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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SOLIDÃO DO DUQUE / Dama Beltrán
A SOLIDÃO DO DUQUE / Dama Beltrán

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

A vida libertina do futuro duque de Rutland finaliza após bater-se em um duelo de honra com um marido enganado. Envergonhado pelas sequelas do dito desafio, decide abandonar Londres e partir para Haddon Hall, o aprazível lugar onde cresceu, albergando a esperança de encontrar a paz que tanto lhe urge obter, entretanto, a chegada de uma notícia inesperada altera essa suposta calma e provoca que o duque se embebede. Face aos conselhos de seus próximos decide montar a cavalo e galopar por seus domínios. Quando abre os olhos depois de uma desafortunada queda, descobre que uma mulher o esteve cuidando em algum lugar afastado e escondido de suas terras. Seu nome, Beatrice, e seu único desejo, viver em solidão o resto de sua vida.
Querido(a) leitor(a), quero explicar que o duque de Rutland existe, embora acredite que nenhum se chamou William até agora. Também quero comentar que Haddon Hall é real e que se encontra no condado de Derbyshire. Todo o resto é produto da minha imaginação. Esclarecido isto, espero que desfrute com a leitura que guardam estas páginas.

 

 

 

 

 

 

Londres, 1865. Clube de cavalheiros Reform.

? Desafio-o, senhor!

Com essas palavras, um homem de baixa estatura, com um pouco de peso a mais e vestido com um imaculado traje cinza, atirou uma luva sobre a mesa em que se jogava uma partida de cartas. William arqueou as escuras sobrancelhas e olhou a quem o desafiava com certa incredulidade. Deu-se conta o pobre infeliz que se se levantasse de seu assento o superaria em altura um pouco mais de 30 centímetros?

? Pela honra de quem? ? Perguntou William redirecionando seus olhos para as cartas e apertando o charuto em seus lábios. Estavam sendo tão habituais esses desafios que já não lhe produziam alteração alguma.

? Pela honra de minha esposa, lady Juliette Blatte ? respondeu o homem cheio de cólera ao ver que o aristocrata não parecia se afetar pelo que ele esperava morrer de vergonha e de dor.

? Juliette?

A familiaridade com a qual o futuro duque de Rutland falou de sua mulher fez com que o pequeno corpo vibrasse de desespero e fúria. William, sem apartar a vista das cartas que tinha em sua mão esquerda, franziu o cenho e levou a outra palma para a escassa barba que cobria seu rosto.

? Disse-me que enviuvou faz algo mais de um ano ? continuou com voz serena e sem interesse por continuar a conversação.

? Acusa-a também de mentirosa? ? As bochechas do desonrado se encheram de um vermelho intenso.

O homem inclusive se elevou nas pontas dos pés para tentar, em vão, captar a atenção do amante de sua esposa. Entretanto, ninguém fez nada, nem William nem os outros jogadores. Se a cólera que o tinha conduzido até ali era inimaginável, observar que o próximo duque de Rutland continuava com sua pose de tranquilidade enquanto alegava que se deitou com sua esposa por ter sido enganado, provocou-lhe tal demência que esteve a ponto de equilibrar-se sobre este e lhe golpear com força.

? Acredito que sua querida Juliette mentiu a ambos ? disse William após manter-se em silêncio uns minutos. ? O duelo deveria se dirigir a ela. Mas se me permite um conselho, antes de enfrentar uma possível morte, agarraria sua esposa e lhe daria uns bons açoites com o cinturão. Não se pode enganar com falácias a homens como nós, sobretudo porque nestes momentos cavalheiro, encontro-me tremendamente aflito... ? comentou com zombaria e sem subir nenhuma nota em seu tom de voz.

Tomou outra intensa imersão do charuto e depois de jogar o ar esperou que o desventurado homem fosse sensato e partisse com a cabeça baixa, mas respirando.

? Amanhã, em Hyde Park, à alvorada. Levarei as minhas testemunhas e um médico, você apareça com quem desejar. ? O homem golpeou suas botas, girou-se e inclinando-se ligeiramente se despediu dos pressente antes de afastar-se.

Durante um bom momento o sigilo foi reinante naquele lugar. William seguia concentrado na mão que estava a ponto de ganhar. Sorria meio de lado e a fumaça do charuto saía da boca como se fossem as chaminés que tinha sobre o telhado de seu lar.

Ninguém queria fazer alusão à cena vivida, talvez porque fosse muito habitual que às sextas-feiras daquele mês vários maridos indignados irromperam no clube ao saber da presença do futuro duque no salão.

? Senhores..., ? disse enfim após depositar as cartas sobre a mesa e descobrir a última jogada ? já podem ir despedindo-se de seu dinheiro.

? É incrível! ? Exclamou Federith Cooper, um dos melhores amigos de William e futuro barão de Sheiton. ? Como pode ter tanta sorte?

? Nosso querido Manners nos depena os bolsos e seduz desoladas esposas, acaso estamos loucos por seguir mantendo sua amizade? ? Roger Bennett, quem algum dia chegaria a possuir o título de marquês de Riderland, falou com seu típico tom sarcástico ao mesmo tempo em que se reclinava no assento e tomava um sorvo de brandy.

? A sorte sempre está comigo, ela é minha única esposa ? respondeu William colocando as moedas em seu lado da mesa e sorrindo de satisfação. Pouco depois os outros jogadores partiram deixando os três cavalheiros na habitação.

? Entretanto, meu amigo, alguma vez mudará e serei eu quem mostrará um sorriso descarado em meu rosto ? continuou zombador Roger.

? Não pode zombar assim de um homem que amanhã se debaterá entre a vida ou a morte. Se for meu amigo desejará que a sorte permaneça no mínimo umas horas mais ao meu lado ? falou com dissimulação e sem deixar de mostrar no semblante uma atitude cômica.

William se levantou do assento e caminhou para o cabideiro para pegar o chapéu e a capa. Federith e Roger o imitaram. Em umas horas voltariam a serem testemunhas de outra inevitável loucura. Quase não tinham se recuperado da exaltação que lhes tinha provocado o último duelo e já sofriam a agonia do seguinte.

? Essa mulher... ? disse William pensativo enquanto caminhavam pela tranquila rua que lhe conduziria até Southwark.

? Quem, lady Blatte? ? Inquiriu Federith levantando a bengala até conseguir tocar a aba de seu chapéu.

? Juro-lhes que me disse que não estava casada. O perguntei mais de um milhão de vezes... ? respirou com profundidade e logo jogou o ar devagar. ? Cada vez que a visitei olhei-a nos olhos e lhe perguntei por seu marido. Ela respondia o mesmo: «Sua Excelência tem má memória, sou viúva» ? comentou com desdém. Logo levantou o olhar do chão e exclamou: ? Mulheres!

? Sim, Rutland, mulheres. ? Roger interveio com voz zombadora. ? Mas está falando de uma mulher que nasceu com um corpo digno de um duelo.

? Nisso tem razão. Lady Blatte é uma deusa ? comentou William com palavras cheias de luxúria. ? Possui uns seios lindos... suas coxas sempre estão quentes e quando me introduzia em seu interior...

? Basta! ? Interrompeu-lhe Federith. ? Acaso não recorda o que significa ser um cavalheiro?

? Não se zangue, Federith. Deve compreender que preciso recordar como era o corpo da mulher pela qual amanhã estarei a ponto de morrer... ? comentou entre risadas. Os olhos negros de William se elevaram para olhar o céu. Era uma noite com muitas estrelas, pouco habitual em Londres.

? Falando de morrer... escutou o trágico final da filha do barão de Montblanc? ? Perguntou-lhes Roger fazendo com que parassem bruscamente na metade da caminhada. Ao não responder nenhum dos acompanhantes, prosseguiu. ? Ao final a moça decidiu pôr fim à sua tormentosa vida. Esta manhã era o único tema de conversação que se escutava em todo Richmond.

? O barão não foi há alguns dias à sua casa para uma auditoria? ? Federith idolatrava seu amigo, posto que ambos tivessem crescido juntos, mas utilizava esse privilégio para recriminar sua Excelência por não ser capaz de adotar a posição que devia na sociedade. Aos seus trinta anos continuava sendo o mesmo cavalheiro libertino, insensato, despreocupado e farrista que foi com vinte.

? Sim ? respondeu com tom firme. Abaixou levemente a cabeça e continuou o passeio. A notícia o surpreendeu e, embora jamais o tivesse admitido, sentiu dor pela família. Tinham padecido bastante com o ocorrido à jovem e talvez, com a morte desta, descansariam enfim em paz.

? O barão foi visitar-te? ? Roger avançou atrás de William e arqueou as sobrancelhas em sinal de desconcerto. ? O que desejava de ti esse pobre homem?

? Pensou que se utilizasse minha posição conseguiria esclarecer o caso de sua filha... ? respondeu sem querer mostrar aquele sentimento de culpa que, por outro lado, não devia sentir.

? O que pretendia? ? Roger, animado pela curiosidade, seguiu com seu interrogatório.

? Como já sabem, a filha do barão tinha que ter sido apresentada em sociedade há dois anos, quando ela cumpriu os dezoito, mas a jovem sempre estava doente para a temporada social.

? Conforme tenho entendido, tais enfermidades eram inventadas. Comenta-se que a moça não desejava vir à Londres porque desfrutava de uma vida tranquila e aprazível no campo ? acrescentou Federith.

? Quando foi anunciado como merecia ? continuou William ? na última festa que nossa adorável senhora Baithlarin deu em sua residência em Marylebone, nenhum homem conseguiu fazer a jovem se apaixonar. Conforme escutei foi uma das mulheres mais belas da temporada. Mas, apesar da grande quantidade de propostas matrimoniais, ela as rechaçou com veemência. O barão e a baronesa decidiram retornar ao seu lar e fazer-se à idéia de ter sob seu teto uma filha solteirona.

? Mas? ? Roger escutava com entusiasmo toda a conversação e desejava saber como uma jovem que vivia placidamente e a quem não faltavam propostas de matrimônio terminou dando fim a uma vida próspera.

? Conforme tenho entendido, a moça foi desonrada na festa ? prosseguiu William. ? A família da jovem mantém que o conde de Rabbitwood abusou dela. Segundo o conde, com o qual tive a oportunidade de falar há algumas noites no clube durante uma intensa partida de cartas, a moça se esteve insinuando todo o serão até que conseguiu o que desejava. Rabbitwood lhe advertiu que tinha esposa e que só podia lhe outorgar a posição de uma amante. Como a esta não interessou a ideia, começou a divulgar que tinha sido violada.

? E claro está, depois do escândalo e de não conseguir seu propósito, desaparece para sempre... ? asseverou Roger.

? Bom, nenhum de nós entenderá jamais o que escondem as mulheres em suas cabeças. Embora se essa aspirante à harpia não obteve aquilo que ansiava e entendeu que era uma mancha indelével em sua família, o mais lógico era que terminasse fazendo o correto: suicidar-se ? argumentou William sem mostrar nenhum tipo de sensibilidade em suas palavras.

? Manners! Como pode ser tão frívolo? E se de verdade foi violada? Acaso não contemplou essa possibilidade? ? Federith se mostrou tão alterado que William chegou a perguntar-se se seu amigo tinha sido um dos que lhe tinham proposto matrimônio e foi rechaçado.

Durante uns instantes o futuro duque tentou que a mente lhe oferecesse algumas lembranças da moça, mas não achou grande coisa: uma jovem morrena de estatura pequena com umas bonitas curvas. Não foi capaz de descrever nem como estava vestida nem a cor de seus olhos. Sorriu para si ao rememorar que a maioria do tempo que passou naquela festa brincava de correr atrás das saias de uma suposta viúva desejosa de calor masculino e a satisfação que achou escondido atrás das cortinas de alguma janela do lar de lady Baithlarin.

? Confio na palavra de um cavalheiro como Rabbitwood ? disse cortante. ? As mulheres como puderam observar durante este tempo ao meu lado, causam problemas e uma terrível dor de cabeça. Olhe lady Juliette, jurou-me que não estava casada, que enterrou seu marido no ano passado e... acaso viu um fantasma me lançando a luva? Não sinta piedade por elas, meu amigo, são a outra parte do mundo. Foram criadas só e exclusivamente para nos dar prazer... ? sorriu de lado.

? Algum dia, William Manners, futuro duque de Rutland, apaixonar-se-á, e essa mulher te fará pagar por todo o mal que causou às suas amantes e aos seus maridos ? retrucou Federith com tom desafiante.

? Apaixonar-me? Jamais! ? Sentenciou após jogar o braço sobre o ombro de seu amigo e apertá-lo com força. ? O que fariam todas essas damas se o futuro duque se casasse? O que seria desses pais que, com tanta amabilidade, oferecem as suas bonitas e carinhosas filhas para que as converta em minha duquesa? Não, meu amigo, não posso entristecer toda essa gente. Devo a eles... ? Federith soltou um impropério enquanto que Roger e William não paravam de gargalhar.

Seis horas mais tarde, depois de ter descansado em sua residência de Southwark, William, perfeitamente embelezado para a ocasião, apareceu em Hyde Park. Depois de jogar uma rápida olhada aos arredores para certificar-se de que o duelo não era uma patranha para ser detido, distinguiu entre a pequena multidão as figuras de seus dois bons amigos. Com passo firme avançou para eles.

? Parecem aborrecidos ? disse a modo de saudação.

? Seus duelos já não causam interesse. Todo mundo sabe como terminarão ? respondeu Roger tomando a capa que o recém-chegado lhe oferecia.

? E como terminarão? ? Arqueou as sobrancelhas e o olhou aos olhos.

? Contará os passos, girará e, justo quando seu desafiador disparar, todos nós veremos que ele foi vítima dos nervos e que ele não alcançou o seu propósito. Então levantará a pistola e disparará ao ar. Seus amigos sabem que no fundo é uma boa pessoa e que se compadece de seu adversário. Imagino que o sofrimento que vive o marido depois do descobrimento da infidelidade é mais que suficiente. Equivoco-me? ? Roger arqueou as sobrancelhas e sorriu, assim como fez William.

? Espero que seja assim... ? interveio Federith. Ambos os cavalheiros giraram à volta dele e o observaram com interesse ? até agora lhe desafiaram homens aos que de verdade não lhes importava a afronta e se conformavam recuperando sua honra, entretanto, o senhor Blatte é um bom atirador e parecia necessitar do seu sangue para restaurar sua honra.

? Senhores..., ? interrompeu-os um dos padrinhos do competidor ? o senhor Blatte já escolheu a arma. Serão as pistolas, dez passos e... a morte.

? A morte! ? Exclamou Roger atônito. ? Não podemos permiti-lo!

? Não importa, ? William interrompeu seu amigo alarmado pela gravidade do assunto ? tem direito a escolher a forma em que sua honra será restaurada.

? Bem, pois quando sua Excelência estiver preparado daremos início.

Os três ficaram calados durante uns instantes. Pareciam refletir sobre as possibilidades existentes de sair ileso depois da informação obtida. Quando reclamaram a presença do cavalheiro, este olhou seus amigos, sorriu-lhes e caminhou para o lugar onde o senhor Blatte, embelezado com uma camisa branca e umas calças muita estreita esperava-lhe com os olhos injetados em sangue.

? Senhor... ? William o saudou com cortesia, mas este não se dignou nem a olhá-lo.

? Quando estiverem preparados... ? a testemunha olhou a ambos os homens e estes assentiram. ? Contem dez passos e girem-se. Que Deus os proteja.

William sentiu as costas de seu competidor na cintura. Riu ao notá-lo tão pequeno e com tanta coragem. Enquanto contava os passos recordava Juliette sob seu corpo. Viu de novo os grandes seios fazendo círculos maravilhosos quando cavalgava sobre sua ereção. Tinha lhe encantado ver o cabelo revolto depois do ato sexual e como ela albergava o enorme e duro falo na boca. Em vez de concentrar-se no que estava acontecendo, pensou que, quando o senhor Blatte voltasse a ausentar-se, faria uma visita à delatora para lhe recriminar o engano e fazê-la pagar por seus indecentes atos.

De repente escutou que alguém dizia dez. Virou-se com desconcerto e olhou seus amigos, que abriram os olhos de par em par enquanto cravavam seus olhos no senhor Blatte, ele fez o mesmo. Tinha curiosidade por saber como atuaria aquele pequeno homem e a cara que faria após falhar o tiro. Sorriu ao escutar o eco do disparo. Ato seguido, uma escuridão o rodeou e notou como seu corpo desabava para o chão fazendo com que sua cabeça batesse um par de vezes sobre algo bastante duro.


I


Londres, seis meses depois.

O ajudante de câmara o estava vestindo enquanto ele permanecia rígido e com o cenho franzido. Não era de seu agrado ter que depender de alguém para realizar uma tarefa tão singela. Antes do duelo, o criado se ocupava de lhe preparar a roupa, colocá-la sobre a cama e esperar que sua decisão coincidisse com a do duque. Entretanto as sequelas do duelo o tinham convertido em um ser dependente. Obstinou-se à crença de que transcorridos alguns meses seu corpo seria o mesmo de antes, mas não foi assim. A gravidade de suas feridas tinha sido tal que tinha que dar graças a Deus por continuar respirando.

Sem alisar sua testa refletiu sobre o destino e todas as jogadas que este lhe podia reservar enquanto o servente lhe punha a camisa e lhe abotoava, definitivamente, aquele calvário era o pior que tinha sofrido em toda sua vida.

Seus escarcéus amorosos tinham sido vingados por alguém que não levantava do chão mais de um metro e meio. Por que não girou para a direita para evitar o terrível impacto? Se em vez de estar pensando no prazer que lhe tinha dado o corpo de Juliette e a condenação que receberia por desvelar o segredo, teria prestado mais atenção à direção do projétil e hoje seguiria sendo o mesmo William de sempre. Entretanto, já não o era. Não ficava rastro da pessoa que foi. Agora era um deficiente, um homem ao qual lhe resultava impossível mover a mão esquerda e cuja incapacidade tinha azedado seu afável caráter para converter-se em um ser antissocial e desprezível.

? Excelência... ? o criado cravou os olhos no chão e lhe fez uma reverência antes de deixá-lo sozinho.

O duque caminhou para a janela apoiando-se na bengala. Amanhecia outro dia chuvoso e, como nas jornadas anteriores, não poderia sair da mansão. Isso lhe provocava mais ira do que a necessária. Não era igual passar as penúrias encerrado entre quatro paredes do que tomando o ar do exterior.

Apoiou a testa na moldura de madeira e suspirou. Merecia-o. O estado no qual se encontrava era o resultado da tormentosa vida que tinha levado e agora devia aguentá-lo com orgulho. Com grande esforço conseguiu chegar até a porta. O delicioso aroma do café da manhã fez com que seu estômago se manifestasse e, sem mediar palavra, desceu as escadas, uma proeza que três meses atrás lhe tinha resultado difícil executar por si mesmo. Chegou até o salão e esperou que um dos criados lhe apartasse a cadeira, sentou-se e se acomodou para começar a tomar o suculento café da manhã que havia sobre a mesa.

? Sua Excelência... ? o mordomo se aproximou e, depois de uma breve reverencia, continuou: ? o senhor Federith Cooper acaba de chegar e deseja falar com você.

Federith, um de seus melhores amigos a quem não tinha quebrado, ainda, sua amizade com ele, tinha lhe visitado quase diariamente durante sua convalescença. Foi o mesmo homem que lhe advertiu em reiteradas ocasiões que o rumo de vida que tinha decidido não era o apropriado para um duque.

William tinha rido dele, zombado de seus incessantes discursos sobre o dever e a lealdade para com o título que lhe seria concedido por nascimento. Mas, apesar das brincadeiras, dos sátiros comentários, Federith continuava ao seu lado como se o passado não tivesse existido.

? Deixe-o entrar... ? disse calmamente.

Quando sua voz deixou de mostrar a personalidade de um homem com caráter? Desde quando seu tom se apagou tanto? Possivelmente desde que descobriu numa manhã em frente ao espelho que William Manners se convertera em um monstro que poderia assustar aos meninos inquietos. Porque, embora todo mundo de seu entorno lhe oferecesse palavras de consolo, ele se via um ser disforme e sem utilidade. Como poderia suportar o peso de um título tão respeitável quando nem ele mesmo conseguia respeitar-se?

Levou a xícara de café aos lábios com a mão sã e tomou, depois de um leve sopro ao líquido, um bom sorvo. Escutou enquanto isso como o mordomo informava ao seu amigo que era bem recebido e, depois de finalizar a conversação, os passos deste para a sala de café da manhã. Antes que Federith abrisse a porta e aparecesse com seu peculiar sorriso, William já tinha seu olhar cravado em sua direção.

? Bom dia, querido Rutland, que tal se levantou nesta horrenda manhã? ? Caminhou para ele e, ao compreender que não podia saudá-lo com um apertão de mãos posto que estivesse utilizando a mão útil, agarrou a cadeira, apartou-a e se sentou ao seu lado.

? De péssimo humor... ? murmurou com aborrecimento.

? Está acostumado a ocorrer quando o inverno está a ponto de terminar. Por muito que desejemos evitá-lo, azeda-nos o caráter ? continuou mostrando um leve, mas gentil sorriso.

? A que se deve sua visita, Federith? ? Grunhiu.

? Não se alegra de me ver? ? Respondeu à sua vez.

? Já sabe a que me refiro. O que aconteceu para que esteja em meu lar antes do meio-dia? ? Voltou a beber do café sem apartar o olhar de seu amigo.

? Sua astúcia não diminuiu nem um ápice, não é? ? Soltou uma pequena gargalhada. Depois de observar que William pousava a xícara sobre o pires e pegava o garfo para dirigir a comida que lhe tinham preparado para a boca, prosseguiu: ? Queria te dar uma notícia antes que lhe cheguem os rumores: decidi pedir a mão de lady Caroline.

? Matrimônio? ? Arqueou a sobrancelha esquerda abandonando com brutalidade o garfo sobre a mesa e se reclinando sobre as costas do assento. ? Diz-o a sério? De verdade que vem me informar, antes de ter o estômago cheio, que decidiu se casar? ? Abriu tanto seus olhos que Federith por fim conseguiu averiguar a cor destes.

? Chama-se amor, William, e embora te pareça mentira, Caroline me ama tanto quanto eu a ela ? disse sem mostrar remorso algum pelo comentário mordaz de seu amigo. Não esperava que lhe desse os parabéns. Não William. Ele o evitaria contribuindo com argumentos nefastos sobre a vida que teria uma vez que sua prometida obtivesse o anel. ? Decidi que ? prosseguiu Federith aferrando suas mãos como se tivesse a intenção de começar a rezar ? retornarei a Hemilton depois das núpcias. Esse será o lugar adequado para formar uma família respeitável.

? Então... ? William entrecerrou os escuros olhos e os cravou em seu amigo. Notava como a respiração deste era agitada, nervosa. Esses sinais de preocupação e incerteza apareciam no jovem Federith sem ele desejá-lo. O duque pigarreou. Tinha refletido, ao mesmo tempo em que seu amigo expunha sobre o infinito amor que o casal se professava, a verdadeira razão pela qual Federith tomava uma decisão tão importante. ? Então... ? repetiu para captar a atenção de seu camarada. ? Ela está grávida e precisam se afastar de Londres para que não se descubra a verdadeira razão desse precipitado enlace matrimonial, não é?

? Santo céu, Manners! ? Exclamou Federith empurrando com as panturrilhas o assento e elevando-se com rapidez. Ficou rígido, sem saber que passo dar. Esperava que William fosse sensato e retificasse, mas conhecendo-o como o fazia, sabia que isso seria impossível.

? Calma, sabe que de minha boca não sairá nada que possa te prejudicar ? continuou com o cenho franzido enquanto observava a crescente tensão de Federith.

? Espero que não tenha esquecido o que significa ser um cavalheiro. ? Seus punhos se apertaram. As palavras brotaram dele com um tom repleto de ameaças.

Mas... que perigo poderia ter uma pessoa que vivia detento de suas más decisões? Ante tal reflexão Federith se zangou consigo mesmo. Ele não era assim. Jamais desejava o mal a ninguém. Sua filosofia de vida era muito distinta. Embora a raiva que William tinha despertado nele superasse qualquer crença sensata.

? Há valores que nunca se perdem ? respondeu William ao pequeno ataque.

? Não estou muito seguro disso. Apartartou-se do mundo. Apenas se relaciona com seus amigos, escondeu-se entre estas paredes e há mais de três meses não recebe visitas. Crê que esse tipo de vida não faz rachaduras na mente do cavalheiro mais racional?

O duque o observava com atenção. Federith seguia com os punhos fechados, mas em nenhum momento foi capaz de olhá-lo aos olhos para lhe cuspir o pouco veneno que devia sentir após descobrir seu pequeno segredo.

? É o melhor lugar para habitar um monstro, não acredita?

? Monstro? Assim é como se considera o duque de Rutland? Desaponta-me William, acreditei que tinha mais coragem...

Federith o olhou com atenção. Na verdade, William tinha um pouco de razão. Ali onde no passado tinha existido um cavalheiro bonito, agora se encontrava um homem com umas horrendas marcas no rosto. Além disso, já não era só a fealdade, mas sim que depois de ser operado de urgência pelo médico que o zangado marido de Juliette conduziu até o lugar do duelo, o duque ficou incapacitado de uma mão. Essa que, nesses momentos, tinha colocado sobre a mesa aparentando ter uma função. Suspirou com suavidade e meditou sobre a passada temporada social. Seu amigo partiu antes do acostumado deixando lady Baithlarin desolada pela ausência repentina de um homem tão importante. Supôs que tal marcha se deveu à imensa pressão que William estava sofrendo depois do falecimento de seu pai e a posse do título. Entretanto, a fuga à sua residência em Southwark tinha outra razão: desaparecer. Odiaria ver a cara de espanto que mostrariam as jovens casadouras quando seus progenitores as apresentassem ao novo duque. Ali onde antes encontrou sorrisos pecaminosos e olhos frágeis pela possibilidade de jazer sob a esbelta e robusta figura, agora encontrava repugnância, asco. Que dramático final para um homem que acreditou ser possuidor de todos os encantos divinos!

? Perdi-a depois do disparo ? respondeu em tom vazio, sem entusiasmo. Entretanto, em seu interior crescia de novo aquela ira a qual começava a acostumar-se. Era hora de cortar a conversação e deixar que seu amigo tomasse o rumo marcado. ? Voltando para o motivo pelo qual me visita...

? Como lhe disse, tomei uma decisão firme a respeito. A futura baronesa de Sheiton será muito feliz em Hemilton.

? Não o duvido. Com certeza será muito feliz com esse filho que te dará e imagino que será o pai mais maravilhoso do mundo.

? Sim ? respondeu ignorando a ironia de sua afirmação. ? É óbvio que serei feliz ao lado da minha esposa e da família que criarei. ? A visita estava chegando ao seu fim. Federith tinha vontade de partir e afastar-se de seu camarada. Estirou-se a jaqueta do traje, estendeu a mão para seu amigo para que este a tomasse e disse: ? Veremos-nos em outro momento. Possivelmente em um no qual tenha recuperado o sorriso.

? Antes de ir..., ? aferrou com força à mão de Federith e olhou-o nos olhos ? eu gostaria de te fazer uma última pergunta, se me permitir isso o futuro barão de Sheiton, é claro.

? É óbvio.

? Estou me perguntando... que classe de inconsciente pode chegar a ser para se casar com uma mulher que leva em seu seio o filho de outro? ? Soltou sem tomar ar.

O assombrado homem não respondeu a impertinente pergunta. Partiu do salão erguido e com passo firme.

William ficou calado refletindo durante um bom momento. A decisão de Federith a nível social era a mais correta se ele amava de verdade a mulher. Entretanto, quando falou dela e de seu futuro projeto juntos, não mostrou o entusiasmo próprio de um homem apaixonado, um homem que, tal como tinha proclamado, amaria para sempre a sua esposa.

Muito a seu pesar sabia que cedo ou tarde seu amigo seria infeliz e isso, embora não quisesse reconhecê-lo, doía-lhe. Sempre albergou a esperança que, dos três, Federith obtivesse a vida que merecia.

? Deseja algo mais, Excelência? ? Um dos criados lhe fez despertar de sua letargia mental ao mesmo tempo em que entrava no salão e esperava o próximo mandato.

? Preparem a bagagem. Amanhã ao amanhecer partiremos para Haddon Hall.


II


Tinha viajado quatro dias intermináveis com suas noites incluídas, pernoitando em miseráveis e fedorentas estalagens, mas por fim, aquela horrenda viagem se acabara.

Chegara ao seu lar.

O imenso arvoredo lhe dava as boas vindas com suaves movimentos de folhas. William colocou a cabeça pela janela da carruagem e observou a sobriedade dos grandes e altos muros da mansão. Era, sem dúvida, o melhor lugar onde poderia esconder-se pelo resto de sua vida. Uma fortaleza em que poderia passar os dias inteiros caminhando pelos intermináveis corredores, salões e estadias. Moveu o lábio superior para a esquerda tentando desenhar um sorriso, mas fazia tanto tempo que não movia os músculos para essa função que foi impossível fazê-la como era devido. Apesar desse fracassado esforço por sorrir, William se sentia contente em retornar à casa de sua infância.

Rememoraria as aventuras que seu irmão e ele viveram quando meninos. Se a mente não lhe falhava, ambos tinham enfurecido até ao servente mais paciente do mundo. Logo, com o tempo, aqueles que correram atrás deles para que não terminassem se machucando, converteram-se em pessoas dignas de sua confiança.

Olhou de novo ao seu redor. Tinham passado dez anos desde que decidiu abandonar Haddon Hall para dedicar-se ao desfrute da vida londrina, e nada tinha mudado em Derbyshire, o tempo parecia deter-se.

O cocheiro diminuiu o passo quando chegaram ao jardim principal. Com a cabeça apoiada na almofadinha da carruagem podia ver a fonte. Ela foi à causadora de sua primeira aposta e de sua primeira derrota. Não tinha que ter desafiado Lausson a saltar, as probabilidades de que perdesse eram escassas, entretanto precisava provar-se a si mesmo. Necessitava estimulação, emoção e um sem-fim de sentimentos que depois encontrou entre as pernas de suas amantes.

William fechou os olhos. A palavra amante se converteu em sinônimo de monstruosidade, posto que pela língua de uma delas ele tinha o rosto desfigurado e uma mão inerte. De repente se perguntou como atuaria o serviço ante sua chegada. Para eles tinha que ser bastante impactante recordar a marcha de um bonito homem e receber ao mesmo convertido em um monstro. Esperava que Brandon, seu fiel mordomo, tivesse lhes posto à corrente do acontecido e indicado a melhor forma de atuar quando ele estivesse presente: nada de olhá-lo ao rosto, tão somente servir e manter os olhos cravados no chão.

Repentinamente uma terrível dor se apropriou de sua cabeça. Notava nas têmporas o pulso de seu coração. Estava nervoso? O duque de Rutland começava a sentir ansiedade por seu futuro? Não se tinha respondido quando a porta da carruagem se abriu e alguém estendeu uma mão para lhe facilitar a descida. Até o momento, não o tinha necessitado: o normal era que se aferrasse com a mão sã à porta e descesse devagar. Mas depois de quatro dias de viagem, de mal dormir, de fadiga e inclusive de uma péssima alimentação, essa ajuda era necessária. Depois da custosa façanha, liberou a mão e continuou sozinho.

Quando elevou o olhar para a entrada principal advertiu que todos os criados tinham saído para saudá-lo e cravavam seus olhares no chão. Em efeito, Brandon tinha falado com eles.

? Milord... ? o mordomo se colocou com sutileza atrás de suas costas e começou a lhe informar. ? Sua habitação está preparada para que descanse. Imagino que depois da viagem precisará refrescar-se, assim ordenei ao seu ajudante de câmara que o espere. As criadas lhe prepararam um banho de água quente.

? Obrigado, Brandon ? disse com tom suave.

? Não tem por que me agradecer, Excelência. É uma honra trabalhar para você. ? Brandon, sem afastar-se do senhor nem um metro, caminhava com firmeza esperando que este requisitasse sua força para subir as escadas. Mas não a necessitou. O duque de Rutland caminhava com orgulho para o interior do lar, saudando brandamente com a cabeça seus novos empregados. ? Tenho que lhe comentar que na biblioteca tem sobre sua mesa vários convites. Embora tenha anunciado que deseja descansar uma temporada antes de encher Haddon Hall de convidados, todo mundo deseja conhecê-lo e falar com você.

O duque fez um leve som gutural e o criado entendeu que aquele esforço era mais do que podia suportar. Tentou alargar a mão para aferrar-se ao braço inerte de seu senhor e acalmar o esforço, mas este o negou. Tinha suficiente orgulho para não se mostrar fraco ante aqueles que estavam sob suas ordens.

Tal como lhe informou Brandon, quando acessou seu quarto o ajudante esperava pacientemente. Depois de fechar a porta, o criado lhe fez uma reverência e lhe pediu permissão para despi-lo. William a aceitou com rapidez. Desejava inundar-se na banheira o antes possível. Precisava introduzir seu cansado corpo em água quente e que esta acalmasse as doenças que lhe açoitavam sem piedade.

? Necessita que lhe ajude em alguma outra coisa, sua Excelência? ? Inquiriu o criado ao finalizar sua tarefa com habilidade.

? Diga ao Brandon que suba, preciso falar com ele ? respondeu o duque.

O criado se dirigiu para a porta com rapidez e antes que William pudesse suspirar, Brandon apareceu no meio do quarto.

? Não está tudo como deseja, Excelência?

? Tudo está perfeito, obrigado. Chamei-te porque quero que me faça um favor. Necessito que procure o antes possível uma cortesã capaz de manter encontros esporádicos comigo ? ordenou sem olhá-lo. Movia as pernas devagar, deixando que se acostumassem ao calor do banho, à tranquilidade de um ambiente sereno e aprazível.

? Com o mesmo salário, sua Excelência?

? Com o mesmo salário... ? repetiu.

? Alguma petição especial? ? Quis saber.

Em Londres o duque tinha procurado durante muito tempo uma amante que se parecesse fisicamente à lady Juliette. Não encontrou a réplica perfeita, mas sim a uma jovem que tinha feições parecidas. Esta o satisfez até que dias atrás teve que partir. É óbvio, deu-lhe a opção de escolher: podia viajar para Haddon Hall para continuar seu ofício ou, pelo contrário, podia declinar seu convite. A jovem, alegando que sua mãe se encontrava bastante doente, decidiu não continuar. Algo que entristeceu ao senhor por que... como conseguir outra agulha em um palheiro?

? Já sabe quais são os requisitos ? disse com grosseria.

? É óbvio. Deseja que diga ao seu ajudante de câmara que pode acessar ao dormitório?

? Não, diga-lhe que esteja atrás da porta e que o chamarei quando o necessitar.

? Como desejar... ? disse antes de retirar-se.

William olhou ao seu redor. Encontrava-se no quarto de seu pai, o santuário do anterior duque de Rutland, o único lugar proibido de todo Haddon Hall quando era menino. Ambos os irmãos se enchiam de entusiasmo quando o pai aparecia pelo lar, e só pensavam em despertá-lo com risadas e conversações sobre as mil anedotas que tinham acontecido em sua ausência. Entretanto, com o tempo descobriram que o duque não retornava para passar tempo com seus filhos e sim para esquentar a cama com sua legião de amantes.

William franziu o cenho. Tinha odiado com todo seu coração a atitude de seu pai e não deixava de ser irônico que se convertera em uma réplica perfeita. O que primeiro tinha ordenado ao Brandon ao chegar? Uma amante. Uma mulher que o saciasse sexualmente, sem escrúpulos e desejosa de encher seus bolsos de moedas.


Só gozou de dois dias de solidão para descansar antes que os primeiros bisbilhoteiros aparecessem. O reverendo Brace e sua esposa eram um jovem casal que tinham retornado a Derbyshire depois que faleceu o pai deste, anterior pastor da comarca. Quando acessaram ao salão principal, lugar onde receberia a todos seus convidados, William se desculpou por não lhes dar as boas vindas de maneira correta.

? Não se preocupe, Excelência, informaram-nos de suas incapacidades ? explicou o reverendo com um sorriso. Ao qual o duque desejou fazer desaparecer com um murro, se pudesse.

? Veio ao melhor lugar para descansar. ? A senhora Brace, com uma suave e harmoniosa voz, misturou-se na conversação para salvar as inoportunas palavras de seu marido.

? Isso espero ? comentou o duque esboçando um leve sorriso. ? Segundo minha lembrança, Derbyshire é um lugar tranquilo e aprazível.

? As pessoas que habitam aqui são gente de paz, nós não gostamos dos escândalos nem tentamos destacar mais do que nossas possibilidades nos oferecem.

? Entretanto, às vezes sofremos certos constrangimentos. ? Outra vez a encantadora mulher tentava salvar a desafortunada reflexão de seu cônjuge. ? Virá à Igreja, sua Excelência? É linda e aos domingos está transbordante de crentes.

? Se puder, estarei encantado de admirá-la ? respondeu William com uma amabilidade estranha. Quanto tempo fazia que uma mulher não lhe agradava? Muito, devia ter transcorrido no mínimo uma eternidade, porque se não fosse assim, por que via atraente a volumosa esposa do reverendo?

? Visitou-lhe já algum de nossos vizinhos? ? Perguntou o impertinente homem antes de dar um sorvo ao chá.

? São vocês os primeiros. Meu mordomo me informou sobre a montanha de convites que recebi, mas temo que até que não consiga me pôr em dia com a contabilidade de Haddon Hall, não poderei aceitar a nenhum. ? Parecia uma desculpa? Esperava que assim fosse, porque não tinha vontade de explicar nada ao pároco, nem que não era responsável pela quantidade de convites que lhe tinham enviado nem se os aceitaria.

? Deve descansar, Brennet. Sua Excelência fez uma longa viagem e como deseja assentar-se neste lindo lugar pelo resto de sua vida, tem muito tempo para assistir aos eventos onde seja requerido – sorriu-lhe.

De verdade que um simples gesto de piedade podia interpretar como uma paquera feminina? De verdade que não podia apartar o olhar dos seios da esposa de um pastor? O duque tentou manter a calma e deixar de pensar no prazer. Essa noite, assim que pudesse falar com Brandon, pediria-lhe que esquecesse os requisitos solicitados para a cortesã e empregasse a primeira que gostasse do pagamento.

? Já é tarde, Lídia ? disse o reverendo olhando com ternura para sua esposa. ? Milord... ? levantou-se e moveu a cabeça devagar para diante. ? Voltaremos em outro momento, se lhe agradar.

? É óbvio, sempre serão bem-vindos.

Lídia, como a tinha chamado o senhor Brace, aproximou-se do duque, fez-lhe uma reverência e, aferrando-se ao braço de seu marido, ambos saíram do salão. Minutos depois apareceu Brandon. Esse homem parecia lhe ler a mente.

? Conseguiu a cortesã? ? Perguntou de mau humor e impedindo que o servente começasse alguma conversação que o distraísse de seu verdadeiro propósito.

? É óbvio, milord. Começará o trabalho quando você quiser ? explicou o mordomo com certa preocupação.

Era certo que a jovem tinha aceitado com rapidez seu novo encargo, mas não estava muito seguro de que o fizesse corretamente. Não parecia ser uma mulher com experiência, por muito que ela tivesse insistido no contrário.

? Pois não a façamos esperar. Informe-lhe que esta noite provarei seus serviços. ? Levantou-se com vigor e caminhou ansioso até a sala de jantar. Era a primeira vez em muito tempo que desejava com prontidão a chegada da noite.

Depois do jantar, que durou a metade do acostumado, decidiu refrescar-se. Queria estar limpo para sua nova amante. Que estivesse lesado ou impedido para fazer certas coisas no ato sexual não queria dizer que se comportasse como um mendigo, nunca o tinha sido e nunca o seria. Odiava escutar as conversações de certos homens que se denominavam cavalheiros e alardeavam suas experiências com as prostitutas que encontravam nas ruas. Ele jamais precisou ir a uns serviços tão desagradáveis. Só de pensar lhe produzia asco. No meio da rua? Sem assear-se? Como animais? Não, ele não pertencia a essa classe de homens.

Não lhe cabia dúvida que Brandon a teria conduzido até alguma das habitações da residência, teria-lhe devotado uma boa banheira de água quente e a teria preparado para o momento. Enquanto seu ajudante lhe colocava com habilidade a camisola, pensou em como seria a mulher. Alta? Teria pernas longas? Adorava esse tipo de mulheres, possivelmente porque sua estatura era bastante considerável para albergar em seu corpo uma concubina de pequeno tamanho. William franziu o cenho.

Nesse preciso instante, em vez de pensar mais na mulher que entraria em seu dormitório para lhe agradar, recordou de novo o marido de Juliette. Subestimou-o por ser baixinho, riu dele e inclusive pensou que seria um bom palhaço para um desses circos que visitavam a cidade. Embora resultasse muito ao seu pesar, que esse pequeno homem provocou o maior desastre de sua vida. Sim, esse tipo de conclusões lhe reforçava com esforço a crença de ter ao seu lado uma mulher alta, muito alta.

Andou pela habitação durante uns minutos. Estava ansioso pela iminente chegada. Olhou com rapidez ao seu redor. Havia muita luz para seu gosto. Possivelmente devia apagar alguma vela e deixar um ambiente mais íntimo. A jovem de Londres soube antes o que encontraria ao acessar o quarto, o periódico The Daily Gazetteer se encarregou de difundir uma foto de seu antes e seu depois. A fatalidade de uma vida promíscua tinha intitulado o artigo. Entretanto, em Derbyshire, as notícias se conheciam pela difusão dos habitantes. Deu por certo que, salvo os que estivessem fora de seus lares, já tinham algum conhecimento do novo rosto do duque de Rutland. Não lhe cabia dúvida de que o reverendo teria se encarregado disso.

Olhou de novo as velas acesas e decidiu apagar um par delas. Pareceu-lhe que a melhor forma para começar uma relação especial era sob a intimidade da penumbra. Logo se aproximou da cama e se sentou sobre ela, esperando-a. Tremia-lhe a mão e o coração palpitava sem poder controlá-lo. Zangado por não controlar sua ansiedade, repreendeu-se em voz alta.

? Basta! Controla sua emoção! Nem que fosse conhecer sua futura esposa!

Terminou esse pequeno e escandaloso monólogo quando escutou o suave som da porta. Se antes o coração estava agitado, agora tinha parado em seco.

? Pode entrar ? disse com tom aparentemente sereno.

Uma pequena figura apareceu na penumbra. William franziu o cenho ao ver que Brandon não tinha conseguido uma concubina de grande altura. A mulher tinha o cabelo solto cobrindo grande parte de seu rosto e de seus ombros. Nesse momento se repreendeu por ter criado tanta escuridão posto que mal distinguisse as feições da moça. Embora, se fosse boa em seu trabalho, o que importava como era seu rosto?

? Aproxime-se ? sussurrou o duque estendendo a mão direita para ela. A moça caminhou para a cama e o olhou. Nesse momento suas sobrancelhas subiram uns milímetros e William entendeu que se surpreendeu. ? Não acredito que deva te explicar para o que veio, não é? ? Ela assentiu. ? Não albergue em seu coração a possibilidade de que entre nós exista uma relação afetuosa, só quero prazer. ? Seu tom se endureceu. Por que havia se zangado com tanta rapidez?

? Só prazer... sua Excelência ? murmurou a mulher sem querer voltar a cravar seus olhos no rosto dele. Como se tivesse mais pressa do que se requeria naquele tipo de encontros, a mulher se desfez das vestimentas e se colocou frente ao duque nua. Deu uns pequenos passos até que a mão deste pôde alcançar um seio.

? Faça com que eu te deseje. Finja algum interesse e faça por merecer o salário que obterá quando partir ? continuou com tom duro, firme e inclusive insolente. Mas... o que pretendia? Que ela se lançasse sobre seus braços e beijasse aquelas horrendas cicatrizes? Ficou tão impactada ao vê-lo que não sabia nem como atuar.

A mulher se ajoelhou em frente ao homem. Levantou com suavidade a camisola e procurou com a boca o falo. William jogou a cabeça para trás e suspirou. Estava tão necessitado que essa noite se contentaria com o pouco que a concubina estivesse disposta a dar. Se ela tinha decidido utilizar sua boca para saciá-lo, relaxaria e desfrutaria do momento. Fechou os olhos e fez com que as imagens de Juliette retornassem à sua mente. Voltava a tê-la ao seu lado lhe sussurrando palavras obscenas. Mostrando sem pudor o desejo que sentia o bonito corpo ao tocá-la e como a mulher respondia com um sem-fim de deliciosos ofegos. Rememorou o baile de seus seios ao sentar-se sobre ele, seus gemidos, seus beijos e o abundante fluxo que emanava do sexo para conseguir banhar o seu. Úmida e aberta para suas carícias. Quente e ardente sob seus toques. William franziu o cenho. Estava a ponto de gozar na boca da cortesã. Não quis abrir os olhos e observar o rosto da jovem. Preferia imaginar Juliette. Preferia escutar os ofegos daquela mulher que os seus próprios. O sexo vibrou, endureceu-se com força e notou como a semente brotava de seu interior banhando a língua da moça a quem não tinha perguntado nem seu nome. Não lhe importava, para que saber o nome de uma mulher que, depois de olhar seu rosto, tinha-lhe dado tanto medo que não foi capaz de levar a cabo um trabalho tão singelo? Quando o sexo retornou ao seu estado normal, baixou-se a camisola, girou-se para dar as costas à petrificada moça, agarrou-se com força ao dossel em espiral de madeira e lhe disse com tom sério e furioso:

? Vá! Meu mordomo te pagará o convencionado.

A moça agarrou com rapidez o vestido que tinha deixado no chão e se vestiu. Fez uma reverência ao duque e partiu velozmente. Quando a porta se fechou e William soube que por fim estava sozinho, começou a chorar como tantas vezes tinha feito depois do duelo. Sentia-se cada vez mais no fundo do poço e com menos força para seguir vivendo. Ninguém desejaria ter ao seu lado um monstro inútil. Nenhuma mulher deveria ser condenada a viver sob seu mesmo teto. Tremendo, recostou-se na cama e continuou chorando até que adormeceu.


III


Nada. Já não tinha nada que levar à boca. Já há um tempo que as reservas que tinha guardado para poder sobreviver naquele paradisíaco lugar tinham desaparecido. Enrugou a testa e levou as mãos ao quadril. Como era possível que aqueles malditos lobos tivessem comido, em uma noite, uma peça tão grande? Enfurecida pela fome, pensou em apanhar aqueles que a tinham deixado sem alimento e comer-lhes.

«Malditos animais!», gritou para si entre lágrimas.

Ela chutou uma pedra, e depois de sentir uma terrível dor nos dedos, sentou-se sobre ela. O que devia fazer agora? Tinha investido as últimas moedas comprando galinhas, coelhos e um casal de porcos. Acreditou que eles a ajudariam a subsistir todo o tempo que fosse necessário até decidisse-se retornar e fazer frente à situação que não pôde dirigir no passado. Entretanto, agora não ficava nada, nem sequer um pedaço de pão para levar à boca. Depois de meditar durante muito tempo na melhor maneira de sobreviver naquelas circunstâncias, saltou sobre o chão e sorriu. Não lhe tinha ocorrido com antecedência porque o desprezava com toda sua alma, mas dada a situação teria que deixar estacionado o ódio que sentia por esse homem e pensar no melhor para ela.

Todo mundo falava com entusiasmo da chegada do atual duque de Rutland. Esperavam que aquela aparição fosse bastante proveitosa para o povo porque, se o duque continuasse com sua famosa vida social, celebraria grandes e numerosas festas e a localidade se encheria de nobres curiosos. O verdadeiro motivo para esse entusiasmo era um muito singelo de compreender: trabalho. Lavadeiras, costureiras, cozinheiras e criados em geral seriam procurados para oferecer aos convidados de Haddon Hall o máximo conforto. Era uma oportunidade que não podia deixar escapar.

Com vigor colocou as mechas que se soltaram do coque, ajeitou várias vezes o vestido e tomou o caminho que a conduzia até a mansão. Tinha tanta pressa por encher seu estômago que não esperaria que se convocassem as esperadas entrevistas. Beatrice tocaria a porta e pediria qualquer trabalho que, é óbvio, aceitaria com grande entusiasmo.

O que começou sendo um suave passeio, mais tarde se converteu em uma caminhada rápida, para depois pôr-se a correr como se o próprio diabo a perseguisse. Esquivou-se de todos os obstáculos que encontrou em seu passo sem lhe importar que em mais de uma ocasião seu vestido se manchasse de respingos de barro. Tinha um objetivo a cumprir, um que odiava porque se tratava de estar sob o amparo de um homem egoísta, ruim e desprezível, mas era o único que lhe ajudaria a continuar viva.

Quando chegou ao jardim principal da mansão, Beatrice ficou sem fôlego. Não só pelo esforço da corrida, mas sim pela imensidão do lugar que se mostrava ante ela. Tinha escutado muito sobre a residência do duque, mas jamais chegou a imaginar algo um pouco parecido. Possivelmente porque seus pais chamavam grandeza a uma décima parte do que observavam seus olhos. Permaneceu imóvel durante algum tempo, contemplando sem pestanejar o enorme edifício. Uma vez que estudou em detalhe o lugar, pareceu-lhe muito frio, muito sólido. Seus muros eram tão grossos e sóbrios que não entendia como alguém podia considerá-lo um lar, mais se assemelhava a uma prisão.

Aquele era o famoso paraíso no qual se criaram os filhos do duque? Disso se orgulhavam? Pois ela não trocava seu humilde lar pelo que estava vendo. Era tão impessoal e gélido como a atitude do homem a quem ia suplicar um posto de trabalho.

Depois de conseguir um pouco de calma e separar de sua mente todo pensamento doloroso produzido pela lembrança do comportamento do duque, caminhou pelo jardim sem descanso até que subiu as escadas que a conduziram para a porta principal. Parada frente a esta, duvidou se chamava com suavidade ou com todas as suas forças. Sopesava qual alternativa era a correta quando de repente escutou umas vozes que procediam da lateral do edifício. Assustada e com o coração galopando em seu interior, permaneceu imóvel enquanto rezava para que não a descobrissem tão cedo. Por uma vez Deus atendeu suas preces e os que falavam sem parar não repararam em sua presença. Escondida pela escuridão que lhe ofereciam uns pilares de pedra, observou várias pessoas descerem por onde minutos antes ela tinha subido. Quando as vozes se perderam pelo jardim aproveitou para sair de seu esconderijo e dirigir-se para o lugar de onde tinham saído: a porta de serviço.

Respirou com profundidade, voltou a pedir ajuda a Deus, elevou a mão para chamar e, justo quando seu pequeno punho iria tocar a grande lâmina de madeira, esta se abriu.

? Quem é você?! ? Exigiu saber com uma mescla de surpresa e medo uma mulher de avançada idade.

? Bom dia, senhora. Desculpe se a incomodo, vim pedir trabalho ? explicou olhando ao chão.

? A pedir trabalho?! ? A mulher abriu os olhos de par em par e levou a mão à garganta.

Beatrice abaixou ainda mais a cabeça ao mesmo tempo em que suas bochechas se enchiam de uma intensa cor vermelha. Não tinha dúvidas sobre a causa do imenso susto que tinha provocado à mulher. Quem, em seu são julgamento, pediria um trabalho respeitável vestida com farrapos manchados, com o cabelo coberto de barro e cheirando a excrementos de porco? Mas ela não estava em seu são julgamento desde que a fome se apoderou de seu corpo e de sua mente.

? Necessito-o, senhora. Estou a ponto de morrer. Levo dias sem comer... ? implorou a moça.

? Não é meu encargo oferecer trabalho, disso se encarrega o senhor Stone, mordomo de sua Excelência. Mas te aconselho que, se de verdade necessita de um emprego, volte outro dia com melhor aspecto. Assim só lhe fecharão a porta. ? Hanna, a cozinheira, sentiu verdadeira lástima pela jovem. Nunca tinha visto uma expressão tão dramática, nem tampouco uma palidez tão fantasmal.

? Rogo-lhe. Ajude-me... ? continuou com voz tão baixa que a anciã mal a escutou.

A anciã olhou a ambos os lados e, certificando-se de que ninguém poderia descobrir que abrigaria durante uns minutos a uma mendiga em uma casa respeitável, estendeu a mão e aferrou com força o braço da moça.

? Entra, sente-se e não fale até que tenha terminado de comer o que puser sobre a mesa. Se de verdade pretende trabalhar algum dia em um lugar como este, deve se sustentar com algo mais... do que tenha se alimentado até agora.

Beatrice sorriu e se sentou tal como lhe tinha indicado a mulher. Manteve-se calada até que contemplou o prato de sopa quente que a amável estranha colocava em frente a ela. Agarrou a colher, inclinou-se para a fumegante terrina e, sem esperar a que este se esfriasse, arremeteu contra ele. Em um passado já bastante longínquo teria pegado a colher e a teria dirigido lentamente para seus lábios para sorver em silêncio seu conteúdo. Mas estava vivendo o presente e seu estômago estava muito vazio para recordar protocolos absurdos. Mal levantou o olhar, salvo quando sua benfeitora retornava para lhe apartar o prato terminado e lhe colocar outro em seu lugar.

Enquanto notava o calor da comida em seu interior pensou que aquilo que estava conseguindo não era o que tinha pretendido. Ela queria um trabalho para ganhar a comida que a sustentaria durante o tempo necessário até que decidisse retornar a Londres. Entretanto, como não havia outra alternativa, continuou comendo enquanto fazia à ideia de que os suculentos pratos poderiam lhe oferecer um pouco mais de vida. Possivelmente a justa para sobreviver até que chegassem as desejadas entrevistas. De repente, enquanto saboreava seu último prato, escutou-se uma portada atrás dela e Beatrice saltou do assento. Ao descobrir em frente a ela um homem com rigoroso traje negro, abaixou a cabeça e começou a fazer nós com o tecido do vestido.

? Quem é e o que faz aqui? ? Brandon a observou com perspicácia, ato seguido dirigiu os olhos para Hanna e franziu o cenho.

? É uma jovem que veio pedindo um emprego... ? expôs a cozinheira limpando as mãos no avental.

? Do que, de limpadora de chaminés? ? Disse de mau humor. Não podia acreditar no que seus olhos observavam. Na cozinha, um lugar sagrado, havia uma moça coberta de sujeira, faminta pelo que podia apreciar, e desprendendo um aroma parecido ao do esterco de cavalo. Como tinha ocorrido a Hanna fazê-la passar à cozinha? Se a garota não partisse terminaria empesteando toda a mansão.

? Se me permitir isso, senhor, posso lhe informar que sei lavar, costurar, e inclusive posso ajudar em outras tarefas domésticas... ? murmurou sem levantar a vista do chão.

? Disse lavar? Não estou tão seguro disso, menina. A sujeira que vejo em seu corpo me indica que não deve ter muito claro o que significa isso... ? O mordomo cruzou os braços e entrecerrou os olhos.

? Brandon! Como pode falar assim? ? Hanna explodiu e, diante de Beatrice, tratou-lhe com familiaridade, advertindo à jovem que entre eles existia uma relação mais afetiva do que aparentavam.

? Esta moça tem que sair daqui o antes possível, senhora Stone ? explicou com tom sereno e firme. ? Eu não gostaria de sentir a fúria do duque em meu corpo por algo que nem sequer me corresponde.

? Suplico-o, senhor ? interveio Beatrice entre soluços. ? Preciso comer. Hoje fui abençoada pela amabilidade da senhora Stone, mas amanhã... do que me alimentarei amanhã?

Brandon, que tinha se girado para que Hanna não observasse o aborrecimento que lhe provocou seu ato de solidariedade, ficou durante uns instantes parado com o olhar cravado na porta por onde tinha entrado. Depois de meditar o rogo desesperado da jovem, sorriu meio de lado e se voltou para esta.

? Já esteve alguma vez com um homem? ? Enrugou a testa e a olhou diretamente aos olhos.

Hanna, depois de escutá-lo, levou-se a mão à boca. Sabia o que estava a ponto de expor e pensou que se na verdade lhe oferecesse aquele posto, ela cairia ao chão.

? Como? ? Apesar de ter as bochechas cobertas de barro, o rubor era visível em seu rosto.

? É virgem? Manteve relações sexuais? Sabe esquentar o leito de um homem? ? Continuou com o inesperado interrogatório o mordomo. Deveria assustá-la, não podia fazer com que Hanna tentasse acolhê-la tal como parecia pretender. Desde que a filha de ambos morrera fazia já quase quinze anos, o instinto maternal brotava sem que ela percebesse e em muitas ocasiões, de maneira incorreta.

Beatrice esteve a ponto de desmaiar. O que tentava dizer o mordomo? Por que precisava saber se alguma vez tinha estado entre os braços de um homem? Quis romper a chorar quando em sua mente brotou a lembrança daquele momento. Sim, tinha estado com um homem e tinha perdido a inocência com ele, mas... tinha que explicar como e em que circunstâncias a tinham desflorado?

? Vejo que está pensando... ? um sorriso zombador apareceu no rosto enrugado.

? Não... ? disse enfim Beatrice apertando os punhos e armando-se de coragem.

? Informo-lhe, senhorita, que o único posto livre que temos nestes momentos é o de cortesã. Nosso duque necessita de uma mulher para saciar seus desejos sexuais e o pagamento é uma bolsa de cem moedas de ouro por esses serviços. Sabe agradar a um homem?

Hanna girou e se dirigiu para o fogo. Não suportava a situação que estava vivendo e se jogava a culpa disso. Se tivesse fechado a porta e não a tivesse arrastado até o interior, a moça teria partido morta de fome, mas com sua dignidade intacta.

? Sim ? respondeu com firmeza. Levantou seu olhar, elevou o queixo e prosseguiu: ? Todos os homens que passaram pelo meu leito partiram satisfeitos.

Era real o que brotava de seus lábios? Sabia ela saciar os apetites sexuais de um homem? A única vez que esteve com um tinha uma faca apertando sua garganta e naquele momento não pensava em satisfazê-lo a não ser em fazer o que este lhe pedia e fugir com vida o antes possível.

? Perfeito então. Senhora Stone, ? disse à cozinheira que não era capaz de olhá-lo ? já temos uma prostituta. Ordenarei que lhe preparem uma habitação. Não albergue a falsa esperança de ter um teto onde dormir, isso não está no acordo. Mas eu gostaria de apreciar a beleza que oculta embaixo dessa capa de imundície. Além disso, para que elimine esse pestilento aroma, deveria ficar de molho no mínimo uma semana. Senhora Stone, já que foi você quem se proclamou benfeitora da jovem, deixo-a em suas mãos para que a prepare de maneira adequada.

Hanna não respondeu. Estava mexendo em uma panela de metal o guisado que pretendia oferecer para o almoço. As lágrimas percorriam seu velho rosto e sentia que a garganta lhe oprimia. Sem querer tinha conduzido a jovem a um destino turvo, escuro.

? Senhora Stone? ? Inquiriu Brandon para certificar-se de que o tinha escutado.

? Sim, senhor Stone, prepararei-a ? respondeu apertando a mandíbula.

Escutou-se a porta depois da saída do mordomo e depois disto, houve silêncio. Beatrice tinha ficado de pé, incapaz de mover-se. Ainda não era consciente do que tinha acontecido. Tinham lhe devotado o posto de cortesã e ela, em um ataque de ira, tinha-o aceito? Como podia ser tão tola? Possivelmente não pensou em nada depois de escutar que lhe pagariam uma centena de moedas de ouro. Era muito mais do que levou em seu bolso quando partiu de Londres e estava segura de que, com essa quantidade, poderia comprar outros animais com os quais poderia sobreviver durante bastante tempo. Embora para seguir vivendo nas condições nas quais se encontrava, devia padecer de novo a dor e a vergonha? Viver um pouco mais ou morrer na cabana? Se algum dia alguém aparecesse por ali descobriria ossos de um cadáver, o seu.

«Viver para lutar», pensou para si.

Suspirou com intensidade e fez desaparecer todo tipo de inquietações. Devia fazê-lo e ponto.

? Sinto-o... ? escutou a cozinheira murmurar. ? Tudo isto foi por minha culpa...

? O emprego, eu o aceitei. Se quisesse teria me negado ? indicou ao mesmo tempo em que se aproximava das costas da anciã.

? Não é justo! Esse homem se aproveitou da sua necessidade e jamais o perdoarei ? gritou enfurecida enquanto levantava a panela com raiva.

? Senhora Stone, você é um anjo e de verdade, aconteça o que acontecer, estarei eternamente agradecida. Graças a você poderei sobreviver uns meses mais.

Beatrice não queria que ela se preocupasse com seu futuro. Acaso se tinham preocupado seus pais? Não. Depois de lhes revelar o que tinha acontecido com o conde de Rabbitwood e lhes haver jurado que ela não tinha feito nada, seu pai saiu correndo enquanto que sua mãe chorava sem consolo. Para onde tinha partido o destroçado pai? Para a residência que o atual duque de Rutland tinha em Southwark. Seu único propósito era lhe pedir clemência. Acreditou bobamente que este lhe ajudaria a salvar a honra manchada de sua filha, mas... o que fez o futuro duque? Nada. Não meditou nem um só segundo sobre o pedido de ajuda do barão, mas sim pensou que, como todas as damas que tinha conhecido em sua promíscua vida, mentia, e não quis questionar a reputação do bastardo de Rabbitwood.

Desde esse dia sua família começou a adoecer. Sua mãe, assídua de visitas e de festas, encerrou-se em sua câmara e não a abandonou nem sequer para realizar as funções humanas normais, o barão descuidou de suas responsabilidades e começaram a ter mais dívidas que riquezas. Finalmente, Beatrice decidiu atuar: escreveu-lhes uma nota onde lhes explicava que partia do lar para pôr fim à sua desventurada vida.

Viajou durante vinte e cinco dias. Umas vezes, graças à solidariedade de alguns viajantes, em carruagem ao lado do cocheiro, em outras ocasiões, andando. Tinha andado tanto que seus sapatos se romperam e teve que abandoná-los no caminho. Recordava que durante as longas horas de caminhada só tinha uma ideia em sua mente: chegar a Derbyshire e ocupar a pequena cabana que o duque possuía em seus territórios.

Em algumas conversações nas quais tinha estado presente, o principal tema era a riqueza das terras que herdaria o futuro duque de Rutland, e em alguma delas alguém comentou que tinha ido para caçar e que se resguardara da intensa chuva em uma pequena cabana perto do rio. Falou de quão abandonada estava apesar de encontrar-se nos limites mais ricos do terreno. Assim não o pensou, decidiu que ali permaneceria escondida o tempo que desejasse. Como o duque não lhe tinha assistido para esclarecer a verdade, ajudar-lhe-ia de maneira involuntária a ter um teto onde poder viver.

? Direi-lhes que subam a água quente... ? a suave voz da senhora Stone interrompeu suas meditações.

? Se não se importar, ficarei aqui até que tudo esteja preparado ? voltou a sorrir. Queria subtrair importância aos inesperados acontecimentos. Não podia fazer com que aquela boa mulher se sentisse desventurada pelo ocorrido. De repente, a senhora Stone se dirigiu para a porta e a abriu.

? Vá. Será melhor que o faça. Não se preocupe pelo senhor Stone. Direi-lhe que pensou melhor e recusou a oferta.

? Não partirei ? respondeu com um suave fio de voz. ? Farei o que me encomendaram. Necessito desse dinheiro, senhora Stone. Os lobos comeram minha última esperança de vida e quando retornar ao meu lar não terei nem um pedaço de pão para levar à boca.

? Isso tem solução! ? Exclamou a mulher com rapidez. ? Colocarei em uma bolsa comida suficiente para uma semana. Quando terminar, retorne.

? Não vou colocar em perigo seu posto de trabalho por cuidar de mim. ? Beatrice pousou uma mão sobre o ombro da mulher e o apertou com carinho. Então aconteceu algo que lhe surpreendeu. A cozinheira abriu seus braços e a apertou entre seu corpo com força.

? Você é uma menina... ? murmurou.

? Mas esta menina tomou uma decisão ? respondeu sem apartar-se dela.

? Há outras alternativas...

? Buscarei-as quando tudo isto tiver acabado. Mas necessitarei da sua ajuda ? murmurou apoiando a testa sobre o peito da anciã.

? Estarei ao seu lado quando precisar da minha presença, prometo-lhe isso.

? Obrigada ? disse ao mesmo tempo em que Hanna abria os braços e ela se apartava.

? Tem mais fome? ? Perguntou a anciã enquanto se dirigia para a despensa.

? Estou bastante satisfeita e acredito que depois do acontecido meu estômago não aceitaria nada mais.

? Seu estômago não poderá resistir a isto. ? Pousou uma bandeja tampada por um pano sobre a mesa e, orgulhosa do que estava a ponto de oferecer, colocou as palmas na cintura. ? É uma receita da minha mãe. Ela a herdou da minha avó. Antes o chamavam... como era? ? Pôs os olhos em branco tentando recordar o nome.

? Pudim! ? Gritou a moça ao apartar o pano que cobria o recipiente.

? Exato! Como sabe? Comeste-o alguma vez? ? Entrecerrou os olhos e a olhou com curiosidade. Se ela vinha de uma família humilde e mal tinha dinheiro para levar um pedaço de pão à boca, como sabia o nome de uma sobremesa tão deliciosa?

? Faz tanto tempo que nem o recordo... mas hoje vou rememorar esse maravilhoso sabor. Pode me dar um pedaço? ? Elevou o queixo para a mulher e sorriu como uma menina pequena.

? Coma o quanto quiser, se acabar farei outro. Tenho guardado na despensa muito leite, ovos e mel.

Beatrice emitiu um suave ruído de prazer quando tomou a primeira colherada. Fechou os olhos e se lembrou da última vez que se deleitou com aquele manjar. Enquanto isso Hanna recolhia em sua mente a resposta que lhe tinha devotado:

«Faz tanto tempo que nem o recordo...».


IV


Os criados não cessavam de murmurar sobre aquilo. Apesar de estar escondida em uma das habitações mais afastadas, pôde escutar os cochichos entusiastas de todos que caminhavam pelo corredor. Conforme descobriu, era a primeira visita que recebia o duque e supôs que esse acontecimento devia ser muito importante para todos os que habitavam na mansão. Entretanto, para Beatrice lhe resultou do mais normal que o reverendo e sua esposa fossem os primeiros em aparecer em Haddon Hall.

Depois de tirar a roupa e deixá-la de maneira descuidada sobre o chão, inundou-se na banheira e deixou que a água esquentasse seu corpo. Fazia muito tempo que não se banhava em um recipiente que albergasse por completo seu pequeno tamanho. Colocou a cabeça e conteve durante uns instantes a respiração. Quando a elevou, começou a rir. Sua mente, em vez de sopesar o que ocorreria se o duque demandasse com prontidão os serviços de sua nova concubina, pensou na conversação que estaria tendo lugar no salão principal. Estava muito segura de que sua Excelência desejaria finalizar o antes possível a visita para soltar os milhares de impropérios que reteria em sua cabeça após conversar com um reverendo tão impertinente. O certo era que ninguém em Derbyshire gostava do novo pregador. Foram à missa aos domingos para evitar falações sobre as possíveis causa de suas ausências em um dia tão famoso. Ela podia enumerar mil razões para não esbanjar duas horas de sua vida em uma reunião de tal índole, embora com uma lhe bastasse: não suportava os intermináveis e aborrecidos discursos. O reverendo em vez de atrair os paroquianos com histórias repletas de felicidade e esperança, centrava-se em quão trágica podia ser a vida quando o mal possuía uma pessoa, conduzindo-a para a libertinagem e a imoralidade.

Beatrice soltou uma enorme e sonora gargalhada. Esperava que não ocorresse ao extravagante personagem comentar à sua Excelência que o estado em que se encontrava era uma chamada de atenção do Todo-poderoso pela vida que tinha levado até aquele momento. Se tivesse um mínimo de consideração, coisa que duvidava, manteria-se calado e evitaria que o jogassem ao exterior como se fosse uma lixeira.

O que importa a ti o que digam àquele presunçoso? ? Perguntou-se enquanto subia e descia as pernas fazendo pequenas ondas na banheira. Além disso, não lhe vai mal que alguém lhe recorde que o culpado de sua desdita não foi outro senão ele mesmo.

Beatrice apoiou a cabeça na beirada da banheira e contemplou ao seu redor. A escuridão lhe produzia uma saudosa paz e bem-estar. Desde que tinha posto um pé na pequena cabana jamais apagava as velas. Dava-lhe muito medo não saber o que poderia acontecer ao seu redor, sem esquecer as feras famintas que uivava noite após noite em sua porta. Agarrou o sabão e voltou a impregnar seu corpo com este. As borbulhas formavam uma capa sobre a superfície da água e começou a brincar com elas. Então, sem saber o motivo disso, recordou o dia que conheceu a notícia sobre a volta do duque a Haddon Hall e a causa do mesmo.

? Você está certa disso? ? A chapeleira a quem estava acostumada a visitar para saber se alguém demandava os serviços de uma criada, perguntava a outra mulher com bastante entusiasmo.

? Muito certa ? respondeu a cliente em tom sério.

? Quando você disse que aconteceu? ? Continuou o interrogatório da chapeleira enquanto fazia um sinal à Beatrice para que não se movesse da sala dos fundos. Se aparecesse daquele jeito, a cliente fugiria apavorada e espalharia o rumor sobre as inapropriadas atitudes da chapeleira.

? Segundo minhas fontes, antes da primavera. O marido de uma de suas incontáveis amantes desafiou-o a um duelo de honra e o duque o aceitou entre brincadeiras ? prosseguiu a história ao mesmo tempo em que olhava e tocava os novos chapéus adquiridos para a próxima temporada.

? Entre brincadeiras? ? A chapeleira se aproximou de uma estante e agarrou uma caixa de cor branca, abriu-a e mostrou à mulher um chapéu de cor rosa com três grandes plumas azuis.

? O marido não media mais de... ? elevou a mão até o contorno de seu peito para assinalar a possível altura.

? Pobre duque! ? Exclamou a chapeleira tampando a boca escandalizada.

? Nunca se deve subestimar um adversário, por mais indefeso que pareça ? disse a mulher enquanto colocava o chapéu que lhe tinha mostrado.

? Eu acredito que o melhor é não esquentar o leito de outro homem.

? Você... não conheceu ao duque, não é? ? A mulher girou-se para a chapeleira com rapidez como se não pudesse acreditar em sua afirmação.

? Não, senhora. Quando cheguei a Derbyshire sua Excelência partiu à Londres. ? A chapeleira abaixou a cabeça ao ver a reação da mulher e estendeu seus braços para o chão.

? Entendo... ? Deu um suspiro, tirou-se o chapéu de cor rosada e pegou outro da cor de vinho tinto. ? Só lhe direi que ninguém, incluídos os homens que lhe rodeavam, podia deixar de admirá-lo. Era a perfeição, um ser sublime... ? colocou o último chapéu, olhou-se no espelho, colocou-o no lado direito e prosseguiu: ? E agora... é um monstro.

? Um monstro? ? Perguntou a chapeleira assombrada.

? Sim. Ali onde havia um rosto liso, macio e cuidado se encontram umas horrendas marcas. Dizem que são parecidas com as cordas que utilizam os piratas em seus navios. Também contam que deixou de mover o braço esquerdo. Agora... como poderá satisfazer os insaciáveis desejos carnais de suas amantes? ? Perguntou antes de soltar uma grande gargalhada. ? O que te parece? ? Inquiriu à chapeleira olhando-se de novo no espelho.

? Parece-me perfeito. Fica muito bem e acentua a palidez de sua pele ? respondeu a chapeleira sorrindo.

? Levarei esse!

Esteve a ponto de chamar a senhora Stone para que alguém voltasse a encher a banheira com água quente, mas pensou melhor. Era tempo de descansar. Quanto tempo fazia que não se agasalhava com suaves e perfumados lençóis? Beatrice secou o corpo com rapidez, enredou uma toalha no cabelo e caminhou muito devagar para a cama. Colocou os joelhos sobre esta e, sem pensar, equilibrou-se sobre os almofadões para inspirar com intensidade. O aroma de limpo impactou-a com força. Tudo parecia diferente depois do banho, até lhe resultou distinto o tato de sua própria pele. Girou-se e olhou para o teto de madeira. Era muito alto e rude, como tudo o que havia naquela mansão. Inclinou-se, pegou a ponta do lençol e se cobriu com ele. Precisava descansar um pouco antes que o empertigado senhor Stone aparecesse pela porta e a expulsasse.


Grunhiu várias vezes antes de conseguir abrir os olhos. Apesar de tentar com vigor, resultava-lhe impossível despertar do tranquilo e aprazível sonho no qual se inundou. Tinha visto sua mãe chamando-a da entrada para que fosse ao lar antes que a chuva a alcançasse. Beatrice galopava pelo campo, sorria ao ver sua mãe agitar a mão para que se dirigisse para ela. Então, no momento que descia do corcel e tentava subir as escadas, sentiu que alguém tocava seu ombro e a girava para a direção em que se encontrava...

? Senhora Stone... ? murmurou Beatrice ao descobrir a anciã ao seu lado.

? Perdoa-me se te assustei, mas levo bastante tempo batendo na porta e como não me respondia, preocupei-me. ? Hanna tinha sentado na cama e a olhava com ternura.

? Fiquei adormecida. Imagino que estava mais cansada do que imaginava ? respondeu inclinando-se e tampando sua magra figura com o lençol.

? Muitas vezes pensamos que nosso corpo não tem limites e não recordamos que somos seres humanos, não deuses. ? Levantou-se e caminhou para uma cadeira que havia junto à cama.

? O que acontece, senhora Stone? ? Quis saber a jovem ao notar certa inquietação na mulher.

? O duque decidiu solicitar os serviços de sua cortesã ? comentou com uma voz tão suave que a Beatrice custou descobrir o que havia dito.

? Tão cedo? – Ela puxou a ponta do lençol para continuar oculta embaixo deste e se dirigiu para a anciã. ? Acreditei que...

? Leva muito tempo sem ter uma mulher ao seu lado. A última que ofereceu seus serviços ficou em Londres ? indicou enquanto procurava algo de um baú.

? Tratou-a bem? Refiro a...

? Sua Excelência é um cavalheiro moça, e sua atitude é imaculada, adequada ao título que ele detém. ? Embora não quisesse que suas palavras soassem duras, foram-na e Beatrice pôde advertir que a senhora Stone adorava ao duque mais do que tentava mostrar. ? Nunca ? prosseguiu a cozinheira ao mesmo tempo em que mostrava a camisola que tinha obtido do baú ? necessitou dos serviços de uma concubina até depois do acontecido. Antes daquele momento, todas as mulheres estavam dispostas a deitar nos braços de sua excelência. No entanto, depois de ... ? tragou saliva incapaz de continuar com sua explicação devido à dor que lhe provocava falar daquilo.

? Conheço as sequelas que sofre o duque, senhora Stone.

Beatrice inclinou a cabeça e deixou que a mulher a vestisse.

? Foi uma tragédia para todos os que respeitam e servem ao senhor ? disse ao mesmo tempo em que esticava a camisola.

? Ouvi que esse destino o cultivou ele mesmo.

? Quem disse tal barbaridade? ? Hanna a olhou mostrando em seu enrugado rosto um notório aborrecimento.

? As infidelidades...

? E elas? Acaso eram mulheres respeitáveis? Cada noite, quando aquelas filhas do diabo pensavam que o pessoal de serviço estava adormecido, tocavam a porta da residência e com a desculpa de conversar com sua Excelência, tiravam-se as anáguas no próprio salão mesmo.

? Mesmo assim, se ele não tivesse aceitado os oferecimentos dessas libertinas...

? Acredito que ainda não conheceu um homem de verdade... ? resmungou. ? É sério que pensa que é fácil negar-se à tentação mais prazerosa que tem o ser humano?

? Senhora Stone! ? Exclamou assombrada. Não esperava que aquela doce e tenra anciã pudesse lhe falar de algo tão escandaloso como as relações carnais.

? O duque não te obrigará a fazer nada que não queira ? expôs depois de uns momentos de incômodo silêncio. ? Agora, se não se importar, eu gostaria de te escovar o cabelo. Tem-no muito enredado.

Podia sentir o coração lhe pulsar com intensidade na garganta. A senhora Stone a tinha deixado sozinha em frente à porta do quarto já fazia um bom momento e não tinha conseguido adquirir a força necessária para chamar. De verdade seria capaz de fazê-lo? Como ia manter a promessa que tinha feito à anciã? Seria inevitável não olhar o desfigurado rosto do duque e compará-lo com o que uma vez foi. Trataria-a bem? Seria atencioso com ela ou se comportaria como Rabbitwood? Apertou os punhos e a mandíbula. Não devia comparar ambas as situações porque não eram semelhantes. Agora sabia a razão pela qual era requerida, entretanto, a vez que ela entrou para responder à suposta chamada de seu apaixonado, encontrou a um homem sem escrúpulos, um torturador, um filho do próprio diabo. Ante tal lembrança, Beatrice começou a tremer. Podia escutar seus dentes batendo. O pêlo de seu corpo se arrepiava pelo medo.

Cem moedas... ? meditou para si. Cem míseras moedas que me oferecerão um pouco mais de tempo de vida, continuou pensando. Respirou fundo, esticou uma mão tremente para a maçaneta e a girou devagar.

A primeira palavra que surgiu em sua mente quando acessou ao quarto foi escuridão. A habitação estava muito tenebrosa. Mal podia distinguir onde se encontrava a cama do duque e nem muito menos onde se achava este. Tentou entrar um pouco mais arrastando os pés para não tropeçar. Sem se dar conta levou a mão direita para o cabelo e começou a enredar uma mecha com um dedo.

? Pode entrar ? escutou a suave e aveludada voz do duque.

Beatrice continuou sua marcha até que a distância entre os dois foi minúscula. Estava sentado sobre a cama esperando com paciência sua chegada. O corpo da jovem congelou. Suavam-lhe as mãos e sentia que mal corria sangue por suas veias.

? Aproxime-se – disse ele estendendo uma mão para ela. ? Não acredito que deva te explicar para que veio, não é? ? Beatrice assentiu. Tinha a cabeça abaixada tentando não olhar o rosto do homem a quem ofereceria um serviço que nem ela mesma sabia como iniciar. Seu cabelo cobria os ombros e a pequena mecha encaracolada por seu dedo começava a esconder-se entre os outros fios. ? Não albergue em seu coração a possibilidade de que entre nós exista uma relação afetuosa, só quero prazer ? prosseguiu, mas desta vez o tom tinha sido um pouco mais rude, menos quente. Como se lhe doesse expressar o que em realidade ocorreria essa noite.

A jovem levantou o olhar no mesmo momento em que a vela mais próxima a eles começou a mover-se pela suave brisa de seus gestos e deixou exposta a figura do homem. Tinha o cabelo mais comprido que na última vez em que o viu e tentava cobrir com este as marcas do rosto. Entretanto, essa rápida e fugaz olhada foi suficiente para que Beatrice apreciasse a deformidade da qual tanto falavam as pessoas. Não lhe pareceu tão horrenda e monstruosa. Parecia-se bastante à cicatriz que tinha sua mãe no ventre quando tiveram que tirá-la de suas vísceras. Embora, claro esta, para um homem tão bonito e para todas as suas famosas admiradoras, seriam aterradoras.

? Só prazer... sua Excelência ? murmurou Beatrice após escutar um grunhido do duque.

Como se um raio lhe tivesse atravessado o corpo, a jovem levantou a camisola e se despiu. Nesse instante o duque estendeu sua mão em volta de um dos seus seios e o apertou com força. Beatrice sentiu uma terrível dor, tão intensa que abaixou a cabeça para que ele não pudesse observar as dobras de sua testa e como apertava os dentes. Tentou serenar-se pensando que obteria uma boa bolsa de moedas que a ajudaria a sobreviver no mundo que Deus lhe tinha devotado.

? Faça com que eu te deseje. Finja algum interesse e faça por merecer o salário que obterá quando partir ? comentou o duque com voz sólida e grosseira, mais do que a jovem teria imaginado.

Então fechou os olhos e se ajoelhou para procurar o membro do homem e fazer o que aquela noite o conde de Rabbitwood a obrigou a praticar.

Encontrava-se no salão da senhora Baithlarin. Durante toda a noite tinha evitado qualquer aproximação masculina, não por descortesia, mas sim porque ela não desejava cercar uma conversação ingênua e oferecer uma esperança quando em realidade não a havia. Parecia que todo mundo se interessava em conhecer seus pensamentos, seus desejos, suas inquietações. Certamente, tanto sua mãe como as amigas desta tinham a esperança de lhe encontrar um bom partido, possivelmente por isso a mostraram aos possíveis candidatos como se fosse um bonito troféu a ganhar.

Mas Beatrice tinha o coração ocupado. Amava Leonel desde sua mais tenra infância. Entretanto, a diferença de classes fazia impossível o matrimônio, salvo se ela fugisse com ele como tantas vezes este lhe havia insinuado. Mas não era valente, jamais o tinha sido até depois daquela noite. Descobriu em mais de uma ocasião os azulados olhos do conde de Rabbitwood observando-a, admirando-a a distância tal como tinha feito em festejos anteriores e sem tentar ocultar dos outros aqueles olhares lascivos.

Tentou dançar com ela, uma valsa para ser exata, e graças às desculpas de sua mãe pôde rechaçá-lo com estilo e educação. Mas o sinistro conde de Rabbitwood elaborou um plano, um maquiavélico e ruim para o qual teve que indagar sobre sua vida e descobriu que havia outro homem.

Em um momento de descuido maternal, um dos criados lhe fez chegar uma nota, nela se dizia que seu amado Leonel se encontrava esperando-a na biblioteca da anfitriã. Foi tão grande sua ilusão e sua vontade de vê-lo que não se perguntou a razão pela qual um trabalhador de sua família tinha aparecido em uma festa de tal classe social. Esperou um momento para correr para o lugar designado. Seu coração palpitava pelo entusiasmo, pela emoção de vê-lo depois de uns dias de distanciamento.

Ficou parada na porta da biblioteca, alisou o cabelo e tentou não mostrar a euforia que sentia. Abriu, não sem antes jogar uma última olhada e confirmar que ninguém presenciaria seu encontro. Mas houve testemunhas, embora tivessem mais motivo para se esconder do que ela. O duque e a mulher com a qual tinha paquerado no salão se ocultavam sob uma das cortinas das imensas janelas do corredor. Escutou algumas risadas, alguns beijos mais sonoros dos que ela estava acostumada a oferecer ao seu amado. O tecido áspero se moveu com intensidade no momento em que escutou uns soluços. Não eram gemidos de dor, mais pareciam pequenos gritos emanados do interior dos corpos capturados pelo sexo.

Envergonhada pelo que tinha descoberto, entrou com rapidez e fechou ainda mais rápido a porta. Devido a sua agitação, o vestido fez um círculo tão amplo que tocou várias figuras de porcelana que havia na entrada. Abaixou-se para que não terminassem quebradas no chão. Ato seguido se incorporou e dirigiu o olhar para um corpo que se apoiava no respaldo de um sofá. Estava de costas para ela e por muito que tentasse comparar aquela silhueta com a de seu amado, ambas não correspondiam. Ficou sem fôlego quando o enigmático homem deu a volta e lhe sorriu. Em efeito, não era Leonel e sim o conde de Rabbitwood. O homem que não tinha deixado de olhá-la durante o baile e quem lhe sorria descaradamente.

Quis lhe perguntar por que a tinha enganado, mas em vez de enfrenta-lo decidiu fugir. Não conseguiu seu propósito. O conde correu para ela justo quando tinha a mão sobre o trinco. Recordou a resistência e como lhe cobria a boca para que não chiasse. Depois, uma folha afiada lhe apertou a garganta. «Cortar-lhe-ei se gritar», sussurrou-lhe enquanto apartava a mão de sua boca para conduzi-la ao decote e lhe descobrir os seios. Começou a chorar. Foi o único que se atreveu a fazer. Estava tão assustada que sua mente não era capaz de pensar com claridade. Rezou para perder a consciência quando percebeu que seu vestido se elevava e o homem se colocava atrás dela para possuí-la. Entretanto, manteve-se lúcida em todo momento. Durante mais de uma hora foi submetida a um sem-fim de atrocidades. Nesse tempo pensou que alguém sentiria falta dela e a procuraria. Imaginou que, apesar de ter seus olhos cheios de lágrimas, veria entrar o Leonel, que a salvaria daquelas mãos abomináveis, mas não foi assim. O tempo passava e ninguém aparecia para interromper sua agonia. Quando o conde se cansou dela, liberou-a. «Obrigado por sua companhia, foi um prazer ter este magnífico bate-papo com você, senhorita Montblanc», foram suas últimas palavras antes de deixá-la sozinha, atirada no chão, destroçada e... morta.

A lembrança do acontecimento mais aterrador de sua vida fez com que brotassem sem cessar milhares de lágrimas. Seguia com os olhos fechados e com o falo do duque em sua boca. Esteve a ponto de retirar-se e sair fugindo quando notou uma queimação em sua língua. Um líquido quente começou a vagar por sua garganta.

Quis vomitar, quis gritar. Mas igual àquele dia, não conseguiu fazer nada. Levantou-se e abaixou a cabeça. Seu corpo seguia tremendo, desejava tirar a agonia que sofria em seu interior de algum jeito, mas... como? Escutou algo. Não soube com claridade o que. Mas depois de observar que o duque se incorporava e se girava agarrando-se ao dossel de madeira, imaginou que a despachava de seu lado.

Com rapidez agarrou a camisola e a pôs enquanto as lágrimas seguiam nublando sua visão. Esticou a mão, girou a manivela para abrir a porta e então escutou um soluço. Não era como o que emitiu o homem quando estava sob a cortina, era mais um lamento. Sem saber a razão, girou-se para o homem e, durante um segundo, observou-o chorar. Sem atrever-se a dizer nenhuma palavra, abandonou a habitação, baixou as escadas e não parou até que se encontrou com o senhor Stone, que se encontrava junto à saída principal da mansão.

Agarrou com força a bolsa de moedas que lhe tinham prometido sem poder articular palavra, só queria afastar-se o antes possível dali, e quando escutou o ferrolho atrás de suas costas, estremeceu-se antes de pôr-se a correr agasalhada pela frieza da noite, não diminuiu a marcha até que entrou no bosque. Apoiou a palma da mão em um tronco e começou a vomitar. Expulsou tudo o que tinha no estômago, as lágrimas lhe ardiam e lhe doíam tanto como a folha afiada de Rabbitwood em seu pescoço. Voltou a recordar as coisas que aquele homem a obrigou a fazer, o sofrimento que sentiu quando a penetrou com rudeza e notou de novo como seu corpo se partia em dois.

Beatrice gritou enquanto seguia vomitando. Esforçou-se tanto em tirar aquilo que tinha em seu interior que caiu ao chão de joelhos. Tentou respirar, encher seus pulmões de ar, mas lhe resultou tão difícil controlar sua respiração que terminou desmaiando e caindo de bruços no chão.


V


Se seus cálculos não falhavam, estava em Haddon Hall pouco mais de dois meses. Mas não estava cem por cento seguro. Naquele lugar o tempo transcorria tão devagar que parecia não avançar. Não importava se passasse as tardes recebendo ou devolvendo visitas, todos os dias eram intermináveis e as noites, depois do dramático encontro com aquela moça, eram insuportáveis. Sempre se encontrava de mau humor, até o ponto de que nem ele mesmo podia suportar-se.

Possivelmente outro motivo para adotar aquela atitude fosse a inoportuna queda que sofreu ao subir as escadas da entrada. Não foi nada grave, conforme lhe informou o doutor que o atendeu, mas a partir desse momento teria que apoiar-se em uma bengala para evitar outra queda similar. Se antes do tropeço via a si mesmo como um inútil, agora, obrigado a usar o apoio de uma vara de madeira, sua opinião se acrescentava. Quais outros desastres lhe proporcionaria o futuro? Uma enfermidade que o deixasse prostrado em uma cama pelo resto de sua vida? Ou talvez tropeçasse de novo com tão má sorte que sua cabeça ricochetearia no chão e ficaria cego pelo impacto?

William caminhou seguro à sua bengala até a poltrona situada junto à chaminé, onde da janela observava o novo amanhecer. Algum servente tinha acendido o fogo e as chamas além de manter o ambiente quente, também proporcionavam a luz necessária para observar sobre a escrivaninha uma pequena montanha de missivas. Tinha que lê-las e as responder o quanto antes possível, mas não estava com humor. A verdade era que nunca estava com ânimo para fazer algo. Só queria fechar os olhos e, depois de abri-los, descobrir que todo o vivido tinha sido um pesadelo induzido por sua consciência. Entretanto, nunca era assim, quando elevava as escuras pestanas, seguia sem poder mover a mão, as marcas de seu rosto não tinham desaparecido assim como não cessavam aqueles surtos de dor depois do impacto. Esse seria seu futuro? Viver para desejar morrer? De verdade que não podia fazer nada para mudar o destino?

William fixou os olhos na intensidade das chamas e as associou à força que ele mesmo possuiu no passado: fortes, invencíveis, impossíveis de abater. Entretanto, se um de seus criados arrojava um caldeirão de água sobre aquelas vívidas chamas, apaga-las-ia no momento. Só ficaria carvão. Possivelmente uma ou outra brasa tentaria sobreviver à destruição, mas apesar do esforço jamais retornaria à intensidade do fogo inicial.

? Sua Excelência, ? Brandon apareceu levando uma pequena bandeja prateada sobre suas mãos e interrompeu com brutalidade a meditação do homem ? chegou o correio.

O homem deixou a bandeja em uma mesa junto ao duque e esperou de pé junto a ele se por acaso necessitasse sua perícia ao escrever para responder as cartas que necessitassem de resposta.

William as olhou pela extremidade do olho e passou a mão sã por elas esboçando uma careta. Ele optou pelo periódico e o colocou sobre suas pernas para lê-lo sem demasiado interesse, Londres e tudo o que concernia a ela já formava parte de seu passado.

Abriu o jornal em uma página ao azar e a foto de um Federith sorridente, exultante de felicidade com sua recém-adquirida esposa pelo braço, furou-lhe os olhos. Leu muito devagar a notícia que anunciava as núpcias do barão de Sheiton com lady Caroline Middelton na propriedade que possuía o nobre em Hemilton.

O periódico era de três semanas atrás e embora Federith já lhe anunciasse suas intenções antes que William abandonasse Londres, a notícia lhe caiu como um jarro de água fria. Franziu o cenho e a mão lhe tremeu um pouco antes de lançar o maço de papéis para o fogo.

? Más notícias, senhor? ? Perguntou o mordomo com assombro.

? Depende para quem ? respondeu tosco enquanto observava como o papel ardia.

? Se o desejar me retirarei para lhe deixar só ? indicou o homem ao mesmo tempo em que fazia uma reverência e tentava afastar-se.

? Não parta. Embora não me satisfaça a notícia, tenho que felicitar ao Federith por seu recente matrimônio.

? O senhor Cooper se casou? ? Disse com uma mescla de entusiasmo e incredulidade enquanto observava seu senhor uns instantes, tempo suficiente para perguntar-se por que a feliz notícia não lhe tinha agradado. Hanna teria razão? A verdade é que não estava acostumado a dar muita importância à sua esposa, quando falava sobre o amor e muito menos quando incluía nessas conversações o duque.

Segundo ela, quão único faria o jovem sair da letargia na qual se achava era encontrar uma mulher que o amasse e lhe desse o carinho que tanto necessitava. Insinuou em mais de uma ocasião que ter crianças brincando de correr pela mansão faria com que o senhor recuperasse a vontade de viver. Entretanto, ele conhecia o duque desde que saíra das vísceras de sua mãe e, por muito que sua mulher insistisse em que tinha razão, sabia que esse tipo de vida não era a adequada para ele. O homem tinha nascido para ser livre, para esquentar as camas de outros maridos, para observar as vidas familiares de outros à distância.

? Digamos que encontrou uma mulher à sua medida ? comentou William com maldade após refletir na resposta adequada. Logo dirigiu o olhar para as garrafas e fez um leve gesto com a cabeça para que Brandon lhe servisse uma taça.

? Deseja lhe responder, senhor? ? Perguntou o ancião enquanto enchia a taça de licor e a aproximava o suficiente para que o duque pudesse pegá-la.

? É óbvio! Responderemo-lhe agora mesmo. – Bebeu o uísque de um gole e elevou o copo para que seu mordomo o voltasse a encher. Brandon, mais assustado que assombrado, encheu de novo o copo de licor e, depois de oferecer-lhe, pegou um papel em branco e uma pluma para escrever.

? Meu querido Federith ? começou a ditar. ? Como bem sabe, sempre me satisfazem suas alegrias, embora muito me temo que esta não é tal. Não faz muito te expliquei que é dono de seu destino e, se Deus for justo, arrebatarár-te o que não te pertence. Não esqueça que meu lar terá as portas abertas quando aparecer chorando e afirmando minha verdade. Pode permanecer todo o tempo que desejar. Por certo, sabe algo do miserável do Bennett? Faz mais de três meses que não tenho notícias dele e isso me inquieta. Atenciosamente, William.

Brandon conteve a respiração em todo momento. Foi colocando sobre a folha cada palavra que escutava da boca do duque, ao mesmo tempo em que sua cabeça não cessava de lhe insistir que a pessoa que pronunciava aquela maldade não estava em plenas faculdades mentais. Eram daninhas, maquiavélicas, quando deveriam estar cheias de felicidade e bons desejos.

? Quer que a leia em voz alta? ? Perguntou o mordomo levantando do assento.

? Não precisa, sei o que eu disse ? respondeu com rudeza.

? Então, se sua Excelência me permitir isso, farei os arranjos para enviá-la esta mesma manhã.

? Antes de partir encha de novo o copo, está vazio. ? Levantou a taça para que Brandon a pegasse e obedecesse ao mandato.

Em silêncio, sem mostrar no rosto sua estranheza, o servente verteu mais uísque no copo, ofereceu-o ao seu senhor, fez a reverência e partiu. Quando fechou a porta, o ancião voltou a ler a nota que devia enviar, sem estar convencido de todo da idoneidade de seu conteúdo. Talvez Hanna pudesse deduzir o que acontecia na cabeça de seu senhor e chegar a uma conclusão lógica que explicasse aquele comportamento errático e malicioso. E com essa intenção guardou a nota no bolso de seu casaco e se dirigiu à cozinha.

William seguia observando o fogo sem sequer piscar através do líquido ambarino. Podia ver como o álcool dançava sobre o líquido alheio à possibilidade de que o jogassem sobre as ardentes chamas. Seria igual o inferno? Estariam dançando mulheres nuas entre as chamas do abismo infernal? O homem sorriu meio de lado. Sua mente começava a nublar-se com a rápida ingestão do uísque e agradeceu em silêncio que seu cérebro começasse a funcionar com aquela lentidão. Precisava evadir-se do mundo que lhe rodeava, sonhar de novo com o homem que uma vez foi. Possivelmente, se ao cabo de um momento o estado de embriaguez aumentasse, poderia deixar a bengala e caminhar sem apoiar-se nela.

Dirigiu o olhar para as garrafas, mas estavam muito longe para alcançá-las da poltrona, teria que chamar o Brandon para que as aproximasse.

— Maldito seja, William Manners, maldito duque de Rutland! ? gritou. ? Levante-se e faça-o você mesmo!

O homem apoiou com força as plantas dos pés no chão e se surpreendeu ao não sentir a dor que dias atrás sacudia seu corpo. Soltou uma grande gargalhada ao descobrir que o miserável estado de embriaguez lhe proporcionava a força que requeria para sentir-se forte de novo. Sem deixar de sorrir caminhou até onde se encontravam as garrafas de cristal de Murano. Agarrou uma ao azar e encheu a taça.

? Agora toca a ti, estúpida mão, começa a te mover por ti mesma.

Mas não obedeceu a ordem, seguiu estendida para o chão. Zangado, andou pelo salão dando voltas e bebendo sem parar. Cada vez que drenava a taça, enchia-a de novo. Ao cabo de um bom momento seu corpo se cambaleava sem controle e sua mente tinha perdido toda sensatez.

Aproximou-se da mesa, pegou a campainha e a agitou sem cessar.

? Sim, Excelência? ? Perguntou Brandon ao ser requerido com tanta urgência.

? Diga ao cavalariço que prepare meu garanhão, vou dar um passeio por minhas terras ? comentou entre balbuceios.

? Meu senhor... ? começou a dizer o mordomo.

? Não escutou meu desejo? Acaso a velhice começa a destruir seus ouvidos? ? Desafiou-lhe.

? Não, senhor, escutei bem. Mas se me permite um conselho...

? Não quero conselhos de ninguém! ? Exclamou elevando a mão que segurava o copo vazio e atirando-o para o chão.

? Sim, Excelência. Informarei ao cavalariço.

? Avise-me quando tudo estiver preparado – disse-lhe dando as costas para poder cravar de novo seus olhos no fogo.

? É óbvio. Deseja que seu ajudante de câmara o agasalhe adequadamente?

? Não. Será um passeio breve.

? Como desejar... ? Brandon se inclinou levemente para frente e com passo firme saiu do salão.

Respirou fundo após fechar a porta e em vez de sair correndo para as cavalariças retornou à cozinha, onde tinha deixado sua mulher resmungando pelas palavras tão inapropriadas que o duque tinha dirigido ao enlace de seu amigo.

? Quer sair para montar ? disse desesperado quando entrou na cozinha.

? O que?! ? Perguntou a mulher atônita.

? Ordenou-me que preparem seu garanhão. Deseja passear pelas terras ? prosseguiu.

? Terá lhe tirado essa insensatez da cabeça, não é? ? Hanna colocou suas mãos sobre a cintura e enrugou a testa.

? Não quer escutar. Acredito que bebeu muito...

? Agora mesmo vou dar aquele par de açoites que deveríamos ter lhe dado quando começou a apodrecer sua alma!

? Hanna! ? Gritou Brandon agarrando-a pelo braço para impedir que saísse dali. ? Temos que lhe deixar ver que não é o homem que uma vez foi. Ele deve assumir.

? E nós... o que faremos enquanto isso? ? Sua voz era suave, quase imperceptível.

? Rezaremos como tantas vezes fizemos quando lhe dispararam ? respondeu aflito.


VI


Beatrice se espreguiçou com um sorriso que iluminou seu rosto. De um tempo para cá dormia bastante bem e tudo se devia a uma singela razão: tinha o estômago cheio. Tinha comprado animais, cultivado verduras pelos arredores de seu pequeno lar e até tinha construído um cercado para que os lobos deixassem de aniquilar o gado. Tudo acontecia segundo o previsto. Nada perturbava aquela felicidade, salvo quando uns pensamentos impossíveis se fundamentavam, em como enfrentar o passado apareciam em sua cabeça. Tentava esquecê-los com rapidez, ainda não era o momento de pensar nisso e tampouco tinha ainda a força necessária para aparecer em Londres e lutar pela verdade, a sua verdade.

Apoiou os pés no chão e depois de esticar os braços decidiu tomar um bom café da manhã antes de sair ao campo. Depois das últimas chuvas, os arvoredos estariam repletos de cogumelos e desejava encontrar todos que coubessem em sua cesta para preparar suculentos manjares.

Depois de tirar a camisola e colocar-se um dos vestidos que comprou na semana anterior no povoado, caminhou para a pequena cozinha para tomar o café da manhã. O estômago não lhe rugia como antes, tampouco sentia aquela debilidade moribunda que lhe impedia de levantar-se da cama, agora estava cheia de vida.

Verteu chá em um copo e colocou um prato com ovos, verduras cozidas e duas fatias de pão. Quando se sentou observou surpreendida o que havia sobre a mesa. Sem dar-se conta tinha preparado o café da manhã preferido de sua mãe.

Àquele pensamento, à lembrança de sua mãe e à vida que desfrutou antes de ser manchada, entristeceu-a tanto que mal pôde dar um bocado.

«Algum dia, ? disse ? tudo voltará para a normalidade e aqueles que me julgaram carregarão o resto de suas vidas com a desgraça da condenação».

Mas... seria verdade? Retornaria de novo para lutar por sua honra? Estava escondida mais de meio ano do acontecido, pensou que se separando de sua família, dos olhares de compaixão ou de recriminação, poderia curar sua alma ferida e fazer-se suficientemente forte para voltar e suportá-lo, mas com o tempo estava se acomodando à vida que levava e cada vez se fazia mais longínqua à ideia de retornar ao lugar onde foi ultrajada. Como trocar uma vida cheia de tranquilidade e quietude por outra repleta de dor? Era certo que em muitas ocasiões Beatrice se sentia sozinha e tentava resolver essa sensação conversando com seus animais, mas exceto algum zurro, choramingação ou grasnido, não encontrava nada mais.

Zangada por entristecer um bonito dia com pensamentos dolorosos, jogou a cadeira para trás com as pantorrilhas, pegou tudo o que tinha sobre a mesa e o introduziu irada no tanque. Precisava sair dali o antes possível ou se voltaria louca. O isolamento não era tão bom como tinha suposto e embora lutasse com unhas e dentes para manter-se sã, estava justo no limite. Começava a tocar a loucura torturante com as pontas dos seus dedos.

Olhou de novo pela janela desejando confirmar se o tempo não tinha trocado e poderia abandonar a cabana. Em efeito, o sol seguia brilhando, convertendo aquele dia no perfeito para dar aquele passeio. Colocou a capa, agarrou a cesta de vime e saiu do lar com um sorriso no rosto.

Um cão... ? pensou enquanto caminhava. Seguia pensando em como eliminar o silêncio da casa. Seria um bom mascote, ocuparia aqueles momentos nos quais não sei com quem falar. Além disso, são fiéis e jamais me abandonaria, refletiu ao mesmo tempo em que agarrava o primeiro punhado de cogumelos que encontrou aos pés de uma árvore.

Seguia pensando no animal e em como chamá-lo quando um bando de pássaros voou entre as copas das árvores. Beatrice elevou o olhar e ficou observando a estranha atuação destes. Preocupada se por acaso lhe indicavam a cercania de algum perigo, agarrou com força a cesta e prosseguiu devagar. De repente, escutou outro ruído, tão intenso que a deixou imóvel. Apertou contra si a cesta e olhou para o lugar de onde procedia o som.

Um animal corria apavorado. Ia tão veloz que não distinguiu com precisão se era um cervo, um alce ou um cavalo perdido. Por que estavam os animais tão assustados? Só podia achar uma resposta a esse comportamento aterrador. Os lobos tinham retornado e rondavam pela zona, levavam noites uivando perto de sua cerca. Tinha se esquecido deles ao sair da casa tão desesperada por notar os raios de o sol lhe acariciar a pele. Assustada, decidiu caminhar para o rio Wye. Se chegasse logo ao trecho de máximo fluxo poderia introduzir-se na água e aguentar o tempo necessário até que aqueles depredadores decidissem afastar-se de uma possível presa.

O ruído dos ramos ao romper-se, o canto dos pássaros, a brisa do vento movendo as folhas... começaram a lhe criar um medo tão atroz que lhe adormeceram as pernas e esqueceu seu plano de dirigir-se para o rio. Seu lar era o lugar mais seguro. Custava-lhe respirar, avançar com fluidez. O pânico se apropriou de seu corpo e a tinha paralisado. Em um ato de fé, daqueles que não teve no acontecido com o Rabbitwood, fechou os olhos e começou a orar. Rezava para salvar-se, para que seu medo desaparecesse, para que brotasse aquela força que necessitava. Ao princípio rogou em silêncio, pouco depois o fez em voz alta, como se as orações fossem suficientes para espantar um possível mal.

Subiu uma pequena colina de onde pôde divisar a cabana. Ficava só uma centena de passos e se salvaria. Seu caminhar começou a ser agitado, precipitado. De repente notou a presença de algo atrás dela. Girou-se rapidamente para saber do que se tratava. Não havia nada. O medo lhe provocava alucinações.

Seguiu correndo olhando para trás, não queria parar. E então... aconteceu. Tropeçou em algo que havia no chão e caiu no barro. Durante uns instantes ficou tombada, cobrindo seu rosto com o cabelo manchado de lodo e sem poder elevar os olhos. Esperou o suficiente até que comprovou que não se escutava nada ao seu redor. Elevou-se com rapidez, agarrou a cesta e se dispôs a continuar correndo quando sua curiosidade lhe fez olhar para a razão de sua queda.

? Santo Deus! ? Exclamou ao mesmo tempo em que se aproximava do que se supunha ser um corpo e estendia os dedos fazendo com que a cesta retornasse à terra lamacenta.

Uma enorme capa escura e manchada cobria a figura de quem jazia estendido. Beatrice não o duvidou. Esticou as mãos para o tecido, apartou-o devagar para certificar-se de sua premissa e gritou:

? OH, Senhor!

Andou vários passos para trás, levou-se as mãos à boca e a tampou para não continuar chiando. Ficou tão atônita que, depois de confirmar quem tinha em frente a ela, não sabia o que devia fazer. Se fosse embora, se o deixava ali estendido; podia retornar à sua casa e esquecer que o tinha visto. Entretanto, o que pensariam no povoado quando descobrissem o corpo inerte do duque e a ela vivendo em suas terras de maneira clandestina? A única resposta plausível era que ele a encontrou por acaso e quis obrigá-la a partir de suas terras e como ela não desejava lhe obedecer, aproveitou sua invalidez para lhe dar fim. Questionariam-se como uma mulher tão pequena teria sido capaz de fazer tal maldade? Não, é óbvio que não. Além disso, se descobrissem sua identidade, a sentença não apresentaria dúvida alguma.

A única opção que tinha era averiguar se estava vivo e conduzi-lo até a cabana, prestar-lhe auxílio e quando amanhecesse, correr a Haddon Hall para pedir ajuda, embora isso lhe custasse à expulsão da qual tinha sido seu lar durante os últimos meses. Devagar, mais do que pretendia, aproximou-se do duque e o observou com atenção.

«Obrigado, Meu Deus!», murmurou ao céu quando percebeu que ainda respirava.

Nesse momento outro bando de pássaros voou com frenesi sobre eles. Sem pensar duas vezes girou o corpo inconsciente e o agarrou pelas axilas para arrastá-lo. Não havia tempo nem forma fácil de trasportá-lo, então o arrastou sem descansar até que suas costas tocou o cercado que rodeava seu lar. De repente escutou uns ramos se partirem. Levantou o olhar e os observou. Grunhiam e lhes mostravam os dentes. Seus olhos escuros se cravavam nela. Um lobo cinza deu uns passos para diante, levantou o focinho e uivou com força. Beatrice tragou saliva. Sentia o medo percorrer seu corpo, mas não se amedrontou. Prosseguiu sua façanha até que introduziu o duque ao interior da cabana e fechou a porta com o trinco.

Deixou-o estendido no chão enquanto procurava a maneira de subi-lo à cama. Compreendendo que não tinha nada que a ajudasse no árduo trabalho, decidiu pegar o colchão e situá-lo perto do ferido. Assim, quão único teria que fazer era rodá-lo até que estivesse em uma posição adequada. Antes de voltar a tocá-lo ficou de pé observando-o em silêncio. As marcas do rosto, aquelas que tanto tentava esconder com a longa barba, mostravam-se sem disfarces. Ao contempla-las com mais claridade, pensou que não eram tão horrendas como diziam, embora para um homem tão formoso, aquelas sequelas fossem feitas pelo próprio diabo.

Seguiu admirando-o à distância. Tinha um aspecto muito viril, robusto e atlético, muito distante, em sua opinião, da fraqueza em que todos insistiam na sequencia do incidente.

Com valentia voltou a segurá-lo e o girou de lado para colocá-lo sobre o colchão, afastando-o da frieza do chão. Ao pôr suas mãos sobre ele notou que estava gelado, a roupa molhada se grudava ao seu corpo e o esfriava sem compaixão. Decidida, aproximou-se da chaminé, colocou uns troncos e acendeu um fogo. Isso bastaria para esquentar a pequena habitação em que se encontravam. Enquanto as chamas começavam a brotar, voltou para o ferido e começou a lhe tirar aquela capa enlameada. O duque emitiu um pequeno gemido provocando que Beatrice se sobressaltasse e se apartasse. Não desejava que abrisse os olhos e a encontrasse tocando seu corpo. Poderia deduzir algo que não era.

Esperou sentada junto à chaminé outra reação do homem, mas ao ver que seguia inconsciente retornou para continuar lhe despojando dos objetos. Era a primeira vez em sua vida que se encontrava em uma situação parecida e embora não devesse sentir nenhum tipo de temor, estava tremendo. As mãos não eram capazes de desfazer o nó da capa, nem de lhe tirar com agilidade a jaqueta. O que lhe acontecia? Estaria lembrando-se da noite que passou com ele? Não, não era isso. Só estava nervosa se por acaso o duque abria os olhos e a descobrisse despindo-o. O que pensaria? Certamente que lhe estava roubando. Os homens de sua índole jamais imaginariam que alguém podia lhes ajudar por solidariedade.

Quando ao fim o deixou em camisa descobriu uma mancha de sangue que não tinha visto com antecedência. Devagar desabotoou cada botão até que o peito ficou descoberto e pôde inspecionar a zona de onde brotava o sangue, era uma ferida que abrangia do flanco esquerdo até o ventre, uma zona que ao duque lhe teria sido impossível proteger com seu braço inútil. Beatrice não pôde evitar olhar o torso com assombro. Era a primeira vez que descobria o que se escondia sob as roupas de um homem. Nunca pensou que fosse tão robusto, nem que nessa zona o pêlo crescesse tão escuro e encaracolado. Mas o que lhe deixou sem fala foi o tamanho dos mamilos, eram diminutos, mal visíveis à primeira vista. Sem meditar mais sobre isto, incorporou-se, preparou uma panela com água fervendo e começou a limpar o corte com supremo cuidado. Não era profundo, só um arranhão muito comprido.

Cada vez que passava o pano o homem franzia o cenho e se queixava, embora não abrisse os olhos. Depois de seus cuidados, sentou-se de novo junto à chaminé. Estava muito cansada por todo o ocorrido. Não só seu abatimento era físico, mas também mental. Ela podia ter salvado a vida do duque de uma morte segura, pois se o tivesse abandonado, os lobos teriam se alimentado dele. Mas este ato de misericórdia teria consequências nefastas para ela, deveria abandonar o lugar que chamava de lar. Um lugar que lhe contribuía com paz, quietude e esperança de não voltar a ser a mulher que foi.

Sentada, estendeu as pernas, cruzou os braços, apoiou a cabeça na parede e deixou que o sono se apoderasse dela.


VII


Doía-lhe todo o corpo, inclusive a parte que era insensível. Elevou com pesar as pálpebras e não soube reconhecer onde se encontrava. Quão último recordava era que seu cavalo se assustou no bosque, justo antes de chegar ao rio Wye, e tinha começado a correr sem controle. Tudo aconteceu bastante rápido. As cintas que o sujeitavam à cadeira se partiram e durante um tempo esteve amarrado ao estribo do animal desenfreado até que ao final caiu ao chão. O golpe foi tão potente que foi incapaz de assimilar o acontecido durante uns momentos. Quando compreendeu o ocorrido tentou arrastar-se pelo chão transformado em lamaçal. Apesar de seu esforço, mal conseguiu distanciar um metro de onde havia desabado. Depois gritou pedindo auxílio, mas ninguém respondeu. Exausto pelo esforço terminou perdendo os sentidos. E agora, ao despertar daquela agonia, achava-se em um lugar que não conseguia distinguir.

Moveu a cabeça para a direita e observou uma mulher sentada no chão a menos de um metro dele. Tinha um aspecto lamentável: o barro cobria cada centímetro de tecido de seu vestido assim como seus sapatos. Dirigiu os olhos para o rosto da moça para tentar reconhecê-la, mas foi impossível. Uns largos cachos negros soltos de um coque tampavam seu semblante. William franziu o cenho ao compreender que a desconhecida dormia no chão apoiada sobre a parede e claramente, exausta pelo cuidado que dava a ele.

? Desculpe... ? sussurrou após respirar várias vezes e procurar uma palavra adequada para não sobressaltá-la.

? Já despertou? ? Perguntou Beatrice dando um salto.

Sem esperar a resposta do homem aproximou-se e lhe colocou uma mão sobre a testa. Nesse momento William fechou os olhos, não queria ver no rosto da mulher, sua expressão de angústia quando contemplasse suas cicatrizes.

? Parece que não tem febre. Foi uma sorte que o tenha encontrado antes que pudesse adoecer ou acabar devorado por... ? deixou sem finalizar a frase. Levantou-se, aproximou-se da mesa onde tinha o pano com o qual o tinha limpado e, depois de ajoelhar-se, voltou a lhe limpar o peito, o pescoço e o rosto. ? Terá que ficar um tempo de repouso, embora as feridas não sejam graves, necessitam de uns dias tranquilos para que sarem adequadamente.

O tom da jovem era tão terno que o duque fechou de novo seus olhos. Desejava com todas as suas forças que aquela imagem, em que uma mulher o cuidava sem sentir asco por suas feridas, não fosse uma alucinação.

? Onde estou? ? Ao sentir o suave tato da mão feminina pela zona na qual seu rosto estava destroçado, William abriu os olhos e, sem pensar agarrou-lhe com força pelo pulso para que cessasse imediatamente.

? Em minha casa. ? Beatrice o olhou apertando os olhos para a pressão daquele aperto forte. Não esperava que lhe agradecesse por lhe haver salvado a vida, mas tampouco imaginou que lhe ocorresse ser um mal educado.

William, ao ser consciente de seu inoportuno ato, soltou-a e tentou incorporar-se, mas ela o impediu colocando uma palma sobre o peito nu do homem e lhe obrigando a recostar-se de novo. O cabelo negro se estendeu pelo colchão. Sua respiração não era tranquila e Beatrice podia ouvir o tilintar das botas do duque ao golpear-se.

? Deve recuperar-se... seu... senhor.

? Eu gostaria de lhe informar sobre certas feridas do meu corpo. Quero lhe esclarecer que não foram causadas recentemente... ? seu tom soou débil, inclusive triste.

? Mas apesar disso deve descansar. ? Levantou-se e se dirigiu para um caldeirão metálico que tinha muito perto do fogo. Colocou uma concha de sopa e tirou algo que introduziu em uma terrina. ? Acredito que isto lhe virá bem... ? retornou para o homem, agachou-se, colocou seu braço esquerdo ao redor do pescoço masculino, inclinou-o para frente e pôs uma pequena superfície da borda sobre os lábios. ? Não tem nada a ver com os ricos manjares aos que imagino que você deve estar acostumado, mas este caldo lhe reconfortará. ? E antes que o duque pudesse negar-se, Beatrice o fez tomar.

William esticou a mão para o recipiente e ajudou à moça. Era certo que não tinha provado nunca um sabor igual, embora a necessidade de alimentar-se e de recuperar um pouco de força fez com que bebesse até a última gota sem mal respirar. A jovem voltou a estendê-lo sobre o colchão enquanto ia de um lado para outro. Estava inquieta e ele a compreendia. Tinha em sua casa a um estranho que mal podia mover-se e que parecia ter a obrigação moral de cuidar.

? Quando chegará seu marido? Devo lhe indicar onde resido. Ele poderá informar aos meus criados do meu paradeiro e estou seguro de que não demorarão em vir por mim. Agradeço-lhe tudo o que tem feito, entretanto você entenda que não desejo ser uma carga... ? disse-lhe sem apartar a vista de quão único alcançava a ver, seus tornozelos.

? Meu... quem? ? Deu uma volta sobre si mesma com brutalidade, provocando que sua saia se elevasse algo mais do devido e que o duque descobrisse umas magras pantorrilhas sem meias.

? Seu marido... a pessoa que haverá me trazido até aqui ? esclareceu.

? Não há tal marido, senhor. Fui eu mesma quem o transladou. ? Colocou-se em frente a ele com as mãos apoiadas em sua cintura.

? Você carregou o meu peso? ? Perguntou assombrado e um tanto sufocado. Aquela moça não era muito alta e, notavelmente magra, mais do que se podia esperar em uma jovem de sua idade.

? Pois sim. Encontrei-o no meio do bosque e decidi lhe salvar a vida, embora possa lhe assegurar que quase me custou a minha ? sorriu.

Quando William a observou sorrir acreditou ver um anjo. Um despenteado e sujo anjo que tinha cuidado de seu rosto e não tinha encontrado nele nem um ápice de repulsão por seu deformado aspecto. Pareceu-lhe tão implausível para ele que acreditou que o golpe lhe tinha causado visões. Desde quando alguém não apartava seus olhos ao estar ele presente? Desde quando alguém o olhava sem dirigir os olhos para a cicatriz, para franzir o cenho?

? Então... devo lhe agradecer o esforço que realizou para me salvar ? disse após sua reflexão. Tentou levantar-se de novo e arqueou as sobrancelhas ao ver que seu torso estava nu. Desviou o olhar para a mulher e esta se ruborizou imediatamente.

? Tive que limpar a ferida que se fez no abdômen. Como imaginará, tive que apartar a roupa – desculpou-se.

? Obrigado ? disse depois de uns momentos de silêncio que empregou para saber como deveria continuar a conversação. ? Se por acaso não se deu conta, sou um incapacitado. Não posso mover a mão esquerda, mas não foi por causa da queda, faz tempo que deixou de funcionar. Minha perna... bom, ela tenta recuperar um pouco de funcionalidade depois de um inoportuno tropeção em meu lar.

? O que lhe aconteceu? ? Colocou-se ao lado da chaminé onde podia contemplá-lo com maior claridade.

? Como já lhe expliquei, isto aconteceu faz bastante tempo...

? Refiro-me a hoje. Por que estava caído no chão? ? Interrompeu-lhe.

? Decidi cavalgar durante um momento. Minha intenção era chegar até o rio Wye e retornar, mas meu cavalo se assustou e... bom, eu fui jogado. ? Suspirou e olhou para o teto enquanto se perguntava uma e outra vez por que dava explicações a uma estranha. Jamais as tinha dado a ninguém. Entretanto, ela era especial. Era um ser divino que o tinha salvado de uma morte segura.

Beatrice o olhou sem piscar. Tinha uma vontade incrível de lhe gritar como era insensato, mas não o fez, manteve-se calada esperando que o duque continuasse, mas ele se manteve em silêncio.

? Há lobos pela região ? explicou para romper o mutismo entre ambos. ? Talvez seu cavalo se assustasse ao escutá-los e atuou preso do medo.

? Pode ser... ? respondeu sem apartar a vista do teto.

? Assim que se encontrar melhor irei procurar ajuda. Estou segura de que alguém estará preocupado por seu desaparecimento. ? Voltou a aproximar-se e lhe abotoou a camisa para que não se sentisse incômodo por sua nudez. Ou possivelmente era ela a que se encontrava nervosa.

William quis fechar os olhos e sentir o suave tato das mãos sobre ele, mas lhe resultou impossível. Desejava observar com atenção a sua salvadora e, embora tivesse o cabelo despenteado e sujo assim como o rosto, pôde admirar a beleza de seus olhos. Uns olhos verdes que não apartavam o olhar de seu rosto nem mostravam repulsão ante a fealdade de suas cicatrizes.

? Posso lhe perguntar seu nome? ? Inquiriu William quando ela retornava para a chaminé.

? Meu nome é Beatrice ? respondeu.

? Só Beatrice?

? Beatrice Brown ? mentiu.

? Senhorita Brown, ? disse o duque com um tom sério e firme ? como compreenderá, estou em dívida com você e seria um cretino se não a saldasse.

? Não precisa me prometer nada...

? Sou o duque de Rutland e por minha honra oferecerei-lhe tudo aquilo que desejar. Se por acaso não se deu conta, salvou-me a vida.

? Não necessito de nada... ? murmurou com suavidade.

? Não quero que me responda agora, não é necessário. Mas quando decidir o que me pedir, estarei encantado de escutá-la ? insistiu sem relaxar aquele tom de venerabilidade.

À Beatrice não cabia dúvida da veracidade da promessa embora não acreditou oportuno lhe dizer que vivia em uma propriedade dele e precisava seguir permanecendo ali durante o resto de sua vida. Para evitar que o homem continuasse falando com tanta seriedade, desenhou um sorriso em seu rosto e disse:

? Possivelmente a queda lhe tenha prejudicado mais do que parece. Como mínimo, deve ter lhe afetado o ouvido. Faça o favor de descansar. Por agora é o único que lhe peço.

? Juro por minha honra...

? Shhh ? avançou para ele, pôs-lhe um dedo nos lábios e lhe fez calar. Não queria escutar promessas que não se poderiam cumprir. Estava aturdido e uma pessoa em dito estado de choque poderia falar mais do que o imprescindível. ? É melhor que durma, precisa descansar um pouco mais.

William a olhou sem saber se ria ou zangava-se. Não fez nem um nem outro, ficou observando-a durante uns instantes. Finalmente fechou os olhos e se obrigou a dormir. Embora antes de deixar-se sucumbir pelo sono se perguntou quando tinha sido a última vez que havia sentido tanta paz e desde quando era incapaz de replicar as ordens de uma mulher. As respostas surgiram com rapidez, desde que a dita mulher lhe tinha salvado da morte, não lhe tinha cuidado com repulsão e o tratava com ternura.

Beatrice esperou até que escutou a respiração profunda do duque.

Caminhou para a janela e descobriu que os primeiros raios de sol começavam a surgir atrás das montanhas. Era o momento ideal para ir à Haddon Hall e comunicar o paradeiro do duque. Estava segura de que todo mundo estaria angustiado pelo desaparecimento. Teriam começado uma busca conscienciosa e se ela não chegasse o antes possível para lhes explicar onde se encontrava, logo seu lar se veria repleto de desconhecidos que a interrogariam sobre por que vivia em um lugar que não lhe pertencia.

A angústia que sentiu ao imaginar-se nessa situação lhe criou tal impaciência que só se atrasou em pegar sua capa e correr para a residência. Durante o caminho sopesou a atitude que teria o senhor Stone ao vê-la. Esticar-se-ia como um pau, ordenaria que salvassem ao senhor das garras de uma camponesa desalinhada e a reteria na mansão até que descobrissem a verdade. Não podia permitir que a acusassem de algo que não tinha feito, então decidiu que após dar a notícia correria para seu lar para fechar a porta e esquecer tudo o que tinha acontecido.

Como sempre, a magnitude do edifício a deixou perplexa. Não entendia como um paraíso podia albergar um lar tão austero. Quanto mais se aproximava, mais calafrios sentia. Esfregou-se os braços para dar-se um pouco de calor e começou a subir as escadas. Ao chegar à porta principal começou a golpeá-la com força. Depois de vários intentos sem ser atendida, decidiu tentar a porta de serviço. Se não se equivocava, a senhora Stone estaria na cozinha e a escutaria com prontidão. Andou devagar tentado descobrir se surgia da escuridão alguém com quem falar, mas só havia silêncio, um estranho e horrendo silêncio.

? Menina! ? Exclamou a senhora Stone ao vê-la. ? O que faz aqui?

? Bom dia, senhora. Preciso falar com o senhor Stone ? respondeu com voz equilibrada.

? Retornou para...?

? Não! ? Respondeu com prontidão ao mesmo tempo em que suas bochechas se enchiam de uma intensa cor vermelha.

? Pois, querida, o senhor Stone não pode te atender. Aconteceu algo bastante dramático em Haddon Hall e...

? O duque está em minha casa – interrompeu-lhe.

? O que está dizendo, moça? ? Os olhos inchados da anciã devido ao intenso pranto que teria tido enquanto o duque estava desaparecido, abriram-se de par em par.

? Encontrei-o caído no meio do bosque. Quando compreendi que estava vivo o arrastei até meu lar e o estive cuidando após ? explicou Beatrice.

? Obrigado, meu Deus! ? Clamou antes de lhe dar um forte abraço e enchê-la de beijos. ? Muito obrigada, criatura do Senhor, por salvá-lo. ? Depois de uns momentos nos quais Beatrice mal conseguia respirar, a mulher a liberou e correu para a porta gritando: ? Senhor Stone! Senhor Stone!

? O que acontece? A que vêm esses gritos? ? Tal como se tinha imaginado, o mordomo apareceu na cozinha erguido e mal-humorado. Ao ver a jovem entrecerrou os olhos e lhe disse: ? O que faz aqui? Não teve o suficiente com aquela noite? Acaso gastou o dinheiro que ganhou e vem procurando mais?

? Brandon! ? Gritou Hanna zangada. ? Por que é tão...?

? Tão? ? Arqueou as sobrancelhas e uniu com suavidade as pestanas.

? A jovem veio até aqui para nos informar sobre nosso senhor. Ele está são e salvo. Encontrou-o no bosque e o esteve cuidando ? esclareceu a anciã sem mal tomar fôlego.

? Onde está? ? Exigiu sem baixar a intensidade de seu tom.

? Está em minha casa ? anunciou abaixando a cabeça. As duras palavras do mordomo sobre o acontecido aquela noite lhe tinha criado um grande pavor.

? Diga-me agora mesmo onde se encontra sua Excelência! ? Exclamou com ira.

? Vim até aqui por vontade própria. Acreditei que estariam preocupados com o destino do duque e quis lhes informar que se encontra bem.

? Onde está? ? Repetiu Brandon com os dentes apertados. Aproximou-se tanto de Beatrice que esta teve que dar vários passos para trás para que não conseguisse roçá-la.

? Na pequena casa que há no bosque. É o... ? murmurou devagar.

? Refúgio de caça ? terminou a frase. ? Está bem, mandarei vários criados com a carruagem e espero, por seu bem, que se encontre em ótimas condições porque do contrário...

? Não desejo escutar nada sobre isso, ? agora foi ela quem não lhe deixou terminar a frase ? vim voluntariamente lhe indicar onde se encontra.

Brandon a olhou irado. Girou-se para a porta para ordenar a outros criados que se preparassem para ir procurar ao senhor e quando retornou à cozinha com a intenção de apanhar a moça, já não estava.

? Por que não impediu que se fosse? ? Perguntou zangado à sua mulher.

? Pensa que minhas pernas podem correr como os galgos? Além disso, não crê que se comportou como um idiota, meu querido? Ela só veio nos informar sobre o paradeiro do duque e você a tratou como uma criminosa.

? Mas...

? Não tem “mas”! ? Exclamou levantando a mão para lhe fazer calar. ? Hoje não espere nenhum tipo de afeto em nosso quarto. Prefiro, se não quiser cair do colchão durante a noite, que durma em outra habitação. ? Depois de ameaçá-lo, girou-se sobre seus calcanhares e seguiu prestando atenção à comida que estava cozinhando.

Beatrice chegou, como era de se esperar, antes dos criados. Abriu devagar a porta de seu lar e se assombrou ao ver que o duque estava sentado sobre o colchão e olhava o fogo. Este, ao escutar que alguém acessava ao interior da casa, moveu a cabeça para sua direção.

? Foi à Haddon Hall para lhes avisar? ? Perguntou sem mostrar em seu rosto nenhum tipo de emoção.

? Sim ? respondeu enquanto se aproximava e se colocava em frente a ele. Sua respiração era agitada devido ao esforço da corrida. Tomou ar de maneira pausada, acalmou-se e continuou: ? Estão vindo para cá. Eles lhe cuidarão como merece. Penso que eu não posso lhe oferecer muito. Tenho poucos recursos...

? Andou até Haddon Hall... sozinha? Apesar de me haver indicado que há uma manada de lobos rondando no bosque? ? William estava zangado. Mais do que se havia proposto.

Um momento depois de recostar-se escutou a porta, despertou e, por muito que a tinha chamado para que não partisse, não o conseguiu. Nesse momento tentou levantar-se, mas o único que pôde fazer foi sentar-se naquele roído colchão e esperar que o tempo passasse. Sua incoerente ação não só tinha posto em perigo a ele mesmo, mas sim também tinha arrastado a pessoa que o tinha salvado de uma morte inevitável. Zangou-se por ser tão irracional. Zangou-se por deixar-se levar pela ira, por ter tomado mais álcool do que o acostumado. Zangou-se por tudo o que tinha feito no passado e suas consequências.

? Não se preocupe comigo, Excelência. Estou acostumada a contornar certos perigos. ? Tirou-se a capa e a colocou sobre uma cadeira.

? Mesmo assim, você é uma inconsciente ? disse com aborrecimento.

? Uma inconsciente? ? Beatrice entrecerrou seus olhos e franziu o cenho. ? De verdade que um homem como você é capaz de me definir de tal maneira? Acaso fui eu quem decidiu cavalgar depois de vários dias de chuva e com limitações? ? Fechou com rapidez a boca. O que menos desejava naquele momento era lhe recordar àquilo que lhe tinha destroçado a vida. Entretanto, ao ver que o duque cravava o olhar no chão soube que suas palavras lhe tinham feito mal, mais do que pretendia.

? Você tem razão... ? sussurrou William. ? Por isso quero que recorde que tenho uma dívida pendente com você e eu gostaria de saber no que posso ajudá-la. Se for possível, antes que eu parta.

? Só preciso ficar sozinha... ? murmurou muito devagar.

Girou-se para a chaminé dando as costas ao homem e esticou as mãos para esquenta-las.

William se dispunha a replicar suas palavras quando a porta se abriu com brutalidade e apareceram duas pessoas. Uma delas era o cavalariço e a outra, seu ajudante de câmara. Ficaram olhando-os durante uns instantes esperando que alguém lhes ordenasse o seguinte passo.

? Sairei para que o assistam como é devido ? comentou Beatrice abaixando a cabeça e dando uns passos para a saída.

Nesse momento, sem saber por que, jogou uma última olhada ao duque, que a olhava sem pestanejar. Seu cenho permanecia franzido e apertava com força a mandíbula. Sem dúvida alguma o homem se zangou ao não obter a resposta que desejava, mas ela não queria adiar por mais tempo a partida. Desejava com todas as suas forças que a normalidade reinasse em sua vida, precisava apartá-lo o antes possível porque sua presença não lhe fazia nenhum bem.

Continuou andando e fechou a porta após sair. Sentou-se nas escadas de pedra e tampou o rosto. Não queria pensar em nada, mas mesmo assim a mente não parava de meditar sobre os infortúnios da vida. Em um passado quando seu pai foi rogar o auxílio do duque e este se negou arrogantemente e agora, o mesmo homem que não quis escutar sua versão dos fatos, rogava-lhe que lhe pedisse algo para saldar sua dívida e conseguir a paz. Seria uma opção acertada lhe pedir que lhe devolvesse sua vida? Pouco depois os homens saíam e William se apoiava em um deles para poder caminhar. Beatrice se levantou para lhes facilitar o acesso. Quando passou por seu lado, o duque fez com que parassem.

? Temos uma conversação pendente, senhorita Brown. Direi a um dos meus criados a que venha recolhê-la o mais cedo possível.

? Não temos nada do que falar, milord ? disse abaixando a cabeça. ? Não me deve nada.

Os criados entenderam que a conversação tinha finalizado e continuaram sua marcha até a carruagem. Elevaram ao duque para sentá-lo corretamente. William jogou a cabeça para trás e depois de fechar os olhos pensou: «Só lhe devo minha vida, senhorita Brown».


VIII


? Está seguro? ? William tomava o café da manhã enquanto escutava com atenção ao Brandon. Este lhe explicava que o criado enviado para que acompanhasse a senhorita Brown até Haddon Hall retornava outra vez sozinho.

? Sim, sua Excelência ? afirmou o mordomo depois de um sopro suave. A tarefa, apesar de parecer bastante singela, estava sendo uma verdadeira agonia.

? É uma mulher muito teimosa. Quantas vezes foram em sua busca? ? Pegou a xícara de chá e a levou para a boca para ocultar o enorme sorriso que desenhavam seus lábios.

Aquele comportamento não era de se estranhar, e mais, se ela tivesse aceitado algum de seus convites o teria desapontado. Só uma pessoa com caráter firme seria capaz de albergar um estranho em seu lar sem pensar na repercussão que dito ato de valentia podia supor. Além disso... desde quando uma frágil moça salvava a vida de um desconhecido pondo em perigo a sua?

? Contando com a de hoje, sete. Os dias que você está em casa desde o infortúnio ? esclareceu.

? Bom, então acredito que a melhor opção é me apresentar ante a senhorita Brown e lhe perguntar o motivo de suas contínuas negativas ? indicou pousando a xícara sobre o prato e empurrou a cadeira para trás para se levantar.

Pegou com força a bengala e caminhou para onde se encontrava o mordomo. Tinha decidido visitá-la quando a terceira negativa chegou até seus ouvidos. Entretanto esperou recuperar-se de tudo para mostrar um aspecto ótimo. Não queria que a mulher continuasse acreditando que ante seus olhos se encontrava um ser débil, frágil. Desejava que admirasse a pessoa que em realidade era, ao duque de Rutland, um homem com caráter, firmeza, força e com energia suficiente para assumir as consequências de seu destino.

William estranhou sua repentina mudança de atitude. Desde quando o duque de Rutland tinha despertado de sua profunda letargia mental? Possivelmente a resposta se escondia nela e, se era assim, precisava encontrar o antes possível o por que.

? Diga ao cavalariço que prepare um cavalo. Partirei quando o ajudante de câmara me vestir para a ocasião.

? Como desejar, sua Excelência.

Brandon, apesar de ter uma vontade imensa de rebater aquela ideia, não estava lá para impedir os desejos de seu senhor. Além disso, tantos anos ao seu serviço ofereciam a experiência necessária para compreender que as decisões do duque não podiam ser questionadas. Ele tinha nascido teimoso e, se Deus velasse por sua vida, morreria sendo-o.

Enquanto o criado lhe ajudava a vestir-se, William pensava na forma mais correta de iniciar uma conversação com sua salvadora. Agradeceria ou lhe perguntaria o que fazia vivendo em seus domínios? Esse mesmo pensamento tinha estado perturbando-o durante a semana que esteve recuperando-se. Sua preocupação não se devia a que a moça habitasse em um lugar de suas terras, graças a isso ele sobreviveu. Mas se perguntava uma e outra vez como tinha chegado até ali. Teria se perdido? Ou talvez... tinha-lhe acontecido algo tão dramático que decidiu abandonar seu autêntico lar.

«Só preciso ficar sozinha». Essas tinham sido suas palavras quando ele insistiu em que lhe devia um favor e que podia lhe pedir o que ansiasse. Por que uma jovem que não devia ter mais de vinte anos vivia sozinha à mercê dos infortúnios de uma vida campestre? Se tivesse sorte, coisa que duvidava, porque começava a conhecer o temperamento da senhorita Brown, suas perguntas seriam respondidas.

? Bom dia, senhor. Seu cavalo está preparado ? explicou o criado quando percebeu que a esbelta figura do duque aparecia pelas cavalariças.

? Espero que desta vez as cintas não se rompam ? apontou William ao mesmo tempo em que se dirigia para o animal eleito.

? São correias novas, sua Excelência – indicou-lhe o criado sem lhe olhar nos olhos. ? Têm o dobro de grossura e proporcionam uma amarração mais segura.

? Bem... ? disse mal reparando na explicação do jovem.

Com passo firme aproximou-se do corcel e esperou que o criado lhe ajudasse a subir. Quando esteve sobre o cavalo e não sentiu a segurança que lhe proporcionava seu garanhão, perguntou ao criado:

? Continuam a busca pelo Dalión?

? Sim, meu senhor. Mas não há rastro dele. Parece que a terra o tragou...

? É mais fácil ter sido devorado por uns malditos lobos... ? murmurou com os dentes apertados antes de açular ao animal.

Depois de amaldiçoar a sorte pelo penoso destino que teria vivido o cavalo, pensou em Beatrice, na solidão em que se encontrava e na facilidade que teriam aqueles depredadores para assaltá-la. A mera ideia de que ela sofresse alguma briga violenta com estes, produziu-lhe tamanho aborrecimento que notou como o coração palpitava em sua garganta. A ira surgida só o fazia pensar em uma coisa: tinha que arrastá-la até Haddon Hall. Não podia deixá-la à mercê do nada.

Crê que aceitará sua proposição com um sorriso? ? Refletiu sem diminuir a marcha. Acaso imagina a senhorita Brown recolhendo seus petences e montando-se na garupa do cavalo enquanto te agradece o oferecimento? Não, ela não abandonará esse lugar jamais.

Mas apesar de saber que a negativa seria sua única resposta, ele como bom jogador, tinha um ás na manga. Um ás que seria a melhor alternativa para ambos: dar-lhe-ia de presente a cabana, onde poderia desfrutar de sua ansiada solidão, só se ela aceitasse passar uma temporada em Haddon Hall. Seria um período curto de tempo, o suficiente para que seus criados construíssem um muro de pedra ao redor do refúgio e eliminassem a suja cerca com a qual ela se acreditava protegida. William sorriu triunfante, era uma opção muito apropriada e, sem dúvida alguma, Beatrice não poderia rechaçar. Deste modo sua dívida estaria saldada e por fim poderia deixar de pensar na jovem, porque desde que a moça apareceu em sua vida, tinha deixado de aflorar as cenas eróticas que tinha vivido com Juliette, para dar passo a uma multidão de inquietações produzidas pela ditosa senhorita Brown. Agora em suas noites não havia luxúria, a não ser angústia por uma mulher tão enigmática, como teimosa.

Beatrice acaba de limpar e dar de comer aos animais. Levou a mão direita para seu rosto e tentou tirar o barro que lhe tinha respingado após perseguir uma de suas ovelhas. O animal tinha escapado por um oco da cerca e, assustado, corria apavorado para o bosque. Por sorte para ambos, a espantada criatura ficou presa entre duas raízes grandes de uma árvore que se sobressaíam à superfície. Ela, muito devagar, aproximou-se por trás e saltou sobre o animal, voltando-se a se sujar da cabeça aos pés com o barro que havia no terreno.

? Espero que isto a ensine a não fugir de mim ? dizia ao animal enquanto que o mesmo caminhava depressa para resguardar-se junto ao rebanho.

Apesar do esforço, ainda ficava um pouco de energia para cortar lenha e preparar um lar quente. As chuvas tinham cessado, mas o frio não e, se seu prognóstico sobre o tempo não falhasse, hoje seria uma noite bastante gelada. Depois de certificar-se de que o buraco estava arrumado e que nenhum intrépido animal poderia escapar de novo, dirigiu-se para o barracão de lenha para continuar com seu plano. Entretanto, justo quando elevava o machado para tirar o primeiro corte ao tronco selecionado, escutou os passos de um cavalo avançar para onde se encontrava. Com o utensílio na mão e aferrando-o com força, girou-se para a pessoa que se aproximava. Se, se tratasse de outro criado do duque, assustá-lo-ia e o ameaçaria para que partisse. Já estava cansada da insistência do nobre. Não voltaria a apresentar-se ali nem que morresse de fome!

? Senhorita Brown, foi assim que você recebeu os meus emissários? Entendo então a razão pela qual se recusam a vir em sua busca.

Beatrice ficou atônita ao descobrir que o próprio duque era quem montava sobre o cavalo e sorria ao ver como levantava a ferramenta afiada. Olhou-o sem pestanejar e se sentiu feliz ao perceber que mal ficavam sequelas do passado incidente. Embora algo chamasse com demasia sua atenção: a longa juba escura e a espessa barba tinham desaparecido. Agora a marca do fatídico duelo ficava à vista de todo aquele que o contemplasse. Examinou-o com mais interesse e reparou que ia vestido com o traje habitual para cavalgar. Do alto do corcel parecia o homem que conheceu na festa da senhora Baithlarin: forte, bonito e enigmático. Sem lugar a dúvidas, depois dos dias de descanso tinha retornado o famoso duque de Rutland.

? Bom dia, Excelência ? respondeu baixando as mãos e abaixando a cabeça.

? Bom dia, senhorita Brown ? disse mostrando um grande sorriso.

? Vejo que continua desafiando a morte.

? Só se tiver a certeza de encontrar uma boa pessoa que tenha piedade de um homem tão desamparado como eu e decida me salvar ? indicou com zombaria.

? Você confia muito na piedade dos outros... ? replicou antes de agachar-se para recolher alguns pedaços de lenha que tinha cortado no dia anterior. Embora cortar troncos fosse uma ação muito habitual em uma camponesa, não lhe agradava sentir-se observada e menos ainda quando a pessoa que a olhava era o duque.

? Eu adoraria poder lhe oferecer minha ajuda, mas como já sabe... ? o tom zombador do duque desapareceu de repente para dar passo a uma voz suave, débil e inclusive com um toque de tristeza.

? Posso fazê-lo por mim mesma, Excelência. Além disso, poderia sujar esse bonito traje e estou segura de que seu ajudante de câmara se zangaria muitíssimo ? explicou ao mesmo tempo em que caminhava para a entrada de sua casa.

Desejava entrar na intimidade de seu lar, fechar a porta e deixá-lo ali fora. Desejava que partisse e que não a perturbasse mais, algo muito difícil se o motivo daquela visita fosse lhe recordar a ditosa promessa.

? Senhorita Brown... ? disse enquanto fazia com que seu cavalo caminhasse ao redor da cerca. ? Por que se negou a aceitar meu convite?

? Como pode comprovar, tenho muito trabalho e não posso perder tempo aceitando visitas que...

? Meu convite lhe faria perder tempo? ? William arqueou as sobrancelhas e a contemplou atentamente.

Assim como a última vez, estava coberta de barro. Não entendia como lhe resultava tão difícil estar arrumada em algum momento do dia. A única explicação que encontrou foi que, ao estar sozinha e não poder cercar conversação com ninguém, teria descoberto certo consolo em rolar pelo chão e cobrir-se de lodo.

? Não quis dizer... ? começou a desculpar-se, mas depois de olhar com atenção o rosto do duque e advertir que este não cessava de mostrar um sorriso zombador, descobriu que suas palavras não lhe tinham causado o aborrecimento que ela tinha suposto. Irada, aferrou-se com força às lenhas e lhe perguntou de mau humor: ? A que devo a honra de sua visita, senhor?

? Vim lhe recordar que temos algo pendente e eu gostaria de resolver tal questão o antes possível ? argumentou com seriedade.

? Acaso o excelentíssimo duque de Rutland tem uma terrível insônia por saber que tem uma dívida pendente com uma mulher? ? Sorriu de orelha a orelha triunfante. Esperava que após sua descarada atitude se ofendesse e a deixasse por fim em paz.

? Insônia... ? virou os olhos para a esquerda como se estivesse duvidando sobre como nomear tal situação. Logo sorriu, olhou-a nos olhos e continuou: ? Não, eu não o denominaria dessa forma, mas é certo que você perturba minha mente.

? Eu lhe perturbo?! Como uma humilde camponesa pode fazer tal coisa? ? Prosseguiu com um tom mordaz.

? Antes, senhorita Brown, minhas noites estavam cheias de luxúria porque eu revivia momentos íntimos com as minhas amantes. Entretanto, desde que você apareceu em minha vida, não afloraram as ditas imagens. Quando fecho os olhos só vejo você ? explicou com tom sereno, impessoal, embora por dentro não cessasse de rir.

? Como diz?! ? Beatrice abriu os olhos como pratos e sentiu fogo em suas bochechas. A confissão a desconcertou tanto que se esqueceu de que segurava as lenhas e, quando levou as mãos para o rosto para que o duque não observasse o rubor de seu semblante, os troncos caíram sobre seus pés. ? Ai! ? exclamou de dor.

William agarrou com força as rédeas do cavalo com a mão sã e desceu com rapidez do cavalo. Em nenhum momento reparou que sua perna lhe doeria ao tocar o chão. Só pensava que, por tentar apaziguar o forte caráter da mulher, tinha-a ferido. Abriu a débil grade e caminhou com firmeza para Beatrice, que tinha se sentado sobre as escadas e agarrava um pé enquanto brotava de seus olhos uma centena de lágrimas.

? Sinto muito, perdoe-me. Não foi minha intenção lhe causar dano algum. Só queria continuar com a ironia que estávamos mantendo em nossa conversação. ? Aproximou-se tanto que pôde observar o brilho daquelas gotas salinas. ? Deixe-me examinar seu pé. ? Estendeu a mão útil e tocou com delicadeza a pantorrilha, o tornozelo e o peito do pé da jovem.

? Não tinha vindo procurando desculpar sua dívida? Pois acaba de saldá-la. Eu lhe curei e agora você... ? voltou-se para o duque com tal rapidez que não percebeu a cercania que existia entre eles. Durante uns escassos instantes, Beatrice pôde respirar o ar que o duque emanava de sua boca e vice versa. Seus olhos claros se projetavam na escuridão do olhar do homem. Aturdida, levantou-se e apoiou o pé sobre o chão, guardando para si a dor que sentia. Colocou suas mãos na cintura e indicou: ? Como lhe disse com antecedência, não necessito que você me ofereça nada. Se quiser que sua mente deixe de lhe mostrar meu rosto e volte a ter aquelas cenas que tanto lhe agradavam, pense que vivo em uma casa que lhe pertence e que devido à sua imensa gratidão posso dormir sob um teto.

? Senhorita Brown, peço-lhe mil desculpas por minhas palavras, estão fora de lugar. Não estou acostumado a me comportar desta forma ante pessoas respeitáveis ? explicou ao mesmo tempo em que se elevava do chão.

? Respeitável? Pensa que sou uma pessoa respeitável? ? Beatrice esboçou uma gargalhada tão intensa que ambos escutaram o eco da risada no bosque.

? Esse é o meu apreço por você desde que me salvou a vida. ? William se mantinha de pé a curta distância da mulher. Ela, ao ver que tinha a intenção de avançar para onde estava, começou a perambular de um lado para outro.

? Não me conhece, sua Excelência. Não me conhece e não pode fazer uma conjectura depois de um ato de piedade. Qualquer ser humano que tivesse passeado pelo bosque e encontrasse uma pessoa ferida gravemente teria feito o mesmo que eu. Isso não é ser respeitável e nem piedosa ? declarou mal-humorada.

? Pode pensar o que desejar, mas me sinto na obrigação de protegê-la igual você fez comigo. ? Seu tom de voz tinha recuperado a dureza, o julgamento e a irrevogabilidade próprias de seu título.

? Não lhe basta me dar abrigo? Não lhe parece que viver em uma casa que lhe pertence já é bastante amparo? ? Beatrice, até agora se movendo sem parar, girou-se para o homem e o olhou desafiante.

? Não! ? Exclamou o duque. ? Deixá-la em meio de um nada, desamparada e rodeada de lobos famintos não me parece uma opção acertada!

? Isso é o que lhe preocupa, sua Excelência? Que minha presença aqui lhe faça sentir-se um homem bondoso e que um dia monte em seu precioso cavalo, galope até a cabana e se encontre com um corpo esquartejado? ? Elevou tanto a voz que até ela mesma se surpreendeu do trato que estava oferecendo a um homem de sua classe.

? Preocupa-me, perturba-me, inquieta-me ? disse William caminhando para ela com passo firme e esquecendo a dor constante de sua perna ? que um dia apareça por estas bandas e veja que não fui capaz de cuidar de uma mulher que quase pereceu para me salvar a vida. Parece-lhe acertada minha conjectura, senhorita Brown?

Estavam tão próximos que se o homem estendesse sua mão útil poderia tocar as costas feminina, puxá-la para ele e abraçá-la com força. Porque podia ter sido um calhorda, um ser sem coração, sem humanidade, mas reconhecia quando uma pessoa precisava sentir o afeto de outra. Tinha acontecido a ele mesmo e acontecia nesse momento à senhorita Brown. Entretanto, William conhecia a razão de sua desprezível atitude. Agora lhe faltava averiguar o motivo que tinha aquela jovem para não querer saber nada do resto do mundo.

? Está bem ? disse Beatrice depois de um leve silêncio. ? Você quer pagar sua dívida e eu quero que me deixe viver em solidão. Então pagará sua dívida se me conceder esse desejo.

? Quer que ninguém a incomode? Essa é a sua petição? ? William franziu o cenho e apertou a mandíbula.

? Sim, isso é o que anseio ? afirmou em um tom mais tranquilo e olhando para o chão.

? Se ficar só e desprotegida é o que deseja, isso é o que obterá. Bom dia, senhorita Brown. ? Golpeou as botas pelos calcanhares, abaixou uns centímetros à cabeça e se dirigiu ao cavalo.

Tinha tanta raiva em seu corpo, encontrava-se tão alterado, que aquele estado de enfurecimento lhe deu a força necessária para agarrar as rédeas do cavalo e subir sem ajuda. Jogou uma última olhada à Beatrice e açulou com tanta intensidade o animal que avistou seu lar antes do esperado.


IX


? O senhor quer lhe ver na biblioteca. ? Mathias, o cavalariço correu para a casa, para explicar ao mordomo o que tinha acontecido depois da chegada do senhor, fazia poucos minutos.

? Como que não requereu os meus serviços para desmontar? ? Perguntou inquieto Brandon.

O que lhe contava o jovem estava deixando-o atônito. A forma habitual de atuar, era esperar ao senhor com a bengala na mão e que este se apoiasse na vara de madeira para subir com segurança as escadas da residência. Entretanto, o moço lhe informava que desceu ele mesmo do cavalo e que não precisou requerer o auxílio de nenhum criado, posto que acessasse ao interior da casa sem mostrar dor ao caminhar.

? Como lhe digo, senhor Stone. Quando agarrei as rédeas de Corsário, nosso duque me deixou muito claro que desejava vê-lo o antes possível nessa estadia ? explicava com certa excitação.

? Que comportamento diz que tinha nosso senhor? ? Hanna, muito atenta ao bate-papo, interrompeu-lhes.

? Encontrava-se muito agitado. Acredito que também bastante zangado ? respondeu Mathias.

? O que lhe terá acontecido? ? Disse a mulher ao mesmo tempo em que retomava ao trabalho.

? Está bem, pode voltar para as cavalariças ? indicou Brandon desejando saber o que rondava pela cabeça de sua esposa.

Tinha notado o leve sorriso da cozinheira e esperou com impaciência que o jovem se afastasse o suficiente, para que não pudesse escutar a conversação. Caminhou para ela, apoiou-se na mesa central e, depois de observá-la uns instantes cortando verduras, perguntou-lhe:

? O que ronda nessa sua cabeça?

? A mim? ? Respondeu abrindo os olhos como pratos e elevando as grisalhas sobrancelhas. ? Nada, não penso nada.

? Não minta, Hanna. Conheço cada gesto que faz quando sua mente não para de refletir. Vamos ver... o que você crê que pode ter perturbado a paz que o nosso senhor teve durante estes dias?

? Não me acusa sempre de ter uma percepção errônea do mundo? – Cruzou os braços e franziu o cenho.

? Quer que lhe suplique isso? Quer que me ajoelhe como o fiz para poder dormir de novo em nosso leito? ? O semblante de Brandon mostrava desconcerto e um pouco de tristeza.

? Se não fosse tão severo, você mesmo acharia a resposta ? indicou com tom suave e quente.

? Hanna, por favor...

? Se tem tanto interesse, explicarei-lhe isso. Mas não me acuse de ter alucinações ou pensar extravagâncias. ? Esperou que seu marido replicasse, mas ao vê-lo tão calado e confuso decidiu lhe expor a ideia que tinha já há uns dias, mais exatamente desde que o duque retornou do incidente, rondando em seu cérebro. ? Se retroceder um pouco no tempo dar-se-á conta de que lorde Rutland sempre levou o cabelo perfeitamente cortado. Em mais de uma ocasião comentou que não entendia como um homem podia pentear-se como uma mulher, não é? ? Brandon assentiu. ? E de repente um dia, disse ao seu ajudante de câmara que não lhe cortasse o cabelo e deixasse que seu rosto se cobrisse de escuridão. Lembra-te quando foi?

? Dois meses depois de celebrar o duelo ? respondeu com rapidez.

? Em efeito, e a razão foi...?

? Queria tampar a cicatriz. Imagino que pensou que desta forma deixariam de murmurar sobre o acontecido.

? Pois eu penso que se deveu à repulsão que encontrou nos rostos daquelas mulheres que antes o admiravam. Resultou-lhe muito duro passar de ser um homem elegante e formoso a uma espécie de monstro ao qual ninguém desejava contemplar.

? Nosso duque não pode ser tão banal, querida! ? Exclamou antes de esboçar uma gargalhada.

? Bom, essa é uma ideia muito típica de um homem, catalogar certos aspectos importantes como banais. Entretanto, se pensasse do ponto de vista de uma mulher, descobriria que não é tão desatinado. Pensa um pouco querido e una os acontecimentos. Por exemplo, desde quando nosso senhor necessitou os serviços de uma cortesã?

Brandon deixou de sorrir e franziu o cenho enquanto meditava a resposta. As hipóteses de Hanna pareciam ter um pouco de sentido. Embora ele conhecesse o homem desde que nasceu e jamais tivesse deduzido que a opinião que possuíam as mulheres sobre ele poderia lhe afetar tanto.

? Imagino que esse olhar é a resposta à minha pergunta ? manifestou a mulher depois de observar como seu marido entrecerrava os olhos.

? Só estou pensando...

? Pois segue pensando, meu esposo, segue pensando... ? agora era ela quem sorria ao ver o desconcerto que suas palavras ocasionavam ao seu cônjuge. Devia sentir-se confuso, posto que ele sempre se gabasse de conhecer à perfeição a sua Excelência, mas havia certos temas que lhe escapavam.

? O que tem a ver tudo isso com a atitude estranha que hoje teve sua Excelência?

? De verdade que não pode suspeitar o que ocorreu?

? Não, Hanna. Não sei o que pôde acontecer. O único que te posso dizer é que esta manhã decidiu visitar a moça para lhe perguntar por que recusou os convites que lhe ofereceram.

? Pois está muito claro, Brandon. Ela não quer vir a Haddon Hall e muito menos quando a tratou pior que a um cão pulguento ? indicou zangada.

? Como queria que a tratasse? Se por acaso não o recorda, ela se ofereceu como cortesã e depois do maldito serviço e de lhe pagar uma boa soma de moedas, o duque me informou que lhe negasse a entrada de novo.

? Mas lhe salvou a vida! ? Exclamou irada. ? Além disso, ele não sabe que ela... ? ficou em silêncio pensando se cabia a possibilidade de que o duque tivesse descoberto a verdade. Mas o negou com veemência, se seu sexto sentido não lhe desapontava, a jovem jamais lhe confessaria o acontecido àquela noite.

? Hanna! ? Chamou Brandon ao vê-la calada e refletindo algo que parecia entristecê-la.

? O jovem duque pediu, após retornar à casa que lhe recortassem a barba e que fizessem desaparecer o extenso cabelo, não é? ? Alterou a consciência para a direção que tinha tomado à conversação.

? Certo.

? E não perguntou a que se devia essa mudança de opinião? Porque o único que tinha acontecido foi que uma moça desconhecida o lavou, curou-lhe as feridas e, além disso, percorreu um comprido trajeto para nos informar sobre seu paradeiro. Sem esquecer que depois, o duque nos comentou que havia uma manada de lobos oculta no bosque e que era perigoso passear por ele.

? Certo, está me dizendo que a jovem pôs em perigo sua vida para salvar a de nosso senhor, mas isso não responde à pergunta de por que sua Excelência decidiu seguir os conselhos do doutor para se curar com prontidão, nem essa insistência em fazer desaparecer a espessa barba e cortar o cabelo ? explicou exasperado cruzando seus braços no peito.

? De verdade que não é capaz de entendê-lo? ? Perguntou elevando um pouco a voz ao sentir-se tão frustrada.

? Não, não sei aonde quer chegar com as hipóteses que me explica.

? OH, querido! Por que não abandona esses pensamentos repletos de lógica e deixa que se expresse seu coração? ? A mulher se aproximou de seu marido, apanhou o rosto deste entre suas mãos e o olhou com ternura.

? Meu trabalho exige utilizar à lógica. Possivelmente a desenvolvi mais do que outras pessoas.

? Deduzo então que não tem nem ideia do que poderia pedir o duque quando aparecer ante ele, não é?

? Pode pedir qualquer coisa...

? Pois eu vou me deixar levar pelo que me dita o coração, e este me diz que te ordenará realizar algo dessas coisas que fazem os homens poderosos para deixar a jovem vivendo na cabana o tempo que desejar. ? Aproximou-se dos lábios de seu marido e lhe deu um pequeno beijo.

? Isso que diz é uma loucura e segue sem me explicar por que retornou tão enfurecido após visitá-la.

? Querido meu, nosso duque está acostumado a ordenar e que todo mundo acate seus mandatos. Se essa jovem for tão teimosa como acredito que é, não terá aceitado a proposição que tinha pensado para ela. Daí esse mau humor. Agora, em vez de ficar estorvando em minha cozinha, vai e comprova se os pensamentos loucos de sua esposa não são certos. ? Apartou-se, dirigiu-se para os fogões e começou a mover a comida que serviria em breve.

Brandon a observou durante uns instantes, ao mesmo tempo em que meditava sobre as conclusões que lhe tinha dado, pareciam muito sensato, mas estava seguro de que não eram corretas. O duque deveria ter outro tipo de razões para mudar seu comportamento com tanta rapidez e, embora sua esposa expusesse como se fosse o mais normal do mundo, sua Excelência não podia sentir nada por uma mulher assim. Era certo que lhe devia a vida, mas podia recompensá-la com outra bolsa de moedas. Se a oferecesse ela a aceitaria de bom grado, igual fez na última vez. Jogou uma olhada às costas de Hanna e depois de respirar com intensidade dirigiu-se para a biblioteca, o lugar onde o duque lhe esperava.


William perambulava de um lado para outro sem notar a dor insistente da perna. Estava tão zangado, encontrava-se tão furioso, que nem a dor lhe impedia de mover-se como desejava. De repente, ao descobrir que as cortinas da janela estavam amarradas aos ganchos metálicos, aproximou-se dela e ficou observando o exterior. Até esse momento não o tinha apreciado como era devido, sempre lhe pareceu um lugar cheio de vida, aprazível e, é óbvio, seguro ante qualquer adversidade. Entretanto, depois da desafortunada visita à senhorita Brown, toda aquela percepção desapareceu para dar passo a uma menos serena. Elevou o olhar e o cravou no arvoredo que começava a finalizar no imenso jardim. Ali, ao amparo da abrupta natureza, encontrava-se um perigo importante, mais do que se imaginou alguma vez.

? Mulher teimosa! ? Exclamou com energia antes de girar-se sobre seus calcanhares e dirigir-se para as garrafas de bebidas colocadas sobre uma cômoda.

Pegou o copo, encheu-o de brandy e, justo quando iria dar o primeiro gole, sopesou se beber até cair era o mais acertado. Depois de meditá-lo depositou o copo sobre a superfície de madeira encerada e caminhou por volta de uma das poltronas, não seria apropriado que ordenasse uma coisa tão importante ao Brandon em um estado péssimo de embriaguez. Devia mostrar serenidade, retidão e solidez porque do contrário seu mandato seria desprezado.

Levou a mão ao bolso de seu colete e tirou o relógio. Tinha entrado na biblioteca há quase quinze minutos e o mordomo ainda não tinha feito ato de sua presença. Ficou de pé de novo e, franzindo o cenho, deu vários passos para a porta com a intenção de ir buscá-lo ele mesmo. Antes de aproximar-se da saída, Brandon pedia permissão para entrar.

? Excelência ? disse o homem ao mesmo tempo em que realizava uma ligeira inclinação. ? Desejava ver-me?

? Solicitei sua assistência faz quinze minutos, a que se deve a demora? ? Perguntou zangado.

? Minhas desculpas, meu senhor. Houve um problema na cozinha e tive que resolvê-lo sem demora ? explicou.

? Aconteceu algo à senhora Stone? ? Perguntou um pouco mais acalmado.

Hanna se tinha convertido, com o passar dos anos, em uma mãe para ele. Desde que tinha memória recordava que os beijos, os abraços e os consolos que necessitou em sua infância sempre os ofereceram ela. A mulher também evitou em várias ocasiões que seu pai lhe pusesse o traseiro avermelhado depois de fazer, tanto ele como Lausson, uma ou outra traquinagem.

? O mesmo de sempre, meu senhor. Discutimos se deve acrescentar mais verduras ao menu do dia ? indicou.

Esperava que aquela desculpa lhe contentasse e deixasse de lhe interrogar por que se fosse assim, ele não poderia continuar mentindo. Ao ver que os ombros do duque se relaxavam e que mostrava um leve sorriso na comissura dos lábios, Brandon inspirou profundamente e deu graças a Deus por sua benevolência.

? Hoje parece que o sexo feminino está inquieto... ? comentou enquanto retornava à poltrona para sentar-se. Nesse instante, ao entender que não era o único homem que tinha sido atacado esse dia por uma mulher, começou a relaxar-se e a perceber, com mais intensidade, as cãibras terríveis que emitia a perna machucada.

? Como diz? ? Quis saber Brandon ao não entender muito bem o comentário do duque.

? Nada. Foi só uma consideração. ? Reclinou-se no assento e apertou os dentes ao notar aquela incessante dor.

? Posso lhe perguntar, sua Excelência, o que deseja? ? O mordomo ao observar como a testa de seu senhor se enrugava com força, deduziu que estava padecendo de suas terríveis dores.

Sorriu sutilmente ao pensar que Hanna se equivocou com suas especulações. Sem lugar a dúvidas o duque demandava sua presença porque precisava ser atendido por sua dor.

? Quero que faça chamar o senhor Gibbs, que venha à Haddon Hall o antes possível ? apontou com calma ao mesmo tempo em que movia devagar a perna machucada.

? O senhor Gibbs? ? Perguntou surpreso antes de morder o lábio por sua falta. Não era ele quem podia exigir explicações.

? Sim ? respondeu William evitando a inquietação do mordomo.

Sabia que chamar seu administrador causaria alguma incerteza sobre o serviço. A última vez que o fez foi para ceder à sua mãe a residência que tanto ansiava e lhe oferecer a soma que demandava depois da morte de seu pai. Entretanto, desta vez era diferente. Um dos bens obtidos por herança iria às mãos de uma mulher bondosa que sim o merecia, uma mulher que lhe tinha salvado a vida, não como no caso de sua mãe, destruido-a. ? Preciso falar com ele o antes possível, tenho que fazer constar certas mudanças legais... ? girou-se para o fogo, contemplou-o durante uns instantes e ao dar-se conta de que Brandon seguia na estadia moveu com suavidade a cabeça para ele: ? Acontece algo?

? Não, senhor, só me preocupo com você. Esperava que sua chamada se devesse ao interminável padecimento que sofre em sua perna do tropeção. Conforme fui informado pelo criado, você mesmo desceu do cavalo depois do passeio que realizou pelo bosque ? disse entre desculpas. Esperava que o duque não fosse capaz de perceber a insistência para averiguar o que pretendia.

? Já sabe que fui visitar a senhorita Brown ? comentou William entreabrindo os olhos.

? Em efeito, e conseguiu que finalmente aceite sua proposição? ? Insistiu sem mostrar em seu rosto a importância que lhe provocava conhecer a verdade. Se este dizia que não, ao final teria que humilhar-se de novo ante sua esposa porque, outra vez, estaria certa.

? Não, não a aceitou. Decidiu comprazer meu desejo de responder à sua piedade ? falou com raiva – rogando-me que a deixe desamparada naquele lugar miserável.

? Quer viver em uma propriedade que não lhe pertence? ? Soltou sem pensar.

? A questão não é se deseja viver na cabana de caça, mas sim o que pretende a senhorita Brown é lutar dia a dia só, ante a adversidade e periculosidade de um lugar tão inóspito ? explicou apertando a mandíbula.

? Não lhe ofereceu uma bolsa de moedas? Possivelmente isso lhe tivesse mudado...

? Senhor Stone! ? Gritou William zangado. ? Acredita que a mulher que pôs em perigo sua vida para salvar a minha merece esse trato tão depreciativo?

? Sinto muito, Excelência ? manifestou abaixando a cabeça e cravando o olhar no chão. ? Desculpe minhas palavras, mas tem que compreender que se a senhorita Brown tiver decidido alojar-se em um lugar repleto de perigos e esta vontade lhe causa inquietação, eu devo cuidar da sua saúde.

? Esquecerei seu comentário porque tanto você como a senhora Stone são as únicas pessoas às quais considero família. Além disso, entendo que essa atitude inapropriada é como bem diz, para seguir me protegendo, mas nunca volte a se intrometer neste tema. O que a senhorita Brown e eu combinamos se cumprirá.

? Sim, senhor. É óbvio. Agora mesmo direi a um dos criados que se dirija até o lar do senhor Gibbs e lhe faça saber que você deseja vê-lo o antes possível. ? Brandon jogava uns passos para trás sem levantar a cabeça. Não parava de meditar sobre o desejo do duque, a amalucada hipótese de sua esposa e o que esta riria quando lhe narrasse à conversação.

? Necessito de uma coisa mais... ? assinalou antes que o ancião partisse. Brandon elevou o semblante e o observou com atenção. O jovem olhava para as intensas chamas da fogueira. Contemplava-o com tanta ferocidade que podia ver de onde estava como o fogo se projetava nos seus olhos. ? De todos os que trabalham para mim, ? prosseguiu em tom firme ? há alguém que tenha sua mais absoluta confiança? ? Ante o desconcerto que mostrou o criado, William continuou: ? Tenho mil dúvidas sobre a senhorita Brown e necessito que alguém me ofereça informações sobre ela.

? Mas, milord, por onde começaremos? ? Brandon abriu tanto os olhos que quase saltaram do rosto. O que estava pedindo o duque era uma tarefa impossível de concluir. De onde procedia? Que lugares visitou antes de refugiar-se na cabana?

Então sentiu que o coração paralisava. Possivelmente as únicas pessoas que sabiam algo da jovem eram sua esposa e ele, embora, como era lógico, evitaria lhe informar sobre isso. Entretanto, Hanna tinha descoberto algo que não cessava de lhe rondar a cabeça e, visto o pedido do duque, talvez indagasse mais sobre isso.

? Brandon! ? Exclamou William ao observar a palidez do rosto deste.

? Sinto muito, sua Excelência, estava meditando sobre a pergunta que me realizou ? mentiu e voltou a pedir piedade a Deus.

? E? ? Insistiu.

? Neste momento a única pessoa em que confio, além de em minha querida esposa, é no Mathias, o cavalariço. Sei que é muito jovem e talvez não consiga abandonar as cavalariças para lhe servir no interior da casa, mas é mais fiel do que um cão e mais calado que um mudo ? disse com solene segurança.

? Bom, pois pedirá ao jovem que averigue tudo o que possa sobre o sobrenome Brown. Se minhas conjecturas não forem errôneas, não deveria viver muito longe, do contrário não conheceria este lugar.

? Pensou meu senhor, que poderia não ser seu verdadeiro sobrenome? Parece-me estranho que uma jovem abandone seu lar, deseje apartar-se de todo ser humano, dita viver sozinha o resto de sua vida e responda com sinceridade ao lhe perguntar por seu nome. ? Brandon não queria que o duque se frustrasse se não achasse o que procurava. Se lhe aturdia tanto uma mera visita a jovem, o que aconteceria se o que encontrasse não fosse de seu agrado?

? Que o jovem se dirija para Rowsley, avise ao senhor Gibbs e comece a indagação entre os aldeãos. Se minha intuição não me falhar, embora a senhorita Brown não seja daí, tem que conhecer alguém desse lugar. De que outra forma ela adquiriria os animais que cuida e seu alimento? ? Explicou com aparência firme. Entretanto, a conjetura do ancião não cessava de lhe golpear a cabeça.

Era certo que, quando lhe perguntou por seu nome, Beatrice soltou-o sem pensar, mas seu sobrenome o disse com certo temor. Caberia a possibilidade de ter sido enganado? E se era assim, por quê? Aqueles pensamentos só aumentavam sua ânsia de averiguar quem era aquela jovem e por que, de tudo o que pôde lhe pedir, rogou-lhe ficar sozinha.

? Se sua Excelência não tiver nada mais que me dizer, agora mesmo falarei com o criado para que comece o antes possível com seu novo trabalho.

? Deixe-lhe bem claro que não deve falar com ninguém disto ? acrescentou.

? É óbvio. ? Depois de despedir-se como era devido, Brandon saiu da biblioteca e se dirigiu com passo firme para a cozinha.

Deveria explicar à Hanna o acontecido. Deixaria que se vangloriasse de seu triunfo e, depois do bate-papo que obteria sobre quão inteligente era e o pouco que a valorava, pediria-lhe que recordasse com exatidão aquilo que tanto lhe chamou a atenção na jovem. Possivelmente essa era a pista que deveriam seguir porque, se não estivesse equivocado, o sobrenome, o ter estado com outros homens, o proceder de uma família de camponeses e tudo aquilo que relatou à sua benevolente esposa era mentira.


X


O frio era tão intenso que atravessava toda a pele até alcançar os ossos. Beatrice tentou avivar um pouco o fogo, mas sem troncos para jogar sobre as brasas, não podia conseguir uma grande proeza. Abraçando-se com força e esfregando os braços de cima a baixo, aventurou-se a abrir a porta para confirmar que no galpão de lenha não havia nenhum triste ramo para lançar à chaminé. Em efeito, sobre o chão não havia nada. Tinha gasto tudo o que compilou até a volta dos lobos, e agora lhe dava um medo atroz sair como outras vezes a procurar alguma árvore caída para poder arrastar até ali. Era perigoso. Eles a vigiavam. Cada vez que saía, cada vez que caminhava ao redor da cerca podia sentir aqueles olhos diabólicos cravando-se em seu corpo. Eram incansáveis, mais do que tinha imaginado. Inocentemente tinha pensado que, assim como na primeira vez, voltariam a partir. Mas esta ocasião era diferente, agora tinham comida perto, só deviam esperar o momento apropriado para atacar e encher seus estômagos.

Zangada, fechou a porta e se deitou sobre o leito. O único a fazer até que chegasse o novo dia era deitar-se e cobrir-se com as colchas compradas no povoado. Agasalhada com aqueles objetos, acomodou a cabeça no almofadão e olhou ao teto. Estava cansada de lutar, de sobreviver dia após dia. O que em um princípio lhe pareceu a melhor opção para aguentar aquele desastroso sofrimento, nesses momentos não a convencia. Achava-se no meio do nada com comida suficiente para alimentar-se, mas impossível de cozinhar pela falta de fogo. Levava dias roendo verduras recolhidas da terra, tentando esquentar caldos que não terminavam de ferver, e sentia cada vez mais frio.

Levantou as mãos para seu rosto e observou que já não eram de cor rosada, começavam a ser malvas e isso não era bom sinal. Colocou-as sob as mantas e as esfregou com os lençóis para fazê-las entrar em calor, mas apesar do esforço mal notou melhoria. Resignada pelo terrível final que começava a chegar, girou-se para a direita. Dali podia contemplar a brilhante e reluzente lua. Aquela noite era a segunda vez que a via desde a partida do duque zangado e aceitando sua única condição. Beatrice suspirou profundamente ao recordá-lo. Não sentia compaixão nem afeto por esse homem, mas pensava nele de vez em quando e como em certos momentos lhe pareceu perceber que desejava aproximar-se e abraçá-la. Teria gostado se o fizesse. Apesar da fúria que a invadia ao rememorar a atitude autocrata mantinha quando seu pai lhe pediu ajuda, teria aceitado seu abraço de bom grado. Fazia muito tempo que ninguém a consolava, fazia muito tempo que não apoiava sua cabeça no ombro de uma pessoa e se consolava entre lágrimas. Entretanto tinha tomado uma decisão e se ele a houvesse visto débil ou aflita não lhe teria concedido seu desejo.

Voltou a mover-se na cama de armar, virou-se para o outro lado, cobriu-se até a cabeça e tentou dormir. Precisava descansar, precisava afastar-se do lugar onde vivia embora fosse somente em sonhos.

Beatrice sonhava que estava junto à sua mãe, que tagarelava sem cessar sobre a próxima celebração a que deviriam assistir. Seu tom era doce, quente, porque sabia que ela não aceitaria de bom agrado em assistir de novo a um evento cheio de homens pomposos e de mulheres orgulhosas pelas joias penduradas em seus pescoços. Zangada, depositou o bastidor sobre a cadeira que tinha junto a ela e se levantou do assento.

? Não pode me obrigar a isso, mãe! ? Bramou irada.

? Não é uma obrigação, é um acontecimento social ao qual deve assistir ? indicava com calma.

? Acaso essa descrição não é o mesmo que me forçar a realizar algo que não desejo? ? Arqueou as sobrancelhas e colocou as mãos na cintura.

? Eu não observo tal apreciação, senhorita, e em seu lugar sentiria-me adulada de ser convidada por um homem tão...

Um horripilante ruído a sobressaltou, despertando-a bruscamente do sonho. Apartou os lençóis e caminhou para a janela para tentar descobrir o que ocorria no exterior.

? Meu Deus! ? Gritou com força ao observar a cena mostrada na escuridão noturna. Sem pensar duas vezes correu para a porta e agarrou com força o pau que pendurava sobre a parede de pedra. ? Malditos sejam! Deixem-nos em paz! ? Continuou vociferando.

Os alaridos de seus animais eram insanos. Beatrice, ignorando o medo que a invadia, avançou sem titubear para o pequeno terreno onde se encontravam as ovelhas, as galinhas e os quatro porcos. Estes gritavam de terror. Uns tentavam fugir das garras de seus assassinos, outros jaziam no chão agonizando. Elevou a vara e começou a atirar golpes aos causadores daquele massacre, mas nenhum deles se voltou para defender-se. Parecia que não lhes importava sua presença, como se seus ataques não fossem perigosos.

Enquanto tentava que parassem de aniquilar tudo, notou o escorregar de lágrimas por suas bochechas e o som de seus próprios gritos retumbando em seus ouvidos. Pouco a pouco suas forças foram diminuindo, possivelmente se reduziram com mais rapidez quando observou atônita e impotente como os lobos apertavam com força suas mandíbulas nos pescoços dos desprotegidos animais e os arrastavam para o interior do bosque.

Em estado de choque foi caminhando para trás. Queria resguardar-se na cabana porque, até o momento, eles tinham decidido não a atacar. Sem soltar o pau girou-se com brutalidade e subiu os quatro degraus de pedra que a conduziriam até sua guarida. Estava a ponto de alcançar o objetivo quando sentiu a espetada de umas adagas rasgando a carne de sua pantorrilha. Ao mover a cabeça para a direção de onde procedia a imensa dor observou uns olhos escuros e uma pelagem cinza. Era o lobo que a espreitava, que a atemorizava com seus intensos uivos.

Sem pensar elevou o pau e lhe golpeou com força no focinho. Os dentes do animal se cravaram ainda mais em sua perna, fazendo-a gritar com tanta força que ficou exausta. A besta, ao sentir o dano, abriu a boca e a soltou, momento que aproveitou para correr para o interior da casa, fechar a porta e apoiar as costas sobre ela. Escutou o caminhar da fera. Rondava pelos arredores da cabana tentando encontrar um oco para acessar e finalizar seu propósito. Entretanto, as janelas estavam seladas, salvo se saltasse e rompesse o cristal, a atroz besta não poderia acessar.

Conforme passava o tempo e compreendia que estava a salvo, suas forças foram se desvanecendo e começou a escorregar pela folha de madeira até seu traseiro se apoiar no chão. Seus olhos começaram a oferecer uma imagem distorcida da cozinha. Sentia uma terrível queimação na perna e notava o palpitar de seu coração nela. Tentou levantar-se. Tentou fazê-lo. Mas foi impossível. Estava débil, ferida e sem vitalidade. Tinha chegado seu fim. Percebia como a vida partia em cada gota de sangue que emanava de sua perna. Quis voltar a chorar, embora não lhe brotassem mais lágrimas. Só pôde fechar os olhos e deixar chegar seu último suspiro.


William mal tinha conseguido dormir. Cada vez que o tentava, um horrível pesadelo o fazia abrir de novo os olhos. Esgotado por lutar contra sua própria vontade, levantou-se da cama e se colocou sobre a poltrona que se encontrava ao lado desta. Não entendia com claridade seu pesadelo. Mal tinha inquietações em sua vida cotidiana para sentir-se daquela forma. O mais incômodo para ele tinha sido visitar todos os que apareciam em sua casa, momento que aproveitava para indagar sobre a senhorita Brown. Embora nunca achasse a resposta que desejava. Não entendia como uma tarefa tão singela estava se convertendo em um tremendo calvário.

Durante as semanas seguintes à conversação com a moça, o jovem a quem Brandon tinha encomendado a tarefa de procurar algum dado sobre Beatrice, não encontrou nada salvo a um casal de anciões que se apelidava igual e, que conforme contaram ao criado, não tinham podido engendrar nenhum descendente para continuar com seu legado. O duque sopesou, depois de obter aquela informação, que a ideia do engano não era tão descabelada, mas a descartava cada vez que pensava nela, que propósito tinha para lhe mentir? Ela não sabia quem era até que ele mesmo o comentou. Aquilo não tinha sentido, a menos que fosse uma criminosa fugindo de uma sentença proferida e pensasse que ele, ao ter um importante cargo da nobreza, entregá-la-ia. Mas também rechaçou essa ideia porque se a jovem tivesse cometido um crime e se escondesse no lugar mais recôndito do planeta para viver em liberdade, não teria arriscado sua vida para salvar a de um desconhecido.

Levou a mão ao queixo e acariciou o espesso pêlo que tinha deixado crescer de novo após compreender que ninguém mais voltaria a observá-lo com normalidade. Ninguém exceto ela.

Aturdido por seu inexplicável desassossego, levantou-se do assento e se dirigiu para o balcão. Apesar do tempo gélido, abriu as janelas e caminhou pelo terraço. O amanhecer oferecia uma bonita e estranha luz que, ao iluminar os hectares do arvoredo onde habitava a moça, davam-lhe um matiz menos sinistro. Mas o perigo espreitava constantemente, sobretudo aquela noite. Tinha ouvido-os durante as horas nas quais esteve acordado e em mais de uma ocasião sentiu medo, apesar de encontrar-se resguardado na mansão.

No silêncio que oferecia a chegada do crepúsculo, uns incessantes uivos e gemidos retumbaram em sua habitação como se estes se aproximassem de sua janela. Estava seguro que tal revôo se devia a que a manada tinha estado caçando. Então, como se sua mente lhe mostrasse a imagem de um quebra-cabeça completo, correu para sua habitação, abriu a porta e começou a gritar o nome de seu mordomo.

? Sim, sua Excelência? ? Brandon aparecia em meio a se vestir. Sua respiração era agitada, as mãos trementes não acertavam colocar corretamente na casa os botões de seu uniforme.

? Faça com que preparem o antes possível uma carruagem! Quero o cavalariço como cocheiro e a este na parte de trás com uma arma carregada. Diga-lhes que partiremos para o refúgio de caça assim que estejam preparados.

? O que ocorre, milord? ? O senhor Stone não saía de seu assombro. A princípio acreditou que o duque se levantara no meio de um sonho alterado, mas ao observá-lo tão lúcido, soube que aquilo não era a consequência de um pesadelo.

? Faça o que te ordeno! – Gritou com tanto ímpeto que o eco de sua voz se escutou em todos os corredores da mansão.

? Agora mesmo, meu senhor. Digo ao seu ajudante de câmara que vá à sua habitação?

? Está demorando muito! ? Clamou ao mesmo tempo em que retornava ao seu dormitório e tentava tirar-se ele mesmo a camisola com o qual dormia.

Como não o tinha pensado antes? Como não tinha sido capaz de descobrir o que seu interior lhe indicava? Irado, golpeou com força o colchão de plumas ao imaginar que, se suas conjeturas fossem certas, já seria muito tarde. Nesse momento, depois de atirar vários murros ao inerte colchão, levantou seu olhar para o teto e fez algo que não tinha feito desde menino: rezar.

Tal como tinha desejado, a carruagem lhe esperava na entrada da mansão. Desceu os degraus sem a ajuda de Brandon, que corria atrás dele se por acaso em algum momento pedisse sua ajuda. Mas era tanta a ira que movia seu corpo, tanto desespero por averiguar o que se temia, que se introduziu no interior do veículo de um salto. Apoiou a cabeça no respaldo acolchoado e observou a paisagem que percorriam a grande velocidade. Tinha sido um acerto colocar o jovem Mathias como condutor posto que, ao conhecer as possibilidades dos cavalos que cuidava, tinha selecionado os mais rápidos e graças a isso não demorou muito em divisar os arredores da cabana. Ao aproximar-se sentiu como sua garganta o sufocava e seu coração desacelerava incapaz de afastar o temor de sua mente. De repente escutou um som, e o coche parou abruptamente.

? Deus santo! ? Ouviu o cocheiro exclamar. — Isto foi obra do próprio diabo!

William saiu apavorado do veículo. Assim que dirigiu o olhar para o cenário que seus homens contemplavam atônitos, deixou de respirar. A cerca estava destroçada, os fracos arames que rodeavam a suja cabana atirados no chão, dobrados e quebrados. Todo o terreno que rodeava a cabana estava cheio de partes de carne e sangue, muito sangue. Avançou um pouco mais sentindo ao seu lado o criado e o cocheiro, o qual sujeitava sua arma com firmeza.

? Que diabos aconteceu aqui? ? Perguntou estupefato um deles.

William não distinguiu quem fez a pergunta, sua mente se concentrava em averiguar qual desses pedaços podia ser uma parte de Beatrice. Continuou avançando, pisando em plumas ensanguentadas, partes de pele e ossos cobertos de tendões mordidos. Não havia vida naquele lugar. O silêncio indicava que a morte tinha devastado qualquer possível fôlego. Fixou a vista na porta da entrada. Estava fechada. Teria se resguardado antes do ataque? Poderia estar sã e salva? Ansioso por conhecer as respostas, deixou para trás os dois homens e se aproximou da entrada. Ao estar tão perto contemplou o desenho que tinham deixado umas ferozes garras. Não soube que seu corpo permanecia encolhido e que tremia até dirigiu sua mão para a porta e empurrá-la. Antes que esta tocasse a danificada madeira, entrou-lhe a dúvida e se encheu de desespero. Se na casa se encontrava a mesma cena que havia no exterior, não se recuperaria jamais do acontecido, posto que o único culpado daquele horror tivesse sido ele.

? Sua Excelência, deixe que seja eu quem a abra. Se dentro houver algum desses mal nacidos que massacraram estes pobres animais, encherei-o de chumbo ? comentou com firmeza o cocheiro.

William queria negar-se, mas não pôde. O homem tinha razão. Como lutaria contra a ferocidade de um lobo com uma só mão? Resignado por sua incapacidade, permaneceu imóvel enquanto observava como o servente direcionava sua arma para a porta e tentava abri-la.

? Está pesada! ? Gritou após vários intentos falhos. ? Mathias, olhe por essa janela para ver se consegue descobrir o que me impede entrar ? ordenou ao jovem que não cessava de olhar para trás e sussurrar algo sobre o mal e as atrocidades provocadas pelo demônio.

O jovem se aproximou do cristal com passo lento e inseguro olhou através dele dobrando a cabeça de um lado para o outro procurando um ângulo com maior visibilidade. Finalmente apoiou sua mão direita na testa como se fosse a viseira de uma boina e gritou:

? É algo pequeno! Está sobre o chão. Acredito que... Deus santo bendito, aí há alguém!

? Abre-a! ? Exigiu William mais assustado que nunca.

? Terei que golpear com força e poderia... ? começou a explicar o homem.

? Abre-a! ? repetiu com mais vigor ainda.

O cocheiro jogou uns passos para trás para tomar impulso e colocando seu ombro para frente, empurrou a porta com toda a energia que tinha. Não foi muito o que obteve, mas o suficiente para acessar o interior.

? É uma mulher! – Exclamou. ? É uma mulher! ? Repetiu agitado. ? Graças a Deus, parece que ainda respira!

William não pôde ficar ali fora observando. Caminhou para o interior da casa e quando contemplou Beatrice nos braços do homem, quis lançar-se sobre ela e abraçá-la ele mesmo.

O rosto da moça estava pálido e os braços lhe penduravam frouxos para o chão, o sangue, de cor escura após secar-se, cobria o vestido e as pernas. Era a viva imagem da destruição que ocasionava a morte em um ser humano.

? Deite-a no interior da carruagem! ? Gritou o duque. ? Mathias, crê que só um cavalo pode lavar sem dificuldade o coche? ? O moço afirmou com a cabeça, o pânico que o sacudia lhe impedia de articular uma só palavra. ? Pois desengancha o mais rápido que puder e galopa até Rowsley, necessito que leve o médico a Haddon Hall.

Enquanto o jovem soltava o corcel selecionado, Beatrice era depositada com cuidado sobre o sofá direito da carruagem, na posição adequada para que William a auxiliasse em caso de necessidade. Fechou-a após meter-se no interior e a observou desejando que nesse instante abrisse seus olhos e descobrisse estar à salva, que ele a protegeria, mas o suave e débil respirar lhe indicou que não podiam atrasar-se mais tempo. Levou-se a mão para o botão da capa, tirou-a e cobriu o corpo ferido para lhe dar calor. Ao notar que a carruagem começava a mover-se, sentou-se no chão e foi apartando o cabelo alvoroçado da jovem. Queria lhe ver o rosto, queria observar se continuava respirando, queria que seguisse com vida para ver de novo sua teimosia e determinação.

De repente escutou o relinchar de um dos cavalos e um rápido galope. O criado se afastava para procurar o doutor.


CONTINUA

A vida libertina do futuro duque de Rutland finaliza após bater-se em um duelo de honra com um marido enganado. Envergonhado pelas sequelas do dito desafio, decide abandonar Londres e partir para Haddon Hall, o aprazível lugar onde cresceu, albergando a esperança de encontrar a paz que tanto lhe urge obter, entretanto, a chegada de uma notícia inesperada altera essa suposta calma e provoca que o duque se embebede. Face aos conselhos de seus próximos decide montar a cavalo e galopar por seus domínios. Quando abre os olhos depois de uma desafortunada queda, descobre que uma mulher o esteve cuidando em algum lugar afastado e escondido de suas terras. Seu nome, Beatrice, e seu único desejo, viver em solidão o resto de sua vida.
Querido(a) leitor(a), quero explicar que o duque de Rutland existe, embora acredite que nenhum se chamou William até agora. Também quero comentar que Haddon Hall é real e que se encontra no condado de Derbyshire. Todo o resto é produto da minha imaginação. Esclarecido isto, espero que desfrute com a leitura que guardam estas páginas.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/1_A_SOLID_O_DO_DUQUE.jpg

 

Londres, 1865. Clube de cavalheiros Reform.

? Desafio-o, senhor!

Com essas palavras, um homem de baixa estatura, com um pouco de peso a mais e vestido com um imaculado traje cinza, atirou uma luva sobre a mesa em que se jogava uma partida de cartas. William arqueou as escuras sobrancelhas e olhou a quem o desafiava com certa incredulidade. Deu-se conta o pobre infeliz que se se levantasse de seu assento o superaria em altura um pouco mais de 30 centímetros?

? Pela honra de quem? ? Perguntou William redirecionando seus olhos para as cartas e apertando o charuto em seus lábios. Estavam sendo tão habituais esses desafios que já não lhe produziam alteração alguma.

? Pela honra de minha esposa, lady Juliette Blatte ? respondeu o homem cheio de cólera ao ver que o aristocrata não parecia se afetar pelo que ele esperava morrer de vergonha e de dor.

? Juliette?

A familiaridade com a qual o futuro duque de Rutland falou de sua mulher fez com que o pequeno corpo vibrasse de desespero e fúria. William, sem apartar a vista das cartas que tinha em sua mão esquerda, franziu o cenho e levou a outra palma para a escassa barba que cobria seu rosto.

? Disse-me que enviuvou faz algo mais de um ano ? continuou com voz serena e sem interesse por continuar a conversação.

? Acusa-a também de mentirosa? ? As bochechas do desonrado se encheram de um vermelho intenso.

O homem inclusive se elevou nas pontas dos pés para tentar, em vão, captar a atenção do amante de sua esposa. Entretanto, ninguém fez nada, nem William nem os outros jogadores. Se a cólera que o tinha conduzido até ali era inimaginável, observar que o próximo duque de Rutland continuava com sua pose de tranquilidade enquanto alegava que se deitou com sua esposa por ter sido enganado, provocou-lhe tal demência que esteve a ponto de equilibrar-se sobre este e lhe golpear com força.

? Acredito que sua querida Juliette mentiu a ambos ? disse William após manter-se em silêncio uns minutos. ? O duelo deveria se dirigir a ela. Mas se me permite um conselho, antes de enfrentar uma possível morte, agarraria sua esposa e lhe daria uns bons açoites com o cinturão. Não se pode enganar com falácias a homens como nós, sobretudo porque nestes momentos cavalheiro, encontro-me tremendamente aflito... ? comentou com zombaria e sem subir nenhuma nota em seu tom de voz.

Tomou outra intensa imersão do charuto e depois de jogar o ar esperou que o desventurado homem fosse sensato e partisse com a cabeça baixa, mas respirando.

? Amanhã, em Hyde Park, à alvorada. Levarei as minhas testemunhas e um médico, você apareça com quem desejar. ? O homem golpeou suas botas, girou-se e inclinando-se ligeiramente se despediu dos pressente antes de afastar-se.

Durante um bom momento o sigilo foi reinante naquele lugar. William seguia concentrado na mão que estava a ponto de ganhar. Sorria meio de lado e a fumaça do charuto saía da boca como se fossem as chaminés que tinha sobre o telhado de seu lar.

Ninguém queria fazer alusão à cena vivida, talvez porque fosse muito habitual que às sextas-feiras daquele mês vários maridos indignados irromperam no clube ao saber da presença do futuro duque no salão.

? Senhores..., ? disse enfim após depositar as cartas sobre a mesa e descobrir a última jogada ? já podem ir despedindo-se de seu dinheiro.

? É incrível! ? Exclamou Federith Cooper, um dos melhores amigos de William e futuro barão de Sheiton. ? Como pode ter tanta sorte?

? Nosso querido Manners nos depena os bolsos e seduz desoladas esposas, acaso estamos loucos por seguir mantendo sua amizade? ? Roger Bennett, quem algum dia chegaria a possuir o título de marquês de Riderland, falou com seu típico tom sarcástico ao mesmo tempo em que se reclinava no assento e tomava um sorvo de brandy.

? A sorte sempre está comigo, ela é minha única esposa ? respondeu William colocando as moedas em seu lado da mesa e sorrindo de satisfação. Pouco depois os outros jogadores partiram deixando os três cavalheiros na habitação.

? Entretanto, meu amigo, alguma vez mudará e serei eu quem mostrará um sorriso descarado em meu rosto ? continuou zombador Roger.

? Não pode zombar assim de um homem que amanhã se debaterá entre a vida ou a morte. Se for meu amigo desejará que a sorte permaneça no mínimo umas horas mais ao meu lado ? falou com dissimulação e sem deixar de mostrar no semblante uma atitude cômica.

William se levantou do assento e caminhou para o cabideiro para pegar o chapéu e a capa. Federith e Roger o imitaram. Em umas horas voltariam a serem testemunhas de outra inevitável loucura. Quase não tinham se recuperado da exaltação que lhes tinha provocado o último duelo e já sofriam a agonia do seguinte.

? Essa mulher... ? disse William pensativo enquanto caminhavam pela tranquila rua que lhe conduziria até Southwark.

? Quem, lady Blatte? ? Inquiriu Federith levantando a bengala até conseguir tocar a aba de seu chapéu.

? Juro-lhes que me disse que não estava casada. O perguntei mais de um milhão de vezes... ? respirou com profundidade e logo jogou o ar devagar. ? Cada vez que a visitei olhei-a nos olhos e lhe perguntei por seu marido. Ela respondia o mesmo: «Sua Excelência tem má memória, sou viúva» ? comentou com desdém. Logo levantou o olhar do chão e exclamou: ? Mulheres!

? Sim, Rutland, mulheres. ? Roger interveio com voz zombadora. ? Mas está falando de uma mulher que nasceu com um corpo digno de um duelo.

? Nisso tem razão. Lady Blatte é uma deusa ? comentou William com palavras cheias de luxúria. ? Possui uns seios lindos... suas coxas sempre estão quentes e quando me introduzia em seu interior...

? Basta! ? Interrompeu-lhe Federith. ? Acaso não recorda o que significa ser um cavalheiro?

? Não se zangue, Federith. Deve compreender que preciso recordar como era o corpo da mulher pela qual amanhã estarei a ponto de morrer... ? comentou entre risadas. Os olhos negros de William se elevaram para olhar o céu. Era uma noite com muitas estrelas, pouco habitual em Londres.

? Falando de morrer... escutou o trágico final da filha do barão de Montblanc? ? Perguntou-lhes Roger fazendo com que parassem bruscamente na metade da caminhada. Ao não responder nenhum dos acompanhantes, prosseguiu. ? Ao final a moça decidiu pôr fim à sua tormentosa vida. Esta manhã era o único tema de conversação que se escutava em todo Richmond.

? O barão não foi há alguns dias à sua casa para uma auditoria? ? Federith idolatrava seu amigo, posto que ambos tivessem crescido juntos, mas utilizava esse privilégio para recriminar sua Excelência por não ser capaz de adotar a posição que devia na sociedade. Aos seus trinta anos continuava sendo o mesmo cavalheiro libertino, insensato, despreocupado e farrista que foi com vinte.

? Sim ? respondeu com tom firme. Abaixou levemente a cabeça e continuou o passeio. A notícia o surpreendeu e, embora jamais o tivesse admitido, sentiu dor pela família. Tinham padecido bastante com o ocorrido à jovem e talvez, com a morte desta, descansariam enfim em paz.

? O barão foi visitar-te? ? Roger avançou atrás de William e arqueou as sobrancelhas em sinal de desconcerto. ? O que desejava de ti esse pobre homem?

? Pensou que se utilizasse minha posição conseguiria esclarecer o caso de sua filha... ? respondeu sem querer mostrar aquele sentimento de culpa que, por outro lado, não devia sentir.

? O que pretendia? ? Roger, animado pela curiosidade, seguiu com seu interrogatório.

? Como já sabem, a filha do barão tinha que ter sido apresentada em sociedade há dois anos, quando ela cumpriu os dezoito, mas a jovem sempre estava doente para a temporada social.

? Conforme tenho entendido, tais enfermidades eram inventadas. Comenta-se que a moça não desejava vir à Londres porque desfrutava de uma vida tranquila e aprazível no campo ? acrescentou Federith.

? Quando foi anunciado como merecia ? continuou William ? na última festa que nossa adorável senhora Baithlarin deu em sua residência em Marylebone, nenhum homem conseguiu fazer a jovem se apaixonar. Conforme escutei foi uma das mulheres mais belas da temporada. Mas, apesar da grande quantidade de propostas matrimoniais, ela as rechaçou com veemência. O barão e a baronesa decidiram retornar ao seu lar e fazer-se à idéia de ter sob seu teto uma filha solteirona.

? Mas? ? Roger escutava com entusiasmo toda a conversação e desejava saber como uma jovem que vivia placidamente e a quem não faltavam propostas de matrimônio terminou dando fim a uma vida próspera.

? Conforme tenho entendido, a moça foi desonrada na festa ? prosseguiu William. ? A família da jovem mantém que o conde de Rabbitwood abusou dela. Segundo o conde, com o qual tive a oportunidade de falar há algumas noites no clube durante uma intensa partida de cartas, a moça se esteve insinuando todo o serão até que conseguiu o que desejava. Rabbitwood lhe advertiu que tinha esposa e que só podia lhe outorgar a posição de uma amante. Como a esta não interessou a ideia, começou a divulgar que tinha sido violada.

? E claro está, depois do escândalo e de não conseguir seu propósito, desaparece para sempre... ? asseverou Roger.

? Bom, nenhum de nós entenderá jamais o que escondem as mulheres em suas cabeças. Embora se essa aspirante à harpia não obteve aquilo que ansiava e entendeu que era uma mancha indelével em sua família, o mais lógico era que terminasse fazendo o correto: suicidar-se ? argumentou William sem mostrar nenhum tipo de sensibilidade em suas palavras.

? Manners! Como pode ser tão frívolo? E se de verdade foi violada? Acaso não contemplou essa possibilidade? ? Federith se mostrou tão alterado que William chegou a perguntar-se se seu amigo tinha sido um dos que lhe tinham proposto matrimônio e foi rechaçado.

Durante uns instantes o futuro duque tentou que a mente lhe oferecesse algumas lembranças da moça, mas não achou grande coisa: uma jovem morrena de estatura pequena com umas bonitas curvas. Não foi capaz de descrever nem como estava vestida nem a cor de seus olhos. Sorriu para si ao rememorar que a maioria do tempo que passou naquela festa brincava de correr atrás das saias de uma suposta viúva desejosa de calor masculino e a satisfação que achou escondido atrás das cortinas de alguma janela do lar de lady Baithlarin.

? Confio na palavra de um cavalheiro como Rabbitwood ? disse cortante. ? As mulheres como puderam observar durante este tempo ao meu lado, causam problemas e uma terrível dor de cabeça. Olhe lady Juliette, jurou-me que não estava casada, que enterrou seu marido no ano passado e... acaso viu um fantasma me lançando a luva? Não sinta piedade por elas, meu amigo, são a outra parte do mundo. Foram criadas só e exclusivamente para nos dar prazer... ? sorriu de lado.

? Algum dia, William Manners, futuro duque de Rutland, apaixonar-se-á, e essa mulher te fará pagar por todo o mal que causou às suas amantes e aos seus maridos ? retrucou Federith com tom desafiante.

? Apaixonar-me? Jamais! ? Sentenciou após jogar o braço sobre o ombro de seu amigo e apertá-lo com força. ? O que fariam todas essas damas se o futuro duque se casasse? O que seria desses pais que, com tanta amabilidade, oferecem as suas bonitas e carinhosas filhas para que as converta em minha duquesa? Não, meu amigo, não posso entristecer toda essa gente. Devo a eles... ? Federith soltou um impropério enquanto que Roger e William não paravam de gargalhar.

Seis horas mais tarde, depois de ter descansado em sua residência de Southwark, William, perfeitamente embelezado para a ocasião, apareceu em Hyde Park. Depois de jogar uma rápida olhada aos arredores para certificar-se de que o duelo não era uma patranha para ser detido, distinguiu entre a pequena multidão as figuras de seus dois bons amigos. Com passo firme avançou para eles.

? Parecem aborrecidos ? disse a modo de saudação.

? Seus duelos já não causam interesse. Todo mundo sabe como terminarão ? respondeu Roger tomando a capa que o recém-chegado lhe oferecia.

? E como terminarão? ? Arqueou as sobrancelhas e o olhou aos olhos.

? Contará os passos, girará e, justo quando seu desafiador disparar, todos nós veremos que ele foi vítima dos nervos e que ele não alcançou o seu propósito. Então levantará a pistola e disparará ao ar. Seus amigos sabem que no fundo é uma boa pessoa e que se compadece de seu adversário. Imagino que o sofrimento que vive o marido depois do descobrimento da infidelidade é mais que suficiente. Equivoco-me? ? Roger arqueou as sobrancelhas e sorriu, assim como fez William.

? Espero que seja assim... ? interveio Federith. Ambos os cavalheiros giraram à volta dele e o observaram com interesse ? até agora lhe desafiaram homens aos que de verdade não lhes importava a afronta e se conformavam recuperando sua honra, entretanto, o senhor Blatte é um bom atirador e parecia necessitar do seu sangue para restaurar sua honra.

? Senhores..., ? interrompeu-os um dos padrinhos do competidor ? o senhor Blatte já escolheu a arma. Serão as pistolas, dez passos e... a morte.

? A morte! ? Exclamou Roger atônito. ? Não podemos permiti-lo!

? Não importa, ? William interrompeu seu amigo alarmado pela gravidade do assunto ? tem direito a escolher a forma em que sua honra será restaurada.

? Bem, pois quando sua Excelência estiver preparado daremos início.

Os três ficaram calados durante uns instantes. Pareciam refletir sobre as possibilidades existentes de sair ileso depois da informação obtida. Quando reclamaram a presença do cavalheiro, este olhou seus amigos, sorriu-lhes e caminhou para o lugar onde o senhor Blatte, embelezado com uma camisa branca e umas calças muita estreita esperava-lhe com os olhos injetados em sangue.

? Senhor... ? William o saudou com cortesia, mas este não se dignou nem a olhá-lo.

? Quando estiverem preparados... ? a testemunha olhou a ambos os homens e estes assentiram. ? Contem dez passos e girem-se. Que Deus os proteja.

William sentiu as costas de seu competidor na cintura. Riu ao notá-lo tão pequeno e com tanta coragem. Enquanto contava os passos recordava Juliette sob seu corpo. Viu de novo os grandes seios fazendo círculos maravilhosos quando cavalgava sobre sua ereção. Tinha lhe encantado ver o cabelo revolto depois do ato sexual e como ela albergava o enorme e duro falo na boca. Em vez de concentrar-se no que estava acontecendo, pensou que, quando o senhor Blatte voltasse a ausentar-se, faria uma visita à delatora para lhe recriminar o engano e fazê-la pagar por seus indecentes atos.

De repente escutou que alguém dizia dez. Virou-se com desconcerto e olhou seus amigos, que abriram os olhos de par em par enquanto cravavam seus olhos no senhor Blatte, ele fez o mesmo. Tinha curiosidade por saber como atuaria aquele pequeno homem e a cara que faria após falhar o tiro. Sorriu ao escutar o eco do disparo. Ato seguido, uma escuridão o rodeou e notou como seu corpo desabava para o chão fazendo com que sua cabeça batesse um par de vezes sobre algo bastante duro.


I


Londres, seis meses depois.

O ajudante de câmara o estava vestindo enquanto ele permanecia rígido e com o cenho franzido. Não era de seu agrado ter que depender de alguém para realizar uma tarefa tão singela. Antes do duelo, o criado se ocupava de lhe preparar a roupa, colocá-la sobre a cama e esperar que sua decisão coincidisse com a do duque. Entretanto as sequelas do duelo o tinham convertido em um ser dependente. Obstinou-se à crença de que transcorridos alguns meses seu corpo seria o mesmo de antes, mas não foi assim. A gravidade de suas feridas tinha sido tal que tinha que dar graças a Deus por continuar respirando.

Sem alisar sua testa refletiu sobre o destino e todas as jogadas que este lhe podia reservar enquanto o servente lhe punha a camisa e lhe abotoava, definitivamente, aquele calvário era o pior que tinha sofrido em toda sua vida.

Seus escarcéus amorosos tinham sido vingados por alguém que não levantava do chão mais de um metro e meio. Por que não girou para a direita para evitar o terrível impacto? Se em vez de estar pensando no prazer que lhe tinha dado o corpo de Juliette e a condenação que receberia por desvelar o segredo, teria prestado mais atenção à direção do projétil e hoje seguiria sendo o mesmo William de sempre. Entretanto, já não o era. Não ficava rastro da pessoa que foi. Agora era um deficiente, um homem ao qual lhe resultava impossível mover a mão esquerda e cuja incapacidade tinha azedado seu afável caráter para converter-se em um ser antissocial e desprezível.

? Excelência... ? o criado cravou os olhos no chão e lhe fez uma reverência antes de deixá-lo sozinho.

O duque caminhou para a janela apoiando-se na bengala. Amanhecia outro dia chuvoso e, como nas jornadas anteriores, não poderia sair da mansão. Isso lhe provocava mais ira do que a necessária. Não era igual passar as penúrias encerrado entre quatro paredes do que tomando o ar do exterior.

Apoiou a testa na moldura de madeira e suspirou. Merecia-o. O estado no qual se encontrava era o resultado da tormentosa vida que tinha levado e agora devia aguentá-lo com orgulho. Com grande esforço conseguiu chegar até a porta. O delicioso aroma do café da manhã fez com que seu estômago se manifestasse e, sem mediar palavra, desceu as escadas, uma proeza que três meses atrás lhe tinha resultado difícil executar por si mesmo. Chegou até o salão e esperou que um dos criados lhe apartasse a cadeira, sentou-se e se acomodou para começar a tomar o suculento café da manhã que havia sobre a mesa.

? Sua Excelência... ? o mordomo se aproximou e, depois de uma breve reverencia, continuou: ? o senhor Federith Cooper acaba de chegar e deseja falar com você.

Federith, um de seus melhores amigos a quem não tinha quebrado, ainda, sua amizade com ele, tinha lhe visitado quase diariamente durante sua convalescença. Foi o mesmo homem que lhe advertiu em reiteradas ocasiões que o rumo de vida que tinha decidido não era o apropriado para um duque.

William tinha rido dele, zombado de seus incessantes discursos sobre o dever e a lealdade para com o título que lhe seria concedido por nascimento. Mas, apesar das brincadeiras, dos sátiros comentários, Federith continuava ao seu lado como se o passado não tivesse existido.

? Deixe-o entrar... ? disse calmamente.

Quando sua voz deixou de mostrar a personalidade de um homem com caráter? Desde quando seu tom se apagou tanto? Possivelmente desde que descobriu numa manhã em frente ao espelho que William Manners se convertera em um monstro que poderia assustar aos meninos inquietos. Porque, embora todo mundo de seu entorno lhe oferecesse palavras de consolo, ele se via um ser disforme e sem utilidade. Como poderia suportar o peso de um título tão respeitável quando nem ele mesmo conseguia respeitar-se?

Levou a xícara de café aos lábios com a mão sã e tomou, depois de um leve sopro ao líquido, um bom sorvo. Escutou enquanto isso como o mordomo informava ao seu amigo que era bem recebido e, depois de finalizar a conversação, os passos deste para a sala de café da manhã. Antes que Federith abrisse a porta e aparecesse com seu peculiar sorriso, William já tinha seu olhar cravado em sua direção.

? Bom dia, querido Rutland, que tal se levantou nesta horrenda manhã? ? Caminhou para ele e, ao compreender que não podia saudá-lo com um apertão de mãos posto que estivesse utilizando a mão útil, agarrou a cadeira, apartou-a e se sentou ao seu lado.

? De péssimo humor... ? murmurou com aborrecimento.

? Está acostumado a ocorrer quando o inverno está a ponto de terminar. Por muito que desejemos evitá-lo, azeda-nos o caráter ? continuou mostrando um leve, mas gentil sorriso.

? A que se deve sua visita, Federith? ? Grunhiu.

? Não se alegra de me ver? ? Respondeu à sua vez.

? Já sabe a que me refiro. O que aconteceu para que esteja em meu lar antes do meio-dia? ? Voltou a beber do café sem apartar o olhar de seu amigo.

? Sua astúcia não diminuiu nem um ápice, não é? ? Soltou uma pequena gargalhada. Depois de observar que William pousava a xícara sobre o pires e pegava o garfo para dirigir a comida que lhe tinham preparado para a boca, prosseguiu: ? Queria te dar uma notícia antes que lhe cheguem os rumores: decidi pedir a mão de lady Caroline.

? Matrimônio? ? Arqueou a sobrancelha esquerda abandonando com brutalidade o garfo sobre a mesa e se reclinando sobre as costas do assento. ? Diz-o a sério? De verdade que vem me informar, antes de ter o estômago cheio, que decidiu se casar? ? Abriu tanto seus olhos que Federith por fim conseguiu averiguar a cor destes.

? Chama-se amor, William, e embora te pareça mentira, Caroline me ama tanto quanto eu a ela ? disse sem mostrar remorso algum pelo comentário mordaz de seu amigo. Não esperava que lhe desse os parabéns. Não William. Ele o evitaria contribuindo com argumentos nefastos sobre a vida que teria uma vez que sua prometida obtivesse o anel. ? Decidi que ? prosseguiu Federith aferrando suas mãos como se tivesse a intenção de começar a rezar ? retornarei a Hemilton depois das núpcias. Esse será o lugar adequado para formar uma família respeitável.

? Então... ? William entrecerrou os escuros olhos e os cravou em seu amigo. Notava como a respiração deste era agitada, nervosa. Esses sinais de preocupação e incerteza apareciam no jovem Federith sem ele desejá-lo. O duque pigarreou. Tinha refletido, ao mesmo tempo em que seu amigo expunha sobre o infinito amor que o casal se professava, a verdadeira razão pela qual Federith tomava uma decisão tão importante. ? Então... ? repetiu para captar a atenção de seu camarada. ? Ela está grávida e precisam se afastar de Londres para que não se descubra a verdadeira razão desse precipitado enlace matrimonial, não é?

? Santo céu, Manners! ? Exclamou Federith empurrando com as panturrilhas o assento e elevando-se com rapidez. Ficou rígido, sem saber que passo dar. Esperava que William fosse sensato e retificasse, mas conhecendo-o como o fazia, sabia que isso seria impossível.

? Calma, sabe que de minha boca não sairá nada que possa te prejudicar ? continuou com o cenho franzido enquanto observava a crescente tensão de Federith.

? Espero que não tenha esquecido o que significa ser um cavalheiro. ? Seus punhos se apertaram. As palavras brotaram dele com um tom repleto de ameaças.

Mas... que perigo poderia ter uma pessoa que vivia detento de suas más decisões? Ante tal reflexão Federith se zangou consigo mesmo. Ele não era assim. Jamais desejava o mal a ninguém. Sua filosofia de vida era muito distinta. Embora a raiva que William tinha despertado nele superasse qualquer crença sensata.

? Há valores que nunca se perdem ? respondeu William ao pequeno ataque.

? Não estou muito seguro disso. Apartartou-se do mundo. Apenas se relaciona com seus amigos, escondeu-se entre estas paredes e há mais de três meses não recebe visitas. Crê que esse tipo de vida não faz rachaduras na mente do cavalheiro mais racional?

O duque o observava com atenção. Federith seguia com os punhos fechados, mas em nenhum momento foi capaz de olhá-lo aos olhos para lhe cuspir o pouco veneno que devia sentir após descobrir seu pequeno segredo.

? É o melhor lugar para habitar um monstro, não acredita?

? Monstro? Assim é como se considera o duque de Rutland? Desaponta-me William, acreditei que tinha mais coragem...

Federith o olhou com atenção. Na verdade, William tinha um pouco de razão. Ali onde no passado tinha existido um cavalheiro bonito, agora se encontrava um homem com umas horrendas marcas no rosto. Além disso, já não era só a fealdade, mas sim que depois de ser operado de urgência pelo médico que o zangado marido de Juliette conduziu até o lugar do duelo, o duque ficou incapacitado de uma mão. Essa que, nesses momentos, tinha colocado sobre a mesa aparentando ter uma função. Suspirou com suavidade e meditou sobre a passada temporada social. Seu amigo partiu antes do acostumado deixando lady Baithlarin desolada pela ausência repentina de um homem tão importante. Supôs que tal marcha se deveu à imensa pressão que William estava sofrendo depois do falecimento de seu pai e a posse do título. Entretanto, a fuga à sua residência em Southwark tinha outra razão: desaparecer. Odiaria ver a cara de espanto que mostrariam as jovens casadouras quando seus progenitores as apresentassem ao novo duque. Ali onde antes encontrou sorrisos pecaminosos e olhos frágeis pela possibilidade de jazer sob a esbelta e robusta figura, agora encontrava repugnância, asco. Que dramático final para um homem que acreditou ser possuidor de todos os encantos divinos!

? Perdi-a depois do disparo ? respondeu em tom vazio, sem entusiasmo. Entretanto, em seu interior crescia de novo aquela ira a qual começava a acostumar-se. Era hora de cortar a conversação e deixar que seu amigo tomasse o rumo marcado. ? Voltando para o motivo pelo qual me visita...

? Como lhe disse, tomei uma decisão firme a respeito. A futura baronesa de Sheiton será muito feliz em Hemilton.

? Não o duvido. Com certeza será muito feliz com esse filho que te dará e imagino que será o pai mais maravilhoso do mundo.

? Sim ? respondeu ignorando a ironia de sua afirmação. ? É óbvio que serei feliz ao lado da minha esposa e da família que criarei. ? A visita estava chegando ao seu fim. Federith tinha vontade de partir e afastar-se de seu camarada. Estirou-se a jaqueta do traje, estendeu a mão para seu amigo para que este a tomasse e disse: ? Veremos-nos em outro momento. Possivelmente em um no qual tenha recuperado o sorriso.

? Antes de ir..., ? aferrou com força à mão de Federith e olhou-o nos olhos ? eu gostaria de te fazer uma última pergunta, se me permitir isso o futuro barão de Sheiton, é claro.

? É óbvio.

? Estou me perguntando... que classe de inconsciente pode chegar a ser para se casar com uma mulher que leva em seu seio o filho de outro? ? Soltou sem tomar ar.

O assombrado homem não respondeu a impertinente pergunta. Partiu do salão erguido e com passo firme.

William ficou calado refletindo durante um bom momento. A decisão de Federith a nível social era a mais correta se ele amava de verdade a mulher. Entretanto, quando falou dela e de seu futuro projeto juntos, não mostrou o entusiasmo próprio de um homem apaixonado, um homem que, tal como tinha proclamado, amaria para sempre a sua esposa.

Muito a seu pesar sabia que cedo ou tarde seu amigo seria infeliz e isso, embora não quisesse reconhecê-lo, doía-lhe. Sempre albergou a esperança que, dos três, Federith obtivesse a vida que merecia.

? Deseja algo mais, Excelência? ? Um dos criados lhe fez despertar de sua letargia mental ao mesmo tempo em que entrava no salão e esperava o próximo mandato.

? Preparem a bagagem. Amanhã ao amanhecer partiremos para Haddon Hall.


II


Tinha viajado quatro dias intermináveis com suas noites incluídas, pernoitando em miseráveis e fedorentas estalagens, mas por fim, aquela horrenda viagem se acabara.

Chegara ao seu lar.

O imenso arvoredo lhe dava as boas vindas com suaves movimentos de folhas. William colocou a cabeça pela janela da carruagem e observou a sobriedade dos grandes e altos muros da mansão. Era, sem dúvida, o melhor lugar onde poderia esconder-se pelo resto de sua vida. Uma fortaleza em que poderia passar os dias inteiros caminhando pelos intermináveis corredores, salões e estadias. Moveu o lábio superior para a esquerda tentando desenhar um sorriso, mas fazia tanto tempo que não movia os músculos para essa função que foi impossível fazê-la como era devido. Apesar desse fracassado esforço por sorrir, William se sentia contente em retornar à casa de sua infância.

Rememoraria as aventuras que seu irmão e ele viveram quando meninos. Se a mente não lhe falhava, ambos tinham enfurecido até ao servente mais paciente do mundo. Logo, com o tempo, aqueles que correram atrás deles para que não terminassem se machucando, converteram-se em pessoas dignas de sua confiança.

Olhou de novo ao seu redor. Tinham passado dez anos desde que decidiu abandonar Haddon Hall para dedicar-se ao desfrute da vida londrina, e nada tinha mudado em Derbyshire, o tempo parecia deter-se.

O cocheiro diminuiu o passo quando chegaram ao jardim principal. Com a cabeça apoiada na almofadinha da carruagem podia ver a fonte. Ela foi à causadora de sua primeira aposta e de sua primeira derrota. Não tinha que ter desafiado Lausson a saltar, as probabilidades de que perdesse eram escassas, entretanto precisava provar-se a si mesmo. Necessitava estimulação, emoção e um sem-fim de sentimentos que depois encontrou entre as pernas de suas amantes.

William fechou os olhos. A palavra amante se converteu em sinônimo de monstruosidade, posto que pela língua de uma delas ele tinha o rosto desfigurado e uma mão inerte. De repente se perguntou como atuaria o serviço ante sua chegada. Para eles tinha que ser bastante impactante recordar a marcha de um bonito homem e receber ao mesmo convertido em um monstro. Esperava que Brandon, seu fiel mordomo, tivesse lhes posto à corrente do acontecido e indicado a melhor forma de atuar quando ele estivesse presente: nada de olhá-lo ao rosto, tão somente servir e manter os olhos cravados no chão.

Repentinamente uma terrível dor se apropriou de sua cabeça. Notava nas têmporas o pulso de seu coração. Estava nervoso? O duque de Rutland começava a sentir ansiedade por seu futuro? Não se tinha respondido quando a porta da carruagem se abriu e alguém estendeu uma mão para lhe facilitar a descida. Até o momento, não o tinha necessitado: o normal era que se aferrasse com a mão sã à porta e descesse devagar. Mas depois de quatro dias de viagem, de mal dormir, de fadiga e inclusive de uma péssima alimentação, essa ajuda era necessária. Depois da custosa façanha, liberou a mão e continuou sozinho.

Quando elevou o olhar para a entrada principal advertiu que todos os criados tinham saído para saudá-lo e cravavam seus olhares no chão. Em efeito, Brandon tinha falado com eles.

? Milord... ? o mordomo se colocou com sutileza atrás de suas costas e começou a lhe informar. ? Sua habitação está preparada para que descanse. Imagino que depois da viagem precisará refrescar-se, assim ordenei ao seu ajudante de câmara que o espere. As criadas lhe prepararam um banho de água quente.

? Obrigado, Brandon ? disse com tom suave.

? Não tem por que me agradecer, Excelência. É uma honra trabalhar para você. ? Brandon, sem afastar-se do senhor nem um metro, caminhava com firmeza esperando que este requisitasse sua força para subir as escadas. Mas não a necessitou. O duque de Rutland caminhava com orgulho para o interior do lar, saudando brandamente com a cabeça seus novos empregados. ? Tenho que lhe comentar que na biblioteca tem sobre sua mesa vários convites. Embora tenha anunciado que deseja descansar uma temporada antes de encher Haddon Hall de convidados, todo mundo deseja conhecê-lo e falar com você.

O duque fez um leve som gutural e o criado entendeu que aquele esforço era mais do que podia suportar. Tentou alargar a mão para aferrar-se ao braço inerte de seu senhor e acalmar o esforço, mas este o negou. Tinha suficiente orgulho para não se mostrar fraco ante aqueles que estavam sob suas ordens.

Tal como lhe informou Brandon, quando acessou seu quarto o ajudante esperava pacientemente. Depois de fechar a porta, o criado lhe fez uma reverência e lhe pediu permissão para despi-lo. William a aceitou com rapidez. Desejava inundar-se na banheira o antes possível. Precisava introduzir seu cansado corpo em água quente e que esta acalmasse as doenças que lhe açoitavam sem piedade.

? Necessita que lhe ajude em alguma outra coisa, sua Excelência? ? Inquiriu o criado ao finalizar sua tarefa com habilidade.

? Diga ao Brandon que suba, preciso falar com ele ? respondeu o duque.

O criado se dirigiu para a porta com rapidez e antes que William pudesse suspirar, Brandon apareceu no meio do quarto.

? Não está tudo como deseja, Excelência?

? Tudo está perfeito, obrigado. Chamei-te porque quero que me faça um favor. Necessito que procure o antes possível uma cortesã capaz de manter encontros esporádicos comigo ? ordenou sem olhá-lo. Movia as pernas devagar, deixando que se acostumassem ao calor do banho, à tranquilidade de um ambiente sereno e aprazível.

? Com o mesmo salário, sua Excelência?

? Com o mesmo salário... ? repetiu.

? Alguma petição especial? ? Quis saber.

Em Londres o duque tinha procurado durante muito tempo uma amante que se parecesse fisicamente à lady Juliette. Não encontrou a réplica perfeita, mas sim a uma jovem que tinha feições parecidas. Esta o satisfez até que dias atrás teve que partir. É óbvio, deu-lhe a opção de escolher: podia viajar para Haddon Hall para continuar seu ofício ou, pelo contrário, podia declinar seu convite. A jovem, alegando que sua mãe se encontrava bastante doente, decidiu não continuar. Algo que entristeceu ao senhor por que... como conseguir outra agulha em um palheiro?

? Já sabe quais são os requisitos ? disse com grosseria.

? É óbvio. Deseja que diga ao seu ajudante de câmara que pode acessar ao dormitório?

? Não, diga-lhe que esteja atrás da porta e que o chamarei quando o necessitar.

? Como desejar... ? disse antes de retirar-se.

William olhou ao seu redor. Encontrava-se no quarto de seu pai, o santuário do anterior duque de Rutland, o único lugar proibido de todo Haddon Hall quando era menino. Ambos os irmãos se enchiam de entusiasmo quando o pai aparecia pelo lar, e só pensavam em despertá-lo com risadas e conversações sobre as mil anedotas que tinham acontecido em sua ausência. Entretanto, com o tempo descobriram que o duque não retornava para passar tempo com seus filhos e sim para esquentar a cama com sua legião de amantes.

William franziu o cenho. Tinha odiado com todo seu coração a atitude de seu pai e não deixava de ser irônico que se convertera em uma réplica perfeita. O que primeiro tinha ordenado ao Brandon ao chegar? Uma amante. Uma mulher que o saciasse sexualmente, sem escrúpulos e desejosa de encher seus bolsos de moedas.


Só gozou de dois dias de solidão para descansar antes que os primeiros bisbilhoteiros aparecessem. O reverendo Brace e sua esposa eram um jovem casal que tinham retornado a Derbyshire depois que faleceu o pai deste, anterior pastor da comarca. Quando acessaram ao salão principal, lugar onde receberia a todos seus convidados, William se desculpou por não lhes dar as boas vindas de maneira correta.

? Não se preocupe, Excelência, informaram-nos de suas incapacidades ? explicou o reverendo com um sorriso. Ao qual o duque desejou fazer desaparecer com um murro, se pudesse.

? Veio ao melhor lugar para descansar. ? A senhora Brace, com uma suave e harmoniosa voz, misturou-se na conversação para salvar as inoportunas palavras de seu marido.

? Isso espero ? comentou o duque esboçando um leve sorriso. ? Segundo minha lembrança, Derbyshire é um lugar tranquilo e aprazível.

? As pessoas que habitam aqui são gente de paz, nós não gostamos dos escândalos nem tentamos destacar mais do que nossas possibilidades nos oferecem.

? Entretanto, às vezes sofremos certos constrangimentos. ? Outra vez a encantadora mulher tentava salvar a desafortunada reflexão de seu cônjuge. ? Virá à Igreja, sua Excelência? É linda e aos domingos está transbordante de crentes.

? Se puder, estarei encantado de admirá-la ? respondeu William com uma amabilidade estranha. Quanto tempo fazia que uma mulher não lhe agradava? Muito, devia ter transcorrido no mínimo uma eternidade, porque se não fosse assim, por que via atraente a volumosa esposa do reverendo?

? Visitou-lhe já algum de nossos vizinhos? ? Perguntou o impertinente homem antes de dar um sorvo ao chá.

? São vocês os primeiros. Meu mordomo me informou sobre a montanha de convites que recebi, mas temo que até que não consiga me pôr em dia com a contabilidade de Haddon Hall, não poderei aceitar a nenhum. ? Parecia uma desculpa? Esperava que assim fosse, porque não tinha vontade de explicar nada ao pároco, nem que não era responsável pela quantidade de convites que lhe tinham enviado nem se os aceitaria.

? Deve descansar, Brennet. Sua Excelência fez uma longa viagem e como deseja assentar-se neste lindo lugar pelo resto de sua vida, tem muito tempo para assistir aos eventos onde seja requerido – sorriu-lhe.

De verdade que um simples gesto de piedade podia interpretar como uma paquera feminina? De verdade que não podia apartar o olhar dos seios da esposa de um pastor? O duque tentou manter a calma e deixar de pensar no prazer. Essa noite, assim que pudesse falar com Brandon, pediria-lhe que esquecesse os requisitos solicitados para a cortesã e empregasse a primeira que gostasse do pagamento.

? Já é tarde, Lídia ? disse o reverendo olhando com ternura para sua esposa. ? Milord... ? levantou-se e moveu a cabeça devagar para diante. ? Voltaremos em outro momento, se lhe agradar.

? É óbvio, sempre serão bem-vindos.

Lídia, como a tinha chamado o senhor Brace, aproximou-se do duque, fez-lhe uma reverência e, aferrando-se ao braço de seu marido, ambos saíram do salão. Minutos depois apareceu Brandon. Esse homem parecia lhe ler a mente.

? Conseguiu a cortesã? ? Perguntou de mau humor e impedindo que o servente começasse alguma conversação que o distraísse de seu verdadeiro propósito.

? É óbvio, milord. Começará o trabalho quando você quiser ? explicou o mordomo com certa preocupação.

Era certo que a jovem tinha aceitado com rapidez seu novo encargo, mas não estava muito seguro de que o fizesse corretamente. Não parecia ser uma mulher com experiência, por muito que ela tivesse insistido no contrário.

? Pois não a façamos esperar. Informe-lhe que esta noite provarei seus serviços. ? Levantou-se com vigor e caminhou ansioso até a sala de jantar. Era a primeira vez em muito tempo que desejava com prontidão a chegada da noite.

Depois do jantar, que durou a metade do acostumado, decidiu refrescar-se. Queria estar limpo para sua nova amante. Que estivesse lesado ou impedido para fazer certas coisas no ato sexual não queria dizer que se comportasse como um mendigo, nunca o tinha sido e nunca o seria. Odiava escutar as conversações de certos homens que se denominavam cavalheiros e alardeavam suas experiências com as prostitutas que encontravam nas ruas. Ele jamais precisou ir a uns serviços tão desagradáveis. Só de pensar lhe produzia asco. No meio da rua? Sem assear-se? Como animais? Não, ele não pertencia a essa classe de homens.

Não lhe cabia dúvida que Brandon a teria conduzido até alguma das habitações da residência, teria-lhe devotado uma boa banheira de água quente e a teria preparado para o momento. Enquanto seu ajudante lhe colocava com habilidade a camisola, pensou em como seria a mulher. Alta? Teria pernas longas? Adorava esse tipo de mulheres, possivelmente porque sua estatura era bastante considerável para albergar em seu corpo uma concubina de pequeno tamanho. William franziu o cenho.

Nesse preciso instante, em vez de pensar mais na mulher que entraria em seu dormitório para lhe agradar, recordou de novo o marido de Juliette. Subestimou-o por ser baixinho, riu dele e inclusive pensou que seria um bom palhaço para um desses circos que visitavam a cidade. Embora resultasse muito ao seu pesar, que esse pequeno homem provocou o maior desastre de sua vida. Sim, esse tipo de conclusões lhe reforçava com esforço a crença de ter ao seu lado uma mulher alta, muito alta.

Andou pela habitação durante uns minutos. Estava ansioso pela iminente chegada. Olhou com rapidez ao seu redor. Havia muita luz para seu gosto. Possivelmente devia apagar alguma vela e deixar um ambiente mais íntimo. A jovem de Londres soube antes o que encontraria ao acessar o quarto, o periódico The Daily Gazetteer se encarregou de difundir uma foto de seu antes e seu depois. A fatalidade de uma vida promíscua tinha intitulado o artigo. Entretanto, em Derbyshire, as notícias se conheciam pela difusão dos habitantes. Deu por certo que, salvo os que estivessem fora de seus lares, já tinham algum conhecimento do novo rosto do duque de Rutland. Não lhe cabia dúvida de que o reverendo teria se encarregado disso.

Olhou de novo as velas acesas e decidiu apagar um par delas. Pareceu-lhe que a melhor forma para começar uma relação especial era sob a intimidade da penumbra. Logo se aproximou da cama e se sentou sobre ela, esperando-a. Tremia-lhe a mão e o coração palpitava sem poder controlá-lo. Zangado por não controlar sua ansiedade, repreendeu-se em voz alta.

? Basta! Controla sua emoção! Nem que fosse conhecer sua futura esposa!

Terminou esse pequeno e escandaloso monólogo quando escutou o suave som da porta. Se antes o coração estava agitado, agora tinha parado em seco.

? Pode entrar ? disse com tom aparentemente sereno.

Uma pequena figura apareceu na penumbra. William franziu o cenho ao ver que Brandon não tinha conseguido uma concubina de grande altura. A mulher tinha o cabelo solto cobrindo grande parte de seu rosto e de seus ombros. Nesse momento se repreendeu por ter criado tanta escuridão posto que mal distinguisse as feições da moça. Embora, se fosse boa em seu trabalho, o que importava como era seu rosto?

? Aproxime-se ? sussurrou o duque estendendo a mão direita para ela. A moça caminhou para a cama e o olhou. Nesse momento suas sobrancelhas subiram uns milímetros e William entendeu que se surpreendeu. ? Não acredito que deva te explicar para o que veio, não é? ? Ela assentiu. ? Não albergue em seu coração a possibilidade de que entre nós exista uma relação afetuosa, só quero prazer. ? Seu tom se endureceu. Por que havia se zangado com tanta rapidez?

? Só prazer... sua Excelência ? murmurou a mulher sem querer voltar a cravar seus olhos no rosto dele. Como se tivesse mais pressa do que se requeria naquele tipo de encontros, a mulher se desfez das vestimentas e se colocou frente ao duque nua. Deu uns pequenos passos até que a mão deste pôde alcançar um seio.

? Faça com que eu te deseje. Finja algum interesse e faça por merecer o salário que obterá quando partir ? continuou com tom duro, firme e inclusive insolente. Mas... o que pretendia? Que ela se lançasse sobre seus braços e beijasse aquelas horrendas cicatrizes? Ficou tão impactada ao vê-lo que não sabia nem como atuar.

A mulher se ajoelhou em frente ao homem. Levantou com suavidade a camisola e procurou com a boca o falo. William jogou a cabeça para trás e suspirou. Estava tão necessitado que essa noite se contentaria com o pouco que a concubina estivesse disposta a dar. Se ela tinha decidido utilizar sua boca para saciá-lo, relaxaria e desfrutaria do momento. Fechou os olhos e fez com que as imagens de Juliette retornassem à sua mente. Voltava a tê-la ao seu lado lhe sussurrando palavras obscenas. Mostrando sem pudor o desejo que sentia o bonito corpo ao tocá-la e como a mulher respondia com um sem-fim de deliciosos ofegos. Rememorou o baile de seus seios ao sentar-se sobre ele, seus gemidos, seus beijos e o abundante fluxo que emanava do sexo para conseguir banhar o seu. Úmida e aberta para suas carícias. Quente e ardente sob seus toques. William franziu o cenho. Estava a ponto de gozar na boca da cortesã. Não quis abrir os olhos e observar o rosto da jovem. Preferia imaginar Juliette. Preferia escutar os ofegos daquela mulher que os seus próprios. O sexo vibrou, endureceu-se com força e notou como a semente brotava de seu interior banhando a língua da moça a quem não tinha perguntado nem seu nome. Não lhe importava, para que saber o nome de uma mulher que, depois de olhar seu rosto, tinha-lhe dado tanto medo que não foi capaz de levar a cabo um trabalho tão singelo? Quando o sexo retornou ao seu estado normal, baixou-se a camisola, girou-se para dar as costas à petrificada moça, agarrou-se com força ao dossel em espiral de madeira e lhe disse com tom sério e furioso:

? Vá! Meu mordomo te pagará o convencionado.

A moça agarrou com rapidez o vestido que tinha deixado no chão e se vestiu. Fez uma reverência ao duque e partiu velozmente. Quando a porta se fechou e William soube que por fim estava sozinho, começou a chorar como tantas vezes tinha feito depois do duelo. Sentia-se cada vez mais no fundo do poço e com menos força para seguir vivendo. Ninguém desejaria ter ao seu lado um monstro inútil. Nenhuma mulher deveria ser condenada a viver sob seu mesmo teto. Tremendo, recostou-se na cama e continuou chorando até que adormeceu.


III


Nada. Já não tinha nada que levar à boca. Já há um tempo que as reservas que tinha guardado para poder sobreviver naquele paradisíaco lugar tinham desaparecido. Enrugou a testa e levou as mãos ao quadril. Como era possível que aqueles malditos lobos tivessem comido, em uma noite, uma peça tão grande? Enfurecida pela fome, pensou em apanhar aqueles que a tinham deixado sem alimento e comer-lhes.

«Malditos animais!», gritou para si entre lágrimas.

Ela chutou uma pedra, e depois de sentir uma terrível dor nos dedos, sentou-se sobre ela. O que devia fazer agora? Tinha investido as últimas moedas comprando galinhas, coelhos e um casal de porcos. Acreditou que eles a ajudariam a subsistir todo o tempo que fosse necessário até decidisse-se retornar e fazer frente à situação que não pôde dirigir no passado. Entretanto, agora não ficava nada, nem sequer um pedaço de pão para levar à boca. Depois de meditar durante muito tempo na melhor maneira de sobreviver naquelas circunstâncias, saltou sobre o chão e sorriu. Não lhe tinha ocorrido com antecedência porque o desprezava com toda sua alma, mas dada a situação teria que deixar estacionado o ódio que sentia por esse homem e pensar no melhor para ela.

Todo mundo falava com entusiasmo da chegada do atual duque de Rutland. Esperavam que aquela aparição fosse bastante proveitosa para o povo porque, se o duque continuasse com sua famosa vida social, celebraria grandes e numerosas festas e a localidade se encheria de nobres curiosos. O verdadeiro motivo para esse entusiasmo era um muito singelo de compreender: trabalho. Lavadeiras, costureiras, cozinheiras e criados em geral seriam procurados para oferecer aos convidados de Haddon Hall o máximo conforto. Era uma oportunidade que não podia deixar escapar.

Com vigor colocou as mechas que se soltaram do coque, ajeitou várias vezes o vestido e tomou o caminho que a conduzia até a mansão. Tinha tanta pressa por encher seu estômago que não esperaria que se convocassem as esperadas entrevistas. Beatrice tocaria a porta e pediria qualquer trabalho que, é óbvio, aceitaria com grande entusiasmo.

O que começou sendo um suave passeio, mais tarde se converteu em uma caminhada rápida, para depois pôr-se a correr como se o próprio diabo a perseguisse. Esquivou-se de todos os obstáculos que encontrou em seu passo sem lhe importar que em mais de uma ocasião seu vestido se manchasse de respingos de barro. Tinha um objetivo a cumprir, um que odiava porque se tratava de estar sob o amparo de um homem egoísta, ruim e desprezível, mas era o único que lhe ajudaria a continuar viva.

Quando chegou ao jardim principal da mansão, Beatrice ficou sem fôlego. Não só pelo esforço da corrida, mas sim pela imensidão do lugar que se mostrava ante ela. Tinha escutado muito sobre a residência do duque, mas jamais chegou a imaginar algo um pouco parecido. Possivelmente porque seus pais chamavam grandeza a uma décima parte do que observavam seus olhos. Permaneceu imóvel durante algum tempo, contemplando sem pestanejar o enorme edifício. Uma vez que estudou em detalhe o lugar, pareceu-lhe muito frio, muito sólido. Seus muros eram tão grossos e sóbrios que não entendia como alguém podia considerá-lo um lar, mais se assemelhava a uma prisão.

Aquele era o famoso paraíso no qual se criaram os filhos do duque? Disso se orgulhavam? Pois ela não trocava seu humilde lar pelo que estava vendo. Era tão impessoal e gélido como a atitude do homem a quem ia suplicar um posto de trabalho.

Depois de conseguir um pouco de calma e separar de sua mente todo pensamento doloroso produzido pela lembrança do comportamento do duque, caminhou pelo jardim sem descanso até que subiu as escadas que a conduziram para a porta principal. Parada frente a esta, duvidou se chamava com suavidade ou com todas as suas forças. Sopesava qual alternativa era a correta quando de repente escutou umas vozes que procediam da lateral do edifício. Assustada e com o coração galopando em seu interior, permaneceu imóvel enquanto rezava para que não a descobrissem tão cedo. Por uma vez Deus atendeu suas preces e os que falavam sem parar não repararam em sua presença. Escondida pela escuridão que lhe ofereciam uns pilares de pedra, observou várias pessoas descerem por onde minutos antes ela tinha subido. Quando as vozes se perderam pelo jardim aproveitou para sair de seu esconderijo e dirigir-se para o lugar de onde tinham saído: a porta de serviço.

Respirou com profundidade, voltou a pedir ajuda a Deus, elevou a mão para chamar e, justo quando seu pequeno punho iria tocar a grande lâmina de madeira, esta se abriu.

? Quem é você?! ? Exigiu saber com uma mescla de surpresa e medo uma mulher de avançada idade.

? Bom dia, senhora. Desculpe se a incomodo, vim pedir trabalho ? explicou olhando ao chão.

? A pedir trabalho?! ? A mulher abriu os olhos de par em par e levou a mão à garganta.

Beatrice abaixou ainda mais a cabeça ao mesmo tempo em que suas bochechas se enchiam de uma intensa cor vermelha. Não tinha dúvidas sobre a causa do imenso susto que tinha provocado à mulher. Quem, em seu são julgamento, pediria um trabalho respeitável vestida com farrapos manchados, com o cabelo coberto de barro e cheirando a excrementos de porco? Mas ela não estava em seu são julgamento desde que a fome se apoderou de seu corpo e de sua mente.

? Necessito-o, senhora. Estou a ponto de morrer. Levo dias sem comer... ? implorou a moça.

? Não é meu encargo oferecer trabalho, disso se encarrega o senhor Stone, mordomo de sua Excelência. Mas te aconselho que, se de verdade necessita de um emprego, volte outro dia com melhor aspecto. Assim só lhe fecharão a porta. ? Hanna, a cozinheira, sentiu verdadeira lástima pela jovem. Nunca tinha visto uma expressão tão dramática, nem tampouco uma palidez tão fantasmal.

? Rogo-lhe. Ajude-me... ? continuou com voz tão baixa que a anciã mal a escutou.

A anciã olhou a ambos os lados e, certificando-se de que ninguém poderia descobrir que abrigaria durante uns minutos a uma mendiga em uma casa respeitável, estendeu a mão e aferrou com força o braço da moça.

? Entra, sente-se e não fale até que tenha terminado de comer o que puser sobre a mesa. Se de verdade pretende trabalhar algum dia em um lugar como este, deve se sustentar com algo mais... do que tenha se alimentado até agora.

Beatrice sorriu e se sentou tal como lhe tinha indicado a mulher. Manteve-se calada até que contemplou o prato de sopa quente que a amável estranha colocava em frente a ela. Agarrou a colher, inclinou-se para a fumegante terrina e, sem esperar a que este se esfriasse, arremeteu contra ele. Em um passado já bastante longínquo teria pegado a colher e a teria dirigido lentamente para seus lábios para sorver em silêncio seu conteúdo. Mas estava vivendo o presente e seu estômago estava muito vazio para recordar protocolos absurdos. Mal levantou o olhar, salvo quando sua benfeitora retornava para lhe apartar o prato terminado e lhe colocar outro em seu lugar.

Enquanto notava o calor da comida em seu interior pensou que aquilo que estava conseguindo não era o que tinha pretendido. Ela queria um trabalho para ganhar a comida que a sustentaria durante o tempo necessário até que decidisse retornar a Londres. Entretanto, como não havia outra alternativa, continuou comendo enquanto fazia à ideia de que os suculentos pratos poderiam lhe oferecer um pouco mais de vida. Possivelmente a justa para sobreviver até que chegassem as desejadas entrevistas. De repente, enquanto saboreava seu último prato, escutou-se uma portada atrás dela e Beatrice saltou do assento. Ao descobrir em frente a ela um homem com rigoroso traje negro, abaixou a cabeça e começou a fazer nós com o tecido do vestido.

? Quem é e o que faz aqui? ? Brandon a observou com perspicácia, ato seguido dirigiu os olhos para Hanna e franziu o cenho.

? É uma jovem que veio pedindo um emprego... ? expôs a cozinheira limpando as mãos no avental.

? Do que, de limpadora de chaminés? ? Disse de mau humor. Não podia acreditar no que seus olhos observavam. Na cozinha, um lugar sagrado, havia uma moça coberta de sujeira, faminta pelo que podia apreciar, e desprendendo um aroma parecido ao do esterco de cavalo. Como tinha ocorrido a Hanna fazê-la passar à cozinha? Se a garota não partisse terminaria empesteando toda a mansão.

? Se me permitir isso, senhor, posso lhe informar que sei lavar, costurar, e inclusive posso ajudar em outras tarefas domésticas... ? murmurou sem levantar a vista do chão.

? Disse lavar? Não estou tão seguro disso, menina. A sujeira que vejo em seu corpo me indica que não deve ter muito claro o que significa isso... ? O mordomo cruzou os braços e entrecerrou os olhos.

? Brandon! Como pode falar assim? ? Hanna explodiu e, diante de Beatrice, tratou-lhe com familiaridade, advertindo à jovem que entre eles existia uma relação mais afetiva do que aparentavam.

? Esta moça tem que sair daqui o antes possível, senhora Stone ? explicou com tom sereno e firme. ? Eu não gostaria de sentir a fúria do duque em meu corpo por algo que nem sequer me corresponde.

? Suplico-o, senhor ? interveio Beatrice entre soluços. ? Preciso comer. Hoje fui abençoada pela amabilidade da senhora Stone, mas amanhã... do que me alimentarei amanhã?

Brandon, que tinha se girado para que Hanna não observasse o aborrecimento que lhe provocou seu ato de solidariedade, ficou durante uns instantes parado com o olhar cravado na porta por onde tinha entrado. Depois de meditar o rogo desesperado da jovem, sorriu meio de lado e se voltou para esta.

? Já esteve alguma vez com um homem? ? Enrugou a testa e a olhou diretamente aos olhos.

Hanna, depois de escutá-lo, levou-se a mão à boca. Sabia o que estava a ponto de expor e pensou que se na verdade lhe oferecesse aquele posto, ela cairia ao chão.

? Como? ? Apesar de ter as bochechas cobertas de barro, o rubor era visível em seu rosto.

? É virgem? Manteve relações sexuais? Sabe esquentar o leito de um homem? ? Continuou com o inesperado interrogatório o mordomo. Deveria assustá-la, não podia fazer com que Hanna tentasse acolhê-la tal como parecia pretender. Desde que a filha de ambos morrera fazia já quase quinze anos, o instinto maternal brotava sem que ela percebesse e em muitas ocasiões, de maneira incorreta.

Beatrice esteve a ponto de desmaiar. O que tentava dizer o mordomo? Por que precisava saber se alguma vez tinha estado entre os braços de um homem? Quis romper a chorar quando em sua mente brotou a lembrança daquele momento. Sim, tinha estado com um homem e tinha perdido a inocência com ele, mas... tinha que explicar como e em que circunstâncias a tinham desflorado?

? Vejo que está pensando... ? um sorriso zombador apareceu no rosto enrugado.

? Não... ? disse enfim Beatrice apertando os punhos e armando-se de coragem.

? Informo-lhe, senhorita, que o único posto livre que temos nestes momentos é o de cortesã. Nosso duque necessita de uma mulher para saciar seus desejos sexuais e o pagamento é uma bolsa de cem moedas de ouro por esses serviços. Sabe agradar a um homem?

Hanna girou e se dirigiu para o fogo. Não suportava a situação que estava vivendo e se jogava a culpa disso. Se tivesse fechado a porta e não a tivesse arrastado até o interior, a moça teria partido morta de fome, mas com sua dignidade intacta.

? Sim ? respondeu com firmeza. Levantou seu olhar, elevou o queixo e prosseguiu: ? Todos os homens que passaram pelo meu leito partiram satisfeitos.

Era real o que brotava de seus lábios? Sabia ela saciar os apetites sexuais de um homem? A única vez que esteve com um tinha uma faca apertando sua garganta e naquele momento não pensava em satisfazê-lo a não ser em fazer o que este lhe pedia e fugir com vida o antes possível.

? Perfeito então. Senhora Stone, ? disse à cozinheira que não era capaz de olhá-lo ? já temos uma prostituta. Ordenarei que lhe preparem uma habitação. Não albergue a falsa esperança de ter um teto onde dormir, isso não está no acordo. Mas eu gostaria de apreciar a beleza que oculta embaixo dessa capa de imundície. Além disso, para que elimine esse pestilento aroma, deveria ficar de molho no mínimo uma semana. Senhora Stone, já que foi você quem se proclamou benfeitora da jovem, deixo-a em suas mãos para que a prepare de maneira adequada.

Hanna não respondeu. Estava mexendo em uma panela de metal o guisado que pretendia oferecer para o almoço. As lágrimas percorriam seu velho rosto e sentia que a garganta lhe oprimia. Sem querer tinha conduzido a jovem a um destino turvo, escuro.

? Senhora Stone? ? Inquiriu Brandon para certificar-se de que o tinha escutado.

? Sim, senhor Stone, prepararei-a ? respondeu apertando a mandíbula.

Escutou-se a porta depois da saída do mordomo e depois disto, houve silêncio. Beatrice tinha ficado de pé, incapaz de mover-se. Ainda não era consciente do que tinha acontecido. Tinham lhe devotado o posto de cortesã e ela, em um ataque de ira, tinha-o aceito? Como podia ser tão tola? Possivelmente não pensou em nada depois de escutar que lhe pagariam uma centena de moedas de ouro. Era muito mais do que levou em seu bolso quando partiu de Londres e estava segura de que, com essa quantidade, poderia comprar outros animais com os quais poderia sobreviver durante bastante tempo. Embora para seguir vivendo nas condições nas quais se encontrava, devia padecer de novo a dor e a vergonha? Viver um pouco mais ou morrer na cabana? Se algum dia alguém aparecesse por ali descobriria ossos de um cadáver, o seu.

«Viver para lutar», pensou para si.

Suspirou com intensidade e fez desaparecer todo tipo de inquietações. Devia fazê-lo e ponto.

? Sinto-o... ? escutou a cozinheira murmurar. ? Tudo isto foi por minha culpa...

? O emprego, eu o aceitei. Se quisesse teria me negado ? indicou ao mesmo tempo em que se aproximava das costas da anciã.

? Não é justo! Esse homem se aproveitou da sua necessidade e jamais o perdoarei ? gritou enfurecida enquanto levantava a panela com raiva.

? Senhora Stone, você é um anjo e de verdade, aconteça o que acontecer, estarei eternamente agradecida. Graças a você poderei sobreviver uns meses mais.

Beatrice não queria que ela se preocupasse com seu futuro. Acaso se tinham preocupado seus pais? Não. Depois de lhes revelar o que tinha acontecido com o conde de Rabbitwood e lhes haver jurado que ela não tinha feito nada, seu pai saiu correndo enquanto que sua mãe chorava sem consolo. Para onde tinha partido o destroçado pai? Para a residência que o atual duque de Rutland tinha em Southwark. Seu único propósito era lhe pedir clemência. Acreditou bobamente que este lhe ajudaria a salvar a honra manchada de sua filha, mas... o que fez o futuro duque? Nada. Não meditou nem um só segundo sobre o pedido de ajuda do barão, mas sim pensou que, como todas as damas que tinha conhecido em sua promíscua vida, mentia, e não quis questionar a reputação do bastardo de Rabbitwood.

Desde esse dia sua família começou a adoecer. Sua mãe, assídua de visitas e de festas, encerrou-se em sua câmara e não a abandonou nem sequer para realizar as funções humanas normais, o barão descuidou de suas responsabilidades e começaram a ter mais dívidas que riquezas. Finalmente, Beatrice decidiu atuar: escreveu-lhes uma nota onde lhes explicava que partia do lar para pôr fim à sua desventurada vida.

Viajou durante vinte e cinco dias. Umas vezes, graças à solidariedade de alguns viajantes, em carruagem ao lado do cocheiro, em outras ocasiões, andando. Tinha andado tanto que seus sapatos se romperam e teve que abandoná-los no caminho. Recordava que durante as longas horas de caminhada só tinha uma ideia em sua mente: chegar a Derbyshire e ocupar a pequena cabana que o duque possuía em seus territórios.

Em algumas conversações nas quais tinha estado presente, o principal tema era a riqueza das terras que herdaria o futuro duque de Rutland, e em alguma delas alguém comentou que tinha ido para caçar e que se resguardara da intensa chuva em uma pequena cabana perto do rio. Falou de quão abandonada estava apesar de encontrar-se nos limites mais ricos do terreno. Assim não o pensou, decidiu que ali permaneceria escondida o tempo que desejasse. Como o duque não lhe tinha assistido para esclarecer a verdade, ajudar-lhe-ia de maneira involuntária a ter um teto onde poder viver.

? Direi-lhes que subam a água quente... ? a suave voz da senhora Stone interrompeu suas meditações.

? Se não se importar, ficarei aqui até que tudo esteja preparado ? voltou a sorrir. Queria subtrair importância aos inesperados acontecimentos. Não podia fazer com que aquela boa mulher se sentisse desventurada pelo ocorrido. De repente, a senhora Stone se dirigiu para a porta e a abriu.

? Vá. Será melhor que o faça. Não se preocupe pelo senhor Stone. Direi-lhe que pensou melhor e recusou a oferta.

? Não partirei ? respondeu com um suave fio de voz. ? Farei o que me encomendaram. Necessito desse dinheiro, senhora Stone. Os lobos comeram minha última esperança de vida e quando retornar ao meu lar não terei nem um pedaço de pão para levar à boca.

? Isso tem solução! ? Exclamou a mulher com rapidez. ? Colocarei em uma bolsa comida suficiente para uma semana. Quando terminar, retorne.

? Não vou colocar em perigo seu posto de trabalho por cuidar de mim. ? Beatrice pousou uma mão sobre o ombro da mulher e o apertou com carinho. Então aconteceu algo que lhe surpreendeu. A cozinheira abriu seus braços e a apertou entre seu corpo com força.

? Você é uma menina... ? murmurou.

? Mas esta menina tomou uma decisão ? respondeu sem apartar-se dela.

? Há outras alternativas...

? Buscarei-as quando tudo isto tiver acabado. Mas necessitarei da sua ajuda ? murmurou apoiando a testa sobre o peito da anciã.

? Estarei ao seu lado quando precisar da minha presença, prometo-lhe isso.

? Obrigada ? disse ao mesmo tempo em que Hanna abria os braços e ela se apartava.

? Tem mais fome? ? Perguntou a anciã enquanto se dirigia para a despensa.

? Estou bastante satisfeita e acredito que depois do acontecido meu estômago não aceitaria nada mais.

? Seu estômago não poderá resistir a isto. ? Pousou uma bandeja tampada por um pano sobre a mesa e, orgulhosa do que estava a ponto de oferecer, colocou as palmas na cintura. ? É uma receita da minha mãe. Ela a herdou da minha avó. Antes o chamavam... como era? ? Pôs os olhos em branco tentando recordar o nome.

? Pudim! ? Gritou a moça ao apartar o pano que cobria o recipiente.

? Exato! Como sabe? Comeste-o alguma vez? ? Entrecerrou os olhos e a olhou com curiosidade. Se ela vinha de uma família humilde e mal tinha dinheiro para levar um pedaço de pão à boca, como sabia o nome de uma sobremesa tão deliciosa?

? Faz tanto tempo que nem o recordo... mas hoje vou rememorar esse maravilhoso sabor. Pode me dar um pedaço? ? Elevou o queixo para a mulher e sorriu como uma menina pequena.

? Coma o quanto quiser, se acabar farei outro. Tenho guardado na despensa muito leite, ovos e mel.

Beatrice emitiu um suave ruído de prazer quando tomou a primeira colherada. Fechou os olhos e se lembrou da última vez que se deleitou com aquele manjar. Enquanto isso Hanna recolhia em sua mente a resposta que lhe tinha devotado:

«Faz tanto tempo que nem o recordo...».


IV


Os criados não cessavam de murmurar sobre aquilo. Apesar de estar escondida em uma das habitações mais afastadas, pôde escutar os cochichos entusiastas de todos que caminhavam pelo corredor. Conforme descobriu, era a primeira visita que recebia o duque e supôs que esse acontecimento devia ser muito importante para todos os que habitavam na mansão. Entretanto, para Beatrice lhe resultou do mais normal que o reverendo e sua esposa fossem os primeiros em aparecer em Haddon Hall.

Depois de tirar a roupa e deixá-la de maneira descuidada sobre o chão, inundou-se na banheira e deixou que a água esquentasse seu corpo. Fazia muito tempo que não se banhava em um recipiente que albergasse por completo seu pequeno tamanho. Colocou a cabeça e conteve durante uns instantes a respiração. Quando a elevou, começou a rir. Sua mente, em vez de sopesar o que ocorreria se o duque demandasse com prontidão os serviços de sua nova concubina, pensou na conversação que estaria tendo lugar no salão principal. Estava muito segura de que sua Excelência desejaria finalizar o antes possível a visita para soltar os milhares de impropérios que reteria em sua cabeça após conversar com um reverendo tão impertinente. O certo era que ninguém em Derbyshire gostava do novo pregador. Foram à missa aos domingos para evitar falações sobre as possíveis causa de suas ausências em um dia tão famoso. Ela podia enumerar mil razões para não esbanjar duas horas de sua vida em uma reunião de tal índole, embora com uma lhe bastasse: não suportava os intermináveis e aborrecidos discursos. O reverendo em vez de atrair os paroquianos com histórias repletas de felicidade e esperança, centrava-se em quão trágica podia ser a vida quando o mal possuía uma pessoa, conduzindo-a para a libertinagem e a imoralidade.

Beatrice soltou uma enorme e sonora gargalhada. Esperava que não ocorresse ao extravagante personagem comentar à sua Excelência que o estado em que se encontrava era uma chamada de atenção do Todo-poderoso pela vida que tinha levado até aquele momento. Se tivesse um mínimo de consideração, coisa que duvidava, manteria-se calado e evitaria que o jogassem ao exterior como se fosse uma lixeira.

O que importa a ti o que digam àquele presunçoso? ? Perguntou-se enquanto subia e descia as pernas fazendo pequenas ondas na banheira. Além disso, não lhe vai mal que alguém lhe recorde que o culpado de sua desdita não foi outro senão ele mesmo.

Beatrice apoiou a cabeça na beirada da banheira e contemplou ao seu redor. A escuridão lhe produzia uma saudosa paz e bem-estar. Desde que tinha posto um pé na pequena cabana jamais apagava as velas. Dava-lhe muito medo não saber o que poderia acontecer ao seu redor, sem esquecer as feras famintas que uivava noite após noite em sua porta. Agarrou o sabão e voltou a impregnar seu corpo com este. As borbulhas formavam uma capa sobre a superfície da água e começou a brincar com elas. Então, sem saber o motivo disso, recordou o dia que conheceu a notícia sobre a volta do duque a Haddon Hall e a causa do mesmo.

? Você está certa disso? ? A chapeleira a quem estava acostumada a visitar para saber se alguém demandava os serviços de uma criada, perguntava a outra mulher com bastante entusiasmo.

? Muito certa ? respondeu a cliente em tom sério.

? Quando você disse que aconteceu? ? Continuou o interrogatório da chapeleira enquanto fazia um sinal à Beatrice para que não se movesse da sala dos fundos. Se aparecesse daquele jeito, a cliente fugiria apavorada e espalharia o rumor sobre as inapropriadas atitudes da chapeleira.

? Segundo minhas fontes, antes da primavera. O marido de uma de suas incontáveis amantes desafiou-o a um duelo de honra e o duque o aceitou entre brincadeiras ? prosseguiu a história ao mesmo tempo em que olhava e tocava os novos chapéus adquiridos para a próxima temporada.

? Entre brincadeiras? ? A chapeleira se aproximou de uma estante e agarrou uma caixa de cor branca, abriu-a e mostrou à mulher um chapéu de cor rosa com três grandes plumas azuis.

? O marido não media mais de... ? elevou a mão até o contorno de seu peito para assinalar a possível altura.

? Pobre duque! ? Exclamou a chapeleira tampando a boca escandalizada.

? Nunca se deve subestimar um adversário, por mais indefeso que pareça ? disse a mulher enquanto colocava o chapéu que lhe tinha mostrado.

? Eu acredito que o melhor é não esquentar o leito de outro homem.

? Você... não conheceu ao duque, não é? ? A mulher girou-se para a chapeleira com rapidez como se não pudesse acreditar em sua afirmação.

? Não, senhora. Quando cheguei a Derbyshire sua Excelência partiu à Londres. ? A chapeleira abaixou a cabeça ao ver a reação da mulher e estendeu seus braços para o chão.

? Entendo... ? Deu um suspiro, tirou-se o chapéu de cor rosada e pegou outro da cor de vinho tinto. ? Só lhe direi que ninguém, incluídos os homens que lhe rodeavam, podia deixar de admirá-lo. Era a perfeição, um ser sublime... ? colocou o último chapéu, olhou-se no espelho, colocou-o no lado direito e prosseguiu: ? E agora... é um monstro.

? Um monstro? ? Perguntou a chapeleira assombrada.

? Sim. Ali onde havia um rosto liso, macio e cuidado se encontram umas horrendas marcas. Dizem que são parecidas com as cordas que utilizam os piratas em seus navios. Também contam que deixou de mover o braço esquerdo. Agora... como poderá satisfazer os insaciáveis desejos carnais de suas amantes? ? Perguntou antes de soltar uma grande gargalhada. ? O que te parece? ? Inquiriu à chapeleira olhando-se de novo no espelho.

? Parece-me perfeito. Fica muito bem e acentua a palidez de sua pele ? respondeu a chapeleira sorrindo.

? Levarei esse!

Esteve a ponto de chamar a senhora Stone para que alguém voltasse a encher a banheira com água quente, mas pensou melhor. Era tempo de descansar. Quanto tempo fazia que não se agasalhava com suaves e perfumados lençóis? Beatrice secou o corpo com rapidez, enredou uma toalha no cabelo e caminhou muito devagar para a cama. Colocou os joelhos sobre esta e, sem pensar, equilibrou-se sobre os almofadões para inspirar com intensidade. O aroma de limpo impactou-a com força. Tudo parecia diferente depois do banho, até lhe resultou distinto o tato de sua própria pele. Girou-se e olhou para o teto de madeira. Era muito alto e rude, como tudo o que havia naquela mansão. Inclinou-se, pegou a ponta do lençol e se cobriu com ele. Precisava descansar um pouco antes que o empertigado senhor Stone aparecesse pela porta e a expulsasse.


Grunhiu várias vezes antes de conseguir abrir os olhos. Apesar de tentar com vigor, resultava-lhe impossível despertar do tranquilo e aprazível sonho no qual se inundou. Tinha visto sua mãe chamando-a da entrada para que fosse ao lar antes que a chuva a alcançasse. Beatrice galopava pelo campo, sorria ao ver sua mãe agitar a mão para que se dirigisse para ela. Então, no momento que descia do corcel e tentava subir as escadas, sentiu que alguém tocava seu ombro e a girava para a direção em que se encontrava...

? Senhora Stone... ? murmurou Beatrice ao descobrir a anciã ao seu lado.

? Perdoa-me se te assustei, mas levo bastante tempo batendo na porta e como não me respondia, preocupei-me. ? Hanna tinha sentado na cama e a olhava com ternura.

? Fiquei adormecida. Imagino que estava mais cansada do que imaginava ? respondeu inclinando-se e tampando sua magra figura com o lençol.

? Muitas vezes pensamos que nosso corpo não tem limites e não recordamos que somos seres humanos, não deuses. ? Levantou-se e caminhou para uma cadeira que havia junto à cama.

? O que acontece, senhora Stone? ? Quis saber a jovem ao notar certa inquietação na mulher.

? O duque decidiu solicitar os serviços de sua cortesã ? comentou com uma voz tão suave que a Beatrice custou descobrir o que havia dito.

? Tão cedo? – Ela puxou a ponta do lençol para continuar oculta embaixo deste e se dirigiu para a anciã. ? Acreditei que...

? Leva muito tempo sem ter uma mulher ao seu lado. A última que ofereceu seus serviços ficou em Londres ? indicou enquanto procurava algo de um baú.

? Tratou-a bem? Refiro a...

? Sua Excelência é um cavalheiro moça, e sua atitude é imaculada, adequada ao título que ele detém. ? Embora não quisesse que suas palavras soassem duras, foram-na e Beatrice pôde advertir que a senhora Stone adorava ao duque mais do que tentava mostrar. ? Nunca ? prosseguiu a cozinheira ao mesmo tempo em que mostrava a camisola que tinha obtido do baú ? necessitou dos serviços de uma concubina até depois do acontecido. Antes daquele momento, todas as mulheres estavam dispostas a deitar nos braços de sua excelência. No entanto, depois de ... ? tragou saliva incapaz de continuar com sua explicação devido à dor que lhe provocava falar daquilo.

? Conheço as sequelas que sofre o duque, senhora Stone.

Beatrice inclinou a cabeça e deixou que a mulher a vestisse.

? Foi uma tragédia para todos os que respeitam e servem ao senhor ? disse ao mesmo tempo em que esticava a camisola.

? Ouvi que esse destino o cultivou ele mesmo.

? Quem disse tal barbaridade? ? Hanna a olhou mostrando em seu enrugado rosto um notório aborrecimento.

? As infidelidades...

? E elas? Acaso eram mulheres respeitáveis? Cada noite, quando aquelas filhas do diabo pensavam que o pessoal de serviço estava adormecido, tocavam a porta da residência e com a desculpa de conversar com sua Excelência, tiravam-se as anáguas no próprio salão mesmo.

? Mesmo assim, se ele não tivesse aceitado os oferecimentos dessas libertinas...

? Acredito que ainda não conheceu um homem de verdade... ? resmungou. ? É sério que pensa que é fácil negar-se à tentação mais prazerosa que tem o ser humano?

? Senhora Stone! ? Exclamou assombrada. Não esperava que aquela doce e tenra anciã pudesse lhe falar de algo tão escandaloso como as relações carnais.

? O duque não te obrigará a fazer nada que não queira ? expôs depois de uns momentos de incômodo silêncio. ? Agora, se não se importar, eu gostaria de te escovar o cabelo. Tem-no muito enredado.

Podia sentir o coração lhe pulsar com intensidade na garganta. A senhora Stone a tinha deixado sozinha em frente à porta do quarto já fazia um bom momento e não tinha conseguido adquirir a força necessária para chamar. De verdade seria capaz de fazê-lo? Como ia manter a promessa que tinha feito à anciã? Seria inevitável não olhar o desfigurado rosto do duque e compará-lo com o que uma vez foi. Trataria-a bem? Seria atencioso com ela ou se comportaria como Rabbitwood? Apertou os punhos e a mandíbula. Não devia comparar ambas as situações porque não eram semelhantes. Agora sabia a razão pela qual era requerida, entretanto, a vez que ela entrou para responder à suposta chamada de seu apaixonado, encontrou a um homem sem escrúpulos, um torturador, um filho do próprio diabo. Ante tal lembrança, Beatrice começou a tremer. Podia escutar seus dentes batendo. O pêlo de seu corpo se arrepiava pelo medo.

Cem moedas... ? meditou para si. Cem míseras moedas que me oferecerão um pouco mais de tempo de vida, continuou pensando. Respirou fundo, esticou uma mão tremente para a maçaneta e a girou devagar.

A primeira palavra que surgiu em sua mente quando acessou ao quarto foi escuridão. A habitação estava muito tenebrosa. Mal podia distinguir onde se encontrava a cama do duque e nem muito menos onde se achava este. Tentou entrar um pouco mais arrastando os pés para não tropeçar. Sem se dar conta levou a mão direita para o cabelo e começou a enredar uma mecha com um dedo.

? Pode entrar ? escutou a suave e aveludada voz do duque.

Beatrice continuou sua marcha até que a distância entre os dois foi minúscula. Estava sentado sobre a cama esperando com paciência sua chegada. O corpo da jovem congelou. Suavam-lhe as mãos e sentia que mal corria sangue por suas veias.

? Aproxime-se – disse ele estendendo uma mão para ela. ? Não acredito que deva te explicar para que veio, não é? ? Beatrice assentiu. Tinha a cabeça abaixada tentando não olhar o rosto do homem a quem ofereceria um serviço que nem ela mesma sabia como iniciar. Seu cabelo cobria os ombros e a pequena mecha encaracolada por seu dedo começava a esconder-se entre os outros fios. ? Não albergue em seu coração a possibilidade de que entre nós exista uma relação afetuosa, só quero prazer ? prosseguiu, mas desta vez o tom tinha sido um pouco mais rude, menos quente. Como se lhe doesse expressar o que em realidade ocorreria essa noite.

A jovem levantou o olhar no mesmo momento em que a vela mais próxima a eles começou a mover-se pela suave brisa de seus gestos e deixou exposta a figura do homem. Tinha o cabelo mais comprido que na última vez em que o viu e tentava cobrir com este as marcas do rosto. Entretanto, essa rápida e fugaz olhada foi suficiente para que Beatrice apreciasse a deformidade da qual tanto falavam as pessoas. Não lhe pareceu tão horrenda e monstruosa. Parecia-se bastante à cicatriz que tinha sua mãe no ventre quando tiveram que tirá-la de suas vísceras. Embora, claro esta, para um homem tão bonito e para todas as suas famosas admiradoras, seriam aterradoras.

? Só prazer... sua Excelência ? murmurou Beatrice após escutar um grunhido do duque.

Como se um raio lhe tivesse atravessado o corpo, a jovem levantou a camisola e se despiu. Nesse instante o duque estendeu sua mão em volta de um dos seus seios e o apertou com força. Beatrice sentiu uma terrível dor, tão intensa que abaixou a cabeça para que ele não pudesse observar as dobras de sua testa e como apertava os dentes. Tentou serenar-se pensando que obteria uma boa bolsa de moedas que a ajudaria a sobreviver no mundo que Deus lhe tinha devotado.

? Faça com que eu te deseje. Finja algum interesse e faça por merecer o salário que obterá quando partir ? comentou o duque com voz sólida e grosseira, mais do que a jovem teria imaginado.

Então fechou os olhos e se ajoelhou para procurar o membro do homem e fazer o que aquela noite o conde de Rabbitwood a obrigou a praticar.

Encontrava-se no salão da senhora Baithlarin. Durante toda a noite tinha evitado qualquer aproximação masculina, não por descortesia, mas sim porque ela não desejava cercar uma conversação ingênua e oferecer uma esperança quando em realidade não a havia. Parecia que todo mundo se interessava em conhecer seus pensamentos, seus desejos, suas inquietações. Certamente, tanto sua mãe como as amigas desta tinham a esperança de lhe encontrar um bom partido, possivelmente por isso a mostraram aos possíveis candidatos como se fosse um bonito troféu a ganhar.

Mas Beatrice tinha o coração ocupado. Amava Leonel desde sua mais tenra infância. Entretanto, a diferença de classes fazia impossível o matrimônio, salvo se ela fugisse com ele como tantas vezes este lhe havia insinuado. Mas não era valente, jamais o tinha sido até depois daquela noite. Descobriu em mais de uma ocasião os azulados olhos do conde de Rabbitwood observando-a, admirando-a a distância tal como tinha feito em festejos anteriores e sem tentar ocultar dos outros aqueles olhares lascivos.

Tentou dançar com ela, uma valsa para ser exata, e graças às desculpas de sua mãe pôde rechaçá-lo com estilo e educação. Mas o sinistro conde de Rabbitwood elaborou um plano, um maquiavélico e ruim para o qual teve que indagar sobre sua vida e descobriu que havia outro homem.

Em um momento de descuido maternal, um dos criados lhe fez chegar uma nota, nela se dizia que seu amado Leonel se encontrava esperando-a na biblioteca da anfitriã. Foi tão grande sua ilusão e sua vontade de vê-lo que não se perguntou a razão pela qual um trabalhador de sua família tinha aparecido em uma festa de tal classe social. Esperou um momento para correr para o lugar designado. Seu coração palpitava pelo entusiasmo, pela emoção de vê-lo depois de uns dias de distanciamento.

Ficou parada na porta da biblioteca, alisou o cabelo e tentou não mostrar a euforia que sentia. Abriu, não sem antes jogar uma última olhada e confirmar que ninguém presenciaria seu encontro. Mas houve testemunhas, embora tivessem mais motivo para se esconder do que ela. O duque e a mulher com a qual tinha paquerado no salão se ocultavam sob uma das cortinas das imensas janelas do corredor. Escutou algumas risadas, alguns beijos mais sonoros dos que ela estava acostumada a oferecer ao seu amado. O tecido áspero se moveu com intensidade no momento em que escutou uns soluços. Não eram gemidos de dor, mais pareciam pequenos gritos emanados do interior dos corpos capturados pelo sexo.

Envergonhada pelo que tinha descoberto, entrou com rapidez e fechou ainda mais rápido a porta. Devido a sua agitação, o vestido fez um círculo tão amplo que tocou várias figuras de porcelana que havia na entrada. Abaixou-se para que não terminassem quebradas no chão. Ato seguido se incorporou e dirigiu o olhar para um corpo que se apoiava no respaldo de um sofá. Estava de costas para ela e por muito que tentasse comparar aquela silhueta com a de seu amado, ambas não correspondiam. Ficou sem fôlego quando o enigmático homem deu a volta e lhe sorriu. Em efeito, não era Leonel e sim o conde de Rabbitwood. O homem que não tinha deixado de olhá-la durante o baile e quem lhe sorria descaradamente.

Quis lhe perguntar por que a tinha enganado, mas em vez de enfrenta-lo decidiu fugir. Não conseguiu seu propósito. O conde correu para ela justo quando tinha a mão sobre o trinco. Recordou a resistência e como lhe cobria a boca para que não chiasse. Depois, uma folha afiada lhe apertou a garganta. «Cortar-lhe-ei se gritar», sussurrou-lhe enquanto apartava a mão de sua boca para conduzi-la ao decote e lhe descobrir os seios. Começou a chorar. Foi o único que se atreveu a fazer. Estava tão assustada que sua mente não era capaz de pensar com claridade. Rezou para perder a consciência quando percebeu que seu vestido se elevava e o homem se colocava atrás dela para possuí-la. Entretanto, manteve-se lúcida em todo momento. Durante mais de uma hora foi submetida a um sem-fim de atrocidades. Nesse tempo pensou que alguém sentiria falta dela e a procuraria. Imaginou que, apesar de ter seus olhos cheios de lágrimas, veria entrar o Leonel, que a salvaria daquelas mãos abomináveis, mas não foi assim. O tempo passava e ninguém aparecia para interromper sua agonia. Quando o conde se cansou dela, liberou-a. «Obrigado por sua companhia, foi um prazer ter este magnífico bate-papo com você, senhorita Montblanc», foram suas últimas palavras antes de deixá-la sozinha, atirada no chão, destroçada e... morta.

A lembrança do acontecimento mais aterrador de sua vida fez com que brotassem sem cessar milhares de lágrimas. Seguia com os olhos fechados e com o falo do duque em sua boca. Esteve a ponto de retirar-se e sair fugindo quando notou uma queimação em sua língua. Um líquido quente começou a vagar por sua garganta.

Quis vomitar, quis gritar. Mas igual àquele dia, não conseguiu fazer nada. Levantou-se e abaixou a cabeça. Seu corpo seguia tremendo, desejava tirar a agonia que sofria em seu interior de algum jeito, mas... como? Escutou algo. Não soube com claridade o que. Mas depois de observar que o duque se incorporava e se girava agarrando-se ao dossel de madeira, imaginou que a despachava de seu lado.

Com rapidez agarrou a camisola e a pôs enquanto as lágrimas seguiam nublando sua visão. Esticou a mão, girou a manivela para abrir a porta e então escutou um soluço. Não era como o que emitiu o homem quando estava sob a cortina, era mais um lamento. Sem saber a razão, girou-se para o homem e, durante um segundo, observou-o chorar. Sem atrever-se a dizer nenhuma palavra, abandonou a habitação, baixou as escadas e não parou até que se encontrou com o senhor Stone, que se encontrava junto à saída principal da mansão.

Agarrou com força a bolsa de moedas que lhe tinham prometido sem poder articular palavra, só queria afastar-se o antes possível dali, e quando escutou o ferrolho atrás de suas costas, estremeceu-se antes de pôr-se a correr agasalhada pela frieza da noite, não diminuiu a marcha até que entrou no bosque. Apoiou a palma da mão em um tronco e começou a vomitar. Expulsou tudo o que tinha no estômago, as lágrimas lhe ardiam e lhe doíam tanto como a folha afiada de Rabbitwood em seu pescoço. Voltou a recordar as coisas que aquele homem a obrigou a fazer, o sofrimento que sentiu quando a penetrou com rudeza e notou de novo como seu corpo se partia em dois.

Beatrice gritou enquanto seguia vomitando. Esforçou-se tanto em tirar aquilo que tinha em seu interior que caiu ao chão de joelhos. Tentou respirar, encher seus pulmões de ar, mas lhe resultou tão difícil controlar sua respiração que terminou desmaiando e caindo de bruços no chão.


V


Se seus cálculos não falhavam, estava em Haddon Hall pouco mais de dois meses. Mas não estava cem por cento seguro. Naquele lugar o tempo transcorria tão devagar que parecia não avançar. Não importava se passasse as tardes recebendo ou devolvendo visitas, todos os dias eram intermináveis e as noites, depois do dramático encontro com aquela moça, eram insuportáveis. Sempre se encontrava de mau humor, até o ponto de que nem ele mesmo podia suportar-se.

Possivelmente outro motivo para adotar aquela atitude fosse a inoportuna queda que sofreu ao subir as escadas da entrada. Não foi nada grave, conforme lhe informou o doutor que o atendeu, mas a partir desse momento teria que apoiar-se em uma bengala para evitar outra queda similar. Se antes do tropeço via a si mesmo como um inútil, agora, obrigado a usar o apoio de uma vara de madeira, sua opinião se acrescentava. Quais outros desastres lhe proporcionaria o futuro? Uma enfermidade que o deixasse prostrado em uma cama pelo resto de sua vida? Ou talvez tropeçasse de novo com tão má sorte que sua cabeça ricochetearia no chão e ficaria cego pelo impacto?

William caminhou seguro à sua bengala até a poltrona situada junto à chaminé, onde da janela observava o novo amanhecer. Algum servente tinha acendido o fogo e as chamas além de manter o ambiente quente, também proporcionavam a luz necessária para observar sobre a escrivaninha uma pequena montanha de missivas. Tinha que lê-las e as responder o quanto antes possível, mas não estava com humor. A verdade era que nunca estava com ânimo para fazer algo. Só queria fechar os olhos e, depois de abri-los, descobrir que todo o vivido tinha sido um pesadelo induzido por sua consciência. Entretanto, nunca era assim, quando elevava as escuras pestanas, seguia sem poder mover a mão, as marcas de seu rosto não tinham desaparecido assim como não cessavam aqueles surtos de dor depois do impacto. Esse seria seu futuro? Viver para desejar morrer? De verdade que não podia fazer nada para mudar o destino?

William fixou os olhos na intensidade das chamas e as associou à força que ele mesmo possuiu no passado: fortes, invencíveis, impossíveis de abater. Entretanto, se um de seus criados arrojava um caldeirão de água sobre aquelas vívidas chamas, apaga-las-ia no momento. Só ficaria carvão. Possivelmente uma ou outra brasa tentaria sobreviver à destruição, mas apesar do esforço jamais retornaria à intensidade do fogo inicial.

? Sua Excelência, ? Brandon apareceu levando uma pequena bandeja prateada sobre suas mãos e interrompeu com brutalidade a meditação do homem ? chegou o correio.

O homem deixou a bandeja em uma mesa junto ao duque e esperou de pé junto a ele se por acaso necessitasse sua perícia ao escrever para responder as cartas que necessitassem de resposta.

William as olhou pela extremidade do olho e passou a mão sã por elas esboçando uma careta. Ele optou pelo periódico e o colocou sobre suas pernas para lê-lo sem demasiado interesse, Londres e tudo o que concernia a ela já formava parte de seu passado.

Abriu o jornal em uma página ao azar e a foto de um Federith sorridente, exultante de felicidade com sua recém-adquirida esposa pelo braço, furou-lhe os olhos. Leu muito devagar a notícia que anunciava as núpcias do barão de Sheiton com lady Caroline Middelton na propriedade que possuía o nobre em Hemilton.

O periódico era de três semanas atrás e embora Federith já lhe anunciasse suas intenções antes que William abandonasse Londres, a notícia lhe caiu como um jarro de água fria. Franziu o cenho e a mão lhe tremeu um pouco antes de lançar o maço de papéis para o fogo.

? Más notícias, senhor? ? Perguntou o mordomo com assombro.

? Depende para quem ? respondeu tosco enquanto observava como o papel ardia.

? Se o desejar me retirarei para lhe deixar só ? indicou o homem ao mesmo tempo em que fazia uma reverência e tentava afastar-se.

? Não parta. Embora não me satisfaça a notícia, tenho que felicitar ao Federith por seu recente matrimônio.

? O senhor Cooper se casou? ? Disse com uma mescla de entusiasmo e incredulidade enquanto observava seu senhor uns instantes, tempo suficiente para perguntar-se por que a feliz notícia não lhe tinha agradado. Hanna teria razão? A verdade é que não estava acostumado a dar muita importância à sua esposa, quando falava sobre o amor e muito menos quando incluía nessas conversações o duque.

Segundo ela, quão único faria o jovem sair da letargia na qual se achava era encontrar uma mulher que o amasse e lhe desse o carinho que tanto necessitava. Insinuou em mais de uma ocasião que ter crianças brincando de correr pela mansão faria com que o senhor recuperasse a vontade de viver. Entretanto, ele conhecia o duque desde que saíra das vísceras de sua mãe e, por muito que sua mulher insistisse em que tinha razão, sabia que esse tipo de vida não era a adequada para ele. O homem tinha nascido para ser livre, para esquentar as camas de outros maridos, para observar as vidas familiares de outros à distância.

? Digamos que encontrou uma mulher à sua medida ? comentou William com maldade após refletir na resposta adequada. Logo dirigiu o olhar para as garrafas e fez um leve gesto com a cabeça para que Brandon lhe servisse uma taça.

? Deseja lhe responder, senhor? ? Perguntou o ancião enquanto enchia a taça de licor e a aproximava o suficiente para que o duque pudesse pegá-la.

? É óbvio! Responderemo-lhe agora mesmo. – Bebeu o uísque de um gole e elevou o copo para que seu mordomo o voltasse a encher. Brandon, mais assustado que assombrado, encheu de novo o copo de licor e, depois de oferecer-lhe, pegou um papel em branco e uma pluma para escrever.

? Meu querido Federith ? começou a ditar. ? Como bem sabe, sempre me satisfazem suas alegrias, embora muito me temo que esta não é tal. Não faz muito te expliquei que é dono de seu destino e, se Deus for justo, arrebatarár-te o que não te pertence. Não esqueça que meu lar terá as portas abertas quando aparecer chorando e afirmando minha verdade. Pode permanecer todo o tempo que desejar. Por certo, sabe algo do miserável do Bennett? Faz mais de três meses que não tenho notícias dele e isso me inquieta. Atenciosamente, William.

Brandon conteve a respiração em todo momento. Foi colocando sobre a folha cada palavra que escutava da boca do duque, ao mesmo tempo em que sua cabeça não cessava de lhe insistir que a pessoa que pronunciava aquela maldade não estava em plenas faculdades mentais. Eram daninhas, maquiavélicas, quando deveriam estar cheias de felicidade e bons desejos.

? Quer que a leia em voz alta? ? Perguntou o mordomo levantando do assento.

? Não precisa, sei o que eu disse ? respondeu com rudeza.

? Então, se sua Excelência me permitir isso, farei os arranjos para enviá-la esta mesma manhã.

? Antes de partir encha de novo o copo, está vazio. ? Levantou a taça para que Brandon a pegasse e obedecesse ao mandato.

Em silêncio, sem mostrar no rosto sua estranheza, o servente verteu mais uísque no copo, ofereceu-o ao seu senhor, fez a reverência e partiu. Quando fechou a porta, o ancião voltou a ler a nota que devia enviar, sem estar convencido de todo da idoneidade de seu conteúdo. Talvez Hanna pudesse deduzir o que acontecia na cabeça de seu senhor e chegar a uma conclusão lógica que explicasse aquele comportamento errático e malicioso. E com essa intenção guardou a nota no bolso de seu casaco e se dirigiu à cozinha.

William seguia observando o fogo sem sequer piscar através do líquido ambarino. Podia ver como o álcool dançava sobre o líquido alheio à possibilidade de que o jogassem sobre as ardentes chamas. Seria igual o inferno? Estariam dançando mulheres nuas entre as chamas do abismo infernal? O homem sorriu meio de lado. Sua mente começava a nublar-se com a rápida ingestão do uísque e agradeceu em silêncio que seu cérebro começasse a funcionar com aquela lentidão. Precisava evadir-se do mundo que lhe rodeava, sonhar de novo com o homem que uma vez foi. Possivelmente, se ao cabo de um momento o estado de embriaguez aumentasse, poderia deixar a bengala e caminhar sem apoiar-se nela.

Dirigiu o olhar para as garrafas, mas estavam muito longe para alcançá-las da poltrona, teria que chamar o Brandon para que as aproximasse.

— Maldito seja, William Manners, maldito duque de Rutland! ? gritou. ? Levante-se e faça-o você mesmo!

O homem apoiou com força as plantas dos pés no chão e se surpreendeu ao não sentir a dor que dias atrás sacudia seu corpo. Soltou uma grande gargalhada ao descobrir que o miserável estado de embriaguez lhe proporcionava a força que requeria para sentir-se forte de novo. Sem deixar de sorrir caminhou até onde se encontravam as garrafas de cristal de Murano. Agarrou uma ao azar e encheu a taça.

? Agora toca a ti, estúpida mão, começa a te mover por ti mesma.

Mas não obedeceu a ordem, seguiu estendida para o chão. Zangado, andou pelo salão dando voltas e bebendo sem parar. Cada vez que drenava a taça, enchia-a de novo. Ao cabo de um bom momento seu corpo se cambaleava sem controle e sua mente tinha perdido toda sensatez.

Aproximou-se da mesa, pegou a campainha e a agitou sem cessar.

? Sim, Excelência? ? Perguntou Brandon ao ser requerido com tanta urgência.

? Diga ao cavalariço que prepare meu garanhão, vou dar um passeio por minhas terras ? comentou entre balbuceios.

? Meu senhor... ? começou a dizer o mordomo.

? Não escutou meu desejo? Acaso a velhice começa a destruir seus ouvidos? ? Desafiou-lhe.

? Não, senhor, escutei bem. Mas se me permite um conselho...

? Não quero conselhos de ninguém! ? Exclamou elevando a mão que segurava o copo vazio e atirando-o para o chão.

? Sim, Excelência. Informarei ao cavalariço.

? Avise-me quando tudo estiver preparado – disse-lhe dando as costas para poder cravar de novo seus olhos no fogo.

? É óbvio. Deseja que seu ajudante de câmara o agasalhe adequadamente?

? Não. Será um passeio breve.

? Como desejar... ? Brandon se inclinou levemente para frente e com passo firme saiu do salão.

Respirou fundo após fechar a porta e em vez de sair correndo para as cavalariças retornou à cozinha, onde tinha deixado sua mulher resmungando pelas palavras tão inapropriadas que o duque tinha dirigido ao enlace de seu amigo.

? Quer sair para montar ? disse desesperado quando entrou na cozinha.

? O que?! ? Perguntou a mulher atônita.

? Ordenou-me que preparem seu garanhão. Deseja passear pelas terras ? prosseguiu.

? Terá lhe tirado essa insensatez da cabeça, não é? ? Hanna colocou suas mãos sobre a cintura e enrugou a testa.

? Não quer escutar. Acredito que bebeu muito...

? Agora mesmo vou dar aquele par de açoites que deveríamos ter lhe dado quando começou a apodrecer sua alma!

? Hanna! ? Gritou Brandon agarrando-a pelo braço para impedir que saísse dali. ? Temos que lhe deixar ver que não é o homem que uma vez foi. Ele deve assumir.

? E nós... o que faremos enquanto isso? ? Sua voz era suave, quase imperceptível.

? Rezaremos como tantas vezes fizemos quando lhe dispararam ? respondeu aflito.


VI


Beatrice se espreguiçou com um sorriso que iluminou seu rosto. De um tempo para cá dormia bastante bem e tudo se devia a uma singela razão: tinha o estômago cheio. Tinha comprado animais, cultivado verduras pelos arredores de seu pequeno lar e até tinha construído um cercado para que os lobos deixassem de aniquilar o gado. Tudo acontecia segundo o previsto. Nada perturbava aquela felicidade, salvo quando uns pensamentos impossíveis se fundamentavam, em como enfrentar o passado apareciam em sua cabeça. Tentava esquecê-los com rapidez, ainda não era o momento de pensar nisso e tampouco tinha ainda a força necessária para aparecer em Londres e lutar pela verdade, a sua verdade.

Apoiou os pés no chão e depois de esticar os braços decidiu tomar um bom café da manhã antes de sair ao campo. Depois das últimas chuvas, os arvoredos estariam repletos de cogumelos e desejava encontrar todos que coubessem em sua cesta para preparar suculentos manjares.

Depois de tirar a camisola e colocar-se um dos vestidos que comprou na semana anterior no povoado, caminhou para a pequena cozinha para tomar o café da manhã. O estômago não lhe rugia como antes, tampouco sentia aquela debilidade moribunda que lhe impedia de levantar-se da cama, agora estava cheia de vida.

Verteu chá em um copo e colocou um prato com ovos, verduras cozidas e duas fatias de pão. Quando se sentou observou surpreendida o que havia sobre a mesa. Sem dar-se conta tinha preparado o café da manhã preferido de sua mãe.

Àquele pensamento, à lembrança de sua mãe e à vida que desfrutou antes de ser manchada, entristeceu-a tanto que mal pôde dar um bocado.

«Algum dia, ? disse ? tudo voltará para a normalidade e aqueles que me julgaram carregarão o resto de suas vidas com a desgraça da condenação».

Mas... seria verdade? Retornaria de novo para lutar por sua honra? Estava escondida mais de meio ano do acontecido, pensou que se separando de sua família, dos olhares de compaixão ou de recriminação, poderia curar sua alma ferida e fazer-se suficientemente forte para voltar e suportá-lo, mas com o tempo estava se acomodando à vida que levava e cada vez se fazia mais longínqua à ideia de retornar ao lugar onde foi ultrajada. Como trocar uma vida cheia de tranquilidade e quietude por outra repleta de dor? Era certo que em muitas ocasiões Beatrice se sentia sozinha e tentava resolver essa sensação conversando com seus animais, mas exceto algum zurro, choramingação ou grasnido, não encontrava nada mais.

Zangada por entristecer um bonito dia com pensamentos dolorosos, jogou a cadeira para trás com as pantorrilhas, pegou tudo o que tinha sobre a mesa e o introduziu irada no tanque. Precisava sair dali o antes possível ou se voltaria louca. O isolamento não era tão bom como tinha suposto e embora lutasse com unhas e dentes para manter-se sã, estava justo no limite. Começava a tocar a loucura torturante com as pontas dos seus dedos.

Olhou de novo pela janela desejando confirmar se o tempo não tinha trocado e poderia abandonar a cabana. Em efeito, o sol seguia brilhando, convertendo aquele dia no perfeito para dar aquele passeio. Colocou a capa, agarrou a cesta de vime e saiu do lar com um sorriso no rosto.

Um cão... ? pensou enquanto caminhava. Seguia pensando em como eliminar o silêncio da casa. Seria um bom mascote, ocuparia aqueles momentos nos quais não sei com quem falar. Além disso, são fiéis e jamais me abandonaria, refletiu ao mesmo tempo em que agarrava o primeiro punhado de cogumelos que encontrou aos pés de uma árvore.

Seguia pensando no animal e em como chamá-lo quando um bando de pássaros voou entre as copas das árvores. Beatrice elevou o olhar e ficou observando a estranha atuação destes. Preocupada se por acaso lhe indicavam a cercania de algum perigo, agarrou com força a cesta e prosseguiu devagar. De repente, escutou outro ruído, tão intenso que a deixou imóvel. Apertou contra si a cesta e olhou para o lugar de onde procedia o som.

Um animal corria apavorado. Ia tão veloz que não distinguiu com precisão se era um cervo, um alce ou um cavalo perdido. Por que estavam os animais tão assustados? Só podia achar uma resposta a esse comportamento aterrador. Os lobos tinham retornado e rondavam pela zona, levavam noites uivando perto de sua cerca. Tinha se esquecido deles ao sair da casa tão desesperada por notar os raios de o sol lhe acariciar a pele. Assustada, decidiu caminhar para o rio Wye. Se chegasse logo ao trecho de máximo fluxo poderia introduzir-se na água e aguentar o tempo necessário até que aqueles depredadores decidissem afastar-se de uma possível presa.

O ruído dos ramos ao romper-se, o canto dos pássaros, a brisa do vento movendo as folhas... começaram a lhe criar um medo tão atroz que lhe adormeceram as pernas e esqueceu seu plano de dirigir-se para o rio. Seu lar era o lugar mais seguro. Custava-lhe respirar, avançar com fluidez. O pânico se apropriou de seu corpo e a tinha paralisado. Em um ato de fé, daqueles que não teve no acontecido com o Rabbitwood, fechou os olhos e começou a orar. Rezava para salvar-se, para que seu medo desaparecesse, para que brotasse aquela força que necessitava. Ao princípio rogou em silêncio, pouco depois o fez em voz alta, como se as orações fossem suficientes para espantar um possível mal.

Subiu uma pequena colina de onde pôde divisar a cabana. Ficava só uma centena de passos e se salvaria. Seu caminhar começou a ser agitado, precipitado. De repente notou a presença de algo atrás dela. Girou-se rapidamente para saber do que se tratava. Não havia nada. O medo lhe provocava alucinações.

Seguiu correndo olhando para trás, não queria parar. E então... aconteceu. Tropeçou em algo que havia no chão e caiu no barro. Durante uns instantes ficou tombada, cobrindo seu rosto com o cabelo manchado de lodo e sem poder elevar os olhos. Esperou o suficiente até que comprovou que não se escutava nada ao seu redor. Elevou-se com rapidez, agarrou a cesta e se dispôs a continuar correndo quando sua curiosidade lhe fez olhar para a razão de sua queda.

? Santo Deus! ? Exclamou ao mesmo tempo em que se aproximava do que se supunha ser um corpo e estendia os dedos fazendo com que a cesta retornasse à terra lamacenta.

Uma enorme capa escura e manchada cobria a figura de quem jazia estendido. Beatrice não o duvidou. Esticou as mãos para o tecido, apartou-o devagar para certificar-se de sua premissa e gritou:

? OH, Senhor!

Andou vários passos para trás, levou-se as mãos à boca e a tampou para não continuar chiando. Ficou tão atônita que, depois de confirmar quem tinha em frente a ela, não sabia o que devia fazer. Se fosse embora, se o deixava ali estendido; podia retornar à sua casa e esquecer que o tinha visto. Entretanto, o que pensariam no povoado quando descobrissem o corpo inerte do duque e a ela vivendo em suas terras de maneira clandestina? A única resposta plausível era que ele a encontrou por acaso e quis obrigá-la a partir de suas terras e como ela não desejava lhe obedecer, aproveitou sua invalidez para lhe dar fim. Questionariam-se como uma mulher tão pequena teria sido capaz de fazer tal maldade? Não, é óbvio que não. Além disso, se descobrissem sua identidade, a sentença não apresentaria dúvida alguma.

A única opção que tinha era averiguar se estava vivo e conduzi-lo até a cabana, prestar-lhe auxílio e quando amanhecesse, correr a Haddon Hall para pedir ajuda, embora isso lhe custasse à expulsão da qual tinha sido seu lar durante os últimos meses. Devagar, mais do que pretendia, aproximou-se do duque e o observou com atenção.

«Obrigado, Meu Deus!», murmurou ao céu quando percebeu que ainda respirava.

Nesse momento outro bando de pássaros voou com frenesi sobre eles. Sem pensar duas vezes girou o corpo inconsciente e o agarrou pelas axilas para arrastá-lo. Não havia tempo nem forma fácil de trasportá-lo, então o arrastou sem descansar até que suas costas tocou o cercado que rodeava seu lar. De repente escutou uns ramos se partirem. Levantou o olhar e os observou. Grunhiam e lhes mostravam os dentes. Seus olhos escuros se cravavam nela. Um lobo cinza deu uns passos para diante, levantou o focinho e uivou com força. Beatrice tragou saliva. Sentia o medo percorrer seu corpo, mas não se amedrontou. Prosseguiu sua façanha até que introduziu o duque ao interior da cabana e fechou a porta com o trinco.

Deixou-o estendido no chão enquanto procurava a maneira de subi-lo à cama. Compreendendo que não tinha nada que a ajudasse no árduo trabalho, decidiu pegar o colchão e situá-lo perto do ferido. Assim, quão único teria que fazer era rodá-lo até que estivesse em uma posição adequada. Antes de voltar a tocá-lo ficou de pé observando-o em silêncio. As marcas do rosto, aquelas que tanto tentava esconder com a longa barba, mostravam-se sem disfarces. Ao contempla-las com mais claridade, pensou que não eram tão horrendas como diziam, embora para um homem tão formoso, aquelas sequelas fossem feitas pelo próprio diabo.

Seguiu admirando-o à distância. Tinha um aspecto muito viril, robusto e atlético, muito distante, em sua opinião, da fraqueza em que todos insistiam na sequencia do incidente.

Com valentia voltou a segurá-lo e o girou de lado para colocá-lo sobre o colchão, afastando-o da frieza do chão. Ao pôr suas mãos sobre ele notou que estava gelado, a roupa molhada se grudava ao seu corpo e o esfriava sem compaixão. Decidida, aproximou-se da chaminé, colocou uns troncos e acendeu um fogo. Isso bastaria para esquentar a pequena habitação em que se encontravam. Enquanto as chamas começavam a brotar, voltou para o ferido e começou a lhe tirar aquela capa enlameada. O duque emitiu um pequeno gemido provocando que Beatrice se sobressaltasse e se apartasse. Não desejava que abrisse os olhos e a encontrasse tocando seu corpo. Poderia deduzir algo que não era.

Esperou sentada junto à chaminé outra reação do homem, mas ao ver que seguia inconsciente retornou para continuar lhe despojando dos objetos. Era a primeira vez em sua vida que se encontrava em uma situação parecida e embora não devesse sentir nenhum tipo de temor, estava tremendo. As mãos não eram capazes de desfazer o nó da capa, nem de lhe tirar com agilidade a jaqueta. O que lhe acontecia? Estaria lembrando-se da noite que passou com ele? Não, não era isso. Só estava nervosa se por acaso o duque abria os olhos e a descobrisse despindo-o. O que pensaria? Certamente que lhe estava roubando. Os homens de sua índole jamais imaginariam que alguém podia lhes ajudar por solidariedade.

Quando ao fim o deixou em camisa descobriu uma mancha de sangue que não tinha visto com antecedência. Devagar desabotoou cada botão até que o peito ficou descoberto e pôde inspecionar a zona de onde brotava o sangue, era uma ferida que abrangia do flanco esquerdo até o ventre, uma zona que ao duque lhe teria sido impossível proteger com seu braço inútil. Beatrice não pôde evitar olhar o torso com assombro. Era a primeira vez que descobria o que se escondia sob as roupas de um homem. Nunca pensou que fosse tão robusto, nem que nessa zona o pêlo crescesse tão escuro e encaracolado. Mas o que lhe deixou sem fala foi o tamanho dos mamilos, eram diminutos, mal visíveis à primeira vista. Sem meditar mais sobre isto, incorporou-se, preparou uma panela com água fervendo e começou a limpar o corte com supremo cuidado. Não era profundo, só um arranhão muito comprido.

Cada vez que passava o pano o homem franzia o cenho e se queixava, embora não abrisse os olhos. Depois de seus cuidados, sentou-se de novo junto à chaminé. Estava muito cansada por todo o ocorrido. Não só seu abatimento era físico, mas também mental. Ela podia ter salvado a vida do duque de uma morte segura, pois se o tivesse abandonado, os lobos teriam se alimentado dele. Mas este ato de misericórdia teria consequências nefastas para ela, deveria abandonar o lugar que chamava de lar. Um lugar que lhe contribuía com paz, quietude e esperança de não voltar a ser a mulher que foi.

Sentada, estendeu as pernas, cruzou os braços, apoiou a cabeça na parede e deixou que o sono se apoderasse dela.


VII


Doía-lhe todo o corpo, inclusive a parte que era insensível. Elevou com pesar as pálpebras e não soube reconhecer onde se encontrava. Quão último recordava era que seu cavalo se assustou no bosque, justo antes de chegar ao rio Wye, e tinha começado a correr sem controle. Tudo aconteceu bastante rápido. As cintas que o sujeitavam à cadeira se partiram e durante um tempo esteve amarrado ao estribo do animal desenfreado até que ao final caiu ao chão. O golpe foi tão potente que foi incapaz de assimilar o acontecido durante uns momentos. Quando compreendeu o ocorrido tentou arrastar-se pelo chão transformado em lamaçal. Apesar de seu esforço, mal conseguiu distanciar um metro de onde havia desabado. Depois gritou pedindo auxílio, mas ninguém respondeu. Exausto pelo esforço terminou perdendo os sentidos. E agora, ao despertar daquela agonia, achava-se em um lugar que não conseguia distinguir.

Moveu a cabeça para a direita e observou uma mulher sentada no chão a menos de um metro dele. Tinha um aspecto lamentável: o barro cobria cada centímetro de tecido de seu vestido assim como seus sapatos. Dirigiu os olhos para o rosto da moça para tentar reconhecê-la, mas foi impossível. Uns largos cachos negros soltos de um coque tampavam seu semblante. William franziu o cenho ao compreender que a desconhecida dormia no chão apoiada sobre a parede e claramente, exausta pelo cuidado que dava a ele.

? Desculpe... ? sussurrou após respirar várias vezes e procurar uma palavra adequada para não sobressaltá-la.

? Já despertou? ? Perguntou Beatrice dando um salto.

Sem esperar a resposta do homem aproximou-se e lhe colocou uma mão sobre a testa. Nesse momento William fechou os olhos, não queria ver no rosto da mulher, sua expressão de angústia quando contemplasse suas cicatrizes.

? Parece que não tem febre. Foi uma sorte que o tenha encontrado antes que pudesse adoecer ou acabar devorado por... ? deixou sem finalizar a frase. Levantou-se, aproximou-se da mesa onde tinha o pano com o qual o tinha limpado e, depois de ajoelhar-se, voltou a lhe limpar o peito, o pescoço e o rosto. ? Terá que ficar um tempo de repouso, embora as feridas não sejam graves, necessitam de uns dias tranquilos para que sarem adequadamente.

O tom da jovem era tão terno que o duque fechou de novo seus olhos. Desejava com todas as suas forças que aquela imagem, em que uma mulher o cuidava sem sentir asco por suas feridas, não fosse uma alucinação.

? Onde estou? ? Ao sentir o suave tato da mão feminina pela zona na qual seu rosto estava destroçado, William abriu os olhos e, sem pensar agarrou-lhe com força pelo pulso para que cessasse imediatamente.

? Em minha casa. ? Beatrice o olhou apertando os olhos para a pressão daquele aperto forte. Não esperava que lhe agradecesse por lhe haver salvado a vida, mas tampouco imaginou que lhe ocorresse ser um mal educado.

William, ao ser consciente de seu inoportuno ato, soltou-a e tentou incorporar-se, mas ela o impediu colocando uma palma sobre o peito nu do homem e lhe obrigando a recostar-se de novo. O cabelo negro se estendeu pelo colchão. Sua respiração não era tranquila e Beatrice podia ouvir o tilintar das botas do duque ao golpear-se.

? Deve recuperar-se... seu... senhor.

? Eu gostaria de lhe informar sobre certas feridas do meu corpo. Quero lhe esclarecer que não foram causadas recentemente... ? seu tom soou débil, inclusive triste.

? Mas apesar disso deve descansar. ? Levantou-se e se dirigiu para um caldeirão metálico que tinha muito perto do fogo. Colocou uma concha de sopa e tirou algo que introduziu em uma terrina. ? Acredito que isto lhe virá bem... ? retornou para o homem, agachou-se, colocou seu braço esquerdo ao redor do pescoço masculino, inclinou-o para frente e pôs uma pequena superfície da borda sobre os lábios. ? Não tem nada a ver com os ricos manjares aos que imagino que você deve estar acostumado, mas este caldo lhe reconfortará. ? E antes que o duque pudesse negar-se, Beatrice o fez tomar.

William esticou a mão para o recipiente e ajudou à moça. Era certo que não tinha provado nunca um sabor igual, embora a necessidade de alimentar-se e de recuperar um pouco de força fez com que bebesse até a última gota sem mal respirar. A jovem voltou a estendê-lo sobre o colchão enquanto ia de um lado para outro. Estava inquieta e ele a compreendia. Tinha em sua casa a um estranho que mal podia mover-se e que parecia ter a obrigação moral de cuidar.

? Quando chegará seu marido? Devo lhe indicar onde resido. Ele poderá informar aos meus criados do meu paradeiro e estou seguro de que não demorarão em vir por mim. Agradeço-lhe tudo o que tem feito, entretanto você entenda que não desejo ser uma carga... ? disse-lhe sem apartar a vista de quão único alcançava a ver, seus tornozelos.

? Meu... quem? ? Deu uma volta sobre si mesma com brutalidade, provocando que sua saia se elevasse algo mais do devido e que o duque descobrisse umas magras pantorrilhas sem meias.

? Seu marido... a pessoa que haverá me trazido até aqui ? esclareceu.

? Não há tal marido, senhor. Fui eu mesma quem o transladou. ? Colocou-se em frente a ele com as mãos apoiadas em sua cintura.

? Você carregou o meu peso? ? Perguntou assombrado e um tanto sufocado. Aquela moça não era muito alta e, notavelmente magra, mais do que se podia esperar em uma jovem de sua idade.

? Pois sim. Encontrei-o no meio do bosque e decidi lhe salvar a vida, embora possa lhe assegurar que quase me custou a minha ? sorriu.

Quando William a observou sorrir acreditou ver um anjo. Um despenteado e sujo anjo que tinha cuidado de seu rosto e não tinha encontrado nele nem um ápice de repulsão por seu deformado aspecto. Pareceu-lhe tão implausível para ele que acreditou que o golpe lhe tinha causado visões. Desde quando alguém não apartava seus olhos ao estar ele presente? Desde quando alguém o olhava sem dirigir os olhos para a cicatriz, para franzir o cenho?

? Então... devo lhe agradecer o esforço que realizou para me salvar ? disse após sua reflexão. Tentou levantar-se de novo e arqueou as sobrancelhas ao ver que seu torso estava nu. Desviou o olhar para a mulher e esta se ruborizou imediatamente.

? Tive que limpar a ferida que se fez no abdômen. Como imaginará, tive que apartar a roupa – desculpou-se.

? Obrigado ? disse depois de uns momentos de silêncio que empregou para saber como deveria continuar a conversação. ? Se por acaso não se deu conta, sou um incapacitado. Não posso mover a mão esquerda, mas não foi por causa da queda, faz tempo que deixou de funcionar. Minha perna... bom, ela tenta recuperar um pouco de funcionalidade depois de um inoportuno tropeção em meu lar.

? O que lhe aconteceu? ? Colocou-se ao lado da chaminé onde podia contemplá-lo com maior claridade.

? Como já lhe expliquei, isto aconteceu faz bastante tempo...

? Refiro-me a hoje. Por que estava caído no chão? ? Interrompeu-lhe.

? Decidi cavalgar durante um momento. Minha intenção era chegar até o rio Wye e retornar, mas meu cavalo se assustou e... bom, eu fui jogado. ? Suspirou e olhou para o teto enquanto se perguntava uma e outra vez por que dava explicações a uma estranha. Jamais as tinha dado a ninguém. Entretanto, ela era especial. Era um ser divino que o tinha salvado de uma morte segura.

Beatrice o olhou sem piscar. Tinha uma vontade incrível de lhe gritar como era insensato, mas não o fez, manteve-se calada esperando que o duque continuasse, mas ele se manteve em silêncio.

? Há lobos pela região ? explicou para romper o mutismo entre ambos. ? Talvez seu cavalo se assustasse ao escutá-los e atuou preso do medo.

? Pode ser... ? respondeu sem apartar a vista do teto.

? Assim que se encontrar melhor irei procurar ajuda. Estou segura de que alguém estará preocupado por seu desaparecimento. ? Voltou a aproximar-se e lhe abotoou a camisa para que não se sentisse incômodo por sua nudez. Ou possivelmente era ela a que se encontrava nervosa.

William quis fechar os olhos e sentir o suave tato das mãos sobre ele, mas lhe resultou impossível. Desejava observar com atenção a sua salvadora e, embora tivesse o cabelo despenteado e sujo assim como o rosto, pôde admirar a beleza de seus olhos. Uns olhos verdes que não apartavam o olhar de seu rosto nem mostravam repulsão ante a fealdade de suas cicatrizes.

? Posso lhe perguntar seu nome? ? Inquiriu William quando ela retornava para a chaminé.

? Meu nome é Beatrice ? respondeu.

? Só Beatrice?

? Beatrice Brown ? mentiu.

? Senhorita Brown, ? disse o duque com um tom sério e firme ? como compreenderá, estou em dívida com você e seria um cretino se não a saldasse.

? Não precisa me prometer nada...

? Sou o duque de Rutland e por minha honra oferecerei-lhe tudo aquilo que desejar. Se por acaso não se deu conta, salvou-me a vida.

? Não necessito de nada... ? murmurou com suavidade.

? Não quero que me responda agora, não é necessário. Mas quando decidir o que me pedir, estarei encantado de escutá-la ? insistiu sem relaxar aquele tom de venerabilidade.

À Beatrice não cabia dúvida da veracidade da promessa embora não acreditou oportuno lhe dizer que vivia em uma propriedade dele e precisava seguir permanecendo ali durante o resto de sua vida. Para evitar que o homem continuasse falando com tanta seriedade, desenhou um sorriso em seu rosto e disse:

? Possivelmente a queda lhe tenha prejudicado mais do que parece. Como mínimo, deve ter lhe afetado o ouvido. Faça o favor de descansar. Por agora é o único que lhe peço.

? Juro por minha honra...

? Shhh ? avançou para ele, pôs-lhe um dedo nos lábios e lhe fez calar. Não queria escutar promessas que não se poderiam cumprir. Estava aturdido e uma pessoa em dito estado de choque poderia falar mais do que o imprescindível. ? É melhor que durma, precisa descansar um pouco mais.

William a olhou sem saber se ria ou zangava-se. Não fez nem um nem outro, ficou observando-a durante uns instantes. Finalmente fechou os olhos e se obrigou a dormir. Embora antes de deixar-se sucumbir pelo sono se perguntou quando tinha sido a última vez que havia sentido tanta paz e desde quando era incapaz de replicar as ordens de uma mulher. As respostas surgiram com rapidez, desde que a dita mulher lhe tinha salvado da morte, não lhe tinha cuidado com repulsão e o tratava com ternura.

Beatrice esperou até que escutou a respiração profunda do duque.

Caminhou para a janela e descobriu que os primeiros raios de sol começavam a surgir atrás das montanhas. Era o momento ideal para ir à Haddon Hall e comunicar o paradeiro do duque. Estava segura de que todo mundo estaria angustiado pelo desaparecimento. Teriam começado uma busca conscienciosa e se ela não chegasse o antes possível para lhes explicar onde se encontrava, logo seu lar se veria repleto de desconhecidos que a interrogariam sobre por que vivia em um lugar que não lhe pertencia.

A angústia que sentiu ao imaginar-se nessa situação lhe criou tal impaciência que só se atrasou em pegar sua capa e correr para a residência. Durante o caminho sopesou a atitude que teria o senhor Stone ao vê-la. Esticar-se-ia como um pau, ordenaria que salvassem ao senhor das garras de uma camponesa desalinhada e a reteria na mansão até que descobrissem a verdade. Não podia permitir que a acusassem de algo que não tinha feito, então decidiu que após dar a notícia correria para seu lar para fechar a porta e esquecer tudo o que tinha acontecido.

Como sempre, a magnitude do edifício a deixou perplexa. Não entendia como um paraíso podia albergar um lar tão austero. Quanto mais se aproximava, mais calafrios sentia. Esfregou-se os braços para dar-se um pouco de calor e começou a subir as escadas. Ao chegar à porta principal começou a golpeá-la com força. Depois de vários intentos sem ser atendida, decidiu tentar a porta de serviço. Se não se equivocava, a senhora Stone estaria na cozinha e a escutaria com prontidão. Andou devagar tentado descobrir se surgia da escuridão alguém com quem falar, mas só havia silêncio, um estranho e horrendo silêncio.

? Menina! ? Exclamou a senhora Stone ao vê-la. ? O que faz aqui?

? Bom dia, senhora. Preciso falar com o senhor Stone ? respondeu com voz equilibrada.

? Retornou para...?

? Não! ? Respondeu com prontidão ao mesmo tempo em que suas bochechas se enchiam de uma intensa cor vermelha.

? Pois, querida, o senhor Stone não pode te atender. Aconteceu algo bastante dramático em Haddon Hall e...

? O duque está em minha casa – interrompeu-lhe.

? O que está dizendo, moça? ? Os olhos inchados da anciã devido ao intenso pranto que teria tido enquanto o duque estava desaparecido, abriram-se de par em par.

? Encontrei-o caído no meio do bosque. Quando compreendi que estava vivo o arrastei até meu lar e o estive cuidando após ? explicou Beatrice.

? Obrigado, meu Deus! ? Clamou antes de lhe dar um forte abraço e enchê-la de beijos. ? Muito obrigada, criatura do Senhor, por salvá-lo. ? Depois de uns momentos nos quais Beatrice mal conseguia respirar, a mulher a liberou e correu para a porta gritando: ? Senhor Stone! Senhor Stone!

? O que acontece? A que vêm esses gritos? ? Tal como se tinha imaginado, o mordomo apareceu na cozinha erguido e mal-humorado. Ao ver a jovem entrecerrou os olhos e lhe disse: ? O que faz aqui? Não teve o suficiente com aquela noite? Acaso gastou o dinheiro que ganhou e vem procurando mais?

? Brandon! ? Gritou Hanna zangada. ? Por que é tão...?

? Tão? ? Arqueou as sobrancelhas e uniu com suavidade as pestanas.

? A jovem veio até aqui para nos informar sobre nosso senhor. Ele está são e salvo. Encontrou-o no bosque e o esteve cuidando ? esclareceu a anciã sem mal tomar fôlego.

? Onde está? ? Exigiu sem baixar a intensidade de seu tom.

? Está em minha casa ? anunciou abaixando a cabeça. As duras palavras do mordomo sobre o acontecido aquela noite lhe tinha criado um grande pavor.

? Diga-me agora mesmo onde se encontra sua Excelência! ? Exclamou com ira.

? Vim até aqui por vontade própria. Acreditei que estariam preocupados com o destino do duque e quis lhes informar que se encontra bem.

? Onde está? ? Repetiu Brandon com os dentes apertados. Aproximou-se tanto de Beatrice que esta teve que dar vários passos para trás para que não conseguisse roçá-la.

? Na pequena casa que há no bosque. É o... ? murmurou devagar.

? Refúgio de caça ? terminou a frase. ? Está bem, mandarei vários criados com a carruagem e espero, por seu bem, que se encontre em ótimas condições porque do contrário...

? Não desejo escutar nada sobre isso, ? agora foi ela quem não lhe deixou terminar a frase ? vim voluntariamente lhe indicar onde se encontra.

Brandon a olhou irado. Girou-se para a porta para ordenar a outros criados que se preparassem para ir procurar ao senhor e quando retornou à cozinha com a intenção de apanhar a moça, já não estava.

? Por que não impediu que se fosse? ? Perguntou zangado à sua mulher.

? Pensa que minhas pernas podem correr como os galgos? Além disso, não crê que se comportou como um idiota, meu querido? Ela só veio nos informar sobre o paradeiro do duque e você a tratou como uma criminosa.

? Mas...

? Não tem “mas”! ? Exclamou levantando a mão para lhe fazer calar. ? Hoje não espere nenhum tipo de afeto em nosso quarto. Prefiro, se não quiser cair do colchão durante a noite, que durma em outra habitação. ? Depois de ameaçá-lo, girou-se sobre seus calcanhares e seguiu prestando atenção à comida que estava cozinhando.

Beatrice chegou, como era de se esperar, antes dos criados. Abriu devagar a porta de seu lar e se assombrou ao ver que o duque estava sentado sobre o colchão e olhava o fogo. Este, ao escutar que alguém acessava ao interior da casa, moveu a cabeça para sua direção.

? Foi à Haddon Hall para lhes avisar? ? Perguntou sem mostrar em seu rosto nenhum tipo de emoção.

? Sim ? respondeu enquanto se aproximava e se colocava em frente a ele. Sua respiração era agitada devido ao esforço da corrida. Tomou ar de maneira pausada, acalmou-se e continuou: ? Estão vindo para cá. Eles lhe cuidarão como merece. Penso que eu não posso lhe oferecer muito. Tenho poucos recursos...

? Andou até Haddon Hall... sozinha? Apesar de me haver indicado que há uma manada de lobos rondando no bosque? ? William estava zangado. Mais do que se havia proposto.

Um momento depois de recostar-se escutou a porta, despertou e, por muito que a tinha chamado para que não partisse, não o conseguiu. Nesse momento tentou levantar-se, mas o único que pôde fazer foi sentar-se naquele roído colchão e esperar que o tempo passasse. Sua incoerente ação não só tinha posto em perigo a ele mesmo, mas sim também tinha arrastado a pessoa que o tinha salvado de uma morte inevitável. Zangou-se por ser tão irracional. Zangou-se por deixar-se levar pela ira, por ter tomado mais álcool do que o acostumado. Zangou-se por tudo o que tinha feito no passado e suas consequências.

? Não se preocupe comigo, Excelência. Estou acostumada a contornar certos perigos. ? Tirou-se a capa e a colocou sobre uma cadeira.

? Mesmo assim, você é uma inconsciente ? disse com aborrecimento.

? Uma inconsciente? ? Beatrice entrecerrou seus olhos e franziu o cenho. ? De verdade que um homem como você é capaz de me definir de tal maneira? Acaso fui eu quem decidiu cavalgar depois de vários dias de chuva e com limitações? ? Fechou com rapidez a boca. O que menos desejava naquele momento era lhe recordar àquilo que lhe tinha destroçado a vida. Entretanto, ao ver que o duque cravava o olhar no chão soube que suas palavras lhe tinham feito mal, mais do que pretendia.

? Você tem razão... ? sussurrou William. ? Por isso quero que recorde que tenho uma dívida pendente com você e eu gostaria de saber no que posso ajudá-la. Se for possível, antes que eu parta.

? Só preciso ficar sozinha... ? murmurou muito devagar.

Girou-se para a chaminé dando as costas ao homem e esticou as mãos para esquenta-las.

William se dispunha a replicar suas palavras quando a porta se abriu com brutalidade e apareceram duas pessoas. Uma delas era o cavalariço e a outra, seu ajudante de câmara. Ficaram olhando-os durante uns instantes esperando que alguém lhes ordenasse o seguinte passo.

? Sairei para que o assistam como é devido ? comentou Beatrice abaixando a cabeça e dando uns passos para a saída.

Nesse momento, sem saber por que, jogou uma última olhada ao duque, que a olhava sem pestanejar. Seu cenho permanecia franzido e apertava com força a mandíbula. Sem dúvida alguma o homem se zangou ao não obter a resposta que desejava, mas ela não queria adiar por mais tempo a partida. Desejava com todas as suas forças que a normalidade reinasse em sua vida, precisava apartá-lo o antes possível porque sua presença não lhe fazia nenhum bem.

Continuou andando e fechou a porta após sair. Sentou-se nas escadas de pedra e tampou o rosto. Não queria pensar em nada, mas mesmo assim a mente não parava de meditar sobre os infortúnios da vida. Em um passado quando seu pai foi rogar o auxílio do duque e este se negou arrogantemente e agora, o mesmo homem que não quis escutar sua versão dos fatos, rogava-lhe que lhe pedisse algo para saldar sua dívida e conseguir a paz. Seria uma opção acertada lhe pedir que lhe devolvesse sua vida? Pouco depois os homens saíam e William se apoiava em um deles para poder caminhar. Beatrice se levantou para lhes facilitar o acesso. Quando passou por seu lado, o duque fez com que parassem.

? Temos uma conversação pendente, senhorita Brown. Direi a um dos meus criados a que venha recolhê-la o mais cedo possível.

? Não temos nada do que falar, milord ? disse abaixando a cabeça. ? Não me deve nada.

Os criados entenderam que a conversação tinha finalizado e continuaram sua marcha até a carruagem. Elevaram ao duque para sentá-lo corretamente. William jogou a cabeça para trás e depois de fechar os olhos pensou: «Só lhe devo minha vida, senhorita Brown».


VIII


? Está seguro? ? William tomava o café da manhã enquanto escutava com atenção ao Brandon. Este lhe explicava que o criado enviado para que acompanhasse a senhorita Brown até Haddon Hall retornava outra vez sozinho.

? Sim, sua Excelência ? afirmou o mordomo depois de um sopro suave. A tarefa, apesar de parecer bastante singela, estava sendo uma verdadeira agonia.

? É uma mulher muito teimosa. Quantas vezes foram em sua busca? ? Pegou a xícara de chá e a levou para a boca para ocultar o enorme sorriso que desenhavam seus lábios.

Aquele comportamento não era de se estranhar, e mais, se ela tivesse aceitado algum de seus convites o teria desapontado. Só uma pessoa com caráter firme seria capaz de albergar um estranho em seu lar sem pensar na repercussão que dito ato de valentia podia supor. Além disso... desde quando uma frágil moça salvava a vida de um desconhecido pondo em perigo a sua?

? Contando com a de hoje, sete. Os dias que você está em casa desde o infortúnio ? esclareceu.

? Bom, então acredito que a melhor opção é me apresentar ante a senhorita Brown e lhe perguntar o motivo de suas contínuas negativas ? indicou pousando a xícara sobre o prato e empurrou a cadeira para trás para se levantar.

Pegou com força a bengala e caminhou para onde se encontrava o mordomo. Tinha decidido visitá-la quando a terceira negativa chegou até seus ouvidos. Entretanto esperou recuperar-se de tudo para mostrar um aspecto ótimo. Não queria que a mulher continuasse acreditando que ante seus olhos se encontrava um ser débil, frágil. Desejava que admirasse a pessoa que em realidade era, ao duque de Rutland, um homem com caráter, firmeza, força e com energia suficiente para assumir as consequências de seu destino.

William estranhou sua repentina mudança de atitude. Desde quando o duque de Rutland tinha despertado de sua profunda letargia mental? Possivelmente a resposta se escondia nela e, se era assim, precisava encontrar o antes possível o por que.

? Diga ao cavalariço que prepare um cavalo. Partirei quando o ajudante de câmara me vestir para a ocasião.

? Como desejar, sua Excelência.

Brandon, apesar de ter uma vontade imensa de rebater aquela ideia, não estava lá para impedir os desejos de seu senhor. Além disso, tantos anos ao seu serviço ofereciam a experiência necessária para compreender que as decisões do duque não podiam ser questionadas. Ele tinha nascido teimoso e, se Deus velasse por sua vida, morreria sendo-o.

Enquanto o criado lhe ajudava a vestir-se, William pensava na forma mais correta de iniciar uma conversação com sua salvadora. Agradeceria ou lhe perguntaria o que fazia vivendo em seus domínios? Esse mesmo pensamento tinha estado perturbando-o durante a semana que esteve recuperando-se. Sua preocupação não se devia a que a moça habitasse em um lugar de suas terras, graças a isso ele sobreviveu. Mas se perguntava uma e outra vez como tinha chegado até ali. Teria se perdido? Ou talvez... tinha-lhe acontecido algo tão dramático que decidiu abandonar seu autêntico lar.

«Só preciso ficar sozinha». Essas tinham sido suas palavras quando ele insistiu em que lhe devia um favor e que podia lhe pedir o que ansiasse. Por que uma jovem que não devia ter mais de vinte anos vivia sozinha à mercê dos infortúnios de uma vida campestre? Se tivesse sorte, coisa que duvidava, porque começava a conhecer o temperamento da senhorita Brown, suas perguntas seriam respondidas.

? Bom dia, senhor. Seu cavalo está preparado ? explicou o criado quando percebeu que a esbelta figura do duque aparecia pelas cavalariças.

? Espero que desta vez as cintas não se rompam ? apontou William ao mesmo tempo em que se dirigia para o animal eleito.

? São correias novas, sua Excelência – indicou-lhe o criado sem lhe olhar nos olhos. ? Têm o dobro de grossura e proporcionam uma amarração mais segura.

? Bem... ? disse mal reparando na explicação do jovem.

Com passo firme aproximou-se do corcel e esperou que o criado lhe ajudasse a subir. Quando esteve sobre o cavalo e não sentiu a segurança que lhe proporcionava seu garanhão, perguntou ao criado:

? Continuam a busca pelo Dalión?

? Sim, meu senhor. Mas não há rastro dele. Parece que a terra o tragou...

? É mais fácil ter sido devorado por uns malditos lobos... ? murmurou com os dentes apertados antes de açular ao animal.

Depois de amaldiçoar a sorte pelo penoso destino que teria vivido o cavalo, pensou em Beatrice, na solidão em que se encontrava e na facilidade que teriam aqueles depredadores para assaltá-la. A mera ideia de que ela sofresse alguma briga violenta com estes, produziu-lhe tamanho aborrecimento que notou como o coração palpitava em sua garganta. A ira surgida só o fazia pensar em uma coisa: tinha que arrastá-la até Haddon Hall. Não podia deixá-la à mercê do nada.

Crê que aceitará sua proposição com um sorriso? ? Refletiu sem diminuir a marcha. Acaso imagina a senhorita Brown recolhendo seus petences e montando-se na garupa do cavalo enquanto te agradece o oferecimento? Não, ela não abandonará esse lugar jamais.

Mas apesar de saber que a negativa seria sua única resposta, ele como bom jogador, tinha um ás na manga. Um ás que seria a melhor alternativa para ambos: dar-lhe-ia de presente a cabana, onde poderia desfrutar de sua ansiada solidão, só se ela aceitasse passar uma temporada em Haddon Hall. Seria um período curto de tempo, o suficiente para que seus criados construíssem um muro de pedra ao redor do refúgio e eliminassem a suja cerca com a qual ela se acreditava protegida. William sorriu triunfante, era uma opção muito apropriada e, sem dúvida alguma, Beatrice não poderia rechaçar. Deste modo sua dívida estaria saldada e por fim poderia deixar de pensar na jovem, porque desde que a moça apareceu em sua vida, tinha deixado de aflorar as cenas eróticas que tinha vivido com Juliette, para dar passo a uma multidão de inquietações produzidas pela ditosa senhorita Brown. Agora em suas noites não havia luxúria, a não ser angústia por uma mulher tão enigmática, como teimosa.

Beatrice acaba de limpar e dar de comer aos animais. Levou a mão direita para seu rosto e tentou tirar o barro que lhe tinha respingado após perseguir uma de suas ovelhas. O animal tinha escapado por um oco da cerca e, assustado, corria apavorado para o bosque. Por sorte para ambos, a espantada criatura ficou presa entre duas raízes grandes de uma árvore que se sobressaíam à superfície. Ela, muito devagar, aproximou-se por trás e saltou sobre o animal, voltando-se a se sujar da cabeça aos pés com o barro que havia no terreno.

? Espero que isto a ensine a não fugir de mim ? dizia ao animal enquanto que o mesmo caminhava depressa para resguardar-se junto ao rebanho.

Apesar do esforço, ainda ficava um pouco de energia para cortar lenha e preparar um lar quente. As chuvas tinham cessado, mas o frio não e, se seu prognóstico sobre o tempo não falhasse, hoje seria uma noite bastante gelada. Depois de certificar-se de que o buraco estava arrumado e que nenhum intrépido animal poderia escapar de novo, dirigiu-se para o barracão de lenha para continuar com seu plano. Entretanto, justo quando elevava o machado para tirar o primeiro corte ao tronco selecionado, escutou os passos de um cavalo avançar para onde se encontrava. Com o utensílio na mão e aferrando-o com força, girou-se para a pessoa que se aproximava. Se, se tratasse de outro criado do duque, assustá-lo-ia e o ameaçaria para que partisse. Já estava cansada da insistência do nobre. Não voltaria a apresentar-se ali nem que morresse de fome!

? Senhorita Brown, foi assim que você recebeu os meus emissários? Entendo então a razão pela qual se recusam a vir em sua busca.

Beatrice ficou atônita ao descobrir que o próprio duque era quem montava sobre o cavalo e sorria ao ver como levantava a ferramenta afiada. Olhou-o sem pestanejar e se sentiu feliz ao perceber que mal ficavam sequelas do passado incidente. Embora algo chamasse com demasia sua atenção: a longa juba escura e a espessa barba tinham desaparecido. Agora a marca do fatídico duelo ficava à vista de todo aquele que o contemplasse. Examinou-o com mais interesse e reparou que ia vestido com o traje habitual para cavalgar. Do alto do corcel parecia o homem que conheceu na festa da senhora Baithlarin: forte, bonito e enigmático. Sem lugar a dúvidas, depois dos dias de descanso tinha retornado o famoso duque de Rutland.

? Bom dia, Excelência ? respondeu baixando as mãos e abaixando a cabeça.

? Bom dia, senhorita Brown ? disse mostrando um grande sorriso.

? Vejo que continua desafiando a morte.

? Só se tiver a certeza de encontrar uma boa pessoa que tenha piedade de um homem tão desamparado como eu e decida me salvar ? indicou com zombaria.

? Você confia muito na piedade dos outros... ? replicou antes de agachar-se para recolher alguns pedaços de lenha que tinha cortado no dia anterior. Embora cortar troncos fosse uma ação muito habitual em uma camponesa, não lhe agradava sentir-se observada e menos ainda quando a pessoa que a olhava era o duque.

? Eu adoraria poder lhe oferecer minha ajuda, mas como já sabe... ? o tom zombador do duque desapareceu de repente para dar passo a uma voz suave, débil e inclusive com um toque de tristeza.

? Posso fazê-lo por mim mesma, Excelência. Além disso, poderia sujar esse bonito traje e estou segura de que seu ajudante de câmara se zangaria muitíssimo ? explicou ao mesmo tempo em que caminhava para a entrada de sua casa.

Desejava entrar na intimidade de seu lar, fechar a porta e deixá-lo ali fora. Desejava que partisse e que não a perturbasse mais, algo muito difícil se o motivo daquela visita fosse lhe recordar a ditosa promessa.

? Senhorita Brown... ? disse enquanto fazia com que seu cavalo caminhasse ao redor da cerca. ? Por que se negou a aceitar meu convite?

? Como pode comprovar, tenho muito trabalho e não posso perder tempo aceitando visitas que...

? Meu convite lhe faria perder tempo? ? William arqueou as sobrancelhas e a contemplou atentamente.

Assim como a última vez, estava coberta de barro. Não entendia como lhe resultava tão difícil estar arrumada em algum momento do dia. A única explicação que encontrou foi que, ao estar sozinha e não poder cercar conversação com ninguém, teria descoberto certo consolo em rolar pelo chão e cobrir-se de lodo.

? Não quis dizer... ? começou a desculpar-se, mas depois de olhar com atenção o rosto do duque e advertir que este não cessava de mostrar um sorriso zombador, descobriu que suas palavras não lhe tinham causado o aborrecimento que ela tinha suposto. Irada, aferrou-se com força às lenhas e lhe perguntou de mau humor: ? A que devo a honra de sua visita, senhor?

? Vim lhe recordar que temos algo pendente e eu gostaria de resolver tal questão o antes possível ? argumentou com seriedade.

? Acaso o excelentíssimo duque de Rutland tem uma terrível insônia por saber que tem uma dívida pendente com uma mulher? ? Sorriu de orelha a orelha triunfante. Esperava que após sua descarada atitude se ofendesse e a deixasse por fim em paz.

? Insônia... ? virou os olhos para a esquerda como se estivesse duvidando sobre como nomear tal situação. Logo sorriu, olhou-a nos olhos e continuou: ? Não, eu não o denominaria dessa forma, mas é certo que você perturba minha mente.

? Eu lhe perturbo?! Como uma humilde camponesa pode fazer tal coisa? ? Prosseguiu com um tom mordaz.

? Antes, senhorita Brown, minhas noites estavam cheias de luxúria porque eu revivia momentos íntimos com as minhas amantes. Entretanto, desde que você apareceu em minha vida, não afloraram as ditas imagens. Quando fecho os olhos só vejo você ? explicou com tom sereno, impessoal, embora por dentro não cessasse de rir.

? Como diz?! ? Beatrice abriu os olhos como pratos e sentiu fogo em suas bochechas. A confissão a desconcertou tanto que se esqueceu de que segurava as lenhas e, quando levou as mãos para o rosto para que o duque não observasse o rubor de seu semblante, os troncos caíram sobre seus pés. ? Ai! ? exclamou de dor.

William agarrou com força as rédeas do cavalo com a mão sã e desceu com rapidez do cavalo. Em nenhum momento reparou que sua perna lhe doeria ao tocar o chão. Só pensava que, por tentar apaziguar o forte caráter da mulher, tinha-a ferido. Abriu a débil grade e caminhou com firmeza para Beatrice, que tinha se sentado sobre as escadas e agarrava um pé enquanto brotava de seus olhos uma centena de lágrimas.

? Sinto muito, perdoe-me. Não foi minha intenção lhe causar dano algum. Só queria continuar com a ironia que estávamos mantendo em nossa conversação. ? Aproximou-se tanto que pôde observar o brilho daquelas gotas salinas. ? Deixe-me examinar seu pé. ? Estendeu a mão útil e tocou com delicadeza a pantorrilha, o tornozelo e o peito do pé da jovem.

? Não tinha vindo procurando desculpar sua dívida? Pois acaba de saldá-la. Eu lhe curei e agora você... ? voltou-se para o duque com tal rapidez que não percebeu a cercania que existia entre eles. Durante uns escassos instantes, Beatrice pôde respirar o ar que o duque emanava de sua boca e vice versa. Seus olhos claros se projetavam na escuridão do olhar do homem. Aturdida, levantou-se e apoiou o pé sobre o chão, guardando para si a dor que sentia. Colocou suas mãos na cintura e indicou: ? Como lhe disse com antecedência, não necessito que você me ofereça nada. Se quiser que sua mente deixe de lhe mostrar meu rosto e volte a ter aquelas cenas que tanto lhe agradavam, pense que vivo em uma casa que lhe pertence e que devido à sua imensa gratidão posso dormir sob um teto.

? Senhorita Brown, peço-lhe mil desculpas por minhas palavras, estão fora de lugar. Não estou acostumado a me comportar desta forma ante pessoas respeitáveis ? explicou ao mesmo tempo em que se elevava do chão.

? Respeitável? Pensa que sou uma pessoa respeitável? ? Beatrice esboçou uma gargalhada tão intensa que ambos escutaram o eco da risada no bosque.

? Esse é o meu apreço por você desde que me salvou a vida. ? William se mantinha de pé a curta distância da mulher. Ela, ao ver que tinha a intenção de avançar para onde estava, começou a perambular de um lado para outro.

? Não me conhece, sua Excelência. Não me conhece e não pode fazer uma conjectura depois de um ato de piedade. Qualquer ser humano que tivesse passeado pelo bosque e encontrasse uma pessoa ferida gravemente teria feito o mesmo que eu. Isso não é ser respeitável e nem piedosa ? declarou mal-humorada.

? Pode pensar o que desejar, mas me sinto na obrigação de protegê-la igual você fez comigo. ? Seu tom de voz tinha recuperado a dureza, o julgamento e a irrevogabilidade próprias de seu título.

? Não lhe basta me dar abrigo? Não lhe parece que viver em uma casa que lhe pertence já é bastante amparo? ? Beatrice, até agora se movendo sem parar, girou-se para o homem e o olhou desafiante.

? Não! ? Exclamou o duque. ? Deixá-la em meio de um nada, desamparada e rodeada de lobos famintos não me parece uma opção acertada!

? Isso é o que lhe preocupa, sua Excelência? Que minha presença aqui lhe faça sentir-se um homem bondoso e que um dia monte em seu precioso cavalo, galope até a cabana e se encontre com um corpo esquartejado? ? Elevou tanto a voz que até ela mesma se surpreendeu do trato que estava oferecendo a um homem de sua classe.

? Preocupa-me, perturba-me, inquieta-me ? disse William caminhando para ela com passo firme e esquecendo a dor constante de sua perna ? que um dia apareça por estas bandas e veja que não fui capaz de cuidar de uma mulher que quase pereceu para me salvar a vida. Parece-lhe acertada minha conjectura, senhorita Brown?

Estavam tão próximos que se o homem estendesse sua mão útil poderia tocar as costas feminina, puxá-la para ele e abraçá-la com força. Porque podia ter sido um calhorda, um ser sem coração, sem humanidade, mas reconhecia quando uma pessoa precisava sentir o afeto de outra. Tinha acontecido a ele mesmo e acontecia nesse momento à senhorita Brown. Entretanto, William conhecia a razão de sua desprezível atitude. Agora lhe faltava averiguar o motivo que tinha aquela jovem para não querer saber nada do resto do mundo.

? Está bem ? disse Beatrice depois de um leve silêncio. ? Você quer pagar sua dívida e eu quero que me deixe viver em solidão. Então pagará sua dívida se me conceder esse desejo.

? Quer que ninguém a incomode? Essa é a sua petição? ? William franziu o cenho e apertou a mandíbula.

? Sim, isso é o que anseio ? afirmou em um tom mais tranquilo e olhando para o chão.

? Se ficar só e desprotegida é o que deseja, isso é o que obterá. Bom dia, senhorita Brown. ? Golpeou as botas pelos calcanhares, abaixou uns centímetros à cabeça e se dirigiu ao cavalo.

Tinha tanta raiva em seu corpo, encontrava-se tão alterado, que aquele estado de enfurecimento lhe deu a força necessária para agarrar as rédeas do cavalo e subir sem ajuda. Jogou uma última olhada à Beatrice e açulou com tanta intensidade o animal que avistou seu lar antes do esperado.


IX


? O senhor quer lhe ver na biblioteca. ? Mathias, o cavalariço correu para a casa, para explicar ao mordomo o que tinha acontecido depois da chegada do senhor, fazia poucos minutos.

? Como que não requereu os meus serviços para desmontar? ? Perguntou inquieto Brandon.

O que lhe contava o jovem estava deixando-o atônito. A forma habitual de atuar, era esperar ao senhor com a bengala na mão e que este se apoiasse na vara de madeira para subir com segurança as escadas da residência. Entretanto, o moço lhe informava que desceu ele mesmo do cavalo e que não precisou requerer o auxílio de nenhum criado, posto que acessasse ao interior da casa sem mostrar dor ao caminhar.

? Como lhe digo, senhor Stone. Quando agarrei as rédeas de Corsário, nosso duque me deixou muito claro que desejava vê-lo o antes possível nessa estadia ? explicava com certa excitação.

? Que comportamento diz que tinha nosso senhor? ? Hanna, muito atenta ao bate-papo, interrompeu-lhes.

? Encontrava-se muito agitado. Acredito que também bastante zangado ? respondeu Mathias.

? O que lhe terá acontecido? ? Disse a mulher ao mesmo tempo em que retomava ao trabalho.

? Está bem, pode voltar para as cavalariças ? indicou Brandon desejando saber o que rondava pela cabeça de sua esposa.

Tinha notado o leve sorriso da cozinheira e esperou com impaciência que o jovem se afastasse o suficiente, para que não pudesse escutar a conversação. Caminhou para ela, apoiou-se na mesa central e, depois de observá-la uns instantes cortando verduras, perguntou-lhe:

? O que ronda nessa sua cabeça?

? A mim? ? Respondeu abrindo os olhos como pratos e elevando as grisalhas sobrancelhas. ? Nada, não penso nada.

? Não minta, Hanna. Conheço cada gesto que faz quando sua mente não para de refletir. Vamos ver... o que você crê que pode ter perturbado a paz que o nosso senhor teve durante estes dias?

? Não me acusa sempre de ter uma percepção errônea do mundo? – Cruzou os braços e franziu o cenho.

? Quer que lhe suplique isso? Quer que me ajoelhe como o fiz para poder dormir de novo em nosso leito? ? O semblante de Brandon mostrava desconcerto e um pouco de tristeza.

? Se não fosse tão severo, você mesmo acharia a resposta ? indicou com tom suave e quente.

? Hanna, por favor...

? Se tem tanto interesse, explicarei-lhe isso. Mas não me acuse de ter alucinações ou pensar extravagâncias. ? Esperou que seu marido replicasse, mas ao vê-lo tão calado e confuso decidiu lhe expor a ideia que tinha já há uns dias, mais exatamente desde que o duque retornou do incidente, rondando em seu cérebro. ? Se retroceder um pouco no tempo dar-se-á conta de que lorde Rutland sempre levou o cabelo perfeitamente cortado. Em mais de uma ocasião comentou que não entendia como um homem podia pentear-se como uma mulher, não é? ? Brandon assentiu. ? E de repente um dia, disse ao seu ajudante de câmara que não lhe cortasse o cabelo e deixasse que seu rosto se cobrisse de escuridão. Lembra-te quando foi?

? Dois meses depois de celebrar o duelo ? respondeu com rapidez.

? Em efeito, e a razão foi...?

? Queria tampar a cicatriz. Imagino que pensou que desta forma deixariam de murmurar sobre o acontecido.

? Pois eu penso que se deveu à repulsão que encontrou nos rostos daquelas mulheres que antes o admiravam. Resultou-lhe muito duro passar de ser um homem elegante e formoso a uma espécie de monstro ao qual ninguém desejava contemplar.

? Nosso duque não pode ser tão banal, querida! ? Exclamou antes de esboçar uma gargalhada.

? Bom, essa é uma ideia muito típica de um homem, catalogar certos aspectos importantes como banais. Entretanto, se pensasse do ponto de vista de uma mulher, descobriria que não é tão desatinado. Pensa um pouco querido e una os acontecimentos. Por exemplo, desde quando nosso senhor necessitou os serviços de uma cortesã?

Brandon deixou de sorrir e franziu o cenho enquanto meditava a resposta. As hipóteses de Hanna pareciam ter um pouco de sentido. Embora ele conhecesse o homem desde que nasceu e jamais tivesse deduzido que a opinião que possuíam as mulheres sobre ele poderia lhe afetar tanto.

? Imagino que esse olhar é a resposta à minha pergunta ? manifestou a mulher depois de observar como seu marido entrecerrava os olhos.

? Só estou pensando...

? Pois segue pensando, meu esposo, segue pensando... ? agora era ela quem sorria ao ver o desconcerto que suas palavras ocasionavam ao seu cônjuge. Devia sentir-se confuso, posto que ele sempre se gabasse de conhecer à perfeição a sua Excelência, mas havia certos temas que lhe escapavam.

? O que tem a ver tudo isso com a atitude estranha que hoje teve sua Excelência?

? De verdade que não pode suspeitar o que ocorreu?

? Não, Hanna. Não sei o que pôde acontecer. O único que te posso dizer é que esta manhã decidiu visitar a moça para lhe perguntar por que recusou os convites que lhe ofereceram.

? Pois está muito claro, Brandon. Ela não quer vir a Haddon Hall e muito menos quando a tratou pior que a um cão pulguento ? indicou zangada.

? Como queria que a tratasse? Se por acaso não o recorda, ela se ofereceu como cortesã e depois do maldito serviço e de lhe pagar uma boa soma de moedas, o duque me informou que lhe negasse a entrada de novo.

? Mas lhe salvou a vida! ? Exclamou irada. ? Além disso, ele não sabe que ela... ? ficou em silêncio pensando se cabia a possibilidade de que o duque tivesse descoberto a verdade. Mas o negou com veemência, se seu sexto sentido não lhe desapontava, a jovem jamais lhe confessaria o acontecido àquela noite.

? Hanna! ? Chamou Brandon ao vê-la calada e refletindo algo que parecia entristecê-la.

? O jovem duque pediu, após retornar à casa que lhe recortassem a barba e que fizessem desaparecer o extenso cabelo, não é? ? Alterou a consciência para a direção que tinha tomado à conversação.

? Certo.

? E não perguntou a que se devia essa mudança de opinião? Porque o único que tinha acontecido foi que uma moça desconhecida o lavou, curou-lhe as feridas e, além disso, percorreu um comprido trajeto para nos informar sobre seu paradeiro. Sem esquecer que depois, o duque nos comentou que havia uma manada de lobos oculta no bosque e que era perigoso passear por ele.

? Certo, está me dizendo que a jovem pôs em perigo sua vida para salvar a de nosso senhor, mas isso não responde à pergunta de por que sua Excelência decidiu seguir os conselhos do doutor para se curar com prontidão, nem essa insistência em fazer desaparecer a espessa barba e cortar o cabelo ? explicou exasperado cruzando seus braços no peito.

? De verdade que não é capaz de entendê-lo? ? Perguntou elevando um pouco a voz ao sentir-se tão frustrada.

? Não, não sei aonde quer chegar com as hipóteses que me explica.

? OH, querido! Por que não abandona esses pensamentos repletos de lógica e deixa que se expresse seu coração? ? A mulher se aproximou de seu marido, apanhou o rosto deste entre suas mãos e o olhou com ternura.

? Meu trabalho exige utilizar à lógica. Possivelmente a desenvolvi mais do que outras pessoas.

? Deduzo então que não tem nem ideia do que poderia pedir o duque quando aparecer ante ele, não é?

? Pode pedir qualquer coisa...

? Pois eu vou me deixar levar pelo que me dita o coração, e este me diz que te ordenará realizar algo dessas coisas que fazem os homens poderosos para deixar a jovem vivendo na cabana o tempo que desejar. ? Aproximou-se dos lábios de seu marido e lhe deu um pequeno beijo.

? Isso que diz é uma loucura e segue sem me explicar por que retornou tão enfurecido após visitá-la.

? Querido meu, nosso duque está acostumado a ordenar e que todo mundo acate seus mandatos. Se essa jovem for tão teimosa como acredito que é, não terá aceitado a proposição que tinha pensado para ela. Daí esse mau humor. Agora, em vez de ficar estorvando em minha cozinha, vai e comprova se os pensamentos loucos de sua esposa não são certos. ? Apartou-se, dirigiu-se para os fogões e começou a mover a comida que serviria em breve.

Brandon a observou durante uns instantes, ao mesmo tempo em que meditava sobre as conclusões que lhe tinha dado, pareciam muito sensato, mas estava seguro de que não eram corretas. O duque deveria ter outro tipo de razões para mudar seu comportamento com tanta rapidez e, embora sua esposa expusesse como se fosse o mais normal do mundo, sua Excelência não podia sentir nada por uma mulher assim. Era certo que lhe devia a vida, mas podia recompensá-la com outra bolsa de moedas. Se a oferecesse ela a aceitaria de bom grado, igual fez na última vez. Jogou uma olhada às costas de Hanna e depois de respirar com intensidade dirigiu-se para a biblioteca, o lugar onde o duque lhe esperava.


William perambulava de um lado para outro sem notar a dor insistente da perna. Estava tão zangado, encontrava-se tão furioso, que nem a dor lhe impedia de mover-se como desejava. De repente, ao descobrir que as cortinas da janela estavam amarradas aos ganchos metálicos, aproximou-se dela e ficou observando o exterior. Até esse momento não o tinha apreciado como era devido, sempre lhe pareceu um lugar cheio de vida, aprazível e, é óbvio, seguro ante qualquer adversidade. Entretanto, depois da desafortunada visita à senhorita Brown, toda aquela percepção desapareceu para dar passo a uma menos serena. Elevou o olhar e o cravou no arvoredo que começava a finalizar no imenso jardim. Ali, ao amparo da abrupta natureza, encontrava-se um perigo importante, mais do que se imaginou alguma vez.

? Mulher teimosa! ? Exclamou com energia antes de girar-se sobre seus calcanhares e dirigir-se para as garrafas de bebidas colocadas sobre uma cômoda.

Pegou o copo, encheu-o de brandy e, justo quando iria dar o primeiro gole, sopesou se beber até cair era o mais acertado. Depois de meditá-lo depositou o copo sobre a superfície de madeira encerada e caminhou por volta de uma das poltronas, não seria apropriado que ordenasse uma coisa tão importante ao Brandon em um estado péssimo de embriaguez. Devia mostrar serenidade, retidão e solidez porque do contrário seu mandato seria desprezado.

Levou a mão ao bolso de seu colete e tirou o relógio. Tinha entrado na biblioteca há quase quinze minutos e o mordomo ainda não tinha feito ato de sua presença. Ficou de pé de novo e, franzindo o cenho, deu vários passos para a porta com a intenção de ir buscá-lo ele mesmo. Antes de aproximar-se da saída, Brandon pedia permissão para entrar.

? Excelência ? disse o homem ao mesmo tempo em que realizava uma ligeira inclinação. ? Desejava ver-me?

? Solicitei sua assistência faz quinze minutos, a que se deve a demora? ? Perguntou zangado.

? Minhas desculpas, meu senhor. Houve um problema na cozinha e tive que resolvê-lo sem demora ? explicou.

? Aconteceu algo à senhora Stone? ? Perguntou um pouco mais acalmado.

Hanna se tinha convertido, com o passar dos anos, em uma mãe para ele. Desde que tinha memória recordava que os beijos, os abraços e os consolos que necessitou em sua infância sempre os ofereceram ela. A mulher também evitou em várias ocasiões que seu pai lhe pusesse o traseiro avermelhado depois de fazer, tanto ele como Lausson, uma ou outra traquinagem.

? O mesmo de sempre, meu senhor. Discutimos se deve acrescentar mais verduras ao menu do dia ? indicou.

Esperava que aquela desculpa lhe contentasse e deixasse de lhe interrogar por que se fosse assim, ele não poderia continuar mentindo. Ao ver que os ombros do duque se relaxavam e que mostrava um leve sorriso na comissura dos lábios, Brandon inspirou profundamente e deu graças a Deus por sua benevolência.

? Hoje parece que o sexo feminino está inquieto... ? comentou enquanto retornava à poltrona para sentar-se. Nesse instante, ao entender que não era o único homem que tinha sido atacado esse dia por uma mulher, começou a relaxar-se e a perceber, com mais intensidade, as cãibras terríveis que emitia a perna machucada.

? Como diz? ? Quis saber Brandon ao não entender muito bem o comentário do duque.

? Nada. Foi só uma consideração. ? Reclinou-se no assento e apertou os dentes ao notar aquela incessante dor.

? Posso lhe perguntar, sua Excelência, o que deseja? ? O mordomo ao observar como a testa de seu senhor se enrugava com força, deduziu que estava padecendo de suas terríveis dores.

Sorriu sutilmente ao pensar que Hanna se equivocou com suas especulações. Sem lugar a dúvidas o duque demandava sua presença porque precisava ser atendido por sua dor.

? Quero que faça chamar o senhor Gibbs, que venha à Haddon Hall o antes possível ? apontou com calma ao mesmo tempo em que movia devagar a perna machucada.

? O senhor Gibbs? ? Perguntou surpreso antes de morder o lábio por sua falta. Não era ele quem podia exigir explicações.

? Sim ? respondeu William evitando a inquietação do mordomo.

Sabia que chamar seu administrador causaria alguma incerteza sobre o serviço. A última vez que o fez foi para ceder à sua mãe a residência que tanto ansiava e lhe oferecer a soma que demandava depois da morte de seu pai. Entretanto, desta vez era diferente. Um dos bens obtidos por herança iria às mãos de uma mulher bondosa que sim o merecia, uma mulher que lhe tinha salvado a vida, não como no caso de sua mãe, destruido-a. ? Preciso falar com ele o antes possível, tenho que fazer constar certas mudanças legais... ? girou-se para o fogo, contemplou-o durante uns instantes e ao dar-se conta de que Brandon seguia na estadia moveu com suavidade a cabeça para ele: ? Acontece algo?

? Não, senhor, só me preocupo com você. Esperava que sua chamada se devesse ao interminável padecimento que sofre em sua perna do tropeção. Conforme fui informado pelo criado, você mesmo desceu do cavalo depois do passeio que realizou pelo bosque ? disse entre desculpas. Esperava que o duque não fosse capaz de perceber a insistência para averiguar o que pretendia.

? Já sabe que fui visitar a senhorita Brown ? comentou William entreabrindo os olhos.

? Em efeito, e conseguiu que finalmente aceite sua proposição? ? Insistiu sem mostrar em seu rosto a importância que lhe provocava conhecer a verdade. Se este dizia que não, ao final teria que humilhar-se de novo ante sua esposa porque, outra vez, estaria certa.

? Não, não a aceitou. Decidiu comprazer meu desejo de responder à sua piedade ? falou com raiva – rogando-me que a deixe desamparada naquele lugar miserável.

? Quer viver em uma propriedade que não lhe pertence? ? Soltou sem pensar.

? A questão não é se deseja viver na cabana de caça, mas sim o que pretende a senhorita Brown é lutar dia a dia só, ante a adversidade e periculosidade de um lugar tão inóspito ? explicou apertando a mandíbula.

? Não lhe ofereceu uma bolsa de moedas? Possivelmente isso lhe tivesse mudado...

? Senhor Stone! ? Gritou William zangado. ? Acredita que a mulher que pôs em perigo sua vida para salvar a minha merece esse trato tão depreciativo?

? Sinto muito, Excelência ? manifestou abaixando a cabeça e cravando o olhar no chão. ? Desculpe minhas palavras, mas tem que compreender que se a senhorita Brown tiver decidido alojar-se em um lugar repleto de perigos e esta vontade lhe causa inquietação, eu devo cuidar da sua saúde.

? Esquecerei seu comentário porque tanto você como a senhora Stone são as únicas pessoas às quais considero família. Além disso, entendo que essa atitude inapropriada é como bem diz, para seguir me protegendo, mas nunca volte a se intrometer neste tema. O que a senhorita Brown e eu combinamos se cumprirá.

? Sim, senhor. É óbvio. Agora mesmo direi a um dos criados que se dirija até o lar do senhor Gibbs e lhe faça saber que você deseja vê-lo o antes possível. ? Brandon jogava uns passos para trás sem levantar a cabeça. Não parava de meditar sobre o desejo do duque, a amalucada hipótese de sua esposa e o que esta riria quando lhe narrasse à conversação.

? Necessito de uma coisa mais... ? assinalou antes que o ancião partisse. Brandon elevou o semblante e o observou com atenção. O jovem olhava para as intensas chamas da fogueira. Contemplava-o com tanta ferocidade que podia ver de onde estava como o fogo se projetava nos seus olhos. ? De todos os que trabalham para mim, ? prosseguiu em tom firme ? há alguém que tenha sua mais absoluta confiança? ? Ante o desconcerto que mostrou o criado, William continuou: ? Tenho mil dúvidas sobre a senhorita Brown e necessito que alguém me ofereça informações sobre ela.

? Mas, milord, por onde começaremos? ? Brandon abriu tanto os olhos que quase saltaram do rosto. O que estava pedindo o duque era uma tarefa impossível de concluir. De onde procedia? Que lugares visitou antes de refugiar-se na cabana?

Então sentiu que o coração paralisava. Possivelmente as únicas pessoas que sabiam algo da jovem eram sua esposa e ele, embora, como era lógico, evitaria lhe informar sobre isso. Entretanto, Hanna tinha descoberto algo que não cessava de lhe rondar a cabeça e, visto o pedido do duque, talvez indagasse mais sobre isso.

? Brandon! ? Exclamou William ao observar a palidez do rosto deste.

? Sinto muito, sua Excelência, estava meditando sobre a pergunta que me realizou ? mentiu e voltou a pedir piedade a Deus.

? E? ? Insistiu.

? Neste momento a única pessoa em que confio, além de em minha querida esposa, é no Mathias, o cavalariço. Sei que é muito jovem e talvez não consiga abandonar as cavalariças para lhe servir no interior da casa, mas é mais fiel do que um cão e mais calado que um mudo ? disse com solene segurança.

? Bom, pois pedirá ao jovem que averigue tudo o que possa sobre o sobrenome Brown. Se minhas conjecturas não forem errôneas, não deveria viver muito longe, do contrário não conheceria este lugar.

? Pensou meu senhor, que poderia não ser seu verdadeiro sobrenome? Parece-me estranho que uma jovem abandone seu lar, deseje apartar-se de todo ser humano, dita viver sozinha o resto de sua vida e responda com sinceridade ao lhe perguntar por seu nome. ? Brandon não queria que o duque se frustrasse se não achasse o que procurava. Se lhe aturdia tanto uma mera visita a jovem, o que aconteceria se o que encontrasse não fosse de seu agrado?

? Que o jovem se dirija para Rowsley, avise ao senhor Gibbs e comece a indagação entre os aldeãos. Se minha intuição não me falhar, embora a senhorita Brown não seja daí, tem que conhecer alguém desse lugar. De que outra forma ela adquiriria os animais que cuida e seu alimento? ? Explicou com aparência firme. Entretanto, a conjetura do ancião não cessava de lhe golpear a cabeça.

Era certo que, quando lhe perguntou por seu nome, Beatrice soltou-o sem pensar, mas seu sobrenome o disse com certo temor. Caberia a possibilidade de ter sido enganado? E se era assim, por quê? Aqueles pensamentos só aumentavam sua ânsia de averiguar quem era aquela jovem e por que, de tudo o que pôde lhe pedir, rogou-lhe ficar sozinha.

? Se sua Excelência não tiver nada mais que me dizer, agora mesmo falarei com o criado para que comece o antes possível com seu novo trabalho.

? Deixe-lhe bem claro que não deve falar com ninguém disto ? acrescentou.

? É óbvio. ? Depois de despedir-se como era devido, Brandon saiu da biblioteca e se dirigiu com passo firme para a cozinha.

Deveria explicar à Hanna o acontecido. Deixaria que se vangloriasse de seu triunfo e, depois do bate-papo que obteria sobre quão inteligente era e o pouco que a valorava, pediria-lhe que recordasse com exatidão aquilo que tanto lhe chamou a atenção na jovem. Possivelmente essa era a pista que deveriam seguir porque, se não estivesse equivocado, o sobrenome, o ter estado com outros homens, o proceder de uma família de camponeses e tudo aquilo que relatou à sua benevolente esposa era mentira.


X


O frio era tão intenso que atravessava toda a pele até alcançar os ossos. Beatrice tentou avivar um pouco o fogo, mas sem troncos para jogar sobre as brasas, não podia conseguir uma grande proeza. Abraçando-se com força e esfregando os braços de cima a baixo, aventurou-se a abrir a porta para confirmar que no galpão de lenha não havia nenhum triste ramo para lançar à chaminé. Em efeito, sobre o chão não havia nada. Tinha gasto tudo o que compilou até a volta dos lobos, e agora lhe dava um medo atroz sair como outras vezes a procurar alguma árvore caída para poder arrastar até ali. Era perigoso. Eles a vigiavam. Cada vez que saía, cada vez que caminhava ao redor da cerca podia sentir aqueles olhos diabólicos cravando-se em seu corpo. Eram incansáveis, mais do que tinha imaginado. Inocentemente tinha pensado que, assim como na primeira vez, voltariam a partir. Mas esta ocasião era diferente, agora tinham comida perto, só deviam esperar o momento apropriado para atacar e encher seus estômagos.

Zangada, fechou a porta e se deitou sobre o leito. O único a fazer até que chegasse o novo dia era deitar-se e cobrir-se com as colchas compradas no povoado. Agasalhada com aqueles objetos, acomodou a cabeça no almofadão e olhou ao teto. Estava cansada de lutar, de sobreviver dia após dia. O que em um princípio lhe pareceu a melhor opção para aguentar aquele desastroso sofrimento, nesses momentos não a convencia. Achava-se no meio do nada com comida suficiente para alimentar-se, mas impossível de cozinhar pela falta de fogo. Levava dias roendo verduras recolhidas da terra, tentando esquentar caldos que não terminavam de ferver, e sentia cada vez mais frio.

Levantou as mãos para seu rosto e observou que já não eram de cor rosada, começavam a ser malvas e isso não era bom sinal. Colocou-as sob as mantas e as esfregou com os lençóis para fazê-las entrar em calor, mas apesar do esforço mal notou melhoria. Resignada pelo terrível final que começava a chegar, girou-se para a direita. Dali podia contemplar a brilhante e reluzente lua. Aquela noite era a segunda vez que a via desde a partida do duque zangado e aceitando sua única condição. Beatrice suspirou profundamente ao recordá-lo. Não sentia compaixão nem afeto por esse homem, mas pensava nele de vez em quando e como em certos momentos lhe pareceu perceber que desejava aproximar-se e abraçá-la. Teria gostado se o fizesse. Apesar da fúria que a invadia ao rememorar a atitude autocrata mantinha quando seu pai lhe pediu ajuda, teria aceitado seu abraço de bom grado. Fazia muito tempo que ninguém a consolava, fazia muito tempo que não apoiava sua cabeça no ombro de uma pessoa e se consolava entre lágrimas. Entretanto tinha tomado uma decisão e se ele a houvesse visto débil ou aflita não lhe teria concedido seu desejo.

Voltou a mover-se na cama de armar, virou-se para o outro lado, cobriu-se até a cabeça e tentou dormir. Precisava descansar, precisava afastar-se do lugar onde vivia embora fosse somente em sonhos.

Beatrice sonhava que estava junto à sua mãe, que tagarelava sem cessar sobre a próxima celebração a que deviriam assistir. Seu tom era doce, quente, porque sabia que ela não aceitaria de bom agrado em assistir de novo a um evento cheio de homens pomposos e de mulheres orgulhosas pelas joias penduradas em seus pescoços. Zangada, depositou o bastidor sobre a cadeira que tinha junto a ela e se levantou do assento.

? Não pode me obrigar a isso, mãe! ? Bramou irada.

? Não é uma obrigação, é um acontecimento social ao qual deve assistir ? indicava com calma.

? Acaso essa descrição não é o mesmo que me forçar a realizar algo que não desejo? ? Arqueou as sobrancelhas e colocou as mãos na cintura.

? Eu não observo tal apreciação, senhorita, e em seu lugar sentiria-me adulada de ser convidada por um homem tão...

Um horripilante ruído a sobressaltou, despertando-a bruscamente do sonho. Apartou os lençóis e caminhou para a janela para tentar descobrir o que ocorria no exterior.

? Meu Deus! ? Gritou com força ao observar a cena mostrada na escuridão noturna. Sem pensar duas vezes correu para a porta e agarrou com força o pau que pendurava sobre a parede de pedra. ? Malditos sejam! Deixem-nos em paz! ? Continuou vociferando.

Os alaridos de seus animais eram insanos. Beatrice, ignorando o medo que a invadia, avançou sem titubear para o pequeno terreno onde se encontravam as ovelhas, as galinhas e os quatro porcos. Estes gritavam de terror. Uns tentavam fugir das garras de seus assassinos, outros jaziam no chão agonizando. Elevou a vara e começou a atirar golpes aos causadores daquele massacre, mas nenhum deles se voltou para defender-se. Parecia que não lhes importava sua presença, como se seus ataques não fossem perigosos.

Enquanto tentava que parassem de aniquilar tudo, notou o escorregar de lágrimas por suas bochechas e o som de seus próprios gritos retumbando em seus ouvidos. Pouco a pouco suas forças foram diminuindo, possivelmente se reduziram com mais rapidez quando observou atônita e impotente como os lobos apertavam com força suas mandíbulas nos pescoços dos desprotegidos animais e os arrastavam para o interior do bosque.

Em estado de choque foi caminhando para trás. Queria resguardar-se na cabana porque, até o momento, eles tinham decidido não a atacar. Sem soltar o pau girou-se com brutalidade e subiu os quatro degraus de pedra que a conduziriam até sua guarida. Estava a ponto de alcançar o objetivo quando sentiu a espetada de umas adagas rasgando a carne de sua pantorrilha. Ao mover a cabeça para a direção de onde procedia a imensa dor observou uns olhos escuros e uma pelagem cinza. Era o lobo que a espreitava, que a atemorizava com seus intensos uivos.

Sem pensar elevou o pau e lhe golpeou com força no focinho. Os dentes do animal se cravaram ainda mais em sua perna, fazendo-a gritar com tanta força que ficou exausta. A besta, ao sentir o dano, abriu a boca e a soltou, momento que aproveitou para correr para o interior da casa, fechar a porta e apoiar as costas sobre ela. Escutou o caminhar da fera. Rondava pelos arredores da cabana tentando encontrar um oco para acessar e finalizar seu propósito. Entretanto, as janelas estavam seladas, salvo se saltasse e rompesse o cristal, a atroz besta não poderia acessar.

Conforme passava o tempo e compreendia que estava a salvo, suas forças foram se desvanecendo e começou a escorregar pela folha de madeira até seu traseiro se apoiar no chão. Seus olhos começaram a oferecer uma imagem distorcida da cozinha. Sentia uma terrível queimação na perna e notava o palpitar de seu coração nela. Tentou levantar-se. Tentou fazê-lo. Mas foi impossível. Estava débil, ferida e sem vitalidade. Tinha chegado seu fim. Percebia como a vida partia em cada gota de sangue que emanava de sua perna. Quis voltar a chorar, embora não lhe brotassem mais lágrimas. Só pôde fechar os olhos e deixar chegar seu último suspiro.


William mal tinha conseguido dormir. Cada vez que o tentava, um horrível pesadelo o fazia abrir de novo os olhos. Esgotado por lutar contra sua própria vontade, levantou-se da cama e se colocou sobre a poltrona que se encontrava ao lado desta. Não entendia com claridade seu pesadelo. Mal tinha inquietações em sua vida cotidiana para sentir-se daquela forma. O mais incômodo para ele tinha sido visitar todos os que apareciam em sua casa, momento que aproveitava para indagar sobre a senhorita Brown. Embora nunca achasse a resposta que desejava. Não entendia como uma tarefa tão singela estava se convertendo em um tremendo calvário.

Durante as semanas seguintes à conversação com a moça, o jovem a quem Brandon tinha encomendado a tarefa de procurar algum dado sobre Beatrice, não encontrou nada salvo a um casal de anciões que se apelidava igual e, que conforme contaram ao criado, não tinham podido engendrar nenhum descendente para continuar com seu legado. O duque sopesou, depois de obter aquela informação, que a ideia do engano não era tão descabelada, mas a descartava cada vez que pensava nela, que propósito tinha para lhe mentir? Ela não sabia quem era até que ele mesmo o comentou. Aquilo não tinha sentido, a menos que fosse uma criminosa fugindo de uma sentença proferida e pensasse que ele, ao ter um importante cargo da nobreza, entregá-la-ia. Mas também rechaçou essa ideia porque se a jovem tivesse cometido um crime e se escondesse no lugar mais recôndito do planeta para viver em liberdade, não teria arriscado sua vida para salvar a de um desconhecido.

Levou a mão ao queixo e acariciou o espesso pêlo que tinha deixado crescer de novo após compreender que ninguém mais voltaria a observá-lo com normalidade. Ninguém exceto ela.

Aturdido por seu inexplicável desassossego, levantou-se do assento e se dirigiu para o balcão. Apesar do tempo gélido, abriu as janelas e caminhou pelo terraço. O amanhecer oferecia uma bonita e estranha luz que, ao iluminar os hectares do arvoredo onde habitava a moça, davam-lhe um matiz menos sinistro. Mas o perigo espreitava constantemente, sobretudo aquela noite. Tinha ouvido-os durante as horas nas quais esteve acordado e em mais de uma ocasião sentiu medo, apesar de encontrar-se resguardado na mansão.

No silêncio que oferecia a chegada do crepúsculo, uns incessantes uivos e gemidos retumbaram em sua habitação como se estes se aproximassem de sua janela. Estava seguro que tal revôo se devia a que a manada tinha estado caçando. Então, como se sua mente lhe mostrasse a imagem de um quebra-cabeça completo, correu para sua habitação, abriu a porta e começou a gritar o nome de seu mordomo.

? Sim, sua Excelência? ? Brandon aparecia em meio a se vestir. Sua respiração era agitada, as mãos trementes não acertavam colocar corretamente na casa os botões de seu uniforme.

? Faça com que preparem o antes possível uma carruagem! Quero o cavalariço como cocheiro e a este na parte de trás com uma arma carregada. Diga-lhes que partiremos para o refúgio de caça assim que estejam preparados.

? O que ocorre, milord? ? O senhor Stone não saía de seu assombro. A princípio acreditou que o duque se levantara no meio de um sonho alterado, mas ao observá-lo tão lúcido, soube que aquilo não era a consequência de um pesadelo.

? Faça o que te ordeno! – Gritou com tanto ímpeto que o eco de sua voz se escutou em todos os corredores da mansão.

? Agora mesmo, meu senhor. Digo ao seu ajudante de câmara que vá à sua habitação?

? Está demorando muito! ? Clamou ao mesmo tempo em que retornava ao seu dormitório e tentava tirar-se ele mesmo a camisola com o qual dormia.

Como não o tinha pensado antes? Como não tinha sido capaz de descobrir o que seu interior lhe indicava? Irado, golpeou com força o colchão de plumas ao imaginar que, se suas conjeturas fossem certas, já seria muito tarde. Nesse momento, depois de atirar vários murros ao inerte colchão, levantou seu olhar para o teto e fez algo que não tinha feito desde menino: rezar.

Tal como tinha desejado, a carruagem lhe esperava na entrada da mansão. Desceu os degraus sem a ajuda de Brandon, que corria atrás dele se por acaso em algum momento pedisse sua ajuda. Mas era tanta a ira que movia seu corpo, tanto desespero por averiguar o que se temia, que se introduziu no interior do veículo de um salto. Apoiou a cabeça no respaldo acolchoado e observou a paisagem que percorriam a grande velocidade. Tinha sido um acerto colocar o jovem Mathias como condutor posto que, ao conhecer as possibilidades dos cavalos que cuidava, tinha selecionado os mais rápidos e graças a isso não demorou muito em divisar os arredores da cabana. Ao aproximar-se sentiu como sua garganta o sufocava e seu coração desacelerava incapaz de afastar o temor de sua mente. De repente escutou um som, e o coche parou abruptamente.

? Deus santo! ? Ouviu o cocheiro exclamar. — Isto foi obra do próprio diabo!

William saiu apavorado do veículo. Assim que dirigiu o olhar para o cenário que seus homens contemplavam atônitos, deixou de respirar. A cerca estava destroçada, os fracos arames que rodeavam a suja cabana atirados no chão, dobrados e quebrados. Todo o terreno que rodeava a cabana estava cheio de partes de carne e sangue, muito sangue. Avançou um pouco mais sentindo ao seu lado o criado e o cocheiro, o qual sujeitava sua arma com firmeza.

? Que diabos aconteceu aqui? ? Perguntou estupefato um deles.

William não distinguiu quem fez a pergunta, sua mente se concentrava em averiguar qual desses pedaços podia ser uma parte de Beatrice. Continuou avançando, pisando em plumas ensanguentadas, partes de pele e ossos cobertos de tendões mordidos. Não havia vida naquele lugar. O silêncio indicava que a morte tinha devastado qualquer possível fôlego. Fixou a vista na porta da entrada. Estava fechada. Teria se resguardado antes do ataque? Poderia estar sã e salva? Ansioso por conhecer as respostas, deixou para trás os dois homens e se aproximou da entrada. Ao estar tão perto contemplou o desenho que tinham deixado umas ferozes garras. Não soube que seu corpo permanecia encolhido e que tremia até dirigiu sua mão para a porta e empurrá-la. Antes que esta tocasse a danificada madeira, entrou-lhe a dúvida e se encheu de desespero. Se na casa se encontrava a mesma cena que havia no exterior, não se recuperaria jamais do acontecido, posto que o único culpado daquele horror tivesse sido ele.

? Sua Excelência, deixe que seja eu quem a abra. Se dentro houver algum desses mal nacidos que massacraram estes pobres animais, encherei-o de chumbo ? comentou com firmeza o cocheiro.

William queria negar-se, mas não pôde. O homem tinha razão. Como lutaria contra a ferocidade de um lobo com uma só mão? Resignado por sua incapacidade, permaneceu imóvel enquanto observava como o servente direcionava sua arma para a porta e tentava abri-la.

? Está pesada! ? Gritou após vários intentos falhos. ? Mathias, olhe por essa janela para ver se consegue descobrir o que me impede entrar ? ordenou ao jovem que não cessava de olhar para trás e sussurrar algo sobre o mal e as atrocidades provocadas pelo demônio.

O jovem se aproximou do cristal com passo lento e inseguro olhou através dele dobrando a cabeça de um lado para o outro procurando um ângulo com maior visibilidade. Finalmente apoiou sua mão direita na testa como se fosse a viseira de uma boina e gritou:

? É algo pequeno! Está sobre o chão. Acredito que... Deus santo bendito, aí há alguém!

? Abre-a! ? Exigiu William mais assustado que nunca.

? Terei que golpear com força e poderia... ? começou a explicar o homem.

? Abre-a! ? repetiu com mais vigor ainda.

O cocheiro jogou uns passos para trás para tomar impulso e colocando seu ombro para frente, empurrou a porta com toda a energia que tinha. Não foi muito o que obteve, mas o suficiente para acessar o interior.

? É uma mulher! – Exclamou. ? É uma mulher! ? Repetiu agitado. ? Graças a Deus, parece que ainda respira!

William não pôde ficar ali fora observando. Caminhou para o interior da casa e quando contemplou Beatrice nos braços do homem, quis lançar-se sobre ela e abraçá-la ele mesmo.

O rosto da moça estava pálido e os braços lhe penduravam frouxos para o chão, o sangue, de cor escura após secar-se, cobria o vestido e as pernas. Era a viva imagem da destruição que ocasionava a morte em um ser humano.

? Deite-a no interior da carruagem! ? Gritou o duque. ? Mathias, crê que só um cavalo pode lavar sem dificuldade o coche? ? O moço afirmou com a cabeça, o pânico que o sacudia lhe impedia de articular uma só palavra. ? Pois desengancha o mais rápido que puder e galopa até Rowsley, necessito que leve o médico a Haddon Hall.

Enquanto o jovem soltava o corcel selecionado, Beatrice era depositada com cuidado sobre o sofá direito da carruagem, na posição adequada para que William a auxiliasse em caso de necessidade. Fechou-a após meter-se no interior e a observou desejando que nesse instante abrisse seus olhos e descobrisse estar à salva, que ele a protegeria, mas o suave e débil respirar lhe indicou que não podiam atrasar-se mais tempo. Levou-se a mão para o botão da capa, tirou-a e cobriu o corpo ferido para lhe dar calor. Ao notar que a carruagem começava a mover-se, sentou-se no chão e foi apartando o cabelo alvoroçado da jovem. Queria lhe ver o rosto, queria observar se continuava respirando, queria que seguisse com vida para ver de novo sua teimosia e determinação.

De repente escutou o relinchar de um dos cavalos e um rápido galope. O criado se afastava para procurar o doutor.


CONTINUA

A vida libertina do futuro duque de Rutland finaliza após bater-se em um duelo de honra com um marido enganado. Envergonhado pelas sequelas do dito desafio, decide abandonar Londres e partir para Haddon Hall, o aprazível lugar onde cresceu, albergando a esperança de encontrar a paz que tanto lhe urge obter, entretanto, a chegada de uma notícia inesperada altera essa suposta calma e provoca que o duque se embebede. Face aos conselhos de seus próximos decide montar a cavalo e galopar por seus domínios. Quando abre os olhos depois de uma desafortunada queda, descobre que uma mulher o esteve cuidando em algum lugar afastado e escondido de suas terras. Seu nome, Beatrice, e seu único desejo, viver em solidão o resto de sua vida.
Querido(a) leitor(a), quero explicar que o duque de Rutland existe, embora acredite que nenhum se chamou William até agora. Também quero comentar que Haddon Hall é real e que se encontra no condado de Derbyshire. Todo o resto é produto da minha imaginação. Esclarecido isto, espero que desfrute com a leitura que guardam estas páginas.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/1_A_SOLID_O_DO_DUQUE.jpg

 

Londres, 1865. Clube de cavalheiros Reform.

? Desafio-o, senhor!

Com essas palavras, um homem de baixa estatura, com um pouco de peso a mais e vestido com um imaculado traje cinza, atirou uma luva sobre a mesa em que se jogava uma partida de cartas. William arqueou as escuras sobrancelhas e olhou a quem o desafiava com certa incredulidade. Deu-se conta o pobre infeliz que se se levantasse de seu assento o superaria em altura um pouco mais de 30 centímetros?

? Pela honra de quem? ? Perguntou William redirecionando seus olhos para as cartas e apertando o charuto em seus lábios. Estavam sendo tão habituais esses desafios que já não lhe produziam alteração alguma.

? Pela honra de minha esposa, lady Juliette Blatte ? respondeu o homem cheio de cólera ao ver que o aristocrata não parecia se afetar pelo que ele esperava morrer de vergonha e de dor.

? Juliette?

A familiaridade com a qual o futuro duque de Rutland falou de sua mulher fez com que o pequeno corpo vibrasse de desespero e fúria. William, sem apartar a vista das cartas que tinha em sua mão esquerda, franziu o cenho e levou a outra palma para a escassa barba que cobria seu rosto.

? Disse-me que enviuvou faz algo mais de um ano ? continuou com voz serena e sem interesse por continuar a conversação.

? Acusa-a também de mentirosa? ? As bochechas do desonrado se encheram de um vermelho intenso.

O homem inclusive se elevou nas pontas dos pés para tentar, em vão, captar a atenção do amante de sua esposa. Entretanto, ninguém fez nada, nem William nem os outros jogadores. Se a cólera que o tinha conduzido até ali era inimaginável, observar que o próximo duque de Rutland continuava com sua pose de tranquilidade enquanto alegava que se deitou com sua esposa por ter sido enganado, provocou-lhe tal demência que esteve a ponto de equilibrar-se sobre este e lhe golpear com força.

? Acredito que sua querida Juliette mentiu a ambos ? disse William após manter-se em silêncio uns minutos. ? O duelo deveria se dirigir a ela. Mas se me permite um conselho, antes de enfrentar uma possível morte, agarraria sua esposa e lhe daria uns bons açoites com o cinturão. Não se pode enganar com falácias a homens como nós, sobretudo porque nestes momentos cavalheiro, encontro-me tremendamente aflito... ? comentou com zombaria e sem subir nenhuma nota em seu tom de voz.

Tomou outra intensa imersão do charuto e depois de jogar o ar esperou que o desventurado homem fosse sensato e partisse com a cabeça baixa, mas respirando.

? Amanhã, em Hyde Park, à alvorada. Levarei as minhas testemunhas e um médico, você apareça com quem desejar. ? O homem golpeou suas botas, girou-se e inclinando-se ligeiramente se despediu dos pressente antes de afastar-se.

Durante um bom momento o sigilo foi reinante naquele lugar. William seguia concentrado na mão que estava a ponto de ganhar. Sorria meio de lado e a fumaça do charuto saía da boca como se fossem as chaminés que tinha sobre o telhado de seu lar.

Ninguém queria fazer alusão à cena vivida, talvez porque fosse muito habitual que às sextas-feiras daquele mês vários maridos indignados irromperam no clube ao saber da presença do futuro duque no salão.

? Senhores..., ? disse enfim após depositar as cartas sobre a mesa e descobrir a última jogada ? já podem ir despedindo-se de seu dinheiro.

? É incrível! ? Exclamou Federith Cooper, um dos melhores amigos de William e futuro barão de Sheiton. ? Como pode ter tanta sorte?

? Nosso querido Manners nos depena os bolsos e seduz desoladas esposas, acaso estamos loucos por seguir mantendo sua amizade? ? Roger Bennett, quem algum dia chegaria a possuir o título de marquês de Riderland, falou com seu típico tom sarcástico ao mesmo tempo em que se reclinava no assento e tomava um sorvo de brandy.

? A sorte sempre está comigo, ela é minha única esposa ? respondeu William colocando as moedas em seu lado da mesa e sorrindo de satisfação. Pouco depois os outros jogadores partiram deixando os três cavalheiros na habitação.

? Entretanto, meu amigo, alguma vez mudará e serei eu quem mostrará um sorriso descarado em meu rosto ? continuou zombador Roger.

? Não pode zombar assim de um homem que amanhã se debaterá entre a vida ou a morte. Se for meu amigo desejará que a sorte permaneça no mínimo umas horas mais ao meu lado ? falou com dissimulação e sem deixar de mostrar no semblante uma atitude cômica.

William se levantou do assento e caminhou para o cabideiro para pegar o chapéu e a capa. Federith e Roger o imitaram. Em umas horas voltariam a serem testemunhas de outra inevitável loucura. Quase não tinham se recuperado da exaltação que lhes tinha provocado o último duelo e já sofriam a agonia do seguinte.

? Essa mulher... ? disse William pensativo enquanto caminhavam pela tranquila rua que lhe conduziria até Southwark.

? Quem, lady Blatte? ? Inquiriu Federith levantando a bengala até conseguir tocar a aba de seu chapéu.

? Juro-lhes que me disse que não estava casada. O perguntei mais de um milhão de vezes... ? respirou com profundidade e logo jogou o ar devagar. ? Cada vez que a visitei olhei-a nos olhos e lhe perguntei por seu marido. Ela respondia o mesmo: «Sua Excelência tem má memória, sou viúva» ? comentou com desdém. Logo levantou o olhar do chão e exclamou: ? Mulheres!

? Sim, Rutland, mulheres. ? Roger interveio com voz zombadora. ? Mas está falando de uma mulher que nasceu com um corpo digno de um duelo.

? Nisso tem razão. Lady Blatte é uma deusa ? comentou William com palavras cheias de luxúria. ? Possui uns seios lindos... suas coxas sempre estão quentes e quando me introduzia em seu interior...

? Basta! ? Interrompeu-lhe Federith. ? Acaso não recorda o que significa ser um cavalheiro?

? Não se zangue, Federith. Deve compreender que preciso recordar como era o corpo da mulher pela qual amanhã estarei a ponto de morrer... ? comentou entre risadas. Os olhos negros de William se elevaram para olhar o céu. Era uma noite com muitas estrelas, pouco habitual em Londres.

? Falando de morrer... escutou o trágico final da filha do barão de Montblanc? ? Perguntou-lhes Roger fazendo com que parassem bruscamente na metade da caminhada. Ao não responder nenhum dos acompanhantes, prosseguiu. ? Ao final a moça decidiu pôr fim à sua tormentosa vida. Esta manhã era o único tema de conversação que se escutava em todo Richmond.

? O barão não foi há alguns dias à sua casa para uma auditoria? ? Federith idolatrava seu amigo, posto que ambos tivessem crescido juntos, mas utilizava esse privilégio para recriminar sua Excelência por não ser capaz de adotar a posição que devia na sociedade. Aos seus trinta anos continuava sendo o mesmo cavalheiro libertino, insensato, despreocupado e farrista que foi com vinte.

? Sim ? respondeu com tom firme. Abaixou levemente a cabeça e continuou o passeio. A notícia o surpreendeu e, embora jamais o tivesse admitido, sentiu dor pela família. Tinham padecido bastante com o ocorrido à jovem e talvez, com a morte desta, descansariam enfim em paz.

? O barão foi visitar-te? ? Roger avançou atrás de William e arqueou as sobrancelhas em sinal de desconcerto. ? O que desejava de ti esse pobre homem?

? Pensou que se utilizasse minha posição conseguiria esclarecer o caso de sua filha... ? respondeu sem querer mostrar aquele sentimento de culpa que, por outro lado, não devia sentir.

? O que pretendia? ? Roger, animado pela curiosidade, seguiu com seu interrogatório.

? Como já sabem, a filha do barão tinha que ter sido apresentada em sociedade há dois anos, quando ela cumpriu os dezoito, mas a jovem sempre estava doente para a temporada social.

? Conforme tenho entendido, tais enfermidades eram inventadas. Comenta-se que a moça não desejava vir à Londres porque desfrutava de uma vida tranquila e aprazível no campo ? acrescentou Federith.

? Quando foi anunciado como merecia ? continuou William ? na última festa que nossa adorável senhora Baithlarin deu em sua residência em Marylebone, nenhum homem conseguiu fazer a jovem se apaixonar. Conforme escutei foi uma das mulheres mais belas da temporada. Mas, apesar da grande quantidade de propostas matrimoniais, ela as rechaçou com veemência. O barão e a baronesa decidiram retornar ao seu lar e fazer-se à idéia de ter sob seu teto uma filha solteirona.

? Mas? ? Roger escutava com entusiasmo toda a conversação e desejava saber como uma jovem que vivia placidamente e a quem não faltavam propostas de matrimônio terminou dando fim a uma vida próspera.

? Conforme tenho entendido, a moça foi desonrada na festa ? prosseguiu William. ? A família da jovem mantém que o conde de Rabbitwood abusou dela. Segundo o conde, com o qual tive a oportunidade de falar há algumas noites no clube durante uma intensa partida de cartas, a moça se esteve insinuando todo o serão até que conseguiu o que desejava. Rabbitwood lhe advertiu que tinha esposa e que só podia lhe outorgar a posição de uma amante. Como a esta não interessou a ideia, começou a divulgar que tinha sido violada.

? E claro está, depois do escândalo e de não conseguir seu propósito, desaparece para sempre... ? asseverou Roger.

? Bom, nenhum de nós entenderá jamais o que escondem as mulheres em suas cabeças. Embora se essa aspirante à harpia não obteve aquilo que ansiava e entendeu que era uma mancha indelével em sua família, o mais lógico era que terminasse fazendo o correto: suicidar-se ? argumentou William sem mostrar nenhum tipo de sensibilidade em suas palavras.

? Manners! Como pode ser tão frívolo? E se de verdade foi violada? Acaso não contemplou essa possibilidade? ? Federith se mostrou tão alterado que William chegou a perguntar-se se seu amigo tinha sido um dos que lhe tinham proposto matrimônio e foi rechaçado.

Durante uns instantes o futuro duque tentou que a mente lhe oferecesse algumas lembranças da moça, mas não achou grande coisa: uma jovem morrena de estatura pequena com umas bonitas curvas. Não foi capaz de descrever nem como estava vestida nem a cor de seus olhos. Sorriu para si ao rememorar que a maioria do tempo que passou naquela festa brincava de correr atrás das saias de uma suposta viúva desejosa de calor masculino e a satisfação que achou escondido atrás das cortinas de alguma janela do lar de lady Baithlarin.

? Confio na palavra de um cavalheiro como Rabbitwood ? disse cortante. ? As mulheres como puderam observar durante este tempo ao meu lado, causam problemas e uma terrível dor de cabeça. Olhe lady Juliette, jurou-me que não estava casada, que enterrou seu marido no ano passado e... acaso viu um fantasma me lançando a luva? Não sinta piedade por elas, meu amigo, são a outra parte do mundo. Foram criadas só e exclusivamente para nos dar prazer... ? sorriu de lado.

? Algum dia, William Manners, futuro duque de Rutland, apaixonar-se-á, e essa mulher te fará pagar por todo o mal que causou às suas amantes e aos seus maridos ? retrucou Federith com tom desafiante.

? Apaixonar-me? Jamais! ? Sentenciou após jogar o braço sobre o ombro de seu amigo e apertá-lo com força. ? O que fariam todas essas damas se o futuro duque se casasse? O que seria desses pais que, com tanta amabilidade, oferecem as suas bonitas e carinhosas filhas para que as converta em minha duquesa? Não, meu amigo, não posso entristecer toda essa gente. Devo a eles... ? Federith soltou um impropério enquanto que Roger e William não paravam de gargalhar.

Seis horas mais tarde, depois de ter descansado em sua residência de Southwark, William, perfeitamente embelezado para a ocasião, apareceu em Hyde Park. Depois de jogar uma rápida olhada aos arredores para certificar-se de que o duelo não era uma patranha para ser detido, distinguiu entre a pequena multidão as figuras de seus dois bons amigos. Com passo firme avançou para eles.

? Parecem aborrecidos ? disse a modo de saudação.

? Seus duelos já não causam interesse. Todo mundo sabe como terminarão ? respondeu Roger tomando a capa que o recém-chegado lhe oferecia.

? E como terminarão? ? Arqueou as sobrancelhas e o olhou aos olhos.

? Contará os passos, girará e, justo quando seu desafiador disparar, todos nós veremos que ele foi vítima dos nervos e que ele não alcançou o seu propósito. Então levantará a pistola e disparará ao ar. Seus amigos sabem que no fundo é uma boa pessoa e que se compadece de seu adversário. Imagino que o sofrimento que vive o marido depois do descobrimento da infidelidade é mais que suficiente. Equivoco-me? ? Roger arqueou as sobrancelhas e sorriu, assim como fez William.

? Espero que seja assim... ? interveio Federith. Ambos os cavalheiros giraram à volta dele e o observaram com interesse ? até agora lhe desafiaram homens aos que de verdade não lhes importava a afronta e se conformavam recuperando sua honra, entretanto, o senhor Blatte é um bom atirador e parecia necessitar do seu sangue para restaurar sua honra.

? Senhores..., ? interrompeu-os um dos padrinhos do competidor ? o senhor Blatte já escolheu a arma. Serão as pistolas, dez passos e... a morte.

? A morte! ? Exclamou Roger atônito. ? Não podemos permiti-lo!

? Não importa, ? William interrompeu seu amigo alarmado pela gravidade do assunto ? tem direito a escolher a forma em que sua honra será restaurada.

? Bem, pois quando sua Excelência estiver preparado daremos início.

Os três ficaram calados durante uns instantes. Pareciam refletir sobre as possibilidades existentes de sair ileso depois da informação obtida. Quando reclamaram a presença do cavalheiro, este olhou seus amigos, sorriu-lhes e caminhou para o lugar onde o senhor Blatte, embelezado com uma camisa branca e umas calças muita estreita esperava-lhe com os olhos injetados em sangue.

? Senhor... ? William o saudou com cortesia, mas este não se dignou nem a olhá-lo.

? Quando estiverem preparados... ? a testemunha olhou a ambos os homens e estes assentiram. ? Contem dez passos e girem-se. Que Deus os proteja.

William sentiu as costas de seu competidor na cintura. Riu ao notá-lo tão pequeno e com tanta coragem. Enquanto contava os passos recordava Juliette sob seu corpo. Viu de novo os grandes seios fazendo círculos maravilhosos quando cavalgava sobre sua ereção. Tinha lhe encantado ver o cabelo revolto depois do ato sexual e como ela albergava o enorme e duro falo na boca. Em vez de concentrar-se no que estava acontecendo, pensou que, quando o senhor Blatte voltasse a ausentar-se, faria uma visita à delatora para lhe recriminar o engano e fazê-la pagar por seus indecentes atos.

De repente escutou que alguém dizia dez. Virou-se com desconcerto e olhou seus amigos, que abriram os olhos de par em par enquanto cravavam seus olhos no senhor Blatte, ele fez o mesmo. Tinha curiosidade por saber como atuaria aquele pequeno homem e a cara que faria após falhar o tiro. Sorriu ao escutar o eco do disparo. Ato seguido, uma escuridão o rodeou e notou como seu corpo desabava para o chão fazendo com que sua cabeça batesse um par de vezes sobre algo bastante duro.


I


Londres, seis meses depois.

O ajudante de câmara o estava vestindo enquanto ele permanecia rígido e com o cenho franzido. Não era de seu agrado ter que depender de alguém para realizar uma tarefa tão singela. Antes do duelo, o criado se ocupava de lhe preparar a roupa, colocá-la sobre a cama e esperar que sua decisão coincidisse com a do duque. Entretanto as sequelas do duelo o tinham convertido em um ser dependente. Obstinou-se à crença de que transcorridos alguns meses seu corpo seria o mesmo de antes, mas não foi assim. A gravidade de suas feridas tinha sido tal que tinha que dar graças a Deus por continuar respirando.

Sem alisar sua testa refletiu sobre o destino e todas as jogadas que este lhe podia reservar enquanto o servente lhe punha a camisa e lhe abotoava, definitivamente, aquele calvário era o pior que tinha sofrido em toda sua vida.

Seus escarcéus amorosos tinham sido vingados por alguém que não levantava do chão mais de um metro e meio. Por que não girou para a direita para evitar o terrível impacto? Se em vez de estar pensando no prazer que lhe tinha dado o corpo de Juliette e a condenação que receberia por desvelar o segredo, teria prestado mais atenção à direção do projétil e hoje seguiria sendo o mesmo William de sempre. Entretanto, já não o era. Não ficava rastro da pessoa que foi. Agora era um deficiente, um homem ao qual lhe resultava impossível mover a mão esquerda e cuja incapacidade tinha azedado seu afável caráter para converter-se em um ser antissocial e desprezível.

? Excelência... ? o criado cravou os olhos no chão e lhe fez uma reverência antes de deixá-lo sozinho.

O duque caminhou para a janela apoiando-se na bengala. Amanhecia outro dia chuvoso e, como nas jornadas anteriores, não poderia sair da mansão. Isso lhe provocava mais ira do que a necessária. Não era igual passar as penúrias encerrado entre quatro paredes do que tomando o ar do exterior.

Apoiou a testa na moldura de madeira e suspirou. Merecia-o. O estado no qual se encontrava era o resultado da tormentosa vida que tinha levado e agora devia aguentá-lo com orgulho. Com grande esforço conseguiu chegar até a porta. O delicioso aroma do café da manhã fez com que seu estômago se manifestasse e, sem mediar palavra, desceu as escadas, uma proeza que três meses atrás lhe tinha resultado difícil executar por si mesmo. Chegou até o salão e esperou que um dos criados lhe apartasse a cadeira, sentou-se e se acomodou para começar a tomar o suculento café da manhã que havia sobre a mesa.

? Sua Excelência... ? o mordomo se aproximou e, depois de uma breve reverencia, continuou: ? o senhor Federith Cooper acaba de chegar e deseja falar com você.

Federith, um de seus melhores amigos a quem não tinha quebrado, ainda, sua amizade com ele, tinha lhe visitado quase diariamente durante sua convalescença. Foi o mesmo homem que lhe advertiu em reiteradas ocasiões que o rumo de vida que tinha decidido não era o apropriado para um duque.

William tinha rido dele, zombado de seus incessantes discursos sobre o dever e a lealdade para com o título que lhe seria concedido por nascimento. Mas, apesar das brincadeiras, dos sátiros comentários, Federith continuava ao seu lado como se o passado não tivesse existido.

? Deixe-o entrar... ? disse calmamente.

Quando sua voz deixou de mostrar a personalidade de um homem com caráter? Desde quando seu tom se apagou tanto? Possivelmente desde que descobriu numa manhã em frente ao espelho que William Manners se convertera em um monstro que poderia assustar aos meninos inquietos. Porque, embora todo mundo de seu entorno lhe oferecesse palavras de consolo, ele se via um ser disforme e sem utilidade. Como poderia suportar o peso de um título tão respeitável quando nem ele mesmo conseguia respeitar-se?

Levou a xícara de café aos lábios com a mão sã e tomou, depois de um leve sopro ao líquido, um bom sorvo. Escutou enquanto isso como o mordomo informava ao seu amigo que era bem recebido e, depois de finalizar a conversação, os passos deste para a sala de café da manhã. Antes que Federith abrisse a porta e aparecesse com seu peculiar sorriso, William já tinha seu olhar cravado em sua direção.

? Bom dia, querido Rutland, que tal se levantou nesta horrenda manhã? ? Caminhou para ele e, ao compreender que não podia saudá-lo com um apertão de mãos posto que estivesse utilizando a mão útil, agarrou a cadeira, apartou-a e se sentou ao seu lado.

? De péssimo humor... ? murmurou com aborrecimento.

? Está acostumado a ocorrer quando o inverno está a ponto de terminar. Por muito que desejemos evitá-lo, azeda-nos o caráter ? continuou mostrando um leve, mas gentil sorriso.

? A que se deve sua visita, Federith? ? Grunhiu.

? Não se alegra de me ver? ? Respondeu à sua vez.

? Já sabe a que me refiro. O que aconteceu para que esteja em meu lar antes do meio-dia? ? Voltou a beber do café sem apartar o olhar de seu amigo.

? Sua astúcia não diminuiu nem um ápice, não é? ? Soltou uma pequena gargalhada. Depois de observar que William pousava a xícara sobre o pires e pegava o garfo para dirigir a comida que lhe tinham preparado para a boca, prosseguiu: ? Queria te dar uma notícia antes que lhe cheguem os rumores: decidi pedir a mão de lady Caroline.

? Matrimônio? ? Arqueou a sobrancelha esquerda abandonando com brutalidade o garfo sobre a mesa e se reclinando sobre as costas do assento. ? Diz-o a sério? De verdade que vem me informar, antes de ter o estômago cheio, que decidiu se casar? ? Abriu tanto seus olhos que Federith por fim conseguiu averiguar a cor destes.

? Chama-se amor, William, e embora te pareça mentira, Caroline me ama tanto quanto eu a ela ? disse sem mostrar remorso algum pelo comentário mordaz de seu amigo. Não esperava que lhe desse os parabéns. Não William. Ele o evitaria contribuindo com argumentos nefastos sobre a vida que teria uma vez que sua prometida obtivesse o anel. ? Decidi que ? prosseguiu Federith aferrando suas mãos como se tivesse a intenção de começar a rezar ? retornarei a Hemilton depois das núpcias. Esse será o lugar adequado para formar uma família respeitável.

? Então... ? William entrecerrou os escuros olhos e os cravou em seu amigo. Notava como a respiração deste era agitada, nervosa. Esses sinais de preocupação e incerteza apareciam no jovem Federith sem ele desejá-lo. O duque pigarreou. Tinha refletido, ao mesmo tempo em que seu amigo expunha sobre o infinito amor que o casal se professava, a verdadeira razão pela qual Federith tomava uma decisão tão importante. ? Então... ? repetiu para captar a atenção de seu camarada. ? Ela está grávida e precisam se afastar de Londres para que não se descubra a verdadeira razão desse precipitado enlace matrimonial, não é?

? Santo céu, Manners! ? Exclamou Federith empurrando com as panturrilhas o assento e elevando-se com rapidez. Ficou rígido, sem saber que passo dar. Esperava que William fosse sensato e retificasse, mas conhecendo-o como o fazia, sabia que isso seria impossível.

? Calma, sabe que de minha boca não sairá nada que possa te prejudicar ? continuou com o cenho franzido enquanto observava a crescente tensão de Federith.

? Espero que não tenha esquecido o que significa ser um cavalheiro. ? Seus punhos se apertaram. As palavras brotaram dele com um tom repleto de ameaças.

Mas... que perigo poderia ter uma pessoa que vivia detento de suas más decisões? Ante tal reflexão Federith se zangou consigo mesmo. Ele não era assim. Jamais desejava o mal a ninguém. Sua filosofia de vida era muito distinta. Embora a raiva que William tinha despertado nele superasse qualquer crença sensata.

? Há valores que nunca se perdem ? respondeu William ao pequeno ataque.

? Não estou muito seguro disso. Apartartou-se do mundo. Apenas se relaciona com seus amigos, escondeu-se entre estas paredes e há mais de três meses não recebe visitas. Crê que esse tipo de vida não faz rachaduras na mente do cavalheiro mais racional?

O duque o observava com atenção. Federith seguia com os punhos fechados, mas em nenhum momento foi capaz de olhá-lo aos olhos para lhe cuspir o pouco veneno que devia sentir após descobrir seu pequeno segredo.

? É o melhor lugar para habitar um monstro, não acredita?

? Monstro? Assim é como se considera o duque de Rutland? Desaponta-me William, acreditei que tinha mais coragem...

Federith o olhou com atenção. Na verdade, William tinha um pouco de razão. Ali onde no passado tinha existido um cavalheiro bonito, agora se encontrava um homem com umas horrendas marcas no rosto. Além disso, já não era só a fealdade, mas sim que depois de ser operado de urgência pelo médico que o zangado marido de Juliette conduziu até o lugar do duelo, o duque ficou incapacitado de uma mão. Essa que, nesses momentos, tinha colocado sobre a mesa aparentando ter uma função. Suspirou com suavidade e meditou sobre a passada temporada social. Seu amigo partiu antes do acostumado deixando lady Baithlarin desolada pela ausência repentina de um homem tão importante. Supôs que tal marcha se deveu à imensa pressão que William estava sofrendo depois do falecimento de seu pai e a posse do título. Entretanto, a fuga à sua residência em Southwark tinha outra razão: desaparecer. Odiaria ver a cara de espanto que mostrariam as jovens casadouras quando seus progenitores as apresentassem ao novo duque. Ali onde antes encontrou sorrisos pecaminosos e olhos frágeis pela possibilidade de jazer sob a esbelta e robusta figura, agora encontrava repugnância, asco. Que dramático final para um homem que acreditou ser possuidor de todos os encantos divinos!

? Perdi-a depois do disparo ? respondeu em tom vazio, sem entusiasmo. Entretanto, em seu interior crescia de novo aquela ira a qual começava a acostumar-se. Era hora de cortar a conversação e deixar que seu amigo tomasse o rumo marcado. ? Voltando para o motivo pelo qual me visita...

? Como lhe disse, tomei uma decisão firme a respeito. A futura baronesa de Sheiton será muito feliz em Hemilton.

? Não o duvido. Com certeza será muito feliz com esse filho que te dará e imagino que será o pai mais maravilhoso do mundo.

? Sim ? respondeu ignorando a ironia de sua afirmação. ? É óbvio que serei feliz ao lado da minha esposa e da família que criarei. ? A visita estava chegando ao seu fim. Federith tinha vontade de partir e afastar-se de seu camarada. Estirou-se a jaqueta do traje, estendeu a mão para seu amigo para que este a tomasse e disse: ? Veremos-nos em outro momento. Possivelmente em um no qual tenha recuperado o sorriso.

? Antes de ir..., ? aferrou com força à mão de Federith e olhou-o nos olhos ? eu gostaria de te fazer uma última pergunta, se me permitir isso o futuro barão de Sheiton, é claro.

? É óbvio.

? Estou me perguntando... que classe de inconsciente pode chegar a ser para se casar com uma mulher que leva em seu seio o filho de outro? ? Soltou sem tomar ar.

O assombrado homem não respondeu a impertinente pergunta. Partiu do salão erguido e com passo firme.

William ficou calado refletindo durante um bom momento. A decisão de Federith a nível social era a mais correta se ele amava de verdade a mulher. Entretanto, quando falou dela e de seu futuro projeto juntos, não mostrou o entusiasmo próprio de um homem apaixonado, um homem que, tal como tinha proclamado, amaria para sempre a sua esposa.

Muito a seu pesar sabia que cedo ou tarde seu amigo seria infeliz e isso, embora não quisesse reconhecê-lo, doía-lhe. Sempre albergou a esperança que, dos três, Federith obtivesse a vida que merecia.

? Deseja algo mais, Excelência? ? Um dos criados lhe fez despertar de sua letargia mental ao mesmo tempo em que entrava no salão e esperava o próximo mandato.

? Preparem a bagagem. Amanhã ao amanhecer partiremos para Haddon Hall.


II


Tinha viajado quatro dias intermináveis com suas noites incluídas, pernoitando em miseráveis e fedorentas estalagens, mas por fim, aquela horrenda viagem se acabara.

Chegara ao seu lar.

O imenso arvoredo lhe dava as boas vindas com suaves movimentos de folhas. William colocou a cabeça pela janela da carruagem e observou a sobriedade dos grandes e altos muros da mansão. Era, sem dúvida, o melhor lugar onde poderia esconder-se pelo resto de sua vida. Uma fortaleza em que poderia passar os dias inteiros caminhando pelos intermináveis corredores, salões e estadias. Moveu o lábio superior para a esquerda tentando desenhar um sorriso, mas fazia tanto tempo que não movia os músculos para essa função que foi impossível fazê-la como era devido. Apesar desse fracassado esforço por sorrir, William se sentia contente em retornar à casa de sua infância.

Rememoraria as aventuras que seu irmão e ele viveram quando meninos. Se a mente não lhe falhava, ambos tinham enfurecido até ao servente mais paciente do mundo. Logo, com o tempo, aqueles que correram atrás deles para que não terminassem se machucando, converteram-se em pessoas dignas de sua confiança.

Olhou de novo ao seu redor. Tinham passado dez anos desde que decidiu abandonar Haddon Hall para dedicar-se ao desfrute da vida londrina, e nada tinha mudado em Derbyshire, o tempo parecia deter-se.

O cocheiro diminuiu o passo quando chegaram ao jardim principal. Com a cabeça apoiada na almofadinha da carruagem podia ver a fonte. Ela foi à causadora de sua primeira aposta e de sua primeira derrota. Não tinha que ter desafiado Lausson a saltar, as probabilidades de que perdesse eram escassas, entretanto precisava provar-se a si mesmo. Necessitava estimulação, emoção e um sem-fim de sentimentos que depois encontrou entre as pernas de suas amantes.

William fechou os olhos. A palavra amante se converteu em sinônimo de monstruosidade, posto que pela língua de uma delas ele tinha o rosto desfigurado e uma mão inerte. De repente se perguntou como atuaria o serviço ante sua chegada. Para eles tinha que ser bastante impactante recordar a marcha de um bonito homem e receber ao mesmo convertido em um monstro. Esperava que Brandon, seu fiel mordomo, tivesse lhes posto à corrente do acontecido e indicado a melhor forma de atuar quando ele estivesse presente: nada de olhá-lo ao rosto, tão somente servir e manter os olhos cravados no chão.

Repentinamente uma terrível dor se apropriou de sua cabeça. Notava nas têmporas o pulso de seu coração. Estava nervoso? O duque de Rutland começava a sentir ansiedade por seu futuro? Não se tinha respondido quando a porta da carruagem se abriu e alguém estendeu uma mão para lhe facilitar a descida. Até o momento, não o tinha necessitado: o normal era que se aferrasse com a mão sã à porta e descesse devagar. Mas depois de quatro dias de viagem, de mal dormir, de fadiga e inclusive de uma péssima alimentação, essa ajuda era necessária. Depois da custosa façanha, liberou a mão e continuou sozinho.

Quando elevou o olhar para a entrada principal advertiu que todos os criados tinham saído para saudá-lo e cravavam seus olhares no chão. Em efeito, Brandon tinha falado com eles.

? Milord... ? o mordomo se colocou com sutileza atrás de suas costas e começou a lhe informar. ? Sua habitação está preparada para que descanse. Imagino que depois da viagem precisará refrescar-se, assim ordenei ao seu ajudante de câmara que o espere. As criadas lhe prepararam um banho de água quente.

? Obrigado, Brandon ? disse com tom suave.

? Não tem por que me agradecer, Excelência. É uma honra trabalhar para você. ? Brandon, sem afastar-se do senhor nem um metro, caminhava com firmeza esperando que este requisitasse sua força para subir as escadas. Mas não a necessitou. O duque de Rutland caminhava com orgulho para o interior do lar, saudando brandamente com a cabeça seus novos empregados. ? Tenho que lhe comentar que na biblioteca tem sobre sua mesa vários convites. Embora tenha anunciado que deseja descansar uma temporada antes de encher Haddon Hall de convidados, todo mundo deseja conhecê-lo e falar com você.

O duque fez um leve som gutural e o criado entendeu que aquele esforço era mais do que podia suportar. Tentou alargar a mão para aferrar-se ao braço inerte de seu senhor e acalmar o esforço, mas este o negou. Tinha suficiente orgulho para não se mostrar fraco ante aqueles que estavam sob suas ordens.

Tal como lhe informou Brandon, quando acessou seu quarto o ajudante esperava pacientemente. Depois de fechar a porta, o criado lhe fez uma reverência e lhe pediu permissão para despi-lo. William a aceitou com rapidez. Desejava inundar-se na banheira o antes possível. Precisava introduzir seu cansado corpo em água quente e que esta acalmasse as doenças que lhe açoitavam sem piedade.

? Necessita que lhe ajude em alguma outra coisa, sua Excelência? ? Inquiriu o criado ao finalizar sua tarefa com habilidade.

? Diga ao Brandon que suba, preciso falar com ele ? respondeu o duque.

O criado se dirigiu para a porta com rapidez e antes que William pudesse suspirar, Brandon apareceu no meio do quarto.

? Não está tudo como deseja, Excelência?

? Tudo está perfeito, obrigado. Chamei-te porque quero que me faça um favor. Necessito que procure o antes possível uma cortesã capaz de manter encontros esporádicos comigo ? ordenou sem olhá-lo. Movia as pernas devagar, deixando que se acostumassem ao calor do banho, à tranquilidade de um ambiente sereno e aprazível.

? Com o mesmo salário, sua Excelência?

? Com o mesmo salário... ? repetiu.

? Alguma petição especial? ? Quis saber.

Em Londres o duque tinha procurado durante muito tempo uma amante que se parecesse fisicamente à lady Juliette. Não encontrou a réplica perfeita, mas sim a uma jovem que tinha feições parecidas. Esta o satisfez até que dias atrás teve que partir. É óbvio, deu-lhe a opção de escolher: podia viajar para Haddon Hall para continuar seu ofício ou, pelo contrário, podia declinar seu convite. A jovem, alegando que sua mãe se encontrava bastante doente, decidiu não continuar. Algo que entristeceu ao senhor por que... como conseguir outra agulha em um palheiro?

? Já sabe quais são os requisitos ? disse com grosseria.

? É óbvio. Deseja que diga ao seu ajudante de câmara que pode acessar ao dormitório?

? Não, diga-lhe que esteja atrás da porta e que o chamarei quando o necessitar.

? Como desejar... ? disse antes de retirar-se.

William olhou ao seu redor. Encontrava-se no quarto de seu pai, o santuário do anterior duque de Rutland, o único lugar proibido de todo Haddon Hall quando era menino. Ambos os irmãos se enchiam de entusiasmo quando o pai aparecia pelo lar, e só pensavam em despertá-lo com risadas e conversações sobre as mil anedotas que tinham acontecido em sua ausência. Entretanto, com o tempo descobriram que o duque não retornava para passar tempo com seus filhos e sim para esquentar a cama com sua legião de amantes.

William franziu o cenho. Tinha odiado com todo seu coração a atitude de seu pai e não deixava de ser irônico que se convertera em uma réplica perfeita. O que primeiro tinha ordenado ao Brandon ao chegar? Uma amante. Uma mulher que o saciasse sexualmente, sem escrúpulos e desejosa de encher seus bolsos de moedas.


Só gozou de dois dias de solidão para descansar antes que os primeiros bisbilhoteiros aparecessem. O reverendo Brace e sua esposa eram um jovem casal que tinham retornado a Derbyshire depois que faleceu o pai deste, anterior pastor da comarca. Quando acessaram ao salão principal, lugar onde receberia a todos seus convidados, William se desculpou por não lhes dar as boas vindas de maneira correta.

? Não se preocupe, Excelência, informaram-nos de suas incapacidades ? explicou o reverendo com um sorriso. Ao qual o duque desejou fazer desaparecer com um murro, se pudesse.

? Veio ao melhor lugar para descansar. ? A senhora Brace, com uma suave e harmoniosa voz, misturou-se na conversação para salvar as inoportunas palavras de seu marido.

? Isso espero ? comentou o duque esboçando um leve sorriso. ? Segundo minha lembrança, Derbyshire é um lugar tranquilo e aprazível.

? As pessoas que habitam aqui são gente de paz, nós não gostamos dos escândalos nem tentamos destacar mais do que nossas possibilidades nos oferecem.

? Entretanto, às vezes sofremos certos constrangimentos. ? Outra vez a encantadora mulher tentava salvar a desafortunada reflexão de seu cônjuge. ? Virá à Igreja, sua Excelência? É linda e aos domingos está transbordante de crentes.

? Se puder, estarei encantado de admirá-la ? respondeu William com uma amabilidade estranha. Quanto tempo fazia que uma mulher não lhe agradava? Muito, devia ter transcorrido no mínimo uma eternidade, porque se não fosse assim, por que via atraente a volumosa esposa do reverendo?

? Visitou-lhe já algum de nossos vizinhos? ? Perguntou o impertinente homem antes de dar um sorvo ao chá.

? São vocês os primeiros. Meu mordomo me informou sobre a montanha de convites que recebi, mas temo que até que não consiga me pôr em dia com a contabilidade de Haddon Hall, não poderei aceitar a nenhum. ? Parecia uma desculpa? Esperava que assim fosse, porque não tinha vontade de explicar nada ao pároco, nem que não era responsável pela quantidade de convites que lhe tinham enviado nem se os aceitaria.

? Deve descansar, Brennet. Sua Excelência fez uma longa viagem e como deseja assentar-se neste lindo lugar pelo resto de sua vida, tem muito tempo para assistir aos eventos onde seja requerido – sorriu-lhe.

De verdade que um simples gesto de piedade podia interpretar como uma paquera feminina? De verdade que não podia apartar o olhar dos seios da esposa de um pastor? O duque tentou manter a calma e deixar de pensar no prazer. Essa noite, assim que pudesse falar com Brandon, pediria-lhe que esquecesse os requisitos solicitados para a cortesã e empregasse a primeira que gostasse do pagamento.

? Já é tarde, Lídia ? disse o reverendo olhando com ternura para sua esposa. ? Milord... ? levantou-se e moveu a cabeça devagar para diante. ? Voltaremos em outro momento, se lhe agradar.

? É óbvio, sempre serão bem-vindos.

Lídia, como a tinha chamado o senhor Brace, aproximou-se do duque, fez-lhe uma reverência e, aferrando-se ao braço de seu marido, ambos saíram do salão. Minutos depois apareceu Brandon. Esse homem parecia lhe ler a mente.

? Conseguiu a cortesã? ? Perguntou de mau humor e impedindo que o servente começasse alguma conversação que o distraísse de seu verdadeiro propósito.

? É óbvio, milord. Começará o trabalho quando você quiser ? explicou o mordomo com certa preocupação.

Era certo que a jovem tinha aceitado com rapidez seu novo encargo, mas não estava muito seguro de que o fizesse corretamente. Não parecia ser uma mulher com experiência, por muito que ela tivesse insistido no contrário.

? Pois não a façamos esperar. Informe-lhe que esta noite provarei seus serviços. ? Levantou-se com vigor e caminhou ansioso até a sala de jantar. Era a primeira vez em muito tempo que desejava com prontidão a chegada da noite.

Depois do jantar, que durou a metade do acostumado, decidiu refrescar-se. Queria estar limpo para sua nova amante. Que estivesse lesado ou impedido para fazer certas coisas no ato sexual não queria dizer que se comportasse como um mendigo, nunca o tinha sido e nunca o seria. Odiava escutar as conversações de certos homens que se denominavam cavalheiros e alardeavam suas experiências com as prostitutas que encontravam nas ruas. Ele jamais precisou ir a uns serviços tão desagradáveis. Só de pensar lhe produzia asco. No meio da rua? Sem assear-se? Como animais? Não, ele não pertencia a essa classe de homens.

Não lhe cabia dúvida que Brandon a teria conduzido até alguma das habitações da residência, teria-lhe devotado uma boa banheira de água quente e a teria preparado para o momento. Enquanto seu ajudante lhe colocava com habilidade a camisola, pensou em como seria a mulher. Alta? Teria pernas longas? Adorava esse tipo de mulheres, possivelmente porque sua estatura era bastante considerável para albergar em seu corpo uma concubina de pequeno tamanho. William franziu o cenho.

Nesse preciso instante, em vez de pensar mais na mulher que entraria em seu dormitório para lhe agradar, recordou de novo o marido de Juliette. Subestimou-o por ser baixinho, riu dele e inclusive pensou que seria um bom palhaço para um desses circos que visitavam a cidade. Embora resultasse muito ao seu pesar, que esse pequeno homem provocou o maior desastre de sua vida. Sim, esse tipo de conclusões lhe reforçava com esforço a crença de ter ao seu lado uma mulher alta, muito alta.

Andou pela habitação durante uns minutos. Estava ansioso pela iminente chegada. Olhou com rapidez ao seu redor. Havia muita luz para seu gosto. Possivelmente devia apagar alguma vela e deixar um ambiente mais íntimo. A jovem de Londres soube antes o que encontraria ao acessar o quarto, o periódico The Daily Gazetteer se encarregou de difundir uma foto de seu antes e seu depois. A fatalidade de uma vida promíscua tinha intitulado o artigo. Entretanto, em Derbyshire, as notícias se conheciam pela difusão dos habitantes. Deu por certo que, salvo os que estivessem fora de seus lares, já tinham algum conhecimento do novo rosto do duque de Rutland. Não lhe cabia dúvida de que o reverendo teria se encarregado disso.

Olhou de novo as velas acesas e decidiu apagar um par delas. Pareceu-lhe que a melhor forma para começar uma relação especial era sob a intimidade da penumbra. Logo se aproximou da cama e se sentou sobre ela, esperando-a. Tremia-lhe a mão e o coração palpitava sem poder controlá-lo. Zangado por não controlar sua ansiedade, repreendeu-se em voz alta.

? Basta! Controla sua emoção! Nem que fosse conhecer sua futura esposa!

Terminou esse pequeno e escandaloso monólogo quando escutou o suave som da porta. Se antes o coração estava agitado, agora tinha parado em seco.

? Pode entrar ? disse com tom aparentemente sereno.

Uma pequena figura apareceu na penumbra. William franziu o cenho ao ver que Brandon não tinha conseguido uma concubina de grande altura. A mulher tinha o cabelo solto cobrindo grande parte de seu rosto e de seus ombros. Nesse momento se repreendeu por ter criado tanta escuridão posto que mal distinguisse as feições da moça. Embora, se fosse boa em seu trabalho, o que importava como era seu rosto?

? Aproxime-se ? sussurrou o duque estendendo a mão direita para ela. A moça caminhou para a cama e o olhou. Nesse momento suas sobrancelhas subiram uns milímetros e William entendeu que se surpreendeu. ? Não acredito que deva te explicar para o que veio, não é? ? Ela assentiu. ? Não albergue em seu coração a possibilidade de que entre nós exista uma relação afetuosa, só quero prazer. ? Seu tom se endureceu. Por que havia se zangado com tanta rapidez?

? Só prazer... sua Excelência ? murmurou a mulher sem querer voltar a cravar seus olhos no rosto dele. Como se tivesse mais pressa do que se requeria naquele tipo de encontros, a mulher se desfez das vestimentas e se colocou frente ao duque nua. Deu uns pequenos passos até que a mão deste pôde alcançar um seio.

? Faça com que eu te deseje. Finja algum interesse e faça por merecer o salário que obterá quando partir ? continuou com tom duro, firme e inclusive insolente. Mas... o que pretendia? Que ela se lançasse sobre seus braços e beijasse aquelas horrendas cicatrizes? Ficou tão impactada ao vê-lo que não sabia nem como atuar.

A mulher se ajoelhou em frente ao homem. Levantou com suavidade a camisola e procurou com a boca o falo. William jogou a cabeça para trás e suspirou. Estava tão necessitado que essa noite se contentaria com o pouco que a concubina estivesse disposta a dar. Se ela tinha decidido utilizar sua boca para saciá-lo, relaxaria e desfrutaria do momento. Fechou os olhos e fez com que as imagens de Juliette retornassem à sua mente. Voltava a tê-la ao seu lado lhe sussurrando palavras obscenas. Mostrando sem pudor o desejo que sentia o bonito corpo ao tocá-la e como a mulher respondia com um sem-fim de deliciosos ofegos. Rememorou o baile de seus seios ao sentar-se sobre ele, seus gemidos, seus beijos e o abundante fluxo que emanava do sexo para conseguir banhar o seu. Úmida e aberta para suas carícias. Quente e ardente sob seus toques. William franziu o cenho. Estava a ponto de gozar na boca da cortesã. Não quis abrir os olhos e observar o rosto da jovem. Preferia imaginar Juliette. Preferia escutar os ofegos daquela mulher que os seus próprios. O sexo vibrou, endureceu-se com força e notou como a semente brotava de seu interior banhando a língua da moça a quem não tinha perguntado nem seu nome. Não lhe importava, para que saber o nome de uma mulher que, depois de olhar seu rosto, tinha-lhe dado tanto medo que não foi capaz de levar a cabo um trabalho tão singelo? Quando o sexo retornou ao seu estado normal, baixou-se a camisola, girou-se para dar as costas à petrificada moça, agarrou-se com força ao dossel em espiral de madeira e lhe disse com tom sério e furioso:

? Vá! Meu mordomo te pagará o convencionado.

A moça agarrou com rapidez o vestido que tinha deixado no chão e se vestiu. Fez uma reverência ao duque e partiu velozmente. Quando a porta se fechou e William soube que por fim estava sozinho, começou a chorar como tantas vezes tinha feito depois do duelo. Sentia-se cada vez mais no fundo do poço e com menos força para seguir vivendo. Ninguém desejaria ter ao seu lado um monstro inútil. Nenhuma mulher deveria ser condenada a viver sob seu mesmo teto. Tremendo, recostou-se na cama e continuou chorando até que adormeceu.


III


Nada. Já não tinha nada que levar à boca. Já há um tempo que as reservas que tinha guardado para poder sobreviver naquele paradisíaco lugar tinham desaparecido. Enrugou a testa e levou as mãos ao quadril. Como era possível que aqueles malditos lobos tivessem comido, em uma noite, uma peça tão grande? Enfurecida pela fome, pensou em apanhar aqueles que a tinham deixado sem alimento e comer-lhes.

«Malditos animais!», gritou para si entre lágrimas.

Ela chutou uma pedra, e depois de sentir uma terrível dor nos dedos, sentou-se sobre ela. O que devia fazer agora? Tinha investido as últimas moedas comprando galinhas, coelhos e um casal de porcos. Acreditou que eles a ajudariam a subsistir todo o tempo que fosse necessário até decidisse-se retornar e fazer frente à situação que não pôde dirigir no passado. Entretanto, agora não ficava nada, nem sequer um pedaço de pão para levar à boca. Depois de meditar durante muito tempo na melhor maneira de sobreviver naquelas circunstâncias, saltou sobre o chão e sorriu. Não lhe tinha ocorrido com antecedência porque o desprezava com toda sua alma, mas dada a situação teria que deixar estacionado o ódio que sentia por esse homem e pensar no melhor para ela.

Todo mundo falava com entusiasmo da chegada do atual duque de Rutland. Esperavam que aquela aparição fosse bastante proveitosa para o povo porque, se o duque continuasse com sua famosa vida social, celebraria grandes e numerosas festas e a localidade se encheria de nobres curiosos. O verdadeiro motivo para esse entusiasmo era um muito singelo de compreender: trabalho. Lavadeiras, costureiras, cozinheiras e criados em geral seriam procurados para oferecer aos convidados de Haddon Hall o máximo conforto. Era uma oportunidade que não podia deixar escapar.

Com vigor colocou as mechas que se soltaram do coque, ajeitou várias vezes o vestido e tomou o caminho que a conduzia até a mansão. Tinha tanta pressa por encher seu estômago que não esperaria que se convocassem as esperadas entrevistas. Beatrice tocaria a porta e pediria qualquer trabalho que, é óbvio, aceitaria com grande entusiasmo.

O que começou sendo um suave passeio, mais tarde se converteu em uma caminhada rápida, para depois pôr-se a correr como se o próprio diabo a perseguisse. Esquivou-se de todos os obstáculos que encontrou em seu passo sem lhe importar que em mais de uma ocasião seu vestido se manchasse de respingos de barro. Tinha um objetivo a cumprir, um que odiava porque se tratava de estar sob o amparo de um homem egoísta, ruim e desprezível, mas era o único que lhe ajudaria a continuar viva.

Quando chegou ao jardim principal da mansão, Beatrice ficou sem fôlego. Não só pelo esforço da corrida, mas sim pela imensidão do lugar que se mostrava ante ela. Tinha escutado muito sobre a residência do duque, mas jamais chegou a imaginar algo um pouco parecido. Possivelmente porque seus pais chamavam grandeza a uma décima parte do que observavam seus olhos. Permaneceu imóvel durante algum tempo, contemplando sem pestanejar o enorme edifício. Uma vez que estudou em detalhe o lugar, pareceu-lhe muito frio, muito sólido. Seus muros eram tão grossos e sóbrios que não entendia como alguém podia considerá-lo um lar, mais se assemelhava a uma prisão.

Aquele era o famoso paraíso no qual se criaram os filhos do duque? Disso se orgulhavam? Pois ela não trocava seu humilde lar pelo que estava vendo. Era tão impessoal e gélido como a atitude do homem a quem ia suplicar um posto de trabalho.

Depois de conseguir um pouco de calma e separar de sua mente todo pensamento doloroso produzido pela lembrança do comportamento do duque, caminhou pelo jardim sem descanso até que subiu as escadas que a conduziram para a porta principal. Parada frente a esta, duvidou se chamava com suavidade ou com todas as suas forças. Sopesava qual alternativa era a correta quando de repente escutou umas vozes que procediam da lateral do edifício. Assustada e com o coração galopando em seu interior, permaneceu imóvel enquanto rezava para que não a descobrissem tão cedo. Por uma vez Deus atendeu suas preces e os que falavam sem parar não repararam em sua presença. Escondida pela escuridão que lhe ofereciam uns pilares de pedra, observou várias pessoas descerem por onde minutos antes ela tinha subido. Quando as vozes se perderam pelo jardim aproveitou para sair de seu esconderijo e dirigir-se para o lugar de onde tinham saído: a porta de serviço.

Respirou com profundidade, voltou a pedir ajuda a Deus, elevou a mão para chamar e, justo quando seu pequeno punho iria tocar a grande lâmina de madeira, esta se abriu.

? Quem é você?! ? Exigiu saber com uma mescla de surpresa e medo uma mulher de avançada idade.

? Bom dia, senhora. Desculpe se a incomodo, vim pedir trabalho ? explicou olhando ao chão.

? A pedir trabalho?! ? A mulher abriu os olhos de par em par e levou a mão à garganta.

Beatrice abaixou ainda mais a cabeça ao mesmo tempo em que suas bochechas se enchiam de uma intensa cor vermelha. Não tinha dúvidas sobre a causa do imenso susto que tinha provocado à mulher. Quem, em seu são julgamento, pediria um trabalho respeitável vestida com farrapos manchados, com o cabelo coberto de barro e cheirando a excrementos de porco? Mas ela não estava em seu são julgamento desde que a fome se apoderou de seu corpo e de sua mente.

? Necessito-o, senhora. Estou a ponto de morrer. Levo dias sem comer... ? implorou a moça.

? Não é meu encargo oferecer trabalho, disso se encarrega o senhor Stone, mordomo de sua Excelência. Mas te aconselho que, se de verdade necessita de um emprego, volte outro dia com melhor aspecto. Assim só lhe fecharão a porta. ? Hanna, a cozinheira, sentiu verdadeira lástima pela jovem. Nunca tinha visto uma expressão tão dramática, nem tampouco uma palidez tão fantasmal.

? Rogo-lhe. Ajude-me... ? continuou com voz tão baixa que a anciã mal a escutou.

A anciã olhou a ambos os lados e, certificando-se de que ninguém poderia descobrir que abrigaria durante uns minutos a uma mendiga em uma casa respeitável, estendeu a mão e aferrou com força o braço da moça.

? Entra, sente-se e não fale até que tenha terminado de comer o que puser sobre a mesa. Se de verdade pretende trabalhar algum dia em um lugar como este, deve se sustentar com algo mais... do que tenha se alimentado até agora.

Beatrice sorriu e se sentou tal como lhe tinha indicado a mulher. Manteve-se calada até que contemplou o prato de sopa quente que a amável estranha colocava em frente a ela. Agarrou a colher, inclinou-se para a fumegante terrina e, sem esperar a que este se esfriasse, arremeteu contra ele. Em um passado já bastante longínquo teria pegado a colher e a teria dirigido lentamente para seus lábios para sorver em silêncio seu conteúdo. Mas estava vivendo o presente e seu estômago estava muito vazio para recordar protocolos absurdos. Mal levantou o olhar, salvo quando sua benfeitora retornava para lhe apartar o prato terminado e lhe colocar outro em seu lugar.

Enquanto notava o calor da comida em seu interior pensou que aquilo que estava conseguindo não era o que tinha pretendido. Ela queria um trabalho para ganhar a comida que a sustentaria durante o tempo necessário até que decidisse retornar a Londres. Entretanto, como não havia outra alternativa, continuou comendo enquanto fazia à ideia de que os suculentos pratos poderiam lhe oferecer um pouco mais de vida. Possivelmente a justa para sobreviver até que chegassem as desejadas entrevistas. De repente, enquanto saboreava seu último prato, escutou-se uma portada atrás dela e Beatrice saltou do assento. Ao descobrir em frente a ela um homem com rigoroso traje negro, abaixou a cabeça e começou a fazer nós com o tecido do vestido.

? Quem é e o que faz aqui? ? Brandon a observou com perspicácia, ato seguido dirigiu os olhos para Hanna e franziu o cenho.

? É uma jovem que veio pedindo um emprego... ? expôs a cozinheira limpando as mãos no avental.

? Do que, de limpadora de chaminés? ? Disse de mau humor. Não podia acreditar no que seus olhos observavam. Na cozinha, um lugar sagrado, havia uma moça coberta de sujeira, faminta pelo que podia apreciar, e desprendendo um aroma parecido ao do esterco de cavalo. Como tinha ocorrido a Hanna fazê-la passar à cozinha? Se a garota não partisse terminaria empesteando toda a mansão.

? Se me permitir isso, senhor, posso lhe informar que sei lavar, costurar, e inclusive posso ajudar em outras tarefas domésticas... ? murmurou sem levantar a vista do chão.

? Disse lavar? Não estou tão seguro disso, menina. A sujeira que vejo em seu corpo me indica que não deve ter muito claro o que significa isso... ? O mordomo cruzou os braços e entrecerrou os olhos.

? Brandon! Como pode falar assim? ? Hanna explodiu e, diante de Beatrice, tratou-lhe com familiaridade, advertindo à jovem que entre eles existia uma relação mais afetiva do que aparentavam.

? Esta moça tem que sair daqui o antes possível, senhora Stone ? explicou com tom sereno e firme. ? Eu não gostaria de sentir a fúria do duque em meu corpo por algo que nem sequer me corresponde.

? Suplico-o, senhor ? interveio Beatrice entre soluços. ? Preciso comer. Hoje fui abençoada pela amabilidade da senhora Stone, mas amanhã... do que me alimentarei amanhã?

Brandon, que tinha se girado para que Hanna não observasse o aborrecimento que lhe provocou seu ato de solidariedade, ficou durante uns instantes parado com o olhar cravado na porta por onde tinha entrado. Depois de meditar o rogo desesperado da jovem, sorriu meio de lado e se voltou para esta.

? Já esteve alguma vez com um homem? ? Enrugou a testa e a olhou diretamente aos olhos.

Hanna, depois de escutá-lo, levou-se a mão à boca. Sabia o que estava a ponto de expor e pensou que se na verdade lhe oferecesse aquele posto, ela cairia ao chão.

? Como? ? Apesar de ter as bochechas cobertas de barro, o rubor era visível em seu rosto.

? É virgem? Manteve relações sexuais? Sabe esquentar o leito de um homem? ? Continuou com o inesperado interrogatório o mordomo. Deveria assustá-la, não podia fazer com que Hanna tentasse acolhê-la tal como parecia pretender. Desde que a filha de ambos morrera fazia já quase quinze anos, o instinto maternal brotava sem que ela percebesse e em muitas ocasiões, de maneira incorreta.

Beatrice esteve a ponto de desmaiar. O que tentava dizer o mordomo? Por que precisava saber se alguma vez tinha estado entre os braços de um homem? Quis romper a chorar quando em sua mente brotou a lembrança daquele momento. Sim, tinha estado com um homem e tinha perdido a inocência com ele, mas... tinha que explicar como e em que circunstâncias a tinham desflorado?

? Vejo que está pensando... ? um sorriso zombador apareceu no rosto enrugado.

? Não... ? disse enfim Beatrice apertando os punhos e armando-se de coragem.

? Informo-lhe, senhorita, que o único posto livre que temos nestes momentos é o de cortesã. Nosso duque necessita de uma mulher para saciar seus desejos sexuais e o pagamento é uma bolsa de cem moedas de ouro por esses serviços. Sabe agradar a um homem?

Hanna girou e se dirigiu para o fogo. Não suportava a situação que estava vivendo e se jogava a culpa disso. Se tivesse fechado a porta e não a tivesse arrastado até o interior, a moça teria partido morta de fome, mas com sua dignidade intacta.

? Sim ? respondeu com firmeza. Levantou seu olhar, elevou o queixo e prosseguiu: ? Todos os homens que passaram pelo meu leito partiram satisfeitos.

Era real o que brotava de seus lábios? Sabia ela saciar os apetites sexuais de um homem? A única vez que esteve com um tinha uma faca apertando sua garganta e naquele momento não pensava em satisfazê-lo a não ser em fazer o que este lhe pedia e fugir com vida o antes possível.

? Perfeito então. Senhora Stone, ? disse à cozinheira que não era capaz de olhá-lo ? já temos uma prostituta. Ordenarei que lhe preparem uma habitação. Não albergue a falsa esperança de ter um teto onde dormir, isso não está no acordo. Mas eu gostaria de apreciar a beleza que oculta embaixo dessa capa de imundície. Além disso, para que elimine esse pestilento aroma, deveria ficar de molho no mínimo uma semana. Senhora Stone, já que foi você quem se proclamou benfeitora da jovem, deixo-a em suas mãos para que a prepare de maneira adequada.

Hanna não respondeu. Estava mexendo em uma panela de metal o guisado que pretendia oferecer para o almoço. As lágrimas percorriam seu velho rosto e sentia que a garganta lhe oprimia. Sem querer tinha conduzido a jovem a um destino turvo, escuro.

? Senhora Stone? ? Inquiriu Brandon para certificar-se de que o tinha escutado.

? Sim, senhor Stone, prepararei-a ? respondeu apertando a mandíbula.

Escutou-se a porta depois da saída do mordomo e depois disto, houve silêncio. Beatrice tinha ficado de pé, incapaz de mover-se. Ainda não era consciente do que tinha acontecido. Tinham lhe devotado o posto de cortesã e ela, em um ataque de ira, tinha-o aceito? Como podia ser tão tola? Possivelmente não pensou em nada depois de escutar que lhe pagariam uma centena de moedas de ouro. Era muito mais do que levou em seu bolso quando partiu de Londres e estava segura de que, com essa quantidade, poderia comprar outros animais com os quais poderia sobreviver durante bastante tempo. Embora para seguir vivendo nas condições nas quais se encontrava, devia padecer de novo a dor e a vergonha? Viver um pouco mais ou morrer na cabana? Se algum dia alguém aparecesse por ali descobriria ossos de um cadáver, o seu.

«Viver para lutar», pensou para si.

Suspirou com intensidade e fez desaparecer todo tipo de inquietações. Devia fazê-lo e ponto.

? Sinto-o... ? escutou a cozinheira murmurar. ? Tudo isto foi por minha culpa...

? O emprego, eu o aceitei. Se quisesse teria me negado ? indicou ao mesmo tempo em que se aproximava das costas da anciã.

? Não é justo! Esse homem se aproveitou da sua necessidade e jamais o perdoarei ? gritou enfurecida enquanto levantava a panela com raiva.

? Senhora Stone, você é um anjo e de verdade, aconteça o que acontecer, estarei eternamente agradecida. Graças a você poderei sobreviver uns meses mais.

Beatrice não queria que ela se preocupasse com seu futuro. Acaso se tinham preocupado seus pais? Não. Depois de lhes revelar o que tinha acontecido com o conde de Rabbitwood e lhes haver jurado que ela não tinha feito nada, seu pai saiu correndo enquanto que sua mãe chorava sem consolo. Para onde tinha partido o destroçado pai? Para a residência que o atual duque de Rutland tinha em Southwark. Seu único propósito era lhe pedir clemência. Acreditou bobamente que este lhe ajudaria a salvar a honra manchada de sua filha, mas... o que fez o futuro duque? Nada. Não meditou nem um só segundo sobre o pedido de ajuda do barão, mas sim pensou que, como todas as damas que tinha conhecido em sua promíscua vida, mentia, e não quis questionar a reputação do bastardo de Rabbitwood.

Desde esse dia sua família começou a adoecer. Sua mãe, assídua de visitas e de festas, encerrou-se em sua câmara e não a abandonou nem sequer para realizar as funções humanas normais, o barão descuidou de suas responsabilidades e começaram a ter mais dívidas que riquezas. Finalmente, Beatrice decidiu atuar: escreveu-lhes uma nota onde lhes explicava que partia do lar para pôr fim à sua desventurada vida.

Viajou durante vinte e cinco dias. Umas vezes, graças à solidariedade de alguns viajantes, em carruagem ao lado do cocheiro, em outras ocasiões, andando. Tinha andado tanto que seus sapatos se romperam e teve que abandoná-los no caminho. Recordava que durante as longas horas de caminhada só tinha uma ideia em sua mente: chegar a Derbyshire e ocupar a pequena cabana que o duque possuía em seus territórios.

Em algumas conversações nas quais tinha estado presente, o principal tema era a riqueza das terras que herdaria o futuro duque de Rutland, e em alguma delas alguém comentou que tinha ido para caçar e que se resguardara da intensa chuva em uma pequena cabana perto do rio. Falou de quão abandonada estava apesar de encontrar-se nos limites mais ricos do terreno. Assim não o pensou, decidiu que ali permaneceria escondida o tempo que desejasse. Como o duque não lhe tinha assistido para esclarecer a verdade, ajudar-lhe-ia de maneira involuntária a ter um teto onde poder viver.

? Direi-lhes que subam a água quente... ? a suave voz da senhora Stone interrompeu suas meditações.

? Se não se importar, ficarei aqui até que tudo esteja preparado ? voltou a sorrir. Queria subtrair importância aos inesperados acontecimentos. Não podia fazer com que aquela boa mulher se sentisse desventurada pelo ocorrido. De repente, a senhora Stone se dirigiu para a porta e a abriu.

? Vá. Será melhor que o faça. Não se preocupe pelo senhor Stone. Direi-lhe que pensou melhor e recusou a oferta.

? Não partirei ? respondeu com um suave fio de voz. ? Farei o que me encomendaram. Necessito desse dinheiro, senhora Stone. Os lobos comeram minha última esperança de vida e quando retornar ao meu lar não terei nem um pedaço de pão para levar à boca.

? Isso tem solução! ? Exclamou a mulher com rapidez. ? Colocarei em uma bolsa comida suficiente para uma semana. Quando terminar, retorne.

? Não vou colocar em perigo seu posto de trabalho por cuidar de mim. ? Beatrice pousou uma mão sobre o ombro da mulher e o apertou com carinho. Então aconteceu algo que lhe surpreendeu. A cozinheira abriu seus braços e a apertou entre seu corpo com força.

? Você é uma menina... ? murmurou.

? Mas esta menina tomou uma decisão ? respondeu sem apartar-se dela.

? Há outras alternativas...

? Buscarei-as quando tudo isto tiver acabado. Mas necessitarei da sua ajuda ? murmurou apoiando a testa sobre o peito da anciã.

? Estarei ao seu lado quando precisar da minha presença, prometo-lhe isso.

? Obrigada ? disse ao mesmo tempo em que Hanna abria os braços e ela se apartava.

? Tem mais fome? ? Perguntou a anciã enquanto se dirigia para a despensa.

? Estou bastante satisfeita e acredito que depois do acontecido meu estômago não aceitaria nada mais.

? Seu estômago não poderá resistir a isto. ? Pousou uma bandeja tampada por um pano sobre a mesa e, orgulhosa do que estava a ponto de oferecer, colocou as palmas na cintura. ? É uma receita da minha mãe. Ela a herdou da minha avó. Antes o chamavam... como era? ? Pôs os olhos em branco tentando recordar o nome.

? Pudim! ? Gritou a moça ao apartar o pano que cobria o recipiente.

? Exato! Como sabe? Comeste-o alguma vez? ? Entrecerrou os olhos e a olhou com curiosidade. Se ela vinha de uma família humilde e mal tinha dinheiro para levar um pedaço de pão à boca, como sabia o nome de uma sobremesa tão deliciosa?

? Faz tanto tempo que nem o recordo... mas hoje vou rememorar esse maravilhoso sabor. Pode me dar um pedaço? ? Elevou o queixo para a mulher e sorriu como uma menina pequena.

? Coma o quanto quiser, se acabar farei outro. Tenho guardado na despensa muito leite, ovos e mel.

Beatrice emitiu um suave ruído de prazer quando tomou a primeira colherada. Fechou os olhos e se lembrou da última vez que se deleitou com aquele manjar. Enquanto isso Hanna recolhia em sua mente a resposta que lhe tinha devotado:

«Faz tanto tempo que nem o recordo...».


IV


Os criados não cessavam de murmurar sobre aquilo. Apesar de estar escondida em uma das habitações mais afastadas, pôde escutar os cochichos entusiastas de todos que caminhavam pelo corredor. Conforme descobriu, era a primeira visita que recebia o duque e supôs que esse acontecimento devia ser muito importante para todos os que habitavam na mansão. Entretanto, para Beatrice lhe resultou do mais normal que o reverendo e sua esposa fossem os primeiros em aparecer em Haddon Hall.

Depois de tirar a roupa e deixá-la de maneira descuidada sobre o chão, inundou-se na banheira e deixou que a água esquentasse seu corpo. Fazia muito tempo que não se banhava em um recipiente que albergasse por completo seu pequeno tamanho. Colocou a cabeça e conteve durante uns instantes a respiração. Quando a elevou, começou a rir. Sua mente, em vez de sopesar o que ocorreria se o duque demandasse com prontidão os serviços de sua nova concubina, pensou na conversação que estaria tendo lugar no salão principal. Estava muito segura de que sua Excelência desejaria finalizar o antes possível a visita para soltar os milhares de impropérios que reteria em sua cabeça após conversar com um reverendo tão impertinente. O certo era que ninguém em Derbyshire gostava do novo pregador. Foram à missa aos domingos para evitar falações sobre as possíveis causa de suas ausências em um dia tão famoso. Ela podia enumerar mil razões para não esbanjar duas horas de sua vida em uma reunião de tal índole, embora com uma lhe bastasse: não suportava os intermináveis e aborrecidos discursos. O reverendo em vez de atrair os paroquianos com histórias repletas de felicidade e esperança, centrava-se em quão trágica podia ser a vida quando o mal possuía uma pessoa, conduzindo-a para a libertinagem e a imoralidade.

Beatrice soltou uma enorme e sonora gargalhada. Esperava que não ocorresse ao extravagante personagem comentar à sua Excelência que o estado em que se encontrava era uma chamada de atenção do Todo-poderoso pela vida que tinha levado até aquele momento. Se tivesse um mínimo de consideração, coisa que duvidava, manteria-se calado e evitaria que o jogassem ao exterior como se fosse uma lixeira.

O que importa a ti o que digam àquele presunçoso? ? Perguntou-se enquanto subia e descia as pernas fazendo pequenas ondas na banheira. Além disso, não lhe vai mal que alguém lhe recorde que o culpado de sua desdita não foi outro senão ele mesmo.

Beatrice apoiou a cabeça na beirada da banheira e contemplou ao seu redor. A escuridão lhe produzia uma saudosa paz e bem-estar. Desde que tinha posto um pé na pequena cabana jamais apagava as velas. Dava-lhe muito medo não saber o que poderia acontecer ao seu redor, sem esquecer as feras famintas que uivava noite após noite em sua porta. Agarrou o sabão e voltou a impregnar seu corpo com este. As borbulhas formavam uma capa sobre a superfície da água e começou a brincar com elas. Então, sem saber o motivo disso, recordou o dia que conheceu a notícia sobre a volta do duque a Haddon Hall e a causa do mesmo.

? Você está certa disso? ? A chapeleira a quem estava acostumada a visitar para saber se alguém demandava os serviços de uma criada, perguntava a outra mulher com bastante entusiasmo.

? Muito certa ? respondeu a cliente em tom sério.

? Quando você disse que aconteceu? ? Continuou o interrogatório da chapeleira enquanto fazia um sinal à Beatrice para que não se movesse da sala dos fundos. Se aparecesse daquele jeito, a cliente fugiria apavorada e espalharia o rumor sobre as inapropriadas atitudes da chapeleira.

? Segundo minhas fontes, antes da primavera. O marido de uma de suas incontáveis amantes desafiou-o a um duelo de honra e o duque o aceitou entre brincadeiras ? prosseguiu a história ao mesmo tempo em que olhava e tocava os novos chapéus adquiridos para a próxima temporada.

? Entre brincadeiras? ? A chapeleira se aproximou de uma estante e agarrou uma caixa de cor branca, abriu-a e mostrou à mulher um chapéu de cor rosa com três grandes plumas azuis.

? O marido não media mais de... ? elevou a mão até o contorno de seu peito para assinalar a possível altura.

? Pobre duque! ? Exclamou a chapeleira tampando a boca escandalizada.

? Nunca se deve subestimar um adversário, por mais indefeso que pareça ? disse a mulher enquanto colocava o chapéu que lhe tinha mostrado.

? Eu acredito que o melhor é não esquentar o leito de outro homem.

? Você... não conheceu ao duque, não é? ? A mulher girou-se para a chapeleira com rapidez como se não pudesse acreditar em sua afirmação.

? Não, senhora. Quando cheguei a Derbyshire sua Excelência partiu à Londres. ? A chapeleira abaixou a cabeça ao ver a reação da mulher e estendeu seus braços para o chão.

? Entendo... ? Deu um suspiro, tirou-se o chapéu de cor rosada e pegou outro da cor de vinho tinto. ? Só lhe direi que ninguém, incluídos os homens que lhe rodeavam, podia deixar de admirá-lo. Era a perfeição, um ser sublime... ? colocou o último chapéu, olhou-se no espelho, colocou-o no lado direito e prosseguiu: ? E agora... é um monstro.

? Um monstro? ? Perguntou a chapeleira assombrada.

? Sim. Ali onde havia um rosto liso, macio e cuidado se encontram umas horrendas marcas. Dizem que são parecidas com as cordas que utilizam os piratas em seus navios. Também contam que deixou de mover o braço esquerdo. Agora... como poderá satisfazer os insaciáveis desejos carnais de suas amantes? ? Perguntou antes de soltar uma grande gargalhada. ? O que te parece? ? Inquiriu à chapeleira olhando-se de novo no espelho.

? Parece-me perfeito. Fica muito bem e acentua a palidez de sua pele ? respondeu a chapeleira sorrindo.

? Levarei esse!

Esteve a ponto de chamar a senhora Stone para que alguém voltasse a encher a banheira com água quente, mas pensou melhor. Era tempo de descansar. Quanto tempo fazia que não se agasalhava com suaves e perfumados lençóis? Beatrice secou o corpo com rapidez, enredou uma toalha no cabelo e caminhou muito devagar para a cama. Colocou os joelhos sobre esta e, sem pensar, equilibrou-se sobre os almofadões para inspirar com intensidade. O aroma de limpo impactou-a com força. Tudo parecia diferente depois do banho, até lhe resultou distinto o tato de sua própria pele. Girou-se e olhou para o teto de madeira. Era muito alto e rude, como tudo o que havia naquela mansão. Inclinou-se, pegou a ponta do lençol e se cobriu com ele. Precisava descansar um pouco antes que o empertigado senhor Stone aparecesse pela porta e a expulsasse.


Grunhiu várias vezes antes de conseguir abrir os olhos. Apesar de tentar com vigor, resultava-lhe impossível despertar do tranquilo e aprazível sonho no qual se inundou. Tinha visto sua mãe chamando-a da entrada para que fosse ao lar antes que a chuva a alcançasse. Beatrice galopava pelo campo, sorria ao ver sua mãe agitar a mão para que se dirigisse para ela. Então, no momento que descia do corcel e tentava subir as escadas, sentiu que alguém tocava seu ombro e a girava para a direção em que se encontrava...

? Senhora Stone... ? murmurou Beatrice ao descobrir a anciã ao seu lado.

? Perdoa-me se te assustei, mas levo bastante tempo batendo na porta e como não me respondia, preocupei-me. ? Hanna tinha sentado na cama e a olhava com ternura.

? Fiquei adormecida. Imagino que estava mais cansada do que imaginava ? respondeu inclinando-se e tampando sua magra figura com o lençol.

? Muitas vezes pensamos que nosso corpo não tem limites e não recordamos que somos seres humanos, não deuses. ? Levantou-se e caminhou para uma cadeira que havia junto à cama.

? O que acontece, senhora Stone? ? Quis saber a jovem ao notar certa inquietação na mulher.

? O duque decidiu solicitar os serviços de sua cortesã ? comentou com uma voz tão suave que a Beatrice custou descobrir o que havia dito.

? Tão cedo? – Ela puxou a ponta do lençol para continuar oculta embaixo deste e se dirigiu para a anciã. ? Acreditei que...

? Leva muito tempo sem ter uma mulher ao seu lado. A última que ofereceu seus serviços ficou em Londres ? indicou enquanto procurava algo de um baú.

? Tratou-a bem? Refiro a...

? Sua Excelência é um cavalheiro moça, e sua atitude é imaculada, adequada ao título que ele detém. ? Embora não quisesse que suas palavras soassem duras, foram-na e Beatrice pôde advertir que a senhora Stone adorava ao duque mais do que tentava mostrar. ? Nunca ? prosseguiu a cozinheira ao mesmo tempo em que mostrava a camisola que tinha obtido do baú ? necessitou dos serviços de uma concubina até depois do acontecido. Antes daquele momento, todas as mulheres estavam dispostas a deitar nos braços de sua excelência. No entanto, depois de ... ? tragou saliva incapaz de continuar com sua explicação devido à dor que lhe provocava falar daquilo.

? Conheço as sequelas que sofre o duque, senhora Stone.

Beatrice inclinou a cabeça e deixou que a mulher a vestisse.

? Foi uma tragédia para todos os que respeitam e servem ao senhor ? disse ao mesmo tempo em que esticava a camisola.

? Ouvi que esse destino o cultivou ele mesmo.

? Quem disse tal barbaridade? ? Hanna a olhou mostrando em seu enrugado rosto um notório aborrecimento.

? As infidelidades...

? E elas? Acaso eram mulheres respeitáveis? Cada noite, quando aquelas filhas do diabo pensavam que o pessoal de serviço estava adormecido, tocavam a porta da residência e com a desculpa de conversar com sua Excelência, tiravam-se as anáguas no próprio salão mesmo.

? Mesmo assim, se ele não tivesse aceitado os oferecimentos dessas libertinas...

? Acredito que ainda não conheceu um homem de verdade... ? resmungou. ? É sério que pensa que é fácil negar-se à tentação mais prazerosa que tem o ser humano?

? Senhora Stone! ? Exclamou assombrada. Não esperava que aquela doce e tenra anciã pudesse lhe falar de algo tão escandaloso como as relações carnais.

? O duque não te obrigará a fazer nada que não queira ? expôs depois de uns momentos de incômodo silêncio. ? Agora, se não se importar, eu gostaria de te escovar o cabelo. Tem-no muito enredado.

Podia sentir o coração lhe pulsar com intensidade na garganta. A senhora Stone a tinha deixado sozinha em frente à porta do quarto já fazia um bom momento e não tinha conseguido adquirir a força necessária para chamar. De verdade seria capaz de fazê-lo? Como ia manter a promessa que tinha feito à anciã? Seria inevitável não olhar o desfigurado rosto do duque e compará-lo com o que uma vez foi. Trataria-a bem? Seria atencioso com ela ou se comportaria como Rabbitwood? Apertou os punhos e a mandíbula. Não devia comparar ambas as situações porque não eram semelhantes. Agora sabia a razão pela qual era requerida, entretanto, a vez que ela entrou para responder à suposta chamada de seu apaixonado, encontrou a um homem sem escrúpulos, um torturador, um filho do próprio diabo. Ante tal lembrança, Beatrice começou a tremer. Podia escutar seus dentes batendo. O pêlo de seu corpo se arrepiava pelo medo.

Cem moedas... ? meditou para si. Cem míseras moedas que me oferecerão um pouco mais de tempo de vida, continuou pensando. Respirou fundo, esticou uma mão tremente para a maçaneta e a girou devagar.

A primeira palavra que surgiu em sua mente quando acessou ao quarto foi escuridão. A habitação estava muito tenebrosa. Mal podia distinguir onde se encontrava a cama do duque e nem muito menos onde se achava este. Tentou entrar um pouco mais arrastando os pés para não tropeçar. Sem se dar conta levou a mão direita para o cabelo e começou a enredar uma mecha com um dedo.

? Pode entrar ? escutou a suave e aveludada voz do duque.

Beatrice continuou sua marcha até que a distância entre os dois foi minúscula. Estava sentado sobre a cama esperando com paciência sua chegada. O corpo da jovem congelou. Suavam-lhe as mãos e sentia que mal corria sangue por suas veias.

? Aproxime-se – disse ele estendendo uma mão para ela. ? Não acredito que deva te explicar para que veio, não é? ? Beatrice assentiu. Tinha a cabeça abaixada tentando não olhar o rosto do homem a quem ofereceria um serviço que nem ela mesma sabia como iniciar. Seu cabelo cobria os ombros e a pequena mecha encaracolada por seu dedo começava a esconder-se entre os outros fios. ? Não albergue em seu coração a possibilidade de que entre nós exista uma relação afetuosa, só quero prazer ? prosseguiu, mas desta vez o tom tinha sido um pouco mais rude, menos quente. Como se lhe doesse expressar o que em realidade ocorreria essa noite.

A jovem levantou o olhar no mesmo momento em que a vela mais próxima a eles começou a mover-se pela suave brisa de seus gestos e deixou exposta a figura do homem. Tinha o cabelo mais comprido que na última vez em que o viu e tentava cobrir com este as marcas do rosto. Entretanto, essa rápida e fugaz olhada foi suficiente para que Beatrice apreciasse a deformidade da qual tanto falavam as pessoas. Não lhe pareceu tão horrenda e monstruosa. Parecia-se bastante à cicatriz que tinha sua mãe no ventre quando tiveram que tirá-la de suas vísceras. Embora, claro esta, para um homem tão bonito e para todas as suas famosas admiradoras, seriam aterradoras.

? Só prazer... sua Excelência ? murmurou Beatrice após escutar um grunhido do duque.

Como se um raio lhe tivesse atravessado o corpo, a jovem levantou a camisola e se despiu. Nesse instante o duque estendeu sua mão em volta de um dos seus seios e o apertou com força. Beatrice sentiu uma terrível dor, tão intensa que abaixou a cabeça para que ele não pudesse observar as dobras de sua testa e como apertava os dentes. Tentou serenar-se pensando que obteria uma boa bolsa de moedas que a ajudaria a sobreviver no mundo que Deus lhe tinha devotado.

? Faça com que eu te deseje. Finja algum interesse e faça por merecer o salário que obterá quando partir ? comentou o duque com voz sólida e grosseira, mais do que a jovem teria imaginado.

Então fechou os olhos e se ajoelhou para procurar o membro do homem e fazer o que aquela noite o conde de Rabbitwood a obrigou a praticar.

Encontrava-se no salão da senhora Baithlarin. Durante toda a noite tinha evitado qualquer aproximação masculina, não por descortesia, mas sim porque ela não desejava cercar uma conversação ingênua e oferecer uma esperança quando em realidade não a havia. Parecia que todo mundo se interessava em conhecer seus pensamentos, seus desejos, suas inquietações. Certamente, tanto sua mãe como as amigas desta tinham a esperança de lhe encontrar um bom partido, possivelmente por isso a mostraram aos possíveis candidatos como se fosse um bonito troféu a ganhar.

Mas Beatrice tinha o coração ocupado. Amava Leonel desde sua mais tenra infância. Entretanto, a diferença de classes fazia impossível o matrimônio, salvo se ela fugisse com ele como tantas vezes este lhe havia insinuado. Mas não era valente, jamais o tinha sido até depois daquela noite. Descobriu em mais de uma ocasião os azulados olhos do conde de Rabbitwood observando-a, admirando-a a distância tal como tinha feito em festejos anteriores e sem tentar ocultar dos outros aqueles olhares lascivos.

Tentou dançar com ela, uma valsa para ser exata, e graças às desculpas de sua mãe pôde rechaçá-lo com estilo e educação. Mas o sinistro conde de Rabbitwood elaborou um plano, um maquiavélico e ruim para o qual teve que indagar sobre sua vida e descobriu que havia outro homem.

Em um momento de descuido maternal, um dos criados lhe fez chegar uma nota, nela se dizia que seu amado Leonel se encontrava esperando-a na biblioteca da anfitriã. Foi tão grande sua ilusão e sua vontade de vê-lo que não se perguntou a razão pela qual um trabalhador de sua família tinha aparecido em uma festa de tal classe social. Esperou um momento para correr para o lugar designado. Seu coração palpitava pelo entusiasmo, pela emoção de vê-lo depois de uns dias de distanciamento.

Ficou parada na porta da biblioteca, alisou o cabelo e tentou não mostrar a euforia que sentia. Abriu, não sem antes jogar uma última olhada e confirmar que ninguém presenciaria seu encontro. Mas houve testemunhas, embora tivessem mais motivo para se esconder do que ela. O duque e a mulher com a qual tinha paquerado no salão se ocultavam sob uma das cortinas das imensas janelas do corredor. Escutou algumas risadas, alguns beijos mais sonoros dos que ela estava acostumada a oferecer ao seu amado. O tecido áspero se moveu com intensidade no momento em que escutou uns soluços. Não eram gemidos de dor, mais pareciam pequenos gritos emanados do interior dos corpos capturados pelo sexo.

Envergonhada pelo que tinha descoberto, entrou com rapidez e fechou ainda mais rápido a porta. Devido a sua agitação, o vestido fez um círculo tão amplo que tocou várias figuras de porcelana que havia na entrada. Abaixou-se para que não terminassem quebradas no chão. Ato seguido se incorporou e dirigiu o olhar para um corpo que se apoiava no respaldo de um sofá. Estava de costas para ela e por muito que tentasse comparar aquela silhueta com a de seu amado, ambas não correspondiam. Ficou sem fôlego quando o enigmático homem deu a volta e lhe sorriu. Em efeito, não era Leonel e sim o conde de Rabbitwood. O homem que não tinha deixado de olhá-la durante o baile e quem lhe sorria descaradamente.

Quis lhe perguntar por que a tinha enganado, mas em vez de enfrenta-lo decidiu fugir. Não conseguiu seu propósito. O conde correu para ela justo quando tinha a mão sobre o trinco. Recordou a resistência e como lhe cobria a boca para que não chiasse. Depois, uma folha afiada lhe apertou a garganta. «Cortar-lhe-ei se gritar», sussurrou-lhe enquanto apartava a mão de sua boca para conduzi-la ao decote e lhe descobrir os seios. Começou a chorar. Foi o único que se atreveu a fazer. Estava tão assustada que sua mente não era capaz de pensar com claridade. Rezou para perder a consciência quando percebeu que seu vestido se elevava e o homem se colocava atrás dela para possuí-la. Entretanto, manteve-se lúcida em todo momento. Durante mais de uma hora foi submetida a um sem-fim de atrocidades. Nesse tempo pensou que alguém sentiria falta dela e a procuraria. Imaginou que, apesar de ter seus olhos cheios de lágrimas, veria entrar o Leonel, que a salvaria daquelas mãos abomináveis, mas não foi assim. O tempo passava e ninguém aparecia para interromper sua agonia. Quando o conde se cansou dela, liberou-a. «Obrigado por sua companhia, foi um prazer ter este magnífico bate-papo com você, senhorita Montblanc», foram suas últimas palavras antes de deixá-la sozinha, atirada no chão, destroçada e... morta.

A lembrança do acontecimento mais aterrador de sua vida fez com que brotassem sem cessar milhares de lágrimas. Seguia com os olhos fechados e com o falo do duque em sua boca. Esteve a ponto de retirar-se e sair fugindo quando notou uma queimação em sua língua. Um líquido quente começou a vagar por sua garganta.

Quis vomitar, quis gritar. Mas igual àquele dia, não conseguiu fazer nada. Levantou-se e abaixou a cabeça. Seu corpo seguia tremendo, desejava tirar a agonia que sofria em seu interior de algum jeito, mas... como? Escutou algo. Não soube com claridade o que. Mas depois de observar que o duque se incorporava e se girava agarrando-se ao dossel de madeira, imaginou que a despachava de seu lado.

Com rapidez agarrou a camisola e a pôs enquanto as lágrimas seguiam nublando sua visão. Esticou a mão, girou a manivela para abrir a porta e então escutou um soluço. Não era como o que emitiu o homem quando estava sob a cortina, era mais um lamento. Sem saber a razão, girou-se para o homem e, durante um segundo, observou-o chorar. Sem atrever-se a dizer nenhuma palavra, abandonou a habitação, baixou as escadas e não parou até que se encontrou com o senhor Stone, que se encontrava junto à saída principal da mansão.

Agarrou com força a bolsa de moedas que lhe tinham prometido sem poder articular palavra, só queria afastar-se o antes possível dali, e quando escutou o ferrolho atrás de suas costas, estremeceu-se antes de pôr-se a correr agasalhada pela frieza da noite, não diminuiu a marcha até que entrou no bosque. Apoiou a palma da mão em um tronco e começou a vomitar. Expulsou tudo o que tinha no estômago, as lágrimas lhe ardiam e lhe doíam tanto como a folha afiada de Rabbitwood em seu pescoço. Voltou a recordar as coisas que aquele homem a obrigou a fazer, o sofrimento que sentiu quando a penetrou com rudeza e notou de novo como seu corpo se partia em dois.

Beatrice gritou enquanto seguia vomitando. Esforçou-se tanto em tirar aquilo que tinha em seu interior que caiu ao chão de joelhos. Tentou respirar, encher seus pulmões de ar, mas lhe resultou tão difícil controlar sua respiração que terminou desmaiando e caindo de bruços no chão.


V


Se seus cálculos não falhavam, estava em Haddon Hall pouco mais de dois meses. Mas não estava cem por cento seguro. Naquele lugar o tempo transcorria tão devagar que parecia não avançar. Não importava se passasse as tardes recebendo ou devolvendo visitas, todos os dias eram intermináveis e as noites, depois do dramático encontro com aquela moça, eram insuportáveis. Sempre se encontrava de mau humor, até o ponto de que nem ele mesmo podia suportar-se.

Possivelmente outro motivo para adotar aquela atitude fosse a inoportuna queda que sofreu ao subir as escadas da entrada. Não foi nada grave, conforme lhe informou o doutor que o atendeu, mas a partir desse momento teria que apoiar-se em uma bengala para evitar outra queda similar. Se antes do tropeço via a si mesmo como um inútil, agora, obrigado a usar o apoio de uma vara de madeira, sua opinião se acrescentava. Quais outros desastres lhe proporcionaria o futuro? Uma enfermidade que o deixasse prostrado em uma cama pelo resto de sua vida? Ou talvez tropeçasse de novo com tão má sorte que sua cabeça ricochetearia no chão e ficaria cego pelo impacto?

William caminhou seguro à sua bengala até a poltrona situada junto à chaminé, onde da janela observava o novo amanhecer. Algum servente tinha acendido o fogo e as chamas além de manter o ambiente quente, também proporcionavam a luz necessária para observar sobre a escrivaninha uma pequena montanha de missivas. Tinha que lê-las e as responder o quanto antes possível, mas não estava com humor. A verdade era que nunca estava com ânimo para fazer algo. Só queria fechar os olhos e, depois de abri-los, descobrir que todo o vivido tinha sido um pesadelo induzido por sua consciência. Entretanto, nunca era assim, quando elevava as escuras pestanas, seguia sem poder mover a mão, as marcas de seu rosto não tinham desaparecido assim como não cessavam aqueles surtos de dor depois do impacto. Esse seria seu futuro? Viver para desejar morrer? De verdade que não podia fazer nada para mudar o destino?

William fixou os olhos na intensidade das chamas e as associou à força que ele mesmo possuiu no passado: fortes, invencíveis, impossíveis de abater. Entretanto, se um de seus criados arrojava um caldeirão de água sobre aquelas vívidas chamas, apaga-las-ia no momento. Só ficaria carvão. Possivelmente uma ou outra brasa tentaria sobreviver à destruição, mas apesar do esforço jamais retornaria à intensidade do fogo inicial.

? Sua Excelência, ? Brandon apareceu levando uma pequena bandeja prateada sobre suas mãos e interrompeu com brutalidade a meditação do homem ? chegou o correio.

O homem deixou a bandeja em uma mesa junto ao duque e esperou de pé junto a ele se por acaso necessitasse sua perícia ao escrever para responder as cartas que necessitassem de resposta.

William as olhou pela extremidade do olho e passou a mão sã por elas esboçando uma careta. Ele optou pelo periódico e o colocou sobre suas pernas para lê-lo sem demasiado interesse, Londres e tudo o que concernia a ela já formava parte de seu passado.

Abriu o jornal em uma página ao azar e a foto de um Federith sorridente, exultante de felicidade com sua recém-adquirida esposa pelo braço, furou-lhe os olhos. Leu muito devagar a notícia que anunciava as núpcias do barão de Sheiton com lady Caroline Middelton na propriedade que possuía o nobre em Hemilton.

O periódico era de três semanas atrás e embora Federith já lhe anunciasse suas intenções antes que William abandonasse Londres, a notícia lhe caiu como um jarro de água fria. Franziu o cenho e a mão lhe tremeu um pouco antes de lançar o maço de papéis para o fogo.

? Más notícias, senhor? ? Perguntou o mordomo com assombro.

? Depende para quem ? respondeu tosco enquanto observava como o papel ardia.

? Se o desejar me retirarei para lhe deixar só ? indicou o homem ao mesmo tempo em que fazia uma reverência e tentava afastar-se.

? Não parta. Embora não me satisfaça a notícia, tenho que felicitar ao Federith por seu recente matrimônio.

? O senhor Cooper se casou? ? Disse com uma mescla de entusiasmo e incredulidade enquanto observava seu senhor uns instantes, tempo suficiente para perguntar-se por que a feliz notícia não lhe tinha agradado. Hanna teria razão? A verdade é que não estava acostumado a dar muita importância à sua esposa, quando falava sobre o amor e muito menos quando incluía nessas conversações o duque.

Segundo ela, quão único faria o jovem sair da letargia na qual se achava era encontrar uma mulher que o amasse e lhe desse o carinho que tanto necessitava. Insinuou em mais de uma ocasião que ter crianças brincando de correr pela mansão faria com que o senhor recuperasse a vontade de viver. Entretanto, ele conhecia o duque desde que saíra das vísceras de sua mãe e, por muito que sua mulher insistisse em que tinha razão, sabia que esse tipo de vida não era a adequada para ele. O homem tinha nascido para ser livre, para esquentar as camas de outros maridos, para observar as vidas familiares de outros à distância.

? Digamos que encontrou uma mulher à sua medida ? comentou William com maldade após refletir na resposta adequada. Logo dirigiu o olhar para as garrafas e fez um leve gesto com a cabeça para que Brandon lhe servisse uma taça.

? Deseja lhe responder, senhor? ? Perguntou o ancião enquanto enchia a taça de licor e a aproximava o suficiente para que o duque pudesse pegá-la.

? É óbvio! Responderemo-lhe agora mesmo. – Bebeu o uísque de um gole e elevou o copo para que seu mordomo o voltasse a encher. Brandon, mais assustado que assombrado, encheu de novo o copo de licor e, depois de oferecer-lhe, pegou um papel em branco e uma pluma para escrever.

? Meu querido Federith ? começou a ditar. ? Como bem sabe, sempre me satisfazem suas alegrias, embora muito me temo que esta não é tal. Não faz muito te expliquei que é dono de seu destino e, se Deus for justo, arrebatarár-te o que não te pertence. Não esqueça que meu lar terá as portas abertas quando aparecer chorando e afirmando minha verdade. Pode permanecer todo o tempo que desejar. Por certo, sabe algo do miserável do Bennett? Faz mais de três meses que não tenho notícias dele e isso me inquieta. Atenciosamente, William.

Brandon conteve a respiração em todo momento. Foi colocando sobre a folha cada palavra que escutava da boca do duque, ao mesmo tempo em que sua cabeça não cessava de lhe insistir que a pessoa que pronunciava aquela maldade não estava em plenas faculdades mentais. Eram daninhas, maquiavélicas, quando deveriam estar cheias de felicidade e bons desejos.

? Quer que a leia em voz alta? ? Perguntou o mordomo levantando do assento.

? Não precisa, sei o que eu disse ? respondeu com rudeza.

? Então, se sua Excelência me permitir isso, farei os arranjos para enviá-la esta mesma manhã.

? Antes de partir encha de novo o copo, está vazio. ? Levantou a taça para que Brandon a pegasse e obedecesse ao mandato.

Em silêncio, sem mostrar no rosto sua estranheza, o servente verteu mais uísque no copo, ofereceu-o ao seu senhor, fez a reverência e partiu. Quando fechou a porta, o ancião voltou a ler a nota que devia enviar, sem estar convencido de todo da idoneidade de seu conteúdo. Talvez Hanna pudesse deduzir o que acontecia na cabeça de seu senhor e chegar a uma conclusão lógica que explicasse aquele comportamento errático e malicioso. E com essa intenção guardou a nota no bolso de seu casaco e se dirigiu à cozinha.

William seguia observando o fogo sem sequer piscar através do líquido ambarino. Podia ver como o álcool dançava sobre o líquido alheio à possibilidade de que o jogassem sobre as ardentes chamas. Seria igual o inferno? Estariam dançando mulheres nuas entre as chamas do abismo infernal? O homem sorriu meio de lado. Sua mente começava a nublar-se com a rápida ingestão do uísque e agradeceu em silêncio que seu cérebro começasse a funcionar com aquela lentidão. Precisava evadir-se do mundo que lhe rodeava, sonhar de novo com o homem que uma vez foi. Possivelmente, se ao cabo de um momento o estado de embriaguez aumentasse, poderia deixar a bengala e caminhar sem apoiar-se nela.

Dirigiu o olhar para as garrafas, mas estavam muito longe para alcançá-las da poltrona, teria que chamar o Brandon para que as aproximasse.

— Maldito seja, William Manners, maldito duque de Rutland! ? gritou. ? Levante-se e faça-o você mesmo!

O homem apoiou com força as plantas dos pés no chão e se surpreendeu ao não sentir a dor que dias atrás sacudia seu corpo. Soltou uma grande gargalhada ao descobrir que o miserável estado de embriaguez lhe proporcionava a força que requeria para sentir-se forte de novo. Sem deixar de sorrir caminhou até onde se encontravam as garrafas de cristal de Murano. Agarrou uma ao azar e encheu a taça.

? Agora toca a ti, estúpida mão, começa a te mover por ti mesma.

Mas não obedeceu a ordem, seguiu estendida para o chão. Zangado, andou pelo salão dando voltas e bebendo sem parar. Cada vez que drenava a taça, enchia-a de novo. Ao cabo de um bom momento seu corpo se cambaleava sem controle e sua mente tinha perdido toda sensatez.

Aproximou-se da mesa, pegou a campainha e a agitou sem cessar.

? Sim, Excelência? ? Perguntou Brandon ao ser requerido com tanta urgência.

? Diga ao cavalariço que prepare meu garanhão, vou dar um passeio por minhas terras ? comentou entre balbuceios.

? Meu senhor... ? começou a dizer o mordomo.

? Não escutou meu desejo? Acaso a velhice começa a destruir seus ouvidos? ? Desafiou-lhe.

? Não, senhor, escutei bem. Mas se me permite um conselho...

? Não quero conselhos de ninguém! ? Exclamou elevando a mão que segurava o copo vazio e atirando-o para o chão.

? Sim, Excelência. Informarei ao cavalariço.

? Avise-me quando tudo estiver preparado – disse-lhe dando as costas para poder cravar de novo seus olhos no fogo.

? É óbvio. Deseja que seu ajudante de câmara o agasalhe adequadamente?

? Não. Será um passeio breve.

? Como desejar... ? Brandon se inclinou levemente para frente e com passo firme saiu do salão.

Respirou fundo após fechar a porta e em vez de sair correndo para as cavalariças retornou à cozinha, onde tinha deixado sua mulher resmungando pelas palavras tão inapropriadas que o duque tinha dirigido ao enlace de seu amigo.

? Quer sair para montar ? disse desesperado quando entrou na cozinha.

? O que?! ? Perguntou a mulher atônita.

? Ordenou-me que preparem seu garanhão. Deseja passear pelas terras ? prosseguiu.

? Terá lhe tirado essa insensatez da cabeça, não é? ? Hanna colocou suas mãos sobre a cintura e enrugou a testa.

? Não quer escutar. Acredito que bebeu muito...

? Agora mesmo vou dar aquele par de açoites que deveríamos ter lhe dado quando começou a apodrecer sua alma!

? Hanna! ? Gritou Brandon agarrando-a pelo braço para impedir que saísse dali. ? Temos que lhe deixar ver que não é o homem que uma vez foi. Ele deve assumir.

? E nós... o que faremos enquanto isso? ? Sua voz era suave, quase imperceptível.

? Rezaremos como tantas vezes fizemos quando lhe dispararam ? respondeu aflito.


VI


Beatrice se espreguiçou com um sorriso que iluminou seu rosto. De um tempo para cá dormia bastante bem e tudo se devia a uma singela razão: tinha o estômago cheio. Tinha comprado animais, cultivado verduras pelos arredores de seu pequeno lar e até tinha construído um cercado para que os lobos deixassem de aniquilar o gado. Tudo acontecia segundo o previsto. Nada perturbava aquela felicidade, salvo quando uns pensamentos impossíveis se fundamentavam, em como enfrentar o passado apareciam em sua cabeça. Tentava esquecê-los com rapidez, ainda não era o momento de pensar nisso e tampouco tinha ainda a força necessária para aparecer em Londres e lutar pela verdade, a sua verdade.

Apoiou os pés no chão e depois de esticar os braços decidiu tomar um bom café da manhã antes de sair ao campo. Depois das últimas chuvas, os arvoredos estariam repletos de cogumelos e desejava encontrar todos que coubessem em sua cesta para preparar suculentos manjares.

Depois de tirar a camisola e colocar-se um dos vestidos que comprou na semana anterior no povoado, caminhou para a pequena cozinha para tomar o café da manhã. O estômago não lhe rugia como antes, tampouco sentia aquela debilidade moribunda que lhe impedia de levantar-se da cama, agora estava cheia de vida.

Verteu chá em um copo e colocou um prato com ovos, verduras cozidas e duas fatias de pão. Quando se sentou observou surpreendida o que havia sobre a mesa. Sem dar-se conta tinha preparado o café da manhã preferido de sua mãe.

Àquele pensamento, à lembrança de sua mãe e à vida que desfrutou antes de ser manchada, entristeceu-a tanto que mal pôde dar um bocado.

«Algum dia, ? disse ? tudo voltará para a normalidade e aqueles que me julgaram carregarão o resto de suas vidas com a desgraça da condenação».

Mas... seria verdade? Retornaria de novo para lutar por sua honra? Estava escondida mais de meio ano do acontecido, pensou que se separando de sua família, dos olhares de compaixão ou de recriminação, poderia curar sua alma ferida e fazer-se suficientemente forte para voltar e suportá-lo, mas com o tempo estava se acomodando à vida que levava e cada vez se fazia mais longínqua à ideia de retornar ao lugar onde foi ultrajada. Como trocar uma vida cheia de tranquilidade e quietude por outra repleta de dor? Era certo que em muitas ocasiões Beatrice se sentia sozinha e tentava resolver essa sensação conversando com seus animais, mas exceto algum zurro, choramingação ou grasnido, não encontrava nada mais.

Zangada por entristecer um bonito dia com pensamentos dolorosos, jogou a cadeira para trás com as pantorrilhas, pegou tudo o que tinha sobre a mesa e o introduziu irada no tanque. Precisava sair dali o antes possível ou se voltaria louca. O isolamento não era tão bom como tinha suposto e embora lutasse com unhas e dentes para manter-se sã, estava justo no limite. Começava a tocar a loucura torturante com as pontas dos seus dedos.

Olhou de novo pela janela desejando confirmar se o tempo não tinha trocado e poderia abandonar a cabana. Em efeito, o sol seguia brilhando, convertendo aquele dia no perfeito para dar aquele passeio. Colocou a capa, agarrou a cesta de vime e saiu do lar com um sorriso no rosto.

Um cão... ? pensou enquanto caminhava. Seguia pensando em como eliminar o silêncio da casa. Seria um bom mascote, ocuparia aqueles momentos nos quais não sei com quem falar. Além disso, são fiéis e jamais me abandonaria, refletiu ao mesmo tempo em que agarrava o primeiro punhado de cogumelos que encontrou aos pés de uma árvore.

Seguia pensando no animal e em como chamá-lo quando um bando de pássaros voou entre as copas das árvores. Beatrice elevou o olhar e ficou observando a estranha atuação destes. Preocupada se por acaso lhe indicavam a cercania de algum perigo, agarrou com força a cesta e prosseguiu devagar. De repente, escutou outro ruído, tão intenso que a deixou imóvel. Apertou contra si a cesta e olhou para o lugar de onde procedia o som.

Um animal corria apavorado. Ia tão veloz que não distinguiu com precisão se era um cervo, um alce ou um cavalo perdido. Por que estavam os animais tão assustados? Só podia achar uma resposta a esse comportamento aterrador. Os lobos tinham retornado e rondavam pela zona, levavam noites uivando perto de sua cerca. Tinha se esquecido deles ao sair da casa tão desesperada por notar os raios de o sol lhe acariciar a pele. Assustada, decidiu caminhar para o rio Wye. Se chegasse logo ao trecho de máximo fluxo poderia introduzir-se na água e aguentar o tempo necessário até que aqueles depredadores decidissem afastar-se de uma possível presa.

O ruído dos ramos ao romper-se, o canto dos pássaros, a brisa do vento movendo as folhas... começaram a lhe criar um medo tão atroz que lhe adormeceram as pernas e esqueceu seu plano de dirigir-se para o rio. Seu lar era o lugar mais seguro. Custava-lhe respirar, avançar com fluidez. O pânico se apropriou de seu corpo e a tinha paralisado. Em um ato de fé, daqueles que não teve no acontecido com o Rabbitwood, fechou os olhos e começou a orar. Rezava para salvar-se, para que seu medo desaparecesse, para que brotasse aquela força que necessitava. Ao princípio rogou em silêncio, pouco depois o fez em voz alta, como se as orações fossem suficientes para espantar um possível mal.

Subiu uma pequena colina de onde pôde divisar a cabana. Ficava só uma centena de passos e se salvaria. Seu caminhar começou a ser agitado, precipitado. De repente notou a presença de algo atrás dela. Girou-se rapidamente para saber do que se tratava. Não havia nada. O medo lhe provocava alucinações.

Seguiu correndo olhando para trás, não queria parar. E então... aconteceu. Tropeçou em algo que havia no chão e caiu no barro. Durante uns instantes ficou tombada, cobrindo seu rosto com o cabelo manchado de lodo e sem poder elevar os olhos. Esperou o suficiente até que comprovou que não se escutava nada ao seu redor. Elevou-se com rapidez, agarrou a cesta e se dispôs a continuar correndo quando sua curiosidade lhe fez olhar para a razão de sua queda.

? Santo Deus! ? Exclamou ao mesmo tempo em que se aproximava do que se supunha ser um corpo e estendia os dedos fazendo com que a cesta retornasse à terra lamacenta.

Uma enorme capa escura e manchada cobria a figura de quem jazia estendido. Beatrice não o duvidou. Esticou as mãos para o tecido, apartou-o devagar para certificar-se de sua premissa e gritou:

? OH, Senhor!

Andou vários passos para trás, levou-se as mãos à boca e a tampou para não continuar chiando. Ficou tão atônita que, depois de confirmar quem tinha em frente a ela, não sabia o que devia fazer. Se fosse embora, se o deixava ali estendido; podia retornar à sua casa e esquecer que o tinha visto. Entretanto, o que pensariam no povoado quando descobrissem o corpo inerte do duque e a ela vivendo em suas terras de maneira clandestina? A única resposta plausível era que ele a encontrou por acaso e quis obrigá-la a partir de suas terras e como ela não desejava lhe obedecer, aproveitou sua invalidez para lhe dar fim. Questionariam-se como uma mulher tão pequena teria sido capaz de fazer tal maldade? Não, é óbvio que não. Além disso, se descobrissem sua identidade, a sentença não apresentaria dúvida alguma.

A única opção que tinha era averiguar se estava vivo e conduzi-lo até a cabana, prestar-lhe auxílio e quando amanhecesse, correr a Haddon Hall para pedir ajuda, embora isso lhe custasse à expulsão da qual tinha sido seu lar durante os últimos meses. Devagar, mais do que pretendia, aproximou-se do duque e o observou com atenção.

«Obrigado, Meu Deus!», murmurou ao céu quando percebeu que ainda respirava.

Nesse momento outro bando de pássaros voou com frenesi sobre eles. Sem pensar duas vezes girou o corpo inconsciente e o agarrou pelas axilas para arrastá-lo. Não havia tempo nem forma fácil de trasportá-lo, então o arrastou sem descansar até que suas costas tocou o cercado que rodeava seu lar. De repente escutou uns ramos se partirem. Levantou o olhar e os observou. Grunhiam e lhes mostravam os dentes. Seus olhos escuros se cravavam nela. Um lobo cinza deu uns passos para diante, levantou o focinho e uivou com força. Beatrice tragou saliva. Sentia o medo percorrer seu corpo, mas não se amedrontou. Prosseguiu sua façanha até que introduziu o duque ao interior da cabana e fechou a porta com o trinco.

Deixou-o estendido no chão enquanto procurava a maneira de subi-lo à cama. Compreendendo que não tinha nada que a ajudasse no árduo trabalho, decidiu pegar o colchão e situá-lo perto do ferido. Assim, quão único teria que fazer era rodá-lo até que estivesse em uma posição adequada. Antes de voltar a tocá-lo ficou de pé observando-o em silêncio. As marcas do rosto, aquelas que tanto tentava esconder com a longa barba, mostravam-se sem disfarces. Ao contempla-las com mais claridade, pensou que não eram tão horrendas como diziam, embora para um homem tão formoso, aquelas sequelas fossem feitas pelo próprio diabo.

Seguiu admirando-o à distância. Tinha um aspecto muito viril, robusto e atlético, muito distante, em sua opinião, da fraqueza em que todos insistiam na sequencia do incidente.

Com valentia voltou a segurá-lo e o girou de lado para colocá-lo sobre o colchão, afastando-o da frieza do chão. Ao pôr suas mãos sobre ele notou que estava gelado, a roupa molhada se grudava ao seu corpo e o esfriava sem compaixão. Decidida, aproximou-se da chaminé, colocou uns troncos e acendeu um fogo. Isso bastaria para esquentar a pequena habitação em que se encontravam. Enquanto as chamas começavam a brotar, voltou para o ferido e começou a lhe tirar aquela capa enlameada. O duque emitiu um pequeno gemido provocando que Beatrice se sobressaltasse e se apartasse. Não desejava que abrisse os olhos e a encontrasse tocando seu corpo. Poderia deduzir algo que não era.

Esperou sentada junto à chaminé outra reação do homem, mas ao ver que seguia inconsciente retornou para continuar lhe despojando dos objetos. Era a primeira vez em sua vida que se encontrava em uma situação parecida e embora não devesse sentir nenhum tipo de temor, estava tremendo. As mãos não eram capazes de desfazer o nó da capa, nem de lhe tirar com agilidade a jaqueta. O que lhe acontecia? Estaria lembrando-se da noite que passou com ele? Não, não era isso. Só estava nervosa se por acaso o duque abria os olhos e a descobrisse despindo-o. O que pensaria? Certamente que lhe estava roubando. Os homens de sua índole jamais imaginariam que alguém podia lhes ajudar por solidariedade.

Quando ao fim o deixou em camisa descobriu uma mancha de sangue que não tinha visto com antecedência. Devagar desabotoou cada botão até que o peito ficou descoberto e pôde inspecionar a zona de onde brotava o sangue, era uma ferida que abrangia do flanco esquerdo até o ventre, uma zona que ao duque lhe teria sido impossível proteger com seu braço inútil. Beatrice não pôde evitar olhar o torso com assombro. Era a primeira vez que descobria o que se escondia sob as roupas de um homem. Nunca pensou que fosse tão robusto, nem que nessa zona o pêlo crescesse tão escuro e encaracolado. Mas o que lhe deixou sem fala foi o tamanho dos mamilos, eram diminutos, mal visíveis à primeira vista. Sem meditar mais sobre isto, incorporou-se, preparou uma panela com água fervendo e começou a limpar o corte com supremo cuidado. Não era profundo, só um arranhão muito comprido.

Cada vez que passava o pano o homem franzia o cenho e se queixava, embora não abrisse os olhos. Depois de seus cuidados, sentou-se de novo junto à chaminé. Estava muito cansada por todo o ocorrido. Não só seu abatimento era físico, mas também mental. Ela podia ter salvado a vida do duque de uma morte segura, pois se o tivesse abandonado, os lobos teriam se alimentado dele. Mas este ato de misericórdia teria consequências nefastas para ela, deveria abandonar o lugar que chamava de lar. Um lugar que lhe contribuía com paz, quietude e esperança de não voltar a ser a mulher que foi.

Sentada, estendeu as pernas, cruzou os braços, apoiou a cabeça na parede e deixou que o sono se apoderasse dela.


VII


Doía-lhe todo o corpo, inclusive a parte que era insensível. Elevou com pesar as pálpebras e não soube reconhecer onde se encontrava. Quão último recordava era que seu cavalo se assustou no bosque, justo antes de chegar ao rio Wye, e tinha começado a correr sem controle. Tudo aconteceu bastante rápido. As cintas que o sujeitavam à cadeira se partiram e durante um tempo esteve amarrado ao estribo do animal desenfreado até que ao final caiu ao chão. O golpe foi tão potente que foi incapaz de assimilar o acontecido durante uns momentos. Quando compreendeu o ocorrido tentou arrastar-se pelo chão transformado em lamaçal. Apesar de seu esforço, mal conseguiu distanciar um metro de onde havia desabado. Depois gritou pedindo auxílio, mas ninguém respondeu. Exausto pelo esforço terminou perdendo os sentidos. E agora, ao despertar daquela agonia, achava-se em um lugar que não conseguia distinguir.

Moveu a cabeça para a direita e observou uma mulher sentada no chão a menos de um metro dele. Tinha um aspecto lamentável: o barro cobria cada centímetro de tecido de seu vestido assim como seus sapatos. Dirigiu os olhos para o rosto da moça para tentar reconhecê-la, mas foi impossível. Uns largos cachos negros soltos de um coque tampavam seu semblante. William franziu o cenho ao compreender que a desconhecida dormia no chão apoiada sobre a parede e claramente, exausta pelo cuidado que dava a ele.

? Desculpe... ? sussurrou após respirar várias vezes e procurar uma palavra adequada para não sobressaltá-la.

? Já despertou? ? Perguntou Beatrice dando um salto.

Sem esperar a resposta do homem aproximou-se e lhe colocou uma mão sobre a testa. Nesse momento William fechou os olhos, não queria ver no rosto da mulher, sua expressão de angústia quando contemplasse suas cicatrizes.

? Parece que não tem febre. Foi uma sorte que o tenha encontrado antes que pudesse adoecer ou acabar devorado por... ? deixou sem finalizar a frase. Levantou-se, aproximou-se da mesa onde tinha o pano com o qual o tinha limpado e, depois de ajoelhar-se, voltou a lhe limpar o peito, o pescoço e o rosto. ? Terá que ficar um tempo de repouso, embora as feridas não sejam graves, necessitam de uns dias tranquilos para que sarem adequadamente.

O tom da jovem era tão terno que o duque fechou de novo seus olhos. Desejava com todas as suas forças que aquela imagem, em que uma mulher o cuidava sem sentir asco por suas feridas, não fosse uma alucinação.

? Onde estou? ? Ao sentir o suave tato da mão feminina pela zona na qual seu rosto estava destroçado, William abriu os olhos e, sem pensar agarrou-lhe com força pelo pulso para que cessasse imediatamente.

? Em minha casa. ? Beatrice o olhou apertando os olhos para a pressão daquele aperto forte. Não esperava que lhe agradecesse por lhe haver salvado a vida, mas tampouco imaginou que lhe ocorresse ser um mal educado.

William, ao ser consciente de seu inoportuno ato, soltou-a e tentou incorporar-se, mas ela o impediu colocando uma palma sobre o peito nu do homem e lhe obrigando a recostar-se de novo. O cabelo negro se estendeu pelo colchão. Sua respiração não era tranquila e Beatrice podia ouvir o tilintar das botas do duque ao golpear-se.

? Deve recuperar-se... seu... senhor.

? Eu gostaria de lhe informar sobre certas feridas do meu corpo. Quero lhe esclarecer que não foram causadas recentemente... ? seu tom soou débil, inclusive triste.

? Mas apesar disso deve descansar. ? Levantou-se e se dirigiu para um caldeirão metálico que tinha muito perto do fogo. Colocou uma concha de sopa e tirou algo que introduziu em uma terrina. ? Acredito que isto lhe virá bem... ? retornou para o homem, agachou-se, colocou seu braço esquerdo ao redor do pescoço masculino, inclinou-o para frente e pôs uma pequena superfície da borda sobre os lábios. ? Não tem nada a ver com os ricos manjares aos que imagino que você deve estar acostumado, mas este caldo lhe reconfortará. ? E antes que o duque pudesse negar-se, Beatrice o fez tomar.

William esticou a mão para o recipiente e ajudou à moça. Era certo que não tinha provado nunca um sabor igual, embora a necessidade de alimentar-se e de recuperar um pouco de força fez com que bebesse até a última gota sem mal respirar. A jovem voltou a estendê-lo sobre o colchão enquanto ia de um lado para outro. Estava inquieta e ele a compreendia. Tinha em sua casa a um estranho que mal podia mover-se e que parecia ter a obrigação moral de cuidar.

? Quando chegará seu marido? Devo lhe indicar onde resido. Ele poderá informar aos meus criados do meu paradeiro e estou seguro de que não demorarão em vir por mim. Agradeço-lhe tudo o que tem feito, entretanto você entenda que não desejo ser uma carga... ? disse-lhe sem apartar a vista de quão único alcançava a ver, seus tornozelos.

? Meu... quem? ? Deu uma volta sobre si mesma com brutalidade, provocando que sua saia se elevasse algo mais do devido e que o duque descobrisse umas magras pantorrilhas sem meias.

? Seu marido... a pessoa que haverá me trazido até aqui ? esclareceu.

? Não há tal marido, senhor. Fui eu mesma quem o transladou. ? Colocou-se em frente a ele com as mãos apoiadas em sua cintura.

? Você carregou o meu peso? ? Perguntou assombrado e um tanto sufocado. Aquela moça não era muito alta e, notavelmente magra, mais do que se podia esperar em uma jovem de sua idade.

? Pois sim. Encontrei-o no meio do bosque e decidi lhe salvar a vida, embora possa lhe assegurar que quase me custou a minha ? sorriu.

Quando William a observou sorrir acreditou ver um anjo. Um despenteado e sujo anjo que tinha cuidado de seu rosto e não tinha encontrado nele nem um ápice de repulsão por seu deformado aspecto. Pareceu-lhe tão implausível para ele que acreditou que o golpe lhe tinha causado visões. Desde quando alguém não apartava seus olhos ao estar ele presente? Desde quando alguém o olhava sem dirigir os olhos para a cicatriz, para franzir o cenho?

? Então... devo lhe agradecer o esforço que realizou para me salvar ? disse após sua reflexão. Tentou levantar-se de novo e arqueou as sobrancelhas ao ver que seu torso estava nu. Desviou o olhar para a mulher e esta se ruborizou imediatamente.

? Tive que limpar a ferida que se fez no abdômen. Como imaginará, tive que apartar a roupa – desculpou-se.

? Obrigado ? disse depois de uns momentos de silêncio que empregou para saber como deveria continuar a conversação. ? Se por acaso não se deu conta, sou um incapacitado. Não posso mover a mão esquerda, mas não foi por causa da queda, faz tempo que deixou de funcionar. Minha perna... bom, ela tenta recuperar um pouco de funcionalidade depois de um inoportuno tropeção em meu lar.

? O que lhe aconteceu? ? Colocou-se ao lado da chaminé onde podia contemplá-lo com maior claridade.

? Como já lhe expliquei, isto aconteceu faz bastante tempo...

? Refiro-me a hoje. Por que estava caído no chão? ? Interrompeu-lhe.

? Decidi cavalgar durante um momento. Minha intenção era chegar até o rio Wye e retornar, mas meu cavalo se assustou e... bom, eu fui jogado. ? Suspirou e olhou para o teto enquanto se perguntava uma e outra vez por que dava explicações a uma estranha. Jamais as tinha dado a ninguém. Entretanto, ela era especial. Era um ser divino que o tinha salvado de uma morte segura.

Beatrice o olhou sem piscar. Tinha uma vontade incrível de lhe gritar como era insensato, mas não o fez, manteve-se calada esperando que o duque continuasse, mas ele se manteve em silêncio.

? Há lobos pela região ? explicou para romper o mutismo entre ambos. ? Talvez seu cavalo se assustasse ao escutá-los e atuou preso do medo.

? Pode ser... ? respondeu sem apartar a vista do teto.

? Assim que se encontrar melhor irei procurar ajuda. Estou segura de que alguém estará preocupado por seu desaparecimento. ? Voltou a aproximar-se e lhe abotoou a camisa para que não se sentisse incômodo por sua nudez. Ou possivelmente era ela a que se encontrava nervosa.

William quis fechar os olhos e sentir o suave tato das mãos sobre ele, mas lhe resultou impossível. Desejava observar com atenção a sua salvadora e, embora tivesse o cabelo despenteado e sujo assim como o rosto, pôde admirar a beleza de seus olhos. Uns olhos verdes que não apartavam o olhar de seu rosto nem mostravam repulsão ante a fealdade de suas cicatrizes.

? Posso lhe perguntar seu nome? ? Inquiriu William quando ela retornava para a chaminé.

? Meu nome é Beatrice ? respondeu.

? Só Beatrice?

? Beatrice Brown ? mentiu.

? Senhorita Brown, ? disse o duque com um tom sério e firme ? como compreenderá, estou em dívida com você e seria um cretino se não a saldasse.

? Não precisa me prometer nada...

? Sou o duque de Rutland e por minha honra oferecerei-lhe tudo aquilo que desejar. Se por acaso não se deu conta, salvou-me a vida.

? Não necessito de nada... ? murmurou com suavidade.

? Não quero que me responda agora, não é necessário. Mas quando decidir o que me pedir, estarei encantado de escutá-la ? insistiu sem relaxar aquele tom de venerabilidade.

À Beatrice não cabia dúvida da veracidade da promessa embora não acreditou oportuno lhe dizer que vivia em uma propriedade dele e precisava seguir permanecendo ali durante o resto de sua vida. Para evitar que o homem continuasse falando com tanta seriedade, desenhou um sorriso em seu rosto e disse:

? Possivelmente a queda lhe tenha prejudicado mais do que parece. Como mínimo, deve ter lhe afetado o ouvido. Faça o favor de descansar. Por agora é o único que lhe peço.

? Juro por minha honra...

? Shhh ? avançou para ele, pôs-lhe um dedo nos lábios e lhe fez calar. Não queria escutar promessas que não se poderiam cumprir. Estava aturdido e uma pessoa em dito estado de choque poderia falar mais do que o imprescindível. ? É melhor que durma, precisa descansar um pouco mais.

William a olhou sem saber se ria ou zangava-se. Não fez nem um nem outro, ficou observando-a durante uns instantes. Finalmente fechou os olhos e se obrigou a dormir. Embora antes de deixar-se sucumbir pelo sono se perguntou quando tinha sido a última vez que havia sentido tanta paz e desde quando era incapaz de replicar as ordens de uma mulher. As respostas surgiram com rapidez, desde que a dita mulher lhe tinha salvado da morte, não lhe tinha cuidado com repulsão e o tratava com ternura.

Beatrice esperou até que escutou a respiração profunda do duque.

Caminhou para a janela e descobriu que os primeiros raios de sol começavam a surgir atrás das montanhas. Era o momento ideal para ir à Haddon Hall e comunicar o paradeiro do duque. Estava segura de que todo mundo estaria angustiado pelo desaparecimento. Teriam começado uma busca conscienciosa e se ela não chegasse o antes possível para lhes explicar onde se encontrava, logo seu lar se veria repleto de desconhecidos que a interrogariam sobre por que vivia em um lugar que não lhe pertencia.

A angústia que sentiu ao imaginar-se nessa situação lhe criou tal impaciência que só se atrasou em pegar sua capa e correr para a residência. Durante o caminho sopesou a atitude que teria o senhor Stone ao vê-la. Esticar-se-ia como um pau, ordenaria que salvassem ao senhor das garras de uma camponesa desalinhada e a reteria na mansão até que descobrissem a verdade. Não podia permitir que a acusassem de algo que não tinha feito, então decidiu que após dar a notícia correria para seu lar para fechar a porta e esquecer tudo o que tinha acontecido.

Como sempre, a magnitude do edifício a deixou perplexa. Não entendia como um paraíso podia albergar um lar tão austero. Quanto mais se aproximava, mais calafrios sentia. Esfregou-se os braços para dar-se um pouco de calor e começou a subir as escadas. Ao chegar à porta principal começou a golpeá-la com força. Depois de vários intentos sem ser atendida, decidiu tentar a porta de serviço. Se não se equivocava, a senhora Stone estaria na cozinha e a escutaria com prontidão. Andou devagar tentado descobrir se surgia da escuridão alguém com quem falar, mas só havia silêncio, um estranho e horrendo silêncio.

? Menina! ? Exclamou a senhora Stone ao vê-la. ? O que faz aqui?

? Bom dia, senhora. Preciso falar com o senhor Stone ? respondeu com voz equilibrada.

? Retornou para...?

? Não! ? Respondeu com prontidão ao mesmo tempo em que suas bochechas se enchiam de uma intensa cor vermelha.

? Pois, querida, o senhor Stone não pode te atender. Aconteceu algo bastante dramático em Haddon Hall e...

? O duque está em minha casa – interrompeu-lhe.

? O que está dizendo, moça? ? Os olhos inchados da anciã devido ao intenso pranto que teria tido enquanto o duque estava desaparecido, abriram-se de par em par.

? Encontrei-o caído no meio do bosque. Quando compreendi que estava vivo o arrastei até meu lar e o estive cuidando após ? explicou Beatrice.

? Obrigado, meu Deus! ? Clamou antes de lhe dar um forte abraço e enchê-la de beijos. ? Muito obrigada, criatura do Senhor, por salvá-lo. ? Depois de uns momentos nos quais Beatrice mal conseguia respirar, a mulher a liberou e correu para a porta gritando: ? Senhor Stone! Senhor Stone!

? O que acontece? A que vêm esses gritos? ? Tal como se tinha imaginado, o mordomo apareceu na cozinha erguido e mal-humorado. Ao ver a jovem entrecerrou os olhos e lhe disse: ? O que faz aqui? Não teve o suficiente com aquela noite? Acaso gastou o dinheiro que ganhou e vem procurando mais?

? Brandon! ? Gritou Hanna zangada. ? Por que é tão...?

? Tão? ? Arqueou as sobrancelhas e uniu com suavidade as pestanas.

? A jovem veio até aqui para nos informar sobre nosso senhor. Ele está são e salvo. Encontrou-o no bosque e o esteve cuidando ? esclareceu a anciã sem mal tomar fôlego.

? Onde está? ? Exigiu sem baixar a intensidade de seu tom.

? Está em minha casa ? anunciou abaixando a cabeça. As duras palavras do mordomo sobre o acontecido aquela noite lhe tinha criado um grande pavor.

? Diga-me agora mesmo onde se encontra sua Excelência! ? Exclamou com ira.

? Vim até aqui por vontade própria. Acreditei que estariam preocupados com o destino do duque e quis lhes informar que se encontra bem.

? Onde está? ? Repetiu Brandon com os dentes apertados. Aproximou-se tanto de Beatrice que esta teve que dar vários passos para trás para que não conseguisse roçá-la.

? Na pequena casa que há no bosque. É o... ? murmurou devagar.

? Refúgio de caça ? terminou a frase. ? Está bem, mandarei vários criados com a carruagem e espero, por seu bem, que se encontre em ótimas condições porque do contrário...

? Não desejo escutar nada sobre isso, ? agora foi ela quem não lhe deixou terminar a frase ? vim voluntariamente lhe indicar onde se encontra.

Brandon a olhou irado. Girou-se para a porta para ordenar a outros criados que se preparassem para ir procurar ao senhor e quando retornou à cozinha com a intenção de apanhar a moça, já não estava.

? Por que não impediu que se fosse? ? Perguntou zangado à sua mulher.

? Pensa que minhas pernas podem correr como os galgos? Além disso, não crê que se comportou como um idiota, meu querido? Ela só veio nos informar sobre o paradeiro do duque e você a tratou como uma criminosa.

? Mas...

? Não tem “mas”! ? Exclamou levantando a mão para lhe fazer calar. ? Hoje não espere nenhum tipo de afeto em nosso quarto. Prefiro, se não quiser cair do colchão durante a noite, que durma em outra habitação. ? Depois de ameaçá-lo, girou-se sobre seus calcanhares e seguiu prestando atenção à comida que estava cozinhando.

Beatrice chegou, como era de se esperar, antes dos criados. Abriu devagar a porta de seu lar e se assombrou ao ver que o duque estava sentado sobre o colchão e olhava o fogo. Este, ao escutar que alguém acessava ao interior da casa, moveu a cabeça para sua direção.

? Foi à Haddon Hall para lhes avisar? ? Perguntou sem mostrar em seu rosto nenhum tipo de emoção.

? Sim ? respondeu enquanto se aproximava e se colocava em frente a ele. Sua respiração era agitada devido ao esforço da corrida. Tomou ar de maneira pausada, acalmou-se e continuou: ? Estão vindo para cá. Eles lhe cuidarão como merece. Penso que eu não posso lhe oferecer muito. Tenho poucos recursos...

? Andou até Haddon Hall... sozinha? Apesar de me haver indicado que há uma manada de lobos rondando no bosque? ? William estava zangado. Mais do que se havia proposto.

Um momento depois de recostar-se escutou a porta, despertou e, por muito que a tinha chamado para que não partisse, não o conseguiu. Nesse momento tentou levantar-se, mas o único que pôde fazer foi sentar-se naquele roído colchão e esperar que o tempo passasse. Sua incoerente ação não só tinha posto em perigo a ele mesmo, mas sim também tinha arrastado a pessoa que o tinha salvado de uma morte inevitável. Zangou-se por ser tão irracional. Zangou-se por deixar-se levar pela ira, por ter tomado mais álcool do que o acostumado. Zangou-se por tudo o que tinha feito no passado e suas consequências.

? Não se preocupe comigo, Excelência. Estou acostumada a contornar certos perigos. ? Tirou-se a capa e a colocou sobre uma cadeira.

? Mesmo assim, você é uma inconsciente ? disse com aborrecimento.

? Uma inconsciente? ? Beatrice entrecerrou seus olhos e franziu o cenho. ? De verdade que um homem como você é capaz de me definir de tal maneira? Acaso fui eu quem decidiu cavalgar depois de vários dias de chuva e com limitações? ? Fechou com rapidez a boca. O que menos desejava naquele momento era lhe recordar àquilo que lhe tinha destroçado a vida. Entretanto, ao ver que o duque cravava o olhar no chão soube que suas palavras lhe tinham feito mal, mais do que pretendia.

? Você tem razão... ? sussurrou William. ? Por isso quero que recorde que tenho uma dívida pendente com você e eu gostaria de saber no que posso ajudá-la. Se for possível, antes que eu parta.

? Só preciso ficar sozinha... ? murmurou muito devagar.

Girou-se para a chaminé dando as costas ao homem e esticou as mãos para esquenta-las.

William se dispunha a replicar suas palavras quando a porta se abriu com brutalidade e apareceram duas pessoas. Uma delas era o cavalariço e a outra, seu ajudante de câmara. Ficaram olhando-os durante uns instantes esperando que alguém lhes ordenasse o seguinte passo.

? Sairei para que o assistam como é devido ? comentou Beatrice abaixando a cabeça e dando uns passos para a saída.

Nesse momento, sem saber por que, jogou uma última olhada ao duque, que a olhava sem pestanejar. Seu cenho permanecia franzido e apertava com força a mandíbula. Sem dúvida alguma o homem se zangou ao não obter a resposta que desejava, mas ela não queria adiar por mais tempo a partida. Desejava com todas as suas forças que a normalidade reinasse em sua vida, precisava apartá-lo o antes possível porque sua presença não lhe fazia nenhum bem.

Continuou andando e fechou a porta após sair. Sentou-se nas escadas de pedra e tampou o rosto. Não queria pensar em nada, mas mesmo assim a mente não parava de meditar sobre os infortúnios da vida. Em um passado quando seu pai foi rogar o auxílio do duque e este se negou arrogantemente e agora, o mesmo homem que não quis escutar sua versão dos fatos, rogava-lhe que lhe pedisse algo para saldar sua dívida e conseguir a paz. Seria uma opção acertada lhe pedir que lhe devolvesse sua vida? Pouco depois os homens saíam e William se apoiava em um deles para poder caminhar. Beatrice se levantou para lhes facilitar o acesso. Quando passou por seu lado, o duque fez com que parassem.

? Temos uma conversação pendente, senhorita Brown. Direi a um dos meus criados a que venha recolhê-la o mais cedo possível.

? Não temos nada do que falar, milord ? disse abaixando a cabeça. ? Não me deve nada.

Os criados entenderam que a conversação tinha finalizado e continuaram sua marcha até a carruagem. Elevaram ao duque para sentá-lo corretamente. William jogou a cabeça para trás e depois de fechar os olhos pensou: «Só lhe devo minha vida, senhorita Brown».


VIII


? Está seguro? ? William tomava o café da manhã enquanto escutava com atenção ao Brandon. Este lhe explicava que o criado enviado para que acompanhasse a senhorita Brown até Haddon Hall retornava outra vez sozinho.

? Sim, sua Excelência ? afirmou o mordomo depois de um sopro suave. A tarefa, apesar de parecer bastante singela, estava sendo uma verdadeira agonia.

? É uma mulher muito teimosa. Quantas vezes foram em sua busca? ? Pegou a xícara de chá e a levou para a boca para ocultar o enorme sorriso que desenhavam seus lábios.

Aquele comportamento não era de se estranhar, e mais, se ela tivesse aceitado algum de seus convites o teria desapontado. Só uma pessoa com caráter firme seria capaz de albergar um estranho em seu lar sem pensar na repercussão que dito ato de valentia podia supor. Além disso... desde quando uma frágil moça salvava a vida de um desconhecido pondo em perigo a sua?

? Contando com a de hoje, sete. Os dias que você está em casa desde o infortúnio ? esclareceu.

? Bom, então acredito que a melhor opção é me apresentar ante a senhorita Brown e lhe perguntar o motivo de suas contínuas negativas ? indicou pousando a xícara sobre o prato e empurrou a cadeira para trás para se levantar.

Pegou com força a bengala e caminhou para onde se encontrava o mordomo. Tinha decidido visitá-la quando a terceira negativa chegou até seus ouvidos. Entretanto esperou recuperar-se de tudo para mostrar um aspecto ótimo. Não queria que a mulher continuasse acreditando que ante seus olhos se encontrava um ser débil, frágil. Desejava que admirasse a pessoa que em realidade era, ao duque de Rutland, um homem com caráter, firmeza, força e com energia suficiente para assumir as consequências de seu destino.

William estranhou sua repentina mudança de atitude. Desde quando o duque de Rutland tinha despertado de sua profunda letargia mental? Possivelmente a resposta se escondia nela e, se era assim, precisava encontrar o antes possível o por que.

? Diga ao cavalariço que prepare um cavalo. Partirei quando o ajudante de câmara me vestir para a ocasião.

? Como desejar, sua Excelência.

Brandon, apesar de ter uma vontade imensa de rebater aquela ideia, não estava lá para impedir os desejos de seu senhor. Além disso, tantos anos ao seu serviço ofereciam a experiência necessária para compreender que as decisões do duque não podiam ser questionadas. Ele tinha nascido teimoso e, se Deus velasse por sua vida, morreria sendo-o.

Enquanto o criado lhe ajudava a vestir-se, William pensava na forma mais correta de iniciar uma conversação com sua salvadora. Agradeceria ou lhe perguntaria o que fazia vivendo em seus domínios? Esse mesmo pensamento tinha estado perturbando-o durante a semana que esteve recuperando-se. Sua preocupação não se devia a que a moça habitasse em um lugar de suas terras, graças a isso ele sobreviveu. Mas se perguntava uma e outra vez como tinha chegado até ali. Teria se perdido? Ou talvez... tinha-lhe acontecido algo tão dramático que decidiu abandonar seu autêntico lar.

«Só preciso ficar sozinha». Essas tinham sido suas palavras quando ele insistiu em que lhe devia um favor e que podia lhe pedir o que ansiasse. Por que uma jovem que não devia ter mais de vinte anos vivia sozinha à mercê dos infortúnios de uma vida campestre? Se tivesse sorte, coisa que duvidava, porque começava a conhecer o temperamento da senhorita Brown, suas perguntas seriam respondidas.

? Bom dia, senhor. Seu cavalo está preparado ? explicou o criado quando percebeu que a esbelta figura do duque aparecia pelas cavalariças.

? Espero que desta vez as cintas não se rompam ? apontou William ao mesmo tempo em que se dirigia para o animal eleito.

? São correias novas, sua Excelência – indicou-lhe o criado sem lhe olhar nos olhos. ? Têm o dobro de grossura e proporcionam uma amarração mais segura.

? Bem... ? disse mal reparando na explicação do jovem.

Com passo firme aproximou-se do corcel e esperou que o criado lhe ajudasse a subir. Quando esteve sobre o cavalo e não sentiu a segurança que lhe proporcionava seu garanhão, perguntou ao criado:

? Continuam a busca pelo Dalión?

? Sim, meu senhor. Mas não há rastro dele. Parece que a terra o tragou...

? É mais fácil ter sido devorado por uns malditos lobos... ? murmurou com os dentes apertados antes de açular ao animal.

Depois de amaldiçoar a sorte pelo penoso destino que teria vivido o cavalo, pensou em Beatrice, na solidão em que se encontrava e na facilidade que teriam aqueles depredadores para assaltá-la. A mera ideia de que ela sofresse alguma briga violenta com estes, produziu-lhe tamanho aborrecimento que notou como o coração palpitava em sua garganta. A ira surgida só o fazia pensar em uma coisa: tinha que arrastá-la até Haddon Hall. Não podia deixá-la à mercê do nada.

Crê que aceitará sua proposição com um sorriso? ? Refletiu sem diminuir a marcha. Acaso imagina a senhorita Brown recolhendo seus petences e montando-se na garupa do cavalo enquanto te agradece o oferecimento? Não, ela não abandonará esse lugar jamais.

Mas apesar de saber que a negativa seria sua única resposta, ele como bom jogador, tinha um ás na manga. Um ás que seria a melhor alternativa para ambos: dar-lhe-ia de presente a cabana, onde poderia desfrutar de sua ansiada solidão, só se ela aceitasse passar uma temporada em Haddon Hall. Seria um período curto de tempo, o suficiente para que seus criados construíssem um muro de pedra ao redor do refúgio e eliminassem a suja cerca com a qual ela se acreditava protegida. William sorriu triunfante, era uma opção muito apropriada e, sem dúvida alguma, Beatrice não poderia rechaçar. Deste modo sua dívida estaria saldada e por fim poderia deixar de pensar na jovem, porque desde que a moça apareceu em sua vida, tinha deixado de aflorar as cenas eróticas que tinha vivido com Juliette, para dar passo a uma multidão de inquietações produzidas pela ditosa senhorita Brown. Agora em suas noites não havia luxúria, a não ser angústia por uma mulher tão enigmática, como teimosa.

Beatrice acaba de limpar e dar de comer aos animais. Levou a mão direita para seu rosto e tentou tirar o barro que lhe tinha respingado após perseguir uma de suas ovelhas. O animal tinha escapado por um oco da cerca e, assustado, corria apavorado para o bosque. Por sorte para ambos, a espantada criatura ficou presa entre duas raízes grandes de uma árvore que se sobressaíam à superfície. Ela, muito devagar, aproximou-se por trás e saltou sobre o animal, voltando-se a se sujar da cabeça aos pés com o barro que havia no terreno.

? Espero que isto a ensine a não fugir de mim ? dizia ao animal enquanto que o mesmo caminhava depressa para resguardar-se junto ao rebanho.

Apesar do esforço, ainda ficava um pouco de energia para cortar lenha e preparar um lar quente. As chuvas tinham cessado, mas o frio não e, se seu prognóstico sobre o tempo não falhasse, hoje seria uma noite bastante gelada. Depois de certificar-se de que o buraco estava arrumado e que nenhum intrépido animal poderia escapar de novo, dirigiu-se para o barracão de lenha para continuar com seu plano. Entretanto, justo quando elevava o machado para tirar o primeiro corte ao tronco selecionado, escutou os passos de um cavalo avançar para onde se encontrava. Com o utensílio na mão e aferrando-o com força, girou-se para a pessoa que se aproximava. Se, se tratasse de outro criado do duque, assustá-lo-ia e o ameaçaria para que partisse. Já estava cansada da insistência do nobre. Não voltaria a apresentar-se ali nem que morresse de fome!

? Senhorita Brown, foi assim que você recebeu os meus emissários? Entendo então a razão pela qual se recusam a vir em sua busca.

Beatrice ficou atônita ao descobrir que o próprio duque era quem montava sobre o cavalo e sorria ao ver como levantava a ferramenta afiada. Olhou-o sem pestanejar e se sentiu feliz ao perceber que mal ficavam sequelas do passado incidente. Embora algo chamasse com demasia sua atenção: a longa juba escura e a espessa barba tinham desaparecido. Agora a marca do fatídico duelo ficava à vista de todo aquele que o contemplasse. Examinou-o com mais interesse e reparou que ia vestido com o traje habitual para cavalgar. Do alto do corcel parecia o homem que conheceu na festa da senhora Baithlarin: forte, bonito e enigmático. Sem lugar a dúvidas, depois dos dias de descanso tinha retornado o famoso duque de Rutland.

? Bom dia, Excelência ? respondeu baixando as mãos e abaixando a cabeça.

? Bom dia, senhorita Brown ? disse mostrando um grande sorriso.

? Vejo que continua desafiando a morte.

? Só se tiver a certeza de encontrar uma boa pessoa que tenha piedade de um homem tão desamparado como eu e decida me salvar ? indicou com zombaria.

? Você confia muito na piedade dos outros... ? replicou antes de agachar-se para recolher alguns pedaços de lenha que tinha cortado no dia anterior. Embora cortar troncos fosse uma ação muito habitual em uma camponesa, não lhe agradava sentir-se observada e menos ainda quando a pessoa que a olhava era o duque.

? Eu adoraria poder lhe oferecer minha ajuda, mas como já sabe... ? o tom zombador do duque desapareceu de repente para dar passo a uma voz suave, débil e inclusive com um toque de tristeza.

? Posso fazê-lo por mim mesma, Excelência. Além disso, poderia sujar esse bonito traje e estou segura de que seu ajudante de câmara se zangaria muitíssimo ? explicou ao mesmo tempo em que caminhava para a entrada de sua casa.

Desejava entrar na intimidade de seu lar, fechar a porta e deixá-lo ali fora. Desejava que partisse e que não a perturbasse mais, algo muito difícil se o motivo daquela visita fosse lhe recordar a ditosa promessa.

? Senhorita Brown... ? disse enquanto fazia com que seu cavalo caminhasse ao redor da cerca. ? Por que se negou a aceitar meu convite?

? Como pode comprovar, tenho muito trabalho e não posso perder tempo aceitando visitas que...

? Meu convite lhe faria perder tempo? ? William arqueou as sobrancelhas e a contemplou atentamente.

Assim como a última vez, estava coberta de barro. Não entendia como lhe resultava tão difícil estar arrumada em algum momento do dia. A única explicação que encontrou foi que, ao estar sozinha e não poder cercar conversação com ninguém, teria descoberto certo consolo em rolar pelo chão e cobrir-se de lodo.

? Não quis dizer... ? começou a desculpar-se, mas depois de olhar com atenção o rosto do duque e advertir que este não cessava de mostrar um sorriso zombador, descobriu que suas palavras não lhe tinham causado o aborrecimento que ela tinha suposto. Irada, aferrou-se com força às lenhas e lhe perguntou de mau humor: ? A que devo a honra de sua visita, senhor?

? Vim lhe recordar que temos algo pendente e eu gostaria de resolver tal questão o antes possível ? argumentou com seriedade.

? Acaso o excelentíssimo duque de Rutland tem uma terrível insônia por saber que tem uma dívida pendente com uma mulher? ? Sorriu de orelha a orelha triunfante. Esperava que após sua descarada atitude se ofendesse e a deixasse por fim em paz.

? Insônia... ? virou os olhos para a esquerda como se estivesse duvidando sobre como nomear tal situação. Logo sorriu, olhou-a nos olhos e continuou: ? Não, eu não o denominaria dessa forma, mas é certo que você perturba minha mente.

? Eu lhe perturbo?! Como uma humilde camponesa pode fazer tal coisa? ? Prosseguiu com um tom mordaz.

? Antes, senhorita Brown, minhas noites estavam cheias de luxúria porque eu revivia momentos íntimos com as minhas amantes. Entretanto, desde que você apareceu em minha vida, não afloraram as ditas imagens. Quando fecho os olhos só vejo você ? explicou com tom sereno, impessoal, embora por dentro não cessasse de rir.

? Como diz?! ? Beatrice abriu os olhos como pratos e sentiu fogo em suas bochechas. A confissão a desconcertou tanto que se esqueceu de que segurava as lenhas e, quando levou as mãos para o rosto para que o duque não observasse o rubor de seu semblante, os troncos caíram sobre seus pés. ? Ai! ? exclamou de dor.

William agarrou com força as rédeas do cavalo com a mão sã e desceu com rapidez do cavalo. Em nenhum momento reparou que sua perna lhe doeria ao tocar o chão. Só pensava que, por tentar apaziguar o forte caráter da mulher, tinha-a ferido. Abriu a débil grade e caminhou com firmeza para Beatrice, que tinha se sentado sobre as escadas e agarrava um pé enquanto brotava de seus olhos uma centena de lágrimas.

? Sinto muito, perdoe-me. Não foi minha intenção lhe causar dano algum. Só queria continuar com a ironia que estávamos mantendo em nossa conversação. ? Aproximou-se tanto que pôde observar o brilho daquelas gotas salinas. ? Deixe-me examinar seu pé. ? Estendeu a mão útil e tocou com delicadeza a pantorrilha, o tornozelo e o peito do pé da jovem.

? Não tinha vindo procurando desculpar sua dívida? Pois acaba de saldá-la. Eu lhe curei e agora você... ? voltou-se para o duque com tal rapidez que não percebeu a cercania que existia entre eles. Durante uns escassos instantes, Beatrice pôde respirar o ar que o duque emanava de sua boca e vice versa. Seus olhos claros se projetavam na escuridão do olhar do homem. Aturdida, levantou-se e apoiou o pé sobre o chão, guardando para si a dor que sentia. Colocou suas mãos na cintura e indicou: ? Como lhe disse com antecedência, não necessito que você me ofereça nada. Se quiser que sua mente deixe de lhe mostrar meu rosto e volte a ter aquelas cenas que tanto lhe agradavam, pense que vivo em uma casa que lhe pertence e que devido à sua imensa gratidão posso dormir sob um teto.

? Senhorita Brown, peço-lhe mil desculpas por minhas palavras, estão fora de lugar. Não estou acostumado a me comportar desta forma ante pessoas respeitáveis ? explicou ao mesmo tempo em que se elevava do chão.

? Respeitável? Pensa que sou uma pessoa respeitável? ? Beatrice esboçou uma gargalhada tão intensa que ambos escutaram o eco da risada no bosque.

? Esse é o meu apreço por você desde que me salvou a vida. ? William se mantinha de pé a curta distância da mulher. Ela, ao ver que tinha a intenção de avançar para onde estava, começou a perambular de um lado para outro.

? Não me conhece, sua Excelência. Não me conhece e não pode fazer uma conjectura depois de um ato de piedade. Qualquer ser humano que tivesse passeado pelo bosque e encontrasse uma pessoa ferida gravemente teria feito o mesmo que eu. Isso não é ser respeitável e nem piedosa ? declarou mal-humorada.

? Pode pensar o que desejar, mas me sinto na obrigação de protegê-la igual você fez comigo. ? Seu tom de voz tinha recuperado a dureza, o julgamento e a irrevogabilidade próprias de seu título.

? Não lhe basta me dar abrigo? Não lhe parece que viver em uma casa que lhe pertence já é bastante amparo? ? Beatrice, até agora se movendo sem parar, girou-se para o homem e o olhou desafiante.

? Não! ? Exclamou o duque. ? Deixá-la em meio de um nada, desamparada e rodeada de lobos famintos não me parece uma opção acertada!

? Isso é o que lhe preocupa, sua Excelência? Que minha presença aqui lhe faça sentir-se um homem bondoso e que um dia monte em seu precioso cavalo, galope até a cabana e se encontre com um corpo esquartejado? ? Elevou tanto a voz que até ela mesma se surpreendeu do trato que estava oferecendo a um homem de sua classe.

? Preocupa-me, perturba-me, inquieta-me ? disse William caminhando para ela com passo firme e esquecendo a dor constante de sua perna ? que um dia apareça por estas bandas e veja que não fui capaz de cuidar de uma mulher que quase pereceu para me salvar a vida. Parece-lhe acertada minha conjectura, senhorita Brown?

Estavam tão próximos que se o homem estendesse sua mão útil poderia tocar as costas feminina, puxá-la para ele e abraçá-la com força. Porque podia ter sido um calhorda, um ser sem coração, sem humanidade, mas reconhecia quando uma pessoa precisava sentir o afeto de outra. Tinha acontecido a ele mesmo e acontecia nesse momento à senhorita Brown. Entretanto, William conhecia a razão de sua desprezível atitude. Agora lhe faltava averiguar o motivo que tinha aquela jovem para não querer saber nada do resto do mundo.

? Está bem ? disse Beatrice depois de um leve silêncio. ? Você quer pagar sua dívida e eu quero que me deixe viver em solidão. Então pagará sua dívida se me conceder esse desejo.

? Quer que ninguém a incomode? Essa é a sua petição? ? William franziu o cenho e apertou a mandíbula.

? Sim, isso é o que anseio ? afirmou em um tom mais tranquilo e olhando para o chão.

? Se ficar só e desprotegida é o que deseja, isso é o que obterá. Bom dia, senhorita Brown. ? Golpeou as botas pelos calcanhares, abaixou uns centímetros à cabeça e se dirigiu ao cavalo.

Tinha tanta raiva em seu corpo, encontrava-se tão alterado, que aquele estado de enfurecimento lhe deu a força necessária para agarrar as rédeas do cavalo e subir sem ajuda. Jogou uma última olhada à Beatrice e açulou com tanta intensidade o animal que avistou seu lar antes do esperado.


IX


? O senhor quer lhe ver na biblioteca. ? Mathias, o cavalariço correu para a casa, para explicar ao mordomo o que tinha acontecido depois da chegada do senhor, fazia poucos minutos.

? Como que não requereu os meus serviços para desmontar? ? Perguntou inquieto Brandon.

O que lhe contava o jovem estava deixando-o atônito. A forma habitual de atuar, era esperar ao senhor com a bengala na mão e que este se apoiasse na vara de madeira para subir com segurança as escadas da residência. Entretanto, o moço lhe informava que desceu ele mesmo do cavalo e que não precisou requerer o auxílio de nenhum criado, posto que acessasse ao interior da casa sem mostrar dor ao caminhar.

? Como lhe digo, senhor Stone. Quando agarrei as rédeas de Corsário, nosso duque me deixou muito claro que desejava vê-lo o antes possível nessa estadia ? explicava com certa excitação.

? Que comportamento diz que tinha nosso senhor? ? Hanna, muito atenta ao bate-papo, interrompeu-lhes.

? Encontrava-se muito agitado. Acredito que também bastante zangado ? respondeu Mathias.

? O que lhe terá acontecido? ? Disse a mulher ao mesmo tempo em que retomava ao trabalho.

? Está bem, pode voltar para as cavalariças ? indicou Brandon desejando saber o que rondava pela cabeça de sua esposa.

Tinha notado o leve sorriso da cozinheira e esperou com impaciência que o jovem se afastasse o suficiente, para que não pudesse escutar a conversação. Caminhou para ela, apoiou-se na mesa central e, depois de observá-la uns instantes cortando verduras, perguntou-lhe:

? O que ronda nessa sua cabeça?

? A mim? ? Respondeu abrindo os olhos como pratos e elevando as grisalhas sobrancelhas. ? Nada, não penso nada.

? Não minta, Hanna. Conheço cada gesto que faz quando sua mente não para de refletir. Vamos ver... o que você crê que pode ter perturbado a paz que o nosso senhor teve durante estes dias?

? Não me acusa sempre de ter uma percepção errônea do mundo? – Cruzou os braços e franziu o cenho.

? Quer que lhe suplique isso? Quer que me ajoelhe como o fiz para poder dormir de novo em nosso leito? ? O semblante de Brandon mostrava desconcerto e um pouco de tristeza.

? Se não fosse tão severo, você mesmo acharia a resposta ? indicou com tom suave e quente.

? Hanna, por favor...

? Se tem tanto interesse, explicarei-lhe isso. Mas não me acuse de ter alucinações ou pensar extravagâncias. ? Esperou que seu marido replicasse, mas ao vê-lo tão calado e confuso decidiu lhe expor a ideia que tinha já há uns dias, mais exatamente desde que o duque retornou do incidente, rondando em seu cérebro. ? Se retroceder um pouco no tempo dar-se-á conta de que lorde Rutland sempre levou o cabelo perfeitamente cortado. Em mais de uma ocasião comentou que não entendia como um homem podia pentear-se como uma mulher, não é? ? Brandon assentiu. ? E de repente um dia, disse ao seu ajudante de câmara que não lhe cortasse o cabelo e deixasse que seu rosto se cobrisse de escuridão. Lembra-te quando foi?

? Dois meses depois de celebrar o duelo ? respondeu com rapidez.

? Em efeito, e a razão foi...?

? Queria tampar a cicatriz. Imagino que pensou que desta forma deixariam de murmurar sobre o acontecido.

? Pois eu penso que se deveu à repulsão que encontrou nos rostos daquelas mulheres que antes o admiravam. Resultou-lhe muito duro passar de ser um homem elegante e formoso a uma espécie de monstro ao qual ninguém desejava contemplar.

? Nosso duque não pode ser tão banal, querida! ? Exclamou antes de esboçar uma gargalhada.

? Bom, essa é uma ideia muito típica de um homem, catalogar certos aspectos importantes como banais. Entretanto, se pensasse do ponto de vista de uma mulher, descobriria que não é tão desatinado. Pensa um pouco querido e una os acontecimentos. Por exemplo, desde quando nosso senhor necessitou os serviços de uma cortesã?

Brandon deixou de sorrir e franziu o cenho enquanto meditava a resposta. As hipóteses de Hanna pareciam ter um pouco de sentido. Embora ele conhecesse o homem desde que nasceu e jamais tivesse deduzido que a opinião que possuíam as mulheres sobre ele poderia lhe afetar tanto.

? Imagino que esse olhar é a resposta à minha pergunta ? manifestou a mulher depois de observar como seu marido entrecerrava os olhos.

? Só estou pensando...

? Pois segue pensando, meu esposo, segue pensando... ? agora era ela quem sorria ao ver o desconcerto que suas palavras ocasionavam ao seu cônjuge. Devia sentir-se confuso, posto que ele sempre se gabasse de conhecer à perfeição a sua Excelência, mas havia certos temas que lhe escapavam.

? O que tem a ver tudo isso com a atitude estranha que hoje teve sua Excelência?

? De verdade que não pode suspeitar o que ocorreu?

? Não, Hanna. Não sei o que pôde acontecer. O único que te posso dizer é que esta manhã decidiu visitar a moça para lhe perguntar por que recusou os convites que lhe ofereceram.

? Pois está muito claro, Brandon. Ela não quer vir a Haddon Hall e muito menos quando a tratou pior que a um cão pulguento ? indicou zangada.

? Como queria que a tratasse? Se por acaso não o recorda, ela se ofereceu como cortesã e depois do maldito serviço e de lhe pagar uma boa soma de moedas, o duque me informou que lhe negasse a entrada de novo.

? Mas lhe salvou a vida! ? Exclamou irada. ? Além disso, ele não sabe que ela... ? ficou em silêncio pensando se cabia a possibilidade de que o duque tivesse descoberto a verdade. Mas o negou com veemência, se seu sexto sentido não lhe desapontava, a jovem jamais lhe confessaria o acontecido àquela noite.

? Hanna! ? Chamou Brandon ao vê-la calada e refletindo algo que parecia entristecê-la.

? O jovem duque pediu, após retornar à casa que lhe recortassem a barba e que fizessem desaparecer o extenso cabelo, não é? ? Alterou a consciência para a direção que tinha tomado à conversação.

? Certo.

? E não perguntou a que se devia essa mudança de opinião? Porque o único que tinha acontecido foi que uma moça desconhecida o lavou, curou-lhe as feridas e, além disso, percorreu um comprido trajeto para nos informar sobre seu paradeiro. Sem esquecer que depois, o duque nos comentou que havia uma manada de lobos oculta no bosque e que era perigoso passear por ele.

? Certo, está me dizendo que a jovem pôs em perigo sua vida para salvar a de nosso senhor, mas isso não responde à pergunta de por que sua Excelência decidiu seguir os conselhos do doutor para se curar com prontidão, nem essa insistência em fazer desaparecer a espessa barba e cortar o cabelo ? explicou exasperado cruzando seus braços no peito.

? De verdade que não é capaz de entendê-lo? ? Perguntou elevando um pouco a voz ao sentir-se tão frustrada.

? Não, não sei aonde quer chegar com as hipóteses que me explica.

? OH, querido! Por que não abandona esses pensamentos repletos de lógica e deixa que se expresse seu coração? ? A mulher se aproximou de seu marido, apanhou o rosto deste entre suas mãos e o olhou com ternura.

? Meu trabalho exige utilizar à lógica. Possivelmente a desenvolvi mais do que outras pessoas.

? Deduzo então que não tem nem ideia do que poderia pedir o duque quando aparecer ante ele, não é?

? Pode pedir qualquer coisa...

? Pois eu vou me deixar levar pelo que me dita o coração, e este me diz que te ordenará realizar algo dessas coisas que fazem os homens poderosos para deixar a jovem vivendo na cabana o tempo que desejar. ? Aproximou-se dos lábios de seu marido e lhe deu um pequeno beijo.

? Isso que diz é uma loucura e segue sem me explicar por que retornou tão enfurecido após visitá-la.

? Querido meu, nosso duque está acostumado a ordenar e que todo mundo acate seus mandatos. Se essa jovem for tão teimosa como acredito que é, não terá aceitado a proposição que tinha pensado para ela. Daí esse mau humor. Agora, em vez de ficar estorvando em minha cozinha, vai e comprova se os pensamentos loucos de sua esposa não são certos. ? Apartou-se, dirigiu-se para os fogões e começou a mover a comida que serviria em breve.

Brandon a observou durante uns instantes, ao mesmo tempo em que meditava sobre as conclusões que lhe tinha dado, pareciam muito sensato, mas estava seguro de que não eram corretas. O duque deveria ter outro tipo de razões para mudar seu comportamento com tanta rapidez e, embora sua esposa expusesse como se fosse o mais normal do mundo, sua Excelência não podia sentir nada por uma mulher assim. Era certo que lhe devia a vida, mas podia recompensá-la com outra bolsa de moedas. Se a oferecesse ela a aceitaria de bom grado, igual fez na última vez. Jogou uma olhada às costas de Hanna e depois de respirar com intensidade dirigiu-se para a biblioteca, o lugar onde o duque lhe esperava.


William perambulava de um lado para outro sem notar a dor insistente da perna. Estava tão zangado, encontrava-se tão furioso, que nem a dor lhe impedia de mover-se como desejava. De repente, ao descobrir que as cortinas da janela estavam amarradas aos ganchos metálicos, aproximou-se dela e ficou observando o exterior. Até esse momento não o tinha apreciado como era devido, sempre lhe pareceu um lugar cheio de vida, aprazível e, é óbvio, seguro ante qualquer adversidade. Entretanto, depois da desafortunada visita à senhorita Brown, toda aquela percepção desapareceu para dar passo a uma menos serena. Elevou o olhar e o cravou no arvoredo que começava a finalizar no imenso jardim. Ali, ao amparo da abrupta natureza, encontrava-se um perigo importante, mais do que se imaginou alguma vez.

? Mulher teimosa! ? Exclamou com energia antes de girar-se sobre seus calcanhares e dirigir-se para as garrafas de bebidas colocadas sobre uma cômoda.

Pegou o copo, encheu-o de brandy e, justo quando iria dar o primeiro gole, sopesou se beber até cair era o mais acertado. Depois de meditá-lo depositou o copo sobre a superfície de madeira encerada e caminhou por volta de uma das poltronas, não seria apropriado que ordenasse uma coisa tão importante ao Brandon em um estado péssimo de embriaguez. Devia mostrar serenidade, retidão e solidez porque do contrário seu mandato seria desprezado.

Levou a mão ao bolso de seu colete e tirou o relógio. Tinha entrado na biblioteca há quase quinze minutos e o mordomo ainda não tinha feito ato de sua presença. Ficou de pé de novo e, franzindo o cenho, deu vários passos para a porta com a intenção de ir buscá-lo ele mesmo. Antes de aproximar-se da saída, Brandon pedia permissão para entrar.

? Excelência ? disse o homem ao mesmo tempo em que realizava uma ligeira inclinação. ? Desejava ver-me?

? Solicitei sua assistência faz quinze minutos, a que se deve a demora? ? Perguntou zangado.

? Minhas desculpas, meu senhor. Houve um problema na cozinha e tive que resolvê-lo sem demora ? explicou.

? Aconteceu algo à senhora Stone? ? Perguntou um pouco mais acalmado.

Hanna se tinha convertido, com o passar dos anos, em uma mãe para ele. Desde que tinha memória recordava que os beijos, os abraços e os consolos que necessitou em sua infância sempre os ofereceram ela. A mulher também evitou em várias ocasiões que seu pai lhe pusesse o traseiro avermelhado depois de fazer, tanto ele como Lausson, uma ou outra traquinagem.

? O mesmo de sempre, meu senhor. Discutimos se deve acrescentar mais verduras ao menu do dia ? indicou.

Esperava que aquela desculpa lhe contentasse e deixasse de lhe interrogar por que se fosse assim, ele não poderia continuar mentindo. Ao ver que os ombros do duque se relaxavam e que mostrava um leve sorriso na comissura dos lábios, Brandon inspirou profundamente e deu graças a Deus por sua benevolência.

? Hoje parece que o sexo feminino está inquieto... ? comentou enquanto retornava à poltrona para sentar-se. Nesse instante, ao entender que não era o único homem que tinha sido atacado esse dia por uma mulher, começou a relaxar-se e a perceber, com mais intensidade, as cãibras terríveis que emitia a perna machucada.

? Como diz? ? Quis saber Brandon ao não entender muito bem o comentário do duque.

? Nada. Foi só uma consideração. ? Reclinou-se no assento e apertou os dentes ao notar aquela incessante dor.

? Posso lhe perguntar, sua Excelência, o que deseja? ? O mordomo ao observar como a testa de seu senhor se enrugava com força, deduziu que estava padecendo de suas terríveis dores.

Sorriu sutilmente ao pensar que Hanna se equivocou com suas especulações. Sem lugar a dúvidas o duque demandava sua presença porque precisava ser atendido por sua dor.

? Quero que faça chamar o senhor Gibbs, que venha à Haddon Hall o antes possível ? apontou com calma ao mesmo tempo em que movia devagar a perna machucada.

? O senhor Gibbs? ? Perguntou surpreso antes de morder o lábio por sua falta. Não era ele quem podia exigir explicações.

? Sim ? respondeu William evitando a inquietação do mordomo.

Sabia que chamar seu administrador causaria alguma incerteza sobre o serviço. A última vez que o fez foi para ceder à sua mãe a residência que tanto ansiava e lhe oferecer a soma que demandava depois da morte de seu pai. Entretanto, desta vez era diferente. Um dos bens obtidos por herança iria às mãos de uma mulher bondosa que sim o merecia, uma mulher que lhe tinha salvado a vida, não como no caso de sua mãe, destruido-a. ? Preciso falar com ele o antes possível, tenho que fazer constar certas mudanças legais... ? girou-se para o fogo, contemplou-o durante uns instantes e ao dar-se conta de que Brandon seguia na estadia moveu com suavidade a cabeça para ele: ? Acontece algo?

? Não, senhor, só me preocupo com você. Esperava que sua chamada se devesse ao interminável padecimento que sofre em sua perna do tropeção. Conforme fui informado pelo criado, você mesmo desceu do cavalo depois do passeio que realizou pelo bosque ? disse entre desculpas. Esperava que o duque não fosse capaz de perceber a insistência para averiguar o que pretendia.

? Já sabe que fui visitar a senhorita Brown ? comentou William entreabrindo os olhos.

? Em efeito, e conseguiu que finalmente aceite sua proposição? ? Insistiu sem mostrar em seu rosto a importância que lhe provocava conhecer a verdade. Se este dizia que não, ao final teria que humilhar-se de novo ante sua esposa porque, outra vez, estaria certa.

? Não, não a aceitou. Decidiu comprazer meu desejo de responder à sua piedade ? falou com raiva – rogando-me que a deixe desamparada naquele lugar miserável.

? Quer viver em uma propriedade que não lhe pertence? ? Soltou sem pensar.

? A questão não é se deseja viver na cabana de caça, mas sim o que pretende a senhorita Brown é lutar dia a dia só, ante a adversidade e periculosidade de um lugar tão inóspito ? explicou apertando a mandíbula.

? Não lhe ofereceu uma bolsa de moedas? Possivelmente isso lhe tivesse mudado...

? Senhor Stone! ? Gritou William zangado. ? Acredita que a mulher que pôs em perigo sua vida para salvar a minha merece esse trato tão depreciativo?

? Sinto muito, Excelência ? manifestou abaixando a cabeça e cravando o olhar no chão. ? Desculpe minhas palavras, mas tem que compreender que se a senhorita Brown tiver decidido alojar-se em um lugar repleto de perigos e esta vontade lhe causa inquietação, eu devo cuidar da sua saúde.

? Esquecerei seu comentário porque tanto você como a senhora Stone são as únicas pessoas às quais considero família. Além disso, entendo que essa atitude inapropriada é como bem diz, para seguir me protegendo, mas nunca volte a se intrometer neste tema. O que a senhorita Brown e eu combinamos se cumprirá.

? Sim, senhor. É óbvio. Agora mesmo direi a um dos criados que se dirija até o lar do senhor Gibbs e lhe faça saber que você deseja vê-lo o antes possível. ? Brandon jogava uns passos para trás sem levantar a cabeça. Não parava de meditar sobre o desejo do duque, a amalucada hipótese de sua esposa e o que esta riria quando lhe narrasse à conversação.

? Necessito de uma coisa mais... ? assinalou antes que o ancião partisse. Brandon elevou o semblante e o observou com atenção. O jovem olhava para as intensas chamas da fogueira. Contemplava-o com tanta ferocidade que podia ver de onde estava como o fogo se projetava nos seus olhos. ? De todos os que trabalham para mim, ? prosseguiu em tom firme ? há alguém que tenha sua mais absoluta confiança? ? Ante o desconcerto que mostrou o criado, William continuou: ? Tenho mil dúvidas sobre a senhorita Brown e necessito que alguém me ofereça informações sobre ela.

? Mas, milord, por onde começaremos? ? Brandon abriu tanto os olhos que quase saltaram do rosto. O que estava pedindo o duque era uma tarefa impossível de concluir. De onde procedia? Que lugares visitou antes de refugiar-se na cabana?

Então sentiu que o coração paralisava. Possivelmente as únicas pessoas que sabiam algo da jovem eram sua esposa e ele, embora, como era lógico, evitaria lhe informar sobre isso. Entretanto, Hanna tinha descoberto algo que não cessava de lhe rondar a cabeça e, visto o pedido do duque, talvez indagasse mais sobre isso.

? Brandon! ? Exclamou William ao observar a palidez do rosto deste.

? Sinto muito, sua Excelência, estava meditando sobre a pergunta que me realizou ? mentiu e voltou a pedir piedade a Deus.

? E? ? Insistiu.

? Neste momento a única pessoa em que confio, além de em minha querida esposa, é no Mathias, o cavalariço. Sei que é muito jovem e talvez não consiga abandonar as cavalariças para lhe servir no interior da casa, mas é mais fiel do que um cão e mais calado que um mudo ? disse com solene segurança.

? Bom, pois pedirá ao jovem que averigue tudo o que possa sobre o sobrenome Brown. Se minhas conjecturas não forem errôneas, não deveria viver muito longe, do contrário não conheceria este lugar.

? Pensou meu senhor, que poderia não ser seu verdadeiro sobrenome? Parece-me estranho que uma jovem abandone seu lar, deseje apartar-se de todo ser humano, dita viver sozinha o resto de sua vida e responda com sinceridade ao lhe perguntar por seu nome. ? Brandon não queria que o duque se frustrasse se não achasse o que procurava. Se lhe aturdia tanto uma mera visita a jovem, o que aconteceria se o que encontrasse não fosse de seu agrado?

? Que o jovem se dirija para Rowsley, avise ao senhor Gibbs e comece a indagação entre os aldeãos. Se minha intuição não me falhar, embora a senhorita Brown não seja daí, tem que conhecer alguém desse lugar. De que outra forma ela adquiriria os animais que cuida e seu alimento? ? Explicou com aparência firme. Entretanto, a conjetura do ancião não cessava de lhe golpear a cabeça.

Era certo que, quando lhe perguntou por seu nome, Beatrice soltou-o sem pensar, mas seu sobrenome o disse com certo temor. Caberia a possibilidade de ter sido enganado? E se era assim, por quê? Aqueles pensamentos só aumentavam sua ânsia de averiguar quem era aquela jovem e por que, de tudo o que pôde lhe pedir, rogou-lhe ficar sozinha.

? Se sua Excelência não tiver nada mais que me dizer, agora mesmo falarei com o criado para que comece o antes possível com seu novo trabalho.

? Deixe-lhe bem claro que não deve falar com ninguém disto ? acrescentou.

? É óbvio. ? Depois de despedir-se como era devido, Brandon saiu da biblioteca e se dirigiu com passo firme para a cozinha.

Deveria explicar à Hanna o acontecido. Deixaria que se vangloriasse de seu triunfo e, depois do bate-papo que obteria sobre quão inteligente era e o pouco que a valorava, pediria-lhe que recordasse com exatidão aquilo que tanto lhe chamou a atenção na jovem. Possivelmente essa era a pista que deveriam seguir porque, se não estivesse equivocado, o sobrenome, o ter estado com outros homens, o proceder de uma família de camponeses e tudo aquilo que relatou à sua benevolente esposa era mentira.


X


O frio era tão intenso que atravessava toda a pele até alcançar os ossos. Beatrice tentou avivar um pouco o fogo, mas sem troncos para jogar sobre as brasas, não podia conseguir uma grande proeza. Abraçando-se com força e esfregando os braços de cima a baixo, aventurou-se a abrir a porta para confirmar que no galpão de lenha não havia nenhum triste ramo para lançar à chaminé. Em efeito, sobre o chão não havia nada. Tinha gasto tudo o que compilou até a volta dos lobos, e agora lhe dava um medo atroz sair como outras vezes a procurar alguma árvore caída para poder arrastar até ali. Era perigoso. Eles a vigiavam. Cada vez que saía, cada vez que caminhava ao redor da cerca podia sentir aqueles olhos diabólicos cravando-se em seu corpo. Eram incansáveis, mais do que tinha imaginado. Inocentemente tinha pensado que, assim como na primeira vez, voltariam a partir. Mas esta ocasião era diferente, agora tinham comida perto, só deviam esperar o momento apropriado para atacar e encher seus estômagos.

Zangada, fechou a porta e se deitou sobre o leito. O único a fazer até que chegasse o novo dia era deitar-se e cobrir-se com as colchas compradas no povoado. Agasalhada com aqueles objetos, acomodou a cabeça no almofadão e olhou ao teto. Estava cansada de lutar, de sobreviver dia após dia. O que em um princípio lhe pareceu a melhor opção para aguentar aquele desastroso sofrimento, nesses momentos não a convencia. Achava-se no meio do nada com comida suficiente para alimentar-se, mas impossível de cozinhar pela falta de fogo. Levava dias roendo verduras recolhidas da terra, tentando esquentar caldos que não terminavam de ferver, e sentia cada vez mais frio.

Levantou as mãos para seu rosto e observou que já não eram de cor rosada, começavam a ser malvas e isso não era bom sinal. Colocou-as sob as mantas e as esfregou com os lençóis para fazê-las entrar em calor, mas apesar do esforço mal notou melhoria. Resignada pelo terrível final que começava a chegar, girou-se para a direita. Dali podia contemplar a brilhante e reluzente lua. Aquela noite era a segunda vez que a via desde a partida do duque zangado e aceitando sua única condição. Beatrice suspirou profundamente ao recordá-lo. Não sentia compaixão nem afeto por esse homem, mas pensava nele de vez em quando e como em certos momentos lhe pareceu perceber que desejava aproximar-se e abraçá-la. Teria gostado se o fizesse. Apesar da fúria que a invadia ao rememorar a atitude autocrata mantinha quando seu pai lhe pediu ajuda, teria aceitado seu abraço de bom grado. Fazia muito tempo que ninguém a consolava, fazia muito tempo que não apoiava sua cabeça no ombro de uma pessoa e se consolava entre lágrimas. Entretanto tinha tomado uma decisão e se ele a houvesse visto débil ou aflita não lhe teria concedido seu desejo.

Voltou a mover-se na cama de armar, virou-se para o outro lado, cobriu-se até a cabeça e tentou dormir. Precisava descansar, precisava afastar-se do lugar onde vivia embora fosse somente em sonhos.

Beatrice sonhava que estava junto à sua mãe, que tagarelava sem cessar sobre a próxima celebração a que deviriam assistir. Seu tom era doce, quente, porque sabia que ela não aceitaria de bom agrado em assistir de novo a um evento cheio de homens pomposos e de mulheres orgulhosas pelas joias penduradas em seus pescoços. Zangada, depositou o bastidor sobre a cadeira que tinha junto a ela e se levantou do assento.

? Não pode me obrigar a isso, mãe! ? Bramou irada.

? Não é uma obrigação, é um acontecimento social ao qual deve assistir ? indicava com calma.

? Acaso essa descrição não é o mesmo que me forçar a realizar algo que não desejo? ? Arqueou as sobrancelhas e colocou as mãos na cintura.

? Eu não observo tal apreciação, senhorita, e em seu lugar sentiria-me adulada de ser convidada por um homem tão...

Um horripilante ruído a sobressaltou, despertando-a bruscamente do sonho. Apartou os lençóis e caminhou para a janela para tentar descobrir o que ocorria no exterior.

? Meu Deus! ? Gritou com força ao observar a cena mostrada na escuridão noturna. Sem pensar duas vezes correu para a porta e agarrou com força o pau que pendurava sobre a parede de pedra. ? Malditos sejam! Deixem-nos em paz! ? Continuou vociferando.

Os alaridos de seus animais eram insanos. Beatrice, ignorando o medo que a invadia, avançou sem titubear para o pequeno terreno onde se encontravam as ovelhas, as galinhas e os quatro porcos. Estes gritavam de terror. Uns tentavam fugir das garras de seus assassinos, outros jaziam no chão agonizando. Elevou a vara e começou a atirar golpes aos causadores daquele massacre, mas nenhum deles se voltou para defender-se. Parecia que não lhes importava sua presença, como se seus ataques não fossem perigosos.

Enquanto tentava que parassem de aniquilar tudo, notou o escorregar de lágrimas por suas bochechas e o som de seus próprios gritos retumbando em seus ouvidos. Pouco a pouco suas forças foram diminuindo, possivelmente se reduziram com mais rapidez quando observou atônita e impotente como os lobos apertavam com força suas mandíbulas nos pescoços dos desprotegidos animais e os arrastavam para o interior do bosque.

Em estado de choque foi caminhando para trás. Queria resguardar-se na cabana porque, até o momento, eles tinham decidido não a atacar. Sem soltar o pau girou-se com brutalidade e subiu os quatro degraus de pedra que a conduziriam até sua guarida. Estava a ponto de alcançar o objetivo quando sentiu a espetada de umas adagas rasgando a carne de sua pantorrilha. Ao mover a cabeça para a direção de onde procedia a imensa dor observou uns olhos escuros e uma pelagem cinza. Era o lobo que a espreitava, que a atemorizava com seus intensos uivos.

Sem pensar elevou o pau e lhe golpeou com força no focinho. Os dentes do animal se cravaram ainda mais em sua perna, fazendo-a gritar com tanta força que ficou exausta. A besta, ao sentir o dano, abriu a boca e a soltou, momento que aproveitou para correr para o interior da casa, fechar a porta e apoiar as costas sobre ela. Escutou o caminhar da fera. Rondava pelos arredores da cabana tentando encontrar um oco para acessar e finalizar seu propósito. Entretanto, as janelas estavam seladas, salvo se saltasse e rompesse o cristal, a atroz besta não poderia acessar.

Conforme passava o tempo e compreendia que estava a salvo, suas forças foram se desvanecendo e começou a escorregar pela folha de madeira até seu traseiro se apoiar no chão. Seus olhos começaram a oferecer uma imagem distorcida da cozinha. Sentia uma terrível queimação na perna e notava o palpitar de seu coração nela. Tentou levantar-se. Tentou fazê-lo. Mas foi impossível. Estava débil, ferida e sem vitalidade. Tinha chegado seu fim. Percebia como a vida partia em cada gota de sangue que emanava de sua perna. Quis voltar a chorar, embora não lhe brotassem mais lágrimas. Só pôde fechar os olhos e deixar chegar seu último suspiro.


William mal tinha conseguido dormir. Cada vez que o tentava, um horrível pesadelo o fazia abrir de novo os olhos. Esgotado por lutar contra sua própria vontade, levantou-se da cama e se colocou sobre a poltrona que se encontrava ao lado desta. Não entendia com claridade seu pesadelo. Mal tinha inquietações em sua vida cotidiana para sentir-se daquela forma. O mais incômodo para ele tinha sido visitar todos os que apareciam em sua casa, momento que aproveitava para indagar sobre a senhorita Brown. Embora nunca achasse a resposta que desejava. Não entendia como uma tarefa tão singela estava se convertendo em um tremendo calvário.

Durante as semanas seguintes à conversação com a moça, o jovem a quem Brandon tinha encomendado a tarefa de procurar algum dado sobre Beatrice, não encontrou nada salvo a um casal de anciões que se apelidava igual e, que conforme contaram ao criado, não tinham podido engendrar nenhum descendente para continuar com seu legado. O duque sopesou, depois de obter aquela informação, que a ideia do engano não era tão descabelada, mas a descartava cada vez que pensava nela, que propósito tinha para lhe mentir? Ela não sabia quem era até que ele mesmo o comentou. Aquilo não tinha sentido, a menos que fosse uma criminosa fugindo de uma sentença proferida e pensasse que ele, ao ter um importante cargo da nobreza, entregá-la-ia. Mas também rechaçou essa ideia porque se a jovem tivesse cometido um crime e se escondesse no lugar mais recôndito do planeta para viver em liberdade, não teria arriscado sua vida para salvar a de um desconhecido.

Levou a mão ao queixo e acariciou o espesso pêlo que tinha deixado crescer de novo após compreender que ninguém mais voltaria a observá-lo com normalidade. Ninguém exceto ela.

Aturdido por seu inexplicável desassossego, levantou-se do assento e se dirigiu para o balcão. Apesar do tempo gélido, abriu as janelas e caminhou pelo terraço. O amanhecer oferecia uma bonita e estranha luz que, ao iluminar os hectares do arvoredo onde habitava a moça, davam-lhe um matiz menos sinistro. Mas o perigo espreitava constantemente, sobretudo aquela noite. Tinha ouvido-os durante as horas nas quais esteve acordado e em mais de uma ocasião sentiu medo, apesar de encontrar-se resguardado na mansão.

No silêncio que oferecia a chegada do crepúsculo, uns incessantes uivos e gemidos retumbaram em sua habitação como se estes se aproximassem de sua janela. Estava seguro que tal revôo se devia a que a manada tinha estado caçando. Então, como se sua mente lhe mostrasse a imagem de um quebra-cabeça completo, correu para sua habitação, abriu a porta e começou a gritar o nome de seu mordomo.

? Sim, sua Excelência? ? Brandon aparecia em meio a se vestir. Sua respiração era agitada, as mãos trementes não acertavam colocar corretamente na casa os botões de seu uniforme.

? Faça com que preparem o antes possível uma carruagem! Quero o cavalariço como cocheiro e a este na parte de trás com uma arma carregada. Diga-lhes que partiremos para o refúgio de caça assim que estejam preparados.

? O que ocorre, milord? ? O senhor Stone não saía de seu assombro. A princípio acreditou que o duque se levantara no meio de um sonho alterado, mas ao observá-lo tão lúcido, soube que aquilo não era a consequência de um pesadelo.

? Faça o que te ordeno! – Gritou com tanto ímpeto que o eco de sua voz se escutou em todos os corredores da mansão.

? Agora mesmo, meu senhor. Digo ao seu ajudante de câmara que vá à sua habitação?

? Está demorando muito! ? Clamou ao mesmo tempo em que retornava ao seu dormitório e tentava tirar-se ele mesmo a camisola com o qual dormia.

Como não o tinha pensado antes? Como não tinha sido capaz de descobrir o que seu interior lhe indicava? Irado, golpeou com força o colchão de plumas ao imaginar que, se suas conjeturas fossem certas, já seria muito tarde. Nesse momento, depois de atirar vários murros ao inerte colchão, levantou seu olhar para o teto e fez algo que não tinha feito desde menino: rezar.

Tal como tinha desejado, a carruagem lhe esperava na entrada da mansão. Desceu os degraus sem a ajuda de Brandon, que corria atrás dele se por acaso em algum momento pedisse sua ajuda. Mas era tanta a ira que movia seu corpo, tanto desespero por averiguar o que se temia, que se introduziu no interior do veículo de um salto. Apoiou a cabeça no respaldo acolchoado e observou a paisagem que percorriam a grande velocidade. Tinha sido um acerto colocar o jovem Mathias como condutor posto que, ao conhecer as possibilidades dos cavalos que cuidava, tinha selecionado os mais rápidos e graças a isso não demorou muito em divisar os arredores da cabana. Ao aproximar-se sentiu como sua garganta o sufocava e seu coração desacelerava incapaz de afastar o temor de sua mente. De repente escutou um som, e o coche parou abruptamente.

? Deus santo! ? Ouviu o cocheiro exclamar. — Isto foi obra do próprio diabo!

William saiu apavorado do veículo. Assim que dirigiu o olhar para o cenário que seus homens contemplavam atônitos, deixou de respirar. A cerca estava destroçada, os fracos arames que rodeavam a suja cabana atirados no chão, dobrados e quebrados. Todo o terreno que rodeava a cabana estava cheio de partes de carne e sangue, muito sangue. Avançou um pouco mais sentindo ao seu lado o criado e o cocheiro, o qual sujeitava sua arma com firmeza.

? Que diabos aconteceu aqui? ? Perguntou estupefato um deles.

William não distinguiu quem fez a pergunta, sua mente se concentrava em averiguar qual desses pedaços podia ser uma parte de Beatrice. Continuou avançando, pisando em plumas ensanguentadas, partes de pele e ossos cobertos de tendões mordidos. Não havia vida naquele lugar. O silêncio indicava que a morte tinha devastado qualquer possível fôlego. Fixou a vista na porta da entrada. Estava fechada. Teria se resguardado antes do ataque? Poderia estar sã e salva? Ansioso por conhecer as respostas, deixou para trás os dois homens e se aproximou da entrada. Ao estar tão perto contemplou o desenho que tinham deixado umas ferozes garras. Não soube que seu corpo permanecia encolhido e que tremia até dirigiu sua mão para a porta e empurrá-la. Antes que esta tocasse a danificada madeira, entrou-lhe a dúvida e se encheu de desespero. Se na casa se encontrava a mesma cena que havia no exterior, não se recuperaria jamais do acontecido, posto que o único culpado daquele horror tivesse sido ele.

? Sua Excelência, deixe que seja eu quem a abra. Se dentro houver algum desses mal nacidos que massacraram estes pobres animais, encherei-o de chumbo ? comentou com firmeza o cocheiro.

William queria negar-se, mas não pôde. O homem tinha razão. Como lutaria contra a ferocidade de um lobo com uma só mão? Resignado por sua incapacidade, permaneceu imóvel enquanto observava como o servente direcionava sua arma para a porta e tentava abri-la.

? Está pesada! ? Gritou após vários intentos falhos. ? Mathias, olhe por essa janela para ver se consegue descobrir o que me impede entrar ? ordenou ao jovem que não cessava de olhar para trás e sussurrar algo sobre o mal e as atrocidades provocadas pelo demônio.

O jovem se aproximou do cristal com passo lento e inseguro olhou através dele dobrando a cabeça de um lado para o outro procurando um ângulo com maior visibilidade. Finalmente apoiou sua mão direita na testa como se fosse a viseira de uma boina e gritou:

? É algo pequeno! Está sobre o chão. Acredito que... Deus santo bendito, aí há alguém!

? Abre-a! ? Exigiu William mais assustado que nunca.

? Terei que golpear com força e poderia... ? começou a explicar o homem.

? Abre-a! ? repetiu com mais vigor ainda.

O cocheiro jogou uns passos para trás para tomar impulso e colocando seu ombro para frente, empurrou a porta com toda a energia que tinha. Não foi muito o que obteve, mas o suficiente para acessar o interior.

? É uma mulher! – Exclamou. ? É uma mulher! ? Repetiu agitado. ? Graças a Deus, parece que ainda respira!

William não pôde ficar ali fora observando. Caminhou para o interior da casa e quando contemplou Beatrice nos braços do homem, quis lançar-se sobre ela e abraçá-la ele mesmo.

O rosto da moça estava pálido e os braços lhe penduravam frouxos para o chão, o sangue, de cor escura após secar-se, cobria o vestido e as pernas. Era a viva imagem da destruição que ocasionava a morte em um ser humano.

? Deite-a no interior da carruagem! ? Gritou o duque. ? Mathias, crê que só um cavalo pode lavar sem dificuldade o coche? ? O moço afirmou com a cabeça, o pânico que o sacudia lhe impedia de articular uma só palavra. ? Pois desengancha o mais rápido que puder e galopa até Rowsley, necessito que leve o médico a Haddon Hall.

Enquanto o jovem soltava o corcel selecionado, Beatrice era depositada com cuidado sobre o sofá direito da carruagem, na posição adequada para que William a auxiliasse em caso de necessidade. Fechou-a após meter-se no interior e a observou desejando que nesse instante abrisse seus olhos e descobrisse estar à salva, que ele a protegeria, mas o suave e débil respirar lhe indicou que não podiam atrasar-se mais tempo. Levou-se a mão para o botão da capa, tirou-a e cobriu o corpo ferido para lhe dar calor. Ao notar que a carruagem começava a mover-se, sentou-se no chão e foi apartando o cabelo alvoroçado da jovem. Queria lhe ver o rosto, queria observar se continuava respirando, queria que seguisse com vida para ver de novo sua teimosia e determinação.

De repente escutou o relinchar de um dos cavalos e um rápido galope. O criado se afastava para procurar o doutor.


CONTINUA

A vida libertina do futuro duque de Rutland finaliza após bater-se em um duelo de honra com um marido enganado. Envergonhado pelas sequelas do dito desafio, decide abandonar Londres e partir para Haddon Hall, o aprazível lugar onde cresceu, albergando a esperança de encontrar a paz que tanto lhe urge obter, entretanto, a chegada de uma notícia inesperada altera essa suposta calma e provoca que o duque se embebede. Face aos conselhos de seus próximos decide montar a cavalo e galopar por seus domínios. Quando abre os olhos depois de uma desafortunada queda, descobre que uma mulher o esteve cuidando em algum lugar afastado e escondido de suas terras. Seu nome, Beatrice, e seu único desejo, viver em solidão o resto de sua vida.
Querido(a) leitor(a), quero explicar que o duque de Rutland existe, embora acredite que nenhum se chamou William até agora. Também quero comentar que Haddon Hall é real e que se encontra no condado de Derbyshire. Todo o resto é produto da minha imaginação. Esclarecido isto, espero que desfrute com a leitura que guardam estas páginas.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/1_A_SOLID_O_DO_DUQUE.jpg

 

Londres, 1865. Clube de cavalheiros Reform.

? Desafio-o, senhor!

Com essas palavras, um homem de baixa estatura, com um pouco de peso a mais e vestido com um imaculado traje cinza, atirou uma luva sobre a mesa em que se jogava uma partida de cartas. William arqueou as escuras sobrancelhas e olhou a quem o desafiava com certa incredulidade. Deu-se conta o pobre infeliz que se se levantasse de seu assento o superaria em altura um pouco mais de 30 centímetros?

? Pela honra de quem? ? Perguntou William redirecionando seus olhos para as cartas e apertando o charuto em seus lábios. Estavam sendo tão habituais esses desafios que já não lhe produziam alteração alguma.

? Pela honra de minha esposa, lady Juliette Blatte ? respondeu o homem cheio de cólera ao ver que o aristocrata não parecia se afetar pelo que ele esperava morrer de vergonha e de dor.

? Juliette?

A familiaridade com a qual o futuro duque de Rutland falou de sua mulher fez com que o pequeno corpo vibrasse de desespero e fúria. William, sem apartar a vista das cartas que tinha em sua mão esquerda, franziu o cenho e levou a outra palma para a escassa barba que cobria seu rosto.

? Disse-me que enviuvou faz algo mais de um ano ? continuou com voz serena e sem interesse por continuar a conversação.

? Acusa-a também de mentirosa? ? As bochechas do desonrado se encheram de um vermelho intenso.

O homem inclusive se elevou nas pontas dos pés para tentar, em vão, captar a atenção do amante de sua esposa. Entretanto, ninguém fez nada, nem William nem os outros jogadores. Se a cólera que o tinha conduzido até ali era inimaginável, observar que o próximo duque de Rutland continuava com sua pose de tranquilidade enquanto alegava que se deitou com sua esposa por ter sido enganado, provocou-lhe tal demência que esteve a ponto de equilibrar-se sobre este e lhe golpear com força.

? Acredito que sua querida Juliette mentiu a ambos ? disse William após manter-se em silêncio uns minutos. ? O duelo deveria se dirigir a ela. Mas se me permite um conselho, antes de enfrentar uma possível morte, agarraria sua esposa e lhe daria uns bons açoites com o cinturão. Não se pode enganar com falácias a homens como nós, sobretudo porque nestes momentos cavalheiro, encontro-me tremendamente aflito... ? comentou com zombaria e sem subir nenhuma nota em seu tom de voz.

Tomou outra intensa imersão do charuto e depois de jogar o ar esperou que o desventurado homem fosse sensato e partisse com a cabeça baixa, mas respirando.

? Amanhã, em Hyde Park, à alvorada. Levarei as minhas testemunhas e um médico, você apareça com quem desejar. ? O homem golpeou suas botas, girou-se e inclinando-se ligeiramente se despediu dos pressente antes de afastar-se.

Durante um bom momento o sigilo foi reinante naquele lugar. William seguia concentrado na mão que estava a ponto de ganhar. Sorria meio de lado e a fumaça do charuto saía da boca como se fossem as chaminés que tinha sobre o telhado de seu lar.

Ninguém queria fazer alusão à cena vivida, talvez porque fosse muito habitual que às sextas-feiras daquele mês vários maridos indignados irromperam no clube ao saber da presença do futuro duque no salão.

? Senhores..., ? disse enfim após depositar as cartas sobre a mesa e descobrir a última jogada ? já podem ir despedindo-se de seu dinheiro.

? É incrível! ? Exclamou Federith Cooper, um dos melhores amigos de William e futuro barão de Sheiton. ? Como pode ter tanta sorte?

? Nosso querido Manners nos depena os bolsos e seduz desoladas esposas, acaso estamos loucos por seguir mantendo sua amizade? ? Roger Bennett, quem algum dia chegaria a possuir o título de marquês de Riderland, falou com seu típico tom sarcástico ao mesmo tempo em que se reclinava no assento e tomava um sorvo de brandy.

? A sorte sempre está comigo, ela é minha única esposa ? respondeu William colocando as moedas em seu lado da mesa e sorrindo de satisfação. Pouco depois os outros jogadores partiram deixando os três cavalheiros na habitação.

? Entretanto, meu amigo, alguma vez mudará e serei eu quem mostrará um sorriso descarado em meu rosto ? continuou zombador Roger.

? Não pode zombar assim de um homem que amanhã se debaterá entre a vida ou a morte. Se for meu amigo desejará que a sorte permaneça no mínimo umas horas mais ao meu lado ? falou com dissimulação e sem deixar de mostrar no semblante uma atitude cômica.

William se levantou do assento e caminhou para o cabideiro para pegar o chapéu e a capa. Federith e Roger o imitaram. Em umas horas voltariam a serem testemunhas de outra inevitável loucura. Quase não tinham se recuperado da exaltação que lhes tinha provocado o último duelo e já sofriam a agonia do seguinte.

? Essa mulher... ? disse William pensativo enquanto caminhavam pela tranquila rua que lhe conduziria até Southwark.

? Quem, lady Blatte? ? Inquiriu Federith levantando a bengala até conseguir tocar a aba de seu chapéu.

? Juro-lhes que me disse que não estava casada. O perguntei mais de um milhão de vezes... ? respirou com profundidade e logo jogou o ar devagar. ? Cada vez que a visitei olhei-a nos olhos e lhe perguntei por seu marido. Ela respondia o mesmo: «Sua Excelência tem má memória, sou viúva» ? comentou com desdém. Logo levantou o olhar do chão e exclamou: ? Mulheres!

? Sim, Rutland, mulheres. ? Roger interveio com voz zombadora. ? Mas está falando de uma mulher que nasceu com um corpo digno de um duelo.

? Nisso tem razão. Lady Blatte é uma deusa ? comentou William com palavras cheias de luxúria. ? Possui uns seios lindos... suas coxas sempre estão quentes e quando me introduzia em seu interior...

? Basta! ? Interrompeu-lhe Federith. ? Acaso não recorda o que significa ser um cavalheiro?

? Não se zangue, Federith. Deve compreender que preciso recordar como era o corpo da mulher pela qual amanhã estarei a ponto de morrer... ? comentou entre risadas. Os olhos negros de William se elevaram para olhar o céu. Era uma noite com muitas estrelas, pouco habitual em Londres.

? Falando de morrer... escutou o trágico final da filha do barão de Montblanc? ? Perguntou-lhes Roger fazendo com que parassem bruscamente na metade da caminhada. Ao não responder nenhum dos acompanhantes, prosseguiu. ? Ao final a moça decidiu pôr fim à sua tormentosa vida. Esta manhã era o único tema de conversação que se escutava em todo Richmond.

? O barão não foi há alguns dias à sua casa para uma auditoria? ? Federith idolatrava seu amigo, posto que ambos tivessem crescido juntos, mas utilizava esse privilégio para recriminar sua Excelência por não ser capaz de adotar a posição que devia na sociedade. Aos seus trinta anos continuava sendo o mesmo cavalheiro libertino, insensato, despreocupado e farrista que foi com vinte.

? Sim ? respondeu com tom firme. Abaixou levemente a cabeça e continuou o passeio. A notícia o surpreendeu e, embora jamais o tivesse admitido, sentiu dor pela família. Tinham padecido bastante com o ocorrido à jovem e talvez, com a morte desta, descansariam enfim em paz.

? O barão foi visitar-te? ? Roger avançou atrás de William e arqueou as sobrancelhas em sinal de desconcerto. ? O que desejava de ti esse pobre homem?

? Pensou que se utilizasse minha posição conseguiria esclarecer o caso de sua filha... ? respondeu sem querer mostrar aquele sentimento de culpa que, por outro lado, não devia sentir.

? O que pretendia? ? Roger, animado pela curiosidade, seguiu com seu interrogatório.

? Como já sabem, a filha do barão tinha que ter sido apresentada em sociedade há dois anos, quando ela cumpriu os dezoito, mas a jovem sempre estava doente para a temporada social.

? Conforme tenho entendido, tais enfermidades eram inventadas. Comenta-se que a moça não desejava vir à Londres porque desfrutava de uma vida tranquila e aprazível no campo ? acrescentou Federith.

? Quando foi anunciado como merecia ? continuou William ? na última festa que nossa adorável senhora Baithlarin deu em sua residência em Marylebone, nenhum homem conseguiu fazer a jovem se apaixonar. Conforme escutei foi uma das mulheres mais belas da temporada. Mas, apesar da grande quantidade de propostas matrimoniais, ela as rechaçou com veemência. O barão e a baronesa decidiram retornar ao seu lar e fazer-se à idéia de ter sob seu teto uma filha solteirona.

? Mas? ? Roger escutava com entusiasmo toda a conversação e desejava saber como uma jovem que vivia placidamente e a quem não faltavam propostas de matrimônio terminou dando fim a uma vida próspera.

? Conforme tenho entendido, a moça foi desonrada na festa ? prosseguiu William. ? A família da jovem mantém que o conde de Rabbitwood abusou dela. Segundo o conde, com o qual tive a oportunidade de falar há algumas noites no clube durante uma intensa partida de cartas, a moça se esteve insinuando todo o serão até que conseguiu o que desejava. Rabbitwood lhe advertiu que tinha esposa e que só podia lhe outorgar a posição de uma amante. Como a esta não interessou a ideia, começou a divulgar que tinha sido violada.

? E claro está, depois do escândalo e de não conseguir seu propósito, desaparece para sempre... ? asseverou Roger.

? Bom, nenhum de nós entenderá jamais o que escondem as mulheres em suas cabeças. Embora se essa aspirante à harpia não obteve aquilo que ansiava e entendeu que era uma mancha indelével em sua família, o mais lógico era que terminasse fazendo o correto: suicidar-se ? argumentou William sem mostrar nenhum tipo de sensibilidade em suas palavras.

? Manners! Como pode ser tão frívolo? E se de verdade foi violada? Acaso não contemplou essa possibilidade? ? Federith se mostrou tão alterado que William chegou a perguntar-se se seu amigo tinha sido um dos que lhe tinham proposto matrimônio e foi rechaçado.

Durante uns instantes o futuro duque tentou que a mente lhe oferecesse algumas lembranças da moça, mas não achou grande coisa: uma jovem morrena de estatura pequena com umas bonitas curvas. Não foi capaz de descrever nem como estava vestida nem a cor de seus olhos. Sorriu para si ao rememorar que a maioria do tempo que passou naquela festa brincava de correr atrás das saias de uma suposta viúva desejosa de calor masculino e a satisfação que achou escondido atrás das cortinas de alguma janela do lar de lady Baithlarin.

? Confio na palavra de um cavalheiro como Rabbitwood ? disse cortante. ? As mulheres como puderam observar durante este tempo ao meu lado, causam problemas e uma terrível dor de cabeça. Olhe lady Juliette, jurou-me que não estava casada, que enterrou seu marido no ano passado e... acaso viu um fantasma me lançando a luva? Não sinta piedade por elas, meu amigo, são a outra parte do mundo. Foram criadas só e exclusivamente para nos dar prazer... ? sorriu de lado.

? Algum dia, William Manners, futuro duque de Rutland, apaixonar-se-á, e essa mulher te fará pagar por todo o mal que causou às suas amantes e aos seus maridos ? retrucou Federith com tom desafiante.

? Apaixonar-me? Jamais! ? Sentenciou após jogar o braço sobre o ombro de seu amigo e apertá-lo com força. ? O que fariam todas essas damas se o futuro duque se casasse? O que seria desses pais que, com tanta amabilidade, oferecem as suas bonitas e carinhosas filhas para que as converta em minha duquesa? Não, meu amigo, não posso entristecer toda essa gente. Devo a eles... ? Federith soltou um impropério enquanto que Roger e William não paravam de gargalhar.

Seis horas mais tarde, depois de ter descansado em sua residência de Southwark, William, perfeitamente embelezado para a ocasião, apareceu em Hyde Park. Depois de jogar uma rápida olhada aos arredores para certificar-se de que o duelo não era uma patranha para ser detido, distinguiu entre a pequena multidão as figuras de seus dois bons amigos. Com passo firme avançou para eles.

? Parecem aborrecidos ? disse a modo de saudação.

? Seus duelos já não causam interesse. Todo mundo sabe como terminarão ? respondeu Roger tomando a capa que o recém-chegado lhe oferecia.

? E como terminarão? ? Arqueou as sobrancelhas e o olhou aos olhos.

? Contará os passos, girará e, justo quando seu desafiador disparar, todos nós veremos que ele foi vítima dos nervos e que ele não alcançou o seu propósito. Então levantará a pistola e disparará ao ar. Seus amigos sabem que no fundo é uma boa pessoa e que se compadece de seu adversário. Imagino que o sofrimento que vive o marido depois do descobrimento da infidelidade é mais que suficiente. Equivoco-me? ? Roger arqueou as sobrancelhas e sorriu, assim como fez William.

? Espero que seja assim... ? interveio Federith. Ambos os cavalheiros giraram à volta dele e o observaram com interesse ? até agora lhe desafiaram homens aos que de verdade não lhes importava a afronta e se conformavam recuperando sua honra, entretanto, o senhor Blatte é um bom atirador e parecia necessitar do seu sangue para restaurar sua honra.

? Senhores..., ? interrompeu-os um dos padrinhos do competidor ? o senhor Blatte já escolheu a arma. Serão as pistolas, dez passos e... a morte.

? A morte! ? Exclamou Roger atônito. ? Não podemos permiti-lo!

? Não importa, ? William interrompeu seu amigo alarmado pela gravidade do assunto ? tem direito a escolher a forma em que sua honra será restaurada.

? Bem, pois quando sua Excelência estiver preparado daremos início.

Os três ficaram calados durante uns instantes. Pareciam refletir sobre as possibilidades existentes de sair ileso depois da informação obtida. Quando reclamaram a presença do cavalheiro, este olhou seus amigos, sorriu-lhes e caminhou para o lugar onde o senhor Blatte, embelezado com uma camisa branca e umas calças muita estreita esperava-lhe com os olhos injetados em sangue.

? Senhor... ? William o saudou com cortesia, mas este não se dignou nem a olhá-lo.

? Quando estiverem preparados... ? a testemunha olhou a ambos os homens e estes assentiram. ? Contem dez passos e girem-se. Que Deus os proteja.

William sentiu as costas de seu competidor na cintura. Riu ao notá-lo tão pequeno e com tanta coragem. Enquanto contava os passos recordava Juliette sob seu corpo. Viu de novo os grandes seios fazendo círculos maravilhosos quando cavalgava sobre sua ereção. Tinha lhe encantado ver o cabelo revolto depois do ato sexual e como ela albergava o enorme e duro falo na boca. Em vez de concentrar-se no que estava acontecendo, pensou que, quando o senhor Blatte voltasse a ausentar-se, faria uma visita à delatora para lhe recriminar o engano e fazê-la pagar por seus indecentes atos.

De repente escutou que alguém dizia dez. Virou-se com desconcerto e olhou seus amigos, que abriram os olhos de par em par enquanto cravavam seus olhos no senhor Blatte, ele fez o mesmo. Tinha curiosidade por saber como atuaria aquele pequeno homem e a cara que faria após falhar o tiro. Sorriu ao escutar o eco do disparo. Ato seguido, uma escuridão o rodeou e notou como seu corpo desabava para o chão fazendo com que sua cabeça batesse um par de vezes sobre algo bastante duro.


I


Londres, seis meses depois.

O ajudante de câmara o estava vestindo enquanto ele permanecia rígido e com o cenho franzido. Não era de seu agrado ter que depender de alguém para realizar uma tarefa tão singela. Antes do duelo, o criado se ocupava de lhe preparar a roupa, colocá-la sobre a cama e esperar que sua decisão coincidisse com a do duque. Entretanto as sequelas do duelo o tinham convertido em um ser dependente. Obstinou-se à crença de que transcorridos alguns meses seu corpo seria o mesmo de antes, mas não foi assim. A gravidade de suas feridas tinha sido tal que tinha que dar graças a Deus por continuar respirando.

Sem alisar sua testa refletiu sobre o destino e todas as jogadas que este lhe podia reservar enquanto o servente lhe punha a camisa e lhe abotoava, definitivamente, aquele calvário era o pior que tinha sofrido em toda sua vida.

Seus escarcéus amorosos tinham sido vingados por alguém que não levantava do chão mais de um metro e meio. Por que não girou para a direita para evitar o terrível impacto? Se em vez de estar pensando no prazer que lhe tinha dado o corpo de Juliette e a condenação que receberia por desvelar o segredo, teria prestado mais atenção à direção do projétil e hoje seguiria sendo o mesmo William de sempre. Entretanto, já não o era. Não ficava rastro da pessoa que foi. Agora era um deficiente, um homem ao qual lhe resultava impossível mover a mão esquerda e cuja incapacidade tinha azedado seu afável caráter para converter-se em um ser antissocial e desprezível.

? Excelência... ? o criado cravou os olhos no chão e lhe fez uma reverência antes de deixá-lo sozinho.

O duque caminhou para a janela apoiando-se na bengala. Amanhecia outro dia chuvoso e, como nas jornadas anteriores, não poderia sair da mansão. Isso lhe provocava mais ira do que a necessária. Não era igual passar as penúrias encerrado entre quatro paredes do que tomando o ar do exterior.

Apoiou a testa na moldura de madeira e suspirou. Merecia-o. O estado no qual se encontrava era o resultado da tormentosa vida que tinha levado e agora devia aguentá-lo com orgulho. Com grande esforço conseguiu chegar até a porta. O delicioso aroma do café da manhã fez com que seu estômago se manifestasse e, sem mediar palavra, desceu as escadas, uma proeza que três meses atrás lhe tinha resultado difícil executar por si mesmo. Chegou até o salão e esperou que um dos criados lhe apartasse a cadeira, sentou-se e se acomodou para começar a tomar o suculento café da manhã que havia sobre a mesa.

? Sua Excelência... ? o mordomo se aproximou e, depois de uma breve reverencia, continuou: ? o senhor Federith Cooper acaba de chegar e deseja falar com você.

Federith, um de seus melhores amigos a quem não tinha quebrado, ainda, sua amizade com ele, tinha lhe visitado quase diariamente durante sua convalescença. Foi o mesmo homem que lhe advertiu em reiteradas ocasiões que o rumo de vida que tinha decidido não era o apropriado para um duque.

William tinha rido dele, zombado de seus incessantes discursos sobre o dever e a lealdade para com o título que lhe seria concedido por nascimento. Mas, apesar das brincadeiras, dos sátiros comentários, Federith continuava ao seu lado como se o passado não tivesse existido.

? Deixe-o entrar... ? disse calmamente.

Quando sua voz deixou de mostrar a personalidade de um homem com caráter? Desde quando seu tom se apagou tanto? Possivelmente desde que descobriu numa manhã em frente ao espelho que William Manners se convertera em um monstro que poderia assustar aos meninos inquietos. Porque, embora todo mundo de seu entorno lhe oferecesse palavras de consolo, ele se via um ser disforme e sem utilidade. Como poderia suportar o peso de um título tão respeitável quando nem ele mesmo conseguia respeitar-se?

Levou a xícara de café aos lábios com a mão sã e tomou, depois de um leve sopro ao líquido, um bom sorvo. Escutou enquanto isso como o mordomo informava ao seu amigo que era bem recebido e, depois de finalizar a conversação, os passos deste para a sala de café da manhã. Antes que Federith abrisse a porta e aparecesse com seu peculiar sorriso, William já tinha seu olhar cravado em sua direção.

? Bom dia, querido Rutland, que tal se levantou nesta horrenda manhã? ? Caminhou para ele e, ao compreender que não podia saudá-lo com um apertão de mãos posto que estivesse utilizando a mão útil, agarrou a cadeira, apartou-a e se sentou ao seu lado.

? De péssimo humor... ? murmurou com aborrecimento.

? Está acostumado a ocorrer quando o inverno está a ponto de terminar. Por muito que desejemos evitá-lo, azeda-nos o caráter ? continuou mostrando um leve, mas gentil sorriso.

? A que se deve sua visita, Federith? ? Grunhiu.

? Não se alegra de me ver? ? Respondeu à sua vez.

? Já sabe a que me refiro. O que aconteceu para que esteja em meu lar antes do meio-dia? ? Voltou a beber do café sem apartar o olhar de seu amigo.

? Sua astúcia não diminuiu nem um ápice, não é? ? Soltou uma pequena gargalhada. Depois de observar que William pousava a xícara sobre o pires e pegava o garfo para dirigir a comida que lhe tinham preparado para a boca, prosseguiu: ? Queria te dar uma notícia antes que lhe cheguem os rumores: decidi pedir a mão de lady Caroline.

? Matrimônio? ? Arqueou a sobrancelha esquerda abandonando com brutalidade o garfo sobre a mesa e se reclinando sobre as costas do assento. ? Diz-o a sério? De verdade que vem me informar, antes de ter o estômago cheio, que decidiu se casar? ? Abriu tanto seus olhos que Federith por fim conseguiu averiguar a cor destes.

? Chama-se amor, William, e embora te pareça mentira, Caroline me ama tanto quanto eu a ela ? disse sem mostrar remorso algum pelo comentário mordaz de seu amigo. Não esperava que lhe desse os parabéns. Não William. Ele o evitaria contribuindo com argumentos nefastos sobre a vida que teria uma vez que sua prometida obtivesse o anel. ? Decidi que ? prosseguiu Federith aferrando suas mãos como se tivesse a intenção de começar a rezar ? retornarei a Hemilton depois das núpcias. Esse será o lugar adequado para formar uma família respeitável.

? Então... ? William entrecerrou os escuros olhos e os cravou em seu amigo. Notava como a respiração deste era agitada, nervosa. Esses sinais de preocupação e incerteza apareciam no jovem Federith sem ele desejá-lo. O duque pigarreou. Tinha refletido, ao mesmo tempo em que seu amigo expunha sobre o infinito amor que o casal se professava, a verdadeira razão pela qual Federith tomava uma decisão tão importante. ? Então... ? repetiu para captar a atenção de seu camarada. ? Ela está grávida e precisam se afastar de Londres para que não se descubra a verdadeira razão desse precipitado enlace matrimonial, não é?

? Santo céu, Manners! ? Exclamou Federith empurrando com as panturrilhas o assento e elevando-se com rapidez. Ficou rígido, sem saber que passo dar. Esperava que William fosse sensato e retificasse, mas conhecendo-o como o fazia, sabia que isso seria impossível.

? Calma, sabe que de minha boca não sairá nada que possa te prejudicar ? continuou com o cenho franzido enquanto observava a crescente tensão de Federith.

? Espero que não tenha esquecido o que significa ser um cavalheiro. ? Seus punhos se apertaram. As palavras brotaram dele com um tom repleto de ameaças.

Mas... que perigo poderia ter uma pessoa que vivia detento de suas más decisões? Ante tal reflexão Federith se zangou consigo mesmo. Ele não era assim. Jamais desejava o mal a ninguém. Sua filosofia de vida era muito distinta. Embora a raiva que William tinha despertado nele superasse qualquer crença sensata.

? Há valores que nunca se perdem ? respondeu William ao pequeno ataque.

? Não estou muito seguro disso. Apartartou-se do mundo. Apenas se relaciona com seus amigos, escondeu-se entre estas paredes e há mais de três meses não recebe visitas. Crê que esse tipo de vida não faz rachaduras na mente do cavalheiro mais racional?

O duque o observava com atenção. Federith seguia com os punhos fechados, mas em nenhum momento foi capaz de olhá-lo aos olhos para lhe cuspir o pouco veneno que devia sentir após descobrir seu pequeno segredo.

? É o melhor lugar para habitar um monstro, não acredita?

? Monstro? Assim é como se considera o duque de Rutland? Desaponta-me William, acreditei que tinha mais coragem...

Federith o olhou com atenção. Na verdade, William tinha um pouco de razão. Ali onde no passado tinha existido um cavalheiro bonito, agora se encontrava um homem com umas horrendas marcas no rosto. Além disso, já não era só a fealdade, mas sim que depois de ser operado de urgência pelo médico que o zangado marido de Juliette conduziu até o lugar do duelo, o duque ficou incapacitado de uma mão. Essa que, nesses momentos, tinha colocado sobre a mesa aparentando ter uma função. Suspirou com suavidade e meditou sobre a passada temporada social. Seu amigo partiu antes do acostumado deixando lady Baithlarin desolada pela ausência repentina de um homem tão importante. Supôs que tal marcha se deveu à imensa pressão que William estava sofrendo depois do falecimento de seu pai e a posse do título. Entretanto, a fuga à sua residência em Southwark tinha outra razão: desaparecer. Odiaria ver a cara de espanto que mostrariam as jovens casadouras quando seus progenitores as apresentassem ao novo duque. Ali onde antes encontrou sorrisos pecaminosos e olhos frágeis pela possibilidade de jazer sob a esbelta e robusta figura, agora encontrava repugnância, asco. Que dramático final para um homem que acreditou ser possuidor de todos os encantos divinos!

? Perdi-a depois do disparo ? respondeu em tom vazio, sem entusiasmo. Entretanto, em seu interior crescia de novo aquela ira a qual começava a acostumar-se. Era hora de cortar a conversação e deixar que seu amigo tomasse o rumo marcado. ? Voltando para o motivo pelo qual me visita...

? Como lhe disse, tomei uma decisão firme a respeito. A futura baronesa de Sheiton será muito feliz em Hemilton.

? Não o duvido. Com certeza será muito feliz com esse filho que te dará e imagino que será o pai mais maravilhoso do mundo.

? Sim ? respondeu ignorando a ironia de sua afirmação. ? É óbvio que serei feliz ao lado da minha esposa e da família que criarei. ? A visita estava chegando ao seu fim. Federith tinha vontade de partir e afastar-se de seu camarada. Estirou-se a jaqueta do traje, estendeu a mão para seu amigo para que este a tomasse e disse: ? Veremos-nos em outro momento. Possivelmente em um no qual tenha recuperado o sorriso.

? Antes de ir..., ? aferrou com força à mão de Federith e olhou-o nos olhos ? eu gostaria de te fazer uma última pergunta, se me permitir isso o futuro barão de Sheiton, é claro.

? É óbvio.

? Estou me perguntando... que classe de inconsciente pode chegar a ser para se casar com uma mulher que leva em seu seio o filho de outro? ? Soltou sem tomar ar.

O assombrado homem não respondeu a impertinente pergunta. Partiu do salão erguido e com passo firme.

William ficou calado refletindo durante um bom momento. A decisão de Federith a nível social era a mais correta se ele amava de verdade a mulher. Entretanto, quando falou dela e de seu futuro projeto juntos, não mostrou o entusiasmo próprio de um homem apaixonado, um homem que, tal como tinha proclamado, amaria para sempre a sua esposa.

Muito a seu pesar sabia que cedo ou tarde seu amigo seria infeliz e isso, embora não quisesse reconhecê-lo, doía-lhe. Sempre albergou a esperança que, dos três, Federith obtivesse a vida que merecia.

? Deseja algo mais, Excelência? ? Um dos criados lhe fez despertar de sua letargia mental ao mesmo tempo em que entrava no salão e esperava o próximo mandato.

? Preparem a bagagem. Amanhã ao amanhecer partiremos para Haddon Hall.


II


Tinha viajado quatro dias intermináveis com suas noites incluídas, pernoitando em miseráveis e fedorentas estalagens, mas por fim, aquela horrenda viagem se acabara.

Chegara ao seu lar.

O imenso arvoredo lhe dava as boas vindas com suaves movimentos de folhas. William colocou a cabeça pela janela da carruagem e observou a sobriedade dos grandes e altos muros da mansão. Era, sem dúvida, o melhor lugar onde poderia esconder-se pelo resto de sua vida. Uma fortaleza em que poderia passar os dias inteiros caminhando pelos intermináveis corredores, salões e estadias. Moveu o lábio superior para a esquerda tentando desenhar um sorriso, mas fazia tanto tempo que não movia os músculos para essa função que foi impossível fazê-la como era devido. Apesar desse fracassado esforço por sorrir, William se sentia contente em retornar à casa de sua infância.

Rememoraria as aventuras que seu irmão e ele viveram quando meninos. Se a mente não lhe falhava, ambos tinham enfurecido até ao servente mais paciente do mundo. Logo, com o tempo, aqueles que correram atrás deles para que não terminassem se machucando, converteram-se em pessoas dignas de sua confiança.

Olhou de novo ao seu redor. Tinham passado dez anos desde que decidiu abandonar Haddon Hall para dedicar-se ao desfrute da vida londrina, e nada tinha mudado em Derbyshire, o tempo parecia deter-se.

O cocheiro diminuiu o passo quando chegaram ao jardim principal. Com a cabeça apoiada na almofadinha da carruagem podia ver a fonte. Ela foi à causadora de sua primeira aposta e de sua primeira derrota. Não tinha que ter desafiado Lausson a saltar, as probabilidades de que perdesse eram escassas, entretanto precisava provar-se a si mesmo. Necessitava estimulação, emoção e um sem-fim de sentimentos que depois encontrou entre as pernas de suas amantes.

William fechou os olhos. A palavra amante se converteu em sinônimo de monstruosidade, posto que pela língua de uma delas ele tinha o rosto desfigurado e uma mão inerte. De repente se perguntou como atuaria o serviço ante sua chegada. Para eles tinha que ser bastante impactante recordar a marcha de um bonito homem e receber ao mesmo convertido em um monstro. Esperava que Brandon, seu fiel mordomo, tivesse lhes posto à corrente do acontecido e indicado a melhor forma de atuar quando ele estivesse presente: nada de olhá-lo ao rosto, tão somente servir e manter os olhos cravados no chão.

Repentinamente uma terrível dor se apropriou de sua cabeça. Notava nas têmporas o pulso de seu coração. Estava nervoso? O duque de Rutland começava a sentir ansiedade por seu futuro? Não se tinha respondido quando a porta da carruagem se abriu e alguém estendeu uma mão para lhe facilitar a descida. Até o momento, não o tinha necessitado: o normal era que se aferrasse com a mão sã à porta e descesse devagar. Mas depois de quatro dias de viagem, de mal dormir, de fadiga e inclusive de uma péssima alimentação, essa ajuda era necessária. Depois da custosa façanha, liberou a mão e continuou sozinho.

Quando elevou o olhar para a entrada principal advertiu que todos os criados tinham saído para saudá-lo e cravavam seus olhares no chão. Em efeito, Brandon tinha falado com eles.

? Milord... ? o mordomo se colocou com sutileza atrás de suas costas e começou a lhe informar. ? Sua habitação está preparada para que descanse. Imagino que depois da viagem precisará refrescar-se, assim ordenei ao seu ajudante de câmara que o espere. As criadas lhe prepararam um banho de água quente.

? Obrigado, Brandon ? disse com tom suave.

? Não tem por que me agradecer, Excelência. É uma honra trabalhar para você. ? Brandon, sem afastar-se do senhor nem um metro, caminhava com firmeza esperando que este requisitasse sua força para subir as escadas. Mas não a necessitou. O duque de Rutland caminhava com orgulho para o interior do lar, saudando brandamente com a cabeça seus novos empregados. ? Tenho que lhe comentar que na biblioteca tem sobre sua mesa vários convites. Embora tenha anunciado que deseja descansar uma temporada antes de encher Haddon Hall de convidados, todo mundo deseja conhecê-lo e falar com você.

O duque fez um leve som gutural e o criado entendeu que aquele esforço era mais do que podia suportar. Tentou alargar a mão para aferrar-se ao braço inerte de seu senhor e acalmar o esforço, mas este o negou. Tinha suficiente orgulho para não se mostrar fraco ante aqueles que estavam sob suas ordens.

Tal como lhe informou Brandon, quando acessou seu quarto o ajudante esperava pacientemente. Depois de fechar a porta, o criado lhe fez uma reverência e lhe pediu permissão para despi-lo. William a aceitou com rapidez. Desejava inundar-se na banheira o antes possível. Precisava introduzir seu cansado corpo em água quente e que esta acalmasse as doenças que lhe açoitavam sem piedade.

? Necessita que lhe ajude em alguma outra coisa, sua Excelência? ? Inquiriu o criado ao finalizar sua tarefa com habilidade.

? Diga ao Brandon que suba, preciso falar com ele ? respondeu o duque.

O criado se dirigiu para a porta com rapidez e antes que William pudesse suspirar, Brandon apareceu no meio do quarto.

? Não está tudo como deseja, Excelência?

? Tudo está perfeito, obrigado. Chamei-te porque quero que me faça um favor. Necessito que procure o antes possível uma cortesã capaz de manter encontros esporádicos comigo ? ordenou sem olhá-lo. Movia as pernas devagar, deixando que se acostumassem ao calor do banho, à tranquilidade de um ambiente sereno e aprazível.

? Com o mesmo salário, sua Excelência?

? Com o mesmo salário... ? repetiu.

? Alguma petição especial? ? Quis saber.

Em Londres o duque tinha procurado durante muito tempo uma amante que se parecesse fisicamente à lady Juliette. Não encontrou a réplica perfeita, mas sim a uma jovem que tinha feições parecidas. Esta o satisfez até que dias atrás teve que partir. É óbvio, deu-lhe a opção de escolher: podia viajar para Haddon Hall para continuar seu ofício ou, pelo contrário, podia declinar seu convite. A jovem, alegando que sua mãe se encontrava bastante doente, decidiu não continuar. Algo que entristeceu ao senhor por que... como conseguir outra agulha em um palheiro?

? Já sabe quais são os requisitos ? disse com grosseria.

? É óbvio. Deseja que diga ao seu ajudante de câmara que pode acessar ao dormitório?

? Não, diga-lhe que esteja atrás da porta e que o chamarei quando o necessitar.

? Como desejar... ? disse antes de retirar-se.

William olhou ao seu redor. Encontrava-se no quarto de seu pai, o santuário do anterior duque de Rutland, o único lugar proibido de todo Haddon Hall quando era menino. Ambos os irmãos se enchiam de entusiasmo quando o pai aparecia pelo lar, e só pensavam em despertá-lo com risadas e conversações sobre as mil anedotas que tinham acontecido em sua ausência. Entretanto, com o tempo descobriram que o duque não retornava para passar tempo com seus filhos e sim para esquentar a cama com sua legião de amantes.

William franziu o cenho. Tinha odiado com todo seu coração a atitude de seu pai e não deixava de ser irônico que se convertera em uma réplica perfeita. O que primeiro tinha ordenado ao Brandon ao chegar? Uma amante. Uma mulher que o saciasse sexualmente, sem escrúpulos e desejosa de encher seus bolsos de moedas.


Só gozou de dois dias de solidão para descansar antes que os primeiros bisbilhoteiros aparecessem. O reverendo Brace e sua esposa eram um jovem casal que tinham retornado a Derbyshire depois que faleceu o pai deste, anterior pastor da comarca. Quando acessaram ao salão principal, lugar onde receberia a todos seus convidados, William se desculpou por não lhes dar as boas vindas de maneira correta.

? Não se preocupe, Excelência, informaram-nos de suas incapacidades ? explicou o reverendo com um sorriso. Ao qual o duque desejou fazer desaparecer com um murro, se pudesse.

? Veio ao melhor lugar para descansar. ? A senhora Brace, com uma suave e harmoniosa voz, misturou-se na conversação para salvar as inoportunas palavras de seu marido.

? Isso espero ? comentou o duque esboçando um leve sorriso. ? Segundo minha lembrança, Derbyshire é um lugar tranquilo e aprazível.

? As pessoas que habitam aqui são gente de paz, nós não gostamos dos escândalos nem tentamos destacar mais do que nossas possibilidades nos oferecem.

? Entretanto, às vezes sofremos certos constrangimentos. ? Outra vez a encantadora mulher tentava salvar a desafortunada reflexão de seu cônjuge. ? Virá à Igreja, sua Excelência? É linda e aos domingos está transbordante de crentes.

? Se puder, estarei encantado de admirá-la ? respondeu William com uma amabilidade estranha. Quanto tempo fazia que uma mulher não lhe agradava? Muito, devia ter transcorrido no mínimo uma eternidade, porque se não fosse assim, por que via atraente a volumosa esposa do reverendo?

? Visitou-lhe já algum de nossos vizinhos? ? Perguntou o impertinente homem antes de dar um sorvo ao chá.

? São vocês os primeiros. Meu mordomo me informou sobre a montanha de convites que recebi, mas temo que até que não consiga me pôr em dia com a contabilidade de Haddon Hall, não poderei aceitar a nenhum. ? Parecia uma desculpa? Esperava que assim fosse, porque não tinha vontade de explicar nada ao pároco, nem que não era responsável pela quantidade de convites que lhe tinham enviado nem se os aceitaria.

? Deve descansar, Brennet. Sua Excelência fez uma longa viagem e como deseja assentar-se neste lindo lugar pelo resto de sua vida, tem muito tempo para assistir aos eventos onde seja requerido – sorriu-lhe.

De verdade que um simples gesto de piedade podia interpretar como uma paquera feminina? De verdade que não podia apartar o olhar dos seios da esposa de um pastor? O duque tentou manter a calma e deixar de pensar no prazer. Essa noite, assim que pudesse falar com Brandon, pediria-lhe que esquecesse os requisitos solicitados para a cortesã e empregasse a primeira que gostasse do pagamento.

? Já é tarde, Lídia ? disse o reverendo olhando com ternura para sua esposa. ? Milord... ? levantou-se e moveu a cabeça devagar para diante. ? Voltaremos em outro momento, se lhe agradar.

? É óbvio, sempre serão bem-vindos.

Lídia, como a tinha chamado o senhor Brace, aproximou-se do duque, fez-lhe uma reverência e, aferrando-se ao braço de seu marido, ambos saíram do salão. Minutos depois apareceu Brandon. Esse homem parecia lhe ler a mente.

? Conseguiu a cortesã? ? Perguntou de mau humor e impedindo que o servente começasse alguma conversação que o distraísse de seu verdadeiro propósito.

? É óbvio, milord. Começará o trabalho quando você quiser ? explicou o mordomo com certa preocupação.

Era certo que a jovem tinha aceitado com rapidez seu novo encargo, mas não estava muito seguro de que o fizesse corretamente. Não parecia ser uma mulher com experiência, por muito que ela tivesse insistido no contrário.

? Pois não a façamos esperar. Informe-lhe que esta noite provarei seus serviços. ? Levantou-se com vigor e caminhou ansioso até a sala de jantar. Era a primeira vez em muito tempo que desejava com prontidão a chegada da noite.

Depois do jantar, que durou a metade do acostumado, decidiu refrescar-se. Queria estar limpo para sua nova amante. Que estivesse lesado ou impedido para fazer certas coisas no ato sexual não queria dizer que se comportasse como um mendigo, nunca o tinha sido e nunca o seria. Odiava escutar as conversações de certos homens que se denominavam cavalheiros e alardeavam suas experiências com as prostitutas que encontravam nas ruas. Ele jamais precisou ir a uns serviços tão desagradáveis. Só de pensar lhe produzia asco. No meio da rua? Sem assear-se? Como animais? Não, ele não pertencia a essa classe de homens.

Não lhe cabia dúvida que Brandon a teria conduzido até alguma das habitações da residência, teria-lhe devotado uma boa banheira de água quente e a teria preparado para o momento. Enquanto seu ajudante lhe colocava com habilidade a camisola, pensou em como seria a mulher. Alta? Teria pernas longas? Adorava esse tipo de mulheres, possivelmente porque sua estatura era bastante considerável para albergar em seu corpo uma concubina de pequeno tamanho. William franziu o cenho.

Nesse preciso instante, em vez de pensar mais na mulher que entraria em seu dormitório para lhe agradar, recordou de novo o marido de Juliette. Subestimou-o por ser baixinho, riu dele e inclusive pensou que seria um bom palhaço para um desses circos que visitavam a cidade. Embora resultasse muito ao seu pesar, que esse pequeno homem provocou o maior desastre de sua vida. Sim, esse tipo de conclusões lhe reforçava com esforço a crença de ter ao seu lado uma mulher alta, muito alta.

Andou pela habitação durante uns minutos. Estava ansioso pela iminente chegada. Olhou com rapidez ao seu redor. Havia muita luz para seu gosto. Possivelmente devia apagar alguma vela e deixar um ambiente mais íntimo. A jovem de Londres soube antes o que encontraria ao acessar o quarto, o periódico The Daily Gazetteer se encarregou de difundir uma foto de seu antes e seu depois. A fatalidade de uma vida promíscua tinha intitulado o artigo. Entretanto, em Derbyshire, as notícias se conheciam pela difusão dos habitantes. Deu por certo que, salvo os que estivessem fora de seus lares, já tinham algum conhecimento do novo rosto do duque de Rutland. Não lhe cabia dúvida de que o reverendo teria se encarregado disso.

Olhou de novo as velas acesas e decidiu apagar um par delas. Pareceu-lhe que a melhor forma para começar uma relação especial era sob a intimidade da penumbra. Logo se aproximou da cama e se sentou sobre ela, esperando-a. Tremia-lhe a mão e o coração palpitava sem poder controlá-lo. Zangado por não controlar sua ansiedade, repreendeu-se em voz alta.

? Basta! Controla sua emoção! Nem que fosse conhecer sua futura esposa!

Terminou esse pequeno e escandaloso monólogo quando escutou o suave som da porta. Se antes o coração estava agitado, agora tinha parado em seco.

? Pode entrar ? disse com tom aparentemente sereno.

Uma pequena figura apareceu na penumbra. William franziu o cenho ao ver que Brandon não tinha conseguido uma concubina de grande altura. A mulher tinha o cabelo solto cobrindo grande parte de seu rosto e de seus ombros. Nesse momento se repreendeu por ter criado tanta escuridão posto que mal distinguisse as feições da moça. Embora, se fosse boa em seu trabalho, o que importava como era seu rosto?

? Aproxime-se ? sussurrou o duque estendendo a mão direita para ela. A moça caminhou para a cama e o olhou. Nesse momento suas sobrancelhas subiram uns milímetros e William entendeu que se surpreendeu. ? Não acredito que deva te explicar para o que veio, não é? ? Ela assentiu. ? Não albergue em seu coração a possibilidade de que entre nós exista uma relação afetuosa, só quero prazer. ? Seu tom se endureceu. Por que havia se zangado com tanta rapidez?

? Só prazer... sua Excelência ? murmurou a mulher sem querer voltar a cravar seus olhos no rosto dele. Como se tivesse mais pressa do que se requeria naquele tipo de encontros, a mulher se desfez das vestimentas e se colocou frente ao duque nua. Deu uns pequenos passos até que a mão deste pôde alcançar um seio.

? Faça com que eu te deseje. Finja algum interesse e faça por merecer o salário que obterá quando partir ? continuou com tom duro, firme e inclusive insolente. Mas... o que pretendia? Que ela se lançasse sobre seus braços e beijasse aquelas horrendas cicatrizes? Ficou tão impactada ao vê-lo que não sabia nem como atuar.

A mulher se ajoelhou em frente ao homem. Levantou com suavidade a camisola e procurou com a boca o falo. William jogou a cabeça para trás e suspirou. Estava tão necessitado que essa noite se contentaria com o pouco que a concubina estivesse disposta a dar. Se ela tinha decidido utilizar sua boca para saciá-lo, relaxaria e desfrutaria do momento. Fechou os olhos e fez com que as imagens de Juliette retornassem à sua mente. Voltava a tê-la ao seu lado lhe sussurrando palavras obscenas. Mostrando sem pudor o desejo que sentia o bonito corpo ao tocá-la e como a mulher respondia com um sem-fim de deliciosos ofegos. Rememorou o baile de seus seios ao sentar-se sobre ele, seus gemidos, seus beijos e o abundante fluxo que emanava do sexo para conseguir banhar o seu. Úmida e aberta para suas carícias. Quente e ardente sob seus toques. William franziu o cenho. Estava a ponto de gozar na boca da cortesã. Não quis abrir os olhos e observar o rosto da jovem. Preferia imaginar Juliette. Preferia escutar os ofegos daquela mulher que os seus próprios. O sexo vibrou, endureceu-se com força e notou como a semente brotava de seu interior banhando a língua da moça a quem não tinha perguntado nem seu nome. Não lhe importava, para que saber o nome de uma mulher que, depois de olhar seu rosto, tinha-lhe dado tanto medo que não foi capaz de levar a cabo um trabalho tão singelo? Quando o sexo retornou ao seu estado normal, baixou-se a camisola, girou-se para dar as costas à petrificada moça, agarrou-se com força ao dossel em espiral de madeira e lhe disse com tom sério e furioso:

? Vá! Meu mordomo te pagará o convencionado.

A moça agarrou com rapidez o vestido que tinha deixado no chão e se vestiu. Fez uma reverência ao duque e partiu velozmente. Quando a porta se fechou e William soube que por fim estava sozinho, começou a chorar como tantas vezes tinha feito depois do duelo. Sentia-se cada vez mais no fundo do poço e com menos força para seguir vivendo. Ninguém desejaria ter ao seu lado um monstro inútil. Nenhuma mulher deveria ser condenada a viver sob seu mesmo teto. Tremendo, recostou-se na cama e continuou chorando até que adormeceu.


III


Nada. Já não tinha nada que levar à boca. Já há um tempo que as reservas que tinha guardado para poder sobreviver naquele paradisíaco lugar tinham desaparecido. Enrugou a testa e levou as mãos ao quadril. Como era possível que aqueles malditos lobos tivessem comido, em uma noite, uma peça tão grande? Enfurecida pela fome, pensou em apanhar aqueles que a tinham deixado sem alimento e comer-lhes.

«Malditos animais!», gritou para si entre lágrimas.

Ela chutou uma pedra, e depois de sentir uma terrível dor nos dedos, sentou-se sobre ela. O que devia fazer agora? Tinha investido as últimas moedas comprando galinhas, coelhos e um casal de porcos. Acreditou que eles a ajudariam a subsistir todo o tempo que fosse necessário até decidisse-se retornar e fazer frente à situação que não pôde dirigir no passado. Entretanto, agora não ficava nada, nem sequer um pedaço de pão para levar à boca. Depois de meditar durante muito tempo na melhor maneira de sobreviver naquelas circunstâncias, saltou sobre o chão e sorriu. Não lhe tinha ocorrido com antecedência porque o desprezava com toda sua alma, mas dada a situação teria que deixar estacionado o ódio que sentia por esse homem e pensar no melhor para ela.

Todo mundo falava com entusiasmo da chegada do atual duque de Rutland. Esperavam que aquela aparição fosse bastante proveitosa para o povo porque, se o duque continuasse com sua famosa vida social, celebraria grandes e numerosas festas e a localidade se encheria de nobres curiosos. O verdadeiro motivo para esse entusiasmo era um muito singelo de compreender: trabalho. Lavadeiras, costureiras, cozinheiras e criados em geral seriam procurados para oferecer aos convidados de Haddon Hall o máximo conforto. Era uma oportunidade que não podia deixar escapar.

Com vigor colocou as mechas que se soltaram do coque, ajeitou várias vezes o vestido e tomou o caminho que a conduzia até a mansão. Tinha tanta pressa por encher seu estômago que não esperaria que se convocassem as esperadas entrevistas. Beatrice tocaria a porta e pediria qualquer trabalho que, é óbvio, aceitaria com grande entusiasmo.

O que começou sendo um suave passeio, mais tarde se converteu em uma caminhada rápida, para depois pôr-se a correr como se o próprio diabo a perseguisse. Esquivou-se de todos os obstáculos que encontrou em seu passo sem lhe importar que em mais de uma ocasião seu vestido se manchasse de respingos de barro. Tinha um objetivo a cumprir, um que odiava porque se tratava de estar sob o amparo de um homem egoísta, ruim e desprezível, mas era o único que lhe ajudaria a continuar viva.

Quando chegou ao jardim principal da mansão, Beatrice ficou sem fôlego. Não só pelo esforço da corrida, mas sim pela imensidão do lugar que se mostrava ante ela. Tinha escutado muito sobre a residência do duque, mas jamais chegou a imaginar algo um pouco parecido. Possivelmente porque seus pais chamavam grandeza a uma décima parte do que observavam seus olhos. Permaneceu imóvel durante algum tempo, contemplando sem pestanejar o enorme edifício. Uma vez que estudou em detalhe o lugar, pareceu-lhe muito frio, muito sólido. Seus muros eram tão grossos e sóbrios que não entendia como alguém podia considerá-lo um lar, mais se assemelhava a uma prisão.

Aquele era o famoso paraíso no qual se criaram os filhos do duque? Disso se orgulhavam? Pois ela não trocava seu humilde lar pelo que estava vendo. Era tão impessoal e gélido como a atitude do homem a quem ia suplicar um posto de trabalho.

Depois de conseguir um pouco de calma e separar de sua mente todo pensamento doloroso produzido pela lembrança do comportamento do duque, caminhou pelo jardim sem descanso até que subiu as escadas que a conduziram para a porta principal. Parada frente a esta, duvidou se chamava com suavidade ou com todas as suas forças. Sopesava qual alternativa era a correta quando de repente escutou umas vozes que procediam da lateral do edifício. Assustada e com o coração galopando em seu interior, permaneceu imóvel enquanto rezava para que não a descobrissem tão cedo. Por uma vez Deus atendeu suas preces e os que falavam sem parar não repararam em sua presença. Escondida pela escuridão que lhe ofereciam uns pilares de pedra, observou várias pessoas descerem por onde minutos antes ela tinha subido. Quando as vozes se perderam pelo jardim aproveitou para sair de seu esconderijo e dirigir-se para o lugar de onde tinham saído: a porta de serviço.

Respirou com profundidade, voltou a pedir ajuda a Deus, elevou a mão para chamar e, justo quando seu pequeno punho iria tocar a grande lâmina de madeira, esta se abriu.

? Quem é você?! ? Exigiu saber com uma mescla de surpresa e medo uma mulher de avançada idade.

? Bom dia, senhora. Desculpe se a incomodo, vim pedir trabalho ? explicou olhando ao chão.

? A pedir trabalho?! ? A mulher abriu os olhos de par em par e levou a mão à garganta.

Beatrice abaixou ainda mais a cabeça ao mesmo tempo em que suas bochechas se enchiam de uma intensa cor vermelha. Não tinha dúvidas sobre a causa do imenso susto que tinha provocado à mulher. Quem, em seu são julgamento, pediria um trabalho respeitável vestida com farrapos manchados, com o cabelo coberto de barro e cheirando a excrementos de porco? Mas ela não estava em seu são julgamento desde que a fome se apoderou de seu corpo e de sua mente.

? Necessito-o, senhora. Estou a ponto de morrer. Levo dias sem comer... ? implorou a moça.

? Não é meu encargo oferecer trabalho, disso se encarrega o senhor Stone, mordomo de sua Excelência. Mas te aconselho que, se de verdade necessita de um emprego, volte outro dia com melhor aspecto. Assim só lhe fecharão a porta. ? Hanna, a cozinheira, sentiu verdadeira lástima pela jovem. Nunca tinha visto uma expressão tão dramática, nem tampouco uma palidez tão fantasmal.

? Rogo-lhe. Ajude-me... ? continuou com voz tão baixa que a anciã mal a escutou.

A anciã olhou a ambos os lados e, certificando-se de que ninguém poderia descobrir que abrigaria durante uns minutos a uma mendiga em uma casa respeitável, estendeu a mão e aferrou com força o braço da moça.

? Entra, sente-se e não fale até que tenha terminado de comer o que puser sobre a mesa. Se de verdade pretende trabalhar algum dia em um lugar como este, deve se sustentar com algo mais... do que tenha se alimentado até agora.

Beatrice sorriu e se sentou tal como lhe tinha indicado a mulher. Manteve-se calada até que contemplou o prato de sopa quente que a amável estranha colocava em frente a ela. Agarrou a colher, inclinou-se para a fumegante terrina e, sem esperar a que este se esfriasse, arremeteu contra ele. Em um passado já bastante longínquo teria pegado a colher e a teria dirigido lentamente para seus lábios para sorver em silêncio seu conteúdo. Mas estava vivendo o presente e seu estômago estava muito vazio para recordar protocolos absurdos. Mal levantou o olhar, salvo quando sua benfeitora retornava para lhe apartar o prato terminado e lhe colocar outro em seu lugar.

Enquanto notava o calor da comida em seu interior pensou que aquilo que estava conseguindo não era o que tinha pretendido. Ela queria um trabalho para ganhar a comida que a sustentaria durante o tempo necessário até que decidisse retornar a Londres. Entretanto, como não havia outra alternativa, continuou comendo enquanto fazia à ideia de que os suculentos pratos poderiam lhe oferecer um pouco mais de vida. Possivelmente a justa para sobreviver até que chegassem as desejadas entrevistas. De repente, enquanto saboreava seu último prato, escutou-se uma portada atrás dela e Beatrice saltou do assento. Ao descobrir em frente a ela um homem com rigoroso traje negro, abaixou a cabeça e começou a fazer nós com o tecido do vestido.

? Quem é e o que faz aqui? ? Brandon a observou com perspicácia, ato seguido dirigiu os olhos para Hanna e franziu o cenho.

? É uma jovem que veio pedindo um emprego... ? expôs a cozinheira limpando as mãos no avental.

? Do que, de limpadora de chaminés? ? Disse de mau humor. Não podia acreditar no que seus olhos observavam. Na cozinha, um lugar sagrado, havia uma moça coberta de sujeira, faminta pelo que podia apreciar, e desprendendo um aroma parecido ao do esterco de cavalo. Como tinha ocorrido a Hanna fazê-la passar à cozinha? Se a garota não partisse terminaria empesteando toda a mansão.

? Se me permitir isso, senhor, posso lhe informar que sei lavar, costurar, e inclusive posso ajudar em outras tarefas domésticas... ? murmurou sem levantar a vista do chão.

? Disse lavar? Não estou tão seguro disso, menina. A sujeira que vejo em seu corpo me indica que não deve ter muito claro o que significa isso... ? O mordomo cruzou os braços e entrecerrou os olhos.

? Brandon! Como pode falar assim? ? Hanna explodiu e, diante de Beatrice, tratou-lhe com familiaridade, advertindo à jovem que entre eles existia uma relação mais afetiva do que aparentavam.

? Esta moça tem que sair daqui o antes possível, senhora Stone ? explicou com tom sereno e firme. ? Eu não gostaria de sentir a fúria do duque em meu corpo por algo que nem sequer me corresponde.

? Suplico-o, senhor ? interveio Beatrice entre soluços. ? Preciso comer. Hoje fui abençoada pela amabilidade da senhora Stone, mas amanhã... do que me alimentarei amanhã?

Brandon, que tinha se girado para que Hanna não observasse o aborrecimento que lhe provocou seu ato de solidariedade, ficou durante uns instantes parado com o olhar cravado na porta por onde tinha entrado. Depois de meditar o rogo desesperado da jovem, sorriu meio de lado e se voltou para esta.

? Já esteve alguma vez com um homem? ? Enrugou a testa e a olhou diretamente aos olhos.

Hanna, depois de escutá-lo, levou-se a mão à boca. Sabia o que estava a ponto de expor e pensou que se na verdade lhe oferecesse aquele posto, ela cairia ao chão.

? Como? ? Apesar de ter as bochechas cobertas de barro, o rubor era visível em seu rosto.

? É virgem? Manteve relações sexuais? Sabe esquentar o leito de um homem? ? Continuou com o inesperado interrogatório o mordomo. Deveria assustá-la, não podia fazer com que Hanna tentasse acolhê-la tal como parecia pretender. Desde que a filha de ambos morrera fazia já quase quinze anos, o instinto maternal brotava sem que ela percebesse e em muitas ocasiões, de maneira incorreta.

Beatrice esteve a ponto de desmaiar. O que tentava dizer o mordomo? Por que precisava saber se alguma vez tinha estado entre os braços de um homem? Quis romper a chorar quando em sua mente brotou a lembrança daquele momento. Sim, tinha estado com um homem e tinha perdido a inocência com ele, mas... tinha que explicar como e em que circunstâncias a tinham desflorado?

? Vejo que está pensando... ? um sorriso zombador apareceu no rosto enrugado.

? Não... ? disse enfim Beatrice apertando os punhos e armando-se de coragem.

? Informo-lhe, senhorita, que o único posto livre que temos nestes momentos é o de cortesã. Nosso duque necessita de uma mulher para saciar seus desejos sexuais e o pagamento é uma bolsa de cem moedas de ouro por esses serviços. Sabe agradar a um homem?

Hanna girou e se dirigiu para o fogo. Não suportava a situação que estava vivendo e se jogava a culpa disso. Se tivesse fechado a porta e não a tivesse arrastado até o interior, a moça teria partido morta de fome, mas com sua dignidade intacta.

? Sim ? respondeu com firmeza. Levantou seu olhar, elevou o queixo e prosseguiu: ? Todos os homens que passaram pelo meu leito partiram satisfeitos.

Era real o que brotava de seus lábios? Sabia ela saciar os apetites sexuais de um homem? A única vez que esteve com um tinha uma faca apertando sua garganta e naquele momento não pensava em satisfazê-lo a não ser em fazer o que este lhe pedia e fugir com vida o antes possível.

? Perfeito então. Senhora Stone, ? disse à cozinheira que não era capaz de olhá-lo ? já temos uma prostituta. Ordenarei que lhe preparem uma habitação. Não albergue a falsa esperança de ter um teto onde dormir, isso não está no acordo. Mas eu gostaria de apreciar a beleza que oculta embaixo dessa capa de imundície. Além disso, para que elimine esse pestilento aroma, deveria ficar de molho no mínimo uma semana. Senhora Stone, já que foi você quem se proclamou benfeitora da jovem, deixo-a em suas mãos para que a prepare de maneira adequada.

Hanna não respondeu. Estava mexendo em uma panela de metal o guisado que pretendia oferecer para o almoço. As lágrimas percorriam seu velho rosto e sentia que a garganta lhe oprimia. Sem querer tinha conduzido a jovem a um destino turvo, escuro.

? Senhora Stone? ? Inquiriu Brandon para certificar-se de que o tinha escutado.

? Sim, senhor Stone, prepararei-a ? respondeu apertando a mandíbula.

Escutou-se a porta depois da saída do mordomo e depois disto, houve silêncio. Beatrice tinha ficado de pé, incapaz de mover-se. Ainda não era consciente do que tinha acontecido. Tinham lhe devotado o posto de cortesã e ela, em um ataque de ira, tinha-o aceito? Como podia ser tão tola? Possivelmente não pensou em nada depois de escutar que lhe pagariam uma centena de moedas de ouro. Era muito mais do que levou em seu bolso quando partiu de Londres e estava segura de que, com essa quantidade, poderia comprar outros animais com os quais poderia sobreviver durante bastante tempo. Embora para seguir vivendo nas condições nas quais se encontrava, devia padecer de novo a dor e a vergonha? Viver um pouco mais ou morrer na cabana? Se algum dia alguém aparecesse por ali descobriria ossos de um cadáver, o seu.

«Viver para lutar», pensou para si.

Suspirou com intensidade e fez desaparecer todo tipo de inquietações. Devia fazê-lo e ponto.

? Sinto-o... ? escutou a cozinheira murmurar. ? Tudo isto foi por minha culpa...

? O emprego, eu o aceitei. Se quisesse teria me negado ? indicou ao mesmo tempo em que se aproximava das costas da anciã.

? Não é justo! Esse homem se aproveitou da sua necessidade e jamais o perdoarei ? gritou enfurecida enquanto levantava a panela com raiva.

? Senhora Stone, você é um anjo e de verdade, aconteça o que acontecer, estarei eternamente agradecida. Graças a você poderei sobreviver uns meses mais.

Beatrice não queria que ela se preocupasse com seu futuro. Acaso se tinham preocupado seus pais? Não. Depois de lhes revelar o que tinha acontecido com o conde de Rabbitwood e lhes haver jurado que ela não tinha feito nada, seu pai saiu correndo enquanto que sua mãe chorava sem consolo. Para onde tinha partido o destroçado pai? Para a residência que o atual duque de Rutland tinha em Southwark. Seu único propósito era lhe pedir clemência. Acreditou bobamente que este lhe ajudaria a salvar a honra manchada de sua filha, mas... o que fez o futuro duque? Nada. Não meditou nem um só segundo sobre o pedido de ajuda do barão, mas sim pensou que, como todas as damas que tinha conhecido em sua promíscua vida, mentia, e não quis questionar a reputação do bastardo de Rabbitwood.

Desde esse dia sua família começou a adoecer. Sua mãe, assídua de visitas e de festas, encerrou-se em sua câmara e não a abandonou nem sequer para realizar as funções humanas normais, o barão descuidou de suas responsabilidades e começaram a ter mais dívidas que riquezas. Finalmente, Beatrice decidiu atuar: escreveu-lhes uma nota onde lhes explicava que partia do lar para pôr fim à sua desventurada vida.

Viajou durante vinte e cinco dias. Umas vezes, graças à solidariedade de alguns viajantes, em carruagem ao lado do cocheiro, em outras ocasiões, andando. Tinha andado tanto que seus sapatos se romperam e teve que abandoná-los no caminho. Recordava que durante as longas horas de caminhada só tinha uma ideia em sua mente: chegar a Derbyshire e ocupar a pequena cabana que o duque possuía em seus territórios.

Em algumas conversações nas quais tinha estado presente, o principal tema era a riqueza das terras que herdaria o futuro duque de Rutland, e em alguma delas alguém comentou que tinha ido para caçar e que se resguardara da intensa chuva em uma pequena cabana perto do rio. Falou de quão abandonada estava apesar de encontrar-se nos limites mais ricos do terreno. Assim não o pensou, decidiu que ali permaneceria escondida o tempo que desejasse. Como o duque não lhe tinha assistido para esclarecer a verdade, ajudar-lhe-ia de maneira involuntária a ter um teto onde poder viver.

? Direi-lhes que subam a água quente... ? a suave voz da senhora Stone interrompeu suas meditações.

? Se não se importar, ficarei aqui até que tudo esteja preparado ? voltou a sorrir. Queria subtrair importância aos inesperados acontecimentos. Não podia fazer com que aquela boa mulher se sentisse desventurada pelo ocorrido. De repente, a senhora Stone se dirigiu para a porta e a abriu.

? Vá. Será melhor que o faça. Não se preocupe pelo senhor Stone. Direi-lhe que pensou melhor e recusou a oferta.

? Não partirei ? respondeu com um suave fio de voz. ? Farei o que me encomendaram. Necessito desse dinheiro, senhora Stone. Os lobos comeram minha última esperança de vida e quando retornar ao meu lar não terei nem um pedaço de pão para levar à boca.

? Isso tem solução! ? Exclamou a mulher com rapidez. ? Colocarei em uma bolsa comida suficiente para uma semana. Quando terminar, retorne.

? Não vou colocar em perigo seu posto de trabalho por cuidar de mim. ? Beatrice pousou uma mão sobre o ombro da mulher e o apertou com carinho. Então aconteceu algo que lhe surpreendeu. A cozinheira abriu seus braços e a apertou entre seu corpo com força.

? Você é uma menina... ? murmurou.

? Mas esta menina tomou uma decisão ? respondeu sem apartar-se dela.

? Há outras alternativas...

? Buscarei-as quando tudo isto tiver acabado. Mas necessitarei da sua ajuda ? murmurou apoiando a testa sobre o peito da anciã.

? Estarei ao seu lado quando precisar da minha presença, prometo-lhe isso.

? Obrigada ? disse ao mesmo tempo em que Hanna abria os braços e ela se apartava.

? Tem mais fome? ? Perguntou a anciã enquanto se dirigia para a despensa.

? Estou bastante satisfeita e acredito que depois do acontecido meu estômago não aceitaria nada mais.

? Seu estômago não poderá resistir a isto. ? Pousou uma bandeja tampada por um pano sobre a mesa e, orgulhosa do que estava a ponto de oferecer, colocou as palmas na cintura. ? É uma receita da minha mãe. Ela a herdou da minha avó. Antes o chamavam... como era? ? Pôs os olhos em branco tentando recordar o nome.

? Pudim! ? Gritou a moça ao apartar o pano que cobria o recipiente.

? Exato! Como sabe? Comeste-o alguma vez? ? Entrecerrou os olhos e a olhou com curiosidade. Se ela vinha de uma família humilde e mal tinha dinheiro para levar um pedaço de pão à boca, como sabia o nome de uma sobremesa tão deliciosa?

? Faz tanto tempo que nem o recordo... mas hoje vou rememorar esse maravilhoso sabor. Pode me dar um pedaço? ? Elevou o queixo para a mulher e sorriu como uma menina pequena.

? Coma o quanto quiser, se acabar farei outro. Tenho guardado na despensa muito leite, ovos e mel.

Beatrice emitiu um suave ruído de prazer quando tomou a primeira colherada. Fechou os olhos e se lembrou da última vez que se deleitou com aquele manjar. Enquanto isso Hanna recolhia em sua mente a resposta que lhe tinha devotado:

«Faz tanto tempo que nem o recordo...».


IV


Os criados não cessavam de murmurar sobre aquilo. Apesar de estar escondida em uma das habitações mais afastadas, pôde escutar os cochichos entusiastas de todos que caminhavam pelo corredor. Conforme descobriu, era a primeira visita que recebia o duque e supôs que esse acontecimento devia ser muito importante para todos os que habitavam na mansão. Entretanto, para Beatrice lhe resultou do mais normal que o reverendo e sua esposa fossem os primeiros em aparecer em Haddon Hall.

Depois de tirar a roupa e deixá-la de maneira descuidada sobre o chão, inundou-se na banheira e deixou que a água esquentasse seu corpo. Fazia muito tempo que não se banhava em um recipiente que albergasse por completo seu pequeno tamanho. Colocou a cabeça e conteve durante uns instantes a respiração. Quando a elevou, começou a rir. Sua mente, em vez de sopesar o que ocorreria se o duque demandasse com prontidão os serviços de sua nova concubina, pensou na conversação que estaria tendo lugar no salão principal. Estava muito segura de que sua Excelência desejaria finalizar o antes possível a visita para soltar os milhares de impropérios que reteria em sua cabeça após conversar com um reverendo tão impertinente. O certo era que ninguém em Derbyshire gostava do novo pregador. Foram à missa aos domingos para evitar falações sobre as possíveis causa de suas ausências em um dia tão famoso. Ela podia enumerar mil razões para não esbanjar duas horas de sua vida em uma reunião de tal índole, embora com uma lhe bastasse: não suportava os intermináveis e aborrecidos discursos. O reverendo em vez de atrair os paroquianos com histórias repletas de felicidade e esperança, centrava-se em quão trágica podia ser a vida quando o mal possuía uma pessoa, conduzindo-a para a libertinagem e a imoralidade.

Beatrice soltou uma enorme e sonora gargalhada. Esperava que não ocorresse ao extravagante personagem comentar à sua Excelência que o estado em que se encontrava era uma chamada de atenção do Todo-poderoso pela vida que tinha levado até aquele momento. Se tivesse um mínimo de consideração, coisa que duvidava, manteria-se calado e evitaria que o jogassem ao exterior como se fosse uma lixeira.

O que importa a ti o que digam àquele presunçoso? ? Perguntou-se enquanto subia e descia as pernas fazendo pequenas ondas na banheira. Além disso, não lhe vai mal que alguém lhe recorde que o culpado de sua desdita não foi outro senão ele mesmo.

Beatrice apoiou a cabeça na beirada da banheira e contemplou ao seu redor. A escuridão lhe produzia uma saudosa paz e bem-estar. Desde que tinha posto um pé na pequena cabana jamais apagava as velas. Dava-lhe muito medo não saber o que poderia acontecer ao seu redor, sem esquecer as feras famintas que uivava noite após noite em sua porta. Agarrou o sabão e voltou a impregnar seu corpo com este. As borbulhas formavam uma capa sobre a superfície da água e começou a brincar com elas. Então, sem saber o motivo disso, recordou o dia que conheceu a notícia sobre a volta do duque a Haddon Hall e a causa do mesmo.

? Você está certa disso? ? A chapeleira a quem estava acostumada a visitar para saber se alguém demandava os serviços de uma criada, perguntava a outra mulher com bastante entusiasmo.

? Muito certa ? respondeu a cliente em tom sério.

? Quando você disse que aconteceu? ? Continuou o interrogatório da chapeleira enquanto fazia um sinal à Beatrice para que não se movesse da sala dos fundos. Se aparecesse daquele jeito, a cliente fugiria apavorada e espalharia o rumor sobre as inapropriadas atitudes da chapeleira.

? Segundo minhas fontes, antes da primavera. O marido de uma de suas incontáveis amantes desafiou-o a um duelo de honra e o duque o aceitou entre brincadeiras ? prosseguiu a história ao mesmo tempo em que olhava e tocava os novos chapéus adquiridos para a próxima temporada.

? Entre brincadeiras? ? A chapeleira se aproximou de uma estante e agarrou uma caixa de cor branca, abriu-a e mostrou à mulher um chapéu de cor rosa com três grandes plumas azuis.

? O marido não media mais de... ? elevou a mão até o contorno de seu peito para assinalar a possível altura.

? Pobre duque! ? Exclamou a chapeleira tampando a boca escandalizada.

? Nunca se deve subestimar um adversário, por mais indefeso que pareça ? disse a mulher enquanto colocava o chapéu que lhe tinha mostrado.

? Eu acredito que o melhor é não esquentar o leito de outro homem.

? Você... não conheceu ao duque, não é? ? A mulher girou-se para a chapeleira com rapidez como se não pudesse acreditar em sua afirmação.

? Não, senhora. Quando cheguei a Derbyshire sua Excelência partiu à Londres. ? A chapeleira abaixou a cabeça ao ver a reação da mulher e estendeu seus braços para o chão.

? Entendo... ? Deu um suspiro, tirou-se o chapéu de cor rosada e pegou outro da cor de vinho tinto. ? Só lhe direi que ninguém, incluídos os homens que lhe rodeavam, podia deixar de admirá-lo. Era a perfeição, um ser sublime... ? colocou o último chapéu, olhou-se no espelho, colocou-o no lado direito e prosseguiu: ? E agora... é um monstro.

? Um monstro? ? Perguntou a chapeleira assombrada.

? Sim. Ali onde havia um rosto liso, macio e cuidado se encontram umas horrendas marcas. Dizem que são parecidas com as cordas que utilizam os piratas em seus navios. Também contam que deixou de mover o braço esquerdo. Agora... como poderá satisfazer os insaciáveis desejos carnais de suas amantes? ? Perguntou antes de soltar uma grande gargalhada. ? O que te parece? ? Inquiriu à chapeleira olhando-se de novo no espelho.

? Parece-me perfeito. Fica muito bem e acentua a palidez de sua pele ? respondeu a chapeleira sorrindo.

? Levarei esse!

Esteve a ponto de chamar a senhora Stone para que alguém voltasse a encher a banheira com água quente, mas pensou melhor. Era tempo de descansar. Quanto tempo fazia que não se agasalhava com suaves e perfumados lençóis? Beatrice secou o corpo com rapidez, enredou uma toalha no cabelo e caminhou muito devagar para a cama. Colocou os joelhos sobre esta e, sem pensar, equilibrou-se sobre os almofadões para inspirar com intensidade. O aroma de limpo impactou-a com força. Tudo parecia diferente depois do banho, até lhe resultou distinto o tato de sua própria pele. Girou-se e olhou para o teto de madeira. Era muito alto e rude, como tudo o que havia naquela mansão. Inclinou-se, pegou a ponta do lençol e se cobriu com ele. Precisava descansar um pouco antes que o empertigado senhor Stone aparecesse pela porta e a expulsasse.


Grunhiu várias vezes antes de conseguir abrir os olhos. Apesar de tentar com vigor, resultava-lhe impossível despertar do tranquilo e aprazível sonho no qual se inundou. Tinha visto sua mãe chamando-a da entrada para que fosse ao lar antes que a chuva a alcançasse. Beatrice galopava pelo campo, sorria ao ver sua mãe agitar a mão para que se dirigisse para ela. Então, no momento que descia do corcel e tentava subir as escadas, sentiu que alguém tocava seu ombro e a girava para a direção em que se encontrava...

? Senhora Stone... ? murmurou Beatrice ao descobrir a anciã ao seu lado.

? Perdoa-me se te assustei, mas levo bastante tempo batendo na porta e como não me respondia, preocupei-me. ? Hanna tinha sentado na cama e a olhava com ternura.

? Fiquei adormecida. Imagino que estava mais cansada do que imaginava ? respondeu inclinando-se e tampando sua magra figura com o lençol.

? Muitas vezes pensamos que nosso corpo não tem limites e não recordamos que somos seres humanos, não deuses. ? Levantou-se e caminhou para uma cadeira que havia junto à cama.

? O que acontece, senhora Stone? ? Quis saber a jovem ao notar certa inquietação na mulher.

? O duque decidiu solicitar os serviços de sua cortesã ? comentou com uma voz tão suave que a Beatrice custou descobrir o que havia dito.

? Tão cedo? – Ela puxou a ponta do lençol para continuar oculta embaixo deste e se dirigiu para a anciã. ? Acreditei que...

? Leva muito tempo sem ter uma mulher ao seu lado. A última que ofereceu seus serviços ficou em Londres ? indicou enquanto procurava algo de um baú.

? Tratou-a bem? Refiro a...

? Sua Excelência é um cavalheiro moça, e sua atitude é imaculada, adequada ao título que ele detém. ? Embora não quisesse que suas palavras soassem duras, foram-na e Beatrice pôde advertir que a senhora Stone adorava ao duque mais do que tentava mostrar. ? Nunca ? prosseguiu a cozinheira ao mesmo tempo em que mostrava a camisola que tinha obtido do baú ? necessitou dos serviços de uma concubina até depois do acontecido. Antes daquele momento, todas as mulheres estavam dispostas a deitar nos braços de sua excelência. No entanto, depois de ... ? tragou saliva incapaz de continuar com sua explicação devido à dor que lhe provocava falar daquilo.

? Conheço as sequelas que sofre o duque, senhora Stone.

Beatrice inclinou a cabeça e deixou que a mulher a vestisse.

? Foi uma tragédia para todos os que respeitam e servem ao senhor ? disse ao mesmo tempo em que esticava a camisola.

? Ouvi que esse destino o cultivou ele mesmo.

? Quem disse tal barbaridade? ? Hanna a olhou mostrando em seu enrugado rosto um notório aborrecimento.

? As infidelidades...

? E elas? Acaso eram mulheres respeitáveis? Cada noite, quando aquelas filhas do diabo pensavam que o pessoal de serviço estava adormecido, tocavam a porta da residência e com a desculpa de conversar com sua Excelência, tiravam-se as anáguas no próprio salão mesmo.

? Mesmo assim, se ele não tivesse aceitado os oferecimentos dessas libertinas...

? Acredito que ainda não conheceu um homem de verdade... ? resmungou. ? É sério que pensa que é fácil negar-se à tentação mais prazerosa que tem o ser humano?

? Senhora Stone! ? Exclamou assombrada. Não esperava que aquela doce e tenra anciã pudesse lhe falar de algo tão escandaloso como as relações carnais.

? O duque não te obrigará a fazer nada que não queira ? expôs depois de uns momentos de incômodo silêncio. ? Agora, se não se importar, eu gostaria de te escovar o cabelo. Tem-no muito enredado.

Podia sentir o coração lhe pulsar com intensidade na garganta. A senhora Stone a tinha deixado sozinha em frente à porta do quarto já fazia um bom momento e não tinha conseguido adquirir a força necessária para chamar. De verdade seria capaz de fazê-lo? Como ia manter a promessa que tinha feito à anciã? Seria inevitável não olhar o desfigurado rosto do duque e compará-lo com o que uma vez foi. Trataria-a bem? Seria atencioso com ela ou se comportaria como Rabbitwood? Apertou os punhos e a mandíbula. Não devia comparar ambas as situações porque não eram semelhantes. Agora sabia a razão pela qual era requerida, entretanto, a vez que ela entrou para responder à suposta chamada de seu apaixonado, encontrou a um homem sem escrúpulos, um torturador, um filho do próprio diabo. Ante tal lembrança, Beatrice começou a tremer. Podia escutar seus dentes batendo. O pêlo de seu corpo se arrepiava pelo medo.

Cem moedas... ? meditou para si. Cem míseras moedas que me oferecerão um pouco mais de tempo de vida, continuou pensando. Respirou fundo, esticou uma mão tremente para a maçaneta e a girou devagar.

A primeira palavra que surgiu em sua mente quando acessou ao quarto foi escuridão. A habitação estava muito tenebrosa. Mal podia distinguir onde se encontrava a cama do duque e nem muito menos onde se achava este. Tentou entrar um pouco mais arrastando os pés para não tropeçar. Sem se dar conta levou a mão direita para o cabelo e começou a enredar uma mecha com um dedo.

? Pode entrar ? escutou a suave e aveludada voz do duque.

Beatrice continuou sua marcha até que a distância entre os dois foi minúscula. Estava sentado sobre a cama esperando com paciência sua chegada. O corpo da jovem congelou. Suavam-lhe as mãos e sentia que mal corria sangue por suas veias.

? Aproxime-se – disse ele estendendo uma mão para ela. ? Não acredito que deva te explicar para que veio, não é? ? Beatrice assentiu. Tinha a cabeça abaixada tentando não olhar o rosto do homem a quem ofereceria um serviço que nem ela mesma sabia como iniciar. Seu cabelo cobria os ombros e a pequena mecha encaracolada por seu dedo começava a esconder-se entre os outros fios. ? Não albergue em seu coração a possibilidade de que entre nós exista uma relação afetuosa, só quero prazer ? prosseguiu, mas desta vez o tom tinha sido um pouco mais rude, menos quente. Como se lhe doesse expressar o que em realidade ocorreria essa noite.

A jovem levantou o olhar no mesmo momento em que a vela mais próxima a eles começou a mover-se pela suave brisa de seus gestos e deixou exposta a figura do homem. Tinha o cabelo mais comprido que na última vez em que o viu e tentava cobrir com este as marcas do rosto. Entretanto, essa rápida e fugaz olhada foi suficiente para que Beatrice apreciasse a deformidade da qual tanto falavam as pessoas. Não lhe pareceu tão horrenda e monstruosa. Parecia-se bastante à cicatriz que tinha sua mãe no ventre quando tiveram que tirá-la de suas vísceras. Embora, claro esta, para um homem tão bonito e para todas as suas famosas admiradoras, seriam aterradoras.

? Só prazer... sua Excelência ? murmurou Beatrice após escutar um grunhido do duque.

Como se um raio lhe tivesse atravessado o corpo, a jovem levantou a camisola e se despiu. Nesse instante o duque estendeu sua mão em volta de um dos seus seios e o apertou com força. Beatrice sentiu uma terrível dor, tão intensa que abaixou a cabeça para que ele não pudesse observar as dobras de sua testa e como apertava os dentes. Tentou serenar-se pensando que obteria uma boa bolsa de moedas que a ajudaria a sobreviver no mundo que Deus lhe tinha devotado.

? Faça com que eu te deseje. Finja algum interesse e faça por merecer o salário que obterá quando partir ? comentou o duque com voz sólida e grosseira, mais do que a jovem teria imaginado.

Então fechou os olhos e se ajoelhou para procurar o membro do homem e fazer o que aquela noite o conde de Rabbitwood a obrigou a praticar.

Encontrava-se no salão da senhora Baithlarin. Durante toda a noite tinha evitado qualquer aproximação masculina, não por descortesia, mas sim porque ela não desejava cercar uma conversação ingênua e oferecer uma esperança quando em realidade não a havia. Parecia que todo mundo se interessava em conhecer seus pensamentos, seus desejos, suas inquietações. Certamente, tanto sua mãe como as amigas desta tinham a esperança de lhe encontrar um bom partido, possivelmente por isso a mostraram aos possíveis candidatos como se fosse um bonito troféu a ganhar.

Mas Beatrice tinha o coração ocupado. Amava Leonel desde sua mais tenra infância. Entretanto, a diferença de classes fazia impossível o matrimônio, salvo se ela fugisse com ele como tantas vezes este lhe havia insinuado. Mas não era valente, jamais o tinha sido até depois daquela noite. Descobriu em mais de uma ocasião os azulados olhos do conde de Rabbitwood observando-a, admirando-a a distância tal como tinha feito em festejos anteriores e sem tentar ocultar dos outros aqueles olhares lascivos.

Tentou dançar com ela, uma valsa para ser exata, e graças às desculpas de sua mãe pôde rechaçá-lo com estilo e educação. Mas o sinistro conde de Rabbitwood elaborou um plano, um maquiavélico e ruim para o qual teve que indagar sobre sua vida e descobriu que havia outro homem.

Em um momento de descuido maternal, um dos criados lhe fez chegar uma nota, nela se dizia que seu amado Leonel se encontrava esperando-a na biblioteca da anfitriã. Foi tão grande sua ilusão e sua vontade de vê-lo que não se perguntou a razão pela qual um trabalhador de sua família tinha aparecido em uma festa de tal classe social. Esperou um momento para correr para o lugar designado. Seu coração palpitava pelo entusiasmo, pela emoção de vê-lo depois de uns dias de distanciamento.

Ficou parada na porta da biblioteca, alisou o cabelo e tentou não mostrar a euforia que sentia. Abriu, não sem antes jogar uma última olhada e confirmar que ninguém presenciaria seu encontro. Mas houve testemunhas, embora tivessem mais motivo para se esconder do que ela. O duque e a mulher com a qual tinha paquerado no salão se ocultavam sob uma das cortinas das imensas janelas do corredor. Escutou algumas risadas, alguns beijos mais sonoros dos que ela estava acostumada a oferecer ao seu amado. O tecido áspero se moveu com intensidade no momento em que escutou uns soluços. Não eram gemidos de dor, mais pareciam pequenos gritos emanados do interior dos corpos capturados pelo sexo.

Envergonhada pelo que tinha descoberto, entrou com rapidez e fechou ainda mais rápido a porta. Devido a sua agitação, o vestido fez um círculo tão amplo que tocou várias figuras de porcelana que havia na entrada. Abaixou-se para que não terminassem quebradas no chão. Ato seguido se incorporou e dirigiu o olhar para um corpo que se apoiava no respaldo de um sofá. Estava de costas para ela e por muito que tentasse comparar aquela silhueta com a de seu amado, ambas não correspondiam. Ficou sem fôlego quando o enigmático homem deu a volta e lhe sorriu. Em efeito, não era Leonel e sim o conde de Rabbitwood. O homem que não tinha deixado de olhá-la durante o baile e quem lhe sorria descaradamente.

Quis lhe perguntar por que a tinha enganado, mas em vez de enfrenta-lo decidiu fugir. Não conseguiu seu propósito. O conde correu para ela justo quando tinha a mão sobre o trinco. Recordou a resistência e como lhe cobria a boca para que não chiasse. Depois, uma folha afiada lhe apertou a garganta. «Cortar-lhe-ei se gritar», sussurrou-lhe enquanto apartava a mão de sua boca para conduzi-la ao decote e lhe descobrir os seios. Começou a chorar. Foi o único que se atreveu a fazer. Estava tão assustada que sua mente não era capaz de pensar com claridade. Rezou para perder a consciência quando percebeu que seu vestido se elevava e o homem se colocava atrás dela para possuí-la. Entretanto, manteve-se lúcida em todo momento. Durante mais de uma hora foi submetida a um sem-fim de atrocidades. Nesse tempo pensou que alguém sentiria falta dela e a procuraria. Imaginou que, apesar de ter seus olhos cheios de lágrimas, veria entrar o Leonel, que a salvaria daquelas mãos abomináveis, mas não foi assim. O tempo passava e ninguém aparecia para interromper sua agonia. Quando o conde se cansou dela, liberou-a. «Obrigado por sua companhia, foi um prazer ter este magnífico bate-papo com você, senhorita Montblanc», foram suas últimas palavras antes de deixá-la sozinha, atirada no chão, destroçada e... morta.

A lembrança do acontecimento mais aterrador de sua vida fez com que brotassem sem cessar milhares de lágrimas. Seguia com os olhos fechados e com o falo do duque em sua boca. Esteve a ponto de retirar-se e sair fugindo quando notou uma queimação em sua língua. Um líquido quente começou a vagar por sua garganta.

Quis vomitar, quis gritar. Mas igual àquele dia, não conseguiu fazer nada. Levantou-se e abaixou a cabeça. Seu corpo seguia tremendo, desejava tirar a agonia que sofria em seu interior de algum jeito, mas... como? Escutou algo. Não soube com claridade o que. Mas depois de observar que o duque se incorporava e se girava agarrando-se ao dossel de madeira, imaginou que a despachava de seu lado.

Com rapidez agarrou a camisola e a pôs enquanto as lágrimas seguiam nublando sua visão. Esticou a mão, girou a manivela para abrir a porta e então escutou um soluço. Não era como o que emitiu o homem quando estava sob a cortina, era mais um lamento. Sem saber a razão, girou-se para o homem e, durante um segundo, observou-o chorar. Sem atrever-se a dizer nenhuma palavra, abandonou a habitação, baixou as escadas e não parou até que se encontrou com o senhor Stone, que se encontrava junto à saída principal da mansão.

Agarrou com força a bolsa de moedas que lhe tinham prometido sem poder articular palavra, só queria afastar-se o antes possível dali, e quando escutou o ferrolho atrás de suas costas, estremeceu-se antes de pôr-se a correr agasalhada pela frieza da noite, não diminuiu a marcha até que entrou no bosque. Apoiou a palma da mão em um tronco e começou a vomitar. Expulsou tudo o que tinha no estômago, as lágrimas lhe ardiam e lhe doíam tanto como a folha afiada de Rabbitwood em seu pescoço. Voltou a recordar as coisas que aquele homem a obrigou a fazer, o sofrimento que sentiu quando a penetrou com rudeza e notou de novo como seu corpo se partia em dois.

Beatrice gritou enquanto seguia vomitando. Esforçou-se tanto em tirar aquilo que tinha em seu interior que caiu ao chão de joelhos. Tentou respirar, encher seus pulmões de ar, mas lhe resultou tão difícil controlar sua respiração que terminou desmaiando e caindo de bruços no chão.


V


Se seus cálculos não falhavam, estava em Haddon Hall pouco mais de dois meses. Mas não estava cem por cento seguro. Naquele lugar o tempo transcorria tão devagar que parecia não avançar. Não importava se passasse as tardes recebendo ou devolvendo visitas, todos os dias eram intermináveis e as noites, depois do dramático encontro com aquela moça, eram insuportáveis. Sempre se encontrava de mau humor, até o ponto de que nem ele mesmo podia suportar-se.

Possivelmente outro motivo para adotar aquela atitude fosse a inoportuna queda que sofreu ao subir as escadas da entrada. Não foi nada grave, conforme lhe informou o doutor que o atendeu, mas a partir desse momento teria que apoiar-se em uma bengala para evitar outra queda similar. Se antes do tropeço via a si mesmo como um inútil, agora, obrigado a usar o apoio de uma vara de madeira, sua opinião se acrescentava. Quais outros desastres lhe proporcionaria o futuro? Uma enfermidade que o deixasse prostrado em uma cama pelo resto de sua vida? Ou talvez tropeçasse de novo com tão má sorte que sua cabeça ricochetearia no chão e ficaria cego pelo impacto?

William caminhou seguro à sua bengala até a poltrona situada junto à chaminé, onde da janela observava o novo amanhecer. Algum servente tinha acendido o fogo e as chamas além de manter o ambiente quente, também proporcionavam a luz necessária para observar sobre a escrivaninha uma pequena montanha de missivas. Tinha que lê-las e as responder o quanto antes possível, mas não estava com humor. A verdade era que nunca estava com ânimo para fazer algo. Só queria fechar os olhos e, depois de abri-los, descobrir que todo o vivido tinha sido um pesadelo induzido por sua consciência. Entretanto, nunca era assim, quando elevava as escuras pestanas, seguia sem poder mover a mão, as marcas de seu rosto não tinham desaparecido assim como não cessavam aqueles surtos de dor depois do impacto. Esse seria seu futuro? Viver para desejar morrer? De verdade que não podia fazer nada para mudar o destino?

William fixou os olhos na intensidade das chamas e as associou à força que ele mesmo possuiu no passado: fortes, invencíveis, impossíveis de abater. Entretanto, se um de seus criados arrojava um caldeirão de água sobre aquelas vívidas chamas, apaga-las-ia no momento. Só ficaria carvão. Possivelmente uma ou outra brasa tentaria sobreviver à destruição, mas apesar do esforço jamais retornaria à intensidade do fogo inicial.

? Sua Excelência, ? Brandon apareceu levando uma pequena bandeja prateada sobre suas mãos e interrompeu com brutalidade a meditação do homem ? chegou o correio.

O homem deixou a bandeja em uma mesa junto ao duque e esperou de pé junto a ele se por acaso necessitasse sua perícia ao escrever para responder as cartas que necessitassem de resposta.

William as olhou pela extremidade do olho e passou a mão sã por elas esboçando uma careta. Ele optou pelo periódico e o colocou sobre suas pernas para lê-lo sem demasiado interesse, Londres e tudo o que concernia a ela já formava parte de seu passado.

Abriu o jornal em uma página ao azar e a foto de um Federith sorridente, exultante de felicidade com sua recém-adquirida esposa pelo braço, furou-lhe os olhos. Leu muito devagar a notícia que anunciava as núpcias do barão de Sheiton com lady Caroline Middelton na propriedade que possuía o nobre em Hemilton.

O periódico era de três semanas atrás e embora Federith já lhe anunciasse suas intenções antes que William abandonasse Londres, a notícia lhe caiu como um jarro de água fria. Franziu o cenho e a mão lhe tremeu um pouco antes de lançar o maço de papéis para o fogo.

? Más notícias, senhor? ? Perguntou o mordomo com assombro.

? Depende para quem ? respondeu tosco enquanto observava como o papel ardia.

? Se o desejar me retirarei para lhe deixar só ? indicou o homem ao mesmo tempo em que fazia uma reverência e tentava afastar-se.

? Não parta. Embora não me satisfaça a notícia, tenho que felicitar ao Federith por seu recente matrimônio.

? O senhor Cooper se casou? ? Disse com uma mescla de entusiasmo e incredulidade enquanto observava seu senhor uns instantes, tempo suficiente para perguntar-se por que a feliz notícia não lhe tinha agradado. Hanna teria razão? A verdade é que não estava acostumado a dar muita importância à sua esposa, quando falava sobre o amor e muito menos quando incluía nessas conversações o duque.

Segundo ela, quão único faria o jovem sair da letargia na qual se achava era encontrar uma mulher que o amasse e lhe desse o carinho que tanto necessitava. Insinuou em mais de uma ocasião que ter crianças brincando de correr pela mansão faria com que o senhor recuperasse a vontade de viver. Entretanto, ele conhecia o duque desde que saíra das vísceras de sua mãe e, por muito que sua mulher insistisse em que tinha razão, sabia que esse tipo de vida não era a adequada para ele. O homem tinha nascido para ser livre, para esquentar as camas de outros maridos, para observar as vidas familiares de outros à distância.

? Digamos que encontrou uma mulher à sua medida ? comentou William com maldade após refletir na resposta adequada. Logo dirigiu o olhar para as garrafas e fez um leve gesto com a cabeça para que Brandon lhe servisse uma taça.

? Deseja lhe responder, senhor? ? Perguntou o ancião enquanto enchia a taça de licor e a aproximava o suficiente para que o duque pudesse pegá-la.

? É óbvio! Responderemo-lhe agora mesmo. – Bebeu o uísque de um gole e elevou o copo para que seu mordomo o voltasse a encher. Brandon, mais assustado que assombrado, encheu de novo o copo de licor e, depois de oferecer-lhe, pegou um papel em branco e uma pluma para escrever.

? Meu querido Federith ? começou a ditar. ? Como bem sabe, sempre me satisfazem suas alegrias, embora muito me temo que esta não é tal. Não faz muito te expliquei que é dono de seu destino e, se Deus for justo, arrebatarár-te o que não te pertence. Não esqueça que meu lar terá as portas abertas quando aparecer chorando e afirmando minha verdade. Pode permanecer todo o tempo que desejar. Por certo, sabe algo do miserável do Bennett? Faz mais de três meses que não tenho notícias dele e isso me inquieta. Atenciosamente, William.

Brandon conteve a respiração em todo momento. Foi colocando sobre a folha cada palavra que escutava da boca do duque, ao mesmo tempo em que sua cabeça não cessava de lhe insistir que a pessoa que pronunciava aquela maldade não estava em plenas faculdades mentais. Eram daninhas, maquiavélicas, quando deveriam estar cheias de felicidade e bons desejos.

? Quer que a leia em voz alta? ? Perguntou o mordomo levantando do assento.

? Não precisa, sei o que eu disse ? respondeu com rudeza.

? Então, se sua Excelência me permitir isso, farei os arranjos para enviá-la esta mesma manhã.

? Antes de partir encha de novo o copo, está vazio. ? Levantou a taça para que Brandon a pegasse e obedecesse ao mandato.

Em silêncio, sem mostrar no rosto sua estranheza, o servente verteu mais uísque no copo, ofereceu-o ao seu senhor, fez a reverência e partiu. Quando fechou a porta, o ancião voltou a ler a nota que devia enviar, sem estar convencido de todo da idoneidade de seu conteúdo. Talvez Hanna pudesse deduzir o que acontecia na cabeça de seu senhor e chegar a uma conclusão lógica que explicasse aquele comportamento errático e malicioso. E com essa intenção guardou a nota no bolso de seu casaco e se dirigiu à cozinha.

William seguia observando o fogo sem sequer piscar através do líquido ambarino. Podia ver como o álcool dançava sobre o líquido alheio à possibilidade de que o jogassem sobre as ardentes chamas. Seria igual o inferno? Estariam dançando mulheres nuas entre as chamas do abismo infernal? O homem sorriu meio de lado. Sua mente começava a nublar-se com a rápida ingestão do uísque e agradeceu em silêncio que seu cérebro começasse a funcionar com aquela lentidão. Precisava evadir-se do mundo que lhe rodeava, sonhar de novo com o homem que uma vez foi. Possivelmente, se ao cabo de um momento o estado de embriaguez aumentasse, poderia deixar a bengala e caminhar sem apoiar-se nela.

Dirigiu o olhar para as garrafas, mas estavam muito longe para alcançá-las da poltrona, teria que chamar o Brandon para que as aproximasse.

— Maldito seja, William Manners, maldito duque de Rutland! ? gritou. ? Levante-se e faça-o você mesmo!

O homem apoiou com força as plantas dos pés no chão e se surpreendeu ao não sentir a dor que dias atrás sacudia seu corpo. Soltou uma grande gargalhada ao descobrir que o miserável estado de embriaguez lhe proporcionava a força que requeria para sentir-se forte de novo. Sem deixar de sorrir caminhou até onde se encontravam as garrafas de cristal de Murano. Agarrou uma ao azar e encheu a taça.

? Agora toca a ti, estúpida mão, começa a te mover por ti mesma.

Mas não obedeceu a ordem, seguiu estendida para o chão. Zangado, andou pelo salão dando voltas e bebendo sem parar. Cada vez que drenava a taça, enchia-a de novo. Ao cabo de um bom momento seu corpo se cambaleava sem controle e sua mente tinha perdido toda sensatez.

Aproximou-se da mesa, pegou a campainha e a agitou sem cessar.

? Sim, Excelência? ? Perguntou Brandon ao ser requerido com tanta urgência.

? Diga ao cavalariço que prepare meu garanhão, vou dar um passeio por minhas terras ? comentou entre balbuceios.

? Meu senhor... ? começou a dizer o mordomo.

? Não escutou meu desejo? Acaso a velhice começa a destruir seus ouvidos? ? Desafiou-lhe.

? Não, senhor, escutei bem. Mas se me permite um conselho...

? Não quero conselhos de ninguém! ? Exclamou elevando a mão que segurava o copo vazio e atirando-o para o chão.

? Sim, Excelência. Informarei ao cavalariço.

? Avise-me quando tudo estiver preparado – disse-lhe dando as costas para poder cravar de novo seus olhos no fogo.

? É óbvio. Deseja que seu ajudante de câmara o agasalhe adequadamente?

? Não. Será um passeio breve.

? Como desejar... ? Brandon se inclinou levemente para frente e com passo firme saiu do salão.

Respirou fundo após fechar a porta e em vez de sair correndo para as cavalariças retornou à cozinha, onde tinha deixado sua mulher resmungando pelas palavras tão inapropriadas que o duque tinha dirigido ao enlace de seu amigo.

? Quer sair para montar ? disse desesperado quando entrou na cozinha.

? O que?! ? Perguntou a mulher atônita.

? Ordenou-me que preparem seu garanhão. Deseja passear pelas terras ? prosseguiu.

? Terá lhe tirado essa insensatez da cabeça, não é? ? Hanna colocou suas mãos sobre a cintura e enrugou a testa.

? Não quer escutar. Acredito que bebeu muito...

? Agora mesmo vou dar aquele par de açoites que deveríamos ter lhe dado quando começou a apodrecer sua alma!

? Hanna! ? Gritou Brandon agarrando-a pelo braço para impedir que saísse dali. ? Temos que lhe deixar ver que não é o homem que uma vez foi. Ele deve assumir.

? E nós... o que faremos enquanto isso? ? Sua voz era suave, quase imperceptível.

? Rezaremos como tantas vezes fizemos quando lhe dispararam ? respondeu aflito.


VI


Beatrice se espreguiçou com um sorriso que iluminou seu rosto. De um tempo para cá dormia bastante bem e tudo se devia a uma singela razão: tinha o estômago cheio. Tinha comprado animais, cultivado verduras pelos arredores de seu pequeno lar e até tinha construído um cercado para que os lobos deixassem de aniquilar o gado. Tudo acontecia segundo o previsto. Nada perturbava aquela felicidade, salvo quando uns pensamentos impossíveis se fundamentavam, em como enfrentar o passado apareciam em sua cabeça. Tentava esquecê-los com rapidez, ainda não era o momento de pensar nisso e tampouco tinha ainda a força necessária para aparecer em Londres e lutar pela verdade, a sua verdade.

Apoiou os pés no chão e depois de esticar os braços decidiu tomar um bom café da manhã antes de sair ao campo. Depois das últimas chuvas, os arvoredos estariam repletos de cogumelos e desejava encontrar todos que coubessem em sua cesta para preparar suculentos manjares.

Depois de tirar a camisola e colocar-se um dos vestidos que comprou na semana anterior no povoado, caminhou para a pequena cozinha para tomar o café da manhã. O estômago não lhe rugia como antes, tampouco sentia aquela debilidade moribunda que lhe impedia de levantar-se da cama, agora estava cheia de vida.

Verteu chá em um copo e colocou um prato com ovos, verduras cozidas e duas fatias de pão. Quando se sentou observou surpreendida o que havia sobre a mesa. Sem dar-se conta tinha preparado o café da manhã preferido de sua mãe.

Àquele pensamento, à lembrança de sua mãe e à vida que desfrutou antes de ser manchada, entristeceu-a tanto que mal pôde dar um bocado.

«Algum dia, ? disse ? tudo voltará para a normalidade e aqueles que me julgaram carregarão o resto de suas vidas com a desgraça da condenação».

Mas... seria verdade? Retornaria de novo para lutar por sua honra? Estava escondida mais de meio ano do acontecido, pensou que se separando de sua família, dos olhares de compaixão ou de recriminação, poderia curar sua alma ferida e fazer-se suficientemente forte para voltar e suportá-lo, mas com o tempo estava se acomodando à vida que levava e cada vez se fazia mais longínqua à ideia de retornar ao lugar onde foi ultrajada. Como trocar uma vida cheia de tranquilidade e quietude por outra repleta de dor? Era certo que em muitas ocasiões Beatrice se sentia sozinha e tentava resolver essa sensação conversando com seus animais, mas exceto algum zurro, choramingação ou grasnido, não encontrava nada mais.

Zangada por entristecer um bonito dia com pensamentos dolorosos, jogou a cadeira para trás com as pantorrilhas, pegou tudo o que tinha sobre a mesa e o introduziu irada no tanque. Precisava sair dali o antes possível ou se voltaria louca. O isolamento não era tão bom como tinha suposto e embora lutasse com unhas e dentes para manter-se sã, estava justo no limite. Começava a tocar a loucura torturante com as pontas dos seus dedos.

Olhou de novo pela janela desejando confirmar se o tempo não tinha trocado e poderia abandonar a cabana. Em efeito, o sol seguia brilhando, convertendo aquele dia no perfeito para dar aquele passeio. Colocou a capa, agarrou a cesta de vime e saiu do lar com um sorriso no rosto.

Um cão... ? pensou enquanto caminhava. Seguia pensando em como eliminar o silêncio da casa. Seria um bom mascote, ocuparia aqueles momentos nos quais não sei com quem falar. Além disso, são fiéis e jamais me abandonaria, refletiu ao mesmo tempo em que agarrava o primeiro punhado de cogumelos que encontrou aos pés de uma árvore.

Seguia pensando no animal e em como chamá-lo quando um bando de pássaros voou entre as copas das árvores. Beatrice elevou o olhar e ficou observando a estranha atuação destes. Preocupada se por acaso lhe indicavam a cercania de algum perigo, agarrou com força a cesta e prosseguiu devagar. De repente, escutou outro ruído, tão intenso que a deixou imóvel. Apertou contra si a cesta e olhou para o lugar de onde procedia o som.

Um animal corria apavorado. Ia tão veloz que não distinguiu com precisão se era um cervo, um alce ou um cavalo perdido. Por que estavam os animais tão assustados? Só podia achar uma resposta a esse comportamento aterrador. Os lobos tinham retornado e rondavam pela zona, levavam noites uivando perto de sua cerca. Tinha se esquecido deles ao sair da casa tão desesperada por notar os raios de o sol lhe acariciar a pele. Assustada, decidiu caminhar para o rio Wye. Se chegasse logo ao trecho de máximo fluxo poderia introduzir-se na água e aguentar o tempo necessário até que aqueles depredadores decidissem afastar-se de uma possível presa.

O ruído dos ramos ao romper-se, o canto dos pássaros, a brisa do vento movendo as folhas... começaram a lhe criar um medo tão atroz que lhe adormeceram as pernas e esqueceu seu plano de dirigir-se para o rio. Seu lar era o lugar mais seguro. Custava-lhe respirar, avançar com fluidez. O pânico se apropriou de seu corpo e a tinha paralisado. Em um ato de fé, daqueles que não teve no acontecido com o Rabbitwood, fechou os olhos e começou a orar. Rezava para salvar-se, para que seu medo desaparecesse, para que brotasse aquela força que necessitava. Ao princípio rogou em silêncio, pouco depois o fez em voz alta, como se as orações fossem suficientes para espantar um possível mal.

Subiu uma pequena colina de onde pôde divisar a cabana. Ficava só uma centena de passos e se salvaria. Seu caminhar começou a ser agitado, precipitado. De repente notou a presença de algo atrás dela. Girou-se rapidamente para saber do que se tratava. Não havia nada. O medo lhe provocava alucinações.

Seguiu correndo olhando para trás, não queria parar. E então... aconteceu. Tropeçou em algo que havia no chão e caiu no barro. Durante uns instantes ficou tombada, cobrindo seu rosto com o cabelo manchado de lodo e sem poder elevar os olhos. Esperou o suficiente até que comprovou que não se escutava nada ao seu redor. Elevou-se com rapidez, agarrou a cesta e se dispôs a continuar correndo quando sua curiosidade lhe fez olhar para a razão de sua queda.

? Santo Deus! ? Exclamou ao mesmo tempo em que se aproximava do que se supunha ser um corpo e estendia os dedos fazendo com que a cesta retornasse à terra lamacenta.

Uma enorme capa escura e manchada cobria a figura de quem jazia estendido. Beatrice não o duvidou. Esticou as mãos para o tecido, apartou-o devagar para certificar-se de sua premissa e gritou:

? OH, Senhor!

Andou vários passos para trás, levou-se as mãos à boca e a tampou para não continuar chiando. Ficou tão atônita que, depois de confirmar quem tinha em frente a ela, não sabia o que devia fazer. Se fosse embora, se o deixava ali estendido; podia retornar à sua casa e esquecer que o tinha visto. Entretanto, o que pensariam no povoado quando descobrissem o corpo inerte do duque e a ela vivendo em suas terras de maneira clandestina? A única resposta plausível era que ele a encontrou por acaso e quis obrigá-la a partir de suas terras e como ela não desejava lhe obedecer, aproveitou sua invalidez para lhe dar fim. Questionariam-se como uma mulher tão pequena teria sido capaz de fazer tal maldade? Não, é óbvio que não. Além disso, se descobrissem sua identidade, a sentença não apresentaria dúvida alguma.

A única opção que tinha era averiguar se estava vivo e conduzi-lo até a cabana, prestar-lhe auxílio e quando amanhecesse, correr a Haddon Hall para pedir ajuda, embora isso lhe custasse à expulsão da qual tinha sido seu lar durante os últimos meses. Devagar, mais do que pretendia, aproximou-se do duque e o observou com atenção.

«Obrigado, Meu Deus!», murmurou ao céu quando percebeu que ainda respirava.

Nesse momento outro bando de pássaros voou com frenesi sobre eles. Sem pensar duas vezes girou o corpo inconsciente e o agarrou pelas axilas para arrastá-lo. Não havia tempo nem forma fácil de trasportá-lo, então o arrastou sem descansar até que suas costas tocou o cercado que rodeava seu lar. De repente escutou uns ramos se partirem. Levantou o olhar e os observou. Grunhiam e lhes mostravam os dentes. Seus olhos escuros se cravavam nela. Um lobo cinza deu uns passos para diante, levantou o focinho e uivou com força. Beatrice tragou saliva. Sentia o medo percorrer seu corpo, mas não se amedrontou. Prosseguiu sua façanha até que introduziu o duque ao interior da cabana e fechou a porta com o trinco.

Deixou-o estendido no chão enquanto procurava a maneira de subi-lo à cama. Compreendendo que não tinha nada que a ajudasse no árduo trabalho, decidiu pegar o colchão e situá-lo perto do ferido. Assim, quão único teria que fazer era rodá-lo até que estivesse em uma posição adequada. Antes de voltar a tocá-lo ficou de pé observando-o em silêncio. As marcas do rosto, aquelas que tanto tentava esconder com a longa barba, mostravam-se sem disfarces. Ao contempla-las com mais claridade, pensou que não eram tão horrendas como diziam, embora para um homem tão formoso, aquelas sequelas fossem feitas pelo próprio diabo.

Seguiu admirando-o à distância. Tinha um aspecto muito viril, robusto e atlético, muito distante, em sua opinião, da fraqueza em que todos insistiam na sequencia do incidente.

Com valentia voltou a segurá-lo e o girou de lado para colocá-lo sobre o colchão, afastando-o da frieza do chão. Ao pôr suas mãos sobre ele notou que estava gelado, a roupa molhada se grudava ao seu corpo e o esfriava sem compaixão. Decidida, aproximou-se da chaminé, colocou uns troncos e acendeu um fogo. Isso bastaria para esquentar a pequena habitação em que se encontravam. Enquanto as chamas começavam a brotar, voltou para o ferido e começou a lhe tirar aquela capa enlameada. O duque emitiu um pequeno gemido provocando que Beatrice se sobressaltasse e se apartasse. Não desejava que abrisse os olhos e a encontrasse tocando seu corpo. Poderia deduzir algo que não era.

Esperou sentada junto à chaminé outra reação do homem, mas ao ver que seguia inconsciente retornou para continuar lhe despojando dos objetos. Era a primeira vez em sua vida que se encontrava em uma situação parecida e embora não devesse sentir nenhum tipo de temor, estava tremendo. As mãos não eram capazes de desfazer o nó da capa, nem de lhe tirar com agilidade a jaqueta. O que lhe acontecia? Estaria lembrando-se da noite que passou com ele? Não, não era isso. Só estava nervosa se por acaso o duque abria os olhos e a descobrisse despindo-o. O que pensaria? Certamente que lhe estava roubando. Os homens de sua índole jamais imaginariam que alguém podia lhes ajudar por solidariedade.

Quando ao fim o deixou em camisa descobriu uma mancha de sangue que não tinha visto com antecedência. Devagar desabotoou cada botão até que o peito ficou descoberto e pôde inspecionar a zona de onde brotava o sangue, era uma ferida que abrangia do flanco esquerdo até o ventre, uma zona que ao duque lhe teria sido impossível proteger com seu braço inútil. Beatrice não pôde evitar olhar o torso com assombro. Era a primeira vez que descobria o que se escondia sob as roupas de um homem. Nunca pensou que fosse tão robusto, nem que nessa zona o pêlo crescesse tão escuro e encaracolado. Mas o que lhe deixou sem fala foi o tamanho dos mamilos, eram diminutos, mal visíveis à primeira vista. Sem meditar mais sobre isto, incorporou-se, preparou uma panela com água fervendo e começou a limpar o corte com supremo cuidado. Não era profundo, só um arranhão muito comprido.

Cada vez que passava o pano o homem franzia o cenho e se queixava, embora não abrisse os olhos. Depois de seus cuidados, sentou-se de novo junto à chaminé. Estava muito cansada por todo o ocorrido. Não só seu abatimento era físico, mas também mental. Ela podia ter salvado a vida do duque de uma morte segura, pois se o tivesse abandonado, os lobos teriam se alimentado dele. Mas este ato de misericórdia teria consequências nefastas para ela, deveria abandonar o lugar que chamava de lar. Um lugar que lhe contribuía com paz, quietude e esperança de não voltar a ser a mulher que foi.

Sentada, estendeu as pernas, cruzou os braços, apoiou a cabeça na parede e deixou que o sono se apoderasse dela.


VII


Doía-lhe todo o corpo, inclusive a parte que era insensível. Elevou com pesar as pálpebras e não soube reconhecer onde se encontrava. Quão último recordava era que seu cavalo se assustou no bosque, justo antes de chegar ao rio Wye, e tinha começado a correr sem controle. Tudo aconteceu bastante rápido. As cintas que o sujeitavam à cadeira se partiram e durante um tempo esteve amarrado ao estribo do animal desenfreado até que ao final caiu ao chão. O golpe foi tão potente que foi incapaz de assimilar o acontecido durante uns momentos. Quando compreendeu o ocorrido tentou arrastar-se pelo chão transformado em lamaçal. Apesar de seu esforço, mal conseguiu distanciar um metro de onde havia desabado. Depois gritou pedindo auxílio, mas ninguém respondeu. Exausto pelo esforço terminou perdendo os sentidos. E agora, ao despertar daquela agonia, achava-se em um lugar que não conseguia distinguir.

Moveu a cabeça para a direita e observou uma mulher sentada no chão a menos de um metro dele. Tinha um aspecto lamentável: o barro cobria cada centímetro de tecido de seu vestido assim como seus sapatos. Dirigiu os olhos para o rosto da moça para tentar reconhecê-la, mas foi impossível. Uns largos cachos negros soltos de um coque tampavam seu semblante. William franziu o cenho ao compreender que a desconhecida dormia no chão apoiada sobre a parede e claramente, exausta pelo cuidado que dava a ele.

? Desculpe... ? sussurrou após respirar várias vezes e procurar uma palavra adequada para não sobressaltá-la.

? Já despertou? ? Perguntou Beatrice dando um salto.

Sem esperar a resposta do homem aproximou-se e lhe colocou uma mão sobre a testa. Nesse momento William fechou os olhos, não queria ver no rosto da mulher, sua expressão de angústia quando contemplasse suas cicatrizes.

? Parece que não tem febre. Foi uma sorte que o tenha encontrado antes que pudesse adoecer ou acabar devorado por... ? deixou sem finalizar a frase. Levantou-se, aproximou-se da mesa onde tinha o pano com o qual o tinha limpado e, depois de ajoelhar-se, voltou a lhe limpar o peito, o pescoço e o rosto. ? Terá que ficar um tempo de repouso, embora as feridas não sejam graves, necessitam de uns dias tranquilos para que sarem adequadamente.

O tom da jovem era tão terno que o duque fechou de novo seus olhos. Desejava com todas as suas forças que aquela imagem, em que uma mulher o cuidava sem sentir asco por suas feridas, não fosse uma alucinação.

? Onde estou? ? Ao sentir o suave tato da mão feminina pela zona na qual seu rosto estava destroçado, William abriu os olhos e, sem pensar agarrou-lhe com força pelo pulso para que cessasse imediatamente.

? Em minha casa. ? Beatrice o olhou apertando os olhos para a pressão daquele aperto forte. Não esperava que lhe agradecesse por lhe haver salvado a vida, mas tampouco imaginou que lhe ocorresse ser um mal educado.

William, ao ser consciente de seu inoportuno ato, soltou-a e tentou incorporar-se, mas ela o impediu colocando uma palma sobre o peito nu do homem e lhe obrigando a recostar-se de novo. O cabelo negro se estendeu pelo colchão. Sua respiração não era tranquila e Beatrice podia ouvir o tilintar das botas do duque ao golpear-se.

? Deve recuperar-se... seu... senhor.

? Eu gostaria de lhe informar sobre certas feridas do meu corpo. Quero lhe esclarecer que não foram causadas recentemente... ? seu tom soou débil, inclusive triste.

? Mas apesar disso deve descansar. ? Levantou-se e se dirigiu para um caldeirão metálico que tinha muito perto do fogo. Colocou uma concha de sopa e tirou algo que introduziu em uma terrina. ? Acredito que isto lhe virá bem... ? retornou para o homem, agachou-se, colocou seu braço esquerdo ao redor do pescoço masculino, inclinou-o para frente e pôs uma pequena superfície da borda sobre os lábios. ? Não tem nada a ver com os ricos manjares aos que imagino que você deve estar acostumado, mas este caldo lhe reconfortará. ? E antes que o duque pudesse negar-se, Beatrice o fez tomar.

William esticou a mão para o recipiente e ajudou à moça. Era certo que não tinha provado nunca um sabor igual, embora a necessidade de alimentar-se e de recuperar um pouco de força fez com que bebesse até a última gota sem mal respirar. A jovem voltou a estendê-lo sobre o colchão enquanto ia de um lado para outro. Estava inquieta e ele a compreendia. Tinha em sua casa a um estranho que mal podia mover-se e que parecia ter a obrigação moral de cuidar.

? Quando chegará seu marido? Devo lhe indicar onde resido. Ele poderá informar aos meus criados do meu paradeiro e estou seguro de que não demorarão em vir por mim. Agradeço-lhe tudo o que tem feito, entretanto você entenda que não desejo ser uma carga... ? disse-lhe sem apartar a vista de quão único alcançava a ver, seus tornozelos.

? Meu... quem? ? Deu uma volta sobre si mesma com brutalidade, provocando que sua saia se elevasse algo mais do devido e que o duque descobrisse umas magras pantorrilhas sem meias.

? Seu marido... a pessoa que haverá me trazido até aqui ? esclareceu.

? Não há tal marido, senhor. Fui eu mesma quem o transladou. ? Colocou-se em frente a ele com as mãos apoiadas em sua cintura.

? Você carregou o meu peso? ? Perguntou assombrado e um tanto sufocado. Aquela moça não era muito alta e, notavelmente magra, mais do que se podia esperar em uma jovem de sua idade.

? Pois sim. Encontrei-o no meio do bosque e decidi lhe salvar a vida, embora possa lhe assegurar que quase me custou a minha ? sorriu.

Quando William a observou sorrir acreditou ver um anjo. Um despenteado e sujo anjo que tinha cuidado de seu rosto e não tinha encontrado nele nem um ápice de repulsão por seu deformado aspecto. Pareceu-lhe tão implausível para ele que acreditou que o golpe lhe tinha causado visões. Desde quando alguém não apartava seus olhos ao estar ele presente? Desde quando alguém o olhava sem dirigir os olhos para a cicatriz, para franzir o cenho?

? Então... devo lhe agradecer o esforço que realizou para me salvar ? disse após sua reflexão. Tentou levantar-se de novo e arqueou as sobrancelhas ao ver que seu torso estava nu. Desviou o olhar para a mulher e esta se ruborizou imediatamente.

? Tive que limpar a ferida que se fez no abdômen. Como imaginará, tive que apartar a roupa – desculpou-se.

? Obrigado ? disse depois de uns momentos de silêncio que empregou para saber como deveria continuar a conversação. ? Se por acaso não se deu conta, sou um incapacitado. Não posso mover a mão esquerda, mas não foi por causa da queda, faz tempo que deixou de funcionar. Minha perna... bom, ela tenta recuperar um pouco de funcionalidade depois de um inoportuno tropeção em meu lar.

? O que lhe aconteceu? ? Colocou-se ao lado da chaminé onde podia contemplá-lo com maior claridade.

? Como já lhe expliquei, isto aconteceu faz bastante tempo...

? Refiro-me a hoje. Por que estava caído no chão? ? Interrompeu-lhe.

? Decidi cavalgar durante um momento. Minha intenção era chegar até o rio Wye e retornar, mas meu cavalo se assustou e... bom, eu fui jogado. ? Suspirou e olhou para o teto enquanto se perguntava uma e outra vez por que dava explicações a uma estranha. Jamais as tinha dado a ninguém. Entretanto, ela era especial. Era um ser divino que o tinha salvado de uma morte segura.

Beatrice o olhou sem piscar. Tinha uma vontade incrível de lhe gritar como era insensato, mas não o fez, manteve-se calada esperando que o duque continuasse, mas ele se manteve em silêncio.

? Há lobos pela região ? explicou para romper o mutismo entre ambos. ? Talvez seu cavalo se assustasse ao escutá-los e atuou preso do medo.

? Pode ser... ? respondeu sem apartar a vista do teto.

? Assim que se encontrar melhor irei procurar ajuda. Estou segura de que alguém estará preocupado por seu desaparecimento. ? Voltou a aproximar-se e lhe abotoou a camisa para que não se sentisse incômodo por sua nudez. Ou possivelmente era ela a que se encontrava nervosa.

William quis fechar os olhos e sentir o suave tato das mãos sobre ele, mas lhe resultou impossível. Desejava observar com atenção a sua salvadora e, embora tivesse o cabelo despenteado e sujo assim como o rosto, pôde admirar a beleza de seus olhos. Uns olhos verdes que não apartavam o olhar de seu rosto nem mostravam repulsão ante a fealdade de suas cicatrizes.

? Posso lhe perguntar seu nome? ? Inquiriu William quando ela retornava para a chaminé.

? Meu nome é Beatrice ? respondeu.

? Só Beatrice?

? Beatrice Brown ? mentiu.

? Senhorita Brown, ? disse o duque com um tom sério e firme ? como compreenderá, estou em dívida com você e seria um cretino se não a saldasse.

? Não precisa me prometer nada...

? Sou o duque de Rutland e por minha honra oferecerei-lhe tudo aquilo que desejar. Se por acaso não se deu conta, salvou-me a vida.

? Não necessito de nada... ? murmurou com suavidade.

? Não quero que me responda agora, não é necessário. Mas quando decidir o que me pedir, estarei encantado de escutá-la ? insistiu sem relaxar aquele tom de venerabilidade.

À Beatrice não cabia dúvida da veracidade da promessa embora não acreditou oportuno lhe dizer que vivia em uma propriedade dele e precisava seguir permanecendo ali durante o resto de sua vida. Para evitar que o homem continuasse falando com tanta seriedade, desenhou um sorriso em seu rosto e disse:

? Possivelmente a queda lhe tenha prejudicado mais do que parece. Como mínimo, deve ter lhe afetado o ouvido. Faça o favor de descansar. Por agora é o único que lhe peço.

? Juro por minha honra...

? Shhh ? avançou para ele, pôs-lhe um dedo nos lábios e lhe fez calar. Não queria escutar promessas que não se poderiam cumprir. Estava aturdido e uma pessoa em dito estado de choque poderia falar mais do que o imprescindível. ? É melhor que durma, precisa descansar um pouco mais.

William a olhou sem saber se ria ou zangava-se. Não fez nem um nem outro, ficou observando-a durante uns instantes. Finalmente fechou os olhos e se obrigou a dormir. Embora antes de deixar-se sucumbir pelo sono se perguntou quando tinha sido a última vez que havia sentido tanta paz e desde quando era incapaz de replicar as ordens de uma mulher. As respostas surgiram com rapidez, desde que a dita mulher lhe tinha salvado da morte, não lhe tinha cuidado com repulsão e o tratava com ternura.

Beatrice esperou até que escutou a respiração profunda do duque.

Caminhou para a janela e descobriu que os primeiros raios de sol começavam a surgir atrás das montanhas. Era o momento ideal para ir à Haddon Hall e comunicar o paradeiro do duque. Estava segura de que todo mundo estaria angustiado pelo desaparecimento. Teriam começado uma busca conscienciosa e se ela não chegasse o antes possível para lhes explicar onde se encontrava, logo seu lar se veria repleto de desconhecidos que a interrogariam sobre por que vivia em um lugar que não lhe pertencia.

A angústia que sentiu ao imaginar-se nessa situação lhe criou tal impaciência que só se atrasou em pegar sua capa e correr para a residência. Durante o caminho sopesou a atitude que teria o senhor Stone ao vê-la. Esticar-se-ia como um pau, ordenaria que salvassem ao senhor das garras de uma camponesa desalinhada e a reteria na mansão até que descobrissem a verdade. Não podia permitir que a acusassem de algo que não tinha feito, então decidiu que após dar a notícia correria para seu lar para fechar a porta e esquecer tudo o que tinha acontecido.

Como sempre, a magnitude do edifício a deixou perplexa. Não entendia como um paraíso podia albergar um lar tão austero. Quanto mais se aproximava, mais calafrios sentia. Esfregou-se os braços para dar-se um pouco de calor e começou a subir as escadas. Ao chegar à porta principal começou a golpeá-la com força. Depois de vários intentos sem ser atendida, decidiu tentar a porta de serviço. Se não se equivocava, a senhora Stone estaria na cozinha e a escutaria com prontidão. Andou devagar tentado descobrir se surgia da escuridão alguém com quem falar, mas só havia silêncio, um estranho e horrendo silêncio.

? Menina! ? Exclamou a senhora Stone ao vê-la. ? O que faz aqui?

? Bom dia, senhora. Preciso falar com o senhor Stone ? respondeu com voz equilibrada.

? Retornou para...?

? Não! ? Respondeu com prontidão ao mesmo tempo em que suas bochechas se enchiam de uma intensa cor vermelha.

? Pois, querida, o senhor Stone não pode te atender. Aconteceu algo bastante dramático em Haddon Hall e...

? O duque está em minha casa – interrompeu-lhe.

? O que está dizendo, moça? ? Os olhos inchados da anciã devido ao intenso pranto que teria tido enquanto o duque estava desaparecido, abriram-se de par em par.

? Encontrei-o caído no meio do bosque. Quando compreendi que estava vivo o arrastei até meu lar e o estive cuidando após ? explicou Beatrice.

? Obrigado, meu Deus! ? Clamou antes de lhe dar um forte abraço e enchê-la de beijos. ? Muito obrigada, criatura do Senhor, por salvá-lo. ? Depois de uns momentos nos quais Beatrice mal conseguia respirar, a mulher a liberou e correu para a porta gritando: ? Senhor Stone! Senhor Stone!

? O que acontece? A que vêm esses gritos? ? Tal como se tinha imaginado, o mordomo apareceu na cozinha erguido e mal-humorado. Ao ver a jovem entrecerrou os olhos e lhe disse: ? O que faz aqui? Não teve o suficiente com aquela noite? Acaso gastou o dinheiro que ganhou e vem procurando mais?

? Brandon! ? Gritou Hanna zangada. ? Por que é tão...?

? Tão? ? Arqueou as sobrancelhas e uniu com suavidade as pestanas.

? A jovem veio até aqui para nos informar sobre nosso senhor. Ele está são e salvo. Encontrou-o no bosque e o esteve cuidando ? esclareceu a anciã sem mal tomar fôlego.

? Onde está? ? Exigiu sem baixar a intensidade de seu tom.

? Está em minha casa ? anunciou abaixando a cabeça. As duras palavras do mordomo sobre o acontecido aquela noite lhe tinha criado um grande pavor.

? Diga-me agora mesmo onde se encontra sua Excelência! ? Exclamou com ira.

? Vim até aqui por vontade própria. Acreditei que estariam preocupados com o destino do duque e quis lhes informar que se encontra bem.

? Onde está? ? Repetiu Brandon com os dentes apertados. Aproximou-se tanto de Beatrice que esta teve que dar vários passos para trás para que não conseguisse roçá-la.

? Na pequena casa que há no bosque. É o... ? murmurou devagar.

? Refúgio de caça ? terminou a frase. ? Está bem, mandarei vários criados com a carruagem e espero, por seu bem, que se encontre em ótimas condições porque do contrário...

? Não desejo escutar nada sobre isso, ? agora foi ela quem não lhe deixou terminar a frase ? vim voluntariamente lhe indicar onde se encontra.

Brandon a olhou irado. Girou-se para a porta para ordenar a outros criados que se preparassem para ir procurar ao senhor e quando retornou à cozinha com a intenção de apanhar a moça, já não estava.

? Por que não impediu que se fosse? ? Perguntou zangado à sua mulher.

? Pensa que minhas pernas podem correr como os galgos? Além disso, não crê que se comportou como um idiota, meu querido? Ela só veio nos informar sobre o paradeiro do duque e você a tratou como uma criminosa.

? Mas...

? Não tem “mas”! ? Exclamou levantando a mão para lhe fazer calar. ? Hoje não espere nenhum tipo de afeto em nosso quarto. Prefiro, se não quiser cair do colchão durante a noite, que durma em outra habitação. ? Depois de ameaçá-lo, girou-se sobre seus calcanhares e seguiu prestando atenção à comida que estava cozinhando.

Beatrice chegou, como era de se esperar, antes dos criados. Abriu devagar a porta de seu lar e se assombrou ao ver que o duque estava sentado sobre o colchão e olhava o fogo. Este, ao escutar que alguém acessava ao interior da casa, moveu a cabeça para sua direção.

? Foi à Haddon Hall para lhes avisar? ? Perguntou sem mostrar em seu rosto nenhum tipo de emoção.

? Sim ? respondeu enquanto se aproximava e se colocava em frente a ele. Sua respiração era agitada devido ao esforço da corrida. Tomou ar de maneira pausada, acalmou-se e continuou: ? Estão vindo para cá. Eles lhe cuidarão como merece. Penso que eu não posso lhe oferecer muito. Tenho poucos recursos...

? Andou até Haddon Hall... sozinha? Apesar de me haver indicado que há uma manada de lobos rondando no bosque? ? William estava zangado. Mais do que se havia proposto.

Um momento depois de recostar-se escutou a porta, despertou e, por muito que a tinha chamado para que não partisse, não o conseguiu. Nesse momento tentou levantar-se, mas o único que pôde fazer foi sentar-se naquele roído colchão e esperar que o tempo passasse. Sua incoerente ação não só tinha posto em perigo a ele mesmo, mas sim também tinha arrastado a pessoa que o tinha salvado de uma morte inevitável. Zangou-se por ser tão irracional. Zangou-se por deixar-se levar pela ira, por ter tomado mais álcool do que o acostumado. Zangou-se por tudo o que tinha feito no passado e suas consequências.

? Não se preocupe comigo, Excelência. Estou acostumada a contornar certos perigos. ? Tirou-se a capa e a colocou sobre uma cadeira.

? Mesmo assim, você é uma inconsciente ? disse com aborrecimento.

? Uma inconsciente? ? Beatrice entrecerrou seus olhos e franziu o cenho. ? De verdade que um homem como você é capaz de me definir de tal maneira? Acaso fui eu quem decidiu cavalgar depois de vários dias de chuva e com limitações? ? Fechou com rapidez a boca. O que menos desejava naquele momento era lhe recordar àquilo que lhe tinha destroçado a vida. Entretanto, ao ver que o duque cravava o olhar no chão soube que suas palavras lhe tinham feito mal, mais do que pretendia.

? Você tem razão... ? sussurrou William. ? Por isso quero que recorde que tenho uma dívida pendente com você e eu gostaria de saber no que posso ajudá-la. Se for possível, antes que eu parta.

? Só preciso ficar sozinha... ? murmurou muito devagar.

Girou-se para a chaminé dando as costas ao homem e esticou as mãos para esquenta-las.

William se dispunha a replicar suas palavras quando a porta se abriu com brutalidade e apareceram duas pessoas. Uma delas era o cavalariço e a outra, seu ajudante de câmara. Ficaram olhando-os durante uns instantes esperando que alguém lhes ordenasse o seguinte passo.

? Sairei para que o assistam como é devido ? comentou Beatrice abaixando a cabeça e dando uns passos para a saída.

Nesse momento, sem saber por que, jogou uma última olhada ao duque, que a olhava sem pestanejar. Seu cenho permanecia franzido e apertava com força a mandíbula. Sem dúvida alguma o homem se zangou ao não obter a resposta que desejava, mas ela não queria adiar por mais tempo a partida. Desejava com todas as suas forças que a normalidade reinasse em sua vida, precisava apartá-lo o antes possível porque sua presença não lhe fazia nenhum bem.

Continuou andando e fechou a porta após sair. Sentou-se nas escadas de pedra e tampou o rosto. Não queria pensar em nada, mas mesmo assim a mente não parava de meditar sobre os infortúnios da vida. Em um passado quando seu pai foi rogar o auxílio do duque e este se negou arrogantemente e agora, o mesmo homem que não quis escutar sua versão dos fatos, rogava-lhe que lhe pedisse algo para saldar sua dívida e conseguir a paz. Seria uma opção acertada lhe pedir que lhe devolvesse sua vida? Pouco depois os homens saíam e William se apoiava em um deles para poder caminhar. Beatrice se levantou para lhes facilitar o acesso. Quando passou por seu lado, o duque fez com que parassem.

? Temos uma conversação pendente, senhorita Brown. Direi a um dos meus criados a que venha recolhê-la o mais cedo possível.

? Não temos nada do que falar, milord ? disse abaixando a cabeça. ? Não me deve nada.

Os criados entenderam que a conversação tinha finalizado e continuaram sua marcha até a carruagem. Elevaram ao duque para sentá-lo corretamente. William jogou a cabeça para trás e depois de fechar os olhos pensou: «Só lhe devo minha vida, senhorita Brown».


VIII


? Está seguro? ? William tomava o café da manhã enquanto escutava com atenção ao Brandon. Este lhe explicava que o criado enviado para que acompanhasse a senhorita Brown até Haddon Hall retornava outra vez sozinho.

? Sim, sua Excelência ? afirmou o mordomo depois de um sopro suave. A tarefa, apesar de parecer bastante singela, estava sendo uma verdadeira agonia.

? É uma mulher muito teimosa. Quantas vezes foram em sua busca? ? Pegou a xícara de chá e a levou para a boca para ocultar o enorme sorriso que desenhavam seus lábios.

Aquele comportamento não era de se estranhar, e mais, se ela tivesse aceitado algum de seus convites o teria desapontado. Só uma pessoa com caráter firme seria capaz de albergar um estranho em seu lar sem pensar na repercussão que dito ato de valentia podia supor. Além disso... desde quando uma frágil moça salvava a vida de um desconhecido pondo em perigo a sua?

? Contando com a de hoje, sete. Os dias que você está em casa desde o infortúnio ? esclareceu.

? Bom, então acredito que a melhor opção é me apresentar ante a senhorita Brown e lhe perguntar o motivo de suas contínuas negativas ? indicou pousando a xícara sobre o prato e empurrou a cadeira para trás para se levantar.

Pegou com força a bengala e caminhou para onde se encontrava o mordomo. Tinha decidido visitá-la quando a terceira negativa chegou até seus ouvidos. Entretanto esperou recuperar-se de tudo para mostrar um aspecto ótimo. Não queria que a mulher continuasse acreditando que ante seus olhos se encontrava um ser débil, frágil. Desejava que admirasse a pessoa que em realidade era, ao duque de Rutland, um homem com caráter, firmeza, força e com energia suficiente para assumir as consequências de seu destino.

William estranhou sua repentina mudança de atitude. Desde quando o duque de Rutland tinha despertado de sua profunda letargia mental? Possivelmente a resposta se escondia nela e, se era assim, precisava encontrar o antes possível o por que.

? Diga ao cavalariço que prepare um cavalo. Partirei quando o ajudante de câmara me vestir para a ocasião.

? Como desejar, sua Excelência.

Brandon, apesar de ter uma vontade imensa de rebater aquela ideia, não estava lá para impedir os desejos de seu senhor. Além disso, tantos anos ao seu serviço ofereciam a experiência necessária para compreender que as decisões do duque não podiam ser questionadas. Ele tinha nascido teimoso e, se Deus velasse por sua vida, morreria sendo-o.

Enquanto o criado lhe ajudava a vestir-se, William pensava na forma mais correta de iniciar uma conversação com sua salvadora. Agradeceria ou lhe perguntaria o que fazia vivendo em seus domínios? Esse mesmo pensamento tinha estado perturbando-o durante a semana que esteve recuperando-se. Sua preocupação não se devia a que a moça habitasse em um lugar de suas terras, graças a isso ele sobreviveu. Mas se perguntava uma e outra vez como tinha chegado até ali. Teria se perdido? Ou talvez... tinha-lhe acontecido algo tão dramático que decidiu abandonar seu autêntico lar.

«Só preciso ficar sozinha». Essas tinham sido suas palavras quando ele insistiu em que lhe devia um favor e que podia lhe pedir o que ansiasse. Por que uma jovem que não devia ter mais de vinte anos vivia sozinha à mercê dos infortúnios de uma vida campestre? Se tivesse sorte, coisa que duvidava, porque começava a conhecer o temperamento da senhorita Brown, suas perguntas seriam respondidas.

? Bom dia, senhor. Seu cavalo está preparado ? explicou o criado quando percebeu que a esbelta figura do duque aparecia pelas cavalariças.

? Espero que desta vez as cintas não se rompam ? apontou William ao mesmo tempo em que se dirigia para o animal eleito.

? São correias novas, sua Excelência – indicou-lhe o criado sem lhe olhar nos olhos. ? Têm o dobro de grossura e proporcionam uma amarração mais segura.

? Bem... ? disse mal reparando na explicação do jovem.

Com passo firme aproximou-se do corcel e esperou que o criado lhe ajudasse a subir. Quando esteve sobre o cavalo e não sentiu a segurança que lhe proporcionava seu garanhão, perguntou ao criado:

? Continuam a busca pelo Dalión?

? Sim, meu senhor. Mas não há rastro dele. Parece que a terra o tragou...

? É mais fácil ter sido devorado por uns malditos lobos... ? murmurou com os dentes apertados antes de açular ao animal.

Depois de amaldiçoar a sorte pelo penoso destino que teria vivido o cavalo, pensou em Beatrice, na solidão em que se encontrava e na facilidade que teriam aqueles depredadores para assaltá-la. A mera ideia de que ela sofresse alguma briga violenta com estes, produziu-lhe tamanho aborrecimento que notou como o coração palpitava em sua garganta. A ira surgida só o fazia pensar em uma coisa: tinha que arrastá-la até Haddon Hall. Não podia deixá-la à mercê do nada.

Crê que aceitará sua proposição com um sorriso? ? Refletiu sem diminuir a marcha. Acaso imagina a senhorita Brown recolhendo seus petences e montando-se na garupa do cavalo enquanto te agradece o oferecimento? Não, ela não abandonará esse lugar jamais.

Mas apesar de saber que a negativa seria sua única resposta, ele como bom jogador, tinha um ás na manga. Um ás que seria a melhor alternativa para ambos: dar-lhe-ia de presente a cabana, onde poderia desfrutar de sua ansiada solidão, só se ela aceitasse passar uma temporada em Haddon Hall. Seria um período curto de tempo, o suficiente para que seus criados construíssem um muro de pedra ao redor do refúgio e eliminassem a suja cerca com a qual ela se acreditava protegida. William sorriu triunfante, era uma opção muito apropriada e, sem dúvida alguma, Beatrice não poderia rechaçar. Deste modo sua dívida estaria saldada e por fim poderia deixar de pensar na jovem, porque desde que a moça apareceu em sua vida, tinha deixado de aflorar as cenas eróticas que tinha vivido com Juliette, para dar passo a uma multidão de inquietações produzidas pela ditosa senhorita Brown. Agora em suas noites não havia luxúria, a não ser angústia por uma mulher tão enigmática, como teimosa.

Beatrice acaba de limpar e dar de comer aos animais. Levou a mão direita para seu rosto e tentou tirar o barro que lhe tinha respingado após perseguir uma de suas ovelhas. O animal tinha escapado por um oco da cerca e, assustado, corria apavorado para o bosque. Por sorte para ambos, a espantada criatura ficou presa entre duas raízes grandes de uma árvore que se sobressaíam à superfície. Ela, muito devagar, aproximou-se por trás e saltou sobre o animal, voltando-se a se sujar da cabeça aos pés com o barro que havia no terreno.

? Espero que isto a ensine a não fugir de mim ? dizia ao animal enquanto que o mesmo caminhava depressa para resguardar-se junto ao rebanho.

Apesar do esforço, ainda ficava um pouco de energia para cortar lenha e preparar um lar quente. As chuvas tinham cessado, mas o frio não e, se seu prognóstico sobre o tempo não falhasse, hoje seria uma noite bastante gelada. Depois de certificar-se de que o buraco estava arrumado e que nenhum intrépido animal poderia escapar de novo, dirigiu-se para o barracão de lenha para continuar com seu plano. Entretanto, justo quando elevava o machado para tirar o primeiro corte ao tronco selecionado, escutou os passos de um cavalo avançar para onde se encontrava. Com o utensílio na mão e aferrando-o com força, girou-se para a pessoa que se aproximava. Se, se tratasse de outro criado do duque, assustá-lo-ia e o ameaçaria para que partisse. Já estava cansada da insistência do nobre. Não voltaria a apresentar-se ali nem que morresse de fome!

? Senhorita Brown, foi assim que você recebeu os meus emissários? Entendo então a razão pela qual se recusam a vir em sua busca.

Beatrice ficou atônita ao descobrir que o próprio duque era quem montava sobre o cavalo e sorria ao ver como levantava a ferramenta afiada. Olhou-o sem pestanejar e se sentiu feliz ao perceber que mal ficavam sequelas do passado incidente. Embora algo chamasse com demasia sua atenção: a longa juba escura e a espessa barba tinham desaparecido. Agora a marca do fatídico duelo ficava à vista de todo aquele que o contemplasse. Examinou-o com mais interesse e reparou que ia vestido com o traje habitual para cavalgar. Do alto do corcel parecia o homem que conheceu na festa da senhora Baithlarin: forte, bonito e enigmático. Sem lugar a dúvidas, depois dos dias de descanso tinha retornado o famoso duque de Rutland.

? Bom dia, Excelência ? respondeu baixando as mãos e abaixando a cabeça.

? Bom dia, senhorita Brown ? disse mostrando um grande sorriso.

? Vejo que continua desafiando a morte.

? Só se tiver a certeza de encontrar uma boa pessoa que tenha piedade de um homem tão desamparado como eu e decida me salvar ? indicou com zombaria.

? Você confia muito na piedade dos outros... ? replicou antes de agachar-se para recolher alguns pedaços de lenha que tinha cortado no dia anterior. Embora cortar troncos fosse uma ação muito habitual em uma camponesa, não lhe agradava sentir-se observada e menos ainda quando a pessoa que a olhava era o duque.

? Eu adoraria poder lhe oferecer minha ajuda, mas como já sabe... ? o tom zombador do duque desapareceu de repente para dar passo a uma voz suave, débil e inclusive com um toque de tristeza.

? Posso fazê-lo por mim mesma, Excelência. Além disso, poderia sujar esse bonito traje e estou segura de que seu ajudante de câmara se zangaria muitíssimo ? explicou ao mesmo tempo em que caminhava para a entrada de sua casa.

Desejava entrar na intimidade de seu lar, fechar a porta e deixá-lo ali fora. Desejava que partisse e que não a perturbasse mais, algo muito difícil se o motivo daquela visita fosse lhe recordar a ditosa promessa.

? Senhorita Brown... ? disse enquanto fazia com que seu cavalo caminhasse ao redor da cerca. ? Por que se negou a aceitar meu convite?

? Como pode comprovar, tenho muito trabalho e não posso perder tempo aceitando visitas que...

? Meu convite lhe faria perder tempo? ? William arqueou as sobrancelhas e a contemplou atentamente.

Assim como a última vez, estava coberta de barro. Não entendia como lhe resultava tão difícil estar arrumada em algum momento do dia. A única explicação que encontrou foi que, ao estar sozinha e não poder cercar conversação com ninguém, teria descoberto certo consolo em rolar pelo chão e cobrir-se de lodo.

? Não quis dizer... ? começou a desculpar-se, mas depois de olhar com atenção o rosto do duque e advertir que este não cessava de mostrar um sorriso zombador, descobriu que suas palavras não lhe tinham causado o aborrecimento que ela tinha suposto. Irada, aferrou-se com força às lenhas e lhe perguntou de mau humor: ? A que devo a honra de sua visita, senhor?

? Vim lhe recordar que temos algo pendente e eu gostaria de resolver tal questão o antes possível ? argumentou com seriedade.

? Acaso o excelentíssimo duque de Rutland tem uma terrível insônia por saber que tem uma dívida pendente com uma mulher? ? Sorriu de orelha a orelha triunfante. Esperava que após sua descarada atitude se ofendesse e a deixasse por fim em paz.

? Insônia... ? virou os olhos para a esquerda como se estivesse duvidando sobre como nomear tal situação. Logo sorriu, olhou-a nos olhos e continuou: ? Não, eu não o denominaria dessa forma, mas é certo que você perturba minha mente.

? Eu lhe perturbo?! Como uma humilde camponesa pode fazer tal coisa? ? Prosseguiu com um tom mordaz.

? Antes, senhorita Brown, minhas noites estavam cheias de luxúria porque eu revivia momentos íntimos com as minhas amantes. Entretanto, desde que você apareceu em minha vida, não afloraram as ditas imagens. Quando fecho os olhos só vejo você ? explicou com tom sereno, impessoal, embora por dentro não cessasse de rir.

? Como diz?! ? Beatrice abriu os olhos como pratos e sentiu fogo em suas bochechas. A confissão a desconcertou tanto que se esqueceu de que segurava as lenhas e, quando levou as mãos para o rosto para que o duque não observasse o rubor de seu semblante, os troncos caíram sobre seus pés. ? Ai! ? exclamou de dor.

William agarrou com força as rédeas do cavalo com a mão sã e desceu com rapidez do cavalo. Em nenhum momento reparou que sua perna lhe doeria ao tocar o chão. Só pensava que, por tentar apaziguar o forte caráter da mulher, tinha-a ferido. Abriu a débil grade e caminhou com firmeza para Beatrice, que tinha se sentado sobre as escadas e agarrava um pé enquanto brotava de seus olhos uma centena de lágrimas.

? Sinto muito, perdoe-me. Não foi minha intenção lhe causar dano algum. Só queria continuar com a ironia que estávamos mantendo em nossa conversação. ? Aproximou-se tanto que pôde observar o brilho daquelas gotas salinas. ? Deixe-me examinar seu pé. ? Estendeu a mão útil e tocou com delicadeza a pantorrilha, o tornozelo e o peito do pé da jovem.

? Não tinha vindo procurando desculpar sua dívida? Pois acaba de saldá-la. Eu lhe curei e agora você... ? voltou-se para o duque com tal rapidez que não percebeu a cercania que existia entre eles. Durante uns escassos instantes, Beatrice pôde respirar o ar que o duque emanava de sua boca e vice versa. Seus olhos claros se projetavam na escuridão do olhar do homem. Aturdida, levantou-se e apoiou o pé sobre o chão, guardando para si a dor que sentia. Colocou suas mãos na cintura e indicou: ? Como lhe disse com antecedência, não necessito que você me ofereça nada. Se quiser que sua mente deixe de lhe mostrar meu rosto e volte a ter aquelas cenas que tanto lhe agradavam, pense que vivo em uma casa que lhe pertence e que devido à sua imensa gratidão posso dormir sob um teto.

? Senhorita Brown, peço-lhe mil desculpas por minhas palavras, estão fora de lugar. Não estou acostumado a me comportar desta forma ante pessoas respeitáveis ? explicou ao mesmo tempo em que se elevava do chão.

? Respeitável? Pensa que sou uma pessoa respeitável? ? Beatrice esboçou uma gargalhada tão intensa que ambos escutaram o eco da risada no bosque.

? Esse é o meu apreço por você desde que me salvou a vida. ? William se mantinha de pé a curta distância da mulher. Ela, ao ver que tinha a intenção de avançar para onde estava, começou a perambular de um lado para outro.

? Não me conhece, sua Excelência. Não me conhece e não pode fazer uma conjectura depois de um ato de piedade. Qualquer ser humano que tivesse passeado pelo bosque e encontrasse uma pessoa ferida gravemente teria feito o mesmo que eu. Isso não é ser respeitável e nem piedosa ? declarou mal-humorada.

? Pode pensar o que desejar, mas me sinto na obrigação de protegê-la igual você fez comigo. ? Seu tom de voz tinha recuperado a dureza, o julgamento e a irrevogabilidade próprias de seu título.

? Não lhe basta me dar abrigo? Não lhe parece que viver em uma casa que lhe pertence já é bastante amparo? ? Beatrice, até agora se movendo sem parar, girou-se para o homem e o olhou desafiante.

? Não! ? Exclamou o duque. ? Deixá-la em meio de um nada, desamparada e rodeada de lobos famintos não me parece uma opção acertada!

? Isso é o que lhe preocupa, sua Excelência? Que minha presença aqui lhe faça sentir-se um homem bondoso e que um dia monte em seu precioso cavalo, galope até a cabana e se encontre com um corpo esquartejado? ? Elevou tanto a voz que até ela mesma se surpreendeu do trato que estava oferecendo a um homem de sua classe.

? Preocupa-me, perturba-me, inquieta-me ? disse William caminhando para ela com passo firme e esquecendo a dor constante de sua perna ? que um dia apareça por estas bandas e veja que não fui capaz de cuidar de uma mulher que quase pereceu para me salvar a vida. Parece-lhe acertada minha conjectura, senhorita Brown?

Estavam tão próximos que se o homem estendesse sua mão útil poderia tocar as costas feminina, puxá-la para ele e abraçá-la com força. Porque podia ter sido um calhorda, um ser sem coração, sem humanidade, mas reconhecia quando uma pessoa precisava sentir o afeto de outra. Tinha acontecido a ele mesmo e acontecia nesse momento à senhorita Brown. Entretanto, William conhecia a razão de sua desprezível atitude. Agora lhe faltava averiguar o motivo que tinha aquela jovem para não querer saber nada do resto do mundo.

? Está bem ? disse Beatrice depois de um leve silêncio. ? Você quer pagar sua dívida e eu quero que me deixe viver em solidão. Então pagará sua dívida se me conceder esse desejo.

? Quer que ninguém a incomode? Essa é a sua petição? ? William franziu o cenho e apertou a mandíbula.

? Sim, isso é o que anseio ? afirmou em um tom mais tranquilo e olhando para o chão.

? Se ficar só e desprotegida é o que deseja, isso é o que obterá. Bom dia, senhorita Brown. ? Golpeou as botas pelos calcanhares, abaixou uns centímetros à cabeça e se dirigiu ao cavalo.

Tinha tanta raiva em seu corpo, encontrava-se tão alterado, que aquele estado de enfurecimento lhe deu a força necessária para agarrar as rédeas do cavalo e subir sem ajuda. Jogou uma última olhada à Beatrice e açulou com tanta intensidade o animal que avistou seu lar antes do esperado.


IX


? O senhor quer lhe ver na biblioteca. ? Mathias, o cavalariço correu para a casa, para explicar ao mordomo o que tinha acontecido depois da chegada do senhor, fazia poucos minutos.

? Como que não requereu os meus serviços para desmontar? ? Perguntou inquieto Brandon.

O que lhe contava o jovem estava deixando-o atônito. A forma habitual de atuar, era esperar ao senhor com a bengala na mão e que este se apoiasse na vara de madeira para subir com segurança as escadas da residência. Entretanto, o moço lhe informava que desceu ele mesmo do cavalo e que não precisou requerer o auxílio de nenhum criado, posto que acessasse ao interior da casa sem mostrar dor ao caminhar.

? Como lhe digo, senhor Stone. Quando agarrei as rédeas de Corsário, nosso duque me deixou muito claro que desejava vê-lo o antes possível nessa estadia ? explicava com certa excitação.

? Que comportamento diz que tinha nosso senhor? ? Hanna, muito atenta ao bate-papo, interrompeu-lhes.

? Encontrava-se muito agitado. Acredito que também bastante zangado ? respondeu Mathias.

? O que lhe terá acontecido? ? Disse a mulher ao mesmo tempo em que retomava ao trabalho.

? Está bem, pode voltar para as cavalariças ? indicou Brandon desejando saber o que rondava pela cabeça de sua esposa.

Tinha notado o leve sorriso da cozinheira e esperou com impaciência que o jovem se afastasse o suficiente, para que não pudesse escutar a conversação. Caminhou para ela, apoiou-se na mesa central e, depois de observá-la uns instantes cortando verduras, perguntou-lhe:

? O que ronda nessa sua cabeça?

? A mim? ? Respondeu abrindo os olhos como pratos e elevando as grisalhas sobrancelhas. ? Nada, não penso nada.

? Não minta, Hanna. Conheço cada gesto que faz quando sua mente não para de refletir. Vamos ver... o que você crê que pode ter perturbado a paz que o nosso senhor teve durante estes dias?

? Não me acusa sempre de ter uma percepção errônea do mundo? – Cruzou os braços e franziu o cenho.

? Quer que lhe suplique isso? Quer que me ajoelhe como o fiz para poder dormir de novo em nosso leito? ? O semblante de Brandon mostrava desconcerto e um pouco de tristeza.

? Se não fosse tão severo, você mesmo acharia a resposta ? indicou com tom suave e quente.

? Hanna, por favor...

? Se tem tanto interesse, explicarei-lhe isso. Mas não me acuse de ter alucinações ou pensar extravagâncias. ? Esperou que seu marido replicasse, mas ao vê-lo tão calado e confuso decidiu lhe expor a ideia que tinha já há uns dias, mais exatamente desde que o duque retornou do incidente, rondando em seu cérebro. ? Se retroceder um pouco no tempo dar-se-á conta de que lorde Rutland sempre levou o cabelo perfeitamente cortado. Em mais de uma ocasião comentou que não entendia como um homem podia pentear-se como uma mulher, não é? ? Brandon assentiu. ? E de repente um dia, disse ao seu ajudante de câmara que não lhe cortasse o cabelo e deixasse que seu rosto se cobrisse de escuridão. Lembra-te quando foi?

? Dois meses depois de celebrar o duelo ? respondeu com rapidez.

? Em efeito, e a razão foi...?

? Queria tampar a cicatriz. Imagino que pensou que desta forma deixariam de murmurar sobre o acontecido.

? Pois eu penso que se deveu à repulsão que encontrou nos rostos daquelas mulheres que antes o admiravam. Resultou-lhe muito duro passar de ser um homem elegante e formoso a uma espécie de monstro ao qual ninguém desejava contemplar.

? Nosso duque não pode ser tão banal, querida! ? Exclamou antes de esboçar uma gargalhada.

? Bom, essa é uma ideia muito típica de um homem, catalogar certos aspectos importantes como banais. Entretanto, se pensasse do ponto de vista de uma mulher, descobriria que não é tão desatinado. Pensa um pouco querido e una os acontecimentos. Por exemplo, desde quando nosso senhor necessitou os serviços de uma cortesã?

Brandon deixou de sorrir e franziu o cenho enquanto meditava a resposta. As hipóteses de Hanna pareciam ter um pouco de sentido. Embora ele conhecesse o homem desde que nasceu e jamais tivesse deduzido que a opinião que possuíam as mulheres sobre ele poderia lhe afetar tanto.

? Imagino que esse olhar é a resposta à minha pergunta ? manifestou a mulher depois de observar como seu marido entrecerrava os olhos.

? Só estou pensando...

? Pois segue pensando, meu esposo, segue pensando... ? agora era ela quem sorria ao ver o desconcerto que suas palavras ocasionavam ao seu cônjuge. Devia sentir-se confuso, posto que ele sempre se gabasse de conhecer à perfeição a sua Excelência, mas havia certos temas que lhe escapavam.

? O que tem a ver tudo isso com a atitude estranha que hoje teve sua Excelência?

? De verdade que não pode suspeitar o que ocorreu?

? Não, Hanna. Não sei o que pôde acontecer. O único que te posso dizer é que esta manhã decidiu visitar a moça para lhe perguntar por que recusou os convites que lhe ofereceram.

? Pois está muito claro, Brandon. Ela não quer vir a Haddon Hall e muito menos quando a tratou pior que a um cão pulguento ? indicou zangada.

? Como queria que a tratasse? Se por acaso não o recorda, ela se ofereceu como cortesã e depois do maldito serviço e de lhe pagar uma boa soma de moedas, o duque me informou que lhe negasse a entrada de novo.

? Mas lhe salvou a vida! ? Exclamou irada. ? Além disso, ele não sabe que ela... ? ficou em silêncio pensando se cabia a possibilidade de que o duque tivesse descoberto a verdade. Mas o negou com veemência, se seu sexto sentido não lhe desapontava, a jovem jamais lhe confessaria o acontecido àquela noite.

? Hanna! ? Chamou Brandon ao vê-la calada e refletindo algo que parecia entristecê-la.

? O jovem duque pediu, após retornar à casa que lhe recortassem a barba e que fizessem desaparecer o extenso cabelo, não é? ? Alterou a consciência para a direção que tinha tomado à conversação.

? Certo.

? E não perguntou a que se devia essa mudança de opinião? Porque o único que tinha acontecido foi que uma moça desconhecida o lavou, curou-lhe as feridas e, além disso, percorreu um comprido trajeto para nos informar sobre seu paradeiro. Sem esquecer que depois, o duque nos comentou que havia uma manada de lobos oculta no bosque e que era perigoso passear por ele.

? Certo, está me dizendo que a jovem pôs em perigo sua vida para salvar a de nosso senhor, mas isso não responde à pergunta de por que sua Excelência decidiu seguir os conselhos do doutor para se curar com prontidão, nem essa insistência em fazer desaparecer a espessa barba e cortar o cabelo ? explicou exasperado cruzando seus braços no peito.

? De verdade que não é capaz de entendê-lo? ? Perguntou elevando um pouco a voz ao sentir-se tão frustrada.

? Não, não sei aonde quer chegar com as hipóteses que me explica.

? OH, querido! Por que não abandona esses pensamentos repletos de lógica e deixa que se expresse seu coração? ? A mulher se aproximou de seu marido, apanhou o rosto deste entre suas mãos e o olhou com ternura.

? Meu trabalho exige utilizar à lógica. Possivelmente a desenvolvi mais do que outras pessoas.

? Deduzo então que não tem nem ideia do que poderia pedir o duque quando aparecer ante ele, não é?

? Pode pedir qualquer coisa...

? Pois eu vou me deixar levar pelo que me dita o coração, e este me diz que te ordenará realizar algo dessas coisas que fazem os homens poderosos para deixar a jovem vivendo na cabana o tempo que desejar. ? Aproximou-se dos lábios de seu marido e lhe deu um pequeno beijo.

? Isso que diz é uma loucura e segue sem me explicar por que retornou tão enfurecido após visitá-la.

? Querido meu, nosso duque está acostumado a ordenar e que todo mundo acate seus mandatos. Se essa jovem for tão teimosa como acredito que é, não terá aceitado a proposição que tinha pensado para ela. Daí esse mau humor. Agora, em vez de ficar estorvando em minha cozinha, vai e comprova se os pensamentos loucos de sua esposa não são certos. ? Apartou-se, dirigiu-se para os fogões e começou a mover a comida que serviria em breve.

Brandon a observou durante uns instantes, ao mesmo tempo em que meditava sobre as conclusões que lhe tinha dado, pareciam muito sensato, mas estava seguro de que não eram corretas. O duque deveria ter outro tipo de razões para mudar seu comportamento com tanta rapidez e, embora sua esposa expusesse como se fosse o mais normal do mundo, sua Excelência não podia sentir nada por uma mulher assim. Era certo que lhe devia a vida, mas podia recompensá-la com outra bolsa de moedas. Se a oferecesse ela a aceitaria de bom grado, igual fez na última vez. Jogou uma olhada às costas de Hanna e depois de respirar com intensidade dirigiu-se para a biblioteca, o lugar onde o duque lhe esperava.


William perambulava de um lado para outro sem notar a dor insistente da perna. Estava tão zangado, encontrava-se tão furioso, que nem a dor lhe impedia de mover-se como desejava. De repente, ao descobrir que as cortinas da janela estavam amarradas aos ganchos metálicos, aproximou-se dela e ficou observando o exterior. Até esse momento não o tinha apreciado como era devido, sempre lhe pareceu um lugar cheio de vida, aprazível e, é óbvio, seguro ante qualquer adversidade. Entretanto, depois da desafortunada visita à senhorita Brown, toda aquela percepção desapareceu para dar passo a uma menos serena. Elevou o olhar e o cravou no arvoredo que começava a finalizar no imenso jardim. Ali, ao amparo da abrupta natureza, encontrava-se um perigo importante, mais do que se imaginou alguma vez.

? Mulher teimosa! ? Exclamou com energia antes de girar-se sobre seus calcanhares e dirigir-se para as garrafas de bebidas colocadas sobre uma cômoda.

Pegou o copo, encheu-o de brandy e, justo quando iria dar o primeiro gole, sopesou se beber até cair era o mais acertado. Depois de meditá-lo depositou o copo sobre a superfície de madeira encerada e caminhou por volta de uma das poltronas, não seria apropriado que ordenasse uma coisa tão importante ao Brandon em um estado péssimo de embriaguez. Devia mostrar serenidade, retidão e solidez porque do contrário seu mandato seria desprezado.

Levou a mão ao bolso de seu colete e tirou o relógio. Tinha entrado na biblioteca há quase quinze minutos e o mordomo ainda não tinha feito ato de sua presença. Ficou de pé de novo e, franzindo o cenho, deu vários passos para a porta com a intenção de ir buscá-lo ele mesmo. Antes de aproximar-se da saída, Brandon pedia permissão para entrar.

? Excelência ? disse o homem ao mesmo tempo em que realizava uma ligeira inclinação. ? Desejava ver-me?

? Solicitei sua assistência faz quinze minutos, a que se deve a demora? ? Perguntou zangado.

? Minhas desculpas, meu senhor. Houve um problema na cozinha e tive que resolvê-lo sem demora ? explicou.

? Aconteceu algo à senhora Stone? ? Perguntou um pouco mais acalmado.

Hanna se tinha convertido, com o passar dos anos, em uma mãe para ele. Desde que tinha memória recordava que os beijos, os abraços e os consolos que necessitou em sua infância sempre os ofereceram ela. A mulher também evitou em várias ocasiões que seu pai lhe pusesse o traseiro avermelhado depois de fazer, tanto ele como Lausson, uma ou outra traquinagem.

? O mesmo de sempre, meu senhor. Discutimos se deve acrescentar mais verduras ao menu do dia ? indicou.

Esperava que aquela desculpa lhe contentasse e deixasse de lhe interrogar por que se fosse assim, ele não poderia continuar mentindo. Ao ver que os ombros do duque se relaxavam e que mostrava um leve sorriso na comissura dos lábios, Brandon inspirou profundamente e deu graças a Deus por sua benevolência.

? Hoje parece que o sexo feminino está inquieto... ? comentou enquanto retornava à poltrona para sentar-se. Nesse instante, ao entender que não era o único homem que tinha sido atacado esse dia por uma mulher, começou a relaxar-se e a perceber, com mais intensidade, as cãibras terríveis que emitia a perna machucada.

? Como diz? ? Quis saber Brandon ao não entender muito bem o comentário do duque.

? Nada. Foi só uma consideração. ? Reclinou-se no assento e apertou os dentes ao notar aquela incessante dor.

? Posso lhe perguntar, sua Excelência, o que deseja? ? O mordomo ao observar como a testa de seu senhor se enrugava com força, deduziu que estava padecendo de suas terríveis dores.

Sorriu sutilmente ao pensar que Hanna se equivocou com suas especulações. Sem lugar a dúvidas o duque demandava sua presença porque precisava ser atendido por sua dor.

? Quero que faça chamar o senhor Gibbs, que venha à Haddon Hall o antes possível ? apontou com calma ao mesmo tempo em que movia devagar a perna machucada.

? O senhor Gibbs? ? Perguntou surpreso antes de morder o lábio por sua falta. Não era ele quem podia exigir explicações.

? Sim ? respondeu William evitando a inquietação do mordomo.

Sabia que chamar seu administrador causaria alguma incerteza sobre o serviço. A última vez que o fez foi para ceder à sua mãe a residência que tanto ansiava e lhe oferecer a soma que demandava depois da morte de seu pai. Entretanto, desta vez era diferente. Um dos bens obtidos por herança iria às mãos de uma mulher bondosa que sim o merecia, uma mulher que lhe tinha salvado a vida, não como no caso de sua mãe, destruido-a. ? Preciso falar com ele o antes possível, tenho que fazer constar certas mudanças legais... ? girou-se para o fogo, contemplou-o durante uns instantes e ao dar-se conta de que Brandon seguia na estadia moveu com suavidade a cabeça para ele: ? Acontece algo?

? Não, senhor, só me preocupo com você. Esperava que sua chamada se devesse ao interminável padecimento que sofre em sua perna do tropeção. Conforme fui informado pelo criado, você mesmo desceu do cavalo depois do passeio que realizou pelo bosque ? disse entre desculpas. Esperava que o duque não fosse capaz de perceber a insistência para averiguar o que pretendia.

? Já sabe que fui visitar a senhorita Brown ? comentou William entreabrindo os olhos.

? Em efeito, e conseguiu que finalmente aceite sua proposição? ? Insistiu sem mostrar em seu rosto a importância que lhe provocava conhecer a verdade. Se este dizia que não, ao final teria que humilhar-se de novo ante sua esposa porque, outra vez, estaria certa.

? Não, não a aceitou. Decidiu comprazer meu desejo de responder à sua piedade ? falou com raiva – rogando-me que a deixe desamparada naquele lugar miserável.

? Quer viver em uma propriedade que não lhe pertence? ? Soltou sem pensar.

? A questão não é se deseja viver na cabana de caça, mas sim o que pretende a senhorita Brown é lutar dia a dia só, ante a adversidade e periculosidade de um lugar tão inóspito ? explicou apertando a mandíbula.

? Não lhe ofereceu uma bolsa de moedas? Possivelmente isso lhe tivesse mudado...

? Senhor Stone! ? Gritou William zangado. ? Acredita que a mulher que pôs em perigo sua vida para salvar a minha merece esse trato tão depreciativo?

? Sinto muito, Excelência ? manifestou abaixando a cabeça e cravando o olhar no chão. ? Desculpe minhas palavras, mas tem que compreender que se a senhorita Brown tiver decidido alojar-se em um lugar repleto de perigos e esta vontade lhe causa inquietação, eu devo cuidar da sua saúde.

? Esquecerei seu comentário porque tanto você como a senhora Stone são as únicas pessoas às quais considero família. Além disso, entendo que essa atitude inapropriada é como bem diz, para seguir me protegendo, mas nunca volte a se intrometer neste tema. O que a senhorita Brown e eu combinamos se cumprirá.

? Sim, senhor. É óbvio. Agora mesmo direi a um dos criados que se dirija até o lar do senhor Gibbs e lhe faça saber que você deseja vê-lo o antes possível. ? Brandon jogava uns passos para trás sem levantar a cabeça. Não parava de meditar sobre o desejo do duque, a amalucada hipótese de sua esposa e o que esta riria quando lhe narrasse à conversação.

? Necessito de uma coisa mais... ? assinalou antes que o ancião partisse. Brandon elevou o semblante e o observou com atenção. O jovem olhava para as intensas chamas da fogueira. Contemplava-o com tanta ferocidade que podia ver de onde estava como o fogo se projetava nos seus olhos. ? De todos os que trabalham para mim, ? prosseguiu em tom firme ? há alguém que tenha sua mais absoluta confiança? ? Ante o desconcerto que mostrou o criado, William continuou: ? Tenho mil dúvidas sobre a senhorita Brown e necessito que alguém me ofereça informações sobre ela.

? Mas, milord, por onde começaremos? ? Brandon abriu tanto os olhos que quase saltaram do rosto. O que estava pedindo o duque era uma tarefa impossível de concluir. De onde procedia? Que lugares visitou antes de refugiar-se na cabana?

Então sentiu que o coração paralisava. Possivelmente as únicas pessoas que sabiam algo da jovem eram sua esposa e ele, embora, como era lógico, evitaria lhe informar sobre isso. Entretanto, Hanna tinha descoberto algo que não cessava de lhe rondar a cabeça e, visto o pedido do duque, talvez indagasse mais sobre isso.

? Brandon! ? Exclamou William ao observar a palidez do rosto deste.

? Sinto muito, sua Excelência, estava meditando sobre a pergunta que me realizou ? mentiu e voltou a pedir piedade a Deus.

? E? ? Insistiu.

? Neste momento a única pessoa em que confio, além de em minha querida esposa, é no Mathias, o cavalariço. Sei que é muito jovem e talvez não consiga abandonar as cavalariças para lhe servir no interior da casa, mas é mais fiel do que um cão e mais calado que um mudo ? disse com solene segurança.

? Bom, pois pedirá ao jovem que averigue tudo o que possa sobre o sobrenome Brown. Se minhas conjecturas não forem errôneas, não deveria viver muito longe, do contrário não conheceria este lugar.

? Pensou meu senhor, que poderia não ser seu verdadeiro sobrenome? Parece-me estranho que uma jovem abandone seu lar, deseje apartar-se de todo ser humano, dita viver sozinha o resto de sua vida e responda com sinceridade ao lhe perguntar por seu nome. ? Brandon não queria que o duque se frustrasse se não achasse o que procurava. Se lhe aturdia tanto uma mera visita a jovem, o que aconteceria se o que encontrasse não fosse de seu agrado?

? Que o jovem se dirija para Rowsley, avise ao senhor Gibbs e comece a indagação entre os aldeãos. Se minha intuição não me falhar, embora a senhorita Brown não seja daí, tem que conhecer alguém desse lugar. De que outra forma ela adquiriria os animais que cuida e seu alimento? ? Explicou com aparência firme. Entretanto, a conjetura do ancião não cessava de lhe golpear a cabeça.

Era certo que, quando lhe perguntou por seu nome, Beatrice soltou-o sem pensar, mas seu sobrenome o disse com certo temor. Caberia a possibilidade de ter sido enganado? E se era assim, por quê? Aqueles pensamentos só aumentavam sua ânsia de averiguar quem era aquela jovem e por que, de tudo o que pôde lhe pedir, rogou-lhe ficar sozinha.

? Se sua Excelência não tiver nada mais que me dizer, agora mesmo falarei com o criado para que comece o antes possível com seu novo trabalho.

? Deixe-lhe bem claro que não deve falar com ninguém disto ? acrescentou.

? É óbvio. ? Depois de despedir-se como era devido, Brandon saiu da biblioteca e se dirigiu com passo firme para a cozinha.

Deveria explicar à Hanna o acontecido. Deixaria que se vangloriasse de seu triunfo e, depois do bate-papo que obteria sobre quão inteligente era e o pouco que a valorava, pediria-lhe que recordasse com exatidão aquilo que tanto lhe chamou a atenção na jovem. Possivelmente essa era a pista que deveriam seguir porque, se não estivesse equivocado, o sobrenome, o ter estado com outros homens, o proceder de uma família de camponeses e tudo aquilo que relatou à sua benevolente esposa era mentira.


X


O frio era tão intenso que atravessava toda a pele até alcançar os ossos. Beatrice tentou avivar um pouco o fogo, mas sem troncos para jogar sobre as brasas, não podia conseguir uma grande proeza. Abraçando-se com força e esfregando os braços de cima a baixo, aventurou-se a abrir a porta para confirmar que no galpão de lenha não havia nenhum triste ramo para lançar à chaminé. Em efeito, sobre o chão não havia nada. Tinha gasto tudo o que compilou até a volta dos lobos, e agora lhe dava um medo atroz sair como outras vezes a procurar alguma árvore caída para poder arrastar até ali. Era perigoso. Eles a vigiavam. Cada vez que saía, cada vez que caminhava ao redor da cerca podia sentir aqueles olhos diabólicos cravando-se em seu corpo. Eram incansáveis, mais do que tinha imaginado. Inocentemente tinha pensado que, assim como na primeira vez, voltariam a partir. Mas esta ocasião era diferente, agora tinham comida perto, só deviam esperar o momento apropriado para atacar e encher seus estômagos.

Zangada, fechou a porta e se deitou sobre o leito. O único a fazer até que chegasse o novo dia era deitar-se e cobrir-se com as colchas compradas no povoado. Agasalhada com aqueles objetos, acomodou a cabeça no almofadão e olhou ao teto. Estava cansada de lutar, de sobreviver dia após dia. O que em um princípio lhe pareceu a melhor opção para aguentar aquele desastroso sofrimento, nesses momentos não a convencia. Achava-se no meio do nada com comida suficiente para alimentar-se, mas impossível de cozinhar pela falta de fogo. Levava dias roendo verduras recolhidas da terra, tentando esquentar caldos que não terminavam de ferver, e sentia cada vez mais frio.

Levantou as mãos para seu rosto e observou que já não eram de cor rosada, começavam a ser malvas e isso não era bom sinal. Colocou-as sob as mantas e as esfregou com os lençóis para fazê-las entrar em calor, mas apesar do esforço mal notou melhoria. Resignada pelo terrível final que começava a chegar, girou-se para a direita. Dali podia contemplar a brilhante e reluzente lua. Aquela noite era a segunda vez que a via desde a partida do duque zangado e aceitando sua única condição. Beatrice suspirou profundamente ao recordá-lo. Não sentia compaixão nem afeto por esse homem, mas pensava nele de vez em quando e como em certos momentos lhe pareceu perceber que desejava aproximar-se e abraçá-la. Teria gostado se o fizesse. Apesar da fúria que a invadia ao rememorar a atitude autocrata mantinha quando seu pai lhe pediu ajuda, teria aceitado seu abraço de bom grado. Fazia muito tempo que ninguém a consolava, fazia muito tempo que não apoiava sua cabeça no ombro de uma pessoa e se consolava entre lágrimas. Entretanto tinha tomado uma decisão e se ele a houvesse visto débil ou aflita não lhe teria concedido seu desejo.

Voltou a mover-se na cama de armar, virou-se para o outro lado, cobriu-se até a cabeça e tentou dormir. Precisava descansar, precisava afastar-se do lugar onde vivia embora fosse somente em sonhos.

Beatrice sonhava que estava junto à sua mãe, que tagarelava sem cessar sobre a próxima celebração a que deviriam assistir. Seu tom era doce, quente, porque sabia que ela não aceitaria de bom agrado em assistir de novo a um evento cheio de homens pomposos e de mulheres orgulhosas pelas joias penduradas em seus pescoços. Zangada, depositou o bastidor sobre a cadeira que tinha junto a ela e se levantou do assento.

? Não pode me obrigar a isso, mãe! ? Bramou irada.

? Não é uma obrigação, é um acontecimento social ao qual deve assistir ? indicava com calma.

? Acaso essa descrição não é o mesmo que me forçar a realizar algo que não desejo? ? Arqueou as sobrancelhas e colocou as mãos na cintura.

? Eu não observo tal apreciação, senhorita, e em seu lugar sentiria-me adulada de ser convidada por um homem tão...

Um horripilante ruído a sobressaltou, despertando-a bruscamente do sonho. Apartou os lençóis e caminhou para a janela para tentar descobrir o que ocorria no exterior.

? Meu Deus! ? Gritou com força ao observar a cena mostrada na escuridão noturna. Sem pensar duas vezes correu para a porta e agarrou com força o pau que pendurava sobre a parede de pedra. ? Malditos sejam! Deixem-nos em paz! ? Continuou vociferando.

Os alaridos de seus animais eram insanos. Beatrice, ignorando o medo que a invadia, avançou sem titubear para o pequeno terreno onde se encontravam as ovelhas, as galinhas e os quatro porcos. Estes gritavam de terror. Uns tentavam fugir das garras de seus assassinos, outros jaziam no chão agonizando. Elevou a vara e começou a atirar golpes aos causadores daquele massacre, mas nenhum deles se voltou para defender-se. Parecia que não lhes importava sua presença, como se seus ataques não fossem perigosos.

Enquanto tentava que parassem de aniquilar tudo, notou o escorregar de lágrimas por suas bochechas e o som de seus próprios gritos retumbando em seus ouvidos. Pouco a pouco suas forças foram diminuindo, possivelmente se reduziram com mais rapidez quando observou atônita e impotente como os lobos apertavam com força suas mandíbulas nos pescoços dos desprotegidos animais e os arrastavam para o interior do bosque.

Em estado de choque foi caminhando para trás. Queria resguardar-se na cabana porque, até o momento, eles tinham decidido não a atacar. Sem soltar o pau girou-se com brutalidade e subiu os quatro degraus de pedra que a conduziriam até sua guarida. Estava a ponto de alcançar o objetivo quando sentiu a espetada de umas adagas rasgando a carne de sua pantorrilha. Ao mover a cabeça para a direção de onde procedia a imensa dor observou uns olhos escuros e uma pelagem cinza. Era o lobo que a espreitava, que a atemorizava com seus intensos uivos.

Sem pensar elevou o pau e lhe golpeou com força no focinho. Os dentes do animal se cravaram ainda mais em sua perna, fazendo-a gritar com tanta força que ficou exausta. A besta, ao sentir o dano, abriu a boca e a soltou, momento que aproveitou para correr para o interior da casa, fechar a porta e apoiar as costas sobre ela. Escutou o caminhar da fera. Rondava pelos arredores da cabana tentando encontrar um oco para acessar e finalizar seu propósito. Entretanto, as janelas estavam seladas, salvo se saltasse e rompesse o cristal, a atroz besta não poderia acessar.

Conforme passava o tempo e compreendia que estava a salvo, suas forças foram se desvanecendo e começou a escorregar pela folha de madeira até seu traseiro se apoiar no chão. Seus olhos começaram a oferecer uma imagem distorcida da cozinha. Sentia uma terrível queimação na perna e notava o palpitar de seu coração nela. Tentou levantar-se. Tentou fazê-lo. Mas foi impossível. Estava débil, ferida e sem vitalidade. Tinha chegado seu fim. Percebia como a vida partia em cada gota de sangue que emanava de sua perna. Quis voltar a chorar, embora não lhe brotassem mais lágrimas. Só pôde fechar os olhos e deixar chegar seu último suspiro.


William mal tinha conseguido dormir. Cada vez que o tentava, um horrível pesadelo o fazia abrir de novo os olhos. Esgotado por lutar contra sua própria vontade, levantou-se da cama e se colocou sobre a poltrona que se encontrava ao lado desta. Não entendia com claridade seu pesadelo. Mal tinha inquietações em sua vida cotidiana para sentir-se daquela forma. O mais incômodo para ele tinha sido visitar todos os que apareciam em sua casa, momento que aproveitava para indagar sobre a senhorita Brown. Embora nunca achasse a resposta que desejava. Não entendia como uma tarefa tão singela estava se convertendo em um tremendo calvário.

Durante as semanas seguintes à conversação com a moça, o jovem a quem Brandon tinha encomendado a tarefa de procurar algum dado sobre Beatrice, não encontrou nada salvo a um casal de anciões que se apelidava igual e, que conforme contaram ao criado, não tinham podido engendrar nenhum descendente para continuar com seu legado. O duque sopesou, depois de obter aquela informação, que a ideia do engano não era tão descabelada, mas a descartava cada vez que pensava nela, que propósito tinha para lhe mentir? Ela não sabia quem era até que ele mesmo o comentou. Aquilo não tinha sentido, a menos que fosse uma criminosa fugindo de uma sentença proferida e pensasse que ele, ao ter um importante cargo da nobreza, entregá-la-ia. Mas também rechaçou essa ideia porque se a jovem tivesse cometido um crime e se escondesse no lugar mais recôndito do planeta para viver em liberdade, não teria arriscado sua vida para salvar a de um desconhecido.

Levou a mão ao queixo e acariciou o espesso pêlo que tinha deixado crescer de novo após compreender que ninguém mais voltaria a observá-lo com normalidade. Ninguém exceto ela.

Aturdido por seu inexplicável desassossego, levantou-se do assento e se dirigiu para o balcão. Apesar do tempo gélido, abriu as janelas e caminhou pelo terraço. O amanhecer oferecia uma bonita e estranha luz que, ao iluminar os hectares do arvoredo onde habitava a moça, davam-lhe um matiz menos sinistro. Mas o perigo espreitava constantemente, sobretudo aquela noite. Tinha ouvido-os durante as horas nas quais esteve acordado e em mais de uma ocasião sentiu medo, apesar de encontrar-se resguardado na mansão.

No silêncio que oferecia a chegada do crepúsculo, uns incessantes uivos e gemidos retumbaram em sua habitação como se estes se aproximassem de sua janela. Estava seguro que tal revôo se devia a que a manada tinha estado caçando. Então, como se sua mente lhe mostrasse a imagem de um quebra-cabeça completo, correu para sua habitação, abriu a porta e começou a gritar o nome de seu mordomo.

? Sim, sua Excelência? ? Brandon aparecia em meio a se vestir. Sua respiração era agitada, as mãos trementes não acertavam colocar corretamente na casa os botões de seu uniforme.

? Faça com que preparem o antes possível uma carruagem! Quero o cavalariço como cocheiro e a este na parte de trás com uma arma carregada. Diga-lhes que partiremos para o refúgio de caça assim que estejam preparados.

? O que ocorre, milord? ? O senhor Stone não saía de seu assombro. A princípio acreditou que o duque se levantara no meio de um sonho alterado, mas ao observá-lo tão lúcido, soube que aquilo não era a consequência de um pesadelo.

? Faça o que te ordeno! – Gritou com tanto ímpeto que o eco de sua voz se escutou em todos os corredores da mansão.

? Agora mesmo, meu senhor. Digo ao seu ajudante de câmara que vá à sua habitação?

? Está demorando muito! ? Clamou ao mesmo tempo em que retornava ao seu dormitório e tentava tirar-se ele mesmo a camisola com o qual dormia.

Como não o tinha pensado antes? Como não tinha sido capaz de descobrir o que seu interior lhe indicava? Irado, golpeou com força o colchão de plumas ao imaginar que, se suas conjeturas fossem certas, já seria muito tarde. Nesse momento, depois de atirar vários murros ao inerte colchão, levantou seu olhar para o teto e fez algo que não tinha feito desde menino: rezar.

Tal como tinha desejado, a carruagem lhe esperava na entrada da mansão. Desceu os degraus sem a ajuda de Brandon, que corria atrás dele se por acaso em algum momento pedisse sua ajuda. Mas era tanta a ira que movia seu corpo, tanto desespero por averiguar o que se temia, que se introduziu no interior do veículo de um salto. Apoiou a cabeça no respaldo acolchoado e observou a paisagem que percorriam a grande velocidade. Tinha sido um acerto colocar o jovem Mathias como condutor posto que, ao conhecer as possibilidades dos cavalos que cuidava, tinha selecionado os mais rápidos e graças a isso não demorou muito em divisar os arredores da cabana. Ao aproximar-se sentiu como sua garganta o sufocava e seu coração desacelerava incapaz de afastar o temor de sua mente. De repente escutou um som, e o coche parou abruptamente.

? Deus santo! ? Ouviu o cocheiro exclamar. — Isto foi obra do próprio diabo!

William saiu apavorado do veículo. Assim que dirigiu o olhar para o cenário que seus homens contemplavam atônitos, deixou de respirar. A cerca estava destroçada, os fracos arames que rodeavam a suja cabana atirados no chão, dobrados e quebrados. Todo o terreno que rodeava a cabana estava cheio de partes de carne e sangue, muito sangue. Avançou um pouco mais sentindo ao seu lado o criado e o cocheiro, o qual sujeitava sua arma com firmeza.

? Que diabos aconteceu aqui? ? Perguntou estupefato um deles.

William não distinguiu quem fez a pergunta, sua mente se concentrava em averiguar qual desses pedaços podia ser uma parte de Beatrice. Continuou avançando, pisando em plumas ensanguentadas, partes de pele e ossos cobertos de tendões mordidos. Não havia vida naquele lugar. O silêncio indicava que a morte tinha devastado qualquer possível fôlego. Fixou a vista na porta da entrada. Estava fechada. Teria se resguardado antes do ataque? Poderia estar sã e salva? Ansioso por conhecer as respostas, deixou para trás os dois homens e se aproximou da entrada. Ao estar tão perto contemplou o desenho que tinham deixado umas ferozes garras. Não soube que seu corpo permanecia encolhido e que tremia até dirigiu sua mão para a porta e empurrá-la. Antes que esta tocasse a danificada madeira, entrou-lhe a dúvida e se encheu de desespero. Se na casa se encontrava a mesma cena que havia no exterior, não se recuperaria jamais do acontecido, posto que o único culpado daquele horror tivesse sido ele.

? Sua Excelência, deixe que seja eu quem a abra. Se dentro houver algum desses mal nacidos que massacraram estes pobres animais, encherei-o de chumbo ? comentou com firmeza o cocheiro.

William queria negar-se, mas não pôde. O homem tinha razão. Como lutaria contra a ferocidade de um lobo com uma só mão? Resignado por sua incapacidade, permaneceu imóvel enquanto observava como o servente direcionava sua arma para a porta e tentava abri-la.

? Está pesada! ? Gritou após vários intentos falhos. ? Mathias, olhe por essa janela para ver se consegue descobrir o que me impede entrar ? ordenou ao jovem que não cessava de olhar para trás e sussurrar algo sobre o mal e as atrocidades provocadas pelo demônio.

O jovem se aproximou do cristal com passo lento e inseguro olhou através dele dobrando a cabeça de um lado para o outro procurando um ângulo com maior visibilidade. Finalmente apoiou sua mão direita na testa como se fosse a viseira de uma boina e gritou:

? É algo pequeno! Está sobre o chão. Acredito que... Deus santo bendito, aí há alguém!

? Abre-a! ? Exigiu William mais assustado que nunca.

? Terei que golpear com força e poderia... ? começou a explicar o homem.

? Abre-a! ? repetiu com mais vigor ainda.

O cocheiro jogou uns passos para trás para tomar impulso e colocando seu ombro para frente, empurrou a porta com toda a energia que tinha. Não foi muito o que obteve, mas o suficiente para acessar o interior.

? É uma mulher! – Exclamou. ? É uma mulher! ? Repetiu agitado. ? Graças a Deus, parece que ainda respira!

William não pôde ficar ali fora observando. Caminhou para o interior da casa e quando contemplou Beatrice nos braços do homem, quis lançar-se sobre ela e abraçá-la ele mesmo.

O rosto da moça estava pálido e os braços lhe penduravam frouxos para o chão, o sangue, de cor escura após secar-se, cobria o vestido e as pernas. Era a viva imagem da destruição que ocasionava a morte em um ser humano.

? Deite-a no interior da carruagem! ? Gritou o duque. ? Mathias, crê que só um cavalo pode lavar sem dificuldade o coche? ? O moço afirmou com a cabeça, o pânico que o sacudia lhe impedia de articular uma só palavra. ? Pois desengancha o mais rápido que puder e galopa até Rowsley, necessito que leve o médico a Haddon Hall.

Enquanto o jovem soltava o corcel selecionado, Beatrice era depositada com cuidado sobre o sofá direito da carruagem, na posição adequada para que William a auxiliasse em caso de necessidade. Fechou-a após meter-se no interior e a observou desejando que nesse instante abrisse seus olhos e descobrisse estar à salva, que ele a protegeria, mas o suave e débil respirar lhe indicou que não podiam atrasar-se mais tempo. Levou-se a mão para o botão da capa, tirou-a e cobriu o corpo ferido para lhe dar calor. Ao notar que a carruagem começava a mover-se, sentou-se no chão e foi apartando o cabelo alvoroçado da jovem. Queria lhe ver o rosto, queria observar se continuava respirando, queria que seguisse com vida para ver de novo sua teimosia e determinação.

De repente escutou o relinchar de um dos cavalos e um rápido galope. O criado se afastava para procurar o doutor.


CONTINUA

A vida libertina do futuro duque de Rutland finaliza após bater-se em um duelo de honra com um marido enganado. Envergonhado pelas sequelas do dito desafio, decide abandonar Londres e partir para Haddon Hall, o aprazível lugar onde cresceu, albergando a esperança de encontrar a paz que tanto lhe urge obter, entretanto, a chegada de uma notícia inesperada altera essa suposta calma e provoca que o duque se embebede. Face aos conselhos de seus próximos decide montar a cavalo e galopar por seus domínios. Quando abre os olhos depois de uma desafortunada queda, descobre que uma mulher o esteve cuidando em algum lugar afastado e escondido de suas terras. Seu nome, Beatrice, e seu único desejo, viver em solidão o resto de sua vida.
Querido(a) leitor(a), quero explicar que o duque de Rutland existe, embora acredite que nenhum se chamou William até agora. Também quero comentar que Haddon Hall é real e que se encontra no condado de Derbyshire. Todo o resto é produto da minha imaginação. Esclarecido isto, espero que desfrute com a leitura que guardam estas páginas.

 

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Londres, 1865. Clube de cavalheiros Reform.

? Desafio-o, senhor!

Com essas palavras, um homem de baixa estatura, com um pouco de peso a mais e vestido com um imaculado traje cinza, atirou uma luva sobre a mesa em que se jogava uma partida de cartas. William arqueou as escuras sobrancelhas e olhou a quem o desafiava com certa incredulidade. Deu-se conta o pobre infeliz que se se levantasse de seu assento o superaria em altura um pouco mais de 30 centímetros?

? Pela honra de quem? ? Perguntou William redirecionando seus olhos para as cartas e apertando o charuto em seus lábios. Estavam sendo tão habituais esses desafios que já não lhe produziam alteração alguma.

? Pela honra de minha esposa, lady Juliette Blatte ? respondeu o homem cheio de cólera ao ver que o aristocrata não parecia se afetar pelo que ele esperava morrer de vergonha e de dor.

? Juliette?

A familiaridade com a qual o futuro duque de Rutland falou de sua mulher fez com que o pequeno corpo vibrasse de desespero e fúria. William, sem apartar a vista das cartas que tinha em sua mão esquerda, franziu o cenho e levou a outra palma para a escassa barba que cobria seu rosto.

? Disse-me que enviuvou faz algo mais de um ano ? continuou com voz serena e sem interesse por continuar a conversação.

? Acusa-a também de mentirosa? ? As bochechas do desonrado se encheram de um vermelho intenso.

O homem inclusive se elevou nas pontas dos pés para tentar, em vão, captar a atenção do amante de sua esposa. Entretanto, ninguém fez nada, nem William nem os outros jogadores. Se a cólera que o tinha conduzido até ali era inimaginável, observar que o próximo duque de Rutland continuava com sua pose de tranquilidade enquanto alegava que se deitou com sua esposa por ter sido enganado, provocou-lhe tal demência que esteve a ponto de equilibrar-se sobre este e lhe golpear com força.

? Acredito que sua querida Juliette mentiu a ambos ? disse William após manter-se em silêncio uns minutos. ? O duelo deveria se dirigir a ela. Mas se me permite um conselho, antes de enfrentar uma possível morte, agarraria sua esposa e lhe daria uns bons açoites com o cinturão. Não se pode enganar com falácias a homens como nós, sobretudo porque nestes momentos cavalheiro, encontro-me tremendamente aflito... ? comentou com zombaria e sem subir nenhuma nota em seu tom de voz.

Tomou outra intensa imersão do charuto e depois de jogar o ar esperou que o desventurado homem fosse sensato e partisse com a cabeça baixa, mas respirando.

? Amanhã, em Hyde Park, à alvorada. Levarei as minhas testemunhas e um médico, você apareça com quem desejar. ? O homem golpeou suas botas, girou-se e inclinando-se ligeiramente se despediu dos pressente antes de afastar-se.

Durante um bom momento o sigilo foi reinante naquele lugar. William seguia concentrado na mão que estava a ponto de ganhar. Sorria meio de lado e a fumaça do charuto saía da boca como se fossem as chaminés que tinha sobre o telhado de seu lar.

Ninguém queria fazer alusão à cena vivida, talvez porque fosse muito habitual que às sextas-feiras daquele mês vários maridos indignados irromperam no clube ao saber da presença do futuro duque no salão.

? Senhores..., ? disse enfim após depositar as cartas sobre a mesa e descobrir a última jogada ? já podem ir despedindo-se de seu dinheiro.

? É incrível! ? Exclamou Federith Cooper, um dos melhores amigos de William e futuro barão de Sheiton. ? Como pode ter tanta sorte?

? Nosso querido Manners nos depena os bolsos e seduz desoladas esposas, acaso estamos loucos por seguir mantendo sua amizade? ? Roger Bennett, quem algum dia chegaria a possuir o título de marquês de Riderland, falou com seu típico tom sarcástico ao mesmo tempo em que se reclinava no assento e tomava um sorvo de brandy.

? A sorte sempre está comigo, ela é minha única esposa ? respondeu William colocando as moedas em seu lado da mesa e sorrindo de satisfação. Pouco depois os outros jogadores partiram deixando os três cavalheiros na habitação.

? Entretanto, meu amigo, alguma vez mudará e serei eu quem mostrará um sorriso descarado em meu rosto ? continuou zombador Roger.

? Não pode zombar assim de um homem que amanhã se debaterá entre a vida ou a morte. Se for meu amigo desejará que a sorte permaneça no mínimo umas horas mais ao meu lado ? falou com dissimulação e sem deixar de mostrar no semblante uma atitude cômica.

William se levantou do assento e caminhou para o cabideiro para pegar o chapéu e a capa. Federith e Roger o imitaram. Em umas horas voltariam a serem testemunhas de outra inevitável loucura. Quase não tinham se recuperado da exaltação que lhes tinha provocado o último duelo e já sofriam a agonia do seguinte.

? Essa mulher... ? disse William pensativo enquanto caminhavam pela tranquila rua que lhe conduziria até Southwark.

? Quem, lady Blatte? ? Inquiriu Federith levantando a bengala até conseguir tocar a aba de seu chapéu.

? Juro-lhes que me disse que não estava casada. O perguntei mais de um milhão de vezes... ? respirou com profundidade e logo jogou o ar devagar. ? Cada vez que a visitei olhei-a nos olhos e lhe perguntei por seu marido. Ela respondia o mesmo: «Sua Excelência tem má memória, sou viúva» ? comentou com desdém. Logo levantou o olhar do chão e exclamou: ? Mulheres!

? Sim, Rutland, mulheres. ? Roger interveio com voz zombadora. ? Mas está falando de uma mulher que nasceu com um corpo digno de um duelo.

? Nisso tem razão. Lady Blatte é uma deusa ? comentou William com palavras cheias de luxúria. ? Possui uns seios lindos... suas coxas sempre estão quentes e quando me introduzia em seu interior...

? Basta! ? Interrompeu-lhe Federith. ? Acaso não recorda o que significa ser um cavalheiro?

? Não se zangue, Federith. Deve compreender que preciso recordar como era o corpo da mulher pela qual amanhã estarei a ponto de morrer... ? comentou entre risadas. Os olhos negros de William se elevaram para olhar o céu. Era uma noite com muitas estrelas, pouco habitual em Londres.

? Falando de morrer... escutou o trágico final da filha do barão de Montblanc? ? Perguntou-lhes Roger fazendo com que parassem bruscamente na metade da caminhada. Ao não responder nenhum dos acompanhantes, prosseguiu. ? Ao final a moça decidiu pôr fim à sua tormentosa vida. Esta manhã era o único tema de conversação que se escutava em todo Richmond.

? O barão não foi há alguns dias à sua casa para uma auditoria? ? Federith idolatrava seu amigo, posto que ambos tivessem crescido juntos, mas utilizava esse privilégio para recriminar sua Excelência por não ser capaz de adotar a posição que devia na sociedade. Aos seus trinta anos continuava sendo o mesmo cavalheiro libertino, insensato, despreocupado e farrista que foi com vinte.

? Sim ? respondeu com tom firme. Abaixou levemente a cabeça e continuou o passeio. A notícia o surpreendeu e, embora jamais o tivesse admitido, sentiu dor pela família. Tinham padecido bastante com o ocorrido à jovem e talvez, com a morte desta, descansariam enfim em paz.

? O barão foi visitar-te? ? Roger avançou atrás de William e arqueou as sobrancelhas em sinal de desconcerto. ? O que desejava de ti esse pobre homem?

? Pensou que se utilizasse minha posição conseguiria esclarecer o caso de sua filha... ? respondeu sem querer mostrar aquele sentimento de culpa que, por outro lado, não devia sentir.

? O que pretendia? ? Roger, animado pela curiosidade, seguiu com seu interrogatório.

? Como já sabem, a filha do barão tinha que ter sido apresentada em sociedade há dois anos, quando ela cumpriu os dezoito, mas a jovem sempre estava doente para a temporada social.

? Conforme tenho entendido, tais enfermidades eram inventadas. Comenta-se que a moça não desejava vir à Londres porque desfrutava de uma vida tranquila e aprazível no campo ? acrescentou Federith.

? Quando foi anunciado como merecia ? continuou William ? na última festa que nossa adorável senhora Baithlarin deu em sua residência em Marylebone, nenhum homem conseguiu fazer a jovem se apaixonar. Conforme escutei foi uma das mulheres mais belas da temporada. Mas, apesar da grande quantidade de propostas matrimoniais, ela as rechaçou com veemência. O barão e a baronesa decidiram retornar ao seu lar e fazer-se à idéia de ter sob seu teto uma filha solteirona.

? Mas? ? Roger escutava com entusiasmo toda a conversação e desejava saber como uma jovem que vivia placidamente e a quem não faltavam propostas de matrimônio terminou dando fim a uma vida próspera.

? Conforme tenho entendido, a moça foi desonrada na festa ? prosseguiu William. ? A família da jovem mantém que o conde de Rabbitwood abusou dela. Segundo o conde, com o qual tive a oportunidade de falar há algumas noites no clube durante uma intensa partida de cartas, a moça se esteve insinuando todo o serão até que conseguiu o que desejava. Rabbitwood lhe advertiu que tinha esposa e que só podia lhe outorgar a posição de uma amante. Como a esta não interessou a ideia, começou a divulgar que tinha sido violada.

? E claro está, depois do escândalo e de não conseguir seu propósito, desaparece para sempre... ? asseverou Roger.

? Bom, nenhum de nós entenderá jamais o que escondem as mulheres em suas cabeças. Embora se essa aspirante à harpia não obteve aquilo que ansiava e entendeu que era uma mancha indelével em sua família, o mais lógico era que terminasse fazendo o correto: suicidar-se ? argumentou William sem mostrar nenhum tipo de sensibilidade em suas palavras.

? Manners! Como pode ser tão frívolo? E se de verdade foi violada? Acaso não contemplou essa possibilidade? ? Federith se mostrou tão alterado que William chegou a perguntar-se se seu amigo tinha sido um dos que lhe tinham proposto matrimônio e foi rechaçado.

Durante uns instantes o futuro duque tentou que a mente lhe oferecesse algumas lembranças da moça, mas não achou grande coisa: uma jovem morrena de estatura pequena com umas bonitas curvas. Não foi capaz de descrever nem como estava vestida nem a cor de seus olhos. Sorriu para si ao rememorar que a maioria do tempo que passou naquela festa brincava de correr atrás das saias de uma suposta viúva desejosa de calor masculino e a satisfação que achou escondido atrás das cortinas de alguma janela do lar de lady Baithlarin.

? Confio na palavra de um cavalheiro como Rabbitwood ? disse cortante. ? As mulheres como puderam observar durante este tempo ao meu lado, causam problemas e uma terrível dor de cabeça. Olhe lady Juliette, jurou-me que não estava casada, que enterrou seu marido no ano passado e... acaso viu um fantasma me lançando a luva? Não sinta piedade por elas, meu amigo, são a outra parte do mundo. Foram criadas só e exclusivamente para nos dar prazer... ? sorriu de lado.

? Algum dia, William Manners, futuro duque de Rutland, apaixonar-se-á, e essa mulher te fará pagar por todo o mal que causou às suas amantes e aos seus maridos ? retrucou Federith com tom desafiante.

? Apaixonar-me? Jamais! ? Sentenciou após jogar o braço sobre o ombro de seu amigo e apertá-lo com força. ? O que fariam todas essas damas se o futuro duque se casasse? O que seria desses pais que, com tanta amabilidade, oferecem as suas bonitas e carinhosas filhas para que as converta em minha duquesa? Não, meu amigo, não posso entristecer toda essa gente. Devo a eles... ? Federith soltou um impropério enquanto que Roger e William não paravam de gargalhar.

Seis horas mais tarde, depois de ter descansado em sua residência de Southwark, William, perfeitamente embelezado para a ocasião, apareceu em Hyde Park. Depois de jogar uma rápida olhada aos arredores para certificar-se de que o duelo não era uma patranha para ser detido, distinguiu entre a pequena multidão as figuras de seus dois bons amigos. Com passo firme avançou para eles.

? Parecem aborrecidos ? disse a modo de saudação.

? Seus duelos já não causam interesse. Todo mundo sabe como terminarão ? respondeu Roger tomando a capa que o recém-chegado lhe oferecia.

? E como terminarão? ? Arqueou as sobrancelhas e o olhou aos olhos.

? Contará os passos, girará e, justo quando seu desafiador disparar, todos nós veremos que ele foi vítima dos nervos e que ele não alcançou o seu propósito. Então levantará a pistola e disparará ao ar. Seus amigos sabem que no fundo é uma boa pessoa e que se compadece de seu adversário. Imagino que o sofrimento que vive o marido depois do descobrimento da infidelidade é mais que suficiente. Equivoco-me? ? Roger arqueou as sobrancelhas e sorriu, assim como fez William.

? Espero que seja assim... ? interveio Federith. Ambos os cavalheiros giraram à volta dele e o observaram com interesse ? até agora lhe desafiaram homens aos que de verdade não lhes importava a afronta e se conformavam recuperando sua honra, entretanto, o senhor Blatte é um bom atirador e parecia necessitar do seu sangue para restaurar sua honra.

? Senhores..., ? interrompeu-os um dos padrinhos do competidor ? o senhor Blatte já escolheu a arma. Serão as pistolas, dez passos e... a morte.

? A morte! ? Exclamou Roger atônito. ? Não podemos permiti-lo!

? Não importa, ? William interrompeu seu amigo alarmado pela gravidade do assunto ? tem direito a escolher a forma em que sua honra será restaurada.

? Bem, pois quando sua Excelência estiver preparado daremos início.

Os três ficaram calados durante uns instantes. Pareciam refletir sobre as possibilidades existentes de sair ileso depois da informação obtida. Quando reclamaram a presença do cavalheiro, este olhou seus amigos, sorriu-lhes e caminhou para o lugar onde o senhor Blatte, embelezado com uma camisa branca e umas calças muita estreita esperava-lhe com os olhos injetados em sangue.

? Senhor... ? William o saudou com cortesia, mas este não se dignou nem a olhá-lo.

? Quando estiverem preparados... ? a testemunha olhou a ambos os homens e estes assentiram. ? Contem dez passos e girem-se. Que Deus os proteja.

William sentiu as costas de seu competidor na cintura. Riu ao notá-lo tão pequeno e com tanta coragem. Enquanto contava os passos recordava Juliette sob seu corpo. Viu de novo os grandes seios fazendo círculos maravilhosos quando cavalgava sobre sua ereção. Tinha lhe encantado ver o cabelo revolto depois do ato sexual e como ela albergava o enorme e duro falo na boca. Em vez de concentrar-se no que estava acontecendo, pensou que, quando o senhor Blatte voltasse a ausentar-se, faria uma visita à delatora para lhe recriminar o engano e fazê-la pagar por seus indecentes atos.

De repente escutou que alguém dizia dez. Virou-se com desconcerto e olhou seus amigos, que abriram os olhos de par em par enquanto cravavam seus olhos no senhor Blatte, ele fez o mesmo. Tinha curiosidade por saber como atuaria aquele pequeno homem e a cara que faria após falhar o tiro. Sorriu ao escutar o eco do disparo. Ato seguido, uma escuridão o rodeou e notou como seu corpo desabava para o chão fazendo com que sua cabeça batesse um par de vezes sobre algo bastante duro.


I


Londres, seis meses depois.

O ajudante de câmara o estava vestindo enquanto ele permanecia rígido e com o cenho franzido. Não era de seu agrado ter que depender de alguém para realizar uma tarefa tão singela. Antes do duelo, o criado se ocupava de lhe preparar a roupa, colocá-la sobre a cama e esperar que sua decisão coincidisse com a do duque. Entretanto as sequelas do duelo o tinham convertido em um ser dependente. Obstinou-se à crença de que transcorridos alguns meses seu corpo seria o mesmo de antes, mas não foi assim. A gravidade de suas feridas tinha sido tal que tinha que dar graças a Deus por continuar respirando.

Sem alisar sua testa refletiu sobre o destino e todas as jogadas que este lhe podia reservar enquanto o servente lhe punha a camisa e lhe abotoava, definitivamente, aquele calvário era o pior que tinha sofrido em toda sua vida.

Seus escarcéus amorosos tinham sido vingados por alguém que não levantava do chão mais de um metro e meio. Por que não girou para a direita para evitar o terrível impacto? Se em vez de estar pensando no prazer que lhe tinha dado o corpo de Juliette e a condenação que receberia por desvelar o segredo, teria prestado mais atenção à direção do projétil e hoje seguiria sendo o mesmo William de sempre. Entretanto, já não o era. Não ficava rastro da pessoa que foi. Agora era um deficiente, um homem ao qual lhe resultava impossível mover a mão esquerda e cuja incapacidade tinha azedado seu afável caráter para converter-se em um ser antissocial e desprezível.

? Excelência... ? o criado cravou os olhos no chão e lhe fez uma reverência antes de deixá-lo sozinho.

O duque caminhou para a janela apoiando-se na bengala. Amanhecia outro dia chuvoso e, como nas jornadas anteriores, não poderia sair da mansão. Isso lhe provocava mais ira do que a necessária. Não era igual passar as penúrias encerrado entre quatro paredes do que tomando o ar do exterior.

Apoiou a testa na moldura de madeira e suspirou. Merecia-o. O estado no qual se encontrava era o resultado da tormentosa vida que tinha levado e agora devia aguentá-lo com orgulho. Com grande esforço conseguiu chegar até a porta. O delicioso aroma do café da manhã fez com que seu estômago se manifestasse e, sem mediar palavra, desceu as escadas, uma proeza que três meses atrás lhe tinha resultado difícil executar por si mesmo. Chegou até o salão e esperou que um dos criados lhe apartasse a cadeira, sentou-se e se acomodou para começar a tomar o suculento café da manhã que havia sobre a mesa.

? Sua Excelência... ? o mordomo se aproximou e, depois de uma breve reverencia, continuou: ? o senhor Federith Cooper acaba de chegar e deseja falar com você.

Federith, um de seus melhores amigos a quem não tinha quebrado, ainda, sua amizade com ele, tinha lhe visitado quase diariamente durante sua convalescença. Foi o mesmo homem que lhe advertiu em reiteradas ocasiões que o rumo de vida que tinha decidido não era o apropriado para um duque.

William tinha rido dele, zombado de seus incessantes discursos sobre o dever e a lealdade para com o título que lhe seria concedido por nascimento. Mas, apesar das brincadeiras, dos sátiros comentários, Federith continuava ao seu lado como se o passado não tivesse existido.

? Deixe-o entrar... ? disse calmamente.

Quando sua voz deixou de mostrar a personalidade de um homem com caráter? Desde quando seu tom se apagou tanto? Possivelmente desde que descobriu numa manhã em frente ao espelho que William Manners se convertera em um monstro que poderia assustar aos meninos inquietos. Porque, embora todo mundo de seu entorno lhe oferecesse palavras de consolo, ele se via um ser disforme e sem utilidade. Como poderia suportar o peso de um título tão respeitável quando nem ele mesmo conseguia respeitar-se?

Levou a xícara de café aos lábios com a mão sã e tomou, depois de um leve sopro ao líquido, um bom sorvo. Escutou enquanto isso como o mordomo informava ao seu amigo que era bem recebido e, depois de finalizar a conversação, os passos deste para a sala de café da manhã. Antes que Federith abrisse a porta e aparecesse com seu peculiar sorriso, William já tinha seu olhar cravado em sua direção.

? Bom dia, querido Rutland, que tal se levantou nesta horrenda manhã? ? Caminhou para ele e, ao compreender que não podia saudá-lo com um apertão de mãos posto que estivesse utilizando a mão útil, agarrou a cadeira, apartou-a e se sentou ao seu lado.

? De péssimo humor... ? murmurou com aborrecimento.

? Está acostumado a ocorrer quando o inverno está a ponto de terminar. Por muito que desejemos evitá-lo, azeda-nos o caráter ? continuou mostrando um leve, mas gentil sorriso.

? A que se deve sua visita, Federith? ? Grunhiu.

? Não se alegra de me ver? ? Respondeu à sua vez.

? Já sabe a que me refiro. O que aconteceu para que esteja em meu lar antes do meio-dia? ? Voltou a beber do café sem apartar o olhar de seu amigo.

? Sua astúcia não diminuiu nem um ápice, não é? ? Soltou uma pequena gargalhada. Depois de observar que William pousava a xícara sobre o pires e pegava o garfo para dirigir a comida que lhe tinham preparado para a boca, prosseguiu: ? Queria te dar uma notícia antes que lhe cheguem os rumores: decidi pedir a mão de lady Caroline.

? Matrimônio? ? Arqueou a sobrancelha esquerda abandonando com brutalidade o garfo sobre a mesa e se reclinando sobre as costas do assento. ? Diz-o a sério? De verdade que vem me informar, antes de ter o estômago cheio, que decidiu se casar? ? Abriu tanto seus olhos que Federith por fim conseguiu averiguar a cor destes.

? Chama-se amor, William, e embora te pareça mentira, Caroline me ama tanto quanto eu a ela ? disse sem mostrar remorso algum pelo comentário mordaz de seu amigo. Não esperava que lhe desse os parabéns. Não William. Ele o evitaria contribuindo com argumentos nefastos sobre a vida que teria uma vez que sua prometida obtivesse o anel. ? Decidi que ? prosseguiu Federith aferrando suas mãos como se tivesse a intenção de começar a rezar ? retornarei a Hemilton depois das núpcias. Esse será o lugar adequado para formar uma família respeitável.

? Então... ? William entrecerrou os escuros olhos e os cravou em seu amigo. Notava como a respiração deste era agitada, nervosa. Esses sinais de preocupação e incerteza apareciam no jovem Federith sem ele desejá-lo. O duque pigarreou. Tinha refletido, ao mesmo tempo em que seu amigo expunha sobre o infinito amor que o casal se professava, a verdadeira razão pela qual Federith tomava uma decisão tão importante. ? Então... ? repetiu para captar a atenção de seu camarada. ? Ela está grávida e precisam se afastar de Londres para que não se descubra a verdadeira razão desse precipitado enlace matrimonial, não é?

? Santo céu, Manners! ? Exclamou Federith empurrando com as panturrilhas o assento e elevando-se com rapidez. Ficou rígido, sem saber que passo dar. Esperava que William fosse sensato e retificasse, mas conhecendo-o como o fazia, sabia que isso seria impossível.

? Calma, sabe que de minha boca não sairá nada que possa te prejudicar ? continuou com o cenho franzido enquanto observava a crescente tensão de Federith.

? Espero que não tenha esquecido o que significa ser um cavalheiro. ? Seus punhos se apertaram. As palavras brotaram dele com um tom repleto de ameaças.

Mas... que perigo poderia ter uma pessoa que vivia detento de suas más decisões? Ante tal reflexão Federith se zangou consigo mesmo. Ele não era assim. Jamais desejava o mal a ninguém. Sua filosofia de vida era muito distinta. Embora a raiva que William tinha despertado nele superasse qualquer crença sensata.

? Há valores que nunca se perdem ? respondeu William ao pequeno ataque.

? Não estou muito seguro disso. Apartartou-se do mundo. Apenas se relaciona com seus amigos, escondeu-se entre estas paredes e há mais de três meses não recebe visitas. Crê que esse tipo de vida não faz rachaduras na mente do cavalheiro mais racional?

O duque o observava com atenção. Federith seguia com os punhos fechados, mas em nenhum momento foi capaz de olhá-lo aos olhos para lhe cuspir o pouco veneno que devia sentir após descobrir seu pequeno segredo.

? É o melhor lugar para habitar um monstro, não acredita?

? Monstro? Assim é como se considera o duque de Rutland? Desaponta-me William, acreditei que tinha mais coragem...

Federith o olhou com atenção. Na verdade, William tinha um pouco de razão. Ali onde no passado tinha existido um cavalheiro bonito, agora se encontrava um homem com umas horrendas marcas no rosto. Além disso, já não era só a fealdade, mas sim que depois de ser operado de urgência pelo médico que o zangado marido de Juliette conduziu até o lugar do duelo, o duque ficou incapacitado de uma mão. Essa que, nesses momentos, tinha colocado sobre a mesa aparentando ter uma função. Suspirou com suavidade e meditou sobre a passada temporada social. Seu amigo partiu antes do acostumado deixando lady Baithlarin desolada pela ausência repentina de um homem tão importante. Supôs que tal marcha se deveu à imensa pressão que William estava sofrendo depois do falecimento de seu pai e a posse do título. Entretanto, a fuga à sua residência em Southwark tinha outra razão: desaparecer. Odiaria ver a cara de espanto que mostrariam as jovens casadouras quando seus progenitores as apresentassem ao novo duque. Ali onde antes encontrou sorrisos pecaminosos e olhos frágeis pela possibilidade de jazer sob a esbelta e robusta figura, agora encontrava repugnância, asco. Que dramático final para um homem que acreditou ser possuidor de todos os encantos divinos!

? Perdi-a depois do disparo ? respondeu em tom vazio, sem entusiasmo. Entretanto, em seu interior crescia de novo aquela ira a qual começava a acostumar-se. Era hora de cortar a conversação e deixar que seu amigo tomasse o rumo marcado. ? Voltando para o motivo pelo qual me visita...

? Como lhe disse, tomei uma decisão firme a respeito. A futura baronesa de Sheiton será muito feliz em Hemilton.

? Não o duvido. Com certeza será muito feliz com esse filho que te dará e imagino que será o pai mais maravilhoso do mundo.

? Sim ? respondeu ignorando a ironia de sua afirmação. ? É óbvio que serei feliz ao lado da minha esposa e da família que criarei. ? A visita estava chegando ao seu fim. Federith tinha vontade de partir e afastar-se de seu camarada. Estirou-se a jaqueta do traje, estendeu a mão para seu amigo para que este a tomasse e disse: ? Veremos-nos em outro momento. Possivelmente em um no qual tenha recuperado o sorriso.

? Antes de ir..., ? aferrou com força à mão de Federith e olhou-o nos olhos ? eu gostaria de te fazer uma última pergunta, se me permitir isso o futuro barão de Sheiton, é claro.

? É óbvio.

? Estou me perguntando... que classe de inconsciente pode chegar a ser para se casar com uma mulher que leva em seu seio o filho de outro? ? Soltou sem tomar ar.

O assombrado homem não respondeu a impertinente pergunta. Partiu do salão erguido e com passo firme.

William ficou calado refletindo durante um bom momento. A decisão de Federith a nível social era a mais correta se ele amava de verdade a mulher. Entretanto, quando falou dela e de seu futuro projeto juntos, não mostrou o entusiasmo próprio de um homem apaixonado, um homem que, tal como tinha proclamado, amaria para sempre a sua esposa.

Muito a seu pesar sabia que cedo ou tarde seu amigo seria infeliz e isso, embora não quisesse reconhecê-lo, doía-lhe. Sempre albergou a esperança que, dos três, Federith obtivesse a vida que merecia.

? Deseja algo mais, Excelência? ? Um dos criados lhe fez despertar de sua letargia mental ao mesmo tempo em que entrava no salão e esperava o próximo mandato.

? Preparem a bagagem. Amanhã ao amanhecer partiremos para Haddon Hall.


II


Tinha viajado quatro dias intermináveis com suas noites incluídas, pernoitando em miseráveis e fedorentas estalagens, mas por fim, aquela horrenda viagem se acabara.

Chegara ao seu lar.

O imenso arvoredo lhe dava as boas vindas com suaves movimentos de folhas. William colocou a cabeça pela janela da carruagem e observou a sobriedade dos grandes e altos muros da mansão. Era, sem dúvida, o melhor lugar onde poderia esconder-se pelo resto de sua vida. Uma fortaleza em que poderia passar os dias inteiros caminhando pelos intermináveis corredores, salões e estadias. Moveu o lábio superior para a esquerda tentando desenhar um sorriso, mas fazia tanto tempo que não movia os músculos para essa função que foi impossível fazê-la como era devido. Apesar desse fracassado esforço por sorrir, William se sentia contente em retornar à casa de sua infância.

Rememoraria as aventuras que seu irmão e ele viveram quando meninos. Se a mente não lhe falhava, ambos tinham enfurecido até ao servente mais paciente do mundo. Logo, com o tempo, aqueles que correram atrás deles para que não terminassem se machucando, converteram-se em pessoas dignas de sua confiança.

Olhou de novo ao seu redor. Tinham passado dez anos desde que decidiu abandonar Haddon Hall para dedicar-se ao desfrute da vida londrina, e nada tinha mudado em Derbyshire, o tempo parecia deter-se.

O cocheiro diminuiu o passo quando chegaram ao jardim principal. Com a cabeça apoiada na almofadinha da carruagem podia ver a fonte. Ela foi à causadora de sua primeira aposta e de sua primeira derrota. Não tinha que ter desafiado Lausson a saltar, as probabilidades de que perdesse eram escassas, entretanto precisava provar-se a si mesmo. Necessitava estimulação, emoção e um sem-fim de sentimentos que depois encontrou entre as pernas de suas amantes.

William fechou os olhos. A palavra amante se converteu em sinônimo de monstruosidade, posto que pela língua de uma delas ele tinha o rosto desfigurado e uma mão inerte. De repente se perguntou como atuaria o serviço ante sua chegada. Para eles tinha que ser bastante impactante recordar a marcha de um bonito homem e receber ao mesmo convertido em um monstro. Esperava que Brandon, seu fiel mordomo, tivesse lhes posto à corrente do acontecido e indicado a melhor forma de atuar quando ele estivesse presente: nada de olhá-lo ao rosto, tão somente servir e manter os olhos cravados no chão.

Repentinamente uma terrível dor se apropriou de sua cabeça. Notava nas têmporas o pulso de seu coração. Estava nervoso? O duque de Rutland começava a sentir ansiedade por seu futuro? Não se tinha respondido quando a porta da carruagem se abriu e alguém estendeu uma mão para lhe facilitar a descida. Até o momento, não o tinha necessitado: o normal era que se aferrasse com a mão sã à porta e descesse devagar. Mas depois de quatro dias de viagem, de mal dormir, de fadiga e inclusive de uma péssima alimentação, essa ajuda era necessária. Depois da custosa façanha, liberou a mão e continuou sozinho.

Quando elevou o olhar para a entrada principal advertiu que todos os criados tinham saído para saudá-lo e cravavam seus olhares no chão. Em efeito, Brandon tinha falado com eles.

? Milord... ? o mordomo se colocou com sutileza atrás de suas costas e começou a lhe informar. ? Sua habitação está preparada para que descanse. Imagino que depois da viagem precisará refrescar-se, assim ordenei ao seu ajudante de câmara que o espere. As criadas lhe prepararam um banho de água quente.

? Obrigado, Brandon ? disse com tom suave.

? Não tem por que me agradecer, Excelência. É uma honra trabalhar para você. ? Brandon, sem afastar-se do senhor nem um metro, caminhava com firmeza esperando que este requisitasse sua força para subir as escadas. Mas não a necessitou. O duque de Rutland caminhava com orgulho para o interior do lar, saudando brandamente com a cabeça seus novos empregados. ? Tenho que lhe comentar que na biblioteca tem sobre sua mesa vários convites. Embora tenha anunciado que deseja descansar uma temporada antes de encher Haddon Hall de convidados, todo mundo deseja conhecê-lo e falar com você.

O duque fez um leve som gutural e o criado entendeu que aquele esforço era mais do que podia suportar. Tentou alargar a mão para aferrar-se ao braço inerte de seu senhor e acalmar o esforço, mas este o negou. Tinha suficiente orgulho para não se mostrar fraco ante aqueles que estavam sob suas ordens.

Tal como lhe informou Brandon, quando acessou seu quarto o ajudante esperava pacientemente. Depois de fechar a porta, o criado lhe fez uma reverência e lhe pediu permissão para despi-lo. William a aceitou com rapidez. Desejava inundar-se na banheira o antes possível. Precisava introduzir seu cansado corpo em água quente e que esta acalmasse as doenças que lhe açoitavam sem piedade.

? Necessita que lhe ajude em alguma outra coisa, sua Excelência? ? Inquiriu o criado ao finalizar sua tarefa com habilidade.

? Diga ao Brandon que suba, preciso falar com ele ? respondeu o duque.

O criado se dirigiu para a porta com rapidez e antes que William pudesse suspirar, Brandon apareceu no meio do quarto.

? Não está tudo como deseja, Excelência?

? Tudo está perfeito, obrigado. Chamei-te porque quero que me faça um favor. Necessito que procure o antes possível uma cortesã capaz de manter encontros esporádicos comigo ? ordenou sem olhá-lo. Movia as pernas devagar, deixando que se acostumassem ao calor do banho, à tranquilidade de um ambiente sereno e aprazível.

? Com o mesmo salário, sua Excelência?

? Com o mesmo salário... ? repetiu.

? Alguma petição especial? ? Quis saber.

Em Londres o duque tinha procurado durante muito tempo uma amante que se parecesse fisicamente à lady Juliette. Não encontrou a réplica perfeita, mas sim a uma jovem que tinha feições parecidas. Esta o satisfez até que dias atrás teve que partir. É óbvio, deu-lhe a opção de escolher: podia viajar para Haddon Hall para continuar seu ofício ou, pelo contrário, podia declinar seu convite. A jovem, alegando que sua mãe se encontrava bastante doente, decidiu não continuar. Algo que entristeceu ao senhor por que... como conseguir outra agulha em um palheiro?

? Já sabe quais são os requisitos ? disse com grosseria.

? É óbvio. Deseja que diga ao seu ajudante de câmara que pode acessar ao dormitório?

? Não, diga-lhe que esteja atrás da porta e que o chamarei quando o necessitar.

? Como desejar... ? disse antes de retirar-se.

William olhou ao seu redor. Encontrava-se no quarto de seu pai, o santuário do anterior duque de Rutland, o único lugar proibido de todo Haddon Hall quando era menino. Ambos os irmãos se enchiam de entusiasmo quando o pai aparecia pelo lar, e só pensavam em despertá-lo com risadas e conversações sobre as mil anedotas que tinham acontecido em sua ausência. Entretanto, com o tempo descobriram que o duque não retornava para passar tempo com seus filhos e sim para esquentar a cama com sua legião de amantes.

William franziu o cenho. Tinha odiado com todo seu coração a atitude de seu pai e não deixava de ser irônico que se convertera em uma réplica perfeita. O que primeiro tinha ordenado ao Brandon ao chegar? Uma amante. Uma mulher que o saciasse sexualmente, sem escrúpulos e desejosa de encher seus bolsos de moedas.


Só gozou de dois dias de solidão para descansar antes que os primeiros bisbilhoteiros aparecessem. O reverendo Brace e sua esposa eram um jovem casal que tinham retornado a Derbyshire depois que faleceu o pai deste, anterior pastor da comarca. Quando acessaram ao salão principal, lugar onde receberia a todos seus convidados, William se desculpou por não lhes dar as boas vindas de maneira correta.

? Não se preocupe, Excelência, informaram-nos de suas incapacidades ? explicou o reverendo com um sorriso. Ao qual o duque desejou fazer desaparecer com um murro, se pudesse.

? Veio ao melhor lugar para descansar. ? A senhora Brace, com uma suave e harmoniosa voz, misturou-se na conversação para salvar as inoportunas palavras de seu marido.

? Isso espero ? comentou o duque esboçando um leve sorriso. ? Segundo minha lembrança, Derbyshire é um lugar tranquilo e aprazível.

? As pessoas que habitam aqui são gente de paz, nós não gostamos dos escândalos nem tentamos destacar mais do que nossas possibilidades nos oferecem.

? Entretanto, às vezes sofremos certos constrangimentos. ? Outra vez a encantadora mulher tentava salvar a desafortunada reflexão de seu cônjuge. ? Virá à Igreja, sua Excelência? É linda e aos domingos está transbordante de crentes.

? Se puder, estarei encantado de admirá-la ? respondeu William com uma amabilidade estranha. Quanto tempo fazia que uma mulher não lhe agradava? Muito, devia ter transcorrido no mínimo uma eternidade, porque se não fosse assim, por que via atraente a volumosa esposa do reverendo?

? Visitou-lhe já algum de nossos vizinhos? ? Perguntou o impertinente homem antes de dar um sorvo ao chá.

? São vocês os primeiros. Meu mordomo me informou sobre a montanha de convites que recebi, mas temo que até que não consiga me pôr em dia com a contabilidade de Haddon Hall, não poderei aceitar a nenhum. ? Parecia uma desculpa? Esperava que assim fosse, porque não tinha vontade de explicar nada ao pároco, nem que não era responsável pela quantidade de convites que lhe tinham enviado nem se os aceitaria.

? Deve descansar, Brennet. Sua Excelência fez uma longa viagem e como deseja assentar-se neste lindo lugar pelo resto de sua vida, tem muito tempo para assistir aos eventos onde seja requerido – sorriu-lhe.

De verdade que um simples gesto de piedade podia interpretar como uma paquera feminina? De verdade que não podia apartar o olhar dos seios da esposa de um pastor? O duque tentou manter a calma e deixar de pensar no prazer. Essa noite, assim que pudesse falar com Brandon, pediria-lhe que esquecesse os requisitos solicitados para a cortesã e empregasse a primeira que gostasse do pagamento.

? Já é tarde, Lídia ? disse o reverendo olhando com ternura para sua esposa. ? Milord... ? levantou-se e moveu a cabeça devagar para diante. ? Voltaremos em outro momento, se lhe agradar.

? É óbvio, sempre serão bem-vindos.

Lídia, como a tinha chamado o senhor Brace, aproximou-se do duque, fez-lhe uma reverência e, aferrando-se ao braço de seu marido, ambos saíram do salão. Minutos depois apareceu Brandon. Esse homem parecia lhe ler a mente.

? Conseguiu a cortesã? ? Perguntou de mau humor e impedindo que o servente começasse alguma conversação que o distraísse de seu verdadeiro propósito.

? É óbvio, milord. Começará o trabalho quando você quiser ? explicou o mordomo com certa preocupação.

Era certo que a jovem tinha aceitado com rapidez seu novo encargo, mas não estava muito seguro de que o fizesse corretamente. Não parecia ser uma mulher com experiência, por muito que ela tivesse insistido no contrário.

? Pois não a façamos esperar. Informe-lhe que esta noite provarei seus serviços. ? Levantou-se com vigor e caminhou ansioso até a sala de jantar. Era a primeira vez em muito tempo que desejava com prontidão a chegada da noite.

Depois do jantar, que durou a metade do acostumado, decidiu refrescar-se. Queria estar limpo para sua nova amante. Que estivesse lesado ou impedido para fazer certas coisas no ato sexual não queria dizer que se comportasse como um mendigo, nunca o tinha sido e nunca o seria. Odiava escutar as conversações de certos homens que se denominavam cavalheiros e alardeavam suas experiências com as prostitutas que encontravam nas ruas. Ele jamais precisou ir a uns serviços tão desagradáveis. Só de pensar lhe produzia asco. No meio da rua? Sem assear-se? Como animais? Não, ele não pertencia a essa classe de homens.

Não lhe cabia dúvida que Brandon a teria conduzido até alguma das habitações da residência, teria-lhe devotado uma boa banheira de água quente e a teria preparado para o momento. Enquanto seu ajudante lhe colocava com habilidade a camisola, pensou em como seria a mulher. Alta? Teria pernas longas? Adorava esse tipo de mulheres, possivelmente porque sua estatura era bastante considerável para albergar em seu corpo uma concubina de pequeno tamanho. William franziu o cenho.

Nesse preciso instante, em vez de pensar mais na mulher que entraria em seu dormitório para lhe agradar, recordou de novo o marido de Juliette. Subestimou-o por ser baixinho, riu dele e inclusive pensou que seria um bom palhaço para um desses circos que visitavam a cidade. Embora resultasse muito ao seu pesar, que esse pequeno homem provocou o maior desastre de sua vida. Sim, esse tipo de conclusões lhe reforçava com esforço a crença de ter ao seu lado uma mulher alta, muito alta.

Andou pela habitação durante uns minutos. Estava ansioso pela iminente chegada. Olhou com rapidez ao seu redor. Havia muita luz para seu gosto. Possivelmente devia apagar alguma vela e deixar um ambiente mais íntimo. A jovem de Londres soube antes o que encontraria ao acessar o quarto, o periódico The Daily Gazetteer se encarregou de difundir uma foto de seu antes e seu depois. A fatalidade de uma vida promíscua tinha intitulado o artigo. Entretanto, em Derbyshire, as notícias se conheciam pela difusão dos habitantes. Deu por certo que, salvo os que estivessem fora de seus lares, já tinham algum conhecimento do novo rosto do duque de Rutland. Não lhe cabia dúvida de que o reverendo teria se encarregado disso.

Olhou de novo as velas acesas e decidiu apagar um par delas. Pareceu-lhe que a melhor forma para começar uma relação especial era sob a intimidade da penumbra. Logo se aproximou da cama e se sentou sobre ela, esperando-a. Tremia-lhe a mão e o coração palpitava sem poder controlá-lo. Zangado por não controlar sua ansiedade, repreendeu-se em voz alta.

? Basta! Controla sua emoção! Nem que fosse conhecer sua futura esposa!

Terminou esse pequeno e escandaloso monólogo quando escutou o suave som da porta. Se antes o coração estava agitado, agora tinha parado em seco.

? Pode entrar ? disse com tom aparentemente sereno.

Uma pequena figura apareceu na penumbra. William franziu o cenho ao ver que Brandon não tinha conseguido uma concubina de grande altura. A mulher tinha o cabelo solto cobrindo grande parte de seu rosto e de seus ombros. Nesse momento se repreendeu por ter criado tanta escuridão posto que mal distinguisse as feições da moça. Embora, se fosse boa em seu trabalho, o que importava como era seu rosto?

? Aproxime-se ? sussurrou o duque estendendo a mão direita para ela. A moça caminhou para a cama e o olhou. Nesse momento suas sobrancelhas subiram uns milímetros e William entendeu que se surpreendeu. ? Não acredito que deva te explicar para o que veio, não é? ? Ela assentiu. ? Não albergue em seu coração a possibilidade de que entre nós exista uma relação afetuosa, só quero prazer. ? Seu tom se endureceu. Por que havia se zangado com tanta rapidez?

? Só prazer... sua Excelência ? murmurou a mulher sem querer voltar a cravar seus olhos no rosto dele. Como se tivesse mais pressa do que se requeria naquele tipo de encontros, a mulher se desfez das vestimentas e se colocou frente ao duque nua. Deu uns pequenos passos até que a mão deste pôde alcançar um seio.

? Faça com que eu te deseje. Finja algum interesse e faça por merecer o salário que obterá quando partir ? continuou com tom duro, firme e inclusive insolente. Mas... o que pretendia? Que ela se lançasse sobre seus braços e beijasse aquelas horrendas cicatrizes? Ficou tão impactada ao vê-lo que não sabia nem como atuar.

A mulher se ajoelhou em frente ao homem. Levantou com suavidade a camisola e procurou com a boca o falo. William jogou a cabeça para trás e suspirou. Estava tão necessitado que essa noite se contentaria com o pouco que a concubina estivesse disposta a dar. Se ela tinha decidido utilizar sua boca para saciá-lo, relaxaria e desfrutaria do momento. Fechou os olhos e fez com que as imagens de Juliette retornassem à sua mente. Voltava a tê-la ao seu lado lhe sussurrando palavras obscenas. Mostrando sem pudor o desejo que sentia o bonito corpo ao tocá-la e como a mulher respondia com um sem-fim de deliciosos ofegos. Rememorou o baile de seus seios ao sentar-se sobre ele, seus gemidos, seus beijos e o abundante fluxo que emanava do sexo para conseguir banhar o seu. Úmida e aberta para suas carícias. Quente e ardente sob seus toques. William franziu o cenho. Estava a ponto de gozar na boca da cortesã. Não quis abrir os olhos e observar o rosto da jovem. Preferia imaginar Juliette. Preferia escutar os ofegos daquela mulher que os seus próprios. O sexo vibrou, endureceu-se com força e notou como a semente brotava de seu interior banhando a língua da moça a quem não tinha perguntado nem seu nome. Não lhe importava, para que saber o nome de uma mulher que, depois de olhar seu rosto, tinha-lhe dado tanto medo que não foi capaz de levar a cabo um trabalho tão singelo? Quando o sexo retornou ao seu estado normal, baixou-se a camisola, girou-se para dar as costas à petrificada moça, agarrou-se com força ao dossel em espiral de madeira e lhe disse com tom sério e furioso:

? Vá! Meu mordomo te pagará o convencionado.

A moça agarrou com rapidez o vestido que tinha deixado no chão e se vestiu. Fez uma reverência ao duque e partiu velozmente. Quando a porta se fechou e William soube que por fim estava sozinho, começou a chorar como tantas vezes tinha feito depois do duelo. Sentia-se cada vez mais no fundo do poço e com menos força para seguir vivendo. Ninguém desejaria ter ao seu lado um monstro inútil. Nenhuma mulher deveria ser condenada a viver sob seu mesmo teto. Tremendo, recostou-se na cama e continuou chorando até que adormeceu.


III


Nada. Já não tinha nada que levar à boca. Já há um tempo que as reservas que tinha guardado para poder sobreviver naquele paradisíaco lugar tinham desaparecido. Enrugou a testa e levou as mãos ao quadril. Como era possível que aqueles malditos lobos tivessem comido, em uma noite, uma peça tão grande? Enfurecida pela fome, pensou em apanhar aqueles que a tinham deixado sem alimento e comer-lhes.

«Malditos animais!», gritou para si entre lágrimas.

Ela chutou uma pedra, e depois de sentir uma terrível dor nos dedos, sentou-se sobre ela. O que devia fazer agora? Tinha investido as últimas moedas comprando galinhas, coelhos e um casal de porcos. Acreditou que eles a ajudariam a subsistir todo o tempo que fosse necessário até decidisse-se retornar e fazer frente à situação que não pôde dirigir no passado. Entretanto, agora não ficava nada, nem sequer um pedaço de pão para levar à boca. Depois de meditar durante muito tempo na melhor maneira de sobreviver naquelas circunstâncias, saltou sobre o chão e sorriu. Não lhe tinha ocorrido com antecedência porque o desprezava com toda sua alma, mas dada a situação teria que deixar estacionado o ódio que sentia por esse homem e pensar no melhor para ela.

Todo mundo falava com entusiasmo da chegada do atual duque de Rutland. Esperavam que aquela aparição fosse bastante proveitosa para o povo porque, se o duque continuasse com sua famosa vida social, celebraria grandes e numerosas festas e a localidade se encheria de nobres curiosos. O verdadeiro motivo para esse entusiasmo era um muito singelo de compreender: trabalho. Lavadeiras, costureiras, cozinheiras e criados em geral seriam procurados para oferecer aos convidados de Haddon Hall o máximo conforto. Era uma oportunidade que não podia deixar escapar.

Com vigor colocou as mechas que se soltaram do coque, ajeitou várias vezes o vestido e tomou o caminho que a conduzia até a mansão. Tinha tanta pressa por encher seu estômago que não esperaria que se convocassem as esperadas entrevistas. Beatrice tocaria a porta e pediria qualquer trabalho que, é óbvio, aceitaria com grande entusiasmo.

O que começou sendo um suave passeio, mais tarde se converteu em uma caminhada rápida, para depois pôr-se a correr como se o próprio diabo a perseguisse. Esquivou-se de todos os obstáculos que encontrou em seu passo sem lhe importar que em mais de uma ocasião seu vestido se manchasse de respingos de barro. Tinha um objetivo a cumprir, um que odiava porque se tratava de estar sob o amparo de um homem egoísta, ruim e desprezível, mas era o único que lhe ajudaria a continuar viva.

Quando chegou ao jardim principal da mansão, Beatrice ficou sem fôlego. Não só pelo esforço da corrida, mas sim pela imensidão do lugar que se mostrava ante ela. Tinha escutado muito sobre a residência do duque, mas jamais chegou a imaginar algo um pouco parecido. Possivelmente porque seus pais chamavam grandeza a uma décima parte do que observavam seus olhos. Permaneceu imóvel durante algum tempo, contemplando sem pestanejar o enorme edifício. Uma vez que estudou em detalhe o lugar, pareceu-lhe muito frio, muito sólido. Seus muros eram tão grossos e sóbrios que não entendia como alguém podia considerá-lo um lar, mais se assemelhava a uma prisão.

Aquele era o famoso paraíso no qual se criaram os filhos do duque? Disso se orgulhavam? Pois ela não trocava seu humilde lar pelo que estava vendo. Era tão impessoal e gélido como a atitude do homem a quem ia suplicar um posto de trabalho.

Depois de conseguir um pouco de calma e separar de sua mente todo pensamento doloroso produzido pela lembrança do comportamento do duque, caminhou pelo jardim sem descanso até que subiu as escadas que a conduziram para a porta principal. Parada frente a esta, duvidou se chamava com suavidade ou com todas as suas forças. Sopesava qual alternativa era a correta quando de repente escutou umas vozes que procediam da lateral do edifício. Assustada e com o coração galopando em seu interior, permaneceu imóvel enquanto rezava para que não a descobrissem tão cedo. Por uma vez Deus atendeu suas preces e os que falavam sem parar não repararam em sua presença. Escondida pela escuridão que lhe ofereciam uns pilares de pedra, observou várias pessoas descerem por onde minutos antes ela tinha subido. Quando as vozes se perderam pelo jardim aproveitou para sair de seu esconderijo e dirigir-se para o lugar de onde tinham saído: a porta de serviço.

Respirou com profundidade, voltou a pedir ajuda a Deus, elevou a mão para chamar e, justo quando seu pequeno punho iria tocar a grande lâmina de madeira, esta se abriu.

? Quem é você?! ? Exigiu saber com uma mescla de surpresa e medo uma mulher de avançada idade.

? Bom dia, senhora. Desculpe se a incomodo, vim pedir trabalho ? explicou olhando ao chão.

? A pedir trabalho?! ? A mulher abriu os olhos de par em par e levou a mão à garganta.

Beatrice abaixou ainda mais a cabeça ao mesmo tempo em que suas bochechas se enchiam de uma intensa cor vermelha. Não tinha dúvidas sobre a causa do imenso susto que tinha provocado à mulher. Quem, em seu são julgamento, pediria um trabalho respeitável vestida com farrapos manchados, com o cabelo coberto de barro e cheirando a excrementos de porco? Mas ela não estava em seu são julgamento desde que a fome se apoderou de seu corpo e de sua mente.

? Necessito-o, senhora. Estou a ponto de morrer. Levo dias sem comer... ? implorou a moça.

? Não é meu encargo oferecer trabalho, disso se encarrega o senhor Stone, mordomo de sua Excelência. Mas te aconselho que, se de verdade necessita de um emprego, volte outro dia com melhor aspecto. Assim só lhe fecharão a porta. ? Hanna, a cozinheira, sentiu verdadeira lástima pela jovem. Nunca tinha visto uma expressão tão dramática, nem tampouco uma palidez tão fantasmal.

? Rogo-lhe. Ajude-me... ? continuou com voz tão baixa que a anciã mal a escutou.

A anciã olhou a ambos os lados e, certificando-se de que ninguém poderia descobrir que abrigaria durante uns minutos a uma mendiga em uma casa respeitável, estendeu a mão e aferrou com força o braço da moça.

? Entra, sente-se e não fale até que tenha terminado de comer o que puser sobre a mesa. Se de verdade pretende trabalhar algum dia em um lugar como este, deve se sustentar com algo mais... do que tenha se alimentado até agora.

Beatrice sorriu e se sentou tal como lhe tinha indicado a mulher. Manteve-se calada até que contemplou o prato de sopa quente que a amável estranha colocava em frente a ela. Agarrou a colher, inclinou-se para a fumegante terrina e, sem esperar a que este se esfriasse, arremeteu contra ele. Em um passado já bastante longínquo teria pegado a colher e a teria dirigido lentamente para seus lábios para sorver em silêncio seu conteúdo. Mas estava vivendo o presente e seu estômago estava muito vazio para recordar protocolos absurdos. Mal levantou o olhar, salvo quando sua benfeitora retornava para lhe apartar o prato terminado e lhe colocar outro em seu lugar.

Enquanto notava o calor da comida em seu interior pensou que aquilo que estava conseguindo não era o que tinha pretendido. Ela queria um trabalho para ganhar a comida que a sustentaria durante o tempo necessário até que decidisse retornar a Londres. Entretanto, como não havia outra alternativa, continuou comendo enquanto fazia à ideia de que os suculentos pratos poderiam lhe oferecer um pouco mais de vida. Possivelmente a justa para sobreviver até que chegassem as desejadas entrevistas. De repente, enquanto saboreava seu último prato, escutou-se uma portada atrás dela e Beatrice saltou do assento. Ao descobrir em frente a ela um homem com rigoroso traje negro, abaixou a cabeça e começou a fazer nós com o tecido do vestido.

? Quem é e o que faz aqui? ? Brandon a observou com perspicácia, ato seguido dirigiu os olhos para Hanna e franziu o cenho.

? É uma jovem que veio pedindo um emprego... ? expôs a cozinheira limpando as mãos no avental.

? Do que, de limpadora de chaminés? ? Disse de mau humor. Não podia acreditar no que seus olhos observavam. Na cozinha, um lugar sagrado, havia uma moça coberta de sujeira, faminta pelo que podia apreciar, e desprendendo um aroma parecido ao do esterco de cavalo. Como tinha ocorrido a Hanna fazê-la passar à cozinha? Se a garota não partisse terminaria empesteando toda a mansão.

? Se me permitir isso, senhor, posso lhe informar que sei lavar, costurar, e inclusive posso ajudar em outras tarefas domésticas... ? murmurou sem levantar a vista do chão.

? Disse lavar? Não estou tão seguro disso, menina. A sujeira que vejo em seu corpo me indica que não deve ter muito claro o que significa isso... ? O mordomo cruzou os braços e entrecerrou os olhos.

? Brandon! Como pode falar assim? ? Hanna explodiu e, diante de Beatrice, tratou-lhe com familiaridade, advertindo à jovem que entre eles existia uma relação mais afetiva do que aparentavam.

? Esta moça tem que sair daqui o antes possível, senhora Stone ? explicou com tom sereno e firme. ? Eu não gostaria de sentir a fúria do duque em meu corpo por algo que nem sequer me corresponde.

? Suplico-o, senhor ? interveio Beatrice entre soluços. ? Preciso comer. Hoje fui abençoada pela amabilidade da senhora Stone, mas amanhã... do que me alimentarei amanhã?

Brandon, que tinha se girado para que Hanna não observasse o aborrecimento que lhe provocou seu ato de solidariedade, ficou durante uns instantes parado com o olhar cravado na porta por onde tinha entrado. Depois de meditar o rogo desesperado da jovem, sorriu meio de lado e se voltou para esta.

? Já esteve alguma vez com um homem? ? Enrugou a testa e a olhou diretamente aos olhos.

Hanna, depois de escutá-lo, levou-se a mão à boca. Sabia o que estava a ponto de expor e pensou que se na verdade lhe oferecesse aquele posto, ela cairia ao chão.

? Como? ? Apesar de ter as bochechas cobertas de barro, o rubor era visível em seu rosto.

? É virgem? Manteve relações sexuais? Sabe esquentar o leito de um homem? ? Continuou com o inesperado interrogatório o mordomo. Deveria assustá-la, não podia fazer com que Hanna tentasse acolhê-la tal como parecia pretender. Desde que a filha de ambos morrera fazia já quase quinze anos, o instinto maternal brotava sem que ela percebesse e em muitas ocasiões, de maneira incorreta.

Beatrice esteve a ponto de desmaiar. O que tentava dizer o mordomo? Por que precisava saber se alguma vez tinha estado entre os braços de um homem? Quis romper a chorar quando em sua mente brotou a lembrança daquele momento. Sim, tinha estado com um homem e tinha perdido a inocência com ele, mas... tinha que explicar como e em que circunstâncias a tinham desflorado?

? Vejo que está pensando... ? um sorriso zombador apareceu no rosto enrugado.

? Não... ? disse enfim Beatrice apertando os punhos e armando-se de coragem.

? Informo-lhe, senhorita, que o único posto livre que temos nestes momentos é o de cortesã. Nosso duque necessita de uma mulher para saciar seus desejos sexuais e o pagamento é uma bolsa de cem moedas de ouro por esses serviços. Sabe agradar a um homem?

Hanna girou e se dirigiu para o fogo. Não suportava a situação que estava vivendo e se jogava a culpa disso. Se tivesse fechado a porta e não a tivesse arrastado até o interior, a moça teria partido morta de fome, mas com sua dignidade intacta.

? Sim ? respondeu com firmeza. Levantou seu olhar, elevou o queixo e prosseguiu: ? Todos os homens que passaram pelo meu leito partiram satisfeitos.

Era real o que brotava de seus lábios? Sabia ela saciar os apetites sexuais de um homem? A única vez que esteve com um tinha uma faca apertando sua garganta e naquele momento não pensava em satisfazê-lo a não ser em fazer o que este lhe pedia e fugir com vida o antes possível.

? Perfeito então. Senhora Stone, ? disse à cozinheira que não era capaz de olhá-lo ? já temos uma prostituta. Ordenarei que lhe preparem uma habitação. Não albergue a falsa esperança de ter um teto onde dormir, isso não está no acordo. Mas eu gostaria de apreciar a beleza que oculta embaixo dessa capa de imundície. Além disso, para que elimine esse pestilento aroma, deveria ficar de molho no mínimo uma semana. Senhora Stone, já que foi você quem se proclamou benfeitora da jovem, deixo-a em suas mãos para que a prepare de maneira adequada.

Hanna não respondeu. Estava mexendo em uma panela de metal o guisado que pretendia oferecer para o almoço. As lágrimas percorriam seu velho rosto e sentia que a garganta lhe oprimia. Sem querer tinha conduzido a jovem a um destino turvo, escuro.

? Senhora Stone? ? Inquiriu Brandon para certificar-se de que o tinha escutado.

? Sim, senhor Stone, prepararei-a ? respondeu apertando a mandíbula.

Escutou-se a porta depois da saída do mordomo e depois disto, houve silêncio. Beatrice tinha ficado de pé, incapaz de mover-se. Ainda não era consciente do que tinha acontecido. Tinham lhe devotado o posto de cortesã e ela, em um ataque de ira, tinha-o aceito? Como podia ser tão tola? Possivelmente não pensou em nada depois de escutar que lhe pagariam uma centena de moedas de ouro. Era muito mais do que levou em seu bolso quando partiu de Londres e estava segura de que, com essa quantidade, poderia comprar outros animais com os quais poderia sobreviver durante bastante tempo. Embora para seguir vivendo nas condições nas quais se encontrava, devia padecer de novo a dor e a vergonha? Viver um pouco mais ou morrer na cabana? Se algum dia alguém aparecesse por ali descobriria ossos de um cadáver, o seu.

«Viver para lutar», pensou para si.

Suspirou com intensidade e fez desaparecer todo tipo de inquietações. Devia fazê-lo e ponto.

? Sinto-o... ? escutou a cozinheira murmurar. ? Tudo isto foi por minha culpa...

? O emprego, eu o aceitei. Se quisesse teria me negado ? indicou ao mesmo tempo em que se aproximava das costas da anciã.

? Não é justo! Esse homem se aproveitou da sua necessidade e jamais o perdoarei ? gritou enfurecida enquanto levantava a panela com raiva.

? Senhora Stone, você é um anjo e de verdade, aconteça o que acontecer, estarei eternamente agradecida. Graças a você poderei sobreviver uns meses mais.

Beatrice não queria que ela se preocupasse com seu futuro. Acaso se tinham preocupado seus pais? Não. Depois de lhes revelar o que tinha acontecido com o conde de Rabbitwood e lhes haver jurado que ela não tinha feito nada, seu pai saiu correndo enquanto que sua mãe chorava sem consolo. Para onde tinha partido o destroçado pai? Para a residência que o atual duque de Rutland tinha em Southwark. Seu único propósito era lhe pedir clemência. Acreditou bobamente que este lhe ajudaria a salvar a honra manchada de sua filha, mas... o que fez o futuro duque? Nada. Não meditou nem um só segundo sobre o pedido de ajuda do barão, mas sim pensou que, como todas as damas que tinha conhecido em sua promíscua vida, mentia, e não quis questionar a reputação do bastardo de Rabbitwood.

Desde esse dia sua família começou a adoecer. Sua mãe, assídua de visitas e de festas, encerrou-se em sua câmara e não a abandonou nem sequer para realizar as funções humanas normais, o barão descuidou de suas responsabilidades e começaram a ter mais dívidas que riquezas. Finalmente, Beatrice decidiu atuar: escreveu-lhes uma nota onde lhes explicava que partia do lar para pôr fim à sua desventurada vida.

Viajou durante vinte e cinco dias. Umas vezes, graças à solidariedade de alguns viajantes, em carruagem ao lado do cocheiro, em outras ocasiões, andando. Tinha andado tanto que seus sapatos se romperam e teve que abandoná-los no caminho. Recordava que durante as longas horas de caminhada só tinha uma ideia em sua mente: chegar a Derbyshire e ocupar a pequena cabana que o duque possuía em seus territórios.

Em algumas conversações nas quais tinha estado presente, o principal tema era a riqueza das terras que herdaria o futuro duque de Rutland, e em alguma delas alguém comentou que tinha ido para caçar e que se resguardara da intensa chuva em uma pequena cabana perto do rio. Falou de quão abandonada estava apesar de encontrar-se nos limites mais ricos do terreno. Assim não o pensou, decidiu que ali permaneceria escondida o tempo que desejasse. Como o duque não lhe tinha assistido para esclarecer a verdade, ajudar-lhe-ia de maneira involuntária a ter um teto onde poder viver.

? Direi-lhes que subam a água quente... ? a suave voz da senhora Stone interrompeu suas meditações.

? Se não se importar, ficarei aqui até que tudo esteja preparado ? voltou a sorrir. Queria subtrair importância aos inesperados acontecimentos. Não podia fazer com que aquela boa mulher se sentisse desventurada pelo ocorrido. De repente, a senhora Stone se dirigiu para a porta e a abriu.

? Vá. Será melhor que o faça. Não se preocupe pelo senhor Stone. Direi-lhe que pensou melhor e recusou a oferta.

? Não partirei ? respondeu com um suave fio de voz. ? Farei o que me encomendaram. Necessito desse dinheiro, senhora Stone. Os lobos comeram minha última esperança de vida e quando retornar ao meu lar não terei nem um pedaço de pão para levar à boca.

? Isso tem solução! ? Exclamou a mulher com rapidez. ? Colocarei em uma bolsa comida suficiente para uma semana. Quando terminar, retorne.

? Não vou colocar em perigo seu posto de trabalho por cuidar de mim. ? Beatrice pousou uma mão sobre o ombro da mulher e o apertou com carinho. Então aconteceu algo que lhe surpreendeu. A cozinheira abriu seus braços e a apertou entre seu corpo com força.

? Você é uma menina... ? murmurou.

? Mas esta menina tomou uma decisão ? respondeu sem apartar-se dela.

? Há outras alternativas...

? Buscarei-as quando tudo isto tiver acabado. Mas necessitarei da sua ajuda ? murmurou apoiando a testa sobre o peito da anciã.

? Estarei ao seu lado quando precisar da minha presença, prometo-lhe isso.

? Obrigada ? disse ao mesmo tempo em que Hanna abria os braços e ela se apartava.

? Tem mais fome? ? Perguntou a anciã enquanto se dirigia para a despensa.

? Estou bastante satisfeita e acredito que depois do acontecido meu estômago não aceitaria nada mais.

? Seu estômago não poderá resistir a isto. ? Pousou uma bandeja tampada por um pano sobre a mesa e, orgulhosa do que estava a ponto de oferecer, colocou as palmas na cintura. ? É uma receita da minha mãe. Ela a herdou da minha avó. Antes o chamavam... como era? ? Pôs os olhos em branco tentando recordar o nome.

? Pudim! ? Gritou a moça ao apartar o pano que cobria o recipiente.

? Exato! Como sabe? Comeste-o alguma vez? ? Entrecerrou os olhos e a olhou com curiosidade. Se ela vinha de uma família humilde e mal tinha dinheiro para levar um pedaço de pão à boca, como sabia o nome de uma sobremesa tão deliciosa?

? Faz tanto tempo que nem o recordo... mas hoje vou rememorar esse maravilhoso sabor. Pode me dar um pedaço? ? Elevou o queixo para a mulher e sorriu como uma menina pequena.

? Coma o quanto quiser, se acabar farei outro. Tenho guardado na despensa muito leite, ovos e mel.

Beatrice emitiu um suave ruído de prazer quando tomou a primeira colherada. Fechou os olhos e se lembrou da última vez que se deleitou com aquele manjar. Enquanto isso Hanna recolhia em sua mente a resposta que lhe tinha devotado:

«Faz tanto tempo que nem o recordo...».


IV


Os criados não cessavam de murmurar sobre aquilo. Apesar de estar escondida em uma das habitações mais afastadas, pôde escutar os cochichos entusiastas de todos que caminhavam pelo corredor. Conforme descobriu, era a primeira visita que recebia o duque e supôs que esse acontecimento devia ser muito importante para todos os que habitavam na mansão. Entretanto, para Beatrice lhe resultou do mais normal que o reverendo e sua esposa fossem os primeiros em aparecer em Haddon Hall.

Depois de tirar a roupa e deixá-la de maneira descuidada sobre o chão, inundou-se na banheira e deixou que a água esquentasse seu corpo. Fazia muito tempo que não se banhava em um recipiente que albergasse por completo seu pequeno tamanho. Colocou a cabeça e conteve durante uns instantes a respiração. Quando a elevou, começou a rir. Sua mente, em vez de sopesar o que ocorreria se o duque demandasse com prontidão os serviços de sua nova concubina, pensou na conversação que estaria tendo lugar no salão principal. Estava muito segura de que sua Excelência desejaria finalizar o antes possível a visita para soltar os milhares de impropérios que reteria em sua cabeça após conversar com um reverendo tão impertinente. O certo era que ninguém em Derbyshire gostava do novo pregador. Foram à missa aos domingos para evitar falações sobre as possíveis causa de suas ausências em um dia tão famoso. Ela podia enumerar mil razões para não esbanjar duas horas de sua vida em uma reunião de tal índole, embora com uma lhe bastasse: não suportava os intermináveis e aborrecidos discursos. O reverendo em vez de atrair os paroquianos com histórias repletas de felicidade e esperança, centrava-se em quão trágica podia ser a vida quando o mal possuía uma pessoa, conduzindo-a para a libertinagem e a imoralidade.

Beatrice soltou uma enorme e sonora gargalhada. Esperava que não ocorresse ao extravagante personagem comentar à sua Excelência que o estado em que se encontrava era uma chamada de atenção do Todo-poderoso pela vida que tinha levado até aquele momento. Se tivesse um mínimo de consideração, coisa que duvidava, manteria-se calado e evitaria que o jogassem ao exterior como se fosse uma lixeira.

O que importa a ti o que digam àquele presunçoso? ? Perguntou-se enquanto subia e descia as pernas fazendo pequenas ondas na banheira. Além disso, não lhe vai mal que alguém lhe recorde que o culpado de sua desdita não foi outro senão ele mesmo.

Beatrice apoiou a cabeça na beirada da banheira e contemplou ao seu redor. A escuridão lhe produzia uma saudosa paz e bem-estar. Desde que tinha posto um pé na pequena cabana jamais apagava as velas. Dava-lhe muito medo não saber o que poderia acontecer ao seu redor, sem esquecer as feras famintas que uivava noite após noite em sua porta. Agarrou o sabão e voltou a impregnar seu corpo com este. As borbulhas formavam uma capa sobre a superfície da água e começou a brincar com elas. Então, sem saber o motivo disso, recordou o dia que conheceu a notícia sobre a volta do duque a Haddon Hall e a causa do mesmo.

? Você está certa disso? ? A chapeleira a quem estava acostumada a visitar para saber se alguém demandava os serviços de uma criada, perguntava a outra mulher com bastante entusiasmo.

? Muito certa ? respondeu a cliente em tom sério.

? Quando você disse que aconteceu? ? Continuou o interrogatório da chapeleira enquanto fazia um sinal à Beatrice para que não se movesse da sala dos fundos. Se aparecesse daquele jeito, a cliente fugiria apavorada e espalharia o rumor sobre as inapropriadas atitudes da chapeleira.

? Segundo minhas fontes, antes da primavera. O marido de uma de suas incontáveis amantes desafiou-o a um duelo de honra e o duque o aceitou entre brincadeiras ? prosseguiu a história ao mesmo tempo em que olhava e tocava os novos chapéus adquiridos para a próxima temporada.

? Entre brincadeiras? ? A chapeleira se aproximou de uma estante e agarrou uma caixa de cor branca, abriu-a e mostrou à mulher um chapéu de cor rosa com três grandes plumas azuis.

? O marido não media mais de... ? elevou a mão até o contorno de seu peito para assinalar a possível altura.

? Pobre duque! ? Exclamou a chapeleira tampando a boca escandalizada.

? Nunca se deve subestimar um adversário, por mais indefeso que pareça ? disse a mulher enquanto colocava o chapéu que lhe tinha mostrado.

? Eu acredito que o melhor é não esquentar o leito de outro homem.

? Você... não conheceu ao duque, não é? ? A mulher girou-se para a chapeleira com rapidez como se não pudesse acreditar em sua afirmação.

? Não, senhora. Quando cheguei a Derbyshire sua Excelência partiu à Londres. ? A chapeleira abaixou a cabeça ao ver a reação da mulher e estendeu seus braços para o chão.

? Entendo... ? Deu um suspiro, tirou-se o chapéu de cor rosada e pegou outro da cor de vinho tinto. ? Só lhe direi que ninguém, incluídos os homens que lhe rodeavam, podia deixar de admirá-lo. Era a perfeição, um ser sublime... ? colocou o último chapéu, olhou-se no espelho, colocou-o no lado direito e prosseguiu: ? E agora... é um monstro.

? Um monstro? ? Perguntou a chapeleira assombrada.

? Sim. Ali onde havia um rosto liso, macio e cuidado se encontram umas horrendas marcas. Dizem que são parecidas com as cordas que utilizam os piratas em seus navios. Também contam que deixou de mover o braço esquerdo. Agora... como poderá satisfazer os insaciáveis desejos carnais de suas amantes? ? Perguntou antes de soltar uma grande gargalhada. ? O que te parece? ? Inquiriu à chapeleira olhando-se de novo no espelho.

? Parece-me perfeito. Fica muito bem e acentua a palidez de sua pele ? respondeu a chapeleira sorrindo.

? Levarei esse!

Esteve a ponto de chamar a senhora Stone para que alguém voltasse a encher a banheira com água quente, mas pensou melhor. Era tempo de descansar. Quanto tempo fazia que não se agasalhava com suaves e perfumados lençóis? Beatrice secou o corpo com rapidez, enredou uma toalha no cabelo e caminhou muito devagar para a cama. Colocou os joelhos sobre esta e, sem pensar, equilibrou-se sobre os almofadões para inspirar com intensidade. O aroma de limpo impactou-a com força. Tudo parecia diferente depois do banho, até lhe resultou distinto o tato de sua própria pele. Girou-se e olhou para o teto de madeira. Era muito alto e rude, como tudo o que havia naquela mansão. Inclinou-se, pegou a ponta do lençol e se cobriu com ele. Precisava descansar um pouco antes que o empertigado senhor Stone aparecesse pela porta e a expulsasse.


Grunhiu várias vezes antes de conseguir abrir os olhos. Apesar de tentar com vigor, resultava-lhe impossível despertar do tranquilo e aprazível sonho no qual se inundou. Tinha visto sua mãe chamando-a da entrada para que fosse ao lar antes que a chuva a alcançasse. Beatrice galopava pelo campo, sorria ao ver sua mãe agitar a mão para que se dirigisse para ela. Então, no momento que descia do corcel e tentava subir as escadas, sentiu que alguém tocava seu ombro e a girava para a direção em que se encontrava...

? Senhora Stone... ? murmurou Beatrice ao descobrir a anciã ao seu lado.

? Perdoa-me se te assustei, mas levo bastante tempo batendo na porta e como não me respondia, preocupei-me. ? Hanna tinha sentado na cama e a olhava com ternura.

? Fiquei adormecida. Imagino que estava mais cansada do que imaginava ? respondeu inclinando-se e tampando sua magra figura com o lençol.

? Muitas vezes pensamos que nosso corpo não tem limites e não recordamos que somos seres humanos, não deuses. ? Levantou-se e caminhou para uma cadeira que havia junto à cama.

? O que acontece, senhora Stone? ? Quis saber a jovem ao notar certa inquietação na mulher.

? O duque decidiu solicitar os serviços de sua cortesã ? comentou com uma voz tão suave que a Beatrice custou descobrir o que havia dito.

? Tão cedo? – Ela puxou a ponta do lençol para continuar oculta embaixo deste e se dirigiu para a anciã. ? Acreditei que...

? Leva muito tempo sem ter uma mulher ao seu lado. A última que ofereceu seus serviços ficou em Londres ? indicou enquanto procurava algo de um baú.

? Tratou-a bem? Refiro a...

? Sua Excelência é um cavalheiro moça, e sua atitude é imaculada, adequada ao título que ele detém. ? Embora não quisesse que suas palavras soassem duras, foram-na e Beatrice pôde advertir que a senhora Stone adorava ao duque mais do que tentava mostrar. ? Nunca ? prosseguiu a cozinheira ao mesmo tempo em que mostrava a camisola que tinha obtido do baú ? necessitou dos serviços de uma concubina até depois do acontecido. Antes daquele momento, todas as mulheres estavam dispostas a deitar nos braços de sua excelência. No entanto, depois de ... ? tragou saliva incapaz de continuar com sua explicação devido à dor que lhe provocava falar daquilo.

? Conheço as sequelas que sofre o duque, senhora Stone.

Beatrice inclinou a cabeça e deixou que a mulher a vestisse.

? Foi uma tragédia para todos os que respeitam e servem ao senhor ? disse ao mesmo tempo em que esticava a camisola.

? Ouvi que esse destino o cultivou ele mesmo.

? Quem disse tal barbaridade? ? Hanna a olhou mostrando em seu enrugado rosto um notório aborrecimento.

? As infidelidades...

? E elas? Acaso eram mulheres respeitáveis? Cada noite, quando aquelas filhas do diabo pensavam que o pessoal de serviço estava adormecido, tocavam a porta da residência e com a desculpa de conversar com sua Excelência, tiravam-se as anáguas no próprio salão mesmo.

? Mesmo assim, se ele não tivesse aceitado os oferecimentos dessas libertinas...

? Acredito que ainda não conheceu um homem de verdade... ? resmungou. ? É sério que pensa que é fácil negar-se à tentação mais prazerosa que tem o ser humano?

? Senhora Stone! ? Exclamou assombrada. Não esperava que aquela doce e tenra anciã pudesse lhe falar de algo tão escandaloso como as relações carnais.

? O duque não te obrigará a fazer nada que não queira ? expôs depois de uns momentos de incômodo silêncio. ? Agora, se não se importar, eu gostaria de te escovar o cabelo. Tem-no muito enredado.

Podia sentir o coração lhe pulsar com intensidade na garganta. A senhora Stone a tinha deixado sozinha em frente à porta do quarto já fazia um bom momento e não tinha conseguido adquirir a força necessária para chamar. De verdade seria capaz de fazê-lo? Como ia manter a promessa que tinha feito à anciã? Seria inevitável não olhar o desfigurado rosto do duque e compará-lo com o que uma vez foi. Trataria-a bem? Seria atencioso com ela ou se comportaria como Rabbitwood? Apertou os punhos e a mandíbula. Não devia comparar ambas as situações porque não eram semelhantes. Agora sabia a razão pela qual era requerida, entretanto, a vez que ela entrou para responder à suposta chamada de seu apaixonado, encontrou a um homem sem escrúpulos, um torturador, um filho do próprio diabo. Ante tal lembrança, Beatrice começou a tremer. Podia escutar seus dentes batendo. O pêlo de seu corpo se arrepiava pelo medo.

Cem moedas... ? meditou para si. Cem míseras moedas que me oferecerão um pouco mais de tempo de vida, continuou pensando. Respirou fundo, esticou uma mão tremente para a maçaneta e a girou devagar.

A primeira palavra que surgiu em sua mente quando acessou ao quarto foi escuridão. A habitação estava muito tenebrosa. Mal podia distinguir onde se encontrava a cama do duque e nem muito menos onde se achava este. Tentou entrar um pouco mais arrastando os pés para não tropeçar. Sem se dar conta levou a mão direita para o cabelo e começou a enredar uma mecha com um dedo.

? Pode entrar ? escutou a suave e aveludada voz do duque.

Beatrice continuou sua marcha até que a distância entre os dois foi minúscula. Estava sentado sobre a cama esperando com paciência sua chegada. O corpo da jovem congelou. Suavam-lhe as mãos e sentia que mal corria sangue por suas veias.

? Aproxime-se – disse ele estendendo uma mão para ela. ? Não acredito que deva te explicar para que veio, não é? ? Beatrice assentiu. Tinha a cabeça abaixada tentando não olhar o rosto do homem a quem ofereceria um serviço que nem ela mesma sabia como iniciar. Seu cabelo cobria os ombros e a pequena mecha encaracolada por seu dedo começava a esconder-se entre os outros fios. ? Não albergue em seu coração a possibilidade de que entre nós exista uma relação afetuosa, só quero prazer ? prosseguiu, mas desta vez o tom tinha sido um pouco mais rude, menos quente. Como se lhe doesse expressar o que em realidade ocorreria essa noite.

A jovem levantou o olhar no mesmo momento em que a vela mais próxima a eles começou a mover-se pela suave brisa de seus gestos e deixou exposta a figura do homem. Tinha o cabelo mais comprido que na última vez em que o viu e tentava cobrir com este as marcas do rosto. Entretanto, essa rápida e fugaz olhada foi suficiente para que Beatrice apreciasse a deformidade da qual tanto falavam as pessoas. Não lhe pareceu tão horrenda e monstruosa. Parecia-se bastante à cicatriz que tinha sua mãe no ventre quando tiveram que tirá-la de suas vísceras. Embora, claro esta, para um homem tão bonito e para todas as suas famosas admiradoras, seriam aterradoras.

? Só prazer... sua Excelência ? murmurou Beatrice após escutar um grunhido do duque.

Como se um raio lhe tivesse atravessado o corpo, a jovem levantou a camisola e se despiu. Nesse instante o duque estendeu sua mão em volta de um dos seus seios e o apertou com força. Beatrice sentiu uma terrível dor, tão intensa que abaixou a cabeça para que ele não pudesse observar as dobras de sua testa e como apertava os dentes. Tentou serenar-se pensando que obteria uma boa bolsa de moedas que a ajudaria a sobreviver no mundo que Deus lhe tinha devotado.

? Faça com que eu te deseje. Finja algum interesse e faça por merecer o salário que obterá quando partir ? comentou o duque com voz sólida e grosseira, mais do que a jovem teria imaginado.

Então fechou os olhos e se ajoelhou para procurar o membro do homem e fazer o que aquela noite o conde de Rabbitwood a obrigou a praticar.

Encontrava-se no salão da senhora Baithlarin. Durante toda a noite tinha evitado qualquer aproximação masculina, não por descortesia, mas sim porque ela não desejava cercar uma conversação ingênua e oferecer uma esperança quando em realidade não a havia. Parecia que todo mundo se interessava em conhecer seus pensamentos, seus desejos, suas inquietações. Certamente, tanto sua mãe como as amigas desta tinham a esperança de lhe encontrar um bom partido, possivelmente por isso a mostraram aos possíveis candidatos como se fosse um bonito troféu a ganhar.

Mas Beatrice tinha o coração ocupado. Amava Leonel desde sua mais tenra infância. Entretanto, a diferença de classes fazia impossível o matrimônio, salvo se ela fugisse com ele como tantas vezes este lhe havia insinuado. Mas não era valente, jamais o tinha sido até depois daquela noite. Descobriu em mais de uma ocasião os azulados olhos do conde de Rabbitwood observando-a, admirando-a a distância tal como tinha feito em festejos anteriores e sem tentar ocultar dos outros aqueles olhares lascivos.

Tentou dançar com ela, uma valsa para ser exata, e graças às desculpas de sua mãe pôde rechaçá-lo com estilo e educação. Mas o sinistro conde de Rabbitwood elaborou um plano, um maquiavélico e ruim para o qual teve que indagar sobre sua vida e descobriu que havia outro homem.

Em um momento de descuido maternal, um dos criados lhe fez chegar uma nota, nela se dizia que seu amado Leonel se encontrava esperando-a na biblioteca da anfitriã. Foi tão grande sua ilusão e sua vontade de vê-lo que não se perguntou a razão pela qual um trabalhador de sua família tinha aparecido em uma festa de tal classe social. Esperou um momento para correr para o lugar designado. Seu coração palpitava pelo entusiasmo, pela emoção de vê-lo depois de uns dias de distanciamento.

Ficou parada na porta da biblioteca, alisou o cabelo e tentou não mostrar a euforia que sentia. Abriu, não sem antes jogar uma última olhada e confirmar que ninguém presenciaria seu encontro. Mas houve testemunhas, embora tivessem mais motivo para se esconder do que ela. O duque e a mulher com a qual tinha paquerado no salão se ocultavam sob uma das cortinas das imensas janelas do corredor. Escutou algumas risadas, alguns beijos mais sonoros dos que ela estava acostumada a oferecer ao seu amado. O tecido áspero se moveu com intensidade no momento em que escutou uns soluços. Não eram gemidos de dor, mais pareciam pequenos gritos emanados do interior dos corpos capturados pelo sexo.

Envergonhada pelo que tinha descoberto, entrou com rapidez e fechou ainda mais rápido a porta. Devido a sua agitação, o vestido fez um círculo tão amplo que tocou várias figuras de porcelana que havia na entrada. Abaixou-se para que não terminassem quebradas no chão. Ato seguido se incorporou e dirigiu o olhar para um corpo que se apoiava no respaldo de um sofá. Estava de costas para ela e por muito que tentasse comparar aquela silhueta com a de seu amado, ambas não correspondiam. Ficou sem fôlego quando o enigmático homem deu a volta e lhe sorriu. Em efeito, não era Leonel e sim o conde de Rabbitwood. O homem que não tinha deixado de olhá-la durante o baile e quem lhe sorria descaradamente.

Quis lhe perguntar por que a tinha enganado, mas em vez de enfrenta-lo decidiu fugir. Não conseguiu seu propósito. O conde correu para ela justo quando tinha a mão sobre o trinco. Recordou a resistência e como lhe cobria a boca para que não chiasse. Depois, uma folha afiada lhe apertou a garganta. «Cortar-lhe-ei se gritar», sussurrou-lhe enquanto apartava a mão de sua boca para conduzi-la ao decote e lhe descobrir os seios. Começou a chorar. Foi o único que se atreveu a fazer. Estava tão assustada que sua mente não era capaz de pensar com claridade. Rezou para perder a consciência quando percebeu que seu vestido se elevava e o homem se colocava atrás dela para possuí-la. Entretanto, manteve-se lúcida em todo momento. Durante mais de uma hora foi submetida a um sem-fim de atrocidades. Nesse tempo pensou que alguém sentiria falta dela e a procuraria. Imaginou que, apesar de ter seus olhos cheios de lágrimas, veria entrar o Leonel, que a salvaria daquelas mãos abomináveis, mas não foi assim. O tempo passava e ninguém aparecia para interromper sua agonia. Quando o conde se cansou dela, liberou-a. «Obrigado por sua companhia, foi um prazer ter este magnífico bate-papo com você, senhorita Montblanc», foram suas últimas palavras antes de deixá-la sozinha, atirada no chão, destroçada e... morta.

A lembrança do acontecimento mais aterrador de sua vida fez com que brotassem sem cessar milhares de lágrimas. Seguia com os olhos fechados e com o falo do duque em sua boca. Esteve a ponto de retirar-se e sair fugindo quando notou uma queimação em sua língua. Um líquido quente começou a vagar por sua garganta.

Quis vomitar, quis gritar. Mas igual àquele dia, não conseguiu fazer nada. Levantou-se e abaixou a cabeça. Seu corpo seguia tremendo, desejava tirar a agonia que sofria em seu interior de algum jeito, mas... como? Escutou algo. Não soube com claridade o que. Mas depois de observar que o duque se incorporava e se girava agarrando-se ao dossel de madeira, imaginou que a despachava de seu lado.

Com rapidez agarrou a camisola e a pôs enquanto as lágrimas seguiam nublando sua visão. Esticou a mão, girou a manivela para abrir a porta e então escutou um soluço. Não era como o que emitiu o homem quando estava sob a cortina, era mais um lamento. Sem saber a razão, girou-se para o homem e, durante um segundo, observou-o chorar. Sem atrever-se a dizer nenhuma palavra, abandonou a habitação, baixou as escadas e não parou até que se encontrou com o senhor Stone, que se encontrava junto à saída principal da mansão.

Agarrou com força a bolsa de moedas que lhe tinham prometido sem poder articular palavra, só queria afastar-se o antes possível dali, e quando escutou o ferrolho atrás de suas costas, estremeceu-se antes de pôr-se a correr agasalhada pela frieza da noite, não diminuiu a marcha até que entrou no bosque. Apoiou a palma da mão em um tronco e começou a vomitar. Expulsou tudo o que tinha no estômago, as lágrimas lhe ardiam e lhe doíam tanto como a folha afiada de Rabbitwood em seu pescoço. Voltou a recordar as coisas que aquele homem a obrigou a fazer, o sofrimento que sentiu quando a penetrou com rudeza e notou de novo como seu corpo se partia em dois.

Beatrice gritou enquanto seguia vomitando. Esforçou-se tanto em tirar aquilo que tinha em seu interior que caiu ao chão de joelhos. Tentou respirar, encher seus pulmões de ar, mas lhe resultou tão difícil controlar sua respiração que terminou desmaiando e caindo de bruços no chão.


V


Se seus cálculos não falhavam, estava em Haddon Hall pouco mais de dois meses. Mas não estava cem por cento seguro. Naquele lugar o tempo transcorria tão devagar que parecia não avançar. Não importava se passasse as tardes recebendo ou devolvendo visitas, todos os dias eram intermináveis e as noites, depois do dramático encontro com aquela moça, eram insuportáveis. Sempre se encontrava de mau humor, até o ponto de que nem ele mesmo podia suportar-se.

Possivelmente outro motivo para adotar aquela atitude fosse a inoportuna queda que sofreu ao subir as escadas da entrada. Não foi nada grave, conforme lhe informou o doutor que o atendeu, mas a partir desse momento teria que apoiar-se em uma bengala para evitar outra queda similar. Se antes do tropeço via a si mesmo como um inútil, agora, obrigado a usar o apoio de uma vara de madeira, sua opinião se acrescentava. Quais outros desastres lhe proporcionaria o futuro? Uma enfermidade que o deixasse prostrado em uma cama pelo resto de sua vida? Ou talvez tropeçasse de novo com tão má sorte que sua cabeça ricochetearia no chão e ficaria cego pelo impacto?

William caminhou seguro à sua bengala até a poltrona situada junto à chaminé, onde da janela observava o novo amanhecer. Algum servente tinha acendido o fogo e as chamas além de manter o ambiente quente, também proporcionavam a luz necessária para observar sobre a escrivaninha uma pequena montanha de missivas. Tinha que lê-las e as responder o quanto antes possível, mas não estava com humor. A verdade era que nunca estava com ânimo para fazer algo. Só queria fechar os olhos e, depois de abri-los, descobrir que todo o vivido tinha sido um pesadelo induzido por sua consciência. Entretanto, nunca era assim, quando elevava as escuras pestanas, seguia sem poder mover a mão, as marcas de seu rosto não tinham desaparecido assim como não cessavam aqueles surtos de dor depois do impacto. Esse seria seu futuro? Viver para desejar morrer? De verdade que não podia fazer nada para mudar o destino?

William fixou os olhos na intensidade das chamas e as associou à força que ele mesmo possuiu no passado: fortes, invencíveis, impossíveis de abater. Entretanto, se um de seus criados arrojava um caldeirão de água sobre aquelas vívidas chamas, apaga-las-ia no momento. Só ficaria carvão. Possivelmente uma ou outra brasa tentaria sobreviver à destruição, mas apesar do esforço jamais retornaria à intensidade do fogo inicial.

? Sua Excelência, ? Brandon apareceu levando uma pequena bandeja prateada sobre suas mãos e interrompeu com brutalidade a meditação do homem ? chegou o correio.

O homem deixou a bandeja em uma mesa junto ao duque e esperou de pé junto a ele se por acaso necessitasse sua perícia ao escrever para responder as cartas que necessitassem de resposta.

William as olhou pela extremidade do olho e passou a mão sã por elas esboçando uma careta. Ele optou pelo periódico e o colocou sobre suas pernas para lê-lo sem demasiado interesse, Londres e tudo o que concernia a ela já formava parte de seu passado.

Abriu o jornal em uma página ao azar e a foto de um Federith sorridente, exultante de felicidade com sua recém-adquirida esposa pelo braço, furou-lhe os olhos. Leu muito devagar a notícia que anunciava as núpcias do barão de Sheiton com lady Caroline Middelton na propriedade que possuía o nobre em Hemilton.

O periódico era de três semanas atrás e embora Federith já lhe anunciasse suas intenções antes que William abandonasse Londres, a notícia lhe caiu como um jarro de água fria. Franziu o cenho e a mão lhe tremeu um pouco antes de lançar o maço de papéis para o fogo.

? Más notícias, senhor? ? Perguntou o mordomo com assombro.

? Depende para quem ? respondeu tosco enquanto observava como o papel ardia.

? Se o desejar me retirarei para lhe deixar só ? indicou o homem ao mesmo tempo em que fazia uma reverência e tentava afastar-se.

? Não parta. Embora não me satisfaça a notícia, tenho que felicitar ao Federith por seu recente matrimônio.

? O senhor Cooper se casou? ? Disse com uma mescla de entusiasmo e incredulidade enquanto observava seu senhor uns instantes, tempo suficiente para perguntar-se por que a feliz notícia não lhe tinha agradado. Hanna teria razão? A verdade é que não estava acostumado a dar muita importância à sua esposa, quando falava sobre o amor e muito menos quando incluía nessas conversações o duque.

Segundo ela, quão único faria o jovem sair da letargia na qual se achava era encontrar uma mulher que o amasse e lhe desse o carinho que tanto necessitava. Insinuou em mais de uma ocasião que ter crianças brincando de correr pela mansão faria com que o senhor recuperasse a vontade de viver. Entretanto, ele conhecia o duque desde que saíra das vísceras de sua mãe e, por muito que sua mulher insistisse em que tinha razão, sabia que esse tipo de vida não era a adequada para ele. O homem tinha nascido para ser livre, para esquentar as camas de outros maridos, para observar as vidas familiares de outros à distância.

? Digamos que encontrou uma mulher à sua medida ? comentou William com maldade após refletir na resposta adequada. Logo dirigiu o olhar para as garrafas e fez um leve gesto com a cabeça para que Brandon lhe servisse uma taça.

? Deseja lhe responder, senhor? ? Perguntou o ancião enquanto enchia a taça de licor e a aproximava o suficiente para que o duque pudesse pegá-la.

? É óbvio! Responderemo-lhe agora mesmo. – Bebeu o uísque de um gole e elevou o copo para que seu mordomo o voltasse a encher. Brandon, mais assustado que assombrado, encheu de novo o copo de licor e, depois de oferecer-lhe, pegou um papel em branco e uma pluma para escrever.

? Meu querido Federith ? começou a ditar. ? Como bem sabe, sempre me satisfazem suas alegrias, embora muito me temo que esta não é tal. Não faz muito te expliquei que é dono de seu destino e, se Deus for justo, arrebatarár-te o que não te pertence. Não esqueça que meu lar terá as portas abertas quando aparecer chorando e afirmando minha verdade. Pode permanecer todo o tempo que desejar. Por certo, sabe algo do miserável do Bennett? Faz mais de três meses que não tenho notícias dele e isso me inquieta. Atenciosamente, William.

Brandon conteve a respiração em todo momento. Foi colocando sobre a folha cada palavra que escutava da boca do duque, ao mesmo tempo em que sua cabeça não cessava de lhe insistir que a pessoa que pronunciava aquela maldade não estava em plenas faculdades mentais. Eram daninhas, maquiavélicas, quando deveriam estar cheias de felicidade e bons desejos.

? Quer que a leia em voz alta? ? Perguntou o mordomo levantando do assento.

? Não precisa, sei o que eu disse ? respondeu com rudeza.

? Então, se sua Excelência me permitir isso, farei os arranjos para enviá-la esta mesma manhã.

? Antes de partir encha de novo o copo, está vazio. ? Levantou a taça para que Brandon a pegasse e obedecesse ao mandato.

Em silêncio, sem mostrar no rosto sua estranheza, o servente verteu mais uísque no copo, ofereceu-o ao seu senhor, fez a reverência e partiu. Quando fechou a porta, o ancião voltou a ler a nota que devia enviar, sem estar convencido de todo da idoneidade de seu conteúdo. Talvez Hanna pudesse deduzir o que acontecia na cabeça de seu senhor e chegar a uma conclusão lógica que explicasse aquele comportamento errático e malicioso. E com essa intenção guardou a nota no bolso de seu casaco e se dirigiu à cozinha.

William seguia observando o fogo sem sequer piscar através do líquido ambarino. Podia ver como o álcool dançava sobre o líquido alheio à possibilidade de que o jogassem sobre as ardentes chamas. Seria igual o inferno? Estariam dançando mulheres nuas entre as chamas do abismo infernal? O homem sorriu meio de lado. Sua mente começava a nublar-se com a rápida ingestão do uísque e agradeceu em silêncio que seu cérebro começasse a funcionar com aquela lentidão. Precisava evadir-se do mundo que lhe rodeava, sonhar de novo com o homem que uma vez foi. Possivelmente, se ao cabo de um momento o estado de embriaguez aumentasse, poderia deixar a bengala e caminhar sem apoiar-se nela.

Dirigiu o olhar para as garrafas, mas estavam muito longe para alcançá-las da poltrona, teria que chamar o Brandon para que as aproximasse.

— Maldito seja, William Manners, maldito duque de Rutland! ? gritou. ? Levante-se e faça-o você mesmo!

O homem apoiou com força as plantas dos pés no chão e se surpreendeu ao não sentir a dor que dias atrás sacudia seu corpo. Soltou uma grande gargalhada ao descobrir que o miserável estado de embriaguez lhe proporcionava a força que requeria para sentir-se forte de novo. Sem deixar de sorrir caminhou até onde se encontravam as garrafas de cristal de Murano. Agarrou uma ao azar e encheu a taça.

? Agora toca a ti, estúpida mão, começa a te mover por ti mesma.

Mas não obedeceu a ordem, seguiu estendida para o chão. Zangado, andou pelo salão dando voltas e bebendo sem parar. Cada vez que drenava a taça, enchia-a de novo. Ao cabo de um bom momento seu corpo se cambaleava sem controle e sua mente tinha perdido toda sensatez.

Aproximou-se da mesa, pegou a campainha e a agitou sem cessar.

? Sim, Excelência? ? Perguntou Brandon ao ser requerido com tanta urgência.

? Diga ao cavalariço que prepare meu garanhão, vou dar um passeio por minhas terras ? comentou entre balbuceios.

? Meu senhor... ? começou a dizer o mordomo.

? Não escutou meu desejo? Acaso a velhice começa a destruir seus ouvidos? ? Desafiou-lhe.

? Não, senhor, escutei bem. Mas se me permite um conselho...

? Não quero conselhos de ninguém! ? Exclamou elevando a mão que segurava o copo vazio e atirando-o para o chão.

? Sim, Excelência. Informarei ao cavalariço.

? Avise-me quando tudo estiver preparado – disse-lhe dando as costas para poder cravar de novo seus olhos no fogo.

? É óbvio. Deseja que seu ajudante de câmara o agasalhe adequadamente?

? Não. Será um passeio breve.

? Como desejar... ? Brandon se inclinou levemente para frente e com passo firme saiu do salão.

Respirou fundo após fechar a porta e em vez de sair correndo para as cavalariças retornou à cozinha, onde tinha deixado sua mulher resmungando pelas palavras tão inapropriadas que o duque tinha dirigido ao enlace de seu amigo.

? Quer sair para montar ? disse desesperado quando entrou na cozinha.

? O que?! ? Perguntou a mulher atônita.

? Ordenou-me que preparem seu garanhão. Deseja passear pelas terras ? prosseguiu.

? Terá lhe tirado essa insensatez da cabeça, não é? ? Hanna colocou suas mãos sobre a cintura e enrugou a testa.

? Não quer escutar. Acredito que bebeu muito...

? Agora mesmo vou dar aquele par de açoites que deveríamos ter lhe dado quando começou a apodrecer sua alma!

? Hanna! ? Gritou Brandon agarrando-a pelo braço para impedir que saísse dali. ? Temos que lhe deixar ver que não é o homem que uma vez foi. Ele deve assumir.

? E nós... o que faremos enquanto isso? ? Sua voz era suave, quase imperceptível.

? Rezaremos como tantas vezes fizemos quando lhe dispararam ? respondeu aflito.


VI


Beatrice se espreguiçou com um sorriso que iluminou seu rosto. De um tempo para cá dormia bastante bem e tudo se devia a uma singela razão: tinha o estômago cheio. Tinha comprado animais, cultivado verduras pelos arredores de seu pequeno lar e até tinha construído um cercado para que os lobos deixassem de aniquilar o gado. Tudo acontecia segundo o previsto. Nada perturbava aquela felicidade, salvo quando uns pensamentos impossíveis se fundamentavam, em como enfrentar o passado apareciam em sua cabeça. Tentava esquecê-los com rapidez, ainda não era o momento de pensar nisso e tampouco tinha ainda a força necessária para aparecer em Londres e lutar pela verdade, a sua verdade.

Apoiou os pés no chão e depois de esticar os braços decidiu tomar um bom café da manhã antes de sair ao campo. Depois das últimas chuvas, os arvoredos estariam repletos de cogumelos e desejava encontrar todos que coubessem em sua cesta para preparar suculentos manjares.

Depois de tirar a camisola e colocar-se um dos vestidos que comprou na semana anterior no povoado, caminhou para a pequena cozinha para tomar o café da manhã. O estômago não lhe rugia como antes, tampouco sentia aquela debilidade moribunda que lhe impedia de levantar-se da cama, agora estava cheia de vida.

Verteu chá em um copo e colocou um prato com ovos, verduras cozidas e duas fatias de pão. Quando se sentou observou surpreendida o que havia sobre a mesa. Sem dar-se conta tinha preparado o café da manhã preferido de sua mãe.

Àquele pensamento, à lembrança de sua mãe e à vida que desfrutou antes de ser manchada, entristeceu-a tanto que mal pôde dar um bocado.

«Algum dia, ? disse ? tudo voltará para a normalidade e aqueles que me julgaram carregarão o resto de suas vidas com a desgraça da condenação».

Mas... seria verdade? Retornaria de novo para lutar por sua honra? Estava escondida mais de meio ano do acontecido, pensou que se separando de sua família, dos olhares de compaixão ou de recriminação, poderia curar sua alma ferida e fazer-se suficientemente forte para voltar e suportá-lo, mas com o tempo estava se acomodando à vida que levava e cada vez se fazia mais longínqua à ideia de retornar ao lugar onde foi ultrajada. Como trocar uma vida cheia de tranquilidade e quietude por outra repleta de dor? Era certo que em muitas ocasiões Beatrice se sentia sozinha e tentava resolver essa sensação conversando com seus animais, mas exceto algum zurro, choramingação ou grasnido, não encontrava nada mais.

Zangada por entristecer um bonito dia com pensamentos dolorosos, jogou a cadeira para trás com as pantorrilhas, pegou tudo o que tinha sobre a mesa e o introduziu irada no tanque. Precisava sair dali o antes possível ou se voltaria louca. O isolamento não era tão bom como tinha suposto e embora lutasse com unhas e dentes para manter-se sã, estava justo no limite. Começava a tocar a loucura torturante com as pontas dos seus dedos.

Olhou de novo pela janela desejando confirmar se o tempo não tinha trocado e poderia abandonar a cabana. Em efeito, o sol seguia brilhando, convertendo aquele dia no perfeito para dar aquele passeio. Colocou a capa, agarrou a cesta de vime e saiu do lar com um sorriso no rosto.

Um cão... ? pensou enquanto caminhava. Seguia pensando em como eliminar o silêncio da casa. Seria um bom mascote, ocuparia aqueles momentos nos quais não sei com quem falar. Além disso, são fiéis e jamais me abandonaria, refletiu ao mesmo tempo em que agarrava o primeiro punhado de cogumelos que encontrou aos pés de uma árvore.

Seguia pensando no animal e em como chamá-lo quando um bando de pássaros voou entre as copas das árvores. Beatrice elevou o olhar e ficou observando a estranha atuação destes. Preocupada se por acaso lhe indicavam a cercania de algum perigo, agarrou com força a cesta e prosseguiu devagar. De repente, escutou outro ruído, tão intenso que a deixou imóvel. Apertou contra si a cesta e olhou para o lugar de onde procedia o som.

Um animal corria apavorado. Ia tão veloz que não distinguiu com precisão se era um cervo, um alce ou um cavalo perdido. Por que estavam os animais tão assustados? Só podia achar uma resposta a esse comportamento aterrador. Os lobos tinham retornado e rondavam pela zona, levavam noites uivando perto de sua cerca. Tinha se esquecido deles ao sair da casa tão desesperada por notar os raios de o sol lhe acariciar a pele. Assustada, decidiu caminhar para o rio Wye. Se chegasse logo ao trecho de máximo fluxo poderia introduzir-se na água e aguentar o tempo necessário até que aqueles depredadores decidissem afastar-se de uma possível presa.

O ruído dos ramos ao romper-se, o canto dos pássaros, a brisa do vento movendo as folhas... começaram a lhe criar um medo tão atroz que lhe adormeceram as pernas e esqueceu seu plano de dirigir-se para o rio. Seu lar era o lugar mais seguro. Custava-lhe respirar, avançar com fluidez. O pânico se apropriou de seu corpo e a tinha paralisado. Em um ato de fé, daqueles que não teve no acontecido com o Rabbitwood, fechou os olhos e começou a orar. Rezava para salvar-se, para que seu medo desaparecesse, para que brotasse aquela força que necessitava. Ao princípio rogou em silêncio, pouco depois o fez em voz alta, como se as orações fossem suficientes para espantar um possível mal.

Subiu uma pequena colina de onde pôde divisar a cabana. Ficava só uma centena de passos e se salvaria. Seu caminhar começou a ser agitado, precipitado. De repente notou a presença de algo atrás dela. Girou-se rapidamente para saber do que se tratava. Não havia nada. O medo lhe provocava alucinações.

Seguiu correndo olhando para trás, não queria parar. E então... aconteceu. Tropeçou em algo que havia no chão e caiu no barro. Durante uns instantes ficou tombada, cobrindo seu rosto com o cabelo manchado de lodo e sem poder elevar os olhos. Esperou o suficiente até que comprovou que não se escutava nada ao seu redor. Elevou-se com rapidez, agarrou a cesta e se dispôs a continuar correndo quando sua curiosidade lhe fez olhar para a razão de sua queda.

? Santo Deus! ? Exclamou ao mesmo tempo em que se aproximava do que se supunha ser um corpo e estendia os dedos fazendo com que a cesta retornasse à terra lamacenta.

Uma enorme capa escura e manchada cobria a figura de quem jazia estendido. Beatrice não o duvidou. Esticou as mãos para o tecido, apartou-o devagar para certificar-se de sua premissa e gritou:

? OH, Senhor!

Andou vários passos para trás, levou-se as mãos à boca e a tampou para não continuar chiando. Ficou tão atônita que, depois de confirmar quem tinha em frente a ela, não sabia o que devia fazer. Se fosse embora, se o deixava ali estendido; podia retornar à sua casa e esquecer que o tinha visto. Entretanto, o que pensariam no povoado quando descobrissem o corpo inerte do duque e a ela vivendo em suas terras de maneira clandestina? A única resposta plausível era que ele a encontrou por acaso e quis obrigá-la a partir de suas terras e como ela não desejava lhe obedecer, aproveitou sua invalidez para lhe dar fim. Questionariam-se como uma mulher tão pequena teria sido capaz de fazer tal maldade? Não, é óbvio que não. Além disso, se descobrissem sua identidade, a sentença não apresentaria dúvida alguma.

A única opção que tinha era averiguar se estava vivo e conduzi-lo até a cabana, prestar-lhe auxílio e quando amanhecesse, correr a Haddon Hall para pedir ajuda, embora isso lhe custasse à expulsão da qual tinha sido seu lar durante os últimos meses. Devagar, mais do que pretendia, aproximou-se do duque e o observou com atenção.

«Obrigado, Meu Deus!», murmurou ao céu quando percebeu que ainda respirava.

Nesse momento outro bando de pássaros voou com frenesi sobre eles. Sem pensar duas vezes girou o corpo inconsciente e o agarrou pelas axilas para arrastá-lo. Não havia tempo nem forma fácil de trasportá-lo, então o arrastou sem descansar até que suas costas tocou o cercado que rodeava seu lar. De repente escutou uns ramos se partirem. Levantou o olhar e os observou. Grunhiam e lhes mostravam os dentes. Seus olhos escuros se cravavam nela. Um lobo cinza deu uns passos para diante, levantou o focinho e uivou com força. Beatrice tragou saliva. Sentia o medo percorrer seu corpo, mas não se amedrontou. Prosseguiu sua façanha até que introduziu o duque ao interior da cabana e fechou a porta com o trinco.

Deixou-o estendido no chão enquanto procurava a maneira de subi-lo à cama. Compreendendo que não tinha nada que a ajudasse no árduo trabalho, decidiu pegar o colchão e situá-lo perto do ferido. Assim, quão único teria que fazer era rodá-lo até que estivesse em uma posição adequada. Antes de voltar a tocá-lo ficou de pé observando-o em silêncio. As marcas do rosto, aquelas que tanto tentava esconder com a longa barba, mostravam-se sem disfarces. Ao contempla-las com mais claridade, pensou que não eram tão horrendas como diziam, embora para um homem tão formoso, aquelas sequelas fossem feitas pelo próprio diabo.

Seguiu admirando-o à distância. Tinha um aspecto muito viril, robusto e atlético, muito distante, em sua opinião, da fraqueza em que todos insistiam na sequencia do incidente.

Com valentia voltou a segurá-lo e o girou de lado para colocá-lo sobre o colchão, afastando-o da frieza do chão. Ao pôr suas mãos sobre ele notou que estava gelado, a roupa molhada se grudava ao seu corpo e o esfriava sem compaixão. Decidida, aproximou-se da chaminé, colocou uns troncos e acendeu um fogo. Isso bastaria para esquentar a pequena habitação em que se encontravam. Enquanto as chamas começavam a brotar, voltou para o ferido e começou a lhe tirar aquela capa enlameada. O duque emitiu um pequeno gemido provocando que Beatrice se sobressaltasse e se apartasse. Não desejava que abrisse os olhos e a encontrasse tocando seu corpo. Poderia deduzir algo que não era.

Esperou sentada junto à chaminé outra reação do homem, mas ao ver que seguia inconsciente retornou para continuar lhe despojando dos objetos. Era a primeira vez em sua vida que se encontrava em uma situação parecida e embora não devesse sentir nenhum tipo de temor, estava tremendo. As mãos não eram capazes de desfazer o nó da capa, nem de lhe tirar com agilidade a jaqueta. O que lhe acontecia? Estaria lembrando-se da noite que passou com ele? Não, não era isso. Só estava nervosa se por acaso o duque abria os olhos e a descobrisse despindo-o. O que pensaria? Certamente que lhe estava roubando. Os homens de sua índole jamais imaginariam que alguém podia lhes ajudar por solidariedade.

Quando ao fim o deixou em camisa descobriu uma mancha de sangue que não tinha visto com antecedência. Devagar desabotoou cada botão até que o peito ficou descoberto e pôde inspecionar a zona de onde brotava o sangue, era uma ferida que abrangia do flanco esquerdo até o ventre, uma zona que ao duque lhe teria sido impossível proteger com seu braço inútil. Beatrice não pôde evitar olhar o torso com assombro. Era a primeira vez que descobria o que se escondia sob as roupas de um homem. Nunca pensou que fosse tão robusto, nem que nessa zona o pêlo crescesse tão escuro e encaracolado. Mas o que lhe deixou sem fala foi o tamanho dos mamilos, eram diminutos, mal visíveis à primeira vista. Sem meditar mais sobre isto, incorporou-se, preparou uma panela com água fervendo e começou a limpar o corte com supremo cuidado. Não era profundo, só um arranhão muito comprido.

Cada vez que passava o pano o homem franzia o cenho e se queixava, embora não abrisse os olhos. Depois de seus cuidados, sentou-se de novo junto à chaminé. Estava muito cansada por todo o ocorrido. Não só seu abatimento era físico, mas também mental. Ela podia ter salvado a vida do duque de uma morte segura, pois se o tivesse abandonado, os lobos teriam se alimentado dele. Mas este ato de misericórdia teria consequências nefastas para ela, deveria abandonar o lugar que chamava de lar. Um lugar que lhe contribuía com paz, quietude e esperança de não voltar a ser a mulher que foi.

Sentada, estendeu as pernas, cruzou os braços, apoiou a cabeça na parede e deixou que o sono se apoderasse dela.


VII


Doía-lhe todo o corpo, inclusive a parte que era insensível. Elevou com pesar as pálpebras e não soube reconhecer onde se encontrava. Quão último recordava era que seu cavalo se assustou no bosque, justo antes de chegar ao rio Wye, e tinha começado a correr sem controle. Tudo aconteceu bastante rápido. As cintas que o sujeitavam à cadeira se partiram e durante um tempo esteve amarrado ao estribo do animal desenfreado até que ao final caiu ao chão. O golpe foi tão potente que foi incapaz de assimilar o acontecido durante uns momentos. Quando compreendeu o ocorrido tentou arrastar-se pelo chão transformado em lamaçal. Apesar de seu esforço, mal conseguiu distanciar um metro de onde havia desabado. Depois gritou pedindo auxílio, mas ninguém respondeu. Exausto pelo esforço terminou perdendo os sentidos. E agora, ao despertar daquela agonia, achava-se em um lugar que não conseguia distinguir.

Moveu a cabeça para a direita e observou uma mulher sentada no chão a menos de um metro dele. Tinha um aspecto lamentável: o barro cobria cada centímetro de tecido de seu vestido assim como seus sapatos. Dirigiu os olhos para o rosto da moça para tentar reconhecê-la, mas foi impossível. Uns largos cachos negros soltos de um coque tampavam seu semblante. William franziu o cenho ao compreender que a desconhecida dormia no chão apoiada sobre a parede e claramente, exausta pelo cuidado que dava a ele.

? Desculpe... ? sussurrou após respirar várias vezes e procurar uma palavra adequada para não sobressaltá-la.

? Já despertou? ? Perguntou Beatrice dando um salto.

Sem esperar a resposta do homem aproximou-se e lhe colocou uma mão sobre a testa. Nesse momento William fechou os olhos, não queria ver no rosto da mulher, sua expressão de angústia quando contemplasse suas cicatrizes.

? Parece que não tem febre. Foi uma sorte que o tenha encontrado antes que pudesse adoecer ou acabar devorado por... ? deixou sem finalizar a frase. Levantou-se, aproximou-se da mesa onde tinha o pano com o qual o tinha limpado e, depois de ajoelhar-se, voltou a lhe limpar o peito, o pescoço e o rosto. ? Terá que ficar um tempo de repouso, embora as feridas não sejam graves, necessitam de uns dias tranquilos para que sarem adequadamente.

O tom da jovem era tão terno que o duque fechou de novo seus olhos. Desejava com todas as suas forças que aquela imagem, em que uma mulher o cuidava sem sentir asco por suas feridas, não fosse uma alucinação.

? Onde estou? ? Ao sentir o suave tato da mão feminina pela zona na qual seu rosto estava destroçado, William abriu os olhos e, sem pensar agarrou-lhe com força pelo pulso para que cessasse imediatamente.

? Em minha casa. ? Beatrice o olhou apertando os olhos para a pressão daquele aperto forte. Não esperava que lhe agradecesse por lhe haver salvado a vida, mas tampouco imaginou que lhe ocorresse ser um mal educado.

William, ao ser consciente de seu inoportuno ato, soltou-a e tentou incorporar-se, mas ela o impediu colocando uma palma sobre o peito nu do homem e lhe obrigando a recostar-se de novo. O cabelo negro se estendeu pelo colchão. Sua respiração não era tranquila e Beatrice podia ouvir o tilintar das botas do duque ao golpear-se.

? Deve recuperar-se... seu... senhor.

? Eu gostaria de lhe informar sobre certas feridas do meu corpo. Quero lhe esclarecer que não foram causadas recentemente... ? seu tom soou débil, inclusive triste.

? Mas apesar disso deve descansar. ? Levantou-se e se dirigiu para um caldeirão metálico que tinha muito perto do fogo. Colocou uma concha de sopa e tirou algo que introduziu em uma terrina. ? Acredito que isto lhe virá bem... ? retornou para o homem, agachou-se, colocou seu braço esquerdo ao redor do pescoço masculino, inclinou-o para frente e pôs uma pequena superfície da borda sobre os lábios. ? Não tem nada a ver com os ricos manjares aos que imagino que você deve estar acostumado, mas este caldo lhe reconfortará. ? E antes que o duque pudesse negar-se, Beatrice o fez tomar.

William esticou a mão para o recipiente e ajudou à moça. Era certo que não tinha provado nunca um sabor igual, embora a necessidade de alimentar-se e de recuperar um pouco de força fez com que bebesse até a última gota sem mal respirar. A jovem voltou a estendê-lo sobre o colchão enquanto ia de um lado para outro. Estava inquieta e ele a compreendia. Tinha em sua casa a um estranho que mal podia mover-se e que parecia ter a obrigação moral de cuidar.

? Quando chegará seu marido? Devo lhe indicar onde resido. Ele poderá informar aos meus criados do meu paradeiro e estou seguro de que não demorarão em vir por mim. Agradeço-lhe tudo o que tem feito, entretanto você entenda que não desejo ser uma carga... ? disse-lhe sem apartar a vista de quão único alcançava a ver, seus tornozelos.

? Meu... quem? ? Deu uma volta sobre si mesma com brutalidade, provocando que sua saia se elevasse algo mais do devido e que o duque descobrisse umas magras pantorrilhas sem meias.

? Seu marido... a pessoa que haverá me trazido até aqui ? esclareceu.

? Não há tal marido, senhor. Fui eu mesma quem o transladou. ? Colocou-se em frente a ele com as mãos apoiadas em sua cintura.

? Você carregou o meu peso? ? Perguntou assombrado e um tanto sufocado. Aquela moça não era muito alta e, notavelmente magra, mais do que se podia esperar em uma jovem de sua idade.

? Pois sim. Encontrei-o no meio do bosque e decidi lhe salvar a vida, embora possa lhe assegurar que quase me custou a minha ? sorriu.

Quando William a observou sorrir acreditou ver um anjo. Um despenteado e sujo anjo que tinha cuidado de seu rosto e não tinha encontrado nele nem um ápice de repulsão por seu deformado aspecto. Pareceu-lhe tão implausível para ele que acreditou que o golpe lhe tinha causado visões. Desde quando alguém não apartava seus olhos ao estar ele presente? Desde quando alguém o olhava sem dirigir os olhos para a cicatriz, para franzir o cenho?

? Então... devo lhe agradecer o esforço que realizou para me salvar ? disse após sua reflexão. Tentou levantar-se de novo e arqueou as sobrancelhas ao ver que seu torso estava nu. Desviou o olhar para a mulher e esta se ruborizou imediatamente.

? Tive que limpar a ferida que se fez no abdômen. Como imaginará, tive que apartar a roupa – desculpou-se.

? Obrigado ? disse depois de uns momentos de silêncio que empregou para saber como deveria continuar a conversação. ? Se por acaso não se deu conta, sou um incapacitado. Não posso mover a mão esquerda, mas não foi por causa da queda, faz tempo que deixou de funcionar. Minha perna... bom, ela tenta recuperar um pouco de funcionalidade depois de um inoportuno tropeção em meu lar.

? O que lhe aconteceu? ? Colocou-se ao lado da chaminé onde podia contemplá-lo com maior claridade.

? Como já lhe expliquei, isto aconteceu faz bastante tempo...

? Refiro-me a hoje. Por que estava caído no chão? ? Interrompeu-lhe.

? Decidi cavalgar durante um momento. Minha intenção era chegar até o rio Wye e retornar, mas meu cavalo se assustou e... bom, eu fui jogado. ? Suspirou e olhou para o teto enquanto se perguntava uma e outra vez por que dava explicações a uma estranha. Jamais as tinha dado a ninguém. Entretanto, ela era especial. Era um ser divino que o tinha salvado de uma morte segura.

Beatrice o olhou sem piscar. Tinha uma vontade incrível de lhe gritar como era insensato, mas não o fez, manteve-se calada esperando que o duque continuasse, mas ele se manteve em silêncio.

? Há lobos pela região ? explicou para romper o mutismo entre ambos. ? Talvez seu cavalo se assustasse ao escutá-los e atuou preso do medo.

? Pode ser... ? respondeu sem apartar a vista do teto.

? Assim que se encontrar melhor irei procurar ajuda. Estou segura de que alguém estará preocupado por seu desaparecimento. ? Voltou a aproximar-se e lhe abotoou a camisa para que não se sentisse incômodo por sua nudez. Ou possivelmente era ela a que se encontrava nervosa.

William quis fechar os olhos e sentir o suave tato das mãos sobre ele, mas lhe resultou impossível. Desejava observar com atenção a sua salvadora e, embora tivesse o cabelo despenteado e sujo assim como o rosto, pôde admirar a beleza de seus olhos. Uns olhos verdes que não apartavam o olhar de seu rosto nem mostravam repulsão ante a fealdade de suas cicatrizes.

? Posso lhe perguntar seu nome? ? Inquiriu William quando ela retornava para a chaminé.

? Meu nome é Beatrice ? respondeu.

? Só Beatrice?

? Beatrice Brown ? mentiu.

? Senhorita Brown, ? disse o duque com um tom sério e firme ? como compreenderá, estou em dívida com você e seria um cretino se não a saldasse.

? Não precisa me prometer nada...

? Sou o duque de Rutland e por minha honra oferecerei-lhe tudo aquilo que desejar. Se por acaso não se deu conta, salvou-me a vida.

? Não necessito de nada... ? murmurou com suavidade.

? Não quero que me responda agora, não é necessário. Mas quando decidir o que me pedir, estarei encantado de escutá-la ? insistiu sem relaxar aquele tom de venerabilidade.

À Beatrice não cabia dúvida da veracidade da promessa embora não acreditou oportuno lhe dizer que vivia em uma propriedade dele e precisava seguir permanecendo ali durante o resto de sua vida. Para evitar que o homem continuasse falando com tanta seriedade, desenhou um sorriso em seu rosto e disse:

? Possivelmente a queda lhe tenha prejudicado mais do que parece. Como mínimo, deve ter lhe afetado o ouvido. Faça o favor de descansar. Por agora é o único que lhe peço.

? Juro por minha honra...

? Shhh ? avançou para ele, pôs-lhe um dedo nos lábios e lhe fez calar. Não queria escutar promessas que não se poderiam cumprir. Estava aturdido e uma pessoa em dito estado de choque poderia falar mais do que o imprescindível. ? É melhor que durma, precisa descansar um pouco mais.

William a olhou sem saber se ria ou zangava-se. Não fez nem um nem outro, ficou observando-a durante uns instantes. Finalmente fechou os olhos e se obrigou a dormir. Embora antes de deixar-se sucumbir pelo sono se perguntou quando tinha sido a última vez que havia sentido tanta paz e desde quando era incapaz de replicar as ordens de uma mulher. As respostas surgiram com rapidez, desde que a dita mulher lhe tinha salvado da morte, não lhe tinha cuidado com repulsão e o tratava com ternura.

Beatrice esperou até que escutou a respiração profunda do duque.

Caminhou para a janela e descobriu que os primeiros raios de sol começavam a surgir atrás das montanhas. Era o momento ideal para ir à Haddon Hall e comunicar o paradeiro do duque. Estava segura de que todo mundo estaria angustiado pelo desaparecimento. Teriam começado uma busca conscienciosa e se ela não chegasse o antes possível para lhes explicar onde se encontrava, logo seu lar se veria repleto de desconhecidos que a interrogariam sobre por que vivia em um lugar que não lhe pertencia.

A angústia que sentiu ao imaginar-se nessa situação lhe criou tal impaciência que só se atrasou em pegar sua capa e correr para a residência. Durante o caminho sopesou a atitude que teria o senhor Stone ao vê-la. Esticar-se-ia como um pau, ordenaria que salvassem ao senhor das garras de uma camponesa desalinhada e a reteria na mansão até que descobrissem a verdade. Não podia permitir que a acusassem de algo que não tinha feito, então decidiu que após dar a notícia correria para seu lar para fechar a porta e esquecer tudo o que tinha acontecido.

Como sempre, a magnitude do edifício a deixou perplexa. Não entendia como um paraíso podia albergar um lar tão austero. Quanto mais se aproximava, mais calafrios sentia. Esfregou-se os braços para dar-se um pouco de calor e começou a subir as escadas. Ao chegar à porta principal começou a golpeá-la com força. Depois de vários intentos sem ser atendida, decidiu tentar a porta de serviço. Se não se equivocava, a senhora Stone estaria na cozinha e a escutaria com prontidão. Andou devagar tentado descobrir se surgia da escuridão alguém com quem falar, mas só havia silêncio, um estranho e horrendo silêncio.

? Menina! ? Exclamou a senhora Stone ao vê-la. ? O que faz aqui?

? Bom dia, senhora. Preciso falar com o senhor Stone ? respondeu com voz equilibrada.

? Retornou para...?

? Não! ? Respondeu com prontidão ao mesmo tempo em que suas bochechas se enchiam de uma intensa cor vermelha.

? Pois, querida, o senhor Stone não pode te atender. Aconteceu algo bastante dramático em Haddon Hall e...

? O duque está em minha casa – interrompeu-lhe.

? O que está dizendo, moça? ? Os olhos inchados da anciã devido ao intenso pranto que teria tido enquanto o duque estava desaparecido, abriram-se de par em par.

? Encontrei-o caído no meio do bosque. Quando compreendi que estava vivo o arrastei até meu lar e o estive cuidando após ? explicou Beatrice.

? Obrigado, meu Deus! ? Clamou antes de lhe dar um forte abraço e enchê-la de beijos. ? Muito obrigada, criatura do Senhor, por salvá-lo. ? Depois de uns momentos nos quais Beatrice mal conseguia respirar, a mulher a liberou e correu para a porta gritando: ? Senhor Stone! Senhor Stone!

? O que acontece? A que vêm esses gritos? ? Tal como se tinha imaginado, o mordomo apareceu na cozinha erguido e mal-humorado. Ao ver a jovem entrecerrou os olhos e lhe disse: ? O que faz aqui? Não teve o suficiente com aquela noite? Acaso gastou o dinheiro que ganhou e vem procurando mais?

? Brandon! ? Gritou Hanna zangada. ? Por que é tão...?

? Tão? ? Arqueou as sobrancelhas e uniu com suavidade as pestanas.

? A jovem veio até aqui para nos informar sobre nosso senhor. Ele está são e salvo. Encontrou-o no bosque e o esteve cuidando ? esclareceu a anciã sem mal tomar fôlego.

? Onde está? ? Exigiu sem baixar a intensidade de seu tom.

? Está em minha casa ? anunciou abaixando a cabeça. As duras palavras do mordomo sobre o acontecido aquela noite lhe tinha criado um grande pavor.

? Diga-me agora mesmo onde se encontra sua Excelência! ? Exclamou com ira.

? Vim até aqui por vontade própria. Acreditei que estariam preocupados com o destino do duque e quis lhes informar que se encontra bem.

? Onde está? ? Repetiu Brandon com os dentes apertados. Aproximou-se tanto de Beatrice que esta teve que dar vários passos para trás para que não conseguisse roçá-la.

? Na pequena casa que há no bosque. É o... ? murmurou devagar.

? Refúgio de caça ? terminou a frase. ? Está bem, mandarei vários criados com a carruagem e espero, por seu bem, que se encontre em ótimas condições porque do contrário...

? Não desejo escutar nada sobre isso, ? agora foi ela quem não lhe deixou terminar a frase ? vim voluntariamente lhe indicar onde se encontra.

Brandon a olhou irado. Girou-se para a porta para ordenar a outros criados que se preparassem para ir procurar ao senhor e quando retornou à cozinha com a intenção de apanhar a moça, já não estava.

? Por que não impediu que se fosse? ? Perguntou zangado à sua mulher.

? Pensa que minhas pernas podem correr como os galgos? Além disso, não crê que se comportou como um idiota, meu querido? Ela só veio nos informar sobre o paradeiro do duque e você a tratou como uma criminosa.

? Mas...

? Não tem “mas”! ? Exclamou levantando a mão para lhe fazer calar. ? Hoje não espere nenhum tipo de afeto em nosso quarto. Prefiro, se não quiser cair do colchão durante a noite, que durma em outra habitação. ? Depois de ameaçá-lo, girou-se sobre seus calcanhares e seguiu prestando atenção à comida que estava cozinhando.

Beatrice chegou, como era de se esperar, antes dos criados. Abriu devagar a porta de seu lar e se assombrou ao ver que o duque estava sentado sobre o colchão e olhava o fogo. Este, ao escutar que alguém acessava ao interior da casa, moveu a cabeça para sua direção.

? Foi à Haddon Hall para lhes avisar? ? Perguntou sem mostrar em seu rosto nenhum tipo de emoção.

? Sim ? respondeu enquanto se aproximava e se colocava em frente a ele. Sua respiração era agitada devido ao esforço da corrida. Tomou ar de maneira pausada, acalmou-se e continuou: ? Estão vindo para cá. Eles lhe cuidarão como merece. Penso que eu não posso lhe oferecer muito. Tenho poucos recursos...

? Andou até Haddon Hall... sozinha? Apesar de me haver indicado que há uma manada de lobos rondando no bosque? ? William estava zangado. Mais do que se havia proposto.

Um momento depois de recostar-se escutou a porta, despertou e, por muito que a tinha chamado para que não partisse, não o conseguiu. Nesse momento tentou levantar-se, mas o único que pôde fazer foi sentar-se naquele roído colchão e esperar que o tempo passasse. Sua incoerente ação não só tinha posto em perigo a ele mesmo, mas sim também tinha arrastado a pessoa que o tinha salvado de uma morte inevitável. Zangou-se por ser tão irracional. Zangou-se por deixar-se levar pela ira, por ter tomado mais álcool do que o acostumado. Zangou-se por tudo o que tinha feito no passado e suas consequências.

? Não se preocupe comigo, Excelência. Estou acostumada a contornar certos perigos. ? Tirou-se a capa e a colocou sobre uma cadeira.

? Mesmo assim, você é uma inconsciente ? disse com aborrecimento.

? Uma inconsciente? ? Beatrice entrecerrou seus olhos e franziu o cenho. ? De verdade que um homem como você é capaz de me definir de tal maneira? Acaso fui eu quem decidiu cavalgar depois de vários dias de chuva e com limitações? ? Fechou com rapidez a boca. O que menos desejava naquele momento era lhe recordar àquilo que lhe tinha destroçado a vida. Entretanto, ao ver que o duque cravava o olhar no chão soube que suas palavras lhe tinham feito mal, mais do que pretendia.

? Você tem razão... ? sussurrou William. ? Por isso quero que recorde que tenho uma dívida pendente com você e eu gostaria de saber no que posso ajudá-la. Se for possível, antes que eu parta.

? Só preciso ficar sozinha... ? murmurou muito devagar.

Girou-se para a chaminé dando as costas ao homem e esticou as mãos para esquenta-las.

William se dispunha a replicar suas palavras quando a porta se abriu com brutalidade e apareceram duas pessoas. Uma delas era o cavalariço e a outra, seu ajudante de câmara. Ficaram olhando-os durante uns instantes esperando que alguém lhes ordenasse o seguinte passo.

? Sairei para que o assistam como é devido ? comentou Beatrice abaixando a cabeça e dando uns passos para a saída.

Nesse momento, sem saber por que, jogou uma última olhada ao duque, que a olhava sem pestanejar. Seu cenho permanecia franzido e apertava com força a mandíbula. Sem dúvida alguma o homem se zangou ao não obter a resposta que desejava, mas ela não queria adiar por mais tempo a partida. Desejava com todas as suas forças que a normalidade reinasse em sua vida, precisava apartá-lo o antes possível porque sua presença não lhe fazia nenhum bem.

Continuou andando e fechou a porta após sair. Sentou-se nas escadas de pedra e tampou o rosto. Não queria pensar em nada, mas mesmo assim a mente não parava de meditar sobre os infortúnios da vida. Em um passado quando seu pai foi rogar o auxílio do duque e este se negou arrogantemente e agora, o mesmo homem que não quis escutar sua versão dos fatos, rogava-lhe que lhe pedisse algo para saldar sua dívida e conseguir a paz. Seria uma opção acertada lhe pedir que lhe devolvesse sua vida? Pouco depois os homens saíam e William se apoiava em um deles para poder caminhar. Beatrice se levantou para lhes facilitar o acesso. Quando passou por seu lado, o duque fez com que parassem.

? Temos uma conversação pendente, senhorita Brown. Direi a um dos meus criados a que venha recolhê-la o mais cedo possível.

? Não temos nada do que falar, milord ? disse abaixando a cabeça. ? Não me deve nada.

Os criados entenderam que a conversação tinha finalizado e continuaram sua marcha até a carruagem. Elevaram ao duque para sentá-lo corretamente. William jogou a cabeça para trás e depois de fechar os olhos pensou: «Só lhe devo minha vida, senhorita Brown».


VIII


? Está seguro? ? William tomava o café da manhã enquanto escutava com atenção ao Brandon. Este lhe explicava que o criado enviado para que acompanhasse a senhorita Brown até Haddon Hall retornava outra vez sozinho.

? Sim, sua Excelência ? afirmou o mordomo depois de um sopro suave. A tarefa, apesar de parecer bastante singela, estava sendo uma verdadeira agonia.

? É uma mulher muito teimosa. Quantas vezes foram em sua busca? ? Pegou a xícara de chá e a levou para a boca para ocultar o enorme sorriso que desenhavam seus lábios.

Aquele comportamento não era de se estranhar, e mais, se ela tivesse aceitado algum de seus convites o teria desapontado. Só uma pessoa com caráter firme seria capaz de albergar um estranho em seu lar sem pensar na repercussão que dito ato de valentia podia supor. Além disso... desde quando uma frágil moça salvava a vida de um desconhecido pondo em perigo a sua?

? Contando com a de hoje, sete. Os dias que você está em casa desde o infortúnio ? esclareceu.

? Bom, então acredito que a melhor opção é me apresentar ante a senhorita Brown e lhe perguntar o motivo de suas contínuas negativas ? indicou pousando a xícara sobre o prato e empurrou a cadeira para trás para se levantar.

Pegou com força a bengala e caminhou para onde se encontrava o mordomo. Tinha decidido visitá-la quando a terceira negativa chegou até seus ouvidos. Entretanto esperou recuperar-se de tudo para mostrar um aspecto ótimo. Não queria que a mulher continuasse acreditando que ante seus olhos se encontrava um ser débil, frágil. Desejava que admirasse a pessoa que em realidade era, ao duque de Rutland, um homem com caráter, firmeza, força e com energia suficiente para assumir as consequências de seu destino.

William estranhou sua repentina mudança de atitude. Desde quando o duque de Rutland tinha despertado de sua profunda letargia mental? Possivelmente a resposta se escondia nela e, se era assim, precisava encontrar o antes possível o por que.

? Diga ao cavalariço que prepare um cavalo. Partirei quando o ajudante de câmara me vestir para a ocasião.

? Como desejar, sua Excelência.

Brandon, apesar de ter uma vontade imensa de rebater aquela ideia, não estava lá para impedir os desejos de seu senhor. Além disso, tantos anos ao seu serviço ofereciam a experiência necessária para compreender que as decisões do duque não podiam ser questionadas. Ele tinha nascido teimoso e, se Deus velasse por sua vida, morreria sendo-o.

Enquanto o criado lhe ajudava a vestir-se, William pensava na forma mais correta de iniciar uma conversação com sua salvadora. Agradeceria ou lhe perguntaria o que fazia vivendo em seus domínios? Esse mesmo pensamento tinha estado perturbando-o durante a semana que esteve recuperando-se. Sua preocupação não se devia a que a moça habitasse em um lugar de suas terras, graças a isso ele sobreviveu. Mas se perguntava uma e outra vez como tinha chegado até ali. Teria se perdido? Ou talvez... tinha-lhe acontecido algo tão dramático que decidiu abandonar seu autêntico lar.

«Só preciso ficar sozinha». Essas tinham sido suas palavras quando ele insistiu em que lhe devia um favor e que podia lhe pedir o que ansiasse. Por que uma jovem que não devia ter mais de vinte anos vivia sozinha à mercê dos infortúnios de uma vida campestre? Se tivesse sorte, coisa que duvidava, porque começava a conhecer o temperamento da senhorita Brown, suas perguntas seriam respondidas.

? Bom dia, senhor. Seu cavalo está preparado ? explicou o criado quando percebeu que a esbelta figura do duque aparecia pelas cavalariças.

? Espero que desta vez as cintas não se rompam ? apontou William ao mesmo tempo em que se dirigia para o animal eleito.

? São correias novas, sua Excelência – indicou-lhe o criado sem lhe olhar nos olhos. ? Têm o dobro de grossura e proporcionam uma amarração mais segura.

? Bem... ? disse mal reparando na explicação do jovem.

Com passo firme aproximou-se do corcel e esperou que o criado lhe ajudasse a subir. Quando esteve sobre o cavalo e não sentiu a segurança que lhe proporcionava seu garanhão, perguntou ao criado:

? Continuam a busca pelo Dalión?

? Sim, meu senhor. Mas não há rastro dele. Parece que a terra o tragou...

? É mais fácil ter sido devorado por uns malditos lobos... ? murmurou com os dentes apertados antes de açular ao animal.

Depois de amaldiçoar a sorte pelo penoso destino que teria vivido o cavalo, pensou em Beatrice, na solidão em que se encontrava e na facilidade que teriam aqueles depredadores para assaltá-la. A mera ideia de que ela sofresse alguma briga violenta com estes, produziu-lhe tamanho aborrecimento que notou como o coração palpitava em sua garganta. A ira surgida só o fazia pensar em uma coisa: tinha que arrastá-la até Haddon Hall. Não podia deixá-la à mercê do nada.

Crê que aceitará sua proposição com um sorriso? ? Refletiu sem diminuir a marcha. Acaso imagina a senhorita Brown recolhendo seus petences e montando-se na garupa do cavalo enquanto te agradece o oferecimento? Não, ela não abandonará esse lugar jamais.

Mas apesar de saber que a negativa seria sua única resposta, ele como bom jogador, tinha um ás na manga. Um ás que seria a melhor alternativa para ambos: dar-lhe-ia de presente a cabana, onde poderia desfrutar de sua ansiada solidão, só se ela aceitasse passar uma temporada em Haddon Hall. Seria um período curto de tempo, o suficiente para que seus criados construíssem um muro de pedra ao redor do refúgio e eliminassem a suja cerca com a qual ela se acreditava protegida. William sorriu triunfante, era uma opção muito apropriada e, sem dúvida alguma, Beatrice não poderia rechaçar. Deste modo sua dívida estaria saldada e por fim poderia deixar de pensar na jovem, porque desde que a moça apareceu em sua vida, tinha deixado de aflorar as cenas eróticas que tinha vivido com Juliette, para dar passo a uma multidão de inquietações produzidas pela ditosa senhorita Brown. Agora em suas noites não havia luxúria, a não ser angústia por uma mulher tão enigmática, como teimosa.

Beatrice acaba de limpar e dar de comer aos animais. Levou a mão direita para seu rosto e tentou tirar o barro que lhe tinha respingado após perseguir uma de suas ovelhas. O animal tinha escapado por um oco da cerca e, assustado, corria apavorado para o bosque. Por sorte para ambos, a espantada criatura ficou presa entre duas raízes grandes de uma árvore que se sobressaíam à superfície. Ela, muito devagar, aproximou-se por trás e saltou sobre o animal, voltando-se a se sujar da cabeça aos pés com o barro que havia no terreno.

? Espero que isto a ensine a não fugir de mim ? dizia ao animal enquanto que o mesmo caminhava depressa para resguardar-se junto ao rebanho.

Apesar do esforço, ainda ficava um pouco de energia para cortar lenha e preparar um lar quente. As chuvas tinham cessado, mas o frio não e, se seu prognóstico sobre o tempo não falhasse, hoje seria uma noite bastante gelada. Depois de certificar-se de que o buraco estava arrumado e que nenhum intrépido animal poderia escapar de novo, dirigiu-se para o barracão de lenha para continuar com seu plano. Entretanto, justo quando elevava o machado para tirar o primeiro corte ao tronco selecionado, escutou os passos de um cavalo avançar para onde se encontrava. Com o utensílio na mão e aferrando-o com força, girou-se para a pessoa que se aproximava. Se, se tratasse de outro criado do duque, assustá-lo-ia e o ameaçaria para que partisse. Já estava cansada da insistência do nobre. Não voltaria a apresentar-se ali nem que morresse de fome!

? Senhorita Brown, foi assim que você recebeu os meus emissários? Entendo então a razão pela qual se recusam a vir em sua busca.

Beatrice ficou atônita ao descobrir que o próprio duque era quem montava sobre o cavalo e sorria ao ver como levantava a ferramenta afiada. Olhou-o sem pestanejar e se sentiu feliz ao perceber que mal ficavam sequelas do passado incidente. Embora algo chamasse com demasia sua atenção: a longa juba escura e a espessa barba tinham desaparecido. Agora a marca do fatídico duelo ficava à vista de todo aquele que o contemplasse. Examinou-o com mais interesse e reparou que ia vestido com o traje habitual para cavalgar. Do alto do corcel parecia o homem que conheceu na festa da senhora Baithlarin: forte, bonito e enigmático. Sem lugar a dúvidas, depois dos dias de descanso tinha retornado o famoso duque de Rutland.

? Bom dia, Excelência ? respondeu baixando as mãos e abaixando a cabeça.

? Bom dia, senhorita Brown ? disse mostrando um grande sorriso.

? Vejo que continua desafiando a morte.

? Só se tiver a certeza de encontrar uma boa pessoa que tenha piedade de um homem tão desamparado como eu e decida me salvar ? indicou com zombaria.

? Você confia muito na piedade dos outros... ? replicou antes de agachar-se para recolher alguns pedaços de lenha que tinha cortado no dia anterior. Embora cortar troncos fosse uma ação muito habitual em uma camponesa, não lhe agradava sentir-se observada e menos ainda quando a pessoa que a olhava era o duque.

? Eu adoraria poder lhe oferecer minha ajuda, mas como já sabe... ? o tom zombador do duque desapareceu de repente para dar passo a uma voz suave, débil e inclusive com um toque de tristeza.

? Posso fazê-lo por mim mesma, Excelência. Além disso, poderia sujar esse bonito traje e estou segura de que seu ajudante de câmara se zangaria muitíssimo ? explicou ao mesmo tempo em que caminhava para a entrada de sua casa.

Desejava entrar na intimidade de seu lar, fechar a porta e deixá-lo ali fora. Desejava que partisse e que não a perturbasse mais, algo muito difícil se o motivo daquela visita fosse lhe recordar a ditosa promessa.

? Senhorita Brown... ? disse enquanto fazia com que seu cavalo caminhasse ao redor da cerca. ? Por que se negou a aceitar meu convite?

? Como pode comprovar, tenho muito trabalho e não posso perder tempo aceitando visitas que...

? Meu convite lhe faria perder tempo? ? William arqueou as sobrancelhas e a contemplou atentamente.

Assim como a última vez, estava coberta de barro. Não entendia como lhe resultava tão difícil estar arrumada em algum momento do dia. A única explicação que encontrou foi que, ao estar sozinha e não poder cercar conversação com ninguém, teria descoberto certo consolo em rolar pelo chão e cobrir-se de lodo.

? Não quis dizer... ? começou a desculpar-se, mas depois de olhar com atenção o rosto do duque e advertir que este não cessava de mostrar um sorriso zombador, descobriu que suas palavras não lhe tinham causado o aborrecimento que ela tinha suposto. Irada, aferrou-se com força às lenhas e lhe perguntou de mau humor: ? A que devo a honra de sua visita, senhor?

? Vim lhe recordar que temos algo pendente e eu gostaria de resolver tal questão o antes possível ? argumentou com seriedade.

? Acaso o excelentíssimo duque de Rutland tem uma terrível insônia por saber que tem uma dívida pendente com uma mulher? ? Sorriu de orelha a orelha triunfante. Esperava que após sua descarada atitude se ofendesse e a deixasse por fim em paz.

? Insônia... ? virou os olhos para a esquerda como se estivesse duvidando sobre como nomear tal situação. Logo sorriu, olhou-a nos olhos e continuou: ? Não, eu não o denominaria dessa forma, mas é certo que você perturba minha mente.

? Eu lhe perturbo?! Como uma humilde camponesa pode fazer tal coisa? ? Prosseguiu com um tom mordaz.

? Antes, senhorita Brown, minhas noites estavam cheias de luxúria porque eu revivia momentos íntimos com as minhas amantes. Entretanto, desde que você apareceu em minha vida, não afloraram as ditas imagens. Quando fecho os olhos só vejo você ? explicou com tom sereno, impessoal, embora por dentro não cessasse de rir.

? Como diz?! ? Beatrice abriu os olhos como pratos e sentiu fogo em suas bochechas. A confissão a desconcertou tanto que se esqueceu de que segurava as lenhas e, quando levou as mãos para o rosto para que o duque não observasse o rubor de seu semblante, os troncos caíram sobre seus pés. ? Ai! ? exclamou de dor.

William agarrou com força as rédeas do cavalo com a mão sã e desceu com rapidez do cavalo. Em nenhum momento reparou que sua perna lhe doeria ao tocar o chão. Só pensava que, por tentar apaziguar o forte caráter da mulher, tinha-a ferido. Abriu a débil grade e caminhou com firmeza para Beatrice, que tinha se sentado sobre as escadas e agarrava um pé enquanto brotava de seus olhos uma centena de lágrimas.

? Sinto muito, perdoe-me. Não foi minha intenção lhe causar dano algum. Só queria continuar com a ironia que estávamos mantendo em nossa conversação. ? Aproximou-se tanto que pôde observar o brilho daquelas gotas salinas. ? Deixe-me examinar seu pé. ? Estendeu a mão útil e tocou com delicadeza a pantorrilha, o tornozelo e o peito do pé da jovem.

? Não tinha vindo procurando desculpar sua dívida? Pois acaba de saldá-la. Eu lhe curei e agora você... ? voltou-se para o duque com tal rapidez que não percebeu a cercania que existia entre eles. Durante uns escassos instantes, Beatrice pôde respirar o ar que o duque emanava de sua boca e vice versa. Seus olhos claros se projetavam na escuridão do olhar do homem. Aturdida, levantou-se e apoiou o pé sobre o chão, guardando para si a dor que sentia. Colocou suas mãos na cintura e indicou: ? Como lhe disse com antecedência, não necessito que você me ofereça nada. Se quiser que sua mente deixe de lhe mostrar meu rosto e volte a ter aquelas cenas que tanto lhe agradavam, pense que vivo em uma casa que lhe pertence e que devido à sua imensa gratidão posso dormir sob um teto.

? Senhorita Brown, peço-lhe mil desculpas por minhas palavras, estão fora de lugar. Não estou acostumado a me comportar desta forma ante pessoas respeitáveis ? explicou ao mesmo tempo em que se elevava do chão.

? Respeitável? Pensa que sou uma pessoa respeitável? ? Beatrice esboçou uma gargalhada tão intensa que ambos escutaram o eco da risada no bosque.

? Esse é o meu apreço por você desde que me salvou a vida. ? William se mantinha de pé a curta distância da mulher. Ela, ao ver que tinha a intenção de avançar para onde estava, começou a perambular de um lado para outro.

? Não me conhece, sua Excelência. Não me conhece e não pode fazer uma conjectura depois de um ato de piedade. Qualquer ser humano que tivesse passeado pelo bosque e encontrasse uma pessoa ferida gravemente teria feito o mesmo que eu. Isso não é ser respeitável e nem piedosa ? declarou mal-humorada.

? Pode pensar o que desejar, mas me sinto na obrigação de protegê-la igual você fez comigo. ? Seu tom de voz tinha recuperado a dureza, o julgamento e a irrevogabilidade próprias de seu título.

? Não lhe basta me dar abrigo? Não lhe parece que viver em uma casa que lhe pertence já é bastante amparo? ? Beatrice, até agora se movendo sem parar, girou-se para o homem e o olhou desafiante.

? Não! ? Exclamou o duque. ? Deixá-la em meio de um nada, desamparada e rodeada de lobos famintos não me parece uma opção acertada!

? Isso é o que lhe preocupa, sua Excelência? Que minha presença aqui lhe faça sentir-se um homem bondoso e que um dia monte em seu precioso cavalo, galope até a cabana e se encontre com um corpo esquartejado? ? Elevou tanto a voz que até ela mesma se surpreendeu do trato que estava oferecendo a um homem de sua classe.

? Preocupa-me, perturba-me, inquieta-me ? disse William caminhando para ela com passo firme e esquecendo a dor constante de sua perna ? que um dia apareça por estas bandas e veja que não fui capaz de cuidar de uma mulher que quase pereceu para me salvar a vida. Parece-lhe acertada minha conjectura, senhorita Brown?

Estavam tão próximos que se o homem estendesse sua mão útil poderia tocar as costas feminina, puxá-la para ele e abraçá-la com força. Porque podia ter sido um calhorda, um ser sem coração, sem humanidade, mas reconhecia quando uma pessoa precisava sentir o afeto de outra. Tinha acontecido a ele mesmo e acontecia nesse momento à senhorita Brown. Entretanto, William conhecia a razão de sua desprezível atitude. Agora lhe faltava averiguar o motivo que tinha aquela jovem para não querer saber nada do resto do mundo.

? Está bem ? disse Beatrice depois de um leve silêncio. ? Você quer pagar sua dívida e eu quero que me deixe viver em solidão. Então pagará sua dívida se me conceder esse desejo.

? Quer que ninguém a incomode? Essa é a sua petição? ? William franziu o cenho e apertou a mandíbula.

? Sim, isso é o que anseio ? afirmou em um tom mais tranquilo e olhando para o chão.

? Se ficar só e desprotegida é o que deseja, isso é o que obterá. Bom dia, senhorita Brown. ? Golpeou as botas pelos calcanhares, abaixou uns centímetros à cabeça e se dirigiu ao cavalo.

Tinha tanta raiva em seu corpo, encontrava-se tão alterado, que aquele estado de enfurecimento lhe deu a força necessária para agarrar as rédeas do cavalo e subir sem ajuda. Jogou uma última olhada à Beatrice e açulou com tanta intensidade o animal que avistou seu lar antes do esperado.


IX


? O senhor quer lhe ver na biblioteca. ? Mathias, o cavalariço correu para a casa, para explicar ao mordomo o que tinha acontecido depois da chegada do senhor, fazia poucos minutos.

? Como que não requereu os meus serviços para desmontar? ? Perguntou inquieto Brandon.

O que lhe contava o jovem estava deixando-o atônito. A forma habitual de atuar, era esperar ao senhor com a bengala na mão e que este se apoiasse na vara de madeira para subir com segurança as escadas da residência. Entretanto, o moço lhe informava que desceu ele mesmo do cavalo e que não precisou requerer o auxílio de nenhum criado, posto que acessasse ao interior da casa sem mostrar dor ao caminhar.

? Como lhe digo, senhor Stone. Quando agarrei as rédeas de Corsário, nosso duque me deixou muito claro que desejava vê-lo o antes possível nessa estadia ? explicava com certa excitação.

? Que comportamento diz que tinha nosso senhor? ? Hanna, muito atenta ao bate-papo, interrompeu-lhes.

? Encontrava-se muito agitado. Acredito que também bastante zangado ? respondeu Mathias.

? O que lhe terá acontecido? ? Disse a mulher ao mesmo tempo em que retomava ao trabalho.

? Está bem, pode voltar para as cavalariças ? indicou Brandon desejando saber o que rondava pela cabeça de sua esposa.

Tinha notado o leve sorriso da cozinheira e esperou com impaciência que o jovem se afastasse o suficiente, para que não pudesse escutar a conversação. Caminhou para ela, apoiou-se na mesa central e, depois de observá-la uns instantes cortando verduras, perguntou-lhe:

? O que ronda nessa sua cabeça?

? A mim? ? Respondeu abrindo os olhos como pratos e elevando as grisalhas sobrancelhas. ? Nada, não penso nada.

? Não minta, Hanna. Conheço cada gesto que faz quando sua mente não para de refletir. Vamos ver... o que você crê que pode ter perturbado a paz que o nosso senhor teve durante estes dias?

? Não me acusa sempre de ter uma percepção errônea do mundo? – Cruzou os braços e franziu o cenho.

? Quer que lhe suplique isso? Quer que me ajoelhe como o fiz para poder dormir de novo em nosso leito? ? O semblante de Brandon mostrava desconcerto e um pouco de tristeza.

? Se não fosse tão severo, você mesmo acharia a resposta ? indicou com tom suave e quente.

? Hanna, por favor...

? Se tem tanto interesse, explicarei-lhe isso. Mas não me acuse de ter alucinações ou pensar extravagâncias. ? Esperou que seu marido replicasse, mas ao vê-lo tão calado e confuso decidiu lhe expor a ideia que tinha já há uns dias, mais exatamente desde que o duque retornou do incidente, rondando em seu cérebro. ? Se retroceder um pouco no tempo dar-se-á conta de que lorde Rutland sempre levou o cabelo perfeitamente cortado. Em mais de uma ocasião comentou que não entendia como um homem podia pentear-se como uma mulher, não é? ? Brandon assentiu. ? E de repente um dia, disse ao seu ajudante de câmara que não lhe cortasse o cabelo e deixasse que seu rosto se cobrisse de escuridão. Lembra-te quando foi?

? Dois meses depois de celebrar o duelo ? respondeu com rapidez.

? Em efeito, e a razão foi...?

? Queria tampar a cicatriz. Imagino que pensou que desta forma deixariam de murmurar sobre o acontecido.

? Pois eu penso que se deveu à repulsão que encontrou nos rostos daquelas mulheres que antes o admiravam. Resultou-lhe muito duro passar de ser um homem elegante e formoso a uma espécie de monstro ao qual ninguém desejava contemplar.

? Nosso duque não pode ser tão banal, querida! ? Exclamou antes de esboçar uma gargalhada.

? Bom, essa é uma ideia muito típica de um homem, catalogar certos aspectos importantes como banais. Entretanto, se pensasse do ponto de vista de uma mulher, descobriria que não é tão desatinado. Pensa um pouco querido e una os acontecimentos. Por exemplo, desde quando nosso senhor necessitou os serviços de uma cortesã?

Brandon deixou de sorrir e franziu o cenho enquanto meditava a resposta. As hipóteses de Hanna pareciam ter um pouco de sentido. Embora ele conhecesse o homem desde que nasceu e jamais tivesse deduzido que a opinião que possuíam as mulheres sobre ele poderia lhe afetar tanto.

? Imagino que esse olhar é a resposta à minha pergunta ? manifestou a mulher depois de observar como seu marido entrecerrava os olhos.

? Só estou pensando...

? Pois segue pensando, meu esposo, segue pensando... ? agora era ela quem sorria ao ver o desconcerto que suas palavras ocasionavam ao seu cônjuge. Devia sentir-se confuso, posto que ele sempre se gabasse de conhecer à perfeição a sua Excelência, mas havia certos temas que lhe escapavam.

? O que tem a ver tudo isso com a atitude estranha que hoje teve sua Excelência?

? De verdade que não pode suspeitar o que ocorreu?

? Não, Hanna. Não sei o que pôde acontecer. O único que te posso dizer é que esta manhã decidiu visitar a moça para lhe perguntar por que recusou os convites que lhe ofereceram.

? Pois está muito claro, Brandon. Ela não quer vir a Haddon Hall e muito menos quando a tratou pior que a um cão pulguento ? indicou zangada.

? Como queria que a tratasse? Se por acaso não o recorda, ela se ofereceu como cortesã e depois do maldito serviço e de lhe pagar uma boa soma de moedas, o duque me informou que lhe negasse a entrada de novo.

? Mas lhe salvou a vida! ? Exclamou irada. ? Além disso, ele não sabe que ela... ? ficou em silêncio pensando se cabia a possibilidade de que o duque tivesse descoberto a verdade. Mas o negou com veemência, se seu sexto sentido não lhe desapontava, a jovem jamais lhe confessaria o acontecido àquela noite.

? Hanna! ? Chamou Brandon ao vê-la calada e refletindo algo que parecia entristecê-la.

? O jovem duque pediu, após retornar à casa que lhe recortassem a barba e que fizessem desaparecer o extenso cabelo, não é? ? Alterou a consciência para a direção que tinha tomado à conversação.

? Certo.

? E não perguntou a que se devia essa mudança de opinião? Porque o único que tinha acontecido foi que uma moça desconhecida o lavou, curou-lhe as feridas e, além disso, percorreu um comprido trajeto para nos informar sobre seu paradeiro. Sem esquecer que depois, o duque nos comentou que havia uma manada de lobos oculta no bosque e que era perigoso passear por ele.

? Certo, está me dizendo que a jovem pôs em perigo sua vida para salvar a de nosso senhor, mas isso não responde à pergunta de por que sua Excelência decidiu seguir os conselhos do doutor para se curar com prontidão, nem essa insistência em fazer desaparecer a espessa barba e cortar o cabelo ? explicou exasperado cruzando seus braços no peito.

? De verdade que não é capaz de entendê-lo? ? Perguntou elevando um pouco a voz ao sentir-se tão frustrada.

? Não, não sei aonde quer chegar com as hipóteses que me explica.

? OH, querido! Por que não abandona esses pensamentos repletos de lógica e deixa que se expresse seu coração? ? A mulher se aproximou de seu marido, apanhou o rosto deste entre suas mãos e o olhou com ternura.

? Meu trabalho exige utilizar à lógica. Possivelmente a desenvolvi mais do que outras pessoas.

? Deduzo então que não tem nem ideia do que poderia pedir o duque quando aparecer ante ele, não é?

? Pode pedir qualquer coisa...

? Pois eu vou me deixar levar pelo que me dita o coração, e este me diz que te ordenará realizar algo dessas coisas que fazem os homens poderosos para deixar a jovem vivendo na cabana o tempo que desejar. ? Aproximou-se dos lábios de seu marido e lhe deu um pequeno beijo.

? Isso que diz é uma loucura e segue sem me explicar por que retornou tão enfurecido após visitá-la.

? Querido meu, nosso duque está acostumado a ordenar e que todo mundo acate seus mandatos. Se essa jovem for tão teimosa como acredito que é, não terá aceitado a proposição que tinha pensado para ela. Daí esse mau humor. Agora, em vez de ficar estorvando em minha cozinha, vai e comprova se os pensamentos loucos de sua esposa não são certos. ? Apartou-se, dirigiu-se para os fogões e começou a mover a comida que serviria em breve.

Brandon a observou durante uns instantes, ao mesmo tempo em que meditava sobre as conclusões que lhe tinha dado, pareciam muito sensato, mas estava seguro de que não eram corretas. O duque deveria ter outro tipo de razões para mudar seu comportamento com tanta rapidez e, embora sua esposa expusesse como se fosse o mais normal do mundo, sua Excelência não podia sentir nada por uma mulher assim. Era certo que lhe devia a vida, mas podia recompensá-la com outra bolsa de moedas. Se a oferecesse ela a aceitaria de bom grado, igual fez na última vez. Jogou uma olhada às costas de Hanna e depois de respirar com intensidade dirigiu-se para a biblioteca, o lugar onde o duque lhe esperava.


William perambulava de um lado para outro sem notar a dor insistente da perna. Estava tão zangado, encontrava-se tão furioso, que nem a dor lhe impedia de mover-se como desejava. De repente, ao descobrir que as cortinas da janela estavam amarradas aos ganchos metálicos, aproximou-se dela e ficou observando o exterior. Até esse momento não o tinha apreciado como era devido, sempre lhe pareceu um lugar cheio de vida, aprazível e, é óbvio, seguro ante qualquer adversidade. Entretanto, depois da desafortunada visita à senhorita Brown, toda aquela percepção desapareceu para dar passo a uma menos serena. Elevou o olhar e o cravou no arvoredo que começava a finalizar no imenso jardim. Ali, ao amparo da abrupta natureza, encontrava-se um perigo importante, mais do que se imaginou alguma vez.

? Mulher teimosa! ? Exclamou com energia antes de girar-se sobre seus calcanhares e dirigir-se para as garrafas de bebidas colocadas sobre uma cômoda.

Pegou o copo, encheu-o de brandy e, justo quando iria dar o primeiro gole, sopesou se beber até cair era o mais acertado. Depois de meditá-lo depositou o copo sobre a superfície de madeira encerada e caminhou por volta de uma das poltronas, não seria apropriado que ordenasse uma coisa tão importante ao Brandon em um estado péssimo de embriaguez. Devia mostrar serenidade, retidão e solidez porque do contrário seu mandato seria desprezado.

Levou a mão ao bolso de seu colete e tirou o relógio. Tinha entrado na biblioteca há quase quinze minutos e o mordomo ainda não tinha feito ato de sua presença. Ficou de pé de novo e, franzindo o cenho, deu vários passos para a porta com a intenção de ir buscá-lo ele mesmo. Antes de aproximar-se da saída, Brandon pedia permissão para entrar.

? Excelência ? disse o homem ao mesmo tempo em que realizava uma ligeira inclinação. ? Desejava ver-me?

? Solicitei sua assistência faz quinze minutos, a que se deve a demora? ? Perguntou zangado.

? Minhas desculpas, meu senhor. Houve um problema na cozinha e tive que resolvê-lo sem demora ? explicou.

? Aconteceu algo à senhora Stone? ? Perguntou um pouco mais acalmado.

Hanna se tinha convertido, com o passar dos anos, em uma mãe para ele. Desde que tinha memória recordava que os beijos, os abraços e os consolos que necessitou em sua infância sempre os ofereceram ela. A mulher também evitou em várias ocasiões que seu pai lhe pusesse o traseiro avermelhado depois de fazer, tanto ele como Lausson, uma ou outra traquinagem.

? O mesmo de sempre, meu senhor. Discutimos se deve acrescentar mais verduras ao menu do dia ? indicou.

Esperava que aquela desculpa lhe contentasse e deixasse de lhe interrogar por que se fosse assim, ele não poderia continuar mentindo. Ao ver que os ombros do duque se relaxavam e que mostrava um leve sorriso na comissura dos lábios, Brandon inspirou profundamente e deu graças a Deus por sua benevolência.

? Hoje parece que o sexo feminino está inquieto... ? comentou enquanto retornava à poltrona para sentar-se. Nesse instante, ao entender que não era o único homem que tinha sido atacado esse dia por uma mulher, começou a relaxar-se e a perceber, com mais intensidade, as cãibras terríveis que emitia a perna machucada.

? Como diz? ? Quis saber Brandon ao não entender muito bem o comentário do duque.

? Nada. Foi só uma consideração. ? Reclinou-se no assento e apertou os dentes ao notar aquela incessante dor.

? Posso lhe perguntar, sua Excelência, o que deseja? ? O mordomo ao observar como a testa de seu senhor se enrugava com força, deduziu que estava padecendo de suas terríveis dores.

Sorriu sutilmente ao pensar que Hanna se equivocou com suas especulações. Sem lugar a dúvidas o duque demandava sua presença porque precisava ser atendido por sua dor.

? Quero que faça chamar o senhor Gibbs, que venha à Haddon Hall o antes possível ? apontou com calma ao mesmo tempo em que movia devagar a perna machucada.

? O senhor Gibbs? ? Perguntou surpreso antes de morder o lábio por sua falta. Não era ele quem podia exigir explicações.

? Sim ? respondeu William evitando a inquietação do mordomo.

Sabia que chamar seu administrador causaria alguma incerteza sobre o serviço. A última vez que o fez foi para ceder à sua mãe a residência que tanto ansiava e lhe oferecer a soma que demandava depois da morte de seu pai. Entretanto, desta vez era diferente. Um dos bens obtidos por herança iria às mãos de uma mulher bondosa que sim o merecia, uma mulher que lhe tinha salvado a vida, não como no caso de sua mãe, destruido-a. ? Preciso falar com ele o antes possível, tenho que fazer constar certas mudanças legais... ? girou-se para o fogo, contemplou-o durante uns instantes e ao dar-se conta de que Brandon seguia na estadia moveu com suavidade a cabeça para ele: ? Acontece algo?

? Não, senhor, só me preocupo com você. Esperava que sua chamada se devesse ao interminável padecimento que sofre em sua perna do tropeção. Conforme fui informado pelo criado, você mesmo desceu do cavalo depois do passeio que realizou pelo bosque ? disse entre desculpas. Esperava que o duque não fosse capaz de perceber a insistência para averiguar o que pretendia.

? Já sabe que fui visitar a senhorita Brown ? comentou William entreabrindo os olhos.

? Em efeito, e conseguiu que finalmente aceite sua proposição? ? Insistiu sem mostrar em seu rosto a importância que lhe provocava conhecer a verdade. Se este dizia que não, ao final teria que humilhar-se de novo ante sua esposa porque, outra vez, estaria certa.

? Não, não a aceitou. Decidiu comprazer meu desejo de responder à sua piedade ? falou com raiva – rogando-me que a deixe desamparada naquele lugar miserável.

? Quer viver em uma propriedade que não lhe pertence? ? Soltou sem pensar.

? A questão não é se deseja viver na cabana de caça, mas sim o que pretende a senhorita Brown é lutar dia a dia só, ante a adversidade e periculosidade de um lugar tão inóspito ? explicou apertando a mandíbula.

? Não lhe ofereceu uma bolsa de moedas? Possivelmente isso lhe tivesse mudado...

? Senhor Stone! ? Gritou William zangado. ? Acredita que a mulher que pôs em perigo sua vida para salvar a minha merece esse trato tão depreciativo?

? Sinto muito, Excelência ? manifestou abaixando a cabeça e cravando o olhar no chão. ? Desculpe minhas palavras, mas tem que compreender que se a senhorita Brown tiver decidido alojar-se em um lugar repleto de perigos e esta vontade lhe causa inquietação, eu devo cuidar da sua saúde.

? Esquecerei seu comentário porque tanto você como a senhora Stone são as únicas pessoas às quais considero família. Além disso, entendo que essa atitude inapropriada é como bem diz, para seguir me protegendo, mas nunca volte a se intrometer neste tema. O que a senhorita Brown e eu combinamos se cumprirá.

? Sim, senhor. É óbvio. Agora mesmo direi a um dos criados que se dirija até o lar do senhor Gibbs e lhe faça saber que você deseja vê-lo o antes possível. ? Brandon jogava uns passos para trás sem levantar a cabeça. Não parava de meditar sobre o desejo do duque, a amalucada hipótese de sua esposa e o que esta riria quando lhe narrasse à conversação.

? Necessito de uma coisa mais... ? assinalou antes que o ancião partisse. Brandon elevou o semblante e o observou com atenção. O jovem olhava para as intensas chamas da fogueira. Contemplava-o com tanta ferocidade que podia ver de onde estava como o fogo se projetava nos seus olhos. ? De todos os que trabalham para mim, ? prosseguiu em tom firme ? há alguém que tenha sua mais absoluta confiança? ? Ante o desconcerto que mostrou o criado, William continuou: ? Tenho mil dúvidas sobre a senhorita Brown e necessito que alguém me ofereça informações sobre ela.

? Mas, milord, por onde começaremos? ? Brandon abriu tanto os olhos que quase saltaram do rosto. O que estava pedindo o duque era uma tarefa impossível de concluir. De onde procedia? Que lugares visitou antes de refugiar-se na cabana?

Então sentiu que o coração paralisava. Possivelmente as únicas pessoas que sabiam algo da jovem eram sua esposa e ele, embora, como era lógico, evitaria lhe informar sobre isso. Entretanto, Hanna tinha descoberto algo que não cessava de lhe rondar a cabeça e, visto o pedido do duque, talvez indagasse mais sobre isso.

? Brandon! ? Exclamou William ao observar a palidez do rosto deste.

? Sinto muito, sua Excelência, estava meditando sobre a pergunta que me realizou ? mentiu e voltou a pedir piedade a Deus.

? E? ? Insistiu.

? Neste momento a única pessoa em que confio, além de em minha querida esposa, é no Mathias, o cavalariço. Sei que é muito jovem e talvez não consiga abandonar as cavalariças para lhe servir no interior da casa, mas é mais fiel do que um cão e mais calado que um mudo ? disse com solene segurança.

? Bom, pois pedirá ao jovem que averigue tudo o que possa sobre o sobrenome Brown. Se minhas conjecturas não forem errôneas, não deveria viver muito longe, do contrário não conheceria este lugar.

? Pensou meu senhor, que poderia não ser seu verdadeiro sobrenome? Parece-me estranho que uma jovem abandone seu lar, deseje apartar-se de todo ser humano, dita viver sozinha o resto de sua vida e responda com sinceridade ao lhe perguntar por seu nome. ? Brandon não queria que o duque se frustrasse se não achasse o que procurava. Se lhe aturdia tanto uma mera visita a jovem, o que aconteceria se o que encontrasse não fosse de seu agrado?

? Que o jovem se dirija para Rowsley, avise ao senhor Gibbs e comece a indagação entre os aldeãos. Se minha intuição não me falhar, embora a senhorita Brown não seja daí, tem que conhecer alguém desse lugar. De que outra forma ela adquiriria os animais que cuida e seu alimento? ? Explicou com aparência firme. Entretanto, a conjetura do ancião não cessava de lhe golpear a cabeça.

Era certo que, quando lhe perguntou por seu nome, Beatrice soltou-o sem pensar, mas seu sobrenome o disse com certo temor. Caberia a possibilidade de ter sido enganado? E se era assim, por quê? Aqueles pensamentos só aumentavam sua ânsia de averiguar quem era aquela jovem e por que, de tudo o que pôde lhe pedir, rogou-lhe ficar sozinha.

? Se sua Excelência não tiver nada mais que me dizer, agora mesmo falarei com o criado para que comece o antes possível com seu novo trabalho.

? Deixe-lhe bem claro que não deve falar com ninguém disto ? acrescentou.

? É óbvio. ? Depois de despedir-se como era devido, Brandon saiu da biblioteca e se dirigiu com passo firme para a cozinha.

Deveria explicar à Hanna o acontecido. Deixaria que se vangloriasse de seu triunfo e, depois do bate-papo que obteria sobre quão inteligente era e o pouco que a valorava, pediria-lhe que recordasse com exatidão aquilo que tanto lhe chamou a atenção na jovem. Possivelmente essa era a pista que deveriam seguir porque, se não estivesse equivocado, o sobrenome, o ter estado com outros homens, o proceder de uma família de camponeses e tudo aquilo que relatou à sua benevolente esposa era mentira.


X


O frio era tão intenso que atravessava toda a pele até alcançar os ossos. Beatrice tentou avivar um pouco o fogo, mas sem troncos para jogar sobre as brasas, não podia conseguir uma grande proeza. Abraçando-se com força e esfregando os braços de cima a baixo, aventurou-se a abrir a porta para confirmar que no galpão de lenha não havia nenhum triste ramo para lançar à chaminé. Em efeito, sobre o chão não havia nada. Tinha gasto tudo o que compilou até a volta dos lobos, e agora lhe dava um medo atroz sair como outras vezes a procurar alguma árvore caída para poder arrastar até ali. Era perigoso. Eles a vigiavam. Cada vez que saía, cada vez que caminhava ao redor da cerca podia sentir aqueles olhos diabólicos cravando-se em seu corpo. Eram incansáveis, mais do que tinha imaginado. Inocentemente tinha pensado que, assim como na primeira vez, voltariam a partir. Mas esta ocasião era diferente, agora tinham comida perto, só deviam esperar o momento apropriado para atacar e encher seus estômagos.

Zangada, fechou a porta e se deitou sobre o leito. O único a fazer até que chegasse o novo dia era deitar-se e cobrir-se com as colchas compradas no povoado. Agasalhada com aqueles objetos, acomodou a cabeça no almofadão e olhou ao teto. Estava cansada de lutar, de sobreviver dia após dia. O que em um princípio lhe pareceu a melhor opção para aguentar aquele desastroso sofrimento, nesses momentos não a convencia. Achava-se no meio do nada com comida suficiente para alimentar-se, mas impossível de cozinhar pela falta de fogo. Levava dias roendo verduras recolhidas da terra, tentando esquentar caldos que não terminavam de ferver, e sentia cada vez mais frio.

Levantou as mãos para seu rosto e observou que já não eram de cor rosada, começavam a ser malvas e isso não era bom sinal. Colocou-as sob as mantas e as esfregou com os lençóis para fazê-las entrar em calor, mas apesar do esforço mal notou melhoria. Resignada pelo terrível final que começava a chegar, girou-se para a direita. Dali podia contemplar a brilhante e reluzente lua. Aquela noite era a segunda vez que a via desde a partida do duque zangado e aceitando sua única condição. Beatrice suspirou profundamente ao recordá-lo. Não sentia compaixão nem afeto por esse homem, mas pensava nele de vez em quando e como em certos momentos lhe pareceu perceber que desejava aproximar-se e abraçá-la. Teria gostado se o fizesse. Apesar da fúria que a invadia ao rememorar a atitude autocrata mantinha quando seu pai lhe pediu ajuda, teria aceitado seu abraço de bom grado. Fazia muito tempo que ninguém a consolava, fazia muito tempo que não apoiava sua cabeça no ombro de uma pessoa e se consolava entre lágrimas. Entretanto tinha tomado uma decisão e se ele a houvesse visto débil ou aflita não lhe teria concedido seu desejo.

Voltou a mover-se na cama de armar, virou-se para o outro lado, cobriu-se até a cabeça e tentou dormir. Precisava descansar, precisava afastar-se do lugar onde vivia embora fosse somente em sonhos.

Beatrice sonhava que estava junto à sua mãe, que tagarelava sem cessar sobre a próxima celebração a que deviriam assistir. Seu tom era doce, quente, porque sabia que ela não aceitaria de bom agrado em assistir de novo a um evento cheio de homens pomposos e de mulheres orgulhosas pelas joias penduradas em seus pescoços. Zangada, depositou o bastidor sobre a cadeira que tinha junto a ela e se levantou do assento.

? Não pode me obrigar a isso, mãe! ? Bramou irada.

? Não é uma obrigação, é um acontecimento social ao qual deve assistir ? indicava com calma.

? Acaso essa descrição não é o mesmo que me forçar a realizar algo que não desejo? ? Arqueou as sobrancelhas e colocou as mãos na cintura.

? Eu não observo tal apreciação, senhorita, e em seu lugar sentiria-me adulada de ser convidada por um homem tão...

Um horripilante ruído a sobressaltou, despertando-a bruscamente do sonho. Apartou os lençóis e caminhou para a janela para tentar descobrir o que ocorria no exterior.

? Meu Deus! ? Gritou com força ao observar a cena mostrada na escuridão noturna. Sem pensar duas vezes correu para a porta e agarrou com força o pau que pendurava sobre a parede de pedra. ? Malditos sejam! Deixem-nos em paz! ? Continuou vociferando.

Os alaridos de seus animais eram insanos. Beatrice, ignorando o medo que a invadia, avançou sem titubear para o pequeno terreno onde se encontravam as ovelhas, as galinhas e os quatro porcos. Estes gritavam de terror. Uns tentavam fugir das garras de seus assassinos, outros jaziam no chão agonizando. Elevou a vara e começou a atirar golpes aos causadores daquele massacre, mas nenhum deles se voltou para defender-se. Parecia que não lhes importava sua presença, como se seus ataques não fossem perigosos.

Enquanto tentava que parassem de aniquilar tudo, notou o escorregar de lágrimas por suas bochechas e o som de seus próprios gritos retumbando em seus ouvidos. Pouco a pouco suas forças foram diminuindo, possivelmente se reduziram com mais rapidez quando observou atônita e impotente como os lobos apertavam com força suas mandíbulas nos pescoços dos desprotegidos animais e os arrastavam para o interior do bosque.

Em estado de choque foi caminhando para trás. Queria resguardar-se na cabana porque, até o momento, eles tinham decidido não a atacar. Sem soltar o pau girou-se com brutalidade e subiu os quatro degraus de pedra que a conduziriam até sua guarida. Estava a ponto de alcançar o objetivo quando sentiu a espetada de umas adagas rasgando a carne de sua pantorrilha. Ao mover a cabeça para a direção de onde procedia a imensa dor observou uns olhos escuros e uma pelagem cinza. Era o lobo que a espreitava, que a atemorizava com seus intensos uivos.

Sem pensar elevou o pau e lhe golpeou com força no focinho. Os dentes do animal se cravaram ainda mais em sua perna, fazendo-a gritar com tanta força que ficou exausta. A besta, ao sentir o dano, abriu a boca e a soltou, momento que aproveitou para correr para o interior da casa, fechar a porta e apoiar as costas sobre ela. Escutou o caminhar da fera. Rondava pelos arredores da cabana tentando encontrar um oco para acessar e finalizar seu propósito. Entretanto, as janelas estavam seladas, salvo se saltasse e rompesse o cristal, a atroz besta não poderia acessar.

Conforme passava o tempo e compreendia que estava a salvo, suas forças foram se desvanecendo e começou a escorregar pela folha de madeira até seu traseiro se apoiar no chão. Seus olhos começaram a oferecer uma imagem distorcida da cozinha. Sentia uma terrível queimação na perna e notava o palpitar de seu coração nela. Tentou levantar-se. Tentou fazê-lo. Mas foi impossível. Estava débil, ferida e sem vitalidade. Tinha chegado seu fim. Percebia como a vida partia em cada gota de sangue que emanava de sua perna. Quis voltar a chorar, embora não lhe brotassem mais lágrimas. Só pôde fechar os olhos e deixar chegar seu último suspiro.


William mal tinha conseguido dormir. Cada vez que o tentava, um horrível pesadelo o fazia abrir de novo os olhos. Esgotado por lutar contra sua própria vontade, levantou-se da cama e se colocou sobre a poltrona que se encontrava ao lado desta. Não entendia com claridade seu pesadelo. Mal tinha inquietações em sua vida cotidiana para sentir-se daquela forma. O mais incômodo para ele tinha sido visitar todos os que apareciam em sua casa, momento que aproveitava para indagar sobre a senhorita Brown. Embora nunca achasse a resposta que desejava. Não entendia como uma tarefa tão singela estava se convertendo em um tremendo calvário.

Durante as semanas seguintes à conversação com a moça, o jovem a quem Brandon tinha encomendado a tarefa de procurar algum dado sobre Beatrice, não encontrou nada salvo a um casal de anciões que se apelidava igual e, que conforme contaram ao criado, não tinham podido engendrar nenhum descendente para continuar com seu legado. O duque sopesou, depois de obter aquela informação, que a ideia do engano não era tão descabelada, mas a descartava cada vez que pensava nela, que propósito tinha para lhe mentir? Ela não sabia quem era até que ele mesmo o comentou. Aquilo não tinha sentido, a menos que fosse uma criminosa fugindo de uma sentença proferida e pensasse que ele, ao ter um importante cargo da nobreza, entregá-la-ia. Mas também rechaçou essa ideia porque se a jovem tivesse cometido um crime e se escondesse no lugar mais recôndito do planeta para viver em liberdade, não teria arriscado sua vida para salvar a de um desconhecido.

Levou a mão ao queixo e acariciou o espesso pêlo que tinha deixado crescer de novo após compreender que ninguém mais voltaria a observá-lo com normalidade. Ninguém exceto ela.

Aturdido por seu inexplicável desassossego, levantou-se do assento e se dirigiu para o balcão. Apesar do tempo gélido, abriu as janelas e caminhou pelo terraço. O amanhecer oferecia uma bonita e estranha luz que, ao iluminar os hectares do arvoredo onde habitava a moça, davam-lhe um matiz menos sinistro. Mas o perigo espreitava constantemente, sobretudo aquela noite. Tinha ouvido-os durante as horas nas quais esteve acordado e em mais de uma ocasião sentiu medo, apesar de encontrar-se resguardado na mansão.

No silêncio que oferecia a chegada do crepúsculo, uns incessantes uivos e gemidos retumbaram em sua habitação como se estes se aproximassem de sua janela. Estava seguro que tal revôo se devia a que a manada tinha estado caçando. Então, como se sua mente lhe mostrasse a imagem de um quebra-cabeça completo, correu para sua habitação, abriu a porta e começou a gritar o nome de seu mordomo.

? Sim, sua Excelência? ? Brandon aparecia em meio a se vestir. Sua respiração era agitada, as mãos trementes não acertavam colocar corretamente na casa os botões de seu uniforme.

? Faça com que preparem o antes possível uma carruagem! Quero o cavalariço como cocheiro e a este na parte de trás com uma arma carregada. Diga-lhes que partiremos para o refúgio de caça assim que estejam preparados.

? O que ocorre, milord? ? O senhor Stone não saía de seu assombro. A princípio acreditou que o duque se levantara no meio de um sonho alterado, mas ao observá-lo tão lúcido, soube que aquilo não era a consequência de um pesadelo.

? Faça o que te ordeno! – Gritou com tanto ímpeto que o eco de sua voz se escutou em todos os corredores da mansão.

? Agora mesmo, meu senhor. Digo ao seu ajudante de câmara que vá à sua habitação?

? Está demorando muito! ? Clamou ao mesmo tempo em que retornava ao seu dormitório e tentava tirar-se ele mesmo a camisola com o qual dormia.

Como não o tinha pensado antes? Como não tinha sido capaz de descobrir o que seu interior lhe indicava? Irado, golpeou com força o colchão de plumas ao imaginar que, se suas conjeturas fossem certas, já seria muito tarde. Nesse momento, depois de atirar vários murros ao inerte colchão, levantou seu olhar para o teto e fez algo que não tinha feito desde menino: rezar.

Tal como tinha desejado, a carruagem lhe esperava na entrada da mansão. Desceu os degraus sem a ajuda de Brandon, que corria atrás dele se por acaso em algum momento pedisse sua ajuda. Mas era tanta a ira que movia seu corpo, tanto desespero por averiguar o que se temia, que se introduziu no interior do veículo de um salto. Apoiou a cabeça no respaldo acolchoado e observou a paisagem que percorriam a grande velocidade. Tinha sido um acerto colocar o jovem Mathias como condutor posto que, ao conhecer as possibilidades dos cavalos que cuidava, tinha selecionado os mais rápidos e graças a isso não demorou muito em divisar os arredores da cabana. Ao aproximar-se sentiu como sua garganta o sufocava e seu coração desacelerava incapaz de afastar o temor de sua mente. De repente escutou um som, e o coche parou abruptamente.

? Deus santo! ? Ouviu o cocheiro exclamar. — Isto foi obra do próprio diabo!

William saiu apavorado do veículo. Assim que dirigiu o olhar para o cenário que seus homens contemplavam atônitos, deixou de respirar. A cerca estava destroçada, os fracos arames que rodeavam a suja cabana atirados no chão, dobrados e quebrados. Todo o terreno que rodeava a cabana estava cheio de partes de carne e sangue, muito sangue. Avançou um pouco mais sentindo ao seu lado o criado e o cocheiro, o qual sujeitava sua arma com firmeza.

? Que diabos aconteceu aqui? ? Perguntou estupefato um deles.

William não distinguiu quem fez a pergunta, sua mente se concentrava em averiguar qual desses pedaços podia ser uma parte de Beatrice. Continuou avançando, pisando em plumas ensanguentadas, partes de pele e ossos cobertos de tendões mordidos. Não havia vida naquele lugar. O silêncio indicava que a morte tinha devastado qualquer possível fôlego. Fixou a vista na porta da entrada. Estava fechada. Teria se resguardado antes do ataque? Poderia estar sã e salva? Ansioso por conhecer as respostas, deixou para trás os dois homens e se aproximou da entrada. Ao estar tão perto contemplou o desenho que tinham deixado umas ferozes garras. Não soube que seu corpo permanecia encolhido e que tremia até dirigiu sua mão para a porta e empurrá-la. Antes que esta tocasse a danificada madeira, entrou-lhe a dúvida e se encheu de desespero. Se na casa se encontrava a mesma cena que havia no exterior, não se recuperaria jamais do acontecido, posto que o único culpado daquele horror tivesse sido ele.

? Sua Excelência, deixe que seja eu quem a abra. Se dentro houver algum desses mal nacidos que massacraram estes pobres animais, encherei-o de chumbo ? comentou com firmeza o cocheiro.

William queria negar-se, mas não pôde. O homem tinha razão. Como lutaria contra a ferocidade de um lobo com uma só mão? Resignado por sua incapacidade, permaneceu imóvel enquanto observava como o servente direcionava sua arma para a porta e tentava abri-la.

? Está pesada! ? Gritou após vários intentos falhos. ? Mathias, olhe por essa janela para ver se consegue descobrir o que me impede entrar ? ordenou ao jovem que não cessava de olhar para trás e sussurrar algo sobre o mal e as atrocidades provocadas pelo demônio.

O jovem se aproximou do cristal com passo lento e inseguro olhou através dele dobrando a cabeça de um lado para o outro procurando um ângulo com maior visibilidade. Finalmente apoiou sua mão direita na testa como se fosse a viseira de uma boina e gritou:

? É algo pequeno! Está sobre o chão. Acredito que... Deus santo bendito, aí há alguém!

? Abre-a! ? Exigiu William mais assustado que nunca.

? Terei que golpear com força e poderia... ? começou a explicar o homem.

? Abre-a! ? repetiu com mais vigor ainda.

O cocheiro jogou uns passos para trás para tomar impulso e colocando seu ombro para frente, empurrou a porta com toda a energia que tinha. Não foi muito o que obteve, mas o suficiente para acessar o interior.

? É uma mulher! – Exclamou. ? É uma mulher! ? Repetiu agitado. ? Graças a Deus, parece que ainda respira!

William não pôde ficar ali fora observando. Caminhou para o interior da casa e quando contemplou Beatrice nos braços do homem, quis lançar-se sobre ela e abraçá-la ele mesmo.

O rosto da moça estava pálido e os braços lhe penduravam frouxos para o chão, o sangue, de cor escura após secar-se, cobria o vestido e as pernas. Era a viva imagem da destruição que ocasionava a morte em um ser humano.

? Deite-a no interior da carruagem! ? Gritou o duque. ? Mathias, crê que só um cavalo pode lavar sem dificuldade o coche? ? O moço afirmou com a cabeça, o pânico que o sacudia lhe impedia de articular uma só palavra. ? Pois desengancha o mais rápido que puder e galopa até Rowsley, necessito que leve o médico a Haddon Hall.

Enquanto o jovem soltava o corcel selecionado, Beatrice era depositada com cuidado sobre o sofá direito da carruagem, na posição adequada para que William a auxiliasse em caso de necessidade. Fechou-a após meter-se no interior e a observou desejando que nesse instante abrisse seus olhos e descobrisse estar à salva, que ele a protegeria, mas o suave e débil respirar lhe indicou que não podiam atrasar-se mais tempo. Levou-se a mão para o botão da capa, tirou-a e cobriu o corpo ferido para lhe dar calor. Ao notar que a carruagem começava a mover-se, sentou-se no chão e foi apartando o cabelo alvoroçado da jovem. Queria lhe ver o rosto, queria observar se continuava respirando, queria que seguisse com vida para ver de novo sua teimosia e determinação.

De repente escutou o relinchar de um dos cavalos e um rápido galope. O criado se afastava para procurar o doutor.


CONTINUA

A vida libertina do futuro duque de Rutland finaliza após bater-se em um duelo de honra com um marido enganado. Envergonhado pelas sequelas do dito desafio, decide abandonar Londres e partir para Haddon Hall, o aprazível lugar onde cresceu, albergando a esperança de encontrar a paz que tanto lhe urge obter, entretanto, a chegada de uma notícia inesperada altera essa suposta calma e provoca que o duque se embebede. Face aos conselhos de seus próximos decide montar a cavalo e galopar por seus domínios. Quando abre os olhos depois de uma desafortunada queda, descobre que uma mulher o esteve cuidando em algum lugar afastado e escondido de suas terras. Seu nome, Beatrice, e seu único desejo, viver em solidão o resto de sua vida.
Querido(a) leitor(a), quero explicar que o duque de Rutland existe, embora acredite que nenhum se chamou William até agora. Também quero comentar que Haddon Hall é real e que se encontra no condado de Derbyshire. Todo o resto é produto da minha imaginação. Esclarecido isto, espero que desfrute com a leitura que guardam estas páginas.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/1_A_SOLID_O_DO_DUQUE.jpg

 

Londres, 1865. Clube de cavalheiros Reform.

? Desafio-o, senhor!

Com essas palavras, um homem de baixa estatura, com um pouco de peso a mais e vestido com um imaculado traje cinza, atirou uma luva sobre a mesa em que se jogava uma partida de cartas. William arqueou as escuras sobrancelhas e olhou a quem o desafiava com certa incredulidade. Deu-se conta o pobre infeliz que se se levantasse de seu assento o superaria em altura um pouco mais de 30 centímetros?

? Pela honra de quem? ? Perguntou William redirecionando seus olhos para as cartas e apertando o charuto em seus lábios. Estavam sendo tão habituais esses desafios que já não lhe produziam alteração alguma.

? Pela honra de minha esposa, lady Juliette Blatte ? respondeu o homem cheio de cólera ao ver que o aristocrata não parecia se afetar pelo que ele esperava morrer de vergonha e de dor.

? Juliette?

A familiaridade com a qual o futuro duque de Rutland falou de sua mulher fez com que o pequeno corpo vibrasse de desespero e fúria. William, sem apartar a vista das cartas que tinha em sua mão esquerda, franziu o cenho e levou a outra palma para a escassa barba que cobria seu rosto.

? Disse-me que enviuvou faz algo mais de um ano ? continuou com voz serena e sem interesse por continuar a conversação.

? Acusa-a também de mentirosa? ? As bochechas do desonrado se encheram de um vermelho intenso.

O homem inclusive se elevou nas pontas dos pés para tentar, em vão, captar a atenção do amante de sua esposa. Entretanto, ninguém fez nada, nem William nem os outros jogadores. Se a cólera que o tinha conduzido até ali era inimaginável, observar que o próximo duque de Rutland continuava com sua pose de tranquilidade enquanto alegava que se deitou com sua esposa por ter sido enganado, provocou-lhe tal demência que esteve a ponto de equilibrar-se sobre este e lhe golpear com força.

? Acredito que sua querida Juliette mentiu a ambos ? disse William após manter-se em silêncio uns minutos. ? O duelo deveria se dirigir a ela. Mas se me permite um conselho, antes de enfrentar uma possível morte, agarraria sua esposa e lhe daria uns bons açoites com o cinturão. Não se pode enganar com falácias a homens como nós, sobretudo porque nestes momentos cavalheiro, encontro-me tremendamente aflito... ? comentou com zombaria e sem subir nenhuma nota em seu tom de voz.

Tomou outra intensa imersão do charuto e depois de jogar o ar esperou que o desventurado homem fosse sensato e partisse com a cabeça baixa, mas respirando.

? Amanhã, em Hyde Park, à alvorada. Levarei as minhas testemunhas e um médico, você apareça com quem desejar. ? O homem golpeou suas botas, girou-se e inclinando-se ligeiramente se despediu dos pressente antes de afastar-se.

Durante um bom momento o sigilo foi reinante naquele lugar. William seguia concentrado na mão que estava a ponto de ganhar. Sorria meio de lado e a fumaça do charuto saía da boca como se fossem as chaminés que tinha sobre o telhado de seu lar.

Ninguém queria fazer alusão à cena vivida, talvez porque fosse muito habitual que às sextas-feiras daquele mês vários maridos indignados irromperam no clube ao saber da presença do futuro duque no salão.

? Senhores..., ? disse enfim após depositar as cartas sobre a mesa e descobrir a última jogada ? já podem ir despedindo-se de seu dinheiro.

? É incrível! ? Exclamou Federith Cooper, um dos melhores amigos de William e futuro barão de Sheiton. ? Como pode ter tanta sorte?

? Nosso querido Manners nos depena os bolsos e seduz desoladas esposas, acaso estamos loucos por seguir mantendo sua amizade? ? Roger Bennett, quem algum dia chegaria a possuir o título de marquês de Riderland, falou com seu típico tom sarcástico ao mesmo tempo em que se reclinava no assento e tomava um sorvo de brandy.

? A sorte sempre está comigo, ela é minha única esposa ? respondeu William colocando as moedas em seu lado da mesa e sorrindo de satisfação. Pouco depois os outros jogadores partiram deixando os três cavalheiros na habitação.

? Entretanto, meu amigo, alguma vez mudará e serei eu quem mostrará um sorriso descarado em meu rosto ? continuou zombador Roger.

? Não pode zombar assim de um homem que amanhã se debaterá entre a vida ou a morte. Se for meu amigo desejará que a sorte permaneça no mínimo umas horas mais ao meu lado ? falou com dissimulação e sem deixar de mostrar no semblante uma atitude cômica.

William se levantou do assento e caminhou para o cabideiro para pegar o chapéu e a capa. Federith e Roger o imitaram. Em umas horas voltariam a serem testemunhas de outra inevitável loucura. Quase não tinham se recuperado da exaltação que lhes tinha provocado o último duelo e já sofriam a agonia do seguinte.

? Essa mulher... ? disse William pensativo enquanto caminhavam pela tranquila rua que lhe conduziria até Southwark.

? Quem, lady Blatte? ? Inquiriu Federith levantando a bengala até conseguir tocar a aba de seu chapéu.

? Juro-lhes que me disse que não estava casada. O perguntei mais de um milhão de vezes... ? respirou com profundidade e logo jogou o ar devagar. ? Cada vez que a visitei olhei-a nos olhos e lhe perguntei por seu marido. Ela respondia o mesmo: «Sua Excelência tem má memória, sou viúva» ? comentou com desdém. Logo levantou o olhar do chão e exclamou: ? Mulheres!

? Sim, Rutland, mulheres. ? Roger interveio com voz zombadora. ? Mas está falando de uma mulher que nasceu com um corpo digno de um duelo.

? Nisso tem razão. Lady Blatte é uma deusa ? comentou William com palavras cheias de luxúria. ? Possui uns seios lindos... suas coxas sempre estão quentes e quando me introduzia em seu interior...

? Basta! ? Interrompeu-lhe Federith. ? Acaso não recorda o que significa ser um cavalheiro?

? Não se zangue, Federith. Deve compreender que preciso recordar como era o corpo da mulher pela qual amanhã estarei a ponto de morrer... ? comentou entre risadas. Os olhos negros de William se elevaram para olhar o céu. Era uma noite com muitas estrelas, pouco habitual em Londres.

? Falando de morrer... escutou o trágico final da filha do barão de Montblanc? ? Perguntou-lhes Roger fazendo com que parassem bruscamente na metade da caminhada. Ao não responder nenhum dos acompanhantes, prosseguiu. ? Ao final a moça decidiu pôr fim à sua tormentosa vida. Esta manhã era o único tema de conversação que se escutava em todo Richmond.

? O barão não foi há alguns dias à sua casa para uma auditoria? ? Federith idolatrava seu amigo, posto que ambos tivessem crescido juntos, mas utilizava esse privilégio para recriminar sua Excelência por não ser capaz de adotar a posição que devia na sociedade. Aos seus trinta anos continuava sendo o mesmo cavalheiro libertino, insensato, despreocupado e farrista que foi com vinte.

? Sim ? respondeu com tom firme. Abaixou levemente a cabeça e continuou o passeio. A notícia o surpreendeu e, embora jamais o tivesse admitido, sentiu dor pela família. Tinham padecido bastante com o ocorrido à jovem e talvez, com a morte desta, descansariam enfim em paz.

? O barão foi visitar-te? ? Roger avançou atrás de William e arqueou as sobrancelhas em sinal de desconcerto. ? O que desejava de ti esse pobre homem?

? Pensou que se utilizasse minha posição conseguiria esclarecer o caso de sua filha... ? respondeu sem querer mostrar aquele sentimento de culpa que, por outro lado, não devia sentir.

? O que pretendia? ? Roger, animado pela curiosidade, seguiu com seu interrogatório.

? Como já sabem, a filha do barão tinha que ter sido apresentada em sociedade há dois anos, quando ela cumpriu os dezoito, mas a jovem sempre estava doente para a temporada social.

? Conforme tenho entendido, tais enfermidades eram inventadas. Comenta-se que a moça não desejava vir à Londres porque desfrutava de uma vida tranquila e aprazível no campo ? acrescentou Federith.

? Quando foi anunciado como merecia ? continuou William ? na última festa que nossa adorável senhora Baithlarin deu em sua residência em Marylebone, nenhum homem conseguiu fazer a jovem se apaixonar. Conforme escutei foi uma das mulheres mais belas da temporada. Mas, apesar da grande quantidade de propostas matrimoniais, ela as rechaçou com veemência. O barão e a baronesa decidiram retornar ao seu lar e fazer-se à idéia de ter sob seu teto uma filha solteirona.

? Mas? ? Roger escutava com entusiasmo toda a conversação e desejava saber como uma jovem que vivia placidamente e a quem não faltavam propostas de matrimônio terminou dando fim a uma vida próspera.

? Conforme tenho entendido, a moça foi desonrada na festa ? prosseguiu William. ? A família da jovem mantém que o conde de Rabbitwood abusou dela. Segundo o conde, com o qual tive a oportunidade de falar há algumas noites no clube durante uma intensa partida de cartas, a moça se esteve insinuando todo o serão até que conseguiu o que desejava. Rabbitwood lhe advertiu que tinha esposa e que só podia lhe outorgar a posição de uma amante. Como a esta não interessou a ideia, começou a divulgar que tinha sido violada.

? E claro está, depois do escândalo e de não conseguir seu propósito, desaparece para sempre... ? asseverou Roger.

? Bom, nenhum de nós entenderá jamais o que escondem as mulheres em suas cabeças. Embora se essa aspirante à harpia não obteve aquilo que ansiava e entendeu que era uma mancha indelével em sua família, o mais lógico era que terminasse fazendo o correto: suicidar-se ? argumentou William sem mostrar nenhum tipo de sensibilidade em suas palavras.

? Manners! Como pode ser tão frívolo? E se de verdade foi violada? Acaso não contemplou essa possibilidade? ? Federith se mostrou tão alterado que William chegou a perguntar-se se seu amigo tinha sido um dos que lhe tinham proposto matrimônio e foi rechaçado.

Durante uns instantes o futuro duque tentou que a mente lhe oferecesse algumas lembranças da moça, mas não achou grande coisa: uma jovem morrena de estatura pequena com umas bonitas curvas. Não foi capaz de descrever nem como estava vestida nem a cor de seus olhos. Sorriu para si ao rememorar que a maioria do tempo que passou naquela festa brincava de correr atrás das saias de uma suposta viúva desejosa de calor masculino e a satisfação que achou escondido atrás das cortinas de alguma janela do lar de lady Baithlarin.

? Confio na palavra de um cavalheiro como Rabbitwood ? disse cortante. ? As mulheres como puderam observar durante este tempo ao meu lado, causam problemas e uma terrível dor de cabeça. Olhe lady Juliette, jurou-me que não estava casada, que enterrou seu marido no ano passado e... acaso viu um fantasma me lançando a luva? Não sinta piedade por elas, meu amigo, são a outra parte do mundo. Foram criadas só e exclusivamente para nos dar prazer... ? sorriu de lado.

? Algum dia, William Manners, futuro duque de Rutland, apaixonar-se-á, e essa mulher te fará pagar por todo o mal que causou às suas amantes e aos seus maridos ? retrucou Federith com tom desafiante.

? Apaixonar-me? Jamais! ? Sentenciou após jogar o braço sobre o ombro de seu amigo e apertá-lo com força. ? O que fariam todas essas damas se o futuro duque se casasse? O que seria desses pais que, com tanta amabilidade, oferecem as suas bonitas e carinhosas filhas para que as converta em minha duquesa? Não, meu amigo, não posso entristecer toda essa gente. Devo a eles... ? Federith soltou um impropério enquanto que Roger e William não paravam de gargalhar.

Seis horas mais tarde, depois de ter descansado em sua residência de Southwark, William, perfeitamente embelezado para a ocasião, apareceu em Hyde Park. Depois de jogar uma rápida olhada aos arredores para certificar-se de que o duelo não era uma patranha para ser detido, distinguiu entre a pequena multidão as figuras de seus dois bons amigos. Com passo firme avançou para eles.

? Parecem aborrecidos ? disse a modo de saudação.

? Seus duelos já não causam interesse. Todo mundo sabe como terminarão ? respondeu Roger tomando a capa que o recém-chegado lhe oferecia.

? E como terminarão? ? Arqueou as sobrancelhas e o olhou aos olhos.

? Contará os passos, girará e, justo quando seu desafiador disparar, todos nós veremos que ele foi vítima dos nervos e que ele não alcançou o seu propósito. Então levantará a pistola e disparará ao ar. Seus amigos sabem que no fundo é uma boa pessoa e que se compadece de seu adversário. Imagino que o sofrimento que vive o marido depois do descobrimento da infidelidade é mais que suficiente. Equivoco-me? ? Roger arqueou as sobrancelhas e sorriu, assim como fez William.

? Espero que seja assim... ? interveio Federith. Ambos os cavalheiros giraram à volta dele e o observaram com interesse ? até agora lhe desafiaram homens aos que de verdade não lhes importava a afronta e se conformavam recuperando sua honra, entretanto, o senhor Blatte é um bom atirador e parecia necessitar do seu sangue para restaurar sua honra.

? Senhores..., ? interrompeu-os um dos padrinhos do competidor ? o senhor Blatte já escolheu a arma. Serão as pistolas, dez passos e... a morte.

? A morte! ? Exclamou Roger atônito. ? Não podemos permiti-lo!

? Não importa, ? William interrompeu seu amigo alarmado pela gravidade do assunto ? tem direito a escolher a forma em que sua honra será restaurada.

? Bem, pois quando sua Excelência estiver preparado daremos início.

Os três ficaram calados durante uns instantes. Pareciam refletir sobre as possibilidades existentes de sair ileso depois da informação obtida. Quando reclamaram a presença do cavalheiro, este olhou seus amigos, sorriu-lhes e caminhou para o lugar onde o senhor Blatte, embelezado com uma camisa branca e umas calças muita estreita esperava-lhe com os olhos injetados em sangue.

? Senhor... ? William o saudou com cortesia, mas este não se dignou nem a olhá-lo.

? Quando estiverem preparados... ? a testemunha olhou a ambos os homens e estes assentiram. ? Contem dez passos e girem-se. Que Deus os proteja.

William sentiu as costas de seu competidor na cintura. Riu ao notá-lo tão pequeno e com tanta coragem. Enquanto contava os passos recordava Juliette sob seu corpo. Viu de novo os grandes seios fazendo círculos maravilhosos quando cavalgava sobre sua ereção. Tinha lhe encantado ver o cabelo revolto depois do ato sexual e como ela albergava o enorme e duro falo na boca. Em vez de concentrar-se no que estava acontecendo, pensou que, quando o senhor Blatte voltasse a ausentar-se, faria uma visita à delatora para lhe recriminar o engano e fazê-la pagar por seus indecentes atos.

De repente escutou que alguém dizia dez. Virou-se com desconcerto e olhou seus amigos, que abriram os olhos de par em par enquanto cravavam seus olhos no senhor Blatte, ele fez o mesmo. Tinha curiosidade por saber como atuaria aquele pequeno homem e a cara que faria após falhar o tiro. Sorriu ao escutar o eco do disparo. Ato seguido, uma escuridão o rodeou e notou como seu corpo desabava para o chão fazendo com que sua cabeça batesse um par de vezes sobre algo bastante duro.


I


Londres, seis meses depois.

O ajudante de câmara o estava vestindo enquanto ele permanecia rígido e com o cenho franzido. Não era de seu agrado ter que depender de alguém para realizar uma tarefa tão singela. Antes do duelo, o criado se ocupava de lhe preparar a roupa, colocá-la sobre a cama e esperar que sua decisão coincidisse com a do duque. Entretanto as sequelas do duelo o tinham convertido em um ser dependente. Obstinou-se à crença de que transcorridos alguns meses seu corpo seria o mesmo de antes, mas não foi assim. A gravidade de suas feridas tinha sido tal que tinha que dar graças a Deus por continuar respirando.

Sem alisar sua testa refletiu sobre o destino e todas as jogadas que este lhe podia reservar enquanto o servente lhe punha a camisa e lhe abotoava, definitivamente, aquele calvário era o pior que tinha sofrido em toda sua vida.

Seus escarcéus amorosos tinham sido vingados por alguém que não levantava do chão mais de um metro e meio. Por que não girou para a direita para evitar o terrível impacto? Se em vez de estar pensando no prazer que lhe tinha dado o corpo de Juliette e a condenação que receberia por desvelar o segredo, teria prestado mais atenção à direção do projétil e hoje seguiria sendo o mesmo William de sempre. Entretanto, já não o era. Não ficava rastro da pessoa que foi. Agora era um deficiente, um homem ao qual lhe resultava impossível mover a mão esquerda e cuja incapacidade tinha azedado seu afável caráter para converter-se em um ser antissocial e desprezível.

? Excelência... ? o criado cravou os olhos no chão e lhe fez uma reverência antes de deixá-lo sozinho.

O duque caminhou para a janela apoiando-se na bengala. Amanhecia outro dia chuvoso e, como nas jornadas anteriores, não poderia sair da mansão. Isso lhe provocava mais ira do que a necessária. Não era igual passar as penúrias encerrado entre quatro paredes do que tomando o ar do exterior.

Apoiou a testa na moldura de madeira e suspirou. Merecia-o. O estado no qual se encontrava era o resultado da tormentosa vida que tinha levado e agora devia aguentá-lo com orgulho. Com grande esforço conseguiu chegar até a porta. O delicioso aroma do café da manhã fez com que seu estômago se manifestasse e, sem mediar palavra, desceu as escadas, uma proeza que três meses atrás lhe tinha resultado difícil executar por si mesmo. Chegou até o salão e esperou que um dos criados lhe apartasse a cadeira, sentou-se e se acomodou para começar a tomar o suculento café da manhã que havia sobre a mesa.

? Sua Excelência... ? o mordomo se aproximou e, depois de uma breve reverencia, continuou: ? o senhor Federith Cooper acaba de chegar e deseja falar com você.

Federith, um de seus melhores amigos a quem não tinha quebrado, ainda, sua amizade com ele, tinha lhe visitado quase diariamente durante sua convalescença. Foi o mesmo homem que lhe advertiu em reiteradas ocasiões que o rumo de vida que tinha decidido não era o apropriado para um duque.

William tinha rido dele, zombado de seus incessantes discursos sobre o dever e a lealdade para com o título que lhe seria concedido por nascimento. Mas, apesar das brincadeiras, dos sátiros comentários, Federith continuava ao seu lado como se o passado não tivesse existido.

? Deixe-o entrar... ? disse calmamente.

Quando sua voz deixou de mostrar a personalidade de um homem com caráter? Desde quando seu tom se apagou tanto? Possivelmente desde que descobriu numa manhã em frente ao espelho que William Manners se convertera em um monstro que poderia assustar aos meninos inquietos. Porque, embora todo mundo de seu entorno lhe oferecesse palavras de consolo, ele se via um ser disforme e sem utilidade. Como poderia suportar o peso de um título tão respeitável quando nem ele mesmo conseguia respeitar-se?

Levou a xícara de café aos lábios com a mão sã e tomou, depois de um leve sopro ao líquido, um bom sorvo. Escutou enquanto isso como o mordomo informava ao seu amigo que era bem recebido e, depois de finalizar a conversação, os passos deste para a sala de café da manhã. Antes que Federith abrisse a porta e aparecesse com seu peculiar sorriso, William já tinha seu olhar cravado em sua direção.

? Bom dia, querido Rutland, que tal se levantou nesta horrenda manhã? ? Caminhou para ele e, ao compreender que não podia saudá-lo com um apertão de mãos posto que estivesse utilizando a mão útil, agarrou a cadeira, apartou-a e se sentou ao seu lado.

? De péssimo humor... ? murmurou com aborrecimento.

? Está acostumado a ocorrer quando o inverno está a ponto de terminar. Por muito que desejemos evitá-lo, azeda-nos o caráter ? continuou mostrando um leve, mas gentil sorriso.

? A que se deve sua visita, Federith? ? Grunhiu.

? Não se alegra de me ver? ? Respondeu à sua vez.

? Já sabe a que me refiro. O que aconteceu para que esteja em meu lar antes do meio-dia? ? Voltou a beber do café sem apartar o olhar de seu amigo.

? Sua astúcia não diminuiu nem um ápice, não é? ? Soltou uma pequena gargalhada. Depois de observar que William pousava a xícara sobre o pires e pegava o garfo para dirigir a comida que lhe tinham preparado para a boca, prosseguiu: ? Queria te dar uma notícia antes que lhe cheguem os rumores: decidi pedir a mão de lady Caroline.

? Matrimônio? ? Arqueou a sobrancelha esquerda abandonando com brutalidade o garfo sobre a mesa e se reclinando sobre as costas do assento. ? Diz-o a sério? De verdade que vem me informar, antes de ter o estômago cheio, que decidiu se casar? ? Abriu tanto seus olhos que Federith por fim conseguiu averiguar a cor destes.

? Chama-se amor, William, e embora te pareça mentira, Caroline me ama tanto quanto eu a ela ? disse sem mostrar remorso algum pelo comentário mordaz de seu amigo. Não esperava que lhe desse os parabéns. Não William. Ele o evitaria contribuindo com argumentos nefastos sobre a vida que teria uma vez que sua prometida obtivesse o anel. ? Decidi que ? prosseguiu Federith aferrando suas mãos como se tivesse a intenção de começar a rezar ? retornarei a Hemilton depois das núpcias. Esse será o lugar adequado para formar uma família respeitável.

? Então... ? William entrecerrou os escuros olhos e os cravou em seu amigo. Notava como a respiração deste era agitada, nervosa. Esses sinais de preocupação e incerteza apareciam no jovem Federith sem ele desejá-lo. O duque pigarreou. Tinha refletido, ao mesmo tempo em que seu amigo expunha sobre o infinito amor que o casal se professava, a verdadeira razão pela qual Federith tomava uma decisão tão importante. ? Então... ? repetiu para captar a atenção de seu camarada. ? Ela está grávida e precisam se afastar de Londres para que não se descubra a verdadeira razão desse precipitado enlace matrimonial, não é?

? Santo céu, Manners! ? Exclamou Federith empurrando com as panturrilhas o assento e elevando-se com rapidez. Ficou rígido, sem saber que passo dar. Esperava que William fosse sensato e retificasse, mas conhecendo-o como o fazia, sabia que isso seria impossível.

? Calma, sabe que de minha boca não sairá nada que possa te prejudicar ? continuou com o cenho franzido enquanto observava a crescente tensão de Federith.

? Espero que não tenha esquecido o que significa ser um cavalheiro. ? Seus punhos se apertaram. As palavras brotaram dele com um tom repleto de ameaças.

Mas... que perigo poderia ter uma pessoa que vivia detento de suas más decisões? Ante tal reflexão Federith se zangou consigo mesmo. Ele não era assim. Jamais desejava o mal a ninguém. Sua filosofia de vida era muito distinta. Embora a raiva que William tinha despertado nele superasse qualquer crença sensata.

? Há valores que nunca se perdem ? respondeu William ao pequeno ataque.

? Não estou muito seguro disso. Apartartou-se do mundo. Apenas se relaciona com seus amigos, escondeu-se entre estas paredes e há mais de três meses não recebe visitas. Crê que esse tipo de vida não faz rachaduras na mente do cavalheiro mais racional?

O duque o observava com atenção. Federith seguia com os punhos fechados, mas em nenhum momento foi capaz de olhá-lo aos olhos para lhe cuspir o pouco veneno que devia sentir após descobrir seu pequeno segredo.

? É o melhor lugar para habitar um monstro, não acredita?

? Monstro? Assim é como se considera o duque de Rutland? Desaponta-me William, acreditei que tinha mais coragem...

Federith o olhou com atenção. Na verdade, William tinha um pouco de razão. Ali onde no passado tinha existido um cavalheiro bonito, agora se encontrava um homem com umas horrendas marcas no rosto. Além disso, já não era só a fealdade, mas sim que depois de ser operado de urgência pelo médico que o zangado marido de Juliette conduziu até o lugar do duelo, o duque ficou incapacitado de uma mão. Essa que, nesses momentos, tinha colocado sobre a mesa aparentando ter uma função. Suspirou com suavidade e meditou sobre a passada temporada social. Seu amigo partiu antes do acostumado deixando lady Baithlarin desolada pela ausência repentina de um homem tão importante. Supôs que tal marcha se deveu à imensa pressão que William estava sofrendo depois do falecimento de seu pai e a posse do título. Entretanto, a fuga à sua residência em Southwark tinha outra razão: desaparecer. Odiaria ver a cara de espanto que mostrariam as jovens casadouras quando seus progenitores as apresentassem ao novo duque. Ali onde antes encontrou sorrisos pecaminosos e olhos frágeis pela possibilidade de jazer sob a esbelta e robusta figura, agora encontrava repugnância, asco. Que dramático final para um homem que acreditou ser possuidor de todos os encantos divinos!

? Perdi-a depois do disparo ? respondeu em tom vazio, sem entusiasmo. Entretanto, em seu interior crescia de novo aquela ira a qual começava a acostumar-se. Era hora de cortar a conversação e deixar que seu amigo tomasse o rumo marcado. ? Voltando para o motivo pelo qual me visita...

? Como lhe disse, tomei uma decisão firme a respeito. A futura baronesa de Sheiton será muito feliz em Hemilton.

? Não o duvido. Com certeza será muito feliz com esse filho que te dará e imagino que será o pai mais maravilhoso do mundo.

? Sim ? respondeu ignorando a ironia de sua afirmação. ? É óbvio que serei feliz ao lado da minha esposa e da família que criarei. ? A visita estava chegando ao seu fim. Federith tinha vontade de partir e afastar-se de seu camarada. Estirou-se a jaqueta do traje, estendeu a mão para seu amigo para que este a tomasse e disse: ? Veremos-nos em outro momento. Possivelmente em um no qual tenha recuperado o sorriso.

? Antes de ir..., ? aferrou com força à mão de Federith e olhou-o nos olhos ? eu gostaria de te fazer uma última pergunta, se me permitir isso o futuro barão de Sheiton, é claro.

? É óbvio.

? Estou me perguntando... que classe de inconsciente pode chegar a ser para se casar com uma mulher que leva em seu seio o filho de outro? ? Soltou sem tomar ar.

O assombrado homem não respondeu a impertinente pergunta. Partiu do salão erguido e com passo firme.

William ficou calado refletindo durante um bom momento. A decisão de Federith a nível social era a mais correta se ele amava de verdade a mulher. Entretanto, quando falou dela e de seu futuro projeto juntos, não mostrou o entusiasmo próprio de um homem apaixonado, um homem que, tal como tinha proclamado, amaria para sempre a sua esposa.

Muito a seu pesar sabia que cedo ou tarde seu amigo seria infeliz e isso, embora não quisesse reconhecê-lo, doía-lhe. Sempre albergou a esperança que, dos três, Federith obtivesse a vida que merecia.

? Deseja algo mais, Excelência? ? Um dos criados lhe fez despertar de sua letargia mental ao mesmo tempo em que entrava no salão e esperava o próximo mandato.

? Preparem a bagagem. Amanhã ao amanhecer partiremos para Haddon Hall.


II


Tinha viajado quatro dias intermináveis com suas noites incluídas, pernoitando em miseráveis e fedorentas estalagens, mas por fim, aquela horrenda viagem se acabara.

Chegara ao seu lar.

O imenso arvoredo lhe dava as boas vindas com suaves movimentos de folhas. William colocou a cabeça pela janela da carruagem e observou a sobriedade dos grandes e altos muros da mansão. Era, sem dúvida, o melhor lugar onde poderia esconder-se pelo resto de sua vida. Uma fortaleza em que poderia passar os dias inteiros caminhando pelos intermináveis corredores, salões e estadias. Moveu o lábio superior para a esquerda tentando desenhar um sorriso, mas fazia tanto tempo que não movia os músculos para essa função que foi impossível fazê-la como era devido. Apesar desse fracassado esforço por sorrir, William se sentia contente em retornar à casa de sua infância.

Rememoraria as aventuras que seu irmão e ele viveram quando meninos. Se a mente não lhe falhava, ambos tinham enfurecido até ao servente mais paciente do mundo. Logo, com o tempo, aqueles que correram atrás deles para que não terminassem se machucando, converteram-se em pessoas dignas de sua confiança.

Olhou de novo ao seu redor. Tinham passado dez anos desde que decidiu abandonar Haddon Hall para dedicar-se ao desfrute da vida londrina, e nada tinha mudado em Derbyshire, o tempo parecia deter-se.

O cocheiro diminuiu o passo quando chegaram ao jardim principal. Com a cabeça apoiada na almofadinha da carruagem podia ver a fonte. Ela foi à causadora de sua primeira aposta e de sua primeira derrota. Não tinha que ter desafiado Lausson a saltar, as probabilidades de que perdesse eram escassas, entretanto precisava provar-se a si mesmo. Necessitava estimulação, emoção e um sem-fim de sentimentos que depois encontrou entre as pernas de suas amantes.

William fechou os olhos. A palavra amante se converteu em sinônimo de monstruosidade, posto que pela língua de uma delas ele tinha o rosto desfigurado e uma mão inerte. De repente se perguntou como atuaria o serviço ante sua chegada. Para eles tinha que ser bastante impactante recordar a marcha de um bonito homem e receber ao mesmo convertido em um monstro. Esperava que Brandon, seu fiel mordomo, tivesse lhes posto à corrente do acontecido e indicado a melhor forma de atuar quando ele estivesse presente: nada de olhá-lo ao rosto, tão somente servir e manter os olhos cravados no chão.

Repentinamente uma terrível dor se apropriou de sua cabeça. Notava nas têmporas o pulso de seu coração. Estava nervoso? O duque de Rutland começava a sentir ansiedade por seu futuro? Não se tinha respondido quando a porta da carruagem se abriu e alguém estendeu uma mão para lhe facilitar a descida. Até o momento, não o tinha necessitado: o normal era que se aferrasse com a mão sã à porta e descesse devagar. Mas depois de quatro dias de viagem, de mal dormir, de fadiga e inclusive de uma péssima alimentação, essa ajuda era necessária. Depois da custosa façanha, liberou a mão e continuou sozinho.

Quando elevou o olhar para a entrada principal advertiu que todos os criados tinham saído para saudá-lo e cravavam seus olhares no chão. Em efeito, Brandon tinha falado com eles.

? Milord... ? o mordomo se colocou com sutileza atrás de suas costas e começou a lhe informar. ? Sua habitação está preparada para que descanse. Imagino que depois da viagem precisará refrescar-se, assim ordenei ao seu ajudante de câmara que o espere. As criadas lhe prepararam um banho de água quente.

? Obrigado, Brandon ? disse com tom suave.

? Não tem por que me agradecer, Excelência. É uma honra trabalhar para você. ? Brandon, sem afastar-se do senhor nem um metro, caminhava com firmeza esperando que este requisitasse sua força para subir as escadas. Mas não a necessitou. O duque de Rutland caminhava com orgulho para o interior do lar, saudando brandamente com a cabeça seus novos empregados. ? Tenho que lhe comentar que na biblioteca tem sobre sua mesa vários convites. Embora tenha anunciado que deseja descansar uma temporada antes de encher Haddon Hall de convidados, todo mundo deseja conhecê-lo e falar com você.

O duque fez um leve som gutural e o criado entendeu que aquele esforço era mais do que podia suportar. Tentou alargar a mão para aferrar-se ao braço inerte de seu senhor e acalmar o esforço, mas este o negou. Tinha suficiente orgulho para não se mostrar fraco ante aqueles que estavam sob suas ordens.

Tal como lhe informou Brandon, quando acessou seu quarto o ajudante esperava pacientemente. Depois de fechar a porta, o criado lhe fez uma reverência e lhe pediu permissão para despi-lo. William a aceitou com rapidez. Desejava inundar-se na banheira o antes possível. Precisava introduzir seu cansado corpo em água quente e que esta acalmasse as doenças que lhe açoitavam sem piedade.

? Necessita que lhe ajude em alguma outra coisa, sua Excelência? ? Inquiriu o criado ao finalizar sua tarefa com habilidade.

? Diga ao Brandon que suba, preciso falar com ele ? respondeu o duque.

O criado se dirigiu para a porta com rapidez e antes que William pudesse suspirar, Brandon apareceu no meio do quarto.

? Não está tudo como deseja, Excelência?

? Tudo está perfeito, obrigado. Chamei-te porque quero que me faça um favor. Necessito que procure o antes possível uma cortesã capaz de manter encontros esporádicos comigo ? ordenou sem olhá-lo. Movia as pernas devagar, deixando que se acostumassem ao calor do banho, à tranquilidade de um ambiente sereno e aprazível.

? Com o mesmo salário, sua Excelência?

? Com o mesmo salário... ? repetiu.

? Alguma petição especial? ? Quis saber.

Em Londres o duque tinha procurado durante muito tempo uma amante que se parecesse fisicamente à lady Juliette. Não encontrou a réplica perfeita, mas sim a uma jovem que tinha feições parecidas. Esta o satisfez até que dias atrás teve que partir. É óbvio, deu-lhe a opção de escolher: podia viajar para Haddon Hall para continuar seu ofício ou, pelo contrário, podia declinar seu convite. A jovem, alegando que sua mãe se encontrava bastante doente, decidiu não continuar. Algo que entristeceu ao senhor por que... como conseguir outra agulha em um palheiro?

? Já sabe quais são os requisitos ? disse com grosseria.

? É óbvio. Deseja que diga ao seu ajudante de câmara que pode acessar ao dormitório?

? Não, diga-lhe que esteja atrás da porta e que o chamarei quando o necessitar.

? Como desejar... ? disse antes de retirar-se.

William olhou ao seu redor. Encontrava-se no quarto de seu pai, o santuário do anterior duque de Rutland, o único lugar proibido de todo Haddon Hall quando era menino. Ambos os irmãos se enchiam de entusiasmo quando o pai aparecia pelo lar, e só pensavam em despertá-lo com risadas e conversações sobre as mil anedotas que tinham acontecido em sua ausência. Entretanto, com o tempo descobriram que o duque não retornava para passar tempo com seus filhos e sim para esquentar a cama com sua legião de amantes.

William franziu o cenho. Tinha odiado com todo seu coração a atitude de seu pai e não deixava de ser irônico que se convertera em uma réplica perfeita. O que primeiro tinha ordenado ao Brandon ao chegar? Uma amante. Uma mulher que o saciasse sexualmente, sem escrúpulos e desejosa de encher seus bolsos de moedas.


Só gozou de dois dias de solidão para descansar antes que os primeiros bisbilhoteiros aparecessem. O reverendo Brace e sua esposa eram um jovem casal que tinham retornado a Derbyshire depois que faleceu o pai deste, anterior pastor da comarca. Quando acessaram ao salão principal, lugar onde receberia a todos seus convidados, William se desculpou por não lhes dar as boas vindas de maneira correta.

? Não se preocupe, Excelência, informaram-nos de suas incapacidades ? explicou o reverendo com um sorriso. Ao qual o duque desejou fazer desaparecer com um murro, se pudesse.

? Veio ao melhor lugar para descansar. ? A senhora Brace, com uma suave e harmoniosa voz, misturou-se na conversação para salvar as inoportunas palavras de seu marido.

? Isso espero ? comentou o duque esboçando um leve sorriso. ? Segundo minha lembrança, Derbyshire é um lugar tranquilo e aprazível.

? As pessoas que habitam aqui são gente de paz, nós não gostamos dos escândalos nem tentamos destacar mais do que nossas possibilidades nos oferecem.

? Entretanto, às vezes sofremos certos constrangimentos. ? Outra vez a encantadora mulher tentava salvar a desafortunada reflexão de seu cônjuge. ? Virá à Igreja, sua Excelência? É linda e aos domingos está transbordante de crentes.

? Se puder, estarei encantado de admirá-la ? respondeu William com uma amabilidade estranha. Quanto tempo fazia que uma mulher não lhe agradava? Muito, devia ter transcorrido no mínimo uma eternidade, porque se não fosse assim, por que via atraente a volumosa esposa do reverendo?

? Visitou-lhe já algum de nossos vizinhos? ? Perguntou o impertinente homem antes de dar um sorvo ao chá.

? São vocês os primeiros. Meu mordomo me informou sobre a montanha de convites que recebi, mas temo que até que não consiga me pôr em dia com a contabilidade de Haddon Hall, não poderei aceitar a nenhum. ? Parecia uma desculpa? Esperava que assim fosse, porque não tinha vontade de explicar nada ao pároco, nem que não era responsável pela quantidade de convites que lhe tinham enviado nem se os aceitaria.

? Deve descansar, Brennet. Sua Excelência fez uma longa viagem e como deseja assentar-se neste lindo lugar pelo resto de sua vida, tem muito tempo para assistir aos eventos onde seja requerido – sorriu-lhe.

De verdade que um simples gesto de piedade podia interpretar como uma paquera feminina? De verdade que não podia apartar o olhar dos seios da esposa de um pastor? O duque tentou manter a calma e deixar de pensar no prazer. Essa noite, assim que pudesse falar com Brandon, pediria-lhe que esquecesse os requisitos solicitados para a cortesã e empregasse a primeira que gostasse do pagamento.

? Já é tarde, Lídia ? disse o reverendo olhando com ternura para sua esposa. ? Milord... ? levantou-se e moveu a cabeça devagar para diante. ? Voltaremos em outro momento, se lhe agradar.

? É óbvio, sempre serão bem-vindos.

Lídia, como a tinha chamado o senhor Brace, aproximou-se do duque, fez-lhe uma reverência e, aferrando-se ao braço de seu marido, ambos saíram do salão. Minutos depois apareceu Brandon. Esse homem parecia lhe ler a mente.

? Conseguiu a cortesã? ? Perguntou de mau humor e impedindo que o servente começasse alguma conversação que o distraísse de seu verdadeiro propósito.

? É óbvio, milord. Começará o trabalho quando você quiser ? explicou o mordomo com certa preocupação.

Era certo que a jovem tinha aceitado com rapidez seu novo encargo, mas não estava muito seguro de que o fizesse corretamente. Não parecia ser uma mulher com experiência, por muito que ela tivesse insistido no contrário.

? Pois não a façamos esperar. Informe-lhe que esta noite provarei seus serviços. ? Levantou-se com vigor e caminhou ansioso até a sala de jantar. Era a primeira vez em muito tempo que desejava com prontidão a chegada da noite.

Depois do jantar, que durou a metade do acostumado, decidiu refrescar-se. Queria estar limpo para sua nova amante. Que estivesse lesado ou impedido para fazer certas coisas no ato sexual não queria dizer que se comportasse como um mendigo, nunca o tinha sido e nunca o seria. Odiava escutar as conversações de certos homens que se denominavam cavalheiros e alardeavam suas experiências com as prostitutas que encontravam nas ruas. Ele jamais precisou ir a uns serviços tão desagradáveis. Só de pensar lhe produzia asco. No meio da rua? Sem assear-se? Como animais? Não, ele não pertencia a essa classe de homens.

Não lhe cabia dúvida que Brandon a teria conduzido até alguma das habitações da residência, teria-lhe devotado uma boa banheira de água quente e a teria preparado para o momento. Enquanto seu ajudante lhe colocava com habilidade a camisola, pensou em como seria a mulher. Alta? Teria pernas longas? Adorava esse tipo de mulheres, possivelmente porque sua estatura era bastante considerável para albergar em seu corpo uma concubina de pequeno tamanho. William franziu o cenho.

Nesse preciso instante, em vez de pensar mais na mulher que entraria em seu dormitório para lhe agradar, recordou de novo o marido de Juliette. Subestimou-o por ser baixinho, riu dele e inclusive pensou que seria um bom palhaço para um desses circos que visitavam a cidade. Embora resultasse muito ao seu pesar, que esse pequeno homem provocou o maior desastre de sua vida. Sim, esse tipo de conclusões lhe reforçava com esforço a crença de ter ao seu lado uma mulher alta, muito alta.

Andou pela habitação durante uns minutos. Estava ansioso pela iminente chegada. Olhou com rapidez ao seu redor. Havia muita luz para seu gosto. Possivelmente devia apagar alguma vela e deixar um ambiente mais íntimo. A jovem de Londres soube antes o que encontraria ao acessar o quarto, o periódico The Daily Gazetteer se encarregou de difundir uma foto de seu antes e seu depois. A fatalidade de uma vida promíscua tinha intitulado o artigo. Entretanto, em Derbyshire, as notícias se conheciam pela difusão dos habitantes. Deu por certo que, salvo os que estivessem fora de seus lares, já tinham algum conhecimento do novo rosto do duque de Rutland. Não lhe cabia dúvida de que o reverendo teria se encarregado disso.

Olhou de novo as velas acesas e decidiu apagar um par delas. Pareceu-lhe que a melhor forma para começar uma relação especial era sob a intimidade da penumbra. Logo se aproximou da cama e se sentou sobre ela, esperando-a. Tremia-lhe a mão e o coração palpitava sem poder controlá-lo. Zangado por não controlar sua ansiedade, repreendeu-se em voz alta.

? Basta! Controla sua emoção! Nem que fosse conhecer sua futura esposa!

Terminou esse pequeno e escandaloso monólogo quando escutou o suave som da porta. Se antes o coração estava agitado, agora tinha parado em seco.

? Pode entrar ? disse com tom aparentemente sereno.

Uma pequena figura apareceu na penumbra. William franziu o cenho ao ver que Brandon não tinha conseguido uma concubina de grande altura. A mulher tinha o cabelo solto cobrindo grande parte de seu rosto e de seus ombros. Nesse momento se repreendeu por ter criado tanta escuridão posto que mal distinguisse as feições da moça. Embora, se fosse boa em seu trabalho, o que importava como era seu rosto?

? Aproxime-se ? sussurrou o duque estendendo a mão direita para ela. A moça caminhou para a cama e o olhou. Nesse momento suas sobrancelhas subiram uns milímetros e William entendeu que se surpreendeu. ? Não acredito que deva te explicar para o que veio, não é? ? Ela assentiu. ? Não albergue em seu coração a possibilidade de que entre nós exista uma relação afetuosa, só quero prazer. ? Seu tom se endureceu. Por que havia se zangado com tanta rapidez?

? Só prazer... sua Excelência ? murmurou a mulher sem querer voltar a cravar seus olhos no rosto dele. Como se tivesse mais pressa do que se requeria naquele tipo de encontros, a mulher se desfez das vestimentas e se colocou frente ao duque nua. Deu uns pequenos passos até que a mão deste pôde alcançar um seio.

? Faça com que eu te deseje. Finja algum interesse e faça por merecer o salário que obterá quando partir ? continuou com tom duro, firme e inclusive insolente. Mas... o que pretendia? Que ela se lançasse sobre seus braços e beijasse aquelas horrendas cicatrizes? Ficou tão impactada ao vê-lo que não sabia nem como atuar.

A mulher se ajoelhou em frente ao homem. Levantou com suavidade a camisola e procurou com a boca o falo. William jogou a cabeça para trás e suspirou. Estava tão necessitado que essa noite se contentaria com o pouco que a concubina estivesse disposta a dar. Se ela tinha decidido utilizar sua boca para saciá-lo, relaxaria e desfrutaria do momento. Fechou os olhos e fez com que as imagens de Juliette retornassem à sua mente. Voltava a tê-la ao seu lado lhe sussurrando palavras obscenas. Mostrando sem pudor o desejo que sentia o bonito corpo ao tocá-la e como a mulher respondia com um sem-fim de deliciosos ofegos. Rememorou o baile de seus seios ao sentar-se sobre ele, seus gemidos, seus beijos e o abundante fluxo que emanava do sexo para conseguir banhar o seu. Úmida e aberta para suas carícias. Quente e ardente sob seus toques. William franziu o cenho. Estava a ponto de gozar na boca da cortesã. Não quis abrir os olhos e observar o rosto da jovem. Preferia imaginar Juliette. Preferia escutar os ofegos daquela mulher que os seus próprios. O sexo vibrou, endureceu-se com força e notou como a semente brotava de seu interior banhando a língua da moça a quem não tinha perguntado nem seu nome. Não lhe importava, para que saber o nome de uma mulher que, depois de olhar seu rosto, tinha-lhe dado tanto medo que não foi capaz de levar a cabo um trabalho tão singelo? Quando o sexo retornou ao seu estado normal, baixou-se a camisola, girou-se para dar as costas à petrificada moça, agarrou-se com força ao dossel em espiral de madeira e lhe disse com tom sério e furioso:

? Vá! Meu mordomo te pagará o convencionado.

A moça agarrou com rapidez o vestido que tinha deixado no chão e se vestiu. Fez uma reverência ao duque e partiu velozmente. Quando a porta se fechou e William soube que por fim estava sozinho, começou a chorar como tantas vezes tinha feito depois do duelo. Sentia-se cada vez mais no fundo do poço e com menos força para seguir vivendo. Ninguém desejaria ter ao seu lado um monstro inútil. Nenhuma mulher deveria ser condenada a viver sob seu mesmo teto. Tremendo, recostou-se na cama e continuou chorando até que adormeceu.


III


Nada. Já não tinha nada que levar à boca. Já há um tempo que as reservas que tinha guardado para poder sobreviver naquele paradisíaco lugar tinham desaparecido. Enrugou a testa e levou as mãos ao quadril. Como era possível que aqueles malditos lobos tivessem comido, em uma noite, uma peça tão grande? Enfurecida pela fome, pensou em apanhar aqueles que a tinham deixado sem alimento e comer-lhes.

«Malditos animais!», gritou para si entre lágrimas.

Ela chutou uma pedra, e depois de sentir uma terrível dor nos dedos, sentou-se sobre ela. O que devia fazer agora? Tinha investido as últimas moedas comprando galinhas, coelhos e um casal de porcos. Acreditou que eles a ajudariam a subsistir todo o tempo que fosse necessário até decidisse-se retornar e fazer frente à situação que não pôde dirigir no passado. Entretanto, agora não ficava nada, nem sequer um pedaço de pão para levar à boca. Depois de meditar durante muito tempo na melhor maneira de sobreviver naquelas circunstâncias, saltou sobre o chão e sorriu. Não lhe tinha ocorrido com antecedência porque o desprezava com toda sua alma, mas dada a situação teria que deixar estacionado o ódio que sentia por esse homem e pensar no melhor para ela.

Todo mundo falava com entusiasmo da chegada do atual duque de Rutland. Esperavam que aquela aparição fosse bastante proveitosa para o povo porque, se o duque continuasse com sua famosa vida social, celebraria grandes e numerosas festas e a localidade se encheria de nobres curiosos. O verdadeiro motivo para esse entusiasmo era um muito singelo de compreender: trabalho. Lavadeiras, costureiras, cozinheiras e criados em geral seriam procurados para oferecer aos convidados de Haddon Hall o máximo conforto. Era uma oportunidade que não podia deixar escapar.

Com vigor colocou as mechas que se soltaram do coque, ajeitou várias vezes o vestido e tomou o caminho que a conduzia até a mansão. Tinha tanta pressa por encher seu estômago que não esperaria que se convocassem as esperadas entrevistas. Beatrice tocaria a porta e pediria qualquer trabalho que, é óbvio, aceitaria com grande entusiasmo.

O que começou sendo um suave passeio, mais tarde se converteu em uma caminhada rápida, para depois pôr-se a correr como se o próprio diabo a perseguisse. Esquivou-se de todos os obstáculos que encontrou em seu passo sem lhe importar que em mais de uma ocasião seu vestido se manchasse de respingos de barro. Tinha um objetivo a cumprir, um que odiava porque se tratava de estar sob o amparo de um homem egoísta, ruim e desprezível, mas era o único que lhe ajudaria a continuar viva.

Quando chegou ao jardim principal da mansão, Beatrice ficou sem fôlego. Não só pelo esforço da corrida, mas sim pela imensidão do lugar que se mostrava ante ela. Tinha escutado muito sobre a residência do duque, mas jamais chegou a imaginar algo um pouco parecido. Possivelmente porque seus pais chamavam grandeza a uma décima parte do que observavam seus olhos. Permaneceu imóvel durante algum tempo, contemplando sem pestanejar o enorme edifício. Uma vez que estudou em detalhe o lugar, pareceu-lhe muito frio, muito sólido. Seus muros eram tão grossos e sóbrios que não entendia como alguém podia considerá-lo um lar, mais se assemelhava a uma prisão.

Aquele era o famoso paraíso no qual se criaram os filhos do duque? Disso se orgulhavam? Pois ela não trocava seu humilde lar pelo que estava vendo. Era tão impessoal e gélido como a atitude do homem a quem ia suplicar um posto de trabalho.

Depois de conseguir um pouco de calma e separar de sua mente todo pensamento doloroso produzido pela lembrança do comportamento do duque, caminhou pelo jardim sem descanso até que subiu as escadas que a conduziram para a porta principal. Parada frente a esta, duvidou se chamava com suavidade ou com todas as suas forças. Sopesava qual alternativa era a correta quando de repente escutou umas vozes que procediam da lateral do edifício. Assustada e com o coração galopando em seu interior, permaneceu imóvel enquanto rezava para que não a descobrissem tão cedo. Por uma vez Deus atendeu suas preces e os que falavam sem parar não repararam em sua presença. Escondida pela escuridão que lhe ofereciam uns pilares de pedra, observou várias pessoas descerem por onde minutos antes ela tinha subido. Quando as vozes se perderam pelo jardim aproveitou para sair de seu esconderijo e dirigir-se para o lugar de onde tinham saído: a porta de serviço.

Respirou com profundidade, voltou a pedir ajuda a Deus, elevou a mão para chamar e, justo quando seu pequeno punho iria tocar a grande lâmina de madeira, esta se abriu.

? Quem é você?! ? Exigiu saber com uma mescla de surpresa e medo uma mulher de avançada idade.

? Bom dia, senhora. Desculpe se a incomodo, vim pedir trabalho ? explicou olhando ao chão.

? A pedir trabalho?! ? A mulher abriu os olhos de par em par e levou a mão à garganta.

Beatrice abaixou ainda mais a cabeça ao mesmo tempo em que suas bochechas se enchiam de uma intensa cor vermelha. Não tinha dúvidas sobre a causa do imenso susto que tinha provocado à mulher. Quem, em seu são julgamento, pediria um trabalho respeitável vestida com farrapos manchados, com o cabelo coberto de barro e cheirando a excrementos de porco? Mas ela não estava em seu são julgamento desde que a fome se apoderou de seu corpo e de sua mente.

? Necessito-o, senhora. Estou a ponto de morrer. Levo dias sem comer... ? implorou a moça.

? Não é meu encargo oferecer trabalho, disso se encarrega o senhor Stone, mordomo de sua Excelência. Mas te aconselho que, se de verdade necessita de um emprego, volte outro dia com melhor aspecto. Assim só lhe fecharão a porta. ? Hanna, a cozinheira, sentiu verdadeira lástima pela jovem. Nunca tinha visto uma expressão tão dramática, nem tampouco uma palidez tão fantasmal.

? Rogo-lhe. Ajude-me... ? continuou com voz tão baixa que a anciã mal a escutou.

A anciã olhou a ambos os lados e, certificando-se de que ninguém poderia descobrir que abrigaria durante uns minutos a uma mendiga em uma casa respeitável, estendeu a mão e aferrou com força o braço da moça.

? Entra, sente-se e não fale até que tenha terminado de comer o que puser sobre a mesa. Se de verdade pretende trabalhar algum dia em um lugar como este, deve se sustentar com algo mais... do que tenha se alimentado até agora.

Beatrice sorriu e se sentou tal como lhe tinha indicado a mulher. Manteve-se calada até que contemplou o prato de sopa quente que a amável estranha colocava em frente a ela. Agarrou a colher, inclinou-se para a fumegante terrina e, sem esperar a que este se esfriasse, arremeteu contra ele. Em um passado já bastante longínquo teria pegado a colher e a teria dirigido lentamente para seus lábios para sorver em silêncio seu conteúdo. Mas estava vivendo o presente e seu estômago estava muito vazio para recordar protocolos absurdos. Mal levantou o olhar, salvo quando sua benfeitora retornava para lhe apartar o prato terminado e lhe colocar outro em seu lugar.

Enquanto notava o calor da comida em seu interior pensou que aquilo que estava conseguindo não era o que tinha pretendido. Ela queria um trabalho para ganhar a comida que a sustentaria durante o tempo necessário até que decidisse retornar a Londres. Entretanto, como não havia outra alternativa, continuou comendo enquanto fazia à ideia de que os suculentos pratos poderiam lhe oferecer um pouco mais de vida. Possivelmente a justa para sobreviver até que chegassem as desejadas entrevistas. De repente, enquanto saboreava seu último prato, escutou-se uma portada atrás dela e Beatrice saltou do assento. Ao descobrir em frente a ela um homem com rigoroso traje negro, abaixou a cabeça e começou a fazer nós com o tecido do vestido.

? Quem é e o que faz aqui? ? Brandon a observou com perspicácia, ato seguido dirigiu os olhos para Hanna e franziu o cenho.

? É uma jovem que veio pedindo um emprego... ? expôs a cozinheira limpando as mãos no avental.

? Do que, de limpadora de chaminés? ? Disse de mau humor. Não podia acreditar no que seus olhos observavam. Na cozinha, um lugar sagrado, havia uma moça coberta de sujeira, faminta pelo que podia apreciar, e desprendendo um aroma parecido ao do esterco de cavalo. Como tinha ocorrido a Hanna fazê-la passar à cozinha? Se a garota não partisse terminaria empesteando toda a mansão.

? Se me permitir isso, senhor, posso lhe informar que sei lavar, costurar, e inclusive posso ajudar em outras tarefas domésticas... ? murmurou sem levantar a vista do chão.

? Disse lavar? Não estou tão seguro disso, menina. A sujeira que vejo em seu corpo me indica que não deve ter muito claro o que significa isso... ? O mordomo cruzou os braços e entrecerrou os olhos.

? Brandon! Como pode falar assim? ? Hanna explodiu e, diante de Beatrice, tratou-lhe com familiaridade, advertindo à jovem que entre eles existia uma relação mais afetiva do que aparentavam.

? Esta moça tem que sair daqui o antes possível, senhora Stone ? explicou com tom sereno e firme. ? Eu não gostaria de sentir a fúria do duque em meu corpo por algo que nem sequer me corresponde.

? Suplico-o, senhor ? interveio Beatrice entre soluços. ? Preciso comer. Hoje fui abençoada pela amabilidade da senhora Stone, mas amanhã... do que me alimentarei amanhã?

Brandon, que tinha se girado para que Hanna não observasse o aborrecimento que lhe provocou seu ato de solidariedade, ficou durante uns instantes parado com o olhar cravado na porta por onde tinha entrado. Depois de meditar o rogo desesperado da jovem, sorriu meio de lado e se voltou para esta.

? Já esteve alguma vez com um homem? ? Enrugou a testa e a olhou diretamente aos olhos.

Hanna, depois de escutá-lo, levou-se a mão à boca. Sabia o que estava a ponto de expor e pensou que se na verdade lhe oferecesse aquele posto, ela cairia ao chão.

? Como? ? Apesar de ter as bochechas cobertas de barro, o rubor era visível em seu rosto.

? É virgem? Manteve relações sexuais? Sabe esquentar o leito de um homem? ? Continuou com o inesperado interrogatório o mordomo. Deveria assustá-la, não podia fazer com que Hanna tentasse acolhê-la tal como parecia pretender. Desde que a filha de ambos morrera fazia já quase quinze anos, o instinto maternal brotava sem que ela percebesse e em muitas ocasiões, de maneira incorreta.

Beatrice esteve a ponto de desmaiar. O que tentava dizer o mordomo? Por que precisava saber se alguma vez tinha estado entre os braços de um homem? Quis romper a chorar quando em sua mente brotou a lembrança daquele momento. Sim, tinha estado com um homem e tinha perdido a inocência com ele, mas... tinha que explicar como e em que circunstâncias a tinham desflorado?

? Vejo que está pensando... ? um sorriso zombador apareceu no rosto enrugado.

? Não... ? disse enfim Beatrice apertando os punhos e armando-se de coragem.

? Informo-lhe, senhorita, que o único posto livre que temos nestes momentos é o de cortesã. Nosso duque necessita de uma mulher para saciar seus desejos sexuais e o pagamento é uma bolsa de cem moedas de ouro por esses serviços. Sabe agradar a um homem?

Hanna girou e se dirigiu para o fogo. Não suportava a situação que estava vivendo e se jogava a culpa disso. Se tivesse fechado a porta e não a tivesse arrastado até o interior, a moça teria partido morta de fome, mas com sua dignidade intacta.

? Sim ? respondeu com firmeza. Levantou seu olhar, elevou o queixo e prosseguiu: ? Todos os homens que passaram pelo meu leito partiram satisfeitos.

Era real o que brotava de seus lábios? Sabia ela saciar os apetites sexuais de um homem? A única vez que esteve com um tinha uma faca apertando sua garganta e naquele momento não pensava em satisfazê-lo a não ser em fazer o que este lhe pedia e fugir com vida o antes possível.

? Perfeito então. Senhora Stone, ? disse à cozinheira que não era capaz de olhá-lo ? já temos uma prostituta. Ordenarei que lhe preparem uma habitação. Não albergue a falsa esperança de ter um teto onde dormir, isso não está no acordo. Mas eu gostaria de apreciar a beleza que oculta embaixo dessa capa de imundície. Além disso, para que elimine esse pestilento aroma, deveria ficar de molho no mínimo uma semana. Senhora Stone, já que foi você quem se proclamou benfeitora da jovem, deixo-a em suas mãos para que a prepare de maneira adequada.

Hanna não respondeu. Estava mexendo em uma panela de metal o guisado que pretendia oferecer para o almoço. As lágrimas percorriam seu velho rosto e sentia que a garganta lhe oprimia. Sem querer tinha conduzido a jovem a um destino turvo, escuro.

? Senhora Stone? ? Inquiriu Brandon para certificar-se de que o tinha escutado.

? Sim, senhor Stone, prepararei-a ? respondeu apertando a mandíbula.

Escutou-se a porta depois da saída do mordomo e depois disto, houve silêncio. Beatrice tinha ficado de pé, incapaz de mover-se. Ainda não era consciente do que tinha acontecido. Tinham lhe devotado o posto de cortesã e ela, em um ataque de ira, tinha-o aceito? Como podia ser tão tola? Possivelmente não pensou em nada depois de escutar que lhe pagariam uma centena de moedas de ouro. Era muito mais do que levou em seu bolso quando partiu de Londres e estava segura de que, com essa quantidade, poderia comprar outros animais com os quais poderia sobreviver durante bastante tempo. Embora para seguir vivendo nas condições nas quais se encontrava, devia padecer de novo a dor e a vergonha? Viver um pouco mais ou morrer na cabana? Se algum dia alguém aparecesse por ali descobriria ossos de um cadáver, o seu.

«Viver para lutar», pensou para si.

Suspirou com intensidade e fez desaparecer todo tipo de inquietações. Devia fazê-lo e ponto.

? Sinto-o... ? escutou a cozinheira murmurar. ? Tudo isto foi por minha culpa...

? O emprego, eu o aceitei. Se quisesse teria me negado ? indicou ao mesmo tempo em que se aproximava das costas da anciã.

? Não é justo! Esse homem se aproveitou da sua necessidade e jamais o perdoarei ? gritou enfurecida enquanto levantava a panela com raiva.

? Senhora Stone, você é um anjo e de verdade, aconteça o que acontecer, estarei eternamente agradecida. Graças a você poderei sobreviver uns meses mais.

Beatrice não queria que ela se preocupasse com seu futuro. Acaso se tinham preocupado seus pais? Não. Depois de lhes revelar o que tinha acontecido com o conde de Rabbitwood e lhes haver jurado que ela não tinha feito nada, seu pai saiu correndo enquanto que sua mãe chorava sem consolo. Para onde tinha partido o destroçado pai? Para a residência que o atual duque de Rutland tinha em Southwark. Seu único propósito era lhe pedir clemência. Acreditou bobamente que este lhe ajudaria a salvar a honra manchada de sua filha, mas... o que fez o futuro duque? Nada. Não meditou nem um só segundo sobre o pedido de ajuda do barão, mas sim pensou que, como todas as damas que tinha conhecido em sua promíscua vida, mentia, e não quis questionar a reputação do bastardo de Rabbitwood.

Desde esse dia sua família começou a adoecer. Sua mãe, assídua de visitas e de festas, encerrou-se em sua câmara e não a abandonou nem sequer para realizar as funções humanas normais, o barão descuidou de suas responsabilidades e começaram a ter mais dívidas que riquezas. Finalmente, Beatrice decidiu atuar: escreveu-lhes uma nota onde lhes explicava que partia do lar para pôr fim à sua desventurada vida.

Viajou durante vinte e cinco dias. Umas vezes, graças à solidariedade de alguns viajantes, em carruagem ao lado do cocheiro, em outras ocasiões, andando. Tinha andado tanto que seus sapatos se romperam e teve que abandoná-los no caminho. Recordava que durante as longas horas de caminhada só tinha uma ideia em sua mente: chegar a Derbyshire e ocupar a pequena cabana que o duque possuía em seus territórios.

Em algumas conversações nas quais tinha estado presente, o principal tema era a riqueza das terras que herdaria o futuro duque de Rutland, e em alguma delas alguém comentou que tinha ido para caçar e que se resguardara da intensa chuva em uma pequena cabana perto do rio. Falou de quão abandonada estava apesar de encontrar-se nos limites mais ricos do terreno. Assim não o pensou, decidiu que ali permaneceria escondida o tempo que desejasse. Como o duque não lhe tinha assistido para esclarecer a verdade, ajudar-lhe-ia de maneira involuntária a ter um teto onde poder viver.

? Direi-lhes que subam a água quente... ? a suave voz da senhora Stone interrompeu suas meditações.

? Se não se importar, ficarei aqui até que tudo esteja preparado ? voltou a sorrir. Queria subtrair importância aos inesperados acontecimentos. Não podia fazer com que aquela boa mulher se sentisse desventurada pelo ocorrido. De repente, a senhora Stone se dirigiu para a porta e a abriu.

? Vá. Será melhor que o faça. Não se preocupe pelo senhor Stone. Direi-lhe que pensou melhor e recusou a oferta.

? Não partirei ? respondeu com um suave fio de voz. ? Farei o que me encomendaram. Necessito desse dinheiro, senhora Stone. Os lobos comeram minha última esperança de vida e quando retornar ao meu lar não terei nem um pedaço de pão para levar à boca.

? Isso tem solução! ? Exclamou a mulher com rapidez. ? Colocarei em uma bolsa comida suficiente para uma semana. Quando terminar, retorne.

? Não vou colocar em perigo seu posto de trabalho por cuidar de mim. ? Beatrice pousou uma mão sobre o ombro da mulher e o apertou com carinho. Então aconteceu algo que lhe surpreendeu. A cozinheira abriu seus braços e a apertou entre seu corpo com força.

? Você é uma menina... ? murmurou.

? Mas esta menina tomou uma decisão ? respondeu sem apartar-se dela.

? Há outras alternativas...

? Buscarei-as quando tudo isto tiver acabado. Mas necessitarei da sua ajuda ? murmurou apoiando a testa sobre o peito da anciã.

? Estarei ao seu lado quando precisar da minha presença, prometo-lhe isso.

? Obrigada ? disse ao mesmo tempo em que Hanna abria os braços e ela se apartava.

? Tem mais fome? ? Perguntou a anciã enquanto se dirigia para a despensa.

? Estou bastante satisfeita e acredito que depois do acontecido meu estômago não aceitaria nada mais.

? Seu estômago não poderá resistir a isto. ? Pousou uma bandeja tampada por um pano sobre a mesa e, orgulhosa do que estava a ponto de oferecer, colocou as palmas na cintura. ? É uma receita da minha mãe. Ela a herdou da minha avó. Antes o chamavam... como era? ? Pôs os olhos em branco tentando recordar o nome.

? Pudim! ? Gritou a moça ao apartar o pano que cobria o recipiente.

? Exato! Como sabe? Comeste-o alguma vez? ? Entrecerrou os olhos e a olhou com curiosidade. Se ela vinha de uma família humilde e mal tinha dinheiro para levar um pedaço de pão à boca, como sabia o nome de uma sobremesa tão deliciosa?

? Faz tanto tempo que nem o recordo... mas hoje vou rememorar esse maravilhoso sabor. Pode me dar um pedaço? ? Elevou o queixo para a mulher e sorriu como uma menina pequena.

? Coma o quanto quiser, se acabar farei outro. Tenho guardado na despensa muito leite, ovos e mel.

Beatrice emitiu um suave ruído de prazer quando tomou a primeira colherada. Fechou os olhos e se lembrou da última vez que se deleitou com aquele manjar. Enquanto isso Hanna recolhia em sua mente a resposta que lhe tinha devotado:

«Faz tanto tempo que nem o recordo...».


IV


Os criados não cessavam de murmurar sobre aquilo. Apesar de estar escondida em uma das habitações mais afastadas, pôde escutar os cochichos entusiastas de todos que caminhavam pelo corredor. Conforme descobriu, era a primeira visita que recebia o duque e supôs que esse acontecimento devia ser muito importante para todos os que habitavam na mansão. Entretanto, para Beatrice lhe resultou do mais normal que o reverendo e sua esposa fossem os primeiros em aparecer em Haddon Hall.

Depois de tirar a roupa e deixá-la de maneira descuidada sobre o chão, inundou-se na banheira e deixou que a água esquentasse seu corpo. Fazia muito tempo que não se banhava em um recipiente que albergasse por completo seu pequeno tamanho. Colocou a cabeça e conteve durante uns instantes a respiração. Quando a elevou, começou a rir. Sua mente, em vez de sopesar o que ocorreria se o duque demandasse com prontidão os serviços de sua nova concubina, pensou na conversação que estaria tendo lugar no salão principal. Estava muito segura de que sua Excelência desejaria finalizar o antes possível a visita para soltar os milhares de impropérios que reteria em sua cabeça após conversar com um reverendo tão impertinente. O certo era que ninguém em Derbyshire gostava do novo pregador. Foram à missa aos domingos para evitar falações sobre as possíveis causa de suas ausências em um dia tão famoso. Ela podia enumerar mil razões para não esbanjar duas horas de sua vida em uma reunião de tal índole, embora com uma lhe bastasse: não suportava os intermináveis e aborrecidos discursos. O reverendo em vez de atrair os paroquianos com histórias repletas de felicidade e esperança, centrava-se em quão trágica podia ser a vida quando o mal possuía uma pessoa, conduzindo-a para a libertinagem e a imoralidade.

Beatrice soltou uma enorme e sonora gargalhada. Esperava que não ocorresse ao extravagante personagem comentar à sua Excelência que o estado em que se encontrava era uma chamada de atenção do Todo-poderoso pela vida que tinha levado até aquele momento. Se tivesse um mínimo de consideração, coisa que duvidava, manteria-se calado e evitaria que o jogassem ao exterior como se fosse uma lixeira.

O que importa a ti o que digam àquele presunçoso? ? Perguntou-se enquanto subia e descia as pernas fazendo pequenas ondas na banheira. Além disso, não lhe vai mal que alguém lhe recorde que o culpado de sua desdita não foi outro senão ele mesmo.

Beatrice apoiou a cabeça na beirada da banheira e contemplou ao seu redor. A escuridão lhe produzia uma saudosa paz e bem-estar. Desde que tinha posto um pé na pequena cabana jamais apagava as velas. Dava-lhe muito medo não saber o que poderia acontecer ao seu redor, sem esquecer as feras famintas que uivava noite após noite em sua porta. Agarrou o sabão e voltou a impregnar seu corpo com este. As borbulhas formavam uma capa sobre a superfície da água e começou a brincar com elas. Então, sem saber o motivo disso, recordou o dia que conheceu a notícia sobre a volta do duque a Haddon Hall e a causa do mesmo.

? Você está certa disso? ? A chapeleira a quem estava acostumada a visitar para saber se alguém demandava os serviços de uma criada, perguntava a outra mulher com bastante entusiasmo.

? Muito certa ? respondeu a cliente em tom sério.

? Quando você disse que aconteceu? ? Continuou o interrogatório da chapeleira enquanto fazia um sinal à Beatrice para que não se movesse da sala dos fundos. Se aparecesse daquele jeito, a cliente fugiria apavorada e espalharia o rumor sobre as inapropriadas atitudes da chapeleira.

? Segundo minhas fontes, antes da primavera. O marido de uma de suas incontáveis amantes desafiou-o a um duelo de honra e o duque o aceitou entre brincadeiras ? prosseguiu a história ao mesmo tempo em que olhava e tocava os novos chapéus adquiridos para a próxima temporada.

? Entre brincadeiras? ? A chapeleira se aproximou de uma estante e agarrou uma caixa de cor branca, abriu-a e mostrou à mulher um chapéu de cor rosa com três grandes plumas azuis.

? O marido não media mais de... ? elevou a mão até o contorno de seu peito para assinalar a possível altura.

? Pobre duque! ? Exclamou a chapeleira tampando a boca escandalizada.

? Nunca se deve subestimar um adversário, por mais indefeso que pareça ? disse a mulher enquanto colocava o chapéu que lhe tinha mostrado.

? Eu acredito que o melhor é não esquentar o leito de outro homem.

? Você... não conheceu ao duque, não é? ? A mulher girou-se para a chapeleira com rapidez como se não pudesse acreditar em sua afirmação.

? Não, senhora. Quando cheguei a Derbyshire sua Excelência partiu à Londres. ? A chapeleira abaixou a cabeça ao ver a reação da mulher e estendeu seus braços para o chão.

? Entendo... ? Deu um suspiro, tirou-se o chapéu de cor rosada e pegou outro da cor de vinho tinto. ? Só lhe direi que ninguém, incluídos os homens que lhe rodeavam, podia deixar de admirá-lo. Era a perfeição, um ser sublime... ? colocou o último chapéu, olhou-se no espelho, colocou-o no lado direito e prosseguiu: ? E agora... é um monstro.

? Um monstro? ? Perguntou a chapeleira assombrada.

? Sim. Ali onde havia um rosto liso, macio e cuidado se encontram umas horrendas marcas. Dizem que são parecidas com as cordas que utilizam os piratas em seus navios. Também contam que deixou de mover o braço esquerdo. Agora... como poderá satisfazer os insaciáveis desejos carnais de suas amantes? ? Perguntou antes de soltar uma grande gargalhada. ? O que te parece? ? Inquiriu à chapeleira olhando-se de novo no espelho.

? Parece-me perfeito. Fica muito bem e acentua a palidez de sua pele ? respondeu a chapeleira sorrindo.

? Levarei esse!

Esteve a ponto de chamar a senhora Stone para que alguém voltasse a encher a banheira com água quente, mas pensou melhor. Era tempo de descansar. Quanto tempo fazia que não se agasalhava com suaves e perfumados lençóis? Beatrice secou o corpo com rapidez, enredou uma toalha no cabelo e caminhou muito devagar para a cama. Colocou os joelhos sobre esta e, sem pensar, equilibrou-se sobre os almofadões para inspirar com intensidade. O aroma de limpo impactou-a com força. Tudo parecia diferente depois do banho, até lhe resultou distinto o tato de sua própria pele. Girou-se e olhou para o teto de madeira. Era muito alto e rude, como tudo o que havia naquela mansão. Inclinou-se, pegou a ponta do lençol e se cobriu com ele. Precisava descansar um pouco antes que o empertigado senhor Stone aparecesse pela porta e a expulsasse.


Grunhiu várias vezes antes de conseguir abrir os olhos. Apesar de tentar com vigor, resultava-lhe impossível despertar do tranquilo e aprazível sonho no qual se inundou. Tinha visto sua mãe chamando-a da entrada para que fosse ao lar antes que a chuva a alcançasse. Beatrice galopava pelo campo, sorria ao ver sua mãe agitar a mão para que se dirigisse para ela. Então, no momento que descia do corcel e tentava subir as escadas, sentiu que alguém tocava seu ombro e a girava para a direção em que se encontrava...

? Senhora Stone... ? murmurou Beatrice ao descobrir a anciã ao seu lado.

? Perdoa-me se te assustei, mas levo bastante tempo batendo na porta e como não me respondia, preocupei-me. ? Hanna tinha sentado na cama e a olhava com ternura.

? Fiquei adormecida. Imagino que estava mais cansada do que imaginava ? respondeu inclinando-se e tampando sua magra figura com o lençol.

? Muitas vezes pensamos que nosso corpo não tem limites e não recordamos que somos seres humanos, não deuses. ? Levantou-se e caminhou para uma cadeira que havia junto à cama.

? O que acontece, senhora Stone? ? Quis saber a jovem ao notar certa inquietação na mulher.

? O duque decidiu solicitar os serviços de sua cortesã ? comentou com uma voz tão suave que a Beatrice custou descobrir o que havia dito.

? Tão cedo? – Ela puxou a ponta do lençol para continuar oculta embaixo deste e se dirigiu para a anciã. ? Acreditei que...

? Leva muito tempo sem ter uma mulher ao seu lado. A última que ofereceu seus serviços ficou em Londres ? indicou enquanto procurava algo de um baú.

? Tratou-a bem? Refiro a...

? Sua Excelência é um cavalheiro moça, e sua atitude é imaculada, adequada ao título que ele detém. ? Embora não quisesse que suas palavras soassem duras, foram-na e Beatrice pôde advertir que a senhora Stone adorava ao duque mais do que tentava mostrar. ? Nunca ? prosseguiu a cozinheira ao mesmo tempo em que mostrava a camisola que tinha obtido do baú ? necessitou dos serviços de uma concubina até depois do acontecido. Antes daquele momento, todas as mulheres estavam dispostas a deitar nos braços de sua excelência. No entanto, depois de ... ? tragou saliva incapaz de continuar com sua explicação devido à dor que lhe provocava falar daquilo.

? Conheço as sequelas que sofre o duque, senhora Stone.

Beatrice inclinou a cabeça e deixou que a mulher a vestisse.

? Foi uma tragédia para todos os que respeitam e servem ao senhor ? disse ao mesmo tempo em que esticava a camisola.

? Ouvi que esse destino o cultivou ele mesmo.

? Quem disse tal barbaridade? ? Hanna a olhou mostrando em seu enrugado rosto um notório aborrecimento.

? As infidelidades...

? E elas? Acaso eram mulheres respeitáveis? Cada noite, quando aquelas filhas do diabo pensavam que o pessoal de serviço estava adormecido, tocavam a porta da residência e com a desculpa de conversar com sua Excelência, tiravam-se as anáguas no próprio salão mesmo.

? Mesmo assim, se ele não tivesse aceitado os oferecimentos dessas libertinas...

? Acredito que ainda não conheceu um homem de verdade... ? resmungou. ? É sério que pensa que é fácil negar-se à tentação mais prazerosa que tem o ser humano?

? Senhora Stone! ? Exclamou assombrada. Não esperava que aquela doce e tenra anciã pudesse lhe falar de algo tão escandaloso como as relações carnais.

? O duque não te obrigará a fazer nada que não queira ? expôs depois de uns momentos de incômodo silêncio. ? Agora, se não se importar, eu gostaria de te escovar o cabelo. Tem-no muito enredado.

Podia sentir o coração lhe pulsar com intensidade na garganta. A senhora Stone a tinha deixado sozinha em frente à porta do quarto já fazia um bom momento e não tinha conseguido adquirir a força necessária para chamar. De verdade seria capaz de fazê-lo? Como ia manter a promessa que tinha feito à anciã? Seria inevitável não olhar o desfigurado rosto do duque e compará-lo com o que uma vez foi. Trataria-a bem? Seria atencioso com ela ou se comportaria como Rabbitwood? Apertou os punhos e a mandíbula. Não devia comparar ambas as situações porque não eram semelhantes. Agora sabia a razão pela qual era requerida, entretanto, a vez que ela entrou para responder à suposta chamada de seu apaixonado, encontrou a um homem sem escrúpulos, um torturador, um filho do próprio diabo. Ante tal lembrança, Beatrice começou a tremer. Podia escutar seus dentes batendo. O pêlo de seu corpo se arrepiava pelo medo.

Cem moedas... ? meditou para si. Cem míseras moedas que me oferecerão um pouco mais de tempo de vida, continuou pensando. Respirou fundo, esticou uma mão tremente para a maçaneta e a girou devagar.

A primeira palavra que surgiu em sua mente quando acessou ao quarto foi escuridão. A habitação estava muito tenebrosa. Mal podia distinguir onde se encontrava a cama do duque e nem muito menos onde se achava este. Tentou entrar um pouco mais arrastando os pés para não tropeçar. Sem se dar conta levou a mão direita para o cabelo e começou a enredar uma mecha com um dedo.

? Pode entrar ? escutou a suave e aveludada voz do duque.

Beatrice continuou sua marcha até que a distância entre os dois foi minúscula. Estava sentado sobre a cama esperando com paciência sua chegada. O corpo da jovem congelou. Suavam-lhe as mãos e sentia que mal corria sangue por suas veias.

? Aproxime-se – disse ele estendendo uma mão para ela. ? Não acredito que deva te explicar para que veio, não é? ? Beatrice assentiu. Tinha a cabeça abaixada tentando não olhar o rosto do homem a quem ofereceria um serviço que nem ela mesma sabia como iniciar. Seu cabelo cobria os ombros e a pequena mecha encaracolada por seu dedo começava a esconder-se entre os outros fios. ? Não albergue em seu coração a possibilidade de que entre nós exista uma relação afetuosa, só quero prazer ? prosseguiu, mas desta vez o tom tinha sido um pouco mais rude, menos quente. Como se lhe doesse expressar o que em realidade ocorreria essa noite.

A jovem levantou o olhar no mesmo momento em que a vela mais próxima a eles começou a mover-se pela suave brisa de seus gestos e deixou exposta a figura do homem. Tinha o cabelo mais comprido que na última vez em que o viu e tentava cobrir com este as marcas do rosto. Entretanto, essa rápida e fugaz olhada foi suficiente para que Beatrice apreciasse a deformidade da qual tanto falavam as pessoas. Não lhe pareceu tão horrenda e monstruosa. Parecia-se bastante à cicatriz que tinha sua mãe no ventre quando tiveram que tirá-la de suas vísceras. Embora, claro esta, para um homem tão bonito e para todas as suas famosas admiradoras, seriam aterradoras.

? Só prazer... sua Excelência ? murmurou Beatrice após escutar um grunhido do duque.

Como se um raio lhe tivesse atravessado o corpo, a jovem levantou a camisola e se despiu. Nesse instante o duque estendeu sua mão em volta de um dos seus seios e o apertou com força. Beatrice sentiu uma terrível dor, tão intensa que abaixou a cabeça para que ele não pudesse observar as dobras de sua testa e como apertava os dentes. Tentou serenar-se pensando que obteria uma boa bolsa de moedas que a ajudaria a sobreviver no mundo que Deus lhe tinha devotado.

? Faça com que eu te deseje. Finja algum interesse e faça por merecer o salário que obterá quando partir ? comentou o duque com voz sólida e grosseira, mais do que a jovem teria imaginado.

Então fechou os olhos e se ajoelhou para procurar o membro do homem e fazer o que aquela noite o conde de Rabbitwood a obrigou a praticar.

Encontrava-se no salão da senhora Baithlarin. Durante toda a noite tinha evitado qualquer aproximação masculina, não por descortesia, mas sim porque ela não desejava cercar uma conversação ingênua e oferecer uma esperança quando em realidade não a havia. Parecia que todo mundo se interessava em conhecer seus pensamentos, seus desejos, suas inquietações. Certamente, tanto sua mãe como as amigas desta tinham a esperança de lhe encontrar um bom partido, possivelmente por isso a mostraram aos possíveis candidatos como se fosse um bonito troféu a ganhar.

Mas Beatrice tinha o coração ocupado. Amava Leonel desde sua mais tenra infância. Entretanto, a diferença de classes fazia impossível o matrimônio, salvo se ela fugisse com ele como tantas vezes este lhe havia insinuado. Mas não era valente, jamais o tinha sido até depois daquela noite. Descobriu em mais de uma ocasião os azulados olhos do conde de Rabbitwood observando-a, admirando-a a distância tal como tinha feito em festejos anteriores e sem tentar ocultar dos outros aqueles olhares lascivos.

Tentou dançar com ela, uma valsa para ser exata, e graças às desculpas de sua mãe pôde rechaçá-lo com estilo e educação. Mas o sinistro conde de Rabbitwood elaborou um plano, um maquiavélico e ruim para o qual teve que indagar sobre sua vida e descobriu que havia outro homem.

Em um momento de descuido maternal, um dos criados lhe fez chegar uma nota, nela se dizia que seu amado Leonel se encontrava esperando-a na biblioteca da anfitriã. Foi tão grande sua ilusão e sua vontade de vê-lo que não se perguntou a razão pela qual um trabalhador de sua família tinha aparecido em uma festa de tal classe social. Esperou um momento para correr para o lugar designado. Seu coração palpitava pelo entusiasmo, pela emoção de vê-lo depois de uns dias de distanciamento.

Ficou parada na porta da biblioteca, alisou o cabelo e tentou não mostrar a euforia que sentia. Abriu, não sem antes jogar uma última olhada e confirmar que ninguém presenciaria seu encontro. Mas houve testemunhas, embora tivessem mais motivo para se esconder do que ela. O duque e a mulher com a qual tinha paquerado no salão se ocultavam sob uma das cortinas das imensas janelas do corredor. Escutou algumas risadas, alguns beijos mais sonoros dos que ela estava acostumada a oferecer ao seu amado. O tecido áspero se moveu com intensidade no momento em que escutou uns soluços. Não eram gemidos de dor, mais pareciam pequenos gritos emanados do interior dos corpos capturados pelo sexo.

Envergonhada pelo que tinha descoberto, entrou com rapidez e fechou ainda mais rápido a porta. Devido a sua agitação, o vestido fez um círculo tão amplo que tocou várias figuras de porcelana que havia na entrada. Abaixou-se para que não terminassem quebradas no chão. Ato seguido se incorporou e dirigiu o olhar para um corpo que se apoiava no respaldo de um sofá. Estava de costas para ela e por muito que tentasse comparar aquela silhueta com a de seu amado, ambas não correspondiam. Ficou sem fôlego quando o enigmático homem deu a volta e lhe sorriu. Em efeito, não era Leonel e sim o conde de Rabbitwood. O homem que não tinha deixado de olhá-la durante o baile e quem lhe sorria descaradamente.

Quis lhe perguntar por que a tinha enganado, mas em vez de enfrenta-lo decidiu fugir. Não conseguiu seu propósito. O conde correu para ela justo quando tinha a mão sobre o trinco. Recordou a resistência e como lhe cobria a boca para que não chiasse. Depois, uma folha afiada lhe apertou a garganta. «Cortar-lhe-ei se gritar», sussurrou-lhe enquanto apartava a mão de sua boca para conduzi-la ao decote e lhe descobrir os seios. Começou a chorar. Foi o único que se atreveu a fazer. Estava tão assustada que sua mente não era capaz de pensar com claridade. Rezou para perder a consciência quando percebeu que seu vestido se elevava e o homem se colocava atrás dela para possuí-la. Entretanto, manteve-se lúcida em todo momento. Durante mais de uma hora foi submetida a um sem-fim de atrocidades. Nesse tempo pensou que alguém sentiria falta dela e a procuraria. Imaginou que, apesar de ter seus olhos cheios de lágrimas, veria entrar o Leonel, que a salvaria daquelas mãos abomináveis, mas não foi assim. O tempo passava e ninguém aparecia para interromper sua agonia. Quando o conde se cansou dela, liberou-a. «Obrigado por sua companhia, foi um prazer ter este magnífico bate-papo com você, senhorita Montblanc», foram suas últimas palavras antes de deixá-la sozinha, atirada no chão, destroçada e... morta.

A lembrança do acontecimento mais aterrador de sua vida fez com que brotassem sem cessar milhares de lágrimas. Seguia com os olhos fechados e com o falo do duque em sua boca. Esteve a ponto de retirar-se e sair fugindo quando notou uma queimação em sua língua. Um líquido quente começou a vagar por sua garganta.

Quis vomitar, quis gritar. Mas igual àquele dia, não conseguiu fazer nada. Levantou-se e abaixou a cabeça. Seu corpo seguia tremendo, desejava tirar a agonia que sofria em seu interior de algum jeito, mas... como? Escutou algo. Não soube com claridade o que. Mas depois de observar que o duque se incorporava e se girava agarrando-se ao dossel de madeira, imaginou que a despachava de seu lado.

Com rapidez agarrou a camisola e a pôs enquanto as lágrimas seguiam nublando sua visão. Esticou a mão, girou a manivela para abrir a porta e então escutou um soluço. Não era como o que emitiu o homem quando estava sob a cortina, era mais um lamento. Sem saber a razão, girou-se para o homem e, durante um segundo, observou-o chorar. Sem atrever-se a dizer nenhuma palavra, abandonou a habitação, baixou as escadas e não parou até que se encontrou com o senhor Stone, que se encontrava junto à saída principal da mansão.

Agarrou com força a bolsa de moedas que lhe tinham prometido sem poder articular palavra, só queria afastar-se o antes possível dali, e quando escutou o ferrolho atrás de suas costas, estremeceu-se antes de pôr-se a correr agasalhada pela frieza da noite, não diminuiu a marcha até que entrou no bosque. Apoiou a palma da mão em um tronco e começou a vomitar. Expulsou tudo o que tinha no estômago, as lágrimas lhe ardiam e lhe doíam tanto como a folha afiada de Rabbitwood em seu pescoço. Voltou a recordar as coisas que aquele homem a obrigou a fazer, o sofrimento que sentiu quando a penetrou com rudeza e notou de novo como seu corpo se partia em dois.

Beatrice gritou enquanto seguia vomitando. Esforçou-se tanto em tirar aquilo que tinha em seu interior que caiu ao chão de joelhos. Tentou respirar, encher seus pulmões de ar, mas lhe resultou tão difícil controlar sua respiração que terminou desmaiando e caindo de bruços no chão.


V


Se seus cálculos não falhavam, estava em Haddon Hall pouco mais de dois meses. Mas não estava cem por cento seguro. Naquele lugar o tempo transcorria tão devagar que parecia não avançar. Não importava se passasse as tardes recebendo ou devolvendo visitas, todos os dias eram intermináveis e as noites, depois do dramático encontro com aquela moça, eram insuportáveis. Sempre se encontrava de mau humor, até o ponto de que nem ele mesmo podia suportar-se.

Possivelmente outro motivo para adotar aquela atitude fosse a inoportuna queda que sofreu ao subir as escadas da entrada. Não foi nada grave, conforme lhe informou o doutor que o atendeu, mas a partir desse momento teria que apoiar-se em uma bengala para evitar outra queda similar. Se antes do tropeço via a si mesmo como um inútil, agora, obrigado a usar o apoio de uma vara de madeira, sua opinião se acrescentava. Quais outros desastres lhe proporcionaria o futuro? Uma enfermidade que o deixasse prostrado em uma cama pelo resto de sua vida? Ou talvez tropeçasse de novo com tão má sorte que sua cabeça ricochetearia no chão e ficaria cego pelo impacto?

William caminhou seguro à sua bengala até a poltrona situada junto à chaminé, onde da janela observava o novo amanhecer. Algum servente tinha acendido o fogo e as chamas além de manter o ambiente quente, também proporcionavam a luz necessária para observar sobre a escrivaninha uma pequena montanha de missivas. Tinha que lê-las e as responder o quanto antes possível, mas não estava com humor. A verdade era que nunca estava com ânimo para fazer algo. Só queria fechar os olhos e, depois de abri-los, descobrir que todo o vivido tinha sido um pesadelo induzido por sua consciência. Entretanto, nunca era assim, quando elevava as escuras pestanas, seguia sem poder mover a mão, as marcas de seu rosto não tinham desaparecido assim como não cessavam aqueles surtos de dor depois do impacto. Esse seria seu futuro? Viver para desejar morrer? De verdade que não podia fazer nada para mudar o destino?

William fixou os olhos na intensidade das chamas e as associou à força que ele mesmo possuiu no passado: fortes, invencíveis, impossíveis de abater. Entretanto, se um de seus criados arrojava um caldeirão de água sobre aquelas vívidas chamas, apaga-las-ia no momento. Só ficaria carvão. Possivelmente uma ou outra brasa tentaria sobreviver à destruição, mas apesar do esforço jamais retornaria à intensidade do fogo inicial.

? Sua Excelência, ? Brandon apareceu levando uma pequena bandeja prateada sobre suas mãos e interrompeu com brutalidade a meditação do homem ? chegou o correio.

O homem deixou a bandeja em uma mesa junto ao duque e esperou de pé junto a ele se por acaso necessitasse sua perícia ao escrever para responder as cartas que necessitassem de resposta.

William as olhou pela extremidade do olho e passou a mão sã por elas esboçando uma careta. Ele optou pelo periódico e o colocou sobre suas pernas para lê-lo sem demasiado interesse, Londres e tudo o que concernia a ela já formava parte de seu passado.

Abriu o jornal em uma página ao azar e a foto de um Federith sorridente, exultante de felicidade com sua recém-adquirida esposa pelo braço, furou-lhe os olhos. Leu muito devagar a notícia que anunciava as núpcias do barão de Sheiton com lady Caroline Middelton na propriedade que possuía o nobre em Hemilton.

O periódico era de três semanas atrás e embora Federith já lhe anunciasse suas intenções antes que William abandonasse Londres, a notícia lhe caiu como um jarro de água fria. Franziu o cenho e a mão lhe tremeu um pouco antes de lançar o maço de papéis para o fogo.

? Más notícias, senhor? ? Perguntou o mordomo com assombro.

? Depende para quem ? respondeu tosco enquanto observava como o papel ardia.

? Se o desejar me retirarei para lhe deixar só ? indicou o homem ao mesmo tempo em que fazia uma reverência e tentava afastar-se.

? Não parta. Embora não me satisfaça a notícia, tenho que felicitar ao Federith por seu recente matrimônio.

? O senhor Cooper se casou? ? Disse com uma mescla de entusiasmo e incredulidade enquanto observava seu senhor uns instantes, tempo suficiente para perguntar-se por que a feliz notícia não lhe tinha agradado. Hanna teria razão? A verdade é que não estava acostumado a dar muita importância à sua esposa, quando falava sobre o amor e muito menos quando incluía nessas conversações o duque.

Segundo ela, quão único faria o jovem sair da letargia na qual se achava era encontrar uma mulher que o amasse e lhe desse o carinho que tanto necessitava. Insinuou em mais de uma ocasião que ter crianças brincando de correr pela mansão faria com que o senhor recuperasse a vontade de viver. Entretanto, ele conhecia o duque desde que saíra das vísceras de sua mãe e, por muito que sua mulher insistisse em que tinha razão, sabia que esse tipo de vida não era a adequada para ele. O homem tinha nascido para ser livre, para esquentar as camas de outros maridos, para observar as vidas familiares de outros à distância.

? Digamos que encontrou uma mulher à sua medida ? comentou William com maldade após refletir na resposta adequada. Logo dirigiu o olhar para as garrafas e fez um leve gesto com a cabeça para que Brandon lhe servisse uma taça.

? Deseja lhe responder, senhor? ? Perguntou o ancião enquanto enchia a taça de licor e a aproximava o suficiente para que o duque pudesse pegá-la.

? É óbvio! Responderemo-lhe agora mesmo. – Bebeu o uísque de um gole e elevou o copo para que seu mordomo o voltasse a encher. Brandon, mais assustado que assombrado, encheu de novo o copo de licor e, depois de oferecer-lhe, pegou um papel em branco e uma pluma para escrever.

? Meu querido Federith ? começou a ditar. ? Como bem sabe, sempre me satisfazem suas alegrias, embora muito me temo que esta não é tal. Não faz muito te expliquei que é dono de seu destino e, se Deus for justo, arrebatarár-te o que não te pertence. Não esqueça que meu lar terá as portas abertas quando aparecer chorando e afirmando minha verdade. Pode permanecer todo o tempo que desejar. Por certo, sabe algo do miserável do Bennett? Faz mais de três meses que não tenho notícias dele e isso me inquieta. Atenciosamente, William.

Brandon conteve a respiração em todo momento. Foi colocando sobre a folha cada palavra que escutava da boca do duque, ao mesmo tempo em que sua cabeça não cessava de lhe insistir que a pessoa que pronunciava aquela maldade não estava em plenas faculdades mentais. Eram daninhas, maquiavélicas, quando deveriam estar cheias de felicidade e bons desejos.

? Quer que a leia em voz alta? ? Perguntou o mordomo levantando do assento.

? Não precisa, sei o que eu disse ? respondeu com rudeza.

? Então, se sua Excelência me permitir isso, farei os arranjos para enviá-la esta mesma manhã.

? Antes de partir encha de novo o copo, está vazio. ? Levantou a taça para que Brandon a pegasse e obedecesse ao mandato.

Em silêncio, sem mostrar no rosto sua estranheza, o servente verteu mais uísque no copo, ofereceu-o ao seu senhor, fez a reverência e partiu. Quando fechou a porta, o ancião voltou a ler a nota que devia enviar, sem estar convencido de todo da idoneidade de seu conteúdo. Talvez Hanna pudesse deduzir o que acontecia na cabeça de seu senhor e chegar a uma conclusão lógica que explicasse aquele comportamento errático e malicioso. E com essa intenção guardou a nota no bolso de seu casaco e se dirigiu à cozinha.

William seguia observando o fogo sem sequer piscar através do líquido ambarino. Podia ver como o álcool dançava sobre o líquido alheio à possibilidade de que o jogassem sobre as ardentes chamas. Seria igual o inferno? Estariam dançando mulheres nuas entre as chamas do abismo infernal? O homem sorriu meio de lado. Sua mente começava a nublar-se com a rápida ingestão do uísque e agradeceu em silêncio que seu cérebro começasse a funcionar com aquela lentidão. Precisava evadir-se do mundo que lhe rodeava, sonhar de novo com o homem que uma vez foi. Possivelmente, se ao cabo de um momento o estado de embriaguez aumentasse, poderia deixar a bengala e caminhar sem apoiar-se nela.

Dirigiu o olhar para as garrafas, mas estavam muito longe para alcançá-las da poltrona, teria que chamar o Brandon para que as aproximasse.

— Maldito seja, William Manners, maldito duque de Rutland! ? gritou. ? Levante-se e faça-o você mesmo!

O homem apoiou com força as plantas dos pés no chão e se surpreendeu ao não sentir a dor que dias atrás sacudia seu corpo. Soltou uma grande gargalhada ao descobrir que o miserável estado de embriaguez lhe proporcionava a força que requeria para sentir-se forte de novo. Sem deixar de sorrir caminhou até onde se encontravam as garrafas de cristal de Murano. Agarrou uma ao azar e encheu a taça.

? Agora toca a ti, estúpida mão, começa a te mover por ti mesma.

Mas não obedeceu a ordem, seguiu estendida para o chão. Zangado, andou pelo salão dando voltas e bebendo sem parar. Cada vez que drenava a taça, enchia-a de novo. Ao cabo de um bom momento seu corpo se cambaleava sem controle e sua mente tinha perdido toda sensatez.

Aproximou-se da mesa, pegou a campainha e a agitou sem cessar.

? Sim, Excelência? ? Perguntou Brandon ao ser requerido com tanta urgência.

? Diga ao cavalariço que prepare meu garanhão, vou dar um passeio por minhas terras ? comentou entre balbuceios.

? Meu senhor... ? começou a dizer o mordomo.

? Não escutou meu desejo? Acaso a velhice começa a destruir seus ouvidos? ? Desafiou-lhe.

? Não, senhor, escutei bem. Mas se me permite um conselho...

? Não quero conselhos de ninguém! ? Exclamou elevando a mão que segurava o copo vazio e atirando-o para o chão.

? Sim, Excelência. Informarei ao cavalariço.

? Avise-me quando tudo estiver preparado – disse-lhe dando as costas para poder cravar de novo seus olhos no fogo.

? É óbvio. Deseja que seu ajudante de câmara o agasalhe adequadamente?

? Não. Será um passeio breve.

? Como desejar... ? Brandon se inclinou levemente para frente e com passo firme saiu do salão.

Respirou fundo após fechar a porta e em vez de sair correndo para as cavalariças retornou à cozinha, onde tinha deixado sua mulher resmungando pelas palavras tão inapropriadas que o duque tinha dirigido ao enlace de seu amigo.

? Quer sair para montar ? disse desesperado quando entrou na cozinha.

? O que?! ? Perguntou a mulher atônita.

? Ordenou-me que preparem seu garanhão. Deseja passear pelas terras ? prosseguiu.

? Terá lhe tirado essa insensatez da cabeça, não é? ? Hanna colocou suas mãos sobre a cintura e enrugou a testa.

? Não quer escutar. Acredito que bebeu muito...

? Agora mesmo vou dar aquele par de açoites que deveríamos ter lhe dado quando começou a apodrecer sua alma!

? Hanna! ? Gritou Brandon agarrando-a pelo braço para impedir que saísse dali. ? Temos que lhe deixar ver que não é o homem que uma vez foi. Ele deve assumir.

? E nós... o que faremos enquanto isso? ? Sua voz era suave, quase imperceptível.

? Rezaremos como tantas vezes fizemos quando lhe dispararam ? respondeu aflito.


VI


Beatrice se espreguiçou com um sorriso que iluminou seu rosto. De um tempo para cá dormia bastante bem e tudo se devia a uma singela razão: tinha o estômago cheio. Tinha comprado animais, cultivado verduras pelos arredores de seu pequeno lar e até tinha construído um cercado para que os lobos deixassem de aniquilar o gado. Tudo acontecia segundo o previsto. Nada perturbava aquela felicidade, salvo quando uns pensamentos impossíveis se fundamentavam, em como enfrentar o passado apareciam em sua cabeça. Tentava esquecê-los com rapidez, ainda não era o momento de pensar nisso e tampouco tinha ainda a força necessária para aparecer em Londres e lutar pela verdade, a sua verdade.

Apoiou os pés no chão e depois de esticar os braços decidiu tomar um bom café da manhã antes de sair ao campo. Depois das últimas chuvas, os arvoredos estariam repletos de cogumelos e desejava encontrar todos que coubessem em sua cesta para preparar suculentos manjares.

Depois de tirar a camisola e colocar-se um dos vestidos que comprou na semana anterior no povoado, caminhou para a pequena cozinha para tomar o café da manhã. O estômago não lhe rugia como antes, tampouco sentia aquela debilidade moribunda que lhe impedia de levantar-se da cama, agora estava cheia de vida.

Verteu chá em um copo e colocou um prato com ovos, verduras cozidas e duas fatias de pão. Quando se sentou observou surpreendida o que havia sobre a mesa. Sem dar-se conta tinha preparado o café da manhã preferido de sua mãe.

Àquele pensamento, à lembrança de sua mãe e à vida que desfrutou antes de ser manchada, entristeceu-a tanto que mal pôde dar um bocado.

«Algum dia, ? disse ? tudo voltará para a normalidade e aqueles que me julgaram carregarão o resto de suas vidas com a desgraça da condenação».

Mas... seria verdade? Retornaria de novo para lutar por sua honra? Estava escondida mais de meio ano do acontecido, pensou que se separando de sua família, dos olhares de compaixão ou de recriminação, poderia curar sua alma ferida e fazer-se suficientemente forte para voltar e suportá-lo, mas com o tempo estava se acomodando à vida que levava e cada vez se fazia mais longínqua à ideia de retornar ao lugar onde foi ultrajada. Como trocar uma vida cheia de tranquilidade e quietude por outra repleta de dor? Era certo que em muitas ocasiões Beatrice se sentia sozinha e tentava resolver essa sensação conversando com seus animais, mas exceto algum zurro, choramingação ou grasnido, não encontrava nada mais.

Zangada por entristecer um bonito dia com pensamentos dolorosos, jogou a cadeira para trás com as pantorrilhas, pegou tudo o que tinha sobre a mesa e o introduziu irada no tanque. Precisava sair dali o antes possível ou se voltaria louca. O isolamento não era tão bom como tinha suposto e embora lutasse com unhas e dentes para manter-se sã, estava justo no limite. Começava a tocar a loucura torturante com as pontas dos seus dedos.

Olhou de novo pela janela desejando confirmar se o tempo não tinha trocado e poderia abandonar a cabana. Em efeito, o sol seguia brilhando, convertendo aquele dia no perfeito para dar aquele passeio. Colocou a capa, agarrou a cesta de vime e saiu do lar com um sorriso no rosto.

Um cão... ? pensou enquanto caminhava. Seguia pensando em como eliminar o silêncio da casa. Seria um bom mascote, ocuparia aqueles momentos nos quais não sei com quem falar. Além disso, são fiéis e jamais me abandonaria, refletiu ao mesmo tempo em que agarrava o primeiro punhado de cogumelos que encontrou aos pés de uma árvore.

Seguia pensando no animal e em como chamá-lo quando um bando de pássaros voou entre as copas das árvores. Beatrice elevou o olhar e ficou observando a estranha atuação destes. Preocupada se por acaso lhe indicavam a cercania de algum perigo, agarrou com força a cesta e prosseguiu devagar. De repente, escutou outro ruído, tão intenso que a deixou imóvel. Apertou contra si a cesta e olhou para o lugar de onde procedia o som.

Um animal corria apavorado. Ia tão veloz que não distinguiu com precisão se era um cervo, um alce ou um cavalo perdido. Por que estavam os animais tão assustados? Só podia achar uma resposta a esse comportamento aterrador. Os lobos tinham retornado e rondavam pela zona, levavam noites uivando perto de sua cerca. Tinha se esquecido deles ao sair da casa tão desesperada por notar os raios de o sol lhe acariciar a pele. Assustada, decidiu caminhar para o rio Wye. Se chegasse logo ao trecho de máximo fluxo poderia introduzir-se na água e aguentar o tempo necessário até que aqueles depredadores decidissem afastar-se de uma possível presa.

O ruído dos ramos ao romper-se, o canto dos pássaros, a brisa do vento movendo as folhas... começaram a lhe criar um medo tão atroz que lhe adormeceram as pernas e esqueceu seu plano de dirigir-se para o rio. Seu lar era o lugar mais seguro. Custava-lhe respirar, avançar com fluidez. O pânico se apropriou de seu corpo e a tinha paralisado. Em um ato de fé, daqueles que não teve no acontecido com o Rabbitwood, fechou os olhos e começou a orar. Rezava para salvar-se, para que seu medo desaparecesse, para que brotasse aquela força que necessitava. Ao princípio rogou em silêncio, pouco depois o fez em voz alta, como se as orações fossem suficientes para espantar um possível mal.

Subiu uma pequena colina de onde pôde divisar a cabana. Ficava só uma centena de passos e se salvaria. Seu caminhar começou a ser agitado, precipitado. De repente notou a presença de algo atrás dela. Girou-se rapidamente para saber do que se tratava. Não havia nada. O medo lhe provocava alucinações.

Seguiu correndo olhando para trás, não queria parar. E então... aconteceu. Tropeçou em algo que havia no chão e caiu no barro. Durante uns instantes ficou tombada, cobrindo seu rosto com o cabelo manchado de lodo e sem poder elevar os olhos. Esperou o suficiente até que comprovou que não se escutava nada ao seu redor. Elevou-se com rapidez, agarrou a cesta e se dispôs a continuar correndo quando sua curiosidade lhe fez olhar para a razão de sua queda.

? Santo Deus! ? Exclamou ao mesmo tempo em que se aproximava do que se supunha ser um corpo e estendia os dedos fazendo com que a cesta retornasse à terra lamacenta.

Uma enorme capa escura e manchada cobria a figura de quem jazia estendido. Beatrice não o duvidou. Esticou as mãos para o tecido, apartou-o devagar para certificar-se de sua premissa e gritou:

? OH, Senhor!

Andou vários passos para trás, levou-se as mãos à boca e a tampou para não continuar chiando. Ficou tão atônita que, depois de confirmar quem tinha em frente a ela, não sabia o que devia fazer. Se fosse embora, se o deixava ali estendido; podia retornar à sua casa e esquecer que o tinha visto. Entretanto, o que pensariam no povoado quando descobrissem o corpo inerte do duque e a ela vivendo em suas terras de maneira clandestina? A única resposta plausível era que ele a encontrou por acaso e quis obrigá-la a partir de suas terras e como ela não desejava lhe obedecer, aproveitou sua invalidez para lhe dar fim. Questionariam-se como uma mulher tão pequena teria sido capaz de fazer tal maldade? Não, é óbvio que não. Além disso, se descobrissem sua identidade, a sentença não apresentaria dúvida alguma.

A única opção que tinha era averiguar se estava vivo e conduzi-lo até a cabana, prestar-lhe auxílio e quando amanhecesse, correr a Haddon Hall para pedir ajuda, embora isso lhe custasse à expulsão da qual tinha sido seu lar durante os últimos meses. Devagar, mais do que pretendia, aproximou-se do duque e o observou com atenção.

«Obrigado, Meu Deus!», murmurou ao céu quando percebeu que ainda respirava.

Nesse momento outro bando de pássaros voou com frenesi sobre eles. Sem pensar duas vezes girou o corpo inconsciente e o agarrou pelas axilas para arrastá-lo. Não havia tempo nem forma fácil de trasportá-lo, então o arrastou sem descansar até que suas costas tocou o cercado que rodeava seu lar. De repente escutou uns ramos se partirem. Levantou o olhar e os observou. Grunhiam e lhes mostravam os dentes. Seus olhos escuros se cravavam nela. Um lobo cinza deu uns passos para diante, levantou o focinho e uivou com força. Beatrice tragou saliva. Sentia o medo percorrer seu corpo, mas não se amedrontou. Prosseguiu sua façanha até que introduziu o duque ao interior da cabana e fechou a porta com o trinco.

Deixou-o estendido no chão enquanto procurava a maneira de subi-lo à cama. Compreendendo que não tinha nada que a ajudasse no árduo trabalho, decidiu pegar o colchão e situá-lo perto do ferido. Assim, quão único teria que fazer era rodá-lo até que estivesse em uma posição adequada. Antes de voltar a tocá-lo ficou de pé observando-o em silêncio. As marcas do rosto, aquelas que tanto tentava esconder com a longa barba, mostravam-se sem disfarces. Ao contempla-las com mais claridade, pensou que não eram tão horrendas como diziam, embora para um homem tão formoso, aquelas sequelas fossem feitas pelo próprio diabo.

Seguiu admirando-o à distância. Tinha um aspecto muito viril, robusto e atlético, muito distante, em sua opinião, da fraqueza em que todos insistiam na sequencia do incidente.

Com valentia voltou a segurá-lo e o girou de lado para colocá-lo sobre o colchão, afastando-o da frieza do chão. Ao pôr suas mãos sobre ele notou que estava gelado, a roupa molhada se grudava ao seu corpo e o esfriava sem compaixão. Decidida, aproximou-se da chaminé, colocou uns troncos e acendeu um fogo. Isso bastaria para esquentar a pequena habitação em que se encontravam. Enquanto as chamas começavam a brotar, voltou para o ferido e começou a lhe tirar aquela capa enlameada. O duque emitiu um pequeno gemido provocando que Beatrice se sobressaltasse e se apartasse. Não desejava que abrisse os olhos e a encontrasse tocando seu corpo. Poderia deduzir algo que não era.

Esperou sentada junto à chaminé outra reação do homem, mas ao ver que seguia inconsciente retornou para continuar lhe despojando dos objetos. Era a primeira vez em sua vida que se encontrava em uma situação parecida e embora não devesse sentir nenhum tipo de temor, estava tremendo. As mãos não eram capazes de desfazer o nó da capa, nem de lhe tirar com agilidade a jaqueta. O que lhe acontecia? Estaria lembrando-se da noite que passou com ele? Não, não era isso. Só estava nervosa se por acaso o duque abria os olhos e a descobrisse despindo-o. O que pensaria? Certamente que lhe estava roubando. Os homens de sua índole jamais imaginariam que alguém podia lhes ajudar por solidariedade.

Quando ao fim o deixou em camisa descobriu uma mancha de sangue que não tinha visto com antecedência. Devagar desabotoou cada botão até que o peito ficou descoberto e pôde inspecionar a zona de onde brotava o sangue, era uma ferida que abrangia do flanco esquerdo até o ventre, uma zona que ao duque lhe teria sido impossível proteger com seu braço inútil. Beatrice não pôde evitar olhar o torso com assombro. Era a primeira vez que descobria o que se escondia sob as roupas de um homem. Nunca pensou que fosse tão robusto, nem que nessa zona o pêlo crescesse tão escuro e encaracolado. Mas o que lhe deixou sem fala foi o tamanho dos mamilos, eram diminutos, mal visíveis à primeira vista. Sem meditar mais sobre isto, incorporou-se, preparou uma panela com água fervendo e começou a limpar o corte com supremo cuidado. Não era profundo, só um arranhão muito comprido.

Cada vez que passava o pano o homem franzia o cenho e se queixava, embora não abrisse os olhos. Depois de seus cuidados, sentou-se de novo junto à chaminé. Estava muito cansada por todo o ocorrido. Não só seu abatimento era físico, mas também mental. Ela podia ter salvado a vida do duque de uma morte segura, pois se o tivesse abandonado, os lobos teriam se alimentado dele. Mas este ato de misericórdia teria consequências nefastas para ela, deveria abandonar o lugar que chamava de lar. Um lugar que lhe contribuía com paz, quietude e esperança de não voltar a ser a mulher que foi.

Sentada, estendeu as pernas, cruzou os braços, apoiou a cabeça na parede e deixou que o sono se apoderasse dela.


VII


Doía-lhe todo o corpo, inclusive a parte que era insensível. Elevou com pesar as pálpebras e não soube reconhecer onde se encontrava. Quão último recordava era que seu cavalo se assustou no bosque, justo antes de chegar ao rio Wye, e tinha começado a correr sem controle. Tudo aconteceu bastante rápido. As cintas que o sujeitavam à cadeira se partiram e durante um tempo esteve amarrado ao estribo do animal desenfreado até que ao final caiu ao chão. O golpe foi tão potente que foi incapaz de assimilar o acontecido durante uns momentos. Quando compreendeu o ocorrido tentou arrastar-se pelo chão transformado em lamaçal. Apesar de seu esforço, mal conseguiu distanciar um metro de onde havia desabado. Depois gritou pedindo auxílio, mas ninguém respondeu. Exausto pelo esforço terminou perdendo os sentidos. E agora, ao despertar daquela agonia, achava-se em um lugar que não conseguia distinguir.

Moveu a cabeça para a direita e observou uma mulher sentada no chão a menos de um metro dele. Tinha um aspecto lamentável: o barro cobria cada centímetro de tecido de seu vestido assim como seus sapatos. Dirigiu os olhos para o rosto da moça para tentar reconhecê-la, mas foi impossível. Uns largos cachos negros soltos de um coque tampavam seu semblante. William franziu o cenho ao compreender que a desconhecida dormia no chão apoiada sobre a parede e claramente, exausta pelo cuidado que dava a ele.

? Desculpe... ? sussurrou após respirar várias vezes e procurar uma palavra adequada para não sobressaltá-la.

? Já despertou? ? Perguntou Beatrice dando um salto.

Sem esperar a resposta do homem aproximou-se e lhe colocou uma mão sobre a testa. Nesse momento William fechou os olhos, não queria ver no rosto da mulher, sua expressão de angústia quando contemplasse suas cicatrizes.

? Parece que não tem febre. Foi uma sorte que o tenha encontrado antes que pudesse adoecer ou acabar devorado por... ? deixou sem finalizar a frase. Levantou-se, aproximou-se da mesa onde tinha o pano com o qual o tinha limpado e, depois de ajoelhar-se, voltou a lhe limpar o peito, o pescoço e o rosto. ? Terá que ficar um tempo de repouso, embora as feridas não sejam graves, necessitam de uns dias tranquilos para que sarem adequadamente.

O tom da jovem era tão terno que o duque fechou de novo seus olhos. Desejava com todas as suas forças que aquela imagem, em que uma mulher o cuidava sem sentir asco por suas feridas, não fosse uma alucinação.

? Onde estou? ? Ao sentir o suave tato da mão feminina pela zona na qual seu rosto estava destroçado, William abriu os olhos e, sem pensar agarrou-lhe com força pelo pulso para que cessasse imediatamente.

? Em minha casa. ? Beatrice o olhou apertando os olhos para a pressão daquele aperto forte. Não esperava que lhe agradecesse por lhe haver salvado a vida, mas tampouco imaginou que lhe ocorresse ser um mal educado.

William, ao ser consciente de seu inoportuno ato, soltou-a e tentou incorporar-se, mas ela o impediu colocando uma palma sobre o peito nu do homem e lhe obrigando a recostar-se de novo. O cabelo negro se estendeu pelo colchão. Sua respiração não era tranquila e Beatrice podia ouvir o tilintar das botas do duque ao golpear-se.

? Deve recuperar-se... seu... senhor.

? Eu gostaria de lhe informar sobre certas feridas do meu corpo. Quero lhe esclarecer que não foram causadas recentemente... ? seu tom soou débil, inclusive triste.

? Mas apesar disso deve descansar. ? Levantou-se e se dirigiu para um caldeirão metálico que tinha muito perto do fogo. Colocou uma concha de sopa e tirou algo que introduziu em uma terrina. ? Acredito que isto lhe virá bem... ? retornou para o homem, agachou-se, colocou seu braço esquerdo ao redor do pescoço masculino, inclinou-o para frente e pôs uma pequena superfície da borda sobre os lábios. ? Não tem nada a ver com os ricos manjares aos que imagino que você deve estar acostumado, mas este caldo lhe reconfortará. ? E antes que o duque pudesse negar-se, Beatrice o fez tomar.

William esticou a mão para o recipiente e ajudou à moça. Era certo que não tinha provado nunca um sabor igual, embora a necessidade de alimentar-se e de recuperar um pouco de força fez com que bebesse até a última gota sem mal respirar. A jovem voltou a estendê-lo sobre o colchão enquanto ia de um lado para outro. Estava inquieta e ele a compreendia. Tinha em sua casa a um estranho que mal podia mover-se e que parecia ter a obrigação moral de cuidar.

? Quando chegará seu marido? Devo lhe indicar onde resido. Ele poderá informar aos meus criados do meu paradeiro e estou seguro de que não demorarão em vir por mim. Agradeço-lhe tudo o que tem feito, entretanto você entenda que não desejo ser uma carga... ? disse-lhe sem apartar a vista de quão único alcançava a ver, seus tornozelos.

? Meu... quem? ? Deu uma volta sobre si mesma com brutalidade, provocando que sua saia se elevasse algo mais do devido e que o duque descobrisse umas magras pantorrilhas sem meias.

? Seu marido... a pessoa que haverá me trazido até aqui ? esclareceu.

? Não há tal marido, senhor. Fui eu mesma quem o transladou. ? Colocou-se em frente a ele com as mãos apoiadas em sua cintura.

? Você carregou o meu peso? ? Perguntou assombrado e um tanto sufocado. Aquela moça não era muito alta e, notavelmente magra, mais do que se podia esperar em uma jovem de sua idade.

? Pois sim. Encontrei-o no meio do bosque e decidi lhe salvar a vida, embora possa lhe assegurar que quase me custou a minha ? sorriu.

Quando William a observou sorrir acreditou ver um anjo. Um despenteado e sujo anjo que tinha cuidado de seu rosto e não tinha encontrado nele nem um ápice de repulsão por seu deformado aspecto. Pareceu-lhe tão implausível para ele que acreditou que o golpe lhe tinha causado visões. Desde quando alguém não apartava seus olhos ao estar ele presente? Desde quando alguém o olhava sem dirigir os olhos para a cicatriz, para franzir o cenho?

? Então... devo lhe agradecer o esforço que realizou para me salvar ? disse após sua reflexão. Tentou levantar-se de novo e arqueou as sobrancelhas ao ver que seu torso estava nu. Desviou o olhar para a mulher e esta se ruborizou imediatamente.

? Tive que limpar a ferida que se fez no abdômen. Como imaginará, tive que apartar a roupa – desculpou-se.

? Obrigado ? disse depois de uns momentos de silêncio que empregou para saber como deveria continuar a conversação. ? Se por acaso não se deu conta, sou um incapacitado. Não posso mover a mão esquerda, mas não foi por causa da queda, faz tempo que deixou de funcionar. Minha perna... bom, ela tenta recuperar um pouco de funcionalidade depois de um inoportuno tropeção em meu lar.

? O que lhe aconteceu? ? Colocou-se ao lado da chaminé onde podia contemplá-lo com maior claridade.

? Como já lhe expliquei, isto aconteceu faz bastante tempo...

? Refiro-me a hoje. Por que estava caído no chão? ? Interrompeu-lhe.

? Decidi cavalgar durante um momento. Minha intenção era chegar até o rio Wye e retornar, mas meu cavalo se assustou e... bom, eu fui jogado. ? Suspirou e olhou para o teto enquanto se perguntava uma e outra vez por que dava explicações a uma estranha. Jamais as tinha dado a ninguém. Entretanto, ela era especial. Era um ser divino que o tinha salvado de uma morte segura.

Beatrice o olhou sem piscar. Tinha uma vontade incrível de lhe gritar como era insensato, mas não o fez, manteve-se calada esperando que o duque continuasse, mas ele se manteve em silêncio.

? Há lobos pela região ? explicou para romper o mutismo entre ambos. ? Talvez seu cavalo se assustasse ao escutá-los e atuou preso do medo.

? Pode ser... ? respondeu sem apartar a vista do teto.

? Assim que se encontrar melhor irei procurar ajuda. Estou segura de que alguém estará preocupado por seu desaparecimento. ? Voltou a aproximar-se e lhe abotoou a camisa para que não se sentisse incômodo por sua nudez. Ou possivelmente era ela a que se encontrava nervosa.

William quis fechar os olhos e sentir o suave tato das mãos sobre ele, mas lhe resultou impossível. Desejava observar com atenção a sua salvadora e, embora tivesse o cabelo despenteado e sujo assim como o rosto, pôde admirar a beleza de seus olhos. Uns olhos verdes que não apartavam o olhar de seu rosto nem mostravam repulsão ante a fealdade de suas cicatrizes.

? Posso lhe perguntar seu nome? ? Inquiriu William quando ela retornava para a chaminé.

? Meu nome é Beatrice ? respondeu.

? Só Beatrice?

? Beatrice Brown ? mentiu.

? Senhorita Brown, ? disse o duque com um tom sério e firme ? como compreenderá, estou em dívida com você e seria um cretino se não a saldasse.

? Não precisa me prometer nada...

? Sou o duque de Rutland e por minha honra oferecerei-lhe tudo aquilo que desejar. Se por acaso não se deu conta, salvou-me a vida.

? Não necessito de nada... ? murmurou com suavidade.

? Não quero que me responda agora, não é necessário. Mas quando decidir o que me pedir, estarei encantado de escutá-la ? insistiu sem relaxar aquele tom de venerabilidade.

À Beatrice não cabia dúvida da veracidade da promessa embora não acreditou oportuno lhe dizer que vivia em uma propriedade dele e precisava seguir permanecendo ali durante o resto de sua vida. Para evitar que o homem continuasse falando com tanta seriedade, desenhou um sorriso em seu rosto e disse:

? Possivelmente a queda lhe tenha prejudicado mais do que parece. Como mínimo, deve ter lhe afetado o ouvido. Faça o favor de descansar. Por agora é o único que lhe peço.

? Juro por minha honra...

? Shhh ? avançou para ele, pôs-lhe um dedo nos lábios e lhe fez calar. Não queria escutar promessas que não se poderiam cumprir. Estava aturdido e uma pessoa em dito estado de choque poderia falar mais do que o imprescindível. ? É melhor que durma, precisa descansar um pouco mais.

William a olhou sem saber se ria ou zangava-se. Não fez nem um nem outro, ficou observando-a durante uns instantes. Finalmente fechou os olhos e se obrigou a dormir. Embora antes de deixar-se sucumbir pelo sono se perguntou quando tinha sido a última vez que havia sentido tanta paz e desde quando era incapaz de replicar as ordens de uma mulher. As respostas surgiram com rapidez, desde que a dita mulher lhe tinha salvado da morte, não lhe tinha cuidado com repulsão e o tratava com ternura.

Beatrice esperou até que escutou a respiração profunda do duque.

Caminhou para a janela e descobriu que os primeiros raios de sol começavam a surgir atrás das montanhas. Era o momento ideal para ir à Haddon Hall e comunicar o paradeiro do duque. Estava segura de que todo mundo estaria angustiado pelo desaparecimento. Teriam começado uma busca conscienciosa e se ela não chegasse o antes possível para lhes explicar onde se encontrava, logo seu lar se veria repleto de desconhecidos que a interrogariam sobre por que vivia em um lugar que não lhe pertencia.

A angústia que sentiu ao imaginar-se nessa situação lhe criou tal impaciência que só se atrasou em pegar sua capa e correr para a residência. Durante o caminho sopesou a atitude que teria o senhor Stone ao vê-la. Esticar-se-ia como um pau, ordenaria que salvassem ao senhor das garras de uma camponesa desalinhada e a reteria na mansão até que descobrissem a verdade. Não podia permitir que a acusassem de algo que não tinha feito, então decidiu que após dar a notícia correria para seu lar para fechar a porta e esquecer tudo o que tinha acontecido.

Como sempre, a magnitude do edifício a deixou perplexa. Não entendia como um paraíso podia albergar um lar tão austero. Quanto mais se aproximava, mais calafrios sentia. Esfregou-se os braços para dar-se um pouco de calor e começou a subir as escadas. Ao chegar à porta principal começou a golpeá-la com força. Depois de vários intentos sem ser atendida, decidiu tentar a porta de serviço. Se não se equivocava, a senhora Stone estaria na cozinha e a escutaria com prontidão. Andou devagar tentado descobrir se surgia da escuridão alguém com quem falar, mas só havia silêncio, um estranho e horrendo silêncio.

? Menina! ? Exclamou a senhora Stone ao vê-la. ? O que faz aqui?

? Bom dia, senhora. Preciso falar com o senhor Stone ? respondeu com voz equilibrada.

? Retornou para...?

? Não! ? Respondeu com prontidão ao mesmo tempo em que suas bochechas se enchiam de uma intensa cor vermelha.

? Pois, querida, o senhor Stone não pode te atender. Aconteceu algo bastante dramático em Haddon Hall e...

? O duque está em minha casa – interrompeu-lhe.

? O que está dizendo, moça? ? Os olhos inchados da anciã devido ao intenso pranto que teria tido enquanto o duque estava desaparecido, abriram-se de par em par.

? Encontrei-o caído no meio do bosque. Quando compreendi que estava vivo o arrastei até meu lar e o estive cuidando após ? explicou Beatrice.

? Obrigado, meu Deus! ? Clamou antes de lhe dar um forte abraço e enchê-la de beijos. ? Muito obrigada, criatura do Senhor, por salvá-lo. ? Depois de uns momentos nos quais Beatrice mal conseguia respirar, a mulher a liberou e correu para a porta gritando: ? Senhor Stone! Senhor Stone!

? O que acontece? A que vêm esses gritos? ? Tal como se tinha imaginado, o mordomo apareceu na cozinha erguido e mal-humorado. Ao ver a jovem entrecerrou os olhos e lhe disse: ? O que faz aqui? Não teve o suficiente com aquela noite? Acaso gastou o dinheiro que ganhou e vem procurando mais?

? Brandon! ? Gritou Hanna zangada. ? Por que é tão...?

? Tão? ? Arqueou as sobrancelhas e uniu com suavidade as pestanas.

? A jovem veio até aqui para nos informar sobre nosso senhor. Ele está são e salvo. Encontrou-o no bosque e o esteve cuidando ? esclareceu a anciã sem mal tomar fôlego.

? Onde está? ? Exigiu sem baixar a intensidade de seu tom.

? Está em minha casa ? anunciou abaixando a cabeça. As duras palavras do mordomo sobre o acontecido aquela noite lhe tinha criado um grande pavor.

? Diga-me agora mesmo onde se encontra sua Excelência! ? Exclamou com ira.

? Vim até aqui por vontade própria. Acreditei que estariam preocupados com o destino do duque e quis lhes informar que se encontra bem.

? Onde está? ? Repetiu Brandon com os dentes apertados. Aproximou-se tanto de Beatrice que esta teve que dar vários passos para trás para que não conseguisse roçá-la.

? Na pequena casa que há no bosque. É o... ? murmurou devagar.

? Refúgio de caça ? terminou a frase. ? Está bem, mandarei vários criados com a carruagem e espero, por seu bem, que se encontre em ótimas condições porque do contrário...

? Não desejo escutar nada sobre isso, ? agora foi ela quem não lhe deixou terminar a frase ? vim voluntariamente lhe indicar onde se encontra.

Brandon a olhou irado. Girou-se para a porta para ordenar a outros criados que se preparassem para ir procurar ao senhor e quando retornou à cozinha com a intenção de apanhar a moça, já não estava.

? Por que não impediu que se fosse? ? Perguntou zangado à sua mulher.

? Pensa que minhas pernas podem correr como os galgos? Além disso, não crê que se comportou como um idiota, meu querido? Ela só veio nos informar sobre o paradeiro do duque e você a tratou como uma criminosa.

? Mas...

? Não tem “mas”! ? Exclamou levantando a mão para lhe fazer calar. ? Hoje não espere nenhum tipo de afeto em nosso quarto. Prefiro, se não quiser cair do colchão durante a noite, que durma em outra habitação. ? Depois de ameaçá-lo, girou-se sobre seus calcanhares e seguiu prestando atenção à comida que estava cozinhando.

Beatrice chegou, como era de se esperar, antes dos criados. Abriu devagar a porta de seu lar e se assombrou ao ver que o duque estava sentado sobre o colchão e olhava o fogo. Este, ao escutar que alguém acessava ao interior da casa, moveu a cabeça para sua direção.

? Foi à Haddon Hall para lhes avisar? ? Perguntou sem mostrar em seu rosto nenhum tipo de emoção.

? Sim ? respondeu enquanto se aproximava e se colocava em frente a ele. Sua respiração era agitada devido ao esforço da corrida. Tomou ar de maneira pausada, acalmou-se e continuou: ? Estão vindo para cá. Eles lhe cuidarão como merece. Penso que eu não posso lhe oferecer muito. Tenho poucos recursos...

? Andou até Haddon Hall... sozinha? Apesar de me haver indicado que há uma manada de lobos rondando no bosque? ? William estava zangado. Mais do que se havia proposto.

Um momento depois de recostar-se escutou a porta, despertou e, por muito que a tinha chamado para que não partisse, não o conseguiu. Nesse momento tentou levantar-se, mas o único que pôde fazer foi sentar-se naquele roído colchão e esperar que o tempo passasse. Sua incoerente ação não só tinha posto em perigo a ele mesmo, mas sim também tinha arrastado a pessoa que o tinha salvado de uma morte inevitável. Zangou-se por ser tão irracional. Zangou-se por deixar-se levar pela ira, por ter tomado mais álcool do que o acostumado. Zangou-se por tudo o que tinha feito no passado e suas consequências.

? Não se preocupe comigo, Excelência. Estou acostumada a contornar certos perigos. ? Tirou-se a capa e a colocou sobre uma cadeira.

? Mesmo assim, você é uma inconsciente ? disse com aborrecimento.

? Uma inconsciente? ? Beatrice entrecerrou seus olhos e franziu o cenho. ? De verdade que um homem como você é capaz de me definir de tal maneira? Acaso fui eu quem decidiu cavalgar depois de vários dias de chuva e com limitações? ? Fechou com rapidez a boca. O que menos desejava naquele momento era lhe recordar àquilo que lhe tinha destroçado a vida. Entretanto, ao ver que o duque cravava o olhar no chão soube que suas palavras lhe tinham feito mal, mais do que pretendia.

? Você tem razão... ? sussurrou William. ? Por isso quero que recorde que tenho uma dívida pendente com você e eu gostaria de saber no que posso ajudá-la. Se for possível, antes que eu parta.

? Só preciso ficar sozinha... ? murmurou muito devagar.

Girou-se para a chaminé dando as costas ao homem e esticou as mãos para esquenta-las.

William se dispunha a replicar suas palavras quando a porta se abriu com brutalidade e apareceram duas pessoas. Uma delas era o cavalariço e a outra, seu ajudante de câmara. Ficaram olhando-os durante uns instantes esperando que alguém lhes ordenasse o seguinte passo.

? Sairei para que o assistam como é devido ? comentou Beatrice abaixando a cabeça e dando uns passos para a saída.

Nesse momento, sem saber por que, jogou uma última olhada ao duque, que a olhava sem pestanejar. Seu cenho permanecia franzido e apertava com força a mandíbula. Sem dúvida alguma o homem se zangou ao não obter a resposta que desejava, mas ela não queria adiar por mais tempo a partida. Desejava com todas as suas forças que a normalidade reinasse em sua vida, precisava apartá-lo o antes possível porque sua presença não lhe fazia nenhum bem.

Continuou andando e fechou a porta após sair. Sentou-se nas escadas de pedra e tampou o rosto. Não queria pensar em nada, mas mesmo assim a mente não parava de meditar sobre os infortúnios da vida. Em um passado quando seu pai foi rogar o auxílio do duque e este se negou arrogantemente e agora, o mesmo homem que não quis escutar sua versão dos fatos, rogava-lhe que lhe pedisse algo para saldar sua dívida e conseguir a paz. Seria uma opção acertada lhe pedir que lhe devolvesse sua vida? Pouco depois os homens saíam e William se apoiava em um deles para poder caminhar. Beatrice se levantou para lhes facilitar o acesso. Quando passou por seu lado, o duque fez com que parassem.

? Temos uma conversação pendente, senhorita Brown. Direi a um dos meus criados a que venha recolhê-la o mais cedo possível.

? Não temos nada do que falar, milord ? disse abaixando a cabeça. ? Não me deve nada.

Os criados entenderam que a conversação tinha finalizado e continuaram sua marcha até a carruagem. Elevaram ao duque para sentá-lo corretamente. William jogou a cabeça para trás e depois de fechar os olhos pensou: «Só lhe devo minha vida, senhorita Brown».


VIII


? Está seguro? ? William tomava o café da manhã enquanto escutava com atenção ao Brandon. Este lhe explicava que o criado enviado para que acompanhasse a senhorita Brown até Haddon Hall retornava outra vez sozinho.

? Sim, sua Excelência ? afirmou o mordomo depois de um sopro suave. A tarefa, apesar de parecer bastante singela, estava sendo uma verdadeira agonia.

? É uma mulher muito teimosa. Quantas vezes foram em sua busca? ? Pegou a xícara de chá e a levou para a boca para ocultar o enorme sorriso que desenhavam seus lábios.

Aquele comportamento não era de se estranhar, e mais, se ela tivesse aceitado algum de seus convites o teria desapontado. Só uma pessoa com caráter firme seria capaz de albergar um estranho em seu lar sem pensar na repercussão que dito ato de valentia podia supor. Além disso... desde quando uma frágil moça salvava a vida de um desconhecido pondo em perigo a sua?

? Contando com a de hoje, sete. Os dias que você está em casa desde o infortúnio ? esclareceu.

? Bom, então acredito que a melhor opção é me apresentar ante a senhorita Brown e lhe perguntar o motivo de suas contínuas negativas ? indicou pousando a xícara sobre o prato e empurrou a cadeira para trás para se levantar.

Pegou com força a bengala e caminhou para onde se encontrava o mordomo. Tinha decidido visitá-la quando a terceira negativa chegou até seus ouvidos. Entretanto esperou recuperar-se de tudo para mostrar um aspecto ótimo. Não queria que a mulher continuasse acreditando que ante seus olhos se encontrava um ser débil, frágil. Desejava que admirasse a pessoa que em realidade era, ao duque de Rutland, um homem com caráter, firmeza, força e com energia suficiente para assumir as consequências de seu destino.

William estranhou sua repentina mudança de atitude. Desde quando o duque de Rutland tinha despertado de sua profunda letargia mental? Possivelmente a resposta se escondia nela e, se era assim, precisava encontrar o antes possível o por que.

? Diga ao cavalariço que prepare um cavalo. Partirei quando o ajudante de câmara me vestir para a ocasião.

? Como desejar, sua Excelência.

Brandon, apesar de ter uma vontade imensa de rebater aquela ideia, não estava lá para impedir os desejos de seu senhor. Além disso, tantos anos ao seu serviço ofereciam a experiência necessária para compreender que as decisões do duque não podiam ser questionadas. Ele tinha nascido teimoso e, se Deus velasse por sua vida, morreria sendo-o.

Enquanto o criado lhe ajudava a vestir-se, William pensava na forma mais correta de iniciar uma conversação com sua salvadora. Agradeceria ou lhe perguntaria o que fazia vivendo em seus domínios? Esse mesmo pensamento tinha estado perturbando-o durante a semana que esteve recuperando-se. Sua preocupação não se devia a que a moça habitasse em um lugar de suas terras, graças a isso ele sobreviveu. Mas se perguntava uma e outra vez como tinha chegado até ali. Teria se perdido? Ou talvez... tinha-lhe acontecido algo tão dramático que decidiu abandonar seu autêntico lar.

«Só preciso ficar sozinha». Essas tinham sido suas palavras quando ele insistiu em que lhe devia um favor e que podia lhe pedir o que ansiasse. Por que uma jovem que não devia ter mais de vinte anos vivia sozinha à mercê dos infortúnios de uma vida campestre? Se tivesse sorte, coisa que duvidava, porque começava a conhecer o temperamento da senhorita Brown, suas perguntas seriam respondidas.

? Bom dia, senhor. Seu cavalo está preparado ? explicou o criado quando percebeu que a esbelta figura do duque aparecia pelas cavalariças.

? Espero que desta vez as cintas não se rompam ? apontou William ao mesmo tempo em que se dirigia para o animal eleito.

? São correias novas, sua Excelência – indicou-lhe o criado sem lhe olhar nos olhos. ? Têm o dobro de grossura e proporcionam uma amarração mais segura.

? Bem... ? disse mal reparando na explicação do jovem.

Com passo firme aproximou-se do corcel e esperou que o criado lhe ajudasse a subir. Quando esteve sobre o cavalo e não sentiu a segurança que lhe proporcionava seu garanhão, perguntou ao criado:

? Continuam a busca pelo Dalión?

? Sim, meu senhor. Mas não há rastro dele. Parece que a terra o tragou...

? É mais fácil ter sido devorado por uns malditos lobos... ? murmurou com os dentes apertados antes de açular ao animal.

Depois de amaldiçoar a sorte pelo penoso destino que teria vivido o cavalo, pensou em Beatrice, na solidão em que se encontrava e na facilidade que teriam aqueles depredadores para assaltá-la. A mera ideia de que ela sofresse alguma briga violenta com estes, produziu-lhe tamanho aborrecimento que notou como o coração palpitava em sua garganta. A ira surgida só o fazia pensar em uma coisa: tinha que arrastá-la até Haddon Hall. Não podia deixá-la à mercê do nada.

Crê que aceitará sua proposição com um sorriso? ? Refletiu sem diminuir a marcha. Acaso imagina a senhorita Brown recolhendo seus petences e montando-se na garupa do cavalo enquanto te agradece o oferecimento? Não, ela não abandonará esse lugar jamais.

Mas apesar de saber que a negativa seria sua única resposta, ele como bom jogador, tinha um ás na manga. Um ás que seria a melhor alternativa para ambos: dar-lhe-ia de presente a cabana, onde poderia desfrutar de sua ansiada solidão, só se ela aceitasse passar uma temporada em Haddon Hall. Seria um período curto de tempo, o suficiente para que seus criados construíssem um muro de pedra ao redor do refúgio e eliminassem a suja cerca com a qual ela se acreditava protegida. William sorriu triunfante, era uma opção muito apropriada e, sem dúvida alguma, Beatrice não poderia rechaçar. Deste modo sua dívida estaria saldada e por fim poderia deixar de pensar na jovem, porque desde que a moça apareceu em sua vida, tinha deixado de aflorar as cenas eróticas que tinha vivido com Juliette, para dar passo a uma multidão de inquietações produzidas pela ditosa senhorita Brown. Agora em suas noites não havia luxúria, a não ser angústia por uma mulher tão enigmática, como teimosa.

Beatrice acaba de limpar e dar de comer aos animais. Levou a mão direita para seu rosto e tentou tirar o barro que lhe tinha respingado após perseguir uma de suas ovelhas. O animal tinha escapado por um oco da cerca e, assustado, corria apavorado para o bosque. Por sorte para ambos, a espantada criatura ficou presa entre duas raízes grandes de uma árvore que se sobressaíam à superfície. Ela, muito devagar, aproximou-se por trás e saltou sobre o animal, voltando-se a se sujar da cabeça aos pés com o barro que havia no terreno.

? Espero que isto a ensine a não fugir de mim ? dizia ao animal enquanto que o mesmo caminhava depressa para resguardar-se junto ao rebanho.

Apesar do esforço, ainda ficava um pouco de energia para cortar lenha e preparar um lar quente. As chuvas tinham cessado, mas o frio não e, se seu prognóstico sobre o tempo não falhasse, hoje seria uma noite bastante gelada. Depois de certificar-se de que o buraco estava arrumado e que nenhum intrépido animal poderia escapar de novo, dirigiu-se para o barracão de lenha para continuar com seu plano. Entretanto, justo quando elevava o machado para tirar o primeiro corte ao tronco selecionado, escutou os passos de um cavalo avançar para onde se encontrava. Com o utensílio na mão e aferrando-o com força, girou-se para a pessoa que se aproximava. Se, se tratasse de outro criado do duque, assustá-lo-ia e o ameaçaria para que partisse. Já estava cansada da insistência do nobre. Não voltaria a apresentar-se ali nem que morresse de fome!

? Senhorita Brown, foi assim que você recebeu os meus emissários? Entendo então a razão pela qual se recusam a vir em sua busca.

Beatrice ficou atônita ao descobrir que o próprio duque era quem montava sobre o cavalo e sorria ao ver como levantava a ferramenta afiada. Olhou-o sem pestanejar e se sentiu feliz ao perceber que mal ficavam sequelas do passado incidente. Embora algo chamasse com demasia sua atenção: a longa juba escura e a espessa barba tinham desaparecido. Agora a marca do fatídico duelo ficava à vista de todo aquele que o contemplasse. Examinou-o com mais interesse e reparou que ia vestido com o traje habitual para cavalgar. Do alto do corcel parecia o homem que conheceu na festa da senhora Baithlarin: forte, bonito e enigmático. Sem lugar a dúvidas, depois dos dias de descanso tinha retornado o famoso duque de Rutland.

? Bom dia, Excelência ? respondeu baixando as mãos e abaixando a cabeça.

? Bom dia, senhorita Brown ? disse mostrando um grande sorriso.

? Vejo que continua desafiando a morte.

? Só se tiver a certeza de encontrar uma boa pessoa que tenha piedade de um homem tão desamparado como eu e decida me salvar ? indicou com zombaria.

? Você confia muito na piedade dos outros... ? replicou antes de agachar-se para recolher alguns pedaços de lenha que tinha cortado no dia anterior. Embora cortar troncos fosse uma ação muito habitual em uma camponesa, não lhe agradava sentir-se observada e menos ainda quando a pessoa que a olhava era o duque.

? Eu adoraria poder lhe oferecer minha ajuda, mas como já sabe... ? o tom zombador do duque desapareceu de repente para dar passo a uma voz suave, débil e inclusive com um toque de tristeza.

? Posso fazê-lo por mim mesma, Excelência. Além disso, poderia sujar esse bonito traje e estou segura de que seu ajudante de câmara se zangaria muitíssimo ? explicou ao mesmo tempo em que caminhava para a entrada de sua casa.

Desejava entrar na intimidade de seu lar, fechar a porta e deixá-lo ali fora. Desejava que partisse e que não a perturbasse mais, algo muito difícil se o motivo daquela visita fosse lhe recordar a ditosa promessa.

? Senhorita Brown... ? disse enquanto fazia com que seu cavalo caminhasse ao redor da cerca. ? Por que se negou a aceitar meu convite?

? Como pode comprovar, tenho muito trabalho e não posso perder tempo aceitando visitas que...

? Meu convite lhe faria perder tempo? ? William arqueou as sobrancelhas e a contemplou atentamente.

Assim como a última vez, estava coberta de barro. Não entendia como lhe resultava tão difícil estar arrumada em algum momento do dia. A única explicação que encontrou foi que, ao estar sozinha e não poder cercar conversação com ninguém, teria descoberto certo consolo em rolar pelo chão e cobrir-se de lodo.

? Não quis dizer... ? começou a desculpar-se, mas depois de olhar com atenção o rosto do duque e advertir que este não cessava de mostrar um sorriso zombador, descobriu que suas palavras não lhe tinham causado o aborrecimento que ela tinha suposto. Irada, aferrou-se com força às lenhas e lhe perguntou de mau humor: ? A que devo a honra de sua visita, senhor?

? Vim lhe recordar que temos algo pendente e eu gostaria de resolver tal questão o antes possível ? argumentou com seriedade.

? Acaso o excelentíssimo duque de Rutland tem uma terrível insônia por saber que tem uma dívida pendente com uma mulher? ? Sorriu de orelha a orelha triunfante. Esperava que após sua descarada atitude se ofendesse e a deixasse por fim em paz.

? Insônia... ? virou os olhos para a esquerda como se estivesse duvidando sobre como nomear tal situação. Logo sorriu, olhou-a nos olhos e continuou: ? Não, eu não o denominaria dessa forma, mas é certo que você perturba minha mente.

? Eu lhe perturbo?! Como uma humilde camponesa pode fazer tal coisa? ? Prosseguiu com um tom mordaz.

? Antes, senhorita Brown, minhas noites estavam cheias de luxúria porque eu revivia momentos íntimos com as minhas amantes. Entretanto, desde que você apareceu em minha vida, não afloraram as ditas imagens. Quando fecho os olhos só vejo você ? explicou com tom sereno, impessoal, embora por dentro não cessasse de rir.

? Como diz?! ? Beatrice abriu os olhos como pratos e sentiu fogo em suas bochechas. A confissão a desconcertou tanto que se esqueceu de que segurava as lenhas e, quando levou as mãos para o rosto para que o duque não observasse o rubor de seu semblante, os troncos caíram sobre seus pés. ? Ai! ? exclamou de dor.

William agarrou com força as rédeas do cavalo com a mão sã e desceu com rapidez do cavalo. Em nenhum momento reparou que sua perna lhe doeria ao tocar o chão. Só pensava que, por tentar apaziguar o forte caráter da mulher, tinha-a ferido. Abriu a débil grade e caminhou com firmeza para Beatrice, que tinha se sentado sobre as escadas e agarrava um pé enquanto brotava de seus olhos uma centena de lágrimas.

? Sinto muito, perdoe-me. Não foi minha intenção lhe causar dano algum. Só queria continuar com a ironia que estávamos mantendo em nossa conversação. ? Aproximou-se tanto que pôde observar o brilho daquelas gotas salinas. ? Deixe-me examinar seu pé. ? Estendeu a mão útil e tocou com delicadeza a pantorrilha, o tornozelo e o peito do pé da jovem.

? Não tinha vindo procurando desculpar sua dívida? Pois acaba de saldá-la. Eu lhe curei e agora você... ? voltou-se para o duque com tal rapidez que não percebeu a cercania que existia entre eles. Durante uns escassos instantes, Beatrice pôde respirar o ar que o duque emanava de sua boca e vice versa. Seus olhos claros se projetavam na escuridão do olhar do homem. Aturdida, levantou-se e apoiou o pé sobre o chão, guardando para si a dor que sentia. Colocou suas mãos na cintura e indicou: ? Como lhe disse com antecedência, não necessito que você me ofereça nada. Se quiser que sua mente deixe de lhe mostrar meu rosto e volte a ter aquelas cenas que tanto lhe agradavam, pense que vivo em uma casa que lhe pertence e que devido à sua imensa gratidão posso dormir sob um teto.

? Senhorita Brown, peço-lhe mil desculpas por minhas palavras, estão fora de lugar. Não estou acostumado a me comportar desta forma ante pessoas respeitáveis ? explicou ao mesmo tempo em que se elevava do chão.

? Respeitável? Pensa que sou uma pessoa respeitável? ? Beatrice esboçou uma gargalhada tão intensa que ambos escutaram o eco da risada no bosque.

? Esse é o meu apreço por você desde que me salvou a vida. ? William se mantinha de pé a curta distância da mulher. Ela, ao ver que tinha a intenção de avançar para onde estava, começou a perambular de um lado para outro.

? Não me conhece, sua Excelência. Não me conhece e não pode fazer uma conjectura depois de um ato de piedade. Qualquer ser humano que tivesse passeado pelo bosque e encontrasse uma pessoa ferida gravemente teria feito o mesmo que eu. Isso não é ser respeitável e nem piedosa ? declarou mal-humorada.

? Pode pensar o que desejar, mas me sinto na obrigação de protegê-la igual você fez comigo. ? Seu tom de voz tinha recuperado a dureza, o julgamento e a irrevogabilidade próprias de seu título.

? Não lhe basta me dar abrigo? Não lhe parece que viver em uma casa que lhe pertence já é bastante amparo? ? Beatrice, até agora se movendo sem parar, girou-se para o homem e o olhou desafiante.

? Não! ? Exclamou o duque. ? Deixá-la em meio de um nada, desamparada e rodeada de lobos famintos não me parece uma opção acertada!

? Isso é o que lhe preocupa, sua Excelência? Que minha presença aqui lhe faça sentir-se um homem bondoso e que um dia monte em seu precioso cavalo, galope até a cabana e se encontre com um corpo esquartejado? ? Elevou tanto a voz que até ela mesma se surpreendeu do trato que estava oferecendo a um homem de sua classe.

? Preocupa-me, perturba-me, inquieta-me ? disse William caminhando para ela com passo firme e esquecendo a dor constante de sua perna ? que um dia apareça por estas bandas e veja que não fui capaz de cuidar de uma mulher que quase pereceu para me salvar a vida. Parece-lhe acertada minha conjectura, senhorita Brown?

Estavam tão próximos que se o homem estendesse sua mão útil poderia tocar as costas feminina, puxá-la para ele e abraçá-la com força. Porque podia ter sido um calhorda, um ser sem coração, sem humanidade, mas reconhecia quando uma pessoa precisava sentir o afeto de outra. Tinha acontecido a ele mesmo e acontecia nesse momento à senhorita Brown. Entretanto, William conhecia a razão de sua desprezível atitude. Agora lhe faltava averiguar o motivo que tinha aquela jovem para não querer saber nada do resto do mundo.

? Está bem ? disse Beatrice depois de um leve silêncio. ? Você quer pagar sua dívida e eu quero que me deixe viver em solidão. Então pagará sua dívida se me conceder esse desejo.

? Quer que ninguém a incomode? Essa é a sua petição? ? William franziu o cenho e apertou a mandíbula.

? Sim, isso é o que anseio ? afirmou em um tom mais tranquilo e olhando para o chão.

? Se ficar só e desprotegida é o que deseja, isso é o que obterá. Bom dia, senhorita Brown. ? Golpeou as botas pelos calcanhares, abaixou uns centímetros à cabeça e se dirigiu ao cavalo.

Tinha tanta raiva em seu corpo, encontrava-se tão alterado, que aquele estado de enfurecimento lhe deu a força necessária para agarrar as rédeas do cavalo e subir sem ajuda. Jogou uma última olhada à Beatrice e açulou com tanta intensidade o animal que avistou seu lar antes do esperado.


IX


? O senhor quer lhe ver na biblioteca. ? Mathias, o cavalariço correu para a casa, para explicar ao mordomo o que tinha acontecido depois da chegada do senhor, fazia poucos minutos.

? Como que não requereu os meus serviços para desmontar? ? Perguntou inquieto Brandon.

O que lhe contava o jovem estava deixando-o atônito. A forma habitual de atuar, era esperar ao senhor com a bengala na mão e que este se apoiasse na vara de madeira para subir com segurança as escadas da residência. Entretanto, o moço lhe informava que desceu ele mesmo do cavalo e que não precisou requerer o auxílio de nenhum criado, posto que acessasse ao interior da casa sem mostrar dor ao caminhar.

? Como lhe digo, senhor Stone. Quando agarrei as rédeas de Corsário, nosso duque me deixou muito claro que desejava vê-lo o antes possível nessa estadia ? explicava com certa excitação.

? Que comportamento diz que tinha nosso senhor? ? Hanna, muito atenta ao bate-papo, interrompeu-lhes.

? Encontrava-se muito agitado. Acredito que também bastante zangado ? respondeu Mathias.

? O que lhe terá acontecido? ? Disse a mulher ao mesmo tempo em que retomava ao trabalho.

? Está bem, pode voltar para as cavalariças ? indicou Brandon desejando saber o que rondava pela cabeça de sua esposa.

Tinha notado o leve sorriso da cozinheira e esperou com impaciência que o jovem se afastasse o suficiente, para que não pudesse escutar a conversação. Caminhou para ela, apoiou-se na mesa central e, depois de observá-la uns instantes cortando verduras, perguntou-lhe:

? O que ronda nessa sua cabeça?

? A mim? ? Respondeu abrindo os olhos como pratos e elevando as grisalhas sobrancelhas. ? Nada, não penso nada.

? Não minta, Hanna. Conheço cada gesto que faz quando sua mente não para de refletir. Vamos ver... o que você crê que pode ter perturbado a paz que o nosso senhor teve durante estes dias?

? Não me acusa sempre de ter uma percepção errônea do mundo? – Cruzou os braços e franziu o cenho.

? Quer que lhe suplique isso? Quer que me ajoelhe como o fiz para poder dormir de novo em nosso leito? ? O semblante de Brandon mostrava desconcerto e um pouco de tristeza.

? Se não fosse tão severo, você mesmo acharia a resposta ? indicou com tom suave e quente.

? Hanna, por favor...

? Se tem tanto interesse, explicarei-lhe isso. Mas não me acuse de ter alucinações ou pensar extravagâncias. ? Esperou que seu marido replicasse, mas ao vê-lo tão calado e confuso decidiu lhe expor a ideia que tinha já há uns dias, mais exatamente desde que o duque retornou do incidente, rondando em seu cérebro. ? Se retroceder um pouco no tempo dar-se-á conta de que lorde Rutland sempre levou o cabelo perfeitamente cortado. Em mais de uma ocasião comentou que não entendia como um homem podia pentear-se como uma mulher, não é? ? Brandon assentiu. ? E de repente um dia, disse ao seu ajudante de câmara que não lhe cortasse o cabelo e deixasse que seu rosto se cobrisse de escuridão. Lembra-te quando foi?

? Dois meses depois de celebrar o duelo ? respondeu com rapidez.

? Em efeito, e a razão foi...?

? Queria tampar a cicatriz. Imagino que pensou que desta forma deixariam de murmurar sobre o acontecido.

? Pois eu penso que se deveu à repulsão que encontrou nos rostos daquelas mulheres que antes o admiravam. Resultou-lhe muito duro passar de ser um homem elegante e formoso a uma espécie de monstro ao qual ninguém desejava contemplar.

? Nosso duque não pode ser tão banal, querida! ? Exclamou antes de esboçar uma gargalhada.

? Bom, essa é uma ideia muito típica de um homem, catalogar certos aspectos importantes como banais. Entretanto, se pensasse do ponto de vista de uma mulher, descobriria que não é tão desatinado. Pensa um pouco querido e una os acontecimentos. Por exemplo, desde quando nosso senhor necessitou os serviços de uma cortesã?

Brandon deixou de sorrir e franziu o cenho enquanto meditava a resposta. As hipóteses de Hanna pareciam ter um pouco de sentido. Embora ele conhecesse o homem desde que nasceu e jamais tivesse deduzido que a opinião que possuíam as mulheres sobre ele poderia lhe afetar tanto.

? Imagino que esse olhar é a resposta à minha pergunta ? manifestou a mulher depois de observar como seu marido entrecerrava os olhos.

? Só estou pensando...

? Pois segue pensando, meu esposo, segue pensando... ? agora era ela quem sorria ao ver o desconcerto que suas palavras ocasionavam ao seu cônjuge. Devia sentir-se confuso, posto que ele sempre se gabasse de conhecer à perfeição a sua Excelência, mas havia certos temas que lhe escapavam.

? O que tem a ver tudo isso com a atitude estranha que hoje teve sua Excelência?

? De verdade que não pode suspeitar o que ocorreu?

? Não, Hanna. Não sei o que pôde acontecer. O único que te posso dizer é que esta manhã decidiu visitar a moça para lhe perguntar por que recusou os convites que lhe ofereceram.

? Pois está muito claro, Brandon. Ela não quer vir a Haddon Hall e muito menos quando a tratou pior que a um cão pulguento ? indicou zangada.

? Como queria que a tratasse? Se por acaso não o recorda, ela se ofereceu como cortesã e depois do maldito serviço e de lhe pagar uma boa soma de moedas, o duque me informou que lhe negasse a entrada de novo.

? Mas lhe salvou a vida! ? Exclamou irada. ? Além disso, ele não sabe que ela... ? ficou em silêncio pensando se cabia a possibilidade de que o duque tivesse descoberto a verdade. Mas o negou com veemência, se seu sexto sentido não lhe desapontava, a jovem jamais lhe confessaria o acontecido àquela noite.

? Hanna! ? Chamou Brandon ao vê-la calada e refletindo algo que parecia entristecê-la.

? O jovem duque pediu, após retornar à casa que lhe recortassem a barba e que fizessem desaparecer o extenso cabelo, não é? ? Alterou a consciência para a direção que tinha tomado à conversação.

? Certo.

? E não perguntou a que se devia essa mudança de opinião? Porque o único que tinha acontecido foi que uma moça desconhecida o lavou, curou-lhe as feridas e, além disso, percorreu um comprido trajeto para nos informar sobre seu paradeiro. Sem esquecer que depois, o duque nos comentou que havia uma manada de lobos oculta no bosque e que era perigoso passear por ele.

? Certo, está me dizendo que a jovem pôs em perigo sua vida para salvar a de nosso senhor, mas isso não responde à pergunta de por que sua Excelência decidiu seguir os conselhos do doutor para se curar com prontidão, nem essa insistência em fazer desaparecer a espessa barba e cortar o cabelo ? explicou exasperado cruzando seus braços no peito.

? De verdade que não é capaz de entendê-lo? ? Perguntou elevando um pouco a voz ao sentir-se tão frustrada.

? Não, não sei aonde quer chegar com as hipóteses que me explica.

? OH, querido! Por que não abandona esses pensamentos repletos de lógica e deixa que se expresse seu coração? ? A mulher se aproximou de seu marido, apanhou o rosto deste entre suas mãos e o olhou com ternura.

? Meu trabalho exige utilizar à lógica. Possivelmente a desenvolvi mais do que outras pessoas.

? Deduzo então que não tem nem ideia do que poderia pedir o duque quando aparecer ante ele, não é?

? Pode pedir qualquer coisa...

? Pois eu vou me deixar levar pelo que me dita o coração, e este me diz que te ordenará realizar algo dessas coisas que fazem os homens poderosos para deixar a jovem vivendo na cabana o tempo que desejar. ? Aproximou-se dos lábios de seu marido e lhe deu um pequeno beijo.

? Isso que diz é uma loucura e segue sem me explicar por que retornou tão enfurecido após visitá-la.

? Querido meu, nosso duque está acostumado a ordenar e que todo mundo acate seus mandatos. Se essa jovem for tão teimosa como acredito que é, não terá aceitado a proposição que tinha pensado para ela. Daí esse mau humor. Agora, em vez de ficar estorvando em minha cozinha, vai e comprova se os pensamentos loucos de sua esposa não são certos. ? Apartou-se, dirigiu-se para os fogões e começou a mover a comida que serviria em breve.

Brandon a observou durante uns instantes, ao mesmo tempo em que meditava sobre as conclusões que lhe tinha dado, pareciam muito sensato, mas estava seguro de que não eram corretas. O duque deveria ter outro tipo de razões para mudar seu comportamento com tanta rapidez e, embora sua esposa expusesse como se fosse o mais normal do mundo, sua Excelência não podia sentir nada por uma mulher assim. Era certo que lhe devia a vida, mas podia recompensá-la com outra bolsa de moedas. Se a oferecesse ela a aceitaria de bom grado, igual fez na última vez. Jogou uma olhada às costas de Hanna e depois de respirar com intensidade dirigiu-se para a biblioteca, o lugar onde o duque lhe esperava.


William perambulava de um lado para outro sem notar a dor insistente da perna. Estava tão zangado, encontrava-se tão furioso, que nem a dor lhe impedia de mover-se como desejava. De repente, ao descobrir que as cortinas da janela estavam amarradas aos ganchos metálicos, aproximou-se dela e ficou observando o exterior. Até esse momento não o tinha apreciado como era devido, sempre lhe pareceu um lugar cheio de vida, aprazível e, é óbvio, seguro ante qualquer adversidade. Entretanto, depois da desafortunada visita à senhorita Brown, toda aquela percepção desapareceu para dar passo a uma menos serena. Elevou o olhar e o cravou no arvoredo que começava a finalizar no imenso jardim. Ali, ao amparo da abrupta natureza, encontrava-se um perigo importante, mais do que se imaginou alguma vez.

? Mulher teimosa! ? Exclamou com energia antes de girar-se sobre seus calcanhares e dirigir-se para as garrafas de bebidas colocadas sobre uma cômoda.

Pegou o copo, encheu-o de brandy e, justo quando iria dar o primeiro gole, sopesou se beber até cair era o mais acertado. Depois de meditá-lo depositou o copo sobre a superfície de madeira encerada e caminhou por volta de uma das poltronas, não seria apropriado que ordenasse uma coisa tão importante ao Brandon em um estado péssimo de embriaguez. Devia mostrar serenidade, retidão e solidez porque do contrário seu mandato seria desprezado.

Levou a mão ao bolso de seu colete e tirou o relógio. Tinha entrado na biblioteca há quase quinze minutos e o mordomo ainda não tinha feito ato de sua presença. Ficou de pé de novo e, franzindo o cenho, deu vários passos para a porta com a intenção de ir buscá-lo ele mesmo. Antes de aproximar-se da saída, Brandon pedia permissão para entrar.

? Excelência ? disse o homem ao mesmo tempo em que realizava uma ligeira inclinação. ? Desejava ver-me?

? Solicitei sua assistência faz quinze minutos, a que se deve a demora? ? Perguntou zangado.

? Minhas desculpas, meu senhor. Houve um problema na cozinha e tive que resolvê-lo sem demora ? explicou.

? Aconteceu algo à senhora Stone? ? Perguntou um pouco mais acalmado.

Hanna se tinha convertido, com o passar dos anos, em uma mãe para ele. Desde que tinha memória recordava que os beijos, os abraços e os consolos que necessitou em sua infância sempre os ofereceram ela. A mulher também evitou em várias ocasiões que seu pai lhe pusesse o traseiro avermelhado depois de fazer, tanto ele como Lausson, uma ou outra traquinagem.

? O mesmo de sempre, meu senhor. Discutimos se deve acrescentar mais verduras ao menu do dia ? indicou.

Esperava que aquela desculpa lhe contentasse e deixasse de lhe interrogar por que se fosse assim, ele não poderia continuar mentindo. Ao ver que os ombros do duque se relaxavam e que mostrava um leve sorriso na comissura dos lábios, Brandon inspirou profundamente e deu graças a Deus por sua benevolência.

? Hoje parece que o sexo feminino está inquieto... ? comentou enquanto retornava à poltrona para sentar-se. Nesse instante, ao entender que não era o único homem que tinha sido atacado esse dia por uma mulher, começou a relaxar-se e a perceber, com mais intensidade, as cãibras terríveis que emitia a perna machucada.

? Como diz? ? Quis saber Brandon ao não entender muito bem o comentário do duque.

? Nada. Foi só uma consideração. ? Reclinou-se no assento e apertou os dentes ao notar aquela incessante dor.

? Posso lhe perguntar, sua Excelência, o que deseja? ? O mordomo ao observar como a testa de seu senhor se enrugava com força, deduziu que estava padecendo de suas terríveis dores.

Sorriu sutilmente ao pensar que Hanna se equivocou com suas especulações. Sem lugar a dúvidas o duque demandava sua presença porque precisava ser atendido por sua dor.

? Quero que faça chamar o senhor Gibbs, que venha à Haddon Hall o antes possível ? apontou com calma ao mesmo tempo em que movia devagar a perna machucada.

? O senhor Gibbs? ? Perguntou surpreso antes de morder o lábio por sua falta. Não era ele quem podia exigir explicações.

? Sim ? respondeu William evitando a inquietação do mordomo.

Sabia que chamar seu administrador causaria alguma incerteza sobre o serviço. A última vez que o fez foi para ceder à sua mãe a residência que tanto ansiava e lhe oferecer a soma que demandava depois da morte de seu pai. Entretanto, desta vez era diferente. Um dos bens obtidos por herança iria às mãos de uma mulher bondosa que sim o merecia, uma mulher que lhe tinha salvado a vida, não como no caso de sua mãe, destruido-a. ? Preciso falar com ele o antes possível, tenho que fazer constar certas mudanças legais... ? girou-se para o fogo, contemplou-o durante uns instantes e ao dar-se conta de que Brandon seguia na estadia moveu com suavidade a cabeça para ele: ? Acontece algo?

? Não, senhor, só me preocupo com você. Esperava que sua chamada se devesse ao interminável padecimento que sofre em sua perna do tropeção. Conforme fui informado pelo criado, você mesmo desceu do cavalo depois do passeio que realizou pelo bosque ? disse entre desculpas. Esperava que o duque não fosse capaz de perceber a insistência para averiguar o que pretendia.

? Já sabe que fui visitar a senhorita Brown ? comentou William entreabrindo os olhos.

? Em efeito, e conseguiu que finalmente aceite sua proposição? ? Insistiu sem mostrar em seu rosto a importância que lhe provocava conhecer a verdade. Se este dizia que não, ao final teria que humilhar-se de novo ante sua esposa porque, outra vez, estaria certa.

? Não, não a aceitou. Decidiu comprazer meu desejo de responder à sua piedade ? falou com raiva – rogando-me que a deixe desamparada naquele lugar miserável.

? Quer viver em uma propriedade que não lhe pertence? ? Soltou sem pensar.

? A questão não é se deseja viver na cabana de caça, mas sim o que pretende a senhorita Brown é lutar dia a dia só, ante a adversidade e periculosidade de um lugar tão inóspito ? explicou apertando a mandíbula.

? Não lhe ofereceu uma bolsa de moedas? Possivelmente isso lhe tivesse mudado...

? Senhor Stone! ? Gritou William zangado. ? Acredita que a mulher que pôs em perigo sua vida para salvar a minha merece esse trato tão depreciativo?

? Sinto muito, Excelência ? manifestou abaixando a cabeça e cravando o olhar no chão. ? Desculpe minhas palavras, mas tem que compreender que se a senhorita Brown tiver decidido alojar-se em um lugar repleto de perigos e esta vontade lhe causa inquietação, eu devo cuidar da sua saúde.

? Esquecerei seu comentário porque tanto você como a senhora Stone são as únicas pessoas às quais considero família. Além disso, entendo que essa atitude inapropriada é como bem diz, para seguir me protegendo, mas nunca volte a se intrometer neste tema. O que a senhorita Brown e eu combinamos se cumprirá.

? Sim, senhor. É óbvio. Agora mesmo direi a um dos criados que se dirija até o lar do senhor Gibbs e lhe faça saber que você deseja vê-lo o antes possível. ? Brandon jogava uns passos para trás sem levantar a cabeça. Não parava de meditar sobre o desejo do duque, a amalucada hipótese de sua esposa e o que esta riria quando lhe narrasse à conversação.

? Necessito de uma coisa mais... ? assinalou antes que o ancião partisse. Brandon elevou o semblante e o observou com atenção. O jovem olhava para as intensas chamas da fogueira. Contemplava-o com tanta ferocidade que podia ver de onde estava como o fogo se projetava nos seus olhos. ? De todos os que trabalham para mim, ? prosseguiu em tom firme ? há alguém que tenha sua mais absoluta confiança? ? Ante o desconcerto que mostrou o criado, William continuou: ? Tenho mil dúvidas sobre a senhorita Brown e necessito que alguém me ofereça informações sobre ela.

? Mas, milord, por onde começaremos? ? Brandon abriu tanto os olhos que quase saltaram do rosto. O que estava pedindo o duque era uma tarefa impossível de concluir. De onde procedia? Que lugares visitou antes de refugiar-se na cabana?

Então sentiu que o coração paralisava. Possivelmente as únicas pessoas que sabiam algo da jovem eram sua esposa e ele, embora, como era lógico, evitaria lhe informar sobre isso. Entretanto, Hanna tinha descoberto algo que não cessava de lhe rondar a cabeça e, visto o pedido do duque, talvez indagasse mais sobre isso.

? Brandon! ? Exclamou William ao observar a palidez do rosto deste.

? Sinto muito, sua Excelência, estava meditando sobre a pergunta que me realizou ? mentiu e voltou a pedir piedade a Deus.

? E? ? Insistiu.

? Neste momento a única pessoa em que confio, além de em minha querida esposa, é no Mathias, o cavalariço. Sei que é muito jovem e talvez não consiga abandonar as cavalariças para lhe servir no interior da casa, mas é mais fiel do que um cão e mais calado que um mudo ? disse com solene segurança.

? Bom, pois pedirá ao jovem que averigue tudo o que possa sobre o sobrenome Brown. Se minhas conjecturas não forem errôneas, não deveria viver muito longe, do contrário não conheceria este lugar.

? Pensou meu senhor, que poderia não ser seu verdadeiro sobrenome? Parece-me estranho que uma jovem abandone seu lar, deseje apartar-se de todo ser humano, dita viver sozinha o resto de sua vida e responda com sinceridade ao lhe perguntar por seu nome. ? Brandon não queria que o duque se frustrasse se não achasse o que procurava. Se lhe aturdia tanto uma mera visita a jovem, o que aconteceria se o que encontrasse não fosse de seu agrado?

? Que o jovem se dirija para Rowsley, avise ao senhor Gibbs e comece a indagação entre os aldeãos. Se minha intuição não me falhar, embora a senhorita Brown não seja daí, tem que conhecer alguém desse lugar. De que outra forma ela adquiriria os animais que cuida e seu alimento? ? Explicou com aparência firme. Entretanto, a conjetura do ancião não cessava de lhe golpear a cabeça.

Era certo que, quando lhe perguntou por seu nome, Beatrice soltou-o sem pensar, mas seu sobrenome o disse com certo temor. Caberia a possibilidade de ter sido enganado? E se era assim, por quê? Aqueles pensamentos só aumentavam sua ânsia de averiguar quem era aquela jovem e por que, de tudo o que pôde lhe pedir, rogou-lhe ficar sozinha.

? Se sua Excelência não tiver nada mais que me dizer, agora mesmo falarei com o criado para que comece o antes possível com seu novo trabalho.

? Deixe-lhe bem claro que não deve falar com ninguém disto ? acrescentou.

? É óbvio. ? Depois de despedir-se como era devido, Brandon saiu da biblioteca e se dirigiu com passo firme para a cozinha.

Deveria explicar à Hanna o acontecido. Deixaria que se vangloriasse de seu triunfo e, depois do bate-papo que obteria sobre quão inteligente era e o pouco que a valorava, pediria-lhe que recordasse com exatidão aquilo que tanto lhe chamou a atenção na jovem. Possivelmente essa era a pista que deveriam seguir porque, se não estivesse equivocado, o sobrenome, o ter estado com outros homens, o proceder de uma família de camponeses e tudo aquilo que relatou à sua benevolente esposa era mentira.


X


O frio era tão intenso que atravessava toda a pele até alcançar os ossos. Beatrice tentou avivar um pouco o fogo, mas sem troncos para jogar sobre as brasas, não podia conseguir uma grande proeza. Abraçando-se com força e esfregando os braços de cima a baixo, aventurou-se a abrir a porta para confirmar que no galpão de lenha não havia nenhum triste ramo para lançar à chaminé. Em efeito, sobre o chão não havia nada. Tinha gasto tudo o que compilou até a volta dos lobos, e agora lhe dava um medo atroz sair como outras vezes a procurar alguma árvore caída para poder arrastar até ali. Era perigoso. Eles a vigiavam. Cada vez que saía, cada vez que caminhava ao redor da cerca podia sentir aqueles olhos diabólicos cravando-se em seu corpo. Eram incansáveis, mais do que tinha imaginado. Inocentemente tinha pensado que, assim como na primeira vez, voltariam a partir. Mas esta ocasião era diferente, agora tinham comida perto, só deviam esperar o momento apropriado para atacar e encher seus estômagos.

Zangada, fechou a porta e se deitou sobre o leito. O único a fazer até que chegasse o novo dia era deitar-se e cobrir-se com as colchas compradas no povoado. Agasalhada com aqueles objetos, acomodou a cabeça no almofadão e olhou ao teto. Estava cansada de lutar, de sobreviver dia após dia. O que em um princípio lhe pareceu a melhor opção para aguentar aquele desastroso sofrimento, nesses momentos não a convencia. Achava-se no meio do nada com comida suficiente para alimentar-se, mas impossível de cozinhar pela falta de fogo. Levava dias roendo verduras recolhidas da terra, tentando esquentar caldos que não terminavam de ferver, e sentia cada vez mais frio.

Levantou as mãos para seu rosto e observou que já não eram de cor rosada, começavam a ser malvas e isso não era bom sinal. Colocou-as sob as mantas e as esfregou com os lençóis para fazê-las entrar em calor, mas apesar do esforço mal notou melhoria. Resignada pelo terrível final que começava a chegar, girou-se para a direita. Dali podia contemplar a brilhante e reluzente lua. Aquela noite era a segunda vez que a via desde a partida do duque zangado e aceitando sua única condição. Beatrice suspirou profundamente ao recordá-lo. Não sentia compaixão nem afeto por esse homem, mas pensava nele de vez em quando e como em certos momentos lhe pareceu perceber que desejava aproximar-se e abraçá-la. Teria gostado se o fizesse. Apesar da fúria que a invadia ao rememorar a atitude autocrata mantinha quando seu pai lhe pediu ajuda, teria aceitado seu abraço de bom grado. Fazia muito tempo que ninguém a consolava, fazia muito tempo que não apoiava sua cabeça no ombro de uma pessoa e se consolava entre lágrimas. Entretanto tinha tomado uma decisão e se ele a houvesse visto débil ou aflita não lhe teria concedido seu desejo.

Voltou a mover-se na cama de armar, virou-se para o outro lado, cobriu-se até a cabeça e tentou dormir. Precisava descansar, precisava afastar-se do lugar onde vivia embora fosse somente em sonhos.

Beatrice sonhava que estava junto à sua mãe, que tagarelava sem cessar sobre a próxima celebração a que deviriam assistir. Seu tom era doce, quente, porque sabia que ela não aceitaria de bom agrado em assistir de novo a um evento cheio de homens pomposos e de mulheres orgulhosas pelas joias penduradas em seus pescoços. Zangada, depositou o bastidor sobre a cadeira que tinha junto a ela e se levantou do assento.

? Não pode me obrigar a isso, mãe! ? Bramou irada.

? Não é uma obrigação, é um acontecimento social ao qual deve assistir ? indicava com calma.

? Acaso essa descrição não é o mesmo que me forçar a realizar algo que não desejo? ? Arqueou as sobrancelhas e colocou as mãos na cintura.

? Eu não observo tal apreciação, senhorita, e em seu lugar sentiria-me adulada de ser convidada por um homem tão...

Um horripilante ruído a sobressaltou, despertando-a bruscamente do sonho. Apartou os lençóis e caminhou para a janela para tentar descobrir o que ocorria no exterior.

? Meu Deus! ? Gritou com força ao observar a cena mostrada na escuridão noturna. Sem pensar duas vezes correu para a porta e agarrou com força o pau que pendurava sobre a parede de pedra. ? Malditos sejam! Deixem-nos em paz! ? Continuou vociferando.

Os alaridos de seus animais eram insanos. Beatrice, ignorando o medo que a invadia, avançou sem titubear para o pequeno terreno onde se encontravam as ovelhas, as galinhas e os quatro porcos. Estes gritavam de terror. Uns tentavam fugir das garras de seus assassinos, outros jaziam no chão agonizando. Elevou a vara e começou a atirar golpes aos causadores daquele massacre, mas nenhum deles se voltou para defender-se. Parecia que não lhes importava sua presença, como se seus ataques não fossem perigosos.

Enquanto tentava que parassem de aniquilar tudo, notou o escorregar de lágrimas por suas bochechas e o som de seus próprios gritos retumbando em seus ouvidos. Pouco a pouco suas forças foram diminuindo, possivelmente se reduziram com mais rapidez quando observou atônita e impotente como os lobos apertavam com força suas mandíbulas nos pescoços dos desprotegidos animais e os arrastavam para o interior do bosque.

Em estado de choque foi caminhando para trás. Queria resguardar-se na cabana porque, até o momento, eles tinham decidido não a atacar. Sem soltar o pau girou-se com brutalidade e subiu os quatro degraus de pedra que a conduziriam até sua guarida. Estava a ponto de alcançar o objetivo quando sentiu a espetada de umas adagas rasgando a carne de sua pantorrilha. Ao mover a cabeça para a direção de onde procedia a imensa dor observou uns olhos escuros e uma pelagem cinza. Era o lobo que a espreitava, que a atemorizava com seus intensos uivos.

Sem pensar elevou o pau e lhe golpeou com força no focinho. Os dentes do animal se cravaram ainda mais em sua perna, fazendo-a gritar com tanta força que ficou exausta. A besta, ao sentir o dano, abriu a boca e a soltou, momento que aproveitou para correr para o interior da casa, fechar a porta e apoiar as costas sobre ela. Escutou o caminhar da fera. Rondava pelos arredores da cabana tentando encontrar um oco para acessar e finalizar seu propósito. Entretanto, as janelas estavam seladas, salvo se saltasse e rompesse o cristal, a atroz besta não poderia acessar.

Conforme passava o tempo e compreendia que estava a salvo, suas forças foram se desvanecendo e começou a escorregar pela folha de madeira até seu traseiro se apoiar no chão. Seus olhos começaram a oferecer uma imagem distorcida da cozinha. Sentia uma terrível queimação na perna e notava o palpitar de seu coração nela. Tentou levantar-se. Tentou fazê-lo. Mas foi impossível. Estava débil, ferida e sem vitalidade. Tinha chegado seu fim. Percebia como a vida partia em cada gota de sangue que emanava de sua perna. Quis voltar a chorar, embora não lhe brotassem mais lágrimas. Só pôde fechar os olhos e deixar chegar seu último suspiro.


William mal tinha conseguido dormir. Cada vez que o tentava, um horrível pesadelo o fazia abrir de novo os olhos. Esgotado por lutar contra sua própria vontade, levantou-se da cama e se colocou sobre a poltrona que se encontrava ao lado desta. Não entendia com claridade seu pesadelo. Mal tinha inquietações em sua vida cotidiana para sentir-se daquela forma. O mais incômodo para ele tinha sido visitar todos os que apareciam em sua casa, momento que aproveitava para indagar sobre a senhorita Brown. Embora nunca achasse a resposta que desejava. Não entendia como uma tarefa tão singela estava se convertendo em um tremendo calvário.

Durante as semanas seguintes à conversação com a moça, o jovem a quem Brandon tinha encomendado a tarefa de procurar algum dado sobre Beatrice, não encontrou nada salvo a um casal de anciões que se apelidava igual e, que conforme contaram ao criado, não tinham podido engendrar nenhum descendente para continuar com seu legado. O duque sopesou, depois de obter aquela informação, que a ideia do engano não era tão descabelada, mas a descartava cada vez que pensava nela, que propósito tinha para lhe mentir? Ela não sabia quem era até que ele mesmo o comentou. Aquilo não tinha sentido, a menos que fosse uma criminosa fugindo de uma sentença proferida e pensasse que ele, ao ter um importante cargo da nobreza, entregá-la-ia. Mas também rechaçou essa ideia porque se a jovem tivesse cometido um crime e se escondesse no lugar mais recôndito do planeta para viver em liberdade, não teria arriscado sua vida para salvar a de um desconhecido.

Levou a mão ao queixo e acariciou o espesso pêlo que tinha deixado crescer de novo após compreender que ninguém mais voltaria a observá-lo com normalidade. Ninguém exceto ela.

Aturdido por seu inexplicável desassossego, levantou-se do assento e se dirigiu para o balcão. Apesar do tempo gélido, abriu as janelas e caminhou pelo terraço. O amanhecer oferecia uma bonita e estranha luz que, ao iluminar os hectares do arvoredo onde habitava a moça, davam-lhe um matiz menos sinistro. Mas o perigo espreitava constantemente, sobretudo aquela noite. Tinha ouvido-os durante as horas nas quais esteve acordado e em mais de uma ocasião sentiu medo, apesar de encontrar-se resguardado na mansão.

No silêncio que oferecia a chegada do crepúsculo, uns incessantes uivos e gemidos retumbaram em sua habitação como se estes se aproximassem de sua janela. Estava seguro que tal revôo se devia a que a manada tinha estado caçando. Então, como se sua mente lhe mostrasse a imagem de um quebra-cabeça completo, correu para sua habitação, abriu a porta e começou a gritar o nome de seu mordomo.

? Sim, sua Excelência? ? Brandon aparecia em meio a se vestir. Sua respiração era agitada, as mãos trementes não acertavam colocar corretamente na casa os botões de seu uniforme.

? Faça com que preparem o antes possível uma carruagem! Quero o cavalariço como cocheiro e a este na parte de trás com uma arma carregada. Diga-lhes que partiremos para o refúgio de caça assim que estejam preparados.

? O que ocorre, milord? ? O senhor Stone não saía de seu assombro. A princípio acreditou que o duque se levantara no meio de um sonho alterado, mas ao observá-lo tão lúcido, soube que aquilo não era a consequência de um pesadelo.

? Faça o que te ordeno! – Gritou com tanto ímpeto que o eco de sua voz se escutou em todos os corredores da mansão.

? Agora mesmo, meu senhor. Digo ao seu ajudante de câmara que vá à sua habitação?

? Está demorando muito! ? Clamou ao mesmo tempo em que retornava ao seu dormitório e tentava tirar-se ele mesmo a camisola com o qual dormia.

Como não o tinha pensado antes? Como não tinha sido capaz de descobrir o que seu interior lhe indicava? Irado, golpeou com força o colchão de plumas ao imaginar que, se suas conjeturas fossem certas, já seria muito tarde. Nesse momento, depois de atirar vários murros ao inerte colchão, levantou seu olhar para o teto e fez algo que não tinha feito desde menino: rezar.

Tal como tinha desejado, a carruagem lhe esperava na entrada da mansão. Desceu os degraus sem a ajuda de Brandon, que corria atrás dele se por acaso em algum momento pedisse sua ajuda. Mas era tanta a ira que movia seu corpo, tanto desespero por averiguar o que se temia, que se introduziu no interior do veículo de um salto. Apoiou a cabeça no respaldo acolchoado e observou a paisagem que percorriam a grande velocidade. Tinha sido um acerto colocar o jovem Mathias como condutor posto que, ao conhecer as possibilidades dos cavalos que cuidava, tinha selecionado os mais rápidos e graças a isso não demorou muito em divisar os arredores da cabana. Ao aproximar-se sentiu como sua garganta o sufocava e seu coração desacelerava incapaz de afastar o temor de sua mente. De repente escutou um som, e o coche parou abruptamente.

? Deus santo! ? Ouviu o cocheiro exclamar. — Isto foi obra do próprio diabo!

William saiu apavorado do veículo. Assim que dirigiu o olhar para o cenário que seus homens contemplavam atônitos, deixou de respirar. A cerca estava destroçada, os fracos arames que rodeavam a suja cabana atirados no chão, dobrados e quebrados. Todo o terreno que rodeava a cabana estava cheio de partes de carne e sangue, muito sangue. Avançou um pouco mais sentindo ao seu lado o criado e o cocheiro, o qual sujeitava sua arma com firmeza.

? Que diabos aconteceu aqui? ? Perguntou estupefato um deles.

William não distinguiu quem fez a pergunta, sua mente se concentrava em averiguar qual desses pedaços podia ser uma parte de Beatrice. Continuou avançando, pisando em plumas ensanguentadas, partes de pele e ossos cobertos de tendões mordidos. Não havia vida naquele lugar. O silêncio indicava que a morte tinha devastado qualquer possível fôlego. Fixou a vista na porta da entrada. Estava fechada. Teria se resguardado antes do ataque? Poderia estar sã e salva? Ansioso por conhecer as respostas, deixou para trás os dois homens e se aproximou da entrada. Ao estar tão perto contemplou o desenho que tinham deixado umas ferozes garras. Não soube que seu corpo permanecia encolhido e que tremia até dirigiu sua mão para a porta e empurrá-la. Antes que esta tocasse a danificada madeira, entrou-lhe a dúvida e se encheu de desespero. Se na casa se encontrava a mesma cena que havia no exterior, não se recuperaria jamais do acontecido, posto que o único culpado daquele horror tivesse sido ele.

? Sua Excelência, deixe que seja eu quem a abra. Se dentro houver algum desses mal nacidos que massacraram estes pobres animais, encherei-o de chumbo ? comentou com firmeza o cocheiro.

William queria negar-se, mas não pôde. O homem tinha razão. Como lutaria contra a ferocidade de um lobo com uma só mão? Resignado por sua incapacidade, permaneceu imóvel enquanto observava como o servente direcionava sua arma para a porta e tentava abri-la.

? Está pesada! ? Gritou após vários intentos falhos. ? Mathias, olhe por essa janela para ver se consegue descobrir o que me impede entrar ? ordenou ao jovem que não cessava de olhar para trás e sussurrar algo sobre o mal e as atrocidades provocadas pelo demônio.

O jovem se aproximou do cristal com passo lento e inseguro olhou através dele dobrando a cabeça de um lado para o outro procurando um ângulo com maior visibilidade. Finalmente apoiou sua mão direita na testa como se fosse a viseira de uma boina e gritou:

? É algo pequeno! Está sobre o chão. Acredito que... Deus santo bendito, aí há alguém!

? Abre-a! ? Exigiu William mais assustado que nunca.

? Terei que golpear com força e poderia... ? começou a explicar o homem.

? Abre-a! ? repetiu com mais vigor ainda.

O cocheiro jogou uns passos para trás para tomar impulso e colocando seu ombro para frente, empurrou a porta com toda a energia que tinha. Não foi muito o que obteve, mas o suficiente para acessar o interior.

? É uma mulher! – Exclamou. ? É uma mulher! ? Repetiu agitado. ? Graças a Deus, parece que ainda respira!

William não pôde ficar ali fora observando. Caminhou para o interior da casa e quando contemplou Beatrice nos braços do homem, quis lançar-se sobre ela e abraçá-la ele mesmo.

O rosto da moça estava pálido e os braços lhe penduravam frouxos para o chão, o sangue, de cor escura após secar-se, cobria o vestido e as pernas. Era a viva imagem da destruição que ocasionava a morte em um ser humano.

? Deite-a no interior da carruagem! ? Gritou o duque. ? Mathias, crê que só um cavalo pode lavar sem dificuldade o coche? ? O moço afirmou com a cabeça, o pânico que o sacudia lhe impedia de articular uma só palavra. ? Pois desengancha o mais rápido que puder e galopa até Rowsley, necessito que leve o médico a Haddon Hall.

Enquanto o jovem soltava o corcel selecionado, Beatrice era depositada com cuidado sobre o sofá direito da carruagem, na posição adequada para que William a auxiliasse em caso de necessidade. Fechou-a após meter-se no interior e a observou desejando que nesse instante abrisse seus olhos e descobrisse estar à salva, que ele a protegeria, mas o suave e débil respirar lhe indicou que não podiam atrasar-se mais tempo. Levou-se a mão para o botão da capa, tirou-a e cobriu o corpo ferido para lhe dar calor. Ao notar que a carruagem começava a mover-se, sentou-se no chão e foi apartando o cabelo alvoroçado da jovem. Queria lhe ver o rosto, queria observar se continuava respirando, queria que seguisse com vida para ver de novo sua teimosia e determinação.

De repente escutou o relinchar de um dos cavalos e um rápido galope. O criado se afastava para procurar o doutor.

 

 

 


CONTINUA