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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SURPRESA DO MARQUES / Dama Beltrán
A SURPRESA DO MARQUES / Dama Beltrán

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Roger Bennett, o futuro marquês de Riderland, define-se a si mesmo como um cavalheiro disposto a ajudar as pobres infelizes carentes de prazeres sexuais. Gosta tanto da sua vida que deseja continuar assim até o final de seus dias. Entretanto, uma pessoa truncará essa vida de libertinagem que tanto anseia manter.
Resignado por ter que viver com uma esposa a quem não conhece nem ama, decide enfrentar com integridade o seu futuro. Mas quando seus azulados olhos se cravam em Evelyn, descobre que tudo aquilo que desejou se evaporou. Mas o amor terá que trabalhá-lo e para um homem a quem foi fácil romper corações, resultar-lhe-á incrível ver como o seu se faz em pedacinhos como o cristal.

Querido(a) leitor(a), aqui tem o segundo livro da série Os Cavalheiros. Se William te enterneceu, espero que Roger te faça sorrir ao viver suas aventuras. Como na anterior novela, advirto que tudo o que vai ler a seguir é produto só e exclusivamente da minha imaginação. Esclarecido isto, espero que desfrute com a leitura que guardam estas páginas.

 

 

 

 

 

 

Londres, 26 de setembro de 1866. Residência do senhor Lawford.

Colin olhou pensativo para a rua. Observou a vitalidade desta apesar de ser um dia cinza: carruagens que circulavam de um lado para outro, transeuntes ocultos sob seus guarda-chuvas, criados inquietos realizando com rapidez as tarefas atribuídas... tudo ao seu redor seguiria igual quando partisse. Tudo menos ela. Sabia que o que pretendia era uma loucura, mas o fazia por seu bem. Não podia deixá-la desamparada e, depois da terceira visita ao doutor, não ficava alternativa. O tempo não jogava ao seu favor. O que começara sendo uns leves e imperceptíveis tremores nas mãos deixaram de sê-lo. Agora todo o corpo se sacudia com força e, se o desenvolvimento da enfermidade avançasse tão rápido como aconteceu à sua mãe, logo faleceria em péssimas condições.

O jovem enrugou a testa ao recordá-la. Via-a de novo tombada na cama, incapacitada inclusive para poder alimentar-se por si mesma. Assemelhou-a a uma flor: formosa ao crescer, vigorosa em plena floração, mas murcha ao chegar ao final. Ele não podia acabar assim. Ele não podia contemplar o rosto aterrorizado de Evelyn quando a morte estivesse rondando ao seu lado. Não queria que ela vivesse recordando como seu único irmão morria sem poder evitar. Por isso tinha tomado a melhor decisão. Soube quando o viu no dia em que o duque de Rutland desafiou ao conde de Rabbitwood. Aquela atuação violenta, aquelas palavras de ódio para a pessoa que tinha menosprezado as possibilidades do duque... foi nesse instante que compreendeu quem era em realidade Roger Bennett: sua única esperança.

? Deveria repensar um pouco mais sobre sua última vontade. ? O senhor Lawford elevou com um dedo os óculos e olhou ao jovem com atenção.

Arthur Lawford superava os cinquenta anos. Apesar do aspecto desalinhado, de seu mau aroma e do caráter azedo, todo mundo elogiava seu incrível trabalho como administrador. Possivelmente porque começou a exercer a profissão aos quinze anos e sob o atento olhar de seu pai, um dos maiores estelionatários da cidade. Em Londres, se desejava obter algo insuspeitável, o senhor Lawford o conseguia sem esforço. Por isso Colin tinha ido a ele. Não lhe importavam as formas que utilizaria para obtê-lo. Só lhe interessava que o fizesse logo.

? Levo meditando esta decisão desde a primavera. Já não a posso atrasar e, embora pareça uma loucura, estou seguro de que é a melhor opção para ela ? disse afastando-se da janela e caminhando para a mesa.

Notava-se cansado, muito mais que no dia anterior. As olheiras, a magreza de seu corpo e inclusive o pesar em seu caminhar o delatavam. Não sabia como tinha sido capaz de ocultar sua enfermidade de Evelyn todo esse tempo.

? O que pensará disto a senhorita Pearson? ? Insistiu o administrador depois de ler, pela décima vez, o que lhe ditou seu cliente.

? Me odiará com todas as suas forças, mas por sorte não terei o prazer de vê-lo. ? Sorriu meio de lado. Sentou-se, agarrou o documento, leu-o e o assinou sem vacilar. Logo olhou ao senhor Lawford e lhe perguntou: ? Então, para que seja legal, só necessito sua assinatura?

? Sim. Uma vez que o senhor Bennett assine com seu punho e letra este escrito será oficial ? afirmou o administrador com resignação.

? Perfeito! ? Exclamou feliz Colin. ? O conseguirei!

? De verdade acredita que se pode pôr uma corrente em um cão selvagem? ? Questionou Lawford olhando perplexo o entusiasmo de seu cliente. Entendia seu desespero, mas não podia conciliar que o estivesse tanto para fazer o que pretendia.

? O porei. Bom, mas será melhor eu só lhe aproximar essa corrente, como você o chamou. Ele sozinho deixará que Evelyn prenda-o ? continuou falando sem poder apagar o sorriso de seu rosto.

? Que Deus proteja a senhorita Pearson! ? Exclamou o administrador pondo os olhos em branco.

? Melhor que Deus proteja a senhor Bennett de minha irmã. ? Colin se reclinou no assento, pegou o documento e soltou uma grande gargalhada.


I


Suas mãos percorreram de novo as costas. A suavidade do tato o encantava até tal ponto que perdia o pouco controle que tinha. Era a mulher perfeita: bela, ardente, carinhosa, apaixonada e, sobretudo... viúva. Roger aproximou sua boca da dela para aplacar a intensidade de seus gemidos. Nunca tinha escutado uma amante soluçar com tanta força ao ser penetrada. Gemia, retorcia-se sob seu corpo, pedia-lhe mais e ele o oferecia. Fechou os olhos ao perceber como seu sexo começava a palpitar. Estava a ponto de explodir. Aferrou com força a cintura da mulher e, justo antes que brotasse sua semente, separou-a de seu corpo. Sem levantar as pestanas e satisfazendo-se ele mesmo, deixou que Eleonora soltasse os acostumados impropérios ante tal ação. Odiava que seus encontros passionais finalizassem sempre iguais, mas ele era incapaz de ejacular dentro de uma mulher. Apesar de seus insistentes comentários sobre as medidas que tomava para não ficar grávida, Roger não acreditava.

Desde que William descobriu que lady Juliette não era a viúva que dizia ser e sofrera as consequências de um engano, ele se cuidava muito com as afirmações de qualquer mulher. O que faria com um filho? Nada. Nem sequer pensou em tê-lo. Não podia permitir que um momento de prazer alterasse o resto de sua vida. Embora, se o pensava melhor, não seria o primeiro Bennett que engendraria filhos bastardos. Bom exemplo disso era seu respeitável pai, aquele que o acusava de não ser o homem adequado para possuir o título de marquês de Riderland. Quantos tinha? Vinte, trinta ou talvez quarenta? Tinha perdido a conta quando apareceu a última criada pedindo clemência. Veementemente, ele não ia se converter no que tanto odiava.

? Deixa-me fria como um iceberg! ? Exclamou Eleonora agarrando os lençóis para cobrir seu corpo.

? Mon amour... ? Roger a olhou de esguelha e sorriu. ? Não se zangue com este pobre apaixonado...

? Basta, não me olhe assim! ? Disse ofuscada.

? Quer que eu vá? Quer que eu não volte mais? ? Levantou-se com rapidez da cama e sem ocultar sua nudez se aproximou da poltrona onde estava sua roupa.

? Faça o que quiser! ? Continuou elevando a voz. Deu-lhe as costas e, como uma menina zangada, começou a resmungar.

Não queria que partisse. Se o fizesse não conseguiria seu objetivo e não era justo que depois de comprar daquela cigana todo tipo de beberagens para ficar grávida não o obtivesse. Eleonora respirou fundo tentando captar a atenção do homem. Queria que acreditasse que se sentia ferida por suas dúvidas e assim eliminar, de uma vez por todas, a desconfiança que a impedia de alcançar seu propósito: deixar de ser a viúva de um vulgar comerciante e converter-se na futura marquesa de Riderland.

? Não se zangue, mon amour ? respondeu Roger com voz melosa. Abotoou a camisa, ajustou bem a calça e antes de terminar de vestir-se, caminhou para a moça, levantou seu queixo com um dedo e lhe deu um terno beijo. ? Amanhã retornarei e voltará a me amar como tem feito durante estes dois meses.

? E se não o fizer? ? Perguntou desafiante.

? Ce n'est rien1... procurarei outra viúva que não se importe de fornicar sem ter que armazenar minha semente entre suas pernas. ? Retirou-se, colocou a jaqueta sobre seus ombros e saiu do quarto.

Quando fechou a porta algo explodiu sobre a madeira. Instantes depois escutou os gritos da mulher. Roger sorriu e com passo firme partiu ao segundo lugar ao qual chamava casa: o clube de cavalheiros Reform.


Jogar cartas já não era tão interessante como no passado. Dos três, só ele aparecia no clube. Federith vivia afastado do mundo com uma mulher que mal conhecia porque jamais saía de seu lar. Segundo seu amigo, sempre estava doente ou indisposta ou doente e indisposta. Albergou a esperança de que, depois do nascimento do pequeno Cooper se tomasse uns dias tranquilos em Londres, mas não foi assim. Federith não apareceu.

Tampouco podia contar com William, porque desde que se casou com Beatrice três meses atrás e anunciaram que estava grávida, ninguém os fazia abandonar Haddon Hall. Ao que parecia, precisavam viver afastados do mundo para que ninguém interrompesse aquele amor insaciável.

? Outra taça? ? Perguntou um dos jogadores.

Roger olhou à pessoa que se dirigiu a ele. Entrecerrou os olhos e cravou seus azulados olhos no jovem Pearson, a única testemunha da afronta de William para com o Rabbitwood. Depois daquela manhã em que o observou apoiado em uma das árvores de Hyde Park, pensou que seria a última vez que o veria. Mas se equivocou. De repente se fez assíduo ao clube e estranha era a sexta-feira que seu assento não estava ocupado.

? Pretende me embebedar? ? Disse Roger com voz maliciosa. Elevou a sobrancelha esquerda, olhou-o sem pestanejar e quando observou a mudança que desejava produzir no rosto do moço, gargalhou. ? Claro! Não deixe a taça vazia!

? Bom, cavalheiros ? começou a dizer outro jogador que fumava com ânsia seu charuto. ? Volto a perder. Acredito que, depois de dez derrotas, a melhor opção é me retirar. Esta noite a sorte não está do meu lado. ? Pôs as cartas sobre a mesa, afastou a cadeira com as panturrilhas e, depois de despedir-se, partiu.

? Ficamos três... ? murmurou Roger jocoso. ? Quem será o seguinte? ? Levantou várias vezes as sobrancelhas enquanto apertava com os dentes a ponta de seu charuto.

? Não pense que a partida é sua...

Colin tinha que incitar Bennett a continuar. Não podia deixar que lhe escapasse outra sexta-feira. Durante os últimos dias mal se sustentava em pé e tinha utilizado a pouca força que tinha para assistir essa tarde. Se não conseguisse seu propósito, sua irmã ficaria desamparada.

? Ah, não? ? Roger olhou o desafiante.

? Não! ? Exclamou o jovem com firmeza.

? Aumenta a aposta então... ? desafiou Bennett.

? Se me desculpam... ? interveio o outro jogador. ? Eu também saio. Conforme observo, a jogada se fará alta e não trouxe a carteira.

? Não trouxe a carteira, senhor Blonde ou sua mulher lhe cortaria o pescoço? Porque conforme tenho entendido é uma mulher muito mal-humorada ? comentou divertido.

? Fala-se de muitos temas ultimamente... ? disse a contragosto o senhor Blonde ao mesmo tempo em que colocava a jaqueta. ? Sobretudo de suas assíduas visitas a uma jovem viúva.

? Só a uma? ? Continuou com zombaria. ? Pois então, nada do que tenha escutado é verdade.

? Boa noite, cavalheiros. Espero os ver na próxima sexta-feira.

? Boa noite ? respondeu Colin ante o silêncio repentino de Roger.

? O quê? Vai ou fica? ? Insistiu Bennett depois de um tempo de adaptação durante o qual tinha acendido outro charuto e tinha enchido seu copo.

? Vim para jogar e jogarei! ? Clamou fazendo-se ofendido. ? Para que não pense que o estou enganando, ? começou a explicar o jovem enquanto procurava algo nos bolsos ? eis aqui minha prova! ? Lançou sobre a mesa um envelope fechado.

? O que é isso? ? Bennett falou ao parar de sorrir.

? As escrituras da minha residência em Londres. Não é muito grande, mas será suficientemente acolhedora para suas amantes ? afirmou o moço com solenidade.

?OH! ? Exclamou Roger divertido. ? Que benevolência de sua parte! Com certeza as damas ficarão encantadas com tal proposição. Mas, no hipotético caso de que perdesse esta partida, qual seria seu prêmio?

Olhou-o fixamente aos olhos tentando descobrir como um pirralho podia enfrentar um jogador com tanta experiência como ele. Que ás guardaria sob a manga?

? Seu navio ? sentenciou sem hesitações.

? Meu navio? ? Exigiu saber com uma mescla de surpresa e diversão. ? Quer ficar com meu navio? Mas... o que faria você com ele, moço? ? Levantou-se do assento, dirigiu-se para a mesa que tinham justo atrás deles, pegou papel e pluma e começou a escrever.

? Bom... seria interessante saber o que há fora de Londres. Estou cansado dos dias nublados, da chuva e inclusive das pessoas que me rodeiam, você não? ? Colin olhava sem parar o envelope. Tinha chegado muito longe e ficava tão pouco tempo que começou a sentir pânico. Como obteria aquela assinatura? Como abrir o envelope e impedir que lesse o redigido?

? Por isso mesmo não me tenho desfeito dele, jovem Pearson. Ele me afasta de toda esta maldita sociedade ? explicou. Roger fez um gancho de ferro sobre o papel e o entregou ao jovem. ? Deve assiná-lo. Se tanto anseia meu navio, necessito seu consentimento.

? Então... ? Colin tentou ocultar a felicidade que lhe provocou escutar aquelas palavras. Já sabia qual passo era o seguinte. Pegou o envelope, abriu-o e, ocultando o conteúdo deste sob sua palma, o aproximou. ? Sei que é um homem de palavra...

? É claro! ? Disse zangado.

? Pois se não houver nada mais que indicar, eu assinarei sua folha e você a minha. ? Colocou o papel em frente a Roger e rezou para que ele não quisesse lê-lo.

Sem mediar palavra e sem mal olhá-lo, Bennett assinou com ímpeto a folha, logo a devolveu esperando que o jovem fizesse o mesmo. Quando cada um teve seu respectivo acordo, prosseguiram com a partida.

Durou além do imaginado. Colin começou a suar ao descobrir que a sorte não estava do seu lado. Tinha uma saída de emergência e com isso não ia perder. Em meio de sua aparente quietude, perguntou-se como podia fazer desaparecer duas das cartas para trocá-las pelas que guardava sob a manga. Observou várias vezes a atitude de seu competidor. Parecia alterado, mordia a ponta de seu charuto com certa ansiedade, bebia largos sorvos de seu copo e não deixava de repicar na mesa. Estava claro, não conseguiria seu propósito. De repente, alguém interrompeu a partida abrindo a porta com força. Roger se virou para ela para averiguar de quem se tratava, enquanto isso, o moço atirou ao chão duas cartas melhores e tirou as que tinha escondidas.

? Desculpem a rabugice, pensei que o senhor Blonde permanecesse na sala ? disse o homem sufocado.

? Partiu faz um momento ? respondeu Bennett ao mesmo tempo em que voltava a virar-se para o jovem.

? Muito obrigado e de novo perdoem a interrupção. ? Despediu-se e fechou atrás de sua marcha.

? Bom, senhor Pearson ? disse Roger colocando as cartas sobre a mesa para que o moço as observasse. ? Acredito que meu navio é teu. Sentirei falta dele.

Zangado, levantou-se da cadeira e começou a empurrá-la com as panturrilhas. Não podia acreditar que aquele jovenzinho lhe tivesse ganhado o maior de seus tesouros.

? Não quer ver a minha jogada? ? Perguntou Colin.

? Não precisa, ganhou. Só se há... ? ficou calado quando o moço colocou sobre a mesa o conteúdo de sua mão. De repente, toda sua tristeza se voltou em euforia.

? Ganhou, senhor Bennett ? afirmou o jovem em tom desolador.

? Pode ficar com sua propriedade. Não penso aceitar... ? começou a dizer Roger ao ver o rosto compungido do moço.

? Deu-me sua palavra! ? Clamou Pearson levantando do assento com rapidez e estendendo o envelope para o homem.

? Mas não me parece justo que perca... ? ia dizer o pouco que ficava, mas seus lábios se selaram com rapidez. Eram conhecidas as desditas da família Pearson e não queria machucar um homem que vivia sob essas penúrias. Embora todo mundo o catalogasse como um ser sem escrúpulos equivocavam-se.

? É sua! ? Levantou o rosto para o homem. ? Quer me humilhar, senhor Bennett?

? Justamente o contrário. Desejaria...

? Pois pegue-o! ? Insistiu com mais veemência da qual seu débil corpo podia oferecer.

? Está seguro? ? Roger arqueou a sobrancelha esquerda e contemplou durante uns instantes ao moço.

? Sim ? respondeu com firmeza.

? Se é o que deseja... ? Segurou o envelope e o guardou no bolso direito de sua jaqueta. ? De todas as formas, se amanhã quando amanhecer repensar sobre isto e quiser que devolva sua propriedade, não terá recriminação alguma ? expôs com seriedade.

? Muito obrigado pelo oferecimento, senhor Bennett, mas apesar da minha juventude, jamais retrocedo em minhas ações. ? Esticou a mão para Roger para despedir-se.

? Boa noite, senhor Pearson. Foi uma honra jogar com um rival da minha altura ? disse Roger com integridade.

? Boa noite, senhor Bennett. O mesmo digo eu.

Quando seu oponente abandonou a sala, Colin se sentou com rapidez, levou-se as mãos para o rosto e sorriu. Tinha conseguido, já podia continuar com seu plano e, se Deus fosse benevolente, descansaria ao fim em paz.


II


Evelyn afastou com rapidez os lençóis. Não gostava de permanecer adormecida quando aparecia a donzela. Dar-lhe-ia um aspecto de alegria que se afastava da realidade. Não estava de acordo com o comportamento que tinham as senhoritas da alta sociedade. Para ela não era próprio de uma futura senhora de família permanecer na cama até passado o meio-dia. Embora também fosse certo que já não era uma senhorita e nunca seria uma senhora. Com pouco mais de trinta anos, quem ia pedi-la em matrimônio? Zangada ao ver como o futuro que sonhou se fez em pedacinhos por uma má decisão, levantou-se com rapidez da cama, dirigiu-se para a janela para afastar as cortinas e permitir que a luz do exterior se introduzisse no quarto. Esperava que não tivesse amanhecido. Adorava contemplar como o sol aparecia entre as montanhas. Entretanto, levou-se uma grande desilusão ao apreciar que de novo o dia amanhecia chovendo. «Não! Outra vez não!», pensou com tristeza.

Odiava os dias de chuva. Acreditava sinceramente que quando o sol brilhasse deixaria de sentir aquela angústia que possuía seu coração, mas parecia que a meteorologia não estava de seu lado. Não desejava vê-la feliz. Resignada a permanecer outro dia mais no interior de Seather Low, andou para a bacia, lavou o rosto e recolheu o cabelo.

? Bom dia, senhorita Pearson ? saudou a criada depois de abrir a porta e dar dois passos para o interior. ? Descansou bem?

? Bom dia, Wanda. Sim, é claro ? mentiu.

Depois de ficar esperando a volta de seu irmão até às duas da madrugada, partiu ao seu dormitório e foi incapaz de conciliar o sono até que esteve muito cansada. A criada caminhou decidida para o armário, escolheu um dos vestidos de cor clara que possuía e se aproximou para vesti-la.

? Colin está em casa? ? Perguntou depois que Wanda lhe fechou os botões das costas.

Sabia a resposta, mas albergava a esperança de que tivesse chegado quando ficou adormecida.

? Não, o senhor Pearson não chegou ainda.

? Que estranho... ? murmurou. ? Se bem me recordo, disse-me que dormiria aqui.

? Possivelmente precisou permanecer outra noite mais em sua residência ? disse a criada com certa insinuação.

? Colin não é desse tipo de homens! Ele jamais faria tal coisa! É um Pearson! ? Exclamou zangada ao escutar a descarada sugestão.

? Sinto-o ? desculpou-se a mulher abaixando a cabeça. ? Não quis...

? Bom, se ele não vem, iremos nós vê-lo. Ultimamente está muito estranho e não sei o que é que o inquieta tanto ? comentou após aprovar o vestido e dirigir-se para a porta.

? Deseja tomar o café da manhã ou o fará fora? ? Quis saber a donzela.

? Tomarei o café da manhã aqui. Mas enquanto o faço, informa ao cocheiro que desejo partir para Londres antes do meio-dia ? ordenou ao mesmo tempo que saía do quarto e se dirigia à sala de café da manhã.

Enquanto tomava o chá, Evelyn não parava de pensar onde estaria seu irmão. Apesar da inoportuna insinuação da donzela, ela começava a acreditar que era certo. Colin sempre tinha sido um jovem respeitável, educado e amável, mas seu humor e suas atitudes tinham mudado. Respondia-lhe com irritação quando lhe perguntava se se encontrava bem e evitava qualquer conversação sobre o futuro, suspeitava que tivesse um segredo, o qual não conseguiu descobrir por mais que o tentou. «Muitas incógnitas», murmurou para si.

Tomou o último sorvo e depositou a xícara sobre o prato. Ao contemplar as torradas enrugou o nariz. Não gostava de seguir comendo, tinha o estômago fechado de preocupação por seu irmão e pelo futuro de ambos. Por mais que ele insistisse em que não devia inquietar-se, o fazia. Desde que seu pai faleceu, fazia já três anos, as rendas não eram as adequadas para poder subsistir como o tinham feito antes, de fato tinha tido que despedir seis criados que tinham trabalhado em Seather antes que ela nascesse. Devia reduzir os gastos por mais doloroso que fosse.

Levantou-se da cadeira e perambulou pela sala de café da manhã meditando as possíveis alternativas que ficavam para não ter que vender o lar onde se criou, onde seus pais se amaram e morreram, seu único legado familiar. De repente, escutou o som de uma carruagem. Correu para a janela para confirmar que se tratava de Colin, mas não foi assim. Era o carro do pároco. O que desejaria o senhor Miller? Se voltasse a insistir em arrecadar dinheiro para os pobres, ela teria que expor sua irremediável necessidade e não estava disposta a voltar a ser o principal rumor de Londres. Já tinha tido o bastante quando anunciaram a ruptura de seu compromisso para escutar de novo desoladores argumentos sobre sua pobreza.

Depois de respirar com profundidade, dirigiu-se para o saguão. Desejava atendê-lo ela mesma para que não descobrisse que o mordomo não se encontrava sob seu serviço. Agarrou o pomo da porta, elevou o queixo e desenhou seu melhor sorriso.

? Bom dia, senhor Miller ? saudou estendendo sua mão.

? Bom dia, senhorita Pearson ? respondeu à saudação. Evelyn observou o semblante do homem. Parecia triste. Possivelmente muito. De repente um estranho calafrio percorreu seu corpo e sentiu frio. ? Preciso falar com você.

? É claro ? disse a mulher. ? Me acompanhe ao salão.

Evelyn tentou manter a calma apesar dos pequenos tremores. Possivelmente suas inquietações não estavam justificadas, mas sua cabeça não deixava de lhe sussurrar que sua vida ia mudar outra vez. Com passo firme conduziu o pároco até o salão e deixou que passasse primeiro, observando suas mãos agarradas atrás das costas e sua cabeça inclinada para baixo. A mulher retorceu as mãos com força e esperou a que se decidisse a falar.

? Sinto ser eu quem lhe dê a notícia, ? começou a explicar ? mas preferi vir antes que o médico ou qualquer outro dita fazê-lo. Penso que a amizade que possuímos há anos me permite tal direito. ? Evelyn o olhou com atenção. As primeiras lágrimas começaram a brotar e, por mais que tentasse manter-se de pé, suas pernas se debilitaram tanto que teve que agarrar-se a uma cadeira. ? Senhorita Pearson... ? disse depois de dar a volta para olhar à mulher ? sinto lhe informar que seu irmão hum... hum... faleceu.

Evelyn tentou falar, mas foi impossível. Um nó lhe estrangulou a garganta a impedindo de emitir tão sequer um pequeno gemido. Começou a ver impreciso e aqueles leves tremores foram aumentando. De repente, a debilidade se acentuou e não conseguiu manter-se de pé. Finalmente se desabou.

? Ajuda! Ajuda! ? Exclamou o pároco com força ao mesmo tempo em que levantava do chão a cabeça da mulher.

? Que...? ? Wanda entrou com rapidez no salão. Quando contemplou a cena se levou a mão à boca e não soube reagir.

? Me ajude! ? Gritou o homem ao perceber que a criada estava paralisada. ? Segure-a pelos braços e levante-a! Eu lhe elevarei as pernas ? ordenou.

? Senhorita... senhorita Pearson... ? murmurava à donzela enquanto a abanava com sua mão o rosto. ? Desperte. OH, Deus! O que aconteceu? O que disse à senhorita para fazê-la desmaiar?

? Que o senhor Pearson morreu.


Fechou a porta devagar. Por mais que o senhor Anderson tivesse insistido em despertá-lo, dava-lhe medo. Todo o serviço conhecia a primeira norma da casa: não incomodar ao senhor até que ele mesmo demandasse os serviços. Entretanto, tinham-lhe encomendado a tenebrosa tarefa de romper a ordem. Tragou saliva quando observou a silhueta sobre a cama. Como era habitual nele, dormia nu, e os lençóis mal cobriam suas pernas. O ajudante de câmara olhou para outro lado. Se o senhor abrisse os olhos e o encontrasse às escuras observando-o sem piscar, poderia jogá-lo à rua a chutes. O jovem escutou um ruído, virou-se para a porta e tentou sair dali, mas era tarde, o senhor tinha notado sua presença.

? O que acontece? ? Grunhiu Roger ao contemplar a silhueta de uma pessoa ao seu lado.

? Boa tarde, milorde. Perdoe se...

? Boa tarde? ? Resmungou ao mesmo tempo em que se sentava sobre a cama. ? Que horas são? Que dia?

? É domingo, senhor ? respondeu o criado enquanto se aproximava da janela e afastava as cortinas.

? Domingo? ? Um pequeno sorriso se desenhou em seu rosto. Dormir tanto tempo e ser um pouco preguiçoso lhe causava mais bem-estar que inquietação.

? Desculpe que o tenha despertado, mas o senhor Anderson insistiu que o fizesse. Diz que deve conhecer o antes possível a notícia que se publicou em Londres ? explicou o jovem sem mover-se da entrada.

? Que notícia? ? Arqueou as sobrancelhas e o olhou com atenção. O sorriso de menino travesso desapareceu com rapidez. Se seu mordomo tinha quebrado a norma mais sagrada de Lonely Field, só se devia a uma coisa: algo tinha ocorrido ao Federith ou ao William.

? O senhor Pearson... ? começou a dizer entre balbuceios. ? O senhor Pearson... ? repetiu.

? O quê? O senhor Pearson, o quê? Fala de uma vez! ? Exclamou irado. Levantou-se da cama e sem mostrar vergonha alguma por sua nudez, colocou-se em frente ao criado.

? Faleceu ? respondeu fechando os olhos.

? Como? O que disse? ? Inquiriu levantando a voz.

? Que faleceu ? sussurrou. Continuava com os olhos fechados e inclusive para que o senhor confirmasse que não o olhava, abaixou a cabeça.

? Sim, isso eu já ouvi! ? Gritou zangado ao mesmo tempo em que caminhava para a bacia para molhar seu rosto e despertar de uma vez.

? Conforme contam, um de seus criados o encontrou ontem pela manhã em seu dormitório após escutar um ruído estranho ? começou a narrar.

? E? ? Jogou água com tanto ímpeto que não só molhou seu rosto, mas sim umedeceu também o cabelo e o torso.

? E o jovem jazia sobre a cama em um atoleiro de sangue. Atirou na cabeça e ninguém pôde lhe salvar a vida ? explicou. O ajudante de câmara, ao compreender que Roger tinha dado por terminado seu descanso, caminhou veloz para o armário para pegar um traje.

? Disparou-se a arma? ? Perguntou assombrado.

? Não, senhor, suicidou-se.

? Está me dizendo que esse jovem teve a coragem de dar-se um tiro? ? Virou-se para o criado sem reduzir a ira que mostrava seu rosto.

? Sim, meu senhor. Isso é o que contam. ? Levantou as mãos e mostrou a roupa escolhida esperando que o senhor aceitasse sua eleição.

? Como lhe ocorre...? ? Não terminou a frase. Nesse momento se lembrou da partida de cartas e do que guardava em seu bolso. Com grandes pernadas dirigiu-se para a cadeira onde tinha deixado suas roupas antes de deitar-se. Ao não as achar, olhou ao ajudante e lhe perguntou com mais angústia que ira: ? Onde está a roupa?

? Que roupa, milorde?

? A que coloquei ontem!! ? Clamou com tanta força que o criado começou a tremer de medo.

? Está com as lavadeiras ? respondeu. Abaixou a cabeça e tentou dirigir-se para a porta. Até agora o senhor nunca tinha sido cruel com seus lacaios, mas a cena que estava vivendo no quarto lhe indicava que logo começaria a sê-lo.

? Traga-a! Que ninguém a toque! ? Gritou.

O criado abandonou a habitação tão rápido como pôde. Era tanto seu nervosismo por sair que deu uma portada, embora Roger não fora consciente do ruído. Tinha sua mente ocupada recordando o momento no qual o jovem lhe ofereceu a propriedade. Sentou-se na cama aturdido pela notícia, sentindo-se culpado do dramático final. Estava seguro de que um homem à beira do desespero faria algo para terminar com seu calvário, e a perda do último bem que possuía poderia ter sido o detonador dessa decisão. Ele se tinha negado a aceitar o oferecimento, advertiu-lhe que podia reclamá-lo e que o devolveria sem objeção alguma. «Deseja me humilhar, senhor Bennett?», aquela pergunta lhe golpeou a cabeça de improviso. Não, é óbvio que não desejava humilhá-lo e menos sabendo que a família Pearson estava passando um mau momento econômico.

Levou-se as mãos para o rosto e o apertou. Todo mundo lhe jogaria a culpa dessa morte. Todo mundo o assinalaria com um dedo inquisidor para demonstrar que, como era costume nele, tinha destroçado outra família. Antes de poder levantar-se e recriminar ao criado sua tardança, este tocou a porta.

? Milorde, aqui a tem ? comentou o criado estendendo o traje sobre o assento. ? As lavadeiras não a tocaram.

? Bem, parta. Deixe-me sozinho. Chamar-te-ei quando precisar ? disse com voz grave.

? Estarei depois da porta ? informou antes de sair.

Roger se levantou da cama e caminhou para a poltrona. Colocou a mão no bolso esquerdo e, ao não encontrar nada, grunhiu. Logo a introduziu no direito e tirou o envelope. Com pressa o abriu e quando começou a ler estendeu a mão para trás procurando um lugar onde sentar-se.

Eu, Roger Bennett Florence, futuro marquês de Riderland, em plenas faculdades mentais, faço oficial meu compromisso de matrimônio com a senhorita Evelyn Pearson Laurewn.

Roger não pôde continuar lendo. O único que observou antes de dobrar a folha foi a assinatura de Pearson, do senhor Lawford, a sua e inclusive a da própria rainha aceitando o enlace. Sentiu um intenso calafrio percorrer seu corpo. Começou a suar tanto que as gotas escorregaram por sua testa. Sua visão se esfumou tanto que mal conseguia distinguir a silhueta do papel. Abriu a mão deixando que aquela sentença caísse ao chão enquanto ele desabava sobre a cama em estado de choque.


III


Vestida de rigoroso negro seguia o féretro de seu irmão caminhando cabisbaixa depois da carruagem. Não tinha forças para dar um só passo, mas devia fazê-lo. Tinha que acompanhá-lo em seus últimos momentos. Notou uma pressão em seu braço e olhou de esguelha para descobrir quem a sustentava. Tratava-se de Wanda, sua donzela, sua única amiga, que não cessava de chorar, de sussurrar preces a Deus e de consolá-la dizendo que a vida lhe teria reservado algo bom para seu futuro. Entretanto, não lhe prestava atenção, só tentava averiguar quando a tinha segurado e em que momento se colocou ao seu lado. Resultou-lhe impossível lembrar-se, a única lembrança lúcida que possuía era a chegada do pároco e como sofreu uma repentina cegueira ao escutar a notícia.

Colin estava morto.

Decidiu tirar a vida e abandoná-la.

O porquê apareceu depois, quando o médico foi visitá-la essa tarde. Informou-a que seu irmão tinha a mesma enfermidade que sua mãe e, por mais que insistisse em que devia confrontá-lo com a maior integridade possível, decidiu não padecer aquele doloroso sofrimento. Evelyn se lembrou dos duros momentos que aguentou ao ver como sua mãe, uma mulher cheia de energia, positividade e vitalidade, terminava seus dias prostrados em uma cama, com o olhar perdido em algum lugar longínquo, com o rosto gasto e sem ser consciente da deterioração de seu corpo. Não, é óbvio que seu irmão não quis sofrer esse fim. Acaso ela não teria feito o mesmo?

Abaixou a cabeça, embora mal pudesse ver um palmo de distância, o véu lhe impedia de observar com atenção quem estava ao seu redor, salvo Wanda. Escutou como a carruagem parava e o incessante murmúrio das poucas pessoas que tinham assistido ao funeral finalizava. Estavam perto do temido fim, muito para que ela pudesse assumir que não voltaria a abraçar seu irmão, que já não se sentaria na poltrona para escutá-la ler enquanto tomava um brandy, que não o escutaria rir e que permaneceria sozinha o resto de sua vida. Tentou desfazer-se do agarre da donzela enquanto as lágrimas deixavam uma trilha sobre seu rosto oculto sob o véu. Pretendia acompanhá-lo até a tumba e ver como era resguardado sob o chão, mas Wanda não a deixou partir só e impediu que se afastasse. Levou-se a flor que segurava na mão aos lábios e a beijou. Era uma tulipa, a flor preferida de Colin. Deixou-a cair sobre o caixão e mal pôde respirar quando a primeira pá de terra começou a cobri-la.

Ouviu que Wanda lhe sussurrava algo. Não entendeu com claridade do que se tratava, embora deduzisse que lhe indicava que deviam partir, posto que começassem a caminhar para a saída. De repente, a donzela a fez parar.

? Senhorita Pearson... ? alguém se aproximou. Não distinguiu a silhueta dessa pessoa, embora a voz lhe soasse bastante familiar. Era Coleman, o doutor, o homem que apareceu em sua casa depois do pároco. ? De novo, meus mais sentidos pêsames.

? Obrigada... ? respondeu com um suspiro comprido.

? Se necessitar de algo, minha casa tem as portas abertas para você ? continuou dizendo a voz.

? Só quero ficar sozinha ? comentou com voz apagada.

? É claro, mas recorde minhas palavras. ? Coleman lhe fez um leve movimento de cabeça e partiu.

Wanda apertava com mais força seu braço, como se com esse gesto pudesse reconfortá-la. Não o fez. Nada podia consolá-la. Estava sozinha. Durante o resto de sua vida devia viver sem família, sem ninguém que estivesse velando por ela, sem ninguém que se preocupasse com seu bem-estar. Como o confrontaria? Como conseguiria sobreviver? Mal ficavam moedas nas arcas e não conseguiria vender a residência do Colin. Quem compraria uma propriedade onde seu dono se disparou na cabeça? A única saída era abandonar Londres e partir com o único parente que ficava: sua tia avó.

? Minhas condolências... ? outra voz masculina interrompeu sua marcha. Não a reconheceu. Tentou recordar se podia tratar-se de algum amigo do Colin, mas o tom suave, aveludado e o ligeiro acento estrangeiro não lhe ofereceram muitas pistas.

? Obrigada... ? respondeu sem deixar de olhar para o chão.

? Você saiba que seu irmão foi um homem honorável.

? Honorável? ? Resmungou. Elevou lentamente o rosto para quem permanecia de pé junto a ela. Mal pôde distinguir as feições de seu rosto, o véu o impedia. O único que transpassou a escuridão do tecido foi a intensidade de um olhar azulado. ? Chama você honorável uma pessoa que se suicidou?

? Senhorita... ? tentou falar.

? Nem lhe ocorra mencionar essa palavra, senhor ? continuou com voz desafiante. ? Agradeço que tenha vindo ao enterro, mas isso não lhe dá o direito a dizer que meu irmão...

? Seu irmão, senhorita Pearson, foi, é e será o homem mais respeitável que teve esta maldita cidade ? disse Roger segurando o braço da mulher e falando com os dentes apertados.

Evelyn cravou seu olhar na pessoa que segurava com força seu braço. Por mais que tentasse averiguar de quem se tratava, não conseguia descobri-lo. Era um estranho que tinha ousado segurá-la diante dos assistentes ao enterro. Tomou ar, elevou seu queixo e puxando com energia se desfez da amarração. Quis replicar suas palavras. Quis lhe gritar que não conhecia seu irmão se pensava tal coisa dele, mas não pôde. Resultava-lhe impossível debater as palavras. Possivelmente porque ela também acreditava.

Ignorando-o, começou a caminhar para sua carruagem. Desejava afastar-se dali o antes possível. Precisava entrar em sua casa e chorar até que não ficassem mais lágrimas.


Depois de recompor-se e ler umas vinte vezes o documento, Roger decidiu apresentar-se no funeral. Queria ver com seus próprios olhos que a morte do jovem Pearson não era uma mentira. Não seria a primeira vez que familiares, desesperando-se por seu bem-estar econômico, ideavam mentiras semelhantes para conseguir a estabilidade desejada. Entretanto, enquanto o ajudante de câmara o vestia, tentava recordar a última noite que passou com o jovem. Não mostrou nada que lhe fizesse pressagiar o que aconteceria no dia seguinte. Sorria, jogava, falava com os outros jogadores e inclusive bebeu mais do que estaria permitido a um moço de sua idade, mas... quem era ele para julgar os copos de uísque que deviam beber os outros?

De repente, uma imagem muito nítida apareceu em sua cabeça. Se esta não era errônea se tratava do momento no qual Pearson se levantou de seu assento para lhe jogar na cara o envelope. Rememorou-a uma e outra vez tentando sossegar sua inquietação. Não se tinha dado conta, possivelmente porque não se interessou nisso embora agora o visse claro: o jovem estava cada vez mais esquálido, suas olheiras pareciam lhe servir de máscara e seu pulso não era estático como o que todo homem devia possuir em uma situação como aquela. «Estava muito doente», meditou.

? Milorde. ? Anderson apareceu na porta interrompendo seus pensamentos.

? Preparou a carruagem? ? Quis saber. Segurou o envelope e o meteu no bolso de seu traje.

? Sim. O cocheiro acaba de me informar que está preparado.

? Averiguou a hora que se celebrará? ? O mordomo ficou olhando-o assombrado, era a primeira vez nos anos que lhe servia que adotava uma voz tão grave, tão impessoal.

? Às cinco, senhor.

Roger olhou seu relógio e franziu o cenho. Tinham passado as quatro e meia. Não podia entreter-se em almoçar, já o faria depois de falar com o senhor Lawford e averiguar que alternativa podia encontrar para anular o documento. Em completo silêncio, saiu da habitação, desceu as escadas que lhe conduziam para o hall e esperou que Anderson lhe trouxesse a capa e o chapéu.

? Pobre moço... ? murmurou o criado antes que Roger subisse as escadas da carruagem. ? A senhorita Pearson deve estar consternada.

? Há mais pessoas que vão sofrer a perda do senhor Pearson ? respondeu com seriedade.

Anderson fechou a porta e ficou observando seu senhor. Não entendeu o que queria expressar, mas sem dúvida algo importante aconteceria após essa morte. Jamais tinha presenciado um desmaio no futuro marquês. Nem quando bebia até não poder mais se desabava dessa forma. A inquietação fez com que sentisse um calafrio. Olhou ao cocheiro e lhe indicou que iniciasse a marcha. Se o dono de Lonely Field tinha problemas era melhor que resolvesse o quanto antes.

Roger correu as cortinas do coche. Necessitava de escuridão para pensar sobre o ocorrido. A penumbra sempre lhe vinha bem para meditar. Tinha que encontrar uma alternativa, algo que lhe ajudasse a sair do problema no qual se colocou. O jovenzinho lhe tinha estendido uma armadilha e ele tinha caído sem dar-se conta. Agora entendia os dramalhões do moço quando lhe negou o oferecimento, da satisfação que expressou seu rosto ao meter o envelope no bolso e de suas contínuas aparições no clube. Estava esperando seu momento. Tinha tecido uma teia de aranha e, com a tranquilidade que caracteriza a um predador, tinha aguardado sua presa. O tinha merecido. Nunca deveria subestimar um competidor, por mais vulnerável que parecesse. Entretanto, face ao que tinha assinado, ele não ia casar-se. Procuraria qualquer desculpa para não o fazer. Inclusive poderia fingir sua própria morte, se com isso lhe dizia o senhor Lawford que conseguiria seu propósito. Ele não era um homem que pudesse atar-se a uma mulher. Ele era um homem que amava todas as mulheres.

De repente seu corpo se entorpeceu. Não tinha refletido sobre isso e a ansiedade aumentou ao nível mais alto. «Mon Dieu! ? Exclamou ao mesmo tempo em que levava as mãos para o rosto. ? Como será essa senhorita Pearson?». Antes de poder encontrar uma resposta, a carruagem cessou sua marcha. Como se tivesse espinhos no traseiro, Roger saltou do assento e saiu com rapidez do interior. A tênue luz o cegou a tal ponto que teve que fechar os olhos para protegê-los. Quando conseguiu abri-los ficou como pedra. O carro fúnebre estava parado na entrada do cemitério. Os empregados tiravam o caixão onde jazia o corpo do jovem e ao seu lado só havia cinco pessoas que choravam a perda. Não podia ser verdade. Por que ninguém tinha ido se despedir? Acaso não tinha amizades? Roger enrugou a testa e apertou os punhos. Não se tratava disso, mas sim da maneira em que o moço pôs fim a sua vida. Seria uma desonra para a família e para qualquer um que se aproximasse para lhe dar o último adeus. Entretanto, ele não tinha esse tipo de escrúpulos sociais. Importava-lhe um nada o que os arrogantes da alta sociedade pensassem.

Enquanto se aproximava, tentou descobrir quem eram os três homens que acompanhavam as duas senhoras e qual delas seria a senhorita Pearson. Um pequeno gemido brotou de sua garganta ao ver a silhueta do senhor Lawford. Ele era o culpado de sua desdita e com ele devia falar quando a última pá de terra tampasse o féretro. Tentou fazer desaparecer de sua cabeça a possível conversação que manteria com o administrador ao terminar o enterro, mas lhe resultou impossível pensar em outra coisa. Como não o advertiu da armadilha? Ter-lhe-ia devotado aquela residência que possuía o jovem em Londres em troca do trabalho? Pareceu-lhe uma tolice pensar nisso porque Lawford conhecia seu poder aquisitivo e se lhe tivesse contado às intenções que tinha Pearson lhe teria pagado o dobro.

Com integridade, prosseguiu seu caminho até ficar a escassos passos das mulheres. Quem seria sua futura esposa? A da direita ou a da esquerda? As duas eram altas e magras. Não podia apreciar a cor do cabelo posto que levassem uns chapéus que o ocultavam.

? Senhor Bennett ? saudou uma voz conhecida.

? Senhor Coleman. ? Roger voltou sua atenção para o doutor e lhe estendeu a mão.

? Não sabia que era amigo da família ? comentou entrecerrando seus escuros olhos.

? Era, ou melhor, um conhecido do jovem ? respondeu sem deixar de olhar as mulheres. Uma delas segurou com força a outra pelo braço, como se tentasse evitar que caísse.

? Pobre Colin ? disse o médico quando o féretro foi colocado na terra. ? Jamais acreditei que seu desespero o levaria a realizar um ato tão deplorável.

? Sabe o que conduziu a esse fato deplorável? ? Perguntou mastigando a pergunta. Em efeito, aí tinha a resposta à falta de assistentes. Ninguém queria que o relacionassem com um suicídio. Não seria bem visto na sociedade acompanhar a um jovem que, desesperado, pôs fim à sua vida.

? Estava doente ? respondeu Coleman antes de dar um passo para diante.

? Que classe de enfermidade? ? Insistiu Roger.

? Parkinson. O mesmo que sofreu sua mãe. Se me desculpar, tenho que oferecer meu apoio à senhorita Pearson. ? Inclinou brandamente a cabeça e se dirigiu para as damas.

Roger prestou atenção para quem se dirigia, «a da esquerda», disse-se. Esperou que o médico lhe desse os pêsames para fazê-lo ele também. Entretanto, descobriu algo na atitude do senhor Coleman que não achou nenhuma graça. Não só se aproximou muito da mulher, mas sim também lhe sussurrou ao ouvido, como se entre ambos existisse uma relação mais íntima da que devesse. Apertando a mandíbula, acelerou o passo. Devia interpor-se com rapidez para resolver aquela situação.

? Minhas condolências... ? disse após aproximar-se. Observou com afã a figura da mulher. Era bastante alta e magra. O vestido, apesar de não ser muito ostentoso, marcava umas bonitas curvas femininas, mas Roger ficou imóvel quando cheirou o perfume da mulher. Era tão suave e floral como uma manhã da primavera em seu jardim. Abaixou a cabeça e beijou com suavidade a enluvada mão.

? Obrigada.

? Você saiba que seu irmão foi um homem honorável ? explicou dando uns passos para trás.

? Honorável? ? Cuspiu com raiva. ? Chama você honorável uma pessoa que se tirou a vida antes de cumprir os vinte?

? Senhorita... ? tentou falar.

? Nem lhe ocorra mencionar essa palavra, senhor ? continuou com voz desafiante. ? Agradeço-lhe que tenha vindo ao enterro, mas isso não lhe dá direito a dizer que meu irmão...

? Seu irmão, senhorita Pearson, foi, é e será o homem mais respeitável que teve esta maldita cidade ? sussurrou-lhe ao ouvido apertando os dentes.

Roger, em um ato de insensatez, avançou os passos que tinha retrocedido e a segurou com força pelo braço. Não podia permitir que a mulher partisse ao seu lar com aquele pensamento sobre seu irmão. Embora o jovem o tivesse conduzido a uma situação da qual não podia escapar com facilidade, conseguiu seu respeito. Quem não comete loucuras pelos seres aos quais se ama? Porque isso é o que tinha feito Pearson, uma tremenda loucura para salvar a sua irmã. Embora estivesse seguro de que quando ela descobrisse qual era sua última vontade, desejaria que estivesse vivo para matá-lo ela mesma com suas mãos.

? Senhor Bennett. ? Lawford apareceu atrás de suas costas.

A mulher se soltou de um puxão e Roger deixou que partisse. Logo se virou para Arthur e mostrando um enorme e falso sorriso lhe disse:

? Senhor Lawford, estava o procurando.

? A mim? ? Perguntou o homem levantando as sobrancelhas.

? Sim, a você. Temos um assunto pendente ? resmungou.

? Imagino do que se trata... ? voltou a sorrir.

? Falamos agora ou...? ? Insistiu.

? Melhor às sete em meu escritório. Tenho que acompanhar a senhorita Pearson até seu lar. Muito me temo que necessitará de mais apoio do que ela imagina ? expôs antes de exibir um grande sorriso.

? Ali me encontrará. ? Bennett entrecerrou os olhos.

Compreendeu com rapidez as palavras do administrador. Não só a perda de seu único familiar lhe proporcionaria uma grande desgraça, mas sim quando a informassem sobre seu inevitável futuro, desejaria morrer ela também.


IV


Às sete em ponto Bennett estava tocando à porta do escritório do senhor Lawford. Enquanto o recebia, pegou um charuto, o acendeu e lhe deu umas intensas aspirações. Estava nervoso, muito. Aquele homenzinho mal-humorado, desalinhado e resmungão tinha destroçado seus planos de futuro. Sempre pensou que chegaria solteiro até os cinquenta, então, justo nessa idade, começaria a procurar a candidata idônea para casar-se e engendrar um menino. Conseguiria assim seus dois únicos propósitos na vida: casar-se com uma mulher muito jovem, porque não gostava das que superavam os trinta anos, e nasceria outro futuro marquês que faria tremer as pernas das novas viúvas de Londres. Entretanto, se não obtivesse que o administrador revogasse aquele acordo, tudo seria desperdiçado, suas amantes, suas noites de cartas, suas bebedeiras, suas escapadas em navio... tudo!

? De novo, boa tarde. ? Lawford lhe permitiu o acesso ao interior.

Roger observou que o ancião não podia ou não queria deixar de rir. Até houve um momento no qual desejou lhe tirar o sorriso com um murro, mas se desejava obter seu propósito devia manter-se calmo.

? Já sabe ao que vim ? disse aplacando tudo o que pôde seu mau humor.

? Então... ao final o conseguiu? ? Sentou-se em sua poltrona, ofereceu outra a ele e levantou com o dedo os óculos.

? Por que acredita que estou aqui? ? Continuou com tom suave, mas sério. Aceitou o convite de sentar-se, reclinou-se sobre a cadeira e terminou de fumar o charuto.

? Avisei ao senhor Pearson que não era uma ideia sensata. Tentei, de todas as formas que encontrei, fazer-lhe entrar em razão ? começou a explicar enquanto agrupava uns papéis que tinha espalhados sobre a mesa.

? Não. Certamente, não foi uma boa opção. Como lhe ocorreu tal estupidez? Acaso não há suficientes solteiros em Londres, com melhor reputação, para escolher a mim? ? Queria rir? Sim, claro que desejava fazê-lo. As últimas palavras do administrador pareciam lhe indicar que havia uma saída. «Obrigado, meu Deus», exclamou para si.

? Aconselhei-lhe que procurasse outra alternativa mais razoável para cuidar de sua irmã, que pusesse seu lar à venda, que a levasse para aquela tia avó que têm em Harlow... ? prosseguiu ao mesmo tempo em que colocava a pilha de papéis em uma gaveta da escrivaninha. ? Não entendo como pôde pensar que casá-la com você era o melhor que podia acontecer a ambos.

? A ambos? Refere-se a sua irmã e a mim? Esse moço estava louco! De verdade que pensou que eu poderia salvá-la? Acaso não escutou a fama que me precede? ? Clamou. ? Você é um homem sensato, senhor Lawford, ? comentou em tom encantador ? e com certeza sua consciência não descansará tranquila ante este ato tão demencial. Assim, diga, como posso anular este contrato? ? Inclinou-se para a mesa, apoiou os cotovelos nela e pôs cara de menino bom.

? Tal como você indica, a vontade de meu cliente é um tremendo disparate, mas muito me temo que não haja maneira de escapar. Deve casar-se ? afirmou fechando a gaveta com mais força da necessária.

? Eu não posso escapar? ? Gritou ao mesmo tempo em que se levantava do assento e empurrava a cadeira com as pernas. ? Está dizendo que não há maneira de romper o compromisso?

? Você assinou? ? Olhou-o e arqueou as sobrancelhas.

? Sim. Embora por engano.

? Pode demonstrar que foi enganado?

? Não ? disse com um sopro.

? Por quê?

? Porque estávamos sozinhos.

? Ninguém presenciou o momento no qual, supostamente, foi fraudado? ? Continuou com o interrogatório.

? Não me escutou bem? ? Gritou.

? Pois muito me temo, senhor Bennett, que logo terá ao seu lado uma senhora Bennett a quem cuidar e respeitar até que a morte os separe. ? Lawford se recostou no assento, colocou as mãos como se fosse rezar e desenhou de novo um enorme sorriso.

? Encontrarei a maneira de invalidá-lo ? murmurou apertando os dentes.

? Procure-a, mas lhe adianto que sou o melhor em meu trabalho ? afirmou com orgulho.

? Tanto odeia essa pobre mulher? Tanta vontade tem de vê-la amargurada o resto de sua vida? ? Grunhiu.

? Não serei eu quem se casará com ela, senhor Bennett, embora lhe indique que teria gostado de ter essa possibilidade. Se a senhorita Pearson se converter em uma esposa desventurada ou amargurada será por sua culpa, não pela minha ? sentenciou. ? Agora, se me desculpar, tenho outros assuntos que atender.

Roger olhou ao seu redor procurando algo que romper, mas salvo grossos tomos de livros, ali não havia nada. Zangado, virou-se sobre seus calcanhares e saiu ao exterior. A chuva tinha retornado. Levantou o rosto e deixou que as gotas o empapassem.

Durante a caminhada para a carruagem, sua ira foi diminuindo e a mente começou a lhe oferecer um sem-fim de alternativas para desfazer-se de todo o embrulho. Entretanto só uma lhe pareceu correta.

? Para onde vamos, milorde? ? Quis saber o cocheiro quando abriu a porta para que passasse ao interior.

? Para Haddon Hall ? respondeu com entusiasmo.


Os cavalos começaram a reduzir seu trote. Bennett levantou a cabeça do almofadão e sorriu ao deduzir que estavam aproximando-se da mansão. Olhou pela janela e observou como a escuridão ocultava a beleza daquelas paragens. Entretanto, a grandiosidade do lar de seu amigo não diminuía ante a chegada da noite. Respirou profundamente quando a carruagem parou no jardim da residência.

Apesar da hora, esperava que William entendesse que sua visita tinha uma boa razão. Poderia ajudá-lo? Sim, estava seguro de que encontraria a forma de fazê-lo. Se não recordava mal, depois do matrimônio com Beatrice, tinha ocupado seu posto na Câmara dos Lordes e devia conhecer alguém que, apesar da insistência de Lawford, achasse um pequeno engano para romper o acordo.

Não esperou que o cocheiro lhe abrisse a porta, saltou de seu assento e se apressou a sair ao exterior.

? Não deseja que informe de sua visita, milorde? ? Escutou o cocheiro perguntar.

? Não, obrigado. Apresentar-me-ei eu mesmo.

Subiu as escadas de dois em dois degraus, pegou com força a aldrava e chamou com vigor. Estariam dormindo, quem não o faria às quatro da madrugada? Mas isso não lhe impediu de seguir golpeando a porta até que escutou uns passos aproximando-se.

? Boa... senhor Bennett! ? Exclamou o senhor Stone assombrado. ? O que faz você aqui a estas horas?

? Boa noite, o duque encontra-se em casa? ? Perguntou caminhando para o hall sem que o mordomo lhe concedesse permissão.

? Sim. Sua Excelência está dormindo ? esclareceu. Muito temia que o senhor Bennett não se desse conta da hora que era, embora também estivesse acostumado a perder a noção do tempo quando residiam em Londres. Algumas vezes até pensou em lhe jogar um caldeirão de água fria pela janela para que lhe passasse a bebedeira imediatamente. Entretanto, naquele momento nem estava bêbado nem podia percorrer a pé a distância entre seu lar e o do duque.

? Pode chamá-lo? É urgente ? disse enquanto jogava sobre uma das cadeiras do saguão sua capa e seu chapéu.

? É claro. Passe à biblioteca. Irei comunicar ao nosso senhor quem irrompeu no meio da noite neste aprazível lar e o desejo que o conduziu até aqui ? resmungou Brandon ao mesmo tempo em que fechava a porta e tentava abrir os olhos para não tropeçar em algum degrau da escada.

Roger o seguia com o olhar. Quando o perdeu de vista caminhou para a sala rezando para que seu amigo não demorasse em aparecer.

Olhou para todos os lados da habitação procurando uma garrafa que saciasse sua sede ou, melhor dizendo, que acalmasse seu nervosismo. Levava dois dias e meio metido em uma carruagem. Mal tinha comido nem bebido, o único que tinha feito era fumar um cigarro atrás do outro. Durante o trajeto tentou encontrar a maneira de salvar-se ele mesmo sem ter que comprometer seu amigo, mas não achou nada coerente salvo fingir sua própria morte. Caminhou para o móvel bar, pegou uma taça e a encheu até a borda. Não tinha pousado a garrafa sobre a superfície de madeira quando já o tinha bebido. Voltou a enchê-lo e justo quando ia repetir a ação escutou os ininterruptos grunhidos de William.

? Acaso não viu a hora que é? ? Grunhiu o duque mal-humorado. ? Não terá esquecido que me casei, não é? Porque se veio me oferecer outra de suas inevitáveis, mas grandiosas orgias, digo à Beatrice que desça e ponha-o em seu lugar.

? Eu também me alegro em ver-te, meu amigo e não, não vim para nada disso. Então deixa a sua pequena leoa na cama ? respondeu elevando sua taça e mostrando um gesto que parecia um sorriso.

? Deus Santo, Roger! ? Exclamou Rutland ao observar a figura desalinhada de Bennett. ? O que acontece? Está enfermo? Assaltaram-no na viagem? ? Caminhou para ele com rapidez.

? Estou com a corda no pescoço. ? Como se fosse um menino procurando o amparo de um irmão mais velho, Roger se equilibrou para William e o abraçou com força.

? Cheira a esterco! ? Clamou retirando-se com rapidez.

William o observou com atenção. Nunca tinha visto seu amigo daquela forma. A escuridão de seu rosto lhe mostrava que, em efeito, não tinha parado para barbear-se, nem para arrumar-se. Cheirava a tabaco, uísque e a suor, algo impróprio em um homem que demorava em arrumar-se mais que uma mulher.

? Como te ocorre cobrir sua nudez com essa mísera bata? Acabo de roçar algo que não deveria haver tocado jamais ? disse jocoso tentando aplacar o desconcerto de William, porque se seu deteriorado aspecto lhe tinha provocado certo desgosto, conhecer a razão pela qual tinha chegado a Haddon Hall o faria desmaiar.

? Imagino que não seja portador de boas notícias, não é? ? Rutland, assustado, pegou uma taça e se serviu um pouco de licor para acompanhar seu amigo.

? Não ? afirmou Roger bebendo sua terceira taça de um sorvo.

? A última vez que alguém me visitou antes do café da manhã me deixou tão perturbado que cometi uma loucura ? explicou William enquanto caminhava para o sofá. Sentou-se e não afastou suas pupilas da figura de Roger. Mostrava cansaço e algo mais que não podia descobrir.

? Quem foi? ? Quis saber Bennett.

? Federith ? respondeu com rapidez.

? O que te disse? ? Manteve-se de pé com a taça vazia em sua mão.

? Que ia se casar com lady Caroline ? disse com pesar.

? Bom, eu... ? começou a dizer abaixando a cabeça.

? A que veio, Roger? ? Elevou a voz William. O mau humor se esfumou dando passo a um estado de alerta. Conhecia muito bem seu amigo e aquela postura encurvada, o olhar para o chão e aquele aspecto de mendigo lhe indicava que nada bom ia explicar-lhe.

Bennett colocou a mão no bolso para tirar o envelope. Olhou-o com desespero. Logo avançou para seu amigo e o mostrou.

? Leia isto e saberá o motivo pelo qual te afastei dos braços de sua esposa.

Rutland deixou a taça no chão e pegou o envelope que lhe oferecia. Aproximou-o do abajur a gás, abriu-o e começou a ler o documento que levava. A primeira reação do homem foi tossir. Engasgou-se com sua própria saliva. Depois abriu os olhos como pratos, enrugou o nariz e olhou seu camarada com uma mescla de surpresa, inquietação e terror.

? Como pôde assinar isto? Estava bêbado? ? Gritou exaltado.

? Não exatamente ? repôs. Caminhou para a chaminé, colocou a mão direita sobre a pedra e abaixou de novo a cabeça. ? Me enganaram.

? Como que... o enganaram? ? Colocou o documento sobre as pernas, pegou a taça e a bebeu de um gole.

? O irmão da senhorita Pearson, mulher com a qual supostamente estou prometido, jogou comigo uma partida de cartas. A jogada era interessante e ficou ainda mais quando me propôs que ganharia uma de suas propriedades.

? Tratou sua irmã como se fosse um mísero cavalo? ? Cuspiu William zangado.

? Não! Ele me assegurou que o documento era a escritura de sua propriedade. Uma pequena residência que tem em Londres e na qual poderiam viver minhas amantes ? explicou com desdém.

? Bom, se se tratou de uma mentira e pode demonstrá-lo, o contrato será invalidado ? indicou com uma ponta de esperança.

? Não posso demonstrar, William. Só estávamos ele e eu... ? sussurrou aflito. Aproximou a cabeça da cornija da chaminé e teve vontade de golpear-se contra ela.

? Então... faça com que confesse! Não pode se casar com essa mulher! Será desventurada! ? Exclamou com tanto ímpeto que sua voz soou por toda a casa.

? Não posso obter uma confissão do estelionatário porque se suicidou ? prosseguiu em tom suave enquanto olhava as pequenas brasas que tentavam sobreviver ao sepultamento da cinza.

? Como disse? ? Perguntou William levantando-se e deixando cair o envelope no chão.

? Justo na manhã seguinte se deu um tiro ? repôs com sufoco.

? Deus bendito! Por quê? Acaso esse moço não sabe o que seu ato pode causar? ? Dirigiu-se para o móvel bar e se serviu outra taça. Notava a garganta tão seca que devia umedecê-la com tudo o que tivesse ao seu alcance.

? O único que deduzi é que pretendia que ficasse com sua irmã e quando o conseguiu, finalizou seu calvário. ? Seguia com a cabeça abaixada e com os ombros inclinados para diante.

? Por que diz isso? ? William se voltou para ele e não deteve seu caminhar até que esteve ao seu lado.

? O moço estava muito doente, confirmou-me isso o doutor Coleman. Conforme parece herdou uma enfermidade que o mataria cedo ou tarde.

? Mas isso não lhe dá direito a...

? Há, mas a posição econômica em que ficou sua irmã não é a adequada para uma mulher da alta sociedade e acredito que pensou em protegê-la lhe proporcionando um bom matrimônio ? prosseguiu com voz apagada.

? Contigo? ? Perguntou com assombro.

? Algum dia serei marquês e já sabe o que isso significa... ? Se endireitou quando notou a presença de William perto, que lhe ofereceu o copo que tinha em suas mãos e Bennett o aceitou de bom grado. ? Quero que me ajude a descobrir como posso me liberar disto. Não quero me casar, não ainda. Além disso, sempre sonhei que o faria por amor não por obrigação.

? Amor? ? Perguntou antes de soltar uma gargalhada. ? Você falando de amor?

? Quem fala de amor? ? A figura de Beatrice apareceu na porta. Tinha as mãos pegas na cintura e franzia o cenho. Uma larga bata de seda vermelha cobria seu corpo. Era a primeira vez que se mostrava ante Roger com o cabelo solto e despenteado. Essa naturalidade com a qual apareceu agradou a Bennett, porque entendeu que não só tinha a amizade de William, mas a de sua esposa também.

? Olá, querida. Despertei-te? Sinto muito. ? Rutland se dirigiu para ela, estendeu-lhe a mão e lhe deu um suave beijo nos lábios.

? Quem fala de amor? ? Repetiu.

? Seu marido, não eu ? disse Roger avançando para a mulher. Antes de saudá-la ficou olhando-a com assombro. Estava muito mudada pela gravidez. A pequena cintura tinha crescido vários palmos e a figura diminuta, já não o era tanto. ? Quem é e por que comeu a duquesa? ? Comentou com zombaria.

? Boa noite para ti também, Roger ? falou mal-humorada.

? Meu amor, não se zangue por suas inoportunas palavras, está linda. Além disso, acredito que quando escutar a história pela qual veio até nós, será você quem rirá mais.

Abraçou-a e a levou até a chaminé. Não queria que passasse frio e menos ainda em seu estado, desde que tinha ficado grávida, Beatrice estava mais fraca do que tentava aparentar.

? O que é isso? ? Assinalou Beatrice olhando para o chão. Tentou abaixar-se para pegar o papel, mas William se adiantou.

? Vem, sente-se e leia. Logo, por favor, não ria muito. Nosso querido Bennett está passando pelo pior momento de sua vida.

? Rir? Seu pior momento? ? Tal como lhe sugeriu seu marido, sentou-se e começou a ler. Igual ao seu marido, abriu os olhos de tal maneira que Roger pôde ver o verde de suas pupilas. Levou a mão à boca impedindo que um grito ou uma gargalhada brotassem dela. ? Pelo amor de Deus, o que você fez?

Bennett pegou uma cadeira e se sentou ao seu lado. Durante pouco mais de uma hora explicou a ambos o acontecido com todo detalhe: o dia que Pearson foi testemunha do desafio de William, como o observou vigiando à manhã seguinte em Hyde Park, às assíduas visitas deste ao clube, a tramado com Lawford e por último lhes narrou a desoladora cena de seu enterro.

? As pessoas podem ser muito cruéis ? assinalou Beatrice quando escutou que a senhorita Pearson estava sozinha em um momento tão difícil.

? Ninguém quer estar envolto em uma morte e menos quando o falecido se suicidou. Todo mundo estaria falando sobre as possíveis causas dessa decisão. Estou seguro de que se acusariam uns aos outros sem sopesar a verdadeira razão pela qual o moço pôs fim à sua vida. ? William colocou a mão sobre o ombro de sua esposa e o apertou com ternura.

? Pobrezinha ? comentou Beatrice com pesar. Levou-se a mão para o ventre e o acariciou com suavidade. Aquilo lhe recordou a agonia que sofreu quando seu marido decidiu bater-se em duelo por sua honra. O que teriam feito ela e seu filho se tivesse morrido?

? A verdade é que sinto lástima por ela. Se não fosse o suficiente a morte de seu irmão, imagine o que vai padecer quando descobrir que está comprometida a um homem como eu ? acrescentou Roger.

? Por quê? ? Interrompeu lhe Beatrice. ? Por que esse moço escolheu a ti?

? Bom, nem tudo em Bennett é mau, querida ? interveio Rutland. Olhou sua esposa e esboçou um pequeno sorriso quando ela mostrou um grande assombro em seu rosto. ? Tem bom coração.

? Tem um coração enorme! ? Exclamou a mulher ao mesmo tempo em que se levantava. ? Tão grande que é capaz de amar a todas as mulheres!

? Como? ? Intrometeu-se o aludido. ? Não me julgue ainda, senhora Rutland. Sei que o dia de amanhã, quando de verdade desejar me casar, serei o homem mais fiel do mundo.

? Você? ? Zombou Beatrice sem pensar. ? Impossível!

? Por favor... tranquilizemo-nos ? pediu William.

? Acaso seu marido não mudou?

? É óbvio que o fez! Porque me encontrou! ? Clamou zangada.

? Rogo que se acalmem. ? Rutland se dirigiu para sua esposa para abraçá-la e relaxá-la. Não queria que terminasse blasfemando. Ultimamente seu estado emocional se desequilibrava com facilidade e agora, a doce e terna mulher que momentos antes lhe tinha devotado paixão e desejo, estava se convertendo em uma bruxa.

? Tem razão... ? disse Roger após suspirar. ? Não mereço outra coisa salvo todo tipo de recriminações. ? Com passo firme retornou para o móvel bar, mas desta vez não encheu a taça e sim pegou a garrafa.

? Não quero dizer que o dia de amanhã não seja capaz de amar a uma mulher, não entenda isso. Só quero que compreenda que a senhorita Pearson já sofreu bastante ? explicou Beatrice suavizando seu tom.

? O suicídio é... ? tentou dizer Bennett.

? Não! Não é só pelo suicídio! ? A mulher olhou a ambos os homens e ficou sem palavras ao descobrir que, pela expressão de seus rostos, não sabiam a que se referia. Onde estavam quando toda Londres cochichava sobre o acontecido à senhorita Pearson?

? Temo, querida, que conhece algo sobre a senhorita Pearson que nós não, não é? ? William apertou seus olhos negros e enrugou levemente a testa.

? Eu não deveria falar disso. Sou a menos indicada para propagar um rumor ? comentou em voz baixa.

? Mas...? ? Insistiu seu marido.

? Foram as amigas da minha mãe que falaram sobre ela uma tarde que se apresentaram para tomar o chá ? começou a dizer ao mesmo tempo em que se dirigia para seu marido para abraçá-lo. Não gostava de recordar certos temas e menos ainda quando ela tinha estado na boca de outros por causas parecidas.

? Querida... ? William a atraiu para seu corpo com força e ao notar um pequeno tremor lhe beijou a cabeça. ? Nós gostaríamos de saber o que aconteceu a essa mulher. Talvez isso faça com que Roger se salve desse fatídico enlace.

? Não paravam de cochichar sobre a pobre filha dos Pearson e a desgraça que tinha levado ao seu lar ? começou a contar afastando-se do corpo de seu marido e dirigindo-se para seu assento junto à chaminé. William cortou a distância entre eles e lhe segurou uma mão para lhe dar aquela confiança que parecia precisar. ? Ocorreu em uma das festas que realizou sua família na residência Seather Low. Eu ainda não tinha idade para aparecer em sociedade, então fiquei em casa. Entretanto, meus pais foram.

? O que aconteceu? ? Roger levantou a garrafa e deu um grande gole.

? Encontraram-na nos braços de um homem.

? Como? ? Bennet cuspiu todo o líquido que saboreava na boca. ? Está dizendo que...?

? Não vá replicar sobre isso, Roger ? resmungou Beatrice. ? Não é o mais apropriado para julgar a decência de uma mulher.

? Não acredito que se atreva, não é? ? Participou Rutland.

? Ao que parecia, ocultava seu romance porque seus pais não estavam de acordo que ela se prometesse com um...

? Com um? ? Insistiu Bennett.

? Descarado ? sentenciou a mulher.

? Então, como posso concluir, desonrou-a e a abandonou ? balbuciou Roger.

? Não sei se será certo ou não, mas o senhor Pearson sempre pensou que cortejava a sua filha porque desejava obter o dote que tinha devotado ao casá-la. Então lutou tudo o que pôde para que nunca estivessem juntos, mas quando a encontraram em seus braços, teve que anunciar o compromisso naquela festa.

? O que aconteceu? ? Pergunto William com curiosidade.

? Em pouco tempo o senhor Pearson se declarou na bancarrota. Meu pai nos comentou que tinha feito uma má gestão com certo investidor que lhe tinha devotado conseguir uma grande soma de dinheiro e, é óbvio, extorquiu-o.

? Então, aquele caipira anulou o compromisso ? apontou de maneira reflexiva Bennett.

? Não! Não foi assim! Pouco tempo depois daquela notícia, o prometido se alistou no exército.

? E o que aconteceu com esse estimado militar para que não se casasse com a senhorita Pearson? ? Perguntou Bennett reticente.

? Morreu ? afirmou Beatrice.

? Morreu? ? Seu marido elevou de novo as sobrancelhas e enrugou a testa.

? Sim. Ao que parece, em umas manobras que deviam realizar, a alguém escapou uma bala e disparou nele.

? Vá... que má sorte! ? Exalou Roger devagar.

? Pois parece que a má sorte a persegue, não é? ? A mulher se voltou para ele e o olhou zangada.

? Vim até aqui para tentar resolver isso mesmo, senhora duquesa. Não quero que minha má reputação destrua a ninguém mais salvo a mim.

? Mas não vai ser possível, meu amigo. Não pode evitar a assinatura da própria rainha ? explicou Rutland.

? Que outra alternativa fica? ? Perguntou Roger depois de olhar a ambos.

? Se casar com ela e ser um bom marido ? assinalou Beatrice com firmeza.


V


Tinham passado duas semanas da morte de Colin embora para Evelyn esse tempo lhe parecesse uma eternidade. Acreditou que ocupando seu dia com todas as tarefas que lhe surgiam na cabeça não a faria sentir tanto, mas se equivocou. Como fazer desaparecer tão rápido um ser que se amou com tanta intensidade? Tinha o coração destroçado. Mal ficavam forças para continuar vivendo e tudo que fazia recordava seu irmão. Ninguém podia resolver sua dor, sua perda, seu vazio. Nem a morte de seus pais lhe tinha produzido tal angústia. Mas era normal. Quando eles faleceram ainda ficava uma pessoa pela qual lutar, pela qual viver, pela qual levantar ? se todos os dias. Entretanto, agora o que tinha? Nada , salvo as dívidas. Fechou o livro de contas que estudava e começou a chorar de novo. Os deficits começavam a superar o dinheiro que guardava e, tal como imaginou, ninguém tinha perguntado pela venda da residência de seu irmão. O final de uma época estava chegando. Só restava enfrentar com integridade o desastroso futuro.

Olhou de novo a carta que tinha sobre a mesa. Nela sua tia avó lhe explicava que uma conhecida sua necessitava de uma instrutora para seus filhos. Era uma boa oportunidade para partir de Londres e afastar-se de tudo. Possivelmente deste modo também deixaria de sofrer as impertinentes visitas daqueles que tentavam salvá-la mediante um matrimônio.

Desde o falecimento de Colin, os cavalheiros solteiros ou viúvos da cidade apareciam por seu lar para lhe oferecer a melhor alternativa à sua desdita. O primeiro em lhe comentar tal loucura foi o senhor Coleman. Evelyn não pressentiu nada quando falou com ele no enterro. Se não recordava mal, comentou-lhe que as portas de seu lar sempre estariam abertas para ela, mas... casando-se? As razões que o bom doutor alegou para a proposição matrimonial eram que ela estava sozinha, desamparada na vida e que ele, ao enviuvar, necessitava de uma esposa com quem ter filhos. Ficou muda depois da exposição. Seu corpo se intumesceu e teve umas vontades terríveis de vomitar, mas manteve a compostura e rejeitou a proposição da maneira mais sensata que encontrou até aquele momento: declarou que se encontrava em período de luto e não se achava em plenas faculdades para pensar. Entretanto, quando o senhor Coleman partiu, acreditou que esse tema estava resolvido, mas não foi assim. Dia após dia apareciam mais cavalheiros com a esperança de encontrar seu ansiado sim.

? Senhorita Pearson...

Sua donzela apareceu na saleta sobressaltada. Tinha o rosto pálido e a respiração era mais agitada do que o habitual.

? Diga, Wanda, o que acontece? ? Perguntou enquanto se incorporava no assento para deixar junto à carta o livro de contas.

? Desculpe se a atrapalho, mas acaba de chegar outra carruagem ? expôs sem mal tomar ar para respirar. ? Imagino que será outro possível pretendente.

? Outro? ? Gritou com raiva. ? Acaso não ficou clara a minha postura? Vou ter que enviar umas linhas ao periódico para esclarecer que não procuro marido? ? Sua fúria era tal que o rosto se encheu de fogo.

? Sinto muito, imagino que todo mundo pensa que você deva casar-se para poder subsistir ? repôs avançando para ela.

? Subsistir? De verdade crê que viver ao lado de um homem que não amo e que pensa que sou uma máquina de fazer filhos pode me oferecer essa sobrevivência? Maldita seja! Não sou um animal!!

? Minha senhora... ? a interrompeu Wanda ao ver que o cavalheiro começava a subir as escadas.

? O quê? ? Perguntou dando a volta para ela.

? Aproxima-se... deve decidir o que fazer.

Evelyn correu para a janela. Afastou as cortinas e ficou observando a pessoa que avançava para a entrada. Sem lugar a dúvidas, era o homem mais bonito dos que até agora tinham aparecido, mas mesmo assim, não queria recebê-lo. Durante uns instantes se manteve calada meditando em silêncio como poderia fugir da visita. Por mais que o tentou, não lhe ocorreu nada.

? Senhora, é o mesmo homem que se aproximou no dia do funeral. Aquele cavalheiro que ousou segurá-la pelo braço diante dos presentes ? explicou a donzela ao contemplá-lo mais de perto.

? O senhor honorável! ? Exclamou. Quase atirou Wanda ao chão ao afastar-se da janela. Começou a passear de um lado para o outro ao tempo em que blasfemava sem parar. Que demônios fazia ali? Como lhe ocorria aparecer em sua casa depois do ocorrido?

? O que faço? Recebo-o ou espero que bata à porta? ? Perguntou a criada sem poder reduzir sua inquietação.

? Vou Recebê-lo eu mesma... ? disse Evelyn entreabrindo os olhos e esboçando um sorriso malicioso.

? É uma loucura! Como você vai lhe receber? ? A donzela ficou imóvel no meio do salão. Suas sobrancelhas se elevaram imensamente e levou a mão à boca ao observar o rosto malicioso de sua senhora. ? Não pretenderá...? Deus, não!!

? Não fica outra opção ? sentenciou. ? Preciso de você.


Estava há quatro dias em Londres, tempo que utilizou para consultar todas as pessoas que conhecia e sabia de leis para romper seu acordo. Mas sempre obteve a mesma resposta: um imenso «nada se pode fazer» acompanhado de uma enorme gargalhada. Já se tinha dado por vencido. Não ficava mais remedeio que cumprir a última vontade da pessoa que lhe tinha destroçado a vida. Com um grande pesar, deu ao cocheiro a direção que devia levá-lo, meteu-se na carruagem e fechou os olhos. Durante o trajeto recordou uma e outra vez a noite da partida. Tentava obter algo que lhe salvasse daquela situação. Entretanto, seguia sem encontrar aquilo que procurava. Era tanta sua raiva pelo que ia fazer que começasse a golpear com os punhos o interior do carro. Como tinha sido tão tolo? Como não foi capaz de dar-se conta? De repente, o coche parou. Escutou o relinchar dos cavalos e como o cocheiro descia do assento. Quis pegar a maçaneta e impedir que o lacaio realizasse seu trabalho. E se ficasse ali encerrado o resto de seus dias? Poderia salvar-se? Mas não o conseguiu. Quando estendeu a mão para pegar o fecho, o criado a abriu.

? Milorde, chegamos ? informou o homem que, ao ver o senhor estendido para a porta, ficou tão surpreso que deu um passo para trás.

? Obrigado ? disse a modo de resposta.

Roger inspirou tudo o que pôde quando elevou a vista para a residência. Não era tão grande como a sua, mas tampouco a podia catalogar de pequena. Alisou o traje, apertou o chapéu com força na cabeça e começou a subir os degraus que o conduziam para sua morte. Sim, sua morte. Embora pensasse que se falecesse antes de tocar a porta, seria o homem mais feliz do mundo.

Muito ao seu pesar chegou são e salvo até à entrada.

Pegou a aldrava e tocou várias vezes. Ouviu uns suaves passos aproximando-se e, ocultando sua aflição, manteve uma figura rígida.

? Bom dia, senhor ? respondeu uma criada vestida de rigoroso negro.

? Bom dia. Preciso falar com a senhorita Pearson. Encontra-se no lar?

? Sim, milorde. Quem digo que deseja vê-la?

A donzela seguia olhando ao chão. Levava o cabelo recolhido em um volumoso coque embora lhe tivesse escapado algumas mechas. Roger observou a cor e ficou sem fala. Era de um vermelho tão intenso que parecia desprender fogo. Adorava esse tom de cabelo e, muito ao seu pesar, nunca tinha dormido com uma mulher com esse traço tão erótico. Encantado pelo brilho, tomou ar tentando manter a compostura, mas foi pior. Quando o perfume da mulher se introduziu em seu nariz, algo nele despertou com mais rapidez da que esperava. «Mon Dieu, non!», exclamou mentalmente. Cheirava a lilás. Se tivesse fechado os olhos teria se visto de novo no lar de seus pais, caminhando sob um comprido túnel de lilás enquanto sua mãe lhe falava com entusiasmo de como as cultivar. Por uns instantes seu mau humor desapareceu e deixou que uma estranha paz acalmasse seu corpo.

? Quem diz que é você? ? Insistiu a mulher ao ver que não lhe respondia.

? Sou o senhor Bennett ? respondeu enfim.

Mas não foi capaz de seguir falando. Quando a criada levantou com suavidade seu pálido semblante e expôs o verde de seus olhos, esteve a ponto de cair ao chão. Eram tão profundos, tão formosos, que desejou aproximar a mão e tocá-los com delicadeza. Mas se aquele olhar o deixou sem palavras, depois de descobrir o rosto ficou tão abobalhado que esqueceu a razão pela qual tinha aparecido naquele lugar. As bochechas da mulher estavam cobertas de umas diminutas sardas que lhe davam um aspecto tão juvenil como luxurioso. De repente teve vontade de sair correndo, fugir o antes possível dali. Estava louco! Não podia casar-se! Era um homem maldito. Por que... acaso não era uma maldição o repentino desejo de retornar a casa e fazer chegar à criada uma carta lhe indicando que a queria como amante?

Como ia manter seu juramento? Como ia respeitar sua esposa se antes de conhecê-la já tinha fantasias com sua própria criada?

? Se for amável de esperar aqui, perguntarei à senhora se pode lhe receber. ? Com passo firme e mais reta do que deveria mostrar uma empregada, a mulher desapareceu depois de uma porta.

Roger não pôde afastar o olhar dela. Tinha-o hipnotizado até tal ponto que estava a ponto de cometer uma loucura. Entretanto, justo quando se ia dar a volta e baixar as escadas de três em três, a criada apareceu sorridente.

? Se for amável de me seguir, minha senhora o receberá no salão. ? Colocou-se diante dele e avançou com a mesma atitude.

Seu coração seguia pulsando? A resposta devia ser que não, porque acreditava que tinha deixado de senti-lo. Esteve a ponto de levar a mão para a gravata para desfazer o nó. Faltava-lhe ar. Notou como lhe suava o corpo e a pontada entre as calças aumentava em cada movimento de quadril.

Roger elevou o olhar e tentou cravar suas pupilas no teto. Precisava acalmar aquele estranho desejo que lhe tinha despertado a criada. Nunca se tinha fixado em uma criada. Para ele eram pessoas intocáveis e respeitáveis. A mera ideia de submeter uma donzela não só a um trabalho no lar, mas também no quarto, provocava-lhe náuseas. Possivelmente o culpado disso fora seu pai, quem não era capaz de respeitar a nenhuma mulher que se aproximasse.

? Senhor... ? indicou com suavidade. ? Se for amável de passar.

Roger quis fechar os olhos para escutar a melodia que soava ao falar. Nunca tinha tido o prazer de ouvir um suave canto parecido ao das sereias e naquele momento o estava ouvindo. Fazendo um grande esforço, entrou no salão e dirigiu o olhar para a mulher que se encontrava de pé esperando-o. Voltou a ficar mudo. Tinha-o sopesado em mais de uma ocasião, mas sempre rezava para que não ocorresse. Embora já não houvesse como voltar atrás, ia se casar com uma mulher que roçaria os cinquenta.

? Bom dia, senhorita Pearson. ? Estendeu a mão para ela e a beijou com suavidade. Ao contato com sua pele, Roger notou uma aspereza imprópria de uma mulher de sua linhagem. Entretanto, rapidamente recordou que sua situação econômica não era a apropriada e pensou que devido a isso a mulher teria que realizar tarefas próprias de uma donzela.

? Bom dia, senhor Bennett ? saudou com uma pequena gagueira. ? Que motivo o conduziu até meu lar? ? Afastou-se de seu lado e se sentou perto de onde se encontrava a criada.

Roger a seguiu com o olhar até que seus olhos se encontraram com os da criada. Um estranho comichão em seu estômago surgiu sem poder controlá-lo. Mal lhe saíam as palavras, estava extasiado por culpa daquela mulher. Apesar daquele estado de devaneio, respirou fundo e andou pelo salão até colocar-se no centro. Olhou sua futura esposa e lhe disse em tom suave:

? Eu gostaria de lhe entregar um documento que assinei ao seu irmão antes de sua morte. ? Colocou a mão no bolso e o mostrou. A donzela se aproximou para segurá-lo e nesse instante voltou a lhe açoitar o delicioso perfume. ? Eu gostaria de esclarecer que não estive de acordo em seu momento, mas após refletir durante este tempo, acredito que será o mais acertado para ambos.

? Para ambos? ? Inquiriu a dama com assombro. Abriu o envelope, tirou o documento e deixou que a criada o lesse ao mesmo tempo que ela. ? Isto... isto...

? Sim, senhorita Pearson ? disse sem deixar de observar como a criada começava a empalidecer. ? É nosso compromisso matrimonial.

Não esperava que a pessoa mais afetada pela notícia fosse a empregada de sua futura esposa. Assim, por mais que o evitasse, prestou mais atenção ao seu comportamento que ao da senhorita Pearson. Observou-a tremer, depois como olhava a carta e logo dirigia suas verdes pupilas para ele. Roger, assombrado, descobriu como seus olhos se enchiam de lágrimas e que esticava as mãos para o respaldo onde se sentava sua senhora para evitar um possível desmaio, mas não conseguiu segurar-se com força. Suas mãos escorregaram e atrás delas, o corpo inteiro. De repente, saltando todos os protocolos que lhe tinham inculcado desde o berço, deu uns grandes passos para a donzela e conseguiu segurá-la antes que tocasse o chão.

? Encontra-se bem? ? Perguntou-lhe segurando-a pela cintura.

? Wanda? ? Perguntou sua futura esposa. ? Meu Deus!

? Não se preocupe, foi só um desmaio, logo se recuperará. Mas se for amável de me indicar onde tenho que pousá-la, farei isso encantado ? assinalou Roger elevando entre seus braços o corpo desabado.

? Me siga! ? Exclamou a mulher correndo diante dele. ? A deixaremos descansar em meu quarto.

Era pecado e sabia, mas não pôde resistir. Enquanto a sujeitava entre seus braços, Bennett tentava sentir seu calor, cheirar seu aroma e imaginar que aquele cabelo vermelho ressaltaria a palidez de seus travesseiros. Tentou apagar de sua mente aquelas cenas tão luxuriosas e ainda mais sabendo que sua futura esposa estava junto a ele. Não ficava outra alternativa, teria que despedi-la assim que contraísse matrimônio por que... acaso resistiu Adão a comer a maçã quando Eva a ofereceu nua?

? Pode deitá-la aí. ? Indicou depois de abrir a porta do dormitório.

Quando Roger a pousou sobre a cama, notou como se esfriava seu corpo e como começava a sentir saudades. Desesperado por tal loucura, caminhou com rapidez até colocar-se aos pés do leito. Tinha que fazer desaparecer aquele inoportuno desejo, não devia sentir aquela queimação no peito por afastar-se de seu lado. Sem lugar a dúvidas, se ele fosse Adão e ela oferecesse a maçã a teria comido em dois bocados.

? Se você o desejar, virei em outro momento para a esclarecer quando se celebrarão nossas bodas ? disse sem voz. Um enorme nó na garganta o impedia de falar com normalidade e suas pupilas, por mais que o tentasse, não podiam afastar-se do corpo necessitado da criada.

? E se eu não desejar me casar? ? Respondeu a mulher olhando-o com olhos frágeis.

? Juro-lhe por minha honra que estive procurando essa alternativa desde que li a carta, mas não achei nenhuma. Você e eu estamos prometidos. Mas... ? tomou ar e rezou para que a opção que tinha sopesado durante os últimos dias fora a correta para ambos ? não se preocupe comigo. Depois de nos casar partirei de Londres e não retornarei até que necessite de um filho para herdar o título que possuirei.

A mulher emudeceu. Fechou os olhos e deixou que as lágrimas percorressem seu rosto. Segurou com força a mão da donzela e depois de uns minutos nos quais parecia refletir perguntou:

? Onde viverei? ? Exigiu saber com uma mescla de inquietação e tristeza.

? Onde você desejar.

? Como o farei?

? Será a futura marquesa de Riderland e viverá como tal ? asseverou. Colocou as mãos em suas costas e elevou o queixo. Não lhe pareceu uma atitude adequada para uma senhorita de boa família, mas entendeu que se preocupasse com sua economia.

? Quando deseja que se celebrem essas bodas? ? Demandou ao mesmo tempo em que afastava uma mecha do rosto da criada.

? O mais cedo possível ? respondeu veemente.

? Bem, nesse caso o aceito como marido. Agora, se for tão amável de me deixar sozinha, poderei atender a minha donzela como merece.

Roger afirmou com a cabeça, golpeou brandamente os saltos de suas botas e saiu da habitação. Quando fechou a porta abaixou a cabeça e decidiu celebrar seus últimos dias de celibato enchendo seu estômago de todo o licor que encontrasse.


VI


Como era de esperar, quando Evelyn despertou, saiu da habitação e, sem dar tempo a Wanda para lhe colocar a capa e o chapéu, subiu na carruagem e se dirigiu para o escritório do senhor Lawford. Tinha visto sua assinatura no documento junto à de seu irmão, a de seu futuro marido e a da própria rainha, assim era a única pessoa que a podia ajudar a liberar-se daquela proposição irrebatível. Por que Colin tinha ideado esse plano tão desastroso? Não terminava de acreditar. Era impensável que ele a forçasse a realizar algo que não desejava.

Desde a ruptura com Scott, tinha gritado aos quatro ventos que jamais se comprometeria com ninguém, que viveria solteira o resto de sua vida, mas seu irmão não lhe concedeu seu único desejo. Sem poder deixar de chorar olhou pela janela e percebeu que não chovia. Pela primeira vez em semanas os raios iluminavam a cidade, entretanto, ela se sentia em plena escuridão. Nem as contínuas palavras de fôlego da Wanda a consolaram. Por mais que insistisse em que era a melhor opção para não cair na destruição pelas dívidas, Evelyn seguia alegando que partir como instrutora era sua única salvação. Por que ia se casar com um homem que não conhecia? Que futuro a esperaria? De verdade Wanda era tão ingênua que esperava que o homem partisse e a deixasse viver tranquilamente? Os homens mentiam. Sussurravam as palavras que alguém precisava escutar, mas quando conseguiam o que andava procurando, esfumavam-se como as névoas matutinas.

? Minha senhora, chegamos ? comentou a donzela com voz suave.

? Disse-me que ele procurou como desfazer-se deste compromisso? ? Quis saber Evelyn ao mesmo tempo em que franzia o cenho e entreabria os olhos.

? Sim, isso mesmo foi o que disse quando estivemos no quarto ? respondeu Wanda um tanto surpreendida pela pergunta.

? Assim que... o senhor Bennett tampouco está feliz por este acordo ? prosseguiu com tom mordaz.

? Conforme parece não tem prazer, mas sim se vê obrigado.

? Pois eu o liberarei dessa obrigação! ? Exclamou ao mesmo tempo em que saltava de seu assento e abria com vigor a porta da carruagem.

? Senhorita, seu chapéu! ? Clamou Wanda horrorizada ao ver como a moça saía ao exterior sem cobrir seu cabelo e rosto.

Evelyn não a escutou. Caminhou depressa para a porta do escritório, pegou a aldrava e golpeou tão forte como pôde.

? Quem chama...? ? Começou a perguntar Arthur Lawford surpreso. Ficou atônito quando viu em frente aos seus olhos a senhorita Pearson. Não levava o escuro véu que cobria seu rosto e grande quantidade de seu cabelo se escapou do coque. O administrador tragou saliva.

? Boa tarde, senhor Lawford ? disse a modo de saudação. Não esperou que este a convidasse a entrar, acessou ao interior com tanto ímpeto que o homem teve que afastar-se para não roçá-la.

? Boa tarde, senhorita Pearson. O que faz você aqui e sem seu véu? ? Perguntou aturdido.

? Necessito que me esclareça quanto à última vontade do meu irmão ? respondeu entrecortada.

? Sua última vontade? ? Repetiu ao mesmo tempo em que a seguia até chegar à sua escrivaninha.

? Não me esquive, senhor Lawford! ? Exclamou zangada enquanto se virava para o administrador e o olhava irada. ? Sabe muito bem do que estou falando. Você também assinou minha sentença de morte!

? Acalme-se, por favor ? disse com voz pausada. ? Se for amável de tomar assento, contar-lhe-ei tudo o que deseje.

Arthur afastou uma cadeira e esperou que ela se sentasse. Logo rodeou a mesa e ocupou seu lugar. Não falou até que escutou que a mulher respirava com mais tranquilidade. Necessitava que lhe prestasse toda a atenção possível e estava seguro de que se o fizesse inquieta o resultado seria catastrófico.

? Quer uma taça? ? Abriu a gaveta e tirou uma garrafa e dois copos que colocou sobre a mesa.

? Por favor ? respondeu como afirmação.

Lawford o encheu até à borda, depois fez o mesmo com o seu, mas quando ia tomar o primeiro sorvo observou que o copo da mulher já estava vazio.

? O senhor Pearson apareceu uma manhã em meu escritório com um livro de contas ? começou a explicar enquanto enchia a taça de novo com líquido ambarino. ? Me pediu que lhe desse uma olhada. Imagino que necessitava minha ajuda para tentar salvar a situação econômica pela qual passavam.

? Desde que meu pai realizou aquele investimento, as rendas familiares não foram muito flutuantes ? indicou com calma.

? Por mais que estudasse e analisasse a situação, não encontrei uma saída para esse problema ? esclareceu com pesar. ? Pouco depois seu irmão me informou sobre sua enfermidade. Recomendei-lhe que vendesse sua residência em Downing Street. O fez, colocou-a à venda sem que você soubesse durante seis meses, mas ninguém perguntou por ela e Colin começou a angustiar-se ao ver que o tempo passava, sua enfermidade o fazia mais débil e as dívidas aumentavam.

? Foi nesse preciso momento que decidiu me buscar um marido? ? Consultou com sarcasmo.

? Não, a verdade é que não foi nesse momento. Ocorreu uns dias depois do duelo de...

? Duelo? Colin esteve comprometido em um duelo? ? Levantou a voz mais do que deveria.

? Não! Ele jamais faria uma loucura assim! ? Saltou Arthur em sua defesa.

? Então... o que foi que o conduziu a tomar essa decisão? ? Seu tom seguia alto, mostrando o aborrecimento e o desespero que sentia naqueles instantes.

? Conforme me disse, a atitude do senhor Bennett.

? E pode me dizer qual foi essa atitude para pensar que seria um bom marido?

? Sua fidelidade.

? Fidelidade? Eu também tenho fidelidade a qualquer cão que encontro pela rua!! ? Clamou perdendo a compostura.

? Sinto muito, senhorita Pearson. Perseverei muito em fazer seu irmão raciocinar, mas não me deu atenção ? indicou com resignação.

? Tenho que encontrar uma maneira de romper esse compromisso. Não posso me casar com o senhor venerabilidade! ? Levantou-se da cadeira e rondou pelo pequeno espaço fazendo dramalhões e blasfemando sem parar.

? Muito me temo que não haja nada que possamos fazer para revogar o documento. Até a própria rainha consentiu o enlace.

? Pelo amor de Deus! Como conseguiu que nossa rainha assinasse uma coisa assim? ? Disse depois de apoiar as palmas de suas mãos sobre a mesa e olhar ao homenzinho com ira.

? Tenho contatos, senhorita Pearson ? afirmou com orgulho. ? Seu irmão queria um compromisso inapelável e eu o consegui. Sou o melhor na cidade...

? O melhor? ? Arqueou as sobrancelhas e o contemplou desafiante. ? Você está seguro disso?

? É óbvio! ? Exclamou o administrador.

Tinha-lhe ferido seu orgulho e, por mais zangada que estivesse a mulher, não deixaria que menosprezasse seu trabalho.

? Pois se é tão bom no seu trabalho, procure a maneira de me liberar desta prisão!

? Muito me temo que não possa livrar-se disso. Tem que casar-se com o senhor Bennett.

Evelyn soltou vários impropérios, gritou com força e, sem diminuir a ira, esticou a mão para atirar ao chão os copos e a garrafa de uísque.

? O que faz? ? Disse Arthur levantando-se rapidamente de seu assento. ? Essa garrafa vale mais de dez libras!

? Coloque-a na conta do meu futuro marido. Com certeza ficará encantado de pagar os danos de quem nos uniu para sempre. ? E sem nada mais que acrescentar, deu meia volta e saiu do escritório.

Quando fechou a porta, o sol brilhava mais que nunca. Fechou os olhos e deixou que seus quentes raios a acalmassem. Não havia forma de escapar. Estava atada a um homem que não conhecia. Suas pernas começaram a debilitar-se. Notava como a força a abandonava. Era, de novo, uma mulher desventurada por culpa de um homem. Levantou seu rosto banhado em lágrimas, caminhou para a carruagem e deixou que Wanda a acolhesse entre seus braços.

? Calma... ? murmurou enquanto lhe acariciava o cabelo. ? Estou segura de que esse cavalheiro cumprirá sua palavra e se afastará de você.

? OH, Wanda! Por que está me acontecendo isto? Acaso já não sofri o bastante? ? Com a cabeça apoiada nas pernas da criada, Evelyn continuou seu agônico pranto.

? Tudo se solucionará. Deus é piedoso com as pessoas boas ? continuou lhe sussurrando. ? Agora só deve pensar uma coisa.

? O quê? ? Moveu lentamente a cabeça para poder observar a mulher que a consolava como se fosse sua mãe.

? Como vai se apresentar no dia de suas bodas se seu futuro marido pensa que é a criada?


VII


Uma semana depois de aparecer no lar da senhorita Pearson, Roger começava a preparar-se para seu suposto grande dia. Apesar da insistência de seu ajudante de câmara para que se vestisse com um dos trajes azul marinho que guardava para celebrações especiais, escolheu o negro, dando um aspecto ainda mais tétrico, se era possível. Durante os sete dias aproveitou para visitar seus pais e lhes dar a boa nova. Acreditou que, ao cumprir o maior de seus desejos, abraçá-lo-iam, ficariam cheios de júbilo e lhe desejariam uma vida próspera. Mas não foi assim. Sua mãe começou a chorar e quando cessou o pranto, desmaiou. Seu pai gritou que era um insensato, que jamais teria imaginado que seu filho fizesse uma proposta matrimonial sem seu consentimento e acrescentou que, se não tivesse nascido, haveria se sentido o homem mais afortunado do mundo. Logicamente, Roger saiu da casa de seus pais com um sentimento de sufoco que nem a garrafa que guardava na carruagem pôde eliminar. Não entendia a atitude de seus pais. Durante toda sua vida lhe tinham advertido que devia procurar uma esposa que lhe fizesse assentar a cabeça, que o retirasse da vida pecaminosa que levava e que os obsequiasse com a chegada de netos. Entretanto, ao conseguir uma dessas aspirações, descobriu que no fundo nada disso era certo, que todas aquelas conversações sobre o futuro eram falsas e que na realidade albergavam a esperança de que um dia desaparecesse dentre os vivos para que seu irmão Charles possuísse o título de marquês.

Desolado pelo descobrimento, chamou as únicas pessoas em quem podia confiar: William e Federith, sua verdadeira família. Em poucos dias recebeu a resposta de ambos. Federith comunicava que iria sozinho à cerimônia porque sua mulher não se encontrava em bom estado para viajar. William, depois de lhe escrever uma argumentação sobre o dever de um marido para com sua esposa, respondia-lhe que tanto ele como Beatrice estariam acompanhando-o em um dia tão importante. Como pós-escrito, o duque de Rutland acrescentou que não ficariam em Lonely Field, mas sim pernoitariam na casa dos pais de Beatrice, que visitavam Londres essa mesma semana. Assim que se encontrava sozinho, em sua casa, em seu quarto e com o traje eleito. Olhou-se no espelho e se assombrou. Não era a imagem de um homem a ponto de contrair matrimônio, mas sim a de um homem que assistiria a um funeral, era como se sentia.

? Milorde. ? Anderson entrou no quarto com a sutileza que o caracterizava. ? Devemos ir.

? Preparou a bagagem? ? Perguntou enquanto jogava uma última olhada ao seu redor.

? Sim, meu senhor. Quando partirmos para a igreja, um dos criados a levará até o navio ? indicou.

O mordomo não podia deixar de observar a pessoa que servia há pouco mais de uma década. Por mais que tentasse encontrar uma situação que tivesse produzido tanta tristeza ao seu senhor, não a achou. Era a primeira vez que o futuro marquês estava submerso em uma depressão tão imensa que lhe resultaria difícil sair dela. Com a mesma aflição que o homem para quem trabalhava, Anderson desceu as escadas, ofereceu-lhe a capa e o chapéu e abriu a porta da carruagem.

? Obrigado por ser tão fiel ? sussurrou Roger antes de introduzir-se no interior.

? Milorde, se me permite o atrevimento, acredito que Deus terá piedade de você e lhe oferecerá a felicidade que tanto anseia ? expôs antes de fechar.

? Não estou tão seguro disso ? murmurou Bennett enquanto se sentava e olhava o exterior pela janela.


Tinha os olhos inchados de tanto chorar. Tinha tido a esperança de encontrar algo que a livrasse do terrível final, mas durante os sete dias que transcorreram desde que o senhor Bennett apareceu em seu lar, não descobriu nada que a liberasse. Seu irmão tinha feito a melhor jogada de sua vida destroçando a dela. Era certo que agora não teria que preocupar-se com sua estabilidade econômica, nem sofreria a agonia de escolher qual criado devia despedir, mas isso não lhe proporcionava a ansiada felicidade. Jogou a cabeça levemente para trás para que Wanda lhe colocasse o chapéu e o véu. Tinha insistido em comprar um tão escuro que mal a deixava observar o que tinha a um palmo de distância. Notou como lhe cravava as forquilhas e aferrava com perícia o enorme chapéu para que não pudesse escapar nem um só cabelo do interior. O tempo passava muito rápido e não sabia como pará-lo.

? Sinto-me tão triste... ? disse a donzela entre soluços.

? Sei, mas será o melhor para ambas. ? Esticou as mãos para o véu enrolado e começou a estirá-lo para cobrir seu rosto.

? Sempre sonhei que estaria ao seu lado em um momento tão importante. ? Wanda deu uns passos para trás, estendeu os braços para o chão e abaixou a cabeça.

? Foi culpa minha que te fizesse passar por mim e o sinto. ? Evelyn se virou para sua criada e abriu os braços para abraçá-la. ? Prometo que retornarei assim que tudo terminar.

? Minha menina! Minha pobre menina! ? Exclamou em meio ao pranto. ? Como chegou a isto? Por que seu irmão não foi mais sensato?

? Queria cuidar de mim. Queria morrer tranquilo pensando que sua irmã não sofreria as penúrias às quais me veria exposta se não contraísse um matrimônio afortunado ? disse com firmeza tentando não só consolar a criada, mas também a ela mesma.

? E se não se for? E se decidir ficar? ? Wanda se separou de Evelyn, abriu os olhos como pratos e se levou uma mão à boca. Não tinham sopesado essa opção. Até aquele momento tinham acreditado nas palavras de um estranho.

? Irá. Estou segura de que o fará ? sentenciou.

? E se não o faz? ? Insistiu a mulher aterrorizada.

? Partirei com ele à sua residência e você ficará em Seather como governanta ? indicou.

? Não quero me separar de você! Não quero ficar sozinha! ? Exclamou sem cessar de chorar.

? Eu tampouco, Wanda, eu tampouco...


Um pequeno sorriso apareceu em seu rosto quando desceu da carruagem e observou as figuras de seus amigos em frente à porta da igreja. Como um menino que precisa ser abraçado e consolado por algum de seus pais, Roger correu para William e o abraçou.

? Obrigado, mil vezes obrigado ? balbuciou.

? Não podia te deixar só ? disse-lhe com seu típico tom grave. ? Para isso servem os amigos, não é?

? Está seguro de que não pôde encontrar algo que te libere desta situação? ? Perguntou Federith enquanto se aproximava de Bennett e lhe oferecia sua mão para saudá-lo.

? Nada. ? Negou com a cabeça. ? Aquele moço deixou tudo bem atado.

? Bom, se olhar pelo lado positivo, não terá que quebrar a cabeça procurando a candidata idônea para viver contigo ? comentou antes de soltar uma pequena gargalhada.

? Não entendo como pode ser tão arrogante ? resmungou Beatrice até esse momento calada. ? Vê que seu amigo está sofrendo e em vez de lhe oferecer seu apoio zomba dele dessa forma?

? Não era minha intenção... ? pediu desculpas e afastou-se de Roger para ceder seu espaço à mulher.

? Sabe o que penso? Que está sofrendo uma tristeza tão grande que não é capaz de superá-la, salvo quando confirma que as pessoas que mais ama estão sofrendo muito mais que você ? sentenciou, assinalando-o com o dedo inquisidor.

? Meu amor... controla esse gênio. Dos três, Federith foi o mais afortuno...

? Afortunado? Ia dizer afortunado? Acaso você não é? ? perguntou franzindo o cenho.

? Não sou afortunado, querida. Sou o homem mais afortunado do mundo. ? William avançou para sua mulher, pegou-a pela cintura e lhe deu um beijo tão apaixonado que a deixou sem respiração.

? Senhores... ? apontou Federith ? chega a noiva.

Roger olhou para a carruagem que estacionava a escassos metros deles. Ficou tão imóvel que as solas de seus sapatos ficaram pegas ao chão. Foi William quem o fez despertar de seu choque ao empurrá-lo para o coche. Tentando desenhar um sorriso em seu rosto, abriu a porta e estendeu a mão para a mulher que se converteria em sua esposa.

? Obrigado por vir ? comentou a modo de saudação.

? Ficava outra opção? ? Grunhiu a mulher.

? Não ? respondeu sem voz.

? Pois então, terminemos isto de uma vez. Quero retornar à minha casa. ? Com uma integridade que não tinha, Evelyn caminhou ao lado de Roger até que se introduziram na igreja.

Sem cruzar entre ambos nenhuma palavra mais, escutaram o monólogo do pároco, quem não cessava de falar sobre a lealdade, a fidelidade e o compromisso que implicava um enlace matrimonial. Bennett não se deu conta de que ela tinha luvas até que lhe ofereceu o anel, nem quando lhe estendeu a mão para ajudá-la a descer descobriu que as usava. Onde estava sua mente? Em que lugar do mundo se encontrava? De repente, o padre lhes indicou que já eram marido e mulher. Esperou que ela levantasse o véu para poder lhe dar um beijo, mas não o fez, então aproximou seus lábios do rugoso tecido e a beijou no que se supunha que era uma bochecha.

? Parabéns! ? Exclamou Beatrice à atual senhora Bennett quando se afastaram do altar.

? Obrigada ? respondeu Evelyn com suavidade.

? Sei que não me conhece, sou Beatrice, a esposa do duque de Rutland, que é um dos melhores amigos de seu marido. Quero que saiba que, embora pareça um homem horrível, não o é. Tem um grande coração e estou segura de que abandonará sua inapropriada vida para converter-se em um bom marido. ? Abriu seus braços e a abraçou com força.

? Minhas felicitações ? apareceu a voz de William ao lado das mulheres. ? Bem-vinda à família. Quero lhe informar que nossa casa agora também é sua e pode nos visitar quando desejar.

? Obrigada... ? disse com um pequeno fio de voz.

? Sou Federith Cooper, outro dos amigos de seu marido. Dou-lhe os parabéns. ? Esticou sua mão, pegou a dela e a beijou.

? Obrigado a todos por vir ? começou a dizer Roger que até aquele momento se manteve calado para que todos os cuidados se dirigissem para sua esposa. ? Quero que saibam uma coisa, disse a ela no passado e sigo mantendo. Irei embora.

? Como? ? Inquiriu Beatrice assombrada.

? Tenho que fazê-lo. Este matrimônio foi uma obrigação para ambos e lhe prometi que, uma vez casados, afastar-me-ia de Londres para deixá-la viver tranquila.

? Não pode fazer isso! ? Exclamou William zangado.

? Sim, o farei e espero que cuidem dela. Minha querida senhora Bennett, espero que desfrute de sua nova vida. Dei ordem ao meu administrador para que pague todos os seus gastos. Se tiver qualquer problema, ele saberá onde me encontrar ? comentou antes de caminhar com firmeza para sua carruagem. Não podia olhar para trás porque se o fizesse não poderia afastar-se da única família que tinha. Mas tinha feito uma promessa e, muito ao seu pesar, devia cumpri-la.

? Meu Deus! ? Exclamou a duquesa de Rutland segurando as mãos da senhora Bennett. ? Ficou louco!

? É a melhor decisão ? murmurou Evelyn sem deixar de olhar a figura que se afastava dela tal como lhe tinha prometido.

? Está segura? ? Quis saber Beatrice.

Olhou-a sem piscar. Não podia distinguir o rosto da mulher que tinha contraído matrimônio com o amigo de seu marido. Tampouco pôde compreender se aquela situação lhe parecia correta ou não. Tudo nela era escuridão, não só por sua vestimenta, mas sim pelo tom de voz com o qual falava.

? Muito segura ? afirmou sem mover-se do lado de Beatrice.

? Pois quero que escute atentamente minhas palavras. Se em algum momento necessitar de uma amiga com quem falar, estarei agradada de te escutar, entendido?

? Sim.

Uma repentina tristeza a açoitou. Não compreendeu por que, ao vê-lo partir, queria lhe gritar que não o fizesse. Seria medo? Estaria aterrada por seu futuro? Porque se essas não eram as razões de sua repentina mudança de pensamento, quais eram? Possivelmente descobrir que no fundo o senhor venerabilidade cumpria sua palavra lhe tinha provocado um pequeno afeto? Durante toda sua vida os homens de seu entorno jamais tinham cumprido suas promessas. Entretanto, ele abandonava uma vida cômoda em Londres para levá-la a cabo sem lhe importar as consequências. Estaria ante um homem leal? Teria se dado conta Colin disso e por esse motivo tramou o plano? Evelyn não podia pensar com claridade. O único que desejava era partir para Seather e viver igual até agora. Embora muito ao seu pesar, talvez não o conseguisse sabendo que, enquanto ela dormia placidamente em sua cama, seu marido se encontraria sozinho em algum lugar do mundo e sem o afeto das pessoas que o amavam por sua culpa.


Estavam a ponto de abandonar Londres quando Roger se incorporou. Golpeou com força a parede da carruagem e esperou que o cocheiro parasse. Tinha estado tão ocupado procurando algo que o liberasse de seu matrimônio que não pensou em seu juramento.

? Se dirija para Baker Street ? ordenou aparecendo pelo guichê.

? Você está seguro? ? Perguntou Anderson com assombro.

? Sim ? respondeu com segurança. ? Quero demonstrar que não sou como ele.

? E se o fizer? E se se converter em seu pai? ? Prosseguiu o criado com temor.

? Não retornarei jamais ? sentenciou.


VIII


Londres, sete meses depois.

Os braços lhe serviam de travesseiro enquanto suas longas pernas, embainhadas em umas botas negras, descansavam sobre a mesa. De vez em quando se balançava na cadeira e um suspiro atrás do outro enchia o silêncio do camarote até que começaram a ouvir os apitos do resto dos navios que navegavam pelo Tâmisa.

Tinha passado muito tempo desde que decidiu partir e por fim chegava ao seu lar. Apesar de visitar os lugares mais paradisíacos do mundo, não encontrou um lugar onde habitar pelo resto de sua vida. Nada era comparável a Londres. Possivelmente porque não lhe bastava ter ao seu redor um lugar repleto de paz se só encontrava solidão.

Sentia falta de seus amigos, a sua verdadeira família. Expôs-se retornar em mais de uma ocasião, mas a promessa à sua esposa pesava mais que seus próprios desejos. Nunca tinha sido um cavalheiro, disso não lhe cabia a menor duvida, só bastava recordar suas atitudes no passado para afiançar esse pensamento. Embora lhe doesse.

Quando recebeu o convite de William para conhecer seu primeiro filho, não o pensou e pôs-se imediatamente rumo à sua adorada cidade. Durante a viagem analisou múltiplas alternativas para enfrentar a nova etapa que se apresentava em sua vida e chegou à conclusão de que o mais acertado seria fixar sua residência em Lonely Field, sua casa de campo. Deste modo não afetaria a vida de sua esposa, que continuaria conservando aquela paz que lhe tinha prometido. Entretanto, antes de assistir à festa de apresentação do pequeno Rutland e de encerrar-se, devia armar-se de coragem para visitar sua mulher e lhe explicar a mudança de situação. Como atuaria? Respeitaria sua decisão ou seria ela quem tomaria emprestado seu navio e zarparia ao amanhecer? No fundo, não importava seu comportamento ou suas possíveis recriminações. Já tinha passado sozinho o tempo suficiente para seguir fazendo-o. Casou-se e isso não significava que tivesse que sofrer uma condenação eterna.

Baixou os pés da mesa para perambular pelo camarote. O desespero por descobrir o que aconteceria após pisar em terra firme o tinha alterado. Não parou de andar de um lado a outro até que percebeu que o navio diminuía a velocidade preparando-se para atracar. O pulsar de seu coração começou a desacelerar-se e uma pressão desconhecida no peito mal lhe deixava respirar. Apesar da incerteza, sentia-se feliz, tanto que era incapaz de expressá-lo com palavras.

Roger se virou para a porta ao escutar uns passos. Alguém se aproximava para lhe informar do que ele já sabia: estava em Londres.

? Boa tarde, milorde ? saudou Anderson. ? Chegamos.

Com uma estranha mescla de euforia e nervosismo colocou a camisa para sair ao exterior. Durante sua viagem mal havia coberto seu corpo com roupa, acostumou-se a exibir o torso nu, como se fosse um pirata, embora ele não necessitasse de mais riquezas das que já possuía, necessitava muito mais que o saque suculento de um corsário: felicidade.

Não tinha terminado de abotoar o objeto quando começou a subir os degraus que levavam à cobertura. O ambiente da cidade o abraçou imediatamente fazendo com que um grande sorriso se desenhasse em sua boca. A névoa, o aroma, a ligeira garoa... tinha tido tantas saudades de tudo que agora, ao senti-lo de novo, recriminou-se pelo tempo que tinha passado longe dali.

? Não é o mesmo, não é? ? A voz de seu criado despertou de seu devaneio.

? Não, não é ? comentou com pesar.

? Não há nada como o lar, meu senhor ? afirmou depois de respirar profundamente.

Houve uns momentos de silêncio, interrompido tão só pelas vozes dos tripulantes do navio. Roger não deixou de observar ao longe. Parecia que a cidade tinha mudado em sua ausência, ou talvez quem tivesse mudado era ele. Em um passado teria saltado do navio e após meter-se na carruagem se teria dirigido a um botequim. Entretanto, seu primeiro desejo quando pôs os pés no chão foi bem distinto.

? Ela sabe da minha chegada? ? Perguntou ao seu criado sem olhá-lo.

? Ocupei-me pessoalmente de lhe enviar a informação.

? Quando?

? Faz quatro semanas, senhor.

? E não obtivemos resposta... ? Não foi uma pergunta, mas sim uma reflexão.

Durante sua viagem, sem saber por que, começou a lhe escrever cartas. Ao princípio foram duas ao mês, mas terminou por enviar uma a cada semana. Nelas lhe contava suas aventuras, os lugares que visitava, as pessoas que conhecia e lhe perguntava como se encontrava ela. Terminava as narrações com uma cordial saudação e esperando que sua nova vida fosse a que esperava. Nunca obteve resposta. Possivelmente nem se dignou a lê-las, mas era normal, sua esposa não o amava e tampouco podia reprova-la, uniram-se mediante as manobras de seu irmão e, depois da ida, ele não fez nada para fazer crescer entre eles um pouco de afeto.

? Continua com a ideia de ir Seather Low?

A Anderson não parecia apropriado que seu senhor fosse visitá-la quando ela não tinha mostrado durante todo aquele tempo interesse algum sobre o bem-estar do futuro marquês, de seu marido. Acaso era tão egoísta que não se perguntava onde se encontrava e que classe de penúrias estava padecendo? Tinha que ser uma mulher muito fria para atuar daquela maneira. Olhou de esguelha ao seu senhor e sentiu lástima. Sempre albergou a esperança de que encontrasse uma mulher que o tirasse do abismo no qual vivia, mas Deus não lhe ofereceu essa oportunidade.

? Tenho que fazê-lo. Eu não gostaria que descobrisse que estou aqui pela boca de outra pessoa ? esclareceu.

Retornou ao seu camarote, arrumou-se e meia hora mais tarde se encontrava na carruagem dirigindo-se para a residência de sua esposa.

Fechou as cortinas do coche e se reclinou para trás. Suas longas pernas se estiraram sobre o assento, cruzou os braços e fechou os olhos. Como receberia a notícia? Mal. De que outra forma poderia recebê-la? Tinha quebrado sua promessa de deixá-la sozinha, de não interromper sua vida. Embora, antes que o recriminasse por sua falta de palavra, explicar-lhe-ia que o motivo de sua chegada se devia tão somente à inevitável visita que faria aos duques de Rutland. O de ficar para sempre a faria saber depois.

Pouco tempo depois o cocheiro freou o trote dos cavalos. Tinham chegado ao seu destino. Nesse momento o coração de Roger pulsava sem freio e suas mãos eram rios de suor. Era a primeira vez que a visita a uma mulher causava ansiedade, talvez porque anteriormente sabia como terminaria sua aparição, entretanto, nesta ocasião não haveria sexo e sim recriminação.

Com mãos trementes afrouxou o nó da gravata para poder respirar. Faltava-lhe o ar, faltava-lhe algo que jamais acreditou perder: segurança.

? Deseja que o anuncie? ? Assinalou Anderson esperando com paciência alguma ordem por parte do senhor Bennett.

? Não. Farei isso pessoalmente.

O criado saiu primeiro e, depois de tirar os degraus metálicos, deixou que Roger descesse. Tomou seu tempo em sair do interior. Em qualquer outra situação teria saltado do assento com rapidez, mas não era uma dessas ocasiões.

Quando pôs os pés sobre a erva do jardim, Bennett olhou para a fachada do edifício e ficou surpreso ao descobrir que não tinha sido arrumada. Continuava igual à antes de sua partida. Durante sua ausência imaginou que sua esposa não perderia tempo em reconstruir sua casa com o dinheiro que lhe atribuía mensalmente. Teria sido o normal posto que a mansão necessitava de certas reformas urgentes, o passar dos anos e o descuido se apreciavam com claridade. Entretanto, ficou desconcertado ao ver que não tinha investido nem um só pinique.

Sem poder evitá-lo, um pequeno sorriso de satisfação se desenhou em seu rosto. Possivelmente a senhora Bennett não era tão harpia como pensava. Possivelmente a tinha julgado de maneira errônea. Um pouco mais tranquilo, ajustou o chapéu, estirou a jaqueta do traje e subiu as escadas que conduziam para a entrada. Esticou a mão e, depois de segurar a aldrava, tocou a porta várias vezes.

? Boa tarde, senhor ? saudou-o um homem de avançada idade.

Bennett entrecerrou os olhos ao ver o mordomo. Tinha esperado que, como a vez anterior, a donzela de sua esposa aparecesse para lhe dar as boas vindas. Mas era melhor assim, não podia voltar a prestar mais atenção à criada que à sua própria mulher.

? Boa tarde ? disse avançando para o hall sem esperar ser convidado. ? Preciso falar com a senhora Bennett.

? Quem pergunta pela senhora?

O ancião franziu o cenho e mostrou uma retidão em sua idosa figura imprópria de um criado. Roger percebeu com rapidez aquela mudança de atitude e, embora não devesse zangar-se porque estava seguro de que ninguém do serviço o conhecia, o fez.

? Seu marido, o senhor Bennett ? respondeu com solenidade.

? Mil desculpas, milorde! ? Exclamou o criado abaixando com rapidez a cabeça e fazendo uma reverência. ? Não o tinha reconhecido e pensei que era outro que... ? ficou calado. Devia controlar sua língua ou sua senhora a cortaria. Desde que apareceu o primeiro cavalheiro propondo aquela loucura, ela lhes fez prometer que jamais falariam disso.

? Outro? ? Roger o olhou de esguelha enquanto oferecia a Anderson o chapéu.

? A senhora não se encontra no lar, milorde. Partiu faz pouco mais de um mês ? disse rezando para que o senhor se esquecesse com facilidade da pergunta e evitar assim o informar sobre o acontecido durante sua ausência.

? Para onde? ? Continuou seu interrogatório sem variar a expressão de seu rosto e sem mover-se da entrada.

? Conforme nos indicou, à casa de um amigo. ? Os dentes lhe bateram como se de repente tivesse muito frio.

? Um amigo? ? Perguntou entrecerrando os olhos.

? Sim ? respondeu abaixando a cabeça.

Roger colocou as mãos nas costas e começou a andar em círculos. De todas as opções que tinha sopesado durante a viagem, nunca imaginou que sua esposa lhe seria infiel. Devia havê-lo imaginado. Com quantas mulheres se deitou enquanto seus maridos estavam ausentes? Esse era o risco mais evidente de manter um matrimônio à distância. Por mais que as mulheres clamassem à viva voz que não necessitavam dos prazeres sexuais tanto quanto os homens, terminavam tendo saudades daquilo do que careciam. Que ser humano podia suportar mais de meio ano sem sentir o calor de outra pessoa?

«Eu ? disse-se. ? Porque fui parvo». Zangado, caminhou com firmeza para o criado que seguia olhando o chão e lhe perguntou em tom mordaz:

? Por que pensava que era outro? Diga-me, quantos homens acompanharam a minha esposa enquanto estive ausente?

? OH, meu senhor! Ela seria incapaz de fazer tal coisa! ? Respondeu o criado atônito ao compreender que tinha dado a entender uma ideia equivocada.

? Então... ? entrecerrou os olhos e o olhou sem piscar.

? Meu senhor, não acredito que deva lhe explicar algo que só concerne à sua esposa... ? sussurrou.

? Acaso ela está presente para responder? ? Gritou com tanta força que seu eco percorreu o lar durante vários segundos.

? Excelência, tenha piedade de mim, o rogo ? continuou o mordomo murmurando.

? Terei clemência se me disser o que ocorreu durante este tempo e por que minha esposa não está onde deveria ? resmungou perdendo toda sensatez, agarrou ao homem pelo pescoço de seu traje, levantou-o uns palmos do chão e esperou que comprovasse a fúria que tinha despertado com tanto mistério.

? Desde que você partiu, ? começou a dizer ? a senhora foi visitada por uma grande quantidade de senhores que tentavam...

? Tentavam? ? Grunhiu sem soltar o criado.

? Oferecer-lhe um lugar como... como... amante ? gaguejou.

? Amante? ? Rugiu com mais ira do que já havia possuído em seus trinta anos de vida.

? Milorde... ? interveio em voz baixa Anderson.

Queria tranquilizá-lo e que recuperasse a prudência. Não era próprio dele maltratar um criado, embora lhe desse a pior notícia de sua vida.

Roger soltou o lacaio, deu uns passos para trás e começou a amaldiçoar em voz alta enquanto seu criado tentava acalmá-lo. Mas não havia nada que o fizesse, sua cólera era tal que tinha o rosto ruborizado e a cor de seus olhos tinha voltado do azul ao negro.

? Onde está neste momento minha esposa?

? Como já lhe disse, foi-se à casa de um amigo...

? Nome? Quero o nome desse maldito filho de cadela ? perguntou aproximando-se do criado tão rápido que parecia cortar o ar ao seu passo.

? O duque de Rutland, milorde ? respondeu o homem encolhendo-se ligeiramente.

Roger se deteve em seco fazendo uma profunda inspiração enquanto a névoa que nublava sua visão se dissipava. Era alívio o que sentia? Possivelmente.

Olhou de esguelha a Anderson, que permanecia completamente imóvel sem nem sequer piscar. Tentou acalmar o pulsar de seu transtornado coração regulando sua respiração. Não chegava a entender aquela desmesurada fúria, estava seguro de que não eram ciúmes. Que nada! Como ia ter ciúmes de uma mulher que rondava os cinquenta e que suas mãos eram mais ásperas que uma lixa? É óbvio que tinha outro nome a sua comoção: orgulho. Nenhum cavalheiro quereria viver para ver como sua dignidade era pisoteada sem escrúpulos.

De repente, uma dor inesperada no estômago quase o fez dobrar-se quando sua consciência começou a despertar à base de golpes lacerantes.

? Há algum ajudante de câmara na residência? ? Perguntou sem mostrar a queimação de seu interior.

? Não, senhor. Só tínhamos a donzela e partiu com a senhora ? falou o criado espectador pelo que continuaria.

? Busca um, quero que o contrate para os dois dias que permanecerei nesta casa.

? É claro, milorde. Quer que ordene a uma criada que lhe prepare uma habitação?

? O quarto da minha esposa está preparado?

? Sim, meu senhor.

? Pois diga à criada que descansarei nele ? ordenou.

Com passo firme saiu ao exterior. Precisava tomar ar, tudo o que pudessem acolher seus pulmões. Tinha que acalmar-se e meditar o plano que lhe tinha surgido de repente. Como futuro marquês e em honra ao título que possuiria, face à angústia de seus pais, devia fazer saber a todo mundo que havia retornado e que mataria ao próximo que decidisse rondar a sua esposa.


Andou pelas ruas da cidade durante a tarde, saudou todas as pessoas que se aproximavam e sorriu como se não suspeitasse que, mais de um cavalheiro que lhe segurava o braço, poderia haver insinuado à sua esposa que fosse sua amante. Caminhou até que começaram a lhe doer os pés e seu corpo lhe exigiu algo de beber. Sem duvidar um segundo, pôs rumo para o clube de cavalheiros, onde reforçaria sua posição como marido. A primeira sensação que teve ao entrar no local foi de comodidade, nada tinha mudado e isso o satisfez. Não queria encontrar-se em um lugar estranho, precisava relaxar seu estado de nervosismo e isso só conseguia quando estava em lugares familiares. Com as costas rígidas avançou pelos corredores, visitou as salas de jogos e reuniões e conversou com todo aquele que decidiu aproximar-se. Quase em todas as conversações falava sobre sua viagem, a volta definitiva a Londres e as mudanças que realizaria em sua nova vida. Sobre este último, asseverava que ia tomar as rédeas de seu destino e que aceitaria sua imposta vida matrimonial.

? Surpreende-me, Bennett! ? Exclamou Powell, um dos jogadores que se sentaram na mesa junto ao Roger. ? Acreditava que suas bodas tinham causado urticária e que por esse motivo decidira se afastar de sua flamejante esposa.

? Necessitava de tempo para me acostumar... ? murmurou sem afastar o olhar das cartas e apertando a ponta de seu charuto com os dentes.

? Compreendo-te ? respondeu Turner, outro dos jogadores. ? Quando meus pais formalizaram o compromisso com minha esposa tive que cavalgar durante várias horas. Não olhei para trás nem decidi retornar até que me deu fome e meu cavalo esteve a ponto de morrer pelo esforço.

? Bennet não cavalgou, embarcou e fugiu como um rato do veneno ? replicou Powell com tom divertido.

? Mas já estou aqui. Isso é o que importa, não? ? Pousou as cartas sobre a mesa e sorriu. ? Sequência de cor. Alguém supera isto?

? Tem muita sorte, Bennett. É afortunado no jogo e no amor ? disse Turner antes de soltar uma sonora gargalhada.

? Bem melhor diria que no jogo... ? sussurrou antes de elevar o olhar para o criado para que lhe enchesse de novo a taça.

? Acaso não te satisfaz ter casado com ela? ? Perguntou Powell um tanto incrédulo pelo que escutava. ? Trocá-la-ia pela minha esposa sem duvidar!

? Se for uma brincadeira com a senhora Bennett, não gostei nem um pouco ? comentou Roger com seriedade.

? Pelo amor de Deus! Não é uma brincadeira! Tem uma mulher linda!

Roger apertou com mais força a ponta do charuto e olhou ao seu adversário com receio. Tentou descobrir a zombaria em suas palavras ou em seu rosto, mas não a achou. Sem lugar a dúvidas, o dito personagem gostava das mulheres que superavam os quarenta e que podiam te arrancar a pele com uma carícia de suas mãos. Advertindo que era o momento que esperava, deu um gole ao brandy, recostou-se na cadeira e olhou seus oponentes.

? Algum de vocês ousou pensar em minha esposa como uma amante? ? Perguntou com serenidade, firmeza e aquela segurança tão característica nele.

? Quem seria tão inconsciente de tocar a sua mulher? ? Comentou rapidamente Thirlond o terceiro jogador que, até esse momento, manteve-se calado.

? Você o fez? ? Arqueou as sobrancelhas castanhas e o olhou sem piscar.

? Está bêbado? Porque salvo um incrível estado de embriaguez não vejo outra causa pela qual imagine tal disparate ? se defendeu.

? Chegou aos meus ouvidos que a estiveram cortejando durante minha ausência, ? expôs com frieza ? e eu gostaria de saber quem tentou.

? Nem te ocorra me olhar! ? Expôs Turner. ? Já tenho o bastante com minha esposa!

? E você, Powell? ? Dirigiu seus irados olhos para o homem. Este parecia bastante sereno enquanto bebia devagar outro brandy que lhe tinham servido.

? Não posso negar que o pensei em algum momento. Uma mulher recém-casada, com dor pela perda de seu irmão e do repentino abandono do marido. Mas repensei. Não quero ver-me envolto em nada teu, salvo o dinheiro que perca nas partidas ? afirmou com serenidade.

? Quem mais decidiu convertê-la em uma concubina? ? Perguntou apertando a mandíbula.

? Se fosse você, começaria por averiguar quem não a desejou. A lista será mais curta ? repôs Powell.

? Malditos sejam! ? Gritou Roger levantando-se de seu assento e golpeando a mesa com tanta força que atirou tudo o que havia sobre ela. ? Acaso ninguém nesta maldita cidade é capaz de respeitar a propriedade dos outros?

? Parece-me incrível que fale sobre isso, Bennet, ? disse Turner com calma ? quando você e seus amigos têm feito tremer incansavelmente os leitos de outros maridos.

Bennett apertou os punhos, franziu o cenho e dirigiu o olhar para ele. Sua respiração era agitada e podia sentir como as palpitações de seu coração lhe estrangulavam a garganta. Não podia replicar e por esse motivo conteve a repentina vontade de golpeá-lo. Só ele tinha a desfaçatez de pedir respeito quando tinha sido o primeiro em não respeitar, mas agora se encontrava no bando contrário e, apesar de não amar a sua esposa, desejava manter a dignidade de seu sobrenome intacto. Zangado, caminhou até o cabideiro, pegou seu chapéu e, sem despedir-se, partiu do clube.


CONTINUA

Roger Bennett, o futuro marquês de Riderland, define-se a si mesmo como um cavalheiro disposto a ajudar as pobres infelizes carentes de prazeres sexuais. Gosta tanto da sua vida que deseja continuar assim até o final de seus dias. Entretanto, uma pessoa truncará essa vida de libertinagem que tanto anseia manter.
Resignado por ter que viver com uma esposa a quem não conhece nem ama, decide enfrentar com integridade o seu futuro. Mas quando seus azulados olhos se cravam em Evelyn, descobre que tudo aquilo que desejou se evaporou. Mas o amor terá que trabalhá-lo e para um homem a quem foi fácil romper corações, resultar-lhe-á incrível ver como o seu se faz em pedacinhos como o cristal.

Querido(a) leitor(a), aqui tem o segundo livro da série Os Cavalheiros. Se William te enterneceu, espero que Roger te faça sorrir ao viver suas aventuras. Como na anterior novela, advirto que tudo o que vai ler a seguir é produto só e exclusivamente da minha imaginação. Esclarecido isto, espero que desfrute com a leitura que guardam estas páginas.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_A_SURPRESA_DO_MARQUES.jpg

 

Londres, 26 de setembro de 1866. Residência do senhor Lawford.

Colin olhou pensativo para a rua. Observou a vitalidade desta apesar de ser um dia cinza: carruagens que circulavam de um lado para outro, transeuntes ocultos sob seus guarda-chuvas, criados inquietos realizando com rapidez as tarefas atribuídas... tudo ao seu redor seguiria igual quando partisse. Tudo menos ela. Sabia que o que pretendia era uma loucura, mas o fazia por seu bem. Não podia deixá-la desamparada e, depois da terceira visita ao doutor, não ficava alternativa. O tempo não jogava ao seu favor. O que começara sendo uns leves e imperceptíveis tremores nas mãos deixaram de sê-lo. Agora todo o corpo se sacudia com força e, se o desenvolvimento da enfermidade avançasse tão rápido como aconteceu à sua mãe, logo faleceria em péssimas condições.

O jovem enrugou a testa ao recordá-la. Via-a de novo tombada na cama, incapacitada inclusive para poder alimentar-se por si mesma. Assemelhou-a a uma flor: formosa ao crescer, vigorosa em plena floração, mas murcha ao chegar ao final. Ele não podia acabar assim. Ele não podia contemplar o rosto aterrorizado de Evelyn quando a morte estivesse rondando ao seu lado. Não queria que ela vivesse recordando como seu único irmão morria sem poder evitar. Por isso tinha tomado a melhor decisão. Soube quando o viu no dia em que o duque de Rutland desafiou ao conde de Rabbitwood. Aquela atuação violenta, aquelas palavras de ódio para a pessoa que tinha menosprezado as possibilidades do duque... foi nesse instante que compreendeu quem era em realidade Roger Bennett: sua única esperança.

? Deveria repensar um pouco mais sobre sua última vontade. ? O senhor Lawford elevou com um dedo os óculos e olhou ao jovem com atenção.

Arthur Lawford superava os cinquenta anos. Apesar do aspecto desalinhado, de seu mau aroma e do caráter azedo, todo mundo elogiava seu incrível trabalho como administrador. Possivelmente porque começou a exercer a profissão aos quinze anos e sob o atento olhar de seu pai, um dos maiores estelionatários da cidade. Em Londres, se desejava obter algo insuspeitável, o senhor Lawford o conseguia sem esforço. Por isso Colin tinha ido a ele. Não lhe importavam as formas que utilizaria para obtê-lo. Só lhe interessava que o fizesse logo.

? Levo meditando esta decisão desde a primavera. Já não a posso atrasar e, embora pareça uma loucura, estou seguro de que é a melhor opção para ela ? disse afastando-se da janela e caminhando para a mesa.

Notava-se cansado, muito mais que no dia anterior. As olheiras, a magreza de seu corpo e inclusive o pesar em seu caminhar o delatavam. Não sabia como tinha sido capaz de ocultar sua enfermidade de Evelyn todo esse tempo.

? O que pensará disto a senhorita Pearson? ? Insistiu o administrador depois de ler, pela décima vez, o que lhe ditou seu cliente.

? Me odiará com todas as suas forças, mas por sorte não terei o prazer de vê-lo. ? Sorriu meio de lado. Sentou-se, agarrou o documento, leu-o e o assinou sem vacilar. Logo olhou ao senhor Lawford e lhe perguntou: ? Então, para que seja legal, só necessito sua assinatura?

? Sim. Uma vez que o senhor Bennett assine com seu punho e letra este escrito será oficial ? afirmou o administrador com resignação.

? Perfeito! ? Exclamou feliz Colin. ? O conseguirei!

? De verdade acredita que se pode pôr uma corrente em um cão selvagem? ? Questionou Lawford olhando perplexo o entusiasmo de seu cliente. Entendia seu desespero, mas não podia conciliar que o estivesse tanto para fazer o que pretendia.

? O porei. Bom, mas será melhor eu só lhe aproximar essa corrente, como você o chamou. Ele sozinho deixará que Evelyn prenda-o ? continuou falando sem poder apagar o sorriso de seu rosto.

? Que Deus proteja a senhorita Pearson! ? Exclamou o administrador pondo os olhos em branco.

? Melhor que Deus proteja a senhor Bennett de minha irmã. ? Colin se reclinou no assento, pegou o documento e soltou uma grande gargalhada.


I


Suas mãos percorreram de novo as costas. A suavidade do tato o encantava até tal ponto que perdia o pouco controle que tinha. Era a mulher perfeita: bela, ardente, carinhosa, apaixonada e, sobretudo... viúva. Roger aproximou sua boca da dela para aplacar a intensidade de seus gemidos. Nunca tinha escutado uma amante soluçar com tanta força ao ser penetrada. Gemia, retorcia-se sob seu corpo, pedia-lhe mais e ele o oferecia. Fechou os olhos ao perceber como seu sexo começava a palpitar. Estava a ponto de explodir. Aferrou com força a cintura da mulher e, justo antes que brotasse sua semente, separou-a de seu corpo. Sem levantar as pestanas e satisfazendo-se ele mesmo, deixou que Eleonora soltasse os acostumados impropérios ante tal ação. Odiava que seus encontros passionais finalizassem sempre iguais, mas ele era incapaz de ejacular dentro de uma mulher. Apesar de seus insistentes comentários sobre as medidas que tomava para não ficar grávida, Roger não acreditava.

Desde que William descobriu que lady Juliette não era a viúva que dizia ser e sofrera as consequências de um engano, ele se cuidava muito com as afirmações de qualquer mulher. O que faria com um filho? Nada. Nem sequer pensou em tê-lo. Não podia permitir que um momento de prazer alterasse o resto de sua vida. Embora, se o pensava melhor, não seria o primeiro Bennett que engendraria filhos bastardos. Bom exemplo disso era seu respeitável pai, aquele que o acusava de não ser o homem adequado para possuir o título de marquês de Riderland. Quantos tinha? Vinte, trinta ou talvez quarenta? Tinha perdido a conta quando apareceu a última criada pedindo clemência. Veementemente, ele não ia se converter no que tanto odiava.

? Deixa-me fria como um iceberg! ? Exclamou Eleonora agarrando os lençóis para cobrir seu corpo.

? Mon amour... ? Roger a olhou de esguelha e sorriu. ? Não se zangue com este pobre apaixonado...

? Basta, não me olhe assim! ? Disse ofuscada.

? Quer que eu vá? Quer que eu não volte mais? ? Levantou-se com rapidez da cama e sem ocultar sua nudez se aproximou da poltrona onde estava sua roupa.

? Faça o que quiser! ? Continuou elevando a voz. Deu-lhe as costas e, como uma menina zangada, começou a resmungar.

Não queria que partisse. Se o fizesse não conseguiria seu objetivo e não era justo que depois de comprar daquela cigana todo tipo de beberagens para ficar grávida não o obtivesse. Eleonora respirou fundo tentando captar a atenção do homem. Queria que acreditasse que se sentia ferida por suas dúvidas e assim eliminar, de uma vez por todas, a desconfiança que a impedia de alcançar seu propósito: deixar de ser a viúva de um vulgar comerciante e converter-se na futura marquesa de Riderland.

? Não se zangue, mon amour ? respondeu Roger com voz melosa. Abotoou a camisa, ajustou bem a calça e antes de terminar de vestir-se, caminhou para a moça, levantou seu queixo com um dedo e lhe deu um terno beijo. ? Amanhã retornarei e voltará a me amar como tem feito durante estes dois meses.

? E se não o fizer? ? Perguntou desafiante.

? Ce n'est rien1... procurarei outra viúva que não se importe de fornicar sem ter que armazenar minha semente entre suas pernas. ? Retirou-se, colocou a jaqueta sobre seus ombros e saiu do quarto.

Quando fechou a porta algo explodiu sobre a madeira. Instantes depois escutou os gritos da mulher. Roger sorriu e com passo firme partiu ao segundo lugar ao qual chamava casa: o clube de cavalheiros Reform.


Jogar cartas já não era tão interessante como no passado. Dos três, só ele aparecia no clube. Federith vivia afastado do mundo com uma mulher que mal conhecia porque jamais saía de seu lar. Segundo seu amigo, sempre estava doente ou indisposta ou doente e indisposta. Albergou a esperança de que, depois do nascimento do pequeno Cooper se tomasse uns dias tranquilos em Londres, mas não foi assim. Federith não apareceu.

Tampouco podia contar com William, porque desde que se casou com Beatrice três meses atrás e anunciaram que estava grávida, ninguém os fazia abandonar Haddon Hall. Ao que parecia, precisavam viver afastados do mundo para que ninguém interrompesse aquele amor insaciável.

? Outra taça? ? Perguntou um dos jogadores.

Roger olhou à pessoa que se dirigiu a ele. Entrecerrou os olhos e cravou seus azulados olhos no jovem Pearson, a única testemunha da afronta de William para com o Rabbitwood. Depois daquela manhã em que o observou apoiado em uma das árvores de Hyde Park, pensou que seria a última vez que o veria. Mas se equivocou. De repente se fez assíduo ao clube e estranha era a sexta-feira que seu assento não estava ocupado.

? Pretende me embebedar? ? Disse Roger com voz maliciosa. Elevou a sobrancelha esquerda, olhou-o sem pestanejar e quando observou a mudança que desejava produzir no rosto do moço, gargalhou. ? Claro! Não deixe a taça vazia!

? Bom, cavalheiros ? começou a dizer outro jogador que fumava com ânsia seu charuto. ? Volto a perder. Acredito que, depois de dez derrotas, a melhor opção é me retirar. Esta noite a sorte não está do meu lado. ? Pôs as cartas sobre a mesa, afastou a cadeira com as panturrilhas e, depois de despedir-se, partiu.

? Ficamos três... ? murmurou Roger jocoso. ? Quem será o seguinte? ? Levantou várias vezes as sobrancelhas enquanto apertava com os dentes a ponta de seu charuto.

? Não pense que a partida é sua...

Colin tinha que incitar Bennett a continuar. Não podia deixar que lhe escapasse outra sexta-feira. Durante os últimos dias mal se sustentava em pé e tinha utilizado a pouca força que tinha para assistir essa tarde. Se não conseguisse seu propósito, sua irmã ficaria desamparada.

? Ah, não? ? Roger olhou o desafiante.

? Não! ? Exclamou o jovem com firmeza.

? Aumenta a aposta então... ? desafiou Bennett.

? Se me desculpam... ? interveio o outro jogador. ? Eu também saio. Conforme observo, a jogada se fará alta e não trouxe a carteira.

? Não trouxe a carteira, senhor Blonde ou sua mulher lhe cortaria o pescoço? Porque conforme tenho entendido é uma mulher muito mal-humorada ? comentou divertido.

? Fala-se de muitos temas ultimamente... ? disse a contragosto o senhor Blonde ao mesmo tempo em que colocava a jaqueta. ? Sobretudo de suas assíduas visitas a uma jovem viúva.

? Só a uma? ? Continuou com zombaria. ? Pois então, nada do que tenha escutado é verdade.

? Boa noite, cavalheiros. Espero os ver na próxima sexta-feira.

? Boa noite ? respondeu Colin ante o silêncio repentino de Roger.

? O quê? Vai ou fica? ? Insistiu Bennett depois de um tempo de adaptação durante o qual tinha acendido outro charuto e tinha enchido seu copo.

? Vim para jogar e jogarei! ? Clamou fazendo-se ofendido. ? Para que não pense que o estou enganando, ? começou a explicar o jovem enquanto procurava algo nos bolsos ? eis aqui minha prova! ? Lançou sobre a mesa um envelope fechado.

? O que é isso? ? Bennett falou ao parar de sorrir.

? As escrituras da minha residência em Londres. Não é muito grande, mas será suficientemente acolhedora para suas amantes ? afirmou o moço com solenidade.

?OH! ? Exclamou Roger divertido. ? Que benevolência de sua parte! Com certeza as damas ficarão encantadas com tal proposição. Mas, no hipotético caso de que perdesse esta partida, qual seria seu prêmio?

Olhou-o fixamente aos olhos tentando descobrir como um pirralho podia enfrentar um jogador com tanta experiência como ele. Que ás guardaria sob a manga?

? Seu navio ? sentenciou sem hesitações.

? Meu navio? ? Exigiu saber com uma mescla de surpresa e diversão. ? Quer ficar com meu navio? Mas... o que faria você com ele, moço? ? Levantou-se do assento, dirigiu-se para a mesa que tinham justo atrás deles, pegou papel e pluma e começou a escrever.

? Bom... seria interessante saber o que há fora de Londres. Estou cansado dos dias nublados, da chuva e inclusive das pessoas que me rodeiam, você não? ? Colin olhava sem parar o envelope. Tinha chegado muito longe e ficava tão pouco tempo que começou a sentir pânico. Como obteria aquela assinatura? Como abrir o envelope e impedir que lesse o redigido?

? Por isso mesmo não me tenho desfeito dele, jovem Pearson. Ele me afasta de toda esta maldita sociedade ? explicou. Roger fez um gancho de ferro sobre o papel e o entregou ao jovem. ? Deve assiná-lo. Se tanto anseia meu navio, necessito seu consentimento.

? Então... ? Colin tentou ocultar a felicidade que lhe provocou escutar aquelas palavras. Já sabia qual passo era o seguinte. Pegou o envelope, abriu-o e, ocultando o conteúdo deste sob sua palma, o aproximou. ? Sei que é um homem de palavra...

? É claro! ? Disse zangado.

? Pois se não houver nada mais que indicar, eu assinarei sua folha e você a minha. ? Colocou o papel em frente a Roger e rezou para que ele não quisesse lê-lo.

Sem mediar palavra e sem mal olhá-lo, Bennett assinou com ímpeto a folha, logo a devolveu esperando que o jovem fizesse o mesmo. Quando cada um teve seu respectivo acordo, prosseguiram com a partida.

Durou além do imaginado. Colin começou a suar ao descobrir que a sorte não estava do seu lado. Tinha uma saída de emergência e com isso não ia perder. Em meio de sua aparente quietude, perguntou-se como podia fazer desaparecer duas das cartas para trocá-las pelas que guardava sob a manga. Observou várias vezes a atitude de seu competidor. Parecia alterado, mordia a ponta de seu charuto com certa ansiedade, bebia largos sorvos de seu copo e não deixava de repicar na mesa. Estava claro, não conseguiria seu propósito. De repente, alguém interrompeu a partida abrindo a porta com força. Roger se virou para ela para averiguar de quem se tratava, enquanto isso, o moço atirou ao chão duas cartas melhores e tirou as que tinha escondidas.

? Desculpem a rabugice, pensei que o senhor Blonde permanecesse na sala ? disse o homem sufocado.

? Partiu faz um momento ? respondeu Bennett ao mesmo tempo em que voltava a virar-se para o jovem.

? Muito obrigado e de novo perdoem a interrupção. ? Despediu-se e fechou atrás de sua marcha.

? Bom, senhor Pearson ? disse Roger colocando as cartas sobre a mesa para que o moço as observasse. ? Acredito que meu navio é teu. Sentirei falta dele.

Zangado, levantou-se da cadeira e começou a empurrá-la com as panturrilhas. Não podia acreditar que aquele jovenzinho lhe tivesse ganhado o maior de seus tesouros.

? Não quer ver a minha jogada? ? Perguntou Colin.

? Não precisa, ganhou. Só se há... ? ficou calado quando o moço colocou sobre a mesa o conteúdo de sua mão. De repente, toda sua tristeza se voltou em euforia.

? Ganhou, senhor Bennett ? afirmou o jovem em tom desolador.

? Pode ficar com sua propriedade. Não penso aceitar... ? começou a dizer Roger ao ver o rosto compungido do moço.

? Deu-me sua palavra! ? Clamou Pearson levantando do assento com rapidez e estendendo o envelope para o homem.

? Mas não me parece justo que perca... ? ia dizer o pouco que ficava, mas seus lábios se selaram com rapidez. Eram conhecidas as desditas da família Pearson e não queria machucar um homem que vivia sob essas penúrias. Embora todo mundo o catalogasse como um ser sem escrúpulos equivocavam-se.

? É sua! ? Levantou o rosto para o homem. ? Quer me humilhar, senhor Bennett?

? Justamente o contrário. Desejaria...

? Pois pegue-o! ? Insistiu com mais veemência da qual seu débil corpo podia oferecer.

? Está seguro? ? Roger arqueou a sobrancelha esquerda e contemplou durante uns instantes ao moço.

? Sim ? respondeu com firmeza.

? Se é o que deseja... ? Segurou o envelope e o guardou no bolso direito de sua jaqueta. ? De todas as formas, se amanhã quando amanhecer repensar sobre isto e quiser que devolva sua propriedade, não terá recriminação alguma ? expôs com seriedade.

? Muito obrigado pelo oferecimento, senhor Bennett, mas apesar da minha juventude, jamais retrocedo em minhas ações. ? Esticou a mão para Roger para despedir-se.

? Boa noite, senhor Pearson. Foi uma honra jogar com um rival da minha altura ? disse Roger com integridade.

? Boa noite, senhor Bennett. O mesmo digo eu.

Quando seu oponente abandonou a sala, Colin se sentou com rapidez, levou-se as mãos para o rosto e sorriu. Tinha conseguido, já podia continuar com seu plano e, se Deus fosse benevolente, descansaria ao fim em paz.


II


Evelyn afastou com rapidez os lençóis. Não gostava de permanecer adormecida quando aparecia a donzela. Dar-lhe-ia um aspecto de alegria que se afastava da realidade. Não estava de acordo com o comportamento que tinham as senhoritas da alta sociedade. Para ela não era próprio de uma futura senhora de família permanecer na cama até passado o meio-dia. Embora também fosse certo que já não era uma senhorita e nunca seria uma senhora. Com pouco mais de trinta anos, quem ia pedi-la em matrimônio? Zangada ao ver como o futuro que sonhou se fez em pedacinhos por uma má decisão, levantou-se com rapidez da cama, dirigiu-se para a janela para afastar as cortinas e permitir que a luz do exterior se introduzisse no quarto. Esperava que não tivesse amanhecido. Adorava contemplar como o sol aparecia entre as montanhas. Entretanto, levou-se uma grande desilusão ao apreciar que de novo o dia amanhecia chovendo. «Não! Outra vez não!», pensou com tristeza.

Odiava os dias de chuva. Acreditava sinceramente que quando o sol brilhasse deixaria de sentir aquela angústia que possuía seu coração, mas parecia que a meteorologia não estava de seu lado. Não desejava vê-la feliz. Resignada a permanecer outro dia mais no interior de Seather Low, andou para a bacia, lavou o rosto e recolheu o cabelo.

? Bom dia, senhorita Pearson ? saudou a criada depois de abrir a porta e dar dois passos para o interior. ? Descansou bem?

? Bom dia, Wanda. Sim, é claro ? mentiu.

Depois de ficar esperando a volta de seu irmão até às duas da madrugada, partiu ao seu dormitório e foi incapaz de conciliar o sono até que esteve muito cansada. A criada caminhou decidida para o armário, escolheu um dos vestidos de cor clara que possuía e se aproximou para vesti-la.

? Colin está em casa? ? Perguntou depois que Wanda lhe fechou os botões das costas.

Sabia a resposta, mas albergava a esperança de que tivesse chegado quando ficou adormecida.

? Não, o senhor Pearson não chegou ainda.

? Que estranho... ? murmurou. ? Se bem me recordo, disse-me que dormiria aqui.

? Possivelmente precisou permanecer outra noite mais em sua residência ? disse a criada com certa insinuação.

? Colin não é desse tipo de homens! Ele jamais faria tal coisa! É um Pearson! ? Exclamou zangada ao escutar a descarada sugestão.

? Sinto-o ? desculpou-se a mulher abaixando a cabeça. ? Não quis...

? Bom, se ele não vem, iremos nós vê-lo. Ultimamente está muito estranho e não sei o que é que o inquieta tanto ? comentou após aprovar o vestido e dirigir-se para a porta.

? Deseja tomar o café da manhã ou o fará fora? ? Quis saber a donzela.

? Tomarei o café da manhã aqui. Mas enquanto o faço, informa ao cocheiro que desejo partir para Londres antes do meio-dia ? ordenou ao mesmo tempo que saía do quarto e se dirigia à sala de café da manhã.

Enquanto tomava o chá, Evelyn não parava de pensar onde estaria seu irmão. Apesar da inoportuna insinuação da donzela, ela começava a acreditar que era certo. Colin sempre tinha sido um jovem respeitável, educado e amável, mas seu humor e suas atitudes tinham mudado. Respondia-lhe com irritação quando lhe perguntava se se encontrava bem e evitava qualquer conversação sobre o futuro, suspeitava que tivesse um segredo, o qual não conseguiu descobrir por mais que o tentou. «Muitas incógnitas», murmurou para si.

Tomou o último sorvo e depositou a xícara sobre o prato. Ao contemplar as torradas enrugou o nariz. Não gostava de seguir comendo, tinha o estômago fechado de preocupação por seu irmão e pelo futuro de ambos. Por mais que ele insistisse em que não devia inquietar-se, o fazia. Desde que seu pai faleceu, fazia já três anos, as rendas não eram as adequadas para poder subsistir como o tinham feito antes, de fato tinha tido que despedir seis criados que tinham trabalhado em Seather antes que ela nascesse. Devia reduzir os gastos por mais doloroso que fosse.

Levantou-se da cadeira e perambulou pela sala de café da manhã meditando as possíveis alternativas que ficavam para não ter que vender o lar onde se criou, onde seus pais se amaram e morreram, seu único legado familiar. De repente, escutou o som de uma carruagem. Correu para a janela para confirmar que se tratava de Colin, mas não foi assim. Era o carro do pároco. O que desejaria o senhor Miller? Se voltasse a insistir em arrecadar dinheiro para os pobres, ela teria que expor sua irremediável necessidade e não estava disposta a voltar a ser o principal rumor de Londres. Já tinha tido o bastante quando anunciaram a ruptura de seu compromisso para escutar de novo desoladores argumentos sobre sua pobreza.

Depois de respirar com profundidade, dirigiu-se para o saguão. Desejava atendê-lo ela mesma para que não descobrisse que o mordomo não se encontrava sob seu serviço. Agarrou o pomo da porta, elevou o queixo e desenhou seu melhor sorriso.

? Bom dia, senhor Miller ? saudou estendendo sua mão.

? Bom dia, senhorita Pearson ? respondeu à saudação. Evelyn observou o semblante do homem. Parecia triste. Possivelmente muito. De repente um estranho calafrio percorreu seu corpo e sentiu frio. ? Preciso falar com você.

? É claro ? disse a mulher. ? Me acompanhe ao salão.

Evelyn tentou manter a calma apesar dos pequenos tremores. Possivelmente suas inquietações não estavam justificadas, mas sua cabeça não deixava de lhe sussurrar que sua vida ia mudar outra vez. Com passo firme conduziu o pároco até o salão e deixou que passasse primeiro, observando suas mãos agarradas atrás das costas e sua cabeça inclinada para baixo. A mulher retorceu as mãos com força e esperou a que se decidisse a falar.

? Sinto ser eu quem lhe dê a notícia, ? começou a explicar ? mas preferi vir antes que o médico ou qualquer outro dita fazê-lo. Penso que a amizade que possuímos há anos me permite tal direito. ? Evelyn o olhou com atenção. As primeiras lágrimas começaram a brotar e, por mais que tentasse manter-se de pé, suas pernas se debilitaram tanto que teve que agarrar-se a uma cadeira. ? Senhorita Pearson... ? disse depois de dar a volta para olhar à mulher ? sinto lhe informar que seu irmão hum... hum... faleceu.

Evelyn tentou falar, mas foi impossível. Um nó lhe estrangulou a garganta a impedindo de emitir tão sequer um pequeno gemido. Começou a ver impreciso e aqueles leves tremores foram aumentando. De repente, a debilidade se acentuou e não conseguiu manter-se de pé. Finalmente se desabou.

? Ajuda! Ajuda! ? Exclamou o pároco com força ao mesmo tempo em que levantava do chão a cabeça da mulher.

? Que...? ? Wanda entrou com rapidez no salão. Quando contemplou a cena se levou a mão à boca e não soube reagir.

? Me ajude! ? Gritou o homem ao perceber que a criada estava paralisada. ? Segure-a pelos braços e levante-a! Eu lhe elevarei as pernas ? ordenou.

? Senhorita... senhorita Pearson... ? murmurava à donzela enquanto a abanava com sua mão o rosto. ? Desperte. OH, Deus! O que aconteceu? O que disse à senhorita para fazê-la desmaiar?

? Que o senhor Pearson morreu.


Fechou a porta devagar. Por mais que o senhor Anderson tivesse insistido em despertá-lo, dava-lhe medo. Todo o serviço conhecia a primeira norma da casa: não incomodar ao senhor até que ele mesmo demandasse os serviços. Entretanto, tinham-lhe encomendado a tenebrosa tarefa de romper a ordem. Tragou saliva quando observou a silhueta sobre a cama. Como era habitual nele, dormia nu, e os lençóis mal cobriam suas pernas. O ajudante de câmara olhou para outro lado. Se o senhor abrisse os olhos e o encontrasse às escuras observando-o sem piscar, poderia jogá-lo à rua a chutes. O jovem escutou um ruído, virou-se para a porta e tentou sair dali, mas era tarde, o senhor tinha notado sua presença.

? O que acontece? ? Grunhiu Roger ao contemplar a silhueta de uma pessoa ao seu lado.

? Boa tarde, milorde. Perdoe se...

? Boa tarde? ? Resmungou ao mesmo tempo em que se sentava sobre a cama. ? Que horas são? Que dia?

? É domingo, senhor ? respondeu o criado enquanto se aproximava da janela e afastava as cortinas.

? Domingo? ? Um pequeno sorriso se desenhou em seu rosto. Dormir tanto tempo e ser um pouco preguiçoso lhe causava mais bem-estar que inquietação.

? Desculpe que o tenha despertado, mas o senhor Anderson insistiu que o fizesse. Diz que deve conhecer o antes possível a notícia que se publicou em Londres ? explicou o jovem sem mover-se da entrada.

? Que notícia? ? Arqueou as sobrancelhas e o olhou com atenção. O sorriso de menino travesso desapareceu com rapidez. Se seu mordomo tinha quebrado a norma mais sagrada de Lonely Field, só se devia a uma coisa: algo tinha ocorrido ao Federith ou ao William.

? O senhor Pearson... ? começou a dizer entre balbuceios. ? O senhor Pearson... ? repetiu.

? O quê? O senhor Pearson, o quê? Fala de uma vez! ? Exclamou irado. Levantou-se da cama e sem mostrar vergonha alguma por sua nudez, colocou-se em frente ao criado.

? Faleceu ? respondeu fechando os olhos.

? Como? O que disse? ? Inquiriu levantando a voz.

? Que faleceu ? sussurrou. Continuava com os olhos fechados e inclusive para que o senhor confirmasse que não o olhava, abaixou a cabeça.

? Sim, isso eu já ouvi! ? Gritou zangado ao mesmo tempo em que caminhava para a bacia para molhar seu rosto e despertar de uma vez.

? Conforme contam, um de seus criados o encontrou ontem pela manhã em seu dormitório após escutar um ruído estranho ? começou a narrar.

? E? ? Jogou água com tanto ímpeto que não só molhou seu rosto, mas sim umedeceu também o cabelo e o torso.

? E o jovem jazia sobre a cama em um atoleiro de sangue. Atirou na cabeça e ninguém pôde lhe salvar a vida ? explicou. O ajudante de câmara, ao compreender que Roger tinha dado por terminado seu descanso, caminhou veloz para o armário para pegar um traje.

? Disparou-se a arma? ? Perguntou assombrado.

? Não, senhor, suicidou-se.

? Está me dizendo que esse jovem teve a coragem de dar-se um tiro? ? Virou-se para o criado sem reduzir a ira que mostrava seu rosto.

? Sim, meu senhor. Isso é o que contam. ? Levantou as mãos e mostrou a roupa escolhida esperando que o senhor aceitasse sua eleição.

? Como lhe ocorre...? ? Não terminou a frase. Nesse momento se lembrou da partida de cartas e do que guardava em seu bolso. Com grandes pernadas dirigiu-se para a cadeira onde tinha deixado suas roupas antes de deitar-se. Ao não as achar, olhou ao ajudante e lhe perguntou com mais angústia que ira: ? Onde está a roupa?

? Que roupa, milorde?

? A que coloquei ontem!! ? Clamou com tanta força que o criado começou a tremer de medo.

? Está com as lavadeiras ? respondeu. Abaixou a cabeça e tentou dirigir-se para a porta. Até agora o senhor nunca tinha sido cruel com seus lacaios, mas a cena que estava vivendo no quarto lhe indicava que logo começaria a sê-lo.

? Traga-a! Que ninguém a toque! ? Gritou.

O criado abandonou a habitação tão rápido como pôde. Era tanto seu nervosismo por sair que deu uma portada, embora Roger não fora consciente do ruído. Tinha sua mente ocupada recordando o momento no qual o jovem lhe ofereceu a propriedade. Sentou-se na cama aturdido pela notícia, sentindo-se culpado do dramático final. Estava seguro de que um homem à beira do desespero faria algo para terminar com seu calvário, e a perda do último bem que possuía poderia ter sido o detonador dessa decisão. Ele se tinha negado a aceitar o oferecimento, advertiu-lhe que podia reclamá-lo e que o devolveria sem objeção alguma. «Deseja me humilhar, senhor Bennett?», aquela pergunta lhe golpeou a cabeça de improviso. Não, é óbvio que não desejava humilhá-lo e menos sabendo que a família Pearson estava passando um mau momento econômico.

Levou-se as mãos para o rosto e o apertou. Todo mundo lhe jogaria a culpa dessa morte. Todo mundo o assinalaria com um dedo inquisidor para demonstrar que, como era costume nele, tinha destroçado outra família. Antes de poder levantar-se e recriminar ao criado sua tardança, este tocou a porta.

? Milorde, aqui a tem ? comentou o criado estendendo o traje sobre o assento. ? As lavadeiras não a tocaram.

? Bem, parta. Deixe-me sozinho. Chamar-te-ei quando precisar ? disse com voz grave.

? Estarei depois da porta ? informou antes de sair.

Roger se levantou da cama e caminhou para a poltrona. Colocou a mão no bolso esquerdo e, ao não encontrar nada, grunhiu. Logo a introduziu no direito e tirou o envelope. Com pressa o abriu e quando começou a ler estendeu a mão para trás procurando um lugar onde sentar-se.

Eu, Roger Bennett Florence, futuro marquês de Riderland, em plenas faculdades mentais, faço oficial meu compromisso de matrimônio com a senhorita Evelyn Pearson Laurewn.

Roger não pôde continuar lendo. O único que observou antes de dobrar a folha foi a assinatura de Pearson, do senhor Lawford, a sua e inclusive a da própria rainha aceitando o enlace. Sentiu um intenso calafrio percorrer seu corpo. Começou a suar tanto que as gotas escorregaram por sua testa. Sua visão se esfumou tanto que mal conseguia distinguir a silhueta do papel. Abriu a mão deixando que aquela sentença caísse ao chão enquanto ele desabava sobre a cama em estado de choque.


III


Vestida de rigoroso negro seguia o féretro de seu irmão caminhando cabisbaixa depois da carruagem. Não tinha forças para dar um só passo, mas devia fazê-lo. Tinha que acompanhá-lo em seus últimos momentos. Notou uma pressão em seu braço e olhou de esguelha para descobrir quem a sustentava. Tratava-se de Wanda, sua donzela, sua única amiga, que não cessava de chorar, de sussurrar preces a Deus e de consolá-la dizendo que a vida lhe teria reservado algo bom para seu futuro. Entretanto, não lhe prestava atenção, só tentava averiguar quando a tinha segurado e em que momento se colocou ao seu lado. Resultou-lhe impossível lembrar-se, a única lembrança lúcida que possuía era a chegada do pároco e como sofreu uma repentina cegueira ao escutar a notícia.

Colin estava morto.

Decidiu tirar a vida e abandoná-la.

O porquê apareceu depois, quando o médico foi visitá-la essa tarde. Informou-a que seu irmão tinha a mesma enfermidade que sua mãe e, por mais que insistisse em que devia confrontá-lo com a maior integridade possível, decidiu não padecer aquele doloroso sofrimento. Evelyn se lembrou dos duros momentos que aguentou ao ver como sua mãe, uma mulher cheia de energia, positividade e vitalidade, terminava seus dias prostrados em uma cama, com o olhar perdido em algum lugar longínquo, com o rosto gasto e sem ser consciente da deterioração de seu corpo. Não, é óbvio que seu irmão não quis sofrer esse fim. Acaso ela não teria feito o mesmo?

Abaixou a cabeça, embora mal pudesse ver um palmo de distância, o véu lhe impedia de observar com atenção quem estava ao seu redor, salvo Wanda. Escutou como a carruagem parava e o incessante murmúrio das poucas pessoas que tinham assistido ao funeral finalizava. Estavam perto do temido fim, muito para que ela pudesse assumir que não voltaria a abraçar seu irmão, que já não se sentaria na poltrona para escutá-la ler enquanto tomava um brandy, que não o escutaria rir e que permaneceria sozinha o resto de sua vida. Tentou desfazer-se do agarre da donzela enquanto as lágrimas deixavam uma trilha sobre seu rosto oculto sob o véu. Pretendia acompanhá-lo até a tumba e ver como era resguardado sob o chão, mas Wanda não a deixou partir só e impediu que se afastasse. Levou-se a flor que segurava na mão aos lábios e a beijou. Era uma tulipa, a flor preferida de Colin. Deixou-a cair sobre o caixão e mal pôde respirar quando a primeira pá de terra começou a cobri-la.

Ouviu que Wanda lhe sussurrava algo. Não entendeu com claridade do que se tratava, embora deduzisse que lhe indicava que deviam partir, posto que começassem a caminhar para a saída. De repente, a donzela a fez parar.

? Senhorita Pearson... ? alguém se aproximou. Não distinguiu a silhueta dessa pessoa, embora a voz lhe soasse bastante familiar. Era Coleman, o doutor, o homem que apareceu em sua casa depois do pároco. ? De novo, meus mais sentidos pêsames.

? Obrigada... ? respondeu com um suspiro comprido.

? Se necessitar de algo, minha casa tem as portas abertas para você ? continuou dizendo a voz.

? Só quero ficar sozinha ? comentou com voz apagada.

? É claro, mas recorde minhas palavras. ? Coleman lhe fez um leve movimento de cabeça e partiu.

Wanda apertava com mais força seu braço, como se com esse gesto pudesse reconfortá-la. Não o fez. Nada podia consolá-la. Estava sozinha. Durante o resto de sua vida devia viver sem família, sem ninguém que estivesse velando por ela, sem ninguém que se preocupasse com seu bem-estar. Como o confrontaria? Como conseguiria sobreviver? Mal ficavam moedas nas arcas e não conseguiria vender a residência do Colin. Quem compraria uma propriedade onde seu dono se disparou na cabeça? A única saída era abandonar Londres e partir com o único parente que ficava: sua tia avó.

? Minhas condolências... ? outra voz masculina interrompeu sua marcha. Não a reconheceu. Tentou recordar se podia tratar-se de algum amigo do Colin, mas o tom suave, aveludado e o ligeiro acento estrangeiro não lhe ofereceram muitas pistas.

? Obrigada... ? respondeu sem deixar de olhar para o chão.

? Você saiba que seu irmão foi um homem honorável.

? Honorável? ? Resmungou. Elevou lentamente o rosto para quem permanecia de pé junto a ela. Mal pôde distinguir as feições de seu rosto, o véu o impedia. O único que transpassou a escuridão do tecido foi a intensidade de um olhar azulado. ? Chama você honorável uma pessoa que se suicidou?

? Senhorita... ? tentou falar.

? Nem lhe ocorra mencionar essa palavra, senhor ? continuou com voz desafiante. ? Agradeço que tenha vindo ao enterro, mas isso não lhe dá o direito a dizer que meu irmão...

? Seu irmão, senhorita Pearson, foi, é e será o homem mais respeitável que teve esta maldita cidade ? disse Roger segurando o braço da mulher e falando com os dentes apertados.

Evelyn cravou seu olhar na pessoa que segurava com força seu braço. Por mais que tentasse averiguar de quem se tratava, não conseguia descobri-lo. Era um estranho que tinha ousado segurá-la diante dos assistentes ao enterro. Tomou ar, elevou seu queixo e puxando com energia se desfez da amarração. Quis replicar suas palavras. Quis lhe gritar que não conhecia seu irmão se pensava tal coisa dele, mas não pôde. Resultava-lhe impossível debater as palavras. Possivelmente porque ela também acreditava.

Ignorando-o, começou a caminhar para sua carruagem. Desejava afastar-se dali o antes possível. Precisava entrar em sua casa e chorar até que não ficassem mais lágrimas.


Depois de recompor-se e ler umas vinte vezes o documento, Roger decidiu apresentar-se no funeral. Queria ver com seus próprios olhos que a morte do jovem Pearson não era uma mentira. Não seria a primeira vez que familiares, desesperando-se por seu bem-estar econômico, ideavam mentiras semelhantes para conseguir a estabilidade desejada. Entretanto, enquanto o ajudante de câmara o vestia, tentava recordar a última noite que passou com o jovem. Não mostrou nada que lhe fizesse pressagiar o que aconteceria no dia seguinte. Sorria, jogava, falava com os outros jogadores e inclusive bebeu mais do que estaria permitido a um moço de sua idade, mas... quem era ele para julgar os copos de uísque que deviam beber os outros?

De repente, uma imagem muito nítida apareceu em sua cabeça. Se esta não era errônea se tratava do momento no qual Pearson se levantou de seu assento para lhe jogar na cara o envelope. Rememorou-a uma e outra vez tentando sossegar sua inquietação. Não se tinha dado conta, possivelmente porque não se interessou nisso embora agora o visse claro: o jovem estava cada vez mais esquálido, suas olheiras pareciam lhe servir de máscara e seu pulso não era estático como o que todo homem devia possuir em uma situação como aquela. «Estava muito doente», meditou.

? Milorde. ? Anderson apareceu na porta interrompendo seus pensamentos.

? Preparou a carruagem? ? Quis saber. Segurou o envelope e o meteu no bolso de seu traje.

? Sim. O cocheiro acaba de me informar que está preparado.

? Averiguou a hora que se celebrará? ? O mordomo ficou olhando-o assombrado, era a primeira vez nos anos que lhe servia que adotava uma voz tão grave, tão impessoal.

? Às cinco, senhor.

Roger olhou seu relógio e franziu o cenho. Tinham passado as quatro e meia. Não podia entreter-se em almoçar, já o faria depois de falar com o senhor Lawford e averiguar que alternativa podia encontrar para anular o documento. Em completo silêncio, saiu da habitação, desceu as escadas que lhe conduziam para o hall e esperou que Anderson lhe trouxesse a capa e o chapéu.

? Pobre moço... ? murmurou o criado antes que Roger subisse as escadas da carruagem. ? A senhorita Pearson deve estar consternada.

? Há mais pessoas que vão sofrer a perda do senhor Pearson ? respondeu com seriedade.

Anderson fechou a porta e ficou observando seu senhor. Não entendeu o que queria expressar, mas sem dúvida algo importante aconteceria após essa morte. Jamais tinha presenciado um desmaio no futuro marquês. Nem quando bebia até não poder mais se desabava dessa forma. A inquietação fez com que sentisse um calafrio. Olhou ao cocheiro e lhe indicou que iniciasse a marcha. Se o dono de Lonely Field tinha problemas era melhor que resolvesse o quanto antes.

Roger correu as cortinas do coche. Necessitava de escuridão para pensar sobre o ocorrido. A penumbra sempre lhe vinha bem para meditar. Tinha que encontrar uma alternativa, algo que lhe ajudasse a sair do problema no qual se colocou. O jovenzinho lhe tinha estendido uma armadilha e ele tinha caído sem dar-se conta. Agora entendia os dramalhões do moço quando lhe negou o oferecimento, da satisfação que expressou seu rosto ao meter o envelope no bolso e de suas contínuas aparições no clube. Estava esperando seu momento. Tinha tecido uma teia de aranha e, com a tranquilidade que caracteriza a um predador, tinha aguardado sua presa. O tinha merecido. Nunca deveria subestimar um competidor, por mais vulnerável que parecesse. Entretanto, face ao que tinha assinado, ele não ia casar-se. Procuraria qualquer desculpa para não o fazer. Inclusive poderia fingir sua própria morte, se com isso lhe dizia o senhor Lawford que conseguiria seu propósito. Ele não era um homem que pudesse atar-se a uma mulher. Ele era um homem que amava todas as mulheres.

De repente seu corpo se entorpeceu. Não tinha refletido sobre isso e a ansiedade aumentou ao nível mais alto. «Mon Dieu! ? Exclamou ao mesmo tempo em que levava as mãos para o rosto. ? Como será essa senhorita Pearson?». Antes de poder encontrar uma resposta, a carruagem cessou sua marcha. Como se tivesse espinhos no traseiro, Roger saltou do assento e saiu com rapidez do interior. A tênue luz o cegou a tal ponto que teve que fechar os olhos para protegê-los. Quando conseguiu abri-los ficou como pedra. O carro fúnebre estava parado na entrada do cemitério. Os empregados tiravam o caixão onde jazia o corpo do jovem e ao seu lado só havia cinco pessoas que choravam a perda. Não podia ser verdade. Por que ninguém tinha ido se despedir? Acaso não tinha amizades? Roger enrugou a testa e apertou os punhos. Não se tratava disso, mas sim da maneira em que o moço pôs fim a sua vida. Seria uma desonra para a família e para qualquer um que se aproximasse para lhe dar o último adeus. Entretanto, ele não tinha esse tipo de escrúpulos sociais. Importava-lhe um nada o que os arrogantes da alta sociedade pensassem.

Enquanto se aproximava, tentou descobrir quem eram os três homens que acompanhavam as duas senhoras e qual delas seria a senhorita Pearson. Um pequeno gemido brotou de sua garganta ao ver a silhueta do senhor Lawford. Ele era o culpado de sua desdita e com ele devia falar quando a última pá de terra tampasse o féretro. Tentou fazer desaparecer de sua cabeça a possível conversação que manteria com o administrador ao terminar o enterro, mas lhe resultou impossível pensar em outra coisa. Como não o advertiu da armadilha? Ter-lhe-ia devotado aquela residência que possuía o jovem em Londres em troca do trabalho? Pareceu-lhe uma tolice pensar nisso porque Lawford conhecia seu poder aquisitivo e se lhe tivesse contado às intenções que tinha Pearson lhe teria pagado o dobro.

Com integridade, prosseguiu seu caminho até ficar a escassos passos das mulheres. Quem seria sua futura esposa? A da direita ou a da esquerda? As duas eram altas e magras. Não podia apreciar a cor do cabelo posto que levassem uns chapéus que o ocultavam.

? Senhor Bennett ? saudou uma voz conhecida.

? Senhor Coleman. ? Roger voltou sua atenção para o doutor e lhe estendeu a mão.

? Não sabia que era amigo da família ? comentou entrecerrando seus escuros olhos.

? Era, ou melhor, um conhecido do jovem ? respondeu sem deixar de olhar as mulheres. Uma delas segurou com força a outra pelo braço, como se tentasse evitar que caísse.

? Pobre Colin ? disse o médico quando o féretro foi colocado na terra. ? Jamais acreditei que seu desespero o levaria a realizar um ato tão deplorável.

? Sabe o que conduziu a esse fato deplorável? ? Perguntou mastigando a pergunta. Em efeito, aí tinha a resposta à falta de assistentes. Ninguém queria que o relacionassem com um suicídio. Não seria bem visto na sociedade acompanhar a um jovem que, desesperado, pôs fim à sua vida.

? Estava doente ? respondeu Coleman antes de dar um passo para diante.

? Que classe de enfermidade? ? Insistiu Roger.

? Parkinson. O mesmo que sofreu sua mãe. Se me desculpar, tenho que oferecer meu apoio à senhorita Pearson. ? Inclinou brandamente a cabeça e se dirigiu para as damas.

Roger prestou atenção para quem se dirigia, «a da esquerda», disse-se. Esperou que o médico lhe desse os pêsames para fazê-lo ele também. Entretanto, descobriu algo na atitude do senhor Coleman que não achou nenhuma graça. Não só se aproximou muito da mulher, mas sim também lhe sussurrou ao ouvido, como se entre ambos existisse uma relação mais íntima da que devesse. Apertando a mandíbula, acelerou o passo. Devia interpor-se com rapidez para resolver aquela situação.

? Minhas condolências... ? disse após aproximar-se. Observou com afã a figura da mulher. Era bastante alta e magra. O vestido, apesar de não ser muito ostentoso, marcava umas bonitas curvas femininas, mas Roger ficou imóvel quando cheirou o perfume da mulher. Era tão suave e floral como uma manhã da primavera em seu jardim. Abaixou a cabeça e beijou com suavidade a enluvada mão.

? Obrigada.

? Você saiba que seu irmão foi um homem honorável ? explicou dando uns passos para trás.

? Honorável? ? Cuspiu com raiva. ? Chama você honorável uma pessoa que se tirou a vida antes de cumprir os vinte?

? Senhorita... ? tentou falar.

? Nem lhe ocorra mencionar essa palavra, senhor ? continuou com voz desafiante. ? Agradeço-lhe que tenha vindo ao enterro, mas isso não lhe dá direito a dizer que meu irmão...

? Seu irmão, senhorita Pearson, foi, é e será o homem mais respeitável que teve esta maldita cidade ? sussurrou-lhe ao ouvido apertando os dentes.

Roger, em um ato de insensatez, avançou os passos que tinha retrocedido e a segurou com força pelo braço. Não podia permitir que a mulher partisse ao seu lar com aquele pensamento sobre seu irmão. Embora o jovem o tivesse conduzido a uma situação da qual não podia escapar com facilidade, conseguiu seu respeito. Quem não comete loucuras pelos seres aos quais se ama? Porque isso é o que tinha feito Pearson, uma tremenda loucura para salvar a sua irmã. Embora estivesse seguro de que quando ela descobrisse qual era sua última vontade, desejaria que estivesse vivo para matá-lo ela mesma com suas mãos.

? Senhor Bennett. ? Lawford apareceu atrás de suas costas.

A mulher se soltou de um puxão e Roger deixou que partisse. Logo se virou para Arthur e mostrando um enorme e falso sorriso lhe disse:

? Senhor Lawford, estava o procurando.

? A mim? ? Perguntou o homem levantando as sobrancelhas.

? Sim, a você. Temos um assunto pendente ? resmungou.

? Imagino do que se trata... ? voltou a sorrir.

? Falamos agora ou...? ? Insistiu.

? Melhor às sete em meu escritório. Tenho que acompanhar a senhorita Pearson até seu lar. Muito me temo que necessitará de mais apoio do que ela imagina ? expôs antes de exibir um grande sorriso.

? Ali me encontrará. ? Bennett entrecerrou os olhos.

Compreendeu com rapidez as palavras do administrador. Não só a perda de seu único familiar lhe proporcionaria uma grande desgraça, mas sim quando a informassem sobre seu inevitável futuro, desejaria morrer ela também.


IV


Às sete em ponto Bennett estava tocando à porta do escritório do senhor Lawford. Enquanto o recebia, pegou um charuto, o acendeu e lhe deu umas intensas aspirações. Estava nervoso, muito. Aquele homenzinho mal-humorado, desalinhado e resmungão tinha destroçado seus planos de futuro. Sempre pensou que chegaria solteiro até os cinquenta, então, justo nessa idade, começaria a procurar a candidata idônea para casar-se e engendrar um menino. Conseguiria assim seus dois únicos propósitos na vida: casar-se com uma mulher muito jovem, porque não gostava das que superavam os trinta anos, e nasceria outro futuro marquês que faria tremer as pernas das novas viúvas de Londres. Entretanto, se não obtivesse que o administrador revogasse aquele acordo, tudo seria desperdiçado, suas amantes, suas noites de cartas, suas bebedeiras, suas escapadas em navio... tudo!

? De novo, boa tarde. ? Lawford lhe permitiu o acesso ao interior.

Roger observou que o ancião não podia ou não queria deixar de rir. Até houve um momento no qual desejou lhe tirar o sorriso com um murro, mas se desejava obter seu propósito devia manter-se calmo.

? Já sabe ao que vim ? disse aplacando tudo o que pôde seu mau humor.

? Então... ao final o conseguiu? ? Sentou-se em sua poltrona, ofereceu outra a ele e levantou com o dedo os óculos.

? Por que acredita que estou aqui? ? Continuou com tom suave, mas sério. Aceitou o convite de sentar-se, reclinou-se sobre a cadeira e terminou de fumar o charuto.

? Avisei ao senhor Pearson que não era uma ideia sensata. Tentei, de todas as formas que encontrei, fazer-lhe entrar em razão ? começou a explicar enquanto agrupava uns papéis que tinha espalhados sobre a mesa.

? Não. Certamente, não foi uma boa opção. Como lhe ocorreu tal estupidez? Acaso não há suficientes solteiros em Londres, com melhor reputação, para escolher a mim? ? Queria rir? Sim, claro que desejava fazê-lo. As últimas palavras do administrador pareciam lhe indicar que havia uma saída. «Obrigado, meu Deus», exclamou para si.

? Aconselhei-lhe que procurasse outra alternativa mais razoável para cuidar de sua irmã, que pusesse seu lar à venda, que a levasse para aquela tia avó que têm em Harlow... ? prosseguiu ao mesmo tempo em que colocava a pilha de papéis em uma gaveta da escrivaninha. ? Não entendo como pôde pensar que casá-la com você era o melhor que podia acontecer a ambos.

? A ambos? Refere-se a sua irmã e a mim? Esse moço estava louco! De verdade que pensou que eu poderia salvá-la? Acaso não escutou a fama que me precede? ? Clamou. ? Você é um homem sensato, senhor Lawford, ? comentou em tom encantador ? e com certeza sua consciência não descansará tranquila ante este ato tão demencial. Assim, diga, como posso anular este contrato? ? Inclinou-se para a mesa, apoiou os cotovelos nela e pôs cara de menino bom.

? Tal como você indica, a vontade de meu cliente é um tremendo disparate, mas muito me temo que não haja maneira de escapar. Deve casar-se ? afirmou fechando a gaveta com mais força da necessária.

? Eu não posso escapar? ? Gritou ao mesmo tempo em que se levantava do assento e empurrava a cadeira com as pernas. ? Está dizendo que não há maneira de romper o compromisso?

? Você assinou? ? Olhou-o e arqueou as sobrancelhas.

? Sim. Embora por engano.

? Pode demonstrar que foi enganado?

? Não ? disse com um sopro.

? Por quê?

? Porque estávamos sozinhos.

? Ninguém presenciou o momento no qual, supostamente, foi fraudado? ? Continuou com o interrogatório.

? Não me escutou bem? ? Gritou.

? Pois muito me temo, senhor Bennett, que logo terá ao seu lado uma senhora Bennett a quem cuidar e respeitar até que a morte os separe. ? Lawford se recostou no assento, colocou as mãos como se fosse rezar e desenhou de novo um enorme sorriso.

? Encontrarei a maneira de invalidá-lo ? murmurou apertando os dentes.

? Procure-a, mas lhe adianto que sou o melhor em meu trabalho ? afirmou com orgulho.

? Tanto odeia essa pobre mulher? Tanta vontade tem de vê-la amargurada o resto de sua vida? ? Grunhiu.

? Não serei eu quem se casará com ela, senhor Bennett, embora lhe indique que teria gostado de ter essa possibilidade. Se a senhorita Pearson se converter em uma esposa desventurada ou amargurada será por sua culpa, não pela minha ? sentenciou. ? Agora, se me desculpar, tenho outros assuntos que atender.

Roger olhou ao seu redor procurando algo que romper, mas salvo grossos tomos de livros, ali não havia nada. Zangado, virou-se sobre seus calcanhares e saiu ao exterior. A chuva tinha retornado. Levantou o rosto e deixou que as gotas o empapassem.

Durante a caminhada para a carruagem, sua ira foi diminuindo e a mente começou a lhe oferecer um sem-fim de alternativas para desfazer-se de todo o embrulho. Entretanto só uma lhe pareceu correta.

? Para onde vamos, milorde? ? Quis saber o cocheiro quando abriu a porta para que passasse ao interior.

? Para Haddon Hall ? respondeu com entusiasmo.


Os cavalos começaram a reduzir seu trote. Bennett levantou a cabeça do almofadão e sorriu ao deduzir que estavam aproximando-se da mansão. Olhou pela janela e observou como a escuridão ocultava a beleza daquelas paragens. Entretanto, a grandiosidade do lar de seu amigo não diminuía ante a chegada da noite. Respirou profundamente quando a carruagem parou no jardim da residência.

Apesar da hora, esperava que William entendesse que sua visita tinha uma boa razão. Poderia ajudá-lo? Sim, estava seguro de que encontraria a forma de fazê-lo. Se não recordava mal, depois do matrimônio com Beatrice, tinha ocupado seu posto na Câmara dos Lordes e devia conhecer alguém que, apesar da insistência de Lawford, achasse um pequeno engano para romper o acordo.

Não esperou que o cocheiro lhe abrisse a porta, saltou de seu assento e se apressou a sair ao exterior.

? Não deseja que informe de sua visita, milorde? ? Escutou o cocheiro perguntar.

? Não, obrigado. Apresentar-me-ei eu mesmo.

Subiu as escadas de dois em dois degraus, pegou com força a aldrava e chamou com vigor. Estariam dormindo, quem não o faria às quatro da madrugada? Mas isso não lhe impediu de seguir golpeando a porta até que escutou uns passos aproximando-se.

? Boa... senhor Bennett! ? Exclamou o senhor Stone assombrado. ? O que faz você aqui a estas horas?

? Boa noite, o duque encontra-se em casa? ? Perguntou caminhando para o hall sem que o mordomo lhe concedesse permissão.

? Sim. Sua Excelência está dormindo ? esclareceu. Muito temia que o senhor Bennett não se desse conta da hora que era, embora também estivesse acostumado a perder a noção do tempo quando residiam em Londres. Algumas vezes até pensou em lhe jogar um caldeirão de água fria pela janela para que lhe passasse a bebedeira imediatamente. Entretanto, naquele momento nem estava bêbado nem podia percorrer a pé a distância entre seu lar e o do duque.

? Pode chamá-lo? É urgente ? disse enquanto jogava sobre uma das cadeiras do saguão sua capa e seu chapéu.

? É claro. Passe à biblioteca. Irei comunicar ao nosso senhor quem irrompeu no meio da noite neste aprazível lar e o desejo que o conduziu até aqui ? resmungou Brandon ao mesmo tempo em que fechava a porta e tentava abrir os olhos para não tropeçar em algum degrau da escada.

Roger o seguia com o olhar. Quando o perdeu de vista caminhou para a sala rezando para que seu amigo não demorasse em aparecer.

Olhou para todos os lados da habitação procurando uma garrafa que saciasse sua sede ou, melhor dizendo, que acalmasse seu nervosismo. Levava dois dias e meio metido em uma carruagem. Mal tinha comido nem bebido, o único que tinha feito era fumar um cigarro atrás do outro. Durante o trajeto tentou encontrar a maneira de salvar-se ele mesmo sem ter que comprometer seu amigo, mas não achou nada coerente salvo fingir sua própria morte. Caminhou para o móvel bar, pegou uma taça e a encheu até a borda. Não tinha pousado a garrafa sobre a superfície de madeira quando já o tinha bebido. Voltou a enchê-lo e justo quando ia repetir a ação escutou os ininterruptos grunhidos de William.

? Acaso não viu a hora que é? ? Grunhiu o duque mal-humorado. ? Não terá esquecido que me casei, não é? Porque se veio me oferecer outra de suas inevitáveis, mas grandiosas orgias, digo à Beatrice que desça e ponha-o em seu lugar.

? Eu também me alegro em ver-te, meu amigo e não, não vim para nada disso. Então deixa a sua pequena leoa na cama ? respondeu elevando sua taça e mostrando um gesto que parecia um sorriso.

? Deus Santo, Roger! ? Exclamou Rutland ao observar a figura desalinhada de Bennett. ? O que acontece? Está enfermo? Assaltaram-no na viagem? ? Caminhou para ele com rapidez.

? Estou com a corda no pescoço. ? Como se fosse um menino procurando o amparo de um irmão mais velho, Roger se equilibrou para William e o abraçou com força.

? Cheira a esterco! ? Clamou retirando-se com rapidez.

William o observou com atenção. Nunca tinha visto seu amigo daquela forma. A escuridão de seu rosto lhe mostrava que, em efeito, não tinha parado para barbear-se, nem para arrumar-se. Cheirava a tabaco, uísque e a suor, algo impróprio em um homem que demorava em arrumar-se mais que uma mulher.

? Como te ocorre cobrir sua nudez com essa mísera bata? Acabo de roçar algo que não deveria haver tocado jamais ? disse jocoso tentando aplacar o desconcerto de William, porque se seu deteriorado aspecto lhe tinha provocado certo desgosto, conhecer a razão pela qual tinha chegado a Haddon Hall o faria desmaiar.

? Imagino que não seja portador de boas notícias, não é? ? Rutland, assustado, pegou uma taça e se serviu um pouco de licor para acompanhar seu amigo.

? Não ? afirmou Roger bebendo sua terceira taça de um sorvo.

? A última vez que alguém me visitou antes do café da manhã me deixou tão perturbado que cometi uma loucura ? explicou William enquanto caminhava para o sofá. Sentou-se e não afastou suas pupilas da figura de Roger. Mostrava cansaço e algo mais que não podia descobrir.

? Quem foi? ? Quis saber Bennett.

? Federith ? respondeu com rapidez.

? O que te disse? ? Manteve-se de pé com a taça vazia em sua mão.

? Que ia se casar com lady Caroline ? disse com pesar.

? Bom, eu... ? começou a dizer abaixando a cabeça.

? A que veio, Roger? ? Elevou a voz William. O mau humor se esfumou dando passo a um estado de alerta. Conhecia muito bem seu amigo e aquela postura encurvada, o olhar para o chão e aquele aspecto de mendigo lhe indicava que nada bom ia explicar-lhe.

Bennett colocou a mão no bolso para tirar o envelope. Olhou-o com desespero. Logo avançou para seu amigo e o mostrou.

? Leia isto e saberá o motivo pelo qual te afastei dos braços de sua esposa.

Rutland deixou a taça no chão e pegou o envelope que lhe oferecia. Aproximou-o do abajur a gás, abriu-o e começou a ler o documento que levava. A primeira reação do homem foi tossir. Engasgou-se com sua própria saliva. Depois abriu os olhos como pratos, enrugou o nariz e olhou seu camarada com uma mescla de surpresa, inquietação e terror.

? Como pôde assinar isto? Estava bêbado? ? Gritou exaltado.

? Não exatamente ? repôs. Caminhou para a chaminé, colocou a mão direita sobre a pedra e abaixou de novo a cabeça. ? Me enganaram.

? Como que... o enganaram? ? Colocou o documento sobre as pernas, pegou a taça e a bebeu de um gole.

? O irmão da senhorita Pearson, mulher com a qual supostamente estou prometido, jogou comigo uma partida de cartas. A jogada era interessante e ficou ainda mais quando me propôs que ganharia uma de suas propriedades.

? Tratou sua irmã como se fosse um mísero cavalo? ? Cuspiu William zangado.

? Não! Ele me assegurou que o documento era a escritura de sua propriedade. Uma pequena residência que tem em Londres e na qual poderiam viver minhas amantes ? explicou com desdém.

? Bom, se se tratou de uma mentira e pode demonstrá-lo, o contrato será invalidado ? indicou com uma ponta de esperança.

? Não posso demonstrar, William. Só estávamos ele e eu... ? sussurrou aflito. Aproximou a cabeça da cornija da chaminé e teve vontade de golpear-se contra ela.

? Então... faça com que confesse! Não pode se casar com essa mulher! Será desventurada! ? Exclamou com tanto ímpeto que sua voz soou por toda a casa.

? Não posso obter uma confissão do estelionatário porque se suicidou ? prosseguiu em tom suave enquanto olhava as pequenas brasas que tentavam sobreviver ao sepultamento da cinza.

? Como disse? ? Perguntou William levantando-se e deixando cair o envelope no chão.

? Justo na manhã seguinte se deu um tiro ? repôs com sufoco.

? Deus bendito! Por quê? Acaso esse moço não sabe o que seu ato pode causar? ? Dirigiu-se para o móvel bar e se serviu outra taça. Notava a garganta tão seca que devia umedecê-la com tudo o que tivesse ao seu alcance.

? O único que deduzi é que pretendia que ficasse com sua irmã e quando o conseguiu, finalizou seu calvário. ? Seguia com a cabeça abaixada e com os ombros inclinados para diante.

? Por que diz isso? ? William se voltou para ele e não deteve seu caminhar até que esteve ao seu lado.

? O moço estava muito doente, confirmou-me isso o doutor Coleman. Conforme parece herdou uma enfermidade que o mataria cedo ou tarde.

? Mas isso não lhe dá direito a...

? Há, mas a posição econômica em que ficou sua irmã não é a adequada para uma mulher da alta sociedade e acredito que pensou em protegê-la lhe proporcionando um bom matrimônio ? prosseguiu com voz apagada.

? Contigo? ? Perguntou com assombro.

? Algum dia serei marquês e já sabe o que isso significa... ? Se endireitou quando notou a presença de William perto, que lhe ofereceu o copo que tinha em suas mãos e Bennett o aceitou de bom grado. ? Quero que me ajude a descobrir como posso me liberar disto. Não quero me casar, não ainda. Além disso, sempre sonhei que o faria por amor não por obrigação.

? Amor? ? Perguntou antes de soltar uma gargalhada. ? Você falando de amor?

? Quem fala de amor? ? A figura de Beatrice apareceu na porta. Tinha as mãos pegas na cintura e franzia o cenho. Uma larga bata de seda vermelha cobria seu corpo. Era a primeira vez que se mostrava ante Roger com o cabelo solto e despenteado. Essa naturalidade com a qual apareceu agradou a Bennett, porque entendeu que não só tinha a amizade de William, mas a de sua esposa também.

? Olá, querida. Despertei-te? Sinto muito. ? Rutland se dirigiu para ela, estendeu-lhe a mão e lhe deu um suave beijo nos lábios.

? Quem fala de amor? ? Repetiu.

? Seu marido, não eu ? disse Roger avançando para a mulher. Antes de saudá-la ficou olhando-a com assombro. Estava muito mudada pela gravidez. A pequena cintura tinha crescido vários palmos e a figura diminuta, já não o era tanto. ? Quem é e por que comeu a duquesa? ? Comentou com zombaria.

? Boa noite para ti também, Roger ? falou mal-humorada.

? Meu amor, não se zangue por suas inoportunas palavras, está linda. Além disso, acredito que quando escutar a história pela qual veio até nós, será você quem rirá mais.

Abraçou-a e a levou até a chaminé. Não queria que passasse frio e menos ainda em seu estado, desde que tinha ficado grávida, Beatrice estava mais fraca do que tentava aparentar.

? O que é isso? ? Assinalou Beatrice olhando para o chão. Tentou abaixar-se para pegar o papel, mas William se adiantou.

? Vem, sente-se e leia. Logo, por favor, não ria muito. Nosso querido Bennett está passando pelo pior momento de sua vida.

? Rir? Seu pior momento? ? Tal como lhe sugeriu seu marido, sentou-se e começou a ler. Igual ao seu marido, abriu os olhos de tal maneira que Roger pôde ver o verde de suas pupilas. Levou a mão à boca impedindo que um grito ou uma gargalhada brotassem dela. ? Pelo amor de Deus, o que você fez?

Bennett pegou uma cadeira e se sentou ao seu lado. Durante pouco mais de uma hora explicou a ambos o acontecido com todo detalhe: o dia que Pearson foi testemunha do desafio de William, como o observou vigiando à manhã seguinte em Hyde Park, às assíduas visitas deste ao clube, a tramado com Lawford e por último lhes narrou a desoladora cena de seu enterro.

? As pessoas podem ser muito cruéis ? assinalou Beatrice quando escutou que a senhorita Pearson estava sozinha em um momento tão difícil.

? Ninguém quer estar envolto em uma morte e menos quando o falecido se suicidou. Todo mundo estaria falando sobre as possíveis causas dessa decisão. Estou seguro de que se acusariam uns aos outros sem sopesar a verdadeira razão pela qual o moço pôs fim à sua vida. ? William colocou a mão sobre o ombro de sua esposa e o apertou com ternura.

? Pobrezinha ? comentou Beatrice com pesar. Levou-se a mão para o ventre e o acariciou com suavidade. Aquilo lhe recordou a agonia que sofreu quando seu marido decidiu bater-se em duelo por sua honra. O que teriam feito ela e seu filho se tivesse morrido?

? A verdade é que sinto lástima por ela. Se não fosse o suficiente a morte de seu irmão, imagine o que vai padecer quando descobrir que está comprometida a um homem como eu ? acrescentou Roger.

? Por quê? ? Interrompeu lhe Beatrice. ? Por que esse moço escolheu a ti?

? Bom, nem tudo em Bennett é mau, querida ? interveio Rutland. Olhou sua esposa e esboçou um pequeno sorriso quando ela mostrou um grande assombro em seu rosto. ? Tem bom coração.

? Tem um coração enorme! ? Exclamou a mulher ao mesmo tempo em que se levantava. ? Tão grande que é capaz de amar a todas as mulheres!

? Como? ? Intrometeu-se o aludido. ? Não me julgue ainda, senhora Rutland. Sei que o dia de amanhã, quando de verdade desejar me casar, serei o homem mais fiel do mundo.

? Você? ? Zombou Beatrice sem pensar. ? Impossível!

? Por favor... tranquilizemo-nos ? pediu William.

? Acaso seu marido não mudou?

? É óbvio que o fez! Porque me encontrou! ? Clamou zangada.

? Rogo que se acalmem. ? Rutland se dirigiu para sua esposa para abraçá-la e relaxá-la. Não queria que terminasse blasfemando. Ultimamente seu estado emocional se desequilibrava com facilidade e agora, a doce e terna mulher que momentos antes lhe tinha devotado paixão e desejo, estava se convertendo em uma bruxa.

? Tem razão... ? disse Roger após suspirar. ? Não mereço outra coisa salvo todo tipo de recriminações. ? Com passo firme retornou para o móvel bar, mas desta vez não encheu a taça e sim pegou a garrafa.

? Não quero dizer que o dia de amanhã não seja capaz de amar a uma mulher, não entenda isso. Só quero que compreenda que a senhorita Pearson já sofreu bastante ? explicou Beatrice suavizando seu tom.

? O suicídio é... ? tentou dizer Bennett.

? Não! Não é só pelo suicídio! ? A mulher olhou a ambos os homens e ficou sem palavras ao descobrir que, pela expressão de seus rostos, não sabiam a que se referia. Onde estavam quando toda Londres cochichava sobre o acontecido à senhorita Pearson?

? Temo, querida, que conhece algo sobre a senhorita Pearson que nós não, não é? ? William apertou seus olhos negros e enrugou levemente a testa.

? Eu não deveria falar disso. Sou a menos indicada para propagar um rumor ? comentou em voz baixa.

? Mas...? ? Insistiu seu marido.

? Foram as amigas da minha mãe que falaram sobre ela uma tarde que se apresentaram para tomar o chá ? começou a dizer ao mesmo tempo em que se dirigia para seu marido para abraçá-lo. Não gostava de recordar certos temas e menos ainda quando ela tinha estado na boca de outros por causas parecidas.

? Querida... ? William a atraiu para seu corpo com força e ao notar um pequeno tremor lhe beijou a cabeça. ? Nós gostaríamos de saber o que aconteceu a essa mulher. Talvez isso faça com que Roger se salve desse fatídico enlace.

? Não paravam de cochichar sobre a pobre filha dos Pearson e a desgraça que tinha levado ao seu lar ? começou a contar afastando-se do corpo de seu marido e dirigindo-se para seu assento junto à chaminé. William cortou a distância entre eles e lhe segurou uma mão para lhe dar aquela confiança que parecia precisar. ? Ocorreu em uma das festas que realizou sua família na residência Seather Low. Eu ainda não tinha idade para aparecer em sociedade, então fiquei em casa. Entretanto, meus pais foram.

? O que aconteceu? ? Roger levantou a garrafa e deu um grande gole.

? Encontraram-na nos braços de um homem.

? Como? ? Bennet cuspiu todo o líquido que saboreava na boca. ? Está dizendo que...?

? Não vá replicar sobre isso, Roger ? resmungou Beatrice. ? Não é o mais apropriado para julgar a decência de uma mulher.

? Não acredito que se atreva, não é? ? Participou Rutland.

? Ao que parecia, ocultava seu romance porque seus pais não estavam de acordo que ela se prometesse com um...

? Com um? ? Insistiu Bennett.

? Descarado ? sentenciou a mulher.

? Então, como posso concluir, desonrou-a e a abandonou ? balbuciou Roger.

? Não sei se será certo ou não, mas o senhor Pearson sempre pensou que cortejava a sua filha porque desejava obter o dote que tinha devotado ao casá-la. Então lutou tudo o que pôde para que nunca estivessem juntos, mas quando a encontraram em seus braços, teve que anunciar o compromisso naquela festa.

? O que aconteceu? ? Pergunto William com curiosidade.

? Em pouco tempo o senhor Pearson se declarou na bancarrota. Meu pai nos comentou que tinha feito uma má gestão com certo investidor que lhe tinha devotado conseguir uma grande soma de dinheiro e, é óbvio, extorquiu-o.

? Então, aquele caipira anulou o compromisso ? apontou de maneira reflexiva Bennett.

? Não! Não foi assim! Pouco tempo depois daquela notícia, o prometido se alistou no exército.

? E o que aconteceu com esse estimado militar para que não se casasse com a senhorita Pearson? ? Perguntou Bennett reticente.

? Morreu ? afirmou Beatrice.

? Morreu? ? Seu marido elevou de novo as sobrancelhas e enrugou a testa.

? Sim. Ao que parece, em umas manobras que deviam realizar, a alguém escapou uma bala e disparou nele.

? Vá... que má sorte! ? Exalou Roger devagar.

? Pois parece que a má sorte a persegue, não é? ? A mulher se voltou para ele e o olhou zangada.

? Vim até aqui para tentar resolver isso mesmo, senhora duquesa. Não quero que minha má reputação destrua a ninguém mais salvo a mim.

? Mas não vai ser possível, meu amigo. Não pode evitar a assinatura da própria rainha ? explicou Rutland.

? Que outra alternativa fica? ? Perguntou Roger depois de olhar a ambos.

? Se casar com ela e ser um bom marido ? assinalou Beatrice com firmeza.


V


Tinham passado duas semanas da morte de Colin embora para Evelyn esse tempo lhe parecesse uma eternidade. Acreditou que ocupando seu dia com todas as tarefas que lhe surgiam na cabeça não a faria sentir tanto, mas se equivocou. Como fazer desaparecer tão rápido um ser que se amou com tanta intensidade? Tinha o coração destroçado. Mal ficavam forças para continuar vivendo e tudo que fazia recordava seu irmão. Ninguém podia resolver sua dor, sua perda, seu vazio. Nem a morte de seus pais lhe tinha produzido tal angústia. Mas era normal. Quando eles faleceram ainda ficava uma pessoa pela qual lutar, pela qual viver, pela qual levantar ? se todos os dias. Entretanto, agora o que tinha? Nada , salvo as dívidas. Fechou o livro de contas que estudava e começou a chorar de novo. Os deficits começavam a superar o dinheiro que guardava e, tal como imaginou, ninguém tinha perguntado pela venda da residência de seu irmão. O final de uma época estava chegando. Só restava enfrentar com integridade o desastroso futuro.

Olhou de novo a carta que tinha sobre a mesa. Nela sua tia avó lhe explicava que uma conhecida sua necessitava de uma instrutora para seus filhos. Era uma boa oportunidade para partir de Londres e afastar-se de tudo. Possivelmente deste modo também deixaria de sofrer as impertinentes visitas daqueles que tentavam salvá-la mediante um matrimônio.

Desde o falecimento de Colin, os cavalheiros solteiros ou viúvos da cidade apareciam por seu lar para lhe oferecer a melhor alternativa à sua desdita. O primeiro em lhe comentar tal loucura foi o senhor Coleman. Evelyn não pressentiu nada quando falou com ele no enterro. Se não recordava mal, comentou-lhe que as portas de seu lar sempre estariam abertas para ela, mas... casando-se? As razões que o bom doutor alegou para a proposição matrimonial eram que ela estava sozinha, desamparada na vida e que ele, ao enviuvar, necessitava de uma esposa com quem ter filhos. Ficou muda depois da exposição. Seu corpo se intumesceu e teve umas vontades terríveis de vomitar, mas manteve a compostura e rejeitou a proposição da maneira mais sensata que encontrou até aquele momento: declarou que se encontrava em período de luto e não se achava em plenas faculdades para pensar. Entretanto, quando o senhor Coleman partiu, acreditou que esse tema estava resolvido, mas não foi assim. Dia após dia apareciam mais cavalheiros com a esperança de encontrar seu ansiado sim.

? Senhorita Pearson...

Sua donzela apareceu na saleta sobressaltada. Tinha o rosto pálido e a respiração era mais agitada do que o habitual.

? Diga, Wanda, o que acontece? ? Perguntou enquanto se incorporava no assento para deixar junto à carta o livro de contas.

? Desculpe se a atrapalho, mas acaba de chegar outra carruagem ? expôs sem mal tomar ar para respirar. ? Imagino que será outro possível pretendente.

? Outro? ? Gritou com raiva. ? Acaso não ficou clara a minha postura? Vou ter que enviar umas linhas ao periódico para esclarecer que não procuro marido? ? Sua fúria era tal que o rosto se encheu de fogo.

? Sinto muito, imagino que todo mundo pensa que você deva casar-se para poder subsistir ? repôs avançando para ela.

? Subsistir? De verdade crê que viver ao lado de um homem que não amo e que pensa que sou uma máquina de fazer filhos pode me oferecer essa sobrevivência? Maldita seja! Não sou um animal!!

? Minha senhora... ? a interrompeu Wanda ao ver que o cavalheiro começava a subir as escadas.

? O quê? ? Perguntou dando a volta para ela.

? Aproxima-se... deve decidir o que fazer.

Evelyn correu para a janela. Afastou as cortinas e ficou observando a pessoa que avançava para a entrada. Sem lugar a dúvidas, era o homem mais bonito dos que até agora tinham aparecido, mas mesmo assim, não queria recebê-lo. Durante uns instantes se manteve calada meditando em silêncio como poderia fugir da visita. Por mais que o tentou, não lhe ocorreu nada.

? Senhora, é o mesmo homem que se aproximou no dia do funeral. Aquele cavalheiro que ousou segurá-la pelo braço diante dos presentes ? explicou a donzela ao contemplá-lo mais de perto.

? O senhor honorável! ? Exclamou. Quase atirou Wanda ao chão ao afastar-se da janela. Começou a passear de um lado para o outro ao tempo em que blasfemava sem parar. Que demônios fazia ali? Como lhe ocorria aparecer em sua casa depois do ocorrido?

? O que faço? Recebo-o ou espero que bata à porta? ? Perguntou a criada sem poder reduzir sua inquietação.

? Vou Recebê-lo eu mesma... ? disse Evelyn entreabrindo os olhos e esboçando um sorriso malicioso.

? É uma loucura! Como você vai lhe receber? ? A donzela ficou imóvel no meio do salão. Suas sobrancelhas se elevaram imensamente e levou a mão à boca ao observar o rosto malicioso de sua senhora. ? Não pretenderá...? Deus, não!!

? Não fica outra opção ? sentenciou. ? Preciso de você.


Estava há quatro dias em Londres, tempo que utilizou para consultar todas as pessoas que conhecia e sabia de leis para romper seu acordo. Mas sempre obteve a mesma resposta: um imenso «nada se pode fazer» acompanhado de uma enorme gargalhada. Já se tinha dado por vencido. Não ficava mais remedeio que cumprir a última vontade da pessoa que lhe tinha destroçado a vida. Com um grande pesar, deu ao cocheiro a direção que devia levá-lo, meteu-se na carruagem e fechou os olhos. Durante o trajeto recordou uma e outra vez a noite da partida. Tentava obter algo que lhe salvasse daquela situação. Entretanto, seguia sem encontrar aquilo que procurava. Era tanta sua raiva pelo que ia fazer que começasse a golpear com os punhos o interior do carro. Como tinha sido tão tolo? Como não foi capaz de dar-se conta? De repente, o coche parou. Escutou o relinchar dos cavalos e como o cocheiro descia do assento. Quis pegar a maçaneta e impedir que o lacaio realizasse seu trabalho. E se ficasse ali encerrado o resto de seus dias? Poderia salvar-se? Mas não o conseguiu. Quando estendeu a mão para pegar o fecho, o criado a abriu.

? Milorde, chegamos ? informou o homem que, ao ver o senhor estendido para a porta, ficou tão surpreso que deu um passo para trás.

? Obrigado ? disse a modo de resposta.

Roger inspirou tudo o que pôde quando elevou a vista para a residência. Não era tão grande como a sua, mas tampouco a podia catalogar de pequena. Alisou o traje, apertou o chapéu com força na cabeça e começou a subir os degraus que o conduziam para sua morte. Sim, sua morte. Embora pensasse que se falecesse antes de tocar a porta, seria o homem mais feliz do mundo.

Muito ao seu pesar chegou são e salvo até à entrada.

Pegou a aldrava e tocou várias vezes. Ouviu uns suaves passos aproximando-se e, ocultando sua aflição, manteve uma figura rígida.

? Bom dia, senhor ? respondeu uma criada vestida de rigoroso negro.

? Bom dia. Preciso falar com a senhorita Pearson. Encontra-se no lar?

? Sim, milorde. Quem digo que deseja vê-la?

A donzela seguia olhando ao chão. Levava o cabelo recolhido em um volumoso coque embora lhe tivesse escapado algumas mechas. Roger observou a cor e ficou sem fala. Era de um vermelho tão intenso que parecia desprender fogo. Adorava esse tom de cabelo e, muito ao seu pesar, nunca tinha dormido com uma mulher com esse traço tão erótico. Encantado pelo brilho, tomou ar tentando manter a compostura, mas foi pior. Quando o perfume da mulher se introduziu em seu nariz, algo nele despertou com mais rapidez da que esperava. «Mon Dieu, non!», exclamou mentalmente. Cheirava a lilás. Se tivesse fechado os olhos teria se visto de novo no lar de seus pais, caminhando sob um comprido túnel de lilás enquanto sua mãe lhe falava com entusiasmo de como as cultivar. Por uns instantes seu mau humor desapareceu e deixou que uma estranha paz acalmasse seu corpo.

? Quem diz que é você? ? Insistiu a mulher ao ver que não lhe respondia.

? Sou o senhor Bennett ? respondeu enfim.

Mas não foi capaz de seguir falando. Quando a criada levantou com suavidade seu pálido semblante e expôs o verde de seus olhos, esteve a ponto de cair ao chão. Eram tão profundos, tão formosos, que desejou aproximar a mão e tocá-los com delicadeza. Mas se aquele olhar o deixou sem palavras, depois de descobrir o rosto ficou tão abobalhado que esqueceu a razão pela qual tinha aparecido naquele lugar. As bochechas da mulher estavam cobertas de umas diminutas sardas que lhe davam um aspecto tão juvenil como luxurioso. De repente teve vontade de sair correndo, fugir o antes possível dali. Estava louco! Não podia casar-se! Era um homem maldito. Por que... acaso não era uma maldição o repentino desejo de retornar a casa e fazer chegar à criada uma carta lhe indicando que a queria como amante?

Como ia manter seu juramento? Como ia respeitar sua esposa se antes de conhecê-la já tinha fantasias com sua própria criada?

? Se for amável de esperar aqui, perguntarei à senhora se pode lhe receber. ? Com passo firme e mais reta do que deveria mostrar uma empregada, a mulher desapareceu depois de uma porta.

Roger não pôde afastar o olhar dela. Tinha-o hipnotizado até tal ponto que estava a ponto de cometer uma loucura. Entretanto, justo quando se ia dar a volta e baixar as escadas de três em três, a criada apareceu sorridente.

? Se for amável de me seguir, minha senhora o receberá no salão. ? Colocou-se diante dele e avançou com a mesma atitude.

Seu coração seguia pulsando? A resposta devia ser que não, porque acreditava que tinha deixado de senti-lo. Esteve a ponto de levar a mão para a gravata para desfazer o nó. Faltava-lhe ar. Notou como lhe suava o corpo e a pontada entre as calças aumentava em cada movimento de quadril.

Roger elevou o olhar e tentou cravar suas pupilas no teto. Precisava acalmar aquele estranho desejo que lhe tinha despertado a criada. Nunca se tinha fixado em uma criada. Para ele eram pessoas intocáveis e respeitáveis. A mera ideia de submeter uma donzela não só a um trabalho no lar, mas também no quarto, provocava-lhe náuseas. Possivelmente o culpado disso fora seu pai, quem não era capaz de respeitar a nenhuma mulher que se aproximasse.

? Senhor... ? indicou com suavidade. ? Se for amável de passar.

Roger quis fechar os olhos para escutar a melodia que soava ao falar. Nunca tinha tido o prazer de ouvir um suave canto parecido ao das sereias e naquele momento o estava ouvindo. Fazendo um grande esforço, entrou no salão e dirigiu o olhar para a mulher que se encontrava de pé esperando-o. Voltou a ficar mudo. Tinha-o sopesado em mais de uma ocasião, mas sempre rezava para que não ocorresse. Embora já não houvesse como voltar atrás, ia se casar com uma mulher que roçaria os cinquenta.

? Bom dia, senhorita Pearson. ? Estendeu a mão para ela e a beijou com suavidade. Ao contato com sua pele, Roger notou uma aspereza imprópria de uma mulher de sua linhagem. Entretanto, rapidamente recordou que sua situação econômica não era a apropriada e pensou que devido a isso a mulher teria que realizar tarefas próprias de uma donzela.

? Bom dia, senhor Bennett ? saudou com uma pequena gagueira. ? Que motivo o conduziu até meu lar? ? Afastou-se de seu lado e se sentou perto de onde se encontrava a criada.

Roger a seguiu com o olhar até que seus olhos se encontraram com os da criada. Um estranho comichão em seu estômago surgiu sem poder controlá-lo. Mal lhe saíam as palavras, estava extasiado por culpa daquela mulher. Apesar daquele estado de devaneio, respirou fundo e andou pelo salão até colocar-se no centro. Olhou sua futura esposa e lhe disse em tom suave:

? Eu gostaria de lhe entregar um documento que assinei ao seu irmão antes de sua morte. ? Colocou a mão no bolso e o mostrou. A donzela se aproximou para segurá-lo e nesse instante voltou a lhe açoitar o delicioso perfume. ? Eu gostaria de esclarecer que não estive de acordo em seu momento, mas após refletir durante este tempo, acredito que será o mais acertado para ambos.

? Para ambos? ? Inquiriu a dama com assombro. Abriu o envelope, tirou o documento e deixou que a criada o lesse ao mesmo tempo que ela. ? Isto... isto...

? Sim, senhorita Pearson ? disse sem deixar de observar como a criada começava a empalidecer. ? É nosso compromisso matrimonial.

Não esperava que a pessoa mais afetada pela notícia fosse a empregada de sua futura esposa. Assim, por mais que o evitasse, prestou mais atenção ao seu comportamento que ao da senhorita Pearson. Observou-a tremer, depois como olhava a carta e logo dirigia suas verdes pupilas para ele. Roger, assombrado, descobriu como seus olhos se enchiam de lágrimas e que esticava as mãos para o respaldo onde se sentava sua senhora para evitar um possível desmaio, mas não conseguiu segurar-se com força. Suas mãos escorregaram e atrás delas, o corpo inteiro. De repente, saltando todos os protocolos que lhe tinham inculcado desde o berço, deu uns grandes passos para a donzela e conseguiu segurá-la antes que tocasse o chão.

? Encontra-se bem? ? Perguntou-lhe segurando-a pela cintura.

? Wanda? ? Perguntou sua futura esposa. ? Meu Deus!

? Não se preocupe, foi só um desmaio, logo se recuperará. Mas se for amável de me indicar onde tenho que pousá-la, farei isso encantado ? assinalou Roger elevando entre seus braços o corpo desabado.

? Me siga! ? Exclamou a mulher correndo diante dele. ? A deixaremos descansar em meu quarto.

Era pecado e sabia, mas não pôde resistir. Enquanto a sujeitava entre seus braços, Bennett tentava sentir seu calor, cheirar seu aroma e imaginar que aquele cabelo vermelho ressaltaria a palidez de seus travesseiros. Tentou apagar de sua mente aquelas cenas tão luxuriosas e ainda mais sabendo que sua futura esposa estava junto a ele. Não ficava outra alternativa, teria que despedi-la assim que contraísse matrimônio por que... acaso resistiu Adão a comer a maçã quando Eva a ofereceu nua?

? Pode deitá-la aí. ? Indicou depois de abrir a porta do dormitório.

Quando Roger a pousou sobre a cama, notou como se esfriava seu corpo e como começava a sentir saudades. Desesperado por tal loucura, caminhou com rapidez até colocar-se aos pés do leito. Tinha que fazer desaparecer aquele inoportuno desejo, não devia sentir aquela queimação no peito por afastar-se de seu lado. Sem lugar a dúvidas, se ele fosse Adão e ela oferecesse a maçã a teria comido em dois bocados.

? Se você o desejar, virei em outro momento para a esclarecer quando se celebrarão nossas bodas ? disse sem voz. Um enorme nó na garganta o impedia de falar com normalidade e suas pupilas, por mais que o tentasse, não podiam afastar-se do corpo necessitado da criada.

? E se eu não desejar me casar? ? Respondeu a mulher olhando-o com olhos frágeis.

? Juro-lhe por minha honra que estive procurando essa alternativa desde que li a carta, mas não achei nenhuma. Você e eu estamos prometidos. Mas... ? tomou ar e rezou para que a opção que tinha sopesado durante os últimos dias fora a correta para ambos ? não se preocupe comigo. Depois de nos casar partirei de Londres e não retornarei até que necessite de um filho para herdar o título que possuirei.

A mulher emudeceu. Fechou os olhos e deixou que as lágrimas percorressem seu rosto. Segurou com força a mão da donzela e depois de uns minutos nos quais parecia refletir perguntou:

? Onde viverei? ? Exigiu saber com uma mescla de inquietação e tristeza.

? Onde você desejar.

? Como o farei?

? Será a futura marquesa de Riderland e viverá como tal ? asseverou. Colocou as mãos em suas costas e elevou o queixo. Não lhe pareceu uma atitude adequada para uma senhorita de boa família, mas entendeu que se preocupasse com sua economia.

? Quando deseja que se celebrem essas bodas? ? Demandou ao mesmo tempo em que afastava uma mecha do rosto da criada.

? O mais cedo possível ? respondeu veemente.

? Bem, nesse caso o aceito como marido. Agora, se for tão amável de me deixar sozinha, poderei atender a minha donzela como merece.

Roger afirmou com a cabeça, golpeou brandamente os saltos de suas botas e saiu da habitação. Quando fechou a porta abaixou a cabeça e decidiu celebrar seus últimos dias de celibato enchendo seu estômago de todo o licor que encontrasse.


VI


Como era de esperar, quando Evelyn despertou, saiu da habitação e, sem dar tempo a Wanda para lhe colocar a capa e o chapéu, subiu na carruagem e se dirigiu para o escritório do senhor Lawford. Tinha visto sua assinatura no documento junto à de seu irmão, a de seu futuro marido e a da própria rainha, assim era a única pessoa que a podia ajudar a liberar-se daquela proposição irrebatível. Por que Colin tinha ideado esse plano tão desastroso? Não terminava de acreditar. Era impensável que ele a forçasse a realizar algo que não desejava.

Desde a ruptura com Scott, tinha gritado aos quatro ventos que jamais se comprometeria com ninguém, que viveria solteira o resto de sua vida, mas seu irmão não lhe concedeu seu único desejo. Sem poder deixar de chorar olhou pela janela e percebeu que não chovia. Pela primeira vez em semanas os raios iluminavam a cidade, entretanto, ela se sentia em plena escuridão. Nem as contínuas palavras de fôlego da Wanda a consolaram. Por mais que insistisse em que era a melhor opção para não cair na destruição pelas dívidas, Evelyn seguia alegando que partir como instrutora era sua única salvação. Por que ia se casar com um homem que não conhecia? Que futuro a esperaria? De verdade Wanda era tão ingênua que esperava que o homem partisse e a deixasse viver tranquilamente? Os homens mentiam. Sussurravam as palavras que alguém precisava escutar, mas quando conseguiam o que andava procurando, esfumavam-se como as névoas matutinas.

? Minha senhora, chegamos ? comentou a donzela com voz suave.

? Disse-me que ele procurou como desfazer-se deste compromisso? ? Quis saber Evelyn ao mesmo tempo em que franzia o cenho e entreabria os olhos.

? Sim, isso mesmo foi o que disse quando estivemos no quarto ? respondeu Wanda um tanto surpreendida pela pergunta.

? Assim que... o senhor Bennett tampouco está feliz por este acordo ? prosseguiu com tom mordaz.

? Conforme parece não tem prazer, mas sim se vê obrigado.

? Pois eu o liberarei dessa obrigação! ? Exclamou ao mesmo tempo em que saltava de seu assento e abria com vigor a porta da carruagem.

? Senhorita, seu chapéu! ? Clamou Wanda horrorizada ao ver como a moça saía ao exterior sem cobrir seu cabelo e rosto.

Evelyn não a escutou. Caminhou depressa para a porta do escritório, pegou a aldrava e golpeou tão forte como pôde.

? Quem chama...? ? Começou a perguntar Arthur Lawford surpreso. Ficou atônito quando viu em frente aos seus olhos a senhorita Pearson. Não levava o escuro véu que cobria seu rosto e grande quantidade de seu cabelo se escapou do coque. O administrador tragou saliva.

? Boa tarde, senhor Lawford ? disse a modo de saudação. Não esperou que este a convidasse a entrar, acessou ao interior com tanto ímpeto que o homem teve que afastar-se para não roçá-la.

? Boa tarde, senhorita Pearson. O que faz você aqui e sem seu véu? ? Perguntou aturdido.

? Necessito que me esclareça quanto à última vontade do meu irmão ? respondeu entrecortada.

? Sua última vontade? ? Repetiu ao mesmo tempo em que a seguia até chegar à sua escrivaninha.

? Não me esquive, senhor Lawford! ? Exclamou zangada enquanto se virava para o administrador e o olhava irada. ? Sabe muito bem do que estou falando. Você também assinou minha sentença de morte!

? Acalme-se, por favor ? disse com voz pausada. ? Se for amável de tomar assento, contar-lhe-ei tudo o que deseje.

Arthur afastou uma cadeira e esperou que ela se sentasse. Logo rodeou a mesa e ocupou seu lugar. Não falou até que escutou que a mulher respirava com mais tranquilidade. Necessitava que lhe prestasse toda a atenção possível e estava seguro de que se o fizesse inquieta o resultado seria catastrófico.

? Quer uma taça? ? Abriu a gaveta e tirou uma garrafa e dois copos que colocou sobre a mesa.

? Por favor ? respondeu como afirmação.

Lawford o encheu até à borda, depois fez o mesmo com o seu, mas quando ia tomar o primeiro sorvo observou que o copo da mulher já estava vazio.

? O senhor Pearson apareceu uma manhã em meu escritório com um livro de contas ? começou a explicar enquanto enchia a taça de novo com líquido ambarino. ? Me pediu que lhe desse uma olhada. Imagino que necessitava minha ajuda para tentar salvar a situação econômica pela qual passavam.

? Desde que meu pai realizou aquele investimento, as rendas familiares não foram muito flutuantes ? indicou com calma.

? Por mais que estudasse e analisasse a situação, não encontrei uma saída para esse problema ? esclareceu com pesar. ? Pouco depois seu irmão me informou sobre sua enfermidade. Recomendei-lhe que vendesse sua residência em Downing Street. O fez, colocou-a à venda sem que você soubesse durante seis meses, mas ninguém perguntou por ela e Colin começou a angustiar-se ao ver que o tempo passava, sua enfermidade o fazia mais débil e as dívidas aumentavam.

? Foi nesse preciso momento que decidiu me buscar um marido? ? Consultou com sarcasmo.

? Não, a verdade é que não foi nesse momento. Ocorreu uns dias depois do duelo de...

? Duelo? Colin esteve comprometido em um duelo? ? Levantou a voz mais do que deveria.

? Não! Ele jamais faria uma loucura assim! ? Saltou Arthur em sua defesa.

? Então... o que foi que o conduziu a tomar essa decisão? ? Seu tom seguia alto, mostrando o aborrecimento e o desespero que sentia naqueles instantes.

? Conforme me disse, a atitude do senhor Bennett.

? E pode me dizer qual foi essa atitude para pensar que seria um bom marido?

? Sua fidelidade.

? Fidelidade? Eu também tenho fidelidade a qualquer cão que encontro pela rua!! ? Clamou perdendo a compostura.

? Sinto muito, senhorita Pearson. Perseverei muito em fazer seu irmão raciocinar, mas não me deu atenção ? indicou com resignação.

? Tenho que encontrar uma maneira de romper esse compromisso. Não posso me casar com o senhor venerabilidade! ? Levantou-se da cadeira e rondou pelo pequeno espaço fazendo dramalhões e blasfemando sem parar.

? Muito me temo que não haja nada que possamos fazer para revogar o documento. Até a própria rainha consentiu o enlace.

? Pelo amor de Deus! Como conseguiu que nossa rainha assinasse uma coisa assim? ? Disse depois de apoiar as palmas de suas mãos sobre a mesa e olhar ao homenzinho com ira.

? Tenho contatos, senhorita Pearson ? afirmou com orgulho. ? Seu irmão queria um compromisso inapelável e eu o consegui. Sou o melhor na cidade...

? O melhor? ? Arqueou as sobrancelhas e o contemplou desafiante. ? Você está seguro disso?

? É óbvio! ? Exclamou o administrador.

Tinha-lhe ferido seu orgulho e, por mais zangada que estivesse a mulher, não deixaria que menosprezasse seu trabalho.

? Pois se é tão bom no seu trabalho, procure a maneira de me liberar desta prisão!

? Muito me temo que não possa livrar-se disso. Tem que casar-se com o senhor Bennett.

Evelyn soltou vários impropérios, gritou com força e, sem diminuir a ira, esticou a mão para atirar ao chão os copos e a garrafa de uísque.

? O que faz? ? Disse Arthur levantando-se rapidamente de seu assento. ? Essa garrafa vale mais de dez libras!

? Coloque-a na conta do meu futuro marido. Com certeza ficará encantado de pagar os danos de quem nos uniu para sempre. ? E sem nada mais que acrescentar, deu meia volta e saiu do escritório.

Quando fechou a porta, o sol brilhava mais que nunca. Fechou os olhos e deixou que seus quentes raios a acalmassem. Não havia forma de escapar. Estava atada a um homem que não conhecia. Suas pernas começaram a debilitar-se. Notava como a força a abandonava. Era, de novo, uma mulher desventurada por culpa de um homem. Levantou seu rosto banhado em lágrimas, caminhou para a carruagem e deixou que Wanda a acolhesse entre seus braços.

? Calma... ? murmurou enquanto lhe acariciava o cabelo. ? Estou segura de que esse cavalheiro cumprirá sua palavra e se afastará de você.

? OH, Wanda! Por que está me acontecendo isto? Acaso já não sofri o bastante? ? Com a cabeça apoiada nas pernas da criada, Evelyn continuou seu agônico pranto.

? Tudo se solucionará. Deus é piedoso com as pessoas boas ? continuou lhe sussurrando. ? Agora só deve pensar uma coisa.

? O quê? ? Moveu lentamente a cabeça para poder observar a mulher que a consolava como se fosse sua mãe.

? Como vai se apresentar no dia de suas bodas se seu futuro marido pensa que é a criada?


VII


Uma semana depois de aparecer no lar da senhorita Pearson, Roger começava a preparar-se para seu suposto grande dia. Apesar da insistência de seu ajudante de câmara para que se vestisse com um dos trajes azul marinho que guardava para celebrações especiais, escolheu o negro, dando um aspecto ainda mais tétrico, se era possível. Durante os sete dias aproveitou para visitar seus pais e lhes dar a boa nova. Acreditou que, ao cumprir o maior de seus desejos, abraçá-lo-iam, ficariam cheios de júbilo e lhe desejariam uma vida próspera. Mas não foi assim. Sua mãe começou a chorar e quando cessou o pranto, desmaiou. Seu pai gritou que era um insensato, que jamais teria imaginado que seu filho fizesse uma proposta matrimonial sem seu consentimento e acrescentou que, se não tivesse nascido, haveria se sentido o homem mais afortunado do mundo. Logicamente, Roger saiu da casa de seus pais com um sentimento de sufoco que nem a garrafa que guardava na carruagem pôde eliminar. Não entendia a atitude de seus pais. Durante toda sua vida lhe tinham advertido que devia procurar uma esposa que lhe fizesse assentar a cabeça, que o retirasse da vida pecaminosa que levava e que os obsequiasse com a chegada de netos. Entretanto, ao conseguir uma dessas aspirações, descobriu que no fundo nada disso era certo, que todas aquelas conversações sobre o futuro eram falsas e que na realidade albergavam a esperança de que um dia desaparecesse dentre os vivos para que seu irmão Charles possuísse o título de marquês.

Desolado pelo descobrimento, chamou as únicas pessoas em quem podia confiar: William e Federith, sua verdadeira família. Em poucos dias recebeu a resposta de ambos. Federith comunicava que iria sozinho à cerimônia porque sua mulher não se encontrava em bom estado para viajar. William, depois de lhe escrever uma argumentação sobre o dever de um marido para com sua esposa, respondia-lhe que tanto ele como Beatrice estariam acompanhando-o em um dia tão importante. Como pós-escrito, o duque de Rutland acrescentou que não ficariam em Lonely Field, mas sim pernoitariam na casa dos pais de Beatrice, que visitavam Londres essa mesma semana. Assim que se encontrava sozinho, em sua casa, em seu quarto e com o traje eleito. Olhou-se no espelho e se assombrou. Não era a imagem de um homem a ponto de contrair matrimônio, mas sim a de um homem que assistiria a um funeral, era como se sentia.

? Milorde. ? Anderson entrou no quarto com a sutileza que o caracterizava. ? Devemos ir.

? Preparou a bagagem? ? Perguntou enquanto jogava uma última olhada ao seu redor.

? Sim, meu senhor. Quando partirmos para a igreja, um dos criados a levará até o navio ? indicou.

O mordomo não podia deixar de observar a pessoa que servia há pouco mais de uma década. Por mais que tentasse encontrar uma situação que tivesse produzido tanta tristeza ao seu senhor, não a achou. Era a primeira vez que o futuro marquês estava submerso em uma depressão tão imensa que lhe resultaria difícil sair dela. Com a mesma aflição que o homem para quem trabalhava, Anderson desceu as escadas, ofereceu-lhe a capa e o chapéu e abriu a porta da carruagem.

? Obrigado por ser tão fiel ? sussurrou Roger antes de introduzir-se no interior.

? Milorde, se me permite o atrevimento, acredito que Deus terá piedade de você e lhe oferecerá a felicidade que tanto anseia ? expôs antes de fechar.

? Não estou tão seguro disso ? murmurou Bennett enquanto se sentava e olhava o exterior pela janela.


Tinha os olhos inchados de tanto chorar. Tinha tido a esperança de encontrar algo que a livrasse do terrível final, mas durante os sete dias que transcorreram desde que o senhor Bennett apareceu em seu lar, não descobriu nada que a liberasse. Seu irmão tinha feito a melhor jogada de sua vida destroçando a dela. Era certo que agora não teria que preocupar-se com sua estabilidade econômica, nem sofreria a agonia de escolher qual criado devia despedir, mas isso não lhe proporcionava a ansiada felicidade. Jogou a cabeça levemente para trás para que Wanda lhe colocasse o chapéu e o véu. Tinha insistido em comprar um tão escuro que mal a deixava observar o que tinha a um palmo de distância. Notou como lhe cravava as forquilhas e aferrava com perícia o enorme chapéu para que não pudesse escapar nem um só cabelo do interior. O tempo passava muito rápido e não sabia como pará-lo.

? Sinto-me tão triste... ? disse a donzela entre soluços.

? Sei, mas será o melhor para ambas. ? Esticou as mãos para o véu enrolado e começou a estirá-lo para cobrir seu rosto.

? Sempre sonhei que estaria ao seu lado em um momento tão importante. ? Wanda deu uns passos para trás, estendeu os braços para o chão e abaixou a cabeça.

? Foi culpa minha que te fizesse passar por mim e o sinto. ? Evelyn se virou para sua criada e abriu os braços para abraçá-la. ? Prometo que retornarei assim que tudo terminar.

? Minha menina! Minha pobre menina! ? Exclamou em meio ao pranto. ? Como chegou a isto? Por que seu irmão não foi mais sensato?

? Queria cuidar de mim. Queria morrer tranquilo pensando que sua irmã não sofreria as penúrias às quais me veria exposta se não contraísse um matrimônio afortunado ? disse com firmeza tentando não só consolar a criada, mas também a ela mesma.

? E se não se for? E se decidir ficar? ? Wanda se separou de Evelyn, abriu os olhos como pratos e se levou uma mão à boca. Não tinham sopesado essa opção. Até aquele momento tinham acreditado nas palavras de um estranho.

? Irá. Estou segura de que o fará ? sentenciou.

? E se não o faz? ? Insistiu a mulher aterrorizada.

? Partirei com ele à sua residência e você ficará em Seather como governanta ? indicou.

? Não quero me separar de você! Não quero ficar sozinha! ? Exclamou sem cessar de chorar.

? Eu tampouco, Wanda, eu tampouco...


Um pequeno sorriso apareceu em seu rosto quando desceu da carruagem e observou as figuras de seus amigos em frente à porta da igreja. Como um menino que precisa ser abraçado e consolado por algum de seus pais, Roger correu para William e o abraçou.

? Obrigado, mil vezes obrigado ? balbuciou.

? Não podia te deixar só ? disse-lhe com seu típico tom grave. ? Para isso servem os amigos, não é?

? Está seguro de que não pôde encontrar algo que te libere desta situação? ? Perguntou Federith enquanto se aproximava de Bennett e lhe oferecia sua mão para saudá-lo.

? Nada. ? Negou com a cabeça. ? Aquele moço deixou tudo bem atado.

? Bom, se olhar pelo lado positivo, não terá que quebrar a cabeça procurando a candidata idônea para viver contigo ? comentou antes de soltar uma pequena gargalhada.

? Não entendo como pode ser tão arrogante ? resmungou Beatrice até esse momento calada. ? Vê que seu amigo está sofrendo e em vez de lhe oferecer seu apoio zomba dele dessa forma?

? Não era minha intenção... ? pediu desculpas e afastou-se de Roger para ceder seu espaço à mulher.

? Sabe o que penso? Que está sofrendo uma tristeza tão grande que não é capaz de superá-la, salvo quando confirma que as pessoas que mais ama estão sofrendo muito mais que você ? sentenciou, assinalando-o com o dedo inquisidor.

? Meu amor... controla esse gênio. Dos três, Federith foi o mais afortuno...

? Afortunado? Ia dizer afortunado? Acaso você não é? ? perguntou franzindo o cenho.

? Não sou afortunado, querida. Sou o homem mais afortunado do mundo. ? William avançou para sua mulher, pegou-a pela cintura e lhe deu um beijo tão apaixonado que a deixou sem respiração.

? Senhores... ? apontou Federith ? chega a noiva.

Roger olhou para a carruagem que estacionava a escassos metros deles. Ficou tão imóvel que as solas de seus sapatos ficaram pegas ao chão. Foi William quem o fez despertar de seu choque ao empurrá-lo para o coche. Tentando desenhar um sorriso em seu rosto, abriu a porta e estendeu a mão para a mulher que se converteria em sua esposa.

? Obrigado por vir ? comentou a modo de saudação.

? Ficava outra opção? ? Grunhiu a mulher.

? Não ? respondeu sem voz.

? Pois então, terminemos isto de uma vez. Quero retornar à minha casa. ? Com uma integridade que não tinha, Evelyn caminhou ao lado de Roger até que se introduziram na igreja.

Sem cruzar entre ambos nenhuma palavra mais, escutaram o monólogo do pároco, quem não cessava de falar sobre a lealdade, a fidelidade e o compromisso que implicava um enlace matrimonial. Bennett não se deu conta de que ela tinha luvas até que lhe ofereceu o anel, nem quando lhe estendeu a mão para ajudá-la a descer descobriu que as usava. Onde estava sua mente? Em que lugar do mundo se encontrava? De repente, o padre lhes indicou que já eram marido e mulher. Esperou que ela levantasse o véu para poder lhe dar um beijo, mas não o fez, então aproximou seus lábios do rugoso tecido e a beijou no que se supunha que era uma bochecha.

? Parabéns! ? Exclamou Beatrice à atual senhora Bennett quando se afastaram do altar.

? Obrigada ? respondeu Evelyn com suavidade.

? Sei que não me conhece, sou Beatrice, a esposa do duque de Rutland, que é um dos melhores amigos de seu marido. Quero que saiba que, embora pareça um homem horrível, não o é. Tem um grande coração e estou segura de que abandonará sua inapropriada vida para converter-se em um bom marido. ? Abriu seus braços e a abraçou com força.

? Minhas felicitações ? apareceu a voz de William ao lado das mulheres. ? Bem-vinda à família. Quero lhe informar que nossa casa agora também é sua e pode nos visitar quando desejar.

? Obrigada... ? disse com um pequeno fio de voz.

? Sou Federith Cooper, outro dos amigos de seu marido. Dou-lhe os parabéns. ? Esticou sua mão, pegou a dela e a beijou.

? Obrigado a todos por vir ? começou a dizer Roger que até aquele momento se manteve calado para que todos os cuidados se dirigissem para sua esposa. ? Quero que saibam uma coisa, disse a ela no passado e sigo mantendo. Irei embora.

? Como? ? Inquiriu Beatrice assombrada.

? Tenho que fazê-lo. Este matrimônio foi uma obrigação para ambos e lhe prometi que, uma vez casados, afastar-me-ia de Londres para deixá-la viver tranquila.

? Não pode fazer isso! ? Exclamou William zangado.

? Sim, o farei e espero que cuidem dela. Minha querida senhora Bennett, espero que desfrute de sua nova vida. Dei ordem ao meu administrador para que pague todos os seus gastos. Se tiver qualquer problema, ele saberá onde me encontrar ? comentou antes de caminhar com firmeza para sua carruagem. Não podia olhar para trás porque se o fizesse não poderia afastar-se da única família que tinha. Mas tinha feito uma promessa e, muito ao seu pesar, devia cumpri-la.

? Meu Deus! ? Exclamou a duquesa de Rutland segurando as mãos da senhora Bennett. ? Ficou louco!

? É a melhor decisão ? murmurou Evelyn sem deixar de olhar a figura que se afastava dela tal como lhe tinha prometido.

? Está segura? ? Quis saber Beatrice.

Olhou-a sem piscar. Não podia distinguir o rosto da mulher que tinha contraído matrimônio com o amigo de seu marido. Tampouco pôde compreender se aquela situação lhe parecia correta ou não. Tudo nela era escuridão, não só por sua vestimenta, mas sim pelo tom de voz com o qual falava.

? Muito segura ? afirmou sem mover-se do lado de Beatrice.

? Pois quero que escute atentamente minhas palavras. Se em algum momento necessitar de uma amiga com quem falar, estarei agradada de te escutar, entendido?

? Sim.

Uma repentina tristeza a açoitou. Não compreendeu por que, ao vê-lo partir, queria lhe gritar que não o fizesse. Seria medo? Estaria aterrada por seu futuro? Porque se essas não eram as razões de sua repentina mudança de pensamento, quais eram? Possivelmente descobrir que no fundo o senhor venerabilidade cumpria sua palavra lhe tinha provocado um pequeno afeto? Durante toda sua vida os homens de seu entorno jamais tinham cumprido suas promessas. Entretanto, ele abandonava uma vida cômoda em Londres para levá-la a cabo sem lhe importar as consequências. Estaria ante um homem leal? Teria se dado conta Colin disso e por esse motivo tramou o plano? Evelyn não podia pensar com claridade. O único que desejava era partir para Seather e viver igual até agora. Embora muito ao seu pesar, talvez não o conseguisse sabendo que, enquanto ela dormia placidamente em sua cama, seu marido se encontraria sozinho em algum lugar do mundo e sem o afeto das pessoas que o amavam por sua culpa.


Estavam a ponto de abandonar Londres quando Roger se incorporou. Golpeou com força a parede da carruagem e esperou que o cocheiro parasse. Tinha estado tão ocupado procurando algo que o liberasse de seu matrimônio que não pensou em seu juramento.

? Se dirija para Baker Street ? ordenou aparecendo pelo guichê.

? Você está seguro? ? Perguntou Anderson com assombro.

? Sim ? respondeu com segurança. ? Quero demonstrar que não sou como ele.

? E se o fizer? E se se converter em seu pai? ? Prosseguiu o criado com temor.

? Não retornarei jamais ? sentenciou.


VIII


Londres, sete meses depois.

Os braços lhe serviam de travesseiro enquanto suas longas pernas, embainhadas em umas botas negras, descansavam sobre a mesa. De vez em quando se balançava na cadeira e um suspiro atrás do outro enchia o silêncio do camarote até que começaram a ouvir os apitos do resto dos navios que navegavam pelo Tâmisa.

Tinha passado muito tempo desde que decidiu partir e por fim chegava ao seu lar. Apesar de visitar os lugares mais paradisíacos do mundo, não encontrou um lugar onde habitar pelo resto de sua vida. Nada era comparável a Londres. Possivelmente porque não lhe bastava ter ao seu redor um lugar repleto de paz se só encontrava solidão.

Sentia falta de seus amigos, a sua verdadeira família. Expôs-se retornar em mais de uma ocasião, mas a promessa à sua esposa pesava mais que seus próprios desejos. Nunca tinha sido um cavalheiro, disso não lhe cabia a menor duvida, só bastava recordar suas atitudes no passado para afiançar esse pensamento. Embora lhe doesse.

Quando recebeu o convite de William para conhecer seu primeiro filho, não o pensou e pôs-se imediatamente rumo à sua adorada cidade. Durante a viagem analisou múltiplas alternativas para enfrentar a nova etapa que se apresentava em sua vida e chegou à conclusão de que o mais acertado seria fixar sua residência em Lonely Field, sua casa de campo. Deste modo não afetaria a vida de sua esposa, que continuaria conservando aquela paz que lhe tinha prometido. Entretanto, antes de assistir à festa de apresentação do pequeno Rutland e de encerrar-se, devia armar-se de coragem para visitar sua mulher e lhe explicar a mudança de situação. Como atuaria? Respeitaria sua decisão ou seria ela quem tomaria emprestado seu navio e zarparia ao amanhecer? No fundo, não importava seu comportamento ou suas possíveis recriminações. Já tinha passado sozinho o tempo suficiente para seguir fazendo-o. Casou-se e isso não significava que tivesse que sofrer uma condenação eterna.

Baixou os pés da mesa para perambular pelo camarote. O desespero por descobrir o que aconteceria após pisar em terra firme o tinha alterado. Não parou de andar de um lado a outro até que percebeu que o navio diminuía a velocidade preparando-se para atracar. O pulsar de seu coração começou a desacelerar-se e uma pressão desconhecida no peito mal lhe deixava respirar. Apesar da incerteza, sentia-se feliz, tanto que era incapaz de expressá-lo com palavras.

Roger se virou para a porta ao escutar uns passos. Alguém se aproximava para lhe informar do que ele já sabia: estava em Londres.

? Boa tarde, milorde ? saudou Anderson. ? Chegamos.

Com uma estranha mescla de euforia e nervosismo colocou a camisa para sair ao exterior. Durante sua viagem mal havia coberto seu corpo com roupa, acostumou-se a exibir o torso nu, como se fosse um pirata, embora ele não necessitasse de mais riquezas das que já possuía, necessitava muito mais que o saque suculento de um corsário: felicidade.

Não tinha terminado de abotoar o objeto quando começou a subir os degraus que levavam à cobertura. O ambiente da cidade o abraçou imediatamente fazendo com que um grande sorriso se desenhasse em sua boca. A névoa, o aroma, a ligeira garoa... tinha tido tantas saudades de tudo que agora, ao senti-lo de novo, recriminou-se pelo tempo que tinha passado longe dali.

? Não é o mesmo, não é? ? A voz de seu criado despertou de seu devaneio.

? Não, não é ? comentou com pesar.

? Não há nada como o lar, meu senhor ? afirmou depois de respirar profundamente.

Houve uns momentos de silêncio, interrompido tão só pelas vozes dos tripulantes do navio. Roger não deixou de observar ao longe. Parecia que a cidade tinha mudado em sua ausência, ou talvez quem tivesse mudado era ele. Em um passado teria saltado do navio e após meter-se na carruagem se teria dirigido a um botequim. Entretanto, seu primeiro desejo quando pôs os pés no chão foi bem distinto.

? Ela sabe da minha chegada? ? Perguntou ao seu criado sem olhá-lo.

? Ocupei-me pessoalmente de lhe enviar a informação.

? Quando?

? Faz quatro semanas, senhor.

? E não obtivemos resposta... ? Não foi uma pergunta, mas sim uma reflexão.

Durante sua viagem, sem saber por que, começou a lhe escrever cartas. Ao princípio foram duas ao mês, mas terminou por enviar uma a cada semana. Nelas lhe contava suas aventuras, os lugares que visitava, as pessoas que conhecia e lhe perguntava como se encontrava ela. Terminava as narrações com uma cordial saudação e esperando que sua nova vida fosse a que esperava. Nunca obteve resposta. Possivelmente nem se dignou a lê-las, mas era normal, sua esposa não o amava e tampouco podia reprova-la, uniram-se mediante as manobras de seu irmão e, depois da ida, ele não fez nada para fazer crescer entre eles um pouco de afeto.

? Continua com a ideia de ir Seather Low?

A Anderson não parecia apropriado que seu senhor fosse visitá-la quando ela não tinha mostrado durante todo aquele tempo interesse algum sobre o bem-estar do futuro marquês, de seu marido. Acaso era tão egoísta que não se perguntava onde se encontrava e que classe de penúrias estava padecendo? Tinha que ser uma mulher muito fria para atuar daquela maneira. Olhou de esguelha ao seu senhor e sentiu lástima. Sempre albergou a esperança de que encontrasse uma mulher que o tirasse do abismo no qual vivia, mas Deus não lhe ofereceu essa oportunidade.

? Tenho que fazê-lo. Eu não gostaria que descobrisse que estou aqui pela boca de outra pessoa ? esclareceu.

Retornou ao seu camarote, arrumou-se e meia hora mais tarde se encontrava na carruagem dirigindo-se para a residência de sua esposa.

Fechou as cortinas do coche e se reclinou para trás. Suas longas pernas se estiraram sobre o assento, cruzou os braços e fechou os olhos. Como receberia a notícia? Mal. De que outra forma poderia recebê-la? Tinha quebrado sua promessa de deixá-la sozinha, de não interromper sua vida. Embora, antes que o recriminasse por sua falta de palavra, explicar-lhe-ia que o motivo de sua chegada se devia tão somente à inevitável visita que faria aos duques de Rutland. O de ficar para sempre a faria saber depois.

Pouco tempo depois o cocheiro freou o trote dos cavalos. Tinham chegado ao seu destino. Nesse momento o coração de Roger pulsava sem freio e suas mãos eram rios de suor. Era a primeira vez que a visita a uma mulher causava ansiedade, talvez porque anteriormente sabia como terminaria sua aparição, entretanto, nesta ocasião não haveria sexo e sim recriminação.

Com mãos trementes afrouxou o nó da gravata para poder respirar. Faltava-lhe o ar, faltava-lhe algo que jamais acreditou perder: segurança.

? Deseja que o anuncie? ? Assinalou Anderson esperando com paciência alguma ordem por parte do senhor Bennett.

? Não. Farei isso pessoalmente.

O criado saiu primeiro e, depois de tirar os degraus metálicos, deixou que Roger descesse. Tomou seu tempo em sair do interior. Em qualquer outra situação teria saltado do assento com rapidez, mas não era uma dessas ocasiões.

Quando pôs os pés sobre a erva do jardim, Bennett olhou para a fachada do edifício e ficou surpreso ao descobrir que não tinha sido arrumada. Continuava igual à antes de sua partida. Durante sua ausência imaginou que sua esposa não perderia tempo em reconstruir sua casa com o dinheiro que lhe atribuía mensalmente. Teria sido o normal posto que a mansão necessitava de certas reformas urgentes, o passar dos anos e o descuido se apreciavam com claridade. Entretanto, ficou desconcertado ao ver que não tinha investido nem um só pinique.

Sem poder evitá-lo, um pequeno sorriso de satisfação se desenhou em seu rosto. Possivelmente a senhora Bennett não era tão harpia como pensava. Possivelmente a tinha julgado de maneira errônea. Um pouco mais tranquilo, ajustou o chapéu, estirou a jaqueta do traje e subiu as escadas que conduziam para a entrada. Esticou a mão e, depois de segurar a aldrava, tocou a porta várias vezes.

? Boa tarde, senhor ? saudou-o um homem de avançada idade.

Bennett entrecerrou os olhos ao ver o mordomo. Tinha esperado que, como a vez anterior, a donzela de sua esposa aparecesse para lhe dar as boas vindas. Mas era melhor assim, não podia voltar a prestar mais atenção à criada que à sua própria mulher.

? Boa tarde ? disse avançando para o hall sem esperar ser convidado. ? Preciso falar com a senhora Bennett.

? Quem pergunta pela senhora?

O ancião franziu o cenho e mostrou uma retidão em sua idosa figura imprópria de um criado. Roger percebeu com rapidez aquela mudança de atitude e, embora não devesse zangar-se porque estava seguro de que ninguém do serviço o conhecia, o fez.

? Seu marido, o senhor Bennett ? respondeu com solenidade.

? Mil desculpas, milorde! ? Exclamou o criado abaixando com rapidez a cabeça e fazendo uma reverência. ? Não o tinha reconhecido e pensei que era outro que... ? ficou calado. Devia controlar sua língua ou sua senhora a cortaria. Desde que apareceu o primeiro cavalheiro propondo aquela loucura, ela lhes fez prometer que jamais falariam disso.

? Outro? ? Roger o olhou de esguelha enquanto oferecia a Anderson o chapéu.

? A senhora não se encontra no lar, milorde. Partiu faz pouco mais de um mês ? disse rezando para que o senhor se esquecesse com facilidade da pergunta e evitar assim o informar sobre o acontecido durante sua ausência.

? Para onde? ? Continuou seu interrogatório sem variar a expressão de seu rosto e sem mover-se da entrada.

? Conforme nos indicou, à casa de um amigo. ? Os dentes lhe bateram como se de repente tivesse muito frio.

? Um amigo? ? Perguntou entrecerrando os olhos.

? Sim ? respondeu abaixando a cabeça.

Roger colocou as mãos nas costas e começou a andar em círculos. De todas as opções que tinha sopesado durante a viagem, nunca imaginou que sua esposa lhe seria infiel. Devia havê-lo imaginado. Com quantas mulheres se deitou enquanto seus maridos estavam ausentes? Esse era o risco mais evidente de manter um matrimônio à distância. Por mais que as mulheres clamassem à viva voz que não necessitavam dos prazeres sexuais tanto quanto os homens, terminavam tendo saudades daquilo do que careciam. Que ser humano podia suportar mais de meio ano sem sentir o calor de outra pessoa?

«Eu ? disse-se. ? Porque fui parvo». Zangado, caminhou com firmeza para o criado que seguia olhando o chão e lhe perguntou em tom mordaz:

? Por que pensava que era outro? Diga-me, quantos homens acompanharam a minha esposa enquanto estive ausente?

? OH, meu senhor! Ela seria incapaz de fazer tal coisa! ? Respondeu o criado atônito ao compreender que tinha dado a entender uma ideia equivocada.

? Então... ? entrecerrou os olhos e o olhou sem piscar.

? Meu senhor, não acredito que deva lhe explicar algo que só concerne à sua esposa... ? sussurrou.

? Acaso ela está presente para responder? ? Gritou com tanta força que seu eco percorreu o lar durante vários segundos.

? Excelência, tenha piedade de mim, o rogo ? continuou o mordomo murmurando.

? Terei clemência se me disser o que ocorreu durante este tempo e por que minha esposa não está onde deveria ? resmungou perdendo toda sensatez, agarrou ao homem pelo pescoço de seu traje, levantou-o uns palmos do chão e esperou que comprovasse a fúria que tinha despertado com tanto mistério.

? Desde que você partiu, ? começou a dizer ? a senhora foi visitada por uma grande quantidade de senhores que tentavam...

? Tentavam? ? Grunhiu sem soltar o criado.

? Oferecer-lhe um lugar como... como... amante ? gaguejou.

? Amante? ? Rugiu com mais ira do que já havia possuído em seus trinta anos de vida.

? Milorde... ? interveio em voz baixa Anderson.

Queria tranquilizá-lo e que recuperasse a prudência. Não era próprio dele maltratar um criado, embora lhe desse a pior notícia de sua vida.

Roger soltou o lacaio, deu uns passos para trás e começou a amaldiçoar em voz alta enquanto seu criado tentava acalmá-lo. Mas não havia nada que o fizesse, sua cólera era tal que tinha o rosto ruborizado e a cor de seus olhos tinha voltado do azul ao negro.

? Onde está neste momento minha esposa?

? Como já lhe disse, foi-se à casa de um amigo...

? Nome? Quero o nome desse maldito filho de cadela ? perguntou aproximando-se do criado tão rápido que parecia cortar o ar ao seu passo.

? O duque de Rutland, milorde ? respondeu o homem encolhendo-se ligeiramente.

Roger se deteve em seco fazendo uma profunda inspiração enquanto a névoa que nublava sua visão se dissipava. Era alívio o que sentia? Possivelmente.

Olhou de esguelha a Anderson, que permanecia completamente imóvel sem nem sequer piscar. Tentou acalmar o pulsar de seu transtornado coração regulando sua respiração. Não chegava a entender aquela desmesurada fúria, estava seguro de que não eram ciúmes. Que nada! Como ia ter ciúmes de uma mulher que rondava os cinquenta e que suas mãos eram mais ásperas que uma lixa? É óbvio que tinha outro nome a sua comoção: orgulho. Nenhum cavalheiro quereria viver para ver como sua dignidade era pisoteada sem escrúpulos.

De repente, uma dor inesperada no estômago quase o fez dobrar-se quando sua consciência começou a despertar à base de golpes lacerantes.

? Há algum ajudante de câmara na residência? ? Perguntou sem mostrar a queimação de seu interior.

? Não, senhor. Só tínhamos a donzela e partiu com a senhora ? falou o criado espectador pelo que continuaria.

? Busca um, quero que o contrate para os dois dias que permanecerei nesta casa.

? É claro, milorde. Quer que ordene a uma criada que lhe prepare uma habitação?

? O quarto da minha esposa está preparado?

? Sim, meu senhor.

? Pois diga à criada que descansarei nele ? ordenou.

Com passo firme saiu ao exterior. Precisava tomar ar, tudo o que pudessem acolher seus pulmões. Tinha que acalmar-se e meditar o plano que lhe tinha surgido de repente. Como futuro marquês e em honra ao título que possuiria, face à angústia de seus pais, devia fazer saber a todo mundo que havia retornado e que mataria ao próximo que decidisse rondar a sua esposa.


Andou pelas ruas da cidade durante a tarde, saudou todas as pessoas que se aproximavam e sorriu como se não suspeitasse que, mais de um cavalheiro que lhe segurava o braço, poderia haver insinuado à sua esposa que fosse sua amante. Caminhou até que começaram a lhe doer os pés e seu corpo lhe exigiu algo de beber. Sem duvidar um segundo, pôs rumo para o clube de cavalheiros, onde reforçaria sua posição como marido. A primeira sensação que teve ao entrar no local foi de comodidade, nada tinha mudado e isso o satisfez. Não queria encontrar-se em um lugar estranho, precisava relaxar seu estado de nervosismo e isso só conseguia quando estava em lugares familiares. Com as costas rígidas avançou pelos corredores, visitou as salas de jogos e reuniões e conversou com todo aquele que decidiu aproximar-se. Quase em todas as conversações falava sobre sua viagem, a volta definitiva a Londres e as mudanças que realizaria em sua nova vida. Sobre este último, asseverava que ia tomar as rédeas de seu destino e que aceitaria sua imposta vida matrimonial.

? Surpreende-me, Bennett! ? Exclamou Powell, um dos jogadores que se sentaram na mesa junto ao Roger. ? Acreditava que suas bodas tinham causado urticária e que por esse motivo decidira se afastar de sua flamejante esposa.

? Necessitava de tempo para me acostumar... ? murmurou sem afastar o olhar das cartas e apertando a ponta de seu charuto com os dentes.

? Compreendo-te ? respondeu Turner, outro dos jogadores. ? Quando meus pais formalizaram o compromisso com minha esposa tive que cavalgar durante várias horas. Não olhei para trás nem decidi retornar até que me deu fome e meu cavalo esteve a ponto de morrer pelo esforço.

? Bennet não cavalgou, embarcou e fugiu como um rato do veneno ? replicou Powell com tom divertido.

? Mas já estou aqui. Isso é o que importa, não? ? Pousou as cartas sobre a mesa e sorriu. ? Sequência de cor. Alguém supera isto?

? Tem muita sorte, Bennett. É afortunado no jogo e no amor ? disse Turner antes de soltar uma sonora gargalhada.

? Bem melhor diria que no jogo... ? sussurrou antes de elevar o olhar para o criado para que lhe enchesse de novo a taça.

? Acaso não te satisfaz ter casado com ela? ? Perguntou Powell um tanto incrédulo pelo que escutava. ? Trocá-la-ia pela minha esposa sem duvidar!

? Se for uma brincadeira com a senhora Bennett, não gostei nem um pouco ? comentou Roger com seriedade.

? Pelo amor de Deus! Não é uma brincadeira! Tem uma mulher linda!

Roger apertou com mais força a ponta do charuto e olhou ao seu adversário com receio. Tentou descobrir a zombaria em suas palavras ou em seu rosto, mas não a achou. Sem lugar a dúvidas, o dito personagem gostava das mulheres que superavam os quarenta e que podiam te arrancar a pele com uma carícia de suas mãos. Advertindo que era o momento que esperava, deu um gole ao brandy, recostou-se na cadeira e olhou seus oponentes.

? Algum de vocês ousou pensar em minha esposa como uma amante? ? Perguntou com serenidade, firmeza e aquela segurança tão característica nele.

? Quem seria tão inconsciente de tocar a sua mulher? ? Comentou rapidamente Thirlond o terceiro jogador que, até esse momento, manteve-se calado.

? Você o fez? ? Arqueou as sobrancelhas castanhas e o olhou sem piscar.

? Está bêbado? Porque salvo um incrível estado de embriaguez não vejo outra causa pela qual imagine tal disparate ? se defendeu.

? Chegou aos meus ouvidos que a estiveram cortejando durante minha ausência, ? expôs com frieza ? e eu gostaria de saber quem tentou.

? Nem te ocorra me olhar! ? Expôs Turner. ? Já tenho o bastante com minha esposa!

? E você, Powell? ? Dirigiu seus irados olhos para o homem. Este parecia bastante sereno enquanto bebia devagar outro brandy que lhe tinham servido.

? Não posso negar que o pensei em algum momento. Uma mulher recém-casada, com dor pela perda de seu irmão e do repentino abandono do marido. Mas repensei. Não quero ver-me envolto em nada teu, salvo o dinheiro que perca nas partidas ? afirmou com serenidade.

? Quem mais decidiu convertê-la em uma concubina? ? Perguntou apertando a mandíbula.

? Se fosse você, começaria por averiguar quem não a desejou. A lista será mais curta ? repôs Powell.

? Malditos sejam! ? Gritou Roger levantando-se de seu assento e golpeando a mesa com tanta força que atirou tudo o que havia sobre ela. ? Acaso ninguém nesta maldita cidade é capaz de respeitar a propriedade dos outros?

? Parece-me incrível que fale sobre isso, Bennet, ? disse Turner com calma ? quando você e seus amigos têm feito tremer incansavelmente os leitos de outros maridos.

Bennett apertou os punhos, franziu o cenho e dirigiu o olhar para ele. Sua respiração era agitada e podia sentir como as palpitações de seu coração lhe estrangulavam a garganta. Não podia replicar e por esse motivo conteve a repentina vontade de golpeá-lo. Só ele tinha a desfaçatez de pedir respeito quando tinha sido o primeiro em não respeitar, mas agora se encontrava no bando contrário e, apesar de não amar a sua esposa, desejava manter a dignidade de seu sobrenome intacto. Zangado, caminhou até o cabideiro, pegou seu chapéu e, sem despedir-se, partiu do clube.

 

 


CONTINUA