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A SERPENTE EMPLUMADA
A SERPENTE EMPLUMADA

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

 

 

VII
Sayula era uma pequena estação balnear; não para ricos ociosos, porque o México os tem em pouca quantidade, mas para comerciantes de Guadalajara e gente que passeia nos fins-de-semana. E mesmo assim em reduzido número.
Havia, no entanto, dois hotéis, que vinham dos dias calmos de Don Porfirio, tal como a maior parte das vivendas fora da povoação, hoje fechadas e muitas delas abandonadas. Na aldeia viviam em perpétuo estado de terror. Acima de tudo temiam os bandidos e os bolchevistas.
Os bandidos eram apenas homens das localidades afastadas que, sem dinheiro, sem trabalho e sem esperança faziam ocasionalmente profissão do roubo e do assassínio. Habitavam nas suas aldeias selvagens até que as tropas os obrigavam a refugiar-se nas montanhas ermas ou nas regiões pantanosas.
Quanto aos bolchevistas, pareciam nascer do caminho de ferro. Onde houvesse carris, passageiros e carruagens de diferentes classes, aí despertava o espírito de rebelião e inveja; e o ferro e as demoníacas locomotivas ofegantes dir-se-ia engendrarem esses filhos do materialismo que são os bolchevistas.
Sayula possuía o seu ramal, com um comboio diário; a linha não cobria as despesas e lutava por se manter - mas já era bastante.
Sayula fora atingida pela loucura da América: o automóvel. Assim, como outrora os homens desejavam um cavalo e uma espada e as mulheres sonhavam com uma casa ou um camarote no teatro, a ambição actual é possuir um carro.
Era um desfile contínuo de "máquinas", de automóveis ligeiros e pesados na única estrada que ligava Sayula a Guadalajara. Uma esperança, uma fé, um objectivo: andar de carro, possuir um carro.
Quando Kate chegou à aldeia, falavam com certo alarme do regresso dos bandidos, mas a irlandesa não prestou a mínima atenção ao assunto. À noite, foi àplaza e misturou-se com o povo. Era um largo ornado de árvores imponentes, com um velho coreto no centro e um passeio em volta. No lado norte ficava o mercado. Mais além, passavam burros e camionetas nas ruas mal calcetadas.
A banda de música já não tocava em Sayula, a elegância já não se exibia naplaza, debaixo das árvores. Mas o pavimento ainda era bom e os bancos mais ou menos sólidos. Oh, tempos de Don Porfirio! Agora, só os peóns e os índios, com os seus fatos brancos e manta ao ombro, enchiam os bancos e monopolizavam a praça. É certo que se mantinha a lei que obrigava os peóns, naquelas paragens, a usar calças e não a espécie de ceroulas largas e flutuantes das suas lides rurais. Mas os peóns, por seu lado, também gostavam de envergar calças em vez daquele traje representativo do humilde labor do campo.
Eram eles, pois, quem dominava na praça, ora sentados em bancos ora passeando indolentes com a sua manta e de sandálias. Depois das seis horas, enchiam-se as barracas de comida quente, na rua calcetada do lado norte: ficava mais barato comer fora de casa e findava-se agradavelmente um dia de trabalho. As mulheres, de portas adentro, que ficassem a mastigar as suas tortillas; mas não provavam caldo, nem sopa, nem guisado. Nas tendas que vendiam tequila, instalavam-se homens, mulheres e rapazes defronte da mesa, em bancos, acotovelando-se uns aos outros. Também havia jogos de azar, pouco violentos, em que o banqueiro voltava uma carta e todos gritavam: Cinco de Espadas! Rei de Copas! Certa mulher corpulenta, imperturbável, de cigarro na boca e perigosa expressão nos olhos sombrios e baixos, vendia tequila, sentada ao escuro, toda a noite. O homem dos doces ficava de pé junto do seu balcão. Por terra, viam-se pequenos archotes metidos em latas, alumiando montes de mangas ou daquelas nauseabundas ameixas tropicais, encarnadas, que se liquidavam por dois ou três centavos a pilha, enquanto a vendedora, de saia larga, ou o vendedor, humilde e paciente, esperava acocorado o freguês, com aquela indiferença fatal e aquela submissão que tanto intrigam o estrangeiro. Ter ameixas para vender no valor de trinta cêntimos; amontoá-las no chão em pequenas pirâmides, cinco em cada uma; e esperar todo o dia e até de noite, de cócoras, a olhar de baixo para cima, para a cara do transeunte e possível comprador - eis, ao que parece, uma ocupação e um modo de vida.
Era vulgar encontrar-se ali um par de rapazes empunhando violas de tamanho diverso, em frente um do outro como dois galos combatentes; entoavam uma canção interminável, cantando em voz sumida as eternas baladas não muito musicais, dolorosas, extensas, audíveis apenas para os que estavam próximos. E assim se conservavam até enrouquecerem. Em volta, com mantas encarnadas, paravam homens altos e escuros, ouvindo por instantes e raramente contribuindo com um centavo.
Entre as barracas de comes e bebes estava um trio de duas violas e uma rabeca; dois dos músicos eram cegos e cantavam em diapasão alto, mas também de modo pouco audível. Dir-se-ia cantarem só para si, muito chegados um ao outro, como se a melancólica balada lhes repercutisse no peito.
A aldeia em peso comparecia naplaza. No entanto, raramente, muito raramente uma voz se erguia acima do murmúrio grave dos homens, do sussurro musical das mulheres, do gorjeio das crianças. Poucos movimentos apressados. O lento passeio dos homens de sandálias, chamadas huaraches, fazia um rumor leve de baratas a arrastarem-se no chão. Fora e dentro da multidão calma, corriam rapazes de pernas ao léu. Eram os irrequietos engraxadores, que pululam como moscas importunas naquela terra de gente descalça.
No lado sul, viam-se mesas e cadeiras no passeio: uma tentativa de café-esplanada- Aí, nos dias de semana, sentavam-se para tomar cerveja ou um copo de tequila as poucas pessoas que se atreviam a tamanha exibição - na maior parte estrangeiras. E ospeóns, imóveis nos bancos do último plano, observavam-nas com olhos de basilisco sob as largas abas do chapéu.
Mas ao sábado e ao domingo era quase festa. Chegavam carros aos solavancos, e, como pássaros exóticos, volteavam na plaza raparigas graciosas de vestidos vaporosos, faces empoadas e cabelos encaracolados. Passeavam de braço dado, trajadas de organdi vermelho ou azul, de musselina amarela ou cor-de-rosa, e com tal camada de pó-de-arroz na cara que a pele morena apresentava a brancura lívida dos palhaços ou dos cadáveres.
Adejavam como borboletas coloridas no meio da multidão de homens do povo. fortes e belos. Era restrito o número de mancebos elegantes que pudessem equiparar-se àquelas mocinhas. Contudo, havia alguns, de calças de flanela branca, casaco escuro, palhinhas e bengala. Fumavam cigarros com gesto afectado, falando um castelhano elegante, tão próximo quanto possível do original, e com o ar de que seriam dentro de doze meses sacrificados a algum deus mexicano depOis de estarem devidamente nédios e perfumados.
Ao sábado, os janotas, as raparigas e todos os que vinham de carro, da cidade - que, aliás, eram poucos - tentavam divertir-se nesse lúgubre país. Contratavam tocadores de viola e rabeca e a música de jazz elevava-se em acordes um tanto langorosos.
Debaixo das árvores da alameda, perto das mesas e das cadeiras do café, começavam pares a dançar à la mode. Os vestidos vermelhos, amarelos e azuis rodopiavam com as calças de flanela, donde saíam elegantes sapatos brancos guarnecidos de tiras de couro preto ou castanho. Algumas das saias de organdi encimavam meias e sapatos verdes, ou pernas à Ia nature com sapatos brancos. Os braços franzinos e morenos enlaçavam os ombros azuis-escuros dos moços, que sorriam com ar protector para as facezitas brancas e petulantes; sorrisos meigos, paternais e impregnados de sensualidade.
Mas a dança era no recinto da praça, e na praça erravam indolentes os homens do campo, ou então paravam em grupos, espiando os pares rodopiantes com os seus olhos pretos, misteriosos, impenetráveis. Em que pensariam? Sentiriam admiração, inveja, ou simplesmente uma silenciosa e fria oposição? Sim, oposição é que devia ser.
Esses camponeses de camisa branca e manta escarlate, airosamente dobrada ao ombro, passeavam devagar, quase ocultos sob o chapéu enorme e pesado, dispostos a não fazer caso dos que dançavam. Vagarosos, oscilando o corpo, eles moviam-se irresistivelmente no meio da dança como se a dança, no fim de contas, não existisse. E os rapazes de calças brancas, levando nos braços as damas de organdi, evolucionavam como podiam, fazendo o possível por se desviarem âospeóns impassíveis, que prosseguiam na sua conversa, sorrindo na alvura dos dentes, com um sangue-frio que gelava os próprios músicos. Nunca se tocavam, nunca se acotovelavam, dançarinos epeóns; no México ninguém se atropela involuntariamente. Mas a dança embatia contra a oposição invisível.
Os índios sentados nos bancos contemplavam também por momentos as evoluções dos bailarinos, após o que os fulminavam com a sua pesada indiferença. Misteriosa faculdade dos índios, tão densa e calma, para destruir a vida palpitante, para apagar qualquer foco de efervescência.
Na verdade, um simples bailarico de indígenas; mas dir-se-ia fechado dentro de quatro paredes. E o ritmo soava diferente, grave, com certa violência. Os dançarinos eram artífices, mecânicos ou carregadores da estação: gente meio citadina. Nenhuns trabalhadores do campo, ou quase nenhuns.
Por isso, passado não muito tempo, as borboletas de organdi e os moços de calças de flanela sucumbiram esmagados pela enorme passividade, pela resistência dos satânicos peóns.
Curiosa, radical oposição dos índios contra essa coisa a que chamamos espírito. É o espírito que leva as meninas petulantes a adejarem as suas asas de organdi como borboletas. É o espírito que vinca as calças de flanela dos rapazes e lhes dá aquele ar um tanto patético. Tentaram representar a elegância e a vontade do espírito moderno.
No entanto, como um peso de obsidiana, surge a recusa passiva do índio; compreende a vida, que participa do sangue, mas o espírito, que é superior, e é a marca da nossa civilização, isso ele repudia, barbaramente, torvamente. Só quando se torna operário ou lida com ofícios mecânicos é que o espírito moderno o visita.
E talvez seja esse repúdio do espírito moderno que faz o México ser o que é.
Kate ficou um tanto desconsolada ao ver findar o baile. Instalara-se numa das mesas, com Juana a servir-lhe de duena, para tomar um cálice de absinto.
Os carros regressavam à cidade em pequenos grupos. Sempre seria melhor irem juntos, para o caso de aparecerem salteadores. Dominava-os o receio dos bandidos, e os próprios janotas usavam revólver no bolso.
Como era sábado, parte da mocidade elegante ficou para o dia seguinte, na ideia de tomar banho e de se espojar ao sol.
A plaza estava cheia, e ao comprido das ruas que desembocavam no largo cintilavam inúmeros archotes, iluminando uma exposição de chapéus de palha, de esteiras, de pirâmides de laranjas.
Havia feira no domingo de manhã, de modo que, de repente, o largo ficou estuante de vida - densa e pesada energia vital. Os índios tinham vindo de todas as aldeias, trazendo consigo essa curiosa energia vital que parece zumbir cada vez mais profundamente quando eles se encontram reunidos.
Durante a tarde, com o vento a soprar do sul, as canoas, de casco preto e larga vela desfraldada, haviam atravessado as águas do lago, transportando indígenas e produtos para o mercado. Para formar essa multidão todas as aldeias da margem concorreram com os seus habitantes.
Despertava o instinto que impele os índios para a vida nocturna desde que se encontrem reunidos. Ninguém recolhia a casa, ninguém pensava em dormir, embora a feira só principiasse ao romper da manhã.
Cerca das nove horas, depois de terminada a dança, Kate ouviu o rufar de um tambor, ou coisa semelhante, e notou que uma chusma de peóns se dirigia para o lado mais escuro da praça, onde já se viam barracas e cestos enormes, em forma de ovo, encostados à parede.
Aquele som, que era como o latejar dum pulso de gigante repercutindo no ar da noite, juntou-se a nota prolongada de uma flauta, tocando uma espécie de melodia bárbara. Kate, que já ouvira falar dos cânticos selváticos dos peles-vermelhas do Arizona e do Novo
México, sentiu instantaneamente espalhar-se na atmosfera a eterna
paixão das raças pré-históricas com a sua intensa e complicada significação religiosa.
Olhou para Juana com ar interrogador.
- Que é isto? - perguntou.
- Músicos, cantores - foi a resposta evasiva.
- Mas muito diferentes dos outros - insistiu Kate.
- Sim, aquilo é coisa nova.
- Nova?
- Apareceu aqui há pouco tempo.
- Donde veio?
- Sabe-se lá! - volveu Juana, encolhendo os ombros.
- Quero ouvi-los.
- Olhe que são só homens.
- Podemos ficar um pouco afastadas.
E Kate dirigiu-se para o ajuntamento silencioso dos peóns. Estavam todos de costas para ela.
Subiu o degrau duma porta e viu, perto do muro florido de buganvílias, um espaço livre iluminado pelos archotes de madeira resinosa que um rapaz segurava nas duas mãos.
O tambor estava ao centro dessa clareira, e o homem que o rufava tinha o torso nu e calças de brancura imaculada atadas na cintura por uma faixa escarlate e aos tornozelos por cordão da mesma cor. Cingia-lhe a cabeça uma tira vermelha, donde se erguiam três penas rubras sobre a nuca. Na testa brilhava uma turquesa no meio dum círculo azul. O tocador de flauta também se apresentava sem camisa, mas dobrara sobre o ombro uma bela manta branca listada de azul e preto. Outros homens, despidos da cintura para cima, distribuíam folhetos aos espectadores, insinuando-se no meio da multidão. E todo o tempo, alta e pura, a estranha flauta de barro repetia a melodia bárbara, acompanhada pelo rufar do tambor.
Kate desceu do seu poleiro e avançou a medo. Queria um daqueles papéis. O homem deu-lho, sem sequer a olhar, e ela encaminhou-se para a luz a fim de o ler. Era uma espécie de balada, mas sem rimas, escrita em espanhol. No cimo da página via-se o desenho de uma águia cercada por uma serpente que mordia a cauda; curiosa variante do emblema mexicano, que é uma águia encarrapitada num cacto de folhas largas e com uma serpente nas garras. A certa distância, o círculo formado pelo réptil com a ave a meio dava a impressão dum olho.
Na região de Oeste
Em paz, para além dos raios brilhantes
Do Sol,
No silêncio onde nascem as águas
Dormia eu, Quetzalcoatl,
Na caverna chamada Olho Tenebroso, Vendo através do sol como por uma janela, Minha morada é lá. Onde as águas brotam E os ventos nascem.
Nas águas do Além
Levantei-me e vi uma estrela cadente.
E senti
Um sopro em minha face.
O sopro disse: Vai,
E eu vim.
Desci a longa encosta, Passei o monte do Sol, Até que descobri em baixo Os seios brancos da terra Do México: a esposa minha.
Entre os mares a minha esposa Penteia o cabelo preto Murmurando: Quetzalcoatl...
Adensara-se a multidão de homens; do centro elevava-se a luz avermelhada dos archotes, o ar embalsamava-se da resina de cedro. Kate não conseguia ver nada por causa dos chapéus enormes.
Calara-se a flauta; mas o tambor continuava as suas pancadas lentas, regulares, com o ritmo duma pulsação. Aquele som incompreensível, surdo, enfeitiçava o espírito, fazia bater o coração, aniquilava a vontade.
Os homens começaram a fatigar-se, sentando-se uns, acocorando-se outros, com o chapéu nos joelhos. Dir-se-ia um mar de cabeças escuras, ondulando para a frente, sobre os ombros vigorosos e levemente inclinados.
Perto do muro formara-se um círculo, com o tambor ao centro. O homem que o tocava, de dorso nu, premia o instrumento contra o corpo, e, curvado, as costas cintilavam-lhe ao clarão da noite. Junto dele estava outro homem a segurar uma bandeira que pendia duma haste leve. No campo azul do pano via-se o Sol amarelo a meio duma bola preta e, entre os quatro raios maiores, todos de ouro, quatro raios negros emergindo, o que fazia o astro assemelhar-se a uma roda que girasse num movimento ofuscante.
Sentara-se toda a gente. Os seis homens de tronco nu, que haviam distribuído os prospectos e convocado a multidão tinham já regressado e agora acomodavam-se de volta do rufador agachado. À direita deste ficava o porta-bandeira, à esquerda o flautista. Eram nove os do grupo, e faziam dez com o rapaz que vigiava os dois archotes, agora colocados em trípodes de cana.
A noite aprofundava-se em silêncio. Calara-se o murmúrio de vozes que enchia a praça. Debaixo das árvores, nos passeios, transitavam ainda pessoas indiferentes, mas pareciam estranhamente solitárias; figuras isoladas envoltas na luz pálida das lâmpadas eléctricas e fora do núcleo da vida.
No lado norte, as barracas continuavam iluminadas, faziam-se compras e vendas. Mas também essa banda do largo dava a impressão de estar muito longe da realidade actual.
Depois de os homens se sentarem, as mulheres avançaram timidamente e instalaram-se por sua vez na orla exterior do círculo. As saias rodadas espalhavam-se no chão, os xailes escuros moldavam-lhes a cabeça redonda e pequenina. Algumas, não ousando aproximar-se, ocuparam os bancos em volta. Outras, assim como muitos homens, haviam desaparecido aos primeiros rufos do tambor.
a plaza ficou como que deserta. Um grupo compacto rodeava o tambor; aquém, era o mundo externo, vazio e hostil. Somente na ruela escura que conduzia ao negrume do lago se viam alguns vultos erectos e silenciosos como fantasmas.
Sobre os degraus de uma porta, e com Juana a seus pés, Kate olhava fascinada para aqueles homens seminus iluminados pelo clarão dos archotes. Os seus corpos lisos e acobreados possuíam essa beleza índia um tanto assustadora. Os torsos magníficos, acetinados, desses entes silenciosos de cabeça um tanto pendida para a frente; os ombros largos, levemente descaídos pela inactividade da sua força; o tom quente e o brilho da pele; o peito vigoroso, tão viril e, no entanto, sem a dureza muscular dos homens brancos; as faces sombrias, impenetráveis, os bigodes pretos e as barbas ténues enquadrando o silêncio da boca fechada - tudo isto era impressionante, singular, despertava comoção.
Havia algo de reptilário na sua flexibilidade, qualquer coisa de terrível na sua mudez. Os troncos nus tinham a revesti-los uma sombra subtil, certa obscuridade misteriosa. Se fossem homens de raça branca seriam francamente musculados, com uma espécie de sinceridade no próprio físico. Aqueles não. A sua nudez só revelava a profundeza secreta da natureza, o eterno mistério.
Toda a gente se calara; intensificava-se o silêncio expectante, tornava-se tumular. Os homens de ombros nus mantinham-se imóveis, mergulhavam dentro de si mesmos e escutavam com os ouvidos do sangue. Sob as calças brancas atadas nos tornozelos, os pés metidos em Imaraches eram quase negros ao clarão dos archotes. Que pretendiam essas criaturas suaves e recolhidas e cuja importância, no entanto, era tão ponderosa, tão aliciante?
Kate sentia-se ao mesmo tempo atraída e repelida. Quase a fascinava o estranho poder magnético dos homens em círculo. Era como o núcleo duma vida nova, como uma jóia negra brilhando na escuridão. Mas parecia-lhe repulsiva aquela estranha opressão, esse afundar do espírito na terra, esse lento escoar duma água turva; repulsiva a densa e muda oposição ao rumo espiritual da gente branca. Contudo, ali e só ali a vida parecia arder com chama intensa.
No resto do mundo, Kate bem o sabia, tudo era vacuidade, esterilidade. Aqueles vultos avermelhados pelo clarão dos archotes representavam uma humanidade nova.
Kate sentia tudo isto, mas preferia manter-se à parte, evitar o contacto directo.
O porta-bandeira ergueu a cabeça como se fosse falar, mas não disse nada. Velho de barba e bigodes brancos a emoldurar-lhe os lábios escuros e carnudos, tinha a cara sulcada de rugas, como todas as pessoas idosas desse país. No entanto, os cabelos eram bastos, e o corpo ainda revelava força e virilidade. ! Os seus olhos negros olhavam sem ver. Talvez fosse realmente
cego; ou seria profunda abstracção que lhe dava aquele aspecto. Começou então a falar, numa voz lenta, clara e distante que parecia ser o eco dos últimos sons do tambor. - Homens, escutai-me! E vós. mulheres, escutai-me também. Há muito tempo, na calma da noite, o lago dirigiu um apelo aos seres humanos. Mas não existiam. Só os peixes pequeninos nadavam ao longo das margens, procurando fosse o que fosse, e os maiores saltavam fora de água para olhar em volta. Mas não existiam seres humanos.
Então um dos deuses de face velada saiu da água e subiu ao monte. (E o velho indicou a colina invisível nas trevas da noite. ao fundo da aldeia. Contemplou o Sol e viu através dele outro sol negro, o que criou o mundo e o absorverá de novo como uma gota de água. Disse: - Chegou o momento? - E quatro braços saíram do sol e da sua sombra surgiram homens. Viram os quatro braços no céu e principiaram a andar.
O deus do cimo da colina olhou para as montanhas e para as planícies e viu os homens anelantes, sequiosos. E disse-lhes: Vinde cá. Tendes aqui a minha água dulcificadora.
Correram como cães, de língua pendente, e ajoelharam-se na margem do lago. O deus do cimo da colina ouviu-os ofegar, de tanta água que beberam, e perguntou-lhes: - Não bebestes de mais? Ou tendes ainda os ossos secos?
í Os homens fizeram casas à borda do lago, e aquele que estava na colina, e que era um deus, ensinou-os a semear milho, feijão, e a construir barcos. Mas preveniu-os: - Nenhum barco vos salvará quando o sol negro deixar de estender os braços no céu.
O deus da colina disse ainda: - Sou Quetzalcoatl, aquele que vos humedece os lábios secos. Encho-vos o peito com um sopro do além-sol. Sou o vento que sai em turbilhão do centro da terra, sou o zéfiro que se enrosca como cobra em volta dos vossos pés, pernas e coxas, erguendo a cabeça da serpente do vosso corpo, onde reside a força humana. Tomai cuidado quando a serpente do corpo erguer a cabeça. Sou eu, Quetzalcoatl, que vos elevo, que vos elevo até ao sol das trevas, derradeira morada dos homens. Exceptuando o sol negro e os quatro braços nos céus, éreis ossos, e as estrelas eram ossos, e a Lua uma concha vazia numa praia seca, e o Sol amarelo uma taça vazia, semelhante ao crânio dum lobo. Portanto, tende cautela! Sem mim nada sois. Assim como eu nada sou sem o sol que está atrás do sol. Quando o sol de ouro estiver no zénite, dizei: Quetzalcoatl levante a sua mão e me abrigue dos raios, senão perecerei e a terra secará. Porque na palma da minha mão está a água da vida, e nas costas está a sombra da morte. Quando os homens me esquecem volto a mão e aparece a sombra da morte. Mas os homens esqueceram-me. Os seus ossos eram húmidos, o seu coração fraco. Quando a serpente do corpo erguia a cabeça, diziam assim: É a serpente amansada que nos obedece. E quando suportavam o ardor do sol, falavam nestes termos: O sol está zangado, quer absorver-nos; ofereçamos-lhe sangue de vítimas.
Os braços negros desapareceram do céu, e Quetzalcoatl envelhecia e lamentava-se, velando a face para a esconder dos homens.
Lamentava-se e dizia: - Deixai-me recolher à minha morada. Estou velho, quase sou apenas ossos. Os ossos triunfam em mim, o meu coração é uma cabaça vazia. Sinto-me cansado do México.
Então bradou ao sol negro, aquele de quem nunca se pronuncia o nome: - Estou um esqueleto, os Mexicanos renegam-me, de nada sirvo. Levai-me.
O sol negro estendeu o braço e elevou Quetzalcoatl até ao céu. Depois olhou em volta e viu a estrela de alva brilhando sem receio entre a vinda do sol dourado e a fuga da escuridão. E aquele, cujo nome jamais foi pronunciado, perguntou: - Quem és tu, guarda cintilante? E a estrela respondeu: - Outrora, no México, fui Quetzalcoatl. Agora contemplo as costas do sol amarelo e a face invisível da Lua, brilho entre o dia e a noite, esperando pela renovação.
E aquele cujo nome jamais foi pronunciado declarou: - Chegou a hora.
Assim o decretou, e eu a vós repito, homens e mulheres: Chegou a hora. Os que nos deixaram regressam, os que vieram retiram-se. Desejai a uns boas-vindas e dizei adeus aos outros.
Boas-vindas! Adeus!
O velho terminou o discurso com um grito meio sufocado, tal se na verdade se dirigisse aos deuses.
- Bienvenido! Bienvenido! Adiós! Adiós!
A própria Juana, sentada aos pés de Kate, bradava sem saber o que dizia:
- Bienvenido! Adiós! Adiós... n!
O último adios arrastou-se para rematar com o costumado "n". Começou o tambor a soar num ritmo insistente, e a flauta fez ouvir o seu grito estranho e longínquo. Tocavam a melodia singular que a irlandesa ouvira a princípio.
Então um dos homens do círculo entoou o hino. Cantava à maneira dos antigos Peles-Vermelhas, em voz contida mas intensa, como se se dirigisse à própria alma e não ao mundo exterior; como se cantasse na outra dimensão da existência dos homens, onde eles se encontram na extensão infinita que há dentro do eixo do nosso espaço rotativo. Espaço que, como o mundo, não pode deixar de se mover. E, tal o mundo, tem um eixo. O eixo do nosso espaço terreno, quando lá se penetra, é uma vastidão onde até as árvores vão e vêm, e a alma está à vontade no seu sonho, nobre e irrefutável.
O pulsar do tambor e o cântico íntimo arrastavam a alma para o centro do tempo, que é mais velho do que a própria velhice. O cantor começou por uma nota alta que repetiu demoradamente, fazendo-a percorrer ritmos subtis, na aparência desconexos, que o tambor acompanhava, e depois fê-la tremer, palpitar e dar um balanço brusco. Por muito tempo foi difícil distinguir qualquer melodia: dir-se-ia o uivo distante e esmaecido dum lobo. Era na verdade a música dos índios antigos.
Não se lhe encontrava harmonia, não se lhe reconhecia emoção. Apenas música, apenas um grito na noite, perfeito e longínquo. Mas ia direito à alma, à alma eterna e antiga, aí onde só pode a família humana encontrar-se em imediato contacto.
Kate logo o sentiu, e de forma fatídica. Seria inútil resistir, inútil fazer qualquer esforço. O som ia até ao âmago do ser, em que não existe esperança nem dor, mas só a paixão, que semelha uma ave no seu ninho, de asas dobradas, e a fé uma árvore de sombra.
Como o destino, como a sorte. A fé é a própria Árvore da Vida, inevitável, e os pomos estão ao nosso alcance: pomos dos olhos
- as pupilas -, pomos do queixo, do coração, dos seios, do ventre, dos quadris, dos joelhos, dos tornozelos. Que importa a mudança, a evolução? Somos a Árvore com os seus frutos, para todo o sempre. Verbum Sat.
Emudeceu o cantor, mas o tambor prosseguiu, fazendo vibrar subtilmente a membrana sensível da noite. Então, no círculo, de novo se elevou uma voz, depois outra, e outra, como pássaros voando de uma árvore. Elevaram-se as vozes - forte, pesado, intenso arrebatamento de vozes másculas, semelhante a um bando de aves negras subindo e descendo no ar, ao mesmo tempo. E cada ave preta dir-se-ia erguer-se do coração de um homem, do bosque secreto dos peitos masculinos.
Uma a uma, partiram também vozes da multidão, qual nova revoada de pássaros. A letra não tinha importância. Versos, palavras, simples sons - o canto era sempre o mesmo: violenta rajada saindo das cavernas do peito, das profundezas da alma eterna. Kate estava excessivamente intimidada para poder cantar, demasiadamente vencida pelas desilusões; mas sentia que o seu espírito fazia eco, seguindo o clamor do povo, tal a ave poliglota que imita as outras à noite. Contra sua vontade, Juana cantava também, num tom monótono, proferindo palavras à toa, inconsciente.
Os homens seminus começaram a agarrar as mantas: mantas brancas orladas de azul, com barras castanhas e franjas escuras. Da turba, levantou-se alguém, que se dirigiu para o lago. Voltou depois com um feixe de lenha trazido por um barco. Acendeu então uma fogueira pequena. Outro indivíduo se destacou para ir também buscar lenha: colocou-a diante do tambor, dentro do círculo, e fê-la crepitar. Por sua vez, uma mulher, descalça e de larga saia de algodão, principiou a arranjar a sua fogueira no meio das mulheres.
O ar estava bronzeado pelo clarão do lume; alastrava-se um fumo odorífero, como de incenso. Subiu e desceu o cântico, depois esmoreceu. Débil ecoou o som do tambor, e morreu por seu turno. No silêncio absoluto podia-se sentir a presença imóvel do lago sombrio.
Mais uma vez pulsou, vigoroso, o tambor. Um dos homens que estavam sentados, com o seu poncho branco debruado de azul e preto, ergueu-se de repente e, tirando as sandálias, começou a esboçar passos de dança, sem fazer o menor ruído. Dançava pesadamente, de pés nus, como se fosse enterrar-se pela terra abaixo. Sozinho, oscilava num ritmo estranho, calcando o chão, erguendo ora um ora outro dos joelhos de encontro às franjas escuras do poncho. Outro homem, encaminhando-se para o centro, pôs aí os huaraches, perto do fogo, e iniciou o seu bailado, enquanto o do tambor entoava um cântico selvático, tenebroso. Os restantes comparsas despojaram-se dos ponchos e, num instante, estavam de pé, e de torsos nus, descalços, repetiam aqueles passos que pareciam de ave. A luz da fogueira batia-lhes no peito, nas faces sombrias e extáticas.
"O que dorme acordará! O que dorme acordará! O que segue o trilho da serpente na poeira chegará ao seu posto; pelo trilho do pó chegará ao seu destino e revestir-se-á com a pele da serpente: revestir-se-á com a pele da serpente da terra, que é a criadora da pedra, que é criadora da pedra e do vigamento da terra; criadora do oiro, do ferro, da madeira da terra: dos ossos do pai da terra, da serpente do mundo, do coração do mundo que bate como uma cobra bate no pó, nos seus movimentos sobre a terra; do coração do mundo. Quem dorme despertará! Quem dorme despertará! Quem dorme despertará no caminho da serpente do pó da terra, da pedra da terra, do osso da terra."
O cântico parecia tomar novos voos audaciosos depois de baixar e sussurrar num último desmaio. Eram como ondas que se erguem do invisível, que tomam forma, alando-se, e desaparecem num rumor de aniquilamento. E os dançarinos, após terem girado em círculo, numa lenta e profunda absorção, iam um por um tomar o seu lugar, calcando o pó com os pés descalços, vagarosamente, e vagarosamente começavam a descrever uma ronda lenta em torno do fogo, sempre com os mesmos passos que se diria afundarem-se na terra. E o tambor ressoava numa palpitação sempre igual, como a de um coração humano. E o cântico soou e diminuiu, mais baixo e mais baixo numa espécie de extinção, para ainda uma vez tornar a levantar-se.
Até que os camponeses moços acharam impossível permanecer como estavam. Tiraram as sandálias, o chapéu, as mantas, e, timidamente, com pés inexperientes que no entanto conheciam as velhas pisadas, se puseram atrás dos outros bailadores e dançaram sem sair do seu lugar. Depressa o círculo revoluteante estabeleceu outro círculo de homens que envolveu o primeiro.
Então, de súbito, um dos dançarinos de tronco nu saiu do círculo interior e, penetrando no segundo, fê-lo girar em sentido inverso ao daquele. Deste modo houve duas rodas em movimento, uma dentro da outra, rodopiando em direcções opostas. Assim andaram, com o tambor e o canto, girando como rodas de sombra em volta do lume. Mas o lume extinguiu-se, e o tambor parou de repente, e os homens num instante se dispersaram, retrocedendo para os seus postos.
Houve silêncio, depois ouviu-se um murmúrio de vozes e risos. Kate muitas vezes pensara que o riso dos peóns se assemelhava a uma queixa; mas agora ele saltava como faúlhas invisíveis, bruscamente, da cinza das conversas.
Todos esperavam, e contudo ninguém se movia - até que o tambor vibrou de novo, como um sinal. Continuaram, porém, a tagarelar mas escutando, qual se possuíssem uma segunda consciência. Levantou-se um homem, desfez-se da manta e deitou lenha na fogueira central. Em seguida atravessou o grupo dos homens sentados e dirigiu-se ao das mulheres, que se apinhavam com as saias desdobradas. Esperou, sorrindo com ar abstracto, e logo se pôs de pé uma rapariga e se aproximou dele, apertando com a mão direita o xaile enrolado em torno da cabeça baixa. Estendendo a mão esquerda, pegou timidamente na do homem, que parecia inerte. Sorriu este e conduziu-a ao centro da roda, através do grupo dos que estavam sentados. Ela seguia de cabeça inclinada, escondendo o rosto pudibundo. Lado a lado, começaram a dançar, mal roçando as mãos e formando o primeiro pequenino segmento do círculo interior estacionário.
Ei-los agora todos, em pé, à espera de serem escolhidos. Rápidas, as mulheres, ocultando a testa no xaile, insinuavam-se junto deles e tomavam a mão do eleito. Dentro de pouco tempo já todos tinham dama. Fechara-se o círculo interior, com os homens e as mulheres aos pares, de mão dada.
- Venha, niña, venha! - disse Juana, fitando Kate com os seus olhos negros e brilhantes.
- Tenho medo - respondeu a irlandesa. E falava verdade.
Um dos de tronco nu atravessara a rua, afastando-se da multidão e detivera-se próximo da porta onde se achava Kate, que se calou e desviou a vista. E ficou esperando.
- Olhe, niña, um senhor que a procura. Venha, niña, venha!
A voz da criada descera de tom, capciosa, com esse apelo mágico das mulheres do povo. Os olhos pretos continuavam a cintilar-lhe estranhamente, fitos no rosto da patroa. Kate, quase hipnotizada, avançou em passos lentos e indecisos para o indivíduo que se mantinha à espera.
- Quer, realmente? - disse ela em inglês, bastante atrapalhada. E, com os seus dedos, tocou nos dedos dele.
Quase com indiferença, num gesto frouxo, a mão quente e máscula segurou os dedos de Kate e levou-a para a roda. Ela baixou a cabeça e desejou poder velar a face. No seu vestido branco e chapéu de palha verde, sentiu-se outra vez virgem, virgem juvenil. Aqueles homens concediam-lhe o dom de reencontrar a mocidade.
Acanhada, receosa, Kate procurou seguir a dança; mas escapava-lhe o ritmo, e os sapatos rígidos não a ajudavam. Movia-se confusamente.
Mas o seu par pegava-lhe na mão, embora com moleza, e oscilava, lento, o corpo todo, como um pêndulo de relógio. Dir-se-ia não fazer caso dela; contudo, segurava-lhe os dedos, de leve, numa pressão suavíssima.
Juana descartara-se dos sapatos e das meias. No rosto como uma máscara de lava, enrugado, escuro, as pupilas ardiam com a eterna chama da feminilidade, sombria e inextinguível. E já, com os pés, marcava o compasso da dança.
"Assim como o pássaro do sol fecunda a terra à alvorada tal uma fêmea morena sob os seus pés, com as dobras do ventre inclinadas aos pomos da geração, com os ovos de oiro, com os ovos que escondem o globo do sol nas águas do céu, na concha da terra que é o alvo do fogo do sangue, pisa tu também a terra e a terra conceberá qual a fêmea sob os pés do pássaro do sol. Pisa a terra, pisa a terra agachada e de asas encolhidas..."
A roda começou a girar e Kate foi-se movendo devagar entre dois homens silenciosos e absortos, cujos braços tocavam os seus. Um segurava-lhe os dedos, frouxa e brandamente, mas com transcendente afinidade. E o canto selvático subiu de novo como uma ave, e o tambor alterou o ritmo de modo incompreensível.
A outra roda era composta só de homens; Kate tinha a impressão de sentir nas costas o fulgor sombrio daqueles olhares. Os indivíduos já se não distinguiam, formavam como que uma única massa, em que ela própria se confundia.
Todos dançavam da mesma maneira, de cabeça baixa e olhar ausente, os homens absorvidos na sua virilidade, as mulheres na sua feminilidade. Somente o sexo prevalecia na sua mais alta concepção. Mar à superfície do globo movendo-se por cima dum mar nas entranhas da terra; águia evolucionando em silêncio sobre a própria sombra.
Kate sentia-se fundir nas águas revolutas de uma vida nova. Deixara de ser ela mesma para fazer parte de um todo, os seus desejos abismavam-se no mar do desejo colectivo. E assim o homem cujos dedos roçavam nos dela se engolfava no oceano de homens.
Lento mover de águas sobre águas, sem vestígio de espuma. Só a pura e deslizante conjunção.
Como era estranho ver-se submergida pelo desejo para além do próprio desejo, sentir-se integrada num corpo imenso para além do individualismo do corpo!
Não conhecia a cara do homem que lhe segurava nos dedos. Os seus olhos haviam cegado, e o rosto dele era um céu tenebroso. Mas do toque dos seus dedos nascia uma estrela, a estrela que os unia.
Os pés de Kate principiavam a marcar o compasso. Ela já sabia como deixar-se levar, abandonar a essência da sua vida, permitindo que lhe fugisse devagar, num escoamento rítmico, para o corpo negro da terra. Erecta, forte como o próprio esteio da vida, cedia no entanto a Seiva dessa força e fazia-a fluir para as raízes da terra.
Perdera a noção do tempo. A dança, porém, acalmava-se pouco a pouco, embora o ritmo permanecesse sempre o mesmo até ao fim.
Calaram-se as vozes, só o tambor continuou. Este, de súbito, produziu um rufo breve, e o silêncio foi geral. Logo as mãos se desataram, o baile parou de todo. O homem que a acompanhava sorriu-lhe e desapareceu. Jamais o reconheceria. Havia, no entanto, de lhe sentir a presença.
As mulheres afastaram-se, aconchegando os ombros com o xaile. Os homens dissimularam-se nas mantas. E Kate voltou à escuridão do lago.
- Já se vai embora, Niña? - perguntou Juana num tom que revelava certo descoroçoamento.
- Tenho de ir sem demora - replicou a patroa, estugando o passo. E a toda a pressa se encaminhou para as trevas do lago, com Juana na sua peugada, de sapatos e meias na mão.
Kate desejava reentrar em casa, com o seu novo segredo, o estranho segredo da feminilidade mais alta, a que ainda se não habituara. Precisava abandonar-se inteiramente àquele mistério.
Quase corria através do atalho interminável, na margem pedregosa e escura, apesar de a claridade das estrelas ser suficiente para revelar a forma sombria dos barcos que sulcavam a água mansa e turva. Noite eterna, sem horas! Kate não queria consultar o relógio, e até o virou no pulso a fim de não ver os ponteiros luminosos. Que o tempo a não governasse!
Ao adormecer, ouvia ainda o rufar do tambor, como um pulso que batesse nas entranhas da terra.

VIII
À entrada da casa de Kate elevava-se uma árvore enorme chamada cuenta por causa dos seus frutos pequeninos, redondos, duros e perfeitos de forma, que os indígenas apanhavam para fazer colares e, em especial, padre-nossos dos rosários. À noite, a rua ficava imersa em escuridão e só a queda das contas perturbava o silêncio.
Essas noites, que de começo pareciam calmas, amigáveis, encheram-se subitamente de terrores. Renascia o medo. Constituíra-se uma quadrilha de ladrões numa das aldeias do lago, cujos habitantes tinham má fama. Essa quadrilha, invisível durante o dia, compunha-se de pescadores e jornaleiros que, depois do anoitecer, montavam nos seus cavalos e iam assaltar casas solitárias ou mal guardadas.
O facto de saber que um bando de malfeitores rondava naquela região era o bastante para incitar os ladrões isolados a agir também. Fosse o que fosse que acontecesse, seria atribuído aos bandidos. Deste modo, mais de um indivíduo considerado honesto se deixava dominar pela cobiça e se escapulia à socapa armado de faca ou de pistola para se aproveitar igualmente da escuridão.
Kate sentia o terror condensar-se no silêncio da noite mexicana; silêncio tenebroso, tão profundo que se tornava sobressaltante, o som duma conta a cair. Deitada na cama, Kate escutava o mínimo rumor nas trevas densas. Ouviam-se ao longe apitos de polícia, daí a pouco passava a patrulha a cavalo. Mas, como acontece em quase toda a parte, a polícia nunca aparecia quando era precisa.
Aproximava-se a estação das chuvas, e o vento nocturno, vindo do lago, fazia sussurrar as árvores e abalava as portas desconjuntadas da casa. Os criados encafuavam-se nas suas dependências. No México, uma pequena distância isola-nos completamente desde que a noite desce; e ficamos perdidos na escuridão envolvente.
De manhã, Juana vinha da praça, com os seus olhos como gotas de tinta e, no rosto bronzeado, a expressão cansada dos entes submetidos ao medo. Logo de entrada, e na sua linguagem pouco compreensível, embrenhava-se na história de uma casa assaltada e de mulheres assassinadas. E a dona do hotel mandava dizer a Kate que não era prudente dormir sozinha em casa. Seria melhor passar a noite no hotel.
Toda a aldeia se encontrava sob estranha apreensão. Pairava no ar da noite um terror pânico. Renascia a confiança à claridade azul da manhã, mas ao anoitecer o sangue parecia coagular-se, a atmosfera tornava-se densa.
O medo, é claro, comunicava-se duns aos outros. Se Juana e a respectiva família não andassem cheias de pavor, Kate nunca sentiria medo, disso estava ela certa.
Ali não havia homens. Juana tinha dois filhos, Jesus, de vinte anos, e Ezequiel, de dezassete. Mas Jesus era quem tomava conta do motor da luz eléctrica, e tanto ele como Ezequiel dormiam na casa das máquinas. De modo que Juana ficava só com as duas filhas, Concha e Maria, no cubículo ao fundo da residência de Kate.
Antes, a plaza mantinha-se animada até às dez da noite, com gente a conversar ou a ouvir os moços tocadores de viola e o homem dos sorvetes a apregoar de contínuo: Nieve! Nieve!
Agora o largo esvaziava-se às nove horas. E havia ordem de prender quem fosse encontrado na rua depois das dez.
Kate corria para casa e trancava as portas. Não é fácil suportar o pânico de um povo meio bárbaro. O medo espalha-se no ar, envolve-nos, paralisa-nos a alma com a sensação de desgraça iminente, dum horror atroz.
Às dez horas cortavam a luz eléctrica, tudo ficava às escuras, e, deitada na cama, Kate sentia o sopro maléfico espraiando-se na atmosfera em vagas sucessivas.
Acudiam-lhe à memória todas as histórias arrepiantes passadas no país. E de novo pensava nessa gente de aspecto pacífico e sorriso doce. Mas o próprio Humboldt dissera a respeito dos mexicanos que nunca encontrara povo de sorriso tão suave e olhar tão feroz. Não que os olhos revelassem propriamente ferocidade; contudo, o seu negrume iluminava-se dum clarão frio, de cintilações de punhal nas trevas da noite, ao mesmo tempo que neles despertava a sede de homicídio.
Seres incompletos, não de todo criados, encontravam-se à mercê das velhas influências que jaziam como sedimento no fundo de cada um deles. Enquanto estavam calmos, eram simpáticos, bondosos, simples. Mas, se alguma coisa lhes revolvia as profundezas, logo se erguiam as nuvens tenebrosas de ódio e de morte.
Adivinhava-se-lhes na alma um ressentimento constante, como que uma ferida jamais cicatrizada. O ressentimento dos entes incapazes de conquistar sozinhos uma integridade individual fora do caos de paixões e forças mortíferas. Eram apanhados na engrenagem duma ansiedade ancestral como nos anéis duma serpente negra que lhes oprimisse o coração. Onerosa carga dum passado invencível.
E debaixo desse peso vivem e morrem, sem grande pena de morrer. Enredados nos elementos, não conseguem desenvencilhar-se. Queimados pelo sol excessivamente forte, sobrecarregados pela electricidade da atmosfera mexicana e atormentados pela erupção de vulcões que lhes rebentavam aos pés. Tremendos elementos do continente americano que tornam forte o corpo dos homens mas que esmagam a alma e impedem a sua elevação. E, se nalgum ela se eleva, os elementos maléficos a pouco e pouco a destroem, até que o homem se decompõe em ideias e actividades maquinais, num corpo cheio de energia mecânica mas de espírito morto e putrefacto.
Assim, esses seres incapazes de dominar os elementos, submetidos às forças do sol, da electricidade e das erupções vulcânicas, estão sujeitos a acessos de rancor e de ódio ardente à própria vida. Então, nada melhor do que enterrar uma faca num corpo vivo. Nenhuma volúpia iguala essa de cravar a lâmina e ver jorrar o sangue.
É a suprema satisfação duma raça presa a um passado de que não consegue libertar-se. Raça que não conhece Salvador nem Redenção. Quais mineiros enterrados vivos na derrocada duma mina, nações inteiras ficam sepultadas sob os escombros do passado - até que um salvador lhes mostre a saída para o sol.
Deitada na cama, Kate reflectia profundamente na'escuridão da noite, de ouvido atento aos menores ruídos que a enchiam de terror. Não podia refrear o coração; dir-se-ia que lho arrancavam, e o sofrimento era atroz. Pela primeira vez sentia medo físico, o sangue gelava-se-lhe nas veias.
Na Inglaterra, na Irlanda, durante a guerra e a revolução, conhecera o medo espiritual. O medo horrível da ralé; e durante a guerra as nações eram quase tudo ralé. O terror da canalha que pretendia acabar com a liberdade de pensamento em cada homem e em cada mulher. Era a ambição fria e colectiva de milhões de criaturas: aniquilar o espírito daqueles que resistiam e assim poderem iniciar a descida geral para as camadas interiores onde existe o culto do ouro e a volúpia de matar. A canalha.
Nesse tempo, Kate conhecera a agonia do medo social, como se a democracia fosse um polvo enorme que enlaçasse com os tentáculos quem lhe resistisse.
Agora o seu medo era doutra espécie. Sentia o coração doer-lhe, como se o arrancassem, o sangue parecia fugir-lhe das veias...
Dormitava, e acordou em sobressalto a um leve rumor. Sentou-se na cama. As portas que davam para a varanda tinham postigos, e estes encontravam-se escancarados a fim de arejar o quarto. Nessa abertura Kate distinguiu, recortando-se no céu escuro, uma forma negra semelhante a um gato que rastejasse no rebordo da janela.
- Que é? - perguntou ela maquinalmente.
No mesmo instante, aquilo moveu-se, deslizou para fora, e Kate percebeu que era o braço de um homem que tentava abrir o ferrolho interior da porta. Por uns segundos ficou paralisada, pronta a gritar. Então, como não pressentisse mais nada, inclinou-se e acendeu uma vela.
Era uma verdadeira agonia aquele terror pânico. Imobilizava-a, deslocava-lhe o coração... Ficou prostrada, no angustiante pavor nocturno. A vela projectava uma claridade lúgubre. Ouvia-se o ribombo longínquo de trovões. A noite era atroz, atroz, e o México horroroso.
Kate não conseguia dominar-se. "Estou à mercê disto", pensava. Sensação terrível, ver-se subjugada pelo medo.
"Que hei-de fazer?" perguntou a si mesma, reunindo coragem. Sabia que estava só.
Durante muito tempo sentiu-se incapaz de se mover. Então disse consigo, para se animar: "Creio no mal e não devo crer. O pânico e o assassínio são coisas que só sucedem quando perdemos o domínio de nós próprios. Não acredito verdadeiramente no mal. Acredito, sim, na existência dum poder supremo que nos comunica a sua força desde que tenhamos fé nele. O homem que queria entrar aqui não possuía essa força. Tentava ser maléfico, mas submeter-se-ia ao poder dominador."
Deste modo se ia tranquilizando, até que teve a coragem de se levantar e fechar os postigos. Em seguida, percorreu os quartos a fim de verificar se tudo estava trancado. E sentiu certo alívio ao compreender que temia tanto os escorpiões como a horrível sensação de pavor.
Depois de observar o fecho das cinco portas e das cinco janelas da ala de quartos comunicantes, Kate ficou encerrada nas trevas com a sua vela. Para o outro lado da casa, sala de jantar e cozinha, tinha de ir pela varanda.
Mais serena, embora ainda com o coração atormentado pelo medo, Kate reflectia. "Joachim afirmava que o mal provém de regressarmos aos costumes primitivos. É o que provoca roubos e assassínios. O tambor da noite de sábado evocava o ritmo da antiguidade e aquela dança selvagem era a velha forma de expressão. Regresso consciente à barbárie... Talvez a origem do mal..."
Mas logo intervinha o seu desejo de crer.
"Não! Temos de nos agarrar aos elos antigos, encontrar o impulso que nos relacionará de novo com o mistério do cosmos. Don Ramon tem razão. Ele deve ser um grande homem. Julguei que já não existissem grandes homens. Só grandes financeiros, grandes artistas, mas não grandes homens. Don Ramon deve ser um ente superior."
E Kate sentiu-se apaziguada a esta ideia.
Mas, logo que apagou a vela, surgiram clarões muito vivos através das fendas do postigo. Ribombaram trovões clamorosos, que pareciam afundar-se-lhe no coração. Kate sentia-se como que esmagada, na consciência duma tortura que a paralisou até de manhã e lhe deu a impressão de ser, ela própria, um destroço de naufrágio.
Por fim apareceu Juana, também com o ar de desenterrada, para lhe fazer a pergunta tradicional:
- Como passou a noite, Niña?
- Muito mal - respondeu Kate. E contou-lhe a história do gato preto e do braço do homem.
- Mire! - replicou Juana, sufocando a voz. - A inocentinha vai ser assassinada na cama. Não, niña, tem de passar a dormir no hotel. Não, Niña, não pode continuar com o postigo aberto. É impossível. Está a ver agora como é necessário que durma no hotel? Assim fazia a outra senhora.
- Não quero - declarou a patroa.
- Não quer, Niña? Ah, entonces, entonces... niña, vou dizer ao Ezequiel que venha dormir na soleira da porta, armado de revólver. Ele tem um revólver, pode ficar do lado de fora da porta, e a senhora já deixava a sua janela aberta, para lhe refrescar o quarto. Pobres de nós, mulheres, precisamos de um homem que tenha revólver. Não devemos estar sozinhas, toda a noite. Temos medo, e as crianças também têm medo. Imagine que um ladrão tenta arrombar o ferrolho da porta! Imagine! Não, niña, vai-se falar ao Ezequiel hoje mesmo, antes do meio-dia.
Ao meio-dia, Ezequiel compareceu, muito seguro de si. Era um rapaz, meio selvagem, mas dava largas passadas, empertigado e orgulhoso. A voz, na mudança própria da puberdade, tinha uma entoação estranha.
Ficou de pé, acanhado, ouvindo o que lhe recomendavam. Depois olhou para Kate com as pupilas negras e brilhantes, convicto do seu papel de salvador.
- Sim, sim - declarou. - Durmo aqui no corredor. Não tenha medo. Trago a pistola.
Saiu, e voltou com a arma, que era de cano comprido.
- Tem cinco cargas - participou, exibindo o revólver. - Se abrir a porta de noite, previna-me, porque, se eu vir mexer qualquer coisa, disparo os cinco tiros. Pum!, pum!
Pelo brilho do olhar do rapaz, Kate compreendeu quanto ele gostaria de fazer fogo sobre o que se movesse nas trevas. Não o preocupava a hipótese de ser alvejado por seu turno.
- niña - disse Juana - se voltar tarde para casa, depois de as luzes estarem apagadas, não se esqueça de chamar pelo Ezequiel. Senão... pum!, pum! Nunca se sabe quem pode ser a vítima.
Ezequiel dormiu sobre uma esteira na varanda de tijolos, defronte da porta de Kate. Enrolou-se num cobertor e conservou o revólver à mão. A senhora podia ficar de janela aberta. Na primeira noite, esteve muito tempo acordada por causa do ressonar estrondoso do rapaz. Nunca ela ouvira semelhante coisa! Que pulmões que ele devia ter! Dir-se-ia um som que viesse de outro mundo estranho e bárbaro. O barulho manteve-a desperta, mas havia naquilo um não sei quê de agradável. Algo semelhante a uma força bravia.

IX
Kate depressa se afeiçoou à negligente Juana e respectivas filhas. Concha tinha catorze anos. Era uma rapariga selvagem, entroncada, de cabeleira hirsuta que ela coçava constantemente. Maria, de onze anos, parecia um passarito, com olhos enormes que se diria absorverem toda a luz à sua volta.
Juana confessava que Jesus era filho doutro pai, mas o aspecto dos restantes fazia suspeitar ter cada um deles progenitor diferente. Toda a família, porém, mostrava igual despreocupação perante a vida. Viviam o dia-a-dia sem se importarem com o passado, nem com o presente, nem com o futuro. O dinheiro não lhes interessava. Assim que o recebiam gastavam-no, e logo o esqueciam.
Sem aspirações, sem objectivos, levavam existência absolutamente terre à terre no seu país sombrio e vulcânico. Não eram animais porque homens, mulheres e crianças não podem ser animais. Tal não nos foi concedido. Vai, e não voltes para trás - diz o Criador. Quando o homem tenta brutalmente tornar ao primeiro estado da evolução, fá-lo com espírito de crueldade.
Por isso os olhos negros daquela família revelavam certo medo, espanto e sofrimento. Angústia das criaturas humanas sem força para desenvolver as possibilidades do seu ser; incapazes de arrancar do caos a própria alma e indiferentes a qualquer outra vitória.
Também os brancos perdem a alma a pouco e pouco; mas conquistaram os mundos inferiores do metal e da energia e, graças às máquinas, lançam-se em corrida louca de roda da sua vacuidade.
Naquela família Kate encontrava algo de patético e de repugnante.
Desde que haviam aceitado niña como patroa, Juana e as filhas mostravam-se profundamente honestas. Honestas, a pontos de não tirarem uma única ameixa do fruteiro. E solícitas no serviço, de uma solicitude quase excessiva.
Viviam na sujidade, indiferentes ao ambiente. O chão era o seu caixote do lixo. Para ali arremessavam tudo o que consideravam inútil e ninguém se preocupava mais com isso. Pareciam 138
comprazer-se em viver no meio de pulgas e de trapos, de cascas de banana e caroços de manga. Um pedaço arrancado dum vestido - aí vai para o chão! Cabelos tirados do pente - chão com eles!
Kate não suportava aquilo. Afligia-a tamanha desordem, e o facto de ela se afligir divertiu imensamente a família mexicana. Mãe e filhas varreram então o pátio com uma vassoura de urze, até raspar a própria superfície da terra. Que engraçado, a niña preocupar-se com aquelas coisas!
Kate constituía para elas uma fonte de espanto e de divertimento. Não a consideravam pessoa de classe elevada. Era um ente meio incompreensível, meio espantoso.
Niña queria que o aquador lhe trouxesse todas as manhãs dois botes de água das nascentes térmicas para fazer abluções completas. Que esquisito! "Maria, diz ao aquador que corra a buscar água para a niña."
Quase se melindravam com o facto de ela se fechar no quarto para tomar banho. Era uma espécie de deusa, provocava-lhes alegria e admiração; mas devia ser sempre acessível. Kate depressa descobriu que um deus sempre acessível aos seres humanos passa bocados pouco invejáveis.
Não, aquilo não era nenhuma sinecura. De manhã começava o barulho da vassoura de urze lá fora. Kate deixava-se estar na cama, de portas fechadas e postigos abertos. Alvoroço no pátio. Alguém queria vender ovos. Onde está Niña? A dormir. O visitante não se retira e as conversas continuam.
O aquador! Ah, a água para o banho da niña. Está a dormir. "Não estou, não!" - grita Kate, enfiando o roupão e destrancando a porta. As pequenas entram com a tina, seguidas do aguadeiro com duas latas cheias de água quente. "Doze centavos, doze centavos para o aquador." No hay! Mais tarde, mais tarde. O homem vai-se embora, com a vara ao ombro. Kate fecha os postigos e começa a tomar banho.
- Niña!, Niña! - Que é?
- Quer ovos estrelados, quentes ou rancheros?
- Quentes.
- Café ou chocolate?
- Café.
- Ou prefere chá?
- Não, café.
O banho continua.
- Niña!
- Dize lá.
- Já não temos café. vou comprá-lo.
- Não é preciso. Tomarei chá.
- Não, niña, Eu vou. Espere por mim.
- Está bem, vai.
O primeiro almoço é na varanda. A mesa está posta, há pilhas de frutos, pão alvo e bolos.
- bom dia, niña. Como passou a noite? Maria, traze o café. vou meter os ovos na água. Oh, niña, eles não devem ficar cozidos... Meu Deus, que pés de Madona! Olhem, que bonitos!
E Juana inclina-se fascinada e, com o dedo escuro, toca nos pés acetinados de Kate metidos em leves sandálias seguras por uma única tira.
O dia tinha começado. Juana considera-se como inteiramente dedicada a Kate. Tão cedo quanto possível, expede as filhas para a escola. "Niña diz que é preciso ir para a escola. Não ouvem o que ela diz? Vamos, girem!"
No seu passo coxeante, Juana anda cá e lá na varanda, da cozinha para a mesa do almoço, transportando os pratos um por um. Depois, com grande espalhafato, começa a lavar a louça.
Manhã! O sol inunda o pátio, os cardeais e as folhas dilaceradas das bananeiras. Os pássaros voam em todos os sentidos com precipitação tropical. Na sombra densa das mangueiras passam índios vestidos de branco, semelhantes a espectros. Há um frémito de vida e, no entanto, o silêncio é opressivo. Os olhos deslumbram-se à claridade ofuscante, a alma sente-se oprimida.
Kate senta-se na varanda e finge coser. Surge um velho, segurando um ovo na mão, como qualquer símbolo. A patrona quereria comprá-lo por cinco centavos? Juana só dava quatro. De acordo? Onde está Juana?
Juana volta da praça com outras compras. O ovo! Quatro centavos! A conta das despesas. Entonces! Entonces! Luego! Luego. Ah, niña, no tengo memória.
Juana não sabia ler nem escrever. Todas as manhãs ia ao mercado, comprava uma porção de coisas de um ou dois centavos e todas as manhãs era preciso fazer contas. "Ah, onde é que nós íamos?
Não tenho memória nenhuma. Ora vejamos... Comprei três centavos de ocote... Quanto? Quanto soma agora, niña" Se faltava um centavo, ficava desolada e não falava noutra coisa. "Falta um centavo, niña? Sou estúpida, não sou? Mas eu dou-lhe um do meu dinheiro."
- Deixa lá, não penses mais nisso - dizia Kate.
- Mas eu quero pagar a diferença - insistia a mulher; e afastava-se, coxeando.
Uma hora depois elevava-se um grito no outro extremo da casa e Juana aparecia empunhando um ramo de salsa.
- Mire, niña! Compré perejil a un centavo. As contas estão certas agora?
- Estão - respondia Kate.
E a vida podia então retomar o seu curso. Existiam duas cozinhas: a anexa à sala de jantar, e a das criadas, numa espécie de barraca debaixo das bananeiras. Da varanda Kate via a abertura negra que fazia as vezes de janela na cozinha de Juana.
"Julgava Concha na escola!", disse Kate consigo mesma.
Mas não. No buraco escuro da janela distinguia-se o rosto moreno e a juba de Concha, espreitando para fora como um animal que saísse da toca, enquanto fazia as tortillas. Tortillas são uma espécie de filhos de milho. Preparam-nas batendo a massa na palma da mão até adquirir a lisura e leveza necessárias. Pouco depois do meio-dia via-se sair fumo pela janela: Concha lançava as tortillas cruas na frigideira de barro colocada sobre o lume.
Então Ezequiel aparecia, de manta sobre o ombro, chapéu de palha de grandes abas enroladas, pronto a comer as tortillas. No entanto, se trabalhava no campo, só chegava ao cair da noite. Sentava-se no degrau da porta e as mulheres serviam-no e iam-lhe buscar água como se ele fosse um rei. E ouvia-se-lhe a voz rouca dando ordens em tom calmo.
Porque, apesar do seu ar sereno e meigo, tomava uma entoação imperiosa desde que se dirigisse à mãe ou às irmãs. Prerrogativa de macho, que dava a Kate vontade de zombar do rapaz.
A hora da refeição era para Kate um dos seus tormentos. Apresentavam-lhe sopa muito quente e gordurosa, arroz apimentado, também gorduroso e fumegante, a inevitável carne nadando em gordura. Seguiam-se calabacitas, ou beringelas, salada, e o enorme cabaz de fruta. E, inundando tudo isso, o ardente sol tropical dos fins de Maio.
De tarde, o calor aumentava. Juana ia com as filhas lavar a loiça no lago. Agachadas sobre as pedras, agitavam na água cada prato, cada colher e cada garfo, e punham tudo a secar ao sol. Depois, enquanto Juana lavava uma ou duas rodilhas, as filhas banhavam-se no lago.
Jesus, o primogénito, costumava vir à tarde regar o jardim. Mas esse comia no hotel, onde prestava diversos serviços, trabalhando até às dez da noite por um salário de vinte e dois pesos, ou seja, onze dólares por mês. Usava camisa preta, e a cabeleira abundante tombava-lhe na testa baixa. Apesar da camisa fascista, possuía o espírito sarcástico e crítico dos socialistas, o espírito que vem do instinto de destruição.
Entre ele e a mãe existia pouca intimidade. Se Juana se encontrava em apuros, Jesus dava-lhe algum dinheiro mas, exceptuando o ténue laço de sangue que os unia, mostravam a maior indiferença um pelo outro.
Ezequiel tinha melhor tipo. Era esbelto, e tão direito que quase parecia arquear-se para trás. Tímido, arisco, orgulhoso, sentia-se mais responsável pela família. Não queria servir em hotéis. Não. Trabalhava nos campos, e tinha vaidade nisso: era labor de homem, não uma espécie de escravidão disfarçada.
Embora simples jornaleiro, não trabalhava para um patrão mas sim para a terra. E a terra, de certa maneira, era dele, pertencia-lhe...
Quando havia que fazer, chegava a ganhar um peso por dia. Se a terra estava seca, então procurava trabalho nas estradas, ainda que isso lhe não agradasse.
Mas nem sempre conseguia empregar-se. Durante dias, semanas, Ezequiel vagueava pelos arredores, sem nada que fazer. Quando o governo socialista dividiu as fazendas em lotes e os distribuiu pelos camponeses, coube-lhe um pedaço de terra fora da aldeia. O rapaz ia até lá e juntava pedras para construir um casebre. Cavava o chão tão profundamente quanto possível, mas não tinha amor a essa nesga de terreno que lhe viera parar às mãos de modo quase sobrenatural. Só lá ia de vez em quando, e sem nenhum entusiasmo.
Nos dias de trabalho regressava a casa por volta das seis horas e, cumprimentando Kate, timidamente, dirigia-se para o seu antro, onde, sentado no chão e de costas apoiadas à parede, dobrava tortillas umas sobre as outras e comia essa pasta elástica que tem o sabor de argamassa - pois o milho é primeiramente fervido com cal para largar a pele. Depois, dignava-se aceitar outra rima de fritos, que a irmã lhe apresentava numa folha de couve. Às vezes, Ezequiel tirava do tacho de barro um bocado de carne guisada que metia entre duas tortillas. Mas ingeria tudo rapidamente com uma espécie de indiferença. Aliás, os mexicanos parecem sempre indiferentes ao que comem.
Acabada a ceia, ia até à plaza, reunir-se aos homens. Havia ocasiões em que Kate, ao recolher a casa às nove horas, a encontrava quase deserta. Ezequiel estava no largo, Juana e Maria haviam desaparecido, e Concha dormia tal um molho de trapos no chão do pátio. Quando Kate a chamava, a pequena erguia a cabeça, espantada, entorpecida; depois, levantando-se como um cachorro, rastejava até ao portão.
Indiferença por tudo, até uns pelos outros. Juana lavava semanalmente uma camisa e um par de calças de algodão para cada um dos filhos, e aí terminavam os seus cuidados maternais. Nem se interessava averiguar qual o trabalho-de momento de Ezequiel. Sabia que arranjara emprego e isso lhe bastava. Contudo, de tempos a tempos, tinha ímpetos de amor materno, quando o rapaz era tratado injustamente, como às vezes acontecia. E, se o supunha doente, dominava-a um terror fatalista que só a abandonava depois de Kate intervir com qualquer remédio muito simples.
Semelhantes a animais. Mas os animais são perfeitos no seu isolamento e despreocupação; não se trata de indiferença, é que se bastam a si próprios. Ao passo que naquela família havia uma espécie de frustração, como se um torpor de aborrecimento a todos avassalasse.
As duas raparigas eram inseparáveis; andavam sempre atrás uma da outra. Concha arreliava de contínuo a inocente Maria de grandes olhos e esta debulhava-se em lágrimas. Ou então, no meio de uma fúria, ameaçavam-se com pedras, e Juana invectivava-as com súbita veemência, que logo se extinguia.
Estranha, aquela ferocidade repentina com que as pequenas arremessavam pedras, e não menos estranho, o esforço por não acertar. Kate notava a mesma coisa nos ataques selváticos que os garotos faziam uns aos outros nas margens do lago; atiravam calhaus com ar ameaçador, mas quase sempre falhavam o alvo.
Quase sempre, mas não sempre. Às vezes atingiam o adversário, que tombava como morto. Então os outros aproximavam-se, em silêncio temeroso, da vítima prostrada. De repente, o ferido erguia-se, com um esgar homicida no rosto, perseguindo o inimigo com uma pedra. E o inimigo fugia a sete pés.
Uma vontade perene de arreliar, de atormentar. O mesmo sucedia entre os Peles-Vermelhas. Mas o povo índio raramente recorria à violência, o que se não dava com os Mexicanos.
Kate, achando que devia fazer qualquer coisa pelas pequenas, dispensou-lhes uma hora por dia para lhes ensinar a ler, a redigir e a costurar. Maria queria aprender a ler; nisso mostrou boa vontade. Começaram bem, mas depressa a leve insistência de Kate em lhes chamar a atenção fez com que as alunas assumissem o tom de ironia peculiar ao continente americano. Ironia calma, invisível, malevolente, desejo de magoar.
- Não te debruces sobre mim, Concha. Põe-te direita.
- Porquê, niña Tem piolhos na cabeça?
A pergunta insolente era formulada com subtileza índia.
- Não! - respondia Kate subitamente irritada. - E agora vão-se embora! Afastem-se de mim.
E as pequenas retiravam-se, humilhadas.
Kate recebeu visitas de Guadalajara. Grande excitação! Mas enquanto tomava chá na varanda, Juana, Concha, Maria e Filipa, que era uma prima de dezasseis anos, sentaram-se no outro lado do pátio, bem à vista, com os belos cabelos soltos sobre os ombros, e, ostensivamente, puseram-se a catar piolhos umas às outras. Pareciam encantadas por exibirem a sua sordidez àqueles estrangeiros.
Kate desceu ao pátio.
- Se querem catar piolhos - disse em voz trémula de cólera - vão para onde ninguém as veja.
Atravessou um clarão de maldade os olhos negros de Juana, mas um instante depois, humilde e abjecta, a família retirava-se, de cabeleira ao vento, em direcção ao seu antro.
Juana comprazia-se em irritar Kate. Sentia assim uma espécie de poder sobre a Niña. É certo que temia um tanto essa irritação, mas era justamente o que desejava. De que servia uma niña que não lhe inspirasse algum receio?
Ah, raças escuras! Kate, como irlandesa, podia entrever um pouco do mistério. As raças escuras pertencem a um ciclo de humanidade já desaparecido; ficaram atrás, no fundo de um abismo donde nunca conseguiram sair. Jamais atingirão o nível dos brancos; limitam-se a segui-los de longe, como escravos.
Enquanto o homem branco avança, cheio de orgulho, as raças escuras cedem-lhe o passo e obedecem-lhe pela força. Se, porém, o branco hesita na sua marcha, logo os outros o atacam para o precipitar no abismo do passado.
É o que está a acontecer. Porque o branco, apesar de todas as farroncadas, duvida da sua própria supremacia.
E é a corrida veloz para a derrocada.
Desde a revolta de Kate perante a cena da caça aos piolhos, Juana voltou a servi-la com enternecedora solicitude. Embora indiferente a tudo, aquele ser das regiões inferiores não queria quebrar o débil fio que o ligava a Kate e ao mundo da claridade e do ar puro. Em suma, o desejo de Juana era conservar a sua niña, servir a sua Niña.
Ao mesmo tempo, parecia odiar a gente rica, branca e superior. De vez em quando contava a Kate histórias do passado. Então via-se-lhe uma expressão malévola nos olhos negros e na face acobreada, enquanto ela prosseguia: Usted sabe, niña, los gringos, los gringuitos llevan todo...
Os gringos são os Americanos, e Juana incluía Kate nos gringuitos, estrangeiros brancos. Aquela frase era nova insolência disfarçada, subtil...
- É possível - respondia Kate friamente. - Mas dize-me o que é que eu levo do México.
- Non, niña, non - Espalhava-se um sorriso de satisfação na cara de Juana quando ela conseguia atingir a outra mulher. Não me refiro a si, niña! - O protesto, porém, era pouco convincente.
Dir-se-ia que essas indígenas queriam obrigá-la a partir à força, insultando-a, rebaixando-a, até que a irlandesa, não menos impetuosa do que elas, abalasse dali num momento de fúria.
Oh, raças primitivas atrasadas!
Contudo, havia um lado patético na natureza daquela gente. Quando tinha catorze anos, Ezequiel trabalhara por conta de um sujeito que andava a construir casa. O homem prometera-lhe uma manta, mas ao fim de dois meses despediu-o sem cumprir a promessa. Foi uma desilusão bem amarga.
Kate nada tinha a ver com isso, mas Juana quase a acusava do facto.
Povo sem força para avançar, como podia deixar de ser explorado? Desde séculos que o exploravam cruelmente, e toda a sua energia se limitava a uma resistência malévola.
"Mas não pretendo explorá-los - dizia Kate consigo mesma.
- Pelo contrário, a minha vontade é dar-lhes mais do que recebo. São injustos os seus remoques. Nunca insultei estas criaturas. Faço a diligência de não as magoar e elas, deliberadamente, atacam-me e ficam radiantes quando me ferem."
No entanto, Kate procedia à sua maneira irlandesa: de vez em quando, isolava-se de Juana e das filhas. Porque, assim que as mandava para longe, desaparecia-lhes a malevolência e lembravam-se das ordens da niña. Se ela estava presente e amável, esqueciam-se de tudo. Esqueciam-se de varrer o pátio, de se apresentarem limpas, e só quando Kate as relegava para um canto é que tornavam a lembrar-se.
O filho Ezequiel tinha mais dignidade do que as mulheres.
Nunca fazia aqueles ataques insidiosos.
Quando a casa estava limpa e calma e o ar parecia purificado e a alma renovada, Kate sentia novamente amizade por essa família.
A sua azáfama, andando cá e lá, esvoaçando como pássaros; o estalo da massa das tortillas de encontro à palma da mão; o entusiástico esmagar de tomates e pimenta no tacho enquanto Juana preparava o molho; o barulho do balde no poço quando Jesus vinha regar...
Como isso era divertido! Assim devia ser tudo o que fizessem, ou então não o fariam. Não podiam fixar-se numa rotina. Jamais! Tudo devia ser alegre, variado, com uma pontinha de aventura. Era confusão, mas, no fim de contas, uma confusão viva, não uma coisa morta. Kate recordava-se dos seus criados britânicos nas cozinhas inglesas, tão maquinais e quase inumanos. Aqui era o extremo oposto.
Não havia disciplina nem método. Embora Juana e as filhas quisessem realmente fazer o que a niña desejava, só procediam conforme lhes apetecia. às vezes, Kate sentia-se angustiada. Mas, tanto quanto possível, ia suportando as extravagâncias daquela família. Tivera, por exemplo, de se habituar à vagabundagem da mesa de jantar, mesinha redonda cujo lugar era na varanda. Ao primeiro almoço, ficava discretamente debaixo das plantas, perto do salão; ao almoço da uma hora regressava à varanda; ao chá, ia para a relva do jardim, à sombra duma arvorezita. E, quanto à ceia, Juana deliberou então que a niña comesse os dois ovos e rancheros na própria casa de jantar, isolada a um canto da comprida mesa em que cabiam catorze pessoas.
Kate também nunca chegou a perceber o motivo por que, depois de lavarem a loiça na cozinha durante uns dias, se lembraram de repente de levar os pratos sujos para o lago, num cabaz, aos ombros de Concha. A não ser que achassem assim o trabalho mais divertido...
Crianças! Mas não inteiramente. Faltava-lhes a despreocupação da infância. Pressentia-se-lhes na alma qualquer coisa de sombrio, como que um peso que as forçava a resistir. Trabalhavam por acessos, podiam ser laboriosas; depois vinha a indolência e passavam horas estiradas no chão, como porcos. às vezes mostravam-se alegres, conversavam e riam, sentadas sobre a terra, em grupo, formando roda. Então, subitamente, contrariando a própria alegria, recaíam na mudez e na tristeza. Havia ocasiões em que, estando a trabalhar com afinco, atiravam para longe a ferramenta como se indignadas por terem cedido. Descuidados, versáteis nos seus amores, os homens, ao menos, passavam todo o tempo a resistir a si mesmos. Nunca procuravam o que pretendiam. As mulheres a que se aproximavam. E um rapaz e uma rapariga passeando às escuras na estrada marginal do lago, atiçando-se um ao outro, atormentando-se no meio de excitação, constituíam uma cena que deixava Kate pasmada - porque homens e mulheres não se cortejavam abertamente como fazem os brancos. E o riso súbito do macho, estranha voz de desejo reprimido, de obstinada relutância e paixão desesperada, parecia qualquer coisa a rasgar-se-lhe no peito, era um som que perdurava na memória.
Kate achava pesado o governo da casa. De certa maneira, eram como parasitas, queriam viver da sua vida, e rebaixá-la, rebaixá-la. Nalgumas ocasiões mostravam-se como pessoas meigas, generosas, encantadoras - até a fazerem novamente revoltar-se contra aquela indiferença reptilária. Indiferença e resistência.
Os servos forneciam a Kate a chave da vida indígena. Os homens sempre juntos, erectos, belos, equilibrando o chapéu enorme no alto da cabeça, quer sentados, quer de pé, quer de cócoras, numa impassibilidade de serpente; as mulheres sempre à parte, suaves, como que escondidas, estreitamente apertadas nos chailes escuros. Homens e mulheres pareciam voltar costas uns aos outros como se não quisessem ver-se mutuamente. Nenhuns galanteios, nenhum namoro. Apenas um olhar ocasional sombrio e rápido, sinal de desejo semelhante a um golpe de florete dado e recebido.
Elas, no conjunto, dir-se-iam inexperientes mas decididas a seguir o seu próprio desígnio: mudar de homens quando lhes apetecesse. E eles davam a impressão de não se preocuparem muito. Afinal eram as mulheres que pretendiam os homens.
As indígenas, com os negros cabelos tombados nas costas cheias e acobreadas, banhavam-se num canto da praia, geralmente em camisa ou com um saiote. Os homens mantinham-se alheados, nem sequer se dignavam olhar para a outra banda. Eram mulheres no banho, nada mais. Faziam parte, por assim dizer, da vida lacustre, como os peixes que ali nadavam. Concediam-lhes mesmo aquele ponto do lago, e elas sentavam-se nos baixios, isoladas como aves aquáticas, e molhavam a cabeça e os ombros com o auxílio duma cabaça.
Calmas, discretas, desprezadas fêmeas da classe dos peóns, seguindo o seu caminho envoltas no rebozo como num manto de trevas, ágeis, balançando as saias rodadas e gorjeando como passarinhos; ou paradas na borda do lago, com os cabelos longos a gotejarem; ou subindo lentamente a margem com uma pesada bilha de água ao ombro e um braço por cima da cabeça, a segurar a asa do cântaro; ou, especialmente nas tardes de domingo, sentadas à porta da casa, catando piolhos umas às outras. As moças possuidoras de cabeleira abundante e ondulada eram as que mais piolhos tinham. Aquilo representava um acto público meritório.
Parecia a Kate que esse país não podia originar nada de mais elevado do que a amizade entre os homens. O próprio casamento tinha pouca importância. E, embora se mostrassem meigos e protectores para com as crianças, os pais depressa as esqueciam.
A questão do sexo era no entanto a primordial, aquela que não devia ser omitida nem aflorada abertamente. O único mistério, muito maior do que o indivíduo. Este pouco contava.
Kate pasmava ao ver as choças de palha dos índios nas margens do lago. Ali fervilhavam crianças seminuas no chão de terra batida, no meio de trapos, de ossos, e do fedor de excremento humano.
Esse povo parecia não ter olfacto. E defronte do buraco que servia de porta à cabana, o homem impassível, magnífico, silencioso... Como era possível que tão belo exemplar de virilidade se mantivesse indiferente a tamanha porcaria?
Mas ali se conservava como inconsciente. Contudo, era um ser vivo - e forte. Nenhum homem no mundo pode transportar cargas tão pesadas como os índios do México. Kate vira já um deles passar na rua com um piano às costas, apenas seguro por uma correia em volta da testa.
Portanto, força não escasseava, mas sim energia. Nem sequer a classe dos artífices que imita a dos Estados Unidos demonstra ser enérgica. Têm os seus clubes, aperaltam-se e andam de braço dado com raparigas bonitas, mas percebe-se que tudo isso não passa de vulgar imitação.
Inesperadamente, a família de Kate aumentou. Um dia, chegou de Ocotlan uma formosa moça de 15 Primaveras, com grandes olhos bovinos, Maria del Carmen. Acompanhava-a Júlio, rapaz de vinte e dois anos. Tinham casado há pouco, e vinham de visita a Sayula. Júlio era primo de Juana. Poderiam dormir no pátio com ela e com as filhas? - perguntou Juana. Só se demorariam dois dias.
Kate ficou espantada. Maria Del Carmen devia ter sangue espanhol, a sua beleza evocava a Espanha. Parecia pertencer a um nível superior, mais educado, e no entanto ia dormir no chão com esse esposo juvenil... E ele, tão aprumado e de ar tão orgulhoso, nada possuía além duma velha manta.
- Há três quartos desocupados - disse Kate. - Que durmam num deles. - As camas eram de pessoa só. - Precisarão de mais cobertores?
Não. Bastaria a manta de Júlio.
Este era assentador de tijolos, isto é, ajudava a construir as paredes das casas de adobe. Nascera em Sayula e vinha ali de visita.
Essa visita, no entanto, prolongou-se. Júlio andava à procura de trabalho e só aparecia ao anoitecer. Maria del Carmen entretinha-se a amassar tortillas na cozinha de Juana e a conversar com as raparigas. À noite, o marido regressava e, sentado no chão, de costas apoiadas à parede, sempre impassível, deixava a mulher acariciar-lhe os cabelos negros e bastos.
Amavam-se, mas Júlio resistia ao seu amor.
Ela queria voltar para Ocotlan, onde era mais señorita do que em Sayula, mas o rapaz recusou. Não tinha dinheiro; o casal sustentava-se com cerca de cinco cêntimos por dia.
Quando Kate estava a coser, Maria del Carmen, que nem sabia talhar uma camisa, observava-a de olhos arregalados. Kate ensinou-lhe costura, comprou-lhe uns metros de chita e Maria del Carmen fez um vestido com as suas mãos.
Júlio arranjou trabalho, a um peso por dia, e a visita continuou. Kate achava o rapaz pouco terno para a mulher: sempre que lhe falava era em tom de comando. E Maria del Carmen não levava isso a bem e amuava um pouco.
Passaram-se semanas, e Juana começava a cansar-se dos parentes.
Por fim, Júlio arrendou uma casita de adobe só de um compartimento, ao preço de peso e meio por semana. Maria del Carmen ia ter o seu lar.
Kate viu-os juntar as suas coisas para a mudança. Consistia tudo numa esteira de palha, três tachos de barro, cinco peças de loiça, duas colheres de pau, uma faca e a manta de Julio. Nada mais.
Presenteou-os, então, Kate com um edredão de seda já um tanto puída, duas tigelas e diversos utensílios de cozinha. Foi uma alegria. A voz de Maria del Carmen soava no pátio em exclamações delirantes. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"
Na época das chuvas as noites são por vezes glaciais devido à evaporação, e os indígenas, transidos de frio, esperam pelo romper da manhã deitados sobre esteiras delgadas e abafados apenas com a ponta de um cobertor velho. A inércia natural fá-los suportar o sofrimento sem tentar minorá-lo. Podiam arranjar um colchão de palha de milho e cobrirem-se com folhas secas de bananeira. Mas não. Estendem-se numa esteira em cima da terra húmida e tiritam de frio noite após noite.
Maria del Carmen, porém, era um pouco mais civilizada. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"

CONTINUA

VII
Sayula era uma pequena estação balnear; não para ricos ociosos, porque o México os tem em pouca quantidade, mas para comerciantes de Guadalajara e gente que passeia nos fins-de-semana. E mesmo assim em reduzido número.
Havia, no entanto, dois hotéis, que vinham dos dias calmos de Don Porfirio, tal como a maior parte das vivendas fora da povoação, hoje fechadas e muitas delas abandonadas. Na aldeia viviam em perpétuo estado de terror. Acima de tudo temiam os bandidos e os bolchevistas.
Os bandidos eram apenas homens das localidades afastadas que, sem dinheiro, sem trabalho e sem esperança faziam ocasionalmente profissão do roubo e do assassínio. Habitavam nas suas aldeias selvagens até que as tropas os obrigavam a refugiar-se nas montanhas ermas ou nas regiões pantanosas.
Quanto aos bolchevistas, pareciam nascer do caminho de ferro. Onde houvesse carris, passageiros e carruagens de diferentes classes, aí despertava o espírito de rebelião e inveja; e o ferro e as demoníacas locomotivas ofegantes dir-se-ia engendrarem esses filhos do materialismo que são os bolchevistas.
Sayula possuía o seu ramal, com um comboio diário; a linha não cobria as despesas e lutava por se manter - mas já era bastante.
Sayula fora atingida pela loucura da América: o automóvel. Assim, como outrora os homens desejavam um cavalo e uma espada e as mulheres sonhavam com uma casa ou um camarote no teatro, a ambição actual é possuir um carro.
Era um desfile contínuo de "máquinas", de automóveis ligeiros e pesados na única estrada que ligava Sayula a Guadalajara. Uma esperança, uma fé, um objectivo: andar de carro, possuir um carro.
Quando Kate chegou à aldeia, falavam com certo alarme do regresso dos bandidos, mas a irlandesa não prestou a mínima atenção ao assunto. À noite, foi àplaza e misturou-se com o povo. Era um largo ornado de árvores imponentes, com um velho coreto no centro e um passeio em volta. No lado norte ficava o mercado. Mais além, passavam burros e camionetas nas ruas mal calcetadas.
A banda de música já não tocava em Sayula, a elegância já não se exibia naplaza, debaixo das árvores. Mas o pavimento ainda era bom e os bancos mais ou menos sólidos. Oh, tempos de Don Porfirio! Agora, só os peóns e os índios, com os seus fatos brancos e manta ao ombro, enchiam os bancos e monopolizavam a praça. É certo que se mantinha a lei que obrigava os peóns, naquelas paragens, a usar calças e não a espécie de ceroulas largas e flutuantes das suas lides rurais. Mas os peóns, por seu lado, também gostavam de envergar calças em vez daquele traje representativo do humilde labor do campo.
Eram eles, pois, quem dominava na praça, ora sentados em bancos ora passeando indolentes com a sua manta e de sandálias. Depois das seis horas, enchiam-se as barracas de comida quente, na rua calcetada do lado norte: ficava mais barato comer fora de casa e findava-se agradavelmente um dia de trabalho. As mulheres, de portas adentro, que ficassem a mastigar as suas tortillas; mas não provavam caldo, nem sopa, nem guisado. Nas tendas que vendiam tequila, instalavam-se homens, mulheres e rapazes defronte da mesa, em bancos, acotovelando-se uns aos outros. Também havia jogos de azar, pouco violentos, em que o banqueiro voltava uma carta e todos gritavam: Cinco de Espadas! Rei de Copas! Certa mulher corpulenta, imperturbável, de cigarro na boca e perigosa expressão nos olhos sombrios e baixos, vendia tequila, sentada ao escuro, toda a noite. O homem dos doces ficava de pé junto do seu balcão. Por terra, viam-se pequenos archotes metidos em latas, alumiando montes de mangas ou daquelas nauseabundas ameixas tropicais, encarnadas, que se liquidavam por dois ou três centavos a pilha, enquanto a vendedora, de saia larga, ou o vendedor, humilde e paciente, esperava acocorado o freguês, com aquela indiferença fatal e aquela submissão que tanto intrigam o estrangeiro. Ter ameixas para vender no valor de trinta cêntimos; amontoá-las no chão em pequenas pirâmides, cinco em cada uma; e esperar todo o dia e até de noite, de cócoras, a olhar de baixo para cima, para a cara do transeunte e possível comprador - eis, ao que parece, uma ocupação e um modo de vida.
Era vulgar encontrar-se ali um par de rapazes empunhando violas de tamanho diverso, em frente um do outro como dois galos combatentes; entoavam uma canção interminável, cantando em voz sumida as eternas baladas não muito musicais, dolorosas, extensas, audíveis apenas para os que estavam próximos. E assim se conservavam até enrouquecerem. Em volta, com mantas encarnadas, paravam homens altos e escuros, ouvindo por instantes e raramente contribuindo com um centavo.
Entre as barracas de comes e bebes estava um trio de duas violas e uma rabeca; dois dos músicos eram cegos e cantavam em diapasão alto, mas também de modo pouco audível. Dir-se-ia cantarem só para si, muito chegados um ao outro, como se a melancólica balada lhes repercutisse no peito.
A aldeia em peso comparecia naplaza. No entanto, raramente, muito raramente uma voz se erguia acima do murmúrio grave dos homens, do sussurro musical das mulheres, do gorjeio das crianças. Poucos movimentos apressados. O lento passeio dos homens de sandálias, chamadas huaraches, fazia um rumor leve de baratas a arrastarem-se no chão. Fora e dentro da multidão calma, corriam rapazes de pernas ao léu. Eram os irrequietos engraxadores, que pululam como moscas importunas naquela terra de gente descalça.
No lado sul, viam-se mesas e cadeiras no passeio: uma tentativa de café-esplanada- Aí, nos dias de semana, sentavam-se para tomar cerveja ou um copo de tequila as poucas pessoas que se atreviam a tamanha exibição - na maior parte estrangeiras. E ospeóns, imóveis nos bancos do último plano, observavam-nas com olhos de basilisco sob as largas abas do chapéu.
Mas ao sábado e ao domingo era quase festa. Chegavam carros aos solavancos, e, como pássaros exóticos, volteavam na plaza raparigas graciosas de vestidos vaporosos, faces empoadas e cabelos encaracolados. Passeavam de braço dado, trajadas de organdi vermelho ou azul, de musselina amarela ou cor-de-rosa, e com tal camada de pó-de-arroz na cara que a pele morena apresentava a brancura lívida dos palhaços ou dos cadáveres.
Adejavam como borboletas coloridas no meio da multidão de homens do povo. fortes e belos. Era restrito o número de mancebos elegantes que pudessem equiparar-se àquelas mocinhas. Contudo, havia alguns, de calças de flanela branca, casaco escuro, palhinhas e bengala. Fumavam cigarros com gesto afectado, falando um castelhano elegante, tão próximo quanto possível do original, e com o ar de que seriam dentro de doze meses sacrificados a algum deus mexicano depOis de estarem devidamente nédios e perfumados.
Ao sábado, os janotas, as raparigas e todos os que vinham de carro, da cidade - que, aliás, eram poucos - tentavam divertir-se nesse lúgubre país. Contratavam tocadores de viola e rabeca e a música de jazz elevava-se em acordes um tanto langorosos.
Debaixo das árvores da alameda, perto das mesas e das cadeiras do café, começavam pares a dançar à la mode. Os vestidos vermelhos, amarelos e azuis rodopiavam com as calças de flanela, donde saíam elegantes sapatos brancos guarnecidos de tiras de couro preto ou castanho. Algumas das saias de organdi encimavam meias e sapatos verdes, ou pernas à Ia nature com sapatos brancos. Os braços franzinos e morenos enlaçavam os ombros azuis-escuros dos moços, que sorriam com ar protector para as facezitas brancas e petulantes; sorrisos meigos, paternais e impregnados de sensualidade.
Mas a dança era no recinto da praça, e na praça erravam indolentes os homens do campo, ou então paravam em grupos, espiando os pares rodopiantes com os seus olhos pretos, misteriosos, impenetráveis. Em que pensariam? Sentiriam admiração, inveja, ou simplesmente uma silenciosa e fria oposição? Sim, oposição é que devia ser.
Esses camponeses de camisa branca e manta escarlate, airosamente dobrada ao ombro, passeavam devagar, quase ocultos sob o chapéu enorme e pesado, dispostos a não fazer caso dos que dançavam. Vagarosos, oscilando o corpo, eles moviam-se irresistivelmente no meio da dança como se a dança, no fim de contas, não existisse. E os rapazes de calças brancas, levando nos braços as damas de organdi, evolucionavam como podiam, fazendo o possível por se desviarem âospeóns impassíveis, que prosseguiam na sua conversa, sorrindo na alvura dos dentes, com um sangue-frio que gelava os próprios músicos. Nunca se tocavam, nunca se acotovelavam, dançarinos epeóns; no México ninguém se atropela involuntariamente. Mas a dança embatia contra a oposição invisível.
Os índios sentados nos bancos contemplavam também por momentos as evoluções dos bailarinos, após o que os fulminavam com a sua pesada indiferença. Misteriosa faculdade dos índios, tão densa e calma, para destruir a vida palpitante, para apagar qualquer foco de efervescência.
Na verdade, um simples bailarico de indígenas; mas dir-se-ia fechado dentro de quatro paredes. E o ritmo soava diferente, grave, com certa violência. Os dançarinos eram artífices, mecânicos ou carregadores da estação: gente meio citadina. Nenhuns trabalhadores do campo, ou quase nenhuns.
Por isso, passado não muito tempo, as borboletas de organdi e os moços de calças de flanela sucumbiram esmagados pela enorme passividade, pela resistência dos satânicos peóns.
Curiosa, radical oposição dos índios contra essa coisa a que chamamos espírito. É o espírito que leva as meninas petulantes a adejarem as suas asas de organdi como borboletas. É o espírito que vinca as calças de flanela dos rapazes e lhes dá aquele ar um tanto patético. Tentaram representar a elegância e a vontade do espírito moderno.
No entanto, como um peso de obsidiana, surge a recusa passiva do índio; compreende a vida, que participa do sangue, mas o espírito, que é superior, e é a marca da nossa civilização, isso ele repudia, barbaramente, torvamente. Só quando se torna operário ou lida com ofícios mecânicos é que o espírito moderno o visita.
E talvez seja esse repúdio do espírito moderno que faz o México ser o que é.
Kate ficou um tanto desconsolada ao ver findar o baile. Instalara-se numa das mesas, com Juana a servir-lhe de duena, para tomar um cálice de absinto.
Os carros regressavam à cidade em pequenos grupos. Sempre seria melhor irem juntos, para o caso de aparecerem salteadores. Dominava-os o receio dos bandidos, e os próprios janotas usavam revólver no bolso.
Como era sábado, parte da mocidade elegante ficou para o dia seguinte, na ideia de tomar banho e de se espojar ao sol.
A plaza estava cheia, e ao comprido das ruas que desembocavam no largo cintilavam inúmeros archotes, iluminando uma exposição de chapéus de palha, de esteiras, de pirâmides de laranjas.
Havia feira no domingo de manhã, de modo que, de repente, o largo ficou estuante de vida - densa e pesada energia vital. Os índios tinham vindo de todas as aldeias, trazendo consigo essa curiosa energia vital que parece zumbir cada vez mais profundamente quando eles se encontram reunidos.
Durante a tarde, com o vento a soprar do sul, as canoas, de casco preto e larga vela desfraldada, haviam atravessado as águas do lago, transportando indígenas e produtos para o mercado. Para formar essa multidão todas as aldeias da margem concorreram com os seus habitantes.
Despertava o instinto que impele os índios para a vida nocturna desde que se encontrem reunidos. Ninguém recolhia a casa, ninguém pensava em dormir, embora a feira só principiasse ao romper da manhã.
Cerca das nove horas, depois de terminada a dança, Kate ouviu o rufar de um tambor, ou coisa semelhante, e notou que uma chusma de peóns se dirigia para o lado mais escuro da praça, onde já se viam barracas e cestos enormes, em forma de ovo, encostados à parede.
Aquele som, que era como o latejar dum pulso de gigante repercutindo no ar da noite, juntou-se a nota prolongada de uma flauta, tocando uma espécie de melodia bárbara. Kate, que já ouvira falar dos cânticos selváticos dos peles-vermelhas do Arizona e do Novo
México, sentiu instantaneamente espalhar-se na atmosfera a eterna
paixão das raças pré-históricas com a sua intensa e complicada significação religiosa.
Olhou para Juana com ar interrogador.
- Que é isto? - perguntou.
- Músicos, cantores - foi a resposta evasiva.
- Mas muito diferentes dos outros - insistiu Kate.
- Sim, aquilo é coisa nova.
- Nova?
- Apareceu aqui há pouco tempo.
- Donde veio?
- Sabe-se lá! - volveu Juana, encolhendo os ombros.
- Quero ouvi-los.
- Olhe que são só homens.
- Podemos ficar um pouco afastadas.
E Kate dirigiu-se para o ajuntamento silencioso dos peóns. Estavam todos de costas para ela.
Subiu o degrau duma porta e viu, perto do muro florido de buganvílias, um espaço livre iluminado pelos archotes de madeira resinosa que um rapaz segurava nas duas mãos.
O tambor estava ao centro dessa clareira, e o homem que o rufava tinha o torso nu e calças de brancura imaculada atadas na cintura por uma faixa escarlate e aos tornozelos por cordão da mesma cor. Cingia-lhe a cabeça uma tira vermelha, donde se erguiam três penas rubras sobre a nuca. Na testa brilhava uma turquesa no meio dum círculo azul. O tocador de flauta também se apresentava sem camisa, mas dobrara sobre o ombro uma bela manta branca listada de azul e preto. Outros homens, despidos da cintura para cima, distribuíam folhetos aos espectadores, insinuando-se no meio da multidão. E todo o tempo, alta e pura, a estranha flauta de barro repetia a melodia bárbara, acompanhada pelo rufar do tambor.
Kate desceu do seu poleiro e avançou a medo. Queria um daqueles papéis. O homem deu-lho, sem sequer a olhar, e ela encaminhou-se para a luz a fim de o ler. Era uma espécie de balada, mas sem rimas, escrita em espanhol. No cimo da página via-se o desenho de uma águia cercada por uma serpente que mordia a cauda; curiosa variante do emblema mexicano, que é uma águia encarrapitada num cacto de folhas largas e com uma serpente nas garras. A certa distância, o círculo formado pelo réptil com a ave a meio dava a impressão dum olho.
Na região de Oeste
Em paz, para além dos raios brilhantes
Do Sol,
No silêncio onde nascem as águas
Dormia eu, Quetzalcoatl,
Na caverna chamada Olho Tenebroso, Vendo através do sol como por uma janela, Minha morada é lá. Onde as águas brotam E os ventos nascem.
Nas águas do Além
Levantei-me e vi uma estrela cadente.
E senti
Um sopro em minha face.
O sopro disse: Vai,
E eu vim.
Desci a longa encosta, Passei o monte do Sol, Até que descobri em baixo Os seios brancos da terra Do México: a esposa minha.
Entre os mares a minha esposa Penteia o cabelo preto Murmurando: Quetzalcoatl...
Adensara-se a multidão de homens; do centro elevava-se a luz avermelhada dos archotes, o ar embalsamava-se da resina de cedro. Kate não conseguia ver nada por causa dos chapéus enormes.
Calara-se a flauta; mas o tambor continuava as suas pancadas lentas, regulares, com o ritmo duma pulsação. Aquele som incompreensível, surdo, enfeitiçava o espírito, fazia bater o coração, aniquilava a vontade.
Os homens começaram a fatigar-se, sentando-se uns, acocorando-se outros, com o chapéu nos joelhos. Dir-se-ia um mar de cabeças escuras, ondulando para a frente, sobre os ombros vigorosos e levemente inclinados.
Perto do muro formara-se um círculo, com o tambor ao centro. O homem que o tocava, de dorso nu, premia o instrumento contra o corpo, e, curvado, as costas cintilavam-lhe ao clarão da noite. Junto dele estava outro homem a segurar uma bandeira que pendia duma haste leve. No campo azul do pano via-se o Sol amarelo a meio duma bola preta e, entre os quatro raios maiores, todos de ouro, quatro raios negros emergindo, o que fazia o astro assemelhar-se a uma roda que girasse num movimento ofuscante.
Sentara-se toda a gente. Os seis homens de tronco nu, que haviam distribuído os prospectos e convocado a multidão tinham já regressado e agora acomodavam-se de volta do rufador agachado. À direita deste ficava o porta-bandeira, à esquerda o flautista. Eram nove os do grupo, e faziam dez com o rapaz que vigiava os dois archotes, agora colocados em trípodes de cana.
A noite aprofundava-se em silêncio. Calara-se o murmúrio de vozes que enchia a praça. Debaixo das árvores, nos passeios, transitavam ainda pessoas indiferentes, mas pareciam estranhamente solitárias; figuras isoladas envoltas na luz pálida das lâmpadas eléctricas e fora do núcleo da vida.
No lado norte, as barracas continuavam iluminadas, faziam-se compras e vendas. Mas também essa banda do largo dava a impressão de estar muito longe da realidade actual.
Depois de os homens se sentarem, as mulheres avançaram timidamente e instalaram-se por sua vez na orla exterior do círculo. As saias rodadas espalhavam-se no chão, os xailes escuros moldavam-lhes a cabeça redonda e pequenina. Algumas, não ousando aproximar-se, ocuparam os bancos em volta. Outras, assim como muitos homens, haviam desaparecido aos primeiros rufos do tambor.
a plaza ficou como que deserta. Um grupo compacto rodeava o tambor; aquém, era o mundo externo, vazio e hostil. Somente na ruela escura que conduzia ao negrume do lago se viam alguns vultos erectos e silenciosos como fantasmas.
Sobre os degraus de uma porta, e com Juana a seus pés, Kate olhava fascinada para aqueles homens seminus iluminados pelo clarão dos archotes. Os seus corpos lisos e acobreados possuíam essa beleza índia um tanto assustadora. Os torsos magníficos, acetinados, desses entes silenciosos de cabeça um tanto pendida para a frente; os ombros largos, levemente descaídos pela inactividade da sua força; o tom quente e o brilho da pele; o peito vigoroso, tão viril e, no entanto, sem a dureza muscular dos homens brancos; as faces sombrias, impenetráveis, os bigodes pretos e as barbas ténues enquadrando o silêncio da boca fechada - tudo isto era impressionante, singular, despertava comoção.
Havia algo de reptilário na sua flexibilidade, qualquer coisa de terrível na sua mudez. Os troncos nus tinham a revesti-los uma sombra subtil, certa obscuridade misteriosa. Se fossem homens de raça branca seriam francamente musculados, com uma espécie de sinceridade no próprio físico. Aqueles não. A sua nudez só revelava a profundeza secreta da natureza, o eterno mistério.
Toda a gente se calara; intensificava-se o silêncio expectante, tornava-se tumular. Os homens de ombros nus mantinham-se imóveis, mergulhavam dentro de si mesmos e escutavam com os ouvidos do sangue. Sob as calças brancas atadas nos tornozelos, os pés metidos em Imaraches eram quase negros ao clarão dos archotes. Que pretendiam essas criaturas suaves e recolhidas e cuja importância, no entanto, era tão ponderosa, tão aliciante?
Kate sentia-se ao mesmo tempo atraída e repelida. Quase a fascinava o estranho poder magnético dos homens em círculo. Era como o núcleo duma vida nova, como uma jóia negra brilhando na escuridão. Mas parecia-lhe repulsiva aquela estranha opressão, esse afundar do espírito na terra, esse lento escoar duma água turva; repulsiva a densa e muda oposição ao rumo espiritual da gente branca. Contudo, ali e só ali a vida parecia arder com chama intensa.
No resto do mundo, Kate bem o sabia, tudo era vacuidade, esterilidade. Aqueles vultos avermelhados pelo clarão dos archotes representavam uma humanidade nova.
Kate sentia tudo isto, mas preferia manter-se à parte, evitar o contacto directo.
O porta-bandeira ergueu a cabeça como se fosse falar, mas não disse nada. Velho de barba e bigodes brancos a emoldurar-lhe os lábios escuros e carnudos, tinha a cara sulcada de rugas, como todas as pessoas idosas desse país. No entanto, os cabelos eram bastos, e o corpo ainda revelava força e virilidade. ! Os seus olhos negros olhavam sem ver. Talvez fosse realmente
cego; ou seria profunda abstracção que lhe dava aquele aspecto. Começou então a falar, numa voz lenta, clara e distante que parecia ser o eco dos últimos sons do tambor. - Homens, escutai-me! E vós. mulheres, escutai-me também. Há muito tempo, na calma da noite, o lago dirigiu um apelo aos seres humanos. Mas não existiam. Só os peixes pequeninos nadavam ao longo das margens, procurando fosse o que fosse, e os maiores saltavam fora de água para olhar em volta. Mas não existiam seres humanos.
Então um dos deuses de face velada saiu da água e subiu ao monte. (E o velho indicou a colina invisível nas trevas da noite. ao fundo da aldeia. Contemplou o Sol e viu através dele outro sol negro, o que criou o mundo e o absorverá de novo como uma gota de água. Disse: - Chegou o momento? - E quatro braços saíram do sol e da sua sombra surgiram homens. Viram os quatro braços no céu e principiaram a andar.
O deus do cimo da colina olhou para as montanhas e para as planícies e viu os homens anelantes, sequiosos. E disse-lhes: Vinde cá. Tendes aqui a minha água dulcificadora.
Correram como cães, de língua pendente, e ajoelharam-se na margem do lago. O deus do cimo da colina ouviu-os ofegar, de tanta água que beberam, e perguntou-lhes: - Não bebestes de mais? Ou tendes ainda os ossos secos?
í Os homens fizeram casas à borda do lago, e aquele que estava na colina, e que era um deus, ensinou-os a semear milho, feijão, e a construir barcos. Mas preveniu-os: - Nenhum barco vos salvará quando o sol negro deixar de estender os braços no céu.
O deus da colina disse ainda: - Sou Quetzalcoatl, aquele que vos humedece os lábios secos. Encho-vos o peito com um sopro do além-sol. Sou o vento que sai em turbilhão do centro da terra, sou o zéfiro que se enrosca como cobra em volta dos vossos pés, pernas e coxas, erguendo a cabeça da serpente do vosso corpo, onde reside a força humana. Tomai cuidado quando a serpente do corpo erguer a cabeça. Sou eu, Quetzalcoatl, que vos elevo, que vos elevo até ao sol das trevas, derradeira morada dos homens. Exceptuando o sol negro e os quatro braços nos céus, éreis ossos, e as estrelas eram ossos, e a Lua uma concha vazia numa praia seca, e o Sol amarelo uma taça vazia, semelhante ao crânio dum lobo. Portanto, tende cautela! Sem mim nada sois. Assim como eu nada sou sem o sol que está atrás do sol. Quando o sol de ouro estiver no zénite, dizei: Quetzalcoatl levante a sua mão e me abrigue dos raios, senão perecerei e a terra secará. Porque na palma da minha mão está a água da vida, e nas costas está a sombra da morte. Quando os homens me esquecem volto a mão e aparece a sombra da morte. Mas os homens esqueceram-me. Os seus ossos eram húmidos, o seu coração fraco. Quando a serpente do corpo erguia a cabeça, diziam assim: É a serpente amansada que nos obedece. E quando suportavam o ardor do sol, falavam nestes termos: O sol está zangado, quer absorver-nos; ofereçamos-lhe sangue de vítimas.
Os braços negros desapareceram do céu, e Quetzalcoatl envelhecia e lamentava-se, velando a face para a esconder dos homens.
Lamentava-se e dizia: - Deixai-me recolher à minha morada. Estou velho, quase sou apenas ossos. Os ossos triunfam em mim, o meu coração é uma cabaça vazia. Sinto-me cansado do México.
Então bradou ao sol negro, aquele de quem nunca se pronuncia o nome: - Estou um esqueleto, os Mexicanos renegam-me, de nada sirvo. Levai-me.
O sol negro estendeu o braço e elevou Quetzalcoatl até ao céu. Depois olhou em volta e viu a estrela de alva brilhando sem receio entre a vinda do sol dourado e a fuga da escuridão. E aquele, cujo nome jamais foi pronunciado, perguntou: - Quem és tu, guarda cintilante? E a estrela respondeu: - Outrora, no México, fui Quetzalcoatl. Agora contemplo as costas do sol amarelo e a face invisível da Lua, brilho entre o dia e a noite, esperando pela renovação.
E aquele cujo nome jamais foi pronunciado declarou: - Chegou a hora.
Assim o decretou, e eu a vós repito, homens e mulheres: Chegou a hora. Os que nos deixaram regressam, os que vieram retiram-se. Desejai a uns boas-vindas e dizei adeus aos outros.
Boas-vindas! Adeus!
O velho terminou o discurso com um grito meio sufocado, tal se na verdade se dirigisse aos deuses.
- Bienvenido! Bienvenido! Adiós! Adiós!
A própria Juana, sentada aos pés de Kate, bradava sem saber o que dizia:
- Bienvenido! Adiós! Adiós... n!
O último adios arrastou-se para rematar com o costumado "n". Começou o tambor a soar num ritmo insistente, e a flauta fez ouvir o seu grito estranho e longínquo. Tocavam a melodia singular que a irlandesa ouvira a princípio.
Então um dos homens do círculo entoou o hino. Cantava à maneira dos antigos Peles-Vermelhas, em voz contida mas intensa, como se se dirigisse à própria alma e não ao mundo exterior; como se cantasse na outra dimensão da existência dos homens, onde eles se encontram na extensão infinita que há dentro do eixo do nosso espaço rotativo. Espaço que, como o mundo, não pode deixar de se mover. E, tal o mundo, tem um eixo. O eixo do nosso espaço terreno, quando lá se penetra, é uma vastidão onde até as árvores vão e vêm, e a alma está à vontade no seu sonho, nobre e irrefutável.
O pulsar do tambor e o cântico íntimo arrastavam a alma para o centro do tempo, que é mais velho do que a própria velhice. O cantor começou por uma nota alta que repetiu demoradamente, fazendo-a percorrer ritmos subtis, na aparência desconexos, que o tambor acompanhava, e depois fê-la tremer, palpitar e dar um balanço brusco. Por muito tempo foi difícil distinguir qualquer melodia: dir-se-ia o uivo distante e esmaecido dum lobo. Era na verdade a música dos índios antigos.
Não se lhe encontrava harmonia, não se lhe reconhecia emoção. Apenas música, apenas um grito na noite, perfeito e longínquo. Mas ia direito à alma, à alma eterna e antiga, aí onde só pode a família humana encontrar-se em imediato contacto.
Kate logo o sentiu, e de forma fatídica. Seria inútil resistir, inútil fazer qualquer esforço. O som ia até ao âmago do ser, em que não existe esperança nem dor, mas só a paixão, que semelha uma ave no seu ninho, de asas dobradas, e a fé uma árvore de sombra.
Como o destino, como a sorte. A fé é a própria Árvore da Vida, inevitável, e os pomos estão ao nosso alcance: pomos dos olhos
- as pupilas -, pomos do queixo, do coração, dos seios, do ventre, dos quadris, dos joelhos, dos tornozelos. Que importa a mudança, a evolução? Somos a Árvore com os seus frutos, para todo o sempre. Verbum Sat.
Emudeceu o cantor, mas o tambor prosseguiu, fazendo vibrar subtilmente a membrana sensível da noite. Então, no círculo, de novo se elevou uma voz, depois outra, e outra, como pássaros voando de uma árvore. Elevaram-se as vozes - forte, pesado, intenso arrebatamento de vozes másculas, semelhante a um bando de aves negras subindo e descendo no ar, ao mesmo tempo. E cada ave preta dir-se-ia erguer-se do coração de um homem, do bosque secreto dos peitos masculinos.
Uma a uma, partiram também vozes da multidão, qual nova revoada de pássaros. A letra não tinha importância. Versos, palavras, simples sons - o canto era sempre o mesmo: violenta rajada saindo das cavernas do peito, das profundezas da alma eterna. Kate estava excessivamente intimidada para poder cantar, demasiadamente vencida pelas desilusões; mas sentia que o seu espírito fazia eco, seguindo o clamor do povo, tal a ave poliglota que imita as outras à noite. Contra sua vontade, Juana cantava também, num tom monótono, proferindo palavras à toa, inconsciente.
Os homens seminus começaram a agarrar as mantas: mantas brancas orladas de azul, com barras castanhas e franjas escuras. Da turba, levantou-se alguém, que se dirigiu para o lago. Voltou depois com um feixe de lenha trazido por um barco. Acendeu então uma fogueira pequena. Outro indivíduo se destacou para ir também buscar lenha: colocou-a diante do tambor, dentro do círculo, e fê-la crepitar. Por sua vez, uma mulher, descalça e de larga saia de algodão, principiou a arranjar a sua fogueira no meio das mulheres.
O ar estava bronzeado pelo clarão do lume; alastrava-se um fumo odorífero, como de incenso. Subiu e desceu o cântico, depois esmoreceu. Débil ecoou o som do tambor, e morreu por seu turno. No silêncio absoluto podia-se sentir a presença imóvel do lago sombrio.
Mais uma vez pulsou, vigoroso, o tambor. Um dos homens que estavam sentados, com o seu poncho branco debruado de azul e preto, ergueu-se de repente e, tirando as sandálias, começou a esboçar passos de dança, sem fazer o menor ruído. Dançava pesadamente, de pés nus, como se fosse enterrar-se pela terra abaixo. Sozinho, oscilava num ritmo estranho, calcando o chão, erguendo ora um ora outro dos joelhos de encontro às franjas escuras do poncho. Outro homem, encaminhando-se para o centro, pôs aí os huaraches, perto do fogo, e iniciou o seu bailado, enquanto o do tambor entoava um cântico selvático, tenebroso. Os restantes comparsas despojaram-se dos ponchos e, num instante, estavam de pé, e de torsos nus, descalços, repetiam aqueles passos que pareciam de ave. A luz da fogueira batia-lhes no peito, nas faces sombrias e extáticas.
"O que dorme acordará! O que dorme acordará! O que segue o trilho da serpente na poeira chegará ao seu posto; pelo trilho do pó chegará ao seu destino e revestir-se-á com a pele da serpente: revestir-se-á com a pele da serpente da terra, que é a criadora da pedra, que é criadora da pedra e do vigamento da terra; criadora do oiro, do ferro, da madeira da terra: dos ossos do pai da terra, da serpente do mundo, do coração do mundo que bate como uma cobra bate no pó, nos seus movimentos sobre a terra; do coração do mundo. Quem dorme despertará! Quem dorme despertará! Quem dorme despertará no caminho da serpente do pó da terra, da pedra da terra, do osso da terra."
O cântico parecia tomar novos voos audaciosos depois de baixar e sussurrar num último desmaio. Eram como ondas que se erguem do invisível, que tomam forma, alando-se, e desaparecem num rumor de aniquilamento. E os dançarinos, após terem girado em círculo, numa lenta e profunda absorção, iam um por um tomar o seu lugar, calcando o pó com os pés descalços, vagarosamente, e vagarosamente começavam a descrever uma ronda lenta em torno do fogo, sempre com os mesmos passos que se diria afundarem-se na terra. E o tambor ressoava numa palpitação sempre igual, como a de um coração humano. E o cântico soou e diminuiu, mais baixo e mais baixo numa espécie de extinção, para ainda uma vez tornar a levantar-se.
Até que os camponeses moços acharam impossível permanecer como estavam. Tiraram as sandálias, o chapéu, as mantas, e, timidamente, com pés inexperientes que no entanto conheciam as velhas pisadas, se puseram atrás dos outros bailadores e dançaram sem sair do seu lugar. Depressa o círculo revoluteante estabeleceu outro círculo de homens que envolveu o primeiro.
Então, de súbito, um dos dançarinos de tronco nu saiu do círculo interior e, penetrando no segundo, fê-lo girar em sentido inverso ao daquele. Deste modo houve duas rodas em movimento, uma dentro da outra, rodopiando em direcções opostas. Assim andaram, com o tambor e o canto, girando como rodas de sombra em volta do lume. Mas o lume extinguiu-se, e o tambor parou de repente, e os homens num instante se dispersaram, retrocedendo para os seus postos.
Houve silêncio, depois ouviu-se um murmúrio de vozes e risos. Kate muitas vezes pensara que o riso dos peóns se assemelhava a uma queixa; mas agora ele saltava como faúlhas invisíveis, bruscamente, da cinza das conversas.
Todos esperavam, e contudo ninguém se movia - até que o tambor vibrou de novo, como um sinal. Continuaram, porém, a tagarelar mas escutando, qual se possuíssem uma segunda consciência. Levantou-se um homem, desfez-se da manta e deitou lenha na fogueira central. Em seguida atravessou o grupo dos homens sentados e dirigiu-se ao das mulheres, que se apinhavam com as saias desdobradas. Esperou, sorrindo com ar abstracto, e logo se pôs de pé uma rapariga e se aproximou dele, apertando com a mão direita o xaile enrolado em torno da cabeça baixa. Estendendo a mão esquerda, pegou timidamente na do homem, que parecia inerte. Sorriu este e conduziu-a ao centro da roda, através do grupo dos que estavam sentados. Ela seguia de cabeça inclinada, escondendo o rosto pudibundo. Lado a lado, começaram a dançar, mal roçando as mãos e formando o primeiro pequenino segmento do círculo interior estacionário.
Ei-los agora todos, em pé, à espera de serem escolhidos. Rápidas, as mulheres, ocultando a testa no xaile, insinuavam-se junto deles e tomavam a mão do eleito. Dentro de pouco tempo já todos tinham dama. Fechara-se o círculo interior, com os homens e as mulheres aos pares, de mão dada.
- Venha, niña, venha! - disse Juana, fitando Kate com os seus olhos negros e brilhantes.
- Tenho medo - respondeu a irlandesa. E falava verdade.
Um dos de tronco nu atravessara a rua, afastando-se da multidão e detivera-se próximo da porta onde se achava Kate, que se calou e desviou a vista. E ficou esperando.
- Olhe, niña, um senhor que a procura. Venha, niña, venha!
A voz da criada descera de tom, capciosa, com esse apelo mágico das mulheres do povo. Os olhos pretos continuavam a cintilar-lhe estranhamente, fitos no rosto da patroa. Kate, quase hipnotizada, avançou em passos lentos e indecisos para o indivíduo que se mantinha à espera.
- Quer, realmente? - disse ela em inglês, bastante atrapalhada. E, com os seus dedos, tocou nos dedos dele.
Quase com indiferença, num gesto frouxo, a mão quente e máscula segurou os dedos de Kate e levou-a para a roda. Ela baixou a cabeça e desejou poder velar a face. No seu vestido branco e chapéu de palha verde, sentiu-se outra vez virgem, virgem juvenil. Aqueles homens concediam-lhe o dom de reencontrar a mocidade.
Acanhada, receosa, Kate procurou seguir a dança; mas escapava-lhe o ritmo, e os sapatos rígidos não a ajudavam. Movia-se confusamente.
Mas o seu par pegava-lhe na mão, embora com moleza, e oscilava, lento, o corpo todo, como um pêndulo de relógio. Dir-se-ia não fazer caso dela; contudo, segurava-lhe os dedos, de leve, numa pressão suavíssima.
Juana descartara-se dos sapatos e das meias. No rosto como uma máscara de lava, enrugado, escuro, as pupilas ardiam com a eterna chama da feminilidade, sombria e inextinguível. E já, com os pés, marcava o compasso da dança.
"Assim como o pássaro do sol fecunda a terra à alvorada tal uma fêmea morena sob os seus pés, com as dobras do ventre inclinadas aos pomos da geração, com os ovos de oiro, com os ovos que escondem o globo do sol nas águas do céu, na concha da terra que é o alvo do fogo do sangue, pisa tu também a terra e a terra conceberá qual a fêmea sob os pés do pássaro do sol. Pisa a terra, pisa a terra agachada e de asas encolhidas..."
A roda começou a girar e Kate foi-se movendo devagar entre dois homens silenciosos e absortos, cujos braços tocavam os seus. Um segurava-lhe os dedos, frouxa e brandamente, mas com transcendente afinidade. E o canto selvático subiu de novo como uma ave, e o tambor alterou o ritmo de modo incompreensível.
A outra roda era composta só de homens; Kate tinha a impressão de sentir nas costas o fulgor sombrio daqueles olhares. Os indivíduos já se não distinguiam, formavam como que uma única massa, em que ela própria se confundia.
Todos dançavam da mesma maneira, de cabeça baixa e olhar ausente, os homens absorvidos na sua virilidade, as mulheres na sua feminilidade. Somente o sexo prevalecia na sua mais alta concepção. Mar à superfície do globo movendo-se por cima dum mar nas entranhas da terra; águia evolucionando em silêncio sobre a própria sombra.
Kate sentia-se fundir nas águas revolutas de uma vida nova. Deixara de ser ela mesma para fazer parte de um todo, os seus desejos abismavam-se no mar do desejo colectivo. E assim o homem cujos dedos roçavam nos dela se engolfava no oceano de homens.
Lento mover de águas sobre águas, sem vestígio de espuma. Só a pura e deslizante conjunção.
Como era estranho ver-se submergida pelo desejo para além do próprio desejo, sentir-se integrada num corpo imenso para além do individualismo do corpo!
Não conhecia a cara do homem que lhe segurava nos dedos. Os seus olhos haviam cegado, e o rosto dele era um céu tenebroso. Mas do toque dos seus dedos nascia uma estrela, a estrela que os unia.
Os pés de Kate principiavam a marcar o compasso. Ela já sabia como deixar-se levar, abandonar a essência da sua vida, permitindo que lhe fugisse devagar, num escoamento rítmico, para o corpo negro da terra. Erecta, forte como o próprio esteio da vida, cedia no entanto a Seiva dessa força e fazia-a fluir para as raízes da terra.
Perdera a noção do tempo. A dança, porém, acalmava-se pouco a pouco, embora o ritmo permanecesse sempre o mesmo até ao fim.
Calaram-se as vozes, só o tambor continuou. Este, de súbito, produziu um rufo breve, e o silêncio foi geral. Logo as mãos se desataram, o baile parou de todo. O homem que a acompanhava sorriu-lhe e desapareceu. Jamais o reconheceria. Havia, no entanto, de lhe sentir a presença.
As mulheres afastaram-se, aconchegando os ombros com o xaile. Os homens dissimularam-se nas mantas. E Kate voltou à escuridão do lago.
- Já se vai embora, Niña? - perguntou Juana num tom que revelava certo descoroçoamento.
- Tenho de ir sem demora - replicou a patroa, estugando o passo. E a toda a pressa se encaminhou para as trevas do lago, com Juana na sua peugada, de sapatos e meias na mão.
Kate desejava reentrar em casa, com o seu novo segredo, o estranho segredo da feminilidade mais alta, a que ainda se não habituara. Precisava abandonar-se inteiramente àquele mistério.
Quase corria através do atalho interminável, na margem pedregosa e escura, apesar de a claridade das estrelas ser suficiente para revelar a forma sombria dos barcos que sulcavam a água mansa e turva. Noite eterna, sem horas! Kate não queria consultar o relógio, e até o virou no pulso a fim de não ver os ponteiros luminosos. Que o tempo a não governasse!
Ao adormecer, ouvia ainda o rufar do tambor, como um pulso que batesse nas entranhas da terra.

VIII
À entrada da casa de Kate elevava-se uma árvore enorme chamada cuenta por causa dos seus frutos pequeninos, redondos, duros e perfeitos de forma, que os indígenas apanhavam para fazer colares e, em especial, padre-nossos dos rosários. À noite, a rua ficava imersa em escuridão e só a queda das contas perturbava o silêncio.
Essas noites, que de começo pareciam calmas, amigáveis, encheram-se subitamente de terrores. Renascia o medo. Constituíra-se uma quadrilha de ladrões numa das aldeias do lago, cujos habitantes tinham má fama. Essa quadrilha, invisível durante o dia, compunha-se de pescadores e jornaleiros que, depois do anoitecer, montavam nos seus cavalos e iam assaltar casas solitárias ou mal guardadas.
O facto de saber que um bando de malfeitores rondava naquela região era o bastante para incitar os ladrões isolados a agir também. Fosse o que fosse que acontecesse, seria atribuído aos bandidos. Deste modo, mais de um indivíduo considerado honesto se deixava dominar pela cobiça e se escapulia à socapa armado de faca ou de pistola para se aproveitar igualmente da escuridão.
Kate sentia o terror condensar-se no silêncio da noite mexicana; silêncio tenebroso, tão profundo que se tornava sobressaltante, o som duma conta a cair. Deitada na cama, Kate escutava o mínimo rumor nas trevas densas. Ouviam-se ao longe apitos de polícia, daí a pouco passava a patrulha a cavalo. Mas, como acontece em quase toda a parte, a polícia nunca aparecia quando era precisa.
Aproximava-se a estação das chuvas, e o vento nocturno, vindo do lago, fazia sussurrar as árvores e abalava as portas desconjuntadas da casa. Os criados encafuavam-se nas suas dependências. No México, uma pequena distância isola-nos completamente desde que a noite desce; e ficamos perdidos na escuridão envolvente.
De manhã, Juana vinha da praça, com os seus olhos como gotas de tinta e, no rosto bronzeado, a expressão cansada dos entes submetidos ao medo. Logo de entrada, e na sua linguagem pouco compreensível, embrenhava-se na história de uma casa assaltada e de mulheres assassinadas. E a dona do hotel mandava dizer a Kate que não era prudente dormir sozinha em casa. Seria melhor passar a noite no hotel.
Toda a aldeia se encontrava sob estranha apreensão. Pairava no ar da noite um terror pânico. Renascia a confiança à claridade azul da manhã, mas ao anoitecer o sangue parecia coagular-se, a atmosfera tornava-se densa.
O medo, é claro, comunicava-se duns aos outros. Se Juana e a respectiva família não andassem cheias de pavor, Kate nunca sentiria medo, disso estava ela certa.
Ali não havia homens. Juana tinha dois filhos, Jesus, de vinte anos, e Ezequiel, de dezassete. Mas Jesus era quem tomava conta do motor da luz eléctrica, e tanto ele como Ezequiel dormiam na casa das máquinas. De modo que Juana ficava só com as duas filhas, Concha e Maria, no cubículo ao fundo da residência de Kate.
Antes, a plaza mantinha-se animada até às dez da noite, com gente a conversar ou a ouvir os moços tocadores de viola e o homem dos sorvetes a apregoar de contínuo: Nieve! Nieve!
Agora o largo esvaziava-se às nove horas. E havia ordem de prender quem fosse encontrado na rua depois das dez.
Kate corria para casa e trancava as portas. Não é fácil suportar o pânico de um povo meio bárbaro. O medo espalha-se no ar, envolve-nos, paralisa-nos a alma com a sensação de desgraça iminente, dum horror atroz.
Às dez horas cortavam a luz eléctrica, tudo ficava às escuras, e, deitada na cama, Kate sentia o sopro maléfico espraiando-se na atmosfera em vagas sucessivas.
Acudiam-lhe à memória todas as histórias arrepiantes passadas no país. E de novo pensava nessa gente de aspecto pacífico e sorriso doce. Mas o próprio Humboldt dissera a respeito dos mexicanos que nunca encontrara povo de sorriso tão suave e olhar tão feroz. Não que os olhos revelassem propriamente ferocidade; contudo, o seu negrume iluminava-se dum clarão frio, de cintilações de punhal nas trevas da noite, ao mesmo tempo que neles despertava a sede de homicídio.
Seres incompletos, não de todo criados, encontravam-se à mercê das velhas influências que jaziam como sedimento no fundo de cada um deles. Enquanto estavam calmos, eram simpáticos, bondosos, simples. Mas, se alguma coisa lhes revolvia as profundezas, logo se erguiam as nuvens tenebrosas de ódio e de morte.
Adivinhava-se-lhes na alma um ressentimento constante, como que uma ferida jamais cicatrizada. O ressentimento dos entes incapazes de conquistar sozinhos uma integridade individual fora do caos de paixões e forças mortíferas. Eram apanhados na engrenagem duma ansiedade ancestral como nos anéis duma serpente negra que lhes oprimisse o coração. Onerosa carga dum passado invencível.
E debaixo desse peso vivem e morrem, sem grande pena de morrer. Enredados nos elementos, não conseguem desenvencilhar-se. Queimados pelo sol excessivamente forte, sobrecarregados pela electricidade da atmosfera mexicana e atormentados pela erupção de vulcões que lhes rebentavam aos pés. Tremendos elementos do continente americano que tornam forte o corpo dos homens mas que esmagam a alma e impedem a sua elevação. E, se nalgum ela se eleva, os elementos maléficos a pouco e pouco a destroem, até que o homem se decompõe em ideias e actividades maquinais, num corpo cheio de energia mecânica mas de espírito morto e putrefacto.
Assim, esses seres incapazes de dominar os elementos, submetidos às forças do sol, da electricidade e das erupções vulcânicas, estão sujeitos a acessos de rancor e de ódio ardente à própria vida. Então, nada melhor do que enterrar uma faca num corpo vivo. Nenhuma volúpia iguala essa de cravar a lâmina e ver jorrar o sangue.
É a suprema satisfação duma raça presa a um passado de que não consegue libertar-se. Raça que não conhece Salvador nem Redenção. Quais mineiros enterrados vivos na derrocada duma mina, nações inteiras ficam sepultadas sob os escombros do passado - até que um salvador lhes mostre a saída para o sol.
Deitada na cama, Kate reflectia profundamente na'escuridão da noite, de ouvido atento aos menores ruídos que a enchiam de terror. Não podia refrear o coração; dir-se-ia que lho arrancavam, e o sofrimento era atroz. Pela primeira vez sentia medo físico, o sangue gelava-se-lhe nas veias.
Na Inglaterra, na Irlanda, durante a guerra e a revolução, conhecera o medo espiritual. O medo horrível da ralé; e durante a guerra as nações eram quase tudo ralé. O terror da canalha que pretendia acabar com a liberdade de pensamento em cada homem e em cada mulher. Era a ambição fria e colectiva de milhões de criaturas: aniquilar o espírito daqueles que resistiam e assim poderem iniciar a descida geral para as camadas interiores onde existe o culto do ouro e a volúpia de matar. A canalha.
Nesse tempo, Kate conhecera a agonia do medo social, como se a democracia fosse um polvo enorme que enlaçasse com os tentáculos quem lhe resistisse.
Agora o seu medo era doutra espécie. Sentia o coração doer-lhe, como se o arrancassem, o sangue parecia fugir-lhe das veias...
Dormitava, e acordou em sobressalto a um leve rumor. Sentou-se na cama. As portas que davam para a varanda tinham postigos, e estes encontravam-se escancarados a fim de arejar o quarto. Nessa abertura Kate distinguiu, recortando-se no céu escuro, uma forma negra semelhante a um gato que rastejasse no rebordo da janela.
- Que é? - perguntou ela maquinalmente.
No mesmo instante, aquilo moveu-se, deslizou para fora, e Kate percebeu que era o braço de um homem que tentava abrir o ferrolho interior da porta. Por uns segundos ficou paralisada, pronta a gritar. Então, como não pressentisse mais nada, inclinou-se e acendeu uma vela.
Era uma verdadeira agonia aquele terror pânico. Imobilizava-a, deslocava-lhe o coração... Ficou prostrada, no angustiante pavor nocturno. A vela projectava uma claridade lúgubre. Ouvia-se o ribombo longínquo de trovões. A noite era atroz, atroz, e o México horroroso.
Kate não conseguia dominar-se. "Estou à mercê disto", pensava. Sensação terrível, ver-se subjugada pelo medo.
"Que hei-de fazer?" perguntou a si mesma, reunindo coragem. Sabia que estava só.
Durante muito tempo sentiu-se incapaz de se mover. Então disse consigo, para se animar: "Creio no mal e não devo crer. O pânico e o assassínio são coisas que só sucedem quando perdemos o domínio de nós próprios. Não acredito verdadeiramente no mal. Acredito, sim, na existência dum poder supremo que nos comunica a sua força desde que tenhamos fé nele. O homem que queria entrar aqui não possuía essa força. Tentava ser maléfico, mas submeter-se-ia ao poder dominador."
Deste modo se ia tranquilizando, até que teve a coragem de se levantar e fechar os postigos. Em seguida, percorreu os quartos a fim de verificar se tudo estava trancado. E sentiu certo alívio ao compreender que temia tanto os escorpiões como a horrível sensação de pavor.
Depois de observar o fecho das cinco portas e das cinco janelas da ala de quartos comunicantes, Kate ficou encerrada nas trevas com a sua vela. Para o outro lado da casa, sala de jantar e cozinha, tinha de ir pela varanda.
Mais serena, embora ainda com o coração atormentado pelo medo, Kate reflectia. "Joachim afirmava que o mal provém de regressarmos aos costumes primitivos. É o que provoca roubos e assassínios. O tambor da noite de sábado evocava o ritmo da antiguidade e aquela dança selvagem era a velha forma de expressão. Regresso consciente à barbárie... Talvez a origem do mal..."
Mas logo intervinha o seu desejo de crer.
"Não! Temos de nos agarrar aos elos antigos, encontrar o impulso que nos relacionará de novo com o mistério do cosmos. Don Ramon tem razão. Ele deve ser um grande homem. Julguei que já não existissem grandes homens. Só grandes financeiros, grandes artistas, mas não grandes homens. Don Ramon deve ser um ente superior."
E Kate sentiu-se apaziguada a esta ideia.
Mas, logo que apagou a vela, surgiram clarões muito vivos através das fendas do postigo. Ribombaram trovões clamorosos, que pareciam afundar-se-lhe no coração. Kate sentia-se como que esmagada, na consciência duma tortura que a paralisou até de manhã e lhe deu a impressão de ser, ela própria, um destroço de naufrágio.
Por fim apareceu Juana, também com o ar de desenterrada, para lhe fazer a pergunta tradicional:
- Como passou a noite, Niña?
- Muito mal - respondeu Kate. E contou-lhe a história do gato preto e do braço do homem.
- Mire! - replicou Juana, sufocando a voz. - A inocentinha vai ser assassinada na cama. Não, niña, tem de passar a dormir no hotel. Não, Niña, não pode continuar com o postigo aberto. É impossível. Está a ver agora como é necessário que durma no hotel? Assim fazia a outra senhora.
- Não quero - declarou a patroa.
- Não quer, Niña? Ah, entonces, entonces... niña, vou dizer ao Ezequiel que venha dormir na soleira da porta, armado de revólver. Ele tem um revólver, pode ficar do lado de fora da porta, e a senhora já deixava a sua janela aberta, para lhe refrescar o quarto. Pobres de nós, mulheres, precisamos de um homem que tenha revólver. Não devemos estar sozinhas, toda a noite. Temos medo, e as crianças também têm medo. Imagine que um ladrão tenta arrombar o ferrolho da porta! Imagine! Não, niña, vai-se falar ao Ezequiel hoje mesmo, antes do meio-dia.
Ao meio-dia, Ezequiel compareceu, muito seguro de si. Era um rapaz, meio selvagem, mas dava largas passadas, empertigado e orgulhoso. A voz, na mudança própria da puberdade, tinha uma entoação estranha.
Ficou de pé, acanhado, ouvindo o que lhe recomendavam. Depois olhou para Kate com as pupilas negras e brilhantes, convicto do seu papel de salvador.
- Sim, sim - declarou. - Durmo aqui no corredor. Não tenha medo. Trago a pistola.
Saiu, e voltou com a arma, que era de cano comprido.
- Tem cinco cargas - participou, exibindo o revólver. - Se abrir a porta de noite, previna-me, porque, se eu vir mexer qualquer coisa, disparo os cinco tiros. Pum!, pum!
Pelo brilho do olhar do rapaz, Kate compreendeu quanto ele gostaria de fazer fogo sobre o que se movesse nas trevas. Não o preocupava a hipótese de ser alvejado por seu turno.
- niña - disse Juana - se voltar tarde para casa, depois de as luzes estarem apagadas, não se esqueça de chamar pelo Ezequiel. Senão... pum!, pum! Nunca se sabe quem pode ser a vítima.
Ezequiel dormiu sobre uma esteira na varanda de tijolos, defronte da porta de Kate. Enrolou-se num cobertor e conservou o revólver à mão. A senhora podia ficar de janela aberta. Na primeira noite, esteve muito tempo acordada por causa do ressonar estrondoso do rapaz. Nunca ela ouvira semelhante coisa! Que pulmões que ele devia ter! Dir-se-ia um som que viesse de outro mundo estranho e bárbaro. O barulho manteve-a desperta, mas havia naquilo um não sei quê de agradável. Algo semelhante a uma força bravia.

IX
Kate depressa se afeiçoou à negligente Juana e respectivas filhas. Concha tinha catorze anos. Era uma rapariga selvagem, entroncada, de cabeleira hirsuta que ela coçava constantemente. Maria, de onze anos, parecia um passarito, com olhos enormes que se diria absorverem toda a luz à sua volta.
Juana confessava que Jesus era filho doutro pai, mas o aspecto dos restantes fazia suspeitar ter cada um deles progenitor diferente. Toda a família, porém, mostrava igual despreocupação perante a vida. Viviam o dia-a-dia sem se importarem com o passado, nem com o presente, nem com o futuro. O dinheiro não lhes interessava. Assim que o recebiam gastavam-no, e logo o esqueciam.
Sem aspirações, sem objectivos, levavam existência absolutamente terre à terre no seu país sombrio e vulcânico. Não eram animais porque homens, mulheres e crianças não podem ser animais. Tal não nos foi concedido. Vai, e não voltes para trás - diz o Criador. Quando o homem tenta brutalmente tornar ao primeiro estado da evolução, fá-lo com espírito de crueldade.
Por isso os olhos negros daquela família revelavam certo medo, espanto e sofrimento. Angústia das criaturas humanas sem força para desenvolver as possibilidades do seu ser; incapazes de arrancar do caos a própria alma e indiferentes a qualquer outra vitória.
Também os brancos perdem a alma a pouco e pouco; mas conquistaram os mundos inferiores do metal e da energia e, graças às máquinas, lançam-se em corrida louca de roda da sua vacuidade.
Naquela família Kate encontrava algo de patético e de repugnante.
Desde que haviam aceitado niña como patroa, Juana e as filhas mostravam-se profundamente honestas. Honestas, a pontos de não tirarem uma única ameixa do fruteiro. E solícitas no serviço, de uma solicitude quase excessiva.
Viviam na sujidade, indiferentes ao ambiente. O chão era o seu caixote do lixo. Para ali arremessavam tudo o que consideravam inútil e ninguém se preocupava mais com isso. Pareciam 138
comprazer-se em viver no meio de pulgas e de trapos, de cascas de banana e caroços de manga. Um pedaço arrancado dum vestido - aí vai para o chão! Cabelos tirados do pente - chão com eles!
Kate não suportava aquilo. Afligia-a tamanha desordem, e o facto de ela se afligir divertiu imensamente a família mexicana. Mãe e filhas varreram então o pátio com uma vassoura de urze, até raspar a própria superfície da terra. Que engraçado, a niña preocupar-se com aquelas coisas!
Kate constituía para elas uma fonte de espanto e de divertimento. Não a consideravam pessoa de classe elevada. Era um ente meio incompreensível, meio espantoso.
Niña queria que o aquador lhe trouxesse todas as manhãs dois botes de água das nascentes térmicas para fazer abluções completas. Que esquisito! "Maria, diz ao aquador que corra a buscar água para a niña."
Quase se melindravam com o facto de ela se fechar no quarto para tomar banho. Era uma espécie de deusa, provocava-lhes alegria e admiração; mas devia ser sempre acessível. Kate depressa descobriu que um deus sempre acessível aos seres humanos passa bocados pouco invejáveis.
Não, aquilo não era nenhuma sinecura. De manhã começava o barulho da vassoura de urze lá fora. Kate deixava-se estar na cama, de portas fechadas e postigos abertos. Alvoroço no pátio. Alguém queria vender ovos. Onde está Niña? A dormir. O visitante não se retira e as conversas continuam.
O aquador! Ah, a água para o banho da niña. Está a dormir. "Não estou, não!" - grita Kate, enfiando o roupão e destrancando a porta. As pequenas entram com a tina, seguidas do aguadeiro com duas latas cheias de água quente. "Doze centavos, doze centavos para o aquador." No hay! Mais tarde, mais tarde. O homem vai-se embora, com a vara ao ombro. Kate fecha os postigos e começa a tomar banho.
- Niña!, Niña! - Que é?
- Quer ovos estrelados, quentes ou rancheros?
- Quentes.
- Café ou chocolate?
- Café.
- Ou prefere chá?
- Não, café.
O banho continua.
- Niña!
- Dize lá.
- Já não temos café. vou comprá-lo.
- Não é preciso. Tomarei chá.
- Não, niña, Eu vou. Espere por mim.
- Está bem, vai.
O primeiro almoço é na varanda. A mesa está posta, há pilhas de frutos, pão alvo e bolos.
- bom dia, niña. Como passou a noite? Maria, traze o café. vou meter os ovos na água. Oh, niña, eles não devem ficar cozidos... Meu Deus, que pés de Madona! Olhem, que bonitos!
E Juana inclina-se fascinada e, com o dedo escuro, toca nos pés acetinados de Kate metidos em leves sandálias seguras por uma única tira.
O dia tinha começado. Juana considera-se como inteiramente dedicada a Kate. Tão cedo quanto possível, expede as filhas para a escola. "Niña diz que é preciso ir para a escola. Não ouvem o que ela diz? Vamos, girem!"
No seu passo coxeante, Juana anda cá e lá na varanda, da cozinha para a mesa do almoço, transportando os pratos um por um. Depois, com grande espalhafato, começa a lavar a louça.
Manhã! O sol inunda o pátio, os cardeais e as folhas dilaceradas das bananeiras. Os pássaros voam em todos os sentidos com precipitação tropical. Na sombra densa das mangueiras passam índios vestidos de branco, semelhantes a espectros. Há um frémito de vida e, no entanto, o silêncio é opressivo. Os olhos deslumbram-se à claridade ofuscante, a alma sente-se oprimida.
Kate senta-se na varanda e finge coser. Surge um velho, segurando um ovo na mão, como qualquer símbolo. A patrona quereria comprá-lo por cinco centavos? Juana só dava quatro. De acordo? Onde está Juana?
Juana volta da praça com outras compras. O ovo! Quatro centavos! A conta das despesas. Entonces! Entonces! Luego! Luego. Ah, niña, no tengo memória.
Juana não sabia ler nem escrever. Todas as manhãs ia ao mercado, comprava uma porção de coisas de um ou dois centavos e todas as manhãs era preciso fazer contas. "Ah, onde é que nós íamos?
Não tenho memória nenhuma. Ora vejamos... Comprei três centavos de ocote... Quanto? Quanto soma agora, niña" Se faltava um centavo, ficava desolada e não falava noutra coisa. "Falta um centavo, niña? Sou estúpida, não sou? Mas eu dou-lhe um do meu dinheiro."
- Deixa lá, não penses mais nisso - dizia Kate.
- Mas eu quero pagar a diferença - insistia a mulher; e afastava-se, coxeando.
Uma hora depois elevava-se um grito no outro extremo da casa e Juana aparecia empunhando um ramo de salsa.
- Mire, niña! Compré perejil a un centavo. As contas estão certas agora?
- Estão - respondia Kate.
E a vida podia então retomar o seu curso. Existiam duas cozinhas: a anexa à sala de jantar, e a das criadas, numa espécie de barraca debaixo das bananeiras. Da varanda Kate via a abertura negra que fazia as vezes de janela na cozinha de Juana.
"Julgava Concha na escola!", disse Kate consigo mesma.
Mas não. No buraco escuro da janela distinguia-se o rosto moreno e a juba de Concha, espreitando para fora como um animal que saísse da toca, enquanto fazia as tortillas. Tortillas são uma espécie de filhos de milho. Preparam-nas batendo a massa na palma da mão até adquirir a lisura e leveza necessárias. Pouco depois do meio-dia via-se sair fumo pela janela: Concha lançava as tortillas cruas na frigideira de barro colocada sobre o lume.
Então Ezequiel aparecia, de manta sobre o ombro, chapéu de palha de grandes abas enroladas, pronto a comer as tortillas. No entanto, se trabalhava no campo, só chegava ao cair da noite. Sentava-se no degrau da porta e as mulheres serviam-no e iam-lhe buscar água como se ele fosse um rei. E ouvia-se-lhe a voz rouca dando ordens em tom calmo.
Porque, apesar do seu ar sereno e meigo, tomava uma entoação imperiosa desde que se dirigisse à mãe ou às irmãs. Prerrogativa de macho, que dava a Kate vontade de zombar do rapaz.
A hora da refeição era para Kate um dos seus tormentos. Apresentavam-lhe sopa muito quente e gordurosa, arroz apimentado, também gorduroso e fumegante, a inevitável carne nadando em gordura. Seguiam-se calabacitas, ou beringelas, salada, e o enorme cabaz de fruta. E, inundando tudo isso, o ardente sol tropical dos fins de Maio.
De tarde, o calor aumentava. Juana ia com as filhas lavar a loiça no lago. Agachadas sobre as pedras, agitavam na água cada prato, cada colher e cada garfo, e punham tudo a secar ao sol. Depois, enquanto Juana lavava uma ou duas rodilhas, as filhas banhavam-se no lago.
Jesus, o primogénito, costumava vir à tarde regar o jardim. Mas esse comia no hotel, onde prestava diversos serviços, trabalhando até às dez da noite por um salário de vinte e dois pesos, ou seja, onze dólares por mês. Usava camisa preta, e a cabeleira abundante tombava-lhe na testa baixa. Apesar da camisa fascista, possuía o espírito sarcástico e crítico dos socialistas, o espírito que vem do instinto de destruição.
Entre ele e a mãe existia pouca intimidade. Se Juana se encontrava em apuros, Jesus dava-lhe algum dinheiro mas, exceptuando o ténue laço de sangue que os unia, mostravam a maior indiferença um pelo outro.
Ezequiel tinha melhor tipo. Era esbelto, e tão direito que quase parecia arquear-se para trás. Tímido, arisco, orgulhoso, sentia-se mais responsável pela família. Não queria servir em hotéis. Não. Trabalhava nos campos, e tinha vaidade nisso: era labor de homem, não uma espécie de escravidão disfarçada.
Embora simples jornaleiro, não trabalhava para um patrão mas sim para a terra. E a terra, de certa maneira, era dele, pertencia-lhe...
Quando havia que fazer, chegava a ganhar um peso por dia. Se a terra estava seca, então procurava trabalho nas estradas, ainda que isso lhe não agradasse.
Mas nem sempre conseguia empregar-se. Durante dias, semanas, Ezequiel vagueava pelos arredores, sem nada que fazer. Quando o governo socialista dividiu as fazendas em lotes e os distribuiu pelos camponeses, coube-lhe um pedaço de terra fora da aldeia. O rapaz ia até lá e juntava pedras para construir um casebre. Cavava o chão tão profundamente quanto possível, mas não tinha amor a essa nesga de terreno que lhe viera parar às mãos de modo quase sobrenatural. Só lá ia de vez em quando, e sem nenhum entusiasmo.
Nos dias de trabalho regressava a casa por volta das seis horas e, cumprimentando Kate, timidamente, dirigia-se para o seu antro, onde, sentado no chão e de costas apoiadas à parede, dobrava tortillas umas sobre as outras e comia essa pasta elástica que tem o sabor de argamassa - pois o milho é primeiramente fervido com cal para largar a pele. Depois, dignava-se aceitar outra rima de fritos, que a irmã lhe apresentava numa folha de couve. Às vezes, Ezequiel tirava do tacho de barro um bocado de carne guisada que metia entre duas tortillas. Mas ingeria tudo rapidamente com uma espécie de indiferença. Aliás, os mexicanos parecem sempre indiferentes ao que comem.
Acabada a ceia, ia até à plaza, reunir-se aos homens. Havia ocasiões em que Kate, ao recolher a casa às nove horas, a encontrava quase deserta. Ezequiel estava no largo, Juana e Maria haviam desaparecido, e Concha dormia tal um molho de trapos no chão do pátio. Quando Kate a chamava, a pequena erguia a cabeça, espantada, entorpecida; depois, levantando-se como um cachorro, rastejava até ao portão.
Indiferença por tudo, até uns pelos outros. Juana lavava semanalmente uma camisa e um par de calças de algodão para cada um dos filhos, e aí terminavam os seus cuidados maternais. Nem se interessava averiguar qual o trabalho-de momento de Ezequiel. Sabia que arranjara emprego e isso lhe bastava. Contudo, de tempos a tempos, tinha ímpetos de amor materno, quando o rapaz era tratado injustamente, como às vezes acontecia. E, se o supunha doente, dominava-a um terror fatalista que só a abandonava depois de Kate intervir com qualquer remédio muito simples.
Semelhantes a animais. Mas os animais são perfeitos no seu isolamento e despreocupação; não se trata de indiferença, é que se bastam a si próprios. Ao passo que naquela família havia uma espécie de frustração, como se um torpor de aborrecimento a todos avassalasse.
As duas raparigas eram inseparáveis; andavam sempre atrás uma da outra. Concha arreliava de contínuo a inocente Maria de grandes olhos e esta debulhava-se em lágrimas. Ou então, no meio de uma fúria, ameaçavam-se com pedras, e Juana invectivava-as com súbita veemência, que logo se extinguia.
Estranha, aquela ferocidade repentina com que as pequenas arremessavam pedras, e não menos estranho, o esforço por não acertar. Kate notava a mesma coisa nos ataques selváticos que os garotos faziam uns aos outros nas margens do lago; atiravam calhaus com ar ameaçador, mas quase sempre falhavam o alvo.
Quase sempre, mas não sempre. Às vezes atingiam o adversário, que tombava como morto. Então os outros aproximavam-se, em silêncio temeroso, da vítima prostrada. De repente, o ferido erguia-se, com um esgar homicida no rosto, perseguindo o inimigo com uma pedra. E o inimigo fugia a sete pés.
Uma vontade perene de arreliar, de atormentar. O mesmo sucedia entre os Peles-Vermelhas. Mas o povo índio raramente recorria à violência, o que se não dava com os Mexicanos.
Kate, achando que devia fazer qualquer coisa pelas pequenas, dispensou-lhes uma hora por dia para lhes ensinar a ler, a redigir e a costurar. Maria queria aprender a ler; nisso mostrou boa vontade. Começaram bem, mas depressa a leve insistência de Kate em lhes chamar a atenção fez com que as alunas assumissem o tom de ironia peculiar ao continente americano. Ironia calma, invisível, malevolente, desejo de magoar.
- Não te debruces sobre mim, Concha. Põe-te direita.
- Porquê, niña Tem piolhos na cabeça?
A pergunta insolente era formulada com subtileza índia.
- Não! - respondia Kate subitamente irritada. - E agora vão-se embora! Afastem-se de mim.
E as pequenas retiravam-se, humilhadas.
Kate recebeu visitas de Guadalajara. Grande excitação! Mas enquanto tomava chá na varanda, Juana, Concha, Maria e Filipa, que era uma prima de dezasseis anos, sentaram-se no outro lado do pátio, bem à vista, com os belos cabelos soltos sobre os ombros, e, ostensivamente, puseram-se a catar piolhos umas às outras. Pareciam encantadas por exibirem a sua sordidez àqueles estrangeiros.
Kate desceu ao pátio.
- Se querem catar piolhos - disse em voz trémula de cólera - vão para onde ninguém as veja.
Atravessou um clarão de maldade os olhos negros de Juana, mas um instante depois, humilde e abjecta, a família retirava-se, de cabeleira ao vento, em direcção ao seu antro.
Juana comprazia-se em irritar Kate. Sentia assim uma espécie de poder sobre a Niña. É certo que temia um tanto essa irritação, mas era justamente o que desejava. De que servia uma niña que não lhe inspirasse algum receio?
Ah, raças escuras! Kate, como irlandesa, podia entrever um pouco do mistério. As raças escuras pertencem a um ciclo de humanidade já desaparecido; ficaram atrás, no fundo de um abismo donde nunca conseguiram sair. Jamais atingirão o nível dos brancos; limitam-se a segui-los de longe, como escravos.
Enquanto o homem branco avança, cheio de orgulho, as raças escuras cedem-lhe o passo e obedecem-lhe pela força. Se, porém, o branco hesita na sua marcha, logo os outros o atacam para o precipitar no abismo do passado.
É o que está a acontecer. Porque o branco, apesar de todas as farroncadas, duvida da sua própria supremacia.
E é a corrida veloz para a derrocada.
Desde a revolta de Kate perante a cena da caça aos piolhos, Juana voltou a servi-la com enternecedora solicitude. Embora indiferente a tudo, aquele ser das regiões inferiores não queria quebrar o débil fio que o ligava a Kate e ao mundo da claridade e do ar puro. Em suma, o desejo de Juana era conservar a sua niña, servir a sua Niña.
Ao mesmo tempo, parecia odiar a gente rica, branca e superior. De vez em quando contava a Kate histórias do passado. Então via-se-lhe uma expressão malévola nos olhos negros e na face acobreada, enquanto ela prosseguia: Usted sabe, niña, los gringos, los gringuitos llevan todo...
Os gringos são os Americanos, e Juana incluía Kate nos gringuitos, estrangeiros brancos. Aquela frase era nova insolência disfarçada, subtil...
- É possível - respondia Kate friamente. - Mas dize-me o que é que eu levo do México.
- Non, niña, non - Espalhava-se um sorriso de satisfação na cara de Juana quando ela conseguia atingir a outra mulher. Não me refiro a si, niña! - O protesto, porém, era pouco convincente.
Dir-se-ia que essas indígenas queriam obrigá-la a partir à força, insultando-a, rebaixando-a, até que a irlandesa, não menos impetuosa do que elas, abalasse dali num momento de fúria.
Oh, raças primitivas atrasadas!
Contudo, havia um lado patético na natureza daquela gente. Quando tinha catorze anos, Ezequiel trabalhara por conta de um sujeito que andava a construir casa. O homem prometera-lhe uma manta, mas ao fim de dois meses despediu-o sem cumprir a promessa. Foi uma desilusão bem amarga.
Kate nada tinha a ver com isso, mas Juana quase a acusava do facto.
Povo sem força para avançar, como podia deixar de ser explorado? Desde séculos que o exploravam cruelmente, e toda a sua energia se limitava a uma resistência malévola.
"Mas não pretendo explorá-los - dizia Kate consigo mesma.
- Pelo contrário, a minha vontade é dar-lhes mais do que recebo. São injustos os seus remoques. Nunca insultei estas criaturas. Faço a diligência de não as magoar e elas, deliberadamente, atacam-me e ficam radiantes quando me ferem."
No entanto, Kate procedia à sua maneira irlandesa: de vez em quando, isolava-se de Juana e das filhas. Porque, assim que as mandava para longe, desaparecia-lhes a malevolência e lembravam-se das ordens da niña. Se ela estava presente e amável, esqueciam-se de tudo. Esqueciam-se de varrer o pátio, de se apresentarem limpas, e só quando Kate as relegava para um canto é que tornavam a lembrar-se.
O filho Ezequiel tinha mais dignidade do que as mulheres.
Nunca fazia aqueles ataques insidiosos.
Quando a casa estava limpa e calma e o ar parecia purificado e a alma renovada, Kate sentia novamente amizade por essa família.
A sua azáfama, andando cá e lá, esvoaçando como pássaros; o estalo da massa das tortillas de encontro à palma da mão; o entusiástico esmagar de tomates e pimenta no tacho enquanto Juana preparava o molho; o barulho do balde no poço quando Jesus vinha regar...
Como isso era divertido! Assim devia ser tudo o que fizessem, ou então não o fariam. Não podiam fixar-se numa rotina. Jamais! Tudo devia ser alegre, variado, com uma pontinha de aventura. Era confusão, mas, no fim de contas, uma confusão viva, não uma coisa morta. Kate recordava-se dos seus criados britânicos nas cozinhas inglesas, tão maquinais e quase inumanos. Aqui era o extremo oposto.
Não havia disciplina nem método. Embora Juana e as filhas quisessem realmente fazer o que a niña desejava, só procediam conforme lhes apetecia. às vezes, Kate sentia-se angustiada. Mas, tanto quanto possível, ia suportando as extravagâncias daquela família. Tivera, por exemplo, de se habituar à vagabundagem da mesa de jantar, mesinha redonda cujo lugar era na varanda. Ao primeiro almoço, ficava discretamente debaixo das plantas, perto do salão; ao almoço da uma hora regressava à varanda; ao chá, ia para a relva do jardim, à sombra duma arvorezita. E, quanto à ceia, Juana deliberou então que a niña comesse os dois ovos e rancheros na própria casa de jantar, isolada a um canto da comprida mesa em que cabiam catorze pessoas.
Kate também nunca chegou a perceber o motivo por que, depois de lavarem a loiça na cozinha durante uns dias, se lembraram de repente de levar os pratos sujos para o lago, num cabaz, aos ombros de Concha. A não ser que achassem assim o trabalho mais divertido...
Crianças! Mas não inteiramente. Faltava-lhes a despreocupação da infância. Pressentia-se-lhes na alma qualquer coisa de sombrio, como que um peso que as forçava a resistir. Trabalhavam por acessos, podiam ser laboriosas; depois vinha a indolência e passavam horas estiradas no chão, como porcos. às vezes mostravam-se alegres, conversavam e riam, sentadas sobre a terra, em grupo, formando roda. Então, subitamente, contrariando a própria alegria, recaíam na mudez e na tristeza. Havia ocasiões em que, estando a trabalhar com afinco, atiravam para longe a ferramenta como se indignadas por terem cedido. Descuidados, versáteis nos seus amores, os homens, ao menos, passavam todo o tempo a resistir a si mesmos. Nunca procuravam o que pretendiam. As mulheres a que se aproximavam. E um rapaz e uma rapariga passeando às escuras na estrada marginal do lago, atiçando-se um ao outro, atormentando-se no meio de excitação, constituíam uma cena que deixava Kate pasmada - porque homens e mulheres não se cortejavam abertamente como fazem os brancos. E o riso súbito do macho, estranha voz de desejo reprimido, de obstinada relutância e paixão desesperada, parecia qualquer coisa a rasgar-se-lhe no peito, era um som que perdurava na memória.
Kate achava pesado o governo da casa. De certa maneira, eram como parasitas, queriam viver da sua vida, e rebaixá-la, rebaixá-la. Nalgumas ocasiões mostravam-se como pessoas meigas, generosas, encantadoras - até a fazerem novamente revoltar-se contra aquela indiferença reptilária. Indiferença e resistência.
Os servos forneciam a Kate a chave da vida indígena. Os homens sempre juntos, erectos, belos, equilibrando o chapéu enorme no alto da cabeça, quer sentados, quer de pé, quer de cócoras, numa impassibilidade de serpente; as mulheres sempre à parte, suaves, como que escondidas, estreitamente apertadas nos chailes escuros. Homens e mulheres pareciam voltar costas uns aos outros como se não quisessem ver-se mutuamente. Nenhuns galanteios, nenhum namoro. Apenas um olhar ocasional sombrio e rápido, sinal de desejo semelhante a um golpe de florete dado e recebido.
Elas, no conjunto, dir-se-iam inexperientes mas decididas a seguir o seu próprio desígnio: mudar de homens quando lhes apetecesse. E eles davam a impressão de não se preocuparem muito. Afinal eram as mulheres que pretendiam os homens.
As indígenas, com os negros cabelos tombados nas costas cheias e acobreadas, banhavam-se num canto da praia, geralmente em camisa ou com um saiote. Os homens mantinham-se alheados, nem sequer se dignavam olhar para a outra banda. Eram mulheres no banho, nada mais. Faziam parte, por assim dizer, da vida lacustre, como os peixes que ali nadavam. Concediam-lhes mesmo aquele ponto do lago, e elas sentavam-se nos baixios, isoladas como aves aquáticas, e molhavam a cabeça e os ombros com o auxílio duma cabaça.
Calmas, discretas, desprezadas fêmeas da classe dos peóns, seguindo o seu caminho envoltas no rebozo como num manto de trevas, ágeis, balançando as saias rodadas e gorjeando como passarinhos; ou paradas na borda do lago, com os cabelos longos a gotejarem; ou subindo lentamente a margem com uma pesada bilha de água ao ombro e um braço por cima da cabeça, a segurar a asa do cântaro; ou, especialmente nas tardes de domingo, sentadas à porta da casa, catando piolhos umas às outras. As moças possuidoras de cabeleira abundante e ondulada eram as que mais piolhos tinham. Aquilo representava um acto público meritório.
Parecia a Kate que esse país não podia originar nada de mais elevado do que a amizade entre os homens. O próprio casamento tinha pouca importância. E, embora se mostrassem meigos e protectores para com as crianças, os pais depressa as esqueciam.
A questão do sexo era no entanto a primordial, aquela que não devia ser omitida nem aflorada abertamente. O único mistério, muito maior do que o indivíduo. Este pouco contava.
Kate pasmava ao ver as choças de palha dos índios nas margens do lago. Ali fervilhavam crianças seminuas no chão de terra batida, no meio de trapos, de ossos, e do fedor de excremento humano.
Esse povo parecia não ter olfacto. E defronte do buraco que servia de porta à cabana, o homem impassível, magnífico, silencioso... Como era possível que tão belo exemplar de virilidade se mantivesse indiferente a tamanha porcaria?
Mas ali se conservava como inconsciente. Contudo, era um ser vivo - e forte. Nenhum homem no mundo pode transportar cargas tão pesadas como os índios do México. Kate vira já um deles passar na rua com um piano às costas, apenas seguro por uma correia em volta da testa.
Portanto, força não escasseava, mas sim energia. Nem sequer a classe dos artífices que imita a dos Estados Unidos demonstra ser enérgica. Têm os seus clubes, aperaltam-se e andam de braço dado com raparigas bonitas, mas percebe-se que tudo isso não passa de vulgar imitação.
Inesperadamente, a família de Kate aumentou. Um dia, chegou de Ocotlan uma formosa moça de 15 Primaveras, com grandes olhos bovinos, Maria del Carmen. Acompanhava-a Júlio, rapaz de vinte e dois anos. Tinham casado há pouco, e vinham de visita a Sayula. Júlio era primo de Juana. Poderiam dormir no pátio com ela e com as filhas? - perguntou Juana. Só se demorariam dois dias.
Kate ficou espantada. Maria Del Carmen devia ter sangue espanhol, a sua beleza evocava a Espanha. Parecia pertencer a um nível superior, mais educado, e no entanto ia dormir no chão com esse esposo juvenil... E ele, tão aprumado e de ar tão orgulhoso, nada possuía além duma velha manta.
- Há três quartos desocupados - disse Kate. - Que durmam num deles. - As camas eram de pessoa só. - Precisarão de mais cobertores?
Não. Bastaria a manta de Júlio.
Este era assentador de tijolos, isto é, ajudava a construir as paredes das casas de adobe. Nascera em Sayula e vinha ali de visita.
Essa visita, no entanto, prolongou-se. Júlio andava à procura de trabalho e só aparecia ao anoitecer. Maria del Carmen entretinha-se a amassar tortillas na cozinha de Juana e a conversar com as raparigas. À noite, o marido regressava e, sentado no chão, de costas apoiadas à parede, sempre impassível, deixava a mulher acariciar-lhe os cabelos negros e bastos.
Amavam-se, mas Júlio resistia ao seu amor.
Ela queria voltar para Ocotlan, onde era mais señorita do que em Sayula, mas o rapaz recusou. Não tinha dinheiro; o casal sustentava-se com cerca de cinco cêntimos por dia.
Quando Kate estava a coser, Maria del Carmen, que nem sabia talhar uma camisa, observava-a de olhos arregalados. Kate ensinou-lhe costura, comprou-lhe uns metros de chita e Maria del Carmen fez um vestido com as suas mãos.
Júlio arranjou trabalho, a um peso por dia, e a visita continuou. Kate achava o rapaz pouco terno para a mulher: sempre que lhe falava era em tom de comando. E Maria del Carmen não levava isso a bem e amuava um pouco.
Passaram-se semanas, e Juana começava a cansar-se dos parentes.
Por fim, Júlio arrendou uma casita de adobe só de um compartimento, ao preço de peso e meio por semana. Maria del Carmen ia ter o seu lar.
Kate viu-os juntar as suas coisas para a mudança. Consistia tudo numa esteira de palha, três tachos de barro, cinco peças de loiça, duas colheres de pau, uma faca e a manta de Julio. Nada mais.
Presenteou-os, então, Kate com um edredão de seda já um tanto puída, duas tigelas e diversos utensílios de cozinha. Foi uma alegria. A voz de Maria del Carmen soava no pátio em exclamações delirantes. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"
Na época das chuvas as noites são por vezes glaciais devido à evaporação, e os indígenas, transidos de frio, esperam pelo romper da manhã deitados sobre esteiras delgadas e abafados apenas com a ponta de um cobertor velho. A inércia natural fá-los suportar o sofrimento sem tentar minorá-lo. Podiam arranjar um colchão de palha de milho e cobrirem-se com folhas secas de bananeira. Mas não. Estendem-se numa esteira em cima da terra húmida e tiritam de frio noite após noite.
Maria del Carmen, porém, era um pouco mais civilizada. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"

CONTINUA

VII
Sayula era uma pequena estação balnear; não para ricos ociosos, porque o México os tem em pouca quantidade, mas para comerciantes de Guadalajara e gente que passeia nos fins-de-semana. E mesmo assim em reduzido número.
Havia, no entanto, dois hotéis, que vinham dos dias calmos de Don Porfirio, tal como a maior parte das vivendas fora da povoação, hoje fechadas e muitas delas abandonadas. Na aldeia viviam em perpétuo estado de terror. Acima de tudo temiam os bandidos e os bolchevistas.
Os bandidos eram apenas homens das localidades afastadas que, sem dinheiro, sem trabalho e sem esperança faziam ocasionalmente profissão do roubo e do assassínio. Habitavam nas suas aldeias selvagens até que as tropas os obrigavam a refugiar-se nas montanhas ermas ou nas regiões pantanosas.
Quanto aos bolchevistas, pareciam nascer do caminho de ferro. Onde houvesse carris, passageiros e carruagens de diferentes classes, aí despertava o espírito de rebelião e inveja; e o ferro e as demoníacas locomotivas ofegantes dir-se-ia engendrarem esses filhos do materialismo que são os bolchevistas.
Sayula possuía o seu ramal, com um comboio diário; a linha não cobria as despesas e lutava por se manter - mas já era bastante.
Sayula fora atingida pela loucura da América: o automóvel. Assim, como outrora os homens desejavam um cavalo e uma espada e as mulheres sonhavam com uma casa ou um camarote no teatro, a ambição actual é possuir um carro.
Era um desfile contínuo de "máquinas", de automóveis ligeiros e pesados na única estrada que ligava Sayula a Guadalajara. Uma esperança, uma fé, um objectivo: andar de carro, possuir um carro.
Quando Kate chegou à aldeia, falavam com certo alarme do regresso dos bandidos, mas a irlandesa não prestou a mínima atenção ao assunto. À noite, foi àplaza e misturou-se com o povo. Era um largo ornado de árvores imponentes, com um velho coreto no centro e um passeio em volta. No lado norte ficava o mercado. Mais além, passavam burros e camionetas nas ruas mal calcetadas.
A banda de música já não tocava em Sayula, a elegância já não se exibia naplaza, debaixo das árvores. Mas o pavimento ainda era bom e os bancos mais ou menos sólidos. Oh, tempos de Don Porfirio! Agora, só os peóns e os índios, com os seus fatos brancos e manta ao ombro, enchiam os bancos e monopolizavam a praça. É certo que se mantinha a lei que obrigava os peóns, naquelas paragens, a usar calças e não a espécie de ceroulas largas e flutuantes das suas lides rurais. Mas os peóns, por seu lado, também gostavam de envergar calças em vez daquele traje representativo do humilde labor do campo.
Eram eles, pois, quem dominava na praça, ora sentados em bancos ora passeando indolentes com a sua manta e de sandálias. Depois das seis horas, enchiam-se as barracas de comida quente, na rua calcetada do lado norte: ficava mais barato comer fora de casa e findava-se agradavelmente um dia de trabalho. As mulheres, de portas adentro, que ficassem a mastigar as suas tortillas; mas não provavam caldo, nem sopa, nem guisado. Nas tendas que vendiam tequila, instalavam-se homens, mulheres e rapazes defronte da mesa, em bancos, acotovelando-se uns aos outros. Também havia jogos de azar, pouco violentos, em que o banqueiro voltava uma carta e todos gritavam: Cinco de Espadas! Rei de Copas! Certa mulher corpulenta, imperturbável, de cigarro na boca e perigosa expressão nos olhos sombrios e baixos, vendia tequila, sentada ao escuro, toda a noite. O homem dos doces ficava de pé junto do seu balcão. Por terra, viam-se pequenos archotes metidos em latas, alumiando montes de mangas ou daquelas nauseabundas ameixas tropicais, encarnadas, que se liquidavam por dois ou três centavos a pilha, enquanto a vendedora, de saia larga, ou o vendedor, humilde e paciente, esperava acocorado o freguês, com aquela indiferença fatal e aquela submissão que tanto intrigam o estrangeiro. Ter ameixas para vender no valor de trinta cêntimos; amontoá-las no chão em pequenas pirâmides, cinco em cada uma; e esperar todo o dia e até de noite, de cócoras, a olhar de baixo para cima, para a cara do transeunte e possível comprador - eis, ao que parece, uma ocupação e um modo de vida.
Era vulgar encontrar-se ali um par de rapazes empunhando violas de tamanho diverso, em frente um do outro como dois galos combatentes; entoavam uma canção interminável, cantando em voz sumida as eternas baladas não muito musicais, dolorosas, extensas, audíveis apenas para os que estavam próximos. E assim se conservavam até enrouquecerem. Em volta, com mantas encarnadas, paravam homens altos e escuros, ouvindo por instantes e raramente contribuindo com um centavo.
Entre as barracas de comes e bebes estava um trio de duas violas e uma rabeca; dois dos músicos eram cegos e cantavam em diapasão alto, mas também de modo pouco audível. Dir-se-ia cantarem só para si, muito chegados um ao outro, como se a melancólica balada lhes repercutisse no peito.
A aldeia em peso comparecia naplaza. No entanto, raramente, muito raramente uma voz se erguia acima do murmúrio grave dos homens, do sussurro musical das mulheres, do gorjeio das crianças. Poucos movimentos apressados. O lento passeio dos homens de sandálias, chamadas huaraches, fazia um rumor leve de baratas a arrastarem-se no chão. Fora e dentro da multidão calma, corriam rapazes de pernas ao léu. Eram os irrequietos engraxadores, que pululam como moscas importunas naquela terra de gente descalça.
No lado sul, viam-se mesas e cadeiras no passeio: uma tentativa de café-esplanada- Aí, nos dias de semana, sentavam-se para tomar cerveja ou um copo de tequila as poucas pessoas que se atreviam a tamanha exibição - na maior parte estrangeiras. E ospeóns, imóveis nos bancos do último plano, observavam-nas com olhos de basilisco sob as largas abas do chapéu.
Mas ao sábado e ao domingo era quase festa. Chegavam carros aos solavancos, e, como pássaros exóticos, volteavam na plaza raparigas graciosas de vestidos vaporosos, faces empoadas e cabelos encaracolados. Passeavam de braço dado, trajadas de organdi vermelho ou azul, de musselina amarela ou cor-de-rosa, e com tal camada de pó-de-arroz na cara que a pele morena apresentava a brancura lívida dos palhaços ou dos cadáveres.
Adejavam como borboletas coloridas no meio da multidão de homens do povo. fortes e belos. Era restrito o número de mancebos elegantes que pudessem equiparar-se àquelas mocinhas. Contudo, havia alguns, de calças de flanela branca, casaco escuro, palhinhas e bengala. Fumavam cigarros com gesto afectado, falando um castelhano elegante, tão próximo quanto possível do original, e com o ar de que seriam dentro de doze meses sacrificados a algum deus mexicano depOis de estarem devidamente nédios e perfumados.
Ao sábado, os janotas, as raparigas e todos os que vinham de carro, da cidade - que, aliás, eram poucos - tentavam divertir-se nesse lúgubre país. Contratavam tocadores de viola e rabeca e a música de jazz elevava-se em acordes um tanto langorosos.
Debaixo das árvores da alameda, perto das mesas e das cadeiras do café, começavam pares a dançar à la mode. Os vestidos vermelhos, amarelos e azuis rodopiavam com as calças de flanela, donde saíam elegantes sapatos brancos guarnecidos de tiras de couro preto ou castanho. Algumas das saias de organdi encimavam meias e sapatos verdes, ou pernas à Ia nature com sapatos brancos. Os braços franzinos e morenos enlaçavam os ombros azuis-escuros dos moços, que sorriam com ar protector para as facezitas brancas e petulantes; sorrisos meigos, paternais e impregnados de sensualidade.
Mas a dança era no recinto da praça, e na praça erravam indolentes os homens do campo, ou então paravam em grupos, espiando os pares rodopiantes com os seus olhos pretos, misteriosos, impenetráveis. Em que pensariam? Sentiriam admiração, inveja, ou simplesmente uma silenciosa e fria oposição? Sim, oposição é que devia ser.
Esses camponeses de camisa branca e manta escarlate, airosamente dobrada ao ombro, passeavam devagar, quase ocultos sob o chapéu enorme e pesado, dispostos a não fazer caso dos que dançavam. Vagarosos, oscilando o corpo, eles moviam-se irresistivelmente no meio da dança como se a dança, no fim de contas, não existisse. E os rapazes de calças brancas, levando nos braços as damas de organdi, evolucionavam como podiam, fazendo o possível por se desviarem âospeóns impassíveis, que prosseguiam na sua conversa, sorrindo na alvura dos dentes, com um sangue-frio que gelava os próprios músicos. Nunca se tocavam, nunca se acotovelavam, dançarinos epeóns; no México ninguém se atropela involuntariamente. Mas a dança embatia contra a oposição invisível.
Os índios sentados nos bancos contemplavam também por momentos as evoluções dos bailarinos, após o que os fulminavam com a sua pesada indiferença. Misteriosa faculdade dos índios, tão densa e calma, para destruir a vida palpitante, para apagar qualquer foco de efervescência.
Na verdade, um simples bailarico de indígenas; mas dir-se-ia fechado dentro de quatro paredes. E o ritmo soava diferente, grave, com certa violência. Os dançarinos eram artífices, mecânicos ou carregadores da estação: gente meio citadina. Nenhuns trabalhadores do campo, ou quase nenhuns.
Por isso, passado não muito tempo, as borboletas de organdi e os moços de calças de flanela sucumbiram esmagados pela enorme passividade, pela resistência dos satânicos peóns.
Curiosa, radical oposição dos índios contra essa coisa a que chamamos espírito. É o espírito que leva as meninas petulantes a adejarem as suas asas de organdi como borboletas. É o espírito que vinca as calças de flanela dos rapazes e lhes dá aquele ar um tanto patético. Tentaram representar a elegância e a vontade do espírito moderno.
No entanto, como um peso de obsidiana, surge a recusa passiva do índio; compreende a vida, que participa do sangue, mas o espírito, que é superior, e é a marca da nossa civilização, isso ele repudia, barbaramente, torvamente. Só quando se torna operário ou lida com ofícios mecânicos é que o espírito moderno o visita.
E talvez seja esse repúdio do espírito moderno que faz o México ser o que é.
Kate ficou um tanto desconsolada ao ver findar o baile. Instalara-se numa das mesas, com Juana a servir-lhe de duena, para tomar um cálice de absinto.
Os carros regressavam à cidade em pequenos grupos. Sempre seria melhor irem juntos, para o caso de aparecerem salteadores. Dominava-os o receio dos bandidos, e os próprios janotas usavam revólver no bolso.
Como era sábado, parte da mocidade elegante ficou para o dia seguinte, na ideia de tomar banho e de se espojar ao sol.
A plaza estava cheia, e ao comprido das ruas que desembocavam no largo cintilavam inúmeros archotes, iluminando uma exposição de chapéus de palha, de esteiras, de pirâmides de laranjas.
Havia feira no domingo de manhã, de modo que, de repente, o largo ficou estuante de vida - densa e pesada energia vital. Os índios tinham vindo de todas as aldeias, trazendo consigo essa curiosa energia vital que parece zumbir cada vez mais profundamente quando eles se encontram reunidos.
Durante a tarde, com o vento a soprar do sul, as canoas, de casco preto e larga vela desfraldada, haviam atravessado as águas do lago, transportando indígenas e produtos para o mercado. Para formar essa multidão todas as aldeias da margem concorreram com os seus habitantes.
Despertava o instinto que impele os índios para a vida nocturna desde que se encontrem reunidos. Ninguém recolhia a casa, ninguém pensava em dormir, embora a feira só principiasse ao romper da manhã.
Cerca das nove horas, depois de terminada a dança, Kate ouviu o rufar de um tambor, ou coisa semelhante, e notou que uma chusma de peóns se dirigia para o lado mais escuro da praça, onde já se viam barracas e cestos enormes, em forma de ovo, encostados à parede.
Aquele som, que era como o latejar dum pulso de gigante repercutindo no ar da noite, juntou-se a nota prolongada de uma flauta, tocando uma espécie de melodia bárbara. Kate, que já ouvira falar dos cânticos selváticos dos peles-vermelhas do Arizona e do Novo
México, sentiu instantaneamente espalhar-se na atmosfera a eterna
paixão das raças pré-históricas com a sua intensa e complicada significação religiosa.
Olhou para Juana com ar interrogador.
- Que é isto? - perguntou.
- Músicos, cantores - foi a resposta evasiva.
- Mas muito diferentes dos outros - insistiu Kate.
- Sim, aquilo é coisa nova.
- Nova?
- Apareceu aqui há pouco tempo.
- Donde veio?
- Sabe-se lá! - volveu Juana, encolhendo os ombros.
- Quero ouvi-los.
- Olhe que são só homens.
- Podemos ficar um pouco afastadas.
E Kate dirigiu-se para o ajuntamento silencioso dos peóns. Estavam todos de costas para ela.
Subiu o degrau duma porta e viu, perto do muro florido de buganvílias, um espaço livre iluminado pelos archotes de madeira resinosa que um rapaz segurava nas duas mãos.
O tambor estava ao centro dessa clareira, e o homem que o rufava tinha o torso nu e calças de brancura imaculada atadas na cintura por uma faixa escarlate e aos tornozelos por cordão da mesma cor. Cingia-lhe a cabeça uma tira vermelha, donde se erguiam três penas rubras sobre a nuca. Na testa brilhava uma turquesa no meio dum círculo azul. O tocador de flauta também se apresentava sem camisa, mas dobrara sobre o ombro uma bela manta branca listada de azul e preto. Outros homens, despidos da cintura para cima, distribuíam folhetos aos espectadores, insinuando-se no meio da multidão. E todo o tempo, alta e pura, a estranha flauta de barro repetia a melodia bárbara, acompanhada pelo rufar do tambor.
Kate desceu do seu poleiro e avançou a medo. Queria um daqueles papéis. O homem deu-lho, sem sequer a olhar, e ela encaminhou-se para a luz a fim de o ler. Era uma espécie de balada, mas sem rimas, escrita em espanhol. No cimo da página via-se o desenho de uma águia cercada por uma serpente que mordia a cauda; curiosa variante do emblema mexicano, que é uma águia encarrapitada num cacto de folhas largas e com uma serpente nas garras. A certa distância, o círculo formado pelo réptil com a ave a meio dava a impressão dum olho.
Na região de Oeste
Em paz, para além dos raios brilhantes
Do Sol,
No silêncio onde nascem as águas
Dormia eu, Quetzalcoatl,
Na caverna chamada Olho Tenebroso, Vendo através do sol como por uma janela, Minha morada é lá. Onde as águas brotam E os ventos nascem.
Nas águas do Além
Levantei-me e vi uma estrela cadente.
E senti
Um sopro em minha face.
O sopro disse: Vai,
E eu vim.
Desci a longa encosta, Passei o monte do Sol, Até que descobri em baixo Os seios brancos da terra Do México: a esposa minha.
Entre os mares a minha esposa Penteia o cabelo preto Murmurando: Quetzalcoatl...
Adensara-se a multidão de homens; do centro elevava-se a luz avermelhada dos archotes, o ar embalsamava-se da resina de cedro. Kate não conseguia ver nada por causa dos chapéus enormes.
Calara-se a flauta; mas o tambor continuava as suas pancadas lentas, regulares, com o ritmo duma pulsação. Aquele som incompreensível, surdo, enfeitiçava o espírito, fazia bater o coração, aniquilava a vontade.
Os homens começaram a fatigar-se, sentando-se uns, acocorando-se outros, com o chapéu nos joelhos. Dir-se-ia um mar de cabeças escuras, ondulando para a frente, sobre os ombros vigorosos e levemente inclinados.
Perto do muro formara-se um círculo, com o tambor ao centro. O homem que o tocava, de dorso nu, premia o instrumento contra o corpo, e, curvado, as costas cintilavam-lhe ao clarão da noite. Junto dele estava outro homem a segurar uma bandeira que pendia duma haste leve. No campo azul do pano via-se o Sol amarelo a meio duma bola preta e, entre os quatro raios maiores, todos de ouro, quatro raios negros emergindo, o que fazia o astro assemelhar-se a uma roda que girasse num movimento ofuscante.
Sentara-se toda a gente. Os seis homens de tronco nu, que haviam distribuído os prospectos e convocado a multidão tinham já regressado e agora acomodavam-se de volta do rufador agachado. À direita deste ficava o porta-bandeira, à esquerda o flautista. Eram nove os do grupo, e faziam dez com o rapaz que vigiava os dois archotes, agora colocados em trípodes de cana.
A noite aprofundava-se em silêncio. Calara-se o murmúrio de vozes que enchia a praça. Debaixo das árvores, nos passeios, transitavam ainda pessoas indiferentes, mas pareciam estranhamente solitárias; figuras isoladas envoltas na luz pálida das lâmpadas eléctricas e fora do núcleo da vida.
No lado norte, as barracas continuavam iluminadas, faziam-se compras e vendas. Mas também essa banda do largo dava a impressão de estar muito longe da realidade actual.
Depois de os homens se sentarem, as mulheres avançaram timidamente e instalaram-se por sua vez na orla exterior do círculo. As saias rodadas espalhavam-se no chão, os xailes escuros moldavam-lhes a cabeça redonda e pequenina. Algumas, não ousando aproximar-se, ocuparam os bancos em volta. Outras, assim como muitos homens, haviam desaparecido aos primeiros rufos do tambor.
a plaza ficou como que deserta. Um grupo compacto rodeava o tambor; aquém, era o mundo externo, vazio e hostil. Somente na ruela escura que conduzia ao negrume do lago se viam alguns vultos erectos e silenciosos como fantasmas.
Sobre os degraus de uma porta, e com Juana a seus pés, Kate olhava fascinada para aqueles homens seminus iluminados pelo clarão dos archotes. Os seus corpos lisos e acobreados possuíam essa beleza índia um tanto assustadora. Os torsos magníficos, acetinados, desses entes silenciosos de cabeça um tanto pendida para a frente; os ombros largos, levemente descaídos pela inactividade da sua força; o tom quente e o brilho da pele; o peito vigoroso, tão viril e, no entanto, sem a dureza muscular dos homens brancos; as faces sombrias, impenetráveis, os bigodes pretos e as barbas ténues enquadrando o silêncio da boca fechada - tudo isto era impressionante, singular, despertava comoção.
Havia algo de reptilário na sua flexibilidade, qualquer coisa de terrível na sua mudez. Os troncos nus tinham a revesti-los uma sombra subtil, certa obscuridade misteriosa. Se fossem homens de raça branca seriam francamente musculados, com uma espécie de sinceridade no próprio físico. Aqueles não. A sua nudez só revelava a profundeza secreta da natureza, o eterno mistério.
Toda a gente se calara; intensificava-se o silêncio expectante, tornava-se tumular. Os homens de ombros nus mantinham-se imóveis, mergulhavam dentro de si mesmos e escutavam com os ouvidos do sangue. Sob as calças brancas atadas nos tornozelos, os pés metidos em Imaraches eram quase negros ao clarão dos archotes. Que pretendiam essas criaturas suaves e recolhidas e cuja importância, no entanto, era tão ponderosa, tão aliciante?
Kate sentia-se ao mesmo tempo atraída e repelida. Quase a fascinava o estranho poder magnético dos homens em círculo. Era como o núcleo duma vida nova, como uma jóia negra brilhando na escuridão. Mas parecia-lhe repulsiva aquela estranha opressão, esse afundar do espírito na terra, esse lento escoar duma água turva; repulsiva a densa e muda oposição ao rumo espiritual da gente branca. Contudo, ali e só ali a vida parecia arder com chama intensa.
No resto do mundo, Kate bem o sabia, tudo era vacuidade, esterilidade. Aqueles vultos avermelhados pelo clarão dos archotes representavam uma humanidade nova.
Kate sentia tudo isto, mas preferia manter-se à parte, evitar o contacto directo.
O porta-bandeira ergueu a cabeça como se fosse falar, mas não disse nada. Velho de barba e bigodes brancos a emoldurar-lhe os lábios escuros e carnudos, tinha a cara sulcada de rugas, como todas as pessoas idosas desse país. No entanto, os cabelos eram bastos, e o corpo ainda revelava força e virilidade. ! Os seus olhos negros olhavam sem ver. Talvez fosse realmente
cego; ou seria profunda abstracção que lhe dava aquele aspecto. Começou então a falar, numa voz lenta, clara e distante que parecia ser o eco dos últimos sons do tambor. - Homens, escutai-me! E vós. mulheres, escutai-me também. Há muito tempo, na calma da noite, o lago dirigiu um apelo aos seres humanos. Mas não existiam. Só os peixes pequeninos nadavam ao longo das margens, procurando fosse o que fosse, e os maiores saltavam fora de água para olhar em volta. Mas não existiam seres humanos.
Então um dos deuses de face velada saiu da água e subiu ao monte. (E o velho indicou a colina invisível nas trevas da noite. ao fundo da aldeia. Contemplou o Sol e viu através dele outro sol negro, o que criou o mundo e o absorverá de novo como uma gota de água. Disse: - Chegou o momento? - E quatro braços saíram do sol e da sua sombra surgiram homens. Viram os quatro braços no céu e principiaram a andar.
O deus do cimo da colina olhou para as montanhas e para as planícies e viu os homens anelantes, sequiosos. E disse-lhes: Vinde cá. Tendes aqui a minha água dulcificadora.
Correram como cães, de língua pendente, e ajoelharam-se na margem do lago. O deus do cimo da colina ouviu-os ofegar, de tanta água que beberam, e perguntou-lhes: - Não bebestes de mais? Ou tendes ainda os ossos secos?
í Os homens fizeram casas à borda do lago, e aquele que estava na colina, e que era um deus, ensinou-os a semear milho, feijão, e a construir barcos. Mas preveniu-os: - Nenhum barco vos salvará quando o sol negro deixar de estender os braços no céu.
O deus da colina disse ainda: - Sou Quetzalcoatl, aquele que vos humedece os lábios secos. Encho-vos o peito com um sopro do além-sol. Sou o vento que sai em turbilhão do centro da terra, sou o zéfiro que se enrosca como cobra em volta dos vossos pés, pernas e coxas, erguendo a cabeça da serpente do vosso corpo, onde reside a força humana. Tomai cuidado quando a serpente do corpo erguer a cabeça. Sou eu, Quetzalcoatl, que vos elevo, que vos elevo até ao sol das trevas, derradeira morada dos homens. Exceptuando o sol negro e os quatro braços nos céus, éreis ossos, e as estrelas eram ossos, e a Lua uma concha vazia numa praia seca, e o Sol amarelo uma taça vazia, semelhante ao crânio dum lobo. Portanto, tende cautela! Sem mim nada sois. Assim como eu nada sou sem o sol que está atrás do sol. Quando o sol de ouro estiver no zénite, dizei: Quetzalcoatl levante a sua mão e me abrigue dos raios, senão perecerei e a terra secará. Porque na palma da minha mão está a água da vida, e nas costas está a sombra da morte. Quando os homens me esquecem volto a mão e aparece a sombra da morte. Mas os homens esqueceram-me. Os seus ossos eram húmidos, o seu coração fraco. Quando a serpente do corpo erguia a cabeça, diziam assim: É a serpente amansada que nos obedece. E quando suportavam o ardor do sol, falavam nestes termos: O sol está zangado, quer absorver-nos; ofereçamos-lhe sangue de vítimas.
Os braços negros desapareceram do céu, e Quetzalcoatl envelhecia e lamentava-se, velando a face para a esconder dos homens.
Lamentava-se e dizia: - Deixai-me recolher à minha morada. Estou velho, quase sou apenas ossos. Os ossos triunfam em mim, o meu coração é uma cabaça vazia. Sinto-me cansado do México.
Então bradou ao sol negro, aquele de quem nunca se pronuncia o nome: - Estou um esqueleto, os Mexicanos renegam-me, de nada sirvo. Levai-me.
O sol negro estendeu o braço e elevou Quetzalcoatl até ao céu. Depois olhou em volta e viu a estrela de alva brilhando sem receio entre a vinda do sol dourado e a fuga da escuridão. E aquele, cujo nome jamais foi pronunciado, perguntou: - Quem és tu, guarda cintilante? E a estrela respondeu: - Outrora, no México, fui Quetzalcoatl. Agora contemplo as costas do sol amarelo e a face invisível da Lua, brilho entre o dia e a noite, esperando pela renovação.
E aquele cujo nome jamais foi pronunciado declarou: - Chegou a hora.
Assim o decretou, e eu a vós repito, homens e mulheres: Chegou a hora. Os que nos deixaram regressam, os que vieram retiram-se. Desejai a uns boas-vindas e dizei adeus aos outros.
Boas-vindas! Adeus!
O velho terminou o discurso com um grito meio sufocado, tal se na verdade se dirigisse aos deuses.
- Bienvenido! Bienvenido! Adiós! Adiós!
A própria Juana, sentada aos pés de Kate, bradava sem saber o que dizia:
- Bienvenido! Adiós! Adiós... n!
O último adios arrastou-se para rematar com o costumado "n". Começou o tambor a soar num ritmo insistente, e a flauta fez ouvir o seu grito estranho e longínquo. Tocavam a melodia singular que a irlandesa ouvira a princípio.
Então um dos homens do círculo entoou o hino. Cantava à maneira dos antigos Peles-Vermelhas, em voz contida mas intensa, como se se dirigisse à própria alma e não ao mundo exterior; como se cantasse na outra dimensão da existência dos homens, onde eles se encontram na extensão infinita que há dentro do eixo do nosso espaço rotativo. Espaço que, como o mundo, não pode deixar de se mover. E, tal o mundo, tem um eixo. O eixo do nosso espaço terreno, quando lá se penetra, é uma vastidão onde até as árvores vão e vêm, e a alma está à vontade no seu sonho, nobre e irrefutável.
O pulsar do tambor e o cântico íntimo arrastavam a alma para o centro do tempo, que é mais velho do que a própria velhice. O cantor começou por uma nota alta que repetiu demoradamente, fazendo-a percorrer ritmos subtis, na aparência desconexos, que o tambor acompanhava, e depois fê-la tremer, palpitar e dar um balanço brusco. Por muito tempo foi difícil distinguir qualquer melodia: dir-se-ia o uivo distante e esmaecido dum lobo. Era na verdade a música dos índios antigos.
Não se lhe encontrava harmonia, não se lhe reconhecia emoção. Apenas música, apenas um grito na noite, perfeito e longínquo. Mas ia direito à alma, à alma eterna e antiga, aí onde só pode a família humana encontrar-se em imediato contacto.
Kate logo o sentiu, e de forma fatídica. Seria inútil resistir, inútil fazer qualquer esforço. O som ia até ao âmago do ser, em que não existe esperança nem dor, mas só a paixão, que semelha uma ave no seu ninho, de asas dobradas, e a fé uma árvore de sombra.
Como o destino, como a sorte. A fé é a própria Árvore da Vida, inevitável, e os pomos estão ao nosso alcance: pomos dos olhos
- as pupilas -, pomos do queixo, do coração, dos seios, do ventre, dos quadris, dos joelhos, dos tornozelos. Que importa a mudança, a evolução? Somos a Árvore com os seus frutos, para todo o sempre. Verbum Sat.
Emudeceu o cantor, mas o tambor prosseguiu, fazendo vibrar subtilmente a membrana sensível da noite. Então, no círculo, de novo se elevou uma voz, depois outra, e outra, como pássaros voando de uma árvore. Elevaram-se as vozes - forte, pesado, intenso arrebatamento de vozes másculas, semelhante a um bando de aves negras subindo e descendo no ar, ao mesmo tempo. E cada ave preta dir-se-ia erguer-se do coração de um homem, do bosque secreto dos peitos masculinos.
Uma a uma, partiram também vozes da multidão, qual nova revoada de pássaros. A letra não tinha importância. Versos, palavras, simples sons - o canto era sempre o mesmo: violenta rajada saindo das cavernas do peito, das profundezas da alma eterna. Kate estava excessivamente intimidada para poder cantar, demasiadamente vencida pelas desilusões; mas sentia que o seu espírito fazia eco, seguindo o clamor do povo, tal a ave poliglota que imita as outras à noite. Contra sua vontade, Juana cantava também, num tom monótono, proferindo palavras à toa, inconsciente.
Os homens seminus começaram a agarrar as mantas: mantas brancas orladas de azul, com barras castanhas e franjas escuras. Da turba, levantou-se alguém, que se dirigiu para o lago. Voltou depois com um feixe de lenha trazido por um barco. Acendeu então uma fogueira pequena. Outro indivíduo se destacou para ir também buscar lenha: colocou-a diante do tambor, dentro do círculo, e fê-la crepitar. Por sua vez, uma mulher, descalça e de larga saia de algodão, principiou a arranjar a sua fogueira no meio das mulheres.
O ar estava bronzeado pelo clarão do lume; alastrava-se um fumo odorífero, como de incenso. Subiu e desceu o cântico, depois esmoreceu. Débil ecoou o som do tambor, e morreu por seu turno. No silêncio absoluto podia-se sentir a presença imóvel do lago sombrio.
Mais uma vez pulsou, vigoroso, o tambor. Um dos homens que estavam sentados, com o seu poncho branco debruado de azul e preto, ergueu-se de repente e, tirando as sandálias, começou a esboçar passos de dança, sem fazer o menor ruído. Dançava pesadamente, de pés nus, como se fosse enterrar-se pela terra abaixo. Sozinho, oscilava num ritmo estranho, calcando o chão, erguendo ora um ora outro dos joelhos de encontro às franjas escuras do poncho. Outro homem, encaminhando-se para o centro, pôs aí os huaraches, perto do fogo, e iniciou o seu bailado, enquanto o do tambor entoava um cântico selvático, tenebroso. Os restantes comparsas despojaram-se dos ponchos e, num instante, estavam de pé, e de torsos nus, descalços, repetiam aqueles passos que pareciam de ave. A luz da fogueira batia-lhes no peito, nas faces sombrias e extáticas.
"O que dorme acordará! O que dorme acordará! O que segue o trilho da serpente na poeira chegará ao seu posto; pelo trilho do pó chegará ao seu destino e revestir-se-á com a pele da serpente: revestir-se-á com a pele da serpente da terra, que é a criadora da pedra, que é criadora da pedra e do vigamento da terra; criadora do oiro, do ferro, da madeira da terra: dos ossos do pai da terra, da serpente do mundo, do coração do mundo que bate como uma cobra bate no pó, nos seus movimentos sobre a terra; do coração do mundo. Quem dorme despertará! Quem dorme despertará! Quem dorme despertará no caminho da serpente do pó da terra, da pedra da terra, do osso da terra."
O cântico parecia tomar novos voos audaciosos depois de baixar e sussurrar num último desmaio. Eram como ondas que se erguem do invisível, que tomam forma, alando-se, e desaparecem num rumor de aniquilamento. E os dançarinos, após terem girado em círculo, numa lenta e profunda absorção, iam um por um tomar o seu lugar, calcando o pó com os pés descalços, vagarosamente, e vagarosamente começavam a descrever uma ronda lenta em torno do fogo, sempre com os mesmos passos que se diria afundarem-se na terra. E o tambor ressoava numa palpitação sempre igual, como a de um coração humano. E o cântico soou e diminuiu, mais baixo e mais baixo numa espécie de extinção, para ainda uma vez tornar a levantar-se.
Até que os camponeses moços acharam impossível permanecer como estavam. Tiraram as sandálias, o chapéu, as mantas, e, timidamente, com pés inexperientes que no entanto conheciam as velhas pisadas, se puseram atrás dos outros bailadores e dançaram sem sair do seu lugar. Depressa o círculo revoluteante estabeleceu outro círculo de homens que envolveu o primeiro.
Então, de súbito, um dos dançarinos de tronco nu saiu do círculo interior e, penetrando no segundo, fê-lo girar em sentido inverso ao daquele. Deste modo houve duas rodas em movimento, uma dentro da outra, rodopiando em direcções opostas. Assim andaram, com o tambor e o canto, girando como rodas de sombra em volta do lume. Mas o lume extinguiu-se, e o tambor parou de repente, e os homens num instante se dispersaram, retrocedendo para os seus postos.
Houve silêncio, depois ouviu-se um murmúrio de vozes e risos. Kate muitas vezes pensara que o riso dos peóns se assemelhava a uma queixa; mas agora ele saltava como faúlhas invisíveis, bruscamente, da cinza das conversas.
Todos esperavam, e contudo ninguém se movia - até que o tambor vibrou de novo, como um sinal. Continuaram, porém, a tagarelar mas escutando, qual se possuíssem uma segunda consciência. Levantou-se um homem, desfez-se da manta e deitou lenha na fogueira central. Em seguida atravessou o grupo dos homens sentados e dirigiu-se ao das mulheres, que se apinhavam com as saias desdobradas. Esperou, sorrindo com ar abstracto, e logo se pôs de pé uma rapariga e se aproximou dele, apertando com a mão direita o xaile enrolado em torno da cabeça baixa. Estendendo a mão esquerda, pegou timidamente na do homem, que parecia inerte. Sorriu este e conduziu-a ao centro da roda, através do grupo dos que estavam sentados. Ela seguia de cabeça inclinada, escondendo o rosto pudibundo. Lado a lado, começaram a dançar, mal roçando as mãos e formando o primeiro pequenino segmento do círculo interior estacionário.
Ei-los agora todos, em pé, à espera de serem escolhidos. Rápidas, as mulheres, ocultando a testa no xaile, insinuavam-se junto deles e tomavam a mão do eleito. Dentro de pouco tempo já todos tinham dama. Fechara-se o círculo interior, com os homens e as mulheres aos pares, de mão dada.
- Venha, niña, venha! - disse Juana, fitando Kate com os seus olhos negros e brilhantes.
- Tenho medo - respondeu a irlandesa. E falava verdade.
Um dos de tronco nu atravessara a rua, afastando-se da multidão e detivera-se próximo da porta onde se achava Kate, que se calou e desviou a vista. E ficou esperando.
- Olhe, niña, um senhor que a procura. Venha, niña, venha!
A voz da criada descera de tom, capciosa, com esse apelo mágico das mulheres do povo. Os olhos pretos continuavam a cintilar-lhe estranhamente, fitos no rosto da patroa. Kate, quase hipnotizada, avançou em passos lentos e indecisos para o indivíduo que se mantinha à espera.
- Quer, realmente? - disse ela em inglês, bastante atrapalhada. E, com os seus dedos, tocou nos dedos dele.
Quase com indiferença, num gesto frouxo, a mão quente e máscula segurou os dedos de Kate e levou-a para a roda. Ela baixou a cabeça e desejou poder velar a face. No seu vestido branco e chapéu de palha verde, sentiu-se outra vez virgem, virgem juvenil. Aqueles homens concediam-lhe o dom de reencontrar a mocidade.
Acanhada, receosa, Kate procurou seguir a dança; mas escapava-lhe o ritmo, e os sapatos rígidos não a ajudavam. Movia-se confusamente.
Mas o seu par pegava-lhe na mão, embora com moleza, e oscilava, lento, o corpo todo, como um pêndulo de relógio. Dir-se-ia não fazer caso dela; contudo, segurava-lhe os dedos, de leve, numa pressão suavíssima.
Juana descartara-se dos sapatos e das meias. No rosto como uma máscara de lava, enrugado, escuro, as pupilas ardiam com a eterna chama da feminilidade, sombria e inextinguível. E já, com os pés, marcava o compasso da dança.
"Assim como o pássaro do sol fecunda a terra à alvorada tal uma fêmea morena sob os seus pés, com as dobras do ventre inclinadas aos pomos da geração, com os ovos de oiro, com os ovos que escondem o globo do sol nas águas do céu, na concha da terra que é o alvo do fogo do sangue, pisa tu também a terra e a terra conceberá qual a fêmea sob os pés do pássaro do sol. Pisa a terra, pisa a terra agachada e de asas encolhidas..."
A roda começou a girar e Kate foi-se movendo devagar entre dois homens silenciosos e absortos, cujos braços tocavam os seus. Um segurava-lhe os dedos, frouxa e brandamente, mas com transcendente afinidade. E o canto selvático subiu de novo como uma ave, e o tambor alterou o ritmo de modo incompreensível.
A outra roda era composta só de homens; Kate tinha a impressão de sentir nas costas o fulgor sombrio daqueles olhares. Os indivíduos já se não distinguiam, formavam como que uma única massa, em que ela própria se confundia.
Todos dançavam da mesma maneira, de cabeça baixa e olhar ausente, os homens absorvidos na sua virilidade, as mulheres na sua feminilidade. Somente o sexo prevalecia na sua mais alta concepção. Mar à superfície do globo movendo-se por cima dum mar nas entranhas da terra; águia evolucionando em silêncio sobre a própria sombra.
Kate sentia-se fundir nas águas revolutas de uma vida nova. Deixara de ser ela mesma para fazer parte de um todo, os seus desejos abismavam-se no mar do desejo colectivo. E assim o homem cujos dedos roçavam nos dela se engolfava no oceano de homens.
Lento mover de águas sobre águas, sem vestígio de espuma. Só a pura e deslizante conjunção.
Como era estranho ver-se submergida pelo desejo para além do próprio desejo, sentir-se integrada num corpo imenso para além do individualismo do corpo!
Não conhecia a cara do homem que lhe segurava nos dedos. Os seus olhos haviam cegado, e o rosto dele era um céu tenebroso. Mas do toque dos seus dedos nascia uma estrela, a estrela que os unia.
Os pés de Kate principiavam a marcar o compasso. Ela já sabia como deixar-se levar, abandonar a essência da sua vida, permitindo que lhe fugisse devagar, num escoamento rítmico, para o corpo negro da terra. Erecta, forte como o próprio esteio da vida, cedia no entanto a Seiva dessa força e fazia-a fluir para as raízes da terra.
Perdera a noção do tempo. A dança, porém, acalmava-se pouco a pouco, embora o ritmo permanecesse sempre o mesmo até ao fim.
Calaram-se as vozes, só o tambor continuou. Este, de súbito, produziu um rufo breve, e o silêncio foi geral. Logo as mãos se desataram, o baile parou de todo. O homem que a acompanhava sorriu-lhe e desapareceu. Jamais o reconheceria. Havia, no entanto, de lhe sentir a presença.
As mulheres afastaram-se, aconchegando os ombros com o xaile. Os homens dissimularam-se nas mantas. E Kate voltou à escuridão do lago.
- Já se vai embora, Niña? - perguntou Juana num tom que revelava certo descoroçoamento.
- Tenho de ir sem demora - replicou a patroa, estugando o passo. E a toda a pressa se encaminhou para as trevas do lago, com Juana na sua peugada, de sapatos e meias na mão.
Kate desejava reentrar em casa, com o seu novo segredo, o estranho segredo da feminilidade mais alta, a que ainda se não habituara. Precisava abandonar-se inteiramente àquele mistério.
Quase corria através do atalho interminável, na margem pedregosa e escura, apesar de a claridade das estrelas ser suficiente para revelar a forma sombria dos barcos que sulcavam a água mansa e turva. Noite eterna, sem horas! Kate não queria consultar o relógio, e até o virou no pulso a fim de não ver os ponteiros luminosos. Que o tempo a não governasse!
Ao adormecer, ouvia ainda o rufar do tambor, como um pulso que batesse nas entranhas da terra.

VIII
À entrada da casa de Kate elevava-se uma árvore enorme chamada cuenta por causa dos seus frutos pequeninos, redondos, duros e perfeitos de forma, que os indígenas apanhavam para fazer colares e, em especial, padre-nossos dos rosários. À noite, a rua ficava imersa em escuridão e só a queda das contas perturbava o silêncio.
Essas noites, que de começo pareciam calmas, amigáveis, encheram-se subitamente de terrores. Renascia o medo. Constituíra-se uma quadrilha de ladrões numa das aldeias do lago, cujos habitantes tinham má fama. Essa quadrilha, invisível durante o dia, compunha-se de pescadores e jornaleiros que, depois do anoitecer, montavam nos seus cavalos e iam assaltar casas solitárias ou mal guardadas.
O facto de saber que um bando de malfeitores rondava naquela região era o bastante para incitar os ladrões isolados a agir também. Fosse o que fosse que acontecesse, seria atribuído aos bandidos. Deste modo, mais de um indivíduo considerado honesto se deixava dominar pela cobiça e se escapulia à socapa armado de faca ou de pistola para se aproveitar igualmente da escuridão.
Kate sentia o terror condensar-se no silêncio da noite mexicana; silêncio tenebroso, tão profundo que se tornava sobressaltante, o som duma conta a cair. Deitada na cama, Kate escutava o mínimo rumor nas trevas densas. Ouviam-se ao longe apitos de polícia, daí a pouco passava a patrulha a cavalo. Mas, como acontece em quase toda a parte, a polícia nunca aparecia quando era precisa.
Aproximava-se a estação das chuvas, e o vento nocturno, vindo do lago, fazia sussurrar as árvores e abalava as portas desconjuntadas da casa. Os criados encafuavam-se nas suas dependências. No México, uma pequena distância isola-nos completamente desde que a noite desce; e ficamos perdidos na escuridão envolvente.
De manhã, Juana vinha da praça, com os seus olhos como gotas de tinta e, no rosto bronzeado, a expressão cansada dos entes submetidos ao medo. Logo de entrada, e na sua linguagem pouco compreensível, embrenhava-se na história de uma casa assaltada e de mulheres assassinadas. E a dona do hotel mandava dizer a Kate que não era prudente dormir sozinha em casa. Seria melhor passar a noite no hotel.
Toda a aldeia se encontrava sob estranha apreensão. Pairava no ar da noite um terror pânico. Renascia a confiança à claridade azul da manhã, mas ao anoitecer o sangue parecia coagular-se, a atmosfera tornava-se densa.
O medo, é claro, comunicava-se duns aos outros. Se Juana e a respectiva família não andassem cheias de pavor, Kate nunca sentiria medo, disso estava ela certa.
Ali não havia homens. Juana tinha dois filhos, Jesus, de vinte anos, e Ezequiel, de dezassete. Mas Jesus era quem tomava conta do motor da luz eléctrica, e tanto ele como Ezequiel dormiam na casa das máquinas. De modo que Juana ficava só com as duas filhas, Concha e Maria, no cubículo ao fundo da residência de Kate.
Antes, a plaza mantinha-se animada até às dez da noite, com gente a conversar ou a ouvir os moços tocadores de viola e o homem dos sorvetes a apregoar de contínuo: Nieve! Nieve!
Agora o largo esvaziava-se às nove horas. E havia ordem de prender quem fosse encontrado na rua depois das dez.
Kate corria para casa e trancava as portas. Não é fácil suportar o pânico de um povo meio bárbaro. O medo espalha-se no ar, envolve-nos, paralisa-nos a alma com a sensação de desgraça iminente, dum horror atroz.
Às dez horas cortavam a luz eléctrica, tudo ficava às escuras, e, deitada na cama, Kate sentia o sopro maléfico espraiando-se na atmosfera em vagas sucessivas.
Acudiam-lhe à memória todas as histórias arrepiantes passadas no país. E de novo pensava nessa gente de aspecto pacífico e sorriso doce. Mas o próprio Humboldt dissera a respeito dos mexicanos que nunca encontrara povo de sorriso tão suave e olhar tão feroz. Não que os olhos revelassem propriamente ferocidade; contudo, o seu negrume iluminava-se dum clarão frio, de cintilações de punhal nas trevas da noite, ao mesmo tempo que neles despertava a sede de homicídio.
Seres incompletos, não de todo criados, encontravam-se à mercê das velhas influências que jaziam como sedimento no fundo de cada um deles. Enquanto estavam calmos, eram simpáticos, bondosos, simples. Mas, se alguma coisa lhes revolvia as profundezas, logo se erguiam as nuvens tenebrosas de ódio e de morte.
Adivinhava-se-lhes na alma um ressentimento constante, como que uma ferida jamais cicatrizada. O ressentimento dos entes incapazes de conquistar sozinhos uma integridade individual fora do caos de paixões e forças mortíferas. Eram apanhados na engrenagem duma ansiedade ancestral como nos anéis duma serpente negra que lhes oprimisse o coração. Onerosa carga dum passado invencível.
E debaixo desse peso vivem e morrem, sem grande pena de morrer. Enredados nos elementos, não conseguem desenvencilhar-se. Queimados pelo sol excessivamente forte, sobrecarregados pela electricidade da atmosfera mexicana e atormentados pela erupção de vulcões que lhes rebentavam aos pés. Tremendos elementos do continente americano que tornam forte o corpo dos homens mas que esmagam a alma e impedem a sua elevação. E, se nalgum ela se eleva, os elementos maléficos a pouco e pouco a destroem, até que o homem se decompõe em ideias e actividades maquinais, num corpo cheio de energia mecânica mas de espírito morto e putrefacto.
Assim, esses seres incapazes de dominar os elementos, submetidos às forças do sol, da electricidade e das erupções vulcânicas, estão sujeitos a acessos de rancor e de ódio ardente à própria vida. Então, nada melhor do que enterrar uma faca num corpo vivo. Nenhuma volúpia iguala essa de cravar a lâmina e ver jorrar o sangue.
É a suprema satisfação duma raça presa a um passado de que não consegue libertar-se. Raça que não conhece Salvador nem Redenção. Quais mineiros enterrados vivos na derrocada duma mina, nações inteiras ficam sepultadas sob os escombros do passado - até que um salvador lhes mostre a saída para o sol.
Deitada na cama, Kate reflectia profundamente na'escuridão da noite, de ouvido atento aos menores ruídos que a enchiam de terror. Não podia refrear o coração; dir-se-ia que lho arrancavam, e o sofrimento era atroz. Pela primeira vez sentia medo físico, o sangue gelava-se-lhe nas veias.
Na Inglaterra, na Irlanda, durante a guerra e a revolução, conhecera o medo espiritual. O medo horrível da ralé; e durante a guerra as nações eram quase tudo ralé. O terror da canalha que pretendia acabar com a liberdade de pensamento em cada homem e em cada mulher. Era a ambição fria e colectiva de milhões de criaturas: aniquilar o espírito daqueles que resistiam e assim poderem iniciar a descida geral para as camadas interiores onde existe o culto do ouro e a volúpia de matar. A canalha.
Nesse tempo, Kate conhecera a agonia do medo social, como se a democracia fosse um polvo enorme que enlaçasse com os tentáculos quem lhe resistisse.
Agora o seu medo era doutra espécie. Sentia o coração doer-lhe, como se o arrancassem, o sangue parecia fugir-lhe das veias...
Dormitava, e acordou em sobressalto a um leve rumor. Sentou-se na cama. As portas que davam para a varanda tinham postigos, e estes encontravam-se escancarados a fim de arejar o quarto. Nessa abertura Kate distinguiu, recortando-se no céu escuro, uma forma negra semelhante a um gato que rastejasse no rebordo da janela.
- Que é? - perguntou ela maquinalmente.
No mesmo instante, aquilo moveu-se, deslizou para fora, e Kate percebeu que era o braço de um homem que tentava abrir o ferrolho interior da porta. Por uns segundos ficou paralisada, pronta a gritar. Então, como não pressentisse mais nada, inclinou-se e acendeu uma vela.
Era uma verdadeira agonia aquele terror pânico. Imobilizava-a, deslocava-lhe o coração... Ficou prostrada, no angustiante pavor nocturno. A vela projectava uma claridade lúgubre. Ouvia-se o ribombo longínquo de trovões. A noite era atroz, atroz, e o México horroroso.
Kate não conseguia dominar-se. "Estou à mercê disto", pensava. Sensação terrível, ver-se subjugada pelo medo.
"Que hei-de fazer?" perguntou a si mesma, reunindo coragem. Sabia que estava só.
Durante muito tempo sentiu-se incapaz de se mover. Então disse consigo, para se animar: "Creio no mal e não devo crer. O pânico e o assassínio são coisas que só sucedem quando perdemos o domínio de nós próprios. Não acredito verdadeiramente no mal. Acredito, sim, na existência dum poder supremo que nos comunica a sua força desde que tenhamos fé nele. O homem que queria entrar aqui não possuía essa força. Tentava ser maléfico, mas submeter-se-ia ao poder dominador."
Deste modo se ia tranquilizando, até que teve a coragem de se levantar e fechar os postigos. Em seguida, percorreu os quartos a fim de verificar se tudo estava trancado. E sentiu certo alívio ao compreender que temia tanto os escorpiões como a horrível sensação de pavor.
Depois de observar o fecho das cinco portas e das cinco janelas da ala de quartos comunicantes, Kate ficou encerrada nas trevas com a sua vela. Para o outro lado da casa, sala de jantar e cozinha, tinha de ir pela varanda.
Mais serena, embora ainda com o coração atormentado pelo medo, Kate reflectia. "Joachim afirmava que o mal provém de regressarmos aos costumes primitivos. É o que provoca roubos e assassínios. O tambor da noite de sábado evocava o ritmo da antiguidade e aquela dança selvagem era a velha forma de expressão. Regresso consciente à barbárie... Talvez a origem do mal..."
Mas logo intervinha o seu desejo de crer.
"Não! Temos de nos agarrar aos elos antigos, encontrar o impulso que nos relacionará de novo com o mistério do cosmos. Don Ramon tem razão. Ele deve ser um grande homem. Julguei que já não existissem grandes homens. Só grandes financeiros, grandes artistas, mas não grandes homens. Don Ramon deve ser um ente superior."
E Kate sentiu-se apaziguada a esta ideia.
Mas, logo que apagou a vela, surgiram clarões muito vivos através das fendas do postigo. Ribombaram trovões clamorosos, que pareciam afundar-se-lhe no coração. Kate sentia-se como que esmagada, na consciência duma tortura que a paralisou até de manhã e lhe deu a impressão de ser, ela própria, um destroço de naufrágio.
Por fim apareceu Juana, também com o ar de desenterrada, para lhe fazer a pergunta tradicional:
- Como passou a noite, Niña?
- Muito mal - respondeu Kate. E contou-lhe a história do gato preto e do braço do homem.
- Mire! - replicou Juana, sufocando a voz. - A inocentinha vai ser assassinada na cama. Não, niña, tem de passar a dormir no hotel. Não, Niña, não pode continuar com o postigo aberto. É impossível. Está a ver agora como é necessário que durma no hotel? Assim fazia a outra senhora.
- Não quero - declarou a patroa.
- Não quer, Niña? Ah, entonces, entonces... niña, vou dizer ao Ezequiel que venha dormir na soleira da porta, armado de revólver. Ele tem um revólver, pode ficar do lado de fora da porta, e a senhora já deixava a sua janela aberta, para lhe refrescar o quarto. Pobres de nós, mulheres, precisamos de um homem que tenha revólver. Não devemos estar sozinhas, toda a noite. Temos medo, e as crianças também têm medo. Imagine que um ladrão tenta arrombar o ferrolho da porta! Imagine! Não, niña, vai-se falar ao Ezequiel hoje mesmo, antes do meio-dia.
Ao meio-dia, Ezequiel compareceu, muito seguro de si. Era um rapaz, meio selvagem, mas dava largas passadas, empertigado e orgulhoso. A voz, na mudança própria da puberdade, tinha uma entoação estranha.
Ficou de pé, acanhado, ouvindo o que lhe recomendavam. Depois olhou para Kate com as pupilas negras e brilhantes, convicto do seu papel de salvador.
- Sim, sim - declarou. - Durmo aqui no corredor. Não tenha medo. Trago a pistola.
Saiu, e voltou com a arma, que era de cano comprido.
- Tem cinco cargas - participou, exibindo o revólver. - Se abrir a porta de noite, previna-me, porque, se eu vir mexer qualquer coisa, disparo os cinco tiros. Pum!, pum!
Pelo brilho do olhar do rapaz, Kate compreendeu quanto ele gostaria de fazer fogo sobre o que se movesse nas trevas. Não o preocupava a hipótese de ser alvejado por seu turno.
- niña - disse Juana - se voltar tarde para casa, depois de as luzes estarem apagadas, não se esqueça de chamar pelo Ezequiel. Senão... pum!, pum! Nunca se sabe quem pode ser a vítima.
Ezequiel dormiu sobre uma esteira na varanda de tijolos, defronte da porta de Kate. Enrolou-se num cobertor e conservou o revólver à mão. A senhora podia ficar de janela aberta. Na primeira noite, esteve muito tempo acordada por causa do ressonar estrondoso do rapaz. Nunca ela ouvira semelhante coisa! Que pulmões que ele devia ter! Dir-se-ia um som que viesse de outro mundo estranho e bárbaro. O barulho manteve-a desperta, mas havia naquilo um não sei quê de agradável. Algo semelhante a uma força bravia.

IX
Kate depressa se afeiçoou à negligente Juana e respectivas filhas. Concha tinha catorze anos. Era uma rapariga selvagem, entroncada, de cabeleira hirsuta que ela coçava constantemente. Maria, de onze anos, parecia um passarito, com olhos enormes que se diria absorverem toda a luz à sua volta.
Juana confessava que Jesus era filho doutro pai, mas o aspecto dos restantes fazia suspeitar ter cada um deles progenitor diferente. Toda a família, porém, mostrava igual despreocupação perante a vida. Viviam o dia-a-dia sem se importarem com o passado, nem com o presente, nem com o futuro. O dinheiro não lhes interessava. Assim que o recebiam gastavam-no, e logo o esqueciam.
Sem aspirações, sem objectivos, levavam existência absolutamente terre à terre no seu país sombrio e vulcânico. Não eram animais porque homens, mulheres e crianças não podem ser animais. Tal não nos foi concedido. Vai, e não voltes para trás - diz o Criador. Quando o homem tenta brutalmente tornar ao primeiro estado da evolução, fá-lo com espírito de crueldade.
Por isso os olhos negros daquela família revelavam certo medo, espanto e sofrimento. Angústia das criaturas humanas sem força para desenvolver as possibilidades do seu ser; incapazes de arrancar do caos a própria alma e indiferentes a qualquer outra vitória.
Também os brancos perdem a alma a pouco e pouco; mas conquistaram os mundos inferiores do metal e da energia e, graças às máquinas, lançam-se em corrida louca de roda da sua vacuidade.
Naquela família Kate encontrava algo de patético e de repugnante.
Desde que haviam aceitado niña como patroa, Juana e as filhas mostravam-se profundamente honestas. Honestas, a pontos de não tirarem uma única ameixa do fruteiro. E solícitas no serviço, de uma solicitude quase excessiva.
Viviam na sujidade, indiferentes ao ambiente. O chão era o seu caixote do lixo. Para ali arremessavam tudo o que consideravam inútil e ninguém se preocupava mais com isso. Pareciam 138
comprazer-se em viver no meio de pulgas e de trapos, de cascas de banana e caroços de manga. Um pedaço arrancado dum vestido - aí vai para o chão! Cabelos tirados do pente - chão com eles!
Kate não suportava aquilo. Afligia-a tamanha desordem, e o facto de ela se afligir divertiu imensamente a família mexicana. Mãe e filhas varreram então o pátio com uma vassoura de urze, até raspar a própria superfície da terra. Que engraçado, a niña preocupar-se com aquelas coisas!
Kate constituía para elas uma fonte de espanto e de divertimento. Não a consideravam pessoa de classe elevada. Era um ente meio incompreensível, meio espantoso.
Niña queria que o aquador lhe trouxesse todas as manhãs dois botes de água das nascentes térmicas para fazer abluções completas. Que esquisito! "Maria, diz ao aquador que corra a buscar água para a niña."
Quase se melindravam com o facto de ela se fechar no quarto para tomar banho. Era uma espécie de deusa, provocava-lhes alegria e admiração; mas devia ser sempre acessível. Kate depressa descobriu que um deus sempre acessível aos seres humanos passa bocados pouco invejáveis.
Não, aquilo não era nenhuma sinecura. De manhã começava o barulho da vassoura de urze lá fora. Kate deixava-se estar na cama, de portas fechadas e postigos abertos. Alvoroço no pátio. Alguém queria vender ovos. Onde está Niña? A dormir. O visitante não se retira e as conversas continuam.
O aquador! Ah, a água para o banho da niña. Está a dormir. "Não estou, não!" - grita Kate, enfiando o roupão e destrancando a porta. As pequenas entram com a tina, seguidas do aguadeiro com duas latas cheias de água quente. "Doze centavos, doze centavos para o aquador." No hay! Mais tarde, mais tarde. O homem vai-se embora, com a vara ao ombro. Kate fecha os postigos e começa a tomar banho.
- Niña!, Niña! - Que é?
- Quer ovos estrelados, quentes ou rancheros?
- Quentes.
- Café ou chocolate?
- Café.
- Ou prefere chá?
- Não, café.
O banho continua.
- Niña!
- Dize lá.
- Já não temos café. vou comprá-lo.
- Não é preciso. Tomarei chá.
- Não, niña, Eu vou. Espere por mim.
- Está bem, vai.
O primeiro almoço é na varanda. A mesa está posta, há pilhas de frutos, pão alvo e bolos.
- bom dia, niña. Como passou a noite? Maria, traze o café. vou meter os ovos na água. Oh, niña, eles não devem ficar cozidos... Meu Deus, que pés de Madona! Olhem, que bonitos!
E Juana inclina-se fascinada e, com o dedo escuro, toca nos pés acetinados de Kate metidos em leves sandálias seguras por uma única tira.
O dia tinha começado. Juana considera-se como inteiramente dedicada a Kate. Tão cedo quanto possível, expede as filhas para a escola. "Niña diz que é preciso ir para a escola. Não ouvem o que ela diz? Vamos, girem!"
No seu passo coxeante, Juana anda cá e lá na varanda, da cozinha para a mesa do almoço, transportando os pratos um por um. Depois, com grande espalhafato, começa a lavar a louça.
Manhã! O sol inunda o pátio, os cardeais e as folhas dilaceradas das bananeiras. Os pássaros voam em todos os sentidos com precipitação tropical. Na sombra densa das mangueiras passam índios vestidos de branco, semelhantes a espectros. Há um frémito de vida e, no entanto, o silêncio é opressivo. Os olhos deslumbram-se à claridade ofuscante, a alma sente-se oprimida.
Kate senta-se na varanda e finge coser. Surge um velho, segurando um ovo na mão, como qualquer símbolo. A patrona quereria comprá-lo por cinco centavos? Juana só dava quatro. De acordo? Onde está Juana?
Juana volta da praça com outras compras. O ovo! Quatro centavos! A conta das despesas. Entonces! Entonces! Luego! Luego. Ah, niña, no tengo memória.
Juana não sabia ler nem escrever. Todas as manhãs ia ao mercado, comprava uma porção de coisas de um ou dois centavos e todas as manhãs era preciso fazer contas. "Ah, onde é que nós íamos?
Não tenho memória nenhuma. Ora vejamos... Comprei três centavos de ocote... Quanto? Quanto soma agora, niña" Se faltava um centavo, ficava desolada e não falava noutra coisa. "Falta um centavo, niña? Sou estúpida, não sou? Mas eu dou-lhe um do meu dinheiro."
- Deixa lá, não penses mais nisso - dizia Kate.
- Mas eu quero pagar a diferença - insistia a mulher; e afastava-se, coxeando.
Uma hora depois elevava-se um grito no outro extremo da casa e Juana aparecia empunhando um ramo de salsa.
- Mire, niña! Compré perejil a un centavo. As contas estão certas agora?
- Estão - respondia Kate.
E a vida podia então retomar o seu curso. Existiam duas cozinhas: a anexa à sala de jantar, e a das criadas, numa espécie de barraca debaixo das bananeiras. Da varanda Kate via a abertura negra que fazia as vezes de janela na cozinha de Juana.
"Julgava Concha na escola!", disse Kate consigo mesma.
Mas não. No buraco escuro da janela distinguia-se o rosto moreno e a juba de Concha, espreitando para fora como um animal que saísse da toca, enquanto fazia as tortillas. Tortillas são uma espécie de filhos de milho. Preparam-nas batendo a massa na palma da mão até adquirir a lisura e leveza necessárias. Pouco depois do meio-dia via-se sair fumo pela janela: Concha lançava as tortillas cruas na frigideira de barro colocada sobre o lume.
Então Ezequiel aparecia, de manta sobre o ombro, chapéu de palha de grandes abas enroladas, pronto a comer as tortillas. No entanto, se trabalhava no campo, só chegava ao cair da noite. Sentava-se no degrau da porta e as mulheres serviam-no e iam-lhe buscar água como se ele fosse um rei. E ouvia-se-lhe a voz rouca dando ordens em tom calmo.
Porque, apesar do seu ar sereno e meigo, tomava uma entoação imperiosa desde que se dirigisse à mãe ou às irmãs. Prerrogativa de macho, que dava a Kate vontade de zombar do rapaz.
A hora da refeição era para Kate um dos seus tormentos. Apresentavam-lhe sopa muito quente e gordurosa, arroz apimentado, também gorduroso e fumegante, a inevitável carne nadando em gordura. Seguiam-se calabacitas, ou beringelas, salada, e o enorme cabaz de fruta. E, inundando tudo isso, o ardente sol tropical dos fins de Maio.
De tarde, o calor aumentava. Juana ia com as filhas lavar a loiça no lago. Agachadas sobre as pedras, agitavam na água cada prato, cada colher e cada garfo, e punham tudo a secar ao sol. Depois, enquanto Juana lavava uma ou duas rodilhas, as filhas banhavam-se no lago.
Jesus, o primogénito, costumava vir à tarde regar o jardim. Mas esse comia no hotel, onde prestava diversos serviços, trabalhando até às dez da noite por um salário de vinte e dois pesos, ou seja, onze dólares por mês. Usava camisa preta, e a cabeleira abundante tombava-lhe na testa baixa. Apesar da camisa fascista, possuía o espírito sarcástico e crítico dos socialistas, o espírito que vem do instinto de destruição.
Entre ele e a mãe existia pouca intimidade. Se Juana se encontrava em apuros, Jesus dava-lhe algum dinheiro mas, exceptuando o ténue laço de sangue que os unia, mostravam a maior indiferença um pelo outro.
Ezequiel tinha melhor tipo. Era esbelto, e tão direito que quase parecia arquear-se para trás. Tímido, arisco, orgulhoso, sentia-se mais responsável pela família. Não queria servir em hotéis. Não. Trabalhava nos campos, e tinha vaidade nisso: era labor de homem, não uma espécie de escravidão disfarçada.
Embora simples jornaleiro, não trabalhava para um patrão mas sim para a terra. E a terra, de certa maneira, era dele, pertencia-lhe...
Quando havia que fazer, chegava a ganhar um peso por dia. Se a terra estava seca, então procurava trabalho nas estradas, ainda que isso lhe não agradasse.
Mas nem sempre conseguia empregar-se. Durante dias, semanas, Ezequiel vagueava pelos arredores, sem nada que fazer. Quando o governo socialista dividiu as fazendas em lotes e os distribuiu pelos camponeses, coube-lhe um pedaço de terra fora da aldeia. O rapaz ia até lá e juntava pedras para construir um casebre. Cavava o chão tão profundamente quanto possível, mas não tinha amor a essa nesga de terreno que lhe viera parar às mãos de modo quase sobrenatural. Só lá ia de vez em quando, e sem nenhum entusiasmo.
Nos dias de trabalho regressava a casa por volta das seis horas e, cumprimentando Kate, timidamente, dirigia-se para o seu antro, onde, sentado no chão e de costas apoiadas à parede, dobrava tortillas umas sobre as outras e comia essa pasta elástica que tem o sabor de argamassa - pois o milho é primeiramente fervido com cal para largar a pele. Depois, dignava-se aceitar outra rima de fritos, que a irmã lhe apresentava numa folha de couve. Às vezes, Ezequiel tirava do tacho de barro um bocado de carne guisada que metia entre duas tortillas. Mas ingeria tudo rapidamente com uma espécie de indiferença. Aliás, os mexicanos parecem sempre indiferentes ao que comem.
Acabada a ceia, ia até à plaza, reunir-se aos homens. Havia ocasiões em que Kate, ao recolher a casa às nove horas, a encontrava quase deserta. Ezequiel estava no largo, Juana e Maria haviam desaparecido, e Concha dormia tal um molho de trapos no chão do pátio. Quando Kate a chamava, a pequena erguia a cabeça, espantada, entorpecida; depois, levantando-se como um cachorro, rastejava até ao portão.
Indiferença por tudo, até uns pelos outros. Juana lavava semanalmente uma camisa e um par de calças de algodão para cada um dos filhos, e aí terminavam os seus cuidados maternais. Nem se interessava averiguar qual o trabalho-de momento de Ezequiel. Sabia que arranjara emprego e isso lhe bastava. Contudo, de tempos a tempos, tinha ímpetos de amor materno, quando o rapaz era tratado injustamente, como às vezes acontecia. E, se o supunha doente, dominava-a um terror fatalista que só a abandonava depois de Kate intervir com qualquer remédio muito simples.
Semelhantes a animais. Mas os animais são perfeitos no seu isolamento e despreocupação; não se trata de indiferença, é que se bastam a si próprios. Ao passo que naquela família havia uma espécie de frustração, como se um torpor de aborrecimento a todos avassalasse.
As duas raparigas eram inseparáveis; andavam sempre atrás uma da outra. Concha arreliava de contínuo a inocente Maria de grandes olhos e esta debulhava-se em lágrimas. Ou então, no meio de uma fúria, ameaçavam-se com pedras, e Juana invectivava-as com súbita veemência, que logo se extinguia.
Estranha, aquela ferocidade repentina com que as pequenas arremessavam pedras, e não menos estranho, o esforço por não acertar. Kate notava a mesma coisa nos ataques selváticos que os garotos faziam uns aos outros nas margens do lago; atiravam calhaus com ar ameaçador, mas quase sempre falhavam o alvo.
Quase sempre, mas não sempre. Às vezes atingiam o adversário, que tombava como morto. Então os outros aproximavam-se, em silêncio temeroso, da vítima prostrada. De repente, o ferido erguia-se, com um esgar homicida no rosto, perseguindo o inimigo com uma pedra. E o inimigo fugia a sete pés.
Uma vontade perene de arreliar, de atormentar. O mesmo sucedia entre os Peles-Vermelhas. Mas o povo índio raramente recorria à violência, o que se não dava com os Mexicanos.
Kate, achando que devia fazer qualquer coisa pelas pequenas, dispensou-lhes uma hora por dia para lhes ensinar a ler, a redigir e a costurar. Maria queria aprender a ler; nisso mostrou boa vontade. Começaram bem, mas depressa a leve insistência de Kate em lhes chamar a atenção fez com que as alunas assumissem o tom de ironia peculiar ao continente americano. Ironia calma, invisível, malevolente, desejo de magoar.
- Não te debruces sobre mim, Concha. Põe-te direita.
- Porquê, niña Tem piolhos na cabeça?
A pergunta insolente era formulada com subtileza índia.
- Não! - respondia Kate subitamente irritada. - E agora vão-se embora! Afastem-se de mim.
E as pequenas retiravam-se, humilhadas.
Kate recebeu visitas de Guadalajara. Grande excitação! Mas enquanto tomava chá na varanda, Juana, Concha, Maria e Filipa, que era uma prima de dezasseis anos, sentaram-se no outro lado do pátio, bem à vista, com os belos cabelos soltos sobre os ombros, e, ostensivamente, puseram-se a catar piolhos umas às outras. Pareciam encantadas por exibirem a sua sordidez àqueles estrangeiros.
Kate desceu ao pátio.
- Se querem catar piolhos - disse em voz trémula de cólera - vão para onde ninguém as veja.
Atravessou um clarão de maldade os olhos negros de Juana, mas um instante depois, humilde e abjecta, a família retirava-se, de cabeleira ao vento, em direcção ao seu antro.
Juana comprazia-se em irritar Kate. Sentia assim uma espécie de poder sobre a Niña. É certo que temia um tanto essa irritação, mas era justamente o que desejava. De que servia uma niña que não lhe inspirasse algum receio?
Ah, raças escuras! Kate, como irlandesa, podia entrever um pouco do mistério. As raças escuras pertencem a um ciclo de humanidade já desaparecido; ficaram atrás, no fundo de um abismo donde nunca conseguiram sair. Jamais atingirão o nível dos brancos; limitam-se a segui-los de longe, como escravos.
Enquanto o homem branco avança, cheio de orgulho, as raças escuras cedem-lhe o passo e obedecem-lhe pela força. Se, porém, o branco hesita na sua marcha, logo os outros o atacam para o precipitar no abismo do passado.
É o que está a acontecer. Porque o branco, apesar de todas as farroncadas, duvida da sua própria supremacia.
E é a corrida veloz para a derrocada.
Desde a revolta de Kate perante a cena da caça aos piolhos, Juana voltou a servi-la com enternecedora solicitude. Embora indiferente a tudo, aquele ser das regiões inferiores não queria quebrar o débil fio que o ligava a Kate e ao mundo da claridade e do ar puro. Em suma, o desejo de Juana era conservar a sua niña, servir a sua Niña.
Ao mesmo tempo, parecia odiar a gente rica, branca e superior. De vez em quando contava a Kate histórias do passado. Então via-se-lhe uma expressão malévola nos olhos negros e na face acobreada, enquanto ela prosseguia: Usted sabe, niña, los gringos, los gringuitos llevan todo...
Os gringos são os Americanos, e Juana incluía Kate nos gringuitos, estrangeiros brancos. Aquela frase era nova insolência disfarçada, subtil...
- É possível - respondia Kate friamente. - Mas dize-me o que é que eu levo do México.
- Non, niña, non - Espalhava-se um sorriso de satisfação na cara de Juana quando ela conseguia atingir a outra mulher. Não me refiro a si, niña! - O protesto, porém, era pouco convincente.
Dir-se-ia que essas indígenas queriam obrigá-la a partir à força, insultando-a, rebaixando-a, até que a irlandesa, não menos impetuosa do que elas, abalasse dali num momento de fúria.
Oh, raças primitivas atrasadas!
Contudo, havia um lado patético na natureza daquela gente. Quando tinha catorze anos, Ezequiel trabalhara por conta de um sujeito que andava a construir casa. O homem prometera-lhe uma manta, mas ao fim de dois meses despediu-o sem cumprir a promessa. Foi uma desilusão bem amarga.
Kate nada tinha a ver com isso, mas Juana quase a acusava do facto.
Povo sem força para avançar, como podia deixar de ser explorado? Desde séculos que o exploravam cruelmente, e toda a sua energia se limitava a uma resistência malévola.
"Mas não pretendo explorá-los - dizia Kate consigo mesma.
- Pelo contrário, a minha vontade é dar-lhes mais do que recebo. São injustos os seus remoques. Nunca insultei estas criaturas. Faço a diligência de não as magoar e elas, deliberadamente, atacam-me e ficam radiantes quando me ferem."
No entanto, Kate procedia à sua maneira irlandesa: de vez em quando, isolava-se de Juana e das filhas. Porque, assim que as mandava para longe, desaparecia-lhes a malevolência e lembravam-se das ordens da niña. Se ela estava presente e amável, esqueciam-se de tudo. Esqueciam-se de varrer o pátio, de se apresentarem limpas, e só quando Kate as relegava para um canto é que tornavam a lembrar-se.
O filho Ezequiel tinha mais dignidade do que as mulheres.
Nunca fazia aqueles ataques insidiosos.
Quando a casa estava limpa e calma e o ar parecia purificado e a alma renovada, Kate sentia novamente amizade por essa família.
A sua azáfama, andando cá e lá, esvoaçando como pássaros; o estalo da massa das tortillas de encontro à palma da mão; o entusiástico esmagar de tomates e pimenta no tacho enquanto Juana preparava o molho; o barulho do balde no poço quando Jesus vinha regar...
Como isso era divertido! Assim devia ser tudo o que fizessem, ou então não o fariam. Não podiam fixar-se numa rotina. Jamais! Tudo devia ser alegre, variado, com uma pontinha de aventura. Era confusão, mas, no fim de contas, uma confusão viva, não uma coisa morta. Kate recordava-se dos seus criados britânicos nas cozinhas inglesas, tão maquinais e quase inumanos. Aqui era o extremo oposto.
Não havia disciplina nem método. Embora Juana e as filhas quisessem realmente fazer o que a niña desejava, só procediam conforme lhes apetecia. às vezes, Kate sentia-se angustiada. Mas, tanto quanto possível, ia suportando as extravagâncias daquela família. Tivera, por exemplo, de se habituar à vagabundagem da mesa de jantar, mesinha redonda cujo lugar era na varanda. Ao primeiro almoço, ficava discretamente debaixo das plantas, perto do salão; ao almoço da uma hora regressava à varanda; ao chá, ia para a relva do jardim, à sombra duma arvorezita. E, quanto à ceia, Juana deliberou então que a niña comesse os dois ovos e rancheros na própria casa de jantar, isolada a um canto da comprida mesa em que cabiam catorze pessoas.
Kate também nunca chegou a perceber o motivo por que, depois de lavarem a loiça na cozinha durante uns dias, se lembraram de repente de levar os pratos sujos para o lago, num cabaz, aos ombros de Concha. A não ser que achassem assim o trabalho mais divertido...
Crianças! Mas não inteiramente. Faltava-lhes a despreocupação da infância. Pressentia-se-lhes na alma qualquer coisa de sombrio, como que um peso que as forçava a resistir. Trabalhavam por acessos, podiam ser laboriosas; depois vinha a indolência e passavam horas estiradas no chão, como porcos. às vezes mostravam-se alegres, conversavam e riam, sentadas sobre a terra, em grupo, formando roda. Então, subitamente, contrariando a própria alegria, recaíam na mudez e na tristeza. Havia ocasiões em que, estando a trabalhar com afinco, atiravam para longe a ferramenta como se indignadas por terem cedido. Descuidados, versáteis nos seus amores, os homens, ao menos, passavam todo o tempo a resistir a si mesmos. Nunca procuravam o que pretendiam. As mulheres a que se aproximavam. E um rapaz e uma rapariga passeando às escuras na estrada marginal do lago, atiçando-se um ao outro, atormentando-se no meio de excitação, constituíam uma cena que deixava Kate pasmada - porque homens e mulheres não se cortejavam abertamente como fazem os brancos. E o riso súbito do macho, estranha voz de desejo reprimido, de obstinada relutância e paixão desesperada, parecia qualquer coisa a rasgar-se-lhe no peito, era um som que perdurava na memória.
Kate achava pesado o governo da casa. De certa maneira, eram como parasitas, queriam viver da sua vida, e rebaixá-la, rebaixá-la. Nalgumas ocasiões mostravam-se como pessoas meigas, generosas, encantadoras - até a fazerem novamente revoltar-se contra aquela indiferença reptilária. Indiferença e resistência.
Os servos forneciam a Kate a chave da vida indígena. Os homens sempre juntos, erectos, belos, equilibrando o chapéu enorme no alto da cabeça, quer sentados, quer de pé, quer de cócoras, numa impassibilidade de serpente; as mulheres sempre à parte, suaves, como que escondidas, estreitamente apertadas nos chailes escuros. Homens e mulheres pareciam voltar costas uns aos outros como se não quisessem ver-se mutuamente. Nenhuns galanteios, nenhum namoro. Apenas um olhar ocasional sombrio e rápido, sinal de desejo semelhante a um golpe de florete dado e recebido.
Elas, no conjunto, dir-se-iam inexperientes mas decididas a seguir o seu próprio desígnio: mudar de homens quando lhes apetecesse. E eles davam a impressão de não se preocuparem muito. Afinal eram as mulheres que pretendiam os homens.
As indígenas, com os negros cabelos tombados nas costas cheias e acobreadas, banhavam-se num canto da praia, geralmente em camisa ou com um saiote. Os homens mantinham-se alheados, nem sequer se dignavam olhar para a outra banda. Eram mulheres no banho, nada mais. Faziam parte, por assim dizer, da vida lacustre, como os peixes que ali nadavam. Concediam-lhes mesmo aquele ponto do lago, e elas sentavam-se nos baixios, isoladas como aves aquáticas, e molhavam a cabeça e os ombros com o auxílio duma cabaça.
Calmas, discretas, desprezadas fêmeas da classe dos peóns, seguindo o seu caminho envoltas no rebozo como num manto de trevas, ágeis, balançando as saias rodadas e gorjeando como passarinhos; ou paradas na borda do lago, com os cabelos longos a gotejarem; ou subindo lentamente a margem com uma pesada bilha de água ao ombro e um braço por cima da cabeça, a segurar a asa do cântaro; ou, especialmente nas tardes de domingo, sentadas à porta da casa, catando piolhos umas às outras. As moças possuidoras de cabeleira abundante e ondulada eram as que mais piolhos tinham. Aquilo representava um acto público meritório.
Parecia a Kate que esse país não podia originar nada de mais elevado do que a amizade entre os homens. O próprio casamento tinha pouca importância. E, embora se mostrassem meigos e protectores para com as crianças, os pais depressa as esqueciam.
A questão do sexo era no entanto a primordial, aquela que não devia ser omitida nem aflorada abertamente. O único mistério, muito maior do que o indivíduo. Este pouco contava.
Kate pasmava ao ver as choças de palha dos índios nas margens do lago. Ali fervilhavam crianças seminuas no chão de terra batida, no meio de trapos, de ossos, e do fedor de excremento humano.
Esse povo parecia não ter olfacto. E defronte do buraco que servia de porta à cabana, o homem impassível, magnífico, silencioso... Como era possível que tão belo exemplar de virilidade se mantivesse indiferente a tamanha porcaria?
Mas ali se conservava como inconsciente. Contudo, era um ser vivo - e forte. Nenhum homem no mundo pode transportar cargas tão pesadas como os índios do México. Kate vira já um deles passar na rua com um piano às costas, apenas seguro por uma correia em volta da testa.
Portanto, força não escasseava, mas sim energia. Nem sequer a classe dos artífices que imita a dos Estados Unidos demonstra ser enérgica. Têm os seus clubes, aperaltam-se e andam de braço dado com raparigas bonitas, mas percebe-se que tudo isso não passa de vulgar imitação.
Inesperadamente, a família de Kate aumentou. Um dia, chegou de Ocotlan uma formosa moça de 15 Primaveras, com grandes olhos bovinos, Maria del Carmen. Acompanhava-a Júlio, rapaz de vinte e dois anos. Tinham casado há pouco, e vinham de visita a Sayula. Júlio era primo de Juana. Poderiam dormir no pátio com ela e com as filhas? - perguntou Juana. Só se demorariam dois dias.
Kate ficou espantada. Maria Del Carmen devia ter sangue espanhol, a sua beleza evocava a Espanha. Parecia pertencer a um nível superior, mais educado, e no entanto ia dormir no chão com esse esposo juvenil... E ele, tão aprumado e de ar tão orgulhoso, nada possuía além duma velha manta.
- Há três quartos desocupados - disse Kate. - Que durmam num deles. - As camas eram de pessoa só. - Precisarão de mais cobertores?
Não. Bastaria a manta de Júlio.
Este era assentador de tijolos, isto é, ajudava a construir as paredes das casas de adobe. Nascera em Sayula e vinha ali de visita.
Essa visita, no entanto, prolongou-se. Júlio andava à procura de trabalho e só aparecia ao anoitecer. Maria del Carmen entretinha-se a amassar tortillas na cozinha de Juana e a conversar com as raparigas. À noite, o marido regressava e, sentado no chão, de costas apoiadas à parede, sempre impassível, deixava a mulher acariciar-lhe os cabelos negros e bastos.
Amavam-se, mas Júlio resistia ao seu amor.
Ela queria voltar para Ocotlan, onde era mais señorita do que em Sayula, mas o rapaz recusou. Não tinha dinheiro; o casal sustentava-se com cerca de cinco cêntimos por dia.
Quando Kate estava a coser, Maria del Carmen, que nem sabia talhar uma camisa, observava-a de olhos arregalados. Kate ensinou-lhe costura, comprou-lhe uns metros de chita e Maria del Carmen fez um vestido com as suas mãos.
Júlio arranjou trabalho, a um peso por dia, e a visita continuou. Kate achava o rapaz pouco terno para a mulher: sempre que lhe falava era em tom de comando. E Maria del Carmen não levava isso a bem e amuava um pouco.
Passaram-se semanas, e Juana começava a cansar-se dos parentes.
Por fim, Júlio arrendou uma casita de adobe só de um compartimento, ao preço de peso e meio por semana. Maria del Carmen ia ter o seu lar.
Kate viu-os juntar as suas coisas para a mudança. Consistia tudo numa esteira de palha, três tachos de barro, cinco peças de loiça, duas colheres de pau, uma faca e a manta de Julio. Nada mais.
Presenteou-os, então, Kate com um edredão de seda já um tanto puída, duas tigelas e diversos utensílios de cozinha. Foi uma alegria. A voz de Maria del Carmen soava no pátio em exclamações delirantes. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"
Na época das chuvas as noites são por vezes glaciais devido à evaporação, e os indígenas, transidos de frio, esperam pelo romper da manhã deitados sobre esteiras delgadas e abafados apenas com a ponta de um cobertor velho. A inércia natural fá-los suportar o sofrimento sem tentar minorá-lo. Podiam arranjar um colchão de palha de milho e cobrirem-se com folhas secas de bananeira. Mas não. Estendem-se numa esteira em cima da terra húmida e tiritam de frio noite após noite.
Maria del Carmen, porém, era um pouco mais civilizada. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"

CONTINUA

VII
Sayula era uma pequena estação balnear; não para ricos ociosos, porque o México os tem em pouca quantidade, mas para comerciantes de Guadalajara e gente que passeia nos fins-de-semana. E mesmo assim em reduzido número.
Havia, no entanto, dois hotéis, que vinham dos dias calmos de Don Porfirio, tal como a maior parte das vivendas fora da povoação, hoje fechadas e muitas delas abandonadas. Na aldeia viviam em perpétuo estado de terror. Acima de tudo temiam os bandidos e os bolchevistas.
Os bandidos eram apenas homens das localidades afastadas que, sem dinheiro, sem trabalho e sem esperança faziam ocasionalmente profissão do roubo e do assassínio. Habitavam nas suas aldeias selvagens até que as tropas os obrigavam a refugiar-se nas montanhas ermas ou nas regiões pantanosas.
Quanto aos bolchevistas, pareciam nascer do caminho de ferro. Onde houvesse carris, passageiros e carruagens de diferentes classes, aí despertava o espírito de rebelião e inveja; e o ferro e as demoníacas locomotivas ofegantes dir-se-ia engendrarem esses filhos do materialismo que são os bolchevistas.
Sayula possuía o seu ramal, com um comboio diário; a linha não cobria as despesas e lutava por se manter - mas já era bastante.
Sayula fora atingida pela loucura da América: o automóvel. Assim, como outrora os homens desejavam um cavalo e uma espada e as mulheres sonhavam com uma casa ou um camarote no teatro, a ambição actual é possuir um carro.
Era um desfile contínuo de "máquinas", de automóveis ligeiros e pesados na única estrada que ligava Sayula a Guadalajara. Uma esperança, uma fé, um objectivo: andar de carro, possuir um carro.
Quando Kate chegou à aldeia, falavam com certo alarme do regresso dos bandidos, mas a irlandesa não prestou a mínima atenção ao assunto. À noite, foi àplaza e misturou-se com o povo. Era um largo ornado de árvores imponentes, com um velho coreto no centro e um passeio em volta. No lado norte ficava o mercado. Mais além, passavam burros e camionetas nas ruas mal calcetadas.
A banda de música já não tocava em Sayula, a elegância já não se exibia naplaza, debaixo das árvores. Mas o pavimento ainda era bom e os bancos mais ou menos sólidos. Oh, tempos de Don Porfirio! Agora, só os peóns e os índios, com os seus fatos brancos e manta ao ombro, enchiam os bancos e monopolizavam a praça. É certo que se mantinha a lei que obrigava os peóns, naquelas paragens, a usar calças e não a espécie de ceroulas largas e flutuantes das suas lides rurais. Mas os peóns, por seu lado, também gostavam de envergar calças em vez daquele traje representativo do humilde labor do campo.
Eram eles, pois, quem dominava na praça, ora sentados em bancos ora passeando indolentes com a sua manta e de sandálias. Depois das seis horas, enchiam-se as barracas de comida quente, na rua calcetada do lado norte: ficava mais barato comer fora de casa e findava-se agradavelmente um dia de trabalho. As mulheres, de portas adentro, que ficassem a mastigar as suas tortillas; mas não provavam caldo, nem sopa, nem guisado. Nas tendas que vendiam tequila, instalavam-se homens, mulheres e rapazes defronte da mesa, em bancos, acotovelando-se uns aos outros. Também havia jogos de azar, pouco violentos, em que o banqueiro voltava uma carta e todos gritavam: Cinco de Espadas! Rei de Copas! Certa mulher corpulenta, imperturbável, de cigarro na boca e perigosa expressão nos olhos sombrios e baixos, vendia tequila, sentada ao escuro, toda a noite. O homem dos doces ficava de pé junto do seu balcão. Por terra, viam-se pequenos archotes metidos em latas, alumiando montes de mangas ou daquelas nauseabundas ameixas tropicais, encarnadas, que se liquidavam por dois ou três centavos a pilha, enquanto a vendedora, de saia larga, ou o vendedor, humilde e paciente, esperava acocorado o freguês, com aquela indiferença fatal e aquela submissão que tanto intrigam o estrangeiro. Ter ameixas para vender no valor de trinta cêntimos; amontoá-las no chão em pequenas pirâmides, cinco em cada uma; e esperar todo o dia e até de noite, de cócoras, a olhar de baixo para cima, para a cara do transeunte e possível comprador - eis, ao que parece, uma ocupação e um modo de vida.
Era vulgar encontrar-se ali um par de rapazes empunhando violas de tamanho diverso, em frente um do outro como dois galos combatentes; entoavam uma canção interminável, cantando em voz sumida as eternas baladas não muito musicais, dolorosas, extensas, audíveis apenas para os que estavam próximos. E assim se conservavam até enrouquecerem. Em volta, com mantas encarnadas, paravam homens altos e escuros, ouvindo por instantes e raramente contribuindo com um centavo.
Entre as barracas de comes e bebes estava um trio de duas violas e uma rabeca; dois dos músicos eram cegos e cantavam em diapasão alto, mas também de modo pouco audível. Dir-se-ia cantarem só para si, muito chegados um ao outro, como se a melancólica balada lhes repercutisse no peito.
A aldeia em peso comparecia naplaza. No entanto, raramente, muito raramente uma voz se erguia acima do murmúrio grave dos homens, do sussurro musical das mulheres, do gorjeio das crianças. Poucos movimentos apressados. O lento passeio dos homens de sandálias, chamadas huaraches, fazia um rumor leve de baratas a arrastarem-se no chão. Fora e dentro da multidão calma, corriam rapazes de pernas ao léu. Eram os irrequietos engraxadores, que pululam como moscas importunas naquela terra de gente descalça.
No lado sul, viam-se mesas e cadeiras no passeio: uma tentativa de café-esplanada- Aí, nos dias de semana, sentavam-se para tomar cerveja ou um copo de tequila as poucas pessoas que se atreviam a tamanha exibição - na maior parte estrangeiras. E ospeóns, imóveis nos bancos do último plano, observavam-nas com olhos de basilisco sob as largas abas do chapéu.
Mas ao sábado e ao domingo era quase festa. Chegavam carros aos solavancos, e, como pássaros exóticos, volteavam na plaza raparigas graciosas de vestidos vaporosos, faces empoadas e cabelos encaracolados. Passeavam de braço dado, trajadas de organdi vermelho ou azul, de musselina amarela ou cor-de-rosa, e com tal camada de pó-de-arroz na cara que a pele morena apresentava a brancura lívida dos palhaços ou dos cadáveres.
Adejavam como borboletas coloridas no meio da multidão de homens do povo. fortes e belos. Era restrito o número de mancebos elegantes que pudessem equiparar-se àquelas mocinhas. Contudo, havia alguns, de calças de flanela branca, casaco escuro, palhinhas e bengala. Fumavam cigarros com gesto afectado, falando um castelhano elegante, tão próximo quanto possível do original, e com o ar de que seriam dentro de doze meses sacrificados a algum deus mexicano depOis de estarem devidamente nédios e perfumados.
Ao sábado, os janotas, as raparigas e todos os que vinham de carro, da cidade - que, aliás, eram poucos - tentavam divertir-se nesse lúgubre país. Contratavam tocadores de viola e rabeca e a música de jazz elevava-se em acordes um tanto langorosos.
Debaixo das árvores da alameda, perto das mesas e das cadeiras do café, começavam pares a dançar à la mode. Os vestidos vermelhos, amarelos e azuis rodopiavam com as calças de flanela, donde saíam elegantes sapatos brancos guarnecidos de tiras de couro preto ou castanho. Algumas das saias de organdi encimavam meias e sapatos verdes, ou pernas à Ia nature com sapatos brancos. Os braços franzinos e morenos enlaçavam os ombros azuis-escuros dos moços, que sorriam com ar protector para as facezitas brancas e petulantes; sorrisos meigos, paternais e impregnados de sensualidade.
Mas a dança era no recinto da praça, e na praça erravam indolentes os homens do campo, ou então paravam em grupos, espiando os pares rodopiantes com os seus olhos pretos, misteriosos, impenetráveis. Em que pensariam? Sentiriam admiração, inveja, ou simplesmente uma silenciosa e fria oposição? Sim, oposição é que devia ser.
Esses camponeses de camisa branca e manta escarlate, airosamente dobrada ao ombro, passeavam devagar, quase ocultos sob o chapéu enorme e pesado, dispostos a não fazer caso dos que dançavam. Vagarosos, oscilando o corpo, eles moviam-se irresistivelmente no meio da dança como se a dança, no fim de contas, não existisse. E os rapazes de calças brancas, levando nos braços as damas de organdi, evolucionavam como podiam, fazendo o possível por se desviarem âospeóns impassíveis, que prosseguiam na sua conversa, sorrindo na alvura dos dentes, com um sangue-frio que gelava os próprios músicos. Nunca se tocavam, nunca se acotovelavam, dançarinos epeóns; no México ninguém se atropela involuntariamente. Mas a dança embatia contra a oposição invisível.
Os índios sentados nos bancos contemplavam também por momentos as evoluções dos bailarinos, após o que os fulminavam com a sua pesada indiferença. Misteriosa faculdade dos índios, tão densa e calma, para destruir a vida palpitante, para apagar qualquer foco de efervescência.
Na verdade, um simples bailarico de indígenas; mas dir-se-ia fechado dentro de quatro paredes. E o ritmo soava diferente, grave, com certa violência. Os dançarinos eram artífices, mecânicos ou carregadores da estação: gente meio citadina. Nenhuns trabalhadores do campo, ou quase nenhuns.
Por isso, passado não muito tempo, as borboletas de organdi e os moços de calças de flanela sucumbiram esmagados pela enorme passividade, pela resistência dos satânicos peóns.
Curiosa, radical oposição dos índios contra essa coisa a que chamamos espírito. É o espírito que leva as meninas petulantes a adejarem as suas asas de organdi como borboletas. É o espírito que vinca as calças de flanela dos rapazes e lhes dá aquele ar um tanto patético. Tentaram representar a elegância e a vontade do espírito moderno.
No entanto, como um peso de obsidiana, surge a recusa passiva do índio; compreende a vida, que participa do sangue, mas o espírito, que é superior, e é a marca da nossa civilização, isso ele repudia, barbaramente, torvamente. Só quando se torna operário ou lida com ofícios mecânicos é que o espírito moderno o visita.
E talvez seja esse repúdio do espírito moderno que faz o México ser o que é.
Kate ficou um tanto desconsolada ao ver findar o baile. Instalara-se numa das mesas, com Juana a servir-lhe de duena, para tomar um cálice de absinto.
Os carros regressavam à cidade em pequenos grupos. Sempre seria melhor irem juntos, para o caso de aparecerem salteadores. Dominava-os o receio dos bandidos, e os próprios janotas usavam revólver no bolso.
Como era sábado, parte da mocidade elegante ficou para o dia seguinte, na ideia de tomar banho e de se espojar ao sol.
A plaza estava cheia, e ao comprido das ruas que desembocavam no largo cintilavam inúmeros archotes, iluminando uma exposição de chapéus de palha, de esteiras, de pirâmides de laranjas.
Havia feira no domingo de manhã, de modo que, de repente, o largo ficou estuante de vida - densa e pesada energia vital. Os índios tinham vindo de todas as aldeias, trazendo consigo essa curiosa energia vital que parece zumbir cada vez mais profundamente quando eles se encontram reunidos.
Durante a tarde, com o vento a soprar do sul, as canoas, de casco preto e larga vela desfraldada, haviam atravessado as águas do lago, transportando indígenas e produtos para o mercado. Para formar essa multidão todas as aldeias da margem concorreram com os seus habitantes.
Despertava o instinto que impele os índios para a vida nocturna desde que se encontrem reunidos. Ninguém recolhia a casa, ninguém pensava em dormir, embora a feira só principiasse ao romper da manhã.
Cerca das nove horas, depois de terminada a dança, Kate ouviu o rufar de um tambor, ou coisa semelhante, e notou que uma chusma de peóns se dirigia para o lado mais escuro da praça, onde já se viam barracas e cestos enormes, em forma de ovo, encostados à parede.
Aquele som, que era como o latejar dum pulso de gigante repercutindo no ar da noite, juntou-se a nota prolongada de uma flauta, tocando uma espécie de melodia bárbara. Kate, que já ouvira falar dos cânticos selváticos dos peles-vermelhas do Arizona e do Novo
México, sentiu instantaneamente espalhar-se na atmosfera a eterna
paixão das raças pré-históricas com a sua intensa e complicada significação religiosa.
Olhou para Juana com ar interrogador.
- Que é isto? - perguntou.
- Músicos, cantores - foi a resposta evasiva.
- Mas muito diferentes dos outros - insistiu Kate.
- Sim, aquilo é coisa nova.
- Nova?
- Apareceu aqui há pouco tempo.
- Donde veio?
- Sabe-se lá! - volveu Juana, encolhendo os ombros.
- Quero ouvi-los.
- Olhe que são só homens.
- Podemos ficar um pouco afastadas.
E Kate dirigiu-se para o ajuntamento silencioso dos peóns. Estavam todos de costas para ela.
Subiu o degrau duma porta e viu, perto do muro florido de buganvílias, um espaço livre iluminado pelos archotes de madeira resinosa que um rapaz segurava nas duas mãos.
O tambor estava ao centro dessa clareira, e o homem que o rufava tinha o torso nu e calças de brancura imaculada atadas na cintura por uma faixa escarlate e aos tornozelos por cordão da mesma cor. Cingia-lhe a cabeça uma tira vermelha, donde se erguiam três penas rubras sobre a nuca. Na testa brilhava uma turquesa no meio dum círculo azul. O tocador de flauta também se apresentava sem camisa, mas dobrara sobre o ombro uma bela manta branca listada de azul e preto. Outros homens, despidos da cintura para cima, distribuíam folhetos aos espectadores, insinuando-se no meio da multidão. E todo o tempo, alta e pura, a estranha flauta de barro repetia a melodia bárbara, acompanhada pelo rufar do tambor.
Kate desceu do seu poleiro e avançou a medo. Queria um daqueles papéis. O homem deu-lho, sem sequer a olhar, e ela encaminhou-se para a luz a fim de o ler. Era uma espécie de balada, mas sem rimas, escrita em espanhol. No cimo da página via-se o desenho de uma águia cercada por uma serpente que mordia a cauda; curiosa variante do emblema mexicano, que é uma águia encarrapitada num cacto de folhas largas e com uma serpente nas garras. A certa distância, o círculo formado pelo réptil com a ave a meio dava a impressão dum olho.
Na região de Oeste
Em paz, para além dos raios brilhantes
Do Sol,
No silêncio onde nascem as águas
Dormia eu, Quetzalcoatl,
Na caverna chamada Olho Tenebroso, Vendo através do sol como por uma janela, Minha morada é lá. Onde as águas brotam E os ventos nascem.
Nas águas do Além
Levantei-me e vi uma estrela cadente.
E senti
Um sopro em minha face.
O sopro disse: Vai,
E eu vim.
Desci a longa encosta, Passei o monte do Sol, Até que descobri em baixo Os seios brancos da terra Do México: a esposa minha.
Entre os mares a minha esposa Penteia o cabelo preto Murmurando: Quetzalcoatl...
Adensara-se a multidão de homens; do centro elevava-se a luz avermelhada dos archotes, o ar embalsamava-se da resina de cedro. Kate não conseguia ver nada por causa dos chapéus enormes.
Calara-se a flauta; mas o tambor continuava as suas pancadas lentas, regulares, com o ritmo duma pulsação. Aquele som incompreensível, surdo, enfeitiçava o espírito, fazia bater o coração, aniquilava a vontade.
Os homens começaram a fatigar-se, sentando-se uns, acocorando-se outros, com o chapéu nos joelhos. Dir-se-ia um mar de cabeças escuras, ondulando para a frente, sobre os ombros vigorosos e levemente inclinados.
Perto do muro formara-se um círculo, com o tambor ao centro. O homem que o tocava, de dorso nu, premia o instrumento contra o corpo, e, curvado, as costas cintilavam-lhe ao clarão da noite. Junto dele estava outro homem a segurar uma bandeira que pendia duma haste leve. No campo azul do pano via-se o Sol amarelo a meio duma bola preta e, entre os quatro raios maiores, todos de ouro, quatro raios negros emergindo, o que fazia o astro assemelhar-se a uma roda que girasse num movimento ofuscante.
Sentara-se toda a gente. Os seis homens de tronco nu, que haviam distribuído os prospectos e convocado a multidão tinham já regressado e agora acomodavam-se de volta do rufador agachado. À direita deste ficava o porta-bandeira, à esquerda o flautista. Eram nove os do grupo, e faziam dez com o rapaz que vigiava os dois archotes, agora colocados em trípodes de cana.
A noite aprofundava-se em silêncio. Calara-se o murmúrio de vozes que enchia a praça. Debaixo das árvores, nos passeios, transitavam ainda pessoas indiferentes, mas pareciam estranhamente solitárias; figuras isoladas envoltas na luz pálida das lâmpadas eléctricas e fora do núcleo da vida.
No lado norte, as barracas continuavam iluminadas, faziam-se compras e vendas. Mas também essa banda do largo dava a impressão de estar muito longe da realidade actual.
Depois de os homens se sentarem, as mulheres avançaram timidamente e instalaram-se por sua vez na orla exterior do círculo. As saias rodadas espalhavam-se no chão, os xailes escuros moldavam-lhes a cabeça redonda e pequenina. Algumas, não ousando aproximar-se, ocuparam os bancos em volta. Outras, assim como muitos homens, haviam desaparecido aos primeiros rufos do tambor.
a plaza ficou como que deserta. Um grupo compacto rodeava o tambor; aquém, era o mundo externo, vazio e hostil. Somente na ruela escura que conduzia ao negrume do lago se viam alguns vultos erectos e silenciosos como fantasmas.
Sobre os degraus de uma porta, e com Juana a seus pés, Kate olhava fascinada para aqueles homens seminus iluminados pelo clarão dos archotes. Os seus corpos lisos e acobreados possuíam essa beleza índia um tanto assustadora. Os torsos magníficos, acetinados, desses entes silenciosos de cabeça um tanto pendida para a frente; os ombros largos, levemente descaídos pela inactividade da sua força; o tom quente e o brilho da pele; o peito vigoroso, tão viril e, no entanto, sem a dureza muscular dos homens brancos; as faces sombrias, impenetráveis, os bigodes pretos e as barbas ténues enquadrando o silêncio da boca fechada - tudo isto era impressionante, singular, despertava comoção.
Havia algo de reptilário na sua flexibilidade, qualquer coisa de terrível na sua mudez. Os troncos nus tinham a revesti-los uma sombra subtil, certa obscuridade misteriosa. Se fossem homens de raça branca seriam francamente musculados, com uma espécie de sinceridade no próprio físico. Aqueles não. A sua nudez só revelava a profundeza secreta da natureza, o eterno mistério.
Toda a gente se calara; intensificava-se o silêncio expectante, tornava-se tumular. Os homens de ombros nus mantinham-se imóveis, mergulhavam dentro de si mesmos e escutavam com os ouvidos do sangue. Sob as calças brancas atadas nos tornozelos, os pés metidos em Imaraches eram quase negros ao clarão dos archotes. Que pretendiam essas criaturas suaves e recolhidas e cuja importância, no entanto, era tão ponderosa, tão aliciante?
Kate sentia-se ao mesmo tempo atraída e repelida. Quase a fascinava o estranho poder magnético dos homens em círculo. Era como o núcleo duma vida nova, como uma jóia negra brilhando na escuridão. Mas parecia-lhe repulsiva aquela estranha opressão, esse afundar do espírito na terra, esse lento escoar duma água turva; repulsiva a densa e muda oposição ao rumo espiritual da gente branca. Contudo, ali e só ali a vida parecia arder com chama intensa.
No resto do mundo, Kate bem o sabia, tudo era vacuidade, esterilidade. Aqueles vultos avermelhados pelo clarão dos archotes representavam uma humanidade nova.
Kate sentia tudo isto, mas preferia manter-se à parte, evitar o contacto directo.
O porta-bandeira ergueu a cabeça como se fosse falar, mas não disse nada. Velho de barba e bigodes brancos a emoldurar-lhe os lábios escuros e carnudos, tinha a cara sulcada de rugas, como todas as pessoas idosas desse país. No entanto, os cabelos eram bastos, e o corpo ainda revelava força e virilidade. ! Os seus olhos negros olhavam sem ver. Talvez fosse realmente
cego; ou seria profunda abstracção que lhe dava aquele aspecto. Começou então a falar, numa voz lenta, clara e distante que parecia ser o eco dos últimos sons do tambor. - Homens, escutai-me! E vós. mulheres, escutai-me também. Há muito tempo, na calma da noite, o lago dirigiu um apelo aos seres humanos. Mas não existiam. Só os peixes pequeninos nadavam ao longo das margens, procurando fosse o que fosse, e os maiores saltavam fora de água para olhar em volta. Mas não existiam seres humanos.
Então um dos deuses de face velada saiu da água e subiu ao monte. (E o velho indicou a colina invisível nas trevas da noite. ao fundo da aldeia. Contemplou o Sol e viu através dele outro sol negro, o que criou o mundo e o absorverá de novo como uma gota de água. Disse: - Chegou o momento? - E quatro braços saíram do sol e da sua sombra surgiram homens. Viram os quatro braços no céu e principiaram a andar.
O deus do cimo da colina olhou para as montanhas e para as planícies e viu os homens anelantes, sequiosos. E disse-lhes: Vinde cá. Tendes aqui a minha água dulcificadora.
Correram como cães, de língua pendente, e ajoelharam-se na margem do lago. O deus do cimo da colina ouviu-os ofegar, de tanta água que beberam, e perguntou-lhes: - Não bebestes de mais? Ou tendes ainda os ossos secos?
í Os homens fizeram casas à borda do lago, e aquele que estava na colina, e que era um deus, ensinou-os a semear milho, feijão, e a construir barcos. Mas preveniu-os: - Nenhum barco vos salvará quando o sol negro deixar de estender os braços no céu.
O deus da colina disse ainda: - Sou Quetzalcoatl, aquele que vos humedece os lábios secos. Encho-vos o peito com um sopro do além-sol. Sou o vento que sai em turbilhão do centro da terra, sou o zéfiro que se enrosca como cobra em volta dos vossos pés, pernas e coxas, erguendo a cabeça da serpente do vosso corpo, onde reside a força humana. Tomai cuidado quando a serpente do corpo erguer a cabeça. Sou eu, Quetzalcoatl, que vos elevo, que vos elevo até ao sol das trevas, derradeira morada dos homens. Exceptuando o sol negro e os quatro braços nos céus, éreis ossos, e as estrelas eram ossos, e a Lua uma concha vazia numa praia seca, e o Sol amarelo uma taça vazia, semelhante ao crânio dum lobo. Portanto, tende cautela! Sem mim nada sois. Assim como eu nada sou sem o sol que está atrás do sol. Quando o sol de ouro estiver no zénite, dizei: Quetzalcoatl levante a sua mão e me abrigue dos raios, senão perecerei e a terra secará. Porque na palma da minha mão está a água da vida, e nas costas está a sombra da morte. Quando os homens me esquecem volto a mão e aparece a sombra da morte. Mas os homens esqueceram-me. Os seus ossos eram húmidos, o seu coração fraco. Quando a serpente do corpo erguia a cabeça, diziam assim: É a serpente amansada que nos obedece. E quando suportavam o ardor do sol, falavam nestes termos: O sol está zangado, quer absorver-nos; ofereçamos-lhe sangue de vítimas.
Os braços negros desapareceram do céu, e Quetzalcoatl envelhecia e lamentava-se, velando a face para a esconder dos homens.
Lamentava-se e dizia: - Deixai-me recolher à minha morada. Estou velho, quase sou apenas ossos. Os ossos triunfam em mim, o meu coração é uma cabaça vazia. Sinto-me cansado do México.
Então bradou ao sol negro, aquele de quem nunca se pronuncia o nome: - Estou um esqueleto, os Mexicanos renegam-me, de nada sirvo. Levai-me.
O sol negro estendeu o braço e elevou Quetzalcoatl até ao céu. Depois olhou em volta e viu a estrela de alva brilhando sem receio entre a vinda do sol dourado e a fuga da escuridão. E aquele, cujo nome jamais foi pronunciado, perguntou: - Quem és tu, guarda cintilante? E a estrela respondeu: - Outrora, no México, fui Quetzalcoatl. Agora contemplo as costas do sol amarelo e a face invisível da Lua, brilho entre o dia e a noite, esperando pela renovação.
E aquele cujo nome jamais foi pronunciado declarou: - Chegou a hora.
Assim o decretou, e eu a vós repito, homens e mulheres: Chegou a hora. Os que nos deixaram regressam, os que vieram retiram-se. Desejai a uns boas-vindas e dizei adeus aos outros.
Boas-vindas! Adeus!
O velho terminou o discurso com um grito meio sufocado, tal se na verdade se dirigisse aos deuses.
- Bienvenido! Bienvenido! Adiós! Adiós!
A própria Juana, sentada aos pés de Kate, bradava sem saber o que dizia:
- Bienvenido! Adiós! Adiós... n!
O último adios arrastou-se para rematar com o costumado "n". Começou o tambor a soar num ritmo insistente, e a flauta fez ouvir o seu grito estranho e longínquo. Tocavam a melodia singular que a irlandesa ouvira a princípio.
Então um dos homens do círculo entoou o hino. Cantava à maneira dos antigos Peles-Vermelhas, em voz contida mas intensa, como se se dirigisse à própria alma e não ao mundo exterior; como se cantasse na outra dimensão da existência dos homens, onde eles se encontram na extensão infinita que há dentro do eixo do nosso espaço rotativo. Espaço que, como o mundo, não pode deixar de se mover. E, tal o mundo, tem um eixo. O eixo do nosso espaço terreno, quando lá se penetra, é uma vastidão onde até as árvores vão e vêm, e a alma está à vontade no seu sonho, nobre e irrefutável.
O pulsar do tambor e o cântico íntimo arrastavam a alma para o centro do tempo, que é mais velho do que a própria velhice. O cantor começou por uma nota alta que repetiu demoradamente, fazendo-a percorrer ritmos subtis, na aparência desconexos, que o tambor acompanhava, e depois fê-la tremer, palpitar e dar um balanço brusco. Por muito tempo foi difícil distinguir qualquer melodia: dir-se-ia o uivo distante e esmaecido dum lobo. Era na verdade a música dos índios antigos.
Não se lhe encontrava harmonia, não se lhe reconhecia emoção. Apenas música, apenas um grito na noite, perfeito e longínquo. Mas ia direito à alma, à alma eterna e antiga, aí onde só pode a família humana encontrar-se em imediato contacto.
Kate logo o sentiu, e de forma fatídica. Seria inútil resistir, inútil fazer qualquer esforço. O som ia até ao âmago do ser, em que não existe esperança nem dor, mas só a paixão, que semelha uma ave no seu ninho, de asas dobradas, e a fé uma árvore de sombra.
Como o destino, como a sorte. A fé é a própria Árvore da Vida, inevitável, e os pomos estão ao nosso alcance: pomos dos olhos
- as pupilas -, pomos do queixo, do coração, dos seios, do ventre, dos quadris, dos joelhos, dos tornozelos. Que importa a mudança, a evolução? Somos a Árvore com os seus frutos, para todo o sempre. Verbum Sat.
Emudeceu o cantor, mas o tambor prosseguiu, fazendo vibrar subtilmente a membrana sensível da noite. Então, no círculo, de novo se elevou uma voz, depois outra, e outra, como pássaros voando de uma árvore. Elevaram-se as vozes - forte, pesado, intenso arrebatamento de vozes másculas, semelhante a um bando de aves negras subindo e descendo no ar, ao mesmo tempo. E cada ave preta dir-se-ia erguer-se do coração de um homem, do bosque secreto dos peitos masculinos.
Uma a uma, partiram também vozes da multidão, qual nova revoada de pássaros. A letra não tinha importância. Versos, palavras, simples sons - o canto era sempre o mesmo: violenta rajada saindo das cavernas do peito, das profundezas da alma eterna. Kate estava excessivamente intimidada para poder cantar, demasiadamente vencida pelas desilusões; mas sentia que o seu espírito fazia eco, seguindo o clamor do povo, tal a ave poliglota que imita as outras à noite. Contra sua vontade, Juana cantava também, num tom monótono, proferindo palavras à toa, inconsciente.
Os homens seminus começaram a agarrar as mantas: mantas brancas orladas de azul, com barras castanhas e franjas escuras. Da turba, levantou-se alguém, que se dirigiu para o lago. Voltou depois com um feixe de lenha trazido por um barco. Acendeu então uma fogueira pequena. Outro indivíduo se destacou para ir também buscar lenha: colocou-a diante do tambor, dentro do círculo, e fê-la crepitar. Por sua vez, uma mulher, descalça e de larga saia de algodão, principiou a arranjar a sua fogueira no meio das mulheres.
O ar estava bronzeado pelo clarão do lume; alastrava-se um fumo odorífero, como de incenso. Subiu e desceu o cântico, depois esmoreceu. Débil ecoou o som do tambor, e morreu por seu turno. No silêncio absoluto podia-se sentir a presença imóvel do lago sombrio.
Mais uma vez pulsou, vigoroso, o tambor. Um dos homens que estavam sentados, com o seu poncho branco debruado de azul e preto, ergueu-se de repente e, tirando as sandálias, começou a esboçar passos de dança, sem fazer o menor ruído. Dançava pesadamente, de pés nus, como se fosse enterrar-se pela terra abaixo. Sozinho, oscilava num ritmo estranho, calcando o chão, erguendo ora um ora outro dos joelhos de encontro às franjas escuras do poncho. Outro homem, encaminhando-se para o centro, pôs aí os huaraches, perto do fogo, e iniciou o seu bailado, enquanto o do tambor entoava um cântico selvático, tenebroso. Os restantes comparsas despojaram-se dos ponchos e, num instante, estavam de pé, e de torsos nus, descalços, repetiam aqueles passos que pareciam de ave. A luz da fogueira batia-lhes no peito, nas faces sombrias e extáticas.
"O que dorme acordará! O que dorme acordará! O que segue o trilho da serpente na poeira chegará ao seu posto; pelo trilho do pó chegará ao seu destino e revestir-se-á com a pele da serpente: revestir-se-á com a pele da serpente da terra, que é a criadora da pedra, que é criadora da pedra e do vigamento da terra; criadora do oiro, do ferro, da madeira da terra: dos ossos do pai da terra, da serpente do mundo, do coração do mundo que bate como uma cobra bate no pó, nos seus movimentos sobre a terra; do coração do mundo. Quem dorme despertará! Quem dorme despertará! Quem dorme despertará no caminho da serpente do pó da terra, da pedra da terra, do osso da terra."
O cântico parecia tomar novos voos audaciosos depois de baixar e sussurrar num último desmaio. Eram como ondas que se erguem do invisível, que tomam forma, alando-se, e desaparecem num rumor de aniquilamento. E os dançarinos, após terem girado em círculo, numa lenta e profunda absorção, iam um por um tomar o seu lugar, calcando o pó com os pés descalços, vagarosamente, e vagarosamente começavam a descrever uma ronda lenta em torno do fogo, sempre com os mesmos passos que se diria afundarem-se na terra. E o tambor ressoava numa palpitação sempre igual, como a de um coração humano. E o cântico soou e diminuiu, mais baixo e mais baixo numa espécie de extinção, para ainda uma vez tornar a levantar-se.
Até que os camponeses moços acharam impossível permanecer como estavam. Tiraram as sandálias, o chapéu, as mantas, e, timidamente, com pés inexperientes que no entanto conheciam as velhas pisadas, se puseram atrás dos outros bailadores e dançaram sem sair do seu lugar. Depressa o círculo revoluteante estabeleceu outro círculo de homens que envolveu o primeiro.
Então, de súbito, um dos dançarinos de tronco nu saiu do círculo interior e, penetrando no segundo, fê-lo girar em sentido inverso ao daquele. Deste modo houve duas rodas em movimento, uma dentro da outra, rodopiando em direcções opostas. Assim andaram, com o tambor e o canto, girando como rodas de sombra em volta do lume. Mas o lume extinguiu-se, e o tambor parou de repente, e os homens num instante se dispersaram, retrocedendo para os seus postos.
Houve silêncio, depois ouviu-se um murmúrio de vozes e risos. Kate muitas vezes pensara que o riso dos peóns se assemelhava a uma queixa; mas agora ele saltava como faúlhas invisíveis, bruscamente, da cinza das conversas.
Todos esperavam, e contudo ninguém se movia - até que o tambor vibrou de novo, como um sinal. Continuaram, porém, a tagarelar mas escutando, qual se possuíssem uma segunda consciência. Levantou-se um homem, desfez-se da manta e deitou lenha na fogueira central. Em seguida atravessou o grupo dos homens sentados e dirigiu-se ao das mulheres, que se apinhavam com as saias desdobradas. Esperou, sorrindo com ar abstracto, e logo se pôs de pé uma rapariga e se aproximou dele, apertando com a mão direita o xaile enrolado em torno da cabeça baixa. Estendendo a mão esquerda, pegou timidamente na do homem, que parecia inerte. Sorriu este e conduziu-a ao centro da roda, através do grupo dos que estavam sentados. Ela seguia de cabeça inclinada, escondendo o rosto pudibundo. Lado a lado, começaram a dançar, mal roçando as mãos e formando o primeiro pequenino segmento do círculo interior estacionário.
Ei-los agora todos, em pé, à espera de serem escolhidos. Rápidas, as mulheres, ocultando a testa no xaile, insinuavam-se junto deles e tomavam a mão do eleito. Dentro de pouco tempo já todos tinham dama. Fechara-se o círculo interior, com os homens e as mulheres aos pares, de mão dada.
- Venha, niña, venha! - disse Juana, fitando Kate com os seus olhos negros e brilhantes.
- Tenho medo - respondeu a irlandesa. E falava verdade.
Um dos de tronco nu atravessara a rua, afastando-se da multidão e detivera-se próximo da porta onde se achava Kate, que se calou e desviou a vista. E ficou esperando.
- Olhe, niña, um senhor que a procura. Venha, niña, venha!
A voz da criada descera de tom, capciosa, com esse apelo mágico das mulheres do povo. Os olhos pretos continuavam a cintilar-lhe estranhamente, fitos no rosto da patroa. Kate, quase hipnotizada, avançou em passos lentos e indecisos para o indivíduo que se mantinha à espera.
- Quer, realmente? - disse ela em inglês, bastante atrapalhada. E, com os seus dedos, tocou nos dedos dele.
Quase com indiferença, num gesto frouxo, a mão quente e máscula segurou os dedos de Kate e levou-a para a roda. Ela baixou a cabeça e desejou poder velar a face. No seu vestido branco e chapéu de palha verde, sentiu-se outra vez virgem, virgem juvenil. Aqueles homens concediam-lhe o dom de reencontrar a mocidade.
Acanhada, receosa, Kate procurou seguir a dança; mas escapava-lhe o ritmo, e os sapatos rígidos não a ajudavam. Movia-se confusamente.
Mas o seu par pegava-lhe na mão, embora com moleza, e oscilava, lento, o corpo todo, como um pêndulo de relógio. Dir-se-ia não fazer caso dela; contudo, segurava-lhe os dedos, de leve, numa pressão suavíssima.
Juana descartara-se dos sapatos e das meias. No rosto como uma máscara de lava, enrugado, escuro, as pupilas ardiam com a eterna chama da feminilidade, sombria e inextinguível. E já, com os pés, marcava o compasso da dança.
"Assim como o pássaro do sol fecunda a terra à alvorada tal uma fêmea morena sob os seus pés, com as dobras do ventre inclinadas aos pomos da geração, com os ovos de oiro, com os ovos que escondem o globo do sol nas águas do céu, na concha da terra que é o alvo do fogo do sangue, pisa tu também a terra e a terra conceberá qual a fêmea sob os pés do pássaro do sol. Pisa a terra, pisa a terra agachada e de asas encolhidas..."
A roda começou a girar e Kate foi-se movendo devagar entre dois homens silenciosos e absortos, cujos braços tocavam os seus. Um segurava-lhe os dedos, frouxa e brandamente, mas com transcendente afinidade. E o canto selvático subiu de novo como uma ave, e o tambor alterou o ritmo de modo incompreensível.
A outra roda era composta só de homens; Kate tinha a impressão de sentir nas costas o fulgor sombrio daqueles olhares. Os indivíduos já se não distinguiam, formavam como que uma única massa, em que ela própria se confundia.
Todos dançavam da mesma maneira, de cabeça baixa e olhar ausente, os homens absorvidos na sua virilidade, as mulheres na sua feminilidade. Somente o sexo prevalecia na sua mais alta concepção. Mar à superfície do globo movendo-se por cima dum mar nas entranhas da terra; águia evolucionando em silêncio sobre a própria sombra.
Kate sentia-se fundir nas águas revolutas de uma vida nova. Deixara de ser ela mesma para fazer parte de um todo, os seus desejos abismavam-se no mar do desejo colectivo. E assim o homem cujos dedos roçavam nos dela se engolfava no oceano de homens.
Lento mover de águas sobre águas, sem vestígio de espuma. Só a pura e deslizante conjunção.
Como era estranho ver-se submergida pelo desejo para além do próprio desejo, sentir-se integrada num corpo imenso para além do individualismo do corpo!
Não conhecia a cara do homem que lhe segurava nos dedos. Os seus olhos haviam cegado, e o rosto dele era um céu tenebroso. Mas do toque dos seus dedos nascia uma estrela, a estrela que os unia.
Os pés de Kate principiavam a marcar o compasso. Ela já sabia como deixar-se levar, abandonar a essência da sua vida, permitindo que lhe fugisse devagar, num escoamento rítmico, para o corpo negro da terra. Erecta, forte como o próprio esteio da vida, cedia no entanto a Seiva dessa força e fazia-a fluir para as raízes da terra.
Perdera a noção do tempo. A dança, porém, acalmava-se pouco a pouco, embora o ritmo permanecesse sempre o mesmo até ao fim.
Calaram-se as vozes, só o tambor continuou. Este, de súbito, produziu um rufo breve, e o silêncio foi geral. Logo as mãos se desataram, o baile parou de todo. O homem que a acompanhava sorriu-lhe e desapareceu. Jamais o reconheceria. Havia, no entanto, de lhe sentir a presença.
As mulheres afastaram-se, aconchegando os ombros com o xaile. Os homens dissimularam-se nas mantas. E Kate voltou à escuridão do lago.
- Já se vai embora, Niña? - perguntou Juana num tom que revelava certo descoroçoamento.
- Tenho de ir sem demora - replicou a patroa, estugando o passo. E a toda a pressa se encaminhou para as trevas do lago, com Juana na sua peugada, de sapatos e meias na mão.
Kate desejava reentrar em casa, com o seu novo segredo, o estranho segredo da feminilidade mais alta, a que ainda se não habituara. Precisava abandonar-se inteiramente àquele mistério.
Quase corria através do atalho interminável, na margem pedregosa e escura, apesar de a claridade das estrelas ser suficiente para revelar a forma sombria dos barcos que sulcavam a água mansa e turva. Noite eterna, sem horas! Kate não queria consultar o relógio, e até o virou no pulso a fim de não ver os ponteiros luminosos. Que o tempo a não governasse!
Ao adormecer, ouvia ainda o rufar do tambor, como um pulso que batesse nas entranhas da terra.

VIII
À entrada da casa de Kate elevava-se uma árvore enorme chamada cuenta por causa dos seus frutos pequeninos, redondos, duros e perfeitos de forma, que os indígenas apanhavam para fazer colares e, em especial, padre-nossos dos rosários. À noite, a rua ficava imersa em escuridão e só a queda das contas perturbava o silêncio.
Essas noites, que de começo pareciam calmas, amigáveis, encheram-se subitamente de terrores. Renascia o medo. Constituíra-se uma quadrilha de ladrões numa das aldeias do lago, cujos habitantes tinham má fama. Essa quadrilha, invisível durante o dia, compunha-se de pescadores e jornaleiros que, depois do anoitecer, montavam nos seus cavalos e iam assaltar casas solitárias ou mal guardadas.
O facto de saber que um bando de malfeitores rondava naquela região era o bastante para incitar os ladrões isolados a agir também. Fosse o que fosse que acontecesse, seria atribuído aos bandidos. Deste modo, mais de um indivíduo considerado honesto se deixava dominar pela cobiça e se escapulia à socapa armado de faca ou de pistola para se aproveitar igualmente da escuridão.
Kate sentia o terror condensar-se no silêncio da noite mexicana; silêncio tenebroso, tão profundo que se tornava sobressaltante, o som duma conta a cair. Deitada na cama, Kate escutava o mínimo rumor nas trevas densas. Ouviam-se ao longe apitos de polícia, daí a pouco passava a patrulha a cavalo. Mas, como acontece em quase toda a parte, a polícia nunca aparecia quando era precisa.
Aproximava-se a estação das chuvas, e o vento nocturno, vindo do lago, fazia sussurrar as árvores e abalava as portas desconjuntadas da casa. Os criados encafuavam-se nas suas dependências. No México, uma pequena distância isola-nos completamente desde que a noite desce; e ficamos perdidos na escuridão envolvente.
De manhã, Juana vinha da praça, com os seus olhos como gotas de tinta e, no rosto bronzeado, a expressão cansada dos entes submetidos ao medo. Logo de entrada, e na sua linguagem pouco compreensível, embrenhava-se na história de uma casa assaltada e de mulheres assassinadas. E a dona do hotel mandava dizer a Kate que não era prudente dormir sozinha em casa. Seria melhor passar a noite no hotel.
Toda a aldeia se encontrava sob estranha apreensão. Pairava no ar da noite um terror pânico. Renascia a confiança à claridade azul da manhã, mas ao anoitecer o sangue parecia coagular-se, a atmosfera tornava-se densa.
O medo, é claro, comunicava-se duns aos outros. Se Juana e a respectiva família não andassem cheias de pavor, Kate nunca sentiria medo, disso estava ela certa.
Ali não havia homens. Juana tinha dois filhos, Jesus, de vinte anos, e Ezequiel, de dezassete. Mas Jesus era quem tomava conta do motor da luz eléctrica, e tanto ele como Ezequiel dormiam na casa das máquinas. De modo que Juana ficava só com as duas filhas, Concha e Maria, no cubículo ao fundo da residência de Kate.
Antes, a plaza mantinha-se animada até às dez da noite, com gente a conversar ou a ouvir os moços tocadores de viola e o homem dos sorvetes a apregoar de contínuo: Nieve! Nieve!
Agora o largo esvaziava-se às nove horas. E havia ordem de prender quem fosse encontrado na rua depois das dez.
Kate corria para casa e trancava as portas. Não é fácil suportar o pânico de um povo meio bárbaro. O medo espalha-se no ar, envolve-nos, paralisa-nos a alma com a sensação de desgraça iminente, dum horror atroz.
Às dez horas cortavam a luz eléctrica, tudo ficava às escuras, e, deitada na cama, Kate sentia o sopro maléfico espraiando-se na atmosfera em vagas sucessivas.
Acudiam-lhe à memória todas as histórias arrepiantes passadas no país. E de novo pensava nessa gente de aspecto pacífico e sorriso doce. Mas o próprio Humboldt dissera a respeito dos mexicanos que nunca encontrara povo de sorriso tão suave e olhar tão feroz. Não que os olhos revelassem propriamente ferocidade; contudo, o seu negrume iluminava-se dum clarão frio, de cintilações de punhal nas trevas da noite, ao mesmo tempo que neles despertava a sede de homicídio.
Seres incompletos, não de todo criados, encontravam-se à mercê das velhas influências que jaziam como sedimento no fundo de cada um deles. Enquanto estavam calmos, eram simpáticos, bondosos, simples. Mas, se alguma coisa lhes revolvia as profundezas, logo se erguiam as nuvens tenebrosas de ódio e de morte.
Adivinhava-se-lhes na alma um ressentimento constante, como que uma ferida jamais cicatrizada. O ressentimento dos entes incapazes de conquistar sozinhos uma integridade individual fora do caos de paixões e forças mortíferas. Eram apanhados na engrenagem duma ansiedade ancestral como nos anéis duma serpente negra que lhes oprimisse o coração. Onerosa carga dum passado invencível.
E debaixo desse peso vivem e morrem, sem grande pena de morrer. Enredados nos elementos, não conseguem desenvencilhar-se. Queimados pelo sol excessivamente forte, sobrecarregados pela electricidade da atmosfera mexicana e atormentados pela erupção de vulcões que lhes rebentavam aos pés. Tremendos elementos do continente americano que tornam forte o corpo dos homens mas que esmagam a alma e impedem a sua elevação. E, se nalgum ela se eleva, os elementos maléficos a pouco e pouco a destroem, até que o homem se decompõe em ideias e actividades maquinais, num corpo cheio de energia mecânica mas de espírito morto e putrefacto.
Assim, esses seres incapazes de dominar os elementos, submetidos às forças do sol, da electricidade e das erupções vulcânicas, estão sujeitos a acessos de rancor e de ódio ardente à própria vida. Então, nada melhor do que enterrar uma faca num corpo vivo. Nenhuma volúpia iguala essa de cravar a lâmina e ver jorrar o sangue.
É a suprema satisfação duma raça presa a um passado de que não consegue libertar-se. Raça que não conhece Salvador nem Redenção. Quais mineiros enterrados vivos na derrocada duma mina, nações inteiras ficam sepultadas sob os escombros do passado - até que um salvador lhes mostre a saída para o sol.
Deitada na cama, Kate reflectia profundamente na'escuridão da noite, de ouvido atento aos menores ruídos que a enchiam de terror. Não podia refrear o coração; dir-se-ia que lho arrancavam, e o sofrimento era atroz. Pela primeira vez sentia medo físico, o sangue gelava-se-lhe nas veias.
Na Inglaterra, na Irlanda, durante a guerra e a revolução, conhecera o medo espiritual. O medo horrível da ralé; e durante a guerra as nações eram quase tudo ralé. O terror da canalha que pretendia acabar com a liberdade de pensamento em cada homem e em cada mulher. Era a ambição fria e colectiva de milhões de criaturas: aniquilar o espírito daqueles que resistiam e assim poderem iniciar a descida geral para as camadas interiores onde existe o culto do ouro e a volúpia de matar. A canalha.
Nesse tempo, Kate conhecera a agonia do medo social, como se a democracia fosse um polvo enorme que enlaçasse com os tentáculos quem lhe resistisse.
Agora o seu medo era doutra espécie. Sentia o coração doer-lhe, como se o arrancassem, o sangue parecia fugir-lhe das veias...
Dormitava, e acordou em sobressalto a um leve rumor. Sentou-se na cama. As portas que davam para a varanda tinham postigos, e estes encontravam-se escancarados a fim de arejar o quarto. Nessa abertura Kate distinguiu, recortando-se no céu escuro, uma forma negra semelhante a um gato que rastejasse no rebordo da janela.
- Que é? - perguntou ela maquinalmente.
No mesmo instante, aquilo moveu-se, deslizou para fora, e Kate percebeu que era o braço de um homem que tentava abrir o ferrolho interior da porta. Por uns segundos ficou paralisada, pronta a gritar. Então, como não pressentisse mais nada, inclinou-se e acendeu uma vela.
Era uma verdadeira agonia aquele terror pânico. Imobilizava-a, deslocava-lhe o coração... Ficou prostrada, no angustiante pavor nocturno. A vela projectava uma claridade lúgubre. Ouvia-se o ribombo longínquo de trovões. A noite era atroz, atroz, e o México horroroso.
Kate não conseguia dominar-se. "Estou à mercê disto", pensava. Sensação terrível, ver-se subjugada pelo medo.
"Que hei-de fazer?" perguntou a si mesma, reunindo coragem. Sabia que estava só.
Durante muito tempo sentiu-se incapaz de se mover. Então disse consigo, para se animar: "Creio no mal e não devo crer. O pânico e o assassínio são coisas que só sucedem quando perdemos o domínio de nós próprios. Não acredito verdadeiramente no mal. Acredito, sim, na existência dum poder supremo que nos comunica a sua força desde que tenhamos fé nele. O homem que queria entrar aqui não possuía essa força. Tentava ser maléfico, mas submeter-se-ia ao poder dominador."
Deste modo se ia tranquilizando, até que teve a coragem de se levantar e fechar os postigos. Em seguida, percorreu os quartos a fim de verificar se tudo estava trancado. E sentiu certo alívio ao compreender que temia tanto os escorpiões como a horrível sensação de pavor.
Depois de observar o fecho das cinco portas e das cinco janelas da ala de quartos comunicantes, Kate ficou encerrada nas trevas com a sua vela. Para o outro lado da casa, sala de jantar e cozinha, tinha de ir pela varanda.
Mais serena, embora ainda com o coração atormentado pelo medo, Kate reflectia. "Joachim afirmava que o mal provém de regressarmos aos costumes primitivos. É o que provoca roubos e assassínios. O tambor da noite de sábado evocava o ritmo da antiguidade e aquela dança selvagem era a velha forma de expressão. Regresso consciente à barbárie... Talvez a origem do mal..."
Mas logo intervinha o seu desejo de crer.
"Não! Temos de nos agarrar aos elos antigos, encontrar o impulso que nos relacionará de novo com o mistério do cosmos. Don Ramon tem razão. Ele deve ser um grande homem. Julguei que já não existissem grandes homens. Só grandes financeiros, grandes artistas, mas não grandes homens. Don Ramon deve ser um ente superior."
E Kate sentiu-se apaziguada a esta ideia.
Mas, logo que apagou a vela, surgiram clarões muito vivos através das fendas do postigo. Ribombaram trovões clamorosos, que pareciam afundar-se-lhe no coração. Kate sentia-se como que esmagada, na consciência duma tortura que a paralisou até de manhã e lhe deu a impressão de ser, ela própria, um destroço de naufrágio.
Por fim apareceu Juana, também com o ar de desenterrada, para lhe fazer a pergunta tradicional:
- Como passou a noite, Niña?
- Muito mal - respondeu Kate. E contou-lhe a história do gato preto e do braço do homem.
- Mire! - replicou Juana, sufocando a voz. - A inocentinha vai ser assassinada na cama. Não, niña, tem de passar a dormir no hotel. Não, Niña, não pode continuar com o postigo aberto. É impossível. Está a ver agora como é necessário que durma no hotel? Assim fazia a outra senhora.
- Não quero - declarou a patroa.
- Não quer, Niña? Ah, entonces, entonces... niña, vou dizer ao Ezequiel que venha dormir na soleira da porta, armado de revólver. Ele tem um revólver, pode ficar do lado de fora da porta, e a senhora já deixava a sua janela aberta, para lhe refrescar o quarto. Pobres de nós, mulheres, precisamos de um homem que tenha revólver. Não devemos estar sozinhas, toda a noite. Temos medo, e as crianças também têm medo. Imagine que um ladrão tenta arrombar o ferrolho da porta! Imagine! Não, niña, vai-se falar ao Ezequiel hoje mesmo, antes do meio-dia.
Ao meio-dia, Ezequiel compareceu, muito seguro de si. Era um rapaz, meio selvagem, mas dava largas passadas, empertigado e orgulhoso. A voz, na mudança própria da puberdade, tinha uma entoação estranha.
Ficou de pé, acanhado, ouvindo o que lhe recomendavam. Depois olhou para Kate com as pupilas negras e brilhantes, convicto do seu papel de salvador.
- Sim, sim - declarou. - Durmo aqui no corredor. Não tenha medo. Trago a pistola.
Saiu, e voltou com a arma, que era de cano comprido.
- Tem cinco cargas - participou, exibindo o revólver. - Se abrir a porta de noite, previna-me, porque, se eu vir mexer qualquer coisa, disparo os cinco tiros. Pum!, pum!
Pelo brilho do olhar do rapaz, Kate compreendeu quanto ele gostaria de fazer fogo sobre o que se movesse nas trevas. Não o preocupava a hipótese de ser alvejado por seu turno.
- niña - disse Juana - se voltar tarde para casa, depois de as luzes estarem apagadas, não se esqueça de chamar pelo Ezequiel. Senão... pum!, pum! Nunca se sabe quem pode ser a vítima.
Ezequiel dormiu sobre uma esteira na varanda de tijolos, defronte da porta de Kate. Enrolou-se num cobertor e conservou o revólver à mão. A senhora podia ficar de janela aberta. Na primeira noite, esteve muito tempo acordada por causa do ressonar estrondoso do rapaz. Nunca ela ouvira semelhante coisa! Que pulmões que ele devia ter! Dir-se-ia um som que viesse de outro mundo estranho e bárbaro. O barulho manteve-a desperta, mas havia naquilo um não sei quê de agradável. Algo semelhante a uma força bravia.

IX
Kate depressa se afeiçoou à negligente Juana e respectivas filhas. Concha tinha catorze anos. Era uma rapariga selvagem, entroncada, de cabeleira hirsuta que ela coçava constantemente. Maria, de onze anos, parecia um passarito, com olhos enormes que se diria absorverem toda a luz à sua volta.
Juana confessava que Jesus era filho doutro pai, mas o aspecto dos restantes fazia suspeitar ter cada um deles progenitor diferente. Toda a família, porém, mostrava igual despreocupação perante a vida. Viviam o dia-a-dia sem se importarem com o passado, nem com o presente, nem com o futuro. O dinheiro não lhes interessava. Assim que o recebiam gastavam-no, e logo o esqueciam.
Sem aspirações, sem objectivos, levavam existência absolutamente terre à terre no seu país sombrio e vulcânico. Não eram animais porque homens, mulheres e crianças não podem ser animais. Tal não nos foi concedido. Vai, e não voltes para trás - diz o Criador. Quando o homem tenta brutalmente tornar ao primeiro estado da evolução, fá-lo com espírito de crueldade.
Por isso os olhos negros daquela família revelavam certo medo, espanto e sofrimento. Angústia das criaturas humanas sem força para desenvolver as possibilidades do seu ser; incapazes de arrancar do caos a própria alma e indiferentes a qualquer outra vitória.
Também os brancos perdem a alma a pouco e pouco; mas conquistaram os mundos inferiores do metal e da energia e, graças às máquinas, lançam-se em corrida louca de roda da sua vacuidade.
Naquela família Kate encontrava algo de patético e de repugnante.
Desde que haviam aceitado niña como patroa, Juana e as filhas mostravam-se profundamente honestas. Honestas, a pontos de não tirarem uma única ameixa do fruteiro. E solícitas no serviço, de uma solicitude quase excessiva.
Viviam na sujidade, indiferentes ao ambiente. O chão era o seu caixote do lixo. Para ali arremessavam tudo o que consideravam inútil e ninguém se preocupava mais com isso. Pareciam 138
comprazer-se em viver no meio de pulgas e de trapos, de cascas de banana e caroços de manga. Um pedaço arrancado dum vestido - aí vai para o chão! Cabelos tirados do pente - chão com eles!
Kate não suportava aquilo. Afligia-a tamanha desordem, e o facto de ela se afligir divertiu imensamente a família mexicana. Mãe e filhas varreram então o pátio com uma vassoura de urze, até raspar a própria superfície da terra. Que engraçado, a niña preocupar-se com aquelas coisas!
Kate constituía para elas uma fonte de espanto e de divertimento. Não a consideravam pessoa de classe elevada. Era um ente meio incompreensível, meio espantoso.
Niña queria que o aquador lhe trouxesse todas as manhãs dois botes de água das nascentes térmicas para fazer abluções completas. Que esquisito! "Maria, diz ao aquador que corra a buscar água para a niña."
Quase se melindravam com o facto de ela se fechar no quarto para tomar banho. Era uma espécie de deusa, provocava-lhes alegria e admiração; mas devia ser sempre acessível. Kate depressa descobriu que um deus sempre acessível aos seres humanos passa bocados pouco invejáveis.
Não, aquilo não era nenhuma sinecura. De manhã começava o barulho da vassoura de urze lá fora. Kate deixava-se estar na cama, de portas fechadas e postigos abertos. Alvoroço no pátio. Alguém queria vender ovos. Onde está Niña? A dormir. O visitante não se retira e as conversas continuam.
O aquador! Ah, a água para o banho da niña. Está a dormir. "Não estou, não!" - grita Kate, enfiando o roupão e destrancando a porta. As pequenas entram com a tina, seguidas do aguadeiro com duas latas cheias de água quente. "Doze centavos, doze centavos para o aquador." No hay! Mais tarde, mais tarde. O homem vai-se embora, com a vara ao ombro. Kate fecha os postigos e começa a tomar banho.
- Niña!, Niña! - Que é?
- Quer ovos estrelados, quentes ou rancheros?
- Quentes.
- Café ou chocolate?
- Café.
- Ou prefere chá?
- Não, café.
O banho continua.
- Niña!
- Dize lá.
- Já não temos café. vou comprá-lo.
- Não é preciso. Tomarei chá.
- Não, niña, Eu vou. Espere por mim.
- Está bem, vai.
O primeiro almoço é na varanda. A mesa está posta, há pilhas de frutos, pão alvo e bolos.
- bom dia, niña. Como passou a noite? Maria, traze o café. vou meter os ovos na água. Oh, niña, eles não devem ficar cozidos... Meu Deus, que pés de Madona! Olhem, que bonitos!
E Juana inclina-se fascinada e, com o dedo escuro, toca nos pés acetinados de Kate metidos em leves sandálias seguras por uma única tira.
O dia tinha começado. Juana considera-se como inteiramente dedicada a Kate. Tão cedo quanto possível, expede as filhas para a escola. "Niña diz que é preciso ir para a escola. Não ouvem o que ela diz? Vamos, girem!"
No seu passo coxeante, Juana anda cá e lá na varanda, da cozinha para a mesa do almoço, transportando os pratos um por um. Depois, com grande espalhafato, começa a lavar a louça.
Manhã! O sol inunda o pátio, os cardeais e as folhas dilaceradas das bananeiras. Os pássaros voam em todos os sentidos com precipitação tropical. Na sombra densa das mangueiras passam índios vestidos de branco, semelhantes a espectros. Há um frémito de vida e, no entanto, o silêncio é opressivo. Os olhos deslumbram-se à claridade ofuscante, a alma sente-se oprimida.
Kate senta-se na varanda e finge coser. Surge um velho, segurando um ovo na mão, como qualquer símbolo. A patrona quereria comprá-lo por cinco centavos? Juana só dava quatro. De acordo? Onde está Juana?
Juana volta da praça com outras compras. O ovo! Quatro centavos! A conta das despesas. Entonces! Entonces! Luego! Luego. Ah, niña, no tengo memória.
Juana não sabia ler nem escrever. Todas as manhãs ia ao mercado, comprava uma porção de coisas de um ou dois centavos e todas as manhãs era preciso fazer contas. "Ah, onde é que nós íamos?
Não tenho memória nenhuma. Ora vejamos... Comprei três centavos de ocote... Quanto? Quanto soma agora, niña" Se faltava um centavo, ficava desolada e não falava noutra coisa. "Falta um centavo, niña? Sou estúpida, não sou? Mas eu dou-lhe um do meu dinheiro."
- Deixa lá, não penses mais nisso - dizia Kate.
- Mas eu quero pagar a diferença - insistia a mulher; e afastava-se, coxeando.
Uma hora depois elevava-se um grito no outro extremo da casa e Juana aparecia empunhando um ramo de salsa.
- Mire, niña! Compré perejil a un centavo. As contas estão certas agora?
- Estão - respondia Kate.
E a vida podia então retomar o seu curso. Existiam duas cozinhas: a anexa à sala de jantar, e a das criadas, numa espécie de barraca debaixo das bananeiras. Da varanda Kate via a abertura negra que fazia as vezes de janela na cozinha de Juana.
"Julgava Concha na escola!", disse Kate consigo mesma.
Mas não. No buraco escuro da janela distinguia-se o rosto moreno e a juba de Concha, espreitando para fora como um animal que saísse da toca, enquanto fazia as tortillas. Tortillas são uma espécie de filhos de milho. Preparam-nas batendo a massa na palma da mão até adquirir a lisura e leveza necessárias. Pouco depois do meio-dia via-se sair fumo pela janela: Concha lançava as tortillas cruas na frigideira de barro colocada sobre o lume.
Então Ezequiel aparecia, de manta sobre o ombro, chapéu de palha de grandes abas enroladas, pronto a comer as tortillas. No entanto, se trabalhava no campo, só chegava ao cair da noite. Sentava-se no degrau da porta e as mulheres serviam-no e iam-lhe buscar água como se ele fosse um rei. E ouvia-se-lhe a voz rouca dando ordens em tom calmo.
Porque, apesar do seu ar sereno e meigo, tomava uma entoação imperiosa desde que se dirigisse à mãe ou às irmãs. Prerrogativa de macho, que dava a Kate vontade de zombar do rapaz.
A hora da refeição era para Kate um dos seus tormentos. Apresentavam-lhe sopa muito quente e gordurosa, arroz apimentado, também gorduroso e fumegante, a inevitável carne nadando em gordura. Seguiam-se calabacitas, ou beringelas, salada, e o enorme cabaz de fruta. E, inundando tudo isso, o ardente sol tropical dos fins de Maio.
De tarde, o calor aumentava. Juana ia com as filhas lavar a loiça no lago. Agachadas sobre as pedras, agitavam na água cada prato, cada colher e cada garfo, e punham tudo a secar ao sol. Depois, enquanto Juana lavava uma ou duas rodilhas, as filhas banhavam-se no lago.
Jesus, o primogénito, costumava vir à tarde regar o jardim. Mas esse comia no hotel, onde prestava diversos serviços, trabalhando até às dez da noite por um salário de vinte e dois pesos, ou seja, onze dólares por mês. Usava camisa preta, e a cabeleira abundante tombava-lhe na testa baixa. Apesar da camisa fascista, possuía o espírito sarcástico e crítico dos socialistas, o espírito que vem do instinto de destruição.
Entre ele e a mãe existia pouca intimidade. Se Juana se encontrava em apuros, Jesus dava-lhe algum dinheiro mas, exceptuando o ténue laço de sangue que os unia, mostravam a maior indiferença um pelo outro.
Ezequiel tinha melhor tipo. Era esbelto, e tão direito que quase parecia arquear-se para trás. Tímido, arisco, orgulhoso, sentia-se mais responsável pela família. Não queria servir em hotéis. Não. Trabalhava nos campos, e tinha vaidade nisso: era labor de homem, não uma espécie de escravidão disfarçada.
Embora simples jornaleiro, não trabalhava para um patrão mas sim para a terra. E a terra, de certa maneira, era dele, pertencia-lhe...
Quando havia que fazer, chegava a ganhar um peso por dia. Se a terra estava seca, então procurava trabalho nas estradas, ainda que isso lhe não agradasse.
Mas nem sempre conseguia empregar-se. Durante dias, semanas, Ezequiel vagueava pelos arredores, sem nada que fazer. Quando o governo socialista dividiu as fazendas em lotes e os distribuiu pelos camponeses, coube-lhe um pedaço de terra fora da aldeia. O rapaz ia até lá e juntava pedras para construir um casebre. Cavava o chão tão profundamente quanto possível, mas não tinha amor a essa nesga de terreno que lhe viera parar às mãos de modo quase sobrenatural. Só lá ia de vez em quando, e sem nenhum entusiasmo.
Nos dias de trabalho regressava a casa por volta das seis horas e, cumprimentando Kate, timidamente, dirigia-se para o seu antro, onde, sentado no chão e de costas apoiadas à parede, dobrava tortillas umas sobre as outras e comia essa pasta elástica que tem o sabor de argamassa - pois o milho é primeiramente fervido com cal para largar a pele. Depois, dignava-se aceitar outra rima de fritos, que a irmã lhe apresentava numa folha de couve. Às vezes, Ezequiel tirava do tacho de barro um bocado de carne guisada que metia entre duas tortillas. Mas ingeria tudo rapidamente com uma espécie de indiferença. Aliás, os mexicanos parecem sempre indiferentes ao que comem.
Acabada a ceia, ia até à plaza, reunir-se aos homens. Havia ocasiões em que Kate, ao recolher a casa às nove horas, a encontrava quase deserta. Ezequiel estava no largo, Juana e Maria haviam desaparecido, e Concha dormia tal um molho de trapos no chão do pátio. Quando Kate a chamava, a pequena erguia a cabeça, espantada, entorpecida; depois, levantando-se como um cachorro, rastejava até ao portão.
Indiferença por tudo, até uns pelos outros. Juana lavava semanalmente uma camisa e um par de calças de algodão para cada um dos filhos, e aí terminavam os seus cuidados maternais. Nem se interessava averiguar qual o trabalho-de momento de Ezequiel. Sabia que arranjara emprego e isso lhe bastava. Contudo, de tempos a tempos, tinha ímpetos de amor materno, quando o rapaz era tratado injustamente, como às vezes acontecia. E, se o supunha doente, dominava-a um terror fatalista que só a abandonava depois de Kate intervir com qualquer remédio muito simples.
Semelhantes a animais. Mas os animais são perfeitos no seu isolamento e despreocupação; não se trata de indiferença, é que se bastam a si próprios. Ao passo que naquela família havia uma espécie de frustração, como se um torpor de aborrecimento a todos avassalasse.
As duas raparigas eram inseparáveis; andavam sempre atrás uma da outra. Concha arreliava de contínuo a inocente Maria de grandes olhos e esta debulhava-se em lágrimas. Ou então, no meio de uma fúria, ameaçavam-se com pedras, e Juana invectivava-as com súbita veemência, que logo se extinguia.
Estranha, aquela ferocidade repentina com que as pequenas arremessavam pedras, e não menos estranho, o esforço por não acertar. Kate notava a mesma coisa nos ataques selváticos que os garotos faziam uns aos outros nas margens do lago; atiravam calhaus com ar ameaçador, mas quase sempre falhavam o alvo.
Quase sempre, mas não sempre. Às vezes atingiam o adversário, que tombava como morto. Então os outros aproximavam-se, em silêncio temeroso, da vítima prostrada. De repente, o ferido erguia-se, com um esgar homicida no rosto, perseguindo o inimigo com uma pedra. E o inimigo fugia a sete pés.
Uma vontade perene de arreliar, de atormentar. O mesmo sucedia entre os Peles-Vermelhas. Mas o povo índio raramente recorria à violência, o que se não dava com os Mexicanos.
Kate, achando que devia fazer qualquer coisa pelas pequenas, dispensou-lhes uma hora por dia para lhes ensinar a ler, a redigir e a costurar. Maria queria aprender a ler; nisso mostrou boa vontade. Começaram bem, mas depressa a leve insistência de Kate em lhes chamar a atenção fez com que as alunas assumissem o tom de ironia peculiar ao continente americano. Ironia calma, invisível, malevolente, desejo de magoar.
- Não te debruces sobre mim, Concha. Põe-te direita.
- Porquê, niña Tem piolhos na cabeça?
A pergunta insolente era formulada com subtileza índia.
- Não! - respondia Kate subitamente irritada. - E agora vão-se embora! Afastem-se de mim.
E as pequenas retiravam-se, humilhadas.
Kate recebeu visitas de Guadalajara. Grande excitação! Mas enquanto tomava chá na varanda, Juana, Concha, Maria e Filipa, que era uma prima de dezasseis anos, sentaram-se no outro lado do pátio, bem à vista, com os belos cabelos soltos sobre os ombros, e, ostensivamente, puseram-se a catar piolhos umas às outras. Pareciam encantadas por exibirem a sua sordidez àqueles estrangeiros.
Kate desceu ao pátio.
- Se querem catar piolhos - disse em voz trémula de cólera - vão para onde ninguém as veja.
Atravessou um clarão de maldade os olhos negros de Juana, mas um instante depois, humilde e abjecta, a família retirava-se, de cabeleira ao vento, em direcção ao seu antro.
Juana comprazia-se em irritar Kate. Sentia assim uma espécie de poder sobre a Niña. É certo que temia um tanto essa irritação, mas era justamente o que desejava. De que servia uma niña que não lhe inspirasse algum receio?
Ah, raças escuras! Kate, como irlandesa, podia entrever um pouco do mistério. As raças escuras pertencem a um ciclo de humanidade já desaparecido; ficaram atrás, no fundo de um abismo donde nunca conseguiram sair. Jamais atingirão o nível dos brancos; limitam-se a segui-los de longe, como escravos.
Enquanto o homem branco avança, cheio de orgulho, as raças escuras cedem-lhe o passo e obedecem-lhe pela força. Se, porém, o branco hesita na sua marcha, logo os outros o atacam para o precipitar no abismo do passado.
É o que está a acontecer. Porque o branco, apesar de todas as farroncadas, duvida da sua própria supremacia.
E é a corrida veloz para a derrocada.
Desde a revolta de Kate perante a cena da caça aos piolhos, Juana voltou a servi-la com enternecedora solicitude. Embora indiferente a tudo, aquele ser das regiões inferiores não queria quebrar o débil fio que o ligava a Kate e ao mundo da claridade e do ar puro. Em suma, o desejo de Juana era conservar a sua niña, servir a sua Niña.
Ao mesmo tempo, parecia odiar a gente rica, branca e superior. De vez em quando contava a Kate histórias do passado. Então via-se-lhe uma expressão malévola nos olhos negros e na face acobreada, enquanto ela prosseguia: Usted sabe, niña, los gringos, los gringuitos llevan todo...
Os gringos são os Americanos, e Juana incluía Kate nos gringuitos, estrangeiros brancos. Aquela frase era nova insolência disfarçada, subtil...
- É possível - respondia Kate friamente. - Mas dize-me o que é que eu levo do México.
- Non, niña, non - Espalhava-se um sorriso de satisfação na cara de Juana quando ela conseguia atingir a outra mulher. Não me refiro a si, niña! - O protesto, porém, era pouco convincente.
Dir-se-ia que essas indígenas queriam obrigá-la a partir à força, insultando-a, rebaixando-a, até que a irlandesa, não menos impetuosa do que elas, abalasse dali num momento de fúria.
Oh, raças primitivas atrasadas!
Contudo, havia um lado patético na natureza daquela gente. Quando tinha catorze anos, Ezequiel trabalhara por conta de um sujeito que andava a construir casa. O homem prometera-lhe uma manta, mas ao fim de dois meses despediu-o sem cumprir a promessa. Foi uma desilusão bem amarga.
Kate nada tinha a ver com isso, mas Juana quase a acusava do facto.
Povo sem força para avançar, como podia deixar de ser explorado? Desde séculos que o exploravam cruelmente, e toda a sua energia se limitava a uma resistência malévola.
"Mas não pretendo explorá-los - dizia Kate consigo mesma.
- Pelo contrário, a minha vontade é dar-lhes mais do que recebo. São injustos os seus remoques. Nunca insultei estas criaturas. Faço a diligência de não as magoar e elas, deliberadamente, atacam-me e ficam radiantes quando me ferem."
No entanto, Kate procedia à sua maneira irlandesa: de vez em quando, isolava-se de Juana e das filhas. Porque, assim que as mandava para longe, desaparecia-lhes a malevolência e lembravam-se das ordens da niña. Se ela estava presente e amável, esqueciam-se de tudo. Esqueciam-se de varrer o pátio, de se apresentarem limpas, e só quando Kate as relegava para um canto é que tornavam a lembrar-se.
O filho Ezequiel tinha mais dignidade do que as mulheres.
Nunca fazia aqueles ataques insidiosos.
Quando a casa estava limpa e calma e o ar parecia purificado e a alma renovada, Kate sentia novamente amizade por essa família.
A sua azáfama, andando cá e lá, esvoaçando como pássaros; o estalo da massa das tortillas de encontro à palma da mão; o entusiástico esmagar de tomates e pimenta no tacho enquanto Juana preparava o molho; o barulho do balde no poço quando Jesus vinha regar...
Como isso era divertido! Assim devia ser tudo o que fizessem, ou então não o fariam. Não podiam fixar-se numa rotina. Jamais! Tudo devia ser alegre, variado, com uma pontinha de aventura. Era confusão, mas, no fim de contas, uma confusão viva, não uma coisa morta. Kate recordava-se dos seus criados britânicos nas cozinhas inglesas, tão maquinais e quase inumanos. Aqui era o extremo oposto.
Não havia disciplina nem método. Embora Juana e as filhas quisessem realmente fazer o que a niña desejava, só procediam conforme lhes apetecia. às vezes, Kate sentia-se angustiada. Mas, tanto quanto possível, ia suportando as extravagâncias daquela família. Tivera, por exemplo, de se habituar à vagabundagem da mesa de jantar, mesinha redonda cujo lugar era na varanda. Ao primeiro almoço, ficava discretamente debaixo das plantas, perto do salão; ao almoço da uma hora regressava à varanda; ao chá, ia para a relva do jardim, à sombra duma arvorezita. E, quanto à ceia, Juana deliberou então que a niña comesse os dois ovos e rancheros na própria casa de jantar, isolada a um canto da comprida mesa em que cabiam catorze pessoas.
Kate também nunca chegou a perceber o motivo por que, depois de lavarem a loiça na cozinha durante uns dias, se lembraram de repente de levar os pratos sujos para o lago, num cabaz, aos ombros de Concha. A não ser que achassem assim o trabalho mais divertido...
Crianças! Mas não inteiramente. Faltava-lhes a despreocupação da infância. Pressentia-se-lhes na alma qualquer coisa de sombrio, como que um peso que as forçava a resistir. Trabalhavam por acessos, podiam ser laboriosas; depois vinha a indolência e passavam horas estiradas no chão, como porcos. às vezes mostravam-se alegres, conversavam e riam, sentadas sobre a terra, em grupo, formando roda. Então, subitamente, contrariando a própria alegria, recaíam na mudez e na tristeza. Havia ocasiões em que, estando a trabalhar com afinco, atiravam para longe a ferramenta como se indignadas por terem cedido. Descuidados, versáteis nos seus amores, os homens, ao menos, passavam todo o tempo a resistir a si mesmos. Nunca procuravam o que pretendiam. As mulheres a que se aproximavam. E um rapaz e uma rapariga passeando às escuras na estrada marginal do lago, atiçando-se um ao outro, atormentando-se no meio de excitação, constituíam uma cena que deixava Kate pasmada - porque homens e mulheres não se cortejavam abertamente como fazem os brancos. E o riso súbito do macho, estranha voz de desejo reprimido, de obstinada relutância e paixão desesperada, parecia qualquer coisa a rasgar-se-lhe no peito, era um som que perdurava na memória.
Kate achava pesado o governo da casa. De certa maneira, eram como parasitas, queriam viver da sua vida, e rebaixá-la, rebaixá-la. Nalgumas ocasiões mostravam-se como pessoas meigas, generosas, encantadoras - até a fazerem novamente revoltar-se contra aquela indiferença reptilária. Indiferença e resistência.
Os servos forneciam a Kate a chave da vida indígena. Os homens sempre juntos, erectos, belos, equilibrando o chapéu enorme no alto da cabeça, quer sentados, quer de pé, quer de cócoras, numa impassibilidade de serpente; as mulheres sempre à parte, suaves, como que escondidas, estreitamente apertadas nos chailes escuros. Homens e mulheres pareciam voltar costas uns aos outros como se não quisessem ver-se mutuamente. Nenhuns galanteios, nenhum namoro. Apenas um olhar ocasional sombrio e rápido, sinal de desejo semelhante a um golpe de florete dado e recebido.
Elas, no conjunto, dir-se-iam inexperientes mas decididas a seguir o seu próprio desígnio: mudar de homens quando lhes apetecesse. E eles davam a impressão de não se preocuparem muito. Afinal eram as mulheres que pretendiam os homens.
As indígenas, com os negros cabelos tombados nas costas cheias e acobreadas, banhavam-se num canto da praia, geralmente em camisa ou com um saiote. Os homens mantinham-se alheados, nem sequer se dignavam olhar para a outra banda. Eram mulheres no banho, nada mais. Faziam parte, por assim dizer, da vida lacustre, como os peixes que ali nadavam. Concediam-lhes mesmo aquele ponto do lago, e elas sentavam-se nos baixios, isoladas como aves aquáticas, e molhavam a cabeça e os ombros com o auxílio duma cabaça.
Calmas, discretas, desprezadas fêmeas da classe dos peóns, seguindo o seu caminho envoltas no rebozo como num manto de trevas, ágeis, balançando as saias rodadas e gorjeando como passarinhos; ou paradas na borda do lago, com os cabelos longos a gotejarem; ou subindo lentamente a margem com uma pesada bilha de água ao ombro e um braço por cima da cabeça, a segurar a asa do cântaro; ou, especialmente nas tardes de domingo, sentadas à porta da casa, catando piolhos umas às outras. As moças possuidoras de cabeleira abundante e ondulada eram as que mais piolhos tinham. Aquilo representava um acto público meritório.
Parecia a Kate que esse país não podia originar nada de mais elevado do que a amizade entre os homens. O próprio casamento tinha pouca importância. E, embora se mostrassem meigos e protectores para com as crianças, os pais depressa as esqueciam.
A questão do sexo era no entanto a primordial, aquela que não devia ser omitida nem aflorada abertamente. O único mistério, muito maior do que o indivíduo. Este pouco contava.
Kate pasmava ao ver as choças de palha dos índios nas margens do lago. Ali fervilhavam crianças seminuas no chão de terra batida, no meio de trapos, de ossos, e do fedor de excremento humano.
Esse povo parecia não ter olfacto. E defronte do buraco que servia de porta à cabana, o homem impassível, magnífico, silencioso... Como era possível que tão belo exemplar de virilidade se mantivesse indiferente a tamanha porcaria?
Mas ali se conservava como inconsciente. Contudo, era um ser vivo - e forte. Nenhum homem no mundo pode transportar cargas tão pesadas como os índios do México. Kate vira já um deles passar na rua com um piano às costas, apenas seguro por uma correia em volta da testa.
Portanto, força não escasseava, mas sim energia. Nem sequer a classe dos artífices que imita a dos Estados Unidos demonstra ser enérgica. Têm os seus clubes, aperaltam-se e andam de braço dado com raparigas bonitas, mas percebe-se que tudo isso não passa de vulgar imitação.
Inesperadamente, a família de Kate aumentou. Um dia, chegou de Ocotlan uma formosa moça de 15 Primaveras, com grandes olhos bovinos, Maria del Carmen. Acompanhava-a Júlio, rapaz de vinte e dois anos. Tinham casado há pouco, e vinham de visita a Sayula. Júlio era primo de Juana. Poderiam dormir no pátio com ela e com as filhas? - perguntou Juana. Só se demorariam dois dias.
Kate ficou espantada. Maria Del Carmen devia ter sangue espanhol, a sua beleza evocava a Espanha. Parecia pertencer a um nível superior, mais educado, e no entanto ia dormir no chão com esse esposo juvenil... E ele, tão aprumado e de ar tão orgulhoso, nada possuía além duma velha manta.
- Há três quartos desocupados - disse Kate. - Que durmam num deles. - As camas eram de pessoa só. - Precisarão de mais cobertores?
Não. Bastaria a manta de Júlio.
Este era assentador de tijolos, isto é, ajudava a construir as paredes das casas de adobe. Nascera em Sayula e vinha ali de visita.
Essa visita, no entanto, prolongou-se. Júlio andava à procura de trabalho e só aparecia ao anoitecer. Maria del Carmen entretinha-se a amassar tortillas na cozinha de Juana e a conversar com as raparigas. À noite, o marido regressava e, sentado no chão, de costas apoiadas à parede, sempre impassível, deixava a mulher acariciar-lhe os cabelos negros e bastos.
Amavam-se, mas Júlio resistia ao seu amor.
Ela queria voltar para Ocotlan, onde era mais señorita do que em Sayula, mas o rapaz recusou. Não tinha dinheiro; o casal sustentava-se com cerca de cinco cêntimos por dia.
Quando Kate estava a coser, Maria del Carmen, que nem sabia talhar uma camisa, observava-a de olhos arregalados. Kate ensinou-lhe costura, comprou-lhe uns metros de chita e Maria del Carmen fez um vestido com as suas mãos.
Júlio arranjou trabalho, a um peso por dia, e a visita continuou. Kate achava o rapaz pouco terno para a mulher: sempre que lhe falava era em tom de comando. E Maria del Carmen não levava isso a bem e amuava um pouco.
Passaram-se semanas, e Juana começava a cansar-se dos parentes.
Por fim, Júlio arrendou uma casita de adobe só de um compartimento, ao preço de peso e meio por semana. Maria del Carmen ia ter o seu lar.
Kate viu-os juntar as suas coisas para a mudança. Consistia tudo numa esteira de palha, três tachos de barro, cinco peças de loiça, duas colheres de pau, uma faca e a manta de Julio. Nada mais.
Presenteou-os, então, Kate com um edredão de seda já um tanto puída, duas tigelas e diversos utensílios de cozinha. Foi uma alegria. A voz de Maria del Carmen soava no pátio em exclamações delirantes. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"
Na época das chuvas as noites são por vezes glaciais devido à evaporação, e os indígenas, transidos de frio, esperam pelo romper da manhã deitados sobre esteiras delgadas e abafados apenas com a ponta de um cobertor velho. A inércia natural fá-los suportar o sofrimento sem tentar minorá-lo. Podiam arranjar um colchão de palha de milho e cobrirem-se com folhas secas de bananeira. Mas não. Estendem-se numa esteira em cima da terra húmida e tiritam de frio noite após noite.
Maria del Carmen, porém, era um pouco mais civilizada. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"

CONTINUA

VII
Sayula era uma pequena estação balnear; não para ricos ociosos, porque o México os tem em pouca quantidade, mas para comerciantes de Guadalajara e gente que passeia nos fins-de-semana. E mesmo assim em reduzido número.
Havia, no entanto, dois hotéis, que vinham dos dias calmos de Don Porfirio, tal como a maior parte das vivendas fora da povoação, hoje fechadas e muitas delas abandonadas. Na aldeia viviam em perpétuo estado de terror. Acima de tudo temiam os bandidos e os bolchevistas.
Os bandidos eram apenas homens das localidades afastadas que, sem dinheiro, sem trabalho e sem esperança faziam ocasionalmente profissão do roubo e do assassínio. Habitavam nas suas aldeias selvagens até que as tropas os obrigavam a refugiar-se nas montanhas ermas ou nas regiões pantanosas.
Quanto aos bolchevistas, pareciam nascer do caminho de ferro. Onde houvesse carris, passageiros e carruagens de diferentes classes, aí despertava o espírito de rebelião e inveja; e o ferro e as demoníacas locomotivas ofegantes dir-se-ia engendrarem esses filhos do materialismo que são os bolchevistas.
Sayula possuía o seu ramal, com um comboio diário; a linha não cobria as despesas e lutava por se manter - mas já era bastante.
Sayula fora atingida pela loucura da América: o automóvel. Assim, como outrora os homens desejavam um cavalo e uma espada e as mulheres sonhavam com uma casa ou um camarote no teatro, a ambição actual é possuir um carro.
Era um desfile contínuo de "máquinas", de automóveis ligeiros e pesados na única estrada que ligava Sayula a Guadalajara. Uma esperança, uma fé, um objectivo: andar de carro, possuir um carro.
Quando Kate chegou à aldeia, falavam com certo alarme do regresso dos bandidos, mas a irlandesa não prestou a mínima atenção ao assunto. À noite, foi àplaza e misturou-se com o povo. Era um largo ornado de árvores imponentes, com um velho coreto no centro e um passeio em volta. No lado norte ficava o mercado. Mais além, passavam burros e camionetas nas ruas mal calcetadas.
A banda de música já não tocava em Sayula, a elegância já não se exibia naplaza, debaixo das árvores. Mas o pavimento ainda era bom e os bancos mais ou menos sólidos. Oh, tempos de Don Porfirio! Agora, só os peóns e os índios, com os seus fatos brancos e manta ao ombro, enchiam os bancos e monopolizavam a praça. É certo que se mantinha a lei que obrigava os peóns, naquelas paragens, a usar calças e não a espécie de ceroulas largas e flutuantes das suas lides rurais. Mas os peóns, por seu lado, também gostavam de envergar calças em vez daquele traje representativo do humilde labor do campo.
Eram eles, pois, quem dominava na praça, ora sentados em bancos ora passeando indolentes com a sua manta e de sandálias. Depois das seis horas, enchiam-se as barracas de comida quente, na rua calcetada do lado norte: ficava mais barato comer fora de casa e findava-se agradavelmente um dia de trabalho. As mulheres, de portas adentro, que ficassem a mastigar as suas tortillas; mas não provavam caldo, nem sopa, nem guisado. Nas tendas que vendiam tequila, instalavam-se homens, mulheres e rapazes defronte da mesa, em bancos, acotovelando-se uns aos outros. Também havia jogos de azar, pouco violentos, em que o banqueiro voltava uma carta e todos gritavam: Cinco de Espadas! Rei de Copas! Certa mulher corpulenta, imperturbável, de cigarro na boca e perigosa expressão nos olhos sombrios e baixos, vendia tequila, sentada ao escuro, toda a noite. O homem dos doces ficava de pé junto do seu balcão. Por terra, viam-se pequenos archotes metidos em latas, alumiando montes de mangas ou daquelas nauseabundas ameixas tropicais, encarnadas, que se liquidavam por dois ou três centavos a pilha, enquanto a vendedora, de saia larga, ou o vendedor, humilde e paciente, esperava acocorado o freguês, com aquela indiferença fatal e aquela submissão que tanto intrigam o estrangeiro. Ter ameixas para vender no valor de trinta cêntimos; amontoá-las no chão em pequenas pirâmides, cinco em cada uma; e esperar todo o dia e até de noite, de cócoras, a olhar de baixo para cima, para a cara do transeunte e possível comprador - eis, ao que parece, uma ocupação e um modo de vida.
Era vulgar encontrar-se ali um par de rapazes empunhando violas de tamanho diverso, em frente um do outro como dois galos combatentes; entoavam uma canção interminável, cantando em voz sumida as eternas baladas não muito musicais, dolorosas, extensas, audíveis apenas para os que estavam próximos. E assim se conservavam até enrouquecerem. Em volta, com mantas encarnadas, paravam homens altos e escuros, ouvindo por instantes e raramente contribuindo com um centavo.
Entre as barracas de comes e bebes estava um trio de duas violas e uma rabeca; dois dos músicos eram cegos e cantavam em diapasão alto, mas também de modo pouco audível. Dir-se-ia cantarem só para si, muito chegados um ao outro, como se a melancólica balada lhes repercutisse no peito.
A aldeia em peso comparecia naplaza. No entanto, raramente, muito raramente uma voz se erguia acima do murmúrio grave dos homens, do sussurro musical das mulheres, do gorjeio das crianças. Poucos movimentos apressados. O lento passeio dos homens de sandálias, chamadas huaraches, fazia um rumor leve de baratas a arrastarem-se no chão. Fora e dentro da multidão calma, corriam rapazes de pernas ao léu. Eram os irrequietos engraxadores, que pululam como moscas importunas naquela terra de gente descalça.
No lado sul, viam-se mesas e cadeiras no passeio: uma tentativa de café-esplanada- Aí, nos dias de semana, sentavam-se para tomar cerveja ou um copo de tequila as poucas pessoas que se atreviam a tamanha exibição - na maior parte estrangeiras. E ospeóns, imóveis nos bancos do último plano, observavam-nas com olhos de basilisco sob as largas abas do chapéu.
Mas ao sábado e ao domingo era quase festa. Chegavam carros aos solavancos, e, como pássaros exóticos, volteavam na plaza raparigas graciosas de vestidos vaporosos, faces empoadas e cabelos encaracolados. Passeavam de braço dado, trajadas de organdi vermelho ou azul, de musselina amarela ou cor-de-rosa, e com tal camada de pó-de-arroz na cara que a pele morena apresentava a brancura lívida dos palhaços ou dos cadáveres.
Adejavam como borboletas coloridas no meio da multidão de homens do povo. fortes e belos. Era restrito o número de mancebos elegantes que pudessem equiparar-se àquelas mocinhas. Contudo, havia alguns, de calças de flanela branca, casaco escuro, palhinhas e bengala. Fumavam cigarros com gesto afectado, falando um castelhano elegante, tão próximo quanto possível do original, e com o ar de que seriam dentro de doze meses sacrificados a algum deus mexicano depOis de estarem devidamente nédios e perfumados.
Ao sábado, os janotas, as raparigas e todos os que vinham de carro, da cidade - que, aliás, eram poucos - tentavam divertir-se nesse lúgubre país. Contratavam tocadores de viola e rabeca e a música de jazz elevava-se em acordes um tanto langorosos.
Debaixo das árvores da alameda, perto das mesas e das cadeiras do café, começavam pares a dançar à la mode. Os vestidos vermelhos, amarelos e azuis rodopiavam com as calças de flanela, donde saíam elegantes sapatos brancos guarnecidos de tiras de couro preto ou castanho. Algumas das saias de organdi encimavam meias e sapatos verdes, ou pernas à Ia nature com sapatos brancos. Os braços franzinos e morenos enlaçavam os ombros azuis-escuros dos moços, que sorriam com ar protector para as facezitas brancas e petulantes; sorrisos meigos, paternais e impregnados de sensualidade.
Mas a dança era no recinto da praça, e na praça erravam indolentes os homens do campo, ou então paravam em grupos, espiando os pares rodopiantes com os seus olhos pretos, misteriosos, impenetráveis. Em que pensariam? Sentiriam admiração, inveja, ou simplesmente uma silenciosa e fria oposição? Sim, oposição é que devia ser.
Esses camponeses de camisa branca e manta escarlate, airosamente dobrada ao ombro, passeavam devagar, quase ocultos sob o chapéu enorme e pesado, dispostos a não fazer caso dos que dançavam. Vagarosos, oscilando o corpo, eles moviam-se irresistivelmente no meio da dança como se a dança, no fim de contas, não existisse. E os rapazes de calças brancas, levando nos braços as damas de organdi, evolucionavam como podiam, fazendo o possível por se desviarem âospeóns impassíveis, que prosseguiam na sua conversa, sorrindo na alvura dos dentes, com um sangue-frio que gelava os próprios músicos. Nunca se tocavam, nunca se acotovelavam, dançarinos epeóns; no México ninguém se atropela involuntariamente. Mas a dança embatia contra a oposição invisível.
Os índios sentados nos bancos contemplavam também por momentos as evoluções dos bailarinos, após o que os fulminavam com a sua pesada indiferença. Misteriosa faculdade dos índios, tão densa e calma, para destruir a vida palpitante, para apagar qualquer foco de efervescência.
Na verdade, um simples bailarico de indígenas; mas dir-se-ia fechado dentro de quatro paredes. E o ritmo soava diferente, grave, com certa violência. Os dançarinos eram artífices, mecânicos ou carregadores da estação: gente meio citadina. Nenhuns trabalhadores do campo, ou quase nenhuns.
Por isso, passado não muito tempo, as borboletas de organdi e os moços de calças de flanela sucumbiram esmagados pela enorme passividade, pela resistência dos satânicos peóns.
Curiosa, radical oposição dos índios contra essa coisa a que chamamos espírito. É o espírito que leva as meninas petulantes a adejarem as suas asas de organdi como borboletas. É o espírito que vinca as calças de flanela dos rapazes e lhes dá aquele ar um tanto patético. Tentaram representar a elegância e a vontade do espírito moderno.
No entanto, como um peso de obsidiana, surge a recusa passiva do índio; compreende a vida, que participa do sangue, mas o espírito, que é superior, e é a marca da nossa civilização, isso ele repudia, barbaramente, torvamente. Só quando se torna operário ou lida com ofícios mecânicos é que o espírito moderno o visita.
E talvez seja esse repúdio do espírito moderno que faz o México ser o que é.
Kate ficou um tanto desconsolada ao ver findar o baile. Instalara-se numa das mesas, com Juana a servir-lhe de duena, para tomar um cálice de absinto.
Os carros regressavam à cidade em pequenos grupos. Sempre seria melhor irem juntos, para o caso de aparecerem salteadores. Dominava-os o receio dos bandidos, e os próprios janotas usavam revólver no bolso.
Como era sábado, parte da mocidade elegante ficou para o dia seguinte, na ideia de tomar banho e de se espojar ao sol.
A plaza estava cheia, e ao comprido das ruas que desembocavam no largo cintilavam inúmeros archotes, iluminando uma exposição de chapéus de palha, de esteiras, de pirâmides de laranjas.
Havia feira no domingo de manhã, de modo que, de repente, o largo ficou estuante de vida - densa e pesada energia vital. Os índios tinham vindo de todas as aldeias, trazendo consigo essa curiosa energia vital que parece zumbir cada vez mais profundamente quando eles se encontram reunidos.
Durante a tarde, com o vento a soprar do sul, as canoas, de casco preto e larga vela desfraldada, haviam atravessado as águas do lago, transportando indígenas e produtos para o mercado. Para formar essa multidão todas as aldeias da margem concorreram com os seus habitantes.
Despertava o instinto que impele os índios para a vida nocturna desde que se encontrem reunidos. Ninguém recolhia a casa, ninguém pensava em dormir, embora a feira só principiasse ao romper da manhã.
Cerca das nove horas, depois de terminada a dança, Kate ouviu o rufar de um tambor, ou coisa semelhante, e notou que uma chusma de peóns se dirigia para o lado mais escuro da praça, onde já se viam barracas e cestos enormes, em forma de ovo, encostados à parede.
Aquele som, que era como o latejar dum pulso de gigante repercutindo no ar da noite, juntou-se a nota prolongada de uma flauta, tocando uma espécie de melodia bárbara. Kate, que já ouvira falar dos cânticos selváticos dos peles-vermelhas do Arizona e do Novo
México, sentiu instantaneamente espalhar-se na atmosfera a eterna
paixão das raças pré-históricas com a sua intensa e complicada significação religiosa.
Olhou para Juana com ar interrogador.
- Que é isto? - perguntou.
- Músicos, cantores - foi a resposta evasiva.
- Mas muito diferentes dos outros - insistiu Kate.
- Sim, aquilo é coisa nova.
- Nova?
- Apareceu aqui há pouco tempo.
- Donde veio?
- Sabe-se lá! - volveu Juana, encolhendo os ombros.
- Quero ouvi-los.
- Olhe que são só homens.
- Podemos ficar um pouco afastadas.
E Kate dirigiu-se para o ajuntamento silencioso dos peóns. Estavam todos de costas para ela.
Subiu o degrau duma porta e viu, perto do muro florido de buganvílias, um espaço livre iluminado pelos archotes de madeira resinosa que um rapaz segurava nas duas mãos.
O tambor estava ao centro dessa clareira, e o homem que o rufava tinha o torso nu e calças de brancura imaculada atadas na cintura por uma faixa escarlate e aos tornozelos por cordão da mesma cor. Cingia-lhe a cabeça uma tira vermelha, donde se erguiam três penas rubras sobre a nuca. Na testa brilhava uma turquesa no meio dum círculo azul. O tocador de flauta também se apresentava sem camisa, mas dobrara sobre o ombro uma bela manta branca listada de azul e preto. Outros homens, despidos da cintura para cima, distribuíam folhetos aos espectadores, insinuando-se no meio da multidão. E todo o tempo, alta e pura, a estranha flauta de barro repetia a melodia bárbara, acompanhada pelo rufar do tambor.
Kate desceu do seu poleiro e avançou a medo. Queria um daqueles papéis. O homem deu-lho, sem sequer a olhar, e ela encaminhou-se para a luz a fim de o ler. Era uma espécie de balada, mas sem rimas, escrita em espanhol. No cimo da página via-se o desenho de uma águia cercada por uma serpente que mordia a cauda; curiosa variante do emblema mexicano, que é uma águia encarrapitada num cacto de folhas largas e com uma serpente nas garras. A certa distância, o círculo formado pelo réptil com a ave a meio dava a impressão dum olho.
Na região de Oeste
Em paz, para além dos raios brilhantes
Do Sol,
No silêncio onde nascem as águas
Dormia eu, Quetzalcoatl,
Na caverna chamada Olho Tenebroso, Vendo através do sol como por uma janela, Minha morada é lá. Onde as águas brotam E os ventos nascem.
Nas águas do Além
Levantei-me e vi uma estrela cadente.
E senti
Um sopro em minha face.
O sopro disse: Vai,
E eu vim.
Desci a longa encosta, Passei o monte do Sol, Até que descobri em baixo Os seios brancos da terra Do México: a esposa minha.
Entre os mares a minha esposa Penteia o cabelo preto Murmurando: Quetzalcoatl...
Adensara-se a multidão de homens; do centro elevava-se a luz avermelhada dos archotes, o ar embalsamava-se da resina de cedro. Kate não conseguia ver nada por causa dos chapéus enormes.
Calara-se a flauta; mas o tambor continuava as suas pancadas lentas, regulares, com o ritmo duma pulsação. Aquele som incompreensível, surdo, enfeitiçava o espírito, fazia bater o coração, aniquilava a vontade.
Os homens começaram a fatigar-se, sentando-se uns, acocorando-se outros, com o chapéu nos joelhos. Dir-se-ia um mar de cabeças escuras, ondulando para a frente, sobre os ombros vigorosos e levemente inclinados.
Perto do muro formara-se um círculo, com o tambor ao centro. O homem que o tocava, de dorso nu, premia o instrumento contra o corpo, e, curvado, as costas cintilavam-lhe ao clarão da noite. Junto dele estava outro homem a segurar uma bandeira que pendia duma haste leve. No campo azul do pano via-se o Sol amarelo a meio duma bola preta e, entre os quatro raios maiores, todos de ouro, quatro raios negros emergindo, o que fazia o astro assemelhar-se a uma roda que girasse num movimento ofuscante.
Sentara-se toda a gente. Os seis homens de tronco nu, que haviam distribuído os prospectos e convocado a multidão tinham já regressado e agora acomodavam-se de volta do rufador agachado. À direita deste ficava o porta-bandeira, à esquerda o flautista. Eram nove os do grupo, e faziam dez com o rapaz que vigiava os dois archotes, agora colocados em trípodes de cana.
A noite aprofundava-se em silêncio. Calara-se o murmúrio de vozes que enchia a praça. Debaixo das árvores, nos passeios, transitavam ainda pessoas indiferentes, mas pareciam estranhamente solitárias; figuras isoladas envoltas na luz pálida das lâmpadas eléctricas e fora do núcleo da vida.
No lado norte, as barracas continuavam iluminadas, faziam-se compras e vendas. Mas também essa banda do largo dava a impressão de estar muito longe da realidade actual.
Depois de os homens se sentarem, as mulheres avançaram timidamente e instalaram-se por sua vez na orla exterior do círculo. As saias rodadas espalhavam-se no chão, os xailes escuros moldavam-lhes a cabeça redonda e pequenina. Algumas, não ousando aproximar-se, ocuparam os bancos em volta. Outras, assim como muitos homens, haviam desaparecido aos primeiros rufos do tambor.
a plaza ficou como que deserta. Um grupo compacto rodeava o tambor; aquém, era o mundo externo, vazio e hostil. Somente na ruela escura que conduzia ao negrume do lago se viam alguns vultos erectos e silenciosos como fantasmas.
Sobre os degraus de uma porta, e com Juana a seus pés, Kate olhava fascinada para aqueles homens seminus iluminados pelo clarão dos archotes. Os seus corpos lisos e acobreados possuíam essa beleza índia um tanto assustadora. Os torsos magníficos, acetinados, desses entes silenciosos de cabeça um tanto pendida para a frente; os ombros largos, levemente descaídos pela inactividade da sua força; o tom quente e o brilho da pele; o peito vigoroso, tão viril e, no entanto, sem a dureza muscular dos homens brancos; as faces sombrias, impenetráveis, os bigodes pretos e as barbas ténues enquadrando o silêncio da boca fechada - tudo isto era impressionante, singular, despertava comoção.
Havia algo de reptilário na sua flexibilidade, qualquer coisa de terrível na sua mudez. Os troncos nus tinham a revesti-los uma sombra subtil, certa obscuridade misteriosa. Se fossem homens de raça branca seriam francamente musculados, com uma espécie de sinceridade no próprio físico. Aqueles não. A sua nudez só revelava a profundeza secreta da natureza, o eterno mistério.
Toda a gente se calara; intensificava-se o silêncio expectante, tornava-se tumular. Os homens de ombros nus mantinham-se imóveis, mergulhavam dentro de si mesmos e escutavam com os ouvidos do sangue. Sob as calças brancas atadas nos tornozelos, os pés metidos em Imaraches eram quase negros ao clarão dos archotes. Que pretendiam essas criaturas suaves e recolhidas e cuja importância, no entanto, era tão ponderosa, tão aliciante?
Kate sentia-se ao mesmo tempo atraída e repelida. Quase a fascinava o estranho poder magnético dos homens em círculo. Era como o núcleo duma vida nova, como uma jóia negra brilhando na escuridão. Mas parecia-lhe repulsiva aquela estranha opressão, esse afundar do espírito na terra, esse lento escoar duma água turva; repulsiva a densa e muda oposição ao rumo espiritual da gente branca. Contudo, ali e só ali a vida parecia arder com chama intensa.
No resto do mundo, Kate bem o sabia, tudo era vacuidade, esterilidade. Aqueles vultos avermelhados pelo clarão dos archotes representavam uma humanidade nova.
Kate sentia tudo isto, mas preferia manter-se à parte, evitar o contacto directo.
O porta-bandeira ergueu a cabeça como se fosse falar, mas não disse nada. Velho de barba e bigodes brancos a emoldurar-lhe os lábios escuros e carnudos, tinha a cara sulcada de rugas, como todas as pessoas idosas desse país. No entanto, os cabelos eram bastos, e o corpo ainda revelava força e virilidade. ! Os seus olhos negros olhavam sem ver. Talvez fosse realmente
cego; ou seria profunda abstracção que lhe dava aquele aspecto. Começou então a falar, numa voz lenta, clara e distante que parecia ser o eco dos últimos sons do tambor. - Homens, escutai-me! E vós. mulheres, escutai-me também. Há muito tempo, na calma da noite, o lago dirigiu um apelo aos seres humanos. Mas não existiam. Só os peixes pequeninos nadavam ao longo das margens, procurando fosse o que fosse, e os maiores saltavam fora de água para olhar em volta. Mas não existiam seres humanos.
Então um dos deuses de face velada saiu da água e subiu ao monte. (E o velho indicou a colina invisível nas trevas da noite. ao fundo da aldeia. Contemplou o Sol e viu através dele outro sol negro, o que criou o mundo e o absorverá de novo como uma gota de água. Disse: - Chegou o momento? - E quatro braços saíram do sol e da sua sombra surgiram homens. Viram os quatro braços no céu e principiaram a andar.
O deus do cimo da colina olhou para as montanhas e para as planícies e viu os homens anelantes, sequiosos. E disse-lhes: Vinde cá. Tendes aqui a minha água dulcificadora.
Correram como cães, de língua pendente, e ajoelharam-se na margem do lago. O deus do cimo da colina ouviu-os ofegar, de tanta água que beberam, e perguntou-lhes: - Não bebestes de mais? Ou tendes ainda os ossos secos?
í Os homens fizeram casas à borda do lago, e aquele que estava na colina, e que era um deus, ensinou-os a semear milho, feijão, e a construir barcos. Mas preveniu-os: - Nenhum barco vos salvará quando o sol negro deixar de estender os braços no céu.
O deus da colina disse ainda: - Sou Quetzalcoatl, aquele que vos humedece os lábios secos. Encho-vos o peito com um sopro do além-sol. Sou o vento que sai em turbilhão do centro da terra, sou o zéfiro que se enrosca como cobra em volta dos vossos pés, pernas e coxas, erguendo a cabeça da serpente do vosso corpo, onde reside a força humana. Tomai cuidado quando a serpente do corpo erguer a cabeça. Sou eu, Quetzalcoatl, que vos elevo, que vos elevo até ao sol das trevas, derradeira morada dos homens. Exceptuando o sol negro e os quatro braços nos céus, éreis ossos, e as estrelas eram ossos, e a Lua uma concha vazia numa praia seca, e o Sol amarelo uma taça vazia, semelhante ao crânio dum lobo. Portanto, tende cautela! Sem mim nada sois. Assim como eu nada sou sem o sol que está atrás do sol. Quando o sol de ouro estiver no zénite, dizei: Quetzalcoatl levante a sua mão e me abrigue dos raios, senão perecerei e a terra secará. Porque na palma da minha mão está a água da vida, e nas costas está a sombra da morte. Quando os homens me esquecem volto a mão e aparece a sombra da morte. Mas os homens esqueceram-me. Os seus ossos eram húmidos, o seu coração fraco. Quando a serpente do corpo erguia a cabeça, diziam assim: É a serpente amansada que nos obedece. E quando suportavam o ardor do sol, falavam nestes termos: O sol está zangado, quer absorver-nos; ofereçamos-lhe sangue de vítimas.
Os braços negros desapareceram do céu, e Quetzalcoatl envelhecia e lamentava-se, velando a face para a esconder dos homens.
Lamentava-se e dizia: - Deixai-me recolher à minha morada. Estou velho, quase sou apenas ossos. Os ossos triunfam em mim, o meu coração é uma cabaça vazia. Sinto-me cansado do México.
Então bradou ao sol negro, aquele de quem nunca se pronuncia o nome: - Estou um esqueleto, os Mexicanos renegam-me, de nada sirvo. Levai-me.
O sol negro estendeu o braço e elevou Quetzalcoatl até ao céu. Depois olhou em volta e viu a estrela de alva brilhando sem receio entre a vinda do sol dourado e a fuga da escuridão. E aquele, cujo nome jamais foi pronunciado, perguntou: - Quem és tu, guarda cintilante? E a estrela respondeu: - Outrora, no México, fui Quetzalcoatl. Agora contemplo as costas do sol amarelo e a face invisível da Lua, brilho entre o dia e a noite, esperando pela renovação.
E aquele cujo nome jamais foi pronunciado declarou: - Chegou a hora.
Assim o decretou, e eu a vós repito, homens e mulheres: Chegou a hora. Os que nos deixaram regressam, os que vieram retiram-se. Desejai a uns boas-vindas e dizei adeus aos outros.
Boas-vindas! Adeus!
O velho terminou o discurso com um grito meio sufocado, tal se na verdade se dirigisse aos deuses.
- Bienvenido! Bienvenido! Adiós! Adiós!
A própria Juana, sentada aos pés de Kate, bradava sem saber o que dizia:
- Bienvenido! Adiós! Adiós... n!
O último adios arrastou-se para rematar com o costumado "n". Começou o tambor a soar num ritmo insistente, e a flauta fez ouvir o seu grito estranho e longínquo. Tocavam a melodia singular que a irlandesa ouvira a princípio.
Então um dos homens do círculo entoou o hino. Cantava à maneira dos antigos Peles-Vermelhas, em voz contida mas intensa, como se se dirigisse à própria alma e não ao mundo exterior; como se cantasse na outra dimensão da existência dos homens, onde eles se encontram na extensão infinita que há dentro do eixo do nosso espaço rotativo. Espaço que, como o mundo, não pode deixar de se mover. E, tal o mundo, tem um eixo. O eixo do nosso espaço terreno, quando lá se penetra, é uma vastidão onde até as árvores vão e vêm, e a alma está à vontade no seu sonho, nobre e irrefutável.
O pulsar do tambor e o cântico íntimo arrastavam a alma para o centro do tempo, que é mais velho do que a própria velhice. O cantor começou por uma nota alta que repetiu demoradamente, fazendo-a percorrer ritmos subtis, na aparência desconexos, que o tambor acompanhava, e depois fê-la tremer, palpitar e dar um balanço brusco. Por muito tempo foi difícil distinguir qualquer melodia: dir-se-ia o uivo distante e esmaecido dum lobo. Era na verdade a música dos índios antigos.
Não se lhe encontrava harmonia, não se lhe reconhecia emoção. Apenas música, apenas um grito na noite, perfeito e longínquo. Mas ia direito à alma, à alma eterna e antiga, aí onde só pode a família humana encontrar-se em imediato contacto.
Kate logo o sentiu, e de forma fatídica. Seria inútil resistir, inútil fazer qualquer esforço. O som ia até ao âmago do ser, em que não existe esperança nem dor, mas só a paixão, que semelha uma ave no seu ninho, de asas dobradas, e a fé uma árvore de sombra.
Como o destino, como a sorte. A fé é a própria Árvore da Vida, inevitável, e os pomos estão ao nosso alcance: pomos dos olhos
- as pupilas -, pomos do queixo, do coração, dos seios, do ventre, dos quadris, dos joelhos, dos tornozelos. Que importa a mudança, a evolução? Somos a Árvore com os seus frutos, para todo o sempre. Verbum Sat.
Emudeceu o cantor, mas o tambor prosseguiu, fazendo vibrar subtilmente a membrana sensível da noite. Então, no círculo, de novo se elevou uma voz, depois outra, e outra, como pássaros voando de uma árvore. Elevaram-se as vozes - forte, pesado, intenso arrebatamento de vozes másculas, semelhante a um bando de aves negras subindo e descendo no ar, ao mesmo tempo. E cada ave preta dir-se-ia erguer-se do coração de um homem, do bosque secreto dos peitos masculinos.
Uma a uma, partiram também vozes da multidão, qual nova revoada de pássaros. A letra não tinha importância. Versos, palavras, simples sons - o canto era sempre o mesmo: violenta rajada saindo das cavernas do peito, das profundezas da alma eterna. Kate estava excessivamente intimidada para poder cantar, demasiadamente vencida pelas desilusões; mas sentia que o seu espírito fazia eco, seguindo o clamor do povo, tal a ave poliglota que imita as outras à noite. Contra sua vontade, Juana cantava também, num tom monótono, proferindo palavras à toa, inconsciente.
Os homens seminus começaram a agarrar as mantas: mantas brancas orladas de azul, com barras castanhas e franjas escuras. Da turba, levantou-se alguém, que se dirigiu para o lago. Voltou depois com um feixe de lenha trazido por um barco. Acendeu então uma fogueira pequena. Outro indivíduo se destacou para ir também buscar lenha: colocou-a diante do tambor, dentro do círculo, e fê-la crepitar. Por sua vez, uma mulher, descalça e de larga saia de algodão, principiou a arranjar a sua fogueira no meio das mulheres.
O ar estava bronzeado pelo clarão do lume; alastrava-se um fumo odorífero, como de incenso. Subiu e desceu o cântico, depois esmoreceu. Débil ecoou o som do tambor, e morreu por seu turno. No silêncio absoluto podia-se sentir a presença imóvel do lago sombrio.
Mais uma vez pulsou, vigoroso, o tambor. Um dos homens que estavam sentados, com o seu poncho branco debruado de azul e preto, ergueu-se de repente e, tirando as sandálias, começou a esboçar passos de dança, sem fazer o menor ruído. Dançava pesadamente, de pés nus, como se fosse enterrar-se pela terra abaixo. Sozinho, oscilava num ritmo estranho, calcando o chão, erguendo ora um ora outro dos joelhos de encontro às franjas escuras do poncho. Outro homem, encaminhando-se para o centro, pôs aí os huaraches, perto do fogo, e iniciou o seu bailado, enquanto o do tambor entoava um cântico selvático, tenebroso. Os restantes comparsas despojaram-se dos ponchos e, num instante, estavam de pé, e de torsos nus, descalços, repetiam aqueles passos que pareciam de ave. A luz da fogueira batia-lhes no peito, nas faces sombrias e extáticas.
"O que dorme acordará! O que dorme acordará! O que segue o trilho da serpente na poeira chegará ao seu posto; pelo trilho do pó chegará ao seu destino e revestir-se-á com a pele da serpente: revestir-se-á com a pele da serpente da terra, que é a criadora da pedra, que é criadora da pedra e do vigamento da terra; criadora do oiro, do ferro, da madeira da terra: dos ossos do pai da terra, da serpente do mundo, do coração do mundo que bate como uma cobra bate no pó, nos seus movimentos sobre a terra; do coração do mundo. Quem dorme despertará! Quem dorme despertará! Quem dorme despertará no caminho da serpente do pó da terra, da pedra da terra, do osso da terra."
O cântico parecia tomar novos voos audaciosos depois de baixar e sussurrar num último desmaio. Eram como ondas que se erguem do invisível, que tomam forma, alando-se, e desaparecem num rumor de aniquilamento. E os dançarinos, após terem girado em círculo, numa lenta e profunda absorção, iam um por um tomar o seu lugar, calcando o pó com os pés descalços, vagarosamente, e vagarosamente começavam a descrever uma ronda lenta em torno do fogo, sempre com os mesmos passos que se diria afundarem-se na terra. E o tambor ressoava numa palpitação sempre igual, como a de um coração humano. E o cântico soou e diminuiu, mais baixo e mais baixo numa espécie de extinção, para ainda uma vez tornar a levantar-se.
Até que os camponeses moços acharam impossível permanecer como estavam. Tiraram as sandálias, o chapéu, as mantas, e, timidamente, com pés inexperientes que no entanto conheciam as velhas pisadas, se puseram atrás dos outros bailadores e dançaram sem sair do seu lugar. Depressa o círculo revoluteante estabeleceu outro círculo de homens que envolveu o primeiro.
Então, de súbito, um dos dançarinos de tronco nu saiu do círculo interior e, penetrando no segundo, fê-lo girar em sentido inverso ao daquele. Deste modo houve duas rodas em movimento, uma dentro da outra, rodopiando em direcções opostas. Assim andaram, com o tambor e o canto, girando como rodas de sombra em volta do lume. Mas o lume extinguiu-se, e o tambor parou de repente, e os homens num instante se dispersaram, retrocedendo para os seus postos.
Houve silêncio, depois ouviu-se um murmúrio de vozes e risos. Kate muitas vezes pensara que o riso dos peóns se assemelhava a uma queixa; mas agora ele saltava como faúlhas invisíveis, bruscamente, da cinza das conversas.
Todos esperavam, e contudo ninguém se movia - até que o tambor vibrou de novo, como um sinal. Continuaram, porém, a tagarelar mas escutando, qual se possuíssem uma segunda consciência. Levantou-se um homem, desfez-se da manta e deitou lenha na fogueira central. Em seguida atravessou o grupo dos homens sentados e dirigiu-se ao das mulheres, que se apinhavam com as saias desdobradas. Esperou, sorrindo com ar abstracto, e logo se pôs de pé uma rapariga e se aproximou dele, apertando com a mão direita o xaile enrolado em torno da cabeça baixa. Estendendo a mão esquerda, pegou timidamente na do homem, que parecia inerte. Sorriu este e conduziu-a ao centro da roda, através do grupo dos que estavam sentados. Ela seguia de cabeça inclinada, escondendo o rosto pudibundo. Lado a lado, começaram a dançar, mal roçando as mãos e formando o primeiro pequenino segmento do círculo interior estacionário.
Ei-los agora todos, em pé, à espera de serem escolhidos. Rápidas, as mulheres, ocultando a testa no xaile, insinuavam-se junto deles e tomavam a mão do eleito. Dentro de pouco tempo já todos tinham dama. Fechara-se o círculo interior, com os homens e as mulheres aos pares, de mão dada.
- Venha, niña, venha! - disse Juana, fitando Kate com os seus olhos negros e brilhantes.
- Tenho medo - respondeu a irlandesa. E falava verdade.
Um dos de tronco nu atravessara a rua, afastando-se da multidão e detivera-se próximo da porta onde se achava Kate, que se calou e desviou a vista. E ficou esperando.
- Olhe, niña, um senhor que a procura. Venha, niña, venha!
A voz da criada descera de tom, capciosa, com esse apelo mágico das mulheres do povo. Os olhos pretos continuavam a cintilar-lhe estranhamente, fitos no rosto da patroa. Kate, quase hipnotizada, avançou em passos lentos e indecisos para o indivíduo que se mantinha à espera.
- Quer, realmente? - disse ela em inglês, bastante atrapalhada. E, com os seus dedos, tocou nos dedos dele.
Quase com indiferença, num gesto frouxo, a mão quente e máscula segurou os dedos de Kate e levou-a para a roda. Ela baixou a cabeça e desejou poder velar a face. No seu vestido branco e chapéu de palha verde, sentiu-se outra vez virgem, virgem juvenil. Aqueles homens concediam-lhe o dom de reencontrar a mocidade.
Acanhada, receosa, Kate procurou seguir a dança; mas escapava-lhe o ritmo, e os sapatos rígidos não a ajudavam. Movia-se confusamente.
Mas o seu par pegava-lhe na mão, embora com moleza, e oscilava, lento, o corpo todo, como um pêndulo de relógio. Dir-se-ia não fazer caso dela; contudo, segurava-lhe os dedos, de leve, numa pressão suavíssima.
Juana descartara-se dos sapatos e das meias. No rosto como uma máscara de lava, enrugado, escuro, as pupilas ardiam com a eterna chama da feminilidade, sombria e inextinguível. E já, com os pés, marcava o compasso da dança.
"Assim como o pássaro do sol fecunda a terra à alvorada tal uma fêmea morena sob os seus pés, com as dobras do ventre inclinadas aos pomos da geração, com os ovos de oiro, com os ovos que escondem o globo do sol nas águas do céu, na concha da terra que é o alvo do fogo do sangue, pisa tu também a terra e a terra conceberá qual a fêmea sob os pés do pássaro do sol. Pisa a terra, pisa a terra agachada e de asas encolhidas..."
A roda começou a girar e Kate foi-se movendo devagar entre dois homens silenciosos e absortos, cujos braços tocavam os seus. Um segurava-lhe os dedos, frouxa e brandamente, mas com transcendente afinidade. E o canto selvático subiu de novo como uma ave, e o tambor alterou o ritmo de modo incompreensível.
A outra roda era composta só de homens; Kate tinha a impressão de sentir nas costas o fulgor sombrio daqueles olhares. Os indivíduos já se não distinguiam, formavam como que uma única massa, em que ela própria se confundia.
Todos dançavam da mesma maneira, de cabeça baixa e olhar ausente, os homens absorvidos na sua virilidade, as mulheres na sua feminilidade. Somente o sexo prevalecia na sua mais alta concepção. Mar à superfície do globo movendo-se por cima dum mar nas entranhas da terra; águia evolucionando em silêncio sobre a própria sombra.
Kate sentia-se fundir nas águas revolutas de uma vida nova. Deixara de ser ela mesma para fazer parte de um todo, os seus desejos abismavam-se no mar do desejo colectivo. E assim o homem cujos dedos roçavam nos dela se engolfava no oceano de homens.
Lento mover de águas sobre águas, sem vestígio de espuma. Só a pura e deslizante conjunção.
Como era estranho ver-se submergida pelo desejo para além do próprio desejo, sentir-se integrada num corpo imenso para além do individualismo do corpo!
Não conhecia a cara do homem que lhe segurava nos dedos. Os seus olhos haviam cegado, e o rosto dele era um céu tenebroso. Mas do toque dos seus dedos nascia uma estrela, a estrela que os unia.
Os pés de Kate principiavam a marcar o compasso. Ela já sabia como deixar-se levar, abandonar a essência da sua vida, permitindo que lhe fugisse devagar, num escoamento rítmico, para o corpo negro da terra. Erecta, forte como o próprio esteio da vida, cedia no entanto a Seiva dessa força e fazia-a fluir para as raízes da terra.
Perdera a noção do tempo. A dança, porém, acalmava-se pouco a pouco, embora o ritmo permanecesse sempre o mesmo até ao fim.
Calaram-se as vozes, só o tambor continuou. Este, de súbito, produziu um rufo breve, e o silêncio foi geral. Logo as mãos se desataram, o baile parou de todo. O homem que a acompanhava sorriu-lhe e desapareceu. Jamais o reconheceria. Havia, no entanto, de lhe sentir a presença.
As mulheres afastaram-se, aconchegando os ombros com o xaile. Os homens dissimularam-se nas mantas. E Kate voltou à escuridão do lago.
- Já se vai embora, Niña? - perguntou Juana num tom que revelava certo descoroçoamento.
- Tenho de ir sem demora - replicou a patroa, estugando o passo. E a toda a pressa se encaminhou para as trevas do lago, com Juana na sua peugada, de sapatos e meias na mão.
Kate desejava reentrar em casa, com o seu novo segredo, o estranho segredo da feminilidade mais alta, a que ainda se não habituara. Precisava abandonar-se inteiramente àquele mistério.
Quase corria através do atalho interminável, na margem pedregosa e escura, apesar de a claridade das estrelas ser suficiente para revelar a forma sombria dos barcos que sulcavam a água mansa e turva. Noite eterna, sem horas! Kate não queria consultar o relógio, e até o virou no pulso a fim de não ver os ponteiros luminosos. Que o tempo a não governasse!
Ao adormecer, ouvia ainda o rufar do tambor, como um pulso que batesse nas entranhas da terra.

VIII
À entrada da casa de Kate elevava-se uma árvore enorme chamada cuenta por causa dos seus frutos pequeninos, redondos, duros e perfeitos de forma, que os indígenas apanhavam para fazer colares e, em especial, padre-nossos dos rosários. À noite, a rua ficava imersa em escuridão e só a queda das contas perturbava o silêncio.
Essas noites, que de começo pareciam calmas, amigáveis, encheram-se subitamente de terrores. Renascia o medo. Constituíra-se uma quadrilha de ladrões numa das aldeias do lago, cujos habitantes tinham má fama. Essa quadrilha, invisível durante o dia, compunha-se de pescadores e jornaleiros que, depois do anoitecer, montavam nos seus cavalos e iam assaltar casas solitárias ou mal guardadas.
O facto de saber que um bando de malfeitores rondava naquela região era o bastante para incitar os ladrões isolados a agir também. Fosse o que fosse que acontecesse, seria atribuído aos bandidos. Deste modo, mais de um indivíduo considerado honesto se deixava dominar pela cobiça e se escapulia à socapa armado de faca ou de pistola para se aproveitar igualmente da escuridão.
Kate sentia o terror condensar-se no silêncio da noite mexicana; silêncio tenebroso, tão profundo que se tornava sobressaltante, o som duma conta a cair. Deitada na cama, Kate escutava o mínimo rumor nas trevas densas. Ouviam-se ao longe apitos de polícia, daí a pouco passava a patrulha a cavalo. Mas, como acontece em quase toda a parte, a polícia nunca aparecia quando era precisa.
Aproximava-se a estação das chuvas, e o vento nocturno, vindo do lago, fazia sussurrar as árvores e abalava as portas desconjuntadas da casa. Os criados encafuavam-se nas suas dependências. No México, uma pequena distância isola-nos completamente desde que a noite desce; e ficamos perdidos na escuridão envolvente.
De manhã, Juana vinha da praça, com os seus olhos como gotas de tinta e, no rosto bronzeado, a expressão cansada dos entes submetidos ao medo. Logo de entrada, e na sua linguagem pouco compreensível, embrenhava-se na história de uma casa assaltada e de mulheres assassinadas. E a dona do hotel mandava dizer a Kate que não era prudente dormir sozinha em casa. Seria melhor passar a noite no hotel.
Toda a aldeia se encontrava sob estranha apreensão. Pairava no ar da noite um terror pânico. Renascia a confiança à claridade azul da manhã, mas ao anoitecer o sangue parecia coagular-se, a atmosfera tornava-se densa.
O medo, é claro, comunicava-se duns aos outros. Se Juana e a respectiva família não andassem cheias de pavor, Kate nunca sentiria medo, disso estava ela certa.
Ali não havia homens. Juana tinha dois filhos, Jesus, de vinte anos, e Ezequiel, de dezassete. Mas Jesus era quem tomava conta do motor da luz eléctrica, e tanto ele como Ezequiel dormiam na casa das máquinas. De modo que Juana ficava só com as duas filhas, Concha e Maria, no cubículo ao fundo da residência de Kate.
Antes, a plaza mantinha-se animada até às dez da noite, com gente a conversar ou a ouvir os moços tocadores de viola e o homem dos sorvetes a apregoar de contínuo: Nieve! Nieve!
Agora o largo esvaziava-se às nove horas. E havia ordem de prender quem fosse encontrado na rua depois das dez.
Kate corria para casa e trancava as portas. Não é fácil suportar o pânico de um povo meio bárbaro. O medo espalha-se no ar, envolve-nos, paralisa-nos a alma com a sensação de desgraça iminente, dum horror atroz.
Às dez horas cortavam a luz eléctrica, tudo ficava às escuras, e, deitada na cama, Kate sentia o sopro maléfico espraiando-se na atmosfera em vagas sucessivas.
Acudiam-lhe à memória todas as histórias arrepiantes passadas no país. E de novo pensava nessa gente de aspecto pacífico e sorriso doce. Mas o próprio Humboldt dissera a respeito dos mexicanos que nunca encontrara povo de sorriso tão suave e olhar tão feroz. Não que os olhos revelassem propriamente ferocidade; contudo, o seu negrume iluminava-se dum clarão frio, de cintilações de punhal nas trevas da noite, ao mesmo tempo que neles despertava a sede de homicídio.
Seres incompletos, não de todo criados, encontravam-se à mercê das velhas influências que jaziam como sedimento no fundo de cada um deles. Enquanto estavam calmos, eram simpáticos, bondosos, simples. Mas, se alguma coisa lhes revolvia as profundezas, logo se erguiam as nuvens tenebrosas de ódio e de morte.
Adivinhava-se-lhes na alma um ressentimento constante, como que uma ferida jamais cicatrizada. O ressentimento dos entes incapazes de conquistar sozinhos uma integridade individual fora do caos de paixões e forças mortíferas. Eram apanhados na engrenagem duma ansiedade ancestral como nos anéis duma serpente negra que lhes oprimisse o coração. Onerosa carga dum passado invencível.
E debaixo desse peso vivem e morrem, sem grande pena de morrer. Enredados nos elementos, não conseguem desenvencilhar-se. Queimados pelo sol excessivamente forte, sobrecarregados pela electricidade da atmosfera mexicana e atormentados pela erupção de vulcões que lhes rebentavam aos pés. Tremendos elementos do continente americano que tornam forte o corpo dos homens mas que esmagam a alma e impedem a sua elevação. E, se nalgum ela se eleva, os elementos maléficos a pouco e pouco a destroem, até que o homem se decompõe em ideias e actividades maquinais, num corpo cheio de energia mecânica mas de espírito morto e putrefacto.
Assim, esses seres incapazes de dominar os elementos, submetidos às forças do sol, da electricidade e das erupções vulcânicas, estão sujeitos a acessos de rancor e de ódio ardente à própria vida. Então, nada melhor do que enterrar uma faca num corpo vivo. Nenhuma volúpia iguala essa de cravar a lâmina e ver jorrar o sangue.
É a suprema satisfação duma raça presa a um passado de que não consegue libertar-se. Raça que não conhece Salvador nem Redenção. Quais mineiros enterrados vivos na derrocada duma mina, nações inteiras ficam sepultadas sob os escombros do passado - até que um salvador lhes mostre a saída para o sol.
Deitada na cama, Kate reflectia profundamente na'escuridão da noite, de ouvido atento aos menores ruídos que a enchiam de terror. Não podia refrear o coração; dir-se-ia que lho arrancavam, e o sofrimento era atroz. Pela primeira vez sentia medo físico, o sangue gelava-se-lhe nas veias.
Na Inglaterra, na Irlanda, durante a guerra e a revolução, conhecera o medo espiritual. O medo horrível da ralé; e durante a guerra as nações eram quase tudo ralé. O terror da canalha que pretendia acabar com a liberdade de pensamento em cada homem e em cada mulher. Era a ambição fria e colectiva de milhões de criaturas: aniquilar o espírito daqueles que resistiam e assim poderem iniciar a descida geral para as camadas interiores onde existe o culto do ouro e a volúpia de matar. A canalha.
Nesse tempo, Kate conhecera a agonia do medo social, como se a democracia fosse um polvo enorme que enlaçasse com os tentáculos quem lhe resistisse.
Agora o seu medo era doutra espécie. Sentia o coração doer-lhe, como se o arrancassem, o sangue parecia fugir-lhe das veias...
Dormitava, e acordou em sobressalto a um leve rumor. Sentou-se na cama. As portas que davam para a varanda tinham postigos, e estes encontravam-se escancarados a fim de arejar o quarto. Nessa abertura Kate distinguiu, recortando-se no céu escuro, uma forma negra semelhante a um gato que rastejasse no rebordo da janela.
- Que é? - perguntou ela maquinalmente.
No mesmo instante, aquilo moveu-se, deslizou para fora, e Kate percebeu que era o braço de um homem que tentava abrir o ferrolho interior da porta. Por uns segundos ficou paralisada, pronta a gritar. Então, como não pressentisse mais nada, inclinou-se e acendeu uma vela.
Era uma verdadeira agonia aquele terror pânico. Imobilizava-a, deslocava-lhe o coração... Ficou prostrada, no angustiante pavor nocturno. A vela projectava uma claridade lúgubre. Ouvia-se o ribombo longínquo de trovões. A noite era atroz, atroz, e o México horroroso.
Kate não conseguia dominar-se. "Estou à mercê disto", pensava. Sensação terrível, ver-se subjugada pelo medo.
"Que hei-de fazer?" perguntou a si mesma, reunindo coragem. Sabia que estava só.
Durante muito tempo sentiu-se incapaz de se mover. Então disse consigo, para se animar: "Creio no mal e não devo crer. O pânico e o assassínio são coisas que só sucedem quando perdemos o domínio de nós próprios. Não acredito verdadeiramente no mal. Acredito, sim, na existência dum poder supremo que nos comunica a sua força desde que tenhamos fé nele. O homem que queria entrar aqui não possuía essa força. Tentava ser maléfico, mas submeter-se-ia ao poder dominador."
Deste modo se ia tranquilizando, até que teve a coragem de se levantar e fechar os postigos. Em seguida, percorreu os quartos a fim de verificar se tudo estava trancado. E sentiu certo alívio ao compreender que temia tanto os escorpiões como a horrível sensação de pavor.
Depois de observar o fecho das cinco portas e das cinco janelas da ala de quartos comunicantes, Kate ficou encerrada nas trevas com a sua vela. Para o outro lado da casa, sala de jantar e cozinha, tinha de ir pela varanda.
Mais serena, embora ainda com o coração atormentado pelo medo, Kate reflectia. "Joachim afirmava que o mal provém de regressarmos aos costumes primitivos. É o que provoca roubos e assassínios. O tambor da noite de sábado evocava o ritmo da antiguidade e aquela dança selvagem era a velha forma de expressão. Regresso consciente à barbárie... Talvez a origem do mal..."
Mas logo intervinha o seu desejo de crer.
"Não! Temos de nos agarrar aos elos antigos, encontrar o impulso que nos relacionará de novo com o mistério do cosmos. Don Ramon tem razão. Ele deve ser um grande homem. Julguei que já não existissem grandes homens. Só grandes financeiros, grandes artistas, mas não grandes homens. Don Ramon deve ser um ente superior."
E Kate sentiu-se apaziguada a esta ideia.
Mas, logo que apagou a vela, surgiram clarões muito vivos através das fendas do postigo. Ribombaram trovões clamorosos, que pareciam afundar-se-lhe no coração. Kate sentia-se como que esmagada, na consciência duma tortura que a paralisou até de manhã e lhe deu a impressão de ser, ela própria, um destroço de naufrágio.
Por fim apareceu Juana, também com o ar de desenterrada, para lhe fazer a pergunta tradicional:
- Como passou a noite, Niña?
- Muito mal - respondeu Kate. E contou-lhe a história do gato preto e do braço do homem.
- Mire! - replicou Juana, sufocando a voz. - A inocentinha vai ser assassinada na cama. Não, niña, tem de passar a dormir no hotel. Não, Niña, não pode continuar com o postigo aberto. É impossível. Está a ver agora como é necessário que durma no hotel? Assim fazia a outra senhora.
- Não quero - declarou a patroa.
- Não quer, Niña? Ah, entonces, entonces... niña, vou dizer ao Ezequiel que venha dormir na soleira da porta, armado de revólver. Ele tem um revólver, pode ficar do lado de fora da porta, e a senhora já deixava a sua janela aberta, para lhe refrescar o quarto. Pobres de nós, mulheres, precisamos de um homem que tenha revólver. Não devemos estar sozinhas, toda a noite. Temos medo, e as crianças também têm medo. Imagine que um ladrão tenta arrombar o ferrolho da porta! Imagine! Não, niña, vai-se falar ao Ezequiel hoje mesmo, antes do meio-dia.
Ao meio-dia, Ezequiel compareceu, muito seguro de si. Era um rapaz, meio selvagem, mas dava largas passadas, empertigado e orgulhoso. A voz, na mudança própria da puberdade, tinha uma entoação estranha.
Ficou de pé, acanhado, ouvindo o que lhe recomendavam. Depois olhou para Kate com as pupilas negras e brilhantes, convicto do seu papel de salvador.
- Sim, sim - declarou. - Durmo aqui no corredor. Não tenha medo. Trago a pistola.
Saiu, e voltou com a arma, que era de cano comprido.
- Tem cinco cargas - participou, exibindo o revólver. - Se abrir a porta de noite, previna-me, porque, se eu vir mexer qualquer coisa, disparo os cinco tiros. Pum!, pum!
Pelo brilho do olhar do rapaz, Kate compreendeu quanto ele gostaria de fazer fogo sobre o que se movesse nas trevas. Não o preocupava a hipótese de ser alvejado por seu turno.
- niña - disse Juana - se voltar tarde para casa, depois de as luzes estarem apagadas, não se esqueça de chamar pelo Ezequiel. Senão... pum!, pum! Nunca se sabe quem pode ser a vítima.
Ezequiel dormiu sobre uma esteira na varanda de tijolos, defronte da porta de Kate. Enrolou-se num cobertor e conservou o revólver à mão. A senhora podia ficar de janela aberta. Na primeira noite, esteve muito tempo acordada por causa do ressonar estrondoso do rapaz. Nunca ela ouvira semelhante coisa! Que pulmões que ele devia ter! Dir-se-ia um som que viesse de outro mundo estranho e bárbaro. O barulho manteve-a desperta, mas havia naquilo um não sei quê de agradável. Algo semelhante a uma força bravia.

IX
Kate depressa se afeiçoou à negligente Juana e respectivas filhas. Concha tinha catorze anos. Era uma rapariga selvagem, entroncada, de cabeleira hirsuta que ela coçava constantemente. Maria, de onze anos, parecia um passarito, com olhos enormes que se diria absorverem toda a luz à sua volta.
Juana confessava que Jesus era filho doutro pai, mas o aspecto dos restantes fazia suspeitar ter cada um deles progenitor diferente. Toda a família, porém, mostrava igual despreocupação perante a vida. Viviam o dia-a-dia sem se importarem com o passado, nem com o presente, nem com o futuro. O dinheiro não lhes interessava. Assim que o recebiam gastavam-no, e logo o esqueciam.
Sem aspirações, sem objectivos, levavam existência absolutamente terre à terre no seu país sombrio e vulcânico. Não eram animais porque homens, mulheres e crianças não podem ser animais. Tal não nos foi concedido. Vai, e não voltes para trás - diz o Criador. Quando o homem tenta brutalmente tornar ao primeiro estado da evolução, fá-lo com espírito de crueldade.
Por isso os olhos negros daquela família revelavam certo medo, espanto e sofrimento. Angústia das criaturas humanas sem força para desenvolver as possibilidades do seu ser; incapazes de arrancar do caos a própria alma e indiferentes a qualquer outra vitória.
Também os brancos perdem a alma a pouco e pouco; mas conquistaram os mundos inferiores do metal e da energia e, graças às máquinas, lançam-se em corrida louca de roda da sua vacuidade.
Naquela família Kate encontrava algo de patético e de repugnante.
Desde que haviam aceitado niña como patroa, Juana e as filhas mostravam-se profundamente honestas. Honestas, a pontos de não tirarem uma única ameixa do fruteiro. E solícitas no serviço, de uma solicitude quase excessiva.
Viviam na sujidade, indiferentes ao ambiente. O chão era o seu caixote do lixo. Para ali arremessavam tudo o que consideravam inútil e ninguém se preocupava mais com isso. Pareciam 138
comprazer-se em viver no meio de pulgas e de trapos, de cascas de banana e caroços de manga. Um pedaço arrancado dum vestido - aí vai para o chão! Cabelos tirados do pente - chão com eles!
Kate não suportava aquilo. Afligia-a tamanha desordem, e o facto de ela se afligir divertiu imensamente a família mexicana. Mãe e filhas varreram então o pátio com uma vassoura de urze, até raspar a própria superfície da terra. Que engraçado, a niña preocupar-se com aquelas coisas!
Kate constituía para elas uma fonte de espanto e de divertimento. Não a consideravam pessoa de classe elevada. Era um ente meio incompreensível, meio espantoso.
Niña queria que o aquador lhe trouxesse todas as manhãs dois botes de água das nascentes térmicas para fazer abluções completas. Que esquisito! "Maria, diz ao aquador que corra a buscar água para a niña."
Quase se melindravam com o facto de ela se fechar no quarto para tomar banho. Era uma espécie de deusa, provocava-lhes alegria e admiração; mas devia ser sempre acessível. Kate depressa descobriu que um deus sempre acessível aos seres humanos passa bocados pouco invejáveis.
Não, aquilo não era nenhuma sinecura. De manhã começava o barulho da vassoura de urze lá fora. Kate deixava-se estar na cama, de portas fechadas e postigos abertos. Alvoroço no pátio. Alguém queria vender ovos. Onde está Niña? A dormir. O visitante não se retira e as conversas continuam.
O aquador! Ah, a água para o banho da niña. Está a dormir. "Não estou, não!" - grita Kate, enfiando o roupão e destrancando a porta. As pequenas entram com a tina, seguidas do aguadeiro com duas latas cheias de água quente. "Doze centavos, doze centavos para o aquador." No hay! Mais tarde, mais tarde. O homem vai-se embora, com a vara ao ombro. Kate fecha os postigos e começa a tomar banho.
- Niña!, Niña! - Que é?
- Quer ovos estrelados, quentes ou rancheros?
- Quentes.
- Café ou chocolate?
- Café.
- Ou prefere chá?
- Não, café.
O banho continua.
- Niña!
- Dize lá.
- Já não temos café. vou comprá-lo.
- Não é preciso. Tomarei chá.
- Não, niña, Eu vou. Espere por mim.
- Está bem, vai.
O primeiro almoço é na varanda. A mesa está posta, há pilhas de frutos, pão alvo e bolos.
- bom dia, niña. Como passou a noite? Maria, traze o café. vou meter os ovos na água. Oh, niña, eles não devem ficar cozidos... Meu Deus, que pés de Madona! Olhem, que bonitos!
E Juana inclina-se fascinada e, com o dedo escuro, toca nos pés acetinados de Kate metidos em leves sandálias seguras por uma única tira.
O dia tinha começado. Juana considera-se como inteiramente dedicada a Kate. Tão cedo quanto possível, expede as filhas para a escola. "Niña diz que é preciso ir para a escola. Não ouvem o que ela diz? Vamos, girem!"
No seu passo coxeante, Juana anda cá e lá na varanda, da cozinha para a mesa do almoço, transportando os pratos um por um. Depois, com grande espalhafato, começa a lavar a louça.
Manhã! O sol inunda o pátio, os cardeais e as folhas dilaceradas das bananeiras. Os pássaros voam em todos os sentidos com precipitação tropical. Na sombra densa das mangueiras passam índios vestidos de branco, semelhantes a espectros. Há um frémito de vida e, no entanto, o silêncio é opressivo. Os olhos deslumbram-se à claridade ofuscante, a alma sente-se oprimida.
Kate senta-se na varanda e finge coser. Surge um velho, segurando um ovo na mão, como qualquer símbolo. A patrona quereria comprá-lo por cinco centavos? Juana só dava quatro. De acordo? Onde está Juana?
Juana volta da praça com outras compras. O ovo! Quatro centavos! A conta das despesas. Entonces! Entonces! Luego! Luego. Ah, niña, no tengo memória.
Juana não sabia ler nem escrever. Todas as manhãs ia ao mercado, comprava uma porção de coisas de um ou dois centavos e todas as manhãs era preciso fazer contas. "Ah, onde é que nós íamos?
Não tenho memória nenhuma. Ora vejamos... Comprei três centavos de ocote... Quanto? Quanto soma agora, niña" Se faltava um centavo, ficava desolada e não falava noutra coisa. "Falta um centavo, niña? Sou estúpida, não sou? Mas eu dou-lhe um do meu dinheiro."
- Deixa lá, não penses mais nisso - dizia Kate.
- Mas eu quero pagar a diferença - insistia a mulher; e afastava-se, coxeando.
Uma hora depois elevava-se um grito no outro extremo da casa e Juana aparecia empunhando um ramo de salsa.
- Mire, niña! Compré perejil a un centavo. As contas estão certas agora?
- Estão - respondia Kate.
E a vida podia então retomar o seu curso. Existiam duas cozinhas: a anexa à sala de jantar, e a das criadas, numa espécie de barraca debaixo das bananeiras. Da varanda Kate via a abertura negra que fazia as vezes de janela na cozinha de Juana.
"Julgava Concha na escola!", disse Kate consigo mesma.
Mas não. No buraco escuro da janela distinguia-se o rosto moreno e a juba de Concha, espreitando para fora como um animal que saísse da toca, enquanto fazia as tortillas. Tortillas são uma espécie de filhos de milho. Preparam-nas batendo a massa na palma da mão até adquirir a lisura e leveza necessárias. Pouco depois do meio-dia via-se sair fumo pela janela: Concha lançava as tortillas cruas na frigideira de barro colocada sobre o lume.
Então Ezequiel aparecia, de manta sobre o ombro, chapéu de palha de grandes abas enroladas, pronto a comer as tortillas. No entanto, se trabalhava no campo, só chegava ao cair da noite. Sentava-se no degrau da porta e as mulheres serviam-no e iam-lhe buscar água como se ele fosse um rei. E ouvia-se-lhe a voz rouca dando ordens em tom calmo.
Porque, apesar do seu ar sereno e meigo, tomava uma entoação imperiosa desde que se dirigisse à mãe ou às irmãs. Prerrogativa de macho, que dava a Kate vontade de zombar do rapaz.
A hora da refeição era para Kate um dos seus tormentos. Apresentavam-lhe sopa muito quente e gordurosa, arroz apimentado, também gorduroso e fumegante, a inevitável carne nadando em gordura. Seguiam-se calabacitas, ou beringelas, salada, e o enorme cabaz de fruta. E, inundando tudo isso, o ardente sol tropical dos fins de Maio.
De tarde, o calor aumentava. Juana ia com as filhas lavar a loiça no lago. Agachadas sobre as pedras, agitavam na água cada prato, cada colher e cada garfo, e punham tudo a secar ao sol. Depois, enquanto Juana lavava uma ou duas rodilhas, as filhas banhavam-se no lago.
Jesus, o primogénito, costumava vir à tarde regar o jardim. Mas esse comia no hotel, onde prestava diversos serviços, trabalhando até às dez da noite por um salário de vinte e dois pesos, ou seja, onze dólares por mês. Usava camisa preta, e a cabeleira abundante tombava-lhe na testa baixa. Apesar da camisa fascista, possuía o espírito sarcástico e crítico dos socialistas, o espírito que vem do instinto de destruição.
Entre ele e a mãe existia pouca intimidade. Se Juana se encontrava em apuros, Jesus dava-lhe algum dinheiro mas, exceptuando o ténue laço de sangue que os unia, mostravam a maior indiferença um pelo outro.
Ezequiel tinha melhor tipo. Era esbelto, e tão direito que quase parecia arquear-se para trás. Tímido, arisco, orgulhoso, sentia-se mais responsável pela família. Não queria servir em hotéis. Não. Trabalhava nos campos, e tinha vaidade nisso: era labor de homem, não uma espécie de escravidão disfarçada.
Embora simples jornaleiro, não trabalhava para um patrão mas sim para a terra. E a terra, de certa maneira, era dele, pertencia-lhe...
Quando havia que fazer, chegava a ganhar um peso por dia. Se a terra estava seca, então procurava trabalho nas estradas, ainda que isso lhe não agradasse.
Mas nem sempre conseguia empregar-se. Durante dias, semanas, Ezequiel vagueava pelos arredores, sem nada que fazer. Quando o governo socialista dividiu as fazendas em lotes e os distribuiu pelos camponeses, coube-lhe um pedaço de terra fora da aldeia. O rapaz ia até lá e juntava pedras para construir um casebre. Cavava o chão tão profundamente quanto possível, mas não tinha amor a essa nesga de terreno que lhe viera parar às mãos de modo quase sobrenatural. Só lá ia de vez em quando, e sem nenhum entusiasmo.
Nos dias de trabalho regressava a casa por volta das seis horas e, cumprimentando Kate, timidamente, dirigia-se para o seu antro, onde, sentado no chão e de costas apoiadas à parede, dobrava tortillas umas sobre as outras e comia essa pasta elástica que tem o sabor de argamassa - pois o milho é primeiramente fervido com cal para largar a pele. Depois, dignava-se aceitar outra rima de fritos, que a irmã lhe apresentava numa folha de couve. Às vezes, Ezequiel tirava do tacho de barro um bocado de carne guisada que metia entre duas tortillas. Mas ingeria tudo rapidamente com uma espécie de indiferença. Aliás, os mexicanos parecem sempre indiferentes ao que comem.
Acabada a ceia, ia até à plaza, reunir-se aos homens. Havia ocasiões em que Kate, ao recolher a casa às nove horas, a encontrava quase deserta. Ezequiel estava no largo, Juana e Maria haviam desaparecido, e Concha dormia tal um molho de trapos no chão do pátio. Quando Kate a chamava, a pequena erguia a cabeça, espantada, entorpecida; depois, levantando-se como um cachorro, rastejava até ao portão.
Indiferença por tudo, até uns pelos outros. Juana lavava semanalmente uma camisa e um par de calças de algodão para cada um dos filhos, e aí terminavam os seus cuidados maternais. Nem se interessava averiguar qual o trabalho-de momento de Ezequiel. Sabia que arranjara emprego e isso lhe bastava. Contudo, de tempos a tempos, tinha ímpetos de amor materno, quando o rapaz era tratado injustamente, como às vezes acontecia. E, se o supunha doente, dominava-a um terror fatalista que só a abandonava depois de Kate intervir com qualquer remédio muito simples.
Semelhantes a animais. Mas os animais são perfeitos no seu isolamento e despreocupação; não se trata de indiferença, é que se bastam a si próprios. Ao passo que naquela família havia uma espécie de frustração, como se um torpor de aborrecimento a todos avassalasse.
As duas raparigas eram inseparáveis; andavam sempre atrás uma da outra. Concha arreliava de contínuo a inocente Maria de grandes olhos e esta debulhava-se em lágrimas. Ou então, no meio de uma fúria, ameaçavam-se com pedras, e Juana invectivava-as com súbita veemência, que logo se extinguia.
Estranha, aquela ferocidade repentina com que as pequenas arremessavam pedras, e não menos estranho, o esforço por não acertar. Kate notava a mesma coisa nos ataques selváticos que os garotos faziam uns aos outros nas margens do lago; atiravam calhaus com ar ameaçador, mas quase sempre falhavam o alvo.
Quase sempre, mas não sempre. Às vezes atingiam o adversário, que tombava como morto. Então os outros aproximavam-se, em silêncio temeroso, da vítima prostrada. De repente, o ferido erguia-se, com um esgar homicida no rosto, perseguindo o inimigo com uma pedra. E o inimigo fugia a sete pés.
Uma vontade perene de arreliar, de atormentar. O mesmo sucedia entre os Peles-Vermelhas. Mas o povo índio raramente recorria à violência, o que se não dava com os Mexicanos.
Kate, achando que devia fazer qualquer coisa pelas pequenas, dispensou-lhes uma hora por dia para lhes ensinar a ler, a redigir e a costurar. Maria queria aprender a ler; nisso mostrou boa vontade. Começaram bem, mas depressa a leve insistência de Kate em lhes chamar a atenção fez com que as alunas assumissem o tom de ironia peculiar ao continente americano. Ironia calma, invisível, malevolente, desejo de magoar.
- Não te debruces sobre mim, Concha. Põe-te direita.
- Porquê, niña Tem piolhos na cabeça?
A pergunta insolente era formulada com subtileza índia.
- Não! - respondia Kate subitamente irritada. - E agora vão-se embora! Afastem-se de mim.
E as pequenas retiravam-se, humilhadas.
Kate recebeu visitas de Guadalajara. Grande excitação! Mas enquanto tomava chá na varanda, Juana, Concha, Maria e Filipa, que era uma prima de dezasseis anos, sentaram-se no outro lado do pátio, bem à vista, com os belos cabelos soltos sobre os ombros, e, ostensivamente, puseram-se a catar piolhos umas às outras. Pareciam encantadas por exibirem a sua sordidez àqueles estrangeiros.
Kate desceu ao pátio.
- Se querem catar piolhos - disse em voz trémula de cólera - vão para onde ninguém as veja.
Atravessou um clarão de maldade os olhos negros de Juana, mas um instante depois, humilde e abjecta, a família retirava-se, de cabeleira ao vento, em direcção ao seu antro.
Juana comprazia-se em irritar Kate. Sentia assim uma espécie de poder sobre a Niña. É certo que temia um tanto essa irritação, mas era justamente o que desejava. De que servia uma niña que não lhe inspirasse algum receio?
Ah, raças escuras! Kate, como irlandesa, podia entrever um pouco do mistério. As raças escuras pertencem a um ciclo de humanidade já desaparecido; ficaram atrás, no fundo de um abismo donde nunca conseguiram sair. Jamais atingirão o nível dos brancos; limitam-se a segui-los de longe, como escravos.
Enquanto o homem branco avança, cheio de orgulho, as raças escuras cedem-lhe o passo e obedecem-lhe pela força. Se, porém, o branco hesita na sua marcha, logo os outros o atacam para o precipitar no abismo do passado.
É o que está a acontecer. Porque o branco, apesar de todas as farroncadas, duvida da sua própria supremacia.
E é a corrida veloz para a derrocada.
Desde a revolta de Kate perante a cena da caça aos piolhos, Juana voltou a servi-la com enternecedora solicitude. Embora indiferente a tudo, aquele ser das regiões inferiores não queria quebrar o débil fio que o ligava a Kate e ao mundo da claridade e do ar puro. Em suma, o desejo de Juana era conservar a sua niña, servir a sua Niña.
Ao mesmo tempo, parecia odiar a gente rica, branca e superior. De vez em quando contava a Kate histórias do passado. Então via-se-lhe uma expressão malévola nos olhos negros e na face acobreada, enquanto ela prosseguia: Usted sabe, niña, los gringos, los gringuitos llevan todo...
Os gringos são os Americanos, e Juana incluía Kate nos gringuitos, estrangeiros brancos. Aquela frase era nova insolência disfarçada, subtil...
- É possível - respondia Kate friamente. - Mas dize-me o que é que eu levo do México.
- Non, niña, non - Espalhava-se um sorriso de satisfação na cara de Juana quando ela conseguia atingir a outra mulher. Não me refiro a si, niña! - O protesto, porém, era pouco convincente.
Dir-se-ia que essas indígenas queriam obrigá-la a partir à força, insultando-a, rebaixando-a, até que a irlandesa, não menos impetuosa do que elas, abalasse dali num momento de fúria.
Oh, raças primitivas atrasadas!
Contudo, havia um lado patético na natureza daquela gente. Quando tinha catorze anos, Ezequiel trabalhara por conta de um sujeito que andava a construir casa. O homem prometera-lhe uma manta, mas ao fim de dois meses despediu-o sem cumprir a promessa. Foi uma desilusão bem amarga.
Kate nada tinha a ver com isso, mas Juana quase a acusava do facto.
Povo sem força para avançar, como podia deixar de ser explorado? Desde séculos que o exploravam cruelmente, e toda a sua energia se limitava a uma resistência malévola.
"Mas não pretendo explorá-los - dizia Kate consigo mesma.
- Pelo contrário, a minha vontade é dar-lhes mais do que recebo. São injustos os seus remoques. Nunca insultei estas criaturas. Faço a diligência de não as magoar e elas, deliberadamente, atacam-me e ficam radiantes quando me ferem."
No entanto, Kate procedia à sua maneira irlandesa: de vez em quando, isolava-se de Juana e das filhas. Porque, assim que as mandava para longe, desaparecia-lhes a malevolência e lembravam-se das ordens da niña. Se ela estava presente e amável, esqueciam-se de tudo. Esqueciam-se de varrer o pátio, de se apresentarem limpas, e só quando Kate as relegava para um canto é que tornavam a lembrar-se.
O filho Ezequiel tinha mais dignidade do que as mulheres.
Nunca fazia aqueles ataques insidiosos.
Quando a casa estava limpa e calma e o ar parecia purificado e a alma renovada, Kate sentia novamente amizade por essa família.
A sua azáfama, andando cá e lá, esvoaçando como pássaros; o estalo da massa das tortillas de encontro à palma da mão; o entusiástico esmagar de tomates e pimenta no tacho enquanto Juana preparava o molho; o barulho do balde no poço quando Jesus vinha regar...
Como isso era divertido! Assim devia ser tudo o que fizessem, ou então não o fariam. Não podiam fixar-se numa rotina. Jamais! Tudo devia ser alegre, variado, com uma pontinha de aventura. Era confusão, mas, no fim de contas, uma confusão viva, não uma coisa morta. Kate recordava-se dos seus criados britânicos nas cozinhas inglesas, tão maquinais e quase inumanos. Aqui era o extremo oposto.
Não havia disciplina nem método. Embora Juana e as filhas quisessem realmente fazer o que a niña desejava, só procediam conforme lhes apetecia. às vezes, Kate sentia-se angustiada. Mas, tanto quanto possível, ia suportando as extravagâncias daquela família. Tivera, por exemplo, de se habituar à vagabundagem da mesa de jantar, mesinha redonda cujo lugar era na varanda. Ao primeiro almoço, ficava discretamente debaixo das plantas, perto do salão; ao almoço da uma hora regressava à varanda; ao chá, ia para a relva do jardim, à sombra duma arvorezita. E, quanto à ceia, Juana deliberou então que a niña comesse os dois ovos e rancheros na própria casa de jantar, isolada a um canto da comprida mesa em que cabiam catorze pessoas.
Kate também nunca chegou a perceber o motivo por que, depois de lavarem a loiça na cozinha durante uns dias, se lembraram de repente de levar os pratos sujos para o lago, num cabaz, aos ombros de Concha. A não ser que achassem assim o trabalho mais divertido...
Crianças! Mas não inteiramente. Faltava-lhes a despreocupação da infância. Pressentia-se-lhes na alma qualquer coisa de sombrio, como que um peso que as forçava a resistir. Trabalhavam por acessos, podiam ser laboriosas; depois vinha a indolência e passavam horas estiradas no chão, como porcos. às vezes mostravam-se alegres, conversavam e riam, sentadas sobre a terra, em grupo, formando roda. Então, subitamente, contrariando a própria alegria, recaíam na mudez e na tristeza. Havia ocasiões em que, estando a trabalhar com afinco, atiravam para longe a ferramenta como se indignadas por terem cedido. Descuidados, versáteis nos seus amores, os homens, ao menos, passavam todo o tempo a resistir a si mesmos. Nunca procuravam o que pretendiam. As mulheres a que se aproximavam. E um rapaz e uma rapariga passeando às escuras na estrada marginal do lago, atiçando-se um ao outro, atormentando-se no meio de excitação, constituíam uma cena que deixava Kate pasmada - porque homens e mulheres não se cortejavam abertamente como fazem os brancos. E o riso súbito do macho, estranha voz de desejo reprimido, de obstinada relutância e paixão desesperada, parecia qualquer coisa a rasgar-se-lhe no peito, era um som que perdurava na memória.
Kate achava pesado o governo da casa. De certa maneira, eram como parasitas, queriam viver da sua vida, e rebaixá-la, rebaixá-la. Nalgumas ocasiões mostravam-se como pessoas meigas, generosas, encantadoras - até a fazerem novamente revoltar-se contra aquela indiferença reptilária. Indiferença e resistência.
Os servos forneciam a Kate a chave da vida indígena. Os homens sempre juntos, erectos, belos, equilibrando o chapéu enorme no alto da cabeça, quer sentados, quer de pé, quer de cócoras, numa impassibilidade de serpente; as mulheres sempre à parte, suaves, como que escondidas, estreitamente apertadas nos chailes escuros. Homens e mulheres pareciam voltar costas uns aos outros como se não quisessem ver-se mutuamente. Nenhuns galanteios, nenhum namoro. Apenas um olhar ocasional sombrio e rápido, sinal de desejo semelhante a um golpe de florete dado e recebido.
Elas, no conjunto, dir-se-iam inexperientes mas decididas a seguir o seu próprio desígnio: mudar de homens quando lhes apetecesse. E eles davam a impressão de não se preocuparem muito. Afinal eram as mulheres que pretendiam os homens.
As indígenas, com os negros cabelos tombados nas costas cheias e acobreadas, banhavam-se num canto da praia, geralmente em camisa ou com um saiote. Os homens mantinham-se alheados, nem sequer se dignavam olhar para a outra banda. Eram mulheres no banho, nada mais. Faziam parte, por assim dizer, da vida lacustre, como os peixes que ali nadavam. Concediam-lhes mesmo aquele ponto do lago, e elas sentavam-se nos baixios, isoladas como aves aquáticas, e molhavam a cabeça e os ombros com o auxílio duma cabaça.
Calmas, discretas, desprezadas fêmeas da classe dos peóns, seguindo o seu caminho envoltas no rebozo como num manto de trevas, ágeis, balançando as saias rodadas e gorjeando como passarinhos; ou paradas na borda do lago, com os cabelos longos a gotejarem; ou subindo lentamente a margem com uma pesada bilha de água ao ombro e um braço por cima da cabeça, a segurar a asa do cântaro; ou, especialmente nas tardes de domingo, sentadas à porta da casa, catando piolhos umas às outras. As moças possuidoras de cabeleira abundante e ondulada eram as que mais piolhos tinham. Aquilo representava um acto público meritório.
Parecia a Kate que esse país não podia originar nada de mais elevado do que a amizade entre os homens. O próprio casamento tinha pouca importância. E, embora se mostrassem meigos e protectores para com as crianças, os pais depressa as esqueciam.
A questão do sexo era no entanto a primordial, aquela que não devia ser omitida nem aflorada abertamente. O único mistério, muito maior do que o indivíduo. Este pouco contava.
Kate pasmava ao ver as choças de palha dos índios nas margens do lago. Ali fervilhavam crianças seminuas no chão de terra batida, no meio de trapos, de ossos, e do fedor de excremento humano.
Esse povo parecia não ter olfacto. E defronte do buraco que servia de porta à cabana, o homem impassível, magnífico, silencioso... Como era possível que tão belo exemplar de virilidade se mantivesse indiferente a tamanha porcaria?
Mas ali se conservava como inconsciente. Contudo, era um ser vivo - e forte. Nenhum homem no mundo pode transportar cargas tão pesadas como os índios do México. Kate vira já um deles passar na rua com um piano às costas, apenas seguro por uma correia em volta da testa.
Portanto, força não escasseava, mas sim energia. Nem sequer a classe dos artífices que imita a dos Estados Unidos demonstra ser enérgica. Têm os seus clubes, aperaltam-se e andam de braço dado com raparigas bonitas, mas percebe-se que tudo isso não passa de vulgar imitação.
Inesperadamente, a família de Kate aumentou. Um dia, chegou de Ocotlan uma formosa moça de 15 Primaveras, com grandes olhos bovinos, Maria del Carmen. Acompanhava-a Júlio, rapaz de vinte e dois anos. Tinham casado há pouco, e vinham de visita a Sayula. Júlio era primo de Juana. Poderiam dormir no pátio com ela e com as filhas? - perguntou Juana. Só se demorariam dois dias.
Kate ficou espantada. Maria Del Carmen devia ter sangue espanhol, a sua beleza evocava a Espanha. Parecia pertencer a um nível superior, mais educado, e no entanto ia dormir no chão com esse esposo juvenil... E ele, tão aprumado e de ar tão orgulhoso, nada possuía além duma velha manta.
- Há três quartos desocupados - disse Kate. - Que durmam num deles. - As camas eram de pessoa só. - Precisarão de mais cobertores?
Não. Bastaria a manta de Júlio.
Este era assentador de tijolos, isto é, ajudava a construir as paredes das casas de adobe. Nascera em Sayula e vinha ali de visita.
Essa visita, no entanto, prolongou-se. Júlio andava à procura de trabalho e só aparecia ao anoitecer. Maria del Carmen entretinha-se a amassar tortillas na cozinha de Juana e a conversar com as raparigas. À noite, o marido regressava e, sentado no chão, de costas apoiadas à parede, sempre impassível, deixava a mulher acariciar-lhe os cabelos negros e bastos.
Amavam-se, mas Júlio resistia ao seu amor.
Ela queria voltar para Ocotlan, onde era mais señorita do que em Sayula, mas o rapaz recusou. Não tinha dinheiro; o casal sustentava-se com cerca de cinco cêntimos por dia.
Quando Kate estava a coser, Maria del Carmen, que nem sabia talhar uma camisa, observava-a de olhos arregalados. Kate ensinou-lhe costura, comprou-lhe uns metros de chita e Maria del Carmen fez um vestido com as suas mãos.
Júlio arranjou trabalho, a um peso por dia, e a visita continuou. Kate achava o rapaz pouco terno para a mulher: sempre que lhe falava era em tom de comando. E Maria del Carmen não levava isso a bem e amuava um pouco.
Passaram-se semanas, e Juana começava a cansar-se dos parentes.
Por fim, Júlio arrendou uma casita de adobe só de um compartimento, ao preço de peso e meio por semana. Maria del Carmen ia ter o seu lar.
Kate viu-os juntar as suas coisas para a mudança. Consistia tudo numa esteira de palha, três tachos de barro, cinco peças de loiça, duas colheres de pau, uma faca e a manta de Julio. Nada mais.
Presenteou-os, então, Kate com um edredão de seda já um tanto puída, duas tigelas e diversos utensílios de cozinha. Foi uma alegria. A voz de Maria del Carmen soava no pátio em exclamações delirantes. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"
Na época das chuvas as noites são por vezes glaciais devido à evaporação, e os indígenas, transidos de frio, esperam pelo romper da manhã deitados sobre esteiras delgadas e abafados apenas com a ponta de um cobertor velho. A inércia natural fá-los suportar o sofrimento sem tentar minorá-lo. Podiam arranjar um colchão de palha de milho e cobrirem-se com folhas secas de bananeira. Mas não. Estendem-se numa esteira em cima da terra húmida e tiritam de frio noite após noite.
Maria del Carmen, porém, era um pouco mais civilizada. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"

CONTINUA

VII
Sayula era uma pequena estação balnear; não para ricos ociosos, porque o México os tem em pouca quantidade, mas para comerciantes de Guadalajara e gente que passeia nos fins-de-semana. E mesmo assim em reduzido número.
Havia, no entanto, dois hotéis, que vinham dos dias calmos de Don Porfirio, tal como a maior parte das vivendas fora da povoação, hoje fechadas e muitas delas abandonadas. Na aldeia viviam em perpétuo estado de terror. Acima de tudo temiam os bandidos e os bolchevistas.
Os bandidos eram apenas homens das localidades afastadas que, sem dinheiro, sem trabalho e sem esperança faziam ocasionalmente profissão do roubo e do assassínio. Habitavam nas suas aldeias selvagens até que as tropas os obrigavam a refugiar-se nas montanhas ermas ou nas regiões pantanosas.
Quanto aos bolchevistas, pareciam nascer do caminho de ferro. Onde houvesse carris, passageiros e carruagens de diferentes classes, aí despertava o espírito de rebelião e inveja; e o ferro e as demoníacas locomotivas ofegantes dir-se-ia engendrarem esses filhos do materialismo que são os bolchevistas.
Sayula possuía o seu ramal, com um comboio diário; a linha não cobria as despesas e lutava por se manter - mas já era bastante.
Sayula fora atingida pela loucura da América: o automóvel. Assim, como outrora os homens desejavam um cavalo e uma espada e as mulheres sonhavam com uma casa ou um camarote no teatro, a ambição actual é possuir um carro.
Era um desfile contínuo de "máquinas", de automóveis ligeiros e pesados na única estrada que ligava Sayula a Guadalajara. Uma esperança, uma fé, um objectivo: andar de carro, possuir um carro.
Quando Kate chegou à aldeia, falavam com certo alarme do regresso dos bandidos, mas a irlandesa não prestou a mínima atenção ao assunto. À noite, foi àplaza e misturou-se com o povo. Era um largo ornado de árvores imponentes, com um velho coreto no centro e um passeio em volta. No lado norte ficava o mercado. Mais além, passavam burros e camionetas nas ruas mal calcetadas.
A banda de música já não tocava em Sayula, a elegância já não se exibia naplaza, debaixo das árvores. Mas o pavimento ainda era bom e os bancos mais ou menos sólidos. Oh, tempos de Don Porfirio! Agora, só os peóns e os índios, com os seus fatos brancos e manta ao ombro, enchiam os bancos e monopolizavam a praça. É certo que se mantinha a lei que obrigava os peóns, naquelas paragens, a usar calças e não a espécie de ceroulas largas e flutuantes das suas lides rurais. Mas os peóns, por seu lado, também gostavam de envergar calças em vez daquele traje representativo do humilde labor do campo.
Eram eles, pois, quem dominava na praça, ora sentados em bancos ora passeando indolentes com a sua manta e de sandálias. Depois das seis horas, enchiam-se as barracas de comida quente, na rua calcetada do lado norte: ficava mais barato comer fora de casa e findava-se agradavelmente um dia de trabalho. As mulheres, de portas adentro, que ficassem a mastigar as suas tortillas; mas não provavam caldo, nem sopa, nem guisado. Nas tendas que vendiam tequila, instalavam-se homens, mulheres e rapazes defronte da mesa, em bancos, acotovelando-se uns aos outros. Também havia jogos de azar, pouco violentos, em que o banqueiro voltava uma carta e todos gritavam: Cinco de Espadas! Rei de Copas! Certa mulher corpulenta, imperturbável, de cigarro na boca e perigosa expressão nos olhos sombrios e baixos, vendia tequila, sentada ao escuro, toda a noite. O homem dos doces ficava de pé junto do seu balcão. Por terra, viam-se pequenos archotes metidos em latas, alumiando montes de mangas ou daquelas nauseabundas ameixas tropicais, encarnadas, que se liquidavam por dois ou três centavos a pilha, enquanto a vendedora, de saia larga, ou o vendedor, humilde e paciente, esperava acocorado o freguês, com aquela indiferença fatal e aquela submissão que tanto intrigam o estrangeiro. Ter ameixas para vender no valor de trinta cêntimos; amontoá-las no chão em pequenas pirâmides, cinco em cada uma; e esperar todo o dia e até de noite, de cócoras, a olhar de baixo para cima, para a cara do transeunte e possível comprador - eis, ao que parece, uma ocupação e um modo de vida.
Era vulgar encontrar-se ali um par de rapazes empunhando violas de tamanho diverso, em frente um do outro como dois galos combatentes; entoavam uma canção interminável, cantando em voz sumida as eternas baladas não muito musicais, dolorosas, extensas, audíveis apenas para os que estavam próximos. E assim se conservavam até enrouquecerem. Em volta, com mantas encarnadas, paravam homens altos e escuros, ouvindo por instantes e raramente contribuindo com um centavo.
Entre as barracas de comes e bebes estava um trio de duas violas e uma rabeca; dois dos músicos eram cegos e cantavam em diapasão alto, mas também de modo pouco audível. Dir-se-ia cantarem só para si, muito chegados um ao outro, como se a melancólica balada lhes repercutisse no peito.
A aldeia em peso comparecia naplaza. No entanto, raramente, muito raramente uma voz se erguia acima do murmúrio grave dos homens, do sussurro musical das mulheres, do gorjeio das crianças. Poucos movimentos apressados. O lento passeio dos homens de sandálias, chamadas huaraches, fazia um rumor leve de baratas a arrastarem-se no chão. Fora e dentro da multidão calma, corriam rapazes de pernas ao léu. Eram os irrequietos engraxadores, que pululam como moscas importunas naquela terra de gente descalça.
No lado sul, viam-se mesas e cadeiras no passeio: uma tentativa de café-esplanada- Aí, nos dias de semana, sentavam-se para tomar cerveja ou um copo de tequila as poucas pessoas que se atreviam a tamanha exibição - na maior parte estrangeiras. E ospeóns, imóveis nos bancos do último plano, observavam-nas com olhos de basilisco sob as largas abas do chapéu.
Mas ao sábado e ao domingo era quase festa. Chegavam carros aos solavancos, e, como pássaros exóticos, volteavam na plaza raparigas graciosas de vestidos vaporosos, faces empoadas e cabelos encaracolados. Passeavam de braço dado, trajadas de organdi vermelho ou azul, de musselina amarela ou cor-de-rosa, e com tal camada de pó-de-arroz na cara que a pele morena apresentava a brancura lívida dos palhaços ou dos cadáveres.
Adejavam como borboletas coloridas no meio da multidão de homens do povo. fortes e belos. Era restrito o número de mancebos elegantes que pudessem equiparar-se àquelas mocinhas. Contudo, havia alguns, de calças de flanela branca, casaco escuro, palhinhas e bengala. Fumavam cigarros com gesto afectado, falando um castelhano elegante, tão próximo quanto possível do original, e com o ar de que seriam dentro de doze meses sacrificados a algum deus mexicano depOis de estarem devidamente nédios e perfumados.
Ao sábado, os janotas, as raparigas e todos os que vinham de carro, da cidade - que, aliás, eram poucos - tentavam divertir-se nesse lúgubre país. Contratavam tocadores de viola e rabeca e a música de jazz elevava-se em acordes um tanto langorosos.
Debaixo das árvores da alameda, perto das mesas e das cadeiras do café, começavam pares a dançar à la mode. Os vestidos vermelhos, amarelos e azuis rodopiavam com as calças de flanela, donde saíam elegantes sapatos brancos guarnecidos de tiras de couro preto ou castanho. Algumas das saias de organdi encimavam meias e sapatos verdes, ou pernas à Ia nature com sapatos brancos. Os braços franzinos e morenos enlaçavam os ombros azuis-escuros dos moços, que sorriam com ar protector para as facezitas brancas e petulantes; sorrisos meigos, paternais e impregnados de sensualidade.
Mas a dança era no recinto da praça, e na praça erravam indolentes os homens do campo, ou então paravam em grupos, espiando os pares rodopiantes com os seus olhos pretos, misteriosos, impenetráveis. Em que pensariam? Sentiriam admiração, inveja, ou simplesmente uma silenciosa e fria oposição? Sim, oposição é que devia ser.
Esses camponeses de camisa branca e manta escarlate, airosamente dobrada ao ombro, passeavam devagar, quase ocultos sob o chapéu enorme e pesado, dispostos a não fazer caso dos que dançavam. Vagarosos, oscilando o corpo, eles moviam-se irresistivelmente no meio da dança como se a dança, no fim de contas, não existisse. E os rapazes de calças brancas, levando nos braços as damas de organdi, evolucionavam como podiam, fazendo o possível por se desviarem âospeóns impassíveis, que prosseguiam na sua conversa, sorrindo na alvura dos dentes, com um sangue-frio que gelava os próprios músicos. Nunca se tocavam, nunca se acotovelavam, dançarinos epeóns; no México ninguém se atropela involuntariamente. Mas a dança embatia contra a oposição invisível.
Os índios sentados nos bancos contemplavam também por momentos as evoluções dos bailarinos, após o que os fulminavam com a sua pesada indiferença. Misteriosa faculdade dos índios, tão densa e calma, para destruir a vida palpitante, para apagar qualquer foco de efervescência.
Na verdade, um simples bailarico de indígenas; mas dir-se-ia fechado dentro de quatro paredes. E o ritmo soava diferente, grave, com certa violência. Os dançarinos eram artífices, mecânicos ou carregadores da estação: gente meio citadina. Nenhuns trabalhadores do campo, ou quase nenhuns.
Por isso, passado não muito tempo, as borboletas de organdi e os moços de calças de flanela sucumbiram esmagados pela enorme passividade, pela resistência dos satânicos peóns.
Curiosa, radical oposição dos índios contra essa coisa a que chamamos espírito. É o espírito que leva as meninas petulantes a adejarem as suas asas de organdi como borboletas. É o espírito que vinca as calças de flanela dos rapazes e lhes dá aquele ar um tanto patético. Tentaram representar a elegância e a vontade do espírito moderno.
No entanto, como um peso de obsidiana, surge a recusa passiva do índio; compreende a vida, que participa do sangue, mas o espírito, que é superior, e é a marca da nossa civilização, isso ele repudia, barbaramente, torvamente. Só quando se torna operário ou lida com ofícios mecânicos é que o espírito moderno o visita.
E talvez seja esse repúdio do espírito moderno que faz o México ser o que é.
Kate ficou um tanto desconsolada ao ver findar o baile. Instalara-se numa das mesas, com Juana a servir-lhe de duena, para tomar um cálice de absinto.
Os carros regressavam à cidade em pequenos grupos. Sempre seria melhor irem juntos, para o caso de aparecerem salteadores. Dominava-os o receio dos bandidos, e os próprios janotas usavam revólver no bolso.
Como era sábado, parte da mocidade elegante ficou para o dia seguinte, na ideia de tomar banho e de se espojar ao sol.
A plaza estava cheia, e ao comprido das ruas que desembocavam no largo cintilavam inúmeros archotes, iluminando uma exposição de chapéus de palha, de esteiras, de pirâmides de laranjas.
Havia feira no domingo de manhã, de modo que, de repente, o largo ficou estuante de vida - densa e pesada energia vital. Os índios tinham vindo de todas as aldeias, trazendo consigo essa curiosa energia vital que parece zumbir cada vez mais profundamente quando eles se encontram reunidos.
Durante a tarde, com o vento a soprar do sul, as canoas, de casco preto e larga vela desfraldada, haviam atravessado as águas do lago, transportando indígenas e produtos para o mercado. Para formar essa multidão todas as aldeias da margem concorreram com os seus habitantes.
Despertava o instinto que impele os índios para a vida nocturna desde que se encontrem reunidos. Ninguém recolhia a casa, ninguém pensava em dormir, embora a feira só principiasse ao romper da manhã.
Cerca das nove horas, depois de terminada a dança, Kate ouviu o rufar de um tambor, ou coisa semelhante, e notou que uma chusma de peóns se dirigia para o lado mais escuro da praça, onde já se viam barracas e cestos enormes, em forma de ovo, encostados à parede.
Aquele som, que era como o latejar dum pulso de gigante repercutindo no ar da noite, juntou-se a nota prolongada de uma flauta, tocando uma espécie de melodia bárbara. Kate, que já ouvira falar dos cânticos selváticos dos peles-vermelhas do Arizona e do Novo
México, sentiu instantaneamente espalhar-se na atmosfera a eterna
paixão das raças pré-históricas com a sua intensa e complicada significação religiosa.
Olhou para Juana com ar interrogador.
- Que é isto? - perguntou.
- Músicos, cantores - foi a resposta evasiva.
- Mas muito diferentes dos outros - insistiu Kate.
- Sim, aquilo é coisa nova.
- Nova?
- Apareceu aqui há pouco tempo.
- Donde veio?
- Sabe-se lá! - volveu Juana, encolhendo os ombros.
- Quero ouvi-los.
- Olhe que são só homens.
- Podemos ficar um pouco afastadas.
E Kate dirigiu-se para o ajuntamento silencioso dos peóns. Estavam todos de costas para ela.
Subiu o degrau duma porta e viu, perto do muro florido de buganvílias, um espaço livre iluminado pelos archotes de madeira resinosa que um rapaz segurava nas duas mãos.
O tambor estava ao centro dessa clareira, e o homem que o rufava tinha o torso nu e calças de brancura imaculada atadas na cintura por uma faixa escarlate e aos tornozelos por cordão da mesma cor. Cingia-lhe a cabeça uma tira vermelha, donde se erguiam três penas rubras sobre a nuca. Na testa brilhava uma turquesa no meio dum círculo azul. O tocador de flauta também se apresentava sem camisa, mas dobrara sobre o ombro uma bela manta branca listada de azul e preto. Outros homens, despidos da cintura para cima, distribuíam folhetos aos espectadores, insinuando-se no meio da multidão. E todo o tempo, alta e pura, a estranha flauta de barro repetia a melodia bárbara, acompanhada pelo rufar do tambor.
Kate desceu do seu poleiro e avançou a medo. Queria um daqueles papéis. O homem deu-lho, sem sequer a olhar, e ela encaminhou-se para a luz a fim de o ler. Era uma espécie de balada, mas sem rimas, escrita em espanhol. No cimo da página via-se o desenho de uma águia cercada por uma serpente que mordia a cauda; curiosa variante do emblema mexicano, que é uma águia encarrapitada num cacto de folhas largas e com uma serpente nas garras. A certa distância, o círculo formado pelo réptil com a ave a meio dava a impressão dum olho.
Na região de Oeste
Em paz, para além dos raios brilhantes
Do Sol,
No silêncio onde nascem as águas
Dormia eu, Quetzalcoatl,
Na caverna chamada Olho Tenebroso, Vendo através do sol como por uma janela, Minha morada é lá. Onde as águas brotam E os ventos nascem.
Nas águas do Além
Levantei-me e vi uma estrela cadente.
E senti
Um sopro em minha face.
O sopro disse: Vai,
E eu vim.
Desci a longa encosta, Passei o monte do Sol, Até que descobri em baixo Os seios brancos da terra Do México: a esposa minha.
Entre os mares a minha esposa Penteia o cabelo preto Murmurando: Quetzalcoatl...
Adensara-se a multidão de homens; do centro elevava-se a luz avermelhada dos archotes, o ar embalsamava-se da resina de cedro. Kate não conseguia ver nada por causa dos chapéus enormes.
Calara-se a flauta; mas o tambor continuava as suas pancadas lentas, regulares, com o ritmo duma pulsação. Aquele som incompreensível, surdo, enfeitiçava o espírito, fazia bater o coração, aniquilava a vontade.
Os homens começaram a fatigar-se, sentando-se uns, acocorando-se outros, com o chapéu nos joelhos. Dir-se-ia um mar de cabeças escuras, ondulando para a frente, sobre os ombros vigorosos e levemente inclinados.
Perto do muro formara-se um círculo, com o tambor ao centro. O homem que o tocava, de dorso nu, premia o instrumento contra o corpo, e, curvado, as costas cintilavam-lhe ao clarão da noite. Junto dele estava outro homem a segurar uma bandeira que pendia duma haste leve. No campo azul do pano via-se o Sol amarelo a meio duma bola preta e, entre os quatro raios maiores, todos de ouro, quatro raios negros emergindo, o que fazia o astro assemelhar-se a uma roda que girasse num movimento ofuscante.
Sentara-se toda a gente. Os seis homens de tronco nu, que haviam distribuído os prospectos e convocado a multidão tinham já regressado e agora acomodavam-se de volta do rufador agachado. À direita deste ficava o porta-bandeira, à esquerda o flautista. Eram nove os do grupo, e faziam dez com o rapaz que vigiava os dois archotes, agora colocados em trípodes de cana.
A noite aprofundava-se em silêncio. Calara-se o murmúrio de vozes que enchia a praça. Debaixo das árvores, nos passeios, transitavam ainda pessoas indiferentes, mas pareciam estranhamente solitárias; figuras isoladas envoltas na luz pálida das lâmpadas eléctricas e fora do núcleo da vida.
No lado norte, as barracas continuavam iluminadas, faziam-se compras e vendas. Mas também essa banda do largo dava a impressão de estar muito longe da realidade actual.
Depois de os homens se sentarem, as mulheres avançaram timidamente e instalaram-se por sua vez na orla exterior do círculo. As saias rodadas espalhavam-se no chão, os xailes escuros moldavam-lhes a cabeça redonda e pequenina. Algumas, não ousando aproximar-se, ocuparam os bancos em volta. Outras, assim como muitos homens, haviam desaparecido aos primeiros rufos do tambor.
a plaza ficou como que deserta. Um grupo compacto rodeava o tambor; aquém, era o mundo externo, vazio e hostil. Somente na ruela escura que conduzia ao negrume do lago se viam alguns vultos erectos e silenciosos como fantasmas.
Sobre os degraus de uma porta, e com Juana a seus pés, Kate olhava fascinada para aqueles homens seminus iluminados pelo clarão dos archotes. Os seus corpos lisos e acobreados possuíam essa beleza índia um tanto assustadora. Os torsos magníficos, acetinados, desses entes silenciosos de cabeça um tanto pendida para a frente; os ombros largos, levemente descaídos pela inactividade da sua força; o tom quente e o brilho da pele; o peito vigoroso, tão viril e, no entanto, sem a dureza muscular dos homens brancos; as faces sombrias, impenetráveis, os bigodes pretos e as barbas ténues enquadrando o silêncio da boca fechada - tudo isto era impressionante, singular, despertava comoção.
Havia algo de reptilário na sua flexibilidade, qualquer coisa de terrível na sua mudez. Os troncos nus tinham a revesti-los uma sombra subtil, certa obscuridade misteriosa. Se fossem homens de raça branca seriam francamente musculados, com uma espécie de sinceridade no próprio físico. Aqueles não. A sua nudez só revelava a profundeza secreta da natureza, o eterno mistério.
Toda a gente se calara; intensificava-se o silêncio expectante, tornava-se tumular. Os homens de ombros nus mantinham-se imóveis, mergulhavam dentro de si mesmos e escutavam com os ouvidos do sangue. Sob as calças brancas atadas nos tornozelos, os pés metidos em Imaraches eram quase negros ao clarão dos archotes. Que pretendiam essas criaturas suaves e recolhidas e cuja importância, no entanto, era tão ponderosa, tão aliciante?
Kate sentia-se ao mesmo tempo atraída e repelida. Quase a fascinava o estranho poder magnético dos homens em círculo. Era como o núcleo duma vida nova, como uma jóia negra brilhando na escuridão. Mas parecia-lhe repulsiva aquela estranha opressão, esse afundar do espírito na terra, esse lento escoar duma água turva; repulsiva a densa e muda oposição ao rumo espiritual da gente branca. Contudo, ali e só ali a vida parecia arder com chama intensa.
No resto do mundo, Kate bem o sabia, tudo era vacuidade, esterilidade. Aqueles vultos avermelhados pelo clarão dos archotes representavam uma humanidade nova.
Kate sentia tudo isto, mas preferia manter-se à parte, evitar o contacto directo.
O porta-bandeira ergueu a cabeça como se fosse falar, mas não disse nada. Velho de barba e bigodes brancos a emoldurar-lhe os lábios escuros e carnudos, tinha a cara sulcada de rugas, como todas as pessoas idosas desse país. No entanto, os cabelos eram bastos, e o corpo ainda revelava força e virilidade. ! Os seus olhos negros olhavam sem ver. Talvez fosse realmente
cego; ou seria profunda abstracção que lhe dava aquele aspecto. Começou então a falar, numa voz lenta, clara e distante que parecia ser o eco dos últimos sons do tambor. - Homens, escutai-me! E vós. mulheres, escutai-me também. Há muito tempo, na calma da noite, o lago dirigiu um apelo aos seres humanos. Mas não existiam. Só os peixes pequeninos nadavam ao longo das margens, procurando fosse o que fosse, e os maiores saltavam fora de água para olhar em volta. Mas não existiam seres humanos.
Então um dos deuses de face velada saiu da água e subiu ao monte. (E o velho indicou a colina invisível nas trevas da noite. ao fundo da aldeia. Contemplou o Sol e viu através dele outro sol negro, o que criou o mundo e o absorverá de novo como uma gota de água. Disse: - Chegou o momento? - E quatro braços saíram do sol e da sua sombra surgiram homens. Viram os quatro braços no céu e principiaram a andar.
O deus do cimo da colina olhou para as montanhas e para as planícies e viu os homens anelantes, sequiosos. E disse-lhes: Vinde cá. Tendes aqui a minha água dulcificadora.
Correram como cães, de língua pendente, e ajoelharam-se na margem do lago. O deus do cimo da colina ouviu-os ofegar, de tanta água que beberam, e perguntou-lhes: - Não bebestes de mais? Ou tendes ainda os ossos secos?
í Os homens fizeram casas à borda do lago, e aquele que estava na colina, e que era um deus, ensinou-os a semear milho, feijão, e a construir barcos. Mas preveniu-os: - Nenhum barco vos salvará quando o sol negro deixar de estender os braços no céu.
O deus da colina disse ainda: - Sou Quetzalcoatl, aquele que vos humedece os lábios secos. Encho-vos o peito com um sopro do além-sol. Sou o vento que sai em turbilhão do centro da terra, sou o zéfiro que se enrosca como cobra em volta dos vossos pés, pernas e coxas, erguendo a cabeça da serpente do vosso corpo, onde reside a força humana. Tomai cuidado quando a serpente do corpo erguer a cabeça. Sou eu, Quetzalcoatl, que vos elevo, que vos elevo até ao sol das trevas, derradeira morada dos homens. Exceptuando o sol negro e os quatro braços nos céus, éreis ossos, e as estrelas eram ossos, e a Lua uma concha vazia numa praia seca, e o Sol amarelo uma taça vazia, semelhante ao crânio dum lobo. Portanto, tende cautela! Sem mim nada sois. Assim como eu nada sou sem o sol que está atrás do sol. Quando o sol de ouro estiver no zénite, dizei: Quetzalcoatl levante a sua mão e me abrigue dos raios, senão perecerei e a terra secará. Porque na palma da minha mão está a água da vida, e nas costas está a sombra da morte. Quando os homens me esquecem volto a mão e aparece a sombra da morte. Mas os homens esqueceram-me. Os seus ossos eram húmidos, o seu coração fraco. Quando a serpente do corpo erguia a cabeça, diziam assim: É a serpente amansada que nos obedece. E quando suportavam o ardor do sol, falavam nestes termos: O sol está zangado, quer absorver-nos; ofereçamos-lhe sangue de vítimas.
Os braços negros desapareceram do céu, e Quetzalcoatl envelhecia e lamentava-se, velando a face para a esconder dos homens.
Lamentava-se e dizia: - Deixai-me recolher à minha morada. Estou velho, quase sou apenas ossos. Os ossos triunfam em mim, o meu coração é uma cabaça vazia. Sinto-me cansado do México.
Então bradou ao sol negro, aquele de quem nunca se pronuncia o nome: - Estou um esqueleto, os Mexicanos renegam-me, de nada sirvo. Levai-me.
O sol negro estendeu o braço e elevou Quetzalcoatl até ao céu. Depois olhou em volta e viu a estrela de alva brilhando sem receio entre a vinda do sol dourado e a fuga da escuridão. E aquele, cujo nome jamais foi pronunciado, perguntou: - Quem és tu, guarda cintilante? E a estrela respondeu: - Outrora, no México, fui Quetzalcoatl. Agora contemplo as costas do sol amarelo e a face invisível da Lua, brilho entre o dia e a noite, esperando pela renovação.
E aquele cujo nome jamais foi pronunciado declarou: - Chegou a hora.
Assim o decretou, e eu a vós repito, homens e mulheres: Chegou a hora. Os que nos deixaram regressam, os que vieram retiram-se. Desejai a uns boas-vindas e dizei adeus aos outros.
Boas-vindas! Adeus!
O velho terminou o discurso com um grito meio sufocado, tal se na verdade se dirigisse aos deuses.
- Bienvenido! Bienvenido! Adiós! Adiós!
A própria Juana, sentada aos pés de Kate, bradava sem saber o que dizia:
- Bienvenido! Adiós! Adiós... n!
O último adios arrastou-se para rematar com o costumado "n". Começou o tambor a soar num ritmo insistente, e a flauta fez ouvir o seu grito estranho e longínquo. Tocavam a melodia singular que a irlandesa ouvira a princípio.
Então um dos homens do círculo entoou o hino. Cantava à maneira dos antigos Peles-Vermelhas, em voz contida mas intensa, como se se dirigisse à própria alma e não ao mundo exterior; como se cantasse na outra dimensão da existência dos homens, onde eles se encontram na extensão infinita que há dentro do eixo do nosso espaço rotativo. Espaço que, como o mundo, não pode deixar de se mover. E, tal o mundo, tem um eixo. O eixo do nosso espaço terreno, quando lá se penetra, é uma vastidão onde até as árvores vão e vêm, e a alma está à vontade no seu sonho, nobre e irrefutável.
O pulsar do tambor e o cântico íntimo arrastavam a alma para o centro do tempo, que é mais velho do que a própria velhice. O cantor começou por uma nota alta que repetiu demoradamente, fazendo-a percorrer ritmos subtis, na aparência desconexos, que o tambor acompanhava, e depois fê-la tremer, palpitar e dar um balanço brusco. Por muito tempo foi difícil distinguir qualquer melodia: dir-se-ia o uivo distante e esmaecido dum lobo. Era na verdade a música dos índios antigos.
Não se lhe encontrava harmonia, não se lhe reconhecia emoção. Apenas música, apenas um grito na noite, perfeito e longínquo. Mas ia direito à alma, à alma eterna e antiga, aí onde só pode a família humana encontrar-se em imediato contacto.
Kate logo o sentiu, e de forma fatídica. Seria inútil resistir, inútil fazer qualquer esforço. O som ia até ao âmago do ser, em que não existe esperança nem dor, mas só a paixão, que semelha uma ave no seu ninho, de asas dobradas, e a fé uma árvore de sombra.
Como o destino, como a sorte. A fé é a própria Árvore da Vida, inevitável, e os pomos estão ao nosso alcance: pomos dos olhos
- as pupilas -, pomos do queixo, do coração, dos seios, do ventre, dos quadris, dos joelhos, dos tornozelos. Que importa a mudança, a evolução? Somos a Árvore com os seus frutos, para todo o sempre. Verbum Sat.
Emudeceu o cantor, mas o tambor prosseguiu, fazendo vibrar subtilmente a membrana sensível da noite. Então, no círculo, de novo se elevou uma voz, depois outra, e outra, como pássaros voando de uma árvore. Elevaram-se as vozes - forte, pesado, intenso arrebatamento de vozes másculas, semelhante a um bando de aves negras subindo e descendo no ar, ao mesmo tempo. E cada ave preta dir-se-ia erguer-se do coração de um homem, do bosque secreto dos peitos masculinos.
Uma a uma, partiram também vozes da multidão, qual nova revoada de pássaros. A letra não tinha importância. Versos, palavras, simples sons - o canto era sempre o mesmo: violenta rajada saindo das cavernas do peito, das profundezas da alma eterna. Kate estava excessivamente intimidada para poder cantar, demasiadamente vencida pelas desilusões; mas sentia que o seu espírito fazia eco, seguindo o clamor do povo, tal a ave poliglota que imita as outras à noite. Contra sua vontade, Juana cantava também, num tom monótono, proferindo palavras à toa, inconsciente.
Os homens seminus começaram a agarrar as mantas: mantas brancas orladas de azul, com barras castanhas e franjas escuras. Da turba, levantou-se alguém, que se dirigiu para o lago. Voltou depois com um feixe de lenha trazido por um barco. Acendeu então uma fogueira pequena. Outro indivíduo se destacou para ir também buscar lenha: colocou-a diante do tambor, dentro do círculo, e fê-la crepitar. Por sua vez, uma mulher, descalça e de larga saia de algodão, principiou a arranjar a sua fogueira no meio das mulheres.
O ar estava bronzeado pelo clarão do lume; alastrava-se um fumo odorífero, como de incenso. Subiu e desceu o cântico, depois esmoreceu. Débil ecoou o som do tambor, e morreu por seu turno. No silêncio absoluto podia-se sentir a presença imóvel do lago sombrio.
Mais uma vez pulsou, vigoroso, o tambor. Um dos homens que estavam sentados, com o seu poncho branco debruado de azul e preto, ergueu-se de repente e, tirando as sandálias, começou a esboçar passos de dança, sem fazer o menor ruído. Dançava pesadamente, de pés nus, como se fosse enterrar-se pela terra abaixo. Sozinho, oscilava num ritmo estranho, calcando o chão, erguendo ora um ora outro dos joelhos de encontro às franjas escuras do poncho. Outro homem, encaminhando-se para o centro, pôs aí os huaraches, perto do fogo, e iniciou o seu bailado, enquanto o do tambor entoava um cântico selvático, tenebroso. Os restantes comparsas despojaram-se dos ponchos e, num instante, estavam de pé, e de torsos nus, descalços, repetiam aqueles passos que pareciam de ave. A luz da fogueira batia-lhes no peito, nas faces sombrias e extáticas.
"O que dorme acordará! O que dorme acordará! O que segue o trilho da serpente na poeira chegará ao seu posto; pelo trilho do pó chegará ao seu destino e revestir-se-á com a pele da serpente: revestir-se-á com a pele da serpente da terra, que é a criadora da pedra, que é criadora da pedra e do vigamento da terra; criadora do oiro, do ferro, da madeira da terra: dos ossos do pai da terra, da serpente do mundo, do coração do mundo que bate como uma cobra bate no pó, nos seus movimentos sobre a terra; do coração do mundo. Quem dorme despertará! Quem dorme despertará! Quem dorme despertará no caminho da serpente do pó da terra, da pedra da terra, do osso da terra."
O cântico parecia tomar novos voos audaciosos depois de baixar e sussurrar num último desmaio. Eram como ondas que se erguem do invisível, que tomam forma, alando-se, e desaparecem num rumor de aniquilamento. E os dançarinos, após terem girado em círculo, numa lenta e profunda absorção, iam um por um tomar o seu lugar, calcando o pó com os pés descalços, vagarosamente, e vagarosamente começavam a descrever uma ronda lenta em torno do fogo, sempre com os mesmos passos que se diria afundarem-se na terra. E o tambor ressoava numa palpitação sempre igual, como a de um coração humano. E o cântico soou e diminuiu, mais baixo e mais baixo numa espécie de extinção, para ainda uma vez tornar a levantar-se.
Até que os camponeses moços acharam impossível permanecer como estavam. Tiraram as sandálias, o chapéu, as mantas, e, timidamente, com pés inexperientes que no entanto conheciam as velhas pisadas, se puseram atrás dos outros bailadores e dançaram sem sair do seu lugar. Depressa o círculo revoluteante estabeleceu outro círculo de homens que envolveu o primeiro.
Então, de súbito, um dos dançarinos de tronco nu saiu do círculo interior e, penetrando no segundo, fê-lo girar em sentido inverso ao daquele. Deste modo houve duas rodas em movimento, uma dentro da outra, rodopiando em direcções opostas. Assim andaram, com o tambor e o canto, girando como rodas de sombra em volta do lume. Mas o lume extinguiu-se, e o tambor parou de repente, e os homens num instante se dispersaram, retrocedendo para os seus postos.
Houve silêncio, depois ouviu-se um murmúrio de vozes e risos. Kate muitas vezes pensara que o riso dos peóns se assemelhava a uma queixa; mas agora ele saltava como faúlhas invisíveis, bruscamente, da cinza das conversas.
Todos esperavam, e contudo ninguém se movia - até que o tambor vibrou de novo, como um sinal. Continuaram, porém, a tagarelar mas escutando, qual se possuíssem uma segunda consciência. Levantou-se um homem, desfez-se da manta e deitou lenha na fogueira central. Em seguida atravessou o grupo dos homens sentados e dirigiu-se ao das mulheres, que se apinhavam com as saias desdobradas. Esperou, sorrindo com ar abstracto, e logo se pôs de pé uma rapariga e se aproximou dele, apertando com a mão direita o xaile enrolado em torno da cabeça baixa. Estendendo a mão esquerda, pegou timidamente na do homem, que parecia inerte. Sorriu este e conduziu-a ao centro da roda, através do grupo dos que estavam sentados. Ela seguia de cabeça inclinada, escondendo o rosto pudibundo. Lado a lado, começaram a dançar, mal roçando as mãos e formando o primeiro pequenino segmento do círculo interior estacionário.
Ei-los agora todos, em pé, à espera de serem escolhidos. Rápidas, as mulheres, ocultando a testa no xaile, insinuavam-se junto deles e tomavam a mão do eleito. Dentro de pouco tempo já todos tinham dama. Fechara-se o círculo interior, com os homens e as mulheres aos pares, de mão dada.
- Venha, niña, venha! - disse Juana, fitando Kate com os seus olhos negros e brilhantes.
- Tenho medo - respondeu a irlandesa. E falava verdade.
Um dos de tronco nu atravessara a rua, afastando-se da multidão e detivera-se próximo da porta onde se achava Kate, que se calou e desviou a vista. E ficou esperando.
- Olhe, niña, um senhor que a procura. Venha, niña, venha!
A voz da criada descera de tom, capciosa, com esse apelo mágico das mulheres do povo. Os olhos pretos continuavam a cintilar-lhe estranhamente, fitos no rosto da patroa. Kate, quase hipnotizada, avançou em passos lentos e indecisos para o indivíduo que se mantinha à espera.
- Quer, realmente? - disse ela em inglês, bastante atrapalhada. E, com os seus dedos, tocou nos dedos dele.
Quase com indiferença, num gesto frouxo, a mão quente e máscula segurou os dedos de Kate e levou-a para a roda. Ela baixou a cabeça e desejou poder velar a face. No seu vestido branco e chapéu de palha verde, sentiu-se outra vez virgem, virgem juvenil. Aqueles homens concediam-lhe o dom de reencontrar a mocidade.
Acanhada, receosa, Kate procurou seguir a dança; mas escapava-lhe o ritmo, e os sapatos rígidos não a ajudavam. Movia-se confusamente.
Mas o seu par pegava-lhe na mão, embora com moleza, e oscilava, lento, o corpo todo, como um pêndulo de relógio. Dir-se-ia não fazer caso dela; contudo, segurava-lhe os dedos, de leve, numa pressão suavíssima.
Juana descartara-se dos sapatos e das meias. No rosto como uma máscara de lava, enrugado, escuro, as pupilas ardiam com a eterna chama da feminilidade, sombria e inextinguível. E já, com os pés, marcava o compasso da dança.
"Assim como o pássaro do sol fecunda a terra à alvorada tal uma fêmea morena sob os seus pés, com as dobras do ventre inclinadas aos pomos da geração, com os ovos de oiro, com os ovos que escondem o globo do sol nas águas do céu, na concha da terra que é o alvo do fogo do sangue, pisa tu também a terra e a terra conceberá qual a fêmea sob os pés do pássaro do sol. Pisa a terra, pisa a terra agachada e de asas encolhidas..."
A roda começou a girar e Kate foi-se movendo devagar entre dois homens silenciosos e absortos, cujos braços tocavam os seus. Um segurava-lhe os dedos, frouxa e brandamente, mas com transcendente afinidade. E o canto selvático subiu de novo como uma ave, e o tambor alterou o ritmo de modo incompreensível.
A outra roda era composta só de homens; Kate tinha a impressão de sentir nas costas o fulgor sombrio daqueles olhares. Os indivíduos já se não distinguiam, formavam como que uma única massa, em que ela própria se confundia.
Todos dançavam da mesma maneira, de cabeça baixa e olhar ausente, os homens absorvidos na sua virilidade, as mulheres na sua feminilidade. Somente o sexo prevalecia na sua mais alta concepção. Mar à superfície do globo movendo-se por cima dum mar nas entranhas da terra; águia evolucionando em silêncio sobre a própria sombra.
Kate sentia-se fundir nas águas revolutas de uma vida nova. Deixara de ser ela mesma para fazer parte de um todo, os seus desejos abismavam-se no mar do desejo colectivo. E assim o homem cujos dedos roçavam nos dela se engolfava no oceano de homens.
Lento mover de águas sobre águas, sem vestígio de espuma. Só a pura e deslizante conjunção.
Como era estranho ver-se submergida pelo desejo para além do próprio desejo, sentir-se integrada num corpo imenso para além do individualismo do corpo!
Não conhecia a cara do homem que lhe segurava nos dedos. Os seus olhos haviam cegado, e o rosto dele era um céu tenebroso. Mas do toque dos seus dedos nascia uma estrela, a estrela que os unia.
Os pés de Kate principiavam a marcar o compasso. Ela já sabia como deixar-se levar, abandonar a essência da sua vida, permitindo que lhe fugisse devagar, num escoamento rítmico, para o corpo negro da terra. Erecta, forte como o próprio esteio da vida, cedia no entanto a Seiva dessa força e fazia-a fluir para as raízes da terra.
Perdera a noção do tempo. A dança, porém, acalmava-se pouco a pouco, embora o ritmo permanecesse sempre o mesmo até ao fim.
Calaram-se as vozes, só o tambor continuou. Este, de súbito, produziu um rufo breve, e o silêncio foi geral. Logo as mãos se desataram, o baile parou de todo. O homem que a acompanhava sorriu-lhe e desapareceu. Jamais o reconheceria. Havia, no entanto, de lhe sentir a presença.
As mulheres afastaram-se, aconchegando os ombros com o xaile. Os homens dissimularam-se nas mantas. E Kate voltou à escuridão do lago.
- Já se vai embora, Niña? - perguntou Juana num tom que revelava certo descoroçoamento.
- Tenho de ir sem demora - replicou a patroa, estugando o passo. E a toda a pressa se encaminhou para as trevas do lago, com Juana na sua peugada, de sapatos e meias na mão.
Kate desejava reentrar em casa, com o seu novo segredo, o estranho segredo da feminilidade mais alta, a que ainda se não habituara. Precisava abandonar-se inteiramente àquele mistério.
Quase corria através do atalho interminável, na margem pedregosa e escura, apesar de a claridade das estrelas ser suficiente para revelar a forma sombria dos barcos que sulcavam a água mansa e turva. Noite eterna, sem horas! Kate não queria consultar o relógio, e até o virou no pulso a fim de não ver os ponteiros luminosos. Que o tempo a não governasse!
Ao adormecer, ouvia ainda o rufar do tambor, como um pulso que batesse nas entranhas da terra.

VIII
À entrada da casa de Kate elevava-se uma árvore enorme chamada cuenta por causa dos seus frutos pequeninos, redondos, duros e perfeitos de forma, que os indígenas apanhavam para fazer colares e, em especial, padre-nossos dos rosários. À noite, a rua ficava imersa em escuridão e só a queda das contas perturbava o silêncio.
Essas noites, que de começo pareciam calmas, amigáveis, encheram-se subitamente de terrores. Renascia o medo. Constituíra-se uma quadrilha de ladrões numa das aldeias do lago, cujos habitantes tinham má fama. Essa quadrilha, invisível durante o dia, compunha-se de pescadores e jornaleiros que, depois do anoitecer, montavam nos seus cavalos e iam assaltar casas solitárias ou mal guardadas.
O facto de saber que um bando de malfeitores rondava naquela região era o bastante para incitar os ladrões isolados a agir também. Fosse o que fosse que acontecesse, seria atribuído aos bandidos. Deste modo, mais de um indivíduo considerado honesto se deixava dominar pela cobiça e se escapulia à socapa armado de faca ou de pistola para se aproveitar igualmente da escuridão.
Kate sentia o terror condensar-se no silêncio da noite mexicana; silêncio tenebroso, tão profundo que se tornava sobressaltante, o som duma conta a cair. Deitada na cama, Kate escutava o mínimo rumor nas trevas densas. Ouviam-se ao longe apitos de polícia, daí a pouco passava a patrulha a cavalo. Mas, como acontece em quase toda a parte, a polícia nunca aparecia quando era precisa.
Aproximava-se a estação das chuvas, e o vento nocturno, vindo do lago, fazia sussurrar as árvores e abalava as portas desconjuntadas da casa. Os criados encafuavam-se nas suas dependências. No México, uma pequena distância isola-nos completamente desde que a noite desce; e ficamos perdidos na escuridão envolvente.
De manhã, Juana vinha da praça, com os seus olhos como gotas de tinta e, no rosto bronzeado, a expressão cansada dos entes submetidos ao medo. Logo de entrada, e na sua linguagem pouco compreensível, embrenhava-se na história de uma casa assaltada e de mulheres assassinadas. E a dona do hotel mandava dizer a Kate que não era prudente dormir sozinha em casa. Seria melhor passar a noite no hotel.
Toda a aldeia se encontrava sob estranha apreensão. Pairava no ar da noite um terror pânico. Renascia a confiança à claridade azul da manhã, mas ao anoitecer o sangue parecia coagular-se, a atmosfera tornava-se densa.
O medo, é claro, comunicava-se duns aos outros. Se Juana e a respectiva família não andassem cheias de pavor, Kate nunca sentiria medo, disso estava ela certa.
Ali não havia homens. Juana tinha dois filhos, Jesus, de vinte anos, e Ezequiel, de dezassete. Mas Jesus era quem tomava conta do motor da luz eléctrica, e tanto ele como Ezequiel dormiam na casa das máquinas. De modo que Juana ficava só com as duas filhas, Concha e Maria, no cubículo ao fundo da residência de Kate.
Antes, a plaza mantinha-se animada até às dez da noite, com gente a conversar ou a ouvir os moços tocadores de viola e o homem dos sorvetes a apregoar de contínuo: Nieve! Nieve!
Agora o largo esvaziava-se às nove horas. E havia ordem de prender quem fosse encontrado na rua depois das dez.
Kate corria para casa e trancava as portas. Não é fácil suportar o pânico de um povo meio bárbaro. O medo espalha-se no ar, envolve-nos, paralisa-nos a alma com a sensação de desgraça iminente, dum horror atroz.
Às dez horas cortavam a luz eléctrica, tudo ficava às escuras, e, deitada na cama, Kate sentia o sopro maléfico espraiando-se na atmosfera em vagas sucessivas.
Acudiam-lhe à memória todas as histórias arrepiantes passadas no país. E de novo pensava nessa gente de aspecto pacífico e sorriso doce. Mas o próprio Humboldt dissera a respeito dos mexicanos que nunca encontrara povo de sorriso tão suave e olhar tão feroz. Não que os olhos revelassem propriamente ferocidade; contudo, o seu negrume iluminava-se dum clarão frio, de cintilações de punhal nas trevas da noite, ao mesmo tempo que neles despertava a sede de homicídio.
Seres incompletos, não de todo criados, encontravam-se à mercê das velhas influências que jaziam como sedimento no fundo de cada um deles. Enquanto estavam calmos, eram simpáticos, bondosos, simples. Mas, se alguma coisa lhes revolvia as profundezas, logo se erguiam as nuvens tenebrosas de ódio e de morte.
Adivinhava-se-lhes na alma um ressentimento constante, como que uma ferida jamais cicatrizada. O ressentimento dos entes incapazes de conquistar sozinhos uma integridade individual fora do caos de paixões e forças mortíferas. Eram apanhados na engrenagem duma ansiedade ancestral como nos anéis duma serpente negra que lhes oprimisse o coração. Onerosa carga dum passado invencível.
E debaixo desse peso vivem e morrem, sem grande pena de morrer. Enredados nos elementos, não conseguem desenvencilhar-se. Queimados pelo sol excessivamente forte, sobrecarregados pela electricidade da atmosfera mexicana e atormentados pela erupção de vulcões que lhes rebentavam aos pés. Tremendos elementos do continente americano que tornam forte o corpo dos homens mas que esmagam a alma e impedem a sua elevação. E, se nalgum ela se eleva, os elementos maléficos a pouco e pouco a destroem, até que o homem se decompõe em ideias e actividades maquinais, num corpo cheio de energia mecânica mas de espírito morto e putrefacto.
Assim, esses seres incapazes de dominar os elementos, submetidos às forças do sol, da electricidade e das erupções vulcânicas, estão sujeitos a acessos de rancor e de ódio ardente à própria vida. Então, nada melhor do que enterrar uma faca num corpo vivo. Nenhuma volúpia iguala essa de cravar a lâmina e ver jorrar o sangue.
É a suprema satisfação duma raça presa a um passado de que não consegue libertar-se. Raça que não conhece Salvador nem Redenção. Quais mineiros enterrados vivos na derrocada duma mina, nações inteiras ficam sepultadas sob os escombros do passado - até que um salvador lhes mostre a saída para o sol.
Deitada na cama, Kate reflectia profundamente na'escuridão da noite, de ouvido atento aos menores ruídos que a enchiam de terror. Não podia refrear o coração; dir-se-ia que lho arrancavam, e o sofrimento era atroz. Pela primeira vez sentia medo físico, o sangue gelava-se-lhe nas veias.
Na Inglaterra, na Irlanda, durante a guerra e a revolução, conhecera o medo espiritual. O medo horrível da ralé; e durante a guerra as nações eram quase tudo ralé. O terror da canalha que pretendia acabar com a liberdade de pensamento em cada homem e em cada mulher. Era a ambição fria e colectiva de milhões de criaturas: aniquilar o espírito daqueles que resistiam e assim poderem iniciar a descida geral para as camadas interiores onde existe o culto do ouro e a volúpia de matar. A canalha.
Nesse tempo, Kate conhecera a agonia do medo social, como se a democracia fosse um polvo enorme que enlaçasse com os tentáculos quem lhe resistisse.
Agora o seu medo era doutra espécie. Sentia o coração doer-lhe, como se o arrancassem, o sangue parecia fugir-lhe das veias...
Dormitava, e acordou em sobressalto a um leve rumor. Sentou-se na cama. As portas que davam para a varanda tinham postigos, e estes encontravam-se escancarados a fim de arejar o quarto. Nessa abertura Kate distinguiu, recortando-se no céu escuro, uma forma negra semelhante a um gato que rastejasse no rebordo da janela.
- Que é? - perguntou ela maquinalmente.
No mesmo instante, aquilo moveu-se, deslizou para fora, e Kate percebeu que era o braço de um homem que tentava abrir o ferrolho interior da porta. Por uns segundos ficou paralisada, pronta a gritar. Então, como não pressentisse mais nada, inclinou-se e acendeu uma vela.
Era uma verdadeira agonia aquele terror pânico. Imobilizava-a, deslocava-lhe o coração... Ficou prostrada, no angustiante pavor nocturno. A vela projectava uma claridade lúgubre. Ouvia-se o ribombo longínquo de trovões. A noite era atroz, atroz, e o México horroroso.
Kate não conseguia dominar-se. "Estou à mercê disto", pensava. Sensação terrível, ver-se subjugada pelo medo.
"Que hei-de fazer?" perguntou a si mesma, reunindo coragem. Sabia que estava só.
Durante muito tempo sentiu-se incapaz de se mover. Então disse consigo, para se animar: "Creio no mal e não devo crer. O pânico e o assassínio são coisas que só sucedem quando perdemos o domínio de nós próprios. Não acredito verdadeiramente no mal. Acredito, sim, na existência dum poder supremo que nos comunica a sua força desde que tenhamos fé nele. O homem que queria entrar aqui não possuía essa força. Tentava ser maléfico, mas submeter-se-ia ao poder dominador."
Deste modo se ia tranquilizando, até que teve a coragem de se levantar e fechar os postigos. Em seguida, percorreu os quartos a fim de verificar se tudo estava trancado. E sentiu certo alívio ao compreender que temia tanto os escorpiões como a horrível sensação de pavor.
Depois de observar o fecho das cinco portas e das cinco janelas da ala de quartos comunicantes, Kate ficou encerrada nas trevas com a sua vela. Para o outro lado da casa, sala de jantar e cozinha, tinha de ir pela varanda.
Mais serena, embora ainda com o coração atormentado pelo medo, Kate reflectia. "Joachim afirmava que o mal provém de regressarmos aos costumes primitivos. É o que provoca roubos e assassínios. O tambor da noite de sábado evocava o ritmo da antiguidade e aquela dança selvagem era a velha forma de expressão. Regresso consciente à barbárie... Talvez a origem do mal..."
Mas logo intervinha o seu desejo de crer.
"Não! Temos de nos agarrar aos elos antigos, encontrar o impulso que nos relacionará de novo com o mistério do cosmos. Don Ramon tem razão. Ele deve ser um grande homem. Julguei que já não existissem grandes homens. Só grandes financeiros, grandes artistas, mas não grandes homens. Don Ramon deve ser um ente superior."
E Kate sentiu-se apaziguada a esta ideia.
Mas, logo que apagou a vela, surgiram clarões muito vivos através das fendas do postigo. Ribombaram trovões clamorosos, que pareciam afundar-se-lhe no coração. Kate sentia-se como que esmagada, na consciência duma tortura que a paralisou até de manhã e lhe deu a impressão de ser, ela própria, um destroço de naufrágio.
Por fim apareceu Juana, também com o ar de desenterrada, para lhe fazer a pergunta tradicional:
- Como passou a noite, Niña?
- Muito mal - respondeu Kate. E contou-lhe a história do gato preto e do braço do homem.
- Mire! - replicou Juana, sufocando a voz. - A inocentinha vai ser assassinada na cama. Não, niña, tem de passar a dormir no hotel. Não, Niña, não pode continuar com o postigo aberto. É impossível. Está a ver agora como é necessário que durma no hotel? Assim fazia a outra senhora.
- Não quero - declarou a patroa.
- Não quer, Niña? Ah, entonces, entonces... niña, vou dizer ao Ezequiel que venha dormir na soleira da porta, armado de revólver. Ele tem um revólver, pode ficar do lado de fora da porta, e a senhora já deixava a sua janela aberta, para lhe refrescar o quarto. Pobres de nós, mulheres, precisamos de um homem que tenha revólver. Não devemos estar sozinhas, toda a noite. Temos medo, e as crianças também têm medo. Imagine que um ladrão tenta arrombar o ferrolho da porta! Imagine! Não, niña, vai-se falar ao Ezequiel hoje mesmo, antes do meio-dia.
Ao meio-dia, Ezequiel compareceu, muito seguro de si. Era um rapaz, meio selvagem, mas dava largas passadas, empertigado e orgulhoso. A voz, na mudança própria da puberdade, tinha uma entoação estranha.
Ficou de pé, acanhado, ouvindo o que lhe recomendavam. Depois olhou para Kate com as pupilas negras e brilhantes, convicto do seu papel de salvador.
- Sim, sim - declarou. - Durmo aqui no corredor. Não tenha medo. Trago a pistola.
Saiu, e voltou com a arma, que era de cano comprido.
- Tem cinco cargas - participou, exibindo o revólver. - Se abrir a porta de noite, previna-me, porque, se eu vir mexer qualquer coisa, disparo os cinco tiros. Pum!, pum!
Pelo brilho do olhar do rapaz, Kate compreendeu quanto ele gostaria de fazer fogo sobre o que se movesse nas trevas. Não o preocupava a hipótese de ser alvejado por seu turno.
- niña - disse Juana - se voltar tarde para casa, depois de as luzes estarem apagadas, não se esqueça de chamar pelo Ezequiel. Senão... pum!, pum! Nunca se sabe quem pode ser a vítima.
Ezequiel dormiu sobre uma esteira na varanda de tijolos, defronte da porta de Kate. Enrolou-se num cobertor e conservou o revólver à mão. A senhora podia ficar de janela aberta. Na primeira noite, esteve muito tempo acordada por causa do ressonar estrondoso do rapaz. Nunca ela ouvira semelhante coisa! Que pulmões que ele devia ter! Dir-se-ia um som que viesse de outro mundo estranho e bárbaro. O barulho manteve-a desperta, mas havia naquilo um não sei quê de agradável. Algo semelhante a uma força bravia.

IX
Kate depressa se afeiçoou à negligente Juana e respectivas filhas. Concha tinha catorze anos. Era uma rapariga selvagem, entroncada, de cabeleira hirsuta que ela coçava constantemente. Maria, de onze anos, parecia um passarito, com olhos enormes que se diria absorverem toda a luz à sua volta.
Juana confessava que Jesus era filho doutro pai, mas o aspecto dos restantes fazia suspeitar ter cada um deles progenitor diferente. Toda a família, porém, mostrava igual despreocupação perante a vida. Viviam o dia-a-dia sem se importarem com o passado, nem com o presente, nem com o futuro. O dinheiro não lhes interessava. Assim que o recebiam gastavam-no, e logo o esqueciam.
Sem aspirações, sem objectivos, levavam existência absolutamente terre à terre no seu país sombrio e vulcânico. Não eram animais porque homens, mulheres e crianças não podem ser animais. Tal não nos foi concedido. Vai, e não voltes para trás - diz o Criador. Quando o homem tenta brutalmente tornar ao primeiro estado da evolução, fá-lo com espírito de crueldade.
Por isso os olhos negros daquela família revelavam certo medo, espanto e sofrimento. Angústia das criaturas humanas sem força para desenvolver as possibilidades do seu ser; incapazes de arrancar do caos a própria alma e indiferentes a qualquer outra vitória.
Também os brancos perdem a alma a pouco e pouco; mas conquistaram os mundos inferiores do metal e da energia e, graças às máquinas, lançam-se em corrida louca de roda da sua vacuidade.
Naquela família Kate encontrava algo de patético e de repugnante.
Desde que haviam aceitado niña como patroa, Juana e as filhas mostravam-se profundamente honestas. Honestas, a pontos de não tirarem uma única ameixa do fruteiro. E solícitas no serviço, de uma solicitude quase excessiva.
Viviam na sujidade, indiferentes ao ambiente. O chão era o seu caixote do lixo. Para ali arremessavam tudo o que consideravam inútil e ninguém se preocupava mais com isso. Pareciam 138
comprazer-se em viver no meio de pulgas e de trapos, de cascas de banana e caroços de manga. Um pedaço arrancado dum vestido - aí vai para o chão! Cabelos tirados do pente - chão com eles!
Kate não suportava aquilo. Afligia-a tamanha desordem, e o facto de ela se afligir divertiu imensamente a família mexicana. Mãe e filhas varreram então o pátio com uma vassoura de urze, até raspar a própria superfície da terra. Que engraçado, a niña preocupar-se com aquelas coisas!
Kate constituía para elas uma fonte de espanto e de divertimento. Não a consideravam pessoa de classe elevada. Era um ente meio incompreensível, meio espantoso.
Niña queria que o aquador lhe trouxesse todas as manhãs dois botes de água das nascentes térmicas para fazer abluções completas. Que esquisito! "Maria, diz ao aquador que corra a buscar água para a niña."
Quase se melindravam com o facto de ela se fechar no quarto para tomar banho. Era uma espécie de deusa, provocava-lhes alegria e admiração; mas devia ser sempre acessível. Kate depressa descobriu que um deus sempre acessível aos seres humanos passa bocados pouco invejáveis.
Não, aquilo não era nenhuma sinecura. De manhã começava o barulho da vassoura de urze lá fora. Kate deixava-se estar na cama, de portas fechadas e postigos abertos. Alvoroço no pátio. Alguém queria vender ovos. Onde está Niña? A dormir. O visitante não se retira e as conversas continuam.
O aquador! Ah, a água para o banho da niña. Está a dormir. "Não estou, não!" - grita Kate, enfiando o roupão e destrancando a porta. As pequenas entram com a tina, seguidas do aguadeiro com duas latas cheias de água quente. "Doze centavos, doze centavos para o aquador." No hay! Mais tarde, mais tarde. O homem vai-se embora, com a vara ao ombro. Kate fecha os postigos e começa a tomar banho.
- Niña!, Niña! - Que é?
- Quer ovos estrelados, quentes ou rancheros?
- Quentes.
- Café ou chocolate?
- Café.
- Ou prefere chá?
- Não, café.
O banho continua.
- Niña!
- Dize lá.
- Já não temos café. vou comprá-lo.
- Não é preciso. Tomarei chá.
- Não, niña, Eu vou. Espere por mim.
- Está bem, vai.
O primeiro almoço é na varanda. A mesa está posta, há pilhas de frutos, pão alvo e bolos.
- bom dia, niña. Como passou a noite? Maria, traze o café. vou meter os ovos na água. Oh, niña, eles não devem ficar cozidos... Meu Deus, que pés de Madona! Olhem, que bonitos!
E Juana inclina-se fascinada e, com o dedo escuro, toca nos pés acetinados de Kate metidos em leves sandálias seguras por uma única tira.
O dia tinha começado. Juana considera-se como inteiramente dedicada a Kate. Tão cedo quanto possível, expede as filhas para a escola. "Niña diz que é preciso ir para a escola. Não ouvem o que ela diz? Vamos, girem!"
No seu passo coxeante, Juana anda cá e lá na varanda, da cozinha para a mesa do almoço, transportando os pratos um por um. Depois, com grande espalhafato, começa a lavar a louça.
Manhã! O sol inunda o pátio, os cardeais e as folhas dilaceradas das bananeiras. Os pássaros voam em todos os sentidos com precipitação tropical. Na sombra densa das mangueiras passam índios vestidos de branco, semelhantes a espectros. Há um frémito de vida e, no entanto, o silêncio é opressivo. Os olhos deslumbram-se à claridade ofuscante, a alma sente-se oprimida.
Kate senta-se na varanda e finge coser. Surge um velho, segurando um ovo na mão, como qualquer símbolo. A patrona quereria comprá-lo por cinco centavos? Juana só dava quatro. De acordo? Onde está Juana?
Juana volta da praça com outras compras. O ovo! Quatro centavos! A conta das despesas. Entonces! Entonces! Luego! Luego. Ah, niña, no tengo memória.
Juana não sabia ler nem escrever. Todas as manhãs ia ao mercado, comprava uma porção de coisas de um ou dois centavos e todas as manhãs era preciso fazer contas. "Ah, onde é que nós íamos?
Não tenho memória nenhuma. Ora vejamos... Comprei três centavos de ocote... Quanto? Quanto soma agora, niña" Se faltava um centavo, ficava desolada e não falava noutra coisa. "Falta um centavo, niña? Sou estúpida, não sou? Mas eu dou-lhe um do meu dinheiro."
- Deixa lá, não penses mais nisso - dizia Kate.
- Mas eu quero pagar a diferença - insistia a mulher; e afastava-se, coxeando.
Uma hora depois elevava-se um grito no outro extremo da casa e Juana aparecia empunhando um ramo de salsa.
- Mire, niña! Compré perejil a un centavo. As contas estão certas agora?
- Estão - respondia Kate.
E a vida podia então retomar o seu curso. Existiam duas cozinhas: a anexa à sala de jantar, e a das criadas, numa espécie de barraca debaixo das bananeiras. Da varanda Kate via a abertura negra que fazia as vezes de janela na cozinha de Juana.
"Julgava Concha na escola!", disse Kate consigo mesma.
Mas não. No buraco escuro da janela distinguia-se o rosto moreno e a juba de Concha, espreitando para fora como um animal que saísse da toca, enquanto fazia as tortillas. Tortillas são uma espécie de filhos de milho. Preparam-nas batendo a massa na palma da mão até adquirir a lisura e leveza necessárias. Pouco depois do meio-dia via-se sair fumo pela janela: Concha lançava as tortillas cruas na frigideira de barro colocada sobre o lume.
Então Ezequiel aparecia, de manta sobre o ombro, chapéu de palha de grandes abas enroladas, pronto a comer as tortillas. No entanto, se trabalhava no campo, só chegava ao cair da noite. Sentava-se no degrau da porta e as mulheres serviam-no e iam-lhe buscar água como se ele fosse um rei. E ouvia-se-lhe a voz rouca dando ordens em tom calmo.
Porque, apesar do seu ar sereno e meigo, tomava uma entoação imperiosa desde que se dirigisse à mãe ou às irmãs. Prerrogativa de macho, que dava a Kate vontade de zombar do rapaz.
A hora da refeição era para Kate um dos seus tormentos. Apresentavam-lhe sopa muito quente e gordurosa, arroz apimentado, também gorduroso e fumegante, a inevitável carne nadando em gordura. Seguiam-se calabacitas, ou beringelas, salada, e o enorme cabaz de fruta. E, inundando tudo isso, o ardente sol tropical dos fins de Maio.
De tarde, o calor aumentava. Juana ia com as filhas lavar a loiça no lago. Agachadas sobre as pedras, agitavam na água cada prato, cada colher e cada garfo, e punham tudo a secar ao sol. Depois, enquanto Juana lavava uma ou duas rodilhas, as filhas banhavam-se no lago.
Jesus, o primogénito, costumava vir à tarde regar o jardim. Mas esse comia no hotel, onde prestava diversos serviços, trabalhando até às dez da noite por um salário de vinte e dois pesos, ou seja, onze dólares por mês. Usava camisa preta, e a cabeleira abundante tombava-lhe na testa baixa. Apesar da camisa fascista, possuía o espírito sarcástico e crítico dos socialistas, o espírito que vem do instinto de destruição.
Entre ele e a mãe existia pouca intimidade. Se Juana se encontrava em apuros, Jesus dava-lhe algum dinheiro mas, exceptuando o ténue laço de sangue que os unia, mostravam a maior indiferença um pelo outro.
Ezequiel tinha melhor tipo. Era esbelto, e tão direito que quase parecia arquear-se para trás. Tímido, arisco, orgulhoso, sentia-se mais responsável pela família. Não queria servir em hotéis. Não. Trabalhava nos campos, e tinha vaidade nisso: era labor de homem, não uma espécie de escravidão disfarçada.
Embora simples jornaleiro, não trabalhava para um patrão mas sim para a terra. E a terra, de certa maneira, era dele, pertencia-lhe...
Quando havia que fazer, chegava a ganhar um peso por dia. Se a terra estava seca, então procurava trabalho nas estradas, ainda que isso lhe não agradasse.
Mas nem sempre conseguia empregar-se. Durante dias, semanas, Ezequiel vagueava pelos arredores, sem nada que fazer. Quando o governo socialista dividiu as fazendas em lotes e os distribuiu pelos camponeses, coube-lhe um pedaço de terra fora da aldeia. O rapaz ia até lá e juntava pedras para construir um casebre. Cavava o chão tão profundamente quanto possível, mas não tinha amor a essa nesga de terreno que lhe viera parar às mãos de modo quase sobrenatural. Só lá ia de vez em quando, e sem nenhum entusiasmo.
Nos dias de trabalho regressava a casa por volta das seis horas e, cumprimentando Kate, timidamente, dirigia-se para o seu antro, onde, sentado no chão e de costas apoiadas à parede, dobrava tortillas umas sobre as outras e comia essa pasta elástica que tem o sabor de argamassa - pois o milho é primeiramente fervido com cal para largar a pele. Depois, dignava-se aceitar outra rima de fritos, que a irmã lhe apresentava numa folha de couve. Às vezes, Ezequiel tirava do tacho de barro um bocado de carne guisada que metia entre duas tortillas. Mas ingeria tudo rapidamente com uma espécie de indiferença. Aliás, os mexicanos parecem sempre indiferentes ao que comem.
Acabada a ceia, ia até à plaza, reunir-se aos homens. Havia ocasiões em que Kate, ao recolher a casa às nove horas, a encontrava quase deserta. Ezequiel estava no largo, Juana e Maria haviam desaparecido, e Concha dormia tal um molho de trapos no chão do pátio. Quando Kate a chamava, a pequena erguia a cabeça, espantada, entorpecida; depois, levantando-se como um cachorro, rastejava até ao portão.
Indiferença por tudo, até uns pelos outros. Juana lavava semanalmente uma camisa e um par de calças de algodão para cada um dos filhos, e aí terminavam os seus cuidados maternais. Nem se interessava averiguar qual o trabalho-de momento de Ezequiel. Sabia que arranjara emprego e isso lhe bastava. Contudo, de tempos a tempos, tinha ímpetos de amor materno, quando o rapaz era tratado injustamente, como às vezes acontecia. E, se o supunha doente, dominava-a um terror fatalista que só a abandonava depois de Kate intervir com qualquer remédio muito simples.
Semelhantes a animais. Mas os animais são perfeitos no seu isolamento e despreocupação; não se trata de indiferença, é que se bastam a si próprios. Ao passo que naquela família havia uma espécie de frustração, como se um torpor de aborrecimento a todos avassalasse.
As duas raparigas eram inseparáveis; andavam sempre atrás uma da outra. Concha arreliava de contínuo a inocente Maria de grandes olhos e esta debulhava-se em lágrimas. Ou então, no meio de uma fúria, ameaçavam-se com pedras, e Juana invectivava-as com súbita veemência, que logo se extinguia.
Estranha, aquela ferocidade repentina com que as pequenas arremessavam pedras, e não menos estranho, o esforço por não acertar. Kate notava a mesma coisa nos ataques selváticos que os garotos faziam uns aos outros nas margens do lago; atiravam calhaus com ar ameaçador, mas quase sempre falhavam o alvo.
Quase sempre, mas não sempre. Às vezes atingiam o adversário, que tombava como morto. Então os outros aproximavam-se, em silêncio temeroso, da vítima prostrada. De repente, o ferido erguia-se, com um esgar homicida no rosto, perseguindo o inimigo com uma pedra. E o inimigo fugia a sete pés.
Uma vontade perene de arreliar, de atormentar. O mesmo sucedia entre os Peles-Vermelhas. Mas o povo índio raramente recorria à violência, o que se não dava com os Mexicanos.
Kate, achando que devia fazer qualquer coisa pelas pequenas, dispensou-lhes uma hora por dia para lhes ensinar a ler, a redigir e a costurar. Maria queria aprender a ler; nisso mostrou boa vontade. Começaram bem, mas depressa a leve insistência de Kate em lhes chamar a atenção fez com que as alunas assumissem o tom de ironia peculiar ao continente americano. Ironia calma, invisível, malevolente, desejo de magoar.
- Não te debruces sobre mim, Concha. Põe-te direita.
- Porquê, niña Tem piolhos na cabeça?
A pergunta insolente era formulada com subtileza índia.
- Não! - respondia Kate subitamente irritada. - E agora vão-se embora! Afastem-se de mim.
E as pequenas retiravam-se, humilhadas.
Kate recebeu visitas de Guadalajara. Grande excitação! Mas enquanto tomava chá na varanda, Juana, Concha, Maria e Filipa, que era uma prima de dezasseis anos, sentaram-se no outro lado do pátio, bem à vista, com os belos cabelos soltos sobre os ombros, e, ostensivamente, puseram-se a catar piolhos umas às outras. Pareciam encantadas por exibirem a sua sordidez àqueles estrangeiros.
Kate desceu ao pátio.
- Se querem catar piolhos - disse em voz trémula de cólera - vão para onde ninguém as veja.
Atravessou um clarão de maldade os olhos negros de Juana, mas um instante depois, humilde e abjecta, a família retirava-se, de cabeleira ao vento, em direcção ao seu antro.
Juana comprazia-se em irritar Kate. Sentia assim uma espécie de poder sobre a Niña. É certo que temia um tanto essa irritação, mas era justamente o que desejava. De que servia uma niña que não lhe inspirasse algum receio?
Ah, raças escuras! Kate, como irlandesa, podia entrever um pouco do mistério. As raças escuras pertencem a um ciclo de humanidade já desaparecido; ficaram atrás, no fundo de um abismo donde nunca conseguiram sair. Jamais atingirão o nível dos brancos; limitam-se a segui-los de longe, como escravos.
Enquanto o homem branco avança, cheio de orgulho, as raças escuras cedem-lhe o passo e obedecem-lhe pela força. Se, porém, o branco hesita na sua marcha, logo os outros o atacam para o precipitar no abismo do passado.
É o que está a acontecer. Porque o branco, apesar de todas as farroncadas, duvida da sua própria supremacia.
E é a corrida veloz para a derrocada.
Desde a revolta de Kate perante a cena da caça aos piolhos, Juana voltou a servi-la com enternecedora solicitude. Embora indiferente a tudo, aquele ser das regiões inferiores não queria quebrar o débil fio que o ligava a Kate e ao mundo da claridade e do ar puro. Em suma, o desejo de Juana era conservar a sua niña, servir a sua Niña.
Ao mesmo tempo, parecia odiar a gente rica, branca e superior. De vez em quando contava a Kate histórias do passado. Então via-se-lhe uma expressão malévola nos olhos negros e na face acobreada, enquanto ela prosseguia: Usted sabe, niña, los gringos, los gringuitos llevan todo...
Os gringos são os Americanos, e Juana incluía Kate nos gringuitos, estrangeiros brancos. Aquela frase era nova insolência disfarçada, subtil...
- É possível - respondia Kate friamente. - Mas dize-me o que é que eu levo do México.
- Non, niña, non - Espalhava-se um sorriso de satisfação na cara de Juana quando ela conseguia atingir a outra mulher. Não me refiro a si, niña! - O protesto, porém, era pouco convincente.
Dir-se-ia que essas indígenas queriam obrigá-la a partir à força, insultando-a, rebaixando-a, até que a irlandesa, não menos impetuosa do que elas, abalasse dali num momento de fúria.
Oh, raças primitivas atrasadas!
Contudo, havia um lado patético na natureza daquela gente. Quando tinha catorze anos, Ezequiel trabalhara por conta de um sujeito que andava a construir casa. O homem prometera-lhe uma manta, mas ao fim de dois meses despediu-o sem cumprir a promessa. Foi uma desilusão bem amarga.
Kate nada tinha a ver com isso, mas Juana quase a acusava do facto.
Povo sem força para avançar, como podia deixar de ser explorado? Desde séculos que o exploravam cruelmente, e toda a sua energia se limitava a uma resistência malévola.
"Mas não pretendo explorá-los - dizia Kate consigo mesma.
- Pelo contrário, a minha vontade é dar-lhes mais do que recebo. São injustos os seus remoques. Nunca insultei estas criaturas. Faço a diligência de não as magoar e elas, deliberadamente, atacam-me e ficam radiantes quando me ferem."
No entanto, Kate procedia à sua maneira irlandesa: de vez em quando, isolava-se de Juana e das filhas. Porque, assim que as mandava para longe, desaparecia-lhes a malevolência e lembravam-se das ordens da niña. Se ela estava presente e amável, esqueciam-se de tudo. Esqueciam-se de varrer o pátio, de se apresentarem limpas, e só quando Kate as relegava para um canto é que tornavam a lembrar-se.
O filho Ezequiel tinha mais dignidade do que as mulheres.
Nunca fazia aqueles ataques insidiosos.
Quando a casa estava limpa e calma e o ar parecia purificado e a alma renovada, Kate sentia novamente amizade por essa família.
A sua azáfama, andando cá e lá, esvoaçando como pássaros; o estalo da massa das tortillas de encontro à palma da mão; o entusiástico esmagar de tomates e pimenta no tacho enquanto Juana preparava o molho; o barulho do balde no poço quando Jesus vinha regar...
Como isso era divertido! Assim devia ser tudo o que fizessem, ou então não o fariam. Não podiam fixar-se numa rotina. Jamais! Tudo devia ser alegre, variado, com uma pontinha de aventura. Era confusão, mas, no fim de contas, uma confusão viva, não uma coisa morta. Kate recordava-se dos seus criados britânicos nas cozinhas inglesas, tão maquinais e quase inumanos. Aqui era o extremo oposto.
Não havia disciplina nem método. Embora Juana e as filhas quisessem realmente fazer o que a niña desejava, só procediam conforme lhes apetecia. às vezes, Kate sentia-se angustiada. Mas, tanto quanto possível, ia suportando as extravagâncias daquela família. Tivera, por exemplo, de se habituar à vagabundagem da mesa de jantar, mesinha redonda cujo lugar era na varanda. Ao primeiro almoço, ficava discretamente debaixo das plantas, perto do salão; ao almoço da uma hora regressava à varanda; ao chá, ia para a relva do jardim, à sombra duma arvorezita. E, quanto à ceia, Juana deliberou então que a niña comesse os dois ovos e rancheros na própria casa de jantar, isolada a um canto da comprida mesa em que cabiam catorze pessoas.
Kate também nunca chegou a perceber o motivo por que, depois de lavarem a loiça na cozinha durante uns dias, se lembraram de repente de levar os pratos sujos para o lago, num cabaz, aos ombros de Concha. A não ser que achassem assim o trabalho mais divertido...
Crianças! Mas não inteiramente. Faltava-lhes a despreocupação da infância. Pressentia-se-lhes na alma qualquer coisa de sombrio, como que um peso que as forçava a resistir. Trabalhavam por acessos, podiam ser laboriosas; depois vinha a indolência e passavam horas estiradas no chão, como porcos. às vezes mostravam-se alegres, conversavam e riam, sentadas sobre a terra, em grupo, formando roda. Então, subitamente, contrariando a própria alegria, recaíam na mudez e na tristeza. Havia ocasiões em que, estando a trabalhar com afinco, atiravam para longe a ferramenta como se indignadas por terem cedido. Descuidados, versáteis nos seus amores, os homens, ao menos, passavam todo o tempo a resistir a si mesmos. Nunca procuravam o que pretendiam. As mulheres a que se aproximavam. E um rapaz e uma rapariga passeando às escuras na estrada marginal do lago, atiçando-se um ao outro, atormentando-se no meio de excitação, constituíam uma cena que deixava Kate pasmada - porque homens e mulheres não se cortejavam abertamente como fazem os brancos. E o riso súbito do macho, estranha voz de desejo reprimido, de obstinada relutância e paixão desesperada, parecia qualquer coisa a rasgar-se-lhe no peito, era um som que perdurava na memória.
Kate achava pesado o governo da casa. De certa maneira, eram como parasitas, queriam viver da sua vida, e rebaixá-la, rebaixá-la. Nalgumas ocasiões mostravam-se como pessoas meigas, generosas, encantadoras - até a fazerem novamente revoltar-se contra aquela indiferença reptilária. Indiferença e resistência.
Os servos forneciam a Kate a chave da vida indígena. Os homens sempre juntos, erectos, belos, equilibrando o chapéu enorme no alto da cabeça, quer sentados, quer de pé, quer de cócoras, numa impassibilidade de serpente; as mulheres sempre à parte, suaves, como que escondidas, estreitamente apertadas nos chailes escuros. Homens e mulheres pareciam voltar costas uns aos outros como se não quisessem ver-se mutuamente. Nenhuns galanteios, nenhum namoro. Apenas um olhar ocasional sombrio e rápido, sinal de desejo semelhante a um golpe de florete dado e recebido.
Elas, no conjunto, dir-se-iam inexperientes mas decididas a seguir o seu próprio desígnio: mudar de homens quando lhes apetecesse. E eles davam a impressão de não se preocuparem muito. Afinal eram as mulheres que pretendiam os homens.
As indígenas, com os negros cabelos tombados nas costas cheias e acobreadas, banhavam-se num canto da praia, geralmente em camisa ou com um saiote. Os homens mantinham-se alheados, nem sequer se dignavam olhar para a outra banda. Eram mulheres no banho, nada mais. Faziam parte, por assim dizer, da vida lacustre, como os peixes que ali nadavam. Concediam-lhes mesmo aquele ponto do lago, e elas sentavam-se nos baixios, isoladas como aves aquáticas, e molhavam a cabeça e os ombros com o auxílio duma cabaça.
Calmas, discretas, desprezadas fêmeas da classe dos peóns, seguindo o seu caminho envoltas no rebozo como num manto de trevas, ágeis, balançando as saias rodadas e gorjeando como passarinhos; ou paradas na borda do lago, com os cabelos longos a gotejarem; ou subindo lentamente a margem com uma pesada bilha de água ao ombro e um braço por cima da cabeça, a segurar a asa do cântaro; ou, especialmente nas tardes de domingo, sentadas à porta da casa, catando piolhos umas às outras. As moças possuidoras de cabeleira abundante e ondulada eram as que mais piolhos tinham. Aquilo representava um acto público meritório.
Parecia a Kate que esse país não podia originar nada de mais elevado do que a amizade entre os homens. O próprio casamento tinha pouca importância. E, embora se mostrassem meigos e protectores para com as crianças, os pais depressa as esqueciam.
A questão do sexo era no entanto a primordial, aquela que não devia ser omitida nem aflorada abertamente. O único mistério, muito maior do que o indivíduo. Este pouco contava.
Kate pasmava ao ver as choças de palha dos índios nas margens do lago. Ali fervilhavam crianças seminuas no chão de terra batida, no meio de trapos, de ossos, e do fedor de excremento humano.
Esse povo parecia não ter olfacto. E defronte do buraco que servia de porta à cabana, o homem impassível, magnífico, silencioso... Como era possível que tão belo exemplar de virilidade se mantivesse indiferente a tamanha porcaria?
Mas ali se conservava como inconsciente. Contudo, era um ser vivo - e forte. Nenhum homem no mundo pode transportar cargas tão pesadas como os índios do México. Kate vira já um deles passar na rua com um piano às costas, apenas seguro por uma correia em volta da testa.
Portanto, força não escasseava, mas sim energia. Nem sequer a classe dos artífices que imita a dos Estados Unidos demonstra ser enérgica. Têm os seus clubes, aperaltam-se e andam de braço dado com raparigas bonitas, mas percebe-se que tudo isso não passa de vulgar imitação.
Inesperadamente, a família de Kate aumentou. Um dia, chegou de Ocotlan uma formosa moça de 15 Primaveras, com grandes olhos bovinos, Maria del Carmen. Acompanhava-a Júlio, rapaz de vinte e dois anos. Tinham casado há pouco, e vinham de visita a Sayula. Júlio era primo de Juana. Poderiam dormir no pátio com ela e com as filhas? - perguntou Juana. Só se demorariam dois dias.
Kate ficou espantada. Maria Del Carmen devia ter sangue espanhol, a sua beleza evocava a Espanha. Parecia pertencer a um nível superior, mais educado, e no entanto ia dormir no chão com esse esposo juvenil... E ele, tão aprumado e de ar tão orgulhoso, nada possuía além duma velha manta.
- Há três quartos desocupados - disse Kate. - Que durmam num deles. - As camas eram de pessoa só. - Precisarão de mais cobertores?
Não. Bastaria a manta de Júlio.
Este era assentador de tijolos, isto é, ajudava a construir as paredes das casas de adobe. Nascera em Sayula e vinha ali de visita.
Essa visita, no entanto, prolongou-se. Júlio andava à procura de trabalho e só aparecia ao anoitecer. Maria del Carmen entretinha-se a amassar tortillas na cozinha de Juana e a conversar com as raparigas. À noite, o marido regressava e, sentado no chão, de costas apoiadas à parede, sempre impassível, deixava a mulher acariciar-lhe os cabelos negros e bastos.
Amavam-se, mas Júlio resistia ao seu amor.
Ela queria voltar para Ocotlan, onde era mais señorita do que em Sayula, mas o rapaz recusou. Não tinha dinheiro; o casal sustentava-se com cerca de cinco cêntimos por dia.
Quando Kate estava a coser, Maria del Carmen, que nem sabia talhar uma camisa, observava-a de olhos arregalados. Kate ensinou-lhe costura, comprou-lhe uns metros de chita e Maria del Carmen fez um vestido com as suas mãos.
Júlio arranjou trabalho, a um peso por dia, e a visita continuou. Kate achava o rapaz pouco terno para a mulher: sempre que lhe falava era em tom de comando. E Maria del Carmen não levava isso a bem e amuava um pouco.
Passaram-se semanas, e Juana começava a cansar-se dos parentes.
Por fim, Júlio arrendou uma casita de adobe só de um compartimento, ao preço de peso e meio por semana. Maria del Carmen ia ter o seu lar.
Kate viu-os juntar as suas coisas para a mudança. Consistia tudo numa esteira de palha, três tachos de barro, cinco peças de loiça, duas colheres de pau, uma faca e a manta de Julio. Nada mais.
Presenteou-os, então, Kate com um edredão de seda já um tanto puída, duas tigelas e diversos utensílios de cozinha. Foi uma alegria. A voz de Maria del Carmen soava no pátio em exclamações delirantes. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"
Na época das chuvas as noites são por vezes glaciais devido à evaporação, e os indígenas, transidos de frio, esperam pelo romper da manhã deitados sobre esteiras delgadas e abafados apenas com a ponta de um cobertor velho. A inércia natural fá-los suportar o sofrimento sem tentar minorá-lo. Podiam arranjar um colchão de palha de milho e cobrirem-se com folhas secas de bananeira. Mas não. Estendem-se numa esteira em cima da terra húmida e tiritam de frio noite após noite.
Maria del Carmen, porém, era um pouco mais civilizada. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"

CONTINUA

VII
Sayula era uma pequena estação balnear; não para ricos ociosos, porque o México os tem em pouca quantidade, mas para comerciantes de Guadalajara e gente que passeia nos fins-de-semana. E mesmo assim em reduzido número.
Havia, no entanto, dois hotéis, que vinham dos dias calmos de Don Porfirio, tal como a maior parte das vivendas fora da povoação, hoje fechadas e muitas delas abandonadas. Na aldeia viviam em perpétuo estado de terror. Acima de tudo temiam os bandidos e os bolchevistas.
Os bandidos eram apenas homens das localidades afastadas que, sem dinheiro, sem trabalho e sem esperança faziam ocasionalmente profissão do roubo e do assassínio. Habitavam nas suas aldeias selvagens até que as tropas os obrigavam a refugiar-se nas montanhas ermas ou nas regiões pantanosas.
Quanto aos bolchevistas, pareciam nascer do caminho de ferro. Onde houvesse carris, passageiros e carruagens de diferentes classes, aí despertava o espírito de rebelião e inveja; e o ferro e as demoníacas locomotivas ofegantes dir-se-ia engendrarem esses filhos do materialismo que são os bolchevistas.
Sayula possuía o seu ramal, com um comboio diário; a linha não cobria as despesas e lutava por se manter - mas já era bastante.
Sayula fora atingida pela loucura da América: o automóvel. Assim, como outrora os homens desejavam um cavalo e uma espada e as mulheres sonhavam com uma casa ou um camarote no teatro, a ambição actual é possuir um carro.
Era um desfile contínuo de "máquinas", de automóveis ligeiros e pesados na única estrada que ligava Sayula a Guadalajara. Uma esperança, uma fé, um objectivo: andar de carro, possuir um carro.
Quando Kate chegou à aldeia, falavam com certo alarme do regresso dos bandidos, mas a irlandesa não prestou a mínima atenção ao assunto. À noite, foi àplaza e misturou-se com o povo. Era um largo ornado de árvores imponentes, com um velho coreto no centro e um passeio em volta. No lado norte ficava o mercado. Mais além, passavam burros e camionetas nas ruas mal calcetadas.
A banda de música já não tocava em Sayula, a elegância já não se exibia naplaza, debaixo das árvores. Mas o pavimento ainda era bom e os bancos mais ou menos sólidos. Oh, tempos de Don Porfirio! Agora, só os peóns e os índios, com os seus fatos brancos e manta ao ombro, enchiam os bancos e monopolizavam a praça. É certo que se mantinha a lei que obrigava os peóns, naquelas paragens, a usar calças e não a espécie de ceroulas largas e flutuantes das suas lides rurais. Mas os peóns, por seu lado, também gostavam de envergar calças em vez daquele traje representativo do humilde labor do campo.
Eram eles, pois, quem dominava na praça, ora sentados em bancos ora passeando indolentes com a sua manta e de sandálias. Depois das seis horas, enchiam-se as barracas de comida quente, na rua calcetada do lado norte: ficava mais barato comer fora de casa e findava-se agradavelmente um dia de trabalho. As mulheres, de portas adentro, que ficassem a mastigar as suas tortillas; mas não provavam caldo, nem sopa, nem guisado. Nas tendas que vendiam tequila, instalavam-se homens, mulheres e rapazes defronte da mesa, em bancos, acotovelando-se uns aos outros. Também havia jogos de azar, pouco violentos, em que o banqueiro voltava uma carta e todos gritavam: Cinco de Espadas! Rei de Copas! Certa mulher corpulenta, imperturbável, de cigarro na boca e perigosa expressão nos olhos sombrios e baixos, vendia tequila, sentada ao escuro, toda a noite. O homem dos doces ficava de pé junto do seu balcão. Por terra, viam-se pequenos archotes metidos em latas, alumiando montes de mangas ou daquelas nauseabundas ameixas tropicais, encarnadas, que se liquidavam por dois ou três centavos a pilha, enquanto a vendedora, de saia larga, ou o vendedor, humilde e paciente, esperava acocorado o freguês, com aquela indiferença fatal e aquela submissão que tanto intrigam o estrangeiro. Ter ameixas para vender no valor de trinta cêntimos; amontoá-las no chão em pequenas pirâmides, cinco em cada uma; e esperar todo o dia e até de noite, de cócoras, a olhar de baixo para cima, para a cara do transeunte e possível comprador - eis, ao que parece, uma ocupação e um modo de vida.
Era vulgar encontrar-se ali um par de rapazes empunhando violas de tamanho diverso, em frente um do outro como dois galos combatentes; entoavam uma canção interminável, cantando em voz sumida as eternas baladas não muito musicais, dolorosas, extensas, audíveis apenas para os que estavam próximos. E assim se conservavam até enrouquecerem. Em volta, com mantas encarnadas, paravam homens altos e escuros, ouvindo por instantes e raramente contribuindo com um centavo.
Entre as barracas de comes e bebes estava um trio de duas violas e uma rabeca; dois dos músicos eram cegos e cantavam em diapasão alto, mas também de modo pouco audível. Dir-se-ia cantarem só para si, muito chegados um ao outro, como se a melancólica balada lhes repercutisse no peito.
A aldeia em peso comparecia naplaza. No entanto, raramente, muito raramente uma voz se erguia acima do murmúrio grave dos homens, do sussurro musical das mulheres, do gorjeio das crianças. Poucos movimentos apressados. O lento passeio dos homens de sandálias, chamadas huaraches, fazia um rumor leve de baratas a arrastarem-se no chão. Fora e dentro da multidão calma, corriam rapazes de pernas ao léu. Eram os irrequietos engraxadores, que pululam como moscas importunas naquela terra de gente descalça.
No lado sul, viam-se mesas e cadeiras no passeio: uma tentativa de café-esplanada- Aí, nos dias de semana, sentavam-se para tomar cerveja ou um copo de tequila as poucas pessoas que se atreviam a tamanha exibição - na maior parte estrangeiras. E ospeóns, imóveis nos bancos do último plano, observavam-nas com olhos de basilisco sob as largas abas do chapéu.
Mas ao sábado e ao domingo era quase festa. Chegavam carros aos solavancos, e, como pássaros exóticos, volteavam na plaza raparigas graciosas de vestidos vaporosos, faces empoadas e cabelos encaracolados. Passeavam de braço dado, trajadas de organdi vermelho ou azul, de musselina amarela ou cor-de-rosa, e com tal camada de pó-de-arroz na cara que a pele morena apresentava a brancura lívida dos palhaços ou dos cadáveres.
Adejavam como borboletas coloridas no meio da multidão de homens do povo. fortes e belos. Era restrito o número de mancebos elegantes que pudessem equiparar-se àquelas mocinhas. Contudo, havia alguns, de calças de flanela branca, casaco escuro, palhinhas e bengala. Fumavam cigarros com gesto afectado, falando um castelhano elegante, tão próximo quanto possível do original, e com o ar de que seriam dentro de doze meses sacrificados a algum deus mexicano depOis de estarem devidamente nédios e perfumados.
Ao sábado, os janotas, as raparigas e todos os que vinham de carro, da cidade - que, aliás, eram poucos - tentavam divertir-se nesse lúgubre país. Contratavam tocadores de viola e rabeca e a música de jazz elevava-se em acordes um tanto langorosos.
Debaixo das árvores da alameda, perto das mesas e das cadeiras do café, começavam pares a dançar à la mode. Os vestidos vermelhos, amarelos e azuis rodopiavam com as calças de flanela, donde saíam elegantes sapatos brancos guarnecidos de tiras de couro preto ou castanho. Algumas das saias de organdi encimavam meias e sapatos verdes, ou pernas à Ia nature com sapatos brancos. Os braços franzinos e morenos enlaçavam os ombros azuis-escuros dos moços, que sorriam com ar protector para as facezitas brancas e petulantes; sorrisos meigos, paternais e impregnados de sensualidade.
Mas a dança era no recinto da praça, e na praça erravam indolentes os homens do campo, ou então paravam em grupos, espiando os pares rodopiantes com os seus olhos pretos, misteriosos, impenetráveis. Em que pensariam? Sentiriam admiração, inveja, ou simplesmente uma silenciosa e fria oposição? Sim, oposição é que devia ser.
Esses camponeses de camisa branca e manta escarlate, airosamente dobrada ao ombro, passeavam devagar, quase ocultos sob o chapéu enorme e pesado, dispostos a não fazer caso dos que dançavam. Vagarosos, oscilando o corpo, eles moviam-se irresistivelmente no meio da dança como se a dança, no fim de contas, não existisse. E os rapazes de calças brancas, levando nos braços as damas de organdi, evolucionavam como podiam, fazendo o possível por se desviarem âospeóns impassíveis, que prosseguiam na sua conversa, sorrindo na alvura dos dentes, com um sangue-frio que gelava os próprios músicos. Nunca se tocavam, nunca se acotovelavam, dançarinos epeóns; no México ninguém se atropela involuntariamente. Mas a dança embatia contra a oposição invisível.
Os índios sentados nos bancos contemplavam também por momentos as evoluções dos bailarinos, após o que os fulminavam com a sua pesada indiferença. Misteriosa faculdade dos índios, tão densa e calma, para destruir a vida palpitante, para apagar qualquer foco de efervescência.
Na verdade, um simples bailarico de indígenas; mas dir-se-ia fechado dentro de quatro paredes. E o ritmo soava diferente, grave, com certa violência. Os dançarinos eram artífices, mecânicos ou carregadores da estação: gente meio citadina. Nenhuns trabalhadores do campo, ou quase nenhuns.
Por isso, passado não muito tempo, as borboletas de organdi e os moços de calças de flanela sucumbiram esmagados pela enorme passividade, pela resistência dos satânicos peóns.
Curiosa, radical oposição dos índios contra essa coisa a que chamamos espírito. É o espírito que leva as meninas petulantes a adejarem as suas asas de organdi como borboletas. É o espírito que vinca as calças de flanela dos rapazes e lhes dá aquele ar um tanto patético. Tentaram representar a elegância e a vontade do espírito moderno.
No entanto, como um peso de obsidiana, surge a recusa passiva do índio; compreende a vida, que participa do sangue, mas o espírito, que é superior, e é a marca da nossa civilização, isso ele repudia, barbaramente, torvamente. Só quando se torna operário ou lida com ofícios mecânicos é que o espírito moderno o visita.
E talvez seja esse repúdio do espírito moderno que faz o México ser o que é.
Kate ficou um tanto desconsolada ao ver findar o baile. Instalara-se numa das mesas, com Juana a servir-lhe de duena, para tomar um cálice de absinto.
Os carros regressavam à cidade em pequenos grupos. Sempre seria melhor irem juntos, para o caso de aparecerem salteadores. Dominava-os o receio dos bandidos, e os próprios janotas usavam revólver no bolso.
Como era sábado, parte da mocidade elegante ficou para o dia seguinte, na ideia de tomar banho e de se espojar ao sol.
A plaza estava cheia, e ao comprido das ruas que desembocavam no largo cintilavam inúmeros archotes, iluminando uma exposição de chapéus de palha, de esteiras, de pirâmides de laranjas.
Havia feira no domingo de manhã, de modo que, de repente, o largo ficou estuante de vida - densa e pesada energia vital. Os índios tinham vindo de todas as aldeias, trazendo consigo essa curiosa energia vital que parece zumbir cada vez mais profundamente quando eles se encontram reunidos.
Durante a tarde, com o vento a soprar do sul, as canoas, de casco preto e larga vela desfraldada, haviam atravessado as águas do lago, transportando indígenas e produtos para o mercado. Para formar essa multidão todas as aldeias da margem concorreram com os seus habitantes.
Despertava o instinto que impele os índios para a vida nocturna desde que se encontrem reunidos. Ninguém recolhia a casa, ninguém pensava em dormir, embora a feira só principiasse ao romper da manhã.
Cerca das nove horas, depois de terminada a dança, Kate ouviu o rufar de um tambor, ou coisa semelhante, e notou que uma chusma de peóns se dirigia para o lado mais escuro da praça, onde já se viam barracas e cestos enormes, em forma de ovo, encostados à parede.
Aquele som, que era como o latejar dum pulso de gigante repercutindo no ar da noite, juntou-se a nota prolongada de uma flauta, tocando uma espécie de melodia bárbara. Kate, que já ouvira falar dos cânticos selváticos dos peles-vermelhas do Arizona e do Novo
México, sentiu instantaneamente espalhar-se na atmosfera a eterna
paixão das raças pré-históricas com a sua intensa e complicada significação religiosa.
Olhou para Juana com ar interrogador.
- Que é isto? - perguntou.
- Músicos, cantores - foi a resposta evasiva.
- Mas muito diferentes dos outros - insistiu Kate.
- Sim, aquilo é coisa nova.
- Nova?
- Apareceu aqui há pouco tempo.
- Donde veio?
- Sabe-se lá! - volveu Juana, encolhendo os ombros.
- Quero ouvi-los.
- Olhe que são só homens.
- Podemos ficar um pouco afastadas.
E Kate dirigiu-se para o ajuntamento silencioso dos peóns. Estavam todos de costas para ela.
Subiu o degrau duma porta e viu, perto do muro florido de buganvílias, um espaço livre iluminado pelos archotes de madeira resinosa que um rapaz segurava nas duas mãos.
O tambor estava ao centro dessa clareira, e o homem que o rufava tinha o torso nu e calças de brancura imaculada atadas na cintura por uma faixa escarlate e aos tornozelos por cordão da mesma cor. Cingia-lhe a cabeça uma tira vermelha, donde se erguiam três penas rubras sobre a nuca. Na testa brilhava uma turquesa no meio dum círculo azul. O tocador de flauta também se apresentava sem camisa, mas dobrara sobre o ombro uma bela manta branca listada de azul e preto. Outros homens, despidos da cintura para cima, distribuíam folhetos aos espectadores, insinuando-se no meio da multidão. E todo o tempo, alta e pura, a estranha flauta de barro repetia a melodia bárbara, acompanhada pelo rufar do tambor.
Kate desceu do seu poleiro e avançou a medo. Queria um daqueles papéis. O homem deu-lho, sem sequer a olhar, e ela encaminhou-se para a luz a fim de o ler. Era uma espécie de balada, mas sem rimas, escrita em espanhol. No cimo da página via-se o desenho de uma águia cercada por uma serpente que mordia a cauda; curiosa variante do emblema mexicano, que é uma águia encarrapitada num cacto de folhas largas e com uma serpente nas garras. A certa distância, o círculo formado pelo réptil com a ave a meio dava a impressão dum olho.
Na região de Oeste
Em paz, para além dos raios brilhantes
Do Sol,
No silêncio onde nascem as águas
Dormia eu, Quetzalcoatl,
Na caverna chamada Olho Tenebroso, Vendo através do sol como por uma janela, Minha morada é lá. Onde as águas brotam E os ventos nascem.
Nas águas do Além
Levantei-me e vi uma estrela cadente.
E senti
Um sopro em minha face.
O sopro disse: Vai,
E eu vim.
Desci a longa encosta, Passei o monte do Sol, Até que descobri em baixo Os seios brancos da terra Do México: a esposa minha.
Entre os mares a minha esposa Penteia o cabelo preto Murmurando: Quetzalcoatl...
Adensara-se a multidão de homens; do centro elevava-se a luz avermelhada dos archotes, o ar embalsamava-se da resina de cedro. Kate não conseguia ver nada por causa dos chapéus enormes.
Calara-se a flauta; mas o tambor continuava as suas pancadas lentas, regulares, com o ritmo duma pulsação. Aquele som incompreensível, surdo, enfeitiçava o espírito, fazia bater o coração, aniquilava a vontade.
Os homens começaram a fatigar-se, sentando-se uns, acocorando-se outros, com o chapéu nos joelhos. Dir-se-ia um mar de cabeças escuras, ondulando para a frente, sobre os ombros vigorosos e levemente inclinados.
Perto do muro formara-se um círculo, com o tambor ao centro. O homem que o tocava, de dorso nu, premia o instrumento contra o corpo, e, curvado, as costas cintilavam-lhe ao clarão da noite. Junto dele estava outro homem a segurar uma bandeira que pendia duma haste leve. No campo azul do pano via-se o Sol amarelo a meio duma bola preta e, entre os quatro raios maiores, todos de ouro, quatro raios negros emergindo, o que fazia o astro assemelhar-se a uma roda que girasse num movimento ofuscante.
Sentara-se toda a gente. Os seis homens de tronco nu, que haviam distribuído os prospectos e convocado a multidão tinham já regressado e agora acomodavam-se de volta do rufador agachado. À direita deste ficava o porta-bandeira, à esquerda o flautista. Eram nove os do grupo, e faziam dez com o rapaz que vigiava os dois archotes, agora colocados em trípodes de cana.
A noite aprofundava-se em silêncio. Calara-se o murmúrio de vozes que enchia a praça. Debaixo das árvores, nos passeios, transitavam ainda pessoas indiferentes, mas pareciam estranhamente solitárias; figuras isoladas envoltas na luz pálida das lâmpadas eléctricas e fora do núcleo da vida.
No lado norte, as barracas continuavam iluminadas, faziam-se compras e vendas. Mas também essa banda do largo dava a impressão de estar muito longe da realidade actual.
Depois de os homens se sentarem, as mulheres avançaram timidamente e instalaram-se por sua vez na orla exterior do círculo. As saias rodadas espalhavam-se no chão, os xailes escuros moldavam-lhes a cabeça redonda e pequenina. Algumas, não ousando aproximar-se, ocuparam os bancos em volta. Outras, assim como muitos homens, haviam desaparecido aos primeiros rufos do tambor.
a plaza ficou como que deserta. Um grupo compacto rodeava o tambor; aquém, era o mundo externo, vazio e hostil. Somente na ruela escura que conduzia ao negrume do lago se viam alguns vultos erectos e silenciosos como fantasmas.
Sobre os degraus de uma porta, e com Juana a seus pés, Kate olhava fascinada para aqueles homens seminus iluminados pelo clarão dos archotes. Os seus corpos lisos e acobreados possuíam essa beleza índia um tanto assustadora. Os torsos magníficos, acetinados, desses entes silenciosos de cabeça um tanto pendida para a frente; os ombros largos, levemente descaídos pela inactividade da sua força; o tom quente e o brilho da pele; o peito vigoroso, tão viril e, no entanto, sem a dureza muscular dos homens brancos; as faces sombrias, impenetráveis, os bigodes pretos e as barbas ténues enquadrando o silêncio da boca fechada - tudo isto era impressionante, singular, despertava comoção.
Havia algo de reptilário na sua flexibilidade, qualquer coisa de terrível na sua mudez. Os troncos nus tinham a revesti-los uma sombra subtil, certa obscuridade misteriosa. Se fossem homens de raça branca seriam francamente musculados, com uma espécie de sinceridade no próprio físico. Aqueles não. A sua nudez só revelava a profundeza secreta da natureza, o eterno mistério.
Toda a gente se calara; intensificava-se o silêncio expectante, tornava-se tumular. Os homens de ombros nus mantinham-se imóveis, mergulhavam dentro de si mesmos e escutavam com os ouvidos do sangue. Sob as calças brancas atadas nos tornozelos, os pés metidos em Imaraches eram quase negros ao clarão dos archotes. Que pretendiam essas criaturas suaves e recolhidas e cuja importância, no entanto, era tão ponderosa, tão aliciante?
Kate sentia-se ao mesmo tempo atraída e repelida. Quase a fascinava o estranho poder magnético dos homens em círculo. Era como o núcleo duma vida nova, como uma jóia negra brilhando na escuridão. Mas parecia-lhe repulsiva aquela estranha opressão, esse afundar do espírito na terra, esse lento escoar duma água turva; repulsiva a densa e muda oposição ao rumo espiritual da gente branca. Contudo, ali e só ali a vida parecia arder com chama intensa.
No resto do mundo, Kate bem o sabia, tudo era vacuidade, esterilidade. Aqueles vultos avermelhados pelo clarão dos archotes representavam uma humanidade nova.
Kate sentia tudo isto, mas preferia manter-se à parte, evitar o contacto directo.
O porta-bandeira ergueu a cabeça como se fosse falar, mas não disse nada. Velho de barba e bigodes brancos a emoldurar-lhe os lábios escuros e carnudos, tinha a cara sulcada de rugas, como todas as pessoas idosas desse país. No entanto, os cabelos eram bastos, e o corpo ainda revelava força e virilidade. ! Os seus olhos negros olhavam sem ver. Talvez fosse realmente
cego; ou seria profunda abstracção que lhe dava aquele aspecto. Começou então a falar, numa voz lenta, clara e distante que parecia ser o eco dos últimos sons do tambor. - Homens, escutai-me! E vós. mulheres, escutai-me também. Há muito tempo, na calma da noite, o lago dirigiu um apelo aos seres humanos. Mas não existiam. Só os peixes pequeninos nadavam ao longo das margens, procurando fosse o que fosse, e os maiores saltavam fora de água para olhar em volta. Mas não existiam seres humanos.
Então um dos deuses de face velada saiu da água e subiu ao monte. (E o velho indicou a colina invisível nas trevas da noite. ao fundo da aldeia. Contemplou o Sol e viu através dele outro sol negro, o que criou o mundo e o absorverá de novo como uma gota de água. Disse: - Chegou o momento? - E quatro braços saíram do sol e da sua sombra surgiram homens. Viram os quatro braços no céu e principiaram a andar.
O deus do cimo da colina olhou para as montanhas e para as planícies e viu os homens anelantes, sequiosos. E disse-lhes: Vinde cá. Tendes aqui a minha água dulcificadora.
Correram como cães, de língua pendente, e ajoelharam-se na margem do lago. O deus do cimo da colina ouviu-os ofegar, de tanta água que beberam, e perguntou-lhes: - Não bebestes de mais? Ou tendes ainda os ossos secos?
í Os homens fizeram casas à borda do lago, e aquele que estava na colina, e que era um deus, ensinou-os a semear milho, feijão, e a construir barcos. Mas preveniu-os: - Nenhum barco vos salvará quando o sol negro deixar de estender os braços no céu.
O deus da colina disse ainda: - Sou Quetzalcoatl, aquele que vos humedece os lábios secos. Encho-vos o peito com um sopro do além-sol. Sou o vento que sai em turbilhão do centro da terra, sou o zéfiro que se enrosca como cobra em volta dos vossos pés, pernas e coxas, erguendo a cabeça da serpente do vosso corpo, onde reside a força humana. Tomai cuidado quando a serpente do corpo erguer a cabeça. Sou eu, Quetzalcoatl, que vos elevo, que vos elevo até ao sol das trevas, derradeira morada dos homens. Exceptuando o sol negro e os quatro braços nos céus, éreis ossos, e as estrelas eram ossos, e a Lua uma concha vazia numa praia seca, e o Sol amarelo uma taça vazia, semelhante ao crânio dum lobo. Portanto, tende cautela! Sem mim nada sois. Assim como eu nada sou sem o sol que está atrás do sol. Quando o sol de ouro estiver no zénite, dizei: Quetzalcoatl levante a sua mão e me abrigue dos raios, senão perecerei e a terra secará. Porque na palma da minha mão está a água da vida, e nas costas está a sombra da morte. Quando os homens me esquecem volto a mão e aparece a sombra da morte. Mas os homens esqueceram-me. Os seus ossos eram húmidos, o seu coração fraco. Quando a serpente do corpo erguia a cabeça, diziam assim: É a serpente amansada que nos obedece. E quando suportavam o ardor do sol, falavam nestes termos: O sol está zangado, quer absorver-nos; ofereçamos-lhe sangue de vítimas.
Os braços negros desapareceram do céu, e Quetzalcoatl envelhecia e lamentava-se, velando a face para a esconder dos homens.
Lamentava-se e dizia: - Deixai-me recolher à minha morada. Estou velho, quase sou apenas ossos. Os ossos triunfam em mim, o meu coração é uma cabaça vazia. Sinto-me cansado do México.
Então bradou ao sol negro, aquele de quem nunca se pronuncia o nome: - Estou um esqueleto, os Mexicanos renegam-me, de nada sirvo. Levai-me.
O sol negro estendeu o braço e elevou Quetzalcoatl até ao céu. Depois olhou em volta e viu a estrela de alva brilhando sem receio entre a vinda do sol dourado e a fuga da escuridão. E aquele, cujo nome jamais foi pronunciado, perguntou: - Quem és tu, guarda cintilante? E a estrela respondeu: - Outrora, no México, fui Quetzalcoatl. Agora contemplo as costas do sol amarelo e a face invisível da Lua, brilho entre o dia e a noite, esperando pela renovação.
E aquele cujo nome jamais foi pronunciado declarou: - Chegou a hora.
Assim o decretou, e eu a vós repito, homens e mulheres: Chegou a hora. Os que nos deixaram regressam, os que vieram retiram-se. Desejai a uns boas-vindas e dizei adeus aos outros.
Boas-vindas! Adeus!
O velho terminou o discurso com um grito meio sufocado, tal se na verdade se dirigisse aos deuses.
- Bienvenido! Bienvenido! Adiós! Adiós!
A própria Juana, sentada aos pés de Kate, bradava sem saber o que dizia:
- Bienvenido! Adiós! Adiós... n!
O último adios arrastou-se para rematar com o costumado "n". Começou o tambor a soar num ritmo insistente, e a flauta fez ouvir o seu grito estranho e longínquo. Tocavam a melodia singular que a irlandesa ouvira a princípio.
Então um dos homens do círculo entoou o hino. Cantava à maneira dos antigos Peles-Vermelhas, em voz contida mas intensa, como se se dirigisse à própria alma e não ao mundo exterior; como se cantasse na outra dimensão da existência dos homens, onde eles se encontram na extensão infinita que há dentro do eixo do nosso espaço rotativo. Espaço que, como o mundo, não pode deixar de se mover. E, tal o mundo, tem um eixo. O eixo do nosso espaço terreno, quando lá se penetra, é uma vastidão onde até as árvores vão e vêm, e a alma está à vontade no seu sonho, nobre e irrefutável.
O pulsar do tambor e o cântico íntimo arrastavam a alma para o centro do tempo, que é mais velho do que a própria velhice. O cantor começou por uma nota alta que repetiu demoradamente, fazendo-a percorrer ritmos subtis, na aparência desconexos, que o tambor acompanhava, e depois fê-la tremer, palpitar e dar um balanço brusco. Por muito tempo foi difícil distinguir qualquer melodia: dir-se-ia o uivo distante e esmaecido dum lobo. Era na verdade a música dos índios antigos.
Não se lhe encontrava harmonia, não se lhe reconhecia emoção. Apenas música, apenas um grito na noite, perfeito e longínquo. Mas ia direito à alma, à alma eterna e antiga, aí onde só pode a família humana encontrar-se em imediato contacto.
Kate logo o sentiu, e de forma fatídica. Seria inútil resistir, inútil fazer qualquer esforço. O som ia até ao âmago do ser, em que não existe esperança nem dor, mas só a paixão, que semelha uma ave no seu ninho, de asas dobradas, e a fé uma árvore de sombra.
Como o destino, como a sorte. A fé é a própria Árvore da Vida, inevitável, e os pomos estão ao nosso alcance: pomos dos olhos
- as pupilas -, pomos do queixo, do coração, dos seios, do ventre, dos quadris, dos joelhos, dos tornozelos. Que importa a mudança, a evolução? Somos a Árvore com os seus frutos, para todo o sempre. Verbum Sat.
Emudeceu o cantor, mas o tambor prosseguiu, fazendo vibrar subtilmente a membrana sensível da noite. Então, no círculo, de novo se elevou uma voz, depois outra, e outra, como pássaros voando de uma árvore. Elevaram-se as vozes - forte, pesado, intenso arrebatamento de vozes másculas, semelhante a um bando de aves negras subindo e descendo no ar, ao mesmo tempo. E cada ave preta dir-se-ia erguer-se do coração de um homem, do bosque secreto dos peitos masculinos.
Uma a uma, partiram também vozes da multidão, qual nova revoada de pássaros. A letra não tinha importância. Versos, palavras, simples sons - o canto era sempre o mesmo: violenta rajada saindo das cavernas do peito, das profundezas da alma eterna. Kate estava excessivamente intimidada para poder cantar, demasiadamente vencida pelas desilusões; mas sentia que o seu espírito fazia eco, seguindo o clamor do povo, tal a ave poliglota que imita as outras à noite. Contra sua vontade, Juana cantava também, num tom monótono, proferindo palavras à toa, inconsciente.
Os homens seminus começaram a agarrar as mantas: mantas brancas orladas de azul, com barras castanhas e franjas escuras. Da turba, levantou-se alguém, que se dirigiu para o lago. Voltou depois com um feixe de lenha trazido por um barco. Acendeu então uma fogueira pequena. Outro indivíduo se destacou para ir também buscar lenha: colocou-a diante do tambor, dentro do círculo, e fê-la crepitar. Por sua vez, uma mulher, descalça e de larga saia de algodão, principiou a arranjar a sua fogueira no meio das mulheres.
O ar estava bronzeado pelo clarão do lume; alastrava-se um fumo odorífero, como de incenso. Subiu e desceu o cântico, depois esmoreceu. Débil ecoou o som do tambor, e morreu por seu turno. No silêncio absoluto podia-se sentir a presença imóvel do lago sombrio.
Mais uma vez pulsou, vigoroso, o tambor. Um dos homens que estavam sentados, com o seu poncho branco debruado de azul e preto, ergueu-se de repente e, tirando as sandálias, começou a esboçar passos de dança, sem fazer o menor ruído. Dançava pesadamente, de pés nus, como se fosse enterrar-se pela terra abaixo. Sozinho, oscilava num ritmo estranho, calcando o chão, erguendo ora um ora outro dos joelhos de encontro às franjas escuras do poncho. Outro homem, encaminhando-se para o centro, pôs aí os huaraches, perto do fogo, e iniciou o seu bailado, enquanto o do tambor entoava um cântico selvático, tenebroso. Os restantes comparsas despojaram-se dos ponchos e, num instante, estavam de pé, e de torsos nus, descalços, repetiam aqueles passos que pareciam de ave. A luz da fogueira batia-lhes no peito, nas faces sombrias e extáticas.
"O que dorme acordará! O que dorme acordará! O que segue o trilho da serpente na poeira chegará ao seu posto; pelo trilho do pó chegará ao seu destino e revestir-se-á com a pele da serpente: revestir-se-á com a pele da serpente da terra, que é a criadora da pedra, que é criadora da pedra e do vigamento da terra; criadora do oiro, do ferro, da madeira da terra: dos ossos do pai da terra, da serpente do mundo, do coração do mundo que bate como uma cobra bate no pó, nos seus movimentos sobre a terra; do coração do mundo. Quem dorme despertará! Quem dorme despertará! Quem dorme despertará no caminho da serpente do pó da terra, da pedra da terra, do osso da terra."
O cântico parecia tomar novos voos audaciosos depois de baixar e sussurrar num último desmaio. Eram como ondas que se erguem do invisível, que tomam forma, alando-se, e desaparecem num rumor de aniquilamento. E os dançarinos, após terem girado em círculo, numa lenta e profunda absorção, iam um por um tomar o seu lugar, calcando o pó com os pés descalços, vagarosamente, e vagarosamente começavam a descrever uma ronda lenta em torno do fogo, sempre com os mesmos passos que se diria afundarem-se na terra. E o tambor ressoava numa palpitação sempre igual, como a de um coração humano. E o cântico soou e diminuiu, mais baixo e mais baixo numa espécie de extinção, para ainda uma vez tornar a levantar-se.
Até que os camponeses moços acharam impossível permanecer como estavam. Tiraram as sandálias, o chapéu, as mantas, e, timidamente, com pés inexperientes que no entanto conheciam as velhas pisadas, se puseram atrás dos outros bailadores e dançaram sem sair do seu lugar. Depressa o círculo revoluteante estabeleceu outro círculo de homens que envolveu o primeiro.
Então, de súbito, um dos dançarinos de tronco nu saiu do círculo interior e, penetrando no segundo, fê-lo girar em sentido inverso ao daquele. Deste modo houve duas rodas em movimento, uma dentro da outra, rodopiando em direcções opostas. Assim andaram, com o tambor e o canto, girando como rodas de sombra em volta do lume. Mas o lume extinguiu-se, e o tambor parou de repente, e os homens num instante se dispersaram, retrocedendo para os seus postos.
Houve silêncio, depois ouviu-se um murmúrio de vozes e risos. Kate muitas vezes pensara que o riso dos peóns se assemelhava a uma queixa; mas agora ele saltava como faúlhas invisíveis, bruscamente, da cinza das conversas.
Todos esperavam, e contudo ninguém se movia - até que o tambor vibrou de novo, como um sinal. Continuaram, porém, a tagarelar mas escutando, qual se possuíssem uma segunda consciência. Levantou-se um homem, desfez-se da manta e deitou lenha na fogueira central. Em seguida atravessou o grupo dos homens sentados e dirigiu-se ao das mulheres, que se apinhavam com as saias desdobradas. Esperou, sorrindo com ar abstracto, e logo se pôs de pé uma rapariga e se aproximou dele, apertando com a mão direita o xaile enrolado em torno da cabeça baixa. Estendendo a mão esquerda, pegou timidamente na do homem, que parecia inerte. Sorriu este e conduziu-a ao centro da roda, através do grupo dos que estavam sentados. Ela seguia de cabeça inclinada, escondendo o rosto pudibundo. Lado a lado, começaram a dançar, mal roçando as mãos e formando o primeiro pequenino segmento do círculo interior estacionário.
Ei-los agora todos, em pé, à espera de serem escolhidos. Rápidas, as mulheres, ocultando a testa no xaile, insinuavam-se junto deles e tomavam a mão do eleito. Dentro de pouco tempo já todos tinham dama. Fechara-se o círculo interior, com os homens e as mulheres aos pares, de mão dada.
- Venha, niña, venha! - disse Juana, fitando Kate com os seus olhos negros e brilhantes.
- Tenho medo - respondeu a irlandesa. E falava verdade.
Um dos de tronco nu atravessara a rua, afastando-se da multidão e detivera-se próximo da porta onde se achava Kate, que se calou e desviou a vista. E ficou esperando.
- Olhe, niña, um senhor que a procura. Venha, niña, venha!
A voz da criada descera de tom, capciosa, com esse apelo mágico das mulheres do povo. Os olhos pretos continuavam a cintilar-lhe estranhamente, fitos no rosto da patroa. Kate, quase hipnotizada, avançou em passos lentos e indecisos para o indivíduo que se mantinha à espera.
- Quer, realmente? - disse ela em inglês, bastante atrapalhada. E, com os seus dedos, tocou nos dedos dele.
Quase com indiferença, num gesto frouxo, a mão quente e máscula segurou os dedos de Kate e levou-a para a roda. Ela baixou a cabeça e desejou poder velar a face. No seu vestido branco e chapéu de palha verde, sentiu-se outra vez virgem, virgem juvenil. Aqueles homens concediam-lhe o dom de reencontrar a mocidade.
Acanhada, receosa, Kate procurou seguir a dança; mas escapava-lhe o ritmo, e os sapatos rígidos não a ajudavam. Movia-se confusamente.
Mas o seu par pegava-lhe na mão, embora com moleza, e oscilava, lento, o corpo todo, como um pêndulo de relógio. Dir-se-ia não fazer caso dela; contudo, segurava-lhe os dedos, de leve, numa pressão suavíssima.
Juana descartara-se dos sapatos e das meias. No rosto como uma máscara de lava, enrugado, escuro, as pupilas ardiam com a eterna chama da feminilidade, sombria e inextinguível. E já, com os pés, marcava o compasso da dança.
"Assim como o pássaro do sol fecunda a terra à alvorada tal uma fêmea morena sob os seus pés, com as dobras do ventre inclinadas aos pomos da geração, com os ovos de oiro, com os ovos que escondem o globo do sol nas águas do céu, na concha da terra que é o alvo do fogo do sangue, pisa tu também a terra e a terra conceberá qual a fêmea sob os pés do pássaro do sol. Pisa a terra, pisa a terra agachada e de asas encolhidas..."
A roda começou a girar e Kate foi-se movendo devagar entre dois homens silenciosos e absortos, cujos braços tocavam os seus. Um segurava-lhe os dedos, frouxa e brandamente, mas com transcendente afinidade. E o canto selvático subiu de novo como uma ave, e o tambor alterou o ritmo de modo incompreensível.
A outra roda era composta só de homens; Kate tinha a impressão de sentir nas costas o fulgor sombrio daqueles olhares. Os indivíduos já se não distinguiam, formavam como que uma única massa, em que ela própria se confundia.
Todos dançavam da mesma maneira, de cabeça baixa e olhar ausente, os homens absorvidos na sua virilidade, as mulheres na sua feminilidade. Somente o sexo prevalecia na sua mais alta concepção. Mar à superfície do globo movendo-se por cima dum mar nas entranhas da terra; águia evolucionando em silêncio sobre a própria sombra.
Kate sentia-se fundir nas águas revolutas de uma vida nova. Deixara de ser ela mesma para fazer parte de um todo, os seus desejos abismavam-se no mar do desejo colectivo. E assim o homem cujos dedos roçavam nos dela se engolfava no oceano de homens.
Lento mover de águas sobre águas, sem vestígio de espuma. Só a pura e deslizante conjunção.
Como era estranho ver-se submergida pelo desejo para além do próprio desejo, sentir-se integrada num corpo imenso para além do individualismo do corpo!
Não conhecia a cara do homem que lhe segurava nos dedos. Os seus olhos haviam cegado, e o rosto dele era um céu tenebroso. Mas do toque dos seus dedos nascia uma estrela, a estrela que os unia.
Os pés de Kate principiavam a marcar o compasso. Ela já sabia como deixar-se levar, abandonar a essência da sua vida, permitindo que lhe fugisse devagar, num escoamento rítmico, para o corpo negro da terra. Erecta, forte como o próprio esteio da vida, cedia no entanto a Seiva dessa força e fazia-a fluir para as raízes da terra.
Perdera a noção do tempo. A dança, porém, acalmava-se pouco a pouco, embora o ritmo permanecesse sempre o mesmo até ao fim.
Calaram-se as vozes, só o tambor continuou. Este, de súbito, produziu um rufo breve, e o silêncio foi geral. Logo as mãos se desataram, o baile parou de todo. O homem que a acompanhava sorriu-lhe e desapareceu. Jamais o reconheceria. Havia, no entanto, de lhe sentir a presença.
As mulheres afastaram-se, aconchegando os ombros com o xaile. Os homens dissimularam-se nas mantas. E Kate voltou à escuridão do lago.
- Já se vai embora, Niña? - perguntou Juana num tom que revelava certo descoroçoamento.
- Tenho de ir sem demora - replicou a patroa, estugando o passo. E a toda a pressa se encaminhou para as trevas do lago, com Juana na sua peugada, de sapatos e meias na mão.
Kate desejava reentrar em casa, com o seu novo segredo, o estranho segredo da feminilidade mais alta, a que ainda se não habituara. Precisava abandonar-se inteiramente àquele mistério.
Quase corria através do atalho interminável, na margem pedregosa e escura, apesar de a claridade das estrelas ser suficiente para revelar a forma sombria dos barcos que sulcavam a água mansa e turva. Noite eterna, sem horas! Kate não queria consultar o relógio, e até o virou no pulso a fim de não ver os ponteiros luminosos. Que o tempo a não governasse!
Ao adormecer, ouvia ainda o rufar do tambor, como um pulso que batesse nas entranhas da terra.

VIII
À entrada da casa de Kate elevava-se uma árvore enorme chamada cuenta por causa dos seus frutos pequeninos, redondos, duros e perfeitos de forma, que os indígenas apanhavam para fazer colares e, em especial, padre-nossos dos rosários. À noite, a rua ficava imersa em escuridão e só a queda das contas perturbava o silêncio.
Essas noites, que de começo pareciam calmas, amigáveis, encheram-se subitamente de terrores. Renascia o medo. Constituíra-se uma quadrilha de ladrões numa das aldeias do lago, cujos habitantes tinham má fama. Essa quadrilha, invisível durante o dia, compunha-se de pescadores e jornaleiros que, depois do anoitecer, montavam nos seus cavalos e iam assaltar casas solitárias ou mal guardadas.
O facto de saber que um bando de malfeitores rondava naquela região era o bastante para incitar os ladrões isolados a agir também. Fosse o que fosse que acontecesse, seria atribuído aos bandidos. Deste modo, mais de um indivíduo considerado honesto se deixava dominar pela cobiça e se escapulia à socapa armado de faca ou de pistola para se aproveitar igualmente da escuridão.
Kate sentia o terror condensar-se no silêncio da noite mexicana; silêncio tenebroso, tão profundo que se tornava sobressaltante, o som duma conta a cair. Deitada na cama, Kate escutava o mínimo rumor nas trevas densas. Ouviam-se ao longe apitos de polícia, daí a pouco passava a patrulha a cavalo. Mas, como acontece em quase toda a parte, a polícia nunca aparecia quando era precisa.
Aproximava-se a estação das chuvas, e o vento nocturno, vindo do lago, fazia sussurrar as árvores e abalava as portas desconjuntadas da casa. Os criados encafuavam-se nas suas dependências. No México, uma pequena distância isola-nos completamente desde que a noite desce; e ficamos perdidos na escuridão envolvente.
De manhã, Juana vinha da praça, com os seus olhos como gotas de tinta e, no rosto bronzeado, a expressão cansada dos entes submetidos ao medo. Logo de entrada, e na sua linguagem pouco compreensível, embrenhava-se na história de uma casa assaltada e de mulheres assassinadas. E a dona do hotel mandava dizer a Kate que não era prudente dormir sozinha em casa. Seria melhor passar a noite no hotel.
Toda a aldeia se encontrava sob estranha apreensão. Pairava no ar da noite um terror pânico. Renascia a confiança à claridade azul da manhã, mas ao anoitecer o sangue parecia coagular-se, a atmosfera tornava-se densa.
O medo, é claro, comunicava-se duns aos outros. Se Juana e a respectiva família não andassem cheias de pavor, Kate nunca sentiria medo, disso estava ela certa.
Ali não havia homens. Juana tinha dois filhos, Jesus, de vinte anos, e Ezequiel, de dezassete. Mas Jesus era quem tomava conta do motor da luz eléctrica, e tanto ele como Ezequiel dormiam na casa das máquinas. De modo que Juana ficava só com as duas filhas, Concha e Maria, no cubículo ao fundo da residência de Kate.
Antes, a plaza mantinha-se animada até às dez da noite, com gente a conversar ou a ouvir os moços tocadores de viola e o homem dos sorvetes a apregoar de contínuo: Nieve! Nieve!
Agora o largo esvaziava-se às nove horas. E havia ordem de prender quem fosse encontrado na rua depois das dez.
Kate corria para casa e trancava as portas. Não é fácil suportar o pânico de um povo meio bárbaro. O medo espalha-se no ar, envolve-nos, paralisa-nos a alma com a sensação de desgraça iminente, dum horror atroz.
Às dez horas cortavam a luz eléctrica, tudo ficava às escuras, e, deitada na cama, Kate sentia o sopro maléfico espraiando-se na atmosfera em vagas sucessivas.
Acudiam-lhe à memória todas as histórias arrepiantes passadas no país. E de novo pensava nessa gente de aspecto pacífico e sorriso doce. Mas o próprio Humboldt dissera a respeito dos mexicanos que nunca encontrara povo de sorriso tão suave e olhar tão feroz. Não que os olhos revelassem propriamente ferocidade; contudo, o seu negrume iluminava-se dum clarão frio, de cintilações de punhal nas trevas da noite, ao mesmo tempo que neles despertava a sede de homicídio.
Seres incompletos, não de todo criados, encontravam-se à mercê das velhas influências que jaziam como sedimento no fundo de cada um deles. Enquanto estavam calmos, eram simpáticos, bondosos, simples. Mas, se alguma coisa lhes revolvia as profundezas, logo se erguiam as nuvens tenebrosas de ódio e de morte.
Adivinhava-se-lhes na alma um ressentimento constante, como que uma ferida jamais cicatrizada. O ressentimento dos entes incapazes de conquistar sozinhos uma integridade individual fora do caos de paixões e forças mortíferas. Eram apanhados na engrenagem duma ansiedade ancestral como nos anéis duma serpente negra que lhes oprimisse o coração. Onerosa carga dum passado invencível.
E debaixo desse peso vivem e morrem, sem grande pena de morrer. Enredados nos elementos, não conseguem desenvencilhar-se. Queimados pelo sol excessivamente forte, sobrecarregados pela electricidade da atmosfera mexicana e atormentados pela erupção de vulcões que lhes rebentavam aos pés. Tremendos elementos do continente americano que tornam forte o corpo dos homens mas que esmagam a alma e impedem a sua elevação. E, se nalgum ela se eleva, os elementos maléficos a pouco e pouco a destroem, até que o homem se decompõe em ideias e actividades maquinais, num corpo cheio de energia mecânica mas de espírito morto e putrefacto.
Assim, esses seres incapazes de dominar os elementos, submetidos às forças do sol, da electricidade e das erupções vulcânicas, estão sujeitos a acessos de rancor e de ódio ardente à própria vida. Então, nada melhor do que enterrar uma faca num corpo vivo. Nenhuma volúpia iguala essa de cravar a lâmina e ver jorrar o sangue.
É a suprema satisfação duma raça presa a um passado de que não consegue libertar-se. Raça que não conhece Salvador nem Redenção. Quais mineiros enterrados vivos na derrocada duma mina, nações inteiras ficam sepultadas sob os escombros do passado - até que um salvador lhes mostre a saída para o sol.
Deitada na cama, Kate reflectia profundamente na'escuridão da noite, de ouvido atento aos menores ruídos que a enchiam de terror. Não podia refrear o coração; dir-se-ia que lho arrancavam, e o sofrimento era atroz. Pela primeira vez sentia medo físico, o sangue gelava-se-lhe nas veias.
Na Inglaterra, na Irlanda, durante a guerra e a revolução, conhecera o medo espiritual. O medo horrível da ralé; e durante a guerra as nações eram quase tudo ralé. O terror da canalha que pretendia acabar com a liberdade de pensamento em cada homem e em cada mulher. Era a ambição fria e colectiva de milhões de criaturas: aniquilar o espírito daqueles que resistiam e assim poderem iniciar a descida geral para as camadas interiores onde existe o culto do ouro e a volúpia de matar. A canalha.
Nesse tempo, Kate conhecera a agonia do medo social, como se a democracia fosse um polvo enorme que enlaçasse com os tentáculos quem lhe resistisse.
Agora o seu medo era doutra espécie. Sentia o coração doer-lhe, como se o arrancassem, o sangue parecia fugir-lhe das veias...
Dormitava, e acordou em sobressalto a um leve rumor. Sentou-se na cama. As portas que davam para a varanda tinham postigos, e estes encontravam-se escancarados a fim de arejar o quarto. Nessa abertura Kate distinguiu, recortando-se no céu escuro, uma forma negra semelhante a um gato que rastejasse no rebordo da janela.
- Que é? - perguntou ela maquinalmente.
No mesmo instante, aquilo moveu-se, deslizou para fora, e Kate percebeu que era o braço de um homem que tentava abrir o ferrolho interior da porta. Por uns segundos ficou paralisada, pronta a gritar. Então, como não pressentisse mais nada, inclinou-se e acendeu uma vela.
Era uma verdadeira agonia aquele terror pânico. Imobilizava-a, deslocava-lhe o coração... Ficou prostrada, no angustiante pavor nocturno. A vela projectava uma claridade lúgubre. Ouvia-se o ribombo longínquo de trovões. A noite era atroz, atroz, e o México horroroso.
Kate não conseguia dominar-se. "Estou à mercê disto", pensava. Sensação terrível, ver-se subjugada pelo medo.
"Que hei-de fazer?" perguntou a si mesma, reunindo coragem. Sabia que estava só.
Durante muito tempo sentiu-se incapaz de se mover. Então disse consigo, para se animar: "Creio no mal e não devo crer. O pânico e o assassínio são coisas que só sucedem quando perdemos o domínio de nós próprios. Não acredito verdadeiramente no mal. Acredito, sim, na existência dum poder supremo que nos comunica a sua força desde que tenhamos fé nele. O homem que queria entrar aqui não possuía essa força. Tentava ser maléfico, mas submeter-se-ia ao poder dominador."
Deste modo se ia tranquilizando, até que teve a coragem de se levantar e fechar os postigos. Em seguida, percorreu os quartos a fim de verificar se tudo estava trancado. E sentiu certo alívio ao compreender que temia tanto os escorpiões como a horrível sensação de pavor.
Depois de observar o fecho das cinco portas e das cinco janelas da ala de quartos comunicantes, Kate ficou encerrada nas trevas com a sua vela. Para o outro lado da casa, sala de jantar e cozinha, tinha de ir pela varanda.
Mais serena, embora ainda com o coração atormentado pelo medo, Kate reflectia. "Joachim afirmava que o mal provém de regressarmos aos costumes primitivos. É o que provoca roubos e assassínios. O tambor da noite de sábado evocava o ritmo da antiguidade e aquela dança selvagem era a velha forma de expressão. Regresso consciente à barbárie... Talvez a origem do mal..."
Mas logo intervinha o seu desejo de crer.
"Não! Temos de nos agarrar aos elos antigos, encontrar o impulso que nos relacionará de novo com o mistério do cosmos. Don Ramon tem razão. Ele deve ser um grande homem. Julguei que já não existissem grandes homens. Só grandes financeiros, grandes artistas, mas não grandes homens. Don Ramon deve ser um ente superior."
E Kate sentiu-se apaziguada a esta ideia.
Mas, logo que apagou a vela, surgiram clarões muito vivos através das fendas do postigo. Ribombaram trovões clamorosos, que pareciam afundar-se-lhe no coração. Kate sentia-se como que esmagada, na consciência duma tortura que a paralisou até de manhã e lhe deu a impressão de ser, ela própria, um destroço de naufrágio.
Por fim apareceu Juana, também com o ar de desenterrada, para lhe fazer a pergunta tradicional:
- Como passou a noite, Niña?
- Muito mal - respondeu Kate. E contou-lhe a história do gato preto e do braço do homem.
- Mire! - replicou Juana, sufocando a voz. - A inocentinha vai ser assassinada na cama. Não, niña, tem de passar a dormir no hotel. Não, Niña, não pode continuar com o postigo aberto. É impossível. Está a ver agora como é necessário que durma no hotel? Assim fazia a outra senhora.
- Não quero - declarou a patroa.
- Não quer, Niña? Ah, entonces, entonces... niña, vou dizer ao Ezequiel que venha dormir na soleira da porta, armado de revólver. Ele tem um revólver, pode ficar do lado de fora da porta, e a senhora já deixava a sua janela aberta, para lhe refrescar o quarto. Pobres de nós, mulheres, precisamos de um homem que tenha revólver. Não devemos estar sozinhas, toda a noite. Temos medo, e as crianças também têm medo. Imagine que um ladrão tenta arrombar o ferrolho da porta! Imagine! Não, niña, vai-se falar ao Ezequiel hoje mesmo, antes do meio-dia.
Ao meio-dia, Ezequiel compareceu, muito seguro de si. Era um rapaz, meio selvagem, mas dava largas passadas, empertigado e orgulhoso. A voz, na mudança própria da puberdade, tinha uma entoação estranha.
Ficou de pé, acanhado, ouvindo o que lhe recomendavam. Depois olhou para Kate com as pupilas negras e brilhantes, convicto do seu papel de salvador.
- Sim, sim - declarou. - Durmo aqui no corredor. Não tenha medo. Trago a pistola.
Saiu, e voltou com a arma, que era de cano comprido.
- Tem cinco cargas - participou, exibindo o revólver. - Se abrir a porta de noite, previna-me, porque, se eu vir mexer qualquer coisa, disparo os cinco tiros. Pum!, pum!
Pelo brilho do olhar do rapaz, Kate compreendeu quanto ele gostaria de fazer fogo sobre o que se movesse nas trevas. Não o preocupava a hipótese de ser alvejado por seu turno.
- niña - disse Juana - se voltar tarde para casa, depois de as luzes estarem apagadas, não se esqueça de chamar pelo Ezequiel. Senão... pum!, pum! Nunca se sabe quem pode ser a vítima.
Ezequiel dormiu sobre uma esteira na varanda de tijolos, defronte da porta de Kate. Enrolou-se num cobertor e conservou o revólver à mão. A senhora podia ficar de janela aberta. Na primeira noite, esteve muito tempo acordada por causa do ressonar estrondoso do rapaz. Nunca ela ouvira semelhante coisa! Que pulmões que ele devia ter! Dir-se-ia um som que viesse de outro mundo estranho e bárbaro. O barulho manteve-a desperta, mas havia naquilo um não sei quê de agradável. Algo semelhante a uma força bravia.

IX
Kate depressa se afeiçoou à negligente Juana e respectivas filhas. Concha tinha catorze anos. Era uma rapariga selvagem, entroncada, de cabeleira hirsuta que ela coçava constantemente. Maria, de onze anos, parecia um passarito, com olhos enormes que se diria absorverem toda a luz à sua volta.
Juana confessava que Jesus era filho doutro pai, mas o aspecto dos restantes fazia suspeitar ter cada um deles progenitor diferente. Toda a família, porém, mostrava igual despreocupação perante a vida. Viviam o dia-a-dia sem se importarem com o passado, nem com o presente, nem com o futuro. O dinheiro não lhes interessava. Assim que o recebiam gastavam-no, e logo o esqueciam.
Sem aspirações, sem objectivos, levavam existência absolutamente terre à terre no seu país sombrio e vulcânico. Não eram animais porque homens, mulheres e crianças não podem ser animais. Tal não nos foi concedido. Vai, e não voltes para trás - diz o Criador. Quando o homem tenta brutalmente tornar ao primeiro estado da evolução, fá-lo com espírito de crueldade.
Por isso os olhos negros daquela família revelavam certo medo, espanto e sofrimento. Angústia das criaturas humanas sem força para desenvolver as possibilidades do seu ser; incapazes de arrancar do caos a própria alma e indiferentes a qualquer outra vitória.
Também os brancos perdem a alma a pouco e pouco; mas conquistaram os mundos inferiores do metal e da energia e, graças às máquinas, lançam-se em corrida louca de roda da sua vacuidade.
Naquela família Kate encontrava algo de patético e de repugnante.
Desde que haviam aceitado niña como patroa, Juana e as filhas mostravam-se profundamente honestas. Honestas, a pontos de não tirarem uma única ameixa do fruteiro. E solícitas no serviço, de uma solicitude quase excessiva.
Viviam na sujidade, indiferentes ao ambiente. O chão era o seu caixote do lixo. Para ali arremessavam tudo o que consideravam inútil e ninguém se preocupava mais com isso. Pareciam 138
comprazer-se em viver no meio de pulgas e de trapos, de cascas de banana e caroços de manga. Um pedaço arrancado dum vestido - aí vai para o chão! Cabelos tirados do pente - chão com eles!
Kate não suportava aquilo. Afligia-a tamanha desordem, e o facto de ela se afligir divertiu imensamente a família mexicana. Mãe e filhas varreram então o pátio com uma vassoura de urze, até raspar a própria superfície da terra. Que engraçado, a niña preocupar-se com aquelas coisas!
Kate constituía para elas uma fonte de espanto e de divertimento. Não a consideravam pessoa de classe elevada. Era um ente meio incompreensível, meio espantoso.
Niña queria que o aquador lhe trouxesse todas as manhãs dois botes de água das nascentes térmicas para fazer abluções completas. Que esquisito! "Maria, diz ao aquador que corra a buscar água para a niña."
Quase se melindravam com o facto de ela se fechar no quarto para tomar banho. Era uma espécie de deusa, provocava-lhes alegria e admiração; mas devia ser sempre acessível. Kate depressa descobriu que um deus sempre acessível aos seres humanos passa bocados pouco invejáveis.
Não, aquilo não era nenhuma sinecura. De manhã começava o barulho da vassoura de urze lá fora. Kate deixava-se estar na cama, de portas fechadas e postigos abertos. Alvoroço no pátio. Alguém queria vender ovos. Onde está Niña? A dormir. O visitante não se retira e as conversas continuam.
O aquador! Ah, a água para o banho da niña. Está a dormir. "Não estou, não!" - grita Kate, enfiando o roupão e destrancando a porta. As pequenas entram com a tina, seguidas do aguadeiro com duas latas cheias de água quente. "Doze centavos, doze centavos para o aquador." No hay! Mais tarde, mais tarde. O homem vai-se embora, com a vara ao ombro. Kate fecha os postigos e começa a tomar banho.
- Niña!, Niña! - Que é?
- Quer ovos estrelados, quentes ou rancheros?
- Quentes.
- Café ou chocolate?
- Café.
- Ou prefere chá?
- Não, café.
O banho continua.
- Niña!
- Dize lá.
- Já não temos café. vou comprá-lo.
- Não é preciso. Tomarei chá.
- Não, niña, Eu vou. Espere por mim.
- Está bem, vai.
O primeiro almoço é na varanda. A mesa está posta, há pilhas de frutos, pão alvo e bolos.
- bom dia, niña. Como passou a noite? Maria, traze o café. vou meter os ovos na água. Oh, niña, eles não devem ficar cozidos... Meu Deus, que pés de Madona! Olhem, que bonitos!
E Juana inclina-se fascinada e, com o dedo escuro, toca nos pés acetinados de Kate metidos em leves sandálias seguras por uma única tira.
O dia tinha começado. Juana considera-se como inteiramente dedicada a Kate. Tão cedo quanto possível, expede as filhas para a escola. "Niña diz que é preciso ir para a escola. Não ouvem o que ela diz? Vamos, girem!"
No seu passo coxeante, Juana anda cá e lá na varanda, da cozinha para a mesa do almoço, transportando os pratos um por um. Depois, com grande espalhafato, começa a lavar a louça.
Manhã! O sol inunda o pátio, os cardeais e as folhas dilaceradas das bananeiras. Os pássaros voam em todos os sentidos com precipitação tropical. Na sombra densa das mangueiras passam índios vestidos de branco, semelhantes a espectros. Há um frémito de vida e, no entanto, o silêncio é opressivo. Os olhos deslumbram-se à claridade ofuscante, a alma sente-se oprimida.
Kate senta-se na varanda e finge coser. Surge um velho, segurando um ovo na mão, como qualquer símbolo. A patrona quereria comprá-lo por cinco centavos? Juana só dava quatro. De acordo? Onde está Juana?
Juana volta da praça com outras compras. O ovo! Quatro centavos! A conta das despesas. Entonces! Entonces! Luego! Luego. Ah, niña, no tengo memória.
Juana não sabia ler nem escrever. Todas as manhãs ia ao mercado, comprava uma porção de coisas de um ou dois centavos e todas as manhãs era preciso fazer contas. "Ah, onde é que nós íamos?
Não tenho memória nenhuma. Ora vejamos... Comprei três centavos de ocote... Quanto? Quanto soma agora, niña" Se faltava um centavo, ficava desolada e não falava noutra coisa. "Falta um centavo, niña? Sou estúpida, não sou? Mas eu dou-lhe um do meu dinheiro."
- Deixa lá, não penses mais nisso - dizia Kate.
- Mas eu quero pagar a diferença - insistia a mulher; e afastava-se, coxeando.
Uma hora depois elevava-se um grito no outro extremo da casa e Juana aparecia empunhando um ramo de salsa.
- Mire, niña! Compré perejil a un centavo. As contas estão certas agora?
- Estão - respondia Kate.
E a vida podia então retomar o seu curso. Existiam duas cozinhas: a anexa à sala de jantar, e a das criadas, numa espécie de barraca debaixo das bananeiras. Da varanda Kate via a abertura negra que fazia as vezes de janela na cozinha de Juana.
"Julgava Concha na escola!", disse Kate consigo mesma.
Mas não. No buraco escuro da janela distinguia-se o rosto moreno e a juba de Concha, espreitando para fora como um animal que saísse da toca, enquanto fazia as tortillas. Tortillas são uma espécie de filhos de milho. Preparam-nas batendo a massa na palma da mão até adquirir a lisura e leveza necessárias. Pouco depois do meio-dia via-se sair fumo pela janela: Concha lançava as tortillas cruas na frigideira de barro colocada sobre o lume.
Então Ezequiel aparecia, de manta sobre o ombro, chapéu de palha de grandes abas enroladas, pronto a comer as tortillas. No entanto, se trabalhava no campo, só chegava ao cair da noite. Sentava-se no degrau da porta e as mulheres serviam-no e iam-lhe buscar água como se ele fosse um rei. E ouvia-se-lhe a voz rouca dando ordens em tom calmo.
Porque, apesar do seu ar sereno e meigo, tomava uma entoação imperiosa desde que se dirigisse à mãe ou às irmãs. Prerrogativa de macho, que dava a Kate vontade de zombar do rapaz.
A hora da refeição era para Kate um dos seus tormentos. Apresentavam-lhe sopa muito quente e gordurosa, arroz apimentado, também gorduroso e fumegante, a inevitável carne nadando em gordura. Seguiam-se calabacitas, ou beringelas, salada, e o enorme cabaz de fruta. E, inundando tudo isso, o ardente sol tropical dos fins de Maio.
De tarde, o calor aumentava. Juana ia com as filhas lavar a loiça no lago. Agachadas sobre as pedras, agitavam na água cada prato, cada colher e cada garfo, e punham tudo a secar ao sol. Depois, enquanto Juana lavava uma ou duas rodilhas, as filhas banhavam-se no lago.
Jesus, o primogénito, costumava vir à tarde regar o jardim. Mas esse comia no hotel, onde prestava diversos serviços, trabalhando até às dez da noite por um salário de vinte e dois pesos, ou seja, onze dólares por mês. Usava camisa preta, e a cabeleira abundante tombava-lhe na testa baixa. Apesar da camisa fascista, possuía o espírito sarcástico e crítico dos socialistas, o espírito que vem do instinto de destruição.
Entre ele e a mãe existia pouca intimidade. Se Juana se encontrava em apuros, Jesus dava-lhe algum dinheiro mas, exceptuando o ténue laço de sangue que os unia, mostravam a maior indiferença um pelo outro.
Ezequiel tinha melhor tipo. Era esbelto, e tão direito que quase parecia arquear-se para trás. Tímido, arisco, orgulhoso, sentia-se mais responsável pela família. Não queria servir em hotéis. Não. Trabalhava nos campos, e tinha vaidade nisso: era labor de homem, não uma espécie de escravidão disfarçada.
Embora simples jornaleiro, não trabalhava para um patrão mas sim para a terra. E a terra, de certa maneira, era dele, pertencia-lhe...
Quando havia que fazer, chegava a ganhar um peso por dia. Se a terra estava seca, então procurava trabalho nas estradas, ainda que isso lhe não agradasse.
Mas nem sempre conseguia empregar-se. Durante dias, semanas, Ezequiel vagueava pelos arredores, sem nada que fazer. Quando o governo socialista dividiu as fazendas em lotes e os distribuiu pelos camponeses, coube-lhe um pedaço de terra fora da aldeia. O rapaz ia até lá e juntava pedras para construir um casebre. Cavava o chão tão profundamente quanto possível, mas não tinha amor a essa nesga de terreno que lhe viera parar às mãos de modo quase sobrenatural. Só lá ia de vez em quando, e sem nenhum entusiasmo.
Nos dias de trabalho regressava a casa por volta das seis horas e, cumprimentando Kate, timidamente, dirigia-se para o seu antro, onde, sentado no chão e de costas apoiadas à parede, dobrava tortillas umas sobre as outras e comia essa pasta elástica que tem o sabor de argamassa - pois o milho é primeiramente fervido com cal para largar a pele. Depois, dignava-se aceitar outra rima de fritos, que a irmã lhe apresentava numa folha de couve. Às vezes, Ezequiel tirava do tacho de barro um bocado de carne guisada que metia entre duas tortillas. Mas ingeria tudo rapidamente com uma espécie de indiferença. Aliás, os mexicanos parecem sempre indiferentes ao que comem.
Acabada a ceia, ia até à plaza, reunir-se aos homens. Havia ocasiões em que Kate, ao recolher a casa às nove horas, a encontrava quase deserta. Ezequiel estava no largo, Juana e Maria haviam desaparecido, e Concha dormia tal um molho de trapos no chão do pátio. Quando Kate a chamava, a pequena erguia a cabeça, espantada, entorpecida; depois, levantando-se como um cachorro, rastejava até ao portão.
Indiferença por tudo, até uns pelos outros. Juana lavava semanalmente uma camisa e um par de calças de algodão para cada um dos filhos, e aí terminavam os seus cuidados maternais. Nem se interessava averiguar qual o trabalho-de momento de Ezequiel. Sabia que arranjara emprego e isso lhe bastava. Contudo, de tempos a tempos, tinha ímpetos de amor materno, quando o rapaz era tratado injustamente, como às vezes acontecia. E, se o supunha doente, dominava-a um terror fatalista que só a abandonava depois de Kate intervir com qualquer remédio muito simples.
Semelhantes a animais. Mas os animais são perfeitos no seu isolamento e despreocupação; não se trata de indiferença, é que se bastam a si próprios. Ao passo que naquela família havia uma espécie de frustração, como se um torpor de aborrecimento a todos avassalasse.
As duas raparigas eram inseparáveis; andavam sempre atrás uma da outra. Concha arreliava de contínuo a inocente Maria de grandes olhos e esta debulhava-se em lágrimas. Ou então, no meio de uma fúria, ameaçavam-se com pedras, e Juana invectivava-as com súbita veemência, que logo se extinguia.
Estranha, aquela ferocidade repentina com que as pequenas arremessavam pedras, e não menos estranho, o esforço por não acertar. Kate notava a mesma coisa nos ataques selváticos que os garotos faziam uns aos outros nas margens do lago; atiravam calhaus com ar ameaçador, mas quase sempre falhavam o alvo.
Quase sempre, mas não sempre. Às vezes atingiam o adversário, que tombava como morto. Então os outros aproximavam-se, em silêncio temeroso, da vítima prostrada. De repente, o ferido erguia-se, com um esgar homicida no rosto, perseguindo o inimigo com uma pedra. E o inimigo fugia a sete pés.
Uma vontade perene de arreliar, de atormentar. O mesmo sucedia entre os Peles-Vermelhas. Mas o povo índio raramente recorria à violência, o que se não dava com os Mexicanos.
Kate, achando que devia fazer qualquer coisa pelas pequenas, dispensou-lhes uma hora por dia para lhes ensinar a ler, a redigir e a costurar. Maria queria aprender a ler; nisso mostrou boa vontade. Começaram bem, mas depressa a leve insistência de Kate em lhes chamar a atenção fez com que as alunas assumissem o tom de ironia peculiar ao continente americano. Ironia calma, invisível, malevolente, desejo de magoar.
- Não te debruces sobre mim, Concha. Põe-te direita.
- Porquê, niña Tem piolhos na cabeça?
A pergunta insolente era formulada com subtileza índia.
- Não! - respondia Kate subitamente irritada. - E agora vão-se embora! Afastem-se de mim.
E as pequenas retiravam-se, humilhadas.
Kate recebeu visitas de Guadalajara. Grande excitação! Mas enquanto tomava chá na varanda, Juana, Concha, Maria e Filipa, que era uma prima de dezasseis anos, sentaram-se no outro lado do pátio, bem à vista, com os belos cabelos soltos sobre os ombros, e, ostensivamente, puseram-se a catar piolhos umas às outras. Pareciam encantadas por exibirem a sua sordidez àqueles estrangeiros.
Kate desceu ao pátio.
- Se querem catar piolhos - disse em voz trémula de cólera - vão para onde ninguém as veja.
Atravessou um clarão de maldade os olhos negros de Juana, mas um instante depois, humilde e abjecta, a família retirava-se, de cabeleira ao vento, em direcção ao seu antro.
Juana comprazia-se em irritar Kate. Sentia assim uma espécie de poder sobre a Niña. É certo que temia um tanto essa irritação, mas era justamente o que desejava. De que servia uma niña que não lhe inspirasse algum receio?
Ah, raças escuras! Kate, como irlandesa, podia entrever um pouco do mistério. As raças escuras pertencem a um ciclo de humanidade já desaparecido; ficaram atrás, no fundo de um abismo donde nunca conseguiram sair. Jamais atingirão o nível dos brancos; limitam-se a segui-los de longe, como escravos.
Enquanto o homem branco avança, cheio de orgulho, as raças escuras cedem-lhe o passo e obedecem-lhe pela força. Se, porém, o branco hesita na sua marcha, logo os outros o atacam para o precipitar no abismo do passado.
É o que está a acontecer. Porque o branco, apesar de todas as farroncadas, duvida da sua própria supremacia.
E é a corrida veloz para a derrocada.
Desde a revolta de Kate perante a cena da caça aos piolhos, Juana voltou a servi-la com enternecedora solicitude. Embora indiferente a tudo, aquele ser das regiões inferiores não queria quebrar o débil fio que o ligava a Kate e ao mundo da claridade e do ar puro. Em suma, o desejo de Juana era conservar a sua niña, servir a sua Niña.
Ao mesmo tempo, parecia odiar a gente rica, branca e superior. De vez em quando contava a Kate histórias do passado. Então via-se-lhe uma expressão malévola nos olhos negros e na face acobreada, enquanto ela prosseguia: Usted sabe, niña, los gringos, los gringuitos llevan todo...
Os gringos são os Americanos, e Juana incluía Kate nos gringuitos, estrangeiros brancos. Aquela frase era nova insolência disfarçada, subtil...
- É possível - respondia Kate friamente. - Mas dize-me o que é que eu levo do México.
- Non, niña, non - Espalhava-se um sorriso de satisfação na cara de Juana quando ela conseguia atingir a outra mulher. Não me refiro a si, niña! - O protesto, porém, era pouco convincente.
Dir-se-ia que essas indígenas queriam obrigá-la a partir à força, insultando-a, rebaixando-a, até que a irlandesa, não menos impetuosa do que elas, abalasse dali num momento de fúria.
Oh, raças primitivas atrasadas!
Contudo, havia um lado patético na natureza daquela gente. Quando tinha catorze anos, Ezequiel trabalhara por conta de um sujeito que andava a construir casa. O homem prometera-lhe uma manta, mas ao fim de dois meses despediu-o sem cumprir a promessa. Foi uma desilusão bem amarga.
Kate nada tinha a ver com isso, mas Juana quase a acusava do facto.
Povo sem força para avançar, como podia deixar de ser explorado? Desde séculos que o exploravam cruelmente, e toda a sua energia se limitava a uma resistência malévola.
"Mas não pretendo explorá-los - dizia Kate consigo mesma.
- Pelo contrário, a minha vontade é dar-lhes mais do que recebo. São injustos os seus remoques. Nunca insultei estas criaturas. Faço a diligência de não as magoar e elas, deliberadamente, atacam-me e ficam radiantes quando me ferem."
No entanto, Kate procedia à sua maneira irlandesa: de vez em quando, isolava-se de Juana e das filhas. Porque, assim que as mandava para longe, desaparecia-lhes a malevolência e lembravam-se das ordens da niña. Se ela estava presente e amável, esqueciam-se de tudo. Esqueciam-se de varrer o pátio, de se apresentarem limpas, e só quando Kate as relegava para um canto é que tornavam a lembrar-se.
O filho Ezequiel tinha mais dignidade do que as mulheres.
Nunca fazia aqueles ataques insidiosos.
Quando a casa estava limpa e calma e o ar parecia purificado e a alma renovada, Kate sentia novamente amizade por essa família.
A sua azáfama, andando cá e lá, esvoaçando como pássaros; o estalo da massa das tortillas de encontro à palma da mão; o entusiástico esmagar de tomates e pimenta no tacho enquanto Juana preparava o molho; o barulho do balde no poço quando Jesus vinha regar...
Como isso era divertido! Assim devia ser tudo o que fizessem, ou então não o fariam. Não podiam fixar-se numa rotina. Jamais! Tudo devia ser alegre, variado, com uma pontinha de aventura. Era confusão, mas, no fim de contas, uma confusão viva, não uma coisa morta. Kate recordava-se dos seus criados britânicos nas cozinhas inglesas, tão maquinais e quase inumanos. Aqui era o extremo oposto.
Não havia disciplina nem método. Embora Juana e as filhas quisessem realmente fazer o que a niña desejava, só procediam conforme lhes apetecia. às vezes, Kate sentia-se angustiada. Mas, tanto quanto possível, ia suportando as extravagâncias daquela família. Tivera, por exemplo, de se habituar à vagabundagem da mesa de jantar, mesinha redonda cujo lugar era na varanda. Ao primeiro almoço, ficava discretamente debaixo das plantas, perto do salão; ao almoço da uma hora regressava à varanda; ao chá, ia para a relva do jardim, à sombra duma arvorezita. E, quanto à ceia, Juana deliberou então que a niña comesse os dois ovos e rancheros na própria casa de jantar, isolada a um canto da comprida mesa em que cabiam catorze pessoas.
Kate também nunca chegou a perceber o motivo por que, depois de lavarem a loiça na cozinha durante uns dias, se lembraram de repente de levar os pratos sujos para o lago, num cabaz, aos ombros de Concha. A não ser que achassem assim o trabalho mais divertido...
Crianças! Mas não inteiramente. Faltava-lhes a despreocupação da infância. Pressentia-se-lhes na alma qualquer coisa de sombrio, como que um peso que as forçava a resistir. Trabalhavam por acessos, podiam ser laboriosas; depois vinha a indolência e passavam horas estiradas no chão, como porcos. às vezes mostravam-se alegres, conversavam e riam, sentadas sobre a terra, em grupo, formando roda. Então, subitamente, contrariando a própria alegria, recaíam na mudez e na tristeza. Havia ocasiões em que, estando a trabalhar com afinco, atiravam para longe a ferramenta como se indignadas por terem cedido. Descuidados, versáteis nos seus amores, os homens, ao menos, passavam todo o tempo a resistir a si mesmos. Nunca procuravam o que pretendiam. As mulheres a que se aproximavam. E um rapaz e uma rapariga passeando às escuras na estrada marginal do lago, atiçando-se um ao outro, atormentando-se no meio de excitação, constituíam uma cena que deixava Kate pasmada - porque homens e mulheres não se cortejavam abertamente como fazem os brancos. E o riso súbito do macho, estranha voz de desejo reprimido, de obstinada relutância e paixão desesperada, parecia qualquer coisa a rasgar-se-lhe no peito, era um som que perdurava na memória.
Kate achava pesado o governo da casa. De certa maneira, eram como parasitas, queriam viver da sua vida, e rebaixá-la, rebaixá-la. Nalgumas ocasiões mostravam-se como pessoas meigas, generosas, encantadoras - até a fazerem novamente revoltar-se contra aquela indiferença reptilária. Indiferença e resistência.
Os servos forneciam a Kate a chave da vida indígena. Os homens sempre juntos, erectos, belos, equilibrando o chapéu enorme no alto da cabeça, quer sentados, quer de pé, quer de cócoras, numa impassibilidade de serpente; as mulheres sempre à parte, suaves, como que escondidas, estreitamente apertadas nos chailes escuros. Homens e mulheres pareciam voltar costas uns aos outros como se não quisessem ver-se mutuamente. Nenhuns galanteios, nenhum namoro. Apenas um olhar ocasional sombrio e rápido, sinal de desejo semelhante a um golpe de florete dado e recebido.
Elas, no conjunto, dir-se-iam inexperientes mas decididas a seguir o seu próprio desígnio: mudar de homens quando lhes apetecesse. E eles davam a impressão de não se preocuparem muito. Afinal eram as mulheres que pretendiam os homens.
As indígenas, com os negros cabelos tombados nas costas cheias e acobreadas, banhavam-se num canto da praia, geralmente em camisa ou com um saiote. Os homens mantinham-se alheados, nem sequer se dignavam olhar para a outra banda. Eram mulheres no banho, nada mais. Faziam parte, por assim dizer, da vida lacustre, como os peixes que ali nadavam. Concediam-lhes mesmo aquele ponto do lago, e elas sentavam-se nos baixios, isoladas como aves aquáticas, e molhavam a cabeça e os ombros com o auxílio duma cabaça.
Calmas, discretas, desprezadas fêmeas da classe dos peóns, seguindo o seu caminho envoltas no rebozo como num manto de trevas, ágeis, balançando as saias rodadas e gorjeando como passarinhos; ou paradas na borda do lago, com os cabelos longos a gotejarem; ou subindo lentamente a margem com uma pesada bilha de água ao ombro e um braço por cima da cabeça, a segurar a asa do cântaro; ou, especialmente nas tardes de domingo, sentadas à porta da casa, catando piolhos umas às outras. As moças possuidoras de cabeleira abundante e ondulada eram as que mais piolhos tinham. Aquilo representava um acto público meritório.
Parecia a Kate que esse país não podia originar nada de mais elevado do que a amizade entre os homens. O próprio casamento tinha pouca importância. E, embora se mostrassem meigos e protectores para com as crianças, os pais depressa as esqueciam.
A questão do sexo era no entanto a primordial, aquela que não devia ser omitida nem aflorada abertamente. O único mistério, muito maior do que o indivíduo. Este pouco contava.
Kate pasmava ao ver as choças de palha dos índios nas margens do lago. Ali fervilhavam crianças seminuas no chão de terra batida, no meio de trapos, de ossos, e do fedor de excremento humano.
Esse povo parecia não ter olfacto. E defronte do buraco que servia de porta à cabana, o homem impassível, magnífico, silencioso... Como era possível que tão belo exemplar de virilidade se mantivesse indiferente a tamanha porcaria?
Mas ali se conservava como inconsciente. Contudo, era um ser vivo - e forte. Nenhum homem no mundo pode transportar cargas tão pesadas como os índios do México. Kate vira já um deles passar na rua com um piano às costas, apenas seguro por uma correia em volta da testa.
Portanto, força não escasseava, mas sim energia. Nem sequer a classe dos artífices que imita a dos Estados Unidos demonstra ser enérgica. Têm os seus clubes, aperaltam-se e andam de braço dado com raparigas bonitas, mas percebe-se que tudo isso não passa de vulgar imitação.
Inesperadamente, a família de Kate aumentou. Um dia, chegou de Ocotlan uma formosa moça de 15 Primaveras, com grandes olhos bovinos, Maria del Carmen. Acompanhava-a Júlio, rapaz de vinte e dois anos. Tinham casado há pouco, e vinham de visita a Sayula. Júlio era primo de Juana. Poderiam dormir no pátio com ela e com as filhas? - perguntou Juana. Só se demorariam dois dias.
Kate ficou espantada. Maria Del Carmen devia ter sangue espanhol, a sua beleza evocava a Espanha. Parecia pertencer a um nível superior, mais educado, e no entanto ia dormir no chão com esse esposo juvenil... E ele, tão aprumado e de ar tão orgulhoso, nada possuía além duma velha manta.
- Há três quartos desocupados - disse Kate. - Que durmam num deles. - As camas eram de pessoa só. - Precisarão de mais cobertores?
Não. Bastaria a manta de Júlio.
Este era assentador de tijolos, isto é, ajudava a construir as paredes das casas de adobe. Nascera em Sayula e vinha ali de visita.
Essa visita, no entanto, prolongou-se. Júlio andava à procura de trabalho e só aparecia ao anoitecer. Maria del Carmen entretinha-se a amassar tortillas na cozinha de Juana e a conversar com as raparigas. À noite, o marido regressava e, sentado no chão, de costas apoiadas à parede, sempre impassível, deixava a mulher acariciar-lhe os cabelos negros e bastos.
Amavam-se, mas Júlio resistia ao seu amor.
Ela queria voltar para Ocotlan, onde era mais señorita do que em Sayula, mas o rapaz recusou. Não tinha dinheiro; o casal sustentava-se com cerca de cinco cêntimos por dia.
Quando Kate estava a coser, Maria del Carmen, que nem sabia talhar uma camisa, observava-a de olhos arregalados. Kate ensinou-lhe costura, comprou-lhe uns metros de chita e Maria del Carmen fez um vestido com as suas mãos.
Júlio arranjou trabalho, a um peso por dia, e a visita continuou. Kate achava o rapaz pouco terno para a mulher: sempre que lhe falava era em tom de comando. E Maria del Carmen não levava isso a bem e amuava um pouco.
Passaram-se semanas, e Juana começava a cansar-se dos parentes.
Por fim, Júlio arrendou uma casita de adobe só de um compartimento, ao preço de peso e meio por semana. Maria del Carmen ia ter o seu lar.
Kate viu-os juntar as suas coisas para a mudança. Consistia tudo numa esteira de palha, três tachos de barro, cinco peças de loiça, duas colheres de pau, uma faca e a manta de Julio. Nada mais.
Presenteou-os, então, Kate com um edredão de seda já um tanto puída, duas tigelas e diversos utensílios de cozinha. Foi uma alegria. A voz de Maria del Carmen soava no pátio em exclamações delirantes. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"
Na época das chuvas as noites são por vezes glaciais devido à evaporação, e os indígenas, transidos de frio, esperam pelo romper da manhã deitados sobre esteiras delgadas e abafados apenas com a ponta de um cobertor velho. A inércia natural fá-los suportar o sofrimento sem tentar minorá-lo. Podiam arranjar um colchão de palha de milho e cobrirem-se com folhas secas de bananeira. Mas não. Estendem-se numa esteira em cima da terra húmida e tiritam de frio noite após noite.
Maria del Carmen, porém, era um pouco mais civilizada. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"

CONTINUA

VII
Sayula era uma pequena estação balnear; não para ricos ociosos, porque o México os tem em pouca quantidade, mas para comerciantes de Guadalajara e gente que passeia nos fins-de-semana. E mesmo assim em reduzido número.
Havia, no entanto, dois hotéis, que vinham dos dias calmos de Don Porfirio, tal como a maior parte das vivendas fora da povoação, hoje fechadas e muitas delas abandonadas. Na aldeia viviam em perpétuo estado de terror. Acima de tudo temiam os bandidos e os bolchevistas.
Os bandidos eram apenas homens das localidades afastadas que, sem dinheiro, sem trabalho e sem esperança faziam ocasionalmente profissão do roubo e do assassínio. Habitavam nas suas aldeias selvagens até que as tropas os obrigavam a refugiar-se nas montanhas ermas ou nas regiões pantanosas.
Quanto aos bolchevistas, pareciam nascer do caminho de ferro. Onde houvesse carris, passageiros e carruagens de diferentes classes, aí despertava o espírito de rebelião e inveja; e o ferro e as demoníacas locomotivas ofegantes dir-se-ia engendrarem esses filhos do materialismo que são os bolchevistas.
Sayula possuía o seu ramal, com um comboio diário; a linha não cobria as despesas e lutava por se manter - mas já era bastante.
Sayula fora atingida pela loucura da América: o automóvel. Assim, como outrora os homens desejavam um cavalo e uma espada e as mulheres sonhavam com uma casa ou um camarote no teatro, a ambição actual é possuir um carro.
Era um desfile contínuo de "máquinas", de automóveis ligeiros e pesados na única estrada que ligava Sayula a Guadalajara. Uma esperança, uma fé, um objectivo: andar de carro, possuir um carro.
Quando Kate chegou à aldeia, falavam com certo alarme do regresso dos bandidos, mas a irlandesa não prestou a mínima atenção ao assunto. À noite, foi àplaza e misturou-se com o povo. Era um largo ornado de árvores imponentes, com um velho coreto no centro e um passeio em volta. No lado norte ficava o mercado. Mais além, passavam burros e camionetas nas ruas mal calcetadas.
A banda de música já não tocava em Sayula, a elegância já não se exibia naplaza, debaixo das árvores. Mas o pavimento ainda era bom e os bancos mais ou menos sólidos. Oh, tempos de Don Porfirio! Agora, só os peóns e os índios, com os seus fatos brancos e manta ao ombro, enchiam os bancos e monopolizavam a praça. É certo que se mantinha a lei que obrigava os peóns, naquelas paragens, a usar calças e não a espécie de ceroulas largas e flutuantes das suas lides rurais. Mas os peóns, por seu lado, também gostavam de envergar calças em vez daquele traje representativo do humilde labor do campo.
Eram eles, pois, quem dominava na praça, ora sentados em bancos ora passeando indolentes com a sua manta e de sandálias. Depois das seis horas, enchiam-se as barracas de comida quente, na rua calcetada do lado norte: ficava mais barato comer fora de casa e findava-se agradavelmente um dia de trabalho. As mulheres, de portas adentro, que ficassem a mastigar as suas tortillas; mas não provavam caldo, nem sopa, nem guisado. Nas tendas que vendiam tequila, instalavam-se homens, mulheres e rapazes defronte da mesa, em bancos, acotovelando-se uns aos outros. Também havia jogos de azar, pouco violentos, em que o banqueiro voltava uma carta e todos gritavam: Cinco de Espadas! Rei de Copas! Certa mulher corpulenta, imperturbável, de cigarro na boca e perigosa expressão nos olhos sombrios e baixos, vendia tequila, sentada ao escuro, toda a noite. O homem dos doces ficava de pé junto do seu balcão. Por terra, viam-se pequenos archotes metidos em latas, alumiando montes de mangas ou daquelas nauseabundas ameixas tropicais, encarnadas, que se liquidavam por dois ou três centavos a pilha, enquanto a vendedora, de saia larga, ou o vendedor, humilde e paciente, esperava acocorado o freguês, com aquela indiferença fatal e aquela submissão que tanto intrigam o estrangeiro. Ter ameixas para vender no valor de trinta cêntimos; amontoá-las no chão em pequenas pirâmides, cinco em cada uma; e esperar todo o dia e até de noite, de cócoras, a olhar de baixo para cima, para a cara do transeunte e possível comprador - eis, ao que parece, uma ocupação e um modo de vida.
Era vulgar encontrar-se ali um par de rapazes empunhando violas de tamanho diverso, em frente um do outro como dois galos combatentes; entoavam uma canção interminável, cantando em voz sumida as eternas baladas não muito musicais, dolorosas, extensas, audíveis apenas para os que estavam próximos. E assim se conservavam até enrouquecerem. Em volta, com mantas encarnadas, paravam homens altos e escuros, ouvindo por instantes e raramente contribuindo com um centavo.
Entre as barracas de comes e bebes estava um trio de duas violas e uma rabeca; dois dos músicos eram cegos e cantavam em diapasão alto, mas também de modo pouco audível. Dir-se-ia cantarem só para si, muito chegados um ao outro, como se a melancólica balada lhes repercutisse no peito.
A aldeia em peso comparecia naplaza. No entanto, raramente, muito raramente uma voz se erguia acima do murmúrio grave dos homens, do sussurro musical das mulheres, do gorjeio das crianças. Poucos movimentos apressados. O lento passeio dos homens de sandálias, chamadas huaraches, fazia um rumor leve de baratas a arrastarem-se no chão. Fora e dentro da multidão calma, corriam rapazes de pernas ao léu. Eram os irrequietos engraxadores, que pululam como moscas importunas naquela terra de gente descalça.
No lado sul, viam-se mesas e cadeiras no passeio: uma tentativa de café-esplanada- Aí, nos dias de semana, sentavam-se para tomar cerveja ou um copo de tequila as poucas pessoas que se atreviam a tamanha exibição - na maior parte estrangeiras. E ospeóns, imóveis nos bancos do último plano, observavam-nas com olhos de basilisco sob as largas abas do chapéu.
Mas ao sábado e ao domingo era quase festa. Chegavam carros aos solavancos, e, como pássaros exóticos, volteavam na plaza raparigas graciosas de vestidos vaporosos, faces empoadas e cabelos encaracolados. Passeavam de braço dado, trajadas de organdi vermelho ou azul, de musselina amarela ou cor-de-rosa, e com tal camada de pó-de-arroz na cara que a pele morena apresentava a brancura lívida dos palhaços ou dos cadáveres.
Adejavam como borboletas coloridas no meio da multidão de homens do povo. fortes e belos. Era restrito o número de mancebos elegantes que pudessem equiparar-se àquelas mocinhas. Contudo, havia alguns, de calças de flanela branca, casaco escuro, palhinhas e bengala. Fumavam cigarros com gesto afectado, falando um castelhano elegante, tão próximo quanto possível do original, e com o ar de que seriam dentro de doze meses sacrificados a algum deus mexicano depOis de estarem devidamente nédios e perfumados.
Ao sábado, os janotas, as raparigas e todos os que vinham de carro, da cidade - que, aliás, eram poucos - tentavam divertir-se nesse lúgubre país. Contratavam tocadores de viola e rabeca e a música de jazz elevava-se em acordes um tanto langorosos.
Debaixo das árvores da alameda, perto das mesas e das cadeiras do café, começavam pares a dançar à la mode. Os vestidos vermelhos, amarelos e azuis rodopiavam com as calças de flanela, donde saíam elegantes sapatos brancos guarnecidos de tiras de couro preto ou castanho. Algumas das saias de organdi encimavam meias e sapatos verdes, ou pernas à Ia nature com sapatos brancos. Os braços franzinos e morenos enlaçavam os ombros azuis-escuros dos moços, que sorriam com ar protector para as facezitas brancas e petulantes; sorrisos meigos, paternais e impregnados de sensualidade.
Mas a dança era no recinto da praça, e na praça erravam indolentes os homens do campo, ou então paravam em grupos, espiando os pares rodopiantes com os seus olhos pretos, misteriosos, impenetráveis. Em que pensariam? Sentiriam admiração, inveja, ou simplesmente uma silenciosa e fria oposição? Sim, oposição é que devia ser.
Esses camponeses de camisa branca e manta escarlate, airosamente dobrada ao ombro, passeavam devagar, quase ocultos sob o chapéu enorme e pesado, dispostos a não fazer caso dos que dançavam. Vagarosos, oscilando o corpo, eles moviam-se irresistivelmente no meio da dança como se a dança, no fim de contas, não existisse. E os rapazes de calças brancas, levando nos braços as damas de organdi, evolucionavam como podiam, fazendo o possível por se desviarem âospeóns impassíveis, que prosseguiam na sua conversa, sorrindo na alvura dos dentes, com um sangue-frio que gelava os próprios músicos. Nunca se tocavam, nunca se acotovelavam, dançarinos epeóns; no México ninguém se atropela involuntariamente. Mas a dança embatia contra a oposição invisível.
Os índios sentados nos bancos contemplavam também por momentos as evoluções dos bailarinos, após o que os fulminavam com a sua pesada indiferença. Misteriosa faculdade dos índios, tão densa e calma, para destruir a vida palpitante, para apagar qualquer foco de efervescência.
Na verdade, um simples bailarico de indígenas; mas dir-se-ia fechado dentro de quatro paredes. E o ritmo soava diferente, grave, com certa violência. Os dançarinos eram artífices, mecânicos ou carregadores da estação: gente meio citadina. Nenhuns trabalhadores do campo, ou quase nenhuns.
Por isso, passado não muito tempo, as borboletas de organdi e os moços de calças de flanela sucumbiram esmagados pela enorme passividade, pela resistência dos satânicos peóns.
Curiosa, radical oposição dos índios contra essa coisa a que chamamos espírito. É o espírito que leva as meninas petulantes a adejarem as suas asas de organdi como borboletas. É o espírito que vinca as calças de flanela dos rapazes e lhes dá aquele ar um tanto patético. Tentaram representar a elegância e a vontade do espírito moderno.
No entanto, como um peso de obsidiana, surge a recusa passiva do índio; compreende a vida, que participa do sangue, mas o espírito, que é superior, e é a marca da nossa civilização, isso ele repudia, barbaramente, torvamente. Só quando se torna operário ou lida com ofícios mecânicos é que o espírito moderno o visita.
E talvez seja esse repúdio do espírito moderno que faz o México ser o que é.
Kate ficou um tanto desconsolada ao ver findar o baile. Instalara-se numa das mesas, com Juana a servir-lhe de duena, para tomar um cálice de absinto.
Os carros regressavam à cidade em pequenos grupos. Sempre seria melhor irem juntos, para o caso de aparecerem salteadores. Dominava-os o receio dos bandidos, e os próprios janotas usavam revólver no bolso.
Como era sábado, parte da mocidade elegante ficou para o dia seguinte, na ideia de tomar banho e de se espojar ao sol.
A plaza estava cheia, e ao comprido das ruas que desembocavam no largo cintilavam inúmeros archotes, iluminando uma exposição de chapéus de palha, de esteiras, de pirâmides de laranjas.
Havia feira no domingo de manhã, de modo que, de repente, o largo ficou estuante de vida - densa e pesada energia vital. Os índios tinham vindo de todas as aldeias, trazendo consigo essa curiosa energia vital que parece zumbir cada vez mais profundamente quando eles se encontram reunidos.
Durante a tarde, com o vento a soprar do sul, as canoas, de casco preto e larga vela desfraldada, haviam atravessado as águas do lago, transportando indígenas e produtos para o mercado. Para formar essa multidão todas as aldeias da margem concorreram com os seus habitantes.
Despertava o instinto que impele os índios para a vida nocturna desde que se encontrem reunidos. Ninguém recolhia a casa, ninguém pensava em dormir, embora a feira só principiasse ao romper da manhã.
Cerca das nove horas, depois de terminada a dança, Kate ouviu o rufar de um tambor, ou coisa semelhante, e notou que uma chusma de peóns se dirigia para o lado mais escuro da praça, onde já se viam barracas e cestos enormes, em forma de ovo, encostados à parede.
Aquele som, que era como o latejar dum pulso de gigante repercutindo no ar da noite, juntou-se a nota prolongada de uma flauta, tocando uma espécie de melodia bárbara. Kate, que já ouvira falar dos cânticos selváticos dos peles-vermelhas do Arizona e do Novo
México, sentiu instantaneamente espalhar-se na atmosfera a eterna
paixão das raças pré-históricas com a sua intensa e complicada significação religiosa.
Olhou para Juana com ar interrogador.
- Que é isto? - perguntou.
- Músicos, cantores - foi a resposta evasiva.
- Mas muito diferentes dos outros - insistiu Kate.
- Sim, aquilo é coisa nova.
- Nova?
- Apareceu aqui há pouco tempo.
- Donde veio?
- Sabe-se lá! - volveu Juana, encolhendo os ombros.
- Quero ouvi-los.
- Olhe que são só homens.
- Podemos ficar um pouco afastadas.
E Kate dirigiu-se para o ajuntamento silencioso dos peóns. Estavam todos de costas para ela.
Subiu o degrau duma porta e viu, perto do muro florido de buganvílias, um espaço livre iluminado pelos archotes de madeira resinosa que um rapaz segurava nas duas mãos.
O tambor estava ao centro dessa clareira, e o homem que o rufava tinha o torso nu e calças de brancura imaculada atadas na cintura por uma faixa escarlate e aos tornozelos por cordão da mesma cor. Cingia-lhe a cabeça uma tira vermelha, donde se erguiam três penas rubras sobre a nuca. Na testa brilhava uma turquesa no meio dum círculo azul. O tocador de flauta também se apresentava sem camisa, mas dobrara sobre o ombro uma bela manta branca listada de azul e preto. Outros homens, despidos da cintura para cima, distribuíam folhetos aos espectadores, insinuando-se no meio da multidão. E todo o tempo, alta e pura, a estranha flauta de barro repetia a melodia bárbara, acompanhada pelo rufar do tambor.
Kate desceu do seu poleiro e avançou a medo. Queria um daqueles papéis. O homem deu-lho, sem sequer a olhar, e ela encaminhou-se para a luz a fim de o ler. Era uma espécie de balada, mas sem rimas, escrita em espanhol. No cimo da página via-se o desenho de uma águia cercada por uma serpente que mordia a cauda; curiosa variante do emblema mexicano, que é uma águia encarrapitada num cacto de folhas largas e com uma serpente nas garras. A certa distância, o círculo formado pelo réptil com a ave a meio dava a impressão dum olho.
Na região de Oeste
Em paz, para além dos raios brilhantes
Do Sol,
No silêncio onde nascem as águas
Dormia eu, Quetzalcoatl,
Na caverna chamada Olho Tenebroso, Vendo através do sol como por uma janela, Minha morada é lá. Onde as águas brotam E os ventos nascem.
Nas águas do Além
Levantei-me e vi uma estrela cadente.
E senti
Um sopro em minha face.
O sopro disse: Vai,
E eu vim.
Desci a longa encosta, Passei o monte do Sol, Até que descobri em baixo Os seios brancos da terra Do México: a esposa minha.
Entre os mares a minha esposa Penteia o cabelo preto Murmurando: Quetzalcoatl...
Adensara-se a multidão de homens; do centro elevava-se a luz avermelhada dos archotes, o ar embalsamava-se da resina de cedro. Kate não conseguia ver nada por causa dos chapéus enormes.
Calara-se a flauta; mas o tambor continuava as suas pancadas lentas, regulares, com o ritmo duma pulsação. Aquele som incompreensível, surdo, enfeitiçava o espírito, fazia bater o coração, aniquilava a vontade.
Os homens começaram a fatigar-se, sentando-se uns, acocorando-se outros, com o chapéu nos joelhos. Dir-se-ia um mar de cabeças escuras, ondulando para a frente, sobre os ombros vigorosos e levemente inclinados.
Perto do muro formara-se um círculo, com o tambor ao centro. O homem que o tocava, de dorso nu, premia o instrumento contra o corpo, e, curvado, as costas cintilavam-lhe ao clarão da noite. Junto dele estava outro homem a segurar uma bandeira que pendia duma haste leve. No campo azul do pano via-se o Sol amarelo a meio duma bola preta e, entre os quatro raios maiores, todos de ouro, quatro raios negros emergindo, o que fazia o astro assemelhar-se a uma roda que girasse num movimento ofuscante.
Sentara-se toda a gente. Os seis homens de tronco nu, que haviam distribuído os prospectos e convocado a multidão tinham já regressado e agora acomodavam-se de volta do rufador agachado. À direita deste ficava o porta-bandeira, à esquerda o flautista. Eram nove os do grupo, e faziam dez com o rapaz que vigiava os dois archotes, agora colocados em trípodes de cana.
A noite aprofundava-se em silêncio. Calara-se o murmúrio de vozes que enchia a praça. Debaixo das árvores, nos passeios, transitavam ainda pessoas indiferentes, mas pareciam estranhamente solitárias; figuras isoladas envoltas na luz pálida das lâmpadas eléctricas e fora do núcleo da vida.
No lado norte, as barracas continuavam iluminadas, faziam-se compras e vendas. Mas também essa banda do largo dava a impressão de estar muito longe da realidade actual.
Depois de os homens se sentarem, as mulheres avançaram timidamente e instalaram-se por sua vez na orla exterior do círculo. As saias rodadas espalhavam-se no chão, os xailes escuros moldavam-lhes a cabeça redonda e pequenina. Algumas, não ousando aproximar-se, ocuparam os bancos em volta. Outras, assim como muitos homens, haviam desaparecido aos primeiros rufos do tambor.
a plaza ficou como que deserta. Um grupo compacto rodeava o tambor; aquém, era o mundo externo, vazio e hostil. Somente na ruela escura que conduzia ao negrume do lago se viam alguns vultos erectos e silenciosos como fantasmas.
Sobre os degraus de uma porta, e com Juana a seus pés, Kate olhava fascinada para aqueles homens seminus iluminados pelo clarão dos archotes. Os seus corpos lisos e acobreados possuíam essa beleza índia um tanto assustadora. Os torsos magníficos, acetinados, desses entes silenciosos de cabeça um tanto pendida para a frente; os ombros largos, levemente descaídos pela inactividade da sua força; o tom quente e o brilho da pele; o peito vigoroso, tão viril e, no entanto, sem a dureza muscular dos homens brancos; as faces sombrias, impenetráveis, os bigodes pretos e as barbas ténues enquadrando o silêncio da boca fechada - tudo isto era impressionante, singular, despertava comoção.
Havia algo de reptilário na sua flexibilidade, qualquer coisa de terrível na sua mudez. Os troncos nus tinham a revesti-los uma sombra subtil, certa obscuridade misteriosa. Se fossem homens de raça branca seriam francamente musculados, com uma espécie de sinceridade no próprio físico. Aqueles não. A sua nudez só revelava a profundeza secreta da natureza, o eterno mistério.
Toda a gente se calara; intensificava-se o silêncio expectante, tornava-se tumular. Os homens de ombros nus mantinham-se imóveis, mergulhavam dentro de si mesmos e escutavam com os ouvidos do sangue. Sob as calças brancas atadas nos tornozelos, os pés metidos em Imaraches eram quase negros ao clarão dos archotes. Que pretendiam essas criaturas suaves e recolhidas e cuja importância, no entanto, era tão ponderosa, tão aliciante?
Kate sentia-se ao mesmo tempo atraída e repelida. Quase a fascinava o estranho poder magnético dos homens em círculo. Era como o núcleo duma vida nova, como uma jóia negra brilhando na escuridão. Mas parecia-lhe repulsiva aquela estranha opressão, esse afundar do espírito na terra, esse lento escoar duma água turva; repulsiva a densa e muda oposição ao rumo espiritual da gente branca. Contudo, ali e só ali a vida parecia arder com chama intensa.
No resto do mundo, Kate bem o sabia, tudo era vacuidade, esterilidade. Aqueles vultos avermelhados pelo clarão dos archotes representavam uma humanidade nova.
Kate sentia tudo isto, mas preferia manter-se à parte, evitar o contacto directo.
O porta-bandeira ergueu a cabeça como se fosse falar, mas não disse nada. Velho de barba e bigodes brancos a emoldurar-lhe os lábios escuros e carnudos, tinha a cara sulcada de rugas, como todas as pessoas idosas desse país. No entanto, os cabelos eram bastos, e o corpo ainda revelava força e virilidade. ! Os seus olhos negros olhavam sem ver. Talvez fosse realmente
cego; ou seria profunda abstracção que lhe dava aquele aspecto. Começou então a falar, numa voz lenta, clara e distante que parecia ser o eco dos últimos sons do tambor. - Homens, escutai-me! E vós. mulheres, escutai-me também. Há muito tempo, na calma da noite, o lago dirigiu um apelo aos seres humanos. Mas não existiam. Só os peixes pequeninos nadavam ao longo das margens, procurando fosse o que fosse, e os maiores saltavam fora de água para olhar em volta. Mas não existiam seres humanos.
Então um dos deuses de face velada saiu da água e subiu ao monte. (E o velho indicou a colina invisível nas trevas da noite. ao fundo da aldeia. Contemplou o Sol e viu através dele outro sol negro, o que criou o mundo e o absorverá de novo como uma gota de água. Disse: - Chegou o momento? - E quatro braços saíram do sol e da sua sombra surgiram homens. Viram os quatro braços no céu e principiaram a andar.
O deus do cimo da colina olhou para as montanhas e para as planícies e viu os homens anelantes, sequiosos. E disse-lhes: Vinde cá. Tendes aqui a minha água dulcificadora.
Correram como cães, de língua pendente, e ajoelharam-se na margem do lago. O deus do cimo da colina ouviu-os ofegar, de tanta água que beberam, e perguntou-lhes: - Não bebestes de mais? Ou tendes ainda os ossos secos?
í Os homens fizeram casas à borda do lago, e aquele que estava na colina, e que era um deus, ensinou-os a semear milho, feijão, e a construir barcos. Mas preveniu-os: - Nenhum barco vos salvará quando o sol negro deixar de estender os braços no céu.
O deus da colina disse ainda: - Sou Quetzalcoatl, aquele que vos humedece os lábios secos. Encho-vos o peito com um sopro do além-sol. Sou o vento que sai em turbilhão do centro da terra, sou o zéfiro que se enrosca como cobra em volta dos vossos pés, pernas e coxas, erguendo a cabeça da serpente do vosso corpo, onde reside a força humana. Tomai cuidado quando a serpente do corpo erguer a cabeça. Sou eu, Quetzalcoatl, que vos elevo, que vos elevo até ao sol das trevas, derradeira morada dos homens. Exceptuando o sol negro e os quatro braços nos céus, éreis ossos, e as estrelas eram ossos, e a Lua uma concha vazia numa praia seca, e o Sol amarelo uma taça vazia, semelhante ao crânio dum lobo. Portanto, tende cautela! Sem mim nada sois. Assim como eu nada sou sem o sol que está atrás do sol. Quando o sol de ouro estiver no zénite, dizei: Quetzalcoatl levante a sua mão e me abrigue dos raios, senão perecerei e a terra secará. Porque na palma da minha mão está a água da vida, e nas costas está a sombra da morte. Quando os homens me esquecem volto a mão e aparece a sombra da morte. Mas os homens esqueceram-me. Os seus ossos eram húmidos, o seu coração fraco. Quando a serpente do corpo erguia a cabeça, diziam assim: É a serpente amansada que nos obedece. E quando suportavam o ardor do sol, falavam nestes termos: O sol está zangado, quer absorver-nos; ofereçamos-lhe sangue de vítimas.
Os braços negros desapareceram do céu, e Quetzalcoatl envelhecia e lamentava-se, velando a face para a esconder dos homens.
Lamentava-se e dizia: - Deixai-me recolher à minha morada. Estou velho, quase sou apenas ossos. Os ossos triunfam em mim, o meu coração é uma cabaça vazia. Sinto-me cansado do México.
Então bradou ao sol negro, aquele de quem nunca se pronuncia o nome: - Estou um esqueleto, os Mexicanos renegam-me, de nada sirvo. Levai-me.
O sol negro estendeu o braço e elevou Quetzalcoatl até ao céu. Depois olhou em volta e viu a estrela de alva brilhando sem receio entre a vinda do sol dourado e a fuga da escuridão. E aquele, cujo nome jamais foi pronunciado, perguntou: - Quem és tu, guarda cintilante? E a estrela respondeu: - Outrora, no México, fui Quetzalcoatl. Agora contemplo as costas do sol amarelo e a face invisível da Lua, brilho entre o dia e a noite, esperando pela renovação.
E aquele cujo nome jamais foi pronunciado declarou: - Chegou a hora.
Assim o decretou, e eu a vós repito, homens e mulheres: Chegou a hora. Os que nos deixaram regressam, os que vieram retiram-se. Desejai a uns boas-vindas e dizei adeus aos outros.
Boas-vindas! Adeus!
O velho terminou o discurso com um grito meio sufocado, tal se na verdade se dirigisse aos deuses.
- Bienvenido! Bienvenido! Adiós! Adiós!
A própria Juana, sentada aos pés de Kate, bradava sem saber o que dizia:
- Bienvenido! Adiós! Adiós... n!
O último adios arrastou-se para rematar com o costumado "n". Começou o tambor a soar num ritmo insistente, e a flauta fez ouvir o seu grito estranho e longínquo. Tocavam a melodia singular que a irlandesa ouvira a princípio.
Então um dos homens do círculo entoou o hino. Cantava à maneira dos antigos Peles-Vermelhas, em voz contida mas intensa, como se se dirigisse à própria alma e não ao mundo exterior; como se cantasse na outra dimensão da existência dos homens, onde eles se encontram na extensão infinita que há dentro do eixo do nosso espaço rotativo. Espaço que, como o mundo, não pode deixar de se mover. E, tal o mundo, tem um eixo. O eixo do nosso espaço terreno, quando lá se penetra, é uma vastidão onde até as árvores vão e vêm, e a alma está à vontade no seu sonho, nobre e irrefutável.
O pulsar do tambor e o cântico íntimo arrastavam a alma para o centro do tempo, que é mais velho do que a própria velhice. O cantor começou por uma nota alta que repetiu demoradamente, fazendo-a percorrer ritmos subtis, na aparência desconexos, que o tambor acompanhava, e depois fê-la tremer, palpitar e dar um balanço brusco. Por muito tempo foi difícil distinguir qualquer melodia: dir-se-ia o uivo distante e esmaecido dum lobo. Era na verdade a música dos índios antigos.
Não se lhe encontrava harmonia, não se lhe reconhecia emoção. Apenas música, apenas um grito na noite, perfeito e longínquo. Mas ia direito à alma, à alma eterna e antiga, aí onde só pode a família humana encontrar-se em imediato contacto.
Kate logo o sentiu, e de forma fatídica. Seria inútil resistir, inútil fazer qualquer esforço. O som ia até ao âmago do ser, em que não existe esperança nem dor, mas só a paixão, que semelha uma ave no seu ninho, de asas dobradas, e a fé uma árvore de sombra.
Como o destino, como a sorte. A fé é a própria Árvore da Vida, inevitável, e os pomos estão ao nosso alcance: pomos dos olhos
- as pupilas -, pomos do queixo, do coração, dos seios, do ventre, dos quadris, dos joelhos, dos tornozelos. Que importa a mudança, a evolução? Somos a Árvore com os seus frutos, para todo o sempre. Verbum Sat.
Emudeceu o cantor, mas o tambor prosseguiu, fazendo vibrar subtilmente a membrana sensível da noite. Então, no círculo, de novo se elevou uma voz, depois outra, e outra, como pássaros voando de uma árvore. Elevaram-se as vozes - forte, pesado, intenso arrebatamento de vozes másculas, semelhante a um bando de aves negras subindo e descendo no ar, ao mesmo tempo. E cada ave preta dir-se-ia erguer-se do coração de um homem, do bosque secreto dos peitos masculinos.
Uma a uma, partiram também vozes da multidão, qual nova revoada de pássaros. A letra não tinha importância. Versos, palavras, simples sons - o canto era sempre o mesmo: violenta rajada saindo das cavernas do peito, das profundezas da alma eterna. Kate estava excessivamente intimidada para poder cantar, demasiadamente vencida pelas desilusões; mas sentia que o seu espírito fazia eco, seguindo o clamor do povo, tal a ave poliglota que imita as outras à noite. Contra sua vontade, Juana cantava também, num tom monótono, proferindo palavras à toa, inconsciente.
Os homens seminus começaram a agarrar as mantas: mantas brancas orladas de azul, com barras castanhas e franjas escuras. Da turba, levantou-se alguém, que se dirigiu para o lago. Voltou depois com um feixe de lenha trazido por um barco. Acendeu então uma fogueira pequena. Outro indivíduo se destacou para ir também buscar lenha: colocou-a diante do tambor, dentro do círculo, e fê-la crepitar. Por sua vez, uma mulher, descalça e de larga saia de algodão, principiou a arranjar a sua fogueira no meio das mulheres.
O ar estava bronzeado pelo clarão do lume; alastrava-se um fumo odorífero, como de incenso. Subiu e desceu o cântico, depois esmoreceu. Débil ecoou o som do tambor, e morreu por seu turno. No silêncio absoluto podia-se sentir a presença imóvel do lago sombrio.
Mais uma vez pulsou, vigoroso, o tambor. Um dos homens que estavam sentados, com o seu poncho branco debruado de azul e preto, ergueu-se de repente e, tirando as sandálias, começou a esboçar passos de dança, sem fazer o menor ruído. Dançava pesadamente, de pés nus, como se fosse enterrar-se pela terra abaixo. Sozinho, oscilava num ritmo estranho, calcando o chão, erguendo ora um ora outro dos joelhos de encontro às franjas escuras do poncho. Outro homem, encaminhando-se para o centro, pôs aí os huaraches, perto do fogo, e iniciou o seu bailado, enquanto o do tambor entoava um cântico selvático, tenebroso. Os restantes comparsas despojaram-se dos ponchos e, num instante, estavam de pé, e de torsos nus, descalços, repetiam aqueles passos que pareciam de ave. A luz da fogueira batia-lhes no peito, nas faces sombrias e extáticas.
"O que dorme acordará! O que dorme acordará! O que segue o trilho da serpente na poeira chegará ao seu posto; pelo trilho do pó chegará ao seu destino e revestir-se-á com a pele da serpente: revestir-se-á com a pele da serpente da terra, que é a criadora da pedra, que é criadora da pedra e do vigamento da terra; criadora do oiro, do ferro, da madeira da terra: dos ossos do pai da terra, da serpente do mundo, do coração do mundo que bate como uma cobra bate no pó, nos seus movimentos sobre a terra; do coração do mundo. Quem dorme despertará! Quem dorme despertará! Quem dorme despertará no caminho da serpente do pó da terra, da pedra da terra, do osso da terra."
O cântico parecia tomar novos voos audaciosos depois de baixar e sussurrar num último desmaio. Eram como ondas que se erguem do invisível, que tomam forma, alando-se, e desaparecem num rumor de aniquilamento. E os dançarinos, após terem girado em círculo, numa lenta e profunda absorção, iam um por um tomar o seu lugar, calcando o pó com os pés descalços, vagarosamente, e vagarosamente começavam a descrever uma ronda lenta em torno do fogo, sempre com os mesmos passos que se diria afundarem-se na terra. E o tambor ressoava numa palpitação sempre igual, como a de um coração humano. E o cântico soou e diminuiu, mais baixo e mais baixo numa espécie de extinção, para ainda uma vez tornar a levantar-se.
Até que os camponeses moços acharam impossível permanecer como estavam. Tiraram as sandálias, o chapéu, as mantas, e, timidamente, com pés inexperientes que no entanto conheciam as velhas pisadas, se puseram atrás dos outros bailadores e dançaram sem sair do seu lugar. Depressa o círculo revoluteante estabeleceu outro círculo de homens que envolveu o primeiro.
Então, de súbito, um dos dançarinos de tronco nu saiu do círculo interior e, penetrando no segundo, fê-lo girar em sentido inverso ao daquele. Deste modo houve duas rodas em movimento, uma dentro da outra, rodopiando em direcções opostas. Assim andaram, com o tambor e o canto, girando como rodas de sombra em volta do lume. Mas o lume extinguiu-se, e o tambor parou de repente, e os homens num instante se dispersaram, retrocedendo para os seus postos.
Houve silêncio, depois ouviu-se um murmúrio de vozes e risos. Kate muitas vezes pensara que o riso dos peóns se assemelhava a uma queixa; mas agora ele saltava como faúlhas invisíveis, bruscamente, da cinza das conversas.
Todos esperavam, e contudo ninguém se movia - até que o tambor vibrou de novo, como um sinal. Continuaram, porém, a tagarelar mas escutando, qual se possuíssem uma segunda consciência. Levantou-se um homem, desfez-se da manta e deitou lenha na fogueira central. Em seguida atravessou o grupo dos homens sentados e dirigiu-se ao das mulheres, que se apinhavam com as saias desdobradas. Esperou, sorrindo com ar abstracto, e logo se pôs de pé uma rapariga e se aproximou dele, apertando com a mão direita o xaile enrolado em torno da cabeça baixa. Estendendo a mão esquerda, pegou timidamente na do homem, que parecia inerte. Sorriu este e conduziu-a ao centro da roda, através do grupo dos que estavam sentados. Ela seguia de cabeça inclinada, escondendo o rosto pudibundo. Lado a lado, começaram a dançar, mal roçando as mãos e formando o primeiro pequenino segmento do círculo interior estacionário.
Ei-los agora todos, em pé, à espera de serem escolhidos. Rápidas, as mulheres, ocultando a testa no xaile, insinuavam-se junto deles e tomavam a mão do eleito. Dentro de pouco tempo já todos tinham dama. Fechara-se o círculo interior, com os homens e as mulheres aos pares, de mão dada.
- Venha, niña, venha! - disse Juana, fitando Kate com os seus olhos negros e brilhantes.
- Tenho medo - respondeu a irlandesa. E falava verdade.
Um dos de tronco nu atravessara a rua, afastando-se da multidão e detivera-se próximo da porta onde se achava Kate, que se calou e desviou a vista. E ficou esperando.
- Olhe, niña, um senhor que a procura. Venha, niña, venha!
A voz da criada descera de tom, capciosa, com esse apelo mágico das mulheres do povo. Os olhos pretos continuavam a cintilar-lhe estranhamente, fitos no rosto da patroa. Kate, quase hipnotizada, avançou em passos lentos e indecisos para o indivíduo que se mantinha à espera.
- Quer, realmente? - disse ela em inglês, bastante atrapalhada. E, com os seus dedos, tocou nos dedos dele.
Quase com indiferença, num gesto frouxo, a mão quente e máscula segurou os dedos de Kate e levou-a para a roda. Ela baixou a cabeça e desejou poder velar a face. No seu vestido branco e chapéu de palha verde, sentiu-se outra vez virgem, virgem juvenil. Aqueles homens concediam-lhe o dom de reencontrar a mocidade.
Acanhada, receosa, Kate procurou seguir a dança; mas escapava-lhe o ritmo, e os sapatos rígidos não a ajudavam. Movia-se confusamente.
Mas o seu par pegava-lhe na mão, embora com moleza, e oscilava, lento, o corpo todo, como um pêndulo de relógio. Dir-se-ia não fazer caso dela; contudo, segurava-lhe os dedos, de leve, numa pressão suavíssima.
Juana descartara-se dos sapatos e das meias. No rosto como uma máscara de lava, enrugado, escuro, as pupilas ardiam com a eterna chama da feminilidade, sombria e inextinguível. E já, com os pés, marcava o compasso da dança.
"Assim como o pássaro do sol fecunda a terra à alvorada tal uma fêmea morena sob os seus pés, com as dobras do ventre inclinadas aos pomos da geração, com os ovos de oiro, com os ovos que escondem o globo do sol nas águas do céu, na concha da terra que é o alvo do fogo do sangue, pisa tu também a terra e a terra conceberá qual a fêmea sob os pés do pássaro do sol. Pisa a terra, pisa a terra agachada e de asas encolhidas..."
A roda começou a girar e Kate foi-se movendo devagar entre dois homens silenciosos e absortos, cujos braços tocavam os seus. Um segurava-lhe os dedos, frouxa e brandamente, mas com transcendente afinidade. E o canto selvático subiu de novo como uma ave, e o tambor alterou o ritmo de modo incompreensível.
A outra roda era composta só de homens; Kate tinha a impressão de sentir nas costas o fulgor sombrio daqueles olhares. Os indivíduos já se não distinguiam, formavam como que uma única massa, em que ela própria se confundia.
Todos dançavam da mesma maneira, de cabeça baixa e olhar ausente, os homens absorvidos na sua virilidade, as mulheres na sua feminilidade. Somente o sexo prevalecia na sua mais alta concepção. Mar à superfície do globo movendo-se por cima dum mar nas entranhas da terra; águia evolucionando em silêncio sobre a própria sombra.
Kate sentia-se fundir nas águas revolutas de uma vida nova. Deixara de ser ela mesma para fazer parte de um todo, os seus desejos abismavam-se no mar do desejo colectivo. E assim o homem cujos dedos roçavam nos dela se engolfava no oceano de homens.
Lento mover de águas sobre águas, sem vestígio de espuma. Só a pura e deslizante conjunção.
Como era estranho ver-se submergida pelo desejo para além do próprio desejo, sentir-se integrada num corpo imenso para além do individualismo do corpo!
Não conhecia a cara do homem que lhe segurava nos dedos. Os seus olhos haviam cegado, e o rosto dele era um céu tenebroso. Mas do toque dos seus dedos nascia uma estrela, a estrela que os unia.
Os pés de Kate principiavam a marcar o compasso. Ela já sabia como deixar-se levar, abandonar a essência da sua vida, permitindo que lhe fugisse devagar, num escoamento rítmico, para o corpo negro da terra. Erecta, forte como o próprio esteio da vida, cedia no entanto a Seiva dessa força e fazia-a fluir para as raízes da terra.
Perdera a noção do tempo. A dança, porém, acalmava-se pouco a pouco, embora o ritmo permanecesse sempre o mesmo até ao fim.
Calaram-se as vozes, só o tambor continuou. Este, de súbito, produziu um rufo breve, e o silêncio foi geral. Logo as mãos se desataram, o baile parou de todo. O homem que a acompanhava sorriu-lhe e desapareceu. Jamais o reconheceria. Havia, no entanto, de lhe sentir a presença.
As mulheres afastaram-se, aconchegando os ombros com o xaile. Os homens dissimularam-se nas mantas. E Kate voltou à escuridão do lago.
- Já se vai embora, Niña? - perguntou Juana num tom que revelava certo descoroçoamento.
- Tenho de ir sem demora - replicou a patroa, estugando o passo. E a toda a pressa se encaminhou para as trevas do lago, com Juana na sua peugada, de sapatos e meias na mão.
Kate desejava reentrar em casa, com o seu novo segredo, o estranho segredo da feminilidade mais alta, a que ainda se não habituara. Precisava abandonar-se inteiramente àquele mistério.
Quase corria através do atalho interminável, na margem pedregosa e escura, apesar de a claridade das estrelas ser suficiente para revelar a forma sombria dos barcos que sulcavam a água mansa e turva. Noite eterna, sem horas! Kate não queria consultar o relógio, e até o virou no pulso a fim de não ver os ponteiros luminosos. Que o tempo a não governasse!
Ao adormecer, ouvia ainda o rufar do tambor, como um pulso que batesse nas entranhas da terra.

VIII
À entrada da casa de Kate elevava-se uma árvore enorme chamada cuenta por causa dos seus frutos pequeninos, redondos, duros e perfeitos de forma, que os indígenas apanhavam para fazer colares e, em especial, padre-nossos dos rosários. À noite, a rua ficava imersa em escuridão e só a queda das contas perturbava o silêncio.
Essas noites, que de começo pareciam calmas, amigáveis, encheram-se subitamente de terrores. Renascia o medo. Constituíra-se uma quadrilha de ladrões numa das aldeias do lago, cujos habitantes tinham má fama. Essa quadrilha, invisível durante o dia, compunha-se de pescadores e jornaleiros que, depois do anoitecer, montavam nos seus cavalos e iam assaltar casas solitárias ou mal guardadas.
O facto de saber que um bando de malfeitores rondava naquela região era o bastante para incitar os ladrões isolados a agir também. Fosse o que fosse que acontecesse, seria atribuído aos bandidos. Deste modo, mais de um indivíduo considerado honesto se deixava dominar pela cobiça e se escapulia à socapa armado de faca ou de pistola para se aproveitar igualmente da escuridão.
Kate sentia o terror condensar-se no silêncio da noite mexicana; silêncio tenebroso, tão profundo que se tornava sobressaltante, o som duma conta a cair. Deitada na cama, Kate escutava o mínimo rumor nas trevas densas. Ouviam-se ao longe apitos de polícia, daí a pouco passava a patrulha a cavalo. Mas, como acontece em quase toda a parte, a polícia nunca aparecia quando era precisa.
Aproximava-se a estação das chuvas, e o vento nocturno, vindo do lago, fazia sussurrar as árvores e abalava as portas desconjuntadas da casa. Os criados encafuavam-se nas suas dependências. No México, uma pequena distância isola-nos completamente desde que a noite desce; e ficamos perdidos na escuridão envolvente.
De manhã, Juana vinha da praça, com os seus olhos como gotas de tinta e, no rosto bronzeado, a expressão cansada dos entes submetidos ao medo. Logo de entrada, e na sua linguagem pouco compreensível, embrenhava-se na história de uma casa assaltada e de mulheres assassinadas. E a dona do hotel mandava dizer a Kate que não era prudente dormir sozinha em casa. Seria melhor passar a noite no hotel.
Toda a aldeia se encontrava sob estranha apreensão. Pairava no ar da noite um terror pânico. Renascia a confiança à claridade azul da manhã, mas ao anoitecer o sangue parecia coagular-se, a atmosfera tornava-se densa.
O medo, é claro, comunicava-se duns aos outros. Se Juana e a respectiva família não andassem cheias de pavor, Kate nunca sentiria medo, disso estava ela certa.
Ali não havia homens. Juana tinha dois filhos, Jesus, de vinte anos, e Ezequiel, de dezassete. Mas Jesus era quem tomava conta do motor da luz eléctrica, e tanto ele como Ezequiel dormiam na casa das máquinas. De modo que Juana ficava só com as duas filhas, Concha e Maria, no cubículo ao fundo da residência de Kate.
Antes, a plaza mantinha-se animada até às dez da noite, com gente a conversar ou a ouvir os moços tocadores de viola e o homem dos sorvetes a apregoar de contínuo: Nieve! Nieve!
Agora o largo esvaziava-se às nove horas. E havia ordem de prender quem fosse encontrado na rua depois das dez.
Kate corria para casa e trancava as portas. Não é fácil suportar o pânico de um povo meio bárbaro. O medo espalha-se no ar, envolve-nos, paralisa-nos a alma com a sensação de desgraça iminente, dum horror atroz.
Às dez horas cortavam a luz eléctrica, tudo ficava às escuras, e, deitada na cama, Kate sentia o sopro maléfico espraiando-se na atmosfera em vagas sucessivas.
Acudiam-lhe à memória todas as histórias arrepiantes passadas no país. E de novo pensava nessa gente de aspecto pacífico e sorriso doce. Mas o próprio Humboldt dissera a respeito dos mexicanos que nunca encontrara povo de sorriso tão suave e olhar tão feroz. Não que os olhos revelassem propriamente ferocidade; contudo, o seu negrume iluminava-se dum clarão frio, de cintilações de punhal nas trevas da noite, ao mesmo tempo que neles despertava a sede de homicídio.
Seres incompletos, não de todo criados, encontravam-se à mercê das velhas influências que jaziam como sedimento no fundo de cada um deles. Enquanto estavam calmos, eram simpáticos, bondosos, simples. Mas, se alguma coisa lhes revolvia as profundezas, logo se erguiam as nuvens tenebrosas de ódio e de morte.
Adivinhava-se-lhes na alma um ressentimento constante, como que uma ferida jamais cicatrizada. O ressentimento dos entes incapazes de conquistar sozinhos uma integridade individual fora do caos de paixões e forças mortíferas. Eram apanhados na engrenagem duma ansiedade ancestral como nos anéis duma serpente negra que lhes oprimisse o coração. Onerosa carga dum passado invencível.
E debaixo desse peso vivem e morrem, sem grande pena de morrer. Enredados nos elementos, não conseguem desenvencilhar-se. Queimados pelo sol excessivamente forte, sobrecarregados pela electricidade da atmosfera mexicana e atormentados pela erupção de vulcões que lhes rebentavam aos pés. Tremendos elementos do continente americano que tornam forte o corpo dos homens mas que esmagam a alma e impedem a sua elevação. E, se nalgum ela se eleva, os elementos maléficos a pouco e pouco a destroem, até que o homem se decompõe em ideias e actividades maquinais, num corpo cheio de energia mecânica mas de espírito morto e putrefacto.
Assim, esses seres incapazes de dominar os elementos, submetidos às forças do sol, da electricidade e das erupções vulcânicas, estão sujeitos a acessos de rancor e de ódio ardente à própria vida. Então, nada melhor do que enterrar uma faca num corpo vivo. Nenhuma volúpia iguala essa de cravar a lâmina e ver jorrar o sangue.
É a suprema satisfação duma raça presa a um passado de que não consegue libertar-se. Raça que não conhece Salvador nem Redenção. Quais mineiros enterrados vivos na derrocada duma mina, nações inteiras ficam sepultadas sob os escombros do passado - até que um salvador lhes mostre a saída para o sol.
Deitada na cama, Kate reflectia profundamente na'escuridão da noite, de ouvido atento aos menores ruídos que a enchiam de terror. Não podia refrear o coração; dir-se-ia que lho arrancavam, e o sofrimento era atroz. Pela primeira vez sentia medo físico, o sangue gelava-se-lhe nas veias.
Na Inglaterra, na Irlanda, durante a guerra e a revolução, conhecera o medo espiritual. O medo horrível da ralé; e durante a guerra as nações eram quase tudo ralé. O terror da canalha que pretendia acabar com a liberdade de pensamento em cada homem e em cada mulher. Era a ambição fria e colectiva de milhões de criaturas: aniquilar o espírito daqueles que resistiam e assim poderem iniciar a descida geral para as camadas interiores onde existe o culto do ouro e a volúpia de matar. A canalha.
Nesse tempo, Kate conhecera a agonia do medo social, como se a democracia fosse um polvo enorme que enlaçasse com os tentáculos quem lhe resistisse.
Agora o seu medo era doutra espécie. Sentia o coração doer-lhe, como se o arrancassem, o sangue parecia fugir-lhe das veias...
Dormitava, e acordou em sobressalto a um leve rumor. Sentou-se na cama. As portas que davam para a varanda tinham postigos, e estes encontravam-se escancarados a fim de arejar o quarto. Nessa abertura Kate distinguiu, recortando-se no céu escuro, uma forma negra semelhante a um gato que rastejasse no rebordo da janela.
- Que é? - perguntou ela maquinalmente.
No mesmo instante, aquilo moveu-se, deslizou para fora, e Kate percebeu que era o braço de um homem que tentava abrir o ferrolho interior da porta. Por uns segundos ficou paralisada, pronta a gritar. Então, como não pressentisse mais nada, inclinou-se e acendeu uma vela.
Era uma verdadeira agonia aquele terror pânico. Imobilizava-a, deslocava-lhe o coração... Ficou prostrada, no angustiante pavor nocturno. A vela projectava uma claridade lúgubre. Ouvia-se o ribombo longínquo de trovões. A noite era atroz, atroz, e o México horroroso.
Kate não conseguia dominar-se. "Estou à mercê disto", pensava. Sensação terrível, ver-se subjugada pelo medo.
"Que hei-de fazer?" perguntou a si mesma, reunindo coragem. Sabia que estava só.
Durante muito tempo sentiu-se incapaz de se mover. Então disse consigo, para se animar: "Creio no mal e não devo crer. O pânico e o assassínio são coisas que só sucedem quando perdemos o domínio de nós próprios. Não acredito verdadeiramente no mal. Acredito, sim, na existência dum poder supremo que nos comunica a sua força desde que tenhamos fé nele. O homem que queria entrar aqui não possuía essa força. Tentava ser maléfico, mas submeter-se-ia ao poder dominador."
Deste modo se ia tranquilizando, até que teve a coragem de se levantar e fechar os postigos. Em seguida, percorreu os quartos a fim de verificar se tudo estava trancado. E sentiu certo alívio ao compreender que temia tanto os escorpiões como a horrível sensação de pavor.
Depois de observar o fecho das cinco portas e das cinco janelas da ala de quartos comunicantes, Kate ficou encerrada nas trevas com a sua vela. Para o outro lado da casa, sala de jantar e cozinha, tinha de ir pela varanda.
Mais serena, embora ainda com o coração atormentado pelo medo, Kate reflectia. "Joachim afirmava que o mal provém de regressarmos aos costumes primitivos. É o que provoca roubos e assassínios. O tambor da noite de sábado evocava o ritmo da antiguidade e aquela dança selvagem era a velha forma de expressão. Regresso consciente à barbárie... Talvez a origem do mal..."
Mas logo intervinha o seu desejo de crer.
"Não! Temos de nos agarrar aos elos antigos, encontrar o impulso que nos relacionará de novo com o mistério do cosmos. Don Ramon tem razão. Ele deve ser um grande homem. Julguei que já não existissem grandes homens. Só grandes financeiros, grandes artistas, mas não grandes homens. Don Ramon deve ser um ente superior."
E Kate sentiu-se apaziguada a esta ideia.
Mas, logo que apagou a vela, surgiram clarões muito vivos através das fendas do postigo. Ribombaram trovões clamorosos, que pareciam afundar-se-lhe no coração. Kate sentia-se como que esmagada, na consciência duma tortura que a paralisou até de manhã e lhe deu a impressão de ser, ela própria, um destroço de naufrágio.
Por fim apareceu Juana, também com o ar de desenterrada, para lhe fazer a pergunta tradicional:
- Como passou a noite, Niña?
- Muito mal - respondeu Kate. E contou-lhe a história do gato preto e do braço do homem.
- Mire! - replicou Juana, sufocando a voz. - A inocentinha vai ser assassinada na cama. Não, niña, tem de passar a dormir no hotel. Não, Niña, não pode continuar com o postigo aberto. É impossível. Está a ver agora como é necessário que durma no hotel? Assim fazia a outra senhora.
- Não quero - declarou a patroa.
- Não quer, Niña? Ah, entonces, entonces... niña, vou dizer ao Ezequiel que venha dormir na soleira da porta, armado de revólver. Ele tem um revólver, pode ficar do lado de fora da porta, e a senhora já deixava a sua janela aberta, para lhe refrescar o quarto. Pobres de nós, mulheres, precisamos de um homem que tenha revólver. Não devemos estar sozinhas, toda a noite. Temos medo, e as crianças também têm medo. Imagine que um ladrão tenta arrombar o ferrolho da porta! Imagine! Não, niña, vai-se falar ao Ezequiel hoje mesmo, antes do meio-dia.
Ao meio-dia, Ezequiel compareceu, muito seguro de si. Era um rapaz, meio selvagem, mas dava largas passadas, empertigado e orgulhoso. A voz, na mudança própria da puberdade, tinha uma entoação estranha.
Ficou de pé, acanhado, ouvindo o que lhe recomendavam. Depois olhou para Kate com as pupilas negras e brilhantes, convicto do seu papel de salvador.
- Sim, sim - declarou. - Durmo aqui no corredor. Não tenha medo. Trago a pistola.
Saiu, e voltou com a arma, que era de cano comprido.
- Tem cinco cargas - participou, exibindo o revólver. - Se abrir a porta de noite, previna-me, porque, se eu vir mexer qualquer coisa, disparo os cinco tiros. Pum!, pum!
Pelo brilho do olhar do rapaz, Kate compreendeu quanto ele gostaria de fazer fogo sobre o que se movesse nas trevas. Não o preocupava a hipótese de ser alvejado por seu turno.
- niña - disse Juana - se voltar tarde para casa, depois de as luzes estarem apagadas, não se esqueça de chamar pelo Ezequiel. Senão... pum!, pum! Nunca se sabe quem pode ser a vítima.
Ezequiel dormiu sobre uma esteira na varanda de tijolos, defronte da porta de Kate. Enrolou-se num cobertor e conservou o revólver à mão. A senhora podia ficar de janela aberta. Na primeira noite, esteve muito tempo acordada por causa do ressonar estrondoso do rapaz. Nunca ela ouvira semelhante coisa! Que pulmões que ele devia ter! Dir-se-ia um som que viesse de outro mundo estranho e bárbaro. O barulho manteve-a desperta, mas havia naquilo um não sei quê de agradável. Algo semelhante a uma força bravia.

IX
Kate depressa se afeiçoou à negligente Juana e respectivas filhas. Concha tinha catorze anos. Era uma rapariga selvagem, entroncada, de cabeleira hirsuta que ela coçava constantemente. Maria, de onze anos, parecia um passarito, com olhos enormes que se diria absorverem toda a luz à sua volta.
Juana confessava que Jesus era filho doutro pai, mas o aspecto dos restantes fazia suspeitar ter cada um deles progenitor diferente. Toda a família, porém, mostrava igual despreocupação perante a vida. Viviam o dia-a-dia sem se importarem com o passado, nem com o presente, nem com o futuro. O dinheiro não lhes interessava. Assim que o recebiam gastavam-no, e logo o esqueciam.
Sem aspirações, sem objectivos, levavam existência absolutamente terre à terre no seu país sombrio e vulcânico. Não eram animais porque homens, mulheres e crianças não podem ser animais. Tal não nos foi concedido. Vai, e não voltes para trás - diz o Criador. Quando o homem tenta brutalmente tornar ao primeiro estado da evolução, fá-lo com espírito de crueldade.
Por isso os olhos negros daquela família revelavam certo medo, espanto e sofrimento. Angústia das criaturas humanas sem força para desenvolver as possibilidades do seu ser; incapazes de arrancar do caos a própria alma e indiferentes a qualquer outra vitória.
Também os brancos perdem a alma a pouco e pouco; mas conquistaram os mundos inferiores do metal e da energia e, graças às máquinas, lançam-se em corrida louca de roda da sua vacuidade.
Naquela família Kate encontrava algo de patético e de repugnante.
Desde que haviam aceitado niña como patroa, Juana e as filhas mostravam-se profundamente honestas. Honestas, a pontos de não tirarem uma única ameixa do fruteiro. E solícitas no serviço, de uma solicitude quase excessiva.
Viviam na sujidade, indiferentes ao ambiente. O chão era o seu caixote do lixo. Para ali arremessavam tudo o que consideravam inútil e ninguém se preocupava mais com isso. Pareciam 138
comprazer-se em viver no meio de pulgas e de trapos, de cascas de banana e caroços de manga. Um pedaço arrancado dum vestido - aí vai para o chão! Cabelos tirados do pente - chão com eles!
Kate não suportava aquilo. Afligia-a tamanha desordem, e o facto de ela se afligir divertiu imensamente a família mexicana. Mãe e filhas varreram então o pátio com uma vassoura de urze, até raspar a própria superfície da terra. Que engraçado, a niña preocupar-se com aquelas coisas!
Kate constituía para elas uma fonte de espanto e de divertimento. Não a consideravam pessoa de classe elevada. Era um ente meio incompreensível, meio espantoso.
Niña queria que o aquador lhe trouxesse todas as manhãs dois botes de água das nascentes térmicas para fazer abluções completas. Que esquisito! "Maria, diz ao aquador que corra a buscar água para a niña."
Quase se melindravam com o facto de ela se fechar no quarto para tomar banho. Era uma espécie de deusa, provocava-lhes alegria e admiração; mas devia ser sempre acessível. Kate depressa descobriu que um deus sempre acessível aos seres humanos passa bocados pouco invejáveis.
Não, aquilo não era nenhuma sinecura. De manhã começava o barulho da vassoura de urze lá fora. Kate deixava-se estar na cama, de portas fechadas e postigos abertos. Alvoroço no pátio. Alguém queria vender ovos. Onde está Niña? A dormir. O visitante não se retira e as conversas continuam.
O aquador! Ah, a água para o banho da niña. Está a dormir. "Não estou, não!" - grita Kate, enfiando o roupão e destrancando a porta. As pequenas entram com a tina, seguidas do aguadeiro com duas latas cheias de água quente. "Doze centavos, doze centavos para o aquador." No hay! Mais tarde, mais tarde. O homem vai-se embora, com a vara ao ombro. Kate fecha os postigos e começa a tomar banho.
- Niña!, Niña! - Que é?
- Quer ovos estrelados, quentes ou rancheros?
- Quentes.
- Café ou chocolate?
- Café.
- Ou prefere chá?
- Não, café.
O banho continua.
- Niña!
- Dize lá.
- Já não temos café. vou comprá-lo.
- Não é preciso. Tomarei chá.
- Não, niña, Eu vou. Espere por mim.
- Está bem, vai.
O primeiro almoço é na varanda. A mesa está posta, há pilhas de frutos, pão alvo e bolos.
- bom dia, niña. Como passou a noite? Maria, traze o café. vou meter os ovos na água. Oh, niña, eles não devem ficar cozidos... Meu Deus, que pés de Madona! Olhem, que bonitos!
E Juana inclina-se fascinada e, com o dedo escuro, toca nos pés acetinados de Kate metidos em leves sandálias seguras por uma única tira.
O dia tinha começado. Juana considera-se como inteiramente dedicada a Kate. Tão cedo quanto possível, expede as filhas para a escola. "Niña diz que é preciso ir para a escola. Não ouvem o que ela diz? Vamos, girem!"
No seu passo coxeante, Juana anda cá e lá na varanda, da cozinha para a mesa do almoço, transportando os pratos um por um. Depois, com grande espalhafato, começa a lavar a louça.
Manhã! O sol inunda o pátio, os cardeais e as folhas dilaceradas das bananeiras. Os pássaros voam em todos os sentidos com precipitação tropical. Na sombra densa das mangueiras passam índios vestidos de branco, semelhantes a espectros. Há um frémito de vida e, no entanto, o silêncio é opressivo. Os olhos deslumbram-se à claridade ofuscante, a alma sente-se oprimida.
Kate senta-se na varanda e finge coser. Surge um velho, segurando um ovo na mão, como qualquer símbolo. A patrona quereria comprá-lo por cinco centavos? Juana só dava quatro. De acordo? Onde está Juana?
Juana volta da praça com outras compras. O ovo! Quatro centavos! A conta das despesas. Entonces! Entonces! Luego! Luego. Ah, niña, no tengo memória.
Juana não sabia ler nem escrever. Todas as manhãs ia ao mercado, comprava uma porção de coisas de um ou dois centavos e todas as manhãs era preciso fazer contas. "Ah, onde é que nós íamos?
Não tenho memória nenhuma. Ora vejamos... Comprei três centavos de ocote... Quanto? Quanto soma agora, niña" Se faltava um centavo, ficava desolada e não falava noutra coisa. "Falta um centavo, niña? Sou estúpida, não sou? Mas eu dou-lhe um do meu dinheiro."
- Deixa lá, não penses mais nisso - dizia Kate.
- Mas eu quero pagar a diferença - insistia a mulher; e afastava-se, coxeando.
Uma hora depois elevava-se um grito no outro extremo da casa e Juana aparecia empunhando um ramo de salsa.
- Mire, niña! Compré perejil a un centavo. As contas estão certas agora?
- Estão - respondia Kate.
E a vida podia então retomar o seu curso. Existiam duas cozinhas: a anexa à sala de jantar, e a das criadas, numa espécie de barraca debaixo das bananeiras. Da varanda Kate via a abertura negra que fazia as vezes de janela na cozinha de Juana.
"Julgava Concha na escola!", disse Kate consigo mesma.
Mas não. No buraco escuro da janela distinguia-se o rosto moreno e a juba de Concha, espreitando para fora como um animal que saísse da toca, enquanto fazia as tortillas. Tortillas são uma espécie de filhos de milho. Preparam-nas batendo a massa na palma da mão até adquirir a lisura e leveza necessárias. Pouco depois do meio-dia via-se sair fumo pela janela: Concha lançava as tortillas cruas na frigideira de barro colocada sobre o lume.
Então Ezequiel aparecia, de manta sobre o ombro, chapéu de palha de grandes abas enroladas, pronto a comer as tortillas. No entanto, se trabalhava no campo, só chegava ao cair da noite. Sentava-se no degrau da porta e as mulheres serviam-no e iam-lhe buscar água como se ele fosse um rei. E ouvia-se-lhe a voz rouca dando ordens em tom calmo.
Porque, apesar do seu ar sereno e meigo, tomava uma entoação imperiosa desde que se dirigisse à mãe ou às irmãs. Prerrogativa de macho, que dava a Kate vontade de zombar do rapaz.
A hora da refeição era para Kate um dos seus tormentos. Apresentavam-lhe sopa muito quente e gordurosa, arroz apimentado, também gorduroso e fumegante, a inevitável carne nadando em gordura. Seguiam-se calabacitas, ou beringelas, salada, e o enorme cabaz de fruta. E, inundando tudo isso, o ardente sol tropical dos fins de Maio.
De tarde, o calor aumentava. Juana ia com as filhas lavar a loiça no lago. Agachadas sobre as pedras, agitavam na água cada prato, cada colher e cada garfo, e punham tudo a secar ao sol. Depois, enquanto Juana lavava uma ou duas rodilhas, as filhas banhavam-se no lago.
Jesus, o primogénito, costumava vir à tarde regar o jardim. Mas esse comia no hotel, onde prestava diversos serviços, trabalhando até às dez da noite por um salário de vinte e dois pesos, ou seja, onze dólares por mês. Usava camisa preta, e a cabeleira abundante tombava-lhe na testa baixa. Apesar da camisa fascista, possuía o espírito sarcástico e crítico dos socialistas, o espírito que vem do instinto de destruição.
Entre ele e a mãe existia pouca intimidade. Se Juana se encontrava em apuros, Jesus dava-lhe algum dinheiro mas, exceptuando o ténue laço de sangue que os unia, mostravam a maior indiferença um pelo outro.
Ezequiel tinha melhor tipo. Era esbelto, e tão direito que quase parecia arquear-se para trás. Tímido, arisco, orgulhoso, sentia-se mais responsável pela família. Não queria servir em hotéis. Não. Trabalhava nos campos, e tinha vaidade nisso: era labor de homem, não uma espécie de escravidão disfarçada.
Embora simples jornaleiro, não trabalhava para um patrão mas sim para a terra. E a terra, de certa maneira, era dele, pertencia-lhe...
Quando havia que fazer, chegava a ganhar um peso por dia. Se a terra estava seca, então procurava trabalho nas estradas, ainda que isso lhe não agradasse.
Mas nem sempre conseguia empregar-se. Durante dias, semanas, Ezequiel vagueava pelos arredores, sem nada que fazer. Quando o governo socialista dividiu as fazendas em lotes e os distribuiu pelos camponeses, coube-lhe um pedaço de terra fora da aldeia. O rapaz ia até lá e juntava pedras para construir um casebre. Cavava o chão tão profundamente quanto possível, mas não tinha amor a essa nesga de terreno que lhe viera parar às mãos de modo quase sobrenatural. Só lá ia de vez em quando, e sem nenhum entusiasmo.
Nos dias de trabalho regressava a casa por volta das seis horas e, cumprimentando Kate, timidamente, dirigia-se para o seu antro, onde, sentado no chão e de costas apoiadas à parede, dobrava tortillas umas sobre as outras e comia essa pasta elástica que tem o sabor de argamassa - pois o milho é primeiramente fervido com cal para largar a pele. Depois, dignava-se aceitar outra rima de fritos, que a irmã lhe apresentava numa folha de couve. Às vezes, Ezequiel tirava do tacho de barro um bocado de carne guisada que metia entre duas tortillas. Mas ingeria tudo rapidamente com uma espécie de indiferença. Aliás, os mexicanos parecem sempre indiferentes ao que comem.
Acabada a ceia, ia até à plaza, reunir-se aos homens. Havia ocasiões em que Kate, ao recolher a casa às nove horas, a encontrava quase deserta. Ezequiel estava no largo, Juana e Maria haviam desaparecido, e Concha dormia tal um molho de trapos no chão do pátio. Quando Kate a chamava, a pequena erguia a cabeça, espantada, entorpecida; depois, levantando-se como um cachorro, rastejava até ao portão.
Indiferença por tudo, até uns pelos outros. Juana lavava semanalmente uma camisa e um par de calças de algodão para cada um dos filhos, e aí terminavam os seus cuidados maternais. Nem se interessava averiguar qual o trabalho-de momento de Ezequiel. Sabia que arranjara emprego e isso lhe bastava. Contudo, de tempos a tempos, tinha ímpetos de amor materno, quando o rapaz era tratado injustamente, como às vezes acontecia. E, se o supunha doente, dominava-a um terror fatalista que só a abandonava depois de Kate intervir com qualquer remédio muito simples.
Semelhantes a animais. Mas os animais são perfeitos no seu isolamento e despreocupação; não se trata de indiferença, é que se bastam a si próprios. Ao passo que naquela família havia uma espécie de frustração, como se um torpor de aborrecimento a todos avassalasse.
As duas raparigas eram inseparáveis; andavam sempre atrás uma da outra. Concha arreliava de contínuo a inocente Maria de grandes olhos e esta debulhava-se em lágrimas. Ou então, no meio de uma fúria, ameaçavam-se com pedras, e Juana invectivava-as com súbita veemência, que logo se extinguia.
Estranha, aquela ferocidade repentina com que as pequenas arremessavam pedras, e não menos estranho, o esforço por não acertar. Kate notava a mesma coisa nos ataques selváticos que os garotos faziam uns aos outros nas margens do lago; atiravam calhaus com ar ameaçador, mas quase sempre falhavam o alvo.
Quase sempre, mas não sempre. Às vezes atingiam o adversário, que tombava como morto. Então os outros aproximavam-se, em silêncio temeroso, da vítima prostrada. De repente, o ferido erguia-se, com um esgar homicida no rosto, perseguindo o inimigo com uma pedra. E o inimigo fugia a sete pés.
Uma vontade perene de arreliar, de atormentar. O mesmo sucedia entre os Peles-Vermelhas. Mas o povo índio raramente recorria à violência, o que se não dava com os Mexicanos.
Kate, achando que devia fazer qualquer coisa pelas pequenas, dispensou-lhes uma hora por dia para lhes ensinar a ler, a redigir e a costurar. Maria queria aprender a ler; nisso mostrou boa vontade. Começaram bem, mas depressa a leve insistência de Kate em lhes chamar a atenção fez com que as alunas assumissem o tom de ironia peculiar ao continente americano. Ironia calma, invisível, malevolente, desejo de magoar.
- Não te debruces sobre mim, Concha. Põe-te direita.
- Porquê, niña Tem piolhos na cabeça?
A pergunta insolente era formulada com subtileza índia.
- Não! - respondia Kate subitamente irritada. - E agora vão-se embora! Afastem-se de mim.
E as pequenas retiravam-se, humilhadas.
Kate recebeu visitas de Guadalajara. Grande excitação! Mas enquanto tomava chá na varanda, Juana, Concha, Maria e Filipa, que era uma prima de dezasseis anos, sentaram-se no outro lado do pátio, bem à vista, com os belos cabelos soltos sobre os ombros, e, ostensivamente, puseram-se a catar piolhos umas às outras. Pareciam encantadas por exibirem a sua sordidez àqueles estrangeiros.
Kate desceu ao pátio.
- Se querem catar piolhos - disse em voz trémula de cólera - vão para onde ninguém as veja.
Atravessou um clarão de maldade os olhos negros de Juana, mas um instante depois, humilde e abjecta, a família retirava-se, de cabeleira ao vento, em direcção ao seu antro.
Juana comprazia-se em irritar Kate. Sentia assim uma espécie de poder sobre a Niña. É certo que temia um tanto essa irritação, mas era justamente o que desejava. De que servia uma niña que não lhe inspirasse algum receio?
Ah, raças escuras! Kate, como irlandesa, podia entrever um pouco do mistério. As raças escuras pertencem a um ciclo de humanidade já desaparecido; ficaram atrás, no fundo de um abismo donde nunca conseguiram sair. Jamais atingirão o nível dos brancos; limitam-se a segui-los de longe, como escravos.
Enquanto o homem branco avança, cheio de orgulho, as raças escuras cedem-lhe o passo e obedecem-lhe pela força. Se, porém, o branco hesita na sua marcha, logo os outros o atacam para o precipitar no abismo do passado.
É o que está a acontecer. Porque o branco, apesar de todas as farroncadas, duvida da sua própria supremacia.
E é a corrida veloz para a derrocada.
Desde a revolta de Kate perante a cena da caça aos piolhos, Juana voltou a servi-la com enternecedora solicitude. Embora indiferente a tudo, aquele ser das regiões inferiores não queria quebrar o débil fio que o ligava a Kate e ao mundo da claridade e do ar puro. Em suma, o desejo de Juana era conservar a sua niña, servir a sua Niña.
Ao mesmo tempo, parecia odiar a gente rica, branca e superior. De vez em quando contava a Kate histórias do passado. Então via-se-lhe uma expressão malévola nos olhos negros e na face acobreada, enquanto ela prosseguia: Usted sabe, niña, los gringos, los gringuitos llevan todo...
Os gringos são os Americanos, e Juana incluía Kate nos gringuitos, estrangeiros brancos. Aquela frase era nova insolência disfarçada, subtil...
- É possível - respondia Kate friamente. - Mas dize-me o que é que eu levo do México.
- Non, niña, non - Espalhava-se um sorriso de satisfação na cara de Juana quando ela conseguia atingir a outra mulher. Não me refiro a si, niña! - O protesto, porém, era pouco convincente.
Dir-se-ia que essas indígenas queriam obrigá-la a partir à força, insultando-a, rebaixando-a, até que a irlandesa, não menos impetuosa do que elas, abalasse dali num momento de fúria.
Oh, raças primitivas atrasadas!
Contudo, havia um lado patético na natureza daquela gente. Quando tinha catorze anos, Ezequiel trabalhara por conta de um sujeito que andava a construir casa. O homem prometera-lhe uma manta, mas ao fim de dois meses despediu-o sem cumprir a promessa. Foi uma desilusão bem amarga.
Kate nada tinha a ver com isso, mas Juana quase a acusava do facto.
Povo sem força para avançar, como podia deixar de ser explorado? Desde séculos que o exploravam cruelmente, e toda a sua energia se limitava a uma resistência malévola.
"Mas não pretendo explorá-los - dizia Kate consigo mesma.
- Pelo contrário, a minha vontade é dar-lhes mais do que recebo. São injustos os seus remoques. Nunca insultei estas criaturas. Faço a diligência de não as magoar e elas, deliberadamente, atacam-me e ficam radiantes quando me ferem."
No entanto, Kate procedia à sua maneira irlandesa: de vez em quando, isolava-se de Juana e das filhas. Porque, assim que as mandava para longe, desaparecia-lhes a malevolência e lembravam-se das ordens da niña. Se ela estava presente e amável, esqueciam-se de tudo. Esqueciam-se de varrer o pátio, de se apresentarem limpas, e só quando Kate as relegava para um canto é que tornavam a lembrar-se.
O filho Ezequiel tinha mais dignidade do que as mulheres.
Nunca fazia aqueles ataques insidiosos.
Quando a casa estava limpa e calma e o ar parecia purificado e a alma renovada, Kate sentia novamente amizade por essa família.
A sua azáfama, andando cá e lá, esvoaçando como pássaros; o estalo da massa das tortillas de encontro à palma da mão; o entusiástico esmagar de tomates e pimenta no tacho enquanto Juana preparava o molho; o barulho do balde no poço quando Jesus vinha regar...
Como isso era divertido! Assim devia ser tudo o que fizessem, ou então não o fariam. Não podiam fixar-se numa rotina. Jamais! Tudo devia ser alegre, variado, com uma pontinha de aventura. Era confusão, mas, no fim de contas, uma confusão viva, não uma coisa morta. Kate recordava-se dos seus criados britânicos nas cozinhas inglesas, tão maquinais e quase inumanos. Aqui era o extremo oposto.
Não havia disciplina nem método. Embora Juana e as filhas quisessem realmente fazer o que a niña desejava, só procediam conforme lhes apetecia. às vezes, Kate sentia-se angustiada. Mas, tanto quanto possível, ia suportando as extravagâncias daquela família. Tivera, por exemplo, de se habituar à vagabundagem da mesa de jantar, mesinha redonda cujo lugar era na varanda. Ao primeiro almoço, ficava discretamente debaixo das plantas, perto do salão; ao almoço da uma hora regressava à varanda; ao chá, ia para a relva do jardim, à sombra duma arvorezita. E, quanto à ceia, Juana deliberou então que a niña comesse os dois ovos e rancheros na própria casa de jantar, isolada a um canto da comprida mesa em que cabiam catorze pessoas.
Kate também nunca chegou a perceber o motivo por que, depois de lavarem a loiça na cozinha durante uns dias, se lembraram de repente de levar os pratos sujos para o lago, num cabaz, aos ombros de Concha. A não ser que achassem assim o trabalho mais divertido...
Crianças! Mas não inteiramente. Faltava-lhes a despreocupação da infância. Pressentia-se-lhes na alma qualquer coisa de sombrio, como que um peso que as forçava a resistir. Trabalhavam por acessos, podiam ser laboriosas; depois vinha a indolência e passavam horas estiradas no chão, como porcos. às vezes mostravam-se alegres, conversavam e riam, sentadas sobre a terra, em grupo, formando roda. Então, subitamente, contrariando a própria alegria, recaíam na mudez e na tristeza. Havia ocasiões em que, estando a trabalhar com afinco, atiravam para longe a ferramenta como se indignadas por terem cedido. Descuidados, versáteis nos seus amores, os homens, ao menos, passavam todo o tempo a resistir a si mesmos. Nunca procuravam o que pretendiam. As mulheres a que se aproximavam. E um rapaz e uma rapariga passeando às escuras na estrada marginal do lago, atiçando-se um ao outro, atormentando-se no meio de excitação, constituíam uma cena que deixava Kate pasmada - porque homens e mulheres não se cortejavam abertamente como fazem os brancos. E o riso súbito do macho, estranha voz de desejo reprimido, de obstinada relutância e paixão desesperada, parecia qualquer coisa a rasgar-se-lhe no peito, era um som que perdurava na memória.
Kate achava pesado o governo da casa. De certa maneira, eram como parasitas, queriam viver da sua vida, e rebaixá-la, rebaixá-la. Nalgumas ocasiões mostravam-se como pessoas meigas, generosas, encantadoras - até a fazerem novamente revoltar-se contra aquela indiferença reptilária. Indiferença e resistência.
Os servos forneciam a Kate a chave da vida indígena. Os homens sempre juntos, erectos, belos, equilibrando o chapéu enorme no alto da cabeça, quer sentados, quer de pé, quer de cócoras, numa impassibilidade de serpente; as mulheres sempre à parte, suaves, como que escondidas, estreitamente apertadas nos chailes escuros. Homens e mulheres pareciam voltar costas uns aos outros como se não quisessem ver-se mutuamente. Nenhuns galanteios, nenhum namoro. Apenas um olhar ocasional sombrio e rápido, sinal de desejo semelhante a um golpe de florete dado e recebido.
Elas, no conjunto, dir-se-iam inexperientes mas decididas a seguir o seu próprio desígnio: mudar de homens quando lhes apetecesse. E eles davam a impressão de não se preocuparem muito. Afinal eram as mulheres que pretendiam os homens.
As indígenas, com os negros cabelos tombados nas costas cheias e acobreadas, banhavam-se num canto da praia, geralmente em camisa ou com um saiote. Os homens mantinham-se alheados, nem sequer se dignavam olhar para a outra banda. Eram mulheres no banho, nada mais. Faziam parte, por assim dizer, da vida lacustre, como os peixes que ali nadavam. Concediam-lhes mesmo aquele ponto do lago, e elas sentavam-se nos baixios, isoladas como aves aquáticas, e molhavam a cabeça e os ombros com o auxílio duma cabaça.
Calmas, discretas, desprezadas fêmeas da classe dos peóns, seguindo o seu caminho envoltas no rebozo como num manto de trevas, ágeis, balançando as saias rodadas e gorjeando como passarinhos; ou paradas na borda do lago, com os cabelos longos a gotejarem; ou subindo lentamente a margem com uma pesada bilha de água ao ombro e um braço por cima da cabeça, a segurar a asa do cântaro; ou, especialmente nas tardes de domingo, sentadas à porta da casa, catando piolhos umas às outras. As moças possuidoras de cabeleira abundante e ondulada eram as que mais piolhos tinham. Aquilo representava um acto público meritório.
Parecia a Kate que esse país não podia originar nada de mais elevado do que a amizade entre os homens. O próprio casamento tinha pouca importância. E, embora se mostrassem meigos e protectores para com as crianças, os pais depressa as esqueciam.
A questão do sexo era no entanto a primordial, aquela que não devia ser omitida nem aflorada abertamente. O único mistério, muito maior do que o indivíduo. Este pouco contava.
Kate pasmava ao ver as choças de palha dos índios nas margens do lago. Ali fervilhavam crianças seminuas no chão de terra batida, no meio de trapos, de ossos, e do fedor de excremento humano.
Esse povo parecia não ter olfacto. E defronte do buraco que servia de porta à cabana, o homem impassível, magnífico, silencioso... Como era possível que tão belo exemplar de virilidade se mantivesse indiferente a tamanha porcaria?
Mas ali se conservava como inconsciente. Contudo, era um ser vivo - e forte. Nenhum homem no mundo pode transportar cargas tão pesadas como os índios do México. Kate vira já um deles passar na rua com um piano às costas, apenas seguro por uma correia em volta da testa.
Portanto, força não escasseava, mas sim energia. Nem sequer a classe dos artífices que imita a dos Estados Unidos demonstra ser enérgica. Têm os seus clubes, aperaltam-se e andam de braço dado com raparigas bonitas, mas percebe-se que tudo isso não passa de vulgar imitação.
Inesperadamente, a família de Kate aumentou. Um dia, chegou de Ocotlan uma formosa moça de 15 Primaveras, com grandes olhos bovinos, Maria del Carmen. Acompanhava-a Júlio, rapaz de vinte e dois anos. Tinham casado há pouco, e vinham de visita a Sayula. Júlio era primo de Juana. Poderiam dormir no pátio com ela e com as filhas? - perguntou Juana. Só se demorariam dois dias.
Kate ficou espantada. Maria Del Carmen devia ter sangue espanhol, a sua beleza evocava a Espanha. Parecia pertencer a um nível superior, mais educado, e no entanto ia dormir no chão com esse esposo juvenil... E ele, tão aprumado e de ar tão orgulhoso, nada possuía além duma velha manta.
- Há três quartos desocupados - disse Kate. - Que durmam num deles. - As camas eram de pessoa só. - Precisarão de mais cobertores?
Não. Bastaria a manta de Júlio.
Este era assentador de tijolos, isto é, ajudava a construir as paredes das casas de adobe. Nascera em Sayula e vinha ali de visita.
Essa visita, no entanto, prolongou-se. Júlio andava à procura de trabalho e só aparecia ao anoitecer. Maria del Carmen entretinha-se a amassar tortillas na cozinha de Juana e a conversar com as raparigas. À noite, o marido regressava e, sentado no chão, de costas apoiadas à parede, sempre impassível, deixava a mulher acariciar-lhe os cabelos negros e bastos.
Amavam-se, mas Júlio resistia ao seu amor.
Ela queria voltar para Ocotlan, onde era mais señorita do que em Sayula, mas o rapaz recusou. Não tinha dinheiro; o casal sustentava-se com cerca de cinco cêntimos por dia.
Quando Kate estava a coser, Maria del Carmen, que nem sabia talhar uma camisa, observava-a de olhos arregalados. Kate ensinou-lhe costura, comprou-lhe uns metros de chita e Maria del Carmen fez um vestido com as suas mãos.
Júlio arranjou trabalho, a um peso por dia, e a visita continuou. Kate achava o rapaz pouco terno para a mulher: sempre que lhe falava era em tom de comando. E Maria del Carmen não levava isso a bem e amuava um pouco.
Passaram-se semanas, e Juana começava a cansar-se dos parentes.
Por fim, Júlio arrendou uma casita de adobe só de um compartimento, ao preço de peso e meio por semana. Maria del Carmen ia ter o seu lar.
Kate viu-os juntar as suas coisas para a mudança. Consistia tudo numa esteira de palha, três tachos de barro, cinco peças de loiça, duas colheres de pau, uma faca e a manta de Julio. Nada mais.
Presenteou-os, então, Kate com um edredão de seda já um tanto puída, duas tigelas e diversos utensílios de cozinha. Foi uma alegria. A voz de Maria del Carmen soava no pátio em exclamações delirantes. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"
Na época das chuvas as noites são por vezes glaciais devido à evaporação, e os indígenas, transidos de frio, esperam pelo romper da manhã deitados sobre esteiras delgadas e abafados apenas com a ponta de um cobertor velho. A inércia natural fá-los suportar o sofrimento sem tentar minorá-lo. Podiam arranjar um colchão de palha de milho e cobrirem-se com folhas secas de bananeira. Mas não. Estendem-se numa esteira em cima da terra húmida e tiritam de frio noite após noite.
Maria del Carmen, porém, era um pouco mais civilizada. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"

CONTINUA

VII
Sayula era uma pequena estação balnear; não para ricos ociosos, porque o México os tem em pouca quantidade, mas para comerciantes de Guadalajara e gente que passeia nos fins-de-semana. E mesmo assim em reduzido número.
Havia, no entanto, dois hotéis, que vinham dos dias calmos de Don Porfirio, tal como a maior parte das vivendas fora da povoação, hoje fechadas e muitas delas abandonadas. Na aldeia viviam em perpétuo estado de terror. Acima de tudo temiam os bandidos e os bolchevistas.
Os bandidos eram apenas homens das localidades afastadas que, sem dinheiro, sem trabalho e sem esperança faziam ocasionalmente profissão do roubo e do assassínio. Habitavam nas suas aldeias selvagens até que as tropas os obrigavam a refugiar-se nas montanhas ermas ou nas regiões pantanosas.
Quanto aos bolchevistas, pareciam nascer do caminho de ferro. Onde houvesse carris, passageiros e carruagens de diferentes classes, aí despertava o espírito de rebelião e inveja; e o ferro e as demoníacas locomotivas ofegantes dir-se-ia engendrarem esses filhos do materialismo que são os bolchevistas.
Sayula possuía o seu ramal, com um comboio diário; a linha não cobria as despesas e lutava por se manter - mas já era bastante.
Sayula fora atingida pela loucura da América: o automóvel. Assim, como outrora os homens desejavam um cavalo e uma espada e as mulheres sonhavam com uma casa ou um camarote no teatro, a ambição actual é possuir um carro.
Era um desfile contínuo de "máquinas", de automóveis ligeiros e pesados na única estrada que ligava Sayula a Guadalajara. Uma esperança, uma fé, um objectivo: andar de carro, possuir um carro.
Quando Kate chegou à aldeia, falavam com certo alarme do regresso dos bandidos, mas a irlandesa não prestou a mínima atenção ao assunto. À noite, foi àplaza e misturou-se com o povo. Era um largo ornado de árvores imponentes, com um velho coreto no centro e um passeio em volta. No lado norte ficava o mercado. Mais além, passavam burros e camionetas nas ruas mal calcetadas.
A banda de música já não tocava em Sayula, a elegância já não se exibia naplaza, debaixo das árvores. Mas o pavimento ainda era bom e os bancos mais ou menos sólidos. Oh, tempos de Don Porfirio! Agora, só os peóns e os índios, com os seus fatos brancos e manta ao ombro, enchiam os bancos e monopolizavam a praça. É certo que se mantinha a lei que obrigava os peóns, naquelas paragens, a usar calças e não a espécie de ceroulas largas e flutuantes das suas lides rurais. Mas os peóns, por seu lado, também gostavam de envergar calças em vez daquele traje representativo do humilde labor do campo.
Eram eles, pois, quem dominava na praça, ora sentados em bancos ora passeando indolentes com a sua manta e de sandálias. Depois das seis horas, enchiam-se as barracas de comida quente, na rua calcetada do lado norte: ficava mais barato comer fora de casa e findava-se agradavelmente um dia de trabalho. As mulheres, de portas adentro, que ficassem a mastigar as suas tortillas; mas não provavam caldo, nem sopa, nem guisado. Nas tendas que vendiam tequila, instalavam-se homens, mulheres e rapazes defronte da mesa, em bancos, acotovelando-se uns aos outros. Também havia jogos de azar, pouco violentos, em que o banqueiro voltava uma carta e todos gritavam: Cinco de Espadas! Rei de Copas! Certa mulher corpulenta, imperturbável, de cigarro na boca e perigosa expressão nos olhos sombrios e baixos, vendia tequila, sentada ao escuro, toda a noite. O homem dos doces ficava de pé junto do seu balcão. Por terra, viam-se pequenos archotes metidos em latas, alumiando montes de mangas ou daquelas nauseabundas ameixas tropicais, encarnadas, que se liquidavam por dois ou três centavos a pilha, enquanto a vendedora, de saia larga, ou o vendedor, humilde e paciente, esperava acocorado o freguês, com aquela indiferença fatal e aquela submissão que tanto intrigam o estrangeiro. Ter ameixas para vender no valor de trinta cêntimos; amontoá-las no chão em pequenas pirâmides, cinco em cada uma; e esperar todo o dia e até de noite, de cócoras, a olhar de baixo para cima, para a cara do transeunte e possível comprador - eis, ao que parece, uma ocupação e um modo de vida.
Era vulgar encontrar-se ali um par de rapazes empunhando violas de tamanho diverso, em frente um do outro como dois galos combatentes; entoavam uma canção interminável, cantando em voz sumida as eternas baladas não muito musicais, dolorosas, extensas, audíveis apenas para os que estavam próximos. E assim se conservavam até enrouquecerem. Em volta, com mantas encarnadas, paravam homens altos e escuros, ouvindo por instantes e raramente contribuindo com um centavo.
Entre as barracas de comes e bebes estava um trio de duas violas e uma rabeca; dois dos músicos eram cegos e cantavam em diapasão alto, mas também de modo pouco audível. Dir-se-ia cantarem só para si, muito chegados um ao outro, como se a melancólica balada lhes repercutisse no peito.
A aldeia em peso comparecia naplaza. No entanto, raramente, muito raramente uma voz se erguia acima do murmúrio grave dos homens, do sussurro musical das mulheres, do gorjeio das crianças. Poucos movimentos apressados. O lento passeio dos homens de sandálias, chamadas huaraches, fazia um rumor leve de baratas a arrastarem-se no chão. Fora e dentro da multidão calma, corriam rapazes de pernas ao léu. Eram os irrequietos engraxadores, que pululam como moscas importunas naquela terra de gente descalça.
No lado sul, viam-se mesas e cadeiras no passeio: uma tentativa de café-esplanada- Aí, nos dias de semana, sentavam-se para tomar cerveja ou um copo de tequila as poucas pessoas que se atreviam a tamanha exibição - na maior parte estrangeiras. E ospeóns, imóveis nos bancos do último plano, observavam-nas com olhos de basilisco sob as largas abas do chapéu.
Mas ao sábado e ao domingo era quase festa. Chegavam carros aos solavancos, e, como pássaros exóticos, volteavam na plaza raparigas graciosas de vestidos vaporosos, faces empoadas e cabelos encaracolados. Passeavam de braço dado, trajadas de organdi vermelho ou azul, de musselina amarela ou cor-de-rosa, e com tal camada de pó-de-arroz na cara que a pele morena apresentava a brancura lívida dos palhaços ou dos cadáveres.
Adejavam como borboletas coloridas no meio da multidão de homens do povo. fortes e belos. Era restrito o número de mancebos elegantes que pudessem equiparar-se àquelas mocinhas. Contudo, havia alguns, de calças de flanela branca, casaco escuro, palhinhas e bengala. Fumavam cigarros com gesto afectado, falando um castelhano elegante, tão próximo quanto possível do original, e com o ar de que seriam dentro de doze meses sacrificados a algum deus mexicano depOis de estarem devidamente nédios e perfumados.
Ao sábado, os janotas, as raparigas e todos os que vinham de carro, da cidade - que, aliás, eram poucos - tentavam divertir-se nesse lúgubre país. Contratavam tocadores de viola e rabeca e a música de jazz elevava-se em acordes um tanto langorosos.
Debaixo das árvores da alameda, perto das mesas e das cadeiras do café, começavam pares a dançar à la mode. Os vestidos vermelhos, amarelos e azuis rodopiavam com as calças de flanela, donde saíam elegantes sapatos brancos guarnecidos de tiras de couro preto ou castanho. Algumas das saias de organdi encimavam meias e sapatos verdes, ou pernas à Ia nature com sapatos brancos. Os braços franzinos e morenos enlaçavam os ombros azuis-escuros dos moços, que sorriam com ar protector para as facezitas brancas e petulantes; sorrisos meigos, paternais e impregnados de sensualidade.
Mas a dança era no recinto da praça, e na praça erravam indolentes os homens do campo, ou então paravam em grupos, espiando os pares rodopiantes com os seus olhos pretos, misteriosos, impenetráveis. Em que pensariam? Sentiriam admiração, inveja, ou simplesmente uma silenciosa e fria oposição? Sim, oposição é que devia ser.
Esses camponeses de camisa branca e manta escarlate, airosamente dobrada ao ombro, passeavam devagar, quase ocultos sob o chapéu enorme e pesado, dispostos a não fazer caso dos que dançavam. Vagarosos, oscilando o corpo, eles moviam-se irresistivelmente no meio da dança como se a dança, no fim de contas, não existisse. E os rapazes de calças brancas, levando nos braços as damas de organdi, evolucionavam como podiam, fazendo o possível por se desviarem âospeóns impassíveis, que prosseguiam na sua conversa, sorrindo na alvura dos dentes, com um sangue-frio que gelava os próprios músicos. Nunca se tocavam, nunca se acotovelavam, dançarinos epeóns; no México ninguém se atropela involuntariamente. Mas a dança embatia contra a oposição invisível.
Os índios sentados nos bancos contemplavam também por momentos as evoluções dos bailarinos, após o que os fulminavam com a sua pesada indiferença. Misteriosa faculdade dos índios, tão densa e calma, para destruir a vida palpitante, para apagar qualquer foco de efervescência.
Na verdade, um simples bailarico de indígenas; mas dir-se-ia fechado dentro de quatro paredes. E o ritmo soava diferente, grave, com certa violência. Os dançarinos eram artífices, mecânicos ou carregadores da estação: gente meio citadina. Nenhuns trabalhadores do campo, ou quase nenhuns.
Por isso, passado não muito tempo, as borboletas de organdi e os moços de calças de flanela sucumbiram esmagados pela enorme passividade, pela resistência dos satânicos peóns.
Curiosa, radical oposição dos índios contra essa coisa a que chamamos espírito. É o espírito que leva as meninas petulantes a adejarem as suas asas de organdi como borboletas. É o espírito que vinca as calças de flanela dos rapazes e lhes dá aquele ar um tanto patético. Tentaram representar a elegância e a vontade do espírito moderno.
No entanto, como um peso de obsidiana, surge a recusa passiva do índio; compreende a vida, que participa do sangue, mas o espírito, que é superior, e é a marca da nossa civilização, isso ele repudia, barbaramente, torvamente. Só quando se torna operário ou lida com ofícios mecânicos é que o espírito moderno o visita.
E talvez seja esse repúdio do espírito moderno que faz o México ser o que é.
Kate ficou um tanto desconsolada ao ver findar o baile. Instalara-se numa das mesas, com Juana a servir-lhe de duena, para tomar um cálice de absinto.
Os carros regressavam à cidade em pequenos grupos. Sempre seria melhor irem juntos, para o caso de aparecerem salteadores. Dominava-os o receio dos bandidos, e os próprios janotas usavam revólver no bolso.
Como era sábado, parte da mocidade elegante ficou para o dia seguinte, na ideia de tomar banho e de se espojar ao sol.
A plaza estava cheia, e ao comprido das ruas que desembocavam no largo cintilavam inúmeros archotes, iluminando uma exposição de chapéus de palha, de esteiras, de pirâmides de laranjas.
Havia feira no domingo de manhã, de modo que, de repente, o largo ficou estuante de vida - densa e pesada energia vital. Os índios tinham vindo de todas as aldeias, trazendo consigo essa curiosa energia vital que parece zumbir cada vez mais profundamente quando eles se encontram reunidos.
Durante a tarde, com o vento a soprar do sul, as canoas, de casco preto e larga vela desfraldada, haviam atravessado as águas do lago, transportando indígenas e produtos para o mercado. Para formar essa multidão todas as aldeias da margem concorreram com os seus habitantes.
Despertava o instinto que impele os índios para a vida nocturna desde que se encontrem reunidos. Ninguém recolhia a casa, ninguém pensava em dormir, embora a feira só principiasse ao romper da manhã.
Cerca das nove horas, depois de terminada a dança, Kate ouviu o rufar de um tambor, ou coisa semelhante, e notou que uma chusma de peóns se dirigia para o lado mais escuro da praça, onde já se viam barracas e cestos enormes, em forma de ovo, encostados à parede.
Aquele som, que era como o latejar dum pulso de gigante repercutindo no ar da noite, juntou-se a nota prolongada de uma flauta, tocando uma espécie de melodia bárbara. Kate, que já ouvira falar dos cânticos selváticos dos peles-vermelhas do Arizona e do Novo
México, sentiu instantaneamente espalhar-se na atmosfera a eterna
paixão das raças pré-históricas com a sua intensa e complicada significação religiosa.
Olhou para Juana com ar interrogador.
- Que é isto? - perguntou.
- Músicos, cantores - foi a resposta evasiva.
- Mas muito diferentes dos outros - insistiu Kate.
- Sim, aquilo é coisa nova.
- Nova?
- Apareceu aqui há pouco tempo.
- Donde veio?
- Sabe-se lá! - volveu Juana, encolhendo os ombros.
- Quero ouvi-los.
- Olhe que são só homens.
- Podemos ficar um pouco afastadas.
E Kate dirigiu-se para o ajuntamento silencioso dos peóns. Estavam todos de costas para ela.
Subiu o degrau duma porta e viu, perto do muro florido de buganvílias, um espaço livre iluminado pelos archotes de madeira resinosa que um rapaz segurava nas duas mãos.
O tambor estava ao centro dessa clareira, e o homem que o rufava tinha o torso nu e calças de brancura imaculada atadas na cintura por uma faixa escarlate e aos tornozelos por cordão da mesma cor. Cingia-lhe a cabeça uma tira vermelha, donde se erguiam três penas rubras sobre a nuca. Na testa brilhava uma turquesa no meio dum círculo azul. O tocador de flauta também se apresentava sem camisa, mas dobrara sobre o ombro uma bela manta branca listada de azul e preto. Outros homens, despidos da cintura para cima, distribuíam folhetos aos espectadores, insinuando-se no meio da multidão. E todo o tempo, alta e pura, a estranha flauta de barro repetia a melodia bárbara, acompanhada pelo rufar do tambor.
Kate desceu do seu poleiro e avançou a medo. Queria um daqueles papéis. O homem deu-lho, sem sequer a olhar, e ela encaminhou-se para a luz a fim de o ler. Era uma espécie de balada, mas sem rimas, escrita em espanhol. No cimo da página via-se o desenho de uma águia cercada por uma serpente que mordia a cauda; curiosa variante do emblema mexicano, que é uma águia encarrapitada num cacto de folhas largas e com uma serpente nas garras. A certa distância, o círculo formado pelo réptil com a ave a meio dava a impressão dum olho.
Na região de Oeste
Em paz, para além dos raios brilhantes
Do Sol,
No silêncio onde nascem as águas
Dormia eu, Quetzalcoatl,
Na caverna chamada Olho Tenebroso, Vendo através do sol como por uma janela, Minha morada é lá. Onde as águas brotam E os ventos nascem.
Nas águas do Além
Levantei-me e vi uma estrela cadente.
E senti
Um sopro em minha face.
O sopro disse: Vai,
E eu vim.
Desci a longa encosta, Passei o monte do Sol, Até que descobri em baixo Os seios brancos da terra Do México: a esposa minha.
Entre os mares a minha esposa Penteia o cabelo preto Murmurando: Quetzalcoatl...
Adensara-se a multidão de homens; do centro elevava-se a luz avermelhada dos archotes, o ar embalsamava-se da resina de cedro. Kate não conseguia ver nada por causa dos chapéus enormes.
Calara-se a flauta; mas o tambor continuava as suas pancadas lentas, regulares, com o ritmo duma pulsação. Aquele som incompreensível, surdo, enfeitiçava o espírito, fazia bater o coração, aniquilava a vontade.
Os homens começaram a fatigar-se, sentando-se uns, acocorando-se outros, com o chapéu nos joelhos. Dir-se-ia um mar de cabeças escuras, ondulando para a frente, sobre os ombros vigorosos e levemente inclinados.
Perto do muro formara-se um círculo, com o tambor ao centro. O homem que o tocava, de dorso nu, premia o instrumento contra o corpo, e, curvado, as costas cintilavam-lhe ao clarão da noite. Junto dele estava outro homem a segurar uma bandeira que pendia duma haste leve. No campo azul do pano via-se o Sol amarelo a meio duma bola preta e, entre os quatro raios maiores, todos de ouro, quatro raios negros emergindo, o que fazia o astro assemelhar-se a uma roda que girasse num movimento ofuscante.
Sentara-se toda a gente. Os seis homens de tronco nu, que haviam distribuído os prospectos e convocado a multidão tinham já regressado e agora acomodavam-se de volta do rufador agachado. À direita deste ficava o porta-bandeira, à esquerda o flautista. Eram nove os do grupo, e faziam dez com o rapaz que vigiava os dois archotes, agora colocados em trípodes de cana.
A noite aprofundava-se em silêncio. Calara-se o murmúrio de vozes que enchia a praça. Debaixo das árvores, nos passeios, transitavam ainda pessoas indiferentes, mas pareciam estranhamente solitárias; figuras isoladas envoltas na luz pálida das lâmpadas eléctricas e fora do núcleo da vida.
No lado norte, as barracas continuavam iluminadas, faziam-se compras e vendas. Mas também essa banda do largo dava a impressão de estar muito longe da realidade actual.
Depois de os homens se sentarem, as mulheres avançaram timidamente e instalaram-se por sua vez na orla exterior do círculo. As saias rodadas espalhavam-se no chão, os xailes escuros moldavam-lhes a cabeça redonda e pequenina. Algumas, não ousando aproximar-se, ocuparam os bancos em volta. Outras, assim como muitos homens, haviam desaparecido aos primeiros rufos do tambor.
a plaza ficou como que deserta. Um grupo compacto rodeava o tambor; aquém, era o mundo externo, vazio e hostil. Somente na ruela escura que conduzia ao negrume do lago se viam alguns vultos erectos e silenciosos como fantasmas.
Sobre os degraus de uma porta, e com Juana a seus pés, Kate olhava fascinada para aqueles homens seminus iluminados pelo clarão dos archotes. Os seus corpos lisos e acobreados possuíam essa beleza índia um tanto assustadora. Os torsos magníficos, acetinados, desses entes silenciosos de cabeça um tanto pendida para a frente; os ombros largos, levemente descaídos pela inactividade da sua força; o tom quente e o brilho da pele; o peito vigoroso, tão viril e, no entanto, sem a dureza muscular dos homens brancos; as faces sombrias, impenetráveis, os bigodes pretos e as barbas ténues enquadrando o silêncio da boca fechada - tudo isto era impressionante, singular, despertava comoção.
Havia algo de reptilário na sua flexibilidade, qualquer coisa de terrível na sua mudez. Os troncos nus tinham a revesti-los uma sombra subtil, certa obscuridade misteriosa. Se fossem homens de raça branca seriam francamente musculados, com uma espécie de sinceridade no próprio físico. Aqueles não. A sua nudez só revelava a profundeza secreta da natureza, o eterno mistério.
Toda a gente se calara; intensificava-se o silêncio expectante, tornava-se tumular. Os homens de ombros nus mantinham-se imóveis, mergulhavam dentro de si mesmos e escutavam com os ouvidos do sangue. Sob as calças brancas atadas nos tornozelos, os pés metidos em Imaraches eram quase negros ao clarão dos archotes. Que pretendiam essas criaturas suaves e recolhidas e cuja importância, no entanto, era tão ponderosa, tão aliciante?
Kate sentia-se ao mesmo tempo atraída e repelida. Quase a fascinava o estranho poder magnético dos homens em círculo. Era como o núcleo duma vida nova, como uma jóia negra brilhando na escuridão. Mas parecia-lhe repulsiva aquela estranha opressão, esse afundar do espírito na terra, esse lento escoar duma água turva; repulsiva a densa e muda oposição ao rumo espiritual da gente branca. Contudo, ali e só ali a vida parecia arder com chama intensa.
No resto do mundo, Kate bem o sabia, tudo era vacuidade, esterilidade. Aqueles vultos avermelhados pelo clarão dos archotes representavam uma humanidade nova.
Kate sentia tudo isto, mas preferia manter-se à parte, evitar o contacto directo.
O porta-bandeira ergueu a cabeça como se fosse falar, mas não disse nada. Velho de barba e bigodes brancos a emoldurar-lhe os lábios escuros e carnudos, tinha a cara sulcada de rugas, como todas as pessoas idosas desse país. No entanto, os cabelos eram bastos, e o corpo ainda revelava força e virilidade. ! Os seus olhos negros olhavam sem ver. Talvez fosse realmente
cego; ou seria profunda abstracção que lhe dava aquele aspecto. Começou então a falar, numa voz lenta, clara e distante que parecia ser o eco dos últimos sons do tambor. - Homens, escutai-me! E vós. mulheres, escutai-me também. Há muito tempo, na calma da noite, o lago dirigiu um apelo aos seres humanos. Mas não existiam. Só os peixes pequeninos nadavam ao longo das margens, procurando fosse o que fosse, e os maiores saltavam fora de água para olhar em volta. Mas não existiam seres humanos.
Então um dos deuses de face velada saiu da água e subiu ao monte. (E o velho indicou a colina invisível nas trevas da noite. ao fundo da aldeia. Contemplou o Sol e viu através dele outro sol negro, o que criou o mundo e o absorverá de novo como uma gota de água. Disse: - Chegou o momento? - E quatro braços saíram do sol e da sua sombra surgiram homens. Viram os quatro braços no céu e principiaram a andar.
O deus do cimo da colina olhou para as montanhas e para as planícies e viu os homens anelantes, sequiosos. E disse-lhes: Vinde cá. Tendes aqui a minha água dulcificadora.
Correram como cães, de língua pendente, e ajoelharam-se na margem do lago. O deus do cimo da colina ouviu-os ofegar, de tanta água que beberam, e perguntou-lhes: - Não bebestes de mais? Ou tendes ainda os ossos secos?
í Os homens fizeram casas à borda do lago, e aquele que estava na colina, e que era um deus, ensinou-os a semear milho, feijão, e a construir barcos. Mas preveniu-os: - Nenhum barco vos salvará quando o sol negro deixar de estender os braços no céu.
O deus da colina disse ainda: - Sou Quetzalcoatl, aquele que vos humedece os lábios secos. Encho-vos o peito com um sopro do além-sol. Sou o vento que sai em turbilhão do centro da terra, sou o zéfiro que se enrosca como cobra em volta dos vossos pés, pernas e coxas, erguendo a cabeça da serpente do vosso corpo, onde reside a força humana. Tomai cuidado quando a serpente do corpo erguer a cabeça. Sou eu, Quetzalcoatl, que vos elevo, que vos elevo até ao sol das trevas, derradeira morada dos homens. Exceptuando o sol negro e os quatro braços nos céus, éreis ossos, e as estrelas eram ossos, e a Lua uma concha vazia numa praia seca, e o Sol amarelo uma taça vazia, semelhante ao crânio dum lobo. Portanto, tende cautela! Sem mim nada sois. Assim como eu nada sou sem o sol que está atrás do sol. Quando o sol de ouro estiver no zénite, dizei: Quetzalcoatl levante a sua mão e me abrigue dos raios, senão perecerei e a terra secará. Porque na palma da minha mão está a água da vida, e nas costas está a sombra da morte. Quando os homens me esquecem volto a mão e aparece a sombra da morte. Mas os homens esqueceram-me. Os seus ossos eram húmidos, o seu coração fraco. Quando a serpente do corpo erguia a cabeça, diziam assim: É a serpente amansada que nos obedece. E quando suportavam o ardor do sol, falavam nestes termos: O sol está zangado, quer absorver-nos; ofereçamos-lhe sangue de vítimas.
Os braços negros desapareceram do céu, e Quetzalcoatl envelhecia e lamentava-se, velando a face para a esconder dos homens.
Lamentava-se e dizia: - Deixai-me recolher à minha morada. Estou velho, quase sou apenas ossos. Os ossos triunfam em mim, o meu coração é uma cabaça vazia. Sinto-me cansado do México.
Então bradou ao sol negro, aquele de quem nunca se pronuncia o nome: - Estou um esqueleto, os Mexicanos renegam-me, de nada sirvo. Levai-me.
O sol negro estendeu o braço e elevou Quetzalcoatl até ao céu. Depois olhou em volta e viu a estrela de alva brilhando sem receio entre a vinda do sol dourado e a fuga da escuridão. E aquele, cujo nome jamais foi pronunciado, perguntou: - Quem és tu, guarda cintilante? E a estrela respondeu: - Outrora, no México, fui Quetzalcoatl. Agora contemplo as costas do sol amarelo e a face invisível da Lua, brilho entre o dia e a noite, esperando pela renovação.
E aquele cujo nome jamais foi pronunciado declarou: - Chegou a hora.
Assim o decretou, e eu a vós repito, homens e mulheres: Chegou a hora. Os que nos deixaram regressam, os que vieram retiram-se. Desejai a uns boas-vindas e dizei adeus aos outros.
Boas-vindas! Adeus!
O velho terminou o discurso com um grito meio sufocado, tal se na verdade se dirigisse aos deuses.
- Bienvenido! Bienvenido! Adiós! Adiós!
A própria Juana, sentada aos pés de Kate, bradava sem saber o que dizia:
- Bienvenido! Adiós! Adiós... n!
O último adios arrastou-se para rematar com o costumado "n". Começou o tambor a soar num ritmo insistente, e a flauta fez ouvir o seu grito estranho e longínquo. Tocavam a melodia singular que a irlandesa ouvira a princípio.
Então um dos homens do círculo entoou o hino. Cantava à maneira dos antigos Peles-Vermelhas, em voz contida mas intensa, como se se dirigisse à própria alma e não ao mundo exterior; como se cantasse na outra dimensão da existência dos homens, onde eles se encontram na extensão infinita que há dentro do eixo do nosso espaço rotativo. Espaço que, como o mundo, não pode deixar de se mover. E, tal o mundo, tem um eixo. O eixo do nosso espaço terreno, quando lá se penetra, é uma vastidão onde até as árvores vão e vêm, e a alma está à vontade no seu sonho, nobre e irrefutável.
O pulsar do tambor e o cântico íntimo arrastavam a alma para o centro do tempo, que é mais velho do que a própria velhice. O cantor começou por uma nota alta que repetiu demoradamente, fazendo-a percorrer ritmos subtis, na aparência desconexos, que o tambor acompanhava, e depois fê-la tremer, palpitar e dar um balanço brusco. Por muito tempo foi difícil distinguir qualquer melodia: dir-se-ia o uivo distante e esmaecido dum lobo. Era na verdade a música dos índios antigos.
Não se lhe encontrava harmonia, não se lhe reconhecia emoção. Apenas música, apenas um grito na noite, perfeito e longínquo. Mas ia direito à alma, à alma eterna e antiga, aí onde só pode a família humana encontrar-se em imediato contacto.
Kate logo o sentiu, e de forma fatídica. Seria inútil resistir, inútil fazer qualquer esforço. O som ia até ao âmago do ser, em que não existe esperança nem dor, mas só a paixão, que semelha uma ave no seu ninho, de asas dobradas, e a fé uma árvore de sombra.
Como o destino, como a sorte. A fé é a própria Árvore da Vida, inevitável, e os pomos estão ao nosso alcance: pomos dos olhos
- as pupilas -, pomos do queixo, do coração, dos seios, do ventre, dos quadris, dos joelhos, dos tornozelos. Que importa a mudança, a evolução? Somos a Árvore com os seus frutos, para todo o sempre. Verbum Sat.
Emudeceu o cantor, mas o tambor prosseguiu, fazendo vibrar subtilmente a membrana sensível da noite. Então, no círculo, de novo se elevou uma voz, depois outra, e outra, como pássaros voando de uma árvore. Elevaram-se as vozes - forte, pesado, intenso arrebatamento de vozes másculas, semelhante a um bando de aves negras subindo e descendo no ar, ao mesmo tempo. E cada ave preta dir-se-ia erguer-se do coração de um homem, do bosque secreto dos peitos masculinos.
Uma a uma, partiram também vozes da multidão, qual nova revoada de pássaros. A letra não tinha importância. Versos, palavras, simples sons - o canto era sempre o mesmo: violenta rajada saindo das cavernas do peito, das profundezas da alma eterna. Kate estava excessivamente intimidada para poder cantar, demasiadamente vencida pelas desilusões; mas sentia que o seu espírito fazia eco, seguindo o clamor do povo, tal a ave poliglota que imita as outras à noite. Contra sua vontade, Juana cantava também, num tom monótono, proferindo palavras à toa, inconsciente.
Os homens seminus começaram a agarrar as mantas: mantas brancas orladas de azul, com barras castanhas e franjas escuras. Da turba, levantou-se alguém, que se dirigiu para o lago. Voltou depois com um feixe de lenha trazido por um barco. Acendeu então uma fogueira pequena. Outro indivíduo se destacou para ir também buscar lenha: colocou-a diante do tambor, dentro do círculo, e fê-la crepitar. Por sua vez, uma mulher, descalça e de larga saia de algodão, principiou a arranjar a sua fogueira no meio das mulheres.
O ar estava bronzeado pelo clarão do lume; alastrava-se um fumo odorífero, como de incenso. Subiu e desceu o cântico, depois esmoreceu. Débil ecoou o som do tambor, e morreu por seu turno. No silêncio absoluto podia-se sentir a presença imóvel do lago sombrio.
Mais uma vez pulsou, vigoroso, o tambor. Um dos homens que estavam sentados, com o seu poncho branco debruado de azul e preto, ergueu-se de repente e, tirando as sandálias, começou a esboçar passos de dança, sem fazer o menor ruído. Dançava pesadamente, de pés nus, como se fosse enterrar-se pela terra abaixo. Sozinho, oscilava num ritmo estranho, calcando o chão, erguendo ora um ora outro dos joelhos de encontro às franjas escuras do poncho. Outro homem, encaminhando-se para o centro, pôs aí os huaraches, perto do fogo, e iniciou o seu bailado, enquanto o do tambor entoava um cântico selvático, tenebroso. Os restantes comparsas despojaram-se dos ponchos e, num instante, estavam de pé, e de torsos nus, descalços, repetiam aqueles passos que pareciam de ave. A luz da fogueira batia-lhes no peito, nas faces sombrias e extáticas.
"O que dorme acordará! O que dorme acordará! O que segue o trilho da serpente na poeira chegará ao seu posto; pelo trilho do pó chegará ao seu destino e revestir-se-á com a pele da serpente: revestir-se-á com a pele da serpente da terra, que é a criadora da pedra, que é criadora da pedra e do vigamento da terra; criadora do oiro, do ferro, da madeira da terra: dos ossos do pai da terra, da serpente do mundo, do coração do mundo que bate como uma cobra bate no pó, nos seus movimentos sobre a terra; do coração do mundo. Quem dorme despertará! Quem dorme despertará! Quem dorme despertará no caminho da serpente do pó da terra, da pedra da terra, do osso da terra."
O cântico parecia tomar novos voos audaciosos depois de baixar e sussurrar num último desmaio. Eram como ondas que se erguem do invisível, que tomam forma, alando-se, e desaparecem num rumor de aniquilamento. E os dançarinos, após terem girado em círculo, numa lenta e profunda absorção, iam um por um tomar o seu lugar, calcando o pó com os pés descalços, vagarosamente, e vagarosamente começavam a descrever uma ronda lenta em torno do fogo, sempre com os mesmos passos que se diria afundarem-se na terra. E o tambor ressoava numa palpitação sempre igual, como a de um coração humano. E o cântico soou e diminuiu, mais baixo e mais baixo numa espécie de extinção, para ainda uma vez tornar a levantar-se.
Até que os camponeses moços acharam impossível permanecer como estavam. Tiraram as sandálias, o chapéu, as mantas, e, timidamente, com pés inexperientes que no entanto conheciam as velhas pisadas, se puseram atrás dos outros bailadores e dançaram sem sair do seu lugar. Depressa o círculo revoluteante estabeleceu outro círculo de homens que envolveu o primeiro.
Então, de súbito, um dos dançarinos de tronco nu saiu do círculo interior e, penetrando no segundo, fê-lo girar em sentido inverso ao daquele. Deste modo houve duas rodas em movimento, uma dentro da outra, rodopiando em direcções opostas. Assim andaram, com o tambor e o canto, girando como rodas de sombra em volta do lume. Mas o lume extinguiu-se, e o tambor parou de repente, e os homens num instante se dispersaram, retrocedendo para os seus postos.
Houve silêncio, depois ouviu-se um murmúrio de vozes e risos. Kate muitas vezes pensara que o riso dos peóns se assemelhava a uma queixa; mas agora ele saltava como faúlhas invisíveis, bruscamente, da cinza das conversas.
Todos esperavam, e contudo ninguém se movia - até que o tambor vibrou de novo, como um sinal. Continuaram, porém, a tagarelar mas escutando, qual se possuíssem uma segunda consciência. Levantou-se um homem, desfez-se da manta e deitou lenha na fogueira central. Em seguida atravessou o grupo dos homens sentados e dirigiu-se ao das mulheres, que se apinhavam com as saias desdobradas. Esperou, sorrindo com ar abstracto, e logo se pôs de pé uma rapariga e se aproximou dele, apertando com a mão direita o xaile enrolado em torno da cabeça baixa. Estendendo a mão esquerda, pegou timidamente na do homem, que parecia inerte. Sorriu este e conduziu-a ao centro da roda, através do grupo dos que estavam sentados. Ela seguia de cabeça inclinada, escondendo o rosto pudibundo. Lado a lado, começaram a dançar, mal roçando as mãos e formando o primeiro pequenino segmento do círculo interior estacionário.
Ei-los agora todos, em pé, à espera de serem escolhidos. Rápidas, as mulheres, ocultando a testa no xaile, insinuavam-se junto deles e tomavam a mão do eleito. Dentro de pouco tempo já todos tinham dama. Fechara-se o círculo interior, com os homens e as mulheres aos pares, de mão dada.
- Venha, niña, venha! - disse Juana, fitando Kate com os seus olhos negros e brilhantes.
- Tenho medo - respondeu a irlandesa. E falava verdade.
Um dos de tronco nu atravessara a rua, afastando-se da multidão e detivera-se próximo da porta onde se achava Kate, que se calou e desviou a vista. E ficou esperando.
- Olhe, niña, um senhor que a procura. Venha, niña, venha!
A voz da criada descera de tom, capciosa, com esse apelo mágico das mulheres do povo. Os olhos pretos continuavam a cintilar-lhe estranhamente, fitos no rosto da patroa. Kate, quase hipnotizada, avançou em passos lentos e indecisos para o indivíduo que se mantinha à espera.
- Quer, realmente? - disse ela em inglês, bastante atrapalhada. E, com os seus dedos, tocou nos dedos dele.
Quase com indiferença, num gesto frouxo, a mão quente e máscula segurou os dedos de Kate e levou-a para a roda. Ela baixou a cabeça e desejou poder velar a face. No seu vestido branco e chapéu de palha verde, sentiu-se outra vez virgem, virgem juvenil. Aqueles homens concediam-lhe o dom de reencontrar a mocidade.
Acanhada, receosa, Kate procurou seguir a dança; mas escapava-lhe o ritmo, e os sapatos rígidos não a ajudavam. Movia-se confusamente.
Mas o seu par pegava-lhe na mão, embora com moleza, e oscilava, lento, o corpo todo, como um pêndulo de relógio. Dir-se-ia não fazer caso dela; contudo, segurava-lhe os dedos, de leve, numa pressão suavíssima.
Juana descartara-se dos sapatos e das meias. No rosto como uma máscara de lava, enrugado, escuro, as pupilas ardiam com a eterna chama da feminilidade, sombria e inextinguível. E já, com os pés, marcava o compasso da dança.
"Assim como o pássaro do sol fecunda a terra à alvorada tal uma fêmea morena sob os seus pés, com as dobras do ventre inclinadas aos pomos da geração, com os ovos de oiro, com os ovos que escondem o globo do sol nas águas do céu, na concha da terra que é o alvo do fogo do sangue, pisa tu também a terra e a terra conceberá qual a fêmea sob os pés do pássaro do sol. Pisa a terra, pisa a terra agachada e de asas encolhidas..."
A roda começou a girar e Kate foi-se movendo devagar entre dois homens silenciosos e absortos, cujos braços tocavam os seus. Um segurava-lhe os dedos, frouxa e brandamente, mas com transcendente afinidade. E o canto selvático subiu de novo como uma ave, e o tambor alterou o ritmo de modo incompreensível.
A outra roda era composta só de homens; Kate tinha a impressão de sentir nas costas o fulgor sombrio daqueles olhares. Os indivíduos já se não distinguiam, formavam como que uma única massa, em que ela própria se confundia.
Todos dançavam da mesma maneira, de cabeça baixa e olhar ausente, os homens absorvidos na sua virilidade, as mulheres na sua feminilidade. Somente o sexo prevalecia na sua mais alta concepção. Mar à superfície do globo movendo-se por cima dum mar nas entranhas da terra; águia evolucionando em silêncio sobre a própria sombra.
Kate sentia-se fundir nas águas revolutas de uma vida nova. Deixara de ser ela mesma para fazer parte de um todo, os seus desejos abismavam-se no mar do desejo colectivo. E assim o homem cujos dedos roçavam nos dela se engolfava no oceano de homens.
Lento mover de águas sobre águas, sem vestígio de espuma. Só a pura e deslizante conjunção.
Como era estranho ver-se submergida pelo desejo para além do próprio desejo, sentir-se integrada num corpo imenso para além do individualismo do corpo!
Não conhecia a cara do homem que lhe segurava nos dedos. Os seus olhos haviam cegado, e o rosto dele era um céu tenebroso. Mas do toque dos seus dedos nascia uma estrela, a estrela que os unia.
Os pés de Kate principiavam a marcar o compasso. Ela já sabia como deixar-se levar, abandonar a essência da sua vida, permitindo que lhe fugisse devagar, num escoamento rítmico, para o corpo negro da terra. Erecta, forte como o próprio esteio da vida, cedia no entanto a Seiva dessa força e fazia-a fluir para as raízes da terra.
Perdera a noção do tempo. A dança, porém, acalmava-se pouco a pouco, embora o ritmo permanecesse sempre o mesmo até ao fim.
Calaram-se as vozes, só o tambor continuou. Este, de súbito, produziu um rufo breve, e o silêncio foi geral. Logo as mãos se desataram, o baile parou de todo. O homem que a acompanhava sorriu-lhe e desapareceu. Jamais o reconheceria. Havia, no entanto, de lhe sentir a presença.
As mulheres afastaram-se, aconchegando os ombros com o xaile. Os homens dissimularam-se nas mantas. E Kate voltou à escuridão do lago.
- Já se vai embora, Niña? - perguntou Juana num tom que revelava certo descoroçoamento.
- Tenho de ir sem demora - replicou a patroa, estugando o passo. E a toda a pressa se encaminhou para as trevas do lago, com Juana na sua peugada, de sapatos e meias na mão.
Kate desejava reentrar em casa, com o seu novo segredo, o estranho segredo da feminilidade mais alta, a que ainda se não habituara. Precisava abandonar-se inteiramente àquele mistério.
Quase corria através do atalho interminável, na margem pedregosa e escura, apesar de a claridade das estrelas ser suficiente para revelar a forma sombria dos barcos que sulcavam a água mansa e turva. Noite eterna, sem horas! Kate não queria consultar o relógio, e até o virou no pulso a fim de não ver os ponteiros luminosos. Que o tempo a não governasse!
Ao adormecer, ouvia ainda o rufar do tambor, como um pulso que batesse nas entranhas da terra.

VIII
À entrada da casa de Kate elevava-se uma árvore enorme chamada cuenta por causa dos seus frutos pequeninos, redondos, duros e perfeitos de forma, que os indígenas apanhavam para fazer colares e, em especial, padre-nossos dos rosários. À noite, a rua ficava imersa em escuridão e só a queda das contas perturbava o silêncio.
Essas noites, que de começo pareciam calmas, amigáveis, encheram-se subitamente de terrores. Renascia o medo. Constituíra-se uma quadrilha de ladrões numa das aldeias do lago, cujos habitantes tinham má fama. Essa quadrilha, invisível durante o dia, compunha-se de pescadores e jornaleiros que, depois do anoitecer, montavam nos seus cavalos e iam assaltar casas solitárias ou mal guardadas.
O facto de saber que um bando de malfeitores rondava naquela região era o bastante para incitar os ladrões isolados a agir também. Fosse o que fosse que acontecesse, seria atribuído aos bandidos. Deste modo, mais de um indivíduo considerado honesto se deixava dominar pela cobiça e se escapulia à socapa armado de faca ou de pistola para se aproveitar igualmente da escuridão.
Kate sentia o terror condensar-se no silêncio da noite mexicana; silêncio tenebroso, tão profundo que se tornava sobressaltante, o som duma conta a cair. Deitada na cama, Kate escutava o mínimo rumor nas trevas densas. Ouviam-se ao longe apitos de polícia, daí a pouco passava a patrulha a cavalo. Mas, como acontece em quase toda a parte, a polícia nunca aparecia quando era precisa.
Aproximava-se a estação das chuvas, e o vento nocturno, vindo do lago, fazia sussurrar as árvores e abalava as portas desconjuntadas da casa. Os criados encafuavam-se nas suas dependências. No México, uma pequena distância isola-nos completamente desde que a noite desce; e ficamos perdidos na escuridão envolvente.
De manhã, Juana vinha da praça, com os seus olhos como gotas de tinta e, no rosto bronzeado, a expressão cansada dos entes submetidos ao medo. Logo de entrada, e na sua linguagem pouco compreensível, embrenhava-se na história de uma casa assaltada e de mulheres assassinadas. E a dona do hotel mandava dizer a Kate que não era prudente dormir sozinha em casa. Seria melhor passar a noite no hotel.
Toda a aldeia se encontrava sob estranha apreensão. Pairava no ar da noite um terror pânico. Renascia a confiança à claridade azul da manhã, mas ao anoitecer o sangue parecia coagular-se, a atmosfera tornava-se densa.
O medo, é claro, comunicava-se duns aos outros. Se Juana e a respectiva família não andassem cheias de pavor, Kate nunca sentiria medo, disso estava ela certa.
Ali não havia homens. Juana tinha dois filhos, Jesus, de vinte anos, e Ezequiel, de dezassete. Mas Jesus era quem tomava conta do motor da luz eléctrica, e tanto ele como Ezequiel dormiam na casa das máquinas. De modo que Juana ficava só com as duas filhas, Concha e Maria, no cubículo ao fundo da residência de Kate.
Antes, a plaza mantinha-se animada até às dez da noite, com gente a conversar ou a ouvir os moços tocadores de viola e o homem dos sorvetes a apregoar de contínuo: Nieve! Nieve!
Agora o largo esvaziava-se às nove horas. E havia ordem de prender quem fosse encontrado na rua depois das dez.
Kate corria para casa e trancava as portas. Não é fácil suportar o pânico de um povo meio bárbaro. O medo espalha-se no ar, envolve-nos, paralisa-nos a alma com a sensação de desgraça iminente, dum horror atroz.
Às dez horas cortavam a luz eléctrica, tudo ficava às escuras, e, deitada na cama, Kate sentia o sopro maléfico espraiando-se na atmosfera em vagas sucessivas.
Acudiam-lhe à memória todas as histórias arrepiantes passadas no país. E de novo pensava nessa gente de aspecto pacífico e sorriso doce. Mas o próprio Humboldt dissera a respeito dos mexicanos que nunca encontrara povo de sorriso tão suave e olhar tão feroz. Não que os olhos revelassem propriamente ferocidade; contudo, o seu negrume iluminava-se dum clarão frio, de cintilações de punhal nas trevas da noite, ao mesmo tempo que neles despertava a sede de homicídio.
Seres incompletos, não de todo criados, encontravam-se à mercê das velhas influências que jaziam como sedimento no fundo de cada um deles. Enquanto estavam calmos, eram simpáticos, bondosos, simples. Mas, se alguma coisa lhes revolvia as profundezas, logo se erguiam as nuvens tenebrosas de ódio e de morte.
Adivinhava-se-lhes na alma um ressentimento constante, como que uma ferida jamais cicatrizada. O ressentimento dos entes incapazes de conquistar sozinhos uma integridade individual fora do caos de paixões e forças mortíferas. Eram apanhados na engrenagem duma ansiedade ancestral como nos anéis duma serpente negra que lhes oprimisse o coração. Onerosa carga dum passado invencível.
E debaixo desse peso vivem e morrem, sem grande pena de morrer. Enredados nos elementos, não conseguem desenvencilhar-se. Queimados pelo sol excessivamente forte, sobrecarregados pela electricidade da atmosfera mexicana e atormentados pela erupção de vulcões que lhes rebentavam aos pés. Tremendos elementos do continente americano que tornam forte o corpo dos homens mas que esmagam a alma e impedem a sua elevação. E, se nalgum ela se eleva, os elementos maléficos a pouco e pouco a destroem, até que o homem se decompõe em ideias e actividades maquinais, num corpo cheio de energia mecânica mas de espírito morto e putrefacto.
Assim, esses seres incapazes de dominar os elementos, submetidos às forças do sol, da electricidade e das erupções vulcânicas, estão sujeitos a acessos de rancor e de ódio ardente à própria vida. Então, nada melhor do que enterrar uma faca num corpo vivo. Nenhuma volúpia iguala essa de cravar a lâmina e ver jorrar o sangue.
É a suprema satisfação duma raça presa a um passado de que não consegue libertar-se. Raça que não conhece Salvador nem Redenção. Quais mineiros enterrados vivos na derrocada duma mina, nações inteiras ficam sepultadas sob os escombros do passado - até que um salvador lhes mostre a saída para o sol.
Deitada na cama, Kate reflectia profundamente na'escuridão da noite, de ouvido atento aos menores ruídos que a enchiam de terror. Não podia refrear o coração; dir-se-ia que lho arrancavam, e o sofrimento era atroz. Pela primeira vez sentia medo físico, o sangue gelava-se-lhe nas veias.
Na Inglaterra, na Irlanda, durante a guerra e a revolução, conhecera o medo espiritual. O medo horrível da ralé; e durante a guerra as nações eram quase tudo ralé. O terror da canalha que pretendia acabar com a liberdade de pensamento em cada homem e em cada mulher. Era a ambição fria e colectiva de milhões de criaturas: aniquilar o espírito daqueles que resistiam e assim poderem iniciar a descida geral para as camadas interiores onde existe o culto do ouro e a volúpia de matar. A canalha.
Nesse tempo, Kate conhecera a agonia do medo social, como se a democracia fosse um polvo enorme que enlaçasse com os tentáculos quem lhe resistisse.
Agora o seu medo era doutra espécie. Sentia o coração doer-lhe, como se o arrancassem, o sangue parecia fugir-lhe das veias...
Dormitava, e acordou em sobressalto a um leve rumor. Sentou-se na cama. As portas que davam para a varanda tinham postigos, e estes encontravam-se escancarados a fim de arejar o quarto. Nessa abertura Kate distinguiu, recortando-se no céu escuro, uma forma negra semelhante a um gato que rastejasse no rebordo da janela.
- Que é? - perguntou ela maquinalmente.
No mesmo instante, aquilo moveu-se, deslizou para fora, e Kate percebeu que era o braço de um homem que tentava abrir o ferrolho interior da porta. Por uns segundos ficou paralisada, pronta a gritar. Então, como não pressentisse mais nada, inclinou-se e acendeu uma vela.
Era uma verdadeira agonia aquele terror pânico. Imobilizava-a, deslocava-lhe o coração... Ficou prostrada, no angustiante pavor nocturno. A vela projectava uma claridade lúgubre. Ouvia-se o ribombo longínquo de trovões. A noite era atroz, atroz, e o México horroroso.
Kate não conseguia dominar-se. "Estou à mercê disto", pensava. Sensação terrível, ver-se subjugada pelo medo.
"Que hei-de fazer?" perguntou a si mesma, reunindo coragem. Sabia que estava só.
Durante muito tempo sentiu-se incapaz de se mover. Então disse consigo, para se animar: "Creio no mal e não devo crer. O pânico e o assassínio são coisas que só sucedem quando perdemos o domínio de nós próprios. Não acredito verdadeiramente no mal. Acredito, sim, na existência dum poder supremo que nos comunica a sua força desde que tenhamos fé nele. O homem que queria entrar aqui não possuía essa força. Tentava ser maléfico, mas submeter-se-ia ao poder dominador."
Deste modo se ia tranquilizando, até que teve a coragem de se levantar e fechar os postigos. Em seguida, percorreu os quartos a fim de verificar se tudo estava trancado. E sentiu certo alívio ao compreender que temia tanto os escorpiões como a horrível sensação de pavor.
Depois de observar o fecho das cinco portas e das cinco janelas da ala de quartos comunicantes, Kate ficou encerrada nas trevas com a sua vela. Para o outro lado da casa, sala de jantar e cozinha, tinha de ir pela varanda.
Mais serena, embora ainda com o coração atormentado pelo medo, Kate reflectia. "Joachim afirmava que o mal provém de regressarmos aos costumes primitivos. É o que provoca roubos e assassínios. O tambor da noite de sábado evocava o ritmo da antiguidade e aquela dança selvagem era a velha forma de expressão. Regresso consciente à barbárie... Talvez a origem do mal..."
Mas logo intervinha o seu desejo de crer.
"Não! Temos de nos agarrar aos elos antigos, encontrar o impulso que nos relacionará de novo com o mistério do cosmos. Don Ramon tem razão. Ele deve ser um grande homem. Julguei que já não existissem grandes homens. Só grandes financeiros, grandes artistas, mas não grandes homens. Don Ramon deve ser um ente superior."
E Kate sentiu-se apaziguada a esta ideia.
Mas, logo que apagou a vela, surgiram clarões muito vivos através das fendas do postigo. Ribombaram trovões clamorosos, que pareciam afundar-se-lhe no coração. Kate sentia-se como que esmagada, na consciência duma tortura que a paralisou até de manhã e lhe deu a impressão de ser, ela própria, um destroço de naufrágio.
Por fim apareceu Juana, também com o ar de desenterrada, para lhe fazer a pergunta tradicional:
- Como passou a noite, Niña?
- Muito mal - respondeu Kate. E contou-lhe a história do gato preto e do braço do homem.
- Mire! - replicou Juana, sufocando a voz. - A inocentinha vai ser assassinada na cama. Não, niña, tem de passar a dormir no hotel. Não, Niña, não pode continuar com o postigo aberto. É impossível. Está a ver agora como é necessário que durma no hotel? Assim fazia a outra senhora.
- Não quero - declarou a patroa.
- Não quer, Niña? Ah, entonces, entonces... niña, vou dizer ao Ezequiel que venha dormir na soleira da porta, armado de revólver. Ele tem um revólver, pode ficar do lado de fora da porta, e a senhora já deixava a sua janela aberta, para lhe refrescar o quarto. Pobres de nós, mulheres, precisamos de um homem que tenha revólver. Não devemos estar sozinhas, toda a noite. Temos medo, e as crianças também têm medo. Imagine que um ladrão tenta arrombar o ferrolho da porta! Imagine! Não, niña, vai-se falar ao Ezequiel hoje mesmo, antes do meio-dia.
Ao meio-dia, Ezequiel compareceu, muito seguro de si. Era um rapaz, meio selvagem, mas dava largas passadas, empertigado e orgulhoso. A voz, na mudança própria da puberdade, tinha uma entoação estranha.
Ficou de pé, acanhado, ouvindo o que lhe recomendavam. Depois olhou para Kate com as pupilas negras e brilhantes, convicto do seu papel de salvador.
- Sim, sim - declarou. - Durmo aqui no corredor. Não tenha medo. Trago a pistola.
Saiu, e voltou com a arma, que era de cano comprido.
- Tem cinco cargas - participou, exibindo o revólver. - Se abrir a porta de noite, previna-me, porque, se eu vir mexer qualquer coisa, disparo os cinco tiros. Pum!, pum!
Pelo brilho do olhar do rapaz, Kate compreendeu quanto ele gostaria de fazer fogo sobre o que se movesse nas trevas. Não o preocupava a hipótese de ser alvejado por seu turno.
- niña - disse Juana - se voltar tarde para casa, depois de as luzes estarem apagadas, não se esqueça de chamar pelo Ezequiel. Senão... pum!, pum! Nunca se sabe quem pode ser a vítima.
Ezequiel dormiu sobre uma esteira na varanda de tijolos, defronte da porta de Kate. Enrolou-se num cobertor e conservou o revólver à mão. A senhora podia ficar de janela aberta. Na primeira noite, esteve muito tempo acordada por causa do ressonar estrondoso do rapaz. Nunca ela ouvira semelhante coisa! Que pulmões que ele devia ter! Dir-se-ia um som que viesse de outro mundo estranho e bárbaro. O barulho manteve-a desperta, mas havia naquilo um não sei quê de agradável. Algo semelhante a uma força bravia.

IX
Kate depressa se afeiçoou à negligente Juana e respectivas filhas. Concha tinha catorze anos. Era uma rapariga selvagem, entroncada, de cabeleira hirsuta que ela coçava constantemente. Maria, de onze anos, parecia um passarito, com olhos enormes que se diria absorverem toda a luz à sua volta.
Juana confessava que Jesus era filho doutro pai, mas o aspecto dos restantes fazia suspeitar ter cada um deles progenitor diferente. Toda a família, porém, mostrava igual despreocupação perante a vida. Viviam o dia-a-dia sem se importarem com o passado, nem com o presente, nem com o futuro. O dinheiro não lhes interessava. Assim que o recebiam gastavam-no, e logo o esqueciam.
Sem aspirações, sem objectivos, levavam existência absolutamente terre à terre no seu país sombrio e vulcânico. Não eram animais porque homens, mulheres e crianças não podem ser animais. Tal não nos foi concedido. Vai, e não voltes para trás - diz o Criador. Quando o homem tenta brutalmente tornar ao primeiro estado da evolução, fá-lo com espírito de crueldade.
Por isso os olhos negros daquela família revelavam certo medo, espanto e sofrimento. Angústia das criaturas humanas sem força para desenvolver as possibilidades do seu ser; incapazes de arrancar do caos a própria alma e indiferentes a qualquer outra vitória.
Também os brancos perdem a alma a pouco e pouco; mas conquistaram os mundos inferiores do metal e da energia e, graças às máquinas, lançam-se em corrida louca de roda da sua vacuidade.
Naquela família Kate encontrava algo de patético e de repugnante.
Desde que haviam aceitado niña como patroa, Juana e as filhas mostravam-se profundamente honestas. Honestas, a pontos de não tirarem uma única ameixa do fruteiro. E solícitas no serviço, de uma solicitude quase excessiva.
Viviam na sujidade, indiferentes ao ambiente. O chão era o seu caixote do lixo. Para ali arremessavam tudo o que consideravam inútil e ninguém se preocupava mais com isso. Pareciam 138
comprazer-se em viver no meio de pulgas e de trapos, de cascas de banana e caroços de manga. Um pedaço arrancado dum vestido - aí vai para o chão! Cabelos tirados do pente - chão com eles!
Kate não suportava aquilo. Afligia-a tamanha desordem, e o facto de ela se afligir divertiu imensamente a família mexicana. Mãe e filhas varreram então o pátio com uma vassoura de urze, até raspar a própria superfície da terra. Que engraçado, a niña preocupar-se com aquelas coisas!
Kate constituía para elas uma fonte de espanto e de divertimento. Não a consideravam pessoa de classe elevada. Era um ente meio incompreensível, meio espantoso.
Niña queria que o aquador lhe trouxesse todas as manhãs dois botes de água das nascentes térmicas para fazer abluções completas. Que esquisito! "Maria, diz ao aquador que corra a buscar água para a niña."
Quase se melindravam com o facto de ela se fechar no quarto para tomar banho. Era uma espécie de deusa, provocava-lhes alegria e admiração; mas devia ser sempre acessível. Kate depressa descobriu que um deus sempre acessível aos seres humanos passa bocados pouco invejáveis.
Não, aquilo não era nenhuma sinecura. De manhã começava o barulho da vassoura de urze lá fora. Kate deixava-se estar na cama, de portas fechadas e postigos abertos. Alvoroço no pátio. Alguém queria vender ovos. Onde está Niña? A dormir. O visitante não se retira e as conversas continuam.
O aquador! Ah, a água para o banho da niña. Está a dormir. "Não estou, não!" - grita Kate, enfiando o roupão e destrancando a porta. As pequenas entram com a tina, seguidas do aguadeiro com duas latas cheias de água quente. "Doze centavos, doze centavos para o aquador." No hay! Mais tarde, mais tarde. O homem vai-se embora, com a vara ao ombro. Kate fecha os postigos e começa a tomar banho.
- Niña!, Niña! - Que é?
- Quer ovos estrelados, quentes ou rancheros?
- Quentes.
- Café ou chocolate?
- Café.
- Ou prefere chá?
- Não, café.
O banho continua.
- Niña!
- Dize lá.
- Já não temos café. vou comprá-lo.
- Não é preciso. Tomarei chá.
- Não, niña, Eu vou. Espere por mim.
- Está bem, vai.
O primeiro almoço é na varanda. A mesa está posta, há pilhas de frutos, pão alvo e bolos.
- bom dia, niña. Como passou a noite? Maria, traze o café. vou meter os ovos na água. Oh, niña, eles não devem ficar cozidos... Meu Deus, que pés de Madona! Olhem, que bonitos!
E Juana inclina-se fascinada e, com o dedo escuro, toca nos pés acetinados de Kate metidos em leves sandálias seguras por uma única tira.
O dia tinha começado. Juana considera-se como inteiramente dedicada a Kate. Tão cedo quanto possível, expede as filhas para a escola. "Niña diz que é preciso ir para a escola. Não ouvem o que ela diz? Vamos, girem!"
No seu passo coxeante, Juana anda cá e lá na varanda, da cozinha para a mesa do almoço, transportando os pratos um por um. Depois, com grande espalhafato, começa a lavar a louça.
Manhã! O sol inunda o pátio, os cardeais e as folhas dilaceradas das bananeiras. Os pássaros voam em todos os sentidos com precipitação tropical. Na sombra densa das mangueiras passam índios vestidos de branco, semelhantes a espectros. Há um frémito de vida e, no entanto, o silêncio é opressivo. Os olhos deslumbram-se à claridade ofuscante, a alma sente-se oprimida.
Kate senta-se na varanda e finge coser. Surge um velho, segurando um ovo na mão, como qualquer símbolo. A patrona quereria comprá-lo por cinco centavos? Juana só dava quatro. De acordo? Onde está Juana?
Juana volta da praça com outras compras. O ovo! Quatro centavos! A conta das despesas. Entonces! Entonces! Luego! Luego. Ah, niña, no tengo memória.
Juana não sabia ler nem escrever. Todas as manhãs ia ao mercado, comprava uma porção de coisas de um ou dois centavos e todas as manhãs era preciso fazer contas. "Ah, onde é que nós íamos?
Não tenho memória nenhuma. Ora vejamos... Comprei três centavos de ocote... Quanto? Quanto soma agora, niña" Se faltava um centavo, ficava desolada e não falava noutra coisa. "Falta um centavo, niña? Sou estúpida, não sou? Mas eu dou-lhe um do meu dinheiro."
- Deixa lá, não penses mais nisso - dizia Kate.
- Mas eu quero pagar a diferença - insistia a mulher; e afastava-se, coxeando.
Uma hora depois elevava-se um grito no outro extremo da casa e Juana aparecia empunhando um ramo de salsa.
- Mire, niña! Compré perejil a un centavo. As contas estão certas agora?
- Estão - respondia Kate.
E a vida podia então retomar o seu curso. Existiam duas cozinhas: a anexa à sala de jantar, e a das criadas, numa espécie de barraca debaixo das bananeiras. Da varanda Kate via a abertura negra que fazia as vezes de janela na cozinha de Juana.
"Julgava Concha na escola!", disse Kate consigo mesma.
Mas não. No buraco escuro da janela distinguia-se o rosto moreno e a juba de Concha, espreitando para fora como um animal que saísse da toca, enquanto fazia as tortillas. Tortillas são uma espécie de filhos de milho. Preparam-nas batendo a massa na palma da mão até adquirir a lisura e leveza necessárias. Pouco depois do meio-dia via-se sair fumo pela janela: Concha lançava as tortillas cruas na frigideira de barro colocada sobre o lume.
Então Ezequiel aparecia, de manta sobre o ombro, chapéu de palha de grandes abas enroladas, pronto a comer as tortillas. No entanto, se trabalhava no campo, só chegava ao cair da noite. Sentava-se no degrau da porta e as mulheres serviam-no e iam-lhe buscar água como se ele fosse um rei. E ouvia-se-lhe a voz rouca dando ordens em tom calmo.
Porque, apesar do seu ar sereno e meigo, tomava uma entoação imperiosa desde que se dirigisse à mãe ou às irmãs. Prerrogativa de macho, que dava a Kate vontade de zombar do rapaz.
A hora da refeição era para Kate um dos seus tormentos. Apresentavam-lhe sopa muito quente e gordurosa, arroz apimentado, também gorduroso e fumegante, a inevitável carne nadando em gordura. Seguiam-se calabacitas, ou beringelas, salada, e o enorme cabaz de fruta. E, inundando tudo isso, o ardente sol tropical dos fins de Maio.
De tarde, o calor aumentava. Juana ia com as filhas lavar a loiça no lago. Agachadas sobre as pedras, agitavam na água cada prato, cada colher e cada garfo, e punham tudo a secar ao sol. Depois, enquanto Juana lavava uma ou duas rodilhas, as filhas banhavam-se no lago.
Jesus, o primogénito, costumava vir à tarde regar o jardim. Mas esse comia no hotel, onde prestava diversos serviços, trabalhando até às dez da noite por um salário de vinte e dois pesos, ou seja, onze dólares por mês. Usava camisa preta, e a cabeleira abundante tombava-lhe na testa baixa. Apesar da camisa fascista, possuía o espírito sarcástico e crítico dos socialistas, o espírito que vem do instinto de destruição.
Entre ele e a mãe existia pouca intimidade. Se Juana se encontrava em apuros, Jesus dava-lhe algum dinheiro mas, exceptuando o ténue laço de sangue que os unia, mostravam a maior indiferença um pelo outro.
Ezequiel tinha melhor tipo. Era esbelto, e tão direito que quase parecia arquear-se para trás. Tímido, arisco, orgulhoso, sentia-se mais responsável pela família. Não queria servir em hotéis. Não. Trabalhava nos campos, e tinha vaidade nisso: era labor de homem, não uma espécie de escravidão disfarçada.
Embora simples jornaleiro, não trabalhava para um patrão mas sim para a terra. E a terra, de certa maneira, era dele, pertencia-lhe...
Quando havia que fazer, chegava a ganhar um peso por dia. Se a terra estava seca, então procurava trabalho nas estradas, ainda que isso lhe não agradasse.
Mas nem sempre conseguia empregar-se. Durante dias, semanas, Ezequiel vagueava pelos arredores, sem nada que fazer. Quando o governo socialista dividiu as fazendas em lotes e os distribuiu pelos camponeses, coube-lhe um pedaço de terra fora da aldeia. O rapaz ia até lá e juntava pedras para construir um casebre. Cavava o chão tão profundamente quanto possível, mas não tinha amor a essa nesga de terreno que lhe viera parar às mãos de modo quase sobrenatural. Só lá ia de vez em quando, e sem nenhum entusiasmo.
Nos dias de trabalho regressava a casa por volta das seis horas e, cumprimentando Kate, timidamente, dirigia-se para o seu antro, onde, sentado no chão e de costas apoiadas à parede, dobrava tortillas umas sobre as outras e comia essa pasta elástica que tem o sabor de argamassa - pois o milho é primeiramente fervido com cal para largar a pele. Depois, dignava-se aceitar outra rima de fritos, que a irmã lhe apresentava numa folha de couve. Às vezes, Ezequiel tirava do tacho de barro um bocado de carne guisada que metia entre duas tortillas. Mas ingeria tudo rapidamente com uma espécie de indiferença. Aliás, os mexicanos parecem sempre indiferentes ao que comem.
Acabada a ceia, ia até à plaza, reunir-se aos homens. Havia ocasiões em que Kate, ao recolher a casa às nove horas, a encontrava quase deserta. Ezequiel estava no largo, Juana e Maria haviam desaparecido, e Concha dormia tal um molho de trapos no chão do pátio. Quando Kate a chamava, a pequena erguia a cabeça, espantada, entorpecida; depois, levantando-se como um cachorro, rastejava até ao portão.
Indiferença por tudo, até uns pelos outros. Juana lavava semanalmente uma camisa e um par de calças de algodão para cada um dos filhos, e aí terminavam os seus cuidados maternais. Nem se interessava averiguar qual o trabalho-de momento de Ezequiel. Sabia que arranjara emprego e isso lhe bastava. Contudo, de tempos a tempos, tinha ímpetos de amor materno, quando o rapaz era tratado injustamente, como às vezes acontecia. E, se o supunha doente, dominava-a um terror fatalista que só a abandonava depois de Kate intervir com qualquer remédio muito simples.
Semelhantes a animais. Mas os animais são perfeitos no seu isolamento e despreocupação; não se trata de indiferença, é que se bastam a si próprios. Ao passo que naquela família havia uma espécie de frustração, como se um torpor de aborrecimento a todos avassalasse.
As duas raparigas eram inseparáveis; andavam sempre atrás uma da outra. Concha arreliava de contínuo a inocente Maria de grandes olhos e esta debulhava-se em lágrimas. Ou então, no meio de uma fúria, ameaçavam-se com pedras, e Juana invectivava-as com súbita veemência, que logo se extinguia.
Estranha, aquela ferocidade repentina com que as pequenas arremessavam pedras, e não menos estranho, o esforço por não acertar. Kate notava a mesma coisa nos ataques selváticos que os garotos faziam uns aos outros nas margens do lago; atiravam calhaus com ar ameaçador, mas quase sempre falhavam o alvo.
Quase sempre, mas não sempre. Às vezes atingiam o adversário, que tombava como morto. Então os outros aproximavam-se, em silêncio temeroso, da vítima prostrada. De repente, o ferido erguia-se, com um esgar homicida no rosto, perseguindo o inimigo com uma pedra. E o inimigo fugia a sete pés.
Uma vontade perene de arreliar, de atormentar. O mesmo sucedia entre os Peles-Vermelhas. Mas o povo índio raramente recorria à violência, o que se não dava com os Mexicanos.
Kate, achando que devia fazer qualquer coisa pelas pequenas, dispensou-lhes uma hora por dia para lhes ensinar a ler, a redigir e a costurar. Maria queria aprender a ler; nisso mostrou boa vontade. Começaram bem, mas depressa a leve insistência de Kate em lhes chamar a atenção fez com que as alunas assumissem o tom de ironia peculiar ao continente americano. Ironia calma, invisível, malevolente, desejo de magoar.
- Não te debruces sobre mim, Concha. Põe-te direita.
- Porquê, niña Tem piolhos na cabeça?
A pergunta insolente era formulada com subtileza índia.
- Não! - respondia Kate subitamente irritada. - E agora vão-se embora! Afastem-se de mim.
E as pequenas retiravam-se, humilhadas.
Kate recebeu visitas de Guadalajara. Grande excitação! Mas enquanto tomava chá na varanda, Juana, Concha, Maria e Filipa, que era uma prima de dezasseis anos, sentaram-se no outro lado do pátio, bem à vista, com os belos cabelos soltos sobre os ombros, e, ostensivamente, puseram-se a catar piolhos umas às outras. Pareciam encantadas por exibirem a sua sordidez àqueles estrangeiros.
Kate desceu ao pátio.
- Se querem catar piolhos - disse em voz trémula de cólera - vão para onde ninguém as veja.
Atravessou um clarão de maldade os olhos negros de Juana, mas um instante depois, humilde e abjecta, a família retirava-se, de cabeleira ao vento, em direcção ao seu antro.
Juana comprazia-se em irritar Kate. Sentia assim uma espécie de poder sobre a Niña. É certo que temia um tanto essa irritação, mas era justamente o que desejava. De que servia uma niña que não lhe inspirasse algum receio?
Ah, raças escuras! Kate, como irlandesa, podia entrever um pouco do mistério. As raças escuras pertencem a um ciclo de humanidade já desaparecido; ficaram atrás, no fundo de um abismo donde nunca conseguiram sair. Jamais atingirão o nível dos brancos; limitam-se a segui-los de longe, como escravos.
Enquanto o homem branco avança, cheio de orgulho, as raças escuras cedem-lhe o passo e obedecem-lhe pela força. Se, porém, o branco hesita na sua marcha, logo os outros o atacam para o precipitar no abismo do passado.
É o que está a acontecer. Porque o branco, apesar de todas as farroncadas, duvida da sua própria supremacia.
E é a corrida veloz para a derrocada.
Desde a revolta de Kate perante a cena da caça aos piolhos, Juana voltou a servi-la com enternecedora solicitude. Embora indiferente a tudo, aquele ser das regiões inferiores não queria quebrar o débil fio que o ligava a Kate e ao mundo da claridade e do ar puro. Em suma, o desejo de Juana era conservar a sua niña, servir a sua Niña.
Ao mesmo tempo, parecia odiar a gente rica, branca e superior. De vez em quando contava a Kate histórias do passado. Então via-se-lhe uma expressão malévola nos olhos negros e na face acobreada, enquanto ela prosseguia: Usted sabe, niña, los gringos, los gringuitos llevan todo...
Os gringos são os Americanos, e Juana incluía Kate nos gringuitos, estrangeiros brancos. Aquela frase era nova insolência disfarçada, subtil...
- É possível - respondia Kate friamente. - Mas dize-me o que é que eu levo do México.
- Non, niña, non - Espalhava-se um sorriso de satisfação na cara de Juana quando ela conseguia atingir a outra mulher. Não me refiro a si, niña! - O protesto, porém, era pouco convincente.
Dir-se-ia que essas indígenas queriam obrigá-la a partir à força, insultando-a, rebaixando-a, até que a irlandesa, não menos impetuosa do que elas, abalasse dali num momento de fúria.
Oh, raças primitivas atrasadas!
Contudo, havia um lado patético na natureza daquela gente. Quando tinha catorze anos, Ezequiel trabalhara por conta de um sujeito que andava a construir casa. O homem prometera-lhe uma manta, mas ao fim de dois meses despediu-o sem cumprir a promessa. Foi uma desilusão bem amarga.
Kate nada tinha a ver com isso, mas Juana quase a acusava do facto.
Povo sem força para avançar, como podia deixar de ser explorado? Desde séculos que o exploravam cruelmente, e toda a sua energia se limitava a uma resistência malévola.
"Mas não pretendo explorá-los - dizia Kate consigo mesma.
- Pelo contrário, a minha vontade é dar-lhes mais do que recebo. São injustos os seus remoques. Nunca insultei estas criaturas. Faço a diligência de não as magoar e elas, deliberadamente, atacam-me e ficam radiantes quando me ferem."
No entanto, Kate procedia à sua maneira irlandesa: de vez em quando, isolava-se de Juana e das filhas. Porque, assim que as mandava para longe, desaparecia-lhes a malevolência e lembravam-se das ordens da niña. Se ela estava presente e amável, esqueciam-se de tudo. Esqueciam-se de varrer o pátio, de se apresentarem limpas, e só quando Kate as relegava para um canto é que tornavam a lembrar-se.
O filho Ezequiel tinha mais dignidade do que as mulheres.
Nunca fazia aqueles ataques insidiosos.
Quando a casa estava limpa e calma e o ar parecia purificado e a alma renovada, Kate sentia novamente amizade por essa família.
A sua azáfama, andando cá e lá, esvoaçando como pássaros; o estalo da massa das tortillas de encontro à palma da mão; o entusiástico esmagar de tomates e pimenta no tacho enquanto Juana preparava o molho; o barulho do balde no poço quando Jesus vinha regar...
Como isso era divertido! Assim devia ser tudo o que fizessem, ou então não o fariam. Não podiam fixar-se numa rotina. Jamais! Tudo devia ser alegre, variado, com uma pontinha de aventura. Era confusão, mas, no fim de contas, uma confusão viva, não uma coisa morta. Kate recordava-se dos seus criados britânicos nas cozinhas inglesas, tão maquinais e quase inumanos. Aqui era o extremo oposto.
Não havia disciplina nem método. Embora Juana e as filhas quisessem realmente fazer o que a niña desejava, só procediam conforme lhes apetecia. às vezes, Kate sentia-se angustiada. Mas, tanto quanto possível, ia suportando as extravagâncias daquela família. Tivera, por exemplo, de se habituar à vagabundagem da mesa de jantar, mesinha redonda cujo lugar era na varanda. Ao primeiro almoço, ficava discretamente debaixo das plantas, perto do salão; ao almoço da uma hora regressava à varanda; ao chá, ia para a relva do jardim, à sombra duma arvorezita. E, quanto à ceia, Juana deliberou então que a niña comesse os dois ovos e rancheros na própria casa de jantar, isolada a um canto da comprida mesa em que cabiam catorze pessoas.
Kate também nunca chegou a perceber o motivo por que, depois de lavarem a loiça na cozinha durante uns dias, se lembraram de repente de levar os pratos sujos para o lago, num cabaz, aos ombros de Concha. A não ser que achassem assim o trabalho mais divertido...
Crianças! Mas não inteiramente. Faltava-lhes a despreocupação da infância. Pressentia-se-lhes na alma qualquer coisa de sombrio, como que um peso que as forçava a resistir. Trabalhavam por acessos, podiam ser laboriosas; depois vinha a indolência e passavam horas estiradas no chão, como porcos. às vezes mostravam-se alegres, conversavam e riam, sentadas sobre a terra, em grupo, formando roda. Então, subitamente, contrariando a própria alegria, recaíam na mudez e na tristeza. Havia ocasiões em que, estando a trabalhar com afinco, atiravam para longe a ferramenta como se indignadas por terem cedido. Descuidados, versáteis nos seus amores, os homens, ao menos, passavam todo o tempo a resistir a si mesmos. Nunca procuravam o que pretendiam. As mulheres a que se aproximavam. E um rapaz e uma rapariga passeando às escuras na estrada marginal do lago, atiçando-se um ao outro, atormentando-se no meio de excitação, constituíam uma cena que deixava Kate pasmada - porque homens e mulheres não se cortejavam abertamente como fazem os brancos. E o riso súbito do macho, estranha voz de desejo reprimido, de obstinada relutância e paixão desesperada, parecia qualquer coisa a rasgar-se-lhe no peito, era um som que perdurava na memória.
Kate achava pesado o governo da casa. De certa maneira, eram como parasitas, queriam viver da sua vida, e rebaixá-la, rebaixá-la. Nalgumas ocasiões mostravam-se como pessoas meigas, generosas, encantadoras - até a fazerem novamente revoltar-se contra aquela indiferença reptilária. Indiferença e resistência.
Os servos forneciam a Kate a chave da vida indígena. Os homens sempre juntos, erectos, belos, equilibrando o chapéu enorme no alto da cabeça, quer sentados, quer de pé, quer de cócoras, numa impassibilidade de serpente; as mulheres sempre à parte, suaves, como que escondidas, estreitamente apertadas nos chailes escuros. Homens e mulheres pareciam voltar costas uns aos outros como se não quisessem ver-se mutuamente. Nenhuns galanteios, nenhum namoro. Apenas um olhar ocasional sombrio e rápido, sinal de desejo semelhante a um golpe de florete dado e recebido.
Elas, no conjunto, dir-se-iam inexperientes mas decididas a seguir o seu próprio desígnio: mudar de homens quando lhes apetecesse. E eles davam a impressão de não se preocuparem muito. Afinal eram as mulheres que pretendiam os homens.
As indígenas, com os negros cabelos tombados nas costas cheias e acobreadas, banhavam-se num canto da praia, geralmente em camisa ou com um saiote. Os homens mantinham-se alheados, nem sequer se dignavam olhar para a outra banda. Eram mulheres no banho, nada mais. Faziam parte, por assim dizer, da vida lacustre, como os peixes que ali nadavam. Concediam-lhes mesmo aquele ponto do lago, e elas sentavam-se nos baixios, isoladas como aves aquáticas, e molhavam a cabeça e os ombros com o auxílio duma cabaça.
Calmas, discretas, desprezadas fêmeas da classe dos peóns, seguindo o seu caminho envoltas no rebozo como num manto de trevas, ágeis, balançando as saias rodadas e gorjeando como passarinhos; ou paradas na borda do lago, com os cabelos longos a gotejarem; ou subindo lentamente a margem com uma pesada bilha de água ao ombro e um braço por cima da cabeça, a segurar a asa do cântaro; ou, especialmente nas tardes de domingo, sentadas à porta da casa, catando piolhos umas às outras. As moças possuidoras de cabeleira abundante e ondulada eram as que mais piolhos tinham. Aquilo representava um acto público meritório.
Parecia a Kate que esse país não podia originar nada de mais elevado do que a amizade entre os homens. O próprio casamento tinha pouca importância. E, embora se mostrassem meigos e protectores para com as crianças, os pais depressa as esqueciam.
A questão do sexo era no entanto a primordial, aquela que não devia ser omitida nem aflorada abertamente. O único mistério, muito maior do que o indivíduo. Este pouco contava.
Kate pasmava ao ver as choças de palha dos índios nas margens do lago. Ali fervilhavam crianças seminuas no chão de terra batida, no meio de trapos, de ossos, e do fedor de excremento humano.
Esse povo parecia não ter olfacto. E defronte do buraco que servia de porta à cabana, o homem impassível, magnífico, silencioso... Como era possível que tão belo exemplar de virilidade se mantivesse indiferente a tamanha porcaria?
Mas ali se conservava como inconsciente. Contudo, era um ser vivo - e forte. Nenhum homem no mundo pode transportar cargas tão pesadas como os índios do México. Kate vira já um deles passar na rua com um piano às costas, apenas seguro por uma correia em volta da testa.
Portanto, força não escasseava, mas sim energia. Nem sequer a classe dos artífices que imita a dos Estados Unidos demonstra ser enérgica. Têm os seus clubes, aperaltam-se e andam de braço dado com raparigas bonitas, mas percebe-se que tudo isso não passa de vulgar imitação.
Inesperadamente, a família de Kate aumentou. Um dia, chegou de Ocotlan uma formosa moça de 15 Primaveras, com grandes olhos bovinos, Maria del Carmen. Acompanhava-a Júlio, rapaz de vinte e dois anos. Tinham casado há pouco, e vinham de visita a Sayula. Júlio era primo de Juana. Poderiam dormir no pátio com ela e com as filhas? - perguntou Juana. Só se demorariam dois dias.
Kate ficou espantada. Maria Del Carmen devia ter sangue espanhol, a sua beleza evocava a Espanha. Parecia pertencer a um nível superior, mais educado, e no entanto ia dormir no chão com esse esposo juvenil... E ele, tão aprumado e de ar tão orgulhoso, nada possuía além duma velha manta.
- Há três quartos desocupados - disse Kate. - Que durmam num deles. - As camas eram de pessoa só. - Precisarão de mais cobertores?
Não. Bastaria a manta de Júlio.
Este era assentador de tijolos, isto é, ajudava a construir as paredes das casas de adobe. Nascera em Sayula e vinha ali de visita.
Essa visita, no entanto, prolongou-se. Júlio andava à procura de trabalho e só aparecia ao anoitecer. Maria del Carmen entretinha-se a amassar tortillas na cozinha de Juana e a conversar com as raparigas. À noite, o marido regressava e, sentado no chão, de costas apoiadas à parede, sempre impassível, deixava a mulher acariciar-lhe os cabelos negros e bastos.
Amavam-se, mas Júlio resistia ao seu amor.
Ela queria voltar para Ocotlan, onde era mais señorita do que em Sayula, mas o rapaz recusou. Não tinha dinheiro; o casal sustentava-se com cerca de cinco cêntimos por dia.
Quando Kate estava a coser, Maria del Carmen, que nem sabia talhar uma camisa, observava-a de olhos arregalados. Kate ensinou-lhe costura, comprou-lhe uns metros de chita e Maria del Carmen fez um vestido com as suas mãos.
Júlio arranjou trabalho, a um peso por dia, e a visita continuou. Kate achava o rapaz pouco terno para a mulher: sempre que lhe falava era em tom de comando. E Maria del Carmen não levava isso a bem e amuava um pouco.
Passaram-se semanas, e Juana começava a cansar-se dos parentes.
Por fim, Júlio arrendou uma casita de adobe só de um compartimento, ao preço de peso e meio por semana. Maria del Carmen ia ter o seu lar.
Kate viu-os juntar as suas coisas para a mudança. Consistia tudo numa esteira de palha, três tachos de barro, cinco peças de loiça, duas colheres de pau, uma faca e a manta de Julio. Nada mais.
Presenteou-os, então, Kate com um edredão de seda já um tanto puída, duas tigelas e diversos utensílios de cozinha. Foi uma alegria. A voz de Maria del Carmen soava no pátio em exclamações delirantes. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"
Na época das chuvas as noites são por vezes glaciais devido à evaporação, e os indígenas, transidos de frio, esperam pelo romper da manhã deitados sobre esteiras delgadas e abafados apenas com a ponta de um cobertor velho. A inércia natural fá-los suportar o sofrimento sem tentar minorá-lo. Podiam arranjar um colchão de palha de milho e cobrirem-se com folhas secas de bananeira. Mas não. Estendem-se numa esteira em cima da terra húmida e tiritam de frio noite após noite.
Maria del Carmen, porém, era um pouco mais civilizada. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"

CONTINUA

VII
Sayula era uma pequena estação balnear; não para ricos ociosos, porque o México os tem em pouca quantidade, mas para comerciantes de Guadalajara e gente que passeia nos fins-de-semana. E mesmo assim em reduzido número.
Havia, no entanto, dois hotéis, que vinham dos dias calmos de Don Porfirio, tal como a maior parte das vivendas fora da povoação, hoje fechadas e muitas delas abandonadas. Na aldeia viviam em perpétuo estado de terror. Acima de tudo temiam os bandidos e os bolchevistas.
Os bandidos eram apenas homens das localidades afastadas que, sem dinheiro, sem trabalho e sem esperança faziam ocasionalmente profissão do roubo e do assassínio. Habitavam nas suas aldeias selvagens até que as tropas os obrigavam a refugiar-se nas montanhas ermas ou nas regiões pantanosas.
Quanto aos bolchevistas, pareciam nascer do caminho de ferro. Onde houvesse carris, passageiros e carruagens de diferentes classes, aí despertava o espírito de rebelião e inveja; e o ferro e as demoníacas locomotivas ofegantes dir-se-ia engendrarem esses filhos do materialismo que são os bolchevistas.
Sayula possuía o seu ramal, com um comboio diário; a linha não cobria as despesas e lutava por se manter - mas já era bastante.
Sayula fora atingida pela loucura da América: o automóvel. Assim, como outrora os homens desejavam um cavalo e uma espada e as mulheres sonhavam com uma casa ou um camarote no teatro, a ambição actual é possuir um carro.
Era um desfile contínuo de "máquinas", de automóveis ligeiros e pesados na única estrada que ligava Sayula a Guadalajara. Uma esperança, uma fé, um objectivo: andar de carro, possuir um carro.
Quando Kate chegou à aldeia, falavam com certo alarme do regresso dos bandidos, mas a irlandesa não prestou a mínima atenção ao assunto. À noite, foi àplaza e misturou-se com o povo. Era um largo ornado de árvores imponentes, com um velho coreto no centro e um passeio em volta. No lado norte ficava o mercado. Mais além, passavam burros e camionetas nas ruas mal calcetadas.
A banda de música já não tocava em Sayula, a elegância já não se exibia naplaza, debaixo das árvores. Mas o pavimento ainda era bom e os bancos mais ou menos sólidos. Oh, tempos de Don Porfirio! Agora, só os peóns e os índios, com os seus fatos brancos e manta ao ombro, enchiam os bancos e monopolizavam a praça. É certo que se mantinha a lei que obrigava os peóns, naquelas paragens, a usar calças e não a espécie de ceroulas largas e flutuantes das suas lides rurais. Mas os peóns, por seu lado, também gostavam de envergar calças em vez daquele traje representativo do humilde labor do campo.
Eram eles, pois, quem dominava na praça, ora sentados em bancos ora passeando indolentes com a sua manta e de sandálias. Depois das seis horas, enchiam-se as barracas de comida quente, na rua calcetada do lado norte: ficava mais barato comer fora de casa e findava-se agradavelmente um dia de trabalho. As mulheres, de portas adentro, que ficassem a mastigar as suas tortillas; mas não provavam caldo, nem sopa, nem guisado. Nas tendas que vendiam tequila, instalavam-se homens, mulheres e rapazes defronte da mesa, em bancos, acotovelando-se uns aos outros. Também havia jogos de azar, pouco violentos, em que o banqueiro voltava uma carta e todos gritavam: Cinco de Espadas! Rei de Copas! Certa mulher corpulenta, imperturbável, de cigarro na boca e perigosa expressão nos olhos sombrios e baixos, vendia tequila, sentada ao escuro, toda a noite. O homem dos doces ficava de pé junto do seu balcão. Por terra, viam-se pequenos archotes metidos em latas, alumiando montes de mangas ou daquelas nauseabundas ameixas tropicais, encarnadas, que se liquidavam por dois ou três centavos a pilha, enquanto a vendedora, de saia larga, ou o vendedor, humilde e paciente, esperava acocorado o freguês, com aquela indiferença fatal e aquela submissão que tanto intrigam o estrangeiro. Ter ameixas para vender no valor de trinta cêntimos; amontoá-las no chão em pequenas pirâmides, cinco em cada uma; e esperar todo o dia e até de noite, de cócoras, a olhar de baixo para cima, para a cara do transeunte e possível comprador - eis, ao que parece, uma ocupação e um modo de vida.
Era vulgar encontrar-se ali um par de rapazes empunhando violas de tamanho diverso, em frente um do outro como dois galos combatentes; entoavam uma canção interminável, cantando em voz sumida as eternas baladas não muito musicais, dolorosas, extensas, audíveis apenas para os que estavam próximos. E assim se conservavam até enrouquecerem. Em volta, com mantas encarnadas, paravam homens altos e escuros, ouvindo por instantes e raramente contribuindo com um centavo.
Entre as barracas de comes e bebes estava um trio de duas violas e uma rabeca; dois dos músicos eram cegos e cantavam em diapasão alto, mas também de modo pouco audível. Dir-se-ia cantarem só para si, muito chegados um ao outro, como se a melancólica balada lhes repercutisse no peito.
A aldeia em peso comparecia naplaza. No entanto, raramente, muito raramente uma voz se erguia acima do murmúrio grave dos homens, do sussurro musical das mulheres, do gorjeio das crianças. Poucos movimentos apressados. O lento passeio dos homens de sandálias, chamadas huaraches, fazia um rumor leve de baratas a arrastarem-se no chão. Fora e dentro da multidão calma, corriam rapazes de pernas ao léu. Eram os irrequietos engraxadores, que pululam como moscas importunas naquela terra de gente descalça.
No lado sul, viam-se mesas e cadeiras no passeio: uma tentativa de café-esplanada- Aí, nos dias de semana, sentavam-se para tomar cerveja ou um copo de tequila as poucas pessoas que se atreviam a tamanha exibição - na maior parte estrangeiras. E ospeóns, imóveis nos bancos do último plano, observavam-nas com olhos de basilisco sob as largas abas do chapéu.
Mas ao sábado e ao domingo era quase festa. Chegavam carros aos solavancos, e, como pássaros exóticos, volteavam na plaza raparigas graciosas de vestidos vaporosos, faces empoadas e cabelos encaracolados. Passeavam de braço dado, trajadas de organdi vermelho ou azul, de musselina amarela ou cor-de-rosa, e com tal camada de pó-de-arroz na cara que a pele morena apresentava a brancura lívida dos palhaços ou dos cadáveres.
Adejavam como borboletas coloridas no meio da multidão de homens do povo. fortes e belos. Era restrito o número de mancebos elegantes que pudessem equiparar-se àquelas mocinhas. Contudo, havia alguns, de calças de flanela branca, casaco escuro, palhinhas e bengala. Fumavam cigarros com gesto afectado, falando um castelhano elegante, tão próximo quanto possível do original, e com o ar de que seriam dentro de doze meses sacrificados a algum deus mexicano depOis de estarem devidamente nédios e perfumados.
Ao sábado, os janotas, as raparigas e todos os que vinham de carro, da cidade - que, aliás, eram poucos - tentavam divertir-se nesse lúgubre país. Contratavam tocadores de viola e rabeca e a música de jazz elevava-se em acordes um tanto langorosos.
Debaixo das árvores da alameda, perto das mesas e das cadeiras do café, começavam pares a dançar à la mode. Os vestidos vermelhos, amarelos e azuis rodopiavam com as calças de flanela, donde saíam elegantes sapatos brancos guarnecidos de tiras de couro preto ou castanho. Algumas das saias de organdi encimavam meias e sapatos verdes, ou pernas à Ia nature com sapatos brancos. Os braços franzinos e morenos enlaçavam os ombros azuis-escuros dos moços, que sorriam com ar protector para as facezitas brancas e petulantes; sorrisos meigos, paternais e impregnados de sensualidade.
Mas a dança era no recinto da praça, e na praça erravam indolentes os homens do campo, ou então paravam em grupos, espiando os pares rodopiantes com os seus olhos pretos, misteriosos, impenetráveis. Em que pensariam? Sentiriam admiração, inveja, ou simplesmente uma silenciosa e fria oposição? Sim, oposição é que devia ser.
Esses camponeses de camisa branca e manta escarlate, airosamente dobrada ao ombro, passeavam devagar, quase ocultos sob o chapéu enorme e pesado, dispostos a não fazer caso dos que dançavam. Vagarosos, oscilando o corpo, eles moviam-se irresistivelmente no meio da dança como se a dança, no fim de contas, não existisse. E os rapazes de calças brancas, levando nos braços as damas de organdi, evolucionavam como podiam, fazendo o possível por se desviarem âospeóns impassíveis, que prosseguiam na sua conversa, sorrindo na alvura dos dentes, com um sangue-frio que gelava os próprios músicos. Nunca se tocavam, nunca se acotovelavam, dançarinos epeóns; no México ninguém se atropela involuntariamente. Mas a dança embatia contra a oposição invisível.
Os índios sentados nos bancos contemplavam também por momentos as evoluções dos bailarinos, após o que os fulminavam com a sua pesada indiferença. Misteriosa faculdade dos índios, tão densa e calma, para destruir a vida palpitante, para apagar qualquer foco de efervescência.
Na verdade, um simples bailarico de indígenas; mas dir-se-ia fechado dentro de quatro paredes. E o ritmo soava diferente, grave, com certa violência. Os dançarinos eram artífices, mecânicos ou carregadores da estação: gente meio citadina. Nenhuns trabalhadores do campo, ou quase nenhuns.
Por isso, passado não muito tempo, as borboletas de organdi e os moços de calças de flanela sucumbiram esmagados pela enorme passividade, pela resistência dos satânicos peóns.
Curiosa, radical oposição dos índios contra essa coisa a que chamamos espírito. É o espírito que leva as meninas petulantes a adejarem as suas asas de organdi como borboletas. É o espírito que vinca as calças de flanela dos rapazes e lhes dá aquele ar um tanto patético. Tentaram representar a elegância e a vontade do espírito moderno.
No entanto, como um peso de obsidiana, surge a recusa passiva do índio; compreende a vida, que participa do sangue, mas o espírito, que é superior, e é a marca da nossa civilização, isso ele repudia, barbaramente, torvamente. Só quando se torna operário ou lida com ofícios mecânicos é que o espírito moderno o visita.
E talvez seja esse repúdio do espírito moderno que faz o México ser o que é.
Kate ficou um tanto desconsolada ao ver findar o baile. Instalara-se numa das mesas, com Juana a servir-lhe de duena, para tomar um cálice de absinto.
Os carros regressavam à cidade em pequenos grupos. Sempre seria melhor irem juntos, para o caso de aparecerem salteadores. Dominava-os o receio dos bandidos, e os próprios janotas usavam revólver no bolso.
Como era sábado, parte da mocidade elegante ficou para o dia seguinte, na ideia de tomar banho e de se espojar ao sol.
A plaza estava cheia, e ao comprido das ruas que desembocavam no largo cintilavam inúmeros archotes, iluminando uma exposição de chapéus de palha, de esteiras, de pirâmides de laranjas.
Havia feira no domingo de manhã, de modo que, de repente, o largo ficou estuante de vida - densa e pesada energia vital. Os índios tinham vindo de todas as aldeias, trazendo consigo essa curiosa energia vital que parece zumbir cada vez mais profundamente quando eles se encontram reunidos.
Durante a tarde, com o vento a soprar do sul, as canoas, de casco preto e larga vela desfraldada, haviam atravessado as águas do lago, transportando indígenas e produtos para o mercado. Para formar essa multidão todas as aldeias da margem concorreram com os seus habitantes.
Despertava o instinto que impele os índios para a vida nocturna desde que se encontrem reunidos. Ninguém recolhia a casa, ninguém pensava em dormir, embora a feira só principiasse ao romper da manhã.
Cerca das nove horas, depois de terminada a dança, Kate ouviu o rufar de um tambor, ou coisa semelhante, e notou que uma chusma de peóns se dirigia para o lado mais escuro da praça, onde já se viam barracas e cestos enormes, em forma de ovo, encostados à parede.
Aquele som, que era como o latejar dum pulso de gigante repercutindo no ar da noite, juntou-se a nota prolongada de uma flauta, tocando uma espécie de melodia bárbara. Kate, que já ouvira falar dos cânticos selváticos dos peles-vermelhas do Arizona e do Novo
México, sentiu instantaneamente espalhar-se na atmosfera a eterna
paixão das raças pré-históricas com a sua intensa e complicada significação religiosa.
Olhou para Juana com ar interrogador.
- Que é isto? - perguntou.
- Músicos, cantores - foi a resposta evasiva.
- Mas muito diferentes dos outros - insistiu Kate.
- Sim, aquilo é coisa nova.
- Nova?
- Apareceu aqui há pouco tempo.
- Donde veio?
- Sabe-se lá! - volveu Juana, encolhendo os ombros.
- Quero ouvi-los.
- Olhe que são só homens.
- Podemos ficar um pouco afastadas.
E Kate dirigiu-se para o ajuntamento silencioso dos peóns. Estavam todos de costas para ela.
Subiu o degrau duma porta e viu, perto do muro florido de buganvílias, um espaço livre iluminado pelos archotes de madeira resinosa que um rapaz segurava nas duas mãos.
O tambor estava ao centro dessa clareira, e o homem que o rufava tinha o torso nu e calças de brancura imaculada atadas na cintura por uma faixa escarlate e aos tornozelos por cordão da mesma cor. Cingia-lhe a cabeça uma tira vermelha, donde se erguiam três penas rubras sobre a nuca. Na testa brilhava uma turquesa no meio dum círculo azul. O tocador de flauta também se apresentava sem camisa, mas dobrara sobre o ombro uma bela manta branca listada de azul e preto. Outros homens, despidos da cintura para cima, distribuíam folhetos aos espectadores, insinuando-se no meio da multidão. E todo o tempo, alta e pura, a estranha flauta de barro repetia a melodia bárbara, acompanhada pelo rufar do tambor.
Kate desceu do seu poleiro e avançou a medo. Queria um daqueles papéis. O homem deu-lho, sem sequer a olhar, e ela encaminhou-se para a luz a fim de o ler. Era uma espécie de balada, mas sem rimas, escrita em espanhol. No cimo da página via-se o desenho de uma águia cercada por uma serpente que mordia a cauda; curiosa variante do emblema mexicano, que é uma águia encarrapitada num cacto de folhas largas e com uma serpente nas garras. A certa distância, o círculo formado pelo réptil com a ave a meio dava a impressão dum olho.
Na região de Oeste
Em paz, para além dos raios brilhantes
Do Sol,
No silêncio onde nascem as águas
Dormia eu, Quetzalcoatl,
Na caverna chamada Olho Tenebroso, Vendo através do sol como por uma janela, Minha morada é lá. Onde as águas brotam E os ventos nascem.
Nas águas do Além
Levantei-me e vi uma estrela cadente.
E senti
Um sopro em minha face.
O sopro disse: Vai,
E eu vim.
Desci a longa encosta, Passei o monte do Sol, Até que descobri em baixo Os seios brancos da terra Do México: a esposa minha.
Entre os mares a minha esposa Penteia o cabelo preto Murmurando: Quetzalcoatl...
Adensara-se a multidão de homens; do centro elevava-se a luz avermelhada dos archotes, o ar embalsamava-se da resina de cedro. Kate não conseguia ver nada por causa dos chapéus enormes.
Calara-se a flauta; mas o tambor continuava as suas pancadas lentas, regulares, com o ritmo duma pulsação. Aquele som incompreensível, surdo, enfeitiçava o espírito, fazia bater o coração, aniquilava a vontade.
Os homens começaram a fatigar-se, sentando-se uns, acocorando-se outros, com o chapéu nos joelhos. Dir-se-ia um mar de cabeças escuras, ondulando para a frente, sobre os ombros vigorosos e levemente inclinados.
Perto do muro formara-se um círculo, com o tambor ao centro. O homem que o tocava, de dorso nu, premia o instrumento contra o corpo, e, curvado, as costas cintilavam-lhe ao clarão da noite. Junto dele estava outro homem a segurar uma bandeira que pendia duma haste leve. No campo azul do pano via-se o Sol amarelo a meio duma bola preta e, entre os quatro raios maiores, todos de ouro, quatro raios negros emergindo, o que fazia o astro assemelhar-se a uma roda que girasse num movimento ofuscante.
Sentara-se toda a gente. Os seis homens de tronco nu, que haviam distribuído os prospectos e convocado a multidão tinham já regressado e agora acomodavam-se de volta do rufador agachado. À direita deste ficava o porta-bandeira, à esquerda o flautista. Eram nove os do grupo, e faziam dez com o rapaz que vigiava os dois archotes, agora colocados em trípodes de cana.
A noite aprofundava-se em silêncio. Calara-se o murmúrio de vozes que enchia a praça. Debaixo das árvores, nos passeios, transitavam ainda pessoas indiferentes, mas pareciam estranhamente solitárias; figuras isoladas envoltas na luz pálida das lâmpadas eléctricas e fora do núcleo da vida.
No lado norte, as barracas continuavam iluminadas, faziam-se compras e vendas. Mas também essa banda do largo dava a impressão de estar muito longe da realidade actual.
Depois de os homens se sentarem, as mulheres avançaram timidamente e instalaram-se por sua vez na orla exterior do círculo. As saias rodadas espalhavam-se no chão, os xailes escuros moldavam-lhes a cabeça redonda e pequenina. Algumas, não ousando aproximar-se, ocuparam os bancos em volta. Outras, assim como muitos homens, haviam desaparecido aos primeiros rufos do tambor.
a plaza ficou como que deserta. Um grupo compacto rodeava o tambor; aquém, era o mundo externo, vazio e hostil. Somente na ruela escura que conduzia ao negrume do lago se viam alguns vultos erectos e silenciosos como fantasmas.
Sobre os degraus de uma porta, e com Juana a seus pés, Kate olhava fascinada para aqueles homens seminus iluminados pelo clarão dos archotes. Os seus corpos lisos e acobreados possuíam essa beleza índia um tanto assustadora. Os torsos magníficos, acetinados, desses entes silenciosos de cabeça um tanto pendida para a frente; os ombros largos, levemente descaídos pela inactividade da sua força; o tom quente e o brilho da pele; o peito vigoroso, tão viril e, no entanto, sem a dureza muscular dos homens brancos; as faces sombrias, impenetráveis, os bigodes pretos e as barbas ténues enquadrando o silêncio da boca fechada - tudo isto era impressionante, singular, despertava comoção.
Havia algo de reptilário na sua flexibilidade, qualquer coisa de terrível na sua mudez. Os troncos nus tinham a revesti-los uma sombra subtil, certa obscuridade misteriosa. Se fossem homens de raça branca seriam francamente musculados, com uma espécie de sinceridade no próprio físico. Aqueles não. A sua nudez só revelava a profundeza secreta da natureza, o eterno mistério.
Toda a gente se calara; intensificava-se o silêncio expectante, tornava-se tumular. Os homens de ombros nus mantinham-se imóveis, mergulhavam dentro de si mesmos e escutavam com os ouvidos do sangue. Sob as calças brancas atadas nos tornozelos, os pés metidos em Imaraches eram quase negros ao clarão dos archotes. Que pretendiam essas criaturas suaves e recolhidas e cuja importância, no entanto, era tão ponderosa, tão aliciante?
Kate sentia-se ao mesmo tempo atraída e repelida. Quase a fascinava o estranho poder magnético dos homens em círculo. Era como o núcleo duma vida nova, como uma jóia negra brilhando na escuridão. Mas parecia-lhe repulsiva aquela estranha opressão, esse afundar do espírito na terra, esse lento escoar duma água turva; repulsiva a densa e muda oposição ao rumo espiritual da gente branca. Contudo, ali e só ali a vida parecia arder com chama intensa.
No resto do mundo, Kate bem o sabia, tudo era vacuidade, esterilidade. Aqueles vultos avermelhados pelo clarão dos archotes representavam uma humanidade nova.
Kate sentia tudo isto, mas preferia manter-se à parte, evitar o contacto directo.
O porta-bandeira ergueu a cabeça como se fosse falar, mas não disse nada. Velho de barba e bigodes brancos a emoldurar-lhe os lábios escuros e carnudos, tinha a cara sulcada de rugas, como todas as pessoas idosas desse país. No entanto, os cabelos eram bastos, e o corpo ainda revelava força e virilidade. ! Os seus olhos negros olhavam sem ver. Talvez fosse realmente
cego; ou seria profunda abstracção que lhe dava aquele aspecto. Começou então a falar, numa voz lenta, clara e distante que parecia ser o eco dos últimos sons do tambor. - Homens, escutai-me! E vós. mulheres, escutai-me também. Há muito tempo, na calma da noite, o lago dirigiu um apelo aos seres humanos. Mas não existiam. Só os peixes pequeninos nadavam ao longo das margens, procurando fosse o que fosse, e os maiores saltavam fora de água para olhar em volta. Mas não existiam seres humanos.
Então um dos deuses de face velada saiu da água e subiu ao monte. (E o velho indicou a colina invisível nas trevas da noite. ao fundo da aldeia. Contemplou o Sol e viu através dele outro sol negro, o que criou o mundo e o absorverá de novo como uma gota de água. Disse: - Chegou o momento? - E quatro braços saíram do sol e da sua sombra surgiram homens. Viram os quatro braços no céu e principiaram a andar.
O deus do cimo da colina olhou para as montanhas e para as planícies e viu os homens anelantes, sequiosos. E disse-lhes: Vinde cá. Tendes aqui a minha água dulcificadora.
Correram como cães, de língua pendente, e ajoelharam-se na margem do lago. O deus do cimo da colina ouviu-os ofegar, de tanta água que beberam, e perguntou-lhes: - Não bebestes de mais? Ou tendes ainda os ossos secos?
í Os homens fizeram casas à borda do lago, e aquele que estava na colina, e que era um deus, ensinou-os a semear milho, feijão, e a construir barcos. Mas preveniu-os: - Nenhum barco vos salvará quando o sol negro deixar de estender os braços no céu.
O deus da colina disse ainda: - Sou Quetzalcoatl, aquele que vos humedece os lábios secos. Encho-vos o peito com um sopro do além-sol. Sou o vento que sai em turbilhão do centro da terra, sou o zéfiro que se enrosca como cobra em volta dos vossos pés, pernas e coxas, erguendo a cabeça da serpente do vosso corpo, onde reside a força humana. Tomai cuidado quando a serpente do corpo erguer a cabeça. Sou eu, Quetzalcoatl, que vos elevo, que vos elevo até ao sol das trevas, derradeira morada dos homens. Exceptuando o sol negro e os quatro braços nos céus, éreis ossos, e as estrelas eram ossos, e a Lua uma concha vazia numa praia seca, e o Sol amarelo uma taça vazia, semelhante ao crânio dum lobo. Portanto, tende cautela! Sem mim nada sois. Assim como eu nada sou sem o sol que está atrás do sol. Quando o sol de ouro estiver no zénite, dizei: Quetzalcoatl levante a sua mão e me abrigue dos raios, senão perecerei e a terra secará. Porque na palma da minha mão está a água da vida, e nas costas está a sombra da morte. Quando os homens me esquecem volto a mão e aparece a sombra da morte. Mas os homens esqueceram-me. Os seus ossos eram húmidos, o seu coração fraco. Quando a serpente do corpo erguia a cabeça, diziam assim: É a serpente amansada que nos obedece. E quando suportavam o ardor do sol, falavam nestes termos: O sol está zangado, quer absorver-nos; ofereçamos-lhe sangue de vítimas.
Os braços negros desapareceram do céu, e Quetzalcoatl envelhecia e lamentava-se, velando a face para a esconder dos homens.
Lamentava-se e dizia: - Deixai-me recolher à minha morada. Estou velho, quase sou apenas ossos. Os ossos triunfam em mim, o meu coração é uma cabaça vazia. Sinto-me cansado do México.
Então bradou ao sol negro, aquele de quem nunca se pronuncia o nome: - Estou um esqueleto, os Mexicanos renegam-me, de nada sirvo. Levai-me.
O sol negro estendeu o braço e elevou Quetzalcoatl até ao céu. Depois olhou em volta e viu a estrela de alva brilhando sem receio entre a vinda do sol dourado e a fuga da escuridão. E aquele, cujo nome jamais foi pronunciado, perguntou: - Quem és tu, guarda cintilante? E a estrela respondeu: - Outrora, no México, fui Quetzalcoatl. Agora contemplo as costas do sol amarelo e a face invisível da Lua, brilho entre o dia e a noite, esperando pela renovação.
E aquele cujo nome jamais foi pronunciado declarou: - Chegou a hora.
Assim o decretou, e eu a vós repito, homens e mulheres: Chegou a hora. Os que nos deixaram regressam, os que vieram retiram-se. Desejai a uns boas-vindas e dizei adeus aos outros.
Boas-vindas! Adeus!
O velho terminou o discurso com um grito meio sufocado, tal se na verdade se dirigisse aos deuses.
- Bienvenido! Bienvenido! Adiós! Adiós!
A própria Juana, sentada aos pés de Kate, bradava sem saber o que dizia:
- Bienvenido! Adiós! Adiós... n!
O último adios arrastou-se para rematar com o costumado "n". Começou o tambor a soar num ritmo insistente, e a flauta fez ouvir o seu grito estranho e longínquo. Tocavam a melodia singular que a irlandesa ouvira a princípio.
Então um dos homens do círculo entoou o hino. Cantava à maneira dos antigos Peles-Vermelhas, em voz contida mas intensa, como se se dirigisse à própria alma e não ao mundo exterior; como se cantasse na outra dimensão da existência dos homens, onde eles se encontram na extensão infinita que há dentro do eixo do nosso espaço rotativo. Espaço que, como o mundo, não pode deixar de se mover. E, tal o mundo, tem um eixo. O eixo do nosso espaço terreno, quando lá se penetra, é uma vastidão onde até as árvores vão e vêm, e a alma está à vontade no seu sonho, nobre e irrefutável.
O pulsar do tambor e o cântico íntimo arrastavam a alma para o centro do tempo, que é mais velho do que a própria velhice. O cantor começou por uma nota alta que repetiu demoradamente, fazendo-a percorrer ritmos subtis, na aparência desconexos, que o tambor acompanhava, e depois fê-la tremer, palpitar e dar um balanço brusco. Por muito tempo foi difícil distinguir qualquer melodia: dir-se-ia o uivo distante e esmaecido dum lobo. Era na verdade a música dos índios antigos.
Não se lhe encontrava harmonia, não se lhe reconhecia emoção. Apenas música, apenas um grito na noite, perfeito e longínquo. Mas ia direito à alma, à alma eterna e antiga, aí onde só pode a família humana encontrar-se em imediato contacto.
Kate logo o sentiu, e de forma fatídica. Seria inútil resistir, inútil fazer qualquer esforço. O som ia até ao âmago do ser, em que não existe esperança nem dor, mas só a paixão, que semelha uma ave no seu ninho, de asas dobradas, e a fé uma árvore de sombra.
Como o destino, como a sorte. A fé é a própria Árvore da Vida, inevitável, e os pomos estão ao nosso alcance: pomos dos olhos
- as pupilas -, pomos do queixo, do coração, dos seios, do ventre, dos quadris, dos joelhos, dos tornozelos. Que importa a mudança, a evolução? Somos a Árvore com os seus frutos, para todo o sempre. Verbum Sat.
Emudeceu o cantor, mas o tambor prosseguiu, fazendo vibrar subtilmente a membrana sensível da noite. Então, no círculo, de novo se elevou uma voz, depois outra, e outra, como pássaros voando de uma árvore. Elevaram-se as vozes - forte, pesado, intenso arrebatamento de vozes másculas, semelhante a um bando de aves negras subindo e descendo no ar, ao mesmo tempo. E cada ave preta dir-se-ia erguer-se do coração de um homem, do bosque secreto dos peitos masculinos.
Uma a uma, partiram também vozes da multidão, qual nova revoada de pássaros. A letra não tinha importância. Versos, palavras, simples sons - o canto era sempre o mesmo: violenta rajada saindo das cavernas do peito, das profundezas da alma eterna. Kate estava excessivamente intimidada para poder cantar, demasiadamente vencida pelas desilusões; mas sentia que o seu espírito fazia eco, seguindo o clamor do povo, tal a ave poliglota que imita as outras à noite. Contra sua vontade, Juana cantava também, num tom monótono, proferindo palavras à toa, inconsciente.
Os homens seminus começaram a agarrar as mantas: mantas brancas orladas de azul, com barras castanhas e franjas escuras. Da turba, levantou-se alguém, que se dirigiu para o lago. Voltou depois com um feixe de lenha trazido por um barco. Acendeu então uma fogueira pequena. Outro indivíduo se destacou para ir também buscar lenha: colocou-a diante do tambor, dentro do círculo, e fê-la crepitar. Por sua vez, uma mulher, descalça e de larga saia de algodão, principiou a arranjar a sua fogueira no meio das mulheres.
O ar estava bronzeado pelo clarão do lume; alastrava-se um fumo odorífero, como de incenso. Subiu e desceu o cântico, depois esmoreceu. Débil ecoou o som do tambor, e morreu por seu turno. No silêncio absoluto podia-se sentir a presença imóvel do lago sombrio.
Mais uma vez pulsou, vigoroso, o tambor. Um dos homens que estavam sentados, com o seu poncho branco debruado de azul e preto, ergueu-se de repente e, tirando as sandálias, começou a esboçar passos de dança, sem fazer o menor ruído. Dançava pesadamente, de pés nus, como se fosse enterrar-se pela terra abaixo. Sozinho, oscilava num ritmo estranho, calcando o chão, erguendo ora um ora outro dos joelhos de encontro às franjas escuras do poncho. Outro homem, encaminhando-se para o centro, pôs aí os huaraches, perto do fogo, e iniciou o seu bailado, enquanto o do tambor entoava um cântico selvático, tenebroso. Os restantes comparsas despojaram-se dos ponchos e, num instante, estavam de pé, e de torsos nus, descalços, repetiam aqueles passos que pareciam de ave. A luz da fogueira batia-lhes no peito, nas faces sombrias e extáticas.
"O que dorme acordará! O que dorme acordará! O que segue o trilho da serpente na poeira chegará ao seu posto; pelo trilho do pó chegará ao seu destino e revestir-se-á com a pele da serpente: revestir-se-á com a pele da serpente da terra, que é a criadora da pedra, que é criadora da pedra e do vigamento da terra; criadora do oiro, do ferro, da madeira da terra: dos ossos do pai da terra, da serpente do mundo, do coração do mundo que bate como uma cobra bate no pó, nos seus movimentos sobre a terra; do coração do mundo. Quem dorme despertará! Quem dorme despertará! Quem dorme despertará no caminho da serpente do pó da terra, da pedra da terra, do osso da terra."
O cântico parecia tomar novos voos audaciosos depois de baixar e sussurrar num último desmaio. Eram como ondas que se erguem do invisível, que tomam forma, alando-se, e desaparecem num rumor de aniquilamento. E os dançarinos, após terem girado em círculo, numa lenta e profunda absorção, iam um por um tomar o seu lugar, calcando o pó com os pés descalços, vagarosamente, e vagarosamente começavam a descrever uma ronda lenta em torno do fogo, sempre com os mesmos passos que se diria afundarem-se na terra. E o tambor ressoava numa palpitação sempre igual, como a de um coração humano. E o cântico soou e diminuiu, mais baixo e mais baixo numa espécie de extinção, para ainda uma vez tornar a levantar-se.
Até que os camponeses moços acharam impossível permanecer como estavam. Tiraram as sandálias, o chapéu, as mantas, e, timidamente, com pés inexperientes que no entanto conheciam as velhas pisadas, se puseram atrás dos outros bailadores e dançaram sem sair do seu lugar. Depressa o círculo revoluteante estabeleceu outro círculo de homens que envolveu o primeiro.
Então, de súbito, um dos dançarinos de tronco nu saiu do círculo interior e, penetrando no segundo, fê-lo girar em sentido inverso ao daquele. Deste modo houve duas rodas em movimento, uma dentro da outra, rodopiando em direcções opostas. Assim andaram, com o tambor e o canto, girando como rodas de sombra em volta do lume. Mas o lume extinguiu-se, e o tambor parou de repente, e os homens num instante se dispersaram, retrocedendo para os seus postos.
Houve silêncio, depois ouviu-se um murmúrio de vozes e risos. Kate muitas vezes pensara que o riso dos peóns se assemelhava a uma queixa; mas agora ele saltava como faúlhas invisíveis, bruscamente, da cinza das conversas.
Todos esperavam, e contudo ninguém se movia - até que o tambor vibrou de novo, como um sinal. Continuaram, porém, a tagarelar mas escutando, qual se possuíssem uma segunda consciência. Levantou-se um homem, desfez-se da manta e deitou lenha na fogueira central. Em seguida atravessou o grupo dos homens sentados e dirigiu-se ao das mulheres, que se apinhavam com as saias desdobradas. Esperou, sorrindo com ar abstracto, e logo se pôs de pé uma rapariga e se aproximou dele, apertando com a mão direita o xaile enrolado em torno da cabeça baixa. Estendendo a mão esquerda, pegou timidamente na do homem, que parecia inerte. Sorriu este e conduziu-a ao centro da roda, através do grupo dos que estavam sentados. Ela seguia de cabeça inclinada, escondendo o rosto pudibundo. Lado a lado, começaram a dançar, mal roçando as mãos e formando o primeiro pequenino segmento do círculo interior estacionário.
Ei-los agora todos, em pé, à espera de serem escolhidos. Rápidas, as mulheres, ocultando a testa no xaile, insinuavam-se junto deles e tomavam a mão do eleito. Dentro de pouco tempo já todos tinham dama. Fechara-se o círculo interior, com os homens e as mulheres aos pares, de mão dada.
- Venha, niña, venha! - disse Juana, fitando Kate com os seus olhos negros e brilhantes.
- Tenho medo - respondeu a irlandesa. E falava verdade.
Um dos de tronco nu atravessara a rua, afastando-se da multidão e detivera-se próximo da porta onde se achava Kate, que se calou e desviou a vista. E ficou esperando.
- Olhe, niña, um senhor que a procura. Venha, niña, venha!
A voz da criada descera de tom, capciosa, com esse apelo mágico das mulheres do povo. Os olhos pretos continuavam a cintilar-lhe estranhamente, fitos no rosto da patroa. Kate, quase hipnotizada, avançou em passos lentos e indecisos para o indivíduo que se mantinha à espera.
- Quer, realmente? - disse ela em inglês, bastante atrapalhada. E, com os seus dedos, tocou nos dedos dele.
Quase com indiferença, num gesto frouxo, a mão quente e máscula segurou os dedos de Kate e levou-a para a roda. Ela baixou a cabeça e desejou poder velar a face. No seu vestido branco e chapéu de palha verde, sentiu-se outra vez virgem, virgem juvenil. Aqueles homens concediam-lhe o dom de reencontrar a mocidade.
Acanhada, receosa, Kate procurou seguir a dança; mas escapava-lhe o ritmo, e os sapatos rígidos não a ajudavam. Movia-se confusamente.
Mas o seu par pegava-lhe na mão, embora com moleza, e oscilava, lento, o corpo todo, como um pêndulo de relógio. Dir-se-ia não fazer caso dela; contudo, segurava-lhe os dedos, de leve, numa pressão suavíssima.
Juana descartara-se dos sapatos e das meias. No rosto como uma máscara de lava, enrugado, escuro, as pupilas ardiam com a eterna chama da feminilidade, sombria e inextinguível. E já, com os pés, marcava o compasso da dança.
"Assim como o pássaro do sol fecunda a terra à alvorada tal uma fêmea morena sob os seus pés, com as dobras do ventre inclinadas aos pomos da geração, com os ovos de oiro, com os ovos que escondem o globo do sol nas águas do céu, na concha da terra que é o alvo do fogo do sangue, pisa tu também a terra e a terra conceberá qual a fêmea sob os pés do pássaro do sol. Pisa a terra, pisa a terra agachada e de asas encolhidas..."
A roda começou a girar e Kate foi-se movendo devagar entre dois homens silenciosos e absortos, cujos braços tocavam os seus. Um segurava-lhe os dedos, frouxa e brandamente, mas com transcendente afinidade. E o canto selvático subiu de novo como uma ave, e o tambor alterou o ritmo de modo incompreensível.
A outra roda era composta só de homens; Kate tinha a impressão de sentir nas costas o fulgor sombrio daqueles olhares. Os indivíduos já se não distinguiam, formavam como que uma única massa, em que ela própria se confundia.
Todos dançavam da mesma maneira, de cabeça baixa e olhar ausente, os homens absorvidos na sua virilidade, as mulheres na sua feminilidade. Somente o sexo prevalecia na sua mais alta concepção. Mar à superfície do globo movendo-se por cima dum mar nas entranhas da terra; águia evolucionando em silêncio sobre a própria sombra.
Kate sentia-se fundir nas águas revolutas de uma vida nova. Deixara de ser ela mesma para fazer parte de um todo, os seus desejos abismavam-se no mar do desejo colectivo. E assim o homem cujos dedos roçavam nos dela se engolfava no oceano de homens.
Lento mover de águas sobre águas, sem vestígio de espuma. Só a pura e deslizante conjunção.
Como era estranho ver-se submergida pelo desejo para além do próprio desejo, sentir-se integrada num corpo imenso para além do individualismo do corpo!
Não conhecia a cara do homem que lhe segurava nos dedos. Os seus olhos haviam cegado, e o rosto dele era um céu tenebroso. Mas do toque dos seus dedos nascia uma estrela, a estrela que os unia.
Os pés de Kate principiavam a marcar o compasso. Ela já sabia como deixar-se levar, abandonar a essência da sua vida, permitindo que lhe fugisse devagar, num escoamento rítmico, para o corpo negro da terra. Erecta, forte como o próprio esteio da vida, cedia no entanto a Seiva dessa força e fazia-a fluir para as raízes da terra.
Perdera a noção do tempo. A dança, porém, acalmava-se pouco a pouco, embora o ritmo permanecesse sempre o mesmo até ao fim.
Calaram-se as vozes, só o tambor continuou. Este, de súbito, produziu um rufo breve, e o silêncio foi geral. Logo as mãos se desataram, o baile parou de todo. O homem que a acompanhava sorriu-lhe e desapareceu. Jamais o reconheceria. Havia, no entanto, de lhe sentir a presença.
As mulheres afastaram-se, aconchegando os ombros com o xaile. Os homens dissimularam-se nas mantas. E Kate voltou à escuridão do lago.
- Já se vai embora, Niña? - perguntou Juana num tom que revelava certo descoroçoamento.
- Tenho de ir sem demora - replicou a patroa, estugando o passo. E a toda a pressa se encaminhou para as trevas do lago, com Juana na sua peugada, de sapatos e meias na mão.
Kate desejava reentrar em casa, com o seu novo segredo, o estranho segredo da feminilidade mais alta, a que ainda se não habituara. Precisava abandonar-se inteiramente àquele mistério.
Quase corria através do atalho interminável, na margem pedregosa e escura, apesar de a claridade das estrelas ser suficiente para revelar a forma sombria dos barcos que sulcavam a água mansa e turva. Noite eterna, sem horas! Kate não queria consultar o relógio, e até o virou no pulso a fim de não ver os ponteiros luminosos. Que o tempo a não governasse!
Ao adormecer, ouvia ainda o rufar do tambor, como um pulso que batesse nas entranhas da terra.

VIII
À entrada da casa de Kate elevava-se uma árvore enorme chamada cuenta por causa dos seus frutos pequeninos, redondos, duros e perfeitos de forma, que os indígenas apanhavam para fazer colares e, em especial, padre-nossos dos rosários. À noite, a rua ficava imersa em escuridão e só a queda das contas perturbava o silêncio.
Essas noites, que de começo pareciam calmas, amigáveis, encheram-se subitamente de terrores. Renascia o medo. Constituíra-se uma quadrilha de ladrões numa das aldeias do lago, cujos habitantes tinham má fama. Essa quadrilha, invisível durante o dia, compunha-se de pescadores e jornaleiros que, depois do anoitecer, montavam nos seus cavalos e iam assaltar casas solitárias ou mal guardadas.
O facto de saber que um bando de malfeitores rondava naquela região era o bastante para incitar os ladrões isolados a agir também. Fosse o que fosse que acontecesse, seria atribuído aos bandidos. Deste modo, mais de um indivíduo considerado honesto se deixava dominar pela cobiça e se escapulia à socapa armado de faca ou de pistola para se aproveitar igualmente da escuridão.
Kate sentia o terror condensar-se no silêncio da noite mexicana; silêncio tenebroso, tão profundo que se tornava sobressaltante, o som duma conta a cair. Deitada na cama, Kate escutava o mínimo rumor nas trevas densas. Ouviam-se ao longe apitos de polícia, daí a pouco passava a patrulha a cavalo. Mas, como acontece em quase toda a parte, a polícia nunca aparecia quando era precisa.
Aproximava-se a estação das chuvas, e o vento nocturno, vindo do lago, fazia sussurrar as árvores e abalava as portas desconjuntadas da casa. Os criados encafuavam-se nas suas dependências. No México, uma pequena distância isola-nos completamente desde que a noite desce; e ficamos perdidos na escuridão envolvente.
De manhã, Juana vinha da praça, com os seus olhos como gotas de tinta e, no rosto bronzeado, a expressão cansada dos entes submetidos ao medo. Logo de entrada, e na sua linguagem pouco compreensível, embrenhava-se na história de uma casa assaltada e de mulheres assassinadas. E a dona do hotel mandava dizer a Kate que não era prudente dormir sozinha em casa. Seria melhor passar a noite no hotel.
Toda a aldeia se encontrava sob estranha apreensão. Pairava no ar da noite um terror pânico. Renascia a confiança à claridade azul da manhã, mas ao anoitecer o sangue parecia coagular-se, a atmosfera tornava-se densa.
O medo, é claro, comunicava-se duns aos outros. Se Juana e a respectiva família não andassem cheias de pavor, Kate nunca sentiria medo, disso estava ela certa.
Ali não havia homens. Juana tinha dois filhos, Jesus, de vinte anos, e Ezequiel, de dezassete. Mas Jesus era quem tomava conta do motor da luz eléctrica, e tanto ele como Ezequiel dormiam na casa das máquinas. De modo que Juana ficava só com as duas filhas, Concha e Maria, no cubículo ao fundo da residência de Kate.
Antes, a plaza mantinha-se animada até às dez da noite, com gente a conversar ou a ouvir os moços tocadores de viola e o homem dos sorvetes a apregoar de contínuo: Nieve! Nieve!
Agora o largo esvaziava-se às nove horas. E havia ordem de prender quem fosse encontrado na rua depois das dez.
Kate corria para casa e trancava as portas. Não é fácil suportar o pânico de um povo meio bárbaro. O medo espalha-se no ar, envolve-nos, paralisa-nos a alma com a sensação de desgraça iminente, dum horror atroz.
Às dez horas cortavam a luz eléctrica, tudo ficava às escuras, e, deitada na cama, Kate sentia o sopro maléfico espraiando-se na atmosfera em vagas sucessivas.
Acudiam-lhe à memória todas as histórias arrepiantes passadas no país. E de novo pensava nessa gente de aspecto pacífico e sorriso doce. Mas o próprio Humboldt dissera a respeito dos mexicanos que nunca encontrara povo de sorriso tão suave e olhar tão feroz. Não que os olhos revelassem propriamente ferocidade; contudo, o seu negrume iluminava-se dum clarão frio, de cintilações de punhal nas trevas da noite, ao mesmo tempo que neles despertava a sede de homicídio.
Seres incompletos, não de todo criados, encontravam-se à mercê das velhas influências que jaziam como sedimento no fundo de cada um deles. Enquanto estavam calmos, eram simpáticos, bondosos, simples. Mas, se alguma coisa lhes revolvia as profundezas, logo se erguiam as nuvens tenebrosas de ódio e de morte.
Adivinhava-se-lhes na alma um ressentimento constante, como que uma ferida jamais cicatrizada. O ressentimento dos entes incapazes de conquistar sozinhos uma integridade individual fora do caos de paixões e forças mortíferas. Eram apanhados na engrenagem duma ansiedade ancestral como nos anéis duma serpente negra que lhes oprimisse o coração. Onerosa carga dum passado invencível.
E debaixo desse peso vivem e morrem, sem grande pena de morrer. Enredados nos elementos, não conseguem desenvencilhar-se. Queimados pelo sol excessivamente forte, sobrecarregados pela electricidade da atmosfera mexicana e atormentados pela erupção de vulcões que lhes rebentavam aos pés. Tremendos elementos do continente americano que tornam forte o corpo dos homens mas que esmagam a alma e impedem a sua elevação. E, se nalgum ela se eleva, os elementos maléficos a pouco e pouco a destroem, até que o homem se decompõe em ideias e actividades maquinais, num corpo cheio de energia mecânica mas de espírito morto e putrefacto.
Assim, esses seres incapazes de dominar os elementos, submetidos às forças do sol, da electricidade e das erupções vulcânicas, estão sujeitos a acessos de rancor e de ódio ardente à própria vida. Então, nada melhor do que enterrar uma faca num corpo vivo. Nenhuma volúpia iguala essa de cravar a lâmina e ver jorrar o sangue.
É a suprema satisfação duma raça presa a um passado de que não consegue libertar-se. Raça que não conhece Salvador nem Redenção. Quais mineiros enterrados vivos na derrocada duma mina, nações inteiras ficam sepultadas sob os escombros do passado - até que um salvador lhes mostre a saída para o sol.
Deitada na cama, Kate reflectia profundamente na'escuridão da noite, de ouvido atento aos menores ruídos que a enchiam de terror. Não podia refrear o coração; dir-se-ia que lho arrancavam, e o sofrimento era atroz. Pela primeira vez sentia medo físico, o sangue gelava-se-lhe nas veias.
Na Inglaterra, na Irlanda, durante a guerra e a revolução, conhecera o medo espiritual. O medo horrível da ralé; e durante a guerra as nações eram quase tudo ralé. O terror da canalha que pretendia acabar com a liberdade de pensamento em cada homem e em cada mulher. Era a ambição fria e colectiva de milhões de criaturas: aniquilar o espírito daqueles que resistiam e assim poderem iniciar a descida geral para as camadas interiores onde existe o culto do ouro e a volúpia de matar. A canalha.
Nesse tempo, Kate conhecera a agonia do medo social, como se a democracia fosse um polvo enorme que enlaçasse com os tentáculos quem lhe resistisse.
Agora o seu medo era doutra espécie. Sentia o coração doer-lhe, como se o arrancassem, o sangue parecia fugir-lhe das veias...
Dormitava, e acordou em sobressalto a um leve rumor. Sentou-se na cama. As portas que davam para a varanda tinham postigos, e estes encontravam-se escancarados a fim de arejar o quarto. Nessa abertura Kate distinguiu, recortando-se no céu escuro, uma forma negra semelhante a um gato que rastejasse no rebordo da janela.
- Que é? - perguntou ela maquinalmente.
No mesmo instante, aquilo moveu-se, deslizou para fora, e Kate percebeu que era o braço de um homem que tentava abrir o ferrolho interior da porta. Por uns segundos ficou paralisada, pronta a gritar. Então, como não pressentisse mais nada, inclinou-se e acendeu uma vela.
Era uma verdadeira agonia aquele terror pânico. Imobilizava-a, deslocava-lhe o coração... Ficou prostrada, no angustiante pavor nocturno. A vela projectava uma claridade lúgubre. Ouvia-se o ribombo longínquo de trovões. A noite era atroz, atroz, e o México horroroso.
Kate não conseguia dominar-se. "Estou à mercê disto", pensava. Sensação terrível, ver-se subjugada pelo medo.
"Que hei-de fazer?" perguntou a si mesma, reunindo coragem. Sabia que estava só.
Durante muito tempo sentiu-se incapaz de se mover. Então disse consigo, para se animar: "Creio no mal e não devo crer. O pânico e o assassínio são coisas que só sucedem quando perdemos o domínio de nós próprios. Não acredito verdadeiramente no mal. Acredito, sim, na existência dum poder supremo que nos comunica a sua força desde que tenhamos fé nele. O homem que queria entrar aqui não possuía essa força. Tentava ser maléfico, mas submeter-se-ia ao poder dominador."
Deste modo se ia tranquilizando, até que teve a coragem de se levantar e fechar os postigos. Em seguida, percorreu os quartos a fim de verificar se tudo estava trancado. E sentiu certo alívio ao compreender que temia tanto os escorpiões como a horrível sensação de pavor.
Depois de observar o fecho das cinco portas e das cinco janelas da ala de quartos comunicantes, Kate ficou encerrada nas trevas com a sua vela. Para o outro lado da casa, sala de jantar e cozinha, tinha de ir pela varanda.
Mais serena, embora ainda com o coração atormentado pelo medo, Kate reflectia. "Joachim afirmava que o mal provém de regressarmos aos costumes primitivos. É o que provoca roubos e assassínios. O tambor da noite de sábado evocava o ritmo da antiguidade e aquela dança selvagem era a velha forma de expressão. Regresso consciente à barbárie... Talvez a origem do mal..."
Mas logo intervinha o seu desejo de crer.
"Não! Temos de nos agarrar aos elos antigos, encontrar o impulso que nos relacionará de novo com o mistério do cosmos. Don Ramon tem razão. Ele deve ser um grande homem. Julguei que já não existissem grandes homens. Só grandes financeiros, grandes artistas, mas não grandes homens. Don Ramon deve ser um ente superior."
E Kate sentiu-se apaziguada a esta ideia.
Mas, logo que apagou a vela, surgiram clarões muito vivos através das fendas do postigo. Ribombaram trovões clamorosos, que pareciam afundar-se-lhe no coração. Kate sentia-se como que esmagada, na consciência duma tortura que a paralisou até de manhã e lhe deu a impressão de ser, ela própria, um destroço de naufrágio.
Por fim apareceu Juana, também com o ar de desenterrada, para lhe fazer a pergunta tradicional:
- Como passou a noite, Niña?
- Muito mal - respondeu Kate. E contou-lhe a história do gato preto e do braço do homem.
- Mire! - replicou Juana, sufocando a voz. - A inocentinha vai ser assassinada na cama. Não, niña, tem de passar a dormir no hotel. Não, Niña, não pode continuar com o postigo aberto. É impossível. Está a ver agora como é necessário que durma no hotel? Assim fazia a outra senhora.
- Não quero - declarou a patroa.
- Não quer, Niña? Ah, entonces, entonces... niña, vou dizer ao Ezequiel que venha dormir na soleira da porta, armado de revólver. Ele tem um revólver, pode ficar do lado de fora da porta, e a senhora já deixava a sua janela aberta, para lhe refrescar o quarto. Pobres de nós, mulheres, precisamos de um homem que tenha revólver. Não devemos estar sozinhas, toda a noite. Temos medo, e as crianças também têm medo. Imagine que um ladrão tenta arrombar o ferrolho da porta! Imagine! Não, niña, vai-se falar ao Ezequiel hoje mesmo, antes do meio-dia.
Ao meio-dia, Ezequiel compareceu, muito seguro de si. Era um rapaz, meio selvagem, mas dava largas passadas, empertigado e orgulhoso. A voz, na mudança própria da puberdade, tinha uma entoação estranha.
Ficou de pé, acanhado, ouvindo o que lhe recomendavam. Depois olhou para Kate com as pupilas negras e brilhantes, convicto do seu papel de salvador.
- Sim, sim - declarou. - Durmo aqui no corredor. Não tenha medo. Trago a pistola.
Saiu, e voltou com a arma, que era de cano comprido.
- Tem cinco cargas - participou, exibindo o revólver. - Se abrir a porta de noite, previna-me, porque, se eu vir mexer qualquer coisa, disparo os cinco tiros. Pum!, pum!
Pelo brilho do olhar do rapaz, Kate compreendeu quanto ele gostaria de fazer fogo sobre o que se movesse nas trevas. Não o preocupava a hipótese de ser alvejado por seu turno.
- niña - disse Juana - se voltar tarde para casa, depois de as luzes estarem apagadas, não se esqueça de chamar pelo Ezequiel. Senão... pum!, pum! Nunca se sabe quem pode ser a vítima.
Ezequiel dormiu sobre uma esteira na varanda de tijolos, defronte da porta de Kate. Enrolou-se num cobertor e conservou o revólver à mão. A senhora podia ficar de janela aberta. Na primeira noite, esteve muito tempo acordada por causa do ressonar estrondoso do rapaz. Nunca ela ouvira semelhante coisa! Que pulmões que ele devia ter! Dir-se-ia um som que viesse de outro mundo estranho e bárbaro. O barulho manteve-a desperta, mas havia naquilo um não sei quê de agradável. Algo semelhante a uma força bravia.

IX
Kate depressa se afeiçoou à negligente Juana e respectivas filhas. Concha tinha catorze anos. Era uma rapariga selvagem, entroncada, de cabeleira hirsuta que ela coçava constantemente. Maria, de onze anos, parecia um passarito, com olhos enormes que se diria absorverem toda a luz à sua volta.
Juana confessava que Jesus era filho doutro pai, mas o aspecto dos restantes fazia suspeitar ter cada um deles progenitor diferente. Toda a família, porém, mostrava igual despreocupação perante a vida. Viviam o dia-a-dia sem se importarem com o passado, nem com o presente, nem com o futuro. O dinheiro não lhes interessava. Assim que o recebiam gastavam-no, e logo o esqueciam.
Sem aspirações, sem objectivos, levavam existência absolutamente terre à terre no seu país sombrio e vulcânico. Não eram animais porque homens, mulheres e crianças não podem ser animais. Tal não nos foi concedido. Vai, e não voltes para trás - diz o Criador. Quando o homem tenta brutalmente tornar ao primeiro estado da evolução, fá-lo com espírito de crueldade.
Por isso os olhos negros daquela família revelavam certo medo, espanto e sofrimento. Angústia das criaturas humanas sem força para desenvolver as possibilidades do seu ser; incapazes de arrancar do caos a própria alma e indiferentes a qualquer outra vitória.
Também os brancos perdem a alma a pouco e pouco; mas conquistaram os mundos inferiores do metal e da energia e, graças às máquinas, lançam-se em corrida louca de roda da sua vacuidade.
Naquela família Kate encontrava algo de patético e de repugnante.
Desde que haviam aceitado niña como patroa, Juana e as filhas mostravam-se profundamente honestas. Honestas, a pontos de não tirarem uma única ameixa do fruteiro. E solícitas no serviço, de uma solicitude quase excessiva.
Viviam na sujidade, indiferentes ao ambiente. O chão era o seu caixote do lixo. Para ali arremessavam tudo o que consideravam inútil e ninguém se preocupava mais com isso. Pareciam 138
comprazer-se em viver no meio de pulgas e de trapos, de cascas de banana e caroços de manga. Um pedaço arrancado dum vestido - aí vai para o chão! Cabelos tirados do pente - chão com eles!
Kate não suportava aquilo. Afligia-a tamanha desordem, e o facto de ela se afligir divertiu imensamente a família mexicana. Mãe e filhas varreram então o pátio com uma vassoura de urze, até raspar a própria superfície da terra. Que engraçado, a niña preocupar-se com aquelas coisas!
Kate constituía para elas uma fonte de espanto e de divertimento. Não a consideravam pessoa de classe elevada. Era um ente meio incompreensível, meio espantoso.
Niña queria que o aquador lhe trouxesse todas as manhãs dois botes de água das nascentes térmicas para fazer abluções completas. Que esquisito! "Maria, diz ao aquador que corra a buscar água para a niña."
Quase se melindravam com o facto de ela se fechar no quarto para tomar banho. Era uma espécie de deusa, provocava-lhes alegria e admiração; mas devia ser sempre acessível. Kate depressa descobriu que um deus sempre acessível aos seres humanos passa bocados pouco invejáveis.
Não, aquilo não era nenhuma sinecura. De manhã começava o barulho da vassoura de urze lá fora. Kate deixava-se estar na cama, de portas fechadas e postigos abertos. Alvoroço no pátio. Alguém queria vender ovos. Onde está Niña? A dormir. O visitante não se retira e as conversas continuam.
O aquador! Ah, a água para o banho da niña. Está a dormir. "Não estou, não!" - grita Kate, enfiando o roupão e destrancando a porta. As pequenas entram com a tina, seguidas do aguadeiro com duas latas cheias de água quente. "Doze centavos, doze centavos para o aquador." No hay! Mais tarde, mais tarde. O homem vai-se embora, com a vara ao ombro. Kate fecha os postigos e começa a tomar banho.
- Niña!, Niña! - Que é?
- Quer ovos estrelados, quentes ou rancheros?
- Quentes.
- Café ou chocolate?
- Café.
- Ou prefere chá?
- Não, café.
O banho continua.
- Niña!
- Dize lá.
- Já não temos café. vou comprá-lo.
- Não é preciso. Tomarei chá.
- Não, niña, Eu vou. Espere por mim.
- Está bem, vai.
O primeiro almoço é na varanda. A mesa está posta, há pilhas de frutos, pão alvo e bolos.
- bom dia, niña. Como passou a noite? Maria, traze o café. vou meter os ovos na água. Oh, niña, eles não devem ficar cozidos... Meu Deus, que pés de Madona! Olhem, que bonitos!
E Juana inclina-se fascinada e, com o dedo escuro, toca nos pés acetinados de Kate metidos em leves sandálias seguras por uma única tira.
O dia tinha começado. Juana considera-se como inteiramente dedicada a Kate. Tão cedo quanto possível, expede as filhas para a escola. "Niña diz que é preciso ir para a escola. Não ouvem o que ela diz? Vamos, girem!"
No seu passo coxeante, Juana anda cá e lá na varanda, da cozinha para a mesa do almoço, transportando os pratos um por um. Depois, com grande espalhafato, começa a lavar a louça.
Manhã! O sol inunda o pátio, os cardeais e as folhas dilaceradas das bananeiras. Os pássaros voam em todos os sentidos com precipitação tropical. Na sombra densa das mangueiras passam índios vestidos de branco, semelhantes a espectros. Há um frémito de vida e, no entanto, o silêncio é opressivo. Os olhos deslumbram-se à claridade ofuscante, a alma sente-se oprimida.
Kate senta-se na varanda e finge coser. Surge um velho, segurando um ovo na mão, como qualquer símbolo. A patrona quereria comprá-lo por cinco centavos? Juana só dava quatro. De acordo? Onde está Juana?
Juana volta da praça com outras compras. O ovo! Quatro centavos! A conta das despesas. Entonces! Entonces! Luego! Luego. Ah, niña, no tengo memória.
Juana não sabia ler nem escrever. Todas as manhãs ia ao mercado, comprava uma porção de coisas de um ou dois centavos e todas as manhãs era preciso fazer contas. "Ah, onde é que nós íamos?
Não tenho memória nenhuma. Ora vejamos... Comprei três centavos de ocote... Quanto? Quanto soma agora, niña" Se faltava um centavo, ficava desolada e não falava noutra coisa. "Falta um centavo, niña? Sou estúpida, não sou? Mas eu dou-lhe um do meu dinheiro."
- Deixa lá, não penses mais nisso - dizia Kate.
- Mas eu quero pagar a diferença - insistia a mulher; e afastava-se, coxeando.
Uma hora depois elevava-se um grito no outro extremo da casa e Juana aparecia empunhando um ramo de salsa.
- Mire, niña! Compré perejil a un centavo. As contas estão certas agora?
- Estão - respondia Kate.
E a vida podia então retomar o seu curso. Existiam duas cozinhas: a anexa à sala de jantar, e a das criadas, numa espécie de barraca debaixo das bananeiras. Da varanda Kate via a abertura negra que fazia as vezes de janela na cozinha de Juana.
"Julgava Concha na escola!", disse Kate consigo mesma.
Mas não. No buraco escuro da janela distinguia-se o rosto moreno e a juba de Concha, espreitando para fora como um animal que saísse da toca, enquanto fazia as tortillas. Tortillas são uma espécie de filhos de milho. Preparam-nas batendo a massa na palma da mão até adquirir a lisura e leveza necessárias. Pouco depois do meio-dia via-se sair fumo pela janela: Concha lançava as tortillas cruas na frigideira de barro colocada sobre o lume.
Então Ezequiel aparecia, de manta sobre o ombro, chapéu de palha de grandes abas enroladas, pronto a comer as tortillas. No entanto, se trabalhava no campo, só chegava ao cair da noite. Sentava-se no degrau da porta e as mulheres serviam-no e iam-lhe buscar água como se ele fosse um rei. E ouvia-se-lhe a voz rouca dando ordens em tom calmo.
Porque, apesar do seu ar sereno e meigo, tomava uma entoação imperiosa desde que se dirigisse à mãe ou às irmãs. Prerrogativa de macho, que dava a Kate vontade de zombar do rapaz.
A hora da refeição era para Kate um dos seus tormentos. Apresentavam-lhe sopa muito quente e gordurosa, arroz apimentado, também gorduroso e fumegante, a inevitável carne nadando em gordura. Seguiam-se calabacitas, ou beringelas, salada, e o enorme cabaz de fruta. E, inundando tudo isso, o ardente sol tropical dos fins de Maio.
De tarde, o calor aumentava. Juana ia com as filhas lavar a loiça no lago. Agachadas sobre as pedras, agitavam na água cada prato, cada colher e cada garfo, e punham tudo a secar ao sol. Depois, enquanto Juana lavava uma ou duas rodilhas, as filhas banhavam-se no lago.
Jesus, o primogénito, costumava vir à tarde regar o jardim. Mas esse comia no hotel, onde prestava diversos serviços, trabalhando até às dez da noite por um salário de vinte e dois pesos, ou seja, onze dólares por mês. Usava camisa preta, e a cabeleira abundante tombava-lhe na testa baixa. Apesar da camisa fascista, possuía o espírito sarcástico e crítico dos socialistas, o espírito que vem do instinto de destruição.
Entre ele e a mãe existia pouca intimidade. Se Juana se encontrava em apuros, Jesus dava-lhe algum dinheiro mas, exceptuando o ténue laço de sangue que os unia, mostravam a maior indiferença um pelo outro.
Ezequiel tinha melhor tipo. Era esbelto, e tão direito que quase parecia arquear-se para trás. Tímido, arisco, orgulhoso, sentia-se mais responsável pela família. Não queria servir em hotéis. Não. Trabalhava nos campos, e tinha vaidade nisso: era labor de homem, não uma espécie de escravidão disfarçada.
Embora simples jornaleiro, não trabalhava para um patrão mas sim para a terra. E a terra, de certa maneira, era dele, pertencia-lhe...
Quando havia que fazer, chegava a ganhar um peso por dia. Se a terra estava seca, então procurava trabalho nas estradas, ainda que isso lhe não agradasse.
Mas nem sempre conseguia empregar-se. Durante dias, semanas, Ezequiel vagueava pelos arredores, sem nada que fazer. Quando o governo socialista dividiu as fazendas em lotes e os distribuiu pelos camponeses, coube-lhe um pedaço de terra fora da aldeia. O rapaz ia até lá e juntava pedras para construir um casebre. Cavava o chão tão profundamente quanto possível, mas não tinha amor a essa nesga de terreno que lhe viera parar às mãos de modo quase sobrenatural. Só lá ia de vez em quando, e sem nenhum entusiasmo.
Nos dias de trabalho regressava a casa por volta das seis horas e, cumprimentando Kate, timidamente, dirigia-se para o seu antro, onde, sentado no chão e de costas apoiadas à parede, dobrava tortillas umas sobre as outras e comia essa pasta elástica que tem o sabor de argamassa - pois o milho é primeiramente fervido com cal para largar a pele. Depois, dignava-se aceitar outra rima de fritos, que a irmã lhe apresentava numa folha de couve. Às vezes, Ezequiel tirava do tacho de barro um bocado de carne guisada que metia entre duas tortillas. Mas ingeria tudo rapidamente com uma espécie de indiferença. Aliás, os mexicanos parecem sempre indiferentes ao que comem.
Acabada a ceia, ia até à plaza, reunir-se aos homens. Havia ocasiões em que Kate, ao recolher a casa às nove horas, a encontrava quase deserta. Ezequiel estava no largo, Juana e Maria haviam desaparecido, e Concha dormia tal um molho de trapos no chão do pátio. Quando Kate a chamava, a pequena erguia a cabeça, espantada, entorpecida; depois, levantando-se como um cachorro, rastejava até ao portão.
Indiferença por tudo, até uns pelos outros. Juana lavava semanalmente uma camisa e um par de calças de algodão para cada um dos filhos, e aí terminavam os seus cuidados maternais. Nem se interessava averiguar qual o trabalho-de momento de Ezequiel. Sabia que arranjara emprego e isso lhe bastava. Contudo, de tempos a tempos, tinha ímpetos de amor materno, quando o rapaz era tratado injustamente, como às vezes acontecia. E, se o supunha doente, dominava-a um terror fatalista que só a abandonava depois de Kate intervir com qualquer remédio muito simples.
Semelhantes a animais. Mas os animais são perfeitos no seu isolamento e despreocupação; não se trata de indiferença, é que se bastam a si próprios. Ao passo que naquela família havia uma espécie de frustração, como se um torpor de aborrecimento a todos avassalasse.
As duas raparigas eram inseparáveis; andavam sempre atrás uma da outra. Concha arreliava de contínuo a inocente Maria de grandes olhos e esta debulhava-se em lágrimas. Ou então, no meio de uma fúria, ameaçavam-se com pedras, e Juana invectivava-as com súbita veemência, que logo se extinguia.
Estranha, aquela ferocidade repentina com que as pequenas arremessavam pedras, e não menos estranho, o esforço por não acertar. Kate notava a mesma coisa nos ataques selváticos que os garotos faziam uns aos outros nas margens do lago; atiravam calhaus com ar ameaçador, mas quase sempre falhavam o alvo.
Quase sempre, mas não sempre. Às vezes atingiam o adversário, que tombava como morto. Então os outros aproximavam-se, em silêncio temeroso, da vítima prostrada. De repente, o ferido erguia-se, com um esgar homicida no rosto, perseguindo o inimigo com uma pedra. E o inimigo fugia a sete pés.
Uma vontade perene de arreliar, de atormentar. O mesmo sucedia entre os Peles-Vermelhas. Mas o povo índio raramente recorria à violência, o que se não dava com os Mexicanos.
Kate, achando que devia fazer qualquer coisa pelas pequenas, dispensou-lhes uma hora por dia para lhes ensinar a ler, a redigir e a costurar. Maria queria aprender a ler; nisso mostrou boa vontade. Começaram bem, mas depressa a leve insistência de Kate em lhes chamar a atenção fez com que as alunas assumissem o tom de ironia peculiar ao continente americano. Ironia calma, invisível, malevolente, desejo de magoar.
- Não te debruces sobre mim, Concha. Põe-te direita.
- Porquê, niña Tem piolhos na cabeça?
A pergunta insolente era formulada com subtileza índia.
- Não! - respondia Kate subitamente irritada. - E agora vão-se embora! Afastem-se de mim.
E as pequenas retiravam-se, humilhadas.
Kate recebeu visitas de Guadalajara. Grande excitação! Mas enquanto tomava chá na varanda, Juana, Concha, Maria e Filipa, que era uma prima de dezasseis anos, sentaram-se no outro lado do pátio, bem à vista, com os belos cabelos soltos sobre os ombros, e, ostensivamente, puseram-se a catar piolhos umas às outras. Pareciam encantadas por exibirem a sua sordidez àqueles estrangeiros.
Kate desceu ao pátio.
- Se querem catar piolhos - disse em voz trémula de cólera - vão para onde ninguém as veja.
Atravessou um clarão de maldade os olhos negros de Juana, mas um instante depois, humilde e abjecta, a família retirava-se, de cabeleira ao vento, em direcção ao seu antro.
Juana comprazia-se em irritar Kate. Sentia assim uma espécie de poder sobre a Niña. É certo que temia um tanto essa irritação, mas era justamente o que desejava. De que servia uma niña que não lhe inspirasse algum receio?
Ah, raças escuras! Kate, como irlandesa, podia entrever um pouco do mistério. As raças escuras pertencem a um ciclo de humanidade já desaparecido; ficaram atrás, no fundo de um abismo donde nunca conseguiram sair. Jamais atingirão o nível dos brancos; limitam-se a segui-los de longe, como escravos.
Enquanto o homem branco avança, cheio de orgulho, as raças escuras cedem-lhe o passo e obedecem-lhe pela força. Se, porém, o branco hesita na sua marcha, logo os outros o atacam para o precipitar no abismo do passado.
É o que está a acontecer. Porque o branco, apesar de todas as farroncadas, duvida da sua própria supremacia.
E é a corrida veloz para a derrocada.
Desde a revolta de Kate perante a cena da caça aos piolhos, Juana voltou a servi-la com enternecedora solicitude. Embora indiferente a tudo, aquele ser das regiões inferiores não queria quebrar o débil fio que o ligava a Kate e ao mundo da claridade e do ar puro. Em suma, o desejo de Juana era conservar a sua niña, servir a sua Niña.
Ao mesmo tempo, parecia odiar a gente rica, branca e superior. De vez em quando contava a Kate histórias do passado. Então via-se-lhe uma expressão malévola nos olhos negros e na face acobreada, enquanto ela prosseguia: Usted sabe, niña, los gringos, los gringuitos llevan todo...
Os gringos são os Americanos, e Juana incluía Kate nos gringuitos, estrangeiros brancos. Aquela frase era nova insolência disfarçada, subtil...
- É possível - respondia Kate friamente. - Mas dize-me o que é que eu levo do México.
- Non, niña, non - Espalhava-se um sorriso de satisfação na cara de Juana quando ela conseguia atingir a outra mulher. Não me refiro a si, niña! - O protesto, porém, era pouco convincente.
Dir-se-ia que essas indígenas queriam obrigá-la a partir à força, insultando-a, rebaixando-a, até que a irlandesa, não menos impetuosa do que elas, abalasse dali num momento de fúria.
Oh, raças primitivas atrasadas!
Contudo, havia um lado patético na natureza daquela gente. Quando tinha catorze anos, Ezequiel trabalhara por conta de um sujeito que andava a construir casa. O homem prometera-lhe uma manta, mas ao fim de dois meses despediu-o sem cumprir a promessa. Foi uma desilusão bem amarga.
Kate nada tinha a ver com isso, mas Juana quase a acusava do facto.
Povo sem força para avançar, como podia deixar de ser explorado? Desde séculos que o exploravam cruelmente, e toda a sua energia se limitava a uma resistência malévola.
"Mas não pretendo explorá-los - dizia Kate consigo mesma.
- Pelo contrário, a minha vontade é dar-lhes mais do que recebo. São injustos os seus remoques. Nunca insultei estas criaturas. Faço a diligência de não as magoar e elas, deliberadamente, atacam-me e ficam radiantes quando me ferem."
No entanto, Kate procedia à sua maneira irlandesa: de vez em quando, isolava-se de Juana e das filhas. Porque, assim que as mandava para longe, desaparecia-lhes a malevolência e lembravam-se das ordens da niña. Se ela estava presente e amável, esqueciam-se de tudo. Esqueciam-se de varrer o pátio, de se apresentarem limpas, e só quando Kate as relegava para um canto é que tornavam a lembrar-se.
O filho Ezequiel tinha mais dignidade do que as mulheres.
Nunca fazia aqueles ataques insidiosos.
Quando a casa estava limpa e calma e o ar parecia purificado e a alma renovada, Kate sentia novamente amizade por essa família.
A sua azáfama, andando cá e lá, esvoaçando como pássaros; o estalo da massa das tortillas de encontro à palma da mão; o entusiástico esmagar de tomates e pimenta no tacho enquanto Juana preparava o molho; o barulho do balde no poço quando Jesus vinha regar...
Como isso era divertido! Assim devia ser tudo o que fizessem, ou então não o fariam. Não podiam fixar-se numa rotina. Jamais! Tudo devia ser alegre, variado, com uma pontinha de aventura. Era confusão, mas, no fim de contas, uma confusão viva, não uma coisa morta. Kate recordava-se dos seus criados britânicos nas cozinhas inglesas, tão maquinais e quase inumanos. Aqui era o extremo oposto.
Não havia disciplina nem método. Embora Juana e as filhas quisessem realmente fazer o que a niña desejava, só procediam conforme lhes apetecia. às vezes, Kate sentia-se angustiada. Mas, tanto quanto possível, ia suportando as extravagâncias daquela família. Tivera, por exemplo, de se habituar à vagabundagem da mesa de jantar, mesinha redonda cujo lugar era na varanda. Ao primeiro almoço, ficava discretamente debaixo das plantas, perto do salão; ao almoço da uma hora regressava à varanda; ao chá, ia para a relva do jardim, à sombra duma arvorezita. E, quanto à ceia, Juana deliberou então que a niña comesse os dois ovos e rancheros na própria casa de jantar, isolada a um canto da comprida mesa em que cabiam catorze pessoas.
Kate também nunca chegou a perceber o motivo por que, depois de lavarem a loiça na cozinha durante uns dias, se lembraram de repente de levar os pratos sujos para o lago, num cabaz, aos ombros de Concha. A não ser que achassem assim o trabalho mais divertido...
Crianças! Mas não inteiramente. Faltava-lhes a despreocupação da infância. Pressentia-se-lhes na alma qualquer coisa de sombrio, como que um peso que as forçava a resistir. Trabalhavam por acessos, podiam ser laboriosas; depois vinha a indolência e passavam horas estiradas no chão, como porcos. às vezes mostravam-se alegres, conversavam e riam, sentadas sobre a terra, em grupo, formando roda. Então, subitamente, contrariando a própria alegria, recaíam na mudez e na tristeza. Havia ocasiões em que, estando a trabalhar com afinco, atiravam para longe a ferramenta como se indignadas por terem cedido. Descuidados, versáteis nos seus amores, os homens, ao menos, passavam todo o tempo a resistir a si mesmos. Nunca procuravam o que pretendiam. As mulheres a que se aproximavam. E um rapaz e uma rapariga passeando às escuras na estrada marginal do lago, atiçando-se um ao outro, atormentando-se no meio de excitação, constituíam uma cena que deixava Kate pasmada - porque homens e mulheres não se cortejavam abertamente como fazem os brancos. E o riso súbito do macho, estranha voz de desejo reprimido, de obstinada relutância e paixão desesperada, parecia qualquer coisa a rasgar-se-lhe no peito, era um som que perdurava na memória.
Kate achava pesado o governo da casa. De certa maneira, eram como parasitas, queriam viver da sua vida, e rebaixá-la, rebaixá-la. Nalgumas ocasiões mostravam-se como pessoas meigas, generosas, encantadoras - até a fazerem novamente revoltar-se contra aquela indiferença reptilária. Indiferença e resistência.
Os servos forneciam a Kate a chave da vida indígena. Os homens sempre juntos, erectos, belos, equilibrando o chapéu enorme no alto da cabeça, quer sentados, quer de pé, quer de cócoras, numa impassibilidade de serpente; as mulheres sempre à parte, suaves, como que escondidas, estreitamente apertadas nos chailes escuros. Homens e mulheres pareciam voltar costas uns aos outros como se não quisessem ver-se mutuamente. Nenhuns galanteios, nenhum namoro. Apenas um olhar ocasional sombrio e rápido, sinal de desejo semelhante a um golpe de florete dado e recebido.
Elas, no conjunto, dir-se-iam inexperientes mas decididas a seguir o seu próprio desígnio: mudar de homens quando lhes apetecesse. E eles davam a impressão de não se preocuparem muito. Afinal eram as mulheres que pretendiam os homens.
As indígenas, com os negros cabelos tombados nas costas cheias e acobreadas, banhavam-se num canto da praia, geralmente em camisa ou com um saiote. Os homens mantinham-se alheados, nem sequer se dignavam olhar para a outra banda. Eram mulheres no banho, nada mais. Faziam parte, por assim dizer, da vida lacustre, como os peixes que ali nadavam. Concediam-lhes mesmo aquele ponto do lago, e elas sentavam-se nos baixios, isoladas como aves aquáticas, e molhavam a cabeça e os ombros com o auxílio duma cabaça.
Calmas, discretas, desprezadas fêmeas da classe dos peóns, seguindo o seu caminho envoltas no rebozo como num manto de trevas, ágeis, balançando as saias rodadas e gorjeando como passarinhos; ou paradas na borda do lago, com os cabelos longos a gotejarem; ou subindo lentamente a margem com uma pesada bilha de água ao ombro e um braço por cima da cabeça, a segurar a asa do cântaro; ou, especialmente nas tardes de domingo, sentadas à porta da casa, catando piolhos umas às outras. As moças possuidoras de cabeleira abundante e ondulada eram as que mais piolhos tinham. Aquilo representava um acto público meritório.
Parecia a Kate que esse país não podia originar nada de mais elevado do que a amizade entre os homens. O próprio casamento tinha pouca importância. E, embora se mostrassem meigos e protectores para com as crianças, os pais depressa as esqueciam.
A questão do sexo era no entanto a primordial, aquela que não devia ser omitida nem aflorada abertamente. O único mistério, muito maior do que o indivíduo. Este pouco contava.
Kate pasmava ao ver as choças de palha dos índios nas margens do lago. Ali fervilhavam crianças seminuas no chão de terra batida, no meio de trapos, de ossos, e do fedor de excremento humano.
Esse povo parecia não ter olfacto. E defronte do buraco que servia de porta à cabana, o homem impassível, magnífico, silencioso... Como era possível que tão belo exemplar de virilidade se mantivesse indiferente a tamanha porcaria?
Mas ali se conservava como inconsciente. Contudo, era um ser vivo - e forte. Nenhum homem no mundo pode transportar cargas tão pesadas como os índios do México. Kate vira já um deles passar na rua com um piano às costas, apenas seguro por uma correia em volta da testa.
Portanto, força não escasseava, mas sim energia. Nem sequer a classe dos artífices que imita a dos Estados Unidos demonstra ser enérgica. Têm os seus clubes, aperaltam-se e andam de braço dado com raparigas bonitas, mas percebe-se que tudo isso não passa de vulgar imitação.
Inesperadamente, a família de Kate aumentou. Um dia, chegou de Ocotlan uma formosa moça de 15 Primaveras, com grandes olhos bovinos, Maria del Carmen. Acompanhava-a Júlio, rapaz de vinte e dois anos. Tinham casado há pouco, e vinham de visita a Sayula. Júlio era primo de Juana. Poderiam dormir no pátio com ela e com as filhas? - perguntou Juana. Só se demorariam dois dias.
Kate ficou espantada. Maria Del Carmen devia ter sangue espanhol, a sua beleza evocava a Espanha. Parecia pertencer a um nível superior, mais educado, e no entanto ia dormir no chão com esse esposo juvenil... E ele, tão aprumado e de ar tão orgulhoso, nada possuía além duma velha manta.
- Há três quartos desocupados - disse Kate. - Que durmam num deles. - As camas eram de pessoa só. - Precisarão de mais cobertores?
Não. Bastaria a manta de Júlio.
Este era assentador de tijolos, isto é, ajudava a construir as paredes das casas de adobe. Nascera em Sayula e vinha ali de visita.
Essa visita, no entanto, prolongou-se. Júlio andava à procura de trabalho e só aparecia ao anoitecer. Maria del Carmen entretinha-se a amassar tortillas na cozinha de Juana e a conversar com as raparigas. À noite, o marido regressava e, sentado no chão, de costas apoiadas à parede, sempre impassível, deixava a mulher acariciar-lhe os cabelos negros e bastos.
Amavam-se, mas Júlio resistia ao seu amor.
Ela queria voltar para Ocotlan, onde era mais señorita do que em Sayula, mas o rapaz recusou. Não tinha dinheiro; o casal sustentava-se com cerca de cinco cêntimos por dia.
Quando Kate estava a coser, Maria del Carmen, que nem sabia talhar uma camisa, observava-a de olhos arregalados. Kate ensinou-lhe costura, comprou-lhe uns metros de chita e Maria del Carmen fez um vestido com as suas mãos.
Júlio arranjou trabalho, a um peso por dia, e a visita continuou. Kate achava o rapaz pouco terno para a mulher: sempre que lhe falava era em tom de comando. E Maria del Carmen não levava isso a bem e amuava um pouco.
Passaram-se semanas, e Juana começava a cansar-se dos parentes.
Por fim, Júlio arrendou uma casita de adobe só de um compartimento, ao preço de peso e meio por semana. Maria del Carmen ia ter o seu lar.
Kate viu-os juntar as suas coisas para a mudança. Consistia tudo numa esteira de palha, três tachos de barro, cinco peças de loiça, duas colheres de pau, uma faca e a manta de Julio. Nada mais.
Presenteou-os, então, Kate com um edredão de seda já um tanto puída, duas tigelas e diversos utensílios de cozinha. Foi uma alegria. A voz de Maria del Carmen soava no pátio em exclamações delirantes. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"
Na época das chuvas as noites são por vezes glaciais devido à evaporação, e os indígenas, transidos de frio, esperam pelo romper da manhã deitados sobre esteiras delgadas e abafados apenas com a ponta de um cobertor velho. A inércia natural fá-los suportar o sofrimento sem tentar minorá-lo. Podiam arranjar um colchão de palha de milho e cobrirem-se com folhas secas de bananeira. Mas não. Estendem-se numa esteira em cima da terra húmida e tiritam de frio noite após noite.
Maria del Carmen, porém, era um pouco mais civilizada. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"

CONTINUA

VII
Sayula era uma pequena estação balnear; não para ricos ociosos, porque o México os tem em pouca quantidade, mas para comerciantes de Guadalajara e gente que passeia nos fins-de-semana. E mesmo assim em reduzido número.
Havia, no entanto, dois hotéis, que vinham dos dias calmos de Don Porfirio, tal como a maior parte das vivendas fora da povoação, hoje fechadas e muitas delas abandonadas. Na aldeia viviam em perpétuo estado de terror. Acima de tudo temiam os bandidos e os bolchevistas.
Os bandidos eram apenas homens das localidades afastadas que, sem dinheiro, sem trabalho e sem esperança faziam ocasionalmente profissão do roubo e do assassínio. Habitavam nas suas aldeias selvagens até que as tropas os obrigavam a refugiar-se nas montanhas ermas ou nas regiões pantanosas.
Quanto aos bolchevistas, pareciam nascer do caminho de ferro. Onde houvesse carris, passageiros e carruagens de diferentes classes, aí despertava o espírito de rebelião e inveja; e o ferro e as demoníacas locomotivas ofegantes dir-se-ia engendrarem esses filhos do materialismo que são os bolchevistas.
Sayula possuía o seu ramal, com um comboio diário; a linha não cobria as despesas e lutava por se manter - mas já era bastante.
Sayula fora atingida pela loucura da América: o automóvel. Assim, como outrora os homens desejavam um cavalo e uma espada e as mulheres sonhavam com uma casa ou um camarote no teatro, a ambição actual é possuir um carro.
Era um desfile contínuo de "máquinas", de automóveis ligeiros e pesados na única estrada que ligava Sayula a Guadalajara. Uma esperança, uma fé, um objectivo: andar de carro, possuir um carro.
Quando Kate chegou à aldeia, falavam com certo alarme do regresso dos bandidos, mas a irlandesa não prestou a mínima atenção ao assunto. À noite, foi àplaza e misturou-se com o povo. Era um largo ornado de árvores imponentes, com um velho coreto no centro e um passeio em volta. No lado norte ficava o mercado. Mais além, passavam burros e camionetas nas ruas mal calcetadas.
A banda de música já não tocava em Sayula, a elegância já não se exibia naplaza, debaixo das árvores. Mas o pavimento ainda era bom e os bancos mais ou menos sólidos. Oh, tempos de Don Porfirio! Agora, só os peóns e os índios, com os seus fatos brancos e manta ao ombro, enchiam os bancos e monopolizavam a praça. É certo que se mantinha a lei que obrigava os peóns, naquelas paragens, a usar calças e não a espécie de ceroulas largas e flutuantes das suas lides rurais. Mas os peóns, por seu lado, também gostavam de envergar calças em vez daquele traje representativo do humilde labor do campo.
Eram eles, pois, quem dominava na praça, ora sentados em bancos ora passeando indolentes com a sua manta e de sandálias. Depois das seis horas, enchiam-se as barracas de comida quente, na rua calcetada do lado norte: ficava mais barato comer fora de casa e findava-se agradavelmente um dia de trabalho. As mulheres, de portas adentro, que ficassem a mastigar as suas tortillas; mas não provavam caldo, nem sopa, nem guisado. Nas tendas que vendiam tequila, instalavam-se homens, mulheres e rapazes defronte da mesa, em bancos, acotovelando-se uns aos outros. Também havia jogos de azar, pouco violentos, em que o banqueiro voltava uma carta e todos gritavam: Cinco de Espadas! Rei de Copas! Certa mulher corpulenta, imperturbável, de cigarro na boca e perigosa expressão nos olhos sombrios e baixos, vendia tequila, sentada ao escuro, toda a noite. O homem dos doces ficava de pé junto do seu balcão. Por terra, viam-se pequenos archotes metidos em latas, alumiando montes de mangas ou daquelas nauseabundas ameixas tropicais, encarnadas, que se liquidavam por dois ou três centavos a pilha, enquanto a vendedora, de saia larga, ou o vendedor, humilde e paciente, esperava acocorado o freguês, com aquela indiferença fatal e aquela submissão que tanto intrigam o estrangeiro. Ter ameixas para vender no valor de trinta cêntimos; amontoá-las no chão em pequenas pirâmides, cinco em cada uma; e esperar todo o dia e até de noite, de cócoras, a olhar de baixo para cima, para a cara do transeunte e possível comprador - eis, ao que parece, uma ocupação e um modo de vida.
Era vulgar encontrar-se ali um par de rapazes empunhando violas de tamanho diverso, em frente um do outro como dois galos combatentes; entoavam uma canção interminável, cantando em voz sumida as eternas baladas não muito musicais, dolorosas, extensas, audíveis apenas para os que estavam próximos. E assim se conservavam até enrouquecerem. Em volta, com mantas encarnadas, paravam homens altos e escuros, ouvindo por instantes e raramente contribuindo com um centavo.
Entre as barracas de comes e bebes estava um trio de duas violas e uma rabeca; dois dos músicos eram cegos e cantavam em diapasão alto, mas também de modo pouco audível. Dir-se-ia cantarem só para si, muito chegados um ao outro, como se a melancólica balada lhes repercutisse no peito.
A aldeia em peso comparecia naplaza. No entanto, raramente, muito raramente uma voz se erguia acima do murmúrio grave dos homens, do sussurro musical das mulheres, do gorjeio das crianças. Poucos movimentos apressados. O lento passeio dos homens de sandálias, chamadas huaraches, fazia um rumor leve de baratas a arrastarem-se no chão. Fora e dentro da multidão calma, corriam rapazes de pernas ao léu. Eram os irrequietos engraxadores, que pululam como moscas importunas naquela terra de gente descalça.
No lado sul, viam-se mesas e cadeiras no passeio: uma tentativa de café-esplanada- Aí, nos dias de semana, sentavam-se para tomar cerveja ou um copo de tequila as poucas pessoas que se atreviam a tamanha exibição - na maior parte estrangeiras. E ospeóns, imóveis nos bancos do último plano, observavam-nas com olhos de basilisco sob as largas abas do chapéu.
Mas ao sábado e ao domingo era quase festa. Chegavam carros aos solavancos, e, como pássaros exóticos, volteavam na plaza raparigas graciosas de vestidos vaporosos, faces empoadas e cabelos encaracolados. Passeavam de braço dado, trajadas de organdi vermelho ou azul, de musselina amarela ou cor-de-rosa, e com tal camada de pó-de-arroz na cara que a pele morena apresentava a brancura lívida dos palhaços ou dos cadáveres.
Adejavam como borboletas coloridas no meio da multidão de homens do povo. fortes e belos. Era restrito o número de mancebos elegantes que pudessem equiparar-se àquelas mocinhas. Contudo, havia alguns, de calças de flanela branca, casaco escuro, palhinhas e bengala. Fumavam cigarros com gesto afectado, falando um castelhano elegante, tão próximo quanto possível do original, e com o ar de que seriam dentro de doze meses sacrificados a algum deus mexicano depOis de estarem devidamente nédios e perfumados.
Ao sábado, os janotas, as raparigas e todos os que vinham de carro, da cidade - que, aliás, eram poucos - tentavam divertir-se nesse lúgubre país. Contratavam tocadores de viola e rabeca e a música de jazz elevava-se em acordes um tanto langorosos.
Debaixo das árvores da alameda, perto das mesas e das cadeiras do café, começavam pares a dançar à la mode. Os vestidos vermelhos, amarelos e azuis rodopiavam com as calças de flanela, donde saíam elegantes sapatos brancos guarnecidos de tiras de couro preto ou castanho. Algumas das saias de organdi encimavam meias e sapatos verdes, ou pernas à Ia nature com sapatos brancos. Os braços franzinos e morenos enlaçavam os ombros azuis-escuros dos moços, que sorriam com ar protector para as facezitas brancas e petulantes; sorrisos meigos, paternais e impregnados de sensualidade.
Mas a dança era no recinto da praça, e na praça erravam indolentes os homens do campo, ou então paravam em grupos, espiando os pares rodopiantes com os seus olhos pretos, misteriosos, impenetráveis. Em que pensariam? Sentiriam admiração, inveja, ou simplesmente uma silenciosa e fria oposição? Sim, oposição é que devia ser.
Esses camponeses de camisa branca e manta escarlate, airosamente dobrada ao ombro, passeavam devagar, quase ocultos sob o chapéu enorme e pesado, dispostos a não fazer caso dos que dançavam. Vagarosos, oscilando o corpo, eles moviam-se irresistivelmente no meio da dança como se a dança, no fim de contas, não existisse. E os rapazes de calças brancas, levando nos braços as damas de organdi, evolucionavam como podiam, fazendo o possível por se desviarem âospeóns impassíveis, que prosseguiam na sua conversa, sorrindo na alvura dos dentes, com um sangue-frio que gelava os próprios músicos. Nunca se tocavam, nunca se acotovelavam, dançarinos epeóns; no México ninguém se atropela involuntariamente. Mas a dança embatia contra a oposição invisível.
Os índios sentados nos bancos contemplavam também por momentos as evoluções dos bailarinos, após o que os fulminavam com a sua pesada indiferença. Misteriosa faculdade dos índios, tão densa e calma, para destruir a vida palpitante, para apagar qualquer foco de efervescência.
Na verdade, um simples bailarico de indígenas; mas dir-se-ia fechado dentro de quatro paredes. E o ritmo soava diferente, grave, com certa violência. Os dançarinos eram artífices, mecânicos ou carregadores da estação: gente meio citadina. Nenhuns trabalhadores do campo, ou quase nenhuns.
Por isso, passado não muito tempo, as borboletas de organdi e os moços de calças de flanela sucumbiram esmagados pela enorme passividade, pela resistência dos satânicos peóns.
Curiosa, radical oposição dos índios contra essa coisa a que chamamos espírito. É o espírito que leva as meninas petulantes a adejarem as suas asas de organdi como borboletas. É o espírito que vinca as calças de flanela dos rapazes e lhes dá aquele ar um tanto patético. Tentaram representar a elegância e a vontade do espírito moderno.
No entanto, como um peso de obsidiana, surge a recusa passiva do índio; compreende a vida, que participa do sangue, mas o espírito, que é superior, e é a marca da nossa civilização, isso ele repudia, barbaramente, torvamente. Só quando se torna operário ou lida com ofícios mecânicos é que o espírito moderno o visita.
E talvez seja esse repúdio do espírito moderno que faz o México ser o que é.
Kate ficou um tanto desconsolada ao ver findar o baile. Instalara-se numa das mesas, com Juana a servir-lhe de duena, para tomar um cálice de absinto.
Os carros regressavam à cidade em pequenos grupos. Sempre seria melhor irem juntos, para o caso de aparecerem salteadores. Dominava-os o receio dos bandidos, e os próprios janotas usavam revólver no bolso.
Como era sábado, parte da mocidade elegante ficou para o dia seguinte, na ideia de tomar banho e de se espojar ao sol.
A plaza estava cheia, e ao comprido das ruas que desembocavam no largo cintilavam inúmeros archotes, iluminando uma exposição de chapéus de palha, de esteiras, de pirâmides de laranjas.
Havia feira no domingo de manhã, de modo que, de repente, o largo ficou estuante de vida - densa e pesada energia vital. Os índios tinham vindo de todas as aldeias, trazendo consigo essa curiosa energia vital que parece zumbir cada vez mais profundamente quando eles se encontram reunidos.
Durante a tarde, com o vento a soprar do sul, as canoas, de casco preto e larga vela desfraldada, haviam atravessado as águas do lago, transportando indígenas e produtos para o mercado. Para formar essa multidão todas as aldeias da margem concorreram com os seus habitantes.
Despertava o instinto que impele os índios para a vida nocturna desde que se encontrem reunidos. Ninguém recolhia a casa, ninguém pensava em dormir, embora a feira só principiasse ao romper da manhã.
Cerca das nove horas, depois de terminada a dança, Kate ouviu o rufar de um tambor, ou coisa semelhante, e notou que uma chusma de peóns se dirigia para o lado mais escuro da praça, onde já se viam barracas e cestos enormes, em forma de ovo, encostados à parede.
Aquele som, que era como o latejar dum pulso de gigante repercutindo no ar da noite, juntou-se a nota prolongada de uma flauta, tocando uma espécie de melodia bárbara. Kate, que já ouvira falar dos cânticos selváticos dos peles-vermelhas do Arizona e do Novo
México, sentiu instantaneamente espalhar-se na atmosfera a eterna
paixão das raças pré-históricas com a sua intensa e complicada significação religiosa.
Olhou para Juana com ar interrogador.
- Que é isto? - perguntou.
- Músicos, cantores - foi a resposta evasiva.
- Mas muito diferentes dos outros - insistiu Kate.
- Sim, aquilo é coisa nova.
- Nova?
- Apareceu aqui há pouco tempo.
- Donde veio?
- Sabe-se lá! - volveu Juana, encolhendo os ombros.
- Quero ouvi-los.
- Olhe que são só homens.
- Podemos ficar um pouco afastadas.
E Kate dirigiu-se para o ajuntamento silencioso dos peóns. Estavam todos de costas para ela.
Subiu o degrau duma porta e viu, perto do muro florido de buganvílias, um espaço livre iluminado pelos archotes de madeira resinosa que um rapaz segurava nas duas mãos.
O tambor estava ao centro dessa clareira, e o homem que o rufava tinha o torso nu e calças de brancura imaculada atadas na cintura por uma faixa escarlate e aos tornozelos por cordão da mesma cor. Cingia-lhe a cabeça uma tira vermelha, donde se erguiam três penas rubras sobre a nuca. Na testa brilhava uma turquesa no meio dum círculo azul. O tocador de flauta também se apresentava sem camisa, mas dobrara sobre o ombro uma bela manta branca listada de azul e preto. Outros homens, despidos da cintura para cima, distribuíam folhetos aos espectadores, insinuando-se no meio da multidão. E todo o tempo, alta e pura, a estranha flauta de barro repetia a melodia bárbara, acompanhada pelo rufar do tambor.
Kate desceu do seu poleiro e avançou a medo. Queria um daqueles papéis. O homem deu-lho, sem sequer a olhar, e ela encaminhou-se para a luz a fim de o ler. Era uma espécie de balada, mas sem rimas, escrita em espanhol. No cimo da página via-se o desenho de uma águia cercada por uma serpente que mordia a cauda; curiosa variante do emblema mexicano, que é uma águia encarrapitada num cacto de folhas largas e com uma serpente nas garras. A certa distância, o círculo formado pelo réptil com a ave a meio dava a impressão dum olho.
Na região de Oeste
Em paz, para além dos raios brilhantes
Do Sol,
No silêncio onde nascem as águas
Dormia eu, Quetzalcoatl,
Na caverna chamada Olho Tenebroso, Vendo através do sol como por uma janela, Minha morada é lá. Onde as águas brotam E os ventos nascem.
Nas águas do Além
Levantei-me e vi uma estrela cadente.
E senti
Um sopro em minha face.
O sopro disse: Vai,
E eu vim.
Desci a longa encosta, Passei o monte do Sol, Até que descobri em baixo Os seios brancos da terra Do México: a esposa minha.
Entre os mares a minha esposa Penteia o cabelo preto Murmurando: Quetzalcoatl...
Adensara-se a multidão de homens; do centro elevava-se a luz avermelhada dos archotes, o ar embalsamava-se da resina de cedro. Kate não conseguia ver nada por causa dos chapéus enormes.
Calara-se a flauta; mas o tambor continuava as suas pancadas lentas, regulares, com o ritmo duma pulsação. Aquele som incompreensível, surdo, enfeitiçava o espírito, fazia bater o coração, aniquilava a vontade.
Os homens começaram a fatigar-se, sentando-se uns, acocorando-se outros, com o chapéu nos joelhos. Dir-se-ia um mar de cabeças escuras, ondulando para a frente, sobre os ombros vigorosos e levemente inclinados.
Perto do muro formara-se um círculo, com o tambor ao centro. O homem que o tocava, de dorso nu, premia o instrumento contra o corpo, e, curvado, as costas cintilavam-lhe ao clarão da noite. Junto dele estava outro homem a segurar uma bandeira que pendia duma haste leve. No campo azul do pano via-se o Sol amarelo a meio duma bola preta e, entre os quatro raios maiores, todos de ouro, quatro raios negros emergindo, o que fazia o astro assemelhar-se a uma roda que girasse num movimento ofuscante.
Sentara-se toda a gente. Os seis homens de tronco nu, que haviam distribuído os prospectos e convocado a multidão tinham já regressado e agora acomodavam-se de volta do rufador agachado. À direita deste ficava o porta-bandeira, à esquerda o flautista. Eram nove os do grupo, e faziam dez com o rapaz que vigiava os dois archotes, agora colocados em trípodes de cana.
A noite aprofundava-se em silêncio. Calara-se o murmúrio de vozes que enchia a praça. Debaixo das árvores, nos passeios, transitavam ainda pessoas indiferentes, mas pareciam estranhamente solitárias; figuras isoladas envoltas na luz pálida das lâmpadas eléctricas e fora do núcleo da vida.
No lado norte, as barracas continuavam iluminadas, faziam-se compras e vendas. Mas também essa banda do largo dava a impressão de estar muito longe da realidade actual.
Depois de os homens se sentarem, as mulheres avançaram timidamente e instalaram-se por sua vez na orla exterior do círculo. As saias rodadas espalhavam-se no chão, os xailes escuros moldavam-lhes a cabeça redonda e pequenina. Algumas, não ousando aproximar-se, ocuparam os bancos em volta. Outras, assim como muitos homens, haviam desaparecido aos primeiros rufos do tambor.
a plaza ficou como que deserta. Um grupo compacto rodeava o tambor; aquém, era o mundo externo, vazio e hostil. Somente na ruela escura que conduzia ao negrume do lago se viam alguns vultos erectos e silenciosos como fantasmas.
Sobre os degraus de uma porta, e com Juana a seus pés, Kate olhava fascinada para aqueles homens seminus iluminados pelo clarão dos archotes. Os seus corpos lisos e acobreados possuíam essa beleza índia um tanto assustadora. Os torsos magníficos, acetinados, desses entes silenciosos de cabeça um tanto pendida para a frente; os ombros largos, levemente descaídos pela inactividade da sua força; o tom quente e o brilho da pele; o peito vigoroso, tão viril e, no entanto, sem a dureza muscular dos homens brancos; as faces sombrias, impenetráveis, os bigodes pretos e as barbas ténues enquadrando o silêncio da boca fechada - tudo isto era impressionante, singular, despertava comoção.
Havia algo de reptilário na sua flexibilidade, qualquer coisa de terrível na sua mudez. Os troncos nus tinham a revesti-los uma sombra subtil, certa obscuridade misteriosa. Se fossem homens de raça branca seriam francamente musculados, com uma espécie de sinceridade no próprio físico. Aqueles não. A sua nudez só revelava a profundeza secreta da natureza, o eterno mistério.
Toda a gente se calara; intensificava-se o silêncio expectante, tornava-se tumular. Os homens de ombros nus mantinham-se imóveis, mergulhavam dentro de si mesmos e escutavam com os ouvidos do sangue. Sob as calças brancas atadas nos tornozelos, os pés metidos em Imaraches eram quase negros ao clarão dos archotes. Que pretendiam essas criaturas suaves e recolhidas e cuja importância, no entanto, era tão ponderosa, tão aliciante?
Kate sentia-se ao mesmo tempo atraída e repelida. Quase a fascinava o estranho poder magnético dos homens em círculo. Era como o núcleo duma vida nova, como uma jóia negra brilhando na escuridão. Mas parecia-lhe repulsiva aquela estranha opressão, esse afundar do espírito na terra, esse lento escoar duma água turva; repulsiva a densa e muda oposição ao rumo espiritual da gente branca. Contudo, ali e só ali a vida parecia arder com chama intensa.
No resto do mundo, Kate bem o sabia, tudo era vacuidade, esterilidade. Aqueles vultos avermelhados pelo clarão dos archotes representavam uma humanidade nova.
Kate sentia tudo isto, mas preferia manter-se à parte, evitar o contacto directo.
O porta-bandeira ergueu a cabeça como se fosse falar, mas não disse nada. Velho de barba e bigodes brancos a emoldurar-lhe os lábios escuros e carnudos, tinha a cara sulcada de rugas, como todas as pessoas idosas desse país. No entanto, os cabelos eram bastos, e o corpo ainda revelava força e virilidade. ! Os seus olhos negros olhavam sem ver. Talvez fosse realmente
cego; ou seria profunda abstracção que lhe dava aquele aspecto. Começou então a falar, numa voz lenta, clara e distante que parecia ser o eco dos últimos sons do tambor. - Homens, escutai-me! E vós. mulheres, escutai-me também. Há muito tempo, na calma da noite, o lago dirigiu um apelo aos seres humanos. Mas não existiam. Só os peixes pequeninos nadavam ao longo das margens, procurando fosse o que fosse, e os maiores saltavam fora de água para olhar em volta. Mas não existiam seres humanos.
Então um dos deuses de face velada saiu da água e subiu ao monte. (E o velho indicou a colina invisível nas trevas da noite. ao fundo da aldeia. Contemplou o Sol e viu através dele outro sol negro, o que criou o mundo e o absorverá de novo como uma gota de água. Disse: - Chegou o momento? - E quatro braços saíram do sol e da sua sombra surgiram homens. Viram os quatro braços no céu e principiaram a andar.
O deus do cimo da colina olhou para as montanhas e para as planícies e viu os homens anelantes, sequiosos. E disse-lhes: Vinde cá. Tendes aqui a minha água dulcificadora.
Correram como cães, de língua pendente, e ajoelharam-se na margem do lago. O deus do cimo da colina ouviu-os ofegar, de tanta água que beberam, e perguntou-lhes: - Não bebestes de mais? Ou tendes ainda os ossos secos?
í Os homens fizeram casas à borda do lago, e aquele que estava na colina, e que era um deus, ensinou-os a semear milho, feijão, e a construir barcos. Mas preveniu-os: - Nenhum barco vos salvará quando o sol negro deixar de estender os braços no céu.
O deus da colina disse ainda: - Sou Quetzalcoatl, aquele que vos humedece os lábios secos. Encho-vos o peito com um sopro do além-sol. Sou o vento que sai em turbilhão do centro da terra, sou o zéfiro que se enrosca como cobra em volta dos vossos pés, pernas e coxas, erguendo a cabeça da serpente do vosso corpo, onde reside a força humana. Tomai cuidado quando a serpente do corpo erguer a cabeça. Sou eu, Quetzalcoatl, que vos elevo, que vos elevo até ao sol das trevas, derradeira morada dos homens. Exceptuando o sol negro e os quatro braços nos céus, éreis ossos, e as estrelas eram ossos, e a Lua uma concha vazia numa praia seca, e o Sol amarelo uma taça vazia, semelhante ao crânio dum lobo. Portanto, tende cautela! Sem mim nada sois. Assim como eu nada sou sem o sol que está atrás do sol. Quando o sol de ouro estiver no zénite, dizei: Quetzalcoatl levante a sua mão e me abrigue dos raios, senão perecerei e a terra secará. Porque na palma da minha mão está a água da vida, e nas costas está a sombra da morte. Quando os homens me esquecem volto a mão e aparece a sombra da morte. Mas os homens esqueceram-me. Os seus ossos eram húmidos, o seu coração fraco. Quando a serpente do corpo erguia a cabeça, diziam assim: É a serpente amansada que nos obedece. E quando suportavam o ardor do sol, falavam nestes termos: O sol está zangado, quer absorver-nos; ofereçamos-lhe sangue de vítimas.
Os braços negros desapareceram do céu, e Quetzalcoatl envelhecia e lamentava-se, velando a face para a esconder dos homens.
Lamentava-se e dizia: - Deixai-me recolher à minha morada. Estou velho, quase sou apenas ossos. Os ossos triunfam em mim, o meu coração é uma cabaça vazia. Sinto-me cansado do México.
Então bradou ao sol negro, aquele de quem nunca se pronuncia o nome: - Estou um esqueleto, os Mexicanos renegam-me, de nada sirvo. Levai-me.
O sol negro estendeu o braço e elevou Quetzalcoatl até ao céu. Depois olhou em volta e viu a estrela de alva brilhando sem receio entre a vinda do sol dourado e a fuga da escuridão. E aquele, cujo nome jamais foi pronunciado, perguntou: - Quem és tu, guarda cintilante? E a estrela respondeu: - Outrora, no México, fui Quetzalcoatl. Agora contemplo as costas do sol amarelo e a face invisível da Lua, brilho entre o dia e a noite, esperando pela renovação.
E aquele cujo nome jamais foi pronunciado declarou: - Chegou a hora.
Assim o decretou, e eu a vós repito, homens e mulheres: Chegou a hora. Os que nos deixaram regressam, os que vieram retiram-se. Desejai a uns boas-vindas e dizei adeus aos outros.
Boas-vindas! Adeus!
O velho terminou o discurso com um grito meio sufocado, tal se na verdade se dirigisse aos deuses.
- Bienvenido! Bienvenido! Adiós! Adiós!
A própria Juana, sentada aos pés de Kate, bradava sem saber o que dizia:
- Bienvenido! Adiós! Adiós... n!
O último adios arrastou-se para rematar com o costumado "n". Começou o tambor a soar num ritmo insistente, e a flauta fez ouvir o seu grito estranho e longínquo. Tocavam a melodia singular que a irlandesa ouvira a princípio.
Então um dos homens do círculo entoou o hino. Cantava à maneira dos antigos Peles-Vermelhas, em voz contida mas intensa, como se se dirigisse à própria alma e não ao mundo exterior; como se cantasse na outra dimensão da existência dos homens, onde eles se encontram na extensão infinita que há dentro do eixo do nosso espaço rotativo. Espaço que, como o mundo, não pode deixar de se mover. E, tal o mundo, tem um eixo. O eixo do nosso espaço terreno, quando lá se penetra, é uma vastidão onde até as árvores vão e vêm, e a alma está à vontade no seu sonho, nobre e irrefutável.
O pulsar do tambor e o cântico íntimo arrastavam a alma para o centro do tempo, que é mais velho do que a própria velhice. O cantor começou por uma nota alta que repetiu demoradamente, fazendo-a percorrer ritmos subtis, na aparência desconexos, que o tambor acompanhava, e depois fê-la tremer, palpitar e dar um balanço brusco. Por muito tempo foi difícil distinguir qualquer melodia: dir-se-ia o uivo distante e esmaecido dum lobo. Era na verdade a música dos índios antigos.
Não se lhe encontrava harmonia, não se lhe reconhecia emoção. Apenas música, apenas um grito na noite, perfeito e longínquo. Mas ia direito à alma, à alma eterna e antiga, aí onde só pode a família humana encontrar-se em imediato contacto.
Kate logo o sentiu, e de forma fatídica. Seria inútil resistir, inútil fazer qualquer esforço. O som ia até ao âmago do ser, em que não existe esperança nem dor, mas só a paixão, que semelha uma ave no seu ninho, de asas dobradas, e a fé uma árvore de sombra.
Como o destino, como a sorte. A fé é a própria Árvore da Vida, inevitável, e os pomos estão ao nosso alcance: pomos dos olhos
- as pupilas -, pomos do queixo, do coração, dos seios, do ventre, dos quadris, dos joelhos, dos tornozelos. Que importa a mudança, a evolução? Somos a Árvore com os seus frutos, para todo o sempre. Verbum Sat.
Emudeceu o cantor, mas o tambor prosseguiu, fazendo vibrar subtilmente a membrana sensível da noite. Então, no círculo, de novo se elevou uma voz, depois outra, e outra, como pássaros voando de uma árvore. Elevaram-se as vozes - forte, pesado, intenso arrebatamento de vozes másculas, semelhante a um bando de aves negras subindo e descendo no ar, ao mesmo tempo. E cada ave preta dir-se-ia erguer-se do coração de um homem, do bosque secreto dos peitos masculinos.
Uma a uma, partiram também vozes da multidão, qual nova revoada de pássaros. A letra não tinha importância. Versos, palavras, simples sons - o canto era sempre o mesmo: violenta rajada saindo das cavernas do peito, das profundezas da alma eterna. Kate estava excessivamente intimidada para poder cantar, demasiadamente vencida pelas desilusões; mas sentia que o seu espírito fazia eco, seguindo o clamor do povo, tal a ave poliglota que imita as outras à noite. Contra sua vontade, Juana cantava também, num tom monótono, proferindo palavras à toa, inconsciente.
Os homens seminus começaram a agarrar as mantas: mantas brancas orladas de azul, com barras castanhas e franjas escuras. Da turba, levantou-se alguém, que se dirigiu para o lago. Voltou depois com um feixe de lenha trazido por um barco. Acendeu então uma fogueira pequena. Outro indivíduo se destacou para ir também buscar lenha: colocou-a diante do tambor, dentro do círculo, e fê-la crepitar. Por sua vez, uma mulher, descalça e de larga saia de algodão, principiou a arranjar a sua fogueira no meio das mulheres.
O ar estava bronzeado pelo clarão do lume; alastrava-se um fumo odorífero, como de incenso. Subiu e desceu o cântico, depois esmoreceu. Débil ecoou o som do tambor, e morreu por seu turno. No silêncio absoluto podia-se sentir a presença imóvel do lago sombrio.
Mais uma vez pulsou, vigoroso, o tambor. Um dos homens que estavam sentados, com o seu poncho branco debruado de azul e preto, ergueu-se de repente e, tirando as sandálias, começou a esboçar passos de dança, sem fazer o menor ruído. Dançava pesadamente, de pés nus, como se fosse enterrar-se pela terra abaixo. Sozinho, oscilava num ritmo estranho, calcando o chão, erguendo ora um ora outro dos joelhos de encontro às franjas escuras do poncho. Outro homem, encaminhando-se para o centro, pôs aí os huaraches, perto do fogo, e iniciou o seu bailado, enquanto o do tambor entoava um cântico selvático, tenebroso. Os restantes comparsas despojaram-se dos ponchos e, num instante, estavam de pé, e de torsos nus, descalços, repetiam aqueles passos que pareciam de ave. A luz da fogueira batia-lhes no peito, nas faces sombrias e extáticas.
"O que dorme acordará! O que dorme acordará! O que segue o trilho da serpente na poeira chegará ao seu posto; pelo trilho do pó chegará ao seu destino e revestir-se-á com a pele da serpente: revestir-se-á com a pele da serpente da terra, que é a criadora da pedra, que é criadora da pedra e do vigamento da terra; criadora do oiro, do ferro, da madeira da terra: dos ossos do pai da terra, da serpente do mundo, do coração do mundo que bate como uma cobra bate no pó, nos seus movimentos sobre a terra; do coração do mundo. Quem dorme despertará! Quem dorme despertará! Quem dorme despertará no caminho da serpente do pó da terra, da pedra da terra, do osso da terra."
O cântico parecia tomar novos voos audaciosos depois de baixar e sussurrar num último desmaio. Eram como ondas que se erguem do invisível, que tomam forma, alando-se, e desaparecem num rumor de aniquilamento. E os dançarinos, após terem girado em círculo, numa lenta e profunda absorção, iam um por um tomar o seu lugar, calcando o pó com os pés descalços, vagarosamente, e vagarosamente começavam a descrever uma ronda lenta em torno do fogo, sempre com os mesmos passos que se diria afundarem-se na terra. E o tambor ressoava numa palpitação sempre igual, como a de um coração humano. E o cântico soou e diminuiu, mais baixo e mais baixo numa espécie de extinção, para ainda uma vez tornar a levantar-se.
Até que os camponeses moços acharam impossível permanecer como estavam. Tiraram as sandálias, o chapéu, as mantas, e, timidamente, com pés inexperientes que no entanto conheciam as velhas pisadas, se puseram atrás dos outros bailadores e dançaram sem sair do seu lugar. Depressa o círculo revoluteante estabeleceu outro círculo de homens que envolveu o primeiro.
Então, de súbito, um dos dançarinos de tronco nu saiu do círculo interior e, penetrando no segundo, fê-lo girar em sentido inverso ao daquele. Deste modo houve duas rodas em movimento, uma dentro da outra, rodopiando em direcções opostas. Assim andaram, com o tambor e o canto, girando como rodas de sombra em volta do lume. Mas o lume extinguiu-se, e o tambor parou de repente, e os homens num instante se dispersaram, retrocedendo para os seus postos.
Houve silêncio, depois ouviu-se um murmúrio de vozes e risos. Kate muitas vezes pensara que o riso dos peóns se assemelhava a uma queixa; mas agora ele saltava como faúlhas invisíveis, bruscamente, da cinza das conversas.
Todos esperavam, e contudo ninguém se movia - até que o tambor vibrou de novo, como um sinal. Continuaram, porém, a tagarelar mas escutando, qual se possuíssem uma segunda consciência. Levantou-se um homem, desfez-se da manta e deitou lenha na fogueira central. Em seguida atravessou o grupo dos homens sentados e dirigiu-se ao das mulheres, que se apinhavam com as saias desdobradas. Esperou, sorrindo com ar abstracto, e logo se pôs de pé uma rapariga e se aproximou dele, apertando com a mão direita o xaile enrolado em torno da cabeça baixa. Estendendo a mão esquerda, pegou timidamente na do homem, que parecia inerte. Sorriu este e conduziu-a ao centro da roda, através do grupo dos que estavam sentados. Ela seguia de cabeça inclinada, escondendo o rosto pudibundo. Lado a lado, começaram a dançar, mal roçando as mãos e formando o primeiro pequenino segmento do círculo interior estacionário.
Ei-los agora todos, em pé, à espera de serem escolhidos. Rápidas, as mulheres, ocultando a testa no xaile, insinuavam-se junto deles e tomavam a mão do eleito. Dentro de pouco tempo já todos tinham dama. Fechara-se o círculo interior, com os homens e as mulheres aos pares, de mão dada.
- Venha, niña, venha! - disse Juana, fitando Kate com os seus olhos negros e brilhantes.
- Tenho medo - respondeu a irlandesa. E falava verdade.
Um dos de tronco nu atravessara a rua, afastando-se da multidão e detivera-se próximo da porta onde se achava Kate, que se calou e desviou a vista. E ficou esperando.
- Olhe, niña, um senhor que a procura. Venha, niña, venha!
A voz da criada descera de tom, capciosa, com esse apelo mágico das mulheres do povo. Os olhos pretos continuavam a cintilar-lhe estranhamente, fitos no rosto da patroa. Kate, quase hipnotizada, avançou em passos lentos e indecisos para o indivíduo que se mantinha à espera.
- Quer, realmente? - disse ela em inglês, bastante atrapalhada. E, com os seus dedos, tocou nos dedos dele.
Quase com indiferença, num gesto frouxo, a mão quente e máscula segurou os dedos de Kate e levou-a para a roda. Ela baixou a cabeça e desejou poder velar a face. No seu vestido branco e chapéu de palha verde, sentiu-se outra vez virgem, virgem juvenil. Aqueles homens concediam-lhe o dom de reencontrar a mocidade.
Acanhada, receosa, Kate procurou seguir a dança; mas escapava-lhe o ritmo, e os sapatos rígidos não a ajudavam. Movia-se confusamente.
Mas o seu par pegava-lhe na mão, embora com moleza, e oscilava, lento, o corpo todo, como um pêndulo de relógio. Dir-se-ia não fazer caso dela; contudo, segurava-lhe os dedos, de leve, numa pressão suavíssima.
Juana descartara-se dos sapatos e das meias. No rosto como uma máscara de lava, enrugado, escuro, as pupilas ardiam com a eterna chama da feminilidade, sombria e inextinguível. E já, com os pés, marcava o compasso da dança.
"Assim como o pássaro do sol fecunda a terra à alvorada tal uma fêmea morena sob os seus pés, com as dobras do ventre inclinadas aos pomos da geração, com os ovos de oiro, com os ovos que escondem o globo do sol nas águas do céu, na concha da terra que é o alvo do fogo do sangue, pisa tu também a terra e a terra conceberá qual a fêmea sob os pés do pássaro do sol. Pisa a terra, pisa a terra agachada e de asas encolhidas..."
A roda começou a girar e Kate foi-se movendo devagar entre dois homens silenciosos e absortos, cujos braços tocavam os seus. Um segurava-lhe os dedos, frouxa e brandamente, mas com transcendente afinidade. E o canto selvático subiu de novo como uma ave, e o tambor alterou o ritmo de modo incompreensível.
A outra roda era composta só de homens; Kate tinha a impressão de sentir nas costas o fulgor sombrio daqueles olhares. Os indivíduos já se não distinguiam, formavam como que uma única massa, em que ela própria se confundia.
Todos dançavam da mesma maneira, de cabeça baixa e olhar ausente, os homens absorvidos na sua virilidade, as mulheres na sua feminilidade. Somente o sexo prevalecia na sua mais alta concepção. Mar à superfície do globo movendo-se por cima dum mar nas entranhas da terra; águia evolucionando em silêncio sobre a própria sombra.
Kate sentia-se fundir nas águas revolutas de uma vida nova. Deixara de ser ela mesma para fazer parte de um todo, os seus desejos abismavam-se no mar do desejo colectivo. E assim o homem cujos dedos roçavam nos dela se engolfava no oceano de homens.
Lento mover de águas sobre águas, sem vestígio de espuma. Só a pura e deslizante conjunção.
Como era estranho ver-se submergida pelo desejo para além do próprio desejo, sentir-se integrada num corpo imenso para além do individualismo do corpo!
Não conhecia a cara do homem que lhe segurava nos dedos. Os seus olhos haviam cegado, e o rosto dele era um céu tenebroso. Mas do toque dos seus dedos nascia uma estrela, a estrela que os unia.
Os pés de Kate principiavam a marcar o compasso. Ela já sabia como deixar-se levar, abandonar a essência da sua vida, permitindo que lhe fugisse devagar, num escoamento rítmico, para o corpo negro da terra. Erecta, forte como o próprio esteio da vida, cedia no entanto a Seiva dessa força e fazia-a fluir para as raízes da terra.
Perdera a noção do tempo. A dança, porém, acalmava-se pouco a pouco, embora o ritmo permanecesse sempre o mesmo até ao fim.
Calaram-se as vozes, só o tambor continuou. Este, de súbito, produziu um rufo breve, e o silêncio foi geral. Logo as mãos se desataram, o baile parou de todo. O homem que a acompanhava sorriu-lhe e desapareceu. Jamais o reconheceria. Havia, no entanto, de lhe sentir a presença.
As mulheres afastaram-se, aconchegando os ombros com o xaile. Os homens dissimularam-se nas mantas. E Kate voltou à escuridão do lago.
- Já se vai embora, Niña? - perguntou Juana num tom que revelava certo descoroçoamento.
- Tenho de ir sem demora - replicou a patroa, estugando o passo. E a toda a pressa se encaminhou para as trevas do lago, com Juana na sua peugada, de sapatos e meias na mão.
Kate desejava reentrar em casa, com o seu novo segredo, o estranho segredo da feminilidade mais alta, a que ainda se não habituara. Precisava abandonar-se inteiramente àquele mistério.
Quase corria através do atalho interminável, na margem pedregosa e escura, apesar de a claridade das estrelas ser suficiente para revelar a forma sombria dos barcos que sulcavam a água mansa e turva. Noite eterna, sem horas! Kate não queria consultar o relógio, e até o virou no pulso a fim de não ver os ponteiros luminosos. Que o tempo a não governasse!
Ao adormecer, ouvia ainda o rufar do tambor, como um pulso que batesse nas entranhas da terra.

VIII
À entrada da casa de Kate elevava-se uma árvore enorme chamada cuenta por causa dos seus frutos pequeninos, redondos, duros e perfeitos de forma, que os indígenas apanhavam para fazer colares e, em especial, padre-nossos dos rosários. À noite, a rua ficava imersa em escuridão e só a queda das contas perturbava o silêncio.
Essas noites, que de começo pareciam calmas, amigáveis, encheram-se subitamente de terrores. Renascia o medo. Constituíra-se uma quadrilha de ladrões numa das aldeias do lago, cujos habitantes tinham má fama. Essa quadrilha, invisível durante o dia, compunha-se de pescadores e jornaleiros que, depois do anoitecer, montavam nos seus cavalos e iam assaltar casas solitárias ou mal guardadas.
O facto de saber que um bando de malfeitores rondava naquela região era o bastante para incitar os ladrões isolados a agir também. Fosse o que fosse que acontecesse, seria atribuído aos bandidos. Deste modo, mais de um indivíduo considerado honesto se deixava dominar pela cobiça e se escapulia à socapa armado de faca ou de pistola para se aproveitar igualmente da escuridão.
Kate sentia o terror condensar-se no silêncio da noite mexicana; silêncio tenebroso, tão profundo que se tornava sobressaltante, o som duma conta a cair. Deitada na cama, Kate escutava o mínimo rumor nas trevas densas. Ouviam-se ao longe apitos de polícia, daí a pouco passava a patrulha a cavalo. Mas, como acontece em quase toda a parte, a polícia nunca aparecia quando era precisa.
Aproximava-se a estação das chuvas, e o vento nocturno, vindo do lago, fazia sussurrar as árvores e abalava as portas desconjuntadas da casa. Os criados encafuavam-se nas suas dependências. No México, uma pequena distância isola-nos completamente desde que a noite desce; e ficamos perdidos na escuridão envolvente.
De manhã, Juana vinha da praça, com os seus olhos como gotas de tinta e, no rosto bronzeado, a expressão cansada dos entes submetidos ao medo. Logo de entrada, e na sua linguagem pouco compreensível, embrenhava-se na história de uma casa assaltada e de mulheres assassinadas. E a dona do hotel mandava dizer a Kate que não era prudente dormir sozinha em casa. Seria melhor passar a noite no hotel.
Toda a aldeia se encontrava sob estranha apreensão. Pairava no ar da noite um terror pânico. Renascia a confiança à claridade azul da manhã, mas ao anoitecer o sangue parecia coagular-se, a atmosfera tornava-se densa.
O medo, é claro, comunicava-se duns aos outros. Se Juana e a respectiva família não andassem cheias de pavor, Kate nunca sentiria medo, disso estava ela certa.
Ali não havia homens. Juana tinha dois filhos, Jesus, de vinte anos, e Ezequiel, de dezassete. Mas Jesus era quem tomava conta do motor da luz eléctrica, e tanto ele como Ezequiel dormiam na casa das máquinas. De modo que Juana ficava só com as duas filhas, Concha e Maria, no cubículo ao fundo da residência de Kate.
Antes, a plaza mantinha-se animada até às dez da noite, com gente a conversar ou a ouvir os moços tocadores de viola e o homem dos sorvetes a apregoar de contínuo: Nieve! Nieve!
Agora o largo esvaziava-se às nove horas. E havia ordem de prender quem fosse encontrado na rua depois das dez.
Kate corria para casa e trancava as portas. Não é fácil suportar o pânico de um povo meio bárbaro. O medo espalha-se no ar, envolve-nos, paralisa-nos a alma com a sensação de desgraça iminente, dum horror atroz.
Às dez horas cortavam a luz eléctrica, tudo ficava às escuras, e, deitada na cama, Kate sentia o sopro maléfico espraiando-se na atmosfera em vagas sucessivas.
Acudiam-lhe à memória todas as histórias arrepiantes passadas no país. E de novo pensava nessa gente de aspecto pacífico e sorriso doce. Mas o próprio Humboldt dissera a respeito dos mexicanos que nunca encontrara povo de sorriso tão suave e olhar tão feroz. Não que os olhos revelassem propriamente ferocidade; contudo, o seu negrume iluminava-se dum clarão frio, de cintilações de punhal nas trevas da noite, ao mesmo tempo que neles despertava a sede de homicídio.
Seres incompletos, não de todo criados, encontravam-se à mercê das velhas influências que jaziam como sedimento no fundo de cada um deles. Enquanto estavam calmos, eram simpáticos, bondosos, simples. Mas, se alguma coisa lhes revolvia as profundezas, logo se erguiam as nuvens tenebrosas de ódio e de morte.
Adivinhava-se-lhes na alma um ressentimento constante, como que uma ferida jamais cicatrizada. O ressentimento dos entes incapazes de conquistar sozinhos uma integridade individual fora do caos de paixões e forças mortíferas. Eram apanhados na engrenagem duma ansiedade ancestral como nos anéis duma serpente negra que lhes oprimisse o coração. Onerosa carga dum passado invencível.
E debaixo desse peso vivem e morrem, sem grande pena de morrer. Enredados nos elementos, não conseguem desenvencilhar-se. Queimados pelo sol excessivamente forte, sobrecarregados pela electricidade da atmosfera mexicana e atormentados pela erupção de vulcões que lhes rebentavam aos pés. Tremendos elementos do continente americano que tornam forte o corpo dos homens mas que esmagam a alma e impedem a sua elevação. E, se nalgum ela se eleva, os elementos maléficos a pouco e pouco a destroem, até que o homem se decompõe em ideias e actividades maquinais, num corpo cheio de energia mecânica mas de espírito morto e putrefacto.
Assim, esses seres incapazes de dominar os elementos, submetidos às forças do sol, da electricidade e das erupções vulcânicas, estão sujeitos a acessos de rancor e de ódio ardente à própria vida. Então, nada melhor do que enterrar uma faca num corpo vivo. Nenhuma volúpia iguala essa de cravar a lâmina e ver jorrar o sangue.
É a suprema satisfação duma raça presa a um passado de que não consegue libertar-se. Raça que não conhece Salvador nem Redenção. Quais mineiros enterrados vivos na derrocada duma mina, nações inteiras ficam sepultadas sob os escombros do passado - até que um salvador lhes mostre a saída para o sol.
Deitada na cama, Kate reflectia profundamente na'escuridão da noite, de ouvido atento aos menores ruídos que a enchiam de terror. Não podia refrear o coração; dir-se-ia que lho arrancavam, e o sofrimento era atroz. Pela primeira vez sentia medo físico, o sangue gelava-se-lhe nas veias.
Na Inglaterra, na Irlanda, durante a guerra e a revolução, conhecera o medo espiritual. O medo horrível da ralé; e durante a guerra as nações eram quase tudo ralé. O terror da canalha que pretendia acabar com a liberdade de pensamento em cada homem e em cada mulher. Era a ambição fria e colectiva de milhões de criaturas: aniquilar o espírito daqueles que resistiam e assim poderem iniciar a descida geral para as camadas interiores onde existe o culto do ouro e a volúpia de matar. A canalha.
Nesse tempo, Kate conhecera a agonia do medo social, como se a democracia fosse um polvo enorme que enlaçasse com os tentáculos quem lhe resistisse.
Agora o seu medo era doutra espécie. Sentia o coração doer-lhe, como se o arrancassem, o sangue parecia fugir-lhe das veias...
Dormitava, e acordou em sobressalto a um leve rumor. Sentou-se na cama. As portas que davam para a varanda tinham postigos, e estes encontravam-se escancarados a fim de arejar o quarto. Nessa abertura Kate distinguiu, recortando-se no céu escuro, uma forma negra semelhante a um gato que rastejasse no rebordo da janela.
- Que é? - perguntou ela maquinalmente.
No mesmo instante, aquilo moveu-se, deslizou para fora, e Kate percebeu que era o braço de um homem que tentava abrir o ferrolho interior da porta. Por uns segundos ficou paralisada, pronta a gritar. Então, como não pressentisse mais nada, inclinou-se e acendeu uma vela.
Era uma verdadeira agonia aquele terror pânico. Imobilizava-a, deslocava-lhe o coração... Ficou prostrada, no angustiante pavor nocturno. A vela projectava uma claridade lúgubre. Ouvia-se o ribombo longínquo de trovões. A noite era atroz, atroz, e o México horroroso.
Kate não conseguia dominar-se. "Estou à mercê disto", pensava. Sensação terrível, ver-se subjugada pelo medo.
"Que hei-de fazer?" perguntou a si mesma, reunindo coragem. Sabia que estava só.
Durante muito tempo sentiu-se incapaz de se mover. Então disse consigo, para se animar: "Creio no mal e não devo crer. O pânico e o assassínio são coisas que só sucedem quando perdemos o domínio de nós próprios. Não acredito verdadeiramente no mal. Acredito, sim, na existência dum poder supremo que nos comunica a sua força desde que tenhamos fé nele. O homem que queria entrar aqui não possuía essa força. Tentava ser maléfico, mas submeter-se-ia ao poder dominador."
Deste modo se ia tranquilizando, até que teve a coragem de se levantar e fechar os postigos. Em seguida, percorreu os quartos a fim de verificar se tudo estava trancado. E sentiu certo alívio ao compreender que temia tanto os escorpiões como a horrível sensação de pavor.
Depois de observar o fecho das cinco portas e das cinco janelas da ala de quartos comunicantes, Kate ficou encerrada nas trevas com a sua vela. Para o outro lado da casa, sala de jantar e cozinha, tinha de ir pela varanda.
Mais serena, embora ainda com o coração atormentado pelo medo, Kate reflectia. "Joachim afirmava que o mal provém de regressarmos aos costumes primitivos. É o que provoca roubos e assassínios. O tambor da noite de sábado evocava o ritmo da antiguidade e aquela dança selvagem era a velha forma de expressão. Regresso consciente à barbárie... Talvez a origem do mal..."
Mas logo intervinha o seu desejo de crer.
"Não! Temos de nos agarrar aos elos antigos, encontrar o impulso que nos relacionará de novo com o mistério do cosmos. Don Ramon tem razão. Ele deve ser um grande homem. Julguei que já não existissem grandes homens. Só grandes financeiros, grandes artistas, mas não grandes homens. Don Ramon deve ser um ente superior."
E Kate sentiu-se apaziguada a esta ideia.
Mas, logo que apagou a vela, surgiram clarões muito vivos através das fendas do postigo. Ribombaram trovões clamorosos, que pareciam afundar-se-lhe no coração. Kate sentia-se como que esmagada, na consciência duma tortura que a paralisou até de manhã e lhe deu a impressão de ser, ela própria, um destroço de naufrágio.
Por fim apareceu Juana, também com o ar de desenterrada, para lhe fazer a pergunta tradicional:
- Como passou a noite, Niña?
- Muito mal - respondeu Kate. E contou-lhe a história do gato preto e do braço do homem.
- Mire! - replicou Juana, sufocando a voz. - A inocentinha vai ser assassinada na cama. Não, niña, tem de passar a dormir no hotel. Não, Niña, não pode continuar com o postigo aberto. É impossível. Está a ver agora como é necessário que durma no hotel? Assim fazia a outra senhora.
- Não quero - declarou a patroa.
- Não quer, Niña? Ah, entonces, entonces... niña, vou dizer ao Ezequiel que venha dormir na soleira da porta, armado de revólver. Ele tem um revólver, pode ficar do lado de fora da porta, e a senhora já deixava a sua janela aberta, para lhe refrescar o quarto. Pobres de nós, mulheres, precisamos de um homem que tenha revólver. Não devemos estar sozinhas, toda a noite. Temos medo, e as crianças também têm medo. Imagine que um ladrão tenta arrombar o ferrolho da porta! Imagine! Não, niña, vai-se falar ao Ezequiel hoje mesmo, antes do meio-dia.
Ao meio-dia, Ezequiel compareceu, muito seguro de si. Era um rapaz, meio selvagem, mas dava largas passadas, empertigado e orgulhoso. A voz, na mudança própria da puberdade, tinha uma entoação estranha.
Ficou de pé, acanhado, ouvindo o que lhe recomendavam. Depois olhou para Kate com as pupilas negras e brilhantes, convicto do seu papel de salvador.
- Sim, sim - declarou. - Durmo aqui no corredor. Não tenha medo. Trago a pistola.
Saiu, e voltou com a arma, que era de cano comprido.
- Tem cinco cargas - participou, exibindo o revólver. - Se abrir a porta de noite, previna-me, porque, se eu vir mexer qualquer coisa, disparo os cinco tiros. Pum!, pum!
Pelo brilho do olhar do rapaz, Kate compreendeu quanto ele gostaria de fazer fogo sobre o que se movesse nas trevas. Não o preocupava a hipótese de ser alvejado por seu turno.
- niña - disse Juana - se voltar tarde para casa, depois de as luzes estarem apagadas, não se esqueça de chamar pelo Ezequiel. Senão... pum!, pum! Nunca se sabe quem pode ser a vítima.
Ezequiel dormiu sobre uma esteira na varanda de tijolos, defronte da porta de Kate. Enrolou-se num cobertor e conservou o revólver à mão. A senhora podia ficar de janela aberta. Na primeira noite, esteve muito tempo acordada por causa do ressonar estrondoso do rapaz. Nunca ela ouvira semelhante coisa! Que pulmões que ele devia ter! Dir-se-ia um som que viesse de outro mundo estranho e bárbaro. O barulho manteve-a desperta, mas havia naquilo um não sei quê de agradável. Algo semelhante a uma força bravia.

IX
Kate depressa se afeiçoou à negligente Juana e respectivas filhas. Concha tinha catorze anos. Era uma rapariga selvagem, entroncada, de cabeleira hirsuta que ela coçava constantemente. Maria, de onze anos, parecia um passarito, com olhos enormes que se diria absorverem toda a luz à sua volta.
Juana confessava que Jesus era filho doutro pai, mas o aspecto dos restantes fazia suspeitar ter cada um deles progenitor diferente. Toda a família, porém, mostrava igual despreocupação perante a vida. Viviam o dia-a-dia sem se importarem com o passado, nem com o presente, nem com o futuro. O dinheiro não lhes interessava. Assim que o recebiam gastavam-no, e logo o esqueciam.
Sem aspirações, sem objectivos, levavam existência absolutamente terre à terre no seu país sombrio e vulcânico. Não eram animais porque homens, mulheres e crianças não podem ser animais. Tal não nos foi concedido. Vai, e não voltes para trás - diz o Criador. Quando o homem tenta brutalmente tornar ao primeiro estado da evolução, fá-lo com espírito de crueldade.
Por isso os olhos negros daquela família revelavam certo medo, espanto e sofrimento. Angústia das criaturas humanas sem força para desenvolver as possibilidades do seu ser; incapazes de arrancar do caos a própria alma e indiferentes a qualquer outra vitória.
Também os brancos perdem a alma a pouco e pouco; mas conquistaram os mundos inferiores do metal e da energia e, graças às máquinas, lançam-se em corrida louca de roda da sua vacuidade.
Naquela família Kate encontrava algo de patético e de repugnante.
Desde que haviam aceitado niña como patroa, Juana e as filhas mostravam-se profundamente honestas. Honestas, a pontos de não tirarem uma única ameixa do fruteiro. E solícitas no serviço, de uma solicitude quase excessiva.
Viviam na sujidade, indiferentes ao ambiente. O chão era o seu caixote do lixo. Para ali arremessavam tudo o que consideravam inútil e ninguém se preocupava mais com isso. Pareciam 138
comprazer-se em viver no meio de pulgas e de trapos, de cascas de banana e caroços de manga. Um pedaço arrancado dum vestido - aí vai para o chão! Cabelos tirados do pente - chão com eles!
Kate não suportava aquilo. Afligia-a tamanha desordem, e o facto de ela se afligir divertiu imensamente a família mexicana. Mãe e filhas varreram então o pátio com uma vassoura de urze, até raspar a própria superfície da terra. Que engraçado, a niña preocupar-se com aquelas coisas!
Kate constituía para elas uma fonte de espanto e de divertimento. Não a consideravam pessoa de classe elevada. Era um ente meio incompreensível, meio espantoso.
Niña queria que o aquador lhe trouxesse todas as manhãs dois botes de água das nascentes térmicas para fazer abluções completas. Que esquisito! "Maria, diz ao aquador que corra a buscar água para a niña."
Quase se melindravam com o facto de ela se fechar no quarto para tomar banho. Era uma espécie de deusa, provocava-lhes alegria e admiração; mas devia ser sempre acessível. Kate depressa descobriu que um deus sempre acessível aos seres humanos passa bocados pouco invejáveis.
Não, aquilo não era nenhuma sinecura. De manhã começava o barulho da vassoura de urze lá fora. Kate deixava-se estar na cama, de portas fechadas e postigos abertos. Alvoroço no pátio. Alguém queria vender ovos. Onde está Niña? A dormir. O visitante não se retira e as conversas continuam.
O aquador! Ah, a água para o banho da niña. Está a dormir. "Não estou, não!" - grita Kate, enfiando o roupão e destrancando a porta. As pequenas entram com a tina, seguidas do aguadeiro com duas latas cheias de água quente. "Doze centavos, doze centavos para o aquador." No hay! Mais tarde, mais tarde. O homem vai-se embora, com a vara ao ombro. Kate fecha os postigos e começa a tomar banho.
- Niña!, Niña! - Que é?
- Quer ovos estrelados, quentes ou rancheros?
- Quentes.
- Café ou chocolate?
- Café.
- Ou prefere chá?
- Não, café.
O banho continua.
- Niña!
- Dize lá.
- Já não temos café. vou comprá-lo.
- Não é preciso. Tomarei chá.
- Não, niña, Eu vou. Espere por mim.
- Está bem, vai.
O primeiro almoço é na varanda. A mesa está posta, há pilhas de frutos, pão alvo e bolos.
- bom dia, niña. Como passou a noite? Maria, traze o café. vou meter os ovos na água. Oh, niña, eles não devem ficar cozidos... Meu Deus, que pés de Madona! Olhem, que bonitos!
E Juana inclina-se fascinada e, com o dedo escuro, toca nos pés acetinados de Kate metidos em leves sandálias seguras por uma única tira.
O dia tinha começado. Juana considera-se como inteiramente dedicada a Kate. Tão cedo quanto possível, expede as filhas para a escola. "Niña diz que é preciso ir para a escola. Não ouvem o que ela diz? Vamos, girem!"
No seu passo coxeante, Juana anda cá e lá na varanda, da cozinha para a mesa do almoço, transportando os pratos um por um. Depois, com grande espalhafato, começa a lavar a louça.
Manhã! O sol inunda o pátio, os cardeais e as folhas dilaceradas das bananeiras. Os pássaros voam em todos os sentidos com precipitação tropical. Na sombra densa das mangueiras passam índios vestidos de branco, semelhantes a espectros. Há um frémito de vida e, no entanto, o silêncio é opressivo. Os olhos deslumbram-se à claridade ofuscante, a alma sente-se oprimida.
Kate senta-se na varanda e finge coser. Surge um velho, segurando um ovo na mão, como qualquer símbolo. A patrona quereria comprá-lo por cinco centavos? Juana só dava quatro. De acordo? Onde está Juana?
Juana volta da praça com outras compras. O ovo! Quatro centavos! A conta das despesas. Entonces! Entonces! Luego! Luego. Ah, niña, no tengo memória.
Juana não sabia ler nem escrever. Todas as manhãs ia ao mercado, comprava uma porção de coisas de um ou dois centavos e todas as manhãs era preciso fazer contas. "Ah, onde é que nós íamos?
Não tenho memória nenhuma. Ora vejamos... Comprei três centavos de ocote... Quanto? Quanto soma agora, niña" Se faltava um centavo, ficava desolada e não falava noutra coisa. "Falta um centavo, niña? Sou estúpida, não sou? Mas eu dou-lhe um do meu dinheiro."
- Deixa lá, não penses mais nisso - dizia Kate.
- Mas eu quero pagar a diferença - insistia a mulher; e afastava-se, coxeando.
Uma hora depois elevava-se um grito no outro extremo da casa e Juana aparecia empunhando um ramo de salsa.
- Mire, niña! Compré perejil a un centavo. As contas estão certas agora?
- Estão - respondia Kate.
E a vida podia então retomar o seu curso. Existiam duas cozinhas: a anexa à sala de jantar, e a das criadas, numa espécie de barraca debaixo das bananeiras. Da varanda Kate via a abertura negra que fazia as vezes de janela na cozinha de Juana.
"Julgava Concha na escola!", disse Kate consigo mesma.
Mas não. No buraco escuro da janela distinguia-se o rosto moreno e a juba de Concha, espreitando para fora como um animal que saísse da toca, enquanto fazia as tortillas. Tortillas são uma espécie de filhos de milho. Preparam-nas batendo a massa na palma da mão até adquirir a lisura e leveza necessárias. Pouco depois do meio-dia via-se sair fumo pela janela: Concha lançava as tortillas cruas na frigideira de barro colocada sobre o lume.
Então Ezequiel aparecia, de manta sobre o ombro, chapéu de palha de grandes abas enroladas, pronto a comer as tortillas. No entanto, se trabalhava no campo, só chegava ao cair da noite. Sentava-se no degrau da porta e as mulheres serviam-no e iam-lhe buscar água como se ele fosse um rei. E ouvia-se-lhe a voz rouca dando ordens em tom calmo.
Porque, apesar do seu ar sereno e meigo, tomava uma entoação imperiosa desde que se dirigisse à mãe ou às irmãs. Prerrogativa de macho, que dava a Kate vontade de zombar do rapaz.
A hora da refeição era para Kate um dos seus tormentos. Apresentavam-lhe sopa muito quente e gordurosa, arroz apimentado, também gorduroso e fumegante, a inevitável carne nadando em gordura. Seguiam-se calabacitas, ou beringelas, salada, e o enorme cabaz de fruta. E, inundando tudo isso, o ardente sol tropical dos fins de Maio.
De tarde, o calor aumentava. Juana ia com as filhas lavar a loiça no lago. Agachadas sobre as pedras, agitavam na água cada prato, cada colher e cada garfo, e punham tudo a secar ao sol. Depois, enquanto Juana lavava uma ou duas rodilhas, as filhas banhavam-se no lago.
Jesus, o primogénito, costumava vir à tarde regar o jardim. Mas esse comia no hotel, onde prestava diversos serviços, trabalhando até às dez da noite por um salário de vinte e dois pesos, ou seja, onze dólares por mês. Usava camisa preta, e a cabeleira abundante tombava-lhe na testa baixa. Apesar da camisa fascista, possuía o espírito sarcástico e crítico dos socialistas, o espírito que vem do instinto de destruição.
Entre ele e a mãe existia pouca intimidade. Se Juana se encontrava em apuros, Jesus dava-lhe algum dinheiro mas, exceptuando o ténue laço de sangue que os unia, mostravam a maior indiferença um pelo outro.
Ezequiel tinha melhor tipo. Era esbelto, e tão direito que quase parecia arquear-se para trás. Tímido, arisco, orgulhoso, sentia-se mais responsável pela família. Não queria servir em hotéis. Não. Trabalhava nos campos, e tinha vaidade nisso: era labor de homem, não uma espécie de escravidão disfarçada.
Embora simples jornaleiro, não trabalhava para um patrão mas sim para a terra. E a terra, de certa maneira, era dele, pertencia-lhe...
Quando havia que fazer, chegava a ganhar um peso por dia. Se a terra estava seca, então procurava trabalho nas estradas, ainda que isso lhe não agradasse.
Mas nem sempre conseguia empregar-se. Durante dias, semanas, Ezequiel vagueava pelos arredores, sem nada que fazer. Quando o governo socialista dividiu as fazendas em lotes e os distribuiu pelos camponeses, coube-lhe um pedaço de terra fora da aldeia. O rapaz ia até lá e juntava pedras para construir um casebre. Cavava o chão tão profundamente quanto possível, mas não tinha amor a essa nesga de terreno que lhe viera parar às mãos de modo quase sobrenatural. Só lá ia de vez em quando, e sem nenhum entusiasmo.
Nos dias de trabalho regressava a casa por volta das seis horas e, cumprimentando Kate, timidamente, dirigia-se para o seu antro, onde, sentado no chão e de costas apoiadas à parede, dobrava tortillas umas sobre as outras e comia essa pasta elástica que tem o sabor de argamassa - pois o milho é primeiramente fervido com cal para largar a pele. Depois, dignava-se aceitar outra rima de fritos, que a irmã lhe apresentava numa folha de couve. Às vezes, Ezequiel tirava do tacho de barro um bocado de carne guisada que metia entre duas tortillas. Mas ingeria tudo rapidamente com uma espécie de indiferença. Aliás, os mexicanos parecem sempre indiferentes ao que comem.
Acabada a ceia, ia até à plaza, reunir-se aos homens. Havia ocasiões em que Kate, ao recolher a casa às nove horas, a encontrava quase deserta. Ezequiel estava no largo, Juana e Maria haviam desaparecido, e Concha dormia tal um molho de trapos no chão do pátio. Quando Kate a chamava, a pequena erguia a cabeça, espantada, entorpecida; depois, levantando-se como um cachorro, rastejava até ao portão.
Indiferença por tudo, até uns pelos outros. Juana lavava semanalmente uma camisa e um par de calças de algodão para cada um dos filhos, e aí terminavam os seus cuidados maternais. Nem se interessava averiguar qual o trabalho-de momento de Ezequiel. Sabia que arranjara emprego e isso lhe bastava. Contudo, de tempos a tempos, tinha ímpetos de amor materno, quando o rapaz era tratado injustamente, como às vezes acontecia. E, se o supunha doente, dominava-a um terror fatalista que só a abandonava depois de Kate intervir com qualquer remédio muito simples.
Semelhantes a animais. Mas os animais são perfeitos no seu isolamento e despreocupação; não se trata de indiferença, é que se bastam a si próprios. Ao passo que naquela família havia uma espécie de frustração, como se um torpor de aborrecimento a todos avassalasse.
As duas raparigas eram inseparáveis; andavam sempre atrás uma da outra. Concha arreliava de contínuo a inocente Maria de grandes olhos e esta debulhava-se em lágrimas. Ou então, no meio de uma fúria, ameaçavam-se com pedras, e Juana invectivava-as com súbita veemência, que logo se extinguia.
Estranha, aquela ferocidade repentina com que as pequenas arremessavam pedras, e não menos estranho, o esforço por não acertar. Kate notava a mesma coisa nos ataques selváticos que os garotos faziam uns aos outros nas margens do lago; atiravam calhaus com ar ameaçador, mas quase sempre falhavam o alvo.
Quase sempre, mas não sempre. Às vezes atingiam o adversário, que tombava como morto. Então os outros aproximavam-se, em silêncio temeroso, da vítima prostrada. De repente, o ferido erguia-se, com um esgar homicida no rosto, perseguindo o inimigo com uma pedra. E o inimigo fugia a sete pés.
Uma vontade perene de arreliar, de atormentar. O mesmo sucedia entre os Peles-Vermelhas. Mas o povo índio raramente recorria à violência, o que se não dava com os Mexicanos.
Kate, achando que devia fazer qualquer coisa pelas pequenas, dispensou-lhes uma hora por dia para lhes ensinar a ler, a redigir e a costurar. Maria queria aprender a ler; nisso mostrou boa vontade. Começaram bem, mas depressa a leve insistência de Kate em lhes chamar a atenção fez com que as alunas assumissem o tom de ironia peculiar ao continente americano. Ironia calma, invisível, malevolente, desejo de magoar.
- Não te debruces sobre mim, Concha. Põe-te direita.
- Porquê, niña Tem piolhos na cabeça?
A pergunta insolente era formulada com subtileza índia.
- Não! - respondia Kate subitamente irritada. - E agora vão-se embora! Afastem-se de mim.
E as pequenas retiravam-se, humilhadas.
Kate recebeu visitas de Guadalajara. Grande excitação! Mas enquanto tomava chá na varanda, Juana, Concha, Maria e Filipa, que era uma prima de dezasseis anos, sentaram-se no outro lado do pátio, bem à vista, com os belos cabelos soltos sobre os ombros, e, ostensivamente, puseram-se a catar piolhos umas às outras. Pareciam encantadas por exibirem a sua sordidez àqueles estrangeiros.
Kate desceu ao pátio.
- Se querem catar piolhos - disse em voz trémula de cólera - vão para onde ninguém as veja.
Atravessou um clarão de maldade os olhos negros de Juana, mas um instante depois, humilde e abjecta, a família retirava-se, de cabeleira ao vento, em direcção ao seu antro.
Juana comprazia-se em irritar Kate. Sentia assim uma espécie de poder sobre a Niña. É certo que temia um tanto essa irritação, mas era justamente o que desejava. De que servia uma niña que não lhe inspirasse algum receio?
Ah, raças escuras! Kate, como irlandesa, podia entrever um pouco do mistério. As raças escuras pertencem a um ciclo de humanidade já desaparecido; ficaram atrás, no fundo de um abismo donde nunca conseguiram sair. Jamais atingirão o nível dos brancos; limitam-se a segui-los de longe, como escravos.
Enquanto o homem branco avança, cheio de orgulho, as raças escuras cedem-lhe o passo e obedecem-lhe pela força. Se, porém, o branco hesita na sua marcha, logo os outros o atacam para o precipitar no abismo do passado.
É o que está a acontecer. Porque o branco, apesar de todas as farroncadas, duvida da sua própria supremacia.
E é a corrida veloz para a derrocada.
Desde a revolta de Kate perante a cena da caça aos piolhos, Juana voltou a servi-la com enternecedora solicitude. Embora indiferente a tudo, aquele ser das regiões inferiores não queria quebrar o débil fio que o ligava a Kate e ao mundo da claridade e do ar puro. Em suma, o desejo de Juana era conservar a sua niña, servir a sua Niña.
Ao mesmo tempo, parecia odiar a gente rica, branca e superior. De vez em quando contava a Kate histórias do passado. Então via-se-lhe uma expressão malévola nos olhos negros e na face acobreada, enquanto ela prosseguia: Usted sabe, niña, los gringos, los gringuitos llevan todo...
Os gringos são os Americanos, e Juana incluía Kate nos gringuitos, estrangeiros brancos. Aquela frase era nova insolência disfarçada, subtil...
- É possível - respondia Kate friamente. - Mas dize-me o que é que eu levo do México.
- Non, niña, non - Espalhava-se um sorriso de satisfação na cara de Juana quando ela conseguia atingir a outra mulher. Não me refiro a si, niña! - O protesto, porém, era pouco convincente.
Dir-se-ia que essas indígenas queriam obrigá-la a partir à força, insultando-a, rebaixando-a, até que a irlandesa, não menos impetuosa do que elas, abalasse dali num momento de fúria.
Oh, raças primitivas atrasadas!
Contudo, havia um lado patético na natureza daquela gente. Quando tinha catorze anos, Ezequiel trabalhara por conta de um sujeito que andava a construir casa. O homem prometera-lhe uma manta, mas ao fim de dois meses despediu-o sem cumprir a promessa. Foi uma desilusão bem amarga.
Kate nada tinha a ver com isso, mas Juana quase a acusava do facto.
Povo sem força para avançar, como podia deixar de ser explorado? Desde séculos que o exploravam cruelmente, e toda a sua energia se limitava a uma resistência malévola.
"Mas não pretendo explorá-los - dizia Kate consigo mesma.
- Pelo contrário, a minha vontade é dar-lhes mais do que recebo. São injustos os seus remoques. Nunca insultei estas criaturas. Faço a diligência de não as magoar e elas, deliberadamente, atacam-me e ficam radiantes quando me ferem."
No entanto, Kate procedia à sua maneira irlandesa: de vez em quando, isolava-se de Juana e das filhas. Porque, assim que as mandava para longe, desaparecia-lhes a malevolência e lembravam-se das ordens da niña. Se ela estava presente e amável, esqueciam-se de tudo. Esqueciam-se de varrer o pátio, de se apresentarem limpas, e só quando Kate as relegava para um canto é que tornavam a lembrar-se.
O filho Ezequiel tinha mais dignidade do que as mulheres.
Nunca fazia aqueles ataques insidiosos.
Quando a casa estava limpa e calma e o ar parecia purificado e a alma renovada, Kate sentia novamente amizade por essa família.
A sua azáfama, andando cá e lá, esvoaçando como pássaros; o estalo da massa das tortillas de encontro à palma da mão; o entusiástico esmagar de tomates e pimenta no tacho enquanto Juana preparava o molho; o barulho do balde no poço quando Jesus vinha regar...
Como isso era divertido! Assim devia ser tudo o que fizessem, ou então não o fariam. Não podiam fixar-se numa rotina. Jamais! Tudo devia ser alegre, variado, com uma pontinha de aventura. Era confusão, mas, no fim de contas, uma confusão viva, não uma coisa morta. Kate recordava-se dos seus criados britânicos nas cozinhas inglesas, tão maquinais e quase inumanos. Aqui era o extremo oposto.
Não havia disciplina nem método. Embora Juana e as filhas quisessem realmente fazer o que a niña desejava, só procediam conforme lhes apetecia. às vezes, Kate sentia-se angustiada. Mas, tanto quanto possível, ia suportando as extravagâncias daquela família. Tivera, por exemplo, de se habituar à vagabundagem da mesa de jantar, mesinha redonda cujo lugar era na varanda. Ao primeiro almoço, ficava discretamente debaixo das plantas, perto do salão; ao almoço da uma hora regressava à varanda; ao chá, ia para a relva do jardim, à sombra duma arvorezita. E, quanto à ceia, Juana deliberou então que a niña comesse os dois ovos e rancheros na própria casa de jantar, isolada a um canto da comprida mesa em que cabiam catorze pessoas.
Kate também nunca chegou a perceber o motivo por que, depois de lavarem a loiça na cozinha durante uns dias, se lembraram de repente de levar os pratos sujos para o lago, num cabaz, aos ombros de Concha. A não ser que achassem assim o trabalho mais divertido...
Crianças! Mas não inteiramente. Faltava-lhes a despreocupação da infância. Pressentia-se-lhes na alma qualquer coisa de sombrio, como que um peso que as forçava a resistir. Trabalhavam por acessos, podiam ser laboriosas; depois vinha a indolência e passavam horas estiradas no chão, como porcos. às vezes mostravam-se alegres, conversavam e riam, sentadas sobre a terra, em grupo, formando roda. Então, subitamente, contrariando a própria alegria, recaíam na mudez e na tristeza. Havia ocasiões em que, estando a trabalhar com afinco, atiravam para longe a ferramenta como se indignadas por terem cedido. Descuidados, versáteis nos seus amores, os homens, ao menos, passavam todo o tempo a resistir a si mesmos. Nunca procuravam o que pretendiam. As mulheres a que se aproximavam. E um rapaz e uma rapariga passeando às escuras na estrada marginal do lago, atiçando-se um ao outro, atormentando-se no meio de excitação, constituíam uma cena que deixava Kate pasmada - porque homens e mulheres não se cortejavam abertamente como fazem os brancos. E o riso súbito do macho, estranha voz de desejo reprimido, de obstinada relutância e paixão desesperada, parecia qualquer coisa a rasgar-se-lhe no peito, era um som que perdurava na memória.
Kate achava pesado o governo da casa. De certa maneira, eram como parasitas, queriam viver da sua vida, e rebaixá-la, rebaixá-la. Nalgumas ocasiões mostravam-se como pessoas meigas, generosas, encantadoras - até a fazerem novamente revoltar-se contra aquela indiferença reptilária. Indiferença e resistência.
Os servos forneciam a Kate a chave da vida indígena. Os homens sempre juntos, erectos, belos, equilibrando o chapéu enorme no alto da cabeça, quer sentados, quer de pé, quer de cócoras, numa impassibilidade de serpente; as mulheres sempre à parte, suaves, como que escondidas, estreitamente apertadas nos chailes escuros. Homens e mulheres pareciam voltar costas uns aos outros como se não quisessem ver-se mutuamente. Nenhuns galanteios, nenhum namoro. Apenas um olhar ocasional sombrio e rápido, sinal de desejo semelhante a um golpe de florete dado e recebido.
Elas, no conjunto, dir-se-iam inexperientes mas decididas a seguir o seu próprio desígnio: mudar de homens quando lhes apetecesse. E eles davam a impressão de não se preocuparem muito. Afinal eram as mulheres que pretendiam os homens.
As indígenas, com os negros cabelos tombados nas costas cheias e acobreadas, banhavam-se num canto da praia, geralmente em camisa ou com um saiote. Os homens mantinham-se alheados, nem sequer se dignavam olhar para a outra banda. Eram mulheres no banho, nada mais. Faziam parte, por assim dizer, da vida lacustre, como os peixes que ali nadavam. Concediam-lhes mesmo aquele ponto do lago, e elas sentavam-se nos baixios, isoladas como aves aquáticas, e molhavam a cabeça e os ombros com o auxílio duma cabaça.
Calmas, discretas, desprezadas fêmeas da classe dos peóns, seguindo o seu caminho envoltas no rebozo como num manto de trevas, ágeis, balançando as saias rodadas e gorjeando como passarinhos; ou paradas na borda do lago, com os cabelos longos a gotejarem; ou subindo lentamente a margem com uma pesada bilha de água ao ombro e um braço por cima da cabeça, a segurar a asa do cântaro; ou, especialmente nas tardes de domingo, sentadas à porta da casa, catando piolhos umas às outras. As moças possuidoras de cabeleira abundante e ondulada eram as que mais piolhos tinham. Aquilo representava um acto público meritório.
Parecia a Kate que esse país não podia originar nada de mais elevado do que a amizade entre os homens. O próprio casamento tinha pouca importância. E, embora se mostrassem meigos e protectores para com as crianças, os pais depressa as esqueciam.
A questão do sexo era no entanto a primordial, aquela que não devia ser omitida nem aflorada abertamente. O único mistério, muito maior do que o indivíduo. Este pouco contava.
Kate pasmava ao ver as choças de palha dos índios nas margens do lago. Ali fervilhavam crianças seminuas no chão de terra batida, no meio de trapos, de ossos, e do fedor de excremento humano.
Esse povo parecia não ter olfacto. E defronte do buraco que servia de porta à cabana, o homem impassível, magnífico, silencioso... Como era possível que tão belo exemplar de virilidade se mantivesse indiferente a tamanha porcaria?
Mas ali se conservava como inconsciente. Contudo, era um ser vivo - e forte. Nenhum homem no mundo pode transportar cargas tão pesadas como os índios do México. Kate vira já um deles passar na rua com um piano às costas, apenas seguro por uma correia em volta da testa.
Portanto, força não escasseava, mas sim energia. Nem sequer a classe dos artífices que imita a dos Estados Unidos demonstra ser enérgica. Têm os seus clubes, aperaltam-se e andam de braço dado com raparigas bonitas, mas percebe-se que tudo isso não passa de vulgar imitação.
Inesperadamente, a família de Kate aumentou. Um dia, chegou de Ocotlan uma formosa moça de 15 Primaveras, com grandes olhos bovinos, Maria del Carmen. Acompanhava-a Júlio, rapaz de vinte e dois anos. Tinham casado há pouco, e vinham de visita a Sayula. Júlio era primo de Juana. Poderiam dormir no pátio com ela e com as filhas? - perguntou Juana. Só se demorariam dois dias.
Kate ficou espantada. Maria Del Carmen devia ter sangue espanhol, a sua beleza evocava a Espanha. Parecia pertencer a um nível superior, mais educado, e no entanto ia dormir no chão com esse esposo juvenil... E ele, tão aprumado e de ar tão orgulhoso, nada possuía além duma velha manta.
- Há três quartos desocupados - disse Kate. - Que durmam num deles. - As camas eram de pessoa só. - Precisarão de mais cobertores?
Não. Bastaria a manta de Júlio.
Este era assentador de tijolos, isto é, ajudava a construir as paredes das casas de adobe. Nascera em Sayula e vinha ali de visita.
Essa visita, no entanto, prolongou-se. Júlio andava à procura de trabalho e só aparecia ao anoitecer. Maria del Carmen entretinha-se a amassar tortillas na cozinha de Juana e a conversar com as raparigas. À noite, o marido regressava e, sentado no chão, de costas apoiadas à parede, sempre impassível, deixava a mulher acariciar-lhe os cabelos negros e bastos.
Amavam-se, mas Júlio resistia ao seu amor.
Ela queria voltar para Ocotlan, onde era mais señorita do que em Sayula, mas o rapaz recusou. Não tinha dinheiro; o casal sustentava-se com cerca de cinco cêntimos por dia.
Quando Kate estava a coser, Maria del Carmen, que nem sabia talhar uma camisa, observava-a de olhos arregalados. Kate ensinou-lhe costura, comprou-lhe uns metros de chita e Maria del Carmen fez um vestido com as suas mãos.
Júlio arranjou trabalho, a um peso por dia, e a visita continuou. Kate achava o rapaz pouco terno para a mulher: sempre que lhe falava era em tom de comando. E Maria del Carmen não levava isso a bem e amuava um pouco.
Passaram-se semanas, e Juana começava a cansar-se dos parentes.
Por fim, Júlio arrendou uma casita de adobe só de um compartimento, ao preço de peso e meio por semana. Maria del Carmen ia ter o seu lar.
Kate viu-os juntar as suas coisas para a mudança. Consistia tudo numa esteira de palha, três tachos de barro, cinco peças de loiça, duas colheres de pau, uma faca e a manta de Julio. Nada mais.
Presenteou-os, então, Kate com um edredão de seda já um tanto puída, duas tigelas e diversos utensílios de cozinha. Foi uma alegria. A voz de Maria del Carmen soava no pátio em exclamações delirantes. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"
Na época das chuvas as noites são por vezes glaciais devido à evaporação, e os indígenas, transidos de frio, esperam pelo romper da manhã deitados sobre esteiras delgadas e abafados apenas com a ponta de um cobertor velho. A inércia natural fá-los suportar o sofrimento sem tentar minorá-lo. Podiam arranjar um colchão de palha de milho e cobrirem-se com folhas secas de bananeira. Mas não. Estendem-se numa esteira em cima da terra húmida e tiritam de frio noite após noite.
Maria del Carmen, porém, era um pouco mais civilizada. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"

CONTINUA

VII
Sayula era uma pequena estação balnear; não para ricos ociosos, porque o México os tem em pouca quantidade, mas para comerciantes de Guadalajara e gente que passeia nos fins-de-semana. E mesmo assim em reduzido número.
Havia, no entanto, dois hotéis, que vinham dos dias calmos de Don Porfirio, tal como a maior parte das vivendas fora da povoação, hoje fechadas e muitas delas abandonadas. Na aldeia viviam em perpétuo estado de terror. Acima de tudo temiam os bandidos e os bolchevistas.
Os bandidos eram apenas homens das localidades afastadas que, sem dinheiro, sem trabalho e sem esperança faziam ocasionalmente profissão do roubo e do assassínio. Habitavam nas suas aldeias selvagens até que as tropas os obrigavam a refugiar-se nas montanhas ermas ou nas regiões pantanosas.
Quanto aos bolchevistas, pareciam nascer do caminho de ferro. Onde houvesse carris, passageiros e carruagens de diferentes classes, aí despertava o espírito de rebelião e inveja; e o ferro e as demoníacas locomotivas ofegantes dir-se-ia engendrarem esses filhos do materialismo que são os bolchevistas.
Sayula possuía o seu ramal, com um comboio diário; a linha não cobria as despesas e lutava por se manter - mas já era bastante.
Sayula fora atingida pela loucura da América: o automóvel. Assim, como outrora os homens desejavam um cavalo e uma espada e as mulheres sonhavam com uma casa ou um camarote no teatro, a ambição actual é possuir um carro.
Era um desfile contínuo de "máquinas", de automóveis ligeiros e pesados na única estrada que ligava Sayula a Guadalajara. Uma esperança, uma fé, um objectivo: andar de carro, possuir um carro.
Quando Kate chegou à aldeia, falavam com certo alarme do regresso dos bandidos, mas a irlandesa não prestou a mínima atenção ao assunto. À noite, foi àplaza e misturou-se com o povo. Era um largo ornado de árvores imponentes, com um velho coreto no centro e um passeio em volta. No lado norte ficava o mercado. Mais além, passavam burros e camionetas nas ruas mal calcetadas.
A banda de música já não tocava em Sayula, a elegância já não se exibia naplaza, debaixo das árvores. Mas o pavimento ainda era bom e os bancos mais ou menos sólidos. Oh, tempos de Don Porfirio! Agora, só os peóns e os índios, com os seus fatos brancos e manta ao ombro, enchiam os bancos e monopolizavam a praça. É certo que se mantinha a lei que obrigava os peóns, naquelas paragens, a usar calças e não a espécie de ceroulas largas e flutuantes das suas lides rurais. Mas os peóns, por seu lado, também gostavam de envergar calças em vez daquele traje representativo do humilde labor do campo.
Eram eles, pois, quem dominava na praça, ora sentados em bancos ora passeando indolentes com a sua manta e de sandálias. Depois das seis horas, enchiam-se as barracas de comida quente, na rua calcetada do lado norte: ficava mais barato comer fora de casa e findava-se agradavelmente um dia de trabalho. As mulheres, de portas adentro, que ficassem a mastigar as suas tortillas; mas não provavam caldo, nem sopa, nem guisado. Nas tendas que vendiam tequila, instalavam-se homens, mulheres e rapazes defronte da mesa, em bancos, acotovelando-se uns aos outros. Também havia jogos de azar, pouco violentos, em que o banqueiro voltava uma carta e todos gritavam: Cinco de Espadas! Rei de Copas! Certa mulher corpulenta, imperturbável, de cigarro na boca e perigosa expressão nos olhos sombrios e baixos, vendia tequila, sentada ao escuro, toda a noite. O homem dos doces ficava de pé junto do seu balcão. Por terra, viam-se pequenos archotes metidos em latas, alumiando montes de mangas ou daquelas nauseabundas ameixas tropicais, encarnadas, que se liquidavam por dois ou três centavos a pilha, enquanto a vendedora, de saia larga, ou o vendedor, humilde e paciente, esperava acocorado o freguês, com aquela indiferença fatal e aquela submissão que tanto intrigam o estrangeiro. Ter ameixas para vender no valor de trinta cêntimos; amontoá-las no chão em pequenas pirâmides, cinco em cada uma; e esperar todo o dia e até de noite, de cócoras, a olhar de baixo para cima, para a cara do transeunte e possível comprador - eis, ao que parece, uma ocupação e um modo de vida.
Era vulgar encontrar-se ali um par de rapazes empunhando violas de tamanho diverso, em frente um do outro como dois galos combatentes; entoavam uma canção interminável, cantando em voz sumida as eternas baladas não muito musicais, dolorosas, extensas, audíveis apenas para os que estavam próximos. E assim se conservavam até enrouquecerem. Em volta, com mantas encarnadas, paravam homens altos e escuros, ouvindo por instantes e raramente contribuindo com um centavo.
Entre as barracas de comes e bebes estava um trio de duas violas e uma rabeca; dois dos músicos eram cegos e cantavam em diapasão alto, mas também de modo pouco audível. Dir-se-ia cantarem só para si, muito chegados um ao outro, como se a melancólica balada lhes repercutisse no peito.
A aldeia em peso comparecia naplaza. No entanto, raramente, muito raramente uma voz se erguia acima do murmúrio grave dos homens, do sussurro musical das mulheres, do gorjeio das crianças. Poucos movimentos apressados. O lento passeio dos homens de sandálias, chamadas huaraches, fazia um rumor leve de baratas a arrastarem-se no chão. Fora e dentro da multidão calma, corriam rapazes de pernas ao léu. Eram os irrequietos engraxadores, que pululam como moscas importunas naquela terra de gente descalça.
No lado sul, viam-se mesas e cadeiras no passeio: uma tentativa de café-esplanada- Aí, nos dias de semana, sentavam-se para tomar cerveja ou um copo de tequila as poucas pessoas que se atreviam a tamanha exibição - na maior parte estrangeiras. E ospeóns, imóveis nos bancos do último plano, observavam-nas com olhos de basilisco sob as largas abas do chapéu.
Mas ao sábado e ao domingo era quase festa. Chegavam carros aos solavancos, e, como pássaros exóticos, volteavam na plaza raparigas graciosas de vestidos vaporosos, faces empoadas e cabelos encaracolados. Passeavam de braço dado, trajadas de organdi vermelho ou azul, de musselina amarela ou cor-de-rosa, e com tal camada de pó-de-arroz na cara que a pele morena apresentava a brancura lívida dos palhaços ou dos cadáveres.
Adejavam como borboletas coloridas no meio da multidão de homens do povo. fortes e belos. Era restrito o número de mancebos elegantes que pudessem equiparar-se àquelas mocinhas. Contudo, havia alguns, de calças de flanela branca, casaco escuro, palhinhas e bengala. Fumavam cigarros com gesto afectado, falando um castelhano elegante, tão próximo quanto possível do original, e com o ar de que seriam dentro de doze meses sacrificados a algum deus mexicano depOis de estarem devidamente nédios e perfumados.
Ao sábado, os janotas, as raparigas e todos os que vinham de carro, da cidade - que, aliás, eram poucos - tentavam divertir-se nesse lúgubre país. Contratavam tocadores de viola e rabeca e a música de jazz elevava-se em acordes um tanto langorosos.
Debaixo das árvores da alameda, perto das mesas e das cadeiras do café, começavam pares a dançar à la mode. Os vestidos vermelhos, amarelos e azuis rodopiavam com as calças de flanela, donde saíam elegantes sapatos brancos guarnecidos de tiras de couro preto ou castanho. Algumas das saias de organdi encimavam meias e sapatos verdes, ou pernas à Ia nature com sapatos brancos. Os braços franzinos e morenos enlaçavam os ombros azuis-escuros dos moços, que sorriam com ar protector para as facezitas brancas e petulantes; sorrisos meigos, paternais e impregnados de sensualidade.
Mas a dança era no recinto da praça, e na praça erravam indolentes os homens do campo, ou então paravam em grupos, espiando os pares rodopiantes com os seus olhos pretos, misteriosos, impenetráveis. Em que pensariam? Sentiriam admiração, inveja, ou simplesmente uma silenciosa e fria oposição? Sim, oposição é que devia ser.
Esses camponeses de camisa branca e manta escarlate, airosamente dobrada ao ombro, passeavam devagar, quase ocultos sob o chapéu enorme e pesado, dispostos a não fazer caso dos que dançavam. Vagarosos, oscilando o corpo, eles moviam-se irresistivelmente no meio da dança como se a dança, no fim de contas, não existisse. E os rapazes de calças brancas, levando nos braços as damas de organdi, evolucionavam como podiam, fazendo o possível por se desviarem âospeóns impassíveis, que prosseguiam na sua conversa, sorrindo na alvura dos dentes, com um sangue-frio que gelava os próprios músicos. Nunca se tocavam, nunca se acotovelavam, dançarinos epeóns; no México ninguém se atropela involuntariamente. Mas a dança embatia contra a oposição invisível.
Os índios sentados nos bancos contemplavam também por momentos as evoluções dos bailarinos, após o que os fulminavam com a sua pesada indiferença. Misteriosa faculdade dos índios, tão densa e calma, para destruir a vida palpitante, para apagar qualquer foco de efervescência.
Na verdade, um simples bailarico de indígenas; mas dir-se-ia fechado dentro de quatro paredes. E o ritmo soava diferente, grave, com certa violência. Os dançarinos eram artífices, mecânicos ou carregadores da estação: gente meio citadina. Nenhuns trabalhadores do campo, ou quase nenhuns.
Por isso, passado não muito tempo, as borboletas de organdi e os moços de calças de flanela sucumbiram esmagados pela enorme passividade, pela resistência dos satânicos peóns.
Curiosa, radical oposição dos índios contra essa coisa a que chamamos espírito. É o espírito que leva as meninas petulantes a adejarem as suas asas de organdi como borboletas. É o espírito que vinca as calças de flanela dos rapazes e lhes dá aquele ar um tanto patético. Tentaram representar a elegância e a vontade do espírito moderno.
No entanto, como um peso de obsidiana, surge a recusa passiva do índio; compreende a vida, que participa do sangue, mas o espírito, que é superior, e é a marca da nossa civilização, isso ele repudia, barbaramente, torvamente. Só quando se torna operário ou lida com ofícios mecânicos é que o espírito moderno o visita.
E talvez seja esse repúdio do espírito moderno que faz o México ser o que é.
Kate ficou um tanto desconsolada ao ver findar o baile. Instalara-se numa das mesas, com Juana a servir-lhe de duena, para tomar um cálice de absinto.
Os carros regressavam à cidade em pequenos grupos. Sempre seria melhor irem juntos, para o caso de aparecerem salteadores. Dominava-os o receio dos bandidos, e os próprios janotas usavam revólver no bolso.
Como era sábado, parte da mocidade elegante ficou para o dia seguinte, na ideia de tomar banho e de se espojar ao sol.
A plaza estava cheia, e ao comprido das ruas que desembocavam no largo cintilavam inúmeros archotes, iluminando uma exposição de chapéus de palha, de esteiras, de pirâmides de laranjas.
Havia feira no domingo de manhã, de modo que, de repente, o largo ficou estuante de vida - densa e pesada energia vital. Os índios tinham vindo de todas as aldeias, trazendo consigo essa curiosa energia vital que parece zumbir cada vez mais profundamente quando eles se encontram reunidos.
Durante a tarde, com o vento a soprar do sul, as canoas, de casco preto e larga vela desfraldada, haviam atravessado as águas do lago, transportando indígenas e produtos para o mercado. Para formar essa multidão todas as aldeias da margem concorreram com os seus habitantes.
Despertava o instinto que impele os índios para a vida nocturna desde que se encontrem reunidos. Ninguém recolhia a casa, ninguém pensava em dormir, embora a feira só principiasse ao romper da manhã.
Cerca das nove horas, depois de terminada a dança, Kate ouviu o rufar de um tambor, ou coisa semelhante, e notou que uma chusma de peóns se dirigia para o lado mais escuro da praça, onde já se viam barracas e cestos enormes, em forma de ovo, encostados à parede.
Aquele som, que era como o latejar dum pulso de gigante repercutindo no ar da noite, juntou-se a nota prolongada de uma flauta, tocando uma espécie de melodia bárbara. Kate, que já ouvira falar dos cânticos selváticos dos peles-vermelhas do Arizona e do Novo
México, sentiu instantaneamente espalhar-se na atmosfera a eterna
paixão das raças pré-históricas com a sua intensa e complicada significação religiosa.
Olhou para Juana com ar interrogador.
- Que é isto? - perguntou.
- Músicos, cantores - foi a resposta evasiva.
- Mas muito diferentes dos outros - insistiu Kate.
- Sim, aquilo é coisa nova.
- Nova?
- Apareceu aqui há pouco tempo.
- Donde veio?
- Sabe-se lá! - volveu Juana, encolhendo os ombros.
- Quero ouvi-los.
- Olhe que são só homens.
- Podemos ficar um pouco afastadas.
E Kate dirigiu-se para o ajuntamento silencioso dos peóns. Estavam todos de costas para ela.
Subiu o degrau duma porta e viu, perto do muro florido de buganvílias, um espaço livre iluminado pelos archotes de madeira resinosa que um rapaz segurava nas duas mãos.
O tambor estava ao centro dessa clareira, e o homem que o rufava tinha o torso nu e calças de brancura imaculada atadas na cintura por uma faixa escarlate e aos tornozelos por cordão da mesma cor. Cingia-lhe a cabeça uma tira vermelha, donde se erguiam três penas rubras sobre a nuca. Na testa brilhava uma turquesa no meio dum círculo azul. O tocador de flauta também se apresentava sem camisa, mas dobrara sobre o ombro uma bela manta branca listada de azul e preto. Outros homens, despidos da cintura para cima, distribuíam folhetos aos espectadores, insinuando-se no meio da multidão. E todo o tempo, alta e pura, a estranha flauta de barro repetia a melodia bárbara, acompanhada pelo rufar do tambor.
Kate desceu do seu poleiro e avançou a medo. Queria um daqueles papéis. O homem deu-lho, sem sequer a olhar, e ela encaminhou-se para a luz a fim de o ler. Era uma espécie de balada, mas sem rimas, escrita em espanhol. No cimo da página via-se o desenho de uma águia cercada por uma serpente que mordia a cauda; curiosa variante do emblema mexicano, que é uma águia encarrapitada num cacto de folhas largas e com uma serpente nas garras. A certa distância, o círculo formado pelo réptil com a ave a meio dava a impressão dum olho.
Na região de Oeste
Em paz, para além dos raios brilhantes
Do Sol,
No silêncio onde nascem as águas
Dormia eu, Quetzalcoatl,
Na caverna chamada Olho Tenebroso, Vendo através do sol como por uma janela, Minha morada é lá. Onde as águas brotam E os ventos nascem.
Nas águas do Além
Levantei-me e vi uma estrela cadente.
E senti
Um sopro em minha face.
O sopro disse: Vai,
E eu vim.
Desci a longa encosta, Passei o monte do Sol, Até que descobri em baixo Os seios brancos da terra Do México: a esposa minha.
Entre os mares a minha esposa Penteia o cabelo preto Murmurando: Quetzalcoatl...
Adensara-se a multidão de homens; do centro elevava-se a luz avermelhada dos archotes, o ar embalsamava-se da resina de cedro. Kate não conseguia ver nada por causa dos chapéus enormes.
Calara-se a flauta; mas o tambor continuava as suas pancadas lentas, regulares, com o ritmo duma pulsação. Aquele som incompreensível, surdo, enfeitiçava o espírito, fazia bater o coração, aniquilava a vontade.
Os homens começaram a fatigar-se, sentando-se uns, acocorando-se outros, com o chapéu nos joelhos. Dir-se-ia um mar de cabeças escuras, ondulando para a frente, sobre os ombros vigorosos e levemente inclinados.
Perto do muro formara-se um círculo, com o tambor ao centro. O homem que o tocava, de dorso nu, premia o instrumento contra o corpo, e, curvado, as costas cintilavam-lhe ao clarão da noite. Junto dele estava outro homem a segurar uma bandeira que pendia duma haste leve. No campo azul do pano via-se o Sol amarelo a meio duma bola preta e, entre os quatro raios maiores, todos de ouro, quatro raios negros emergindo, o que fazia o astro assemelhar-se a uma roda que girasse num movimento ofuscante.
Sentara-se toda a gente. Os seis homens de tronco nu, que haviam distribuído os prospectos e convocado a multidão tinham já regressado e agora acomodavam-se de volta do rufador agachado. À direita deste ficava o porta-bandeira, à esquerda o flautista. Eram nove os do grupo, e faziam dez com o rapaz que vigiava os dois archotes, agora colocados em trípodes de cana.
A noite aprofundava-se em silêncio. Calara-se o murmúrio de vozes que enchia a praça. Debaixo das árvores, nos passeios, transitavam ainda pessoas indiferentes, mas pareciam estranhamente solitárias; figuras isoladas envoltas na luz pálida das lâmpadas eléctricas e fora do núcleo da vida.
No lado norte, as barracas continuavam iluminadas, faziam-se compras e vendas. Mas também essa banda do largo dava a impressão de estar muito longe da realidade actual.
Depois de os homens se sentarem, as mulheres avançaram timidamente e instalaram-se por sua vez na orla exterior do círculo. As saias rodadas espalhavam-se no chão, os xailes escuros moldavam-lhes a cabeça redonda e pequenina. Algumas, não ousando aproximar-se, ocuparam os bancos em volta. Outras, assim como muitos homens, haviam desaparecido aos primeiros rufos do tambor.
a plaza ficou como que deserta. Um grupo compacto rodeava o tambor; aquém, era o mundo externo, vazio e hostil. Somente na ruela escura que conduzia ao negrume do lago se viam alguns vultos erectos e silenciosos como fantasmas.
Sobre os degraus de uma porta, e com Juana a seus pés, Kate olhava fascinada para aqueles homens seminus iluminados pelo clarão dos archotes. Os seus corpos lisos e acobreados possuíam essa beleza índia um tanto assustadora. Os torsos magníficos, acetinados, desses entes silenciosos de cabeça um tanto pendida para a frente; os ombros largos, levemente descaídos pela inactividade da sua força; o tom quente e o brilho da pele; o peito vigoroso, tão viril e, no entanto, sem a dureza muscular dos homens brancos; as faces sombrias, impenetráveis, os bigodes pretos e as barbas ténues enquadrando o silêncio da boca fechada - tudo isto era impressionante, singular, despertava comoção.
Havia algo de reptilário na sua flexibilidade, qualquer coisa de terrível na sua mudez. Os troncos nus tinham a revesti-los uma sombra subtil, certa obscuridade misteriosa. Se fossem homens de raça branca seriam francamente musculados, com uma espécie de sinceridade no próprio físico. Aqueles não. A sua nudez só revelava a profundeza secreta da natureza, o eterno mistério.
Toda a gente se calara; intensificava-se o silêncio expectante, tornava-se tumular. Os homens de ombros nus mantinham-se imóveis, mergulhavam dentro de si mesmos e escutavam com os ouvidos do sangue. Sob as calças brancas atadas nos tornozelos, os pés metidos em Imaraches eram quase negros ao clarão dos archotes. Que pretendiam essas criaturas suaves e recolhidas e cuja importância, no entanto, era tão ponderosa, tão aliciante?
Kate sentia-se ao mesmo tempo atraída e repelida. Quase a fascinava o estranho poder magnético dos homens em círculo. Era como o núcleo duma vida nova, como uma jóia negra brilhando na escuridão. Mas parecia-lhe repulsiva aquela estranha opressão, esse afundar do espírito na terra, esse lento escoar duma água turva; repulsiva a densa e muda oposição ao rumo espiritual da gente branca. Contudo, ali e só ali a vida parecia arder com chama intensa.
No resto do mundo, Kate bem o sabia, tudo era vacuidade, esterilidade. Aqueles vultos avermelhados pelo clarão dos archotes representavam uma humanidade nova.
Kate sentia tudo isto, mas preferia manter-se à parte, evitar o contacto directo.
O porta-bandeira ergueu a cabeça como se fosse falar, mas não disse nada. Velho de barba e bigodes brancos a emoldurar-lhe os lábios escuros e carnudos, tinha a cara sulcada de rugas, como todas as pessoas idosas desse país. No entanto, os cabelos eram bastos, e o corpo ainda revelava força e virilidade. ! Os seus olhos negros olhavam sem ver. Talvez fosse realmente
cego; ou seria profunda abstracção que lhe dava aquele aspecto. Começou então a falar, numa voz lenta, clara e distante que parecia ser o eco dos últimos sons do tambor. - Homens, escutai-me! E vós. mulheres, escutai-me também. Há muito tempo, na calma da noite, o lago dirigiu um apelo aos seres humanos. Mas não existiam. Só os peixes pequeninos nadavam ao longo das margens, procurando fosse o que fosse, e os maiores saltavam fora de água para olhar em volta. Mas não existiam seres humanos.
Então um dos deuses de face velada saiu da água e subiu ao monte. (E o velho indicou a colina invisível nas trevas da noite. ao fundo da aldeia. Contemplou o Sol e viu através dele outro sol negro, o que criou o mundo e o absorverá de novo como uma gota de água. Disse: - Chegou o momento? - E quatro braços saíram do sol e da sua sombra surgiram homens. Viram os quatro braços no céu e principiaram a andar.
O deus do cimo da colina olhou para as montanhas e para as planícies e viu os homens anelantes, sequiosos. E disse-lhes: Vinde cá. Tendes aqui a minha água dulcificadora.
Correram como cães, de língua pendente, e ajoelharam-se na margem do lago. O deus do cimo da colina ouviu-os ofegar, de tanta água que beberam, e perguntou-lhes: - Não bebestes de mais? Ou tendes ainda os ossos secos?
í Os homens fizeram casas à borda do lago, e aquele que estava na colina, e que era um deus, ensinou-os a semear milho, feijão, e a construir barcos. Mas preveniu-os: - Nenhum barco vos salvará quando o sol negro deixar de estender os braços no céu.
O deus da colina disse ainda: - Sou Quetzalcoatl, aquele que vos humedece os lábios secos. Encho-vos o peito com um sopro do além-sol. Sou o vento que sai em turbilhão do centro da terra, sou o zéfiro que se enrosca como cobra em volta dos vossos pés, pernas e coxas, erguendo a cabeça da serpente do vosso corpo, onde reside a força humana. Tomai cuidado quando a serpente do corpo erguer a cabeça. Sou eu, Quetzalcoatl, que vos elevo, que vos elevo até ao sol das trevas, derradeira morada dos homens. Exceptuando o sol negro e os quatro braços nos céus, éreis ossos, e as estrelas eram ossos, e a Lua uma concha vazia numa praia seca, e o Sol amarelo uma taça vazia, semelhante ao crânio dum lobo. Portanto, tende cautela! Sem mim nada sois. Assim como eu nada sou sem o sol que está atrás do sol. Quando o sol de ouro estiver no zénite, dizei: Quetzalcoatl levante a sua mão e me abrigue dos raios, senão perecerei e a terra secará. Porque na palma da minha mão está a água da vida, e nas costas está a sombra da morte. Quando os homens me esquecem volto a mão e aparece a sombra da morte. Mas os homens esqueceram-me. Os seus ossos eram húmidos, o seu coração fraco. Quando a serpente do corpo erguia a cabeça, diziam assim: É a serpente amansada que nos obedece. E quando suportavam o ardor do sol, falavam nestes termos: O sol está zangado, quer absorver-nos; ofereçamos-lhe sangue de vítimas.
Os braços negros desapareceram do céu, e Quetzalcoatl envelhecia e lamentava-se, velando a face para a esconder dos homens.
Lamentava-se e dizia: - Deixai-me recolher à minha morada. Estou velho, quase sou apenas ossos. Os ossos triunfam em mim, o meu coração é uma cabaça vazia. Sinto-me cansado do México.
Então bradou ao sol negro, aquele de quem nunca se pronuncia o nome: - Estou um esqueleto, os Mexicanos renegam-me, de nada sirvo. Levai-me.
O sol negro estendeu o braço e elevou Quetzalcoatl até ao céu. Depois olhou em volta e viu a estrela de alva brilhando sem receio entre a vinda do sol dourado e a fuga da escuridão. E aquele, cujo nome jamais foi pronunciado, perguntou: - Quem és tu, guarda cintilante? E a estrela respondeu: - Outrora, no México, fui Quetzalcoatl. Agora contemplo as costas do sol amarelo e a face invisível da Lua, brilho entre o dia e a noite, esperando pela renovação.
E aquele cujo nome jamais foi pronunciado declarou: - Chegou a hora.
Assim o decretou, e eu a vós repito, homens e mulheres: Chegou a hora. Os que nos deixaram regressam, os que vieram retiram-se. Desejai a uns boas-vindas e dizei adeus aos outros.
Boas-vindas! Adeus!
O velho terminou o discurso com um grito meio sufocado, tal se na verdade se dirigisse aos deuses.
- Bienvenido! Bienvenido! Adiós! Adiós!
A própria Juana, sentada aos pés de Kate, bradava sem saber o que dizia:
- Bienvenido! Adiós! Adiós... n!
O último adios arrastou-se para rematar com o costumado "n". Começou o tambor a soar num ritmo insistente, e a flauta fez ouvir o seu grito estranho e longínquo. Tocavam a melodia singular que a irlandesa ouvira a princípio.
Então um dos homens do círculo entoou o hino. Cantava à maneira dos antigos Peles-Vermelhas, em voz contida mas intensa, como se se dirigisse à própria alma e não ao mundo exterior; como se cantasse na outra dimensão da existência dos homens, onde eles se encontram na extensão infinita que há dentro do eixo do nosso espaço rotativo. Espaço que, como o mundo, não pode deixar de se mover. E, tal o mundo, tem um eixo. O eixo do nosso espaço terreno, quando lá se penetra, é uma vastidão onde até as árvores vão e vêm, e a alma está à vontade no seu sonho, nobre e irrefutável.
O pulsar do tambor e o cântico íntimo arrastavam a alma para o centro do tempo, que é mais velho do que a própria velhice. O cantor começou por uma nota alta que repetiu demoradamente, fazendo-a percorrer ritmos subtis, na aparência desconexos, que o tambor acompanhava, e depois fê-la tremer, palpitar e dar um balanço brusco. Por muito tempo foi difícil distinguir qualquer melodia: dir-se-ia o uivo distante e esmaecido dum lobo. Era na verdade a música dos índios antigos.
Não se lhe encontrava harmonia, não se lhe reconhecia emoção. Apenas música, apenas um grito na noite, perfeito e longínquo. Mas ia direito à alma, à alma eterna e antiga, aí onde só pode a família humana encontrar-se em imediato contacto.
Kate logo o sentiu, e de forma fatídica. Seria inútil resistir, inútil fazer qualquer esforço. O som ia até ao âmago do ser, em que não existe esperança nem dor, mas só a paixão, que semelha uma ave no seu ninho, de asas dobradas, e a fé uma árvore de sombra.
Como o destino, como a sorte. A fé é a própria Árvore da Vida, inevitável, e os pomos estão ao nosso alcance: pomos dos olhos
- as pupilas -, pomos do queixo, do coração, dos seios, do ventre, dos quadris, dos joelhos, dos tornozelos. Que importa a mudança, a evolução? Somos a Árvore com os seus frutos, para todo o sempre. Verbum Sat.
Emudeceu o cantor, mas o tambor prosseguiu, fazendo vibrar subtilmente a membrana sensível da noite. Então, no círculo, de novo se elevou uma voz, depois outra, e outra, como pássaros voando de uma árvore. Elevaram-se as vozes - forte, pesado, intenso arrebatamento de vozes másculas, semelhante a um bando de aves negras subindo e descendo no ar, ao mesmo tempo. E cada ave preta dir-se-ia erguer-se do coração de um homem, do bosque secreto dos peitos masculinos.
Uma a uma, partiram também vozes da multidão, qual nova revoada de pássaros. A letra não tinha importância. Versos, palavras, simples sons - o canto era sempre o mesmo: violenta rajada saindo das cavernas do peito, das profundezas da alma eterna. Kate estava excessivamente intimidada para poder cantar, demasiadamente vencida pelas desilusões; mas sentia que o seu espírito fazia eco, seguindo o clamor do povo, tal a ave poliglota que imita as outras à noite. Contra sua vontade, Juana cantava também, num tom monótono, proferindo palavras à toa, inconsciente.
Os homens seminus começaram a agarrar as mantas: mantas brancas orladas de azul, com barras castanhas e franjas escuras. Da turba, levantou-se alguém, que se dirigiu para o lago. Voltou depois com um feixe de lenha trazido por um barco. Acendeu então uma fogueira pequena. Outro indivíduo se destacou para ir também buscar lenha: colocou-a diante do tambor, dentro do círculo, e fê-la crepitar. Por sua vez, uma mulher, descalça e de larga saia de algodão, principiou a arranjar a sua fogueira no meio das mulheres.
O ar estava bronzeado pelo clarão do lume; alastrava-se um fumo odorífero, como de incenso. Subiu e desceu o cântico, depois esmoreceu. Débil ecoou o som do tambor, e morreu por seu turno. No silêncio absoluto podia-se sentir a presença imóvel do lago sombrio.
Mais uma vez pulsou, vigoroso, o tambor. Um dos homens que estavam sentados, com o seu poncho branco debruado de azul e preto, ergueu-se de repente e, tirando as sandálias, começou a esboçar passos de dança, sem fazer o menor ruído. Dançava pesadamente, de pés nus, como se fosse enterrar-se pela terra abaixo. Sozinho, oscilava num ritmo estranho, calcando o chão, erguendo ora um ora outro dos joelhos de encontro às franjas escuras do poncho. Outro homem, encaminhando-se para o centro, pôs aí os huaraches, perto do fogo, e iniciou o seu bailado, enquanto o do tambor entoava um cântico selvático, tenebroso. Os restantes comparsas despojaram-se dos ponchos e, num instante, estavam de pé, e de torsos nus, descalços, repetiam aqueles passos que pareciam de ave. A luz da fogueira batia-lhes no peito, nas faces sombrias e extáticas.
"O que dorme acordará! O que dorme acordará! O que segue o trilho da serpente na poeira chegará ao seu posto; pelo trilho do pó chegará ao seu destino e revestir-se-á com a pele da serpente: revestir-se-á com a pele da serpente da terra, que é a criadora da pedra, que é criadora da pedra e do vigamento da terra; criadora do oiro, do ferro, da madeira da terra: dos ossos do pai da terra, da serpente do mundo, do coração do mundo que bate como uma cobra bate no pó, nos seus movimentos sobre a terra; do coração do mundo. Quem dorme despertará! Quem dorme despertará! Quem dorme despertará no caminho da serpente do pó da terra, da pedra da terra, do osso da terra."
O cântico parecia tomar novos voos audaciosos depois de baixar e sussurrar num último desmaio. Eram como ondas que se erguem do invisível, que tomam forma, alando-se, e desaparecem num rumor de aniquilamento. E os dançarinos, após terem girado em círculo, numa lenta e profunda absorção, iam um por um tomar o seu lugar, calcando o pó com os pés descalços, vagarosamente, e vagarosamente começavam a descrever uma ronda lenta em torno do fogo, sempre com os mesmos passos que se diria afundarem-se na terra. E o tambor ressoava numa palpitação sempre igual, como a de um coração humano. E o cântico soou e diminuiu, mais baixo e mais baixo numa espécie de extinção, para ainda uma vez tornar a levantar-se.
Até que os camponeses moços acharam impossível permanecer como estavam. Tiraram as sandálias, o chapéu, as mantas, e, timidamente, com pés inexperientes que no entanto conheciam as velhas pisadas, se puseram atrás dos outros bailadores e dançaram sem sair do seu lugar. Depressa o círculo revoluteante estabeleceu outro círculo de homens que envolveu o primeiro.
Então, de súbito, um dos dançarinos de tronco nu saiu do círculo interior e, penetrando no segundo, fê-lo girar em sentido inverso ao daquele. Deste modo houve duas rodas em movimento, uma dentro da outra, rodopiando em direcções opostas. Assim andaram, com o tambor e o canto, girando como rodas de sombra em volta do lume. Mas o lume extinguiu-se, e o tambor parou de repente, e os homens num instante se dispersaram, retrocedendo para os seus postos.
Houve silêncio, depois ouviu-se um murmúrio de vozes e risos. Kate muitas vezes pensara que o riso dos peóns se assemelhava a uma queixa; mas agora ele saltava como faúlhas invisíveis, bruscamente, da cinza das conversas.
Todos esperavam, e contudo ninguém se movia - até que o tambor vibrou de novo, como um sinal. Continuaram, porém, a tagarelar mas escutando, qual se possuíssem uma segunda consciência. Levantou-se um homem, desfez-se da manta e deitou lenha na fogueira central. Em seguida atravessou o grupo dos homens sentados e dirigiu-se ao das mulheres, que se apinhavam com as saias desdobradas. Esperou, sorrindo com ar abstracto, e logo se pôs de pé uma rapariga e se aproximou dele, apertando com a mão direita o xaile enrolado em torno da cabeça baixa. Estendendo a mão esquerda, pegou timidamente na do homem, que parecia inerte. Sorriu este e conduziu-a ao centro da roda, através do grupo dos que estavam sentados. Ela seguia de cabeça inclinada, escondendo o rosto pudibundo. Lado a lado, começaram a dançar, mal roçando as mãos e formando o primeiro pequenino segmento do círculo interior estacionário.
Ei-los agora todos, em pé, à espera de serem escolhidos. Rápidas, as mulheres, ocultando a testa no xaile, insinuavam-se junto deles e tomavam a mão do eleito. Dentro de pouco tempo já todos tinham dama. Fechara-se o círculo interior, com os homens e as mulheres aos pares, de mão dada.
- Venha, niña, venha! - disse Juana, fitando Kate com os seus olhos negros e brilhantes.
- Tenho medo - respondeu a irlandesa. E falava verdade.
Um dos de tronco nu atravessara a rua, afastando-se da multidão e detivera-se próximo da porta onde se achava Kate, que se calou e desviou a vista. E ficou esperando.
- Olhe, niña, um senhor que a procura. Venha, niña, venha!
A voz da criada descera de tom, capciosa, com esse apelo mágico das mulheres do povo. Os olhos pretos continuavam a cintilar-lhe estranhamente, fitos no rosto da patroa. Kate, quase hipnotizada, avançou em passos lentos e indecisos para o indivíduo que se mantinha à espera.
- Quer, realmente? - disse ela em inglês, bastante atrapalhada. E, com os seus dedos, tocou nos dedos dele.
Quase com indiferença, num gesto frouxo, a mão quente e máscula segurou os dedos de Kate e levou-a para a roda. Ela baixou a cabeça e desejou poder velar a face. No seu vestido branco e chapéu de palha verde, sentiu-se outra vez virgem, virgem juvenil. Aqueles homens concediam-lhe o dom de reencontrar a mocidade.
Acanhada, receosa, Kate procurou seguir a dança; mas escapava-lhe o ritmo, e os sapatos rígidos não a ajudavam. Movia-se confusamente.
Mas o seu par pegava-lhe na mão, embora com moleza, e oscilava, lento, o corpo todo, como um pêndulo de relógio. Dir-se-ia não fazer caso dela; contudo, segurava-lhe os dedos, de leve, numa pressão suavíssima.
Juana descartara-se dos sapatos e das meias. No rosto como uma máscara de lava, enrugado, escuro, as pupilas ardiam com a eterna chama da feminilidade, sombria e inextinguível. E já, com os pés, marcava o compasso da dança.
"Assim como o pássaro do sol fecunda a terra à alvorada tal uma fêmea morena sob os seus pés, com as dobras do ventre inclinadas aos pomos da geração, com os ovos de oiro, com os ovos que escondem o globo do sol nas águas do céu, na concha da terra que é o alvo do fogo do sangue, pisa tu também a terra e a terra conceberá qual a fêmea sob os pés do pássaro do sol. Pisa a terra, pisa a terra agachada e de asas encolhidas..."
A roda começou a girar e Kate foi-se movendo devagar entre dois homens silenciosos e absortos, cujos braços tocavam os seus. Um segurava-lhe os dedos, frouxa e brandamente, mas com transcendente afinidade. E o canto selvático subiu de novo como uma ave, e o tambor alterou o ritmo de modo incompreensível.
A outra roda era composta só de homens; Kate tinha a impressão de sentir nas costas o fulgor sombrio daqueles olhares. Os indivíduos já se não distinguiam, formavam como que uma única massa, em que ela própria se confundia.
Todos dançavam da mesma maneira, de cabeça baixa e olhar ausente, os homens absorvidos na sua virilidade, as mulheres na sua feminilidade. Somente o sexo prevalecia na sua mais alta concepção. Mar à superfície do globo movendo-se por cima dum mar nas entranhas da terra; águia evolucionando em silêncio sobre a própria sombra.
Kate sentia-se fundir nas águas revolutas de uma vida nova. Deixara de ser ela mesma para fazer parte de um todo, os seus desejos abismavam-se no mar do desejo colectivo. E assim o homem cujos dedos roçavam nos dela se engolfava no oceano de homens.
Lento mover de águas sobre águas, sem vestígio de espuma. Só a pura e deslizante conjunção.
Como era estranho ver-se submergida pelo desejo para além do próprio desejo, sentir-se integrada num corpo imenso para além do individualismo do corpo!
Não conhecia a cara do homem que lhe segurava nos dedos. Os seus olhos haviam cegado, e o rosto dele era um céu tenebroso. Mas do toque dos seus dedos nascia uma estrela, a estrela que os unia.
Os pés de Kate principiavam a marcar o compasso. Ela já sabia como deixar-se levar, abandonar a essência da sua vida, permitindo que lhe fugisse devagar, num escoamento rítmico, para o corpo negro da terra. Erecta, forte como o próprio esteio da vida, cedia no entanto a Seiva dessa força e fazia-a fluir para as raízes da terra.
Perdera a noção do tempo. A dança, porém, acalmava-se pouco a pouco, embora o ritmo permanecesse sempre o mesmo até ao fim.
Calaram-se as vozes, só o tambor continuou. Este, de súbito, produziu um rufo breve, e o silêncio foi geral. Logo as mãos se desataram, o baile parou de todo. O homem que a acompanhava sorriu-lhe e desapareceu. Jamais o reconheceria. Havia, no entanto, de lhe sentir a presença.
As mulheres afastaram-se, aconchegando os ombros com o xaile. Os homens dissimularam-se nas mantas. E Kate voltou à escuridão do lago.
- Já se vai embora, Niña? - perguntou Juana num tom que revelava certo descoroçoamento.
- Tenho de ir sem demora - replicou a patroa, estugando o passo. E a toda a pressa se encaminhou para as trevas do lago, com Juana na sua peugada, de sapatos e meias na mão.
Kate desejava reentrar em casa, com o seu novo segredo, o estranho segredo da feminilidade mais alta, a que ainda se não habituara. Precisava abandonar-se inteiramente àquele mistério.
Quase corria através do atalho interminável, na margem pedregosa e escura, apesar de a claridade das estrelas ser suficiente para revelar a forma sombria dos barcos que sulcavam a água mansa e turva. Noite eterna, sem horas! Kate não queria consultar o relógio, e até o virou no pulso a fim de não ver os ponteiros luminosos. Que o tempo a não governasse!
Ao adormecer, ouvia ainda o rufar do tambor, como um pulso que batesse nas entranhas da terra.

VIII
À entrada da casa de Kate elevava-se uma árvore enorme chamada cuenta por causa dos seus frutos pequeninos, redondos, duros e perfeitos de forma, que os indígenas apanhavam para fazer colares e, em especial, padre-nossos dos rosários. À noite, a rua ficava imersa em escuridão e só a queda das contas perturbava o silêncio.
Essas noites, que de começo pareciam calmas, amigáveis, encheram-se subitamente de terrores. Renascia o medo. Constituíra-se uma quadrilha de ladrões numa das aldeias do lago, cujos habitantes tinham má fama. Essa quadrilha, invisível durante o dia, compunha-se de pescadores e jornaleiros que, depois do anoitecer, montavam nos seus cavalos e iam assaltar casas solitárias ou mal guardadas.
O facto de saber que um bando de malfeitores rondava naquela região era o bastante para incitar os ladrões isolados a agir também. Fosse o que fosse que acontecesse, seria atribuído aos bandidos. Deste modo, mais de um indivíduo considerado honesto se deixava dominar pela cobiça e se escapulia à socapa armado de faca ou de pistola para se aproveitar igualmente da escuridão.
Kate sentia o terror condensar-se no silêncio da noite mexicana; silêncio tenebroso, tão profundo que se tornava sobressaltante, o som duma conta a cair. Deitada na cama, Kate escutava o mínimo rumor nas trevas densas. Ouviam-se ao longe apitos de polícia, daí a pouco passava a patrulha a cavalo. Mas, como acontece em quase toda a parte, a polícia nunca aparecia quando era precisa.
Aproximava-se a estação das chuvas, e o vento nocturno, vindo do lago, fazia sussurrar as árvores e abalava as portas desconjuntadas da casa. Os criados encafuavam-se nas suas dependências. No México, uma pequena distância isola-nos completamente desde que a noite desce; e ficamos perdidos na escuridão envolvente.
De manhã, Juana vinha da praça, com os seus olhos como gotas de tinta e, no rosto bronzeado, a expressão cansada dos entes submetidos ao medo. Logo de entrada, e na sua linguagem pouco compreensível, embrenhava-se na história de uma casa assaltada e de mulheres assassinadas. E a dona do hotel mandava dizer a Kate que não era prudente dormir sozinha em casa. Seria melhor passar a noite no hotel.
Toda a aldeia se encontrava sob estranha apreensão. Pairava no ar da noite um terror pânico. Renascia a confiança à claridade azul da manhã, mas ao anoitecer o sangue parecia coagular-se, a atmosfera tornava-se densa.
O medo, é claro, comunicava-se duns aos outros. Se Juana e a respectiva família não andassem cheias de pavor, Kate nunca sentiria medo, disso estava ela certa.
Ali não havia homens. Juana tinha dois filhos, Jesus, de vinte anos, e Ezequiel, de dezassete. Mas Jesus era quem tomava conta do motor da luz eléctrica, e tanto ele como Ezequiel dormiam na casa das máquinas. De modo que Juana ficava só com as duas filhas, Concha e Maria, no cubículo ao fundo da residência de Kate.
Antes, a plaza mantinha-se animada até às dez da noite, com gente a conversar ou a ouvir os moços tocadores de viola e o homem dos sorvetes a apregoar de contínuo: Nieve! Nieve!
Agora o largo esvaziava-se às nove horas. E havia ordem de prender quem fosse encontrado na rua depois das dez.
Kate corria para casa e trancava as portas. Não é fácil suportar o pânico de um povo meio bárbaro. O medo espalha-se no ar, envolve-nos, paralisa-nos a alma com a sensação de desgraça iminente, dum horror atroz.
Às dez horas cortavam a luz eléctrica, tudo ficava às escuras, e, deitada na cama, Kate sentia o sopro maléfico espraiando-se na atmosfera em vagas sucessivas.
Acudiam-lhe à memória todas as histórias arrepiantes passadas no país. E de novo pensava nessa gente de aspecto pacífico e sorriso doce. Mas o próprio Humboldt dissera a respeito dos mexicanos que nunca encontrara povo de sorriso tão suave e olhar tão feroz. Não que os olhos revelassem propriamente ferocidade; contudo, o seu negrume iluminava-se dum clarão frio, de cintilações de punhal nas trevas da noite, ao mesmo tempo que neles despertava a sede de homicídio.
Seres incompletos, não de todo criados, encontravam-se à mercê das velhas influências que jaziam como sedimento no fundo de cada um deles. Enquanto estavam calmos, eram simpáticos, bondosos, simples. Mas, se alguma coisa lhes revolvia as profundezas, logo se erguiam as nuvens tenebrosas de ódio e de morte.
Adivinhava-se-lhes na alma um ressentimento constante, como que uma ferida jamais cicatrizada. O ressentimento dos entes incapazes de conquistar sozinhos uma integridade individual fora do caos de paixões e forças mortíferas. Eram apanhados na engrenagem duma ansiedade ancestral como nos anéis duma serpente negra que lhes oprimisse o coração. Onerosa carga dum passado invencível.
E debaixo desse peso vivem e morrem, sem grande pena de morrer. Enredados nos elementos, não conseguem desenvencilhar-se. Queimados pelo sol excessivamente forte, sobrecarregados pela electricidade da atmosfera mexicana e atormentados pela erupção de vulcões que lhes rebentavam aos pés. Tremendos elementos do continente americano que tornam forte o corpo dos homens mas que esmagam a alma e impedem a sua elevação. E, se nalgum ela se eleva, os elementos maléficos a pouco e pouco a destroem, até que o homem se decompõe em ideias e actividades maquinais, num corpo cheio de energia mecânica mas de espírito morto e putrefacto.
Assim, esses seres incapazes de dominar os elementos, submetidos às forças do sol, da electricidade e das erupções vulcânicas, estão sujeitos a acessos de rancor e de ódio ardente à própria vida. Então, nada melhor do que enterrar uma faca num corpo vivo. Nenhuma volúpia iguala essa de cravar a lâmina e ver jorrar o sangue.
É a suprema satisfação duma raça presa a um passado de que não consegue libertar-se. Raça que não conhece Salvador nem Redenção. Quais mineiros enterrados vivos na derrocada duma mina, nações inteiras ficam sepultadas sob os escombros do passado - até que um salvador lhes mostre a saída para o sol.
Deitada na cama, Kate reflectia profundamente na'escuridão da noite, de ouvido atento aos menores ruídos que a enchiam de terror. Não podia refrear o coração; dir-se-ia que lho arrancavam, e o sofrimento era atroz. Pela primeira vez sentia medo físico, o sangue gelava-se-lhe nas veias.
Na Inglaterra, na Irlanda, durante a guerra e a revolução, conhecera o medo espiritual. O medo horrível da ralé; e durante a guerra as nações eram quase tudo ralé. O terror da canalha que pretendia acabar com a liberdade de pensamento em cada homem e em cada mulher. Era a ambição fria e colectiva de milhões de criaturas: aniquilar o espírito daqueles que resistiam e assim poderem iniciar a descida geral para as camadas interiores onde existe o culto do ouro e a volúpia de matar. A canalha.
Nesse tempo, Kate conhecera a agonia do medo social, como se a democracia fosse um polvo enorme que enlaçasse com os tentáculos quem lhe resistisse.
Agora o seu medo era doutra espécie. Sentia o coração doer-lhe, como se o arrancassem, o sangue parecia fugir-lhe das veias...
Dormitava, e acordou em sobressalto a um leve rumor. Sentou-se na cama. As portas que davam para a varanda tinham postigos, e estes encontravam-se escancarados a fim de arejar o quarto. Nessa abertura Kate distinguiu, recortando-se no céu escuro, uma forma negra semelhante a um gato que rastejasse no rebordo da janela.
- Que é? - perguntou ela maquinalmente.
No mesmo instante, aquilo moveu-se, deslizou para fora, e Kate percebeu que era o braço de um homem que tentava abrir o ferrolho interior da porta. Por uns segundos ficou paralisada, pronta a gritar. Então, como não pressentisse mais nada, inclinou-se e acendeu uma vela.
Era uma verdadeira agonia aquele terror pânico. Imobilizava-a, deslocava-lhe o coração... Ficou prostrada, no angustiante pavor nocturno. A vela projectava uma claridade lúgubre. Ouvia-se o ribombo longínquo de trovões. A noite era atroz, atroz, e o México horroroso.
Kate não conseguia dominar-se. "Estou à mercê disto", pensava. Sensação terrível, ver-se subjugada pelo medo.
"Que hei-de fazer?" perguntou a si mesma, reunindo coragem. Sabia que estava só.
Durante muito tempo sentiu-se incapaz de se mover. Então disse consigo, para se animar: "Creio no mal e não devo crer. O pânico e o assassínio são coisas que só sucedem quando perdemos o domínio de nós próprios. Não acredito verdadeiramente no mal. Acredito, sim, na existência dum poder supremo que nos comunica a sua força desde que tenhamos fé nele. O homem que queria entrar aqui não possuía essa força. Tentava ser maléfico, mas submeter-se-ia ao poder dominador."
Deste modo se ia tranquilizando, até que teve a coragem de se levantar e fechar os postigos. Em seguida, percorreu os quartos a fim de verificar se tudo estava trancado. E sentiu certo alívio ao compreender que temia tanto os escorpiões como a horrível sensação de pavor.
Depois de observar o fecho das cinco portas e das cinco janelas da ala de quartos comunicantes, Kate ficou encerrada nas trevas com a sua vela. Para o outro lado da casa, sala de jantar e cozinha, tinha de ir pela varanda.
Mais serena, embora ainda com o coração atormentado pelo medo, Kate reflectia. "Joachim afirmava que o mal provém de regressarmos aos costumes primitivos. É o que provoca roubos e assassínios. O tambor da noite de sábado evocava o ritmo da antiguidade e aquela dança selvagem era a velha forma de expressão. Regresso consciente à barbárie... Talvez a origem do mal..."
Mas logo intervinha o seu desejo de crer.
"Não! Temos de nos agarrar aos elos antigos, encontrar o impulso que nos relacionará de novo com o mistério do cosmos. Don Ramon tem razão. Ele deve ser um grande homem. Julguei que já não existissem grandes homens. Só grandes financeiros, grandes artistas, mas não grandes homens. Don Ramon deve ser um ente superior."
E Kate sentiu-se apaziguada a esta ideia.
Mas, logo que apagou a vela, surgiram clarões muito vivos através das fendas do postigo. Ribombaram trovões clamorosos, que pareciam afundar-se-lhe no coração. Kate sentia-se como que esmagada, na consciência duma tortura que a paralisou até de manhã e lhe deu a impressão de ser, ela própria, um destroço de naufrágio.
Por fim apareceu Juana, também com o ar de desenterrada, para lhe fazer a pergunta tradicional:
- Como passou a noite, Niña?
- Muito mal - respondeu Kate. E contou-lhe a história do gato preto e do braço do homem.
- Mire! - replicou Juana, sufocando a voz. - A inocentinha vai ser assassinada na cama. Não, niña, tem de passar a dormir no hotel. Não, Niña, não pode continuar com o postigo aberto. É impossível. Está a ver agora como é necessário que durma no hotel? Assim fazia a outra senhora.
- Não quero - declarou a patroa.
- Não quer, Niña? Ah, entonces, entonces... niña, vou dizer ao Ezequiel que venha dormir na soleira da porta, armado de revólver. Ele tem um revólver, pode ficar do lado de fora da porta, e a senhora já deixava a sua janela aberta, para lhe refrescar o quarto. Pobres de nós, mulheres, precisamos de um homem que tenha revólver. Não devemos estar sozinhas, toda a noite. Temos medo, e as crianças também têm medo. Imagine que um ladrão tenta arrombar o ferrolho da porta! Imagine! Não, niña, vai-se falar ao Ezequiel hoje mesmo, antes do meio-dia.
Ao meio-dia, Ezequiel compareceu, muito seguro de si. Era um rapaz, meio selvagem, mas dava largas passadas, empertigado e orgulhoso. A voz, na mudança própria da puberdade, tinha uma entoação estranha.
Ficou de pé, acanhado, ouvindo o que lhe recomendavam. Depois olhou para Kate com as pupilas negras e brilhantes, convicto do seu papel de salvador.
- Sim, sim - declarou. - Durmo aqui no corredor. Não tenha medo. Trago a pistola.
Saiu, e voltou com a arma, que era de cano comprido.
- Tem cinco cargas - participou, exibindo o revólver. - Se abrir a porta de noite, previna-me, porque, se eu vir mexer qualquer coisa, disparo os cinco tiros. Pum!, pum!
Pelo brilho do olhar do rapaz, Kate compreendeu quanto ele gostaria de fazer fogo sobre o que se movesse nas trevas. Não o preocupava a hipótese de ser alvejado por seu turno.
- niña - disse Juana - se voltar tarde para casa, depois de as luzes estarem apagadas, não se esqueça de chamar pelo Ezequiel. Senão... pum!, pum! Nunca se sabe quem pode ser a vítima.
Ezequiel dormiu sobre uma esteira na varanda de tijolos, defronte da porta de Kate. Enrolou-se num cobertor e conservou o revólver à mão. A senhora podia ficar de janela aberta. Na primeira noite, esteve muito tempo acordada por causa do ressonar estrondoso do rapaz. Nunca ela ouvira semelhante coisa! Que pulmões que ele devia ter! Dir-se-ia um som que viesse de outro mundo estranho e bárbaro. O barulho manteve-a desperta, mas havia naquilo um não sei quê de agradável. Algo semelhante a uma força bravia.

IX
Kate depressa se afeiçoou à negligente Juana e respectivas filhas. Concha tinha catorze anos. Era uma rapariga selvagem, entroncada, de cabeleira hirsuta que ela coçava constantemente. Maria, de onze anos, parecia um passarito, com olhos enormes que se diria absorverem toda a luz à sua volta.
Juana confessava que Jesus era filho doutro pai, mas o aspecto dos restantes fazia suspeitar ter cada um deles progenitor diferente. Toda a família, porém, mostrava igual despreocupação perante a vida. Viviam o dia-a-dia sem se importarem com o passado, nem com o presente, nem com o futuro. O dinheiro não lhes interessava. Assim que o recebiam gastavam-no, e logo o esqueciam.
Sem aspirações, sem objectivos, levavam existência absolutamente terre à terre no seu país sombrio e vulcânico. Não eram animais porque homens, mulheres e crianças não podem ser animais. Tal não nos foi concedido. Vai, e não voltes para trás - diz o Criador. Quando o homem tenta brutalmente tornar ao primeiro estado da evolução, fá-lo com espírito de crueldade.
Por isso os olhos negros daquela família revelavam certo medo, espanto e sofrimento. Angústia das criaturas humanas sem força para desenvolver as possibilidades do seu ser; incapazes de arrancar do caos a própria alma e indiferentes a qualquer outra vitória.
Também os brancos perdem a alma a pouco e pouco; mas conquistaram os mundos inferiores do metal e da energia e, graças às máquinas, lançam-se em corrida louca de roda da sua vacuidade.
Naquela família Kate encontrava algo de patético e de repugnante.
Desde que haviam aceitado niña como patroa, Juana e as filhas mostravam-se profundamente honestas. Honestas, a pontos de não tirarem uma única ameixa do fruteiro. E solícitas no serviço, de uma solicitude quase excessiva.
Viviam na sujidade, indiferentes ao ambiente. O chão era o seu caixote do lixo. Para ali arremessavam tudo o que consideravam inútil e ninguém se preocupava mais com isso. Pareciam 138
comprazer-se em viver no meio de pulgas e de trapos, de cascas de banana e caroços de manga. Um pedaço arrancado dum vestido - aí vai para o chão! Cabelos tirados do pente - chão com eles!
Kate não suportava aquilo. Afligia-a tamanha desordem, e o facto de ela se afligir divertiu imensamente a família mexicana. Mãe e filhas varreram então o pátio com uma vassoura de urze, até raspar a própria superfície da terra. Que engraçado, a niña preocupar-se com aquelas coisas!
Kate constituía para elas uma fonte de espanto e de divertimento. Não a consideravam pessoa de classe elevada. Era um ente meio incompreensível, meio espantoso.
Niña queria que o aquador lhe trouxesse todas as manhãs dois botes de água das nascentes térmicas para fazer abluções completas. Que esquisito! "Maria, diz ao aquador que corra a buscar água para a niña."
Quase se melindravam com o facto de ela se fechar no quarto para tomar banho. Era uma espécie de deusa, provocava-lhes alegria e admiração; mas devia ser sempre acessível. Kate depressa descobriu que um deus sempre acessível aos seres humanos passa bocados pouco invejáveis.
Não, aquilo não era nenhuma sinecura. De manhã começava o barulho da vassoura de urze lá fora. Kate deixava-se estar na cama, de portas fechadas e postigos abertos. Alvoroço no pátio. Alguém queria vender ovos. Onde está Niña? A dormir. O visitante não se retira e as conversas continuam.
O aquador! Ah, a água para o banho da niña. Está a dormir. "Não estou, não!" - grita Kate, enfiando o roupão e destrancando a porta. As pequenas entram com a tina, seguidas do aguadeiro com duas latas cheias de água quente. "Doze centavos, doze centavos para o aquador." No hay! Mais tarde, mais tarde. O homem vai-se embora, com a vara ao ombro. Kate fecha os postigos e começa a tomar banho.
- Niña!, Niña! - Que é?
- Quer ovos estrelados, quentes ou rancheros?
- Quentes.
- Café ou chocolate?
- Café.
- Ou prefere chá?
- Não, café.
O banho continua.
- Niña!
- Dize lá.
- Já não temos café. vou comprá-lo.
- Não é preciso. Tomarei chá.
- Não, niña, Eu vou. Espere por mim.
- Está bem, vai.
O primeiro almoço é na varanda. A mesa está posta, há pilhas de frutos, pão alvo e bolos.
- bom dia, niña. Como passou a noite? Maria, traze o café. vou meter os ovos na água. Oh, niña, eles não devem ficar cozidos... Meu Deus, que pés de Madona! Olhem, que bonitos!
E Juana inclina-se fascinada e, com o dedo escuro, toca nos pés acetinados de Kate metidos em leves sandálias seguras por uma única tira.
O dia tinha começado. Juana considera-se como inteiramente dedicada a Kate. Tão cedo quanto possível, expede as filhas para a escola. "Niña diz que é preciso ir para a escola. Não ouvem o que ela diz? Vamos, girem!"
No seu passo coxeante, Juana anda cá e lá na varanda, da cozinha para a mesa do almoço, transportando os pratos um por um. Depois, com grande espalhafato, começa a lavar a louça.
Manhã! O sol inunda o pátio, os cardeais e as folhas dilaceradas das bananeiras. Os pássaros voam em todos os sentidos com precipitação tropical. Na sombra densa das mangueiras passam índios vestidos de branco, semelhantes a espectros. Há um frémito de vida e, no entanto, o silêncio é opressivo. Os olhos deslumbram-se à claridade ofuscante, a alma sente-se oprimida.
Kate senta-se na varanda e finge coser. Surge um velho, segurando um ovo na mão, como qualquer símbolo. A patrona quereria comprá-lo por cinco centavos? Juana só dava quatro. De acordo? Onde está Juana?
Juana volta da praça com outras compras. O ovo! Quatro centavos! A conta das despesas. Entonces! Entonces! Luego! Luego. Ah, niña, no tengo memória.
Juana não sabia ler nem escrever. Todas as manhãs ia ao mercado, comprava uma porção de coisas de um ou dois centavos e todas as manhãs era preciso fazer contas. "Ah, onde é que nós íamos?
Não tenho memória nenhuma. Ora vejamos... Comprei três centavos de ocote... Quanto? Quanto soma agora, niña" Se faltava um centavo, ficava desolada e não falava noutra coisa. "Falta um centavo, niña? Sou estúpida, não sou? Mas eu dou-lhe um do meu dinheiro."
- Deixa lá, não penses mais nisso - dizia Kate.
- Mas eu quero pagar a diferença - insistia a mulher; e afastava-se, coxeando.
Uma hora depois elevava-se um grito no outro extremo da casa e Juana aparecia empunhando um ramo de salsa.
- Mire, niña! Compré perejil a un centavo. As contas estão certas agora?
- Estão - respondia Kate.
E a vida podia então retomar o seu curso. Existiam duas cozinhas: a anexa à sala de jantar, e a das criadas, numa espécie de barraca debaixo das bananeiras. Da varanda Kate via a abertura negra que fazia as vezes de janela na cozinha de Juana.
"Julgava Concha na escola!", disse Kate consigo mesma.
Mas não. No buraco escuro da janela distinguia-se o rosto moreno e a juba de Concha, espreitando para fora como um animal que saísse da toca, enquanto fazia as tortillas. Tortillas são uma espécie de filhos de milho. Preparam-nas batendo a massa na palma da mão até adquirir a lisura e leveza necessárias. Pouco depois do meio-dia via-se sair fumo pela janela: Concha lançava as tortillas cruas na frigideira de barro colocada sobre o lume.
Então Ezequiel aparecia, de manta sobre o ombro, chapéu de palha de grandes abas enroladas, pronto a comer as tortillas. No entanto, se trabalhava no campo, só chegava ao cair da noite. Sentava-se no degrau da porta e as mulheres serviam-no e iam-lhe buscar água como se ele fosse um rei. E ouvia-se-lhe a voz rouca dando ordens em tom calmo.
Porque, apesar do seu ar sereno e meigo, tomava uma entoação imperiosa desde que se dirigisse à mãe ou às irmãs. Prerrogativa de macho, que dava a Kate vontade de zombar do rapaz.
A hora da refeição era para Kate um dos seus tormentos. Apresentavam-lhe sopa muito quente e gordurosa, arroz apimentado, também gorduroso e fumegante, a inevitável carne nadando em gordura. Seguiam-se calabacitas, ou beringelas, salada, e o enorme cabaz de fruta. E, inundando tudo isso, o ardente sol tropical dos fins de Maio.
De tarde, o calor aumentava. Juana ia com as filhas lavar a loiça no lago. Agachadas sobre as pedras, agitavam na água cada prato, cada colher e cada garfo, e punham tudo a secar ao sol. Depois, enquanto Juana lavava uma ou duas rodilhas, as filhas banhavam-se no lago.
Jesus, o primogénito, costumava vir à tarde regar o jardim. Mas esse comia no hotel, onde prestava diversos serviços, trabalhando até às dez da noite por um salário de vinte e dois pesos, ou seja, onze dólares por mês. Usava camisa preta, e a cabeleira abundante tombava-lhe na testa baixa. Apesar da camisa fascista, possuía o espírito sarcástico e crítico dos socialistas, o espírito que vem do instinto de destruição.
Entre ele e a mãe existia pouca intimidade. Se Juana se encontrava em apuros, Jesus dava-lhe algum dinheiro mas, exceptuando o ténue laço de sangue que os unia, mostravam a maior indiferença um pelo outro.
Ezequiel tinha melhor tipo. Era esbelto, e tão direito que quase parecia arquear-se para trás. Tímido, arisco, orgulhoso, sentia-se mais responsável pela família. Não queria servir em hotéis. Não. Trabalhava nos campos, e tinha vaidade nisso: era labor de homem, não uma espécie de escravidão disfarçada.
Embora simples jornaleiro, não trabalhava para um patrão mas sim para a terra. E a terra, de certa maneira, era dele, pertencia-lhe...
Quando havia que fazer, chegava a ganhar um peso por dia. Se a terra estava seca, então procurava trabalho nas estradas, ainda que isso lhe não agradasse.
Mas nem sempre conseguia empregar-se. Durante dias, semanas, Ezequiel vagueava pelos arredores, sem nada que fazer. Quando o governo socialista dividiu as fazendas em lotes e os distribuiu pelos camponeses, coube-lhe um pedaço de terra fora da aldeia. O rapaz ia até lá e juntava pedras para construir um casebre. Cavava o chão tão profundamente quanto possível, mas não tinha amor a essa nesga de terreno que lhe viera parar às mãos de modo quase sobrenatural. Só lá ia de vez em quando, e sem nenhum entusiasmo.
Nos dias de trabalho regressava a casa por volta das seis horas e, cumprimentando Kate, timidamente, dirigia-se para o seu antro, onde, sentado no chão e de costas apoiadas à parede, dobrava tortillas umas sobre as outras e comia essa pasta elástica que tem o sabor de argamassa - pois o milho é primeiramente fervido com cal para largar a pele. Depois, dignava-se aceitar outra rima de fritos, que a irmã lhe apresentava numa folha de couve. Às vezes, Ezequiel tirava do tacho de barro um bocado de carne guisada que metia entre duas tortillas. Mas ingeria tudo rapidamente com uma espécie de indiferença. Aliás, os mexicanos parecem sempre indiferentes ao que comem.
Acabada a ceia, ia até à plaza, reunir-se aos homens. Havia ocasiões em que Kate, ao recolher a casa às nove horas, a encontrava quase deserta. Ezequiel estava no largo, Juana e Maria haviam desaparecido, e Concha dormia tal um molho de trapos no chão do pátio. Quando Kate a chamava, a pequena erguia a cabeça, espantada, entorpecida; depois, levantando-se como um cachorro, rastejava até ao portão.
Indiferença por tudo, até uns pelos outros. Juana lavava semanalmente uma camisa e um par de calças de algodão para cada um dos filhos, e aí terminavam os seus cuidados maternais. Nem se interessava averiguar qual o trabalho-de momento de Ezequiel. Sabia que arranjara emprego e isso lhe bastava. Contudo, de tempos a tempos, tinha ímpetos de amor materno, quando o rapaz era tratado injustamente, como às vezes acontecia. E, se o supunha doente, dominava-a um terror fatalista que só a abandonava depois de Kate intervir com qualquer remédio muito simples.
Semelhantes a animais. Mas os animais são perfeitos no seu isolamento e despreocupação; não se trata de indiferença, é que se bastam a si próprios. Ao passo que naquela família havia uma espécie de frustração, como se um torpor de aborrecimento a todos avassalasse.
As duas raparigas eram inseparáveis; andavam sempre atrás uma da outra. Concha arreliava de contínuo a inocente Maria de grandes olhos e esta debulhava-se em lágrimas. Ou então, no meio de uma fúria, ameaçavam-se com pedras, e Juana invectivava-as com súbita veemência, que logo se extinguia.
Estranha, aquela ferocidade repentina com que as pequenas arremessavam pedras, e não menos estranho, o esforço por não acertar. Kate notava a mesma coisa nos ataques selváticos que os garotos faziam uns aos outros nas margens do lago; atiravam calhaus com ar ameaçador, mas quase sempre falhavam o alvo.
Quase sempre, mas não sempre. Às vezes atingiam o adversário, que tombava como morto. Então os outros aproximavam-se, em silêncio temeroso, da vítima prostrada. De repente, o ferido erguia-se, com um esgar homicida no rosto, perseguindo o inimigo com uma pedra. E o inimigo fugia a sete pés.
Uma vontade perene de arreliar, de atormentar. O mesmo sucedia entre os Peles-Vermelhas. Mas o povo índio raramente recorria à violência, o que se não dava com os Mexicanos.
Kate, achando que devia fazer qualquer coisa pelas pequenas, dispensou-lhes uma hora por dia para lhes ensinar a ler, a redigir e a costurar. Maria queria aprender a ler; nisso mostrou boa vontade. Começaram bem, mas depressa a leve insistência de Kate em lhes chamar a atenção fez com que as alunas assumissem o tom de ironia peculiar ao continente americano. Ironia calma, invisível, malevolente, desejo de magoar.
- Não te debruces sobre mim, Concha. Põe-te direita.
- Porquê, niña Tem piolhos na cabeça?
A pergunta insolente era formulada com subtileza índia.
- Não! - respondia Kate subitamente irritada. - E agora vão-se embora! Afastem-se de mim.
E as pequenas retiravam-se, humilhadas.
Kate recebeu visitas de Guadalajara. Grande excitação! Mas enquanto tomava chá na varanda, Juana, Concha, Maria e Filipa, que era uma prima de dezasseis anos, sentaram-se no outro lado do pátio, bem à vista, com os belos cabelos soltos sobre os ombros, e, ostensivamente, puseram-se a catar piolhos umas às outras. Pareciam encantadas por exibirem a sua sordidez àqueles estrangeiros.
Kate desceu ao pátio.
- Se querem catar piolhos - disse em voz trémula de cólera - vão para onde ninguém as veja.
Atravessou um clarão de maldade os olhos negros de Juana, mas um instante depois, humilde e abjecta, a família retirava-se, de cabeleira ao vento, em direcção ao seu antro.
Juana comprazia-se em irritar Kate. Sentia assim uma espécie de poder sobre a Niña. É certo que temia um tanto essa irritação, mas era justamente o que desejava. De que servia uma niña que não lhe inspirasse algum receio?
Ah, raças escuras! Kate, como irlandesa, podia entrever um pouco do mistério. As raças escuras pertencem a um ciclo de humanidade já desaparecido; ficaram atrás, no fundo de um abismo donde nunca conseguiram sair. Jamais atingirão o nível dos brancos; limitam-se a segui-los de longe, como escravos.
Enquanto o homem branco avança, cheio de orgulho, as raças escuras cedem-lhe o passo e obedecem-lhe pela força. Se, porém, o branco hesita na sua marcha, logo os outros o atacam para o precipitar no abismo do passado.
É o que está a acontecer. Porque o branco, apesar de todas as farroncadas, duvida da sua própria supremacia.
E é a corrida veloz para a derrocada.
Desde a revolta de Kate perante a cena da caça aos piolhos, Juana voltou a servi-la com enternecedora solicitude. Embora indiferente a tudo, aquele ser das regiões inferiores não queria quebrar o débil fio que o ligava a Kate e ao mundo da claridade e do ar puro. Em suma, o desejo de Juana era conservar a sua niña, servir a sua Niña.
Ao mesmo tempo, parecia odiar a gente rica, branca e superior. De vez em quando contava a Kate histórias do passado. Então via-se-lhe uma expressão malévola nos olhos negros e na face acobreada, enquanto ela prosseguia: Usted sabe, niña, los gringos, los gringuitos llevan todo...
Os gringos são os Americanos, e Juana incluía Kate nos gringuitos, estrangeiros brancos. Aquela frase era nova insolência disfarçada, subtil...
- É possível - respondia Kate friamente. - Mas dize-me o que é que eu levo do México.
- Non, niña, non - Espalhava-se um sorriso de satisfação na cara de Juana quando ela conseguia atingir a outra mulher. Não me refiro a si, niña! - O protesto, porém, era pouco convincente.
Dir-se-ia que essas indígenas queriam obrigá-la a partir à força, insultando-a, rebaixando-a, até que a irlandesa, não menos impetuosa do que elas, abalasse dali num momento de fúria.
Oh, raças primitivas atrasadas!
Contudo, havia um lado patético na natureza daquela gente. Quando tinha catorze anos, Ezequiel trabalhara por conta de um sujeito que andava a construir casa. O homem prometera-lhe uma manta, mas ao fim de dois meses despediu-o sem cumprir a promessa. Foi uma desilusão bem amarga.
Kate nada tinha a ver com isso, mas Juana quase a acusava do facto.
Povo sem força para avançar, como podia deixar de ser explorado? Desde séculos que o exploravam cruelmente, e toda a sua energia se limitava a uma resistência malévola.
"Mas não pretendo explorá-los - dizia Kate consigo mesma.
- Pelo contrário, a minha vontade é dar-lhes mais do que recebo. São injustos os seus remoques. Nunca insultei estas criaturas. Faço a diligência de não as magoar e elas, deliberadamente, atacam-me e ficam radiantes quando me ferem."
No entanto, Kate procedia à sua maneira irlandesa: de vez em quando, isolava-se de Juana e das filhas. Porque, assim que as mandava para longe, desaparecia-lhes a malevolência e lembravam-se das ordens da niña. Se ela estava presente e amável, esqueciam-se de tudo. Esqueciam-se de varrer o pátio, de se apresentarem limpas, e só quando Kate as relegava para um canto é que tornavam a lembrar-se.
O filho Ezequiel tinha mais dignidade do que as mulheres.
Nunca fazia aqueles ataques insidiosos.
Quando a casa estava limpa e calma e o ar parecia purificado e a alma renovada, Kate sentia novamente amizade por essa família.
A sua azáfama, andando cá e lá, esvoaçando como pássaros; o estalo da massa das tortillas de encontro à palma da mão; o entusiástico esmagar de tomates e pimenta no tacho enquanto Juana preparava o molho; o barulho do balde no poço quando Jesus vinha regar...
Como isso era divertido! Assim devia ser tudo o que fizessem, ou então não o fariam. Não podiam fixar-se numa rotina. Jamais! Tudo devia ser alegre, variado, com uma pontinha de aventura. Era confusão, mas, no fim de contas, uma confusão viva, não uma coisa morta. Kate recordava-se dos seus criados britânicos nas cozinhas inglesas, tão maquinais e quase inumanos. Aqui era o extremo oposto.
Não havia disciplina nem método. Embora Juana e as filhas quisessem realmente fazer o que a niña desejava, só procediam conforme lhes apetecia. às vezes, Kate sentia-se angustiada. Mas, tanto quanto possível, ia suportando as extravagâncias daquela família. Tivera, por exemplo, de se habituar à vagabundagem da mesa de jantar, mesinha redonda cujo lugar era na varanda. Ao primeiro almoço, ficava discretamente debaixo das plantas, perto do salão; ao almoço da uma hora regressava à varanda; ao chá, ia para a relva do jardim, à sombra duma arvorezita. E, quanto à ceia, Juana deliberou então que a niña comesse os dois ovos e rancheros na própria casa de jantar, isolada a um canto da comprida mesa em que cabiam catorze pessoas.
Kate também nunca chegou a perceber o motivo por que, depois de lavarem a loiça na cozinha durante uns dias, se lembraram de repente de levar os pratos sujos para o lago, num cabaz, aos ombros de Concha. A não ser que achassem assim o trabalho mais divertido...
Crianças! Mas não inteiramente. Faltava-lhes a despreocupação da infância. Pressentia-se-lhes na alma qualquer coisa de sombrio, como que um peso que as forçava a resistir. Trabalhavam por acessos, podiam ser laboriosas; depois vinha a indolência e passavam horas estiradas no chão, como porcos. às vezes mostravam-se alegres, conversavam e riam, sentadas sobre a terra, em grupo, formando roda. Então, subitamente, contrariando a própria alegria, recaíam na mudez e na tristeza. Havia ocasiões em que, estando a trabalhar com afinco, atiravam para longe a ferramenta como se indignadas por terem cedido. Descuidados, versáteis nos seus amores, os homens, ao menos, passavam todo o tempo a resistir a si mesmos. Nunca procuravam o que pretendiam. As mulheres a que se aproximavam. E um rapaz e uma rapariga passeando às escuras na estrada marginal do lago, atiçando-se um ao outro, atormentando-se no meio de excitação, constituíam uma cena que deixava Kate pasmada - porque homens e mulheres não se cortejavam abertamente como fazem os brancos. E o riso súbito do macho, estranha voz de desejo reprimido, de obstinada relutância e paixão desesperada, parecia qualquer coisa a rasgar-se-lhe no peito, era um som que perdurava na memória.
Kate achava pesado o governo da casa. De certa maneira, eram como parasitas, queriam viver da sua vida, e rebaixá-la, rebaixá-la. Nalgumas ocasiões mostravam-se como pessoas meigas, generosas, encantadoras - até a fazerem novamente revoltar-se contra aquela indiferença reptilária. Indiferença e resistência.
Os servos forneciam a Kate a chave da vida indígena. Os homens sempre juntos, erectos, belos, equilibrando o chapéu enorme no alto da cabeça, quer sentados, quer de pé, quer de cócoras, numa impassibilidade de serpente; as mulheres sempre à parte, suaves, como que escondidas, estreitamente apertadas nos chailes escuros. Homens e mulheres pareciam voltar costas uns aos outros como se não quisessem ver-se mutuamente. Nenhuns galanteios, nenhum namoro. Apenas um olhar ocasional sombrio e rápido, sinal de desejo semelhante a um golpe de florete dado e recebido.
Elas, no conjunto, dir-se-iam inexperientes mas decididas a seguir o seu próprio desígnio: mudar de homens quando lhes apetecesse. E eles davam a impressão de não se preocuparem muito. Afinal eram as mulheres que pretendiam os homens.
As indígenas, com os negros cabelos tombados nas costas cheias e acobreadas, banhavam-se num canto da praia, geralmente em camisa ou com um saiote. Os homens mantinham-se alheados, nem sequer se dignavam olhar para a outra banda. Eram mulheres no banho, nada mais. Faziam parte, por assim dizer, da vida lacustre, como os peixes que ali nadavam. Concediam-lhes mesmo aquele ponto do lago, e elas sentavam-se nos baixios, isoladas como aves aquáticas, e molhavam a cabeça e os ombros com o auxílio duma cabaça.
Calmas, discretas, desprezadas fêmeas da classe dos peóns, seguindo o seu caminho envoltas no rebozo como num manto de trevas, ágeis, balançando as saias rodadas e gorjeando como passarinhos; ou paradas na borda do lago, com os cabelos longos a gotejarem; ou subindo lentamente a margem com uma pesada bilha de água ao ombro e um braço por cima da cabeça, a segurar a asa do cântaro; ou, especialmente nas tardes de domingo, sentadas à porta da casa, catando piolhos umas às outras. As moças possuidoras de cabeleira abundante e ondulada eram as que mais piolhos tinham. Aquilo representava um acto público meritório.
Parecia a Kate que esse país não podia originar nada de mais elevado do que a amizade entre os homens. O próprio casamento tinha pouca importância. E, embora se mostrassem meigos e protectores para com as crianças, os pais depressa as esqueciam.
A questão do sexo era no entanto a primordial, aquela que não devia ser omitida nem aflorada abertamente. O único mistério, muito maior do que o indivíduo. Este pouco contava.
Kate pasmava ao ver as choças de palha dos índios nas margens do lago. Ali fervilhavam crianças seminuas no chão de terra batida, no meio de trapos, de ossos, e do fedor de excremento humano.
Esse povo parecia não ter olfacto. E defronte do buraco que servia de porta à cabana, o homem impassível, magnífico, silencioso... Como era possível que tão belo exemplar de virilidade se mantivesse indiferente a tamanha porcaria?
Mas ali se conservava como inconsciente. Contudo, era um ser vivo - e forte. Nenhum homem no mundo pode transportar cargas tão pesadas como os índios do México. Kate vira já um deles passar na rua com um piano às costas, apenas seguro por uma correia em volta da testa.
Portanto, força não escasseava, mas sim energia. Nem sequer a classe dos artífices que imita a dos Estados Unidos demonstra ser enérgica. Têm os seus clubes, aperaltam-se e andam de braço dado com raparigas bonitas, mas percebe-se que tudo isso não passa de vulgar imitação.
Inesperadamente, a família de Kate aumentou. Um dia, chegou de Ocotlan uma formosa moça de 15 Primaveras, com grandes olhos bovinos, Maria del Carmen. Acompanhava-a Júlio, rapaz de vinte e dois anos. Tinham casado há pouco, e vinham de visita a Sayula. Júlio era primo de Juana. Poderiam dormir no pátio com ela e com as filhas? - perguntou Juana. Só se demorariam dois dias.
Kate ficou espantada. Maria Del Carmen devia ter sangue espanhol, a sua beleza evocava a Espanha. Parecia pertencer a um nível superior, mais educado, e no entanto ia dormir no chão com esse esposo juvenil... E ele, tão aprumado e de ar tão orgulhoso, nada possuía além duma velha manta.
- Há três quartos desocupados - disse Kate. - Que durmam num deles. - As camas eram de pessoa só. - Precisarão de mais cobertores?
Não. Bastaria a manta de Júlio.
Este era assentador de tijolos, isto é, ajudava a construir as paredes das casas de adobe. Nascera em Sayula e vinha ali de visita.
Essa visita, no entanto, prolongou-se. Júlio andava à procura de trabalho e só aparecia ao anoitecer. Maria del Carmen entretinha-se a amassar tortillas na cozinha de Juana e a conversar com as raparigas. À noite, o marido regressava e, sentado no chão, de costas apoiadas à parede, sempre impassível, deixava a mulher acariciar-lhe os cabelos negros e bastos.
Amavam-se, mas Júlio resistia ao seu amor.
Ela queria voltar para Ocotlan, onde era mais señorita do que em Sayula, mas o rapaz recusou. Não tinha dinheiro; o casal sustentava-se com cerca de cinco cêntimos por dia.
Quando Kate estava a coser, Maria del Carmen, que nem sabia talhar uma camisa, observava-a de olhos arregalados. Kate ensinou-lhe costura, comprou-lhe uns metros de chita e Maria del Carmen fez um vestido com as suas mãos.
Júlio arranjou trabalho, a um peso por dia, e a visita continuou. Kate achava o rapaz pouco terno para a mulher: sempre que lhe falava era em tom de comando. E Maria del Carmen não levava isso a bem e amuava um pouco.
Passaram-se semanas, e Juana começava a cansar-se dos parentes.
Por fim, Júlio arrendou uma casita de adobe só de um compartimento, ao preço de peso e meio por semana. Maria del Carmen ia ter o seu lar.
Kate viu-os juntar as suas coisas para a mudança. Consistia tudo numa esteira de palha, três tachos de barro, cinco peças de loiça, duas colheres de pau, uma faca e a manta de Julio. Nada mais.
Presenteou-os, então, Kate com um edredão de seda já um tanto puída, duas tigelas e diversos utensílios de cozinha. Foi uma alegria. A voz de Maria del Carmen soava no pátio em exclamações delirantes. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"
Na época das chuvas as noites são por vezes glaciais devido à evaporação, e os indígenas, transidos de frio, esperam pelo romper da manhã deitados sobre esteiras delgadas e abafados apenas com a ponta de um cobertor velho. A inércia natural fá-los suportar o sofrimento sem tentar minorá-lo. Podiam arranjar um colchão de palha de milho e cobrirem-se com folhas secas de bananeira. Mas não. Estendem-se numa esteira em cima da terra húmida e tiritam de frio noite após noite.
Maria del Carmen, porém, era um pouco mais civilizada. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"

CONTINUA

VII
Sayula era uma pequena estação balnear; não para ricos ociosos, porque o México os tem em pouca quantidade, mas para comerciantes de Guadalajara e gente que passeia nos fins-de-semana. E mesmo assim em reduzido número.
Havia, no entanto, dois hotéis, que vinham dos dias calmos de Don Porfirio, tal como a maior parte das vivendas fora da povoação, hoje fechadas e muitas delas abandonadas. Na aldeia viviam em perpétuo estado de terror. Acima de tudo temiam os bandidos e os bolchevistas.
Os bandidos eram apenas homens das localidades afastadas que, sem dinheiro, sem trabalho e sem esperança faziam ocasionalmente profissão do roubo e do assassínio. Habitavam nas suas aldeias selvagens até que as tropas os obrigavam a refugiar-se nas montanhas ermas ou nas regiões pantanosas.
Quanto aos bolchevistas, pareciam nascer do caminho de ferro. Onde houvesse carris, passageiros e carruagens de diferentes classes, aí despertava o espírito de rebelião e inveja; e o ferro e as demoníacas locomotivas ofegantes dir-se-ia engendrarem esses filhos do materialismo que são os bolchevistas.
Sayula possuía o seu ramal, com um comboio diário; a linha não cobria as despesas e lutava por se manter - mas já era bastante.
Sayula fora atingida pela loucura da América: o automóvel. Assim, como outrora os homens desejavam um cavalo e uma espada e as mulheres sonhavam com uma casa ou um camarote no teatro, a ambição actual é possuir um carro.
Era um desfile contínuo de "máquinas", de automóveis ligeiros e pesados na única estrada que ligava Sayula a Guadalajara. Uma esperança, uma fé, um objectivo: andar de carro, possuir um carro.
Quando Kate chegou à aldeia, falavam com certo alarme do regresso dos bandidos, mas a irlandesa não prestou a mínima atenção ao assunto. À noite, foi àplaza e misturou-se com o povo. Era um largo ornado de árvores imponentes, com um velho coreto no centro e um passeio em volta. No lado norte ficava o mercado. Mais além, passavam burros e camionetas nas ruas mal calcetadas.
A banda de música já não tocava em Sayula, a elegância já não se exibia naplaza, debaixo das árvores. Mas o pavimento ainda era bom e os bancos mais ou menos sólidos. Oh, tempos de Don Porfirio! Agora, só os peóns e os índios, com os seus fatos brancos e manta ao ombro, enchiam os bancos e monopolizavam a praça. É certo que se mantinha a lei que obrigava os peóns, naquelas paragens, a usar calças e não a espécie de ceroulas largas e flutuantes das suas lides rurais. Mas os peóns, por seu lado, também gostavam de envergar calças em vez daquele traje representativo do humilde labor do campo.
Eram eles, pois, quem dominava na praça, ora sentados em bancos ora passeando indolentes com a sua manta e de sandálias. Depois das seis horas, enchiam-se as barracas de comida quente, na rua calcetada do lado norte: ficava mais barato comer fora de casa e findava-se agradavelmente um dia de trabalho. As mulheres, de portas adentro, que ficassem a mastigar as suas tortillas; mas não provavam caldo, nem sopa, nem guisado. Nas tendas que vendiam tequila, instalavam-se homens, mulheres e rapazes defronte da mesa, em bancos, acotovelando-se uns aos outros. Também havia jogos de azar, pouco violentos, em que o banqueiro voltava uma carta e todos gritavam: Cinco de Espadas! Rei de Copas! Certa mulher corpulenta, imperturbável, de cigarro na boca e perigosa expressão nos olhos sombrios e baixos, vendia tequila, sentada ao escuro, toda a noite. O homem dos doces ficava de pé junto do seu balcão. Por terra, viam-se pequenos archotes metidos em latas, alumiando montes de mangas ou daquelas nauseabundas ameixas tropicais, encarnadas, que se liquidavam por dois ou três centavos a pilha, enquanto a vendedora, de saia larga, ou o vendedor, humilde e paciente, esperava acocorado o freguês, com aquela indiferença fatal e aquela submissão que tanto intrigam o estrangeiro. Ter ameixas para vender no valor de trinta cêntimos; amontoá-las no chão em pequenas pirâmides, cinco em cada uma; e esperar todo o dia e até de noite, de cócoras, a olhar de baixo para cima, para a cara do transeunte e possível comprador - eis, ao que parece, uma ocupação e um modo de vida.
Era vulgar encontrar-se ali um par de rapazes empunhando violas de tamanho diverso, em frente um do outro como dois galos combatentes; entoavam uma canção interminável, cantando em voz sumida as eternas baladas não muito musicais, dolorosas, extensas, audíveis apenas para os que estavam próximos. E assim se conservavam até enrouquecerem. Em volta, com mantas encarnadas, paravam homens altos e escuros, ouvindo por instantes e raramente contribuindo com um centavo.
Entre as barracas de comes e bebes estava um trio de duas violas e uma rabeca; dois dos músicos eram cegos e cantavam em diapasão alto, mas também de modo pouco audível. Dir-se-ia cantarem só para si, muito chegados um ao outro, como se a melancólica balada lhes repercutisse no peito.
A aldeia em peso comparecia naplaza. No entanto, raramente, muito raramente uma voz se erguia acima do murmúrio grave dos homens, do sussurro musical das mulheres, do gorjeio das crianças. Poucos movimentos apressados. O lento passeio dos homens de sandálias, chamadas huaraches, fazia um rumor leve de baratas a arrastarem-se no chão. Fora e dentro da multidão calma, corriam rapazes de pernas ao léu. Eram os irrequietos engraxadores, que pululam como moscas importunas naquela terra de gente descalça.
No lado sul, viam-se mesas e cadeiras no passeio: uma tentativa de café-esplanada- Aí, nos dias de semana, sentavam-se para tomar cerveja ou um copo de tequila as poucas pessoas que se atreviam a tamanha exibição - na maior parte estrangeiras. E ospeóns, imóveis nos bancos do último plano, observavam-nas com olhos de basilisco sob as largas abas do chapéu.
Mas ao sábado e ao domingo era quase festa. Chegavam carros aos solavancos, e, como pássaros exóticos, volteavam na plaza raparigas graciosas de vestidos vaporosos, faces empoadas e cabelos encaracolados. Passeavam de braço dado, trajadas de organdi vermelho ou azul, de musselina amarela ou cor-de-rosa, e com tal camada de pó-de-arroz na cara que a pele morena apresentava a brancura lívida dos palhaços ou dos cadáveres.
Adejavam como borboletas coloridas no meio da multidão de homens do povo. fortes e belos. Era restrito o número de mancebos elegantes que pudessem equiparar-se àquelas mocinhas. Contudo, havia alguns, de calças de flanela branca, casaco escuro, palhinhas e bengala. Fumavam cigarros com gesto afectado, falando um castelhano elegante, tão próximo quanto possível do original, e com o ar de que seriam dentro de doze meses sacrificados a algum deus mexicano depOis de estarem devidamente nédios e perfumados.
Ao sábado, os janotas, as raparigas e todos os que vinham de carro, da cidade - que, aliás, eram poucos - tentavam divertir-se nesse lúgubre país. Contratavam tocadores de viola e rabeca e a música de jazz elevava-se em acordes um tanto langorosos.
Debaixo das árvores da alameda, perto das mesas e das cadeiras do café, começavam pares a dançar à la mode. Os vestidos vermelhos, amarelos e azuis rodopiavam com as calças de flanela, donde saíam elegantes sapatos brancos guarnecidos de tiras de couro preto ou castanho. Algumas das saias de organdi encimavam meias e sapatos verdes, ou pernas à Ia nature com sapatos brancos. Os braços franzinos e morenos enlaçavam os ombros azuis-escuros dos moços, que sorriam com ar protector para as facezitas brancas e petulantes; sorrisos meigos, paternais e impregnados de sensualidade.
Mas a dança era no recinto da praça, e na praça erravam indolentes os homens do campo, ou então paravam em grupos, espiando os pares rodopiantes com os seus olhos pretos, misteriosos, impenetráveis. Em que pensariam? Sentiriam admiração, inveja, ou simplesmente uma silenciosa e fria oposição? Sim, oposição é que devia ser.
Esses camponeses de camisa branca e manta escarlate, airosamente dobrada ao ombro, passeavam devagar, quase ocultos sob o chapéu enorme e pesado, dispostos a não fazer caso dos que dançavam. Vagarosos, oscilando o corpo, eles moviam-se irresistivelmente no meio da dança como se a dança, no fim de contas, não existisse. E os rapazes de calças brancas, levando nos braços as damas de organdi, evolucionavam como podiam, fazendo o possível por se desviarem âospeóns impassíveis, que prosseguiam na sua conversa, sorrindo na alvura dos dentes, com um sangue-frio que gelava os próprios músicos. Nunca se tocavam, nunca se acotovelavam, dançarinos epeóns; no México ninguém se atropela involuntariamente. Mas a dança embatia contra a oposição invisível.
Os índios sentados nos bancos contemplavam também por momentos as evoluções dos bailarinos, após o que os fulminavam com a sua pesada indiferença. Misteriosa faculdade dos índios, tão densa e calma, para destruir a vida palpitante, para apagar qualquer foco de efervescência.
Na verdade, um simples bailarico de indígenas; mas dir-se-ia fechado dentro de quatro paredes. E o ritmo soava diferente, grave, com certa violência. Os dançarinos eram artífices, mecânicos ou carregadores da estação: gente meio citadina. Nenhuns trabalhadores do campo, ou quase nenhuns.
Por isso, passado não muito tempo, as borboletas de organdi e os moços de calças de flanela sucumbiram esmagados pela enorme passividade, pela resistência dos satânicos peóns.
Curiosa, radical oposição dos índios contra essa coisa a que chamamos espírito. É o espírito que leva as meninas petulantes a adejarem as suas asas de organdi como borboletas. É o espírito que vinca as calças de flanela dos rapazes e lhes dá aquele ar um tanto patético. Tentaram representar a elegância e a vontade do espírito moderno.
No entanto, como um peso de obsidiana, surge a recusa passiva do índio; compreende a vida, que participa do sangue, mas o espírito, que é superior, e é a marca da nossa civilização, isso ele repudia, barbaramente, torvamente. Só quando se torna operário ou lida com ofícios mecânicos é que o espírito moderno o visita.
E talvez seja esse repúdio do espírito moderno que faz o México ser o que é.
Kate ficou um tanto desconsolada ao ver findar o baile. Instalara-se numa das mesas, com Juana a servir-lhe de duena, para tomar um cálice de absinto.
Os carros regressavam à cidade em pequenos grupos. Sempre seria melhor irem juntos, para o caso de aparecerem salteadores. Dominava-os o receio dos bandidos, e os próprios janotas usavam revólver no bolso.
Como era sábado, parte da mocidade elegante ficou para o dia seguinte, na ideia de tomar banho e de se espojar ao sol.
A plaza estava cheia, e ao comprido das ruas que desembocavam no largo cintilavam inúmeros archotes, iluminando uma exposição de chapéus de palha, de esteiras, de pirâmides de laranjas.
Havia feira no domingo de manhã, de modo que, de repente, o largo ficou estuante de vida - densa e pesada energia vital. Os índios tinham vindo de todas as aldeias, trazendo consigo essa curiosa energia vital que parece zumbir cada vez mais profundamente quando eles se encontram reunidos.
Durante a tarde, com o vento a soprar do sul, as canoas, de casco preto e larga vela desfraldada, haviam atravessado as águas do lago, transportando indígenas e produtos para o mercado. Para formar essa multidão todas as aldeias da margem concorreram com os seus habitantes.
Despertava o instinto que impele os índios para a vida nocturna desde que se encontrem reunidos. Ninguém recolhia a casa, ninguém pensava em dormir, embora a feira só principiasse ao romper da manhã.
Cerca das nove horas, depois de terminada a dança, Kate ouviu o rufar de um tambor, ou coisa semelhante, e notou que uma chusma de peóns se dirigia para o lado mais escuro da praça, onde já se viam barracas e cestos enormes, em forma de ovo, encostados à parede.
Aquele som, que era como o latejar dum pulso de gigante repercutindo no ar da noite, juntou-se a nota prolongada de uma flauta, tocando uma espécie de melodia bárbara. Kate, que já ouvira falar dos cânticos selváticos dos peles-vermelhas do Arizona e do Novo
México, sentiu instantaneamente espalhar-se na atmosfera a eterna
paixão das raças pré-históricas com a sua intensa e complicada significação religiosa.
Olhou para Juana com ar interrogador.
- Que é isto? - perguntou.
- Músicos, cantores - foi a resposta evasiva.
- Mas muito diferentes dos outros - insistiu Kate.
- Sim, aquilo é coisa nova.
- Nova?
- Apareceu aqui há pouco tempo.
- Donde veio?
- Sabe-se lá! - volveu Juana, encolhendo os ombros.
- Quero ouvi-los.
- Olhe que são só homens.
- Podemos ficar um pouco afastadas.
E Kate dirigiu-se para o ajuntamento silencioso dos peóns. Estavam todos de costas para ela.
Subiu o degrau duma porta e viu, perto do muro florido de buganvílias, um espaço livre iluminado pelos archotes de madeira resinosa que um rapaz segurava nas duas mãos.
O tambor estava ao centro dessa clareira, e o homem que o rufava tinha o torso nu e calças de brancura imaculada atadas na cintura por uma faixa escarlate e aos tornozelos por cordão da mesma cor. Cingia-lhe a cabeça uma tira vermelha, donde se erguiam três penas rubras sobre a nuca. Na testa brilhava uma turquesa no meio dum círculo azul. O tocador de flauta também se apresentava sem camisa, mas dobrara sobre o ombro uma bela manta branca listada de azul e preto. Outros homens, despidos da cintura para cima, distribuíam folhetos aos espectadores, insinuando-se no meio da multidão. E todo o tempo, alta e pura, a estranha flauta de barro repetia a melodia bárbara, acompanhada pelo rufar do tambor.
Kate desceu do seu poleiro e avançou a medo. Queria um daqueles papéis. O homem deu-lho, sem sequer a olhar, e ela encaminhou-se para a luz a fim de o ler. Era uma espécie de balada, mas sem rimas, escrita em espanhol. No cimo da página via-se o desenho de uma águia cercada por uma serpente que mordia a cauda; curiosa variante do emblema mexicano, que é uma águia encarrapitada num cacto de folhas largas e com uma serpente nas garras. A certa distância, o círculo formado pelo réptil com a ave a meio dava a impressão dum olho.
Na região de Oeste
Em paz, para além dos raios brilhantes
Do Sol,
No silêncio onde nascem as águas
Dormia eu, Quetzalcoatl,
Na caverna chamada Olho Tenebroso, Vendo através do sol como por uma janela, Minha morada é lá. Onde as águas brotam E os ventos nascem.
Nas águas do Além
Levantei-me e vi uma estrela cadente.
E senti
Um sopro em minha face.
O sopro disse: Vai,
E eu vim.
Desci a longa encosta, Passei o monte do Sol, Até que descobri em baixo Os seios brancos da terra Do México: a esposa minha.
Entre os mares a minha esposa Penteia o cabelo preto Murmurando: Quetzalcoatl...
Adensara-se a multidão de homens; do centro elevava-se a luz avermelhada dos archotes, o ar embalsamava-se da resina de cedro. Kate não conseguia ver nada por causa dos chapéus enormes.
Calara-se a flauta; mas o tambor continuava as suas pancadas lentas, regulares, com o ritmo duma pulsação. Aquele som incompreensível, surdo, enfeitiçava o espírito, fazia bater o coração, aniquilava a vontade.
Os homens começaram a fatigar-se, sentando-se uns, acocorando-se outros, com o chapéu nos joelhos. Dir-se-ia um mar de cabeças escuras, ondulando para a frente, sobre os ombros vigorosos e levemente inclinados.
Perto do muro formara-se um círculo, com o tambor ao centro. O homem que o tocava, de dorso nu, premia o instrumento contra o corpo, e, curvado, as costas cintilavam-lhe ao clarão da noite. Junto dele estava outro homem a segurar uma bandeira que pendia duma haste leve. No campo azul do pano via-se o Sol amarelo a meio duma bola preta e, entre os quatro raios maiores, todos de ouro, quatro raios negros emergindo, o que fazia o astro assemelhar-se a uma roda que girasse num movimento ofuscante.
Sentara-se toda a gente. Os seis homens de tronco nu, que haviam distribuído os prospectos e convocado a multidão tinham já regressado e agora acomodavam-se de volta do rufador agachado. À direita deste ficava o porta-bandeira, à esquerda o flautista. Eram nove os do grupo, e faziam dez com o rapaz que vigiava os dois archotes, agora colocados em trípodes de cana.
A noite aprofundava-se em silêncio. Calara-se o murmúrio de vozes que enchia a praça. Debaixo das árvores, nos passeios, transitavam ainda pessoas indiferentes, mas pareciam estranhamente solitárias; figuras isoladas envoltas na luz pálida das lâmpadas eléctricas e fora do núcleo da vida.
No lado norte, as barracas continuavam iluminadas, faziam-se compras e vendas. Mas também essa banda do largo dava a impressão de estar muito longe da realidade actual.
Depois de os homens se sentarem, as mulheres avançaram timidamente e instalaram-se por sua vez na orla exterior do círculo. As saias rodadas espalhavam-se no chão, os xailes escuros moldavam-lhes a cabeça redonda e pequenina. Algumas, não ousando aproximar-se, ocuparam os bancos em volta. Outras, assim como muitos homens, haviam desaparecido aos primeiros rufos do tambor.
a plaza ficou como que deserta. Um grupo compacto rodeava o tambor; aquém, era o mundo externo, vazio e hostil. Somente na ruela escura que conduzia ao negrume do lago se viam alguns vultos erectos e silenciosos como fantasmas.
Sobre os degraus de uma porta, e com Juana a seus pés, Kate olhava fascinada para aqueles homens seminus iluminados pelo clarão dos archotes. Os seus corpos lisos e acobreados possuíam essa beleza índia um tanto assustadora. Os torsos magníficos, acetinados, desses entes silenciosos de cabeça um tanto pendida para a frente; os ombros largos, levemente descaídos pela inactividade da sua força; o tom quente e o brilho da pele; o peito vigoroso, tão viril e, no entanto, sem a dureza muscular dos homens brancos; as faces sombrias, impenetráveis, os bigodes pretos e as barbas ténues enquadrando o silêncio da boca fechada - tudo isto era impressionante, singular, despertava comoção.
Havia algo de reptilário na sua flexibilidade, qualquer coisa de terrível na sua mudez. Os troncos nus tinham a revesti-los uma sombra subtil, certa obscuridade misteriosa. Se fossem homens de raça branca seriam francamente musculados, com uma espécie de sinceridade no próprio físico. Aqueles não. A sua nudez só revelava a profundeza secreta da natureza, o eterno mistério.
Toda a gente se calara; intensificava-se o silêncio expectante, tornava-se tumular. Os homens de ombros nus mantinham-se imóveis, mergulhavam dentro de si mesmos e escutavam com os ouvidos do sangue. Sob as calças brancas atadas nos tornozelos, os pés metidos em Imaraches eram quase negros ao clarão dos archotes. Que pretendiam essas criaturas suaves e recolhidas e cuja importância, no entanto, era tão ponderosa, tão aliciante?
Kate sentia-se ao mesmo tempo atraída e repelida. Quase a fascinava o estranho poder magnético dos homens em círculo. Era como o núcleo duma vida nova, como uma jóia negra brilhando na escuridão. Mas parecia-lhe repulsiva aquela estranha opressão, esse afundar do espírito na terra, esse lento escoar duma água turva; repulsiva a densa e muda oposição ao rumo espiritual da gente branca. Contudo, ali e só ali a vida parecia arder com chama intensa.
No resto do mundo, Kate bem o sabia, tudo era vacuidade, esterilidade. Aqueles vultos avermelhados pelo clarão dos archotes representavam uma humanidade nova.
Kate sentia tudo isto, mas preferia manter-se à parte, evitar o contacto directo.
O porta-bandeira ergueu a cabeça como se fosse falar, mas não disse nada. Velho de barba e bigodes brancos a emoldurar-lhe os lábios escuros e carnudos, tinha a cara sulcada de rugas, como todas as pessoas idosas desse país. No entanto, os cabelos eram bastos, e o corpo ainda revelava força e virilidade. ! Os seus olhos negros olhavam sem ver. Talvez fosse realmente
cego; ou seria profunda abstracção que lhe dava aquele aspecto. Começou então a falar, numa voz lenta, clara e distante que parecia ser o eco dos últimos sons do tambor. - Homens, escutai-me! E vós. mulheres, escutai-me também. Há muito tempo, na calma da noite, o lago dirigiu um apelo aos seres humanos. Mas não existiam. Só os peixes pequeninos nadavam ao longo das margens, procurando fosse o que fosse, e os maiores saltavam fora de água para olhar em volta. Mas não existiam seres humanos.
Então um dos deuses de face velada saiu da água e subiu ao monte. (E o velho indicou a colina invisível nas trevas da noite. ao fundo da aldeia. Contemplou o Sol e viu através dele outro sol negro, o que criou o mundo e o absorverá de novo como uma gota de água. Disse: - Chegou o momento? - E quatro braços saíram do sol e da sua sombra surgiram homens. Viram os quatro braços no céu e principiaram a andar.
O deus do cimo da colina olhou para as montanhas e para as planícies e viu os homens anelantes, sequiosos. E disse-lhes: Vinde cá. Tendes aqui a minha água dulcificadora.
Correram como cães, de língua pendente, e ajoelharam-se na margem do lago. O deus do cimo da colina ouviu-os ofegar, de tanta água que beberam, e perguntou-lhes: - Não bebestes de mais? Ou tendes ainda os ossos secos?
í Os homens fizeram casas à borda do lago, e aquele que estava na colina, e que era um deus, ensinou-os a semear milho, feijão, e a construir barcos. Mas preveniu-os: - Nenhum barco vos salvará quando o sol negro deixar de estender os braços no céu.
O deus da colina disse ainda: - Sou Quetzalcoatl, aquele que vos humedece os lábios secos. Encho-vos o peito com um sopro do além-sol. Sou o vento que sai em turbilhão do centro da terra, sou o zéfiro que se enrosca como cobra em volta dos vossos pés, pernas e coxas, erguendo a cabeça da serpente do vosso corpo, onde reside a força humana. Tomai cuidado quando a serpente do corpo erguer a cabeça. Sou eu, Quetzalcoatl, que vos elevo, que vos elevo até ao sol das trevas, derradeira morada dos homens. Exceptuando o sol negro e os quatro braços nos céus, éreis ossos, e as estrelas eram ossos, e a Lua uma concha vazia numa praia seca, e o Sol amarelo uma taça vazia, semelhante ao crânio dum lobo. Portanto, tende cautela! Sem mim nada sois. Assim como eu nada sou sem o sol que está atrás do sol. Quando o sol de ouro estiver no zénite, dizei: Quetzalcoatl levante a sua mão e me abrigue dos raios, senão perecerei e a terra secará. Porque na palma da minha mão está a água da vida, e nas costas está a sombra da morte. Quando os homens me esquecem volto a mão e aparece a sombra da morte. Mas os homens esqueceram-me. Os seus ossos eram húmidos, o seu coração fraco. Quando a serpente do corpo erguia a cabeça, diziam assim: É a serpente amansada que nos obedece. E quando suportavam o ardor do sol, falavam nestes termos: O sol está zangado, quer absorver-nos; ofereçamos-lhe sangue de vítimas.
Os braços negros desapareceram do céu, e Quetzalcoatl envelhecia e lamentava-se, velando a face para a esconder dos homens.
Lamentava-se e dizia: - Deixai-me recolher à minha morada. Estou velho, quase sou apenas ossos. Os ossos triunfam em mim, o meu coração é uma cabaça vazia. Sinto-me cansado do México.
Então bradou ao sol negro, aquele de quem nunca se pronuncia o nome: - Estou um esqueleto, os Mexicanos renegam-me, de nada sirvo. Levai-me.
O sol negro estendeu o braço e elevou Quetzalcoatl até ao céu. Depois olhou em volta e viu a estrela de alva brilhando sem receio entre a vinda do sol dourado e a fuga da escuridão. E aquele, cujo nome jamais foi pronunciado, perguntou: - Quem és tu, guarda cintilante? E a estrela respondeu: - Outrora, no México, fui Quetzalcoatl. Agora contemplo as costas do sol amarelo e a face invisível da Lua, brilho entre o dia e a noite, esperando pela renovação.
E aquele cujo nome jamais foi pronunciado declarou: - Chegou a hora.
Assim o decretou, e eu a vós repito, homens e mulheres: Chegou a hora. Os que nos deixaram regressam, os que vieram retiram-se. Desejai a uns boas-vindas e dizei adeus aos outros.
Boas-vindas! Adeus!
O velho terminou o discurso com um grito meio sufocado, tal se na verdade se dirigisse aos deuses.
- Bienvenido! Bienvenido! Adiós! Adiós!
A própria Juana, sentada aos pés de Kate, bradava sem saber o que dizia:
- Bienvenido! Adiós! Adiós... n!
O último adios arrastou-se para rematar com o costumado "n". Começou o tambor a soar num ritmo insistente, e a flauta fez ouvir o seu grito estranho e longínquo. Tocavam a melodia singular que a irlandesa ouvira a princípio.
Então um dos homens do círculo entoou o hino. Cantava à maneira dos antigos Peles-Vermelhas, em voz contida mas intensa, como se se dirigisse à própria alma e não ao mundo exterior; como se cantasse na outra dimensão da existência dos homens, onde eles se encontram na extensão infinita que há dentro do eixo do nosso espaço rotativo. Espaço que, como o mundo, não pode deixar de se mover. E, tal o mundo, tem um eixo. O eixo do nosso espaço terreno, quando lá se penetra, é uma vastidão onde até as árvores vão e vêm, e a alma está à vontade no seu sonho, nobre e irrefutável.
O pulsar do tambor e o cântico íntimo arrastavam a alma para o centro do tempo, que é mais velho do que a própria velhice. O cantor começou por uma nota alta que repetiu demoradamente, fazendo-a percorrer ritmos subtis, na aparência desconexos, que o tambor acompanhava, e depois fê-la tremer, palpitar e dar um balanço brusco. Por muito tempo foi difícil distinguir qualquer melodia: dir-se-ia o uivo distante e esmaecido dum lobo. Era na verdade a música dos índios antigos.
Não se lhe encontrava harmonia, não se lhe reconhecia emoção. Apenas música, apenas um grito na noite, perfeito e longínquo. Mas ia direito à alma, à alma eterna e antiga, aí onde só pode a família humana encontrar-se em imediato contacto.
Kate logo o sentiu, e de forma fatídica. Seria inútil resistir, inútil fazer qualquer esforço. O som ia até ao âmago do ser, em que não existe esperança nem dor, mas só a paixão, que semelha uma ave no seu ninho, de asas dobradas, e a fé uma árvore de sombra.
Como o destino, como a sorte. A fé é a própria Árvore da Vida, inevitável, e os pomos estão ao nosso alcance: pomos dos olhos
- as pupilas -, pomos do queixo, do coração, dos seios, do ventre, dos quadris, dos joelhos, dos tornozelos. Que importa a mudança, a evolução? Somos a Árvore com os seus frutos, para todo o sempre. Verbum Sat.
Emudeceu o cantor, mas o tambor prosseguiu, fazendo vibrar subtilmente a membrana sensível da noite. Então, no círculo, de novo se elevou uma voz, depois outra, e outra, como pássaros voando de uma árvore. Elevaram-se as vozes - forte, pesado, intenso arrebatamento de vozes másculas, semelhante a um bando de aves negras subindo e descendo no ar, ao mesmo tempo. E cada ave preta dir-se-ia erguer-se do coração de um homem, do bosque secreto dos peitos masculinos.
Uma a uma, partiram também vozes da multidão, qual nova revoada de pássaros. A letra não tinha importância. Versos, palavras, simples sons - o canto era sempre o mesmo: violenta rajada saindo das cavernas do peito, das profundezas da alma eterna. Kate estava excessivamente intimidada para poder cantar, demasiadamente vencida pelas desilusões; mas sentia que o seu espírito fazia eco, seguindo o clamor do povo, tal a ave poliglota que imita as outras à noite. Contra sua vontade, Juana cantava também, num tom monótono, proferindo palavras à toa, inconsciente.
Os homens seminus começaram a agarrar as mantas: mantas brancas orladas de azul, com barras castanhas e franjas escuras. Da turba, levantou-se alguém, que se dirigiu para o lago. Voltou depois com um feixe de lenha trazido por um barco. Acendeu então uma fogueira pequena. Outro indivíduo se destacou para ir também buscar lenha: colocou-a diante do tambor, dentro do círculo, e fê-la crepitar. Por sua vez, uma mulher, descalça e de larga saia de algodão, principiou a arranjar a sua fogueira no meio das mulheres.
O ar estava bronzeado pelo clarão do lume; alastrava-se um fumo odorífero, como de incenso. Subiu e desceu o cântico, depois esmoreceu. Débil ecoou o som do tambor, e morreu por seu turno. No silêncio absoluto podia-se sentir a presença imóvel do lago sombrio.
Mais uma vez pulsou, vigoroso, o tambor. Um dos homens que estavam sentados, com o seu poncho branco debruado de azul e preto, ergueu-se de repente e, tirando as sandálias, começou a esboçar passos de dança, sem fazer o menor ruído. Dançava pesadamente, de pés nus, como se fosse enterrar-se pela terra abaixo. Sozinho, oscilava num ritmo estranho, calcando o chão, erguendo ora um ora outro dos joelhos de encontro às franjas escuras do poncho. Outro homem, encaminhando-se para o centro, pôs aí os huaraches, perto do fogo, e iniciou o seu bailado, enquanto o do tambor entoava um cântico selvático, tenebroso. Os restantes comparsas despojaram-se dos ponchos e, num instante, estavam de pé, e de torsos nus, descalços, repetiam aqueles passos que pareciam de ave. A luz da fogueira batia-lhes no peito, nas faces sombrias e extáticas.
"O que dorme acordará! O que dorme acordará! O que segue o trilho da serpente na poeira chegará ao seu posto; pelo trilho do pó chegará ao seu destino e revestir-se-á com a pele da serpente: revestir-se-á com a pele da serpente da terra, que é a criadora da pedra, que é criadora da pedra e do vigamento da terra; criadora do oiro, do ferro, da madeira da terra: dos ossos do pai da terra, da serpente do mundo, do coração do mundo que bate como uma cobra bate no pó, nos seus movimentos sobre a terra; do coração do mundo. Quem dorme despertará! Quem dorme despertará! Quem dorme despertará no caminho da serpente do pó da terra, da pedra da terra, do osso da terra."
O cântico parecia tomar novos voos audaciosos depois de baixar e sussurrar num último desmaio. Eram como ondas que se erguem do invisível, que tomam forma, alando-se, e desaparecem num rumor de aniquilamento. E os dançarinos, após terem girado em círculo, numa lenta e profunda absorção, iam um por um tomar o seu lugar, calcando o pó com os pés descalços, vagarosamente, e vagarosamente começavam a descrever uma ronda lenta em torno do fogo, sempre com os mesmos passos que se diria afundarem-se na terra. E o tambor ressoava numa palpitação sempre igual, como a de um coração humano. E o cântico soou e diminuiu, mais baixo e mais baixo numa espécie de extinção, para ainda uma vez tornar a levantar-se.
Até que os camponeses moços acharam impossível permanecer como estavam. Tiraram as sandálias, o chapéu, as mantas, e, timidamente, com pés inexperientes que no entanto conheciam as velhas pisadas, se puseram atrás dos outros bailadores e dançaram sem sair do seu lugar. Depressa o círculo revoluteante estabeleceu outro círculo de homens que envolveu o primeiro.
Então, de súbito, um dos dançarinos de tronco nu saiu do círculo interior e, penetrando no segundo, fê-lo girar em sentido inverso ao daquele. Deste modo houve duas rodas em movimento, uma dentro da outra, rodopiando em direcções opostas. Assim andaram, com o tambor e o canto, girando como rodas de sombra em volta do lume. Mas o lume extinguiu-se, e o tambor parou de repente, e os homens num instante se dispersaram, retrocedendo para os seus postos.
Houve silêncio, depois ouviu-se um murmúrio de vozes e risos. Kate muitas vezes pensara que o riso dos peóns se assemelhava a uma queixa; mas agora ele saltava como faúlhas invisíveis, bruscamente, da cinza das conversas.
Todos esperavam, e contudo ninguém se movia - até que o tambor vibrou de novo, como um sinal. Continuaram, porém, a tagarelar mas escutando, qual se possuíssem uma segunda consciência. Levantou-se um homem, desfez-se da manta e deitou lenha na fogueira central. Em seguida atravessou o grupo dos homens sentados e dirigiu-se ao das mulheres, que se apinhavam com as saias desdobradas. Esperou, sorrindo com ar abstracto, e logo se pôs de pé uma rapariga e se aproximou dele, apertando com a mão direita o xaile enrolado em torno da cabeça baixa. Estendendo a mão esquerda, pegou timidamente na do homem, que parecia inerte. Sorriu este e conduziu-a ao centro da roda, através do grupo dos que estavam sentados. Ela seguia de cabeça inclinada, escondendo o rosto pudibundo. Lado a lado, começaram a dançar, mal roçando as mãos e formando o primeiro pequenino segmento do círculo interior estacionário.
Ei-los agora todos, em pé, à espera de serem escolhidos. Rápidas, as mulheres, ocultando a testa no xaile, insinuavam-se junto deles e tomavam a mão do eleito. Dentro de pouco tempo já todos tinham dama. Fechara-se o círculo interior, com os homens e as mulheres aos pares, de mão dada.
- Venha, niña, venha! - disse Juana, fitando Kate com os seus olhos negros e brilhantes.
- Tenho medo - respondeu a irlandesa. E falava verdade.
Um dos de tronco nu atravessara a rua, afastando-se da multidão e detivera-se próximo da porta onde se achava Kate, que se calou e desviou a vista. E ficou esperando.
- Olhe, niña, um senhor que a procura. Venha, niña, venha!
A voz da criada descera de tom, capciosa, com esse apelo mágico das mulheres do povo. Os olhos pretos continuavam a cintilar-lhe estranhamente, fitos no rosto da patroa. Kate, quase hipnotizada, avançou em passos lentos e indecisos para o indivíduo que se mantinha à espera.
- Quer, realmente? - disse ela em inglês, bastante atrapalhada. E, com os seus dedos, tocou nos dedos dele.
Quase com indiferença, num gesto frouxo, a mão quente e máscula segurou os dedos de Kate e levou-a para a roda. Ela baixou a cabeça e desejou poder velar a face. No seu vestido branco e chapéu de palha verde, sentiu-se outra vez virgem, virgem juvenil. Aqueles homens concediam-lhe o dom de reencontrar a mocidade.
Acanhada, receosa, Kate procurou seguir a dança; mas escapava-lhe o ritmo, e os sapatos rígidos não a ajudavam. Movia-se confusamente.
Mas o seu par pegava-lhe na mão, embora com moleza, e oscilava, lento, o corpo todo, como um pêndulo de relógio. Dir-se-ia não fazer caso dela; contudo, segurava-lhe os dedos, de leve, numa pressão suavíssima.
Juana descartara-se dos sapatos e das meias. No rosto como uma máscara de lava, enrugado, escuro, as pupilas ardiam com a eterna chama da feminilidade, sombria e inextinguível. E já, com os pés, marcava o compasso da dança.
"Assim como o pássaro do sol fecunda a terra à alvorada tal uma fêmea morena sob os seus pés, com as dobras do ventre inclinadas aos pomos da geração, com os ovos de oiro, com os ovos que escondem o globo do sol nas águas do céu, na concha da terra que é o alvo do fogo do sangue, pisa tu também a terra e a terra conceberá qual a fêmea sob os pés do pássaro do sol. Pisa a terra, pisa a terra agachada e de asas encolhidas..."
A roda começou a girar e Kate foi-se movendo devagar entre dois homens silenciosos e absortos, cujos braços tocavam os seus. Um segurava-lhe os dedos, frouxa e brandamente, mas com transcendente afinidade. E o canto selvático subiu de novo como uma ave, e o tambor alterou o ritmo de modo incompreensível.
A outra roda era composta só de homens; Kate tinha a impressão de sentir nas costas o fulgor sombrio daqueles olhares. Os indivíduos já se não distinguiam, formavam como que uma única massa, em que ela própria se confundia.
Todos dançavam da mesma maneira, de cabeça baixa e olhar ausente, os homens absorvidos na sua virilidade, as mulheres na sua feminilidade. Somente o sexo prevalecia na sua mais alta concepção. Mar à superfície do globo movendo-se por cima dum mar nas entranhas da terra; águia evolucionando em silêncio sobre a própria sombra.
Kate sentia-se fundir nas águas revolutas de uma vida nova. Deixara de ser ela mesma para fazer parte de um todo, os seus desejos abismavam-se no mar do desejo colectivo. E assim o homem cujos dedos roçavam nos dela se engolfava no oceano de homens.
Lento mover de águas sobre águas, sem vestígio de espuma. Só a pura e deslizante conjunção.
Como era estranho ver-se submergida pelo desejo para além do próprio desejo, sentir-se integrada num corpo imenso para além do individualismo do corpo!
Não conhecia a cara do homem que lhe segurava nos dedos. Os seus olhos haviam cegado, e o rosto dele era um céu tenebroso. Mas do toque dos seus dedos nascia uma estrela, a estrela que os unia.
Os pés de Kate principiavam a marcar o compasso. Ela já sabia como deixar-se levar, abandonar a essência da sua vida, permitindo que lhe fugisse devagar, num escoamento rítmico, para o corpo negro da terra. Erecta, forte como o próprio esteio da vida, cedia no entanto a Seiva dessa força e fazia-a fluir para as raízes da terra.
Perdera a noção do tempo. A dança, porém, acalmava-se pouco a pouco, embora o ritmo permanecesse sempre o mesmo até ao fim.
Calaram-se as vozes, só o tambor continuou. Este, de súbito, produziu um rufo breve, e o silêncio foi geral. Logo as mãos se desataram, o baile parou de todo. O homem que a acompanhava sorriu-lhe e desapareceu. Jamais o reconheceria. Havia, no entanto, de lhe sentir a presença.
As mulheres afastaram-se, aconchegando os ombros com o xaile. Os homens dissimularam-se nas mantas. E Kate voltou à escuridão do lago.
- Já se vai embora, Niña? - perguntou Juana num tom que revelava certo descoroçoamento.
- Tenho de ir sem demora - replicou a patroa, estugando o passo. E a toda a pressa se encaminhou para as trevas do lago, com Juana na sua peugada, de sapatos e meias na mão.
Kate desejava reentrar em casa, com o seu novo segredo, o estranho segredo da feminilidade mais alta, a que ainda se não habituara. Precisava abandonar-se inteiramente àquele mistério.
Quase corria através do atalho interminável, na margem pedregosa e escura, apesar de a claridade das estrelas ser suficiente para revelar a forma sombria dos barcos que sulcavam a água mansa e turva. Noite eterna, sem horas! Kate não queria consultar o relógio, e até o virou no pulso a fim de não ver os ponteiros luminosos. Que o tempo a não governasse!
Ao adormecer, ouvia ainda o rufar do tambor, como um pulso que batesse nas entranhas da terra.

VIII
À entrada da casa de Kate elevava-se uma árvore enorme chamada cuenta por causa dos seus frutos pequeninos, redondos, duros e perfeitos de forma, que os indígenas apanhavam para fazer colares e, em especial, padre-nossos dos rosários. À noite, a rua ficava imersa em escuridão e só a queda das contas perturbava o silêncio.
Essas noites, que de começo pareciam calmas, amigáveis, encheram-se subitamente de terrores. Renascia o medo. Constituíra-se uma quadrilha de ladrões numa das aldeias do lago, cujos habitantes tinham má fama. Essa quadrilha, invisível durante o dia, compunha-se de pescadores e jornaleiros que, depois do anoitecer, montavam nos seus cavalos e iam assaltar casas solitárias ou mal guardadas.
O facto de saber que um bando de malfeitores rondava naquela região era o bastante para incitar os ladrões isolados a agir também. Fosse o que fosse que acontecesse, seria atribuído aos bandidos. Deste modo, mais de um indivíduo considerado honesto se deixava dominar pela cobiça e se escapulia à socapa armado de faca ou de pistola para se aproveitar igualmente da escuridão.
Kate sentia o terror condensar-se no silêncio da noite mexicana; silêncio tenebroso, tão profundo que se tornava sobressaltante, o som duma conta a cair. Deitada na cama, Kate escutava o mínimo rumor nas trevas densas. Ouviam-se ao longe apitos de polícia, daí a pouco passava a patrulha a cavalo. Mas, como acontece em quase toda a parte, a polícia nunca aparecia quando era precisa.
Aproximava-se a estação das chuvas, e o vento nocturno, vindo do lago, fazia sussurrar as árvores e abalava as portas desconjuntadas da casa. Os criados encafuavam-se nas suas dependências. No México, uma pequena distância isola-nos completamente desde que a noite desce; e ficamos perdidos na escuridão envolvente.
De manhã, Juana vinha da praça, com os seus olhos como gotas de tinta e, no rosto bronzeado, a expressão cansada dos entes submetidos ao medo. Logo de entrada, e na sua linguagem pouco compreensível, embrenhava-se na história de uma casa assaltada e de mulheres assassinadas. E a dona do hotel mandava dizer a Kate que não era prudente dormir sozinha em casa. Seria melhor passar a noite no hotel.
Toda a aldeia se encontrava sob estranha apreensão. Pairava no ar da noite um terror pânico. Renascia a confiança à claridade azul da manhã, mas ao anoitecer o sangue parecia coagular-se, a atmosfera tornava-se densa.
O medo, é claro, comunicava-se duns aos outros. Se Juana e a respectiva família não andassem cheias de pavor, Kate nunca sentiria medo, disso estava ela certa.
Ali não havia homens. Juana tinha dois filhos, Jesus, de vinte anos, e Ezequiel, de dezassete. Mas Jesus era quem tomava conta do motor da luz eléctrica, e tanto ele como Ezequiel dormiam na casa das máquinas. De modo que Juana ficava só com as duas filhas, Concha e Maria, no cubículo ao fundo da residência de Kate.
Antes, a plaza mantinha-se animada até às dez da noite, com gente a conversar ou a ouvir os moços tocadores de viola e o homem dos sorvetes a apregoar de contínuo: Nieve! Nieve!
Agora o largo esvaziava-se às nove horas. E havia ordem de prender quem fosse encontrado na rua depois das dez.
Kate corria para casa e trancava as portas. Não é fácil suportar o pânico de um povo meio bárbaro. O medo espalha-se no ar, envolve-nos, paralisa-nos a alma com a sensação de desgraça iminente, dum horror atroz.
Às dez horas cortavam a luz eléctrica, tudo ficava às escuras, e, deitada na cama, Kate sentia o sopro maléfico espraiando-se na atmosfera em vagas sucessivas.
Acudiam-lhe à memória todas as histórias arrepiantes passadas no país. E de novo pensava nessa gente de aspecto pacífico e sorriso doce. Mas o próprio Humboldt dissera a respeito dos mexicanos que nunca encontrara povo de sorriso tão suave e olhar tão feroz. Não que os olhos revelassem propriamente ferocidade; contudo, o seu negrume iluminava-se dum clarão frio, de cintilações de punhal nas trevas da noite, ao mesmo tempo que neles despertava a sede de homicídio.
Seres incompletos, não de todo criados, encontravam-se à mercê das velhas influências que jaziam como sedimento no fundo de cada um deles. Enquanto estavam calmos, eram simpáticos, bondosos, simples. Mas, se alguma coisa lhes revolvia as profundezas, logo se erguiam as nuvens tenebrosas de ódio e de morte.
Adivinhava-se-lhes na alma um ressentimento constante, como que uma ferida jamais cicatrizada. O ressentimento dos entes incapazes de conquistar sozinhos uma integridade individual fora do caos de paixões e forças mortíferas. Eram apanhados na engrenagem duma ansiedade ancestral como nos anéis duma serpente negra que lhes oprimisse o coração. Onerosa carga dum passado invencível.
E debaixo desse peso vivem e morrem, sem grande pena de morrer. Enredados nos elementos, não conseguem desenvencilhar-se. Queimados pelo sol excessivamente forte, sobrecarregados pela electricidade da atmosfera mexicana e atormentados pela erupção de vulcões que lhes rebentavam aos pés. Tremendos elementos do continente americano que tornam forte o corpo dos homens mas que esmagam a alma e impedem a sua elevação. E, se nalgum ela se eleva, os elementos maléficos a pouco e pouco a destroem, até que o homem se decompõe em ideias e actividades maquinais, num corpo cheio de energia mecânica mas de espírito morto e putrefacto.
Assim, esses seres incapazes de dominar os elementos, submetidos às forças do sol, da electricidade e das erupções vulcânicas, estão sujeitos a acessos de rancor e de ódio ardente à própria vida. Então, nada melhor do que enterrar uma faca num corpo vivo. Nenhuma volúpia iguala essa de cravar a lâmina e ver jorrar o sangue.
É a suprema satisfação duma raça presa a um passado de que não consegue libertar-se. Raça que não conhece Salvador nem Redenção. Quais mineiros enterrados vivos na derrocada duma mina, nações inteiras ficam sepultadas sob os escombros do passado - até que um salvador lhes mostre a saída para o sol.
Deitada na cama, Kate reflectia profundamente na'escuridão da noite, de ouvido atento aos menores ruídos que a enchiam de terror. Não podia refrear o coração; dir-se-ia que lho arrancavam, e o sofrimento era atroz. Pela primeira vez sentia medo físico, o sangue gelava-se-lhe nas veias.
Na Inglaterra, na Irlanda, durante a guerra e a revolução, conhecera o medo espiritual. O medo horrível da ralé; e durante a guerra as nações eram quase tudo ralé. O terror da canalha que pretendia acabar com a liberdade de pensamento em cada homem e em cada mulher. Era a ambição fria e colectiva de milhões de criaturas: aniquilar o espírito daqueles que resistiam e assim poderem iniciar a descida geral para as camadas interiores onde existe o culto do ouro e a volúpia de matar. A canalha.
Nesse tempo, Kate conhecera a agonia do medo social, como se a democracia fosse um polvo enorme que enlaçasse com os tentáculos quem lhe resistisse.
Agora o seu medo era doutra espécie. Sentia o coração doer-lhe, como se o arrancassem, o sangue parecia fugir-lhe das veias...
Dormitava, e acordou em sobressalto a um leve rumor. Sentou-se na cama. As portas que davam para a varanda tinham postigos, e estes encontravam-se escancarados a fim de arejar o quarto. Nessa abertura Kate distinguiu, recortando-se no céu escuro, uma forma negra semelhante a um gato que rastejasse no rebordo da janela.
- Que é? - perguntou ela maquinalmente.
No mesmo instante, aquilo moveu-se, deslizou para fora, e Kate percebeu que era o braço de um homem que tentava abrir o ferrolho interior da porta. Por uns segundos ficou paralisada, pronta a gritar. Então, como não pressentisse mais nada, inclinou-se e acendeu uma vela.
Era uma verdadeira agonia aquele terror pânico. Imobilizava-a, deslocava-lhe o coração... Ficou prostrada, no angustiante pavor nocturno. A vela projectava uma claridade lúgubre. Ouvia-se o ribombo longínquo de trovões. A noite era atroz, atroz, e o México horroroso.
Kate não conseguia dominar-se. "Estou à mercê disto", pensava. Sensação terrível, ver-se subjugada pelo medo.
"Que hei-de fazer?" perguntou a si mesma, reunindo coragem. Sabia que estava só.
Durante muito tempo sentiu-se incapaz de se mover. Então disse consigo, para se animar: "Creio no mal e não devo crer. O pânico e o assassínio são coisas que só sucedem quando perdemos o domínio de nós próprios. Não acredito verdadeiramente no mal. Acredito, sim, na existência dum poder supremo que nos comunica a sua força desde que tenhamos fé nele. O homem que queria entrar aqui não possuía essa força. Tentava ser maléfico, mas submeter-se-ia ao poder dominador."
Deste modo se ia tranquilizando, até que teve a coragem de se levantar e fechar os postigos. Em seguida, percorreu os quartos a fim de verificar se tudo estava trancado. E sentiu certo alívio ao compreender que temia tanto os escorpiões como a horrível sensação de pavor.
Depois de observar o fecho das cinco portas e das cinco janelas da ala de quartos comunicantes, Kate ficou encerrada nas trevas com a sua vela. Para o outro lado da casa, sala de jantar e cozinha, tinha de ir pela varanda.
Mais serena, embora ainda com o coração atormentado pelo medo, Kate reflectia. "Joachim afirmava que o mal provém de regressarmos aos costumes primitivos. É o que provoca roubos e assassínios. O tambor da noite de sábado evocava o ritmo da antiguidade e aquela dança selvagem era a velha forma de expressão. Regresso consciente à barbárie... Talvez a origem do mal..."
Mas logo intervinha o seu desejo de crer.
"Não! Temos de nos agarrar aos elos antigos, encontrar o impulso que nos relacionará de novo com o mistério do cosmos. Don Ramon tem razão. Ele deve ser um grande homem. Julguei que já não existissem grandes homens. Só grandes financeiros, grandes artistas, mas não grandes homens. Don Ramon deve ser um ente superior."
E Kate sentiu-se apaziguada a esta ideia.
Mas, logo que apagou a vela, surgiram clarões muito vivos através das fendas do postigo. Ribombaram trovões clamorosos, que pareciam afundar-se-lhe no coração. Kate sentia-se como que esmagada, na consciência duma tortura que a paralisou até de manhã e lhe deu a impressão de ser, ela própria, um destroço de naufrágio.
Por fim apareceu Juana, também com o ar de desenterrada, para lhe fazer a pergunta tradicional:
- Como passou a noite, Niña?
- Muito mal - respondeu Kate. E contou-lhe a história do gato preto e do braço do homem.
- Mire! - replicou Juana, sufocando a voz. - A inocentinha vai ser assassinada na cama. Não, niña, tem de passar a dormir no hotel. Não, Niña, não pode continuar com o postigo aberto. É impossível. Está a ver agora como é necessário que durma no hotel? Assim fazia a outra senhora.
- Não quero - declarou a patroa.
- Não quer, Niña? Ah, entonces, entonces... niña, vou dizer ao Ezequiel que venha dormir na soleira da porta, armado de revólver. Ele tem um revólver, pode ficar do lado de fora da porta, e a senhora já deixava a sua janela aberta, para lhe refrescar o quarto. Pobres de nós, mulheres, precisamos de um homem que tenha revólver. Não devemos estar sozinhas, toda a noite. Temos medo, e as crianças também têm medo. Imagine que um ladrão tenta arrombar o ferrolho da porta! Imagine! Não, niña, vai-se falar ao Ezequiel hoje mesmo, antes do meio-dia.
Ao meio-dia, Ezequiel compareceu, muito seguro de si. Era um rapaz, meio selvagem, mas dava largas passadas, empertigado e orgulhoso. A voz, na mudança própria da puberdade, tinha uma entoação estranha.
Ficou de pé, acanhado, ouvindo o que lhe recomendavam. Depois olhou para Kate com as pupilas negras e brilhantes, convicto do seu papel de salvador.
- Sim, sim - declarou. - Durmo aqui no corredor. Não tenha medo. Trago a pistola.
Saiu, e voltou com a arma, que era de cano comprido.
- Tem cinco cargas - participou, exibindo o revólver. - Se abrir a porta de noite, previna-me, porque, se eu vir mexer qualquer coisa, disparo os cinco tiros. Pum!, pum!
Pelo brilho do olhar do rapaz, Kate compreendeu quanto ele gostaria de fazer fogo sobre o que se movesse nas trevas. Não o preocupava a hipótese de ser alvejado por seu turno.
- niña - disse Juana - se voltar tarde para casa, depois de as luzes estarem apagadas, não se esqueça de chamar pelo Ezequiel. Senão... pum!, pum! Nunca se sabe quem pode ser a vítima.
Ezequiel dormiu sobre uma esteira na varanda de tijolos, defronte da porta de Kate. Enrolou-se num cobertor e conservou o revólver à mão. A senhora podia ficar de janela aberta. Na primeira noite, esteve muito tempo acordada por causa do ressonar estrondoso do rapaz. Nunca ela ouvira semelhante coisa! Que pulmões que ele devia ter! Dir-se-ia um som que viesse de outro mundo estranho e bárbaro. O barulho manteve-a desperta, mas havia naquilo um não sei quê de agradável. Algo semelhante a uma força bravia.

IX
Kate depressa se afeiçoou à negligente Juana e respectivas filhas. Concha tinha catorze anos. Era uma rapariga selvagem, entroncada, de cabeleira hirsuta que ela coçava constantemente. Maria, de onze anos, parecia um passarito, com olhos enormes que se diria absorverem toda a luz à sua volta.
Juana confessava que Jesus era filho doutro pai, mas o aspecto dos restantes fazia suspeitar ter cada um deles progenitor diferente. Toda a família, porém, mostrava igual despreocupação perante a vida. Viviam o dia-a-dia sem se importarem com o passado, nem com o presente, nem com o futuro. O dinheiro não lhes interessava. Assim que o recebiam gastavam-no, e logo o esqueciam.
Sem aspirações, sem objectivos, levavam existência absolutamente terre à terre no seu país sombrio e vulcânico. Não eram animais porque homens, mulheres e crianças não podem ser animais. Tal não nos foi concedido. Vai, e não voltes para trás - diz o Criador. Quando o homem tenta brutalmente tornar ao primeiro estado da evolução, fá-lo com espírito de crueldade.
Por isso os olhos negros daquela família revelavam certo medo, espanto e sofrimento. Angústia das criaturas humanas sem força para desenvolver as possibilidades do seu ser; incapazes de arrancar do caos a própria alma e indiferentes a qualquer outra vitória.
Também os brancos perdem a alma a pouco e pouco; mas conquistaram os mundos inferiores do metal e da energia e, graças às máquinas, lançam-se em corrida louca de roda da sua vacuidade.
Naquela família Kate encontrava algo de patético e de repugnante.
Desde que haviam aceitado niña como patroa, Juana e as filhas mostravam-se profundamente honestas. Honestas, a pontos de não tirarem uma única ameixa do fruteiro. E solícitas no serviço, de uma solicitude quase excessiva.
Viviam na sujidade, indiferentes ao ambiente. O chão era o seu caixote do lixo. Para ali arremessavam tudo o que consideravam inútil e ninguém se preocupava mais com isso. Pareciam 138
comprazer-se em viver no meio de pulgas e de trapos, de cascas de banana e caroços de manga. Um pedaço arrancado dum vestido - aí vai para o chão! Cabelos tirados do pente - chão com eles!
Kate não suportava aquilo. Afligia-a tamanha desordem, e o facto de ela se afligir divertiu imensamente a família mexicana. Mãe e filhas varreram então o pátio com uma vassoura de urze, até raspar a própria superfície da terra. Que engraçado, a niña preocupar-se com aquelas coisas!
Kate constituía para elas uma fonte de espanto e de divertimento. Não a consideravam pessoa de classe elevada. Era um ente meio incompreensível, meio espantoso.
Niña queria que o aquador lhe trouxesse todas as manhãs dois botes de água das nascentes térmicas para fazer abluções completas. Que esquisito! "Maria, diz ao aquador que corra a buscar água para a niña."
Quase se melindravam com o facto de ela se fechar no quarto para tomar banho. Era uma espécie de deusa, provocava-lhes alegria e admiração; mas devia ser sempre acessível. Kate depressa descobriu que um deus sempre acessível aos seres humanos passa bocados pouco invejáveis.
Não, aquilo não era nenhuma sinecura. De manhã começava o barulho da vassoura de urze lá fora. Kate deixava-se estar na cama, de portas fechadas e postigos abertos. Alvoroço no pátio. Alguém queria vender ovos. Onde está Niña? A dormir. O visitante não se retira e as conversas continuam.
O aquador! Ah, a água para o banho da niña. Está a dormir. "Não estou, não!" - grita Kate, enfiando o roupão e destrancando a porta. As pequenas entram com a tina, seguidas do aguadeiro com duas latas cheias de água quente. "Doze centavos, doze centavos para o aquador." No hay! Mais tarde, mais tarde. O homem vai-se embora, com a vara ao ombro. Kate fecha os postigos e começa a tomar banho.
- Niña!, Niña! - Que é?
- Quer ovos estrelados, quentes ou rancheros?
- Quentes.
- Café ou chocolate?
- Café.
- Ou prefere chá?
- Não, café.
O banho continua.
- Niña!
- Dize lá.
- Já não temos café. vou comprá-lo.
- Não é preciso. Tomarei chá.
- Não, niña, Eu vou. Espere por mim.
- Está bem, vai.
O primeiro almoço é na varanda. A mesa está posta, há pilhas de frutos, pão alvo e bolos.
- bom dia, niña. Como passou a noite? Maria, traze o café. vou meter os ovos na água. Oh, niña, eles não devem ficar cozidos... Meu Deus, que pés de Madona! Olhem, que bonitos!
E Juana inclina-se fascinada e, com o dedo escuro, toca nos pés acetinados de Kate metidos em leves sandálias seguras por uma única tira.
O dia tinha começado. Juana considera-se como inteiramente dedicada a Kate. Tão cedo quanto possível, expede as filhas para a escola. "Niña diz que é preciso ir para a escola. Não ouvem o que ela diz? Vamos, girem!"
No seu passo coxeante, Juana anda cá e lá na varanda, da cozinha para a mesa do almoço, transportando os pratos um por um. Depois, com grande espalhafato, começa a lavar a louça.
Manhã! O sol inunda o pátio, os cardeais e as folhas dilaceradas das bananeiras. Os pássaros voam em todos os sentidos com precipitação tropical. Na sombra densa das mangueiras passam índios vestidos de branco, semelhantes a espectros. Há um frémito de vida e, no entanto, o silêncio é opressivo. Os olhos deslumbram-se à claridade ofuscante, a alma sente-se oprimida.
Kate senta-se na varanda e finge coser. Surge um velho, segurando um ovo na mão, como qualquer símbolo. A patrona quereria comprá-lo por cinco centavos? Juana só dava quatro. De acordo? Onde está Juana?
Juana volta da praça com outras compras. O ovo! Quatro centavos! A conta das despesas. Entonces! Entonces! Luego! Luego. Ah, niña, no tengo memória.
Juana não sabia ler nem escrever. Todas as manhãs ia ao mercado, comprava uma porção de coisas de um ou dois centavos e todas as manhãs era preciso fazer contas. "Ah, onde é que nós íamos?
Não tenho memória nenhuma. Ora vejamos... Comprei três centavos de ocote... Quanto? Quanto soma agora, niña" Se faltava um centavo, ficava desolada e não falava noutra coisa. "Falta um centavo, niña? Sou estúpida, não sou? Mas eu dou-lhe um do meu dinheiro."
- Deixa lá, não penses mais nisso - dizia Kate.
- Mas eu quero pagar a diferença - insistia a mulher; e afastava-se, coxeando.
Uma hora depois elevava-se um grito no outro extremo da casa e Juana aparecia empunhando um ramo de salsa.
- Mire, niña! Compré perejil a un centavo. As contas estão certas agora?
- Estão - respondia Kate.
E a vida podia então retomar o seu curso. Existiam duas cozinhas: a anexa à sala de jantar, e a das criadas, numa espécie de barraca debaixo das bananeiras. Da varanda Kate via a abertura negra que fazia as vezes de janela na cozinha de Juana.
"Julgava Concha na escola!", disse Kate consigo mesma.
Mas não. No buraco escuro da janela distinguia-se o rosto moreno e a juba de Concha, espreitando para fora como um animal que saísse da toca, enquanto fazia as tortillas. Tortillas são uma espécie de filhos de milho. Preparam-nas batendo a massa na palma da mão até adquirir a lisura e leveza necessárias. Pouco depois do meio-dia via-se sair fumo pela janela: Concha lançava as tortillas cruas na frigideira de barro colocada sobre o lume.
Então Ezequiel aparecia, de manta sobre o ombro, chapéu de palha de grandes abas enroladas, pronto a comer as tortillas. No entanto, se trabalhava no campo, só chegava ao cair da noite. Sentava-se no degrau da porta e as mulheres serviam-no e iam-lhe buscar água como se ele fosse um rei. E ouvia-se-lhe a voz rouca dando ordens em tom calmo.
Porque, apesar do seu ar sereno e meigo, tomava uma entoação imperiosa desde que se dirigisse à mãe ou às irmãs. Prerrogativa de macho, que dava a Kate vontade de zombar do rapaz.
A hora da refeição era para Kate um dos seus tormentos. Apresentavam-lhe sopa muito quente e gordurosa, arroz apimentado, também gorduroso e fumegante, a inevitável carne nadando em gordura. Seguiam-se calabacitas, ou beringelas, salada, e o enorme cabaz de fruta. E, inundando tudo isso, o ardente sol tropical dos fins de Maio.
De tarde, o calor aumentava. Juana ia com as filhas lavar a loiça no lago. Agachadas sobre as pedras, agitavam na água cada prato, cada colher e cada garfo, e punham tudo a secar ao sol. Depois, enquanto Juana lavava uma ou duas rodilhas, as filhas banhavam-se no lago.
Jesus, o primogénito, costumava vir à tarde regar o jardim. Mas esse comia no hotel, onde prestava diversos serviços, trabalhando até às dez da noite por um salário de vinte e dois pesos, ou seja, onze dólares por mês. Usava camisa preta, e a cabeleira abundante tombava-lhe na testa baixa. Apesar da camisa fascista, possuía o espírito sarcástico e crítico dos socialistas, o espírito que vem do instinto de destruição.
Entre ele e a mãe existia pouca intimidade. Se Juana se encontrava em apuros, Jesus dava-lhe algum dinheiro mas, exceptuando o ténue laço de sangue que os unia, mostravam a maior indiferença um pelo outro.
Ezequiel tinha melhor tipo. Era esbelto, e tão direito que quase parecia arquear-se para trás. Tímido, arisco, orgulhoso, sentia-se mais responsável pela família. Não queria servir em hotéis. Não. Trabalhava nos campos, e tinha vaidade nisso: era labor de homem, não uma espécie de escravidão disfarçada.
Embora simples jornaleiro, não trabalhava para um patrão mas sim para a terra. E a terra, de certa maneira, era dele, pertencia-lhe...
Quando havia que fazer, chegava a ganhar um peso por dia. Se a terra estava seca, então procurava trabalho nas estradas, ainda que isso lhe não agradasse.
Mas nem sempre conseguia empregar-se. Durante dias, semanas, Ezequiel vagueava pelos arredores, sem nada que fazer. Quando o governo socialista dividiu as fazendas em lotes e os distribuiu pelos camponeses, coube-lhe um pedaço de terra fora da aldeia. O rapaz ia até lá e juntava pedras para construir um casebre. Cavava o chão tão profundamente quanto possível, mas não tinha amor a essa nesga de terreno que lhe viera parar às mãos de modo quase sobrenatural. Só lá ia de vez em quando, e sem nenhum entusiasmo.
Nos dias de trabalho regressava a casa por volta das seis horas e, cumprimentando Kate, timidamente, dirigia-se para o seu antro, onde, sentado no chão e de costas apoiadas à parede, dobrava tortillas umas sobre as outras e comia essa pasta elástica que tem o sabor de argamassa - pois o milho é primeiramente fervido com cal para largar a pele. Depois, dignava-se aceitar outra rima de fritos, que a irmã lhe apresentava numa folha de couve. Às vezes, Ezequiel tirava do tacho de barro um bocado de carne guisada que metia entre duas tortillas. Mas ingeria tudo rapidamente com uma espécie de indiferença. Aliás, os mexicanos parecem sempre indiferentes ao que comem.
Acabada a ceia, ia até à plaza, reunir-se aos homens. Havia ocasiões em que Kate, ao recolher a casa às nove horas, a encontrava quase deserta. Ezequiel estava no largo, Juana e Maria haviam desaparecido, e Concha dormia tal um molho de trapos no chão do pátio. Quando Kate a chamava, a pequena erguia a cabeça, espantada, entorpecida; depois, levantando-se como um cachorro, rastejava até ao portão.
Indiferença por tudo, até uns pelos outros. Juana lavava semanalmente uma camisa e um par de calças de algodão para cada um dos filhos, e aí terminavam os seus cuidados maternais. Nem se interessava averiguar qual o trabalho-de momento de Ezequiel. Sabia que arranjara emprego e isso lhe bastava. Contudo, de tempos a tempos, tinha ímpetos de amor materno, quando o rapaz era tratado injustamente, como às vezes acontecia. E, se o supunha doente, dominava-a um terror fatalista que só a abandonava depois de Kate intervir com qualquer remédio muito simples.
Semelhantes a animais. Mas os animais são perfeitos no seu isolamento e despreocupação; não se trata de indiferença, é que se bastam a si próprios. Ao passo que naquela família havia uma espécie de frustração, como se um torpor de aborrecimento a todos avassalasse.
As duas raparigas eram inseparáveis; andavam sempre atrás uma da outra. Concha arreliava de contínuo a inocente Maria de grandes olhos e esta debulhava-se em lágrimas. Ou então, no meio de uma fúria, ameaçavam-se com pedras, e Juana invectivava-as com súbita veemência, que logo se extinguia.
Estranha, aquela ferocidade repentina com que as pequenas arremessavam pedras, e não menos estranho, o esforço por não acertar. Kate notava a mesma coisa nos ataques selváticos que os garotos faziam uns aos outros nas margens do lago; atiravam calhaus com ar ameaçador, mas quase sempre falhavam o alvo.
Quase sempre, mas não sempre. Às vezes atingiam o adversário, que tombava como morto. Então os outros aproximavam-se, em silêncio temeroso, da vítima prostrada. De repente, o ferido erguia-se, com um esgar homicida no rosto, perseguindo o inimigo com uma pedra. E o inimigo fugia a sete pés.
Uma vontade perene de arreliar, de atormentar. O mesmo sucedia entre os Peles-Vermelhas. Mas o povo índio raramente recorria à violência, o que se não dava com os Mexicanos.
Kate, achando que devia fazer qualquer coisa pelas pequenas, dispensou-lhes uma hora por dia para lhes ensinar a ler, a redigir e a costurar. Maria queria aprender a ler; nisso mostrou boa vontade. Começaram bem, mas depressa a leve insistência de Kate em lhes chamar a atenção fez com que as alunas assumissem o tom de ironia peculiar ao continente americano. Ironia calma, invisível, malevolente, desejo de magoar.
- Não te debruces sobre mim, Concha. Põe-te direita.
- Porquê, niña Tem piolhos na cabeça?
A pergunta insolente era formulada com subtileza índia.
- Não! - respondia Kate subitamente irritada. - E agora vão-se embora! Afastem-se de mim.
E as pequenas retiravam-se, humilhadas.
Kate recebeu visitas de Guadalajara. Grande excitação! Mas enquanto tomava chá na varanda, Juana, Concha, Maria e Filipa, que era uma prima de dezasseis anos, sentaram-se no outro lado do pátio, bem à vista, com os belos cabelos soltos sobre os ombros, e, ostensivamente, puseram-se a catar piolhos umas às outras. Pareciam encantadas por exibirem a sua sordidez àqueles estrangeiros.
Kate desceu ao pátio.
- Se querem catar piolhos - disse em voz trémula de cólera - vão para onde ninguém as veja.
Atravessou um clarão de maldade os olhos negros de Juana, mas um instante depois, humilde e abjecta, a família retirava-se, de cabeleira ao vento, em direcção ao seu antro.
Juana comprazia-se em irritar Kate. Sentia assim uma espécie de poder sobre a Niña. É certo que temia um tanto essa irritação, mas era justamente o que desejava. De que servia uma niña que não lhe inspirasse algum receio?
Ah, raças escuras! Kate, como irlandesa, podia entrever um pouco do mistério. As raças escuras pertencem a um ciclo de humanidade já desaparecido; ficaram atrás, no fundo de um abismo donde nunca conseguiram sair. Jamais atingirão o nível dos brancos; limitam-se a segui-los de longe, como escravos.
Enquanto o homem branco avança, cheio de orgulho, as raças escuras cedem-lhe o passo e obedecem-lhe pela força. Se, porém, o branco hesita na sua marcha, logo os outros o atacam para o precipitar no abismo do passado.
É o que está a acontecer. Porque o branco, apesar de todas as farroncadas, duvida da sua própria supremacia.
E é a corrida veloz para a derrocada.
Desde a revolta de Kate perante a cena da caça aos piolhos, Juana voltou a servi-la com enternecedora solicitude. Embora indiferente a tudo, aquele ser das regiões inferiores não queria quebrar o débil fio que o ligava a Kate e ao mundo da claridade e do ar puro. Em suma, o desejo de Juana era conservar a sua niña, servir a sua Niña.
Ao mesmo tempo, parecia odiar a gente rica, branca e superior. De vez em quando contava a Kate histórias do passado. Então via-se-lhe uma expressão malévola nos olhos negros e na face acobreada, enquanto ela prosseguia: Usted sabe, niña, los gringos, los gringuitos llevan todo...
Os gringos são os Americanos, e Juana incluía Kate nos gringuitos, estrangeiros brancos. Aquela frase era nova insolência disfarçada, subtil...
- É possível - respondia Kate friamente. - Mas dize-me o que é que eu levo do México.
- Non, niña, non - Espalhava-se um sorriso de satisfação na cara de Juana quando ela conseguia atingir a outra mulher. Não me refiro a si, niña! - O protesto, porém, era pouco convincente.
Dir-se-ia que essas indígenas queriam obrigá-la a partir à força, insultando-a, rebaixando-a, até que a irlandesa, não menos impetuosa do que elas, abalasse dali num momento de fúria.
Oh, raças primitivas atrasadas!
Contudo, havia um lado patético na natureza daquela gente. Quando tinha catorze anos, Ezequiel trabalhara por conta de um sujeito que andava a construir casa. O homem prometera-lhe uma manta, mas ao fim de dois meses despediu-o sem cumprir a promessa. Foi uma desilusão bem amarga.
Kate nada tinha a ver com isso, mas Juana quase a acusava do facto.
Povo sem força para avançar, como podia deixar de ser explorado? Desde séculos que o exploravam cruelmente, e toda a sua energia se limitava a uma resistência malévola.
"Mas não pretendo explorá-los - dizia Kate consigo mesma.
- Pelo contrário, a minha vontade é dar-lhes mais do que recebo. São injustos os seus remoques. Nunca insultei estas criaturas. Faço a diligência de não as magoar e elas, deliberadamente, atacam-me e ficam radiantes quando me ferem."
No entanto, Kate procedia à sua maneira irlandesa: de vez em quando, isolava-se de Juana e das filhas. Porque, assim que as mandava para longe, desaparecia-lhes a malevolência e lembravam-se das ordens da niña. Se ela estava presente e amável, esqueciam-se de tudo. Esqueciam-se de varrer o pátio, de se apresentarem limpas, e só quando Kate as relegava para um canto é que tornavam a lembrar-se.
O filho Ezequiel tinha mais dignidade do que as mulheres.
Nunca fazia aqueles ataques insidiosos.
Quando a casa estava limpa e calma e o ar parecia purificado e a alma renovada, Kate sentia novamente amizade por essa família.
A sua azáfama, andando cá e lá, esvoaçando como pássaros; o estalo da massa das tortillas de encontro à palma da mão; o entusiástico esmagar de tomates e pimenta no tacho enquanto Juana preparava o molho; o barulho do balde no poço quando Jesus vinha regar...
Como isso era divertido! Assim devia ser tudo o que fizessem, ou então não o fariam. Não podiam fixar-se numa rotina. Jamais! Tudo devia ser alegre, variado, com uma pontinha de aventura. Era confusão, mas, no fim de contas, uma confusão viva, não uma coisa morta. Kate recordava-se dos seus criados britânicos nas cozinhas inglesas, tão maquinais e quase inumanos. Aqui era o extremo oposto.
Não havia disciplina nem método. Embora Juana e as filhas quisessem realmente fazer o que a niña desejava, só procediam conforme lhes apetecia. às vezes, Kate sentia-se angustiada. Mas, tanto quanto possível, ia suportando as extravagâncias daquela família. Tivera, por exemplo, de se habituar à vagabundagem da mesa de jantar, mesinha redonda cujo lugar era na varanda. Ao primeiro almoço, ficava discretamente debaixo das plantas, perto do salão; ao almoço da uma hora regressava à varanda; ao chá, ia para a relva do jardim, à sombra duma arvorezita. E, quanto à ceia, Juana deliberou então que a niña comesse os dois ovos e rancheros na própria casa de jantar, isolada a um canto da comprida mesa em que cabiam catorze pessoas.
Kate também nunca chegou a perceber o motivo por que, depois de lavarem a loiça na cozinha durante uns dias, se lembraram de repente de levar os pratos sujos para o lago, num cabaz, aos ombros de Concha. A não ser que achassem assim o trabalho mais divertido...
Crianças! Mas não inteiramente. Faltava-lhes a despreocupação da infância. Pressentia-se-lhes na alma qualquer coisa de sombrio, como que um peso que as forçava a resistir. Trabalhavam por acessos, podiam ser laboriosas; depois vinha a indolência e passavam horas estiradas no chão, como porcos. às vezes mostravam-se alegres, conversavam e riam, sentadas sobre a terra, em grupo, formando roda. Então, subitamente, contrariando a própria alegria, recaíam na mudez e na tristeza. Havia ocasiões em que, estando a trabalhar com afinco, atiravam para longe a ferramenta como se indignadas por terem cedido. Descuidados, versáteis nos seus amores, os homens, ao menos, passavam todo o tempo a resistir a si mesmos. Nunca procuravam o que pretendiam. As mulheres a que se aproximavam. E um rapaz e uma rapariga passeando às escuras na estrada marginal do lago, atiçando-se um ao outro, atormentando-se no meio de excitação, constituíam uma cena que deixava Kate pasmada - porque homens e mulheres não se cortejavam abertamente como fazem os brancos. E o riso súbito do macho, estranha voz de desejo reprimido, de obstinada relutância e paixão desesperada, parecia qualquer coisa a rasgar-se-lhe no peito, era um som que perdurava na memória.
Kate achava pesado o governo da casa. De certa maneira, eram como parasitas, queriam viver da sua vida, e rebaixá-la, rebaixá-la. Nalgumas ocasiões mostravam-se como pessoas meigas, generosas, encantadoras - até a fazerem novamente revoltar-se contra aquela indiferença reptilária. Indiferença e resistência.
Os servos forneciam a Kate a chave da vida indígena. Os homens sempre juntos, erectos, belos, equilibrando o chapéu enorme no alto da cabeça, quer sentados, quer de pé, quer de cócoras, numa impassibilidade de serpente; as mulheres sempre à parte, suaves, como que escondidas, estreitamente apertadas nos chailes escuros. Homens e mulheres pareciam voltar costas uns aos outros como se não quisessem ver-se mutuamente. Nenhuns galanteios, nenhum namoro. Apenas um olhar ocasional sombrio e rápido, sinal de desejo semelhante a um golpe de florete dado e recebido.
Elas, no conjunto, dir-se-iam inexperientes mas decididas a seguir o seu próprio desígnio: mudar de homens quando lhes apetecesse. E eles davam a impressão de não se preocuparem muito. Afinal eram as mulheres que pretendiam os homens.
As indígenas, com os negros cabelos tombados nas costas cheias e acobreadas, banhavam-se num canto da praia, geralmente em camisa ou com um saiote. Os homens mantinham-se alheados, nem sequer se dignavam olhar para a outra banda. Eram mulheres no banho, nada mais. Faziam parte, por assim dizer, da vida lacustre, como os peixes que ali nadavam. Concediam-lhes mesmo aquele ponto do lago, e elas sentavam-se nos baixios, isoladas como aves aquáticas, e molhavam a cabeça e os ombros com o auxílio duma cabaça.
Calmas, discretas, desprezadas fêmeas da classe dos peóns, seguindo o seu caminho envoltas no rebozo como num manto de trevas, ágeis, balançando as saias rodadas e gorjeando como passarinhos; ou paradas na borda do lago, com os cabelos longos a gotejarem; ou subindo lentamente a margem com uma pesada bilha de água ao ombro e um braço por cima da cabeça, a segurar a asa do cântaro; ou, especialmente nas tardes de domingo, sentadas à porta da casa, catando piolhos umas às outras. As moças possuidoras de cabeleira abundante e ondulada eram as que mais piolhos tinham. Aquilo representava um acto público meritório.
Parecia a Kate que esse país não podia originar nada de mais elevado do que a amizade entre os homens. O próprio casamento tinha pouca importância. E, embora se mostrassem meigos e protectores para com as crianças, os pais depressa as esqueciam.
A questão do sexo era no entanto a primordial, aquela que não devia ser omitida nem aflorada abertamente. O único mistério, muito maior do que o indivíduo. Este pouco contava.
Kate pasmava ao ver as choças de palha dos índios nas margens do lago. Ali fervilhavam crianças seminuas no chão de terra batida, no meio de trapos, de ossos, e do fedor de excremento humano.
Esse povo parecia não ter olfacto. E defronte do buraco que servia de porta à cabana, o homem impassível, magnífico, silencioso... Como era possível que tão belo exemplar de virilidade se mantivesse indiferente a tamanha porcaria?
Mas ali se conservava como inconsciente. Contudo, era um ser vivo - e forte. Nenhum homem no mundo pode transportar cargas tão pesadas como os índios do México. Kate vira já um deles passar na rua com um piano às costas, apenas seguro por uma correia em volta da testa.
Portanto, força não escasseava, mas sim energia. Nem sequer a classe dos artífices que imita a dos Estados Unidos demonstra ser enérgica. Têm os seus clubes, aperaltam-se e andam de braço dado com raparigas bonitas, mas percebe-se que tudo isso não passa de vulgar imitação.
Inesperadamente, a família de Kate aumentou. Um dia, chegou de Ocotlan uma formosa moça de 15 Primaveras, com grandes olhos bovinos, Maria del Carmen. Acompanhava-a Júlio, rapaz de vinte e dois anos. Tinham casado há pouco, e vinham de visita a Sayula. Júlio era primo de Juana. Poderiam dormir no pátio com ela e com as filhas? - perguntou Juana. Só se demorariam dois dias.
Kate ficou espantada. Maria Del Carmen devia ter sangue espanhol, a sua beleza evocava a Espanha. Parecia pertencer a um nível superior, mais educado, e no entanto ia dormir no chão com esse esposo juvenil... E ele, tão aprumado e de ar tão orgulhoso, nada possuía além duma velha manta.
- Há três quartos desocupados - disse Kate. - Que durmam num deles. - As camas eram de pessoa só. - Precisarão de mais cobertores?
Não. Bastaria a manta de Júlio.
Este era assentador de tijolos, isto é, ajudava a construir as paredes das casas de adobe. Nascera em Sayula e vinha ali de visita.
Essa visita, no entanto, prolongou-se. Júlio andava à procura de trabalho e só aparecia ao anoitecer. Maria del Carmen entretinha-se a amassar tortillas na cozinha de Juana e a conversar com as raparigas. À noite, o marido regressava e, sentado no chão, de costas apoiadas à parede, sempre impassível, deixava a mulher acariciar-lhe os cabelos negros e bastos.
Amavam-se, mas Júlio resistia ao seu amor.
Ela queria voltar para Ocotlan, onde era mais señorita do que em Sayula, mas o rapaz recusou. Não tinha dinheiro; o casal sustentava-se com cerca de cinco cêntimos por dia.
Quando Kate estava a coser, Maria del Carmen, que nem sabia talhar uma camisa, observava-a de olhos arregalados. Kate ensinou-lhe costura, comprou-lhe uns metros de chita e Maria del Carmen fez um vestido com as suas mãos.
Júlio arranjou trabalho, a um peso por dia, e a visita continuou. Kate achava o rapaz pouco terno para a mulher: sempre que lhe falava era em tom de comando. E Maria del Carmen não levava isso a bem e amuava um pouco.
Passaram-se semanas, e Juana começava a cansar-se dos parentes.
Por fim, Júlio arrendou uma casita de adobe só de um compartimento, ao preço de peso e meio por semana. Maria del Carmen ia ter o seu lar.
Kate viu-os juntar as suas coisas para a mudança. Consistia tudo numa esteira de palha, três tachos de barro, cinco peças de loiça, duas colheres de pau, uma faca e a manta de Julio. Nada mais.
Presenteou-os, então, Kate com um edredão de seda já um tanto puída, duas tigelas e diversos utensílios de cozinha. Foi uma alegria. A voz de Maria del Carmen soava no pátio em exclamações delirantes. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"
Na época das chuvas as noites são por vezes glaciais devido à evaporação, e os indígenas, transidos de frio, esperam pelo romper da manhã deitados sobre esteiras delgadas e abafados apenas com a ponta de um cobertor velho. A inércia natural fá-los suportar o sofrimento sem tentar minorá-lo. Podiam arranjar um colchão de palha de milho e cobrirem-se com folhas secas de bananeira. Mas não. Estendem-se numa esteira em cima da terra húmida e tiritam de frio noite após noite.
Maria del Carmen, porém, era um pouco mais civilizada. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"

CONTINUA

VII
Sayula era uma pequena estação balnear; não para ricos ociosos, porque o México os tem em pouca quantidade, mas para comerciantes de Guadalajara e gente que passeia nos fins-de-semana. E mesmo assim em reduzido número.
Havia, no entanto, dois hotéis, que vinham dos dias calmos de Don Porfirio, tal como a maior parte das vivendas fora da povoação, hoje fechadas e muitas delas abandonadas. Na aldeia viviam em perpétuo estado de terror. Acima de tudo temiam os bandidos e os bolchevistas.
Os bandidos eram apenas homens das localidades afastadas que, sem dinheiro, sem trabalho e sem esperança faziam ocasionalmente profissão do roubo e do assassínio. Habitavam nas suas aldeias selvagens até que as tropas os obrigavam a refugiar-se nas montanhas ermas ou nas regiões pantanosas.
Quanto aos bolchevistas, pareciam nascer do caminho de ferro. Onde houvesse carris, passageiros e carruagens de diferentes classes, aí despertava o espírito de rebelião e inveja; e o ferro e as demoníacas locomotivas ofegantes dir-se-ia engendrarem esses filhos do materialismo que são os bolchevistas.
Sayula possuía o seu ramal, com um comboio diário; a linha não cobria as despesas e lutava por se manter - mas já era bastante.
Sayula fora atingida pela loucura da América: o automóvel. Assim, como outrora os homens desejavam um cavalo e uma espada e as mulheres sonhavam com uma casa ou um camarote no teatro, a ambição actual é possuir um carro.
Era um desfile contínuo de "máquinas", de automóveis ligeiros e pesados na única estrada que ligava Sayula a Guadalajara. Uma esperança, uma fé, um objectivo: andar de carro, possuir um carro.
Quando Kate chegou à aldeia, falavam com certo alarme do regresso dos bandidos, mas a irlandesa não prestou a mínima atenção ao assunto. À noite, foi àplaza e misturou-se com o povo. Era um largo ornado de árvores imponentes, com um velho coreto no centro e um passeio em volta. No lado norte ficava o mercado. Mais além, passavam burros e camionetas nas ruas mal calcetadas.
A banda de música já não tocava em Sayula, a elegância já não se exibia naplaza, debaixo das árvores. Mas o pavimento ainda era bom e os bancos mais ou menos sólidos. Oh, tempos de Don Porfirio! Agora, só os peóns e os índios, com os seus fatos brancos e manta ao ombro, enchiam os bancos e monopolizavam a praça. É certo que se mantinha a lei que obrigava os peóns, naquelas paragens, a usar calças e não a espécie de ceroulas largas e flutuantes das suas lides rurais. Mas os peóns, por seu lado, também gostavam de envergar calças em vez daquele traje representativo do humilde labor do campo.
Eram eles, pois, quem dominava na praça, ora sentados em bancos ora passeando indolentes com a sua manta e de sandálias. Depois das seis horas, enchiam-se as barracas de comida quente, na rua calcetada do lado norte: ficava mais barato comer fora de casa e findava-se agradavelmente um dia de trabalho. As mulheres, de portas adentro, que ficassem a mastigar as suas tortillas; mas não provavam caldo, nem sopa, nem guisado. Nas tendas que vendiam tequila, instalavam-se homens, mulheres e rapazes defronte da mesa, em bancos, acotovelando-se uns aos outros. Também havia jogos de azar, pouco violentos, em que o banqueiro voltava uma carta e todos gritavam: Cinco de Espadas! Rei de Copas! Certa mulher corpulenta, imperturbável, de cigarro na boca e perigosa expressão nos olhos sombrios e baixos, vendia tequila, sentada ao escuro, toda a noite. O homem dos doces ficava de pé junto do seu balcão. Por terra, viam-se pequenos archotes metidos em latas, alumiando montes de mangas ou daquelas nauseabundas ameixas tropicais, encarnadas, que se liquidavam por dois ou três centavos a pilha, enquanto a vendedora, de saia larga, ou o vendedor, humilde e paciente, esperava acocorado o freguês, com aquela indiferença fatal e aquela submissão que tanto intrigam o estrangeiro. Ter ameixas para vender no valor de trinta cêntimos; amontoá-las no chão em pequenas pirâmides, cinco em cada uma; e esperar todo o dia e até de noite, de cócoras, a olhar de baixo para cima, para a cara do transeunte e possível comprador - eis, ao que parece, uma ocupação e um modo de vida.
Era vulgar encontrar-se ali um par de rapazes empunhando violas de tamanho diverso, em frente um do outro como dois galos combatentes; entoavam uma canção interminável, cantando em voz sumida as eternas baladas não muito musicais, dolorosas, extensas, audíveis apenas para os que estavam próximos. E assim se conservavam até enrouquecerem. Em volta, com mantas encarnadas, paravam homens altos e escuros, ouvindo por instantes e raramente contribuindo com um centavo.
Entre as barracas de comes e bebes estava um trio de duas violas e uma rabeca; dois dos músicos eram cegos e cantavam em diapasão alto, mas também de modo pouco audível. Dir-se-ia cantarem só para si, muito chegados um ao outro, como se a melancólica balada lhes repercutisse no peito.
A aldeia em peso comparecia naplaza. No entanto, raramente, muito raramente uma voz se erguia acima do murmúrio grave dos homens, do sussurro musical das mulheres, do gorjeio das crianças. Poucos movimentos apressados. O lento passeio dos homens de sandálias, chamadas huaraches, fazia um rumor leve de baratas a arrastarem-se no chão. Fora e dentro da multidão calma, corriam rapazes de pernas ao léu. Eram os irrequietos engraxadores, que pululam como moscas importunas naquela terra de gente descalça.
No lado sul, viam-se mesas e cadeiras no passeio: uma tentativa de café-esplanada- Aí, nos dias de semana, sentavam-se para tomar cerveja ou um copo de tequila as poucas pessoas que se atreviam a tamanha exibição - na maior parte estrangeiras. E ospeóns, imóveis nos bancos do último plano, observavam-nas com olhos de basilisco sob as largas abas do chapéu.
Mas ao sábado e ao domingo era quase festa. Chegavam carros aos solavancos, e, como pássaros exóticos, volteavam na plaza raparigas graciosas de vestidos vaporosos, faces empoadas e cabelos encaracolados. Passeavam de braço dado, trajadas de organdi vermelho ou azul, de musselina amarela ou cor-de-rosa, e com tal camada de pó-de-arroz na cara que a pele morena apresentava a brancura lívida dos palhaços ou dos cadáveres.
Adejavam como borboletas coloridas no meio da multidão de homens do povo. fortes e belos. Era restrito o número de mancebos elegantes que pudessem equiparar-se àquelas mocinhas. Contudo, havia alguns, de calças de flanela branca, casaco escuro, palhinhas e bengala. Fumavam cigarros com gesto afectado, falando um castelhano elegante, tão próximo quanto possível do original, e com o ar de que seriam dentro de doze meses sacrificados a algum deus mexicano depOis de estarem devidamente nédios e perfumados.
Ao sábado, os janotas, as raparigas e todos os que vinham de carro, da cidade - que, aliás, eram poucos - tentavam divertir-se nesse lúgubre país. Contratavam tocadores de viola e rabeca e a música de jazz elevava-se em acordes um tanto langorosos.
Debaixo das árvores da alameda, perto das mesas e das cadeiras do café, começavam pares a dançar à la mode. Os vestidos vermelhos, amarelos e azuis rodopiavam com as calças de flanela, donde saíam elegantes sapatos brancos guarnecidos de tiras de couro preto ou castanho. Algumas das saias de organdi encimavam meias e sapatos verdes, ou pernas à Ia nature com sapatos brancos. Os braços franzinos e morenos enlaçavam os ombros azuis-escuros dos moços, que sorriam com ar protector para as facezitas brancas e petulantes; sorrisos meigos, paternais e impregnados de sensualidade.
Mas a dança era no recinto da praça, e na praça erravam indolentes os homens do campo, ou então paravam em grupos, espiando os pares rodopiantes com os seus olhos pretos, misteriosos, impenetráveis. Em que pensariam? Sentiriam admiração, inveja, ou simplesmente uma silenciosa e fria oposição? Sim, oposição é que devia ser.
Esses camponeses de camisa branca e manta escarlate, airosamente dobrada ao ombro, passeavam devagar, quase ocultos sob o chapéu enorme e pesado, dispostos a não fazer caso dos que dançavam. Vagarosos, oscilando o corpo, eles moviam-se irresistivelmente no meio da dança como se a dança, no fim de contas, não existisse. E os rapazes de calças brancas, levando nos braços as damas de organdi, evolucionavam como podiam, fazendo o possível por se desviarem âospeóns impassíveis, que prosseguiam na sua conversa, sorrindo na alvura dos dentes, com um sangue-frio que gelava os próprios músicos. Nunca se tocavam, nunca se acotovelavam, dançarinos epeóns; no México ninguém se atropela involuntariamente. Mas a dança embatia contra a oposição invisível.
Os índios sentados nos bancos contemplavam também por momentos as evoluções dos bailarinos, após o que os fulminavam com a sua pesada indiferença. Misteriosa faculdade dos índios, tão densa e calma, para destruir a vida palpitante, para apagar qualquer foco de efervescência.
Na verdade, um simples bailarico de indígenas; mas dir-se-ia fechado dentro de quatro paredes. E o ritmo soava diferente, grave, com certa violência. Os dançarinos eram artífices, mecânicos ou carregadores da estação: gente meio citadina. Nenhuns trabalhadores do campo, ou quase nenhuns.
Por isso, passado não muito tempo, as borboletas de organdi e os moços de calças de flanela sucumbiram esmagados pela enorme passividade, pela resistência dos satânicos peóns.
Curiosa, radical oposição dos índios contra essa coisa a que chamamos espírito. É o espírito que leva as meninas petulantes a adejarem as suas asas de organdi como borboletas. É o espírito que vinca as calças de flanela dos rapazes e lhes dá aquele ar um tanto patético. Tentaram representar a elegância e a vontade do espírito moderno.
No entanto, como um peso de obsidiana, surge a recusa passiva do índio; compreende a vida, que participa do sangue, mas o espírito, que é superior, e é a marca da nossa civilização, isso ele repudia, barbaramente, torvamente. Só quando se torna operário ou lida com ofícios mecânicos é que o espírito moderno o visita.
E talvez seja esse repúdio do espírito moderno que faz o México ser o que é.
Kate ficou um tanto desconsolada ao ver findar o baile. Instalara-se numa das mesas, com Juana a servir-lhe de duena, para tomar um cálice de absinto.
Os carros regressavam à cidade em pequenos grupos. Sempre seria melhor irem juntos, para o caso de aparecerem salteadores. Dominava-os o receio dos bandidos, e os próprios janotas usavam revólver no bolso.
Como era sábado, parte da mocidade elegante ficou para o dia seguinte, na ideia de tomar banho e de se espojar ao sol.
A plaza estava cheia, e ao comprido das ruas que desembocavam no largo cintilavam inúmeros archotes, iluminando uma exposição de chapéus de palha, de esteiras, de pirâmides de laranjas.
Havia feira no domingo de manhã, de modo que, de repente, o largo ficou estuante de vida - densa e pesada energia vital. Os índios tinham vindo de todas as aldeias, trazendo consigo essa curiosa energia vital que parece zumbir cada vez mais profundamente quando eles se encontram reunidos.
Durante a tarde, com o vento a soprar do sul, as canoas, de casco preto e larga vela desfraldada, haviam atravessado as águas do lago, transportando indígenas e produtos para o mercado. Para formar essa multidão todas as aldeias da margem concorreram com os seus habitantes.
Despertava o instinto que impele os índios para a vida nocturna desde que se encontrem reunidos. Ninguém recolhia a casa, ninguém pensava em dormir, embora a feira só principiasse ao romper da manhã.
Cerca das nove horas, depois de terminada a dança, Kate ouviu o rufar de um tambor, ou coisa semelhante, e notou que uma chusma de peóns se dirigia para o lado mais escuro da praça, onde já se viam barracas e cestos enormes, em forma de ovo, encostados à parede.
Aquele som, que era como o latejar dum pulso de gigante repercutindo no ar da noite, juntou-se a nota prolongada de uma flauta, tocando uma espécie de melodia bárbara. Kate, que já ouvira falar dos cânticos selváticos dos peles-vermelhas do Arizona e do Novo
México, sentiu instantaneamente espalhar-se na atmosfera a eterna
paixão das raças pré-históricas com a sua intensa e complicada significação religiosa.
Olhou para Juana com ar interrogador.
- Que é isto? - perguntou.
- Músicos, cantores - foi a resposta evasiva.
- Mas muito diferentes dos outros - insistiu Kate.
- Sim, aquilo é coisa nova.
- Nova?
- Apareceu aqui há pouco tempo.
- Donde veio?
- Sabe-se lá! - volveu Juana, encolhendo os ombros.
- Quero ouvi-los.
- Olhe que são só homens.
- Podemos ficar um pouco afastadas.
E Kate dirigiu-se para o ajuntamento silencioso dos peóns. Estavam todos de costas para ela.
Subiu o degrau duma porta e viu, perto do muro florido de buganvílias, um espaço livre iluminado pelos archotes de madeira resinosa que um rapaz segurava nas duas mãos.
O tambor estava ao centro dessa clareira, e o homem que o rufava tinha o torso nu e calças de brancura imaculada atadas na cintura por uma faixa escarlate e aos tornozelos por cordão da mesma cor. Cingia-lhe a cabeça uma tira vermelha, donde se erguiam três penas rubras sobre a nuca. Na testa brilhava uma turquesa no meio dum círculo azul. O tocador de flauta também se apresentava sem camisa, mas dobrara sobre o ombro uma bela manta branca listada de azul e preto. Outros homens, despidos da cintura para cima, distribuíam folhetos aos espectadores, insinuando-se no meio da multidão. E todo o tempo, alta e pura, a estranha flauta de barro repetia a melodia bárbara, acompanhada pelo rufar do tambor.
Kate desceu do seu poleiro e avançou a medo. Queria um daqueles papéis. O homem deu-lho, sem sequer a olhar, e ela encaminhou-se para a luz a fim de o ler. Era uma espécie de balada, mas sem rimas, escrita em espanhol. No cimo da página via-se o desenho de uma águia cercada por uma serpente que mordia a cauda; curiosa variante do emblema mexicano, que é uma águia encarrapitada num cacto de folhas largas e com uma serpente nas garras. A certa distância, o círculo formado pelo réptil com a ave a meio dava a impressão dum olho.
Na região de Oeste
Em paz, para além dos raios brilhantes
Do Sol,
No silêncio onde nascem as águas
Dormia eu, Quetzalcoatl,
Na caverna chamada Olho Tenebroso, Vendo através do sol como por uma janela, Minha morada é lá. Onde as águas brotam E os ventos nascem.
Nas águas do Além
Levantei-me e vi uma estrela cadente.
E senti
Um sopro em minha face.
O sopro disse: Vai,
E eu vim.
Desci a longa encosta, Passei o monte do Sol, Até que descobri em baixo Os seios brancos da terra Do México: a esposa minha.
Entre os mares a minha esposa Penteia o cabelo preto Murmurando: Quetzalcoatl...
Adensara-se a multidão de homens; do centro elevava-se a luz avermelhada dos archotes, o ar embalsamava-se da resina de cedro. Kate não conseguia ver nada por causa dos chapéus enormes.
Calara-se a flauta; mas o tambor continuava as suas pancadas lentas, regulares, com o ritmo duma pulsação. Aquele som incompreensível, surdo, enfeitiçava o espírito, fazia bater o coração, aniquilava a vontade.
Os homens começaram a fatigar-se, sentando-se uns, acocorando-se outros, com o chapéu nos joelhos. Dir-se-ia um mar de cabeças escuras, ondulando para a frente, sobre os ombros vigorosos e levemente inclinados.
Perto do muro formara-se um círculo, com o tambor ao centro. O homem que o tocava, de dorso nu, premia o instrumento contra o corpo, e, curvado, as costas cintilavam-lhe ao clarão da noite. Junto dele estava outro homem a segurar uma bandeira que pendia duma haste leve. No campo azul do pano via-se o Sol amarelo a meio duma bola preta e, entre os quatro raios maiores, todos de ouro, quatro raios negros emergindo, o que fazia o astro assemelhar-se a uma roda que girasse num movimento ofuscante.
Sentara-se toda a gente. Os seis homens de tronco nu, que haviam distribuído os prospectos e convocado a multidão tinham já regressado e agora acomodavam-se de volta do rufador agachado. À direita deste ficava o porta-bandeira, à esquerda o flautista. Eram nove os do grupo, e faziam dez com o rapaz que vigiava os dois archotes, agora colocados em trípodes de cana.
A noite aprofundava-se em silêncio. Calara-se o murmúrio de vozes que enchia a praça. Debaixo das árvores, nos passeios, transitavam ainda pessoas indiferentes, mas pareciam estranhamente solitárias; figuras isoladas envoltas na luz pálida das lâmpadas eléctricas e fora do núcleo da vida.
No lado norte, as barracas continuavam iluminadas, faziam-se compras e vendas. Mas também essa banda do largo dava a impressão de estar muito longe da realidade actual.
Depois de os homens se sentarem, as mulheres avançaram timidamente e instalaram-se por sua vez na orla exterior do círculo. As saias rodadas espalhavam-se no chão, os xailes escuros moldavam-lhes a cabeça redonda e pequenina. Algumas, não ousando aproximar-se, ocuparam os bancos em volta. Outras, assim como muitos homens, haviam desaparecido aos primeiros rufos do tambor.
a plaza ficou como que deserta. Um grupo compacto rodeava o tambor; aquém, era o mundo externo, vazio e hostil. Somente na ruela escura que conduzia ao negrume do lago se viam alguns vultos erectos e silenciosos como fantasmas.
Sobre os degraus de uma porta, e com Juana a seus pés, Kate olhava fascinada para aqueles homens seminus iluminados pelo clarão dos archotes. Os seus corpos lisos e acobreados possuíam essa beleza índia um tanto assustadora. Os torsos magníficos, acetinados, desses entes silenciosos de cabeça um tanto pendida para a frente; os ombros largos, levemente descaídos pela inactividade da sua força; o tom quente e o brilho da pele; o peito vigoroso, tão viril e, no entanto, sem a dureza muscular dos homens brancos; as faces sombrias, impenetráveis, os bigodes pretos e as barbas ténues enquadrando o silêncio da boca fechada - tudo isto era impressionante, singular, despertava comoção.
Havia algo de reptilário na sua flexibilidade, qualquer coisa de terrível na sua mudez. Os troncos nus tinham a revesti-los uma sombra subtil, certa obscuridade misteriosa. Se fossem homens de raça branca seriam francamente musculados, com uma espécie de sinceridade no próprio físico. Aqueles não. A sua nudez só revelava a profundeza secreta da natureza, o eterno mistério.
Toda a gente se calara; intensificava-se o silêncio expectante, tornava-se tumular. Os homens de ombros nus mantinham-se imóveis, mergulhavam dentro de si mesmos e escutavam com os ouvidos do sangue. Sob as calças brancas atadas nos tornozelos, os pés metidos em Imaraches eram quase negros ao clarão dos archotes. Que pretendiam essas criaturas suaves e recolhidas e cuja importância, no entanto, era tão ponderosa, tão aliciante?
Kate sentia-se ao mesmo tempo atraída e repelida. Quase a fascinava o estranho poder magnético dos homens em círculo. Era como o núcleo duma vida nova, como uma jóia negra brilhando na escuridão. Mas parecia-lhe repulsiva aquela estranha opressão, esse afundar do espírito na terra, esse lento escoar duma água turva; repulsiva a densa e muda oposição ao rumo espiritual da gente branca. Contudo, ali e só ali a vida parecia arder com chama intensa.
No resto do mundo, Kate bem o sabia, tudo era vacuidade, esterilidade. Aqueles vultos avermelhados pelo clarão dos archotes representavam uma humanidade nova.
Kate sentia tudo isto, mas preferia manter-se à parte, evitar o contacto directo.
O porta-bandeira ergueu a cabeça como se fosse falar, mas não disse nada. Velho de barba e bigodes brancos a emoldurar-lhe os lábios escuros e carnudos, tinha a cara sulcada de rugas, como todas as pessoas idosas desse país. No entanto, os cabelos eram bastos, e o corpo ainda revelava força e virilidade. ! Os seus olhos negros olhavam sem ver. Talvez fosse realmente
cego; ou seria profunda abstracção que lhe dava aquele aspecto. Começou então a falar, numa voz lenta, clara e distante que parecia ser o eco dos últimos sons do tambor. - Homens, escutai-me! E vós. mulheres, escutai-me também. Há muito tempo, na calma da noite, o lago dirigiu um apelo aos seres humanos. Mas não existiam. Só os peixes pequeninos nadavam ao longo das margens, procurando fosse o que fosse, e os maiores saltavam fora de água para olhar em volta. Mas não existiam seres humanos.
Então um dos deuses de face velada saiu da água e subiu ao monte. (E o velho indicou a colina invisível nas trevas da noite. ao fundo da aldeia. Contemplou o Sol e viu através dele outro sol negro, o que criou o mundo e o absorverá de novo como uma gota de água. Disse: - Chegou o momento? - E quatro braços saíram do sol e da sua sombra surgiram homens. Viram os quatro braços no céu e principiaram a andar.
O deus do cimo da colina olhou para as montanhas e para as planícies e viu os homens anelantes, sequiosos. E disse-lhes: Vinde cá. Tendes aqui a minha água dulcificadora.
Correram como cães, de língua pendente, e ajoelharam-se na margem do lago. O deus do cimo da colina ouviu-os ofegar, de tanta água que beberam, e perguntou-lhes: - Não bebestes de mais? Ou tendes ainda os ossos secos?
í Os homens fizeram casas à borda do lago, e aquele que estava na colina, e que era um deus, ensinou-os a semear milho, feijão, e a construir barcos. Mas preveniu-os: - Nenhum barco vos salvará quando o sol negro deixar de estender os braços no céu.
O deus da colina disse ainda: - Sou Quetzalcoatl, aquele que vos humedece os lábios secos. Encho-vos o peito com um sopro do além-sol. Sou o vento que sai em turbilhão do centro da terra, sou o zéfiro que se enrosca como cobra em volta dos vossos pés, pernas e coxas, erguendo a cabeça da serpente do vosso corpo, onde reside a força humana. Tomai cuidado quando a serpente do corpo erguer a cabeça. Sou eu, Quetzalcoatl, que vos elevo, que vos elevo até ao sol das trevas, derradeira morada dos homens. Exceptuando o sol negro e os quatro braços nos céus, éreis ossos, e as estrelas eram ossos, e a Lua uma concha vazia numa praia seca, e o Sol amarelo uma taça vazia, semelhante ao crânio dum lobo. Portanto, tende cautela! Sem mim nada sois. Assim como eu nada sou sem o sol que está atrás do sol. Quando o sol de ouro estiver no zénite, dizei: Quetzalcoatl levante a sua mão e me abrigue dos raios, senão perecerei e a terra secará. Porque na palma da minha mão está a água da vida, e nas costas está a sombra da morte. Quando os homens me esquecem volto a mão e aparece a sombra da morte. Mas os homens esqueceram-me. Os seus ossos eram húmidos, o seu coração fraco. Quando a serpente do corpo erguia a cabeça, diziam assim: É a serpente amansada que nos obedece. E quando suportavam o ardor do sol, falavam nestes termos: O sol está zangado, quer absorver-nos; ofereçamos-lhe sangue de vítimas.
Os braços negros desapareceram do céu, e Quetzalcoatl envelhecia e lamentava-se, velando a face para a esconder dos homens.
Lamentava-se e dizia: - Deixai-me recolher à minha morada. Estou velho, quase sou apenas ossos. Os ossos triunfam em mim, o meu coração é uma cabaça vazia. Sinto-me cansado do México.
Então bradou ao sol negro, aquele de quem nunca se pronuncia o nome: - Estou um esqueleto, os Mexicanos renegam-me, de nada sirvo. Levai-me.
O sol negro estendeu o braço e elevou Quetzalcoatl até ao céu. Depois olhou em volta e viu a estrela de alva brilhando sem receio entre a vinda do sol dourado e a fuga da escuridão. E aquele, cujo nome jamais foi pronunciado, perguntou: - Quem és tu, guarda cintilante? E a estrela respondeu: - Outrora, no México, fui Quetzalcoatl. Agora contemplo as costas do sol amarelo e a face invisível da Lua, brilho entre o dia e a noite, esperando pela renovação.
E aquele cujo nome jamais foi pronunciado declarou: - Chegou a hora.
Assim o decretou, e eu a vós repito, homens e mulheres: Chegou a hora. Os que nos deixaram regressam, os que vieram retiram-se. Desejai a uns boas-vindas e dizei adeus aos outros.
Boas-vindas! Adeus!
O velho terminou o discurso com um grito meio sufocado, tal se na verdade se dirigisse aos deuses.
- Bienvenido! Bienvenido! Adiós! Adiós!
A própria Juana, sentada aos pés de Kate, bradava sem saber o que dizia:
- Bienvenido! Adiós! Adiós... n!
O último adios arrastou-se para rematar com o costumado "n". Começou o tambor a soar num ritmo insistente, e a flauta fez ouvir o seu grito estranho e longínquo. Tocavam a melodia singular que a irlandesa ouvira a princípio.
Então um dos homens do círculo entoou o hino. Cantava à maneira dos antigos Peles-Vermelhas, em voz contida mas intensa, como se se dirigisse à própria alma e não ao mundo exterior; como se cantasse na outra dimensão da existência dos homens, onde eles se encontram na extensão infinita que há dentro do eixo do nosso espaço rotativo. Espaço que, como o mundo, não pode deixar de se mover. E, tal o mundo, tem um eixo. O eixo do nosso espaço terreno, quando lá se penetra, é uma vastidão onde até as árvores vão e vêm, e a alma está à vontade no seu sonho, nobre e irrefutável.
O pulsar do tambor e o cântico íntimo arrastavam a alma para o centro do tempo, que é mais velho do que a própria velhice. O cantor começou por uma nota alta que repetiu demoradamente, fazendo-a percorrer ritmos subtis, na aparência desconexos, que o tambor acompanhava, e depois fê-la tremer, palpitar e dar um balanço brusco. Por muito tempo foi difícil distinguir qualquer melodia: dir-se-ia o uivo distante e esmaecido dum lobo. Era na verdade a música dos índios antigos.
Não se lhe encontrava harmonia, não se lhe reconhecia emoção. Apenas música, apenas um grito na noite, perfeito e longínquo. Mas ia direito à alma, à alma eterna e antiga, aí onde só pode a família humana encontrar-se em imediato contacto.
Kate logo o sentiu, e de forma fatídica. Seria inútil resistir, inútil fazer qualquer esforço. O som ia até ao âmago do ser, em que não existe esperança nem dor, mas só a paixão, que semelha uma ave no seu ninho, de asas dobradas, e a fé uma árvore de sombra.
Como o destino, como a sorte. A fé é a própria Árvore da Vida, inevitável, e os pomos estão ao nosso alcance: pomos dos olhos
- as pupilas -, pomos do queixo, do coração, dos seios, do ventre, dos quadris, dos joelhos, dos tornozelos. Que importa a mudança, a evolução? Somos a Árvore com os seus frutos, para todo o sempre. Verbum Sat.
Emudeceu o cantor, mas o tambor prosseguiu, fazendo vibrar subtilmente a membrana sensível da noite. Então, no círculo, de novo se elevou uma voz, depois outra, e outra, como pássaros voando de uma árvore. Elevaram-se as vozes - forte, pesado, intenso arrebatamento de vozes másculas, semelhante a um bando de aves negras subindo e descendo no ar, ao mesmo tempo. E cada ave preta dir-se-ia erguer-se do coração de um homem, do bosque secreto dos peitos masculinos.
Uma a uma, partiram também vozes da multidão, qual nova revoada de pássaros. A letra não tinha importância. Versos, palavras, simples sons - o canto era sempre o mesmo: violenta rajada saindo das cavernas do peito, das profundezas da alma eterna. Kate estava excessivamente intimidada para poder cantar, demasiadamente vencida pelas desilusões; mas sentia que o seu espírito fazia eco, seguindo o clamor do povo, tal a ave poliglota que imita as outras à noite. Contra sua vontade, Juana cantava também, num tom monótono, proferindo palavras à toa, inconsciente.
Os homens seminus começaram a agarrar as mantas: mantas brancas orladas de azul, com barras castanhas e franjas escuras. Da turba, levantou-se alguém, que se dirigiu para o lago. Voltou depois com um feixe de lenha trazido por um barco. Acendeu então uma fogueira pequena. Outro indivíduo se destacou para ir também buscar lenha: colocou-a diante do tambor, dentro do círculo, e fê-la crepitar. Por sua vez, uma mulher, descalça e de larga saia de algodão, principiou a arranjar a sua fogueira no meio das mulheres.
O ar estava bronzeado pelo clarão do lume; alastrava-se um fumo odorífero, como de incenso. Subiu e desceu o cântico, depois esmoreceu. Débil ecoou o som do tambor, e morreu por seu turno. No silêncio absoluto podia-se sentir a presença imóvel do lago sombrio.
Mais uma vez pulsou, vigoroso, o tambor. Um dos homens que estavam sentados, com o seu poncho branco debruado de azul e preto, ergueu-se de repente e, tirando as sandálias, começou a esboçar passos de dança, sem fazer o menor ruído. Dançava pesadamente, de pés nus, como se fosse enterrar-se pela terra abaixo. Sozinho, oscilava num ritmo estranho, calcando o chão, erguendo ora um ora outro dos joelhos de encontro às franjas escuras do poncho. Outro homem, encaminhando-se para o centro, pôs aí os huaraches, perto do fogo, e iniciou o seu bailado, enquanto o do tambor entoava um cântico selvático, tenebroso. Os restantes comparsas despojaram-se dos ponchos e, num instante, estavam de pé, e de torsos nus, descalços, repetiam aqueles passos que pareciam de ave. A luz da fogueira batia-lhes no peito, nas faces sombrias e extáticas.
"O que dorme acordará! O que dorme acordará! O que segue o trilho da serpente na poeira chegará ao seu posto; pelo trilho do pó chegará ao seu destino e revestir-se-á com a pele da serpente: revestir-se-á com a pele da serpente da terra, que é a criadora da pedra, que é criadora da pedra e do vigamento da terra; criadora do oiro, do ferro, da madeira da terra: dos ossos do pai da terra, da serpente do mundo, do coração do mundo que bate como uma cobra bate no pó, nos seus movimentos sobre a terra; do coração do mundo. Quem dorme despertará! Quem dorme despertará! Quem dorme despertará no caminho da serpente do pó da terra, da pedra da terra, do osso da terra."
O cântico parecia tomar novos voos audaciosos depois de baixar e sussurrar num último desmaio. Eram como ondas que se erguem do invisível, que tomam forma, alando-se, e desaparecem num rumor de aniquilamento. E os dançarinos, após terem girado em círculo, numa lenta e profunda absorção, iam um por um tomar o seu lugar, calcando o pó com os pés descalços, vagarosamente, e vagarosamente começavam a descrever uma ronda lenta em torno do fogo, sempre com os mesmos passos que se diria afundarem-se na terra. E o tambor ressoava numa palpitação sempre igual, como a de um coração humano. E o cântico soou e diminuiu, mais baixo e mais baixo numa espécie de extinção, para ainda uma vez tornar a levantar-se.
Até que os camponeses moços acharam impossível permanecer como estavam. Tiraram as sandálias, o chapéu, as mantas, e, timidamente, com pés inexperientes que no entanto conheciam as velhas pisadas, se puseram atrás dos outros bailadores e dançaram sem sair do seu lugar. Depressa o círculo revoluteante estabeleceu outro círculo de homens que envolveu o primeiro.
Então, de súbito, um dos dançarinos de tronco nu saiu do círculo interior e, penetrando no segundo, fê-lo girar em sentido inverso ao daquele. Deste modo houve duas rodas em movimento, uma dentro da outra, rodopiando em direcções opostas. Assim andaram, com o tambor e o canto, girando como rodas de sombra em volta do lume. Mas o lume extinguiu-se, e o tambor parou de repente, e os homens num instante se dispersaram, retrocedendo para os seus postos.
Houve silêncio, depois ouviu-se um murmúrio de vozes e risos. Kate muitas vezes pensara que o riso dos peóns se assemelhava a uma queixa; mas agora ele saltava como faúlhas invisíveis, bruscamente, da cinza das conversas.
Todos esperavam, e contudo ninguém se movia - até que o tambor vibrou de novo, como um sinal. Continuaram, porém, a tagarelar mas escutando, qual se possuíssem uma segunda consciência. Levantou-se um homem, desfez-se da manta e deitou lenha na fogueira central. Em seguida atravessou o grupo dos homens sentados e dirigiu-se ao das mulheres, que se apinhavam com as saias desdobradas. Esperou, sorrindo com ar abstracto, e logo se pôs de pé uma rapariga e se aproximou dele, apertando com a mão direita o xaile enrolado em torno da cabeça baixa. Estendendo a mão esquerda, pegou timidamente na do homem, que parecia inerte. Sorriu este e conduziu-a ao centro da roda, através do grupo dos que estavam sentados. Ela seguia de cabeça inclinada, escondendo o rosto pudibundo. Lado a lado, começaram a dançar, mal roçando as mãos e formando o primeiro pequenino segmento do círculo interior estacionário.
Ei-los agora todos, em pé, à espera de serem escolhidos. Rápidas, as mulheres, ocultando a testa no xaile, insinuavam-se junto deles e tomavam a mão do eleito. Dentro de pouco tempo já todos tinham dama. Fechara-se o círculo interior, com os homens e as mulheres aos pares, de mão dada.
- Venha, niña, venha! - disse Juana, fitando Kate com os seus olhos negros e brilhantes.
- Tenho medo - respondeu a irlandesa. E falava verdade.
Um dos de tronco nu atravessara a rua, afastando-se da multidão e detivera-se próximo da porta onde se achava Kate, que se calou e desviou a vista. E ficou esperando.
- Olhe, niña, um senhor que a procura. Venha, niña, venha!
A voz da criada descera de tom, capciosa, com esse apelo mágico das mulheres do povo. Os olhos pretos continuavam a cintilar-lhe estranhamente, fitos no rosto da patroa. Kate, quase hipnotizada, avançou em passos lentos e indecisos para o indivíduo que se mantinha à espera.
- Quer, realmente? - disse ela em inglês, bastante atrapalhada. E, com os seus dedos, tocou nos dedos dele.
Quase com indiferença, num gesto frouxo, a mão quente e máscula segurou os dedos de Kate e levou-a para a roda. Ela baixou a cabeça e desejou poder velar a face. No seu vestido branco e chapéu de palha verde, sentiu-se outra vez virgem, virgem juvenil. Aqueles homens concediam-lhe o dom de reencontrar a mocidade.
Acanhada, receosa, Kate procurou seguir a dança; mas escapava-lhe o ritmo, e os sapatos rígidos não a ajudavam. Movia-se confusamente.
Mas o seu par pegava-lhe na mão, embora com moleza, e oscilava, lento, o corpo todo, como um pêndulo de relógio. Dir-se-ia não fazer caso dela; contudo, segurava-lhe os dedos, de leve, numa pressão suavíssima.
Juana descartara-se dos sapatos e das meias. No rosto como uma máscara de lava, enrugado, escuro, as pupilas ardiam com a eterna chama da feminilidade, sombria e inextinguível. E já, com os pés, marcava o compasso da dança.
"Assim como o pássaro do sol fecunda a terra à alvorada tal uma fêmea morena sob os seus pés, com as dobras do ventre inclinadas aos pomos da geração, com os ovos de oiro, com os ovos que escondem o globo do sol nas águas do céu, na concha da terra que é o alvo do fogo do sangue, pisa tu também a terra e a terra conceberá qual a fêmea sob os pés do pássaro do sol. Pisa a terra, pisa a terra agachada e de asas encolhidas..."
A roda começou a girar e Kate foi-se movendo devagar entre dois homens silenciosos e absortos, cujos braços tocavam os seus. Um segurava-lhe os dedos, frouxa e brandamente, mas com transcendente afinidade. E o canto selvático subiu de novo como uma ave, e o tambor alterou o ritmo de modo incompreensível.
A outra roda era composta só de homens; Kate tinha a impressão de sentir nas costas o fulgor sombrio daqueles olhares. Os indivíduos já se não distinguiam, formavam como que uma única massa, em que ela própria se confundia.
Todos dançavam da mesma maneira, de cabeça baixa e olhar ausente, os homens absorvidos na sua virilidade, as mulheres na sua feminilidade. Somente o sexo prevalecia na sua mais alta concepção. Mar à superfície do globo movendo-se por cima dum mar nas entranhas da terra; águia evolucionando em silêncio sobre a própria sombra.
Kate sentia-se fundir nas águas revolutas de uma vida nova. Deixara de ser ela mesma para fazer parte de um todo, os seus desejos abismavam-se no mar do desejo colectivo. E assim o homem cujos dedos roçavam nos dela se engolfava no oceano de homens.
Lento mover de águas sobre águas, sem vestígio de espuma. Só a pura e deslizante conjunção.
Como era estranho ver-se submergida pelo desejo para além do próprio desejo, sentir-se integrada num corpo imenso para além do individualismo do corpo!
Não conhecia a cara do homem que lhe segurava nos dedos. Os seus olhos haviam cegado, e o rosto dele era um céu tenebroso. Mas do toque dos seus dedos nascia uma estrela, a estrela que os unia.
Os pés de Kate principiavam a marcar o compasso. Ela já sabia como deixar-se levar, abandonar a essência da sua vida, permitindo que lhe fugisse devagar, num escoamento rítmico, para o corpo negro da terra. Erecta, forte como o próprio esteio da vida, cedia no entanto a Seiva dessa força e fazia-a fluir para as raízes da terra.
Perdera a noção do tempo. A dança, porém, acalmava-se pouco a pouco, embora o ritmo permanecesse sempre o mesmo até ao fim.
Calaram-se as vozes, só o tambor continuou. Este, de súbito, produziu um rufo breve, e o silêncio foi geral. Logo as mãos se desataram, o baile parou de todo. O homem que a acompanhava sorriu-lhe e desapareceu. Jamais o reconheceria. Havia, no entanto, de lhe sentir a presença.
As mulheres afastaram-se, aconchegando os ombros com o xaile. Os homens dissimularam-se nas mantas. E Kate voltou à escuridão do lago.
- Já se vai embora, Niña? - perguntou Juana num tom que revelava certo descoroçoamento.
- Tenho de ir sem demora - replicou a patroa, estugando o passo. E a toda a pressa se encaminhou para as trevas do lago, com Juana na sua peugada, de sapatos e meias na mão.
Kate desejava reentrar em casa, com o seu novo segredo, o estranho segredo da feminilidade mais alta, a que ainda se não habituara. Precisava abandonar-se inteiramente àquele mistério.
Quase corria através do atalho interminável, na margem pedregosa e escura, apesar de a claridade das estrelas ser suficiente para revelar a forma sombria dos barcos que sulcavam a água mansa e turva. Noite eterna, sem horas! Kate não queria consultar o relógio, e até o virou no pulso a fim de não ver os ponteiros luminosos. Que o tempo a não governasse!
Ao adormecer, ouvia ainda o rufar do tambor, como um pulso que batesse nas entranhas da terra.

VIII
À entrada da casa de Kate elevava-se uma árvore enorme chamada cuenta por causa dos seus frutos pequeninos, redondos, duros e perfeitos de forma, que os indígenas apanhavam para fazer colares e, em especial, padre-nossos dos rosários. À noite, a rua ficava imersa em escuridão e só a queda das contas perturbava o silêncio.
Essas noites, que de começo pareciam calmas, amigáveis, encheram-se subitamente de terrores. Renascia o medo. Constituíra-se uma quadrilha de ladrões numa das aldeias do lago, cujos habitantes tinham má fama. Essa quadrilha, invisível durante o dia, compunha-se de pescadores e jornaleiros que, depois do anoitecer, montavam nos seus cavalos e iam assaltar casas solitárias ou mal guardadas.
O facto de saber que um bando de malfeitores rondava naquela região era o bastante para incitar os ladrões isolados a agir também. Fosse o que fosse que acontecesse, seria atribuído aos bandidos. Deste modo, mais de um indivíduo considerado honesto se deixava dominar pela cobiça e se escapulia à socapa armado de faca ou de pistola para se aproveitar igualmente da escuridão.
Kate sentia o terror condensar-se no silêncio da noite mexicana; silêncio tenebroso, tão profundo que se tornava sobressaltante, o som duma conta a cair. Deitada na cama, Kate escutava o mínimo rumor nas trevas densas. Ouviam-se ao longe apitos de polícia, daí a pouco passava a patrulha a cavalo. Mas, como acontece em quase toda a parte, a polícia nunca aparecia quando era precisa.
Aproximava-se a estação das chuvas, e o vento nocturno, vindo do lago, fazia sussurrar as árvores e abalava as portas desconjuntadas da casa. Os criados encafuavam-se nas suas dependências. No México, uma pequena distância isola-nos completamente desde que a noite desce; e ficamos perdidos na escuridão envolvente.
De manhã, Juana vinha da praça, com os seus olhos como gotas de tinta e, no rosto bronzeado, a expressão cansada dos entes submetidos ao medo. Logo de entrada, e na sua linguagem pouco compreensível, embrenhava-se na história de uma casa assaltada e de mulheres assassinadas. E a dona do hotel mandava dizer a Kate que não era prudente dormir sozinha em casa. Seria melhor passar a noite no hotel.
Toda a aldeia se encontrava sob estranha apreensão. Pairava no ar da noite um terror pânico. Renascia a confiança à claridade azul da manhã, mas ao anoitecer o sangue parecia coagular-se, a atmosfera tornava-se densa.
O medo, é claro, comunicava-se duns aos outros. Se Juana e a respectiva família não andassem cheias de pavor, Kate nunca sentiria medo, disso estava ela certa.
Ali não havia homens. Juana tinha dois filhos, Jesus, de vinte anos, e Ezequiel, de dezassete. Mas Jesus era quem tomava conta do motor da luz eléctrica, e tanto ele como Ezequiel dormiam na casa das máquinas. De modo que Juana ficava só com as duas filhas, Concha e Maria, no cubículo ao fundo da residência de Kate.
Antes, a plaza mantinha-se animada até às dez da noite, com gente a conversar ou a ouvir os moços tocadores de viola e o homem dos sorvetes a apregoar de contínuo: Nieve! Nieve!
Agora o largo esvaziava-se às nove horas. E havia ordem de prender quem fosse encontrado na rua depois das dez.
Kate corria para casa e trancava as portas. Não é fácil suportar o pânico de um povo meio bárbaro. O medo espalha-se no ar, envolve-nos, paralisa-nos a alma com a sensação de desgraça iminente, dum horror atroz.
Às dez horas cortavam a luz eléctrica, tudo ficava às escuras, e, deitada na cama, Kate sentia o sopro maléfico espraiando-se na atmosfera em vagas sucessivas.
Acudiam-lhe à memória todas as histórias arrepiantes passadas no país. E de novo pensava nessa gente de aspecto pacífico e sorriso doce. Mas o próprio Humboldt dissera a respeito dos mexicanos que nunca encontrara povo de sorriso tão suave e olhar tão feroz. Não que os olhos revelassem propriamente ferocidade; contudo, o seu negrume iluminava-se dum clarão frio, de cintilações de punhal nas trevas da noite, ao mesmo tempo que neles despertava a sede de homicídio.
Seres incompletos, não de todo criados, encontravam-se à mercê das velhas influências que jaziam como sedimento no fundo de cada um deles. Enquanto estavam calmos, eram simpáticos, bondosos, simples. Mas, se alguma coisa lhes revolvia as profundezas, logo se erguiam as nuvens tenebrosas de ódio e de morte.
Adivinhava-se-lhes na alma um ressentimento constante, como que uma ferida jamais cicatrizada. O ressentimento dos entes incapazes de conquistar sozinhos uma integridade individual fora do caos de paixões e forças mortíferas. Eram apanhados na engrenagem duma ansiedade ancestral como nos anéis duma serpente negra que lhes oprimisse o coração. Onerosa carga dum passado invencível.
E debaixo desse peso vivem e morrem, sem grande pena de morrer. Enredados nos elementos, não conseguem desenvencilhar-se. Queimados pelo sol excessivamente forte, sobrecarregados pela electricidade da atmosfera mexicana e atormentados pela erupção de vulcões que lhes rebentavam aos pés. Tremendos elementos do continente americano que tornam forte o corpo dos homens mas que esmagam a alma e impedem a sua elevação. E, se nalgum ela se eleva, os elementos maléficos a pouco e pouco a destroem, até que o homem se decompõe em ideias e actividades maquinais, num corpo cheio de energia mecânica mas de espírito morto e putrefacto.
Assim, esses seres incapazes de dominar os elementos, submetidos às forças do sol, da electricidade e das erupções vulcânicas, estão sujeitos a acessos de rancor e de ódio ardente à própria vida. Então, nada melhor do que enterrar uma faca num corpo vivo. Nenhuma volúpia iguala essa de cravar a lâmina e ver jorrar o sangue.
É a suprema satisfação duma raça presa a um passado de que não consegue libertar-se. Raça que não conhece Salvador nem Redenção. Quais mineiros enterrados vivos na derrocada duma mina, nações inteiras ficam sepultadas sob os escombros do passado - até que um salvador lhes mostre a saída para o sol.
Deitada na cama, Kate reflectia profundamente na'escuridão da noite, de ouvido atento aos menores ruídos que a enchiam de terror. Não podia refrear o coração; dir-se-ia que lho arrancavam, e o sofrimento era atroz. Pela primeira vez sentia medo físico, o sangue gelava-se-lhe nas veias.
Na Inglaterra, na Irlanda, durante a guerra e a revolução, conhecera o medo espiritual. O medo horrível da ralé; e durante a guerra as nações eram quase tudo ralé. O terror da canalha que pretendia acabar com a liberdade de pensamento em cada homem e em cada mulher. Era a ambição fria e colectiva de milhões de criaturas: aniquilar o espírito daqueles que resistiam e assim poderem iniciar a descida geral para as camadas interiores onde existe o culto do ouro e a volúpia de matar. A canalha.
Nesse tempo, Kate conhecera a agonia do medo social, como se a democracia fosse um polvo enorme que enlaçasse com os tentáculos quem lhe resistisse.
Agora o seu medo era doutra espécie. Sentia o coração doer-lhe, como se o arrancassem, o sangue parecia fugir-lhe das veias...
Dormitava, e acordou em sobressalto a um leve rumor. Sentou-se na cama. As portas que davam para a varanda tinham postigos, e estes encontravam-se escancarados a fim de arejar o quarto. Nessa abertura Kate distinguiu, recortando-se no céu escuro, uma forma negra semelhante a um gato que rastejasse no rebordo da janela.
- Que é? - perguntou ela maquinalmente.
No mesmo instante, aquilo moveu-se, deslizou para fora, e Kate percebeu que era o braço de um homem que tentava abrir o ferrolho interior da porta. Por uns segundos ficou paralisada, pronta a gritar. Então, como não pressentisse mais nada, inclinou-se e acendeu uma vela.
Era uma verdadeira agonia aquele terror pânico. Imobilizava-a, deslocava-lhe o coração... Ficou prostrada, no angustiante pavor nocturno. A vela projectava uma claridade lúgubre. Ouvia-se o ribombo longínquo de trovões. A noite era atroz, atroz, e o México horroroso.
Kate não conseguia dominar-se. "Estou à mercê disto", pensava. Sensação terrível, ver-se subjugada pelo medo.
"Que hei-de fazer?" perguntou a si mesma, reunindo coragem. Sabia que estava só.
Durante muito tempo sentiu-se incapaz de se mover. Então disse consigo, para se animar: "Creio no mal e não devo crer. O pânico e o assassínio são coisas que só sucedem quando perdemos o domínio de nós próprios. Não acredito verdadeiramente no mal. Acredito, sim, na existência dum poder supremo que nos comunica a sua força desde que tenhamos fé nele. O homem que queria entrar aqui não possuía essa força. Tentava ser maléfico, mas submeter-se-ia ao poder dominador."
Deste modo se ia tranquilizando, até que teve a coragem de se levantar e fechar os postigos. Em seguida, percorreu os quartos a fim de verificar se tudo estava trancado. E sentiu certo alívio ao compreender que temia tanto os escorpiões como a horrível sensação de pavor.
Depois de observar o fecho das cinco portas e das cinco janelas da ala de quartos comunicantes, Kate ficou encerrada nas trevas com a sua vela. Para o outro lado da casa, sala de jantar e cozinha, tinha de ir pela varanda.
Mais serena, embora ainda com o coração atormentado pelo medo, Kate reflectia. "Joachim afirmava que o mal provém de regressarmos aos costumes primitivos. É o que provoca roubos e assassínios. O tambor da noite de sábado evocava o ritmo da antiguidade e aquela dança selvagem era a velha forma de expressão. Regresso consciente à barbárie... Talvez a origem do mal..."
Mas logo intervinha o seu desejo de crer.
"Não! Temos de nos agarrar aos elos antigos, encontrar o impulso que nos relacionará de novo com o mistério do cosmos. Don Ramon tem razão. Ele deve ser um grande homem. Julguei que já não existissem grandes homens. Só grandes financeiros, grandes artistas, mas não grandes homens. Don Ramon deve ser um ente superior."
E Kate sentiu-se apaziguada a esta ideia.
Mas, logo que apagou a vela, surgiram clarões muito vivos através das fendas do postigo. Ribombaram trovões clamorosos, que pareciam afundar-se-lhe no coração. Kate sentia-se como que esmagada, na consciência duma tortura que a paralisou até de manhã e lhe deu a impressão de ser, ela própria, um destroço de naufrágio.
Por fim apareceu Juana, também com o ar de desenterrada, para lhe fazer a pergunta tradicional:
- Como passou a noite, Niña?
- Muito mal - respondeu Kate. E contou-lhe a história do gato preto e do braço do homem.
- Mire! - replicou Juana, sufocando a voz. - A inocentinha vai ser assassinada na cama. Não, niña, tem de passar a dormir no hotel. Não, Niña, não pode continuar com o postigo aberto. É impossível. Está a ver agora como é necessário que durma no hotel? Assim fazia a outra senhora.
- Não quero - declarou a patroa.
- Não quer, Niña? Ah, entonces, entonces... niña, vou dizer ao Ezequiel que venha dormir na soleira da porta, armado de revólver. Ele tem um revólver, pode ficar do lado de fora da porta, e a senhora já deixava a sua janela aberta, para lhe refrescar o quarto. Pobres de nós, mulheres, precisamos de um homem que tenha revólver. Não devemos estar sozinhas, toda a noite. Temos medo, e as crianças também têm medo. Imagine que um ladrão tenta arrombar o ferrolho da porta! Imagine! Não, niña, vai-se falar ao Ezequiel hoje mesmo, antes do meio-dia.
Ao meio-dia, Ezequiel compareceu, muito seguro de si. Era um rapaz, meio selvagem, mas dava largas passadas, empertigado e orgulhoso. A voz, na mudança própria da puberdade, tinha uma entoação estranha.
Ficou de pé, acanhado, ouvindo o que lhe recomendavam. Depois olhou para Kate com as pupilas negras e brilhantes, convicto do seu papel de salvador.
- Sim, sim - declarou. - Durmo aqui no corredor. Não tenha medo. Trago a pistola.
Saiu, e voltou com a arma, que era de cano comprido.
- Tem cinco cargas - participou, exibindo o revólver. - Se abrir a porta de noite, previna-me, porque, se eu vir mexer qualquer coisa, disparo os cinco tiros. Pum!, pum!
Pelo brilho do olhar do rapaz, Kate compreendeu quanto ele gostaria de fazer fogo sobre o que se movesse nas trevas. Não o preocupava a hipótese de ser alvejado por seu turno.
- niña - disse Juana - se voltar tarde para casa, depois de as luzes estarem apagadas, não se esqueça de chamar pelo Ezequiel. Senão... pum!, pum! Nunca se sabe quem pode ser a vítima.
Ezequiel dormiu sobre uma esteira na varanda de tijolos, defronte da porta de Kate. Enrolou-se num cobertor e conservou o revólver à mão. A senhora podia ficar de janela aberta. Na primeira noite, esteve muito tempo acordada por causa do ressonar estrondoso do rapaz. Nunca ela ouvira semelhante coisa! Que pulmões que ele devia ter! Dir-se-ia um som que viesse de outro mundo estranho e bárbaro. O barulho manteve-a desperta, mas havia naquilo um não sei quê de agradável. Algo semelhante a uma força bravia.

IX
Kate depressa se afeiçoou à negligente Juana e respectivas filhas. Concha tinha catorze anos. Era uma rapariga selvagem, entroncada, de cabeleira hirsuta que ela coçava constantemente. Maria, de onze anos, parecia um passarito, com olhos enormes que se diria absorverem toda a luz à sua volta.
Juana confessava que Jesus era filho doutro pai, mas o aspecto dos restantes fazia suspeitar ter cada um deles progenitor diferente. Toda a família, porém, mostrava igual despreocupação perante a vida. Viviam o dia-a-dia sem se importarem com o passado, nem com o presente, nem com o futuro. O dinheiro não lhes interessava. Assim que o recebiam gastavam-no, e logo o esqueciam.
Sem aspirações, sem objectivos, levavam existência absolutamente terre à terre no seu país sombrio e vulcânico. Não eram animais porque homens, mulheres e crianças não podem ser animais. Tal não nos foi concedido. Vai, e não voltes para trás - diz o Criador. Quando o homem tenta brutalmente tornar ao primeiro estado da evolução, fá-lo com espírito de crueldade.
Por isso os olhos negros daquela família revelavam certo medo, espanto e sofrimento. Angústia das criaturas humanas sem força para desenvolver as possibilidades do seu ser; incapazes de arrancar do caos a própria alma e indiferentes a qualquer outra vitória.
Também os brancos perdem a alma a pouco e pouco; mas conquistaram os mundos inferiores do metal e da energia e, graças às máquinas, lançam-se em corrida louca de roda da sua vacuidade.
Naquela família Kate encontrava algo de patético e de repugnante.
Desde que haviam aceitado niña como patroa, Juana e as filhas mostravam-se profundamente honestas. Honestas, a pontos de não tirarem uma única ameixa do fruteiro. E solícitas no serviço, de uma solicitude quase excessiva.
Viviam na sujidade, indiferentes ao ambiente. O chão era o seu caixote do lixo. Para ali arremessavam tudo o que consideravam inútil e ninguém se preocupava mais com isso. Pareciam 138
comprazer-se em viver no meio de pulgas e de trapos, de cascas de banana e caroços de manga. Um pedaço arrancado dum vestido - aí vai para o chão! Cabelos tirados do pente - chão com eles!
Kate não suportava aquilo. Afligia-a tamanha desordem, e o facto de ela se afligir divertiu imensamente a família mexicana. Mãe e filhas varreram então o pátio com uma vassoura de urze, até raspar a própria superfície da terra. Que engraçado, a niña preocupar-se com aquelas coisas!
Kate constituía para elas uma fonte de espanto e de divertimento. Não a consideravam pessoa de classe elevada. Era um ente meio incompreensível, meio espantoso.
Niña queria que o aquador lhe trouxesse todas as manhãs dois botes de água das nascentes térmicas para fazer abluções completas. Que esquisito! "Maria, diz ao aquador que corra a buscar água para a niña."
Quase se melindravam com o facto de ela se fechar no quarto para tomar banho. Era uma espécie de deusa, provocava-lhes alegria e admiração; mas devia ser sempre acessível. Kate depressa descobriu que um deus sempre acessível aos seres humanos passa bocados pouco invejáveis.
Não, aquilo não era nenhuma sinecura. De manhã começava o barulho da vassoura de urze lá fora. Kate deixava-se estar na cama, de portas fechadas e postigos abertos. Alvoroço no pátio. Alguém queria vender ovos. Onde está Niña? A dormir. O visitante não se retira e as conversas continuam.
O aquador! Ah, a água para o banho da niña. Está a dormir. "Não estou, não!" - grita Kate, enfiando o roupão e destrancando a porta. As pequenas entram com a tina, seguidas do aguadeiro com duas latas cheias de água quente. "Doze centavos, doze centavos para o aquador." No hay! Mais tarde, mais tarde. O homem vai-se embora, com a vara ao ombro. Kate fecha os postigos e começa a tomar banho.
- Niña!, Niña! - Que é?
- Quer ovos estrelados, quentes ou rancheros?
- Quentes.
- Café ou chocolate?
- Café.
- Ou prefere chá?
- Não, café.
O banho continua.
- Niña!
- Dize lá.
- Já não temos café. vou comprá-lo.
- Não é preciso. Tomarei chá.
- Não, niña, Eu vou. Espere por mim.
- Está bem, vai.
O primeiro almoço é na varanda. A mesa está posta, há pilhas de frutos, pão alvo e bolos.
- bom dia, niña. Como passou a noite? Maria, traze o café. vou meter os ovos na água. Oh, niña, eles não devem ficar cozidos... Meu Deus, que pés de Madona! Olhem, que bonitos!
E Juana inclina-se fascinada e, com o dedo escuro, toca nos pés acetinados de Kate metidos em leves sandálias seguras por uma única tira.
O dia tinha começado. Juana considera-se como inteiramente dedicada a Kate. Tão cedo quanto possível, expede as filhas para a escola. "Niña diz que é preciso ir para a escola. Não ouvem o que ela diz? Vamos, girem!"
No seu passo coxeante, Juana anda cá e lá na varanda, da cozinha para a mesa do almoço, transportando os pratos um por um. Depois, com grande espalhafato, começa a lavar a louça.
Manhã! O sol inunda o pátio, os cardeais e as folhas dilaceradas das bananeiras. Os pássaros voam em todos os sentidos com precipitação tropical. Na sombra densa das mangueiras passam índios vestidos de branco, semelhantes a espectros. Há um frémito de vida e, no entanto, o silêncio é opressivo. Os olhos deslumbram-se à claridade ofuscante, a alma sente-se oprimida.
Kate senta-se na varanda e finge coser. Surge um velho, segurando um ovo na mão, como qualquer símbolo. A patrona quereria comprá-lo por cinco centavos? Juana só dava quatro. De acordo? Onde está Juana?
Juana volta da praça com outras compras. O ovo! Quatro centavos! A conta das despesas. Entonces! Entonces! Luego! Luego. Ah, niña, no tengo memória.
Juana não sabia ler nem escrever. Todas as manhãs ia ao mercado, comprava uma porção de coisas de um ou dois centavos e todas as manhãs era preciso fazer contas. "Ah, onde é que nós íamos?
Não tenho memória nenhuma. Ora vejamos... Comprei três centavos de ocote... Quanto? Quanto soma agora, niña" Se faltava um centavo, ficava desolada e não falava noutra coisa. "Falta um centavo, niña? Sou estúpida, não sou? Mas eu dou-lhe um do meu dinheiro."
- Deixa lá, não penses mais nisso - dizia Kate.
- Mas eu quero pagar a diferença - insistia a mulher; e afastava-se, coxeando.
Uma hora depois elevava-se um grito no outro extremo da casa e Juana aparecia empunhando um ramo de salsa.
- Mire, niña! Compré perejil a un centavo. As contas estão certas agora?
- Estão - respondia Kate.
E a vida podia então retomar o seu curso. Existiam duas cozinhas: a anexa à sala de jantar, e a das criadas, numa espécie de barraca debaixo das bananeiras. Da varanda Kate via a abertura negra que fazia as vezes de janela na cozinha de Juana.
"Julgava Concha na escola!", disse Kate consigo mesma.
Mas não. No buraco escuro da janela distinguia-se o rosto moreno e a juba de Concha, espreitando para fora como um animal que saísse da toca, enquanto fazia as tortillas. Tortillas são uma espécie de filhos de milho. Preparam-nas batendo a massa na palma da mão até adquirir a lisura e leveza necessárias. Pouco depois do meio-dia via-se sair fumo pela janela: Concha lançava as tortillas cruas na frigideira de barro colocada sobre o lume.
Então Ezequiel aparecia, de manta sobre o ombro, chapéu de palha de grandes abas enroladas, pronto a comer as tortillas. No entanto, se trabalhava no campo, só chegava ao cair da noite. Sentava-se no degrau da porta e as mulheres serviam-no e iam-lhe buscar água como se ele fosse um rei. E ouvia-se-lhe a voz rouca dando ordens em tom calmo.
Porque, apesar do seu ar sereno e meigo, tomava uma entoação imperiosa desde que se dirigisse à mãe ou às irmãs. Prerrogativa de macho, que dava a Kate vontade de zombar do rapaz.
A hora da refeição era para Kate um dos seus tormentos. Apresentavam-lhe sopa muito quente e gordurosa, arroz apimentado, também gorduroso e fumegante, a inevitável carne nadando em gordura. Seguiam-se calabacitas, ou beringelas, salada, e o enorme cabaz de fruta. E, inundando tudo isso, o ardente sol tropical dos fins de Maio.
De tarde, o calor aumentava. Juana ia com as filhas lavar a loiça no lago. Agachadas sobre as pedras, agitavam na água cada prato, cada colher e cada garfo, e punham tudo a secar ao sol. Depois, enquanto Juana lavava uma ou duas rodilhas, as filhas banhavam-se no lago.
Jesus, o primogénito, costumava vir à tarde regar o jardim. Mas esse comia no hotel, onde prestava diversos serviços, trabalhando até às dez da noite por um salário de vinte e dois pesos, ou seja, onze dólares por mês. Usava camisa preta, e a cabeleira abundante tombava-lhe na testa baixa. Apesar da camisa fascista, possuía o espírito sarcástico e crítico dos socialistas, o espírito que vem do instinto de destruição.
Entre ele e a mãe existia pouca intimidade. Se Juana se encontrava em apuros, Jesus dava-lhe algum dinheiro mas, exceptuando o ténue laço de sangue que os unia, mostravam a maior indiferença um pelo outro.
Ezequiel tinha melhor tipo. Era esbelto, e tão direito que quase parecia arquear-se para trás. Tímido, arisco, orgulhoso, sentia-se mais responsável pela família. Não queria servir em hotéis. Não. Trabalhava nos campos, e tinha vaidade nisso: era labor de homem, não uma espécie de escravidão disfarçada.
Embora simples jornaleiro, não trabalhava para um patrão mas sim para a terra. E a terra, de certa maneira, era dele, pertencia-lhe...
Quando havia que fazer, chegava a ganhar um peso por dia. Se a terra estava seca, então procurava trabalho nas estradas, ainda que isso lhe não agradasse.
Mas nem sempre conseguia empregar-se. Durante dias, semanas, Ezequiel vagueava pelos arredores, sem nada que fazer. Quando o governo socialista dividiu as fazendas em lotes e os distribuiu pelos camponeses, coube-lhe um pedaço de terra fora da aldeia. O rapaz ia até lá e juntava pedras para construir um casebre. Cavava o chão tão profundamente quanto possível, mas não tinha amor a essa nesga de terreno que lhe viera parar às mãos de modo quase sobrenatural. Só lá ia de vez em quando, e sem nenhum entusiasmo.
Nos dias de trabalho regressava a casa por volta das seis horas e, cumprimentando Kate, timidamente, dirigia-se para o seu antro, onde, sentado no chão e de costas apoiadas à parede, dobrava tortillas umas sobre as outras e comia essa pasta elástica que tem o sabor de argamassa - pois o milho é primeiramente fervido com cal para largar a pele. Depois, dignava-se aceitar outra rima de fritos, que a irmã lhe apresentava numa folha de couve. Às vezes, Ezequiel tirava do tacho de barro um bocado de carne guisada que metia entre duas tortillas. Mas ingeria tudo rapidamente com uma espécie de indiferença. Aliás, os mexicanos parecem sempre indiferentes ao que comem.
Acabada a ceia, ia até à plaza, reunir-se aos homens. Havia ocasiões em que Kate, ao recolher a casa às nove horas, a encontrava quase deserta. Ezequiel estava no largo, Juana e Maria haviam desaparecido, e Concha dormia tal um molho de trapos no chão do pátio. Quando Kate a chamava, a pequena erguia a cabeça, espantada, entorpecida; depois, levantando-se como um cachorro, rastejava até ao portão.
Indiferença por tudo, até uns pelos outros. Juana lavava semanalmente uma camisa e um par de calças de algodão para cada um dos filhos, e aí terminavam os seus cuidados maternais. Nem se interessava averiguar qual o trabalho-de momento de Ezequiel. Sabia que arranjara emprego e isso lhe bastava. Contudo, de tempos a tempos, tinha ímpetos de amor materno, quando o rapaz era tratado injustamente, como às vezes acontecia. E, se o supunha doente, dominava-a um terror fatalista que só a abandonava depois de Kate intervir com qualquer remédio muito simples.
Semelhantes a animais. Mas os animais são perfeitos no seu isolamento e despreocupação; não se trata de indiferença, é que se bastam a si próprios. Ao passo que naquela família havia uma espécie de frustração, como se um torpor de aborrecimento a todos avassalasse.
As duas raparigas eram inseparáveis; andavam sempre atrás uma da outra. Concha arreliava de contínuo a inocente Maria de grandes olhos e esta debulhava-se em lágrimas. Ou então, no meio de uma fúria, ameaçavam-se com pedras, e Juana invectivava-as com súbita veemência, que logo se extinguia.
Estranha, aquela ferocidade repentina com que as pequenas arremessavam pedras, e não menos estranho, o esforço por não acertar. Kate notava a mesma coisa nos ataques selváticos que os garotos faziam uns aos outros nas margens do lago; atiravam calhaus com ar ameaçador, mas quase sempre falhavam o alvo.
Quase sempre, mas não sempre. Às vezes atingiam o adversário, que tombava como morto. Então os outros aproximavam-se, em silêncio temeroso, da vítima prostrada. De repente, o ferido erguia-se, com um esgar homicida no rosto, perseguindo o inimigo com uma pedra. E o inimigo fugia a sete pés.
Uma vontade perene de arreliar, de atormentar. O mesmo sucedia entre os Peles-Vermelhas. Mas o povo índio raramente recorria à violência, o que se não dava com os Mexicanos.
Kate, achando que devia fazer qualquer coisa pelas pequenas, dispensou-lhes uma hora por dia para lhes ensinar a ler, a redigir e a costurar. Maria queria aprender a ler; nisso mostrou boa vontade. Começaram bem, mas depressa a leve insistência de Kate em lhes chamar a atenção fez com que as alunas assumissem o tom de ironia peculiar ao continente americano. Ironia calma, invisível, malevolente, desejo de magoar.
- Não te debruces sobre mim, Concha. Põe-te direita.
- Porquê, niña Tem piolhos na cabeça?
A pergunta insolente era formulada com subtileza índia.
- Não! - respondia Kate subitamente irritada. - E agora vão-se embora! Afastem-se de mim.
E as pequenas retiravam-se, humilhadas.
Kate recebeu visitas de Guadalajara. Grande excitação! Mas enquanto tomava chá na varanda, Juana, Concha, Maria e Filipa, que era uma prima de dezasseis anos, sentaram-se no outro lado do pátio, bem à vista, com os belos cabelos soltos sobre os ombros, e, ostensivamente, puseram-se a catar piolhos umas às outras. Pareciam encantadas por exibirem a sua sordidez àqueles estrangeiros.
Kate desceu ao pátio.
- Se querem catar piolhos - disse em voz trémula de cólera - vão para onde ninguém as veja.
Atravessou um clarão de maldade os olhos negros de Juana, mas um instante depois, humilde e abjecta, a família retirava-se, de cabeleira ao vento, em direcção ao seu antro.
Juana comprazia-se em irritar Kate. Sentia assim uma espécie de poder sobre a Niña. É certo que temia um tanto essa irritação, mas era justamente o que desejava. De que servia uma niña que não lhe inspirasse algum receio?
Ah, raças escuras! Kate, como irlandesa, podia entrever um pouco do mistério. As raças escuras pertencem a um ciclo de humanidade já desaparecido; ficaram atrás, no fundo de um abismo donde nunca conseguiram sair. Jamais atingirão o nível dos brancos; limitam-se a segui-los de longe, como escravos.
Enquanto o homem branco avança, cheio de orgulho, as raças escuras cedem-lhe o passo e obedecem-lhe pela força. Se, porém, o branco hesita na sua marcha, logo os outros o atacam para o precipitar no abismo do passado.
É o que está a acontecer. Porque o branco, apesar de todas as farroncadas, duvida da sua própria supremacia.
E é a corrida veloz para a derrocada.
Desde a revolta de Kate perante a cena da caça aos piolhos, Juana voltou a servi-la com enternecedora solicitude. Embora indiferente a tudo, aquele ser das regiões inferiores não queria quebrar o débil fio que o ligava a Kate e ao mundo da claridade e do ar puro. Em suma, o desejo de Juana era conservar a sua niña, servir a sua Niña.
Ao mesmo tempo, parecia odiar a gente rica, branca e superior. De vez em quando contava a Kate histórias do passado. Então via-se-lhe uma expressão malévola nos olhos negros e na face acobreada, enquanto ela prosseguia: Usted sabe, niña, los gringos, los gringuitos llevan todo...
Os gringos são os Americanos, e Juana incluía Kate nos gringuitos, estrangeiros brancos. Aquela frase era nova insolência disfarçada, subtil...
- É possível - respondia Kate friamente. - Mas dize-me o que é que eu levo do México.
- Non, niña, non - Espalhava-se um sorriso de satisfação na cara de Juana quando ela conseguia atingir a outra mulher. Não me refiro a si, niña! - O protesto, porém, era pouco convincente.
Dir-se-ia que essas indígenas queriam obrigá-la a partir à força, insultando-a, rebaixando-a, até que a irlandesa, não menos impetuosa do que elas, abalasse dali num momento de fúria.
Oh, raças primitivas atrasadas!
Contudo, havia um lado patético na natureza daquela gente. Quando tinha catorze anos, Ezequiel trabalhara por conta de um sujeito que andava a construir casa. O homem prometera-lhe uma manta, mas ao fim de dois meses despediu-o sem cumprir a promessa. Foi uma desilusão bem amarga.
Kate nada tinha a ver com isso, mas Juana quase a acusava do facto.
Povo sem força para avançar, como podia deixar de ser explorado? Desde séculos que o exploravam cruelmente, e toda a sua energia se limitava a uma resistência malévola.
"Mas não pretendo explorá-los - dizia Kate consigo mesma.
- Pelo contrário, a minha vontade é dar-lhes mais do que recebo. São injustos os seus remoques. Nunca insultei estas criaturas. Faço a diligência de não as magoar e elas, deliberadamente, atacam-me e ficam radiantes quando me ferem."
No entanto, Kate procedia à sua maneira irlandesa: de vez em quando, isolava-se de Juana e das filhas. Porque, assim que as mandava para longe, desaparecia-lhes a malevolência e lembravam-se das ordens da niña. Se ela estava presente e amável, esqueciam-se de tudo. Esqueciam-se de varrer o pátio, de se apresentarem limpas, e só quando Kate as relegava para um canto é que tornavam a lembrar-se.
O filho Ezequiel tinha mais dignidade do que as mulheres.
Nunca fazia aqueles ataques insidiosos.
Quando a casa estava limpa e calma e o ar parecia purificado e a alma renovada, Kate sentia novamente amizade por essa família.
A sua azáfama, andando cá e lá, esvoaçando como pássaros; o estalo da massa das tortillas de encontro à palma da mão; o entusiástico esmagar de tomates e pimenta no tacho enquanto Juana preparava o molho; o barulho do balde no poço quando Jesus vinha regar...
Como isso era divertido! Assim devia ser tudo o que fizessem, ou então não o fariam. Não podiam fixar-se numa rotina. Jamais! Tudo devia ser alegre, variado, com uma pontinha de aventura. Era confusão, mas, no fim de contas, uma confusão viva, não uma coisa morta. Kate recordava-se dos seus criados britânicos nas cozinhas inglesas, tão maquinais e quase inumanos. Aqui era o extremo oposto.
Não havia disciplina nem método. Embora Juana e as filhas quisessem realmente fazer o que a niña desejava, só procediam conforme lhes apetecia. às vezes, Kate sentia-se angustiada. Mas, tanto quanto possível, ia suportando as extravagâncias daquela família. Tivera, por exemplo, de se habituar à vagabundagem da mesa de jantar, mesinha redonda cujo lugar era na varanda. Ao primeiro almoço, ficava discretamente debaixo das plantas, perto do salão; ao almoço da uma hora regressava à varanda; ao chá, ia para a relva do jardim, à sombra duma arvorezita. E, quanto à ceia, Juana deliberou então que a niña comesse os dois ovos e rancheros na própria casa de jantar, isolada a um canto da comprida mesa em que cabiam catorze pessoas.
Kate também nunca chegou a perceber o motivo por que, depois de lavarem a loiça na cozinha durante uns dias, se lembraram de repente de levar os pratos sujos para o lago, num cabaz, aos ombros de Concha. A não ser que achassem assim o trabalho mais divertido...
Crianças! Mas não inteiramente. Faltava-lhes a despreocupação da infância. Pressentia-se-lhes na alma qualquer coisa de sombrio, como que um peso que as forçava a resistir. Trabalhavam por acessos, podiam ser laboriosas; depois vinha a indolência e passavam horas estiradas no chão, como porcos. às vezes mostravam-se alegres, conversavam e riam, sentadas sobre a terra, em grupo, formando roda. Então, subitamente, contrariando a própria alegria, recaíam na mudez e na tristeza. Havia ocasiões em que, estando a trabalhar com afinco, atiravam para longe a ferramenta como se indignadas por terem cedido. Descuidados, versáteis nos seus amores, os homens, ao menos, passavam todo o tempo a resistir a si mesmos. Nunca procuravam o que pretendiam. As mulheres a que se aproximavam. E um rapaz e uma rapariga passeando às escuras na estrada marginal do lago, atiçando-se um ao outro, atormentando-se no meio de excitação, constituíam uma cena que deixava Kate pasmada - porque homens e mulheres não se cortejavam abertamente como fazem os brancos. E o riso súbito do macho, estranha voz de desejo reprimido, de obstinada relutância e paixão desesperada, parecia qualquer coisa a rasgar-se-lhe no peito, era um som que perdurava na memória.
Kate achava pesado o governo da casa. De certa maneira, eram como parasitas, queriam viver da sua vida, e rebaixá-la, rebaixá-la. Nalgumas ocasiões mostravam-se como pessoas meigas, generosas, encantadoras - até a fazerem novamente revoltar-se contra aquela indiferença reptilária. Indiferença e resistência.
Os servos forneciam a Kate a chave da vida indígena. Os homens sempre juntos, erectos, belos, equilibrando o chapéu enorme no alto da cabeça, quer sentados, quer de pé, quer de cócoras, numa impassibilidade de serpente; as mulheres sempre à parte, suaves, como que escondidas, estreitamente apertadas nos chailes escuros. Homens e mulheres pareciam voltar costas uns aos outros como se não quisessem ver-se mutuamente. Nenhuns galanteios, nenhum namoro. Apenas um olhar ocasional sombrio e rápido, sinal de desejo semelhante a um golpe de florete dado e recebido.
Elas, no conjunto, dir-se-iam inexperientes mas decididas a seguir o seu próprio desígnio: mudar de homens quando lhes apetecesse. E eles davam a impressão de não se preocuparem muito. Afinal eram as mulheres que pretendiam os homens.
As indígenas, com os negros cabelos tombados nas costas cheias e acobreadas, banhavam-se num canto da praia, geralmente em camisa ou com um saiote. Os homens mantinham-se alheados, nem sequer se dignavam olhar para a outra banda. Eram mulheres no banho, nada mais. Faziam parte, por assim dizer, da vida lacustre, como os peixes que ali nadavam. Concediam-lhes mesmo aquele ponto do lago, e elas sentavam-se nos baixios, isoladas como aves aquáticas, e molhavam a cabeça e os ombros com o auxílio duma cabaça.
Calmas, discretas, desprezadas fêmeas da classe dos peóns, seguindo o seu caminho envoltas no rebozo como num manto de trevas, ágeis, balançando as saias rodadas e gorjeando como passarinhos; ou paradas na borda do lago, com os cabelos longos a gotejarem; ou subindo lentamente a margem com uma pesada bilha de água ao ombro e um braço por cima da cabeça, a segurar a asa do cântaro; ou, especialmente nas tardes de domingo, sentadas à porta da casa, catando piolhos umas às outras. As moças possuidoras de cabeleira abundante e ondulada eram as que mais piolhos tinham. Aquilo representava um acto público meritório.
Parecia a Kate que esse país não podia originar nada de mais elevado do que a amizade entre os homens. O próprio casamento tinha pouca importância. E, embora se mostrassem meigos e protectores para com as crianças, os pais depressa as esqueciam.
A questão do sexo era no entanto a primordial, aquela que não devia ser omitida nem aflorada abertamente. O único mistério, muito maior do que o indivíduo. Este pouco contava.
Kate pasmava ao ver as choças de palha dos índios nas margens do lago. Ali fervilhavam crianças seminuas no chão de terra batida, no meio de trapos, de ossos, e do fedor de excremento humano.
Esse povo parecia não ter olfacto. E defronte do buraco que servia de porta à cabana, o homem impassível, magnífico, silencioso... Como era possível que tão belo exemplar de virilidade se mantivesse indiferente a tamanha porcaria?
Mas ali se conservava como inconsciente. Contudo, era um ser vivo - e forte. Nenhum homem no mundo pode transportar cargas tão pesadas como os índios do México. Kate vira já um deles passar na rua com um piano às costas, apenas seguro por uma correia em volta da testa.
Portanto, força não escasseava, mas sim energia. Nem sequer a classe dos artífices que imita a dos Estados Unidos demonstra ser enérgica. Têm os seus clubes, aperaltam-se e andam de braço dado com raparigas bonitas, mas percebe-se que tudo isso não passa de vulgar imitação.
Inesperadamente, a família de Kate aumentou. Um dia, chegou de Ocotlan uma formosa moça de 15 Primaveras, com grandes olhos bovinos, Maria del Carmen. Acompanhava-a Júlio, rapaz de vinte e dois anos. Tinham casado há pouco, e vinham de visita a Sayula. Júlio era primo de Juana. Poderiam dormir no pátio com ela e com as filhas? - perguntou Juana. Só se demorariam dois dias.
Kate ficou espantada. Maria Del Carmen devia ter sangue espanhol, a sua beleza evocava a Espanha. Parecia pertencer a um nível superior, mais educado, e no entanto ia dormir no chão com esse esposo juvenil... E ele, tão aprumado e de ar tão orgulhoso, nada possuía além duma velha manta.
- Há três quartos desocupados - disse Kate. - Que durmam num deles. - As camas eram de pessoa só. - Precisarão de mais cobertores?
Não. Bastaria a manta de Júlio.
Este era assentador de tijolos, isto é, ajudava a construir as paredes das casas de adobe. Nascera em Sayula e vinha ali de visita.
Essa visita, no entanto, prolongou-se. Júlio andava à procura de trabalho e só aparecia ao anoitecer. Maria del Carmen entretinha-se a amassar tortillas na cozinha de Juana e a conversar com as raparigas. À noite, o marido regressava e, sentado no chão, de costas apoiadas à parede, sempre impassível, deixava a mulher acariciar-lhe os cabelos negros e bastos.
Amavam-se, mas Júlio resistia ao seu amor.
Ela queria voltar para Ocotlan, onde era mais señorita do que em Sayula, mas o rapaz recusou. Não tinha dinheiro; o casal sustentava-se com cerca de cinco cêntimos por dia.
Quando Kate estava a coser, Maria del Carmen, que nem sabia talhar uma camisa, observava-a de olhos arregalados. Kate ensinou-lhe costura, comprou-lhe uns metros de chita e Maria del Carmen fez um vestido com as suas mãos.
Júlio arranjou trabalho, a um peso por dia, e a visita continuou. Kate achava o rapaz pouco terno para a mulher: sempre que lhe falava era em tom de comando. E Maria del Carmen não levava isso a bem e amuava um pouco.
Passaram-se semanas, e Juana começava a cansar-se dos parentes.
Por fim, Júlio arrendou uma casita de adobe só de um compartimento, ao preço de peso e meio por semana. Maria del Carmen ia ter o seu lar.
Kate viu-os juntar as suas coisas para a mudança. Consistia tudo numa esteira de palha, três tachos de barro, cinco peças de loiça, duas colheres de pau, uma faca e a manta de Julio. Nada mais.
Presenteou-os, então, Kate com um edredão de seda já um tanto puída, duas tigelas e diversos utensílios de cozinha. Foi uma alegria. A voz de Maria del Carmen soava no pátio em exclamações delirantes. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"
Na época das chuvas as noites são por vezes glaciais devido à evaporação, e os indígenas, transidos de frio, esperam pelo romper da manhã deitados sobre esteiras delgadas e abafados apenas com a ponta de um cobertor velho. A inércia natural fá-los suportar o sofrimento sem tentar minorá-lo. Podiam arranjar um colchão de palha de milho e cobrirem-se com folhas secas de bananeira. Mas não. Estendem-se numa esteira em cima da terra húmida e tiritam de frio noite após noite.
Maria del Carmen, porém, era um pouco mais civilizada. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"

CONTINUA

VII
Sayula era uma pequena estação balnear; não para ricos ociosos, porque o México os tem em pouca quantidade, mas para comerciantes de Guadalajara e gente que passeia nos fins-de-semana. E mesmo assim em reduzido número.
Havia, no entanto, dois hotéis, que vinham dos dias calmos de Don Porfirio, tal como a maior parte das vivendas fora da povoação, hoje fechadas e muitas delas abandonadas. Na aldeia viviam em perpétuo estado de terror. Acima de tudo temiam os bandidos e os bolchevistas.
Os bandidos eram apenas homens das localidades afastadas que, sem dinheiro, sem trabalho e sem esperança faziam ocasionalmente profissão do roubo e do assassínio. Habitavam nas suas aldeias selvagens até que as tropas os obrigavam a refugiar-se nas montanhas ermas ou nas regiões pantanosas.
Quanto aos bolchevistas, pareciam nascer do caminho de ferro. Onde houvesse carris, passageiros e carruagens de diferentes classes, aí despertava o espírito de rebelião e inveja; e o ferro e as demoníacas locomotivas ofegantes dir-se-ia engendrarem esses filhos do materialismo que são os bolchevistas.
Sayula possuía o seu ramal, com um comboio diário; a linha não cobria as despesas e lutava por se manter - mas já era bastante.
Sayula fora atingida pela loucura da América: o automóvel. Assim, como outrora os homens desejavam um cavalo e uma espada e as mulheres sonhavam com uma casa ou um camarote no teatro, a ambição actual é possuir um carro.
Era um desfile contínuo de "máquinas", de automóveis ligeiros e pesados na única estrada que ligava Sayula a Guadalajara. Uma esperança, uma fé, um objectivo: andar de carro, possuir um carro.
Quando Kate chegou à aldeia, falavam com certo alarme do regresso dos bandidos, mas a irlandesa não prestou a mínima atenção ao assunto. À noite, foi àplaza e misturou-se com o povo. Era um largo ornado de árvores imponentes, com um velho coreto no centro e um passeio em volta. No lado norte ficava o mercado. Mais além, passavam burros e camionetas nas ruas mal calcetadas.
A banda de música já não tocava em Sayula, a elegância já não se exibia naplaza, debaixo das árvores. Mas o pavimento ainda era bom e os bancos mais ou menos sólidos. Oh, tempos de Don Porfirio! Agora, só os peóns e os índios, com os seus fatos brancos e manta ao ombro, enchiam os bancos e monopolizavam a praça. É certo que se mantinha a lei que obrigava os peóns, naquelas paragens, a usar calças e não a espécie de ceroulas largas e flutuantes das suas lides rurais. Mas os peóns, por seu lado, também gostavam de envergar calças em vez daquele traje representativo do humilde labor do campo.
Eram eles, pois, quem dominava na praça, ora sentados em bancos ora passeando indolentes com a sua manta e de sandálias. Depois das seis horas, enchiam-se as barracas de comida quente, na rua calcetada do lado norte: ficava mais barato comer fora de casa e findava-se agradavelmente um dia de trabalho. As mulheres, de portas adentro, que ficassem a mastigar as suas tortillas; mas não provavam caldo, nem sopa, nem guisado. Nas tendas que vendiam tequila, instalavam-se homens, mulheres e rapazes defronte da mesa, em bancos, acotovelando-se uns aos outros. Também havia jogos de azar, pouco violentos, em que o banqueiro voltava uma carta e todos gritavam: Cinco de Espadas! Rei de Copas! Certa mulher corpulenta, imperturbável, de cigarro na boca e perigosa expressão nos olhos sombrios e baixos, vendia tequila, sentada ao escuro, toda a noite. O homem dos doces ficava de pé junto do seu balcão. Por terra, viam-se pequenos archotes metidos em latas, alumiando montes de mangas ou daquelas nauseabundas ameixas tropicais, encarnadas, que se liquidavam por dois ou três centavos a pilha, enquanto a vendedora, de saia larga, ou o vendedor, humilde e paciente, esperava acocorado o freguês, com aquela indiferença fatal e aquela submissão que tanto intrigam o estrangeiro. Ter ameixas para vender no valor de trinta cêntimos; amontoá-las no chão em pequenas pirâmides, cinco em cada uma; e esperar todo o dia e até de noite, de cócoras, a olhar de baixo para cima, para a cara do transeunte e possível comprador - eis, ao que parece, uma ocupação e um modo de vida.
Era vulgar encontrar-se ali um par de rapazes empunhando violas de tamanho diverso, em frente um do outro como dois galos combatentes; entoavam uma canção interminável, cantando em voz sumida as eternas baladas não muito musicais, dolorosas, extensas, audíveis apenas para os que estavam próximos. E assim se conservavam até enrouquecerem. Em volta, com mantas encarnadas, paravam homens altos e escuros, ouvindo por instantes e raramente contribuindo com um centavo.
Entre as barracas de comes e bebes estava um trio de duas violas e uma rabeca; dois dos músicos eram cegos e cantavam em diapasão alto, mas também de modo pouco audível. Dir-se-ia cantarem só para si, muito chegados um ao outro, como se a melancólica balada lhes repercutisse no peito.
A aldeia em peso comparecia naplaza. No entanto, raramente, muito raramente uma voz se erguia acima do murmúrio grave dos homens, do sussurro musical das mulheres, do gorjeio das crianças. Poucos movimentos apressados. O lento passeio dos homens de sandálias, chamadas huaraches, fazia um rumor leve de baratas a arrastarem-se no chão. Fora e dentro da multidão calma, corriam rapazes de pernas ao léu. Eram os irrequietos engraxadores, que pululam como moscas importunas naquela terra de gente descalça.
No lado sul, viam-se mesas e cadeiras no passeio: uma tentativa de café-esplanada- Aí, nos dias de semana, sentavam-se para tomar cerveja ou um copo de tequila as poucas pessoas que se atreviam a tamanha exibição - na maior parte estrangeiras. E ospeóns, imóveis nos bancos do último plano, observavam-nas com olhos de basilisco sob as largas abas do chapéu.
Mas ao sábado e ao domingo era quase festa. Chegavam carros aos solavancos, e, como pássaros exóticos, volteavam na plaza raparigas graciosas de vestidos vaporosos, faces empoadas e cabelos encaracolados. Passeavam de braço dado, trajadas de organdi vermelho ou azul, de musselina amarela ou cor-de-rosa, e com tal camada de pó-de-arroz na cara que a pele morena apresentava a brancura lívida dos palhaços ou dos cadáveres.
Adejavam como borboletas coloridas no meio da multidão de homens do povo. fortes e belos. Era restrito o número de mancebos elegantes que pudessem equiparar-se àquelas mocinhas. Contudo, havia alguns, de calças de flanela branca, casaco escuro, palhinhas e bengala. Fumavam cigarros com gesto afectado, falando um castelhano elegante, tão próximo quanto possível do original, e com o ar de que seriam dentro de doze meses sacrificados a algum deus mexicano depOis de estarem devidamente nédios e perfumados.
Ao sábado, os janotas, as raparigas e todos os que vinham de carro, da cidade - que, aliás, eram poucos - tentavam divertir-se nesse lúgubre país. Contratavam tocadores de viola e rabeca e a música de jazz elevava-se em acordes um tanto langorosos.
Debaixo das árvores da alameda, perto das mesas e das cadeiras do café, começavam pares a dançar à la mode. Os vestidos vermelhos, amarelos e azuis rodopiavam com as calças de flanela, donde saíam elegantes sapatos brancos guarnecidos de tiras de couro preto ou castanho. Algumas das saias de organdi encimavam meias e sapatos verdes, ou pernas à Ia nature com sapatos brancos. Os braços franzinos e morenos enlaçavam os ombros azuis-escuros dos moços, que sorriam com ar protector para as facezitas brancas e petulantes; sorrisos meigos, paternais e impregnados de sensualidade.
Mas a dança era no recinto da praça, e na praça erravam indolentes os homens do campo, ou então paravam em grupos, espiando os pares rodopiantes com os seus olhos pretos, misteriosos, impenetráveis. Em que pensariam? Sentiriam admiração, inveja, ou simplesmente uma silenciosa e fria oposição? Sim, oposição é que devia ser.
Esses camponeses de camisa branca e manta escarlate, airosamente dobrada ao ombro, passeavam devagar, quase ocultos sob o chapéu enorme e pesado, dispostos a não fazer caso dos que dançavam. Vagarosos, oscilando o corpo, eles moviam-se irresistivelmente no meio da dança como se a dança, no fim de contas, não existisse. E os rapazes de calças brancas, levando nos braços as damas de organdi, evolucionavam como podiam, fazendo o possível por se desviarem âospeóns impassíveis, que prosseguiam na sua conversa, sorrindo na alvura dos dentes, com um sangue-frio que gelava os próprios músicos. Nunca se tocavam, nunca se acotovelavam, dançarinos epeóns; no México ninguém se atropela involuntariamente. Mas a dança embatia contra a oposição invisível.
Os índios sentados nos bancos contemplavam também por momentos as evoluções dos bailarinos, após o que os fulminavam com a sua pesada indiferença. Misteriosa faculdade dos índios, tão densa e calma, para destruir a vida palpitante, para apagar qualquer foco de efervescência.
Na verdade, um simples bailarico de indígenas; mas dir-se-ia fechado dentro de quatro paredes. E o ritmo soava diferente, grave, com certa violência. Os dançarinos eram artífices, mecânicos ou carregadores da estação: gente meio citadina. Nenhuns trabalhadores do campo, ou quase nenhuns.
Por isso, passado não muito tempo, as borboletas de organdi e os moços de calças de flanela sucumbiram esmagados pela enorme passividade, pela resistência dos satânicos peóns.
Curiosa, radical oposição dos índios contra essa coisa a que chamamos espírito. É o espírito que leva as meninas petulantes a adejarem as suas asas de organdi como borboletas. É o espírito que vinca as calças de flanela dos rapazes e lhes dá aquele ar um tanto patético. Tentaram representar a elegância e a vontade do espírito moderno.
No entanto, como um peso de obsidiana, surge a recusa passiva do índio; compreende a vida, que participa do sangue, mas o espírito, que é superior, e é a marca da nossa civilização, isso ele repudia, barbaramente, torvamente. Só quando se torna operário ou lida com ofícios mecânicos é que o espírito moderno o visita.
E talvez seja esse repúdio do espírito moderno que faz o México ser o que é.
Kate ficou um tanto desconsolada ao ver findar o baile. Instalara-se numa das mesas, com Juana a servir-lhe de duena, para tomar um cálice de absinto.
Os carros regressavam à cidade em pequenos grupos. Sempre seria melhor irem juntos, para o caso de aparecerem salteadores. Dominava-os o receio dos bandidos, e os próprios janotas usavam revólver no bolso.
Como era sábado, parte da mocidade elegante ficou para o dia seguinte, na ideia de tomar banho e de se espojar ao sol.
A plaza estava cheia, e ao comprido das ruas que desembocavam no largo cintilavam inúmeros archotes, iluminando uma exposição de chapéus de palha, de esteiras, de pirâmides de laranjas.
Havia feira no domingo de manhã, de modo que, de repente, o largo ficou estuante de vida - densa e pesada energia vital. Os índios tinham vindo de todas as aldeias, trazendo consigo essa curiosa energia vital que parece zumbir cada vez mais profundamente quando eles se encontram reunidos.
Durante a tarde, com o vento a soprar do sul, as canoas, de casco preto e larga vela desfraldada, haviam atravessado as águas do lago, transportando indígenas e produtos para o mercado. Para formar essa multidão todas as aldeias da margem concorreram com os seus habitantes.
Despertava o instinto que impele os índios para a vida nocturna desde que se encontrem reunidos. Ninguém recolhia a casa, ninguém pensava em dormir, embora a feira só principiasse ao romper da manhã.
Cerca das nove horas, depois de terminada a dança, Kate ouviu o rufar de um tambor, ou coisa semelhante, e notou que uma chusma de peóns se dirigia para o lado mais escuro da praça, onde já se viam barracas e cestos enormes, em forma de ovo, encostados à parede.
Aquele som, que era como o latejar dum pulso de gigante repercutindo no ar da noite, juntou-se a nota prolongada de uma flauta, tocando uma espécie de melodia bárbara. Kate, que já ouvira falar dos cânticos selváticos dos peles-vermelhas do Arizona e do Novo
México, sentiu instantaneamente espalhar-se na atmosfera a eterna
paixão das raças pré-históricas com a sua intensa e complicada significação religiosa.
Olhou para Juana com ar interrogador.
- Que é isto? - perguntou.
- Músicos, cantores - foi a resposta evasiva.
- Mas muito diferentes dos outros - insistiu Kate.
- Sim, aquilo é coisa nova.
- Nova?
- Apareceu aqui há pouco tempo.
- Donde veio?
- Sabe-se lá! - volveu Juana, encolhendo os ombros.
- Quero ouvi-los.
- Olhe que são só homens.
- Podemos ficar um pouco afastadas.
E Kate dirigiu-se para o ajuntamento silencioso dos peóns. Estavam todos de costas para ela.
Subiu o degrau duma porta e viu, perto do muro florido de buganvílias, um espaço livre iluminado pelos archotes de madeira resinosa que um rapaz segurava nas duas mãos.
O tambor estava ao centro dessa clareira, e o homem que o rufava tinha o torso nu e calças de brancura imaculada atadas na cintura por uma faixa escarlate e aos tornozelos por cordão da mesma cor. Cingia-lhe a cabeça uma tira vermelha, donde se erguiam três penas rubras sobre a nuca. Na testa brilhava uma turquesa no meio dum círculo azul. O tocador de flauta também se apresentava sem camisa, mas dobrara sobre o ombro uma bela manta branca listada de azul e preto. Outros homens, despidos da cintura para cima, distribuíam folhetos aos espectadores, insinuando-se no meio da multidão. E todo o tempo, alta e pura, a estranha flauta de barro repetia a melodia bárbara, acompanhada pelo rufar do tambor.
Kate desceu do seu poleiro e avançou a medo. Queria um daqueles papéis. O homem deu-lho, sem sequer a olhar, e ela encaminhou-se para a luz a fim de o ler. Era uma espécie de balada, mas sem rimas, escrita em espanhol. No cimo da página via-se o desenho de uma águia cercada por uma serpente que mordia a cauda; curiosa variante do emblema mexicano, que é uma águia encarrapitada num cacto de folhas largas e com uma serpente nas garras. A certa distância, o círculo formado pelo réptil com a ave a meio dava a impressão dum olho.
Na região de Oeste
Em paz, para além dos raios brilhantes
Do Sol,
No silêncio onde nascem as águas
Dormia eu, Quetzalcoatl,
Na caverna chamada Olho Tenebroso, Vendo através do sol como por uma janela, Minha morada é lá. Onde as águas brotam E os ventos nascem.
Nas águas do Além
Levantei-me e vi uma estrela cadente.
E senti
Um sopro em minha face.
O sopro disse: Vai,
E eu vim.
Desci a longa encosta, Passei o monte do Sol, Até que descobri em baixo Os seios brancos da terra Do México: a esposa minha.
Entre os mares a minha esposa Penteia o cabelo preto Murmurando: Quetzalcoatl...
Adensara-se a multidão de homens; do centro elevava-se a luz avermelhada dos archotes, o ar embalsamava-se da resina de cedro. Kate não conseguia ver nada por causa dos chapéus enormes.
Calara-se a flauta; mas o tambor continuava as suas pancadas lentas, regulares, com o ritmo duma pulsação. Aquele som incompreensível, surdo, enfeitiçava o espírito, fazia bater o coração, aniquilava a vontade.
Os homens começaram a fatigar-se, sentando-se uns, acocorando-se outros, com o chapéu nos joelhos. Dir-se-ia um mar de cabeças escuras, ondulando para a frente, sobre os ombros vigorosos e levemente inclinados.
Perto do muro formara-se um círculo, com o tambor ao centro. O homem que o tocava, de dorso nu, premia o instrumento contra o corpo, e, curvado, as costas cintilavam-lhe ao clarão da noite. Junto dele estava outro homem a segurar uma bandeira que pendia duma haste leve. No campo azul do pano via-se o Sol amarelo a meio duma bola preta e, entre os quatro raios maiores, todos de ouro, quatro raios negros emergindo, o que fazia o astro assemelhar-se a uma roda que girasse num movimento ofuscante.
Sentara-se toda a gente. Os seis homens de tronco nu, que haviam distribuído os prospectos e convocado a multidão tinham já regressado e agora acomodavam-se de volta do rufador agachado. À direita deste ficava o porta-bandeira, à esquerda o flautista. Eram nove os do grupo, e faziam dez com o rapaz que vigiava os dois archotes, agora colocados em trípodes de cana.
A noite aprofundava-se em silêncio. Calara-se o murmúrio de vozes que enchia a praça. Debaixo das árvores, nos passeios, transitavam ainda pessoas indiferentes, mas pareciam estranhamente solitárias; figuras isoladas envoltas na luz pálida das lâmpadas eléctricas e fora do núcleo da vida.
No lado norte, as barracas continuavam iluminadas, faziam-se compras e vendas. Mas também essa banda do largo dava a impressão de estar muito longe da realidade actual.
Depois de os homens se sentarem, as mulheres avançaram timidamente e instalaram-se por sua vez na orla exterior do círculo. As saias rodadas espalhavam-se no chão, os xailes escuros moldavam-lhes a cabeça redonda e pequenina. Algumas, não ousando aproximar-se, ocuparam os bancos em volta. Outras, assim como muitos homens, haviam desaparecido aos primeiros rufos do tambor.
a plaza ficou como que deserta. Um grupo compacto rodeava o tambor; aquém, era o mundo externo, vazio e hostil. Somente na ruela escura que conduzia ao negrume do lago se viam alguns vultos erectos e silenciosos como fantasmas.
Sobre os degraus de uma porta, e com Juana a seus pés, Kate olhava fascinada para aqueles homens seminus iluminados pelo clarão dos archotes. Os seus corpos lisos e acobreados possuíam essa beleza índia um tanto assustadora. Os torsos magníficos, acetinados, desses entes silenciosos de cabeça um tanto pendida para a frente; os ombros largos, levemente descaídos pela inactividade da sua força; o tom quente e o brilho da pele; o peito vigoroso, tão viril e, no entanto, sem a dureza muscular dos homens brancos; as faces sombrias, impenetráveis, os bigodes pretos e as barbas ténues enquadrando o silêncio da boca fechada - tudo isto era impressionante, singular, despertava comoção.
Havia algo de reptilário na sua flexibilidade, qualquer coisa de terrível na sua mudez. Os troncos nus tinham a revesti-los uma sombra subtil, certa obscuridade misteriosa. Se fossem homens de raça branca seriam francamente musculados, com uma espécie de sinceridade no próprio físico. Aqueles não. A sua nudez só revelava a profundeza secreta da natureza, o eterno mistério.
Toda a gente se calara; intensificava-se o silêncio expectante, tornava-se tumular. Os homens de ombros nus mantinham-se imóveis, mergulhavam dentro de si mesmos e escutavam com os ouvidos do sangue. Sob as calças brancas atadas nos tornozelos, os pés metidos em Imaraches eram quase negros ao clarão dos archotes. Que pretendiam essas criaturas suaves e recolhidas e cuja importância, no entanto, era tão ponderosa, tão aliciante?
Kate sentia-se ao mesmo tempo atraída e repelida. Quase a fascinava o estranho poder magnético dos homens em círculo. Era como o núcleo duma vida nova, como uma jóia negra brilhando na escuridão. Mas parecia-lhe repulsiva aquela estranha opressão, esse afundar do espírito na terra, esse lento escoar duma água turva; repulsiva a densa e muda oposição ao rumo espiritual da gente branca. Contudo, ali e só ali a vida parecia arder com chama intensa.
No resto do mundo, Kate bem o sabia, tudo era vacuidade, esterilidade. Aqueles vultos avermelhados pelo clarão dos archotes representavam uma humanidade nova.
Kate sentia tudo isto, mas preferia manter-se à parte, evitar o contacto directo.
O porta-bandeira ergueu a cabeça como se fosse falar, mas não disse nada. Velho de barba e bigodes brancos a emoldurar-lhe os lábios escuros e carnudos, tinha a cara sulcada de rugas, como todas as pessoas idosas desse país. No entanto, os cabelos eram bastos, e o corpo ainda revelava força e virilidade. ! Os seus olhos negros olhavam sem ver. Talvez fosse realmente
cego; ou seria profunda abstracção que lhe dava aquele aspecto. Começou então a falar, numa voz lenta, clara e distante que parecia ser o eco dos últimos sons do tambor. - Homens, escutai-me! E vós. mulheres, escutai-me também. Há muito tempo, na calma da noite, o lago dirigiu um apelo aos seres humanos. Mas não existiam. Só os peixes pequeninos nadavam ao longo das margens, procurando fosse o que fosse, e os maiores saltavam fora de água para olhar em volta. Mas não existiam seres humanos.
Então um dos deuses de face velada saiu da água e subiu ao monte. (E o velho indicou a colina invisível nas trevas da noite. ao fundo da aldeia. Contemplou o Sol e viu através dele outro sol negro, o que criou o mundo e o absorverá de novo como uma gota de água. Disse: - Chegou o momento? - E quatro braços saíram do sol e da sua sombra surgiram homens. Viram os quatro braços no céu e principiaram a andar.
O deus do cimo da colina olhou para as montanhas e para as planícies e viu os homens anelantes, sequiosos. E disse-lhes: Vinde cá. Tendes aqui a minha água dulcificadora.
Correram como cães, de língua pendente, e ajoelharam-se na margem do lago. O deus do cimo da colina ouviu-os ofegar, de tanta água que beberam, e perguntou-lhes: - Não bebestes de mais? Ou tendes ainda os ossos secos?
í Os homens fizeram casas à borda do lago, e aquele que estava na colina, e que era um deus, ensinou-os a semear milho, feijão, e a construir barcos. Mas preveniu-os: - Nenhum barco vos salvará quando o sol negro deixar de estender os braços no céu.
O deus da colina disse ainda: - Sou Quetzalcoatl, aquele que vos humedece os lábios secos. Encho-vos o peito com um sopro do além-sol. Sou o vento que sai em turbilhão do centro da terra, sou o zéfiro que se enrosca como cobra em volta dos vossos pés, pernas e coxas, erguendo a cabeça da serpente do vosso corpo, onde reside a força humana. Tomai cuidado quando a serpente do corpo erguer a cabeça. Sou eu, Quetzalcoatl, que vos elevo, que vos elevo até ao sol das trevas, derradeira morada dos homens. Exceptuando o sol negro e os quatro braços nos céus, éreis ossos, e as estrelas eram ossos, e a Lua uma concha vazia numa praia seca, e o Sol amarelo uma taça vazia, semelhante ao crânio dum lobo. Portanto, tende cautela! Sem mim nada sois. Assim como eu nada sou sem o sol que está atrás do sol. Quando o sol de ouro estiver no zénite, dizei: Quetzalcoatl levante a sua mão e me abrigue dos raios, senão perecerei e a terra secará. Porque na palma da minha mão está a água da vida, e nas costas está a sombra da morte. Quando os homens me esquecem volto a mão e aparece a sombra da morte. Mas os homens esqueceram-me. Os seus ossos eram húmidos, o seu coração fraco. Quando a serpente do corpo erguia a cabeça, diziam assim: É a serpente amansada que nos obedece. E quando suportavam o ardor do sol, falavam nestes termos: O sol está zangado, quer absorver-nos; ofereçamos-lhe sangue de vítimas.
Os braços negros desapareceram do céu, e Quetzalcoatl envelhecia e lamentava-se, velando a face para a esconder dos homens.
Lamentava-se e dizia: - Deixai-me recolher à minha morada. Estou velho, quase sou apenas ossos. Os ossos triunfam em mim, o meu coração é uma cabaça vazia. Sinto-me cansado do México.
Então bradou ao sol negro, aquele de quem nunca se pronuncia o nome: - Estou um esqueleto, os Mexicanos renegam-me, de nada sirvo. Levai-me.
O sol negro estendeu o braço e elevou Quetzalcoatl até ao céu. Depois olhou em volta e viu a estrela de alva brilhando sem receio entre a vinda do sol dourado e a fuga da escuridão. E aquele, cujo nome jamais foi pronunciado, perguntou: - Quem és tu, guarda cintilante? E a estrela respondeu: - Outrora, no México, fui Quetzalcoatl. Agora contemplo as costas do sol amarelo e a face invisível da Lua, brilho entre o dia e a noite, esperando pela renovação.
E aquele cujo nome jamais foi pronunciado declarou: - Chegou a hora.
Assim o decretou, e eu a vós repito, homens e mulheres: Chegou a hora. Os que nos deixaram regressam, os que vieram retiram-se. Desejai a uns boas-vindas e dizei adeus aos outros.
Boas-vindas! Adeus!
O velho terminou o discurso com um grito meio sufocado, tal se na verdade se dirigisse aos deuses.
- Bienvenido! Bienvenido! Adiós! Adiós!
A própria Juana, sentada aos pés de Kate, bradava sem saber o que dizia:
- Bienvenido! Adiós! Adiós... n!
O último adios arrastou-se para rematar com o costumado "n". Começou o tambor a soar num ritmo insistente, e a flauta fez ouvir o seu grito estranho e longínquo. Tocavam a melodia singular que a irlandesa ouvira a princípio.
Então um dos homens do círculo entoou o hino. Cantava à maneira dos antigos Peles-Vermelhas, em voz contida mas intensa, como se se dirigisse à própria alma e não ao mundo exterior; como se cantasse na outra dimensão da existência dos homens, onde eles se encontram na extensão infinita que há dentro do eixo do nosso espaço rotativo. Espaço que, como o mundo, não pode deixar de se mover. E, tal o mundo, tem um eixo. O eixo do nosso espaço terreno, quando lá se penetra, é uma vastidão onde até as árvores vão e vêm, e a alma está à vontade no seu sonho, nobre e irrefutável.
O pulsar do tambor e o cântico íntimo arrastavam a alma para o centro do tempo, que é mais velho do que a própria velhice. O cantor começou por uma nota alta que repetiu demoradamente, fazendo-a percorrer ritmos subtis, na aparência desconexos, que o tambor acompanhava, e depois fê-la tremer, palpitar e dar um balanço brusco. Por muito tempo foi difícil distinguir qualquer melodia: dir-se-ia o uivo distante e esmaecido dum lobo. Era na verdade a música dos índios antigos.
Não se lhe encontrava harmonia, não se lhe reconhecia emoção. Apenas música, apenas um grito na noite, perfeito e longínquo. Mas ia direito à alma, à alma eterna e antiga, aí onde só pode a família humana encontrar-se em imediato contacto.
Kate logo o sentiu, e de forma fatídica. Seria inútil resistir, inútil fazer qualquer esforço. O som ia até ao âmago do ser, em que não existe esperança nem dor, mas só a paixão, que semelha uma ave no seu ninho, de asas dobradas, e a fé uma árvore de sombra.
Como o destino, como a sorte. A fé é a própria Árvore da Vida, inevitável, e os pomos estão ao nosso alcance: pomos dos olhos
- as pupilas -, pomos do queixo, do coração, dos seios, do ventre, dos quadris, dos joelhos, dos tornozelos. Que importa a mudança, a evolução? Somos a Árvore com os seus frutos, para todo o sempre. Verbum Sat.
Emudeceu o cantor, mas o tambor prosseguiu, fazendo vibrar subtilmente a membrana sensível da noite. Então, no círculo, de novo se elevou uma voz, depois outra, e outra, como pássaros voando de uma árvore. Elevaram-se as vozes - forte, pesado, intenso arrebatamento de vozes másculas, semelhante a um bando de aves negras subindo e descendo no ar, ao mesmo tempo. E cada ave preta dir-se-ia erguer-se do coração de um homem, do bosque secreto dos peitos masculinos.
Uma a uma, partiram também vozes da multidão, qual nova revoada de pássaros. A letra não tinha importância. Versos, palavras, simples sons - o canto era sempre o mesmo: violenta rajada saindo das cavernas do peito, das profundezas da alma eterna. Kate estava excessivamente intimidada para poder cantar, demasiadamente vencida pelas desilusões; mas sentia que o seu espírito fazia eco, seguindo o clamor do povo, tal a ave poliglota que imita as outras à noite. Contra sua vontade, Juana cantava também, num tom monótono, proferindo palavras à toa, inconsciente.
Os homens seminus começaram a agarrar as mantas: mantas brancas orladas de azul, com barras castanhas e franjas escuras. Da turba, levantou-se alguém, que se dirigiu para o lago. Voltou depois com um feixe de lenha trazido por um barco. Acendeu então uma fogueira pequena. Outro indivíduo se destacou para ir também buscar lenha: colocou-a diante do tambor, dentro do círculo, e fê-la crepitar. Por sua vez, uma mulher, descalça e de larga saia de algodão, principiou a arranjar a sua fogueira no meio das mulheres.
O ar estava bronzeado pelo clarão do lume; alastrava-se um fumo odorífero, como de incenso. Subiu e desceu o cântico, depois esmoreceu. Débil ecoou o som do tambor, e morreu por seu turno. No silêncio absoluto podia-se sentir a presença imóvel do lago sombrio.
Mais uma vez pulsou, vigoroso, o tambor. Um dos homens que estavam sentados, com o seu poncho branco debruado de azul e preto, ergueu-se de repente e, tirando as sandálias, começou a esboçar passos de dança, sem fazer o menor ruído. Dançava pesadamente, de pés nus, como se fosse enterrar-se pela terra abaixo. Sozinho, oscilava num ritmo estranho, calcando o chão, erguendo ora um ora outro dos joelhos de encontro às franjas escuras do poncho. Outro homem, encaminhando-se para o centro, pôs aí os huaraches, perto do fogo, e iniciou o seu bailado, enquanto o do tambor entoava um cântico selvático, tenebroso. Os restantes comparsas despojaram-se dos ponchos e, num instante, estavam de pé, e de torsos nus, descalços, repetiam aqueles passos que pareciam de ave. A luz da fogueira batia-lhes no peito, nas faces sombrias e extáticas.
"O que dorme acordará! O que dorme acordará! O que segue o trilho da serpente na poeira chegará ao seu posto; pelo trilho do pó chegará ao seu destino e revestir-se-á com a pele da serpente: revestir-se-á com a pele da serpente da terra, que é a criadora da pedra, que é criadora da pedra e do vigamento da terra; criadora do oiro, do ferro, da madeira da terra: dos ossos do pai da terra, da serpente do mundo, do coração do mundo que bate como uma cobra bate no pó, nos seus movimentos sobre a terra; do coração do mundo. Quem dorme despertará! Quem dorme despertará! Quem dorme despertará no caminho da serpente do pó da terra, da pedra da terra, do osso da terra."
O cântico parecia tomar novos voos audaciosos depois de baixar e sussurrar num último desmaio. Eram como ondas que se erguem do invisível, que tomam forma, alando-se, e desaparecem num rumor de aniquilamento. E os dançarinos, após terem girado em círculo, numa lenta e profunda absorção, iam um por um tomar o seu lugar, calcando o pó com os pés descalços, vagarosamente, e vagarosamente começavam a descrever uma ronda lenta em torno do fogo, sempre com os mesmos passos que se diria afundarem-se na terra. E o tambor ressoava numa palpitação sempre igual, como a de um coração humano. E o cântico soou e diminuiu, mais baixo e mais baixo numa espécie de extinção, para ainda uma vez tornar a levantar-se.
Até que os camponeses moços acharam impossível permanecer como estavam. Tiraram as sandálias, o chapéu, as mantas, e, timidamente, com pés inexperientes que no entanto conheciam as velhas pisadas, se puseram atrás dos outros bailadores e dançaram sem sair do seu lugar. Depressa o círculo revoluteante estabeleceu outro círculo de homens que envolveu o primeiro.
Então, de súbito, um dos dançarinos de tronco nu saiu do círculo interior e, penetrando no segundo, fê-lo girar em sentido inverso ao daquele. Deste modo houve duas rodas em movimento, uma dentro da outra, rodopiando em direcções opostas. Assim andaram, com o tambor e o canto, girando como rodas de sombra em volta do lume. Mas o lume extinguiu-se, e o tambor parou de repente, e os homens num instante se dispersaram, retrocedendo para os seus postos.
Houve silêncio, depois ouviu-se um murmúrio de vozes e risos. Kate muitas vezes pensara que o riso dos peóns se assemelhava a uma queixa; mas agora ele saltava como faúlhas invisíveis, bruscamente, da cinza das conversas.
Todos esperavam, e contudo ninguém se movia - até que o tambor vibrou de novo, como um sinal. Continuaram, porém, a tagarelar mas escutando, qual se possuíssem uma segunda consciência. Levantou-se um homem, desfez-se da manta e deitou lenha na fogueira central. Em seguida atravessou o grupo dos homens sentados e dirigiu-se ao das mulheres, que se apinhavam com as saias desdobradas. Esperou, sorrindo com ar abstracto, e logo se pôs de pé uma rapariga e se aproximou dele, apertando com a mão direita o xaile enrolado em torno da cabeça baixa. Estendendo a mão esquerda, pegou timidamente na do homem, que parecia inerte. Sorriu este e conduziu-a ao centro da roda, através do grupo dos que estavam sentados. Ela seguia de cabeça inclinada, escondendo o rosto pudibundo. Lado a lado, começaram a dançar, mal roçando as mãos e formando o primeiro pequenino segmento do círculo interior estacionário.
Ei-los agora todos, em pé, à espera de serem escolhidos. Rápidas, as mulheres, ocultando a testa no xaile, insinuavam-se junto deles e tomavam a mão do eleito. Dentro de pouco tempo já todos tinham dama. Fechara-se o círculo interior, com os homens e as mulheres aos pares, de mão dada.
- Venha, niña, venha! - disse Juana, fitando Kate com os seus olhos negros e brilhantes.
- Tenho medo - respondeu a irlandesa. E falava verdade.
Um dos de tronco nu atravessara a rua, afastando-se da multidão e detivera-se próximo da porta onde se achava Kate, que se calou e desviou a vista. E ficou esperando.
- Olhe, niña, um senhor que a procura. Venha, niña, venha!
A voz da criada descera de tom, capciosa, com esse apelo mágico das mulheres do povo. Os olhos pretos continuavam a cintilar-lhe estranhamente, fitos no rosto da patroa. Kate, quase hipnotizada, avançou em passos lentos e indecisos para o indivíduo que se mantinha à espera.
- Quer, realmente? - disse ela em inglês, bastante atrapalhada. E, com os seus dedos, tocou nos dedos dele.
Quase com indiferença, num gesto frouxo, a mão quente e máscula segurou os dedos de Kate e levou-a para a roda. Ela baixou a cabeça e desejou poder velar a face. No seu vestido branco e chapéu de palha verde, sentiu-se outra vez virgem, virgem juvenil. Aqueles homens concediam-lhe o dom de reencontrar a mocidade.
Acanhada, receosa, Kate procurou seguir a dança; mas escapava-lhe o ritmo, e os sapatos rígidos não a ajudavam. Movia-se confusamente.
Mas o seu par pegava-lhe na mão, embora com moleza, e oscilava, lento, o corpo todo, como um pêndulo de relógio. Dir-se-ia não fazer caso dela; contudo, segurava-lhe os dedos, de leve, numa pressão suavíssima.
Juana descartara-se dos sapatos e das meias. No rosto como uma máscara de lava, enrugado, escuro, as pupilas ardiam com a eterna chama da feminilidade, sombria e inextinguível. E já, com os pés, marcava o compasso da dança.
"Assim como o pássaro do sol fecunda a terra à alvorada tal uma fêmea morena sob os seus pés, com as dobras do ventre inclinadas aos pomos da geração, com os ovos de oiro, com os ovos que escondem o globo do sol nas águas do céu, na concha da terra que é o alvo do fogo do sangue, pisa tu também a terra e a terra conceberá qual a fêmea sob os pés do pássaro do sol. Pisa a terra, pisa a terra agachada e de asas encolhidas..."
A roda começou a girar e Kate foi-se movendo devagar entre dois homens silenciosos e absortos, cujos braços tocavam os seus. Um segurava-lhe os dedos, frouxa e brandamente, mas com transcendente afinidade. E o canto selvático subiu de novo como uma ave, e o tambor alterou o ritmo de modo incompreensível.
A outra roda era composta só de homens; Kate tinha a impressão de sentir nas costas o fulgor sombrio daqueles olhares. Os indivíduos já se não distinguiam, formavam como que uma única massa, em que ela própria se confundia.
Todos dançavam da mesma maneira, de cabeça baixa e olhar ausente, os homens absorvidos na sua virilidade, as mulheres na sua feminilidade. Somente o sexo prevalecia na sua mais alta concepção. Mar à superfície do globo movendo-se por cima dum mar nas entranhas da terra; águia evolucionando em silêncio sobre a própria sombra.
Kate sentia-se fundir nas águas revolutas de uma vida nova. Deixara de ser ela mesma para fazer parte de um todo, os seus desejos abismavam-se no mar do desejo colectivo. E assim o homem cujos dedos roçavam nos dela se engolfava no oceano de homens.
Lento mover de águas sobre águas, sem vestígio de espuma. Só a pura e deslizante conjunção.
Como era estranho ver-se submergida pelo desejo para além do próprio desejo, sentir-se integrada num corpo imenso para além do individualismo do corpo!
Não conhecia a cara do homem que lhe segurava nos dedos. Os seus olhos haviam cegado, e o rosto dele era um céu tenebroso. Mas do toque dos seus dedos nascia uma estrela, a estrela que os unia.
Os pés de Kate principiavam a marcar o compasso. Ela já sabia como deixar-se levar, abandonar a essência da sua vida, permitindo que lhe fugisse devagar, num escoamento rítmico, para o corpo negro da terra. Erecta, forte como o próprio esteio da vida, cedia no entanto a Seiva dessa força e fazia-a fluir para as raízes da terra.
Perdera a noção do tempo. A dança, porém, acalmava-se pouco a pouco, embora o ritmo permanecesse sempre o mesmo até ao fim.
Calaram-se as vozes, só o tambor continuou. Este, de súbito, produziu um rufo breve, e o silêncio foi geral. Logo as mãos se desataram, o baile parou de todo. O homem que a acompanhava sorriu-lhe e desapareceu. Jamais o reconheceria. Havia, no entanto, de lhe sentir a presença.
As mulheres afastaram-se, aconchegando os ombros com o xaile. Os homens dissimularam-se nas mantas. E Kate voltou à escuridão do lago.
- Já se vai embora, Niña? - perguntou Juana num tom que revelava certo descoroçoamento.
- Tenho de ir sem demora - replicou a patroa, estugando o passo. E a toda a pressa se encaminhou para as trevas do lago, com Juana na sua peugada, de sapatos e meias na mão.
Kate desejava reentrar em casa, com o seu novo segredo, o estranho segredo da feminilidade mais alta, a que ainda se não habituara. Precisava abandonar-se inteiramente àquele mistério.
Quase corria através do atalho interminável, na margem pedregosa e escura, apesar de a claridade das estrelas ser suficiente para revelar a forma sombria dos barcos que sulcavam a água mansa e turva. Noite eterna, sem horas! Kate não queria consultar o relógio, e até o virou no pulso a fim de não ver os ponteiros luminosos. Que o tempo a não governasse!
Ao adormecer, ouvia ainda o rufar do tambor, como um pulso que batesse nas entranhas da terra.

VIII
À entrada da casa de Kate elevava-se uma árvore enorme chamada cuenta por causa dos seus frutos pequeninos, redondos, duros e perfeitos de forma, que os indígenas apanhavam para fazer colares e, em especial, padre-nossos dos rosários. À noite, a rua ficava imersa em escuridão e só a queda das contas perturbava o silêncio.
Essas noites, que de começo pareciam calmas, amigáveis, encheram-se subitamente de terrores. Renascia o medo. Constituíra-se uma quadrilha de ladrões numa das aldeias do lago, cujos habitantes tinham má fama. Essa quadrilha, invisível durante o dia, compunha-se de pescadores e jornaleiros que, depois do anoitecer, montavam nos seus cavalos e iam assaltar casas solitárias ou mal guardadas.
O facto de saber que um bando de malfeitores rondava naquela região era o bastante para incitar os ladrões isolados a agir também. Fosse o que fosse que acontecesse, seria atribuído aos bandidos. Deste modo, mais de um indivíduo considerado honesto se deixava dominar pela cobiça e se escapulia à socapa armado de faca ou de pistola para se aproveitar igualmente da escuridão.
Kate sentia o terror condensar-se no silêncio da noite mexicana; silêncio tenebroso, tão profundo que se tornava sobressaltante, o som duma conta a cair. Deitada na cama, Kate escutava o mínimo rumor nas trevas densas. Ouviam-se ao longe apitos de polícia, daí a pouco passava a patrulha a cavalo. Mas, como acontece em quase toda a parte, a polícia nunca aparecia quando era precisa.
Aproximava-se a estação das chuvas, e o vento nocturno, vindo do lago, fazia sussurrar as árvores e abalava as portas desconjuntadas da casa. Os criados encafuavam-se nas suas dependências. No México, uma pequena distância isola-nos completamente desde que a noite desce; e ficamos perdidos na escuridão envolvente.
De manhã, Juana vinha da praça, com os seus olhos como gotas de tinta e, no rosto bronzeado, a expressão cansada dos entes submetidos ao medo. Logo de entrada, e na sua linguagem pouco compreensível, embrenhava-se na história de uma casa assaltada e de mulheres assassinadas. E a dona do hotel mandava dizer a Kate que não era prudente dormir sozinha em casa. Seria melhor passar a noite no hotel.
Toda a aldeia se encontrava sob estranha apreensão. Pairava no ar da noite um terror pânico. Renascia a confiança à claridade azul da manhã, mas ao anoitecer o sangue parecia coagular-se, a atmosfera tornava-se densa.
O medo, é claro, comunicava-se duns aos outros. Se Juana e a respectiva família não andassem cheias de pavor, Kate nunca sentiria medo, disso estava ela certa.
Ali não havia homens. Juana tinha dois filhos, Jesus, de vinte anos, e Ezequiel, de dezassete. Mas Jesus era quem tomava conta do motor da luz eléctrica, e tanto ele como Ezequiel dormiam na casa das máquinas. De modo que Juana ficava só com as duas filhas, Concha e Maria, no cubículo ao fundo da residência de Kate.
Antes, a plaza mantinha-se animada até às dez da noite, com gente a conversar ou a ouvir os moços tocadores de viola e o homem dos sorvetes a apregoar de contínuo: Nieve! Nieve!
Agora o largo esvaziava-se às nove horas. E havia ordem de prender quem fosse encontrado na rua depois das dez.
Kate corria para casa e trancava as portas. Não é fácil suportar o pânico de um povo meio bárbaro. O medo espalha-se no ar, envolve-nos, paralisa-nos a alma com a sensação de desgraça iminente, dum horror atroz.
Às dez horas cortavam a luz eléctrica, tudo ficava às escuras, e, deitada na cama, Kate sentia o sopro maléfico espraiando-se na atmosfera em vagas sucessivas.
Acudiam-lhe à memória todas as histórias arrepiantes passadas no país. E de novo pensava nessa gente de aspecto pacífico e sorriso doce. Mas o próprio Humboldt dissera a respeito dos mexicanos que nunca encontrara povo de sorriso tão suave e olhar tão feroz. Não que os olhos revelassem propriamente ferocidade; contudo, o seu negrume iluminava-se dum clarão frio, de cintilações de punhal nas trevas da noite, ao mesmo tempo que neles despertava a sede de homicídio.
Seres incompletos, não de todo criados, encontravam-se à mercê das velhas influências que jaziam como sedimento no fundo de cada um deles. Enquanto estavam calmos, eram simpáticos, bondosos, simples. Mas, se alguma coisa lhes revolvia as profundezas, logo se erguiam as nuvens tenebrosas de ódio e de morte.
Adivinhava-se-lhes na alma um ressentimento constante, como que uma ferida jamais cicatrizada. O ressentimento dos entes incapazes de conquistar sozinhos uma integridade individual fora do caos de paixões e forças mortíferas. Eram apanhados na engrenagem duma ansiedade ancestral como nos anéis duma serpente negra que lhes oprimisse o coração. Onerosa carga dum passado invencível.
E debaixo desse peso vivem e morrem, sem grande pena de morrer. Enredados nos elementos, não conseguem desenvencilhar-se. Queimados pelo sol excessivamente forte, sobrecarregados pela electricidade da atmosfera mexicana e atormentados pela erupção de vulcões que lhes rebentavam aos pés. Tremendos elementos do continente americano que tornam forte o corpo dos homens mas que esmagam a alma e impedem a sua elevação. E, se nalgum ela se eleva, os elementos maléficos a pouco e pouco a destroem, até que o homem se decompõe em ideias e actividades maquinais, num corpo cheio de energia mecânica mas de espírito morto e putrefacto.
Assim, esses seres incapazes de dominar os elementos, submetidos às forças do sol, da electricidade e das erupções vulcânicas, estão sujeitos a acessos de rancor e de ódio ardente à própria vida. Então, nada melhor do que enterrar uma faca num corpo vivo. Nenhuma volúpia iguala essa de cravar a lâmina e ver jorrar o sangue.
É a suprema satisfação duma raça presa a um passado de que não consegue libertar-se. Raça que não conhece Salvador nem Redenção. Quais mineiros enterrados vivos na derrocada duma mina, nações inteiras ficam sepultadas sob os escombros do passado - até que um salvador lhes mostre a saída para o sol.
Deitada na cama, Kate reflectia profundamente na'escuridão da noite, de ouvido atento aos menores ruídos que a enchiam de terror. Não podia refrear o coração; dir-se-ia que lho arrancavam, e o sofrimento era atroz. Pela primeira vez sentia medo físico, o sangue gelava-se-lhe nas veias.
Na Inglaterra, na Irlanda, durante a guerra e a revolução, conhecera o medo espiritual. O medo horrível da ralé; e durante a guerra as nações eram quase tudo ralé. O terror da canalha que pretendia acabar com a liberdade de pensamento em cada homem e em cada mulher. Era a ambição fria e colectiva de milhões de criaturas: aniquilar o espírito daqueles que resistiam e assim poderem iniciar a descida geral para as camadas interiores onde existe o culto do ouro e a volúpia de matar. A canalha.
Nesse tempo, Kate conhecera a agonia do medo social, como se a democracia fosse um polvo enorme que enlaçasse com os tentáculos quem lhe resistisse.
Agora o seu medo era doutra espécie. Sentia o coração doer-lhe, como se o arrancassem, o sangue parecia fugir-lhe das veias...
Dormitava, e acordou em sobressalto a um leve rumor. Sentou-se na cama. As portas que davam para a varanda tinham postigos, e estes encontravam-se escancarados a fim de arejar o quarto. Nessa abertura Kate distinguiu, recortando-se no céu escuro, uma forma negra semelhante a um gato que rastejasse no rebordo da janela.
- Que é? - perguntou ela maquinalmente.
No mesmo instante, aquilo moveu-se, deslizou para fora, e Kate percebeu que era o braço de um homem que tentava abrir o ferrolho interior da porta. Por uns segundos ficou paralisada, pronta a gritar. Então, como não pressentisse mais nada, inclinou-se e acendeu uma vela.
Era uma verdadeira agonia aquele terror pânico. Imobilizava-a, deslocava-lhe o coração... Ficou prostrada, no angustiante pavor nocturno. A vela projectava uma claridade lúgubre. Ouvia-se o ribombo longínquo de trovões. A noite era atroz, atroz, e o México horroroso.
Kate não conseguia dominar-se. "Estou à mercê disto", pensava. Sensação terrível, ver-se subjugada pelo medo.
"Que hei-de fazer?" perguntou a si mesma, reunindo coragem. Sabia que estava só.
Durante muito tempo sentiu-se incapaz de se mover. Então disse consigo, para se animar: "Creio no mal e não devo crer. O pânico e o assassínio são coisas que só sucedem quando perdemos o domínio de nós próprios. Não acredito verdadeiramente no mal. Acredito, sim, na existência dum poder supremo que nos comunica a sua força desde que tenhamos fé nele. O homem que queria entrar aqui não possuía essa força. Tentava ser maléfico, mas submeter-se-ia ao poder dominador."
Deste modo se ia tranquilizando, até que teve a coragem de se levantar e fechar os postigos. Em seguida, percorreu os quartos a fim de verificar se tudo estava trancado. E sentiu certo alívio ao compreender que temia tanto os escorpiões como a horrível sensação de pavor.
Depois de observar o fecho das cinco portas e das cinco janelas da ala de quartos comunicantes, Kate ficou encerrada nas trevas com a sua vela. Para o outro lado da casa, sala de jantar e cozinha, tinha de ir pela varanda.
Mais serena, embora ainda com o coração atormentado pelo medo, Kate reflectia. "Joachim afirmava que o mal provém de regressarmos aos costumes primitivos. É o que provoca roubos e assassínios. O tambor da noite de sábado evocava o ritmo da antiguidade e aquela dança selvagem era a velha forma de expressão. Regresso consciente à barbárie... Talvez a origem do mal..."
Mas logo intervinha o seu desejo de crer.
"Não! Temos de nos agarrar aos elos antigos, encontrar o impulso que nos relacionará de novo com o mistério do cosmos. Don Ramon tem razão. Ele deve ser um grande homem. Julguei que já não existissem grandes homens. Só grandes financeiros, grandes artistas, mas não grandes homens. Don Ramon deve ser um ente superior."
E Kate sentiu-se apaziguada a esta ideia.
Mas, logo que apagou a vela, surgiram clarões muito vivos através das fendas do postigo. Ribombaram trovões clamorosos, que pareciam afundar-se-lhe no coração. Kate sentia-se como que esmagada, na consciência duma tortura que a paralisou até de manhã e lhe deu a impressão de ser, ela própria, um destroço de naufrágio.
Por fim apareceu Juana, também com o ar de desenterrada, para lhe fazer a pergunta tradicional:
- Como passou a noite, Niña?
- Muito mal - respondeu Kate. E contou-lhe a história do gato preto e do braço do homem.
- Mire! - replicou Juana, sufocando a voz. - A inocentinha vai ser assassinada na cama. Não, niña, tem de passar a dormir no hotel. Não, Niña, não pode continuar com o postigo aberto. É impossível. Está a ver agora como é necessário que durma no hotel? Assim fazia a outra senhora.
- Não quero - declarou a patroa.
- Não quer, Niña? Ah, entonces, entonces... niña, vou dizer ao Ezequiel que venha dormir na soleira da porta, armado de revólver. Ele tem um revólver, pode ficar do lado de fora da porta, e a senhora já deixava a sua janela aberta, para lhe refrescar o quarto. Pobres de nós, mulheres, precisamos de um homem que tenha revólver. Não devemos estar sozinhas, toda a noite. Temos medo, e as crianças também têm medo. Imagine que um ladrão tenta arrombar o ferrolho da porta! Imagine! Não, niña, vai-se falar ao Ezequiel hoje mesmo, antes do meio-dia.
Ao meio-dia, Ezequiel compareceu, muito seguro de si. Era um rapaz, meio selvagem, mas dava largas passadas, empertigado e orgulhoso. A voz, na mudança própria da puberdade, tinha uma entoação estranha.
Ficou de pé, acanhado, ouvindo o que lhe recomendavam. Depois olhou para Kate com as pupilas negras e brilhantes, convicto do seu papel de salvador.
- Sim, sim - declarou. - Durmo aqui no corredor. Não tenha medo. Trago a pistola.
Saiu, e voltou com a arma, que era de cano comprido.
- Tem cinco cargas - participou, exibindo o revólver. - Se abrir a porta de noite, previna-me, porque, se eu vir mexer qualquer coisa, disparo os cinco tiros. Pum!, pum!
Pelo brilho do olhar do rapaz, Kate compreendeu quanto ele gostaria de fazer fogo sobre o que se movesse nas trevas. Não o preocupava a hipótese de ser alvejado por seu turno.
- niña - disse Juana - se voltar tarde para casa, depois de as luzes estarem apagadas, não se esqueça de chamar pelo Ezequiel. Senão... pum!, pum! Nunca se sabe quem pode ser a vítima.
Ezequiel dormiu sobre uma esteira na varanda de tijolos, defronte da porta de Kate. Enrolou-se num cobertor e conservou o revólver à mão. A senhora podia ficar de janela aberta. Na primeira noite, esteve muito tempo acordada por causa do ressonar estrondoso do rapaz. Nunca ela ouvira semelhante coisa! Que pulmões que ele devia ter! Dir-se-ia um som que viesse de outro mundo estranho e bárbaro. O barulho manteve-a desperta, mas havia naquilo um não sei quê de agradável. Algo semelhante a uma força bravia.

IX
Kate depressa se afeiçoou à negligente Juana e respectivas filhas. Concha tinha catorze anos. Era uma rapariga selvagem, entroncada, de cabeleira hirsuta que ela coçava constantemente. Maria, de onze anos, parecia um passarito, com olhos enormes que se diria absorverem toda a luz à sua volta.
Juana confessava que Jesus era filho doutro pai, mas o aspecto dos restantes fazia suspeitar ter cada um deles progenitor diferente. Toda a família, porém, mostrava igual despreocupação perante a vida. Viviam o dia-a-dia sem se importarem com o passado, nem com o presente, nem com o futuro. O dinheiro não lhes interessava. Assim que o recebiam gastavam-no, e logo o esqueciam.
Sem aspirações, sem objectivos, levavam existência absolutamente terre à terre no seu país sombrio e vulcânico. Não eram animais porque homens, mulheres e crianças não podem ser animais. Tal não nos foi concedido. Vai, e não voltes para trás - diz o Criador. Quando o homem tenta brutalmente tornar ao primeiro estado da evolução, fá-lo com espírito de crueldade.
Por isso os olhos negros daquela família revelavam certo medo, espanto e sofrimento. Angústia das criaturas humanas sem força para desenvolver as possibilidades do seu ser; incapazes de arrancar do caos a própria alma e indiferentes a qualquer outra vitória.
Também os brancos perdem a alma a pouco e pouco; mas conquistaram os mundos inferiores do metal e da energia e, graças às máquinas, lançam-se em corrida louca de roda da sua vacuidade.
Naquela família Kate encontrava algo de patético e de repugnante.
Desde que haviam aceitado niña como patroa, Juana e as filhas mostravam-se profundamente honestas. Honestas, a pontos de não tirarem uma única ameixa do fruteiro. E solícitas no serviço, de uma solicitude quase excessiva.
Viviam na sujidade, indiferentes ao ambiente. O chão era o seu caixote do lixo. Para ali arremessavam tudo o que consideravam inútil e ninguém se preocupava mais com isso. Pareciam 138
comprazer-se em viver no meio de pulgas e de trapos, de cascas de banana e caroços de manga. Um pedaço arrancado dum vestido - aí vai para o chão! Cabelos tirados do pente - chão com eles!
Kate não suportava aquilo. Afligia-a tamanha desordem, e o facto de ela se afligir divertiu imensamente a família mexicana. Mãe e filhas varreram então o pátio com uma vassoura de urze, até raspar a própria superfície da terra. Que engraçado, a niña preocupar-se com aquelas coisas!
Kate constituía para elas uma fonte de espanto e de divertimento. Não a consideravam pessoa de classe elevada. Era um ente meio incompreensível, meio espantoso.
Niña queria que o aquador lhe trouxesse todas as manhãs dois botes de água das nascentes térmicas para fazer abluções completas. Que esquisito! "Maria, diz ao aquador que corra a buscar água para a niña."
Quase se melindravam com o facto de ela se fechar no quarto para tomar banho. Era uma espécie de deusa, provocava-lhes alegria e admiração; mas devia ser sempre acessível. Kate depressa descobriu que um deus sempre acessível aos seres humanos passa bocados pouco invejáveis.
Não, aquilo não era nenhuma sinecura. De manhã começava o barulho da vassoura de urze lá fora. Kate deixava-se estar na cama, de portas fechadas e postigos abertos. Alvoroço no pátio. Alguém queria vender ovos. Onde está Niña? A dormir. O visitante não se retira e as conversas continuam.
O aquador! Ah, a água para o banho da niña. Está a dormir. "Não estou, não!" - grita Kate, enfiando o roupão e destrancando a porta. As pequenas entram com a tina, seguidas do aguadeiro com duas latas cheias de água quente. "Doze centavos, doze centavos para o aquador." No hay! Mais tarde, mais tarde. O homem vai-se embora, com a vara ao ombro. Kate fecha os postigos e começa a tomar banho.
- Niña!, Niña! - Que é?
- Quer ovos estrelados, quentes ou rancheros?
- Quentes.
- Café ou chocolate?
- Café.
- Ou prefere chá?
- Não, café.
O banho continua.
- Niña!
- Dize lá.
- Já não temos café. vou comprá-lo.
- Não é preciso. Tomarei chá.
- Não, niña, Eu vou. Espere por mim.
- Está bem, vai.
O primeiro almoço é na varanda. A mesa está posta, há pilhas de frutos, pão alvo e bolos.
- bom dia, niña. Como passou a noite? Maria, traze o café. vou meter os ovos na água. Oh, niña, eles não devem ficar cozidos... Meu Deus, que pés de Madona! Olhem, que bonitos!
E Juana inclina-se fascinada e, com o dedo escuro, toca nos pés acetinados de Kate metidos em leves sandálias seguras por uma única tira.
O dia tinha começado. Juana considera-se como inteiramente dedicada a Kate. Tão cedo quanto possível, expede as filhas para a escola. "Niña diz que é preciso ir para a escola. Não ouvem o que ela diz? Vamos, girem!"
No seu passo coxeante, Juana anda cá e lá na varanda, da cozinha para a mesa do almoço, transportando os pratos um por um. Depois, com grande espalhafato, começa a lavar a louça.
Manhã! O sol inunda o pátio, os cardeais e as folhas dilaceradas das bananeiras. Os pássaros voam em todos os sentidos com precipitação tropical. Na sombra densa das mangueiras passam índios vestidos de branco, semelhantes a espectros. Há um frémito de vida e, no entanto, o silêncio é opressivo. Os olhos deslumbram-se à claridade ofuscante, a alma sente-se oprimida.
Kate senta-se na varanda e finge coser. Surge um velho, segurando um ovo na mão, como qualquer símbolo. A patrona quereria comprá-lo por cinco centavos? Juana só dava quatro. De acordo? Onde está Juana?
Juana volta da praça com outras compras. O ovo! Quatro centavos! A conta das despesas. Entonces! Entonces! Luego! Luego. Ah, niña, no tengo memória.
Juana não sabia ler nem escrever. Todas as manhãs ia ao mercado, comprava uma porção de coisas de um ou dois centavos e todas as manhãs era preciso fazer contas. "Ah, onde é que nós íamos?
Não tenho memória nenhuma. Ora vejamos... Comprei três centavos de ocote... Quanto? Quanto soma agora, niña" Se faltava um centavo, ficava desolada e não falava noutra coisa. "Falta um centavo, niña? Sou estúpida, não sou? Mas eu dou-lhe um do meu dinheiro."
- Deixa lá, não penses mais nisso - dizia Kate.
- Mas eu quero pagar a diferença - insistia a mulher; e afastava-se, coxeando.
Uma hora depois elevava-se um grito no outro extremo da casa e Juana aparecia empunhando um ramo de salsa.
- Mire, niña! Compré perejil a un centavo. As contas estão certas agora?
- Estão - respondia Kate.
E a vida podia então retomar o seu curso. Existiam duas cozinhas: a anexa à sala de jantar, e a das criadas, numa espécie de barraca debaixo das bananeiras. Da varanda Kate via a abertura negra que fazia as vezes de janela na cozinha de Juana.
"Julgava Concha na escola!", disse Kate consigo mesma.
Mas não. No buraco escuro da janela distinguia-se o rosto moreno e a juba de Concha, espreitando para fora como um animal que saísse da toca, enquanto fazia as tortillas. Tortillas são uma espécie de filhos de milho. Preparam-nas batendo a massa na palma da mão até adquirir a lisura e leveza necessárias. Pouco depois do meio-dia via-se sair fumo pela janela: Concha lançava as tortillas cruas na frigideira de barro colocada sobre o lume.
Então Ezequiel aparecia, de manta sobre o ombro, chapéu de palha de grandes abas enroladas, pronto a comer as tortillas. No entanto, se trabalhava no campo, só chegava ao cair da noite. Sentava-se no degrau da porta e as mulheres serviam-no e iam-lhe buscar água como se ele fosse um rei. E ouvia-se-lhe a voz rouca dando ordens em tom calmo.
Porque, apesar do seu ar sereno e meigo, tomava uma entoação imperiosa desde que se dirigisse à mãe ou às irmãs. Prerrogativa de macho, que dava a Kate vontade de zombar do rapaz.
A hora da refeição era para Kate um dos seus tormentos. Apresentavam-lhe sopa muito quente e gordurosa, arroz apimentado, também gorduroso e fumegante, a inevitável carne nadando em gordura. Seguiam-se calabacitas, ou beringelas, salada, e o enorme cabaz de fruta. E, inundando tudo isso, o ardente sol tropical dos fins de Maio.
De tarde, o calor aumentava. Juana ia com as filhas lavar a loiça no lago. Agachadas sobre as pedras, agitavam na água cada prato, cada colher e cada garfo, e punham tudo a secar ao sol. Depois, enquanto Juana lavava uma ou duas rodilhas, as filhas banhavam-se no lago.
Jesus, o primogénito, costumava vir à tarde regar o jardim. Mas esse comia no hotel, onde prestava diversos serviços, trabalhando até às dez da noite por um salário de vinte e dois pesos, ou seja, onze dólares por mês. Usava camisa preta, e a cabeleira abundante tombava-lhe na testa baixa. Apesar da camisa fascista, possuía o espírito sarcástico e crítico dos socialistas, o espírito que vem do instinto de destruição.
Entre ele e a mãe existia pouca intimidade. Se Juana se encontrava em apuros, Jesus dava-lhe algum dinheiro mas, exceptuando o ténue laço de sangue que os unia, mostravam a maior indiferença um pelo outro.
Ezequiel tinha melhor tipo. Era esbelto, e tão direito que quase parecia arquear-se para trás. Tímido, arisco, orgulhoso, sentia-se mais responsável pela família. Não queria servir em hotéis. Não. Trabalhava nos campos, e tinha vaidade nisso: era labor de homem, não uma espécie de escravidão disfarçada.
Embora simples jornaleiro, não trabalhava para um patrão mas sim para a terra. E a terra, de certa maneira, era dele, pertencia-lhe...
Quando havia que fazer, chegava a ganhar um peso por dia. Se a terra estava seca, então procurava trabalho nas estradas, ainda que isso lhe não agradasse.
Mas nem sempre conseguia empregar-se. Durante dias, semanas, Ezequiel vagueava pelos arredores, sem nada que fazer. Quando o governo socialista dividiu as fazendas em lotes e os distribuiu pelos camponeses, coube-lhe um pedaço de terra fora da aldeia. O rapaz ia até lá e juntava pedras para construir um casebre. Cavava o chão tão profundamente quanto possível, mas não tinha amor a essa nesga de terreno que lhe viera parar às mãos de modo quase sobrenatural. Só lá ia de vez em quando, e sem nenhum entusiasmo.
Nos dias de trabalho regressava a casa por volta das seis horas e, cumprimentando Kate, timidamente, dirigia-se para o seu antro, onde, sentado no chão e de costas apoiadas à parede, dobrava tortillas umas sobre as outras e comia essa pasta elástica que tem o sabor de argamassa - pois o milho é primeiramente fervido com cal para largar a pele. Depois, dignava-se aceitar outra rima de fritos, que a irmã lhe apresentava numa folha de couve. Às vezes, Ezequiel tirava do tacho de barro um bocado de carne guisada que metia entre duas tortillas. Mas ingeria tudo rapidamente com uma espécie de indiferença. Aliás, os mexicanos parecem sempre indiferentes ao que comem.
Acabada a ceia, ia até à plaza, reunir-se aos homens. Havia ocasiões em que Kate, ao recolher a casa às nove horas, a encontrava quase deserta. Ezequiel estava no largo, Juana e Maria haviam desaparecido, e Concha dormia tal um molho de trapos no chão do pátio. Quando Kate a chamava, a pequena erguia a cabeça, espantada, entorpecida; depois, levantando-se como um cachorro, rastejava até ao portão.
Indiferença por tudo, até uns pelos outros. Juana lavava semanalmente uma camisa e um par de calças de algodão para cada um dos filhos, e aí terminavam os seus cuidados maternais. Nem se interessava averiguar qual o trabalho-de momento de Ezequiel. Sabia que arranjara emprego e isso lhe bastava. Contudo, de tempos a tempos, tinha ímpetos de amor materno, quando o rapaz era tratado injustamente, como às vezes acontecia. E, se o supunha doente, dominava-a um terror fatalista que só a abandonava depois de Kate intervir com qualquer remédio muito simples.
Semelhantes a animais. Mas os animais são perfeitos no seu isolamento e despreocupação; não se trata de indiferença, é que se bastam a si próprios. Ao passo que naquela família havia uma espécie de frustração, como se um torpor de aborrecimento a todos avassalasse.
As duas raparigas eram inseparáveis; andavam sempre atrás uma da outra. Concha arreliava de contínuo a inocente Maria de grandes olhos e esta debulhava-se em lágrimas. Ou então, no meio de uma fúria, ameaçavam-se com pedras, e Juana invectivava-as com súbita veemência, que logo se extinguia.
Estranha, aquela ferocidade repentina com que as pequenas arremessavam pedras, e não menos estranho, o esforço por não acertar. Kate notava a mesma coisa nos ataques selváticos que os garotos faziam uns aos outros nas margens do lago; atiravam calhaus com ar ameaçador, mas quase sempre falhavam o alvo.
Quase sempre, mas não sempre. Às vezes atingiam o adversário, que tombava como morto. Então os outros aproximavam-se, em silêncio temeroso, da vítima prostrada. De repente, o ferido erguia-se, com um esgar homicida no rosto, perseguindo o inimigo com uma pedra. E o inimigo fugia a sete pés.
Uma vontade perene de arreliar, de atormentar. O mesmo sucedia entre os Peles-Vermelhas. Mas o povo índio raramente recorria à violência, o que se não dava com os Mexicanos.
Kate, achando que devia fazer qualquer coisa pelas pequenas, dispensou-lhes uma hora por dia para lhes ensinar a ler, a redigir e a costurar. Maria queria aprender a ler; nisso mostrou boa vontade. Começaram bem, mas depressa a leve insistência de Kate em lhes chamar a atenção fez com que as alunas assumissem o tom de ironia peculiar ao continente americano. Ironia calma, invisível, malevolente, desejo de magoar.
- Não te debruces sobre mim, Concha. Põe-te direita.
- Porquê, niña Tem piolhos na cabeça?
A pergunta insolente era formulada com subtileza índia.
- Não! - respondia Kate subitamente irritada. - E agora vão-se embora! Afastem-se de mim.
E as pequenas retiravam-se, humilhadas.
Kate recebeu visitas de Guadalajara. Grande excitação! Mas enquanto tomava chá na varanda, Juana, Concha, Maria e Filipa, que era uma prima de dezasseis anos, sentaram-se no outro lado do pátio, bem à vista, com os belos cabelos soltos sobre os ombros, e, ostensivamente, puseram-se a catar piolhos umas às outras. Pareciam encantadas por exibirem a sua sordidez àqueles estrangeiros.
Kate desceu ao pátio.
- Se querem catar piolhos - disse em voz trémula de cólera - vão para onde ninguém as veja.
Atravessou um clarão de maldade os olhos negros de Juana, mas um instante depois, humilde e abjecta, a família retirava-se, de cabeleira ao vento, em direcção ao seu antro.
Juana comprazia-se em irritar Kate. Sentia assim uma espécie de poder sobre a Niña. É certo que temia um tanto essa irritação, mas era justamente o que desejava. De que servia uma niña que não lhe inspirasse algum receio?
Ah, raças escuras! Kate, como irlandesa, podia entrever um pouco do mistério. As raças escuras pertencem a um ciclo de humanidade já desaparecido; ficaram atrás, no fundo de um abismo donde nunca conseguiram sair. Jamais atingirão o nível dos brancos; limitam-se a segui-los de longe, como escravos.
Enquanto o homem branco avança, cheio de orgulho, as raças escuras cedem-lhe o passo e obedecem-lhe pela força. Se, porém, o branco hesita na sua marcha, logo os outros o atacam para o precipitar no abismo do passado.
É o que está a acontecer. Porque o branco, apesar de todas as farroncadas, duvida da sua própria supremacia.
E é a corrida veloz para a derrocada.
Desde a revolta de Kate perante a cena da caça aos piolhos, Juana voltou a servi-la com enternecedora solicitude. Embora indiferente a tudo, aquele ser das regiões inferiores não queria quebrar o débil fio que o ligava a Kate e ao mundo da claridade e do ar puro. Em suma, o desejo de Juana era conservar a sua niña, servir a sua Niña.
Ao mesmo tempo, parecia odiar a gente rica, branca e superior. De vez em quando contava a Kate histórias do passado. Então via-se-lhe uma expressão malévola nos olhos negros e na face acobreada, enquanto ela prosseguia: Usted sabe, niña, los gringos, los gringuitos llevan todo...
Os gringos são os Americanos, e Juana incluía Kate nos gringuitos, estrangeiros brancos. Aquela frase era nova insolência disfarçada, subtil...
- É possível - respondia Kate friamente. - Mas dize-me o que é que eu levo do México.
- Non, niña, non - Espalhava-se um sorriso de satisfação na cara de Juana quando ela conseguia atingir a outra mulher. Não me refiro a si, niña! - O protesto, porém, era pouco convincente.
Dir-se-ia que essas indígenas queriam obrigá-la a partir à força, insultando-a, rebaixando-a, até que a irlandesa, não menos impetuosa do que elas, abalasse dali num momento de fúria.
Oh, raças primitivas atrasadas!
Contudo, havia um lado patético na natureza daquela gente. Quando tinha catorze anos, Ezequiel trabalhara por conta de um sujeito que andava a construir casa. O homem prometera-lhe uma manta, mas ao fim de dois meses despediu-o sem cumprir a promessa. Foi uma desilusão bem amarga.
Kate nada tinha a ver com isso, mas Juana quase a acusava do facto.
Povo sem força para avançar, como podia deixar de ser explorado? Desde séculos que o exploravam cruelmente, e toda a sua energia se limitava a uma resistência malévola.
"Mas não pretendo explorá-los - dizia Kate consigo mesma.
- Pelo contrário, a minha vontade é dar-lhes mais do que recebo. São injustos os seus remoques. Nunca insultei estas criaturas. Faço a diligência de não as magoar e elas, deliberadamente, atacam-me e ficam radiantes quando me ferem."
No entanto, Kate procedia à sua maneira irlandesa: de vez em quando, isolava-se de Juana e das filhas. Porque, assim que as mandava para longe, desaparecia-lhes a malevolência e lembravam-se das ordens da niña. Se ela estava presente e amável, esqueciam-se de tudo. Esqueciam-se de varrer o pátio, de se apresentarem limpas, e só quando Kate as relegava para um canto é que tornavam a lembrar-se.
O filho Ezequiel tinha mais dignidade do que as mulheres.
Nunca fazia aqueles ataques insidiosos.
Quando a casa estava limpa e calma e o ar parecia purificado e a alma renovada, Kate sentia novamente amizade por essa família.
A sua azáfama, andando cá e lá, esvoaçando como pássaros; o estalo da massa das tortillas de encontro à palma da mão; o entusiástico esmagar de tomates e pimenta no tacho enquanto Juana preparava o molho; o barulho do balde no poço quando Jesus vinha regar...
Como isso era divertido! Assim devia ser tudo o que fizessem, ou então não o fariam. Não podiam fixar-se numa rotina. Jamais! Tudo devia ser alegre, variado, com uma pontinha de aventura. Era confusão, mas, no fim de contas, uma confusão viva, não uma coisa morta. Kate recordava-se dos seus criados britânicos nas cozinhas inglesas, tão maquinais e quase inumanos. Aqui era o extremo oposto.
Não havia disciplina nem método. Embora Juana e as filhas quisessem realmente fazer o que a niña desejava, só procediam conforme lhes apetecia. às vezes, Kate sentia-se angustiada. Mas, tanto quanto possível, ia suportando as extravagâncias daquela família. Tivera, por exemplo, de se habituar à vagabundagem da mesa de jantar, mesinha redonda cujo lugar era na varanda. Ao primeiro almoço, ficava discretamente debaixo das plantas, perto do salão; ao almoço da uma hora regressava à varanda; ao chá, ia para a relva do jardim, à sombra duma arvorezita. E, quanto à ceia, Juana deliberou então que a niña comesse os dois ovos e rancheros na própria casa de jantar, isolada a um canto da comprida mesa em que cabiam catorze pessoas.
Kate também nunca chegou a perceber o motivo por que, depois de lavarem a loiça na cozinha durante uns dias, se lembraram de repente de levar os pratos sujos para o lago, num cabaz, aos ombros de Concha. A não ser que achassem assim o trabalho mais divertido...
Crianças! Mas não inteiramente. Faltava-lhes a despreocupação da infância. Pressentia-se-lhes na alma qualquer coisa de sombrio, como que um peso que as forçava a resistir. Trabalhavam por acessos, podiam ser laboriosas; depois vinha a indolência e passavam horas estiradas no chão, como porcos. às vezes mostravam-se alegres, conversavam e riam, sentadas sobre a terra, em grupo, formando roda. Então, subitamente, contrariando a própria alegria, recaíam na mudez e na tristeza. Havia ocasiões em que, estando a trabalhar com afinco, atiravam para longe a ferramenta como se indignadas por terem cedido. Descuidados, versáteis nos seus amores, os homens, ao menos, passavam todo o tempo a resistir a si mesmos. Nunca procuravam o que pretendiam. As mulheres a que se aproximavam. E um rapaz e uma rapariga passeando às escuras na estrada marginal do lago, atiçando-se um ao outro, atormentando-se no meio de excitação, constituíam uma cena que deixava Kate pasmada - porque homens e mulheres não se cortejavam abertamente como fazem os brancos. E o riso súbito do macho, estranha voz de desejo reprimido, de obstinada relutância e paixão desesperada, parecia qualquer coisa a rasgar-se-lhe no peito, era um som que perdurava na memória.
Kate achava pesado o governo da casa. De certa maneira, eram como parasitas, queriam viver da sua vida, e rebaixá-la, rebaixá-la. Nalgumas ocasiões mostravam-se como pessoas meigas, generosas, encantadoras - até a fazerem novamente revoltar-se contra aquela indiferença reptilária. Indiferença e resistência.
Os servos forneciam a Kate a chave da vida indígena. Os homens sempre juntos, erectos, belos, equilibrando o chapéu enorme no alto da cabeça, quer sentados, quer de pé, quer de cócoras, numa impassibilidade de serpente; as mulheres sempre à parte, suaves, como que escondidas, estreitamente apertadas nos chailes escuros. Homens e mulheres pareciam voltar costas uns aos outros como se não quisessem ver-se mutuamente. Nenhuns galanteios, nenhum namoro. Apenas um olhar ocasional sombrio e rápido, sinal de desejo semelhante a um golpe de florete dado e recebido.
Elas, no conjunto, dir-se-iam inexperientes mas decididas a seguir o seu próprio desígnio: mudar de homens quando lhes apetecesse. E eles davam a impressão de não se preocuparem muito. Afinal eram as mulheres que pretendiam os homens.
As indígenas, com os negros cabelos tombados nas costas cheias e acobreadas, banhavam-se num canto da praia, geralmente em camisa ou com um saiote. Os homens mantinham-se alheados, nem sequer se dignavam olhar para a outra banda. Eram mulheres no banho, nada mais. Faziam parte, por assim dizer, da vida lacustre, como os peixes que ali nadavam. Concediam-lhes mesmo aquele ponto do lago, e elas sentavam-se nos baixios, isoladas como aves aquáticas, e molhavam a cabeça e os ombros com o auxílio duma cabaça.
Calmas, discretas, desprezadas fêmeas da classe dos peóns, seguindo o seu caminho envoltas no rebozo como num manto de trevas, ágeis, balançando as saias rodadas e gorjeando como passarinhos; ou paradas na borda do lago, com os cabelos longos a gotejarem; ou subindo lentamente a margem com uma pesada bilha de água ao ombro e um braço por cima da cabeça, a segurar a asa do cântaro; ou, especialmente nas tardes de domingo, sentadas à porta da casa, catando piolhos umas às outras. As moças possuidoras de cabeleira abundante e ondulada eram as que mais piolhos tinham. Aquilo representava um acto público meritório.
Parecia a Kate que esse país não podia originar nada de mais elevado do que a amizade entre os homens. O próprio casamento tinha pouca importância. E, embora se mostrassem meigos e protectores para com as crianças, os pais depressa as esqueciam.
A questão do sexo era no entanto a primordial, aquela que não devia ser omitida nem aflorada abertamente. O único mistério, muito maior do que o indivíduo. Este pouco contava.
Kate pasmava ao ver as choças de palha dos índios nas margens do lago. Ali fervilhavam crianças seminuas no chão de terra batida, no meio de trapos, de ossos, e do fedor de excremento humano.
Esse povo parecia não ter olfacto. E defronte do buraco que servia de porta à cabana, o homem impassível, magnífico, silencioso... Como era possível que tão belo exemplar de virilidade se mantivesse indiferente a tamanha porcaria?
Mas ali se conservava como inconsciente. Contudo, era um ser vivo - e forte. Nenhum homem no mundo pode transportar cargas tão pesadas como os índios do México. Kate vira já um deles passar na rua com um piano às costas, apenas seguro por uma correia em volta da testa.
Portanto, força não escasseava, mas sim energia. Nem sequer a classe dos artífices que imita a dos Estados Unidos demonstra ser enérgica. Têm os seus clubes, aperaltam-se e andam de braço dado com raparigas bonitas, mas percebe-se que tudo isso não passa de vulgar imitação.
Inesperadamente, a família de Kate aumentou. Um dia, chegou de Ocotlan uma formosa moça de 15 Primaveras, com grandes olhos bovinos, Maria del Carmen. Acompanhava-a Júlio, rapaz de vinte e dois anos. Tinham casado há pouco, e vinham de visita a Sayula. Júlio era primo de Juana. Poderiam dormir no pátio com ela e com as filhas? - perguntou Juana. Só se demorariam dois dias.
Kate ficou espantada. Maria Del Carmen devia ter sangue espanhol, a sua beleza evocava a Espanha. Parecia pertencer a um nível superior, mais educado, e no entanto ia dormir no chão com esse esposo juvenil... E ele, tão aprumado e de ar tão orgulhoso, nada possuía além duma velha manta.
- Há três quartos desocupados - disse Kate. - Que durmam num deles. - As camas eram de pessoa só. - Precisarão de mais cobertores?
Não. Bastaria a manta de Júlio.
Este era assentador de tijolos, isto é, ajudava a construir as paredes das casas de adobe. Nascera em Sayula e vinha ali de visita.
Essa visita, no entanto, prolongou-se. Júlio andava à procura de trabalho e só aparecia ao anoitecer. Maria del Carmen entretinha-se a amassar tortillas na cozinha de Juana e a conversar com as raparigas. À noite, o marido regressava e, sentado no chão, de costas apoiadas à parede, sempre impassível, deixava a mulher acariciar-lhe os cabelos negros e bastos.
Amavam-se, mas Júlio resistia ao seu amor.
Ela queria voltar para Ocotlan, onde era mais señorita do que em Sayula, mas o rapaz recusou. Não tinha dinheiro; o casal sustentava-se com cerca de cinco cêntimos por dia.
Quando Kate estava a coser, Maria del Carmen, que nem sabia talhar uma camisa, observava-a de olhos arregalados. Kate ensinou-lhe costura, comprou-lhe uns metros de chita e Maria del Carmen fez um vestido com as suas mãos.
Júlio arranjou trabalho, a um peso por dia, e a visita continuou. Kate achava o rapaz pouco terno para a mulher: sempre que lhe falava era em tom de comando. E Maria del Carmen não levava isso a bem e amuava um pouco.
Passaram-se semanas, e Juana começava a cansar-se dos parentes.
Por fim, Júlio arrendou uma casita de adobe só de um compartimento, ao preço de peso e meio por semana. Maria del Carmen ia ter o seu lar.
Kate viu-os juntar as suas coisas para a mudança. Consistia tudo numa esteira de palha, três tachos de barro, cinco peças de loiça, duas colheres de pau, uma faca e a manta de Julio. Nada mais.
Presenteou-os, então, Kate com um edredão de seda já um tanto puída, duas tigelas e diversos utensílios de cozinha. Foi uma alegria. A voz de Maria del Carmen soava no pátio em exclamações delirantes. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"
Na época das chuvas as noites são por vezes glaciais devido à evaporação, e os indígenas, transidos de frio, esperam pelo romper da manhã deitados sobre esteiras delgadas e abafados apenas com a ponta de um cobertor velho. A inércia natural fá-los suportar o sofrimento sem tentar minorá-lo. Podiam arranjar um colchão de palha de milho e cobrirem-se com folhas secas de bananeira. Mas não. Estendem-se numa esteira em cima da terra húmida e tiritam de frio noite após noite.
Maria del Carmen, porém, era um pouco mais civilizada. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"

CONTINUA

VII
Sayula era uma pequena estação balnear; não para ricos ociosos, porque o México os tem em pouca quantidade, mas para comerciantes de Guadalajara e gente que passeia nos fins-de-semana. E mesmo assim em reduzido número.
Havia, no entanto, dois hotéis, que vinham dos dias calmos de Don Porfirio, tal como a maior parte das vivendas fora da povoação, hoje fechadas e muitas delas abandonadas. Na aldeia viviam em perpétuo estado de terror. Acima de tudo temiam os bandidos e os bolchevistas.
Os bandidos eram apenas homens das localidades afastadas que, sem dinheiro, sem trabalho e sem esperança faziam ocasionalmente profissão do roubo e do assassínio. Habitavam nas suas aldeias selvagens até que as tropas os obrigavam a refugiar-se nas montanhas ermas ou nas regiões pantanosas.
Quanto aos bolchevistas, pareciam nascer do caminho de ferro. Onde houvesse carris, passageiros e carruagens de diferentes classes, aí despertava o espírito de rebelião e inveja; e o ferro e as demoníacas locomotivas ofegantes dir-se-ia engendrarem esses filhos do materialismo que são os bolchevistas.
Sayula possuía o seu ramal, com um comboio diário; a linha não cobria as despesas e lutava por se manter - mas já era bastante.
Sayula fora atingida pela loucura da América: o automóvel. Assim, como outrora os homens desejavam um cavalo e uma espada e as mulheres sonhavam com uma casa ou um camarote no teatro, a ambição actual é possuir um carro.
Era um desfile contínuo de "máquinas", de automóveis ligeiros e pesados na única estrada que ligava Sayula a Guadalajara. Uma esperança, uma fé, um objectivo: andar de carro, possuir um carro.
Quando Kate chegou à aldeia, falavam com certo alarme do regresso dos bandidos, mas a irlandesa não prestou a mínima atenção ao assunto. À noite, foi àplaza e misturou-se com o povo. Era um largo ornado de árvores imponentes, com um velho coreto no centro e um passeio em volta. No lado norte ficava o mercado. Mais além, passavam burros e camionetas nas ruas mal calcetadas.
A banda de música já não tocava em Sayula, a elegância já não se exibia naplaza, debaixo das árvores. Mas o pavimento ainda era bom e os bancos mais ou menos sólidos. Oh, tempos de Don Porfirio! Agora, só os peóns e os índios, com os seus fatos brancos e manta ao ombro, enchiam os bancos e monopolizavam a praça. É certo que se mantinha a lei que obrigava os peóns, naquelas paragens, a usar calças e não a espécie de ceroulas largas e flutuantes das suas lides rurais. Mas os peóns, por seu lado, também gostavam de envergar calças em vez daquele traje representativo do humilde labor do campo.
Eram eles, pois, quem dominava na praça, ora sentados em bancos ora passeando indolentes com a sua manta e de sandálias. Depois das seis horas, enchiam-se as barracas de comida quente, na rua calcetada do lado norte: ficava mais barato comer fora de casa e findava-se agradavelmente um dia de trabalho. As mulheres, de portas adentro, que ficassem a mastigar as suas tortillas; mas não provavam caldo, nem sopa, nem guisado. Nas tendas que vendiam tequila, instalavam-se homens, mulheres e rapazes defronte da mesa, em bancos, acotovelando-se uns aos outros. Também havia jogos de azar, pouco violentos, em que o banqueiro voltava uma carta e todos gritavam: Cinco de Espadas! Rei de Copas! Certa mulher corpulenta, imperturbável, de cigarro na boca e perigosa expressão nos olhos sombrios e baixos, vendia tequila, sentada ao escuro, toda a noite. O homem dos doces ficava de pé junto do seu balcão. Por terra, viam-se pequenos archotes metidos em latas, alumiando montes de mangas ou daquelas nauseabundas ameixas tropicais, encarnadas, que se liquidavam por dois ou três centavos a pilha, enquanto a vendedora, de saia larga, ou o vendedor, humilde e paciente, esperava acocorado o freguês, com aquela indiferença fatal e aquela submissão que tanto intrigam o estrangeiro. Ter ameixas para vender no valor de trinta cêntimos; amontoá-las no chão em pequenas pirâmides, cinco em cada uma; e esperar todo o dia e até de noite, de cócoras, a olhar de baixo para cima, para a cara do transeunte e possível comprador - eis, ao que parece, uma ocupação e um modo de vida.
Era vulgar encontrar-se ali um par de rapazes empunhando violas de tamanho diverso, em frente um do outro como dois galos combatentes; entoavam uma canção interminável, cantando em voz sumida as eternas baladas não muito musicais, dolorosas, extensas, audíveis apenas para os que estavam próximos. E assim se conservavam até enrouquecerem. Em volta, com mantas encarnadas, paravam homens altos e escuros, ouvindo por instantes e raramente contribuindo com um centavo.
Entre as barracas de comes e bebes estava um trio de duas violas e uma rabeca; dois dos músicos eram cegos e cantavam em diapasão alto, mas também de modo pouco audível. Dir-se-ia cantarem só para si, muito chegados um ao outro, como se a melancólica balada lhes repercutisse no peito.
A aldeia em peso comparecia naplaza. No entanto, raramente, muito raramente uma voz se erguia acima do murmúrio grave dos homens, do sussurro musical das mulheres, do gorjeio das crianças. Poucos movimentos apressados. O lento passeio dos homens de sandálias, chamadas huaraches, fazia um rumor leve de baratas a arrastarem-se no chão. Fora e dentro da multidão calma, corriam rapazes de pernas ao léu. Eram os irrequietos engraxadores, que pululam como moscas importunas naquela terra de gente descalça.
No lado sul, viam-se mesas e cadeiras no passeio: uma tentativa de café-esplanada- Aí, nos dias de semana, sentavam-se para tomar cerveja ou um copo de tequila as poucas pessoas que se atreviam a tamanha exibição - na maior parte estrangeiras. E ospeóns, imóveis nos bancos do último plano, observavam-nas com olhos de basilisco sob as largas abas do chapéu.
Mas ao sábado e ao domingo era quase festa. Chegavam carros aos solavancos, e, como pássaros exóticos, volteavam na plaza raparigas graciosas de vestidos vaporosos, faces empoadas e cabelos encaracolados. Passeavam de braço dado, trajadas de organdi vermelho ou azul, de musselina amarela ou cor-de-rosa, e com tal camada de pó-de-arroz na cara que a pele morena apresentava a brancura lívida dos palhaços ou dos cadáveres.
Adejavam como borboletas coloridas no meio da multidão de homens do povo. fortes e belos. Era restrito o número de mancebos elegantes que pudessem equiparar-se àquelas mocinhas. Contudo, havia alguns, de calças de flanela branca, casaco escuro, palhinhas e bengala. Fumavam cigarros com gesto afectado, falando um castelhano elegante, tão próximo quanto possível do original, e com o ar de que seriam dentro de doze meses sacrificados a algum deus mexicano depOis de estarem devidamente nédios e perfumados.
Ao sábado, os janotas, as raparigas e todos os que vinham de carro, da cidade - que, aliás, eram poucos - tentavam divertir-se nesse lúgubre país. Contratavam tocadores de viola e rabeca e a música de jazz elevava-se em acordes um tanto langorosos.
Debaixo das árvores da alameda, perto das mesas e das cadeiras do café, começavam pares a dançar à la mode. Os vestidos vermelhos, amarelos e azuis rodopiavam com as calças de flanela, donde saíam elegantes sapatos brancos guarnecidos de tiras de couro preto ou castanho. Algumas das saias de organdi encimavam meias e sapatos verdes, ou pernas à Ia nature com sapatos brancos. Os braços franzinos e morenos enlaçavam os ombros azuis-escuros dos moços, que sorriam com ar protector para as facezitas brancas e petulantes; sorrisos meigos, paternais e impregnados de sensualidade.
Mas a dança era no recinto da praça, e na praça erravam indolentes os homens do campo, ou então paravam em grupos, espiando os pares rodopiantes com os seus olhos pretos, misteriosos, impenetráveis. Em que pensariam? Sentiriam admiração, inveja, ou simplesmente uma silenciosa e fria oposição? Sim, oposição é que devia ser.
Esses camponeses de camisa branca e manta escarlate, airosamente dobrada ao ombro, passeavam devagar, quase ocultos sob o chapéu enorme e pesado, dispostos a não fazer caso dos que dançavam. Vagarosos, oscilando o corpo, eles moviam-se irresistivelmente no meio da dança como se a dança, no fim de contas, não existisse. E os rapazes de calças brancas, levando nos braços as damas de organdi, evolucionavam como podiam, fazendo o possível por se desviarem âospeóns impassíveis, que prosseguiam na sua conversa, sorrindo na alvura dos dentes, com um sangue-frio que gelava os próprios músicos. Nunca se tocavam, nunca se acotovelavam, dançarinos epeóns; no México ninguém se atropela involuntariamente. Mas a dança embatia contra a oposição invisível.
Os índios sentados nos bancos contemplavam também por momentos as evoluções dos bailarinos, após o que os fulminavam com a sua pesada indiferença. Misteriosa faculdade dos índios, tão densa e calma, para destruir a vida palpitante, para apagar qualquer foco de efervescência.
Na verdade, um simples bailarico de indígenas; mas dir-se-ia fechado dentro de quatro paredes. E o ritmo soava diferente, grave, com certa violência. Os dançarinos eram artífices, mecânicos ou carregadores da estação: gente meio citadina. Nenhuns trabalhadores do campo, ou quase nenhuns.
Por isso, passado não muito tempo, as borboletas de organdi e os moços de calças de flanela sucumbiram esmagados pela enorme passividade, pela resistência dos satânicos peóns.
Curiosa, radical oposição dos índios contra essa coisa a que chamamos espírito. É o espírito que leva as meninas petulantes a adejarem as suas asas de organdi como borboletas. É o espírito que vinca as calças de flanela dos rapazes e lhes dá aquele ar um tanto patético. Tentaram representar a elegância e a vontade do espírito moderno.
No entanto, como um peso de obsidiana, surge a recusa passiva do índio; compreende a vida, que participa do sangue, mas o espírito, que é superior, e é a marca da nossa civilização, isso ele repudia, barbaramente, torvamente. Só quando se torna operário ou lida com ofícios mecânicos é que o espírito moderno o visita.
E talvez seja esse repúdio do espírito moderno que faz o México ser o que é.
Kate ficou um tanto desconsolada ao ver findar o baile. Instalara-se numa das mesas, com Juana a servir-lhe de duena, para tomar um cálice de absinto.
Os carros regressavam à cidade em pequenos grupos. Sempre seria melhor irem juntos, para o caso de aparecerem salteadores. Dominava-os o receio dos bandidos, e os próprios janotas usavam revólver no bolso.
Como era sábado, parte da mocidade elegante ficou para o dia seguinte, na ideia de tomar banho e de se espojar ao sol.
A plaza estava cheia, e ao comprido das ruas que desembocavam no largo cintilavam inúmeros archotes, iluminando uma exposição de chapéus de palha, de esteiras, de pirâmides de laranjas.
Havia feira no domingo de manhã, de modo que, de repente, o largo ficou estuante de vida - densa e pesada energia vital. Os índios tinham vindo de todas as aldeias, trazendo consigo essa curiosa energia vital que parece zumbir cada vez mais profundamente quando eles se encontram reunidos.
Durante a tarde, com o vento a soprar do sul, as canoas, de casco preto e larga vela desfraldada, haviam atravessado as águas do lago, transportando indígenas e produtos para o mercado. Para formar essa multidão todas as aldeias da margem concorreram com os seus habitantes.
Despertava o instinto que impele os índios para a vida nocturna desde que se encontrem reunidos. Ninguém recolhia a casa, ninguém pensava em dormir, embora a feira só principiasse ao romper da manhã.
Cerca das nove horas, depois de terminada a dança, Kate ouviu o rufar de um tambor, ou coisa semelhante, e notou que uma chusma de peóns se dirigia para o lado mais escuro da praça, onde já se viam barracas e cestos enormes, em forma de ovo, encostados à parede.
Aquele som, que era como o latejar dum pulso de gigante repercutindo no ar da noite, juntou-se a nota prolongada de uma flauta, tocando uma espécie de melodia bárbara. Kate, que já ouvira falar dos cânticos selváticos dos peles-vermelhas do Arizona e do Novo
México, sentiu instantaneamente espalhar-se na atmosfera a eterna
paixão das raças pré-históricas com a sua intensa e complicada significação religiosa.
Olhou para Juana com ar interrogador.
- Que é isto? - perguntou.
- Músicos, cantores - foi a resposta evasiva.
- Mas muito diferentes dos outros - insistiu Kate.
- Sim, aquilo é coisa nova.
- Nova?
- Apareceu aqui há pouco tempo.
- Donde veio?
- Sabe-se lá! - volveu Juana, encolhendo os ombros.
- Quero ouvi-los.
- Olhe que são só homens.
- Podemos ficar um pouco afastadas.
E Kate dirigiu-se para o ajuntamento silencioso dos peóns. Estavam todos de costas para ela.
Subiu o degrau duma porta e viu, perto do muro florido de buganvílias, um espaço livre iluminado pelos archotes de madeira resinosa que um rapaz segurava nas duas mãos.
O tambor estava ao centro dessa clareira, e o homem que o rufava tinha o torso nu e calças de brancura imaculada atadas na cintura por uma faixa escarlate e aos tornozelos por cordão da mesma cor. Cingia-lhe a cabeça uma tira vermelha, donde se erguiam três penas rubras sobre a nuca. Na testa brilhava uma turquesa no meio dum círculo azul. O tocador de flauta também se apresentava sem camisa, mas dobrara sobre o ombro uma bela manta branca listada de azul e preto. Outros homens, despidos da cintura para cima, distribuíam folhetos aos espectadores, insinuando-se no meio da multidão. E todo o tempo, alta e pura, a estranha flauta de barro repetia a melodia bárbara, acompanhada pelo rufar do tambor.
Kate desceu do seu poleiro e avançou a medo. Queria um daqueles papéis. O homem deu-lho, sem sequer a olhar, e ela encaminhou-se para a luz a fim de o ler. Era uma espécie de balada, mas sem rimas, escrita em espanhol. No cimo da página via-se o desenho de uma águia cercada por uma serpente que mordia a cauda; curiosa variante do emblema mexicano, que é uma águia encarrapitada num cacto de folhas largas e com uma serpente nas garras. A certa distância, o círculo formado pelo réptil com a ave a meio dava a impressão dum olho.
Na região de Oeste
Em paz, para além dos raios brilhantes
Do Sol,
No silêncio onde nascem as águas
Dormia eu, Quetzalcoatl,
Na caverna chamada Olho Tenebroso, Vendo através do sol como por uma janela, Minha morada é lá. Onde as águas brotam E os ventos nascem.
Nas águas do Além
Levantei-me e vi uma estrela cadente.
E senti
Um sopro em minha face.
O sopro disse: Vai,
E eu vim.
Desci a longa encosta, Passei o monte do Sol, Até que descobri em baixo Os seios brancos da terra Do México: a esposa minha.
Entre os mares a minha esposa Penteia o cabelo preto Murmurando: Quetzalcoatl...
Adensara-se a multidão de homens; do centro elevava-se a luz avermelhada dos archotes, o ar embalsamava-se da resina de cedro. Kate não conseguia ver nada por causa dos chapéus enormes.
Calara-se a flauta; mas o tambor continuava as suas pancadas lentas, regulares, com o ritmo duma pulsação. Aquele som incompreensível, surdo, enfeitiçava o espírito, fazia bater o coração, aniquilava a vontade.
Os homens começaram a fatigar-se, sentando-se uns, acocorando-se outros, com o chapéu nos joelhos. Dir-se-ia um mar de cabeças escuras, ondulando para a frente, sobre os ombros vigorosos e levemente inclinados.
Perto do muro formara-se um círculo, com o tambor ao centro. O homem que o tocava, de dorso nu, premia o instrumento contra o corpo, e, curvado, as costas cintilavam-lhe ao clarão da noite. Junto dele estava outro homem a segurar uma bandeira que pendia duma haste leve. No campo azul do pano via-se o Sol amarelo a meio duma bola preta e, entre os quatro raios maiores, todos de ouro, quatro raios negros emergindo, o que fazia o astro assemelhar-se a uma roda que girasse num movimento ofuscante.
Sentara-se toda a gente. Os seis homens de tronco nu, que haviam distribuído os prospectos e convocado a multidão tinham já regressado e agora acomodavam-se de volta do rufador agachado. À direita deste ficava o porta-bandeira, à esquerda o flautista. Eram nove os do grupo, e faziam dez com o rapaz que vigiava os dois archotes, agora colocados em trípodes de cana.
A noite aprofundava-se em silêncio. Calara-se o murmúrio de vozes que enchia a praça. Debaixo das árvores, nos passeios, transitavam ainda pessoas indiferentes, mas pareciam estranhamente solitárias; figuras isoladas envoltas na luz pálida das lâmpadas eléctricas e fora do núcleo da vida.
No lado norte, as barracas continuavam iluminadas, faziam-se compras e vendas. Mas também essa banda do largo dava a impressão de estar muito longe da realidade actual.
Depois de os homens se sentarem, as mulheres avançaram timidamente e instalaram-se por sua vez na orla exterior do círculo. As saias rodadas espalhavam-se no chão, os xailes escuros moldavam-lhes a cabeça redonda e pequenina. Algumas, não ousando aproximar-se, ocuparam os bancos em volta. Outras, assim como muitos homens, haviam desaparecido aos primeiros rufos do tambor.
a plaza ficou como que deserta. Um grupo compacto rodeava o tambor; aquém, era o mundo externo, vazio e hostil. Somente na ruela escura que conduzia ao negrume do lago se viam alguns vultos erectos e silenciosos como fantasmas.
Sobre os degraus de uma porta, e com Juana a seus pés, Kate olhava fascinada para aqueles homens seminus iluminados pelo clarão dos archotes. Os seus corpos lisos e acobreados possuíam essa beleza índia um tanto assustadora. Os torsos magníficos, acetinados, desses entes silenciosos de cabeça um tanto pendida para a frente; os ombros largos, levemente descaídos pela inactividade da sua força; o tom quente e o brilho da pele; o peito vigoroso, tão viril e, no entanto, sem a dureza muscular dos homens brancos; as faces sombrias, impenetráveis, os bigodes pretos e as barbas ténues enquadrando o silêncio da boca fechada - tudo isto era impressionante, singular, despertava comoção.
Havia algo de reptilário na sua flexibilidade, qualquer coisa de terrível na sua mudez. Os troncos nus tinham a revesti-los uma sombra subtil, certa obscuridade misteriosa. Se fossem homens de raça branca seriam francamente musculados, com uma espécie de sinceridade no próprio físico. Aqueles não. A sua nudez só revelava a profundeza secreta da natureza, o eterno mistério.
Toda a gente se calara; intensificava-se o silêncio expectante, tornava-se tumular. Os homens de ombros nus mantinham-se imóveis, mergulhavam dentro de si mesmos e escutavam com os ouvidos do sangue. Sob as calças brancas atadas nos tornozelos, os pés metidos em Imaraches eram quase negros ao clarão dos archotes. Que pretendiam essas criaturas suaves e recolhidas e cuja importância, no entanto, era tão ponderosa, tão aliciante?
Kate sentia-se ao mesmo tempo atraída e repelida. Quase a fascinava o estranho poder magnético dos homens em círculo. Era como o núcleo duma vida nova, como uma jóia negra brilhando na escuridão. Mas parecia-lhe repulsiva aquela estranha opressão, esse afundar do espírito na terra, esse lento escoar duma água turva; repulsiva a densa e muda oposição ao rumo espiritual da gente branca. Contudo, ali e só ali a vida parecia arder com chama intensa.
No resto do mundo, Kate bem o sabia, tudo era vacuidade, esterilidade. Aqueles vultos avermelhados pelo clarão dos archotes representavam uma humanidade nova.
Kate sentia tudo isto, mas preferia manter-se à parte, evitar o contacto directo.
O porta-bandeira ergueu a cabeça como se fosse falar, mas não disse nada. Velho de barba e bigodes brancos a emoldurar-lhe os lábios escuros e carnudos, tinha a cara sulcada de rugas, como todas as pessoas idosas desse país. No entanto, os cabelos eram bastos, e o corpo ainda revelava força e virilidade. ! Os seus olhos negros olhavam sem ver. Talvez fosse realmente
cego; ou seria profunda abstracção que lhe dava aquele aspecto. Começou então a falar, numa voz lenta, clara e distante que parecia ser o eco dos últimos sons do tambor. - Homens, escutai-me! E vós. mulheres, escutai-me também. Há muito tempo, na calma da noite, o lago dirigiu um apelo aos seres humanos. Mas não existiam. Só os peixes pequeninos nadavam ao longo das margens, procurando fosse o que fosse, e os maiores saltavam fora de água para olhar em volta. Mas não existiam seres humanos.
Então um dos deuses de face velada saiu da água e subiu ao monte. (E o velho indicou a colina invisível nas trevas da noite. ao fundo da aldeia. Contemplou o Sol e viu através dele outro sol negro, o que criou o mundo e o absorverá de novo como uma gota de água. Disse: - Chegou o momento? - E quatro braços saíram do sol e da sua sombra surgiram homens. Viram os quatro braços no céu e principiaram a andar.
O deus do cimo da colina olhou para as montanhas e para as planícies e viu os homens anelantes, sequiosos. E disse-lhes: Vinde cá. Tendes aqui a minha água dulcificadora.
Correram como cães, de língua pendente, e ajoelharam-se na margem do lago. O deus do cimo da colina ouviu-os ofegar, de tanta água que beberam, e perguntou-lhes: - Não bebestes de mais? Ou tendes ainda os ossos secos?
í Os homens fizeram casas à borda do lago, e aquele que estava na colina, e que era um deus, ensinou-os a semear milho, feijão, e a construir barcos. Mas preveniu-os: - Nenhum barco vos salvará quando o sol negro deixar de estender os braços no céu.
O deus da colina disse ainda: - Sou Quetzalcoatl, aquele que vos humedece os lábios secos. Encho-vos o peito com um sopro do além-sol. Sou o vento que sai em turbilhão do centro da terra, sou o zéfiro que se enrosca como cobra em volta dos vossos pés, pernas e coxas, erguendo a cabeça da serpente do vosso corpo, onde reside a força humana. Tomai cuidado quando a serpente do corpo erguer a cabeça. Sou eu, Quetzalcoatl, que vos elevo, que vos elevo até ao sol das trevas, derradeira morada dos homens. Exceptuando o sol negro e os quatro braços nos céus, éreis ossos, e as estrelas eram ossos, e a Lua uma concha vazia numa praia seca, e o Sol amarelo uma taça vazia, semelhante ao crânio dum lobo. Portanto, tende cautela! Sem mim nada sois. Assim como eu nada sou sem o sol que está atrás do sol. Quando o sol de ouro estiver no zénite, dizei: Quetzalcoatl levante a sua mão e me abrigue dos raios, senão perecerei e a terra secará. Porque na palma da minha mão está a água da vida, e nas costas está a sombra da morte. Quando os homens me esquecem volto a mão e aparece a sombra da morte. Mas os homens esqueceram-me. Os seus ossos eram húmidos, o seu coração fraco. Quando a serpente do corpo erguia a cabeça, diziam assim: É a serpente amansada que nos obedece. E quando suportavam o ardor do sol, falavam nestes termos: O sol está zangado, quer absorver-nos; ofereçamos-lhe sangue de vítimas.
Os braços negros desapareceram do céu, e Quetzalcoatl envelhecia e lamentava-se, velando a face para a esconder dos homens.
Lamentava-se e dizia: - Deixai-me recolher à minha morada. Estou velho, quase sou apenas ossos. Os ossos triunfam em mim, o meu coração é uma cabaça vazia. Sinto-me cansado do México.
Então bradou ao sol negro, aquele de quem nunca se pronuncia o nome: - Estou um esqueleto, os Mexicanos renegam-me, de nada sirvo. Levai-me.
O sol negro estendeu o braço e elevou Quetzalcoatl até ao céu. Depois olhou em volta e viu a estrela de alva brilhando sem receio entre a vinda do sol dourado e a fuga da escuridão. E aquele, cujo nome jamais foi pronunciado, perguntou: - Quem és tu, guarda cintilante? E a estrela respondeu: - Outrora, no México, fui Quetzalcoatl. Agora contemplo as costas do sol amarelo e a face invisível da Lua, brilho entre o dia e a noite, esperando pela renovação.
E aquele cujo nome jamais foi pronunciado declarou: - Chegou a hora.
Assim o decretou, e eu a vós repito, homens e mulheres: Chegou a hora. Os que nos deixaram regressam, os que vieram retiram-se. Desejai a uns boas-vindas e dizei adeus aos outros.
Boas-vindas! Adeus!
O velho terminou o discurso com um grito meio sufocado, tal se na verdade se dirigisse aos deuses.
- Bienvenido! Bienvenido! Adiós! Adiós!
A própria Juana, sentada aos pés de Kate, bradava sem saber o que dizia:
- Bienvenido! Adiós! Adiós... n!
O último adios arrastou-se para rematar com o costumado "n". Começou o tambor a soar num ritmo insistente, e a flauta fez ouvir o seu grito estranho e longínquo. Tocavam a melodia singular que a irlandesa ouvira a princípio.
Então um dos homens do círculo entoou o hino. Cantava à maneira dos antigos Peles-Vermelhas, em voz contida mas intensa, como se se dirigisse à própria alma e não ao mundo exterior; como se cantasse na outra dimensão da existência dos homens, onde eles se encontram na extensão infinita que há dentro do eixo do nosso espaço rotativo. Espaço que, como o mundo, não pode deixar de se mover. E, tal o mundo, tem um eixo. O eixo do nosso espaço terreno, quando lá se penetra, é uma vastidão onde até as árvores vão e vêm, e a alma está à vontade no seu sonho, nobre e irrefutável.
O pulsar do tambor e o cântico íntimo arrastavam a alma para o centro do tempo, que é mais velho do que a própria velhice. O cantor começou por uma nota alta que repetiu demoradamente, fazendo-a percorrer ritmos subtis, na aparência desconexos, que o tambor acompanhava, e depois fê-la tremer, palpitar e dar um balanço brusco. Por muito tempo foi difícil distinguir qualquer melodia: dir-se-ia o uivo distante e esmaecido dum lobo. Era na verdade a música dos índios antigos.
Não se lhe encontrava harmonia, não se lhe reconhecia emoção. Apenas música, apenas um grito na noite, perfeito e longínquo. Mas ia direito à alma, à alma eterna e antiga, aí onde só pode a família humana encontrar-se em imediato contacto.
Kate logo o sentiu, e de forma fatídica. Seria inútil resistir, inútil fazer qualquer esforço. O som ia até ao âmago do ser, em que não existe esperança nem dor, mas só a paixão, que semelha uma ave no seu ninho, de asas dobradas, e a fé uma árvore de sombra.
Como o destino, como a sorte. A fé é a própria Árvore da Vida, inevitável, e os pomos estão ao nosso alcance: pomos dos olhos
- as pupilas -, pomos do queixo, do coração, dos seios, do ventre, dos quadris, dos joelhos, dos tornozelos. Que importa a mudança, a evolução? Somos a Árvore com os seus frutos, para todo o sempre. Verbum Sat.
Emudeceu o cantor, mas o tambor prosseguiu, fazendo vibrar subtilmente a membrana sensível da noite. Então, no círculo, de novo se elevou uma voz, depois outra, e outra, como pássaros voando de uma árvore. Elevaram-se as vozes - forte, pesado, intenso arrebatamento de vozes másculas, semelhante a um bando de aves negras subindo e descendo no ar, ao mesmo tempo. E cada ave preta dir-se-ia erguer-se do coração de um homem, do bosque secreto dos peitos masculinos.
Uma a uma, partiram também vozes da multidão, qual nova revoada de pássaros. A letra não tinha importância. Versos, palavras, simples sons - o canto era sempre o mesmo: violenta rajada saindo das cavernas do peito, das profundezas da alma eterna. Kate estava excessivamente intimidada para poder cantar, demasiadamente vencida pelas desilusões; mas sentia que o seu espírito fazia eco, seguindo o clamor do povo, tal a ave poliglota que imita as outras à noite. Contra sua vontade, Juana cantava também, num tom monótono, proferindo palavras à toa, inconsciente.
Os homens seminus começaram a agarrar as mantas: mantas brancas orladas de azul, com barras castanhas e franjas escuras. Da turba, levantou-se alguém, que se dirigiu para o lago. Voltou depois com um feixe de lenha trazido por um barco. Acendeu então uma fogueira pequena. Outro indivíduo se destacou para ir também buscar lenha: colocou-a diante do tambor, dentro do círculo, e fê-la crepitar. Por sua vez, uma mulher, descalça e de larga saia de algodão, principiou a arranjar a sua fogueira no meio das mulheres.
O ar estava bronzeado pelo clarão do lume; alastrava-se um fumo odorífero, como de incenso. Subiu e desceu o cântico, depois esmoreceu. Débil ecoou o som do tambor, e morreu por seu turno. No silêncio absoluto podia-se sentir a presença imóvel do lago sombrio.
Mais uma vez pulsou, vigoroso, o tambor. Um dos homens que estavam sentados, com o seu poncho branco debruado de azul e preto, ergueu-se de repente e, tirando as sandálias, começou a esboçar passos de dança, sem fazer o menor ruído. Dançava pesadamente, de pés nus, como se fosse enterrar-se pela terra abaixo. Sozinho, oscilava num ritmo estranho, calcando o chão, erguendo ora um ora outro dos joelhos de encontro às franjas escuras do poncho. Outro homem, encaminhando-se para o centro, pôs aí os huaraches, perto do fogo, e iniciou o seu bailado, enquanto o do tambor entoava um cântico selvático, tenebroso. Os restantes comparsas despojaram-se dos ponchos e, num instante, estavam de pé, e de torsos nus, descalços, repetiam aqueles passos que pareciam de ave. A luz da fogueira batia-lhes no peito, nas faces sombrias e extáticas.
"O que dorme acordará! O que dorme acordará! O que segue o trilho da serpente na poeira chegará ao seu posto; pelo trilho do pó chegará ao seu destino e revestir-se-á com a pele da serpente: revestir-se-á com a pele da serpente da terra, que é a criadora da pedra, que é criadora da pedra e do vigamento da terra; criadora do oiro, do ferro, da madeira da terra: dos ossos do pai da terra, da serpente do mundo, do coração do mundo que bate como uma cobra bate no pó, nos seus movimentos sobre a terra; do coração do mundo. Quem dorme despertará! Quem dorme despertará! Quem dorme despertará no caminho da serpente do pó da terra, da pedra da terra, do osso da terra."
O cântico parecia tomar novos voos audaciosos depois de baixar e sussurrar num último desmaio. Eram como ondas que se erguem do invisível, que tomam forma, alando-se, e desaparecem num rumor de aniquilamento. E os dançarinos, após terem girado em círculo, numa lenta e profunda absorção, iam um por um tomar o seu lugar, calcando o pó com os pés descalços, vagarosamente, e vagarosamente começavam a descrever uma ronda lenta em torno do fogo, sempre com os mesmos passos que se diria afundarem-se na terra. E o tambor ressoava numa palpitação sempre igual, como a de um coração humano. E o cântico soou e diminuiu, mais baixo e mais baixo numa espécie de extinção, para ainda uma vez tornar a levantar-se.
Até que os camponeses moços acharam impossível permanecer como estavam. Tiraram as sandálias, o chapéu, as mantas, e, timidamente, com pés inexperientes que no entanto conheciam as velhas pisadas, se puseram atrás dos outros bailadores e dançaram sem sair do seu lugar. Depressa o círculo revoluteante estabeleceu outro círculo de homens que envolveu o primeiro.
Então, de súbito, um dos dançarinos de tronco nu saiu do círculo interior e, penetrando no segundo, fê-lo girar em sentido inverso ao daquele. Deste modo houve duas rodas em movimento, uma dentro da outra, rodopiando em direcções opostas. Assim andaram, com o tambor e o canto, girando como rodas de sombra em volta do lume. Mas o lume extinguiu-se, e o tambor parou de repente, e os homens num instante se dispersaram, retrocedendo para os seus postos.
Houve silêncio, depois ouviu-se um murmúrio de vozes e risos. Kate muitas vezes pensara que o riso dos peóns se assemelhava a uma queixa; mas agora ele saltava como faúlhas invisíveis, bruscamente, da cinza das conversas.
Todos esperavam, e contudo ninguém se movia - até que o tambor vibrou de novo, como um sinal. Continuaram, porém, a tagarelar mas escutando, qual se possuíssem uma segunda consciência. Levantou-se um homem, desfez-se da manta e deitou lenha na fogueira central. Em seguida atravessou o grupo dos homens sentados e dirigiu-se ao das mulheres, que se apinhavam com as saias desdobradas. Esperou, sorrindo com ar abstracto, e logo se pôs de pé uma rapariga e se aproximou dele, apertando com a mão direita o xaile enrolado em torno da cabeça baixa. Estendendo a mão esquerda, pegou timidamente na do homem, que parecia inerte. Sorriu este e conduziu-a ao centro da roda, através do grupo dos que estavam sentados. Ela seguia de cabeça inclinada, escondendo o rosto pudibundo. Lado a lado, começaram a dançar, mal roçando as mãos e formando o primeiro pequenino segmento do círculo interior estacionário.
Ei-los agora todos, em pé, à espera de serem escolhidos. Rápidas, as mulheres, ocultando a testa no xaile, insinuavam-se junto deles e tomavam a mão do eleito. Dentro de pouco tempo já todos tinham dama. Fechara-se o círculo interior, com os homens e as mulheres aos pares, de mão dada.
- Venha, niña, venha! - disse Juana, fitando Kate com os seus olhos negros e brilhantes.
- Tenho medo - respondeu a irlandesa. E falava verdade.
Um dos de tronco nu atravessara a rua, afastando-se da multidão e detivera-se próximo da porta onde se achava Kate, que se calou e desviou a vista. E ficou esperando.
- Olhe, niña, um senhor que a procura. Venha, niña, venha!
A voz da criada descera de tom, capciosa, com esse apelo mágico das mulheres do povo. Os olhos pretos continuavam a cintilar-lhe estranhamente, fitos no rosto da patroa. Kate, quase hipnotizada, avançou em passos lentos e indecisos para o indivíduo que se mantinha à espera.
- Quer, realmente? - disse ela em inglês, bastante atrapalhada. E, com os seus dedos, tocou nos dedos dele.
Quase com indiferença, num gesto frouxo, a mão quente e máscula segurou os dedos de Kate e levou-a para a roda. Ela baixou a cabeça e desejou poder velar a face. No seu vestido branco e chapéu de palha verde, sentiu-se outra vez virgem, virgem juvenil. Aqueles homens concediam-lhe o dom de reencontrar a mocidade.
Acanhada, receosa, Kate procurou seguir a dança; mas escapava-lhe o ritmo, e os sapatos rígidos não a ajudavam. Movia-se confusamente.
Mas o seu par pegava-lhe na mão, embora com moleza, e oscilava, lento, o corpo todo, como um pêndulo de relógio. Dir-se-ia não fazer caso dela; contudo, segurava-lhe os dedos, de leve, numa pressão suavíssima.
Juana descartara-se dos sapatos e das meias. No rosto como uma máscara de lava, enrugado, escuro, as pupilas ardiam com a eterna chama da feminilidade, sombria e inextinguível. E já, com os pés, marcava o compasso da dança.
"Assim como o pássaro do sol fecunda a terra à alvorada tal uma fêmea morena sob os seus pés, com as dobras do ventre inclinadas aos pomos da geração, com os ovos de oiro, com os ovos que escondem o globo do sol nas águas do céu, na concha da terra que é o alvo do fogo do sangue, pisa tu também a terra e a terra conceberá qual a fêmea sob os pés do pássaro do sol. Pisa a terra, pisa a terra agachada e de asas encolhidas..."
A roda começou a girar e Kate foi-se movendo devagar entre dois homens silenciosos e absortos, cujos braços tocavam os seus. Um segurava-lhe os dedos, frouxa e brandamente, mas com transcendente afinidade. E o canto selvático subiu de novo como uma ave, e o tambor alterou o ritmo de modo incompreensível.
A outra roda era composta só de homens; Kate tinha a impressão de sentir nas costas o fulgor sombrio daqueles olhares. Os indivíduos já se não distinguiam, formavam como que uma única massa, em que ela própria se confundia.
Todos dançavam da mesma maneira, de cabeça baixa e olhar ausente, os homens absorvidos na sua virilidade, as mulheres na sua feminilidade. Somente o sexo prevalecia na sua mais alta concepção. Mar à superfície do globo movendo-se por cima dum mar nas entranhas da terra; águia evolucionando em silêncio sobre a própria sombra.
Kate sentia-se fundir nas águas revolutas de uma vida nova. Deixara de ser ela mesma para fazer parte de um todo, os seus desejos abismavam-se no mar do desejo colectivo. E assim o homem cujos dedos roçavam nos dela se engolfava no oceano de homens.
Lento mover de águas sobre águas, sem vestígio de espuma. Só a pura e deslizante conjunção.
Como era estranho ver-se submergida pelo desejo para além do próprio desejo, sentir-se integrada num corpo imenso para além do individualismo do corpo!
Não conhecia a cara do homem que lhe segurava nos dedos. Os seus olhos haviam cegado, e o rosto dele era um céu tenebroso. Mas do toque dos seus dedos nascia uma estrela, a estrela que os unia.
Os pés de Kate principiavam a marcar o compasso. Ela já sabia como deixar-se levar, abandonar a essência da sua vida, permitindo que lhe fugisse devagar, num escoamento rítmico, para o corpo negro da terra. Erecta, forte como o próprio esteio da vida, cedia no entanto a Seiva dessa força e fazia-a fluir para as raízes da terra.
Perdera a noção do tempo. A dança, porém, acalmava-se pouco a pouco, embora o ritmo permanecesse sempre o mesmo até ao fim.
Calaram-se as vozes, só o tambor continuou. Este, de súbito, produziu um rufo breve, e o silêncio foi geral. Logo as mãos se desataram, o baile parou de todo. O homem que a acompanhava sorriu-lhe e desapareceu. Jamais o reconheceria. Havia, no entanto, de lhe sentir a presença.
As mulheres afastaram-se, aconchegando os ombros com o xaile. Os homens dissimularam-se nas mantas. E Kate voltou à escuridão do lago.
- Já se vai embora, Niña? - perguntou Juana num tom que revelava certo descoroçoamento.
- Tenho de ir sem demora - replicou a patroa, estugando o passo. E a toda a pressa se encaminhou para as trevas do lago, com Juana na sua peugada, de sapatos e meias na mão.
Kate desejava reentrar em casa, com o seu novo segredo, o estranho segredo da feminilidade mais alta, a que ainda se não habituara. Precisava abandonar-se inteiramente àquele mistério.
Quase corria através do atalho interminável, na margem pedregosa e escura, apesar de a claridade das estrelas ser suficiente para revelar a forma sombria dos barcos que sulcavam a água mansa e turva. Noite eterna, sem horas! Kate não queria consultar o relógio, e até o virou no pulso a fim de não ver os ponteiros luminosos. Que o tempo a não governasse!
Ao adormecer, ouvia ainda o rufar do tambor, como um pulso que batesse nas entranhas da terra.

VIII
À entrada da casa de Kate elevava-se uma árvore enorme chamada cuenta por causa dos seus frutos pequeninos, redondos, duros e perfeitos de forma, que os indígenas apanhavam para fazer colares e, em especial, padre-nossos dos rosários. À noite, a rua ficava imersa em escuridão e só a queda das contas perturbava o silêncio.
Essas noites, que de começo pareciam calmas, amigáveis, encheram-se subitamente de terrores. Renascia o medo. Constituíra-se uma quadrilha de ladrões numa das aldeias do lago, cujos habitantes tinham má fama. Essa quadrilha, invisível durante o dia, compunha-se de pescadores e jornaleiros que, depois do anoitecer, montavam nos seus cavalos e iam assaltar casas solitárias ou mal guardadas.
O facto de saber que um bando de malfeitores rondava naquela região era o bastante para incitar os ladrões isolados a agir também. Fosse o que fosse que acontecesse, seria atribuído aos bandidos. Deste modo, mais de um indivíduo considerado honesto se deixava dominar pela cobiça e se escapulia à socapa armado de faca ou de pistola para se aproveitar igualmente da escuridão.
Kate sentia o terror condensar-se no silêncio da noite mexicana; silêncio tenebroso, tão profundo que se tornava sobressaltante, o som duma conta a cair. Deitada na cama, Kate escutava o mínimo rumor nas trevas densas. Ouviam-se ao longe apitos de polícia, daí a pouco passava a patrulha a cavalo. Mas, como acontece em quase toda a parte, a polícia nunca aparecia quando era precisa.
Aproximava-se a estação das chuvas, e o vento nocturno, vindo do lago, fazia sussurrar as árvores e abalava as portas desconjuntadas da casa. Os criados encafuavam-se nas suas dependências. No México, uma pequena distância isola-nos completamente desde que a noite desce; e ficamos perdidos na escuridão envolvente.
De manhã, Juana vinha da praça, com os seus olhos como gotas de tinta e, no rosto bronzeado, a expressão cansada dos entes submetidos ao medo. Logo de entrada, e na sua linguagem pouco compreensível, embrenhava-se na história de uma casa assaltada e de mulheres assassinadas. E a dona do hotel mandava dizer a Kate que não era prudente dormir sozinha em casa. Seria melhor passar a noite no hotel.
Toda a aldeia se encontrava sob estranha apreensão. Pairava no ar da noite um terror pânico. Renascia a confiança à claridade azul da manhã, mas ao anoitecer o sangue parecia coagular-se, a atmosfera tornava-se densa.
O medo, é claro, comunicava-se duns aos outros. Se Juana e a respectiva família não andassem cheias de pavor, Kate nunca sentiria medo, disso estava ela certa.
Ali não havia homens. Juana tinha dois filhos, Jesus, de vinte anos, e Ezequiel, de dezassete. Mas Jesus era quem tomava conta do motor da luz eléctrica, e tanto ele como Ezequiel dormiam na casa das máquinas. De modo que Juana ficava só com as duas filhas, Concha e Maria, no cubículo ao fundo da residência de Kate.
Antes, a plaza mantinha-se animada até às dez da noite, com gente a conversar ou a ouvir os moços tocadores de viola e o homem dos sorvetes a apregoar de contínuo: Nieve! Nieve!
Agora o largo esvaziava-se às nove horas. E havia ordem de prender quem fosse encontrado na rua depois das dez.
Kate corria para casa e trancava as portas. Não é fácil suportar o pânico de um povo meio bárbaro. O medo espalha-se no ar, envolve-nos, paralisa-nos a alma com a sensação de desgraça iminente, dum horror atroz.
Às dez horas cortavam a luz eléctrica, tudo ficava às escuras, e, deitada na cama, Kate sentia o sopro maléfico espraiando-se na atmosfera em vagas sucessivas.
Acudiam-lhe à memória todas as histórias arrepiantes passadas no país. E de novo pensava nessa gente de aspecto pacífico e sorriso doce. Mas o próprio Humboldt dissera a respeito dos mexicanos que nunca encontrara povo de sorriso tão suave e olhar tão feroz. Não que os olhos revelassem propriamente ferocidade; contudo, o seu negrume iluminava-se dum clarão frio, de cintilações de punhal nas trevas da noite, ao mesmo tempo que neles despertava a sede de homicídio.
Seres incompletos, não de todo criados, encontravam-se à mercê das velhas influências que jaziam como sedimento no fundo de cada um deles. Enquanto estavam calmos, eram simpáticos, bondosos, simples. Mas, se alguma coisa lhes revolvia as profundezas, logo se erguiam as nuvens tenebrosas de ódio e de morte.
Adivinhava-se-lhes na alma um ressentimento constante, como que uma ferida jamais cicatrizada. O ressentimento dos entes incapazes de conquistar sozinhos uma integridade individual fora do caos de paixões e forças mortíferas. Eram apanhados na engrenagem duma ansiedade ancestral como nos anéis duma serpente negra que lhes oprimisse o coração. Onerosa carga dum passado invencível.
E debaixo desse peso vivem e morrem, sem grande pena de morrer. Enredados nos elementos, não conseguem desenvencilhar-se. Queimados pelo sol excessivamente forte, sobrecarregados pela electricidade da atmosfera mexicana e atormentados pela erupção de vulcões que lhes rebentavam aos pés. Tremendos elementos do continente americano que tornam forte o corpo dos homens mas que esmagam a alma e impedem a sua elevação. E, se nalgum ela se eleva, os elementos maléficos a pouco e pouco a destroem, até que o homem se decompõe em ideias e actividades maquinais, num corpo cheio de energia mecânica mas de espírito morto e putrefacto.
Assim, esses seres incapazes de dominar os elementos, submetidos às forças do sol, da electricidade e das erupções vulcânicas, estão sujeitos a acessos de rancor e de ódio ardente à própria vida. Então, nada melhor do que enterrar uma faca num corpo vivo. Nenhuma volúpia iguala essa de cravar a lâmina e ver jorrar o sangue.
É a suprema satisfação duma raça presa a um passado de que não consegue libertar-se. Raça que não conhece Salvador nem Redenção. Quais mineiros enterrados vivos na derrocada duma mina, nações inteiras ficam sepultadas sob os escombros do passado - até que um salvador lhes mostre a saída para o sol.
Deitada na cama, Kate reflectia profundamente na'escuridão da noite, de ouvido atento aos menores ruídos que a enchiam de terror. Não podia refrear o coração; dir-se-ia que lho arrancavam, e o sofrimento era atroz. Pela primeira vez sentia medo físico, o sangue gelava-se-lhe nas veias.
Na Inglaterra, na Irlanda, durante a guerra e a revolução, conhecera o medo espiritual. O medo horrível da ralé; e durante a guerra as nações eram quase tudo ralé. O terror da canalha que pretendia acabar com a liberdade de pensamento em cada homem e em cada mulher. Era a ambição fria e colectiva de milhões de criaturas: aniquilar o espírito daqueles que resistiam e assim poderem iniciar a descida geral para as camadas interiores onde existe o culto do ouro e a volúpia de matar. A canalha.
Nesse tempo, Kate conhecera a agonia do medo social, como se a democracia fosse um polvo enorme que enlaçasse com os tentáculos quem lhe resistisse.
Agora o seu medo era doutra espécie. Sentia o coração doer-lhe, como se o arrancassem, o sangue parecia fugir-lhe das veias...
Dormitava, e acordou em sobressalto a um leve rumor. Sentou-se na cama. As portas que davam para a varanda tinham postigos, e estes encontravam-se escancarados a fim de arejar o quarto. Nessa abertura Kate distinguiu, recortando-se no céu escuro, uma forma negra semelhante a um gato que rastejasse no rebordo da janela.
- Que é? - perguntou ela maquinalmente.
No mesmo instante, aquilo moveu-se, deslizou para fora, e Kate percebeu que era o braço de um homem que tentava abrir o ferrolho interior da porta. Por uns segundos ficou paralisada, pronta a gritar. Então, como não pressentisse mais nada, inclinou-se e acendeu uma vela.
Era uma verdadeira agonia aquele terror pânico. Imobilizava-a, deslocava-lhe o coração... Ficou prostrada, no angustiante pavor nocturno. A vela projectava uma claridade lúgubre. Ouvia-se o ribombo longínquo de trovões. A noite era atroz, atroz, e o México horroroso.
Kate não conseguia dominar-se. "Estou à mercê disto", pensava. Sensação terrível, ver-se subjugada pelo medo.
"Que hei-de fazer?" perguntou a si mesma, reunindo coragem. Sabia que estava só.
Durante muito tempo sentiu-se incapaz de se mover. Então disse consigo, para se animar: "Creio no mal e não devo crer. O pânico e o assassínio são coisas que só sucedem quando perdemos o domínio de nós próprios. Não acredito verdadeiramente no mal. Acredito, sim, na existência dum poder supremo que nos comunica a sua força desde que tenhamos fé nele. O homem que queria entrar aqui não possuía essa força. Tentava ser maléfico, mas submeter-se-ia ao poder dominador."
Deste modo se ia tranquilizando, até que teve a coragem de se levantar e fechar os postigos. Em seguida, percorreu os quartos a fim de verificar se tudo estava trancado. E sentiu certo alívio ao compreender que temia tanto os escorpiões como a horrível sensação de pavor.
Depois de observar o fecho das cinco portas e das cinco janelas da ala de quartos comunicantes, Kate ficou encerrada nas trevas com a sua vela. Para o outro lado da casa, sala de jantar e cozinha, tinha de ir pela varanda.
Mais serena, embora ainda com o coração atormentado pelo medo, Kate reflectia. "Joachim afirmava que o mal provém de regressarmos aos costumes primitivos. É o que provoca roubos e assassínios. O tambor da noite de sábado evocava o ritmo da antiguidade e aquela dança selvagem era a velha forma de expressão. Regresso consciente à barbárie... Talvez a origem do mal..."
Mas logo intervinha o seu desejo de crer.
"Não! Temos de nos agarrar aos elos antigos, encontrar o impulso que nos relacionará de novo com o mistério do cosmos. Don Ramon tem razão. Ele deve ser um grande homem. Julguei que já não existissem grandes homens. Só grandes financeiros, grandes artistas, mas não grandes homens. Don Ramon deve ser um ente superior."
E Kate sentiu-se apaziguada a esta ideia.
Mas, logo que apagou a vela, surgiram clarões muito vivos através das fendas do postigo. Ribombaram trovões clamorosos, que pareciam afundar-se-lhe no coração. Kate sentia-se como que esmagada, na consciência duma tortura que a paralisou até de manhã e lhe deu a impressão de ser, ela própria, um destroço de naufrágio.
Por fim apareceu Juana, também com o ar de desenterrada, para lhe fazer a pergunta tradicional:
- Como passou a noite, Niña?
- Muito mal - respondeu Kate. E contou-lhe a história do gato preto e do braço do homem.
- Mire! - replicou Juana, sufocando a voz. - A inocentinha vai ser assassinada na cama. Não, niña, tem de passar a dormir no hotel. Não, Niña, não pode continuar com o postigo aberto. É impossível. Está a ver agora como é necessário que durma no hotel? Assim fazia a outra senhora.
- Não quero - declarou a patroa.
- Não quer, Niña? Ah, entonces, entonces... niña, vou dizer ao Ezequiel que venha dormir na soleira da porta, armado de revólver. Ele tem um revólver, pode ficar do lado de fora da porta, e a senhora já deixava a sua janela aberta, para lhe refrescar o quarto. Pobres de nós, mulheres, precisamos de um homem que tenha revólver. Não devemos estar sozinhas, toda a noite. Temos medo, e as crianças também têm medo. Imagine que um ladrão tenta arrombar o ferrolho da porta! Imagine! Não, niña, vai-se falar ao Ezequiel hoje mesmo, antes do meio-dia.
Ao meio-dia, Ezequiel compareceu, muito seguro de si. Era um rapaz, meio selvagem, mas dava largas passadas, empertigado e orgulhoso. A voz, na mudança própria da puberdade, tinha uma entoação estranha.
Ficou de pé, acanhado, ouvindo o que lhe recomendavam. Depois olhou para Kate com as pupilas negras e brilhantes, convicto do seu papel de salvador.
- Sim, sim - declarou. - Durmo aqui no corredor. Não tenha medo. Trago a pistola.
Saiu, e voltou com a arma, que era de cano comprido.
- Tem cinco cargas - participou, exibindo o revólver. - Se abrir a porta de noite, previna-me, porque, se eu vir mexer qualquer coisa, disparo os cinco tiros. Pum!, pum!
Pelo brilho do olhar do rapaz, Kate compreendeu quanto ele gostaria de fazer fogo sobre o que se movesse nas trevas. Não o preocupava a hipótese de ser alvejado por seu turno.
- niña - disse Juana - se voltar tarde para casa, depois de as luzes estarem apagadas, não se esqueça de chamar pelo Ezequiel. Senão... pum!, pum! Nunca se sabe quem pode ser a vítima.
Ezequiel dormiu sobre uma esteira na varanda de tijolos, defronte da porta de Kate. Enrolou-se num cobertor e conservou o revólver à mão. A senhora podia ficar de janela aberta. Na primeira noite, esteve muito tempo acordada por causa do ressonar estrondoso do rapaz. Nunca ela ouvira semelhante coisa! Que pulmões que ele devia ter! Dir-se-ia um som que viesse de outro mundo estranho e bárbaro. O barulho manteve-a desperta, mas havia naquilo um não sei quê de agradável. Algo semelhante a uma força bravia.

IX
Kate depressa se afeiçoou à negligente Juana e respectivas filhas. Concha tinha catorze anos. Era uma rapariga selvagem, entroncada, de cabeleira hirsuta que ela coçava constantemente. Maria, de onze anos, parecia um passarito, com olhos enormes que se diria absorverem toda a luz à sua volta.
Juana confessava que Jesus era filho doutro pai, mas o aspecto dos restantes fazia suspeitar ter cada um deles progenitor diferente. Toda a família, porém, mostrava igual despreocupação perante a vida. Viviam o dia-a-dia sem se importarem com o passado, nem com o presente, nem com o futuro. O dinheiro não lhes interessava. Assim que o recebiam gastavam-no, e logo o esqueciam.
Sem aspirações, sem objectivos, levavam existência absolutamente terre à terre no seu país sombrio e vulcânico. Não eram animais porque homens, mulheres e crianças não podem ser animais. Tal não nos foi concedido. Vai, e não voltes para trás - diz o Criador. Quando o homem tenta brutalmente tornar ao primeiro estado da evolução, fá-lo com espírito de crueldade.
Por isso os olhos negros daquela família revelavam certo medo, espanto e sofrimento. Angústia das criaturas humanas sem força para desenvolver as possibilidades do seu ser; incapazes de arrancar do caos a própria alma e indiferentes a qualquer outra vitória.
Também os brancos perdem a alma a pouco e pouco; mas conquistaram os mundos inferiores do metal e da energia e, graças às máquinas, lançam-se em corrida louca de roda da sua vacuidade.
Naquela família Kate encontrava algo de patético e de repugnante.
Desde que haviam aceitado niña como patroa, Juana e as filhas mostravam-se profundamente honestas. Honestas, a pontos de não tirarem uma única ameixa do fruteiro. E solícitas no serviço, de uma solicitude quase excessiva.
Viviam na sujidade, indiferentes ao ambiente. O chão era o seu caixote do lixo. Para ali arremessavam tudo o que consideravam inútil e ninguém se preocupava mais com isso. Pareciam 138
comprazer-se em viver no meio de pulgas e de trapos, de cascas de banana e caroços de manga. Um pedaço arrancado dum vestido - aí vai para o chão! Cabelos tirados do pente - chão com eles!
Kate não suportava aquilo. Afligia-a tamanha desordem, e o facto de ela se afligir divertiu imensamente a família mexicana. Mãe e filhas varreram então o pátio com uma vassoura de urze, até raspar a própria superfície da terra. Que engraçado, a niña preocupar-se com aquelas coisas!
Kate constituía para elas uma fonte de espanto e de divertimento. Não a consideravam pessoa de classe elevada. Era um ente meio incompreensível, meio espantoso.
Niña queria que o aquador lhe trouxesse todas as manhãs dois botes de água das nascentes térmicas para fazer abluções completas. Que esquisito! "Maria, diz ao aquador que corra a buscar água para a niña."
Quase se melindravam com o facto de ela se fechar no quarto para tomar banho. Era uma espécie de deusa, provocava-lhes alegria e admiração; mas devia ser sempre acessível. Kate depressa descobriu que um deus sempre acessível aos seres humanos passa bocados pouco invejáveis.
Não, aquilo não era nenhuma sinecura. De manhã começava o barulho da vassoura de urze lá fora. Kate deixava-se estar na cama, de portas fechadas e postigos abertos. Alvoroço no pátio. Alguém queria vender ovos. Onde está Niña? A dormir. O visitante não se retira e as conversas continuam.
O aquador! Ah, a água para o banho da niña. Está a dormir. "Não estou, não!" - grita Kate, enfiando o roupão e destrancando a porta. As pequenas entram com a tina, seguidas do aguadeiro com duas latas cheias de água quente. "Doze centavos, doze centavos para o aquador." No hay! Mais tarde, mais tarde. O homem vai-se embora, com a vara ao ombro. Kate fecha os postigos e começa a tomar banho.
- Niña!, Niña! - Que é?
- Quer ovos estrelados, quentes ou rancheros?
- Quentes.
- Café ou chocolate?
- Café.
- Ou prefere chá?
- Não, café.
O banho continua.
- Niña!
- Dize lá.
- Já não temos café. vou comprá-lo.
- Não é preciso. Tomarei chá.
- Não, niña, Eu vou. Espere por mim.
- Está bem, vai.
O primeiro almoço é na varanda. A mesa está posta, há pilhas de frutos, pão alvo e bolos.
- bom dia, niña. Como passou a noite? Maria, traze o café. vou meter os ovos na água. Oh, niña, eles não devem ficar cozidos... Meu Deus, que pés de Madona! Olhem, que bonitos!
E Juana inclina-se fascinada e, com o dedo escuro, toca nos pés acetinados de Kate metidos em leves sandálias seguras por uma única tira.
O dia tinha começado. Juana considera-se como inteiramente dedicada a Kate. Tão cedo quanto possível, expede as filhas para a escola. "Niña diz que é preciso ir para a escola. Não ouvem o que ela diz? Vamos, girem!"
No seu passo coxeante, Juana anda cá e lá na varanda, da cozinha para a mesa do almoço, transportando os pratos um por um. Depois, com grande espalhafato, começa a lavar a louça.
Manhã! O sol inunda o pátio, os cardeais e as folhas dilaceradas das bananeiras. Os pássaros voam em todos os sentidos com precipitação tropical. Na sombra densa das mangueiras passam índios vestidos de branco, semelhantes a espectros. Há um frémito de vida e, no entanto, o silêncio é opressivo. Os olhos deslumbram-se à claridade ofuscante, a alma sente-se oprimida.
Kate senta-se na varanda e finge coser. Surge um velho, segurando um ovo na mão, como qualquer símbolo. A patrona quereria comprá-lo por cinco centavos? Juana só dava quatro. De acordo? Onde está Juana?
Juana volta da praça com outras compras. O ovo! Quatro centavos! A conta das despesas. Entonces! Entonces! Luego! Luego. Ah, niña, no tengo memória.
Juana não sabia ler nem escrever. Todas as manhãs ia ao mercado, comprava uma porção de coisas de um ou dois centavos e todas as manhãs era preciso fazer contas. "Ah, onde é que nós íamos?
Não tenho memória nenhuma. Ora vejamos... Comprei três centavos de ocote... Quanto? Quanto soma agora, niña" Se faltava um centavo, ficava desolada e não falava noutra coisa. "Falta um centavo, niña? Sou estúpida, não sou? Mas eu dou-lhe um do meu dinheiro."
- Deixa lá, não penses mais nisso - dizia Kate.
- Mas eu quero pagar a diferença - insistia a mulher; e afastava-se, coxeando.
Uma hora depois elevava-se um grito no outro extremo da casa e Juana aparecia empunhando um ramo de salsa.
- Mire, niña! Compré perejil a un centavo. As contas estão certas agora?
- Estão - respondia Kate.
E a vida podia então retomar o seu curso. Existiam duas cozinhas: a anexa à sala de jantar, e a das criadas, numa espécie de barraca debaixo das bananeiras. Da varanda Kate via a abertura negra que fazia as vezes de janela na cozinha de Juana.
"Julgava Concha na escola!", disse Kate consigo mesma.
Mas não. No buraco escuro da janela distinguia-se o rosto moreno e a juba de Concha, espreitando para fora como um animal que saísse da toca, enquanto fazia as tortillas. Tortillas são uma espécie de filhos de milho. Preparam-nas batendo a massa na palma da mão até adquirir a lisura e leveza necessárias. Pouco depois do meio-dia via-se sair fumo pela janela: Concha lançava as tortillas cruas na frigideira de barro colocada sobre o lume.
Então Ezequiel aparecia, de manta sobre o ombro, chapéu de palha de grandes abas enroladas, pronto a comer as tortillas. No entanto, se trabalhava no campo, só chegava ao cair da noite. Sentava-se no degrau da porta e as mulheres serviam-no e iam-lhe buscar água como se ele fosse um rei. E ouvia-se-lhe a voz rouca dando ordens em tom calmo.
Porque, apesar do seu ar sereno e meigo, tomava uma entoação imperiosa desde que se dirigisse à mãe ou às irmãs. Prerrogativa de macho, que dava a Kate vontade de zombar do rapaz.
A hora da refeição era para Kate um dos seus tormentos. Apresentavam-lhe sopa muito quente e gordurosa, arroz apimentado, também gorduroso e fumegante, a inevitável carne nadando em gordura. Seguiam-se calabacitas, ou beringelas, salada, e o enorme cabaz de fruta. E, inundando tudo isso, o ardente sol tropical dos fins de Maio.
De tarde, o calor aumentava. Juana ia com as filhas lavar a loiça no lago. Agachadas sobre as pedras, agitavam na água cada prato, cada colher e cada garfo, e punham tudo a secar ao sol. Depois, enquanto Juana lavava uma ou duas rodilhas, as filhas banhavam-se no lago.
Jesus, o primogénito, costumava vir à tarde regar o jardim. Mas esse comia no hotel, onde prestava diversos serviços, trabalhando até às dez da noite por um salário de vinte e dois pesos, ou seja, onze dólares por mês. Usava camisa preta, e a cabeleira abundante tombava-lhe na testa baixa. Apesar da camisa fascista, possuía o espírito sarcástico e crítico dos socialistas, o espírito que vem do instinto de destruição.
Entre ele e a mãe existia pouca intimidade. Se Juana se encontrava em apuros, Jesus dava-lhe algum dinheiro mas, exceptuando o ténue laço de sangue que os unia, mostravam a maior indiferença um pelo outro.
Ezequiel tinha melhor tipo. Era esbelto, e tão direito que quase parecia arquear-se para trás. Tímido, arisco, orgulhoso, sentia-se mais responsável pela família. Não queria servir em hotéis. Não. Trabalhava nos campos, e tinha vaidade nisso: era labor de homem, não uma espécie de escravidão disfarçada.
Embora simples jornaleiro, não trabalhava para um patrão mas sim para a terra. E a terra, de certa maneira, era dele, pertencia-lhe...
Quando havia que fazer, chegava a ganhar um peso por dia. Se a terra estava seca, então procurava trabalho nas estradas, ainda que isso lhe não agradasse.
Mas nem sempre conseguia empregar-se. Durante dias, semanas, Ezequiel vagueava pelos arredores, sem nada que fazer. Quando o governo socialista dividiu as fazendas em lotes e os distribuiu pelos camponeses, coube-lhe um pedaço de terra fora da aldeia. O rapaz ia até lá e juntava pedras para construir um casebre. Cavava o chão tão profundamente quanto possível, mas não tinha amor a essa nesga de terreno que lhe viera parar às mãos de modo quase sobrenatural. Só lá ia de vez em quando, e sem nenhum entusiasmo.
Nos dias de trabalho regressava a casa por volta das seis horas e, cumprimentando Kate, timidamente, dirigia-se para o seu antro, onde, sentado no chão e de costas apoiadas à parede, dobrava tortillas umas sobre as outras e comia essa pasta elástica que tem o sabor de argamassa - pois o milho é primeiramente fervido com cal para largar a pele. Depois, dignava-se aceitar outra rima de fritos, que a irmã lhe apresentava numa folha de couve. Às vezes, Ezequiel tirava do tacho de barro um bocado de carne guisada que metia entre duas tortillas. Mas ingeria tudo rapidamente com uma espécie de indiferença. Aliás, os mexicanos parecem sempre indiferentes ao que comem.
Acabada a ceia, ia até à plaza, reunir-se aos homens. Havia ocasiões em que Kate, ao recolher a casa às nove horas, a encontrava quase deserta. Ezequiel estava no largo, Juana e Maria haviam desaparecido, e Concha dormia tal um molho de trapos no chão do pátio. Quando Kate a chamava, a pequena erguia a cabeça, espantada, entorpecida; depois, levantando-se como um cachorro, rastejava até ao portão.
Indiferença por tudo, até uns pelos outros. Juana lavava semanalmente uma camisa e um par de calças de algodão para cada um dos filhos, e aí terminavam os seus cuidados maternais. Nem se interessava averiguar qual o trabalho-de momento de Ezequiel. Sabia que arranjara emprego e isso lhe bastava. Contudo, de tempos a tempos, tinha ímpetos de amor materno, quando o rapaz era tratado injustamente, como às vezes acontecia. E, se o supunha doente, dominava-a um terror fatalista que só a abandonava depois de Kate intervir com qualquer remédio muito simples.
Semelhantes a animais. Mas os animais são perfeitos no seu isolamento e despreocupação; não se trata de indiferença, é que se bastam a si próprios. Ao passo que naquela família havia uma espécie de frustração, como se um torpor de aborrecimento a todos avassalasse.
As duas raparigas eram inseparáveis; andavam sempre atrás uma da outra. Concha arreliava de contínuo a inocente Maria de grandes olhos e esta debulhava-se em lágrimas. Ou então, no meio de uma fúria, ameaçavam-se com pedras, e Juana invectivava-as com súbita veemência, que logo se extinguia.
Estranha, aquela ferocidade repentina com que as pequenas arremessavam pedras, e não menos estranho, o esforço por não acertar. Kate notava a mesma coisa nos ataques selváticos que os garotos faziam uns aos outros nas margens do lago; atiravam calhaus com ar ameaçador, mas quase sempre falhavam o alvo.
Quase sempre, mas não sempre. Às vezes atingiam o adversário, que tombava como morto. Então os outros aproximavam-se, em silêncio temeroso, da vítima prostrada. De repente, o ferido erguia-se, com um esgar homicida no rosto, perseguindo o inimigo com uma pedra. E o inimigo fugia a sete pés.
Uma vontade perene de arreliar, de atormentar. O mesmo sucedia entre os Peles-Vermelhas. Mas o povo índio raramente recorria à violência, o que se não dava com os Mexicanos.
Kate, achando que devia fazer qualquer coisa pelas pequenas, dispensou-lhes uma hora por dia para lhes ensinar a ler, a redigir e a costurar. Maria queria aprender a ler; nisso mostrou boa vontade. Começaram bem, mas depressa a leve insistência de Kate em lhes chamar a atenção fez com que as alunas assumissem o tom de ironia peculiar ao continente americano. Ironia calma, invisível, malevolente, desejo de magoar.
- Não te debruces sobre mim, Concha. Põe-te direita.
- Porquê, niña Tem piolhos na cabeça?
A pergunta insolente era formulada com subtileza índia.
- Não! - respondia Kate subitamente irritada. - E agora vão-se embora! Afastem-se de mim.
E as pequenas retiravam-se, humilhadas.
Kate recebeu visitas de Guadalajara. Grande excitação! Mas enquanto tomava chá na varanda, Juana, Concha, Maria e Filipa, que era uma prima de dezasseis anos, sentaram-se no outro lado do pátio, bem à vista, com os belos cabelos soltos sobre os ombros, e, ostensivamente, puseram-se a catar piolhos umas às outras. Pareciam encantadas por exibirem a sua sordidez àqueles estrangeiros.
Kate desceu ao pátio.
- Se querem catar piolhos - disse em voz trémula de cólera - vão para onde ninguém as veja.
Atravessou um clarão de maldade os olhos negros de Juana, mas um instante depois, humilde e abjecta, a família retirava-se, de cabeleira ao vento, em direcção ao seu antro.
Juana comprazia-se em irritar Kate. Sentia assim uma espécie de poder sobre a Niña. É certo que temia um tanto essa irritação, mas era justamente o que desejava. De que servia uma niña que não lhe inspirasse algum receio?
Ah, raças escuras! Kate, como irlandesa, podia entrever um pouco do mistério. As raças escuras pertencem a um ciclo de humanidade já desaparecido; ficaram atrás, no fundo de um abismo donde nunca conseguiram sair. Jamais atingirão o nível dos brancos; limitam-se a segui-los de longe, como escravos.
Enquanto o homem branco avança, cheio de orgulho, as raças escuras cedem-lhe o passo e obedecem-lhe pela força. Se, porém, o branco hesita na sua marcha, logo os outros o atacam para o precipitar no abismo do passado.
É o que está a acontecer. Porque o branco, apesar de todas as farroncadas, duvida da sua própria supremacia.
E é a corrida veloz para a derrocada.
Desde a revolta de Kate perante a cena da caça aos piolhos, Juana voltou a servi-la com enternecedora solicitude. Embora indiferente a tudo, aquele ser das regiões inferiores não queria quebrar o débil fio que o ligava a Kate e ao mundo da claridade e do ar puro. Em suma, o desejo de Juana era conservar a sua niña, servir a sua Niña.
Ao mesmo tempo, parecia odiar a gente rica, branca e superior. De vez em quando contava a Kate histórias do passado. Então via-se-lhe uma expressão malévola nos olhos negros e na face acobreada, enquanto ela prosseguia: Usted sabe, niña, los gringos, los gringuitos llevan todo...
Os gringos são os Americanos, e Juana incluía Kate nos gringuitos, estrangeiros brancos. Aquela frase era nova insolência disfarçada, subtil...
- É possível - respondia Kate friamente. - Mas dize-me o que é que eu levo do México.
- Non, niña, non - Espalhava-se um sorriso de satisfação na cara de Juana quando ela conseguia atingir a outra mulher. Não me refiro a si, niña! - O protesto, porém, era pouco convincente.
Dir-se-ia que essas indígenas queriam obrigá-la a partir à força, insultando-a, rebaixando-a, até que a irlandesa, não menos impetuosa do que elas, abalasse dali num momento de fúria.
Oh, raças primitivas atrasadas!
Contudo, havia um lado patético na natureza daquela gente. Quando tinha catorze anos, Ezequiel trabalhara por conta de um sujeito que andava a construir casa. O homem prometera-lhe uma manta, mas ao fim de dois meses despediu-o sem cumprir a promessa. Foi uma desilusão bem amarga.
Kate nada tinha a ver com isso, mas Juana quase a acusava do facto.
Povo sem força para avançar, como podia deixar de ser explorado? Desde séculos que o exploravam cruelmente, e toda a sua energia se limitava a uma resistência malévola.
"Mas não pretendo explorá-los - dizia Kate consigo mesma.
- Pelo contrário, a minha vontade é dar-lhes mais do que recebo. São injustos os seus remoques. Nunca insultei estas criaturas. Faço a diligência de não as magoar e elas, deliberadamente, atacam-me e ficam radiantes quando me ferem."
No entanto, Kate procedia à sua maneira irlandesa: de vez em quando, isolava-se de Juana e das filhas. Porque, assim que as mandava para longe, desaparecia-lhes a malevolência e lembravam-se das ordens da niña. Se ela estava presente e amável, esqueciam-se de tudo. Esqueciam-se de varrer o pátio, de se apresentarem limpas, e só quando Kate as relegava para um canto é que tornavam a lembrar-se.
O filho Ezequiel tinha mais dignidade do que as mulheres.
Nunca fazia aqueles ataques insidiosos.
Quando a casa estava limpa e calma e o ar parecia purificado e a alma renovada, Kate sentia novamente amizade por essa família.
A sua azáfama, andando cá e lá, esvoaçando como pássaros; o estalo da massa das tortillas de encontro à palma da mão; o entusiástico esmagar de tomates e pimenta no tacho enquanto Juana preparava o molho; o barulho do balde no poço quando Jesus vinha regar...
Como isso era divertido! Assim devia ser tudo o que fizessem, ou então não o fariam. Não podiam fixar-se numa rotina. Jamais! Tudo devia ser alegre, variado, com uma pontinha de aventura. Era confusão, mas, no fim de contas, uma confusão viva, não uma coisa morta. Kate recordava-se dos seus criados britânicos nas cozinhas inglesas, tão maquinais e quase inumanos. Aqui era o extremo oposto.
Não havia disciplina nem método. Embora Juana e as filhas quisessem realmente fazer o que a niña desejava, só procediam conforme lhes apetecia. às vezes, Kate sentia-se angustiada. Mas, tanto quanto possível, ia suportando as extravagâncias daquela família. Tivera, por exemplo, de se habituar à vagabundagem da mesa de jantar, mesinha redonda cujo lugar era na varanda. Ao primeiro almoço, ficava discretamente debaixo das plantas, perto do salão; ao almoço da uma hora regressava à varanda; ao chá, ia para a relva do jardim, à sombra duma arvorezita. E, quanto à ceia, Juana deliberou então que a niña comesse os dois ovos e rancheros na própria casa de jantar, isolada a um canto da comprida mesa em que cabiam catorze pessoas.
Kate também nunca chegou a perceber o motivo por que, depois de lavarem a loiça na cozinha durante uns dias, se lembraram de repente de levar os pratos sujos para o lago, num cabaz, aos ombros de Concha. A não ser que achassem assim o trabalho mais divertido...
Crianças! Mas não inteiramente. Faltava-lhes a despreocupação da infância. Pressentia-se-lhes na alma qualquer coisa de sombrio, como que um peso que as forçava a resistir. Trabalhavam por acessos, podiam ser laboriosas; depois vinha a indolência e passavam horas estiradas no chão, como porcos. às vezes mostravam-se alegres, conversavam e riam, sentadas sobre a terra, em grupo, formando roda. Então, subitamente, contrariando a própria alegria, recaíam na mudez e na tristeza. Havia ocasiões em que, estando a trabalhar com afinco, atiravam para longe a ferramenta como se indignadas por terem cedido. Descuidados, versáteis nos seus amores, os homens, ao menos, passavam todo o tempo a resistir a si mesmos. Nunca procuravam o que pretendiam. As mulheres a que se aproximavam. E um rapaz e uma rapariga passeando às escuras na estrada marginal do lago, atiçando-se um ao outro, atormentando-se no meio de excitação, constituíam uma cena que deixava Kate pasmada - porque homens e mulheres não se cortejavam abertamente como fazem os brancos. E o riso súbito do macho, estranha voz de desejo reprimido, de obstinada relutância e paixão desesperada, parecia qualquer coisa a rasgar-se-lhe no peito, era um som que perdurava na memória.
Kate achava pesado o governo da casa. De certa maneira, eram como parasitas, queriam viver da sua vida, e rebaixá-la, rebaixá-la. Nalgumas ocasiões mostravam-se como pessoas meigas, generosas, encantadoras - até a fazerem novamente revoltar-se contra aquela indiferença reptilária. Indiferença e resistência.
Os servos forneciam a Kate a chave da vida indígena. Os homens sempre juntos, erectos, belos, equilibrando o chapéu enorme no alto da cabeça, quer sentados, quer de pé, quer de cócoras, numa impassibilidade de serpente; as mulheres sempre à parte, suaves, como que escondidas, estreitamente apertadas nos chailes escuros. Homens e mulheres pareciam voltar costas uns aos outros como se não quisessem ver-se mutuamente. Nenhuns galanteios, nenhum namoro. Apenas um olhar ocasional sombrio e rápido, sinal de desejo semelhante a um golpe de florete dado e recebido.
Elas, no conjunto, dir-se-iam inexperientes mas decididas a seguir o seu próprio desígnio: mudar de homens quando lhes apetecesse. E eles davam a impressão de não se preocuparem muito. Afinal eram as mulheres que pretendiam os homens.
As indígenas, com os negros cabelos tombados nas costas cheias e acobreadas, banhavam-se num canto da praia, geralmente em camisa ou com um saiote. Os homens mantinham-se alheados, nem sequer se dignavam olhar para a outra banda. Eram mulheres no banho, nada mais. Faziam parte, por assim dizer, da vida lacustre, como os peixes que ali nadavam. Concediam-lhes mesmo aquele ponto do lago, e elas sentavam-se nos baixios, isoladas como aves aquáticas, e molhavam a cabeça e os ombros com o auxílio duma cabaça.
Calmas, discretas, desprezadas fêmeas da classe dos peóns, seguindo o seu caminho envoltas no rebozo como num manto de trevas, ágeis, balançando as saias rodadas e gorjeando como passarinhos; ou paradas na borda do lago, com os cabelos longos a gotejarem; ou subindo lentamente a margem com uma pesada bilha de água ao ombro e um braço por cima da cabeça, a segurar a asa do cântaro; ou, especialmente nas tardes de domingo, sentadas à porta da casa, catando piolhos umas às outras. As moças possuidoras de cabeleira abundante e ondulada eram as que mais piolhos tinham. Aquilo representava um acto público meritório.
Parecia a Kate que esse país não podia originar nada de mais elevado do que a amizade entre os homens. O próprio casamento tinha pouca importância. E, embora se mostrassem meigos e protectores para com as crianças, os pais depressa as esqueciam.
A questão do sexo era no entanto a primordial, aquela que não devia ser omitida nem aflorada abertamente. O único mistério, muito maior do que o indivíduo. Este pouco contava.
Kate pasmava ao ver as choças de palha dos índios nas margens do lago. Ali fervilhavam crianças seminuas no chão de terra batida, no meio de trapos, de ossos, e do fedor de excremento humano.
Esse povo parecia não ter olfacto. E defronte do buraco que servia de porta à cabana, o homem impassível, magnífico, silencioso... Como era possível que tão belo exemplar de virilidade se mantivesse indiferente a tamanha porcaria?
Mas ali se conservava como inconsciente. Contudo, era um ser vivo - e forte. Nenhum homem no mundo pode transportar cargas tão pesadas como os índios do México. Kate vira já um deles passar na rua com um piano às costas, apenas seguro por uma correia em volta da testa.
Portanto, força não escasseava, mas sim energia. Nem sequer a classe dos artífices que imita a dos Estados Unidos demonstra ser enérgica. Têm os seus clubes, aperaltam-se e andam de braço dado com raparigas bonitas, mas percebe-se que tudo isso não passa de vulgar imitação.
Inesperadamente, a família de Kate aumentou. Um dia, chegou de Ocotlan uma formosa moça de 15 Primaveras, com grandes olhos bovinos, Maria del Carmen. Acompanhava-a Júlio, rapaz de vinte e dois anos. Tinham casado há pouco, e vinham de visita a Sayula. Júlio era primo de Juana. Poderiam dormir no pátio com ela e com as filhas? - perguntou Juana. Só se demorariam dois dias.
Kate ficou espantada. Maria Del Carmen devia ter sangue espanhol, a sua beleza evocava a Espanha. Parecia pertencer a um nível superior, mais educado, e no entanto ia dormir no chão com esse esposo juvenil... E ele, tão aprumado e de ar tão orgulhoso, nada possuía além duma velha manta.
- Há três quartos desocupados - disse Kate. - Que durmam num deles. - As camas eram de pessoa só. - Precisarão de mais cobertores?
Não. Bastaria a manta de Júlio.
Este era assentador de tijolos, isto é, ajudava a construir as paredes das casas de adobe. Nascera em Sayula e vinha ali de visita.
Essa visita, no entanto, prolongou-se. Júlio andava à procura de trabalho e só aparecia ao anoitecer. Maria del Carmen entretinha-se a amassar tortillas na cozinha de Juana e a conversar com as raparigas. À noite, o marido regressava e, sentado no chão, de costas apoiadas à parede, sempre impassível, deixava a mulher acariciar-lhe os cabelos negros e bastos.
Amavam-se, mas Júlio resistia ao seu amor.
Ela queria voltar para Ocotlan, onde era mais señorita do que em Sayula, mas o rapaz recusou. Não tinha dinheiro; o casal sustentava-se com cerca de cinco cêntimos por dia.
Quando Kate estava a coser, Maria del Carmen, que nem sabia talhar uma camisa, observava-a de olhos arregalados. Kate ensinou-lhe costura, comprou-lhe uns metros de chita e Maria del Carmen fez um vestido com as suas mãos.
Júlio arranjou trabalho, a um peso por dia, e a visita continuou. Kate achava o rapaz pouco terno para a mulher: sempre que lhe falava era em tom de comando. E Maria del Carmen não levava isso a bem e amuava um pouco.
Passaram-se semanas, e Juana começava a cansar-se dos parentes.
Por fim, Júlio arrendou uma casita de adobe só de um compartimento, ao preço de peso e meio por semana. Maria del Carmen ia ter o seu lar.
Kate viu-os juntar as suas coisas para a mudança. Consistia tudo numa esteira de palha, três tachos de barro, cinco peças de loiça, duas colheres de pau, uma faca e a manta de Julio. Nada mais.
Presenteou-os, então, Kate com um edredão de seda já um tanto puída, duas tigelas e diversos utensílios de cozinha. Foi uma alegria. A voz de Maria del Carmen soava no pátio em exclamações delirantes. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"
Na época das chuvas as noites são por vezes glaciais devido à evaporação, e os indígenas, transidos de frio, esperam pelo romper da manhã deitados sobre esteiras delgadas e abafados apenas com a ponta de um cobertor velho. A inércia natural fá-los suportar o sofrimento sem tentar minorá-lo. Podiam arranjar um colchão de palha de milho e cobrirem-se com folhas secas de bananeira. Mas não. Estendem-se numa esteira em cima da terra húmida e tiritam de frio noite após noite.
Maria del Carmen, porém, era um pouco mais civilizada. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"

CONTINUA

VII
Sayula era uma pequena estação balnear; não para ricos ociosos, porque o México os tem em pouca quantidade, mas para comerciantes de Guadalajara e gente que passeia nos fins-de-semana. E mesmo assim em reduzido número.
Havia, no entanto, dois hotéis, que vinham dos dias calmos de Don Porfirio, tal como a maior parte das vivendas fora da povoação, hoje fechadas e muitas delas abandonadas. Na aldeia viviam em perpétuo estado de terror. Acima de tudo temiam os bandidos e os bolchevistas.
Os bandidos eram apenas homens das localidades afastadas que, sem dinheiro, sem trabalho e sem esperança faziam ocasionalmente profissão do roubo e do assassínio. Habitavam nas suas aldeias selvagens até que as tropas os obrigavam a refugiar-se nas montanhas ermas ou nas regiões pantanosas.
Quanto aos bolchevistas, pareciam nascer do caminho de ferro. Onde houvesse carris, passageiros e carruagens de diferentes classes, aí despertava o espírito de rebelião e inveja; e o ferro e as demoníacas locomotivas ofegantes dir-se-ia engendrarem esses filhos do materialismo que são os bolchevistas.
Sayula possuía o seu ramal, com um comboio diário; a linha não cobria as despesas e lutava por se manter - mas já era bastante.
Sayula fora atingida pela loucura da América: o automóvel. Assim, como outrora os homens desejavam um cavalo e uma espada e as mulheres sonhavam com uma casa ou um camarote no teatro, a ambição actual é possuir um carro.
Era um desfile contínuo de "máquinas", de automóveis ligeiros e pesados na única estrada que ligava Sayula a Guadalajara. Uma esperança, uma fé, um objectivo: andar de carro, possuir um carro.
Quando Kate chegou à aldeia, falavam com certo alarme do regresso dos bandidos, mas a irlandesa não prestou a mínima atenção ao assunto. À noite, foi àplaza e misturou-se com o povo. Era um largo ornado de árvores imponentes, com um velho coreto no centro e um passeio em volta. No lado norte ficava o mercado. Mais além, passavam burros e camionetas nas ruas mal calcetadas.
A banda de música já não tocava em Sayula, a elegância já não se exibia naplaza, debaixo das árvores. Mas o pavimento ainda era bom e os bancos mais ou menos sólidos. Oh, tempos de Don Porfirio! Agora, só os peóns e os índios, com os seus fatos brancos e manta ao ombro, enchiam os bancos e monopolizavam a praça. É certo que se mantinha a lei que obrigava os peóns, naquelas paragens, a usar calças e não a espécie de ceroulas largas e flutuantes das suas lides rurais. Mas os peóns, por seu lado, também gostavam de envergar calças em vez daquele traje representativo do humilde labor do campo.
Eram eles, pois, quem dominava na praça, ora sentados em bancos ora passeando indolentes com a sua manta e de sandálias. Depois das seis horas, enchiam-se as barracas de comida quente, na rua calcetada do lado norte: ficava mais barato comer fora de casa e findava-se agradavelmente um dia de trabalho. As mulheres, de portas adentro, que ficassem a mastigar as suas tortillas; mas não provavam caldo, nem sopa, nem guisado. Nas tendas que vendiam tequila, instalavam-se homens, mulheres e rapazes defronte da mesa, em bancos, acotovelando-se uns aos outros. Também havia jogos de azar, pouco violentos, em que o banqueiro voltava uma carta e todos gritavam: Cinco de Espadas! Rei de Copas! Certa mulher corpulenta, imperturbável, de cigarro na boca e perigosa expressão nos olhos sombrios e baixos, vendia tequila, sentada ao escuro, toda a noite. O homem dos doces ficava de pé junto do seu balcão. Por terra, viam-se pequenos archotes metidos em latas, alumiando montes de mangas ou daquelas nauseabundas ameixas tropicais, encarnadas, que se liquidavam por dois ou três centavos a pilha, enquanto a vendedora, de saia larga, ou o vendedor, humilde e paciente, esperava acocorado o freguês, com aquela indiferença fatal e aquela submissão que tanto intrigam o estrangeiro. Ter ameixas para vender no valor de trinta cêntimos; amontoá-las no chão em pequenas pirâmides, cinco em cada uma; e esperar todo o dia e até de noite, de cócoras, a olhar de baixo para cima, para a cara do transeunte e possível comprador - eis, ao que parece, uma ocupação e um modo de vida.
Era vulgar encontrar-se ali um par de rapazes empunhando violas de tamanho diverso, em frente um do outro como dois galos combatentes; entoavam uma canção interminável, cantando em voz sumida as eternas baladas não muito musicais, dolorosas, extensas, audíveis apenas para os que estavam próximos. E assim se conservavam até enrouquecerem. Em volta, com mantas encarnadas, paravam homens altos e escuros, ouvindo por instantes e raramente contribuindo com um centavo.
Entre as barracas de comes e bebes estava um trio de duas violas e uma rabeca; dois dos músicos eram cegos e cantavam em diapasão alto, mas também de modo pouco audível. Dir-se-ia cantarem só para si, muito chegados um ao outro, como se a melancólica balada lhes repercutisse no peito.
A aldeia em peso comparecia naplaza. No entanto, raramente, muito raramente uma voz se erguia acima do murmúrio grave dos homens, do sussurro musical das mulheres, do gorjeio das crianças. Poucos movimentos apressados. O lento passeio dos homens de sandálias, chamadas huaraches, fazia um rumor leve de baratas a arrastarem-se no chão. Fora e dentro da multidão calma, corriam rapazes de pernas ao léu. Eram os irrequietos engraxadores, que pululam como moscas importunas naquela terra de gente descalça.
No lado sul, viam-se mesas e cadeiras no passeio: uma tentativa de café-esplanada- Aí, nos dias de semana, sentavam-se para tomar cerveja ou um copo de tequila as poucas pessoas que se atreviam a tamanha exibição - na maior parte estrangeiras. E ospeóns, imóveis nos bancos do último plano, observavam-nas com olhos de basilisco sob as largas abas do chapéu.
Mas ao sábado e ao domingo era quase festa. Chegavam carros aos solavancos, e, como pássaros exóticos, volteavam na plaza raparigas graciosas de vestidos vaporosos, faces empoadas e cabelos encaracolados. Passeavam de braço dado, trajadas de organdi vermelho ou azul, de musselina amarela ou cor-de-rosa, e com tal camada de pó-de-arroz na cara que a pele morena apresentava a brancura lívida dos palhaços ou dos cadáveres.
Adejavam como borboletas coloridas no meio da multidão de homens do povo. fortes e belos. Era restrito o número de mancebos elegantes que pudessem equiparar-se àquelas mocinhas. Contudo, havia alguns, de calças de flanela branca, casaco escuro, palhinhas e bengala. Fumavam cigarros com gesto afectado, falando um castelhano elegante, tão próximo quanto possível do original, e com o ar de que seriam dentro de doze meses sacrificados a algum deus mexicano depOis de estarem devidamente nédios e perfumados.
Ao sábado, os janotas, as raparigas e todos os que vinham de carro, da cidade - que, aliás, eram poucos - tentavam divertir-se nesse lúgubre país. Contratavam tocadores de viola e rabeca e a música de jazz elevava-se em acordes um tanto langorosos.
Debaixo das árvores da alameda, perto das mesas e das cadeiras do café, começavam pares a dançar à la mode. Os vestidos vermelhos, amarelos e azuis rodopiavam com as calças de flanela, donde saíam elegantes sapatos brancos guarnecidos de tiras de couro preto ou castanho. Algumas das saias de organdi encimavam meias e sapatos verdes, ou pernas à Ia nature com sapatos brancos. Os braços franzinos e morenos enlaçavam os ombros azuis-escuros dos moços, que sorriam com ar protector para as facezitas brancas e petulantes; sorrisos meigos, paternais e impregnados de sensualidade.
Mas a dança era no recinto da praça, e na praça erravam indolentes os homens do campo, ou então paravam em grupos, espiando os pares rodopiantes com os seus olhos pretos, misteriosos, impenetráveis. Em que pensariam? Sentiriam admiração, inveja, ou simplesmente uma silenciosa e fria oposição? Sim, oposição é que devia ser.
Esses camponeses de camisa branca e manta escarlate, airosamente dobrada ao ombro, passeavam devagar, quase ocultos sob o chapéu enorme e pesado, dispostos a não fazer caso dos que dançavam. Vagarosos, oscilando o corpo, eles moviam-se irresistivelmente no meio da dança como se a dança, no fim de contas, não existisse. E os rapazes de calças brancas, levando nos braços as damas de organdi, evolucionavam como podiam, fazendo o possível por se desviarem âospeóns impassíveis, que prosseguiam na sua conversa, sorrindo na alvura dos dentes, com um sangue-frio que gelava os próprios músicos. Nunca se tocavam, nunca se acotovelavam, dançarinos epeóns; no México ninguém se atropela involuntariamente. Mas a dança embatia contra a oposição invisível.
Os índios sentados nos bancos contemplavam também por momentos as evoluções dos bailarinos, após o que os fulminavam com a sua pesada indiferença. Misteriosa faculdade dos índios, tão densa e calma, para destruir a vida palpitante, para apagar qualquer foco de efervescência.
Na verdade, um simples bailarico de indígenas; mas dir-se-ia fechado dentro de quatro paredes. E o ritmo soava diferente, grave, com certa violência. Os dançarinos eram artífices, mecânicos ou carregadores da estação: gente meio citadina. Nenhuns trabalhadores do campo, ou quase nenhuns.
Por isso, passado não muito tempo, as borboletas de organdi e os moços de calças de flanela sucumbiram esmagados pela enorme passividade, pela resistência dos satânicos peóns.
Curiosa, radical oposição dos índios contra essa coisa a que chamamos espírito. É o espírito que leva as meninas petulantes a adejarem as suas asas de organdi como borboletas. É o espírito que vinca as calças de flanela dos rapazes e lhes dá aquele ar um tanto patético. Tentaram representar a elegância e a vontade do espírito moderno.
No entanto, como um peso de obsidiana, surge a recusa passiva do índio; compreende a vida, que participa do sangue, mas o espírito, que é superior, e é a marca da nossa civilização, isso ele repudia, barbaramente, torvamente. Só quando se torna operário ou lida com ofícios mecânicos é que o espírito moderno o visita.
E talvez seja esse repúdio do espírito moderno que faz o México ser o que é.
Kate ficou um tanto desconsolada ao ver findar o baile. Instalara-se numa das mesas, com Juana a servir-lhe de duena, para tomar um cálice de absinto.
Os carros regressavam à cidade em pequenos grupos. Sempre seria melhor irem juntos, para o caso de aparecerem salteadores. Dominava-os o receio dos bandidos, e os próprios janotas usavam revólver no bolso.
Como era sábado, parte da mocidade elegante ficou para o dia seguinte, na ideia de tomar banho e de se espojar ao sol.
A plaza estava cheia, e ao comprido das ruas que desembocavam no largo cintilavam inúmeros archotes, iluminando uma exposição de chapéus de palha, de esteiras, de pirâmides de laranjas.
Havia feira no domingo de manhã, de modo que, de repente, o largo ficou estuante de vida - densa e pesada energia vital. Os índios tinham vindo de todas as aldeias, trazendo consigo essa curiosa energia vital que parece zumbir cada vez mais profundamente quando eles se encontram reunidos.
Durante a tarde, com o vento a soprar do sul, as canoas, de casco preto e larga vela desfraldada, haviam atravessado as águas do lago, transportando indígenas e produtos para o mercado. Para formar essa multidão todas as aldeias da margem concorreram com os seus habitantes.
Despertava o instinto que impele os índios para a vida nocturna desde que se encontrem reunidos. Ninguém recolhia a casa, ninguém pensava em dormir, embora a feira só principiasse ao romper da manhã.
Cerca das nove horas, depois de terminada a dança, Kate ouviu o rufar de um tambor, ou coisa semelhante, e notou que uma chusma de peóns se dirigia para o lado mais escuro da praça, onde já se viam barracas e cestos enormes, em forma de ovo, encostados à parede.
Aquele som, que era como o latejar dum pulso de gigante repercutindo no ar da noite, juntou-se a nota prolongada de uma flauta, tocando uma espécie de melodia bárbara. Kate, que já ouvira falar dos cânticos selváticos dos peles-vermelhas do Arizona e do Novo
México, sentiu instantaneamente espalhar-se na atmosfera a eterna
paixão das raças pré-históricas com a sua intensa e complicada significação religiosa.
Olhou para Juana com ar interrogador.
- Que é isto? - perguntou.
- Músicos, cantores - foi a resposta evasiva.
- Mas muito diferentes dos outros - insistiu Kate.
- Sim, aquilo é coisa nova.
- Nova?
- Apareceu aqui há pouco tempo.
- Donde veio?
- Sabe-se lá! - volveu Juana, encolhendo os ombros.
- Quero ouvi-los.
- Olhe que são só homens.
- Podemos ficar um pouco afastadas.
E Kate dirigiu-se para o ajuntamento silencioso dos peóns. Estavam todos de costas para ela.
Subiu o degrau duma porta e viu, perto do muro florido de buganvílias, um espaço livre iluminado pelos archotes de madeira resinosa que um rapaz segurava nas duas mãos.
O tambor estava ao centro dessa clareira, e o homem que o rufava tinha o torso nu e calças de brancura imaculada atadas na cintura por uma faixa escarlate e aos tornozelos por cordão da mesma cor. Cingia-lhe a cabeça uma tira vermelha, donde se erguiam três penas rubras sobre a nuca. Na testa brilhava uma turquesa no meio dum círculo azul. O tocador de flauta também se apresentava sem camisa, mas dobrara sobre o ombro uma bela manta branca listada de azul e preto. Outros homens, despidos da cintura para cima, distribuíam folhetos aos espectadores, insinuando-se no meio da multidão. E todo o tempo, alta e pura, a estranha flauta de barro repetia a melodia bárbara, acompanhada pelo rufar do tambor.
Kate desceu do seu poleiro e avançou a medo. Queria um daqueles papéis. O homem deu-lho, sem sequer a olhar, e ela encaminhou-se para a luz a fim de o ler. Era uma espécie de balada, mas sem rimas, escrita em espanhol. No cimo da página via-se o desenho de uma águia cercada por uma serpente que mordia a cauda; curiosa variante do emblema mexicano, que é uma águia encarrapitada num cacto de folhas largas e com uma serpente nas garras. A certa distância, o círculo formado pelo réptil com a ave a meio dava a impressão dum olho.
Na região de Oeste
Em paz, para além dos raios brilhantes
Do Sol,
No silêncio onde nascem as águas
Dormia eu, Quetzalcoatl,
Na caverna chamada Olho Tenebroso, Vendo através do sol como por uma janela, Minha morada é lá. Onde as águas brotam E os ventos nascem.
Nas águas do Além
Levantei-me e vi uma estrela cadente.
E senti
Um sopro em minha face.
O sopro disse: Vai,
E eu vim.
Desci a longa encosta, Passei o monte do Sol, Até que descobri em baixo Os seios brancos da terra Do México: a esposa minha.
Entre os mares a minha esposa Penteia o cabelo preto Murmurando: Quetzalcoatl...
Adensara-se a multidão de homens; do centro elevava-se a luz avermelhada dos archotes, o ar embalsamava-se da resina de cedro. Kate não conseguia ver nada por causa dos chapéus enormes.
Calara-se a flauta; mas o tambor continuava as suas pancadas lentas, regulares, com o ritmo duma pulsação. Aquele som incompreensível, surdo, enfeitiçava o espírito, fazia bater o coração, aniquilava a vontade.
Os homens começaram a fatigar-se, sentando-se uns, acocorando-se outros, com o chapéu nos joelhos. Dir-se-ia um mar de cabeças escuras, ondulando para a frente, sobre os ombros vigorosos e levemente inclinados.
Perto do muro formara-se um círculo, com o tambor ao centro. O homem que o tocava, de dorso nu, premia o instrumento contra o corpo, e, curvado, as costas cintilavam-lhe ao clarão da noite. Junto dele estava outro homem a segurar uma bandeira que pendia duma haste leve. No campo azul do pano via-se o Sol amarelo a meio duma bola preta e, entre os quatro raios maiores, todos de ouro, quatro raios negros emergindo, o que fazia o astro assemelhar-se a uma roda que girasse num movimento ofuscante.
Sentara-se toda a gente. Os seis homens de tronco nu, que haviam distribuído os prospectos e convocado a multidão tinham já regressado e agora acomodavam-se de volta do rufador agachado. À direita deste ficava o porta-bandeira, à esquerda o flautista. Eram nove os do grupo, e faziam dez com o rapaz que vigiava os dois archotes, agora colocados em trípodes de cana.
A noite aprofundava-se em silêncio. Calara-se o murmúrio de vozes que enchia a praça. Debaixo das árvores, nos passeios, transitavam ainda pessoas indiferentes, mas pareciam estranhamente solitárias; figuras isoladas envoltas na luz pálida das lâmpadas eléctricas e fora do núcleo da vida.
No lado norte, as barracas continuavam iluminadas, faziam-se compras e vendas. Mas também essa banda do largo dava a impressão de estar muito longe da realidade actual.
Depois de os homens se sentarem, as mulheres avançaram timidamente e instalaram-se por sua vez na orla exterior do círculo. As saias rodadas espalhavam-se no chão, os xailes escuros moldavam-lhes a cabeça redonda e pequenina. Algumas, não ousando aproximar-se, ocuparam os bancos em volta. Outras, assim como muitos homens, haviam desaparecido aos primeiros rufos do tambor.
a plaza ficou como que deserta. Um grupo compacto rodeava o tambor; aquém, era o mundo externo, vazio e hostil. Somente na ruela escura que conduzia ao negrume do lago se viam alguns vultos erectos e silenciosos como fantasmas.
Sobre os degraus de uma porta, e com Juana a seus pés, Kate olhava fascinada para aqueles homens seminus iluminados pelo clarão dos archotes. Os seus corpos lisos e acobreados possuíam essa beleza índia um tanto assustadora. Os torsos magníficos, acetinados, desses entes silenciosos de cabeça um tanto pendida para a frente; os ombros largos, levemente descaídos pela inactividade da sua força; o tom quente e o brilho da pele; o peito vigoroso, tão viril e, no entanto, sem a dureza muscular dos homens brancos; as faces sombrias, impenetráveis, os bigodes pretos e as barbas ténues enquadrando o silêncio da boca fechada - tudo isto era impressionante, singular, despertava comoção.
Havia algo de reptilário na sua flexibilidade, qualquer coisa de terrível na sua mudez. Os troncos nus tinham a revesti-los uma sombra subtil, certa obscuridade misteriosa. Se fossem homens de raça branca seriam francamente musculados, com uma espécie de sinceridade no próprio físico. Aqueles não. A sua nudez só revelava a profundeza secreta da natureza, o eterno mistério.
Toda a gente se calara; intensificava-se o silêncio expectante, tornava-se tumular. Os homens de ombros nus mantinham-se imóveis, mergulhavam dentro de si mesmos e escutavam com os ouvidos do sangue. Sob as calças brancas atadas nos tornozelos, os pés metidos em Imaraches eram quase negros ao clarão dos archotes. Que pretendiam essas criaturas suaves e recolhidas e cuja importância, no entanto, era tão ponderosa, tão aliciante?
Kate sentia-se ao mesmo tempo atraída e repelida. Quase a fascinava o estranho poder magnético dos homens em círculo. Era como o núcleo duma vida nova, como uma jóia negra brilhando na escuridão. Mas parecia-lhe repulsiva aquela estranha opressão, esse afundar do espírito na terra, esse lento escoar duma água turva; repulsiva a densa e muda oposição ao rumo espiritual da gente branca. Contudo, ali e só ali a vida parecia arder com chama intensa.
No resto do mundo, Kate bem o sabia, tudo era vacuidade, esterilidade. Aqueles vultos avermelhados pelo clarão dos archotes representavam uma humanidade nova.
Kate sentia tudo isto, mas preferia manter-se à parte, evitar o contacto directo.
O porta-bandeira ergueu a cabeça como se fosse falar, mas não disse nada. Velho de barba e bigodes brancos a emoldurar-lhe os lábios escuros e carnudos, tinha a cara sulcada de rugas, como todas as pessoas idosas desse país. No entanto, os cabelos eram bastos, e o corpo ainda revelava força e virilidade. ! Os seus olhos negros olhavam sem ver. Talvez fosse realmente
cego; ou seria profunda abstracção que lhe dava aquele aspecto. Começou então a falar, numa voz lenta, clara e distante que parecia ser o eco dos últimos sons do tambor. - Homens, escutai-me! E vós. mulheres, escutai-me também. Há muito tempo, na calma da noite, o lago dirigiu um apelo aos seres humanos. Mas não existiam. Só os peixes pequeninos nadavam ao longo das margens, procurando fosse o que fosse, e os maiores saltavam fora de água para olhar em volta. Mas não existiam seres humanos.
Então um dos deuses de face velada saiu da água e subiu ao monte. (E o velho indicou a colina invisível nas trevas da noite. ao fundo da aldeia. Contemplou o Sol e viu através dele outro sol negro, o que criou o mundo e o absorverá de novo como uma gota de água. Disse: - Chegou o momento? - E quatro braços saíram do sol e da sua sombra surgiram homens. Viram os quatro braços no céu e principiaram a andar.
O deus do cimo da colina olhou para as montanhas e para as planícies e viu os homens anelantes, sequiosos. E disse-lhes: Vinde cá. Tendes aqui a minha água dulcificadora.
Correram como cães, de língua pendente, e ajoelharam-se na margem do lago. O deus do cimo da colina ouviu-os ofegar, de tanta água que beberam, e perguntou-lhes: - Não bebestes de mais? Ou tendes ainda os ossos secos?
í Os homens fizeram casas à borda do lago, e aquele que estava na colina, e que era um deus, ensinou-os a semear milho, feijão, e a construir barcos. Mas preveniu-os: - Nenhum barco vos salvará quando o sol negro deixar de estender os braços no céu.
O deus da colina disse ainda: - Sou Quetzalcoatl, aquele que vos humedece os lábios secos. Encho-vos o peito com um sopro do além-sol. Sou o vento que sai em turbilhão do centro da terra, sou o zéfiro que se enrosca como cobra em volta dos vossos pés, pernas e coxas, erguendo a cabeça da serpente do vosso corpo, onde reside a força humana. Tomai cuidado quando a serpente do corpo erguer a cabeça. Sou eu, Quetzalcoatl, que vos elevo, que vos elevo até ao sol das trevas, derradeira morada dos homens. Exceptuando o sol negro e os quatro braços nos céus, éreis ossos, e as estrelas eram ossos, e a Lua uma concha vazia numa praia seca, e o Sol amarelo uma taça vazia, semelhante ao crânio dum lobo. Portanto, tende cautela! Sem mim nada sois. Assim como eu nada sou sem o sol que está atrás do sol. Quando o sol de ouro estiver no zénite, dizei: Quetzalcoatl levante a sua mão e me abrigue dos raios, senão perecerei e a terra secará. Porque na palma da minha mão está a água da vida, e nas costas está a sombra da morte. Quando os homens me esquecem volto a mão e aparece a sombra da morte. Mas os homens esqueceram-me. Os seus ossos eram húmidos, o seu coração fraco. Quando a serpente do corpo erguia a cabeça, diziam assim: É a serpente amansada que nos obedece. E quando suportavam o ardor do sol, falavam nestes termos: O sol está zangado, quer absorver-nos; ofereçamos-lhe sangue de vítimas.
Os braços negros desapareceram do céu, e Quetzalcoatl envelhecia e lamentava-se, velando a face para a esconder dos homens.
Lamentava-se e dizia: - Deixai-me recolher à minha morada. Estou velho, quase sou apenas ossos. Os ossos triunfam em mim, o meu coração é uma cabaça vazia. Sinto-me cansado do México.
Então bradou ao sol negro, aquele de quem nunca se pronuncia o nome: - Estou um esqueleto, os Mexicanos renegam-me, de nada sirvo. Levai-me.
O sol negro estendeu o braço e elevou Quetzalcoatl até ao céu. Depois olhou em volta e viu a estrela de alva brilhando sem receio entre a vinda do sol dourado e a fuga da escuridão. E aquele, cujo nome jamais foi pronunciado, perguntou: - Quem és tu, guarda cintilante? E a estrela respondeu: - Outrora, no México, fui Quetzalcoatl. Agora contemplo as costas do sol amarelo e a face invisível da Lua, brilho entre o dia e a noite, esperando pela renovação.
E aquele cujo nome jamais foi pronunciado declarou: - Chegou a hora.
Assim o decretou, e eu a vós repito, homens e mulheres: Chegou a hora. Os que nos deixaram regressam, os que vieram retiram-se. Desejai a uns boas-vindas e dizei adeus aos outros.
Boas-vindas! Adeus!
O velho terminou o discurso com um grito meio sufocado, tal se na verdade se dirigisse aos deuses.
- Bienvenido! Bienvenido! Adiós! Adiós!
A própria Juana, sentada aos pés de Kate, bradava sem saber o que dizia:
- Bienvenido! Adiós! Adiós... n!
O último adios arrastou-se para rematar com o costumado "n". Começou o tambor a soar num ritmo insistente, e a flauta fez ouvir o seu grito estranho e longínquo. Tocavam a melodia singular que a irlandesa ouvira a princípio.
Então um dos homens do círculo entoou o hino. Cantava à maneira dos antigos Peles-Vermelhas, em voz contida mas intensa, como se se dirigisse à própria alma e não ao mundo exterior; como se cantasse na outra dimensão da existência dos homens, onde eles se encontram na extensão infinita que há dentro do eixo do nosso espaço rotativo. Espaço que, como o mundo, não pode deixar de se mover. E, tal o mundo, tem um eixo. O eixo do nosso espaço terreno, quando lá se penetra, é uma vastidão onde até as árvores vão e vêm, e a alma está à vontade no seu sonho, nobre e irrefutável.
O pulsar do tambor e o cântico íntimo arrastavam a alma para o centro do tempo, que é mais velho do que a própria velhice. O cantor começou por uma nota alta que repetiu demoradamente, fazendo-a percorrer ritmos subtis, na aparência desconexos, que o tambor acompanhava, e depois fê-la tremer, palpitar e dar um balanço brusco. Por muito tempo foi difícil distinguir qualquer melodia: dir-se-ia o uivo distante e esmaecido dum lobo. Era na verdade a música dos índios antigos.
Não se lhe encontrava harmonia, não se lhe reconhecia emoção. Apenas música, apenas um grito na noite, perfeito e longínquo. Mas ia direito à alma, à alma eterna e antiga, aí onde só pode a família humana encontrar-se em imediato contacto.
Kate logo o sentiu, e de forma fatídica. Seria inútil resistir, inútil fazer qualquer esforço. O som ia até ao âmago do ser, em que não existe esperança nem dor, mas só a paixão, que semelha uma ave no seu ninho, de asas dobradas, e a fé uma árvore de sombra.
Como o destino, como a sorte. A fé é a própria Árvore da Vida, inevitável, e os pomos estão ao nosso alcance: pomos dos olhos
- as pupilas -, pomos do queixo, do coração, dos seios, do ventre, dos quadris, dos joelhos, dos tornozelos. Que importa a mudança, a evolução? Somos a Árvore com os seus frutos, para todo o sempre. Verbum Sat.
Emudeceu o cantor, mas o tambor prosseguiu, fazendo vibrar subtilmente a membrana sensível da noite. Então, no círculo, de novo se elevou uma voz, depois outra, e outra, como pássaros voando de uma árvore. Elevaram-se as vozes - forte, pesado, intenso arrebatamento de vozes másculas, semelhante a um bando de aves negras subindo e descendo no ar, ao mesmo tempo. E cada ave preta dir-se-ia erguer-se do coração de um homem, do bosque secreto dos peitos masculinos.
Uma a uma, partiram também vozes da multidão, qual nova revoada de pássaros. A letra não tinha importância. Versos, palavras, simples sons - o canto era sempre o mesmo: violenta rajada saindo das cavernas do peito, das profundezas da alma eterna. Kate estava excessivamente intimidada para poder cantar, demasiadamente vencida pelas desilusões; mas sentia que o seu espírito fazia eco, seguindo o clamor do povo, tal a ave poliglota que imita as outras à noite. Contra sua vontade, Juana cantava também, num tom monótono, proferindo palavras à toa, inconsciente.
Os homens seminus começaram a agarrar as mantas: mantas brancas orladas de azul, com barras castanhas e franjas escuras. Da turba, levantou-se alguém, que se dirigiu para o lago. Voltou depois com um feixe de lenha trazido por um barco. Acendeu então uma fogueira pequena. Outro indivíduo se destacou para ir também buscar lenha: colocou-a diante do tambor, dentro do círculo, e fê-la crepitar. Por sua vez, uma mulher, descalça e de larga saia de algodão, principiou a arranjar a sua fogueira no meio das mulheres.
O ar estava bronzeado pelo clarão do lume; alastrava-se um fumo odorífero, como de incenso. Subiu e desceu o cântico, depois esmoreceu. Débil ecoou o som do tambor, e morreu por seu turno. No silêncio absoluto podia-se sentir a presença imóvel do lago sombrio.
Mais uma vez pulsou, vigoroso, o tambor. Um dos homens que estavam sentados, com o seu poncho branco debruado de azul e preto, ergueu-se de repente e, tirando as sandálias, começou a esboçar passos de dança, sem fazer o menor ruído. Dançava pesadamente, de pés nus, como se fosse enterrar-se pela terra abaixo. Sozinho, oscilava num ritmo estranho, calcando o chão, erguendo ora um ora outro dos joelhos de encontro às franjas escuras do poncho. Outro homem, encaminhando-se para o centro, pôs aí os huaraches, perto do fogo, e iniciou o seu bailado, enquanto o do tambor entoava um cântico selvático, tenebroso. Os restantes comparsas despojaram-se dos ponchos e, num instante, estavam de pé, e de torsos nus, descalços, repetiam aqueles passos que pareciam de ave. A luz da fogueira batia-lhes no peito, nas faces sombrias e extáticas.
"O que dorme acordará! O que dorme acordará! O que segue o trilho da serpente na poeira chegará ao seu posto; pelo trilho do pó chegará ao seu destino e revestir-se-á com a pele da serpente: revestir-se-á com a pele da serpente da terra, que é a criadora da pedra, que é criadora da pedra e do vigamento da terra; criadora do oiro, do ferro, da madeira da terra: dos ossos do pai da terra, da serpente do mundo, do coração do mundo que bate como uma cobra bate no pó, nos seus movimentos sobre a terra; do coração do mundo. Quem dorme despertará! Quem dorme despertará! Quem dorme despertará no caminho da serpente do pó da terra, da pedra da terra, do osso da terra."
O cântico parecia tomar novos voos audaciosos depois de baixar e sussurrar num último desmaio. Eram como ondas que se erguem do invisível, que tomam forma, alando-se, e desaparecem num rumor de aniquilamento. E os dançarinos, após terem girado em círculo, numa lenta e profunda absorção, iam um por um tomar o seu lugar, calcando o pó com os pés descalços, vagarosamente, e vagarosamente começavam a descrever uma ronda lenta em torno do fogo, sempre com os mesmos passos que se diria afundarem-se na terra. E o tambor ressoava numa palpitação sempre igual, como a de um coração humano. E o cântico soou e diminuiu, mais baixo e mais baixo numa espécie de extinção, para ainda uma vez tornar a levantar-se.
Até que os camponeses moços acharam impossível permanecer como estavam. Tiraram as sandálias, o chapéu, as mantas, e, timidamente, com pés inexperientes que no entanto conheciam as velhas pisadas, se puseram atrás dos outros bailadores e dançaram sem sair do seu lugar. Depressa o círculo revoluteante estabeleceu outro círculo de homens que envolveu o primeiro.
Então, de súbito, um dos dançarinos de tronco nu saiu do círculo interior e, penetrando no segundo, fê-lo girar em sentido inverso ao daquele. Deste modo houve duas rodas em movimento, uma dentro da outra, rodopiando em direcções opostas. Assim andaram, com o tambor e o canto, girando como rodas de sombra em volta do lume. Mas o lume extinguiu-se, e o tambor parou de repente, e os homens num instante se dispersaram, retrocedendo para os seus postos.
Houve silêncio, depois ouviu-se um murmúrio de vozes e risos. Kate muitas vezes pensara que o riso dos peóns se assemelhava a uma queixa; mas agora ele saltava como faúlhas invisíveis, bruscamente, da cinza das conversas.
Todos esperavam, e contudo ninguém se movia - até que o tambor vibrou de novo, como um sinal. Continuaram, porém, a tagarelar mas escutando, qual se possuíssem uma segunda consciência. Levantou-se um homem, desfez-se da manta e deitou lenha na fogueira central. Em seguida atravessou o grupo dos homens sentados e dirigiu-se ao das mulheres, que se apinhavam com as saias desdobradas. Esperou, sorrindo com ar abstracto, e logo se pôs de pé uma rapariga e se aproximou dele, apertando com a mão direita o xaile enrolado em torno da cabeça baixa. Estendendo a mão esquerda, pegou timidamente na do homem, que parecia inerte. Sorriu este e conduziu-a ao centro da roda, através do grupo dos que estavam sentados. Ela seguia de cabeça inclinada, escondendo o rosto pudibundo. Lado a lado, começaram a dançar, mal roçando as mãos e formando o primeiro pequenino segmento do círculo interior estacionário.
Ei-los agora todos, em pé, à espera de serem escolhidos. Rápidas, as mulheres, ocultando a testa no xaile, insinuavam-se junto deles e tomavam a mão do eleito. Dentro de pouco tempo já todos tinham dama. Fechara-se o círculo interior, com os homens e as mulheres aos pares, de mão dada.
- Venha, niña, venha! - disse Juana, fitando Kate com os seus olhos negros e brilhantes.
- Tenho medo - respondeu a irlandesa. E falava verdade.
Um dos de tronco nu atravessara a rua, afastando-se da multidão e detivera-se próximo da porta onde se achava Kate, que se calou e desviou a vista. E ficou esperando.
- Olhe, niña, um senhor que a procura. Venha, niña, venha!
A voz da criada descera de tom, capciosa, com esse apelo mágico das mulheres do povo. Os olhos pretos continuavam a cintilar-lhe estranhamente, fitos no rosto da patroa. Kate, quase hipnotizada, avançou em passos lentos e indecisos para o indivíduo que se mantinha à espera.
- Quer, realmente? - disse ela em inglês, bastante atrapalhada. E, com os seus dedos, tocou nos dedos dele.
Quase com indiferença, num gesto frouxo, a mão quente e máscula segurou os dedos de Kate e levou-a para a roda. Ela baixou a cabeça e desejou poder velar a face. No seu vestido branco e chapéu de palha verde, sentiu-se outra vez virgem, virgem juvenil. Aqueles homens concediam-lhe o dom de reencontrar a mocidade.
Acanhada, receosa, Kate procurou seguir a dança; mas escapava-lhe o ritmo, e os sapatos rígidos não a ajudavam. Movia-se confusamente.
Mas o seu par pegava-lhe na mão, embora com moleza, e oscilava, lento, o corpo todo, como um pêndulo de relógio. Dir-se-ia não fazer caso dela; contudo, segurava-lhe os dedos, de leve, numa pressão suavíssima.
Juana descartara-se dos sapatos e das meias. No rosto como uma máscara de lava, enrugado, escuro, as pupilas ardiam com a eterna chama da feminilidade, sombria e inextinguível. E já, com os pés, marcava o compasso da dança.
"Assim como o pássaro do sol fecunda a terra à alvorada tal uma fêmea morena sob os seus pés, com as dobras do ventre inclinadas aos pomos da geração, com os ovos de oiro, com os ovos que escondem o globo do sol nas águas do céu, na concha da terra que é o alvo do fogo do sangue, pisa tu também a terra e a terra conceberá qual a fêmea sob os pés do pássaro do sol. Pisa a terra, pisa a terra agachada e de asas encolhidas..."
A roda começou a girar e Kate foi-se movendo devagar entre dois homens silenciosos e absortos, cujos braços tocavam os seus. Um segurava-lhe os dedos, frouxa e brandamente, mas com transcendente afinidade. E o canto selvático subiu de novo como uma ave, e o tambor alterou o ritmo de modo incompreensível.
A outra roda era composta só de homens; Kate tinha a impressão de sentir nas costas o fulgor sombrio daqueles olhares. Os indivíduos já se não distinguiam, formavam como que uma única massa, em que ela própria se confundia.
Todos dançavam da mesma maneira, de cabeça baixa e olhar ausente, os homens absorvidos na sua virilidade, as mulheres na sua feminilidade. Somente o sexo prevalecia na sua mais alta concepção. Mar à superfície do globo movendo-se por cima dum mar nas entranhas da terra; águia evolucionando em silêncio sobre a própria sombra.
Kate sentia-se fundir nas águas revolutas de uma vida nova. Deixara de ser ela mesma para fazer parte de um todo, os seus desejos abismavam-se no mar do desejo colectivo. E assim o homem cujos dedos roçavam nos dela se engolfava no oceano de homens.
Lento mover de águas sobre águas, sem vestígio de espuma. Só a pura e deslizante conjunção.
Como era estranho ver-se submergida pelo desejo para além do próprio desejo, sentir-se integrada num corpo imenso para além do individualismo do corpo!
Não conhecia a cara do homem que lhe segurava nos dedos. Os seus olhos haviam cegado, e o rosto dele era um céu tenebroso. Mas do toque dos seus dedos nascia uma estrela, a estrela que os unia.
Os pés de Kate principiavam a marcar o compasso. Ela já sabia como deixar-se levar, abandonar a essência da sua vida, permitindo que lhe fugisse devagar, num escoamento rítmico, para o corpo negro da terra. Erecta, forte como o próprio esteio da vida, cedia no entanto a Seiva dessa força e fazia-a fluir para as raízes da terra.
Perdera a noção do tempo. A dança, porém, acalmava-se pouco a pouco, embora o ritmo permanecesse sempre o mesmo até ao fim.
Calaram-se as vozes, só o tambor continuou. Este, de súbito, produziu um rufo breve, e o silêncio foi geral. Logo as mãos se desataram, o baile parou de todo. O homem que a acompanhava sorriu-lhe e desapareceu. Jamais o reconheceria. Havia, no entanto, de lhe sentir a presença.
As mulheres afastaram-se, aconchegando os ombros com o xaile. Os homens dissimularam-se nas mantas. E Kate voltou à escuridão do lago.
- Já se vai embora, Niña? - perguntou Juana num tom que revelava certo descoroçoamento.
- Tenho de ir sem demora - replicou a patroa, estugando o passo. E a toda a pressa se encaminhou para as trevas do lago, com Juana na sua peugada, de sapatos e meias na mão.
Kate desejava reentrar em casa, com o seu novo segredo, o estranho segredo da feminilidade mais alta, a que ainda se não habituara. Precisava abandonar-se inteiramente àquele mistério.
Quase corria através do atalho interminável, na margem pedregosa e escura, apesar de a claridade das estrelas ser suficiente para revelar a forma sombria dos barcos que sulcavam a água mansa e turva. Noite eterna, sem horas! Kate não queria consultar o relógio, e até o virou no pulso a fim de não ver os ponteiros luminosos. Que o tempo a não governasse!
Ao adormecer, ouvia ainda o rufar do tambor, como um pulso que batesse nas entranhas da terra.

VIII
À entrada da casa de Kate elevava-se uma árvore enorme chamada cuenta por causa dos seus frutos pequeninos, redondos, duros e perfeitos de forma, que os indígenas apanhavam para fazer colares e, em especial, padre-nossos dos rosários. À noite, a rua ficava imersa em escuridão e só a queda das contas perturbava o silêncio.
Essas noites, que de começo pareciam calmas, amigáveis, encheram-se subitamente de terrores. Renascia o medo. Constituíra-se uma quadrilha de ladrões numa das aldeias do lago, cujos habitantes tinham má fama. Essa quadrilha, invisível durante o dia, compunha-se de pescadores e jornaleiros que, depois do anoitecer, montavam nos seus cavalos e iam assaltar casas solitárias ou mal guardadas.
O facto de saber que um bando de malfeitores rondava naquela região era o bastante para incitar os ladrões isolados a agir também. Fosse o que fosse que acontecesse, seria atribuído aos bandidos. Deste modo, mais de um indivíduo considerado honesto se deixava dominar pela cobiça e se escapulia à socapa armado de faca ou de pistola para se aproveitar igualmente da escuridão.
Kate sentia o terror condensar-se no silêncio da noite mexicana; silêncio tenebroso, tão profundo que se tornava sobressaltante, o som duma conta a cair. Deitada na cama, Kate escutava o mínimo rumor nas trevas densas. Ouviam-se ao longe apitos de polícia, daí a pouco passava a patrulha a cavalo. Mas, como acontece em quase toda a parte, a polícia nunca aparecia quando era precisa.
Aproximava-se a estação das chuvas, e o vento nocturno, vindo do lago, fazia sussurrar as árvores e abalava as portas desconjuntadas da casa. Os criados encafuavam-se nas suas dependências. No México, uma pequena distância isola-nos completamente desde que a noite desce; e ficamos perdidos na escuridão envolvente.
De manhã, Juana vinha da praça, com os seus olhos como gotas de tinta e, no rosto bronzeado, a expressão cansada dos entes submetidos ao medo. Logo de entrada, e na sua linguagem pouco compreensível, embrenhava-se na história de uma casa assaltada e de mulheres assassinadas. E a dona do hotel mandava dizer a Kate que não era prudente dormir sozinha em casa. Seria melhor passar a noite no hotel.
Toda a aldeia se encontrava sob estranha apreensão. Pairava no ar da noite um terror pânico. Renascia a confiança à claridade azul da manhã, mas ao anoitecer o sangue parecia coagular-se, a atmosfera tornava-se densa.
O medo, é claro, comunicava-se duns aos outros. Se Juana e a respectiva família não andassem cheias de pavor, Kate nunca sentiria medo, disso estava ela certa.
Ali não havia homens. Juana tinha dois filhos, Jesus, de vinte anos, e Ezequiel, de dezassete. Mas Jesus era quem tomava conta do motor da luz eléctrica, e tanto ele como Ezequiel dormiam na casa das máquinas. De modo que Juana ficava só com as duas filhas, Concha e Maria, no cubículo ao fundo da residência de Kate.
Antes, a plaza mantinha-se animada até às dez da noite, com gente a conversar ou a ouvir os moços tocadores de viola e o homem dos sorvetes a apregoar de contínuo: Nieve! Nieve!
Agora o largo esvaziava-se às nove horas. E havia ordem de prender quem fosse encontrado na rua depois das dez.
Kate corria para casa e trancava as portas. Não é fácil suportar o pânico de um povo meio bárbaro. O medo espalha-se no ar, envolve-nos, paralisa-nos a alma com a sensação de desgraça iminente, dum horror atroz.
Às dez horas cortavam a luz eléctrica, tudo ficava às escuras, e, deitada na cama, Kate sentia o sopro maléfico espraiando-se na atmosfera em vagas sucessivas.
Acudiam-lhe à memória todas as histórias arrepiantes passadas no país. E de novo pensava nessa gente de aspecto pacífico e sorriso doce. Mas o próprio Humboldt dissera a respeito dos mexicanos que nunca encontrara povo de sorriso tão suave e olhar tão feroz. Não que os olhos revelassem propriamente ferocidade; contudo, o seu negrume iluminava-se dum clarão frio, de cintilações de punhal nas trevas da noite, ao mesmo tempo que neles despertava a sede de homicídio.
Seres incompletos, não de todo criados, encontravam-se à mercê das velhas influências que jaziam como sedimento no fundo de cada um deles. Enquanto estavam calmos, eram simpáticos, bondosos, simples. Mas, se alguma coisa lhes revolvia as profundezas, logo se erguiam as nuvens tenebrosas de ódio e de morte.
Adivinhava-se-lhes na alma um ressentimento constante, como que uma ferida jamais cicatrizada. O ressentimento dos entes incapazes de conquistar sozinhos uma integridade individual fora do caos de paixões e forças mortíferas. Eram apanhados na engrenagem duma ansiedade ancestral como nos anéis duma serpente negra que lhes oprimisse o coração. Onerosa carga dum passado invencível.
E debaixo desse peso vivem e morrem, sem grande pena de morrer. Enredados nos elementos, não conseguem desenvencilhar-se. Queimados pelo sol excessivamente forte, sobrecarregados pela electricidade da atmosfera mexicana e atormentados pela erupção de vulcões que lhes rebentavam aos pés. Tremendos elementos do continente americano que tornam forte o corpo dos homens mas que esmagam a alma e impedem a sua elevação. E, se nalgum ela se eleva, os elementos maléficos a pouco e pouco a destroem, até que o homem se decompõe em ideias e actividades maquinais, num corpo cheio de energia mecânica mas de espírito morto e putrefacto.
Assim, esses seres incapazes de dominar os elementos, submetidos às forças do sol, da electricidade e das erupções vulcânicas, estão sujeitos a acessos de rancor e de ódio ardente à própria vida. Então, nada melhor do que enterrar uma faca num corpo vivo. Nenhuma volúpia iguala essa de cravar a lâmina e ver jorrar o sangue.
É a suprema satisfação duma raça presa a um passado de que não consegue libertar-se. Raça que não conhece Salvador nem Redenção. Quais mineiros enterrados vivos na derrocada duma mina, nações inteiras ficam sepultadas sob os escombros do passado - até que um salvador lhes mostre a saída para o sol.
Deitada na cama, Kate reflectia profundamente na'escuridão da noite, de ouvido atento aos menores ruídos que a enchiam de terror. Não podia refrear o coração; dir-se-ia que lho arrancavam, e o sofrimento era atroz. Pela primeira vez sentia medo físico, o sangue gelava-se-lhe nas veias.
Na Inglaterra, na Irlanda, durante a guerra e a revolução, conhecera o medo espiritual. O medo horrível da ralé; e durante a guerra as nações eram quase tudo ralé. O terror da canalha que pretendia acabar com a liberdade de pensamento em cada homem e em cada mulher. Era a ambição fria e colectiva de milhões de criaturas: aniquilar o espírito daqueles que resistiam e assim poderem iniciar a descida geral para as camadas interiores onde existe o culto do ouro e a volúpia de matar. A canalha.
Nesse tempo, Kate conhecera a agonia do medo social, como se a democracia fosse um polvo enorme que enlaçasse com os tentáculos quem lhe resistisse.
Agora o seu medo era doutra espécie. Sentia o coração doer-lhe, como se o arrancassem, o sangue parecia fugir-lhe das veias...
Dormitava, e acordou em sobressalto a um leve rumor. Sentou-se na cama. As portas que davam para a varanda tinham postigos, e estes encontravam-se escancarados a fim de arejar o quarto. Nessa abertura Kate distinguiu, recortando-se no céu escuro, uma forma negra semelhante a um gato que rastejasse no rebordo da janela.
- Que é? - perguntou ela maquinalmente.
No mesmo instante, aquilo moveu-se, deslizou para fora, e Kate percebeu que era o braço de um homem que tentava abrir o ferrolho interior da porta. Por uns segundos ficou paralisada, pronta a gritar. Então, como não pressentisse mais nada, inclinou-se e acendeu uma vela.
Era uma verdadeira agonia aquele terror pânico. Imobilizava-a, deslocava-lhe o coração... Ficou prostrada, no angustiante pavor nocturno. A vela projectava uma claridade lúgubre. Ouvia-se o ribombo longínquo de trovões. A noite era atroz, atroz, e o México horroroso.
Kate não conseguia dominar-se. "Estou à mercê disto", pensava. Sensação terrível, ver-se subjugada pelo medo.
"Que hei-de fazer?" perguntou a si mesma, reunindo coragem. Sabia que estava só.
Durante muito tempo sentiu-se incapaz de se mover. Então disse consigo, para se animar: "Creio no mal e não devo crer. O pânico e o assassínio são coisas que só sucedem quando perdemos o domínio de nós próprios. Não acredito verdadeiramente no mal. Acredito, sim, na existência dum poder supremo que nos comunica a sua força desde que tenhamos fé nele. O homem que queria entrar aqui não possuía essa força. Tentava ser maléfico, mas submeter-se-ia ao poder dominador."
Deste modo se ia tranquilizando, até que teve a coragem de se levantar e fechar os postigos. Em seguida, percorreu os quartos a fim de verificar se tudo estava trancado. E sentiu certo alívio ao compreender que temia tanto os escorpiões como a horrível sensação de pavor.
Depois de observar o fecho das cinco portas e das cinco janelas da ala de quartos comunicantes, Kate ficou encerrada nas trevas com a sua vela. Para o outro lado da casa, sala de jantar e cozinha, tinha de ir pela varanda.
Mais serena, embora ainda com o coração atormentado pelo medo, Kate reflectia. "Joachim afirmava que o mal provém de regressarmos aos costumes primitivos. É o que provoca roubos e assassínios. O tambor da noite de sábado evocava o ritmo da antiguidade e aquela dança selvagem era a velha forma de expressão. Regresso consciente à barbárie... Talvez a origem do mal..."
Mas logo intervinha o seu desejo de crer.
"Não! Temos de nos agarrar aos elos antigos, encontrar o impulso que nos relacionará de novo com o mistério do cosmos. Don Ramon tem razão. Ele deve ser um grande homem. Julguei que já não existissem grandes homens. Só grandes financeiros, grandes artistas, mas não grandes homens. Don Ramon deve ser um ente superior."
E Kate sentiu-se apaziguada a esta ideia.
Mas, logo que apagou a vela, surgiram clarões muito vivos através das fendas do postigo. Ribombaram trovões clamorosos, que pareciam afundar-se-lhe no coração. Kate sentia-se como que esmagada, na consciência duma tortura que a paralisou até de manhã e lhe deu a impressão de ser, ela própria, um destroço de naufrágio.
Por fim apareceu Juana, também com o ar de desenterrada, para lhe fazer a pergunta tradicional:
- Como passou a noite, Niña?
- Muito mal - respondeu Kate. E contou-lhe a história do gato preto e do braço do homem.
- Mire! - replicou Juana, sufocando a voz. - A inocentinha vai ser assassinada na cama. Não, niña, tem de passar a dormir no hotel. Não, Niña, não pode continuar com o postigo aberto. É impossível. Está a ver agora como é necessário que durma no hotel? Assim fazia a outra senhora.
- Não quero - declarou a patroa.
- Não quer, Niña? Ah, entonces, entonces... niña, vou dizer ao Ezequiel que venha dormir na soleira da porta, armado de revólver. Ele tem um revólver, pode ficar do lado de fora da porta, e a senhora já deixava a sua janela aberta, para lhe refrescar o quarto. Pobres de nós, mulheres, precisamos de um homem que tenha revólver. Não devemos estar sozinhas, toda a noite. Temos medo, e as crianças também têm medo. Imagine que um ladrão tenta arrombar o ferrolho da porta! Imagine! Não, niña, vai-se falar ao Ezequiel hoje mesmo, antes do meio-dia.
Ao meio-dia, Ezequiel compareceu, muito seguro de si. Era um rapaz, meio selvagem, mas dava largas passadas, empertigado e orgulhoso. A voz, na mudança própria da puberdade, tinha uma entoação estranha.
Ficou de pé, acanhado, ouvindo o que lhe recomendavam. Depois olhou para Kate com as pupilas negras e brilhantes, convicto do seu papel de salvador.
- Sim, sim - declarou. - Durmo aqui no corredor. Não tenha medo. Trago a pistola.
Saiu, e voltou com a arma, que era de cano comprido.
- Tem cinco cargas - participou, exibindo o revólver. - Se abrir a porta de noite, previna-me, porque, se eu vir mexer qualquer coisa, disparo os cinco tiros. Pum!, pum!
Pelo brilho do olhar do rapaz, Kate compreendeu quanto ele gostaria de fazer fogo sobre o que se movesse nas trevas. Não o preocupava a hipótese de ser alvejado por seu turno.
- niña - disse Juana - se voltar tarde para casa, depois de as luzes estarem apagadas, não se esqueça de chamar pelo Ezequiel. Senão... pum!, pum! Nunca se sabe quem pode ser a vítima.
Ezequiel dormiu sobre uma esteira na varanda de tijolos, defronte da porta de Kate. Enrolou-se num cobertor e conservou o revólver à mão. A senhora podia ficar de janela aberta. Na primeira noite, esteve muito tempo acordada por causa do ressonar estrondoso do rapaz. Nunca ela ouvira semelhante coisa! Que pulmões que ele devia ter! Dir-se-ia um som que viesse de outro mundo estranho e bárbaro. O barulho manteve-a desperta, mas havia naquilo um não sei quê de agradável. Algo semelhante a uma força bravia.

IX
Kate depressa se afeiçoou à negligente Juana e respectivas filhas. Concha tinha catorze anos. Era uma rapariga selvagem, entroncada, de cabeleira hirsuta que ela coçava constantemente. Maria, de onze anos, parecia um passarito, com olhos enormes que se diria absorverem toda a luz à sua volta.
Juana confessava que Jesus era filho doutro pai, mas o aspecto dos restantes fazia suspeitar ter cada um deles progenitor diferente. Toda a família, porém, mostrava igual despreocupação perante a vida. Viviam o dia-a-dia sem se importarem com o passado, nem com o presente, nem com o futuro. O dinheiro não lhes interessava. Assim que o recebiam gastavam-no, e logo o esqueciam.
Sem aspirações, sem objectivos, levavam existência absolutamente terre à terre no seu país sombrio e vulcânico. Não eram animais porque homens, mulheres e crianças não podem ser animais. Tal não nos foi concedido. Vai, e não voltes para trás - diz o Criador. Quando o homem tenta brutalmente tornar ao primeiro estado da evolução, fá-lo com espírito de crueldade.
Por isso os olhos negros daquela família revelavam certo medo, espanto e sofrimento. Angústia das criaturas humanas sem força para desenvolver as possibilidades do seu ser; incapazes de arrancar do caos a própria alma e indiferentes a qualquer outra vitória.
Também os brancos perdem a alma a pouco e pouco; mas conquistaram os mundos inferiores do metal e da energia e, graças às máquinas, lançam-se em corrida louca de roda da sua vacuidade.
Naquela família Kate encontrava algo de patético e de repugnante.
Desde que haviam aceitado niña como patroa, Juana e as filhas mostravam-se profundamente honestas. Honestas, a pontos de não tirarem uma única ameixa do fruteiro. E solícitas no serviço, de uma solicitude quase excessiva.
Viviam na sujidade, indiferentes ao ambiente. O chão era o seu caixote do lixo. Para ali arremessavam tudo o que consideravam inútil e ninguém se preocupava mais com isso. Pareciam 138
comprazer-se em viver no meio de pulgas e de trapos, de cascas de banana e caroços de manga. Um pedaço arrancado dum vestido - aí vai para o chão! Cabelos tirados do pente - chão com eles!
Kate não suportava aquilo. Afligia-a tamanha desordem, e o facto de ela se afligir divertiu imensamente a família mexicana. Mãe e filhas varreram então o pátio com uma vassoura de urze, até raspar a própria superfície da terra. Que engraçado, a niña preocupar-se com aquelas coisas!
Kate constituía para elas uma fonte de espanto e de divertimento. Não a consideravam pessoa de classe elevada. Era um ente meio incompreensível, meio espantoso.
Niña queria que o aquador lhe trouxesse todas as manhãs dois botes de água das nascentes térmicas para fazer abluções completas. Que esquisito! "Maria, diz ao aquador que corra a buscar água para a niña."
Quase se melindravam com o facto de ela se fechar no quarto para tomar banho. Era uma espécie de deusa, provocava-lhes alegria e admiração; mas devia ser sempre acessível. Kate depressa descobriu que um deus sempre acessível aos seres humanos passa bocados pouco invejáveis.
Não, aquilo não era nenhuma sinecura. De manhã começava o barulho da vassoura de urze lá fora. Kate deixava-se estar na cama, de portas fechadas e postigos abertos. Alvoroço no pátio. Alguém queria vender ovos. Onde está Niña? A dormir. O visitante não se retira e as conversas continuam.
O aquador! Ah, a água para o banho da niña. Está a dormir. "Não estou, não!" - grita Kate, enfiando o roupão e destrancando a porta. As pequenas entram com a tina, seguidas do aguadeiro com duas latas cheias de água quente. "Doze centavos, doze centavos para o aquador." No hay! Mais tarde, mais tarde. O homem vai-se embora, com a vara ao ombro. Kate fecha os postigos e começa a tomar banho.
- Niña!, Niña! - Que é?
- Quer ovos estrelados, quentes ou rancheros?
- Quentes.
- Café ou chocolate?
- Café.
- Ou prefere chá?
- Não, café.
O banho continua.
- Niña!
- Dize lá.
- Já não temos café. vou comprá-lo.
- Não é preciso. Tomarei chá.
- Não, niña, Eu vou. Espere por mim.
- Está bem, vai.
O primeiro almoço é na varanda. A mesa está posta, há pilhas de frutos, pão alvo e bolos.
- bom dia, niña. Como passou a noite? Maria, traze o café. vou meter os ovos na água. Oh, niña, eles não devem ficar cozidos... Meu Deus, que pés de Madona! Olhem, que bonitos!
E Juana inclina-se fascinada e, com o dedo escuro, toca nos pés acetinados de Kate metidos em leves sandálias seguras por uma única tira.
O dia tinha começado. Juana considera-se como inteiramente dedicada a Kate. Tão cedo quanto possível, expede as filhas para a escola. "Niña diz que é preciso ir para a escola. Não ouvem o que ela diz? Vamos, girem!"
No seu passo coxeante, Juana anda cá e lá na varanda, da cozinha para a mesa do almoço, transportando os pratos um por um. Depois, com grande espalhafato, começa a lavar a louça.
Manhã! O sol inunda o pátio, os cardeais e as folhas dilaceradas das bananeiras. Os pássaros voam em todos os sentidos com precipitação tropical. Na sombra densa das mangueiras passam índios vestidos de branco, semelhantes a espectros. Há um frémito de vida e, no entanto, o silêncio é opressivo. Os olhos deslumbram-se à claridade ofuscante, a alma sente-se oprimida.
Kate senta-se na varanda e finge coser. Surge um velho, segurando um ovo na mão, como qualquer símbolo. A patrona quereria comprá-lo por cinco centavos? Juana só dava quatro. De acordo? Onde está Juana?
Juana volta da praça com outras compras. O ovo! Quatro centavos! A conta das despesas. Entonces! Entonces! Luego! Luego. Ah, niña, no tengo memória.
Juana não sabia ler nem escrever. Todas as manhãs ia ao mercado, comprava uma porção de coisas de um ou dois centavos e todas as manhãs era preciso fazer contas. "Ah, onde é que nós íamos?
Não tenho memória nenhuma. Ora vejamos... Comprei três centavos de ocote... Quanto? Quanto soma agora, niña" Se faltava um centavo, ficava desolada e não falava noutra coisa. "Falta um centavo, niña? Sou estúpida, não sou? Mas eu dou-lhe um do meu dinheiro."
- Deixa lá, não penses mais nisso - dizia Kate.
- Mas eu quero pagar a diferença - insistia a mulher; e afastava-se, coxeando.
Uma hora depois elevava-se um grito no outro extremo da casa e Juana aparecia empunhando um ramo de salsa.
- Mire, niña! Compré perejil a un centavo. As contas estão certas agora?
- Estão - respondia Kate.
E a vida podia então retomar o seu curso. Existiam duas cozinhas: a anexa à sala de jantar, e a das criadas, numa espécie de barraca debaixo das bananeiras. Da varanda Kate via a abertura negra que fazia as vezes de janela na cozinha de Juana.
"Julgava Concha na escola!", disse Kate consigo mesma.
Mas não. No buraco escuro da janela distinguia-se o rosto moreno e a juba de Concha, espreitando para fora como um animal que saísse da toca, enquanto fazia as tortillas. Tortillas são uma espécie de filhos de milho. Preparam-nas batendo a massa na palma da mão até adquirir a lisura e leveza necessárias. Pouco depois do meio-dia via-se sair fumo pela janela: Concha lançava as tortillas cruas na frigideira de barro colocada sobre o lume.
Então Ezequiel aparecia, de manta sobre o ombro, chapéu de palha de grandes abas enroladas, pronto a comer as tortillas. No entanto, se trabalhava no campo, só chegava ao cair da noite. Sentava-se no degrau da porta e as mulheres serviam-no e iam-lhe buscar água como se ele fosse um rei. E ouvia-se-lhe a voz rouca dando ordens em tom calmo.
Porque, apesar do seu ar sereno e meigo, tomava uma entoação imperiosa desde que se dirigisse à mãe ou às irmãs. Prerrogativa de macho, que dava a Kate vontade de zombar do rapaz.
A hora da refeição era para Kate um dos seus tormentos. Apresentavam-lhe sopa muito quente e gordurosa, arroz apimentado, também gorduroso e fumegante, a inevitável carne nadando em gordura. Seguiam-se calabacitas, ou beringelas, salada, e o enorme cabaz de fruta. E, inundando tudo isso, o ardente sol tropical dos fins de Maio.
De tarde, o calor aumentava. Juana ia com as filhas lavar a loiça no lago. Agachadas sobre as pedras, agitavam na água cada prato, cada colher e cada garfo, e punham tudo a secar ao sol. Depois, enquanto Juana lavava uma ou duas rodilhas, as filhas banhavam-se no lago.
Jesus, o primogénito, costumava vir à tarde regar o jardim. Mas esse comia no hotel, onde prestava diversos serviços, trabalhando até às dez da noite por um salário de vinte e dois pesos, ou seja, onze dólares por mês. Usava camisa preta, e a cabeleira abundante tombava-lhe na testa baixa. Apesar da camisa fascista, possuía o espírito sarcástico e crítico dos socialistas, o espírito que vem do instinto de destruição.
Entre ele e a mãe existia pouca intimidade. Se Juana se encontrava em apuros, Jesus dava-lhe algum dinheiro mas, exceptuando o ténue laço de sangue que os unia, mostravam a maior indiferença um pelo outro.
Ezequiel tinha melhor tipo. Era esbelto, e tão direito que quase parecia arquear-se para trás. Tímido, arisco, orgulhoso, sentia-se mais responsável pela família. Não queria servir em hotéis. Não. Trabalhava nos campos, e tinha vaidade nisso: era labor de homem, não uma espécie de escravidão disfarçada.
Embora simples jornaleiro, não trabalhava para um patrão mas sim para a terra. E a terra, de certa maneira, era dele, pertencia-lhe...
Quando havia que fazer, chegava a ganhar um peso por dia. Se a terra estava seca, então procurava trabalho nas estradas, ainda que isso lhe não agradasse.
Mas nem sempre conseguia empregar-se. Durante dias, semanas, Ezequiel vagueava pelos arredores, sem nada que fazer. Quando o governo socialista dividiu as fazendas em lotes e os distribuiu pelos camponeses, coube-lhe um pedaço de terra fora da aldeia. O rapaz ia até lá e juntava pedras para construir um casebre. Cavava o chão tão profundamente quanto possível, mas não tinha amor a essa nesga de terreno que lhe viera parar às mãos de modo quase sobrenatural. Só lá ia de vez em quando, e sem nenhum entusiasmo.
Nos dias de trabalho regressava a casa por volta das seis horas e, cumprimentando Kate, timidamente, dirigia-se para o seu antro, onde, sentado no chão e de costas apoiadas à parede, dobrava tortillas umas sobre as outras e comia essa pasta elástica que tem o sabor de argamassa - pois o milho é primeiramente fervido com cal para largar a pele. Depois, dignava-se aceitar outra rima de fritos, que a irmã lhe apresentava numa folha de couve. Às vezes, Ezequiel tirava do tacho de barro um bocado de carne guisada que metia entre duas tortillas. Mas ingeria tudo rapidamente com uma espécie de indiferença. Aliás, os mexicanos parecem sempre indiferentes ao que comem.
Acabada a ceia, ia até à plaza, reunir-se aos homens. Havia ocasiões em que Kate, ao recolher a casa às nove horas, a encontrava quase deserta. Ezequiel estava no largo, Juana e Maria haviam desaparecido, e Concha dormia tal um molho de trapos no chão do pátio. Quando Kate a chamava, a pequena erguia a cabeça, espantada, entorpecida; depois, levantando-se como um cachorro, rastejava até ao portão.
Indiferença por tudo, até uns pelos outros. Juana lavava semanalmente uma camisa e um par de calças de algodão para cada um dos filhos, e aí terminavam os seus cuidados maternais. Nem se interessava averiguar qual o trabalho-de momento de Ezequiel. Sabia que arranjara emprego e isso lhe bastava. Contudo, de tempos a tempos, tinha ímpetos de amor materno, quando o rapaz era tratado injustamente, como às vezes acontecia. E, se o supunha doente, dominava-a um terror fatalista que só a abandonava depois de Kate intervir com qualquer remédio muito simples.
Semelhantes a animais. Mas os animais são perfeitos no seu isolamento e despreocupação; não se trata de indiferença, é que se bastam a si próprios. Ao passo que naquela família havia uma espécie de frustração, como se um torpor de aborrecimento a todos avassalasse.
As duas raparigas eram inseparáveis; andavam sempre atrás uma da outra. Concha arreliava de contínuo a inocente Maria de grandes olhos e esta debulhava-se em lágrimas. Ou então, no meio de uma fúria, ameaçavam-se com pedras, e Juana invectivava-as com súbita veemência, que logo se extinguia.
Estranha, aquela ferocidade repentina com que as pequenas arremessavam pedras, e não menos estranho, o esforço por não acertar. Kate notava a mesma coisa nos ataques selváticos que os garotos faziam uns aos outros nas margens do lago; atiravam calhaus com ar ameaçador, mas quase sempre falhavam o alvo.
Quase sempre, mas não sempre. Às vezes atingiam o adversário, que tombava como morto. Então os outros aproximavam-se, em silêncio temeroso, da vítima prostrada. De repente, o ferido erguia-se, com um esgar homicida no rosto, perseguindo o inimigo com uma pedra. E o inimigo fugia a sete pés.
Uma vontade perene de arreliar, de atormentar. O mesmo sucedia entre os Peles-Vermelhas. Mas o povo índio raramente recorria à violência, o que se não dava com os Mexicanos.
Kate, achando que devia fazer qualquer coisa pelas pequenas, dispensou-lhes uma hora por dia para lhes ensinar a ler, a redigir e a costurar. Maria queria aprender a ler; nisso mostrou boa vontade. Começaram bem, mas depressa a leve insistência de Kate em lhes chamar a atenção fez com que as alunas assumissem o tom de ironia peculiar ao continente americano. Ironia calma, invisível, malevolente, desejo de magoar.
- Não te debruces sobre mim, Concha. Põe-te direita.
- Porquê, niña Tem piolhos na cabeça?
A pergunta insolente era formulada com subtileza índia.
- Não! - respondia Kate subitamente irritada. - E agora vão-se embora! Afastem-se de mim.
E as pequenas retiravam-se, humilhadas.
Kate recebeu visitas de Guadalajara. Grande excitação! Mas enquanto tomava chá na varanda, Juana, Concha, Maria e Filipa, que era uma prima de dezasseis anos, sentaram-se no outro lado do pátio, bem à vista, com os belos cabelos soltos sobre os ombros, e, ostensivamente, puseram-se a catar piolhos umas às outras. Pareciam encantadas por exibirem a sua sordidez àqueles estrangeiros.
Kate desceu ao pátio.
- Se querem catar piolhos - disse em voz trémula de cólera - vão para onde ninguém as veja.
Atravessou um clarão de maldade os olhos negros de Juana, mas um instante depois, humilde e abjecta, a família retirava-se, de cabeleira ao vento, em direcção ao seu antro.
Juana comprazia-se em irritar Kate. Sentia assim uma espécie de poder sobre a Niña. É certo que temia um tanto essa irritação, mas era justamente o que desejava. De que servia uma niña que não lhe inspirasse algum receio?
Ah, raças escuras! Kate, como irlandesa, podia entrever um pouco do mistério. As raças escuras pertencem a um ciclo de humanidade já desaparecido; ficaram atrás, no fundo de um abismo donde nunca conseguiram sair. Jamais atingirão o nível dos brancos; limitam-se a segui-los de longe, como escravos.
Enquanto o homem branco avança, cheio de orgulho, as raças escuras cedem-lhe o passo e obedecem-lhe pela força. Se, porém, o branco hesita na sua marcha, logo os outros o atacam para o precipitar no abismo do passado.
É o que está a acontecer. Porque o branco, apesar de todas as farroncadas, duvida da sua própria supremacia.
E é a corrida veloz para a derrocada.
Desde a revolta de Kate perante a cena da caça aos piolhos, Juana voltou a servi-la com enternecedora solicitude. Embora indiferente a tudo, aquele ser das regiões inferiores não queria quebrar o débil fio que o ligava a Kate e ao mundo da claridade e do ar puro. Em suma, o desejo de Juana era conservar a sua niña, servir a sua Niña.
Ao mesmo tempo, parecia odiar a gente rica, branca e superior. De vez em quando contava a Kate histórias do passado. Então via-se-lhe uma expressão malévola nos olhos negros e na face acobreada, enquanto ela prosseguia: Usted sabe, niña, los gringos, los gringuitos llevan todo...
Os gringos são os Americanos, e Juana incluía Kate nos gringuitos, estrangeiros brancos. Aquela frase era nova insolência disfarçada, subtil...
- É possível - respondia Kate friamente. - Mas dize-me o que é que eu levo do México.
- Non, niña, non - Espalhava-se um sorriso de satisfação na cara de Juana quando ela conseguia atingir a outra mulher. Não me refiro a si, niña! - O protesto, porém, era pouco convincente.
Dir-se-ia que essas indígenas queriam obrigá-la a partir à força, insultando-a, rebaixando-a, até que a irlandesa, não menos impetuosa do que elas, abalasse dali num momento de fúria.
Oh, raças primitivas atrasadas!
Contudo, havia um lado patético na natureza daquela gente. Quando tinha catorze anos, Ezequiel trabalhara por conta de um sujeito que andava a construir casa. O homem prometera-lhe uma manta, mas ao fim de dois meses despediu-o sem cumprir a promessa. Foi uma desilusão bem amarga.
Kate nada tinha a ver com isso, mas Juana quase a acusava do facto.
Povo sem força para avançar, como podia deixar de ser explorado? Desde séculos que o exploravam cruelmente, e toda a sua energia se limitava a uma resistência malévola.
"Mas não pretendo explorá-los - dizia Kate consigo mesma.
- Pelo contrário, a minha vontade é dar-lhes mais do que recebo. São injustos os seus remoques. Nunca insultei estas criaturas. Faço a diligência de não as magoar e elas, deliberadamente, atacam-me e ficam radiantes quando me ferem."
No entanto, Kate procedia à sua maneira irlandesa: de vez em quando, isolava-se de Juana e das filhas. Porque, assim que as mandava para longe, desaparecia-lhes a malevolência e lembravam-se das ordens da niña. Se ela estava presente e amável, esqueciam-se de tudo. Esqueciam-se de varrer o pátio, de se apresentarem limpas, e só quando Kate as relegava para um canto é que tornavam a lembrar-se.
O filho Ezequiel tinha mais dignidade do que as mulheres.
Nunca fazia aqueles ataques insidiosos.
Quando a casa estava limpa e calma e o ar parecia purificado e a alma renovada, Kate sentia novamente amizade por essa família.
A sua azáfama, andando cá e lá, esvoaçando como pássaros; o estalo da massa das tortillas de encontro à palma da mão; o entusiástico esmagar de tomates e pimenta no tacho enquanto Juana preparava o molho; o barulho do balde no poço quando Jesus vinha regar...
Como isso era divertido! Assim devia ser tudo o que fizessem, ou então não o fariam. Não podiam fixar-se numa rotina. Jamais! Tudo devia ser alegre, variado, com uma pontinha de aventura. Era confusão, mas, no fim de contas, uma confusão viva, não uma coisa morta. Kate recordava-se dos seus criados britânicos nas cozinhas inglesas, tão maquinais e quase inumanos. Aqui era o extremo oposto.
Não havia disciplina nem método. Embora Juana e as filhas quisessem realmente fazer o que a niña desejava, só procediam conforme lhes apetecia. às vezes, Kate sentia-se angustiada. Mas, tanto quanto possível, ia suportando as extravagâncias daquela família. Tivera, por exemplo, de se habituar à vagabundagem da mesa de jantar, mesinha redonda cujo lugar era na varanda. Ao primeiro almoço, ficava discretamente debaixo das plantas, perto do salão; ao almoço da uma hora regressava à varanda; ao chá, ia para a relva do jardim, à sombra duma arvorezita. E, quanto à ceia, Juana deliberou então que a niña comesse os dois ovos e rancheros na própria casa de jantar, isolada a um canto da comprida mesa em que cabiam catorze pessoas.
Kate também nunca chegou a perceber o motivo por que, depois de lavarem a loiça na cozinha durante uns dias, se lembraram de repente de levar os pratos sujos para o lago, num cabaz, aos ombros de Concha. A não ser que achassem assim o trabalho mais divertido...
Crianças! Mas não inteiramente. Faltava-lhes a despreocupação da infância. Pressentia-se-lhes na alma qualquer coisa de sombrio, como que um peso que as forçava a resistir. Trabalhavam por acessos, podiam ser laboriosas; depois vinha a indolência e passavam horas estiradas no chão, como porcos. às vezes mostravam-se alegres, conversavam e riam, sentadas sobre a terra, em grupo, formando roda. Então, subitamente, contrariando a própria alegria, recaíam na mudez e na tristeza. Havia ocasiões em que, estando a trabalhar com afinco, atiravam para longe a ferramenta como se indignadas por terem cedido. Descuidados, versáteis nos seus amores, os homens, ao menos, passavam todo o tempo a resistir a si mesmos. Nunca procuravam o que pretendiam. As mulheres a que se aproximavam. E um rapaz e uma rapariga passeando às escuras na estrada marginal do lago, atiçando-se um ao outro, atormentando-se no meio de excitação, constituíam uma cena que deixava Kate pasmada - porque homens e mulheres não se cortejavam abertamente como fazem os brancos. E o riso súbito do macho, estranha voz de desejo reprimido, de obstinada relutância e paixão desesperada, parecia qualquer coisa a rasgar-se-lhe no peito, era um som que perdurava na memória.
Kate achava pesado o governo da casa. De certa maneira, eram como parasitas, queriam viver da sua vida, e rebaixá-la, rebaixá-la. Nalgumas ocasiões mostravam-se como pessoas meigas, generosas, encantadoras - até a fazerem novamente revoltar-se contra aquela indiferença reptilária. Indiferença e resistência.
Os servos forneciam a Kate a chave da vida indígena. Os homens sempre juntos, erectos, belos, equilibrando o chapéu enorme no alto da cabeça, quer sentados, quer de pé, quer de cócoras, numa impassibilidade de serpente; as mulheres sempre à parte, suaves, como que escondidas, estreitamente apertadas nos chailes escuros. Homens e mulheres pareciam voltar costas uns aos outros como se não quisessem ver-se mutuamente. Nenhuns galanteios, nenhum namoro. Apenas um olhar ocasional sombrio e rápido, sinal de desejo semelhante a um golpe de florete dado e recebido.
Elas, no conjunto, dir-se-iam inexperientes mas decididas a seguir o seu próprio desígnio: mudar de homens quando lhes apetecesse. E eles davam a impressão de não se preocuparem muito. Afinal eram as mulheres que pretendiam os homens.
As indígenas, com os negros cabelos tombados nas costas cheias e acobreadas, banhavam-se num canto da praia, geralmente em camisa ou com um saiote. Os homens mantinham-se alheados, nem sequer se dignavam olhar para a outra banda. Eram mulheres no banho, nada mais. Faziam parte, por assim dizer, da vida lacustre, como os peixes que ali nadavam. Concediam-lhes mesmo aquele ponto do lago, e elas sentavam-se nos baixios, isoladas como aves aquáticas, e molhavam a cabeça e os ombros com o auxílio duma cabaça.
Calmas, discretas, desprezadas fêmeas da classe dos peóns, seguindo o seu caminho envoltas no rebozo como num manto de trevas, ágeis, balançando as saias rodadas e gorjeando como passarinhos; ou paradas na borda do lago, com os cabelos longos a gotejarem; ou subindo lentamente a margem com uma pesada bilha de água ao ombro e um braço por cima da cabeça, a segurar a asa do cântaro; ou, especialmente nas tardes de domingo, sentadas à porta da casa, catando piolhos umas às outras. As moças possuidoras de cabeleira abundante e ondulada eram as que mais piolhos tinham. Aquilo representava um acto público meritório.
Parecia a Kate que esse país não podia originar nada de mais elevado do que a amizade entre os homens. O próprio casamento tinha pouca importância. E, embora se mostrassem meigos e protectores para com as crianças, os pais depressa as esqueciam.
A questão do sexo era no entanto a primordial, aquela que não devia ser omitida nem aflorada abertamente. O único mistério, muito maior do que o indivíduo. Este pouco contava.
Kate pasmava ao ver as choças de palha dos índios nas margens do lago. Ali fervilhavam crianças seminuas no chão de terra batida, no meio de trapos, de ossos, e do fedor de excremento humano.
Esse povo parecia não ter olfacto. E defronte do buraco que servia de porta à cabana, o homem impassível, magnífico, silencioso... Como era possível que tão belo exemplar de virilidade se mantivesse indiferente a tamanha porcaria?
Mas ali se conservava como inconsciente. Contudo, era um ser vivo - e forte. Nenhum homem no mundo pode transportar cargas tão pesadas como os índios do México. Kate vira já um deles passar na rua com um piano às costas, apenas seguro por uma correia em volta da testa.
Portanto, força não escasseava, mas sim energia. Nem sequer a classe dos artífices que imita a dos Estados Unidos demonstra ser enérgica. Têm os seus clubes, aperaltam-se e andam de braço dado com raparigas bonitas, mas percebe-se que tudo isso não passa de vulgar imitação.
Inesperadamente, a família de Kate aumentou. Um dia, chegou de Ocotlan uma formosa moça de 15 Primaveras, com grandes olhos bovinos, Maria del Carmen. Acompanhava-a Júlio, rapaz de vinte e dois anos. Tinham casado há pouco, e vinham de visita a Sayula. Júlio era primo de Juana. Poderiam dormir no pátio com ela e com as filhas? - perguntou Juana. Só se demorariam dois dias.
Kate ficou espantada. Maria Del Carmen devia ter sangue espanhol, a sua beleza evocava a Espanha. Parecia pertencer a um nível superior, mais educado, e no entanto ia dormir no chão com esse esposo juvenil... E ele, tão aprumado e de ar tão orgulhoso, nada possuía além duma velha manta.
- Há três quartos desocupados - disse Kate. - Que durmam num deles. - As camas eram de pessoa só. - Precisarão de mais cobertores?
Não. Bastaria a manta de Júlio.
Este era assentador de tijolos, isto é, ajudava a construir as paredes das casas de adobe. Nascera em Sayula e vinha ali de visita.
Essa visita, no entanto, prolongou-se. Júlio andava à procura de trabalho e só aparecia ao anoitecer. Maria del Carmen entretinha-se a amassar tortillas na cozinha de Juana e a conversar com as raparigas. À noite, o marido regressava e, sentado no chão, de costas apoiadas à parede, sempre impassível, deixava a mulher acariciar-lhe os cabelos negros e bastos.
Amavam-se, mas Júlio resistia ao seu amor.
Ela queria voltar para Ocotlan, onde era mais señorita do que em Sayula, mas o rapaz recusou. Não tinha dinheiro; o casal sustentava-se com cerca de cinco cêntimos por dia.
Quando Kate estava a coser, Maria del Carmen, que nem sabia talhar uma camisa, observava-a de olhos arregalados. Kate ensinou-lhe costura, comprou-lhe uns metros de chita e Maria del Carmen fez um vestido com as suas mãos.
Júlio arranjou trabalho, a um peso por dia, e a visita continuou. Kate achava o rapaz pouco terno para a mulher: sempre que lhe falava era em tom de comando. E Maria del Carmen não levava isso a bem e amuava um pouco.
Passaram-se semanas, e Juana começava a cansar-se dos parentes.
Por fim, Júlio arrendou uma casita de adobe só de um compartimento, ao preço de peso e meio por semana. Maria del Carmen ia ter o seu lar.
Kate viu-os juntar as suas coisas para a mudança. Consistia tudo numa esteira de palha, três tachos de barro, cinco peças de loiça, duas colheres de pau, uma faca e a manta de Julio. Nada mais.
Presenteou-os, então, Kate com um edredão de seda já um tanto puída, duas tigelas e diversos utensílios de cozinha. Foi uma alegria. A voz de Maria del Carmen soava no pátio em exclamações delirantes. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"
Na época das chuvas as noites são por vezes glaciais devido à evaporação, e os indígenas, transidos de frio, esperam pelo romper da manhã deitados sobre esteiras delgadas e abafados apenas com a ponta de um cobertor velho. A inércia natural fá-los suportar o sofrimento sem tentar minorá-lo. Podiam arranjar um colchão de palha de milho e cobrirem-se com folhas secas de bananeira. Mas não. Estendem-se numa esteira em cima da terra húmida e tiritam de frio noite após noite.
Maria del Carmen, porém, era um pouco mais civilizada. "Que bom! Que bom! Tenho um edredão!"

 

 

                              CONTINUA

 

 

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