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A SOLIDÃO DO DUQUE
A SOLIDÃO DO DUQUE

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

XI


Não desviou o olhar dela até que a carruagem parou com brutalidade. William se reclinou para diante devido à brutalidade da freada e sua testa golpeou o assento que tinha diante. Fez uma careta de dor e em seguida o ignorou prestando toda sua atenção nela. Antes de poder girar-se para a porta, esta se abriu com rapidez.

? Meu senhor! ? Exclamou Brandon assustado. ? O que ocorreu?

? Ajude-me a me levantar ? indicou esticando a mão direita. Quando ao fim conseguiu sair do veículo, prosseguiu: ? foi atacada pela manada de lobos. Todos os seus animais pereceram e ela saiu ferida gravemente. No trajeto mal a escutei respirar. Necessito que preparem como é devido meu quarto. A senhorita Brown será atendida ali. Ordenei ao Mathias que traga o doutor...

? Aos seus aposentos? ? Perguntou assombrado o mordomo interrompendo a argumentação do duque. ? Não seria mais adequado...?

? Não discuta minhas ordens ? resmungou com ferocidade. ? Hoje não ? sentenciou.

Brandon fez uma pequena reverência e se afastou correndo para a casa para transmitir as ordens do duque ao pessoal que esperava sobressaltado ao pé das escadas.

? Pelo amor de Deus! ? Exclamou Hanna ao ver a moça nos braços do cocheiro. ? O que aconteceu? ? Sem esperar a resposta deu uns passos para a jovem e ficou frente a ela impedindo que o cocheiro avançasse. Apartou com cuidado as mechas que escondiam seu rosto e, depois de observá-la mais de perto, levou as mãos ao rosto e começou a chorar.

? Foi atacada pelos lobos, senhora Stone ? esclareceu William com certo pesar.

? OH, meu Deus, pobre moça! ? Exclamou entre soluços.

? Necessito de sua ajuda. Ordenei ao senhor Stone que a acomodem em meu quarto, é o maior e mais luminoso. ? Depois de sua exposição olhou à anciã esperando que debatesse sua decisão, como tinha feito com antecedência seu marido, mas no rosto enrugado não encontrou recriminação alguma, feito que lhe satisfizesse. Soube que, como sempre, Hanna era uma boa aliada.

? Lorinne, ? A cozinheira olhava à assustada criada que andava atrás dos passos de seu marido ? prepara vários caldeirões com água quente e recolhe todos os panos que possa encontrar.

William inspirou profundamente ao escutar como a anciã tomava o controle e dava as instruções que ele era incapaz de fazer. A fadiga o debilitava. Havia lhe custado horrores subir os degraus e avançar ao ritmo do homem que levava Beatrice. Dirigiu o olhar para ela e franziu o cenho. Odiava não ser ele quem a segurava entre seu corpo e a conduzisse até o leito. Odiava não poder lhe sussurrar que sob seu cuidado estaria protegida. Como ia afirmar tais coisas se ele era o primeiro que necessitava de ajuda para realizar tarefas tão singelas como alimentar-se? Nesse momento amaldiçoou seu passado, desprezou ao ser que foi, a vida desonesta que tinha tido, o duelo e aborreceu-se de suas inadequadas decisões.

? Sua Excelência... ? escutou a voz de Brandon. Desta vez era muito suave e inclusive tremente, como se tivesse medo de interromper seus pensamentos.

? Sim, Brandon, encontro-me bem. Estarei no salão descansando um pouco enquanto instalam a senhorita Brown. Assim que estiver pronta e o doutor chegar a Haddon Hall quero que me informe.

? É óbvio, senhor. Avisarei-lhe. ? E estendeu algo que tinha segurado desde que a carruagem do duque apareceu no jardim.

? Muito obrigado e perdoa minha atitude. ? Agarrou a bengala e, mancando, caminhou para o salão principal.

Apesar de ter as portas fechadas escutava os criados correrem de um lado a outro. Todo mundo atuava com frenesi menos ele que, depois da minúscula tarefa, devia permanecer sentado na poltrona para poder recompor-se. Levantou a bengala e com vigor golpeou a perna que lhe causava transtorno. Sentiu uma terrível dor, mas não emitiu nem um minúsculo gemido. Merecia-o. Merecia isto e muito mais.

«Deus é justo e ao final toda essa arrogância será seu padecer», havia lhe dito em mais de uma ocasião seu amigo Federith. Nunca tinha meditado naquelas palavras, entretanto, naquele momento não cessavam de aparecer em sua mente. Sim, é óbvio que Deus era justo e lhe estava devolvendo todo o dano que ele mesmo ocasionou a outras pessoas porque, se a senhorita Brown falecesse, se ela não fosse capaz de lutar contra a morte com a intensidade que deveria, ele, o presunçoso duque de Rutland, cairia em um estado apático do qual não despertaria jamais.

Dirigiu o olhar para o fogo e inspirou profundamente. Não entendia como não tinha sido capaz de velar por ela, cuidá-la, salvá-la daqueles monstros. Em vez de indagar sobre a procedência ou o passado de Beatrice, tinha que ter preparado uma batalha contra aquelas feras e as haver eliminado de suas terras porque, por muito que o clérigo lhe informasse que os animais também eram seres do Senhor e que foram criados para executar uma função no mundo, ele podia espantá-los, afastá-los da cabana. Mas não o fez. A tarefa mais singela era rebuscar no passado de uma mulher e não reclamar a ajuda de outras pessoas para que realizassem o trabalho que ele, por si mesmo, não podia fazer.

Apertou com tanta força o punho da bengala que o desenho ficou gravado em sua palma. Sentia-se tão inútil, tão insignificante, que não era capaz de aguentar aquela agonia. Estava a ponto de golpear-se outra vez quando alguém bateu na porta.

? Adiante ? disse depois de colocar o bastão na parte direita da poltrona.

? Sua Excelência, o doutor acaba de chegar ? informou Brandon.

Sem dizer nenhuma palavra mais, agarrou de novo a vara de madeira e caminhou para o hall, onde o doutor lhe esperava.

? Bom dia, Excelência – Saudou-lhe o homem tirando o chapéu. ? Seu criado não me explicou muito, só que necessitava dos meus serviços com urgência. ? Jogou uma rápida olhada ao corpo do duque e entrecerrou os olhos. ? Voltou a sentir dores na perna?

? Bom dia, senhor Wadlow. A chamada não foi por minha causa, e sim para outra pessoa ? esclareceu.

? Há alguém doente? ? Dirigiu o olhar para o senhor Stone procurando uma explicação, mas o mordomo tinha o olhar cravado no chão, sem querer intrometer-se desta vez na conversação.

? Se for tão amável de me seguir conduzirei-lhe até ela ? indicou William adiantando-se ao senhor Wadlow.

Enquanto se dirigiam para a habitação do duque, comentou ao doutor que tinha encontrado a jovem no bosque e que, ao seu parecer, resguardou-se na casa de caça. Também lhe informou que, possivelmente, tinha sido atacada pela manada de lobos que habitava em suas terras. Como era lógico, evitou lhe contar o motivo pelo qual ela se achava naquele lugar e outros pormenores. Quando chegaram em frente à porta, William bateu com suavidade.

? Está preparada? ? Inquiriu à Hanna, a mulher que abriu.

? Sim, sua Excelência ? afirmou.

O duque não pôde apartar o olhar do semblante da cozinheira. Tinha os olhos inchados de tanto chorar e mostrava medo, tanto medo que o transmitiu a ele.

O senhor Wadlow entrou na habitação seguido muito de perto pelo duque e se apressou a aproximar-se da cama. Ele, em troca, permaneceu calado observando a moça. Hanna e a donzela a tinham lavado um pouco e a extensão de suas feridas foi vista com mais clareza.

? As lesões que possui nessa perna têm um aspecto preocupante ? expôs o médico ao mesmo tempo em que deixava sobre um baú a maleta, tirava-se a jaqueta e arregaçava a camisa.

? Senhora Stone, atenda qualquer petição do doutor. Eu esperarei lá fora se por acaso me necessitarem.

Girou-se com lentidão, não sem antes jogar uma olhada ao corpo de Beatrice. Ao vê-la com tão pouca vida, apertou a mandíbula, agarrou com força a bengala e saiu apressado para o corredor.

Escutou a porta fechar-se após sua saída. Também ouviu o doutor ordenar que lhe elevassem o vestido, girassem-na e lavassem aquelas zonas que desejava observar. Em cada mandato, em cada indicação, o senhor Wadlow exclamava palavras de desespero. William fechou os olhos em várias ocasiões e voltou a rezar para que Beatrice tivesse alguma esperança de sobreviver. Não só para fazer desaparecer sua culpa, mas sim porque a ideia de perdê-la o destroçava. Era a única mulher que tinha feito algo por ele depois do duelo, era a única mulher que tinha cuidado do rosto desfigurado e não tinha sentido asco, era a única mulher a quem lhe devia o continuar respirando e ele não foi capaz de lhe cuidar.

? Sua Excelência. ? A voz do doutor o sobressaltou.

? O que necessita?

? Seu consentimento para dar à paciente uma pequena dose de clorofórmio. Preciso operar a perna ferida o quanto antes, senão poderá perdê-la.

? Tem-no ? respondeu com sobriedade. ? Você tem todo o consentimento que precise para ajudá-la.

? Pode enviar outra donzela? As mulheres que estão lá dentro não poderão segurar a moça se ela acordar no meio da intervenção...

? É óbvio, agora mesmo avisarei ao meu mordomo.

O doutor retornou à habitação e William caminhou para o final do corredor para reclamar a presença do senhor Stone. Quando lhe expôs o motivo de sua chamada, este não duvidou em fazer subir a criada adequada para tal função. Era uma mulher imensa. Seus braços eram do tamanho de dois do dele e mal tinha pescoço. Estava seguro de que se Beatrice tentasse levantar-se ela a imobilizaria no ato.

? Siga todas as indicações do doutor ? comentou o duque enquanto ela cravava com firmeza seu olhar no chão.

? Sim, sua Excelência. É óbvio. ? Fez uma reverência e caminhou depressa para o dormitório.

William ficou sentado em uma das cadeiras que havia próximas à porta. Apesar da insistência de Brandon por reconduzi-lo para o salão e de lhe fazer esperar ali qualquer notícia sobre a intervenção, recusou de mau humor. Queria estar perto de Beatrice e ser o primeiro em ver o doutor sair com um sorriso triunfante após seu intenso e árduo trabalho. Mas permanecer ali lhe provocou mais terror que serenidade. Os gritos de dor que procediam da boca da moça lhe encolheram o coração, a garganta e lhe diminuíram os pulmões. Gritava com tanto desespero que sentia o horror da mulher correr por seu próprio corpo.

Em várias ocasiões se levantou do assento e desejou com todas as suas forças abrir a porta e ficar a vociferar para que acalmassem aquela terrível agonia. Entretanto pensava-o melhor e retornava à cadeira, não sem deixar de meditar como um corpo tão pequeno, tão débil, tão delicado, podia suportar tanto sofrimento.

O tempo se fez eterno. Não soube se tinham passado duas, três ou quatro horas quando a porta se abriu depois que a terceira criada acessou o seu interior. Mas enfim aparecia o senhor Wadlow. Olhava para suas mãos, que limpava minuciosamente, a barba grisalha e o nariz adunco enfatizavam um semblante abatido. William tentou manter a calma, mas não o conseguiu, antes que ele desse dois passos, aproximou-se e lhe perguntou ansioso:

? Como está?

? Necessitará de muito repouso. As feridas eram muito profundas e, embora haja utilizado todo o antisséptico que levava no estojo de primeiros socorros, estavam bastante infectadas. Um de seus criados deverá me acompanhar de volta e eu mesmo lhe proporcionarei outra garrafa de antisséptico. Deverão limpar a ferida pelo menos uma semana mais ? explicou.

? É óbvio ? afirmou sem apartar o olhar do médico. Tinha o colete manchado de sangue, assim como os antebraços, os quais ainda não tinha conseguido limpar. William franziu o cenho. O que teria acontecido lá dentro?

? Foram os lobos? ? Perguntou o doutor com voz reflexiva, mas não curiosa.

? Em efeito. Há um pequeno grupo vivendo no bosque.

? Acreditei que tinham partido ? prosseguiu com o mesmo tom.

? Retornaram.

Ambos os cavalheiros andaram pelo comprido corredor, desceram as escadas e William, em agradecimento, ofereceu-lhe uma taça no salão. O senhor Wadlow, depois da árdua tarefa, aceitou de bom grado tomar um gole do melhor uísque do condado de Derbyshire.

? Foi uma sorte que a tenha encontrado a tempo ? expôs a seguir. Pegou o copo que o anfitrião lhe oferecia e esperou que este se servisse de um.

? Um golpe de sorte, diria eu ? apontou o duque com tranquilidade. Estava acostumado a reconhecer quando uma conversação ia ser mais profunda do que aparentava e, se não se equivocava, o doutor estava meditando como iniciá-la.

? Quando se recuperar, essa moça terá uma dívida pendente com você. Estou seguro de que se não chegasse a dar esse passeio, ela teria perecido ? indicou antes de elevar o copo, fazer um pequeno brinde e dar um longo trago à bebida.

? Então brindarei por essa inesperada ansiedade por percorrer meus terrenos ? disse antes de imitar o médico.

Durante uns momentos o silêncio foi o rei da habitação. Ambos os homens contemplavam as chamas do fogo como se o terceiro conversador fosse o dito elemento e esperassem com tranquilidade suas palavras. O ranger da lenha se ouvia com nitidez assim como o chiado das brasas. O doutor acariciou a borda de pedra da chaminé, colocou a ponta de sua bota na borda da mesma, voltou a beber e instantes depois olhou ao duque com severidade, o qual estava reclinando-se sobre a poltrona.

? Desde menino, ? começou a falar – escutei uma infinidade de rumores sobre o sobrenome Rutland.

? Está acostumado a acontecer quando se tem uma dinastia tão extensa. ? William bebeu devagar, cravou o olhar no homem e arqueou com suavidade as espessas sobrancelhas escuras. Aí estava o início do que já supunha, agora ficava por saber para onde dirigiria o bate-papo com o bom doutor.

? Mas jamais pensei que fossem reais ? afirmou.

? Bom, se puder me esclarecer a que se refere, eu tentarei limpar o bom nome que possuo ? disse com sarcasmo.

? Como pôde fazer um ato tão desprezível? ? Inquiriu zangado ao mesmo tempo em que girava seu corpo para o duque.

? Como? Pode esclarecer que ato desprezível cometi? ? Baixou a mão que sustentava sua taça e a apoiou no braço da poltrona.

? Como é capaz de menosprezar tanto as pessoas? Acredita que por possuir um título nobiliário de tal índole pode alcançar o nível que ostenta nosso Deus? ? Demandou zangado.

? Sigo sem entender o que...

? Pelo amor de Deus! Não tente evadir-se de minhas perguntas!

? Até este momento, meu prezado senhor Wadlow, ? disse William com uma voz repleta de autoridade ao mesmo tempo em que se levantava do assento e avançava para o desafiante ? comportei-me com cavalheirismo porque me ajudou a salvar a vida de uma dama, mas se seguir com esse trato insolente para com a minha pessoa, pediria-lhe que, depois de esclarecer os términos que lhe levaram a tal conclusão, parta o antes possível.

? Refiro-me à dama. Acaso não é sua prostituta? Acaso você não a abandonou nesse lugar perdido do Senhor para utilizá-la a seu prazer, apesar de expô-la a perigos inevitáveis?

? Equivoca-se por completo. Essa ideia não é...

? E o que, se não for o sexo, o principal motivo pelo qual um homem de sua estirpe abandona o lar antes da alvorada? ? Respondeu-lhe irritado.

? Eu não sei os motivos que você tem para fornicar com sua amante ou as horas que se programa para fazê-lo porque sua senhora se ache em casa. Minha resposta a tais consultas inapropriadas é só uma: parta agora mesmo dos meus domínios! ? Não pôde levantar o dedo inquisidor porque segurava o copo, mas vontade não lhe faltou. E mais, se não tivesse saído ferido gravemente de seu último duelo, lhe teria desafiado a um nesse momento.

? Não negue... ? comentou desafiante o senhor Wadlow.

? Não me deu tempo para isso, você tirou suas conclusões sem querer escutar a verdade. ? Manteve-se ereto mais do que o habitual. No passado aquele estado de retidão era perene, mas com o passar do tempo e a vida que tinha, esqueceu-se da arrogância genética de seu sobrenome. Entretanto, que alguém tratasse Beatrice dessa forma, embora fosse para defendê-la, estava tirando-o do sério. Tal era sua agitação que lhe passou pela cabeça arrojar a taça ao chão, agarrar o atiçador da chaminé e lhe golpear até que sua sede de vingança se acalmasse.

? Está tentando me convencer que uma jovem de uns vinte anos de idade passeava pelo bosque de maneira descuidada e desprotegida? ? Insistiu o médico.

? Estou lhe dizendo que parta e saliento que o que você pensa sobre a relação existente entre essa moça e eu não me importa. Boa tarde, senhor Wadlow, e obrigado por sua visita.

O homem depositou o copo de maneira descuidada sobre a mesa, golpeou as botas, fez uma ligeira e direta inclinação e partiu do salão sem mediar palavra. Fora, no hall, William escutou a voz de Brandon. Parecia manter um pequeno bate-papo com o doutor antes que este abandonasse Haddon Hall. Depois de ouvir como se fechava a porta principal, uns passos retos, firmes e compassados se dirigiram para onde se encontrava.

? O senhor Wadlow partiu ? explicou embora fosse óbvio.

? Recompensou seu tempo? ? William tinha se sentado de novo. Sua mão seguia segurando com firmeza o copo de bebida, possivelmente o fazia para que sua mente deixasse de estimulá-lo sobre o outro possível uso do atiçador.

? Sim, sua Excelência. Uma bolsa de cento e cinquenta soberanos é pagamento suficiente pelo trabalho que realizou com a senhorita Brown. ? Brandon tinha uma vontade terrível de perguntar o que tinha acontecido, mas a mandíbula apertada do duque, o olhar perdido e o cenho franzido com vigor lhe indicavam que, nesse momento, manter-se calado era a melhor opção.

? Como está? Despertou? Disse algo? ? Quis saber.

? Segundo a senhora Stone, está calma. O doutor lhe deu uma boa dose de clorofórmio e a moça se encontra em um estado de semiconsciência ? explicou.

? Está bem, quando conseguir beber esta maldita taça subirei para confirmar que é atendida como é devido.

? Senhor, não se preocupe, na habitação há várias... ? apertou os lábios e não prosseguiu.

Aquele olhar repleto de ira o dizia tudo. Se ele queria subir, subiria. Se ele queria estar com ela, estaria. Se ele queria cuidá-la e esquecer-se de que não se encontrava em plenas faculdades para ocupar-se nem dele mesmo, cuidá-la-ia e se esqueceria. Esse era o verdadeiro temperamento Rutland e, por muito que o tentasse ocultar, Brandon se sentia feliz ao ver que por fim o duque tinha recuperado o estímulo que lhe faltava para converter-se de novo em sir William Manners.


XII


Tal como tinha decidido, depois de finalizar a taça William abandonou o salão e subiu as escadas que lhe conduziam para os aposentos. Com lentidão aproximou-se da porta de seu quarto, estendeu a mão para a maçaneta e a girou devagar para não fazer ruído e não dificultar o trabalho das criadas. Quando acessou a habitação a encontrou em penumbra. Tão só a luz de dois candelabros com quatro velas em cada um iluminava o interior. Depois de fechar atrás de sua entrada, fixou o olhar em Beatrice e suspirou. A jovem estava coberta com um lençol e só sua espessa e longa juba escura e seu semblante pálido estavam à vista.

Dirigiu seus olhos para a senhora Stone e a observou em silêncio. Aquela sensação, a de encontrar-se em um velório mais que em um quarto onde uma doente se recuperaria após descansar, encheu-lhe de pânico. Nem sequer a morte de seu pai, supostamente um homem importante para ele, produziu-lhe tanto espanto. A razão? Nem ele mesmo conseguia responder com certeza.

Que lhe salvasse a vida e que ele não tivesse atuado em consequência, não eram motivos suficientes para explicar por que seu coração se oprimia com tanta força ao pensar nela, por que lhe resultava difícil respirar ao ver a moça em tão mal estado, por que desejava que despertasse e que escutasse sua voz junto a ela.

? Precisa descansar ? disse em tom suave Hanna.

? Sei ? respondeu William caminhando para o sofá onde pensava permanecer bastante tempo.

? Tomou o café da manhã, milord?

? Tomei uma taça ? comentou com relutância. Sabia o que aconteceria após aquela afirmação. A senhora Stone franziria o cenho, colocaria as mãos na cintura e, ignorando a linhagem de seu sangue, repreenderia-lhe como faria uma mãe preocupada com o bem-estar de seu filho.

? Farei com que lhe subam o café da manhã, o qual deveria ter tomado há umas horas ? explicou ao mesmo tempo em que tomava ar para controlar o aborrecimento que expressava seu rosto.

? É uma boa opção, senhora Stone. ? Colocou-se em frente ao sofá e foi descendo com cuidado sem apartar o olhar de Beatrice.

Não era capaz de falar vendo-a daquela forma e tampouco seria capaz de comer nada do que lhe servissem. Mas não comentaria tal coisa à anciã porque se o fizesse, toda a atenção para a jovem ficaria em segundo lugar e ele queria que ela fosse o mais importante nesses momentos.

? Esta noite será muito dura, milord. Conforme nos indicou o médico a febre subirá muito e lhe provocará delírios, ninguém que estiver ao seu lado poderá descansar. ? Tentou que seus argumentos fossem suficientes para que o duque pensasse com sensatez e abandonasse a ideia que lhe tinha conduzido até ali.

Hanna não estranhou que seu marido a visitasse depois da marcha do senhor Wadlow, mas sim a desconcertou escutar os propósitos do dono de Haddon Hall. Como ia ficar ali sentado durante o tempo que a jovem necessitasse para recuperar-se? Impossível! Ela faria tudo o que estivesse em sua mão para evitá-lo. Entretanto, ao vê-lo entrar com aquele semblante, seu corpo curvado e um brilho intenso nos olhos escuros, partiu-lhe o coração. Nunca, nos trinta e um anos que tinha o jovem, tinha-o visto tão abatido, tão desolado.

? Ficará aqui comigo? ? Perguntou-lhe William sem voz.

? É óbvio. Se você desejar que esta velha não se mova do quarto, não o farei. ? A cozinheira sentiu como seus olhos se enchiam de lágrimas enquanto lhe tremiam as mãos e um nó na garganta lhe impedia de tragar a pouca saliva que produzia sua boca.

Tinha descoberto algo e esse algo era mais importante do que seu marido supunha. Ele sempre falava do dever, da piedade e misericórdia inerentes a um homem com honra, embora o que ela tinha descoberto naqueles olhos tristes não tinha nada a ver com as hipóteses de seu querido marido. Como sempre, a lógica e a razão voltavam a falhar quando se tratava de sentimentos.

Hanna ordenou às criadas que se retirassem e que subissem uma boa xícara de café e um par de torradas para que o duque se alimentasse. Quando partiram, o homem se levantou da poltrona e andou até a cama, sob o atento olhar da anciã sentou-se sobre ela, esticou a mão e acariciou com suavidade o rosto de Beatrice.

? Arde ? disse sem trocar a posição de seu olhar.

? Não se preocupe, voltarei a passar um pano de água fria. Isso a aliviará – assegurou-lhe antes de inundar de novo o pano na bacia, depois o escorreu com força e o colocou na testa da jovem, que ao sentir o frescor do objeto em sua pele franziu o cenho e abriu um pouco a boca.

William contemplou aqueles lábios, aquele nariz pequeno e arrebitado e como o peito se elevava ao respirar. Era a primeira vez que a observava sem que o lodo a cobrisse. Estava tão perto dela que pôde perceber as sardas diminutas que adornavam as bochechas agora vermelhas como o fogo.

? É uma garota forte, sua Excelência. Sairá desta ? comentou com tom suave.

? Sinto-me tão culpado... ? confessou sem lhe importar que Hanna estivesse junto a ele e observasse a debilidade que sentia. Não seria a primeira vez que o veria abatido.

? Não deve fazê-lo, senhor. Você insistiu em que permanecer naquele lugar tão espantoso era uma loucura. Recorde que todos aos que enviou para conduzi-la até aqui fracassaram. Foi sua própria decisão ? sentenciou com muita calma.

? Mas se eu... ? William voltou a roçar com sua mão a ardente bochecha. Seu calor era tão potente que o queimava. Aproximou a mão ao seu rosto e deixou que se refrescasse com sua própria frieza.

? Sabe de uma coisa, sua Excelência? ? Esperou que ele a olhasse para ter certeza de que tinha toda sua atenção. ? Deus faz coisas que ninguém consegue compreender, mas estou segura de que desta vez, assim como tem feito durante séculos, tem um bom motivo ? disse ao mesmo tempo em que introduzia de novo o pano na bacia para esfriá-lo.

O homem iria debater tal ideia expondo certos argumentos que não lhe pareciam lógicos e que tinha presenciado com seus próprios olhos, mas alguém bateu na porta e, para evitar rumores absurdos, mais dos que o senhor Wadlow estaria divulgando no povoado, William retornou à poltrona para adotar uma pose serena.

? Adiante ? ordenou Hanna depois de confirmar que o duque voltava a mostrar integridade.

? Trouxe o que pediu ? indicou Lorinne mostrando uma bandeja.

? Deixe-a nessa mesa e consiga mais caldeirões de água fria. Necessitaremos de muitos para acalmar a febre da moça ? disse a cozinheira.

? É para subir com eles agora? ? Perguntou a criada um tanto desconcertada.

? Não, coloque na cozinha e faça o senhor Stone saber, ele lhe avisará quando os necessitar. ? Espremeu com tanta força o trapo que respingou a cômoda de água.

? Mais alguma outra coisa? ? Quis saber. Esta olhou primeiro à Hanna e depois ao duque, esperando que algum deles respondesse, mas quando nenhum deles o fez, partiu.

Não se falou nada mais durante um bom momento. Nesse tempo repleto de silêncio, Hanna não cessava de molhar o pano e cobrir as bochechas e os pulsos de Beatrice. No momento que a anciã estendeu os braços da jovem sobre o lençol, William emitiu um pequeno grunhido de espanto. Eram tão magros e delicados que escapava ao seu raciocínio que eles tivessem trabalhado com firmeza para cuidar-se, para romper aqueles troncos grossos, para segurá-lo com força e arrastá-lo até o interior da cabana. Como tinha sido tão estúpido e deixado-a desamparada? Acaso não percebeu a debilidade da jovem ao tê-la em frente a ele? Por que não se deu conta? Que sentimento lhe tinha distorcido tanto a mente para não atuar com sensatez?

Seguia sem poder responder-se ao sem-fim de questões que se fazia. Cada instante que passava junto à moça, mais perguntas surgiam. Esse estado de ansiedade lhe consumia com tanto ímpeto que, por momentos, sentia correr por suas veias o frio da morte. Sim, ele morria. Não de enfermidade, mas sim de vergonha.

Então, quando sentiu que havia atingido o fundo, meditou algo que nunca tinha sopesado: aquele comportamento não se parecia com o de seu pai, aquele que tinha odiado desde que tinha o uso da razão? As amantes, a frieza para as pessoas que lhe estimavam, a prepotência de ostentar um título herdado por sangue e não pelo que realmente significava: sensatez, justiça e, sobretudo amparo para aqueles que lhe rodeavam. Não, tanto seu pai como ele se aproveitaram do sobrenome para sentirem-se superiores. Agora, por muito que lhe custasse admiti-lo, começava a entender a atitude de sua mãe: quem poderia viver ao lado de um monstro?

Apertou com força a mão e a fechou em um punho sólido como o aço ao mesmo tempo em que refletia a melhor maneira de mudar todo o desastre que tinha provocado. É óbvio que começaria por ela... dirigiu o olhar para Beatrice e sentiu de novo seu coração parar. Seria essa a razão pela qual Deus a tinha conduzido até sua presença? Queria que visse com seus próprios olhos a destruição que estava ocasionando? Se Hanna tivesse razão, se suas teorias sobre a metodologia que Deus empregava para conseguir seus fins eram certas, ele tinha recebido a mensagem com claridade.

? Meu senhor. ? Hanna interrompeu seus pensamentos com um suave tom de voz. ? Preciso me ausentar durante um momento.

? Acontece-lhe algo, senhora Stone? Está cansada? Quer que alguém ocupe seu lugar? ? Preocupou-se.

? Não. Encontro-me bem. É algo que... bom... só eu posso fazer por mim mesma. ? Envergonhou-se tanto que um pequeno rubor cobriu as rugas de seu rosto.

? Não se preocupe, ausente-se o tempo que necessitar. Eu ficarei com ela. ? William se elevou do assento e sentou-se sobre o leito junto a Beatrice.

? Não demorarei, asseguro-o. Enquanto isso, só deve cobrir a testa com o pano. Pode fazê-lo ou peço...? ? Duvidou se continuava com o plano que tinha construído em sua mente durante o período de sigilo.

Sabia que deixá-lo só poderia ocasionar alguma briga inesperada, mas o duque precisava ficar com ela a sós e deixar que o sentimento que arruinou seu interior crescesse como o fazem os brotos esverdeados das roseiras com a chegada da primavera. A moça, sem pretendê-lo, iria se converter em uma pessoa muito importante para o duque e rezava com todas suas forças para que quando ela despertasse sentisse o mesmo por ele porque do contrário... não! Não queria pensar nisso. Deus a tinha levado até Haddon Hall para salvá-lo e talvez a jovem também se salvasse dessa desdita da qual fugia freneticamente.

? Posso fazê-lo ? respondeu com um leve sorriso.

Hanna colocou o pano em Beatrice, olhou William para que compreendesse como devia fazê-lo e quando ele assentiu, deixou-os a sós. Depois de fechar a porta, a primeira cara que encontrou foi a de seu marido. Este abriu os olhos como pratos ao ver que deixava sozinho seu senhor com a doente.

? Como pode ser tão insensata? ? Grunhiu em voz baixa Brandon.

? Lembra-se daquele pequeno incidente na cozinha e de como bateu na minha porta depois de três noites dormindo fora de nosso leito? ? Arqueou as sobrancelhas grisalhas e o olhou com mais raiva do que lhe tinha mostrado. ? Pois se quer passar pelo mesmo de novo, entra na habitação e interrompe o que nosso duque está desejando fazer.

Ante tal ameaça Brandon soprou e acompanhou a sua esposa à cozinha ao mesmo tempo em que rezava, com esforço, para que nada de grave acontecesse.

William tinha dado já duas voltas ao pano molhado. Compreendendo que devia desdobrar o lenço para coloca-lo de outra forma, pousou-o em seus joelhos e, com grande esforço o estirou, dobrou-o ao contrário e voltou a coloca-lo na testa. A jovem, ao sentir o frescor, gemeu com suavidade. Esse pequeno detalhe, o de poder ajudá-la a se acalmar, fez-lhe tão feliz que seus olhos brilharam de novo. Tentou piscar para deixar de ver impreciso, mas o que aconteceu lhe chamou mais a atenção: brotaram umas pequenas lágrimas que percorreram com liberdade o rosto. Desde quando não chorava? Tinha-o feito no funeral ou no enterro de seu pai? Não. Ele não tinha chorado desde aquele dia...

Apesar da proibição de aparecer no dormitório de seu progenitor quando este permanecia em Haddon Hall, ele engenhou para abrir a porta e saltar sobre a cama do duque. Queria saudá-lo, queria abraçar àquela pessoa que lhe tinha dado a vida e quase nunca estava no lar, mas encontrá-lo com uma mulher que não era sua mãe desconcertou-o tanto que deu um grito e despertou a ambos.

O duque, furioso, conduziu-lhe para sua habitação e, sem pensar duas vezes, começou a lhe golpear nas costas e no traseiro com um cinturão que tinha pegado do quarto. Ele gritava que não voltaria a fazer mais, que lhe perdoasse, mas em seu pai não havia clemência. Então a porta do dormitório se abriu e apareceu Hanna suplicando ao senhor que não continuasse com o castigo: «Mais quatro cintadas e darei por concluído seu castigo ? disse olhando de esguelha a servente. ? Ou os proporciono a ele ou as recebe você». É óbvio, ela escolheu a segunda alternativa e ele, assustado pelo que ia acontecer, observou imóvel como Hanna terminava com seu castigo. «Se voltar a se repetir, ? ameaçou ? as próximas chicotadas irão diretamente às suas costas, criada».

Quando ficaram sozinhos, correu para a mulher para abraçá-la e, sob seu amparo, chorou desconsolado. Aquele dia aprendeu duas coisas: nunca mais procuraria seu pai e que aquela mulher jamais se separaria de seu lado porque, de todos os que lhe rodeavam, ela era a única pessoa que o amava de verdade.

William soprou ao rememorar aquele momento. Não estava acostumado a voltar para o passado para indagar por coisas dolorosas, mas se encontrava tão fraco emocionalmente que seu muro contra os sentimentos se derrubou. Olhou de novo Beatrice e sorriu ao ver que já não lhe ardiam as bochechas como na última vez. Parecia que a febre estava remetendo e isso era bom sinal. De repente, seus olhos foram captando cada milímetro daquele rosto. As sardas, seu nariz, as pestanas, seus lábios... era uma moça muito atraente e a beleza aumentava quando não estava coberta de barro.

Uma estranha sensação lhe percorreu pelo corpo, tão singular que seu pêlo se arrepiou. Parecia sentir-se feliz, mais do que devesse, tendo sob seu cuidado uma mulher ferida gravemente. Seria porque levava muito tempo sem permanecer ao lado de uma mulher formosa? Não, não se tratava de um aspecto meramente sexual, era algo diferente. Uma onda de calor e um sentimento estranho para ele se mesclavam para surgir de uma forma incomum.

Com suavidade e um tanto temeroso pelo que ia fazer, foi baixando seu rosto para o dela. Aproximou-se tanto que sentia sua respiração no rosto. Devagar, como se se tratasse de uma delicada flor, foi descendo os lábios até pousá-los nos da jovem. Então aconteceu algo perturbador, notou que seu coração se alargava e palpitava a grande velocidade, percebeu o correr do sangue por todo seu corpo como se estivesse em plena corrida de galgos e um brilho incrível lhe sacudiu a cabeça. Perturbado por tais sensações elevou a cabeça e, no meio daquele inesperado desconcerto observou que os olhos da jovem se abriram e o olhavam assustada.

? Não! ? Gritou Beatrice sacudindo com tanta força seus braços que, ao golpeá-lo, jogou-o no chão. ? Não!

? O que acontece, milord? ? Hanna, assustada pela intensidade dos gritos, acessou ao interior da habitação horrorizada.

? Deixe-me em paz! Não prossiga! ? Continuava vociferando Beatrice sem cessar de mover seu corpo, face às terríveis dores que deveria suportar. ? Solte-me! Não o faça! Tenha piedade!

? Meu senhor, é uma alucinação daquelas que dizia o médico ? explicava Hanna segurando com força a moça. ? Por favor, diga ao senhor Stone que faça subir a Jimena, eu sozinha não poderei contê-la por muito tempo.

William caminhou depressa para o corredor e chamou Brandon com todas as suas forças. Este foi ao seu chamado com prontidão e após lhe explicar o acontecido, o mordomo correu para a ala da servidão, minutos depois ele e a criada se introduziram na habitação.

De onde se encontrava seguia escutando os gritos de Beatrice, um pranto agonizante que lhe rompia a alma, e como Hanna tentava consolá-la com suas típicas palavras de ternura.

Aquele episódio horrendo não se dissipou até bem entrada a madrugada. William não pôde mover-se do corredor até que Brandon saiu e lhe confirmou que tudo tinha sido um delírio provocado, tal como indicou o senhor Wadlow, pela grande quantidade de clorofórmio que lhe tinha subministrado. Entretanto, as palavras não o tranquilizaram. Ela o tinha olhado e, depois de observá-lo, começou a gritar. Ele era o culpado dessa tortura, ele e só ele. Aflito, caminhou cabisbaixo para o salão, necessitava de uma taça. Precisava esquecer a estupidez que tinha feito e a sensação tão assombrosa que lhe causou um simples roce de lábios.


XIII


Beatrice abriu os olhos e o observou de novo ali sentado, adormecido. Era, segundo seus cálculos, o oitavo dia que o fazia. Acreditou que alguma noite deixaria de ir ao quarto, de perguntar à donzela como tinha passado o dia e de sentar-se na poltrona para velar por ela. Mas não o fez. Seguia aparecendo em sua habitação cada noite e partia ao amanhecer.

Nos primeiros dias se sentiu incômoda quando o viu junto a ela. Por que o fazia? O que pretendia? Entretanto, a ansiedade que lhe criavam tais perguntas se foi dissipando. Agora estava segura de que se elevasse suas pálpebras e não o encontrasse, entristeceria-se. Por muito estranho que lhe parecesse, a presença do duque lhe reconfortava, possivelmente inclusive mais do que devesse.

Quando abriu os olhos pela primeira vez e se achou em um lugar diferente de onde acreditava estar, assustou-se. Onde se encontrava? Quem a salvou de uma morte inevitável? A angústia do desconcerto a fez saltar da cama, mas a dor intensa em sua perna a fez gritar e tombar-se de novo. Nesse instante apareceu um anjo ao seu lado. Um anjo com rosto ancião, um avental e um sorriso que lhe cobria o rosto. «Calma, pequena, está a salvo», indicou-lhe Hanna, mas sem dizer nada sobre como tinha chegado até ali. Explicou-lhe que o doutor lhe tinha realizado uma intervenção, que as feridas saravam adequadamente e que logo estaria em condições de correr pelo bosque de novo. Por mais que insistisse Beatrice em averiguar a razão pela qual se encontrava em Haddon Hall e como tinha conseguido alcançar a residência, a anciã lhe respondia com evasivas. «Deve se alimentar. Precisa descansar. Não se mova tanto».

Só foi depois do terceiro dia que suas dúvidas se dissiparam ao escutar as criadas que a atendiam. Conforme lhe comentaram, graças a um repentino desejo por vigiar seus territórios, o duque encontrou-a ferida gravemente e ele mesmo a conduziu até a mansão. Também lhe narraram que todo mundo ficou atônito quando indicou ao mordomo que deviam alojá-la em seu próprio dormitório. Segundo as criadas, ninguém tinha visitado a habitação do duque enquanto elas o assistiam. Mas Beatrice sabia que isso não era certo, ela o tinha feito, embora recordá-lo lhe provocava angústia.

Durante os seguintes dias de recuperação não cessava de pensar que razão teria para instalá-la ali. Por que não escolheu outra habitação para acomodá-la? Um repentino calafrio açoitou seu corpo. Aquilo que imaginou não podia ser certo, confiava no senhor e na senhora Stone. Sabia que eles jamais revelariam o segredo. Então... que causa lhe fez atuar assim? Voltou a olhá-lo. Permanecia com os olhos fechados, as pernas estiradas sobre um apoio para os pés e a mão agarrada com força à poltrona.

Beatrice inspirou devagar para não alterar o sono da pessoa que lhe tinha salvado a vida. Agora estavam em paz. Agora não havia nada que lhes unisse. Agora tinha que recuperar-se e afastar-se o antes possível de seu lado. De repente o duque grunhiu. A moça fechou os olhos para que não a descobrisse, mas depois de uns instantes nos quais percebeu que seguia dormindo, voltou a abri-los e nesse momento observou como este franzia o cenho, como apertava com força o tecido da poltrona e como gritava não. Depois do grito despertou sobressaltado e ficou de pé de repente, caminhando de um lado para outro.

Beatrice seguia admirando-o entranhando. Não entendia que classe de pesadelo teria alterado o aprazível sonho. Com os olhos entreabertos para não chamar a atenção do duque, continuou olhando-o. Sua curiosidade crescia cada vez mais, posto que a agitação do homem pudesse senti-la ela mesma. A causa de sua agonia seria ela? Estaria arrependido de seu ato de piedade? Se a resposta fosse afirmativa logo deixaria de sentir-se inquieto, porque se nessa manhã ao levantar-se por fim pudesse caminhar sem sentir dor, partiria.

? Senhorita Brown, está acordada? ? Perguntou William ao notar que respirava intranquila.

Ao não escutar uma resposta acreditou que seguia descansando. Com passo lento se dirigiu para ela, parando no limite do leito. Olhou-a fascinado, igual um entomólogo contemplando uma nova espécie de mariposa. Dirigiu a mão para o rosto e lhe apartou com cuidado uma mecha de cabelo. Não devia fazê-lo. Não devia tocá-la depois do acontecido naquela noite, mas lhe resultava impossível conter-se. As emoções que lhe produziram aquele suave tato nos lábios o tinham desconcertado. Nunca havia sentido aquela sensação estranha no estômago quando beijava suas amantes. Nunca havia sentido como se sua pele queimasse ao tocá-las e nunca tinha escutado seu coração pulsar com tanta força. Desejou fazê-lo de novo, aproximar-se e beijar os lábios femininos para que toda aquela inesperada magia desaparecesse, mas tinha tanto medo pelo que aconteceria depois, que se refreava.

William elevou a cabeça ao escutar uns passos aproximando-se da habitação. Vinham para despertá-la e limpar de novo as feridas que, para sua gratificação, melhoravam com rapidez. Entretanto, aquilo que lhe produzia alegria também lhe entristecia. O que faria a jovem quando se recuperasse? Partiria, retornaria à cabana? Se essa fosse sua decisão ele não poderia opor-se, mas desta vez lhe colocaria uma condição, não partiria de Haddon Hall até que construíssem um muro sólido ao redor do refúgio de caça e, mesmo assim, ela não poderia lhe proibir que passeasse por seus territórios quando quisesse. Franziu o cenho ante tal pensamento. Não gostava da ideia de que ela se afastasse da mansão porque possivelmente na próxima vez não teria tanta sorte.

De repente desenhou um leve sorriso. Tinha outro plano. Um que não podia falhar. Retirou-se com rapidez do lado da jovem ao ouvir que alguém se encontrava atrás da porta.

? Bom dia, sua Excelência – saudou-lhe a donzela encarregada de cuidar de Beatrice.

? Bom dia ? respondeu sem nem ser consciente disso. Não cessava de refletir sobre sua estupenda alternativa.

? Passou bem à noite à senhorita Brown? ? Quis saber a moça.

? Sim. Descansou bastante bem ? respondeu apressadamente.

Queria dirigir-se para a cozinha onde sabia que encontraria Hanna preparando o café da manhã. Falaria-lhe de seu plano e esperaria que lhe confirmasse que era uma ideia estupenda.

William fechou a porta depois de sair. Como cada manhã ficava ali durante uns instantes esperando escutar a voz de Beatrice e certificar-se do bom tom desta. Como era de esperar a ouviu de novo e, para sua preocupação, pareceu-lhe que soava com energia. Em efeito, melhorava muito a cada dia e por isso não havia tempo a perder. Alterado, desceu as escadas e se dirigiu para a cozinha.

? Bom dia, senhorita Brown – saudou-a a donzela ao mesmo tempo em que amarrava as grosas cortinas em ambas as laterais. ? Faz um dia lindo. Note, o sol ilumina e esquenta nossos campos com bastante intensidade. ? Girou-se para ela e esperou uma resposta.

? Bom dia, Lorinne. Tem razão, o dia é lindo. Alegra-me que por fim as terras possam secar-se e as plantas recebam os raios solares que tanto precisam ? disse ao mesmo tempo em que apartava o lençol de seu corpo.

? Encontra-se melhor? Descansou o suficiente? ? Quis saber a moça ao observar como Beatrice se esticava e tentava apoiar o pé com força sobre o chão.

? Dormi bastante bem e olhe, parece que a dor começa a desaparecer ? respondeu sorrindo.

? Você é muito forte, senhorita Brown. Se uma besta me tivesse atacado como a que lhe mordeu, teria morrido nesse mesmo momento. E mais, não acredito sequer que tivesse a coragem de viver sozinha em um lugar tão afastado da mão de nosso Deus ? comentava a criada ao mesmo tempo em que pegava um dos vasos que tinha preparados à tina e começava a verter a água quente no interior.

? Com certeza teria tido coragem suficiente para subsistir ? respondeu subtraindo importância ao assunto e evitando falar sobre sua vida na cabana.

Franziu com suavidade o cenho ao apoiar com integridade o pé, esperava que em algum momento a alegria desaparecesse após perceber que as cãibras a açoitariam de novo, mas não foi assim. Começou a caminhar pelo quarto sem nem sentir incômodo.

? Pelo que posso apreciar, hoje tem mais força que ontem ? falou a moça com tom suave e alegre ao ver como se movia a jovem sem emitir pequenos soluços.

? Sim. Encontro-me tão bem que tentarei sair desta habitação. ? Beatrice selou seus lábios com rapidez. Não queria que Lorinne saísse a procurar à senhora Stone e lhe informasse sobre suas pretensões porque se fosse assim, a anciã bateria na porta e, depois de lhe soltar um sermão sobre como devia atuar para que suas feridas sarassem adequadamente, ficaria outro dia mais encerrada no quarto.

? Alegro-me! ? Exclamou com tanta animação a criada que Beatrice abriu os olhos como pratos ante tal entusiasmo. Ao ver a expressão desta, a donzela continuou falando. ? Perdoe minha euforia, senhorita Brown, mas tenho uma surpresa para você e esperava com impaciência o momento para comunicar-lhe.

? Uma surpresa? Para mim? ? Arqueou as sobrancelhas e se dirigiu para a tina.

? É óbvio que é para você. ? Respirou com profundidade e após meditar a melhor forma de lhe fazer saber a notícia, prosseguiu. ? Conforme me comentou Jimena, que a sua vez foi informada por Theodore, a ajudante da senhora Stone, o próprio duque se apresentou faz quatro dias na cozinha e lhe pediu que o acompanhasse a Rowsley.

? Pediu à ajudante? ? Inquiriu Beatrice ao não entender bem o que explicava.

? Não, à senhora Stone – esclareceu. ? Rogou-lhe que viajasse com ele ao povoado para poder comprar certos objetos que necessitava. Ao princípio, a senhora Stone se negou, mas após lhe explicar sua Excelência que requeria de sua experiência para adquirir alguns vestidos para você, ela terminou aceitando.

? Para mim? ? Repetiu incrédula.

? Claro! Para quem se não? ? E atrás de suas palavras soltou uma gargalhada nervosa.

? Não acredito que deva... ? murmurou Beatrice.

? É lógico que sua Excelência lhe compre um pouco de roupa. Você entenda que quando a trouxeram para Haddon Hall seu vestido estava rasgado e coberto de sangue ? argumentou a moça enquanto lhe tirava a camisola e a ajudava a introduzir-se na banheira. ? Se pretende sair desta habitação terá que ir vestida corretamente, não lhe parece? Além disso, acredito que nosso duque pensa que deve protegê-la depois do acontecido. Acaso não o viu velando seus sonhos?

? Agradeço a generosidade de sua Excelência, mas essa decisão não lhe concernia ? disse.

Meditou durante uns instantes a maneira correta de evitar o tema ao que fazia referência. Não podia, nem devia lhe fazer saber que ela tinha visto o duque ao seu lado.

? E mais, ? seguiu ? não tinha que haver se incomodado em viajar até o povoado em seu estado, posto que qualquer uniforme de empregada me virá bem.

? Está dizendo a sério? ? Perguntou a criada surpreendida.

? É óbvio. Tem que compreender, assim que possa andar o suficiente, partirei para meu lar, tanto faz que roupa cubra meu corpo. Minha felicidade aumentará por voltar para casa sem estar embelezada com um objeto que não me corresponde ? afirmou sem hesitações.

? Não acredito que o senhor goste dessa ideia... ? sussurrou a donzela ao mesmo tempo em que vertia água sobre o cabelo de Beatrice.

? Pois terá que aceitá-la, o duque não é meu dono ? sentenciou.

? Mas a salvou...

? E eu salvei a ele. Assim estamos quites ? afirmou com brio.

Lorinne estava incômoda após descobrir os propósitos de Beatrice e ela pôde notar quando lhe ensaboou o cabelo. Seus dedos se apertaram com muita força à cabeça e em mais de uma ocasião sentiu incômodo. Tentou estabelecer outra conversação sobre o bonito dia que tinha surgido, mas a mudança de tema não fez com que a criada abandonasse o silêncio em que estava absorvida. Finalmente desistiu e deixou de esforçar-se.

Quando a donzela a vestiu tal como lhe tinha indicado, com um vestido do serviço, despediu-se dela e saiu apressadamente da habitação. Não lhe cabia dúvida para onde correria e a quem informaria sobre sua decisão. Entretanto, Beatrice não iria ceder. Por muitos argumentos que a senhora Stone lhe oferecesse, ela não colocaria um vestido comprado pelo duque. Ficava um pouco de dignidade e a usaria para esclarecer certos termos e poder retornar ao seu desejado lar.

Lorinne baixava as escadas de dois em dois. Tinha muita pressa por chegar até a cozinha e explicar à senhora Stone a decisão que tinha tomado a senhorita Brown. Enquanto andava com urgência tentava convencer-se de que não tinha a culpa. Falou-lhe da oferenda do duque com carinho, com entusiasmo, sem dar uma visão distorcida. Entretanto, ao recordar a cara que tinha posto a jovem depois da informação, parecia que lhe tinha colocado uma adaga no peito. Como era capaz de rechaçar um presente da pessoa que lhe tinha salvado a vida? Absorvida em seus pensamentos, abriu a porta com tanta força que ela bateu na parede. Ao dirigir o olhar para as pessoas que se encontravam no interior as bochechas de Lorinne arderam.

? Sinto muito, Excelência, não sabia que se encontrava... ? tentou desculpar-se realizando uma reverência e cravando o olhar no chão.

? O que acontece? ? Intercedeu Hanna atônita.

? Senhora Stone, eu... ? balbuciou assustada a jovem.

? O que acontece? ? Repetiu a cozinheira com um tom mais suave.

? A senhorita Brown rechaçou os vestidos. Preferiu vestir-se como uma empregada ? explicou sem elevar o olhar.

William se apoiou sobre a parede, dirigiu a mão direita para o queixo e, depois de entrecerrar os olhos, acariciou-o.

? Insistiu? ? Perguntou a anciã observando de lado a atitude que adotou o duque ante a notícia.

? Sim, senhora, eu iz isso. Mas minhas palavras não serviram de nada ? esclareceu com pesar.

? Está bem, pode partir ao quintal, Jimena tem muita roupa que estender e lhe virá bem uma ajuda.

? Sim, senhora. Sua Excelência... ? fez outra rápida reverência e partiu.

Depois de que Lorinne fechasse a porta com mais suavidade que quando entrou, ambos permaneceram calados. William seguia com o olhar perdido ao mesmo tempo em que se acariciava a barba e Hanna começou a cortar umas cenouras com mais força da requerida. Ambos meditavam sobre a atitude de Beatrice, mas com apreciações diferentes. O duque sabia que ela não aceitaria os presentes e inclusive adivinhou o aborrecimento que sentiria ao descobri-los. Isso lhe dava a oportunidade de poder lhe oferecer aquilo que tinha refletido, embora Hanna tivesse berrado quando lhe falou de seu plano.

Não havia outra opção, se ela desejava voltar para a cabana e continuar com seu desejo de viver em solidão, deveria aceitar suas condições, porque do contrário...

«Isso não acontecerá ? disse a si mesmo. Ela terá que aceitar. Não acredito que por um absurdo orgulho resolva afastar-se daqui».

Essa ideia lhe oprimiu o coração. Não podia permitir que ela partisse, ainda não. Não entendia bem a razão pela qual desejava tê-la perto, mas o fazia. Por isso guardava um ás e devia ocultá-lo até que Beatrice mostrasse suas cartas, então, só então, ele colocaria sobre a mesa as suas.

Por outro lado, Hanna não parou de imaginar a raiva que a garota teria mostrado depois da descoberta. Estava segura que a jovem teria chegado à conclusão de que seu marido ou ela mesma tinham revelado ao duque o segredo que os três guardavam e por isso lhe comprou vários vestidos. Nenhum cavalheiro que se aprecie de sê-lo gosta de ver sua concubina vestida com farrapos.

«Meu Deus ? suplicou em silêncio – ajude-me a ajuda-los».

? Segue pensando que meu plano é desatinado? ? Perguntou William ao mesmo tempo em que começava a dirigir-se para a porta.

? Sigo acreditando que não o aceitará, meu senhor. Já escutou como se enfureceu por umas miseráveis roupagens...

? Aceitará ? disse enfaticamente. Segurou com força a maçaneta da porta e iria partir quando escutou Hanna murmurar.

? Se não o explicar de forma delicada, assustar-lhe-á e ela fugirá para sempre. É o que deseja meu senhor, não a ver mais? De verdade quer apartá-la de sua vida como se nunca tivesse existido?

William franziu o cenho, agarrou com mais energia a maçaneta e após soprar mal-humorado, dirigiu-se para a biblioteca. Uma vez que encontrasse o controle necessário para poder falar calmamente com a senhorita Brown, ordenaria ao senhor Stone que a informasse sobre seu desejo de ter uma reunião com ela o antes possível.


XIV


Não sabia que pose adotar para receber Beatrice. Sentou-se em sua poltrona junto à chaminé e, depois de olhar para a porta, pensou que parecia muito arrogante. Não pretendia alterar a moça com uma aparência inoportuna, queria que se sentisse cômoda ao seu lado, que ambos tivessem um bate-papo relaxado e conseguir, de uma forma agradável, que aceitasse o trato. Assim, após meditar muito, levantou-se e caminhou para a janela. Aquela retidão casual, aquela maneira familiar de recebê-la, tinha que ser a adequada. De repente escutou uns passos aproximando-se da porta. Em um princípio acreditou que eram do senhor Stone, ele estava acostumado a mover-se dessa forma: com um caminhar lento, possivelmente devido à fadiga de sua avançada idade. Mas seu coração palpitou com intensidade, sua boca ficou seca e a mão começou a agitar-se sem cessar ao descobrir que se tratava dela.

? Adiante ? respondeu ao escutar os suaves toques na entrada. Olhou-se para certificar-se de que sua vestimenta estivesse perfeita e desenhou em seu rosto um leve sorriso.

? Bom dia, sua Excelência. Informaram-me que desejava me ver ? disse Beatrice ao introduzir-se na biblioteca.

A jovem vestia-se com um traje escuro e um avental branco. William eliminou o sorriso ao vê-la. Não lhe parecia correto que ela se apresentasse dessa forma, mas tal como tinha escutado a donzela explicar à senhora Stone, tinha recusado categoricamente seus presentes e, por muito que lhe desagradasse, tinha que aceitar tal decisão se pretendia conseguir seu objetivo.

? Bom dia, senhorita Brown. Obrigado por aceitar meu convite ? indicou com voz suave.

? Acaso poderia rechaçá-la? Porque nas palavras do senhor Stone não escutei nada a respeito. ? Arqueou as sobrancelhas e o olhou fixamente aos olhos.

? Desculpe a atitude do mordomo, só se preocupa com meu bem-estar ? explicou em voz baixa. — Vejo-a bastante recuperada.

? E eu posso apreciar que as feridas que sofreu na queda desapareceram ? respondeu com firmeza e com aparente serenidade.

Enquanto se dirigia para a biblioteca não cessou de pensar a melhor forma de lhe agradecer por salvá-la, por cuidá-la e por mantê-la, sem expor os pequenos sentimentos de carinho que tinham crescido nela durante sua hospedagem. Por muito que tentasse fazê-los desaparecer, não o obtinha; vê-lo a cada manhã ao seu lado, velando por seus sonhos, protegendo-a e preocupando-se com seu bem-estar resultou-lhe tão desconcertante como maravilhoso. Sem dúvida era a primeira pessoa que o fazia em muito tempo e possivelmente o fato de sentir-se tão só e desprotegida intensificaram, sem poder evitá-lo, aquelas emoções de afeto até tal ponto que, em mais de uma ocasião duvidou que o jovem pelo qual esteve profundamente apaixonada tivesse atuado da mesma maneira.

? Touché! ? Exclamou enquanto se afastava da janela e caminhava para a poltrona. Embora tivesse dado por descartado permanecer sentado durante a conversação, o tom sarcástico de Beatrice lhe fez mudar de ideia. ? Bom, senhorita Brown, que planos tem?

? Sobre o que, Excelência? ? Ela seguiu no mesmo lugar, a três escassos passos da porta.

? Sobre sua vida, seus desejos, seu futuro? ? Respondeu com ironia. William cruzou as pernas, reclinou-se no respaldo da poltrona e, sem deixar de tocar a barba, olhou-a sem mal piscar.

? Como pôde apreciar, hoje me encontro muito melhor que em dias anteriores. ? Fez uma pequena pausa esperando que ele comentasse algo. Ao não o fazer, prosseguiu: ? Imagino que em um par de dias poderei retornar ao refúgio de caça. Depois do acontecido tenho muito trabalho que fazer para conseguir chamá-lo de lar novamente.

? Então... voltará a enfrentar só aos infortúnios da vida?

? Isso é o que eu desejo ? disse com firmeza.

? Recorda que vive em um pequeno pedaço dos meus domínios, não é? ? Seu tom brotou severo, duro.

? Recorda que me cedeu isso por lhe salvar a vida? ? Respondeu com a mesma intensidade que ele.

? Mas eu salvei a sua e considero que estamos quites. ? William se repreendeu por essa forma de falar.

A conversação não cursava como tinha planejado. Ele tinha imaginado que, depois de expor sua proposta, a jovem meditaria durante um tempo sobre ela e que ao final terminaria aceitando-a, mas o ambiente que começava a criar-se entre eles não parecia o apropriado para isso.

? Chamou-me para me indicar que como ambos nos salvamos de uma possível morte, já não posso permanecer na cabana? ? Beatrice deu uns passos para diante, queria ver com mais nitidez as expressões do duque.

Estava confusa. Acreditou que o verdadeiro caráter do homem era o que tinha tido durante sua convalescença: carinhoso, terno, atento... mas se equivocou. Atrás da aparência de um homem encantador seguia residindo um presunçoso, um petulante duque.

? Chamei-a, senhorita Brown... ? levantou-se de novo e caminhou para ela ? para lhe oferecer essa cabana que tanto deseja em troca de uma condição.

? Uma condição? ? Beatrice entrecerrou os olhos e apertou com força os punhos.

? Sim, uma condição, embora pudesse tratar-se de uma proposta, melhor dizendo. ? Freou de repente para girar-se e lhe dar as costas, ato do qual se arrependeu com rapidez. Como podia ser tão cretino para menosprezá-la? Jamais tinha dado as costas a uma mulher e o fazia à pessoa que menos merecia. De repente descobriu que ela não falava, mantinha-se muito calada. ? Não diz nada? ? Perguntou com interesse.

? Estou esperando sua proposta ? disse reticente.

? Como poderá supor, sou um homem bastante ocupado. Meu título de duque de Rutland implica afazeres diários que devo atender e não podem ser interrompidos por decisões absurdas ? comentou dando uns pequenos passos para frente. Voltou a parar e girou-se de novo. Seus olhos se cravaram nela e se entristeceu ao observá-la com a cabeça abaixada e apertando os punhos com tanta intensidade que seus nódulos estavam brancos.

William tentou acalmar-se e retornar ao tom amável com o qual tinha iniciado a reunião, mas muito temia que a única maneira de conseguir seu propósito era mantendo-se firme. Se todo mundo respeitava suas decisões quando mostrava um caráter dominante, por que ela iria ser diferente?

? De que maneira poderia interromper seus afazeres de duque minha volta à cabana? ? Atreveu-se a perguntar sem levantar o olhar do chão.

? Estaria pensando em você, senhorita Brown. Teria meus pensamentos ocupados imaginando como poderá contornar os inumeráveis perigos aos quais enfrentará diariamente ? expôs com uma voz mais relaxada.

? OH, Meu Deus! ? Exclamou Beatrice de repente. ? É verdade, lembro que me avisou com antecedência. ? Elevou o rosto, olhou-o desafiante e mostrou um pequeno sorriso malicioso. ? Se tiver sua mente ocupada em meditações sobre minha pessoa, não poderá rememorar os momentos sexuais que teve com suas amantes, não é?

William caminhou para ela com passo firme. Não parou de andar até que esteve em frente a ela. Olhou-a com raiva, mais do que deveria. Seus olhos escuros se abriram de par em par e apertou a mandíbula com raiva.

? Esse comentário está fora de lugar, senhorita Brown ? resmungou.

? Esse comentário é o mesmo que você me fez no dia em que me visitou e aceitou meu pedido. ? Não se amedrontou. Tê-lo tão perto lhe provocava certa inquietação, mas não podia baixar a guarda. Tinha que seguir mostrando integridade. Ela era uma mulher que, depois da desgraça, tinha crescido, tinha maturado se feito forte e nenhum homem a desprezaria jamais.

? Pois esteve fora de lugar quando o disse e está fora de lugar neste momento ? seguiu com tom severo.

? Dir-me-á no que consiste sua proposta ou seguiremos discutindo sobre as incoerências que disse em minha presença? ? Insistiu a jovem elevando ainda mais o rosto até que ambos os semblantes estiveram muito perto.

? Partirá para a cabana, será sua se assim o desejar, mas antes de retornar terá que aceitar uma pequena mudança. ? William sentia seu peito elevar-se mais do que o habitual. Notava como seu coração galopava no interior e, apesar de dizer a si mesmo que seu comportamento era mesquinho e ultrajante, não podia controlar-se. Então, justo quando esteve a ponto de dar uns passos para trás, servir um brandy e desistiu em seu empenho, as palavras de Hanna voltaram para sua mente: «Se não o explica de forma delicada, assustar-lhe-á e fugirá para sempre. É o que deseja, meu senhor, não a ver mais? De verdade deseja apartá-la de sua vida como se nunca tivesse existido?».

Achar a resposta a essas perguntas tinha causado uma destruição pessoal. Ele, quem se gabava de não necessitar de uma dama ao seu lado, encontrava-se em um dilema mais profundo do que se supunha. Não, é óbvio que não desejava perdê-la. Seguia sem conhecer com exatidão a razão disso, embora tivesse claro que lhe resultaria muito difícil fazer desaparecer a moça de sua cabeça.

? Desculpe-me, senhorita Brown, não era minha intenção lhe falar desse modo ? disse com suavidade, aproximando-se da chaminé cabisbaixo. ? Não quero que seja ferida de novo. Devo-lhe minha vida, é algo que nunca poderei esquecer, por isso quando a vi na cabana coberta de sangue e sem mal respirar senti-me o homem mais miserável do mundo. Se você tivesse morrido... se não tivesse conseguido auxiliá-la a tempo... ? William mostrou o pesar que lhe corroía por dentro, esquecendo tudo o que lhe tinham ensinado do berço: não revelar os verdadeiros pesares a outros porque o faziam vulnerável. Entretanto, com ela não podia ocultar-se. Necessitava que Beatrice entendesse que não era uma pessoa a mais e sim alguém muito importante, mais do que possivelmente deveria. Mas essa parte não a faria saber. Ainda não.

? Não foi sua culpa. Tomei uma decisão e você a aceitou. Os perigos aos quais estou exposta vivendo ali são minha responsabilidade, não sua ? esclareceu.

Teve que respirar muito fundo para lhe falar. Um nó na garganta lhe apertava com tanta força que mal saiu um pequeno fio de voz. Aí estava, em frente aos seus olhos, o homem ao qual via a cada dia ao despertar, o mesmo que se preocupava com ela e tinha um coração por muito que tentasse ocultá-lo. E que conseguia, à sua vez, que o dela pulsasse com força. De repente, uma debilidade afligiu o corpo de Beatrice. Foi uma sensação tão estranha quanto preocupante. Sua ira, aquela que a mantinha erguida, desapareceu e seus joelhos se dobraram sem querer.

? Embora me desculpe do acontecido, ? começou a dizer girando-se para ela e sentindo prazer ao ver que a rigidez do pequeno corpo tinha desaparecido ? eu sou incapaz de fazê-lo. Durante esta semana sofri cada grito que emitia, cada dor que padeceu, cada tortura que aguentou.

? Não deveria... ? murmurou.

? Não deveria o que, senhorita Brown? Sentir-me assim? Esquecer que me comportei como um maldito cretino ao abandoná-la naquele lugar repleto de ameaças? ? Caminhou para ela de novo até que a distância entre ambos não fosse mais de dois palmos. ? Por favor, rogo-lhe, aceite minha proposição e depois poderá abandonar Haddon Hall. Prometo-lhe que a deixarei viver em paz.

? O... qual é a proposição?

Tinha sido capaz de dizer algo? Porque não estava muito segura disso. Estava atônita, desconcertada e seu coração não cessava de pulsar a um ritmo frenético. O duque permanecia tão perto como a vez que ambos se sentaram nas escadas e, depois de um movimento involuntário, quase roçaram seus lábios. Esse instante, esse preciso momento, tinha-o recordado com raiva durante o tempo que esteve sozinha na cabana, mas agora toda aquela ira desapareceu e o único que desejava era que a vida lhe oferecesse outra oportunidade como aquela. Assustada por tais divagações, apartou-se e abaixou a cabeça. Não podia seguir contemplando ao duque dessa forma. Não era sensato cair em um poço sem fundo.

? Rogo-lhe que alongue sua permanência em meu lar até que se construa um muro de pedra ao redor da cabana ? expôs sem hesitações.

? Quanto tempo demorariam em construi-lo? ? Seguia com o olhar encurvado e suas mãos se enredavam no avental.

? Duas semanas, no máximo três. E lhe juro por minha honra que quando os criados me informarem sobre a finalização do muro, você poderá partir ? sentenciou com firmeza.

? Com uma condição ? disse com uma atitude aparentemente serena.

? Diga qual ? respondeu William sem mover um músculo de seu corpo.

? Pagarei os gastos que ocasione minha estadia aqui realizando algum tipo de serviço ? determinou.

? Parece-me coerente ? expôs depois de uma pequena reflexão. ? Informarei ao senhor Stone sobre isso e lhe oferecerá um posto adequado. ? Colocou a mão direita nas costas e sorriu.

? Posso me retirar, sua Excelência? ? Precisava sair dali. Não podia permanecer naquela habitação por mais tempo. Tudo começava a lhe dar voltas e notava um suor frio nas mãos.

? É óbvio, senhorita Brown, e muito obrigado por aceitar. Fez-me um homem muito afortunado ? disse como despedida.

Beatrice saiu da biblioteca cambaleando-se. Era incapaz de manter-se em equilíbrio posto que as emoções que invadiam seu pequeno corpo a açoitavam sem cessar. Apoiou as costas sobre a porta, olhou para as escadas e após respirar com profundidade, começou a chorar. Não podia continuar com aquela tortura emocional, não era razoável deixar se levar por aquelas sensações de afeto para com o duque. Tinha que distanciar-se dele e evitá-lo, na medida do possível, durante o tempo que permanecesse na residência. Não cabia outra alternativa. Apertou de novo suas mãos e, depois de apartar as lágrimas que banhavam seu rosto, dirigiu-se para o quarto. O primeiro que indicaria à donzela seria que a trocasse de habitação nessa mesma manhã.

Por outro lado, William permaneceu imóvel. Olhava fixamente para a direção por onde tinha saído Beatrice. Seguia com o coração alterado, o corpo inquieto e a mente refletindo mil ideias de como obter algo que nem ele mesmo sabia com exatidão o que era. Fosse o que fosse tinha um prazo de três semanas para alcançá-lo. Abatido pela confusão de sentimentos que sofria após estar tão próximo à moça, dirigiu-se para a poltrona, sentou-se e cravou o olhar nas dançantes chamas do fogo.


XV


De maneira estranha nessa mesma tarde a ajudante de cozinha abandonou seu posto para ocupar um ao lado de Jimena, encarregada da lavanderia e, como era lógico, sua vaga foi atribuída à Beatrice. À moça não cabia a menor dúvida de que a cozinheira se inteirou de seu acordo com o duque e quis acolhê-la sob seu amparo, decisão que a fez muito feliz.

O resto da jornada foi tranquila. Lorinne lhe proporcionou outra habitação e ambas a prepararam para fazê-la mais acolhedora. Isso era algo que desconcertava Beatrice. Não entendia como um lugar tão imenso e aparentemente cheio de vida podia ser em seu interior tosco e frio. Nem sequer os móveis, adornos ou abajures da casa mostravam calidez ou familiaridade. A jovem suspirou em várias ocasiões ao comparar Haddon Hall com seu lar, a residência Montblanc. Não albergava a mesma magnitude, mas ali onde seus pais adornavam a entrada com flores colhidas de seu próprio jardim, os criados do duque se conformavam limpando o pó dos candelabros, dos majestosos quadros que exibiam a quem tinha ostentado o título com antecedência e de manter impolutos os extensos tapetes que cobriam os chãos. A primeira conclusão de Beatrice ao examinar com mais atenção os salões, corredores e demais habitações foi que o lar queria expressar o caráter do duque: distante, orgulhoso, solene e poderoso. Entretanto, depois da conversação na biblioteca, a jovem começava a duvidar. O duque escondia algo em seu interior e, embora não fosse uma ideia sensata, estava disposta a descobrir quem ele era em realidade.

Antes que o entardecer obscurecesse as proximidades de Haddon, Beatrice decidiu passear um momento. Precisava sair dali e respirar o ar limpo dos jardins. Com passo lento e delicado, tanto que mal escutava seus próprios passos, a jovem saiu ao exterior. Os tênues raios solares a receberam e ao sentir em sua pele a cálida luz se estremeceu. Fazia tanto tempo que não desfrutava de uma caminhada sem ter que preocupar-se com o perigo, que o mero feito de poder andar tranquila a inquietou. Baixou as inumeráveis escadas de pedra agarrando-se com força ao corrimão. Quando ao fim o calçado tocou a grama, sorriu. Mal tinha sentido dor. Emocionada, apressou-se a continuar sua aventura pelo extenso jardim.

Uma diversidade de colorido a acolheu ao introduzir-se nele. Flores de várias cores e aromas lhe davam as boas vindas como se fosse a primeira pessoa que as visitavam depois da chegada da primavera. Esticou a mão direita e foi tocando as tenras pétalas que conseguia alcançar. Seu tato era tão delicado que temeu lhes fazer dano e romper a harmonia que emanavam. Olhou para o horizonte para compreender a magnitude do maravilhoso jardim e, justo ao observar o final deste, o peito se encolheu e a respiração se fez débil. Ali, entre tanta beleza, havia uma pequena clareira onde um tipo de flor crescia à sua mercê. Sem duvidar um só instante aproximou-se delas, agachou-se e deixou que seu nariz recebesse o seleto aroma, enchendo seus pulmões com a delicada fragrância a frutas. Em meio a essa compenetração, Beatrice soluçou e, apesar de não querer lhes fazer dano, cortou um caule e o aproximou-o dos lábios.

? Crescem selvagens. Minha mãe trabalhou muito para cultivá-las quando se casou com meu pai e vieram viver aqui e, embora ninguém cuide delas, seguem brotando ? explicou uma voz atrás da jovem.

Beatrice girou-se com tanta rapidez que se William não a tivesse segurado com firmeza teria caído ao chão. Pôde notar a intensidade do aperto no braço e o assombro dele, por mais incrível que parecesse, a brutalidade do movimento não o sacudiu, seguia imóvel e com os pés fixos no chão.

? Sinto se a assustei, senhorita Brown. Não foi minha intenção ? esclareceu depois de lhe soltar o braço.

? Excelência... ? murmurou.

? Gosta? ? William moveu devagar seu corpo para onde se encontrava a plantação silvestre. Queria fazer desaparecer o quanto antes possível àquela ansiedade que tinha começado a emergir em seu interior. Estava louco, mais do que se imaginava porque não era de pessoas sãs sentir-se tão excitado, tão emocionado, tão alterado com um mísero roce.

? Muito. São as mais bonitas de todo o jardim – aventurou-se a dizer.

? Têm um aroma peculiar, é uma estranha mescla de... ? Interrompeu-se para meditar o que ia dizer. Fazia tanto tempo que não se aproximava delas, porém não acertava com o que as comparar.

? É uma combinação de frutas. Esta que tenho em minha mão cheira a laranja. ? E sem meditar duas vezes a aproximou-lhe do nariz para que inspirasse o aroma. Quando foi consciente do gesto tão inapropriado, retirou a flor com rapidez. ? Sinto muito...

? Tem razão, ? disse desenhando um enorme sorriso ? cheira a laranja.

William não sabia do que falar com Beatrice. Não queria lhe perguntar a razão pela qual tinha mudado de habitação ou por que tinha saído sem uma donzela, embora ambas as dúvidas fossem as que o motivaram a sair atrás dela. Tinha-a visto da janela da biblioteca, onde admirava o entardecer enquanto tomava sua quarta taça de licor. Ao notar como seu aborrecimento crescia ao contemplá-la de novo desprotegida, saiu da habitação e, com passo firme, dirigiu-se para os jardins.

Beatrice voltou a contemplar o pequeno canteiro de flores dirigindo seus pensamentos à mulher que tinha ordenado plantá-las e depois as tinha abandonado. Por que teria tomado tal determinação? O que teria acontecido entre mãe e filho para que este tentasse eliminar aquilo que ela amava? Olhou de esguelha ao duque e o observou com o cenho franzido. A lembrança de sua mãe lhe produzia dor? Por quê?

? Posso lhe pedir um favor, sua Excelência – encorajou-se a dizer rompendo o estranho silêncio surgido entre eles.

? Depende... ? Voltou seu rosto para ela e entrecerrou os olhos. Se voltasse a insistir em partir só à cabana, apesar do trato que tinham combinado, obrigá-la-ia a retornar à mansão e a encerraria com chave em seu novo quarto.

A moça soltou uma pequena gargalhada ao ver a rigidez que adotava o duque.

? Poderia colher algumas destas preciosidades para adornar meu dormitório?

? Pegue as que desejar ? disse depois de notar como a tensão de seu corpo se desvanecia.

? Muito obrigada, milord. Fez-me uma mulher muito afortunada ? respondeu repetindo as mesmas palavras que o duque usou quando ela aceitou ficar em Haddon Hall.

Estranhamente Beatrice guardava em sua memória cada frase, cada palavra e cada gesto do homem, e cada vez que podia, rememorava-os.

? Gosta dos cavalos, senhorita Brown?

? Muito ? respondeu levando a flor de novo ao seu nariz.

? Gostaria de me acompanhar aos estábulos? É ali para onde me dirigia antes de perceber sua presença no jardim ? mentiu.

Explicar-lhe os verdadeiros motivos pelos quais se encontrava ao seu lado não era conveniente. Esperaria que o tempo lhe desse a oportunidade de entender os sentimentos que tinha pela senhorita Brown.

? Posso me negar ao seu convite ou talvez...? ? Disse divertida.

? Não tem obrigação de nada ? respondeu com sobriedade. ? Se me desculpar... ? William tinha erguido de novo sua figura, apertava com vigor a mandíbula ao falar e avançou uns passos para a direção tomada quando notou que seu braço esquerdo era segurado com suavidade.

Ao dirigir o olhar para este viu uma pequena mão que o liberou com rapidez.

? Ficarei encantada de lhe acompanhar aos estábulos, se seguir desejando minha companhia ? expôs sem envergonhar-se de seu repentino descaramento.

O único que fez o duque foi assentir com a cabeça e caminhar para as cavalariças. Beatrice andava dois passos atrás dele, não se colocou ao seu lado por mais que o desejasse. No pequeno caminho, William falou sobre o nascimento de Haddon Hall, de seus ancestrais e de como a residência chegou a ter a magnitude do momento. A jovem o escutava com atenção, percebendo com claridade como a voz melodiosa de William ia mudando segundo as anedotas que contava; entusiasta, divertida ou pelo contrário, triste e abatida, sobretudo quando falava da época em que seu pai herdou o título e suas extravagâncias com aquele paradisíaco lugar.

Não havia dúvida alguma sobre o ressentimento do duque com os seus progenitores e Beatrice se perguntou se a senhora Stone saberia a razão. Deveria ser muito cautelosa para falar com a cozinheira sobre a vida do duque, era uma mulher muito perspicaz e poderia descobrir o carinho e o respeito que começava a sentir por esse homem.

? Sua Excelência ? saudou Mathias com uma pequena reverência. Logo dirigiu o olhar para Beatrice e sorriu ao vê-la melhor. ? Senhorita Brown, alegro-me de vê-la com tão bom aspecto.

? Obrigada, Mathias. ? Ela se aproximou do moço e segurou as mãos masculinas entre as suas. ? Devo-te minha vida. Lorinne me contou que partiu ao povoado para pedir auxílio.

O moço levou uma mão para a boina, apartou-a e começou a arranhar a cabeça enquanto suas bochechas ardiam e balbuciava com certo atordoamento.

Como era lógico, aquela amostra de afeto não passou despercebida pelo duque, que de novo não pôde evitar esticar-se mal-humorado. Não entendia como a moça era amável com todo mundo, salvo com ele. Se tinha sido ele quem ordenou procurar o doutor! Ante a ira incontrolada que sentiu, colocou sua mão direita na parte de trás de sua cintura e caminhou com solenidade para o interior do estábulo.

? Ainda não encontrou meu garanhão? ? Perguntou com secura.

? Não, senhor. Temo que Dalión foi presa daqueles malditos lobos.

Ao escutar sua afirmação, Beatrice se encolheu e mostrou um imenso horror em seu rosto. As imagens da fera apertando com força as mandíbulas em sua perna a aterrorizaram de novo. Mathias, ao descobrir seu medo, agarrou-lhe as mãos e as apertou com força.

? Não tema, senhorita Brown ? disse. Nesse momento William se voltou para descobrir o que acontecia à moça, seus olhos expressavam pavor e o pequeno corpo se encurvava. ? Quando finalizarem o muro estará a salvo desses filhos do diabo.

? Senhorita Brown? ? William chamou a atenção da jovem para que o olhasse, mas não reagia. Parecia encontrar-se em uma espécie de transe. ? Senhorita Brown? ? Repetiu. Ao não obter resposta, William se aproximou apartando o moço. ? Não deve temer, escuta-me? Nada nem ninguém poderá lhe fazer dano de novo, ouviu o que lhe disse? Nada nem... ? Não pôde continuar com aquela severa sentença.

A jovem, ainda presa do medo, equilibrou-se sobre ele e o abraçou com força. Atônito por senti-la tão perto e tão débil, William lhe acariciou o cabelo amaldiçoando o fato de não poder segurá-la com as duas mãos e consolá-la como era devido.

? Quer que chame o senhor Stone, sua Excelência? ? Perguntou o jovem inquieto.

? Não, a senhorita Brown se acalmará com rapidez, não é? ? Ela, apoiada ainda ao seu peito, assentiu com suavidade.

? Se o desejar, senhor, poderíamos organizar uma batida de caça amanhã ao amanhecer. Estou seguro que...

? Não! ? Exclamou Beatrice com vigor. ? Não podem matá-los!

Apartou-se com lentidão do corpo de William e o olhou aos olhos. As lágrimas da moça percorriam o pálido semblante e seus lábios eram, segundo o duque, mais voluptuosos do que lhe pareceram em princípio.

? Não se fará tal batida, prometo. E agora retornemos para a casa. Precisa descansar. ? Quis esticar sua mão e lhe tirar as lágrimas do rosto. Quis voltar a senti-la junto a ele. Quis que aquele maldito duelo jamais tivesse acontecido...

William, contrariado pelo dever e o desejo, teve que adotar uma pose serena, sem exibir a ansiedade que sentia em seu interior. Caminhou sem hesitações até o interior do lar com Beatrice lhe seguindo dois passos atrás. Cada vez que podia a olhava de esguelha para certificar-se de que seguia junto a ele apesar de encontrar-se em choque. Uma vez que conseguiram chegar à entrada chamou com ímpeto ao senhor Stone, que apareceu justo no momento que soava a última letra de seu nome.

? Diga à donzela que atende as necessidades da senhorita Brown que é requerida agora mesmo ? disse com firmeza.

O mordomo correu para o salão principal onde Lorinne limpava a cristaleira. Depois de ser informada, apresentou-se na entrada com prontidão. Olhou ao duque, fez uma pequena inclinação e avançou até chegar a Beatrice, que se abraçava com força e expressava um imenso horror em seu semblante.

? Conduza-a de novo ao meu quarto. Esta noite descansará lá ? sentenciou.

Ninguém se opôs a tal decisão, nem sequer a senhora Stone que aparecia pela parte direita da escada e colocava sua mão na boca para aplacar um possível grito. William ficou imóvel enquanto observava como a donzela subia as escadas segurando Beatrice. Uma vez que ambas as mulheres se giraram para o corredor que conduzia ao dormitório, olhou de esguelha ao mordomo e, sem relaxar um ápice a tensão de seu corpo, indicou:

? Acompanhe-me, Brandon, tenho que te explicar certas mudanças que serão levadas a cabo a partir de manhã.

? Sim, sua Excelência. ? E sem mediar palavra, o senhor Stone caminhou à distância protocolar atrás do duque.


XVI


Um horrível pesadelo a tinha alterado durante a noite. Foi tão espantoso que em várias ocasiões despertou gritando e soluçando, mas por mais estranho que lhe parecesse, contemplá-lo ali sentado, cuidando-a e protegendo-a cada vez que lhe sussurrava palavras tranquilizadoras, fazia com que aquele medo atroz desaparecesse e conseguisse conciliar o sono de novo. Quando os primeiros raios apareceram entre as cortinas, Beatrice abriu os olhos e, em silêncio, contemplou-o.

Descansava sobre a poltrona, seus pés se estendiam para o leito onde ela permanecia, a mão que era incapaz de mover jazia flácida no lado esquerdo da poltrona, enquanto que a direita suportava o peso da cabeça masculina. Tirou-se a jaqueta, ficando só com a camisa branca e o colete escarlate. A barba lhe tinha crescido bastante, assim como seu cabelo, que naquele instante se liberou da amarração ao qual era submetido e cobria a testa e certas partes do rosto varonil. Até aquele momento não tinha reparado na atratividade incrível do homem. Era, sem dúvida, o cavalheiro mais bonito que tinha conhecido. De repente, Beatrice notou uma terrível dor em seu estômago, como se alguém lhe houvesse dado um golpe. Mas não se tratava de alguém, e sim de algo, um sentimento que cada vez se fazia mais forte, que cada vez era mais intenso.

Repreendeu-se por tais emoções e tentou recordar o duque que recusou ajuda ao seu pai. Quis rememorá-lo sob a cortina, amando a outra mulher, mas não pôde. Não encontrou nada que pudesse assemelhar-se ao homem que tinha ao seu lado com o que conheceu no passado. Eram duas pessoas completamente diferentes e não só pelas marcas em seu rosto ou a lesão em seu braço.

Não entendia como não tinha prestado atenção a essa imobilidade nos encontros anteriores, possivelmente porque não lhe pareceu estranho que aquela mão sem energia para realizar pequenas funções cotidianas permanecesse sempre escondida atrás das costas do duque, graças às alças que agora podia ver por ele estar sem a jaqueta. Ao ficar à vista, inerte sobre o tecido do assento, a curiosidade da jovem aumentou. Poderia sentir através dela? Alguém tinha tentado dar vida a esse membro morto ou desistiram depois do dramático acontecimento?

Ela o tinha segurado no jardim para reter sua marcha, mas até aquele momento não caiu em si que o contorno da extremidade sã era três vezes maior que a outra. Por quê? Por que tinha diminuído sua força naquele braço? Um repentino desejo por tocá-lo e responder as suas perguntas à fez levantar-se da cama.

Apoiou devagar os pés no chão, incorporou-se com mais suavidade ainda e caminhou sobre o tapete fazendo o menor ruído. Inclinou a cabeça mordendo o lábio sem deixar de olhar fixamente as pálpebras fechadas do duque. Não sabia o que diria se ele abrisse os olhos naquele momento, mas seu impulso era muito forte para ignorá-lo. Aproximou devagar as gemas dos dedos da superfície suave do dorso e a tocou do pulso até os nódulos dos dedos.

Um calafrio percorreu o braço de William lhe arrepiando o pêlo até o cotovelo e despertando-o de repente.

? Bom dia, senhorita Brown ? saudou-a um tanto aturdido.

Levantou-se com tanta rapidez da poltrona que tropeçou e teve que segurar-se no respaldo. Sua voz soou débil, como se lhe tivessem apertado a garganta para asfixiá-lo. O mero feito de descobrir que Beatrice se levantou da cama semidesnuda e que havia tocado aquela mão lhe provocou um ódio imenso por si mesmo, produziu-lhe um amontoado de sensações que não soube assimilar.

? Bom dia, sua Excelência ? respondeu sem reparar no pequeno detalhe de sua vestimenta.

Estava acostumado a lhe acontecer quando se empenhava em averiguar uma coisa, não era consciente do que acontecia ao seu redor até que o conseguia. Segundo sua mãe era um horrível defeito procedente da família Lowell, mas graças ao qual tinham sido grandes triunfadores na vida. Um bom exemplo disso era seu avô Notheber, que se converteu em barão de Montblanc após salvar o rei de uma perigosa enfermidade.

? Encontra-se melhor? ? Perguntou.

Quis evitar que a centena de pensamentos ímpios continuasse perturbando-o, mas foi impossível. Não só notava como o coração se acelerava, mas sim, depois de muito tempo, suas calças pareciam mais estreitas do que o habitual.

? Muito melhor. ? Olhou-o com descaramento e sorriu ao notar certa inquietação no homem. Aquela fortaleza e arrogância tinham desaparecido e em frente a ela se mostrava um homem vulnerável. Aquele a quem ela começava a adorar. ? Obrigada por permanecer ao meu lado. Não devia...

? É minha convidada e como tal devo me ocupar eu mesmo de seu bem-estar ? respondeu após respirar com profundidade para obter um pouco de quietude.

? Entendo... ? Sorriu com suavidade. Girou-se para a cama, deu dois passos e se agarrou a um dos quatro dosséis de madeira que a adornavam. ? Isso quer dizer que não sou a primeira mulher a quem vela o sono, não é? ? Disse zombadora. Não entendia por que desejava enfurecer ao duque, possivelmente precisava averiguar até que ponto aguentaria suas rabugices.

? Como diz? ? William abriu os olhos como pratos ao escutar a insinuação descarada da moça. Logo franziu o cenho, colocou sua mão direita nas costas, deu uns passos para a porta e continuou: ? Informarei à senhora Stone de sua melhora. Acredito que agradecerá sua presença na cozinha porque não conseguiu cuidar de todos os preparativos que precisava fazer para hoje.

? Terá convidados? ? Perguntou com zombaria. Durante sua estadia em Haddon Hall ninguém tinha aparecido e lhe resultava estranho que alguém desejasse visitar o duque.

? Acredita que sou uma pessoa tão espantosa para não ser visitado por outros seres humanos, senhorita Brown? ? Beatrice não respondeu. Manteve-se agarrada ao dossel e olhou para os lençóis da cama. ? Imagino que seu silêncio responde de maneira negativa à pergunta que acabo de lhe realizar. Não se preocupe, não será a primeira nem a última mulher que pensa que sou um miserável e logo depois de permanecer ao meu lado descobre um homem encantador. Agora, se me desculpar, tenho que atender meus afazeres como duque posto que, como já lhe disse, não posso ocupar todo meu tempo em atendê-la. Bom dia.

Quando fechou a porta, William permaneceu uns instantes atrás dela. Ao escutar um suave grito de Beatrice, sorriu e desceu as escadas assobiando uma melodia.

Como podia ser tão petulante? A jovem caminhava pela habitação agitada. Respirava e exalava com força. Colocou as mãos na cintura, logo as levou ao rosto para apartar as mechas do cabelo e finalizou as apertando em forma de punhos. Estava muito zangada, muito para sair da habitação e desenhar um sorriso em seu rosto. Não chegava a compreender como era possível que em uma conversação em que ela ia ganhando, ele terminasse triunfante.

Sempre obtinha o que desejava, primeiro que ela permanecesse em Haddon, segundo que voltasse para a habitação e para cúmulo havia tornado a lhe recordar que ela seguia atrapalhando suas reflexões.

? Maldito seja, duque de Rutland! ? Exclamou ao mesmo tempo em que golpeava com força o travesseiro.

? Bom dia, como se encontra...? ? Lorinne entrava na habitação sem pedir permissão quando observou a moça enfurecida e golpeando com insistência o almofadão. ? Seja o que for, estou segura de que o travesseiro não tem culpa ? afirmou antes de soltar uma sonora gargalhada.

? Bom dia, Lorinne. Não estava lhe dando uma surra, se por acaso o pensou ao ver-me, só estou tentando amaciá-lo. Esta noite mal pude conciliar o sono por senti-lo incômodo – desculpou-se. Colocou o travesseiro sobre o colchão e o acariciou com suavidade.

? Jimena o trocou ? comentou para finalizar o tema. Tinham muitas coisas que fazer e não havia tempo para esbanjá-lo em tolices. ? Bom, preparada para uma manhã intensa?

? Intensa? ? Repetiu enquanto Lorinne apartava as cortinas e abria as janelas.

? Muito. Faz uns dias o senhor Stone nos advertiu que teríamos uma visita um tanto peculiar ? expôs ao mesmo tempo em que ajudava Beatrice a colocar o traje de donzela que se empenhou em usar.

? Peculiar? Está tentando me dizer que a duquesa de Rutland nos visitará? ? Perguntou emocionada.

? Não! ? Exclamou entre risadas.

? Por quê? ? Quis saber Beatrice.

? Odiava este lugar, ainda mais quando descobriu que seu marido não respeitava o lar familiar, o lugar onde se criavam seus filhos.

? Não entendo... ? disse ao mesmo tempo em que atava o avental ao seu corpo com um laço.

? A senhora Stone não está acostumada a falar a respeito, ama ao nosso senhor como se fosse seu próprio filho, mas uma vez explicou que o pai de nossa Excelência era um tirano, um filho do diabo que só causava maldade no mundo.

? O que aconteceu? ? Olhou-a com atenção enquanto Lorinne sacudia almofadas e tapetes.

? Não sei. Ela jamais faz referência a isso. Bom... ? Aproximou-se de Beatrice, sorriu e a fez avançar para a porta. ? Preparada?

? Claro ? asseverou.

Teve que agarrar-se com firmeza ao corrimão quando percebeu as mudanças ao sair do dormitório, o aborrecimento que tinha crescido depois do encontro com o duque se dissipou completamente. Desceu muito devagar porque seu corpo tremia e sentia como se o coração se abrandasse pouco a pouco. Não podia ser certo, aquilo devia ser uma alucinação. Olhou de esguelha à Lorinne e a encontrou sorrindo, entusiasmada com as modificações. Retornou o olhar para baixo para confirmar que era verdade, que seus olhos não lhe enganavam e o confirmou: toda a entrada, aquela que ao acessar ao lar mostrava frieza e sobriedade, era um imenso e colorido jardim.

Os vasos, anteriormente vazios, encontravam-se transbordantes de flores, mas não de qualquer tipo de flor e sim da sua, a que mostrou ao duque na tarde anterior. Continuou sua descida, com muita dificuldade conseguiu chegar até o final. Seguia atônita, imersa em si mesma. O teria feito por ela? Mas então apareceu em sua mente as palavras de Lorinne, aquelas que lhe informavam sobre os convidados peculiares que seriam acolhidos em Haddon Hall. Não, claro que não o tinha feito por ela, mas sim para mostrar certa aparência para seus hóspedes. Açoitada como quem é despertada enquanto sonha com algo precioso, Beatrice tomou forças e se dirigiu para a cozinha. Tinha um dever a cumprir e precisava centrar-se nisso para eliminar os pensamentos desatinados que sua mente lhe oferecia.

? Bom dia, pequena. Conseguiu descansar? Eu estava preocupada. Jamais vi um rosto tão pálido nem um corpo tão debilitado como o que apresentou ontem. ? A cozinheira, ao vê-la aparecer, deixou o que estava fazendo e se aproximou dela para abraçá-la.

? Sim, senhora Stone, dormi placidamente ? respondeu com suavidade. Sentir o corpo acolhedor da mulher junto ao seu fez que com que sua repentina desilusão desaparecesse. ? Avisaram-me que hoje terá muito trabalho – prosseguiu. ? Se for amável de me indicar como ajudá-la...

? OH, meu Deus! Tem razão! ? Separou-se dela e correu para a mesa para seguir com sua tarefa. ? Pega essa cesta de batatas, terá que as cortar o mais rápido possível. ? Olhou a jovem e meditou sobre o que ia dizer em seguida. ? Sabe cozinhar um pouco? Alguma sobremesa, talvez?

? Só o pudim... ? disse com certo pesar.

? Bom, pois deixe para mim as batatas e prepare um suculento pudim.

Beatrice correu para a despensa e apareceu com os ingredientes necessários entre suas mãos. Enquanto recordava que passos deveria seguir, cantarolava uma canção. Por uma vez, desde muito tempo, esqueceu-se de todo o acontecido no passado e se divertia com seu presente.

Hanna a escutava com atenção ao mesmo tempo em que cortava os tubérculos. A moça não era consciente do que acontecia ao seu redor nem o escândalo que se produziu ao ser amparada sob a proteção do duque. Entretanto, tal como tinham suposto, o doutor trabalhou em propagar por Rowsley que o senhor de Haddon Hall albergava na residência sua concubina, assim como fez seu progenitor no passado.

Tais notícias inapropriadas chegaram aos ouvidos do pároco e este mandou uma missiva de urgência ao milord. Informava-lhe de sua pretensão de ir visita-lo e o desejo de esclarecer certos rumores que se estendiam por Rowsley. Tanto Brandon como ela acreditaram que William adiaria a visita até que a moça retornasse à cabana, mas não foi assim. Depois de ler a carta várias vezes, o duque aceitou o convite sem titubear.

Como era de esperar, seu marido falou sobre a vunerabilidade do duque e que aceitar aquela imposição do reverendo se devia a querer esclarecer a verdade. Embora ela não estivesse de acordo com aquela hipótese tão absurda. Sabia que o homem escondia algo em seu interior. Algo que ainda, por sua inexperiência no amor, não sabia nomear. Acaso seu marido estava cego? Desde quando adornavam o interior da residência com flores? Como não deduziu uma coisa tão singela? Possivelmente porque não o tinha pensado de um ponto de vista lógico. Era muito fácil de compreender, na tarde anterior tinha estado com ela no jardim, todo mundo pôde observá-los posto que eles não se escondessem e, nessa mesma noite, o duque ordenou colher às mesmas flores que estavam observando para encher os vasos da casa.

«Homens...», sussurrou para si a anciã.

? Senhora Stone, posso lhe fazer uma pergunta? ? Solicitou Beatrice depois de um momento em silêncio.

? Se puder respondê-la, farei-o ? respondeu levantando o rosto para a jovem e tentando averiguar o que lhe rondava pela cabeça.

? Quem são os convidados que almoçarão com o duque? ? Girou-se para a mulher e apoiou a cintura na pedra da bancada.

? Por que deseja saber, moça? ? Levantou-se do assento e inundou as batatas cortadas em um caldeirão de água fria.

? Não sei... tanto mistério me deixou muito intrigada.

? Não se preocupe, o duque saberá contornar qualquer problema ? disse sem pensar.

? Problema? De que tipo de problemas fala? ? Aproximou-se tanto da mulher que podia tocar suas costas com sua respiração.

? Como te disse... ? ao girar-se a encontrou de frente.

O rosto da jovem mostrava tanta preocupação e ansiedade que Hanna duvidou se prosseguia com a conversação ou mudava radicalmente. Entretanto, se suas deduções fossem corretas, ela devia saber a verdade por mais dolorosa que fosse.

? Suplico-o... ? rogou.

? É só o senhor e a senhora Brace ? expôs enfim.

? O pároco e sua esposa? ? Perguntou assombrada.

? Sim. Não é a primeira vez que visitam Haddon Hall e imagino que desejam conversar de novo com lorde Rutland ? disse subtraindo importância ao acontecimento.

? Esses dois geralmente não visitam ninguém, a menos que estejam tramando algo ? murmurou pensativa.

? Bom, talvez seja só outra visita de cortesia. ? Afastou-se da moça e retornou à mesa para pegar outras verduras que devia descascar.

? Oculta-me algo, não é, senhora Stone? E se tem certo cuidado em me dizer a verdade é porque o propósito da... ? ficou calada. Olhou fixamente à anciã e ao observar que esta se encontrava mais inquieta do que o habitual, soube que ela tinha algo a ver com aquilo. ? Rogo-o, conte-me o que acontece.

Hanna a olhou com tristeza e sopesou se aquela criatura poderia suportar a verdadeira razão. Não só porque ela foi uma vez a concubina do duque, mas sim porque isso lhe produziria um pesar irreparável. Estava segura de que fugiria de Haddon Hall, possivelmente até abandonaria a miserável cabana em que habitava e, para desgraça do duque, não voltaria a encontra-la jamais.

? Senhora Stone... ? suas suaves palavras ao lhe haver colocado a delicada mão sobre seu ombro, despertaram-na de suas reflexões.

Ia dizê-lo e que Deus a amparasse se se equivocava.

? Quando o duque te recolheu da cabana chamou o médico de Rowsley. Depois de lhe cuidar das feridas teve um enfrentamento com o duque. Acusou-lhe de te enviar àquele refúgio para te usar como prostituta e te abandonar naquele lugar desprotegido. Apesar dos intentos de nosso duque para esclarecer a verdade, o senhor Wadlow não atendeu à sensatez. Partiu convencido de sua teoria e a difundiu pela cidade ? expôs com voz entrecortada.

? Por quê? Que motivo teve para pensar algo assim? ? A jovem apertou a mandíbula e segurou seu avental com força.

? O anterior duque de Rutland não tinha princípios nem respeito por ninguém. Cada vez que retornava convidava à Haddon Hall todas as prostitutas que encontrava em sua viagem. Isto já não era um lar pequena, era um prostíbulo. Não lhe importava que seus filhos brincassem de correr na mesma casa em que ele se embebedava e fornicava com as fulanas. Todo mundo sabia o que acontecia aqui e para que a desastrosa fama dos Rutland não alcançasse a honradez de nenhuma família, separaram-no da respeitável sociedade a qual pertencia. Esse homem trouxe a desgraça ao sobrenome Manners, destroçando o trabalho que seus ancestrais realizaram pelo condado de Derbyshire. Como pode supor, a duquesa era incapaz de aparecer por este lugar quando descobriu as façanhas de seu marido e inclusive terminou abandonando seus próprios filhos. Estava acostumada a dizer que as pobres criaturas lhe recordavam quão desventurada era ao casar-se com aquele monstro. Finalmente, o senhor Stone e eu tivemos que tomar conta daqueles meninos desamparados.

? Meu Deus! ? Exclamou Beatrice dirigindo sua mão direita para a boca e deixando que as lágrimas vagassem pelas bochechas.

? Ele não é como seu pai, por mais que tenha acreditado sê-lo no passado. Não o é! Mas não descobriu sua verdadeira condição até que foi muito tarde... ? Hanna soluçou e cobriu seu rosto com as palmas. ? Ele não merece isto, Beatrice. Ele não merece carregar com destruição a maldade de seu pai.

A jovem abraçou com força a anciã para consolá-la, embora por mais que o tentasse, não o obteve. Tal como tinha deduzido em mais de uma ocasião, aquela mulher se comportava como a mãe que o duque nunca teve ao seu lado. Depois de respirar com profundidade, separou-se da anciã e se dirigiu para a porta.

? Aonde vai? ? Inquiriu Hanna assustada.

? Vou explicar o que realmente aconteceu. ? Abriu a porta e correu escada acima procurando Lorinne entre as habitações. ? Recorda onde estão os vestidos que o duque comprou? ? Perguntou ao encontrá-la.

? Sim, guardei-os em... ? não terminou. Beatrice a segurou pelo braço e a arrastou ao corredor.

? Pega o mais bonito e traga ao meu quarto!

? Senhorita Brown! ? Exclamou a donzela desconcertada.

? Faça o que te digo e não perca tempo, tenho que fazer algo importante. ? Finalizou seu mandato e correu em volta da habitação que tinham preparado no dia anterior.


XVII


William tomou sua segunda taça de licor sentado na poltrona do salão enquanto esperava a inoportuna visita do senhor e senhora Brace. Meditava intranquilo como conduziria a conversação que devia enfrentar sem ter que danificar a honra da senhorita Brown. Não era justo que as barbaridades de seu pai repercutissem sobre a jovem. Acaso não bastava tê-lo como único centro de zombarias? Os rumores que seu título carregava entre a alta sociedade não lhe preocupavam, mas sim lhe enfureciam se estas machucavam a uma moça indefesa e alheia ao dito passado.

O duque olhou de novo o fogo e o contemplou com atenção. Como nas vezes anteriores, as chamas dançavam ao seu desejo, livres, subindo pela chaminé sem nada que as detivesse. Franziu o cenho e sopesou se em realidade ele também tinha tido algo de culpa no acontecido com Beatrice. Possivelmente se não a tivesse deixado desamparada naquele lugar, se lhe tivesse obrigado a abandonar um terreno que não lhe pertencia, se não tivesse cavalgado aquela tarde, se não o tivesse cuidado com ternura... mas então uma forte dor emergiu de seu peito. Fazê-la desaparecer de sua vida não era a opção adequada e tampouco se arrependia de seus atos após conhecê-la, embora seguisse culpando-se pelo dano que lhe ocasionaram os lobos.

Sem acertar o motivo pelo qual se sentia tão absorto na jovem, sentenciou que, apesar da reprovação do matrimônio, a moça permaneceria todo o tempo que o fosse possível em Haddon Hall. Algo em sua cabeça lhe gritava que não podia deixá-la partir até que indagasse um pouco mais sobre o motivo pelo qual lhe proporcionava tanta felicidade contemplá-la dormir placidamente, a razão pela qual ela, ao escutar sua voz, acalmava-se dos sonhos inquietos e, sobretudo, queria averiguar por que até essa manhã em que ela se apresentou junto a ele em camisola, seus desejos sexuais não tinham despertado como aconteceu no passado quando tinha uma mulher ao seu lado.

William se elevou da poltrona e caminhou devagar pela amplitude da sala. Este último pensamento o tinha açoitado desde que saiu da habitação. Era certo que tinha evitado desejar a senhorita Brown com a mesma ansiedade que desejou suas amantes, mas um certo nervosismo crescia quando ela estava ao seu lado, quando a sentia próximo ao seu corpo, quando o olhava com aqueles olhos repletos de malícia infantil. Entretanto, aqueles sentimentos eram o começo do que Federith denominava amor? Tampouco soube responder-se de maneira concreta. O único que se atrevia a explicar era que cada vez que Beatrice estava ao seu lado um sentimento quente, terno e intenso brotava sem poder evitá-lo, algo que não tinha padecido com antecedência. Se não recordava mal, quando uma mulher caía em seus braços, tratava-a com mimo, como devia fazer todo homem que se autoproclamava cavalheiro. Mas depois do ato sexual levantava-se do leito, vestia-se e esquecia quem o tinha agradado naquele momento.

O mero feito de afastá-la de seu lado lhe provocava tal angústia que ficava sem ar para respirar.

? Milord, o senhor e a senhora Brace acabam de chegar ? informou Brandon. ? Deseja que lhes faça entrar ou lhes receberá no hall?

? Melhor eu sair para recebê-los. ? Com passo firme avançou até a porta, tomou ar e, desenhando um sorriso em seu rosto, recebeu-os: ? Boa tarde, prezado senhor Brace ? estendeu a mão para este.

? Boa tarde, Excelência, obrigado por aceitar nossa visita. ? Também estendeu sua mão e segurou com força a do duque.

? Senhora Brace... ? William inclinou levemente a cabeça ao mesmo tempo em que a esposa do pároco realizava uma pequena reverência.

? Sinto se meu marido não lhe ofereceu uma alternativa para negar-se milord, mas tem que entender que depois de todos esses maliciosos rumores que se propagaram como fogo por Rowsley, deveríamos nos apressar em fazê-los desaparecer ? argumentou a mulher sem apagar o sorriso de seu rosto.

? Entendo-o. Os rumores infundados sobre a senhorita Brown devem parar neste mesmo momento. Assim, se forem tão amáveis de me acompanhar, poderemos falar sobre isso na sala de jantar enquanto nos servem o almoço. ? Continuou com o sorriso no rosto e tentou aparentar uma serenidade que não tinha.

? Permita-me lhe dizer que converteu seu lar em um bonito jardim. Nunca tinha tido o prazer de contemplar umas flores tão coloridas e com tanta essência. Têm um aroma característico como se fossem...

? Frutas ? terminou a frase o duque. ? Sim, cada uma delas cheira a uma fruta diferente. Se desejar aproximar-se das brancas... ? caminhou para elas para que a senhora Brace avançasse atrás dele. ? Pode cheirar-las? Não lhe parecem que desprendem um aroma muito semelhante ao das laranjas recém-cortadas?

? Sim, assim é! ? Exclamou entusiasmada a mulher. ? Que preciosidade!

? Lídia, por favor, não entretenhamos ao duque com uma inoportuna aula de botânica. Viemos com um objetivo e quanto antes resolvermos, será melhor para todos ? esclareceu amargamente.

? Você tem razão ? comentou William adiantando-se aos seus convidados para conduzi-los à sala de jantar.

A mulher contemplou maravilhada a dimensão da sala ao entrar. Era bastante ampla, mais do que ela tinha imaginado. Sem apartar seus olhos dos abajures de cristal, das toalhas de mesa que cobriam os aparadores, dos candelabros de prata e dos inumeráveis quadros que preenchiam as paredes, avançou ao lado de seu marido.

? Aceita uma taça, senhor Brace? ? Perguntou o duque ao mesmo tempo em que se dirigia para o móvel de madeira esculpida que havia justo ao lado de outra, das imensas chaminés de pedra que tinham sido construidas na mansão.

? Claro. ? Avançou para ele e agarrou com cuidado a taça enquanto o duque a servia. ? Melhorou bastante ? disse após observar como ele não balançava a garrafa.

? Não me ficou outra opção.

Arqueou as sobrancelhas esperando que o pároco respondesse com alguma rabugice, mas não foi assim, apenas assentiu e retornou junto à sua esposa.

? Bom, milord. Como já sabe, nossa visita não é de cortesia, temos que tratar de um tema bastante difícil de aceitar ? começou com sua exposição.

? É óbvio, prossiga, escuto-lhe ? disse em tom sereno ao mesmo tempo em que dava o primeiro sorvo e permanecia de pé junto ao calor do fogo.

? Depois da visita que o senhor Wadlow realizou para curar a famosa senhorita Brown, disse no povoado que você prosseguia com a desdita que seu pai começou ? expôs sem hesitações. ? Como pode compreender, embora não seja de nossa incumbência nos misturar em assuntos tão pessoais, os cidadãos de Rowsley temem pela reputação de seu povoado. Não desejam que lhes volte a relacionar com assuntos tão escandalosos.

? Entendo... ? murmurou sem apartar o olhar do homem e tomando outro gole.

? Ao seu favor direi que o conheço desde sua infância e o afeto que isso me gera, fez-me tomar a decisão de vir a Haddon Hall. Quero escutar de sua boca a verdadeira versão dos fatos. Custa-me pensar que, depois do horror que deve ter experimentado quando seu pai transformou um respeitável lar em um sujo prostíbulo, deseje continuar pelo mesmo caminho.

? Se for tão amável de me explicar qual é a versão que se comenta pelas ruas de Rowsley, eu lhe darei a minha. ? William segurou com tanto ímpeto a taça que acreditou ter escutado como o cristal se rachava.

Não só desprezava que o comparassem com seu pai e lhe recordassem a maldita infância que teve que suportar, mas sim o de compararem Beatrice com uma das mulheres que rondavam o lar quando seu progenitor aparecia, provocava-lhe uma ira tão descontrolada que, se nesse momento o bom doutor tivesse aparecido pela porta, teria o agarrado pelo pescoço e o teria estrangulado.

? Conta-se que você trouxe uma concubina de Londres e a alojou no refúgio de caça que tem perto do rio Wye ? esclareceu a senhora Brace até este momento calada.

? Alguma coisa mais? ? Inquiriu o duque apertando a mandíbula.

? Que a deixou desprotegida, virtualmente abandonada e que por sua falta de compaixão ela foi atacada pela manada de lobos que habita no bosque ? prosseguiu a mulher.

? Entendo... ? repetiu. William caminhou para a mesa, pousou a taça, elevou o olhar à criada e, depois de um leve gesto, esta começou a realizar os preparativos para começar a servir. ? Se forem tão amáveis de sentar-se ? disse em tom aparentemente sereno.

? Não teremos a honra de conhecer a senhorita Brown? ? Perguntou de repente a esposa do reverendo ao mesmo tempo em que arqueava as sobrancelhas e cravava seus azulados olhos no homem.

? Esta tarde, a senhorita Brown... ? não conseguiu terminar a desculpa que inventaria quando a porta do salão se abriu com tanto ímpeto que parecia ter acontecido um furacão.

? Boa tarde, perdoem minha demora. Hoje a donzela não estava tão eficiente como se requeria.

Beatrice apareceu sorridente na habitação, e para surpresa de William tinha decidido usar o vestido turquesa que lhe tinha comprado no povoado. O contraste com a cor de seu cabelo a embelezava ainda mais. O cabelo, amarrado em um perfeito coque, deixava em liberdade várias mechas convertidas em ondas. Com um passo incrivelmente elegante, dirigiu-se para os convidados.

? Senhorita Brown? ? Perguntou atônito o senhor Brace ao mesmo tempo em que caminhou para ela.

? E você deve ser o pároco de Rowsley, não é? ? Respondeu sorridente enquanto lhe oferecia a mão e o paróco a beijava com suavidade.

? Ouviu falar de mim? ? Quis saber o homem sem diminuir seu entusiasmo.

? É óbvio! Todo mundo fala dos incríveis discursos que oferece aos domingos na igreja. Sinto se ainda não pude desfrutar deles, mas compreenderá, depois do desafortunado encontro que sofri há uns dias com uma selvagem manada de lobos, não tive forças para sair daqui.

? Não se preocupe. Com certeza poderá escutá-los quando se encontrar melhor. Se me permitir isso, quero lhe apresentar a minha esposa. ? Ambos dirigiram-se para onde se encontrava a senhora Brace e esta, em vez de saudá-la da maneira correta, abraçou-se à moça como se se tratassem de duas boas amigas.

? Minha querida moça, alegra-me encontrá-la em tão fabuloso estado. O senhor Wadlow nos comentou que as feridas que lhe causaram esses ditosos animais poderiam havê-la matado ? explicou sem mal respirar.

? Foi uma imprudência me aventurar a passear sem o amparo do duque. Ele insistiu em reiteradas ocasiões que era um lugar perigoso para caminhar, mas devido à impetuosidade da minha juventude não lhe escutei.

? Mas não foi ele quem a encontrou? ? Lídia primeiro olhou ao duque e depois à moça.

? É óbvio, quando lhe informaram que não me encontrava em meus aposentos soube, com exatidão, onde poderia me encontrar ? sorriu novamente.

? Senhorita Brown... ? intercedeu o duque.

Mal lhe saíam as palavras. Estava em um estado de atordoamento tão irracional que lhe era difícil pensar com claridade, não só sua aparição, mas sim sua beleza, seu comportamento e a melodia de sua voz fizeram com que William se debilitasse tanto que, sem esperar os outros, teve que sentar-se.

? Sim, sua Excelência? ? Perguntou a moça sem apagar o sorriso em seu rosto e mostrando um olhar cheio de ternura para ele.

? Estava lhes oferecendo...

? Sinto muito! Interrompi algo importante? ? Manifestou com cara de espanto.

? Não se preocupe. ? Lídia lhe dava uns pequenos golpes na mão esquerda para acalmar a suposta ansiedade da moça. ? Estávamos a ponto de nos sentar para começar o almoço.

? OH, graças a Deus! ? Voltou a exclamar. Desta vez com menos ênfase. ? Pensei que minha companhia não fosse agradável.

? Como pode pensar tal insensatez? Por favor, sente-se ao meu lado ? indicou Lídia. ? Enquanto eles falam de temas sem importância, nós conversaremos sobre esse desafortunado incidente.

Os olhares entre Beatrice e William eram cada vez mais intensos. Ele tentava lhe perguntar que demônios fazia ali e ela, com um sorriso malicioso, indicava-lhe que não se preocupasse.

Os criados começaram a servir a comida. Brandon, como sempre, ajudava ao duque nos pequenos contratempos que surgiam. O mordomo, com discrição, separou-se dos olhares dos convidados para cortar a carne, logo se aproximou e posou o prato com mestria ao lado do duque. Embora, ao que parecesse, William estava mais interessado em manter sua taça cheia de vinho que em comer. Não podia apartar os olhos da jovem. Observou como se sentava corretamente, como segurava os talheres com desenvoltura e como levava a comida para a boca para mastigá-los sem mal movê-la. Seus olhos brilhavam e suas bochechas se ruborizavam quando o pároco lhe falava sobre sua juventude e seus encantos. De vez em quando abandonava o guardanapo sobre o regaço e apartava uma mecha que, rebelde, tentava ocultar o lado esquerdo de seu semblante.

Um intenso calor percorreu o corpo de William, não soube com claridade se essa sensação era produzida pela grande quantidade de álcool ingerido ou pelos contínuos sufocos que lhe criavam os sutis movimentos da moça. Apesar de evitá-lo com todas as suas forças e de tentar responder às suas inumeráveis perguntas com evasivas, já não havia dúvida alguma, estava apaixonado por ela. Não entendia a razão pela qual seu coração tinha permitido entrar esse absurdo sentimento, mas o tinha feito. Agora só tinha que fazer uma coisa: fazê-la apaixonar-se, embora muito temesse que aquele trabalho fosse quase impossível.

? Então, senhorita Brown...

? Chame-me de Beatrice, por favor – Interrompeu-lhe com delicadeza.

? E você pode me chamar de Brennet, se o desejar ? sugeriu após sorrir com tanto ímpeto que mostrou sua dentadura, aquela que William quis fazer desparecer com um murro.

? É um nome lindo! ? Exclamou sorridente.

? Muito obrigado – ruborizou-se. ? Então, Beatrice, pode nos explicar como o destino a conduziu até este lugar?

? Sim, Beatrice, ? intrometeu-se Lídia – explique-nos como uma jovem tão elegante e educada decidiu abandonar seu lar para instalar-se em...

? Não estará tentando dizer que Haddon Hall não é um lugar adequado para ela, não é senhora Brace? ? Por fim, depois de um eterno silêncio, William falou e o fez expressando todo o sarcasmo que podia mostrar.

? Deus me salve se minhas palavras quiseram expressar essa atrocidade! ? Exclamou a mulher antes de abanar-se com a mão para acalmar seu embaraço.

? Minha mãe, amiga de uma irmã de uma amiga da irmã de outra amiga da atual duquesa de Rutland... ? começou a explicar com certo entusiasmo ao descobrir o mal-estar que tinha provocado a mulher em William ? foi informada sobre o magnífico tutor que é sua Excelência e, depois que minha última instrutora decidiu abandonar seus afazeres como professora para empreender uma vida de matrimônio, minha mãe decidiu, depois da aceitação do duque, enviar-me a Haddon Hall.

? Não conhecia essa sua faceta de professor ? disse Brennet olhando sem piscar ao duque.

? Bom, a gente não pode alardear de tudo o que sabe fazer, não é? ? E sem apartar seus olhos de Beatrice bebeu de novo, embora desta vez apurasse o conteúdo de um sorvo.

? E como é sua Excelência na faceta de educador? ? Quis saber Lídia com curiosidade.

? Muito rigoroso. Pensa que todo mundo é tão inteligente quanto ele e não se dá conta de que nem todos nasceram com essa bênção divina. ? Dirigiu suas mãos para os talheres e continuou saboreando a comida que se esfriava no prato.

? Um defeito insano ? pronunciou William simulando um profundo pesar. Levantou a mão e o criado voltou a lhe encher a taça.

Depois dessa conversação, os comensais se ocuparam em finalizar o suculento almoço, exceto o duque, cujo prato foi retirado intacto. Depois de recolher a mesa, a criada serviu umas pequenas terrinas com a sobremesa.

? Pudim! ? Exclamou Lídia eufórica.

? Gosta? ? Perguntou Beatrice.

? O que... se eu gosto? Eu adoro! ? Disse com entusiasmo a mulher.

? Lídia... ? murmurou Brennet olhando-a com o cenho franzido.

? Sim, sei, mas prometo que só comerei o que me oferece ? afirmou com certa reserva.

? Bom, senhor, ? falou de novo o pároco ? acredito que lhe devo uma desculpa.

? Uma desculpa? ? intrometeu-se a moça.

? Sim, Beatrice, tanto ao duque como a você, devemos uma desculpa.

? Por qual motivo, Brennet? ? Abandonou a colher sobre a mesa, deixou o guardanapo em seu regaço e prestou toda sua atenção.

? Não me deve nenhuma desculpa ? intercedeu William com rapidez. Não queria que a jovem descobrisse o rumor que se propagou por Rowsley. Na verdade, não queria vê-la sofrer e menos ainda naquele momento no qual a alegria e o entusiasmo se apoderaram dela atuando como sua inocente e confiante pupila.

? O senhor Wadlow, o doutor que a atendeu, ? começou Lídia a falar ? pensou que...

? O que? ? Beatrice pousou sua mão sobre a dela e mostrou um semblante cheio de incerteza que esperava fizesse a desbocada mulher continuar.

? Que você era a concubina de sua Excelência ? explicou enfim.

? Sua concubina? Quer dizer que esse homem foi dizendo a todo mundo que eu era a prostituta do duque? ? Levou-se as mãos para o rosto e soluçou. ? Pelo amor de Deus! Como pôde pensar tal aberração?

William se levantou com rapidez do assento, apesar de encontrar-se um pouco transtornado, caminhou para Beatrice para consolá-la, mas ela, ao vê-lo tão próximo e sendo consciente do assombro que expressavam os convidados, levantou a mão e fez que abandonasse suas pretensões de consolo.

? Acaso não se deram conta da situação atual deste homem? ? Perguntou com aparente aborrecimento. ? Como podem sequer imaginar que uma pessoa que não pode nem abotoar a jaqueta, nem pode se alimentar sem a ajuda de seu mordomo, iria albergar em seu lar, um respeitável e honorável lar, uma prostituta com a qual fornicar?

William abriu os olhos como pratos, deu uns passos para trás e, ocultando a tristeza e a possível quebra de seu coração, retornou ao seu assento. Jamais teria acreditado que a moça pensasse isso dele. Jamais imaginou que ela o considerava um ser inerte, débil e imprestável.

? Sinto muito, Beatrice ? disse Brennet tentando aplacar a ira da moça. ? Não era nossa intenção...

? Mas embora não tenha sido sua intenção, ? falou com pesar ? o dano já está causado. Diga-me, senhor Brace, como posso recuperar agora minha honra manchada? ? Umas lágrimas apareceram em seu rosto e todos os que a observavam ficaram quebrados de dor.

? Pobrezinha... ? murmurou Lídia antes de abraçá-la. ? Isto deve ser muito duro para ti.

? Não imagina o quanto, senhora Brace... ? continuou fingindo seus soluços.

? Brennet, poderíamos fazer algo para recuperar essa honra ? comentou Lídia sem deixar de abraçar a moça.

? Não sei o que... ? o pároco estava pálido, quase tão branco quanto o duque.

? Senhor, se você decidisse apresentar a senhorita Brown em sociedade como merece, todo mundo descobriria a verdade ? insinuou a mulher.

? Uma festa? ? Beatrice levantou o rosto estupefata e observou ao duque, cujo rosto estava desgrenhado, descolorido e com um estranho fogo em seus olhos.

Nesse momento a moça sentiu lástima por ele e pensou que devia ter contado a Hanna qual era seu plano para que o homem não sentisse o pesar que naqueles momentos o fazia sofrer. Mas sua parte malvada, aquela que de vez em quando brotava sem avisar, indicava-lhe que não lhe estava mal empregado aquele sofrimento, posto que ele fosse o culpado do início dos falatórios. Entretanto, sua metade boa se entristecia por sua agonia. Possivelmente o correto seria lhe explicar, quando os convidados partissem, que tudo era mentira.

? Claro! É uma ideia estupenda. Como não me ocorreu antes? ? Brennet dirigiu o olhar para o duque. ? Se você organizasse uma celebração e convidasse todas as pessoas influentes de Rowsley, poderia apresentá-la como é devido e se resolveria com rapidez o tema.

? Acreditam que assim cessarão esses malditos rumores? Porque eu não estou tão seguro ? disse com voz impessoal, sem emoção, enquanto esvaziava outra taça em seu estômago.

? É óbvio! É a melhor opção! ? Respondeu o pároco entusiasmado.

? Pois então farei. Ordenarei meu mordomo que nesta tarde mesmo se redijam os convites e os leve em pessoa.

? Perfeito! ? Exclamou Lídia abraçando com mais brio a jovem. ? Já verá como tudo se soluciona e voltará a recuperar aquela honra perdida.

? Isso espero. ? E voltou a olhar ao duque que continuava bebendo o álcool que havia em sua taça.


XVIII


Deveriam ter atuado tal como ditavam as normas, os homens partindo à outra sala enquanto falavam de assuntos sociais e elas ficando a sós ao mesmo tempo em que se aproximavam do fogo para conversar sobre outros rumores importantes de Rowsley, mas o duque não mostrou nenhuma intenção de abandonar a sala onde se encontravam, então ninguém o propôs. O senhor Brace enumerou uma lista interminável de célebres personagens aos quais deveriam convidar e que Brandon, atento como sempre, foi anotando em uma folha.

? Redija as missivas o antes possível, senhor Stone. Quero que sejam enviadas nesta mesma tarde ? disse William fazendo com que o mordomo abandonasse o salão.

Depois da saída de Brandon, o senhor e a senhora Brace falaram sem parar sobre o acontecido em Rowsley durante a ausência do duque: a chegada de novos vizinhos, as novas construções que se realizaram, a inapropriada repercussão que tinham tido certas influências europeias na sociedade, de religião... tagarelaram tanto que chegou um momento no qual William inclusive bocejou de aborrecimento, entretanto, Beatrice escutava com atenção e um excessivo entusiasmo. Só quando a senhora Brace narrou o desafortunado incidente da filha de um servente dos Salwin a moça se congelou e seus olhos se encheram de lágrimas. Teve um impetuoso desejo de sair correndo e encerrar-se em seu quarto para chorar, mas reuniu suas forças e aguentou estoicamente o relato sobre a violação da jovem por uns assaltantes.

? A pobre garota não pôde superar a desgraça ? indicou Lídia com tristeza. ? Enfim, seus pais investiram a pouca fortuna que guardavam para sua velhice e a enviaram para uns parentes que vivem na pequena aldeia de Hargate Wall. Estou segura de que em um lugar tão afastado esquecerá o acontecido e poderá viver em paz.

O nó que se produziu na garganta de Beatrice lhe impediu de responder aquilo que pensava, só pôde assentir ao mesmo tempo em que Lídia, ao vê-la tão angustiada pela história, dava-lhe uns suaves tapas na mão para consolá-la. De repente, o aborrecimento que suportava William com tanto bate-papo desapareceu com rapidez ao observar a reação da jovem. Em certo modo podia entender que ela não tivesse pensado que poderia lhe ocorrer algo similar vivendo na cabana, até esse momento ele tampouco tinha meditado sobre isso, feito que o enfurecesse de maneira sobre-humana. Entretanto, aquelas lágrimas que lutavam por brotar, o encolhimento de seu pequeno corpo, a respiração entrecortada e a palidez do rosto terminaram por levar seus pensamentos para uma possibilidade que lhe horrorizava.

Disse-se a si mesmo que a ingestão de álcool o estava dirigindo para divagações inapropriadas.

? Bom, temos que partir ? disse o senhor Brace após dar por concluída sua visita e levantando-se de seu assento. Ato que imitaram sua esposa e Beatrice. ? Não é adequado lhes fazer perder mais tempo com nossa companhia. Senhorita Brown... ? aproximou-se da moça e estendeu sua mão para lhe fazer chegar a sua e assim poder beijá-la com suavidade ? foi um prazer conhecê-la.

? Muito obrigada pela visita e recorde que será uma grande honra para nós poder gozar de sua presença na festa ? expôs a moça sorridente.

? É claro! ? Exclamou Lídia abraçando-a de novo. ? Estaremos ao seu lado em todo momento e estou segura de que sua honradez se restabelecerá.

William se levantou da poltrona com dificuldade. O estado de embriaguez estava começando a cobrar seu preço, mas tentou não mostrar, caminhando o mais reto possível. Uma vez na saída, esperou ansioso a partida de seus convidados. Tinha assuntos pendentes com a senhorita Brown e, embora reconhecesse que não se encontrava nas condições apropriadas, não podia esperar.

? Milord... ? despediu-se a senhora Brace com uma reverência.

? Senhora Brace... ? respondeu William com um suave movimento de cabeça.

? Até sábado. ? Brennet estendeu sua mão para o duque e depois de um apertão caminhou para sua esposa, segurou-a pelo braço e abandonaram Haddon Hall.

Tanto Beatrice quanto William lhes acompanharam para o exterior da casa. Até aquele momento ela se comportou de acordo com o planejado, mas uma vez que a carruagem desapareceu da vista de ambos, Beatrice recuperou sua compostura e, desaparecida a inquietação que aguentava, deu um enorme suspiro, ajeitou seu vestido e girou-se para retornar ao interior.

? Não parta ainda, senhorita Brown ? pediu antes que esta desse dois passos. ? Temos uma conversação pendente.

? Não acredito que deva perder mais tempo, senhor. A senhora Stone necessitará da minha ajuda na cozinha – desculpou-se.

? Verei-a na biblioteca em cinco minutos. Se não aparecer, irei eu mesmo buscá-la ? sentenciou. E deixando a moça incapaz de avançar, caminhou com certa dificuldade para a habitação.

Beatrice andava devagar. Os pés lhe pesavam tanto que não era capaz de levantá-los. Seu corpo tremia e podia sentir o agitado palpitar de seu coração. Tinha uma leve ideia sobre o tema da conversação e estava segura de que não haveria palavras de agradecimento.

Falou-lhe com desprezo, assinalou que diante do matrimônio ele era um ser inútil, incapaz de realizar uma mísera tarefa sem a ajuda de outros. Muito ao seu pesar fez mal, mais do que pretendia. Entretanto, as conversações aconteceram de maneira inesperada. Ela imaginou que logo que reparassem em sua presença, o duque teria a voz predominante na reunião e depois de esclarecer que ela não era uma concubina, tudo finalizaria. Jamais sopesou que sua assistência entorpeceria a reunião, nem que a senhora Brace fora tão rápida em oferecer alternativas para restabelecer sua honra.

«Uma festa... ? meditou a jovem quando recuperou o domínio de si mesma o suficiente para entrar no lar. ? Uma festa a qual assistirá uma grande quantidade de pessoas que cravarão seus olhares em mim. Como não neguei tal loucura! Acaso perdi a razão? Meu Deus! E se alguém me reconhecer? E se alguém descobre quem sou na realidade?».

Aterrorizada, Beatrice ficou parada na entrada. Olhou para as escadas e logo dirigiu seus olhos para a porta onde o duque a esperava. O que devia fazer? Fugir? Afastar-se dali nessa mesma noite? Estava segura de que o homem alegaria qualquer desculpa quando a cerimônia fosse cancelada, mas antes de começar a caminhar para a escada, escutou que alguém reclamava sua atenção.

? Senhorita Brown ? sussurrou-lhe Brandon. O homem se escondia entre as sombras que lhe proporcionava o lado direito da escada.

? O que acontece? ? Perguntou em voz baixa ao mesmo tempo em que avançava para ele.

? Preciso lhe pedir um favor, conceder-me-ia isso?

Beatrice ficou pasmada. Era a primeira vez que o mordomo se dirigia a ela daquela forma, inclusive percebeu no rosto do ancião um mal-estar inesperado. Durante o tempo que levava conhecendo-o, sempre tinha mostrado um semblante sereno e impessoal, ninguém, salvo sua mulher, poderia adivinhar os estados emocionais de Brandon. Entretanto, nesse momento, Beatrice percebeu sua preocupação sem que a expressasse com palavras.

? Diga-me o que necessita, está me assustando. ? Dirigiu suas mãos para o tecido do vestido e o segurou com força.

? Rogo-lhe, não permita que nosso senhor continue bebendo. No almoço ingeriu mais álcool do que pode suportar e temo que em seu estado possa fazer alguma tolice ? explicou com suavidade. ? Lembre-se que a última vez...

? Não se preocupe, evitarei que volte a tomar outra taça – prometeu. ? Algo mais? ? Brandon negou com a cabeça. ? Nesse caso, não lhe farei esperar mais tempo. ? Caminhou para a porta da biblioteca, ofereceu ao homem um pequeno sorriso e escutou um «obrigado» antes de introduzir-se na sala.

Tal como imaginava o fiel mordomo, William servia-se de outro copo de uísque enquanto a aguardava e, quando ela entrou encontrou-o cambaleando para o centro da habitação. Beatrice observou surpreendida que já não levasse posta a jaqueta e que liberava da alça, que as costureiras costuravam em todas as roupas, a mão esquerda. Era a segunda vez que ele se apresentava ante ela dessa maneira. Parecia não lhe importar que pudesse ver o que escondia com esforço de outros.

A moça tragou saliva ao recordar o salto que William deu quando ela conseguiu tocá-lo e o desconforto que lhe produziu a suave aproximação. Por que se levantou tão temeroso? Por que não lhe importava que ela o observasse assim? Apagando de sua mente as incessantes perguntas, centrou-se na promessa que tinha feito ao Brandon e aliviou seu passo até alcançar o duque.

? Não acredita que já bebeu o suficiente, senhor? ? Perguntou resmungando ao mesmo tempo em que lhe tirava a taça e o impedia de dar o primeiro gole.

? Não... acredito que ainda posso tomar um pouco mais ? respondeu William surpreso pelo comportamento descarado da jovem.

? Tal como pensava, não se encontra em plenas faculdades mentais para decidir nada nem cercar uma conversação coerente. Não pode nem se manter em pé ? opinou sem duvidar.

Foi para o móvel, depositou o copo sobre ele e logo caminhou depressa para a janela. No trajeto, o vestido se sacudia com a mesma intensidade de seu caminhar provocando que, ao aproximar-se do duque, o tecido do vestido tocasse as pernas deste com suavidade.

? Sabe que este tipo de comportamento para um homem como eu tem sérias consequências? ? Comentou com aparente mau humor enquanto começava a persegui-la.

? Você vai me castigar? ? Girou-se para a voz e nesse instante o encontrou ao seu lado olhando-a com atenção, sorridente, mais do que esperava após suas palavras.

Beatrice o contemplou durante uns segundos. Estremeceu-se ao encontrá-lo tão próximo, tão perto. Conseguiu cheirar seu aroma, uma mescla de colônia, vinho e uma peculiar e atraente essência viril. Pôde apreciar também como o peito masculino subia bruscamente ao respirar, roçando sem pretender seu queixo e, se fechasse os olhos para prestar atenção, escutaria sem dificuldade as agitadas pulsações do coração do homem.

? Não vou castigar a ninguém ? disse com suavidade.

Em seus olhos negros se projetava a escuridão que havia no exterior da casa. Beatrice fixou o olhar nos lábios masculinos. Apenas se apreciavam com claridade pela espessura de seu bigode. Embora seguissem sendo grossos, fortes, muito vermelhos e, sobretudo voluptuosos. De repente se perguntou se aqueles lábios beijariam como os de seu antigo amor: suaves e inexperientes, ou pelo contrário, conseguiriam o que tantas mulheres murmuravam, criar tanta paixão que perdiam a prudência.

Um intenso calor percorreu o corpo da moça até o ponto que suas bochechas exibiram um tom avermelhado impossível de dissimular. Com estupidez girou-se para voltar a olhar para o exterior enquanto tentava acalmar o pequeno estado de excitação que surgiu depois dos inoportunos pensamentos.

? Você notou como é rara à noite em que a lua brilha com liberdade? ? William esperou uma resposta, ao não a escutar prosseguiu. ? As culpadas disso são as nuvens. Sempre as ocultam para que não consiga exibir sua beleza.

Aproximou-se com lentidão do corpo de Beatrice e apoiou a mão no marco da janela, pôde inspirar a deliciosa essência a sabão que emanava do cabelo da moça. William fechou os olhos e deixou que uma estranha paz acalmasse toda a ansiedade que lhe açoitava desde que descobriu que seus sentimentos para com ela eram mais profundos do que imaginava. Estava inundando-se em um transe de quietude quando percebeu que a jovem tinha conseguido afastar-se dele. Abriu os olhos, voltou-se para ela e esteve a ponto de soltar uma gargalhada ao perceber que colocava de novo suas mãos na cintura e franzia o cenho.

? Pode me dizer para que me fez vir? Porque estou segura que em seu estado não desejará começar uma aula de astronomia, não é? ? Ficou imóvel na metade da sala mostrando uma atitude desafiante, altiva.

? Não, é óbvio que não ? afirmou sem apagar o sorriso que lhe tinha provocado. ? Em primeiro lugar eu gostaria de lhe agradecer por sua magnífica atuação desta tarde. Lástima que não possa aplaudi-la! ? exclamou com zombaria.

? Não o fiz por você, mas sim por mim. Como compreenderá, não é agradável descobrir que todo mundo pensa que sou uma prostituta vulgar ? declarou elevando o queixo.

? Entendo-a e se eu permanecesse junto a uma pessoa imprestável, inútil e incapaz de fazer as coisas por si mesmo, também tentaria explicar a todas as pessoas que duvidassem da minha honra, que não há por que temer de um incapacitado. ? Sorriu mostrando os dentes.

? Não era minha intenção... ? murmurou abaixando a cabeça e agarrando com força o tecido de seu vestido.

? Não se arrependa do que disse, senhorita Brown. Esteve certa. Como pôde comprovar pela mudança de atitude de nossos convidados, essa argumentação foi bastante convincente. ? Deu uns passos para ela e parou antes de voltar a aproximar-se. Não podia perder a pouca sensatez que ficava, maravilhando-se com seu aroma, com seus lábios e lhe dando atenção à parte de seu cérebro que lhe gritava que estendesse a mão, segurasse-a com força e sentisse o calor que emanava seu pequeno corpo. ? Por outro lado, eu gostaria de lhe fazer saber que apesar de todos os intentos que faça nessa maldita cerimônia para restabelecer sua honra, todo mundo seguirá pensando que me vi obrigado, para limpar meu bom nome e jamais deixarão de pensar que você é minha concubina pessoal.

? Não estou tão segura disso... ? comentou sem levantar seu rosto.

? Posso lhe garantir por experiência própria que se as pessoas tiverem uma ideia preconcebida, por muito que tente mudá-la, não o conseguirá ? sentenciou mal-humorado.

? Se tiver o apoio do senhor Brace e de sua esposa, isso não acontecerá. Falarão com o senhor Wadlow e este, como homem honorável, retratar-se-á ? afirmou sem hesitações.

? Acredita que o senhor Wadlow é um homem honorável? ? perguntou levantando as sobrancelhas e soltando uma grande gargalhada. ? Permita-me que lhe conte uma coisa, minha querida senhorita Brown, e logo você mesma faça as conjecturas oportunas sobre a honra do cavalheiro. ? Beatrice, quando elevou por fim seu rosto para olhá-lo, viu-o com os olhos entrecerrados e com o cenho franzido. O que pretendia lhe expor? O que seria tão doloroso para sentir a angústia do homem com tanta facilidade? ? Acredita que todos esses homens aos quais você chama de honoráveis o são de verdade? Quer me fazer acreditar que você é tão ingênua que é incapaz de imaginar que esses que se consideram juizes de outros não cometeram adultério? ? Suas palavras começaram a soar com vigor, igual ao seu caminhar. William dava passos tão largos e cravava com tanta força as solas dos sapatos no chão que a jovem se assustou. ? Muitos dos que se autoproclamam homens respeitosos, não o são. Possivelmente o passar do tempo os tenham feito esquecer o que fizeram junto com meu pai, mas a mim não ? sentenciou.

? Senhor... ? murmurou a moça assustada ante a agitação do homem.

? As suspeitas em relação a ele são só consequências de um passado libertino ? respirou fundo, afrouxou a tensão de seus ombros, girou-se por volta da moça e a olhou sem piscar. ? Meu querido pai visitava Haddon Hall uma vez ao mês. Em suas viagens recolhia as melhores cortesãs que encontrava no trajeto e as mantinha aqui durante o tempo que durava sua estadia. Entretanto, essas mulheres não só se ocupavam de satisfazer os prazeres sexuais do grande duque de Rutland, mas também ofereciam seus serviços a todos aqueles que apareciam nesta casa. ? Beatrice mostrou cara de espanto e, por um momento, William quis resolver o tema para não lhe produzir mais pavor, mas se na verdade desejava levar a cabo a festa, tinha que estar preparada para qualquer contratempo. ? Dois dos melhores amigos do meu pai vinham com assiduidade. Pode-se fazer uma ideia de quem eram essas pessoas? ? Sorriu com zombaria. ? Sim, claro que sabe, vejo-o em seus olhos. Em efeito, o honorável senhor Wadlow e o pai de seu querido e rigoroso senhor Brace. Ambos, por aquela época, homens encantadores e de reputações irrepreensíveis, ? continuou reticente ? esqueciam os famosos preconceitos sociais quando cruzavam as portas de Haddon, onde escondidos em seus quartos viviam e cresciam uns meninos sob a tutela de um piedoso matrimônio. Não ponha essa cara de espanto, senhorita Brown. Era lógico que a duquesa, depois de ser informada das atrocidades de seu marido, decidisse não aparecer sem lhe importar que seus filhos, aqueles que saíram de suas vísceras, ficassem à mercê dos criados. Com o passar do tempo, ? continuou depois de tomar ar e tentar apagar a dor que lhe causava rememorar o passado ? o famoso duque quis que seus filhos, aqueles aos quais não lhe interessou proteger, educar e dar o carinho que devia, continuassem seu corrompido legado. Como era de se esperar, ambos os rebentos recusaram categoricamente essa opção e partiram para o único lugar no qual poderiam encontrar uma vida próspera: Londres. Tiveram a esperança de encontrar a única pessoa que poderia lhes ajudar, sua mãe. Entretanto, a primeira coisa que fez foi lhes recordar que, por muito que tentassem fugir de seu pai, seu próprio sangue corria por suas veias e terminariam convertendo-se no monstro que era seu marido.

? Meu Deus... ? sussurrou a jovem tampando a boca.

? Lausson teve sorte. Conseguiu que uns tios de minha querida mãe o acolhessem e eles lhe ofereceram a vida que tanto ansiava. Quem ostentaria por nascimento o título de duque não teve essa sorte.

Começou a perambular de novo pela sala, inquieto ante a perspectiva de que ela o abandonasse ao abrir seu coração daquela maneira. Estava fazendo o correto? Era sensato lhe mostrar a tortura que o tinha açoitado durante sua vida? E, sobretudo... por que tinha a necessidade de lhe revelar aquilo que tinha ocultado durante tanto tempo?

? Fiz o impossível para demonstrar que eu era diferente do que eles acreditavam, ? continuou com voz pesarosa ? mas as pessoas continuaram pensando que sob uma aparência falsa de cavalheiro se escondia outro futuro libertino. ? Deu-lhe as costas e se dirigiu para a chaminé onde, cabisbaixo, pousou sua mão sobre a cornija de pedra. ? Com o tempo me cansei de insistir em lhes dar aquilo que queriam ver: ao futuro duque de Rutland. Embora, como pôde apreciar... ? girou-se para ela e levou a mão direita para as marcas de seu rosto ? minha vida dissoluta se viu truncada com rapidez.

Beatrice ficou em silêncio. Meditou nas palavras do duque com supremo cuidado, concluindo que aquele homem, em realidade, só era uma vítima de um pai doentio. Entretanto, uma parte também lhe recriminava que não tivesse posto mais interesse em fazer desaparecer aquelas apreciações sobre seu nome. Embora... como apagar as sequelas que outros deixaram com tanta firmeza?

? Contei-lhe isto, ? interveio William ao contemplá-la em silêncio e com o olhar perdido ? para que considere seriamente a descabelada ideia dessa festa.

? Por quê? ? Beatrice caminhou para ele de maneira decidida. ? Por que se preocupa tanto pelo meu futuro se mal me conhece?

? Porque sei que, se não quiser ver-se envolvida em um mundo do qual lhe custará sair, existe uma possibilidade para liberar-se ? disse com quase nenhuma força em suas palavras.

? A que se refere? ? Parou seu passeio nervoso quando esteve em frente ao homem. Apenas lhes distanciavam dois palmos. Beatrice elevou o queixo e o olhou aos olhos de maneira desafiante, esperando a resposta que acreditava saber.

? Poderia partir, afastar-se daqui agora mesmo se quisesse. Encarregaria-me pessoalmente de enviar um criado de minha confiança para que a acompanhasse até onde você desejar ? comentou sufocado. Não queria lhe oferecer essa alternativa porque a ideia de perdê-la o destroçava, debilitava-o, matá-lo-ia com o passar do tempo. Mas era consciente de que se permanecesse ao seu lado seria desventurada.

? Isso é o que deseja? Quer que eu parta? ? Atreveu-se a perguntar.

As palavras não saíam com fluidez de sua boca. Uma estranha tristeza brotou em seu interior e lhe oprimiu com força o coração. Apesar de ter considerado a mesma ideia antes de entrar na biblioteca, agora, por um motivo que estava fora de toda prudência, não queria afastar-se dele. Aquele homem que a olhava com aflição era o mesmo que tinha velado seus sonhos, quem lhe sussurrou palavras de consolo para tranquilizá-la, quem tinha estado ao seu lado durante sua árdua recuperação e o homem que, acreditando que não o escutava, prometia-lhe que a cuidaria pelo resto de sua vida. E nesse momento cumpria sua promessa lhe dando a liberdade de escolher.

? Posso lhe fazer uma pergunta antes de responder? ? Perguntou abaixando a cabeça e estendendo suas mãos pelo vestido.

? É claro. ? William mal podia falar. Sentia uma pressão tão forte em seu peito que lhe impedia de respirar. Não era capaz de conceber que possivelmente esse momento fosse a última vez que contemplaria a moça.

? Por que, quando lhe salvei a vida, não me ofereceu dinheiro como pagamento de sua dívida? ? Seguia olhando o chão. Suas mãos seguraram o tecido do vestido com força. Notava o palpitar de seu coração na garganta e como se debilitavam seus joelhos.

? Mudaria algo em sua decisão? ? Quis saber.

William percebeu a tristeza da jovem e se amaldiçoou por isso. Ele era o culpado desse estado de angústia, de tudo o que estava acontecendo e inclusive se acusava de havê-la conduzido para um desagradável futuro.

? Pode me responder? ? Levantou seu semblante e deixou que o homem apreciasse as lágrimas que molhavam suas bochechas.

? Pelo amor de Deus, Beatrice! ? Exclamou com energia. ? O que quer escutar?

? A verdade... ? murmurou a jovem sem amedrontar-se.

? A verdade? ? Disse com sarcasmo. Em um intento de evadir-se do que ela pedia, William tentou afastar-se de seu lado para recuperar a compostura, mas não o conseguiu, a pequena mão da moça alcançou seu braço e lhe impediu de levar a cabo seu propósito. ? A verdade, Beatrice, é que sou um vilão. Um homem egoísta, insensível e, como todo mundo comenta, um libertino sem escrúpulos.

? E? ? Inquiriu sem liberá-lo.

? E fui incapaz de me afastar da única pessoa que me contemplou como o monstro que sou e não mostrou repulsão ? expôs ao fim.

? Bem... ? voltou a sussurrar a jovem. Abriu a mão e deixou que o duque caminhasse para o centro do salão.

? Bem? Parece-lhe bem que um ser humano se crê com o direito de coibir os desejos de outros? ? Perguntou aturdido.

? Acredito, sua Excelência, ? começou a falar com firmeza ao mesmo tempo em que esticava o tecido de seu vestido ? que a conversação deve finalizar aqui, neste mesmo momento.

? Perfeito. Chamarei o senhor Stone para que lhe prepare uma carruagem e...

? Não me entendeu bem – interrompeu-lhe ao mesmo tempo em que avançava por volta dele e cravava seus verdes olhos nos seus. ? Não vou partir esta tarde, nem amanhã, nem depois, mas sim o farei após essa festa em que todo mundo descobrirá que eu não sou uma prostituta nem você um ser desprezível. Comportar-se-á como deve atuar o tutor de uma jovem inocente e eu realizarei o papel que me atribuí. E agora, se me desculpar, tenho muito que fazer e não quero perder mais tempo em escutar tolices.

Com passo firme, esticando o pescoço e aparentando uma serenidade e sobriedade que não tinha, Beatrice passou junto ao duque, olhou-o de soslaio e, depois de fazer uma pequena reverência, abriu a porta e partiu.

William ficou atônito sem saber como deveria reagir ante tal comportamento. Continuou olhando por onde a moça partira sem sequer poder respirar de forma apropriada. Depois de esboçar um sorriso que cobriu o rosto, gritou:

? Brandon! Brandon! Onde demônios está?

? Aqui estou, meu senhor. O que acontece? ? Perguntou o mordomo assustado.

? Enviou os convites? ? Consultou enquanto retornava ao calor da luz.

? Sim, fiz assim que o senhor e a senhora Brace partiram.

? Bem, pois se sente e escreve dois convites mais ? declarou com vivacidade.

? A quem irão dirigidas? ? Quis saber o senhor Stone após sentar-se com urgência, pegar papel e pluma.

? Uma em atenção ao senhor Federith Cooper e a outra ao senhor Roger Bennett ? sentenciou.


XIX


Não pôde fazer nada do que tinha programado durante a noite de insônia. Seu primeiro objetivo era não sair da cozinha para ajudar a pobre senhora Stone em tudo o que pudesse, mas justo à manhã seguinte, quando se dispunha a perguntar a Hanna por onde devia começar, Brandon apareceu com um mandato do duque: «O senhor decidiu, posto que seja uma festa em sua honra, seja a encarregada de prepará-la corretamente». Após escutá-lo, Beatrice levou as mãos ao peito, empalideceu e se sentou na primeira cadeira que teve ao seu alcance. Como iria ocupar-se de todos os preparativos necessários para organizar uma cerimônia para tantos convidados? Acaso o duque desejava que a festa fosse um fiasco? Acreditaria que assim deixariam de fofocar sobre a razão pela qual mantinha sob seu teto uma concubina? A moça, depois de recompor-se do choque, quis levantar-se, dirigir-se para onde se encontrava o duque e lhe gritar se estava louco ou continuava embriagado pelo vinho da noite anterior. Mas como era lógico, não o fez.

Olhou o ancião assustada e, depois de receber um sem-fim de palavras de incentivo, recuperou a serenidade e começou a elaborar um plano. Conforme recordava, nas poucas celebrações que se ofereceu em seu lar, sua mãe controlava até o detalhe mais insignificante e, embora terminasse exausta, todo mundo saira bastante contente. Ela procurou fazer o mesmo. Elaborou uma meticulosa lista em que abrangeram da preparação do salão onde se celebraria o banquete, a comida que se serviria, nos diferentes pratos, as bebidas adequadas, quantos criados deveriam atender durante o jantar, o lugar apropriado para celebrar o baile, os músicos que deviam contratar... tudo o que conseguia lembrar, anotava-o nas folhas que o senhor Stone lhe facilitou para não se esquecer de nada.

? Deve comer ? disse a cozinheira ao observar que a moça não tinha provado nem um bocado. Era o almoço da terça-feira e depois da jornada do dia anterior e de ser consciente do que poderia acontecer se tudo saísse mal, não tinha apetite.

? Sou incapaz de fazê-lo, tenho o estômago tão pequeno que não me cabe nem uma ervilha ? comentou depois de levantar-se e levar em suas mãos o prato.

? Se não se alimentar, não terá forças para tudo o que tem que fazer, e então esses temores que sacodem sua cabecinha se farão realidade.

Hanna lhe impediu o passo e a fez retornar ao seu assento para que terminasse de comer a carne com verduras.

? Mas, senhora Stone, por favor, pode me explicar por que sua Excelência me castiga com esta tarefa? ? Queixou-se aflita. ? Acaso não se dá conta de que é uma loucura?

? As loucuras, querida menina, não têm lógica, nem sentido, nem razão, fazem-se e ponto ? disse com um enorme sorriso.

? Devia ter aceitado. Tinha que ter partido... ? sussurrou ao mesmo tempo em que segurava o garfo e cravava com inapetência uma batata cozida.

? O que disse? ? Perguntou a anciã enrugando a testa e cravando seus marrons e penetrantes olhos nela.

? Que deveria ter aceitado a proposta do duque ? respondeu um tanto assombrada pela mudança de atitude da mulher.

? Valha-me Deus! Santo Céu! ? Elevou as mãos para o teto e logo voltou a baixa-las com rapidez. ? Essa foi a opção que te propôs esse teimoso? Que partisse?

? Sim ? afirmou temerosa pelos dramalhões que realizava, até agora, a sensata cozinheira.

? Está pior do que eu imaginava! ? Exclamou antes de dar a volta e começar a mover algo na panela que estava fervendo no fogo.

? Eu disse algo que...? ? Tentou dizer.

? Não disse nada e disse tudo! Faça o favor de comer o que te servi e continuar com o que deve fazer. Assim que tiver um instante livre falarei com o senhor Stone para que se converta em sua sombra. Ele te ajudará em tudo o que não possa conseguir ? explicou com aparente aborrecimento.

? Mas eu...

? Não há mas, nem menos! Temos que preparar a melhor festa que tenha tido o condado de Derbyshire até o momento! ? Sentenciou antes de continuar removendo com firmeza aquilo que estava a ponto de cair ao chão pelo brio de seus movimentos.

Beatrice comeu em silêncio enquanto evitava olhar à senhora Stone. Não entendia a razão pela qual se sobressaltou tanto por um comentário insignificante. Que problema teria tido o duque se ela tivesse decidido partir? Possivelmente se referia à repercussão social que teria se, depois de fazer chegar os convites, cancelasse o evento? Em sua curta vivência em sociedade tinha aprendido que as aparências eram vitais para poder levar uma vida tranquila, mas... isso acaso tinha importado alguma vez ao duque? Sua famosa vida de libertino, galã, presunçoso e, sobretudo, rico eram temas recorrentes em qualquer conversação londrina.

Depois do duelo ela não sabia o que teria mudado nesses bate-papos, embora muito temesse que no sábado o descobrisse. Sem sequer fazer ruído se levantou, colocou o prato na pilha e, depois de confirmar que a senhora Stone seguia grunhindo, decidiu abandonar a cozinha e dirigir-se para o salão principal. Ali se ofereceria o baile para os convidados e devia assegurar-se que o lugar eleito para os músicos era o adequado para que a melodia se escutasse em todo o salão.

Ao abrir as colossais portas, observou atônita as mudanças efetuadas, tinham desaparecido a extensa mesa central e as cadeiras que a rodeavam e os criados tinham construído um pequeno cenário ao fundo, justo ao lado do acesso que conduzia até o balcão. Sorriu satisfeita pela eleição, pois se algum casal desejasse intimidade ali fora a obteria sob a multidão de aromas do extenso jardim. Além disso, se o tempo o permitisse, haveria uma linda lua cheia.

Com uma incrível emoção andou pela sala imaginando o baile: casais dançando pelo lugar ao compasso de uma música suave, rítmica. Beatrice fechou os olhos, colocou-se como se segurasse a um par e escutando em sua cabeça uma leve melodia, começou a dançar. Em seus giros podia notar o movimento do vestido, seus passos deslizar-se sobre o chão com sutilidade e a felicidade que percorria seu corpo. Fazia tanto tempo que não dançava que não recordava como a fazia sentir-se. Atravessou a sala com lentidão, atordoada pela placidez do momento. De repente se sentiu observada, parou sua dança e olhou para a entrada do salão. Ali se encontrava o duque, calado, imóvel, contemplando aquele ato infantil. Vestia um impecável traje azul marinho, uma camisa branca e, embora parecesse incrível, tinha trocado seu colete por um cinza. Beatrice cravou o olhar no rosto masculino e se surpreendeu ao ver que não mostrava aborrecimento, mas sim fascinação.

? Sua Excelência... ? murmurou abaixando a cabeça para que o homem não descobrisse a vergonha que sentia naquele momento.

? Boa tarde, senhorita Brown. ? A saudação soou rude, tosca, mais do que tivesse pensado após perceber a expressão de seu rosto.

? Dispunha-me a... ? tentou dizer quando percebeu que este caminhava para ela com passo firme e com o queixo elevado.

? Segue cobrindo seu corpo com roupa de criada? ? Perguntou muito zangado. ? Acaso não tem roupas mais dignas para usar?

? Não queria danificar os vestidos que me deu de presente, senhor ? mentiu. Lorinne discutiu com ela nessa mesma manhã sobre a vestimenta que devia usar, insistindo-lhe que a pupila do senhor não podia ir com trapos destinados à servidão, mas seu orgulho a fez negar-se terminantemente, acreditando que era o mais correto. Entretanto, ao descobrir a ira que tinha provocado no duque, já não estava tão segura de sua eleição.

? No caso improvável de que se danificasse algum vestido, uma criada poderia acompanhá-la até Rowsley para comprar o que precisasse ? disse aplacando um pouco aquele tom sóbrio.

? Mas não há tempo para isso. Tenho muito trabalho a fazer. ? Segurou com força o avental ao mesmo tempo em que escutava a respiração agitada do homem, que de novo se colocou em frente a ela, muito próximo, provocando-lhe uma terrível dor no estômago.

? Pois deverá adiá-lo ? comentou ao mesmo tempo em que se dirigiu para o lado esquerdo. Andou uns passos e, como iria sendo bastante habitual, deu-lhe as costas. ? Temos que fazer outras coisas mais importantes.

? Mais importantes que adequar este lugar para sábado? ? Deu meia volta e se colocou atrás dele. Agora era ela quem estava zangada, tanto que elevou o queixo tão alto quanto pôde.

? Esta manhã recebi várias respostas dos nossos convites ? explicou mais calmo. Colocou seu braço direito nas costas e se manteve quieto com o olhar cravado ao fundo. ? Nelas me informam que, dado o incessante rumor que percorre as ruas do povoado, desejam conhecê-la e verificar que se trata de uma falácia desprezível.

? Meu Deus! ? Exclamou aterrorizada. Beatrice não tinha meditado sobre isso. Estava tão ocupada com as tarefas que esqueceu os protocolos que se deveriam levar a cabo ante um convite.

? Na hora do chá teremos a visita honorável do senhor e da senhora Wadlow. Sabe de quem falo, não é senhorita Brown? ? Girou-se para a moça e observou que ela não evitou mostrar o aborrecimento que lhe produzia escutar o sobrenome. Ele tampouco pôde reprimi-lo ao abrir a carta e ler que o doutor não assistiria à festa se não fosse recebido antes em Haddon Hall e a própria jovem confirmasse a nova versão.

? Receber-lhe-emo com um grande sorriso ? disse apertando os dentes.

? Sua decisão me deixou sem palavras ? revelou com um suave sorriso. ? Durante o trajeto até aqui meditei como lhe informar de tal acontecimento. Pensei que iria gritar ao céu e que os receberia a pedradas. Entretanto, acredito que essa atitude é a mais acertada. Não se deve mostrar aos outros os sentimentos que possui ? disse um tanto assombrado e orgulhoso pelo coerente comportamento da moça.

? Recorda que minha principal tarefa é ajudar à senhora Stone na cozinha, não é? ? Expôs arqueando as sobrancelhas e exibindo um rosto maquiavélico. ? Pois não imagina quantas coisas podem cair em uma xícara de chá e provocar uma rápida indisposição.

Uma enorme gargalhada retumbou na habitação. A moça quase teve que tampar os ouvidos para que o eco não retumbasse em sua cabeça, mas de repente o duque mudou o sorridente rosto, ficou sério e olhou Beatrice com os olhos entrecerrados.

? Não terá pensado alguma vez em me fazer tal coisa, não é?

? Centenas, possivelmente milhares de vezes, mas estou segura de que sua cozinheira, quem o adora embora ainda não saiba muito bem por que, degolaria-me como faz com as pobres galinhas ? afirmou entre risadas ao mesmo tempo em que William voltava a gargalhar.

Beatrice o olhou com atenção. Se não recordava mal, era a primeira vez que o escutava rir com tanto entusiasmo. Seu rosto se mostrava diferente ao que estava acostumado a apresentar quando a retidão de seu comportamento se impunha. Umas pequenas rugas se desenharam nas laterais de seus olhos escuros, seus lábios se revelavam sem pudor, mostrando uma bonita forma de coração e a barba era ainda mais densa, se possível.

O duque continuou rindo um pouco mais. Logo, depois de descobrir que a tensão entre eles havia desaparecido, atreveu-se a perguntar.

? Gostaria de dar um passeio? Faz uma tarde linda e eu gostaria de desfrutá-la antes da perturbadora visita.

? O mais conveniente seria que eu me retirasse ao quarto e começasse a...

? Rogo-lhe, acompanha-me. Prometo-lhe que será uma caminhada curta. ? Olhou-a aos olhos e lhe sorriu como se se tratasse de um menino rogando para que lhe dessem o que tanto deseja.

? Muito bem ? sucumbiu ao fim.

Beatrice pretendia andar dois passos atrás dele, mas o duque o evitou diminuindo seu ritmo até que ambos permanecessem juntos.

? Quando as nuvens deixam o sol brilhar, a paisagem que se aprecia é maravilhosa ? comentou William quando seus pés tocaram a grama.

? É impressionante... ? comentou Beatrice exalando em cada palavra como se lhe faltasse o fôlego. ? Nunca tinha visto um lugar tão imenso.

? Tudo o que tenho devo ao meu avô. Foi um homem muito trabalhador. Conforme tenho entendido se propôs a adquirir as terras adjacentes à mansão e não cessou em seu empenho até que o conseguiu ? explicou orgulhoso. Olhou para o horizonte, suspirou, colocou seu braço direito para trás e avançou com passo lento. ? Ao que parece foi o único duque de Rutland que fez honra ao título.

Beatrice o olhou de esguelha, apertou os dentes para não replicar tal afirmação e prosseguiu seu caminhar.

? É muito jovem, senhor. Pode ainda mudar seu destino ? disse depois de uns minutos em silêncio.

? Mas como já lhe expliquei, as ideias preconcebidas da...

? Por que essa fonte se encontra em tão mal estado? ? Perguntou Beatrice interrompendo a reflexão de William ao mesmo tempo em que se dirigia para a construção de pedra que se achava na metade do jardim. Tudo ao seu redor desprendia beleza e um meticuloso cuidado, entretanto, o pequeno manancial estava quebrado, destroçado por alguma estranha razão. ? Resulta-me desconcertante que ninguém se preocupou em restaurá-la.

? Não vale a pena perder tempo nela ? esclareceu posicionando-se atrás da jovem.

? Por quê? ? A moça se voltou para ele e esperou a resposta.

? Porque é perigosa ? apontou com certo pesar.

? Que ameaça pode supor uma fonte, além de terminar molhado? ? Arqueou as sobrancelhas e o olhou ansiosa.

? É uma longa história...

? Daremos, então, um comprido passeio ? replicou.

? É dolorosa.

? Poderei suportá-lo ? insistiu.

William a contemplou com atenção e notou como a dor no peito aparecia de novo. Era uma estranha queimação que não havia sentido jamais.

«Possivelmente, ? disse ? porque não encontrou uma mulher que lhe provocasse isso». Ante tal reflexão, tomou ar, soprou, levantou a cabeça e olhou para o bosque.

? Quer que eu lhe suplique? ? Colocou as mãos na cintura e franziu o cenho.

? Não.

? Então, a que vem tanto mistério?

? Não deveria...

? Está bem! Como deseja! ? Exclamou com aborrecimento. ? Se me permitir, tenho muitas coisas que fazer em...

? Aconteceu faz pouco mais de quinze anos. ? William a segurou pelo braço para que deixasse de afastar-se e começou a triste narração. ? Lausson e eu passeávamos por aqui enquanto falávamos do futuro que nos proporcionaria em Londres quando enfim pudéssemos abandonar Haddon Hall. As crianças dos criados brincavam de correr ao nosso redor tentando nos fazer partícipes de suas diversões. Como foram tão persistentes, terminamos cedendo. Entre esses pequenos se encontrava Anne, a filha dos Stone, de uns cinco anos de idade. Ao Lausson ocorreu entretê-los brincando de esconde-esconde, então enquanto os procurávamos, poderíamos continuar com nossas divagações infantis. Um criado requereu minha atenção ante a chegada de uma notificação que nos enviou o senhor Gibbs. Sem pensar que meu irmão só contava com treze anos e era mais menino que aqueles que se ocultavam no jardim, parti deixando-os sozinhos. ? Respirou fundo mostrando sem evitar a intensa aflição que sentia, ao mesmo tempo em que prosseguia a caminhada. ? Um momento depois, alguém gritou na entrada principal. Os alaridos eram tão intensos que, sem ter que sair da habitação, soube com certeza que algo grave tinha acontecido. Corri para o exterior rezando a Deus que não tivesse ocorrido nada ao Lausson, mas não se tratava dele e sim da Anne. Quando desci essas escadas... ? indicou-as com um suave movimento de sua cabeça ? vi horrorizado os incessantes intentos de um pai por salvar a vida de sua pequena e como uma mãe gritava e chorava ante o desastre.

? O que ocorreu? ? Beatrice parou sua caminhada, agarrou-o pelo braço e o girou para ela para poder contemplar em seu rosto a tristeza que expressavam suas palavras.

? Anne, ao correr para que não a encontrássemos, tropeçou com a fonte e caiu nela. Deu-se um golpe na cabeça. Foi um muito pequeno, mas a deixou tão aturdida que não conseguiu mover seu rosto para conseguir respirar e terminou afogando-se. Nossa pequena Anne perdeu a vida nessa maldita fonte ? exalou com força. ? Depois de enterrá-la, Lausson se inundou em um estado de choque que não conseguiu superar até que abandonou esta casa e os Stone partiram. Não podiam suportar viver no lugar no qual sua filha havia falecido.

? Mas retornaram... ? murmurou Beatrice com suavidade sem soltar o braço do duque.

? Retornaram um ano depois. Abri-lhes as portas esperando qualquer recriminação, mas não o fizeram. Só observaram que, ao pôr os pés em Haddon Hall, encontraram a fonte sem água e destroçada pelo arrebatamento enfurecido de um adolescente que perdeu nela a sua verdadeira família.

? Pobre senhora Stone... ? sussurrou liberando o duque para aproximar-se da fonte. Abaixou-se e tocou com uma mão as pedras quebradas pelos golpes.

? Como pode compreender, entre os Stone e eu cresceu um vínculo mais forte, se possível. Eles sempre foram e serão meus verdadeiros pais ? afirmou com veemência.

? Por isso senhor, jamais poderei envenená-lo embora o anseie com todas as minhas forças ? disse como se dito ato lhe provocasse uma terrível decepção.

? Possivelmente se tentasse em Watford, teria mais sorte. Acredito que a duquesa estaria encantada de me oferecer ela mesma o veneno ? voltou a gargalhar.

? Deus lhe castigará por pensar esse tipo de coisas sobre sua mãe ? comentou com um fingido aborrecimento.

? Não acredita que Deus já me castigou o suficiente? ? Perguntou sério.

Seu corpo se endureceu e toda a felicidade desapareceu com rapidez. William respirou profundamente e tentou fazer apagar de sua cabeça os suplícios aos quais se enfrentava dia a dia.

? Sinto muito... não quis dizer – desculpou-se, levantando-se rapidamente e aproximando-se do homem.

? Bom, senhorita Brown, é hora de retornar. Devemos nos preparar para aqueles respeitáveis convidados ? declarou com voz serena, impessoal.

Beatrice andou cabisbaixa ao lado do duque. Não sabia como romper o silêncio incômodo que se criou entre eles. Sentia-se mal por ter encaminhado uma conversação afável a uma lembrança tormentosa. Não era sua intenção. Não desejava lhe machucar. Não desejava ser como os outros.

? Agora que o penso... ? falou William parando sua marcha. ? Você sabe muito sobre mim, mas eu mal sei algo de você.

? Não há muito o que contar ? manifestou aturdida. Era certo que até aquele momento tinha evitado mencionar seu passado e como terminou vivendo na cabana, mas parecia que o tempo de seguir contornando essa história tinha finalizado.

? Sou todo ouvido. Não imagina quantas vezes tentei lhe perguntar sobre isso e não consegui saber como iniciar a conversação ? esclareceu com voz serena. Sua mão direita retornou às costas e, olhando-a com atenção, esperou a ansiosa história.

? É muito breve e menos extensa que a sua ? começou a narrar enquanto começavam a subir os degraus. William, por cortesia, deixou-a avançar na frente dele. ? Meus pais eram uns humildes lavradores e, com a esperança de achar à sua única filha um futuro melhor, conseguiram-me um trabalho na casa de um homem rico.

? De onde eram seus pais? Onde a levaram? ? Inquiriu sem mal respirar. ? Porque conforme pude investigar, ninguém a conhece em Rowsley.

? Indagou sobre mim? ? Girou-se para ele e colocou de novo as mãos na cintura ao mesmo tempo em que franzia o cenho.

Ao subir um degrau acima do duque, ambos os rostos ficaram frente a frente. Seus olhos verdes observavam diretamente os escuros do homem. O ar que desprendia um, podia respirá-lo o outro. Beatrice se sentiu enjoada ao inalar aquela mescla de colônia e essência viril. Tragou saliva ao pensar que, em um leve movimento, ambas as bocas podiam roçar-se. Embora não fosse apropriado imaginar tal coisa, fantasiou outra vez como beijariam aqueles lábios. Sua mente lhe respondeu com todas as sensações que poderiam lhe ocasionar aquele beijo, então uma intensa dor surgiu em suas vísceras, como se em seu estômago revoassem milhares de percevejos que lhe cravavam sem cessar os ferrões. Mas foi outra doença ou queimação a que quase provoca sua queda ao chão, notou, pela primeira vez em sua vida, um estranho calor que procedia do baixo ventre. Aturdida, zangada e terrivelmente assombrada ao descobrir que o homem que se encontrava em frente a ela despertava um desejo impuro, deu-se a volta para prosseguir seu caminho para o interior da casa.

? Não se zangue comigo. O rogo, mas tem que entender que me preocupei ao vê-la tão desamparada no refúgio ? explicou com angústia William.

A proximidade entre eles lhe tinha provocado o impudico desejo de beijá-la, de abraçá-la e de sentir a calidez do pequeno corpo. Tentou centrar sua mente em cavalos, na festa, em Roger e terminou pensando em Federith. Milhares de impropérios apareceram em sua cabeça e todos estavam dedicados ao seu amigo: «Algum dia, William Manners futuro duque de Rutland, apaixonar-se-á e essa mulher te fará pagar por todo o mal que causou às suas amantes e aos seus maridos», essas tinham sido suas palavras na mesma manhã do fatídico duelo. Em efeito, o dia tinha chegado e, tal como previu, estava pagando todas as atrocidades que provocou.

? Quando retornei ao meu lar depois de saber que meus pais estavam doentes, já haviam falecido por causa da cólera. Pensei que podia viver no lar onde cresci e subsistir com o pouco que me oferecia a terra, mas não foi assim. As dívidas que geraram os falsos remédios para curá-los foram saldadas com essa casa. Ao ver-me sem nada comecei a andar e não parei de fazê-lo até que cheguei à cabana. Como não a habitava ninguém, converti-a em meu novo lar ? disse apertando a mandíbula, os punhos e estrangulando sua alma.

? Sinto muito... ? murmurou com pesar.

? Não o sinta, é lógico que deseje saber a quem tem sob seu teto. Embora como pôde comprovar não sou nenhuma ladra, nenhuma assassina, tão somente uma vítima do infortúnio. E agora, se me desculpar, tenho que me preparar para receber de forma correta os seus convidados.

Sem levantar a cabeça acelerou o passo e entrou na mansão sem olhar para trás. Umas pequenas lágrimas percorreram seu rosto ao mesmo tempo em que subia as escadas. Não só sofria porque tinha saudades de seus pais e da vida aprazível que tinha vivido com eles, mas também porque estava segura de que o duque ficara, após escutar a história, imóvel e aflito em frente à porta.

 

 


CONTINUA