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A SURPRESA DO MARQUES
A SURPRESA DO MARQUES

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

IX


Tudo estava preparado para a festa de Elliot. Gente de todas as partes de Londres iria à cerimônia que os duques ofereceriam para a apresentação de seu primeiro filho. Beatrice andava de um lado para outro histérica, igual a William, que se contagiou pela ansiedade de sua esposa. A pequena mulher levava várias semanas aterrorizando o pessoal do serviço, ordenava sem parar quando não tinha no regaço seu bebê, momento no qual os criados podiam respirar tranquilos, mas quando o pousava no berço ou o dava ao seu marido, os lacaios corriam pela residência procurando um buraco onde esconder-se.

Só a senhora Stone e Evelyn acalmavam sua ansiedade. Esta última estava vivendo com eles desde que nasceu o pequeno. William acreditou oportuno retirar a mulher da cidade alegando que Beatrice necessitava, depois da chegada do bebê, o apoio de uma amiga, mas a verdadeira razão era outra bem distinta. O rumor sobre as proposições que a senhora Bennet estava recebendo em seu próprio domicílio tinha chegado aos seus ouvidos e ideou um plano para que partisse dali o quanto antes. Não desejava que quando Roger decidisse retornar descobrisse o que tinha acontecido em torno de sua esposa. Além disso, tanto William como Beatrice decidiram unir de uma vez por todas o casal e que abandonassem a ideia de viverem separados. Não era lógico que seu amigo sulcasse os mares enquanto sua esposa era acossada por canalhas. Tinha que fazer Bennett ver que precisava confrontar a vida conjugal que lhe tinha sido imposta, e se isso lhe custava sua amizade, que assim fosse.

? Crê que virá? ? Perguntou a duquesa com incerteza enquanto pousava com cuidado o pequeno no berço.

? Você leu a resposta. ? William esperava ao pé da cama que sua mulher o ajudasse a colocar a gravata.

Desde que se tinham casado já não necessitava do ajudante de câmara, o qual trocou de trabalho em caráter imediato. Preferia mil vezes as mãos de sua esposa às do jovem.

? Sei que dizia que estaria conosco na apresentação do Elliot, mas não li nada sobre sua esposa. Nem se preocupou em saber como se encontra ? disse zangada.

? Em sua defesa alegarei que ele não sabe que está sob nosso amparo.

? Há, mas...

? Não se conhecem, querida. Terá que lhes dar um pouco de tempo, embora muito temo que Roger se arrependerá dessa escapada quando aparecer ? expôs ao mesmo tempo em que exibia um sorriso malicioso.

? Por que diz isso? ? Beatrice caminhou devagar para seu marido, apertou com suavidade o laço da gravata e apoiou a cabeça em seu peito. Reconfortava-a tanto permanecer ao seu lado que a fazia esquecer qualquer preocupação.

? Apostaria minha cabeça que não teria partido jamais se a tivesse visto uma só vez. Sem lugar a dúvidas, Evelyn é seu tipo de mulher ? afirmou.

Levantou o semblante de sua esposa e dirigiu seus lábios para os dela.

? Você crê? ? Perguntou com insegurança.

Estava convencida de que Roger gostava de todas as mulheres e nunca imaginou que pudesse existir uma em especial. Se não recordava mal, quando se aproximou o dia do baile que organizaram para que todo mundo compreendesse que não era a concubina de William, Bennett lhe disse que gostava das jovenzinhas e Evelyn, embora tivesse um rosto infantil, passava dos trinta.

? Se vier, o comprovará. E agora, minha querida duquesa, baixemos para receber nossos convidados enquanto o futuro duque de Rutland descansa ? disse sem ocultar seu orgulho.

Ofereceu-lhe o braço e Beatrice o aceitou, deu-lhe um beijo na bochecha e saíram do quarto em silêncio.


Evelyn estava muito inquieta para ficar imóvel. Tinha escutado Wanda suspirar mais de trinta vezes desde que começou a penteá-la, mas embora o tentasse, resultava-lhe impossível. Como ia serenar sabendo que ele poderia aparecer na festa? Embora Beatrice e William rissem ao lhe contar o engano que elaborou quando a visitou em sua casa, ela estava segura de que ele não acharia nenhuma graça. Supostamente tinha se casado com a criada e, pela cara de horror que pôs ao vê-la, não pareceu lhe agradar.

Não pensou nas consequências, cansada como estava de tanta visita inadequada. Se tivesse sabido que ele seria o homem com o qual finalmente se casaria, não teria se exposto a atuar daquela forma.

Olhou para diante cravando suas pupilas verdes no espelho. Mal se reconhecia. Levava mais de meio ano vestindo e adotando a figura de uma mulher de luto e agora, ver-se de novo luzindo uma cor diferente ao negro, pareceu-lhe estranho. O luto por seu irmão tinha finalizado, mas não sua dor. Continuava tendo saudades e, embora não o admitiria nunca, também continuava amaldiçoando-o em silêncio por fazê-la casar com um homem de quem só sabia seu sobrenome. Graças aos Rutland descobriu que seria o futuro marquês de Riderland, que não era muito velho e que tampouco tinha levado uma vida tão honrada como lhe pareceu ao conhecê-lo. O senhor honorável era um libertino acostumado a esquentar as camas alheias. Entretanto, William elogiava o caráter de seu amigo. Não havia conversação em que não elogiasse a variedade de qualidades que possuía, mas Evelyn acreditava que o fazia para não entristecê-la, para que não sofresse pelo homem com o qual deveria viver o resto de sua vida.

? Está linda ? sussurrou Wanda apoiando as mãos sobre seus ombros nus. ? Não recordo havê-la visto tão formosa.

? Possivelmente deveria ter posto o rosa. Este é muito chamativo para a ocasião. ? Evelyn se levantou, observou-se com paciência o espelho e suspirou.

Beatrice a tinha convencido para comprar aquele vestido vermelho. Segundo ela fazia jogo com a cor de seu cabelo e enfatizava os belos traços de seu rosto, mas ela se via muito frívola, talvez porque se acostumou a ocultar sua figura sob a escuridão das roupas. Agora, ter que exibir, embora fosse de maneira insinuante, o nascimento de seus seios, mostrar seus braços, exceto o que ocultavam as luvas, e deixar que todo mundo observasse o magro e longo pescoço lhe provocava temor. Sem lugar a dúvidas, sentia-se mais cômoda oculta sob o véu.

? Não diga tolices! ? A criada a fez girar para ela e franziu o cenho. ? Leva muito tempo sob as penumbras e é hora de desfrutar!

? Penumbras? ? Perguntou Evelyn.

Caminhou para a poltrona de veludo azul e, como se tivesse corrido uma maratona, sentou-se elevando as pernas.

? Sim, penumbras. ? Deu uns passos para ela, colocou as mãos na cintura e franziu o cenho. ? Desde que aquele malnascido rompeu seu compromisso, não tem feito outra coisa que esconder-se do mundo. Nunca saía de Seather Low. Cada vez que alguém visitava seus pais se encerrava no quarto e não aparecia pelo salão até que a visita partia. Logo chegou a morte de sua mãe, que Deus a tenha em sua glória. ? Benzeu-se e olhou ao teto. ? Um motivo mais para seguir oculta. Depois a de seu pai e, finalmente, a de seu irmão.

? Tive uma vida dura... ? murmurou como desculpa. Soprou e olhou para o teto. Tudo o que contava Wanda era certo. Da ruptura com Scott e a desculpa que difundiu seu pai ante aquele sucesso, o único que desejava era manter-se afastada de qualquer pessoa que lhe fizesse mal.

? Porque você decidiu que assim fosse. Agora tem uma oportunidade para viver, para desfrutar de tudo aquilo que decidiu não possuir.

? Acredito que se esquece de algo ? disse zangada. Levantou-se com rapidez do assento e, esquivando do corpo de Wanda, dirigiu-se com passo firme para a porta.

? O quê? ? Perguntou a donzela sem afastar a vista dela.

? Que me casei com um homem que não posso recordar como é e ao qual não amo ? sentenciou.

Estava a ponto de sair do quarto quando observou que a criada cortava a distância entre elas. Moveu devagar a cabeça para ela e se surpreendeu de quão rápido tinha chegado ao seu lado. A donzela apoiou as costas na porta evitando assim sua fuga e a olhou sem piscar.

? Acaso não recorda como a contemplava? Foi incapaz de fixar seu belo olhar azul em mim nem que fosse por só um segundo! Você era o centro de sua atenção. Se por acaso o esqueceu, tenho que lhe indicar que quando apareceu no salão se achava em estado de choque, como se permanecesse enrolado após conhecê-la.

? Bobagens! ? Exclamou zangada.

? Não diria isso se você tivesse visto como a sustentava com firmeza entre seus braços, como a olhava preocupado, como a pousava sobre a cama para não a machucar e como...

? Basta! ? Gritou elevando a mão para que parasse de falar. ? Não quero continuar escutando sandices!

? Sim, minha senhora... ? Wanda se retirou da entrada, abaixou a cabeça e conteve a respiração.

? Sinto... ? disse depois de uns instantes de silêncio. ? Me perdoe. Estou muito nervosa.

? Não tenho que lhe perdoar nada. Acredito que fez bem em me fazer parar ? comentou em voz baixa.

? OH, Wanda! ? Exclamou ao mesmo tempo em que se abraçava a ela. ? Tenho medo! Muitíssimo!

? Não tenha. Sei que no final será feliz. O senhor Bennett a converterá na mulher mais ditosa do mundo.

? E se descobrir a verdade? Que há outro engano mais cruel que o daquele dia? ? Encostou a testa no peito da mulher.

? Se chegar a amá-la, seu passado não lhe importará ? afirmou com veemência. Suas mãos se dirigiram para os braços de Evelyn e com cuidado a distanciou para que pudesse olhá-la aos olhos. Uma vez que a jovem elevou o queixo, Wanda lhe ordenou com suavidade: ? E agora se recomponha. Tem uma festa à qual assistir.


X


Tinha estado adiando o momento de sua chegada tudo o que pôde, mas já não podia fazê-lo mais. Quando o cocheiro estacionou a carruagem no único espaço que encontrou livre pelos arredores de Haddon Hall, Roger estava tão impaciente que ele mesmo abriu a porta. O entardecer já tinha dado lugar à escuridão da noite e só os lobos pareceram precaver-se de sua chegada.

Olhou ao seu redor. Novamente se apresentava na mansão a umas horas inapropriadas, embora estivesse seguro de que nesta ocasião William não o receberia com seu habitual sorriso. Colocou o chapéu, cobriu seu corpo com a capa e avançou sem escutar os murmúrios de Anderson. Possivelmente continuaria resmungando sobre o inadequado de chegar mais de duas horas atrasado a uma cerimônia tão importante, mas nesse momento não queria lhe prestar atenção. Sua mente estava ocupada em averiguar como devia atuar frente à sua esposa e como ela receberia a notícia de sua chegada. Não era o mesmo a encontrar a sós, onde só escutariam seus alaridos os criados do lar, ao escândalo que se armaria em uma cerimônia com mais de setenta convidados.

Com firmeza, agarrou a aldrava e tocou várias vezes. O ruído da orquestra parecia silenciar seus golpes. Deu uns passos para trás para poder olhar a varanda, que permanecia aberta. Com certeza os anfitriões tinham decidido deixa-la dessa forma para que os casais saíssem e pudessem encontrar-se durante uns instantes a sós.

Roger sorriu ao recordar o momento no qual encontrou seu amigo dançando com Beatrice e como a beijava com ternura. Apaixonou-se. Por mais incrível que lhe parecesse, William tinha entregado seu coração a uma mulher. Invejou-o. Sim, embora parecesse incrível cobiçou aquele sentimento de afeto. Nunca tinha tido nada um pouco parecido. Suas amantes, apesar de serem boas na cama, não o tinham olhado como Beatrice olhava seu amigo. Os olhos verdes da mulher brilhavam com mais força que a lua e o desejo de protegê-lo de qualquer mal sobrepunha ao seu próprio benefício.

Sua mente levou-o ao dia do duelo, voltando a ver a pequena mulher correndo por Hyde Park, tropeçando na erva, destroçando aquele bonito vestido. Recordou-a ajoelhada no chão chorando ao pensar que William havia falecido. Nunca observou em uma mulher tal desconsolo, tal tristeza pela perda de um homem. E por último rememorou o beijo de ambos. Uma amostra de paixão que deu muito o que falar na sociedade londrina, posto que não estava bem visto que as pessoas se beijassem em público. Mas se houver amor, qual o problema demonstrar? Agora ele não encontraria nada parecido. Por ser um imbecil, por ser um néscio, Deus o tinha castigado lhe oferecendo uma esposa que poderia ser sua própria mãe. Sem contar, claro está, que se desejava ter descendência, teria que tentá-lo o antes possível posto que ela logo ficasse estéril.

De repente um som despertou-o de seus pensamentos. Dirigiu os olhos para a entrada e descobriu que alguém, por fim, atendia-o.

? Boa noite... senhor Bennett? ? Perguntou o mordomo mais assustado que assombrado.

? Boa noite, Brandon. Parece que a festa ainda não finalizou ? disse. Como era habitual nele, avançou para o interior do lar sem ser convidado.

? O que lhe aconteceu? ? Continuou perguntando o criado atemorizado.

? Nada, por que o diz? ? Tirou o chapéu e a capa para entregar a Anderson que, como sempre, permanecia ao seu lado.

? Parece que o assaltaram no caminho e o tiveram detento durante anos! ? Exclamou o senhor Stone escandalizado.

? Diz pela barba e o comprimento do meu cabelo? ? Perguntou divertido Roger. ? É meu novo aspecto. Acredito que a vida de casado não me tratou tão bem como esperava.

? Ordenarei ao antigo ajudante de câmara que amanhã visite seu quarto para arrumá-lo ? disse o criado com certa resignação ao comprovar que a atitude do homem era a de sempre.

Não parecia ter mudado durante sua ausência. Seguia sendo o mesmo cavalheiro descarado, presunçoso e déspota, e por muito que rezou a Deus para que a vida o pusesse em seu lugar, este não tinha escutado suas súplicas e o premiara com uma mulher encantadora.

? Não se incomode, não vou requerer seus serviços. Satisfaz-me minha nova aparência ? comentou ao mesmo tempo em que caminhava com solenidade para o salão principal.

Anderson olhou com tristeza ao senhor Stone. Não precisou falar para entender o que desejavam dizer-se, bastou um leve assentimento de cabeça para conhecer as palavras que guardavam em suas mentes.


Quanto mais se aproximava da entrada, mais desejo tinha de sair correndo. Durante o tempo que esteve navegando se expôs mais de um milhar de formas de tratar seu novo estado, mas na hora da verdade nenhuma lhe resultava adequada. O que devia dizer? «Senhora Bennett, encantado de voltar a vê-la. Quero lhe indicar que decidi retornar, mas não tema, deixá-la-ei viver em sua residência o tempo necessário até que eu queira ter um herdeiro». Grande tolice! Sem lugar a dúvidas ela sairia gritando da festa e se encerraria em seu quarto até que ele partisse. Prometeu-lhe que não a incomodaria e estava quebrando sua palavra.

Roger levantou o rosto para olhar para o interior da sala. Havia casais dançando. Reconheceu o senhor Wadlow, o pároco e o administrador de William. Não quis olhar para o grupo de mulheres que se agruparam no lado direito. Preferiu avançar para os homens, onde pode divisar sem obstáculos seus dois amigos. Sorriu ao ver que Federith também tinha aparecido e desejou de uma vez por todas conhecer sua esposa, posto que a senhora Cooper parecia um fantasma.

Os olhos escuros de William se cravaram nos seus e tal como pensou, não obteve um sorriso como resposta ao seu.

? Boa noite, cavalheiros. William, Federith, como sempre é um prazer voltar a os ver. ? Estendeu a mão para Cooper e este o saudou com um bom apertão. Logo a ofereceu a Rutland e o duque a negou.

? Pensava que tinha morrido, ? disse William com voz dura ? porque se não foi assim, não encontro razão alguma pela qual tenha vindo tão tarde.

? Não me castigue, amigo ? comentou mostrando um sorriso. ? Meu pesar ainda não começou.

Rutland se desculpou dos convidados e, sob seu atento olhar, pegou com força o braço de Roger para afastá-lo do salão. Sem lhe dar nenhum tipo de explicação o conduziu para o balcão. Uma vez fora, liberou a forte amarração, empurrou-o para o corrimão como se quisesse lançá-lo, e o observou com ira.

? Não estará pensando em me beijar, não é? ? Bennett rompeu o inesperado silêncio com seu típico tom jocoso. Era a primeira vez que sentia a fúria de seu amigo em volta dele e não gostava de ver como uma amizade de tantos anos começava a se quebrar.

? Por que chegou a estas horas? Acaso não ficou bem clara a hora da cerimônia? Beatrice teria gostado que permanecesse ao nosso lado em um dia tão importante.

? Sinto muito, peço-te mil desculpas e os compensarei com...

? Não há nada que compense a dor que nos causou, Roger! ? Gritou mal-humorado. ? Queríamos que você fosse o padrinho do nosso filho!

? Quem ocupou meu lugar? ? Perguntou depois de uns minutos de silêncio tenso e caminhando para o lado contrário ao que permanecia William imóvel.

? Federith.

? Foi a melhor opção. Eu jamais estarei à sua altura para tal honra.

? Maldito seja, Bennett! Que diabos aconteceu com você? Quase não te reconheço.

? Sete meses dão para muito... ? sussurrou.

Girou sobre os calcanhares e endireitou sua figura, como se assim pudesse desfazer-se da tristeza que lhe tinha provocado descobrir que seus amigos tinham acreditado nele para o cuidado de seu primeiro filho, e os tinha defraudado.

? Dão para exibir esse aspecto de miserável que mostra ? disse o duque em tom mais cometido.

? Cheguei ontem pela manhã e após desembarcar pus rumo para Haddon Hall ? mentiu. Não queria revelar o que tinha descoberto após pôr os pés em Londres porque, além de o exortar sobre a como pedir respeito quando ele mesmo não o tinha feito, riria ao compreender que no fundo não odiava tanto como acreditava o título de seu pai.

? Não minta! ? Exclamou William apertando os dentes. ? Esquece-se de que nada se pode ocultar? Crê que uma notícia tão importante como a volta de um marido que abandonou a sua mulher depois de casar-se não chegaria ao condado de Derbyshire? Sei que apareceu faz algo mais de dois dias e que nessa mesma noite visitou o clube. Sentia falta de seus jogos e suas bebedeiras? Essas são as razões que o impediram de aparecer a tempo na apresentação do meu herdeiro?

? Não! ? Disse com rapidez.

? Então? O que ocorreu? E não volte a me mentir ou jamais voltará a pisar em minha casa ? sentenciou.

? É duro de contar, William, inclusive tenho que assumir antes. ? Colocou a mão direita no bolso de sua jaqueta, tirou um pacote de cigarros e acendeu um.

? Escuto-te. Conhece-me bem e sabe que não te julgarei seja o que for ? respondeu com voz sossegada.

? É verdade que retornei faz vários dias, mas antes de vir precisava esclarecer certas coisas. Durante minha longa viagem repensei sobre meu futuro. ? Fez uma pausa para dar uma longa inspiração. ? Como pode imaginar, entre minhas reflexões se encontrava como fazer frente à minha esposa. Já te disse que lhe fiz a promessa de me afastar de seu lado para que pudesse ter uma vida em paz, mas isso fez estragos na minha. Assim decidi visitá-la para lhe dar uma explicação sobre minha volta.

? Ela está conosco ? interrompeu Rutland. ? Beatrice e eu decidimos que o mais apropriado seria que permanecesse uma longa temporada ao nosso lado.

? E lhes agradeço isso de coração, porque não imagina o que descobri quando cheguei ? repôs aflito.

? Sabemos. Como te disse antes, nenhum rumor tem fronteiras.

? Desde quando sabem que todo mundo lhe propôs que fosse sua amante? ? Inquiriu um tanto zangado. ? Por que não me fez saber isso em sua carta?

? Não achei oportuno...

? Oportuno? ? Franziu o cenho. ? Dar-me essa informação não te pareceu oportuno?

? Precisava esclarecer as ideias e pensei que te viria bem um pouco mais de tempo.

? Maldito seja, Rutland! Sabe que quase todos os homens de Londres lhe propuseram essa loucura?

? Sim.

? E? O que faria você em meu lugar? ? Repreendeu-o.

? Em primeiro lugar, eu não a teria deixado sozinha em um momento tão duro. Não só tinha perdido seu irmão de uma maneira desonrosa, mas sim também descobriu que se casou com um bastardo que não se interessou por seu bem-estar ? esclareceu com solenidade.

? Prometi-lhe que a deixaria viver em paz! ? Exclamou irado. Atirou o cigarro ao chão e o pisou com ímpeto. ? E embora não o creia, sou um homem de palavra. Além disso, meu administrador se ocupou de que não lhe faltasse nada.

? Perguntou a ela o que desejava? Dignou-se saber o que pensava ela naqueles momentos? ? Disse irado.

? Não precisou, vi-o em seus olhos. Não me queria ao seu lado ? refletiu com tristeza.

? Quando viu seus olhos? Nas bodas? Antes de embarcar? ? Insistiu William.

? No dia que me apresentei em seu lar e deixei que lesse o que seu irmão me fez assinar ? confessou com um pequeno fio de voz. ? Embora te possas assegurar que mais pavor provocou à sua criada que a ela.

? Já entendo... ? um pequeno sorriso apareceu no rosto de Rutland. Evelyn lhes tinha contado o acontecido naquele dia. Ela se fez passar pela criada e esta pela senhorita Pearson. Conforme lhes disse, quis dizer-lhe no dia do enlace, mas ao partir sem mal lhe dirigir a palavra, decidiu prosseguir com seu segredo.

? Sei que soa muito duro dizer isto, William, mas não a quero. Não é o tipo de senhora com a qual desejo viver o resto da minha vida. Casei-me com uma mulher pela qual unicamente sinto lástima. E mais, vou confessar algo que não pode sair daqui. ? Olhou Rutland aos olhos e se manteve calado até que seu amigo afirmou com a cabeça: ? Juro por minha vida que me impactou mais a criada que ela.

? Então... precisava se afastar de sua esposa ou da criada? Está me confundindo ? disse divertido.

Conhecendo-o como o fazia, estava seguro de que ao descobrir Evelyn, embora fosse vestida de criada, deixara-o em estado de choque. A debilidade de Roger pelas mulheres com o cabelo de cor de fogo era indescritível e apostaria o pescoço que a verdadeira razão pela qual embarcou foi o desejo que a moça lhe tinha provocado. Bennett não queria parecer-se com seu pai. Odiava todos os enganos que tinha sofrido sua mãe, os bastardos que rondavam as ruas da cidade e a obsessão do atual marquês por levantar saias.

? Mon Dieu! ? Exclamou elevando as mãos e as agitando. ? Pela criada! Durante estes malditos meses só pensei nessa mulher, em seu aroma, em como seria acariciar aquele cabelo de fogo. Tenho escrito várias cartas à minha esposa com a esperança de que suas respostas inspirassem algo que não sentia, mas não recebi nenhuma só resposta. Tampouco lhe interesso, só sou a pessoa que lhe oferece estabilidade econômica. O quê? ? Encarou William ao ver que sorria. ? Por que sorri?

? Crê de verdade em suas palavras? ? Aproximou-se e pousou a mão sobre seu ombro.

? Deveria pensar em outra coisa? ? Respondeu inclinando a cabeça levemente para baixo.

? Reflita sobre isto: sua esposa vive conosco há umas quatro semanas, mas esteve sozinha em sua residência durante seis meses. Quantos homens puderam lhe oferecer semelhante loucura durante esse tempo?

? Muitos... ? sussurrou sem voz.

? A quantos disse que sim?

? Segundo o mordomo que me recebeu em Seather Low, a nenhum.

? Isso não te indica nada?

? Não ? respondeu. ? Possivelmente nenhum dos que apareceu a atraiu sexualmente.

? Pois se pensa isso é mais parvo do que eu imaginava. A conversação terminou. Devemos retornar. Estou seguro de que Beatrice andará me procurando e não quero que se sinta abandonada. ? Rutland avançou para a entrada enquanto observava de esguelha seu amigo.

Como se lhe tivessem mostrado uma adaga, Bennett caminhou para o interior da sala de novo. As pessoas continuavam tal como antes de ausentar-se: dançavam e cochichavam sem cessar. Possivelmente estavam falando de sua chegada e de sua piorada aparência. Entendia-o. Com a espessa barba e o cabelo à altura dos ombros dava a imagem de um corsário, mas tampouco enganava, tinha-o sido durante o tempo que sulcou os mares.

Dirigido por William, retornou ao grupo onde os homens prosseguiam com seus bate-papos aparentemente importantes. Jogou uma leve olhada pelo lugar, procurando a sua esposa, embora não a viu. Todas as que vestiam luto eram baixas e cheias. Sabia que em sete meses se podia mudar muito, mas... tanto? De repente os homens deixaram de falar para dirigir seus olhares para um ponto da sala. Roger estava de costas e até que não se virou não pôde comprovar o que os tinha deixado mudos. Abriu os olhos tanto que quase se saíram das órbitas. Não podia ser. Que fazia ela ali acompanhando Beatrice e vestida como uma dama? Com rapidez voltou a vista para Rutland, que sorria mais do que o normal.

? O que é tudo isto? ? Perguntou Bennett zangado. ? O que ela faz aqui?

? Eu gostaria que fosse ela mesma quem lhe dissesse isso, Roger, mas tal como ficou, temo que devo ser eu a pessoa que lhe dê o relatório...

? Do que deve me informar? O que acontece? ? Apertou com tanta força as mandíbulas que começou a lhe doer a cabeça.

? Meu querido amigo, ela é sua esposa.


XI


Sabia que estava ali assim como podia perceber seu penetrante olhar cravado no pequeno decote das costas que apresentava seu vestido. Tentou manter a calma e continuar conversando com as mulheres que se encontravam ao seu redor, mas apesar de querer mostrar indiferença, não podia. Tremiam-lhe as pernas e mal podia segurar a taça sem que derramasse o champanha. Tentou escutar o monólogo apaixonado de uma das convidadas, embora na realidade não pudesse ouvir uma só palavra. Todo seu corpo se centrava em uma coisa: ele.

De repente, observou que as mulheres ao seu redor começavam a olhar atrás dela e foi então quando seu coração deixou de pulsar. Apreciou que algumas, as mais jovens, moviam suas pestanas como se fossem leques e levantavam a comissura de seus lábios em forma de sorriso. Outras, casadas, ruborizavam-se e ficavam um tanto nervosas. A Evelyn não cabia dúvida de que a causa daquela perturbação feminina era seu marido. Até àquele momento, nenhum homem tinha causado tanta expectativa entre as mulheres.

Tentou recordá-lo: alto, com bom porte, o cabelo loiro e uns olhos azulados como o céu. Sim, ela também ficou aniquilada no dia em que o recebeu em sua casa, mas devido à sua idade e à má experiência com Scott, já não se fixava no físico dos homens e sim no que escondiam em seu interior. Contemplou surpreendida a ansiedade a que estavam sucumbindo suas acompanhantes. O que estaria fazendo? Quis dar a volta e averiguá-lo por ela mesma, mas seu corpo não lhe respondeu. Tinha medo de enfrentar-se cara a cara com ele, embora tivesse meditado muitas vezes em como atuar após sua volta, não estava preparada. Como reagiria ao vê-la? Ficaria tão zangado para lhe gritar diante de todos que era uma mentirosa? Possivelmente. Seu marido não só tinha sofrido a mentira de Colin, mas também a sua.

Tomou um sorvo de sua bebida. Logo outro e quando notou uma suave brisa quente em seu pescoço, terminou-a de um gole.

? Bonne nuit, madames ? saudou Roger as damas, mostrando um enorme e sensual sorriso. ? Estão se divertindo?

? Roger... ? Beatrice, atenta à perplexidade de Evelyn, adiantou-se e lhe estendeu a mão. ? Acreditei que enfim não viria.

? Perdoe o atraso, senhora duquesa, mas uns assuntos um tanto abafadiços em Londres fizeram com que minha partida se atrasasse ? disse colocando-se atrás de sua esposa e esperando que ela se virasse para ele e o saudasse.

Notava o pequeno tremor de seus ombros e os agitados movimentos do líquido de sua taça. Estava nervosa ante sua presença e, embora não fosse oportuno, teve uma vontade imensa de pegá-la pela cintura e arrastá-la para o exterior da casa. Ali, acompanhados só pela escuridão da noite, faria o sem-fim de perguntas que lhe tinham abrasado a cabeça enquanto caminhava para ela, mas se conteve, era melhor torturá-la um pouquinho mais antes de assaltá-la com suas dúvidas e beijar aqueles lábios que tanto tinha pensado devorar.

? Solucionaram-se? ? Beatrice não gostava de continuar conversando com quem tinha faltado à confiança de seu marido, mas o fez por Evelyn, que não tinha deixado de olhar o quadro que se encontrava na parede em frente e de levar uma taça vazia aos lábios.

? Bien sûr que oui!!2 Acaso duvida do meu poder resolutivo? Só foi um mal-entendido e acredito que deixei muito claro que ninguém pode tocar no que é meu ? disse em tom dominante. ? Por certo, minha querida esposa, encontra-se bem? Observo que sua tez empalideceu e sua mão não pode parar de tremer.

? Só preciso tomar um pouco de ar fresco ? murmurou olhando Beatrice em busca de ajuda, mas Roger não lhe deu a oportunidade, estendeu sua mão, pegou a sua e lhe disse com voz aveludada:

? Acompanhe-me. Levá-la-ei para o exterior. Estou seguro de que se recuperará quando respirar o ar puro das terras do meu amigo.

Quando Evelyn se virou para lhe reprovar tal imoralidade, ficou assombrada. Seu marido, aquele a quem recordava com um perfeito corte de cabelo e um rosto suave e delicado, tinha mudado totalmente. Seu cabelo agora roçava os ombros e a barba, espessa e áspera, ocultava a metade do seu rosto deixando a descoberto só os lábios. Agora entendia o estupor das mulheres.

? Não tenha medo... não vou mordê-la... pelo menos não diante de toda esta gente ? sussurrou-lhe no ouvido enquanto caminhavam para os jardins.

? Não se atreveria... ? disse Evelyn com voz estrangulada.

Se a tinha segurado pela mão em vez de lhe oferecer o braço como era o normal, estava segura de que faria algo quando tivesse a mínima oportunidade.

Apesar de serem menos de cem passos do interior da sala para o exterior, a Evelyn parecera-lhe uma eternidade. Não via o momento de poder soltar aquela mão firme e correr para algum lado da casa para esconder-se. Olhou de esguelha a seu marido e não observou ira alguma. E mais, parecia divertido, mas ela seguia intranquila. Sabia que lhe ia pedir explicações, não só por seu engano, mas também pelo que teria escutado em Londres. Ela tinha rejeitado todas as proposições porque desde que lhe fizeram chegar a primeira carta que escreveu seu marido, soube que nem tudo estava perdido, mas não era o momento nem o lugar para indicar-lhe.

? Bom, senhora Bennett ? disse Roger abrindo a mão para que ela pudesse afastar-se de seu lado. ? Acredito que temos vários temas pendentes, não é?

? Não sei a que se refere ? replicou andando para o corrimão de pedra. Uma vez que se apoiou nele, olhou para baixo para calcular os metros que havia se por acaso tivesse que saltar.

? Em primeiro lugar, vejo que não é a senhorita Pearson que me recebeu. Ou possivelmente, o fato de que luza uma cor diferente ao negro me deu outra imagem diferente da que lembrava ? afirmou em tom jocoso.

? Estava cansada, enojada das contínuas visitas de cavalheiros que me ofereciam matrimônio ? explicou sem olhá-lo. ? Como pode imaginar, pensei que era mais um.

? Claro... claro... e por isso sofreu um desmaio ao ler a carta. Por certo, fazendo alusão ao tema das cartas e das boas notícias, o senhor Lawford me passou a fatura de dez libras como conceito de uma garrafa de... brandy?, conforme afirmava, que você quebrou em seu escritório.

Um sorriso cobriu seu rosto. Três semanas depois de zarpar recebeu uma missiva do administrador lhe relatando a escandalosa visita de sua esposa e como esta lhe tinha quebrado um de seus melhores licores. Como resposta, Roger lhe mandou uma caixa com seis garrafas e as dez libras que reclamava. Recordou que aquele dia, justo quando tinham superado uma das piores tormentas, fez-lhe tão feliz e gargalhou tanto da atuação de sua mulher que se sentiu orgulhoso dela.

? Aquele ladrão... ? resmungou com raiva. ? Tinha que ter quebrado aquela garrafa na cabeça dele.

? Então nós teríamos que ter casado no cárcere, não crê? ? Disse antes de soltar uma enorme gargalhada.

? Isso teria sido menos escandaloso que a morte do meu irmão ? comentou com pesar.

? Bom, não nos afastemos do tema que me interessa. Por que não me disse quem era no dia que nos casamos? ? Perguntou sem parar de caminhar até que se colocou atrás dela.

Queria que esquecesse a dor que devia padecer pela perda de seu irmão e a solidão que teria sentido sem ter seu marido ao seu lado. Mas já não partiria mais. Embora não o quisesse, ele já não a deixaria sozinha.

? Tive que assimilar muitas coisas, senhor Bennett. ? Ao perceber o corpo de seu marido próximo, um estranho calafrio a fez tremer.

? Tem frio? ? Perguntou preocupado Roger. Afastou-se uns passos, tirou a jaqueta e esperou que sua mulher desse a volta para oferecer-lha. Ao não fazê-lo, ele mesmo a colocou sobre os ombros nus.

? Tem que entender... ? começou a dizer sem afastar o olhar do horizonte ? que depois da morte do Colin começaram a ver-me como uma mulher carente de recursos e uma possível candidata a contrair matrimônio com viúvos ou anciões solteiros.

Agradeceu a calidez do casaco de seu marido. Colocou as mãos nas mangas e inspirou com força. Cheirava a ele: uma mescla de colônia, essência viril e tabaco. Todo aquele tempo imaginando como cheirava e agora tinha a resposta.

? E... cada vez que alguém a visitava se fazia passar pela criada? ? Perguntou zombador.

? Não, só o fiz em uma ocasião. ? Quis virar-se para enfrentá-lo e, ao fazê-lo, aproximaram-se tanto que seus rostos estavam mais perto do que o desejado.

? Por que não me disse isso no dia das bodas? ? Roger esticou as mãos para o corrimão e a reteve com seu corpo. Inclinou-se tanto para ela, que seus pequenos seios se ajustaram ao tecido do vestido e começou a sobressair mais superfície arredondada do que o permitido.

Roger não pôde evitar olhar para eles e se lambeu pensando no momento no qual os teria em sua boca. Muito ao seu pesar subiu de novo a vista para encontrar-se com o olhar da mulher. Não estava assustada, mas sim surpreendida e, como reflexo, apertou com suavidade seus lábios. Aquele ato infantil fez com que Roger desejasse com todas as suas forças beijar aqueles voluptuosos e eróticos lábios.

? Teria mudado algo? ? Perguntou Evelyn fazendo-o despertar de seus pensamentos.

Bennett teve que fazer um esforço para recordar o que lhe tinha perguntado para poder responder.

? Se teria mudado algo? ? Sorriu maliciosamente. ? Teria mudado tudo! ? Exclamou antes que sua boca colidisse com a dela.

Evelyn ficou sem respiração. Era a primeira vez que um homem a assaltava daquela forma. Os beijos de Scott eram suaves, desajeitados e inclusive débeis, mas o beijo de seu marido era um tornado. Invadiu o interior de sua boca conquistando-a, dominando-a, possuindo-a ao seu desejo. Era tanta a paixão naquela amostra que notou como seu sangue começava a borbulhar.

? Isto, minha pequena bruxa, é só um adiantamento do que será viver ao meu lado ? murmurou Roger com grande esforço.

Tremia-lhe o corpo. Suas mãos poderiam fundir as calotas polares e seu sexo levantar a vela mais pesada de seu navio. Não havia sentido tanto desejo por ninguém em sua vida. Possivelmente a razão de tal exaltação fora seus meses de celibato ou, possivelmente, que sua esposa tinha os traços que ele considerava perfeitos para ser uma mulher excitante. Fosse como fosse, tinha vontade de mais. Muito mais.

? Isto não foi apropriado, senhor Bennett ? disse Evelyn tirando a jaqueta e oferecendo-lha com uma mão.

? Meu nome é Roger, entendido? Não voltará a me dizer senhor Bennett nunca mais ? comentou a contragosto. ? E quero a avisar que sou um homem bastante apaixonado. Não albergue a possibilidade de ter uma só noite livre. Onde a veja, onde a encontre, se quiser a possuir, a possuirei, se quiser a beijar, a beijarei. ? Aproximou-se de novo dela, agarrou-a pela cintura e falou tão perto de seus lábios que se roçavam. ? Mas calma, não serei só eu que vou obter prazer, minha querida esposa. Deixá-la-ei tão viciada em mim que não se importará que eu a busque, será você quem virá para mim.

E voltou a beijá-la.


XII


Acompanhou-a até o interior do salão. Desta vez de maneira correta: ela segurando-o pelo braço e mantendo uma distância prudencial entre os dois. Nada mais a acrescentar, todos os olhares se dirigiram para o casal. Evelyn notou como lhe ardiam as bochechas. Nunca havia sentido tanta vergonha, nem sequer quando anunciaram a ruptura de seu compromisso com Scott. Tentou abaixar a cabeça para ocultar seu rubor, mas voltou a sentir o calor do fôlego de seu marido na orelha.

? Esqueci-me de dizer que é linda, ? sussurrou ? e que me sinto muito afortunado ao provocar certa inveja entre os cavalheiros assistentes desta festa.

Quis lhe replicar, repreender-lhe por lhe dizer aquele tipo de coisa, mas não o fez. Talvez porque ninguém a tinha agradado com palavras de adulação. Sempre tinha sido a pobre Evelyn. A primeira em expressá-lo foi sua mãe no dia que a descobriu chorando amargamente em seu quarto ao descobrir aquilo que desejava ocultar de todo mundo, mas que a natureza não lhe deixaria esconder.

Com passo inalterável e sem deixar de mostrar certa arrogância, seu marido a conduziu para o grupo de mulheres. Estas, ao vê-lo, voltaram a pestanejar como se fossem abandonar seus acompanhantes. Não havia dúvida, seu marido era um homem bonito e muito sedutor.

? Espero que não tenha reservado todas as suas danças, minha pequena bruxa. Enlouqueceria se esta noite não pudesse dançar contigo ? murmurou de novo em sua orelha.

? Não tenha esperanças, Roger ? disse seu nome de batismo com reticência. ? Se não me engano, tenho todas as peças ocupadas.

? Então, mon chérie, terei que arregaçar as mangas e brigar com algum dos meus oponentes ? comentou sorrindo meio de lado.

? Não se atreverá? ? Virou-se para ele e o olhou assombrada. Evelyn contemplou pela primeira vez naquelas pupilas uma intensa cor vermelha. Ficou observando-o sem poder pestanejar. Seria capaz de realizar tal maldade? O endurecimento da mandíbula e aquele olhar intenso lhe indicaram que falava com total seriedade. Com efeito, considerava-a sua propriedade, mas... isso era suficiente para começar um matrimônio?

? Como já disse antes, o que é meu não se toca ? sentenciou aproximando imprudentemente seus lábios dos dela.

Esteve a ponto de beijá-la diante de todo mundo, mas considerou melhor. Apesar do imenso desejo que sentia por apanhá-la de novo entre seus braços e saborear os lábios de sua esposa, conteve-se. A contragosto elevou o rosto para apreciar como as damas que se encontravam atrás de sua mulher não deixavam de sorrir com a paquera. Nenhuma delas chamou sua atenção salvo quem o tinha deixado sem palavras: Evelyn. Era, para ele, a única em quem poderia pensar nesse momento.

Perdido por seu comportamento, recordou as palavras que William lhe disse após casar-se com Beatrice. Zombou de seu amigo em várias ocasiões e lhe tinha dito, de maneira categórica, que ele jamais possuiria esse tipo de ideias absurdas por uma mulher. Que homem razoável precisava demonstrar que uma mulher lhe pertencia? E por que aparecia aquele tolo instinto de protegê-la até tal ponto de ansiar a morte da pessoa que lhe produzira dano ou a ferisse? Entretanto, seus pensamentos, por mais que tentasse fazê-los desaparecer, eram exatamente aqueles pelos quais zombou. Mas... como podia meditar sobre coisas tão importantes depois de um par de beijos? Era certo que tinha causado nele um grande impacto. Não só no dia em que ela se fez passar por donzela, motivo principal pelo qual decidiu afastar-se, mas também ao vê-la aparecer na sala vestida de vermelho, deixando que seu cabelo de fogo brilhasse como uma lua cheia abrasada pelo sol.

Tinha que refletir muito sobre o que lhe estava acontecendo e a melhor forma era apanhando uma garrafa de uísque. Antes de afastar-se e encher seu estômago do ansiado licor, inclinou levemente a cabeça para despedir-se daquelas que não cessavam de cochichar e, sem mediar palavra com sua esposa, dirigiu-se para o grupo de cavalheiros. Albergava a esperança de que as incoerentes reuniões masculinas o abstraíssem de suas inapropriadas divagações.

Evelyn não podia respirar. O espartilho a apertava tanto que não entrava ar em seus pulmões. Por uns instantes acreditou que ia beijá-la diante de todos os presentes. Isso teria sido um escândalo terrível. Ninguém beija sua esposa em público!! Ansiosa e desesperada procurou com o olhar Beatrice e quando a achou sentada ao lado de uma de suas convidadas, dirigiu-se para ela.

? Se me desculpar ? disse a duquesa à anciã ao mesmo tempo que se levantava.

? É claro! Tem mais convidados aos quais atender ? respondeu a mulher cravando seus olhos em Evelyn.

Beatrice não quis perguntar à moça o que tinha acontecido, pela expressão de seu rosto intuía que nada bom. Antes que todos os olhares se centrassem na senhora Bennett e murmurassem sobre o ocorrido depois do desaparecimento do casal, estendeu sua mão para ela, segurou-a com força e a afastou do salão. Se desejava falar do acontecido, o melhor lugar para permanecerem tranquilas e fora do alcance de terceiros ouvidos era a cozinha. Além disso, confiava em que Hanna pudesse ajudá-la se ela não fosse capaz de consolá-la.

Caminhando para o lugar eleito, rezava para que Roger não a tivesse tratado com desprezo e que em suas palavras mostrasse compreensão pelo engano. Pelo tremor da mão de Evelyn, muito temia que não tivesse atuado com muita cortesia.

? Senhoras?! ? Exclamou a senhora Stone depois de dar um salto ao escutar uma portada em sua cozinha.

? Hanna, por favor, pode nos servir um chá? ? Perguntou Beatrice à cozinheira ao mesmo tempo que se virava para Evelyn e lhe dava o abraço que tanto parecia necessitar.

? Servir-lhes-ei chá de tília, se lhes parecer bem. ? Sem esperar o assentimento da duquesa, a anciã começou a esquentar água e a procurar nos armários os raminhos de tília.

? Isto é um pesadelo ? sussurrava a senhora Bennett quando Beatrice deixou de abraçá-la. ? Nunca passei tanto...

? O que lhe fez? O que lhe disse? ? Interrompeu a duquesa aterrorizada. ? Zangou-se muito ao descobrir seu engano? Rejeitou-a? Foi mordaz? Evelyn!! ? Gritou-lhe ao ver que ela não reagia.

? OH, meu Deus! Tem piedade de sua serva! ? Exclamou fechando os olhos.

Beatrice e Hanna se olharam sem saber o que dizer. Então a duquesa, tentando manter a serenidade, afastou uma cadeira e fez com que se sentasse. Ela se colocou ao seu lado, estendendo suas mãos para as de Evelyn que não deixavam de tremer.

? Conte-me por favor, Roger estava muito zangado? ? Perguntou usando um tom muito mais relaxado.

? Não se zangou ? começou a falar abaixando a cabeça. ? Sinceramente, acredito que gostou mais da ideia de casar-se comigo que com minha donzela.

? Então, a que se deve seu desassossego? Deveria se sentir feliz. Muitos maridos rejeitariam suas mulheres por lhes haver mentido ao mal conhecê-los.

? Minha inquietação, Beatrice, deve-se a outra coisa. Jamais imaginei que me casaria com um homem assim! ? Voltou a elevar a voz.

? Sei que Roger é um homem especial ? começou a explicar a senhora Rutland. ? Possui um temperamento rude, embora todo mundo saiba que, no fundo, é um doce. Conforme me contou meu marido, sofreu muito durante sua vida. Posso te dizer que uma dessas dores se deve à opinião que seus pais têm dele. Não o aceitam como futuro marquês e isso lhe tem quebrado o coração.

? Entendo a razão pelas quais os atuais marqueses não o consideram apropriado... ? disse apertando os dentes com cada palavra.

? Pelo amor de Deus! O que te fez? ? Inquiriu a duquesa alterada sem deixar de apertar as mãos.

? Beijou-me! Duas vezes! Mas não lhe bastou fazer isso, mas sim me advertiu que me renderei ao prazer sexual que me vai oferecer todas as noites ? exclamou a mulher com horror.

? Isso é o que tanto te escandaliza? Isso é o que te inquieta? ? Disse entre risadas. Afastou suas mãos das dela e as cruzou diante de seu peito. ? Não deveria se lamentar por isso. Se eu te contasse como é meu marido na cama...

? Beatrice! ? Clamou Evelyn aterrorizada.

? Deve compreender que, por sorte para nós, casamo-nos com uns homens muito especiais e devemos padecer as consequências destes matrimônios. Embora te possas assegurar que para mim não é nenhum castigo. ? Sorriu.

? Pois não sucumbirei aos seus encantos! ? Afirmou com força. ? Sou uma mulher decente e atuarei como me corresponde. Acaso pensa que sou uma libertina como ele?

? Se não o fizer você, farão outras mulheres. Seguramente há muitas naquele salão que gostariam de estar em seu lugar ? interrompeu Hanna a conversação. Colocou as xícaras sobre a mesa e verteu a água fumegante nelas.

? A senhora Stone tem razão. Não lamente a sorte que vai ter. Pensa que o fracasso de muitos matrimônios que conhecemos se deve a que não existe cumplicidade entre ambos. Não terá que aparentar sentir amor pela pessoa que tem ao seu lado, mas também o ter. Um marido ou uma esposa procura fora de seu lar o que dentro não acha ? repôs a duquesa ao mesmo tempo em que se aproximava da mesa para tomar o chá.

? Mas ele não me ama para me insinuar tais aberrações ? sussurrou Evelyn. ? Acabamos de nos conhecer e, por experiência, sei que é impossível que nasça um amor tão rápido.

? Se me permitem participar da reunião... ? comentou a cozinheira sentando-se em frente à senhora Bennett ? posso fazer uma reflexão sobre este tema.

? Não precisa pedir permissão, Hanna. Sabe muito bem que é um membro a mais da família ? expôs Beatrice desenhando um grande sorriso em seu rosto.

? No amor não há lógicas ? afirmou a anciã sem afastar o olhar da desconsolada mulher. ? De fato, recentemente debati com meu marido sobre esse tema. Só existem sentimentos. Imagino que você se sentirá morta de vergonha pelo desejo que seu marido lhe insinuou, embora lhe advirto que é assim como começa um bom matrimônio. Se não houver certa luxúria entre ambos, se não houver interesse, não há nada. Deveria sentir-se feliz ao saber que despertou essa paixão em seu marido. Em muitas ocasiões só as amantes o conseguem.

? Não deixarei que me trate como se fosse uma concubina ? falou com firmeza Evelyn. ? Sou uma senhora e lhes repito que me comportarei como tal.

? Não acredito que ele te considere uma amante ? interveio Beatrice. ? Recorda que estão casados. Suponho que ao princípio lhes custará assumi-lo, mas depois será melhor. Ele te abrirá seu coração e você poderá fazer o mesmo.

Depois das palavras da senhora Rutland, as três olharam as xícaras de chá e se mantiveram em silêncio. As três cabeças não cessavam de meditar sobre como continuar a reunião. Hanna estava a ponto de falar quando observou que Evelyn elevava seu rosto para elas, seus olhos verdes brilhavam além do normal devido ao acúmulo de lágrimas que ameaçavam transbordar. A cozinheira deixou com cuidado sua xícara sobre a mesa e cruzou as mãos, esperando que a jovem confessasse aquilo que escondia e lhe produzia tanto dor.

? Faz tempo... ? começou a dizer a senhora Bennett depois de fazer desaparecer o nó de sua garganta ? quando o entusiasmo da juventude se apoderou de mim, acreditei nisso que defendem com tanta veemência. Ofereci meus sentimentos de maneira incondicional a uma pessoa que me falava de amor, paixão e de um futuro maravilhoso. Entretanto, se por acaso não sabem, essa relação terminou me provocando a maior humilhação de minha vida. Não posso voltar a sentir essa dor, essa vergonha. Desta vez não conseguiria superá-la.

? Mas nesta ocasião as coisas são diferentes ? a interrompeu Beatrice colocando de novo suas mãos sobre as dela. ? Agora está casada e estou segura de que Roger jamais te fará mal. Confia em mim. Terminará amando-o.

? Todos os homens são...

Evelyn não conseguiu terminar a frase, os olhares das mulheres se dirigiam para a porta e, devagar, virou-se. Pelo assombro que mostravam tinha imaginado que era seu marido a pessoa que as interrompia, embora se surpreendesse ao ver que se tratava do duque de Rutland o que caminhava para elas. De repente, outra figura apareceu das sombras do corredor, ficou apoiada sobre o marco da porta, com os braços cruzados no peito e cravando seus olhos azuis nela.

O coração de Evelyn deu um tombo ao contemplar um ser tão seguro de si mesmo, tão dominante, tão espantosamente atraente. Não parecia zangado por sua ausência, mas bem divertido posto que não deixava de sorrir. Pensou no que lhe havia dito a cozinheira e concluiu que tinha razão. Sem lugar a dúvidas muitas das damas do salão estariam desejosas por cair em seus braços. Era um homem misterioso e ao mesmo tempo sedutor. Entretanto, ela não podia tropeçar novamente na armadilha do amor. Não podia voltar a sofrer a agonia da destruição. Não lhe importava que estivesse casada com ele. Quem lhe poderia jurar que, depois de possui-la como lhe tinha insinuado, não voltaria a dormir com alguma de suas amantes?

? Senhoras... ? saudou o duque com uma pequena inclinação. ? Andava procurando-as.

? Necessitávamos de um pouco de paz ? indicou Beatrice. Levantou-se de seu assento e aceitou com agrado o braço que seu marido lhe oferecia.

? Senti sua falta ? murmurou William à sua esposa.

? Depois me demonstrará o quanto ? respondeu lhe dando um beijo na bochecha.

? Se me desculparem, ? disse Hanna levantando-se da cadeira e fazendo uma leve reverência ao senhor ? tenho mil coisas a fazer.

A única que não se moveu foi Evelyn. Estava tão nervosa que lhe resultava impossível fazer uma tarefa tão singela.

? Minha pequena bruxa, ? comentou Roger de sua posição ? deve-me uma dança.

? Como já lhe disse ? começou a dizer enquanto afastava o olhar do homem e o fixava sobre a superfície da mesa. ? Minhas danças estão reservadas e eu não gostaria de desapontar a todos esses bondosos cavalheiros que decidiram me pedir uma peça.

Com passo firme, Bennett abandonou seu lugar para colocar-se ao lado dela. Sem apagar o sorriso estendeu o braço para que Evelyn pudesse apoiar-se nele. Ao apreciar que ela não o aceitava, abaixou lentamente a cabeça para o ouvido feminino e lhe sussurrou:

? Tem duas opções: elevo-te sobre meus ombros e te levo ao nosso quarto para te fazer amor até que chegue o amanhecer ou dançamos no salão. Você decide.


XIII


Embora imaginasse que escolheria a segunda opção, não lhe importou muito. Na realidade tinham muito tempo por diante para poder desfrutar daqueles prazeres que tanto ansiava. Olhou-a de esguelha e se sentiu ditoso ao tê-la ao seu lado. Durante a viagem tinha refletido bastante sobre o aterrorizante golpe que lhe tinha outorgado a vida, ele, um homem nascido para desfrutar do sem-fim de prazeres que havia no mundo, um ser livre para fazer o que desejasse muito sem ter que dar explicações, encontrou-se da noite para o dia obrigado a casar-se com uma mulher que não conhecia, mais velha que ele e que fisicamente se afastava bastante do que algum dia esperava encontrar em uma esposa. Nessas divagações chegou a definir-se como um anjo a quem tinham cortado as asas sem piedade. Tanto assumiu seu deplorável futuro que, apesar de ter saudades de quem considerava sua família, decidiu manter-se afastado até que William o convocasse. Enquanto retornava, consolado e abraçado tão só pela brisa marinha, conscientizou-se de seu novo estado e aceitou sua desdita. Em troca, ao retornar o que encontrou? A uma bruxa. Uma bruxa mentirosa que o tinha enganado sem imaginar o pesar que tinha sofrido por sua mentira. Para seu deleite, aquela feiticeira, aquela sedutora mulher, era a mais formosa que já tinha contemplado, uma deusa de cabelo vermelho que desprendia uma aura tão embelezadora que conforme parecia, nem ela mesma era consciente do erotismo que emanava.

Roger não pôde, nem quis deixar de alargar seu peito ao observar o rosto de inveja que mostravam os cavalheiros. Ali onde tinha acreditado que veria zombarias e brincadeiras só encontrou expressões de raiva. É óbvio que agora entendia as incontáveis e inapropriadas insinuações para sua esposa. Certamente, se não tivesse estado casado com ela, teria sido o primeiro dessa longa fila. De repente o terror se apoderou dele ao imaginar que, finalmente, ela tivesse aceitado alguma proposição. Foi tão grande seu padecer que notou uma dor semelhante à produzida por uma adaga lhe atravessando o tórax. Teria merecido por abandoná-la. Se Evelyn tivesse aceitado alguma das propostas não lhe teria podido reprovar nada posto que ele mesmo seria o culpado de provocar a dolorosa infidelidade.

Sem piedade, por egoísmo também, tinha-a deixado sozinha no pior momento de sua vida. Mas tinha voltado para casa e estava disposto a recompensá-la por tantos dias de abandono. Não sabia quanto tempo demoraria em obtê-lo ou como o conseguiria, mas o faria. Possivelmente, dessa forma, ele também acharia a paz de que tanto tinha tido saudades no passado.

De repente, uma leve pressão em seu braço o fez despertar de suas divagações. Evelyn necessitava de seu apoio, não só mediante a força que lhe oferecia sua extremidade, mas também emocional. Quis lhe sussurrar algumas palavras para sossegar aquela inquietação, embora muito temesse que lhe provocasse o efeito contrário. Além disso, o que poderia lhe dizer? Que não tivesse medo porque ele cuidaria dela? Que enquanto estivesse ao seu lado ninguém se atreveria a lhe fazer mal? Não era o homem idôneo para consolar uma mulher, salvo se precisasse ser satisfeita na cama. Ele não era romântico, mas sim prático. No transcurso de sua vida o tinham feito seguir essas mesmas diretrizes e lhe tinha ido bastante bem.

Nenhuma das mulheres que se deixou seduzir procurou alguma estabilidade, possivelmente porque sabiam que ele jamais a proporcionaria. Além disso... o que era o amor? Acaso não se fundamentava em uma atração sexual? Em uma constante agonia por se deitar junto a uma pessoa? Para ele, sim. Entretanto, muito temia que Evelyn não fosse como ele nem como as mulheres com as quais se deitou. Soube no mesmo momento no qual a olhou aos olhos e se aventurou a beijá-la. Ela não se mostrou submissa e sim receosa ante suas carícias e insinuações. Suas amantes, às quais não podia pôr um rosto ou um nome, teriam se derretido em seus braços e procurado qualquer lugar oculto de olhares para serem amadas com descaramento. Mas ela não era assim. Ao ficarem a sós sentiu medo e insegurança. Seu corpo nunca deixou de tremer apesar de lhe haver oferecido sua jaqueta. Possivelmente, em vez de avassalá-la e lhe ditar como devia comportar-se ao ser sua esposa, devia averiguar a razão pela qual o rejeitava e muito temia que a resposta a encontraria no passado. E, é óbvio, assim que tivesse a mínima oportunidade, rebuscaria por céu e terra para conhecer o que lhe aconteceu e por que não era capaz de deixar-se levar pela paixão.

? Uma valsa... ? sussurrou a mulher ao escutar os primeiros acordes da melodia que foram dançar.

? Você não gosta? ? Perguntou Bennett enquanto a colocava entre outros assistentes, esticava sua mão para a pequena cintura e exibia um grande sorriso.

? Não é uma das minhas danças preferidas ? disse muito segura de si mesma.

? Isso, petite sorcière3, é porque não dançou com o homem adequado ? afirmou com tanta seriedade que Evelyn acreditou havê-lo ferido com seu inofensivo comentário. Mas justo depois, como sempre de maneira descarada, abaixou a cabeça e deixou que sua boca se aproximasse de seu lóbulo mais do que o permitido para lhe sussurrar: ? Posso te assegurar que quando terminar de dançar esta peça, não desejará dançar outra valsa com ninguém salvo comigo.

? É um presunçoso ? falou apertando os dentes. O rosto, coberto de inumeráveis sardas, ruborizou-se de novo. Seu peito subia e baixava agitado. Evelyn podia sentir como a debilidade voltava a lhe fazer fraquejar as pernas.

? Presunçoso? ? Roger sorriu divertido. ? Eu me defino mais como um homem bastante perverso.

? Perverso? ? A mulher abriu tanto os olhos que Roger admirou o esplendor dos mesmos.

? Oui, perverso. Sou tão malvado que neste momento, enquanto outros cavalheiros colocam sua sola no chão e se posicionam para começar a dança, minha mente não é capaz de pensar em outra coisa que não seja te desfrutar. ? Voltou a abaixar a cabeça para lhe murmurar em voz baixa. ? Desta inadequada proximidade, posso cheirar essa deliciosa fragrância a lilás que desprende e, graças à minha altura, seu decote me permite observar muito mais que o nascimento de seus seios.

Evelyn esteve a ponto de desmaiar. E estava segura de que se Roger não a tivesse segurado com tanta força, teria caído ao chão. O descaramento de seu marido a perturbava mais do que ele imaginava. Não chegava a compreender a razão de tal comportamento para com ela. Possivelmente o propósito dessa desfaçatez era assustá-la para que fugisse de seu lado, para que o deixasse viver em paz. Se esse era o verdadeiro motivo estava conseguindo, posto que ela desejava partir de Haddon Hall inclusive antes que amanhecesse.

De repente notou uma suave calidez em suas costas. Levantou de novo o rosto e observou o de seu marido. Seus traços se endureceram. Não havia brincadeira nem zombaria neles e inclusive advertiu que entrecerrava seus olhos como se tentasse averiguar seus pensamentos. A música começou a soar com mais força. Aproximava-se o tempo das voltas. Evelyn observou como Roger se distanciava do convencionado, elevava sua mão para a dela e a fazia girar sobre si mesma, uma, duas e três voltas deram até retornar à posição inicial colocando as mãos em seu lugar: umas entrelaçadas com tanta firmeza que não eram capazes de soltar-se e as outras apoiadas em ambos os corpos. A de Roger era tão grande que ao esticar seus dedos, ocupava todo o decote que oferecia o vestido nas costas e ela só conseguia pousar a sua sobre seu ombro.

A mulher conteve a respiração em várias ocasiões ao notar um pequeno e suave movimento dos dedos masculinos. Acariciava-a com muita sutileza. Talvez para despertá-la da letargia a que se induziu ao descobrir que, tal como lhe tinha indicado, dançar com ele uma valsa seria inesquecível. Não só seus movimentos eram perfeitos, ou a retidão de seu corpo, mas sim exibia em cada passo a dominação, a serenidade e o absolutismo que desprendia a figura masculina. Os vaivéns compassados e metódicos a conduziram, sem ela pretendê-lo, a um animado estado de êxtase. Seu peito, agitado pela dança, roçava o de seu marido. Cada toque, cada leve impacto, Evelyn o vivia com o mesmo temor como se permanecesse perto de um vulcão a ponto de despertar. «Outro giro mais e terminarei esta agonia...», meditou exausta.

Para fazer mais suportáveis os últimos momentos, tentou fechar os olhos, mas Roger impediu que o fizesse após lhe soprar com suavidade. Queria que continuasse observando-o, que o admirasse e percebesse o que acontecia ao seu redor.

E o conseguiu.

Evelyn olhou aos casais que dançavam próximos e compreendeu quão diferente eram eles. Ali onde as mulheres eram incapazes de tocar com seus vestidos os casacos dos acompanhantes, seu corpete se ajustava com perfeição ao espaço que lhe oferecia o colete. Lá onde as mãos femininas se esticavam e elevavam o suficiente para que não conseguissem tocar-se, a sua, embora enluvada, ardia pela pressão que exercia seu marido. Onde as demais eram incapazes de inspirar o aroma da pessoa com a qual dançava, ela podia cheirar cada partícula emanada do corpo de Roger, embebedando-a daquela impregnação viril até o ponto de não ser capaz de deixar de respirá-la. Não soube que tinha terminado a música até que escutou uma pequena risada próxima ao seu ouvido.

? Avisei-te que depois de dançar comigo, nada seria igual ? disse jocoso e orgulhoso de haver mostrado a Evelyn a veracidade de suas palavras.

? Uma frase feita? ? Perguntou zangada e tentando não mostrar sua perturbação.

? Por que diz isso? ? Respondeu abandonando aquela zombaria que exibia em seu rosto.

? Porque muito me temo, mon chèrie, ? expôs reticente ? que essas palavras dirá a todas. Agora, se me desculpar, tenho outras danças que desfrutar.

Segurou o vestido com ambas as mãos, fez uma pequena genuflexão e o abandonou em meio à pista de dança.

Embora seu coração se sacudisse com uns espantosos e imensos batimentos do coração que se estendiam por todo seu corpo, Evelyn caminhou para o grupo de mulheres que se encontrava na parte direita da sala com uma aparente tranquilidade. Não podia exibir a ansiedade que lhe provocou a dança, nem tampouco demonstrar que, sem dúvida alguma, nenhum dos seguintes bailarinos a atordoariam tanto como o tinha feito Roger.

Era um homem muito sedutor, enigmático e, é óbvio, encantador. Entretanto, ela não podia voltar a enfeitiçar-se com aspectos tão banais. Prova disso era o desastroso final com Scott. Ele também falava com sutileza, com fascinação até que descobriu que estava grávida e que seu pai não podia lhe oferecer o dote que tinha prometido. Então começou o amargo processo do desamor, da destruição, da dor por tudo aquilo que lhe tinha prometido e que não cumprira. Era certo, como lhe tinha indicado Beatrice, que nesta ocasião as coisas eram diferentes, mas ela não se convencia. O que aconteceria quando conseguisse seu propósito? Abandoná-la-ia de novo? Voltaria para seus antigos vícios? Não poderia suportá-lo. Embora ela não o amasse, seria incapaz de viver de novo outra humilhação.

? Deseja uma taça, senhora? ? A pergunta de um criado que levava sobre suas mãos uma bandeja com taças de champanha despertou-a de seus pensamentos.

? Obrigada ? respondeu ao mesmo tempo em que esticava a mão para alcançar uma. Bebeu-a de um sorvo e, antes que o criado se afastasse, pegou outra. Não estava sedenta, mas sim morta de medo e esperava que o licor acalmasse aquela sufocação.

? Minha querida senhora Bennett ? escutou uma voz masculina dizer. ? Permitirá a seguinte dança ou seu marido a raptará como a vez anterior?

? Não acredito que volte a ser tão descortês ? afirmou sorridente. ? E estarei encantada de lhe brindar com a seguinte peça.

O cavalheiro estendeu seu braço para que Evelyn se segurasse, depois que ela colocou sua mão conduziu-a para o centro do salão.


O que estava vivendo era inaudito. Sua esposa o tinha abandonado diante de todo mundo como se fosse um ser desprezível. Por um momento, só durante uns segundos, quis correr atrás dela, pegá-la pelo braço, virá-la para ele e beijá-la com tanta paixão que inclusive os convidados ficassem sem fôlego. Talvez dessa forma não voltasse a rejeitá-lo em público. Ele, um homem que debilitava as mulheres, um homem que escutava suspiros de desejo atrás de sua passagem, era repudiado pela única mulher que não devia fazê-lo porque, gostasse ou não, estavam casados. Zangado e com o orgulho ferido, decidiu retornar ao grupo de cavalheiros que pareciam divertir-se com o acontecido.

? Uma boa dança... ? comentou William em tom jocoso.

? Tive melhores ? repôs com frieza.

? Uma taça, milorde? ? Perguntou-lhe um criado.

? Traga-me uma garrafa do melhor brandy que o duque tiver na adega ? ordenou mal-humorado.

O criado, confuso, olhou ao duque e, depois de ver o movimento afirmativo de sua cabeça, afastou-se do salão para fazer chegar ao cavalheiro àquilo que tinha pedido.

? É uma mulher indomável... ? murmurou Roger a contragosto. ? Jamais em minha vida vi um ser tão esquivo e tenaz.

? Discordo de sua afirmação, meu amigo. Evelyn é encantadora e Beatrice está entusiasmada de poder contar com sua amizade.

? Encantadora? ? Grunhiu Bennett ao mesmo tempo em que franzia o cenho. ? Parece-lhe correto seu comportamento? ? Continuou com aborrecimento. ? Nunca vi um desprezo semelhante de uma esposa para com seu cônjuge.

? Pergunto-me... o que o terá provocado? ? Assinalou William entrecerrando seus olhos e sem afastar seu olhar de Roger.

? Só tive boas palavras, se por acaso está insinuando que o culpado de sua inapropriada atitude fui eu ? replicou com voz firme e pausada.

? Pois então não entendo o acontecido porque se der a volta e a observa, apreciará que não apaga o sorriso.

Roger deu a volta imediatamente e ficou tão pétreo que foi incapaz de respirar. Ali estava sua esposa, em meio ao salão dançando e sorrindo com paquera ao seu acompanhante. De repente suas mãos se fecharam com força convertendo-as em dois duros blocos de aço e uma estranha sensação de queimação lhe percorreu o corpo.

? Não acertou com sua conversação ? sussurrou Rutland divertido ao ver que, pela primeira vez, os ciúmes apagavam o malicioso sorriso que sempre exibia. ? Em troca, o senhor Battelow, viúvo há pouco mais de dois anos, soube encontrar o que a faz...

? Não continue por esse caminho... ? resmungou Roger apertando com tanta força os dentes que estiveram a ponto de partir-se. ? Ela é minha.

? É óbvio! Quem insinuou o contrário? Só quis demonstrar que, apesar de estar curtido no âmbito da sedução, nem sempre pode conseguir o que deseja ? continuou expondo William sem abandonar seu tom zombador.

? Tanto faz com quem baile esta noite ou a quem dê de presente seus sorrisos coquetes. Ela dormirá com um só homem, ? começou a dizer ao mesmo tempo em que se virava para seu amigo e enrugava a testa com fúria ? e esse serei eu.


XIV


Por fim a tortura tinha acabado e se encontrava a salvo no interior de seu quarto. Evelyn, inquieta pelo acontecido, não podia deixar de mover-se por todo o quarto, acreditando que se permanecesse parada pouco mais de dois segundos terminaria por cair ao chão. Continuava alterada, morta de calor, envergonhada e, sobretudo zangada. Casou-se com um ser depravado, um homem que não sabia o que significava a palavra decoro, e não estava disposta que a tratasse sem respeito diante de todo mundo. Como vingança à sua humilhação, decidiu ser mais amável do que estava acostumada a ser com os cavalheiros que a rondavam. Não só simulou que prestava atenção em suas conversações, mas sim também lhes sorria ao dançar com eles. Entretanto, enquanto levava a cabo sua façanha, percebeu que seu marido não podia afastar seus olhos dela, às vezes franzia o cenho, outra lhe sorria com malícia e em contadas ocasiões se virava para não vê-la.

Não tinha levado a bom término seu plano, queria lhe provocar tal aborrecimento que partisse da festa, mas teve que contentar-se com as poucas expressões de apatia que mostrou. Observou, um tanto preocupada, que entre suas mãos segurava uma garrafa de licor. Não bebeu como os outros, com prudência e nas taças de cristal, mas sim adotou a atitude do pirata que aparentava ser. É óbvio, as apropriadas interrupções de Beatrice a salvaram de um ou outro cavalheiro impertinente que entendeu como quis seus atos de cordialidade. De fato, a duquesa pôs em seu lugar a um dos que insistia em aproximar-se dela mais do que o devido.

Em outro momento, em outro lugar, não teria necessitado da ajuda de ninguém. Ela mesma, com alguma de suas socorridas frases, teria deixado bem claro que sua cortesia não indicava nada salvo aquilo mesmo, mas não pensava com claridade. A ingestão de álcool e o desmaio que sofreu ao descobrir a besta com quem devia viver o resto de sua vida, fizeram-na perder sua apreciada sensatez.

Assustada por todo o acontecido, olhou ao seu redor e tentou calcular o tempo que levaria Wanda para preparar a bagagem. «Mais do que anseio ? terminou dizendo-se enquanto se sentava sobre a cama com inapetência. ? É impossível que possa partir antes do amanhecer», concluiu.

Decepcionada e cansada, abriu os braços e se deixou cair sobre a cama. Quis fechar os olhos para descansar um pouco até que chegasse sua donzela, mas quando o fez, tudo começou a dar voltas e terminou por notar certas sacudidas procedentes de seu estômago. Com rapidez elevou-se do leito, mas foi pior. As náuseas aumentaram assim como os enjoos. Decidiu ajoelhar-se sobre o chão e esperar que todo aquele mal-estar desaparecesse. Apesar de seu intento por controlar os vômitos, terminou expulsando o que continha em seu interior.

? Minha senhora! ? Exclamou Wanda ao entrar no dormitório. ? O que lhe acontece? ? A donzela não esperou uma resposta, possivelmente porque não a obteria. Correu para Evelyn e lhe elevou o queixo para que deixasse de sujar o vestido novo.

? Morro... ? murmurou quando deixou de vomitar. ? Meu fim está chegando...

? Acredito que ingeriu mais champanha do que o habitual, isso sim ? comentou a criada tentando não mostrar a diversão que lhe ocasionava o que viam seus olhos.

? Ele é o culpado! Ele me conduziu a esta tortura! ? Exclamou ao mesmo tempo em que retirava com suas mãos as lágrimas que brotavam de seus olhos.

? Apoie-se em mim. Incorporá-la-ei e a despirei ? disse Wanda enquanto a pegava com força por um braço. ? Sem lugar a dúvidas, minha senhora, um bom banho aliviará esse estado de mal-estar e de fedor.

? Odeio-o! Odeio tudo o que procede daquela besta! ? Seguia gritando.

? Muito bem... se você o odiar, eu também o odiarei, mas por favor, incorpore-se.

? Não lhe bastou me avassalar na intimidade, mas sim também o fez diante de todos os presentes ? continuou falando entre balbuceios.

Com grande esforço Wanda conseguiu levantá-la e colocá-la o mais reto possível para conseguir lhe desabotoar o vestido.

? Casei-me com um descarado, obtuso e incorrigível! Meu Deus, sua serva foi tão má que condena minha vida com um homem pré-histórico? ? Exalou com pesar.

? Ninguém é perfeito... ? indicou a donzela sem pensar.

? Perfeito?! ? Gritou antes de dar a volta e perder de novo o equilíbrio.

? Minha senhora, por favor, não se mova ? suplicou depois de evitar que caísse ao chão.

? Aquele homem se afasta muito da perfeição. É um descarado, um indecente, um filho de satanás...

Wanda evitou continuar com a conversação porque a alterava cada vez mais. Com mãos ágeis foi desabotoando os botões até que o vestido terminou no chão. Enquanto trabalhava em conseguir seu propósito antes que Evelyn voltasse a alterar-se, meditava sobre se tinha vivido uma situação parecida durante seus anos ao serviço da atual senhora Bennett. «Nunca ? concluiu para si. ? Sempre foi uma moça muito sensata salvo quando se apaixonou por aquele descarado». Mas naquela ocasião, apesar do sofrimento que padeceu, nunca bebeu como o tinha feito essa noite. E mais, jamais a tinha visto tomar mais de uma taça e só nos casos nos quais lhe estava permitido: durante um jantar ou em uma celebração. Por isso, o fato de que estivesse ébria, tinha-a não só assombrado, mas também confundido.

? Continue apoiando-se em mim. Conduzi-la-ei até o banho e esperará que lhe encha a tina de água. Com certeza depois verá as coisas de outra maneira ? disse com voz aprazível.

? Ai, Wanda! Que desventurada sou! Não tive suficiente com o vivido no passado que, para continuar minha desgraça, o destino segue me jogando brincadeiras pesadas. Aquele homem... aquele... aquele... animal que meu irmão decidiu converter em meu marido não é bom.

? Não deveria julgar com tanta rapidez as pessoas. Possivelmente seu inapropriado comportamento seja devido a que está irritado. Recorde que partiu de Londres pensando que se casou comigo e não com você ? esclareceu em voz baixa. Com grande esforço levou-a até o banho. Justo na mesma entrada, com o corpo bambo de sua senhora sobre a metade do dela, Wanda olhou com rapidez ao seu redor procurando um assento onde colocar a mulher. Depois de achá-lo sentou-a com cuidado, separou-lhe do rosto as mechas que tinham escapado do coque e lhe beijou a testa. ? Me espere aqui, não demorarei.

Evelyn assentiu com suavidade. Não queria mover mais do que o devido a cabeça porque já começava a lhe doer. O suave golpe da porta ao fechar fez que dirigisse suas palmas para a testa e a apertasse com força. Tudo continuava dando voltas e, por mais que sua donzela tivesse pensado que a tinha colocado em um lugar seguro, não o sentia assim. Seu corpo se balançava sem ela desejá-lo e a pequena habitação girava ao seu redor cada vez mais depressa. Finalmente terminou estendida no chão, em posição fetal e murmurando frases mal audíveis.

Não soube que sua donzela tinha entrado e saído do banho até que despertou.

? Continue apoiando-se em mim ? disse-lhe em voz baixa. ? Muito bem, assim está melhor. Colocamos um pé, agora o outro e... O calor da água a reconforta? ? Enquanto Evelyn jogava as costas para trás, a donzela lhe tirou as forquilhas, deixando livre a avermelhada juba. ? Pode apoiar a cabeça nestas toalhas que encontrei. Servirão de almofadão.

? Obrigada... ? sussurrou. ? Não sei o que faria sem ti.

? Pois imagino que seguiria atirada no chão como uma mulher de má vida, vomitando e desamparada ? respondeu com certa diversão. ? Bom, encontra-se melhor para poder me contar o que tanto a perturbou?

? Foi ele ? disse com firmeza. Tentou virar-se para poder responder olhando-a aos olhos, mas Wanda o impediu. ? Nunca imaginei que os rumores sobre seu comportamento fossem certos. Alberguei a possibilidade de que as pessoas exageravam para que eu sentisse temor, mas diziam a verdade.

? O que ele lhe fez? ? Quis saber. Enquanto lhe respondia, pegou a peça de sabão e foi espalhando pelo cabelo.

? Quando apareceu, e depois de falar com o duque a sós, aproximou-se até onde me encontrava. Evitando de forma descarada minha presença saudou primeiro a quem o olhava e se ruborizava.

? Já lhe disse que era um homem muito bonito ? repôs ao mesmo tempo em que esfregava com supremo cuidado o cabelo.

? E não mentiu. Prova de sua verdade foi a desmesurada paralisação que causou ao aparecer. As jovens casadouras moviam as pestanas como se quisessem provocar um furacão na sala e as que, por sorte, contraíram matrimônio com um homem honrado, não deixavam de cochichar.

? Tanta expectativa provocou? ? Insistiu.

? Crê que um homem com um aspecto semelhante ao de um vulgar pirata não conseguiria tal façanha? ? Resmungou com mais serenidade.

As suaves massagens começavam a relaxá-la e, tal como lhe indicou Wanda, já se encontrava muito melhor.

? Um pirata? ? Perguntou a donzela assombrada. Deixou de lhe ensaboar o cabelo para esticar a mão e pegar uma bacia.

? Conforme me contou a duquesa, é dono de um desses navios mercantis. Também me disse que o utiliza para transportar mercadorias ou passageiros, embora muito me temo que errou em sua conclusão. Estou segura de que é um assaltante de navios e que terá as mãos cobertas de sangue inocente ? sentenciou.

? Isso foi o que lhe pareceu pouco decoroso, que exibisse uma imagem de corsário desumano? ? Continuou perguntando ao mesmo tempo em que vertia sobre o cabelo água limpa.

? Não. O que aconteceu foi outra coisa ainda mais aterrorizante. Quando as saudou, dirigiu-se para mim me chamando de propriedade. Logo me arrastou até o balcão me agarrando pela mão. Ao princípio, embora me sentisse zangada por esse comportamento, quase o perdoo posto que se preocupou com meu padecer durante sua ausência. Dialogamos com cordialidade, mas de repente, a conversação deu uma volta inesperada. Tudo começou após decidir que devíamos nos tratar com menos formalidade.

? Ofendeu-se por isso?

? Não! Surpreendeu-me gratamente, entretanto, o fato de ter que lhe chamar de Roger lhe brindou a oportunidade de... me beijar e duas vezes! ? Explicou afligida.

? Hum...

Wanda sorriu ao escutar as palavras de sua senhora. Embora lhe parecessem infantis, entendia-a. Depois do vivido com o vilão do senhor Wyman, não quereria voltar a sentir o pesar de outra humilhação. Não obstante, ela não via mal nenhum que um marido mostrasse seu afeto em público. E mais, estava segura de que todas aquelas mulheres que, conforme contava, alteraram-se ante a presença do senhor Bennett, estariam encantadas de ocupar seu lugar.

? Mais tarde me pediu uma dança... ? fez uma leve pausa para recompor-se. Ao recordar o quão absorvida permaneceu ao notar a proximidade de seu marido, as pequenas e sutis carícias nas costas, o encantador aroma e a firmeza ao dançar provocaram que seu pelo se arrepiasse e que brotasse novamente uma estranha sensação de necessidade por tê-lo ao seu lado.

? E? ? Wanda pegou uma toalha e a estendeu para que Evelyn pudesse cobrir sua nudez com ela.

? E dançamos ? respondeu sem oferecer mais detalhe.

? Só dançamos? OH, mon chèrie, je suis trés désolè!!4 ? A voz de Roger as assustou. Wanda abaixou com rapidez a cabeça enquanto que Evelyn abriu tanto a boca que lhe resultou difícil fechá-la. Ali estava, apoiado sobre a ombreira da porta, cruzando mãos e pernas, as observando em silêncio e revelando em seu olhar um brilho luxurioso. ? Pode partir. Eu mesmo me ocuparei da minha esposa ? ordenou.

Tal como lhe havia dito, a donzela fez uma leve genuflexão e saiu do banho, não sem antes jogar uma rápida olhada a Evelyn, que seguia paralisada e segurando com força a toalha que cobria seu corpo.

? Assim descreve nossa primeira dança de casados, petite sorcière? ? Disse quando a criada fechou a porta.

Roger não moveu nem um só músculo de seu corpo. Permaneceu na mesma posição esperando que ela fosse a primeira em dar um passo. Seus olhos continuavam cravados em Evelyn e seu sorriso, cheio de lascívia, seguia estendendo-se por seu rosto.

? Imaginei que seria inesquecível.

? Não deveria estar aqui ? resmungou enfurecida. ? Se por acaso se perdeu, tenho que lhe avisar que está em meu quarto.

? Perdido? ? Perguntou antes de esboçar uma enorme e sonora gargalhada. Retirou-se da madeira e iniciou um lento caminhar para ela. ? Nunca me senti tão próximo à palavra lar, talvez porque, como lhe disse na varanda, desde que nos casamos seu corpo será minha casa e a sua será o meu.

? Não se aproxime... ? ordenou-lhe andando para trás até que o frio da parede tocou suas costas.

? Ninguém vai me impedir de pegar o que por lei me pertence ? murmurou com voz firme e pausada.

? Não sou uma maldita propriedade! ? Explodiu.

Prosseguiu segurando a toalha ao redor de seu corpo e elevou o rosto de maneira desafiante.

? Em nenhum momento, petite sorcière, considerei-a dessa maneira. Quando lhe digo que me pertence é porque seu corpo inteiro é meu e, por mais sorrisos que ofereça a outros cavalheiros, ninguém poderá gozar de você salvo eu.

? Julga-me de maneira indevida ? defendeu-se mantendo seu rosto levantado. ? Se por acaso não o sabe, durante sua ausência fui visitada por muitos...

Não finalizou a explicação. Antes de terminar a frase, Roger se equilibrou sobre ela e a beijou. Evelyn voltou a se surpreender pela paixão que seu marido mostrava em um ato tão básico. Sua língua repetia a conquista, a posse, conduzindo-a a um estado de êxtase do qual só pôde reagir com um suave e mísero gemido. Desfrutava-o. Apesar de sua insistência em não fazê-lo, gozava daquela boca, daquela persuasiva língua, da proximidade do imenso e robusto corpo. De repente notou uma calidez nas costas. Seu marido pousava suas mãos sobre ela para atrai-la para ele. O peito feminino roçou o masculino e ambos os torsos se acoplaram à perfeição. Face à grande altura de quem a segurava para si, não havia desconforto, mas sim segurança e amparo. Uma união tão maravilhosa que, sem poder evitá-lo, a fez sentir-se extasiada.

Não obstante, e apesar de começar a desejar o que ele tanto ansiava por lhe mostrar, devia manter-se firme em seus propósitos. Não podia lhe dar de presente aquilo que tanto desejava porque depois de consegui-lo, o que faria? A incerteza a fez recuperar a pouca sensatez que ficava. Abriu os olhos e descobriu que ele também os deixava abertos. Olhava-a com descaramento, com desejo, com erotismo. A pupila se expandia tanto que logo permitia apreciar a cor da íris.

? É tão formosa... ? sussurrou Roger afogado pelo desejo ? que me parece impossível a ter conseguido.

? E você é um homem tão presunçoso e repugnante, que me parece incrível que tenha sido meu irmão quem decidiu meu futuro ? replicou Evelyn com raiva.

? Mon Dieu! ? Exclamou Bennett irado. ? Acaso não pode aceitar de minha boca nem um só elogio? ? Deu uns passos para trás ao mesmo tempo em que passava a mão pela cabeça. ? É minha esposa! Maldita seja! E isso deveria lhe revelar o que você terá que assumir como tal.

? Está insinuado que devo me entregar por que...? ? Começou a dizer enquanto uma de suas mãos cobria sua boca.

? Só advirto que deve me agradar... ? indicou mal-humorado. Virou-se para ela e caminhou com mais ímpeto do que devia até que voltou a retê-la contra a parede. ? Irei possui-la quando e onde quiser. E por mais que se negue, o farei.

Com uma brutalidade imprópria dele, agarrou-a pela cintura e a jogou sobre seus ombros para conduzi-la até a cama. Evelyn esperneava e lhe dava murros no peito, mas seus impactos não conseguiram diminuir a decisão de seu marido.

Roger a jogou na cama e, enquanto ela tentava fugir, tirou a jaqueta, desabotoou os botões de sua calça e, justo no momento no qual ela ia conseguir seu propósito, segurou-a por um tornozelo e a fez retornar ao leito.

? Não pretendia que nossa primeira vez fosse assim, mas sua atitude, sua arrogância e sua pouca sensatez provocaram em mim uma ira incalculável ? disse ao mesmo tempo em que se colocava sobre ela. ? Me aceitará por bem ou por mal.

? Me solte! Deixe-me! ? Clamava Evelyn.

Umas lágrimas começaram a brotar de seus olhos banhando o rosto ruborizado desta vez pelo esforço que realizava por liberar-se das mãos de seu marido. Não podia acreditar no que ia acontecer-lhe. Não esperava que o encantador e enganador homem que tinha ao seu lado finalmente se transformasse em um monstro.

? Não! ? Rugiu Roger. ? É minha!

Depois de um tempo lutando com seu opressor, Evelyn perdeu as forças. As palmas de suas mãos, que sustentavam os braços de Bennett, separaram-se destes e o liberaram. Não podia evitar aquilo que já tinha decidido seu marido. As lágrimas deram lugar a uma choramingação incessante, um pranto pedindo clemência.

Roger, ao deixar de sentir o esperneio e a opressão em seus braços, elevou o rosto e a contemplou. O cabelo, alvoroçado pelos bruscos movimentos, estendia-se pelo travesseiro, a toalha tinha deixado de cobri-la e deixava a descoberto uma erótica e deliciosa figura. Entretanto, o que lhe partiu o coração em mil pedaços foi descobrir que ela não deixava de chorar e suplicar. Onde estava a pessoa que era? Onde estava o homem que amava e satisfazia as mulheres? Não ficava nada disso nele e a prova disso era a horrível cena que vivia. Desejava Evelyn mais que tudo no mundo. Desde que pôs seus olhos nela naquele dia, só sonhou em tê-la ao seu lado, amá-la, escutá-la gemer de prazer. Entretanto, nunca imaginou que a possuiria sem ela desejá-lo, sem escutar de sua boca que acalmasse sua necessidade.

Abatido por seu comportamento, retirou-se lentamente do leito. Seus olhos seguiam cravados na mulher, observando como tremia de medo, o mesmo que lhe tinha provocado ao deixar emergir um monstro de seu interior. Em silêncio e em comoção por sua atuação, abotoou a calça e, sem olhar para trás, saiu do quarto. Tinha que meditar sobre o ocorrido, sobre por que a tinha tratado dessa forma e, sobretudo devia achar a razão pela qual em seu interior gritava que devia fazê-la sua para sempre.


XV


Não eram ciúmes o que sentia. Ele jamais teria uns sentimentos tão estúpidos. O ardor que emergia do mais profundo de seu ser só era mal-estar por ter descoberto que ele ia ser o padrinho do filho de William e que, por sua alienação, o posto tinha sido ocupado por Federith. Apesar de suas próprias desculpas, não podia afastar o olhar dela e deixar de grunhir. Evelyn não diminuía seus gestos de paquera e, estranhamente, bebia muito. Esteve tentado, em mais de uma ocasião, em caminhar para ela e reprovar sua atitude. Necessitava que entendesse quão inadequado resultava aquele descarado comportamento para uma mulher casada, ou melhor, dizendo, para sua esposa. Mas se conteve. Aguardou com paciência o momento no qual todo mundo começou a partir e ela decidiu subir ao seu quarto. É óbvio, na intimidade que lhes proporcionaria o interior da habitação, mostraria a quem devia dirigir seus contínuos flertes.

? Já nos priva de sua presença? ? Perguntou Rutland.

Partiram já todos os convidados e, por fim, podia gozar de uns momentos a sós com seus amigos. Por isso, quando observou a disposição de Roger por partir, tentou evitá-lo.

? Tem que compreender que me encontro bastante cansado. Desde que cheguei a Londres não pude descansar adequadamente ? explicou em tom débil, esgotado. Entretanto, não o estava. Sua única pretensão era subir as escadas de três em três e procurar Evelyn.

? Se mal me recordo, Beatrice ordenou ao Brandon que te preparasse um quarto. Ele te conduzirá até lá ? disse William com tranquilidade. Não queria lhe dizer de maneira brusca que, devido a todo o acontecido no passado em seu matrimônio, devia tomar um tempo de calma. Além disso, pela atitude que mostrou Evelyn durante todo o baile, muito temia que não tivesse interesse algum em descansar sob as garras de seu marido.

? Você dorme em outro quarto que não seja o de sua esposa? Inquiriu Bennett zangado. Seus olhos, injetados em sangue, cravavam-se na pessoa a quem sempre tinha outorgado a posição de irmão.

? É óbvio que não. Entretanto minha situação conjugal é muito diferente à tua ? assinalou.

William franziu o cenho e apertou os olhos. Odiava ter que ser ele quem chamasse a atenção de seu melhor amigo, mas devia fazê-lo. Como dono da casa em que Evelyn se sentia protegida, precisava continuar lhe oferecendo a paz que prometeu e, por mais que Roger devesse exercer seu respeitável papel como marido, ela ainda não estava preparada para isso.

? Então por que te interessa tanto o lugar onde descansarei esta noite? ? Retrucou sem diminuir sua ira.

? Ser esposa suporta umas conotações muito diferentes às que encontrara em suas amantes ? intrometeu-se Federith.

Até aquele momento não tinha participado de nenhuma das conversações que seus amigos tinham mantido. Ficava distante, perdido em suas próprias divagações. Entretanto, nesta ocasião devia participar para fazer desaparecer a discrepância que começava a emergir entre eles. Como era lógico, William adotava a postura de um homem perito em conviver dentro de um matrimônio que, por sorte para ele, era frutífero. Não obstante, Roger acabava de descobrir que a mulher com quem se acreditava casado não era a que imaginou. Além disso, não estava acostumado a ser o marido de alguém e sim o amante. Devia esquecer a ideia de que sua esposa era outra mulher a qual seduzir na cama e adotar a conduta correta. Ao pensar sobre que atitude era a apropriada entre cônjuges, seu rosto se escureceu. Acaso era o homem apropriado para lhe indicar os passos a seguir após casar-se? Realmente podia lhe explicar como funcionava um matrimônio? Não, estava claro que não. O seu, embora o tentasse ao princípio, não o conseguiu e, se seus amigos descobrissem o que escondia em sua alma, pensariam que estava possuído pelo próprio diabo.

? Acaso ambas não precisam ser saciadas, excitadas e seduzidas pela paixão? ? Comentou Bennett mais zangado se era possível.

? A diferença entre elas, além de sua assinatura em um contrato legal, é que a amante se contenta acalmando seu apetite sexual. Entretanto, a esposa necessita de algo menos primitivo e mais sentimental ? afirmou Federith.

? E que sentimento necessita uma esposa, meu querido Cooper? ? Roger arqueou as sobrancelhas e sua boca se estendeu em um sorriso lento. Estava disposto a lhe replicar aquilo que fosse lhe dizer posto que, se a memória não lhe falhava, sua perfeita esposa, aquela a quem supostamente dava o que desejava, era tão especial que evitava aparecer com seu marido em público.

? Amor ? respondeu.

? Amor?! Esse é o segredo de um bom matrimônio? Isso é o que brinda a uma mulher que é incapaz de aparecer ao seu lado quando a requer? ? Retrucou irado.

Federith, ao escutá-lo, arrojou a taça que tinha em sua mão e se lançou para ele, levantou os punhos e tentou lhe atirar um golpe. Como era de esperar, Bennett o esquivou e preparou os seus para uma resposta dura. Entretanto, não conseguiu tocar em Cooper, o duro tórax de William parou o impacto.

? Não permitirei uma loucura como esta em minha casa ? disse Rutland sem mover-se e sem mostrar dor no rosto. ? Acredito que deve uma desculpa ao Federith, ele só pretendia te fazer entrar em razão.

? Não vou desculpar-me ? disse apertando os dentes.

? Pois deveria. Seu comportamento, desde que pisou em meu lar, foi deplorável. Conforme advirto, seu exílio não foi tão benévolo como pensava. Mudou-te e te aconselho que o modifique, porque se segue mantendo essa atitude, pedir-te-ei, novamente, que parta de Haddon Hall ? apontou cada palavra em tom impassível.

William se afastou e olhou a ambos os homens. Federith continuava com os punhos elevados enquanto Roger os tinha baixado. Seu rosto, escurecido, sugeria que estava meditando sobre aquilo e Rutland esperava que entrasse em razão.

Durante o baile tinha estado bebendo como um vulgar bêbado. Quando terminava uma garrafa, começava outra. Não era a primeira vez que vivia os aterrorizantes episódios de embriaguez de seu amigo. Durante suas passadas farras londrinas, mais de uma vez teve que apoiá-lo sobre suas costas e levá-lo até sua residência. Também foi testemunha de seu mau beber e da sucessão de conflitos que isso suportava. Uma vez, se não recordava mal, esteve a ponto de morrer. Mas o diabo se encontrava bondoso aquela noite e deixou que continuasse respirando. Por isso lhe tinha advertido que deixasse de beber e que prestasse atenção à sua esposa.

O conselho foi mais desastroso do que pretendeu. Evelyn não cessava de flertar e essa atitude fez com que Roger fervesse tanto o sangue, que acalmou a ira à base de mais brandy.

? Sinto ? disse Bennett depois de uns momentos de silêncio. ? Minhas mais sinceras desculpas por minhas palavras ofensivas. Sabe que te considero um irmão e que sua dor é também a minha ? disse com voz sossegada e pausada.

? Aceito-as ? falou Federith ao mesmo tempo em que estendia a mão.

? Mon Dieu!! Só me dá a mão? ? Perguntou antes de saltar sobre seu amigo e abraçá-lo.

? Bom, o normal neste momento seria tomar uma taça e fumarmos um bom charuto, mas temo que já bebemos mais do que o necessário ? indicou William feliz.

? Devo me retirar o antes possível se quero partir à alvorada para Hemilton. Não quero privar por mais tempo meu filho da presença de seu pai ? expôs Cooper com certa melancolia.

? Entendo-te perfeitamente ? respondeu o duque. ? Pois por minha parte, está desculpado. Se precisar de algo antes de viajar faça Brandon saber.

? Obrigado por me permitir ser o padrinho de seu primogênito, foi uma honra ? comentou Federith estendendo a mão para William. Como era de esperar, não a aceitou, mas sim se aproximou de seu amigo e o abraçou com sua mão direita.

? Aqui tem sua casa se por acaso algum dia a necessitar ? murmurou-lhe ao ouvido. ? Tanto Beatrice como eu estaremos encantados de ver-te aparecer com seu filho.

O futuro barão de Sheiton respondeu às palavras com um leve assentimento de cabeça. Logo dirigiu seu olhar para Roger e este o despediu da mesma maneira que William: com um abraço.

? Algo grave lhe acontece ? disse em voz baixa Bennett quando ficaram sozinhos.

? Sim, sou muito consciente disso, mas é incapaz de contá-lo. O único que tenho claro é que, desde que se casou com Caroline, não foi o mesmo. Na verdade, se a mente não me falhar, dos três, era o mais sorridente, mas se esqueceu de rir. Só mostra um rosto aflito e apático.

? Possivelmente pensou que o matrimônio seria algo diferente, eu também acreditei. Entretanto, aqui me vê, bêbado, zangado e desejoso de subir ao quarto onde se encontra minha esposa e saborear cada palmo de sua pele.

? Não albergue a esperança de que ela te aceite esta noite. Deixe-a respirar ? disse ao mesmo tempo em que se virava para seu amigo.

? Respirar? ? Soltou rapidamente. Arqueou as sobrancelhas e voltou a estender sua boca para desenhar um grande sorriso.

? Tal como disse Federith, o trato que deve adotar para com sua esposa é muito diferente ao qual proporcionou às suas amantes. Ela não só procurará prazer no leito, mas sim pedirá mais que umas agradáveis carícias ? comentou William sem afastar o olhar de Bennett.

? O que necessitará? ? Continuou jocoso.

? Seu coração. Agora pensa, está disposto a oferecer-lhe?


O suave pranto de Evelyn se escutava através da espessura da madeira, provocando que o sentimento de culpabilidade de Roger se acrescentasse. Separou-se da fria parede recordando as últimas palavras de seu amigo. Estava disposto a oferecer seu coração? Aquela pergunta o tinha deixado entorpecido. Nunca tinha parado para pensar nisso. Além disso, ele tinha coração? Segundo suas amantes, não. Segundo sua mãe, tampouco. Assim que... como ia dar algo que não possuía?


XVI


Apesar de seus inumeráveis intentos por levantar-se da cama com prontidão, Evelyn não conseguiu fazer algo tão simples. Mal tinha dormido e quando o fazia, despertava sobressaltada ao aparecer de novo o rosto enfurecido de seu marido sobre ela. A lembrança daquele momento, daquela horrorosa situação, gerou-lhe um tremor tão intenso em seu corpo que, o que não tinha conseguido pelo cansaço, adquiriu-o pelo medo. Afastou os lençóis, pousou os pés no chão e caminhou para a janela para abrir as cortinas.

O sol luzia de maneira incomum, embora desde que chegou a Haddon Hall mal tinha chovido. Apesar de estar no mesmo país, parecia que as nuvens não estavam acostumadas a aparecer por aquele lugar com tanta assiduidade como em Londres. Evelyn apoiou a testa no vidro e soluçou. Sentia-se infeliz, desanimada e um pouco decepcionada por todo o ocorrido. Culpava-se pelo pérfido comportamento de seu marido. Jamais tinha se proposto tratá-lo daquela maneira nem flertar com os cavalheiros como uma puta vulgar. Ela não era aquele tipo de mulher! Ela era uma mulher honesta, razoável e bastante sensata. Quando descobriu o final que lhe proporcionou seu irmão e depois de assimilá-lo com dignidade, disse-se a si mesma que devia aceitar sua sorte e se entregaria a um marido tal como sua mãe se dedicou ao seu pai. Entretanto, o desastre estava feito. Tinha conduzido Roger a um estado de loucura tão enorme que quase a forçou.

Evelyn suspirou profundamente e afastou com as duas mãos as lágrimas que percorriam seu rosto. O baile não tinha saído tal como imaginou naquela mesma tarde. Vestiu-se para lhe agradar, para diminuir o aborrecimento que obteria pelo engano, para que se sentisse orgulhoso da mulher que teria pelo resto de sua vida ao seu lado e talvez, também o fez por ela mesma. Estava cansada de ser a pobre Evelyn. Queria que o mundo não recordasse seu dramático passado e, é óbvio, desejava agradecer ao seu marido pelos cuidados que deixou organizados apesar de abandoná-la. Por que... o que tinha feito Roger desde que partiu? Cuidá-la. Sim, com efeito. Tinha velado por sua comodidade, por sua estabilidade econômica. Ali onde antes encontrava certa vacilação ao comprar ou adquirir aquilo que necessitava para o funcionamento de seu lar, desde que contraiu matrimônio, não viu nos dependentes nem nos fornecedores reprovação alguma.

Amabilidade e cortesia, isso é o que tinha encontrado desde que se converteu na senhora Bennett. Sem esquecer a inveja que mostravam as mulheres ao saber que um dos solteiros mais cobiçados da cidade tinha sido capturado. Mas apesar do benfeitor gesto de seu cônjuge, ela seguia mantendo sua atitude. Tinha que lhe deixar bem claro que não era uma amante a mais para utilizar e esquecer. Era sua esposa, a mulher com quem viveria o resto de sua vida, de quem escutaria suas dores ou alegrias.

Levou as mãos ao ventre para apertá-lo com força. Só havia uma coisa que nunca poderia lhe dar. Talvez, se descobrisse que o que algum dia ansiara não o conseguiria dela, albergaria a ideia de separar-se para sempre de seu lado. «Desde quando se rende com tanta facilidade? ? Perguntou-se zangada. ? Padeceu milhares de pesares em sua curta vida e isto é só mais um. O que o faz diferente?». Suas meditações a incomodaram tanto que se separou da janela e começou a perambular pela habitação. Observou envergonhada que ainda ficavam restos das consequências de sua inapropriada conduta. Se não recordava mal, o vestido ficou manchado e, por isso podia apreciar que no chão se refletia uma mancha esbranquiçada que seria impossível fazer desaparecer.

Era uma loucura. Tudo era uma maldita loucura! Açoitada por seus pensamentos e pela dor de cabeça que lhe golpeava as têmporas com força, sentou-se sobre o colchão, cobriu seu rosto com as mãos e começou um pranto que, dificilmente, podia parar.

? Bom dia, minha senhora. Despertou já? ? A voz de Wanda apareceu dentre as sombras produzindo um sobressalto em Evelyn.

? Bom dia. Levo um momento acordada, mas não quis te chamar tão cedo ? desculpou-se.

? Os duques se encontram na sala de café da manhã. Lady Beatrice me disse que a esperam para tomar o café da manhã.

Sem quase olhar à mulher, a criada se dirigiu com passo firme para o vestidor e desprendeu um dos vestidos adequados para uma jornada matutina.

Evelyn apertou com força os lábios para não lhe perguntar se seu marido encontrava-se com eles. Seria o normal nesses casos, mas conforme parecia, Roger não se apoiava nos comportamentos habituais e, possivelmente, teria partido de Haddon Hall. Com o coração estrangulado ante tal possibilidade e procurando uma desculpa a oferecer aos hospitaleiros proprietários quando perguntassem pelo paradeiro de seu marido, levantou-se da cama e se deixou vestir por sua donzela.

? Faz uma manhã magnífica para um passeio ? começou a dizer Wanda ao ver que sua senhora era incapaz de soltar uma só palavra por sua boca. ? Muito me temo que antes do almoço a duquesa a convide a acompanhá-la a outra de suas intermináveis excursões. Por esse motivo, e sempre com seu consentimento, levará o vestido de cor rosa e os sapatos planos. Assim não atrairá que todos os insetos revoem pelos arredores e não chegará com uma terrível dor nos pés.

Em outro momento Evelyn teria soltado uma gargalhada ante os comentários de Wanda, mas só fez um leve gesto com a cabeça para frente, algo que despertou o interesse de sua donzela.

? Minha senhora, se deseja que a desculpe para que possa continuar descansando em seus aposentos, fá-lo-ei ? indicou a donzela afastando suas mãos dos laços que começavam a atar o espartilho.

? Não precisa, Wanda. Será bom me distrair durante um tempo. Possivelmente, deste modo, a dor que me açoita a cabeça desapareça por fim ? voltou a justificar seu penoso comportamento.

Sabia que cedo ou tarde lhe perguntaria o que tinha acontecido durante a noite anterior. Não de maneira direta, Wanda jamais mostrava esse descaramento, mas sim que encaminharia todas suas conversações nessa direção para conseguir seu propósito. Não obstante, o que lhe diria? Que seu marido esteve a ponto de forçá-la, de possui-la entre gritos e preces de piedade. Não, não era correto nem benéfico para nenhum dos dois expor o acontecido. Antes que todo mundo cochichasse sobre o patético matrimônio Bennett, eles deviam falar sobre a razão daquele impróprio assunto e resolver o tema. Só assim poderiam viver em paz.

? Hoje seu cabelo despertou mais rebelde do que o normal. Está me custando a própria vida desenredá-lo ? assinalou Wanda enquanto tentava escová-lo.

? Pode me deixar uns cachos soltos?

? É claro. Deseja um coque alto ou baixo? ? Continuaram com um diálogo carente de sentido.

? Baixo, é claro.

? Como desejar ? respondeu Wanda.

Os olhos da criada se entrecerraram e sua boca desenhou uma estranha careta de preocupação. Pela expressão da mulher e a inapetência com que falava, sabia que a noite não tinha terminado como ela esperava. Pensou que Evelyn se renderia aos braços de seu marido, ela o teria feito sem duvidá-lo por que... quem poderia negar-se a desfrutar dos prazeres que pode lhe oferecer um homem tão perito? É óbvio que uma mulher, a única que devia aceitá-lo sem oposição: sua esposa.

? Necessita alguma coisa mais? ? Quis saber. Deu uns passos para trás, estendeu suas mãos ao longo do vestido e olhou à senhora Bennett sem piscar.

? Sim, só uma coisa. Pode informar aos duques que os acompanharei breve? ? Disse. Levantou-se, olhou-se ao espelho, levou as mãos para os olhos e apalpou com as gemas dos dedos as olheiras que os rodeavam.

? É claro. ? Wanda fez uma ligeira genuflexão e partiu. Quando fechou a porta olhou para o céu, suspirou e rezou para que o mal que se produziu na passada noite desaparecesse o antes possível.

Por que lhe doía tanto o estômago? Por que não cessavam as náuseas? Estariam provocadas pela ingestão de álcool ou pelo estado de inquietação que a açoitava ao pensar que o encontraria quando descesse as escadas? De qualquer modo, Evelyn correu ao banho, abaixou a cabeça sobre a privada e começou a vomitar. Mal saía algo de seu interior. Não tinha nada que expulsar, tudo o que contivera seu estômago o esvaziou na noite anterior. Afastando os cabelos do rosto, recompôs-se. Precisava fazer retornar a mulher que era, a mulher que não se amedrontava ante determinadas situações.

Antes de abandonar o quarto, olhou-se no espelho da penteadeira, beliscou as bochechas, elevou seu queixo e esboçou um sorriso. Essa era ela. Não havia dúvida. A imagem que projetava o espelho era a ansiada senhora que precisava mostrar. Depois de suspirar profundamente, abriu a porta e partiu.

? Bom dia! ? Exclamou Beatrice levantando-se de seu assento e caminhando para a entrada da sala de café da manhã para receber sua amiga. ? Pôde descansar?

? Bom dia ? respondeu sem apagar o sorriso. ? É claro.

? Minha querida senhora Bennett ? comentou Rutland abandonando sua cadeira. ? Minha esposa não quis começar o café da manhã sem sua presença. Acredito que estava preocupada com você.

Beatrice, que pegava com força as mãos de Evelyn, dirigiu um olhar ameaçador ao seu marido.

? Disse algo inapropriado? ? Perguntou zombador. ? Se for assim, querida, peço-te mil desculpas.

? Vem, sente-se ao meu lado. Imagino que estará faminta depois do baile.

Evitando as palavras de seu marido, a duquesa a fez sentar em uma das cadeiras próximas aonde se encontrava o duque e se sentou junto a ela.

? A verdade é que não tenho muito apetite. Tenho o estômago revolto desde ontem. Imagino que me excedi bebendo ? desculpou-se. Olhou os pratos que começavam a lhe servir e enrugou o nariz. Não gostaria de encher seu estômago com nada do que lhe ofereciam.

? Minhas primeiras bebedeiras me causaram uma feia magreza, ? disse Rutland sorridente ? mas com o passar do tempo se acostuma a ingerir tanto álcool como alimento. A natureza é sábia...

? William! ? Exclamou Beatrice zangada. ? As mulheres não são como vocês! Graças a Deus a outorgaram com o dom da sensatez.

? Jamais duvidei disso, meu amor ? respondeu antes de aproximar a xícara e tomar um comprido sorvo de chá. ? Bom, ? disse após pousar o copo e olhar com interesse a mulher de Roger ? onde se encontra meu amigo? Não o vi desde que subiu as escadas ontem de noite.

Evelyn deixou que os talheres caíssem sobre o prato emitindo um ruído ensurdecedor. Depois suas bochechas se ruborizaram e o desejo de fugir a sobressaltou.

? Muito me temo ? respondeu depois de tomar um tempo ? que não posso lhe responder.

? Não dormiu com você? ? Perguntou elevando suas espessas sobrancelhas escuras.

? William! ? Voltou a exclamar sua esposa. ? Onde estão suas maneiras? Perdoe-lhe, Evelyn. Acredito que esta manhã não só seu marido anda desaparecido, mas sim a boa educação do meu marido também.

? Senhoras... ? falou o duque ao mesmo tempo em que se levantava e afastava seu assento da mesa ? se me desculparem. Conceder-lhes-ei uns instantes a sós para que conversem tranquilamente. Enquanto isso eu pensarei onde posso o encontrar. ? Fez um leve movimento com a cabeça e, com seu típico andar, caminhou para a porta.

? Aconteceu algo horrendo entre vocês? ? Perguntou Beatrice quando estiveram enfim sozinhas. Matava-a a curiosidade e não podia aguentar por mais tempo saber o que tinha ocorrido entre eles. O último que sabia, o que lhe tinha contado seu marido, era que Roger tinha insistido em dormir junto à sua esposa. Mas, conforme parecia e graças às suas preces a Deus, ao final tinha desistido em seu empenho.

? Não! ? Respondeu tão rápido que se surpreendeu ela mesma.

? Então?

? Roger apareceu em um momento no qual minhas náuseas se converteram em vômitos e, como era de esperar, deixou-me sozinha para acalmar meus pesares. ? Tinha parecido convincente? Não estava muito segura dado que Beatrice entrecerrou seus olhos e os cravou nela. Mesmo assim, para reforçar suas palavras, Evelyn sorriu e continuou com voz divertida: ? Deve ter sido horroroso para ele entrar no quarto e descobrir a sua esposa de tal forma. Se tivesse sido ao reverso, eu também teria saído fugindo.

? Se você o diz... ? murmurou a duquesa antes de cravar com o garfo um pedaço de torrada e levá-la à boca.


Escutava certos murmúrios ao seu redor, mas como não tinha dormido em toda a noite, deu a volta e tentou prosseguir com o sonho.

? Milorde, o que me pede pode produzir a maior desgraça que presenciamos em Haddon Hall durante anos ? dizia entre sussurros Mathias, o moço de quadra.

? Se o preferir, verta-lhe o cubo de água fria e corra. Serei eu quem receberá sua fúria ? respondeu William esboçando um sorriso que cobria o rosto de lado a lado.

? Que Deus tenha piedade de nós... ? disse antes de aproximar-se de Roger, arrojar-lhe a água e começar uma carreira tão veloz que seus calcanhares lhe golpeavam os glúteos.

? Maldito seja! ? Uivou Bennett incorporando-se com rapidez do colchão de palha onde tinha descansado. Com o cabelo jorrando e as roupas empapadas parecia um cão ao qual um toró tinha pegado por surpresa. ? Que diabo faz?

? Bom dia, Roger. Uma má noite? ? Saudou-o com enormes e sonoras gargalhadas.

? Maldito seja, William! Por que despertar-me assim? ? Afastando a água que caía de seu cabelo, caminhou altivo para seu amigo.

? É uma tradição no condado de Derbyshire acordar aos bêbados com um bom banho de água gelada ? comentou sem diminuir a brincadeira.

? Malditos populares! Malditos costumes e maldito seja! ? Vociferou mais zangado, se cabia. Ao notar como as roupas esfriavam seu corpo, Roger decidiu despojar-se delas, deixando seu torso a descoberto.

? Não é adequado que as pessoas te vejam seminu ? repôs Rutland em tom sério.

? Adequado? Ha! E interromper meus bonitos sonhos como o fez sim o é? ? Lançou o colete e a camisa ao chão e pisou nos objetos ao sair.

? Roger... ? resmungou o duque como advertência.

? William... ? respondeu o aludido.

Passou por seu lado, olhou-o de esguelha e prosseguiu seu caminhar.

? Adverti-te que ela não era como as demais e que uma esposa não se pode tratar como a uma amante ? começou a o exortar. Rutland colocou sua mão nas costas e avançou atrás de seu camarada.

? Não me recrimine. Se não me falhar a memória, não faz muito tempo se encontrava em minha mesma situação ? matizou a contragosto.

? Nunca! Escutou-me? Nunca tratei Beatrice dessa forma! ? Soltou William zangado.

? É verdade! Você, o senhor honrado, deu uma lição àqueles que o pensaram... ? prosseguiu sua mal-intencionada conversação.

Virou-se rapidamente sobre seus calcanhares e observou o rosto zangado de seu amigo. Até onde queria chegar com aquela atitude? Precisava destruir uma amizade por não ser capaz de admitir o que esteve a ponto de fazer horas antes?

? Eu não gosto nem do seu tom nem das palavras que saem de sua boca ? assinalou o duque apertando os dentes.

? Nem eu gosto de ver no que estou me convertendo. Sinto-me igual ao que se lança de um precipício e no meio da trajetória se arrepende de sua tola ação. Mas... o que posso fazer a não ser me golpear contra o chão? ? Disse mais sereno, inclusive repleto de dor.

? Talvez devesse repensar e adotar uma conduta correta. Só assim não se converterá nesse lerdo que decide saltar ? indicou avançando para Roger e colocando seu braço sobre o ombro nu.

? Já não há volta atrás, William. Ontem fiz algo tão horroroso que, por mais que deseje emendá-lo, nada nem ninguém pode me salvar... ? murmurou enquanto abaixava tanto a cabeça que seu queixo chegou a tocar seu peito.

? Seja o que for, com certeza o tempo o fará desaparecer.

? Não, essa maldade jamais desaparecerá.

? Está fazendo crescer meu interesse. Sei que não é cortês indagar sobre seu pesar, nem fofocar sobre as intimidades de um matrimônio, mas me resulta impossível me conter. Por Deus, Roger! O que fez? ? O duque abriu os olhos de par em par e conteve o fôlego até que observou como seu amigo tomava ar.

Nunca o tinha contemplado tão aflito. Por norma, ele era o único que não mostrava seus pesares em público. Se não se embebedasse naquela noite no botequim do porto, jamais teria sabido que seus pais rezavam para que falecesse para outorgar o título de marquês ao seu irmão.

? Deixei que uma besta crescesse em meu interior e quase forço Evelyn... ? disse depois de tomar seu tempo para assimilar o que fez.

? Como? ? Inquiriu William assombrado.

? O que ouve. Como ela não sucumbiu aos meus encantos, tentei obrigá-la.

? Impossível! ? Exclamou incrédulo Rutland. ? Isso não é próprio de ti! Jamais faria tal aberração!

? Pois a fiz e agora temo que, se existia alguma possibilidade de que minha esposa terminasse me aceitando, esfumou-se.

Roger elevou levemente seu rosto encarando o espanto do rosto de seu amigo. Seus ombros, inclinados para frente, mostravam a figura de um homem atormentado, mortificado. Tornou a dar a volta para prosseguir o trajeto que o conduziria para a residência. Necessitava com urgência esconder-se, desaparecer.

? Sou um monstro, William. Uma besta malvada que não foi capaz de pensar com claridade, que não pôde controlar sua ira, que não pôde distinguir entre o bem e o mal ? disse com um mísero fio de voz.

? Resolveremos isso ? assinalou Rutland muito seguro de suas palavras. ? E se converterá em um matrimônio mais frutífero que o meu.

? Obrigado por suas palavras de consolo, mas decidi retornar a Lonely Field esta mesma manhã. Não quero que Evelyn volte a ver a besta que quase lhe destrói a alma.

? Vou perguntar o que em uma ocasião me questionou a mãe de Beatrice. ? Bennett seguiu avançado.

? O quê? ? Perguntou justo antes de subir as escadas que o levavam para a porta principal.

Face à insistência de seu amigo em o fazer mudar de opinião, ele a rejeitaria. Tinha tomado uma determinação e ninguém o faria retratar-se.

? Perguntou o que ela deseja?

? Não preciso perguntar, sei o que responderá. Você mesmo o apreciará em seu olhar. E agora, se me desculpar, quero me limpar antes de partir. Pedirei ao Brandon que me indique onde está aquele quarto. ? Respirou profundamente e subiu as escadas de três em três.

As mulheres abandonaram a sala de café da manhã ao escutar as vozes de ambos os maridos. A duquesa blasfemava sobre o comportamento dos dois e os comparava com meninos chorões e mimados. Entretanto, Evelyn ficou imóvel e acreditou notar como parava seu coração quando seus olhos verdes se cravaram sobre a imensa figura de Roger. Como um vendaval, entrava na casa seminu. Seu cabelo e as roupas que o cobriam da cintura para baixo jorravam gotas de água. Em cada pegada deixava no chão umas marcas úmidas e suas botas emitiam sons estranhos. Quis olhar para outro lado posto que não fosse próprio de uma mulher contemplar um homem meio vestido, mesmo que fosse seu marido. Mas foi difícil. Estava assombrada ante a exposição de um torso tão firme e esbelto. Jamais acreditou que sob as roupas os homens pudessem esconder uma figura tão magnífica. Era certo que durante suas aulas de arte, as assombrosas esculturas em mármore como O David, de Michelangelo ou O rapto das sabinas, de Juan de Bolonha, mostravam sem pudor como era um corpo masculino. Entretanto o de Roger superava com acréscimo todas aquelas magníficas figuras de mármore.

Tentou recordar se Scott, nas noites que tinham dormido juntos, tinha mostrado algo mais que as pernas. Não, não o tinha feito. Sempre que faziam amor ele cobria seu corpo com uma comprida camisola de algodão e ela também. Respirando entrecortada, confirmou que a mulher que tinha imaginado seu marido como corsário lutando enquanto protegia a sua amada era só ela. Morta de vergonha, abaixou a cabeça. Não sem antes advertir que ele cravava seus olhos nela. Não havia orgulho naquele mar azul, mas sim horror e temor.

? Não tenho nem ideia do que aconteceu entre vocês dois... ? A voz de William a fez voltar a atenção para ele ? mas decidiu partir.

? Partir? Para onde? Por quê...? ? Beatrice, assombrada, virou-se para Evelyn esperando uma resposta, uma palavra, algo que lhe explicasse o que estava acontecendo.

? Deseja que parta? Deseja permanecer sozinha o resto de sua vida? ? O duque pressionou tanto, que suas palavras golpearam com força a cabeça da aturdida mulher. ? Porque se for assim, acompanhe-nos e não suba essas escadas, mas se estiver no certo e não quiser que seu matrimônio se destrua antes de sequer iniciá-lo, já sabe o que deve fazer.

? William! O que ocorre? O que aconteceu? Por que quer afastar-se de novo? ? Interrogava-o sua esposa mudando o olhar de Roger para seu marido.

Rutland se aproximou dela, sussurrou-lhe algo ao ouvido e, depois dela assentir, retornaram à sala de café da manhã.

Evelyn abraçou a si mesma em um vão intento de acalmar os tremores de seu corpo. Estava aturdida, absorta, perdida. Tentou recordar o olhar de Roger. Não havia ódio e sim tristeza, desespero e dor, muita dor. Arrependia-se do acontecido, ou isso é o que ela esperava que sentisse, arrependimento. Com os olhos banhados em lágrimas observou as escadas. Ainda estavam manchadas após sua ascensão. Deu uns pequenos passos para elas, segurou o corrimão de madeira e elevou o queixo. Que Deus a perdoasse. Que Deus tivesse piedade pelo que ia fazer, mas tal como lhe tinha ensinado sua mãe nos últimos anos de existência, preferia lutar que arrepender-se pelo resto de sua vida.


XVII


Ódio. Isso foi o que viu no olhar de Evelyn quando acessou ao hall. Tinha-a contemplado um só instante, o suficiente para compreender que seguia atemorizada, horrorizada ao vê-lo. «O que esperava? ? Perguntou-se mal-humorado enquanto se despojava das poucas roupas que cobriam seu corpo. ? Acaso imaginou que o receberia com os braços abertos e lançando-se para você entre soluços? Mon Dieu!! Je suis stupide!!5». Enfurecido, golpeou com força a porta do vestidor. Esteve a ponto de rompê-la, talvez esse fosse seu propósito, quebrar algo, machucar-se no impacto, sentir mais pesar do que já padecia. Nunca tinha sido tão cruel com uma mulher. Nunca tinha tratado mal a uma dama e, entretanto, pela primeira vez tinha exercido essa crueldade com sua esposa, a pessoa que permaneceria ao seu lado pelo resto de sua vida, e seria a mãe de seus filhos algum dia. Não o perdoaria jamais. O pesar que o atormentava perduraria em seu interior para sempre.

Sem diminuir sua ira nem um pouco, caminhou para o quarto de banho, molhou o rosto e, agarrando-se à bacia, apertou os dentes e gritou como uma besta selvagem. Estava desesperado, amargurado. Desde que nasceu tinha lutado com o demônio que crescia em seu interior, aquele que tinha herdado de seu pai e, agora, depois de tanto tempo controlando-o, a besta zombava dele saindo à superfície. Tinha que afastar-se de todos os que o rodeavam com urgência. Se fosse certo, se já não era capaz de dominar a fera, não só ele estava em perigo, mas sim todos os que amava. É claro que não os machucaria fisicamente, mas... quem golpearia o peito proclamando que mantinha uma amizade com alguém como ele? Aflito, pegou a toalha que tinha sobre uma das banquetas próximas à bacia e, em vez de limpar o rosto, enredou-a na cintura. A necessidade de sair dali o antes possível provocou que evitasse chamar seu ajudante de câmara para vestir-se. Fá-lo-ia ele mesmo. Mas no momento que as solas de seus pés pousaram o chão do quarto, advertiu que não estava sozinho.

? O que faz aqui? ? Grunhiu. Sua voz era pesada, rouca, apática. Afastou o cabelo que cobria o lado esquerdo de seu rosto e a olhou entrecerrando os olhos. ? Perdeu-se ou veio confirmar que minha partida é real? ? Percorreu com grandes passadas o quarto até que chegou à janela. Uma vez ali, abriu as cortinas e a janela. Uma brisa suave apareceu de repente fazendo que não só seus cabelos se movessem, mas sim o objeto que o cobria, também.

Evelyn não era capaz de responder. Desde que abriu a porta e achou escuridão naquele quarto, sentiu pânico. Era tudo tão tenebroso, tão escuro, que a impactou. Seu medo aumentou ao escutar o forte e desesperado grunhido que Roger emitiu de algum lugar que não conseguiu localizar, e esteve a ponto de dar a volta e sair dali, mas quando seu corpo ia obedecer à ordem que lhe mandava o cérebro, escutou-o aproximar-se. Segurou as mãos e levantou o queixo para enfrentar a fúria que ele mostraria ao vê-la. Entretanto, sua expressão de coragem desapareceu de repente ao vê-lo daquela maneira. Seu marido se achava nu. Coberto somente por uma toalha que, graças a Deus, escondia suas partes nobres. Tentou manter a compostura, mas aquela determinação se evaporou ao admirar um corpo tão belo, tão perfeito, tão incrivelmente cinzelado. Onde estava a beleza da qual falava sua tutora ao lhe descrever as perfeitas esculturas de Michelângelo? Sem lugar a dúvidas, a figura de Roger fazia diminuir a perfeição daquelas obras mestras.

? Não fala? Ficou muda de repente? ? Continuou perguntando Bennett. Deu uns passos até situar-se no centro da habitação, colocou suas palmas na cintura e sorriu com uma careta irônica. ? OH, desculpa meu inapropriado traje! ? Disse zombador ao apreciar seu rubor. ? Não esperava nenhuma visita, mas não se sufoque, arrumar-me-ei para você. ? Aproximou-se do armário, tirou algumas roupas e, dando as costas à sua esposa, tirou a toalha e começou a vestir-se.

Evelyn desejou dar a volta e sair dali até que o corpo de Roger se mostrasse de uma aparência decente, mas não fez nem um nem outro. Permaneceu imóvel, na entrada, cravando o olhar na parte posterior do corpo de seu marido e acalorando-se por momentos.

? Então, petite sorcière, que propósito tão urgente provocou que interrompa minha intimidade? ? Falou com zombaria enquanto colocava as meias.

? Não me deixou explicar ? expôs apertando os dentes. Apesar de ficar atordoada ao descobrir a formosa figura de Roger, a ira a fez voltar a si.

? OH, C’est vrai6. Ainda não falou. ? Caminhou para ela com passo seguro, incontrolável, resistente. Pretendia assustá-la para que se pusesse a correr. Porque, embora ela não fosse consciente disso, sua presença, sua beleza, seu cativante aroma o estava deixando tão demente que seria incapaz de controlar o monstro em seu interior. Entretanto, a retidão de seu corpo, o modo como elevava o queixo e como cravava seus olhos nele sugeriram que, apesar de seu empenho em assustá-la, ela não tinha medo ante sua proximidade. Tinha aparecido ali com uma pretensão e muito temia que tivesse que escutá-la. ? Voltarei a repetir só mais uma vez. ? Disse zangado ao não conseguir seu propósito. ? O que faz aqui?

? Não quero que parta ? comentou ao fim.

? O quê? ? O aborrecimento de Bennett evaporou imediatamente. Deu uns passos para trás, os ombros relaxaram inclinando-se brandamente para frente, suas sobrancelhas loiras se arquearam tanto que se uniram e o lábio superior se separou do inferior para revelar uma careta de desconcerto.

? Não desejo que... ? começou a dizer Evelyn. Desfez o nó de suas mãos e se encorajou dando um passo para diante.

? Mon Dieu! Já te escutei! ? Gritou levantando uma mão para fazê-la calar e detê-la.

? Então, se me entendeu bem, por que deseja que o repita? ? Repreendeu-o. ? Você gosta que as pessoas te supliquem? Diverte-se ver como os outros se humilham ante você?

? Humilhar-se? Isso é o que pensa que faz ao subir aqui para me pedir que não parta? Eu acredito que é uma insensata. Uma mulher carente de racionalidade ? resmungou. ? Acaso não teve o bastante com o acontecido ontem? Veio terminar o que comecei? ? Seus olhos, injetados em sangue, fixaram-se na mulher como se quisesse fulminá-la com eles. Apertou os punhos e quis lhe dar de novo as costas, mas algo na debilidade de sua voz o deteve. Parecia como se não tivesse o suficiente fôlego para falar com normalidade e ficou quieto, atento às suas débeis palavras.

? O álcool não nos fez pensar com coerência. Conforme tenho entendido, jamais tratou uma mulher com brutalidade. Possivelmente seu incontrolável desejo por ingerir mais brandy do que pode suportar fez com que me mostrasse aquele monstro...

? Sou, exatamente, esse monstro que descobriu ontem, mon chérie ? assinalou com dureza e cortando com rapidez a distância entre eles. ? Sou um ser maligno, uma besta, um malvado e perverso homem que, apesar das negativas que me ofereceu, quase a tomo, por me pertencer pela lei.

? Você mesmo o disse ? falou baixo ? quase, mas não o fez.

O rosto zangado de seu marido se distanciava muito pouco do dela. O calor que emanava o corpo masculino chocava com o seu. Evelyn, muito ao seu pesar, sentia de novo uma estranha sensação de tranquilidade, embora as pernas não pudessem evitar um tortuoso tremor. Por que, apesar de vê-lo daquela maneira em que expressava tanta violência, ela se sentia segura ao seu lado? «Possivelmente, ? pensou ? porque está louca».

?Votre tête ne fonctionne pas avec lucidité?7 ? Perguntou abrindo os olhos como pratos.

? Je t’interdis de me parler de nouveau en français!!! Ce la devait plaire à les maîtresses lorsque s’eu leur susurrais ces mots a l’oreille, mais moi je n’aime pas. Je ne suis pas comme elles, vous comprends! Je ne suis pas comme elles!8 ? Vociferou Evelyn tão alto que um estrepitoso eco percorreu a habitação.

Roger ficou absorto, imóvel. Tinha que dar tempo à sua cabeça para assimilar duas coisas, a primeira era que nunca teria imaginado que aquela mulher, com aquele leve beleza, não passasse seu tempo curtindo seu físico em vez de sua inteligência. Muitos maridos que falavam com soltura após tomar várias taças se queixavam da banalidade que achavam nas conversações com suas esposas. «Só abre a boca para falar de quantos vestidos pensa comprar, dos escândalos que acontecem na cidade e de quão adequado é caminhar juntos para que todo mundo saiba o matrimônio proveitoso que alcançamos».

Recordou as palavras de lorde Dupuis, um dos cavalheiros mais famosos de Paris e quem aplaudia sua atitude de libertino. Entretanto, sua esposa, essa desconhecida para ele, começava a destruir todas as suas convicções. Não só falava francês com uma pronúncia melhor que a sua, mas sim até zangada, o som de suas palavras era um invejável canto de sereias. Poderia lhe ter gritado os maiores insultos que ele teria mostrado a mesma cara de bobo que tinha naquele momento. E segundo ponto a meditar. Possivelmente o mais importante a ter em conta, reprovava seu comportamento. Esse era o grande problema. Seu passado e sua inapropriada conduta, indubitavelmente, tinham chegado até os ouvidos de Evelyn e lhe exigia que não devia tratá-la como as demais. Muito ao seu pesar, tinha razão. Que conduta tinha adotado desde que a descobriu? A mesma que utilizava com suas possíveis amantes: surpresa, açoite, erotismo, sedução e sexo. Embora como não conseguisse este último, tentou adquiri-lo pelas más. Respirou fundo, retornou para o vestidor, pegou uma camisa e cobriu o torso. Já que iam falar com seriedade, o mais apropriado era que mantivesse também uma imagem adequada.

? Agora foi você quem ficou calado ? repôs com certa soberba.

? Não tenho nada a dizer ? respondeu com voz serena, aprazível.

? Pois então, deveria prosseguir. Tenho muitas coisas que expor.

Com o rosto elevado, caminhou para ele sentindo seu coração galopar dentro de seu peito e apesar de sentir como as forças foram abandonando-a e sua boca secava. Tinha-o surpreendido. Tinha-o aturdido até tal ponto que não era capaz de olhá-la ao rosto.

Com paciência e sempre mantendo uma distância prudente, observou como subia a calça e a ajustava em sua cintura antes de dirigir-se ao canto onde se encontravam os objetos de asseio. Satisfeita por ter derrotado ao homem soberbo e imperturbável, enquanto ele pegava a escova para desenredar o cabelo, ela adotou a mesma pose que na noite passada mostrou ao seu marido quando a encontrou na banheira: cruzando mãos e pernas. Não era um gesto muito feminino, mas lhe oferecia a aparente segurança que devia mostrar para que Roger lhe prestasse atenção.

? Até este momento, comportou-se como um homem libertino, um predador procurando uma presa que lhe levanta a saia para possuí-la. Não me parece correto, mas deduzo que é normal. Ninguém muda anos de mau ensino do crepúsculo à alvorada. ? Sua voz soava mais firme e tranquila. Entretanto, nem a calma nem a firmeza a possuíam naquele instante. Mas se daquela forma bastava para lhe fazer repensar sobre sua determinação de partir de novo, continuaria fingindo. ? Nem você nem eu decidimos permanecer juntos pelo resto das nossas vidas e estou segura de que se tivéssemos encontrado uma possibilidade para desfazer o compromisso, o teríamos feito. Mas aqui estamos, casados porque meu irmão, a quem adoro apesar de sua maldita façanha, decidiu que nossos futuros deviam unir-se.

? Isso não me exime de...

? Não me interrompa. Tento dialogar com uma pessoa irracional e asseguro que é o trabalho mais desesperador que vivi durante meus anos de existência ? assinalou zangada.

Roger se virou para ela e sorriu. Devia zangar-se por seu descaramento, pela ousadia de lhe falar daquela maneira, mas provocou o efeito contrário. Sentiu-se ditoso e inclusive algo petulante por haver se casado com uma mulher tão temperamental. Possivelmente esse era um dos motivos pelo qual Colin decidiu realizar sua patranha. Quem, a não ser um homem com caráter, poderia dominar a uma fêmea selvagem?

? Entendeu? ? Quis saber. Tinha lhe relatado toda uma lista de mandatos que devia acatar para obter um futuro benéfico.

? É óbvio. Tudo o que disse ficou aqui gravado ? mentiu ao mesmo tempo em que pousava uma mão sobre sua cabeça.

? Perfeito. Então... ? estendeu a mão para afirmar o pacto tal como o faziam os homens.

? Então... ? Roger caminhou, esticou a sua e segurou com força a de Evelyn. ? Esqueçamos o passado e tentemos viver uma nova etapa ? disse com um sorriso. ? É obvio... ? Bennett puxou-a para ele com tanto ímpeto que suas bocas mal se distanciaram. Seu fôlego quente se chocava com os lábios femininos e vice-versa ? farei tudo o que me peça se com isso consigo te fazer ditosa.

Evelyn se esqueceu de respirar. Seus olhos se cravaram nos voluptuosos lábios de seu marido. Outra vez a encantou o aroma, seu aroma masculino. Tragou saliva, pensando que aquele gesto lhe devolveria a prudência. Resultou um engano. Roger pousou seus olhos no pescoço e lambeu sua boca como se insinuasse o que faria na sedosa pele de sua garganta. Enrolava-a, dominava-a, hipnotizava-a até tal ponto que nem recordava se, em algum desses pontos, tinha lhe indicado que não podia beijá-la. Porque se era assim, se realmente havia dito por sua boca tal insensatez, algum dia se arrependeria disso.

? Deseja, minha querida esposa, algo mais?

A voz melosa e suave lhe produziu uns inadequados calafrios. Era tão sedutor, tão terrivelmente encantador que, se seguisse assim por mais tempo, seria ela quem saltaria em seu pescoço e invadiria sua boca.

? Não... ? sussurrou afogada.

? Bem. Pois se me permite ? falou isso enquanto a soltava e retornava ao dormitório. ? Tenho que descer e explicar ao meu amigo que finalmente não partirei. Embora tampouco alonguemos nossa visita. Tenho coisas pendentes em Londres e estou seguro de que meu administrador se alegrará de ver-me.

? É lógico. Sete meses sem sua supervisão terá gerado um interminável trabalho, mas o tempo que permaneçamos aqui, recorde que devemos nos comportar como se tivéssemos um matrimônio afortunado. Agora, se não tem nada que objetar, retiro-me. Imagino que Beatrice terá preparado tudo para dar um passeio. O ar fresco e os quentes raios deste magnífico dia nos virão bastante bem ? comentou de maneira altiva ao mesmo tempo em que se dirigia para a porta.

? Portanto...

? Portanto? ? Repetiu Evelyn em forma de pergunta.

Voltou-se para seu marido esperando que, apesar de sua ordem número quatro, avançasse para ela, apanhasse-a entre seus braços e a beijasse como a noite passada na varanda.

? Ambos estaremos muito ocupados durante a jornada. Que tenha um proveitoso dia, Evelyn ? disse realizando uma exagerada reverência.

? Igualmente, Roger. ? Virou-se, abriu a porta e partiu.

Respirava? Não. Claro que não o fazia! Era impossível poder pensar com claridade estando perto de um homem tão impressionante e tomar ar de uma vez. Evelyn notou como seu peito ascendia e descia com brio. Tinha que controlar aquela ansiedade. Tinha que controlar aquele terrível desejo que notava crescer em seu interior quando se aproximava, quando aproximava sua deliciosa boca à sua, quando...

? Basta! ? Exclamou no meio do corredor, acentuando sua fúria com um forte pisão no chão. ? Acabou-se! Esse homem não me fará pecar! Sou uma Pearson!

E após soprar como um touro, jogou a cabeça para trás, segurou o cabelo e desenhando um enorme sorriso, desceu as escadas.

Roger soltou uma enorme gargalhada ao escutar o grito de sua esposa. Era uma mulher divertida, mais do que ela mesma pretendia. Ao mesmo tempo que deliciosa, erótica, luxuriosa e muitas coisas mais que lhe ocorriam em sua mente perversa. «Está bem, minha querida bruxa, começa o jogo da sedução ? murmurou enquanto terminava de vestir-se. ? Te farei tão viciada em mim que rogará para que te toque, que te beije e que te possua. Gritará com tanta força meu nome quando me introduzir em seu corpo que me deixará surdo. Desejará com desespero que minha boca acaricie seus mamilos. Morrerá por me arranhar as costas quando sentir como arde seu corpo sob o meu e, é óbvio, rogar-me-á que não deixe de te amar pelo resto de nossas vidas. Mas até esse momento... que comece o cortejo!».


CONTINUA

IX


Tudo estava preparado para a festa de Elliot. Gente de todas as partes de Londres iria à cerimônia que os duques ofereceriam para a apresentação de seu primeiro filho. Beatrice andava de um lado para outro histérica, igual a William, que se contagiou pela ansiedade de sua esposa. A pequena mulher levava várias semanas aterrorizando o pessoal do serviço, ordenava sem parar quando não tinha no regaço seu bebê, momento no qual os criados podiam respirar tranquilos, mas quando o pousava no berço ou o dava ao seu marido, os lacaios corriam pela residência procurando um buraco onde esconder-se.

Só a senhora Stone e Evelyn acalmavam sua ansiedade. Esta última estava vivendo com eles desde que nasceu o pequeno. William acreditou oportuno retirar a mulher da cidade alegando que Beatrice necessitava, depois da chegada do bebê, o apoio de uma amiga, mas a verdadeira razão era outra bem distinta. O rumor sobre as proposições que a senhora Bennet estava recebendo em seu próprio domicílio tinha chegado aos seus ouvidos e ideou um plano para que partisse dali o quanto antes. Não desejava que quando Roger decidisse retornar descobrisse o que tinha acontecido em torno de sua esposa. Além disso, tanto William como Beatrice decidiram unir de uma vez por todas o casal e que abandonassem a ideia de viverem separados. Não era lógico que seu amigo sulcasse os mares enquanto sua esposa era acossada por canalhas. Tinha que fazer Bennett ver que precisava confrontar a vida conjugal que lhe tinha sido imposta, e se isso lhe custava sua amizade, que assim fosse.

? Crê que virá? ? Perguntou a duquesa com incerteza enquanto pousava com cuidado o pequeno no berço.

? Você leu a resposta. ? William esperava ao pé da cama que sua mulher o ajudasse a colocar a gravata.

Desde que se tinham casado já não necessitava do ajudante de câmara, o qual trocou de trabalho em caráter imediato. Preferia mil vezes as mãos de sua esposa às do jovem.

? Sei que dizia que estaria conosco na apresentação do Elliot, mas não li nada sobre sua esposa. Nem se preocupou em saber como se encontra ? disse zangada.

? Em sua defesa alegarei que ele não sabe que está sob nosso amparo.

? Há, mas...

? Não se conhecem, querida. Terá que lhes dar um pouco de tempo, embora muito temo que Roger se arrependerá dessa escapada quando aparecer ? expôs ao mesmo tempo em que exibia um sorriso malicioso.

? Por que diz isso? ? Beatrice caminhou devagar para seu marido, apertou com suavidade o laço da gravata e apoiou a cabeça em seu peito. Reconfortava-a tanto permanecer ao seu lado que a fazia esquecer qualquer preocupação.

? Apostaria minha cabeça que não teria partido jamais se a tivesse visto uma só vez. Sem lugar a dúvidas, Evelyn é seu tipo de mulher ? afirmou.

Levantou o semblante de sua esposa e dirigiu seus lábios para os dela.

? Você crê? ? Perguntou com insegurança.

Estava convencida de que Roger gostava de todas as mulheres e nunca imaginou que pudesse existir uma em especial. Se não recordava mal, quando se aproximou o dia do baile que organizaram para que todo mundo compreendesse que não era a concubina de William, Bennett lhe disse que gostava das jovenzinhas e Evelyn, embora tivesse um rosto infantil, passava dos trinta.

? Se vier, o comprovará. E agora, minha querida duquesa, baixemos para receber nossos convidados enquanto o futuro duque de Rutland descansa ? disse sem ocultar seu orgulho.

Ofereceu-lhe o braço e Beatrice o aceitou, deu-lhe um beijo na bochecha e saíram do quarto em silêncio.


Evelyn estava muito inquieta para ficar imóvel. Tinha escutado Wanda suspirar mais de trinta vezes desde que começou a penteá-la, mas embora o tentasse, resultava-lhe impossível. Como ia serenar sabendo que ele poderia aparecer na festa? Embora Beatrice e William rissem ao lhe contar o engano que elaborou quando a visitou em sua casa, ela estava segura de que ele não acharia nenhuma graça. Supostamente tinha se casado com a criada e, pela cara de horror que pôs ao vê-la, não pareceu lhe agradar.

Não pensou nas consequências, cansada como estava de tanta visita inadequada. Se tivesse sabido que ele seria o homem com o qual finalmente se casaria, não teria se exposto a atuar daquela forma.

Olhou para diante cravando suas pupilas verdes no espelho. Mal se reconhecia. Levava mais de meio ano vestindo e adotando a figura de uma mulher de luto e agora, ver-se de novo luzindo uma cor diferente ao negro, pareceu-lhe estranho. O luto por seu irmão tinha finalizado, mas não sua dor. Continuava tendo saudades e, embora não o admitiria nunca, também continuava amaldiçoando-o em silêncio por fazê-la casar com um homem de quem só sabia seu sobrenome. Graças aos Rutland descobriu que seria o futuro marquês de Riderland, que não era muito velho e que tampouco tinha levado uma vida tão honrada como lhe pareceu ao conhecê-lo. O senhor honorável era um libertino acostumado a esquentar as camas alheias. Entretanto, William elogiava o caráter de seu amigo. Não havia conversação em que não elogiasse a variedade de qualidades que possuía, mas Evelyn acreditava que o fazia para não entristecê-la, para que não sofresse pelo homem com o qual deveria viver o resto de sua vida.

? Está linda ? sussurrou Wanda apoiando as mãos sobre seus ombros nus. ? Não recordo havê-la visto tão formosa.

? Possivelmente deveria ter posto o rosa. Este é muito chamativo para a ocasião. ? Evelyn se levantou, observou-se com paciência o espelho e suspirou.

Beatrice a tinha convencido para comprar aquele vestido vermelho. Segundo ela fazia jogo com a cor de seu cabelo e enfatizava os belos traços de seu rosto, mas ela se via muito frívola, talvez porque se acostumou a ocultar sua figura sob a escuridão das roupas. Agora, ter que exibir, embora fosse de maneira insinuante, o nascimento de seus seios, mostrar seus braços, exceto o que ocultavam as luvas, e deixar que todo mundo observasse o magro e longo pescoço lhe provocava temor. Sem lugar a dúvidas, sentia-se mais cômoda oculta sob o véu.

? Não diga tolices! ? A criada a fez girar para ela e franziu o cenho. ? Leva muito tempo sob as penumbras e é hora de desfrutar!

? Penumbras? ? Perguntou Evelyn.

Caminhou para a poltrona de veludo azul e, como se tivesse corrido uma maratona, sentou-se elevando as pernas.

? Sim, penumbras. ? Deu uns passos para ela, colocou as mãos na cintura e franziu o cenho. ? Desde que aquele malnascido rompeu seu compromisso, não tem feito outra coisa que esconder-se do mundo. Nunca saía de Seather Low. Cada vez que alguém visitava seus pais se encerrava no quarto e não aparecia pelo salão até que a visita partia. Logo chegou a morte de sua mãe, que Deus a tenha em sua glória. ? Benzeu-se e olhou ao teto. ? Um motivo mais para seguir oculta. Depois a de seu pai e, finalmente, a de seu irmão.

? Tive uma vida dura... ? murmurou como desculpa. Soprou e olhou para o teto. Tudo o que contava Wanda era certo. Da ruptura com Scott e a desculpa que difundiu seu pai ante aquele sucesso, o único que desejava era manter-se afastada de qualquer pessoa que lhe fizesse mal.

? Porque você decidiu que assim fosse. Agora tem uma oportunidade para viver, para desfrutar de tudo aquilo que decidiu não possuir.

? Acredito que se esquece de algo ? disse zangada. Levantou-se com rapidez do assento e, esquivando do corpo de Wanda, dirigiu-se com passo firme para a porta.

? O quê? ? Perguntou a donzela sem afastar a vista dela.

? Que me casei com um homem que não posso recordar como é e ao qual não amo ? sentenciou.

Estava a ponto de sair do quarto quando observou que a criada cortava a distância entre elas. Moveu devagar a cabeça para ela e se surpreendeu de quão rápido tinha chegado ao seu lado. A donzela apoiou as costas na porta evitando assim sua fuga e a olhou sem piscar.

? Acaso não recorda como a contemplava? Foi incapaz de fixar seu belo olhar azul em mim nem que fosse por só um segundo! Você era o centro de sua atenção. Se por acaso o esqueceu, tenho que lhe indicar que quando apareceu no salão se achava em estado de choque, como se permanecesse enrolado após conhecê-la.

? Bobagens! ? Exclamou zangada.

? Não diria isso se você tivesse visto como a sustentava com firmeza entre seus braços, como a olhava preocupado, como a pousava sobre a cama para não a machucar e como...

? Basta! ? Gritou elevando a mão para que parasse de falar. ? Não quero continuar escutando sandices!

? Sim, minha senhora... ? Wanda se retirou da entrada, abaixou a cabeça e conteve a respiração.

? Sinto... ? disse depois de uns instantes de silêncio. ? Me perdoe. Estou muito nervosa.

? Não tenho que lhe perdoar nada. Acredito que fez bem em me fazer parar ? comentou em voz baixa.

? OH, Wanda! ? Exclamou ao mesmo tempo em que se abraçava a ela. ? Tenho medo! Muitíssimo!

? Não tenha. Sei que no final será feliz. O senhor Bennett a converterá na mulher mais ditosa do mundo.

? E se descobrir a verdade? Que há outro engano mais cruel que o daquele dia? ? Encostou a testa no peito da mulher.

? Se chegar a amá-la, seu passado não lhe importará ? afirmou com veemência. Suas mãos se dirigiram para os braços de Evelyn e com cuidado a distanciou para que pudesse olhá-la aos olhos. Uma vez que a jovem elevou o queixo, Wanda lhe ordenou com suavidade: ? E agora se recomponha. Tem uma festa à qual assistir.


X


Tinha estado adiando o momento de sua chegada tudo o que pôde, mas já não podia fazê-lo mais. Quando o cocheiro estacionou a carruagem no único espaço que encontrou livre pelos arredores de Haddon Hall, Roger estava tão impaciente que ele mesmo abriu a porta. O entardecer já tinha dado lugar à escuridão da noite e só os lobos pareceram precaver-se de sua chegada.

Olhou ao seu redor. Novamente se apresentava na mansão a umas horas inapropriadas, embora estivesse seguro de que nesta ocasião William não o receberia com seu habitual sorriso. Colocou o chapéu, cobriu seu corpo com a capa e avançou sem escutar os murmúrios de Anderson. Possivelmente continuaria resmungando sobre o inadequado de chegar mais de duas horas atrasado a uma cerimônia tão importante, mas nesse momento não queria lhe prestar atenção. Sua mente estava ocupada em averiguar como devia atuar frente à sua esposa e como ela receberia a notícia de sua chegada. Não era o mesmo a encontrar a sós, onde só escutariam seus alaridos os criados do lar, ao escândalo que se armaria em uma cerimônia com mais de setenta convidados.

Com firmeza, agarrou a aldrava e tocou várias vezes. O ruído da orquestra parecia silenciar seus golpes. Deu uns passos para trás para poder olhar a varanda, que permanecia aberta. Com certeza os anfitriões tinham decidido deixa-la dessa forma para que os casais saíssem e pudessem encontrar-se durante uns instantes a sós.

Roger sorriu ao recordar o momento no qual encontrou seu amigo dançando com Beatrice e como a beijava com ternura. Apaixonou-se. Por mais incrível que lhe parecesse, William tinha entregado seu coração a uma mulher. Invejou-o. Sim, embora parecesse incrível cobiçou aquele sentimento de afeto. Nunca tinha tido nada um pouco parecido. Suas amantes, apesar de serem boas na cama, não o tinham olhado como Beatrice olhava seu amigo. Os olhos verdes da mulher brilhavam com mais força que a lua e o desejo de protegê-lo de qualquer mal sobrepunha ao seu próprio benefício.

Sua mente levou-o ao dia do duelo, voltando a ver a pequena mulher correndo por Hyde Park, tropeçando na erva, destroçando aquele bonito vestido. Recordou-a ajoelhada no chão chorando ao pensar que William havia falecido. Nunca observou em uma mulher tal desconsolo, tal tristeza pela perda de um homem. E por último rememorou o beijo de ambos. Uma amostra de paixão que deu muito o que falar na sociedade londrina, posto que não estava bem visto que as pessoas se beijassem em público. Mas se houver amor, qual o problema demonstrar? Agora ele não encontraria nada parecido. Por ser um imbecil, por ser um néscio, Deus o tinha castigado lhe oferecendo uma esposa que poderia ser sua própria mãe. Sem contar, claro está, que se desejava ter descendência, teria que tentá-lo o antes possível posto que ela logo ficasse estéril.

De repente um som despertou-o de seus pensamentos. Dirigiu os olhos para a entrada e descobriu que alguém, por fim, atendia-o.

? Boa noite... senhor Bennett? ? Perguntou o mordomo mais assustado que assombrado.

? Boa noite, Brandon. Parece que a festa ainda não finalizou ? disse. Como era habitual nele, avançou para o interior do lar sem ser convidado.

? O que lhe aconteceu? ? Continuou perguntando o criado atemorizado.

? Nada, por que o diz? ? Tirou o chapéu e a capa para entregar a Anderson que, como sempre, permanecia ao seu lado.

? Parece que o assaltaram no caminho e o tiveram detento durante anos! ? Exclamou o senhor Stone escandalizado.

? Diz pela barba e o comprimento do meu cabelo? ? Perguntou divertido Roger. ? É meu novo aspecto. Acredito que a vida de casado não me tratou tão bem como esperava.

? Ordenarei ao antigo ajudante de câmara que amanhã visite seu quarto para arrumá-lo ? disse o criado com certa resignação ao comprovar que a atitude do homem era a de sempre.

Não parecia ter mudado durante sua ausência. Seguia sendo o mesmo cavalheiro descarado, presunçoso e déspota, e por muito que rezou a Deus para que a vida o pusesse em seu lugar, este não tinha escutado suas súplicas e o premiara com uma mulher encantadora.

? Não se incomode, não vou requerer seus serviços. Satisfaz-me minha nova aparência ? comentou ao mesmo tempo em que caminhava com solenidade para o salão principal.

Anderson olhou com tristeza ao senhor Stone. Não precisou falar para entender o que desejavam dizer-se, bastou um leve assentimento de cabeça para conhecer as palavras que guardavam em suas mentes.


Quanto mais se aproximava da entrada, mais desejo tinha de sair correndo. Durante o tempo que esteve navegando se expôs mais de um milhar de formas de tratar seu novo estado, mas na hora da verdade nenhuma lhe resultava adequada. O que devia dizer? «Senhora Bennett, encantado de voltar a vê-la. Quero lhe indicar que decidi retornar, mas não tema, deixá-la-ei viver em sua residência o tempo necessário até que eu queira ter um herdeiro». Grande tolice! Sem lugar a dúvidas ela sairia gritando da festa e se encerraria em seu quarto até que ele partisse. Prometeu-lhe que não a incomodaria e estava quebrando sua palavra.

Roger levantou o rosto para olhar para o interior da sala. Havia casais dançando. Reconheceu o senhor Wadlow, o pároco e o administrador de William. Não quis olhar para o grupo de mulheres que se agruparam no lado direito. Preferiu avançar para os homens, onde pode divisar sem obstáculos seus dois amigos. Sorriu ao ver que Federith também tinha aparecido e desejou de uma vez por todas conhecer sua esposa, posto que a senhora Cooper parecia um fantasma.

Os olhos escuros de William se cravaram nos seus e tal como pensou, não obteve um sorriso como resposta ao seu.

? Boa noite, cavalheiros. William, Federith, como sempre é um prazer voltar a os ver. ? Estendeu a mão para Cooper e este o saudou com um bom apertão. Logo a ofereceu a Rutland e o duque a negou.

? Pensava que tinha morrido, ? disse William com voz dura ? porque se não foi assim, não encontro razão alguma pela qual tenha vindo tão tarde.

? Não me castigue, amigo ? comentou mostrando um sorriso. ? Meu pesar ainda não começou.

Rutland se desculpou dos convidados e, sob seu atento olhar, pegou com força o braço de Roger para afastá-lo do salão. Sem lhe dar nenhum tipo de explicação o conduziu para o balcão. Uma vez fora, liberou a forte amarração, empurrou-o para o corrimão como se quisesse lançá-lo, e o observou com ira.

? Não estará pensando em me beijar, não é? ? Bennett rompeu o inesperado silêncio com seu típico tom jocoso. Era a primeira vez que sentia a fúria de seu amigo em volta dele e não gostava de ver como uma amizade de tantos anos começava a se quebrar.

? Por que chegou a estas horas? Acaso não ficou bem clara a hora da cerimônia? Beatrice teria gostado que permanecesse ao nosso lado em um dia tão importante.

? Sinto muito, peço-te mil desculpas e os compensarei com...

? Não há nada que compense a dor que nos causou, Roger! ? Gritou mal-humorado. ? Queríamos que você fosse o padrinho do nosso filho!

? Quem ocupou meu lugar? ? Perguntou depois de uns minutos de silêncio tenso e caminhando para o lado contrário ao que permanecia William imóvel.

? Federith.

? Foi a melhor opção. Eu jamais estarei à sua altura para tal honra.

? Maldito seja, Bennett! Que diabos aconteceu com você? Quase não te reconheço.

? Sete meses dão para muito... ? sussurrou.

Girou sobre os calcanhares e endireitou sua figura, como se assim pudesse desfazer-se da tristeza que lhe tinha provocado descobrir que seus amigos tinham acreditado nele para o cuidado de seu primeiro filho, e os tinha defraudado.

? Dão para exibir esse aspecto de miserável que mostra ? disse o duque em tom mais cometido.

? Cheguei ontem pela manhã e após desembarcar pus rumo para Haddon Hall ? mentiu. Não queria revelar o que tinha descoberto após pôr os pés em Londres porque, além de o exortar sobre a como pedir respeito quando ele mesmo não o tinha feito, riria ao compreender que no fundo não odiava tanto como acreditava o título de seu pai.

? Não minta! ? Exclamou William apertando os dentes. ? Esquece-se de que nada se pode ocultar? Crê que uma notícia tão importante como a volta de um marido que abandonou a sua mulher depois de casar-se não chegaria ao condado de Derbyshire? Sei que apareceu faz algo mais de dois dias e que nessa mesma noite visitou o clube. Sentia falta de seus jogos e suas bebedeiras? Essas são as razões que o impediram de aparecer a tempo na apresentação do meu herdeiro?

? Não! ? Disse com rapidez.

? Então? O que ocorreu? E não volte a me mentir ou jamais voltará a pisar em minha casa ? sentenciou.

? É duro de contar, William, inclusive tenho que assumir antes. ? Colocou a mão direita no bolso de sua jaqueta, tirou um pacote de cigarros e acendeu um.

? Escuto-te. Conhece-me bem e sabe que não te julgarei seja o que for ? respondeu com voz sossegada.

? É verdade que retornei faz vários dias, mas antes de vir precisava esclarecer certas coisas. Durante minha longa viagem repensei sobre meu futuro. ? Fez uma pausa para dar uma longa inspiração. ? Como pode imaginar, entre minhas reflexões se encontrava como fazer frente à minha esposa. Já te disse que lhe fiz a promessa de me afastar de seu lado para que pudesse ter uma vida em paz, mas isso fez estragos na minha. Assim decidi visitá-la para lhe dar uma explicação sobre minha volta.

? Ela está conosco ? interrompeu Rutland. ? Beatrice e eu decidimos que o mais apropriado seria que permanecesse uma longa temporada ao nosso lado.

? E lhes agradeço isso de coração, porque não imagina o que descobri quando cheguei ? repôs aflito.

? Sabemos. Como te disse antes, nenhum rumor tem fronteiras.

? Desde quando sabem que todo mundo lhe propôs que fosse sua amante? ? Inquiriu um tanto zangado. ? Por que não me fez saber isso em sua carta?

? Não achei oportuno...

? Oportuno? ? Franziu o cenho. ? Dar-me essa informação não te pareceu oportuno?

? Precisava esclarecer as ideias e pensei que te viria bem um pouco mais de tempo.

? Maldito seja, Rutland! Sabe que quase todos os homens de Londres lhe propuseram essa loucura?

? Sim.

? E? O que faria você em meu lugar? ? Repreendeu-o.

? Em primeiro lugar, eu não a teria deixado sozinha em um momento tão duro. Não só tinha perdido seu irmão de uma maneira desonrosa, mas sim também descobriu que se casou com um bastardo que não se interessou por seu bem-estar ? esclareceu com solenidade.

? Prometi-lhe que a deixaria viver em paz! ? Exclamou irado. Atirou o cigarro ao chão e o pisou com ímpeto. ? E embora não o creia, sou um homem de palavra. Além disso, meu administrador se ocupou de que não lhe faltasse nada.

? Perguntou a ela o que desejava? Dignou-se saber o que pensava ela naqueles momentos? ? Disse irado.

? Não precisou, vi-o em seus olhos. Não me queria ao seu lado ? refletiu com tristeza.

? Quando viu seus olhos? Nas bodas? Antes de embarcar? ? Insistiu William.

? No dia que me apresentei em seu lar e deixei que lesse o que seu irmão me fez assinar ? confessou com um pequeno fio de voz. ? Embora te possas assegurar que mais pavor provocou à sua criada que a ela.

? Já entendo... ? um pequeno sorriso apareceu no rosto de Rutland. Evelyn lhes tinha contado o acontecido naquele dia. Ela se fez passar pela criada e esta pela senhorita Pearson. Conforme lhes disse, quis dizer-lhe no dia do enlace, mas ao partir sem mal lhe dirigir a palavra, decidiu prosseguir com seu segredo.

? Sei que soa muito duro dizer isto, William, mas não a quero. Não é o tipo de senhora com a qual desejo viver o resto da minha vida. Casei-me com uma mulher pela qual unicamente sinto lástima. E mais, vou confessar algo que não pode sair daqui. ? Olhou Rutland aos olhos e se manteve calado até que seu amigo afirmou com a cabeça: ? Juro por minha vida que me impactou mais a criada que ela.

? Então... precisava se afastar de sua esposa ou da criada? Está me confundindo ? disse divertido.

Conhecendo-o como o fazia, estava seguro de que ao descobrir Evelyn, embora fosse vestida de criada, deixara-o em estado de choque. A debilidade de Roger pelas mulheres com o cabelo de cor de fogo era indescritível e apostaria o pescoço que a verdadeira razão pela qual embarcou foi o desejo que a moça lhe tinha provocado. Bennett não queria parecer-se com seu pai. Odiava todos os enganos que tinha sofrido sua mãe, os bastardos que rondavam as ruas da cidade e a obsessão do atual marquês por levantar saias.

? Mon Dieu! ? Exclamou elevando as mãos e as agitando. ? Pela criada! Durante estes malditos meses só pensei nessa mulher, em seu aroma, em como seria acariciar aquele cabelo de fogo. Tenho escrito várias cartas à minha esposa com a esperança de que suas respostas inspirassem algo que não sentia, mas não recebi nenhuma só resposta. Tampouco lhe interesso, só sou a pessoa que lhe oferece estabilidade econômica. O quê? ? Encarou William ao ver que sorria. ? Por que sorri?

? Crê de verdade em suas palavras? ? Aproximou-se e pousou a mão sobre seu ombro.

? Deveria pensar em outra coisa? ? Respondeu inclinando a cabeça levemente para baixo.

? Reflita sobre isto: sua esposa vive conosco há umas quatro semanas, mas esteve sozinha em sua residência durante seis meses. Quantos homens puderam lhe oferecer semelhante loucura durante esse tempo?

? Muitos... ? sussurrou sem voz.

? A quantos disse que sim?

? Segundo o mordomo que me recebeu em Seather Low, a nenhum.

? Isso não te indica nada?

? Não ? respondeu. ? Possivelmente nenhum dos que apareceu a atraiu sexualmente.

? Pois se pensa isso é mais parvo do que eu imaginava. A conversação terminou. Devemos retornar. Estou seguro de que Beatrice andará me procurando e não quero que se sinta abandonada. ? Rutland avançou para a entrada enquanto observava de esguelha seu amigo.

Como se lhe tivessem mostrado uma adaga, Bennett caminhou para o interior da sala de novo. As pessoas continuavam tal como antes de ausentar-se: dançavam e cochichavam sem cessar. Possivelmente estavam falando de sua chegada e de sua piorada aparência. Entendia-o. Com a espessa barba e o cabelo à altura dos ombros dava a imagem de um corsário, mas tampouco enganava, tinha-o sido durante o tempo que sulcou os mares.

Dirigido por William, retornou ao grupo onde os homens prosseguiam com seus bate-papos aparentemente importantes. Jogou uma leve olhada pelo lugar, procurando a sua esposa, embora não a viu. Todas as que vestiam luto eram baixas e cheias. Sabia que em sete meses se podia mudar muito, mas... tanto? De repente os homens deixaram de falar para dirigir seus olhares para um ponto da sala. Roger estava de costas e até que não se virou não pôde comprovar o que os tinha deixado mudos. Abriu os olhos tanto que quase se saíram das órbitas. Não podia ser. Que fazia ela ali acompanhando Beatrice e vestida como uma dama? Com rapidez voltou a vista para Rutland, que sorria mais do que o normal.

? O que é tudo isto? ? Perguntou Bennett zangado. ? O que ela faz aqui?

? Eu gostaria que fosse ela mesma quem lhe dissesse isso, Roger, mas tal como ficou, temo que devo ser eu a pessoa que lhe dê o relatório...

? Do que deve me informar? O que acontece? ? Apertou com tanta força as mandíbulas que começou a lhe doer a cabeça.

? Meu querido amigo, ela é sua esposa.


XI


Sabia que estava ali assim como podia perceber seu penetrante olhar cravado no pequeno decote das costas que apresentava seu vestido. Tentou manter a calma e continuar conversando com as mulheres que se encontravam ao seu redor, mas apesar de querer mostrar indiferença, não podia. Tremiam-lhe as pernas e mal podia segurar a taça sem que derramasse o champanha. Tentou escutar o monólogo apaixonado de uma das convidadas, embora na realidade não pudesse ouvir uma só palavra. Todo seu corpo se centrava em uma coisa: ele.

De repente, observou que as mulheres ao seu redor começavam a olhar atrás dela e foi então quando seu coração deixou de pulsar. Apreciou que algumas, as mais jovens, moviam suas pestanas como se fossem leques e levantavam a comissura de seus lábios em forma de sorriso. Outras, casadas, ruborizavam-se e ficavam um tanto nervosas. A Evelyn não cabia dúvida de que a causa daquela perturbação feminina era seu marido. Até àquele momento, nenhum homem tinha causado tanta expectativa entre as mulheres.

Tentou recordá-lo: alto, com bom porte, o cabelo loiro e uns olhos azulados como o céu. Sim, ela também ficou aniquilada no dia em que o recebeu em sua casa, mas devido à sua idade e à má experiência com Scott, já não se fixava no físico dos homens e sim no que escondiam em seu interior. Contemplou surpreendida a ansiedade a que estavam sucumbindo suas acompanhantes. O que estaria fazendo? Quis dar a volta e averiguá-lo por ela mesma, mas seu corpo não lhe respondeu. Tinha medo de enfrentar-se cara a cara com ele, embora tivesse meditado muitas vezes em como atuar após sua volta, não estava preparada. Como reagiria ao vê-la? Ficaria tão zangado para lhe gritar diante de todos que era uma mentirosa? Possivelmente. Seu marido não só tinha sofrido a mentira de Colin, mas também a sua.

Tomou um sorvo de sua bebida. Logo outro e quando notou uma suave brisa quente em seu pescoço, terminou-a de um gole.

? Bonne nuit, madames ? saudou Roger as damas, mostrando um enorme e sensual sorriso. ? Estão se divertindo?

? Roger... ? Beatrice, atenta à perplexidade de Evelyn, adiantou-se e lhe estendeu a mão. ? Acreditei que enfim não viria.

? Perdoe o atraso, senhora duquesa, mas uns assuntos um tanto abafadiços em Londres fizeram com que minha partida se atrasasse ? disse colocando-se atrás de sua esposa e esperando que ela se virasse para ele e o saudasse.

Notava o pequeno tremor de seus ombros e os agitados movimentos do líquido de sua taça. Estava nervosa ante sua presença e, embora não fosse oportuno, teve uma vontade imensa de pegá-la pela cintura e arrastá-la para o exterior da casa. Ali, acompanhados só pela escuridão da noite, faria o sem-fim de perguntas que lhe tinham abrasado a cabeça enquanto caminhava para ela, mas se conteve, era melhor torturá-la um pouquinho mais antes de assaltá-la com suas dúvidas e beijar aqueles lábios que tanto tinha pensado devorar.

? Solucionaram-se? ? Beatrice não gostava de continuar conversando com quem tinha faltado à confiança de seu marido, mas o fez por Evelyn, que não tinha deixado de olhar o quadro que se encontrava na parede em frente e de levar uma taça vazia aos lábios.

? Bien sûr que oui!!2 Acaso duvida do meu poder resolutivo? Só foi um mal-entendido e acredito que deixei muito claro que ninguém pode tocar no que é meu ? disse em tom dominante. ? Por certo, minha querida esposa, encontra-se bem? Observo que sua tez empalideceu e sua mão não pode parar de tremer.

? Só preciso tomar um pouco de ar fresco ? murmurou olhando Beatrice em busca de ajuda, mas Roger não lhe deu a oportunidade, estendeu sua mão, pegou a sua e lhe disse com voz aveludada:

? Acompanhe-me. Levá-la-ei para o exterior. Estou seguro de que se recuperará quando respirar o ar puro das terras do meu amigo.

Quando Evelyn se virou para lhe reprovar tal imoralidade, ficou assombrada. Seu marido, aquele a quem recordava com um perfeito corte de cabelo e um rosto suave e delicado, tinha mudado totalmente. Seu cabelo agora roçava os ombros e a barba, espessa e áspera, ocultava a metade do seu rosto deixando a descoberto só os lábios. Agora entendia o estupor das mulheres.

? Não tenha medo... não vou mordê-la... pelo menos não diante de toda esta gente ? sussurrou-lhe no ouvido enquanto caminhavam para os jardins.

? Não se atreveria... ? disse Evelyn com voz estrangulada.

Se a tinha segurado pela mão em vez de lhe oferecer o braço como era o normal, estava segura de que faria algo quando tivesse a mínima oportunidade.

Apesar de serem menos de cem passos do interior da sala para o exterior, a Evelyn parecera-lhe uma eternidade. Não via o momento de poder soltar aquela mão firme e correr para algum lado da casa para esconder-se. Olhou de esguelha a seu marido e não observou ira alguma. E mais, parecia divertido, mas ela seguia intranquila. Sabia que lhe ia pedir explicações, não só por seu engano, mas também pelo que teria escutado em Londres. Ela tinha rejeitado todas as proposições porque desde que lhe fizeram chegar a primeira carta que escreveu seu marido, soube que nem tudo estava perdido, mas não era o momento nem o lugar para indicar-lhe.

? Bom, senhora Bennett ? disse Roger abrindo a mão para que ela pudesse afastar-se de seu lado. ? Acredito que temos vários temas pendentes, não é?

? Não sei a que se refere ? replicou andando para o corrimão de pedra. Uma vez que se apoiou nele, olhou para baixo para calcular os metros que havia se por acaso tivesse que saltar.

? Em primeiro lugar, vejo que não é a senhorita Pearson que me recebeu. Ou possivelmente, o fato de que luza uma cor diferente ao negro me deu outra imagem diferente da que lembrava ? afirmou em tom jocoso.

? Estava cansada, enojada das contínuas visitas de cavalheiros que me ofereciam matrimônio ? explicou sem olhá-lo. ? Como pode imaginar, pensei que era mais um.

? Claro... claro... e por isso sofreu um desmaio ao ler a carta. Por certo, fazendo alusão ao tema das cartas e das boas notícias, o senhor Lawford me passou a fatura de dez libras como conceito de uma garrafa de... brandy?, conforme afirmava, que você quebrou em seu escritório.

Um sorriso cobriu seu rosto. Três semanas depois de zarpar recebeu uma missiva do administrador lhe relatando a escandalosa visita de sua esposa e como esta lhe tinha quebrado um de seus melhores licores. Como resposta, Roger lhe mandou uma caixa com seis garrafas e as dez libras que reclamava. Recordou que aquele dia, justo quando tinham superado uma das piores tormentas, fez-lhe tão feliz e gargalhou tanto da atuação de sua mulher que se sentiu orgulhoso dela.

? Aquele ladrão... ? resmungou com raiva. ? Tinha que ter quebrado aquela garrafa na cabeça dele.

? Então nós teríamos que ter casado no cárcere, não crê? ? Disse antes de soltar uma enorme gargalhada.

? Isso teria sido menos escandaloso que a morte do meu irmão ? comentou com pesar.

? Bom, não nos afastemos do tema que me interessa. Por que não me disse quem era no dia que nos casamos? ? Perguntou sem parar de caminhar até que se colocou atrás dela.

Queria que esquecesse a dor que devia padecer pela perda de seu irmão e a solidão que teria sentido sem ter seu marido ao seu lado. Mas já não partiria mais. Embora não o quisesse, ele já não a deixaria sozinha.

? Tive que assimilar muitas coisas, senhor Bennett. ? Ao perceber o corpo de seu marido próximo, um estranho calafrio a fez tremer.

? Tem frio? ? Perguntou preocupado Roger. Afastou-se uns passos, tirou a jaqueta e esperou que sua mulher desse a volta para oferecer-lha. Ao não fazê-lo, ele mesmo a colocou sobre os ombros nus.

? Tem que entender... ? começou a dizer sem afastar o olhar do horizonte ? que depois da morte do Colin começaram a ver-me como uma mulher carente de recursos e uma possível candidata a contrair matrimônio com viúvos ou anciões solteiros.

Agradeceu a calidez do casaco de seu marido. Colocou as mãos nas mangas e inspirou com força. Cheirava a ele: uma mescla de colônia, essência viril e tabaco. Todo aquele tempo imaginando como cheirava e agora tinha a resposta.

? E... cada vez que alguém a visitava se fazia passar pela criada? ? Perguntou zombador.

? Não, só o fiz em uma ocasião. ? Quis virar-se para enfrentá-lo e, ao fazê-lo, aproximaram-se tanto que seus rostos estavam mais perto do que o desejado.

? Por que não me disse isso no dia das bodas? ? Roger esticou as mãos para o corrimão e a reteve com seu corpo. Inclinou-se tanto para ela, que seus pequenos seios se ajustaram ao tecido do vestido e começou a sobressair mais superfície arredondada do que o permitido.

Roger não pôde evitar olhar para eles e se lambeu pensando no momento no qual os teria em sua boca. Muito ao seu pesar subiu de novo a vista para encontrar-se com o olhar da mulher. Não estava assustada, mas sim surpreendida e, como reflexo, apertou com suavidade seus lábios. Aquele ato infantil fez com que Roger desejasse com todas as suas forças beijar aqueles voluptuosos e eróticos lábios.

? Teria mudado algo? ? Perguntou Evelyn fazendo-o despertar de seus pensamentos.

Bennett teve que fazer um esforço para recordar o que lhe tinha perguntado para poder responder.

? Se teria mudado algo? ? Sorriu maliciosamente. ? Teria mudado tudo! ? Exclamou antes que sua boca colidisse com a dela.

Evelyn ficou sem respiração. Era a primeira vez que um homem a assaltava daquela forma. Os beijos de Scott eram suaves, desajeitados e inclusive débeis, mas o beijo de seu marido era um tornado. Invadiu o interior de sua boca conquistando-a, dominando-a, possuindo-a ao seu desejo. Era tanta a paixão naquela amostra que notou como seu sangue começava a borbulhar.

? Isto, minha pequena bruxa, é só um adiantamento do que será viver ao meu lado ? murmurou Roger com grande esforço.

Tremia-lhe o corpo. Suas mãos poderiam fundir as calotas polares e seu sexo levantar a vela mais pesada de seu navio. Não havia sentido tanto desejo por ninguém em sua vida. Possivelmente a razão de tal exaltação fora seus meses de celibato ou, possivelmente, que sua esposa tinha os traços que ele considerava perfeitos para ser uma mulher excitante. Fosse como fosse, tinha vontade de mais. Muito mais.

? Isto não foi apropriado, senhor Bennett ? disse Evelyn tirando a jaqueta e oferecendo-lha com uma mão.

? Meu nome é Roger, entendido? Não voltará a me dizer senhor Bennett nunca mais ? comentou a contragosto. ? E quero a avisar que sou um homem bastante apaixonado. Não albergue a possibilidade de ter uma só noite livre. Onde a veja, onde a encontre, se quiser a possuir, a possuirei, se quiser a beijar, a beijarei. ? Aproximou-se de novo dela, agarrou-a pela cintura e falou tão perto de seus lábios que se roçavam. ? Mas calma, não serei só eu que vou obter prazer, minha querida esposa. Deixá-la-ei tão viciada em mim que não se importará que eu a busque, será você quem virá para mim.

E voltou a beijá-la.


XII


Acompanhou-a até o interior do salão. Desta vez de maneira correta: ela segurando-o pelo braço e mantendo uma distância prudencial entre os dois. Nada mais a acrescentar, todos os olhares se dirigiram para o casal. Evelyn notou como lhe ardiam as bochechas. Nunca havia sentido tanta vergonha, nem sequer quando anunciaram a ruptura de seu compromisso com Scott. Tentou abaixar a cabeça para ocultar seu rubor, mas voltou a sentir o calor do fôlego de seu marido na orelha.

? Esqueci-me de dizer que é linda, ? sussurrou ? e que me sinto muito afortunado ao provocar certa inveja entre os cavalheiros assistentes desta festa.

Quis lhe replicar, repreender-lhe por lhe dizer aquele tipo de coisa, mas não o fez. Talvez porque ninguém a tinha agradado com palavras de adulação. Sempre tinha sido a pobre Evelyn. A primeira em expressá-lo foi sua mãe no dia que a descobriu chorando amargamente em seu quarto ao descobrir aquilo que desejava ocultar de todo mundo, mas que a natureza não lhe deixaria esconder.

Com passo inalterável e sem deixar de mostrar certa arrogância, seu marido a conduziu para o grupo de mulheres. Estas, ao vê-lo, voltaram a pestanejar como se fossem abandonar seus acompanhantes. Não havia dúvida, seu marido era um homem bonito e muito sedutor.

? Espero que não tenha reservado todas as suas danças, minha pequena bruxa. Enlouqueceria se esta noite não pudesse dançar contigo ? murmurou de novo em sua orelha.

? Não tenha esperanças, Roger ? disse seu nome de batismo com reticência. ? Se não me engano, tenho todas as peças ocupadas.

? Então, mon chérie, terei que arregaçar as mangas e brigar com algum dos meus oponentes ? comentou sorrindo meio de lado.

? Não se atreverá? ? Virou-se para ele e o olhou assombrada. Evelyn contemplou pela primeira vez naquelas pupilas uma intensa cor vermelha. Ficou observando-o sem poder pestanejar. Seria capaz de realizar tal maldade? O endurecimento da mandíbula e aquele olhar intenso lhe indicaram que falava com total seriedade. Com efeito, considerava-a sua propriedade, mas... isso era suficiente para começar um matrimônio?

? Como já disse antes, o que é meu não se toca ? sentenciou aproximando imprudentemente seus lábios dos dela.

Esteve a ponto de beijá-la diante de todo mundo, mas considerou melhor. Apesar do imenso desejo que sentia por apanhá-la de novo entre seus braços e saborear os lábios de sua esposa, conteve-se. A contragosto elevou o rosto para apreciar como as damas que se encontravam atrás de sua mulher não deixavam de sorrir com a paquera. Nenhuma delas chamou sua atenção salvo quem o tinha deixado sem palavras: Evelyn. Era, para ele, a única em quem poderia pensar nesse momento.

Perdido por seu comportamento, recordou as palavras que William lhe disse após casar-se com Beatrice. Zombou de seu amigo em várias ocasiões e lhe tinha dito, de maneira categórica, que ele jamais possuiria esse tipo de ideias absurdas por uma mulher. Que homem razoável precisava demonstrar que uma mulher lhe pertencia? E por que aparecia aquele tolo instinto de protegê-la até tal ponto de ansiar a morte da pessoa que lhe produzira dano ou a ferisse? Entretanto, seus pensamentos, por mais que tentasse fazê-los desaparecer, eram exatamente aqueles pelos quais zombou. Mas... como podia meditar sobre coisas tão importantes depois de um par de beijos? Era certo que tinha causado nele um grande impacto. Não só no dia em que ela se fez passar por donzela, motivo principal pelo qual decidiu afastar-se, mas também ao vê-la aparecer na sala vestida de vermelho, deixando que seu cabelo de fogo brilhasse como uma lua cheia abrasada pelo sol.

Tinha que refletir muito sobre o que lhe estava acontecendo e a melhor forma era apanhando uma garrafa de uísque. Antes de afastar-se e encher seu estômago do ansiado licor, inclinou levemente a cabeça para despedir-se daquelas que não cessavam de cochichar e, sem mediar palavra com sua esposa, dirigiu-se para o grupo de cavalheiros. Albergava a esperança de que as incoerentes reuniões masculinas o abstraíssem de suas inapropriadas divagações.

Evelyn não podia respirar. O espartilho a apertava tanto que não entrava ar em seus pulmões. Por uns instantes acreditou que ia beijá-la diante de todos os presentes. Isso teria sido um escândalo terrível. Ninguém beija sua esposa em público!! Ansiosa e desesperada procurou com o olhar Beatrice e quando a achou sentada ao lado de uma de suas convidadas, dirigiu-se para ela.

? Se me desculpar ? disse a duquesa à anciã ao mesmo tempo que se levantava.

? É claro! Tem mais convidados aos quais atender ? respondeu a mulher cravando seus olhos em Evelyn.

Beatrice não quis perguntar à moça o que tinha acontecido, pela expressão de seu rosto intuía que nada bom. Antes que todos os olhares se centrassem na senhora Bennett e murmurassem sobre o ocorrido depois do desaparecimento do casal, estendeu sua mão para ela, segurou-a com força e a afastou do salão. Se desejava falar do acontecido, o melhor lugar para permanecerem tranquilas e fora do alcance de terceiros ouvidos era a cozinha. Além disso, confiava em que Hanna pudesse ajudá-la se ela não fosse capaz de consolá-la.

Caminhando para o lugar eleito, rezava para que Roger não a tivesse tratado com desprezo e que em suas palavras mostrasse compreensão pelo engano. Pelo tremor da mão de Evelyn, muito temia que não tivesse atuado com muita cortesia.

? Senhoras?! ? Exclamou a senhora Stone depois de dar um salto ao escutar uma portada em sua cozinha.

? Hanna, por favor, pode nos servir um chá? ? Perguntou Beatrice à cozinheira ao mesmo tempo que se virava para Evelyn e lhe dava o abraço que tanto parecia necessitar.

? Servir-lhes-ei chá de tília, se lhes parecer bem. ? Sem esperar o assentimento da duquesa, a anciã começou a esquentar água e a procurar nos armários os raminhos de tília.

? Isto é um pesadelo ? sussurrava a senhora Bennett quando Beatrice deixou de abraçá-la. ? Nunca passei tanto...

? O que lhe fez? O que lhe disse? ? Interrompeu a duquesa aterrorizada. ? Zangou-se muito ao descobrir seu engano? Rejeitou-a? Foi mordaz? Evelyn!! ? Gritou-lhe ao ver que ela não reagia.

? OH, meu Deus! Tem piedade de sua serva! ? Exclamou fechando os olhos.

Beatrice e Hanna se olharam sem saber o que dizer. Então a duquesa, tentando manter a serenidade, afastou uma cadeira e fez com que se sentasse. Ela se colocou ao seu lado, estendendo suas mãos para as de Evelyn que não deixavam de tremer.

? Conte-me por favor, Roger estava muito zangado? ? Perguntou usando um tom muito mais relaxado.

? Não se zangou ? começou a falar abaixando a cabeça. ? Sinceramente, acredito que gostou mais da ideia de casar-se comigo que com minha donzela.

? Então, a que se deve seu desassossego? Deveria se sentir feliz. Muitos maridos rejeitariam suas mulheres por lhes haver mentido ao mal conhecê-los.

? Minha inquietação, Beatrice, deve-se a outra coisa. Jamais imaginei que me casaria com um homem assim! ? Voltou a elevar a voz.

? Sei que Roger é um homem especial ? começou a explicar a senhora Rutland. ? Possui um temperamento rude, embora todo mundo saiba que, no fundo, é um doce. Conforme me contou meu marido, sofreu muito durante sua vida. Posso te dizer que uma dessas dores se deve à opinião que seus pais têm dele. Não o aceitam como futuro marquês e isso lhe tem quebrado o coração.

? Entendo a razão pelas quais os atuais marqueses não o consideram apropriado... ? disse apertando os dentes com cada palavra.

? Pelo amor de Deus! O que te fez? ? Inquiriu a duquesa alterada sem deixar de apertar as mãos.

? Beijou-me! Duas vezes! Mas não lhe bastou fazer isso, mas sim me advertiu que me renderei ao prazer sexual que me vai oferecer todas as noites ? exclamou a mulher com horror.

? Isso é o que tanto te escandaliza? Isso é o que te inquieta? ? Disse entre risadas. Afastou suas mãos das dela e as cruzou diante de seu peito. ? Não deveria se lamentar por isso. Se eu te contasse como é meu marido na cama...

? Beatrice! ? Clamou Evelyn aterrorizada.

? Deve compreender que, por sorte para nós, casamo-nos com uns homens muito especiais e devemos padecer as consequências destes matrimônios. Embora te possas assegurar que para mim não é nenhum castigo. ? Sorriu.

? Pois não sucumbirei aos seus encantos! ? Afirmou com força. ? Sou uma mulher decente e atuarei como me corresponde. Acaso pensa que sou uma libertina como ele?

? Se não o fizer você, farão outras mulheres. Seguramente há muitas naquele salão que gostariam de estar em seu lugar ? interrompeu Hanna a conversação. Colocou as xícaras sobre a mesa e verteu a água fumegante nelas.

? A senhora Stone tem razão. Não lamente a sorte que vai ter. Pensa que o fracasso de muitos matrimônios que conhecemos se deve a que não existe cumplicidade entre ambos. Não terá que aparentar sentir amor pela pessoa que tem ao seu lado, mas também o ter. Um marido ou uma esposa procura fora de seu lar o que dentro não acha ? repôs a duquesa ao mesmo tempo em que se aproximava da mesa para tomar o chá.

? Mas ele não me ama para me insinuar tais aberrações ? sussurrou Evelyn. ? Acabamos de nos conhecer e, por experiência, sei que é impossível que nasça um amor tão rápido.

? Se me permitem participar da reunião... ? comentou a cozinheira sentando-se em frente à senhora Bennett ? posso fazer uma reflexão sobre este tema.

? Não precisa pedir permissão, Hanna. Sabe muito bem que é um membro a mais da família ? expôs Beatrice desenhando um grande sorriso em seu rosto.

? No amor não há lógicas ? afirmou a anciã sem afastar o olhar da desconsolada mulher. ? De fato, recentemente debati com meu marido sobre esse tema. Só existem sentimentos. Imagino que você se sentirá morta de vergonha pelo desejo que seu marido lhe insinuou, embora lhe advirto que é assim como começa um bom matrimônio. Se não houver certa luxúria entre ambos, se não houver interesse, não há nada. Deveria sentir-se feliz ao saber que despertou essa paixão em seu marido. Em muitas ocasiões só as amantes o conseguem.

? Não deixarei que me trate como se fosse uma concubina ? falou com firmeza Evelyn. ? Sou uma senhora e lhes repito que me comportarei como tal.

? Não acredito que ele te considere uma amante ? interveio Beatrice. ? Recorda que estão casados. Suponho que ao princípio lhes custará assumi-lo, mas depois será melhor. Ele te abrirá seu coração e você poderá fazer o mesmo.

Depois das palavras da senhora Rutland, as três olharam as xícaras de chá e se mantiveram em silêncio. As três cabeças não cessavam de meditar sobre como continuar a reunião. Hanna estava a ponto de falar quando observou que Evelyn elevava seu rosto para elas, seus olhos verdes brilhavam além do normal devido ao acúmulo de lágrimas que ameaçavam transbordar. A cozinheira deixou com cuidado sua xícara sobre a mesa e cruzou as mãos, esperando que a jovem confessasse aquilo que escondia e lhe produzia tanto dor.

? Faz tempo... ? começou a dizer a senhora Bennett depois de fazer desaparecer o nó de sua garganta ? quando o entusiasmo da juventude se apoderou de mim, acreditei nisso que defendem com tanta veemência. Ofereci meus sentimentos de maneira incondicional a uma pessoa que me falava de amor, paixão e de um futuro maravilhoso. Entretanto, se por acaso não sabem, essa relação terminou me provocando a maior humilhação de minha vida. Não posso voltar a sentir essa dor, essa vergonha. Desta vez não conseguiria superá-la.

? Mas nesta ocasião as coisas são diferentes ? a interrompeu Beatrice colocando de novo suas mãos sobre as dela. ? Agora está casada e estou segura de que Roger jamais te fará mal. Confia em mim. Terminará amando-o.

? Todos os homens são...

Evelyn não conseguiu terminar a frase, os olhares das mulheres se dirigiam para a porta e, devagar, virou-se. Pelo assombro que mostravam tinha imaginado que era seu marido a pessoa que as interrompia, embora se surpreendesse ao ver que se tratava do duque de Rutland o que caminhava para elas. De repente, outra figura apareceu das sombras do corredor, ficou apoiada sobre o marco da porta, com os braços cruzados no peito e cravando seus olhos azuis nela.

O coração de Evelyn deu um tombo ao contemplar um ser tão seguro de si mesmo, tão dominante, tão espantosamente atraente. Não parecia zangado por sua ausência, mas bem divertido posto que não deixava de sorrir. Pensou no que lhe havia dito a cozinheira e concluiu que tinha razão. Sem lugar a dúvidas muitas das damas do salão estariam desejosas por cair em seus braços. Era um homem misterioso e ao mesmo tempo sedutor. Entretanto, ela não podia tropeçar novamente na armadilha do amor. Não podia voltar a sofrer a agonia da destruição. Não lhe importava que estivesse casada com ele. Quem lhe poderia jurar que, depois de possui-la como lhe tinha insinuado, não voltaria a dormir com alguma de suas amantes?

? Senhoras... ? saudou o duque com uma pequena inclinação. ? Andava procurando-as.

? Necessitávamos de um pouco de paz ? indicou Beatrice. Levantou-se de seu assento e aceitou com agrado o braço que seu marido lhe oferecia.

? Senti sua falta ? murmurou William à sua esposa.

? Depois me demonstrará o quanto ? respondeu lhe dando um beijo na bochecha.

? Se me desculparem, ? disse Hanna levantando-se da cadeira e fazendo uma leve reverência ao senhor ? tenho mil coisas a fazer.

A única que não se moveu foi Evelyn. Estava tão nervosa que lhe resultava impossível fazer uma tarefa tão singela.

? Minha pequena bruxa, ? comentou Roger de sua posição ? deve-me uma dança.

? Como já lhe disse ? começou a dizer enquanto afastava o olhar do homem e o fixava sobre a superfície da mesa. ? Minhas danças estão reservadas e eu não gostaria de desapontar a todos esses bondosos cavalheiros que decidiram me pedir uma peça.

Com passo firme, Bennett abandonou seu lugar para colocar-se ao lado dela. Sem apagar o sorriso estendeu o braço para que Evelyn pudesse apoiar-se nele. Ao apreciar que ela não o aceitava, abaixou lentamente a cabeça para o ouvido feminino e lhe sussurrou:

? Tem duas opções: elevo-te sobre meus ombros e te levo ao nosso quarto para te fazer amor até que chegue o amanhecer ou dançamos no salão. Você decide.


XIII


Embora imaginasse que escolheria a segunda opção, não lhe importou muito. Na realidade tinham muito tempo por diante para poder desfrutar daqueles prazeres que tanto ansiava. Olhou-a de esguelha e se sentiu ditoso ao tê-la ao seu lado. Durante a viagem tinha refletido bastante sobre o aterrorizante golpe que lhe tinha outorgado a vida, ele, um homem nascido para desfrutar do sem-fim de prazeres que havia no mundo, um ser livre para fazer o que desejasse muito sem ter que dar explicações, encontrou-se da noite para o dia obrigado a casar-se com uma mulher que não conhecia, mais velha que ele e que fisicamente se afastava bastante do que algum dia esperava encontrar em uma esposa. Nessas divagações chegou a definir-se como um anjo a quem tinham cortado as asas sem piedade. Tanto assumiu seu deplorável futuro que, apesar de ter saudades de quem considerava sua família, decidiu manter-se afastado até que William o convocasse. Enquanto retornava, consolado e abraçado tão só pela brisa marinha, conscientizou-se de seu novo estado e aceitou sua desdita. Em troca, ao retornar o que encontrou? A uma bruxa. Uma bruxa mentirosa que o tinha enganado sem imaginar o pesar que tinha sofrido por sua mentira. Para seu deleite, aquela feiticeira, aquela sedutora mulher, era a mais formosa que já tinha contemplado, uma deusa de cabelo vermelho que desprendia uma aura tão embelezadora que conforme parecia, nem ela mesma era consciente do erotismo que emanava.

Roger não pôde, nem quis deixar de alargar seu peito ao observar o rosto de inveja que mostravam os cavalheiros. Ali onde tinha acreditado que veria zombarias e brincadeiras só encontrou expressões de raiva. É óbvio que agora entendia as incontáveis e inapropriadas insinuações para sua esposa. Certamente, se não tivesse estado casado com ela, teria sido o primeiro dessa longa fila. De repente o terror se apoderou dele ao imaginar que, finalmente, ela tivesse aceitado alguma proposição. Foi tão grande seu padecer que notou uma dor semelhante à produzida por uma adaga lhe atravessando o tórax. Teria merecido por abandoná-la. Se Evelyn tivesse aceitado alguma das propostas não lhe teria podido reprovar nada posto que ele mesmo seria o culpado de provocar a dolorosa infidelidade.

Sem piedade, por egoísmo também, tinha-a deixado sozinha no pior momento de sua vida. Mas tinha voltado para casa e estava disposto a recompensá-la por tantos dias de abandono. Não sabia quanto tempo demoraria em obtê-lo ou como o conseguiria, mas o faria. Possivelmente, dessa forma, ele também acharia a paz de que tanto tinha tido saudades no passado.

De repente, uma leve pressão em seu braço o fez despertar de suas divagações. Evelyn necessitava de seu apoio, não só mediante a força que lhe oferecia sua extremidade, mas também emocional. Quis lhe sussurrar algumas palavras para sossegar aquela inquietação, embora muito temesse que lhe provocasse o efeito contrário. Além disso, o que poderia lhe dizer? Que não tivesse medo porque ele cuidaria dela? Que enquanto estivesse ao seu lado ninguém se atreveria a lhe fazer mal? Não era o homem idôneo para consolar uma mulher, salvo se precisasse ser satisfeita na cama. Ele não era romântico, mas sim prático. No transcurso de sua vida o tinham feito seguir essas mesmas diretrizes e lhe tinha ido bastante bem.

Nenhuma das mulheres que se deixou seduzir procurou alguma estabilidade, possivelmente porque sabiam que ele jamais a proporcionaria. Além disso... o que era o amor? Acaso não se fundamentava em uma atração sexual? Em uma constante agonia por se deitar junto a uma pessoa? Para ele, sim. Entretanto, muito temia que Evelyn não fosse como ele nem como as mulheres com as quais se deitou. Soube no mesmo momento no qual a olhou aos olhos e se aventurou a beijá-la. Ela não se mostrou submissa e sim receosa ante suas carícias e insinuações. Suas amantes, às quais não podia pôr um rosto ou um nome, teriam se derretido em seus braços e procurado qualquer lugar oculto de olhares para serem amadas com descaramento. Mas ela não era assim. Ao ficarem a sós sentiu medo e insegurança. Seu corpo nunca deixou de tremer apesar de lhe haver oferecido sua jaqueta. Possivelmente, em vez de avassalá-la e lhe ditar como devia comportar-se ao ser sua esposa, devia averiguar a razão pela qual o rejeitava e muito temia que a resposta a encontraria no passado. E, é óbvio, assim que tivesse a mínima oportunidade, rebuscaria por céu e terra para conhecer o que lhe aconteceu e por que não era capaz de deixar-se levar pela paixão.

? Uma valsa... ? sussurrou a mulher ao escutar os primeiros acordes da melodia que foram dançar.

? Você não gosta? ? Perguntou Bennett enquanto a colocava entre outros assistentes, esticava sua mão para a pequena cintura e exibia um grande sorriso.

? Não é uma das minhas danças preferidas ? disse muito segura de si mesma.

? Isso, petite sorcière3, é porque não dançou com o homem adequado ? afirmou com tanta seriedade que Evelyn acreditou havê-lo ferido com seu inofensivo comentário. Mas justo depois, como sempre de maneira descarada, abaixou a cabeça e deixou que sua boca se aproximasse de seu lóbulo mais do que o permitido para lhe sussurrar: ? Posso te assegurar que quando terminar de dançar esta peça, não desejará dançar outra valsa com ninguém salvo comigo.

? É um presunçoso ? falou apertando os dentes. O rosto, coberto de inumeráveis sardas, ruborizou-se de novo. Seu peito subia e baixava agitado. Evelyn podia sentir como a debilidade voltava a lhe fazer fraquejar as pernas.

? Presunçoso? ? Roger sorriu divertido. ? Eu me defino mais como um homem bastante perverso.

? Perverso? ? A mulher abriu tanto os olhos que Roger admirou o esplendor dos mesmos.

? Oui, perverso. Sou tão malvado que neste momento, enquanto outros cavalheiros colocam sua sola no chão e se posicionam para começar a dança, minha mente não é capaz de pensar em outra coisa que não seja te desfrutar. ? Voltou a abaixar a cabeça para lhe murmurar em voz baixa. ? Desta inadequada proximidade, posso cheirar essa deliciosa fragrância a lilás que desprende e, graças à minha altura, seu decote me permite observar muito mais que o nascimento de seus seios.

Evelyn esteve a ponto de desmaiar. E estava segura de que se Roger não a tivesse segurado com tanta força, teria caído ao chão. O descaramento de seu marido a perturbava mais do que ele imaginava. Não chegava a compreender a razão de tal comportamento para com ela. Possivelmente o propósito dessa desfaçatez era assustá-la para que fugisse de seu lado, para que o deixasse viver em paz. Se esse era o verdadeiro motivo estava conseguindo, posto que ela desejava partir de Haddon Hall inclusive antes que amanhecesse.

De repente notou uma suave calidez em suas costas. Levantou de novo o rosto e observou o de seu marido. Seus traços se endureceram. Não havia brincadeira nem zombaria neles e inclusive advertiu que entrecerrava seus olhos como se tentasse averiguar seus pensamentos. A música começou a soar com mais força. Aproximava-se o tempo das voltas. Evelyn observou como Roger se distanciava do convencionado, elevava sua mão para a dela e a fazia girar sobre si mesma, uma, duas e três voltas deram até retornar à posição inicial colocando as mãos em seu lugar: umas entrelaçadas com tanta firmeza que não eram capazes de soltar-se e as outras apoiadas em ambos os corpos. A de Roger era tão grande que ao esticar seus dedos, ocupava todo o decote que oferecia o vestido nas costas e ela só conseguia pousar a sua sobre seu ombro.

A mulher conteve a respiração em várias ocasiões ao notar um pequeno e suave movimento dos dedos masculinos. Acariciava-a com muita sutileza. Talvez para despertá-la da letargia a que se induziu ao descobrir que, tal como lhe tinha indicado, dançar com ele uma valsa seria inesquecível. Não só seus movimentos eram perfeitos, ou a retidão de seu corpo, mas sim exibia em cada passo a dominação, a serenidade e o absolutismo que desprendia a figura masculina. Os vaivéns compassados e metódicos a conduziram, sem ela pretendê-lo, a um animado estado de êxtase. Seu peito, agitado pela dança, roçava o de seu marido. Cada toque, cada leve impacto, Evelyn o vivia com o mesmo temor como se permanecesse perto de um vulcão a ponto de despertar. «Outro giro mais e terminarei esta agonia...», meditou exausta.

Para fazer mais suportáveis os últimos momentos, tentou fechar os olhos, mas Roger impediu que o fizesse após lhe soprar com suavidade. Queria que continuasse observando-o, que o admirasse e percebesse o que acontecia ao seu redor.

E o conseguiu.

Evelyn olhou aos casais que dançavam próximos e compreendeu quão diferente eram eles. Ali onde as mulheres eram incapazes de tocar com seus vestidos os casacos dos acompanhantes, seu corpete se ajustava com perfeição ao espaço que lhe oferecia o colete. Lá onde as mãos femininas se esticavam e elevavam o suficiente para que não conseguissem tocar-se, a sua, embora enluvada, ardia pela pressão que exercia seu marido. Onde as demais eram incapazes de inspirar o aroma da pessoa com a qual dançava, ela podia cheirar cada partícula emanada do corpo de Roger, embebedando-a daquela impregnação viril até o ponto de não ser capaz de deixar de respirá-la. Não soube que tinha terminado a música até que escutou uma pequena risada próxima ao seu ouvido.

? Avisei-te que depois de dançar comigo, nada seria igual ? disse jocoso e orgulhoso de haver mostrado a Evelyn a veracidade de suas palavras.

? Uma frase feita? ? Perguntou zangada e tentando não mostrar sua perturbação.

? Por que diz isso? ? Respondeu abandonando aquela zombaria que exibia em seu rosto.

? Porque muito me temo, mon chèrie, ? expôs reticente ? que essas palavras dirá a todas. Agora, se me desculpar, tenho outras danças que desfrutar.

Segurou o vestido com ambas as mãos, fez uma pequena genuflexão e o abandonou em meio à pista de dança.

Embora seu coração se sacudisse com uns espantosos e imensos batimentos do coração que se estendiam por todo seu corpo, Evelyn caminhou para o grupo de mulheres que se encontrava na parte direita da sala com uma aparente tranquilidade. Não podia exibir a ansiedade que lhe provocou a dança, nem tampouco demonstrar que, sem dúvida alguma, nenhum dos seguintes bailarinos a atordoariam tanto como o tinha feito Roger.

Era um homem muito sedutor, enigmático e, é óbvio, encantador. Entretanto, ela não podia voltar a enfeitiçar-se com aspectos tão banais. Prova disso era o desastroso final com Scott. Ele também falava com sutileza, com fascinação até que descobriu que estava grávida e que seu pai não podia lhe oferecer o dote que tinha prometido. Então começou o amargo processo do desamor, da destruição, da dor por tudo aquilo que lhe tinha prometido e que não cumprira. Era certo, como lhe tinha indicado Beatrice, que nesta ocasião as coisas eram diferentes, mas ela não se convencia. O que aconteceria quando conseguisse seu propósito? Abandoná-la-ia de novo? Voltaria para seus antigos vícios? Não poderia suportá-lo. Embora ela não o amasse, seria incapaz de viver de novo outra humilhação.

? Deseja uma taça, senhora? ? A pergunta de um criado que levava sobre suas mãos uma bandeja com taças de champanha despertou-a de seus pensamentos.

? Obrigada ? respondeu ao mesmo tempo em que esticava a mão para alcançar uma. Bebeu-a de um sorvo e, antes que o criado se afastasse, pegou outra. Não estava sedenta, mas sim morta de medo e esperava que o licor acalmasse aquela sufocação.

? Minha querida senhora Bennett ? escutou uma voz masculina dizer. ? Permitirá a seguinte dança ou seu marido a raptará como a vez anterior?

? Não acredito que volte a ser tão descortês ? afirmou sorridente. ? E estarei encantada de lhe brindar com a seguinte peça.

O cavalheiro estendeu seu braço para que Evelyn se segurasse, depois que ela colocou sua mão conduziu-a para o centro do salão.


O que estava vivendo era inaudito. Sua esposa o tinha abandonado diante de todo mundo como se fosse um ser desprezível. Por um momento, só durante uns segundos, quis correr atrás dela, pegá-la pelo braço, virá-la para ele e beijá-la com tanta paixão que inclusive os convidados ficassem sem fôlego. Talvez dessa forma não voltasse a rejeitá-lo em público. Ele, um homem que debilitava as mulheres, um homem que escutava suspiros de desejo atrás de sua passagem, era repudiado pela única mulher que não devia fazê-lo porque, gostasse ou não, estavam casados. Zangado e com o orgulho ferido, decidiu retornar ao grupo de cavalheiros que pareciam divertir-se com o acontecido.

? Uma boa dança... ? comentou William em tom jocoso.

? Tive melhores ? repôs com frieza.

? Uma taça, milorde? ? Perguntou-lhe um criado.

? Traga-me uma garrafa do melhor brandy que o duque tiver na adega ? ordenou mal-humorado.

O criado, confuso, olhou ao duque e, depois de ver o movimento afirmativo de sua cabeça, afastou-se do salão para fazer chegar ao cavalheiro àquilo que tinha pedido.

? É uma mulher indomável... ? murmurou Roger a contragosto. ? Jamais em minha vida vi um ser tão esquivo e tenaz.

? Discordo de sua afirmação, meu amigo. Evelyn é encantadora e Beatrice está entusiasmada de poder contar com sua amizade.

? Encantadora? ? Grunhiu Bennett ao mesmo tempo em que franzia o cenho. ? Parece-lhe correto seu comportamento? ? Continuou com aborrecimento. ? Nunca vi um desprezo semelhante de uma esposa para com seu cônjuge.

? Pergunto-me... o que o terá provocado? ? Assinalou William entrecerrando seus olhos e sem afastar seu olhar de Roger.

? Só tive boas palavras, se por acaso está insinuando que o culpado de sua inapropriada atitude fui eu ? replicou com voz firme e pausada.

? Pois então não entendo o acontecido porque se der a volta e a observa, apreciará que não apaga o sorriso.

Roger deu a volta imediatamente e ficou tão pétreo que foi incapaz de respirar. Ali estava sua esposa, em meio ao salão dançando e sorrindo com paquera ao seu acompanhante. De repente suas mãos se fecharam com força convertendo-as em dois duros blocos de aço e uma estranha sensação de queimação lhe percorreu o corpo.

? Não acertou com sua conversação ? sussurrou Rutland divertido ao ver que, pela primeira vez, os ciúmes apagavam o malicioso sorriso que sempre exibia. ? Em troca, o senhor Battelow, viúvo há pouco mais de dois anos, soube encontrar o que a faz...

? Não continue por esse caminho... ? resmungou Roger apertando com tanta força os dentes que estiveram a ponto de partir-se. ? Ela é minha.

? É óbvio! Quem insinuou o contrário? Só quis demonstrar que, apesar de estar curtido no âmbito da sedução, nem sempre pode conseguir o que deseja ? continuou expondo William sem abandonar seu tom zombador.

? Tanto faz com quem baile esta noite ou a quem dê de presente seus sorrisos coquetes. Ela dormirá com um só homem, ? começou a dizer ao mesmo tempo em que se virava para seu amigo e enrugava a testa com fúria ? e esse serei eu.


XIV


Por fim a tortura tinha acabado e se encontrava a salvo no interior de seu quarto. Evelyn, inquieta pelo acontecido, não podia deixar de mover-se por todo o quarto, acreditando que se permanecesse parada pouco mais de dois segundos terminaria por cair ao chão. Continuava alterada, morta de calor, envergonhada e, sobretudo zangada. Casou-se com um ser depravado, um homem que não sabia o que significava a palavra decoro, e não estava disposta que a tratasse sem respeito diante de todo mundo. Como vingança à sua humilhação, decidiu ser mais amável do que estava acostumada a ser com os cavalheiros que a rondavam. Não só simulou que prestava atenção em suas conversações, mas sim também lhes sorria ao dançar com eles. Entretanto, enquanto levava a cabo sua façanha, percebeu que seu marido não podia afastar seus olhos dela, às vezes franzia o cenho, outra lhe sorria com malícia e em contadas ocasiões se virava para não vê-la.

Não tinha levado a bom término seu plano, queria lhe provocar tal aborrecimento que partisse da festa, mas teve que contentar-se com as poucas expressões de apatia que mostrou. Observou, um tanto preocupada, que entre suas mãos segurava uma garrafa de licor. Não bebeu como os outros, com prudência e nas taças de cristal, mas sim adotou a atitude do pirata que aparentava ser. É óbvio, as apropriadas interrupções de Beatrice a salvaram de um ou outro cavalheiro impertinente que entendeu como quis seus atos de cordialidade. De fato, a duquesa pôs em seu lugar a um dos que insistia em aproximar-se dela mais do que o devido.

Em outro momento, em outro lugar, não teria necessitado da ajuda de ninguém. Ela mesma, com alguma de suas socorridas frases, teria deixado bem claro que sua cortesia não indicava nada salvo aquilo mesmo, mas não pensava com claridade. A ingestão de álcool e o desmaio que sofreu ao descobrir a besta com quem devia viver o resto de sua vida, fizeram-na perder sua apreciada sensatez.

Assustada por todo o acontecido, olhou ao seu redor e tentou calcular o tempo que levaria Wanda para preparar a bagagem. «Mais do que anseio ? terminou dizendo-se enquanto se sentava sobre a cama com inapetência. ? É impossível que possa partir antes do amanhecer», concluiu.

Decepcionada e cansada, abriu os braços e se deixou cair sobre a cama. Quis fechar os olhos para descansar um pouco até que chegasse sua donzela, mas quando o fez, tudo começou a dar voltas e terminou por notar certas sacudidas procedentes de seu estômago. Com rapidez elevou-se do leito, mas foi pior. As náuseas aumentaram assim como os enjoos. Decidiu ajoelhar-se sobre o chão e esperar que todo aquele mal-estar desaparecesse. Apesar de seu intento por controlar os vômitos, terminou expulsando o que continha em seu interior.

? Minha senhora! ? Exclamou Wanda ao entrar no dormitório. ? O que lhe acontece? ? A donzela não esperou uma resposta, possivelmente porque não a obteria. Correu para Evelyn e lhe elevou o queixo para que deixasse de sujar o vestido novo.

? Morro... ? murmurou quando deixou de vomitar. ? Meu fim está chegando...

? Acredito que ingeriu mais champanha do que o habitual, isso sim ? comentou a criada tentando não mostrar a diversão que lhe ocasionava o que viam seus olhos.

? Ele é o culpado! Ele me conduziu a esta tortura! ? Exclamou ao mesmo tempo em que retirava com suas mãos as lágrimas que brotavam de seus olhos.

? Apoie-se em mim. Incorporá-la-ei e a despirei ? disse Wanda enquanto a pegava com força por um braço. ? Sem lugar a dúvidas, minha senhora, um bom banho aliviará esse estado de mal-estar e de fedor.

? Odeio-o! Odeio tudo o que procede daquela besta! ? Seguia gritando.

? Muito bem... se você o odiar, eu também o odiarei, mas por favor, incorpore-se.

? Não lhe bastou me avassalar na intimidade, mas sim também o fez diante de todos os presentes ? continuou falando entre balbuceios.

Com grande esforço Wanda conseguiu levantá-la e colocá-la o mais reto possível para conseguir lhe desabotoar o vestido.

? Casei-me com um descarado, obtuso e incorrigível! Meu Deus, sua serva foi tão má que condena minha vida com um homem pré-histórico? ? Exalou com pesar.

? Ninguém é perfeito... ? indicou a donzela sem pensar.

? Perfeito?! ? Gritou antes de dar a volta e perder de novo o equilíbrio.

? Minha senhora, por favor, não se mova ? suplicou depois de evitar que caísse ao chão.

? Aquele homem se afasta muito da perfeição. É um descarado, um indecente, um filho de satanás...

Wanda evitou continuar com a conversação porque a alterava cada vez mais. Com mãos ágeis foi desabotoando os botões até que o vestido terminou no chão. Enquanto trabalhava em conseguir seu propósito antes que Evelyn voltasse a alterar-se, meditava sobre se tinha vivido uma situação parecida durante seus anos ao serviço da atual senhora Bennett. «Nunca ? concluiu para si. ? Sempre foi uma moça muito sensata salvo quando se apaixonou por aquele descarado». Mas naquela ocasião, apesar do sofrimento que padeceu, nunca bebeu como o tinha feito essa noite. E mais, jamais a tinha visto tomar mais de uma taça e só nos casos nos quais lhe estava permitido: durante um jantar ou em uma celebração. Por isso, o fato de que estivesse ébria, tinha-a não só assombrado, mas também confundido.

? Continue apoiando-se em mim. Conduzi-la-ei até o banho e esperará que lhe encha a tina de água. Com certeza depois verá as coisas de outra maneira ? disse com voz aprazível.

? Ai, Wanda! Que desventurada sou! Não tive suficiente com o vivido no passado que, para continuar minha desgraça, o destino segue me jogando brincadeiras pesadas. Aquele homem... aquele... aquele... animal que meu irmão decidiu converter em meu marido não é bom.

? Não deveria julgar com tanta rapidez as pessoas. Possivelmente seu inapropriado comportamento seja devido a que está irritado. Recorde que partiu de Londres pensando que se casou comigo e não com você ? esclareceu em voz baixa. Com grande esforço levou-a até o banho. Justo na mesma entrada, com o corpo bambo de sua senhora sobre a metade do dela, Wanda olhou com rapidez ao seu redor procurando um assento onde colocar a mulher. Depois de achá-lo sentou-a com cuidado, separou-lhe do rosto as mechas que tinham escapado do coque e lhe beijou a testa. ? Me espere aqui, não demorarei.

Evelyn assentiu com suavidade. Não queria mover mais do que o devido a cabeça porque já começava a lhe doer. O suave golpe da porta ao fechar fez que dirigisse suas palmas para a testa e a apertasse com força. Tudo continuava dando voltas e, por mais que sua donzela tivesse pensado que a tinha colocado em um lugar seguro, não o sentia assim. Seu corpo se balançava sem ela desejá-lo e a pequena habitação girava ao seu redor cada vez mais depressa. Finalmente terminou estendida no chão, em posição fetal e murmurando frases mal audíveis.

Não soube que sua donzela tinha entrado e saído do banho até que despertou.

? Continue apoiando-se em mim ? disse-lhe em voz baixa. ? Muito bem, assim está melhor. Colocamos um pé, agora o outro e... O calor da água a reconforta? ? Enquanto Evelyn jogava as costas para trás, a donzela lhe tirou as forquilhas, deixando livre a avermelhada juba. ? Pode apoiar a cabeça nestas toalhas que encontrei. Servirão de almofadão.

? Obrigada... ? sussurrou. ? Não sei o que faria sem ti.

? Pois imagino que seguiria atirada no chão como uma mulher de má vida, vomitando e desamparada ? respondeu com certa diversão. ? Bom, encontra-se melhor para poder me contar o que tanto a perturbou?

? Foi ele ? disse com firmeza. Tentou virar-se para poder responder olhando-a aos olhos, mas Wanda o impediu. ? Nunca imaginei que os rumores sobre seu comportamento fossem certos. Alberguei a possibilidade de que as pessoas exageravam para que eu sentisse temor, mas diziam a verdade.

? O que ele lhe fez? ? Quis saber. Enquanto lhe respondia, pegou a peça de sabão e foi espalhando pelo cabelo.

? Quando apareceu, e depois de falar com o duque a sós, aproximou-se até onde me encontrava. Evitando de forma descarada minha presença saudou primeiro a quem o olhava e se ruborizava.

? Já lhe disse que era um homem muito bonito ? repôs ao mesmo tempo em que esfregava com supremo cuidado o cabelo.

? E não mentiu. Prova de sua verdade foi a desmesurada paralisação que causou ao aparecer. As jovens casadouras moviam as pestanas como se quisessem provocar um furacão na sala e as que, por sorte, contraíram matrimônio com um homem honrado, não deixavam de cochichar.

? Tanta expectativa provocou? ? Insistiu.

? Crê que um homem com um aspecto semelhante ao de um vulgar pirata não conseguiria tal façanha? ? Resmungou com mais serenidade.

As suaves massagens começavam a relaxá-la e, tal como lhe indicou Wanda, já se encontrava muito melhor.

? Um pirata? ? Perguntou a donzela assombrada. Deixou de lhe ensaboar o cabelo para esticar a mão e pegar uma bacia.

? Conforme me contou a duquesa, é dono de um desses navios mercantis. Também me disse que o utiliza para transportar mercadorias ou passageiros, embora muito me temo que errou em sua conclusão. Estou segura de que é um assaltante de navios e que terá as mãos cobertas de sangue inocente ? sentenciou.

? Isso foi o que lhe pareceu pouco decoroso, que exibisse uma imagem de corsário desumano? ? Continuou perguntando ao mesmo tempo em que vertia sobre o cabelo água limpa.

? Não. O que aconteceu foi outra coisa ainda mais aterrorizante. Quando as saudou, dirigiu-se para mim me chamando de propriedade. Logo me arrastou até o balcão me agarrando pela mão. Ao princípio, embora me sentisse zangada por esse comportamento, quase o perdoo posto que se preocupou com meu padecer durante sua ausência. Dialogamos com cordialidade, mas de repente, a conversação deu uma volta inesperada. Tudo começou após decidir que devíamos nos tratar com menos formalidade.

? Ofendeu-se por isso?

? Não! Surpreendeu-me gratamente, entretanto, o fato de ter que lhe chamar de Roger lhe brindou a oportunidade de... me beijar e duas vezes! ? Explicou afligida.

? Hum...

Wanda sorriu ao escutar as palavras de sua senhora. Embora lhe parecessem infantis, entendia-a. Depois do vivido com o vilão do senhor Wyman, não quereria voltar a sentir o pesar de outra humilhação. Não obstante, ela não via mal nenhum que um marido mostrasse seu afeto em público. E mais, estava segura de que todas aquelas mulheres que, conforme contava, alteraram-se ante a presença do senhor Bennett, estariam encantadas de ocupar seu lugar.

? Mais tarde me pediu uma dança... ? fez uma leve pausa para recompor-se. Ao recordar o quão absorvida permaneceu ao notar a proximidade de seu marido, as pequenas e sutis carícias nas costas, o encantador aroma e a firmeza ao dançar provocaram que seu pelo se arrepiasse e que brotasse novamente uma estranha sensação de necessidade por tê-lo ao seu lado.

? E? ? Wanda pegou uma toalha e a estendeu para que Evelyn pudesse cobrir sua nudez com ela.

? E dançamos ? respondeu sem oferecer mais detalhe.

? Só dançamos? OH, mon chèrie, je suis trés désolè!!4 ? A voz de Roger as assustou. Wanda abaixou com rapidez a cabeça enquanto que Evelyn abriu tanto a boca que lhe resultou difícil fechá-la. Ali estava, apoiado sobre a ombreira da porta, cruzando mãos e pernas, as observando em silêncio e revelando em seu olhar um brilho luxurioso. ? Pode partir. Eu mesmo me ocuparei da minha esposa ? ordenou.

Tal como lhe havia dito, a donzela fez uma leve genuflexão e saiu do banho, não sem antes jogar uma rápida olhada a Evelyn, que seguia paralisada e segurando com força a toalha que cobria seu corpo.

? Assim descreve nossa primeira dança de casados, petite sorcière? ? Disse quando a criada fechou a porta.

Roger não moveu nem um só músculo de seu corpo. Permaneceu na mesma posição esperando que ela fosse a primeira em dar um passo. Seus olhos continuavam cravados em Evelyn e seu sorriso, cheio de lascívia, seguia estendendo-se por seu rosto.

? Imaginei que seria inesquecível.

? Não deveria estar aqui ? resmungou enfurecida. ? Se por acaso se perdeu, tenho que lhe avisar que está em meu quarto.

? Perdido? ? Perguntou antes de esboçar uma enorme e sonora gargalhada. Retirou-se da madeira e iniciou um lento caminhar para ela. ? Nunca me senti tão próximo à palavra lar, talvez porque, como lhe disse na varanda, desde que nos casamos seu corpo será minha casa e a sua será o meu.

? Não se aproxime... ? ordenou-lhe andando para trás até que o frio da parede tocou suas costas.

? Ninguém vai me impedir de pegar o que por lei me pertence ? murmurou com voz firme e pausada.

? Não sou uma maldita propriedade! ? Explodiu.

Prosseguiu segurando a toalha ao redor de seu corpo e elevou o rosto de maneira desafiante.

? Em nenhum momento, petite sorcière, considerei-a dessa maneira. Quando lhe digo que me pertence é porque seu corpo inteiro é meu e, por mais sorrisos que ofereça a outros cavalheiros, ninguém poderá gozar de você salvo eu.

? Julga-me de maneira indevida ? defendeu-se mantendo seu rosto levantado. ? Se por acaso não o sabe, durante sua ausência fui visitada por muitos...

Não finalizou a explicação. Antes de terminar a frase, Roger se equilibrou sobre ela e a beijou. Evelyn voltou a se surpreender pela paixão que seu marido mostrava em um ato tão básico. Sua língua repetia a conquista, a posse, conduzindo-a a um estado de êxtase do qual só pôde reagir com um suave e mísero gemido. Desfrutava-o. Apesar de sua insistência em não fazê-lo, gozava daquela boca, daquela persuasiva língua, da proximidade do imenso e robusto corpo. De repente notou uma calidez nas costas. Seu marido pousava suas mãos sobre ela para atrai-la para ele. O peito feminino roçou o masculino e ambos os torsos se acoplaram à perfeição. Face à grande altura de quem a segurava para si, não havia desconforto, mas sim segurança e amparo. Uma união tão maravilhosa que, sem poder evitá-lo, a fez sentir-se extasiada.

Não obstante, e apesar de começar a desejar o que ele tanto ansiava por lhe mostrar, devia manter-se firme em seus propósitos. Não podia lhe dar de presente aquilo que tanto desejava porque depois de consegui-lo, o que faria? A incerteza a fez recuperar a pouca sensatez que ficava. Abriu os olhos e descobriu que ele também os deixava abertos. Olhava-a com descaramento, com desejo, com erotismo. A pupila se expandia tanto que logo permitia apreciar a cor da íris.

? É tão formosa... ? sussurrou Roger afogado pelo desejo ? que me parece impossível a ter conseguido.

? E você é um homem tão presunçoso e repugnante, que me parece incrível que tenha sido meu irmão quem decidiu meu futuro ? replicou Evelyn com raiva.

? Mon Dieu! ? Exclamou Bennett irado. ? Acaso não pode aceitar de minha boca nem um só elogio? ? Deu uns passos para trás ao mesmo tempo em que passava a mão pela cabeça. ? É minha esposa! Maldita seja! E isso deveria lhe revelar o que você terá que assumir como tal.

? Está insinuado que devo me entregar por que...? ? Começou a dizer enquanto uma de suas mãos cobria sua boca.

? Só advirto que deve me agradar... ? indicou mal-humorado. Virou-se para ela e caminhou com mais ímpeto do que devia até que voltou a retê-la contra a parede. ? Irei possui-la quando e onde quiser. E por mais que se negue, o farei.

Com uma brutalidade imprópria dele, agarrou-a pela cintura e a jogou sobre seus ombros para conduzi-la até a cama. Evelyn esperneava e lhe dava murros no peito, mas seus impactos não conseguiram diminuir a decisão de seu marido.

Roger a jogou na cama e, enquanto ela tentava fugir, tirou a jaqueta, desabotoou os botões de sua calça e, justo no momento no qual ela ia conseguir seu propósito, segurou-a por um tornozelo e a fez retornar ao leito.

? Não pretendia que nossa primeira vez fosse assim, mas sua atitude, sua arrogância e sua pouca sensatez provocaram em mim uma ira incalculável ? disse ao mesmo tempo em que se colocava sobre ela. ? Me aceitará por bem ou por mal.

? Me solte! Deixe-me! ? Clamava Evelyn.

Umas lágrimas começaram a brotar de seus olhos banhando o rosto ruborizado desta vez pelo esforço que realizava por liberar-se das mãos de seu marido. Não podia acreditar no que ia acontecer-lhe. Não esperava que o encantador e enganador homem que tinha ao seu lado finalmente se transformasse em um monstro.

? Não! ? Rugiu Roger. ? É minha!

Depois de um tempo lutando com seu opressor, Evelyn perdeu as forças. As palmas de suas mãos, que sustentavam os braços de Bennett, separaram-se destes e o liberaram. Não podia evitar aquilo que já tinha decidido seu marido. As lágrimas deram lugar a uma choramingação incessante, um pranto pedindo clemência.

Roger, ao deixar de sentir o esperneio e a opressão em seus braços, elevou o rosto e a contemplou. O cabelo, alvoroçado pelos bruscos movimentos, estendia-se pelo travesseiro, a toalha tinha deixado de cobri-la e deixava a descoberto uma erótica e deliciosa figura. Entretanto, o que lhe partiu o coração em mil pedaços foi descobrir que ela não deixava de chorar e suplicar. Onde estava a pessoa que era? Onde estava o homem que amava e satisfazia as mulheres? Não ficava nada disso nele e a prova disso era a horrível cena que vivia. Desejava Evelyn mais que tudo no mundo. Desde que pôs seus olhos nela naquele dia, só sonhou em tê-la ao seu lado, amá-la, escutá-la gemer de prazer. Entretanto, nunca imaginou que a possuiria sem ela desejá-lo, sem escutar de sua boca que acalmasse sua necessidade.

Abatido por seu comportamento, retirou-se lentamente do leito. Seus olhos seguiam cravados na mulher, observando como tremia de medo, o mesmo que lhe tinha provocado ao deixar emergir um monstro de seu interior. Em silêncio e em comoção por sua atuação, abotoou a calça e, sem olhar para trás, saiu do quarto. Tinha que meditar sobre o ocorrido, sobre por que a tinha tratado dessa forma e, sobretudo devia achar a razão pela qual em seu interior gritava que devia fazê-la sua para sempre.


XV


Não eram ciúmes o que sentia. Ele jamais teria uns sentimentos tão estúpidos. O ardor que emergia do mais profundo de seu ser só era mal-estar por ter descoberto que ele ia ser o padrinho do filho de William e que, por sua alienação, o posto tinha sido ocupado por Federith. Apesar de suas próprias desculpas, não podia afastar o olhar dela e deixar de grunhir. Evelyn não diminuía seus gestos de paquera e, estranhamente, bebia muito. Esteve tentado, em mais de uma ocasião, em caminhar para ela e reprovar sua atitude. Necessitava que entendesse quão inadequado resultava aquele descarado comportamento para uma mulher casada, ou melhor, dizendo, para sua esposa. Mas se conteve. Aguardou com paciência o momento no qual todo mundo começou a partir e ela decidiu subir ao seu quarto. É óbvio, na intimidade que lhes proporcionaria o interior da habitação, mostraria a quem devia dirigir seus contínuos flertes.

? Já nos priva de sua presença? ? Perguntou Rutland.

Partiram já todos os convidados e, por fim, podia gozar de uns momentos a sós com seus amigos. Por isso, quando observou a disposição de Roger por partir, tentou evitá-lo.

? Tem que compreender que me encontro bastante cansado. Desde que cheguei a Londres não pude descansar adequadamente ? explicou em tom débil, esgotado. Entretanto, não o estava. Sua única pretensão era subir as escadas de três em três e procurar Evelyn.

? Se mal me recordo, Beatrice ordenou ao Brandon que te preparasse um quarto. Ele te conduzirá até lá ? disse William com tranquilidade. Não queria lhe dizer de maneira brusca que, devido a todo o acontecido no passado em seu matrimônio, devia tomar um tempo de calma. Além disso, pela atitude que mostrou Evelyn durante todo o baile, muito temia que não tivesse interesse algum em descansar sob as garras de seu marido.

? Você dorme em outro quarto que não seja o de sua esposa? Inquiriu Bennett zangado. Seus olhos, injetados em sangue, cravavam-se na pessoa a quem sempre tinha outorgado a posição de irmão.

? É óbvio que não. Entretanto minha situação conjugal é muito diferente à tua ? assinalou.

William franziu o cenho e apertou os olhos. Odiava ter que ser ele quem chamasse a atenção de seu melhor amigo, mas devia fazê-lo. Como dono da casa em que Evelyn se sentia protegida, precisava continuar lhe oferecendo a paz que prometeu e, por mais que Roger devesse exercer seu respeitável papel como marido, ela ainda não estava preparada para isso.

? Então por que te interessa tanto o lugar onde descansarei esta noite? ? Retrucou sem diminuir sua ira.

? Ser esposa suporta umas conotações muito diferentes às que encontrara em suas amantes ? intrometeu-se Federith.

Até aquele momento não tinha participado de nenhuma das conversações que seus amigos tinham mantido. Ficava distante, perdido em suas próprias divagações. Entretanto, nesta ocasião devia participar para fazer desaparecer a discrepância que começava a emergir entre eles. Como era lógico, William adotava a postura de um homem perito em conviver dentro de um matrimônio que, por sorte para ele, era frutífero. Não obstante, Roger acabava de descobrir que a mulher com quem se acreditava casado não era a que imaginou. Além disso, não estava acostumado a ser o marido de alguém e sim o amante. Devia esquecer a ideia de que sua esposa era outra mulher a qual seduzir na cama e adotar a conduta correta. Ao pensar sobre que atitude era a apropriada entre cônjuges, seu rosto se escureceu. Acaso era o homem apropriado para lhe indicar os passos a seguir após casar-se? Realmente podia lhe explicar como funcionava um matrimônio? Não, estava claro que não. O seu, embora o tentasse ao princípio, não o conseguiu e, se seus amigos descobrissem o que escondia em sua alma, pensariam que estava possuído pelo próprio diabo.

? Acaso ambas não precisam ser saciadas, excitadas e seduzidas pela paixão? ? Comentou Bennett mais zangado se era possível.

? A diferença entre elas, além de sua assinatura em um contrato legal, é que a amante se contenta acalmando seu apetite sexual. Entretanto, a esposa necessita de algo menos primitivo e mais sentimental ? afirmou Federith.

? E que sentimento necessita uma esposa, meu querido Cooper? ? Roger arqueou as sobrancelhas e sua boca se estendeu em um sorriso lento. Estava disposto a lhe replicar aquilo que fosse lhe dizer posto que, se a memória não lhe falhava, sua perfeita esposa, aquela a quem supostamente dava o que desejava, era tão especial que evitava aparecer com seu marido em público.

? Amor ? respondeu.

? Amor?! Esse é o segredo de um bom matrimônio? Isso é o que brinda a uma mulher que é incapaz de aparecer ao seu lado quando a requer? ? Retrucou irado.

Federith, ao escutá-lo, arrojou a taça que tinha em sua mão e se lançou para ele, levantou os punhos e tentou lhe atirar um golpe. Como era de esperar, Bennett o esquivou e preparou os seus para uma resposta dura. Entretanto, não conseguiu tocar em Cooper, o duro tórax de William parou o impacto.

? Não permitirei uma loucura como esta em minha casa ? disse Rutland sem mover-se e sem mostrar dor no rosto. ? Acredito que deve uma desculpa ao Federith, ele só pretendia te fazer entrar em razão.

? Não vou desculpar-me ? disse apertando os dentes.

? Pois deveria. Seu comportamento, desde que pisou em meu lar, foi deplorável. Conforme advirto, seu exílio não foi tão benévolo como pensava. Mudou-te e te aconselho que o modifique, porque se segue mantendo essa atitude, pedir-te-ei, novamente, que parta de Haddon Hall ? apontou cada palavra em tom impassível.

William se afastou e olhou a ambos os homens. Federith continuava com os punhos elevados enquanto Roger os tinha baixado. Seu rosto, escurecido, sugeria que estava meditando sobre aquilo e Rutland esperava que entrasse em razão.

Durante o baile tinha estado bebendo como um vulgar bêbado. Quando terminava uma garrafa, começava outra. Não era a primeira vez que vivia os aterrorizantes episódios de embriaguez de seu amigo. Durante suas passadas farras londrinas, mais de uma vez teve que apoiá-lo sobre suas costas e levá-lo até sua residência. Também foi testemunha de seu mau beber e da sucessão de conflitos que isso suportava. Uma vez, se não recordava mal, esteve a ponto de morrer. Mas o diabo se encontrava bondoso aquela noite e deixou que continuasse respirando. Por isso lhe tinha advertido que deixasse de beber e que prestasse atenção à sua esposa.

O conselho foi mais desastroso do que pretendeu. Evelyn não cessava de flertar e essa atitude fez com que Roger fervesse tanto o sangue, que acalmou a ira à base de mais brandy.

? Sinto ? disse Bennett depois de uns momentos de silêncio. ? Minhas mais sinceras desculpas por minhas palavras ofensivas. Sabe que te considero um irmão e que sua dor é também a minha ? disse com voz sossegada e pausada.

? Aceito-as ? falou Federith ao mesmo tempo em que estendia a mão.

? Mon Dieu!! Só me dá a mão? ? Perguntou antes de saltar sobre seu amigo e abraçá-lo.

? Bom, o normal neste momento seria tomar uma taça e fumarmos um bom charuto, mas temo que já bebemos mais do que o necessário ? indicou William feliz.

? Devo me retirar o antes possível se quero partir à alvorada para Hemilton. Não quero privar por mais tempo meu filho da presença de seu pai ? expôs Cooper com certa melancolia.

? Entendo-te perfeitamente ? respondeu o duque. ? Pois por minha parte, está desculpado. Se precisar de algo antes de viajar faça Brandon saber.

? Obrigado por me permitir ser o padrinho de seu primogênito, foi uma honra ? comentou Federith estendendo a mão para William. Como era de esperar, não a aceitou, mas sim se aproximou de seu amigo e o abraçou com sua mão direita.

? Aqui tem sua casa se por acaso algum dia a necessitar ? murmurou-lhe ao ouvido. ? Tanto Beatrice como eu estaremos encantados de ver-te aparecer com seu filho.

O futuro barão de Sheiton respondeu às palavras com um leve assentimento de cabeça. Logo dirigiu seu olhar para Roger e este o despediu da mesma maneira que William: com um abraço.

? Algo grave lhe acontece ? disse em voz baixa Bennett quando ficaram sozinhos.

? Sim, sou muito consciente disso, mas é incapaz de contá-lo. O único que tenho claro é que, desde que se casou com Caroline, não foi o mesmo. Na verdade, se a mente não me falhar, dos três, era o mais sorridente, mas se esqueceu de rir. Só mostra um rosto aflito e apático.

? Possivelmente pensou que o matrimônio seria algo diferente, eu também acreditei. Entretanto, aqui me vê, bêbado, zangado e desejoso de subir ao quarto onde se encontra minha esposa e saborear cada palmo de sua pele.

? Não albergue a esperança de que ela te aceite esta noite. Deixe-a respirar ? disse ao mesmo tempo em que se virava para seu amigo.

? Respirar? ? Soltou rapidamente. Arqueou as sobrancelhas e voltou a estender sua boca para desenhar um grande sorriso.

? Tal como disse Federith, o trato que deve adotar para com sua esposa é muito diferente ao qual proporcionou às suas amantes. Ela não só procurará prazer no leito, mas sim pedirá mais que umas agradáveis carícias ? comentou William sem afastar o olhar de Bennett.

? O que necessitará? ? Continuou jocoso.

? Seu coração. Agora pensa, está disposto a oferecer-lhe?


O suave pranto de Evelyn se escutava através da espessura da madeira, provocando que o sentimento de culpabilidade de Roger se acrescentasse. Separou-se da fria parede recordando as últimas palavras de seu amigo. Estava disposto a oferecer seu coração? Aquela pergunta o tinha deixado entorpecido. Nunca tinha parado para pensar nisso. Além disso, ele tinha coração? Segundo suas amantes, não. Segundo sua mãe, tampouco. Assim que... como ia dar algo que não possuía?


XVI


Apesar de seus inumeráveis intentos por levantar-se da cama com prontidão, Evelyn não conseguiu fazer algo tão simples. Mal tinha dormido e quando o fazia, despertava sobressaltada ao aparecer de novo o rosto enfurecido de seu marido sobre ela. A lembrança daquele momento, daquela horrorosa situação, gerou-lhe um tremor tão intenso em seu corpo que, o que não tinha conseguido pelo cansaço, adquiriu-o pelo medo. Afastou os lençóis, pousou os pés no chão e caminhou para a janela para abrir as cortinas.

O sol luzia de maneira incomum, embora desde que chegou a Haddon Hall mal tinha chovido. Apesar de estar no mesmo país, parecia que as nuvens não estavam acostumadas a aparecer por aquele lugar com tanta assiduidade como em Londres. Evelyn apoiou a testa no vidro e soluçou. Sentia-se infeliz, desanimada e um pouco decepcionada por todo o ocorrido. Culpava-se pelo pérfido comportamento de seu marido. Jamais tinha se proposto tratá-lo daquela maneira nem flertar com os cavalheiros como uma puta vulgar. Ela não era aquele tipo de mulher! Ela era uma mulher honesta, razoável e bastante sensata. Quando descobriu o final que lhe proporcionou seu irmão e depois de assimilá-lo com dignidade, disse-se a si mesma que devia aceitar sua sorte e se entregaria a um marido tal como sua mãe se dedicou ao seu pai. Entretanto, o desastre estava feito. Tinha conduzido Roger a um estado de loucura tão enorme que quase a forçou.

Evelyn suspirou profundamente e afastou com as duas mãos as lágrimas que percorriam seu rosto. O baile não tinha saído tal como imaginou naquela mesma tarde. Vestiu-se para lhe agradar, para diminuir o aborrecimento que obteria pelo engano, para que se sentisse orgulhoso da mulher que teria pelo resto de sua vida ao seu lado e talvez, também o fez por ela mesma. Estava cansada de ser a pobre Evelyn. Queria que o mundo não recordasse seu dramático passado e, é óbvio, desejava agradecer ao seu marido pelos cuidados que deixou organizados apesar de abandoná-la. Por que... o que tinha feito Roger desde que partiu? Cuidá-la. Sim, com efeito. Tinha velado por sua comodidade, por sua estabilidade econômica. Ali onde antes encontrava certa vacilação ao comprar ou adquirir aquilo que necessitava para o funcionamento de seu lar, desde que contraiu matrimônio, não viu nos dependentes nem nos fornecedores reprovação alguma.

Amabilidade e cortesia, isso é o que tinha encontrado desde que se converteu na senhora Bennett. Sem esquecer a inveja que mostravam as mulheres ao saber que um dos solteiros mais cobiçados da cidade tinha sido capturado. Mas apesar do benfeitor gesto de seu cônjuge, ela seguia mantendo sua atitude. Tinha que lhe deixar bem claro que não era uma amante a mais para utilizar e esquecer. Era sua esposa, a mulher com quem viveria o resto de sua vida, de quem escutaria suas dores ou alegrias.

Levou as mãos ao ventre para apertá-lo com força. Só havia uma coisa que nunca poderia lhe dar. Talvez, se descobrisse que o que algum dia ansiara não o conseguiria dela, albergaria a ideia de separar-se para sempre de seu lado. «Desde quando se rende com tanta facilidade? ? Perguntou-se zangada. ? Padeceu milhares de pesares em sua curta vida e isto é só mais um. O que o faz diferente?». Suas meditações a incomodaram tanto que se separou da janela e começou a perambular pela habitação. Observou envergonhada que ainda ficavam restos das consequências de sua inapropriada conduta. Se não recordava mal, o vestido ficou manchado e, por isso podia apreciar que no chão se refletia uma mancha esbranquiçada que seria impossível fazer desaparecer.

Era uma loucura. Tudo era uma maldita loucura! Açoitada por seus pensamentos e pela dor de cabeça que lhe golpeava as têmporas com força, sentou-se sobre o colchão, cobriu seu rosto com as mãos e começou um pranto que, dificilmente, podia parar.

? Bom dia, minha senhora. Despertou já? ? A voz de Wanda apareceu dentre as sombras produzindo um sobressalto em Evelyn.

? Bom dia. Levo um momento acordada, mas não quis te chamar tão cedo ? desculpou-se.

? Os duques se encontram na sala de café da manhã. Lady Beatrice me disse que a esperam para tomar o café da manhã.

Sem quase olhar à mulher, a criada se dirigiu com passo firme para o vestidor e desprendeu um dos vestidos adequados para uma jornada matutina.

Evelyn apertou com força os lábios para não lhe perguntar se seu marido encontrava-se com eles. Seria o normal nesses casos, mas conforme parecia, Roger não se apoiava nos comportamentos habituais e, possivelmente, teria partido de Haddon Hall. Com o coração estrangulado ante tal possibilidade e procurando uma desculpa a oferecer aos hospitaleiros proprietários quando perguntassem pelo paradeiro de seu marido, levantou-se da cama e se deixou vestir por sua donzela.

? Faz uma manhã magnífica para um passeio ? começou a dizer Wanda ao ver que sua senhora era incapaz de soltar uma só palavra por sua boca. ? Muito me temo que antes do almoço a duquesa a convide a acompanhá-la a outra de suas intermináveis excursões. Por esse motivo, e sempre com seu consentimento, levará o vestido de cor rosa e os sapatos planos. Assim não atrairá que todos os insetos revoem pelos arredores e não chegará com uma terrível dor nos pés.

Em outro momento Evelyn teria soltado uma gargalhada ante os comentários de Wanda, mas só fez um leve gesto com a cabeça para frente, algo que despertou o interesse de sua donzela.

? Minha senhora, se deseja que a desculpe para que possa continuar descansando em seus aposentos, fá-lo-ei ? indicou a donzela afastando suas mãos dos laços que começavam a atar o espartilho.

? Não precisa, Wanda. Será bom me distrair durante um tempo. Possivelmente, deste modo, a dor que me açoita a cabeça desapareça por fim ? voltou a justificar seu penoso comportamento.

Sabia que cedo ou tarde lhe perguntaria o que tinha acontecido durante a noite anterior. Não de maneira direta, Wanda jamais mostrava esse descaramento, mas sim que encaminharia todas suas conversações nessa direção para conseguir seu propósito. Não obstante, o que lhe diria? Que seu marido esteve a ponto de forçá-la, de possui-la entre gritos e preces de piedade. Não, não era correto nem benéfico para nenhum dos dois expor o acontecido. Antes que todo mundo cochichasse sobre o patético matrimônio Bennett, eles deviam falar sobre a razão daquele impróprio assunto e resolver o tema. Só assim poderiam viver em paz.

? Hoje seu cabelo despertou mais rebelde do que o normal. Está me custando a própria vida desenredá-lo ? assinalou Wanda enquanto tentava escová-lo.

? Pode me deixar uns cachos soltos?

? É claro. Deseja um coque alto ou baixo? ? Continuaram com um diálogo carente de sentido.

? Baixo, é claro.

? Como desejar ? respondeu Wanda.

Os olhos da criada se entrecerraram e sua boca desenhou uma estranha careta de preocupação. Pela expressão da mulher e a inapetência com que falava, sabia que a noite não tinha terminado como ela esperava. Pensou que Evelyn se renderia aos braços de seu marido, ela o teria feito sem duvidá-lo por que... quem poderia negar-se a desfrutar dos prazeres que pode lhe oferecer um homem tão perito? É óbvio que uma mulher, a única que devia aceitá-lo sem oposição: sua esposa.

? Necessita alguma coisa mais? ? Quis saber. Deu uns passos para trás, estendeu suas mãos ao longo do vestido e olhou à senhora Bennett sem piscar.

? Sim, só uma coisa. Pode informar aos duques que os acompanharei breve? ? Disse. Levantou-se, olhou-se ao espelho, levou as mãos para os olhos e apalpou com as gemas dos dedos as olheiras que os rodeavam.

? É claro. ? Wanda fez uma ligeira genuflexão e partiu. Quando fechou a porta olhou para o céu, suspirou e rezou para que o mal que se produziu na passada noite desaparecesse o antes possível.

Por que lhe doía tanto o estômago? Por que não cessavam as náuseas? Estariam provocadas pela ingestão de álcool ou pelo estado de inquietação que a açoitava ao pensar que o encontraria quando descesse as escadas? De qualquer modo, Evelyn correu ao banho, abaixou a cabeça sobre a privada e começou a vomitar. Mal saía algo de seu interior. Não tinha nada que expulsar, tudo o que contivera seu estômago o esvaziou na noite anterior. Afastando os cabelos do rosto, recompôs-se. Precisava fazer retornar a mulher que era, a mulher que não se amedrontava ante determinadas situações.

Antes de abandonar o quarto, olhou-se no espelho da penteadeira, beliscou as bochechas, elevou seu queixo e esboçou um sorriso. Essa era ela. Não havia dúvida. A imagem que projetava o espelho era a ansiada senhora que precisava mostrar. Depois de suspirar profundamente, abriu a porta e partiu.

? Bom dia! ? Exclamou Beatrice levantando-se de seu assento e caminhando para a entrada da sala de café da manhã para receber sua amiga. ? Pôde descansar?

? Bom dia ? respondeu sem apagar o sorriso. ? É claro.

? Minha querida senhora Bennett ? comentou Rutland abandonando sua cadeira. ? Minha esposa não quis começar o café da manhã sem sua presença. Acredito que estava preocupada com você.

Beatrice, que pegava com força as mãos de Evelyn, dirigiu um olhar ameaçador ao seu marido.

? Disse algo inapropriado? ? Perguntou zombador. ? Se for assim, querida, peço-te mil desculpas.

? Vem, sente-se ao meu lado. Imagino que estará faminta depois do baile.

Evitando as palavras de seu marido, a duquesa a fez sentar em uma das cadeiras próximas aonde se encontrava o duque e se sentou junto a ela.

? A verdade é que não tenho muito apetite. Tenho o estômago revolto desde ontem. Imagino que me excedi bebendo ? desculpou-se. Olhou os pratos que começavam a lhe servir e enrugou o nariz. Não gostaria de encher seu estômago com nada do que lhe ofereciam.

? Minhas primeiras bebedeiras me causaram uma feia magreza, ? disse Rutland sorridente ? mas com o passar do tempo se acostuma a ingerir tanto álcool como alimento. A natureza é sábia...

? William! ? Exclamou Beatrice zangada. ? As mulheres não são como vocês! Graças a Deus a outorgaram com o dom da sensatez.

? Jamais duvidei disso, meu amor ? respondeu antes de aproximar a xícara e tomar um comprido sorvo de chá. ? Bom, ? disse após pousar o copo e olhar com interesse a mulher de Roger ? onde se encontra meu amigo? Não o vi desde que subiu as escadas ontem de noite.

Evelyn deixou que os talheres caíssem sobre o prato emitindo um ruído ensurdecedor. Depois suas bochechas se ruborizaram e o desejo de fugir a sobressaltou.

? Muito me temo ? respondeu depois de tomar um tempo ? que não posso lhe responder.

? Não dormiu com você? ? Perguntou elevando suas espessas sobrancelhas escuras.

? William! ? Voltou a exclamar sua esposa. ? Onde estão suas maneiras? Perdoe-lhe, Evelyn. Acredito que esta manhã não só seu marido anda desaparecido, mas sim a boa educação do meu marido também.

? Senhoras... ? falou o duque ao mesmo tempo em que se levantava e afastava seu assento da mesa ? se me desculparem. Conceder-lhes-ei uns instantes a sós para que conversem tranquilamente. Enquanto isso eu pensarei onde posso o encontrar. ? Fez um leve movimento com a cabeça e, com seu típico andar, caminhou para a porta.

? Aconteceu algo horrendo entre vocês? ? Perguntou Beatrice quando estiveram enfim sozinhas. Matava-a a curiosidade e não podia aguentar por mais tempo saber o que tinha ocorrido entre eles. O último que sabia, o que lhe tinha contado seu marido, era que Roger tinha insistido em dormir junto à sua esposa. Mas, conforme parecia e graças às suas preces a Deus, ao final tinha desistido em seu empenho.

? Não! ? Respondeu tão rápido que se surpreendeu ela mesma.

? Então?

? Roger apareceu em um momento no qual minhas náuseas se converteram em vômitos e, como era de esperar, deixou-me sozinha para acalmar meus pesares. ? Tinha parecido convincente? Não estava muito segura dado que Beatrice entrecerrou seus olhos e os cravou nela. Mesmo assim, para reforçar suas palavras, Evelyn sorriu e continuou com voz divertida: ? Deve ter sido horroroso para ele entrar no quarto e descobrir a sua esposa de tal forma. Se tivesse sido ao reverso, eu também teria saído fugindo.

? Se você o diz... ? murmurou a duquesa antes de cravar com o garfo um pedaço de torrada e levá-la à boca.


Escutava certos murmúrios ao seu redor, mas como não tinha dormido em toda a noite, deu a volta e tentou prosseguir com o sonho.

? Milorde, o que me pede pode produzir a maior desgraça que presenciamos em Haddon Hall durante anos ? dizia entre sussurros Mathias, o moço de quadra.

? Se o preferir, verta-lhe o cubo de água fria e corra. Serei eu quem receberá sua fúria ? respondeu William esboçando um sorriso que cobria o rosto de lado a lado.

? Que Deus tenha piedade de nós... ? disse antes de aproximar-se de Roger, arrojar-lhe a água e começar uma carreira tão veloz que seus calcanhares lhe golpeavam os glúteos.

? Maldito seja! ? Uivou Bennett incorporando-se com rapidez do colchão de palha onde tinha descansado. Com o cabelo jorrando e as roupas empapadas parecia um cão ao qual um toró tinha pegado por surpresa. ? Que diabo faz?

? Bom dia, Roger. Uma má noite? ? Saudou-o com enormes e sonoras gargalhadas.

? Maldito seja, William! Por que despertar-me assim? ? Afastando a água que caía de seu cabelo, caminhou altivo para seu amigo.

? É uma tradição no condado de Derbyshire acordar aos bêbados com um bom banho de água gelada ? comentou sem diminuir a brincadeira.

? Malditos populares! Malditos costumes e maldito seja! ? Vociferou mais zangado, se cabia. Ao notar como as roupas esfriavam seu corpo, Roger decidiu despojar-se delas, deixando seu torso a descoberto.

? Não é adequado que as pessoas te vejam seminu ? repôs Rutland em tom sério.

? Adequado? Ha! E interromper meus bonitos sonhos como o fez sim o é? ? Lançou o colete e a camisa ao chão e pisou nos objetos ao sair.

? Roger... ? resmungou o duque como advertência.

? William... ? respondeu o aludido.

Passou por seu lado, olhou-o de esguelha e prosseguiu seu caminhar.

? Adverti-te que ela não era como as demais e que uma esposa não se pode tratar como a uma amante ? começou a o exortar. Rutland colocou sua mão nas costas e avançou atrás de seu camarada.

? Não me recrimine. Se não me falhar a memória, não faz muito tempo se encontrava em minha mesma situação ? matizou a contragosto.

? Nunca! Escutou-me? Nunca tratei Beatrice dessa forma! ? Soltou William zangado.

? É verdade! Você, o senhor honrado, deu uma lição àqueles que o pensaram... ? prosseguiu sua mal-intencionada conversação.

Virou-se rapidamente sobre seus calcanhares e observou o rosto zangado de seu amigo. Até onde queria chegar com aquela atitude? Precisava destruir uma amizade por não ser capaz de admitir o que esteve a ponto de fazer horas antes?

? Eu não gosto nem do seu tom nem das palavras que saem de sua boca ? assinalou o duque apertando os dentes.

? Nem eu gosto de ver no que estou me convertendo. Sinto-me igual ao que se lança de um precipício e no meio da trajetória se arrepende de sua tola ação. Mas... o que posso fazer a não ser me golpear contra o chão? ? Disse mais sereno, inclusive repleto de dor.

? Talvez devesse repensar e adotar uma conduta correta. Só assim não se converterá nesse lerdo que decide saltar ? indicou avançando para Roger e colocando seu braço sobre o ombro nu.

? Já não há volta atrás, William. Ontem fiz algo tão horroroso que, por mais que deseje emendá-lo, nada nem ninguém pode me salvar... ? murmurou enquanto abaixava tanto a cabeça que seu queixo chegou a tocar seu peito.

? Seja o que for, com certeza o tempo o fará desaparecer.

? Não, essa maldade jamais desaparecerá.

? Está fazendo crescer meu interesse. Sei que não é cortês indagar sobre seu pesar, nem fofocar sobre as intimidades de um matrimônio, mas me resulta impossível me conter. Por Deus, Roger! O que fez? ? O duque abriu os olhos de par em par e conteve o fôlego até que observou como seu amigo tomava ar.

Nunca o tinha contemplado tão aflito. Por norma, ele era o único que não mostrava seus pesares em público. Se não se embebedasse naquela noite no botequim do porto, jamais teria sabido que seus pais rezavam para que falecesse para outorgar o título de marquês ao seu irmão.

? Deixei que uma besta crescesse em meu interior e quase forço Evelyn... ? disse depois de tomar seu tempo para assimilar o que fez.

? Como? ? Inquiriu William assombrado.

? O que ouve. Como ela não sucumbiu aos meus encantos, tentei obrigá-la.

? Impossível! ? Exclamou incrédulo Rutland. ? Isso não é próprio de ti! Jamais faria tal aberração!

? Pois a fiz e agora temo que, se existia alguma possibilidade de que minha esposa terminasse me aceitando, esfumou-se.

Roger elevou levemente seu rosto encarando o espanto do rosto de seu amigo. Seus ombros, inclinados para frente, mostravam a figura de um homem atormentado, mortificado. Tornou a dar a volta para prosseguir o trajeto que o conduziria para a residência. Necessitava com urgência esconder-se, desaparecer.

? Sou um monstro, William. Uma besta malvada que não foi capaz de pensar com claridade, que não pôde controlar sua ira, que não pôde distinguir entre o bem e o mal ? disse com um mísero fio de voz.

? Resolveremos isso ? assinalou Rutland muito seguro de suas palavras. ? E se converterá em um matrimônio mais frutífero que o meu.

? Obrigado por suas palavras de consolo, mas decidi retornar a Lonely Field esta mesma manhã. Não quero que Evelyn volte a ver a besta que quase lhe destrói a alma.

? Vou perguntar o que em uma ocasião me questionou a mãe de Beatrice. ? Bennett seguiu avançado.

? O quê? ? Perguntou justo antes de subir as escadas que o levavam para a porta principal.

Face à insistência de seu amigo em o fazer mudar de opinião, ele a rejeitaria. Tinha tomado uma determinação e ninguém o faria retratar-se.

? Perguntou o que ela deseja?

? Não preciso perguntar, sei o que responderá. Você mesmo o apreciará em seu olhar. E agora, se me desculpar, quero me limpar antes de partir. Pedirei ao Brandon que me indique onde está aquele quarto. ? Respirou profundamente e subiu as escadas de três em três.

As mulheres abandonaram a sala de café da manhã ao escutar as vozes de ambos os maridos. A duquesa blasfemava sobre o comportamento dos dois e os comparava com meninos chorões e mimados. Entretanto, Evelyn ficou imóvel e acreditou notar como parava seu coração quando seus olhos verdes se cravaram sobre a imensa figura de Roger. Como um vendaval, entrava na casa seminu. Seu cabelo e as roupas que o cobriam da cintura para baixo jorravam gotas de água. Em cada pegada deixava no chão umas marcas úmidas e suas botas emitiam sons estranhos. Quis olhar para outro lado posto que não fosse próprio de uma mulher contemplar um homem meio vestido, mesmo que fosse seu marido. Mas foi difícil. Estava assombrada ante a exposição de um torso tão firme e esbelto. Jamais acreditou que sob as roupas os homens pudessem esconder uma figura tão magnífica. Era certo que durante suas aulas de arte, as assombrosas esculturas em mármore como O David, de Michelangelo ou O rapto das sabinas, de Juan de Bolonha, mostravam sem pudor como era um corpo masculino. Entretanto o de Roger superava com acréscimo todas aquelas magníficas figuras de mármore.

Tentou recordar se Scott, nas noites que tinham dormido juntos, tinha mostrado algo mais que as pernas. Não, não o tinha feito. Sempre que faziam amor ele cobria seu corpo com uma comprida camisola de algodão e ela também. Respirando entrecortada, confirmou que a mulher que tinha imaginado seu marido como corsário lutando enquanto protegia a sua amada era só ela. Morta de vergonha, abaixou a cabeça. Não sem antes advertir que ele cravava seus olhos nela. Não havia orgulho naquele mar azul, mas sim horror e temor.

? Não tenho nem ideia do que aconteceu entre vocês dois... ? A voz de William a fez voltar a atenção para ele ? mas decidiu partir.

? Partir? Para onde? Por quê...? ? Beatrice, assombrada, virou-se para Evelyn esperando uma resposta, uma palavra, algo que lhe explicasse o que estava acontecendo.

? Deseja que parta? Deseja permanecer sozinha o resto de sua vida? ? O duque pressionou tanto, que suas palavras golpearam com força a cabeça da aturdida mulher. ? Porque se for assim, acompanhe-nos e não suba essas escadas, mas se estiver no certo e não quiser que seu matrimônio se destrua antes de sequer iniciá-lo, já sabe o que deve fazer.

? William! O que ocorre? O que aconteceu? Por que quer afastar-se de novo? ? Interrogava-o sua esposa mudando o olhar de Roger para seu marido.

Rutland se aproximou dela, sussurrou-lhe algo ao ouvido e, depois dela assentir, retornaram à sala de café da manhã.

Evelyn abraçou a si mesma em um vão intento de acalmar os tremores de seu corpo. Estava aturdida, absorta, perdida. Tentou recordar o olhar de Roger. Não havia ódio e sim tristeza, desespero e dor, muita dor. Arrependia-se do acontecido, ou isso é o que ela esperava que sentisse, arrependimento. Com os olhos banhados em lágrimas observou as escadas. Ainda estavam manchadas após sua ascensão. Deu uns pequenos passos para elas, segurou o corrimão de madeira e elevou o queixo. Que Deus a perdoasse. Que Deus tivesse piedade pelo que ia fazer, mas tal como lhe tinha ensinado sua mãe nos últimos anos de existência, preferia lutar que arrepender-se pelo resto de sua vida.


XVII


Ódio. Isso foi o que viu no olhar de Evelyn quando acessou ao hall. Tinha-a contemplado um só instante, o suficiente para compreender que seguia atemorizada, horrorizada ao vê-lo. «O que esperava? ? Perguntou-se mal-humorado enquanto se despojava das poucas roupas que cobriam seu corpo. ? Acaso imaginou que o receberia com os braços abertos e lançando-se para você entre soluços? Mon Dieu!! Je suis stupide!!5». Enfurecido, golpeou com força a porta do vestidor. Esteve a ponto de rompê-la, talvez esse fosse seu propósito, quebrar algo, machucar-se no impacto, sentir mais pesar do que já padecia. Nunca tinha sido tão cruel com uma mulher. Nunca tinha tratado mal a uma dama e, entretanto, pela primeira vez tinha exercido essa crueldade com sua esposa, a pessoa que permaneceria ao seu lado pelo resto de sua vida, e seria a mãe de seus filhos algum dia. Não o perdoaria jamais. O pesar que o atormentava perduraria em seu interior para sempre.

Sem diminuir sua ira nem um pouco, caminhou para o quarto de banho, molhou o rosto e, agarrando-se à bacia, apertou os dentes e gritou como uma besta selvagem. Estava desesperado, amargurado. Desde que nasceu tinha lutado com o demônio que crescia em seu interior, aquele que tinha herdado de seu pai e, agora, depois de tanto tempo controlando-o, a besta zombava dele saindo à superfície. Tinha que afastar-se de todos os que o rodeavam com urgência. Se fosse certo, se já não era capaz de dominar a fera, não só ele estava em perigo, mas sim todos os que amava. É claro que não os machucaria fisicamente, mas... quem golpearia o peito proclamando que mantinha uma amizade com alguém como ele? Aflito, pegou a toalha que tinha sobre uma das banquetas próximas à bacia e, em vez de limpar o rosto, enredou-a na cintura. A necessidade de sair dali o antes possível provocou que evitasse chamar seu ajudante de câmara para vestir-se. Fá-lo-ia ele mesmo. Mas no momento que as solas de seus pés pousaram o chão do quarto, advertiu que não estava sozinho.

? O que faz aqui? ? Grunhiu. Sua voz era pesada, rouca, apática. Afastou o cabelo que cobria o lado esquerdo de seu rosto e a olhou entrecerrando os olhos. ? Perdeu-se ou veio confirmar que minha partida é real? ? Percorreu com grandes passadas o quarto até que chegou à janela. Uma vez ali, abriu as cortinas e a janela. Uma brisa suave apareceu de repente fazendo que não só seus cabelos se movessem, mas sim o objeto que o cobria, também.

Evelyn não era capaz de responder. Desde que abriu a porta e achou escuridão naquele quarto, sentiu pânico. Era tudo tão tenebroso, tão escuro, que a impactou. Seu medo aumentou ao escutar o forte e desesperado grunhido que Roger emitiu de algum lugar que não conseguiu localizar, e esteve a ponto de dar a volta e sair dali, mas quando seu corpo ia obedecer à ordem que lhe mandava o cérebro, escutou-o aproximar-se. Segurou as mãos e levantou o queixo para enfrentar a fúria que ele mostraria ao vê-la. Entretanto, sua expressão de coragem desapareceu de repente ao vê-lo daquela maneira. Seu marido se achava nu. Coberto somente por uma toalha que, graças a Deus, escondia suas partes nobres. Tentou manter a compostura, mas aquela determinação se evaporou ao admirar um corpo tão belo, tão perfeito, tão incrivelmente cinzelado. Onde estava a beleza da qual falava sua tutora ao lhe descrever as perfeitas esculturas de Michelângelo? Sem lugar a dúvidas, a figura de Roger fazia diminuir a perfeição daquelas obras mestras.

? Não fala? Ficou muda de repente? ? Continuou perguntando Bennett. Deu uns passos até situar-se no centro da habitação, colocou suas palmas na cintura e sorriu com uma careta irônica. ? OH, desculpa meu inapropriado traje! ? Disse zombador ao apreciar seu rubor. ? Não esperava nenhuma visita, mas não se sufoque, arrumar-me-ei para você. ? Aproximou-se do armário, tirou algumas roupas e, dando as costas à sua esposa, tirou a toalha e começou a vestir-se.

Evelyn desejou dar a volta e sair dali até que o corpo de Roger se mostrasse de uma aparência decente, mas não fez nem um nem outro. Permaneceu imóvel, na entrada, cravando o olhar na parte posterior do corpo de seu marido e acalorando-se por momentos.

? Então, petite sorcière, que propósito tão urgente provocou que interrompa minha intimidade? ? Falou com zombaria enquanto colocava as meias.

? Não me deixou explicar ? expôs apertando os dentes. Apesar de ficar atordoada ao descobrir a formosa figura de Roger, a ira a fez voltar a si.

? OH, C’est vrai6. Ainda não falou. ? Caminhou para ela com passo seguro, incontrolável, resistente. Pretendia assustá-la para que se pusesse a correr. Porque, embora ela não fosse consciente disso, sua presença, sua beleza, seu cativante aroma o estava deixando tão demente que seria incapaz de controlar o monstro em seu interior. Entretanto, a retidão de seu corpo, o modo como elevava o queixo e como cravava seus olhos nele sugeriram que, apesar de seu empenho em assustá-la, ela não tinha medo ante sua proximidade. Tinha aparecido ali com uma pretensão e muito temia que tivesse que escutá-la. ? Voltarei a repetir só mais uma vez. ? Disse zangado ao não conseguir seu propósito. ? O que faz aqui?

? Não quero que parta ? comentou ao fim.

? O quê? ? O aborrecimento de Bennett evaporou imediatamente. Deu uns passos para trás, os ombros relaxaram inclinando-se brandamente para frente, suas sobrancelhas loiras se arquearam tanto que se uniram e o lábio superior se separou do inferior para revelar uma careta de desconcerto.

? Não desejo que... ? começou a dizer Evelyn. Desfez o nó de suas mãos e se encorajou dando um passo para diante.

? Mon Dieu! Já te escutei! ? Gritou levantando uma mão para fazê-la calar e detê-la.

? Então, se me entendeu bem, por que deseja que o repita? ? Repreendeu-o. ? Você gosta que as pessoas te supliquem? Diverte-se ver como os outros se humilham ante você?

? Humilhar-se? Isso é o que pensa que faz ao subir aqui para me pedir que não parta? Eu acredito que é uma insensata. Uma mulher carente de racionalidade ? resmungou. ? Acaso não teve o bastante com o acontecido ontem? Veio terminar o que comecei? ? Seus olhos, injetados em sangue, fixaram-se na mulher como se quisesse fulminá-la com eles. Apertou os punhos e quis lhe dar de novo as costas, mas algo na debilidade de sua voz o deteve. Parecia como se não tivesse o suficiente fôlego para falar com normalidade e ficou quieto, atento às suas débeis palavras.

? O álcool não nos fez pensar com coerência. Conforme tenho entendido, jamais tratou uma mulher com brutalidade. Possivelmente seu incontrolável desejo por ingerir mais brandy do que pode suportar fez com que me mostrasse aquele monstro...

? Sou, exatamente, esse monstro que descobriu ontem, mon chérie ? assinalou com dureza e cortando com rapidez a distância entre eles. ? Sou um ser maligno, uma besta, um malvado e perverso homem que, apesar das negativas que me ofereceu, quase a tomo, por me pertencer pela lei.

? Você mesmo o disse ? falou baixo ? quase, mas não o fez.

O rosto zangado de seu marido se distanciava muito pouco do dela. O calor que emanava o corpo masculino chocava com o seu. Evelyn, muito ao seu pesar, sentia de novo uma estranha sensação de tranquilidade, embora as pernas não pudessem evitar um tortuoso tremor. Por que, apesar de vê-lo daquela maneira em que expressava tanta violência, ela se sentia segura ao seu lado? «Possivelmente, ? pensou ? porque está louca».

?Votre tête ne fonctionne pas avec lucidité?7 ? Perguntou abrindo os olhos como pratos.

? Je t’interdis de me parler de nouveau en français!!! Ce la devait plaire à les maîtresses lorsque s’eu leur susurrais ces mots a l’oreille, mais moi je n’aime pas. Je ne suis pas comme elles, vous comprends! Je ne suis pas comme elles!8 ? Vociferou Evelyn tão alto que um estrepitoso eco percorreu a habitação.

Roger ficou absorto, imóvel. Tinha que dar tempo à sua cabeça para assimilar duas coisas, a primeira era que nunca teria imaginado que aquela mulher, com aquele leve beleza, não passasse seu tempo curtindo seu físico em vez de sua inteligência. Muitos maridos que falavam com soltura após tomar várias taças se queixavam da banalidade que achavam nas conversações com suas esposas. «Só abre a boca para falar de quantos vestidos pensa comprar, dos escândalos que acontecem na cidade e de quão adequado é caminhar juntos para que todo mundo saiba o matrimônio proveitoso que alcançamos».

Recordou as palavras de lorde Dupuis, um dos cavalheiros mais famosos de Paris e quem aplaudia sua atitude de libertino. Entretanto, sua esposa, essa desconhecida para ele, começava a destruir todas as suas convicções. Não só falava francês com uma pronúncia melhor que a sua, mas sim até zangada, o som de suas palavras era um invejável canto de sereias. Poderia lhe ter gritado os maiores insultos que ele teria mostrado a mesma cara de bobo que tinha naquele momento. E segundo ponto a meditar. Possivelmente o mais importante a ter em conta, reprovava seu comportamento. Esse era o grande problema. Seu passado e sua inapropriada conduta, indubitavelmente, tinham chegado até os ouvidos de Evelyn e lhe exigia que não devia tratá-la como as demais. Muito ao seu pesar, tinha razão. Que conduta tinha adotado desde que a descobriu? A mesma que utilizava com suas possíveis amantes: surpresa, açoite, erotismo, sedução e sexo. Embora como não conseguisse este último, tentou adquiri-lo pelas más. Respirou fundo, retornou para o vestidor, pegou uma camisa e cobriu o torso. Já que iam falar com seriedade, o mais apropriado era que mantivesse também uma imagem adequada.

? Agora foi você quem ficou calado ? repôs com certa soberba.

? Não tenho nada a dizer ? respondeu com voz serena, aprazível.

? Pois então, deveria prosseguir. Tenho muitas coisas que expor.

Com o rosto elevado, caminhou para ele sentindo seu coração galopar dentro de seu peito e apesar de sentir como as forças foram abandonando-a e sua boca secava. Tinha-o surpreendido. Tinha-o aturdido até tal ponto que não era capaz de olhá-la ao rosto.

Com paciência e sempre mantendo uma distância prudente, observou como subia a calça e a ajustava em sua cintura antes de dirigir-se ao canto onde se encontravam os objetos de asseio. Satisfeita por ter derrotado ao homem soberbo e imperturbável, enquanto ele pegava a escova para desenredar o cabelo, ela adotou a mesma pose que na noite passada mostrou ao seu marido quando a encontrou na banheira: cruzando mãos e pernas. Não era um gesto muito feminino, mas lhe oferecia a aparente segurança que devia mostrar para que Roger lhe prestasse atenção.

? Até este momento, comportou-se como um homem libertino, um predador procurando uma presa que lhe levanta a saia para possuí-la. Não me parece correto, mas deduzo que é normal. Ninguém muda anos de mau ensino do crepúsculo à alvorada. ? Sua voz soava mais firme e tranquila. Entretanto, nem a calma nem a firmeza a possuíam naquele instante. Mas se daquela forma bastava para lhe fazer repensar sobre sua determinação de partir de novo, continuaria fingindo. ? Nem você nem eu decidimos permanecer juntos pelo resto das nossas vidas e estou segura de que se tivéssemos encontrado uma possibilidade para desfazer o compromisso, o teríamos feito. Mas aqui estamos, casados porque meu irmão, a quem adoro apesar de sua maldita façanha, decidiu que nossos futuros deviam unir-se.

? Isso não me exime de...

? Não me interrompa. Tento dialogar com uma pessoa irracional e asseguro que é o trabalho mais desesperador que vivi durante meus anos de existência ? assinalou zangada.

Roger se virou para ela e sorriu. Devia zangar-se por seu descaramento, pela ousadia de lhe falar daquela maneira, mas provocou o efeito contrário. Sentiu-se ditoso e inclusive algo petulante por haver se casado com uma mulher tão temperamental. Possivelmente esse era um dos motivos pelo qual Colin decidiu realizar sua patranha. Quem, a não ser um homem com caráter, poderia dominar a uma fêmea selvagem?

? Entendeu? ? Quis saber. Tinha lhe relatado toda uma lista de mandatos que devia acatar para obter um futuro benéfico.

? É óbvio. Tudo o que disse ficou aqui gravado ? mentiu ao mesmo tempo em que pousava uma mão sobre sua cabeça.

? Perfeito. Então... ? estendeu a mão para afirmar o pacto tal como o faziam os homens.

? Então... ? Roger caminhou, esticou a sua e segurou com força a de Evelyn. ? Esqueçamos o passado e tentemos viver uma nova etapa ? disse com um sorriso. ? É obvio... ? Bennett puxou-a para ele com tanto ímpeto que suas bocas mal se distanciaram. Seu fôlego quente se chocava com os lábios femininos e vice-versa ? farei tudo o que me peça se com isso consigo te fazer ditosa.

Evelyn se esqueceu de respirar. Seus olhos se cravaram nos voluptuosos lábios de seu marido. Outra vez a encantou o aroma, seu aroma masculino. Tragou saliva, pensando que aquele gesto lhe devolveria a prudência. Resultou um engano. Roger pousou seus olhos no pescoço e lambeu sua boca como se insinuasse o que faria na sedosa pele de sua garganta. Enrolava-a, dominava-a, hipnotizava-a até tal ponto que nem recordava se, em algum desses pontos, tinha lhe indicado que não podia beijá-la. Porque se era assim, se realmente havia dito por sua boca tal insensatez, algum dia se arrependeria disso.

? Deseja, minha querida esposa, algo mais?

A voz melosa e suave lhe produziu uns inadequados calafrios. Era tão sedutor, tão terrivelmente encantador que, se seguisse assim por mais tempo, seria ela quem saltaria em seu pescoço e invadiria sua boca.

? Não... ? sussurrou afogada.

? Bem. Pois se me permite ? falou isso enquanto a soltava e retornava ao dormitório. ? Tenho que descer e explicar ao meu amigo que finalmente não partirei. Embora tampouco alonguemos nossa visita. Tenho coisas pendentes em Londres e estou seguro de que meu administrador se alegrará de ver-me.

? É lógico. Sete meses sem sua supervisão terá gerado um interminável trabalho, mas o tempo que permaneçamos aqui, recorde que devemos nos comportar como se tivéssemos um matrimônio afortunado. Agora, se não tem nada que objetar, retiro-me. Imagino que Beatrice terá preparado tudo para dar um passeio. O ar fresco e os quentes raios deste magnífico dia nos virão bastante bem ? comentou de maneira altiva ao mesmo tempo em que se dirigia para a porta.

? Portanto...

? Portanto? ? Repetiu Evelyn em forma de pergunta.

Voltou-se para seu marido esperando que, apesar de sua ordem número quatro, avançasse para ela, apanhasse-a entre seus braços e a beijasse como a noite passada na varanda.

? Ambos estaremos muito ocupados durante a jornada. Que tenha um proveitoso dia, Evelyn ? disse realizando uma exagerada reverência.

? Igualmente, Roger. ? Virou-se, abriu a porta e partiu.

Respirava? Não. Claro que não o fazia! Era impossível poder pensar com claridade estando perto de um homem tão impressionante e tomar ar de uma vez. Evelyn notou como seu peito ascendia e descia com brio. Tinha que controlar aquela ansiedade. Tinha que controlar aquele terrível desejo que notava crescer em seu interior quando se aproximava, quando aproximava sua deliciosa boca à sua, quando...

? Basta! ? Exclamou no meio do corredor, acentuando sua fúria com um forte pisão no chão. ? Acabou-se! Esse homem não me fará pecar! Sou uma Pearson!

E após soprar como um touro, jogou a cabeça para trás, segurou o cabelo e desenhando um enorme sorriso, desceu as escadas.

Roger soltou uma enorme gargalhada ao escutar o grito de sua esposa. Era uma mulher divertida, mais do que ela mesma pretendia. Ao mesmo tempo que deliciosa, erótica, luxuriosa e muitas coisas mais que lhe ocorriam em sua mente perversa. «Está bem, minha querida bruxa, começa o jogo da sedução ? murmurou enquanto terminava de vestir-se. ? Te farei tão viciada em mim que rogará para que te toque, que te beije e que te possua. Gritará com tanta força meu nome quando me introduzir em seu corpo que me deixará surdo. Desejará com desespero que minha boca acaricie seus mamilos. Morrerá por me arranhar as costas quando sentir como arde seu corpo sob o meu e, é óbvio, rogar-me-á que não deixe de te amar pelo resto de nossas vidas. Mas até esse momento... que comece o cortejo!».


CONTINUA

IX


Tudo estava preparado para a festa de Elliot. Gente de todas as partes de Londres iria à cerimônia que os duques ofereceriam para a apresentação de seu primeiro filho. Beatrice andava de um lado para outro histérica, igual a William, que se contagiou pela ansiedade de sua esposa. A pequena mulher levava várias semanas aterrorizando o pessoal do serviço, ordenava sem parar quando não tinha no regaço seu bebê, momento no qual os criados podiam respirar tranquilos, mas quando o pousava no berço ou o dava ao seu marido, os lacaios corriam pela residência procurando um buraco onde esconder-se.

Só a senhora Stone e Evelyn acalmavam sua ansiedade. Esta última estava vivendo com eles desde que nasceu o pequeno. William acreditou oportuno retirar a mulher da cidade alegando que Beatrice necessitava, depois da chegada do bebê, o apoio de uma amiga, mas a verdadeira razão era outra bem distinta. O rumor sobre as proposições que a senhora Bennet estava recebendo em seu próprio domicílio tinha chegado aos seus ouvidos e ideou um plano para que partisse dali o quanto antes. Não desejava que quando Roger decidisse retornar descobrisse o que tinha acontecido em torno de sua esposa. Além disso, tanto William como Beatrice decidiram unir de uma vez por todas o casal e que abandonassem a ideia de viverem separados. Não era lógico que seu amigo sulcasse os mares enquanto sua esposa era acossada por canalhas. Tinha que fazer Bennett ver que precisava confrontar a vida conjugal que lhe tinha sido imposta, e se isso lhe custava sua amizade, que assim fosse.

? Crê que virá? ? Perguntou a duquesa com incerteza enquanto pousava com cuidado o pequeno no berço.

? Você leu a resposta. ? William esperava ao pé da cama que sua mulher o ajudasse a colocar a gravata.

Desde que se tinham casado já não necessitava do ajudante de câmara, o qual trocou de trabalho em caráter imediato. Preferia mil vezes as mãos de sua esposa às do jovem.

? Sei que dizia que estaria conosco na apresentação do Elliot, mas não li nada sobre sua esposa. Nem se preocupou em saber como se encontra ? disse zangada.

? Em sua defesa alegarei que ele não sabe que está sob nosso amparo.

? Há, mas...

? Não se conhecem, querida. Terá que lhes dar um pouco de tempo, embora muito temo que Roger se arrependerá dessa escapada quando aparecer ? expôs ao mesmo tempo em que exibia um sorriso malicioso.

? Por que diz isso? ? Beatrice caminhou devagar para seu marido, apertou com suavidade o laço da gravata e apoiou a cabeça em seu peito. Reconfortava-a tanto permanecer ao seu lado que a fazia esquecer qualquer preocupação.

? Apostaria minha cabeça que não teria partido jamais se a tivesse visto uma só vez. Sem lugar a dúvidas, Evelyn é seu tipo de mulher ? afirmou.

Levantou o semblante de sua esposa e dirigiu seus lábios para os dela.

? Você crê? ? Perguntou com insegurança.

Estava convencida de que Roger gostava de todas as mulheres e nunca imaginou que pudesse existir uma em especial. Se não recordava mal, quando se aproximou o dia do baile que organizaram para que todo mundo compreendesse que não era a concubina de William, Bennett lhe disse que gostava das jovenzinhas e Evelyn, embora tivesse um rosto infantil, passava dos trinta.

? Se vier, o comprovará. E agora, minha querida duquesa, baixemos para receber nossos convidados enquanto o futuro duque de Rutland descansa ? disse sem ocultar seu orgulho.

Ofereceu-lhe o braço e Beatrice o aceitou, deu-lhe um beijo na bochecha e saíram do quarto em silêncio.


Evelyn estava muito inquieta para ficar imóvel. Tinha escutado Wanda suspirar mais de trinta vezes desde que começou a penteá-la, mas embora o tentasse, resultava-lhe impossível. Como ia serenar sabendo que ele poderia aparecer na festa? Embora Beatrice e William rissem ao lhe contar o engano que elaborou quando a visitou em sua casa, ela estava segura de que ele não acharia nenhuma graça. Supostamente tinha se casado com a criada e, pela cara de horror que pôs ao vê-la, não pareceu lhe agradar.

Não pensou nas consequências, cansada como estava de tanta visita inadequada. Se tivesse sabido que ele seria o homem com o qual finalmente se casaria, não teria se exposto a atuar daquela forma.

Olhou para diante cravando suas pupilas verdes no espelho. Mal se reconhecia. Levava mais de meio ano vestindo e adotando a figura de uma mulher de luto e agora, ver-se de novo luzindo uma cor diferente ao negro, pareceu-lhe estranho. O luto por seu irmão tinha finalizado, mas não sua dor. Continuava tendo saudades e, embora não o admitiria nunca, também continuava amaldiçoando-o em silêncio por fazê-la casar com um homem de quem só sabia seu sobrenome. Graças aos Rutland descobriu que seria o futuro marquês de Riderland, que não era muito velho e que tampouco tinha levado uma vida tão honrada como lhe pareceu ao conhecê-lo. O senhor honorável era um libertino acostumado a esquentar as camas alheias. Entretanto, William elogiava o caráter de seu amigo. Não havia conversação em que não elogiasse a variedade de qualidades que possuía, mas Evelyn acreditava que o fazia para não entristecê-la, para que não sofresse pelo homem com o qual deveria viver o resto de sua vida.

? Está linda ? sussurrou Wanda apoiando as mãos sobre seus ombros nus. ? Não recordo havê-la visto tão formosa.

? Possivelmente deveria ter posto o rosa. Este é muito chamativo para a ocasião. ? Evelyn se levantou, observou-se com paciência o espelho e suspirou.

Beatrice a tinha convencido para comprar aquele vestido vermelho. Segundo ela fazia jogo com a cor de seu cabelo e enfatizava os belos traços de seu rosto, mas ela se via muito frívola, talvez porque se acostumou a ocultar sua figura sob a escuridão das roupas. Agora, ter que exibir, embora fosse de maneira insinuante, o nascimento de seus seios, mostrar seus braços, exceto o que ocultavam as luvas, e deixar que todo mundo observasse o magro e longo pescoço lhe provocava temor. Sem lugar a dúvidas, sentia-se mais cômoda oculta sob o véu.

? Não diga tolices! ? A criada a fez girar para ela e franziu o cenho. ? Leva muito tempo sob as penumbras e é hora de desfrutar!

? Penumbras? ? Perguntou Evelyn.

Caminhou para a poltrona de veludo azul e, como se tivesse corrido uma maratona, sentou-se elevando as pernas.

? Sim, penumbras. ? Deu uns passos para ela, colocou as mãos na cintura e franziu o cenho. ? Desde que aquele malnascido rompeu seu compromisso, não tem feito outra coisa que esconder-se do mundo. Nunca saía de Seather Low. Cada vez que alguém visitava seus pais se encerrava no quarto e não aparecia pelo salão até que a visita partia. Logo chegou a morte de sua mãe, que Deus a tenha em sua glória. ? Benzeu-se e olhou ao teto. ? Um motivo mais para seguir oculta. Depois a de seu pai e, finalmente, a de seu irmão.

? Tive uma vida dura... ? murmurou como desculpa. Soprou e olhou para o teto. Tudo o que contava Wanda era certo. Da ruptura com Scott e a desculpa que difundiu seu pai ante aquele sucesso, o único que desejava era manter-se afastada de qualquer pessoa que lhe fizesse mal.

? Porque você decidiu que assim fosse. Agora tem uma oportunidade para viver, para desfrutar de tudo aquilo que decidiu não possuir.

? Acredito que se esquece de algo ? disse zangada. Levantou-se com rapidez do assento e, esquivando do corpo de Wanda, dirigiu-se com passo firme para a porta.

? O quê? ? Perguntou a donzela sem afastar a vista dela.

? Que me casei com um homem que não posso recordar como é e ao qual não amo ? sentenciou.

Estava a ponto de sair do quarto quando observou que a criada cortava a distância entre elas. Moveu devagar a cabeça para ela e se surpreendeu de quão rápido tinha chegado ao seu lado. A donzela apoiou as costas na porta evitando assim sua fuga e a olhou sem piscar.

? Acaso não recorda como a contemplava? Foi incapaz de fixar seu belo olhar azul em mim nem que fosse por só um segundo! Você era o centro de sua atenção. Se por acaso o esqueceu, tenho que lhe indicar que quando apareceu no salão se achava em estado de choque, como se permanecesse enrolado após conhecê-la.

? Bobagens! ? Exclamou zangada.

? Não diria isso se você tivesse visto como a sustentava com firmeza entre seus braços, como a olhava preocupado, como a pousava sobre a cama para não a machucar e como...

? Basta! ? Gritou elevando a mão para que parasse de falar. ? Não quero continuar escutando sandices!

? Sim, minha senhora... ? Wanda se retirou da entrada, abaixou a cabeça e conteve a respiração.

? Sinto... ? disse depois de uns instantes de silêncio. ? Me perdoe. Estou muito nervosa.

? Não tenho que lhe perdoar nada. Acredito que fez bem em me fazer parar ? comentou em voz baixa.

? OH, Wanda! ? Exclamou ao mesmo tempo em que se abraçava a ela. ? Tenho medo! Muitíssimo!

? Não tenha. Sei que no final será feliz. O senhor Bennett a converterá na mulher mais ditosa do mundo.

? E se descobrir a verdade? Que há outro engano mais cruel que o daquele dia? ? Encostou a testa no peito da mulher.

? Se chegar a amá-la, seu passado não lhe importará ? afirmou com veemência. Suas mãos se dirigiram para os braços de Evelyn e com cuidado a distanciou para que pudesse olhá-la aos olhos. Uma vez que a jovem elevou o queixo, Wanda lhe ordenou com suavidade: ? E agora se recomponha. Tem uma festa à qual assistir.


X


Tinha estado adiando o momento de sua chegada tudo o que pôde, mas já não podia fazê-lo mais. Quando o cocheiro estacionou a carruagem no único espaço que encontrou livre pelos arredores de Haddon Hall, Roger estava tão impaciente que ele mesmo abriu a porta. O entardecer já tinha dado lugar à escuridão da noite e só os lobos pareceram precaver-se de sua chegada.

Olhou ao seu redor. Novamente se apresentava na mansão a umas horas inapropriadas, embora estivesse seguro de que nesta ocasião William não o receberia com seu habitual sorriso. Colocou o chapéu, cobriu seu corpo com a capa e avançou sem escutar os murmúrios de Anderson. Possivelmente continuaria resmungando sobre o inadequado de chegar mais de duas horas atrasado a uma cerimônia tão importante, mas nesse momento não queria lhe prestar atenção. Sua mente estava ocupada em averiguar como devia atuar frente à sua esposa e como ela receberia a notícia de sua chegada. Não era o mesmo a encontrar a sós, onde só escutariam seus alaridos os criados do lar, ao escândalo que se armaria em uma cerimônia com mais de setenta convidados.

Com firmeza, agarrou a aldrava e tocou várias vezes. O ruído da orquestra parecia silenciar seus golpes. Deu uns passos para trás para poder olhar a varanda, que permanecia aberta. Com certeza os anfitriões tinham decidido deixa-la dessa forma para que os casais saíssem e pudessem encontrar-se durante uns instantes a sós.

Roger sorriu ao recordar o momento no qual encontrou seu amigo dançando com Beatrice e como a beijava com ternura. Apaixonou-se. Por mais incrível que lhe parecesse, William tinha entregado seu coração a uma mulher. Invejou-o. Sim, embora parecesse incrível cobiçou aquele sentimento de afeto. Nunca tinha tido nada um pouco parecido. Suas amantes, apesar de serem boas na cama, não o tinham olhado como Beatrice olhava seu amigo. Os olhos verdes da mulher brilhavam com mais força que a lua e o desejo de protegê-lo de qualquer mal sobrepunha ao seu próprio benefício.

Sua mente levou-o ao dia do duelo, voltando a ver a pequena mulher correndo por Hyde Park, tropeçando na erva, destroçando aquele bonito vestido. Recordou-a ajoelhada no chão chorando ao pensar que William havia falecido. Nunca observou em uma mulher tal desconsolo, tal tristeza pela perda de um homem. E por último rememorou o beijo de ambos. Uma amostra de paixão que deu muito o que falar na sociedade londrina, posto que não estava bem visto que as pessoas se beijassem em público. Mas se houver amor, qual o problema demonstrar? Agora ele não encontraria nada parecido. Por ser um imbecil, por ser um néscio, Deus o tinha castigado lhe oferecendo uma esposa que poderia ser sua própria mãe. Sem contar, claro está, que se desejava ter descendência, teria que tentá-lo o antes possível posto que ela logo ficasse estéril.

De repente um som despertou-o de seus pensamentos. Dirigiu os olhos para a entrada e descobriu que alguém, por fim, atendia-o.

? Boa noite... senhor Bennett? ? Perguntou o mordomo mais assustado que assombrado.

? Boa noite, Brandon. Parece que a festa ainda não finalizou ? disse. Como era habitual nele, avançou para o interior do lar sem ser convidado.

? O que lhe aconteceu? ? Continuou perguntando o criado atemorizado.

? Nada, por que o diz? ? Tirou o chapéu e a capa para entregar a Anderson que, como sempre, permanecia ao seu lado.

? Parece que o assaltaram no caminho e o tiveram detento durante anos! ? Exclamou o senhor Stone escandalizado.

? Diz pela barba e o comprimento do meu cabelo? ? Perguntou divertido Roger. ? É meu novo aspecto. Acredito que a vida de casado não me tratou tão bem como esperava.

? Ordenarei ao antigo ajudante de câmara que amanhã visite seu quarto para arrumá-lo ? disse o criado com certa resignação ao comprovar que a atitude do homem era a de sempre.

Não parecia ter mudado durante sua ausência. Seguia sendo o mesmo cavalheiro descarado, presunçoso e déspota, e por muito que rezou a Deus para que a vida o pusesse em seu lugar, este não tinha escutado suas súplicas e o premiara com uma mulher encantadora.

? Não se incomode, não vou requerer seus serviços. Satisfaz-me minha nova aparência ? comentou ao mesmo tempo em que caminhava com solenidade para o salão principal.

Anderson olhou com tristeza ao senhor Stone. Não precisou falar para entender o que desejavam dizer-se, bastou um leve assentimento de cabeça para conhecer as palavras que guardavam em suas mentes.


Quanto mais se aproximava da entrada, mais desejo tinha de sair correndo. Durante o tempo que esteve navegando se expôs mais de um milhar de formas de tratar seu novo estado, mas na hora da verdade nenhuma lhe resultava adequada. O que devia dizer? «Senhora Bennett, encantado de voltar a vê-la. Quero lhe indicar que decidi retornar, mas não tema, deixá-la-ei viver em sua residência o tempo necessário até que eu queira ter um herdeiro». Grande tolice! Sem lugar a dúvidas ela sairia gritando da festa e se encerraria em seu quarto até que ele partisse. Prometeu-lhe que não a incomodaria e estava quebrando sua palavra.

Roger levantou o rosto para olhar para o interior da sala. Havia casais dançando. Reconheceu o senhor Wadlow, o pároco e o administrador de William. Não quis olhar para o grupo de mulheres que se agruparam no lado direito. Preferiu avançar para os homens, onde pode divisar sem obstáculos seus dois amigos. Sorriu ao ver que Federith também tinha aparecido e desejou de uma vez por todas conhecer sua esposa, posto que a senhora Cooper parecia um fantasma.

Os olhos escuros de William se cravaram nos seus e tal como pensou, não obteve um sorriso como resposta ao seu.

? Boa noite, cavalheiros. William, Federith, como sempre é um prazer voltar a os ver. ? Estendeu a mão para Cooper e este o saudou com um bom apertão. Logo a ofereceu a Rutland e o duque a negou.

? Pensava que tinha morrido, ? disse William com voz dura ? porque se não foi assim, não encontro razão alguma pela qual tenha vindo tão tarde.

? Não me castigue, amigo ? comentou mostrando um sorriso. ? Meu pesar ainda não começou.

Rutland se desculpou dos convidados e, sob seu atento olhar, pegou com força o braço de Roger para afastá-lo do salão. Sem lhe dar nenhum tipo de explicação o conduziu para o balcão. Uma vez fora, liberou a forte amarração, empurrou-o para o corrimão como se quisesse lançá-lo, e o observou com ira.

? Não estará pensando em me beijar, não é? ? Bennett rompeu o inesperado silêncio com seu típico tom jocoso. Era a primeira vez que sentia a fúria de seu amigo em volta dele e não gostava de ver como uma amizade de tantos anos começava a se quebrar.

? Por que chegou a estas horas? Acaso não ficou bem clara a hora da cerimônia? Beatrice teria gostado que permanecesse ao nosso lado em um dia tão importante.

? Sinto muito, peço-te mil desculpas e os compensarei com...

? Não há nada que compense a dor que nos causou, Roger! ? Gritou mal-humorado. ? Queríamos que você fosse o padrinho do nosso filho!

? Quem ocupou meu lugar? ? Perguntou depois de uns minutos de silêncio tenso e caminhando para o lado contrário ao que permanecia William imóvel.

? Federith.

? Foi a melhor opção. Eu jamais estarei à sua altura para tal honra.

? Maldito seja, Bennett! Que diabos aconteceu com você? Quase não te reconheço.

? Sete meses dão para muito... ? sussurrou.

Girou sobre os calcanhares e endireitou sua figura, como se assim pudesse desfazer-se da tristeza que lhe tinha provocado descobrir que seus amigos tinham acreditado nele para o cuidado de seu primeiro filho, e os tinha defraudado.

? Dão para exibir esse aspecto de miserável que mostra ? disse o duque em tom mais cometido.

? Cheguei ontem pela manhã e após desembarcar pus rumo para Haddon Hall ? mentiu. Não queria revelar o que tinha descoberto após pôr os pés em Londres porque, além de o exortar sobre a como pedir respeito quando ele mesmo não o tinha feito, riria ao compreender que no fundo não odiava tanto como acreditava o título de seu pai.

? Não minta! ? Exclamou William apertando os dentes. ? Esquece-se de que nada se pode ocultar? Crê que uma notícia tão importante como a volta de um marido que abandonou a sua mulher depois de casar-se não chegaria ao condado de Derbyshire? Sei que apareceu faz algo mais de dois dias e que nessa mesma noite visitou o clube. Sentia falta de seus jogos e suas bebedeiras? Essas são as razões que o impediram de aparecer a tempo na apresentação do meu herdeiro?

? Não! ? Disse com rapidez.

? Então? O que ocorreu? E não volte a me mentir ou jamais voltará a pisar em minha casa ? sentenciou.

? É duro de contar, William, inclusive tenho que assumir antes. ? Colocou a mão direita no bolso de sua jaqueta, tirou um pacote de cigarros e acendeu um.

? Escuto-te. Conhece-me bem e sabe que não te julgarei seja o que for ? respondeu com voz sossegada.

? É verdade que retornei faz vários dias, mas antes de vir precisava esclarecer certas coisas. Durante minha longa viagem repensei sobre meu futuro. ? Fez uma pausa para dar uma longa inspiração. ? Como pode imaginar, entre minhas reflexões se encontrava como fazer frente à minha esposa. Já te disse que lhe fiz a promessa de me afastar de seu lado para que pudesse ter uma vida em paz, mas isso fez estragos na minha. Assim decidi visitá-la para lhe dar uma explicação sobre minha volta.

? Ela está conosco ? interrompeu Rutland. ? Beatrice e eu decidimos que o mais apropriado seria que permanecesse uma longa temporada ao nosso lado.

? E lhes agradeço isso de coração, porque não imagina o que descobri quando cheguei ? repôs aflito.

? Sabemos. Como te disse antes, nenhum rumor tem fronteiras.

? Desde quando sabem que todo mundo lhe propôs que fosse sua amante? ? Inquiriu um tanto zangado. ? Por que não me fez saber isso em sua carta?

? Não achei oportuno...

? Oportuno? ? Franziu o cenho. ? Dar-me essa informação não te pareceu oportuno?

? Precisava esclarecer as ideias e pensei que te viria bem um pouco mais de tempo.

? Maldito seja, Rutland! Sabe que quase todos os homens de Londres lhe propuseram essa loucura?

? Sim.

? E? O que faria você em meu lugar? ? Repreendeu-o.

? Em primeiro lugar, eu não a teria deixado sozinha em um momento tão duro. Não só tinha perdido seu irmão de uma maneira desonrosa, mas sim também descobriu que se casou com um bastardo que não se interessou por seu bem-estar ? esclareceu com solenidade.

? Prometi-lhe que a deixaria viver em paz! ? Exclamou irado. Atirou o cigarro ao chão e o pisou com ímpeto. ? E embora não o creia, sou um homem de palavra. Além disso, meu administrador se ocupou de que não lhe faltasse nada.

? Perguntou a ela o que desejava? Dignou-se saber o que pensava ela naqueles momentos? ? Disse irado.

? Não precisou, vi-o em seus olhos. Não me queria ao seu lado ? refletiu com tristeza.

? Quando viu seus olhos? Nas bodas? Antes de embarcar? ? Insistiu William.

? No dia que me apresentei em seu lar e deixei que lesse o que seu irmão me fez assinar ? confessou com um pequeno fio de voz. ? Embora te possas assegurar que mais pavor provocou à sua criada que a ela.

? Já entendo... ? um pequeno sorriso apareceu no rosto de Rutland. Evelyn lhes tinha contado o acontecido naquele dia. Ela se fez passar pela criada e esta pela senhorita Pearson. Conforme lhes disse, quis dizer-lhe no dia do enlace, mas ao partir sem mal lhe dirigir a palavra, decidiu prosseguir com seu segredo.

? Sei que soa muito duro dizer isto, William, mas não a quero. Não é o tipo de senhora com a qual desejo viver o resto da minha vida. Casei-me com uma mulher pela qual unicamente sinto lástima. E mais, vou confessar algo que não pode sair daqui. ? Olhou Rutland aos olhos e se manteve calado até que seu amigo afirmou com a cabeça: ? Juro por minha vida que me impactou mais a criada que ela.

? Então... precisava se afastar de sua esposa ou da criada? Está me confundindo ? disse divertido.

Conhecendo-o como o fazia, estava seguro de que ao descobrir Evelyn, embora fosse vestida de criada, deixara-o em estado de choque. A debilidade de Roger pelas mulheres com o cabelo de cor de fogo era indescritível e apostaria o pescoço que a verdadeira razão pela qual embarcou foi o desejo que a moça lhe tinha provocado. Bennett não queria parecer-se com seu pai. Odiava todos os enganos que tinha sofrido sua mãe, os bastardos que rondavam as ruas da cidade e a obsessão do atual marquês por levantar saias.

? Mon Dieu! ? Exclamou elevando as mãos e as agitando. ? Pela criada! Durante estes malditos meses só pensei nessa mulher, em seu aroma, em como seria acariciar aquele cabelo de fogo. Tenho escrito várias cartas à minha esposa com a esperança de que suas respostas inspirassem algo que não sentia, mas não recebi nenhuma só resposta. Tampouco lhe interesso, só sou a pessoa que lhe oferece estabilidade econômica. O quê? ? Encarou William ao ver que sorria. ? Por que sorri?

? Crê de verdade em suas palavras? ? Aproximou-se e pousou a mão sobre seu ombro.

? Deveria pensar em outra coisa? ? Respondeu inclinando a cabeça levemente para baixo.

? Reflita sobre isto: sua esposa vive conosco há umas quatro semanas, mas esteve sozinha em sua residência durante seis meses. Quantos homens puderam lhe oferecer semelhante loucura durante esse tempo?

? Muitos... ? sussurrou sem voz.

? A quantos disse que sim?

? Segundo o mordomo que me recebeu em Seather Low, a nenhum.

? Isso não te indica nada?

? Não ? respondeu. ? Possivelmente nenhum dos que apareceu a atraiu sexualmente.

? Pois se pensa isso é mais parvo do que eu imaginava. A conversação terminou. Devemos retornar. Estou seguro de que Beatrice andará me procurando e não quero que se sinta abandonada. ? Rutland avançou para a entrada enquanto observava de esguelha seu amigo.

Como se lhe tivessem mostrado uma adaga, Bennett caminhou para o interior da sala de novo. As pessoas continuavam tal como antes de ausentar-se: dançavam e cochichavam sem cessar. Possivelmente estavam falando de sua chegada e de sua piorada aparência. Entendia-o. Com a espessa barba e o cabelo à altura dos ombros dava a imagem de um corsário, mas tampouco enganava, tinha-o sido durante o tempo que sulcou os mares.

Dirigido por William, retornou ao grupo onde os homens prosseguiam com seus bate-papos aparentemente importantes. Jogou uma leve olhada pelo lugar, procurando a sua esposa, embora não a viu. Todas as que vestiam luto eram baixas e cheias. Sabia que em sete meses se podia mudar muito, mas... tanto? De repente os homens deixaram de falar para dirigir seus olhares para um ponto da sala. Roger estava de costas e até que não se virou não pôde comprovar o que os tinha deixado mudos. Abriu os olhos tanto que quase se saíram das órbitas. Não podia ser. Que fazia ela ali acompanhando Beatrice e vestida como uma dama? Com rapidez voltou a vista para Rutland, que sorria mais do que o normal.

? O que é tudo isto? ? Perguntou Bennett zangado. ? O que ela faz aqui?

? Eu gostaria que fosse ela mesma quem lhe dissesse isso, Roger, mas tal como ficou, temo que devo ser eu a pessoa que lhe dê o relatório...

? Do que deve me informar? O que acontece? ? Apertou com tanta força as mandíbulas que começou a lhe doer a cabeça.

? Meu querido amigo, ela é sua esposa.


XI


Sabia que estava ali assim como podia perceber seu penetrante olhar cravado no pequeno decote das costas que apresentava seu vestido. Tentou manter a calma e continuar conversando com as mulheres que se encontravam ao seu redor, mas apesar de querer mostrar indiferença, não podia. Tremiam-lhe as pernas e mal podia segurar a taça sem que derramasse o champanha. Tentou escutar o monólogo apaixonado de uma das convidadas, embora na realidade não pudesse ouvir uma só palavra. Todo seu corpo se centrava em uma coisa: ele.

De repente, observou que as mulheres ao seu redor começavam a olhar atrás dela e foi então quando seu coração deixou de pulsar. Apreciou que algumas, as mais jovens, moviam suas pestanas como se fossem leques e levantavam a comissura de seus lábios em forma de sorriso. Outras, casadas, ruborizavam-se e ficavam um tanto nervosas. A Evelyn não cabia dúvida de que a causa daquela perturbação feminina era seu marido. Até àquele momento, nenhum homem tinha causado tanta expectativa entre as mulheres.

Tentou recordá-lo: alto, com bom porte, o cabelo loiro e uns olhos azulados como o céu. Sim, ela também ficou aniquilada no dia em que o recebeu em sua casa, mas devido à sua idade e à má experiência com Scott, já não se fixava no físico dos homens e sim no que escondiam em seu interior. Contemplou surpreendida a ansiedade a que estavam sucumbindo suas acompanhantes. O que estaria fazendo? Quis dar a volta e averiguá-lo por ela mesma, mas seu corpo não lhe respondeu. Tinha medo de enfrentar-se cara a cara com ele, embora tivesse meditado muitas vezes em como atuar após sua volta, não estava preparada. Como reagiria ao vê-la? Ficaria tão zangado para lhe gritar diante de todos que era uma mentirosa? Possivelmente. Seu marido não só tinha sofrido a mentira de Colin, mas também a sua.

Tomou um sorvo de sua bebida. Logo outro e quando notou uma suave brisa quente em seu pescoço, terminou-a de um gole.

? Bonne nuit, madames ? saudou Roger as damas, mostrando um enorme e sensual sorriso. ? Estão se divertindo?

? Roger... ? Beatrice, atenta à perplexidade de Evelyn, adiantou-se e lhe estendeu a mão. ? Acreditei que enfim não viria.

? Perdoe o atraso, senhora duquesa, mas uns assuntos um tanto abafadiços em Londres fizeram com que minha partida se atrasasse ? disse colocando-se atrás de sua esposa e esperando que ela se virasse para ele e o saudasse.

Notava o pequeno tremor de seus ombros e os agitados movimentos do líquido de sua taça. Estava nervosa ante sua presença e, embora não fosse oportuno, teve uma vontade imensa de pegá-la pela cintura e arrastá-la para o exterior da casa. Ali, acompanhados só pela escuridão da noite, faria o sem-fim de perguntas que lhe tinham abrasado a cabeça enquanto caminhava para ela, mas se conteve, era melhor torturá-la um pouquinho mais antes de assaltá-la com suas dúvidas e beijar aqueles lábios que tanto tinha pensado devorar.

? Solucionaram-se? ? Beatrice não gostava de continuar conversando com quem tinha faltado à confiança de seu marido, mas o fez por Evelyn, que não tinha deixado de olhar o quadro que se encontrava na parede em frente e de levar uma taça vazia aos lábios.

? Bien sûr que oui!!2 Acaso duvida do meu poder resolutivo? Só foi um mal-entendido e acredito que deixei muito claro que ninguém pode tocar no que é meu ? disse em tom dominante. ? Por certo, minha querida esposa, encontra-se bem? Observo que sua tez empalideceu e sua mão não pode parar de tremer.

? Só preciso tomar um pouco de ar fresco ? murmurou olhando Beatrice em busca de ajuda, mas Roger não lhe deu a oportunidade, estendeu sua mão, pegou a sua e lhe disse com voz aveludada:

? Acompanhe-me. Levá-la-ei para o exterior. Estou seguro de que se recuperará quando respirar o ar puro das terras do meu amigo.

Quando Evelyn se virou para lhe reprovar tal imoralidade, ficou assombrada. Seu marido, aquele a quem recordava com um perfeito corte de cabelo e um rosto suave e delicado, tinha mudado totalmente. Seu cabelo agora roçava os ombros e a barba, espessa e áspera, ocultava a metade do seu rosto deixando a descoberto só os lábios. Agora entendia o estupor das mulheres.

? Não tenha medo... não vou mordê-la... pelo menos não diante de toda esta gente ? sussurrou-lhe no ouvido enquanto caminhavam para os jardins.

? Não se atreveria... ? disse Evelyn com voz estrangulada.

Se a tinha segurado pela mão em vez de lhe oferecer o braço como era o normal, estava segura de que faria algo quando tivesse a mínima oportunidade.

Apesar de serem menos de cem passos do interior da sala para o exterior, a Evelyn parecera-lhe uma eternidade. Não via o momento de poder soltar aquela mão firme e correr para algum lado da casa para esconder-se. Olhou de esguelha a seu marido e não observou ira alguma. E mais, parecia divertido, mas ela seguia intranquila. Sabia que lhe ia pedir explicações, não só por seu engano, mas também pelo que teria escutado em Londres. Ela tinha rejeitado todas as proposições porque desde que lhe fizeram chegar a primeira carta que escreveu seu marido, soube que nem tudo estava perdido, mas não era o momento nem o lugar para indicar-lhe.

? Bom, senhora Bennett ? disse Roger abrindo a mão para que ela pudesse afastar-se de seu lado. ? Acredito que temos vários temas pendentes, não é?

? Não sei a que se refere ? replicou andando para o corrimão de pedra. Uma vez que se apoiou nele, olhou para baixo para calcular os metros que havia se por acaso tivesse que saltar.

? Em primeiro lugar, vejo que não é a senhorita Pearson que me recebeu. Ou possivelmente, o fato de que luza uma cor diferente ao negro me deu outra imagem diferente da que lembrava ? afirmou em tom jocoso.

? Estava cansada, enojada das contínuas visitas de cavalheiros que me ofereciam matrimônio ? explicou sem olhá-lo. ? Como pode imaginar, pensei que era mais um.

? Claro... claro... e por isso sofreu um desmaio ao ler a carta. Por certo, fazendo alusão ao tema das cartas e das boas notícias, o senhor Lawford me passou a fatura de dez libras como conceito de uma garrafa de... brandy?, conforme afirmava, que você quebrou em seu escritório.

Um sorriso cobriu seu rosto. Três semanas depois de zarpar recebeu uma missiva do administrador lhe relatando a escandalosa visita de sua esposa e como esta lhe tinha quebrado um de seus melhores licores. Como resposta, Roger lhe mandou uma caixa com seis garrafas e as dez libras que reclamava. Recordou que aquele dia, justo quando tinham superado uma das piores tormentas, fez-lhe tão feliz e gargalhou tanto da atuação de sua mulher que se sentiu orgulhoso dela.

? Aquele ladrão... ? resmungou com raiva. ? Tinha que ter quebrado aquela garrafa na cabeça dele.

? Então nós teríamos que ter casado no cárcere, não crê? ? Disse antes de soltar uma enorme gargalhada.

? Isso teria sido menos escandaloso que a morte do meu irmão ? comentou com pesar.

? Bom, não nos afastemos do tema que me interessa. Por que não me disse quem era no dia que nos casamos? ? Perguntou sem parar de caminhar até que se colocou atrás dela.

Queria que esquecesse a dor que devia padecer pela perda de seu irmão e a solidão que teria sentido sem ter seu marido ao seu lado. Mas já não partiria mais. Embora não o quisesse, ele já não a deixaria sozinha.

? Tive que assimilar muitas coisas, senhor Bennett. ? Ao perceber o corpo de seu marido próximo, um estranho calafrio a fez tremer.

? Tem frio? ? Perguntou preocupado Roger. Afastou-se uns passos, tirou a jaqueta e esperou que sua mulher desse a volta para oferecer-lha. Ao não fazê-lo, ele mesmo a colocou sobre os ombros nus.

? Tem que entender... ? começou a dizer sem afastar o olhar do horizonte ? que depois da morte do Colin começaram a ver-me como uma mulher carente de recursos e uma possível candidata a contrair matrimônio com viúvos ou anciões solteiros.

Agradeceu a calidez do casaco de seu marido. Colocou as mãos nas mangas e inspirou com força. Cheirava a ele: uma mescla de colônia, essência viril e tabaco. Todo aquele tempo imaginando como cheirava e agora tinha a resposta.

? E... cada vez que alguém a visitava se fazia passar pela criada? ? Perguntou zombador.

? Não, só o fiz em uma ocasião. ? Quis virar-se para enfrentá-lo e, ao fazê-lo, aproximaram-se tanto que seus rostos estavam mais perto do que o desejado.

? Por que não me disse isso no dia das bodas? ? Roger esticou as mãos para o corrimão e a reteve com seu corpo. Inclinou-se tanto para ela, que seus pequenos seios se ajustaram ao tecido do vestido e começou a sobressair mais superfície arredondada do que o permitido.

Roger não pôde evitar olhar para eles e se lambeu pensando no momento no qual os teria em sua boca. Muito ao seu pesar subiu de novo a vista para encontrar-se com o olhar da mulher. Não estava assustada, mas sim surpreendida e, como reflexo, apertou com suavidade seus lábios. Aquele ato infantil fez com que Roger desejasse com todas as suas forças beijar aqueles voluptuosos e eróticos lábios.

? Teria mudado algo? ? Perguntou Evelyn fazendo-o despertar de seus pensamentos.

Bennett teve que fazer um esforço para recordar o que lhe tinha perguntado para poder responder.

? Se teria mudado algo? ? Sorriu maliciosamente. ? Teria mudado tudo! ? Exclamou antes que sua boca colidisse com a dela.

Evelyn ficou sem respiração. Era a primeira vez que um homem a assaltava daquela forma. Os beijos de Scott eram suaves, desajeitados e inclusive débeis, mas o beijo de seu marido era um tornado. Invadiu o interior de sua boca conquistando-a, dominando-a, possuindo-a ao seu desejo. Era tanta a paixão naquela amostra que notou como seu sangue começava a borbulhar.

? Isto, minha pequena bruxa, é só um adiantamento do que será viver ao meu lado ? murmurou Roger com grande esforço.

Tremia-lhe o corpo. Suas mãos poderiam fundir as calotas polares e seu sexo levantar a vela mais pesada de seu navio. Não havia sentido tanto desejo por ninguém em sua vida. Possivelmente a razão de tal exaltação fora seus meses de celibato ou, possivelmente, que sua esposa tinha os traços que ele considerava perfeitos para ser uma mulher excitante. Fosse como fosse, tinha vontade de mais. Muito mais.

? Isto não foi apropriado, senhor Bennett ? disse Evelyn tirando a jaqueta e oferecendo-lha com uma mão.

? Meu nome é Roger, entendido? Não voltará a me dizer senhor Bennett nunca mais ? comentou a contragosto. ? E quero a avisar que sou um homem bastante apaixonado. Não albergue a possibilidade de ter uma só noite livre. Onde a veja, onde a encontre, se quiser a possuir, a possuirei, se quiser a beijar, a beijarei. ? Aproximou-se de novo dela, agarrou-a pela cintura e falou tão perto de seus lábios que se roçavam. ? Mas calma, não serei só eu que vou obter prazer, minha querida esposa. Deixá-la-ei tão viciada em mim que não se importará que eu a busque, será você quem virá para mim.

E voltou a beijá-la.


XII


Acompanhou-a até o interior do salão. Desta vez de maneira correta: ela segurando-o pelo braço e mantendo uma distância prudencial entre os dois. Nada mais a acrescentar, todos os olhares se dirigiram para o casal. Evelyn notou como lhe ardiam as bochechas. Nunca havia sentido tanta vergonha, nem sequer quando anunciaram a ruptura de seu compromisso com Scott. Tentou abaixar a cabeça para ocultar seu rubor, mas voltou a sentir o calor do fôlego de seu marido na orelha.

? Esqueci-me de dizer que é linda, ? sussurrou ? e que me sinto muito afortunado ao provocar certa inveja entre os cavalheiros assistentes desta festa.

Quis lhe replicar, repreender-lhe por lhe dizer aquele tipo de coisa, mas não o fez. Talvez porque ninguém a tinha agradado com palavras de adulação. Sempre tinha sido a pobre Evelyn. A primeira em expressá-lo foi sua mãe no dia que a descobriu chorando amargamente em seu quarto ao descobrir aquilo que desejava ocultar de todo mundo, mas que a natureza não lhe deixaria esconder.

Com passo inalterável e sem deixar de mostrar certa arrogância, seu marido a conduziu para o grupo de mulheres. Estas, ao vê-lo, voltaram a pestanejar como se fossem abandonar seus acompanhantes. Não havia dúvida, seu marido era um homem bonito e muito sedutor.

? Espero que não tenha reservado todas as suas danças, minha pequena bruxa. Enlouqueceria se esta noite não pudesse dançar contigo ? murmurou de novo em sua orelha.

? Não tenha esperanças, Roger ? disse seu nome de batismo com reticência. ? Se não me engano, tenho todas as peças ocupadas.

? Então, mon chérie, terei que arregaçar as mangas e brigar com algum dos meus oponentes ? comentou sorrindo meio de lado.

? Não se atreverá? ? Virou-se para ele e o olhou assombrada. Evelyn contemplou pela primeira vez naquelas pupilas uma intensa cor vermelha. Ficou observando-o sem poder pestanejar. Seria capaz de realizar tal maldade? O endurecimento da mandíbula e aquele olhar intenso lhe indicaram que falava com total seriedade. Com efeito, considerava-a sua propriedade, mas... isso era suficiente para começar um matrimônio?

? Como já disse antes, o que é meu não se toca ? sentenciou aproximando imprudentemente seus lábios dos dela.

Esteve a ponto de beijá-la diante de todo mundo, mas considerou melhor. Apesar do imenso desejo que sentia por apanhá-la de novo entre seus braços e saborear os lábios de sua esposa, conteve-se. A contragosto elevou o rosto para apreciar como as damas que se encontravam atrás de sua mulher não deixavam de sorrir com a paquera. Nenhuma delas chamou sua atenção salvo quem o tinha deixado sem palavras: Evelyn. Era, para ele, a única em quem poderia pensar nesse momento.

Perdido por seu comportamento, recordou as palavras que William lhe disse após casar-se com Beatrice. Zombou de seu amigo em várias ocasiões e lhe tinha dito, de maneira categórica, que ele jamais possuiria esse tipo de ideias absurdas por uma mulher. Que homem razoável precisava demonstrar que uma mulher lhe pertencia? E por que aparecia aquele tolo instinto de protegê-la até tal ponto de ansiar a morte da pessoa que lhe produzira dano ou a ferisse? Entretanto, seus pensamentos, por mais que tentasse fazê-los desaparecer, eram exatamente aqueles pelos quais zombou. Mas... como podia meditar sobre coisas tão importantes depois de um par de beijos? Era certo que tinha causado nele um grande impacto. Não só no dia em que ela se fez passar por donzela, motivo principal pelo qual decidiu afastar-se, mas também ao vê-la aparecer na sala vestida de vermelho, deixando que seu cabelo de fogo brilhasse como uma lua cheia abrasada pelo sol.

Tinha que refletir muito sobre o que lhe estava acontecendo e a melhor forma era apanhando uma garrafa de uísque. Antes de afastar-se e encher seu estômago do ansiado licor, inclinou levemente a cabeça para despedir-se daquelas que não cessavam de cochichar e, sem mediar palavra com sua esposa, dirigiu-se para o grupo de cavalheiros. Albergava a esperança de que as incoerentes reuniões masculinas o abstraíssem de suas inapropriadas divagações.

Evelyn não podia respirar. O espartilho a apertava tanto que não entrava ar em seus pulmões. Por uns instantes acreditou que ia beijá-la diante de todos os presentes. Isso teria sido um escândalo terrível. Ninguém beija sua esposa em público!! Ansiosa e desesperada procurou com o olhar Beatrice e quando a achou sentada ao lado de uma de suas convidadas, dirigiu-se para ela.

? Se me desculpar ? disse a duquesa à anciã ao mesmo tempo que se levantava.

? É claro! Tem mais convidados aos quais atender ? respondeu a mulher cravando seus olhos em Evelyn.

Beatrice não quis perguntar à moça o que tinha acontecido, pela expressão de seu rosto intuía que nada bom. Antes que todos os olhares se centrassem na senhora Bennett e murmurassem sobre o ocorrido depois do desaparecimento do casal, estendeu sua mão para ela, segurou-a com força e a afastou do salão. Se desejava falar do acontecido, o melhor lugar para permanecerem tranquilas e fora do alcance de terceiros ouvidos era a cozinha. Além disso, confiava em que Hanna pudesse ajudá-la se ela não fosse capaz de consolá-la.

Caminhando para o lugar eleito, rezava para que Roger não a tivesse tratado com desprezo e que em suas palavras mostrasse compreensão pelo engano. Pelo tremor da mão de Evelyn, muito temia que não tivesse atuado com muita cortesia.

? Senhoras?! ? Exclamou a senhora Stone depois de dar um salto ao escutar uma portada em sua cozinha.

? Hanna, por favor, pode nos servir um chá? ? Perguntou Beatrice à cozinheira ao mesmo tempo que se virava para Evelyn e lhe dava o abraço que tanto parecia necessitar.

? Servir-lhes-ei chá de tília, se lhes parecer bem. ? Sem esperar o assentimento da duquesa, a anciã começou a esquentar água e a procurar nos armários os raminhos de tília.

? Isto é um pesadelo ? sussurrava a senhora Bennett quando Beatrice deixou de abraçá-la. ? Nunca passei tanto...

? O que lhe fez? O que lhe disse? ? Interrompeu a duquesa aterrorizada. ? Zangou-se muito ao descobrir seu engano? Rejeitou-a? Foi mordaz? Evelyn!! ? Gritou-lhe ao ver que ela não reagia.

? OH, meu Deus! Tem piedade de sua serva! ? Exclamou fechando os olhos.

Beatrice e Hanna se olharam sem saber o que dizer. Então a duquesa, tentando manter a serenidade, afastou uma cadeira e fez com que se sentasse. Ela se colocou ao seu lado, estendendo suas mãos para as de Evelyn que não deixavam de tremer.

? Conte-me por favor, Roger estava muito zangado? ? Perguntou usando um tom muito mais relaxado.

? Não se zangou ? começou a falar abaixando a cabeça. ? Sinceramente, acredito que gostou mais da ideia de casar-se comigo que com minha donzela.

? Então, a que se deve seu desassossego? Deveria se sentir feliz. Muitos maridos rejeitariam suas mulheres por lhes haver mentido ao mal conhecê-los.

? Minha inquietação, Beatrice, deve-se a outra coisa. Jamais imaginei que me casaria com um homem assim! ? Voltou a elevar a voz.

? Sei que Roger é um homem especial ? começou a explicar a senhora Rutland. ? Possui um temperamento rude, embora todo mundo saiba que, no fundo, é um doce. Conforme me contou meu marido, sofreu muito durante sua vida. Posso te dizer que uma dessas dores se deve à opinião que seus pais têm dele. Não o aceitam como futuro marquês e isso lhe tem quebrado o coração.

? Entendo a razão pelas quais os atuais marqueses não o consideram apropriado... ? disse apertando os dentes com cada palavra.

? Pelo amor de Deus! O que te fez? ? Inquiriu a duquesa alterada sem deixar de apertar as mãos.

? Beijou-me! Duas vezes! Mas não lhe bastou fazer isso, mas sim me advertiu que me renderei ao prazer sexual que me vai oferecer todas as noites ? exclamou a mulher com horror.

? Isso é o que tanto te escandaliza? Isso é o que te inquieta? ? Disse entre risadas. Afastou suas mãos das dela e as cruzou diante de seu peito. ? Não deveria se lamentar por isso. Se eu te contasse como é meu marido na cama...

? Beatrice! ? Clamou Evelyn aterrorizada.

? Deve compreender que, por sorte para nós, casamo-nos com uns homens muito especiais e devemos padecer as consequências destes matrimônios. Embora te possas assegurar que para mim não é nenhum castigo. ? Sorriu.

? Pois não sucumbirei aos seus encantos! ? Afirmou com força. ? Sou uma mulher decente e atuarei como me corresponde. Acaso pensa que sou uma libertina como ele?

? Se não o fizer você, farão outras mulheres. Seguramente há muitas naquele salão que gostariam de estar em seu lugar ? interrompeu Hanna a conversação. Colocou as xícaras sobre a mesa e verteu a água fumegante nelas.

? A senhora Stone tem razão. Não lamente a sorte que vai ter. Pensa que o fracasso de muitos matrimônios que conhecemos se deve a que não existe cumplicidade entre ambos. Não terá que aparentar sentir amor pela pessoa que tem ao seu lado, mas também o ter. Um marido ou uma esposa procura fora de seu lar o que dentro não acha ? repôs a duquesa ao mesmo tempo em que se aproximava da mesa para tomar o chá.

? Mas ele não me ama para me insinuar tais aberrações ? sussurrou Evelyn. ? Acabamos de nos conhecer e, por experiência, sei que é impossível que nasça um amor tão rápido.

? Se me permitem participar da reunião... ? comentou a cozinheira sentando-se em frente à senhora Bennett ? posso fazer uma reflexão sobre este tema.

? Não precisa pedir permissão, Hanna. Sabe muito bem que é um membro a mais da família ? expôs Beatrice desenhando um grande sorriso em seu rosto.

? No amor não há lógicas ? afirmou a anciã sem afastar o olhar da desconsolada mulher. ? De fato, recentemente debati com meu marido sobre esse tema. Só existem sentimentos. Imagino que você se sentirá morta de vergonha pelo desejo que seu marido lhe insinuou, embora lhe advirto que é assim como começa um bom matrimônio. Se não houver certa luxúria entre ambos, se não houver interesse, não há nada. Deveria sentir-se feliz ao saber que despertou essa paixão em seu marido. Em muitas ocasiões só as amantes o conseguem.

? Não deixarei que me trate como se fosse uma concubina ? falou com firmeza Evelyn. ? Sou uma senhora e lhes repito que me comportarei como tal.

? Não acredito que ele te considere uma amante ? interveio Beatrice. ? Recorda que estão casados. Suponho que ao princípio lhes custará assumi-lo, mas depois será melhor. Ele te abrirá seu coração e você poderá fazer o mesmo.

Depois das palavras da senhora Rutland, as três olharam as xícaras de chá e se mantiveram em silêncio. As três cabeças não cessavam de meditar sobre como continuar a reunião. Hanna estava a ponto de falar quando observou que Evelyn elevava seu rosto para elas, seus olhos verdes brilhavam além do normal devido ao acúmulo de lágrimas que ameaçavam transbordar. A cozinheira deixou com cuidado sua xícara sobre a mesa e cruzou as mãos, esperando que a jovem confessasse aquilo que escondia e lhe produzia tanto dor.

? Faz tempo... ? começou a dizer a senhora Bennett depois de fazer desaparecer o nó de sua garganta ? quando o entusiasmo da juventude se apoderou de mim, acreditei nisso que defendem com tanta veemência. Ofereci meus sentimentos de maneira incondicional a uma pessoa que me falava de amor, paixão e de um futuro maravilhoso. Entretanto, se por acaso não sabem, essa relação terminou me provocando a maior humilhação de minha vida. Não posso voltar a sentir essa dor, essa vergonha. Desta vez não conseguiria superá-la.

? Mas nesta ocasião as coisas são diferentes ? a interrompeu Beatrice colocando de novo suas mãos sobre as dela. ? Agora está casada e estou segura de que Roger jamais te fará mal. Confia em mim. Terminará amando-o.

? Todos os homens são...

Evelyn não conseguiu terminar a frase, os olhares das mulheres se dirigiam para a porta e, devagar, virou-se. Pelo assombro que mostravam tinha imaginado que era seu marido a pessoa que as interrompia, embora se surpreendesse ao ver que se tratava do duque de Rutland o que caminhava para elas. De repente, outra figura apareceu das sombras do corredor, ficou apoiada sobre o marco da porta, com os braços cruzados no peito e cravando seus olhos azuis nela.

O coração de Evelyn deu um tombo ao contemplar um ser tão seguro de si mesmo, tão dominante, tão espantosamente atraente. Não parecia zangado por sua ausência, mas bem divertido posto que não deixava de sorrir. Pensou no que lhe havia dito a cozinheira e concluiu que tinha razão. Sem lugar a dúvidas muitas das damas do salão estariam desejosas por cair em seus braços. Era um homem misterioso e ao mesmo tempo sedutor. Entretanto, ela não podia tropeçar novamente na armadilha do amor. Não podia voltar a sofrer a agonia da destruição. Não lhe importava que estivesse casada com ele. Quem lhe poderia jurar que, depois de possui-la como lhe tinha insinuado, não voltaria a dormir com alguma de suas amantes?

? Senhoras... ? saudou o duque com uma pequena inclinação. ? Andava procurando-as.

? Necessitávamos de um pouco de paz ? indicou Beatrice. Levantou-se de seu assento e aceitou com agrado o braço que seu marido lhe oferecia.

? Senti sua falta ? murmurou William à sua esposa.

? Depois me demonstrará o quanto ? respondeu lhe dando um beijo na bochecha.

? Se me desculparem, ? disse Hanna levantando-se da cadeira e fazendo uma leve reverência ao senhor ? tenho mil coisas a fazer.

A única que não se moveu foi Evelyn. Estava tão nervosa que lhe resultava impossível fazer uma tarefa tão singela.

? Minha pequena bruxa, ? comentou Roger de sua posição ? deve-me uma dança.

? Como já lhe disse ? começou a dizer enquanto afastava o olhar do homem e o fixava sobre a superfície da mesa. ? Minhas danças estão reservadas e eu não gostaria de desapontar a todos esses bondosos cavalheiros que decidiram me pedir uma peça.

Com passo firme, Bennett abandonou seu lugar para colocar-se ao lado dela. Sem apagar o sorriso estendeu o braço para que Evelyn pudesse apoiar-se nele. Ao apreciar que ela não o aceitava, abaixou lentamente a cabeça para o ouvido feminino e lhe sussurrou:

? Tem duas opções: elevo-te sobre meus ombros e te levo ao nosso quarto para te fazer amor até que chegue o amanhecer ou dançamos no salão. Você decide.


XIII


Embora imaginasse que escolheria a segunda opção, não lhe importou muito. Na realidade tinham muito tempo por diante para poder desfrutar daqueles prazeres que tanto ansiava. Olhou-a de esguelha e se sentiu ditoso ao tê-la ao seu lado. Durante a viagem tinha refletido bastante sobre o aterrorizante golpe que lhe tinha outorgado a vida, ele, um homem nascido para desfrutar do sem-fim de prazeres que havia no mundo, um ser livre para fazer o que desejasse muito sem ter que dar explicações, encontrou-se da noite para o dia obrigado a casar-se com uma mulher que não conhecia, mais velha que ele e que fisicamente se afastava bastante do que algum dia esperava encontrar em uma esposa. Nessas divagações chegou a definir-se como um anjo a quem tinham cortado as asas sem piedade. Tanto assumiu seu deplorável futuro que, apesar de ter saudades de quem considerava sua família, decidiu manter-se afastado até que William o convocasse. Enquanto retornava, consolado e abraçado tão só pela brisa marinha, conscientizou-se de seu novo estado e aceitou sua desdita. Em troca, ao retornar o que encontrou? A uma bruxa. Uma bruxa mentirosa que o tinha enganado sem imaginar o pesar que tinha sofrido por sua mentira. Para seu deleite, aquela feiticeira, aquela sedutora mulher, era a mais formosa que já tinha contemplado, uma deusa de cabelo vermelho que desprendia uma aura tão embelezadora que conforme parecia, nem ela mesma era consciente do erotismo que emanava.

Roger não pôde, nem quis deixar de alargar seu peito ao observar o rosto de inveja que mostravam os cavalheiros. Ali onde tinha acreditado que veria zombarias e brincadeiras só encontrou expressões de raiva. É óbvio que agora entendia as incontáveis e inapropriadas insinuações para sua esposa. Certamente, se não tivesse estado casado com ela, teria sido o primeiro dessa longa fila. De repente o terror se apoderou dele ao imaginar que, finalmente, ela tivesse aceitado alguma proposição. Foi tão grande seu padecer que notou uma dor semelhante à produzida por uma adaga lhe atravessando o tórax. Teria merecido por abandoná-la. Se Evelyn tivesse aceitado alguma das propostas não lhe teria podido reprovar nada posto que ele mesmo seria o culpado de provocar a dolorosa infidelidade.

Sem piedade, por egoísmo também, tinha-a deixado sozinha no pior momento de sua vida. Mas tinha voltado para casa e estava disposto a recompensá-la por tantos dias de abandono. Não sabia quanto tempo demoraria em obtê-lo ou como o conseguiria, mas o faria. Possivelmente, dessa forma, ele também acharia a paz de que tanto tinha tido saudades no passado.

De repente, uma leve pressão em seu braço o fez despertar de suas divagações. Evelyn necessitava de seu apoio, não só mediante a força que lhe oferecia sua extremidade, mas também emocional. Quis lhe sussurrar algumas palavras para sossegar aquela inquietação, embora muito temesse que lhe provocasse o efeito contrário. Além disso, o que poderia lhe dizer? Que não tivesse medo porque ele cuidaria dela? Que enquanto estivesse ao seu lado ninguém se atreveria a lhe fazer mal? Não era o homem idôneo para consolar uma mulher, salvo se precisasse ser satisfeita na cama. Ele não era romântico, mas sim prático. No transcurso de sua vida o tinham feito seguir essas mesmas diretrizes e lhe tinha ido bastante bem.

Nenhuma das mulheres que se deixou seduzir procurou alguma estabilidade, possivelmente porque sabiam que ele jamais a proporcionaria. Além disso... o que era o amor? Acaso não se fundamentava em uma atração sexual? Em uma constante agonia por se deitar junto a uma pessoa? Para ele, sim. Entretanto, muito temia que Evelyn não fosse como ele nem como as mulheres com as quais se deitou. Soube no mesmo momento no qual a olhou aos olhos e se aventurou a beijá-la. Ela não se mostrou submissa e sim receosa ante suas carícias e insinuações. Suas amantes, às quais não podia pôr um rosto ou um nome, teriam se derretido em seus braços e procurado qualquer lugar oculto de olhares para serem amadas com descaramento. Mas ela não era assim. Ao ficarem a sós sentiu medo e insegurança. Seu corpo nunca deixou de tremer apesar de lhe haver oferecido sua jaqueta. Possivelmente, em vez de avassalá-la e lhe ditar como devia comportar-se ao ser sua esposa, devia averiguar a razão pela qual o rejeitava e muito temia que a resposta a encontraria no passado. E, é óbvio, assim que tivesse a mínima oportunidade, rebuscaria por céu e terra para conhecer o que lhe aconteceu e por que não era capaz de deixar-se levar pela paixão.

? Uma valsa... ? sussurrou a mulher ao escutar os primeiros acordes da melodia que foram dançar.

? Você não gosta? ? Perguntou Bennett enquanto a colocava entre outros assistentes, esticava sua mão para a pequena cintura e exibia um grande sorriso.

? Não é uma das minhas danças preferidas ? disse muito segura de si mesma.

? Isso, petite sorcière3, é porque não dançou com o homem adequado ? afirmou com tanta seriedade que Evelyn acreditou havê-lo ferido com seu inofensivo comentário. Mas justo depois, como sempre de maneira descarada, abaixou a cabeça e deixou que sua boca se aproximasse de seu lóbulo mais do que o permitido para lhe sussurrar: ? Posso te assegurar que quando terminar de dançar esta peça, não desejará dançar outra valsa com ninguém salvo comigo.

? É um presunçoso ? falou apertando os dentes. O rosto, coberto de inumeráveis sardas, ruborizou-se de novo. Seu peito subia e baixava agitado. Evelyn podia sentir como a debilidade voltava a lhe fazer fraquejar as pernas.

? Presunçoso? ? Roger sorriu divertido. ? Eu me defino mais como um homem bastante perverso.

? Perverso? ? A mulher abriu tanto os olhos que Roger admirou o esplendor dos mesmos.

? Oui, perverso. Sou tão malvado que neste momento, enquanto outros cavalheiros colocam sua sola no chão e se posicionam para começar a dança, minha mente não é capaz de pensar em outra coisa que não seja te desfrutar. ? Voltou a abaixar a cabeça para lhe murmurar em voz baixa. ? Desta inadequada proximidade, posso cheirar essa deliciosa fragrância a lilás que desprende e, graças à minha altura, seu decote me permite observar muito mais que o nascimento de seus seios.

Evelyn esteve a ponto de desmaiar. E estava segura de que se Roger não a tivesse segurado com tanta força, teria caído ao chão. O descaramento de seu marido a perturbava mais do que ele imaginava. Não chegava a compreender a razão de tal comportamento para com ela. Possivelmente o propósito dessa desfaçatez era assustá-la para que fugisse de seu lado, para que o deixasse viver em paz. Se esse era o verdadeiro motivo estava conseguindo, posto que ela desejava partir de Haddon Hall inclusive antes que amanhecesse.

De repente notou uma suave calidez em suas costas. Levantou de novo o rosto e observou o de seu marido. Seus traços se endureceram. Não havia brincadeira nem zombaria neles e inclusive advertiu que entrecerrava seus olhos como se tentasse averiguar seus pensamentos. A música começou a soar com mais força. Aproximava-se o tempo das voltas. Evelyn observou como Roger se distanciava do convencionado, elevava sua mão para a dela e a fazia girar sobre si mesma, uma, duas e três voltas deram até retornar à posição inicial colocando as mãos em seu lugar: umas entrelaçadas com tanta firmeza que não eram capazes de soltar-se e as outras apoiadas em ambos os corpos. A de Roger era tão grande que ao esticar seus dedos, ocupava todo o decote que oferecia o vestido nas costas e ela só conseguia pousar a sua sobre seu ombro.

A mulher conteve a respiração em várias ocasiões ao notar um pequeno e suave movimento dos dedos masculinos. Acariciava-a com muita sutileza. Talvez para despertá-la da letargia a que se induziu ao descobrir que, tal como lhe tinha indicado, dançar com ele uma valsa seria inesquecível. Não só seus movimentos eram perfeitos, ou a retidão de seu corpo, mas sim exibia em cada passo a dominação, a serenidade e o absolutismo que desprendia a figura masculina. Os vaivéns compassados e metódicos a conduziram, sem ela pretendê-lo, a um animado estado de êxtase. Seu peito, agitado pela dança, roçava o de seu marido. Cada toque, cada leve impacto, Evelyn o vivia com o mesmo temor como se permanecesse perto de um vulcão a ponto de despertar. «Outro giro mais e terminarei esta agonia...», meditou exausta.

Para fazer mais suportáveis os últimos momentos, tentou fechar os olhos, mas Roger impediu que o fizesse após lhe soprar com suavidade. Queria que continuasse observando-o, que o admirasse e percebesse o que acontecia ao seu redor.

E o conseguiu.

Evelyn olhou aos casais que dançavam próximos e compreendeu quão diferente eram eles. Ali onde as mulheres eram incapazes de tocar com seus vestidos os casacos dos acompanhantes, seu corpete se ajustava com perfeição ao espaço que lhe oferecia o colete. Lá onde as mãos femininas se esticavam e elevavam o suficiente para que não conseguissem tocar-se, a sua, embora enluvada, ardia pela pressão que exercia seu marido. Onde as demais eram incapazes de inspirar o aroma da pessoa com a qual dançava, ela podia cheirar cada partícula emanada do corpo de Roger, embebedando-a daquela impregnação viril até o ponto de não ser capaz de deixar de respirá-la. Não soube que tinha terminado a música até que escutou uma pequena risada próxima ao seu ouvido.

? Avisei-te que depois de dançar comigo, nada seria igual ? disse jocoso e orgulhoso de haver mostrado a Evelyn a veracidade de suas palavras.

? Uma frase feita? ? Perguntou zangada e tentando não mostrar sua perturbação.

? Por que diz isso? ? Respondeu abandonando aquela zombaria que exibia em seu rosto.

? Porque muito me temo, mon chèrie, ? expôs reticente ? que essas palavras dirá a todas. Agora, se me desculpar, tenho outras danças que desfrutar.

Segurou o vestido com ambas as mãos, fez uma pequena genuflexão e o abandonou em meio à pista de dança.

Embora seu coração se sacudisse com uns espantosos e imensos batimentos do coração que se estendiam por todo seu corpo, Evelyn caminhou para o grupo de mulheres que se encontrava na parte direita da sala com uma aparente tranquilidade. Não podia exibir a ansiedade que lhe provocou a dança, nem tampouco demonstrar que, sem dúvida alguma, nenhum dos seguintes bailarinos a atordoariam tanto como o tinha feito Roger.

Era um homem muito sedutor, enigmático e, é óbvio, encantador. Entretanto, ela não podia voltar a enfeitiçar-se com aspectos tão banais. Prova disso era o desastroso final com Scott. Ele também falava com sutileza, com fascinação até que descobriu que estava grávida e que seu pai não podia lhe oferecer o dote que tinha prometido. Então começou o amargo processo do desamor, da destruição, da dor por tudo aquilo que lhe tinha prometido e que não cumprira. Era certo, como lhe tinha indicado Beatrice, que nesta ocasião as coisas eram diferentes, mas ela não se convencia. O que aconteceria quando conseguisse seu propósito? Abandoná-la-ia de novo? Voltaria para seus antigos vícios? Não poderia suportá-lo. Embora ela não o amasse, seria incapaz de viver de novo outra humilhação.

? Deseja uma taça, senhora? ? A pergunta de um criado que levava sobre suas mãos uma bandeja com taças de champanha despertou-a de seus pensamentos.

? Obrigada ? respondeu ao mesmo tempo em que esticava a mão para alcançar uma. Bebeu-a de um sorvo e, antes que o criado se afastasse, pegou outra. Não estava sedenta, mas sim morta de medo e esperava que o licor acalmasse aquela sufocação.

? Minha querida senhora Bennett ? escutou uma voz masculina dizer. ? Permitirá a seguinte dança ou seu marido a raptará como a vez anterior?

? Não acredito que volte a ser tão descortês ? afirmou sorridente. ? E estarei encantada de lhe brindar com a seguinte peça.

O cavalheiro estendeu seu braço para que Evelyn se segurasse, depois que ela colocou sua mão conduziu-a para o centro do salão.


O que estava vivendo era inaudito. Sua esposa o tinha abandonado diante de todo mundo como se fosse um ser desprezível. Por um momento, só durante uns segundos, quis correr atrás dela, pegá-la pelo braço, virá-la para ele e beijá-la com tanta paixão que inclusive os convidados ficassem sem fôlego. Talvez dessa forma não voltasse a rejeitá-lo em público. Ele, um homem que debilitava as mulheres, um homem que escutava suspiros de desejo atrás de sua passagem, era repudiado pela única mulher que não devia fazê-lo porque, gostasse ou não, estavam casados. Zangado e com o orgulho ferido, decidiu retornar ao grupo de cavalheiros que pareciam divertir-se com o acontecido.

? Uma boa dança... ? comentou William em tom jocoso.

? Tive melhores ? repôs com frieza.

? Uma taça, milorde? ? Perguntou-lhe um criado.

? Traga-me uma garrafa do melhor brandy que o duque tiver na adega ? ordenou mal-humorado.

O criado, confuso, olhou ao duque e, depois de ver o movimento afirmativo de sua cabeça, afastou-se do salão para fazer chegar ao cavalheiro àquilo que tinha pedido.

? É uma mulher indomável... ? murmurou Roger a contragosto. ? Jamais em minha vida vi um ser tão esquivo e tenaz.

? Discordo de sua afirmação, meu amigo. Evelyn é encantadora e Beatrice está entusiasmada de poder contar com sua amizade.

? Encantadora? ? Grunhiu Bennett ao mesmo tempo em que franzia o cenho. ? Parece-lhe correto seu comportamento? ? Continuou com aborrecimento. ? Nunca vi um desprezo semelhante de uma esposa para com seu cônjuge.

? Pergunto-me... o que o terá provocado? ? Assinalou William entrecerrando seus olhos e sem afastar seu olhar de Roger.

? Só tive boas palavras, se por acaso está insinuando que o culpado de sua inapropriada atitude fui eu ? replicou com voz firme e pausada.

? Pois então não entendo o acontecido porque se der a volta e a observa, apreciará que não apaga o sorriso.

Roger deu a volta imediatamente e ficou tão pétreo que foi incapaz de respirar. Ali estava sua esposa, em meio ao salão dançando e sorrindo com paquera ao seu acompanhante. De repente suas mãos se fecharam com força convertendo-as em dois duros blocos de aço e uma estranha sensação de queimação lhe percorreu o corpo.

? Não acertou com sua conversação ? sussurrou Rutland divertido ao ver que, pela primeira vez, os ciúmes apagavam o malicioso sorriso que sempre exibia. ? Em troca, o senhor Battelow, viúvo há pouco mais de dois anos, soube encontrar o que a faz...

? Não continue por esse caminho... ? resmungou Roger apertando com tanta força os dentes que estiveram a ponto de partir-se. ? Ela é minha.

? É óbvio! Quem insinuou o contrário? Só quis demonstrar que, apesar de estar curtido no âmbito da sedução, nem sempre pode conseguir o que deseja ? continuou expondo William sem abandonar seu tom zombador.

? Tanto faz com quem baile esta noite ou a quem dê de presente seus sorrisos coquetes. Ela dormirá com um só homem, ? começou a dizer ao mesmo tempo em que se virava para seu amigo e enrugava a testa com fúria ? e esse serei eu.


XIV


Por fim a tortura tinha acabado e se encontrava a salvo no interior de seu quarto. Evelyn, inquieta pelo acontecido, não podia deixar de mover-se por todo o quarto, acreditando que se permanecesse parada pouco mais de dois segundos terminaria por cair ao chão. Continuava alterada, morta de calor, envergonhada e, sobretudo zangada. Casou-se com um ser depravado, um homem que não sabia o que significava a palavra decoro, e não estava disposta que a tratasse sem respeito diante de todo mundo. Como vingança à sua humilhação, decidiu ser mais amável do que estava acostumada a ser com os cavalheiros que a rondavam. Não só simulou que prestava atenção em suas conversações, mas sim também lhes sorria ao dançar com eles. Entretanto, enquanto levava a cabo sua façanha, percebeu que seu marido não podia afastar seus olhos dela, às vezes franzia o cenho, outra lhe sorria com malícia e em contadas ocasiões se virava para não vê-la.

Não tinha levado a bom término seu plano, queria lhe provocar tal aborrecimento que partisse da festa, mas teve que contentar-se com as poucas expressões de apatia que mostrou. Observou, um tanto preocupada, que entre suas mãos segurava uma garrafa de licor. Não bebeu como os outros, com prudência e nas taças de cristal, mas sim adotou a atitude do pirata que aparentava ser. É óbvio, as apropriadas interrupções de Beatrice a salvaram de um ou outro cavalheiro impertinente que entendeu como quis seus atos de cordialidade. De fato, a duquesa pôs em seu lugar a um dos que insistia em aproximar-se dela mais do que o devido.

Em outro momento, em outro lugar, não teria necessitado da ajuda de ninguém. Ela mesma, com alguma de suas socorridas frases, teria deixado bem claro que sua cortesia não indicava nada salvo aquilo mesmo, mas não pensava com claridade. A ingestão de álcool e o desmaio que sofreu ao descobrir a besta com quem devia viver o resto de sua vida, fizeram-na perder sua apreciada sensatez.

Assustada por todo o acontecido, olhou ao seu redor e tentou calcular o tempo que levaria Wanda para preparar a bagagem. «Mais do que anseio ? terminou dizendo-se enquanto se sentava sobre a cama com inapetência. ? É impossível que possa partir antes do amanhecer», concluiu.

Decepcionada e cansada, abriu os braços e se deixou cair sobre a cama. Quis fechar os olhos para descansar um pouco até que chegasse sua donzela, mas quando o fez, tudo começou a dar voltas e terminou por notar certas sacudidas procedentes de seu estômago. Com rapidez elevou-se do leito, mas foi pior. As náuseas aumentaram assim como os enjoos. Decidiu ajoelhar-se sobre o chão e esperar que todo aquele mal-estar desaparecesse. Apesar de seu intento por controlar os vômitos, terminou expulsando o que continha em seu interior.

? Minha senhora! ? Exclamou Wanda ao entrar no dormitório. ? O que lhe acontece? ? A donzela não esperou uma resposta, possivelmente porque não a obteria. Correu para Evelyn e lhe elevou o queixo para que deixasse de sujar o vestido novo.

? Morro... ? murmurou quando deixou de vomitar. ? Meu fim está chegando...

? Acredito que ingeriu mais champanha do que o habitual, isso sim ? comentou a criada tentando não mostrar a diversão que lhe ocasionava o que viam seus olhos.

? Ele é o culpado! Ele me conduziu a esta tortura! ? Exclamou ao mesmo tempo em que retirava com suas mãos as lágrimas que brotavam de seus olhos.

? Apoie-se em mim. Incorporá-la-ei e a despirei ? disse Wanda enquanto a pegava com força por um braço. ? Sem lugar a dúvidas, minha senhora, um bom banho aliviará esse estado de mal-estar e de fedor.

? Odeio-o! Odeio tudo o que procede daquela besta! ? Seguia gritando.

? Muito bem... se você o odiar, eu também o odiarei, mas por favor, incorpore-se.

? Não lhe bastou me avassalar na intimidade, mas sim também o fez diante de todos os presentes ? continuou falando entre balbuceios.

Com grande esforço Wanda conseguiu levantá-la e colocá-la o mais reto possível para conseguir lhe desabotoar o vestido.

? Casei-me com um descarado, obtuso e incorrigível! Meu Deus, sua serva foi tão má que condena minha vida com um homem pré-histórico? ? Exalou com pesar.

? Ninguém é perfeito... ? indicou a donzela sem pensar.

? Perfeito?! ? Gritou antes de dar a volta e perder de novo o equilíbrio.

? Minha senhora, por favor, não se mova ? suplicou depois de evitar que caísse ao chão.

? Aquele homem se afasta muito da perfeição. É um descarado, um indecente, um filho de satanás...

Wanda evitou continuar com a conversação porque a alterava cada vez mais. Com mãos ágeis foi desabotoando os botões até que o vestido terminou no chão. Enquanto trabalhava em conseguir seu propósito antes que Evelyn voltasse a alterar-se, meditava sobre se tinha vivido uma situação parecida durante seus anos ao serviço da atual senhora Bennett. «Nunca ? concluiu para si. ? Sempre foi uma moça muito sensata salvo quando se apaixonou por aquele descarado». Mas naquela ocasião, apesar do sofrimento que padeceu, nunca bebeu como o tinha feito essa noite. E mais, jamais a tinha visto tomar mais de uma taça e só nos casos nos quais lhe estava permitido: durante um jantar ou em uma celebração. Por isso, o fato de que estivesse ébria, tinha-a não só assombrado, mas também confundido.

? Continue apoiando-se em mim. Conduzi-la-ei até o banho e esperará que lhe encha a tina de água. Com certeza depois verá as coisas de outra maneira ? disse com voz aprazível.

? Ai, Wanda! Que desventurada sou! Não tive suficiente com o vivido no passado que, para continuar minha desgraça, o destino segue me jogando brincadeiras pesadas. Aquele homem... aquele... aquele... animal que meu irmão decidiu converter em meu marido não é bom.

? Não deveria julgar com tanta rapidez as pessoas. Possivelmente seu inapropriado comportamento seja devido a que está irritado. Recorde que partiu de Londres pensando que se casou comigo e não com você ? esclareceu em voz baixa. Com grande esforço levou-a até o banho. Justo na mesma entrada, com o corpo bambo de sua senhora sobre a metade do dela, Wanda olhou com rapidez ao seu redor procurando um assento onde colocar a mulher. Depois de achá-lo sentou-a com cuidado, separou-lhe do rosto as mechas que tinham escapado do coque e lhe beijou a testa. ? Me espere aqui, não demorarei.

Evelyn assentiu com suavidade. Não queria mover mais do que o devido a cabeça porque já começava a lhe doer. O suave golpe da porta ao fechar fez que dirigisse suas palmas para a testa e a apertasse com força. Tudo continuava dando voltas e, por mais que sua donzela tivesse pensado que a tinha colocado em um lugar seguro, não o sentia assim. Seu corpo se balançava sem ela desejá-lo e a pequena habitação girava ao seu redor cada vez mais depressa. Finalmente terminou estendida no chão, em posição fetal e murmurando frases mal audíveis.

Não soube que sua donzela tinha entrado e saído do banho até que despertou.

? Continue apoiando-se em mim ? disse-lhe em voz baixa. ? Muito bem, assim está melhor. Colocamos um pé, agora o outro e... O calor da água a reconforta? ? Enquanto Evelyn jogava as costas para trás, a donzela lhe tirou as forquilhas, deixando livre a avermelhada juba. ? Pode apoiar a cabeça nestas toalhas que encontrei. Servirão de almofadão.

? Obrigada... ? sussurrou. ? Não sei o que faria sem ti.

? Pois imagino que seguiria atirada no chão como uma mulher de má vida, vomitando e desamparada ? respondeu com certa diversão. ? Bom, encontra-se melhor para poder me contar o que tanto a perturbou?

? Foi ele ? disse com firmeza. Tentou virar-se para poder responder olhando-a aos olhos, mas Wanda o impediu. ? Nunca imaginei que os rumores sobre seu comportamento fossem certos. Alberguei a possibilidade de que as pessoas exageravam para que eu sentisse temor, mas diziam a verdade.

? O que ele lhe fez? ? Quis saber. Enquanto lhe respondia, pegou a peça de sabão e foi espalhando pelo cabelo.

? Quando apareceu, e depois de falar com o duque a sós, aproximou-se até onde me encontrava. Evitando de forma descarada minha presença saudou primeiro a quem o olhava e se ruborizava.

? Já lhe disse que era um homem muito bonito ? repôs ao mesmo tempo em que esfregava com supremo cuidado o cabelo.

? E não mentiu. Prova de sua verdade foi a desmesurada paralisação que causou ao aparecer. As jovens casadouras moviam as pestanas como se quisessem provocar um furacão na sala e as que, por sorte, contraíram matrimônio com um homem honrado, não deixavam de cochichar.

? Tanta expectativa provocou? ? Insistiu.

? Crê que um homem com um aspecto semelhante ao de um vulgar pirata não conseguiria tal façanha? ? Resmungou com mais serenidade.

As suaves massagens começavam a relaxá-la e, tal como lhe indicou Wanda, já se encontrava muito melhor.

? Um pirata? ? Perguntou a donzela assombrada. Deixou de lhe ensaboar o cabelo para esticar a mão e pegar uma bacia.

? Conforme me contou a duquesa, é dono de um desses navios mercantis. Também me disse que o utiliza para transportar mercadorias ou passageiros, embora muito me temo que errou em sua conclusão. Estou segura de que é um assaltante de navios e que terá as mãos cobertas de sangue inocente ? sentenciou.

? Isso foi o que lhe pareceu pouco decoroso, que exibisse uma imagem de corsário desumano? ? Continuou perguntando ao mesmo tempo em que vertia sobre o cabelo água limpa.

? Não. O que aconteceu foi outra coisa ainda mais aterrorizante. Quando as saudou, dirigiu-se para mim me chamando de propriedade. Logo me arrastou até o balcão me agarrando pela mão. Ao princípio, embora me sentisse zangada por esse comportamento, quase o perdoo posto que se preocupou com meu padecer durante sua ausência. Dialogamos com cordialidade, mas de repente, a conversação deu uma volta inesperada. Tudo começou após decidir que devíamos nos tratar com menos formalidade.

? Ofendeu-se por isso?

? Não! Surpreendeu-me gratamente, entretanto, o fato de ter que lhe chamar de Roger lhe brindou a oportunidade de... me beijar e duas vezes! ? Explicou afligida.

? Hum...

Wanda sorriu ao escutar as palavras de sua senhora. Embora lhe parecessem infantis, entendia-a. Depois do vivido com o vilão do senhor Wyman, não quereria voltar a sentir o pesar de outra humilhação. Não obstante, ela não via mal nenhum que um marido mostrasse seu afeto em público. E mais, estava segura de que todas aquelas mulheres que, conforme contava, alteraram-se ante a presença do senhor Bennett, estariam encantadas de ocupar seu lugar.

? Mais tarde me pediu uma dança... ? fez uma leve pausa para recompor-se. Ao recordar o quão absorvida permaneceu ao notar a proximidade de seu marido, as pequenas e sutis carícias nas costas, o encantador aroma e a firmeza ao dançar provocaram que seu pelo se arrepiasse e que brotasse novamente uma estranha sensação de necessidade por tê-lo ao seu lado.

? E? ? Wanda pegou uma toalha e a estendeu para que Evelyn pudesse cobrir sua nudez com ela.

? E dançamos ? respondeu sem oferecer mais detalhe.

? Só dançamos? OH, mon chèrie, je suis trés désolè!!4 ? A voz de Roger as assustou. Wanda abaixou com rapidez a cabeça enquanto que Evelyn abriu tanto a boca que lhe resultou difícil fechá-la. Ali estava, apoiado sobre a ombreira da porta, cruzando mãos e pernas, as observando em silêncio e revelando em seu olhar um brilho luxurioso. ? Pode partir. Eu mesmo me ocuparei da minha esposa ? ordenou.

Tal como lhe havia dito, a donzela fez uma leve genuflexão e saiu do banho, não sem antes jogar uma rápida olhada a Evelyn, que seguia paralisada e segurando com força a toalha que cobria seu corpo.

? Assim descreve nossa primeira dança de casados, petite sorcière? ? Disse quando a criada fechou a porta.

Roger não moveu nem um só músculo de seu corpo. Permaneceu na mesma posição esperando que ela fosse a primeira em dar um passo. Seus olhos continuavam cravados em Evelyn e seu sorriso, cheio de lascívia, seguia estendendo-se por seu rosto.

? Imaginei que seria inesquecível.

? Não deveria estar aqui ? resmungou enfurecida. ? Se por acaso se perdeu, tenho que lhe avisar que está em meu quarto.

? Perdido? ? Perguntou antes de esboçar uma enorme e sonora gargalhada. Retirou-se da madeira e iniciou um lento caminhar para ela. ? Nunca me senti tão próximo à palavra lar, talvez porque, como lhe disse na varanda, desde que nos casamos seu corpo será minha casa e a sua será o meu.

? Não se aproxime... ? ordenou-lhe andando para trás até que o frio da parede tocou suas costas.

? Ninguém vai me impedir de pegar o que por lei me pertence ? murmurou com voz firme e pausada.

? Não sou uma maldita propriedade! ? Explodiu.

Prosseguiu segurando a toalha ao redor de seu corpo e elevou o rosto de maneira desafiante.

? Em nenhum momento, petite sorcière, considerei-a dessa maneira. Quando lhe digo que me pertence é porque seu corpo inteiro é meu e, por mais sorrisos que ofereça a outros cavalheiros, ninguém poderá gozar de você salvo eu.

? Julga-me de maneira indevida ? defendeu-se mantendo seu rosto levantado. ? Se por acaso não o sabe, durante sua ausência fui visitada por muitos...

Não finalizou a explicação. Antes de terminar a frase, Roger se equilibrou sobre ela e a beijou. Evelyn voltou a se surpreender pela paixão que seu marido mostrava em um ato tão básico. Sua língua repetia a conquista, a posse, conduzindo-a a um estado de êxtase do qual só pôde reagir com um suave e mísero gemido. Desfrutava-o. Apesar de sua insistência em não fazê-lo, gozava daquela boca, daquela persuasiva língua, da proximidade do imenso e robusto corpo. De repente notou uma calidez nas costas. Seu marido pousava suas mãos sobre ela para atrai-la para ele. O peito feminino roçou o masculino e ambos os torsos se acoplaram à perfeição. Face à grande altura de quem a segurava para si, não havia desconforto, mas sim segurança e amparo. Uma união tão maravilhosa que, sem poder evitá-lo, a fez sentir-se extasiada.

Não obstante, e apesar de começar a desejar o que ele tanto ansiava por lhe mostrar, devia manter-se firme em seus propósitos. Não podia lhe dar de presente aquilo que tanto desejava porque depois de consegui-lo, o que faria? A incerteza a fez recuperar a pouca sensatez que ficava. Abriu os olhos e descobriu que ele também os deixava abertos. Olhava-a com descaramento, com desejo, com erotismo. A pupila se expandia tanto que logo permitia apreciar a cor da íris.

? É tão formosa... ? sussurrou Roger afogado pelo desejo ? que me parece impossível a ter conseguido.

? E você é um homem tão presunçoso e repugnante, que me parece incrível que tenha sido meu irmão quem decidiu meu futuro ? replicou Evelyn com raiva.

? Mon Dieu! ? Exclamou Bennett irado. ? Acaso não pode aceitar de minha boca nem um só elogio? ? Deu uns passos para trás ao mesmo tempo em que passava a mão pela cabeça. ? É minha esposa! Maldita seja! E isso deveria lhe revelar o que você terá que assumir como tal.

? Está insinuado que devo me entregar por que...? ? Começou a dizer enquanto uma de suas mãos cobria sua boca.

? Só advirto que deve me agradar... ? indicou mal-humorado. Virou-se para ela e caminhou com mais ímpeto do que devia até que voltou a retê-la contra a parede. ? Irei possui-la quando e onde quiser. E por mais que se negue, o farei.

Com uma brutalidade imprópria dele, agarrou-a pela cintura e a jogou sobre seus ombros para conduzi-la até a cama. Evelyn esperneava e lhe dava murros no peito, mas seus impactos não conseguiram diminuir a decisão de seu marido.

Roger a jogou na cama e, enquanto ela tentava fugir, tirou a jaqueta, desabotoou os botões de sua calça e, justo no momento no qual ela ia conseguir seu propósito, segurou-a por um tornozelo e a fez retornar ao leito.

? Não pretendia que nossa primeira vez fosse assim, mas sua atitude, sua arrogância e sua pouca sensatez provocaram em mim uma ira incalculável ? disse ao mesmo tempo em que se colocava sobre ela. ? Me aceitará por bem ou por mal.

? Me solte! Deixe-me! ? Clamava Evelyn.

Umas lágrimas começaram a brotar de seus olhos banhando o rosto ruborizado desta vez pelo esforço que realizava por liberar-se das mãos de seu marido. Não podia acreditar no que ia acontecer-lhe. Não esperava que o encantador e enganador homem que tinha ao seu lado finalmente se transformasse em um monstro.

? Não! ? Rugiu Roger. ? É minha!

Depois de um tempo lutando com seu opressor, Evelyn perdeu as forças. As palmas de suas mãos, que sustentavam os braços de Bennett, separaram-se destes e o liberaram. Não podia evitar aquilo que já tinha decidido seu marido. As lágrimas deram lugar a uma choramingação incessante, um pranto pedindo clemência.

Roger, ao deixar de sentir o esperneio e a opressão em seus braços, elevou o rosto e a contemplou. O cabelo, alvoroçado pelos bruscos movimentos, estendia-se pelo travesseiro, a toalha tinha deixado de cobri-la e deixava a descoberto uma erótica e deliciosa figura. Entretanto, o que lhe partiu o coração em mil pedaços foi descobrir que ela não deixava de chorar e suplicar. Onde estava a pessoa que era? Onde estava o homem que amava e satisfazia as mulheres? Não ficava nada disso nele e a prova disso era a horrível cena que vivia. Desejava Evelyn mais que tudo no mundo. Desde que pôs seus olhos nela naquele dia, só sonhou em tê-la ao seu lado, amá-la, escutá-la gemer de prazer. Entretanto, nunca imaginou que a possuiria sem ela desejá-lo, sem escutar de sua boca que acalmasse sua necessidade.

Abatido por seu comportamento, retirou-se lentamente do leito. Seus olhos seguiam cravados na mulher, observando como tremia de medo, o mesmo que lhe tinha provocado ao deixar emergir um monstro de seu interior. Em silêncio e em comoção por sua atuação, abotoou a calça e, sem olhar para trás, saiu do quarto. Tinha que meditar sobre o ocorrido, sobre por que a tinha tratado dessa forma e, sobretudo devia achar a razão pela qual em seu interior gritava que devia fazê-la sua para sempre.


XV


Não eram ciúmes o que sentia. Ele jamais teria uns sentimentos tão estúpidos. O ardor que emergia do mais profundo de seu ser só era mal-estar por ter descoberto que ele ia ser o padrinho do filho de William e que, por sua alienação, o posto tinha sido ocupado por Federith. Apesar de suas próprias desculpas, não podia afastar o olhar dela e deixar de grunhir. Evelyn não diminuía seus gestos de paquera e, estranhamente, bebia muito. Esteve tentado, em mais de uma ocasião, em caminhar para ela e reprovar sua atitude. Necessitava que entendesse quão inadequado resultava aquele descarado comportamento para uma mulher casada, ou melhor, dizendo, para sua esposa. Mas se conteve. Aguardou com paciência o momento no qual todo mundo começou a partir e ela decidiu subir ao seu quarto. É óbvio, na intimidade que lhes proporcionaria o interior da habitação, mostraria a quem devia dirigir seus contínuos flertes.

? Já nos priva de sua presença? ? Perguntou Rutland.

Partiram já todos os convidados e, por fim, podia gozar de uns momentos a sós com seus amigos. Por isso, quando observou a disposição de Roger por partir, tentou evitá-lo.

? Tem que compreender que me encontro bastante cansado. Desde que cheguei a Londres não pude descansar adequadamente ? explicou em tom débil, esgotado. Entretanto, não o estava. Sua única pretensão era subir as escadas de três em três e procurar Evelyn.

? Se mal me recordo, Beatrice ordenou ao Brandon que te preparasse um quarto. Ele te conduzirá até lá ? disse William com tranquilidade. Não queria lhe dizer de maneira brusca que, devido a todo o acontecido no passado em seu matrimônio, devia tomar um tempo de calma. Além disso, pela atitude que mostrou Evelyn durante todo o baile, muito temia que não tivesse interesse algum em descansar sob as garras de seu marido.

? Você dorme em outro quarto que não seja o de sua esposa? Inquiriu Bennett zangado. Seus olhos, injetados em sangue, cravavam-se na pessoa a quem sempre tinha outorgado a posição de irmão.

? É óbvio que não. Entretanto minha situação conjugal é muito diferente à tua ? assinalou.

William franziu o cenho e apertou os olhos. Odiava ter que ser ele quem chamasse a atenção de seu melhor amigo, mas devia fazê-lo. Como dono da casa em que Evelyn se sentia protegida, precisava continuar lhe oferecendo a paz que prometeu e, por mais que Roger devesse exercer seu respeitável papel como marido, ela ainda não estava preparada para isso.

? Então por que te interessa tanto o lugar onde descansarei esta noite? ? Retrucou sem diminuir sua ira.

? Ser esposa suporta umas conotações muito diferentes às que encontrara em suas amantes ? intrometeu-se Federith.

Até aquele momento não tinha participado de nenhuma das conversações que seus amigos tinham mantido. Ficava distante, perdido em suas próprias divagações. Entretanto, nesta ocasião devia participar para fazer desaparecer a discrepância que começava a emergir entre eles. Como era lógico, William adotava a postura de um homem perito em conviver dentro de um matrimônio que, por sorte para ele, era frutífero. Não obstante, Roger acabava de descobrir que a mulher com quem se acreditava casado não era a que imaginou. Além disso, não estava acostumado a ser o marido de alguém e sim o amante. Devia esquecer a ideia de que sua esposa era outra mulher a qual seduzir na cama e adotar a conduta correta. Ao pensar sobre que atitude era a apropriada entre cônjuges, seu rosto se escureceu. Acaso era o homem apropriado para lhe indicar os passos a seguir após casar-se? Realmente podia lhe explicar como funcionava um matrimônio? Não, estava claro que não. O seu, embora o tentasse ao princípio, não o conseguiu e, se seus amigos descobrissem o que escondia em sua alma, pensariam que estava possuído pelo próprio diabo.

? Acaso ambas não precisam ser saciadas, excitadas e seduzidas pela paixão? ? Comentou Bennett mais zangado se era possível.

? A diferença entre elas, além de sua assinatura em um contrato legal, é que a amante se contenta acalmando seu apetite sexual. Entretanto, a esposa necessita de algo menos primitivo e mais sentimental ? afirmou Federith.

? E que sentimento necessita uma esposa, meu querido Cooper? ? Roger arqueou as sobrancelhas e sua boca se estendeu em um sorriso lento. Estava disposto a lhe replicar aquilo que fosse lhe dizer posto que, se a memória não lhe falhava, sua perfeita esposa, aquela a quem supostamente dava o que desejava, era tão especial que evitava aparecer com seu marido em público.

? Amor ? respondeu.

? Amor?! Esse é o segredo de um bom matrimônio? Isso é o que brinda a uma mulher que é incapaz de aparecer ao seu lado quando a requer? ? Retrucou irado.

Federith, ao escutá-lo, arrojou a taça que tinha em sua mão e se lançou para ele, levantou os punhos e tentou lhe atirar um golpe. Como era de esperar, Bennett o esquivou e preparou os seus para uma resposta dura. Entretanto, não conseguiu tocar em Cooper, o duro tórax de William parou o impacto.

? Não permitirei uma loucura como esta em minha casa ? disse Rutland sem mover-se e sem mostrar dor no rosto. ? Acredito que deve uma desculpa ao Federith, ele só pretendia te fazer entrar em razão.

? Não vou desculpar-me ? disse apertando os dentes.

? Pois deveria. Seu comportamento, desde que pisou em meu lar, foi deplorável. Conforme advirto, seu exílio não foi tão benévolo como pensava. Mudou-te e te aconselho que o modifique, porque se segue mantendo essa atitude, pedir-te-ei, novamente, que parta de Haddon Hall ? apontou cada palavra em tom impassível.

William se afastou e olhou a ambos os homens. Federith continuava com os punhos elevados enquanto Roger os tinha baixado. Seu rosto, escurecido, sugeria que estava meditando sobre aquilo e Rutland esperava que entrasse em razão.

Durante o baile tinha estado bebendo como um vulgar bêbado. Quando terminava uma garrafa, começava outra. Não era a primeira vez que vivia os aterrorizantes episódios de embriaguez de seu amigo. Durante suas passadas farras londrinas, mais de uma vez teve que apoiá-lo sobre suas costas e levá-lo até sua residência. Também foi testemunha de seu mau beber e da sucessão de conflitos que isso suportava. Uma vez, se não recordava mal, esteve a ponto de morrer. Mas o diabo se encontrava bondoso aquela noite e deixou que continuasse respirando. Por isso lhe tinha advertido que deixasse de beber e que prestasse atenção à sua esposa.

O conselho foi mais desastroso do que pretendeu. Evelyn não cessava de flertar e essa atitude fez com que Roger fervesse tanto o sangue, que acalmou a ira à base de mais brandy.

? Sinto ? disse Bennett depois de uns momentos de silêncio. ? Minhas mais sinceras desculpas por minhas palavras ofensivas. Sabe que te considero um irmão e que sua dor é também a minha ? disse com voz sossegada e pausada.

? Aceito-as ? falou Federith ao mesmo tempo em que estendia a mão.

? Mon Dieu!! Só me dá a mão? ? Perguntou antes de saltar sobre seu amigo e abraçá-lo.

? Bom, o normal neste momento seria tomar uma taça e fumarmos um bom charuto, mas temo que já bebemos mais do que o necessário ? indicou William feliz.

? Devo me retirar o antes possível se quero partir à alvorada para Hemilton. Não quero privar por mais tempo meu filho da presença de seu pai ? expôs Cooper com certa melancolia.

? Entendo-te perfeitamente ? respondeu o duque. ? Pois por minha parte, está desculpado. Se precisar de algo antes de viajar faça Brandon saber.

? Obrigado por me permitir ser o padrinho de seu primogênito, foi uma honra ? comentou Federith estendendo a mão para William. Como era de esperar, não a aceitou, mas sim se aproximou de seu amigo e o abraçou com sua mão direita.

? Aqui tem sua casa se por acaso algum dia a necessitar ? murmurou-lhe ao ouvido. ? Tanto Beatrice como eu estaremos encantados de ver-te aparecer com seu filho.

O futuro barão de Sheiton respondeu às palavras com um leve assentimento de cabeça. Logo dirigiu seu olhar para Roger e este o despediu da mesma maneira que William: com um abraço.

? Algo grave lhe acontece ? disse em voz baixa Bennett quando ficaram sozinhos.

? Sim, sou muito consciente disso, mas é incapaz de contá-lo. O único que tenho claro é que, desde que se casou com Caroline, não foi o mesmo. Na verdade, se a mente não me falhar, dos três, era o mais sorridente, mas se esqueceu de rir. Só mostra um rosto aflito e apático.

? Possivelmente pensou que o matrimônio seria algo diferente, eu também acreditei. Entretanto, aqui me vê, bêbado, zangado e desejoso de subir ao quarto onde se encontra minha esposa e saborear cada palmo de sua pele.

? Não albergue a esperança de que ela te aceite esta noite. Deixe-a respirar ? disse ao mesmo tempo em que se virava para seu amigo.

? Respirar? ? Soltou rapidamente. Arqueou as sobrancelhas e voltou a estender sua boca para desenhar um grande sorriso.

? Tal como disse Federith, o trato que deve adotar para com sua esposa é muito diferente ao qual proporcionou às suas amantes. Ela não só procurará prazer no leito, mas sim pedirá mais que umas agradáveis carícias ? comentou William sem afastar o olhar de Bennett.

? O que necessitará? ? Continuou jocoso.

? Seu coração. Agora pensa, está disposto a oferecer-lhe?


O suave pranto de Evelyn se escutava através da espessura da madeira, provocando que o sentimento de culpabilidade de Roger se acrescentasse. Separou-se da fria parede recordando as últimas palavras de seu amigo. Estava disposto a oferecer seu coração? Aquela pergunta o tinha deixado entorpecido. Nunca tinha parado para pensar nisso. Além disso, ele tinha coração? Segundo suas amantes, não. Segundo sua mãe, tampouco. Assim que... como ia dar algo que não possuía?


XVI


Apesar de seus inumeráveis intentos por levantar-se da cama com prontidão, Evelyn não conseguiu fazer algo tão simples. Mal tinha dormido e quando o fazia, despertava sobressaltada ao aparecer de novo o rosto enfurecido de seu marido sobre ela. A lembrança daquele momento, daquela horrorosa situação, gerou-lhe um tremor tão intenso em seu corpo que, o que não tinha conseguido pelo cansaço, adquiriu-o pelo medo. Afastou os lençóis, pousou os pés no chão e caminhou para a janela para abrir as cortinas.

O sol luzia de maneira incomum, embora desde que chegou a Haddon Hall mal tinha chovido. Apesar de estar no mesmo país, parecia que as nuvens não estavam acostumadas a aparecer por aquele lugar com tanta assiduidade como em Londres. Evelyn apoiou a testa no vidro e soluçou. Sentia-se infeliz, desanimada e um pouco decepcionada por todo o ocorrido. Culpava-se pelo pérfido comportamento de seu marido. Jamais tinha se proposto tratá-lo daquela maneira nem flertar com os cavalheiros como uma puta vulgar. Ela não era aquele tipo de mulher! Ela era uma mulher honesta, razoável e bastante sensata. Quando descobriu o final que lhe proporcionou seu irmão e depois de assimilá-lo com dignidade, disse-se a si mesma que devia aceitar sua sorte e se entregaria a um marido tal como sua mãe se dedicou ao seu pai. Entretanto, o desastre estava feito. Tinha conduzido Roger a um estado de loucura tão enorme que quase a forçou.

Evelyn suspirou profundamente e afastou com as duas mãos as lágrimas que percorriam seu rosto. O baile não tinha saído tal como imaginou naquela mesma tarde. Vestiu-se para lhe agradar, para diminuir o aborrecimento que obteria pelo engano, para que se sentisse orgulhoso da mulher que teria pelo resto de sua vida ao seu lado e talvez, também o fez por ela mesma. Estava cansada de ser a pobre Evelyn. Queria que o mundo não recordasse seu dramático passado e, é óbvio, desejava agradecer ao seu marido pelos cuidados que deixou organizados apesar de abandoná-la. Por que... o que tinha feito Roger desde que partiu? Cuidá-la. Sim, com efeito. Tinha velado por sua comodidade, por sua estabilidade econômica. Ali onde antes encontrava certa vacilação ao comprar ou adquirir aquilo que necessitava para o funcionamento de seu lar, desde que contraiu matrimônio, não viu nos dependentes nem nos fornecedores reprovação alguma.

Amabilidade e cortesia, isso é o que tinha encontrado desde que se converteu na senhora Bennett. Sem esquecer a inveja que mostravam as mulheres ao saber que um dos solteiros mais cobiçados da cidade tinha sido capturado. Mas apesar do benfeitor gesto de seu cônjuge, ela seguia mantendo sua atitude. Tinha que lhe deixar bem claro que não era uma amante a mais para utilizar e esquecer. Era sua esposa, a mulher com quem viveria o resto de sua vida, de quem escutaria suas dores ou alegrias.

Levou as mãos ao ventre para apertá-lo com força. Só havia uma coisa que nunca poderia lhe dar. Talvez, se descobrisse que o que algum dia ansiara não o conseguiria dela, albergaria a ideia de separar-se para sempre de seu lado. «Desde quando se rende com tanta facilidade? ? Perguntou-se zangada. ? Padeceu milhares de pesares em sua curta vida e isto é só mais um. O que o faz diferente?». Suas meditações a incomodaram tanto que se separou da janela e começou a perambular pela habitação. Observou envergonhada que ainda ficavam restos das consequências de sua inapropriada conduta. Se não recordava mal, o vestido ficou manchado e, por isso podia apreciar que no chão se refletia uma mancha esbranquiçada que seria impossível fazer desaparecer.

Era uma loucura. Tudo era uma maldita loucura! Açoitada por seus pensamentos e pela dor de cabeça que lhe golpeava as têmporas com força, sentou-se sobre o colchão, cobriu seu rosto com as mãos e começou um pranto que, dificilmente, podia parar.

? Bom dia, minha senhora. Despertou já? ? A voz de Wanda apareceu dentre as sombras produzindo um sobressalto em Evelyn.

? Bom dia. Levo um momento acordada, mas não quis te chamar tão cedo ? desculpou-se.

? Os duques se encontram na sala de café da manhã. Lady Beatrice me disse que a esperam para tomar o café da manhã.

Sem quase olhar à mulher, a criada se dirigiu com passo firme para o vestidor e desprendeu um dos vestidos adequados para uma jornada matutina.

Evelyn apertou com força os lábios para não lhe perguntar se seu marido encontrava-se com eles. Seria o normal nesses casos, mas conforme parecia, Roger não se apoiava nos comportamentos habituais e, possivelmente, teria partido de Haddon Hall. Com o coração estrangulado ante tal possibilidade e procurando uma desculpa a oferecer aos hospitaleiros proprietários quando perguntassem pelo paradeiro de seu marido, levantou-se da cama e se deixou vestir por sua donzela.

? Faz uma manhã magnífica para um passeio ? começou a dizer Wanda ao ver que sua senhora era incapaz de soltar uma só palavra por sua boca. ? Muito me temo que antes do almoço a duquesa a convide a acompanhá-la a outra de suas intermináveis excursões. Por esse motivo, e sempre com seu consentimento, levará o vestido de cor rosa e os sapatos planos. Assim não atrairá que todos os insetos revoem pelos arredores e não chegará com uma terrível dor nos pés.

Em outro momento Evelyn teria soltado uma gargalhada ante os comentários de Wanda, mas só fez um leve gesto com a cabeça para frente, algo que despertou o interesse de sua donzela.

? Minha senhora, se deseja que a desculpe para que possa continuar descansando em seus aposentos, fá-lo-ei ? indicou a donzela afastando suas mãos dos laços que começavam a atar o espartilho.

? Não precisa, Wanda. Será bom me distrair durante um tempo. Possivelmente, deste modo, a dor que me açoita a cabeça desapareça por fim ? voltou a justificar seu penoso comportamento.

Sabia que cedo ou tarde lhe perguntaria o que tinha acontecido durante a noite anterior. Não de maneira direta, Wanda jamais mostrava esse descaramento, mas sim que encaminharia todas suas conversações nessa direção para conseguir seu propósito. Não obstante, o que lhe diria? Que seu marido esteve a ponto de forçá-la, de possui-la entre gritos e preces de piedade. Não, não era correto nem benéfico para nenhum dos dois expor o acontecido. Antes que todo mundo cochichasse sobre o patético matrimônio Bennett, eles deviam falar sobre a razão daquele impróprio assunto e resolver o tema. Só assim poderiam viver em paz.

? Hoje seu cabelo despertou mais rebelde do que o normal. Está me custando a própria vida desenredá-lo ? assinalou Wanda enquanto tentava escová-lo.

? Pode me deixar uns cachos soltos?

? É claro. Deseja um coque alto ou baixo? ? Continuaram com um diálogo carente de sentido.

? Baixo, é claro.

? Como desejar ? respondeu Wanda.

Os olhos da criada se entrecerraram e sua boca desenhou uma estranha careta de preocupação. Pela expressão da mulher e a inapetência com que falava, sabia que a noite não tinha terminado como ela esperava. Pensou que Evelyn se renderia aos braços de seu marido, ela o teria feito sem duvidá-lo por que... quem poderia negar-se a desfrutar dos prazeres que pode lhe oferecer um homem tão perito? É óbvio que uma mulher, a única que devia aceitá-lo sem oposição: sua esposa.

? Necessita alguma coisa mais? ? Quis saber. Deu uns passos para trás, estendeu suas mãos ao longo do vestido e olhou à senhora Bennett sem piscar.

? Sim, só uma coisa. Pode informar aos duques que os acompanharei breve? ? Disse. Levantou-se, olhou-se ao espelho, levou as mãos para os olhos e apalpou com as gemas dos dedos as olheiras que os rodeavam.

? É claro. ? Wanda fez uma ligeira genuflexão e partiu. Quando fechou a porta olhou para o céu, suspirou e rezou para que o mal que se produziu na passada noite desaparecesse o antes possível.

Por que lhe doía tanto o estômago? Por que não cessavam as náuseas? Estariam provocadas pela ingestão de álcool ou pelo estado de inquietação que a açoitava ao pensar que o encontraria quando descesse as escadas? De qualquer modo, Evelyn correu ao banho, abaixou a cabeça sobre a privada e começou a vomitar. Mal saía algo de seu interior. Não tinha nada que expulsar, tudo o que contivera seu estômago o esvaziou na noite anterior. Afastando os cabelos do rosto, recompôs-se. Precisava fazer retornar a mulher que era, a mulher que não se amedrontava ante determinadas situações.

Antes de abandonar o quarto, olhou-se no espelho da penteadeira, beliscou as bochechas, elevou seu queixo e esboçou um sorriso. Essa era ela. Não havia dúvida. A imagem que projetava o espelho era a ansiada senhora que precisava mostrar. Depois de suspirar profundamente, abriu a porta e partiu.

? Bom dia! ? Exclamou Beatrice levantando-se de seu assento e caminhando para a entrada da sala de café da manhã para receber sua amiga. ? Pôde descansar?

? Bom dia ? respondeu sem apagar o sorriso. ? É claro.

? Minha querida senhora Bennett ? comentou Rutland abandonando sua cadeira. ? Minha esposa não quis começar o café da manhã sem sua presença. Acredito que estava preocupada com você.

Beatrice, que pegava com força as mãos de Evelyn, dirigiu um olhar ameaçador ao seu marido.

? Disse algo inapropriado? ? Perguntou zombador. ? Se for assim, querida, peço-te mil desculpas.

? Vem, sente-se ao meu lado. Imagino que estará faminta depois do baile.

Evitando as palavras de seu marido, a duquesa a fez sentar em uma das cadeiras próximas aonde se encontrava o duque e se sentou junto a ela.

? A verdade é que não tenho muito apetite. Tenho o estômago revolto desde ontem. Imagino que me excedi bebendo ? desculpou-se. Olhou os pratos que começavam a lhe servir e enrugou o nariz. Não gostaria de encher seu estômago com nada do que lhe ofereciam.

? Minhas primeiras bebedeiras me causaram uma feia magreza, ? disse Rutland sorridente ? mas com o passar do tempo se acostuma a ingerir tanto álcool como alimento. A natureza é sábia...

? William! ? Exclamou Beatrice zangada. ? As mulheres não são como vocês! Graças a Deus a outorgaram com o dom da sensatez.

? Jamais duvidei disso, meu amor ? respondeu antes de aproximar a xícara e tomar um comprido sorvo de chá. ? Bom, ? disse após pousar o copo e olhar com interesse a mulher de Roger ? onde se encontra meu amigo? Não o vi desde que subiu as escadas ontem de noite.

Evelyn deixou que os talheres caíssem sobre o prato emitindo um ruído ensurdecedor. Depois suas bochechas se ruborizaram e o desejo de fugir a sobressaltou.

? Muito me temo ? respondeu depois de tomar um tempo ? que não posso lhe responder.

? Não dormiu com você? ? Perguntou elevando suas espessas sobrancelhas escuras.

? William! ? Voltou a exclamar sua esposa. ? Onde estão suas maneiras? Perdoe-lhe, Evelyn. Acredito que esta manhã não só seu marido anda desaparecido, mas sim a boa educação do meu marido também.

? Senhoras... ? falou o duque ao mesmo tempo em que se levantava e afastava seu assento da mesa ? se me desculparem. Conceder-lhes-ei uns instantes a sós para que conversem tranquilamente. Enquanto isso eu pensarei onde posso o encontrar. ? Fez um leve movimento com a cabeça e, com seu típico andar, caminhou para a porta.

? Aconteceu algo horrendo entre vocês? ? Perguntou Beatrice quando estiveram enfim sozinhas. Matava-a a curiosidade e não podia aguentar por mais tempo saber o que tinha ocorrido entre eles. O último que sabia, o que lhe tinha contado seu marido, era que Roger tinha insistido em dormir junto à sua esposa. Mas, conforme parecia e graças às suas preces a Deus, ao final tinha desistido em seu empenho.

? Não! ? Respondeu tão rápido que se surpreendeu ela mesma.

? Então?

? Roger apareceu em um momento no qual minhas náuseas se converteram em vômitos e, como era de esperar, deixou-me sozinha para acalmar meus pesares. ? Tinha parecido convincente? Não estava muito segura dado que Beatrice entrecerrou seus olhos e os cravou nela. Mesmo assim, para reforçar suas palavras, Evelyn sorriu e continuou com voz divertida: ? Deve ter sido horroroso para ele entrar no quarto e descobrir a sua esposa de tal forma. Se tivesse sido ao reverso, eu também teria saído fugindo.

? Se você o diz... ? murmurou a duquesa antes de cravar com o garfo um pedaço de torrada e levá-la à boca.


Escutava certos murmúrios ao seu redor, mas como não tinha dormido em toda a noite, deu a volta e tentou prosseguir com o sonho.

? Milorde, o que me pede pode produzir a maior desgraça que presenciamos em Haddon Hall durante anos ? dizia entre sussurros Mathias, o moço de quadra.

? Se o preferir, verta-lhe o cubo de água fria e corra. Serei eu quem receberá sua fúria ? respondeu William esboçando um sorriso que cobria o rosto de lado a lado.

? Que Deus tenha piedade de nós... ? disse antes de aproximar-se de Roger, arrojar-lhe a água e começar uma carreira tão veloz que seus calcanhares lhe golpeavam os glúteos.

? Maldito seja! ? Uivou Bennett incorporando-se com rapidez do colchão de palha onde tinha descansado. Com o cabelo jorrando e as roupas empapadas parecia um cão ao qual um toró tinha pegado por surpresa. ? Que diabo faz?

? Bom dia, Roger. Uma má noite? ? Saudou-o com enormes e sonoras gargalhadas.

? Maldito seja, William! Por que despertar-me assim? ? Afastando a água que caía de seu cabelo, caminhou altivo para seu amigo.

? É uma tradição no condado de Derbyshire acordar aos bêbados com um bom banho de água gelada ? comentou sem diminuir a brincadeira.

? Malditos populares! Malditos costumes e maldito seja! ? Vociferou mais zangado, se cabia. Ao notar como as roupas esfriavam seu corpo, Roger decidiu despojar-se delas, deixando seu torso a descoberto.

? Não é adequado que as pessoas te vejam seminu ? repôs Rutland em tom sério.

? Adequado? Ha! E interromper meus bonitos sonhos como o fez sim o é? ? Lançou o colete e a camisa ao chão e pisou nos objetos ao sair.

? Roger... ? resmungou o duque como advertência.

? William... ? respondeu o aludido.

Passou por seu lado, olhou-o de esguelha e prosseguiu seu caminhar.

? Adverti-te que ela não era como as demais e que uma esposa não se pode tratar como a uma amante ? começou a o exortar. Rutland colocou sua mão nas costas e avançou atrás de seu camarada.

? Não me recrimine. Se não me falhar a memória, não faz muito tempo se encontrava em minha mesma situação ? matizou a contragosto.

? Nunca! Escutou-me? Nunca tratei Beatrice dessa forma! ? Soltou William zangado.

? É verdade! Você, o senhor honrado, deu uma lição àqueles que o pensaram... ? prosseguiu sua mal-intencionada conversação.

Virou-se rapidamente sobre seus calcanhares e observou o rosto zangado de seu amigo. Até onde queria chegar com aquela atitude? Precisava destruir uma amizade por não ser capaz de admitir o que esteve a ponto de fazer horas antes?

? Eu não gosto nem do seu tom nem das palavras que saem de sua boca ? assinalou o duque apertando os dentes.

? Nem eu gosto de ver no que estou me convertendo. Sinto-me igual ao que se lança de um precipício e no meio da trajetória se arrepende de sua tola ação. Mas... o que posso fazer a não ser me golpear contra o chão? ? Disse mais sereno, inclusive repleto de dor.

? Talvez devesse repensar e adotar uma conduta correta. Só assim não se converterá nesse lerdo que decide saltar ? indicou avançando para Roger e colocando seu braço sobre o ombro nu.

? Já não há volta atrás, William. Ontem fiz algo tão horroroso que, por mais que deseje emendá-lo, nada nem ninguém pode me salvar... ? murmurou enquanto abaixava tanto a cabeça que seu queixo chegou a tocar seu peito.

? Seja o que for, com certeza o tempo o fará desaparecer.

? Não, essa maldade jamais desaparecerá.

? Está fazendo crescer meu interesse. Sei que não é cortês indagar sobre seu pesar, nem fofocar sobre as intimidades de um matrimônio, mas me resulta impossível me conter. Por Deus, Roger! O que fez? ? O duque abriu os olhos de par em par e conteve o fôlego até que observou como seu amigo tomava ar.

Nunca o tinha contemplado tão aflito. Por norma, ele era o único que não mostrava seus pesares em público. Se não se embebedasse naquela noite no botequim do porto, jamais teria sabido que seus pais rezavam para que falecesse para outorgar o título de marquês ao seu irmão.

? Deixei que uma besta crescesse em meu interior e quase forço Evelyn... ? disse depois de tomar seu tempo para assimilar o que fez.

? Como? ? Inquiriu William assombrado.

? O que ouve. Como ela não sucumbiu aos meus encantos, tentei obrigá-la.

? Impossível! ? Exclamou incrédulo Rutland. ? Isso não é próprio de ti! Jamais faria tal aberração!

? Pois a fiz e agora temo que, se existia alguma possibilidade de que minha esposa terminasse me aceitando, esfumou-se.

Roger elevou levemente seu rosto encarando o espanto do rosto de seu amigo. Seus ombros, inclinados para frente, mostravam a figura de um homem atormentado, mortificado. Tornou a dar a volta para prosseguir o trajeto que o conduziria para a residência. Necessitava com urgência esconder-se, desaparecer.

? Sou um monstro, William. Uma besta malvada que não foi capaz de pensar com claridade, que não pôde controlar sua ira, que não pôde distinguir entre o bem e o mal ? disse com um mísero fio de voz.

? Resolveremos isso ? assinalou Rutland muito seguro de suas palavras. ? E se converterá em um matrimônio mais frutífero que o meu.

? Obrigado por suas palavras de consolo, mas decidi retornar a Lonely Field esta mesma manhã. Não quero que Evelyn volte a ver a besta que quase lhe destrói a alma.

? Vou perguntar o que em uma ocasião me questionou a mãe de Beatrice. ? Bennett seguiu avançado.

? O quê? ? Perguntou justo antes de subir as escadas que o levavam para a porta principal.

Face à insistência de seu amigo em o fazer mudar de opinião, ele a rejeitaria. Tinha tomado uma determinação e ninguém o faria retratar-se.

? Perguntou o que ela deseja?

? Não preciso perguntar, sei o que responderá. Você mesmo o apreciará em seu olhar. E agora, se me desculpar, quero me limpar antes de partir. Pedirei ao Brandon que me indique onde está aquele quarto. ? Respirou profundamente e subiu as escadas de três em três.

As mulheres abandonaram a sala de café da manhã ao escutar as vozes de ambos os maridos. A duquesa blasfemava sobre o comportamento dos dois e os comparava com meninos chorões e mimados. Entretanto, Evelyn ficou imóvel e acreditou notar como parava seu coração quando seus olhos verdes se cravaram sobre a imensa figura de Roger. Como um vendaval, entrava na casa seminu. Seu cabelo e as roupas que o cobriam da cintura para baixo jorravam gotas de água. Em cada pegada deixava no chão umas marcas úmidas e suas botas emitiam sons estranhos. Quis olhar para outro lado posto que não fosse próprio de uma mulher contemplar um homem meio vestido, mesmo que fosse seu marido. Mas foi difícil. Estava assombrada ante a exposição de um torso tão firme e esbelto. Jamais acreditou que sob as roupas os homens pudessem esconder uma figura tão magnífica. Era certo que durante suas aulas de arte, as assombrosas esculturas em mármore como O David, de Michelangelo ou O rapto das sabinas, de Juan de Bolonha, mostravam sem pudor como era um corpo masculino. Entretanto o de Roger superava com acréscimo todas aquelas magníficas figuras de mármore.

Tentou recordar se Scott, nas noites que tinham dormido juntos, tinha mostrado algo mais que as pernas. Não, não o tinha feito. Sempre que faziam amor ele cobria seu corpo com uma comprida camisola de algodão e ela também. Respirando entrecortada, confirmou que a mulher que tinha imaginado seu marido como corsário lutando enquanto protegia a sua amada era só ela. Morta de vergonha, abaixou a cabeça. Não sem antes advertir que ele cravava seus olhos nela. Não havia orgulho naquele mar azul, mas sim horror e temor.

? Não tenho nem ideia do que aconteceu entre vocês dois... ? A voz de William a fez voltar a atenção para ele ? mas decidiu partir.

? Partir? Para onde? Por quê...? ? Beatrice, assombrada, virou-se para Evelyn esperando uma resposta, uma palavra, algo que lhe explicasse o que estava acontecendo.

? Deseja que parta? Deseja permanecer sozinha o resto de sua vida? ? O duque pressionou tanto, que suas palavras golpearam com força a cabeça da aturdida mulher. ? Porque se for assim, acompanhe-nos e não suba essas escadas, mas se estiver no certo e não quiser que seu matrimônio se destrua antes de sequer iniciá-lo, já sabe o que deve fazer.

? William! O que ocorre? O que aconteceu? Por que quer afastar-se de novo? ? Interrogava-o sua esposa mudando o olhar de Roger para seu marido.

Rutland se aproximou dela, sussurrou-lhe algo ao ouvido e, depois dela assentir, retornaram à sala de café da manhã.

Evelyn abraçou a si mesma em um vão intento de acalmar os tremores de seu corpo. Estava aturdida, absorta, perdida. Tentou recordar o olhar de Roger. Não havia ódio e sim tristeza, desespero e dor, muita dor. Arrependia-se do acontecido, ou isso é o que ela esperava que sentisse, arrependimento. Com os olhos banhados em lágrimas observou as escadas. Ainda estavam manchadas após sua ascensão. Deu uns pequenos passos para elas, segurou o corrimão de madeira e elevou o queixo. Que Deus a perdoasse. Que Deus tivesse piedade pelo que ia fazer, mas tal como lhe tinha ensinado sua mãe nos últimos anos de existência, preferia lutar que arrepender-se pelo resto de sua vida.


XVII


Ódio. Isso foi o que viu no olhar de Evelyn quando acessou ao hall. Tinha-a contemplado um só instante, o suficiente para compreender que seguia atemorizada, horrorizada ao vê-lo. «O que esperava? ? Perguntou-se mal-humorado enquanto se despojava das poucas roupas que cobriam seu corpo. ? Acaso imaginou que o receberia com os braços abertos e lançando-se para você entre soluços? Mon Dieu!! Je suis stupide!!5». Enfurecido, golpeou com força a porta do vestidor. Esteve a ponto de rompê-la, talvez esse fosse seu propósito, quebrar algo, machucar-se no impacto, sentir mais pesar do que já padecia. Nunca tinha sido tão cruel com uma mulher. Nunca tinha tratado mal a uma dama e, entretanto, pela primeira vez tinha exercido essa crueldade com sua esposa, a pessoa que permaneceria ao seu lado pelo resto de sua vida, e seria a mãe de seus filhos algum dia. Não o perdoaria jamais. O pesar que o atormentava perduraria em seu interior para sempre.

Sem diminuir sua ira nem um pouco, caminhou para o quarto de banho, molhou o rosto e, agarrando-se à bacia, apertou os dentes e gritou como uma besta selvagem. Estava desesperado, amargurado. Desde que nasceu tinha lutado com o demônio que crescia em seu interior, aquele que tinha herdado de seu pai e, agora, depois de tanto tempo controlando-o, a besta zombava dele saindo à superfície. Tinha que afastar-se de todos os que o rodeavam com urgência. Se fosse certo, se já não era capaz de dominar a fera, não só ele estava em perigo, mas sim todos os que amava. É claro que não os machucaria fisicamente, mas... quem golpearia o peito proclamando que mantinha uma amizade com alguém como ele? Aflito, pegou a toalha que tinha sobre uma das banquetas próximas à bacia e, em vez de limpar o rosto, enredou-a na cintura. A necessidade de sair dali o antes possível provocou que evitasse chamar seu ajudante de câmara para vestir-se. Fá-lo-ia ele mesmo. Mas no momento que as solas de seus pés pousaram o chão do quarto, advertiu que não estava sozinho.

? O que faz aqui? ? Grunhiu. Sua voz era pesada, rouca, apática. Afastou o cabelo que cobria o lado esquerdo de seu rosto e a olhou entrecerrando os olhos. ? Perdeu-se ou veio confirmar que minha partida é real? ? Percorreu com grandes passadas o quarto até que chegou à janela. Uma vez ali, abriu as cortinas e a janela. Uma brisa suave apareceu de repente fazendo que não só seus cabelos se movessem, mas sim o objeto que o cobria, também.

Evelyn não era capaz de responder. Desde que abriu a porta e achou escuridão naquele quarto, sentiu pânico. Era tudo tão tenebroso, tão escuro, que a impactou. Seu medo aumentou ao escutar o forte e desesperado grunhido que Roger emitiu de algum lugar que não conseguiu localizar, e esteve a ponto de dar a volta e sair dali, mas quando seu corpo ia obedecer à ordem que lhe mandava o cérebro, escutou-o aproximar-se. Segurou as mãos e levantou o queixo para enfrentar a fúria que ele mostraria ao vê-la. Entretanto, sua expressão de coragem desapareceu de repente ao vê-lo daquela maneira. Seu marido se achava nu. Coberto somente por uma toalha que, graças a Deus, escondia suas partes nobres. Tentou manter a compostura, mas aquela determinação se evaporou ao admirar um corpo tão belo, tão perfeito, tão incrivelmente cinzelado. Onde estava a beleza da qual falava sua tutora ao lhe descrever as perfeitas esculturas de Michelângelo? Sem lugar a dúvidas, a figura de Roger fazia diminuir a perfeição daquelas obras mestras.

? Não fala? Ficou muda de repente? ? Continuou perguntando Bennett. Deu uns passos até situar-se no centro da habitação, colocou suas palmas na cintura e sorriu com uma careta irônica. ? OH, desculpa meu inapropriado traje! ? Disse zombador ao apreciar seu rubor. ? Não esperava nenhuma visita, mas não se sufoque, arrumar-me-ei para você. ? Aproximou-se do armário, tirou algumas roupas e, dando as costas à sua esposa, tirou a toalha e começou a vestir-se.

Evelyn desejou dar a volta e sair dali até que o corpo de Roger se mostrasse de uma aparência decente, mas não fez nem um nem outro. Permaneceu imóvel, na entrada, cravando o olhar na parte posterior do corpo de seu marido e acalorando-se por momentos.

? Então, petite sorcière, que propósito tão urgente provocou que interrompa minha intimidade? ? Falou com zombaria enquanto colocava as meias.

? Não me deixou explicar ? expôs apertando os dentes. Apesar de ficar atordoada ao descobrir a formosa figura de Roger, a ira a fez voltar a si.

? OH, C’est vrai6. Ainda não falou. ? Caminhou para ela com passo seguro, incontrolável, resistente. Pretendia assustá-la para que se pusesse a correr. Porque, embora ela não fosse consciente disso, sua presença, sua beleza, seu cativante aroma o estava deixando tão demente que seria incapaz de controlar o monstro em seu interior. Entretanto, a retidão de seu corpo, o modo como elevava o queixo e como cravava seus olhos nele sugeriram que, apesar de seu empenho em assustá-la, ela não tinha medo ante sua proximidade. Tinha aparecido ali com uma pretensão e muito temia que tivesse que escutá-la. ? Voltarei a repetir só mais uma vez. ? Disse zangado ao não conseguir seu propósito. ? O que faz aqui?

? Não quero que parta ? comentou ao fim.

? O quê? ? O aborrecimento de Bennett evaporou imediatamente. Deu uns passos para trás, os ombros relaxaram inclinando-se brandamente para frente, suas sobrancelhas loiras se arquearam tanto que se uniram e o lábio superior se separou do inferior para revelar uma careta de desconcerto.

? Não desejo que... ? começou a dizer Evelyn. Desfez o nó de suas mãos e se encorajou dando um passo para diante.

? Mon Dieu! Já te escutei! ? Gritou levantando uma mão para fazê-la calar e detê-la.

? Então, se me entendeu bem, por que deseja que o repita? ? Repreendeu-o. ? Você gosta que as pessoas te supliquem? Diverte-se ver como os outros se humilham ante você?

? Humilhar-se? Isso é o que pensa que faz ao subir aqui para me pedir que não parta? Eu acredito que é uma insensata. Uma mulher carente de racionalidade ? resmungou. ? Acaso não teve o bastante com o acontecido ontem? Veio terminar o que comecei? ? Seus olhos, injetados em sangue, fixaram-se na mulher como se quisesse fulminá-la com eles. Apertou os punhos e quis lhe dar de novo as costas, mas algo na debilidade de sua voz o deteve. Parecia como se não tivesse o suficiente fôlego para falar com normalidade e ficou quieto, atento às suas débeis palavras.

? O álcool não nos fez pensar com coerência. Conforme tenho entendido, jamais tratou uma mulher com brutalidade. Possivelmente seu incontrolável desejo por ingerir mais brandy do que pode suportar fez com que me mostrasse aquele monstro...

? Sou, exatamente, esse monstro que descobriu ontem, mon chérie ? assinalou com dureza e cortando com rapidez a distância entre eles. ? Sou um ser maligno, uma besta, um malvado e perverso homem que, apesar das negativas que me ofereceu, quase a tomo, por me pertencer pela lei.

? Você mesmo o disse ? falou baixo ? quase, mas não o fez.

O rosto zangado de seu marido se distanciava muito pouco do dela. O calor que emanava o corpo masculino chocava com o seu. Evelyn, muito ao seu pesar, sentia de novo uma estranha sensação de tranquilidade, embora as pernas não pudessem evitar um tortuoso tremor. Por que, apesar de vê-lo daquela maneira em que expressava tanta violência, ela se sentia segura ao seu lado? «Possivelmente, ? pensou ? porque está louca».

?Votre tête ne fonctionne pas avec lucidité?7 ? Perguntou abrindo os olhos como pratos.

? Je t’interdis de me parler de nouveau en français!!! Ce la devait plaire à les maîtresses lorsque s’eu leur susurrais ces mots a l’oreille, mais moi je n’aime pas. Je ne suis pas comme elles, vous comprends! Je ne suis pas comme elles!8 ? Vociferou Evelyn tão alto que um estrepitoso eco percorreu a habitação.

Roger ficou absorto, imóvel. Tinha que dar tempo à sua cabeça para assimilar duas coisas, a primeira era que nunca teria imaginado que aquela mulher, com aquele leve beleza, não passasse seu tempo curtindo seu físico em vez de sua inteligência. Muitos maridos que falavam com soltura após tomar várias taças se queixavam da banalidade que achavam nas conversações com suas esposas. «Só abre a boca para falar de quantos vestidos pensa comprar, dos escândalos que acontecem na cidade e de quão adequado é caminhar juntos para que todo mundo saiba o matrimônio proveitoso que alcançamos».

Recordou as palavras de lorde Dupuis, um dos cavalheiros mais famosos de Paris e quem aplaudia sua atitude de libertino. Entretanto, sua esposa, essa desconhecida para ele, começava a destruir todas as suas convicções. Não só falava francês com uma pronúncia melhor que a sua, mas sim até zangada, o som de suas palavras era um invejável canto de sereias. Poderia lhe ter gritado os maiores insultos que ele teria mostrado a mesma cara de bobo que tinha naquele momento. E segundo ponto a meditar. Possivelmente o mais importante a ter em conta, reprovava seu comportamento. Esse era o grande problema. Seu passado e sua inapropriada conduta, indubitavelmente, tinham chegado até os ouvidos de Evelyn e lhe exigia que não devia tratá-la como as demais. Muito ao seu pesar, tinha razão. Que conduta tinha adotado desde que a descobriu? A mesma que utilizava com suas possíveis amantes: surpresa, açoite, erotismo, sedução e sexo. Embora como não conseguisse este último, tentou adquiri-lo pelas más. Respirou fundo, retornou para o vestidor, pegou uma camisa e cobriu o torso. Já que iam falar com seriedade, o mais apropriado era que mantivesse também uma imagem adequada.

? Agora foi você quem ficou calado ? repôs com certa soberba.

? Não tenho nada a dizer ? respondeu com voz serena, aprazível.

? Pois então, deveria prosseguir. Tenho muitas coisas que expor.

Com o rosto elevado, caminhou para ele sentindo seu coração galopar dentro de seu peito e apesar de sentir como as forças foram abandonando-a e sua boca secava. Tinha-o surpreendido. Tinha-o aturdido até tal ponto que não era capaz de olhá-la ao rosto.

Com paciência e sempre mantendo uma distância prudente, observou como subia a calça e a ajustava em sua cintura antes de dirigir-se ao canto onde se encontravam os objetos de asseio. Satisfeita por ter derrotado ao homem soberbo e imperturbável, enquanto ele pegava a escova para desenredar o cabelo, ela adotou a mesma pose que na noite passada mostrou ao seu marido quando a encontrou na banheira: cruzando mãos e pernas. Não era um gesto muito feminino, mas lhe oferecia a aparente segurança que devia mostrar para que Roger lhe prestasse atenção.

? Até este momento, comportou-se como um homem libertino, um predador procurando uma presa que lhe levanta a saia para possuí-la. Não me parece correto, mas deduzo que é normal. Ninguém muda anos de mau ensino do crepúsculo à alvorada. ? Sua voz soava mais firme e tranquila. Entretanto, nem a calma nem a firmeza a possuíam naquele instante. Mas se daquela forma bastava para lhe fazer repensar sobre sua determinação de partir de novo, continuaria fingindo. ? Nem você nem eu decidimos permanecer juntos pelo resto das nossas vidas e estou segura de que se tivéssemos encontrado uma possibilidade para desfazer o compromisso, o teríamos feito. Mas aqui estamos, casados porque meu irmão, a quem adoro apesar de sua maldita façanha, decidiu que nossos futuros deviam unir-se.

? Isso não me exime de...

? Não me interrompa. Tento dialogar com uma pessoa irracional e asseguro que é o trabalho mais desesperador que vivi durante meus anos de existência ? assinalou zangada.

Roger se virou para ela e sorriu. Devia zangar-se por seu descaramento, pela ousadia de lhe falar daquela maneira, mas provocou o efeito contrário. Sentiu-se ditoso e inclusive algo petulante por haver se casado com uma mulher tão temperamental. Possivelmente esse era um dos motivos pelo qual Colin decidiu realizar sua patranha. Quem, a não ser um homem com caráter, poderia dominar a uma fêmea selvagem?

? Entendeu? ? Quis saber. Tinha lhe relatado toda uma lista de mandatos que devia acatar para obter um futuro benéfico.

? É óbvio. Tudo o que disse ficou aqui gravado ? mentiu ao mesmo tempo em que pousava uma mão sobre sua cabeça.

? Perfeito. Então... ? estendeu a mão para afirmar o pacto tal como o faziam os homens.

? Então... ? Roger caminhou, esticou a sua e segurou com força a de Evelyn. ? Esqueçamos o passado e tentemos viver uma nova etapa ? disse com um sorriso. ? É obvio... ? Bennett puxou-a para ele com tanto ímpeto que suas bocas mal se distanciaram. Seu fôlego quente se chocava com os lábios femininos e vice-versa ? farei tudo o que me peça se com isso consigo te fazer ditosa.

Evelyn se esqueceu de respirar. Seus olhos se cravaram nos voluptuosos lábios de seu marido. Outra vez a encantou o aroma, seu aroma masculino. Tragou saliva, pensando que aquele gesto lhe devolveria a prudência. Resultou um engano. Roger pousou seus olhos no pescoço e lambeu sua boca como se insinuasse o que faria na sedosa pele de sua garganta. Enrolava-a, dominava-a, hipnotizava-a até tal ponto que nem recordava se, em algum desses pontos, tinha lhe indicado que não podia beijá-la. Porque se era assim, se realmente havia dito por sua boca tal insensatez, algum dia se arrependeria disso.

? Deseja, minha querida esposa, algo mais?

A voz melosa e suave lhe produziu uns inadequados calafrios. Era tão sedutor, tão terrivelmente encantador que, se seguisse assim por mais tempo, seria ela quem saltaria em seu pescoço e invadiria sua boca.

? Não... ? sussurrou afogada.

? Bem. Pois se me permite ? falou isso enquanto a soltava e retornava ao dormitório. ? Tenho que descer e explicar ao meu amigo que finalmente não partirei. Embora tampouco alonguemos nossa visita. Tenho coisas pendentes em Londres e estou seguro de que meu administrador se alegrará de ver-me.

? É lógico. Sete meses sem sua supervisão terá gerado um interminável trabalho, mas o tempo que permaneçamos aqui, recorde que devemos nos comportar como se tivéssemos um matrimônio afortunado. Agora, se não tem nada que objetar, retiro-me. Imagino que Beatrice terá preparado tudo para dar um passeio. O ar fresco e os quentes raios deste magnífico dia nos virão bastante bem ? comentou de maneira altiva ao mesmo tempo em que se dirigia para a porta.

? Portanto...

? Portanto? ? Repetiu Evelyn em forma de pergunta.

Voltou-se para seu marido esperando que, apesar de sua ordem número quatro, avançasse para ela, apanhasse-a entre seus braços e a beijasse como a noite passada na varanda.

? Ambos estaremos muito ocupados durante a jornada. Que tenha um proveitoso dia, Evelyn ? disse realizando uma exagerada reverência.

? Igualmente, Roger. ? Virou-se, abriu a porta e partiu.

Respirava? Não. Claro que não o fazia! Era impossível poder pensar com claridade estando perto de um homem tão impressionante e tomar ar de uma vez. Evelyn notou como seu peito ascendia e descia com brio. Tinha que controlar aquela ansiedade. Tinha que controlar aquele terrível desejo que notava crescer em seu interior quando se aproximava, quando aproximava sua deliciosa boca à sua, quando...

? Basta! ? Exclamou no meio do corredor, acentuando sua fúria com um forte pisão no chão. ? Acabou-se! Esse homem não me fará pecar! Sou uma Pearson!

E após soprar como um touro, jogou a cabeça para trás, segurou o cabelo e desenhando um enorme sorriso, desceu as escadas.

Roger soltou uma enorme gargalhada ao escutar o grito de sua esposa. Era uma mulher divertida, mais do que ela mesma pretendia. Ao mesmo tempo que deliciosa, erótica, luxuriosa e muitas coisas mais que lhe ocorriam em sua mente perversa. «Está bem, minha querida bruxa, começa o jogo da sedução ? murmurou enquanto terminava de vestir-se. ? Te farei tão viciada em mim que rogará para que te toque, que te beije e que te possua. Gritará com tanta força meu nome quando me introduzir em seu corpo que me deixará surdo. Desejará com desespero que minha boca acaricie seus mamilos. Morrerá por me arranhar as costas quando sentir como arde seu corpo sob o meu e, é óbvio, rogar-me-á que não deixe de te amar pelo resto de nossas vidas. Mas até esse momento... que comece o cortejo!».


CONTINUA

IX


Tudo estava preparado para a festa de Elliot. Gente de todas as partes de Londres iria à cerimônia que os duques ofereceriam para a apresentação de seu primeiro filho. Beatrice andava de um lado para outro histérica, igual a William, que se contagiou pela ansiedade de sua esposa. A pequena mulher levava várias semanas aterrorizando o pessoal do serviço, ordenava sem parar quando não tinha no regaço seu bebê, momento no qual os criados podiam respirar tranquilos, mas quando o pousava no berço ou o dava ao seu marido, os lacaios corriam pela residência procurando um buraco onde esconder-se.

Só a senhora Stone e Evelyn acalmavam sua ansiedade. Esta última estava vivendo com eles desde que nasceu o pequeno. William acreditou oportuno retirar a mulher da cidade alegando que Beatrice necessitava, depois da chegada do bebê, o apoio de uma amiga, mas a verdadeira razão era outra bem distinta. O rumor sobre as proposições que a senhora Bennet estava recebendo em seu próprio domicílio tinha chegado aos seus ouvidos e ideou um plano para que partisse dali o quanto antes. Não desejava que quando Roger decidisse retornar descobrisse o que tinha acontecido em torno de sua esposa. Além disso, tanto William como Beatrice decidiram unir de uma vez por todas o casal e que abandonassem a ideia de viverem separados. Não era lógico que seu amigo sulcasse os mares enquanto sua esposa era acossada por canalhas. Tinha que fazer Bennett ver que precisava confrontar a vida conjugal que lhe tinha sido imposta, e se isso lhe custava sua amizade, que assim fosse.

? Crê que virá? ? Perguntou a duquesa com incerteza enquanto pousava com cuidado o pequeno no berço.

? Você leu a resposta. ? William esperava ao pé da cama que sua mulher o ajudasse a colocar a gravata.

Desde que se tinham casado já não necessitava do ajudante de câmara, o qual trocou de trabalho em caráter imediato. Preferia mil vezes as mãos de sua esposa às do jovem.

? Sei que dizia que estaria conosco na apresentação do Elliot, mas não li nada sobre sua esposa. Nem se preocupou em saber como se encontra ? disse zangada.

? Em sua defesa alegarei que ele não sabe que está sob nosso amparo.

? Há, mas...

? Não se conhecem, querida. Terá que lhes dar um pouco de tempo, embora muito temo que Roger se arrependerá dessa escapada quando aparecer ? expôs ao mesmo tempo em que exibia um sorriso malicioso.

? Por que diz isso? ? Beatrice caminhou devagar para seu marido, apertou com suavidade o laço da gravata e apoiou a cabeça em seu peito. Reconfortava-a tanto permanecer ao seu lado que a fazia esquecer qualquer preocupação.

? Apostaria minha cabeça que não teria partido jamais se a tivesse visto uma só vez. Sem lugar a dúvidas, Evelyn é seu tipo de mulher ? afirmou.

Levantou o semblante de sua esposa e dirigiu seus lábios para os dela.

? Você crê? ? Perguntou com insegurança.

Estava convencida de que Roger gostava de todas as mulheres e nunca imaginou que pudesse existir uma em especial. Se não recordava mal, quando se aproximou o dia do baile que organizaram para que todo mundo compreendesse que não era a concubina de William, Bennett lhe disse que gostava das jovenzinhas e Evelyn, embora tivesse um rosto infantil, passava dos trinta.

? Se vier, o comprovará. E agora, minha querida duquesa, baixemos para receber nossos convidados enquanto o futuro duque de Rutland descansa ? disse sem ocultar seu orgulho.

Ofereceu-lhe o braço e Beatrice o aceitou, deu-lhe um beijo na bochecha e saíram do quarto em silêncio.


Evelyn estava muito inquieta para ficar imóvel. Tinha escutado Wanda suspirar mais de trinta vezes desde que começou a penteá-la, mas embora o tentasse, resultava-lhe impossível. Como ia serenar sabendo que ele poderia aparecer na festa? Embora Beatrice e William rissem ao lhe contar o engano que elaborou quando a visitou em sua casa, ela estava segura de que ele não acharia nenhuma graça. Supostamente tinha se casado com a criada e, pela cara de horror que pôs ao vê-la, não pareceu lhe agradar.

Não pensou nas consequências, cansada como estava de tanta visita inadequada. Se tivesse sabido que ele seria o homem com o qual finalmente se casaria, não teria se exposto a atuar daquela forma.

Olhou para diante cravando suas pupilas verdes no espelho. Mal se reconhecia. Levava mais de meio ano vestindo e adotando a figura de uma mulher de luto e agora, ver-se de novo luzindo uma cor diferente ao negro, pareceu-lhe estranho. O luto por seu irmão tinha finalizado, mas não sua dor. Continuava tendo saudades e, embora não o admitiria nunca, também continuava amaldiçoando-o em silêncio por fazê-la casar com um homem de quem só sabia seu sobrenome. Graças aos Rutland descobriu que seria o futuro marquês de Riderland, que não era muito velho e que tampouco tinha levado uma vida tão honrada como lhe pareceu ao conhecê-lo. O senhor honorável era um libertino acostumado a esquentar as camas alheias. Entretanto, William elogiava o caráter de seu amigo. Não havia conversação em que não elogiasse a variedade de qualidades que possuía, mas Evelyn acreditava que o fazia para não entristecê-la, para que não sofresse pelo homem com o qual deveria viver o resto de sua vida.

? Está linda ? sussurrou Wanda apoiando as mãos sobre seus ombros nus. ? Não recordo havê-la visto tão formosa.

? Possivelmente deveria ter posto o rosa. Este é muito chamativo para a ocasião. ? Evelyn se levantou, observou-se com paciência o espelho e suspirou.

Beatrice a tinha convencido para comprar aquele vestido vermelho. Segundo ela fazia jogo com a cor de seu cabelo e enfatizava os belos traços de seu rosto, mas ela se via muito frívola, talvez porque se acostumou a ocultar sua figura sob a escuridão das roupas. Agora, ter que exibir, embora fosse de maneira insinuante, o nascimento de seus seios, mostrar seus braços, exceto o que ocultavam as luvas, e deixar que todo mundo observasse o magro e longo pescoço lhe provocava temor. Sem lugar a dúvidas, sentia-se mais cômoda oculta sob o véu.

? Não diga tolices! ? A criada a fez girar para ela e franziu o cenho. ? Leva muito tempo sob as penumbras e é hora de desfrutar!

? Penumbras? ? Perguntou Evelyn.

Caminhou para a poltrona de veludo azul e, como se tivesse corrido uma maratona, sentou-se elevando as pernas.

? Sim, penumbras. ? Deu uns passos para ela, colocou as mãos na cintura e franziu o cenho. ? Desde que aquele malnascido rompeu seu compromisso, não tem feito outra coisa que esconder-se do mundo. Nunca saía de Seather Low. Cada vez que alguém visitava seus pais se encerrava no quarto e não aparecia pelo salão até que a visita partia. Logo chegou a morte de sua mãe, que Deus a tenha em sua glória. ? Benzeu-se e olhou ao teto. ? Um motivo mais para seguir oculta. Depois a de seu pai e, finalmente, a de seu irmão.

? Tive uma vida dura... ? murmurou como desculpa. Soprou e olhou para o teto. Tudo o que contava Wanda era certo. Da ruptura com Scott e a desculpa que difundiu seu pai ante aquele sucesso, o único que desejava era manter-se afastada de qualquer pessoa que lhe fizesse mal.

? Porque você decidiu que assim fosse. Agora tem uma oportunidade para viver, para desfrutar de tudo aquilo que decidiu não possuir.

? Acredito que se esquece de algo ? disse zangada. Levantou-se com rapidez do assento e, esquivando do corpo de Wanda, dirigiu-se com passo firme para a porta.

? O quê? ? Perguntou a donzela sem afastar a vista dela.

? Que me casei com um homem que não posso recordar como é e ao qual não amo ? sentenciou.

Estava a ponto de sair do quarto quando observou que a criada cortava a distância entre elas. Moveu devagar a cabeça para ela e se surpreendeu de quão rápido tinha chegado ao seu lado. A donzela apoiou as costas na porta evitando assim sua fuga e a olhou sem piscar.

? Acaso não recorda como a contemplava? Foi incapaz de fixar seu belo olhar azul em mim nem que fosse por só um segundo! Você era o centro de sua atenção. Se por acaso o esqueceu, tenho que lhe indicar que quando apareceu no salão se achava em estado de choque, como se permanecesse enrolado após conhecê-la.

? Bobagens! ? Exclamou zangada.

? Não diria isso se você tivesse visto como a sustentava com firmeza entre seus braços, como a olhava preocupado, como a pousava sobre a cama para não a machucar e como...

? Basta! ? Gritou elevando a mão para que parasse de falar. ? Não quero continuar escutando sandices!

? Sim, minha senhora... ? Wanda se retirou da entrada, abaixou a cabeça e conteve a respiração.

? Sinto... ? disse depois de uns instantes de silêncio. ? Me perdoe. Estou muito nervosa.

? Não tenho que lhe perdoar nada. Acredito que fez bem em me fazer parar ? comentou em voz baixa.

? OH, Wanda! ? Exclamou ao mesmo tempo em que se abraçava a ela. ? Tenho medo! Muitíssimo!

? Não tenha. Sei que no final será feliz. O senhor Bennett a converterá na mulher mais ditosa do mundo.

? E se descobrir a verdade? Que há outro engano mais cruel que o daquele dia? ? Encostou a testa no peito da mulher.

? Se chegar a amá-la, seu passado não lhe importará ? afirmou com veemência. Suas mãos se dirigiram para os braços de Evelyn e com cuidado a distanciou para que pudesse olhá-la aos olhos. Uma vez que a jovem elevou o queixo, Wanda lhe ordenou com suavidade: ? E agora se recomponha. Tem uma festa à qual assistir.


X


Tinha estado adiando o momento de sua chegada tudo o que pôde, mas já não podia fazê-lo mais. Quando o cocheiro estacionou a carruagem no único espaço que encontrou livre pelos arredores de Haddon Hall, Roger estava tão impaciente que ele mesmo abriu a porta. O entardecer já tinha dado lugar à escuridão da noite e só os lobos pareceram precaver-se de sua chegada.

Olhou ao seu redor. Novamente se apresentava na mansão a umas horas inapropriadas, embora estivesse seguro de que nesta ocasião William não o receberia com seu habitual sorriso. Colocou o chapéu, cobriu seu corpo com a capa e avançou sem escutar os murmúrios de Anderson. Possivelmente continuaria resmungando sobre o inadequado de chegar mais de duas horas atrasado a uma cerimônia tão importante, mas nesse momento não queria lhe prestar atenção. Sua mente estava ocupada em averiguar como devia atuar frente à sua esposa e como ela receberia a notícia de sua chegada. Não era o mesmo a encontrar a sós, onde só escutariam seus alaridos os criados do lar, ao escândalo que se armaria em uma cerimônia com mais de setenta convidados.

Com firmeza, agarrou a aldrava e tocou várias vezes. O ruído da orquestra parecia silenciar seus golpes. Deu uns passos para trás para poder olhar a varanda, que permanecia aberta. Com certeza os anfitriões tinham decidido deixa-la dessa forma para que os casais saíssem e pudessem encontrar-se durante uns instantes a sós.

Roger sorriu ao recordar o momento no qual encontrou seu amigo dançando com Beatrice e como a beijava com ternura. Apaixonou-se. Por mais incrível que lhe parecesse, William tinha entregado seu coração a uma mulher. Invejou-o. Sim, embora parecesse incrível cobiçou aquele sentimento de afeto. Nunca tinha tido nada um pouco parecido. Suas amantes, apesar de serem boas na cama, não o tinham olhado como Beatrice olhava seu amigo. Os olhos verdes da mulher brilhavam com mais força que a lua e o desejo de protegê-lo de qualquer mal sobrepunha ao seu próprio benefício.

Sua mente levou-o ao dia do duelo, voltando a ver a pequena mulher correndo por Hyde Park, tropeçando na erva, destroçando aquele bonito vestido. Recordou-a ajoelhada no chão chorando ao pensar que William havia falecido. Nunca observou em uma mulher tal desconsolo, tal tristeza pela perda de um homem. E por último rememorou o beijo de ambos. Uma amostra de paixão que deu muito o que falar na sociedade londrina, posto que não estava bem visto que as pessoas se beijassem em público. Mas se houver amor, qual o problema demonstrar? Agora ele não encontraria nada parecido. Por ser um imbecil, por ser um néscio, Deus o tinha castigado lhe oferecendo uma esposa que poderia ser sua própria mãe. Sem contar, claro está, que se desejava ter descendência, teria que tentá-lo o antes possível posto que ela logo ficasse estéril.

De repente um som despertou-o de seus pensamentos. Dirigiu os olhos para a entrada e descobriu que alguém, por fim, atendia-o.

? Boa noite... senhor Bennett? ? Perguntou o mordomo mais assustado que assombrado.

? Boa noite, Brandon. Parece que a festa ainda não finalizou ? disse. Como era habitual nele, avançou para o interior do lar sem ser convidado.

? O que lhe aconteceu? ? Continuou perguntando o criado atemorizado.

? Nada, por que o diz? ? Tirou o chapéu e a capa para entregar a Anderson que, como sempre, permanecia ao seu lado.

? Parece que o assaltaram no caminho e o tiveram detento durante anos! ? Exclamou o senhor Stone escandalizado.

? Diz pela barba e o comprimento do meu cabelo? ? Perguntou divertido Roger. ? É meu novo aspecto. Acredito que a vida de casado não me tratou tão bem como esperava.

? Ordenarei ao antigo ajudante de câmara que amanhã visite seu quarto para arrumá-lo ? disse o criado com certa resignação ao comprovar que a atitude do homem era a de sempre.

Não parecia ter mudado durante sua ausência. Seguia sendo o mesmo cavalheiro descarado, presunçoso e déspota, e por muito que rezou a Deus para que a vida o pusesse em seu lugar, este não tinha escutado suas súplicas e o premiara com uma mulher encantadora.

? Não se incomode, não vou requerer seus serviços. Satisfaz-me minha nova aparência ? comentou ao mesmo tempo em que caminhava com solenidade para o salão principal.

Anderson olhou com tristeza ao senhor Stone. Não precisou falar para entender o que desejavam dizer-se, bastou um leve assentimento de cabeça para conhecer as palavras que guardavam em suas mentes.


Quanto mais se aproximava da entrada, mais desejo tinha de sair correndo. Durante o tempo que esteve navegando se expôs mais de um milhar de formas de tratar seu novo estado, mas na hora da verdade nenhuma lhe resultava adequada. O que devia dizer? «Senhora Bennett, encantado de voltar a vê-la. Quero lhe indicar que decidi retornar, mas não tema, deixá-la-ei viver em sua residência o tempo necessário até que eu queira ter um herdeiro». Grande tolice! Sem lugar a dúvidas ela sairia gritando da festa e se encerraria em seu quarto até que ele partisse. Prometeu-lhe que não a incomodaria e estava quebrando sua palavra.

Roger levantou o rosto para olhar para o interior da sala. Havia casais dançando. Reconheceu o senhor Wadlow, o pároco e o administrador de William. Não quis olhar para o grupo de mulheres que se agruparam no lado direito. Preferiu avançar para os homens, onde pode divisar sem obstáculos seus dois amigos. Sorriu ao ver que Federith também tinha aparecido e desejou de uma vez por todas conhecer sua esposa, posto que a senhora Cooper parecia um fantasma.

Os olhos escuros de William se cravaram nos seus e tal como pensou, não obteve um sorriso como resposta ao seu.

? Boa noite, cavalheiros. William, Federith, como sempre é um prazer voltar a os ver. ? Estendeu a mão para Cooper e este o saudou com um bom apertão. Logo a ofereceu a Rutland e o duque a negou.

? Pensava que tinha morrido, ? disse William com voz dura ? porque se não foi assim, não encontro razão alguma pela qual tenha vindo tão tarde.

? Não me castigue, amigo ? comentou mostrando um sorriso. ? Meu pesar ainda não começou.

Rutland se desculpou dos convidados e, sob seu atento olhar, pegou com força o braço de Roger para afastá-lo do salão. Sem lhe dar nenhum tipo de explicação o conduziu para o balcão. Uma vez fora, liberou a forte amarração, empurrou-o para o corrimão como se quisesse lançá-lo, e o observou com ira.

? Não estará pensando em me beijar, não é? ? Bennett rompeu o inesperado silêncio com seu típico tom jocoso. Era a primeira vez que sentia a fúria de seu amigo em volta dele e não gostava de ver como uma amizade de tantos anos começava a se quebrar.

? Por que chegou a estas horas? Acaso não ficou bem clara a hora da cerimônia? Beatrice teria gostado que permanecesse ao nosso lado em um dia tão importante.

? Sinto muito, peço-te mil desculpas e os compensarei com...

? Não há nada que compense a dor que nos causou, Roger! ? Gritou mal-humorado. ? Queríamos que você fosse o padrinho do nosso filho!

? Quem ocupou meu lugar? ? Perguntou depois de uns minutos de silêncio tenso e caminhando para o lado contrário ao que permanecia William imóvel.

? Federith.

? Foi a melhor opção. Eu jamais estarei à sua altura para tal honra.

? Maldito seja, Bennett! Que diabos aconteceu com você? Quase não te reconheço.

? Sete meses dão para muito... ? sussurrou.

Girou sobre os calcanhares e endireitou sua figura, como se assim pudesse desfazer-se da tristeza que lhe tinha provocado descobrir que seus amigos tinham acreditado nele para o cuidado de seu primeiro filho, e os tinha defraudado.

? Dão para exibir esse aspecto de miserável que mostra ? disse o duque em tom mais cometido.

? Cheguei ontem pela manhã e após desembarcar pus rumo para Haddon Hall ? mentiu. Não queria revelar o que tinha descoberto após pôr os pés em Londres porque, além de o exortar sobre a como pedir respeito quando ele mesmo não o tinha feito, riria ao compreender que no fundo não odiava tanto como acreditava o título de seu pai.

? Não minta! ? Exclamou William apertando os dentes. ? Esquece-se de que nada se pode ocultar? Crê que uma notícia tão importante como a volta de um marido que abandonou a sua mulher depois de casar-se não chegaria ao condado de Derbyshire? Sei que apareceu faz algo mais de dois dias e que nessa mesma noite visitou o clube. Sentia falta de seus jogos e suas bebedeiras? Essas são as razões que o impediram de aparecer a tempo na apresentação do meu herdeiro?

? Não! ? Disse com rapidez.

? Então? O que ocorreu? E não volte a me mentir ou jamais voltará a pisar em minha casa ? sentenciou.

? É duro de contar, William, inclusive tenho que assumir antes. ? Colocou a mão direita no bolso de sua jaqueta, tirou um pacote de cigarros e acendeu um.

? Escuto-te. Conhece-me bem e sabe que não te julgarei seja o que for ? respondeu com voz sossegada.

? É verdade que retornei faz vários dias, mas antes de vir precisava esclarecer certas coisas. Durante minha longa viagem repensei sobre meu futuro. ? Fez uma pausa para dar uma longa inspiração. ? Como pode imaginar, entre minhas reflexões se encontrava como fazer frente à minha esposa. Já te disse que lhe fiz a promessa de me afastar de seu lado para que pudesse ter uma vida em paz, mas isso fez estragos na minha. Assim decidi visitá-la para lhe dar uma explicação sobre minha volta.

? Ela está conosco ? interrompeu Rutland. ? Beatrice e eu decidimos que o mais apropriado seria que permanecesse uma longa temporada ao nosso lado.

? E lhes agradeço isso de coração, porque não imagina o que descobri quando cheguei ? repôs aflito.

? Sabemos. Como te disse antes, nenhum rumor tem fronteiras.

? Desde quando sabem que todo mundo lhe propôs que fosse sua amante? ? Inquiriu um tanto zangado. ? Por que não me fez saber isso em sua carta?

? Não achei oportuno...

? Oportuno? ? Franziu o cenho. ? Dar-me essa informação não te pareceu oportuno?

? Precisava esclarecer as ideias e pensei que te viria bem um pouco mais de tempo.

? Maldito seja, Rutland! Sabe que quase todos os homens de Londres lhe propuseram essa loucura?

? Sim.

? E? O que faria você em meu lugar? ? Repreendeu-o.

? Em primeiro lugar, eu não a teria deixado sozinha em um momento tão duro. Não só tinha perdido seu irmão de uma maneira desonrosa, mas sim também descobriu que se casou com um bastardo que não se interessou por seu bem-estar ? esclareceu com solenidade.

? Prometi-lhe que a deixaria viver em paz! ? Exclamou irado. Atirou o cigarro ao chão e o pisou com ímpeto. ? E embora não o creia, sou um homem de palavra. Além disso, meu administrador se ocupou de que não lhe faltasse nada.

? Perguntou a ela o que desejava? Dignou-se saber o que pensava ela naqueles momentos? ? Disse irado.

? Não precisou, vi-o em seus olhos. Não me queria ao seu lado ? refletiu com tristeza.

? Quando viu seus olhos? Nas bodas? Antes de embarcar? ? Insistiu William.

? No dia que me apresentei em seu lar e deixei que lesse o que seu irmão me fez assinar ? confessou com um pequeno fio de voz. ? Embora te possas assegurar que mais pavor provocou à sua criada que a ela.

? Já entendo... ? um pequeno sorriso apareceu no rosto de Rutland. Evelyn lhes tinha contado o acontecido naquele dia. Ela se fez passar pela criada e esta pela senhorita Pearson. Conforme lhes disse, quis dizer-lhe no dia do enlace, mas ao partir sem mal lhe dirigir a palavra, decidiu prosseguir com seu segredo.

? Sei que soa muito duro dizer isto, William, mas não a quero. Não é o tipo de senhora com a qual desejo viver o resto da minha vida. Casei-me com uma mulher pela qual unicamente sinto lástima. E mais, vou confessar algo que não pode sair daqui. ? Olhou Rutland aos olhos e se manteve calado até que seu amigo afirmou com a cabeça: ? Juro por minha vida que me impactou mais a criada que ela.

? Então... precisava se afastar de sua esposa ou da criada? Está me confundindo ? disse divertido.

Conhecendo-o como o fazia, estava seguro de que ao descobrir Evelyn, embora fosse vestida de criada, deixara-o em estado de choque. A debilidade de Roger pelas mulheres com o cabelo de cor de fogo era indescritível e apostaria o pescoço que a verdadeira razão pela qual embarcou foi o desejo que a moça lhe tinha provocado. Bennett não queria parecer-se com seu pai. Odiava todos os enganos que tinha sofrido sua mãe, os bastardos que rondavam as ruas da cidade e a obsessão do atual marquês por levantar saias.

? Mon Dieu! ? Exclamou elevando as mãos e as agitando. ? Pela criada! Durante estes malditos meses só pensei nessa mulher, em seu aroma, em como seria acariciar aquele cabelo de fogo. Tenho escrito várias cartas à minha esposa com a esperança de que suas respostas inspirassem algo que não sentia, mas não recebi nenhuma só resposta. Tampouco lhe interesso, só sou a pessoa que lhe oferece estabilidade econômica. O quê? ? Encarou William ao ver que sorria. ? Por que sorri?

? Crê de verdade em suas palavras? ? Aproximou-se e pousou a mão sobre seu ombro.

? Deveria pensar em outra coisa? ? Respondeu inclinando a cabeça levemente para baixo.

? Reflita sobre isto: sua esposa vive conosco há umas quatro semanas, mas esteve sozinha em sua residência durante seis meses. Quantos homens puderam lhe oferecer semelhante loucura durante esse tempo?

? Muitos... ? sussurrou sem voz.

? A quantos disse que sim?

? Segundo o mordomo que me recebeu em Seather Low, a nenhum.

? Isso não te indica nada?

? Não ? respondeu. ? Possivelmente nenhum dos que apareceu a atraiu sexualmente.

? Pois se pensa isso é mais parvo do que eu imaginava. A conversação terminou. Devemos retornar. Estou seguro de que Beatrice andará me procurando e não quero que se sinta abandonada. ? Rutland avançou para a entrada enquanto observava de esguelha seu amigo.

Como se lhe tivessem mostrado uma adaga, Bennett caminhou para o interior da sala de novo. As pessoas continuavam tal como antes de ausentar-se: dançavam e cochichavam sem cessar. Possivelmente estavam falando de sua chegada e de sua piorada aparência. Entendia-o. Com a espessa barba e o cabelo à altura dos ombros dava a imagem de um corsário, mas tampouco enganava, tinha-o sido durante o tempo que sulcou os mares.

Dirigido por William, retornou ao grupo onde os homens prosseguiam com seus bate-papos aparentemente importantes. Jogou uma leve olhada pelo lugar, procurando a sua esposa, embora não a viu. Todas as que vestiam luto eram baixas e cheias. Sabia que em sete meses se podia mudar muito, mas... tanto? De repente os homens deixaram de falar para dirigir seus olhares para um ponto da sala. Roger estava de costas e até que não se virou não pôde comprovar o que os tinha deixado mudos. Abriu os olhos tanto que quase se saíram das órbitas. Não podia ser. Que fazia ela ali acompanhando Beatrice e vestida como uma dama? Com rapidez voltou a vista para Rutland, que sorria mais do que o normal.

? O que é tudo isto? ? Perguntou Bennett zangado. ? O que ela faz aqui?

? Eu gostaria que fosse ela mesma quem lhe dissesse isso, Roger, mas tal como ficou, temo que devo ser eu a pessoa que lhe dê o relatório...

? Do que deve me informar? O que acontece? ? Apertou com tanta força as mandíbulas que começou a lhe doer a cabeça.

? Meu querido amigo, ela é sua esposa.


XI


Sabia que estava ali assim como podia perceber seu penetrante olhar cravado no pequeno decote das costas que apresentava seu vestido. Tentou manter a calma e continuar conversando com as mulheres que se encontravam ao seu redor, mas apesar de querer mostrar indiferença, não podia. Tremiam-lhe as pernas e mal podia segurar a taça sem que derramasse o champanha. Tentou escutar o monólogo apaixonado de uma das convidadas, embora na realidade não pudesse ouvir uma só palavra. Todo seu corpo se centrava em uma coisa: ele.

De repente, observou que as mulheres ao seu redor começavam a olhar atrás dela e foi então quando seu coração deixou de pulsar. Apreciou que algumas, as mais jovens, moviam suas pestanas como se fossem leques e levantavam a comissura de seus lábios em forma de sorriso. Outras, casadas, ruborizavam-se e ficavam um tanto nervosas. A Evelyn não cabia dúvida de que a causa daquela perturbação feminina era seu marido. Até àquele momento, nenhum homem tinha causado tanta expectativa entre as mulheres.

Tentou recordá-lo: alto, com bom porte, o cabelo loiro e uns olhos azulados como o céu. Sim, ela também ficou aniquilada no dia em que o recebeu em sua casa, mas devido à sua idade e à má experiência com Scott, já não se fixava no físico dos homens e sim no que escondiam em seu interior. Contemplou surpreendida a ansiedade a que estavam sucumbindo suas acompanhantes. O que estaria fazendo? Quis dar a volta e averiguá-lo por ela mesma, mas seu corpo não lhe respondeu. Tinha medo de enfrentar-se cara a cara com ele, embora tivesse meditado muitas vezes em como atuar após sua volta, não estava preparada. Como reagiria ao vê-la? Ficaria tão zangado para lhe gritar diante de todos que era uma mentirosa? Possivelmente. Seu marido não só tinha sofrido a mentira de Colin, mas também a sua.

Tomou um sorvo de sua bebida. Logo outro e quando notou uma suave brisa quente em seu pescoço, terminou-a de um gole.

? Bonne nuit, madames ? saudou Roger as damas, mostrando um enorme e sensual sorriso. ? Estão se divertindo?

? Roger... ? Beatrice, atenta à perplexidade de Evelyn, adiantou-se e lhe estendeu a mão. ? Acreditei que enfim não viria.

? Perdoe o atraso, senhora duquesa, mas uns assuntos um tanto abafadiços em Londres fizeram com que minha partida se atrasasse ? disse colocando-se atrás de sua esposa e esperando que ela se virasse para ele e o saudasse.

Notava o pequeno tremor de seus ombros e os agitados movimentos do líquido de sua taça. Estava nervosa ante sua presença e, embora não fosse oportuno, teve uma vontade imensa de pegá-la pela cintura e arrastá-la para o exterior da casa. Ali, acompanhados só pela escuridão da noite, faria o sem-fim de perguntas que lhe tinham abrasado a cabeça enquanto caminhava para ela, mas se conteve, era melhor torturá-la um pouquinho mais antes de assaltá-la com suas dúvidas e beijar aqueles lábios que tanto tinha pensado devorar.

? Solucionaram-se? ? Beatrice não gostava de continuar conversando com quem tinha faltado à confiança de seu marido, mas o fez por Evelyn, que não tinha deixado de olhar o quadro que se encontrava na parede em frente e de levar uma taça vazia aos lábios.

? Bien sûr que oui!!2 Acaso duvida do meu poder resolutivo? Só foi um mal-entendido e acredito que deixei muito claro que ninguém pode tocar no que é meu ? disse em tom dominante. ? Por certo, minha querida esposa, encontra-se bem? Observo que sua tez empalideceu e sua mão não pode parar de tremer.

? Só preciso tomar um pouco de ar fresco ? murmurou olhando Beatrice em busca de ajuda, mas Roger não lhe deu a oportunidade, estendeu sua mão, pegou a sua e lhe disse com voz aveludada:

? Acompanhe-me. Levá-la-ei para o exterior. Estou seguro de que se recuperará quando respirar o ar puro das terras do meu amigo.

Quando Evelyn se virou para lhe reprovar tal imoralidade, ficou assombrada. Seu marido, aquele a quem recordava com um perfeito corte de cabelo e um rosto suave e delicado, tinha mudado totalmente. Seu cabelo agora roçava os ombros e a barba, espessa e áspera, ocultava a metade do seu rosto deixando a descoberto só os lábios. Agora entendia o estupor das mulheres.

? Não tenha medo... não vou mordê-la... pelo menos não diante de toda esta gente ? sussurrou-lhe no ouvido enquanto caminhavam para os jardins.

? Não se atreveria... ? disse Evelyn com voz estrangulada.

Se a tinha segurado pela mão em vez de lhe oferecer o braço como era o normal, estava segura de que faria algo quando tivesse a mínima oportunidade.

Apesar de serem menos de cem passos do interior da sala para o exterior, a Evelyn parecera-lhe uma eternidade. Não via o momento de poder soltar aquela mão firme e correr para algum lado da casa para esconder-se. Olhou de esguelha a seu marido e não observou ira alguma. E mais, parecia divertido, mas ela seguia intranquila. Sabia que lhe ia pedir explicações, não só por seu engano, mas também pelo que teria escutado em Londres. Ela tinha rejeitado todas as proposições porque desde que lhe fizeram chegar a primeira carta que escreveu seu marido, soube que nem tudo estava perdido, mas não era o momento nem o lugar para indicar-lhe.

? Bom, senhora Bennett ? disse Roger abrindo a mão para que ela pudesse afastar-se de seu lado. ? Acredito que temos vários temas pendentes, não é?

? Não sei a que se refere ? replicou andando para o corrimão de pedra. Uma vez que se apoiou nele, olhou para baixo para calcular os metros que havia se por acaso tivesse que saltar.

? Em primeiro lugar, vejo que não é a senhorita Pearson que me recebeu. Ou possivelmente, o fato de que luza uma cor diferente ao negro me deu outra imagem diferente da que lembrava ? afirmou em tom jocoso.

? Estava cansada, enojada das contínuas visitas de cavalheiros que me ofereciam matrimônio ? explicou sem olhá-lo. ? Como pode imaginar, pensei que era mais um.

? Claro... claro... e por isso sofreu um desmaio ao ler a carta. Por certo, fazendo alusão ao tema das cartas e das boas notícias, o senhor Lawford me passou a fatura de dez libras como conceito de uma garrafa de... brandy?, conforme afirmava, que você quebrou em seu escritório.

Um sorriso cobriu seu rosto. Três semanas depois de zarpar recebeu uma missiva do administrador lhe relatando a escandalosa visita de sua esposa e como esta lhe tinha quebrado um de seus melhores licores. Como resposta, Roger lhe mandou uma caixa com seis garrafas e as dez libras que reclamava. Recordou que aquele dia, justo quando tinham superado uma das piores tormentas, fez-lhe tão feliz e gargalhou tanto da atuação de sua mulher que se sentiu orgulhoso dela.

? Aquele ladrão... ? resmungou com raiva. ? Tinha que ter quebrado aquela garrafa na cabeça dele.

? Então nós teríamos que ter casado no cárcere, não crê? ? Disse antes de soltar uma enorme gargalhada.

? Isso teria sido menos escandaloso que a morte do meu irmão ? comentou com pesar.

? Bom, não nos afastemos do tema que me interessa. Por que não me disse quem era no dia que nos casamos? ? Perguntou sem parar de caminhar até que se colocou atrás dela.

Queria que esquecesse a dor que devia padecer pela perda de seu irmão e a solidão que teria sentido sem ter seu marido ao seu lado. Mas já não partiria mais. Embora não o quisesse, ele já não a deixaria sozinha.

? Tive que assimilar muitas coisas, senhor Bennett. ? Ao perceber o corpo de seu marido próximo, um estranho calafrio a fez tremer.

? Tem frio? ? Perguntou preocupado Roger. Afastou-se uns passos, tirou a jaqueta e esperou que sua mulher desse a volta para oferecer-lha. Ao não fazê-lo, ele mesmo a colocou sobre os ombros nus.

? Tem que entender... ? começou a dizer sem afastar o olhar do horizonte ? que depois da morte do Colin começaram a ver-me como uma mulher carente de recursos e uma possível candidata a contrair matrimônio com viúvos ou anciões solteiros.

Agradeceu a calidez do casaco de seu marido. Colocou as mãos nas mangas e inspirou com força. Cheirava a ele: uma mescla de colônia, essência viril e tabaco. Todo aquele tempo imaginando como cheirava e agora tinha a resposta.

? E... cada vez que alguém a visitava se fazia passar pela criada? ? Perguntou zombador.

? Não, só o fiz em uma ocasião. ? Quis virar-se para enfrentá-lo e, ao fazê-lo, aproximaram-se tanto que seus rostos estavam mais perto do que o desejado.

? Por que não me disse isso no dia das bodas? ? Roger esticou as mãos para o corrimão e a reteve com seu corpo. Inclinou-se tanto para ela, que seus pequenos seios se ajustaram ao tecido do vestido e começou a sobressair mais superfície arredondada do que o permitido.

Roger não pôde evitar olhar para eles e se lambeu pensando no momento no qual os teria em sua boca. Muito ao seu pesar subiu de novo a vista para encontrar-se com o olhar da mulher. Não estava assustada, mas sim surpreendida e, como reflexo, apertou com suavidade seus lábios. Aquele ato infantil fez com que Roger desejasse com todas as suas forças beijar aqueles voluptuosos e eróticos lábios.

? Teria mudado algo? ? Perguntou Evelyn fazendo-o despertar de seus pensamentos.

Bennett teve que fazer um esforço para recordar o que lhe tinha perguntado para poder responder.

? Se teria mudado algo? ? Sorriu maliciosamente. ? Teria mudado tudo! ? Exclamou antes que sua boca colidisse com a dela.

Evelyn ficou sem respiração. Era a primeira vez que um homem a assaltava daquela forma. Os beijos de Scott eram suaves, desajeitados e inclusive débeis, mas o beijo de seu marido era um tornado. Invadiu o interior de sua boca conquistando-a, dominando-a, possuindo-a ao seu desejo. Era tanta a paixão naquela amostra que notou como seu sangue começava a borbulhar.

? Isto, minha pequena bruxa, é só um adiantamento do que será viver ao meu lado ? murmurou Roger com grande esforço.

Tremia-lhe o corpo. Suas mãos poderiam fundir as calotas polares e seu sexo levantar a vela mais pesada de seu navio. Não havia sentido tanto desejo por ninguém em sua vida. Possivelmente a razão de tal exaltação fora seus meses de celibato ou, possivelmente, que sua esposa tinha os traços que ele considerava perfeitos para ser uma mulher excitante. Fosse como fosse, tinha vontade de mais. Muito mais.

? Isto não foi apropriado, senhor Bennett ? disse Evelyn tirando a jaqueta e oferecendo-lha com uma mão.

? Meu nome é Roger, entendido? Não voltará a me dizer senhor Bennett nunca mais ? comentou a contragosto. ? E quero a avisar que sou um homem bastante apaixonado. Não albergue a possibilidade de ter uma só noite livre. Onde a veja, onde a encontre, se quiser a possuir, a possuirei, se quiser a beijar, a beijarei. ? Aproximou-se de novo dela, agarrou-a pela cintura e falou tão perto de seus lábios que se roçavam. ? Mas calma, não serei só eu que vou obter prazer, minha querida esposa. Deixá-la-ei tão viciada em mim que não se importará que eu a busque, será você quem virá para mim.

E voltou a beijá-la.


XII


Acompanhou-a até o interior do salão. Desta vez de maneira correta: ela segurando-o pelo braço e mantendo uma distância prudencial entre os dois. Nada mais a acrescentar, todos os olhares se dirigiram para o casal. Evelyn notou como lhe ardiam as bochechas. Nunca havia sentido tanta vergonha, nem sequer quando anunciaram a ruptura de seu compromisso com Scott. Tentou abaixar a cabeça para ocultar seu rubor, mas voltou a sentir o calor do fôlego de seu marido na orelha.

? Esqueci-me de dizer que é linda, ? sussurrou ? e que me sinto muito afortunado ao provocar certa inveja entre os cavalheiros assistentes desta festa.

Quis lhe replicar, repreender-lhe por lhe dizer aquele tipo de coisa, mas não o fez. Talvez porque ninguém a tinha agradado com palavras de adulação. Sempre tinha sido a pobre Evelyn. A primeira em expressá-lo foi sua mãe no dia que a descobriu chorando amargamente em seu quarto ao descobrir aquilo que desejava ocultar de todo mundo, mas que a natureza não lhe deixaria esconder.

Com passo inalterável e sem deixar de mostrar certa arrogância, seu marido a conduziu para o grupo de mulheres. Estas, ao vê-lo, voltaram a pestanejar como se fossem abandonar seus acompanhantes. Não havia dúvida, seu marido era um homem bonito e muito sedutor.

? Espero que não tenha reservado todas as suas danças, minha pequena bruxa. Enlouqueceria se esta noite não pudesse dançar contigo ? murmurou de novo em sua orelha.

? Não tenha esperanças, Roger ? disse seu nome de batismo com reticência. ? Se não me engano, tenho todas as peças ocupadas.

? Então, mon chérie, terei que arregaçar as mangas e brigar com algum dos meus oponentes ? comentou sorrindo meio de lado.

? Não se atreverá? ? Virou-se para ele e o olhou assombrada. Evelyn contemplou pela primeira vez naquelas pupilas uma intensa cor vermelha. Ficou observando-o sem poder pestanejar. Seria capaz de realizar tal maldade? O endurecimento da mandíbula e aquele olhar intenso lhe indicaram que falava com total seriedade. Com efeito, considerava-a sua propriedade, mas... isso era suficiente para começar um matrimônio?

? Como já disse antes, o que é meu não se toca ? sentenciou aproximando imprudentemente seus lábios dos dela.

Esteve a ponto de beijá-la diante de todo mundo, mas considerou melhor. Apesar do imenso desejo que sentia por apanhá-la de novo entre seus braços e saborear os lábios de sua esposa, conteve-se. A contragosto elevou o rosto para apreciar como as damas que se encontravam atrás de sua mulher não deixavam de sorrir com a paquera. Nenhuma delas chamou sua atenção salvo quem o tinha deixado sem palavras: Evelyn. Era, para ele, a única em quem poderia pensar nesse momento.

Perdido por seu comportamento, recordou as palavras que William lhe disse após casar-se com Beatrice. Zombou de seu amigo em várias ocasiões e lhe tinha dito, de maneira categórica, que ele jamais possuiria esse tipo de ideias absurdas por uma mulher. Que homem razoável precisava demonstrar que uma mulher lhe pertencia? E por que aparecia aquele tolo instinto de protegê-la até tal ponto de ansiar a morte da pessoa que lhe produzira dano ou a ferisse? Entretanto, seus pensamentos, por mais que tentasse fazê-los desaparecer, eram exatamente aqueles pelos quais zombou. Mas... como podia meditar sobre coisas tão importantes depois de um par de beijos? Era certo que tinha causado nele um grande impacto. Não só no dia em que ela se fez passar por donzela, motivo principal pelo qual decidiu afastar-se, mas também ao vê-la aparecer na sala vestida de vermelho, deixando que seu cabelo de fogo brilhasse como uma lua cheia abrasada pelo sol.

Tinha que refletir muito sobre o que lhe estava acontecendo e a melhor forma era apanhando uma garrafa de uísque. Antes de afastar-se e encher seu estômago do ansiado licor, inclinou levemente a cabeça para despedir-se daquelas que não cessavam de cochichar e, sem mediar palavra com sua esposa, dirigiu-se para o grupo de cavalheiros. Albergava a esperança de que as incoerentes reuniões masculinas o abstraíssem de suas inapropriadas divagações.

Evelyn não podia respirar. O espartilho a apertava tanto que não entrava ar em seus pulmões. Por uns instantes acreditou que ia beijá-la diante de todos os presentes. Isso teria sido um escândalo terrível. Ninguém beija sua esposa em público!! Ansiosa e desesperada procurou com o olhar Beatrice e quando a achou sentada ao lado de uma de suas convidadas, dirigiu-se para ela.

? Se me desculpar ? disse a duquesa à anciã ao mesmo tempo que se levantava.

? É claro! Tem mais convidados aos quais atender ? respondeu a mulher cravando seus olhos em Evelyn.

Beatrice não quis perguntar à moça o que tinha acontecido, pela expressão de seu rosto intuía que nada bom. Antes que todos os olhares se centrassem na senhora Bennett e murmurassem sobre o ocorrido depois do desaparecimento do casal, estendeu sua mão para ela, segurou-a com força e a afastou do salão. Se desejava falar do acontecido, o melhor lugar para permanecerem tranquilas e fora do alcance de terceiros ouvidos era a cozinha. Além disso, confiava em que Hanna pudesse ajudá-la se ela não fosse capaz de consolá-la.

Caminhando para o lugar eleito, rezava para que Roger não a tivesse tratado com desprezo e que em suas palavras mostrasse compreensão pelo engano. Pelo tremor da mão de Evelyn, muito temia que não tivesse atuado com muita cortesia.

? Senhoras?! ? Exclamou a senhora Stone depois de dar um salto ao escutar uma portada em sua cozinha.

? Hanna, por favor, pode nos servir um chá? ? Perguntou Beatrice à cozinheira ao mesmo tempo que se virava para Evelyn e lhe dava o abraço que tanto parecia necessitar.

? Servir-lhes-ei chá de tília, se lhes parecer bem. ? Sem esperar o assentimento da duquesa, a anciã começou a esquentar água e a procurar nos armários os raminhos de tília.

? Isto é um pesadelo ? sussurrava a senhora Bennett quando Beatrice deixou de abraçá-la. ? Nunca passei tanto...

? O que lhe fez? O que lhe disse? ? Interrompeu a duquesa aterrorizada. ? Zangou-se muito ao descobrir seu engano? Rejeitou-a? Foi mordaz? Evelyn!! ? Gritou-lhe ao ver que ela não reagia.

? OH, meu Deus! Tem piedade de sua serva! ? Exclamou fechando os olhos.

Beatrice e Hanna se olharam sem saber o que dizer. Então a duquesa, tentando manter a serenidade, afastou uma cadeira e fez com que se sentasse. Ela se colocou ao seu lado, estendendo suas mãos para as de Evelyn que não deixavam de tremer.

? Conte-me por favor, Roger estava muito zangado? ? Perguntou usando um tom muito mais relaxado.

? Não se zangou ? começou a falar abaixando a cabeça. ? Sinceramente, acredito que gostou mais da ideia de casar-se comigo que com minha donzela.

? Então, a que se deve seu desassossego? Deveria se sentir feliz. Muitos maridos rejeitariam suas mulheres por lhes haver mentido ao mal conhecê-los.

? Minha inquietação, Beatrice, deve-se a outra coisa. Jamais imaginei que me casaria com um homem assim! ? Voltou a elevar a voz.

? Sei que Roger é um homem especial ? começou a explicar a senhora Rutland. ? Possui um temperamento rude, embora todo mundo saiba que, no fundo, é um doce. Conforme me contou meu marido, sofreu muito durante sua vida. Posso te dizer que uma dessas dores se deve à opinião que seus pais têm dele. Não o aceitam como futuro marquês e isso lhe tem quebrado o coração.

? Entendo a razão pelas quais os atuais marqueses não o consideram apropriado... ? disse apertando os dentes com cada palavra.

? Pelo amor de Deus! O que te fez? ? Inquiriu a duquesa alterada sem deixar de apertar as mãos.

? Beijou-me! Duas vezes! Mas não lhe bastou fazer isso, mas sim me advertiu que me renderei ao prazer sexual que me vai oferecer todas as noites ? exclamou a mulher com horror.

? Isso é o que tanto te escandaliza? Isso é o que te inquieta? ? Disse entre risadas. Afastou suas mãos das dela e as cruzou diante de seu peito. ? Não deveria se lamentar por isso. Se eu te contasse como é meu marido na cama...

? Beatrice! ? Clamou Evelyn aterrorizada.

? Deve compreender que, por sorte para nós, casamo-nos com uns homens muito especiais e devemos padecer as consequências destes matrimônios. Embora te possas assegurar que para mim não é nenhum castigo. ? Sorriu.

? Pois não sucumbirei aos seus encantos! ? Afirmou com força. ? Sou uma mulher decente e atuarei como me corresponde. Acaso pensa que sou uma libertina como ele?

? Se não o fizer você, farão outras mulheres. Seguramente há muitas naquele salão que gostariam de estar em seu lugar ? interrompeu Hanna a conversação. Colocou as xícaras sobre a mesa e verteu a água fumegante nelas.

? A senhora Stone tem razão. Não lamente a sorte que vai ter. Pensa que o fracasso de muitos matrimônios que conhecemos se deve a que não existe cumplicidade entre ambos. Não terá que aparentar sentir amor pela pessoa que tem ao seu lado, mas também o ter. Um marido ou uma esposa procura fora de seu lar o que dentro não acha ? repôs a duquesa ao mesmo tempo em que se aproximava da mesa para tomar o chá.

? Mas ele não me ama para me insinuar tais aberrações ? sussurrou Evelyn. ? Acabamos de nos conhecer e, por experiência, sei que é impossível que nasça um amor tão rápido.

? Se me permitem participar da reunião... ? comentou a cozinheira sentando-se em frente à senhora Bennett ? posso fazer uma reflexão sobre este tema.

? Não precisa pedir permissão, Hanna. Sabe muito bem que é um membro a mais da família ? expôs Beatrice desenhando um grande sorriso em seu rosto.

? No amor não há lógicas ? afirmou a anciã sem afastar o olhar da desconsolada mulher. ? De fato, recentemente debati com meu marido sobre esse tema. Só existem sentimentos. Imagino que você se sentirá morta de vergonha pelo desejo que seu marido lhe insinuou, embora lhe advirto que é assim como começa um bom matrimônio. Se não houver certa luxúria entre ambos, se não houver interesse, não há nada. Deveria sentir-se feliz ao saber que despertou essa paixão em seu marido. Em muitas ocasiões só as amantes o conseguem.

? Não deixarei que me trate como se fosse uma concubina ? falou com firmeza Evelyn. ? Sou uma senhora e lhes repito que me comportarei como tal.

? Não acredito que ele te considere uma amante ? interveio Beatrice. ? Recorda que estão casados. Suponho que ao princípio lhes custará assumi-lo, mas depois será melhor. Ele te abrirá seu coração e você poderá fazer o mesmo.

Depois das palavras da senhora Rutland, as três olharam as xícaras de chá e se mantiveram em silêncio. As três cabeças não cessavam de meditar sobre como continuar a reunião. Hanna estava a ponto de falar quando observou que Evelyn elevava seu rosto para elas, seus olhos verdes brilhavam além do normal devido ao acúmulo de lágrimas que ameaçavam transbordar. A cozinheira deixou com cuidado sua xícara sobre a mesa e cruzou as mãos, esperando que a jovem confessasse aquilo que escondia e lhe produzia tanto dor.

? Faz tempo... ? começou a dizer a senhora Bennett depois de fazer desaparecer o nó de sua garganta ? quando o entusiasmo da juventude se apoderou de mim, acreditei nisso que defendem com tanta veemência. Ofereci meus sentimentos de maneira incondicional a uma pessoa que me falava de amor, paixão e de um futuro maravilhoso. Entretanto, se por acaso não sabem, essa relação terminou me provocando a maior humilhação de minha vida. Não posso voltar a sentir essa dor, essa vergonha. Desta vez não conseguiria superá-la.

? Mas nesta ocasião as coisas são diferentes ? a interrompeu Beatrice colocando de novo suas mãos sobre as dela. ? Agora está casada e estou segura de que Roger jamais te fará mal. Confia em mim. Terminará amando-o.

? Todos os homens são...

Evelyn não conseguiu terminar a frase, os olhares das mulheres se dirigiam para a porta e, devagar, virou-se. Pelo assombro que mostravam tinha imaginado que era seu marido a pessoa que as interrompia, embora se surpreendesse ao ver que se tratava do duque de Rutland o que caminhava para elas. De repente, outra figura apareceu das sombras do corredor, ficou apoiada sobre o marco da porta, com os braços cruzados no peito e cravando seus olhos azuis nela.

O coração de Evelyn deu um tombo ao contemplar um ser tão seguro de si mesmo, tão dominante, tão espantosamente atraente. Não parecia zangado por sua ausência, mas bem divertido posto que não deixava de sorrir. Pensou no que lhe havia dito a cozinheira e concluiu que tinha razão. Sem lugar a dúvidas muitas das damas do salão estariam desejosas por cair em seus braços. Era um homem misterioso e ao mesmo tempo sedutor. Entretanto, ela não podia tropeçar novamente na armadilha do amor. Não podia voltar a sofrer a agonia da destruição. Não lhe importava que estivesse casada com ele. Quem lhe poderia jurar que, depois de possui-la como lhe tinha insinuado, não voltaria a dormir com alguma de suas amantes?

? Senhoras... ? saudou o duque com uma pequena inclinação. ? Andava procurando-as.

? Necessitávamos de um pouco de paz ? indicou Beatrice. Levantou-se de seu assento e aceitou com agrado o braço que seu marido lhe oferecia.

? Senti sua falta ? murmurou William à sua esposa.

? Depois me demonstrará o quanto ? respondeu lhe dando um beijo na bochecha.

? Se me desculparem, ? disse Hanna levantando-se da cadeira e fazendo uma leve reverência ao senhor ? tenho mil coisas a fazer.

A única que não se moveu foi Evelyn. Estava tão nervosa que lhe resultava impossível fazer uma tarefa tão singela.

? Minha pequena bruxa, ? comentou Roger de sua posição ? deve-me uma dança.

? Como já lhe disse ? começou a dizer enquanto afastava o olhar do homem e o fixava sobre a superfície da mesa. ? Minhas danças estão reservadas e eu não gostaria de desapontar a todos esses bondosos cavalheiros que decidiram me pedir uma peça.

Com passo firme, Bennett abandonou seu lugar para colocar-se ao lado dela. Sem apagar o sorriso estendeu o braço para que Evelyn pudesse apoiar-se nele. Ao apreciar que ela não o aceitava, abaixou lentamente a cabeça para o ouvido feminino e lhe sussurrou:

? Tem duas opções: elevo-te sobre meus ombros e te levo ao nosso quarto para te fazer amor até que chegue o amanhecer ou dançamos no salão. Você decide.


XIII


Embora imaginasse que escolheria a segunda opção, não lhe importou muito. Na realidade tinham muito tempo por diante para poder desfrutar daqueles prazeres que tanto ansiava. Olhou-a de esguelha e se sentiu ditoso ao tê-la ao seu lado. Durante a viagem tinha refletido bastante sobre o aterrorizante golpe que lhe tinha outorgado a vida, ele, um homem nascido para desfrutar do sem-fim de prazeres que havia no mundo, um ser livre para fazer o que desejasse muito sem ter que dar explicações, encontrou-se da noite para o dia obrigado a casar-se com uma mulher que não conhecia, mais velha que ele e que fisicamente se afastava bastante do que algum dia esperava encontrar em uma esposa. Nessas divagações chegou a definir-se como um anjo a quem tinham cortado as asas sem piedade. Tanto assumiu seu deplorável futuro que, apesar de ter saudades de quem considerava sua família, decidiu manter-se afastado até que William o convocasse. Enquanto retornava, consolado e abraçado tão só pela brisa marinha, conscientizou-se de seu novo estado e aceitou sua desdita. Em troca, ao retornar o que encontrou? A uma bruxa. Uma bruxa mentirosa que o tinha enganado sem imaginar o pesar que tinha sofrido por sua mentira. Para seu deleite, aquela feiticeira, aquela sedutora mulher, era a mais formosa que já tinha contemplado, uma deusa de cabelo vermelho que desprendia uma aura tão embelezadora que conforme parecia, nem ela mesma era consciente do erotismo que emanava.

Roger não pôde, nem quis deixar de alargar seu peito ao observar o rosto de inveja que mostravam os cavalheiros. Ali onde tinha acreditado que veria zombarias e brincadeiras só encontrou expressões de raiva. É óbvio que agora entendia as incontáveis e inapropriadas insinuações para sua esposa. Certamente, se não tivesse estado casado com ela, teria sido o primeiro dessa longa fila. De repente o terror se apoderou dele ao imaginar que, finalmente, ela tivesse aceitado alguma proposição. Foi tão grande seu padecer que notou uma dor semelhante à produzida por uma adaga lhe atravessando o tórax. Teria merecido por abandoná-la. Se Evelyn tivesse aceitado alguma das propostas não lhe teria podido reprovar nada posto que ele mesmo seria o culpado de provocar a dolorosa infidelidade.

Sem piedade, por egoísmo também, tinha-a deixado sozinha no pior momento de sua vida. Mas tinha voltado para casa e estava disposto a recompensá-la por tantos dias de abandono. Não sabia quanto tempo demoraria em obtê-lo ou como o conseguiria, mas o faria. Possivelmente, dessa forma, ele também acharia a paz de que tanto tinha tido saudades no passado.

De repente, uma leve pressão em seu braço o fez despertar de suas divagações. Evelyn necessitava de seu apoio, não só mediante a força que lhe oferecia sua extremidade, mas também emocional. Quis lhe sussurrar algumas palavras para sossegar aquela inquietação, embora muito temesse que lhe provocasse o efeito contrário. Além disso, o que poderia lhe dizer? Que não tivesse medo porque ele cuidaria dela? Que enquanto estivesse ao seu lado ninguém se atreveria a lhe fazer mal? Não era o homem idôneo para consolar uma mulher, salvo se precisasse ser satisfeita na cama. Ele não era romântico, mas sim prático. No transcurso de sua vida o tinham feito seguir essas mesmas diretrizes e lhe tinha ido bastante bem.

Nenhuma das mulheres que se deixou seduzir procurou alguma estabilidade, possivelmente porque sabiam que ele jamais a proporcionaria. Além disso... o que era o amor? Acaso não se fundamentava em uma atração sexual? Em uma constante agonia por se deitar junto a uma pessoa? Para ele, sim. Entretanto, muito temia que Evelyn não fosse como ele nem como as mulheres com as quais se deitou. Soube no mesmo momento no qual a olhou aos olhos e se aventurou a beijá-la. Ela não se mostrou submissa e sim receosa ante suas carícias e insinuações. Suas amantes, às quais não podia pôr um rosto ou um nome, teriam se derretido em seus braços e procurado qualquer lugar oculto de olhares para serem amadas com descaramento. Mas ela não era assim. Ao ficarem a sós sentiu medo e insegurança. Seu corpo nunca deixou de tremer apesar de lhe haver oferecido sua jaqueta. Possivelmente, em vez de avassalá-la e lhe ditar como devia comportar-se ao ser sua esposa, devia averiguar a razão pela qual o rejeitava e muito temia que a resposta a encontraria no passado. E, é óbvio, assim que tivesse a mínima oportunidade, rebuscaria por céu e terra para conhecer o que lhe aconteceu e por que não era capaz de deixar-se levar pela paixão.

? Uma valsa... ? sussurrou a mulher ao escutar os primeiros acordes da melodia que foram dançar.

? Você não gosta? ? Perguntou Bennett enquanto a colocava entre outros assistentes, esticava sua mão para a pequena cintura e exibia um grande sorriso.

? Não é uma das minhas danças preferidas ? disse muito segura de si mesma.

? Isso, petite sorcière3, é porque não dançou com o homem adequado ? afirmou com tanta seriedade que Evelyn acreditou havê-lo ferido com seu inofensivo comentário. Mas justo depois, como sempre de maneira descarada, abaixou a cabeça e deixou que sua boca se aproximasse de seu lóbulo mais do que o permitido para lhe sussurrar: ? Posso te assegurar que quando terminar de dançar esta peça, não desejará dançar outra valsa com ninguém salvo comigo.

? É um presunçoso ? falou apertando os dentes. O rosto, coberto de inumeráveis sardas, ruborizou-se de novo. Seu peito subia e baixava agitado. Evelyn podia sentir como a debilidade voltava a lhe fazer fraquejar as pernas.

? Presunçoso? ? Roger sorriu divertido. ? Eu me defino mais como um homem bastante perverso.

? Perverso? ? A mulher abriu tanto os olhos que Roger admirou o esplendor dos mesmos.

? Oui, perverso. Sou tão malvado que neste momento, enquanto outros cavalheiros colocam sua sola no chão e se posicionam para começar a dança, minha mente não é capaz de pensar em outra coisa que não seja te desfrutar. ? Voltou a abaixar a cabeça para lhe murmurar em voz baixa. ? Desta inadequada proximidade, posso cheirar essa deliciosa fragrância a lilás que desprende e, graças à minha altura, seu decote me permite observar muito mais que o nascimento de seus seios.

Evelyn esteve a ponto de desmaiar. E estava segura de que se Roger não a tivesse segurado com tanta força, teria caído ao chão. O descaramento de seu marido a perturbava mais do que ele imaginava. Não chegava a compreender a razão de tal comportamento para com ela. Possivelmente o propósito dessa desfaçatez era assustá-la para que fugisse de seu lado, para que o deixasse viver em paz. Se esse era o verdadeiro motivo estava conseguindo, posto que ela desejava partir de Haddon Hall inclusive antes que amanhecesse.

De repente notou uma suave calidez em suas costas. Levantou de novo o rosto e observou o de seu marido. Seus traços se endureceram. Não havia brincadeira nem zombaria neles e inclusive advertiu que entrecerrava seus olhos como se tentasse averiguar seus pensamentos. A música começou a soar com mais força. Aproximava-se o tempo das voltas. Evelyn observou como Roger se distanciava do convencionado, elevava sua mão para a dela e a fazia girar sobre si mesma, uma, duas e três voltas deram até retornar à posição inicial colocando as mãos em seu lugar: umas entrelaçadas com tanta firmeza que não eram capazes de soltar-se e as outras apoiadas em ambos os corpos. A de Roger era tão grande que ao esticar seus dedos, ocupava todo o decote que oferecia o vestido nas costas e ela só conseguia pousar a sua sobre seu ombro.

A mulher conteve a respiração em várias ocasiões ao notar um pequeno e suave movimento dos dedos masculinos. Acariciava-a com muita sutileza. Talvez para despertá-la da letargia a que se induziu ao descobrir que, tal como lhe tinha indicado, dançar com ele uma valsa seria inesquecível. Não só seus movimentos eram perfeitos, ou a retidão de seu corpo, mas sim exibia em cada passo a dominação, a serenidade e o absolutismo que desprendia a figura masculina. Os vaivéns compassados e metódicos a conduziram, sem ela pretendê-lo, a um animado estado de êxtase. Seu peito, agitado pela dança, roçava o de seu marido. Cada toque, cada leve impacto, Evelyn o vivia com o mesmo temor como se permanecesse perto de um vulcão a ponto de despertar. «Outro giro mais e terminarei esta agonia...», meditou exausta.

Para fazer mais suportáveis os últimos momentos, tentou fechar os olhos, mas Roger impediu que o fizesse após lhe soprar com suavidade. Queria que continuasse observando-o, que o admirasse e percebesse o que acontecia ao seu redor.

E o conseguiu.

Evelyn olhou aos casais que dançavam próximos e compreendeu quão diferente eram eles. Ali onde as mulheres eram incapazes de tocar com seus vestidos os casacos dos acompanhantes, seu corpete se ajustava com perfeição ao espaço que lhe oferecia o colete. Lá onde as mãos femininas se esticavam e elevavam o suficiente para que não conseguissem tocar-se, a sua, embora enluvada, ardia pela pressão que exercia seu marido. Onde as demais eram incapazes de inspirar o aroma da pessoa com a qual dançava, ela podia cheirar cada partícula emanada do corpo de Roger, embebedando-a daquela impregnação viril até o ponto de não ser capaz de deixar de respirá-la. Não soube que tinha terminado a música até que escutou uma pequena risada próxima ao seu ouvido.

? Avisei-te que depois de dançar comigo, nada seria igual ? disse jocoso e orgulhoso de haver mostrado a Evelyn a veracidade de suas palavras.

? Uma frase feita? ? Perguntou zangada e tentando não mostrar sua perturbação.

? Por que diz isso? ? Respondeu abandonando aquela zombaria que exibia em seu rosto.

? Porque muito me temo, mon chèrie, ? expôs reticente ? que essas palavras dirá a todas. Agora, se me desculpar, tenho outras danças que desfrutar.

Segurou o vestido com ambas as mãos, fez uma pequena genuflexão e o abandonou em meio à pista de dança.

Embora seu coração se sacudisse com uns espantosos e imensos batimentos do coração que se estendiam por todo seu corpo, Evelyn caminhou para o grupo de mulheres que se encontrava na parte direita da sala com uma aparente tranquilidade. Não podia exibir a ansiedade que lhe provocou a dança, nem tampouco demonstrar que, sem dúvida alguma, nenhum dos seguintes bailarinos a atordoariam tanto como o tinha feito Roger.

Era um homem muito sedutor, enigmático e, é óbvio, encantador. Entretanto, ela não podia voltar a enfeitiçar-se com aspectos tão banais. Prova disso era o desastroso final com Scott. Ele também falava com sutileza, com fascinação até que descobriu que estava grávida e que seu pai não podia lhe oferecer o dote que tinha prometido. Então começou o amargo processo do desamor, da destruição, da dor por tudo aquilo que lhe tinha prometido e que não cumprira. Era certo, como lhe tinha indicado Beatrice, que nesta ocasião as coisas eram diferentes, mas ela não se convencia. O que aconteceria quando conseguisse seu propósito? Abandoná-la-ia de novo? Voltaria para seus antigos vícios? Não poderia suportá-lo. Embora ela não o amasse, seria incapaz de viver de novo outra humilhação.

? Deseja uma taça, senhora? ? A pergunta de um criado que levava sobre suas mãos uma bandeja com taças de champanha despertou-a de seus pensamentos.

? Obrigada ? respondeu ao mesmo tempo em que esticava a mão para alcançar uma. Bebeu-a de um sorvo e, antes que o criado se afastasse, pegou outra. Não estava sedenta, mas sim morta de medo e esperava que o licor acalmasse aquela sufocação.

? Minha querida senhora Bennett ? escutou uma voz masculina dizer. ? Permitirá a seguinte dança ou seu marido a raptará como a vez anterior?

? Não acredito que volte a ser tão descortês ? afirmou sorridente. ? E estarei encantada de lhe brindar com a seguinte peça.

O cavalheiro estendeu seu braço para que Evelyn se segurasse, depois que ela colocou sua mão conduziu-a para o centro do salão.


O que estava vivendo era inaudito. Sua esposa o tinha abandonado diante de todo mundo como se fosse um ser desprezível. Por um momento, só durante uns segundos, quis correr atrás dela, pegá-la pelo braço, virá-la para ele e beijá-la com tanta paixão que inclusive os convidados ficassem sem fôlego. Talvez dessa forma não voltasse a rejeitá-lo em público. Ele, um homem que debilitava as mulheres, um homem que escutava suspiros de desejo atrás de sua passagem, era repudiado pela única mulher que não devia fazê-lo porque, gostasse ou não, estavam casados. Zangado e com o orgulho ferido, decidiu retornar ao grupo de cavalheiros que pareciam divertir-se com o acontecido.

? Uma boa dança... ? comentou William em tom jocoso.

? Tive melhores ? repôs com frieza.

? Uma taça, milorde? ? Perguntou-lhe um criado.

? Traga-me uma garrafa do melhor brandy que o duque tiver na adega ? ordenou mal-humorado.

O criado, confuso, olhou ao duque e, depois de ver o movimento afirmativo de sua cabeça, afastou-se do salão para fazer chegar ao cavalheiro àquilo que tinha pedido.

? É uma mulher indomável... ? murmurou Roger a contragosto. ? Jamais em minha vida vi um ser tão esquivo e tenaz.

? Discordo de sua afirmação, meu amigo. Evelyn é encantadora e Beatrice está entusiasmada de poder contar com sua amizade.

? Encantadora? ? Grunhiu Bennett ao mesmo tempo em que franzia o cenho. ? Parece-lhe correto seu comportamento? ? Continuou com aborrecimento. ? Nunca vi um desprezo semelhante de uma esposa para com seu cônjuge.

? Pergunto-me... o que o terá provocado? ? Assinalou William entrecerrando seus olhos e sem afastar seu olhar de Roger.

? Só tive boas palavras, se por acaso está insinuando que o culpado de sua inapropriada atitude fui eu ? replicou com voz firme e pausada.

? Pois então não entendo o acontecido porque se der a volta e a observa, apreciará que não apaga o sorriso.

Roger deu a volta imediatamente e ficou tão pétreo que foi incapaz de respirar. Ali estava sua esposa, em meio ao salão dançando e sorrindo com paquera ao seu acompanhante. De repente suas mãos se fecharam com força convertendo-as em dois duros blocos de aço e uma estranha sensação de queimação lhe percorreu o corpo.

? Não acertou com sua conversação ? sussurrou Rutland divertido ao ver que, pela primeira vez, os ciúmes apagavam o malicioso sorriso que sempre exibia. ? Em troca, o senhor Battelow, viúvo há pouco mais de dois anos, soube encontrar o que a faz...

? Não continue por esse caminho... ? resmungou Roger apertando com tanta força os dentes que estiveram a ponto de partir-se. ? Ela é minha.

? É óbvio! Quem insinuou o contrário? Só quis demonstrar que, apesar de estar curtido no âmbito da sedução, nem sempre pode conseguir o que deseja ? continuou expondo William sem abandonar seu tom zombador.

? Tanto faz com quem baile esta noite ou a quem dê de presente seus sorrisos coquetes. Ela dormirá com um só homem, ? começou a dizer ao mesmo tempo em que se virava para seu amigo e enrugava a testa com fúria ? e esse serei eu.


XIV


Por fim a tortura tinha acabado e se encontrava a salvo no interior de seu quarto. Evelyn, inquieta pelo acontecido, não podia deixar de mover-se por todo o quarto, acreditando que se permanecesse parada pouco mais de dois segundos terminaria por cair ao chão. Continuava alterada, morta de calor, envergonhada e, sobretudo zangada. Casou-se com um ser depravado, um homem que não sabia o que significava a palavra decoro, e não estava disposta que a tratasse sem respeito diante de todo mundo. Como vingança à sua humilhação, decidiu ser mais amável do que estava acostumada a ser com os cavalheiros que a rondavam. Não só simulou que prestava atenção em suas conversações, mas sim também lhes sorria ao dançar com eles. Entretanto, enquanto levava a cabo sua façanha, percebeu que seu marido não podia afastar seus olhos dela, às vezes franzia o cenho, outra lhe sorria com malícia e em contadas ocasiões se virava para não vê-la.

Não tinha levado a bom término seu plano, queria lhe provocar tal aborrecimento que partisse da festa, mas teve que contentar-se com as poucas expressões de apatia que mostrou. Observou, um tanto preocupada, que entre suas mãos segurava uma garrafa de licor. Não bebeu como os outros, com prudência e nas taças de cristal, mas sim adotou a atitude do pirata que aparentava ser. É óbvio, as apropriadas interrupções de Beatrice a salvaram de um ou outro cavalheiro impertinente que entendeu como quis seus atos de cordialidade. De fato, a duquesa pôs em seu lugar a um dos que insistia em aproximar-se dela mais do que o devido.

Em outro momento, em outro lugar, não teria necessitado da ajuda de ninguém. Ela mesma, com alguma de suas socorridas frases, teria deixado bem claro que sua cortesia não indicava nada salvo aquilo mesmo, mas não pensava com claridade. A ingestão de álcool e o desmaio que sofreu ao descobrir a besta com quem devia viver o resto de sua vida, fizeram-na perder sua apreciada sensatez.

Assustada por todo o acontecido, olhou ao seu redor e tentou calcular o tempo que levaria Wanda para preparar a bagagem. «Mais do que anseio ? terminou dizendo-se enquanto se sentava sobre a cama com inapetência. ? É impossível que possa partir antes do amanhecer», concluiu.

Decepcionada e cansada, abriu os braços e se deixou cair sobre a cama. Quis fechar os olhos para descansar um pouco até que chegasse sua donzela, mas quando o fez, tudo começou a dar voltas e terminou por notar certas sacudidas procedentes de seu estômago. Com rapidez elevou-se do leito, mas foi pior. As náuseas aumentaram assim como os enjoos. Decidiu ajoelhar-se sobre o chão e esperar que todo aquele mal-estar desaparecesse. Apesar de seu intento por controlar os vômitos, terminou expulsando o que continha em seu interior.

? Minha senhora! ? Exclamou Wanda ao entrar no dormitório. ? O que lhe acontece? ? A donzela não esperou uma resposta, possivelmente porque não a obteria. Correu para Evelyn e lhe elevou o queixo para que deixasse de sujar o vestido novo.

? Morro... ? murmurou quando deixou de vomitar. ? Meu fim está chegando...

? Acredito que ingeriu mais champanha do que o habitual, isso sim ? comentou a criada tentando não mostrar a diversão que lhe ocasionava o que viam seus olhos.

? Ele é o culpado! Ele me conduziu a esta tortura! ? Exclamou ao mesmo tempo em que retirava com suas mãos as lágrimas que brotavam de seus olhos.

? Apoie-se em mim. Incorporá-la-ei e a despirei ? disse Wanda enquanto a pegava com força por um braço. ? Sem lugar a dúvidas, minha senhora, um bom banho aliviará esse estado de mal-estar e de fedor.

? Odeio-o! Odeio tudo o que procede daquela besta! ? Seguia gritando.

? Muito bem... se você o odiar, eu também o odiarei, mas por favor, incorpore-se.

? Não lhe bastou me avassalar na intimidade, mas sim também o fez diante de todos os presentes ? continuou falando entre balbuceios.

Com grande esforço Wanda conseguiu levantá-la e colocá-la o mais reto possível para conseguir lhe desabotoar o vestido.

? Casei-me com um descarado, obtuso e incorrigível! Meu Deus, sua serva foi tão má que condena minha vida com um homem pré-histórico? ? Exalou com pesar.

? Ninguém é perfeito... ? indicou a donzela sem pensar.

? Perfeito?! ? Gritou antes de dar a volta e perder de novo o equilíbrio.

? Minha senhora, por favor, não se mova ? suplicou depois de evitar que caísse ao chão.

? Aquele homem se afasta muito da perfeição. É um descarado, um indecente, um filho de satanás...

Wanda evitou continuar com a conversação porque a alterava cada vez mais. Com mãos ágeis foi desabotoando os botões até que o vestido terminou no chão. Enquanto trabalhava em conseguir seu propósito antes que Evelyn voltasse a alterar-se, meditava sobre se tinha vivido uma situação parecida durante seus anos ao serviço da atual senhora Bennett. «Nunca ? concluiu para si. ? Sempre foi uma moça muito sensata salvo quando se apaixonou por aquele descarado». Mas naquela ocasião, apesar do sofrimento que padeceu, nunca bebeu como o tinha feito essa noite. E mais, jamais a tinha visto tomar mais de uma taça e só nos casos nos quais lhe estava permitido: durante um jantar ou em uma celebração. Por isso, o fato de que estivesse ébria, tinha-a não só assombrado, mas também confundido.

? Continue apoiando-se em mim. Conduzi-la-ei até o banho e esperará que lhe encha a tina de água. Com certeza depois verá as coisas de outra maneira ? disse com voz aprazível.

? Ai, Wanda! Que desventurada sou! Não tive suficiente com o vivido no passado que, para continuar minha desgraça, o destino segue me jogando brincadeiras pesadas. Aquele homem... aquele... aquele... animal que meu irmão decidiu converter em meu marido não é bom.

? Não deveria julgar com tanta rapidez as pessoas. Possivelmente seu inapropriado comportamento seja devido a que está irritado. Recorde que partiu de Londres pensando que se casou comigo e não com você ? esclareceu em voz baixa. Com grande esforço levou-a até o banho. Justo na mesma entrada, com o corpo bambo de sua senhora sobre a metade do dela, Wanda olhou com rapidez ao seu redor procurando um assento onde colocar a mulher. Depois de achá-lo sentou-a com cuidado, separou-lhe do rosto as mechas que tinham escapado do coque e lhe beijou a testa. ? Me espere aqui, não demorarei.

Evelyn assentiu com suavidade. Não queria mover mais do que o devido a cabeça porque já começava a lhe doer. O suave golpe da porta ao fechar fez que dirigisse suas palmas para a testa e a apertasse com força. Tudo continuava dando voltas e, por mais que sua donzela tivesse pensado que a tinha colocado em um lugar seguro, não o sentia assim. Seu corpo se balançava sem ela desejá-lo e a pequena habitação girava ao seu redor cada vez mais depressa. Finalmente terminou estendida no chão, em posição fetal e murmurando frases mal audíveis.

Não soube que sua donzela tinha entrado e saído do banho até que despertou.

? Continue apoiando-se em mim ? disse-lhe em voz baixa. ? Muito bem, assim está melhor. Colocamos um pé, agora o outro e... O calor da água a reconforta? ? Enquanto Evelyn jogava as costas para trás, a donzela lhe tirou as forquilhas, deixando livre a avermelhada juba. ? Pode apoiar a cabeça nestas toalhas que encontrei. Servirão de almofadão.

? Obrigada... ? sussurrou. ? Não sei o que faria sem ti.

? Pois imagino que seguiria atirada no chão como uma mulher de má vida, vomitando e desamparada ? respondeu com certa diversão. ? Bom, encontra-se melhor para poder me contar o que tanto a perturbou?

? Foi ele ? disse com firmeza. Tentou virar-se para poder responder olhando-a aos olhos, mas Wanda o impediu. ? Nunca imaginei que os rumores sobre seu comportamento fossem certos. Alberguei a possibilidade de que as pessoas exageravam para que eu sentisse temor, mas diziam a verdade.

? O que ele lhe fez? ? Quis saber. Enquanto lhe respondia, pegou a peça de sabão e foi espalhando pelo cabelo.

? Quando apareceu, e depois de falar com o duque a sós, aproximou-se até onde me encontrava. Evitando de forma descarada minha presença saudou primeiro a quem o olhava e se ruborizava.

? Já lhe disse que era um homem muito bonito ? repôs ao mesmo tempo em que esfregava com supremo cuidado o cabelo.

? E não mentiu. Prova de sua verdade foi a desmesurada paralisação que causou ao aparecer. As jovens casadouras moviam as pestanas como se quisessem provocar um furacão na sala e as que, por sorte, contraíram matrimônio com um homem honrado, não deixavam de cochichar.

? Tanta expectativa provocou? ? Insistiu.

? Crê que um homem com um aspecto semelhante ao de um vulgar pirata não conseguiria tal façanha? ? Resmungou com mais serenidade.

As suaves massagens começavam a relaxá-la e, tal como lhe indicou Wanda, já se encontrava muito melhor.

? Um pirata? ? Perguntou a donzela assombrada. Deixou de lhe ensaboar o cabelo para esticar a mão e pegar uma bacia.

? Conforme me contou a duquesa, é dono de um desses navios mercantis. Também me disse que o utiliza para transportar mercadorias ou passageiros, embora muito me temo que errou em sua conclusão. Estou segura de que é um assaltante de navios e que terá as mãos cobertas de sangue inocente ? sentenciou.

? Isso foi o que lhe pareceu pouco decoroso, que exibisse uma imagem de corsário desumano? ? Continuou perguntando ao mesmo tempo em que vertia sobre o cabelo água limpa.

? Não. O que aconteceu foi outra coisa ainda mais aterrorizante. Quando as saudou, dirigiu-se para mim me chamando de propriedade. Logo me arrastou até o balcão me agarrando pela mão. Ao princípio, embora me sentisse zangada por esse comportamento, quase o perdoo posto que se preocupou com meu padecer durante sua ausência. Dialogamos com cordialidade, mas de repente, a conversação deu uma volta inesperada. Tudo começou após decidir que devíamos nos tratar com menos formalidade.

? Ofendeu-se por isso?

? Não! Surpreendeu-me gratamente, entretanto, o fato de ter que lhe chamar de Roger lhe brindou a oportunidade de... me beijar e duas vezes! ? Explicou afligida.

? Hum...

Wanda sorriu ao escutar as palavras de sua senhora. Embora lhe parecessem infantis, entendia-a. Depois do vivido com o vilão do senhor Wyman, não quereria voltar a sentir o pesar de outra humilhação. Não obstante, ela não via mal nenhum que um marido mostrasse seu afeto em público. E mais, estava segura de que todas aquelas mulheres que, conforme contava, alteraram-se ante a presença do senhor Bennett, estariam encantadas de ocupar seu lugar.

? Mais tarde me pediu uma dança... ? fez uma leve pausa para recompor-se. Ao recordar o quão absorvida permaneceu ao notar a proximidade de seu marido, as pequenas e sutis carícias nas costas, o encantador aroma e a firmeza ao dançar provocaram que seu pelo se arrepiasse e que brotasse novamente uma estranha sensação de necessidade por tê-lo ao seu lado.

? E? ? Wanda pegou uma toalha e a estendeu para que Evelyn pudesse cobrir sua nudez com ela.

? E dançamos ? respondeu sem oferecer mais detalhe.

? Só dançamos? OH, mon chèrie, je suis trés désolè!!4 ? A voz de Roger as assustou. Wanda abaixou com rapidez a cabeça enquanto que Evelyn abriu tanto a boca que lhe resultou difícil fechá-la. Ali estava, apoiado sobre a ombreira da porta, cruzando mãos e pernas, as observando em silêncio e revelando em seu olhar um brilho luxurioso. ? Pode partir. Eu mesmo me ocuparei da minha esposa ? ordenou.

Tal como lhe havia dito, a donzela fez uma leve genuflexão e saiu do banho, não sem antes jogar uma rápida olhada a Evelyn, que seguia paralisada e segurando com força a toalha que cobria seu corpo.

? Assim descreve nossa primeira dança de casados, petite sorcière? ? Disse quando a criada fechou a porta.

Roger não moveu nem um só músculo de seu corpo. Permaneceu na mesma posição esperando que ela fosse a primeira em dar um passo. Seus olhos continuavam cravados em Evelyn e seu sorriso, cheio de lascívia, seguia estendendo-se por seu rosto.

? Imaginei que seria inesquecível.

? Não deveria estar aqui ? resmungou enfurecida. ? Se por acaso se perdeu, tenho que lhe avisar que está em meu quarto.

? Perdido? ? Perguntou antes de esboçar uma enorme e sonora gargalhada. Retirou-se da madeira e iniciou um lento caminhar para ela. ? Nunca me senti tão próximo à palavra lar, talvez porque, como lhe disse na varanda, desde que nos casamos seu corpo será minha casa e a sua será o meu.

? Não se aproxime... ? ordenou-lhe andando para trás até que o frio da parede tocou suas costas.

? Ninguém vai me impedir de pegar o que por lei me pertence ? murmurou com voz firme e pausada.

? Não sou uma maldita propriedade! ? Explodiu.

Prosseguiu segurando a toalha ao redor de seu corpo e elevou o rosto de maneira desafiante.

? Em nenhum momento, petite sorcière, considerei-a dessa maneira. Quando lhe digo que me pertence é porque seu corpo inteiro é meu e, por mais sorrisos que ofereça a outros cavalheiros, ninguém poderá gozar de você salvo eu.

? Julga-me de maneira indevida ? defendeu-se mantendo seu rosto levantado. ? Se por acaso não o sabe, durante sua ausência fui visitada por muitos...

Não finalizou a explicação. Antes de terminar a frase, Roger se equilibrou sobre ela e a beijou. Evelyn voltou a se surpreender pela paixão que seu marido mostrava em um ato tão básico. Sua língua repetia a conquista, a posse, conduzindo-a a um estado de êxtase do qual só pôde reagir com um suave e mísero gemido. Desfrutava-o. Apesar de sua insistência em não fazê-lo, gozava daquela boca, daquela persuasiva língua, da proximidade do imenso e robusto corpo. De repente notou uma calidez nas costas. Seu marido pousava suas mãos sobre ela para atrai-la para ele. O peito feminino roçou o masculino e ambos os torsos se acoplaram à perfeição. Face à grande altura de quem a segurava para si, não havia desconforto, mas sim segurança e amparo. Uma união tão maravilhosa que, sem poder evitá-lo, a fez sentir-se extasiada.

Não obstante, e apesar de começar a desejar o que ele tanto ansiava por lhe mostrar, devia manter-se firme em seus propósitos. Não podia lhe dar de presente aquilo que tanto desejava porque depois de consegui-lo, o que faria? A incerteza a fez recuperar a pouca sensatez que ficava. Abriu os olhos e descobriu que ele também os deixava abertos. Olhava-a com descaramento, com desejo, com erotismo. A pupila se expandia tanto que logo permitia apreciar a cor da íris.

? É tão formosa... ? sussurrou Roger afogado pelo desejo ? que me parece impossível a ter conseguido.

? E você é um homem tão presunçoso e repugnante, que me parece incrível que tenha sido meu irmão quem decidiu meu futuro ? replicou Evelyn com raiva.

? Mon Dieu! ? Exclamou Bennett irado. ? Acaso não pode aceitar de minha boca nem um só elogio? ? Deu uns passos para trás ao mesmo tempo em que passava a mão pela cabeça. ? É minha esposa! Maldita seja! E isso deveria lhe revelar o que você terá que assumir como tal.

? Está insinuado que devo me entregar por que...? ? Começou a dizer enquanto uma de suas mãos cobria sua boca.

? Só advirto que deve me agradar... ? indicou mal-humorado. Virou-se para ela e caminhou com mais ímpeto do que devia até que voltou a retê-la contra a parede. ? Irei possui-la quando e onde quiser. E por mais que se negue, o farei.

Com uma brutalidade imprópria dele, agarrou-a pela cintura e a jogou sobre seus ombros para conduzi-la até a cama. Evelyn esperneava e lhe dava murros no peito, mas seus impactos não conseguiram diminuir a decisão de seu marido.

Roger a jogou na cama e, enquanto ela tentava fugir, tirou a jaqueta, desabotoou os botões de sua calça e, justo no momento no qual ela ia conseguir seu propósito, segurou-a por um tornozelo e a fez retornar ao leito.

? Não pretendia que nossa primeira vez fosse assim, mas sua atitude, sua arrogância e sua pouca sensatez provocaram em mim uma ira incalculável ? disse ao mesmo tempo em que se colocava sobre ela. ? Me aceitará por bem ou por mal.

? Me solte! Deixe-me! ? Clamava Evelyn.

Umas lágrimas começaram a brotar de seus olhos banhando o rosto ruborizado desta vez pelo esforço que realizava por liberar-se das mãos de seu marido. Não podia acreditar no que ia acontecer-lhe. Não esperava que o encantador e enganador homem que tinha ao seu lado finalmente se transformasse em um monstro.

? Não! ? Rugiu Roger. ? É minha!

Depois de um tempo lutando com seu opressor, Evelyn perdeu as forças. As palmas de suas mãos, que sustentavam os braços de Bennett, separaram-se destes e o liberaram. Não podia evitar aquilo que já tinha decidido seu marido. As lágrimas deram lugar a uma choramingação incessante, um pranto pedindo clemência.

Roger, ao deixar de sentir o esperneio e a opressão em seus braços, elevou o rosto e a contemplou. O cabelo, alvoroçado pelos bruscos movimentos, estendia-se pelo travesseiro, a toalha tinha deixado de cobri-la e deixava a descoberto uma erótica e deliciosa figura. Entretanto, o que lhe partiu o coração em mil pedaços foi descobrir que ela não deixava de chorar e suplicar. Onde estava a pessoa que era? Onde estava o homem que amava e satisfazia as mulheres? Não ficava nada disso nele e a prova disso era a horrível cena que vivia. Desejava Evelyn mais que tudo no mundo. Desde que pôs seus olhos nela naquele dia, só sonhou em tê-la ao seu lado, amá-la, escutá-la gemer de prazer. Entretanto, nunca imaginou que a possuiria sem ela desejá-lo, sem escutar de sua boca que acalmasse sua necessidade.

Abatido por seu comportamento, retirou-se lentamente do leito. Seus olhos seguiam cravados na mulher, observando como tremia de medo, o mesmo que lhe tinha provocado ao deixar emergir um monstro de seu interior. Em silêncio e em comoção por sua atuação, abotoou a calça e, sem olhar para trás, saiu do quarto. Tinha que meditar sobre o ocorrido, sobre por que a tinha tratado dessa forma e, sobretudo devia achar a razão pela qual em seu interior gritava que devia fazê-la sua para sempre.


XV


Não eram ciúmes o que sentia. Ele jamais teria uns sentimentos tão estúpidos. O ardor que emergia do mais profundo de seu ser só era mal-estar por ter descoberto que ele ia ser o padrinho do filho de William e que, por sua alienação, o posto tinha sido ocupado por Federith. Apesar de suas próprias desculpas, não podia afastar o olhar dela e deixar de grunhir. Evelyn não diminuía seus gestos de paquera e, estranhamente, bebia muito. Esteve tentado, em mais de uma ocasião, em caminhar para ela e reprovar sua atitude. Necessitava que entendesse quão inadequado resultava aquele descarado comportamento para uma mulher casada, ou melhor, dizendo, para sua esposa. Mas se conteve. Aguardou com paciência o momento no qual todo mundo começou a partir e ela decidiu subir ao seu quarto. É óbvio, na intimidade que lhes proporcionaria o interior da habitação, mostraria a quem devia dirigir seus contínuos flertes.

? Já nos priva de sua presença? ? Perguntou Rutland.

Partiram já todos os convidados e, por fim, podia gozar de uns momentos a sós com seus amigos. Por isso, quando observou a disposição de Roger por partir, tentou evitá-lo.

? Tem que compreender que me encontro bastante cansado. Desde que cheguei a Londres não pude descansar adequadamente ? explicou em tom débil, esgotado. Entretanto, não o estava. Sua única pretensão era subir as escadas de três em três e procurar Evelyn.

? Se mal me recordo, Beatrice ordenou ao Brandon que te preparasse um quarto. Ele te conduzirá até lá ? disse William com tranquilidade. Não queria lhe dizer de maneira brusca que, devido a todo o acontecido no passado em seu matrimônio, devia tomar um tempo de calma. Além disso, pela atitude que mostrou Evelyn durante todo o baile, muito temia que não tivesse interesse algum em descansar sob as garras de seu marido.

? Você dorme em outro quarto que não seja o de sua esposa? Inquiriu Bennett zangado. Seus olhos, injetados em sangue, cravavam-se na pessoa a quem sempre tinha outorgado a posição de irmão.

? É óbvio que não. Entretanto minha situação conjugal é muito diferente à tua ? assinalou.

William franziu o cenho e apertou os olhos. Odiava ter que ser ele quem chamasse a atenção de seu melhor amigo, mas devia fazê-lo. Como dono da casa em que Evelyn se sentia protegida, precisava continuar lhe oferecendo a paz que prometeu e, por mais que Roger devesse exercer seu respeitável papel como marido, ela ainda não estava preparada para isso.

? Então por que te interessa tanto o lugar onde descansarei esta noite? ? Retrucou sem diminuir sua ira.

? Ser esposa suporta umas conotações muito diferentes às que encontrara em suas amantes ? intrometeu-se Federith.

Até aquele momento não tinha participado de nenhuma das conversações que seus amigos tinham mantido. Ficava distante, perdido em suas próprias divagações. Entretanto, nesta ocasião devia participar para fazer desaparecer a discrepância que começava a emergir entre eles. Como era lógico, William adotava a postura de um homem perito em conviver dentro de um matrimônio que, por sorte para ele, era frutífero. Não obstante, Roger acabava de descobrir que a mulher com quem se acreditava casado não era a que imaginou. Além disso, não estava acostumado a ser o marido de alguém e sim o amante. Devia esquecer a ideia de que sua esposa era outra mulher a qual seduzir na cama e adotar a conduta correta. Ao pensar sobre que atitude era a apropriada entre cônjuges, seu rosto se escureceu. Acaso era o homem apropriado para lhe indicar os passos a seguir após casar-se? Realmente podia lhe explicar como funcionava um matrimônio? Não, estava claro que não. O seu, embora o tentasse ao princípio, não o conseguiu e, se seus amigos descobrissem o que escondia em sua alma, pensariam que estava possuído pelo próprio diabo.

? Acaso ambas não precisam ser saciadas, excitadas e seduzidas pela paixão? ? Comentou Bennett mais zangado se era possível.

? A diferença entre elas, além de sua assinatura em um contrato legal, é que a amante se contenta acalmando seu apetite sexual. Entretanto, a esposa necessita de algo menos primitivo e mais sentimental ? afirmou Federith.

? E que sentimento necessita uma esposa, meu querido Cooper? ? Roger arqueou as sobrancelhas e sua boca se estendeu em um sorriso lento. Estava disposto a lhe replicar aquilo que fosse lhe dizer posto que, se a memória não lhe falhava, sua perfeita esposa, aquela a quem supostamente dava o que desejava, era tão especial que evitava aparecer com seu marido em público.

? Amor ? respondeu.

? Amor?! Esse é o segredo de um bom matrimônio? Isso é o que brinda a uma mulher que é incapaz de aparecer ao seu lado quando a requer? ? Retrucou irado.

Federith, ao escutá-lo, arrojou a taça que tinha em sua mão e se lançou para ele, levantou os punhos e tentou lhe atirar um golpe. Como era de esperar, Bennett o esquivou e preparou os seus para uma resposta dura. Entretanto, não conseguiu tocar em Cooper, o duro tórax de William parou o impacto.

? Não permitirei uma loucura como esta em minha casa ? disse Rutland sem mover-se e sem mostrar dor no rosto. ? Acredito que deve uma desculpa ao Federith, ele só pretendia te fazer entrar em razão.

? Não vou desculpar-me ? disse apertando os dentes.

? Pois deveria. Seu comportamento, desde que pisou em meu lar, foi deplorável. Conforme advirto, seu exílio não foi tão benévolo como pensava. Mudou-te e te aconselho que o modifique, porque se segue mantendo essa atitude, pedir-te-ei, novamente, que parta de Haddon Hall ? apontou cada palavra em tom impassível.

William se afastou e olhou a ambos os homens. Federith continuava com os punhos elevados enquanto Roger os tinha baixado. Seu rosto, escurecido, sugeria que estava meditando sobre aquilo e Rutland esperava que entrasse em razão.

Durante o baile tinha estado bebendo como um vulgar bêbado. Quando terminava uma garrafa, começava outra. Não era a primeira vez que vivia os aterrorizantes episódios de embriaguez de seu amigo. Durante suas passadas farras londrinas, mais de uma vez teve que apoiá-lo sobre suas costas e levá-lo até sua residência. Também foi testemunha de seu mau beber e da sucessão de conflitos que isso suportava. Uma vez, se não recordava mal, esteve a ponto de morrer. Mas o diabo se encontrava bondoso aquela noite e deixou que continuasse respirando. Por isso lhe tinha advertido que deixasse de beber e que prestasse atenção à sua esposa.

O conselho foi mais desastroso do que pretendeu. Evelyn não cessava de flertar e essa atitude fez com que Roger fervesse tanto o sangue, que acalmou a ira à base de mais brandy.

? Sinto ? disse Bennett depois de uns momentos de silêncio. ? Minhas mais sinceras desculpas por minhas palavras ofensivas. Sabe que te considero um irmão e que sua dor é também a minha ? disse com voz sossegada e pausada.

? Aceito-as ? falou Federith ao mesmo tempo em que estendia a mão.

? Mon Dieu!! Só me dá a mão? ? Perguntou antes de saltar sobre seu amigo e abraçá-lo.

? Bom, o normal neste momento seria tomar uma taça e fumarmos um bom charuto, mas temo que já bebemos mais do que o necessário ? indicou William feliz.

? Devo me retirar o antes possível se quero partir à alvorada para Hemilton. Não quero privar por mais tempo meu filho da presença de seu pai ? expôs Cooper com certa melancolia.

? Entendo-te perfeitamente ? respondeu o duque. ? Pois por minha parte, está desculpado. Se precisar de algo antes de viajar faça Brandon saber.

? Obrigado por me permitir ser o padrinho de seu primogênito, foi uma honra ? comentou Federith estendendo a mão para William. Como era de esperar, não a aceitou, mas sim se aproximou de seu amigo e o abraçou com sua mão direita.

? Aqui tem sua casa se por acaso algum dia a necessitar ? murmurou-lhe ao ouvido. ? Tanto Beatrice como eu estaremos encantados de ver-te aparecer com seu filho.

O futuro barão de Sheiton respondeu às palavras com um leve assentimento de cabeça. Logo dirigiu seu olhar para Roger e este o despediu da mesma maneira que William: com um abraço.

? Algo grave lhe acontece ? disse em voz baixa Bennett quando ficaram sozinhos.

? Sim, sou muito consciente disso, mas é incapaz de contá-lo. O único que tenho claro é que, desde que se casou com Caroline, não foi o mesmo. Na verdade, se a mente não me falhar, dos três, era o mais sorridente, mas se esqueceu de rir. Só mostra um rosto aflito e apático.

? Possivelmente pensou que o matrimônio seria algo diferente, eu também acreditei. Entretanto, aqui me vê, bêbado, zangado e desejoso de subir ao quarto onde se encontra minha esposa e saborear cada palmo de sua pele.

? Não albergue a esperança de que ela te aceite esta noite. Deixe-a respirar ? disse ao mesmo tempo em que se virava para seu amigo.

? Respirar? ? Soltou rapidamente. Arqueou as sobrancelhas e voltou a estender sua boca para desenhar um grande sorriso.

? Tal como disse Federith, o trato que deve adotar para com sua esposa é muito diferente ao qual proporcionou às suas amantes. Ela não só procurará prazer no leito, mas sim pedirá mais que umas agradáveis carícias ? comentou William sem afastar o olhar de Bennett.

? O que necessitará? ? Continuou jocoso.

? Seu coração. Agora pensa, está disposto a oferecer-lhe?


O suave pranto de Evelyn se escutava através da espessura da madeira, provocando que o sentimento de culpabilidade de Roger se acrescentasse. Separou-se da fria parede recordando as últimas palavras de seu amigo. Estava disposto a oferecer seu coração? Aquela pergunta o tinha deixado entorpecido. Nunca tinha parado para pensar nisso. Além disso, ele tinha coração? Segundo suas amantes, não. Segundo sua mãe, tampouco. Assim que... como ia dar algo que não possuía?


XVI


Apesar de seus inumeráveis intentos por levantar-se da cama com prontidão, Evelyn não conseguiu fazer algo tão simples. Mal tinha dormido e quando o fazia, despertava sobressaltada ao aparecer de novo o rosto enfurecido de seu marido sobre ela. A lembrança daquele momento, daquela horrorosa situação, gerou-lhe um tremor tão intenso em seu corpo que, o que não tinha conseguido pelo cansaço, adquiriu-o pelo medo. Afastou os lençóis, pousou os pés no chão e caminhou para a janela para abrir as cortinas.

O sol luzia de maneira incomum, embora desde que chegou a Haddon Hall mal tinha chovido. Apesar de estar no mesmo país, parecia que as nuvens não estavam acostumadas a aparecer por aquele lugar com tanta assiduidade como em Londres. Evelyn apoiou a testa no vidro e soluçou. Sentia-se infeliz, desanimada e um pouco decepcionada por todo o ocorrido. Culpava-se pelo pérfido comportamento de seu marido. Jamais tinha se proposto tratá-lo daquela maneira nem flertar com os cavalheiros como uma puta vulgar. Ela não era aquele tipo de mulher! Ela era uma mulher honesta, razoável e bastante sensata. Quando descobriu o final que lhe proporcionou seu irmão e depois de assimilá-lo com dignidade, disse-se a si mesma que devia aceitar sua sorte e se entregaria a um marido tal como sua mãe se dedicou ao seu pai. Entretanto, o desastre estava feito. Tinha conduzido Roger a um estado de loucura tão enorme que quase a forçou.

Evelyn suspirou profundamente e afastou com as duas mãos as lágrimas que percorriam seu rosto. O baile não tinha saído tal como imaginou naquela mesma tarde. Vestiu-se para lhe agradar, para diminuir o aborrecimento que obteria pelo engano, para que se sentisse orgulhoso da mulher que teria pelo resto de sua vida ao seu lado e talvez, também o fez por ela mesma. Estava cansada de ser a pobre Evelyn. Queria que o mundo não recordasse seu dramático passado e, é óbvio, desejava agradecer ao seu marido pelos cuidados que deixou organizados apesar de abandoná-la. Por que... o que tinha feito Roger desde que partiu? Cuidá-la. Sim, com efeito. Tinha velado por sua comodidade, por sua estabilidade econômica. Ali onde antes encontrava certa vacilação ao comprar ou adquirir aquilo que necessitava para o funcionamento de seu lar, desde que contraiu matrimônio, não viu nos dependentes nem nos fornecedores reprovação alguma.

Amabilidade e cortesia, isso é o que tinha encontrado desde que se converteu na senhora Bennett. Sem esquecer a inveja que mostravam as mulheres ao saber que um dos solteiros mais cobiçados da cidade tinha sido capturado. Mas apesar do benfeitor gesto de seu cônjuge, ela seguia mantendo sua atitude. Tinha que lhe deixar bem claro que não era uma amante a mais para utilizar e esquecer. Era sua esposa, a mulher com quem viveria o resto de sua vida, de quem escutaria suas dores ou alegrias.

Levou as mãos ao ventre para apertá-lo com força. Só havia uma coisa que nunca poderia lhe dar. Talvez, se descobrisse que o que algum dia ansiara não o conseguiria dela, albergaria a ideia de separar-se para sempre de seu lado. «Desde quando se rende com tanta facilidade? ? Perguntou-se zangada. ? Padeceu milhares de pesares em sua curta vida e isto é só mais um. O que o faz diferente?». Suas meditações a incomodaram tanto que se separou da janela e começou a perambular pela habitação. Observou envergonhada que ainda ficavam restos das consequências de sua inapropriada conduta. Se não recordava mal, o vestido ficou manchado e, por isso podia apreciar que no chão se refletia uma mancha esbranquiçada que seria impossível fazer desaparecer.

Era uma loucura. Tudo era uma maldita loucura! Açoitada por seus pensamentos e pela dor de cabeça que lhe golpeava as têmporas com força, sentou-se sobre o colchão, cobriu seu rosto com as mãos e começou um pranto que, dificilmente, podia parar.

? Bom dia, minha senhora. Despertou já? ? A voz de Wanda apareceu dentre as sombras produzindo um sobressalto em Evelyn.

? Bom dia. Levo um momento acordada, mas não quis te chamar tão cedo ? desculpou-se.

? Os duques se encontram na sala de café da manhã. Lady Beatrice me disse que a esperam para tomar o café da manhã.

Sem quase olhar à mulher, a criada se dirigiu com passo firme para o vestidor e desprendeu um dos vestidos adequados para uma jornada matutina.

Evelyn apertou com força os lábios para não lhe perguntar se seu marido encontrava-se com eles. Seria o normal nesses casos, mas conforme parecia, Roger não se apoiava nos comportamentos habituais e, possivelmente, teria partido de Haddon Hall. Com o coração estrangulado ante tal possibilidade e procurando uma desculpa a oferecer aos hospitaleiros proprietários quando perguntassem pelo paradeiro de seu marido, levantou-se da cama e se deixou vestir por sua donzela.

? Faz uma manhã magnífica para um passeio ? começou a dizer Wanda ao ver que sua senhora era incapaz de soltar uma só palavra por sua boca. ? Muito me temo que antes do almoço a duquesa a convide a acompanhá-la a outra de suas intermináveis excursões. Por esse motivo, e sempre com seu consentimento, levará o vestido de cor rosa e os sapatos planos. Assim não atrairá que todos os insetos revoem pelos arredores e não chegará com uma terrível dor nos pés.

Em outro momento Evelyn teria soltado uma gargalhada ante os comentários de Wanda, mas só fez um leve gesto com a cabeça para frente, algo que despertou o interesse de sua donzela.

? Minha senhora, se deseja que a desculpe para que possa continuar descansando em seus aposentos, fá-lo-ei ? indicou a donzela afastando suas mãos dos laços que começavam a atar o espartilho.

? Não precisa, Wanda. Será bom me distrair durante um tempo. Possivelmente, deste modo, a dor que me açoita a cabeça desapareça por fim ? voltou a justificar seu penoso comportamento.

Sabia que cedo ou tarde lhe perguntaria o que tinha acontecido durante a noite anterior. Não de maneira direta, Wanda jamais mostrava esse descaramento, mas sim que encaminharia todas suas conversações nessa direção para conseguir seu propósito. Não obstante, o que lhe diria? Que seu marido esteve a ponto de forçá-la, de possui-la entre gritos e preces de piedade. Não, não era correto nem benéfico para nenhum dos dois expor o acontecido. Antes que todo mundo cochichasse sobre o patético matrimônio Bennett, eles deviam falar sobre a razão daquele impróprio assunto e resolver o tema. Só assim poderiam viver em paz.

? Hoje seu cabelo despertou mais rebelde do que o normal. Está me custando a própria vida desenredá-lo ? assinalou Wanda enquanto tentava escová-lo.

? Pode me deixar uns cachos soltos?

? É claro. Deseja um coque alto ou baixo? ? Continuaram com um diálogo carente de sentido.

? Baixo, é claro.

? Como desejar ? respondeu Wanda.

Os olhos da criada se entrecerraram e sua boca desenhou uma estranha careta de preocupação. Pela expressão da mulher e a inapetência com que falava, sabia que a noite não tinha terminado como ela esperava. Pensou que Evelyn se renderia aos braços de seu marido, ela o teria feito sem duvidá-lo por que... quem poderia negar-se a desfrutar dos prazeres que pode lhe oferecer um homem tão perito? É óbvio que uma mulher, a única que devia aceitá-lo sem oposição: sua esposa.

? Necessita alguma coisa mais? ? Quis saber. Deu uns passos para trás, estendeu suas mãos ao longo do vestido e olhou à senhora Bennett sem piscar.

? Sim, só uma coisa. Pode informar aos duques que os acompanharei breve? ? Disse. Levantou-se, olhou-se ao espelho, levou as mãos para os olhos e apalpou com as gemas dos dedos as olheiras que os rodeavam.

? É claro. ? Wanda fez uma ligeira genuflexão e partiu. Quando fechou a porta olhou para o céu, suspirou e rezou para que o mal que se produziu na passada noite desaparecesse o antes possível.

Por que lhe doía tanto o estômago? Por que não cessavam as náuseas? Estariam provocadas pela ingestão de álcool ou pelo estado de inquietação que a açoitava ao pensar que o encontraria quando descesse as escadas? De qualquer modo, Evelyn correu ao banho, abaixou a cabeça sobre a privada e começou a vomitar. Mal saía algo de seu interior. Não tinha nada que expulsar, tudo o que contivera seu estômago o esvaziou na noite anterior. Afastando os cabelos do rosto, recompôs-se. Precisava fazer retornar a mulher que era, a mulher que não se amedrontava ante determinadas situações.

Antes de abandonar o quarto, olhou-se no espelho da penteadeira, beliscou as bochechas, elevou seu queixo e esboçou um sorriso. Essa era ela. Não havia dúvida. A imagem que projetava o espelho era a ansiada senhora que precisava mostrar. Depois de suspirar profundamente, abriu a porta e partiu.

? Bom dia! ? Exclamou Beatrice levantando-se de seu assento e caminhando para a entrada da sala de café da manhã para receber sua amiga. ? Pôde descansar?

? Bom dia ? respondeu sem apagar o sorriso. ? É claro.

? Minha querida senhora Bennett ? comentou Rutland abandonando sua cadeira. ? Minha esposa não quis começar o café da manhã sem sua presença. Acredito que estava preocupada com você.

Beatrice, que pegava com força as mãos de Evelyn, dirigiu um olhar ameaçador ao seu marido.

? Disse algo inapropriado? ? Perguntou zombador. ? Se for assim, querida, peço-te mil desculpas.

? Vem, sente-se ao meu lado. Imagino que estará faminta depois do baile.

Evitando as palavras de seu marido, a duquesa a fez sentar em uma das cadeiras próximas aonde se encontrava o duque e se sentou junto a ela.

? A verdade é que não tenho muito apetite. Tenho o estômago revolto desde ontem. Imagino que me excedi bebendo ? desculpou-se. Olhou os pratos que começavam a lhe servir e enrugou o nariz. Não gostaria de encher seu estômago com nada do que lhe ofereciam.

? Minhas primeiras bebedeiras me causaram uma feia magreza, ? disse Rutland sorridente ? mas com o passar do tempo se acostuma a ingerir tanto álcool como alimento. A natureza é sábia...

? William! ? Exclamou Beatrice zangada. ? As mulheres não são como vocês! Graças a Deus a outorgaram com o dom da sensatez.

? Jamais duvidei disso, meu amor ? respondeu antes de aproximar a xícara e tomar um comprido sorvo de chá. ? Bom, ? disse após pousar o copo e olhar com interesse a mulher de Roger ? onde se encontra meu amigo? Não o vi desde que subiu as escadas ontem de noite.

Evelyn deixou que os talheres caíssem sobre o prato emitindo um ruído ensurdecedor. Depois suas bochechas se ruborizaram e o desejo de fugir a sobressaltou.

? Muito me temo ? respondeu depois de tomar um tempo ? que não posso lhe responder.

? Não dormiu com você? ? Perguntou elevando suas espessas sobrancelhas escuras.

? William! ? Voltou a exclamar sua esposa. ? Onde estão suas maneiras? Perdoe-lhe, Evelyn. Acredito que esta manhã não só seu marido anda desaparecido, mas sim a boa educação do meu marido também.

? Senhoras... ? falou o duque ao mesmo tempo em que se levantava e afastava seu assento da mesa ? se me desculparem. Conceder-lhes-ei uns instantes a sós para que conversem tranquilamente. Enquanto isso eu pensarei onde posso o encontrar. ? Fez um leve movimento com a cabeça e, com seu típico andar, caminhou para a porta.

? Aconteceu algo horrendo entre vocês? ? Perguntou Beatrice quando estiveram enfim sozinhas. Matava-a a curiosidade e não podia aguentar por mais tempo saber o que tinha ocorrido entre eles. O último que sabia, o que lhe tinha contado seu marido, era que Roger tinha insistido em dormir junto à sua esposa. Mas, conforme parecia e graças às suas preces a Deus, ao final tinha desistido em seu empenho.

? Não! ? Respondeu tão rápido que se surpreendeu ela mesma.

? Então?

? Roger apareceu em um momento no qual minhas náuseas se converteram em vômitos e, como era de esperar, deixou-me sozinha para acalmar meus pesares. ? Tinha parecido convincente? Não estava muito segura dado que Beatrice entrecerrou seus olhos e os cravou nela. Mesmo assim, para reforçar suas palavras, Evelyn sorriu e continuou com voz divertida: ? Deve ter sido horroroso para ele entrar no quarto e descobrir a sua esposa de tal forma. Se tivesse sido ao reverso, eu também teria saído fugindo.

? Se você o diz... ? murmurou a duquesa antes de cravar com o garfo um pedaço de torrada e levá-la à boca.


Escutava certos murmúrios ao seu redor, mas como não tinha dormido em toda a noite, deu a volta e tentou prosseguir com o sonho.

? Milorde, o que me pede pode produzir a maior desgraça que presenciamos em Haddon Hall durante anos ? dizia entre sussurros Mathias, o moço de quadra.

? Se o preferir, verta-lhe o cubo de água fria e corra. Serei eu quem receberá sua fúria ? respondeu William esboçando um sorriso que cobria o rosto de lado a lado.

? Que Deus tenha piedade de nós... ? disse antes de aproximar-se de Roger, arrojar-lhe a água e começar uma carreira tão veloz que seus calcanhares lhe golpeavam os glúteos.

? Maldito seja! ? Uivou Bennett incorporando-se com rapidez do colchão de palha onde tinha descansado. Com o cabelo jorrando e as roupas empapadas parecia um cão ao qual um toró tinha pegado por surpresa. ? Que diabo faz?

? Bom dia, Roger. Uma má noite? ? Saudou-o com enormes e sonoras gargalhadas.

? Maldito seja, William! Por que despertar-me assim? ? Afastando a água que caía de seu cabelo, caminhou altivo para seu amigo.

? É uma tradição no condado de Derbyshire acordar aos bêbados com um bom banho de água gelada ? comentou sem diminuir a brincadeira.

? Malditos populares! Malditos costumes e maldito seja! ? Vociferou mais zangado, se cabia. Ao notar como as roupas esfriavam seu corpo, Roger decidiu despojar-se delas, deixando seu torso a descoberto.

? Não é adequado que as pessoas te vejam seminu ? repôs Rutland em tom sério.

? Adequado? Ha! E interromper meus bonitos sonhos como o fez sim o é? ? Lançou o colete e a camisa ao chão e pisou nos objetos ao sair.

? Roger... ? resmungou o duque como advertência.

? William... ? respondeu o aludido.

Passou por seu lado, olhou-o de esguelha e prosseguiu seu caminhar.

? Adverti-te que ela não era como as demais e que uma esposa não se pode tratar como a uma amante ? começou a o exortar. Rutland colocou sua mão nas costas e avançou atrás de seu camarada.

? Não me recrimine. Se não me falhar a memória, não faz muito tempo se encontrava em minha mesma situação ? matizou a contragosto.

? Nunca! Escutou-me? Nunca tratei Beatrice dessa forma! ? Soltou William zangado.

? É verdade! Você, o senhor honrado, deu uma lição àqueles que o pensaram... ? prosseguiu sua mal-intencionada conversação.

Virou-se rapidamente sobre seus calcanhares e observou o rosto zangado de seu amigo. Até onde queria chegar com aquela atitude? Precisava destruir uma amizade por não ser capaz de admitir o que esteve a ponto de fazer horas antes?

? Eu não gosto nem do seu tom nem das palavras que saem de sua boca ? assinalou o duque apertando os dentes.

? Nem eu gosto de ver no que estou me convertendo. Sinto-me igual ao que se lança de um precipício e no meio da trajetória se arrepende de sua tola ação. Mas... o que posso fazer a não ser me golpear contra o chão? ? Disse mais sereno, inclusive repleto de dor.

? Talvez devesse repensar e adotar uma conduta correta. Só assim não se converterá nesse lerdo que decide saltar ? indicou avançando para Roger e colocando seu braço sobre o ombro nu.

? Já não há volta atrás, William. Ontem fiz algo tão horroroso que, por mais que deseje emendá-lo, nada nem ninguém pode me salvar... ? murmurou enquanto abaixava tanto a cabeça que seu queixo chegou a tocar seu peito.

? Seja o que for, com certeza o tempo o fará desaparecer.

? Não, essa maldade jamais desaparecerá.

? Está fazendo crescer meu interesse. Sei que não é cortês indagar sobre seu pesar, nem fofocar sobre as intimidades de um matrimônio, mas me resulta impossível me conter. Por Deus, Roger! O que fez? ? O duque abriu os olhos de par em par e conteve o fôlego até que observou como seu amigo tomava ar.

Nunca o tinha contemplado tão aflito. Por norma, ele era o único que não mostrava seus pesares em público. Se não se embebedasse naquela noite no botequim do porto, jamais teria sabido que seus pais rezavam para que falecesse para outorgar o título de marquês ao seu irmão.

? Deixei que uma besta crescesse em meu interior e quase forço Evelyn... ? disse depois de tomar seu tempo para assimilar o que fez.

? Como? ? Inquiriu William assombrado.

? O que ouve. Como ela não sucumbiu aos meus encantos, tentei obrigá-la.

? Impossível! ? Exclamou incrédulo Rutland. ? Isso não é próprio de ti! Jamais faria tal aberração!

? Pois a fiz e agora temo que, se existia alguma possibilidade de que minha esposa terminasse me aceitando, esfumou-se.

Roger elevou levemente seu rosto encarando o espanto do rosto de seu amigo. Seus ombros, inclinados para frente, mostravam a figura de um homem atormentado, mortificado. Tornou a dar a volta para prosseguir o trajeto que o conduziria para a residência. Necessitava com urgência esconder-se, desaparecer.

? Sou um monstro, William. Uma besta malvada que não foi capaz de pensar com claridade, que não pôde controlar sua ira, que não pôde distinguir entre o bem e o mal ? disse com um mísero fio de voz.

? Resolveremos isso ? assinalou Rutland muito seguro de suas palavras. ? E se converterá em um matrimônio mais frutífero que o meu.

? Obrigado por suas palavras de consolo, mas decidi retornar a Lonely Field esta mesma manhã. Não quero que Evelyn volte a ver a besta que quase lhe destrói a alma.

? Vou perguntar o que em uma ocasião me questionou a mãe de Beatrice. ? Bennett seguiu avançado.

? O quê? ? Perguntou justo antes de subir as escadas que o levavam para a porta principal.

Face à insistência de seu amigo em o fazer mudar de opinião, ele a rejeitaria. Tinha tomado uma determinação e ninguém o faria retratar-se.

? Perguntou o que ela deseja?

? Não preciso perguntar, sei o que responderá. Você mesmo o apreciará em seu olhar. E agora, se me desculpar, quero me limpar antes de partir. Pedirei ao Brandon que me indique onde está aquele quarto. ? Respirou profundamente e subiu as escadas de três em três.

As mulheres abandonaram a sala de café da manhã ao escutar as vozes de ambos os maridos. A duquesa blasfemava sobre o comportamento dos dois e os comparava com meninos chorões e mimados. Entretanto, Evelyn ficou imóvel e acreditou notar como parava seu coração quando seus olhos verdes se cravaram sobre a imensa figura de Roger. Como um vendaval, entrava na casa seminu. Seu cabelo e as roupas que o cobriam da cintura para baixo jorravam gotas de água. Em cada pegada deixava no chão umas marcas úmidas e suas botas emitiam sons estranhos. Quis olhar para outro lado posto que não fosse próprio de uma mulher contemplar um homem meio vestido, mesmo que fosse seu marido. Mas foi difícil. Estava assombrada ante a exposição de um torso tão firme e esbelto. Jamais acreditou que sob as roupas os homens pudessem esconder uma figura tão magnífica. Era certo que durante suas aulas de arte, as assombrosas esculturas em mármore como O David, de Michelangelo ou O rapto das sabinas, de Juan de Bolonha, mostravam sem pudor como era um corpo masculino. Entretanto o de Roger superava com acréscimo todas aquelas magníficas figuras de mármore.

Tentou recordar se Scott, nas noites que tinham dormido juntos, tinha mostrado algo mais que as pernas. Não, não o tinha feito. Sempre que faziam amor ele cobria seu corpo com uma comprida camisola de algodão e ela também. Respirando entrecortada, confirmou que a mulher que tinha imaginado seu marido como corsário lutando enquanto protegia a sua amada era só ela. Morta de vergonha, abaixou a cabeça. Não sem antes advertir que ele cravava seus olhos nela. Não havia orgulho naquele mar azul, mas sim horror e temor.

? Não tenho nem ideia do que aconteceu entre vocês dois... ? A voz de William a fez voltar a atenção para ele ? mas decidiu partir.

? Partir? Para onde? Por quê...? ? Beatrice, assombrada, virou-se para Evelyn esperando uma resposta, uma palavra, algo que lhe explicasse o que estava acontecendo.

? Deseja que parta? Deseja permanecer sozinha o resto de sua vida? ? O duque pressionou tanto, que suas palavras golpearam com força a cabeça da aturdida mulher. ? Porque se for assim, acompanhe-nos e não suba essas escadas, mas se estiver no certo e não quiser que seu matrimônio se destrua antes de sequer iniciá-lo, já sabe o que deve fazer.

? William! O que ocorre? O que aconteceu? Por que quer afastar-se de novo? ? Interrogava-o sua esposa mudando o olhar de Roger para seu marido.

Rutland se aproximou dela, sussurrou-lhe algo ao ouvido e, depois dela assentir, retornaram à sala de café da manhã.

Evelyn abraçou a si mesma em um vão intento de acalmar os tremores de seu corpo. Estava aturdida, absorta, perdida. Tentou recordar o olhar de Roger. Não havia ódio e sim tristeza, desespero e dor, muita dor. Arrependia-se do acontecido, ou isso é o que ela esperava que sentisse, arrependimento. Com os olhos banhados em lágrimas observou as escadas. Ainda estavam manchadas após sua ascensão. Deu uns pequenos passos para elas, segurou o corrimão de madeira e elevou o queixo. Que Deus a perdoasse. Que Deus tivesse piedade pelo que ia fazer, mas tal como lhe tinha ensinado sua mãe nos últimos anos de existência, preferia lutar que arrepender-se pelo resto de sua vida.


XVII


Ódio. Isso foi o que viu no olhar de Evelyn quando acessou ao hall. Tinha-a contemplado um só instante, o suficiente para compreender que seguia atemorizada, horrorizada ao vê-lo. «O que esperava? ? Perguntou-se mal-humorado enquanto se despojava das poucas roupas que cobriam seu corpo. ? Acaso imaginou que o receberia com os braços abertos e lançando-se para você entre soluços? Mon Dieu!! Je suis stupide!!5». Enfurecido, golpeou com força a porta do vestidor. Esteve a ponto de rompê-la, talvez esse fosse seu propósito, quebrar algo, machucar-se no impacto, sentir mais pesar do que já padecia. Nunca tinha sido tão cruel com uma mulher. Nunca tinha tratado mal a uma dama e, entretanto, pela primeira vez tinha exercido essa crueldade com sua esposa, a pessoa que permaneceria ao seu lado pelo resto de sua vida, e seria a mãe de seus filhos algum dia. Não o perdoaria jamais. O pesar que o atormentava perduraria em seu interior para sempre.

Sem diminuir sua ira nem um pouco, caminhou para o quarto de banho, molhou o rosto e, agarrando-se à bacia, apertou os dentes e gritou como uma besta selvagem. Estava desesperado, amargurado. Desde que nasceu tinha lutado com o demônio que crescia em seu interior, aquele que tinha herdado de seu pai e, agora, depois de tanto tempo controlando-o, a besta zombava dele saindo à superfície. Tinha que afastar-se de todos os que o rodeavam com urgência. Se fosse certo, se já não era capaz de dominar a fera, não só ele estava em perigo, mas sim todos os que amava. É claro que não os machucaria fisicamente, mas... quem golpearia o peito proclamando que mantinha uma amizade com alguém como ele? Aflito, pegou a toalha que tinha sobre uma das banquetas próximas à bacia e, em vez de limpar o rosto, enredou-a na cintura. A necessidade de sair dali o antes possível provocou que evitasse chamar seu ajudante de câmara para vestir-se. Fá-lo-ia ele mesmo. Mas no momento que as solas de seus pés pousaram o chão do quarto, advertiu que não estava sozinho.

? O que faz aqui? ? Grunhiu. Sua voz era pesada, rouca, apática. Afastou o cabelo que cobria o lado esquerdo de seu rosto e a olhou entrecerrando os olhos. ? Perdeu-se ou veio confirmar que minha partida é real? ? Percorreu com grandes passadas o quarto até que chegou à janela. Uma vez ali, abriu as cortinas e a janela. Uma brisa suave apareceu de repente fazendo que não só seus cabelos se movessem, mas sim o objeto que o cobria, também.

Evelyn não era capaz de responder. Desde que abriu a porta e achou escuridão naquele quarto, sentiu pânico. Era tudo tão tenebroso, tão escuro, que a impactou. Seu medo aumentou ao escutar o forte e desesperado grunhido que Roger emitiu de algum lugar que não conseguiu localizar, e esteve a ponto de dar a volta e sair dali, mas quando seu corpo ia obedecer à ordem que lhe mandava o cérebro, escutou-o aproximar-se. Segurou as mãos e levantou o queixo para enfrentar a fúria que ele mostraria ao vê-la. Entretanto, sua expressão de coragem desapareceu de repente ao vê-lo daquela maneira. Seu marido se achava nu. Coberto somente por uma toalha que, graças a Deus, escondia suas partes nobres. Tentou manter a compostura, mas aquela determinação se evaporou ao admirar um corpo tão belo, tão perfeito, tão incrivelmente cinzelado. Onde estava a beleza da qual falava sua tutora ao lhe descrever as perfeitas esculturas de Michelângelo? Sem lugar a dúvidas, a figura de Roger fazia diminuir a perfeição daquelas obras mestras.

? Não fala? Ficou muda de repente? ? Continuou perguntando Bennett. Deu uns passos até situar-se no centro da habitação, colocou suas palmas na cintura e sorriu com uma careta irônica. ? OH, desculpa meu inapropriado traje! ? Disse zombador ao apreciar seu rubor. ? Não esperava nenhuma visita, mas não se sufoque, arrumar-me-ei para você. ? Aproximou-se do armário, tirou algumas roupas e, dando as costas à sua esposa, tirou a toalha e começou a vestir-se.

Evelyn desejou dar a volta e sair dali até que o corpo de Roger se mostrasse de uma aparência decente, mas não fez nem um nem outro. Permaneceu imóvel, na entrada, cravando o olhar na parte posterior do corpo de seu marido e acalorando-se por momentos.

? Então, petite sorcière, que propósito tão urgente provocou que interrompa minha intimidade? ? Falou com zombaria enquanto colocava as meias.

? Não me deixou explicar ? expôs apertando os dentes. Apesar de ficar atordoada ao descobrir a formosa figura de Roger, a ira a fez voltar a si.

? OH, C’est vrai6. Ainda não falou. ? Caminhou para ela com passo seguro, incontrolável, resistente. Pretendia assustá-la para que se pusesse a correr. Porque, embora ela não fosse consciente disso, sua presença, sua beleza, seu cativante aroma o estava deixando tão demente que seria incapaz de controlar o monstro em seu interior. Entretanto, a retidão de seu corpo, o modo como elevava o queixo e como cravava seus olhos nele sugeriram que, apesar de seu empenho em assustá-la, ela não tinha medo ante sua proximidade. Tinha aparecido ali com uma pretensão e muito temia que tivesse que escutá-la. ? Voltarei a repetir só mais uma vez. ? Disse zangado ao não conseguir seu propósito. ? O que faz aqui?

? Não quero que parta ? comentou ao fim.

? O quê? ? O aborrecimento de Bennett evaporou imediatamente. Deu uns passos para trás, os ombros relaxaram inclinando-se brandamente para frente, suas sobrancelhas loiras se arquearam tanto que se uniram e o lábio superior se separou do inferior para revelar uma careta de desconcerto.

? Não desejo que... ? começou a dizer Evelyn. Desfez o nó de suas mãos e se encorajou dando um passo para diante.

? Mon Dieu! Já te escutei! ? Gritou levantando uma mão para fazê-la calar e detê-la.

? Então, se me entendeu bem, por que deseja que o repita? ? Repreendeu-o. ? Você gosta que as pessoas te supliquem? Diverte-se ver como os outros se humilham ante você?

? Humilhar-se? Isso é o que pensa que faz ao subir aqui para me pedir que não parta? Eu acredito que é uma insensata. Uma mulher carente de racionalidade ? resmungou. ? Acaso não teve o bastante com o acontecido ontem? Veio terminar o que comecei? ? Seus olhos, injetados em sangue, fixaram-se na mulher como se quisesse fulminá-la com eles. Apertou os punhos e quis lhe dar de novo as costas, mas algo na debilidade de sua voz o deteve. Parecia como se não tivesse o suficiente fôlego para falar com normalidade e ficou quieto, atento às suas débeis palavras.

? O álcool não nos fez pensar com coerência. Conforme tenho entendido, jamais tratou uma mulher com brutalidade. Possivelmente seu incontrolável desejo por ingerir mais brandy do que pode suportar fez com que me mostrasse aquele monstro...

? Sou, exatamente, esse monstro que descobriu ontem, mon chérie ? assinalou com dureza e cortando com rapidez a distância entre eles. ? Sou um ser maligno, uma besta, um malvado e perverso homem que, apesar das negativas que me ofereceu, quase a tomo, por me pertencer pela lei.

? Você mesmo o disse ? falou baixo ? quase, mas não o fez.

O rosto zangado de seu marido se distanciava muito pouco do dela. O calor que emanava o corpo masculino chocava com o seu. Evelyn, muito ao seu pesar, sentia de novo uma estranha sensação de tranquilidade, embora as pernas não pudessem evitar um tortuoso tremor. Por que, apesar de vê-lo daquela maneira em que expressava tanta violência, ela se sentia segura ao seu lado? «Possivelmente, ? pensou ? porque está louca».

?Votre tête ne fonctionne pas avec lucidité?7 ? Perguntou abrindo os olhos como pratos.

? Je t’interdis de me parler de nouveau en français!!! Ce la devait plaire à les maîtresses lorsque s’eu leur susurrais ces mots a l’oreille, mais moi je n’aime pas. Je ne suis pas comme elles, vous comprends! Je ne suis pas comme elles!8 ? Vociferou Evelyn tão alto que um estrepitoso eco percorreu a habitação.

Roger ficou absorto, imóvel. Tinha que dar tempo à sua cabeça para assimilar duas coisas, a primeira era que nunca teria imaginado que aquela mulher, com aquele leve beleza, não passasse seu tempo curtindo seu físico em vez de sua inteligência. Muitos maridos que falavam com soltura após tomar várias taças se queixavam da banalidade que achavam nas conversações com suas esposas. «Só abre a boca para falar de quantos vestidos pensa comprar, dos escândalos que acontecem na cidade e de quão adequado é caminhar juntos para que todo mundo saiba o matrimônio proveitoso que alcançamos».

Recordou as palavras de lorde Dupuis, um dos cavalheiros mais famosos de Paris e quem aplaudia sua atitude de libertino. Entretanto, sua esposa, essa desconhecida para ele, começava a destruir todas as suas convicções. Não só falava francês com uma pronúncia melhor que a sua, mas sim até zangada, o som de suas palavras era um invejável canto de sereias. Poderia lhe ter gritado os maiores insultos que ele teria mostrado a mesma cara de bobo que tinha naquele momento. E segundo ponto a meditar. Possivelmente o mais importante a ter em conta, reprovava seu comportamento. Esse era o grande problema. Seu passado e sua inapropriada conduta, indubitavelmente, tinham chegado até os ouvidos de Evelyn e lhe exigia que não devia tratá-la como as demais. Muito ao seu pesar, tinha razão. Que conduta tinha adotado desde que a descobriu? A mesma que utilizava com suas possíveis amantes: surpresa, açoite, erotismo, sedução e sexo. Embora como não conseguisse este último, tentou adquiri-lo pelas más. Respirou fundo, retornou para o vestidor, pegou uma camisa e cobriu o torso. Já que iam falar com seriedade, o mais apropriado era que mantivesse também uma imagem adequada.

? Agora foi você quem ficou calado ? repôs com certa soberba.

? Não tenho nada a dizer ? respondeu com voz serena, aprazível.

? Pois então, deveria prosseguir. Tenho muitas coisas que expor.

Com o rosto elevado, caminhou para ele sentindo seu coração galopar dentro de seu peito e apesar de sentir como as forças foram abandonando-a e sua boca secava. Tinha-o surpreendido. Tinha-o aturdido até tal ponto que não era capaz de olhá-la ao rosto.

Com paciência e sempre mantendo uma distância prudente, observou como subia a calça e a ajustava em sua cintura antes de dirigir-se ao canto onde se encontravam os objetos de asseio. Satisfeita por ter derrotado ao homem soberbo e imperturbável, enquanto ele pegava a escova para desenredar o cabelo, ela adotou a mesma pose que na noite passada mostrou ao seu marido quando a encontrou na banheira: cruzando mãos e pernas. Não era um gesto muito feminino, mas lhe oferecia a aparente segurança que devia mostrar para que Roger lhe prestasse atenção.

? Até este momento, comportou-se como um homem libertino, um predador procurando uma presa que lhe levanta a saia para possuí-la. Não me parece correto, mas deduzo que é normal. Ninguém muda anos de mau ensino do crepúsculo à alvorada. ? Sua voz soava mais firme e tranquila. Entretanto, nem a calma nem a firmeza a possuíam naquele instante. Mas se daquela forma bastava para lhe fazer repensar sobre sua determinação de partir de novo, continuaria fingindo. ? Nem você nem eu decidimos permanecer juntos pelo resto das nossas vidas e estou segura de que se tivéssemos encontrado uma possibilidade para desfazer o compromisso, o teríamos feito. Mas aqui estamos, casados porque meu irmão, a quem adoro apesar de sua maldita façanha, decidiu que nossos futuros deviam unir-se.

? Isso não me exime de...

? Não me interrompa. Tento dialogar com uma pessoa irracional e asseguro que é o trabalho mais desesperador que vivi durante meus anos de existência ? assinalou zangada.

Roger se virou para ela e sorriu. Devia zangar-se por seu descaramento, pela ousadia de lhe falar daquela maneira, mas provocou o efeito contrário. Sentiu-se ditoso e inclusive algo petulante por haver se casado com uma mulher tão temperamental. Possivelmente esse era um dos motivos pelo qual Colin decidiu realizar sua patranha. Quem, a não ser um homem com caráter, poderia dominar a uma fêmea selvagem?

? Entendeu? ? Quis saber. Tinha lhe relatado toda uma lista de mandatos que devia acatar para obter um futuro benéfico.

? É óbvio. Tudo o que disse ficou aqui gravado ? mentiu ao mesmo tempo em que pousava uma mão sobre sua cabeça.

? Perfeito. Então... ? estendeu a mão para afirmar o pacto tal como o faziam os homens.

? Então... ? Roger caminhou, esticou a sua e segurou com força a de Evelyn. ? Esqueçamos o passado e tentemos viver uma nova etapa ? disse com um sorriso. ? É obvio... ? Bennett puxou-a para ele com tanto ímpeto que suas bocas mal se distanciaram. Seu fôlego quente se chocava com os lábios femininos e vice-versa ? farei tudo o que me peça se com isso consigo te fazer ditosa.

Evelyn se esqueceu de respirar. Seus olhos se cravaram nos voluptuosos lábios de seu marido. Outra vez a encantou o aroma, seu aroma masculino. Tragou saliva, pensando que aquele gesto lhe devolveria a prudência. Resultou um engano. Roger pousou seus olhos no pescoço e lambeu sua boca como se insinuasse o que faria na sedosa pele de sua garganta. Enrolava-a, dominava-a, hipnotizava-a até tal ponto que nem recordava se, em algum desses pontos, tinha lhe indicado que não podia beijá-la. Porque se era assim, se realmente havia dito por sua boca tal insensatez, algum dia se arrependeria disso.

? Deseja, minha querida esposa, algo mais?

A voz melosa e suave lhe produziu uns inadequados calafrios. Era tão sedutor, tão terrivelmente encantador que, se seguisse assim por mais tempo, seria ela quem saltaria em seu pescoço e invadiria sua boca.

? Não... ? sussurrou afogada.

? Bem. Pois se me permite ? falou isso enquanto a soltava e retornava ao dormitório. ? Tenho que descer e explicar ao meu amigo que finalmente não partirei. Embora tampouco alonguemos nossa visita. Tenho coisas pendentes em Londres e estou seguro de que meu administrador se alegrará de ver-me.

? É lógico. Sete meses sem sua supervisão terá gerado um interminável trabalho, mas o tempo que permaneçamos aqui, recorde que devemos nos comportar como se tivéssemos um matrimônio afortunado. Agora, se não tem nada que objetar, retiro-me. Imagino que Beatrice terá preparado tudo para dar um passeio. O ar fresco e os quentes raios deste magnífico dia nos virão bastante bem ? comentou de maneira altiva ao mesmo tempo em que se dirigia para a porta.

? Portanto...

? Portanto? ? Repetiu Evelyn em forma de pergunta.

Voltou-se para seu marido esperando que, apesar de sua ordem número quatro, avançasse para ela, apanhasse-a entre seus braços e a beijasse como a noite passada na varanda.

? Ambos estaremos muito ocupados durante a jornada. Que tenha um proveitoso dia, Evelyn ? disse realizando uma exagerada reverência.

? Igualmente, Roger. ? Virou-se, abriu a porta e partiu.

Respirava? Não. Claro que não o fazia! Era impossível poder pensar com claridade estando perto de um homem tão impressionante e tomar ar de uma vez. Evelyn notou como seu peito ascendia e descia com brio. Tinha que controlar aquela ansiedade. Tinha que controlar aquele terrível desejo que notava crescer em seu interior quando se aproximava, quando aproximava sua deliciosa boca à sua, quando...

? Basta! ? Exclamou no meio do corredor, acentuando sua fúria com um forte pisão no chão. ? Acabou-se! Esse homem não me fará pecar! Sou uma Pearson!

E após soprar como um touro, jogou a cabeça para trás, segurou o cabelo e desenhando um enorme sorriso, desceu as escadas.

Roger soltou uma enorme gargalhada ao escutar o grito de sua esposa. Era uma mulher divertida, mais do que ela mesma pretendia. Ao mesmo tempo que deliciosa, erótica, luxuriosa e muitas coisas mais que lhe ocorriam em sua mente perversa. «Está bem, minha querida bruxa, começa o jogo da sedução ? murmurou enquanto terminava de vestir-se. ? Te farei tão viciada em mim que rogará para que te toque, que te beije e que te possua. Gritará com tanta força meu nome quando me introduzir em seu corpo que me deixará surdo. Desejará com desespero que minha boca acaricie seus mamilos. Morrerá por me arranhar as costas quando sentir como arde seu corpo sob o meu e, é óbvio, rogar-me-á que não deixe de te amar pelo resto de nossas vidas. Mas até esse momento... que comece o cortejo!».

 

 

 


CONTINUA