o desenho pregado no tear. Aliás, era um desenho simples, igual ao símbolo de que o ferreiro se ocupava: uma serpente a morder a cauda e, de volta, triângulos negros cujas bases se apoiavam num círculo exterior; ao meio uma águia azul, com as asas e os pés tocando no arco formado pela serpente.
Ramon voltou a casa, dirigindo-se para a ala onde se encontrava o seu quarto. Lançou uma manta dobrada sobre o ombro e seguiu pelo terraço. No extremo dessa ala, projectando-se para o lago, havia outro terraço, este quadrado, com uma bignónia cor de coral pendente dos pilares maciços. A loggia estava juncada de esteiras e, a um canto, via-se um tambor e respectiva baqueta. No ângulo mais afastado mergulhava uma escada de pedra, fechada em baixo por uma porta de ferro.
Ramon ficou uns momentos a olhar para o lago. As nuvens dispersavam-se e o lençol de água reflectiu uma claridade esbranquiçada. Ao longe, via-se a mancha de um barco, onde provavelmente se encontravam Martin e as duas senhoras.
Tirou o chapéu e o casaco, e permaneceu imóvel, nu da cintura para cima. Então pegou na baqueta e, depois de esperar uns segundos, até adquirir paz de alma, fez soar o apelo do tambor, num ritmo alternado, forte e fraco. Captara o antigo poder bárbaro de certos rufos.
Assim esteve durante algum tempo, sozinho, tocando tambor com a mão direita, de face inexpressiva.
Acorreu um homem, de cabeça descoberta, vindo do outro terraço. Trazia fato de brancura imaculada, serape escura ao ombro, e uma chave na mão. Saudou Ramon, levando à testa as costas da mão direita, e depois desceu a escada e abriu a porta de ferro.
Imediatamente chegaram homens, todos vestidos de branco, cada qual com a sua serape dobrada em cima dos ombros. Mas as faixas eram azuis, e as sandálias azuis e brancas. O escultor apareceu, assim como Martin.
Eram sete, além de Ramon. No topo da escada saudaram-no, um apôs outro. Em seguida, depuseram a manta e o chapéu no murinho do terraço e despiram o casaco, que atiraram para cima dos chapéus.
Ramon largou o tambor e sentou-se sobre a sua manta raiada de azul e preto. Todos o imitaram, formando círculo, de pernas cruzadas e torso nu. Uns eram cor de café, outros brancos; Ramon tinha a pele dum tom castanho-claro. Conservaram-se em silêncio, só perturbado pelo som igual e hipnótico do tambor que um dos homens tocava. Então este começou a cantar numa vozinha estranha, contida, essa antiga voz de falsete dos índios:
"Quem dorme despertará. Quem dorme despertará. Quem segue o caminho da serpente há-de chegar ao seu destino; há-de chegar ao seu destino e ficará revestido com a pele da serpente."
Uma por uma, outras vozes se juntaram, até que todos se fizeram ouvir, naquele ritmo cego, infalível, do antigo mundo bárbaro. E todos com idêntica voz interior, como se a alma cantasse para si própria.
Cantaram por momentos, em uníssono, qual bando de pássaros a voar levados pelo mesmo instinto. E quando o tambor vibrou num rufo que era o final da cerimónia, as vozes extinguiram-se também, simultâneas, com um estrangulamento na garganta.
Houve um silêncio. Depois os homens principiaram a conversar uns com os outros, rindo em surdina. Mas a voz deles e a expressão já não eram as mesmas de há pouco.
Don Ramon ia falar e todos se calaram, inclinando a cabeça. Aquele sentara-se, de face erguida, visando ao longe, na dignidade da oração.
- Não há Passado nem Futuro, só existe o Presente - disse em tom surdo, majestoso. - A Serpente magna dobra e desdobra os seus anéis, as estrelas surgem, os mundos desaparecem. Há somente a mudança e o repouso do plasma.
Eu sou sempre, diz o seu sono.
Assim como o homem, enquanto dorme, não tem conhecimento, mas é, também a Serpente enroscada do eterno Cosmos prolonga o seu existir de Agora.
Agora, agora só, e para sempre Agora.
Contudo os sonhos despertam e esmorecem no sono da Serpente.
E o Universo eleva-se como os sonhos e como eles expira.
E o homem é um sonho no sono da Serpente.
E apenas o sono que não tem sonhos murmura: Eu sou!
E no Agora sem sonhos, Eu sou.
Os sonhos despertam, como devem, e o homem é um sonho desperto.
Mas o plasma sem sonhos da Serpente é o plasma do homem, do seu corpo e ao mesmo tempo da sua alma.
E o sonho perfeito da Serpente Eu sou é o plasma do homem, que é íntegro.
Quando o plasma do corpo e o da alma só fazem um, Eu sou na Serpente.
Agora Eu sou.
Não foi é um sonho, assim como será, quais dois pés trôpegos e separados.
Mas Agora. Eu sou.
As árvores desdobram as folhas no sono, e a floração emerge dos sonhos no mais puro Eu sou.
Os pássaros esquecem o peso dos seus sonhos e cantam no Agora: Eu sou! Eu sou!
Porque os sonhos têm asas e pés e caminhos a percorrer, e esforços a realizar.
Mas a Serpente luzidia do Agora não tem asas nem pés, é una, perfeitamente enrolada.
Nos pés dum sonho, a lebre sobe o monte numa corrida. Mas quando se detém o sonho desaparece e ela entra no Presente e os seus olhos são o vasto Eu sou.
Só o homem sonha, sonha, e vai de sonho em sonho, como alguém que, dormindo, se agita no leito.
Sonha com os olhos e a boca, com as mãos e os pés, com o falo, o coração e o ventre, com o corpo e a alma, numa tempestade de sonhos.
E precipita-se de sonho para sonho, na esperança de alcançar o sonho perfeito.
Mas eu afirmo-vos que nenhum sonho é perfeito, porque em todos eles há sofrimento e desejo.
Nada é perfeito, excepto o sonho que falece no sono. Eu sou.
Quando o sonho dos olhos se obscurece, cercado pelo Agora,
E quando o sonho da boca ressoa no último Eu sou,
E quando o sonho das mãos dormita como uma ave no mar, que é erguida, e levada, sem que ela o saiba,
E os sonhos dos pés atingem o centro do mundo, onde a Serpente dorme,
E o sonho do corpo é a calma duma flor oculta,
E o sonho da alma se dissipou no perfume do Agora,
E o sonho do espírito se apazigua e descansa na Estrela da Manhã,
Porque cada sonho começa e termina no Presente,
No âmago da flor está a Serpente que alumia e não desperta.
E o que se apaga é um sonho, e o que se aumenta é um sonho. Há sempre, e somente Agora. Agora e Eu sou."
Reinava o maior silêncio no círculo de homens. Lá fora, rangia um carro de bois e, do lago, elevava-se o débil som de remos a fender a água. Mas os sete homens, de cabeça baixa, escutavam interiormente, numa espécie de transe.
Então o tambor começou, suavemente, e um dos homens cantou, num fio de voz:
O senhor da Estrela da Manhã
Estava entre o dia e a noite:
Tal um pássaro que ergue as asas e espera
com a asa luminosa à direita
E a das trevas à esquerda,
A Estrela de Alva apareceu.
- Olhai! Estou sempre aqui!
Longe, no espaço
Roço a asa do dia
E ilumino o vosso rosto.
com a outra asa roço a sombra.
Mas eu estou sempre aqui.
Estou sempre aqui. Sou o senhor. E os senhores entre os homens Vêem-me no cintilar das minhas asas. E perdem-me outra vez. Mas, olhai! Estou sempre aqui.
As multidões não me vêem. Só vêem o bater de asas, As idas e vindas das coisas, O calor e o frio.
Mas a vós que me vedes entre
O frémito da noite e do dia,
Faço-vos senhores do Caminho Invisível.
Caminho entre abismos de trevas e vales de luz; Caminho que segue tal rasto de serpente, tal a mecha dum rastilho
Que incendiará à substância das trevas e explodirá à vista de todos.
Jamais me afasto. Estou sempre aqui Entre as asas dum voo sem fim, Nas profundezas da paz e da luta.
Profundo no relento da paz,
Longe da orla do combate,
Haveis de encontrar-me, eu que não sou
Nem sou destruição.
Para além eu estou Dos horizontes de amor e de luta, Como uma estrela, como uma fonte Que lava os senhores da vida.
"Ouvi! - disse Ramon, no meio do silêncio. - Seremos senhores entre os homens, não os senhores dos homens. Somos senhores da noite. Senhores do dia e da noite. Filhos da Estrela da Manhã e da Estrela da Tarde.
Não somos senhores dos homens. Eu, porém, sou a Estrela da Manhã e Senhor do dia e da noite. com o poder que me foi concedido à mão esquerda e com o poder que obtive com a mão direita, sou senhor dos dois rumos.
E a minha flor na terra é o jasmim, e no céu a hespéride.
Não vos darei ordens, nem vos servirei, porque a serpente se arqueia em direcção à sua casa.
Contudo, estarei convosco, para que não vos desvieis de vós próprios.
Não há nada a dar nem a receber. Quando os dedos que dão afloram os que recebem, cintila a Estrela da Manhã a esse contacto, e o jasmim brilha entre as mãos. E assim não há dom nem aceitação, nem mão que oferece nem mão que recebe, mas a estrela encontra-se entre elas e a mão escura e a mão clara permanecem invisíveis de cada lado. O jasmim recolhe na corola o dom e a aceitação, e o seu perfume espalha-se no ar.
Não penseis em dar nem em receber, deixai isso à flor do jasmineiro.
Não vos desperdiceis, que nada vos seja arrancado.
E não percais nada, nem o aroma da rosa, nem o sumo da romã, nem o calor do fogo.
Mas dizei à rosa: - Olha, colho-te, e o teu perfume enche-me as narinas e o meu hálito penetra no teu coração. Que isso seja entre nós como um sacramento.
E tomai cuidado quando abrirdes a romã; é o Sol poente que tendes nas mãos. Dizei: - Eis-me aqui, vem! Que a Estrela da Tarde fique entre nós.
E quando a chama se eleva ao sopro do vento frio e estendeis as mãos para o calor, ouvi o que a chama diz: - Ah! És tu? És tu que vens para mim? Eu realizava a grande viagem, seguindo o caminho da serpente magna. Mas visto que vens até mim, de ti me aproximo. E se caíres nas minhas mãos cairei nas tuas, e a flor do jasmineiro perfumará o nosso encontro.
Não repilais nada nem deixeis que vos despojem. Porque repelir ou ser despojado quebra a raiz do jasmim e conspurca a Estrela da Tarde.
Não vos apodereis de nada para dizer: - Isto pertence-me. Nada existe que vos seja dado possuir, nem sequer a paz.
Nada; nem o ouro, nem a terra, nem o amor, nem a vida, nem a dor, nem a morte, nem a salvação.
De nada direis: - Isto é meu.
Dizei apenas: - Isto está comigo.
Porque o ouro só permanece convosco o espaço duma lua, e olha-vos e diz: - Encontramo-nos ligados por este breve instante.
E a terra diz-vos: - Ah, filho meu, de pai longínquo! Vem, revolve-me um pouco, para que as papoulas e o trigo cresçam e ondulem ao vento que sopra entre o meu e o teu peito. Depois, abisma-te em mim, e ambos formaremos um outeiro.
E ouvi o que diz o vosso amor: - A tua espada ceifou-me como à erva, e sobre mim está a sombra e o bruxulear da Estrela da Tarde. Não é mais do que trevas e nada. Ó tu, quando te levantares e prosseguires o teu caminho, fala-me, dize-me simplesmente: - A estrela despontou entre nós.
E dizei à vida: - Sou teu? És minha? Sou a orla do dia em volta da noite? São os meus olhos o crepúsculo onde a estrela se suspende? É o meu lábio superior o pôr do Sol e o meu lábio inferior o raiar da manhã? Tremula a estrela na minha boca?
E dizei à vossa paz: Ergue-te, estrela imortal! Já as águas da aurora te alagam e me levam no seu curso.
E dizei à dor: Machado, abates-me. E, contudo, brota uma centelha do teu gume e da minha ferida. Corta, então, que eu velarei a face, ó pai da estrela!
E dizei à vossa força: A espuma da noite sobe-me dos pés até aos rins, a espuma do dia salta-me dos olhos e da boca para o mar do meu peito. As minhas entranhas são um manancial de poder que corre pela espinha dorsal. E uma estrela flutua sobre esse fluxo.
E dizei à vossa morte: Pois seja! Eu e a minha alma iremos para ti, Estrela da Tarde. Carne, desaparece na sombra da noite. Espírito, chegou o teu dia. Deixai-me agora. Na minha nudez suprema me encaminho para a Estrela mais nua."

XII
Os homens envergaram o casaco, puseram o chapéu e, depois de cobrirem os olhos por um momento numa saudação a Ramon, desceram a escada de pedra. Fechou-se a porta com estrondo e o porteiro, voltando com a chave, pousou-a sobre o tambor e retirou-se discretamente.
Ramon ficou sentado em cima da manta, com os ombros nus apoiados à parede e de pálpebras cerradas. Sentia-se fatigado, nesse estado de abstracção que torna difícil o regresso ao mundo normal. Ouvia de modo vago os rumores na casa, tilintar de colheres de chá, vozes femininas conversando, o ronco dum automóvel que se aproximava pelo caminho desnivelado e se detinha no pátio.
Custava-lhe voltar à terra. Ressoava-lhe aos ouvidos o barulho do exterior, mas dentro dele mesmo escutava o murmúrio confuso do universo, como se num búzio. Era-lhe penoso retomar contacto com as coisas da vida corrente quando o corpo e a alma mergulhavam no cosmos.
Gostaria de se conservar ainda uns instantes no seu isolamento, mas não era possível. Reclamavam a sua presença, especialmente Carlota.
Já ela o chamava: "Ramon! Isso terminou? Cipriano está aqui." Sentia-se-lhe na voz receio e temeridade.
Ramon puxou os cabelos para trás, ergueu-se e, em passo rápido, acudiu ao chamamento tal como se encontrava, de torso nu. Não tinha vontade de se vestir, de reentrar nos pormenores da vida quotidiana.
Cipriano, fardado, achava-se no terraço abancado à mesa do chá. Levantou-se prontamente e avançou para Ramon de braços abertos, perscrutando o rosto do amigo com os seus olhos negros e brilhantes.


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Os dois homens abraçaram-se, peito contra peito, e, por momentos, Cipriano deixou estar as mãos morenas nas espáduas nuas de Ramon. Então afastou-se devagar e fitou-o sem proferir uma palavra.
Ramon pousou distraidamente a mão no ombro de Cipriano.
- Que tal? - perguntou. - Como vai isso?
- Bien. Muy bien - respondeu Cipriano, fixando-o sempre como se se procurasse a si mesmo no semblante de Ramon. Este correspondeu ao olhar do índio com um leve sorriso, enquanto Cipriano baixava a cabeça e os cabelos longos lhe tombavam na testa.
As duas mulheres observavam a cena em silêncio absoluto. Quando os dois homens se aproximaram da mesa, Carlota começou a servir o chá. Mas as mãos tremiam-lhe e ela tratou de pousar o bule e cruzá-las no regaço.
- Passearam de barco? - indagou Ramon, com ar alheado.
- Passeámos, e foi muito agradável - disse Kate. - Um bocado quente, quando o sol apareceu...
Ramon esboçou um sorriso e alisou o cabelo. Em seguida, descansando a mão no parapeito do terraço, olhou para o lago e suspirou inconscientemente.
Nu da cintura para cima, voltava costas às mulheres, contemplando a vastidão da água. Cipriano estava a seu lado.
Kate observava as espáduas lisas, morenas, que emanavam sensualidade, os ombros largos, o porte altivo da cabeça - e não podia deixar de imaginar uma lâmina cravada nessas costas magníficas, nem que fosse só para destruir a sua arrogância distante.
Porque até a sua nudez parecia distante, intangível. Pensar nela e contemplada daquele modo representava quase uma violação. Kate sentiu de súbito o coração estremecer-lhe de vergonha. Fora assim que Salomé olhara para João Baptista, e Ramon possuía essa mesma beleza que evocava uma romã destacando-se na verdura sombria da árvore.
Soprava branda a aragem da tarde. Na luz nacarada deslizavam barcos, enquanto o Sol luzia ainda no horizonte. Distinguia-se a margem oposta, a cerca de vinte milhas, embora velasse a atmosfera uma bruma opalina que se confundia com a água do lago. Kate lobrigava a mancha clara da igreja de Tuliapan.
No jardim da casa havia um bosquete de mangueiras, onde voavam cá e lá passarinhos escarlates, como botões de papoula, e outros dum amarelo cintilante. Contudo, quando pousavam por um momento e fechavam as asas, desapareciam da vista, pois eram escuros por cima.
- Neste país, os pássaros só são coloridos por baixo das asas - observou Kate.
Ramon voltou-se bruscamente para ela.
- Dizem que a palavra México significa "por baixo" - replicou, sorrindo, enquanto se afundava numa cadeira de balouço.
Dona Carlota fizera um esforço sobre si mesma e, de olhos fixos nas chávenas, servia o chá. Apresentou uma xícara ao marido, sem sequer o relancear. Tremia de cólera quase histérica. Ela, que era sua esposa desde tantos anos e que o conhecia tão bem (ah, se o conhecia!), nada possuía desse homem.
- Passa-me o açúcar, Carlota - disse Ramon na sua voz calma.
A mulher sobressaltou-se como se a beliscassem de repente.
- O açúcar? - repetiu, distraída.
Ramon estava sentado na cadeira, pendido para a frente e de xícara na mão. A tela fina que lhe cobria as coxas revelava-lhe mais o corpo do que a nudez do torso. Kate percebeu porque é que era proibido usar calças de algodão naplaza. Tornavam mais sensível a presença da carne.
Verdadeiramente belo, duma beleza que chegava a ser assustadora, irradiava uma sensualidade pura, hostil ao género de pureza de Kate, com a sua faixa azul de roda da cinta e as calças brancas parecendo fremir de vida cingidas aos quadris e às coxas. Tão poderoso fluido emitia esse ente másculo que Kate se sentia como que fascinada.
E ele, perfeitamente tranquilo, dentro do seu próprio ambiente. O mesmo acontecia a Cipriano. Ambos tão calmos, tão sombrios, dir-se-iam esmagar as duas mulheres.
Kate compreendeu então os sentimentos de Salomé. Compreendeu como João Baptista, com a sua beleza distante e inacessível, exercera tamanho poder.
"Ah! disse ela consigo mesma. - Tenho de fechar os olhos e abrir a alma. Fechar os olhos para não ver e ficar na escuridão e no silêncio junto destes dois homens. Possuem uma riqueza que me falta. Conseguiram libertar-se do desejo que a vista suscita. Sou atormentada pelo desejo, pela minha imaginação lasciva. É a maldição de Eva. Os meus olhos, a minha experiência são como um anzol que me repuxa a carne e me desperta espasmos de desejo. Oh, quem me dera libertar-me da impureza do olhar! Filha de Eva, porque é que estes homens me não arrancam às visões impuras?"
Levantou-se e dirigiu-se à beira do terraço. Amarelos como narcisos, emergiam dois pássaros da sua própria invisibilidade. Na praia de seixos, onde estava um barco varado, dois homens apanhavam à rede os peixinhos denominados chcirales, que cintilavam na água acastanhada como lascas de vidro.
- Ramon! - disse Dona Carlota. - Não vais vestir-te? Já não podia suportar aquela vista.
- vou. Obrigado pelo chá - respondeu o marido, pondo-se de pé. E seguiu pelo terraço adiante, com as sandálias a ranger de leve no pavimento de tijolos.
- señora Caterina! - chamou Carlota. - Venha beber o seu chá.
Kate voltou para a mesa, dizendo:
- Que paz se sente aqui!
- Paz! - repetiu Carlota. - Não acho paz nenhuma. O que há é um silêncio pavoroso que me causa arrepios.
- Vem cá frequentemente? - perguntou Kate a Cipriano.
- Sim, uma ou duas vezes por semana - respondeu ele, fixando-a com singular expressão nos olhos negros.
Dir-se-ia que esses homens procuravam anular-lhe a vontade.
- São horas de eu voltar para casa - declarou ela. - Não tarda que o Sol desapareça.
- Ya va? - redarguiu Cipriano, com a sua voz aveludada em que transparecia certa pena. - Já!
- Oh, não, señora! - exclamou Carlota. - Fique connosco até amanhã.
- Mas estão em casa à minha espera.
- Mandarei um rapaz prevenir que só regressa amanhã. Fica, não é verdade? Ah, ainda bem.
E Carlota, depois de pousar a mão carinhosa no braço de Kate, levantou-se a fim de avisar os criados.
Cipriano puxou da cigarreira e ofereceu-a a Kate.
- Não se escandalizará se eu fumar? - disse ela. - É um dos meus vícios.
- Fume. Não é bom sermos perfeitos.
- Acha que não? - E Kate, rindo-se, puxou uma fumaça do cigarro.
- Experimenta realmente essa paz? -inquiriu ele, irónico.
- Porquê?
- Porque é que os brancos andam sempre em busca da paz?
- Pois não é natural que todos desejem paz?
- Paz é apenas o descanso depois da guerra. Não é mais natural do que a luta; talvez até seja menos.
- Mas existe outra paz, aquela que ultrapassa o entendimento. Não sabia?
- Parece-me que não - respondeu Cipriano. - Que pena!
: - Ah! Quer ensinar-me? Mas para mim é diferente... Cada
homem tem dois espíritos. Um assemelha-se à aurora na época das chuvas, suave, fresca, húmida, com pássaros chilreando. O outro é como a estação seca, com a sua luz forte e ardente que parece nunca mais abrandar.
- Decerto prefere o primeiro.
- Não sei - replicou Cipriano. - O outro dura mais.
- Tenho a certeza que prefere a frescura da manhã - insistiu Kate.
- Não sei, não sei. - E esboçou um sorriso, deixando Kate
convencida de que ele de facto não sabia. - Na primeira fase vemos as flores nas suas hastes transbordantes de seiva. A flor desa brocha como uma face de mulher perfumada pelo desejo. Mas o sol começa a aquecer, e então tudo se modifica. As flores murcham e o peito do homem torna-se como um espelho de aço. Dentro dele tudo
- é escuridão, enroscando-se e desenroscando-se como uma cobra. As flores secaram nas hastes, as mulheres já não existem para o homem. Umas e outras desapareceram.
- Que pretende ele então? - perguntou Kate.
- Não sei. Talvez queira ser uma grande personagem, senhor de todos os povos...
- E porque não realiza essas aspirações?
Cipriano encolheu os ombros.
A señora assemelha-se à manhã de que lhe falei há pouco -
disse ele.
- Tenho quarenta anos - replicou Kate com um risinho amarelo.
O general tornou a encolher os ombros.
- Isso não interessa. O seu corpo parece o caule da flor a que
aludi, e o seu rosto será sempre a aurora na estação das chuvas.
- Porque me diz essas coisas? - volveu Kate, com involuntário e estranho tremor.
- E porque não hei-de dizer? A señora é tal uma manhã cheia de frescura, e estamos no fim da época seca...
Observava-a, e nos seus olhos brilhava o desejo, aliado a certa insolência.
Kate baixou a cabeça e balançou-se na cadeira.
- Gostaria de casar consigo - continuou Cipriano. - Se estivesse disposta a isso, desposá-la-ia.
- Não me parece que me torne a casar - ripostou Kate, anelante e de faces afogueadas.
- Quem sabe?
Ramon surgiu no terraço, com a sua bela serape dobrada sobre o ombro nu. Apoiou-se num dos pilares e contemplou Kate e Cipriano, o qual ergueu a vista e lhe dirigiu um sorriso em que transparecia a amizade que os ligava.
- Disse à señora Caterina que a desposaria se ela estivesse disposta a casar-se - declarou ele.
- É o que se chama falar sem rodeios - replicou Ramon, olhando para Cipriano com o mesmo sorriso amigo. Em seguida, o seu olhar pousou-se em Kate, enquanto o sorriso se alastrava e todo o seu rosto respirava compreensão. Cruzou os braços, como fazem os índios quando querem defender-se do frio; e a carne, dum tom castanho-claro, como ópio, formava saliências no peito largo, cheio e liso.
- Diz Don Cipriano que os Brancos só desejam a paz - proferiu Kate, fitando Ramon com deliberada impertinência. - Não se consideram brancos?
- Não mais brancos do que somos - respondeu Ramon, sorrindo. - Pelo menos, não duma brancura de lírio...
- E não buscam a paz?
- Por mim não penso nisso. Os mansos herdarão a terra, segundo a professia. Mas quem sou eu para lhes invejar a sua paz? Não señora. Por acaso pareço um evangelho de paz? Ou de guerra? A vida para mim não se resume nessas duas coisas.
- Não sei afinal o que desejam - disse Kate.
- Nós próprios não o sabemos senão em parte - replicou Ramon, mudando de expressão.
Havia nele uma espécie de bondade paternal que enchia Kate de espanto e a sobressaltava como se só agora compreendesse o verdadeiro significado de tal sentimento. Mistério, nobreza, inacessibilidade, e a vulnerável compaixão de homem na sua amizade desinteressada...
- Não gosta das pessoas de pele escura? - perguntou Ramon em tom suave.
- Acho-as belas à vista - respondeu Kate. - Mas - acrescentou, com um leve arrepio - estou contente por ser branca.
- Sente que não é possível nenhum contacto?
- Exactamente.
- É a sua impressão - volveu Ramon, e, enquanto ele falava, Kate percebeu que o considerava mais atraente do que a qualquer homem loiro e que, por muito vago que fosse, o contacto que tinha com ele lhe era mais precioso do que todos os que até aí conhecera.
Contudo, embora lhe lançasse certa sombra, não tentava influenciá-la, nem queria maior aproximação - ao passo que Cipriano, sentindo-se incompleto, a procurava e parecia violar-lhe a personalidade.
À voz de Ramon, Dona Carlota assomou a uma das portas mas, ouvindo falar inglês, tornou a sumir-se, num brusco acesso de cólera. Daí a pouco reaparecia, trazendo um vaso de flores carnudas, dum branco leitoso, semelhantes a frésias no tom e no perfume.
- Que lindas! - exclamou Kate. - São flores de igreja! No Ceilão, os indígenas entram nos seus templos e depõem uma flor num tabuleiro aos pés do Buda. E os tabuleiros das oferendas ficam cobertos dessas flores, todas muito bem arranjadas, dispostas com delicadeza oriental...
- Mas eu não as trouxe para homenagear deuses - replicou Carlota, pousando o vaso na mesa. - Trouxe-as para si, señora. Cheiram tão bem!
- De facto, têm um aroma delicioso - concordou Kate. Os dois homens afastaram-se, rindo.
- Ah, señora! - disse Carlota, sentando-se à mesa. - Pode entender Ramon? Seria capaz de renunciar à Santa Virgem? Eu antes queria morrer.
- Não precisamos doutros deuses, realmente - redarguiu Kate, com certo enfado.
- Outros deuses! - repetiu Carlota, escandalizada. - Como se fosse possível! Ramon comete um pecado mortal.
Kate conservou-se calada.
- E quer induzir o povo a fazer o mesmo - prosseguiu Carlota. - É pecado de orgulho... o pecado cardeal. Ainda bem que a señora pensa como eu. Receio as americanas que, para se apoderarem do espírito dos homens, aceitam todas as suas loucuras e perversidades... É católica, señora?
- Fui educada num convento.
- Ah, señora! Qual a mulher que tendo conhecido a Santíssima Virgem se afasta dela? Que mulher teria ânimo de crucificar Jesus novamente? Mas os homens, os homens! Aquela história de Quetzalcoatl seria coisa para rir se não fosse um pecado mortal. E da parte de dois homens inteligentes e instruídos tanta presunção!
- Os homens são assim - observou Kate.
Intensificava-se o crepúsculo; o horizonte estava ainda luminoso, mas o Sol afundara-se numa bruma cor-de-rosa, por trás das arestas da montanha. As colinas erguiam-se azuladas numa atmosfera cor de salmão que se reflectia na água. Lá adiante, onde o clarão rubro se adensava, banhavam-se homens e crianças.
Kate e Carlota subiram à azotea, o terraço que cobria a casa. Dali podiam ver a hacienda com o seu pátio semelhante a uma fortaleza, o caminho ladeado de árvores frondosas, as cabanas de adobe perto da estrada e as fogueiras já bruxuleando junto das casas. No ar róseo os salgueiros da margem pareciam mais verdes e cintilantes. Ao longe, luziam entre as árvores as duas torres brancas de Sayula. Deslizavam barcos em direcção à parte sombreada do lago.
E num desses barcos, deveras desconsolada, regressava Juana a casa.

XIII
Ramon e Cipriano encontravam-se à beira do lago. O general envergara também fato branco e sandálias, o que lhe ia melhor do que a farda.
- Tive uma conversa com Montes quando ele foi a Guadalajara - declarou Cipriano.
Montes era o presidente da República.
- E que te disse?
- Não se alarga muito a falar, mas depreendi que não simpatiza com os colegas e se sente isolado. Julgo que gostaria de te conhecer melhor.
- Porquê?
- Talvez pudesses dar-lhe apoio moral. Talvez chegasses a ser ministro; e até presidente, depois de Montes acabar o seu mandato.
- Montes agrada-me - replicou Ramon. - É sincero e ardente. Gostaste dele?
- Sim, mais ou menos - respondeu Cipriano. - É desconfiado, teme que outros pretendam compartilhar com ele o poder. Tem instintos de ditador. Quis saber se eu lhe era afecto.
- Deste-lhe a entender que sim?
- Disse-lhe que tudo o que me interessava verdadeiramente eras tu e o México.
- E que te respondeu?
- Ele não é tolo. Respondeu: "Don Ramon vê o mundo com olhos diferentes dos meus. Qual de nós terá razão? Eu quero salvar o país da pobreza e da ignorância, ele quer salvar-lhe a alma. Mas afirmo que um homem esfomeado e ignorante não tem lugar para a alma. Um ventre e um cérebro vazios roem-se a si mesmos, e a alma não existe. Don Ramon acha que um homem desprovido de alma pode passar sem o alimento do corpo e do intelecto. Pois que siga o seu caminho, que eu sigo o meu! Não nos embaraçaremos um ao outro. Dou a minha palavra que não interferirei em nada. Ele varre o pátio, eu trato da limpeza da rua.
- É sensato - comentou Ramon - e honesto nas suas convicções.
- Porque não serias ministro daqui a uns meses? E mais tarde presidente?
- Bem sabes que não é isso o que pretendo. Devo poupar-me e agir noutra esfera. A política que se mantenha ou evolua como eles entendem, a sociedade que faça o que quiser. Deixa-me em paz, Cipriano. Gostarias que eu fosse outro Porfirio Diaz, ou alguém do mesmo género, mas isso para mim seria pura e simplesmente soçobrar na vida.
Cipriano observava Ramon com os seus olhos negros e vigilantes, onde transparecia amizade, receio, confiança, mas também incompreensão, e a dúvida que sempre a acompanha.
- Não chego a perceber o que desejas - murmurou.
- Percebes, sim. A política e toda essa religião social com que Montes se preocupa equivale a lavar a casca dum ovo para lhe dar aspecto limpo. A mim, porém, só interessa o interior... Ah, Cipriano! O México é tal um ovo que o Tempo choca desde séculos neste ninho do mundo e que parece ser goro. Parece, mas não é. O que precisa é de calor que ajude a formação da ave. Montes quer limpar o ninho e lavar o ovo... Que aconteceria se tirassem um ovo de baixo duma águia para o lavar? Arrefeceria de vez. Pois quanto mais se empenharem em arrancar este povo da pobreza e da ignorância mais depressa ele morrerá. Pobre Montes! Todas as suas ideias são americanas ou europeias. E a velha pomba da Europa jamais poderá chocar com êxito o ovo escuro da América. Os Estados Unidos não morrem porque não estão vivos. É um ninho de ovos de loiça e por isso se conservam limpos. Mas aqui, Cipriano, aqui é necessário incubá-los antes da limpeza do ninho.
Cipriano baixava a cabeça. Experimentava sempre Ramon para ver se conseguia fazê-lo mudar de ideias e, depois de verificar a inutilidade dos seus esforços, submetia-se ao amigo e novas chamas de felicidade se alteavam dentro dele. Mas, entretanto, ia-o experimentando...
- Não serve de nada querer misturar as duas coisas. No ponto em que estão, não se misturam. Temos de fechar os olhos e mergulhar até ao fundo, como pescadores de pérolas. Mas andamos a flutuar à superfície, semelhantes a bocados de cortiça...
Cipriano mostrou um sorriso subtil. Tudo aquilo ele sabia!
- Temos de abrir a ostra do cosmos e extrair dela a nossa força.
Enquanto não arrancarmos a pérola não seremos mais do que mosquitos no cimo do oceano - concluiu Ramon.
- A minha força é como um demónio dentro de mim - disse Cipriano.
- Porque a ostra a retém fechada, como uma pérola negra. A ti compete libertá-la.
- Ramon, não acharias bom ser uma serpente, uma serpente enorme que se enrolasse em volta do globo e o esmagasse... como a esse ovo?
Ramon olhou-o e pôs-se a rir.
- Não me parece coisa impossível - continuou Cipriano. E não seria bom?
O outro meneou a cabeça, rindo-se.
- Pelo menos seria um momento bom.
- Que mais se pode desejar?
Brilhou nos olhos de Ramon uma centelha que logo se apagou.
- Para quê? - disse em voz surda. - Depois de esmagado o ovo que havíamos de fazer senão errar nos corredores de trevas e lamentar-nos? Para quê?
Ramon pôs-se de pé e afastou-se. O Sol desaparecera, a noite descia. Na alma daquele homem fervia uma cólera imensa, e Carlota é que a provocava. A mulher parecia incutir vida ao monstro da sua raiva íntima, e Cipriano exasperava-o.
"A minha força é como um demónio a rugir dentro de mim", disse Ramon consigo mesmo, repetindo a frase de Cipriano.
Reconhecia o direito de gritar a esse demónio humilhado e ridicularizado que vivia preso dentro dele. E a fúria apoderou-se de Ramon, contra Carlota, contra Cipriano, contra a humanidade inteira. Os seus partidários traí-lo-iam, tinha a certeza. Cipriano acabaria por traí-lo. Desde que lhe encontrassem o mínimo ponto fraco, todos saltariam sobre ele como tarântulas e infectá-lo-iam com a sua peçonha.
E qual o homem absolutamente invulnerável, sem o menor ponto fraco?
Ramon subiu ao seu quarto pela escada exterior, no lado da casa, e sentou-se na cama. A noite estava quente, pesada, e duma calma aflitiva.
- Prepara-se chuva - ouviu ele dizer a um dos criados. Fechou as portas do quarto e ficou às escuras. Então despiu-se todo, murmurando: "Repudio o mundo juntamente com esta roupa." E de pé, nu e invisível no meio do quarto, ergueu ao ar o punho fechado, com tal força que teve a sensação de que lhe estalavam as paredes do peito. A mão esquerda pendia ao longo do corpo, mole, com os dedos levemente curvados.
Tenso como o jacto duma fonte silenciosa, distendeu-se até abranger o âmago impalpável das trevas. E as vagas de escuridão começaram a lavar-lhe o espírito, a consciência; ondas de negrume rebentando-lhe na memória, em todo o seu ser, como uma maré que sobe. Até que foi maré cheia e ele, tremendo, se deixou cair por terra, para descansar. Invisível nas trevas, ficou a olhar para o vácuo, sentindo o misterioso fluxo interior purificar-lhe as entranhas e o coração, sentindo o espírito dissolver-se no Espírito maior que nenhum pensamento perturba.
Cobriu o rosto com as mãos e ali esteve imóvel, inconsciente, já sem nada sentir nem ouvir, semelhante a uma alga submersa no mar. Abolira-se o Tempo, abolira-se o Mundo, submerso nas profundezas que são intemporais e inespaciais.
Quando o coração e as entranhas despertaram para a vida, o espírito principiou a bruxulear tal uma chamazinha que vacila e não se apaga.
Enxugou a cara com as mãos, pôs a serape na cabeça e em silêncio, numa aura de sofrimento, desceu a escada, levando consigo o tambor.
Martin, o servo devotado, andava cá e lá no zaguán.
- Ya, patrón? - perguntou.
- Ya! - respondeu Ramon.
O homem correu à vasta cozinha onde ardia uma candeia, e voltou com um braçado de esteiras.
- Onde as colocamos, patrão?
Ramon hesitou no meio do pátio, olhando para o céu.
- Viene el agua?
- Creo que si, patrón.
Dirigiram-se para o alpendre onde haviam carregado as azémolas com os fardos de bananas. Aí, Martin arremessou ao chão as petates, que Ramon dispôs em ordem. Guisleno apareceu, trazendo canas para fazer tochas, das mais primitivas: três canas amarradas em cima com um cordel, formando tripé de cintura alta, e, na parte superior, uma pedra de lava mais ou menos oca. Realizado esse trabalho,
Guisleno foi a casa e voltou a correr com um pedaço de madeira inflamada. Três ou quatro pauzinhos de ocote colocados na pedra - e as chamas ergueram-se, enchendo o pátio de sombras vacilantes.
Ramon dobrou a serape e sentou-se em cima. Guisleno acendeu outro tripé-archote. A luz bailava nas sobrancelhas carregadas de Ramon, dava-lhe ao peito cintilações de ouro.
Agarrou no tambor e fez soar o apelo monótono, lento, um tanto melancólico. Passados instantes, chegou o tocador habitual, que levou o instrumento para a alameda sombria, onde então se ouviu um rufo vivo e forte.
Ramon enfiou a serape, cujas franjas lhe roçavam os joelhos, e ficou imóvel, com os cabelos em desordem. Rodeava-lhe os ombros a serpente do tecido, o pescoço erguia-se-lhe no meio do pássaro azul.
Cipriano apareceu, vindo da casa. Trazia serape castanha e vermelha, ornamentada com um sol escarlate. Postou-se ao lado de Ramon, e olhou-lhe de relance para a cara. Mas, de sobrancelhas franzidas, o outro fixava a sombra dos alpendres no extremo do pátio. Olhava para o coração do mundo; porque a face dos homens e o coração dos homens são areias movediças, e só no coração do cosmos pode alguém encontrar força.
Cipriano voltou os olhos negros para a banda do pátio. Os seus soldados aproximavam-se em grupo. Três ou quatro homens de mantas pardas rodeavam o lume. De pé, junto de Ramon, Cipriano parecia um cardeal, um pássaro de cor vistosa. Até as sandálias eram escarlates, e encarnadas as fitas que atavam as calças de linho branco aos tornozelos. Ao clarão das tochas tinha um ar demoníaco, com a pele muito escura, a barbicha preta e as pupilas cintilando sardonicamente.
Chegavam peóns, pelo portão da entrada, balançando os chapéus largos. Acorriam mulheres descalças, com as saias a oscilar, transportando os seus nenés envoltos nos rebozos e seguidas por uma caterva de garotos. Todos se agrupavam em volta dos archotes, como animais bravios, contemplando o círculo de homens de serape, do qual se destacavam Ramon e Cipriano, um de azul e branco, outro de vermelho.
Carlota e Kate emergiram de casa. Carlota, porém, ficou junto da porta, embrulhada num xaile de seda preta. Sentou-se num banco de pau aquém do clarão avermelhado, e pôs-se a observar os homens escuros, a beleza altaneira de Ramon, o traje escarlate de Cipriano, o grupo de soldados e a massa compacta de peóns, mulheres e crianças. Enquanto desfilava gente através do portão, soou o tambor e uma voz elevou-se, cantando:
Alguém vai franquear a porta, Agora, agora mesmo, ay! E verá a luz no homem que espera. Serás tu? Serei eu?
Alguém vai aproximar-se do fogo, Agora, agora mesmo, ay! E escutarás as palavras do seu coração. Serás tu? Serei eu?
Alguém baferá quando a porta se fechar, Ay, num momento, ay! Ouvirá dizer: Não te conheço. Serás tu? Serei eu?
De cada vez o ay se elevava num grito selvático que fazia calafrios a Carlota.
Envolta num xaile amarelo, Kate aproximou-se lentamente do grupo.
O tambor calou-se e o homem, entrando no pátio, fechou o portão e misturou-se aos assistentes.
Ramon continuava a olhar para o vácuo, de sobrolho carregado. Então, no meio do silêncio, disse em voz baixa, contida:
- Assim como tiro este abafo me liberto eu do dia que passou. Despiu a serape e pô-la no braço. Todos os homens do círculo o
imitaram, ficando de torso nu. Cipriano, muito escuro e com ar sólido apesar do tamanho reduzido, conservava-se ao lado de Ramon.
- Afasto de mim o dia que passou - prosseguiu Ramon - e fico de coração descoberto na noite dos deuses.
Em seguida olhou para o chão e disse:
- Vem, serpente da terra, serpente que jazes no fogo do coração do mundo. Vem, serpente do fogo no coração do mundo, enrola-te como ouro em volta dos meus artelhos, ergue a cabeça e apoia-a na minha coxa. Vem, descansa a cabeça na minha mão, serpente dos abismos. Beija-me os pés e os tornozelos com a tua boca de ouro, beija-me os joelhos e as coxas, serpente marcada de luz e de sombra. Vem, repousa a cabeça na concha da minha mão.
A voz suave e hipnótica extinguiu-se no silêncio envolvente. E parecia que na verdade uma presença misteriosa emergia do mundo subterrâneo, que uma serpente mosqueada de ouro e negro se enroscava nas pernas de Ramon e lhe lambia a palma da mão com a língua bifurcada...
Circunvagou a vista pela assistência boquiaberta e de olhos dilatados, e prosseguiu:
- Digo-vos, e com absoluta certeza. No coração desta terra dorme uma grande serpente no meio do fogo. Aqueles que descem às minas sentem-lhe o calor e o suor, ouvem-na mover-se. É o fogo vital da terra, porque a terra vive. A serpente do mundo é enorme, as rochas são as suas escamas, e entre elas crescem as árvores. Digo-vos que a terra que cavais está viva como uma serpente adormecida. Sobre ela andais, e este lago descansa nos seus anéis como uma gota de chuva numa cobra cascavel. Contudo, tem vida. A terra vive. Se a serpente morresse, todos morreríamos. Só a sua vida assegura a humidade do solo que faz germinar o nosso milho. Das suas escamas extraímos prata e ouro, e as árvores têm nela as suas raízes como os cabelos têm a raiz sob a nossa pele. A terra vive. Mas a serpente é grande, e nós somos mais pequenos do que um grão de poeira. E por vezes ela zanga-se e diz: Estes entes, mais insignificantes do que átomos de pó, espezinham-me e asseveram que estou morta. Até às bestas costumam falar, gritando: Arre, burro! A mim, porém, não dirigem uma palavra. Por isso lhes voltarei costas, como uma mulher volta costas ao marido e lhe consome o espírito com a sua cólera... Eis o que a terra nos diz, e a tristeza e o desânimo avassalam-nos os pés e os rins. Porque assim como uma mulher irritada tira o entusiasmo e a alegria ao homem, assim a terra pode enregelar-nos a alma e tornar a existência fatigante aos nossos membros. Falai, pois, à serpente do coração do mundo, banhai de óleo os vossos dedos e abaixai-os para que ela experimente o óleo da terra e deixe que a vida nos suba ao longo das pernas, como a seiva do milho novo faz estalar a casca e brotar o leite da planta entre as barbas. Do coração da terra o homem sente subir nele a sua força; tal o milho que, ufano, ergue as suas folhas verdes, erguei-vos vós também e deixai aprofundarem-se as vossas raízes cada vez mais, porque não tardam as chuvas e é tempo de produzir no México.
Calou-se Ramon, ensurdeceu o tambor, e todos os homens do círculo fitaram a terra, deixando pender molemente a mão esquerda.
Dona Carlota, que não conseguira ouvir, aproximou-se do lado de Kate, como se fascinada pelo marido. A irlandesa, num movimento inconsciente, olhou para o chão e, às ocultas, baixou os dedos de encontro à saia. Mas teve medo do que lhe poderia acontecer e escondeu a mão no xaile.
De repente o tambor vibrou numa nota muito forte, seguida de outra mais fraca: estranho, impressionante efeito.
Os circunstantes levantaram a cabeça. Ramon alçara o braço direito, num gesto enérgico, e espiava o negrume do firmamento. Imitaram-no os do círculo, e os braços nus, erguidos, semelhavam uma série de rochedos.
- Assim, acima, acima! - gritou uma voz bárbara.
- Acima, acima! - repetiram todos, num coro feroz. Involuntariamente, brandiram o braço, voltando o rosto para o
céu sombrio. Algumas das mulheres, mais audazes, fizeram o mesmo, e, com esse gesto, experimentaram uma sensação de paz.
Kate não alçou o braço.
Reinou profundo silêncio; até o tambor se calara. Ouviu-se então a voz de Ramon, dirigindo-se ao céu tenebroso:
- As tuas asas estão escuras, Pássaro, voas muito baixo esta noite. Voas baixo sobre o México, e em breve sentiremos roçar em nossas faces o leque das tuas asas. Ah, Pássaro! Voas onde queres. Ultrapassas as estrelas e empoleiras-te no Sol. Desapareces da vista e dissipas-te no além do rio branco do céu, mas voltas como os patos do Norte, em busca de água e do Inverno. Poisas no centro do Sol e alisas as penas... Banhas-te na corrente de estrelas e ergues em teu redor uma poalha de ouro. Voas nas profundezas do céu donde parece que jamais se volta. Mas regressas, e pairas sobre nós, e sentimos no rosto a aragem das tuas asas...
Enquanto ele falava levantou-se vento em rajadas, uma porta bateu, vibraram vidraças e as árvores pareceram rasgar-se.
- Vem, ó ave dos vastos céus! - bradou Ramon num apelo selvático. - Vem, pousa no meu punho, na minha cabeça, dá-me o poder divino e a sabedoria. Ó Pássaro, ainda que o trovão ribombe quando sacodes as asas, ainda que deixes cair na terra a serpente de fogo que tens no bico, ainda que venhas como fulminador, vem, ó Pássaro! Empoleira-te um momento no meu punho, estende as asas sobre a minha cabeça, toca-me a fronte com o teu peito. Pássaro errante, ave do Além, com o trovão nas garras e a serpente no bico, com o azul nas asas e a nuvem no colo, com o sol no peito e a sabedoria no voo, vem sobre mim, vem!
O vento agitava a chama das tochas e o lago começou a falar numa voz cavernosa que dominava o sussurro das árvores. Ao longe, por cima das colinas, os raios sulcavam o céu.
Soou o tambor, e Ramon desceu o braço que mantivera erguido. E disse então:
- Sentai-vos um instante, antes que o Pássaro sacuda a água das asas, o que não tardará. Sentai-vos.
A assistência moveu-se. Os homens puxaram as serapes para a testa, as mulheres cingiram mais a si os rebozos, e todos se sentaram no chão. Só Kate e Carlota ficaram de pé, a certa distância.
- A terra é viva, o céu é vivo, e entre ambos vivemos nós - prosseguiu Ramon na sua voz habitual. - A terra beijou-me os joelhos e concedeu-me força às entranhas. O céu descansou-me no punho e transmitiu o seu poder para o meu peito.
Assim como a Estrela de Alva brilha entre o céu e a terra, uma estrela pode surgir em nós entre o coração e os rins.
É a virilidade do homem e a feminilidade da mulher.
Ainda não sois homens. E vós, mulheres, ainda não sois mulheres.
Correis, agitais-vos, morreis, mas ainda não encontraste a estrela da vossa virilidade surgida de vós mesmos; nem a estrela da vossa feminilidade cintilando entre os vossos seios, ó mulheres!
Digo-vos no entanto: para aquele que desejar, nascerá nele a estrela da sua virilidade, e então será perfeito como é perfeita a Estrela da Manhã.
E a estrela da mulher aparecerá entre a orla espessa da terra e o vácuo cinzento do céu. Mas como conseguiremos isso? Como poderá ser?
Baixai os dedos para a carícia da Serpente da terra. Erguei o punho para que aí pouse a Ave distante.
Tende a coragem de ambos, a coragem do raio e a do sismo.
E a sabedoria de ambos, a da serpente e a da águia.
E a serenidade de ambos, a da serpente e a do sol. E o poder de ambos, o das profundezas da terra e o do céu que tudo cobre.
Mas que na vossa fronte, ó homens, resplandeça a Estrela da Manhã que nem o dia nem a noite, nem a terra nem o céu podem engolir e apagar.
E entre os vossos seios, ó mulheres, que esteja a Estrela de Alva que nada pode ofuscar.
A vossa derradeira morada é a Estrela da Manhã. Nem o céu nem a terra vos hão-de tragar, mas ireis para essa estrela solitária que no entanto jamais sente a sua solidão.
A Estrela da Manhã envia-nos um mensageiro, um deus que morreu no México. Mas, enquanto dormia o seu sono, os Seres invisíveis lavaram-lhe o corpo com a água da ressurreição. E ele levantou-se, derrubou a pedra à entrada do sepulcro, e agora galopa através do horizonte, mais depressa do que caiu por terra a laje do túmulo para esmagar aqueles que a selaram.
O filho da Estrela volta para os filhos dos homens.
Preparai-vos para o receber. Lavai-vos, ungi as mãos e os pés, a boca e os olhos, as orelhas e as narinas, o peito, o umbigo e as partes secretas do vosso corpo. Que nada dos dias passados, que nenhuma poeira do mal subsista em vós e vos torne impuros.
Não olheis com olhos de ontem, não escuteis como ontem, não respireis, não cheireis, não engulais alimentos nem bebidas; não beijeis com lábios de ontem, não toqueis com mãos de ontem. Aproximai-vos das vossas mulheres com um corpo novo, e com esse corpo novo penetrai nelas. Porque o corpo de ontem morreu, e Xopilote, devorador de cadáveres, já paira sobre ele.
Libertai-vos do corpo da véspera e adquiri um novo, tal como o deus que vem até vós. Quetzalcoatl surge-nos com um novo corpo, como uma nova estrela, saído das sombras da morte.
Sim, neste mesmo momento em que estais sentados e que o vosso corpo toca na terra, dizei-lhe: Terra, terra, latejas de vida como eu. Insufla em mim o bafo das tuas entranhas.
E assim a terra se move por baixo de vós, e por cima de vós o céu agita as suas asas.
Regressai aos vossos lares, enfrentando as águas que vão cair e separar-vos para sempre do "ontem".
Ide, com a esperança de vos tornardes homens da Estrela da Manhã e mulheres da Estrela de Alva.
Ainda não sois homens, ainda não sois mulheres...
Ramon levantou-se, dando o sinal de retirada. Logo todos se puseram de pé, empurrando-se, acotovelando-se, com a silenciosa pressa mexicana que parece deslizar rente ao solo.
O vento desencadeado uivava de encontro às mangueiras. Os homens seguravam o chapéu na cabeça e corriam de joelhos curvados, com as serapes a flutuar, enquanto as mulheres, cingindo a si o rebozo, fugiam, descalças, para ozaguán.
Junto do portão aberto estava um soldado de espingarda a tiracolo e lanterna na mão, alumiando aqueles que passavam calados e velozes e se dispersavam na alameda escura como pedacinhos de papel levados pelo vento. Num instante todos desapareceram.
Martin fechou o portão. O soldado pousou a lanterna no banco de pau e juntou-se aos camaradas alapardados nos seus capotes pretos, semelhantes a um molho de cogumelos na caverna do zaguán.
- Vai chover! - gritaram as servas excitadas quando Kate subia os degraus com Dona Carlota.
O lago, absolutamente negro, parecia uma cratera enorme. Em rajadas violentas, o vento traspassava as mangueiras com um som de membrana a rasgar-se. Os loendros curvavam-se no jardim, varriam o solo com as suas flores brancas, espectrais à luz do candeeiro que brilhava na parede junto da porta da entrada. Uma palmeira nova sacudia-se, dobrada, juncando o chão com as suas folhas. Nas trevas para além do mundo rolava um carro invisível...
Ao longe, na outra banda do lago, os raios traçavam no céu inscrições fulgurantes. E o trovão dir-se-ia ribombar nas entranhas da terra, surdo, aveludado.
- Isto chega a meter medo! - exclamou Dona Carlota, tapando os olhos com a mão e correndo a refugiar-se num canto recuado da sala deserta.
Cipriano e Kate demoraram-se no terraço olhando para as flores que voavam dos vasos e desapareciam no vácuo de trevas. Kate agarrava no xaile, mas o vento engolfou-se na serape de Cipriano, levantou-a ao ar e em seguida deixou-lha cair sobre a cabeça, tal uma chama rubra. Kate viu-lhe o peito escuro e musculado enquanto os seus braços lutavam por desenvencilhar a cabeça. Como a sua beleza era primitiva e toda física, com aquela carne lisa e cheia!
Mas não emitia nenhuma radiação exterior; fechava-se dentro de si mesmo.
- Eis a chuva! - exclamou ele! - baixando a serape.
Grossas, pesadas, as primeiras gotas tombavam como dardos sobre as plantas. Kate recuou para o vão da porta. Um raio ziguezagueou sobre as montanhas, pareceu deter-se um instante e reentrou nas trevas.
Então a chuva desabou, como se lá em cima houvessem aberto um reservatório imenso, e com ela veio uma lufada de ar frio. Ora num lado ora noutro, sucediam-se os relâmpagos, enchendo a atmosfera duma claridade azul e fugaz. Surgiam as árvores e o jardim fantasma, e logo desapareciam, enquanto o trovão ribombava.
Kate olhava pasmada para aquele dilúvio. Ao clarão momentâneo via o jardim já transformado em poço, as alamedas em ribeiras. Sentindo frio, recolheu-se dentro de casa.
Munido de lanterna, um criado pesquisava todos os aposentos para ver se andariam por ali escorpiões. Encontrou um a passear no quarto de Kate e outro em cima da cama de Carlota, caído duma viga do tecto.
Sentadas na sala, Kate e Carlota baloiçavam-se nas cadeiras, aspirando o bom ar fresco e húmido. Kate quase já se esquecera do que era frescura e humidade. Aconchegou o xaile ao pescoço.
- Ah, sente frio! Agora é preciso tomar cuidado com as noites... Às vezes, na época das chuvas, as noites são frigidíssimas. Devemos ter sempre à mão um cobertor suplementar. Os servos, coitados, limitam-se a tiritar, estendidos no chão, e de manhã estão gelados como cadáveres. Mas o sol depressa os aquece. Parecem julgar que são obrigados a suportar tudo o que vier, pois nunca tomam providências, embora se queixem.
O vento acalmara-se de repente, Kate sentia-se inquieta, mal disposta, com o bafo da água, quase de gelo, nas narinas, e o sangue ainda a arder-lhe nas veias. Levantou-se e foi para o terraço. Cipriano continuava ali, imóvel e impassível, envolto na sua serape vermelha e preta.
A chuva diminuía. Em baixo, no jardim, duas criadas corriam descalças, à débil claridade do candeeiro do zaguán; colocaram latas vazias debaixo dos fios de água que tombavam do telhado, e depois foram buscar os recipientes cheios. Isso poupava-lhes o trabalho de acarretar água do lago.
- Que pensa a nosso respeito? - perguntou Cipriano a Kate.
- Acho um povo muito estranho...
- Mas bom, não é verdade? - volveu o general em tom jubiloso.
- Um tanto assustador - replicou ela, rindo.
- Depois de se habituar parecer-lhe-á natural. E quando estiver num país como a Inglaterra, onde tudo é tão seguro e tão fácil, sentirá saudades e passará o tempo a perguntar a si mesma: O que é que me falta? O que é que falta aqui?
Dir-se-ia exprimir-se com maligna satisfação. E era curioso que ele, embora falasse bom inglês, parecesse sempre estrangeiro aos ouvidos de Kate, muito mais do que Dona Carlota com o seu espanhol castiço.
- Não compreendo que as pessoas queiram ter tudo, a vida inteira. Tudo tão seguro, tão pronto como na Inglaterra e na América. É bom estar alerta, no que vive, não?
- Talvez - concordou ela.
- Por isso gosto de ouvir Ramon dizer ao povo que a terra é viva, que o céu tem uma ave enorme lá dentro, mas que se não vê. Acredito nisso. E convém sabê-lo, pois assim continuamos no que vive.
- Não será fatigante?
- Ora, porquê? Pelo contrário, é repousante. Ah, a senhora devia casar e residir no México. Estou certo de que acabaria por gostar disto. Em cada manhã despertaria mais encantada.
- Ou cada vez mais enterrada. É o que sucede, julgo eu, a muitos estrangeiros.
- Enterrar-se? Como? Isto é um país onde a noite é noite e a chuva que cai é realmente chuva. E tem aqui um povo com o qual precisa de estar sempre alerta. Não acha admirável? Não poderá deixar-se adormecer. Veja, por exemplo, Ramon. Que pensa dele?
- Não sei. Não quero dizer nada, mas acho-o... longínquo. Custa a crer que seja mexicano.
- Pois é mexicano, não tenha dúvida.
- Não como o senhor. Dá-me a impressão de pertencer à velha Europa.
- Eu então considero-o pertencente ao velho México... E também ao novo - acrescentou de súbito.
- Todavia não acredita nele.
- Como?
- Não acredita nele. Considera aquilo, como tudo o mais, uma espécie de jogo. Aliás, para vós, mexicanos, tudo é uma espécie de jogo... No fundo, não crê em nada.
- Não creio em Ramon? Talvez não seja uma fé que me leve a ajoelhar à sua frente e a derramar-lhe lágrimas nos pés. Mas creio nele, e vou dizer-lhe o motivo: porque tem o poder de me fazer acreditar.
- Estranha fé, imposta pelos outros.
- Como se há-de crer, se não nos compelirem a isso? Quando eu era muito novo sentia-me infeliz porque o meu padrinho me não forçava a crer. Mas Ramon força-me... E é para mim uma felicidade saber que não posso escapar... como será também para si...
- Saber que não posso escapar a Don Ramon? - replicou
Kate ironicamente.
- Sim, e saber que não poderá evadir-se do México, nem fugir
de um homem como eu...
Kate ficou um instante calada antes de responder em tom sardónico:
- Não me parece que me cause muita alegria saber que não posso sair do México. Pelo contrário, não suportaria estar aqui se não tivesse a certeza de partir mais dia menos dia.
E disse consigo mesma: "Ramon talvez seja o único homem a quem eu não possa escapar completamente, porque deveras me impressiona. Mas de ti, Ciprianozinho, não precisarei de escapar porque não me apanhas."
- Ah, julga isso! - volveu ele rapidamente. - Mas é porque não sabe. Só pensa com ideias americanas. Devido à sua educação, só tem pensamentos americanos, pensamentos engendrados nos Estados Unidos. Quase todas as mulheres são assim, até as mexicanas da classe hispano-mexicana. Só possuem ideias dos Estados Unidos porque são as que condizem com os seus penteados. E o mesmo quanto a si, senhora Leslie. Pensa como uma mulher moderna porque pertence ao mundo anglo-saxónio ou teutão, e se penteia de certa maneira, e tem dinheiro, e é inteiramente livre. Mas tudo isso provém do facto de lhe haverem metido essas ideias na cabeça e não possuir outras, da mesma forma que, no México, se vê obrigada a gastar centavos e pesos por serem as moedas do país. Todavia, quando se declara livre, na realidade não o é. Vê-se forçada a pensar sempre com pensamentos americanos. Não tem maior faculdade de escolha do que uma serva. Assim como não pode deixar de comer diariamente tortillas... até que se lembre de que pode gostar doutra coisa.
- De que mais poderia eu gostar? - retorquiu Kate, escarninha.
- De outros pensamentos, de outras sensações. Receia homens como eu porque julga que a não tratariam "à americana". Tem razão. Eu não a trataria como se tratam as senhoras americanas. Porquê? Porque não o desejo, porque não me parece justo.
- Prefere tratar as mulheres como as mexicanas de outrora, não é verdade? Mantendo-as na ignorância, no cativeiro? - A voz de Kate assumira um tom sarcástico.
- Não as manteria na ignorância se elas já não fossem ignorantes. Mas o que lhes ensinaria não havia de ser conforme à educação americana.
- Então qual?
- Quien sabe! Ce reste à voir.
- Et continuera à y rester - concluiu a irlandesa, rindo.

CONTINUA

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Dez dias haviam decorrido desde a chegada de Kate a Sayula sem que Don Ramon desse sinal de vida. No entanto, quando passeava de barco, vira a casa dele na outra banda da ponta oeste do lago. Era um edifício alaranjado de dois andares, com alpendre para embarcações e bosquete de mangueiras rente à margem. Entre as árvores distinguiam-se duas filas de cabanas de adobe, a habitação dos peóns.
A hacienda fora outrora das mais importantes. Regavam-na então com a água captada nas colinas, mas as revoluções haviam destruído todos os aquedutos. Don Ramon tinha inimigos no Governo, de modo que grande parte das suas terras fora dividida entre os peóns e só lhe ficaram cerca de trezentos acres de terreno, dos quais duzentos marginavam o lago e lhe eram inúteis. Cultivava um pomar em volta da casa e cana-de-açúcar num valezito entre as colinas. Na encosta do monte viam-se campos de milho.
'Dona Carlota era rica; tirava bons rendimentos das minas de Torreon, seu berço natal.
Chegou um portador com uma carta de Don Ramon em que este pedia a Kate licença para a visitar com a esposa.
Dona Carlota era uma mulher franzina, suave, de grandes olhos um tanto assustadiços e sedosos cabelos castanhos. Filha de pai espanhol e de mãe francesa, de origem puramente europeia, em nada se assemelhava às corpulentas mexicanas de faces cobertas de pó-de-arroz. De rosto pálido, sem artifício, a figura delgada tinha qualquer coisa de inglês, que os grandes olhos castanhos desmentiam. Só falava espanhol e francês, mas o seu espanhol soava tão lento e distinto (com um leve tom de queixume) que Kate a compreendeu sem dificuldade.
As duas mulheres entenderam-se depressa, mas sentiam-se um tanto nervosas na presença uma da outra. Dona Carlota era frágil e sensível como um cão chihuahua.
Em toda a sua vida, Kate raras vezes encontrara criatura tão doce e delicada. Conversaram uma com a outra, enquanto Don Ramon se mantinha calado. Dir-se-ia que ambas se arremessavam contra aquela barreira de silêncio.
Kate percebeu logo que Dona Carlota amava Ramon, mas com um amor que se tornara voluntário. Adorara-o, e acabara-se a adoração. Duvidara dele, e duvidaria sempre.
Sentado um pouco à parte, de ar constrangido, Don Ramon baixava a bela cabeça e deixava pender as mãos entre as coxas.
- Sabe que passei há dias bons momentos? - disse Kate, dirigindo-se-lhe de súbito. - Dancei de roda do tambor com os homens de Quetzalcoatl.
- Assim me constou - respondeu ele com um sorriso forçado.
Embora não falasse inglês, Dona Carlota compreendia essa língua
- Dançou com os homens de Quetzalcoatl! - exclamou em espanhol. - Porque fez isso? Porquê?
- Estava fascinada.
- Não se deixe fascinar. Afirmo-lhe que lastimo muito que meu marido se interesse por esse movimento. É para mim um desgosto.
Juana apareceu nesse momento com uma garrafa de vermute, a única coisa que Kate podia oferecer aos visitantes.
- Foi aos Estados Unidos ver os seus filhos? - perguntou Kate. - Como vão eles?
- Bem, obrigada. Embora o mais novo continue fraquito...
- Não os trouxe consigo?
- Não. Acho que estão melhor no colégio. Aqui... aqui há muita coisa que os perturbaria. Mas hei-de cá tê-los no próximo mês a passar as férias.
- Então terei oportunidade de os conhecer - disse Kate. Virão para a casa do lago, não é verdade?
- Ainda não sei. Talvez passemos aqui alguns dias. Ando tão ocupada na Cidade do México com a minha Cuna!
- Cuna? Que é isso? - indagou Kate.
Tratava-se de um hospício de enjeitados assistido por algumas obscuras carmelitas. Dona Carlota era a directora, e Kate chegou à conclusão de que a mulher de Ramon devia ser católica fervorosa, quase exaltada. Entregava-se de corpo e alma à Igreja e àquela obra de beneficência.
- Nascem tantas crianças no México e são tão numerosas as que morrem! Se as pudéssemos salvar e preparar para a vida! Fazemos tudo o que é possível, mas ainda é pouco.
Segundo parecia, todos os nenés indesejáveis eram entregues na Cuna, como embrulhos. A mãe só tinha de bater à porta e depositar noutras mãos o pacote vivo.
- Assim, impedimos que muitas mães negligentes deixem morrer os filhos - prosseguiu Dona Carlota. - Se não nos dizem o nome da criança, sou eu que a baptizo. Já o tenho feito muitas vezes. É vulgar entregarem-nos meninos absolutamente nus, sem um trapo a cobri-los... e sem nome. E nós nunca perguntamos nada.
Nem todos os expostos ficavam no hospício. Na maior parte eram confiados a índias decentes, a quem pagavam para os criar em casa. No fim do mês, cada qual se apresentava com o seu protegido e recebia o ordenado. As índias podem ser descuidadas mas não maltratam as crianças.
Noutro tempo, informou Dona Carlota, quase todas as senhoras do México recebiam na sua casa um ou dois desses enjeitados e tratavam-nos como família. Mas perdera-se a generosidade patriarcal dos espanhóis-mexicanos e actualmente adoptavam poucas crianças. Em vez disso, preparavam-nas para ganhar a vida, ensinando-lhes qualquer ofício.
Kate ouvia com-interesse e certo constrangimento. Não lobrigava sentimentos humanos nessa caridade mexicana, e quase discordava dela. Talvez Dona Carlota fizesse tudo o que podia nesse país semibárbaro, mas fazia-o sem nenhuma esperança de êxito. Embora com a consciência de que procedia bem, tinha um pouco o ar de vítima, de uma vítima sensível, branda, um tanto assustada. Dir-se-ia que um mal secreto lhe roía o coração.
Don Ramon escutava impassível, num silêncio que se opunha ao entusiasmo caritativo da mulher. Deixava-a agir como entendia, mas contra a sua obra e a sua loquacidade mantinha-se calado, duro, numa hostilidade surda e permanente. Dona Carlota percebia-o e tremia nervosamente enquanto falava do hospício de enjeitados. Kate acabou por achar cruel a atitude de Don Ramon; parecia um ídolo de pedra.
- Porque não vem passar um dia connosco, enquanto estamos em Sayula? - sugeriu Dona Carlota. - A casa é pouco confortável, já não é como foi, mas teremos muito gosto em recebê-la.
Kate aceitou o convite e disse que preferia ir a pé. Eram apenas quatro milhas de percurso e, com a Juana, iria bem acompanhada.
-. - Mandarei um homem buscá-las - declarou Don Ramon. Será mais seguro.
- Onde está o general Viedma? - perguntou Kate.
- Faremos o possível por tê-lo connosco quando a senhora lá for - replicou Dona Carlota. - Gosto deveras de Don Cipriano, que há muitos anos conheço. Por sinal que é o padrinho do meu filho mais novo. Presentemente, comanda a divisão de Guadalajara, por isso nem sempre se encontra livre.
- Admira-me que seja general - observou Kate. - Acho-o humano em excesso.
- E, de facto, é cheio de humanidade. Mas é general, e gosta de comandar os soldados. Deixe-me dizer-lhe que se trata de uma pessoa de muita influência. Exerce grande ascendente na tropa. Crêem nele, isso não se pode negar. Possui aquele poder, inato nos chefes índios, de afeiçoar a si os militares e de os levar ao combate. Pois é assim mesmo Don Cipriano. Ninguém conseguiria modificá-lo. Julgo, porém, que lhe seria de utilidade a presença de uma mulher. Nunca teve nenhuma na sua vida! Elas não lhe interessam...
- Que lhe interessa então?
- Ah! - exclamou Dona Carlota, estremecendo como se a picassem. Lançou um olhar rápido ao marido e declarou: - Não sei. Palavra que não sei.
- Os homens de Quetzalcoatl - declarou Don Ramon com
um leve sorriso.
Mas Dona Carlota dir-se-ia tirar-lhe todo o desembaraço. Parecia contrafeito, e um tanto estúpido.
- Ah, sim, sim, os homens de Quetzalcoatl - bradou Dona Carlota, amável mas com ar de censura. - Linda coisa para ele se ocupar! - Kate percebeu que a sua interlocutora adorava esses dois homens e que tremia à ideia de se opor aos seus erros, embora jamais transigisse com qualquer deles.
Para Don Ramon representava um pesado fardo aquela cega adoração da mulher e a sua não menos cega oposição.
Certa manhã, às nove horas, apareceu o criado para acompanhar Kate à fazenda, que chamavam de Jamiltepec. Trazia um cabaz e vinha do mercado. Era um velhote de bigode grisalho e olhos juvenis, cheios de vida. Os pés, metidos em huafaches, pareciam negros de tão queimados do sol, mas o fato resplandecia de alvura.
Kate ficou radiante com essa excursão a pé. O que tornava tão aborrecida a sua existência na aldeia era a impossibilidade de passear no campo. Havia sempre o risco de um assalto. Acompanhada de Ezequiel, dera algumas voltas pelos arredores, mas já começava a sentir-se prisioneira. Foi, por conseguinte, uma alegria sair de casa.
A manhã estava clara e quente, o lago brilhava quieto, espectral. Moviam-se pessoas na margem, minúsculas àquela distância, meros pontinhos brancos: peóns que seguiam os seus burros envoltos numa leve nuvem de poeira. Kate perguntava a si mesma porque seria que os homens apareciam sempre na paisagem mexicana como pequeninas manchas; pequeninas manchas de vida.
Entraram na estrada poeirenta que levava para oeste, entre a vertente alcantilada das colinas e a nesga de planície junto ao lago. Por espaço de milha foram encontrando vivendas, muitas delas fechadas, outras destruídas, já sem muros nem janelas. Todavia desabrochavam flores entre os montes de cascalho.
Nos terrenos vagos havia delgadas cabanas de palha dos indígenas - como que nascidas ali, ao acaso. Perto do caminho por baixo de um outeiro viam-se choças de adobe, semelhantes a caixas cinzento-escuras. Em volta corriam aves domésticas, grunhiam e refocilavam porcos pardacentos ou malhados de preto. Crianças seminuas, de um tom castanho-alaranjado, brincavam ou jaziam estiradas no chão, a dormir, com as nádegas à mostra.
Muitas das casas estavam a ser cobertas de colmo novo ou reteIhadas por indivíduos que assumiam ares de importância por se encarregarem desse trabalho. Mostravam-se também apressados, pois não tardariam a vir as chuvas torrenciais. E, na banda do lago, havia quem andasse a lavrar a terra dura com uma junta de bois e um pau forte e aguçado.
Mas Kate conhecia essa parte do caminho. Vira já a bela vivenda da colina, com os seus tufos de palmeiras que ladeavam as alamedas desertas. A estrada descia novamente para o lago, entre árvores frondosas de vagens retorcidas. À esquerda, a água mansa, gelatinosa, lambia as pedras amareladas. Numa poça da praia estavam mulheres a lavar roupa, e, nos baixios, banhavam-se duas raparigas com os cabelos negros pendentes e gotejantes. Mais adiante, um homem patinhava lentamente, detendo-se para arremessar com perícia a rede à água e depois recolhê-la cheia desses peixinhos luzidios a que chamam charales. Tudo estranhamente silencioso e remoto na manhã cintilante.
Vinha do lago uma leve brisa, mas a poeira da estrada queimava os pés. À direita erguia-se o monte, abrupto, ressequido e amarelo, exalando calor e aquele cheiro característico do México que se diria ser a evaporação duma terra cada vez mais calcinada.
Desfilavam continuamente filas de burros carregados, trotando na poeira e seguidos pelos condutores que marchavam erectos e rápidos, olhando com olhos semelhantes a buracos negros mas respondendo sempre à saudação de Kate com um respeitoso adiós. E Juana ecoava com o seu lacónico adiósm. Caminhava coxeando e achava tristíssima aquela ideia da niña de percorrer quatro milhas a pé, quando poderiam ir num automóvel de aluguer, de barco ou mesmo de burro.
Mas a pé! Kate percebia todos os sentimentos da criada no seu arrastado e sardónico adiósn. Em compensação, o homem de Ramon vinha animadamente atrás delas, dirigindo saudações alegres, com a pistola bem em evidência no cinto.
A estrada contornava um rochedo amarelo e escarpado para desembocar num campo aberto, onde se alastravam espinheiros e cactos poeirentos. À esquerda, distinguia-se a mancha verde dos salgueiros à beira do lago. À direita, as colinas inclinavam-se sobre o flanco árido das montanhas. Em frente, os outeiros ladeavam as margens do lago e afastavam-se, descobrindo uma espécie de garganta que conduzia à casa de Don Ramon e à sua plantação de cana-de-açúcar.
- Aqui temos Jamiltepec, a hacienda de Don Ramon, señorita - anunciou o homem.
Os olhos luziam-lhe ao proferir estas palavras. Era um peón orgulhoso e sem dúvida feliz com a sua sorte.
- Que lonjura! - exclamou Juana.
- Para outra vez virei só ou com o Ezequiel - replicou Kate.
- Não diga isso, niña! Só me queixo do pé, que me dói hoje a valer.
- Por isso mesmo é melhor não vires comigo.
- Não, niña. Gosto muito de vir.
Giravam alegremente as asas do moinho que puxava a água do lago. Entre as colinas descia o valezito onde deslizava um riacho e na parte mais larga viam-se bananeiras que uma cortina de salgueiros resguardava da brisa lacustre. No cimo da encosta, onde o caminho se embrenhava na sombra de mangueiras, elevavam-se dois renques de casas de adobe, tal uma aldeia um pouco recuada.
Surgiam mulheres entre as árvores, que vinham do lago com seus cântaros de água ao ombro. De roda das portas brincavam crianças, arrastando o traseiro nu na poeira do chão. Aqui e ali, uma cabra amarrada. E, apoiados na esquina da casa, ou encostados à parede, estavam homens de braços e pernas cruzados, mas não em dolce far niente. Pareciam esperar, esperar eternamente por qualquer coisa.
- Por aqui, señorita ! - disse o homem do cabaz, indicando um caminho que descia entre árvores frondosas até ao portão branco da hacienda. - Já cá estamos.
Mostrava-se tão contente como se houvesse chegado ao Paraíso.
Encontravam-se abertas as portas do zaguán, ou entrada, a cuja sombra descansavam dois soldados. No espaço em frente do portão, passavam nesse momento dois peóns, cada qual com um cacho de bananas à cabeça. Os soldados disseram qualquer coisa e aqueles detiveram-se e voltaram-se lentamente com a sua carga verde para observarem Kate, Juana e Martin - o homem que as acompanhava. Depois retomaram a sua marcha.
Os soldados levantaram-se e Martin conduziu Kate pela passagem abobadada, onde as rodas dos carros haviam cavado fundos sulcos. Juana seguia-os com expressão lastimosa.
Kate achou-se num pátio enorme, cercado em três lados por muros altos, alpendres e estábulos. Ao fundo era a casa de residência, com as suas janelas gradeadas e, em vez de porta, outro zaguán de batentes fechados, espécie de corredor ao longo do edifício.
Martin avançou para tocar a aldraba, e Kate olhou entretanto à sua volta. Num alpendre, estavam homens seminus a empacar cachos de bananas. Noutro lado, serravam paus e descarregavam telhas de cima dum burro. A um canto viam-se bois atrelados a uma carroça, de cabeça pendida sob a canga, como se esperassem.
Abriram-se as portas e Kate entrou no segundo zaguán. Era uma entrada larga, com seu lanço de escadas a um lado e um portão gradeado ao fundo, através do qual se via o jardim orlado de mangueiras e, mais abaixo, o lago com o seu porto artificial onde baloiçavam dois barcos.
Nas costas dos recém-vindos, a criada fechou a porta que dava para o pátio e indicou a Kate as escadas.
- Por aqui, señorita.
Badalava uma sineta lá no cimo. Kate subiu os degraus de pedra, ao encontro de Dona Carlota, que a esperava no patamar, vestida de musselina branca, o que, pelo contraste, lhe dava um tom amarelo às faces. Estendeu os braços magros e bronzeados, acolhendo Kate com extraordinária efusão.
- Muito prazer em vê-la aqui! E veio todo o caminho a pé, com este sol! Entre, entre e descanse.
Pegou na mão de Kate e levou-a através do terraço, no topo da escada.
- Que linda vista! - exclamou Kate, contemplando o lago para além das mangueiras. Na água pálida, irreal, vogava ao longe um barco de vela. Para além, elevavam-se as montanhas de gargantas azuladas, com a mancha branca duma aldeia. Dir-se-ia outro mundo, perdido na luz da manhã, outra vida.
- Que povoação é aquela? - perguntou Kate.
- Acolá? É San Ildefonso - respondeu Dona Carlota.
- Como este sítio é belo! - disse Kate.
- Hermoso, si! Si, bonito - retorquiu a outra em espanhol, conforme o seu costume.
A casa, de um vermelho-alaranjado, tinha duas alas voltadas para o lago. com o seu murinho coroado de plantas verdes, o terraço cercava três lados do edifício; suportavam o telhado largos pilares que partiam do solo, formando em baixo uma espécie de claustro ocupado ao centro por um tanque cheio de água.
- Venha - disse Dona Carlota. - Precisa de descansar.
- Gostaria de mudar de sapatos - declarou Kate. Levaram-na a um quarto espaçoso, um tanto vazio, de chão de
tijolos. Aí, Kate calçou as meias e os sapatos que Juana trouxera num embrulho e estendeu-se um momento para repousar.
E, enquanto repousava, ouvia o rufar surdo do tambor, no profundo silêncio da manhã, só perturbado pelo canto dum galo longínquo. Aquele som contínuo, insistente, enchia-a de mal-estar. Parecia o ribombo duma tempestade desencadeando-se no horizonte.
Kate levantou-se e dirigiu-se para o salão onde Dona Carlota estava sentada a conversar com um homem vestido de preto. com as suas três portas envidraçadas abertas sobre o terraço, chão de ladrilhos vermelhos, paredes pintadas de verde-claro, tecto de barrotes caiados e escassez de mobília, aquilo parecia mais um caramanchel do que um salão. Como em muitas casas dos países quentes, tinha-se a impressão de não se estar dentro de quatro paredes, mas sim de três; um lugar de passagem, e não para ficar.
À chegada de Kate, o homem de preto levantou-se, apertou a mão a Dona Carlota e, baixando a cabeça num comprimento cerimonioso, desapareceu por uma das portas do terraço.
- Entre, entre! - disse Dona Carlota a Kate. - Já não se sente cansada? - acrescentou, avançando uma das cadeiras de junco que estava negligentemente colocada no meio da sala.
- Absolutamente nada - respondeu Kate. - Como esta região é silenciosa! Só se ouve o tambor, o que talvez nos faça notar mais o silêncio.
- Ah, esse tambor! - exclamou Dona Carlota, erguendo a mão num movimento de exaspero. - Não posso com isso! Detesto ouvi-lo.
E moveu-se na cadeira de baloiço, com súbito nervosismo.
- É um som realmente impressionante - redarguiu Kate. - Que significa, afinal?
- Não mo pergunte! São coisas de meu marido. - E Dona Carlota fez novo gesto de desespero.
- Don Ramon é que toca o tambor?
- Não, não! - Dona Carlota pareceu sobressaltada àquela pergunta. - Não é ele que toca. Trouxe dois índios do Norte para se desempenharem desse trabalho.
- Ah, sim? - volveu Kate, sem se comprometer. Mas Dona Carlota balançava-se numa espécie de semi-inconsciência e só daí a instantes pareceu voltar a si.
- Tenho de desabafar com alguém! - disse, de repente, endireitando-se na cadeira, com uma expressão de angústia espelhada nos grandes olhos castanhos e no rosto cor de nata. - Posso desabafar consigo?
- Certamente - respondeu Kate, constrangida.
- Sabe o que Ramon anda a fazer?
- Julgo que pretende ressuscitar o culto dos deuses antigos.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, com outro aceno de mão desesperado. - Como se isso fosse possível! Os deuses antigos! Imagine-se! Que são eles senão ilusões mortas? E feias, repulsivas! Sempre pensei que meu marido fosse inteligente, muito superior a mim, e é triste ter de mudar de opinião. Tudo aquilo é um disparate. E ele atreve-se a tomar a sério o que não passa de um disparate!
- Talvez Don Ramon creia...
- Mas como pode ele crer? - replicou a dona da casa, com um sorriso desdenhoso. - É instruído, não pode acreditar em semelhante tolice.
- Então qual é o seu objectivo?
- Isso é que eu gostaria de saber. - Na voz de Dona Carlota transparecia indizível cansaço. - Penso que está louco, como acontece a tantos mexicanos. Louco como o bandido Francisco Villa.
Lembrando-se do rosto simiesco do famoso Pancho Villa, Kate não foi capaz de o associar a Don Ramon.
- Desde que se elevam na sociedade os mexicanos perdem a cabeça, o orgulho transtorna-os. Não pensam em mais nada senão na sua importância. Pura vaidade masculina. Não acha, señora, que a vaidade é o começo e o fim do homem? Jesus veio ao mundo para combater esse perigo, ensinando-nos a ser humildes. Por isso odeiam Cristo e os Seus ensinamentos, e deixam-se guiar pela vaidade durante toda a vida.
A mesma reflexão ocorrera a Kate muitas vezes, e concluíra que nos homens só existia vaidade. Precisavam de ser lisonjeados, de sentir a sua grandeza, nada mais.
- O que meu marido pretende é opor-se a Jesus, elevar o orgulho e a vaidade acima de Deus. Ah, é horrível! Horrível e infantil. Que são os homens senão crianças que necessitam dos cuidados da mãe? Ah, señora, é mais do que posso suportar!
Dona Carlota cobriu a cara com as mãos.
- Em todo o caso, acho o seu marido uma pessoa excepcional - disse Kate para a consolar, embora nesse momento detestasse Don Ramon.
- Sim, possui grandes qualidades, mas de que lhe servem se estão pervertidas?
- Explique-me ao certo: o que é que ele pretende, afinal?
- O poder, o poder absurdo e maléfico, como se já não houvesse bastantes poderes maléficos por todo este país. Quer ser mais do que os outros, adorado, venerado. Um deus! Ele, a quem embalei nos braços como uma criança, querer que o adorem!
E Dona Carlota desatou num riso estridente pontuado de soluços.
Kate esperou que ela se acalmasse.
- No fim de contas - disse, quando a viu mais sossegada - não somos responsáveis pelo que fazem os maridos. Aprendi à minha custa que todo o amor é impotente perante a vontade dos homens. Meu marido quis morrer, e não pude impedi-lo... Temos de os deixar fazer tudo o que querem, até as coisas que nos parecem insensatas.
Dona Carlota ergueu os olhos para Kate.
- Gostava muito do seu marido... e ele morreu? - perguntou em voz suave.
- Amei-o deveras, e não tornarei a gostar doutro homem. Perdi a faculdade de amar.
- De que morreu?
- Por sua culpa. Despedaçou o coração e a alma com a política irlandesa. Eu sabia que ele fazia mal em se ocupar disso. Que nos importava a Irlanda, o nacionalismo, as revoluções e todas essas tolices? Ah, se o Joachim se limitasse a viver em paz comigo, poderíamos ser tão felizes! Em vão tentei convencê-lo. Queria matar-se com aquela estúpida política, e não consegui evitá-lo. Foram inúteis todos os meus esforços.
Dona Carlota olhou fixamente para Kate.
- Assim como são os meus para impedir que Ramon proceda mal e se mate... E depois de morto, de que servirá tudo aquilo?
- De nada. Depois de eles morrerem, ficamos a saber que foi inútil todo o trabalho que tiveram.
- Oh, señora! Se pode ajudar-me a salvar Ramon, ajude-me! É uma questão de vida ou de morte para nós ambos. Porque eu morrerei se ele levar a sua avante...
- Explique-me bem qual é a ideia de Don Ramon. A do meu marido era libertar a Irlanda e engrandecer o povo. Mas eu nunca acreditei que os irlandeses fossem jamais um grande povo nem que se pudesse torná-lo livre. Só sabe destruir, e destruir estupidamente. Não se pode fazer livre um povo que o não é. Existe nele qualquer coisa que o impele à destruição.
- Bem sei, bem sei. Da mesma forma é Ramon. Até quer destruir Jesus e a Virgem Maria por amor do povo. Imagine! Derrotar Jesus e a Virgem! A última coisa que se podia pensar...
- Mas o que diz ele quanto ao seu projecto?
- Diz que pretende estabelecer um novo nexo entre o povo e Deus. Declara, por seu lado, que Deus é sempre Deus, mas que o homem perdeu a sua união com a divindade... e que não é possível restaurá-la sem que venha um novo Deus. E que qualquer novo nexo tem de ser diferente do antigo, embora Deus continue a ser Deus. Neste momento, declara meu marido, o povo perdeu o seu Deus. O Salvador já não será capaz de o reconduzir a Si. Precisa-se de outro Salvador, com uma nova visão. Ah, señora, eu não creio nisto! Deus é amor e, se Ramon se submetesse, ao menos, ao amor, compreenderia que aí é que estava Deus. Mas qual! É tão perverso! Poderíamos, ambos, com amor calmo, gozando a beleza do mundo, esperar pelo amor de Deus... Porque é, señora, que ele não vê isto? Oh, porque não compreende? Em vez de fazer estas coisas...
Acudiram lágrimas aos olhos de Dona Carlota, as quais se lhe espalharam pelo rosto. Kate também chorava.
- É inútil! - disse ela, soluçando. - Sei que é inútil, faça-se o que se fizer. Não querem ser felizes e estar em paz, mas sim esta luta e esses falsos e horríveis nexos... Sim, é inútil, de qualquer forma. E nisto é que está o pior.
E as duas mulheres, sentadas nas cadeiras de baloiço, soluçavam amargamente quando ouviram passos no terraço, leve ruído de pés calçados de sandálias.
Era Don Ramon, atraído inconscientemente pelo clamor daquelas criaturas pesarosas.
Dona Carlota limpou a toda a pressa os olhos e o nariz; Kate assoou-se com estrondo. No limiar da porta, Don Ramon deteve-se.
Trajava como os camponeses, todo de branco, de casaco largo e calças muito amplas. O fato era de linho, com certa goma, e tinha um brilho estranho, fora do vulgar. Por baixo do casaco, à frente, uniam-se as pontas duma faixa estreita de lã, também branca, franjada de vermelho e riscada de azul e preto. Nos pés sem meias trazia huaraches de coiro azul e negro, entrançado, com espessas solas tingidas de vermelhão. As calças estavam presas aos tornozelos por alamares de lã pretos, azuis e encarnados.
Kate, vendo-o assim à claridade do sol, vestido de uma alvura tão ofuscante, teve a impressão de que o rosto dele, escuro e emoldurado de cabelos escuros, fazia como que um buraco na atmosfera.
Don Ramon aproximou-se, com as pontas da faixa a baterem-lhe nas pernas, e as sandálias rangendo de leve.
- Muito prazer em encontrá-la - murmurou, apertando a mão da visitante. - Como veio?
Deixou-se cair numa cadeira e ficou imóvel. As duas senhoras baixaram a cabeça, como se quisessem esconder a cara. A presença do homem ainda as constrangia mais, porém o dono da casa fingiu não reparar na comoção que sentiam e fê-lo por um acto de pura vontade. Da sua presença emanava certa força e elas experimentaram um pouco de alívio.
- Não sabia que o meu marido se tornara num aldeão, num verdadeiro peón? - perguntou Dona Carlota, irónica, à sua hóspeda. - É um señor peón, como o conde Tolstoi se fez señor mujique...
- Mas fica-lhe bem - observou Kate.
- Ora aí está... Ao diabo o que é do diabo... - replicou Don Ramon.
Havia nele algo de tenaz, de inflexível. Riu, e falou às senhoras, mas sem se revelar muito, apenas superficialmente. O seu ser íntimo, insondável e poderoso, não entrava em contacto com elas.
Assim foi durante o almoço. Houve conversa esvoaçante, com intervalos de silêncio. Nesse silêncio percebia-se que Don Ramon vivia noutro mundo; e a sua vontade calma, obrando noutra esfera, fazia recuar as mulheres para a sombra.
- A señora é como eu, Ramon - disse Dona Carlota. - Não tolera o rufar do tambor. Irá continuar aquilo, pela tarde adiante?
Seguiu-se uma pausa antes que ele respondesse:
- Só depois das quatro horas.
- Temos, então, de aturar hoje esse barulho? - insistiu Dona Carlota.
- Porque não há-de ser hoje como nos outros dias? - ripostou o marido. Notava-se-lhe um ar contrariado. Era evidente que pretendia subtrair-se à presença daquelas duas.
- Porque a senhora está cá, e eu estou também, e porque nenhuma de nós gosta daquele som. Amanhã já ela se vai embora, e eu regresso à cidade. Porque não nos poupas esse tormento? E
Ramon fitou a mulher, e em seguida Kate. Os olhos denotavam cólera. Kate quase ouvia, naquele peito forte, o coração inchar de furor. Mas calou-se e a outra também se calou. No fundo, estavam satisfeitas por terem podido despertar a ira do homem.
Mantendo o sangue-frio, Don Ramon inquiriu da esposa (não sem que se lhe percebesse a indignação):
- Porque não levas a senhora Leslie até ao lago?
- Não nos apetece.
Ele então fez o que a irlandesa nunca vira ninguém fazer. Encerrou-se dentro de si mesmo, deixando às duas comensais a impressão de se encontrarem diante duma porta que se fechou. Kate sentiu-se abandonada e deprimida, mas a pouco e pouco a irritação tingiu-lhe as faces pálidas dum rubor de fogo.
- Posso ir-me embora antes das quatro horas - declarou.
- Não, não! - acudiu, suplicante, a dona da casa. - Não me deixe. Fique comigo até à noite e ajude-me a distrair Don Cipriano, que vem jantar connosco.

XI
Acabado o almoço, Ramon recolheu ao quarto para dormir a sesta. A tarde estava quente, pesada. No extremo oeste do lago erguiam-se nuvens cintilantes, quais mensageiros da tempestade. Ramon fechou as janelas do seu aposento de modo a obter negrume total; apenas aqui e ali, filtrando-se pelos interstícios da porta, os raios de luz pousavam nas trevas como uma coisa tangível.
Despiu a roupa e ergueu acima da cabeça os punhos fechados, como se orasse intensamente e de pé. Nos seus olhos só havia escuridão, e a pouco e pouco essa escuridão atingiu-lhe o cérebro, apagando-lhe todos os pensamentos. Só uma vontade poderosa se distendia e emanava da espinha dorsal, numa tensão sobre-humana até que as flechas da alma atingiram o alvo e a oração a sua meta.
Então, bruscamente, tombaram os braços trémulos, o corpo readquiriu a flexibilidade. O homem recuperara a sua força. Quebrara as cordas do mundo e sentia-se livre e senhor da outra força.
Devagarinho, com precaução, esforçando-se por não pensar, não se recordar, não despertar as serpentes venenosas da consciência, enrolou-se num cobertor delgado e estendeu-se no chão sobre uma pilha de coxins. Daí a instantes, adormecia.
Dormiu profundamente cerca de uma hora. Abriu os olhos de repente, viu as trevas aveludadas e as frechas de luz diminuídas: o sol mudara. Pôs-se à escuta. Parecia não haver um único som no mundo. Talvez não existisse mundo...
Então começou a ouvir. Distinguiu o débil rumor duma carroça, folhas sussurrando ao vento, o som distante de pancadas, o pio duma ave.
Levantou-se, vestiu-se com rapidez às escuras e foi abrir as janelas. A tarde ia em meio; soprava uma aragem quente, amontoavam-se a oeste nuvens escuras, mas a chuva não se decidia a cair. Ramon pôs na cabeça um chapéu de palha, que tinha à frente um enfeite de penas brancas, pretas e azuis dispostas em forma de olho, ou de sol. Ouviu vozes femininas. Ah, a estrangeira! Esquecera-a por completo. E Carlota! Carlota encontrava-se ali. Por um momento, pensou nela e na sua caprichosa oposição. Depois, antes que a ira o dominasse, soergueu o peito, em nova oração muda, os olhos sombrearam-se-lhe - e perdeu a impressão de contrariedade.
Seguiu pelo terraço até à escada de pedra que conduzia à entrada e atravessou o pátio, onde dois homens, debaixo dum alpendre, carregavam azêmolas com fardos de bananas. No zaguán dormiam soldados. Pelas portas abertas, Ramon viu ao fundo da alameda um carro de bois afastando-se lentamente. No pátio ressoavam marteladas numa bigorna: era um homem e um rapazito ocupados na forja. Noutro alpendre, um carpinteiro aplainava tábuas.
Don Ramon deteve-se um momento para olhar em volta. Aquele era o seu mundo. O espírito dele espraiava-se nesse mundo como uma sombra fomentadora, e o silêncio do seu próprio poder dava-lhe paz.
Os homens que trabalhavam tiveram quase instantaneamente consciência da presença do patrão. Um após outro, os rostos escuros e ardentes ergueram-se para ele e voltaram a baixar-se. Gostavam de o ver ali, mas temiam aproximar-se e nem se atreviam a um olhar mais prolongado. Retomaram o trabalho com mais ardor, como se a presença do patrão lhes desse novo alento.
Ramon dirigiu-se para a forja, onde o rapazinho dava ao fole e o homem batia pancadas leves e rápidas num pedaço de ferro.
- É a ave? - perguntou Ramon.
- Sim, patrón, é a ave. Está bem! - E o homem levantou os olhos pretos, luzidios, expectantes. com uma tenaz, brandiu a tira de metal, negra, em forma de língua achatada, e Ramon observou-a demoradamente. - As asas ponho-as depois - explicou o ferreiro.
com as mãos escuras e nervosas, Don Ramon traçou uma linha imaginária em volta do pedaço de ferro. Três vezes fez esse gesto, que parecia fascinar o ferreiro.
- Um pouco mais alongado. Assim... - disse Ramon.
- Sim, patrón, compreendo.
- E o resto?
- Está ali. - O homem apontou para dois arcos, um maior que outro, e para várias chapas de ferro triangulares.
- Coloca tudo isso no chão.
O ferreiro pousou os arcos, um dentro do outro, e em seguida dispôs com perícia os triângulos de modo que as bases ficassem sobre o arco exterior e os vértices no círculo interior. Eram sete.
Assim formaram um sol de sete pontas.
- Agora, a ave - ordenou Ramon.
O homem pegou logo na peça comprida: era a forma rudimentar dum pássaro, com dois pés mas ainda sem asas. Colocou-a no centro da roda interior, de maneira que as patas tocassem no círculo e a cabeça atingisse a parte oposta.
- Está tudo certo!
Ramon contemplava o símbolo de ferro armado no chão quando ouviu abrir a porta de casa. Kate e Carlota avançaram através do pátio.
- Retiro isto? - inquiriu o ferreiro.
- Deixa, não faz mal - respondeu Don Ramon tranquilamente.
Kate deteve-se a observar aquela coisa estendida no chão.
- Que é isso? - perguntou.
- A ave dentro do sol.
- Representa uma ave?
- Quando tiver asas.
- Ah, faltam-lhe as asas! E de que serve?
- É um símbolo para o povo.
- é bem bonito...
- Sim, é bonito.
- Ramon, não te importas dar-me a chave para tirar o barco?
- disse Dona Carlota. - Vamos dar um passeio no lago, e Martin remará.
O marido tirou a chave da cinta.
- Onde descobriu essa linda faixa? - indagou Kate. Era branca, com riscas azuis e pretas e franjadade vermelho.
- Teceram-na aqui - informou Don Ramon.
- E as sandálias? Também as fizeram cá?
- Sim, foi obra do Manuel. Mais tarde lho mostrarei...
- Gostaria bastante de ver. São belíssimas, não acha, Dona Carlota?
- Acho, mas não sei se as coisas belas são sensatas. Não sei. E a señora, sabe o que é sensato?
- Eu? - volveu Kate. - Não me preocupo muito com isso.
- Ah, não se preocupa! Afigura-se-lhe então sensato da parte de Ramon usar traje de camponês e huaraches?
Pela primeira vez, Dona Carlota exprimira-se em língua inglesa, falando com lentidão.
- Fica-lhe tão bem! - replicou Kate. - O fato de homem é medonho e Don Ramon parece magnífico com este.
De facto, com o largo chapéu pousado na cabeça ele tinha certo ar de nobreza e autoridade.
- Ah! - exclamou Dona Carlota, fixando na companheira o seu olhar inteligente, enquanto brincava com a chave. - Vamos para o lago?
As duas mulheres afastaram-se. Rindo consigo mesmo, Ramon atravessou o pátio e dirigiu-se a uma granja construída perto das árvores. Entrou e assobiou baixinho. Soou outro assobio como resposta e abriu-se um alçapão. Don Ramon subiu a escada e encontrou-se numa espécie de oficina de carpinteiro. Acolheu-o um rapaz corpulento, de cabelo encaracolado, que empunhava maço e escopro.
- Que tal vai isso? - perguntou Ramon.
- Vai bem.
O artista esculpia uma cabeça de madeira. Uma cabeça avantajada, convencional, mas que, apesar do convencionalismo, revelava semelhança com Ramon.
- Sirva-me de modelo durante meia hora - disse o escultor. Ramon sentou-se e ficou silencioso, enquanto o outro, curvado
sobre a sua obra, se concentrava no trabalho. Durante todo aquele tempo, Don Ramon conservou-se erecto, quase imóvel, sem pensar em nada, mas irradiando um halo sombrio de poder que fascinava o artista.
- Basta - declarou por fim, levantando-se.
- Mas ponha-se na posição antes de se ir embora - pediu o artista.
Ramon despiu lentamente o casaco e ficou de torso nu, com a faixa raiada de azul e preto de roda da cintura. Por uns instantes pareceu recolher-se e, em seguida, como se numa oração intensa e orgulhosa, ergueu o braço direito por cima da cabeça e ficou transfigurado. O braço esquerdo pendia molemente ao longo do quadril. E no rosto, esse ar de orgulho fixo e intenso que era em si mesmo uma oração.
O escultor observava-o admirado e quase temeroso. Aquele homem grande e enérgico, com os seus olhos negros dilatados pelo orgulho e no entanto cheios de oração, despertava no escultor um frémito de alegria e de medo.
Don Ramon voltou-se para ele.
- Agora, você!
O artista, assustado, quis esquivar-se, mas encontrou o olhar de Ramon e, no mesmo instante, a calma da concentração desceu sobre ele, como um êxtase. Então, bruscamente, ergueu o braço, e a face pálida e nédia adquiriu uma expressão de paz e dignidade. Os olhos cinzento-azulados, serenos e altivos, dirigiam ao Além a sua oração. E embora estivesse com a bata de trabalho, e não fosse esbelto, apresentava uma imobilidade perfeita, plena de nobreza.
- Muito bem - disse Ramon, baixando a cabeça.
O escultor moveu-se de súbito. Ramon estendeu-lhe as duas mãos e ele, levantando-lhe a dextra, pousou-a na fronte.
- Adiós! - disse Ramon, depois de enfiar o casaco.
- Adiós - respondeu o artista. E com a felicidade estampada no rosto, voltou para o trabalho.
Don Ramon visitou a casa de adobe, cujo pátio era rodeado duma paliçada de canas e sombreado por uma gigantesca mangueira. Manuel, a mulher, os filhos e dois ajudantes estavam a fiar e a tecer. Debaixo das bananeiras, duas pequenas cardavam lã branca e castanha. A mulher e uma rapariga fiavam. Numa corda secava lã tingida, vermelha, azul e verde. E, no alpendre, Manuel e um rapaz manobravam dois pesados teares.
- Como vai isso? - inquiriu Don Ramon.
- Muy bien! Muy bien! - respondeu Manuel, com uma expressão transfigurada cintilando-lhe nas pupilas negras. - Muito bem, señor!
Ramon examinou a serape que estavam a tecer. Tinha uma barra em ziguezague de lã preta natural e, em cada ponta, um ornato complicado, azul e preto. O homem começara o centro, a que chamam boca, e olhava de instante a instante para o desenho pregado no tear. Aliás, era um desenho simples, igual ao símbolo de que o ferreiro se ocupava: uma serpente a morder a cauda e, de volta, triângulos negros cujas bases se apoiavam num círculo exterior; ao meio uma águia azul, com as asas e os pés tocando no arco formado pela serpente.
Ramon voltou a casa, dirigindo-se para a ala onde se encontrava o seu quarto. Lançou uma manta dobrada sobre o ombro e seguiu pelo terraço. No extremo dessa ala, projectando-se para o lago, havia outro terraço, este quadrado, com uma bignónia cor de coral pendente dos pilares maciços. A loggia estava juncada de esteiras e, a um canto, via-se um tambor e respectiva baqueta. No ângulo mais afastado mergulhava uma escada de pedra, fechada em baixo por uma porta de ferro.
Ramon ficou uns momentos a olhar para o lago. As nuvens dispersavam-se e o lençol de água reflectiu uma claridade esbranquiçada. Ao longe, via-se a mancha de um barco, onde provavelmente se encontravam Martin e as duas senhoras.
Tirou o chapéu e o casaco, e permaneceu imóvel, nu da cintura para cima. Então pegou na baqueta e, depois de esperar uns segundos, até adquirir paz de alma, fez soar o apelo do tambor, num ritmo alternado, forte e fraco. Captara o antigo poder bárbaro de certos rufos.
Assim esteve durante algum tempo, sozinho, tocando tambor com a mão direita, de face inexpressiva.
Acorreu um homem, de cabeça descoberta, vindo do outro terraço. Trazia fato de brancura imaculada, serape escura ao ombro, e uma chave na mão. Saudou Ramon, levando à testa as costas da mão direita, e depois desceu a escada e abriu a porta de ferro.
Imediatamente chegaram homens, todos vestidos de branco, cada qual com a sua serape dobrada em cima dos ombros. Mas as faixas eram azuis, e as sandálias azuis e brancas. O escultor apareceu, assim como Martin.
Eram sete, além de Ramon. No topo da escada saudaram-no, um apôs outro. Em seguida, depuseram a manta e o chapéu no murinho do terraço e despiram o casaco, que atiraram para cima dos chapéus.
Ramon largou o tambor e sentou-se sobre a sua manta raiada de azul e preto. Todos o imitaram, formando círculo, de pernas cruzadas e torso nu. Uns eram cor de café, outros brancos; Ramon tinha a pele dum tom castanho-claro. Conservaram-se em silêncio, só perturbado pelo som igual e hipnótico do tambor que um dos homens tocava. Então este começou a cantar numa vozinha estranha, contida, essa antiga voz de falsete dos índios:
"Quem dorme despertará. Quem dorme despertará. Quem segue o caminho da serpente há-de chegar ao seu destino; há-de chegar ao seu destino e ficará revestido com a pele da serpente."
Uma por uma, outras vozes se juntaram, até que todos se fizeram ouvir, naquele ritmo cego, infalível, do antigo mundo bárbaro. E todos com idêntica voz interior, como se a alma cantasse para si própria.
Cantaram por momentos, em uníssono, qual bando de pássaros a voar levados pelo mesmo instinto. E quando o tambor vibrou num rufo que era o final da cerimónia, as vozes extinguiram-se também, simultâneas, com um estrangulamento na garganta.
Houve um silêncio. Depois os homens principiaram a conversar uns com os outros, rindo em surdina. Mas a voz deles e a expressão já não eram as mesmas de há pouco.
Don Ramon ia falar e todos se calaram, inclinando a cabeça. Aquele sentara-se, de face erguida, visando ao longe, na dignidade da oração.
- Não há Passado nem Futuro, só existe o Presente - disse em tom surdo, majestoso. - A Serpente magna dobra e desdobra os seus anéis, as estrelas surgem, os mundos desaparecem. Há somente a mudança e o repouso do plasma.
Eu sou sempre, diz o seu sono.
Assim como o homem, enquanto dorme, não tem conhecimento, mas é, também a Serpente enroscada do eterno Cosmos prolonga o seu existir de Agora.
Agora, agora só, e para sempre Agora.
Contudo os sonhos despertam e esmorecem no sono da Serpente.
E o Universo eleva-se como os sonhos e como eles expira.
E o homem é um sonho no sono da Serpente.
E apenas o sono que não tem sonhos murmura: Eu sou!
E no Agora sem sonhos, Eu sou.
Os sonhos despertam, como devem, e o homem é um sonho desperto.
Mas o plasma sem sonhos da Serpente é o plasma do homem, do seu corpo e ao mesmo tempo da sua alma.
E o sonho perfeito da Serpente Eu sou é o plasma do homem, que é íntegro.
Quando o plasma do corpo e o da alma só fazem um, Eu sou na Serpente.
Agora Eu sou.
Não foi é um sonho, assim como será, quais dois pés trôpegos e separados.
Mas Agora. Eu sou.
As árvores desdobram as folhas no sono, e a floração emerge dos sonhos no mais puro Eu sou.
Os pássaros esquecem o peso dos seus sonhos e cantam no Agora: Eu sou! Eu sou!
Porque os sonhos têm asas e pés e caminhos a percorrer, e esforços a realizar.
Mas a Serpente luzidia do Agora não tem asas nem pés, é una, perfeitamente enrolada.
Nos pés dum sonho, a lebre sobe o monte numa corrida. Mas quando se detém o sonho desaparece e ela entra no Presente e os seus olhos são o vasto Eu sou.
Só o homem sonha, sonha, e vai de sonho em sonho, como alguém que, dormindo, se agita no leito.
Sonha com os olhos e a boca, com as mãos e os pés, com o falo, o coração e o ventre, com o corpo e a alma, numa tempestade de sonhos.
E precipita-se de sonho para sonho, na esperança de alcançar o sonho perfeito.
Mas eu afirmo-vos que nenhum sonho é perfeito, porque em todos eles há sofrimento e desejo.
Nada é perfeito, excepto o sonho que falece no sono. Eu sou.
Quando o sonho dos olhos se obscurece, cercado pelo Agora,
E quando o sonho da boca ressoa no último Eu sou,
E quando o sonho das mãos dormita como uma ave no mar, que é erguida, e levada, sem que ela o saiba,
E os sonhos dos pés atingem o centro do mundo, onde a Serpente dorme,
E o sonho do corpo é a calma duma flor oculta,
E o sonho da alma se dissipou no perfume do Agora,
E o sonho do espírito se apazigua e descansa na Estrela da Manhã,
Porque cada sonho começa e termina no Presente,
No âmago da flor está a Serpente que alumia e não desperta.
E o que se apaga é um sonho, e o que se aumenta é um sonho. Há sempre, e somente Agora. Agora e Eu sou."
Reinava o maior silêncio no círculo de homens. Lá fora, rangia um carro de bois e, do lago, elevava-se o débil som de remos a fender a água. Mas os sete homens, de cabeça baixa, escutavam interiormente, numa espécie de transe.
Então o tambor começou, suavemente, e um dos homens cantou, num fio de voz:
O senhor da Estrela da Manhã
Estava entre o dia e a noite:
Tal um pássaro que ergue as asas e espera
com a asa luminosa à direita
E a das trevas à esquerda,
A Estrela de Alva apareceu.
- Olhai! Estou sempre aqui!
Longe, no espaço
Roço a asa do dia
E ilumino o vosso rosto.
com a outra asa roço a sombra.
Mas eu estou sempre aqui.
Estou sempre aqui. Sou o senhor. E os senhores entre os homens Vêem-me no cintilar das minhas asas. E perdem-me outra vez. Mas, olhai! Estou sempre aqui.
As multidões não me vêem. Só vêem o bater de asas, As idas e vindas das coisas, O calor e o frio.
Mas a vós que me vedes entre
O frémito da noite e do dia,
Faço-vos senhores do Caminho Invisível.
Caminho entre abismos de trevas e vales de luz; Caminho que segue tal rasto de serpente, tal a mecha dum rastilho
Que incendiará à substância das trevas e explodirá à vista de todos.
Jamais me afasto. Estou sempre aqui Entre as asas dum voo sem fim, Nas profundezas da paz e da luta.
Profundo no relento da paz,
Longe da orla do combate,
Haveis de encontrar-me, eu que não sou
Nem sou destruição.
Para além eu estou Dos horizontes de amor e de luta, Como uma estrela, como uma fonte Que lava os senhores da vida.
"Ouvi! - disse Ramon, no meio do silêncio. - Seremos senhores entre os homens, não os senhores dos homens. Somos senhores da noite. Senhores do dia e da noite. Filhos da Estrela da Manhã e da Estrela da Tarde.
Não somos senhores dos homens. Eu, porém, sou a Estrela da Manhã e Senhor do dia e da noite. com o poder que me foi concedido à mão esquerda e com o poder que obtive com a mão direita, sou senhor dos dois rumos.
E a minha flor na terra é o jasmim, e no céu a hespéride.
Não vos darei ordens, nem vos servirei, porque a serpente se arqueia em direcção à sua casa.
Contudo, estarei convosco, para que não vos desvieis de vós próprios.
Não há nada a dar nem a receber. Quando os dedos que dão afloram os que recebem, cintila a Estrela da Manhã a esse contacto, e o jasmim brilha entre as mãos. E assim não há dom nem aceitação, nem mão que oferece nem mão que recebe, mas a estrela encontra-se entre elas e a mão escura e a mão clara permanecem invisíveis de cada lado. O jasmim recolhe na corola o dom e a aceitação, e o seu perfume espalha-se no ar.
Não penseis em dar nem em receber, deixai isso à flor do jasmineiro.
Não vos desperdiceis, que nada vos seja arrancado.
E não percais nada, nem o aroma da rosa, nem o sumo da romã, nem o calor do fogo.
Mas dizei à rosa: - Olha, colho-te, e o teu perfume enche-me as narinas e o meu hálito penetra no teu coração. Que isso seja entre nós como um sacramento.
E tomai cuidado quando abrirdes a romã; é o Sol poente que tendes nas mãos. Dizei: - Eis-me aqui, vem! Que a Estrela da Tarde fique entre nós.
E quando a chama se eleva ao sopro do vento frio e estendeis as mãos para o calor, ouvi o que a chama diz: - Ah! És tu? És tu que vens para mim? Eu realizava a grande viagem, seguindo o caminho da serpente magna. Mas visto que vens até mim, de ti me aproximo. E se caíres nas minhas mãos cairei nas tuas, e a flor do jasmineiro perfumará o nosso encontro.
Não repilais nada nem deixeis que vos despojem. Porque repelir ou ser despojado quebra a raiz do jasmim e conspurca a Estrela da Tarde.
Não vos apodereis de nada para dizer: - Isto pertence-me. Nada existe que vos seja dado possuir, nem sequer a paz.
Nada; nem o ouro, nem a terra, nem o amor, nem a vida, nem a dor, nem a morte, nem a salvação.
De nada direis: - Isto é meu.
Dizei apenas: - Isto está comigo.
Porque o ouro só permanece convosco o espaço duma lua, e olha-vos e diz: - Encontramo-nos ligados por este breve instante.
E a terra diz-vos: - Ah, filho meu, de pai longínquo! Vem, revolve-me um pouco, para que as papoulas e o trigo cresçam e ondulem ao vento que sopra entre o meu e o teu peito. Depois, abisma-te em mim, e ambos formaremos um outeiro.
E ouvi o que diz o vosso amor: - A tua espada ceifou-me como à erva, e sobre mim está a sombra e o bruxulear da Estrela da Tarde. Não é mais do que trevas e nada. Ó tu, quando te levantares e prosseguires o teu caminho, fala-me, dize-me simplesmente: - A estrela despontou entre nós.
E dizei à vida: - Sou teu? És minha? Sou a orla do dia em volta da noite? São os meus olhos o crepúsculo onde a estrela se suspende? É o meu lábio superior o pôr do Sol e o meu lábio inferior o raiar da manhã? Tremula a estrela na minha boca?
E dizei à vossa paz: Ergue-te, estrela imortal! Já as águas da aurora te alagam e me levam no seu curso.
E dizei à dor: Machado, abates-me. E, contudo, brota uma centelha do teu gume e da minha ferida. Corta, então, que eu velarei a face, ó pai da estrela!
E dizei à vossa força: A espuma da noite sobe-me dos pés até aos rins, a espuma do dia salta-me dos olhos e da boca para o mar do meu peito. As minhas entranhas são um manancial de poder que corre pela espinha dorsal. E uma estrela flutua sobre esse fluxo.
E dizei à vossa morte: Pois seja! Eu e a minha alma iremos para ti, Estrela da Tarde. Carne, desaparece na sombra da noite. Espírito, chegou o teu dia. Deixai-me agora. Na minha nudez suprema me encaminho para a Estrela mais nua."

XII
Os homens envergaram o casaco, puseram o chapéu e, depois de cobrirem os olhos por um momento numa saudação a Ramon, desceram a escada de pedra. Fechou-se a porta com estrondo e o porteiro, voltando com a chave, pousou-a sobre o tambor e retirou-se discretamente.
Ramon ficou sentado em cima da manta, com os ombros nus apoiados à parede e de pálpebras cerradas. Sentia-se fatigado, nesse estado de abstracção que torna difícil o regresso ao mundo normal. Ouvia de modo vago os rumores na casa, tilintar de colheres de chá, vozes femininas conversando, o ronco dum automóvel que se aproximava pelo caminho desnivelado e se detinha no pátio.
Custava-lhe voltar à terra. Ressoava-lhe aos ouvidos o barulho do exterior, mas dentro dele mesmo escutava o murmúrio confuso do universo, como se num búzio. Era-lhe penoso retomar contacto com as coisas da vida corrente quando o corpo e a alma mergulhavam no cosmos.
Gostaria de se conservar ainda uns instantes no seu isolamento, mas não era possível. Reclamavam a sua presença, especialmente Carlota.
Já ela o chamava: "Ramon! Isso terminou? Cipriano está aqui." Sentia-se-lhe na voz receio e temeridade.
Ramon puxou os cabelos para trás, ergueu-se e, em passo rápido, acudiu ao chamamento tal como se encontrava, de torso nu. Não tinha vontade de se vestir, de reentrar nos pormenores da vida quotidiana.
Cipriano, fardado, achava-se no terraço abancado à mesa do chá. Levantou-se prontamente e avançou para Ramon de braços abertos, perscrutando o rosto do amigo com os seus olhos negros e brilhantes.


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Os dois homens abraçaram-se, peito contra peito, e, por momentos, Cipriano deixou estar as mãos morenas nas espáduas nuas de Ramon. Então afastou-se devagar e fitou-o sem proferir uma palavra.
Ramon pousou distraidamente a mão no ombro de Cipriano.
- Que tal? - perguntou. - Como vai isso?
- Bien. Muy bien - respondeu Cipriano, fixando-o sempre como se se procurasse a si mesmo no semblante de Ramon. Este correspondeu ao olhar do índio com um leve sorriso, enquanto Cipriano baixava a cabeça e os cabelos longos lhe tombavam na testa.
As duas mulheres observavam a cena em silêncio absoluto. Quando os dois homens se aproximaram da mesa, Carlota começou a servir o chá. Mas as mãos tremiam-lhe e ela tratou de pousar o bule e cruzá-las no regaço.
- Passearam de barco? - indagou Ramon, com ar alheado.
- Passeámos, e foi muito agradável - disse Kate. - Um bocado quente, quando o sol apareceu...
Ramon esboçou um sorriso e alisou o cabelo. Em seguida, descansando a mão no parapeito do terraço, olhou para o lago e suspirou inconscientemente.
Nu da cintura para cima, voltava costas às mulheres, contemplando a vastidão da água. Cipriano estava a seu lado.
Kate observava as espáduas lisas, morenas, que emanavam sensualidade, os ombros largos, o porte altivo da cabeça - e não podia deixar de imaginar uma lâmina cravada nessas costas magníficas, nem que fosse só para destruir a sua arrogância distante.
Porque até a sua nudez parecia distante, intangível. Pensar nela e contemplada daquele modo representava quase uma violação. Kate sentiu de súbito o coração estremecer-lhe de vergonha. Fora assim que Salomé olhara para João Baptista, e Ramon possuía essa mesma beleza que evocava uma romã destacando-se na verdura sombria da árvore.
Soprava branda a aragem da tarde. Na luz nacarada deslizavam barcos, enquanto o Sol luzia ainda no horizonte. Distinguia-se a margem oposta, a cerca de vinte milhas, embora velasse a atmosfera uma bruma opalina que se confundia com a água do lago. Kate lobrigava a mancha clara da igreja de Tuliapan.
No jardim da casa havia um bosquete de mangueiras, onde voavam cá e lá passarinhos escarlates, como botões de papoula, e outros dum amarelo cintilante. Contudo, quando pousavam por um momento e fechavam as asas, desapareciam da vista, pois eram escuros por cima.
- Neste país, os pássaros só são coloridos por baixo das asas - observou Kate.
Ramon voltou-se bruscamente para ela.
- Dizem que a palavra México significa "por baixo" - replicou, sorrindo, enquanto se afundava numa cadeira de balouço.
Dona Carlota fizera um esforço sobre si mesma e, de olhos fixos nas chávenas, servia o chá. Apresentou uma xícara ao marido, sem sequer o relancear. Tremia de cólera quase histérica. Ela, que era sua esposa desde tantos anos e que o conhecia tão bem (ah, se o conhecia!), nada possuía desse homem.
- Passa-me o açúcar, Carlota - disse Ramon na sua voz calma.
A mulher sobressaltou-se como se a beliscassem de repente.
- O açúcar? - repetiu, distraída.
Ramon estava sentado na cadeira, pendido para a frente e de xícara na mão. A tela fina que lhe cobria as coxas revelava-lhe mais o corpo do que a nudez do torso. Kate percebeu porque é que era proibido usar calças de algodão naplaza. Tornavam mais sensível a presença da carne.
Verdadeiramente belo, duma beleza que chegava a ser assustadora, irradiava uma sensualidade pura, hostil ao género de pureza de Kate, com a sua faixa azul de roda da cinta e as calças brancas parecendo fremir de vida cingidas aos quadris e às coxas. Tão poderoso fluido emitia esse ente másculo que Kate se sentia como que fascinada.
E ele, perfeitamente tranquilo, dentro do seu próprio ambiente. O mesmo acontecia a Cipriano. Ambos tão calmos, tão sombrios, dir-se-iam esmagar as duas mulheres.
Kate compreendeu então os sentimentos de Salomé. Compreendeu como João Baptista, com a sua beleza distante e inacessível, exercera tamanho poder.
"Ah! disse ela consigo mesma. - Tenho de fechar os olhos e abrir a alma. Fechar os olhos para não ver e ficar na escuridão e no silêncio junto destes dois homens. Possuem uma riqueza que me falta. Conseguiram libertar-se do desejo que a vista suscita. Sou atormentada pelo desejo, pela minha imaginação lasciva. É a maldição de Eva. Os meus olhos, a minha experiência são como um anzol que me repuxa a carne e me desperta espasmos de desejo. Oh, quem me dera libertar-me da impureza do olhar! Filha de Eva, porque é que estes homens me não arrancam às visões impuras?"
Levantou-se e dirigiu-se à beira do terraço. Amarelos como narcisos, emergiam dois pássaros da sua própria invisibilidade. Na praia de seixos, onde estava um barco varado, dois homens apanhavam à rede os peixinhos denominados chcirales, que cintilavam na água acastanhada como lascas de vidro.
- Ramon! - disse Dona Carlota. - Não vais vestir-te? Já não podia suportar aquela vista.
- vou. Obrigado pelo chá - respondeu o marido, pondo-se de pé. E seguiu pelo terraço adiante, com as sandálias a ranger de leve no pavimento de tijolos.
- señora Caterina! - chamou Carlota. - Venha beber o seu chá.
Kate voltou para a mesa, dizendo:
- Que paz se sente aqui!
- Paz! - repetiu Carlota. - Não acho paz nenhuma. O que há é um silêncio pavoroso que me causa arrepios.
- Vem cá frequentemente? - perguntou Kate a Cipriano.
- Sim, uma ou duas vezes por semana - respondeu ele, fixando-a com singular expressão nos olhos negros.
Dir-se-ia que esses homens procuravam anular-lhe a vontade.
- São horas de eu voltar para casa - declarou ela. - Não tarda que o Sol desapareça.
- Ya va? - redarguiu Cipriano, com a sua voz aveludada em que transparecia certa pena. - Já!
- Oh, não, señora! - exclamou Carlota. - Fique connosco até amanhã.
- Mas estão em casa à minha espera.
- Mandarei um rapaz prevenir que só regressa amanhã. Fica, não é verdade? Ah, ainda bem.
E Carlota, depois de pousar a mão carinhosa no braço de Kate, levantou-se a fim de avisar os criados.
Cipriano puxou da cigarreira e ofereceu-a a Kate.
- Não se escandalizará se eu fumar? - disse ela. - É um dos meus vícios.
- Fume. Não é bom sermos perfeitos.
- Acha que não? - E Kate, rindo-se, puxou uma fumaça do cigarro.
- Experimenta realmente essa paz? -inquiriu ele, irónico.
- Porquê?
- Porque é que os brancos andam sempre em busca da paz?
- Pois não é natural que todos desejem paz?
- Paz é apenas o descanso depois da guerra. Não é mais natural do que a luta; talvez até seja menos.
- Mas existe outra paz, aquela que ultrapassa o entendimento. Não sabia?
- Parece-me que não - respondeu Cipriano. - Que pena!
: - Ah! Quer ensinar-me? Mas para mim é diferente... Cada
homem tem dois espíritos. Um assemelha-se à aurora na época das chuvas, suave, fresca, húmida, com pássaros chilreando. O outro é como a estação seca, com a sua luz forte e ardente que parece nunca mais abrandar.
- Decerto prefere o primeiro.
- Não sei - replicou Cipriano. - O outro dura mais.
- Tenho a certeza que prefere a frescura da manhã - insistiu Kate.
- Não sei, não sei. - E esboçou um sorriso, deixando Kate
convencida de que ele de facto não sabia. - Na primeira fase vemos as flores nas suas hastes transbordantes de seiva. A flor desa brocha como uma face de mulher perfumada pelo desejo. Mas o sol começa a aquecer, e então tudo se modifica. As flores murcham e o peito do homem torna-se como um espelho de aço. Dentro dele tudo
- é escuridão, enroscando-se e desenroscando-se como uma cobra. As flores secaram nas hastes, as mulheres já não existem para o homem. Umas e outras desapareceram.
- Que pretende ele então? - perguntou Kate.
- Não sei. Talvez queira ser uma grande personagem, senhor de todos os povos...
- E porque não realiza essas aspirações?
Cipriano encolheu os ombros.
A señora assemelha-se à manhã de que lhe falei há pouco -
disse ele.
- Tenho quarenta anos - replicou Kate com um risinho amarelo.
O general tornou a encolher os ombros.
- Isso não interessa. O seu corpo parece o caule da flor a que
aludi, e o seu rosto será sempre a aurora na estação das chuvas.
- Porque me diz essas coisas? - volveu Kate, com involuntário e estranho tremor.
- E porque não hei-de dizer? A señora é tal uma manhã cheia de frescura, e estamos no fim da época seca...
Observava-a, e nos seus olhos brilhava o desejo, aliado a certa insolência.
Kate baixou a cabeça e balançou-se na cadeira.
- Gostaria de casar consigo - continuou Cipriano. - Se estivesse disposta a isso, desposá-la-ia.
- Não me parece que me torne a casar - ripostou Kate, anelante e de faces afogueadas.
- Quem sabe?
Ramon surgiu no terraço, com a sua bela serape dobrada sobre o ombro nu. Apoiou-se num dos pilares e contemplou Kate e Cipriano, o qual ergueu a vista e lhe dirigiu um sorriso em que transparecia a amizade que os ligava.
- Disse à señora Caterina que a desposaria se ela estivesse disposta a casar-se - declarou ele.
- É o que se chama falar sem rodeios - replicou Ramon, olhando para Cipriano com o mesmo sorriso amigo. Em seguida, o seu olhar pousou-se em Kate, enquanto o sorriso se alastrava e todo o seu rosto respirava compreensão. Cruzou os braços, como fazem os índios quando querem defender-se do frio; e a carne, dum tom castanho-claro, como ópio, formava saliências no peito largo, cheio e liso.
- Diz Don Cipriano que os Brancos só desejam a paz - proferiu Kate, fitando Ramon com deliberada impertinência. - Não se consideram brancos?
- Não mais brancos do que somos - respondeu Ramon, sorrindo. - Pelo menos, não duma brancura de lírio...
- E não buscam a paz?
- Por mim não penso nisso. Os mansos herdarão a terra, segundo a professia. Mas quem sou eu para lhes invejar a sua paz? Não señora. Por acaso pareço um evangelho de paz? Ou de guerra? A vida para mim não se resume nessas duas coisas.
- Não sei afinal o que desejam - disse Kate.
- Nós próprios não o sabemos senão em parte - replicou Ramon, mudando de expressão.
Havia nele uma espécie de bondade paternal que enchia Kate de espanto e a sobressaltava como se só agora compreendesse o verdadeiro significado de tal sentimento. Mistério, nobreza, inacessibilidade, e a vulnerável compaixão de homem na sua amizade desinteressada...
- Não gosta das pessoas de pele escura? - perguntou Ramon em tom suave.
- Acho-as belas à vista - respondeu Kate. - Mas - acrescentou, com um leve arrepio - estou contente por ser branca.
- Sente que não é possível nenhum contacto?
- Exactamente.
- É a sua impressão - volveu Ramon, e, enquanto ele falava, Kate percebeu que o considerava mais atraente do que a qualquer homem loiro e que, por muito vago que fosse, o contacto que tinha com ele lhe era mais precioso do que todos os que até aí conhecera.
Contudo, embora lhe lançasse certa sombra, não tentava influenciá-la, nem queria maior aproximação - ao passo que Cipriano, sentindo-se incompleto, a procurava e parecia violar-lhe a personalidade.
À voz de Ramon, Dona Carlota assomou a uma das portas mas, ouvindo falar inglês, tornou a sumir-se, num brusco acesso de cólera. Daí a pouco reaparecia, trazendo um vaso de flores carnudas, dum branco leitoso, semelhantes a frésias no tom e no perfume.
- Que lindas! - exclamou Kate. - São flores de igreja! No Ceilão, os indígenas entram nos seus templos e depõem uma flor num tabuleiro aos pés do Buda. E os tabuleiros das oferendas ficam cobertos dessas flores, todas muito bem arranjadas, dispostas com delicadeza oriental...
- Mas eu não as trouxe para homenagear deuses - replicou Carlota, pousando o vaso na mesa. - Trouxe-as para si, señora. Cheiram tão bem!
- De facto, têm um aroma delicioso - concordou Kate. Os dois homens afastaram-se, rindo.
- Ah, señora! - disse Carlota, sentando-se à mesa. - Pode entender Ramon? Seria capaz de renunciar à Santa Virgem? Eu antes queria morrer.
- Não precisamos doutros deuses, realmente - redarguiu Kate, com certo enfado.
- Outros deuses! - repetiu Carlota, escandalizada. - Como se fosse possível! Ramon comete um pecado mortal.
Kate conservou-se calada.
- E quer induzir o povo a fazer o mesmo - prosseguiu Carlota. - É pecado de orgulho... o pecado cardeal. Ainda bem que a señora pensa como eu. Receio as americanas que, para se apoderarem do espírito dos homens, aceitam todas as suas loucuras e perversidades... É católica, señora?
- Fui educada num convento.
- Ah, señora! Qual a mulher que tendo conhecido a Santíssima Virgem se afasta dela? Que mulher teria ânimo de crucificar Jesus novamente? Mas os homens, os homens! Aquela história de Quetzalcoatl seria coisa para rir se não fosse um pecado mortal. E da parte de dois homens inteligentes e instruídos tanta presunção!
- Os homens são assim - observou Kate.
Intensificava-se o crepúsculo; o horizonte estava ainda luminoso, mas o Sol afundara-se numa bruma cor-de-rosa, por trás das arestas da montanha. As colinas erguiam-se azuladas numa atmosfera cor de salmão que se reflectia na água. Lá adiante, onde o clarão rubro se adensava, banhavam-se homens e crianças.
Kate e Carlota subiram à azotea, o terraço que cobria a casa. Dali podiam ver a hacienda com o seu pátio semelhante a uma fortaleza, o caminho ladeado de árvores frondosas, as cabanas de adobe perto da estrada e as fogueiras já bruxuleando junto das casas. No ar róseo os salgueiros da margem pareciam mais verdes e cintilantes. Ao longe, luziam entre as árvores as duas torres brancas de Sayula. Deslizavam barcos em direcção à parte sombreada do lago.
E num desses barcos, deveras desconsolada, regressava Juana a casa.

XIII
Ramon e Cipriano encontravam-se à beira do lago. O general envergara também fato branco e sandálias, o que lhe ia melhor do que a farda.
- Tive uma conversa com Montes quando ele foi a Guadalajara - declarou Cipriano.
Montes era o presidente da República.
- E que te disse?
- Não se alarga muito a falar, mas depreendi que não simpatiza com os colegas e se sente isolado. Julgo que gostaria de te conhecer melhor.
- Porquê?
- Talvez pudesses dar-lhe apoio moral. Talvez chegasses a ser ministro; e até presidente, depois de Montes acabar o seu mandato.
- Montes agrada-me - replicou Ramon. - É sincero e ardente. Gostaste dele?
- Sim, mais ou menos - respondeu Cipriano. - É desconfiado, teme que outros pretendam compartilhar com ele o poder. Tem instintos de ditador. Quis saber se eu lhe era afecto.
- Deste-lhe a entender que sim?
- Disse-lhe que tudo o que me interessava verdadeiramente eras tu e o México.
- E que te respondeu?
- Ele não é tolo. Respondeu: "Don Ramon vê o mundo com olhos diferentes dos meus. Qual de nós terá razão? Eu quero salvar o país da pobreza e da ignorância, ele quer salvar-lhe a alma. Mas afirmo que um homem esfomeado e ignorante não tem lugar para a alma. Um ventre e um cérebro vazios roem-se a si mesmos, e a alma não existe. Don Ramon acha que um homem desprovido de alma pode passar sem o alimento do corpo e do intelecto. Pois que siga o seu caminho, que eu sigo o meu! Não nos embaraçaremos um ao outro. Dou a minha palavra que não interferirei em nada. Ele varre o pátio, eu trato da limpeza da rua.
- É sensato - comentou Ramon - e honesto nas suas convicções.
- Porque não serias ministro daqui a uns meses? E mais tarde presidente?
- Bem sabes que não é isso o que pretendo. Devo poupar-me e agir noutra esfera. A política que se mantenha ou evolua como eles entendem, a sociedade que faça o que quiser. Deixa-me em paz, Cipriano. Gostarias que eu fosse outro Porfirio Diaz, ou alguém do mesmo género, mas isso para mim seria pura e simplesmente soçobrar na vida.
Cipriano observava Ramon com os seus olhos negros e vigilantes, onde transparecia amizade, receio, confiança, mas também incompreensão, e a dúvida que sempre a acompanha.
- Não chego a perceber o que desejas - murmurou.
- Percebes, sim. A política e toda essa religião social com que Montes se preocupa equivale a lavar a casca dum ovo para lhe dar aspecto limpo. A mim, porém, só interessa o interior... Ah, Cipriano! O México é tal um ovo que o Tempo choca desde séculos neste ninho do mundo e que parece ser goro. Parece, mas não é. O que precisa é de calor que ajude a formação da ave. Montes quer limpar o ninho e lavar o ovo... Que aconteceria se tirassem um ovo de baixo duma águia para o lavar? Arrefeceria de vez. Pois quanto mais se empenharem em arrancar este povo da pobreza e da ignorância mais depressa ele morrerá. Pobre Montes! Todas as suas ideias são americanas ou europeias. E a velha pomba da Europa jamais poderá chocar com êxito o ovo escuro da América. Os Estados Unidos não morrem porque não estão vivos. É um ninho de ovos de loiça e por isso se conservam limpos. Mas aqui, Cipriano, aqui é necessário incubá-los antes da limpeza do ninho.
Cipriano baixava a cabeça. Experimentava sempre Ramon para ver se conseguia fazê-lo mudar de ideias e, depois de verificar a inutilidade dos seus esforços, submetia-se ao amigo e novas chamas de felicidade se alteavam dentro dele. Mas, entretanto, ia-o experimentando...
- Não serve de nada querer misturar as duas coisas. No ponto em que estão, não se misturam. Temos de fechar os olhos e mergulhar até ao fundo, como pescadores de pérolas. Mas andamos a flutuar à superfície, semelhantes a bocados de cortiça...
Cipriano mostrou um sorriso subtil. Tudo aquilo ele sabia!
- Temos de abrir a ostra do cosmos e extrair dela a nossa força.
Enquanto não arrancarmos a pérola não seremos mais do que mosquitos no cimo do oceano - concluiu Ramon.
- A minha força é como um demónio dentro de mim - disse Cipriano.
- Porque a ostra a retém fechada, como uma pérola negra. A ti compete libertá-la.
- Ramon, não acharias bom ser uma serpente, uma serpente enorme que se enrolasse em volta do globo e o esmagasse... como a esse ovo?
Ramon olhou-o e pôs-se a rir.
- Não me parece coisa impossível - continuou Cipriano. E não seria bom?
O outro meneou a cabeça, rindo-se.
- Pelo menos seria um momento bom.
- Que mais se pode desejar?
Brilhou nos olhos de Ramon uma centelha que logo se apagou.
- Para quê? - disse em voz surda. - Depois de esmagado o ovo que havíamos de fazer senão errar nos corredores de trevas e lamentar-nos? Para quê?
Ramon pôs-se de pé e afastou-se. O Sol desaparecera, a noite descia. Na alma daquele homem fervia uma cólera imensa, e Carlota é que a provocava. A mulher parecia incutir vida ao monstro da sua raiva íntima, e Cipriano exasperava-o.
"A minha força é como um demónio a rugir dentro de mim", disse Ramon consigo mesmo, repetindo a frase de Cipriano.
Reconhecia o direito de gritar a esse demónio humilhado e ridicularizado que vivia preso dentro dele. E a fúria apoderou-se de Ramon, contra Carlota, contra Cipriano, contra a humanidade inteira. Os seus partidários traí-lo-iam, tinha a certeza. Cipriano acabaria por traí-lo. Desde que lhe encontrassem o mínimo ponto fraco, todos saltariam sobre ele como tarântulas e infectá-lo-iam com a sua peçonha.
E qual o homem absolutamente invulnerável, sem o menor ponto fraco?
Ramon subiu ao seu quarto pela escada exterior, no lado da casa, e sentou-se na cama. A noite estava quente, pesada, e duma calma aflitiva.
- Prepara-se chuva - ouviu ele dizer a um dos criados. Fechou as portas do quarto e ficou às escuras. Então despiu-se todo, murmurando: "Repudio o mundo juntamente com esta roupa." E de pé, nu e invisível no meio do quarto, ergueu ao ar o punho fechado, com tal força que teve a sensação de que lhe estalavam as paredes do peito. A mão esquerda pendia ao longo do corpo, mole, com os dedos levemente curvados.
Tenso como o jacto duma fonte silenciosa, distendeu-se até abranger o âmago impalpável das trevas. E as vagas de escuridão começaram a lavar-lhe o espírito, a consciência; ondas de negrume rebentando-lhe na memória, em todo o seu ser, como uma maré que sobe. Até que foi maré cheia e ele, tremendo, se deixou cair por terra, para descansar. Invisível nas trevas, ficou a olhar para o vácuo, sentindo o misterioso fluxo interior purificar-lhe as entranhas e o coração, sentindo o espírito dissolver-se no Espírito maior que nenhum pensamento perturba.
Cobriu o rosto com as mãos e ali esteve imóvel, inconsciente, já sem nada sentir nem ouvir, semelhante a uma alga submersa no mar. Abolira-se o Tempo, abolira-se o Mundo, submerso nas profundezas que são intemporais e inespaciais.
Quando o coração e as entranhas despertaram para a vida, o espírito principiou a bruxulear tal uma chamazinha que vacila e não se apaga.
Enxugou a cara com as mãos, pôs a serape na cabeça e em silêncio, numa aura de sofrimento, desceu a escada, levando consigo o tambor.
Martin, o servo devotado, andava cá e lá no zaguán.
- Ya, patrón? - perguntou.
- Ya! - respondeu Ramon.
O homem correu à vasta cozinha onde ardia uma candeia, e voltou com um braçado de esteiras.
- Onde as colocamos, patrão?
Ramon hesitou no meio do pátio, olhando para o céu.
- Viene el agua?
- Creo que si, patrón.
Dirigiram-se para o alpendre onde haviam carregado as azémolas com os fardos de bananas. Aí, Martin arremessou ao chão as petates, que Ramon dispôs em ordem. Guisleno apareceu, trazendo canas para fazer tochas, das mais primitivas: três canas amarradas em cima com um cordel, formando tripé de cintura alta, e, na parte superior, uma pedra de lava mais ou menos oca. Realizado esse trabalho,
Guisleno foi a casa e voltou a correr com um pedaço de madeira inflamada. Três ou quatro pauzinhos de ocote colocados na pedra - e as chamas ergueram-se, enchendo o pátio de sombras vacilantes.
Ramon dobrou a serape e sentou-se em cima. Guisleno acendeu outro tripé-archote. A luz bailava nas sobrancelhas carregadas de Ramon, dava-lhe ao peito cintilações de ouro.
Agarrou no tambor e fez soar o apelo monótono, lento, um tanto melancólico. Passados instantes, chegou o tocador habitual, que levou o instrumento para a alameda sombria, onde então se ouviu um rufo vivo e forte.
Ramon enfiou a serape, cujas franjas lhe roçavam os joelhos, e ficou imóvel, com os cabelos em desordem. Rodeava-lhe os ombros a serpente do tecido, o pescoço erguia-se-lhe no meio do pássaro azul.
Cipriano apareceu, vindo da casa. Trazia serape castanha e vermelha, ornamentada com um sol escarlate. Postou-se ao lado de Ramon, e olhou-lhe de relance para a cara. Mas, de sobrancelhas franzidas, o outro fixava a sombra dos alpendres no extremo do pátio. Olhava para o coração do mundo; porque a face dos homens e o coração dos homens são areias movediças, e só no coração do cosmos pode alguém encontrar força.
Cipriano voltou os olhos negros para a banda do pátio. Os seus soldados aproximavam-se em grupo. Três ou quatro homens de mantas pardas rodeavam o lume. De pé, junto de Ramon, Cipriano parecia um cardeal, um pássaro de cor vistosa. Até as sandálias eram escarlates, e encarnadas as fitas que atavam as calças de linho branco aos tornozelos. Ao clarão das tochas tinha um ar demoníaco, com a pele muito escura, a barbicha preta e as pupilas cintilando sardonicamente.
Chegavam peóns, pelo portão da entrada, balançando os chapéus largos. Acorriam mulheres descalças, com as saias a oscilar, transportando os seus nenés envoltos nos rebozos e seguidas por uma caterva de garotos. Todos se agrupavam em volta dos archotes, como animais bravios, contemplando o círculo de homens de serape, do qual se destacavam Ramon e Cipriano, um de azul e branco, outro de vermelho.
Carlota e Kate emergiram de casa. Carlota, porém, ficou junto da porta, embrulhada num xaile de seda preta. Sentou-se num banco de pau aquém do clarão avermelhado, e pôs-se a observar os homens escuros, a beleza altaneira de Ramon, o traje escarlate de Cipriano, o grupo de soldados e a massa compacta de peóns, mulheres e crianças. Enquanto desfilava gente através do portão, soou o tambor e uma voz elevou-se, cantando:
Alguém vai franquear a porta, Agora, agora mesmo, ay! E verá a luz no homem que espera. Serás tu? Serei eu?
Alguém vai aproximar-se do fogo, Agora, agora mesmo, ay! E escutarás as palavras do seu coração. Serás tu? Serei eu?
Alguém baferá quando a porta se fechar, Ay, num momento, ay! Ouvirá dizer: Não te conheço. Serás tu? Serei eu?
De cada vez o ay se elevava num grito selvático que fazia calafrios a Carlota.
Envolta num xaile amarelo, Kate aproximou-se lentamente do grupo.
O tambor calou-se e o homem, entrando no pátio, fechou o portão e misturou-se aos assistentes.
Ramon continuava a olhar para o vácuo, de sobrolho carregado. Então, no meio do silêncio, disse em voz baixa, contida:
- Assim como tiro este abafo me liberto eu do dia que passou. Despiu a serape e pô-la no braço. Todos os homens do círculo o
imitaram, ficando de torso nu. Cipriano, muito escuro e com ar sólido apesar do tamanho reduzido, conservava-se ao lado de Ramon.
- Afasto de mim o dia que passou - prosseguiu Ramon - e fico de coração descoberto na noite dos deuses.
Em seguida olhou para o chão e disse:
- Vem, serpente da terra, serpente que jazes no fogo do coração do mundo. Vem, serpente do fogo no coração do mundo, enrola-te como ouro em volta dos meus artelhos, ergue a cabeça e apoia-a na minha coxa. Vem, descansa a cabeça na minha mão, serpente dos abismos. Beija-me os pés e os tornozelos com a tua boca de ouro, beija-me os joelhos e as coxas, serpente marcada de luz e de sombra. Vem, repousa a cabeça na concha da minha mão.
A voz suave e hipnótica extinguiu-se no silêncio envolvente. E parecia que na verdade uma presença misteriosa emergia do mundo subterrâneo, que uma serpente mosqueada de ouro e negro se enroscava nas pernas de Ramon e lhe lambia a palma da mão com a língua bifurcada...
Circunvagou a vista pela assistência boquiaberta e de olhos dilatados, e prosseguiu:
- Digo-vos, e com absoluta certeza. No coração desta terra dorme uma grande serpente no meio do fogo. Aqueles que descem às minas sentem-lhe o calor e o suor, ouvem-na mover-se. É o fogo vital da terra, porque a terra vive. A serpente do mundo é enorme, as rochas são as suas escamas, e entre elas crescem as árvores. Digo-vos que a terra que cavais está viva como uma serpente adormecida. Sobre ela andais, e este lago descansa nos seus anéis como uma gota de chuva numa cobra cascavel. Contudo, tem vida. A terra vive. Se a serpente morresse, todos morreríamos. Só a sua vida assegura a humidade do solo que faz germinar o nosso milho. Das suas escamas extraímos prata e ouro, e as árvores têm nela as suas raízes como os cabelos têm a raiz sob a nossa pele. A terra vive. Mas a serpente é grande, e nós somos mais pequenos do que um grão de poeira. E por vezes ela zanga-se e diz: Estes entes, mais insignificantes do que átomos de pó, espezinham-me e asseveram que estou morta. Até às bestas costumam falar, gritando: Arre, burro! A mim, porém, não dirigem uma palavra. Por isso lhes voltarei costas, como uma mulher volta costas ao marido e lhe consome o espírito com a sua cólera... Eis o que a terra nos diz, e a tristeza e o desânimo avassalam-nos os pés e os rins. Porque assim como uma mulher irritada tira o entusiasmo e a alegria ao homem, assim a terra pode enregelar-nos a alma e tornar a existência fatigante aos nossos membros. Falai, pois, à serpente do coração do mundo, banhai de óleo os vossos dedos e abaixai-os para que ela experimente o óleo da terra e deixe que a vida nos suba ao longo das pernas, como a seiva do milho novo faz estalar a casca e brotar o leite da planta entre as barbas. Do coração da terra o homem sente subir nele a sua força; tal o milho que, ufano, ergue as suas folhas verdes, erguei-vos vós também e deixai aprofundarem-se as vossas raízes cada vez mais, porque não tardam as chuvas e é tempo de produzir no México.
Calou-se Ramon, ensurdeceu o tambor, e todos os homens do círculo fitaram a terra, deixando pender molemente a mão esquerda.
Dona Carlota, que não conseguira ouvir, aproximou-se do lado de Kate, como se fascinada pelo marido. A irlandesa, num movimento inconsciente, olhou para o chão e, às ocultas, baixou os dedos de encontro à saia. Mas teve medo do que lhe poderia acontecer e escondeu a mão no xaile.
De repente o tambor vibrou numa nota muito forte, seguida de outra mais fraca: estranho, impressionante efeito.
Os circunstantes levantaram a cabeça. Ramon alçara o braço direito, num gesto enérgico, e espiava o negrume do firmamento. Imitaram-no os do círculo, e os braços nus, erguidos, semelhavam uma série de rochedos.
- Assim, acima, acima! - gritou uma voz bárbara.
- Acima, acima! - repetiram todos, num coro feroz. Involuntariamente, brandiram o braço, voltando o rosto para o
céu sombrio. Algumas das mulheres, mais audazes, fizeram o mesmo, e, com esse gesto, experimentaram uma sensação de paz.
Kate não alçou o braço.
Reinou profundo silêncio; até o tambor se calara. Ouviu-se então a voz de Ramon, dirigindo-se ao céu tenebroso:
- As tuas asas estão escuras, Pássaro, voas muito baixo esta noite. Voas baixo sobre o México, e em breve sentiremos roçar em nossas faces o leque das tuas asas. Ah, Pássaro! Voas onde queres. Ultrapassas as estrelas e empoleiras-te no Sol. Desapareces da vista e dissipas-te no além do rio branco do céu, mas voltas como os patos do Norte, em busca de água e do Inverno. Poisas no centro do Sol e alisas as penas... Banhas-te na corrente de estrelas e ergues em teu redor uma poalha de ouro. Voas nas profundezas do céu donde parece que jamais se volta. Mas regressas, e pairas sobre nós, e sentimos no rosto a aragem das tuas asas...
Enquanto ele falava levantou-se vento em rajadas, uma porta bateu, vibraram vidraças e as árvores pareceram rasgar-se.
- Vem, ó ave dos vastos céus! - bradou Ramon num apelo selvático. - Vem, pousa no meu punho, na minha cabeça, dá-me o poder divino e a sabedoria. Ó Pássaro, ainda que o trovão ribombe quando sacodes as asas, ainda que deixes cair na terra a serpente de fogo que tens no bico, ainda que venhas como fulminador, vem, ó Pássaro! Empoleira-te um momento no meu punho, estende as asas sobre a minha cabeça, toca-me a fronte com o teu peito. Pássaro errante, ave do Além, com o trovão nas garras e a serpente no bico, com o azul nas asas e a nuvem no colo, com o sol no peito e a sabedoria no voo, vem sobre mim, vem!
O vento agitava a chama das tochas e o lago começou a falar numa voz cavernosa que dominava o sussurro das árvores. Ao longe, por cima das colinas, os raios sulcavam o céu.
Soou o tambor, e Ramon desceu o braço que mantivera erguido. E disse então:
- Sentai-vos um instante, antes que o Pássaro sacuda a água das asas, o que não tardará. Sentai-vos.
A assistência moveu-se. Os homens puxaram as serapes para a testa, as mulheres cingiram mais a si os rebozos, e todos se sentaram no chão. Só Kate e Carlota ficaram de pé, a certa distância.
- A terra é viva, o céu é vivo, e entre ambos vivemos nós - prosseguiu Ramon na sua voz habitual. - A terra beijou-me os joelhos e concedeu-me força às entranhas. O céu descansou-me no punho e transmitiu o seu poder para o meu peito.
Assim como a Estrela de Alva brilha entre o céu e a terra, uma estrela pode surgir em nós entre o coração e os rins.
É a virilidade do homem e a feminilidade da mulher.
Ainda não sois homens. E vós, mulheres, ainda não sois mulheres.
Correis, agitais-vos, morreis, mas ainda não encontraste a estrela da vossa virilidade surgida de vós mesmos; nem a estrela da vossa feminilidade cintilando entre os vossos seios, ó mulheres!
Digo-vos no entanto: para aquele que desejar, nascerá nele a estrela da sua virilidade, e então será perfeito como é perfeita a Estrela da Manhã.
E a estrela da mulher aparecerá entre a orla espessa da terra e o vácuo cinzento do céu. Mas como conseguiremos isso? Como poderá ser?
Baixai os dedos para a carícia da Serpente da terra. Erguei o punho para que aí pouse a Ave distante.
Tende a coragem de ambos, a coragem do raio e a do sismo.
E a sabedoria de ambos, a da serpente e a da águia.
E a serenidade de ambos, a da serpente e a do sol. E o poder de ambos, o das profundezas da terra e o do céu que tudo cobre.
Mas que na vossa fronte, ó homens, resplandeça a Estrela da Manhã que nem o dia nem a noite, nem a terra nem o céu podem engolir e apagar.
E entre os vossos seios, ó mulheres, que esteja a Estrela de Alva que nada pode ofuscar.
A vossa derradeira morada é a Estrela da Manhã. Nem o céu nem a terra vos hão-de tragar, mas ireis para essa estrela solitária que no entanto jamais sente a sua solidão.
A Estrela da Manhã envia-nos um mensageiro, um deus que morreu no México. Mas, enquanto dormia o seu sono, os Seres invisíveis lavaram-lhe o corpo com a água da ressurreição. E ele levantou-se, derrubou a pedra à entrada do sepulcro, e agora galopa através do horizonte, mais depressa do que caiu por terra a laje do túmulo para esmagar aqueles que a selaram.
O filho da Estrela volta para os filhos dos homens.
Preparai-vos para o receber. Lavai-vos, ungi as mãos e os pés, a boca e os olhos, as orelhas e as narinas, o peito, o umbigo e as partes secretas do vosso corpo. Que nada dos dias passados, que nenhuma poeira do mal subsista em vós e vos torne impuros.
Não olheis com olhos de ontem, não escuteis como ontem, não respireis, não cheireis, não engulais alimentos nem bebidas; não beijeis com lábios de ontem, não toqueis com mãos de ontem. Aproximai-vos das vossas mulheres com um corpo novo, e com esse corpo novo penetrai nelas. Porque o corpo de ontem morreu, e Xopilote, devorador de cadáveres, já paira sobre ele.
Libertai-vos do corpo da véspera e adquiri um novo, tal como o deus que vem até vós. Quetzalcoatl surge-nos com um novo corpo, como uma nova estrela, saído das sombras da morte.
Sim, neste mesmo momento em que estais sentados e que o vosso corpo toca na terra, dizei-lhe: Terra, terra, latejas de vida como eu. Insufla em mim o bafo das tuas entranhas.
E assim a terra se move por baixo de vós, e por cima de vós o céu agita as suas asas.
Regressai aos vossos lares, enfrentando as águas que vão cair e separar-vos para sempre do "ontem".
Ide, com a esperança de vos tornardes homens da Estrela da Manhã e mulheres da Estrela de Alva.
Ainda não sois homens, ainda não sois mulheres...
Ramon levantou-se, dando o sinal de retirada. Logo todos se puseram de pé, empurrando-se, acotovelando-se, com a silenciosa pressa mexicana que parece deslizar rente ao solo.
O vento desencadeado uivava de encontro às mangueiras. Os homens seguravam o chapéu na cabeça e corriam de joelhos curvados, com as serapes a flutuar, enquanto as mulheres, cingindo a si o rebozo, fugiam, descalças, para ozaguán.
Junto do portão aberto estava um soldado de espingarda a tiracolo e lanterna na mão, alumiando aqueles que passavam calados e velozes e se dispersavam na alameda escura como pedacinhos de papel levados pelo vento. Num instante todos desapareceram.
Martin fechou o portão. O soldado pousou a lanterna no banco de pau e juntou-se aos camaradas alapardados nos seus capotes pretos, semelhantes a um molho de cogumelos na caverna do zaguán.
- Vai chover! - gritaram as servas excitadas quando Kate subia os degraus com Dona Carlota.
O lago, absolutamente negro, parecia uma cratera enorme. Em rajadas violentas, o vento traspassava as mangueiras com um som de membrana a rasgar-se. Os loendros curvavam-se no jardim, varriam o solo com as suas flores brancas, espectrais à luz do candeeiro que brilhava na parede junto da porta da entrada. Uma palmeira nova sacudia-se, dobrada, juncando o chão com as suas folhas. Nas trevas para além do mundo rolava um carro invisível...
Ao longe, na outra banda do lago, os raios traçavam no céu inscrições fulgurantes. E o trovão dir-se-ia ribombar nas entranhas da terra, surdo, aveludado.
- Isto chega a meter medo! - exclamou Dona Carlota, tapando os olhos com a mão e correndo a refugiar-se num canto recuado da sala deserta.
Cipriano e Kate demoraram-se no terraço olhando para as flores que voavam dos vasos e desapareciam no vácuo de trevas. Kate agarrava no xaile, mas o vento engolfou-se na serape de Cipriano, levantou-a ao ar e em seguida deixou-lha cair sobre a cabeça, tal uma chama rubra. Kate viu-lhe o peito escuro e musculado enquanto os seus braços lutavam por desenvencilhar a cabeça. Como a sua beleza era primitiva e toda física, com aquela carne lisa e cheia!
Mas não emitia nenhuma radiação exterior; fechava-se dentro de si mesmo.
- Eis a chuva! - exclamou ele! - baixando a serape.
Grossas, pesadas, as primeiras gotas tombavam como dardos sobre as plantas. Kate recuou para o vão da porta. Um raio ziguezagueou sobre as montanhas, pareceu deter-se um instante e reentrou nas trevas.
Então a chuva desabou, como se lá em cima houvessem aberto um reservatório imenso, e com ela veio uma lufada de ar frio. Ora num lado ora noutro, sucediam-se os relâmpagos, enchendo a atmosfera duma claridade azul e fugaz. Surgiam as árvores e o jardim fantasma, e logo desapareciam, enquanto o trovão ribombava.
Kate olhava pasmada para aquele dilúvio. Ao clarão momentâneo via o jardim já transformado em poço, as alamedas em ribeiras. Sentindo frio, recolheu-se dentro de casa.
Munido de lanterna, um criado pesquisava todos os aposentos para ver se andariam por ali escorpiões. Encontrou um a passear no quarto de Kate e outro em cima da cama de Carlota, caído duma viga do tecto.
Sentadas na sala, Kate e Carlota baloiçavam-se nas cadeiras, aspirando o bom ar fresco e húmido. Kate quase já se esquecera do que era frescura e humidade. Aconchegou o xaile ao pescoço.
- Ah, sente frio! Agora é preciso tomar cuidado com as noites... Às vezes, na época das chuvas, as noites são frigidíssimas. Devemos ter sempre à mão um cobertor suplementar. Os servos, coitados, limitam-se a tiritar, estendidos no chão, e de manhã estão gelados como cadáveres. Mas o sol depressa os aquece. Parecem julgar que são obrigados a suportar tudo o que vier, pois nunca tomam providências, embora se queixem.
O vento acalmara-se de repente, Kate sentia-se inquieta, mal disposta, com o bafo da água, quase de gelo, nas narinas, e o sangue ainda a arder-lhe nas veias. Levantou-se e foi para o terraço. Cipriano continuava ali, imóvel e impassível, envolto na sua serape vermelha e preta.
A chuva diminuía. Em baixo, no jardim, duas criadas corriam descalças, à débil claridade do candeeiro do zaguán; colocaram latas vazias debaixo dos fios de água que tombavam do telhado, e depois foram buscar os recipientes cheios. Isso poupava-lhes o trabalho de acarretar água do lago.
- Que pensa a nosso respeito? - perguntou Cipriano a Kate.
- Acho um povo muito estranho...
- Mas bom, não é verdade? - volveu o general em tom jubiloso.
- Um tanto assustador - replicou ela, rindo.
- Depois de se habituar parecer-lhe-á natural. E quando estiver num país como a Inglaterra, onde tudo é tão seguro e tão fácil, sentirá saudades e passará o tempo a perguntar a si mesma: O que é que me falta? O que é que falta aqui?
Dir-se-ia exprimir-se com maligna satisfação. E era curioso que ele, embora falasse bom inglês, parecesse sempre estrangeiro aos ouvidos de Kate, muito mais do que Dona Carlota com o seu espanhol castiço.
- Não compreendo que as pessoas queiram ter tudo, a vida inteira. Tudo tão seguro, tão pronto como na Inglaterra e na América. É bom estar alerta, no que vive, não?
- Talvez - concordou ela.
- Por isso gosto de ouvir Ramon dizer ao povo que a terra é viva, que o céu tem uma ave enorme lá dentro, mas que se não vê. Acredito nisso. E convém sabê-lo, pois assim continuamos no que vive.
- Não será fatigante?
- Ora, porquê? Pelo contrário, é repousante. Ah, a senhora devia casar e residir no México. Estou certo de que acabaria por gostar disto. Em cada manhã despertaria mais encantada.
- Ou cada vez mais enterrada. É o que sucede, julgo eu, a muitos estrangeiros.
- Enterrar-se? Como? Isto é um país onde a noite é noite e a chuva que cai é realmente chuva. E tem aqui um povo com o qual precisa de estar sempre alerta. Não acha admirável? Não poderá deixar-se adormecer. Veja, por exemplo, Ramon. Que pensa dele?
- Não sei. Não quero dizer nada, mas acho-o... longínquo. Custa a crer que seja mexicano.
- Pois é mexicano, não tenha dúvida.
- Não como o senhor. Dá-me a impressão de pertencer à velha Europa.
- Eu então considero-o pertencente ao velho México... E também ao novo - acrescentou de súbito.
- Todavia não acredita nele.
- Como?
- Não acredita nele. Considera aquilo, como tudo o mais, uma espécie de jogo. Aliás, para vós, mexicanos, tudo é uma espécie de jogo... No fundo, não crê em nada.
- Não creio em Ramon? Talvez não seja uma fé que me leve a ajoelhar à sua frente e a derramar-lhe lágrimas nos pés. Mas creio nele, e vou dizer-lhe o motivo: porque tem o poder de me fazer acreditar.
- Estranha fé, imposta pelos outros.
- Como se há-de crer, se não nos compelirem a isso? Quando eu era muito novo sentia-me infeliz porque o meu padrinho me não forçava a crer. Mas Ramon força-me... E é para mim uma felicidade saber que não posso escapar... como será também para si...
- Saber que não posso escapar a Don Ramon? - replicou
Kate ironicamente.
- Sim, e saber que não poderá evadir-se do México, nem fugir
de um homem como eu...
Kate ficou um instante calada antes de responder em tom sardónico:
- Não me parece que me cause muita alegria saber que não posso sair do México. Pelo contrário, não suportaria estar aqui se não tivesse a certeza de partir mais dia menos dia.
E disse consigo mesma: "Ramon talvez seja o único homem a quem eu não possa escapar completamente, porque deveras me impressiona. Mas de ti, Ciprianozinho, não precisarei de escapar porque não me apanhas."
- Ah, julga isso! - volveu ele rapidamente. - Mas é porque não sabe. Só pensa com ideias americanas. Devido à sua educação, só tem pensamentos americanos, pensamentos engendrados nos Estados Unidos. Quase todas as mulheres são assim, até as mexicanas da classe hispano-mexicana. Só possuem ideias dos Estados Unidos porque são as que condizem com os seus penteados. E o mesmo quanto a si, senhora Leslie. Pensa como uma mulher moderna porque pertence ao mundo anglo-saxónio ou teutão, e se penteia de certa maneira, e tem dinheiro, e é inteiramente livre. Mas tudo isso provém do facto de lhe haverem metido essas ideias na cabeça e não possuir outras, da mesma forma que, no México, se vê obrigada a gastar centavos e pesos por serem as moedas do país. Todavia, quando se declara livre, na realidade não o é. Vê-se forçada a pensar sempre com pensamentos americanos. Não tem maior faculdade de escolha do que uma serva. Assim como não pode deixar de comer diariamente tortillas... até que se lembre de que pode gostar doutra coisa.
- De que mais poderia eu gostar? - retorquiu Kate, escarninha.
- De outros pensamentos, de outras sensações. Receia homens como eu porque julga que a não tratariam "à americana". Tem razão. Eu não a trataria como se tratam as senhoras americanas. Porquê? Porque não o desejo, porque não me parece justo.
- Prefere tratar as mulheres como as mexicanas de outrora, não é verdade? Mantendo-as na ignorância, no cativeiro? - A voz de Kate assumira um tom sarcástico.
- Não as manteria na ignorância se elas já não fossem ignorantes. Mas o que lhes ensinaria não havia de ser conforme à educação americana.
- Então qual?
- Quien sabe! Ce reste à voir.
- Et continuera à y rester - concluiu a irlandesa, rindo.

 

 

                  CONTINUA

 

 

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