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A SURPRESA DO MARQUES
A SURPRESA DO MARQUES

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

XVIII


Tinha pensado que os duques se encontrariam na sala de café da manhã, possivelmente porque os tinha visto dirigir-se para lá, mas depois de abrir a porta, descobriu surpreendida que não havia ninguém. Caminhou sobre seus passos tentando averiguar onde se achariam quando escutou a voz de Beatrice na biblioteca. Deveria havê-lo suposto. Era o cômodo preferida de ambos. Passavam horas ali dentro: a duquesa lendo algum dos livros ou conversando com seu marido. Invejava-os. Nunca tinha visto um casal tão apaixonado. Não tinham pudor ao proclamar seu amor diante de quem fosse. Em mais de uma ocasião, enquanto ela conversava com Beatrice, o duque se aproximava de sua esposa e a beijava com intensidade. No olhar dela depois de sua apaixonada amostra de amor, nunca encontrou recriminação ou vergonha, só amor, muitíssimo amor.

Evelyn suspirou antes de entrar na sala. Precisava relaxar-se e preparar-se para o sem-fim de perguntas que lhe fariam. Dado que permanecia sob seu amparo, era normal que se interessassem pelo que acontecia entre Roger e ela. Elevou o queixo, sorriu e entrou no cômodo rezando para que pudesse explicar a mudança de decisão de seu marido sem ter que aludir o motivo que o conduziu a partir.

? Evelyn! ? Exclamou a duquesa ao vê-la. ? Entre. Venha, sente-se ao meu lado. Elliot já despertou.

A mulher caminhou devagar em volta dos três desenhando um sorriso. Enquanto Beatrice acolhia em seus braços o pequeno com ternura, o duque fazia gestos graciosos para que sorrisse. Evelyn se repreendeu por interromper um momento tão íntimo, tão familiar, embora não fosse educado contradizer as indicações da duquesa.

Sem afastar seus olhos da imagem caseira, sua mente retrocedeu algo mais de uma década, justo no momento no qual a vida começou a torcer-se, quando as risadas se converteram em prantos, os sonhos em pesadelos e as riquezas... em uma inevitável pobreza.

? Não é apropriado que nossa filha olhe assim ao primogênito dos Wyman. Conforme tenho entendido não pertence a uma família respeitável ? disse Several Pearson a sua esposa no dia de apresentação em sociedade de Evelyn. ? Se forem certos os rumores, anda à caça de uma esposa com uma boa posição social e, como compreenderá, nesta festa nossa filha é a única que possui um dote tão suculento. Estou seguro de que se ela não afastar o olhar, esse descarado logo conseguirá lhe beijar a mão.

? Não se incomode tanto, querido. Não é um jovem bonito. Nossa filha só tem olhos para aqueles que possuem algo mais que um olhar sedutor. ? Sherine agitou o leque com graça, sorriu a uma das convidadas e continuou falando entre sussurros ao seu marido.

? Não foi meu aspecto o que te apaixonou por mim ? sussurrou o senhor Pearson.

? Não, é óbvio que não. ? Voltou-se para olhá-lo e sorriu. ? Foi sua inteligência. Essa que, por sorte, Evelyn herdou. Por isso insisto em que não deve preocupar-se. Deixe que desfrute de seu primeiro evento social. Hoje só quer ser o centro de todas as atenções. ? A senhora Pearson fechou o leque, sustentou-o na mão e beijou o rosto de seu marido.

? Confio em nossa filha e em seu intelecto. Entretanto, esse moço é avaro, ambicioso e acredito que se Evelyn não lhe mostrar interesse, engenharia para conseguir seu objetivo mediante patranhas ? assinalou o senhor Pearson com pesar.

? Patranhas? ? A mulher arqueou as sobrancelhas e segurou com força em sua mão o leque.

? Imagina o que poderia acontecer se a engana e a põe em um compromisso? Arruinaria sua reputação. Se isso ocorresse, se nossa filha se encontrasse em uma situação humilhante, matá-lo-ia ? resmungou.

? Ninguém lhe fará mal. Sempre estaremos ao seu lado para protegê-la. Sempre...

Evelyn esteve a ponto de ajoelhar-se no meio do salão ao recordar a conversação. Nunca esteve ao lado de seus pais naquela tarde, mas sua mãe a tinha repetido tantas vezes que a gravou a fogo na cabeça. Depois daquela noite, Scott a perseguiu com esforço e não houve festa onde ela estivesse em que ele não aparecesse. Os dias se converteram em semanas e, como era de esperar, finalmente se rendeu a todas aquelas palavras e insinuações de amor que lhe dizia em seu cortejo. Apesar da negativa de seus pais, terminaram comprometendo-se. Como ia negar-se a tal acordo se a senhora Wyman os achou em uma situação vergonhosa? Não pôde levantar o rosto quando seus pais foram recolhê-la na festa da família Phaterson. Sentia-se envergonhada por os fazer passar o pior momento de suas vidas, mas foi sua última esperança.

Semanas anteriores tinha descoberto que seus pais pensavam enviá-la com sua tia fora de Londres e estava tão apaixonada que não era capaz de conceber um distanciamento de tal índole. Por isso, depois de comentar ao Scott o que estavam planejando, o moço falou com sua mãe e ela lhes disse exatamente o que deviam fazer para evitar o indesejado destino. Quando o compromisso se anunciou e já não havia volta atrás, Scott continuou insistindo sobre a possibilidade de que seus pais ao final a separassem de seu lado, para fazer frente a tal probabilidade lhe fez uma proposição da qual se arrependeria pelo resto de sua vida.

? Sonhei todos os dias em te ter assim, ao meu lado, sob a luz das velas ? sussurrou o moço enquanto lhe desatava os laços do espartilho e começava a beijar seu pescoço nu. ? O aroma de sua pele, seu sabor, atormenta-me até tal ponto que me resulta impossível viver. Levanto-me pensando em ti, deito-me pensando em ti. Nada é mais importante que você, meu amor.

Evelyn se virou e abriu os olhos encontrando-se com as bochechas ruborizadas de seu amado, desejou as tocar e diminuir aquele fogo, mas quando tentou dirigir as mãos para elas, este as colheu com ternura e as beijou.

? Não te roubarei sua virtude, minha amada. Tomá-la-ei como fazem os maridos às suas esposas. Imagine que já estamos casados, que esta é nossa noite de bodas, que por fim conseguimos tudo o que tanto ansiávamos ? prosseguiu com as mãos femininas em sua boca.

? Não deveríamos esperar um pouco mais? Possivelmente até que celebremos nossas bodas? ? Disse hesitante. ? Minha mãe diz que não há maior presente para um marido que desfrutar da virgindade de sua mulher no dia em que se casam.

? Para mim, para meu coração, nós já estamos casados. Não necessito um papel, uma festa e montões de testemunhas ao meu redor que me confirmem que estou unido à pessoa que amo ? disse com exagerada tristeza. Retirou-se dela como se as palavras da jovem o tivessem zangado profundamente e lhe deu as costas.

? OH, me perdoe! ? Exclamou Evelyn caminhando para ele. Esticou a mão e tentou lhe acariciar as costas, mas o moço, com um movimento rápido, esquivou-se do toque.

? Sei que não me ama com a mesma intensidade com que eu a amo. É normal que seja assim. Eu, um humilde mortal, um homem que não se distingue por ser o cavalheiro mais bonito da sociedade, estou apaixonado pela moça mais bela de Londres ? expôs com aparente angústia.

? Eu também te amo! Amo-te, Scott! ? Exclamou Evelyn ajoelhando-se no chão e cobrindo seu rosto com as mãos. ? Te amo tanto que farei tudo o que desejar ? Disse entre soluços.

? Tudo o que desejar? ? Voltou-se para ela e ao contemplá-la tão totalmente dependente dele, esteve a ponto de gargalhar, mas se conteve.

Ainda ficava a segunda parte do plano que tinha elaborado e saber que estava a ponto de consegui-lo produzia tanta euforia que rezava a Deus para possuir a suficiente paciência para não correr depois de possui-la e cuspir ao pai de Evelyn que ele tinha deflorado a sua virtuosa filha.

? É claro ? falou abaixando a cabeça.

? Vê? É tudo muito mais fácil se esquecer as dúvidas que lhe rondam a cabeça ? assegurou Scott esticando seus braços para que ela se metesse entre eles. Evelyn se levantou e se apertou no corpo do moço. ? Nos amamos e o que estamos a ponto de fazer é só um passo a mais para reforçar nosso amor. Não está de acordo com minhas palavras? ? Suas mãos pousaram na enorme regata que ocultava a esquálida figura de uma menina, quase uma mulher. ? Esta noite e as próximas te farei o amor vestida. Só quando se converter na senhora Wyman poderei ver-te nua ? sussurrou-lhe no ouvido. ? E posso te assegurar que conto os dias para poder te contemplar dessa forma.

? Meu pai tem pensado que se celebre dentro de dois meses ? murmurou em voz baixa. Notava como a boca de Scott começava a esquentar sua garganta.

? Dois meses? Por que tanto, meu amor? ? Aproximou a boca do ouvido e começou a acariciá-lo com a língua.

? Porque será quando o investimento que realizou meu pai no início do ano dê seus primeiros frutos. ? Suas mãos trementes pousaram timidamente nas costas do jovem.

? Será uma soma considerável? ? Inquiriu Scott mais interessado em conhecer a resposta que em excitar a mulher que tinha ao seu lado.

? Acredito que quatro vezes o dote que obteremos ao nos casar.

? Tanto? ? Não pôde evitar separar-se dela e abrir os olhos com intensidade.

? Foi um grande investimento ? respondeu Evelyn surpreendida pela atuação de seu prometido.

? Amo-te, meu amor. Amo-te como nunca ninguém amou a uma mulher ? soltou antes de elevá-la entre seus braços, pousá-la sobre a cama e lhe tirar o único que não deveria lhe haver arrebatado jamais: sua inocência.

? Quer segurá-lo?

A pergunta de Beatrice a fez voltar para o presente. Evelyn permanecia imóvel no meio da sala, apertando os punhos e os dentes. De repente as bochechas se ruborizaram e sentiu vergonha por sua atitude. Quanto tempo tinha passado mantendo aquela inapropriada conduta? Possivelmente o suficiente para que eles percebessem que seus pensamentos não eram agradáveis. Tentando ocultar a dor que sentia em seu coração, avançou para eles desenhando um grande sorriso e mostrando um enorme agradecimento à duquesa.

? Posso fazê-lo? Não se importa que o segure um pouco?

? Não me importa. Além disso, acredito que será benéfico que este travesso se adapte a sentir outras mãos que não sejam as de seus pais. ? Levantou-se de seu assento, esperou que ela ocupasse o seu e com supremo cuidado o pousou sobre o regaço.

Elliot sorria e esticava suas mãozinhas para o cabelo de Evelyn. A mulher, absorta pela figura gordinha e admirando os olhos escuros herdados do pai, abaixou um pouco mais a cabeça para que o bebê conseguisse seu propósito.

? Algum dia terá sobre seus braços seu próprio bebê ? disse a duquesa sorridente. Seu sorriso desapareceu ao advertir que as palavras que dirigiu a Evelyn provocaram mais dor que entusiasmo. ? Acontece algo? Disse algo que possa te incomodar?

? Não ? respondeu aguentando aquelas lágrimas que desejavam sair.

? Finalmente... ? interrompeu William ao observar o pesar da mulher ? o que decidiu meu amigo? Parte ou fica?

? Permaneceremos um par de dias mais, se não vos incomoda, e logo retornaremos a Londres ? respondeu prestando sua atenção nele. ? Roger fez saber que tem muitos assuntos pendentes e precisa finalizá-los o antes possível.

? Parece-me que tomou a decisão correta. Se me desculparem, tenho que informar ao moço de quadra antes que Roger desça. Será bom cavalgar durante um bom momento. ? Aproximou-se de sua esposa, deu-lhe um suave beijo nos lábios, inclinou levemente a cabeça para Evelyn e as deixou sozinhas.

Beatrice não podia deixar de observá-la. Estudava cada gesto de sua amiga com supremo interesse. Tinha percebido o brilho de dor em seu olhar ao comentar a possibilidade de engendrar seu próprio filho. O que teria provocado esse sofrimento? Seria a primeira mulher que não desejava conceber novas vidas? Ou possivelmente, ao não amar ainda Roger, era incapaz de meditar sobre a ideia de formar uma família ao seu lado? Entendia que a priori pensasse que era um homem malvado, mas ela sabia que não era assim. William lhe relatou como tinha pegado Rabbitwood pelo pescoço, como lhe murmurou que o mataria por haver rido da debilidade de seu amigo e como, em mais de uma ocasião, colocou seu próprio corpo para que o impacto de um ou outro marido zangado não o alcançasse.

Se seu marido o adorava como se fosse seu irmão teria seus motivos e estes eram suficientes para que ela também o amasse. Face aos rumores que o perseguiam, estava segura de que Roger Bennett escondia o melhor de si mesmo. Quem, a não ser um homem que protege seus seres queridos, seria capaz de enfrentar seu marido sem saber os sentimentos que albergava em seu coração? Com efeito, ele foi o único que reprovou a decisão de William por deixá-la viver naquela cabana. Nenhum dos dois sopesou as terríveis consequências no caso de que ela tivesse morrido. A Beatrice não cabia dúvida alguma de que Roger era mais sensato do que aparentava, mais honrado do que mostrava e mais terno do que fingia. Só esperava o momento no qual esquecesse quem era e adotasse o comportamento de quem devia ser.

? Gostaria de dar um passeio esta manhã? ? Sugeriu Beatrice enquanto caminhava para a janela e observava seu marido dirigir-se ao estábulo. ? Possivelmente, até poderíamos almoçar no campo.

? Almoçar? ? Perguntou Evelyn sem afastar o olhar do pequeno.

? Sim, não te parece boa ideia? ? Virou-se sobre seus calcanhares fazendo com que o vestido formasse redemoinhos em suas pernas. ? Desde que Elliot nasceu não pude desfrutar de um dia tão esplêndido como este e acredito que também lhe virá bem um pouco de sol.

? Parece-me uma ideia estupenda ? concordou sorridente. ? Ordenarei à Wanda que prepare todo o necessário para essa excursão.

? Não se preocupe, eu mesma informarei as donzelas. Não me cabe dúvida de que a senhora Stone já se adiantou aos nossos planos ? esclareceu com entusiasmo. ? Se quiser, enquanto administro os preparativos pertinentes, pode continuar com o Elliot. Não gosta de permanecer sozinho durante muito tempo.

Beatrice beijou a testa de seu filho e após comprovar que Evelyn afirmava com um leve movimento de cabeça, deixou-os sozinhos. Desejava que sua amiga sentisse o prazer de ter um bebê no regaço e que desta maneira esquecesse aquele pesar que a atormentava. Antes de fechar a porta, voltou a contemplá-la. Tinha abaixado à cabeça e sussurrava uma canção de ninar ao Elliot. Não, não podia ser certo o que ela tinha concluído. Evelyn se sentia feliz com um bebê em seus braços. Entretanto, se ter um rebento com Roger não era o problema, o que seria? Com milhares de ideias possíveis na cabeça, fechou devagar a porta e caminhou para a cozinha. Justo ao tempo que ia pousar a mão na manivela uma ideia brotou em sua mente com tanta força que quase a faz cambalear. «OH, Meu Deus! ? Exclamou para si enquanto se tampava a boca com a mão. ? É isso! É isso!».

Parada em seco em frente à entrada, fechou os olhos e tentou recordar as fofocas das amigas de sua mãe sobre Evelyn. Nada do que recordou respondia à sua suspeita, mas em um tempo no qual a honradez familiar devia estar presente acima de tudo, como ocultar um ato de tal índole? Respirou várias vezes, mais das que deveria. Se estivesse certa, se aquilo tinha ocorrido, Roger teria que considerar conquistar sua esposa de outra forma e não o obteria sem ajuda. Quem teria o suficiente poder para salvar uma alma morta?

? Minha senhora... ? a saudou a cozinheira ao vê-la entrar.

? Olá, Hanna. Evelyn e eu pensamos em fazer um pequeno piquenique junto ao rio. Poderia preparar algo em tão pouco tempo? Sei que William e Roger cavalgarão por essas paragens e eu gostaria de lhes fazer uma surpresa. Além disso, o sol não brilha com tanta intensidade todos os dias... ? concretizou a duquesa ao mesmo tempo em que caminhava de um lugar a outro da cozinha com impaciência, como se estivesse procurando algo.

? Com muito gosto farei isso. Ordenarei à Lorinne que pegue as cestas e sacuda o pó das mantas. ? Hanna deixou de lavar os pratos, cruzou os braços e contemplou a mulher vagar por sua cozinha com inquietação. Quis fechar a boca para não perguntar, mas não o conseguiu. Tudo aquilo que perturbasse a paz de sua senhora, perturbava a sua também. ? O que acontece? ? Perguntou enfim.

? Nada! ? Exclamou parando em seco. ? Por que o pensa?

? Não me engana, lady Rutland ? expôs com voz suave. ? Conheço-a o suficiente para deduzir que esse estado de euforia desmedida camufla algo que a inquieta.

? Não é algo que me incumbe, Hanna, e pode ser que minhas suspeitas não sejam acertadas ? comentou antes de dar um enorme suspiro.

? O que lhe grita o coração?

? Como? ? Beatrice a olhou com os olhos muito abertos. Tinha escutado a pergunta, mas não entendia o que desejava lhe indicar com ela.

? Refiro-me... o que é que seu interior lhe diz?

? Que tenho razão. Que a causa desse temor se deve a algo que lhe ocorreu no passado ? explicou sem fazer referência a nada mais.

? Trata-se da senhora Bennett? ? Como sempre, a senhora Stone acertava em suas hipóteses.

? OH, Hanna! ? Exclamou caminhando para ela para que a abraçasse como tantas vezes o tinha feito. ? Acredito que seu passado a atormenta.

? Que Deus a tenha em mente, porque não se casou com o homem mais apropriado para acalmar sua tristeza ? sentenciou.


XIX


Quando William lhe propôs cavalgar por seus domínios, pareceu-lhe uma magnífica ideia. Precisava sair dali para clarear seus pensamentos. Inquietava-o saber que Evelyn era avessa aos seus encantos, aos seus gestos de cortesia. Mas por outro lado, o fato de ter que cortejá-la, coisa que não tinha tido que fazer com nenhuma mulher, atraía-o o suficiente para meditar um sem-fim de maneiras de fazê-la cair aos seus pés. Quem poderia resistir a um penetrante olhar, a um encantador sorriso e a umas mãos como as suas? Até que conheceu sua esposa, ninguém. Entretanto, Evelyn lutava com integridade para não cair em sua teia.

Meditando como elaborar seu plano, não percebeu para onde partiam até que se encontrou nas planícies que confinavam com o rio Wye. Próxima aonde se encontravam, achava-se a cabana onde Beatrice se ocultou durante pouco mais de meio ano. Não entendia muito bem a razão pela qual William se dirigia para aquele lugar. Imaginou que se tratava de certa melancolia ou talvez seguisse pensando naquilo que lhe gritou no dia em que descobriu a insensatez de seu amigo. Tão cego estava para não sopesar que ela poderia ter morrido naquele lugar e as repercussões que poderia ter sofrido? Não, não era cegueira e sim amor. Rutland estava tão apaixonado por Beatrice que a brindou com tudo o que lhe pedia para fazê-la feliz.

De repente escutou como William fazia parar seu corcel. Não desceu deste. Ficou ali parado, observando a pequena edificação com o cenho franzido.

? E pensar tudo o que ocorreu neste lugar... ? o duque realizou a pergunta de maneira reflexiva, sem esperar que lhe respondesse.

? Não entendo como segue em pé ? comentou Roger a contragosto. ? Se tivesse estado em seu lugar, eu mesmo teria feito pedacinhos de cada pedra.

? Esquece que tenho só uma mão ? respondeu William sorridente.

? Só uma mão é suficiente para destroçá-la ? concretizou Bennett sem diminuir o aborrecimento.

? Cada um escolhe o que é prioritário em sua vida e derrubar este lugar não o é para mim.

? A vida de casado mudou suas prioridades... ? disse zombador.

? Como fará contigo ? soltou antes de tocar o cavalo.

Roger ficou com a palavra na boca. Ia replicar tal afirmação quando seu amigo empreendeu uma veloz marcha. Sem apagar o sorriso de seu rosto, açulou o cavalo e pretendeu alcançá-lo, mas apesar de seu intento, não o conseguiu. William seguia sendo o melhor cavaleiro que tinha conhecido até o momento. Pensou que aquela destreza teria diminuído devido à sua incapacidade, mas não tinha sido assim. Talvez o fato de encontrar Beatrice, de ter uma família pela qual lutar, fortaleceu a coragem de Rutland mais do que o esperado. Durante as épocas nas quais ambos caminhavam por Londres e frequentavam lugares pouco apropriados para cavalheiros, o olhar de seu amigo era sombrio, tenebroso e sempre parecia zangado. Desde que ela apareceu em sua vida, quando observava seu amigo, só achava paz e claridade e um sorriso que lhe cruzava o rosto. Tinha-lhe dado aquela calma que andava procurando, aquele propósito que tanto requeria para continuar vivendo.

Roger diminuiu o trote ao perceber que Rutland parava o cavalo e descia. Surpreendeu-o gratamente que com uma só mão pudesse apoiar o peso de seu corpo sem sequer perder o equilíbrio. Sorriu satisfeito, orgulhoso de contemplar aquela mudança e desejou que algum dia ele pudesse sentir-se assim forte para esquecer seu passado e poder viver um futuro prometedor.

? Se não errar em meus pensamentos, ? começou a dizer o duque pegando as rédeas do cavalo ? temo que hoje almoçaremos ao ar livre. ? Olhou para o céu e confirmou que não havia nuvens que pudessem entorpecer o dia.

? Vai me convidar a um almoço? OH, meu Deus! Escandaliza-me sua proposição! ? Exclamou zombador sentado sobre seu corcel. ? Tenho que te advertir que, por muito que o deseje, não levantarei minhas anáguas para te agradar. Sou uma mulher honrada. ? Abanou-se com a mão esquerda ao mesmo tempo em que subia e baixava as pestanas mostrando perplexidade.

? Refiro-me... ? respondeu com tom cansado ? a que nossas esposas terão decidido aproveitar um dia tão magnífico para sair do lar.

? Não acredito que minha querida esposa decida abandonar o castelo e menos ainda sabendo que andarei por perto ? murmurou ao mesmo tempo em que descia do cavalo. ? Ficará no quarto rezando para que eu não encontre jamais o caminho de volta.

? Se o fizesse, compreendia-a. Até o momento se comportou como um vilão e não esteve à altura de suas expectativas. Possivelmente deixaria de se esquivar de suas atenções se descobrisse quem é na realidade ? disse Rutland com voz pausada.

? E quem sou, segundo você? ? Roger arqueou as loiras sobrancelhas, elevou seu lábio superior para enfatizar seu aborrecimento e, dando duas largas passadas, alcançou o duque.

? Um mentiroso. Uma pessoa que não é capaz de mostrar-se tal como é por medo de apresentar debilidade. Sempre nos educaram para confrontar com integridade qualquer adversidade. Somos homens, cavalheiros da alta sociedade e não está bem visto que exibamos nossos sentimentos a outros. Mas, embora o tente, não me engana. Sei que se encontra perdido. Eu, em sua situação, também o estaria. Não é fácil assumir que, da noite para o dia, sua vida se pôs do avesso. Ali onde antes encontrava liberdade, agora vê o mundo passar através de uns barrotes de aço. Equivoco-me? ? William arqueou as sobrancelhas e esperou a resposta.

? Só é uma nova etapa... ? murmurou Bennett abaixando a cabeça. ? Só tenho que saber como aguentá-la com integridade.

? Um matrimônio é muito mais que uma nova etapa ? prosseguiu Rutland parando seu caminhar e contemplando seu amigo. A expressão de Roger mudou, embora tentasse dissimulá-lo com um de seus típicos sorrisos. ? Já não está sozinho. Há uma pessoa ao seu lado que padece e sente como você. Cada manhã despertará junto a ela e o primeiro que desejará é observar seu rosto. Precisará vê-la feliz para conseguir sua própria felicidade. Quando a escutar falar, quando opinar sobre qualquer tema, advertirá que suas palavras são semelhantes às tuas. Cada sorriso, cada amostra de afeto, congelar-te-á e a receberá com mais entusiasmo que qualquer fortuna ou herança ansiada. Terminará se convertendo em parte dela e ela em parte de ti. Por isso deveria lutar contra os demônios que não o deixam mostrar quem é em realidade. Se os liberar, se fluírem de seu interior...

? Também serão os seus, certo? ? Interrompeu-o franzindo o cenho. ? E, como crê que se sentirá minha querida esposa ao compreender que se casou com um homem a quem sua família despreza? Ao qual desejam ver morto? Poderá lutar contra esse demônio? Será capaz de viver sabendo que a mãe de seu marido tentou assassiná-lo em mais de uma ocasião? Diga-me , Rutland! Pode alguém viver conhecendo esse horror?

? Mostre-lhe sua vida. Deixe que ela mesma descubra com quem viverá o resto de seus dias e não oculte seus medos. Só assim acharão a paz ? respondeu com firmeza.

? Sua teoria sobre o bom matrimônio é idílica. Mas em meu caso não é viável ? repôs frivolamente.

? Não se esconda embaixo desse pesar. Sai de sua prisão e vive de uma vez! ? Clamou Rutland com tanta força que sua voz se escutou retumbar entre as árvores.

? É fácil exortar quando não se encontra em minha pele. Entretanto...

Roger não continuou com sua defesa. As risadas de umas vozes femininas o fizeram emudecer. Tal como havia predito William, em uma pequena pradaria junto ao rio, as mulheres tinham estendido umas mantas e preparavam o almoço. Beatrice se movia de um lado para outro colocando as cestas sobre os tecidos enquanto Evelyn brincava com Elliot. Elevava-o e baixava-o para o fazer rir ao mesmo tempo em que ela gargalhava pelas expressões do menino.

Bennett tragou saliva e sentiu que seu coração dava um tombo. Não estava encantado pela forma como ela desfrutava com o pequeno, mas sim pela felicidade que expressava seu rosto. Era uma imagem esplêndida. Com as montanhas de fundo, virtualmente mostrava um dos famosos quadros pintados à óleo do alemão Christian Morgenstern. Luz, claridade, simplicidade e beleza. As qualidades principais de uma deusa, sua deusa. Ela não tinha reparado em que a metade de seu cabelo se soltara do coque e brilhava com mais intensidade que o sol, nem que seu vestido formava redemoinhos sobre sua cintura levantando-o justo para ver as pernas embainhadas em umas meias de seda brancas. Era uma beleza selvagem, pura e sedutora.

Roger segurou com mais força do que o necessário as rédeas do cavalo. Precisava sentir o apoio de algo sólido para não cair ao chão ajoelhado ante tanta plenitude. Ele não era digno de uma mulher assim. Nunca tinha feito algo tão importante para que a vida lhe recompensasse com a presença de uma dama tão encantadora. Ele só merecia desprezo, horror e tenebrosidade.

? Não escuto sua réplica ? disse divertido William ao contemplar quão abstraído estava Bennett. ? Cortou sua língua com os dentes?

? Não a mereço... ? murmurou Roger.

? Eu tampouco merecia uma mulher como Beatrice. Lembre-se, Bennett. Eu fui o culpado de sua desgraça, do inferno que passou sozinha naquela maldita cabana. Só Deus sabe o horror que padeceu durante aquele tempo: sozinha, desprotegida, humilhada pelos atos de um malnascido, sem ninguém que pudesse socorrê-la... mas a vida deu uma segunda oportunidade a ambos. Graças à minha esposa sou um homem afortunado e me sinto vivo. Não há manhã em que abra os olhos e não me sinta ditoso por tê-la ao meu lado, por ter uma mulher por quem daria minha vida. Agora toca a ti descobrir a felicidade, sentir que se ela respirar, você também o faz. Deixa de lado seus sofrimentos ou compartilha-os com ela, mas não permita que a escuridão que te rodeia destroce não só sua vida, mas também a dela ? disse antes de abandoná-lo no alto da colina e correr para sua esposa.

? William! William! ? Gritou a duquesa ao observar que seu marido corria para ela. Segurou o vestido com ambas as mãos e saiu em sua busca salteando os obstáculos que encontrou no caminho. ? Sabia que descobriria meu plano ? disse Beatrice com entusiasmo. Abraçou-o e o beijou com paixão. ? Já não há segredos entre nós dois, não é? ? Murmurou quando seus lábios se distanciaram.

? Imaginei que não deixaria passar um dia tão magnífico ? respondeu Rutland sem soltar a cintura de sua esposa.

? Seria uma pena não aproveitar, por isso mesmo sugeri a Evelyn sair de Haddon e desfrutar do sol. Por certo... ? voltou seu rosto para Roger, quem não afastava a vista de sua esposa. ? O passeio foi frutífero?

? Mais do que eu esperava. Embora receie que necessita de um pouco mais de tempo. Os sucessos importantes devem meditar-se com tranquilidade ? expôs.

Beatrice suspirou, apoiou a cabeça sobre o peito de William e sem soltar-se, ambos desceram a colina. Esperava que Roger os seguisse, mas quando deu a volta para comentar se desejava acalmar sua sede, observou que seguia acima, de pé, agarrado às rédeas do cavalo e com o olhar cravado em Evelyn. O que estaria pensando? Talvez repensasse sobre a conversação que tinham mantido? Fosse o que fosse, impedia-o de aproximar-se deles e desfrutar de um excelente plano. Com pesar sentou-se sobre uma das mantas estendidas, deixando livre ao seu marido para que saudasse o pequeno. Evelyn o pousou com cuidado sobre o braço e enquanto o pai caminhava com seu filho, a mulher decidiu acompanhá-la.

? Foi uma estupenda ideia ? comentou ao mesmo tempo em que apoiava o queixo sobre os joelhos.

? O quê? ? Perguntou Beatrice sem acertar ao que se referia.

? Vir. O fazer um piquenique ? respondeu levantando as sobrancelhas.

? É bom sair de casa e sentir a liberdade que nos brindam estas paragens.

? Há certas pessoas que não parecem contentes com a decisão... ? disse com certo pesar.

? Necessita de tempo. É um homem muito especial, Evelyn. Nem todos se adaptam a uma mudança com a mesma integridade. ? Aproximou-se dela e estendeu um braço sobre os ombros aflitos de sua amiga.

? É um egoísta, presunçoso e arrogante! ? Exclamou enfurecida. ? Como é capaz de comportar-se desta forma tão descortês?

Beatrice se dispunha a responder quando uns passos próximos se escutaram atrás de suas costas. De soslaio, a duquesa percebeu que por fim se decidiu a acompanhá-los e em questão de segundos ideou a maneira de deixá-los sozinhos. Deviam falar. Deviam abrir seus corações e expressar os sentimentos que os atormentavam. Se não o faziam, se não fossem capazes de compartilhar as emoções que os levavam a realizar tais comportamentos, terminariam arruinando suas vidas.

? Sim, meu amor? ? Perguntou olhando a William. Levantou-se e sem dizer uma só palavra, dirigiu-se para o duque trotando.

Evelyn ficou na mesma posição, apoiando seu queixo sobre os joelhos. Seus olhos observavam a paisagem, as montanhas, as árvores florescendo, a água cristalina do rio. Tudo ao seu redor proporcionava uma estranha calma. Entretanto, quando percebeu que atrás dela uma enorme figura lhe tampava o sol, sentiu um terrível calafrio.

? Bonito dia ? disse a modo de saudação Roger.

? Sim, com efeito. Faz um dia magnífico ? afirmou sem afastar o olhar do horizonte.

? Gostaria de...? Gostaria...?

? O quê? ? Inquiriu Evelyn movendo com suavidade seu corpo para onde se encontrava seu marido.

Podia-se deter o tempo? Porque ela desejava que naquele momento, tudo se paralisasse. Adorou a expressão duvidosa de Roger ao falar. Desfrutou de sua gagueira e ficou muito cativada, novamente, por seu físico. Vestia-se com um traje para montar. A jaqueta, como ditavam as normas da moda, até a cintura e com dois botões dourados que a fechavam na frente. O colete, mal perceptível, era de cor âmbar. Mas o que deixou Evelyn na expectativa foram as pernas, ocultas sob uma apertada calça branca que perfilava cada músculo. Tentou afastar o olhar, deixar de observá-lo e sentir como um poderoso fogo começava a queimá-la desde seu interior. Não o conseguiu. Por mais que o odiasse, por mais que tentasse enganar-se acreditando que aquele homem não era sedutor, era-o e bastante.

? Um passeio ? expôs enfim. ? Você gostaria de dar um passeio? ? Bennett avançou justo até colocar-se em frente à sua esposa, estendeu sua mão e esperou que ela a aceitasse, mas não o fez.

? Tem pensado me afastar da presença dos duques para me assaltar de novo? ? Exigiu saber com uma mescla de medo e surpresa. Apoiou as palmas sobre o tecido e ela mesma se levantou.

? Não seria má ideia... ? afirmou zombador ? mas minhas intenções não são tão pouco decorosas. Gosto de passear e manter um bate-papo distendido. Se você também o desejar, é claro.

? Me beijará? ? Elevou as sobrancelhas e entrecerrou os olhos.

? Só se estiver dentro daquelas insofríveis normas que me relatou em meu quarto. Embora muito me temo que, conforme escutei, o mandato número quatro diz que não devo fazê-lo, estou certo? ? Comentou divertido.

? Escutou-me? ? Perguntou confusa.

? Se por acaso não reparou nisso, nasci com duas orelhas e, graças a Deus, escutam perfeitamente. Outra questão é que eu deseje ouvir o que outros conversem. ? Situou suas mãos atrás das costas e, sem esperar que ela se colocasse ao seu lado, empreendeu uma marcha lenta.

Zangou-se como fazem as meninas pequenas ao não conseguir aquilo que tanto anseiam. Só lhe faltou espernear no chão e cruzar os braços para expressar seu aborrecimento. Outra vez a deixava com a palavra na boca. Outra vez saía gracioso de um enfrentamento com ela. Outra vez deixava-a nocauteada com sua figura, com seu sensual sorriso e com aqueles olhos tão profundos que pareciam despi-la em silêncio.

Com aparente tranquilidade, Evelyn esticou o vestido e caminhou atrás dele. Não acelerou o passo, queria que ele reduzisse o seu ou a esperasse posto que fosse o mais cortês. Mas não aconteceu. Roger seguia o mesmo ritmo. Esticava suas longas pernas tanto que três passos dela se convertiam em um só dele. Finalmente, rendeu-se. Avivou sua andança e não a diminuiu até que se encontrou diante de seu marido.

? Lonely Field não é tão imenso como Haddon Hall, ? falou com suavidade enquanto elevava o queixo e observava com admiração a natureza que os rodeava ? mas é meu pequeno paraíso. Ali me encontro muito feliz.

? Seather Low não é nem uma décima parte deste lugar e também me faz feliz. Não acredito que o tamanho de nossas fazendas seja importante e sim os sentimentos que provocam quando se aproxima na carruagem e observa através da janela as pontas do telhado... ? explicou dominando a inquietação que lhe provocava sentir-se tão próxima a ele.

? Tem saudades? ? Roger cravou as solas dos pés no chão e se voltou para ela.

O sol intensificava a cor de seu cabelo, as pestanas se uniam com suavidade para proteger os olhos azulados, as mãos descansavam nas costas e mantinha o corpo erguido e imperturbável.

? É claro! ? Exclamou rapidamente. ? Por que pergunta?

? Tinha dado por certo que, depois de amanhã, partiria ao meu lado para Lonely. ? Sua voz era suave, terna. Entretanto, a calidez de suas palavras contrariava os gestos de seu rosto. Apertava a mandíbula como se estivesse partindo uma noz.

? Não sei... tenho que pensar muitas coisas antes de tomar uma decisão tão importante. ? Evelyn queria soltar uma gargalhada, mas se conteve. Em lugar disso, colocou suas mãos nas costas, adotou a figura erguida que exibia seu marido e caminhou sem olhá-lo.

? Uma mulher como você, ? começou a dizer Roger, apertando os dentes para não elevar o tom, e continuando depois dos passos dela ? tão preocupada com a opinião que possuem os outros, deveria imaginar que o distanciamento de um casal recém-casado seria um tema muito suculento para cochichar nos círculos sociais.

? O propósito da fofoca, meu estimado Roger, apoia-se em oferecer uma novidade ? soltou Evelyn. ? Como compreenderá, que nos separemos outra vez depois de nos casar, já não é de interesse social. Se pretender me convidar a viver em seu lar, deveria me indicar outra causa mais razoável.

? Pode me iluminar? Não sou habilidoso em certos temas ? informou controlando a ira que começava a sobressaltá-lo.

? Poderia alegar que preciso me hospedar em seu lar para tentar que nosso matrimônio seja frutífero ou para que nos conheçamos melhor, posto que devemos viver juntos o resto de nossas vidas. Possivelmente pode acrescentar que se habitarmos sob o mesmo teto, poderia descobrir quem é na realidade ? alegou com firmeza.

? Quer saber quem sou na realidade? Deseja descobrir o que oculto embaixo desta aparência? ? Suas perguntas não evidenciavam zombaria e sim medo. Aquele temor fez com que Evelyn se detivesse e contemplasse o rosto de Bennett. Ficou assombrada ao vê-lo. Seu olhar expressava escuridão, tenebrosidade e inclusive ceticismo. O que albergaria em seu interior para ter tantas dúvidas, tanto temor?

? É óbvio que desejo saber quem é! ? Bradou elevando os braços para enfatizar suas palavras. ? Acaso não lhe importa quem sou eu? O que fiz antes de a conhecer?

? Não! ? Exclamou com veemência. ? Só me interessa quem é agora e em quem se converterá no futuro, porque o que tenha feito, dito ou sido no passado, carece de interesse para mim.

? E se eu for uma delinquente? E se no passado matei uma pessoa e o ocultei durante todo este tempo? ? Colocou-se em frente a Roger e o olhou desafiante. A inapetência por conhecê-la, por revelar a pessoa que permaneceria ao seu lado provocou-lhe um terrível aborrecimento. Ela sim desejava conhecer seu marido. Apesar de todos os rumores sobre o caráter azedo, esquivo e impudico que o definiam as pessoas que falavam sobre ele, Evelyn suspeitava que se tratasse de uma aparência errônea e que escondia alguém mais profundo.

? Matou alguém? ? Exigiu saber.

? Não ? respondeu com rapidez.

? Então... por que vou pensar que é uma criminosa? ? Entrecerrou seus olhos e olhou fixamente aos dela.

? Era só um exemplo. Não me conhece o suficiente para me abrir as portas de seu lar com tanta facilidade. ? Relaxou sua postura, jogou uns passos para trás e prosseguiu o passeio. O caminho chegava ao seu fim. Um pequeno riacho, crescido pelas chuvas de meses anteriores, resolvia a vereda.

? Não seria a primeira vez que teria que lutar com uma aspirante a assassina ? murmurou para si.

? Como? ? Mal tinha escutado as palavras de Roger, mas a dúvida sobre o que interpretou naquele sussurro a fez virar-se de novo para ele.

? Perguntava-me se seu comportamento esquivo se deve a que ainda conserva sua virtude.

Mudou de tema de maneira radical. Pelo assombro que mostrava o rosto de Evelyn soube que o tinha escutado e que tentaria indagar sobre sua reflexão. Assim decidiu abordar um tema muito escandaloso para uma mulher.

? Como?! ? Perguntou sem poder elevar a voz e avermelhada de vergonha.

? Refiro a se é... ? sua sensual boca se estendeu em um sorriso lento.

? E você? Você é? ? retrucou morta de vergonha e enfurecida.

? É claro que não! ? Exclamou orgulhoso.

? Pois eu tampouco ? sentenciou.

Depois de sua afirmação, Evelyn se virou com tanta rapidez que o vestido se enredou em suas pernas. Perdeu o equilíbrio e fechou os olhos ao ver como lhe resultava impossível parar seu impacto sobre o chão. Entretanto, as fortes mãos de Roger impediram que caísse não sobre o caminho, mas sim sobre a borda do rio que fazia finalizar o trajeto.

? Então outro homem deflorou a minha esposa... ? sussurrou aproximando sua boca à da mulher. ? Que dote possuiria tal personagem para conseguir aquilo que me resulta tão difícil?

? Solte-me ? resmungou.

? Não deveria... ? aproximou um pouco mais seus lábios dos dela. O olhar azulado se enegrecia e os dedos se cravavam no corpo feminino.

? Eu disse para me soltar ? repetiu pressionando com força os dentes.

? Está segura disso, minha pequena bruxa? ? Elevou várias vezes suas loiras sobrancelhas e elevou seu lábio superior para a direita.

? Por acaso essas duas orelhas não o deixam escutar o que indico? ? Resmungou.

? Como desejar! ? E a soltou.

Evelyn caiu de bunda sobre algo úmido e gelado. Quando baixou seu olhar para o que a fazia esfriar, começou a golpear com seus punhos. Tinha-a arrojado ao rio! Todo seu vestido estava empapado de água e de lodo! Com uma irritação impossível de sufocar, observou como Roger se afastava dela sem parar de gargalhar. Quanto mais ele ria, mais a ira nascia em seu interior. Emanando por sua boca milhões de impropérios inadequados para uma mulher, levantou-se e pisando no chão como se quisesse que sua sola atravessasse a terra, dirigiu-se para o plano onde os duques estariam desfrutando de um maravilhoso piquenique.

? Deus bendito! ? Exclamou Beatrice ao vê-la aparecer. ? O que aconteceu? ? Dirigiu o olhar para Roger, que não cessava suas gargalhadas, e o retornou para Evelyn. A saia gotejava atrás de seus passos deixando uma esteira brilhante, seu cabelo, alvoroçado, estava coberto de barro e movia as mãos com ímpeto para tirar a sujeira.

? Jogou-me ao rio! ? Bufou zangada assinalando-o com um dedo inquisidor.

? Roger! ? Gritou William irado.

? Não me olhem como se o tivesse feito a propósito ? defendeu-se. ? Ela me suplicou que a soltasse.

? Mas não sabia que cairia sobre a água! ? Replicou Evelyn com um intenso chiado.

? Não é uma desculpa ? respondeu Beatrice caminhando para sua amiga. ? Poderia ter avisado que se a soltasse ela poderia terminar empapada.

? E perder o assombro de seu rosto? ? Arqueou as sobrancelhas e prosseguiu com suas gargalhadas.

? Vamos ? disse a duquesa abraçando a aflita mulher. ? Retornemos a casa. Poderia pegar uma pneumonia nesse estado.

? Necessitam de ajuda? ? Perguntou Rutland avançando para elas.

? Prefiro que parta com o Roger ? olhou-o suplicante.

? Está bem ? respondeu o duque. Ato seguido olhou ao seu amigo e lhe ordenou irado. ? Sobe nesse maldito cavalo! Você e eu temos que conversar sobre como se tem que tratar uma esposa.

? Como desejar! ? Exclamou divertido. ? Minha querida bruxa... ? disse dirigindo seus olhos para Evelyn ? esperarei com impaciência sua chegada. Preocupa-me que um ato infantil possa te provocar uma grave enfermidade. Morreria de pena se decidisse me abandonar justo no momento no qual já não posso viver sem ti.

Pegou as rédeas do corcel, subiu ao leste de um salto e tocou ao animal com energia.

Wanda, espectadora do acontecido, uma vez que os homens partiram, sacudiu as mantas nas quais os duques tinham permanecido e correu para sua senhora para cobri-la.

? Casei-me com um ser desprezível, com um monstro ? murmurava enquanto batia os dentes.

? Acredito que agora não é o momento de te pedir paciência, não é? ? Assinalou Beatrice sem afastar-se dela.

? Não, neste instante a paciência desapareceu, mas cresceu a vontade de assassiná-lo ? respondeu com firmeza.

? Bom, se te consola, dir-lhe-ei que da ira ao amor só há um pequeno passo ? prosseguiu Beatrice enquanto caminhavam para as carruagens.

? Amor? Fala de amor quando todo meu corpo está intumescido pelo frio? ? Levantou as sobrancelhas e abriu tudo o que pôde seus olhos. ? Quando meu marido partiu sem tentar me socorrer?

? Se eu te narrasse as coisas que me dizia meu marido antes de averiguar que entre nós não havia ódio e sim amor... ? tentou apaziguá-la contando algum acontecimento divertido entre ela e William, mas Evelyn a interrompeu energicamente.

? Prefiro não as escutar. Não me interprete mal, Beatrice, todas suas conversações são agradáveis para mim, mas te asseguro que agora mesmo não desejo escutar nada sobre esse tema. O único que quero é chegar ao meu quarto, tomar um bom banho quente e tentar esquecer o que aconteceu. Espero que manhã o horror e a vergonha tenham desaparecido porque do contrário... ficarei viúva com prontidão!


XX


Como era de supor, nenhum dos dois falou durante a cavalgada. Tampouco o desejavam. Roger estava tão ansioso por chegar a Haddon Hall que tocou ao cavalo com tanto brio que o animal ficou exausto. Quando entrou nas cavalariças, baixou-se com rapidez, entregou-o ao moço e esperou a aparição de William. Enquanto este retornava, colocou-se na porta da quadra, levando as mãos para o bolso de sua jaqueta e amaldiçoou em voz alta ao não encontrar cigarros. Não se lembrava de que os tinha jogado pela janela quando Evelyn o visitou e lhe enumerou todas aquelas normas estúpidas às quais mal prestou atenção, a todas exceto àquela porque lhe produziu um grande espanto, devia deixar de fumar porque odiava o aroma de tabaco.

Resignado por não acalmar seu estado de nervosismo com um vício que levava fazendo desde que cumpriu os dezoito, olhou para o exterior. O sol começava a ocultar-se atrás das montanhas nas quais tinham permanecido. Era uma tarde cálida, possivelmente anunciava o final da primavera e o princípio de um verão caloroso. Bennett sorriu de lado ao refletir sobre o estado de ira que perduraria em Evelyn. Recordou-a de novo sentada sobre o caudal do rio, golpeando a água inerte como se com isso pudesse saciar sua raiva. Ela não imaginava a perfeição que exibia com seus movimentos, com seu nariz enrugado e com o brilho que projetavam suas bochechas ao serem tocadas pelos raios do sol. Estava tão zangada que não era consciente da beleza selvagem que apresentava com cada gesto, com cada gritinho e inclusive com cada maldição. De repente, uma estranha e inesperada dor em seu peito fez que levasse uma das mãos para seu torso. Não estava acostumado a rir daquela forma e seu corpo o recriminou com aquela pontada. Ou possivelmente não se tratava de uma chamada de atenção de si mesmo, mas sim algo mais intenso que não desejava imaginar nem deduzir.

? O cavalo veio fatigado ? indicou o moço com certo receio.

? Fez uma boa corrida. Recompensa-o ? respondeu com desdém.

Sem dizer nada mais, Mathias retornou ao interior do estábulo, acariciou ao animal e lhe sussurrou algo no ouvido que Roger foi incapaz de decifrar. Embora pelo olhar de repúdio que lhe oferecia, intuiu que o estava amaldiçoando. Justo quando decidiu caminhar para a entrada da casa e esperar ali a William, este apareceu pelo atalho. Não galopava e sim trotava, como se alongasse de maneira consciente a chegada ao seu lar.

? Dá água aos cavalos. Fizeram um grande esforço ? disse ao baixar-se de seu garanhão. Deu uma palmada nas nádegas do cavalo e, sem olhar ao seu amigo, dirigiu-se para o jardim.

? Não vai recriminar meu ato descortês? ? Perguntou Roger caminhando atrás do duque.

? Serviria de algo? ? William se virou sobre seus calcanhares e enfrentou o olhar de Bennett. Seus olhos, escuros como uma noite sem lua, estavam injetados em sangue. Parecia que, com aquelas penetrantes pupilas, pudesse carbonizá-lo igual um fogo faz cinzas de uma bela paisagem.

? Não foi minha culpa ? desculpou-se de novo. ? Ela me disse que...

? Ela me disse, eu lhe disse, ela me fez, eu lhe fiz... ? comentou zangado. ? Não se dá conta de que se comportam como crianças? Esqueceu a maturidade que suscita ter pouco mais de três décadas de vida?

? Se Evelyn fosse mais submissa, mais acessível... ? assinalou franzindo o cenho.

? Crê que se ela tivesse te aceitado com rapidez estaria lhe ronronando como um gato doméstico? Bobagens, Roger! Se sua esposa se comportasse igual a todas as mulheres com as quais dormiu, não estaria tão desesperado nem tão entusiasmado por alcançá-la. Acaso não se observa? Não é consciente de como a olha? Tomá-la-ia diante de todos se ela te aceitasse!

? Não me sinto tão enfeitiçado para...

? Mentira! E o pior de tudo isso é que engana a si mesmo. Sabe o que pensei quando a conheci? Que Deus tinha sido generoso contigo porque te tinha dado uma mulher com valia. Não só tem o físico que tanto ansiava encontrar em uma esposa, mas sim seu caráter, esse que tanto se esforça em aplacar, é tão semelhante ao teu que não é capaz de assumi-lo. ? Voltou a girar-se e tentou conseguir seu propósito: chegar à biblioteca para tomar uma taça de brandy.

? É teimosa, voluntariosa, indomável, ressentida, perniciosa! ? Clamou sem mal respirar e elevando seus braços para o céu.

? E você? Como é você, Roger? ? Indicou antes de abrir a porta e fechá-la com força, deixando seu amigo no exterior.

Bennett ficou parado a escassos palmos da entrada. De repente teve vontade de correr para o jardim que havia sob o balcão de seu quarto e procurar, como um cão de caça, todos os charutos que tinha jogado pela manhã. Mas pensou melhor ao compreender que não era uma atitude apropriada para um cavalheiro como ele. A opção correta era mandar Anderson os recolher enquanto se dirigia para a biblioteca, lugar onde seu amigo se ocultava quando se zangava ou precisava ficar em calma.

Pegando a redonda e dourada aldrava com força, golpeou a porta até que o senhor Stone a abriu. O mordomo não recriminou seu inapropriado gesto. Nenhum olhar irado, nem palavras que lhe indicassem sua inadequada ação surgiram na boca do ancião. Só se afastou para lhe facilitar o caminho para o interior e abaixou a cabeça. Bennett caminhou com rapidez para a habitação. Quando acessou a esta descobriu que William tirou a jaqueta e que deixava estendido o braço inerte. Na outra segurava uma pequena taça cheia de líquido ambarino. Só virou ligeiramente o rosto ao escutá-lo entrar. Logo, como se a presença de Roger não o perturbasse, caminhou devagar para a janela que mostrava o atalho pelo qual deviam aparecer as carruagens em qualquer momento. Era de imaginar que precisava confirmar que Beatrice, Elliot e Evelyn chegavam sem contratempo algum.

Enquanto se dirigia para o pequeno móvel bar, Bennett meditava sobre a mudança que se produziu em Rutland desde que encontrou sua esposa. Não era o mesmo, ou talvez sempre tivesse estado ali aquela conduta sob a couraça sombria que apresentava aos outros. Aquele infinito amparo, aquele desejo de amar a mulher que o acompanhava, eram, para Roger, interesses estranhos. Porque, embora ele fosse consciente de que sua vida tinha mudado, não albergava em seu interior esse afã de custodiar Evelyn a cada momento do dia.

? Indicarei ao Anderson que prepare nesta mesma tarde a bagagem para partir amanhã ? disse com voz pausada, relaxada, mas firme.

? Evelyn me disse que partiriam, mas não tão cedo. Se não recordar mal, disse que suas pretensões eram se dirigir a Londres depois de amanhã ? respondeu sem afastar o olhar do exterior e tomando um pequeno sorvo de sua taça.

? É a melhor opção dado que nossa presença aqui perturba sua quietude. Além disso, antes de desembarcar, recebi uma missiva do meu administrador requerendo minha presença o antes possível ? comentou relaxadamente. Levou a taça para seus lábios e bebeu um pouco de brandy devagar, deleitando-se quando este passava por seu paladar.

? Antes... ? voltou-se para seu amigo e o olhou com os olhos entreabertos ? deveria explicar à sua esposa a decisão que tomou. Acredito que ela também terá algo que opinar a respeito.

? Não vou obrigá-la a viajar ao meu lado. Três dias na mesma carruagem, sem poder fugir, aguentando meu mau humor e me contemplando mais perto do que ela deseja, converterá uma árdua viagem em um inferno. Estou seguro... ? voltou a dar outro sorvo ? que decidirá abandonar seu lar dias depois da minha ida.

? De todos os modos, faça-a saber. Embora se estivesse em seu lugar, primeiro subiria ao seu quarto e lhe pediria desculpas por seu inapropriado ato infantil.

? Subir ao seu quarto? ? Perguntou Roger elevando as loiras sobrancelhas. ? Se voltar a pisar em seu dormitório não sairei vivo.

? Penso igual a você, mas deve tentá-lo. Se falecer ali acima, prometo que te prepararei o melhor funeral que Londres tenha tido em anos.

Ambos, por fim, soltaram juntos uma enorme gargalhada. Era a primeira vez em muito tempo que riam com tanta intensidade. Depois de aproximar-se, brindaram pelo futuro e gritaram salut. Nesse instante a voz aguda de Evelyn criou um eco maligno por toda a casa. Quiseram cobrir suas orelhas e evitar o atroz ruído, mas aquilo só provocou que as gargalhadas continuassem até que a porta se abriu e apareceu Beatrice com Elliot nos braços.

? Está furiosa! ? Exclamou. A duquesa avançou pela sala e não cessou seu caminhar até que o corpo de William tocou o dela. Pela expressão alterada de seu rosto, ambos os cavalheiros imaginaram como tinha sido o trajeto de volta a casa. Nada aprazível, é óbvio. ? Acredito que a senhora Stone deveria lhe preparar uma infusão de tília se deseja acalmar aquela raiva.

? Não diminuiu sua ira? ? Perguntou Rutland beijando o cabelo de sua esposa.

? Diminuir? Melhor diria que aumentou. Não cessava de amaldiçoar! Tive que cobrir Elliot com meus braços para que sua primeira palavra não seja...

? Não seja? ? Interrompeu Roger zombador.

? Malnascido, descarado ou canalha ? respondeu ofuscada. ? O que fez não foi certo. Humilhou-a diante de nós ? disse com aborrecimento.

? Não era minha intenção, Beatrice. Ela me disse que a soltasse e obedeci a seu mandato ? respondeu frivolamente.

? Mesmo assim, não foi apropriado. Demorará pouco mais de uma semana em tranquilizar-se e, muito me temo, que quando te vir, sua raiva crescerá.

? Bom, isso tem solução ? disse antes de beber o que ficava em sua taça e pousá-la sobre a mesa.

? A que se refere? O que pensa fazer? ? Olhou primeiro a um e logo a outro.

? Pretende partir amanhã ? respondeu-lhe William.

? À alvorada, se for possível ? acrescentou Roger.

? Pois se esse é seu propósito, ? indicou Beatrice sem afastar seus olhos dele ? deveria informá-la o antes possível. Tem que preparar muitas coisas antes de partir.

? Não pretendo que me acompanhe ? assinalou com voz firme e pausada.

? De todos os modos lhe explique quais são suas pretensões e que Evelyn decida o que deseja fazer. Não volte a escolher por ela porque se o fizer, o significado de perdão desaparecerá de seu vocabulário ? sentenciou. E atrás de suas palavras, elevou Elliot para que o pequeno rosto tocasse o ombro materno, e partiu.

? Outra taça? ? Ofereceu-lhe William ao observar a expressão dúbia de seu amigo.

? Ou quatro... ? respondeu antes de suspirar profundamente.

Evelyn entrou na habitação sem poder fechar a boca. Dela brotavam milhares de insultos para seu marido e cada vez estes eram mais enérgicos. Tinha-a ofendido, degradado diante dos duques. Sem contar que também lhe tinha destroçado o vestido, arruinado seu elaborado penteado e ferido seu orgulho. Odiava-o com todas as suas forças não só por jogá-la ao rio, mas sim pelo comportamento risonho que este tinha mantido após sua inapropriada atitude. Era um ser desprezível, malvado, teimoso, instigador e, sobretudo pernicioso.

Evelyn esticou as mãos e apertou os tecidos do vestido que alcançaram as palmas. Por que a tinha jogado ao rio? Por que não impediu que seus pés tocassem a água como faria qualquer cavalheiro? Até o idiota do Scott, que mal olhava outra coisa que não fosse sua vaidade, estendeu sua jaqueta no chão para que seus sapatos não tocassem um atoleiro que lhe impedia de prosseguir um passeio. Entretanto, seu marido, o homem que devia protegê-la pelo resto de sua vida, preferia zombar de seu ato enquanto ela sofria uma pneumonia. Por que a deixou padecer essa vergonhosa situação? Possivelmente o motivo não era outro que a negação contínua de beijá-lo. Ou talvez, porque lhe confessou que não possuía sua virtude.

Determinada em achar uma razão lógica, rememorou o momento exato em que as grandes mãos de Roger deixaram de sustentá-la. «Então minha esposa foi deflorada por outro homem... ? tinha sussurrado enquanto sua boca se aproximava da sua. ? Que dote possuiria tal personagem para conseguir aquilo que me resulta difícil de alcançar?». Não. Esse não tinha sido o instante no qual a jogou e sim quando ela insistiu em que a soltasse. Além disso, seu marido não a olhou com ira quando escutou que tinha deixado de ser virgem. Seus olhos, depois da confissão, tornaram-se negros, advertindo que o único que sentia nesse instante era um terrível desejo. Zangada ao dar-se conta que Roger só tinha acatado seu mandato, começou a despir-se só apesar da insistência de Wanda por ajudá-la.

? Não fique aí parada ? grunhiu à desconcertada donzela. ? Me prepare um banho quente.

? Sim, senhora ? respondeu a criada abaixando a cabeça e saindo do quarto com prontidão.

Quando a mulher partiu Evelyn se arrependeu de sua descortesia. Nunca tinha tratado Wanda daquela maneira. Ela não era uma mulher soberba, nem altiva para expressar um mandato tão cheio de ira. Entretanto, estava desenquadrada. Talvez já possuísse essa loucura desde que soube que devia casar-se com um desconhecido e, é óbvio, não tinha decrescido ao descobrir que a pessoa com quem devia permanecer pelo resto de sua vida era um ser repugnante. Por uns momentos, quando o viu aparecer atrás de sua marcha depois de meses de ausência, acreditou que tinha mudado, que tinha meditado sobre o inesperado futuro e que isso lhe provocaria uma modificação em sua personalidade, mas não foi assim. Seguia sendo um canalha, um descarado, um homem que não respondia ao papel que devia ostentar: o de um marido exemplar.

Dirigiu-se para a penteadeira e quando observou a sujeira de seu cabelo, gritou de novo. O barro, já seco, agarrava-se com força às mechas de cabelo. Com brio foi arrancando cada montículo de lodo que sob a pressão de suas mãos se desvanecia. O rosto, avermelhado pela ira, não mostrava as pequenas e presumíveis sardas que lhe ofereciam uma aparência juvenil. Estava suja, não só no exterior, mas também no interior. Onde se achava a mulher que uma vez foi? Onde se escondia a venerabilidade, a educação e o saber estar que ela tanto cuidava? Tinham desaparecido. Tudo aquilo que trabalhou durante anos para poder converter-se em uma mulher respeitável ante a sociedade evaporaram-se após conhecer seu marido. Era um diabo e ela estava transformando-se em outra aberração similar. «Os homens ? recordou as palavras de sua mãe depois de lhe comentar que estava apaixonada por Scott ? não são o que aparentam. Embaixo dessa figura correta, serena e inquebrável, há uma pessoa muito diferente. Uma vez que obtêm o que tanto anseiam, revelam seu verdadeiro ser». Mas Roger não mostrava esse comportamento. Não ocultava seus inapropriados desejos e se manifestava ao seu desejo. Se a afirmação de sua querida mãe era correta, o que acharia embaixo dessa aparência? Mais maldade? Mais crueldade? Antes de poder responder-se, Wanda apareceu com dois caldeirões de água quente. Evelyn se levantou de seu assento e caminhou atrás dela.

? Não tire ainda as anáguas ? alegou a criada ao ver que sua senhora estava disposta a despir-se por completo. ? Faltam uns quantos cubos mais para encher a tina.

Evelyn assentiu e retornou ao quarto enquanto a criada saía de novo para terminar o antes possível seu encargo. Um pouco mais acalmada, caminhou de novo para a penteadeira e tomou assento na suave banqueta de veludo negro. Derrubou-se levando as mãos para o rosto em um gesto de esgotamento e desespero. Como ia sobreviver pelo resto de seus dias junto a uma pessoa como Roger? Como ia aparentar que eram um casal auspicioso quando só desejava lhe arrancar o coração com suas próprias mãos? Era impossível adotar o papel de boa esposa. Levavam pouco menos de quatro dias juntos e em vez de crescer em seu interior certo apreço, brotava justamente o contrário. Estava destroçada, derrubada, cansada. Suas emoções eram incorretas. Devia, muito ao seu pesar, controlar aquele mau gênio e elevar-se de novo para converter-se em quem foi: uma mulher respeitável. Uma mulher que lutava com integridade ante as adversidades que lhe oferecia a vida. Resignada começou a chorar, rompendo a promessa que se fez anos atrás: não derramaria nenhuma só lágrima mais por um homem.

? Eu não gosto que as mulheres chorem. ? A voz espessa de Roger apareceu entre as sombras.

? Se você não gosta, por que você tenta obtê-lo? ? Soltou depois de dirigir seu rosto para ele.

? Não imaginei que te refrescar poderia te perturbar tanto ? comentou cruzando os braços e os pés como se estivesse relaxado, mas não era assim. Sua mandíbula, apertada com força, indicava que se encontrava intranquilo, preocupado.

? Refrescar-me? ? Perguntou com uma mescla de ira e surpresa. Evelyn não o pensou, olhou para tudo aquilo que havia sobre a penteadeira e começou a lançar. ? É um ser maligno! Uma aberração da natureza! ? Gritava a viva voz. ? Saia! Saia agora mesmo! Não quero voltar a ver-te jamais!

Roger teve que mover-se para não ser alcançado pelos objetos que lhe jogava. Só o vidro de perfume esteve a ponto de impactar em seu rosto. Divertido, mais que zangado, esquivava-se de tudo aquilo que lhe projetava com uma agilidade desumana. Adorou observar que não tinha diminuído seu caráter, que cada vez que se encontrava presente, ela lutava com afã para apartá-lo de seu lado. Aquela batalha, embora devesse assustá-lo e afugentá-lo, proporcionava-lhe um efeito tão prazenteiro que, por mais que Evelyn desejasse seu distanciamento, provocava-lhe mais interesse em permanecer junto a ela. Mas devia partir. Necessitava que ela acalmasse sua ira e tomasse de novo a lucidez.

Quando já não havia nada mais que lhe lançar, Evelyn se levantou do assento e caminhou para ele com os punhos elevados.

? Odeio-te! Amaldiçoo-te! Não posso viver com um homem tão desprezível! ? Seguiu clamando até que suas mãos se encontraram com o duro peito masculino e começou a golpear.

Roger não se defendeu. Deixou que ela acalmasse sua raiva sobre seu corpo. Tinha razão. Por mais que lhe doesse assumir que lhe tinha feito mal, o fez. Não foi até que notou como a intensidade de seus golpes diminuiu quando decidiu estender seus braços e pegá-la pela cintura. Os soluços não diminuíram, mas sim aumentaram de intensidade fazendo com que ele se sentisse aquele ser malvado que ela proclamava com tanto afinco.

? Sinto... ? murmurou em voz baixa. ? Sinto muito te deixar zangada, te haver humilhado diante dos meus amigos, de não ter sido capaz de encontrar a maneira de te fazer feliz.

? Não é justo... ? sussurrou Evelyn colocando sua testa no torso de seu marido. ? Não é justo... ? repetiu uma e outra vez.

? Sei, ? respondeu em tom suave ? por isso decidi partir. Acredito que a melhor opção para não te provocar mais dano é me afastar de ti.

? Como? ? Separou-se dele, limpou-se as lágrimas e o olhou desconcertada. ? Vai abandonar-me de novo?

? Não é o mais sensato? Pensa um pouco, Evelyn. O que aconteceu entre nós desde que estamos juntos? Nada bom. Mal tivemos um momento de paz. Sempre discutimos, sempre nos machucamos. Que outra alternativa fica? ? Voltou-se para a porta, colocou suas mãos nas costas e permaneceu imóvel.

Olhou-o sem piscar, abstraída pela variedade de sentimentos e divagações que a açoitavam naquele momento. Renunciava a ela de novo. Nem sequer se dignava a lutar pelo matrimônio. A tristeza ao ver como seu coração se fazia pedacinhos, perturbou-a tanto que notou uma estranha debilidade nas pernas. Por que, se sabia que devia mudar seu caráter para satisfazê-la, não o fazia? «É a primeira pergunta que sabe responder ? disse para si. ? Porque não te ama».

Abalada, virou-se e caminhou para os pés da cama. Pegou o primeiro dossel de madeira que encontrou e abaixou a cabeça.

? Foge como um covarde ? disse com firmeza. ? Nem se quer contemplou a possibilidade de lutar por este matrimônio.

? Não quero te machucar. Não o merece, ? falou isso sem olhá-la ? chegou até os meus ouvidos que sofreu no passado. Que se encerrou em seu lar durante anos para não padecer a humilhação que outra pessoa te ocasionou. Embora meus atos não desejaram provocar tal sentimento, têm-no feito, e não quero que volte a acontecer. Sou uma pessoa solitária, Evelyn. Eu gostei da liberdade que eu mesmo criei e nunca, ? ressaltou ? nunca, feri a uma mulher. Como notará, que você seja a primeira em sofrer meus inapropriados atos, faz-me pensar em muitas coisas.

? Por isso vai partir? ? Olhou-o desafiante. ? Porque sou a primeira mulher que não cai em seus braços enlouquecida de desejo?

? São muitas as razões pelas quais pretendo me afastar de ti, e te posso assegurar que nenhuma delas contempla o que diz ? respondeu com firmeza.

? Então o que te separa de mim? ? Insistiu.

? Não sei, Evelyn. Estou confuso. É a primeira vez que não posso atuar como devo. Ou talvez, estou tão acostumado a exercer um papel, que não sou capaz de me retratar.

? E por que não o tenta? Por que não me deixa ver quem é na realidade? ? Segurou-se com tanta força ao dossel da cama que, se tivesse sido a garganta de uma pessoa, teria lhe quebrado o hioide.

? Quer ver a pessoa com quem se casou? ? Respondeu voltando-se para ela. Seus olhos brilhavam tanto que não fazia falta a luz das velas para distingui-los. ? Quer pesquisar dentro de mim?

? Sim ? respondeu com aparente firmeza.

? Pois sou a pessoa que, apesar de sentir-se como um velhaco, como uma besta cruel e depravada, está contando os segundos que faltam para te ter em meus braços, para que minha língua brinque com seus seios e consiga elevá-los demandando mais. Para que meu sexo te possua, para escutar seus gemidos ante a chegada do prazer. Isso é o que deseja, Evelyn? Quer ouvir a verdade? Pois sou um libertino, um mulherengo, um homem que...

? Basta! ? Gritou a mulher zangada. ? Não prossiga!

? Avisei-te disso. É melhor que me vá. ? Virou-se sobre seus calcanhares e esticou a mão para a manivela para sair o antes possível dali.

? Continua mentindo! ? Prosseguiu com a voz elevada. ? E embora me custe a vida, embora achar a verdade requeira um terrível suplício por minha parte, achá-la-ei.

? Faça o que desejar... ? murmurou com a cabeça encurvada. ? Mas te advirto que só encontrará decepção ? sentenciou antes de partir.

Evelyn ficou petrificada. Sua mãe tinha razão. Os homens mostravam uma aparência e após conseguir o que tanto ansiavam, revelavam sua verdadeira personalidade. Seu marido lhe tinha devotado um mísero sinal do que escondia embaixo daquela magnífica figura marmórea. Com efeito, sob a frieza que tanto ansiava exibir, achou um halo de sensibilidade. Não era muito, apenas uma pincelada, mas o suficiente para indagar sobre quem era a pessoa com a qual estava casada e por que atuava daquela maneira.

Evelyn afrouxou seu agarre sobre o dossel e caminhou até poder sentar-se sobre o colchão. Tinha que lhe dar aquilo que tanto se esforçava em ter. Devia entregar-se a ele se de verdade queria descobri-lo. Mas... estava disposta a oferecer seu corpo para tal propósito? Tão desesperada se encontrava por averiguar o que escondiam aqueles azulados e intensos olhos? Sim, é óbvio que sim. O único que requeria era averiguar quando era o momento idôneo para entregar-se a seu marido sem que este suspeitasse sobre a finalidade dessa entrega.

? Encontra-se bem, senhora? ? A voz de Wanda a fez despertar de seus pensamentos.

? Sim ? respondeu com rapidez.

? Vi... tropecei com o senhor ? gaguejou ante a preocupação.

? Veio me informar que adiantou a partida. Partiremos amanhã ? explicou caminhando atrás dela.

? Senhora! É impossível preparar tudo em tão poucas horas! ? Exclamou a donzela aterrorizada.

? Basta-me um baú. Preparem o resto dos meus pertences após a minha partida ? indicou enquanto se despojava das poucas roupas que cobriam seu corpo.

? Irá sozinha? ? Perguntou com assombro.

? Parto com meu marido, Wanda. Não há nada que temer.

? Eu não estaria tão segura, minha senhora. Eu não estaria tão segura...


XXI


Não podia dormir. Fazia bastante tempo que não escutava ninguém rondar pelos corredores, então supôs que seria mais de meia-noite. Levantou-se devagar da cama tentando não despertar Wanda, a pobre donzela tinha decidido jogar um colchão sobre o chão e dormir junto a ela se por acaso despertava alterada ao recordar o acontecimento da tarde.

Evelyn não tinha sido capaz de fechar os olhos nem um só instante. Suas divagações sobre como devia render-se ao prazer carnal que tanto ansiava seu marido sem que descobrisse seu verdadeiro propósito a impediam de conciliar um sonho reparador. Pousou com suavidade os pés no chão, caminhou até à poltrona de veludo vermelho e pegou a bata de seda negra. Era a última peça que recordava seu tempo de luto, seu passado, seu período de agonia. Estava sozinha, sem ninguém que a consolasse, que a cuidasse ou freasse seus desmesurados episódios de ira. Não podia apoiar-se em Roger, posto que ele estava mais preocupado em ocultar sua verdadeira personalidade que em ocupar-se das necessidades de sua esposa.

Enquanto atava a corda da bata meditou sobre as razões que levaram Colin a acreditar que ele seria um bom marido. O que descobrira para tramar um plano tão aberrante? Possivelmente observou aquela pequena pincelada que ela percebeu na habitação? Aquela insignificante amostra de consideração o tinha conduzido a pensar que seria o marido ideal? Fosse o que fosse, já não havia volta atrás, nem tampouco podia lhe gritar que se equivocou ao tomar tal decisão. Agora ela devia continuar com o que Colin começou e averiguar quem era Roger Bennett porque se não o fizesse... que espécie de casal seriam?

Olhou a donzela e sorriu ao vê-la descansar com tanta paz. Adorava-a. Converteu-se na mãe que necessitava, de que tinha saudades. Amava-a tanto que não podia viver sem ela, mas não podia lhe contar o plano que tinha esboçado.

Sobre seus pés descalços caminhou pelo chão até alcançar a saída. Daria um pequeno passeio. Desde muito pequena, quando não conciliava o sono, saía de seu quarto e meditava sobre aquilo que a perturbava agasalhada pela paz e a quietude do crepúsculo. Rara vez não o conseguia. À noite, o momento no qual todo mundo descansava sob a suavidade dos lençóis, ela se relaxava abraçada pela escuridão. Com lentidão abriu a porta e a fechou. Uma vez no corredor, respirou profundamente. Precisava afastar-se dali para repensar e procurar como iniciar sua trama. Não lhe resultaria fácil entregar-se a um homem de novo. Sentia pavor. Só de pensar que outra vez seria tomada com ansiedade, com necessidade, sem importar seus sentimentos, destroçava-a. Scott não tinha sido muito considerado com ela. Utilizou seu corpo para conseguir seu diabólico objetivo e logo, quando já não lhe importou, abandonou-a à sua sorte. Não teve piedade ao saber que ela estava grávida, nem sequer meditou sobre o dramático futuro do filho que crescia em seu ventre. Não lhe importava nada salvo o dinheiro.

Aflita ao recordar aquela horrenda época, continuou seu caminho. Apoiou a mão direita no corrimão e desceu com todo o sigilo que pôde. Não desejava chamar a atenção de nenhum criado, nem que a descobrissem rondando pela casa ataviada com uma camisola e uma bata. Não tinha dúvida alguma o que imaginariam: que após seu episódio de ira, tinha enlouquecido.

Sua respiração começou a agitar-se quando conseguiu alcançar a porta principal. Devia desencaixar o ferrolho com grande mestria, já que no silêncio da noite, em uma casa tão grande, qualquer pequeno ruído se escutaria com grande estrondo. Evelyn esticou a mão para o fecho e, justo quando o ia girar, descobriu atônita que não estava fechado. Como era possível que uma pessoa como o senhor Stone tivesse esquecido de fechá-lo? Pelo pouco que o conhecia dava por certo que o mordomo rondava e confirmava a segurança da casa umas dez vezes antes de descansar. Absorta no pequeno detalhe, pousou os dedos nos pinos, jogou-os para trás e a grande porta de madeira se abriu sem esforço.

A escuridão da noite a recebeu. Não havia brisa que a esfriasse, nem o tempo estava arruinado. O ambiente era quente, prazenteiro, igual tinha sido à tarde. Com cuidado para não se machucar com as pedrinhas da entrada, andou até chegar ao corrimão de mármore. Dali podia observar o paraíso que rodeava a residência de Haddon Hall. A propriedade do duque era imensa. Tanto que sua vista não conseguia alcançar os limites desta. Apoiou os cotovelos e colocou seu rosto nas mãos para admirar melhor a beleza silvestre da paisagem. Sua residência era muito pequena comparada com a do duque. Possivelmente nem alcançava aquela décima parte que tinha indicado a Roger durante o passeio, mas era certo que seu lar lhe oferecia tudo aquilo que precisava. Nunca passearia por um jardim com uma variedade incontável de flores, ou gozaria de uma cavalgada de mais de duas horas, entretanto Evelyn não trocava suas tardes lendo no alpendre ou o som do manancial que crescia atrás de seu lar por nada. «E entretanto ? disse para si ? deixarei tudo o que amo para lutar por um matrimónio, que, tal como auguro, está destinado ao fracasso». Entristecida de novo por sua reflexão, afastou as mãos do corrimão e deu a volta.

? Boa noite, minha querida bruxa. ? Roger, com a agilidade de um felino, colocou-se atrás dela. Sua proximidade era tal que ao virar-se seu peito roçou o de seu marido, que, como vinha sendo um costume nele, levava-o descoberto. ? Sofre de insônia?

? O que faz aqui? ? Retrucou mal-humorada pelo repentino assalto.

? Isso mesmo me perguntava eu, que sucesso tão inoportuno faria com que minha esposa abandonasse seu quarto embelezada com apenas um fino objeto de seda negra? ? Seus olhos se cravaram nela com a mesma intensidade que uma adaga atravessa o peito de um adversário.

? Cheira a brandy ? assinalou sem diminuir seu aborrecimento.

? Mas... ? disse afastando-se dela e sorrindo ? isso não estava dentro de seus mandatos. Só fez referência ao pestilento aroma do tabaco, equivoco-me?

? Precisava tomar um pouco de ar fresco ? respondeu à pergunta omitindo a zombaria que destilavam suas palavras.

? Bem, pois então viemos os dois com o mesmo propósito ? afirmou. Afastou-se dela e começou a caminhar.

Desceu pelas escadas e começou a rondar pelo amplo jardim. Evelyn o seguia com o olhar. Desejou retornar ao seu quarto e encerrar-se nele até a alvorada, mas algo em sua cabeça lhe gritou com força que não o fizesse, que se de verdade ia levar a cabo seu plano, necessitavam de intimidade. Tragou saliva e com passo firme o seguiu.

? Deveria partir ... ? murmurou Roger ao descobrir que ela o perseguia. ? Não sou uma pessoa sensata quando bebo.

? Confio em você ? afirmou sem hesitações. Até ela mesma se surpreendeu de tal afirmação, então não estranhou que Roger se virasse e mostrasse perplexidade em seu rosto masculino.

? Umas palavras muito insensatas depois do acontecido entre nós. ? Prosseguiu sua aventura até chegar a uma fonte de pedra. Bennett a observou com o cenho franzido. Sabia o que tinha acontecido naquela pequena fonte e conhecia a história de como e quem a destruiu.

? Far-me-á mal? ? Insistiu Evelyn sem frear seu passo.

? É óbvio que não! ? Exclamou Roger zangado. ? Não sou um monstro, embora não me caiba dúvida de que albergue tal possibilidade depois de tudo o que tenho feito após a conhecer. Mas prometi que não insistirei em lhe tocar e cumprirei minha palavra. Embora para você seja um cavalheiro sem honra, não o sou.

? Sei que cumprirá o combinado. Prova disso é que deixou de fumar ? disse em voz baixa.

? Está me resultando uma árdua tarefa ? confessou zombador. ? Durante esta tarde pensei em recolher todos os charutos que tinha jogado pelo meu balcão e fumá-los de uma sentada.

? Mas? ? Insistiu Evelyn desenhando um pequeno sorriso em seu rosto.

? Mas como te disse, eu gosto de cumprir minhas promessas ? esclareceu com solenidade.

? Não entendo a razão pela qual se esforça em me ocultar quem é na realidade ? murmurou Evelyn de maneira reflexiva. Içou o olhar e o contemplou parado diante de uma pequena fonte de pedra despedaçada.

Não compreendeu a razão pela qual, em um lugar tão bem cuidado, o duque não a tinha reconstruído. Ressaltaria ainda mais a beleza do jardim e estava segura de que ofereceria uma imagem perfeita se, ao acessar a entrada do cativante éden, os olhares se centrassem no aprazível broto de água.

Roger emudeceu ao escutá-la. Apertou os punhos com força e desejou contribuir ao destroço que começou William tempos atrás. Em vez disso, suspirou profundamente, sentou-se sobre uma das pedras quebradas da fonte e abaixou a cabeça. O que devia lhe responder? Seria sensato responder a verdade? Que nada! Até o momento nenhuma mulher se preocupou em averiguar seus sentimentos, seus pesares ou suas angústias. Só queriam achar um bom amante na cama e serem suficientemente boas para que ele voltasse a visita-las. Mas Evelyn era diferente. Soube antes e o confirmava naquele instante. Ela lutaria com afã para achar o verdadeiro Roger. Entretanto, gostaria de descobri-lo? Viveria feliz após conhecer a realidade?

? Seu irmão não foi sensato ao te fazer casar comigo. Não sei o que viu em mim para lhe dar a entender que seria um bom marido, mas fosse o que fosse, equivocou-se ? disse com pesar. ? Só te farei mal e não merece viver desta forma. Conforme tenho entendido, seu passado não esteve repleto de felicidade.

? Vê? ? Disse-lhe estendendo o sorriso que mostrava seu rosto. ? Já temos algo em comum. Ambos acreditamos que meu irmão errou em seu propósito, mas aqui nos encontramos, em meio a um idílico paraíso, falando sobre a incorreta determinação do Colin. ? Sentou-se ao seu lado entrelaçando as mãos.

? É certo o que me escreveu o senhor Lawford? ? Perguntou depois de uns instantes de silêncio. Tempo que investiu em se obrigar a não estender seu braço e aconchegá-la junto a seu corpo para que não sentisse frio ao levantar uma suave brisa.

? Desconheço o conteúdo dessa carta, ? explicou entrecerrando os olhos ? então não posso te confirmar se era ou não certo. ? Estavam tendo uma conversação alongada? Evelyn estava surpreendida do que acontecia entre eles. Por fim podiam falar de algo sem que a avassalasse com insinuações inapropriadas. Entretanto, depois de tomar a decisão de entregar-se a ele, preferia que começasse uma espécie de cortejo posto que, dessa maneira, seu propósito seria mais acreditável.

? Que lhe quebrou sua melhor garrafa ? concretizou antes de soltar uma gargalhada. Relaxou-se tanto que estirou as pernas e colocou seus braços em forma de cruz atrás da cabeça.

? Não sabia que era seu melhor licor, mas sim, tinha razão. Embora em minha defesa alegue que foi em um ataque de raiva. Não estou acostumada a me comportar desse modo ? esclareceu.

Suas bochechas se tingiram de uma intensa cor vermelha, envergonhada daquele comportamento. Não era próprio de uma dama como ela deixar-se levar pela ira até tal ponto, mas ao não poder liberar-se da trama que elaborou Colin, enlouqueceu.

? Ri muitíssimo, tanto que, quando me sentia triste em alto mar, voltava-a a ler ? acrescentou arrogante. ? Embora pareça uma loucura, senti-me orgulhoso da sua conduta. Acredita-me se disser que eu não gostava da ideia de estar casado com uma mulher dócil.

? Mas meu comportamento foi desprezível. Como pode se vangloriar disso? ? Perguntou assombrada.

? Não foi desprezível, Evelyn. Atuou como uma mulher de valia. Além disso, tinha-o merecido. Aquele ladrão é muito vaidoso e se gaba de realizar uns trabalhos insuperáveis ? explicou olhando para o céu.

? Como acalmou sua angústia? Porque imagino que seu propósito ao te escrever era obter uma recompensa por meu ato inapropriado. ? Virou-se para ele e o contemplou como um pintor observa sua obra acabada.

? Paguei-lhe a quantia daquela garrafa e lhe enviei seis mais. Assim, se decidisse retornar e lhe quebrar outra, não lamentaria tanto a perda. ? Voltou seu semblante para ela e sorriu levemente. ? Bom, minha pequena bruxa, ? disse levantando do assento ? tenho que retornar ao meu quarto. Devo descansar um pouco antes de partir.

? Abandona-me de novo? ? Murmurou com pesar.

A pergunta e o tom que empregou para fazê-la o deixaram congelado. Não esperava que depois do acontecido entre eles, mostrasse tristeza, mas sim entusiasmo. Mas errava de novo. Não entendia como podia equivocar-se tanto com ela posto que, até que a conheceu, sabia com exatidão o que desejavam as mulheres.

? Como te expliquei, permanecer ao meu lado só lhe produziria pesar e não quero te fazer mais dano ? raciocinou.

? E se eu quiser partir contigo? ? Levantou-se e se colocou a menos de dois palmos de distância. O calor que desprendia o corpo de Roger esquentou-a com tanta intensidade que acreditou queimar-se. Estava em frente a um homem que, por mais que evitasse, começava a apreciar. O ato que teve com o senhor Lawford ou inclusive o de lhe advertir que ao seu lado não seria feliz, fizeram com que Evelyn se sentisse ditosa, mais do que ninguém a tinha feito sentir até aquele momento.

? Não quero que pense que tem a obrigação de fazê-lo. ? Colocou seus braços nas costas, virou-se e abaixou a cabeça. ? Imagino que, até agora, todo mundo te indicou o que deveria fazer e eu não quero ser mais um. Com o tempo descobrirá que valoro muitíssimo a palavra liberdade. Eu adoro, sinto-me vivo se for capaz de fazer tudo aquilo que desejo e não é justo que você não consiga o mesmo. Por isso, ? começou a caminhar de retorno à casa ? quero que tome um tempo para meditar sobre o que gosta de fazer. Prometo que seja qual for sua decisão a respeitarei.

Os olhos de Evelyn se encheram de lágrimas. Era a primeira vez que alguém lhe oferecia a oportunidade de escolher. Ninguém em sua família, nem sequer Scott, tinha escutado seus desejos, sempre o que eles ditavam era um mandato que devia cumprir imediatamente. Seus pais tinham recriminado uma e outra vez sua conduta posto que não fosse uma filha respeitável, ao Scott tinha urgido possui-la e convertê-la em sua esposa, até que descobriu que já não possuía o dote que lhe prometeram e se esfumou, e por último seu irmão... o pobre Colin antes de morrer também lhe marcou o futuro que devia padecer.

Afastou as lágrimas que percorriam seu rosto para perceber que Roger se afastara dela. Deixava-a sozinha para que repensasse e soube que suas premissas sobre ele eram certas, que embaixo daquela couraça metalizada se escondia um homem mais profundo e generoso do que mostrava. Tinha que romper aquela blindagem e lutar com unhas e dentes para revelá-lo, averiguar quem era a pessoa com a qual devia viver pelo resto de seus dias.

Olhou como caminhava para as escadas com a cabeça abaixada e os ombros inclinados ligeiramente para frente. «Meu Deus, ? rezou ? ajude-me. Se o que eu estou a ponto de fazer é uma loucura, que caia sobre mim sua ira. Mas se pelo contrário, a imprudência que vou realizar conquista meu propósito, deixe-me que continue». Elevou seu rosto para o céu, esperando uma resposta. No firmamento não havia nem uma só nuvem, estava tão desafogado que podia contar as estrelas. Evelyn apertou suas mãos e...

? Roger! ? Gritou correndo para ele. ? Roger! ? Insistiu ao ver que ele não se virava.

? Que... ? respondeu.

Ao voltar-se e contemplá-la, ficou imóvel. Trotava para onde estava com uma premente necessidade, seu cabelo vermelho ondulava pelo vento como uma das pequenas velas de seu navio, o laço da bata se desfez e revelou a fina e casta camisola branca com a qual se cobria. Por um instante Roger pensou que suas pernas perdiam a força e que os joelhos se cravariam no chão. Por um instante pensou que havia se deitado, que estava dormindo e que o que contemplava era somente um produto de sua imaginação. Por um instante, só por um instante, desapareceu o Roger que todos conheciam e emergiu quem realmente era: um homem afortunado por haver se casado com uma deusa.

? Diga-me... ? acertou a dizer.

? Beije-me! ? Clamou. Ficou parada em frente a ele, elevando seu rosto tudo o que alcançava. A respiração, agitada pelo esforço, fazia com que sua boca se abrisse mais que de costume.

? Como? ? Perguntou assombrado.

? Beije-me! ? Repetiu com força.

? Não era a norma número quatro a que me advertia que...?

Não conseguiu terminar sua pergunta. Evelyn esticou seus braços, rodeou-lhe o pescoço e uniu sua boca com a dele. Foi um beijo casto, com quase nenhuma paixão, mas o suficiente para que a mulher tremesse de emoção. Era a primeira vez que se lançava a um homem. Era a primeira vez que desejava ser beijada.

? Isso para você é um beijo? ? Inquiriu Roger quando ela separou seus lábios.

? Não gostou?

Evelyn abaixou a cabeça e se ruborizou pela vergonha.

? Conhece-me pouco... ? murmurou enquanto levantava com suavidade o queixo feminino. ? Muito pouco...

Apoderou-se de seus lábios com desejo. Sua língua invadiu a boca da mulher com paixão, com ânsia. Esticou as mãos e a atraiu para ele. O corpo de Evelyn encaixava-se à perfeição com o seu. Não eram duas figuras unidas, mas sim uma. Cada roce, cada carícia que a língua realizava, esquentava a mulher até limites inimagináveis. Ambos começaram a tremer pela sensação de plenitude que lhes provocou aquele beijo. Contra sua vontade, Roger se separou dela. Seus olhos permaneciam fechados. Seu peito se elevava com afã tocando o seu. A camisola, aquele objeto minúsculo que ocultava a bela figura de sua esposa não evitou que os mamilos endurecidos se cravassem em seu torso.

? Isto, minha querida bruxa, é um beijo ? sussurrou afogado pela luxúria.

Evelyn não pôde responder. Ainda tentava controlar os tremores que açoitavam seu corpo, seu ser. Retornou aquela incansável queimação entre suas pernas e pela primeira vez em sua vida notou um palpitar em outro lugar que não fosse o peito.

? Boa noite, Evelyn ? disse Roger afastando-se de sua esposa a contragosto.

? Boa noite, Roger ? respondeu em voz baixa.

Deixou que caminhasse diante dele. Como se a protegesse de qualquer perigo, suas costas tocavam o tórax nu de seu marido. Com aparente integridade entrou no hall e subiu pelas escadas. Tudo lhe dava voltas e começava a enjoar. Segurou-se ao corrimão com força e pisou em cada degrau como se quisesse atravessá-lo. Antes de virar-se para seu quarto, voltou a vista para ele. Permanecia imóvel, observando-a sem piscar. Evelyn suspirou e avançou com lentidão para seu quarto. O corpo lhe pesava mais de uma tonelada fazendo impossível realizar movimentos graciosos. Com suavidade se meteu em seu quarto. Sem fazer ruído tombou na cama, jogou-se o lençol e fechou os olhos.

Possivelmente não tinha sido boa ideia elaborar o plano. Possivelmente deveria retratar-se e abandoná-lo o antes possível porque, se somente com um beijo a exaltava até o ponto de perder a razão, o que não aconteceria quando aquela língua dominante lambesse cada parte de seu corpo. Tremendo pela excitação e arrependendo-se de seu propósito, adormeceu.


Roger esteve olhando-a até que desapareceu. Controlou sua ânsia de correr para Evelyn, elevá-la entre seus braços e conduzi-la para seu quarto para possui-la tantas vezes quantas seu sexo lhe permitisse. Mas se conteve. Custou-lhe uma enorme e intensa dor em suas partes nobres, mas o conseguiu. Sua esposa não era como as mulheres que tinha conhecido, não se equilibrava sobre ele para obter prazer e sim para lhe dar de presente um beijo. Um beijo tão infantil que o deixou pasmado. Não conseguia conceber como uma mulher que tinha gozado da companhia de um homem podia beijar igual a uma jovenzinha de dezesseis anos. «Não se martirize ? disse. ? Recorda que aquele seu prometido morreu antes de casar-se. Talvez, como presente antes da partida, ofereceu-lhe sua virtude e não conseguiu saber como se desfruta de um verdadeiro ato sexual». Aquele pensamento excitou ainda mais a Roger. Se suas divagações fossem certas, se Evelyn era casta na cama como era ao beijar, ele teria a honra de ser seu professor e fazê-la gritar de prazer. Muito ao seu pesar sua mente lhe ofereceu a imagem dela nua em sua cama, movendo a cabeça e agitando seu cabelo ao possui-la. O pensamento lhe pareceu tão real que até notou em suas costas como cravava as unhas ao ser sacudida pelo clímax. Abaixou a cabeça e respirou tantas vezes quantas lhe foram necessárias para acalmar a excitação que tinha crescido sob sua calça. Não era o momento idôneo para fazê-la sua. Pretendia que, assim como lhe pediu um beijo, pedisse-lhe todo o resto. Seria a primeira vez que se frearia para dormir com uma mulher, mas estava seguro de que a espera valeria a pena.

Depois de inspirar com profundidade dirigiu-se para a biblioteca. Devia acalmar-se o antes possível e uma garrafa de brandy era uma boa alternativa.


XXII


? Está segura do que vai fazer? ? Perguntou Wanda pela quinta vez. Seguia insistindo que não lhe parecia correto que Evelyn empreendesse uma viagem tão longa sem uma donzela que pudesse assisti-la.

? Muito segura ? afirmou sem duvidar. ? É justo que acompanhe ao meu marido. Além disso, nada acontecerá ao seu lado.

? Não me refiro a isso, minha senhora. Sabe bem que não é próprio de uma mulher permanecer sozinha durante tanto tempo com um homem. O que pensarão aqueles que a virem? ? Escovou o cabelo com suavidade e o prendeu em um coque baixo.

? Mas resulta que esse homem é meu marido e, como boa esposa que sou, vou acompanhá-lo em sua viagem para Londres ? respondeu levantando-se de seu assento.

? Mas...

? Não há mas, Wanda! Tomei uma decisão e não vou voltar atrás. Se quiser que este matrimônio funcione, se desejo viver tranquila pelo resto dos meus dias, tenho que fazê-lo. ? Olhou-se de novo ao espelho e sorriu. Por sorte mal ficaram sinais em seu rosto da insônia da noite. Ninguém poderia imaginar que não conseguiu alcançar um sono reparador. Só ela e Roger sabiam o acontecido.

? Preparei-lhe só um baú ? assinalou a donzela com pesar. ? O resto de seus pertences empacotarei com o passar do dia. E se Deus é bondoso, poderei partir amanhã ao amanhecer.

? Dirija-se para Lonely Field, será lá onde me hospedarei ? indicou ao mesmo tempo em que abandonava o quarto.

Wanda franziu o cenho e a observou sem pestanejar. A mudança de atitude de sua senhora não lhe parecia coerente. Não entendia como na tarde anterior o diabo havia se apoderado dela para odiar de maneira desumana seu marido e, horas depois, levantou-se sorridente e com vontade de assimilar uma vida conjugal. Deduziu que tinha meditado durante a noite. Preferiu pensar que Evelyn tinha refletido cuidadosamente sobre o que deveria fazer para conseguir um bom matrimônio, ou talvez, depois da ira sofrida, sua cabeça tinha ficado transtornada e a conduzia para pensamentos incoerentes. Cabisbaixa e sem cessar de perguntar-se que opção das duas imaginadas tinha conduzido Evelyn para sua determinação, abandonou o cômodo.

? Bom dia ? saudou-a Roger ao vê-la descer as escadas.

Evelyn usava um bonito vestido de cor malva com renda branca e dourada. Seu cabelo, recolhido em um coque baixo, mal exibia seu esplendor sob o chapéu branco e, como era habitual, suas mãos se achavam escondidas sob umas luvas da mesma cor que o chapéu. Bennett, quando ela se aproximou, abriu-lhe a porta da carruagem para que ocupasse seu lugar no interior. Tentou, em vão, eliminar de seu rosto a satisfação que lhe produziu a decisão de Evelyn por acompanhá-lo. Possivelmente havia uma possibilidade de eles serem felizes, ou talvez, quando descobrisse quem era o homem com quem se casou, abandoná-lo-ia com rapidez. Mas até que chegasse esse momento, desfrutaria de sua companhia que, por sorte, cada vez era mais prazenteira.

? Preparada para empreender uma árdua e tediosa viagem? ? Perguntou arqueando as sobrancelhas.

? Bom dia, Roger. Estou pronta para confrontar qualquer adversidade ? respondeu riscando um leve sorriso em seu rosto.

Esteve a ponto de subir à carruagem quando percebeu que seu marido olhava para a entrada da mansão. Evelyn se voltou para essa direção e se sentiu muito afortunada de ter encontrado uns amigos tão leais. Os duques, apesar de não ter amanhecido, levantaram-se para despedirem-se.

? Acredito que tomou a decisão adequada ? sussurrou-lhe Beatrice quando a abraçou. ? Procure a verdadeira pessoa que está ao seu lado. Que nada nem ninguém te freie e estou segura de que terminará amando-o. Estes homens são difíceis, duros e relutantes em expressar seus sentimentos. Entretanto, quando alcançar seu coração, acharão a felicidade.

? Obrigada ? respondeu contendo suas lágrimas.

? Satisfaz-me ver que finalmente limou suas asperezas ? falou William com voz solene.

? Teria gostado de limar outras coisas, mas acredito que não demorarei muito em obtê-lo ? comentou sorridente Bennett. Estendeu sua mão para o duque e este a apertou com força.

? Se a deixar atuar tal como fez ontem à noite... ? sussurrou tão baixo que só eles dois escutaram as palavras ? será mais fácil conseguir o que pretende.

? Está me dizendo que se escondeu entre as sombras e nos observou como um vulgar olheiro? ? Exigiu saber com uma mescla de assombro e brincadeira.

? É meu dever, como dono deste lar, confirmar que meus hóspedes se encontram cômodos sob meu teto e, tal como mostraram depois da pequena excursão no jardim, era algo mais que conforto o que expressavam seus rostos ? indicou zombador.

? Não sei o que ocorrerá quando descobrir a verdade, William, mas temo não duvidará em me abandonar ? acrescentou reflexivo.

? Eu sei sua verdade, Roger e te abandonei? Nunca! ? Exclamou baixinho. ? E mais, desde que me falou disso estive ao seu lado sempre. Por que não conta a Evelyn? Cedo ou tarde descobrirá e, ao meu parecer, é melhor que o segredo que guarda com tanto afã o conheça de sua boca do que de outra fonte menos confiável ? alegou com firmeza enquanto seu amigo tentava não mostrar pesar diante das mulheres.

? A senhora Stone preparou suficientes quitutes para o caminho e acredito que meu marido lhe permitiu que acrescentasse em uma das cestas alguma garrafa de vinho, das que guarda com ardor na adega ? explicou Beatrice ao mesmo tempo em que caminhava para trás até ser acolhida pelo braço de William.

? Minha senhora... ? disse Roger abrindo a porta e realizando uma leve genuflexão ? depois de você.

Evelyn olhou à Beatrice. A mulher lhe sorriu e afirmou devagar com a cabeça. Depois, virou-se para seu marido e apoiando sua mão na dele, meteu-se na carruagem.

? Como terá averiguado, para mim, eles são minha única família ? falou com certo ar de tristeza. ? Ninguém poderá superar o amor que sinto por William e Beatrice.

? Entendo... ? sussurrou ao mesmo tempo em que dizia adeus à sua amiga com a mão.

Não se reclinou no assento até que os picos dos telhados de Haddon Hall desapareceram. Triste, desatou o laço do chapéu, pousou-o no assento dianteiro e colocou sua cabeça na almofadinha.

? Ainda está em tempo de voltar atrás ? disse Roger com firmeza.

? Não vou mudar de opinião ? respondeu com veemência. Voltou a vista para ele e franziu o cenho ao ver como pousava seus pés no assento de frente.

? Tenho as pernas muito longas, se por acaso não se deu conta ? defendeu-se.

Cruzou os braços e jogou a cabeça para trás. Nessa manhã tinha decidido amarrar seu cabelo em uma cauda baixa e, ao que parecia, por fim o ajudante de câmara conseguiu lhe aparar a barba.

? Se as colocasse como você, ficariam tão intumescidas que teriam que me amputar.

Evelyn sorriu ante a confissão de Roger. Não tinha pensado naquele inconveniente. Por sorte, ela não padecia desse problema. Suas pernas facilmente se estiravam sem mal tocar o assento dianteiro. Entretanto, sabia que realizar uma viagem tão longa com as pernas na mesma posição, terminaria tendo suas consequências.

? Descansa um pouco ? disse Bennett com voz melosa. ? Logo amanhece e prometo que te despertarei quando decidirmos parar.

? Não estou muito cansada, mas fecharei um pouco os olhos. ? Virou-se ligeiramente para a direita e apoiou de maneira adequada a cabeça. Não pretendia que, depois de umas horas de viagem, fosse açoitada por uma terrível dor no pescoço.

Respirou com profundidade concentrada no aroma que seu nariz apanhava ao inspirar. Era uma mescla tão embelezadora como sedutora, uma combinação de colônia masculina e essência viril. Sem abrir os olhos se perguntou como podia cheirar a fragrância de seu marido naquela distância, como era capaz de encher um lugar tão amplo com seu aroma. Contra sua vontade elevou com suavidade as pestanas e quando percebeu que sua cabeça estava sobre o peito de Roger, paralisou-se. Em que momento ficou tão adormecida que não tinha sido consciente de haver se reclinado para ele? Assombrada e um pouco envergonhada esteve a ponto de afastar-se com rapidez, mas preferiu seguir desfrutando do pequeno e suave balanço do torso masculino ao respirar. Era pausado, tranquilo, reconfortante.

Dirigiu o olhar para seu próprio ombro e comprovou que uma das mantas que Wanda tinha colocado no interior a agasalhava. Ele tinha se preocupado de que não tivesse frio, de mantê-la cálida. Embora estivesse segura de que não lhe faria falta aquele objeto enquanto seu corpo permanecesse ao lado do de seu marido. Uma estranha sensação de plenitude fez com que seu peito se alargasse de maneira incomum. Compreender que cuidava dela, que velava por seu bem-estar, a fez sentir-se muito afortunada. Até aquele momento, só Wanda se preocupava com ela após ter ficado grávida, de seus pais só obteve recriminações, angústia e amostras de repúdio, nem sua mãe, quem deveria havê-la apoiado posto que nascera de suas vísceras, foi capaz de aparecer em seu quarto depois de perder ao bebê. Separaram-na deles como se tivesse a peste. Assim que pôde pôr um pé no chão encontrou seus pertences empacotados para enviá-la com a irmã de seu pai à França. Três anos durou sua expulsão. E retornou porque sua pobre tia morreu devido às febres. Quando chegou à sua casa ninguém lhe deu cálidas boas vindas, salvo Colin, que mal contava com cinco anos de vida. Entretanto, ao adoecer sua mãe, ela não a abandonou. Esteve ao pé de sua cama durante todo seu padecer. Ajudou-a em tudo aquilo que requeria e inclusive ela mesma a amortalhou após falecer. Não podia odiá-los por seus atos. Tinham agido tal como ditavam os protocolos sociais. Ela era uma mulher maldita, uma mulher que, apesar de não alcançar os dezenove anos, tinha amaldiçoado sua família.

Evelyn foi incapaz de parar suas lágrimas. Seguia sofrendo. Por mais que evitasse rememorar sua agonia, apareciam diminutos detalhes em seu presente que lhe recordavam o vivido e, muito ao seu pesar, voltavam a lhe provocar uma profunda dor.

? Está acordada?

A pergunta de seu marido fez com que os aterrorizantes pensamentos se desvanecessem. Não foi a pergunta e sim o tom de voz que empregou o que a reconfortou. Tinha vivido um passado que não devia esquecer, mas augurava que seu futuro, se jogasse bem suas cartas, seria mais prazenteiro do que imaginara.

? Sim ? respondeu levantando a cabeça. Observou-o durante uns instantes nos quais apreciou que ele não tinha descansado. Tinha os olhos avermelhados e mostrava um rosto fatigado. ? Conseguiu dormir?

? Pouco, mas o suficiente para continuar ativo o resto do dia ? esclareceu com voz rouca.

? Sinto se tiver sido a culpada disso. Não me dei conta de que me recostei em você ? tentou desculpar-se.

Colocou-se corretamente no assento e voltou a olhar pela janela. Não sabia onde se encontravam, mas aquele lugar era lindo. As divisas do caminho estavam repletas de árvores frondosas cujas folhas não deixavam apreciar se o sol tinha saído ou se ocultava-se depois das nuvens. Ao longe descobriu uma pequena planície, um lugar ideal para deter-se e poder almoçar.

? Seria inapropriado parar aqui? ? Quis saber virando-se para ele. ? Vi um lugar lindo atrás daqueles arvoredos. ? Assinalou-o com o dedo.

Roger assentiu. Golpeou três vezes a parede da carruagem e esta começou a diminuir a marcha. Evelyn abriu os olhos tudo o que pôde ao ver que a sugestão, para ele, tinha sido como um mandato e voltou a sentir-se afortunada. Qualquer outro homem teria dado milhões de desculpas para continuar a marcha: chegaremos tarde, logo se fará de noite, este lugar está muito desabitado, poderiam nos assaltar..., mas ele não. Roger aceitava sua proposição sem sequer falar. Quando o carro parou, Bennett se levantou com rapidez de seu assento. Não esperou que Anderson abrisse a porta, mas sim ele mesmo a abriu.

? Tome cuidado, ? advertiu estendendo a mão ? o caminho é acidentado.

Ela aceitou seu oferecimento. Pegou o vestido com sua mão direita e se segurou na de seu marido com a esquerda. Depois de pousar seus pés no chão compreendeu a razão pela qual Roger a avisara. Não só encontrou buracos ao caminhar, mas também enormes pedras que poderiam lhe propiciar uma queda se não andasse com cuidado.

? Almoçaremos nesse lugar ? assinalou ao criado. ? A senhora Stone preparou todo o necessário para fazer uma pequena parada no trajeto.

? Sim, milorde ? respondeu Anderson antes de dirigir-se para as cestas que tinham colocado na parte traseira do veículo.

? Se for tão amável... ? disse Roger a Evelyn lhe oferecendo seu braço. ? Te ajudarei a avançar.

É óbvio que ela se segurou no braço de seu marido. Não porque não soubesse saltar os obstáculos, já que desde sua tenra infância tinha percorrido trechos mais dificultosos, a razão que a levou a aceitá-lo foi o tom carinhoso de sua voz e a expressão que mostrou ao olhá-la. Era como se a considerasse uma peça de porcelana, uma frágil esfinge que, em qualquer momento, podia quebrar-se.

? Decidi pernoitar em uma estalagem que há a umas horas daqui ? explicou enquanto Evelyn caminhava segura sobre a erva. ? Não é muito luxuoso, mas atendem como é devido aos clientes.

? Perfeito ? respondeu.

Esqueceu-se o chapéu e os raios de sol esquentariam mais do que o desejado seu rosto. Quis ordenar ao Anderson que o trouxesse, mas pensou melhor. Se seu marido tinha uma pele torrada pelos raios de sol e não lhe provocava mal-estar, tampouco lhe suporia moléstia alguma bronzear um pouco sua cútis.

? Posso te fazer uma pergunta? ? Disse Roger com certo interesse.

? É claro! ? Exclamou. Ao virar-se descobriu que o criado tinha estendido uma manta e seu marido se sentava nela. Caminhou devagar para não tropeçar e se sentou junto a ele.

? Por que me acompanha? ? Bennett estendeu a mão para uma terrina de frutas e pegou uma maçã.

? Por que não deveria fazê-lo? ? Perguntou à sua vez surpreendida. Colocou seus dedos na vasilha de barro e apanhou um cacho de uvas.

? Porque não sou uma boa pessoa ? disse antes de morder a fruta.

? Repete-me isso uma e outra vez ? disse exasperada. ? Por que não me deixa chegar a essa conclusão sozinha?

? Não se zangue. Não era minha intenção te zangar. Só me pergunto o que te fez mudar de parecer com tanta rapidez. ? Voltou a fincar o dente na fruta.

? Não te parece suficiente motivo estarmos casados? ? Inquiriu levantando as sobrancelhas.

? É uma razão... ? murmurou. Olhou os restos da maçã e os lançou como se fosse uma pedra.

? É a única razão ? esclareceu antes de começar a devorar as uvas.

Deram por resolvido esse tema para comer com tranquilidade. Ambos sabiam que, se continuassem conversando sobre os possíveis motivos pelos quais Evelyn decidiu acompanhá-lo, terminariam jogando a comida e, devido ao longo trajeto que deviam realizar antes de chegar à estalagem, precisavam alimentar-se para aguentar a árdua viagem.

Quando Roger se encontrou satisfeito, tombou-se sobre a manta, colocou seus braços simulando um travesseiro e fechou os olhos. Evelyn descobriu que o sono o tinha apanhado depois de escutar como sua respiração se fazia mais profunda. Com muito cuidado levantou-se e começou a caminhar para um arvoredo que havia próximo. Agora que ninguém a perseguia com o olhar, podia realizar certa necessidade humana com tranquilidade. Virou-se várias vezes para confirmar que Roger seguia descansando sobre a manta e que os criados permaneciam sentados junto à carruagem. Era o momento. Já não podia aguentar mais. Encontrava-se em uma situação muito embaraçosa, mas era isso ou fazer nas roupas.

Ao chegar à pequena alameda descobriu maravilhada que justo no pé das árvores emanava um riacho. Resultou-lhe tão espetacular que decidiu baixar até ele. Atrás de uma árvore, e espreitando como uma águia a sua presa, Evelyn elevou o vestido e fez o que precisava fazer com tanta urgência. Depois de acabar, suspirou deliciada. «Um pouco mais e minha bexiga explodiria», disse-se divertida. Sopesando o tempo que Roger permaneceria adormecido, encorajou-se e tirou os sapatos e as meias. A água fria acalmaria o inchaço de seus pés e os refrescaria. Depositou seus pertences na beira do rio e começou a caminhar pelo caudal. Não era muito fundo, assim podia salvar o vestido elevando-o até o joelho. O frescor aliviou aquela pequena moléstia e a relaxou tanto que não cessou seu passo até que mal distinguiu onde tinha colocado seus pertences.

De repente, invadiu-a a pressa. Quanto tempo podia ter transcorrido? «Não mais de meia hora», meditou. Mas aquele lugar era tão parecido ao seu lar, cheirava tão semelhante que, quando fechou os olhos, acreditou encontrar-se de novo em Seather. Apressou sua volta, não queria que Roger despertasse e descobrisse que ela não se encontrava ao seu lado. Podia imaginar que seu verdadeiro propósito para viajar junto a ele era desaparecer assim que tivesse a mínima oportunidade. Sorridente ao figurar a cara de espanto e assombro que poria ao não achá-la caminhou pelo rio sem perceber o perigo que a tinha espreitado durante todo aquele tempo. Não a viu até que estendeu as mãos para as meias e justo nesse momento gritou aterrada.

Roger despertou sobressaltado porque tinha escutado em sonhos um grito aterrador de Evelyn. Ao sentar-se, levou a mão ao peito para acalmar a inquietação que lhe tinha produzido o pesadelo. Então olhou para o lugar onde deveria estar sentada sua esposa e não a encontrou. Ali não havia nada salvo o espaço que ela tinha ocupado. Aturdido, levantou-se com rapidez e dirigiu suas pupilas para a carruagem. Ao observar que os criados se levantaram ao mesmo tempo e que Evelyn não se encontrava perto, seu coração se agitou de maneira sobrenatural. Esteve a ponto de gritar aos criados se algum deles sabia onde estava sua mulher quando escutou outro alarido.

? A arma! ? Uivou apavorado. Anderson abriu a porta da carruagem, levantou um dos assentos e tirou duas armas. ? A espingarda é minha! ? Voltou a gritar Roger.

O criado correu para ele e ficou atônito ao observar a palidez de seu rosto. Nunca tinha visto aquele pânico refletido no rosto do homem nem tampouco umas mandíbulas tão contorcidas.

Antes de alcançá-lo, lançou-lhe a arma e Roger correu para o lugar onde acreditou ouvir o grito de Evelyn. Suas pernas, embora dessem umas pernadas grandiosas e firmes, tremiam pelo pânico. O coração tinha deixado de lhe pulsar e mal podia respirar, não podia conceber que tivesse acontecido algo horrível à sua esposa, e o temor por ela fez com que o pequeno trajeto lhe parecesse uma eternidade.

Apertou a mandíbula com tanta força que seus dentes chiaram e não encontrou nenhum pouco de tranquilidade até que a encontrou, chorando no meio de um rio, com a saia erguida até os joelhos e com uma cara repleta de espanto.

? Evelyn... ? sussurrou para que ela relaxasse e lhe indicasse onde estava o perigo.

A mulher estava tão assustada que não pôde nem pensar, só conseguiu mover a mão para uns objetos que havia na beira do rio. Então foi quando a viu. Não era muito grande, mas tinha elevado sua cabeça para a figura de sua esposa e, se se movesse, podia atacá-la.

? Calma, pequena, e não se mova ? murmurou.

Roger ajustou sua arma no ombro, precisou o ponto de disparo e, depois de conter a respiração, disparou.

? Roger! OH, Roger! ? Clamou correndo para ele.

Este atirou a espingarda ao chão e abriu seus braços para que ela se aconchegasse entre eles. Não cessava seu pranto, nem diminuiu a agonia que tinha passado ante o perigoso animal.

? Acalme-se, querida ? disse-lhe beijando o cabelo e acariciando as costas. ? Tudo terminou.

Abraçou-a com força se dispunha a conduzi-la para a carruagem quando percebeu que estava descalça. Pegou-a nos braços e a levou para o veículo enquanto ela apoiava a cabeça sobre seu peito e passava os braços ao redor do grosso pescoço masculino, sem deixar de soluçar nem tremer.

? Por que se afastou tanto do meu lado? ? Não foi uma pergunta a modo de reprimenda, mas sim de interesse.

? Precisava... desejava... tinha que fazer... ? tentou dizer, mas morria de vergonha de explicar a razão de seu distanciamento.

? Não importa ? consolou-a ao descobrir com rapidez o motivo pelo qual se aventurou a afastar-se de onde se encontrava. ? Não importa...

Continuou em seus braços até que chegaram à carruagem. O cocheiro, quem não se moveu do lugar para evitar possíveis roubos, abriu-lhes a porta. Roger a deixou no interior e se colocou ao seu lado abraçando-a.

? Seus pertences, ? informou Anderson pousando sobre o chão as meias e os sapatos ? embora tenham ficado manchadas de sangue.

? Jogue-os! ? Exclamou zangado. ? Compraremos outros no seguinte povoado.

Anderson assentiu levemente com a cabeça, jogou-os no caminho e fechou a porta.

? Empreenderemos a marcha quando recolher os utensílios do piquenique ? explicou o criado ao cocheiro.

? Encontra-se melhor? ? Quis saber Roger. Seguia com o corpo de sua esposa agarrado ao dele e suas mãos não diminuíam as carícias para reconfortá-la.

? Não ? respondeu com rapidez. ? Se não tivesse me dado conta, se ela tivesse me mordido...

? Graças a Deus está bem e isso é o que me importa, ? disse com firmeza ? mas na próxima vez, quando tiver certas necessidades, avise-me ? insistiu. ? Prometo que te darei a liberdade que requeira sem descuidar da minha obrigação de te proteger.

? Fá-lo-ei. Juro-lhe isso. ? Evelyn agarrou com força a cintura de seu marido, continuou apoiando a cabeça sobre o peito agitado do homem e tentou acalmar sua inquietação mediante o conforto que lhe provocava estar ao lado de seu marido.


XXIII


Durante o longo trajeto à estalagem, Evelyn não se separou de Roger em nenhum momento. O medo perdurava nela e cada vez que fechava os olhos voltava a ver a serpente levantando a cabeça e abrindo a boca para mordê-la. Nunca tinha sido uma mulher medrosa. Sempre tinha conseguido vencer certos temores, mas nunca superou o de permanecer perto de um animal tão perigoso. Seu marido seguia pousando a mão direita sobre suas costas e a acariciava com ternura tentando acalmá-la, muito ao seu pesar converteu-se em seu salvador, em seu protetor. A imagem dele parado em frente a ela, levando uma arma na mão com o rosto alterado pelo pânico não tinha cessado de repetir-se em sua mente.

Não entendia por que ele insistia tanto em que não era um bom homem, se não o fosse, se não lhe importasse o que lhe acontecesse nem sequer teria se levantado da manta. Entretanto, correu em sua busca, apontou sem vacilar ao animal e o matou. E logo, como se fosse o primeiro dia de casados, elevou-a em seus braços e a pôs a salvo.

Evelyn suspirou profundamente ao sentir-se confusa. Não conseguia entender como uma pessoa que era um egoísta tinha posto em perigo sua vida pela dela. Porque se não parasse, se tivesse caminhado um pouco mais teria mordido a ele. A mulher soluçou com tanta suavidade que Roger não conseguiu escutá-la. Por mais que o tentasse não conseguia entender seu marido. Que escuridão ocultava e por que o aterrava tanto que ela descobrisse? Confusa e ao mesmo tempo intrigada por revelar o segredo, disse-se que continuaria com seu objetivo. Deixaria a um lado todos os preconceitos que tinha sobre ele e daria a oportunidade de conhecer o verdadeiro homem com quem se casou. Muito temia que o mostrado não fosse, nem de longe, sua verdadeira personalidade.

? Chegamos ? disse com voz doce e melosa.

Sua mão deixou de acariciá-la e se reclinou justo para que ela pudesse endireitar-se com facilidade.

Evelyn piscou várias vezes. A escuridão reinava no exterior e suas pupilas não se adequavam com rapidez à penumbra. Com certo desagrado, porque se encontrava bastante cômoda reclinada sobre o corpo de seu marido, endireitou-se no assento e moveu levemente a cabeça.

? Partirei primeiro. Quero confirmar que há quartos livres antes que saia da carruagem ? disse segurando-lhe as mãos, apertou-as e as conduziu para sua boca para beijá-las. ? O cocheiro permanecerá fora. Se necessitar de algo, se desejar algo enquanto falo com o hospedeiro, peça a ele, me fará saber isso com rapidez.

? Não me acontecerá nada ? disse desenhando um sorriso. A pequena carícia, o insignificante tato de seus lábios sobre suas mãos provocou na mulher uma repentina emoção de calidez. ? Se ocorrer algo, já sei onde esconde as armas...

? Nem te ocorra tocá-las... ? advertiu-lhe respondendo com outro sorriso. ? Acredito que o mundo não está preparado para uma combinação tão perigosa.

Esteve a ponto de replicar suas palavras quando abriram a porta pelo lado que deveria sair Roger.

? Sua senhoria, ? disse Anderson ? apreciei que não há muitas carruagens pelos arredores. Possivelmente tenhamos sorte e possamos pernoitar nesta estalagem.

? De todas as formas quero confirmá-lo. Em algumas ocasiões os hóspedes escondem as carruagens para que não os roubem durante sua estadia. Não demorarei Evelyn, e já sabe, nada de coisas perigosas ? comentou com zombaria antes de descer e fechar a porta.

Esteve a ponto de cruzar os braços e resmungar como uma menina pequena. Não era justo que lhe falasse daquela forma. Ele mesmo assinalou as adversidades que podia haver pelos arredores e o sensato teria sido que ela segurasse entre suas mãos algo com o que se defender. Terminou por colocar a testa no vidro e entrecerrar seus olhos para averiguar o que havia no exterior. Só achou escuridão. Então Roger tinha razão. Era o lugar perfeito para ser assaltado por hábeis ladrões. Depois de soprar, tornou-se para trás, agarrou a manta e se cobriu com ela. Não o fazia por frio, mas sim para ocultar-se de possíveis olhares provenientes do exterior. Jamais admitiria que começasse a inquietá-la permanecer em um lugar tão sombrio. Quem poderia lhe prometer que não havia alguém espreitando pelos arredores? Quem poderia lhe jurar que essa pessoa não se aproximaria da carruagem, que não pensava golpear ao cocheiro até deixá-lo inconsciente e que não pretenderia roubar o coche no qual permanecia escondida? «Calma, Evelyn ? falou entre sussurros ao mesmo tempo em que sacudia brandamente a manta com as palmas das mãos. ? Isso só acontece nos livros que você tanto gosta de ler. Não pode acontecer nada disso por que...».

Ficou calada, emudeceu de repente ao escutar um ruído aproximando-se dela. Quis cobrir-se até a cabeça com o objeto que, ao ser escuro, podia ocultá-la com facilidade, mas pensou melhor. Afastou a manta, esticou a mão para a almofada de seda vermelha que cobria o assento e o levantou com cuidado. «Meu Deus!», exclamou aterrada. Não se assustou ao ver o imenso arsenal que escondia seu marido, mas sim de outra coisa.

Ao princípio acreditou que se tratava de um mero brinquedo. Uma possível lembrança da infância pensou. Mas quando o pegou, quando suas mãos puderam apalpar a rugosidade e perceber a solidez dos ossos, compreendeu que não era um brinquedo e sim o crânio de um menino. Com rapidez colocou-o em seu lugar, cobriu-se com a manta e assustada, esperou a chegada de seu marido.

? Pode sair ou necessita da minha ajuda? ? A pergunta de Bennett apanhou-a de surpresa. Não o tinha visto aproximar-se, nem o tinha escutado abrir a porta e ao ouvir sua voz se sobressaltou. ? Vem, agarrar-te-ei entre meus braços para que não machuque os pés. ? Estendeu suas mãos e esperou que Evelyn as aceitasse. ? Sinto se não encontramos um lugar onde adquirir outros sapatos e meias. Perguntei ao hospedeiro se há um povoado próximo e me respondeu que o mais próximo se encontra a duzentas milhas daqui.

? Wanda deve ter colocado algo no baú ? comentou com suavidade tentando diminuir o sentimento de pânico que a açoitou após achar o pequeno crânio.

? Então ordenarei ao Anderson que o leve ao nosso quarto.

? Nosso quarto? ? Inquiriu abrindo os olhos com ímpeto e exibindo um rosto de assombro.

? Sinto muito, querida, só tinha livre um quarto decente. Mas não se preocupe, não farei nada que te cause mal-estar. Dormirei em uma das poltronas que haverá no interior ? esclareceu sem expressar brincadeira ou zombaria em sua voz.

Tinha-lhe parado o coração? Sim, é óbvio e também notou uma pressão tão forte na garganta que a impedia de respirar. Iam dormir no mesmo quarto! Como ia descansar sabendo que ele estava ao seu lado? Que em qualquer momento poderia assaltá-la? Aterrada pela ideia, segurou-se com mais brio ao corpo de seu marido e este entendeu, sem necessidade de falar, que a ideia de dormir junto a ele provocava-lhe pavor.

? Estarei lá embaixo ? disse após abrir a porta do dormitório e pousá-la com cuidado no chão. ? Trarei um pouco de comida. Acredito que se encontrará mais cômoda no quarto que no refeitório da estalagem, há muitos homens e, tal como observei, o álcool logo os fará perder a razão.

? Parece-me uma ideia bastante sensata. Por hoje já tive suficientes sobressaltos ? respondeu com apenas um fio de voz.

Caminhou pelo interior contemplando o pequeno, mas confortável quarto. A cama era ampla e parecia cômoda. Tal como lhe explicou, havia um extenso sofá de cor marrom escura junto aos pés do leito. Com rapidez calculou como dormiria ali o corpo de seu marido e chegou à conclusão que suas longas pernas se sobressairiam deste. Voltou-se para Roger ao perceber que ele também se movia. Tirava a jaqueta, a gravata e o colete, ficando só com a camisa branca e as calças do traje escuro.

? Anderson trará o baú em breve ? disse após deixar o último objeto sobre o sofá. ? Tenho que ser honesto e te dizer que pensei que seria maior ? comentou desenhando um sorriso.

? Não me deu tempo para muito... ? murmurou enquanto observava a zona de asseio. Não havia uma tina em que pudesse limpar as sequelas de um dia caloroso e exaustivo. Só encontrou uma bacia, vários garrafões metalizados que imaginou que estariam cheios de água, e um penico. Retornou ao dormitório e percebeu que Roger tinha caminhado para a porta, partia com a intenção de lhe dar privacidade. Entretanto, nenhum dos dois tinha pensado que ela necessitava de uma donzela para despir-se.

? Se precisar de algo que não guarde nessa pequena bagagem, faça-me saber. Tentarei consegui-lo ? disse esticando a mão para a maçaneta.

Estava muito tensa, não só pelo que tinha vivido no prado, mas sim por algo mais. Seu sobressalto ao vê-lo aparecer na porta da carruagem, o rosto de espanto que mostrava e os tremores de suas mãos lhe apontava que o medo ainda permanecia nela. Mas... como demonstrar que ao seu lado podia estar segura? Poderia acreditar que tentava acalmá-la para que, em um descuido durante a noite, assaltasse-a esquecendo de sua promessa de não a tocar. De repente, justo no momento no qual decidiu lhe perguntar a razão de seu nervosismo, bateram na porta.

? Milorde ? falou Anderson levando o pequeno baú de Evelyn. ? Os pertences da senhora.

? Deixe-os aí. ? Assinalou com o dedo um pequeno espaço que havia ao lado de onde se encontrava a mulher.

? Sim, senhor. ? Com movimentos ágeis e silenciosos o criado pousou a bagagem, fez uma leve genuflexão e os deixou de novo sozinhos.

Evelyn olhou com atenção o baú. Depois o abriu e procurou uma camisola com a qual cobrir seu corpo para dormir.

? Roger... ? chamou sua atenção quando reparou que este tentava afastar-se.

? Sim? ? Perguntou voltando-se para ela e arqueando as sobrancelhas.

? Necessito de ajuda para me desatar o vestido ? disse com certo embaraço.

? Perguntarei ao hospedeiro se embaixo deste teto há uma donzela a quem eu possa pagar por seus serviços ? respondeu com rapidez.

? Não precisa, ? esclareceu ruborizada ? basta que me desate os laços do vestido. O resto posso fazê-lo sozinha.

Roger assentiu, aproximou-se dela e esperou que se virasse para realizar a mísera tarefa que lhe tinha encomendado. Esticou suas grandes mãos para os laços e foi soltando um a um os nós do objeto. Quando terminou, o vestido caiu ao chão com facilidade, deixando expostas as costas da mulher e as anáguas que sustentavam a sedosa vestimenta.

? Algo mais? ? Perguntou com voz estrangulada.

? Nada mais, obrigada. ? Suas mãos tremiam, assim como sua voz.

Sua respiração se fez lenta, muito pausada para poder manter uma inspiração correta. Levantou as pernas e abandonou o vestido no chão. Não queria dirigir suas pupilas para Roger, não podia fazê-lo porque se o fizesse, se o contemplasse, podia desmaiar. Enquanto a ajudava notou como seu respirar se agitava e os dedos supostamente hábeis para outras mulheres foram torpes, imprecisos.

? Vou refrescar-me ? disse ao ver que seu marido não se movia. ? Acredito que minhas bochechas começam a arder e quero acalmar esta queimação.

? Deve ser pelo sol. Avisei que não tinha posto o chapéu ? acrescentou entre intensas e profundas exalações.

? Esqueci-o na carruagem e não quis pedir ao Anderson que o pegasse. ? Estava falando? Saíam palavras de sua boca? Não entendia como podia consegui-lo se a pressão em sua garganta era cada vez mais intensa.

? Na próxima vez faça-o. Não está acostumada ao sol e este pode te danificar ao permanecer tanto tempo exposta aos seus raios ? assinalou antes de dar a volta para afastar-se tão rápido quanto suas pernas lhe permitissem. ? Não me espere acordada ? disse ao fechar.

Não foi capaz de virar-se até que escutou como trancava a porta. Nesse instante, Evelyn caiu de joelhos ao chão. O palpitar de seu coração era mais intenso que nunca. O suave roce das gemas masculinas a tinha extasiado até tal ponto que podia haver se rendido com facilidade. «Acaso não é seu propósito? ? Perguntou-se ao mesmo tempo em que dirigia suas mãos para o rosto. ? Não é esse o motivo pelo qual se encontra aqui?». Na verdade, esse tinha sido seu primeiro propósito, mas agora, depois de ver aquele crânio sob o assento, seu objetivo tinha mudado.

Desejava averiguar por que guardava algo tão escabroso na carruagem e temia que a resposta lhe explicasse a razão pela qual seu marido era tão sombrio. «Não sou um homem bom para ti», a frase de Roger emanava de sua mente sem cessar. Seria verdade? Estaria certo? Só uma pessoa com um passado turbulento podia permanecer ao lado de algo tão horrendo. «Meu Deus! ? Exclamou entre soluços. ? Ajude-me! Não sei o que descobrirei, mas seja o que for, dê-me forças para confrontá-lo com integridade». Levantou-se do chão e limpou suas lágrimas com a água que verteu na bacia.


? Uma taça, milorde? ? Ofereceu-lhe o taberneiro ao observar o rosto alterado do homem.

? O que esconde em sua adega que consiga me fazer desmaiar só com uma taça? ? Perguntou levando a mão para seu bolso e tirando duas coroas.

? Para você, o melhor uísque escocês que tenha provado ? afirmou o homem com orgulho. Inclinou-se para a esquerda, pegou uma garrafa que escondia em algum espaço da bancada e a colocou sobre esta. Depois de Roger dar sua aprovação, o dono da cantina aproximou um copo e o encheu de licor. ? Uma viagem dura, senhor?

? Nem imagina o quanto ? respondeu antes de beber de um gole e pôr o copo vazio sobre a bancada de madeira para que continuasse enchendo-o.

? Então bem merece um par de goles mais. ? E o serviu de novo.

Não estava ébrio, ao menos não o suficiente para não caminhar reto e sem tropeçar. Poderia aguentar uns quantos copos mais do bom licor que lhe ofereceu o taberneiro, mas desejava descansar o suficiente antes de partir. Não tinha dormido bastante durante os dias anteriores e devia estar lúcido se por acaso Evelyn voltasse a enfrentar uma situação perigosa. Enrugou a testa ao recordá-la no rio com o vestido elevado e atemorizada por uma pequena serpente. Poderia havê-la mordido, poderia ter adoecido se aquele animal a houvesse tocado. Graças a Deus chegou a tempo.

Zangado, abriu a porta com mais ímpeto do que deveria para não a despertar. Por sorte, não o fez. Reprovando uma e outra sua vez desacertada atitude, fechou com cuidado. O que menos pretendia era que ela se levantasse da cama vestida com a camisola e o olhasse com espanto. Entretanto, ao virar-se e contemplá-la, viu-a tombada sobre o leito, oculta sob um lençol um pouco gasto. Aproximou-se sigiloso e ficou maravilhado ao observar seu cabelo vermelho estendido pelo travesseiro e a insinuação de sua silhueta sob o tecido. Dormia de maneira muito semelhante a como o fazia ele, entrelaçando suas mãos contra o peito e esticando as extremidades de uma ponta à outra.

Com um sorrisinho tolo no rosto, caminhou para o sofá. Aquela careta de satisfação desapareceu com rapidez ao compreender que descansaria melhor no chão que naquele mísero divã. Sem vacilar, pegou a colcha que Evelyn não tinha necessitado, esticou-a no chão, despojou-se da camisa, sentou-se e após tirar as botas, tombou-se. Com os braços em cruz fazendo a função de almofadão, olhou ao teto. Nunca tinha dormido junto a uma mulher daquela maneira. Na realidade, depois de possuí-las, jamais tinha permanecido ao lado de alguma. Abandonava-as para descansar em sua cama. Era a forma mais adequada de atuar dado que o único que precisava obter de uma amante era saciar seus desejos sexuais. Nada de sussurros noturnos, nada de palavras carinhosas depois de conseguir seu propósito. O que poderia lhes dizer? «Foi um coito bastante satisfatório. Talvez amanhã retorne para repeti-lo». Bobagens! Ele não era um amante terno ou carinhoso. Ele só desejava as fazer suar pela paixão e a luxúria durante um momento e logo já veria se repetia ou não... mas ela era sua esposa e não tinha nada a ver com as demais.

Algo o unia a Evelyn e não se tratava só de um papel assinado que manifestava que estavam casados, mas sim outra coisa que não conseguia nomear com exatidão. Assumia que desde que gritou no prado e percebeu que ela corria perigo, um estranho sentimento tinha brotado de seu peito lhe provocando uma ira irracional. «Não queira ver além do que há ? grunhiu. ? Aquele maldito instinto de protegê-la, de cuidá-la, só brotou porque se algo lhe acontecesse durante o caminho, William te mataria». Mesmo assim, a inquietação que lhe produziu descobrir que ela não estava ao seu lado e que se lhe ocorresse algo não voltaria a tê-la, produziu-lhe uma atípica dor no peito. Zangado por sentir aquela moléstia incessante, fechou os olhos e se obrigou a descansar. Ainda ficavam dois dias de viagem e precisava repor as forças.

Não tinha conseguido cair nos braços de Morfeu quando escutou um leve lamento. Não lhe deu importância e continuou seu laborioso desejo por dormir. Entretanto, o lamento voltou a repetir-se, desta vez mais profundo. Insone por saber de onde procedia aquele minúsculo gemido, levantou-se do chão e, entre murmúrios de aborrecimento, dirigiu-se para a janela. Depois de afastar com cuidado a cortina, descobriu assombrado que no exterior tudo estava em calma. Nenhum bêbado se queixava de sua ingestão de álcool ou chorava depois de uma má disputa. Retornou para a colcha, tombou-se e... voltou a escutá-lo! De um salto, porque deduziu quem emitia os pequenos gemidos, incorporou-se e se colocou no lado direito da cama. Evelyn se movia inquieta, franzia o cenho e apertava os olhos. Seu rosto, face à penumbra que ofereciam as duas velas que tinham acesas, mostrava uma preocupante cor carmesim. Apoiou o joelho esquerdo sobre a cama, estendeu a mão para o rosto e se afastou com rapidez ao sentir fogo em sua pele.

? Deus Santo! ? Exclamou aterrorizado. ? Evelyn... Evelyn... ? tentou despertá-la com uma voz suave, mas ela não atendia suas chamadas. Seguia agitada, movendo sua cabeça da direita para a esquerda e enrugando a testa.

Correu para a bacia procurando com desespero um pano com que molhar e o qual apaziguar o ardor da mulher. Verteu com rapidez água na bacia de porcelana, colocou o primeiro objeto que encontrou e retornou junto a ela.

? Isto te aliviará... ? sussurrou ao mesmo tempo em que pousava com ternura o tecido molhado sobre o rosto de Evelyn. ? Shh... calma. Estou aqui para a cuidar ? disse ao continuar ouvindo os minúsculos lamentos.

Entretanto, a água fria não a acalmou o suficiente. As bochechas seguiam avermelhadas e Roger observou que a delicada pele começava a levantar-se em forma de diminutas bolhas. Sem pensar duas vezes, saiu da habitação, desceu os degraus de madeira que havia até chegar ao saguão e com passo firme se dirigiu para o taberneiro que, por sorte, seguia atendendo a todos aqueles que demandavam mais licor.

? Se necessitar de outro copo de uísque devo avisar que...

? Tem algo que possa sanar as queimaduras da pele? ? Interrompeu desesperado.

? Eu não, mas... hoje se hospeda... ? vacilou o homem.

? Fala de uma vez! ? Gritou esticando sua mão e agarrando ao taberneiro pelo pescoço de sua camisa.

? Uma cigana, senhor. Hospeda-se uma espécie de bruxa que visita a cada mês o povoado do qual lhe falei ? atinou a dizer.

? E? ? Arqueou as sobrancelhas, apertou os dentes e continuou lhe agarrando com força.

? Vangloria-se de que vende beberagens para tudo... possivelmente... talvez...

? Que quarto? ? Grunhiu.

? Sua senhoria? ? Respondeu o hospedeiro assombrado.

? Diga-me em que quarto descansa essa bruxa ? falou cada palavra com uma pausa exagerada.

? O sete. No mesmo piso que você, mas na direção oposta ? disse finalmente.

Roger soltou o homem e com grande rapidez subiu as escadas. Correndo mais que andando, chegou até a habitação da mulher. Sem diminuir sua pressa, golpeou sem cessar até que esta lhe abriu.

? Mmmm... ? murmurou a mulher abrindo os olhos como pratos ao contemplar em frente a ela um homem com o torso descoberto e com uma figura tão esbelta. ? Quando o hospedeiro me informou que teria um bom serviço nunca imaginei que seria tão bom... ? Sorriu agradada.

? É você a bruxa? ? Perguntou apressado evitando as insinuações da mulher.

? Eu gosto mais de me chamar curandeira ou curadora. Necessita que te alivie de algo? Tenho umas mãos muito benéficas e podem acalmar dores em zonas que ninguém alcançaria imaginar... ? continuou com essa voz aveludada, melosa.

? Minha esposa se queimou pelo sol ? disse com firmeza. ? Viria-me bem algum remédio dos que possua que tenha como ingrediente calêndula.

? Calêndula? ? Repetiu. Enrugou o rosto, levou a mão direita para a boca e pôs os olhos em branco.

? Sim, calêndula. É uma flor que...

? Sei o que faz essa maldita planta! ? Exclamou levantando a mão de seu rosto e fazendo-o calar. Estava zangada e era normal. Fez-se a ideia de ter em seu leito um homem tremendamente sedutor e este, em vez de necessitar de suas carícias, ansiava uma beberagem para curar sua descuidada mulher. Fechou a porta, andou no quarto e logo a abriu. ? Deve verter em um pano limpo a metade deste frasco. Quando se aliviar, troca de lenço e joga o resto. Pela manhã, quando seus delicados pés tocarem o chão, não terá rastro de suas doenças ? disse com desdém.

? O que lhe devo? ? Roger esticou a mão para pegar o frasco e nesse momento sua pele tocou sem querer a da mulher.

? Santo diabo! ? Exclamou a mulher aterrorizada. ? Quem é você? ? Deu uns passos para o interior do seu quarto segurando com força a garrafa na mão.

? Só um homem que busca curar sua esposa ? comentou assombrado pela inesperada reação da mulher.

? Não! É um acompanhante da morte! ? Seus lábios tremeram tanto que o inferior cobriu várias vezes o superior. ? Toma! ? Atirou-lhe o frasco. ? Cuida de sua esposa! E não volte a aparecer.

? Diga-me o que lhe devo ? insistiu mal-humorado.

? O que pode me pagar um ser que caminha com uma dezena de almas sofredoras em suas costas? ? Clamou antes de fechar a porta e murmurar preces em um idioma que Bennett não conseguiu distinguir.

Virou-se e, sem dar atenção ao que lhe tinha gritado a cigana, correu para seu dormitório. Quando abriu a porta achou Evelyn igual a deixou, soluçando e movendo-se inquieta. Caminhou pelo quarto até que alcançou sua jaqueta, tirou do bolso um lenço, verteu o líquido e se dirigiu para a mulher. Com muito carinho o pousou por todo o rosto. Não demorou muito em ver o resultado do dito remédio. As bolhas, aumentadas em sua ausência, diminuíam com rapidez. Sentiu-se aliviado ao ver como diminuíam as queimaduras e, enquanto continuava com sua tarefa, jurou que não voltaria a deixa-la sair ao exterior sem um chapéu que a protegesse do sol. «O maior ? disse. ? Comprar-lhe-ei o maior assim que cheguemos a esse maldito povoado que há a duzentas milhas daqui», resmungou.


CONTINUA

XVIII


Tinha pensado que os duques se encontrariam na sala de café da manhã, possivelmente porque os tinha visto dirigir-se para lá, mas depois de abrir a porta, descobriu surpreendida que não havia ninguém. Caminhou sobre seus passos tentando averiguar onde se achariam quando escutou a voz de Beatrice na biblioteca. Deveria havê-lo suposto. Era o cômodo preferida de ambos. Passavam horas ali dentro: a duquesa lendo algum dos livros ou conversando com seu marido. Invejava-os. Nunca tinha visto um casal tão apaixonado. Não tinham pudor ao proclamar seu amor diante de quem fosse. Em mais de uma ocasião, enquanto ela conversava com Beatrice, o duque se aproximava de sua esposa e a beijava com intensidade. No olhar dela depois de sua apaixonada amostra de amor, nunca encontrou recriminação ou vergonha, só amor, muitíssimo amor.

Evelyn suspirou antes de entrar na sala. Precisava relaxar-se e preparar-se para o sem-fim de perguntas que lhe fariam. Dado que permanecia sob seu amparo, era normal que se interessassem pelo que acontecia entre Roger e ela. Elevou o queixo, sorriu e entrou no cômodo rezando para que pudesse explicar a mudança de decisão de seu marido sem ter que aludir o motivo que o conduziu a partir.

? Evelyn! ? Exclamou a duquesa ao vê-la. ? Entre. Venha, sente-se ao meu lado. Elliot já despertou.

A mulher caminhou devagar em volta dos três desenhando um sorriso. Enquanto Beatrice acolhia em seus braços o pequeno com ternura, o duque fazia gestos graciosos para que sorrisse. Evelyn se repreendeu por interromper um momento tão íntimo, tão familiar, embora não fosse educado contradizer as indicações da duquesa.

Sem afastar seus olhos da imagem caseira, sua mente retrocedeu algo mais de uma década, justo no momento no qual a vida começou a torcer-se, quando as risadas se converteram em prantos, os sonhos em pesadelos e as riquezas... em uma inevitável pobreza.

? Não é apropriado que nossa filha olhe assim ao primogênito dos Wyman. Conforme tenho entendido não pertence a uma família respeitável ? disse Several Pearson a sua esposa no dia de apresentação em sociedade de Evelyn. ? Se forem certos os rumores, anda à caça de uma esposa com uma boa posição social e, como compreenderá, nesta festa nossa filha é a única que possui um dote tão suculento. Estou seguro de que se ela não afastar o olhar, esse descarado logo conseguirá lhe beijar a mão.

? Não se incomode tanto, querido. Não é um jovem bonito. Nossa filha só tem olhos para aqueles que possuem algo mais que um olhar sedutor. ? Sherine agitou o leque com graça, sorriu a uma das convidadas e continuou falando entre sussurros ao seu marido.

? Não foi meu aspecto o que te apaixonou por mim ? sussurrou o senhor Pearson.

? Não, é óbvio que não. ? Voltou-se para olhá-lo e sorriu. ? Foi sua inteligência. Essa que, por sorte, Evelyn herdou. Por isso insisto em que não deve preocupar-se. Deixe que desfrute de seu primeiro evento social. Hoje só quer ser o centro de todas as atenções. ? A senhora Pearson fechou o leque, sustentou-o na mão e beijou o rosto de seu marido.

? Confio em nossa filha e em seu intelecto. Entretanto, esse moço é avaro, ambicioso e acredito que se Evelyn não lhe mostrar interesse, engenharia para conseguir seu objetivo mediante patranhas ? assinalou o senhor Pearson com pesar.

? Patranhas? ? A mulher arqueou as sobrancelhas e segurou com força em sua mão o leque.

? Imagina o que poderia acontecer se a engana e a põe em um compromisso? Arruinaria sua reputação. Se isso ocorresse, se nossa filha se encontrasse em uma situação humilhante, matá-lo-ia ? resmungou.

? Ninguém lhe fará mal. Sempre estaremos ao seu lado para protegê-la. Sempre...

Evelyn esteve a ponto de ajoelhar-se no meio do salão ao recordar a conversação. Nunca esteve ao lado de seus pais naquela tarde, mas sua mãe a tinha repetido tantas vezes que a gravou a fogo na cabeça. Depois daquela noite, Scott a perseguiu com esforço e não houve festa onde ela estivesse em que ele não aparecesse. Os dias se converteram em semanas e, como era de esperar, finalmente se rendeu a todas aquelas palavras e insinuações de amor que lhe dizia em seu cortejo. Apesar da negativa de seus pais, terminaram comprometendo-se. Como ia negar-se a tal acordo se a senhora Wyman os achou em uma situação vergonhosa? Não pôde levantar o rosto quando seus pais foram recolhê-la na festa da família Phaterson. Sentia-se envergonhada por os fazer passar o pior momento de suas vidas, mas foi sua última esperança.

Semanas anteriores tinha descoberto que seus pais pensavam enviá-la com sua tia fora de Londres e estava tão apaixonada que não era capaz de conceber um distanciamento de tal índole. Por isso, depois de comentar ao Scott o que estavam planejando, o moço falou com sua mãe e ela lhes disse exatamente o que deviam fazer para evitar o indesejado destino. Quando o compromisso se anunciou e já não havia volta atrás, Scott continuou insistindo sobre a possibilidade de que seus pais ao final a separassem de seu lado, para fazer frente a tal probabilidade lhe fez uma proposição da qual se arrependeria pelo resto de sua vida.

? Sonhei todos os dias em te ter assim, ao meu lado, sob a luz das velas ? sussurrou o moço enquanto lhe desatava os laços do espartilho e começava a beijar seu pescoço nu. ? O aroma de sua pele, seu sabor, atormenta-me até tal ponto que me resulta impossível viver. Levanto-me pensando em ti, deito-me pensando em ti. Nada é mais importante que você, meu amor.

Evelyn se virou e abriu os olhos encontrando-se com as bochechas ruborizadas de seu amado, desejou as tocar e diminuir aquele fogo, mas quando tentou dirigir as mãos para elas, este as colheu com ternura e as beijou.

? Não te roubarei sua virtude, minha amada. Tomá-la-ei como fazem os maridos às suas esposas. Imagine que já estamos casados, que esta é nossa noite de bodas, que por fim conseguimos tudo o que tanto ansiávamos ? prosseguiu com as mãos femininas em sua boca.

? Não deveríamos esperar um pouco mais? Possivelmente até que celebremos nossas bodas? ? Disse hesitante. ? Minha mãe diz que não há maior presente para um marido que desfrutar da virgindade de sua mulher no dia em que se casam.

? Para mim, para meu coração, nós já estamos casados. Não necessito um papel, uma festa e montões de testemunhas ao meu redor que me confirmem que estou unido à pessoa que amo ? disse com exagerada tristeza. Retirou-se dela como se as palavras da jovem o tivessem zangado profundamente e lhe deu as costas.

? OH, me perdoe! ? Exclamou Evelyn caminhando para ele. Esticou a mão e tentou lhe acariciar as costas, mas o moço, com um movimento rápido, esquivou-se do toque.

? Sei que não me ama com a mesma intensidade com que eu a amo. É normal que seja assim. Eu, um humilde mortal, um homem que não se distingue por ser o cavalheiro mais bonito da sociedade, estou apaixonado pela moça mais bela de Londres ? expôs com aparente angústia.

? Eu também te amo! Amo-te, Scott! ? Exclamou Evelyn ajoelhando-se no chão e cobrindo seu rosto com as mãos. ? Te amo tanto que farei tudo o que desejar ? Disse entre soluços.

? Tudo o que desejar? ? Voltou-se para ela e ao contemplá-la tão totalmente dependente dele, esteve a ponto de gargalhar, mas se conteve.

Ainda ficava a segunda parte do plano que tinha elaborado e saber que estava a ponto de consegui-lo produzia tanta euforia que rezava a Deus para possuir a suficiente paciência para não correr depois de possui-la e cuspir ao pai de Evelyn que ele tinha deflorado a sua virtuosa filha.

? É claro ? falou abaixando a cabeça.

? Vê? É tudo muito mais fácil se esquecer as dúvidas que lhe rondam a cabeça ? assegurou Scott esticando seus braços para que ela se metesse entre eles. Evelyn se levantou e se apertou no corpo do moço. ? Nos amamos e o que estamos a ponto de fazer é só um passo a mais para reforçar nosso amor. Não está de acordo com minhas palavras? ? Suas mãos pousaram na enorme regata que ocultava a esquálida figura de uma menina, quase uma mulher. ? Esta noite e as próximas te farei o amor vestida. Só quando se converter na senhora Wyman poderei ver-te nua ? sussurrou-lhe no ouvido. ? E posso te assegurar que conto os dias para poder te contemplar dessa forma.

? Meu pai tem pensado que se celebre dentro de dois meses ? murmurou em voz baixa. Notava como a boca de Scott começava a esquentar sua garganta.

? Dois meses? Por que tanto, meu amor? ? Aproximou a boca do ouvido e começou a acariciá-lo com a língua.

? Porque será quando o investimento que realizou meu pai no início do ano dê seus primeiros frutos. ? Suas mãos trementes pousaram timidamente nas costas do jovem.

? Será uma soma considerável? ? Inquiriu Scott mais interessado em conhecer a resposta que em excitar a mulher que tinha ao seu lado.

? Acredito que quatro vezes o dote que obteremos ao nos casar.

? Tanto? ? Não pôde evitar separar-se dela e abrir os olhos com intensidade.

? Foi um grande investimento ? respondeu Evelyn surpreendida pela atuação de seu prometido.

? Amo-te, meu amor. Amo-te como nunca ninguém amou a uma mulher ? soltou antes de elevá-la entre seus braços, pousá-la sobre a cama e lhe tirar o único que não deveria lhe haver arrebatado jamais: sua inocência.

? Quer segurá-lo?

A pergunta de Beatrice a fez voltar para o presente. Evelyn permanecia imóvel no meio da sala, apertando os punhos e os dentes. De repente as bochechas se ruborizaram e sentiu vergonha por sua atitude. Quanto tempo tinha passado mantendo aquela inapropriada conduta? Possivelmente o suficiente para que eles percebessem que seus pensamentos não eram agradáveis. Tentando ocultar a dor que sentia em seu coração, avançou para eles desenhando um grande sorriso e mostrando um enorme agradecimento à duquesa.

? Posso fazê-lo? Não se importa que o segure um pouco?

? Não me importa. Além disso, acredito que será benéfico que este travesso se adapte a sentir outras mãos que não sejam as de seus pais. ? Levantou-se de seu assento, esperou que ela ocupasse o seu e com supremo cuidado o pousou sobre o regaço.

Elliot sorria e esticava suas mãozinhas para o cabelo de Evelyn. A mulher, absorta pela figura gordinha e admirando os olhos escuros herdados do pai, abaixou um pouco mais a cabeça para que o bebê conseguisse seu propósito.

? Algum dia terá sobre seus braços seu próprio bebê ? disse a duquesa sorridente. Seu sorriso desapareceu ao advertir que as palavras que dirigiu a Evelyn provocaram mais dor que entusiasmo. ? Acontece algo? Disse algo que possa te incomodar?

? Não ? respondeu aguentando aquelas lágrimas que desejavam sair.

? Finalmente... ? interrompeu William ao observar o pesar da mulher ? o que decidiu meu amigo? Parte ou fica?

? Permaneceremos um par de dias mais, se não vos incomoda, e logo retornaremos a Londres ? respondeu prestando sua atenção nele. ? Roger fez saber que tem muitos assuntos pendentes e precisa finalizá-los o antes possível.

? Parece-me que tomou a decisão correta. Se me desculparem, tenho que informar ao moço de quadra antes que Roger desça. Será bom cavalgar durante um bom momento. ? Aproximou-se de sua esposa, deu-lhe um suave beijo nos lábios, inclinou levemente a cabeça para Evelyn e as deixou sozinhas.

Beatrice não podia deixar de observá-la. Estudava cada gesto de sua amiga com supremo interesse. Tinha percebido o brilho de dor em seu olhar ao comentar a possibilidade de engendrar seu próprio filho. O que teria provocado esse sofrimento? Seria a primeira mulher que não desejava conceber novas vidas? Ou possivelmente, ao não amar ainda Roger, era incapaz de meditar sobre a ideia de formar uma família ao seu lado? Entendia que a priori pensasse que era um homem malvado, mas ela sabia que não era assim. William lhe relatou como tinha pegado Rabbitwood pelo pescoço, como lhe murmurou que o mataria por haver rido da debilidade de seu amigo e como, em mais de uma ocasião, colocou seu próprio corpo para que o impacto de um ou outro marido zangado não o alcançasse.

Se seu marido o adorava como se fosse seu irmão teria seus motivos e estes eram suficientes para que ela também o amasse. Face aos rumores que o perseguiam, estava segura de que Roger Bennett escondia o melhor de si mesmo. Quem, a não ser um homem que protege seus seres queridos, seria capaz de enfrentar seu marido sem saber os sentimentos que albergava em seu coração? Com efeito, ele foi o único que reprovou a decisão de William por deixá-la viver naquela cabana. Nenhum dos dois sopesou as terríveis consequências no caso de que ela tivesse morrido. A Beatrice não cabia dúvida alguma de que Roger era mais sensato do que aparentava, mais honrado do que mostrava e mais terno do que fingia. Só esperava o momento no qual esquecesse quem era e adotasse o comportamento de quem devia ser.

? Gostaria de dar um passeio esta manhã? ? Sugeriu Beatrice enquanto caminhava para a janela e observava seu marido dirigir-se ao estábulo. ? Possivelmente, até poderíamos almoçar no campo.

? Almoçar? ? Perguntou Evelyn sem afastar o olhar do pequeno.

? Sim, não te parece boa ideia? ? Virou-se sobre seus calcanhares fazendo com que o vestido formasse redemoinhos em suas pernas. ? Desde que Elliot nasceu não pude desfrutar de um dia tão esplêndido como este e acredito que também lhe virá bem um pouco de sol.

? Parece-me uma ideia estupenda ? concordou sorridente. ? Ordenarei à Wanda que prepare todo o necessário para essa excursão.

? Não se preocupe, eu mesma informarei as donzelas. Não me cabe dúvida de que a senhora Stone já se adiantou aos nossos planos ? esclareceu com entusiasmo. ? Se quiser, enquanto administro os preparativos pertinentes, pode continuar com o Elliot. Não gosta de permanecer sozinho durante muito tempo.

Beatrice beijou a testa de seu filho e após comprovar que Evelyn afirmava com um leve movimento de cabeça, deixou-os sozinhos. Desejava que sua amiga sentisse o prazer de ter um bebê no regaço e que desta maneira esquecesse aquele pesar que a atormentava. Antes de fechar a porta, voltou a contemplá-la. Tinha abaixado à cabeça e sussurrava uma canção de ninar ao Elliot. Não, não podia ser certo o que ela tinha concluído. Evelyn se sentia feliz com um bebê em seus braços. Entretanto, se ter um rebento com Roger não era o problema, o que seria? Com milhares de ideias possíveis na cabeça, fechou devagar a porta e caminhou para a cozinha. Justo ao tempo que ia pousar a mão na manivela uma ideia brotou em sua mente com tanta força que quase a faz cambalear. «OH, Meu Deus! ? Exclamou para si enquanto se tampava a boca com a mão. ? É isso! É isso!».

Parada em seco em frente à entrada, fechou os olhos e tentou recordar as fofocas das amigas de sua mãe sobre Evelyn. Nada do que recordou respondia à sua suspeita, mas em um tempo no qual a honradez familiar devia estar presente acima de tudo, como ocultar um ato de tal índole? Respirou várias vezes, mais das que deveria. Se estivesse certa, se aquilo tinha ocorrido, Roger teria que considerar conquistar sua esposa de outra forma e não o obteria sem ajuda. Quem teria o suficiente poder para salvar uma alma morta?

? Minha senhora... ? a saudou a cozinheira ao vê-la entrar.

? Olá, Hanna. Evelyn e eu pensamos em fazer um pequeno piquenique junto ao rio. Poderia preparar algo em tão pouco tempo? Sei que William e Roger cavalgarão por essas paragens e eu gostaria de lhes fazer uma surpresa. Além disso, o sol não brilha com tanta intensidade todos os dias... ? concretizou a duquesa ao mesmo tempo em que caminhava de um lugar a outro da cozinha com impaciência, como se estivesse procurando algo.

? Com muito gosto farei isso. Ordenarei à Lorinne que pegue as cestas e sacuda o pó das mantas. ? Hanna deixou de lavar os pratos, cruzou os braços e contemplou a mulher vagar por sua cozinha com inquietação. Quis fechar a boca para não perguntar, mas não o conseguiu. Tudo aquilo que perturbasse a paz de sua senhora, perturbava a sua também. ? O que acontece? ? Perguntou enfim.

? Nada! ? Exclamou parando em seco. ? Por que o pensa?

? Não me engana, lady Rutland ? expôs com voz suave. ? Conheço-a o suficiente para deduzir que esse estado de euforia desmedida camufla algo que a inquieta.

? Não é algo que me incumbe, Hanna, e pode ser que minhas suspeitas não sejam acertadas ? comentou antes de dar um enorme suspiro.

? O que lhe grita o coração?

? Como? ? Beatrice a olhou com os olhos muito abertos. Tinha escutado a pergunta, mas não entendia o que desejava lhe indicar com ela.

? Refiro-me... o que é que seu interior lhe diz?

? Que tenho razão. Que a causa desse temor se deve a algo que lhe ocorreu no passado ? explicou sem fazer referência a nada mais.

? Trata-se da senhora Bennett? ? Como sempre, a senhora Stone acertava em suas hipóteses.

? OH, Hanna! ? Exclamou caminhando para ela para que a abraçasse como tantas vezes o tinha feito. ? Acredito que seu passado a atormenta.

? Que Deus a tenha em mente, porque não se casou com o homem mais apropriado para acalmar sua tristeza ? sentenciou.


XIX


Quando William lhe propôs cavalgar por seus domínios, pareceu-lhe uma magnífica ideia. Precisava sair dali para clarear seus pensamentos. Inquietava-o saber que Evelyn era avessa aos seus encantos, aos seus gestos de cortesia. Mas por outro lado, o fato de ter que cortejá-la, coisa que não tinha tido que fazer com nenhuma mulher, atraía-o o suficiente para meditar um sem-fim de maneiras de fazê-la cair aos seus pés. Quem poderia resistir a um penetrante olhar, a um encantador sorriso e a umas mãos como as suas? Até que conheceu sua esposa, ninguém. Entretanto, Evelyn lutava com integridade para não cair em sua teia.

Meditando como elaborar seu plano, não percebeu para onde partiam até que se encontrou nas planícies que confinavam com o rio Wye. Próxima aonde se encontravam, achava-se a cabana onde Beatrice se ocultou durante pouco mais de meio ano. Não entendia muito bem a razão pela qual William se dirigia para aquele lugar. Imaginou que se tratava de certa melancolia ou talvez seguisse pensando naquilo que lhe gritou no dia em que descobriu a insensatez de seu amigo. Tão cego estava para não sopesar que ela poderia ter morrido naquele lugar e as repercussões que poderia ter sofrido? Não, não era cegueira e sim amor. Rutland estava tão apaixonado por Beatrice que a brindou com tudo o que lhe pedia para fazê-la feliz.

De repente escutou como William fazia parar seu corcel. Não desceu deste. Ficou ali parado, observando a pequena edificação com o cenho franzido.

? E pensar tudo o que ocorreu neste lugar... ? o duque realizou a pergunta de maneira reflexiva, sem esperar que lhe respondesse.

? Não entendo como segue em pé ? comentou Roger a contragosto. ? Se tivesse estado em seu lugar, eu mesmo teria feito pedacinhos de cada pedra.

? Esquece que tenho só uma mão ? respondeu William sorridente.

? Só uma mão é suficiente para destroçá-la ? concretizou Bennett sem diminuir o aborrecimento.

? Cada um escolhe o que é prioritário em sua vida e derrubar este lugar não o é para mim.

? A vida de casado mudou suas prioridades... ? disse zombador.

? Como fará contigo ? soltou antes de tocar o cavalo.

Roger ficou com a palavra na boca. Ia replicar tal afirmação quando seu amigo empreendeu uma veloz marcha. Sem apagar o sorriso de seu rosto, açulou o cavalo e pretendeu alcançá-lo, mas apesar de seu intento, não o conseguiu. William seguia sendo o melhor cavaleiro que tinha conhecido até o momento. Pensou que aquela destreza teria diminuído devido à sua incapacidade, mas não tinha sido assim. Talvez o fato de encontrar Beatrice, de ter uma família pela qual lutar, fortaleceu a coragem de Rutland mais do que o esperado. Durante as épocas nas quais ambos caminhavam por Londres e frequentavam lugares pouco apropriados para cavalheiros, o olhar de seu amigo era sombrio, tenebroso e sempre parecia zangado. Desde que ela apareceu em sua vida, quando observava seu amigo, só achava paz e claridade e um sorriso que lhe cruzava o rosto. Tinha-lhe dado aquela calma que andava procurando, aquele propósito que tanto requeria para continuar vivendo.

Roger diminuiu o trote ao perceber que Rutland parava o cavalo e descia. Surpreendeu-o gratamente que com uma só mão pudesse apoiar o peso de seu corpo sem sequer perder o equilíbrio. Sorriu satisfeito, orgulhoso de contemplar aquela mudança e desejou que algum dia ele pudesse sentir-se assim forte para esquecer seu passado e poder viver um futuro prometedor.

? Se não errar em meus pensamentos, ? começou a dizer o duque pegando as rédeas do cavalo ? temo que hoje almoçaremos ao ar livre. ? Olhou para o céu e confirmou que não havia nuvens que pudessem entorpecer o dia.

? Vai me convidar a um almoço? OH, meu Deus! Escandaliza-me sua proposição! ? Exclamou zombador sentado sobre seu corcel. ? Tenho que te advertir que, por muito que o deseje, não levantarei minhas anáguas para te agradar. Sou uma mulher honrada. ? Abanou-se com a mão esquerda ao mesmo tempo em que subia e baixava as pestanas mostrando perplexidade.

? Refiro-me... ? respondeu com tom cansado ? a que nossas esposas terão decidido aproveitar um dia tão magnífico para sair do lar.

? Não acredito que minha querida esposa decida abandonar o castelo e menos ainda sabendo que andarei por perto ? murmurou ao mesmo tempo em que descia do cavalo. ? Ficará no quarto rezando para que eu não encontre jamais o caminho de volta.

? Se o fizesse, compreendia-a. Até o momento se comportou como um vilão e não esteve à altura de suas expectativas. Possivelmente deixaria de se esquivar de suas atenções se descobrisse quem é na realidade ? disse Rutland com voz pausada.

? E quem sou, segundo você? ? Roger arqueou as loiras sobrancelhas, elevou seu lábio superior para enfatizar seu aborrecimento e, dando duas largas passadas, alcançou o duque.

? Um mentiroso. Uma pessoa que não é capaz de mostrar-se tal como é por medo de apresentar debilidade. Sempre nos educaram para confrontar com integridade qualquer adversidade. Somos homens, cavalheiros da alta sociedade e não está bem visto que exibamos nossos sentimentos a outros. Mas, embora o tente, não me engana. Sei que se encontra perdido. Eu, em sua situação, também o estaria. Não é fácil assumir que, da noite para o dia, sua vida se pôs do avesso. Ali onde antes encontrava liberdade, agora vê o mundo passar através de uns barrotes de aço. Equivoco-me? ? William arqueou as sobrancelhas e esperou a resposta.

? Só é uma nova etapa... ? murmurou Bennett abaixando a cabeça. ? Só tenho que saber como aguentá-la com integridade.

? Um matrimônio é muito mais que uma nova etapa ? prosseguiu Rutland parando seu caminhar e contemplando seu amigo. A expressão de Roger mudou, embora tentasse dissimulá-lo com um de seus típicos sorrisos. ? Já não está sozinho. Há uma pessoa ao seu lado que padece e sente como você. Cada manhã despertará junto a ela e o primeiro que desejará é observar seu rosto. Precisará vê-la feliz para conseguir sua própria felicidade. Quando a escutar falar, quando opinar sobre qualquer tema, advertirá que suas palavras são semelhantes às tuas. Cada sorriso, cada amostra de afeto, congelar-te-á e a receberá com mais entusiasmo que qualquer fortuna ou herança ansiada. Terminará se convertendo em parte dela e ela em parte de ti. Por isso deveria lutar contra os demônios que não o deixam mostrar quem é em realidade. Se os liberar, se fluírem de seu interior...

? Também serão os seus, certo? ? Interrompeu-o franzindo o cenho. ? E, como crê que se sentirá minha querida esposa ao compreender que se casou com um homem a quem sua família despreza? Ao qual desejam ver morto? Poderá lutar contra esse demônio? Será capaz de viver sabendo que a mãe de seu marido tentou assassiná-lo em mais de uma ocasião? Diga-me , Rutland! Pode alguém viver conhecendo esse horror?

? Mostre-lhe sua vida. Deixe que ela mesma descubra com quem viverá o resto de seus dias e não oculte seus medos. Só assim acharão a paz ? respondeu com firmeza.

? Sua teoria sobre o bom matrimônio é idílica. Mas em meu caso não é viável ? repôs frivolamente.

? Não se esconda embaixo desse pesar. Sai de sua prisão e vive de uma vez! ? Clamou Rutland com tanta força que sua voz se escutou retumbar entre as árvores.

? É fácil exortar quando não se encontra em minha pele. Entretanto...

Roger não continuou com sua defesa. As risadas de umas vozes femininas o fizeram emudecer. Tal como havia predito William, em uma pequena pradaria junto ao rio, as mulheres tinham estendido umas mantas e preparavam o almoço. Beatrice se movia de um lado para outro colocando as cestas sobre os tecidos enquanto Evelyn brincava com Elliot. Elevava-o e baixava-o para o fazer rir ao mesmo tempo em que ela gargalhava pelas expressões do menino.

Bennett tragou saliva e sentiu que seu coração dava um tombo. Não estava encantado pela forma como ela desfrutava com o pequeno, mas sim pela felicidade que expressava seu rosto. Era uma imagem esplêndida. Com as montanhas de fundo, virtualmente mostrava um dos famosos quadros pintados à óleo do alemão Christian Morgenstern. Luz, claridade, simplicidade e beleza. As qualidades principais de uma deusa, sua deusa. Ela não tinha reparado em que a metade de seu cabelo se soltara do coque e brilhava com mais intensidade que o sol, nem que seu vestido formava redemoinhos sobre sua cintura levantando-o justo para ver as pernas embainhadas em umas meias de seda brancas. Era uma beleza selvagem, pura e sedutora.

Roger segurou com mais força do que o necessário as rédeas do cavalo. Precisava sentir o apoio de algo sólido para não cair ao chão ajoelhado ante tanta plenitude. Ele não era digno de uma mulher assim. Nunca tinha feito algo tão importante para que a vida lhe recompensasse com a presença de uma dama tão encantadora. Ele só merecia desprezo, horror e tenebrosidade.

? Não escuto sua réplica ? disse divertido William ao contemplar quão abstraído estava Bennett. ? Cortou sua língua com os dentes?

? Não a mereço... ? murmurou Roger.

? Eu tampouco merecia uma mulher como Beatrice. Lembre-se, Bennett. Eu fui o culpado de sua desgraça, do inferno que passou sozinha naquela maldita cabana. Só Deus sabe o horror que padeceu durante aquele tempo: sozinha, desprotegida, humilhada pelos atos de um malnascido, sem ninguém que pudesse socorrê-la... mas a vida deu uma segunda oportunidade a ambos. Graças à minha esposa sou um homem afortunado e me sinto vivo. Não há manhã em que abra os olhos e não me sinta ditoso por tê-la ao meu lado, por ter uma mulher por quem daria minha vida. Agora toca a ti descobrir a felicidade, sentir que se ela respirar, você também o faz. Deixa de lado seus sofrimentos ou compartilha-os com ela, mas não permita que a escuridão que te rodeia destroce não só sua vida, mas também a dela ? disse antes de abandoná-lo no alto da colina e correr para sua esposa.

? William! William! ? Gritou a duquesa ao observar que seu marido corria para ela. Segurou o vestido com ambas as mãos e saiu em sua busca salteando os obstáculos que encontrou no caminho. ? Sabia que descobriria meu plano ? disse Beatrice com entusiasmo. Abraçou-o e o beijou com paixão. ? Já não há segredos entre nós dois, não é? ? Murmurou quando seus lábios se distanciaram.

? Imaginei que não deixaria passar um dia tão magnífico ? respondeu Rutland sem soltar a cintura de sua esposa.

? Seria uma pena não aproveitar, por isso mesmo sugeri a Evelyn sair de Haddon e desfrutar do sol. Por certo... ? voltou seu rosto para Roger, quem não afastava a vista de sua esposa. ? O passeio foi frutífero?

? Mais do que eu esperava. Embora receie que necessita de um pouco mais de tempo. Os sucessos importantes devem meditar-se com tranquilidade ? expôs.

Beatrice suspirou, apoiou a cabeça sobre o peito de William e sem soltar-se, ambos desceram a colina. Esperava que Roger os seguisse, mas quando deu a volta para comentar se desejava acalmar sua sede, observou que seguia acima, de pé, agarrado às rédeas do cavalo e com o olhar cravado em Evelyn. O que estaria pensando? Talvez repensasse sobre a conversação que tinham mantido? Fosse o que fosse, impedia-o de aproximar-se deles e desfrutar de um excelente plano. Com pesar sentou-se sobre uma das mantas estendidas, deixando livre ao seu marido para que saudasse o pequeno. Evelyn o pousou com cuidado sobre o braço e enquanto o pai caminhava com seu filho, a mulher decidiu acompanhá-la.

? Foi uma estupenda ideia ? comentou ao mesmo tempo em que apoiava o queixo sobre os joelhos.

? O quê? ? Perguntou Beatrice sem acertar ao que se referia.

? Vir. O fazer um piquenique ? respondeu levantando as sobrancelhas.

? É bom sair de casa e sentir a liberdade que nos brindam estas paragens.

? Há certas pessoas que não parecem contentes com a decisão... ? disse com certo pesar.

? Necessita de tempo. É um homem muito especial, Evelyn. Nem todos se adaptam a uma mudança com a mesma integridade. ? Aproximou-se dela e estendeu um braço sobre os ombros aflitos de sua amiga.

? É um egoísta, presunçoso e arrogante! ? Exclamou enfurecida. ? Como é capaz de comportar-se desta forma tão descortês?

Beatrice se dispunha a responder quando uns passos próximos se escutaram atrás de suas costas. De soslaio, a duquesa percebeu que por fim se decidiu a acompanhá-los e em questão de segundos ideou a maneira de deixá-los sozinhos. Deviam falar. Deviam abrir seus corações e expressar os sentimentos que os atormentavam. Se não o faziam, se não fossem capazes de compartilhar as emoções que os levavam a realizar tais comportamentos, terminariam arruinando suas vidas.

? Sim, meu amor? ? Perguntou olhando a William. Levantou-se e sem dizer uma só palavra, dirigiu-se para o duque trotando.

Evelyn ficou na mesma posição, apoiando seu queixo sobre os joelhos. Seus olhos observavam a paisagem, as montanhas, as árvores florescendo, a água cristalina do rio. Tudo ao seu redor proporcionava uma estranha calma. Entretanto, quando percebeu que atrás dela uma enorme figura lhe tampava o sol, sentiu um terrível calafrio.

? Bonito dia ? disse a modo de saudação Roger.

? Sim, com efeito. Faz um dia magnífico ? afirmou sem afastar o olhar do horizonte.

? Gostaria de...? Gostaria...?

? O quê? ? Inquiriu Evelyn movendo com suavidade seu corpo para onde se encontrava seu marido.

Podia-se deter o tempo? Porque ela desejava que naquele momento, tudo se paralisasse. Adorou a expressão duvidosa de Roger ao falar. Desfrutou de sua gagueira e ficou muito cativada, novamente, por seu físico. Vestia-se com um traje para montar. A jaqueta, como ditavam as normas da moda, até a cintura e com dois botões dourados que a fechavam na frente. O colete, mal perceptível, era de cor âmbar. Mas o que deixou Evelyn na expectativa foram as pernas, ocultas sob uma apertada calça branca que perfilava cada músculo. Tentou afastar o olhar, deixar de observá-lo e sentir como um poderoso fogo começava a queimá-la desde seu interior. Não o conseguiu. Por mais que o odiasse, por mais que tentasse enganar-se acreditando que aquele homem não era sedutor, era-o e bastante.

? Um passeio ? expôs enfim. ? Você gostaria de dar um passeio? ? Bennett avançou justo até colocar-se em frente à sua esposa, estendeu sua mão e esperou que ela a aceitasse, mas não o fez.

? Tem pensado me afastar da presença dos duques para me assaltar de novo? ? Exigiu saber com uma mescla de medo e surpresa. Apoiou as palmas sobre o tecido e ela mesma se levantou.

? Não seria má ideia... ? afirmou zombador ? mas minhas intenções não são tão pouco decorosas. Gosto de passear e manter um bate-papo distendido. Se você também o desejar, é claro.

? Me beijará? ? Elevou as sobrancelhas e entrecerrou os olhos.

? Só se estiver dentro daquelas insofríveis normas que me relatou em meu quarto. Embora muito me temo que, conforme escutei, o mandato número quatro diz que não devo fazê-lo, estou certo? ? Comentou divertido.

? Escutou-me? ? Perguntou confusa.

? Se por acaso não reparou nisso, nasci com duas orelhas e, graças a Deus, escutam perfeitamente. Outra questão é que eu deseje ouvir o que outros conversem. ? Situou suas mãos atrás das costas e, sem esperar que ela se colocasse ao seu lado, empreendeu uma marcha lenta.

Zangou-se como fazem as meninas pequenas ao não conseguir aquilo que tanto anseiam. Só lhe faltou espernear no chão e cruzar os braços para expressar seu aborrecimento. Outra vez a deixava com a palavra na boca. Outra vez saía gracioso de um enfrentamento com ela. Outra vez deixava-a nocauteada com sua figura, com seu sensual sorriso e com aqueles olhos tão profundos que pareciam despi-la em silêncio.

Com aparente tranquilidade, Evelyn esticou o vestido e caminhou atrás dele. Não acelerou o passo, queria que ele reduzisse o seu ou a esperasse posto que fosse o mais cortês. Mas não aconteceu. Roger seguia o mesmo ritmo. Esticava suas longas pernas tanto que três passos dela se convertiam em um só dele. Finalmente, rendeu-se. Avivou sua andança e não a diminuiu até que se encontrou diante de seu marido.

? Lonely Field não é tão imenso como Haddon Hall, ? falou com suavidade enquanto elevava o queixo e observava com admiração a natureza que os rodeava ? mas é meu pequeno paraíso. Ali me encontro muito feliz.

? Seather Low não é nem uma décima parte deste lugar e também me faz feliz. Não acredito que o tamanho de nossas fazendas seja importante e sim os sentimentos que provocam quando se aproxima na carruagem e observa através da janela as pontas do telhado... ? explicou dominando a inquietação que lhe provocava sentir-se tão próxima a ele.

? Tem saudades? ? Roger cravou as solas dos pés no chão e se voltou para ela.

O sol intensificava a cor de seu cabelo, as pestanas se uniam com suavidade para proteger os olhos azulados, as mãos descansavam nas costas e mantinha o corpo erguido e imperturbável.

? É claro! ? Exclamou rapidamente. ? Por que pergunta?

? Tinha dado por certo que, depois de amanhã, partiria ao meu lado para Lonely. ? Sua voz era suave, terna. Entretanto, a calidez de suas palavras contrariava os gestos de seu rosto. Apertava a mandíbula como se estivesse partindo uma noz.

? Não sei... tenho que pensar muitas coisas antes de tomar uma decisão tão importante. ? Evelyn queria soltar uma gargalhada, mas se conteve. Em lugar disso, colocou suas mãos nas costas, adotou a figura erguida que exibia seu marido e caminhou sem olhá-lo.

? Uma mulher como você, ? começou a dizer Roger, apertando os dentes para não elevar o tom, e continuando depois dos passos dela ? tão preocupada com a opinião que possuem os outros, deveria imaginar que o distanciamento de um casal recém-casado seria um tema muito suculento para cochichar nos círculos sociais.

? O propósito da fofoca, meu estimado Roger, apoia-se em oferecer uma novidade ? soltou Evelyn. ? Como compreenderá, que nos separemos outra vez depois de nos casar, já não é de interesse social. Se pretender me convidar a viver em seu lar, deveria me indicar outra causa mais razoável.

? Pode me iluminar? Não sou habilidoso em certos temas ? informou controlando a ira que começava a sobressaltá-lo.

? Poderia alegar que preciso me hospedar em seu lar para tentar que nosso matrimônio seja frutífero ou para que nos conheçamos melhor, posto que devemos viver juntos o resto de nossas vidas. Possivelmente pode acrescentar que se habitarmos sob o mesmo teto, poderia descobrir quem é na realidade ? alegou com firmeza.

? Quer saber quem sou na realidade? Deseja descobrir o que oculto embaixo desta aparência? ? Suas perguntas não evidenciavam zombaria e sim medo. Aquele temor fez com que Evelyn se detivesse e contemplasse o rosto de Bennett. Ficou assombrada ao vê-lo. Seu olhar expressava escuridão, tenebrosidade e inclusive ceticismo. O que albergaria em seu interior para ter tantas dúvidas, tanto temor?

? É óbvio que desejo saber quem é! ? Bradou elevando os braços para enfatizar suas palavras. ? Acaso não lhe importa quem sou eu? O que fiz antes de a conhecer?

? Não! ? Exclamou com veemência. ? Só me interessa quem é agora e em quem se converterá no futuro, porque o que tenha feito, dito ou sido no passado, carece de interesse para mim.

? E se eu for uma delinquente? E se no passado matei uma pessoa e o ocultei durante todo este tempo? ? Colocou-se em frente a Roger e o olhou desafiante. A inapetência por conhecê-la, por revelar a pessoa que permaneceria ao seu lado provocou-lhe um terrível aborrecimento. Ela sim desejava conhecer seu marido. Apesar de todos os rumores sobre o caráter azedo, esquivo e impudico que o definiam as pessoas que falavam sobre ele, Evelyn suspeitava que se tratasse de uma aparência errônea e que escondia alguém mais profundo.

? Matou alguém? ? Exigiu saber.

? Não ? respondeu com rapidez.

? Então... por que vou pensar que é uma criminosa? ? Entrecerrou seus olhos e olhou fixamente aos dela.

? Era só um exemplo. Não me conhece o suficiente para me abrir as portas de seu lar com tanta facilidade. ? Relaxou sua postura, jogou uns passos para trás e prosseguiu o passeio. O caminho chegava ao seu fim. Um pequeno riacho, crescido pelas chuvas de meses anteriores, resolvia a vereda.

? Não seria a primeira vez que teria que lutar com uma aspirante a assassina ? murmurou para si.

? Como? ? Mal tinha escutado as palavras de Roger, mas a dúvida sobre o que interpretou naquele sussurro a fez virar-se de novo para ele.

? Perguntava-me se seu comportamento esquivo se deve a que ainda conserva sua virtude.

Mudou de tema de maneira radical. Pelo assombro que mostrava o rosto de Evelyn soube que o tinha escutado e que tentaria indagar sobre sua reflexão. Assim decidiu abordar um tema muito escandaloso para uma mulher.

? Como?! ? Perguntou sem poder elevar a voz e avermelhada de vergonha.

? Refiro a se é... ? sua sensual boca se estendeu em um sorriso lento.

? E você? Você é? ? retrucou morta de vergonha e enfurecida.

? É claro que não! ? Exclamou orgulhoso.

? Pois eu tampouco ? sentenciou.

Depois de sua afirmação, Evelyn se virou com tanta rapidez que o vestido se enredou em suas pernas. Perdeu o equilíbrio e fechou os olhos ao ver como lhe resultava impossível parar seu impacto sobre o chão. Entretanto, as fortes mãos de Roger impediram que caísse não sobre o caminho, mas sim sobre a borda do rio que fazia finalizar o trajeto.

? Então outro homem deflorou a minha esposa... ? sussurrou aproximando sua boca à da mulher. ? Que dote possuiria tal personagem para conseguir aquilo que me resulta tão difícil?

? Solte-me ? resmungou.

? Não deveria... ? aproximou um pouco mais seus lábios dos dela. O olhar azulado se enegrecia e os dedos se cravavam no corpo feminino.

? Eu disse para me soltar ? repetiu pressionando com força os dentes.

? Está segura disso, minha pequena bruxa? ? Elevou várias vezes suas loiras sobrancelhas e elevou seu lábio superior para a direita.

? Por acaso essas duas orelhas não o deixam escutar o que indico? ? Resmungou.

? Como desejar! ? E a soltou.

Evelyn caiu de bunda sobre algo úmido e gelado. Quando baixou seu olhar para o que a fazia esfriar, começou a golpear com seus punhos. Tinha-a arrojado ao rio! Todo seu vestido estava empapado de água e de lodo! Com uma irritação impossível de sufocar, observou como Roger se afastava dela sem parar de gargalhar. Quanto mais ele ria, mais a ira nascia em seu interior. Emanando por sua boca milhões de impropérios inadequados para uma mulher, levantou-se e pisando no chão como se quisesse que sua sola atravessasse a terra, dirigiu-se para o plano onde os duques estariam desfrutando de um maravilhoso piquenique.

? Deus bendito! ? Exclamou Beatrice ao vê-la aparecer. ? O que aconteceu? ? Dirigiu o olhar para Roger, que não cessava suas gargalhadas, e o retornou para Evelyn. A saia gotejava atrás de seus passos deixando uma esteira brilhante, seu cabelo, alvoroçado, estava coberto de barro e movia as mãos com ímpeto para tirar a sujeira.

? Jogou-me ao rio! ? Bufou zangada assinalando-o com um dedo inquisidor.

? Roger! ? Gritou William irado.

? Não me olhem como se o tivesse feito a propósito ? defendeu-se. ? Ela me suplicou que a soltasse.

? Mas não sabia que cairia sobre a água! ? Replicou Evelyn com um intenso chiado.

? Não é uma desculpa ? respondeu Beatrice caminhando para sua amiga. ? Poderia ter avisado que se a soltasse ela poderia terminar empapada.

? E perder o assombro de seu rosto? ? Arqueou as sobrancelhas e prosseguiu com suas gargalhadas.

? Vamos ? disse a duquesa abraçando a aflita mulher. ? Retornemos a casa. Poderia pegar uma pneumonia nesse estado.

? Necessitam de ajuda? ? Perguntou Rutland avançando para elas.

? Prefiro que parta com o Roger ? olhou-o suplicante.

? Está bem ? respondeu o duque. Ato seguido olhou ao seu amigo e lhe ordenou irado. ? Sobe nesse maldito cavalo! Você e eu temos que conversar sobre como se tem que tratar uma esposa.

? Como desejar! ? Exclamou divertido. ? Minha querida bruxa... ? disse dirigindo seus olhos para Evelyn ? esperarei com impaciência sua chegada. Preocupa-me que um ato infantil possa te provocar uma grave enfermidade. Morreria de pena se decidisse me abandonar justo no momento no qual já não posso viver sem ti.

Pegou as rédeas do corcel, subiu ao leste de um salto e tocou ao animal com energia.

Wanda, espectadora do acontecido, uma vez que os homens partiram, sacudiu as mantas nas quais os duques tinham permanecido e correu para sua senhora para cobri-la.

? Casei-me com um ser desprezível, com um monstro ? murmurava enquanto batia os dentes.

? Acredito que agora não é o momento de te pedir paciência, não é? ? Assinalou Beatrice sem afastar-se dela.

? Não, neste instante a paciência desapareceu, mas cresceu a vontade de assassiná-lo ? respondeu com firmeza.

? Bom, se te consola, dir-lhe-ei que da ira ao amor só há um pequeno passo ? prosseguiu Beatrice enquanto caminhavam para as carruagens.

? Amor? Fala de amor quando todo meu corpo está intumescido pelo frio? ? Levantou as sobrancelhas e abriu tudo o que pôde seus olhos. ? Quando meu marido partiu sem tentar me socorrer?

? Se eu te narrasse as coisas que me dizia meu marido antes de averiguar que entre nós não havia ódio e sim amor... ? tentou apaziguá-la contando algum acontecimento divertido entre ela e William, mas Evelyn a interrompeu energicamente.

? Prefiro não as escutar. Não me interprete mal, Beatrice, todas suas conversações são agradáveis para mim, mas te asseguro que agora mesmo não desejo escutar nada sobre esse tema. O único que quero é chegar ao meu quarto, tomar um bom banho quente e tentar esquecer o que aconteceu. Espero que manhã o horror e a vergonha tenham desaparecido porque do contrário... ficarei viúva com prontidão!


XX


Como era de supor, nenhum dos dois falou durante a cavalgada. Tampouco o desejavam. Roger estava tão ansioso por chegar a Haddon Hall que tocou ao cavalo com tanto brio que o animal ficou exausto. Quando entrou nas cavalariças, baixou-se com rapidez, entregou-o ao moço e esperou a aparição de William. Enquanto este retornava, colocou-se na porta da quadra, levando as mãos para o bolso de sua jaqueta e amaldiçoou em voz alta ao não encontrar cigarros. Não se lembrava de que os tinha jogado pela janela quando Evelyn o visitou e lhe enumerou todas aquelas normas estúpidas às quais mal prestou atenção, a todas exceto àquela porque lhe produziu um grande espanto, devia deixar de fumar porque odiava o aroma de tabaco.

Resignado por não acalmar seu estado de nervosismo com um vício que levava fazendo desde que cumpriu os dezoito, olhou para o exterior. O sol começava a ocultar-se atrás das montanhas nas quais tinham permanecido. Era uma tarde cálida, possivelmente anunciava o final da primavera e o princípio de um verão caloroso. Bennett sorriu de lado ao refletir sobre o estado de ira que perduraria em Evelyn. Recordou-a de novo sentada sobre o caudal do rio, golpeando a água inerte como se com isso pudesse saciar sua raiva. Ela não imaginava a perfeição que exibia com seus movimentos, com seu nariz enrugado e com o brilho que projetavam suas bochechas ao serem tocadas pelos raios do sol. Estava tão zangada que não era consciente da beleza selvagem que apresentava com cada gesto, com cada gritinho e inclusive com cada maldição. De repente, uma estranha e inesperada dor em seu peito fez que levasse uma das mãos para seu torso. Não estava acostumado a rir daquela forma e seu corpo o recriminou com aquela pontada. Ou possivelmente não se tratava de uma chamada de atenção de si mesmo, mas sim algo mais intenso que não desejava imaginar nem deduzir.

? O cavalo veio fatigado ? indicou o moço com certo receio.

? Fez uma boa corrida. Recompensa-o ? respondeu com desdém.

Sem dizer nada mais, Mathias retornou ao interior do estábulo, acariciou ao animal e lhe sussurrou algo no ouvido que Roger foi incapaz de decifrar. Embora pelo olhar de repúdio que lhe oferecia, intuiu que o estava amaldiçoando. Justo quando decidiu caminhar para a entrada da casa e esperar ali a William, este apareceu pelo atalho. Não galopava e sim trotava, como se alongasse de maneira consciente a chegada ao seu lar.

? Dá água aos cavalos. Fizeram um grande esforço ? disse ao baixar-se de seu garanhão. Deu uma palmada nas nádegas do cavalo e, sem olhar ao seu amigo, dirigiu-se para o jardim.

? Não vai recriminar meu ato descortês? ? Perguntou Roger caminhando atrás do duque.

? Serviria de algo? ? William se virou sobre seus calcanhares e enfrentou o olhar de Bennett. Seus olhos, escuros como uma noite sem lua, estavam injetados em sangue. Parecia que, com aquelas penetrantes pupilas, pudesse carbonizá-lo igual um fogo faz cinzas de uma bela paisagem.

? Não foi minha culpa ? desculpou-se de novo. ? Ela me disse que...

? Ela me disse, eu lhe disse, ela me fez, eu lhe fiz... ? comentou zangado. ? Não se dá conta de que se comportam como crianças? Esqueceu a maturidade que suscita ter pouco mais de três décadas de vida?

? Se Evelyn fosse mais submissa, mais acessível... ? assinalou franzindo o cenho.

? Crê que se ela tivesse te aceitado com rapidez estaria lhe ronronando como um gato doméstico? Bobagens, Roger! Se sua esposa se comportasse igual a todas as mulheres com as quais dormiu, não estaria tão desesperado nem tão entusiasmado por alcançá-la. Acaso não se observa? Não é consciente de como a olha? Tomá-la-ia diante de todos se ela te aceitasse!

? Não me sinto tão enfeitiçado para...

? Mentira! E o pior de tudo isso é que engana a si mesmo. Sabe o que pensei quando a conheci? Que Deus tinha sido generoso contigo porque te tinha dado uma mulher com valia. Não só tem o físico que tanto ansiava encontrar em uma esposa, mas sim seu caráter, esse que tanto se esforça em aplacar, é tão semelhante ao teu que não é capaz de assumi-lo. ? Voltou a girar-se e tentou conseguir seu propósito: chegar à biblioteca para tomar uma taça de brandy.

? É teimosa, voluntariosa, indomável, ressentida, perniciosa! ? Clamou sem mal respirar e elevando seus braços para o céu.

? E você? Como é você, Roger? ? Indicou antes de abrir a porta e fechá-la com força, deixando seu amigo no exterior.

Bennett ficou parado a escassos palmos da entrada. De repente teve vontade de correr para o jardim que havia sob o balcão de seu quarto e procurar, como um cão de caça, todos os charutos que tinha jogado pela manhã. Mas pensou melhor ao compreender que não era uma atitude apropriada para um cavalheiro como ele. A opção correta era mandar Anderson os recolher enquanto se dirigia para a biblioteca, lugar onde seu amigo se ocultava quando se zangava ou precisava ficar em calma.

Pegando a redonda e dourada aldrava com força, golpeou a porta até que o senhor Stone a abriu. O mordomo não recriminou seu inapropriado gesto. Nenhum olhar irado, nem palavras que lhe indicassem sua inadequada ação surgiram na boca do ancião. Só se afastou para lhe facilitar o caminho para o interior e abaixou a cabeça. Bennett caminhou com rapidez para a habitação. Quando acessou a esta descobriu que William tirou a jaqueta e que deixava estendido o braço inerte. Na outra segurava uma pequena taça cheia de líquido ambarino. Só virou ligeiramente o rosto ao escutá-lo entrar. Logo, como se a presença de Roger não o perturbasse, caminhou devagar para a janela que mostrava o atalho pelo qual deviam aparecer as carruagens em qualquer momento. Era de imaginar que precisava confirmar que Beatrice, Elliot e Evelyn chegavam sem contratempo algum.

Enquanto se dirigia para o pequeno móvel bar, Bennett meditava sobre a mudança que se produziu em Rutland desde que encontrou sua esposa. Não era o mesmo, ou talvez sempre tivesse estado ali aquela conduta sob a couraça sombria que apresentava aos outros. Aquele infinito amparo, aquele desejo de amar a mulher que o acompanhava, eram, para Roger, interesses estranhos. Porque, embora ele fosse consciente de que sua vida tinha mudado, não albergava em seu interior esse afã de custodiar Evelyn a cada momento do dia.

? Indicarei ao Anderson que prepare nesta mesma tarde a bagagem para partir amanhã ? disse com voz pausada, relaxada, mas firme.

? Evelyn me disse que partiriam, mas não tão cedo. Se não recordar mal, disse que suas pretensões eram se dirigir a Londres depois de amanhã ? respondeu sem afastar o olhar do exterior e tomando um pequeno sorvo de sua taça.

? É a melhor opção dado que nossa presença aqui perturba sua quietude. Além disso, antes de desembarcar, recebi uma missiva do meu administrador requerendo minha presença o antes possível ? comentou relaxadamente. Levou a taça para seus lábios e bebeu um pouco de brandy devagar, deleitando-se quando este passava por seu paladar.

? Antes... ? voltou-se para seu amigo e o olhou com os olhos entreabertos ? deveria explicar à sua esposa a decisão que tomou. Acredito que ela também terá algo que opinar a respeito.

? Não vou obrigá-la a viajar ao meu lado. Três dias na mesma carruagem, sem poder fugir, aguentando meu mau humor e me contemplando mais perto do que ela deseja, converterá uma árdua viagem em um inferno. Estou seguro... ? voltou a dar outro sorvo ? que decidirá abandonar seu lar dias depois da minha ida.

? De todos os modos, faça-a saber. Embora se estivesse em seu lugar, primeiro subiria ao seu quarto e lhe pediria desculpas por seu inapropriado ato infantil.

? Subir ao seu quarto? ? Perguntou Roger elevando as loiras sobrancelhas. ? Se voltar a pisar em seu dormitório não sairei vivo.

? Penso igual a você, mas deve tentá-lo. Se falecer ali acima, prometo que te prepararei o melhor funeral que Londres tenha tido em anos.

Ambos, por fim, soltaram juntos uma enorme gargalhada. Era a primeira vez em muito tempo que riam com tanta intensidade. Depois de aproximar-se, brindaram pelo futuro e gritaram salut. Nesse instante a voz aguda de Evelyn criou um eco maligno por toda a casa. Quiseram cobrir suas orelhas e evitar o atroz ruído, mas aquilo só provocou que as gargalhadas continuassem até que a porta se abriu e apareceu Beatrice com Elliot nos braços.

? Está furiosa! ? Exclamou. A duquesa avançou pela sala e não cessou seu caminhar até que o corpo de William tocou o dela. Pela expressão alterada de seu rosto, ambos os cavalheiros imaginaram como tinha sido o trajeto de volta a casa. Nada aprazível, é óbvio. ? Acredito que a senhora Stone deveria lhe preparar uma infusão de tília se deseja acalmar aquela raiva.

? Não diminuiu sua ira? ? Perguntou Rutland beijando o cabelo de sua esposa.

? Diminuir? Melhor diria que aumentou. Não cessava de amaldiçoar! Tive que cobrir Elliot com meus braços para que sua primeira palavra não seja...

? Não seja? ? Interrompeu Roger zombador.

? Malnascido, descarado ou canalha ? respondeu ofuscada. ? O que fez não foi certo. Humilhou-a diante de nós ? disse com aborrecimento.

? Não era minha intenção, Beatrice. Ela me disse que a soltasse e obedeci a seu mandato ? respondeu frivolamente.

? Mesmo assim, não foi apropriado. Demorará pouco mais de uma semana em tranquilizar-se e, muito me temo, que quando te vir, sua raiva crescerá.

? Bom, isso tem solução ? disse antes de beber o que ficava em sua taça e pousá-la sobre a mesa.

? A que se refere? O que pensa fazer? ? Olhou primeiro a um e logo a outro.

? Pretende partir amanhã ? respondeu-lhe William.

? À alvorada, se for possível ? acrescentou Roger.

? Pois se esse é seu propósito, ? indicou Beatrice sem afastar seus olhos dele ? deveria informá-la o antes possível. Tem que preparar muitas coisas antes de partir.

? Não pretendo que me acompanhe ? assinalou com voz firme e pausada.

? De todos os modos lhe explique quais são suas pretensões e que Evelyn decida o que deseja fazer. Não volte a escolher por ela porque se o fizer, o significado de perdão desaparecerá de seu vocabulário ? sentenciou. E atrás de suas palavras, elevou Elliot para que o pequeno rosto tocasse o ombro materno, e partiu.

? Outra taça? ? Ofereceu-lhe William ao observar a expressão dúbia de seu amigo.

? Ou quatro... ? respondeu antes de suspirar profundamente.

Evelyn entrou na habitação sem poder fechar a boca. Dela brotavam milhares de insultos para seu marido e cada vez estes eram mais enérgicos. Tinha-a ofendido, degradado diante dos duques. Sem contar que também lhe tinha destroçado o vestido, arruinado seu elaborado penteado e ferido seu orgulho. Odiava-o com todas as suas forças não só por jogá-la ao rio, mas sim pelo comportamento risonho que este tinha mantido após sua inapropriada atitude. Era um ser desprezível, malvado, teimoso, instigador e, sobretudo pernicioso.

Evelyn esticou as mãos e apertou os tecidos do vestido que alcançaram as palmas. Por que a tinha jogado ao rio? Por que não impediu que seus pés tocassem a água como faria qualquer cavalheiro? Até o idiota do Scott, que mal olhava outra coisa que não fosse sua vaidade, estendeu sua jaqueta no chão para que seus sapatos não tocassem um atoleiro que lhe impedia de prosseguir um passeio. Entretanto, seu marido, o homem que devia protegê-la pelo resto de sua vida, preferia zombar de seu ato enquanto ela sofria uma pneumonia. Por que a deixou padecer essa vergonhosa situação? Possivelmente o motivo não era outro que a negação contínua de beijá-lo. Ou talvez, porque lhe confessou que não possuía sua virtude.

Determinada em achar uma razão lógica, rememorou o momento exato em que as grandes mãos de Roger deixaram de sustentá-la. «Então minha esposa foi deflorada por outro homem... ? tinha sussurrado enquanto sua boca se aproximava da sua. ? Que dote possuiria tal personagem para conseguir aquilo que me resulta difícil de alcançar?». Não. Esse não tinha sido o instante no qual a jogou e sim quando ela insistiu em que a soltasse. Além disso, seu marido não a olhou com ira quando escutou que tinha deixado de ser virgem. Seus olhos, depois da confissão, tornaram-se negros, advertindo que o único que sentia nesse instante era um terrível desejo. Zangada ao dar-se conta que Roger só tinha acatado seu mandato, começou a despir-se só apesar da insistência de Wanda por ajudá-la.

? Não fique aí parada ? grunhiu à desconcertada donzela. ? Me prepare um banho quente.

? Sim, senhora ? respondeu a criada abaixando a cabeça e saindo do quarto com prontidão.

Quando a mulher partiu Evelyn se arrependeu de sua descortesia. Nunca tinha tratado Wanda daquela maneira. Ela não era uma mulher soberba, nem altiva para expressar um mandato tão cheio de ira. Entretanto, estava desenquadrada. Talvez já possuísse essa loucura desde que soube que devia casar-se com um desconhecido e, é óbvio, não tinha decrescido ao descobrir que a pessoa com quem devia permanecer pelo resto de sua vida era um ser repugnante. Por uns momentos, quando o viu aparecer atrás de sua marcha depois de meses de ausência, acreditou que tinha mudado, que tinha meditado sobre o inesperado futuro e que isso lhe provocaria uma modificação em sua personalidade, mas não foi assim. Seguia sendo um canalha, um descarado, um homem que não respondia ao papel que devia ostentar: o de um marido exemplar.

Dirigiu-se para a penteadeira e quando observou a sujeira de seu cabelo, gritou de novo. O barro, já seco, agarrava-se com força às mechas de cabelo. Com brio foi arrancando cada montículo de lodo que sob a pressão de suas mãos se desvanecia. O rosto, avermelhado pela ira, não mostrava as pequenas e presumíveis sardas que lhe ofereciam uma aparência juvenil. Estava suja, não só no exterior, mas também no interior. Onde se achava a mulher que uma vez foi? Onde se escondia a venerabilidade, a educação e o saber estar que ela tanto cuidava? Tinham desaparecido. Tudo aquilo que trabalhou durante anos para poder converter-se em uma mulher respeitável ante a sociedade evaporaram-se após conhecer seu marido. Era um diabo e ela estava transformando-se em outra aberração similar. «Os homens ? recordou as palavras de sua mãe depois de lhe comentar que estava apaixonada por Scott ? não são o que aparentam. Embaixo dessa figura correta, serena e inquebrável, há uma pessoa muito diferente. Uma vez que obtêm o que tanto anseiam, revelam seu verdadeiro ser». Mas Roger não mostrava esse comportamento. Não ocultava seus inapropriados desejos e se manifestava ao seu desejo. Se a afirmação de sua querida mãe era correta, o que acharia embaixo dessa aparência? Mais maldade? Mais crueldade? Antes de poder responder-se, Wanda apareceu com dois caldeirões de água quente. Evelyn se levantou de seu assento e caminhou atrás dela.

? Não tire ainda as anáguas ? alegou a criada ao ver que sua senhora estava disposta a despir-se por completo. ? Faltam uns quantos cubos mais para encher a tina.

Evelyn assentiu e retornou ao quarto enquanto a criada saía de novo para terminar o antes possível seu encargo. Um pouco mais acalmada, caminhou de novo para a penteadeira e tomou assento na suave banqueta de veludo negro. Derrubou-se levando as mãos para o rosto em um gesto de esgotamento e desespero. Como ia sobreviver pelo resto de seus dias junto a uma pessoa como Roger? Como ia aparentar que eram um casal auspicioso quando só desejava lhe arrancar o coração com suas próprias mãos? Era impossível adotar o papel de boa esposa. Levavam pouco menos de quatro dias juntos e em vez de crescer em seu interior certo apreço, brotava justamente o contrário. Estava destroçada, derrubada, cansada. Suas emoções eram incorretas. Devia, muito ao seu pesar, controlar aquele mau gênio e elevar-se de novo para converter-se em quem foi: uma mulher respeitável. Uma mulher que lutava com integridade ante as adversidades que lhe oferecia a vida. Resignada começou a chorar, rompendo a promessa que se fez anos atrás: não derramaria nenhuma só lágrima mais por um homem.

? Eu não gosto que as mulheres chorem. ? A voz espessa de Roger apareceu entre as sombras.

? Se você não gosta, por que você tenta obtê-lo? ? Soltou depois de dirigir seu rosto para ele.

? Não imaginei que te refrescar poderia te perturbar tanto ? comentou cruzando os braços e os pés como se estivesse relaxado, mas não era assim. Sua mandíbula, apertada com força, indicava que se encontrava intranquilo, preocupado.

? Refrescar-me? ? Perguntou com uma mescla de ira e surpresa. Evelyn não o pensou, olhou para tudo aquilo que havia sobre a penteadeira e começou a lançar. ? É um ser maligno! Uma aberração da natureza! ? Gritava a viva voz. ? Saia! Saia agora mesmo! Não quero voltar a ver-te jamais!

Roger teve que mover-se para não ser alcançado pelos objetos que lhe jogava. Só o vidro de perfume esteve a ponto de impactar em seu rosto. Divertido, mais que zangado, esquivava-se de tudo aquilo que lhe projetava com uma agilidade desumana. Adorou observar que não tinha diminuído seu caráter, que cada vez que se encontrava presente, ela lutava com afã para apartá-lo de seu lado. Aquela batalha, embora devesse assustá-lo e afugentá-lo, proporcionava-lhe um efeito tão prazenteiro que, por mais que Evelyn desejasse seu distanciamento, provocava-lhe mais interesse em permanecer junto a ela. Mas devia partir. Necessitava que ela acalmasse sua ira e tomasse de novo a lucidez.

Quando já não havia nada mais que lhe lançar, Evelyn se levantou do assento e caminhou para ele com os punhos elevados.

? Odeio-te! Amaldiçoo-te! Não posso viver com um homem tão desprezível! ? Seguiu clamando até que suas mãos se encontraram com o duro peito masculino e começou a golpear.

Roger não se defendeu. Deixou que ela acalmasse sua raiva sobre seu corpo. Tinha razão. Por mais que lhe doesse assumir que lhe tinha feito mal, o fez. Não foi até que notou como a intensidade de seus golpes diminuiu quando decidiu estender seus braços e pegá-la pela cintura. Os soluços não diminuíram, mas sim aumentaram de intensidade fazendo com que ele se sentisse aquele ser malvado que ela proclamava com tanto afinco.

? Sinto... ? murmurou em voz baixa. ? Sinto muito te deixar zangada, te haver humilhado diante dos meus amigos, de não ter sido capaz de encontrar a maneira de te fazer feliz.

? Não é justo... ? sussurrou Evelyn colocando sua testa no torso de seu marido. ? Não é justo... ? repetiu uma e outra vez.

? Sei, ? respondeu em tom suave ? por isso decidi partir. Acredito que a melhor opção para não te provocar mais dano é me afastar de ti.

? Como? ? Separou-se dele, limpou-se as lágrimas e o olhou desconcertada. ? Vai abandonar-me de novo?

? Não é o mais sensato? Pensa um pouco, Evelyn. O que aconteceu entre nós desde que estamos juntos? Nada bom. Mal tivemos um momento de paz. Sempre discutimos, sempre nos machucamos. Que outra alternativa fica? ? Voltou-se para a porta, colocou suas mãos nas costas e permaneceu imóvel.

Olhou-o sem piscar, abstraída pela variedade de sentimentos e divagações que a açoitavam naquele momento. Renunciava a ela de novo. Nem sequer se dignava a lutar pelo matrimônio. A tristeza ao ver como seu coração se fazia pedacinhos, perturbou-a tanto que notou uma estranha debilidade nas pernas. Por que, se sabia que devia mudar seu caráter para satisfazê-la, não o fazia? «É a primeira pergunta que sabe responder ? disse para si. ? Porque não te ama».

Abalada, virou-se e caminhou para os pés da cama. Pegou o primeiro dossel de madeira que encontrou e abaixou a cabeça.

? Foge como um covarde ? disse com firmeza. ? Nem se quer contemplou a possibilidade de lutar por este matrimônio.

? Não quero te machucar. Não o merece, ? falou isso sem olhá-la ? chegou até os meus ouvidos que sofreu no passado. Que se encerrou em seu lar durante anos para não padecer a humilhação que outra pessoa te ocasionou. Embora meus atos não desejaram provocar tal sentimento, têm-no feito, e não quero que volte a acontecer. Sou uma pessoa solitária, Evelyn. Eu gostei da liberdade que eu mesmo criei e nunca, ? ressaltou ? nunca, feri a uma mulher. Como notará, que você seja a primeira em sofrer meus inapropriados atos, faz-me pensar em muitas coisas.

? Por isso vai partir? ? Olhou-o desafiante. ? Porque sou a primeira mulher que não cai em seus braços enlouquecida de desejo?

? São muitas as razões pelas quais pretendo me afastar de ti, e te posso assegurar que nenhuma delas contempla o que diz ? respondeu com firmeza.

? Então o que te separa de mim? ? Insistiu.

? Não sei, Evelyn. Estou confuso. É a primeira vez que não posso atuar como devo. Ou talvez, estou tão acostumado a exercer um papel, que não sou capaz de me retratar.

? E por que não o tenta? Por que não me deixa ver quem é na realidade? ? Segurou-se com tanta força ao dossel da cama que, se tivesse sido a garganta de uma pessoa, teria lhe quebrado o hioide.

? Quer ver a pessoa com quem se casou? ? Respondeu voltando-se para ela. Seus olhos brilhavam tanto que não fazia falta a luz das velas para distingui-los. ? Quer pesquisar dentro de mim?

? Sim ? respondeu com aparente firmeza.

? Pois sou a pessoa que, apesar de sentir-se como um velhaco, como uma besta cruel e depravada, está contando os segundos que faltam para te ter em meus braços, para que minha língua brinque com seus seios e consiga elevá-los demandando mais. Para que meu sexo te possua, para escutar seus gemidos ante a chegada do prazer. Isso é o que deseja, Evelyn? Quer ouvir a verdade? Pois sou um libertino, um mulherengo, um homem que...

? Basta! ? Gritou a mulher zangada. ? Não prossiga!

? Avisei-te disso. É melhor que me vá. ? Virou-se sobre seus calcanhares e esticou a mão para a manivela para sair o antes possível dali.

? Continua mentindo! ? Prosseguiu com a voz elevada. ? E embora me custe a vida, embora achar a verdade requeira um terrível suplício por minha parte, achá-la-ei.

? Faça o que desejar... ? murmurou com a cabeça encurvada. ? Mas te advirto que só encontrará decepção ? sentenciou antes de partir.

Evelyn ficou petrificada. Sua mãe tinha razão. Os homens mostravam uma aparência e após conseguir o que tanto ansiavam, revelavam sua verdadeira personalidade. Seu marido lhe tinha devotado um mísero sinal do que escondia embaixo daquela magnífica figura marmórea. Com efeito, sob a frieza que tanto ansiava exibir, achou um halo de sensibilidade. Não era muito, apenas uma pincelada, mas o suficiente para indagar sobre quem era a pessoa com a qual estava casada e por que atuava daquela maneira.

Evelyn afrouxou seu agarre sobre o dossel e caminhou até poder sentar-se sobre o colchão. Tinha que lhe dar aquilo que tanto se esforçava em ter. Devia entregar-se a ele se de verdade queria descobri-lo. Mas... estava disposta a oferecer seu corpo para tal propósito? Tão desesperada se encontrava por averiguar o que escondiam aqueles azulados e intensos olhos? Sim, é óbvio que sim. O único que requeria era averiguar quando era o momento idôneo para entregar-se a seu marido sem que este suspeitasse sobre a finalidade dessa entrega.

? Encontra-se bem, senhora? ? A voz de Wanda a fez despertar de seus pensamentos.

? Sim ? respondeu com rapidez.

? Vi... tropecei com o senhor ? gaguejou ante a preocupação.

? Veio me informar que adiantou a partida. Partiremos amanhã ? explicou caminhando atrás dela.

? Senhora! É impossível preparar tudo em tão poucas horas! ? Exclamou a donzela aterrorizada.

? Basta-me um baú. Preparem o resto dos meus pertences após a minha partida ? indicou enquanto se despojava das poucas roupas que cobriam seu corpo.

? Irá sozinha? ? Perguntou com assombro.

? Parto com meu marido, Wanda. Não há nada que temer.

? Eu não estaria tão segura, minha senhora. Eu não estaria tão segura...


XXI


Não podia dormir. Fazia bastante tempo que não escutava ninguém rondar pelos corredores, então supôs que seria mais de meia-noite. Levantou-se devagar da cama tentando não despertar Wanda, a pobre donzela tinha decidido jogar um colchão sobre o chão e dormir junto a ela se por acaso despertava alterada ao recordar o acontecimento da tarde.

Evelyn não tinha sido capaz de fechar os olhos nem um só instante. Suas divagações sobre como devia render-se ao prazer carnal que tanto ansiava seu marido sem que descobrisse seu verdadeiro propósito a impediam de conciliar um sonho reparador. Pousou com suavidade os pés no chão, caminhou até à poltrona de veludo vermelho e pegou a bata de seda negra. Era a última peça que recordava seu tempo de luto, seu passado, seu período de agonia. Estava sozinha, sem ninguém que a consolasse, que a cuidasse ou freasse seus desmesurados episódios de ira. Não podia apoiar-se em Roger, posto que ele estava mais preocupado em ocultar sua verdadeira personalidade que em ocupar-se das necessidades de sua esposa.

Enquanto atava a corda da bata meditou sobre as razões que levaram Colin a acreditar que ele seria um bom marido. O que descobrira para tramar um plano tão aberrante? Possivelmente observou aquela pequena pincelada que ela percebeu na habitação? Aquela insignificante amostra de consideração o tinha conduzido a pensar que seria o marido ideal? Fosse o que fosse, já não havia volta atrás, nem tampouco podia lhe gritar que se equivocou ao tomar tal decisão. Agora ela devia continuar com o que Colin começou e averiguar quem era Roger Bennett porque se não o fizesse... que espécie de casal seriam?

Olhou a donzela e sorriu ao vê-la descansar com tanta paz. Adorava-a. Converteu-se na mãe que necessitava, de que tinha saudades. Amava-a tanto que não podia viver sem ela, mas não podia lhe contar o plano que tinha esboçado.

Sobre seus pés descalços caminhou pelo chão até alcançar a saída. Daria um pequeno passeio. Desde muito pequena, quando não conciliava o sono, saía de seu quarto e meditava sobre aquilo que a perturbava agasalhada pela paz e a quietude do crepúsculo. Rara vez não o conseguia. À noite, o momento no qual todo mundo descansava sob a suavidade dos lençóis, ela se relaxava abraçada pela escuridão. Com lentidão abriu a porta e a fechou. Uma vez no corredor, respirou profundamente. Precisava afastar-se dali para repensar e procurar como iniciar sua trama. Não lhe resultaria fácil entregar-se a um homem de novo. Sentia pavor. Só de pensar que outra vez seria tomada com ansiedade, com necessidade, sem importar seus sentimentos, destroçava-a. Scott não tinha sido muito considerado com ela. Utilizou seu corpo para conseguir seu diabólico objetivo e logo, quando já não lhe importou, abandonou-a à sua sorte. Não teve piedade ao saber que ela estava grávida, nem sequer meditou sobre o dramático futuro do filho que crescia em seu ventre. Não lhe importava nada salvo o dinheiro.

Aflita ao recordar aquela horrenda época, continuou seu caminho. Apoiou a mão direita no corrimão e desceu com todo o sigilo que pôde. Não desejava chamar a atenção de nenhum criado, nem que a descobrissem rondando pela casa ataviada com uma camisola e uma bata. Não tinha dúvida alguma o que imaginariam: que após seu episódio de ira, tinha enlouquecido.

Sua respiração começou a agitar-se quando conseguiu alcançar a porta principal. Devia desencaixar o ferrolho com grande mestria, já que no silêncio da noite, em uma casa tão grande, qualquer pequeno ruído se escutaria com grande estrondo. Evelyn esticou a mão para o fecho e, justo quando o ia girar, descobriu atônita que não estava fechado. Como era possível que uma pessoa como o senhor Stone tivesse esquecido de fechá-lo? Pelo pouco que o conhecia dava por certo que o mordomo rondava e confirmava a segurança da casa umas dez vezes antes de descansar. Absorta no pequeno detalhe, pousou os dedos nos pinos, jogou-os para trás e a grande porta de madeira se abriu sem esforço.

A escuridão da noite a recebeu. Não havia brisa que a esfriasse, nem o tempo estava arruinado. O ambiente era quente, prazenteiro, igual tinha sido à tarde. Com cuidado para não se machucar com as pedrinhas da entrada, andou até chegar ao corrimão de mármore. Dali podia observar o paraíso que rodeava a residência de Haddon Hall. A propriedade do duque era imensa. Tanto que sua vista não conseguia alcançar os limites desta. Apoiou os cotovelos e colocou seu rosto nas mãos para admirar melhor a beleza silvestre da paisagem. Sua residência era muito pequena comparada com a do duque. Possivelmente nem alcançava aquela décima parte que tinha indicado a Roger durante o passeio, mas era certo que seu lar lhe oferecia tudo aquilo que precisava. Nunca passearia por um jardim com uma variedade incontável de flores, ou gozaria de uma cavalgada de mais de duas horas, entretanto Evelyn não trocava suas tardes lendo no alpendre ou o som do manancial que crescia atrás de seu lar por nada. «E entretanto ? disse para si ? deixarei tudo o que amo para lutar por um matrimónio, que, tal como auguro, está destinado ao fracasso». Entristecida de novo por sua reflexão, afastou as mãos do corrimão e deu a volta.

? Boa noite, minha querida bruxa. ? Roger, com a agilidade de um felino, colocou-se atrás dela. Sua proximidade era tal que ao virar-se seu peito roçou o de seu marido, que, como vinha sendo um costume nele, levava-o descoberto. ? Sofre de insônia?

? O que faz aqui? ? Retrucou mal-humorada pelo repentino assalto.

? Isso mesmo me perguntava eu, que sucesso tão inoportuno faria com que minha esposa abandonasse seu quarto embelezada com apenas um fino objeto de seda negra? ? Seus olhos se cravaram nela com a mesma intensidade que uma adaga atravessa o peito de um adversário.

? Cheira a brandy ? assinalou sem diminuir seu aborrecimento.

? Mas... ? disse afastando-se dela e sorrindo ? isso não estava dentro de seus mandatos. Só fez referência ao pestilento aroma do tabaco, equivoco-me?

? Precisava tomar um pouco de ar fresco ? respondeu à pergunta omitindo a zombaria que destilavam suas palavras.

? Bem, pois então viemos os dois com o mesmo propósito ? afirmou. Afastou-se dela e começou a caminhar.

Desceu pelas escadas e começou a rondar pelo amplo jardim. Evelyn o seguia com o olhar. Desejou retornar ao seu quarto e encerrar-se nele até a alvorada, mas algo em sua cabeça lhe gritou com força que não o fizesse, que se de verdade ia levar a cabo seu plano, necessitavam de intimidade. Tragou saliva e com passo firme o seguiu.

? Deveria partir ... ? murmurou Roger ao descobrir que ela o perseguia. ? Não sou uma pessoa sensata quando bebo.

? Confio em você ? afirmou sem hesitações. Até ela mesma se surpreendeu de tal afirmação, então não estranhou que Roger se virasse e mostrasse perplexidade em seu rosto masculino.

? Umas palavras muito insensatas depois do acontecido entre nós. ? Prosseguiu sua aventura até chegar a uma fonte de pedra. Bennett a observou com o cenho franzido. Sabia o que tinha acontecido naquela pequena fonte e conhecia a história de como e quem a destruiu.

? Far-me-á mal? ? Insistiu Evelyn sem frear seu passo.

? É óbvio que não! ? Exclamou Roger zangado. ? Não sou um monstro, embora não me caiba dúvida de que albergue tal possibilidade depois de tudo o que tenho feito após a conhecer. Mas prometi que não insistirei em lhe tocar e cumprirei minha palavra. Embora para você seja um cavalheiro sem honra, não o sou.

? Sei que cumprirá o combinado. Prova disso é que deixou de fumar ? disse em voz baixa.

? Está me resultando uma árdua tarefa ? confessou zombador. ? Durante esta tarde pensei em recolher todos os charutos que tinha jogado pelo meu balcão e fumá-los de uma sentada.

? Mas? ? Insistiu Evelyn desenhando um pequeno sorriso em seu rosto.

? Mas como te disse, eu gosto de cumprir minhas promessas ? esclareceu com solenidade.

? Não entendo a razão pela qual se esforça em me ocultar quem é na realidade ? murmurou Evelyn de maneira reflexiva. Içou o olhar e o contemplou parado diante de uma pequena fonte de pedra despedaçada.

Não compreendeu a razão pela qual, em um lugar tão bem cuidado, o duque não a tinha reconstruído. Ressaltaria ainda mais a beleza do jardim e estava segura de que ofereceria uma imagem perfeita se, ao acessar a entrada do cativante éden, os olhares se centrassem no aprazível broto de água.

Roger emudeceu ao escutá-la. Apertou os punhos com força e desejou contribuir ao destroço que começou William tempos atrás. Em vez disso, suspirou profundamente, sentou-se sobre uma das pedras quebradas da fonte e abaixou a cabeça. O que devia lhe responder? Seria sensato responder a verdade? Que nada! Até o momento nenhuma mulher se preocupou em averiguar seus sentimentos, seus pesares ou suas angústias. Só queriam achar um bom amante na cama e serem suficientemente boas para que ele voltasse a visita-las. Mas Evelyn era diferente. Soube antes e o confirmava naquele instante. Ela lutaria com afã para achar o verdadeiro Roger. Entretanto, gostaria de descobri-lo? Viveria feliz após conhecer a realidade?

? Seu irmão não foi sensato ao te fazer casar comigo. Não sei o que viu em mim para lhe dar a entender que seria um bom marido, mas fosse o que fosse, equivocou-se ? disse com pesar. ? Só te farei mal e não merece viver desta forma. Conforme tenho entendido, seu passado não esteve repleto de felicidade.

? Vê? ? Disse-lhe estendendo o sorriso que mostrava seu rosto. ? Já temos algo em comum. Ambos acreditamos que meu irmão errou em seu propósito, mas aqui nos encontramos, em meio a um idílico paraíso, falando sobre a incorreta determinação do Colin. ? Sentou-se ao seu lado entrelaçando as mãos.

? É certo o que me escreveu o senhor Lawford? ? Perguntou depois de uns instantes de silêncio. Tempo que investiu em se obrigar a não estender seu braço e aconchegá-la junto a seu corpo para que não sentisse frio ao levantar uma suave brisa.

? Desconheço o conteúdo dessa carta, ? explicou entrecerrando os olhos ? então não posso te confirmar se era ou não certo. ? Estavam tendo uma conversação alongada? Evelyn estava surpreendida do que acontecia entre eles. Por fim podiam falar de algo sem que a avassalasse com insinuações inapropriadas. Entretanto, depois de tomar a decisão de entregar-se a ele, preferia que começasse uma espécie de cortejo posto que, dessa maneira, seu propósito seria mais acreditável.

? Que lhe quebrou sua melhor garrafa ? concretizou antes de soltar uma gargalhada. Relaxou-se tanto que estirou as pernas e colocou seus braços em forma de cruz atrás da cabeça.

? Não sabia que era seu melhor licor, mas sim, tinha razão. Embora em minha defesa alegue que foi em um ataque de raiva. Não estou acostumada a me comportar desse modo ? esclareceu.

Suas bochechas se tingiram de uma intensa cor vermelha, envergonhada daquele comportamento. Não era próprio de uma dama como ela deixar-se levar pela ira até tal ponto, mas ao não poder liberar-se da trama que elaborou Colin, enlouqueceu.

? Ri muitíssimo, tanto que, quando me sentia triste em alto mar, voltava-a a ler ? acrescentou arrogante. ? Embora pareça uma loucura, senti-me orgulhoso da sua conduta. Acredita-me se disser que eu não gostava da ideia de estar casado com uma mulher dócil.

? Mas meu comportamento foi desprezível. Como pode se vangloriar disso? ? Perguntou assombrada.

? Não foi desprezível, Evelyn. Atuou como uma mulher de valia. Além disso, tinha-o merecido. Aquele ladrão é muito vaidoso e se gaba de realizar uns trabalhos insuperáveis ? explicou olhando para o céu.

? Como acalmou sua angústia? Porque imagino que seu propósito ao te escrever era obter uma recompensa por meu ato inapropriado. ? Virou-se para ele e o contemplou como um pintor observa sua obra acabada.

? Paguei-lhe a quantia daquela garrafa e lhe enviei seis mais. Assim, se decidisse retornar e lhe quebrar outra, não lamentaria tanto a perda. ? Voltou seu semblante para ela e sorriu levemente. ? Bom, minha pequena bruxa, ? disse levantando do assento ? tenho que retornar ao meu quarto. Devo descansar um pouco antes de partir.

? Abandona-me de novo? ? Murmurou com pesar.

A pergunta e o tom que empregou para fazê-la o deixaram congelado. Não esperava que depois do acontecido entre eles, mostrasse tristeza, mas sim entusiasmo. Mas errava de novo. Não entendia como podia equivocar-se tanto com ela posto que, até que a conheceu, sabia com exatidão o que desejavam as mulheres.

? Como te expliquei, permanecer ao meu lado só lhe produziria pesar e não quero te fazer mais dano ? raciocinou.

? E se eu quiser partir contigo? ? Levantou-se e se colocou a menos de dois palmos de distância. O calor que desprendia o corpo de Roger esquentou-a com tanta intensidade que acreditou queimar-se. Estava em frente a um homem que, por mais que evitasse, começava a apreciar. O ato que teve com o senhor Lawford ou inclusive o de lhe advertir que ao seu lado não seria feliz, fizeram com que Evelyn se sentisse ditosa, mais do que ninguém a tinha feito sentir até aquele momento.

? Não quero que pense que tem a obrigação de fazê-lo. ? Colocou seus braços nas costas, virou-se e abaixou a cabeça. ? Imagino que, até agora, todo mundo te indicou o que deveria fazer e eu não quero ser mais um. Com o tempo descobrirá que valoro muitíssimo a palavra liberdade. Eu adoro, sinto-me vivo se for capaz de fazer tudo aquilo que desejo e não é justo que você não consiga o mesmo. Por isso, ? começou a caminhar de retorno à casa ? quero que tome um tempo para meditar sobre o que gosta de fazer. Prometo que seja qual for sua decisão a respeitarei.

Os olhos de Evelyn se encheram de lágrimas. Era a primeira vez que alguém lhe oferecia a oportunidade de escolher. Ninguém em sua família, nem sequer Scott, tinha escutado seus desejos, sempre o que eles ditavam era um mandato que devia cumprir imediatamente. Seus pais tinham recriminado uma e outra vez sua conduta posto que não fosse uma filha respeitável, ao Scott tinha urgido possui-la e convertê-la em sua esposa, até que descobriu que já não possuía o dote que lhe prometeram e se esfumou, e por último seu irmão... o pobre Colin antes de morrer também lhe marcou o futuro que devia padecer.

Afastou as lágrimas que percorriam seu rosto para perceber que Roger se afastara dela. Deixava-a sozinha para que repensasse e soube que suas premissas sobre ele eram certas, que embaixo daquela couraça metalizada se escondia um homem mais profundo e generoso do que mostrava. Tinha que romper aquela blindagem e lutar com unhas e dentes para revelá-lo, averiguar quem era a pessoa com a qual devia viver pelo resto de seus dias.

Olhou como caminhava para as escadas com a cabeça abaixada e os ombros inclinados ligeiramente para frente. «Meu Deus, ? rezou ? ajude-me. Se o que eu estou a ponto de fazer é uma loucura, que caia sobre mim sua ira. Mas se pelo contrário, a imprudência que vou realizar conquista meu propósito, deixe-me que continue». Elevou seu rosto para o céu, esperando uma resposta. No firmamento não havia nem uma só nuvem, estava tão desafogado que podia contar as estrelas. Evelyn apertou suas mãos e...

? Roger! ? Gritou correndo para ele. ? Roger! ? Insistiu ao ver que ele não se virava.

? Que... ? respondeu.

Ao voltar-se e contemplá-la, ficou imóvel. Trotava para onde estava com uma premente necessidade, seu cabelo vermelho ondulava pelo vento como uma das pequenas velas de seu navio, o laço da bata se desfez e revelou a fina e casta camisola branca com a qual se cobria. Por um instante Roger pensou que suas pernas perdiam a força e que os joelhos se cravariam no chão. Por um instante pensou que havia se deitado, que estava dormindo e que o que contemplava era somente um produto de sua imaginação. Por um instante, só por um instante, desapareceu o Roger que todos conheciam e emergiu quem realmente era: um homem afortunado por haver se casado com uma deusa.

? Diga-me... ? acertou a dizer.

? Beije-me! ? Clamou. Ficou parada em frente a ele, elevando seu rosto tudo o que alcançava. A respiração, agitada pelo esforço, fazia com que sua boca se abrisse mais que de costume.

? Como? ? Perguntou assombrado.

? Beije-me! ? Repetiu com força.

? Não era a norma número quatro a que me advertia que...?

Não conseguiu terminar sua pergunta. Evelyn esticou seus braços, rodeou-lhe o pescoço e uniu sua boca com a dele. Foi um beijo casto, com quase nenhuma paixão, mas o suficiente para que a mulher tremesse de emoção. Era a primeira vez que se lançava a um homem. Era a primeira vez que desejava ser beijada.

? Isso para você é um beijo? ? Inquiriu Roger quando ela separou seus lábios.

? Não gostou?

Evelyn abaixou a cabeça e se ruborizou pela vergonha.

? Conhece-me pouco... ? murmurou enquanto levantava com suavidade o queixo feminino. ? Muito pouco...

Apoderou-se de seus lábios com desejo. Sua língua invadiu a boca da mulher com paixão, com ânsia. Esticou as mãos e a atraiu para ele. O corpo de Evelyn encaixava-se à perfeição com o seu. Não eram duas figuras unidas, mas sim uma. Cada roce, cada carícia que a língua realizava, esquentava a mulher até limites inimagináveis. Ambos começaram a tremer pela sensação de plenitude que lhes provocou aquele beijo. Contra sua vontade, Roger se separou dela. Seus olhos permaneciam fechados. Seu peito se elevava com afã tocando o seu. A camisola, aquele objeto minúsculo que ocultava a bela figura de sua esposa não evitou que os mamilos endurecidos se cravassem em seu torso.

? Isto, minha querida bruxa, é um beijo ? sussurrou afogado pela luxúria.

Evelyn não pôde responder. Ainda tentava controlar os tremores que açoitavam seu corpo, seu ser. Retornou aquela incansável queimação entre suas pernas e pela primeira vez em sua vida notou um palpitar em outro lugar que não fosse o peito.

? Boa noite, Evelyn ? disse Roger afastando-se de sua esposa a contragosto.

? Boa noite, Roger ? respondeu em voz baixa.

Deixou que caminhasse diante dele. Como se a protegesse de qualquer perigo, suas costas tocavam o tórax nu de seu marido. Com aparente integridade entrou no hall e subiu pelas escadas. Tudo lhe dava voltas e começava a enjoar. Segurou-se ao corrimão com força e pisou em cada degrau como se quisesse atravessá-lo. Antes de virar-se para seu quarto, voltou a vista para ele. Permanecia imóvel, observando-a sem piscar. Evelyn suspirou e avançou com lentidão para seu quarto. O corpo lhe pesava mais de uma tonelada fazendo impossível realizar movimentos graciosos. Com suavidade se meteu em seu quarto. Sem fazer ruído tombou na cama, jogou-se o lençol e fechou os olhos.

Possivelmente não tinha sido boa ideia elaborar o plano. Possivelmente deveria retratar-se e abandoná-lo o antes possível porque, se somente com um beijo a exaltava até o ponto de perder a razão, o que não aconteceria quando aquela língua dominante lambesse cada parte de seu corpo. Tremendo pela excitação e arrependendo-se de seu propósito, adormeceu.


Roger esteve olhando-a até que desapareceu. Controlou sua ânsia de correr para Evelyn, elevá-la entre seus braços e conduzi-la para seu quarto para possui-la tantas vezes quantas seu sexo lhe permitisse. Mas se conteve. Custou-lhe uma enorme e intensa dor em suas partes nobres, mas o conseguiu. Sua esposa não era como as mulheres que tinha conhecido, não se equilibrava sobre ele para obter prazer e sim para lhe dar de presente um beijo. Um beijo tão infantil que o deixou pasmado. Não conseguia conceber como uma mulher que tinha gozado da companhia de um homem podia beijar igual a uma jovenzinha de dezesseis anos. «Não se martirize ? disse. ? Recorda que aquele seu prometido morreu antes de casar-se. Talvez, como presente antes da partida, ofereceu-lhe sua virtude e não conseguiu saber como se desfruta de um verdadeiro ato sexual». Aquele pensamento excitou ainda mais a Roger. Se suas divagações fossem certas, se Evelyn era casta na cama como era ao beijar, ele teria a honra de ser seu professor e fazê-la gritar de prazer. Muito ao seu pesar sua mente lhe ofereceu a imagem dela nua em sua cama, movendo a cabeça e agitando seu cabelo ao possui-la. O pensamento lhe pareceu tão real que até notou em suas costas como cravava as unhas ao ser sacudida pelo clímax. Abaixou a cabeça e respirou tantas vezes quantas lhe foram necessárias para acalmar a excitação que tinha crescido sob sua calça. Não era o momento idôneo para fazê-la sua. Pretendia que, assim como lhe pediu um beijo, pedisse-lhe todo o resto. Seria a primeira vez que se frearia para dormir com uma mulher, mas estava seguro de que a espera valeria a pena.

Depois de inspirar com profundidade dirigiu-se para a biblioteca. Devia acalmar-se o antes possível e uma garrafa de brandy era uma boa alternativa.


XXII


? Está segura do que vai fazer? ? Perguntou Wanda pela quinta vez. Seguia insistindo que não lhe parecia correto que Evelyn empreendesse uma viagem tão longa sem uma donzela que pudesse assisti-la.

? Muito segura ? afirmou sem duvidar. ? É justo que acompanhe ao meu marido. Além disso, nada acontecerá ao seu lado.

? Não me refiro a isso, minha senhora. Sabe bem que não é próprio de uma mulher permanecer sozinha durante tanto tempo com um homem. O que pensarão aqueles que a virem? ? Escovou o cabelo com suavidade e o prendeu em um coque baixo.

? Mas resulta que esse homem é meu marido e, como boa esposa que sou, vou acompanhá-lo em sua viagem para Londres ? respondeu levantando-se de seu assento.

? Mas...

? Não há mas, Wanda! Tomei uma decisão e não vou voltar atrás. Se quiser que este matrimônio funcione, se desejo viver tranquila pelo resto dos meus dias, tenho que fazê-lo. ? Olhou-se de novo ao espelho e sorriu. Por sorte mal ficaram sinais em seu rosto da insônia da noite. Ninguém poderia imaginar que não conseguiu alcançar um sono reparador. Só ela e Roger sabiam o acontecido.

? Preparei-lhe só um baú ? assinalou a donzela com pesar. ? O resto de seus pertences empacotarei com o passar do dia. E se Deus é bondoso, poderei partir amanhã ao amanhecer.

? Dirija-se para Lonely Field, será lá onde me hospedarei ? indicou ao mesmo tempo em que abandonava o quarto.

Wanda franziu o cenho e a observou sem pestanejar. A mudança de atitude de sua senhora não lhe parecia coerente. Não entendia como na tarde anterior o diabo havia se apoderado dela para odiar de maneira desumana seu marido e, horas depois, levantou-se sorridente e com vontade de assimilar uma vida conjugal. Deduziu que tinha meditado durante a noite. Preferiu pensar que Evelyn tinha refletido cuidadosamente sobre o que deveria fazer para conseguir um bom matrimônio, ou talvez, depois da ira sofrida, sua cabeça tinha ficado transtornada e a conduzia para pensamentos incoerentes. Cabisbaixa e sem cessar de perguntar-se que opção das duas imaginadas tinha conduzido Evelyn para sua determinação, abandonou o cômodo.

? Bom dia ? saudou-a Roger ao vê-la descer as escadas.

Evelyn usava um bonito vestido de cor malva com renda branca e dourada. Seu cabelo, recolhido em um coque baixo, mal exibia seu esplendor sob o chapéu branco e, como era habitual, suas mãos se achavam escondidas sob umas luvas da mesma cor que o chapéu. Bennett, quando ela se aproximou, abriu-lhe a porta da carruagem para que ocupasse seu lugar no interior. Tentou, em vão, eliminar de seu rosto a satisfação que lhe produziu a decisão de Evelyn por acompanhá-lo. Possivelmente havia uma possibilidade de eles serem felizes, ou talvez, quando descobrisse quem era o homem com quem se casou, abandoná-lo-ia com rapidez. Mas até que chegasse esse momento, desfrutaria de sua companhia que, por sorte, cada vez era mais prazenteira.

? Preparada para empreender uma árdua e tediosa viagem? ? Perguntou arqueando as sobrancelhas.

? Bom dia, Roger. Estou pronta para confrontar qualquer adversidade ? respondeu riscando um leve sorriso em seu rosto.

Esteve a ponto de subir à carruagem quando percebeu que seu marido olhava para a entrada da mansão. Evelyn se voltou para essa direção e se sentiu muito afortunada de ter encontrado uns amigos tão leais. Os duques, apesar de não ter amanhecido, levantaram-se para despedirem-se.

? Acredito que tomou a decisão adequada ? sussurrou-lhe Beatrice quando a abraçou. ? Procure a verdadeira pessoa que está ao seu lado. Que nada nem ninguém te freie e estou segura de que terminará amando-o. Estes homens são difíceis, duros e relutantes em expressar seus sentimentos. Entretanto, quando alcançar seu coração, acharão a felicidade.

? Obrigada ? respondeu contendo suas lágrimas.

? Satisfaz-me ver que finalmente limou suas asperezas ? falou William com voz solene.

? Teria gostado de limar outras coisas, mas acredito que não demorarei muito em obtê-lo ? comentou sorridente Bennett. Estendeu sua mão para o duque e este a apertou com força.

? Se a deixar atuar tal como fez ontem à noite... ? sussurrou tão baixo que só eles dois escutaram as palavras ? será mais fácil conseguir o que pretende.

? Está me dizendo que se escondeu entre as sombras e nos observou como um vulgar olheiro? ? Exigiu saber com uma mescla de assombro e brincadeira.

? É meu dever, como dono deste lar, confirmar que meus hóspedes se encontram cômodos sob meu teto e, tal como mostraram depois da pequena excursão no jardim, era algo mais que conforto o que expressavam seus rostos ? indicou zombador.

? Não sei o que ocorrerá quando descobrir a verdade, William, mas temo não duvidará em me abandonar ? acrescentou reflexivo.

? Eu sei sua verdade, Roger e te abandonei? Nunca! ? Exclamou baixinho. ? E mais, desde que me falou disso estive ao seu lado sempre. Por que não conta a Evelyn? Cedo ou tarde descobrirá e, ao meu parecer, é melhor que o segredo que guarda com tanto afã o conheça de sua boca do que de outra fonte menos confiável ? alegou com firmeza enquanto seu amigo tentava não mostrar pesar diante das mulheres.

? A senhora Stone preparou suficientes quitutes para o caminho e acredito que meu marido lhe permitiu que acrescentasse em uma das cestas alguma garrafa de vinho, das que guarda com ardor na adega ? explicou Beatrice ao mesmo tempo em que caminhava para trás até ser acolhida pelo braço de William.

? Minha senhora... ? disse Roger abrindo a porta e realizando uma leve genuflexão ? depois de você.

Evelyn olhou à Beatrice. A mulher lhe sorriu e afirmou devagar com a cabeça. Depois, virou-se para seu marido e apoiando sua mão na dele, meteu-se na carruagem.

? Como terá averiguado, para mim, eles são minha única família ? falou com certo ar de tristeza. ? Ninguém poderá superar o amor que sinto por William e Beatrice.

? Entendo... ? sussurrou ao mesmo tempo em que dizia adeus à sua amiga com a mão.

Não se reclinou no assento até que os picos dos telhados de Haddon Hall desapareceram. Triste, desatou o laço do chapéu, pousou-o no assento dianteiro e colocou sua cabeça na almofadinha.

? Ainda está em tempo de voltar atrás ? disse Roger com firmeza.

? Não vou mudar de opinião ? respondeu com veemência. Voltou a vista para ele e franziu o cenho ao ver como pousava seus pés no assento de frente.

? Tenho as pernas muito longas, se por acaso não se deu conta ? defendeu-se.

Cruzou os braços e jogou a cabeça para trás. Nessa manhã tinha decidido amarrar seu cabelo em uma cauda baixa e, ao que parecia, por fim o ajudante de câmara conseguiu lhe aparar a barba.

? Se as colocasse como você, ficariam tão intumescidas que teriam que me amputar.

Evelyn sorriu ante a confissão de Roger. Não tinha pensado naquele inconveniente. Por sorte, ela não padecia desse problema. Suas pernas facilmente se estiravam sem mal tocar o assento dianteiro. Entretanto, sabia que realizar uma viagem tão longa com as pernas na mesma posição, terminaria tendo suas consequências.

? Descansa um pouco ? disse Bennett com voz melosa. ? Logo amanhece e prometo que te despertarei quando decidirmos parar.

? Não estou muito cansada, mas fecharei um pouco os olhos. ? Virou-se ligeiramente para a direita e apoiou de maneira adequada a cabeça. Não pretendia que, depois de umas horas de viagem, fosse açoitada por uma terrível dor no pescoço.

Respirou com profundidade concentrada no aroma que seu nariz apanhava ao inspirar. Era uma mescla tão embelezadora como sedutora, uma combinação de colônia masculina e essência viril. Sem abrir os olhos se perguntou como podia cheirar a fragrância de seu marido naquela distância, como era capaz de encher um lugar tão amplo com seu aroma. Contra sua vontade elevou com suavidade as pestanas e quando percebeu que sua cabeça estava sobre o peito de Roger, paralisou-se. Em que momento ficou tão adormecida que não tinha sido consciente de haver se reclinado para ele? Assombrada e um pouco envergonhada esteve a ponto de afastar-se com rapidez, mas preferiu seguir desfrutando do pequeno e suave balanço do torso masculino ao respirar. Era pausado, tranquilo, reconfortante.

Dirigiu o olhar para seu próprio ombro e comprovou que uma das mantas que Wanda tinha colocado no interior a agasalhava. Ele tinha se preocupado de que não tivesse frio, de mantê-la cálida. Embora estivesse segura de que não lhe faria falta aquele objeto enquanto seu corpo permanecesse ao lado do de seu marido. Uma estranha sensação de plenitude fez com que seu peito se alargasse de maneira incomum. Compreender que cuidava dela, que velava por seu bem-estar, a fez sentir-se muito afortunada. Até aquele momento, só Wanda se preocupava com ela após ter ficado grávida, de seus pais só obteve recriminações, angústia e amostras de repúdio, nem sua mãe, quem deveria havê-la apoiado posto que nascera de suas vísceras, foi capaz de aparecer em seu quarto depois de perder ao bebê. Separaram-na deles como se tivesse a peste. Assim que pôde pôr um pé no chão encontrou seus pertences empacotados para enviá-la com a irmã de seu pai à França. Três anos durou sua expulsão. E retornou porque sua pobre tia morreu devido às febres. Quando chegou à sua casa ninguém lhe deu cálidas boas vindas, salvo Colin, que mal contava com cinco anos de vida. Entretanto, ao adoecer sua mãe, ela não a abandonou. Esteve ao pé de sua cama durante todo seu padecer. Ajudou-a em tudo aquilo que requeria e inclusive ela mesma a amortalhou após falecer. Não podia odiá-los por seus atos. Tinham agido tal como ditavam os protocolos sociais. Ela era uma mulher maldita, uma mulher que, apesar de não alcançar os dezenove anos, tinha amaldiçoado sua família.

Evelyn foi incapaz de parar suas lágrimas. Seguia sofrendo. Por mais que evitasse rememorar sua agonia, apareciam diminutos detalhes em seu presente que lhe recordavam o vivido e, muito ao seu pesar, voltavam a lhe provocar uma profunda dor.

? Está acordada?

A pergunta de seu marido fez com que os aterrorizantes pensamentos se desvanecessem. Não foi a pergunta e sim o tom de voz que empregou o que a reconfortou. Tinha vivido um passado que não devia esquecer, mas augurava que seu futuro, se jogasse bem suas cartas, seria mais prazenteiro do que imaginara.

? Sim ? respondeu levantando a cabeça. Observou-o durante uns instantes nos quais apreciou que ele não tinha descansado. Tinha os olhos avermelhados e mostrava um rosto fatigado. ? Conseguiu dormir?

? Pouco, mas o suficiente para continuar ativo o resto do dia ? esclareceu com voz rouca.

? Sinto se tiver sido a culpada disso. Não me dei conta de que me recostei em você ? tentou desculpar-se.

Colocou-se corretamente no assento e voltou a olhar pela janela. Não sabia onde se encontravam, mas aquele lugar era lindo. As divisas do caminho estavam repletas de árvores frondosas cujas folhas não deixavam apreciar se o sol tinha saído ou se ocultava-se depois das nuvens. Ao longe descobriu uma pequena planície, um lugar ideal para deter-se e poder almoçar.

? Seria inapropriado parar aqui? ? Quis saber virando-se para ele. ? Vi um lugar lindo atrás daqueles arvoredos. ? Assinalou-o com o dedo.

Roger assentiu. Golpeou três vezes a parede da carruagem e esta começou a diminuir a marcha. Evelyn abriu os olhos tudo o que pôde ao ver que a sugestão, para ele, tinha sido como um mandato e voltou a sentir-se afortunada. Qualquer outro homem teria dado milhões de desculpas para continuar a marcha: chegaremos tarde, logo se fará de noite, este lugar está muito desabitado, poderiam nos assaltar..., mas ele não. Roger aceitava sua proposição sem sequer falar. Quando o carro parou, Bennett se levantou com rapidez de seu assento. Não esperou que Anderson abrisse a porta, mas sim ele mesmo a abriu.

? Tome cuidado, ? advertiu estendendo a mão ? o caminho é acidentado.

Ela aceitou seu oferecimento. Pegou o vestido com sua mão direita e se segurou na de seu marido com a esquerda. Depois de pousar seus pés no chão compreendeu a razão pela qual Roger a avisara. Não só encontrou buracos ao caminhar, mas também enormes pedras que poderiam lhe propiciar uma queda se não andasse com cuidado.

? Almoçaremos nesse lugar ? assinalou ao criado. ? A senhora Stone preparou todo o necessário para fazer uma pequena parada no trajeto.

? Sim, milorde ? respondeu Anderson antes de dirigir-se para as cestas que tinham colocado na parte traseira do veículo.

? Se for tão amável... ? disse Roger a Evelyn lhe oferecendo seu braço. ? Te ajudarei a avançar.

É óbvio que ela se segurou no braço de seu marido. Não porque não soubesse saltar os obstáculos, já que desde sua tenra infância tinha percorrido trechos mais dificultosos, a razão que a levou a aceitá-lo foi o tom carinhoso de sua voz e a expressão que mostrou ao olhá-la. Era como se a considerasse uma peça de porcelana, uma frágil esfinge que, em qualquer momento, podia quebrar-se.

? Decidi pernoitar em uma estalagem que há a umas horas daqui ? explicou enquanto Evelyn caminhava segura sobre a erva. ? Não é muito luxuoso, mas atendem como é devido aos clientes.

? Perfeito ? respondeu.

Esqueceu-se o chapéu e os raios de sol esquentariam mais do que o desejado seu rosto. Quis ordenar ao Anderson que o trouxesse, mas pensou melhor. Se seu marido tinha uma pele torrada pelos raios de sol e não lhe provocava mal-estar, tampouco lhe suporia moléstia alguma bronzear um pouco sua cútis.

? Posso te fazer uma pergunta? ? Disse Roger com certo interesse.

? É claro! ? Exclamou. Ao virar-se descobriu que o criado tinha estendido uma manta e seu marido se sentava nela. Caminhou devagar para não tropeçar e se sentou junto a ele.

? Por que me acompanha? ? Bennett estendeu a mão para uma terrina de frutas e pegou uma maçã.

? Por que não deveria fazê-lo? ? Perguntou à sua vez surpreendida. Colocou seus dedos na vasilha de barro e apanhou um cacho de uvas.

? Porque não sou uma boa pessoa ? disse antes de morder a fruta.

? Repete-me isso uma e outra vez ? disse exasperada. ? Por que não me deixa chegar a essa conclusão sozinha?

? Não se zangue. Não era minha intenção te zangar. Só me pergunto o que te fez mudar de parecer com tanta rapidez. ? Voltou a fincar o dente na fruta.

? Não te parece suficiente motivo estarmos casados? ? Inquiriu levantando as sobrancelhas.

? É uma razão... ? murmurou. Olhou os restos da maçã e os lançou como se fosse uma pedra.

? É a única razão ? esclareceu antes de começar a devorar as uvas.

Deram por resolvido esse tema para comer com tranquilidade. Ambos sabiam que, se continuassem conversando sobre os possíveis motivos pelos quais Evelyn decidiu acompanhá-lo, terminariam jogando a comida e, devido ao longo trajeto que deviam realizar antes de chegar à estalagem, precisavam alimentar-se para aguentar a árdua viagem.

Quando Roger se encontrou satisfeito, tombou-se sobre a manta, colocou seus braços simulando um travesseiro e fechou os olhos. Evelyn descobriu que o sono o tinha apanhado depois de escutar como sua respiração se fazia mais profunda. Com muito cuidado levantou-se e começou a caminhar para um arvoredo que havia próximo. Agora que ninguém a perseguia com o olhar, podia realizar certa necessidade humana com tranquilidade. Virou-se várias vezes para confirmar que Roger seguia descansando sobre a manta e que os criados permaneciam sentados junto à carruagem. Era o momento. Já não podia aguentar mais. Encontrava-se em uma situação muito embaraçosa, mas era isso ou fazer nas roupas.

Ao chegar à pequena alameda descobriu maravilhada que justo no pé das árvores emanava um riacho. Resultou-lhe tão espetacular que decidiu baixar até ele. Atrás de uma árvore, e espreitando como uma águia a sua presa, Evelyn elevou o vestido e fez o que precisava fazer com tanta urgência. Depois de acabar, suspirou deliciada. «Um pouco mais e minha bexiga explodiria», disse-se divertida. Sopesando o tempo que Roger permaneceria adormecido, encorajou-se e tirou os sapatos e as meias. A água fria acalmaria o inchaço de seus pés e os refrescaria. Depositou seus pertences na beira do rio e começou a caminhar pelo caudal. Não era muito fundo, assim podia salvar o vestido elevando-o até o joelho. O frescor aliviou aquela pequena moléstia e a relaxou tanto que não cessou seu passo até que mal distinguiu onde tinha colocado seus pertences.

De repente, invadiu-a a pressa. Quanto tempo podia ter transcorrido? «Não mais de meia hora», meditou. Mas aquele lugar era tão parecido ao seu lar, cheirava tão semelhante que, quando fechou os olhos, acreditou encontrar-se de novo em Seather. Apressou sua volta, não queria que Roger despertasse e descobrisse que ela não se encontrava ao seu lado. Podia imaginar que seu verdadeiro propósito para viajar junto a ele era desaparecer assim que tivesse a mínima oportunidade. Sorridente ao figurar a cara de espanto e assombro que poria ao não achá-la caminhou pelo rio sem perceber o perigo que a tinha espreitado durante todo aquele tempo. Não a viu até que estendeu as mãos para as meias e justo nesse momento gritou aterrada.

Roger despertou sobressaltado porque tinha escutado em sonhos um grito aterrador de Evelyn. Ao sentar-se, levou a mão ao peito para acalmar a inquietação que lhe tinha produzido o pesadelo. Então olhou para o lugar onde deveria estar sentada sua esposa e não a encontrou. Ali não havia nada salvo o espaço que ela tinha ocupado. Aturdido, levantou-se com rapidez e dirigiu suas pupilas para a carruagem. Ao observar que os criados se levantaram ao mesmo tempo e que Evelyn não se encontrava perto, seu coração se agitou de maneira sobrenatural. Esteve a ponto de gritar aos criados se algum deles sabia onde estava sua mulher quando escutou outro alarido.

? A arma! ? Uivou apavorado. Anderson abriu a porta da carruagem, levantou um dos assentos e tirou duas armas. ? A espingarda é minha! ? Voltou a gritar Roger.

O criado correu para ele e ficou atônito ao observar a palidez de seu rosto. Nunca tinha visto aquele pânico refletido no rosto do homem nem tampouco umas mandíbulas tão contorcidas.

Antes de alcançá-lo, lançou-lhe a arma e Roger correu para o lugar onde acreditou ouvir o grito de Evelyn. Suas pernas, embora dessem umas pernadas grandiosas e firmes, tremiam pelo pânico. O coração tinha deixado de lhe pulsar e mal podia respirar, não podia conceber que tivesse acontecido algo horrível à sua esposa, e o temor por ela fez com que o pequeno trajeto lhe parecesse uma eternidade.

Apertou a mandíbula com tanta força que seus dentes chiaram e não encontrou nenhum pouco de tranquilidade até que a encontrou, chorando no meio de um rio, com a saia erguida até os joelhos e com uma cara repleta de espanto.

? Evelyn... ? sussurrou para que ela relaxasse e lhe indicasse onde estava o perigo.

A mulher estava tão assustada que não pôde nem pensar, só conseguiu mover a mão para uns objetos que havia na beira do rio. Então foi quando a viu. Não era muito grande, mas tinha elevado sua cabeça para a figura de sua esposa e, se se movesse, podia atacá-la.

? Calma, pequena, e não se mova ? murmurou.

Roger ajustou sua arma no ombro, precisou o ponto de disparo e, depois de conter a respiração, disparou.

? Roger! OH, Roger! ? Clamou correndo para ele.

Este atirou a espingarda ao chão e abriu seus braços para que ela se aconchegasse entre eles. Não cessava seu pranto, nem diminuiu a agonia que tinha passado ante o perigoso animal.

? Acalme-se, querida ? disse-lhe beijando o cabelo e acariciando as costas. ? Tudo terminou.

Abraçou-a com força se dispunha a conduzi-la para a carruagem quando percebeu que estava descalça. Pegou-a nos braços e a levou para o veículo enquanto ela apoiava a cabeça sobre seu peito e passava os braços ao redor do grosso pescoço masculino, sem deixar de soluçar nem tremer.

? Por que se afastou tanto do meu lado? ? Não foi uma pergunta a modo de reprimenda, mas sim de interesse.

? Precisava... desejava... tinha que fazer... ? tentou dizer, mas morria de vergonha de explicar a razão de seu distanciamento.

? Não importa ? consolou-a ao descobrir com rapidez o motivo pelo qual se aventurou a afastar-se de onde se encontrava. ? Não importa...

Continuou em seus braços até que chegaram à carruagem. O cocheiro, quem não se moveu do lugar para evitar possíveis roubos, abriu-lhes a porta. Roger a deixou no interior e se colocou ao seu lado abraçando-a.

? Seus pertences, ? informou Anderson pousando sobre o chão as meias e os sapatos ? embora tenham ficado manchadas de sangue.

? Jogue-os! ? Exclamou zangado. ? Compraremos outros no seguinte povoado.

Anderson assentiu levemente com a cabeça, jogou-os no caminho e fechou a porta.

? Empreenderemos a marcha quando recolher os utensílios do piquenique ? explicou o criado ao cocheiro.

? Encontra-se melhor? ? Quis saber Roger. Seguia com o corpo de sua esposa agarrado ao dele e suas mãos não diminuíam as carícias para reconfortá-la.

? Não ? respondeu com rapidez. ? Se não tivesse me dado conta, se ela tivesse me mordido...

? Graças a Deus está bem e isso é o que me importa, ? disse com firmeza ? mas na próxima vez, quando tiver certas necessidades, avise-me ? insistiu. ? Prometo que te darei a liberdade que requeira sem descuidar da minha obrigação de te proteger.

? Fá-lo-ei. Juro-lhe isso. ? Evelyn agarrou com força a cintura de seu marido, continuou apoiando a cabeça sobre o peito agitado do homem e tentou acalmar sua inquietação mediante o conforto que lhe provocava estar ao lado de seu marido.


XXIII


Durante o longo trajeto à estalagem, Evelyn não se separou de Roger em nenhum momento. O medo perdurava nela e cada vez que fechava os olhos voltava a ver a serpente levantando a cabeça e abrindo a boca para mordê-la. Nunca tinha sido uma mulher medrosa. Sempre tinha conseguido vencer certos temores, mas nunca superou o de permanecer perto de um animal tão perigoso. Seu marido seguia pousando a mão direita sobre suas costas e a acariciava com ternura tentando acalmá-la, muito ao seu pesar converteu-se em seu salvador, em seu protetor. A imagem dele parado em frente a ela, levando uma arma na mão com o rosto alterado pelo pânico não tinha cessado de repetir-se em sua mente.

Não entendia por que ele insistia tanto em que não era um bom homem, se não o fosse, se não lhe importasse o que lhe acontecesse nem sequer teria se levantado da manta. Entretanto, correu em sua busca, apontou sem vacilar ao animal e o matou. E logo, como se fosse o primeiro dia de casados, elevou-a em seus braços e a pôs a salvo.

Evelyn suspirou profundamente ao sentir-se confusa. Não conseguia entender como uma pessoa que era um egoísta tinha posto em perigo sua vida pela dela. Porque se não parasse, se tivesse caminhado um pouco mais teria mordido a ele. A mulher soluçou com tanta suavidade que Roger não conseguiu escutá-la. Por mais que o tentasse não conseguia entender seu marido. Que escuridão ocultava e por que o aterrava tanto que ela descobrisse? Confusa e ao mesmo tempo intrigada por revelar o segredo, disse-se que continuaria com seu objetivo. Deixaria a um lado todos os preconceitos que tinha sobre ele e daria a oportunidade de conhecer o verdadeiro homem com quem se casou. Muito temia que o mostrado não fosse, nem de longe, sua verdadeira personalidade.

? Chegamos ? disse com voz doce e melosa.

Sua mão deixou de acariciá-la e se reclinou justo para que ela pudesse endireitar-se com facilidade.

Evelyn piscou várias vezes. A escuridão reinava no exterior e suas pupilas não se adequavam com rapidez à penumbra. Com certo desagrado, porque se encontrava bastante cômoda reclinada sobre o corpo de seu marido, endireitou-se no assento e moveu levemente a cabeça.

? Partirei primeiro. Quero confirmar que há quartos livres antes que saia da carruagem ? disse segurando-lhe as mãos, apertou-as e as conduziu para sua boca para beijá-las. ? O cocheiro permanecerá fora. Se necessitar de algo, se desejar algo enquanto falo com o hospedeiro, peça a ele, me fará saber isso com rapidez.

? Não me acontecerá nada ? disse desenhando um sorriso. A pequena carícia, o insignificante tato de seus lábios sobre suas mãos provocou na mulher uma repentina emoção de calidez. ? Se ocorrer algo, já sei onde esconde as armas...

? Nem te ocorra tocá-las... ? advertiu-lhe respondendo com outro sorriso. ? Acredito que o mundo não está preparado para uma combinação tão perigosa.

Esteve a ponto de replicar suas palavras quando abriram a porta pelo lado que deveria sair Roger.

? Sua senhoria, ? disse Anderson ? apreciei que não há muitas carruagens pelos arredores. Possivelmente tenhamos sorte e possamos pernoitar nesta estalagem.

? De todas as formas quero confirmá-lo. Em algumas ocasiões os hóspedes escondem as carruagens para que não os roubem durante sua estadia. Não demorarei Evelyn, e já sabe, nada de coisas perigosas ? comentou com zombaria antes de descer e fechar a porta.

Esteve a ponto de cruzar os braços e resmungar como uma menina pequena. Não era justo que lhe falasse daquela forma. Ele mesmo assinalou as adversidades que podia haver pelos arredores e o sensato teria sido que ela segurasse entre suas mãos algo com o que se defender. Terminou por colocar a testa no vidro e entrecerrar seus olhos para averiguar o que havia no exterior. Só achou escuridão. Então Roger tinha razão. Era o lugar perfeito para ser assaltado por hábeis ladrões. Depois de soprar, tornou-se para trás, agarrou a manta e se cobriu com ela. Não o fazia por frio, mas sim para ocultar-se de possíveis olhares provenientes do exterior. Jamais admitiria que começasse a inquietá-la permanecer em um lugar tão sombrio. Quem poderia lhe prometer que não havia alguém espreitando pelos arredores? Quem poderia lhe jurar que essa pessoa não se aproximaria da carruagem, que não pensava golpear ao cocheiro até deixá-lo inconsciente e que não pretenderia roubar o coche no qual permanecia escondida? «Calma, Evelyn ? falou entre sussurros ao mesmo tempo em que sacudia brandamente a manta com as palmas das mãos. ? Isso só acontece nos livros que você tanto gosta de ler. Não pode acontecer nada disso por que...».

Ficou calada, emudeceu de repente ao escutar um ruído aproximando-se dela. Quis cobrir-se até a cabeça com o objeto que, ao ser escuro, podia ocultá-la com facilidade, mas pensou melhor. Afastou a manta, esticou a mão para a almofada de seda vermelha que cobria o assento e o levantou com cuidado. «Meu Deus!», exclamou aterrada. Não se assustou ao ver o imenso arsenal que escondia seu marido, mas sim de outra coisa.

Ao princípio acreditou que se tratava de um mero brinquedo. Uma possível lembrança da infância pensou. Mas quando o pegou, quando suas mãos puderam apalpar a rugosidade e perceber a solidez dos ossos, compreendeu que não era um brinquedo e sim o crânio de um menino. Com rapidez colocou-o em seu lugar, cobriu-se com a manta e assustada, esperou a chegada de seu marido.

? Pode sair ou necessita da minha ajuda? ? A pergunta de Bennett apanhou-a de surpresa. Não o tinha visto aproximar-se, nem o tinha escutado abrir a porta e ao ouvir sua voz se sobressaltou. ? Vem, agarrar-te-ei entre meus braços para que não machuque os pés. ? Estendeu suas mãos e esperou que Evelyn as aceitasse. ? Sinto se não encontramos um lugar onde adquirir outros sapatos e meias. Perguntei ao hospedeiro se há um povoado próximo e me respondeu que o mais próximo se encontra a duzentas milhas daqui.

? Wanda deve ter colocado algo no baú ? comentou com suavidade tentando diminuir o sentimento de pânico que a açoitou após achar o pequeno crânio.

? Então ordenarei ao Anderson que o leve ao nosso quarto.

? Nosso quarto? ? Inquiriu abrindo os olhos com ímpeto e exibindo um rosto de assombro.

? Sinto muito, querida, só tinha livre um quarto decente. Mas não se preocupe, não farei nada que te cause mal-estar. Dormirei em uma das poltronas que haverá no interior ? esclareceu sem expressar brincadeira ou zombaria em sua voz.

Tinha-lhe parado o coração? Sim, é óbvio e também notou uma pressão tão forte na garganta que a impedia de respirar. Iam dormir no mesmo quarto! Como ia descansar sabendo que ele estava ao seu lado? Que em qualquer momento poderia assaltá-la? Aterrada pela ideia, segurou-se com mais brio ao corpo de seu marido e este entendeu, sem necessidade de falar, que a ideia de dormir junto a ele provocava-lhe pavor.

? Estarei lá embaixo ? disse após abrir a porta do dormitório e pousá-la com cuidado no chão. ? Trarei um pouco de comida. Acredito que se encontrará mais cômoda no quarto que no refeitório da estalagem, há muitos homens e, tal como observei, o álcool logo os fará perder a razão.

? Parece-me uma ideia bastante sensata. Por hoje já tive suficientes sobressaltos ? respondeu com apenas um fio de voz.

Caminhou pelo interior contemplando o pequeno, mas confortável quarto. A cama era ampla e parecia cômoda. Tal como lhe explicou, havia um extenso sofá de cor marrom escura junto aos pés do leito. Com rapidez calculou como dormiria ali o corpo de seu marido e chegou à conclusão que suas longas pernas se sobressairiam deste. Voltou-se para Roger ao perceber que ele também se movia. Tirava a jaqueta, a gravata e o colete, ficando só com a camisa branca e as calças do traje escuro.

? Anderson trará o baú em breve ? disse após deixar o último objeto sobre o sofá. ? Tenho que ser honesto e te dizer que pensei que seria maior ? comentou desenhando um sorriso.

? Não me deu tempo para muito... ? murmurou enquanto observava a zona de asseio. Não havia uma tina em que pudesse limpar as sequelas de um dia caloroso e exaustivo. Só encontrou uma bacia, vários garrafões metalizados que imaginou que estariam cheios de água, e um penico. Retornou ao dormitório e percebeu que Roger tinha caminhado para a porta, partia com a intenção de lhe dar privacidade. Entretanto, nenhum dos dois tinha pensado que ela necessitava de uma donzela para despir-se.

? Se precisar de algo que não guarde nessa pequena bagagem, faça-me saber. Tentarei consegui-lo ? disse esticando a mão para a maçaneta.

Estava muito tensa, não só pelo que tinha vivido no prado, mas sim por algo mais. Seu sobressalto ao vê-lo aparecer na porta da carruagem, o rosto de espanto que mostrava e os tremores de suas mãos lhe apontava que o medo ainda permanecia nela. Mas... como demonstrar que ao seu lado podia estar segura? Poderia acreditar que tentava acalmá-la para que, em um descuido durante a noite, assaltasse-a esquecendo de sua promessa de não a tocar. De repente, justo no momento no qual decidiu lhe perguntar a razão de seu nervosismo, bateram na porta.

? Milorde ? falou Anderson levando o pequeno baú de Evelyn. ? Os pertences da senhora.

? Deixe-os aí. ? Assinalou com o dedo um pequeno espaço que havia ao lado de onde se encontrava a mulher.

? Sim, senhor. ? Com movimentos ágeis e silenciosos o criado pousou a bagagem, fez uma leve genuflexão e os deixou de novo sozinhos.

Evelyn olhou com atenção o baú. Depois o abriu e procurou uma camisola com a qual cobrir seu corpo para dormir.

? Roger... ? chamou sua atenção quando reparou que este tentava afastar-se.

? Sim? ? Perguntou voltando-se para ela e arqueando as sobrancelhas.

? Necessito de ajuda para me desatar o vestido ? disse com certo embaraço.

? Perguntarei ao hospedeiro se embaixo deste teto há uma donzela a quem eu possa pagar por seus serviços ? respondeu com rapidez.

? Não precisa, ? esclareceu ruborizada ? basta que me desate os laços do vestido. O resto posso fazê-lo sozinha.

Roger assentiu, aproximou-se dela e esperou que se virasse para realizar a mísera tarefa que lhe tinha encomendado. Esticou suas grandes mãos para os laços e foi soltando um a um os nós do objeto. Quando terminou, o vestido caiu ao chão com facilidade, deixando expostas as costas da mulher e as anáguas que sustentavam a sedosa vestimenta.

? Algo mais? ? Perguntou com voz estrangulada.

? Nada mais, obrigada. ? Suas mãos tremiam, assim como sua voz.

Sua respiração se fez lenta, muito pausada para poder manter uma inspiração correta. Levantou as pernas e abandonou o vestido no chão. Não queria dirigir suas pupilas para Roger, não podia fazê-lo porque se o fizesse, se o contemplasse, podia desmaiar. Enquanto a ajudava notou como seu respirar se agitava e os dedos supostamente hábeis para outras mulheres foram torpes, imprecisos.

? Vou refrescar-me ? disse ao ver que seu marido não se movia. ? Acredito que minhas bochechas começam a arder e quero acalmar esta queimação.

? Deve ser pelo sol. Avisei que não tinha posto o chapéu ? acrescentou entre intensas e profundas exalações.

? Esqueci-o na carruagem e não quis pedir ao Anderson que o pegasse. ? Estava falando? Saíam palavras de sua boca? Não entendia como podia consegui-lo se a pressão em sua garganta era cada vez mais intensa.

? Na próxima vez faça-o. Não está acostumada ao sol e este pode te danificar ao permanecer tanto tempo exposta aos seus raios ? assinalou antes de dar a volta para afastar-se tão rápido quanto suas pernas lhe permitissem. ? Não me espere acordada ? disse ao fechar.

Não foi capaz de virar-se até que escutou como trancava a porta. Nesse instante, Evelyn caiu de joelhos ao chão. O palpitar de seu coração era mais intenso que nunca. O suave roce das gemas masculinas a tinha extasiado até tal ponto que podia haver se rendido com facilidade. «Acaso não é seu propósito? ? Perguntou-se ao mesmo tempo em que dirigia suas mãos para o rosto. ? Não é esse o motivo pelo qual se encontra aqui?». Na verdade, esse tinha sido seu primeiro propósito, mas agora, depois de ver aquele crânio sob o assento, seu objetivo tinha mudado.

Desejava averiguar por que guardava algo tão escabroso na carruagem e temia que a resposta lhe explicasse a razão pela qual seu marido era tão sombrio. «Não sou um homem bom para ti», a frase de Roger emanava de sua mente sem cessar. Seria verdade? Estaria certo? Só uma pessoa com um passado turbulento podia permanecer ao lado de algo tão horrendo. «Meu Deus! ? Exclamou entre soluços. ? Ajude-me! Não sei o que descobrirei, mas seja o que for, dê-me forças para confrontá-lo com integridade». Levantou-se do chão e limpou suas lágrimas com a água que verteu na bacia.


? Uma taça, milorde? ? Ofereceu-lhe o taberneiro ao observar o rosto alterado do homem.

? O que esconde em sua adega que consiga me fazer desmaiar só com uma taça? ? Perguntou levando a mão para seu bolso e tirando duas coroas.

? Para você, o melhor uísque escocês que tenha provado ? afirmou o homem com orgulho. Inclinou-se para a esquerda, pegou uma garrafa que escondia em algum espaço da bancada e a colocou sobre esta. Depois de Roger dar sua aprovação, o dono da cantina aproximou um copo e o encheu de licor. ? Uma viagem dura, senhor?

? Nem imagina o quanto ? respondeu antes de beber de um gole e pôr o copo vazio sobre a bancada de madeira para que continuasse enchendo-o.

? Então bem merece um par de goles mais. ? E o serviu de novo.

Não estava ébrio, ao menos não o suficiente para não caminhar reto e sem tropeçar. Poderia aguentar uns quantos copos mais do bom licor que lhe ofereceu o taberneiro, mas desejava descansar o suficiente antes de partir. Não tinha dormido bastante durante os dias anteriores e devia estar lúcido se por acaso Evelyn voltasse a enfrentar uma situação perigosa. Enrugou a testa ao recordá-la no rio com o vestido elevado e atemorizada por uma pequena serpente. Poderia havê-la mordido, poderia ter adoecido se aquele animal a houvesse tocado. Graças a Deus chegou a tempo.

Zangado, abriu a porta com mais ímpeto do que deveria para não a despertar. Por sorte, não o fez. Reprovando uma e outra sua vez desacertada atitude, fechou com cuidado. O que menos pretendia era que ela se levantasse da cama vestida com a camisola e o olhasse com espanto. Entretanto, ao virar-se e contemplá-la, viu-a tombada sobre o leito, oculta sob um lençol um pouco gasto. Aproximou-se sigiloso e ficou maravilhado ao observar seu cabelo vermelho estendido pelo travesseiro e a insinuação de sua silhueta sob o tecido. Dormia de maneira muito semelhante a como o fazia ele, entrelaçando suas mãos contra o peito e esticando as extremidades de uma ponta à outra.

Com um sorrisinho tolo no rosto, caminhou para o sofá. Aquela careta de satisfação desapareceu com rapidez ao compreender que descansaria melhor no chão que naquele mísero divã. Sem vacilar, pegou a colcha que Evelyn não tinha necessitado, esticou-a no chão, despojou-se da camisa, sentou-se e após tirar as botas, tombou-se. Com os braços em cruz fazendo a função de almofadão, olhou ao teto. Nunca tinha dormido junto a uma mulher daquela maneira. Na realidade, depois de possuí-las, jamais tinha permanecido ao lado de alguma. Abandonava-as para descansar em sua cama. Era a forma mais adequada de atuar dado que o único que precisava obter de uma amante era saciar seus desejos sexuais. Nada de sussurros noturnos, nada de palavras carinhosas depois de conseguir seu propósito. O que poderia lhes dizer? «Foi um coito bastante satisfatório. Talvez amanhã retorne para repeti-lo». Bobagens! Ele não era um amante terno ou carinhoso. Ele só desejava as fazer suar pela paixão e a luxúria durante um momento e logo já veria se repetia ou não... mas ela era sua esposa e não tinha nada a ver com as demais.

Algo o unia a Evelyn e não se tratava só de um papel assinado que manifestava que estavam casados, mas sim outra coisa que não conseguia nomear com exatidão. Assumia que desde que gritou no prado e percebeu que ela corria perigo, um estranho sentimento tinha brotado de seu peito lhe provocando uma ira irracional. «Não queira ver além do que há ? grunhiu. ? Aquele maldito instinto de protegê-la, de cuidá-la, só brotou porque se algo lhe acontecesse durante o caminho, William te mataria». Mesmo assim, a inquietação que lhe produziu descobrir que ela não estava ao seu lado e que se lhe ocorresse algo não voltaria a tê-la, produziu-lhe uma atípica dor no peito. Zangado por sentir aquela moléstia incessante, fechou os olhos e se obrigou a descansar. Ainda ficavam dois dias de viagem e precisava repor as forças.

Não tinha conseguido cair nos braços de Morfeu quando escutou um leve lamento. Não lhe deu importância e continuou seu laborioso desejo por dormir. Entretanto, o lamento voltou a repetir-se, desta vez mais profundo. Insone por saber de onde procedia aquele minúsculo gemido, levantou-se do chão e, entre murmúrios de aborrecimento, dirigiu-se para a janela. Depois de afastar com cuidado a cortina, descobriu assombrado que no exterior tudo estava em calma. Nenhum bêbado se queixava de sua ingestão de álcool ou chorava depois de uma má disputa. Retornou para a colcha, tombou-se e... voltou a escutá-lo! De um salto, porque deduziu quem emitia os pequenos gemidos, incorporou-se e se colocou no lado direito da cama. Evelyn se movia inquieta, franzia o cenho e apertava os olhos. Seu rosto, face à penumbra que ofereciam as duas velas que tinham acesas, mostrava uma preocupante cor carmesim. Apoiou o joelho esquerdo sobre a cama, estendeu a mão para o rosto e se afastou com rapidez ao sentir fogo em sua pele.

? Deus Santo! ? Exclamou aterrorizado. ? Evelyn... Evelyn... ? tentou despertá-la com uma voz suave, mas ela não atendia suas chamadas. Seguia agitada, movendo sua cabeça da direita para a esquerda e enrugando a testa.

Correu para a bacia procurando com desespero um pano com que molhar e o qual apaziguar o ardor da mulher. Verteu com rapidez água na bacia de porcelana, colocou o primeiro objeto que encontrou e retornou junto a ela.

? Isto te aliviará... ? sussurrou ao mesmo tempo em que pousava com ternura o tecido molhado sobre o rosto de Evelyn. ? Shh... calma. Estou aqui para a cuidar ? disse ao continuar ouvindo os minúsculos lamentos.

Entretanto, a água fria não a acalmou o suficiente. As bochechas seguiam avermelhadas e Roger observou que a delicada pele começava a levantar-se em forma de diminutas bolhas. Sem pensar duas vezes, saiu da habitação, desceu os degraus de madeira que havia até chegar ao saguão e com passo firme se dirigiu para o taberneiro que, por sorte, seguia atendendo a todos aqueles que demandavam mais licor.

? Se necessitar de outro copo de uísque devo avisar que...

? Tem algo que possa sanar as queimaduras da pele? ? Interrompeu desesperado.

? Eu não, mas... hoje se hospeda... ? vacilou o homem.

? Fala de uma vez! ? Gritou esticando sua mão e agarrando ao taberneiro pelo pescoço de sua camisa.

? Uma cigana, senhor. Hospeda-se uma espécie de bruxa que visita a cada mês o povoado do qual lhe falei ? atinou a dizer.

? E? ? Arqueou as sobrancelhas, apertou os dentes e continuou lhe agarrando com força.

? Vangloria-se de que vende beberagens para tudo... possivelmente... talvez...

? Que quarto? ? Grunhiu.

? Sua senhoria? ? Respondeu o hospedeiro assombrado.

? Diga-me em que quarto descansa essa bruxa ? falou cada palavra com uma pausa exagerada.

? O sete. No mesmo piso que você, mas na direção oposta ? disse finalmente.

Roger soltou o homem e com grande rapidez subiu as escadas. Correndo mais que andando, chegou até a habitação da mulher. Sem diminuir sua pressa, golpeou sem cessar até que esta lhe abriu.

? Mmmm... ? murmurou a mulher abrindo os olhos como pratos ao contemplar em frente a ela um homem com o torso descoberto e com uma figura tão esbelta. ? Quando o hospedeiro me informou que teria um bom serviço nunca imaginei que seria tão bom... ? Sorriu agradada.

? É você a bruxa? ? Perguntou apressado evitando as insinuações da mulher.

? Eu gosto mais de me chamar curandeira ou curadora. Necessita que te alivie de algo? Tenho umas mãos muito benéficas e podem acalmar dores em zonas que ninguém alcançaria imaginar... ? continuou com essa voz aveludada, melosa.

? Minha esposa se queimou pelo sol ? disse com firmeza. ? Viria-me bem algum remédio dos que possua que tenha como ingrediente calêndula.

? Calêndula? ? Repetiu. Enrugou o rosto, levou a mão direita para a boca e pôs os olhos em branco.

? Sim, calêndula. É uma flor que...

? Sei o que faz essa maldita planta! ? Exclamou levantando a mão de seu rosto e fazendo-o calar. Estava zangada e era normal. Fez-se a ideia de ter em seu leito um homem tremendamente sedutor e este, em vez de necessitar de suas carícias, ansiava uma beberagem para curar sua descuidada mulher. Fechou a porta, andou no quarto e logo a abriu. ? Deve verter em um pano limpo a metade deste frasco. Quando se aliviar, troca de lenço e joga o resto. Pela manhã, quando seus delicados pés tocarem o chão, não terá rastro de suas doenças ? disse com desdém.

? O que lhe devo? ? Roger esticou a mão para pegar o frasco e nesse momento sua pele tocou sem querer a da mulher.

? Santo diabo! ? Exclamou a mulher aterrorizada. ? Quem é você? ? Deu uns passos para o interior do seu quarto segurando com força a garrafa na mão.

? Só um homem que busca curar sua esposa ? comentou assombrado pela inesperada reação da mulher.

? Não! É um acompanhante da morte! ? Seus lábios tremeram tanto que o inferior cobriu várias vezes o superior. ? Toma! ? Atirou-lhe o frasco. ? Cuida de sua esposa! E não volte a aparecer.

? Diga-me o que lhe devo ? insistiu mal-humorado.

? O que pode me pagar um ser que caminha com uma dezena de almas sofredoras em suas costas? ? Clamou antes de fechar a porta e murmurar preces em um idioma que Bennett não conseguiu distinguir.

Virou-se e, sem dar atenção ao que lhe tinha gritado a cigana, correu para seu dormitório. Quando abriu a porta achou Evelyn igual a deixou, soluçando e movendo-se inquieta. Caminhou pelo quarto até que alcançou sua jaqueta, tirou do bolso um lenço, verteu o líquido e se dirigiu para a mulher. Com muito carinho o pousou por todo o rosto. Não demorou muito em ver o resultado do dito remédio. As bolhas, aumentadas em sua ausência, diminuíam com rapidez. Sentiu-se aliviado ao ver como diminuíam as queimaduras e, enquanto continuava com sua tarefa, jurou que não voltaria a deixa-la sair ao exterior sem um chapéu que a protegesse do sol. «O maior ? disse. ? Comprar-lhe-ei o maior assim que cheguemos a esse maldito povoado que há a duzentas milhas daqui», resmungou.

 

 


CONTINUA