Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A TORMENTA DE ESPADAS - P.2 / R. R. Martin, George
A TORMENTA DE ESPADAS - P.2 / R. R. Martin, George

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Quando Lorde Tywin acenou com a cabeça, prosseguiu. - E há o seguinte: Lorde Petyr continua a demonstrar sua lealdade. Ontem mesmo trouxe-nos a notícia de um estratagema dos Tyrell para levar Sansa Stark até Jardim de Cima para uma "visita", e lá casá-la com o filho mais velho de Lorde Mace, Willas.

- Mindinho trouxe-lhe essa notícia? - Tyrion debruçou-se sobre a mesa. - Não foi o nosso mestre dos sussurros? Que interessante.

Cersei olhou o tio com incredulidade.

- Sansa é minha refém. Ela não vai a lugar nenhum sem a minha licença.

- Licença que forçosamente teria que dar, se Lorde Tyrell a pedisse - ressaltou o pai. - Recusá-la seria equivalente a declarar que não confiamos nele. Ele iria se ofender.

- Que se ofenda. E daí?

Maldita idiota, pensou Tyrion.

- Querida irmã - explicou pacientemente -, se ofender os Tyrell, ofenderá também os Redwyne, os Tarly, os Rowan e os Hightower, e talvez os faça começar a pensar se Robb Stark não poderia ser mais obsequioso para com os seus desejos.

- Não quero a rosa e o lobo gigante juntos na cama - declarou Lorde Tywin. - Temos de nos antecipar.

- Como? - perguntou Cersei.

- Através do casamento. O seu, para começar.

Aquilo foi tão súbito que Cersei não conseguiu fazer mais do que fitá-lo por um momento. Então, seu rosto enrubesceu como se tivesse sido esbofeteado.

- Não. Outra vez, não. Não farei isso.

 

 

 

 

- Vossa Graça - disse Sor Kevan com cortesia -, é uma mulher jovem, ainda bela e fértil. Certamente não vai querer passar o resto de seus dias sozinha. E um novo casamento afastará de uma vez por todas essa história de incesto.

- Enquanto permanecer sem casar, estará permitindo que Stannis espalhe essa repugnante difamação - disse Lorde Tywin à filha. - Precisa ter um novo marido em sua cama, para lhe gerar filhos.

- Três filhos são mais do que suficientes. Sou Rainha dos Sete Reinos, não uma égua eprodutora! A Rainha Regentel

- É minha filha, e fará o que eu ordenar.

Ela pôs-se em pé.

- Não ficarei aqui ouvindo essa...

- Ficará se quiser dizer algo sobre a escolha de seu próximo marido - disse calmamente Lorde Tywin.

Ela hesitou e depois se sentou, Tyrion compreendeu que ela tinha perdido, apesar de sua sonora declaração de que:

- Não voltarei a me casar!

- Vai se casar e se reproduzir. Cada filho que der à luz tornará Stannis mais mentiroso. - Os olhos do pai pareciam pregá-la à cadeira como se fossem alfinetes. - Mace Tyrell, Paxter Redwyne e Doran Martell são casados com mulheres mais jovens, que provavelmente sobreviverão a eles. A esposa de Balon Greyjoy é idosa e de saúde delicada, mas um casamento desses iria nos comprometer a uma aliança com as Ilhas de Ferro, e eu ainda não estou certo de que esse seja o caminho mais sensato.

- Não - disse Cersei por entre os lábios brancos. - Não, não, não.

Tyrion não conseguiu suprimir por completo o sorriso que veio aos seus lábios ao pensar em despachar a irmã para Pyke. Justamente quando eu me preparava para desistir das rezas, um deus bondoso entrega-me isto.

Lorde Tywin prosseguiu.

- Oberyn Martell poderia servir, mas os Tyrell levariam uma coisa dessas muito a mal. Portanto, temos que olhar para os filhos. Presumo que não levante objeções a se casar com um homem mais novo do que você.

- Levanto objeções a casar com qualquer...

- Pensei nos gêmeos Redwyne, em Theon Greyjoy, em Quentyn Martell e em vários outros. Mas a nossa aliança com Jardim de Cima foi a espada que quebrou Stannis. Deve ser temperada e fortalecida. Sor Loras envergou o branco e Sor Garlan está casado com uma das Fossoway, mas ainda resta o filho mais velho, o rapaz que planejam casar com Sansa Stark.

Willas Tyrell. Tyrion estava tendo um prazer perverso com a fúria impotente de Cersei.

- Esse é o aleijado - ele disse.

O pai gelou-o com um olhar.

- Willas é herdeiro de Jardim de Cima, e, segundo tudo que se diz, um jovem brando e cortês, apreciador da leitura e da observação das estrelas. Tem também uma paixão pela criação e seleção de cruzas de animais, possui os melhores cães de caça, falcões e cavalos dos Sete Reinos.

Um casamento perfeito, devaneou Tyrion. Cersei também tem uma paixão por cruzar. Sentiu pena do pobre Willas Tyrell, e não soube se devia rir da irmã ou chorar por ela.

- O herdeiro Tyrell seria a minha escolha - concluiu Lorde Tywin -, mas se preferir outro, escutarei seus argumentos.

- Isso é tão gentil de sua parte, pai - disse Cersei com fria cortesia. - A escolha que me deixa é tão complicada. Quem eu preferiria levar para a cama, a lula velha ou o cãozinho aleijado? Precisarei de alguns dias para pensar no assunto. Tenho a sua licença para me retirar?

Você é a rainha, Tyrion quis lhe dizer. Ele devia estar pedindo licença a você.

- Vá - disse o pai. - Voltaremos a conversar depois de ter recuperado a compostura. Lembre-se de seus deveres.

Cersei caminhou, dura, para fora da sala, ostentando claramente a sua raiva. Mas no fim fará o que o pai pede. Ela provara isso com Robert. Se bem que haja Jaime a considerar. O irmão era muito mais novo quando Cersei se casou pela primeira vez; poderá não aceitar tão facilmente um segundo casamento. O infeliz Willas Tyrell corria o risco de contrair um súbito caso fatal de espada-através-das-entranhas, o que poderia amargar consideravelmente a aliança entre Jardim de Cima e Rochedo Casterly. Devia dizer alguma coisa, mas o quê? Perdoe-me, pai, mas é com o nosso irmão que ela quer se casar?

- Tyrion.

Deu um sorriso resignado.

- Estarei ouvindo o arauto me chamar para a liça?

- Seu gosto por prostitutas é uma fraqueza - disse Lorde Tywin sem preâmbulos -, mas talvez parte da culpa seja minha. Como não é mais alto do que um garoto, acostumei-me a esquecer que é realmente um adulto, com todas as necessidades básicas de um homem. Já é mais do que tempo de se casar.

Eu já me casei, ou será que se esqueceu? A boca de Tyrion retorceu-se, e dela saiu um ruído que era meio gargalhada e meio rosnido.

- A ideia de casamento o diverte?

- Só de imaginar o noivo demoniacamente bonito que serei. - Uma esposa poderia ser exatamente aquilo de que precisava. Se lhe trouxesse terras e uma fortaleza, poderia providenciar-lhe um lugar no mundo afastado da corte de JofFrey... e de Cersei e do pai.

Por outro lado, havia Shae. Ela não vai gostar disso, apesar de todas as juras sobre contentar-se em ser a minha prostituta.

Mas isso não era propriamente um argumento que influenciasse o pai, por isso Tyrion retorceu-se mais para cima na cadeira e disse:

- Você pretende me casar com Sansa Stark. Mas os Tyrell não irão considerar essa união uma afronta se tiverem planos para a garota?

- Lorde Tyrell não abordará o assunto da garota Stark até depois da boda de JofFrey. Se Sansa se casar antes disso, como poderá se ofender, se não nos deu nenhuma pista de suas intenções?

- Precisamente - disse Sor Kevan -, e quaisquer ressentimentos que persistam deverão ser acalmados pela oferta de Cersei para o seu Willas.

Tyrion esfregou os restos inflamados do nariz. A cicatriz às vezes coçava abominavelmente.

- Sua Graça, a real pústula, transformou a vida de Sansa num inferno desde o dia em que o pai dela morreu, e agora que está finalmente livre de Joffrey você propõe casá-la comigo. Isso parece extraordinariamente cruel. Até para o senhor, pai.

- Por quê? Pretende tratá-la mal? - o pai parecia mais curioso do que preocupado. - Minhas intenções não incluem a felicidade da menina, e as suas também não deviam inclui-la. Nossas alianças no sul podem ser sólidas como o Rochedo Casterly, mas resta o norte por conquistar, e a chave para o norte é Sansa Stark.

- Ela não passa de uma criança.

- Sua irmã jura que já floresceu. Se assim for, é uma mulher em condições de se casar. Terá de deflorá-la para que ninguém possa dizer que o casamento não foi consumado.

Depois disso, se preferir esperar um ano ou dois antes de voltar a dormir com ela, estará no seu direito de marido.

Shae é toda a mulher de que preciso no momento, pensou, e Sansa é uma garota, diga o que disser.

- Se a sua intenção com isso é afastá-la dos Tyrell, por que não a devolve à mãe? Isso talvez convencesse Robb Stark a dobrar o joelho.

O olhar de Lorde Tywin era de escárnio.

- Se a mandarmos para Correrrio, a mãe arranjará um casamento com um Blackwood ou um Mallister, para escorar as alianças do filho ao longo do Tridente. Se a mandarmos para norte, estará casada com algum Manderly ou Umber antes da volta da lua. Mas não é menos perigosa aqui na corte, como essa história com os Tyrell demonstra. Ela tem de se casar com um Lannister, e depressa.

- O homem que casar com Sansa Stark pode reclamar Winterfell em seu nome - interveio tio Kevan. - Isso não lhe ocorreu?

- Se não quiser a garota, podemos dá-la a um de seus primos - disse o pai. - Kevan, crê que Lancei está suficientemente forte para se casar?

Sor Kevan hesitou.

- Se levarmos a garota à sua cabeceira, deverá ser capaz de proferir as palavras... mas para a consumação, não... Eu sugeriria um dos gêmeos, mas os Stark detêm ambos em Correrrio. Também têm o filho de Genna, Tion, se for o caso, ele poderia servir.

Tyrion deixou-os desenvolver seu enredo secundário. Sabia que era tudo para ele ouvir. Sansa Stark, meditou. A Sansa de falinhas mansas e cheiros doces, que gostava de sedas, canções, cavalaria e cavaleiros altos e galantes com rostos bonitos. Sentia-se de volta à ponte do navio, com o convés se movendo debaixo de seus pés.

- Você me pediu para recompensá-lo por seus atos na batalha - disse Lorde Tywin vivamente. - Isto é uma oportunidade para você, Tyrion, a melhor que provavelmente terá na vida. - Tamborilou impacientemente na mesa com os dedos. - Antigamente tive esperança de casar seu irmão com Lysa Tully, mas Aerys nomeou-o para a sua Guarda Real antes de os preparativos estarem concluídos. Quando sugeri ao Lorde Hoster que Lysa poderia se asar com você em vez de Jaime, ele respondeu que queria um homem inteiro para a filha.

Portanto casou-a com Jon Arryn, que tinha idade para ser avô dela. Tyrion estava mais inclinado a sentir-se agradecido do que zangado, considerando aquilo em que Lysa Arryn se tornara.

- Quando o ofereci a Dorne, foi-me dito que a sugestão era um insulto - prosseguiu Lorde Tywin. - Nos anos seguintes recebi respostas semelhantes de Yohn Royce e Leyton Hightower. Por fim, desci ao ponto de sugerir que poderia aceitar a moça Florent que Robert deflorou na cama de núpcias do irmão, mas o pai preferiu dá-la a um dos cavaleiros de sua guarnição.

"Se não aceitar a garota Stark, vou arranjar outra esposa para você. Em algum lugar, no reino, haverá sem dúvida algum fidalgote que se separará de bom grado de uma filha para conquistar a amizade de Rochedo Casterly. A Senhora Tanda ofereceu Lollys..."

Tyrion estremeceu de susto.

- Preferiria cortá-lo e dá-lo de comer às cabras.

- Então abra os olhos. A garota Stark é nova, núbil, afável, do melhor nascimento e ainda donzela. Não é feia. Por que haveria de hesitar?

E por quê, realmente?

- E só uma idiossincrasia minha. É estranho dizê-lo, mas preferiria uma esposa que me queira na sua cama.

- Se acha que as suas rameiras querem você nas camas delas, é um idiota ainda maior do que eu suspeitava - disse Lorde Tywin. - Você me decepciona, Tyrion. Tinha esperança de que essa uniáo lhe agradasse.

- Sim, todos nós sabemos como meu agrado é importante para você, pai. Mas há mais coisas envolvidas nisso. A chave para o Norte, você diz? Agora quem controla o Norte são os Greyjoy, e o Rei Balon tem uma filha. Por que Sansa Stark, e não ela? -; Olhou os olhos do pai, frios e verdes, com seus salpicos de ouro.

Lorde Tywin uniu os dedos sob o queixo.

- Balon Greyjoy pensa em termos de saque, não de governo. Que aproveite um outono de coroa e aguente um inverno do norte. Não dará aos súditos motivo para gostar dele. Ao chegar a primavera, os nortenhos estarão fartos de lulas-gigantes. Quando levar o neto de Eddard Stark para casa, para reclamar o seu direito de nascença, tanto os senhores como o povo se erguerão juntos para instalá-lo no cadeirão de seus ancestrais, Você é capaz de engravidar uma mulher, espero eu?

- Creio que sim - disse Tyrion, irritado. - Confesso que não posso provar. Embora ninguém possa dizer que não tentei. Ora, se planto as minhas sementinhas sempre que tenho oportunidade...

- Nas fossas e nas sarjetas - concluiu Lorde Tywin - e em terreno plebeu, onde só ervas bastardas ganham raízes. Já é mais do que hora de manter seu próprio jardim. - Pôs-se em pé. - Nunca terá Rochedo Casterly, garanto. Mas case com Sansa Stark, e é possível que conquiste Winterfell.

Tyrion Lannister, Senhor Protetor de Winterfell. A ideia provocou-lhe um estranho arrepio.

- Muito bem, pai - disse lentamente -, mas há uma questão que não estão considerando. Robb Stark é tão capaz quanto eu, presume-se, e está prometido a uma daquelas férteis Frey. E assim que o Jovem Lobo gerar uma ninhada, as crias que Sansa trouxer ao mundo não serão herdeiras de nada.

Lorde Tywin não se mostrou preocupado.

- Robb Stark não gerará nenhum filho nessa fértil Frey, tem a minha palavra quanto a isso. Há algumas notícias que não achei por bem partilhar com o conselho, embora os bons senhores irão sem dúvida saber delas em breve. O Jovem Lobo tomou a filha mais velha de Gawen Westerling como esposa.

Por um momento, Tyrion não conseguiu acreditar que ouvira bem o que o pai dissera.

- Ele quebrou a palavra? - disse, incrédulo. - Ele jogou fora os Frey por... - As palavras falharam-lhe.

- Uma donzela de dezesseis anos, chamada Jeyne - disse Sor Kevan. - Lorde Gawen sugeriu-a uma vez para Willem ou Martyn, mas tive de recusar. Gawen é um bom homem, mas sua esposa é Sybell Spicer. Ele nunca devia ter se casado com ela. Os Westerling sempre tiveram mais honra do que bom senso. O avô da Senhora Sybell era um mercador de açafrão e pimenta, de um nascimento quase tão baixo quanto o daquele contrabandista de Stannis. E a avó era uma mulher qualquer que ele trouxe do leste. Uma velha assustadora, supostamente uma sacerdotisa. Chamavam-lhe Maegi. Ninguém conseguia pronunciar seu verdadeiro nome. Metade de Lanisporto ia até ela em busca de curas, poções de amor e coisas do gênero. - Encolheu os ombros. - Ela está morta há muito tempo, é certo. E Jeyne parecia uma doce criança, admito, embora só a tenha visto uma vez. Mas com um sangue tão duvidoso...

Tendo casado uma vez com uma prostituta, Tyrion não podia partilhar inteiramente do horror do tio à ideia de se casar com uma garota cujo bisavô vendia cravos. Mesmo assim... Uma doce criança, dissera Sor Kevan, mas muitos eram os venenos que também eram doces. Os Westerling eram de sangue antigo, mas possuíam mais orgulho do que poder. Não o surpreenderia se lhe dissessem que a Senhora Sybell trouxera mais riqueza ao casamento do que o seu esposo bem-nascido. As minas Westerling tinham se esgotado havia anos, suas melhores terras tinham sido vendidas ou perdidas, e o Despenhadeiro era mais ruína do que fortaleza. Uma ruína romântica, porém, projetando-se ousadamente sobre o mar.

- Estou surpreso - Tyrion teve de confessar. - Julgava que Robb Stark tinha mais bom senso.

- E um garoto de dezesseis anos - disse Lorde Tywin. - Nessa idade, o senso pouco pesa contra o desejo, o amor e a honra.

- Ele quebrou um juramento, envergonhou um aliado, traiu uma promessa solene. Onde está a honra nisso?

Foi Sor Kevan quem respondeu.

- Ele colocou a honra da garota acima da sua. Depois de deflorá-la, não tinha alternativa.

- Podia ter sido mais gentil deixá-la com um bastardo na barriga - disse Tyrion sem rodeios. Os Westerling arriscavam-se assim a perder tudo; as terras, o castelo, até a própria vida. Um Lannister sempre paga as suas dívidas.

- Jeyne Westerling é filha de sua mãe - disse Lorde Tywin - e Robb Stark é filho de seu pai.

Aquela traição Westerling não parecia ter enraivecido o pai tanto quanto Tyrion esperaria. Lorde Tywin não tolerava deslealdades por parte dos vassalos. Extinguira completamente os orgulhosos Reyne de Castamere e os antigos Tarbeck de Solar Tarbeck quando mal deixara de ser um rapaz. Os cantores tinham até feito uma canção bastante lúgubre sobre o assunto. Alguns anos mais tarde, quando Lorde Farman de Belcastro se tornou truculento, Lorde Tywin enviou um embaixador que levava um alaúde em vez de uma carta. Mas, depois de ouvir "As chuvas de Castamere" ecoando em seu salão, Lorde Farman deixou de causar problemas. E se a canção não bastasse, os castelos destruídos dos Reyne e dos Tarbeck ainda estavam lá, como testemunhos mudos do destino que esperava aqueles que escolhiam escarnecer do poder de Rochedo Casterly.

- O Despenhadeiro não é muito longe de Solar Tarbeck e Castamere - destacou Tyrion. - Seria esperado que os Westerling tivessem passado por esses locais e visto a lição que lá se encontra.

- E talvez o tenham feito - disse Lorde Tywin. - Garanto-lhe que estão bem cientes de Castamere.

- Poderão os Westerling e Spicer ser tão idiotas que creem que o lobo pode derrotar o leão?

Muito de vez em quando, Lorde Tywin Lannister chegava mesmo a ameaçar um sorriso; nunca o fazia, mas a simples ameaça era terrível de contemplar.

- Os maiores idiotas são às vezes mais espertos do que os homens que deles riem - disse, e depois: - Casará com Sansa Stark, Tyrion. E em breve.

Trouxeram os cadáveres nos ombros e pousaram-nos sob o estrado. O silêncio caiu sobre o salão iluminado por archotes, e nele Catelyn conseguiu ouvir Vento Cinzento uivando a meio castelo de distância. Ele sente o cheiro do sangue, pensou. Através de paredes de pedra e portas de madeira, através da noite e da chuva, mesmo assim reconhece o odor da morte e da ruína.

Estava à esquerda de Robb, junto ao cadeirão, e por um momento sentiu-se quase como se estivesse olhando seus próprios mortos, Bran e Rickon. Aqueles rapazes eram muito mais velhos, mas a morte encolhera-os. Nus e molhados, pareciam umas coisinhas tão pequenas e tão imóveis que era difícil lembrar deles com vida.

O rapaz louro andava tentando deixar crescer uma barba. Uma penugem amarelo-clara cobria suas bochechas e seu queixo por cima da ruína vermelha em que a faca transformou a sua garganta. Seus longos cabelos dourados ainda estavam molhados, como se tivesse sido arrancado de um banho. A expressão era a de quem havia morrido em paz, talvez dormindo, mas seu primo de cabelos castanhos tinha lutado pela vida. Seus braços exibiam cortes onde havia tentado parar as lâminas, e gotas vermelhas ainda pingavam das punhaladas que lhe cobriam o peito, a barriga e as costas como outras tantas bocas sem língua, embora a chuva o tivesse lavado quase por completo.

Robb tinha posto a coroa antes de entrar na sala, e o bronze brilhava, escuro, à luz dos archotes. Sombras esconderam seus olhos quando observou os mortos. Será que ele também vê Bran e Rickon? Catelyn poderia ter chorado, mas já não lhe restavam lágrimas. Os rapazes mortos estavam pálidos devido ao longo encarceramento, e ambos eram de tez clara; contra a pele lisa e branca, o sangue era chocantemente rubro, insuportável de contemplar. Será que irão colocar Sansa nua sob o Trono de Ferro depois de a matarem? Irá sua pele parecer assim tão branca, seu sangue tão vermelho? Do exterior chegavam o ruído contínuo da chuva e os inquietos uivos de um lobo.

O irmão, Edmure, estava à direita de Robb, com uma mão apoiada no espaldar da cadeira do pai, e o rosto ainda inchado de sono. Tinham-no acordado, tal como a ela, batendo em sua porta, na noite cerrada, para arrancá-lo rudemente dos sonhos. Eram bons sonhos, irmão? Sonha com a luz do sol, com risos e com os beijos de uma donzela? Rezo para que sim. Os sonhos dela eram escuros e fustigados por terrores.

Os capitães e senhores vassalos de Robb espalhavam-se pelo salão, alguns armados e com as cotas de malha vestidas, outros em vários estados de desalinho e nudez. Sor Raynald e o tio, Sor Rolph, encontravam-se entre eles, mas Robb tinha achado por bem poupar sua rainha daquela monstruosidade. O Despenhadeiro não fica longe de Rochedo Casterly, recordou Catelyn. Jeywe pode perfeitamente ter brincado com esses garotos quando eram crianças.

Voltou a baixar o olhar para os cadáveres dos escudeiros Tion Frey e Willem Lannister, e esperou que o filho falasse.

Pareceu passar-se muito tempo até que Robb erguesse o olhar dos mortos ensanguentados.

- Pequeno Jon - disse -, diga ao seu pai que os traga. - Sem uma palavra, Pequeno-Jon Umber virou-se para obedecer, com os passos ecoando no grande salão de pedra.

Enquanto Grande-Jon introduzia os prisioneiros na sala, Catelyn notou o modo como alguns dos outros homens recuavam para lhes dar espaço, como se a traição pudesse de algum modo ser transmitida por um toque, um olhar, um pouco de tosse. Os captores e os cativos eram muito parecidos; homens grandes, todos eles, com barbas espessas e cabelos compridos. Dois dos homens de Grande-Jon estavam feridos, e três de seus prisioneiros também. Só o fato de alguns terem lanças e outros bainhas vazias os distinguia. Todos usavam camisões de cota de malha ou camisas de anéis cosidos, com botas pesadas e mantos grossos, alguns de lã, outros de peles. O Norte é duro efrio, e não tem misericórdia, Ned tinha lhe dito quando ela veio a Winterfell pela primeira vez, mil anos antes.

- Cinco - disse Robb quando os prisioneiros foram postos à sua frente, molhados e silenciosos. - São todos?

- Eram oito - trovejou Grande-Jon. - Matamos dois quando os capturamos e um terceiro está agora agonizando.

Robb estudou o rosto dos presos.

- Foram precisos oito de vocês para matar dois escudeiros desarmados.

Edmure Tully interveio.

- Eles também assassinaram dois de meus homens para chegar à torre. Delp e Elwood.

- Não foi assassinato, sor - disse Lorde Rickard Karstark, que não se mostrava mais derrotado pela corda que prendia seus pulsos do que pelo sangue que corria por seu rosto. - Qualquer homem que se interponha entre um pai e a sua vingança está pedindo a morte.

As palavras dele ressoaram nos ouvidos de Catelyn, duras e cruéis, como o bater de um tambor de guerra. Sua garganta estava completamente seca. Fui eu que fiz isso. Estes dois rapazes morreram para que minhas filhas pudessem sobreviver.

- Eu vi seus filhos morrerem naquela noite no Bosque dos Murmúrios - disse Robb ao Lorde Karstark. - Tion Frey não matou Torrhen. Willem Lannister não tirou a vida de Eddard. Assim, como pode chamar isso de vingança? Isso foi uma loucura, e um assassinato sangrento. Seus filhos morreram honradamente no campo de batalha, de espada nas mãos.

- Eles morreram - disse Rickard Karstark, sem ceder um milímetro. - O Regicida abateu-os. Estes dois eram da laia dele. Só sangue pode pagar sangue.

- O sangue de crianças? - Robb apontou para os cadáveres. - Que idade eles tinham? Doze anos, treze? Escudeiros.

- Morrem escudeiros em todas as batalhas.

- Sim, morrem lutando. Tion Frey e Willem Lannister entregaram as espadas no Bosque dos Murmúrios. Eram prisioneiros, trancados numa cela, adormecidos, desarmados... garotos. Olhe para eles!

Lorde Kastark preferiu olhar para Catelyn.

- Diga à sua mãe para olhar para eles - falou. - Ela matou-os tanto quanto eu.

Catelyn apoiou uma mão no espaldar da cadeira de Robb. O salão pareceu girar à sua volta. Sentiu-se prestes a vomitar.

- Minha mãe não teve nada a ver com isso - disse Robb, irritado. - Isso foi obra sua. O assassinato foi seu. A traição foi sua.

- Como pode ser traição matar Lannisters quando não é traição libertá-los? - perguntou rudemente Karstark. - Vossa Graça esqueceu-se de que estamos em guerra com o Rochedo Casterly? Na guerra, matam-se os inimigos. Seu pai não lhe ensinou isso, rapaz?

- Rapaz? - com o punho revestido de cota de malha, Grande-Jon deu uma bofetada que deixou Rickard Karstark de joelhos.

- Deixe-o! - a voz de Robb ressoou com autoridade. Umber afastou-se do cativo.

Lorde Karstark cuspiu um dente.

- Sim, Lorde Umber, deixe-me para o rei. Ele pretende me dar uma descompostura antes de me perdoar. É assim que ele lida com a traição, o nosso Rei no Norte. - Sorriu um sorriso úmido e vermelho. - Ou será que devo chamá-lo de Rei que perdeu o Norte, Vossa Graça?

Grande-Jon tirou uma lança das mãos do homem que estava ao seu lado e ergueu-a sobre o ombro.

- Deixe-me atravessá-lo, senhor. Deixe-me abrir a barriga dele para vermos a cor de suas tripas.

As portas do salão abriram-se com estrondo, e Peixe Negro entrou com água escorrendo do manto e do elmo. Homens de armas Tully seguiram-no, enquanto lá fora relâmpagos cruzavam o céu e uma chuva forte e negra assolava as pedras de Correrrio. Sor Brynden tirou o elmo e caiu sobre um joelho.

- Vossa Graça - foi tudo que disse, mas seu tom lúgubre falava por si.

- Ouvirei em privado o que Sor Brynden tem a dizer, na sala de audiências. - Robb levantou-se. - Grande-Jon, mantenha Lorde Karstark aqui até a minha volta, e enforque os outros sete.

Grande-Jon abaixou a lança.

- Até os mortos?

- Sim. Não quero essa gente conspurcando os rios do senhor meu tio. Que alimentem os corvos.

Um dos prisioneiros ajoelhou-se.

- Misericórdia, senhor. Eu não matei ninguém, fiquei só à porta, de vigia, por causa dos guardas.

Robb refletiu naquilo por um momento.

- Conhecia as intenções de Lorde Rickard? Viu as facas desembainhadas? Ouviu os gritos, as súplicas de misericórdia?

- Sim, mas não participei. Era só o vigia, juro...

- Lorde Umber - disse Robb -, este era só o vigia. Enforque-o por último, para que possa vigiar a morte dos outros. Mãe, tio, venham comigo, por favor. - Deu as costas enquanto os homens de Grande-Jon cerravam fileiras em volta dos prisioneiros e os levavam do salão sob a ameaça de lanças. Lá fora, os trovões ribombavam e estrondeavam, tão alto que parecia que o castelo estava ruindo em volta de seus ouvidos. Será este o som de um reino desmoronando?, perguntou Catelyn a si mesma.

Estava escuro dentro da sala de audiências, mas pelo menos o som dos trovões era abafado por mais uma parede de pedra. Um criado entrou com uma candeia de azeite para acender a lareira, mas Robb mandou-o embora e ficou com a candeia. Havia mesas e cadeiras, mas só Edmure se sentou, e levantou-se quando percebeu que os outros permaneceram em pé. Robb tirou a coroa e pousou-a na mesa, à sua frente.

Peixe Negro fechou a porta.

- Os Karstark desapareceram.

- Todos? - seria ira ou desespero o que pesava daquela maneira na voz de Robb? Nem mesmo Catelyn tinha certeza.

- Todos os guerreiros - respondeu Sor Brynden. - Algumas seguidoras de acampamento e criados foram deixados com os feridos. Interrogamos tantos quantos foram necessários para nos certificarmos da verdade. Começaram a partir ao cair da noite, escapando a princípio um a um ou dois a dois, e depois em grupos maiores. Foi ordenado aos feridos e criados que mantivessem as fogueiras acesas para que ninguém soubesse que tinham partido, mas depois que começou a chover, deixou de valer a pena.

- Irão voltar a se agrupar longe de Correrrio? - perguntou Robb.

- Não. Espalharam-se, à caça. Lorde Karstark jurou oferecer a mão de sua filha donzela a qualquer homem, bem ou malnascido, que lhe traga a cabeça do Regicida.

Que os deuses nos valham. Catelyn voltou a sentir náuseas.

- Quase trezentos cavaleiros e duas vezes mais montarias desaparecidos na noite. - Robb esfregou as têmporas, no local onde a coroa havia deixado sua marca, na pele macia acima das orelhas. - Todas as forças de cavalaria de Karhold, perdidas.

Perdidas por mim. Por mim, que os deuses me perdoem. Catelyn não precisava ser um soldado para compreender a armadilha em que Robb se encontrava. Por ora, controlava as terras fluviais, mas seu reino estava cercado de inimigos por todos os lados, exceto pelo leste, onde Lysa se empoleirava em seu cume de montanha. Até o Tridente estava pouco seguro desde que o Senhor da Travessia retirara sua fidelidade. E agora perdemos também os Karstark...

- Nem uma palavra sobre isso deve sair de Correrrio - disse Edmure. - Lorde Tywin faria... os Lannister pagam as suas dívidas, sempre dizem isso. Que a Mãe nos guarde quando ele souber.

Sansa. As unhas de Catelyn enterraram-se na carne macia das palmas de suas mãos, tal foi a força com que cerrou os punhos.

Robb lançou a Edmure um frio olhar.

- Quer me transformar num mentiroso além de um assassino, tio?

- Não precisamos falar nenhuma falsidade. Basta não dizer nada. Enterramos os rapazes e permanecemos em silêncio até o fim da guerra. Willem era filho de Sor Kevan Lannister e sobrinho de Lorde Tywin. Tion era filho da Senhora Genna, e um Frey. Temos também de manter a notícia longe das Gêmeas, até...

- ... até conseguirmos trazer os assassinados de volta à vida? - disse Brynden Peixe Negro em tom cortante. - A verdade fugiu com os Karstark, Edmure. E tarde demais para esses jogos.

- Devo a seus pais a verdade - disse Robb. - E a justiça. Também lhes devo isso. - Fitou a coroa, o brilho escuro do bronze, o círculo de espadas de ferro. - Lorde Rickard desafiou-me. Traiu-me. Não tenho escolha a não ser condená-lo. Só os deuses sabem o que fará a infantaria Karstark que está com Roose Bolton quando lhes chegar a notícia de que executei seu suserano por traição. Bolton precisa ser prevenido.

- O herdeiro de Lorde Karstark também estava em Harrenhal - recordou-lhe Sor Brynden. - O filho mais velho, aquele que os Lannister capturaram no Ramo Verde.

- Harrion. Chama-se Harrion. - Robb soltou uma gargalhada amarga. - Um rei faz bem em conhecer o nome de seus inimigos, não acha?

Peixe Negro lançou-lhe um olhar astuto.

- Sabe disso com certeza? Que isso fará do jovem Karstark seu inimigo?

- O que mais poderá acontecer? Estou prestes a matar o pai dele, não é provável que me agradeça.

- Pode agradecer. Há filhos que odeiam os pais, e com um só golpe estará transformando-o no Senhor de Karhold.

Robb balançou a cabeça.

- Mesmo se Harrion fosse esse tipo de homem, nunca poderia perdoar abertamente o homem que matou seu pai. Seus próprios homens iriam se voltar contra ele. Estamos falando de nortenhos, tio. O Norte tem memória.

- Então perdoe-o - sugeriu Edmure Tully.

Robb fitou-o com franca incredulidade.

Sob aquele olhar, o rosto de Edmure corou.

- Poupe sua vida, quero dizer. Não gosto mais da ideia do que você, senhor. Ele também matou homens meus. O pobre Delp tinha acabado de se recuperar do ferimento que Sor Jaime lhe infligiu. Karstark deve ser punido, certamente. Mantenha-o acorrentado.

- Um refém? - disse Catelyn. Poderia ser melhor...

- Sim, um refém! - o irmão tomou a sua reflexão por concordância. - Diga ao filho que, desde que permaneça leal, o pai não será maltratado. Caso contrário... agora não temos esperança de reconquistar os Frey, nem que eu me oferecesse para casar com todas as filhas de Lorde Walder e transportasse sua liteira. Se também perdermos os Karstark, que esperança nos restará?

- Que esperança... - Robb suspirou, afastou os cabelos dos olhos e disse: - Nada nos chegou de Sor Rodrik no norte, nenhuma resposta veio de Walder Frey à nossa nova oferta, recebemos apenas silêncio do Ninho da Águia. - Apelou à mãe. - Sua irmã não nos responderá nunca? Quantas vezes terei de lhe escrever? Não quero acreditar que nenhuma das aves chegou até ela.

Catelyn percebeu que o filho queria ser confortado; queria que ela lhe dissesse que tudo ficaria bem. Mas seu rei precisava da verdade.

- As aves chegaram ao Ninho da Águia. Embora ela possa lhe dizer que não, se alguma vez chegarem a falar do assunto. Não espere ajuda desse lado, Robb. Lysa nunca foi corajosa. Quando éramos meninas, ela fugia e escondia-se sempre que fazia algo errado. Talvez pensasse que o senhor nosso pai esqueceria de se zangar com ela caso não fosse capaz de encontrá-la. Agora é a mesma coisa. Ela fugiu de Porto Real por medo, para o lugar mais seguro que conhece, e recolhe-se em sua montanha com a esperança de que todos a esqueçam.

- Os cavaleiros do Vale poderiam fazer toda a diferença nesta guerra - disse Robb -, mas se ela não quer lutar, que assim seja. Só lhe pedi que nos abrisse o Portão Sangrento e nos desse navios em Vila Gaivotas para nos levar ao norte. A estrada de altitude seria difícil, mas não tão difícil quanto abrir caminho pelo Gargalo lutando. Se conseguisse desembarcar em Porto Branco, poderia flanquear Fosso Cailin e expulsar os homens de ferro do norte em meio ano.

- Isso não acontecerá, senhor - disse Peixe Negro. - Cat tem razão. A Senhora Lysa é temerosa demais para deixar entrar um exército no Vale. Qualquer exército. O Portão Sangrento permanecerá fechado.

- Então que os Outros a levem - praguejou Robb, numa fúria causada pelo desespero. - E o maldito Rickard Karstark também. E Theon Greyjoy, Walder Frey, Tywin Lannister e todos os outros. Pela bondade dos deuses, por que alguém haveria de querer ser rei? Quando todos estavam gritando Rei no Norte, Rei no Norte, eu disse a mim mesmo... jurei a mim mesmo... que seria um bom rei, tão honrado quanto o pai, forte, justo, leal para com os meus amigos e bravo quando enfrentasse os inimigos... agora sequer sei distingui-los uns dos outros. Como foi que tudo isso ficou tão confuso? Lorde Rickard lutou ao meu lado em meia dúzia de batalhas. Os filhos dele morreram por mim no Bosque dos Murmúrios. Tion Frey e Willem Lannister eram meus inimigos. Mas agora tenho de matar o pai de meus amigos mortos por causa deles. - Olhou-os. - Os Lannister vão me agradecer pela cabeça de Lorde Rickard? E os Frey?

- Não - disse Brynden Peixe Negro, direto como sempre.

- Mais um motivo para poupar a vida de Lorde Rickard e mantê-lo como refém - insistiu Edmure.

Robb estendeu ambas as mãos para baixo, ergueu a pesada coroa de bronze e ferro e voltou a colocá-la na cabeça, e de repente era um rei novamente.

- Lorde Rickard morre.

- Mas por quê? - perguntou Edmure. - Foi você mesmo que disse...

- Eu sei o que disse, tio. Não muda o que tenho de fazer. - As espadas de sua coroa encostavam-se, rígidas e negras, contra a sua testa. - Em batalha poderia ter matado Tion e Willem em pessoa, mas isso não foi uma batalha. Eles estavam dormindo em suas camas, nus e desarmados, na cela em que os coloquei. Rickard Karstark matou mais do que um Lannister e um Frey. Matou a minha honra. Tratarei dele à alvorada.

Quando o dia nasceu, cinzento e gelado, a tempestade se reduzira a uma chuva contínua, mesmo assim o bosque sagrado estava repleto de gente. Senhores do rio e nortenhos de alto e baixo nascimento, cavaleiros, mercenários e cavalariços espalhavam-se entre as árvores para ver o fim da dança negra da noite. Edmure dera ordens, e um cepo de carrasco fora colocado em frente à árvore-coração. Chuva e folhas caíam em volta deles quando os homens de Grande-Jon atravessaram a multidão com Lorde Rickard Karstark, ainda de mãos atadas. Seus homens já pendiam das grandes muralhas de Correrrio, balançando na ponta de longas cordas enquanto a chuva lhes lavava o rosto que enegrecia.

Lew Longo esperava ao lado do cepo, mas Robb tirou o machado de sua mão e ordenou-lhe que se afastasse.

- Isso é tarefa minha - disse. - Ele morre por ordem minha. Deve morrer por minhas mãos.

Lorde Rickard Karstark inclinou rigidamente a cabeça.

- Por isso lhe agradeço. Mas por mais nada. - Vestira-se para a morte com uma longa túnica negra de lã, decorada com o resplendor branco de sua Casa. - O sangue dos Primeiros Homens corre tanto nas minhas veias quanto nas suas, rapaz. Faria bem em se lembrar disso. Fui batizado em honra de seu avô. Convoquei meus vassalos contra o Rei Aerys por seu pai, e contra o Rei Joffrey por você. Em Cruzaboi, no Bosque dos Murmúrios e na Batalha dos Acampamentos cavalguei ao seu lado, e acompanhei Lorde Eddard no Tridente. Somos parentes, os Stark e os Karstark.

- Esse parentesco não o impediu de me trair - disse Robb. - E não o salvará agora. Ajoelhe-se, senhor.

Catelyn sabia que Lorde Karstark falara a verdade. Os Karstark traçavam sua genealogia até Karlon Stark, um filho mais novo de Winterfell que derrubou um senhor rebelde mil anos antes e a quem tinham sido concedidas terras por seu valor. O castelo que construíra fora chamado Karls Hold, mas logo transformou-se em Karhold, e, ao longo dos séculos, os Stark de Karhold foram se transformando em Karstark.

- Segundo os deuses antigos ou modernos, não faz diferença - Lorde Rickard disse ao filho dela -, não há homem mais amaldiçoado do que aquele que mata parentes.

- Ajoelhe-se, traidor - voltou a dizer Robb. - Ou terei de ordenar-lhes que empurrem a sua cabeça contra o cepo?

Lorde Karstark se ajoelhou.

- Os deuses vão julgá-lo, tal como você me julgou. - Deitou a cabeça no cepo.

- Rickard Karstark, Senhor de Karhold. - Robb ergueu o pesado machado com ambas as mãos. - Aqui, à vista dos deuses e dos homens, considero-o culpado de assassinato e alta traição. Em meu nome o condeno. Com as minhas mãos tiro a sua vida. Quer dizer uma última palavra?

- Mate-me, e que seja amaldiçoado. Não é o meu rei.

O machado caiu. Pesado e bem afiado, matou em um único golpe, mas foram precisos três para separar a cabeça do corpo, e quando tudo terminou, tanto os vivos como o morto estavam encharcados de sangue. Robb atirou o machado ao chão, enojado, e virou-se para a árvore-coração sem dizer uma palavra. E ali ficou, tremendo e com as mãos semi-cerradas e a chuva correndo por seu rosto. Que os deuses o perdoem, rezou Catelyn em silêncio. Ele é só um rapaz, e não tinha alternativa.

Não voltou a ver o filho naquele dia. A chuva prosseguiu ao longo de toda a manhã, açoitando a superfície dos rios e transformando a relva do bosque sagrado em lama e poças. Peixe Negro reuniu uma centena de homens e saiu em busca de Karstarks, mas ninguém esperava que trouxesse muitos de volta.

- Só rezo para não ter de enforcá-los - disse ao partir. Quando foi embora, Catelyn retirou-se para o aposento privado do pai, para sentar-se novamente à cabeceira de Lorde Hoster.

- Não durará muito mais - preveniu-a Meistre Vyman quando apareceu naquela tarde. - Suas últimas forças estão se esgotando, embora ainda tente lutar.

- Sempre foi um lutador - disse ela. - Um homem teimoso e querido.

- Sim - disse o meistre -, mas esta é uma batalha que não pode ganhar. É hora de pousar a espada e o escudo. É hora de se render.

De se render, pensou ela, de fazer a paz. O meistre estaria falando de seu pai ou de seu filho?

Ao cair da noite, Jeyne Westerling veio visitá-la. A jovem rainha entrou timidamente no aposento privado.

- Senhora Catelyn, não quero incomodá-la...

- E muito bem-vinda aqui, Vossa Graça. - Catelyn estava bordando, mas pôs a agulha de lado.

- Por favor. Chame-me de Jeyne. Não me sinto como uma Graça.

- E, no entanto, é o que é. Por favor, venha sentar-se, Vossa Graça.

- Jeyne. - Ela sentou-se junto à lareira e alisou ansiosamente a saia.

- Como quiser. Como posso servi-la, Jeyne?

- E Robb - disse a garota. - Ele está tão infeliz, tão... tão zangado e desconsolado. Não sei o que fazer.

- Tirar a vida de um homem é uma coisa dura.

- Eu sei. Disse-lhe que devia usar um carrasco. Quando Lorde Tywin envia um homem para a morte, tudo que faz é dar a ordem. Assim é mais fácil, não acha?

- Sim - disse Catelyn -, mas o senhor meu esposo ensinou aos filhos que matar nunca deve ser fácil.

- Oh. - A Rainha Jeyne umedeceu os lábios. - Robb não comeu o dia inteiro. Mandei que Rollam lhe levasse um bom jantar, costelas de javali com cebolas cozidas e cerveja, mas nem tocou no prato. Passou a manhã inteira escrevendo uma carta e disse-me para não incomodá-lo, mas quando a carta ficou pronta, queimou-a. Agora está sentado, olhando uns mapas. Perguntei-lhe o que procurava, mas não me respondeu. Acho que nem sequer me ouviu. Nem quis mudar de roupa. Passou o dia inteiro molhado e ensanguentado. Eu quero ser uma boa esposa para ele, quero mesmo, mas não sei como ajudar. Não sei como animá-lo ou reconfortá-lo. Não sei de que precisa. Por favor, senhora, é a mãe dele, diga-me o que devo fazer.

Diga-me o que devo fazer. Catelyn poderia fazer a mesma pergunta, se seu pai estivesse em condições de responder. Mas Lorde Hoster tinha partido, ou estava perto disso. O seu Ned também. E também Bran e Rickon, e a mãe, e Brandon, há tanto tempo. Só lhe restava Robb, Robb e a esperança que se desvanecia de recuperar as filhas.

- Às vezes - disse Catelyn lentamente -, a melhor coisa que podemos fazer é nada. Quando cheguei a Winterfell, sentia-me magoada sempre que Ned ia ao bosque sagrado e lá se sentava sob a árvore-coração. Sabia que parte de sua alma estava naquela árvore, uma parte que eu nunca partilharia. Mas rapidamente percebi que sem essa parte ele não teria sido Ned. Jeyne, filha, você casou com o Norte, tal como eu fiz... e no Norte os invernos chegam. - Tentou sorrir. - Seja paciente. Seja compreensiva. Ele a ama e precisa de você, e voltará para você bem depressa. Talvez nesta mesma noite. Procure estar lá quando ele fizer isso. É tudo que posso lhe dizer.

A jovem rainha escutou, arrebatada.

- Estarei - disse, quando Catelyn terminou. - Estarei lá. - Pôs-se em pé. - Devia voltar. Ele pode ter sentido a minha falta. Verei. Mas se ainda estiver com os seus mapas, serei paciente.

- Faça isso - disse Catelyn, mas quando a garota chegou à porta, lembrou-se de mais uma coisa. - Jeyne - chamou-a -, há algo mais que Robb precisa de você, embora ele próprio talvez não saiba ainda. Um rei precisa de um herdeiro.

A garota sorriu ao ouvir aquilo.

- Minha mãe diz o mesmo. Ela faz uma poção para mim, com ervas, leite e cerveja, para ajudar a me tornar fértil. Bebo todas as manhãs. Disse a Robb que tenho certeza de que vou lhe dar gêmeos. Um Eddard e um Brandon. Ele gostou da ideia, acho eu. Nós... nós tentamos quase todos os dias, senhora. Certos dias duas vezes ou mais. - A garota corou de uma forma encantadora. - Vou esperar um bebê em breve, prometo. Rezo à nossa Mãe no Céu todas as noites.

- Muito bem. Juntarei também as minhas preces. Aos velhos deuses e aos novos.

Depois que a garota saiu, Catelyn voltou para junto do pai e alisou os finos cabelos

brancos por cima da testa.

- Um Eddard e um Brandon - suspirou em voz baixa. - E talvez, a seu tempo, um Hoster. Gostaria disso? - ele não respondeu, mas ela nunca tinha esperado que respondesse. Enquanto o som da chuva no telhado se misturava com a respiração do pai, pensou em Jeyne. A garota realmente parecia ter bom coração, como Robb dissera. E boas ancas, o que pode vir a ser mais importante.

Jaime

dois dias de viagem, para ambos os lados da estrada do rei, entraram numa larga faixa de destruição, quilômetros de campos e pomares enegrecidos, onde os troncos de árvores mortas se projetavam para o ar como postes de arqueiro. As pontes também estavam queimadas, e os riachos seguiam cheios pelas chuvas do outono, de modo que tinham de patrulhar as margens em busca de vaus. As noites estremeciam com os uivos dos lobos, mas não viam ninguém.

Em Lagoa da Donzela, o salmão vermelho de Lorde Mooton ainda flutuava sobre o castelo em sua colina, mas as muralhas da vila encontravam-se desertas, os portões, derrubados, metade das casas e lojas, incendiada ou saqueada. Não viram nenhum ser vivo exceto um punhado de cães selvagens, que escapuliram ao ouvir sua aproximação. A lagoa que deu à vila seu nome, onde a lenda dizia que Florian, o Bobo, pela primeira vez vislumbrara Jonquil banhando-se com as irmãs, estava de tal maneira repleta de cadáveres em decomposição que a água se transformara numa sopa escura, de cor cinza-esverdeada.

Jaime deu uma olhada e começou a cantar.

- Cinco donzelas havia numa lagoa de nascente...

- O que está fazendo? - quis saber Brienne.

- Estou cantando "Seis donzelas na lagoa", certamente já ouviu a canção. E que donzelinhas tímidas elas eram. Muito parecidas com você. Embora um tanto mais belas, aposto.

- Silêncio - disse a moça, com um olhar que sugeria que adoraria deixá-lo flutuando na lagoa entre os cadáveres.

- Por favor, Jaime - suplicou o primo Cleos. - Lorde Mooton está juramentado a Correrrio, não queremos atrai-lo para fora de seu castelo. E pode haver outros inimigos escondidos nas ruínas...

- Inimigos dela ou nossos? Não são os mesmos, primo. Tenho um forte desejo de ver se a garota sabe usar aquela espada que transporta.

- Se não ficar em silêncio, não me deixa escolha a não ser amordaçá-lo, Regicida.

- Desacorrente minhas mãos, e eu brincarei de mudo até chegarmos a Porto Real. O que poderia ser mais justo do que isso, garota?

- Brienne! Meu nome é Brienne! - três corvos levantaram voo, assustados pelo ruído.

- Não quer tomar um banho, Brienne? - soltou uma gargalhada. - É uma donzela, e ali está a lagoa. Eu lavo suas costas. - Costumava esfregar as costas de Cersei, quando éramos crianças no Rochedo Casterly.

A garota virou a cabeça do cavalo e afastou-se a trote. Jaime e Sor Cleos seguiram-na para fora das cinzas de Lagoa da Donzela. Um quilômetro e meio adiante, o verde começou a voltar ao mundo. Jaime sentiu-se satisfeito. As terras queimadas faziam-lhe lembrar Aerys em excesso.

- Ela está seguindo a estrada de Valdocaso - murmurou Sor Cleos. - Seria mais seguro seguir pela costa.

- Mais seguro, mas mais lento. Eu sou favorável a Valdocaso, primo. Para falar a verdade, sua companhia aborrece-me. - Pode ser meio Lannister, mas não tem nada a ver com a minha irmã.

Nunca tinha conseguido suportar estar muito tempo separado de sua gêmea. Até quando crianças, costumavam enfiar-se nas camas um do outro e dormir de braços entrelaçados. Até no ventre. Muito antes de a irmã florescer ou do advento de sua própria masculinidade, tinham visto éguas e garanhões nos campos e cães e cadelas nos canis e brincado de fazer o mesmo. Uma vez, a aia da mãe pegou-os no ato... não se lembrava bem do que estavam fazendo, mas, fosse o que fosse, havia horrorizado a Senhora Joanna. Ela mandou a aia embora, mudou o quarto de Jaime para o outro lado de Rochedo Casterly, colocou um guarda à porta do de Cersei e disse-lhes que não podiam voltar a fazer aquilo nunca mais, caso contrário não teria alternativa e seria obrigada a contar ao senhor pai deles. Mas não precisariam ter medo. Aquilo fora um pouco antes de ela morrer ao dar à luz Tyrion. Jaime quase nem se lembrava do rosto da mãe.

Stannis Baratheon e os Stark talvez lhe tivessem feito um favor. Tinham espalhado a sua história de incesto por todos os Sete Reinos, portanto nada mais havia a esconder. Por que não devo me casar abertamente com Cersei e dividir a cama com ela todas as noites? Os dragões sempre se casavam com as irmãs. Septões, senhores e povo tinham fechado os olhos aos Targaryen durante centenas de anos, que fizessem o mesmo com a Casa Lannister. Certamente devastaria a pretensão de Joffrey ao trono, mas no fim das contas tinham sido as espadas que conquistaram o Trono de Ferro para Robert, e espadas também podiam manter Joffrey lá, independente de que semente havia lhe dado origem. Poderíamos casá-lo com Myrcella, depois de enviarmos Sansa Stark de volta à mãe. Isso mostraria ao reino que os Lannister estão acima das leis deles, tal como os deuses e os Targaryen.

Jaime tinha decidido que iria devolver Sansa e a garota mais nova também, se fosse possível encontrá-la. Não era coisa que lhe reconquistasse a honra perdida, mas a ideia de cumprir com a palavra dada quando todos esperavam uma traição divertia-o mais do que seria capaz de exprimir.

Passavam por um campo de trigo espezinhado e um muro baixo de pedra quando Jaime ouviu um suave frum vindo de trás, como se uma dúzia de aves tivessem levantado voo ao mesmo tempo.

- Para baixo! - gritou, atirando-se sobre o pescoço do cavalo. O castrado relinchou e empinou-se quando uma flecha o atingiu na garupa. Outras flechas passaram assobiando por eles. Jaime viu Sor Cleos cair da sela, torcendo-se quando seu pé ficou preso no estribo. Seu palafrém fugiu, e o Frey passou por eles arrastado, aos gritos, com a cabeça batendo contra o chão.

O castrado de Jaime arrastou-se pesadamente, bufando e resfolegando de dor. Esticou a cabeça para procurar Brienne. Ainda estava montada, com uma flecha alojada nas costas e outra na perna, mas parecia não senti-las. Viu-a puxar a espada e descrever um círculo, em busca dos arqueiros.

- Atrás do muro - gritou Jaime, lutando para virar a sua montaria meio cega de volta à luta. As rédeas emaranhavam-se em suas malditas correntes, e o ar estava de novo repleto de flechas. - Avançar! - gritou, esporeando para mostrar à mulher como se fazia. Em algum canto, o velho e coitado cavalo encontrou um sopro de velocidade. De repente, dispararam pelo campo de trigo, fazendo voar nuvens de palha. Jaime só teve tempo suficiente para pensar: É melhor que a garota me siga antes que eles percebam que quem avança sobre eles é um homem desarmado e acorrentado. Então ouviu-a vindo de trás em grande velocidade.

- Entardecer! - gritou ela, quando seu cavalo de tração passou por Jaime trovejando. Brandia a espada. - Tarth! Tarth!

Algumas últimas flechas passaram inofensivamente por eles; então os arqueiros se separaram e fugiram, como os arqueiros sem reforço sempre faziam diante do ataque de cavaleiros. Brienne refreou o cavalo junto ao muro. Quando Jaime chegou ao seu lado, todos os arqueiros tinham desaparecido na floresta, vinte metros adiante.

- Perdeu o gosto pela batalha?

- Eles estavam fugindo.

- Essa é a melhor hora para matá-los.

Ela embainhou a espada.

- Por que você atacou?

- Os arqueiros são destemidos desde que possam se esconder atrás de muros e disparar de longe, mas, se são atacados, fogem. Sabem o que lhes acontece quando são apanhados. Você tem uma flecha nas costas, sabia? E outra na perna. Devia me deixar tratar delas.

- Você?

- Se não for eu, quem será? Da última vez que vi primo Cleos, o palafrém estava usando a cabeça dele para arar um sulco. Apesar disso, suponho que deveríamos ir à sua procura. Ele é uma espécie de Lannister.

Encontraram Cleos ainda preso ao estribo. Tinha uma flecha espetada no braço direito e uma segunda no peito, mas fora o chão que dera cabo dele. O topo da cabeça estava empastado de sangue e mole ao toque, e pedaços de osso partido moviam-se por baixo da pele, sob a pressão da mão de Jaime.

Brienne ajoelhou-se e pegou na mão dele.

- Ainda está quente.

- Esfriará em breve. Quero o cavalo e as roupas dele. Estou farto de farrapos e moscas.

- Ele era seu primo. - A moça estava chocada.

- Era - concordou Jaime. - Não se preocupe, possuo ampla provisão de primos. Também quero a espada dele. Precisará de alguém com quem dividir as vigias.

- Pode ficar de vigia sem armas. - A garota levantou.

- Acorrentado a uma árvore? Talvez possa. Ou talvez possa negociar à minha maneira com o próximo bando de fora da lei e os deixe cortar esse seu grosso pescoço, garota.

- Não vou armá-lo. E meu nome é...

- Brienne, já sei. Eu prestaria o juramento de não lhe fazer mal, se isso atenuasse os - seus medos de menina.

- Seus juramentos não têm qualquer valor. Prestou um juramento a Aerys.

- Que eu saiba, você não cozinhou ninguém dentro de sua armadura. E ambos queremos que eu chegue a Porto Real em segurança e inteiro, não queremos? - Acocorou-se ao lado de Cleos e começou a desafivelar o cinto dele.

- Afaste-se. Já. Pare com isso.

Jaime estava cansado. Cansado das suspeitas dela, cansado de seus insultos, cansado de seus dentes tortos, de seu rosto largo e manchado e daqueles seus cabelos finos e sem vida. Ignorando os protestos da garota, pegou com ambas as mãos no cabo da espada do primo, prendeu o cadáver ao chão com o pé e puxou. No momento em que a lâmina deslizou para fora da bainha, já estava rodopiando, trazendo a espada à sua volta e para cima num rápido e mortífero arco. Aço encontrou aço com um ressonante clang de fazer tremer os ossos. Sem que ele soubesse como, Brienne puxou a própria lâmina bem a tempo. Jaime riu.

- Muito bem, garota.

- Dê-me a espada, Regicida.

- Ah, darei. - Pôs-se em pé como uma mola, e arremeteu contra ela, com a espada viva nas mãos. Brienne saltou para trás, parando o ataque, mas ele seguiu-a, mantendo a pressão. Assim que a garota parava um golpe, o seguinte caía sobre ela. As espadas beijavam-se, saltavam para longe e voltavam a se beijar. O sangue de Jaime cantava. Era àquilo que estava destinado; nunca se sentia tão vivo como quando estava lutando, com a morte equilibrada em cada golpe. E com os pulsos acorrentados, a moça pode até me desafiar durante algum tempo. As correntes forçavam-no a usar uma empunhadura a duas mãos, embora fosse claro que o peso e o alcance eram menores do que seriam se a lâmina fosse uma verdadeira espada longa de duas mãos, mas que importava? A espada do primo era suficientemente longa para pôr um ponto final naquela Brienne de Tarth.

Pelo alto, por baixo, com o braço lançado acima do ombro, fez chover aço sobre ela. Pela esquerda, pela direita, para trás, brandindo a espada com tanta força que chispas voavam quando as lâminas se encontravam, para cima, estocada lateral, lançada sobre o ombro, sempre atacando, caindo contra ela, passo e esquiva, ataque e passo, passo e ataque, golpeando, cortando, mais depressa, mais depressa, mais depressa...

... até que, sem fôlego, deu um passo para trás e deixou a ponta da espada cair ao chão, dando-lhe um momento de descanso.

- Nada mal - reconheceu. - Para uma garota.

Ela inspirou lenta e profundamente, mantendo os olhos cuidadosos a vigiá-lo.

- Não quero machucá-lo, Regicida.

- Como se fosse capaz. - Rodopiou a lâmina por sobre a cabeça e voltou a cair sobre ela, num chacoalhar de correntes.

Jaime não saberia dizer durante quanto tempo prosseguiu o ataque. Podiam ter sido minutos ou podiam ter sido horas; o tempo dormia quando as espadas acordavam. Empurrou-a para longe do cadáver do primo, empurrou-a para o outro lado da estrada, empurrou-a para o meio das árvores. Brienne tropeçou uma vez numa raiz que não chegou a ver, e por um momento Jaime pensou que ela estivesse acabada, mas a mulher apoiou-se num joelho em vez de cair, e não perdeu o controle. A espada dela ergueu-se de um salto para bloquear um golpe alto que lhe teria aberto o tronco do ombro à virilha, e então golpeou-o, uma vez e mais outra, ganhando golpe a golpe o espaço para voltar a se levantar.

A dança prosseguiu. Jaime encurralou-a contra um carvalho, praguejou quando ela se esquivou dele, seguiu-a através de um riacho raso quase coberto de folhas caídas. O aço ressoou, o aço cantou, o aço gritou, raspou e soltou chispas, e a mulher passou a grunhir como uma porca a cada golpe, mas Jaime não encontrou maneira de atingi-la. Era como se, em volta dela, houvesse uma gaiola de ferro que parasse todos os golpes.

- Nada mal mesmo - disse ele quando fez um segundo de pausa para recuperar o fôlego, rodeando-a pela direita.

- Para uma garota?

- Para um escudeiro, digamos. Um verde. - Soltou uma gargalhada irregular e sem fôlego. - Vem, vem, minha querida, a música ainda está tocando. Posso ter a honra desta dança, minha senhora?

Grunhindo, ela atacou-o, com a espada a rodopiar, e de repente era Jaime quem lutava para manter o aço afastado da pele. Um dos golpes de Brienne varreu sua testa, e sangue correu para seu olho direito. Que os Outros a levem, e também a Correrrio! Sua perícia tinha enferrujado e apodrecido naquela maldita masmorra, e as correntes também não ajudavam em nada. Seu olho fechou-se, os ombros começavam a ficar entorpecidos por causa de toda a trepidação que tinham suportado, e seus pulsos doíam com o peso de correntes, algemas e espada. A espada ficava mais pesada a cada golpe, e Jaime sabia que não a brandia tão depressa como antes, nem a erguia tão alto.

Ela é mais forte do que eu.

Perceber aquilo gelou-o. Robert tinha sido mais forte do que ele, certamente. Touro Branco e Gerold Hightower, em seu apogeu, também, bem como Sor Arthur Dayne. Entre os vivos, Grande-Jon Umber era mais forte, Javali Forte de Crakehall muito provavelmente também, ambos os Clegane com toda a certeza. A força da Montanha não tinha nada de humano. Não importava. Com velocidade e perícia, Jaime era capaz de derrotar todos eles. Mas aquilo era uma mulher. Uma mulher que mais parecia uma enorme vaca, com certeza, mesmo assim... por tudo aquilo que era certo, quem devia estar se cansando era ela.

Em vez disso, forçou-o a voltar ao riacho, gritando:

- Renda-se! Jogue fora a espada!

Uma pedra escorregadia virou-se sob o pé de Jaime. Ao sentir-se caindo, transformou o azar numa estocada em mergulho. A ponta da espada ultrapassou a defesa dela e mordeu sua coxa superior. Uma flor vermelha desabrochou, e Jaime teve um instante para saborear a visão do sangue de Brienne antes de seu joelho colidir com uma pedra. A dor cegou-o. Brienne andou até ele, espalhando água, e afastou a espada de suas mãos com um chute.

- RENDA-SE!

Jaime atirou o ombro contra as pernas dela, fazendo-a cair por cima de si. Rolaram, esperneando e esmurrando-se, até que por fim ela conseguiu sentar-se montada nele, Jaime conseguiu tirar o punhal da bainha dela, mas antes de ter tempo de mergulhá-lo em sua barriga, ela apanhou seu pulso e bateu-o com tanta força numa pedra que foi como se lhe tivesse arrancado o braço do ombro. Com a outra mão, a garota segurou seu rosto.

- Renda-se! - empurrou sua cabeça para baixo, manteve-a dentro da água, puxou-a para cima. - Renda-se! - Jaime cuspiu água no rosto dela. Um empurrão, um espirrar de água, e estava de novo submerso, esperneando inutilmente, lutando para respirar. De novo para cima. - Renda-se, senão vou afogá-lo!

- E quebrará seu juramento? - rosnou ele. - Como eu?

Ela largou-o, e ele mergulhou com um esparramar de água.

E a floresta ressoou com gargalhadas roucas.

Brienne pôs-se em pé com dificuldade. Abaixo da cintura, ela era toda lama e sangue, tinha a roupa em desalinho e o rosto vermelho. Pelo aspecto dela é como se nos tivessem apanhado fodendo, e não lutando. Jaime engatinhou pelas pedras até a água rasa, limpando o sangue do olho com as mãos acorrentadas. Homens armados margeavam ambos os lados do riacho. Pouco admira, estávamos fazendo uma barulheira tão grande que acordaríamos um dragão.

- Sejam bem-vindos, amigos - gritou-lhes amigavelmente. - Minhas desculpas se os incomodei. Pegaram-me dando um corretivo na esposa.

- A mim pareceu que quem tava dando o corretivo era ela. - O homem que falou era forte e poderoso, e barra nasal de seu meio-elmo de ferro não escondia por completo a ausência de seu nariz.

Jaime percebeu subitamente que aqueles não eram os fora da lei que tinham matado Sor Cleos. Estavam cercados pela escumalha da terra: dorneses trigueiros e lisenos louros, dothraki com sinetas nas tranças, ibbeneses cabeludos, ilhéus do verão, negros como carvão, com manto de penas. Conhecia-os. Os Bravos Companheiros.

Brienne encontrou a voz.

- Tenho cem veados...

Um homem de aspecto cadavérico, com um manto esfarrapado de couro, disse:

- A gente aceita-os pra começar, senhora.

- E depois aceita a sua boceta - disse o homem sem nariz. - Não pode ser tão feia quanto o resto de você.

- Vire-a e meta no cu dela, Rorge - sugeriu um lanceiro de Dorne com um lenço de seda vermelho enrolado em volta do elmo. - Assim não precisa olhar para ela.

- E roubar dela o prazer de olhar pra mim? - disse o sem-nariz, e os outros riram.

Por mais feia e teimosa que fosse, a garota merecia coisa melhor do que um estupro

coletivo por uma escória como aquela.

- Quem comanda aqui? - exigiu saber Jaime em voz alta.

- Sou eu quem tem essa honra, Sor Jaime. - Os olhos do cadáver estavam debruados de vermelho, e seus cabelos eram finos e secos. Conseguiam ver-se veias azul-escuras através da pálida pele de suas mãos e de seu rosto. - Sou Urswyck. Chamam-me de Urswyck, o Fiel.

- Sabe quem eu sou?

O mercenário inclinou a cabeça.

- E preciso mais do que uma barba e uma cabeça rapada para enganar os Bravos Companheiros.

Os Saltimbancos Sangrentos, você quer dizer. Jaime não via mais utilidade naqueles do que em Gregor Clegane ou Amory Lorch. Cães, chamava o pai a todos, e usava-os como cães, para espantar as presas e plantar o medo em seu coração.

- Se me conhece, Urswyck, sabe que terá a sua recompensa. Um Lannister sempre paga as suas dívidas. Quanto à garota, é bem-nascida, e vale um bom resgate.

O outro inclinou a cabeça para o lado.

- Ah, é? Que sorte.

Havia uma certa astúcia no sorriso de Urswyck que não agradou a Jaime.

- Ouviu o que eu disse. Onde está o bode?

- A algumas horas de distância. Ele ficará satisfeito por vê-lo, não tenho dúvida, mas, se fosse você, não o chamaria de bode em sua presença. Lorde Vargo tem ficado suscetível quanto à sua dignidade.

Desde quando aquele selvagem baboso tem dignidade?

- Farei o possível para me lembrar disso quando nos encontrarmos. Senhor do quê, diga-me?

- Harrenhal. Foi-lhe prometido.

Harrenhal? Será que meu pai perdeu o juízo? Jaime ergueu as mãos.

- Quero estas correntes tiradas.

O risinho de Urswyck foi seco como papel.

Algo aqui está muito errado. Jaime não mostrou sinais de sua confusão e limitou-se a sorrir.

- Disse alguma coisa divertida?

O sem-nariz deu um sorriso.

- É a coisa mais engraçada que eu vi desde que o Dentadas arrancou as tetas daquela septã com mordidas.

- Você e seu pai perderam batalhas demais - esclareceu o dornês. - Tivemos de trocar as nossas peles de leão por peles de lobo.

Urswyck abriu as mãos.

- O que o Timeon quer dizer é que os Bravos Companheiros já não estão a soldo da Casa Lannister. Agora servimos Lorde Bolton, e o Rei no Norte.

Jaime dirigiu-lhe um frio sorriso de desprezo.

- E os homens ainda dizem que eu tenho merda no lugar de honra!

Urswyck não ficou satisfeito com aquele comentário. Ao seu sinal, dois dos Saltimbancos agarraram Jaime pelos braços e Rorge enfiou-lhe no estômago um punho revestido de cota de malha. Quando se dobrou, grunhindo, ouviu a garota protestar:

- Parem, ele não deve ser ferido! Foi a Senhora Catelyn que nos enviou, uma troca de cativos, ele está sob a minha proteção... - Rorge bateu outra vez nele, arrancando-lhe o ar dos pulmões. Brienne mergulhou em busca da espada que estava sob as águas do riacho, mas os Saltimbancos caíram sobre ela antes que conseguisse alcançar a arma. Forte como era, foram precisos quatro para espancá-la até deixá-la submissa.

No fim, o rosto da moça ficou tão inchado e ensanguentado quanto o de Jaime devia estar, e tinham quebrado dois de seus dentes. Isso em nada contribuiu para melhorar sua aparência. Tropeçando e sangrando, os dois prisioneiros foram arrastados pela floresta até os cavalos, com Brienne mancando do ferimento na coxa que Jaime lhe causara no riacho. Ele sentiu pena da garota. Não tinha dúvidas de que Brienne perderia a virgindade naquela noite. Àquele canalha sem nariz iria possuí-la com certeza, e era provável que alguns dos outros também esperassem a sua vez.

O dornês amarrou-os costas com costas em cima do cavalo de tração de Brienne, enquanto os outros Saltimbancos despiam Cleos Frey até a pele e dividiam entre si as suas posses. Rorge ganhou o sobretudo manchado de sangue, com seus orgulhosos quartos Lannister e Frey. As flechas tinham aberto buracos tanto nos leões como nas torres.

- Espero que esteja satisfeita, garota - murmurou Jaime a Brienne. Tossiu e cuspiu um punhado de sangue. - Se tivesse me armado, nunca teríamos sido capturados. - Ela não espondeu. É uma cadela teimosa que nem uma mula, pensou. Mas valente, sim. Não podia legar isso. - Quando acamparmos para a noite, você será estuprada, e mais de uma vez - preveniu-a. - Seria sensato não resistir. Se resistir, perderá mais do que alguns dentes.

Sentiu as costas de Brienne retesarem contra as suas. - Seria isso que você faria, se fosse uma mulher?

Se eu fosse uma mulher, seria Cersei. - Se eu fosse uma mulher, iria obrigá-los a me matar. Mas não sou. - Jaime induziu o cavalo deles a trote. - Urswyck! Uma palavrinha!

O mercenário cadavérico com o manto de couro esfarrapado puxou as rédeas por um momento, e depois pôs-se a seu lado.

- O que quer de mim, sor? E tenha cuidado com a língua, senão voltarei a dar um corretivo em você.

- Ouro - disse Jaime. - Gosta de ouro?

Urswyck estudou-o através de olhos avermelhados.

- Tem os seus usos, confesso.

Jaime dirigiu a Urswyck um sorriso astuto.

- Todo o ouro em Rochedo Casterly. Por que deixar que seja o bode quem se beneficiará dele? Por que não nos leva a Porto Real e recolhe você mesmo o meu resgate? O dela também, se quiser. Uma donzela disse-me que chamam Tarth de Ilha Safira. - A mulher contorceu-se ao ouvir aquilo, mas nada disse.

- Toma-me por um vira-casaca?

- É claro. Que outra coisa seria?

Urswyck pesou a proposta durante meio segundo.

- Porto Real fica muito longe, e seu pai está lá. Lorde Tywin pode nutrir ressentimentos por nós, por termos vendido Harrenhal ao Lorde Bolton.

Ele é mais esperto do que parece. Jaime tinha acalentado a esperança de enforcar o desgraçado assim que seus bolsos estivessem repletos de ouro.

- Deixe o meu pai comigo. Arranjo um perdão régio por quaisquer crimes que tenha cometido. Arranjo um grau de cavaleiro para você.

- Sor Urswyck - disse o homem, saboreando o som. - Como a minha querida esposa ficaria orgulhosa de ouvir isso. Se ao menos eu não a tivesse matado. - Suspirou. - Então, e o bravo Lorde Vargo?

- Deverei cantar um verso de "As chuvas de Castamere" para você? O bode não será assim tão bravo quando meu pai puser as mãos nele.

- E como ele fará tal coisa? Serão os braços de seu pai tão compridos que conseguem passar por cima das muralhas de Harrenhal e arrancar-nos de lá?

- Se for necessário. - A monstruosa loucura do Rei Harren já tinha caído antes, e poderia voltar a cair. - É tão estúpido que acredita que o bode pode vencer o leão?

Urswyck debruçou-se e deu-lhe um tabefe indolente no rosto. A pura insolência casual do gesto foi pior do que o golpe em si. Ele não tem medo de mim, compreendeu Jaime, com um arrepio.

- Já ouvi o bastante, Regicida. Teria de ser realmente um grande idiota para acreditar nas promessas de um perjuro como você. - Esporeou o cavalo e galopou vivamente em frente.

Aerys, pensou Jaime com ressentimento. Acaba sempre chegando em Aerys. Balançava com os movimentos do cavalo, desejando uma espada. Duas espadas seria ainda melhor. Uma para a garota e uma para mim. Morreríamos, mas levaríamos metade deles para o inferno conosco.

- Por que lhe disse que Tarth era a Ilha Safira? - murmurou Brienne quando Urswyck não podia mais ouvi-la. - É provável que pense que meu pai é rico em pedras preciosas...

- É melhor que reze para que ele pense assim.

- Todas as palavras que você diz são mentiras, Regicida? Tarth é chamada de Ilha Safira devido ao azul de suas águas.

- Grite um pouco mais alto, garota, acho que Urswyck não ouviu. Quanto mais depressa souberem o pouco que vale de resgate, mais depressa o estupro começa. Todos os homens que aqui estão irão montar em você, mas que importa? Basta fechar os olhos, abrir as pernas e fingir que todos eles são Lorde Renly.

Misericordiosamente, aquilo fechou a boca dela durante algum tempo.

O dia tinha quase chegado ao fim quando encontraram Vargo Hoat, que saqueava um pequeno septo com mais uma dúzia de seus Bravos Companheiros. As janelas de vitral tinham sido quebradas e os deuses de madeira esculpida arrastados para a luz do sol. O mais gordo dothraki que Jaime vira na vida estava sentado sobre o peito da Mãe quando se aproximaram, arrancando seus olhos de calcedônia com a ponta da faca. Ali perto, um septão magricela e perdendo o cabelo pendia, de pernas para o ar, de um galho de um grande castanheiro. Três dos Bravos Companheiros estavam usando seu cadáver como alvo de tiro com arco. Um deles devia ser bom; o morto tinha flechas espetadas em ambos os olhos.

Quando os mercenários viram Urswyck e os prisioneiros, soou um grito em meia dúzia de línguas. O bode estava sentado junto a uma fogueira, comendo uma ave meio assada que tinha num espeto, com gordura e sangue escorrendo por seus dedos e sua longa barba filamentosa. Limpou as mãos na túnica e levantou-se.

- Regifida - babou. - Vofê é meu catifo.

- Senhor, sou Brienne de Tarth - gritou a garota. - A Senhora Catelyn Stark ordenou-me que entregasse Sor Jaime ao irmão dele em Porto Real.

O bode lançou-lhe um olhar desinteressado.

- Filenfiem-na.

- Escute-me - rogou Brienne enquanto Rorge cortava as cordas que a ligavam a Jaime -, em nome do Rei no Norte, o rei que você serve, por favor, escute...

Rorge arrastou-a de cima do cavalo e começou a chutá-la.

- Veja se não quebra nenhum osso - gritou-lhe Urswyck. - A cadela com cara de cavalo vale o próprio peso em safiras.

O dornês Timeon e um ibbenês malcheiroso puxaram Jaime de cima da sela e empurraram-no rudemente na direção da fogueira. Não lhe teria sido difícil agarrar num dos punhos de suas espadas enquanto o maltratavam, mas os mercenários eram muitos e Jaime continuava acorrentado. Poderia abater um ou dois, mas no fim morreria por isso. Jaime ainda não estava pronto para morrer, especialmente por alguém como Brienne de Tarth.

- Efte é um dia effelente - disse Vargo Hoat. Em seu pescoço havia uma corrente de moedas interligadas, moedas de todas as formas e tamanhos, cunhadas e esculpidas, ostentando retratos de reis, feiticeiros, deuses e demônios, e de todos os tipos de animais fantasiosos.

Moedas de todas as terras onde lutou, recordou Jaime. A cobiça era a chave para aquele homem. Se ele mudou de lado uma vez, pode mudar de novo.

- Lorde Vargo, foi uma tolice ter abandonado o serviço do meu pai, mas não é tarde demais para corrigi-la. Ele pagará bem por mim, sabe disso.

- Ah, fim - disse Vargo Hoat. - Metade do ouro em Rofedo Cafterly ferá meu. Maf primeiro tenho de lhe enviar uma menfagem. - Disse qualquer coisa em sua língua escorregadia de bode.

Urswyck empurrou Jaime para trás, e um bobo vestido de losangos verdes e rosa utou suas pernas, fazendo-o cair. Quando atingiu o chão, um dos arqueiros agarrou-corrente entre os pulsos de Jaime e usou-a para puxar seus braços para a frente. O doraki gordo pôs a faca de lado para desembainhar um enorme arakh, a diabolicamente da espada-gadanha que os senhores dos cavalos adoravam.

Querem me assustar. O bobo subiu nas costas de Jaime, aos risinhos, enquanto o dogingava em sua direção. O bode quer que eu me mije nas calças e suplique por misericórdia, mas nunca terá esse prazer. Ele era um Lannister de Rochedo Casterly, Senhor Comandante da Guarda Real; nenhum mercenário o faria gritar.

A luz do sol correu, prateada, pelo gume do arakh quando ele desceu tremendo, quase depressa demais para ser visto. E Jaime gritou.

Pequena fortaleza quadrada estava meio arruinada, e o mesmo acontecia ao grande cavaleiro grisalho que lá vivia. Era tão velho que não compreendia as perguntas que lhe faziam. Não importava o que lhe dissessem, limitava-se a sorrir e a murmurar:

- Eu defendi a ponte contra Sor Maynard. Ele tinha cabelos vermelhos e um humor negro, mas não conseguiu me afastar. Fui ferido seis vezes antes de matá-lo. Seis!

O meistre que cuidava dele era um jovem, felizmente. Depois de o velho cavaleiro ter adormecido em sua cadeira, ele chamou-os para um canto e disse:

- Temo que procure um fantasma. Chegou-nos uma ave, há séculos, pelo menos meio ano. Os Lannister capturaram Lorde Beric perto do Olho de Deus. Foi enforcado.

- Sim, enforcado foi, mas Thoros cortou sua corda antes de morrer. - O nariz quebrado de Limo já não estava tão vermelho e inchado como algum tempo antes, mas estava sarando torto, dando ao seu rosto um aspecto assimétrico. - Sua senhoria é um homem difícil de matar, ah, se é.

- E um homem difícil de achar, ao que parece - disse o meistre. - Já perguntou à Senhora das Folhas?

- Perguntaremos - disse o Barba-Verde.

Na manhã seguinte, ao atravessarem a pequena ponte de pedra que havia por trás da fortaleza, Gendry perguntou se aquela seria a ponte pela qual o velho tinha lutado. Ninguém sabia.

- E o mais provável - disse Jack Sortudo. - Não vejo nenhuma outra ponte.

- Se houvesse uma canção, saberíamos com certeza - disse Tom Sete-Cordas. - Com uma boa canção saberíamos quem era Sor Maynard e por que ele queria tanto atravessar esta ponte. O pobre velho Lychester podia ser tão afamado quanto o Cavaleiro do Dragão, se ao menos tivesse tido o bom senso de manter um cantor.

- Os filhos de Lorde Lychester morreram na rebelião de Robert - resmungou Limo. - Alguns de um lado, outros do outro. Desde então, não anda bom da cabeça. Nenhum diabo de canção ia mudar isso.

- O que o meistre quis dizer quanto a perguntar à Senhora das Folhas? - perguntou Arya a Anguy enquanto avançavam.

O arqueiro sorriu.

- Espere e verá.

Três dias mais tarde, ao atravessarem um bosque amarelo, Jack Sortudo desprendeu o berrante e soprou um aviso, diferente daqueles que fizera soar antes. Os sons mal haviam se extinguido quando escadas de corda caíram, desenrolando-se, dos galhos das árvores.

- Amarrem os cavalos e lá vamos nós - disse Tom, semientoando as palavras. Subiram até uma aldeia escondida nos ramos mais elevados, um labirinto de passadiços de corda e pequenas casas cobertas de musgo, escondidas atrás de paredes vermelhas e douradas, e foram levados à Senhora das Folhas, uma mulher magra como um espeto, de cabelos brancos, vestida de tecido grosseiro.

- Não podemos ficar aqui muito mais tempo, pois o outono está chegando - disse-lhes ela. - Há nove dias, uma dúzia de lobos andou caçando pela estrada de Vaufeno. Se tivessem por acaso olhado para cima, poderiam ter nos visto.

- Não viu Lorde Beric? - perguntou Tom Sete-Cordas.

- Está morto. - A mulher parecia desgostosa. - A Montanha pegou-o, e enfiou um punhal num olho dele. Foi um irmão mendicante que nos contou. Ele ouviu isso dos lábios de um homem que viu tudo.

- Essa história é velha, rançosa e falsa - disse Limo. - O senhor do relâmpago não é assim tão fácil de matar. Sor Gregor pode ter tirado um de seus olhos, mas um homem não morre disso. Jack poderia contar.

- Bem, eu não morri - disse o zarolho Jack Sortudo. - Meu pai arranjou uma maneira de ser bem enforcadinho pelo meirinho de Lorde Piper, meu irmão Wat foi mandado pra Muralha, e os Lannister mataram meus outros irmãos. Um olho não é nada.

- Jura que ele não está morto? - a mulher agarrou o braço de Limo. - Abençoado seja, Limo, essa é a melhor novidade que ouvi em meio ano. Que o Guerreiro o proteja, e o sacerdote vermelho também.

Na noite seguinte encontraram abrigo dentro do esqueleto carbonizado de um septo, numa aldeia queimada chamada Brotadança. Só restavam estilhaços de suas janelas de vitral, e o idoso septão que os acolheu disse que os saqueadores tinham até levado as caras vestes da Mãe, a lanterna dourada da Velha e a coroa de prata que o Pai usava.

- Também cortaram os seios da Donzela, embora fossem só de madeira - disse-lhes. - E os olhos, os olhos eram de jade, lápis-lazúli e madrepérola, arrancaram-nos com as facas. Que a Mãe tenha piedade de todos eles.

- Isso foi obra de quem? - perguntou Limo Manto Limão. - Saltimbancos?

- Não - respondeu o velho. - Eram nortenhos. Selvagens que adoram árvores. Disseram que procuravam o Regicida.

Arya ouviu-o e mordeu o lábio. Sentiu Gendry observá-la. Isso a deixou zangada e envergonhada.

Havia uma dúzia de homens vivendo nas galerias por baixo do septo, por entre teias de aranha, raízes e barris de vinho quebrados, mas também não tinham notícia de Beric Dondarrion. Nem mesmo o chefe, que usava uma armadura enegrecida pela fuligem e um tosco relâmpago no manto. Quando Barba-Verde viu Arya a fitá-lo, riu e disse:

- O senhor do relâmpago está em todo lado e em lado algum, esquilo magricela.

- Não sou um esquilo - disse ela. - Vou ser quase uma mulher em breve. Vou fazer onze anos.

- Então é melhor ter cuidado para que eu não me case com você! - tentou fazer cócegas nela sob o queixo, mas Arya afastou sua estúpida mão com uma pancada.

Naquela noite, Limo e Gendry jogaram dominó com seus anfitriões, enquanto Tom Sete-Cordas cantava uma canção boba sobre Ben Barrigudo e o ganso do Alto Septão. Anguy deixou Arya experimentar o arco, mas por mais que ela mordesse o lábio, não conseguia puxá-lo.

- Precisa de um arco mais leve, senhora - disse o arqueiro sardento. - Se houver madeira seca em Correrrio, talvez faça um para você.

Tom ouviu-o e interrompeu a canção.

- E um imbecil, Arqueiro. Se formos a Correrrio, será só para recolher o resgate dela, não vai haver tempo para andar por lá fazendo arcos. Fique contente se sair com o couro inteiro. Lorde Hoster já enforcava homens fora da lei quando você ainda nem se barbeava. E aquele filho dele... eu sempre digo que um homem que odeia música não é de confiança.

- Não é música que ele odeia - disse Limo. - É você, palerma.

- Bem, não tem motivo para isso. A garota estava disposta a fazer dele um homem, será culpa minha que tenha bebido demais para tratar do assunto?

Limo fungou através de seu nariz quebrado.

- Foi você quem fez uma canção sobre isso, ou terá sido outro burro qualquer apaixonado pela própria voz?

- Só a cantei daquela vez - protestou Tom. - E quem disse que a canção era sobre ele? Era sobre um peixe.

- Um peixe murcho - disse Anguy, rindo.

Arya não queria saber sobre o que eram as estúpidas canções de Tom. Virou-se para Harwin.

- O que ele quis dizer com aquilo do resgate?

- Temos uma grande falta de cavalos, senhora. E também de armaduras. Espadas, escudos, lanças. Tudo aquilo que as moedas podem comprar. Sim, e sementes para plantar. O inverno está chegando, lembra? - tocou-lhe sob o queixo. - Não será a primeira cativa de elevado nascimento que resgatamos. Nem a última, espero eu.

Arya sabia que aquilo era verdade. Os cavaleiros andavam sempre sendo capturados e resgatados, e às vezes as mulheres também. Mas e se Robb não quiser pagar o preço deles? Ela não era nenhum cavaleiro famoso, e era de esperar que os reis colocassem o reino à frente das irmãs. E a senhora sua mãe, o que diria? Ainda a quereria de volta, depois de todas as coisas que havia feito? Arya mordeu o lábio e desejou saber.

No dia seguinte chegaram a um local chamado Coração Alto, um monte tão elevado que de seu cume parecia a Arya que era possível ver metade do mundo. Em volta desse cume havia um anel de enormes tocos brancos, tudo que restava de um círculo de majestosos represeiros. Arya e Gendry caminharam em volta do monte para contá-los. Havia trinta e um, e alguns eram tão largos que poderiam tê-los usado como cama.

O Coração Alto fora sagrado para os filhos da floresta, contou-lhe Tom Sete-Cordas, e parte de sua magia permanecia no local.

- Nenhum mal pode acontecer àqueles que aqui dormem - disse o cantor.

Arya pensou que devia ser verdade; o monte era tão alto e as terras que o cercavam eram tão planas que nenhum inimigo poderia se aproximar sem ser visto.

Tom disse-lhe que o povo das redondezas evitava o lugar; dizia-se que estava assombrado pelos fantasmas dos filhos da floresta que tinham morrido ali quando o rei ândalo chamado Errog, o Fratricida, derrubou o seu bosque. Arya sabia algo sobre os filhos da floresta e também sobre os ândalos, mas fantasmas não a assustavam. Quando era pequena, costumava esconder-se nas criptas de Winterfell e brincava de entra-no-meu-castelo e de monstros entre os reis de pedra sentados em seus tronos.

Mesmo assim, seus cabelos da nuca se arrepiaram naquela noite. Estava dormindo, mas a tempestade acordou-a. O vento arrancou a manta de cima dela e soprou-a, rodopiando, para os arbustos. Quando foi atrás dela, ouviu vozes.

Junto às brasas da fogueira, viu Tom, Limo e Barba-Verde conversando com uma mulherzinha minúscula, uns trinta centímetros mais baixa do que Arya e mais velha do que a Velha Ama, toda corcunda e enrugada, apoiada em uma bengala nodosa e negra. Seus cabelos brancos quase chegavam ao chão de tão longos e esvoaçavam em volta de sua cabeça como uma nuvem quando o vento soprava. A pele era ainda mais branca, da cor do leite, e pareceu a Arya que seus olhos eram vermelhos, embora fosse difícil ter certeza do meio dos arbustos.

- Os velhos deuses movimentam-se e não querem me deixar dormir - ouviu a mulher dizer. - Sonhei ver uma sombra com um coração em chamas matando um veado dourado, sim. Sonhei com um homem sem rosto, à espera numa ponte que oscilava e balançava. Em seu ombro estava empoleirado um corvo afogado, com algas penduradas nas asas. Sonhei com um rio rugindo e uma mulher que era um peixe. Estava à deriva, morta, com lágrimas vermelhas nas faces, mas quando seus olhos se abriram, oh, acordei aterrorizada. Tudo isso sonhei, e mais ainda. Têm presentes para mim, para me pagar pelos sonhos?

- Sonhos - resmungou Limo Manto Limão -, de que servem os sonhos? Mulheres-peixe e corvos afogados. Eu também tive um sonho na noite passada. Estava beijando uma moça de taberna que conheci. Vai me pagar por isso, velha?

- A moça está morta - sibilou a mulher. - Só os vermes podem beijá-la agora. - E depois disse a Tom Sete-Cordas: - Quero a minha canção, caso contrário quero vocês fora daqui.

E assim o cantor tocou para ela, uma canção muito suave e triste, mas Arya só ouviu fragmentos das palavras, embora a melodia lhe fosse vagamente familiar. Sansa iria reconhecê-la, aposto. A irmã conhecia todas as canções, e até sabia tocar um pouco, e cantava com toda a doçura. Tudo que eu consegui alguma vez fazer foi gritar as palavras.

Na manhã seguinte, não se via a pequena mulher branca em lugar algum. Enquanto selavam os cavalos, Arya perguntou a Tom Sete-Cordas se os filhos da floresta ainda habitavam o Coração Alto. O cantor soltou um risinho.

- Você a viu, foi?

- Era um fantasma?

- Os fantasmas reclamam de como as suas articulações rangem? Não, ela é só uma velha anã. Mas é estranha, e tem olhos diabólicos. E sabe coisas que não devia saber, e às vezes nos diz se gosta de nosso aspecto.

- Ela gostou do seu aspecto? - perguntou Arya de modo duvidoso.

O cantor riu.

- Pelo menos gostou do meu som. Mas obriga-me a cantar sempre a mesma maldita canção. Não é ruim, veja bem, mas conheço outras que são igualmente boas. - Balançou a cabeça. - O que importa é que agora temos o cheiro. Aposto que em breve irá ver Thoros e o senhor do relâmpago.

- Se são homens deles, por que se escondem de vocês?

Tom Sete-Cordas rolou os olhos ao ouvir aquilo, mas Harwin deu-lhe uma resposta.

- Eu não chamaria isso de esconder, senhora, mas é verdade, Lorde Beric desloca-se muito e raramente revela seus planos. Assim, ninguém pode traí-lo. A essa altura, nós, os homens que lhe prestamos juramento, devemos ser centenas, talvez milhares, mas não seria bom se andássemos todos atrás dele. Deixaríamos os campos nus para nos alimentarmos, ou seríamos massacrados numa batalha por alguma tropa maior. Da maneira como estamos espalhados em pequenos bandos, podemos atacar uma dúzia de locais ao mesmo tempo, e partir para qualquer outro antes que eles saibam o que aconteceu. E quando um de nós é pego e levado a interrogatório, bem, não lhes pode dizer onde encontrar Lorde Beric, façam eles o que fizerem. - Hesitou. - Sabe o que significa ser levado a interrogatório?

Arya assentiu com a cabeça.

- Chamavam isso de fazer cócegas. O Polliver, o Raff e os outros. - Contou-lhes tudo sobre a aldeia nas margens do Olho de Deus onde ela e Gendry tinham sido capturados e sobre as perguntas que Cócegas fazia."Há ouro escondido na aldeia?", era sempre como começava."Prata, pedras preciosas? Há comida? Onde está Lorde Beric? Quais dos habitantes da aldeia o ajudaram? Para onde foi? Quantos homens estavam com ele? Quantos cavaleiros? Quantos arqueiros? Quantos estavam montados? Como estavam armados? Quantos feridos? Para onde disse que foram?" Só de pensar naquilo conseguia ouvir de novo os gritos, e sentir o fedor de sangue, merda e carne queimada. - Ele fazia sempre as mesmas perguntas - disse solenemente aos fora da lei -, mas todos os dias mudava a forma de fazer cócegas.

- Nenhuma criança devia ser obrigada a aguentar isso - disse Harwin quando ela terminou. - Ouvimos dizer que a Montanha perdeu metade de seus homens no Moinho de Pedra. Pode ser que esse Cócegas agora esteja flutuando Ramo Vermelho abaixo, com peixes mordiscando sua cara. Se não, bem, é mais um crime pelo qual hão de responder. Ouvi sua senhoria dizer que esta guerra começou quando a Mão lhe ordenou que levasse a justiça do rei a Gregor Clegane, e é assim que pretende que termine. - Deu-lhe uma palmadinha de encorajamento no ombro. - É melhor que monte, senhora. É um longo dia de viagem até o Solar de Bolotas, mas quando terminarmos teremos um teto sobre nossa cabeça e sopa quente na barriga.

E foi um longo dia de viagem, mas ao anoitecer vadearam um riacho e chegaram ao Solar de Bolotas, com suas muralhas exteriores de pedra e a grande fortaleza de carvalho. Seu senhor andava longe, lutando na companhia do senhor dele, Lorde Vance, e deixara os portões do castelo fechados e trancados em sua ausência. Mas a senhora sua esposa era uma velha amiga de Tom Sete-Cordas, e Anguy dizia que um dia tinham sido amantes. Anguy viajava com frequência ao lado de Arya; de todos, era quem mais se aproximava de sua idade, salvo Gendry, e contava-lhe histórias engraçadas sobre a Marca de Dorne. Mas nunca a enganou. Ele não é meu amigo. Só fica por perto para me vigiar e certificar-se de que não voltarei a fugir. Bem, Arya também sabia vigiar. Syrio Forel ensinara-lhe a fazer isso.

A Senhora Smallwood deu as boas-vindas aos fora da lei com bastante gentileza, embora lhes tenha dado um sermão por arrastarem uma garotinha pela guerra. Ficou mais irada ainda quando Limo deixou escapar que Arya era bem-nascida.

- Quem vestiu a pobre criança com esses farrapos dos Bolton? - exigiu saber. - Esse símbolo... há muitos homens que a enforcariam em meio segundo por usar um homem esfolado no peito. - Arya foi prontamente levada para cima, forçada a entrar numa banheira, e mergulhada em água escaldante. As aias da Senhora Smallwood esfregaram-na com tanta força que Arya se sentiu como se elas a estivessem esfolando. Até derramaram uma coisa qualquer com um fedor adocicado de flores.

E depois, insistiram para que se vestisse com coisas de menina, meias marrons de lã, uma combinação leve de linho e, por cima disso, um vestido verde-claro com bolotas bordadas em fio castanho por todo o corpete, e mais bolotas ao longo da bainha da saia.

- Minha tia-avó é septã num convento em Vilavelha - disse a Senhora Smallwood enquanto as mulheres atavam o vestido ao longo das costas de Arya. - Mandei minha filha para lá quando a guerra começou. Quando voltar, certamente já estará grande demais para usar essas coisas. Gosta de dançar, filha? A minha Carellen é uma ótima dançarina. Também canta lindamente. O que é que você gosta de fazer?

Arya arrastou os pés nas esteiras.

- Trabalhos de agulha.

- São muito relaxantes, não são?

- Bem - disse Arya -, da maneira como eu os faço, não.

- Não? Sempre os achei relaxantes. Os deuses oferecem a cada uma de nós pequenos dons e talentos, e é sua intenção que os usemos, diz sempre a minha tia. Qualquer ato pode ser uma prece, se for desempenhado tão bem quanto formos capazes. Não é um pensamento adorável? Lembre-se dele da próxima vez que trabalhar com a agulha. Trabalha todos os dias?

- Trabalhava até perder a Agulha. A nova não é tão boa.

- Em tempos como estes, todos temos de nos arranjar o melhor possível. - A Senhora Smallwood ajeitou o corpete do vestido. - Agora já parece uma jovem senhora como deve ser.

Não sou uma senhora, Arya quis lhe dizer, sou uma loba.

- Não sei quem você é, filha - disse a mulher -, e talvez ainda bem que não saiba. Alguém importante, temo. - Alisou o colarinho de Arya. - Em tempos como estes, é melhor ser insignificante. Bem que gostaria de poder ficar com você aqui. Mas não seria seguro. Tenho muralhas, mas homens insuficientes para defendê-las. - Suspirou.

O jantar estava sendo servido no salão quando Arya entrou, toda lavada, penteada e vestida. Gendry deu uma olhada e riu tanto que o vinho saiu por seu nariz, até que Harwin lhe deu uma forte palmada na orelha. A refeição foi simples, mas nutritiva; carneiro e cogumelos, pão escuro, purê de ervilhas e maçãs cozidas com queijo amarelo. Depois da refeição e de os criados terem sido mandados embora, Barba-Verde baixou a voz para perguntar se sua senhoria teria notícias do senhor do relâmpago.

- Notícias? - ela sorriu. - Estiveram aqui não faz nem quinze dias. Eles e mais uma dúzia, pastoreando ovelhas. Quase não acreditei nos meus olhos. Thoros deu-me três em agradecimento. Comemos uma esta noite.

- Thoros pastoreando ovelhas? - Anguy soltou uma gargalhada.

- Admito que foi uma estranha visão, mas Thoros afirmou que, sendo sacerdote, sabia como cuidar de um rebanho.

- Sim, e como tosquiá-lo também - gracejou Limo Manto Limão.

- Alguém podia fazer disso uma canção, e das boas. - Tom fez vibrar uma corda em sua harpa.

A Senhora Smallwood lançou-lhe um olhar fulminante.

- Talvez alguém que não rime bombom com Dondarrion. Ou que não toque "Oh, deite minha doce menina na relva" para todas as amas de leite do condado, deixando duas delas com grandes barrigas.

- Foi "Deixe-me beber a sua beleza" - disse defensivamente Tom - e as amas de leite sempre ficam felizes por ouvi-la. Tal como uma certa senhora de elevado nascimento de que eu bem me lembro. Toco para agradar.

As narinas dela dilataram-se.

- As terras fluviais estão cheias de donzelas a quem agradou, todas elas bebendo chá de tanásia. Seria de se imaginar que um homem com a sua idade já soubesse como não derramar a semente em suas barrigas. Daqui a pouco, os homens vão chamá-lo de Tom Sete-Filhos.

- Acontece - disse Tom - que já passei de sete há muitos anos. E que belos rapazes são, com vozes belas como a do rouxinol. - Era claro que o assunto não lhe interessava.

- Sua senhoria disse para onde se dirigia, senhora? - perguntou Harwin.

- Lorde Beric nunca divulga seus planos, mas reina a fome perto do Septo de Pedra e do Bosque de Três Dinheiros. Eu iria procurá-lo aí. - Bebeu um gole de vinho. - É melhor que saiba que também tive visitantes menos agradáveis. Uma matilha de lobos veio uivar em volta de meus portões, achando que eu poderia ter aqui o Jaime Lannister.

Tom parou de dedilhar a harpa.

- Então é verdade? O Regicida anda de novo à solta?

A Senhora Smallwood deu-lhe um olhar de escárnio.

- Não me parece que andariam à caça dele se estivesse acorrentado por baixo de Correrrio.

- O que foi que a senhora lhes disse? - perguntou Jack Sortudo.

- Ora, que Sor Jaime estava nu na minha cama, mas que o tinha deixado exausto demais para descer. Um deles teve o desplante de me chamar de mentirosa, portanto pusemo-los para andar com uma meia dúzia de dardos. Acho que seguiram para Volta de Fundonegro.

Arya agitou-se impacientemente no banco.

- Que nortenhos eram esses que vieram à procura do Regicida?

A Senhora Smallwood pareceu surpreendida por ela intervir.

- Não me disseram os nomes, filha, mas vinham vestidos de preto, com um sol branco no peito.

Um sol branco sobre negro era o símbolo de Lorde Karstark, pensou Arya. Aqueles eram homens de Robb. Perguntou a si mesma se ainda andariam por perto. Se conseguisse escapulir dos fora da lei e encontrá-los, talvez a levassem à mãe em Correrrio...

- Disseram como foi que o Lannister conseguiu escapar? - perguntou Limo.

- Disseram - disse a Senhora Smallwood. - Não que eu acredite numa palavra sequer. Afirmaram que a Senhora Catelyn o libertou.

Aquilo surpreendeu tanto Tom que ele estourou uma corda.

- Até parece - disse ele. - Isso é uma loucura.

Não é verdade, pensou Arya. Não pode ser verdade.

- Pensei o mesmo - disse a Senhora Smallwood.

Foi então que Harwyn se lembrou de Arya.

- Esta conversa não é para os seus ouvidos, senhora.

- Não, eu quero ouvir.

Os fora da lei mostraram-se inflexíveis.

- Vá embora, esquilinho magricela - disse Barba-Verde. - Seja uma boa senhorinha e vá brincar no pátio enquanto nós conversamos.

Arya saiu a passos largos, zangada, e teria batido a porta se não fosse tão pesada. A escuridão havia caído sobre o Solar de Bolotas. Algumas tochas ardiam ao longo das muralhas, mas era tudo. Os portões do pequeno castelo encontravam-se fechados e trancados. Sabia que prometera a Harwin que não tentaria fugir novamente, mas isso tinha sido antes de começarem a contar mentiras sobre sua mãe.

- Arya? - Gendry tinha seguido a menina para fora. - A Senhora Smallwood disse que havia uma forja. Quer ir dar uma olhada?

- Se quiser. - Não tinha mais nada para fazer.

- Esse Thoros - disse Gendry enquanto passavam pelos canis - é o mesmo Thoros que vivia no castelo em Porto Real? Um sacerdote vermelho, gordo, com a cabeça raspada?

- Acho que sim. - Que se lembrasse, Arya nunca tinha falado com Thoros em Porto Real, mas sabia quem ele era. Ele e Jalabhar Xho tinham sido as personagens mais coloridas na corte de Robert, e Thoros era também um grande amigo do rei.

- Ele não vai se lembrar de mim, mas costumava vir à nossa forja. - A dos Smallwood já não era usada havia algum tempo, embora o ferreiro tivesse pendurado as ferramentas ordenadamente na parede. Gendry acendeu uma vela e apoiou-a na bigorna enquanto pegava um par de tenazes. - Meu mestre o repreendia sempre por causa das espadas em chamas. Não eram modos de tratar bom aço, dizia ele, mas esse Thoros nunca usava bom aço. Limitava-se a mergulhar uma espada barata qualquer em fogovivo e incendiava-a. Era só um truque de alquimista, dizia meu mestre, mas assustava os cavalos e alguns dos cavaleiros mais verdes.

Arya contraiu a testa, tentando recordar se o pai alguma vez falara em Thoros.

- Ele não é muito sacerdotal, não é?

- Não - admitiu Gendry. - Meistre Mott dizia que Thoros até conseguia beber mais do que o Rei Robert. Eram farinha do mesmo saco, disse-me ele, ambos glutões e bêbados.

- Não devia chamar o rei de bêbado. - O Rei Robert talvez costumasse beber muito, mas fora amigo do pai de Arya.

- Estava falando de Thoros. - Gendry estendeu as tenazes como que para agarrar o rosto dela, mas Arya afastou-as com uma pancada. - Ele gostava de banquetes e torneios, por isso é que o Rei Robert era tão amigo dele. E era um homem de coragem. Quando as muralhas de Pyke ruíram, foi o primeiro a atravessar a brecha. Lutou com uma de suas espadas flamejantes, incendiando homens de ferro a cada golpe.

- Gostaria de ter uma espada flamejante. - Arya conseguia se lembrar de montes de gente em que gostaria de atear fogo.

- É só um truque, já lhe disse. O fogovivo estraga o aço. Meu mestre vendia a Thoros uma espada nova depois de cada torneio. E tinham sempre uma discussão sobre o preço. - Gendry voltou a pendurar as tenazes e pegou o martelo pesado. - Mestre Mott dizia que era hora de eu fazer a minha primeira espada longa. Deu-me um belo pedaço de aço, e eu sabia exatamente que forma queria dar à lâmina. Mas o Yoren veio e levou-me para a Patrulha da Noite.

- Ainda pode fazer espadas, se quiser - disse Arya. - Pode fazê-las para o meu irmão Robb, quando chegarmos a Correrrio.

- Correrrio. - Gendry apoiou o martelo e olhou-a. - Você agora parece diferente. Como uma menina de verdade.

- Pareço um carvalho, com todas estas bolotas estúpidas.

- Mas bonito. Um carvalho bonito. - Aproximou-se um passo e farejou-a. - Até cheira bem, para variar.

- Você, não. Você fede. - Arya empurrou-o contra a bigorna e tentou fugir, mas Gendry segurou-a pelo braço. Ela enfiou um pé entre as suas pernas e passou-lhe uma rasteira, mas ele puxou-a ao cair, e rolaram pelo chão da forja. Ele era muito forte, mas ela era mais rápida. Todas as vezes que ele tentava dominá-la, ela libertava-se com uma contorção e dava um murro nele. Gendry limitava-se a rir dos golpes, e isso deixava-a furiosa. Por fim, ele pegou ambos os pulsos dela com uma mão e começou a fazer-lhe cócegas com a outra, e Arya enfiou o joelho entre as pernas dele e libertou-se. Ambos estavam cobertos de sujeira, e o estúpido vestido de bolotas tinha uma manga rasgada.

- Aposto que agora já não estou tão bonita - gritou ela.

Tom estava cantando quando voltaram ao salão.

Meu colchão de penas é grande e suave, e é lá que a vou deitar

Vou vestir-la toda de seda amarela, e na testa uma coroa pousar.

Pois será o meu amor, senhora, e eu seu senhor serei.

Sempre a manterei quente e segura, e com espada a defenderei.

Harwin deu um olhar de relance para eles e estourou em gargalhadas, e Anguy deu um de seus estúpidos sorrisos sardentos e disse:

- Temos certeza de que esta é uma senhora bem-nascida?

Limo Manto Limão deu um cascudo na cabeça de Gendry.

- Se quer lutar, lute comigo! Ela é uma menina, e tem metade de sua idade! Mantenha essas mãos longe dela, ouviu?

- Fui eu que comecei - disse Arya. - Gendry estava só conversando.

- Deixe o moço, Limo - disse Harwin. - Foi mesmo ela quem começou, não duvido. Era a mesma coisa em Winterfell.

Tom piscou o olho para ela e cantou:

E como sorriu e como ela riu, a donzela do pinheiro.

Fugiu num rodopio e disse-lhe, não quero o seu braseiro.

Usarei um vestido de folhas douradas, a trança com ervas atada,

Mas você pode ser meu amor da floresta,

e eu a sua namorada.

- Não tenho trajes de folhas - disse a Senhora Smallwood, com um pequeno sorriso simpático -, mas Carellen deixou aqui mais alguns vestidos que podem servir. Venha, filha, vamos lá em cima ver o que encontramos.

Foi ainda pior do que antes; a Senhora Smallwood insistiu que Arya tomasse outro banho, e também que cortasse e escovasse os cabelos; o vestido em que a enfiou daquela vez era de uma cor parecida com lilás, e decorado com pequenas perolazinhas. A única coisa boa era ser tão delicado que ninguém podia esperar que Arya montasse a cavalo com ele. Por isso, na manhã seguinte, enquanto quebravam o jejum, a Senhora Smallwood deu-lhe calções, cinto e túnica para vestir, e um gibão marrom de pele de veado com rebites de ferro.

- Eram coisas de meu filho - disse ela. - Morreu com sete anos.

- Lamento, senhora. - Arya subitamente sentiu-se envergonhada e com pena dela. - Também lamento ter rasgado o vestido das bolotas. Era bonito.

- Sim, filha. E você também é. Seja corajosa.

Daenerys

No centro da Praça do Orgulho havia uma fonte de tijolo vermelho cujas águas cheiravam a enxofre, e no meio da fonte erguia-se uma monstruosa harpia feita de bronze martelado. Empinava-se até seis metros de altura. Tinha rosto de mulher, com cabelos dourados, olhos de marfim e dentes pontiagudos também de marfim. A água jorrava amarela de seus seios pesados. Mas, no lugar dos braços, possuía as asas de um morcego ou dragão; suas pernas eram as de uma águia, e atrás tinha a cauda enrolada e venenosa de um escorpião.

A harpia de Ghis, pensou Dany. A Velha Ghis caíra havia cinco mil anos, se bem se lembrava; suas legiões foram despedaçadas pelo poderio da jovem Valíria; suas muralhas de tijolo, arrasadas; suas ruas e seus edifícios, transformados em cinzas e brasas por fogo de dragão; os campos, semeados com sal, enxofre e crânios. Os deuses de Ghis estavam mortos, e seu povo também; aqueles astapori eram mestiços, dizia Sor Jorah. Até a língua ghiscari estava quase completamente esquecida; as cidades escravagistas falavam o Alto Valiriano de seus conquistadores, ou aquilo em que o tinham transformado.

Mas o símbolo do Velho Império ainda resistia ali, embora aquele monstro de bronze tivesse uma pesada corrente pendurada das garras, com uma algema aberta em cada extremidade. A harpia de Ghis tinha um relâmpago nas garras. Esta é a harpia de Astapor.

- Diga à prostituta westerosi para baixar os olhos - resmungou o senhor de escravos Kraznys mo Nakloz para a jovem escrava que falava por ele. - Eu negocio carne, não metal. O bronze não está à venda. Diga-lhe para olhar para os soldados. Até os fracos olhos púrpuras de uma selvagem do poente são certamente capazes de ver como as minhas criaturas são magníficas.

O Alto Valiriano de Kraznys era tortuoso e carregado com o rosnado característico de Ghis e temperado aqui e ali com palavras de calão de feitor. Dany compreendia-o bastante bem, mas sorriu e olhou sem expressão para a escrava, como quem se interroga sobre o que ele teria dito.

- O Bom Mestre Kraznys pergunta, não são magníficos? - a garota falava bem o Idioma Comum, para alguém que nunca estivera em Westeros. Com não mais de dez anos, tinha o rosto redondo e achatado, pele morena e olhos dourados de Naath, Chamavam seu povo de Povo Pacífico. Todos eram unânimes em afirmar que davam os melhores escravos.

- Podem ser adequados para as minhas necessidades - respondeu Dany. Tinha sido sugestão de Sor Jorah que ela falasse apenas em dothraki e no Idioma Comum enquanto estivesse em Astapor. O meu urso é mais esperto do que parece. - Fale-me de seu treinamento.

- Eles agradam à mulher westerosi, mas ela não os elogia, para manter o preço baixo - disse a tradutora ao seu dono. - Quer saber como foram treinados.

Kraznys mo Nakloz inclinou a cabeça. Aquele senhor de escravos cheirava como se tivesse tomado banho em framboesas, e sua protuberante barba vermelha e negra brilhava de óleo. Os seios dele são maiores do que os meus, refletiu Dany. Via-os através da seda verde-marinho do tokar debruado de ouro que ele trazia enrolado em volta do corpo e por cima de um ombro. A mão esquerda mantinha o tokar no lugar ao caminhar, enquanto a direita empunhava um curto chicote de couro.

- Todos os porcos westerosi são assim tão ignorantes? - protestou. - O mundo inteiro sabe que os Imaculados são mestres de lança, escudo e espada curta. - Dirigiu a Dany um largo sorriso. - Diga-lhe o que quer saber, escrava, e depressa. O dia está quente.

Isso, pelo menos, não é mentira nenhuma. Um par de jovens escravas encontrava-se atrás deles, segurando por cima de suas cabeças um toldo de seda riscado, mas, mesmo à sombra, Dany sentia-se um pouco tonta, e Kraznys transpirava abundantemente. A Praça do Orgulho cozia ao sol desde o nascer do dia. Dany conseguia sentir o calor dos tijolos vermelhos sob os pés mesmo através do solado de suas sandálias. Ondas de calor erguiam-se desses tijolos, estremecendo o ar e fazendo com que as pirâmides de degraus de Astapor que se erguiam ao redor da praça quase parecessem fazer parte de um sonho.

Se os Imaculados sentiam o calor, não mostravam qualquer sinal disso. Eles mesmos podiam ser feitos de tijolo, julgando pelo modo como estão ali. Um milhar tinha sido trazido das casernas para a sua inspeção; alinhados em dez formações de cem homens perante a fonte e a sua grande harpia de bronze, estavam rigidamente em sentido, com os olhos de pedra fixos à frente. Nada vestiam além de panos de linho branco atados na altura dos rins e elmos cónicos de bronze rematados por um espigão afiado com trinta centímetros de altura. Kraznys ordenara-lhes que apoiassem as lanças e os escudos no chão e despissem os cintos de espadas e as túnicas acolchoadas, para que a Rainha de Westeros pudesse inspecionar melhor a rigidez esguia de seus corpos.

- São escolhidos ainda jovens, pelo tamanho, rapidez e força - disse-lhe a escrava. - Iniciam o treinamento aos cinco anos. Treinam todos os dias, da alvorada ao pôr do sol, até dominarem a espada curta, o escudo e as três lanças. O treino é muito rigoroso, Vossa Graça. Só um garoto em três sobrevive a ele. Isso todos sabem. Entre os Imaculados diz-se que no dia em que ganham seu capacete de espigão o pior ficou para trás, pois nenhum dever que for atribuído a eles poderá ser tão duro quanto o treinamento.

- Kraznys mo Nakloz, supostamente, não falava o Idioma Comum, mas balançava a cabeça enquanto escutava e de vez em quando empurrava a escrava com a ponta do chicote.

- Diga-lhe que aqueles estão ali em pé há um dia e uma noite, sem comida nem água. Diga-lhe que ficarão ali até caírem se eu lhes ordenar que o façam, e que quando novecentos e noventa e nove tiverem caído e morrido sobre os tijolos, o último ainda estará ali e não se moverá até que a própria morte o reclame. É assim a coragem deles. Diga-lhe isso.

- Eu chamo isso de loucura, não de coragem - disse Arstan Barba-Branca quando a solene pequena escriba terminou. Bateu com a ponta de seu bastão de madeira nos tijolos, tap tap, como que para afirmar seu descontentamento. O velho não quisera viajar até Astapor; tampouco era favorável à compra daquele exército de escravos. Uma rainha devia escutar todos os lados antes de tomar uma decisão. Era por isso que Dany o havia trazido consigo até a Praça do Orgulho, não para mantê-la em segurança. Seus companheiros de sangue fariam isso suficientemente bem. Deixara Sor Jorah Mormont a bordo do Balerion para proteger seu povo e seus dragões. Muito a contragosto, havia prendido os dragões no porão. Deixá-los voar livremente sobre a cidade era perigoso demais; o mundo estava repleto de homens que os matariam de bom grado por nenhum outro motivo além de poder se autodenominar matador de dragões.

- O que disse o velho fedorento? - perguntou o feitor à tradutora. Quando ela lhe disse, ele sorriu e falou: - Informe os selvagens de que chamamos isso de obediência. Outros podem ser mais fortes, mais rápidos ou maiores do que os Imaculados. Alguns, poucos, podem até igualar a sua perícia com a espada, a lança e o escudo. Mas em nenhum lugar entre os mares encontrarão alguém mais obediente.

- As ovelhas são obedientes - disse Arstan quando as palavras foram traduzidas. Ele também sabia algum valiriano, embora não tanto quanto Dany, mas, assim como ela, fingia ignorância.

Kraznys mo Nakloz mostrou seus grandes dentes brancos quando aquilo lhe foi transmitido.

- Uma palavra minha e aquelas ovelhas derramam as velhas tripas fedorentas dele nos tijolos - disse ele -, mas não lhe diga isso. Diga-lhes que estas criaturas são mais cães do que ovelhas. Eles comem cão ou cavalo lá nos Sete Reinos?

- Preferem porcos e vacas, excelência.

- Carne de vaca. Pfuá. Comida para selvagens que não se lavam.

Ignorando-os, Dany percorreu lentamente a fileira de soldados escravos. As mulheres

seguiram-na de perto com o toldo de seda, para mantê-la à sombra, mas os mil homens à sua frente não desfrutavam de tal proteção. Mais da metade possuía pele acobreada e olhos amendoados dos dothraki e dos lhazarenos, mas Dany também viu nas fileiras homens das Cidades Livres, bem como qarthenos de pele clara, ilhéus de verão com rosto de ébano, e outros cuja origem não era capaz de adivinhar, E alguns tinham pele do mesmo tom de âmbar de Kraznys mo Nakloz, e os cabelos rijos vermelhos e negros que identificavam o antigo povo de Ghis, aqueles que chamavam a si mesmos de filhos da harpia. Até vendem os seus. Não a devia ter surpreendido. Os dothraki faziam o mesmo, quando khalasar se encontrava com khalasar no mar de erva.

Alguns dos soldados eram altos e outros, baixos. Dany calculou que as idades oscilariam entre os catorze e os vinte anos. Os rostos eram lisos, e os olhos todos iguais, fossem negros, castanhos, azuis, cinza ou ambarinos. São como um único homem, pensou, até se lembrar de que não eram homens coisa nenhuma. Os Imaculados eram eunucos, todos eles.

- Por que os cortam? - perguntou a Kraznys através da escrava. - Sempre ouvi dizer que homens inteiros são mais fortes do que eunucos.

- Um eunuco cortado ainda novo nunca terá a força bruta de um de seus cavaleiros westerosi, é verdade - disse Kraznys mo Nakloz quando a pergunta lhe foi colocada. - Um touro também é forte, mas touros morrem todos os dias nas arenas de luta. Uma menina de nove anos matou um há três dias na Arena de Jothiel. Os Imaculados têm algo melhor do que a força, diga-lhe. Têm disciplina. Lutamos à maneira do Velho Império, sim. São as legiões marchantes da Velha Ghis regressadas, absolutamente obedientes, absolutamente leais, e totalmente desprovidas de medo.

Dany escutou pacientemente a tradução.

- Até os homens mais corajosos temem a morte e a mutilação - disse Arstan quando a garota terminou.

Kraznys voltou a sorrir quando ouviu aquilo.

- Diga ao velho que ele cheira a mijo e precisa de uma bengala para mantê-lo em pé.

- Digo mesmo, excelência?

Ele cutucou-a com o chicote.

- Não, não diz mesmo, é uma menina ou uma cabra para fazer uma pergunta tão imbecil? Diga que os Imaculados não são homens. Diga que a morte não significa nada para eles, e a mutilação menos do que nada. - Parou perante um homem atarracado com traços de Lhazar e ergueu violentamente o chicote, deixando uma linha de sangue em sua face acobreada. O eunuco piscou, e ali ficou, sangrando. - Quer outra?

- Se sua excelência desejar.

Foi difícil fingir não entender. Dany pousou uma mão no braço de Kraznys antes de ele ter tempo de voltar a erguer o chicote.

- Diga ao Bom Mestre que eu vejo como seus Imaculados são fortes e suportam corajosamente a dor.

Kraznys soltou um risinho quando ouviu as palavras dela em valiriano.

- Diga a essa prostituta ignorante do ocidente que coragem não tem nada a ver com o assunto.

- O Bom Mestre diz que aquilo não foi coragem, Vossa Graça.

- Diga-lhe para abrir esses olhos de cadela.

- Ele pede-lhe que observe com atenção, Vossa Graça.

Kraznys aproximou-se do eunuco que se seguia na fileira, um jovem muito alto com os olhos azuis e os cabelos louros de Lys.

- A sua espada - disse. O eunuco ajoelhou, desembainhou a arma e ofereceu-a, com o cabo para a frente. Era uma espada curta, feita mais para trespassar do que para cortar, mas o gume parecia afiado como uma navalha. - Fique em pé - ordenou Kraznys.

- Sua excelência. - O eunuco levantou-se, e Kraznys mo Nakloz deslizou lentamente a espada por seu tronco acima, deixando uma fina linha vermelha na barriga e entre as costelas. Depois espetou a ponta da espada por baixo de um grande mamilo cor-de-rosa e começou a manejá-la para trás e para a frente.

- O que ele está fazendo? - perguntou Dany à garota, enquanto o sangue escorria pelo peito do homem.

- Diga à vaca que pare de mugir - disse Kraznys sem esperar pela tradução. - Isso não lhe fará grande mal. Os homens não precisam dos mamilos, e os eunucos menos ainda. - O mamilo pendeu, preso por um fio de pele. Ele o cortou e fez com que rolasse pelos tijolos, deixando em seu lugar um olho vermelho que chorava sangue copiosamente. O eunuco não se mexeu, até que Kraznys entregou-lhe a espada de volta, com o cabo para a frente. - Tome, está dispensado.

- Este está feliz por tê-lo servido.

Kraznys virou-se para Dany.

- Eles não sentem dor, está vendo?

- Como isso é possível? - ela quis saber através da escriba.

- O vinho da coragem - foi a resposta que ele lhe deu. - Não é um vinho de verdade, mas sim uma bebida feita a partir de beladona, larvas de mosca de sangue, raízes de lótus negra e muitas coisas secretas. Bebem-no em todas as refeições desde o dia de seu corte, e a cada ano que passa sentem cada vez menos. Isso torna-os destemidos em batalha. E também não podem ser torturados. Diga à selvagem que seus segredos estão seguros com os Imaculados. Ela pode colocá-los de guarda em seus conselhos e até em seu quarto, sem nunca se preocupar com o que eles possam ouvir.

"Em Yunkai e Meeren, os eunucos são frequentemente gerados através da remoção dos testículos de um rapaz, deixando o pênis. Uma criatura dessas é infértil, mas frequentemente ainda capaz de ereção. Apenas problemas podem advir de tal prática. Nós removemos também o pênis, sem deixar nada. Os Imaculados são as criaturas mais puras da face da Terra. "Ofereceu a Dany e Arstan outro largo sorriso branco." Ouvi dizer que nos Reinos do Poente os homens fazem votos solenes de se manterem castos e não gerar filhos, mas viver apenas para o seu dever. É verdade?"

- É - disse Arstan, quando a pergunta foi colocada. - Há muitas ordens dessas. Os meistres da Cidadela, os septões e as septãs que servem os Sete, as irmãs silenciosas dos mortos, a Guarda Real e a Patrulha da Noite...

- Pobres coitados - rosnou o senhor de escravos depois da tradução. - Os homens não deveriam viver assim. Seus dias são um tormento de tentação, qualquer tolo pode ver isso, e não há dúvida de que a maioria sucumbe aos seus instintos mais primários. Nossos Imaculados não são assim. Estão casados com suas espadas de uma maneira que seus Irmãos Juramentados não podem ter esperanças de igualar. Nenhuma mulher poderá alguma vez tentá-los, e nenhum homem também.

A garota transmitiu a essência do discurso, com mais delicadeza.

- Há outras maneiras de tentar os homens, além da carne - retrucou Arstan Barba-Branca depois de ela terminar.

- Os homens, sim, mas os Imaculados, não. O saque não lhes interessa mais do que a violação. Nada possuem além de suas armas. Nem sequer permitimos que tenham nomes.

- Não têm nomes? - Dany franziu a testa para a pequena escriba. - Poderá ser isso que o Bom Mestre disse? Eles não têm nomes?

- É verdade, Vossa Graça.

Kraznys parou na frente de um ghiscari que podia ter sido um irmão seu mais alto e em melhor forma e estalou o chicote num pequeno disco de bronze que ele tinha preso no cinto da espada, a seus pés.

- O nome dele está ali. Pergunte à rameira de Westeros se sabe ler glifos ghiscari. - Quando Dany admitiu que não sabia, o feitor virou-se para o Imaculado. - Como se chama? - quis saber.

- O nome deste é Pulga Vermelha, excelência.

A garota repetiu a conversa no Idioma Comum.

- É ontem, qual era?

- Rato Preto, reverência.

- No dia anterior?

- Pulga Marrom, reverência.

- E antes disso?

- Este não se lembra, reverência. Talvez Sapo Azul. Ou Verme Azul.

- Diga-lhe que todos os nomes deles são assim - ordenou Kraznys à garota. - Recordam-lhes de que, por conta própria, são bichos. Os discos com os nomes são atirados dentro de um barril vazio ao terminarem os deveres do dia, e todas as alvoradas são de lá sorteados.

- Mais loucuras - disse Arstan quando ouviu aquilo. - Como um homem pode se lembrar de um nome novo todos os dias?

- Os que não podem são excluídos no treino, com aqueles que não são capazes de correr o dia inteiro com a bagagem completa, escalar uma montanha no meio da noite, caminhar sobre brasas ou matar uma criança.

A boca de Dany certamente se contorceu ao ouvir aquilo. Ele terá visto, ou será tão cego quanto é cruel? Virou-se depressa, tentando manter uma máscara no rosto até ouvir a tradução. Foi só então que se permitiu dizer:

- De quem são as crianças que matam?

- Para conquistar seu capacete de espigão, um Imaculado deve ir aos mercados de escravos com um marco de prata, encontrar um recém-nascido qualquer e matá-lo diante dos olhos da mãe. Dessa maneira, certificamo-nos de que não resta neles qualquer fraqueza.

Dany sentiu-se prestes a desmaiar. O calor, tentou dizer a si própria.

- Arrancam um bebê dos braços da mãe, matam-no com ela assistindo e pagam por sua dor com uma moeda de prata?

Quando a tradução lhe chegou, Kraznys mo Nakloz soltou uma sonora gargalhada.

- Que idiota chorona e molenga esta aí é. Diga à puta de Westeros que o marco é para o dono da criança, não para a mãe. Os Imaculados não estão autorizados a roubar. - Bateu com o chicote na perna. - Diga-lhe que são poucos os que falham nesse teste. Os cães são mais difíceis para eles, na verdade. Damos um cachorro a cada garoto no dia em que é cortado. Ao fim do primeiro ano, ele deve estrangulá-lo. Todos os que não conseguem fazer isso são mortos e dados de comer aos cães sobreviventes. Achamos que isso serve como uma boa e forte lição.

Arstan Barba-Branca batucou com a ponta de seu bastão nos tijolos enquanto ouvia aquilo. Tap tap tap. Lenta e regularmente. Tap tap tap. Dany viu-o afastar os olhos, como se não conseguisse olhar mais para Kraznys.

- O Bom Mestre disse que esses eunucos não podem ser tentados com moedas ou carne - disse Dany à garota -, mas se algum inimigo meu lhes oferecesse a liberdade por me traírem...

- Eles iriam matá-lo imediatamente e trariam-lhe a cabeça, diga-lhe isso - respondeu o feitor. - Outros escravos podem roubar e guardar prata em segredo na esperança de comprar a liberdade, mas um Imaculado não a aceitaria se a eguazinha a oferecesse de presente. Não têm vida fora de seu dever. São soldados, e só.

- E de soldados que preciso - admitiu Dany.

- Diga-lhe que, nesse caso, fez bem em vir a Astapor. Pergunte-lhe qual é o tamanho do exército que deseja comprar.

- Quantos Imaculados tem para vender?

- Oito mil completamente treinados e disponíveis de imediato. Ela deve saber que só os vendemos em larga escala. Em milhares ou centenas. Antes os vendíamos em dezenas, para guardas domésticos, mas isso revelou-se um erro. Dez são poucos demais.

Misturam-se com os outros escravos, e até com homens livres, e esquecem-se de quem e do que são. - Kraznys esperou que aquilo fosse transmitido no Idioma Comum e depois prosseguiu. - Essa rainha pedinte precisa compreender que tais maravilhas não saem baratas. Em Yunkai e Meereen, espadachins escravos podem ser obtidos por menos do que o preço de suas espadas, mas os Imaculados são a melhor infantaria do mundo inteiro, e cada um deles representa muitos anos de treino. Diga-lhe que eles são como aço valiriano, dobrados uma e mais uma vez e martelados anos a fio, até ficarem mais fortes e resistentes do que qualquer metal da Terra.

- Eu conheço o aço valiriano - disse Dany. - Pergunte ao Bom Mestre se os Imaculados têm seus próprios oficiais.

- Precisa pôr seus oficiais à frente deles. Nós os treinamos para obedecer, não para pensar. Se é inteligência que ela quer, que compre escribas.

- E o equipamento?

- Espada, escudo, lança, sandálias e túnica acolchoada estão incluídos - disse Kraznys. - E os capacetes de espigão, com certeza. Eles usarão qualquer armadura que você queira, mas quem vai fornecê-la é você.

Dany não conseguia pensar em mais perguntas. Olhou para Arstan.

- Viveu longo tempo no mundo, Barba-Branca. Agora que já os viu, o que diz?

- Digo que não, Vossa Graça - o velho respondeu de imediato.

- Por quê? - perguntou ela. - Fale livremente. - Dany julgava saber o que ele diria, mas queria que a menina escrava o escutasse, para que Kraznys mo Nakloz ouvisse depois.

- Minha rainha - disse Arstan -, não há escravos nos Sete Reinos há milhares de anos. Tanto os velhos deuses como os novos consideram a escravidão uma abominação. Maligna. Se desembarcar em Westeros à frente de um exército de escravos, muitos bons homens irão se opor a você por nenhum outro motivo além desse. Causará grande dano à sua causa e à honra de sua Casa.

- E, no entanto, preciso ter algum exército - disse Dany. - O rapaz Joffrey não me dará o Trono de Ferro se eu pedir educadamente.

- Quando chegar o dia de içar os estandartes, metade de Westeros estará com a senhora - prometeu Barba-Branca. - Seu irmão Rhaegar ainda é lembrado com grande amor.

- E meu pai? - perguntou Dany.

O velho hesitou antes de dizer:

- O Rei Aerys também é recordado. Deu ao reino muitos anos de paz. Vossa Graça não tem necessidade de escravos. O Magíster Illyrio pode mantê-la a salvo enquanto seus dragões crescem e pode mandar enviados secretos para o outro lado do mar estreito em seu nome, para sondar os grandes senhores a respeito de sua causa.

- Esses mesmos grandes senhores que abandonaram o meu pai em favor do Regicida

e se curvaram a Robert, o Usurpador?

- Mesmo aqueles que dobraram os joelhos podem ansiar no seu íntimo pelo retorno dos dragões.

- Podem - disse Dany. Podem era uma palavra tão escorregadia! Em qualquer língua. Virou-se para Kraznys mo Nakloz e para sua pequena escrava. - Tenho de refletir cuidadosamente.

O negociante de escravos encolheu os ombros.

- Diga-lhe para refletir depressa. Há muitos outros compradores. Não há mais de três dias mostrei estes mesmos Imaculados a um rei corsário que espera comprar todos eles.

- O corsário só queria cem, excelência - Dany ouviu a pequena escrava dizer.

Ele cutucou-a com a ponta do chicote.

- Os corsários são todos mentirosos. Ele vai comprar todos. Diga-lhe isso, garota.

Dany sabia que levaria mais de cem, se chegasse a levar algum.

- Lembre ao Bom Mestre quem eu sou. Lembre-lhe de que sou Daenerys Nascida na Tormenta, Mãe de Dragões, a Não Queimada, legítima rainha dos Sete Reinos de Westeros. Meu sangue é o sangue de Aegon, o Conquistador, e da antiga Valíria antes dele.

Mas suas palavras não tocaram o rotundo e perfumado negociante de escravos, mesmo depois de transmitidas em sua feia língua.

- A antiga Ghis dominava um império quando os valirianos ainda andavam fedendo ovelhas - rosnou para a pobre pequena escriba - e nós somos os filhos da harpia. - Encolheu os ombros. - Tagarelar com mulheres é um desperdício. No leste ou no oeste são todas iguais, são incapazes de decidir até terem sido paparicadas, aduladas e empanturradas de docinhos. Bom, se é esse o meu destino, que seja. Diga à rameira que se quiser um guia para a nossa bela cidade, Kraznys mo Nakloz está a seu serviço... e também pode lhe prestar outros serviços, se for mais mulher do que parece.

- O Bom Mestre Kraznys terá todo o gosto em mostrar-lhe Astapor enquanto a senhora reflete, Vossa Graça - disse a tradutora.

- Dou-lhe geleia de miolos de cão, um belo e rico guisado de polvo vermelho e feto de cão para comer. - Passou a língua pelos lábios.

- Ele diz que aqui é possível provar muitos pratos deliciosos.

- Diga-lhe como as pirâmides são bonitas à noite - rosnou o negociante de escravos. - Diga-lhe que lamberei mel dos peitos dela, ou deixarei que lamba mel dos meus, se preferir.

- Astapor é muito bela ao pôr do sol, Vossa Graça - disse a pequena escrava. - Os Bons Mestres acendem lanternas de seda em todos os terraços, para que todas as pirâmides brilhem com luzes coloridas. Barcaças do prazer percorrem o Verme, cheias de música suave e acostando nas pequenas ilhas para oferecer comida, vinho e outras delícias.

- Pergunte se ela quer ver as nossas arenas de luta - acrescentou Kraznys. - A Arena de Douquor tem um bom espetáculo marcado para esta noite. Um urso e três garotinhos. Um menino será besuntado de mel, outro de sangue e outro de peixe podre, e ela pode apostar qual deles o urso comerá primeiro.

Tap tap tap, ouviu Dany. O rosto de Arstan Barba-Branca estava imóvel, mas seu bastão demonstrava a ira que sentia. Tap tap tap. Obrigou-se a sorrir.

- Tenho meu próprio urso na Balerion - disse à tradutora - e pode bem me comer se não voltar para junto dele.

- Está vendo - disse Kraznys quando as palavras de Dany foram traduzidas. - Não é a mulher que decide, é este homem para quem corre. Como sempre!

- Agradeça ao Bom Mestre por sua paciente gentileza - disse Dany - e diga-lhe que pensarei em tudo que aprendi aqui. - Ofereceu o braço a Arstan Barba-Branca, para que o velho escudeiro a levasse através da praça até a liteira. Aggo e Jhogo rodearam-nos, caminhando com o gingar de pernas arqueadas que todos os senhores dos cavalos adotavam quando eram forçados a desmontar e caminhar pela terra como simples mortais.

Dany subiu na sua liteira com a expressão carregada e fez sinal a Arstan para que subisse também. Um homem tão velho como ele não devia andar a pé num calor tão forte. Não fechou as cortinas quando se puseram em movimento. Com o sol castigando tão duramente aquela cidade de tijolos vermelhos, qualquer brisa perdida era algo a ser apreciado, mesmo se viesse acompanhada de um redemoinho de fina poeira vermelha. Além disso, tenho de ver.

Astapor era uma cidade estranha, mesmo aos olhos de alguém que tinha andado pela Casa de Poeira e se banhado no Ventre do Mundo à sombra da Mãe das Montanhas. Todas as ruas eram feitas dos mesmos tijolos vermelhos que pavimentavam a praça. E o mesmo material construíra as pirâmides de degraus, as profundamente escavadas arenas de luta - com suas arquibancadas em forma de anéis descendentes as fontes sulfurosas e as sombrias adegas, e as antigas muralhas que os cercavam. Tantos tijolos, pensou, e tão velhos e desgastados. A fina poeira que soltavam encontrava-se por toda a parte, dançando pelas valetas a cada sopro de vento. Pouco admirava que tantas mulheres de Astapor velassem o rosto, a poeira de tijolo pinicava mais nos olhos do que a areia.

- Abram alas! - gritava Jhogo, do cavalo à frente da liteira. - Abram alas para a Mãe de Dragões! - Mas quando desenrolou o grande chicote de cabo de prata que ela lhe dera e o fez estalar no ar, Dany debruçou-se para fora e disse-lhe que não.

- Neste lugar, não, sangue do meu sangue - disse, na língua dele. - Estes tijolos ouviram o som de chicotes mais do que deveriam.

As ruas tinham estado praticamente desertas quando saíram do porto naquela manhã, e não pareciam muito mais povoadas agora. Um elefante passou pesadamente por eles, com uma liteira gradeada sobre o dorso. Um garoto nu com a pele descascando estava sentado numa valeta de tijolo seca, com o dedo enfiado no nariz e olhando, carrancudo, para um grupo de formigas que caminhavam pela rua. Ergueu a cabeça ao ouvir o ruído de cascos e ficou olhando de boca aberta quando uma coluna de guardas a cavalo passou por ele a trote, numa nuvem de poeira vermelha e gargalhadas quebradiças. Os discos de cobre cosidos aos seus mantos de seda amarela cintilavam como outros tantos sóis, mas suas túnicas eram de linho bordado, e abaixo da cintura usavam sandálias e saias de linho plissadas. De cabeça nua, cada homem tinha penteado, untado e retorcido seus rígidos cabelos vermelhos e negros, dando-lhes uma forma fantástica qualquer, cornos, asas e lâminas, e até mãos dadas, de modo que pareciam uma trupe de demônios fugida do sétimo inferno. O garoto nu observou-os por um tempo, tal como Dany, mas eles rapidamente desapareceram, e o menino voltou às suas formigas, com um dedo no nariz.

Esta é uma cidade antiga, refletiu, mas não tão populosa quanto foi no seu apogeu, nem de perto tão povoada quanto Qarth, Pentos ou Lys.

A liteira parou subitamente num cruzamento, para permitir que um comboio de escravos passasse à sua frente, arrastando os pés, incentivado a avançar pelo estalar do chicote de um capataz. Aqueles não eram Imaculados, reparou Dany, mas homens de um tipo mais comum, com pele parda clara e cabelos castanhos. Havia mulheres entre eles, mas crianças não. Estavam todos nus. Dois astapori vinham atrás dos escravos, montados em burros brancos, um homem com um tokar de seda vermelha e uma mulher com véu, vestida de fino linho azul, decorado com lascas de lápis-lazúli. Em seus cabelos vermelhos e negros trazia um pente de marfim. O homem ria enquanto lhe segredava alguma coisa, sem prestar mais atenção em Dany do que em seus escravos ou no capataz com o chicote retorcido de cinco pontas, um dothraki grande e atarracado que tinha a harpia e as correntes orgulhosamente tatuadas em seu peito musculoso.

- Tijolos e sangue construíram Astapor - murmurou o Barba-Branca ao seu lado - e tijolos e sangue construíram o seu povo.

- O que é isso? - perguntou-lhe Dany, curiosa.

- Uns versos antigos que um meistre me ensinou, quando eu era garoto. Nunca soube como eram verdadeiros. Os tijolos de Astapor são vermelhos do sangue dos escravos que os fizeram.

- Consigo acreditar nisso perfeitamente - disse Dany.

- Então abandone este lugar antes que seu coração também se transforme em um tijolo. Zarpe hoje mesmo, na maré da noite.

Bem que gostaria de poder fazê-lo, pensou Dany.

- Sor Jorah diz que quando eu deixar Astapor, deverá ser com um exército.

- O próprio Sor Jorah foi um comerciante de escravos, Vossa Graça - recordou-lhe o velho. - Há mercenários em Pentos, Myr e Tyrosh que você pode contratar. Um homem que mata por dinheiro não tem honra, mas pelo menos não é escravo. Encontre lá o seu exército, suplico à senhora.

- Meu irmão visitou Pentos, Myr, Bravos, quase todas as Cidades Livres. Os magísteres e arcontes alimentaram-no com vinho e promessas, mas mataram sua alma de fome. Um homem não pode jantar da tigela de pedinte a vida toda e continuar a ser homem. Eu experimentei isso em Qarth e foi o bastante. Não voltarei a Pentos de tigela na mão.

- Antes chegar como pedinte do que como senhora de escravos - disse Arstan.

- Fala alguém que não foi nenhum dos dois. - As narinas de Dany dilataram-se. - Sabe o que é ser vendido, escudeiro? Eu sei. Meu irmão vendeu-me a Khal Drogo em troca da promessa de uma coroa dourada. Bem, Drogo coroou-o de ouro, embora não da maneira que ele havia desejado, e eu... o meu sol e estrelas fez de mim uma rainha, mas se tivesse sido um homem diferente, as coisas poderiam ter acontecido de uma forma totalmente distinta. Acha que me esqueci de como é ter medo?

Barba-Branca inclinou a cabeça.

- Vossa Graça, não pretendi ofendê-la.

- Só as mentiras me ofendem, nunca os conselhos honestos. - Dany deu uma palmadinha na mão manchada de Arstan para sossegá-lo. - Tenho um gênio de dragão, é só isso. Não pode permitir que ele o atemorize.

- Tentarei me lembrar disso - Barba-Branca sorriu.

Ele tem rosto gentil e uma grande força, pensou Dany. Não conseguia compreender por que Sor Jorah desconfiava tanto do velho. Poderá sentir ciúmes por eu ter encontrado outro homem com quem conversar? Sem pedir licença, seus pensamentos voltaram àquela noite, no Balerion, em que o cavaleiro exilado a beijara. Ele nunca devia ter feito aquilo. É três vezes mais velho do que eu, e de um nascimento baixo demais para mim, e não lhe dei permissão. Nenhum verdadeiro cavaleiro beijaria uma rainha sem a sua permissão. Depois daquela noite, tinha tomado cuidado para nunca ficar sozinha com Sor Jorah, mantendo as aias consigo a bordo do navio, e às vezes também os companheiros de sangue. Ele deseja me beijar de novo, vejo em seus olhos.

Dany nem era capaz de começar a expressar aquilo que desejava, mas o beijo de Jorah tinha acordado alguma coisa dentro dela, algo que estivera adormecido desde a morte de Khal Drogo. Deitada em seu estreito beliche, dava por si perguntando-se sobre como seria ter um homem ao seu lado em vez de sua aia, e a ideia era mais excitante do que deveria ser. Às vezes fechava os olhos e sonhava com ele, mas nunca era com Jorah Mormont que sonhava; seu amante era sempre mais jovem e mais belo, embora o rosto de Sor Jorah nunca deixasse de surgir, como uma sombra em constante mutação.

Uma noite, tão atormentada que não conseguia dormir, Dany enfiou uma mão entre as pernas e ficou sobressaltada quando verificou quão molhada se encontrava. Quase sem se atrever a respirar, moveu os dedos para a frente e para trás entre seus lábios inferiores, lentamente para não acordar Irri, que dormia ao seu lado, até que encontrou um local especial e se demorou ali, tocando-se levemente, a princípio com timidez, mas depois mais depressa. Mesmo assim o alívio que desejava parecia afastar-se à sua frente, até que os dragões se agitaram e um deles soltou um grito na cabine, e Irri acordou e compreendeu o que ela estava fazendo.

Dany sabia que seu rosto estava corado, mas na escuridão Irri certamente não conseguiria ver. Sem uma palavra, a aia pôs uma mão num seio dela e depois debruçou-se para tomar um mamilo na boca. A outra mão deslocou-se ao longo da suave curva da sua barriga, através do montículo de finos pelos prateados, e começou a trabalhar entre as coxas de Dany. Não passaram mais do que alguns momentos antes que as suas pernas se contorcessem, seus seios se elevassem e todo o seu corpo estremecesse. Então gritou. Ou talvez tivesse sido Drogon. Irri não chegou a dizer nada, limitou-se a enrolar-se e a voltar ao sono no momento em que o ato foi concluído.

No dia seguinte, tudo aquilo tinha parecido um sonho. E o que tinha Sor Jorah a ver com o assunto? É Drogo que eu desejo, o meu sol e estrelas, recordou Dany a si mesma. Não Irri, e não Sor Jorah, apenas Drogo. Mas Drogo estava morto. Julgara que aqueles sentimentos tivessem morrido com ele, ali no deserto vermelho, mas um beijo traiçoeiro os havia trazido de volta à vida sem que ela soubesse como. Ele nunca devia ter me beijado. Ousou demais, e eu deixei. Não pode nunca voltar a acontecer. Fez uma expressão sombria com a boca e sacudiu a cabeça, e a sineta em sua trança tilintou suavemente.

Mais perto da baía, a cidade apresentava uma aparência mais agradável. As grandes pirâmides de tijolo margeavam a costa, a maior tinha cento e vinte metros de altura. Todo tipo de árvores, trepadeiras e flores cresciam em seus largos terraços, e os ventos que rodopiavam em volta delas cheiravam a verde e a perfume. Outra harpia gigantesca erguia-se sobre o portão, esta era feita de argila vermelha cozida, e visivelmente se desfazia, não lhe restando mais do que um toco onde antes estivera a cauda de escorpião. A corrente que segurava com as garras de barro era ferro-velho, repleto de ferrugem. Mas, perto da água, estava mais fresco. O bater das ondas contra os pilares corroídos produzia um som curiosamente calmante.

Aggo ajudou Dany a descer da liteira. Belwas, o Forte, estava sentado num alto pilar, comendo um grande pedaço de carne assada.

- Cachorro - disse ele em tom alegre quando viu Dany. - Bom cachorro em Astapor, pequena rainha. Comer? - ofereceu com um sorriso gorduroso.

- É gentil de sua parte, Belwas, mas não. - Dany tinha comido cachorro em outros lugares, em outros tempos, mas naquele momento tudo em que conseguia pensar era nos Imaculados e em seus estúpidos filhotes. Passou rapidamente pelo enorme eunuco e subiu a prancha até o convés do Balerion.

Sor Jorah Mormont estava à sua espera.

- Vossa Graça - disse, baixando a cabeça. - Os feitores vieram e foram embora. Três, com uma dúzia de escribas e outros tantos escravos para os transportes. Percorreram cada centímetro de nossos porões e tomaram nota de tudo que possuímos. - Acompanhou-a até o fundo. - Quantos homens eles têm à venda?

- Nenhum. - Seria com Mormont que estava zangada, ou com aquela cidade e o seu obstinado calor, seus fedores, suores e tijolos em ruína? - Vendem eunucos, não homens. Eunucos feitos de tijolo, como o resto de Astapor. Devo comprar oito mil eunucos de tijolo com olhos mortos que nunca se movem, que matam bebês de peito por causa de um chapéu com um espigão e estrangulam os próprios cães? Nem sequer têm nomes. Portanto não os chame de homens, sor.

- Khaleesi - disse ele, surpreendido com a sua fúria -, os Imaculados são escolhidos ainda garotos e treinados...

- Já ouvi tudo que quero ouvir a respeito do treino. - Dany sentiu lágrimas jorrando de seus olhos, súbitas e indesejadas. Sua mão saltou e atingiu com força o rosto de Sor Jorah. Era isso ou gritar.

Mormont tocou a bochecha que ela havia estapeado.

- Se desagradei à minha rainha...

- Desagradou. Desagradou-me muito, sor. Se fosse meu cavaleiro leal, nunca teria me trazido a esta vil pocilga. - Se fosse meu leal cavaleiro, nunca teria me beijado, ou olhado meus seios como fez, ou...

- Às ordens de Vossa Graça. Direi ao Capitão Groleo que se prepare para zarpar na maré da noite, rumo a uma pocilga menos vil.

- Não - disse Dany. Groleo observava-os do castelo de proa, e sua tripulação também assistia. Barba-Branca, seus companheiros de sangue, Jhiqui, todos tinham parado o que estavam fazendo ao ouvir a bofetada. - Quero zarpar agora, e não na maré, quero navegar para longe e depressa e não olhar para trás. Mas não posso, não é? Há oito mil eunucos de tijolo à venda, e tenho que arranjar uma maneira de comprá-los. - E com aquilo o deixou e foi para baixo.

Atrás da porta de madeira esculpida da cabine do capitão, seus dragões estavam inquietos. Drogon ergueu a cabeça e soltou um grito, com fumaça clara saindo de suas narinas, e Viserion voou para ela e tentou se empoleirar em seu ombro, como fazia quando era menor.

- Não - disse Dany, tentando afastá-lo com suavidade. - Agora é grande demais para isso, querido. - Mas o dragão enrolou a sua cauda branca e dourada em volta de um braço e enterrou garras negras no tecido de sua manga, agarrando-se bem. Impotente, Dany afundou-se na grande cadeira de couro de Groleo, aos risinhos

- Estiveram agitados enquanto esteve fora, khaleesi - disse-lhe Irri. - Viserion arrancou lascas da porta com as garras, vê? E Drogon tentou escapar quando os feitores vieram vê-los. Quando agarrei sua cauda para detê-lo, ele se virou e me mordeu. - Mostrou a Dany as marcas dos dentes do dragão em sua mão.

- Algum deles tentou libertar-se pelo fogo? - isso era o que mais assustava Dany.

- Não, khaleesi. Drogon soltou seu fogo, mas para o ar. Os negociantes de escravos tiveram medo de se aproximar dele.

Beijou a mão de Irri no local onde Drogon a mordera.

- Sinto muito que ele a tenha machucado. Os dragões não foram feitos para ficar trancados numa pequena cabine de navio.

- Nisso, os dragões são como os cavalos - disse Irri. - E também como os cavaleiros. Os cavalos relincham lá embaixo, khaleesi, e dão coices nas paredes de madeira. Eu ouço. E Jhiqui diz que as velhas e os pequenos também gritam quando não está aqui. Não gostam desta carroça de água. Não gostam do negro mar salgado.

- Eu sei - disse Dany. - Sei mesmo.

- A minha khaleesi está triste?

- Sim - admitiu Dany. Triste e perdida.

- Deverei dar prazer à khaleesi?

Dany afastou-se dela.

- Não. Irri, não precisa fazer isso. O que aconteceu naquela noite, quando você acordou... não é escrava de cama, eu libertei-a, lembra? Você...

- Sou aia da Mãe de Dragões - disse a moça. - É uma grande honra dar prazer à minha khaleesi.

- Eu não quero - insistiu Dany. - Não quero. - Virou-se num movimento brusco. - Agora deixe-me. Quero ficar sozinha. Para pensar.

A escuridão tinha começado a cair sobre as águas da Baía dos Escravos quando Dany voltou ao convés. Parou junto à amurada e olhou para Astapor. Daqui parece quase bela, pensou. As estrelas estavam aparecendo, no céu, e as lanternas de seda também, na terra, tal como a tradutora de Kraznys prometera. As pirâmides de tijolo tremeluziam com a luz. Mas embaixo está escuro, nas ruas, praças e arenas de luta. E onde a escuridão é maior é nas casernas, onde algum garotinho está dando restos de comida a um cachorro que lhe deram quando roubaram sua virilidade.

Houve um passo suave atrás dela.

- Khaleesi. - A voz dele. - Posso falar com franqueza?

Dany não se virou. Não conseguia suportar olhá-lo naquele momento. Se o fizesse, poderia voltar a estapeá-lo. Ou chorar. Ou beijá-lo. E não chegar a saber o que era certo, o que era errado e o que era uma loucura.

- Diga o que quiser, sor.

- Quando Aegon, o Dragão, pisou na costa de Westeros, os Reis do Vale, do Rochedo e da Campina não correram para lhe entregar suas coroas. Se quer se sentar no seu Trono de Ferro, terá de conquistá-lo, tal como ele fez, com aço e fogo de dragão. E isso significa ter sangue nas mãos antes de tudo acabar.

Sangue efogo, pensou Dany. As palavras da Casa Targaryen. Conhecera-as por toda a vida.

- Derramarei com satisfação o sangue de meus inimigos. O sangue de inocentes é outra coisa. Querem me oferecer oito mil Imaculados. Oito mil bebês mortos. Oito mil cães estrangulados.

- Vossa Graça - disse Jorah Mormont -, eu vi Porto Real depois do Saque. Também foram massacrados bebês nesse dia, e também velhos e crianças que brincavam. Foram violadas mais mulheres do que é possível contar. Há um animal selvagem em todos os homens, e quando se dá a esse homem uma espada ou uma lança e esse homem é enviado para a guerra, o animal acorda. O cheiro de sangue é o suficiente para acordá-lo. Mas nunca ouvi dizer que esses Imaculados tivessem violado, ou dizimado uma cidade com a espada, ou sequer saqueado, exceto por ordem expressa daqueles que os lideravam. Até podem ser de tijolo, como diz, mas se os comprar, daqui em diante os únicos cães que matarão serão aqueles que a senhora quiser mortos. E, se bem me lembro, a senhora tem alguns cães que quer ver mortos.

Os cães do Usurpador.

- Sim. - Dany fitou as suaves luzes coloridas e permitiu que a fresca brisa salgada a acariciasse. - Fala de saquear cidades. Responda-me uma coisa, sor: por que os dothraki nunca saquearam esta cidade? - apontou. - Olhe para as muralhas. É possível ver onde já começaram a ruir. Ali e ali. Vê algum guarda naquelas torres? Eu não. Estarão escondidos, sor? Vi hoje esses filhos da harpia, todos os seus orgulhosos guerreiros de alto nascimento. Vestem-se com saia de linho, e a coisa mais feroz neles era os cabelos. Até um khalasar modesto conseguiria rachar esta Astapor como uma noz e derramar seu conteúdo podre. Diga-me, portanto, por que é que aquela feia harpia não está às margens do caminho dos deuses em Vaes Dothrak entre os outros deuses roubados?

- Possui um olho de dragão, khaleesi, vê-se isso claramente.

- Quero uma resposta, não um elogio.

- Há dois motivos. Os bravos defensores de Astapor não passam de palha, isso é verdade. Nomes antigos e bolsas gordas que se vestem com açoites ghiscari para fingir que ainda dominam um vasto império. Todos eles são oficiais de elevada patente. Nos dias de festa travam guerras de mentira nas arenas, para demonstrar como são brilhantes comandantes, mas são os eunucos que morrem. Da mesma forma, qualquer inimigo que quisesse saquear Astapor teria de saber que defrontaria Imaculados. Os senhores de escravos colocariam a guarnição inteira a serviço da defesa da cidade. Os dothraki não atacam Imaculados desde que deixaram as tranças aos portões de Qohor.

- E o segundo motivo?

- Quem atacaria Astapor? - perguntou Sor Jorah. - Meereen e Yunkai são rivais mas não inimigos, a Perdição destruiu Valíria, o povo do interior, para oriente, é todo ghiscari, e para lá dos montes fica Lhazar. Os Homens-Ovelhas, como os seus dothraki os chamam, são um povo notavelmente avesso à guerra.

- Sim - concordou ela -, mas a norte das cidades dos negociantes de escravos fica o mar dothraki, e duas dúzias de poderosos khal que apreciam mais do que qualquer coisa saquear cidades e levar seus povos como escravos.

- Levá-los para onde? De que servem os escravos depois de se matar seus negociantes? Valíria já não existe, Qarth fica do outro lado do deserto vermelho, e as Nove Cidades Livres estão a milhares de léguas para oeste. E pode estar certa de que os filhos da harpia são pródigos nas ofertas a qualquer khal que por aqui passe, tal como fazem os magísteres em Pentos, Norvos e Myr. Sabem que se banquetearem os senhores dos cavalos e lhes derem presentes, eles em breve partirão. É mais barato do que lutar, e bastante mais seguro.

Mais barato do que lutar, pensou Dany. Sim, talvez seja. Se ao menos pudesse ser assim tão fácil para ela. Como seria agradável velejar até Porto Real com seus dragões e pagar ao rapaz Joffrey uma arca de ouro para fazer com que fosse embora.

- Khaleesi? - disse Sor Jorah depois de ela ficar em silêncio durante muito tempo. Tocou ligeiramente o cotovelo dela.

Dany afastou-o, e disse:

- Viserys teria comprado todos os Imaculados que tivesse dinheiro para isso. Mas você certa vez disse que eu era como Rhaegar...

- Lembro-me disso, Daenerys.

- Vossa Graça - corrigiu ela. - O Príncipe Rhaegar levou homens livres para a batalha, não escravos. Barba-Branca disse que foi o próprio quem armou os escudeiros cavaleiros e também armou muitos outros homens.

- Não havia honra maior do que receber o grau de cavaleiro das mãos do Príncipe de Pedra do Dragão.

- Então diga-me: quando ele tocava um homem no ombro com a espada, o que dizia? "Vá e mate os fracos"? Ou "Vá e defenda-os"? No Tridente, esses homens corajosos de que Viserys falou e que morreram sob os nossos estandartes do dragão... deram a vida porque acreditavam na causa de Rhaegar, ou porque tinham sido comprados e pagos? - Dany virou-se para Mormont, cruzou os braços e esperou por uma resposta.

- Minha rainha - disse lentamente o forte homem -, tudo que diz é verdade. Mas Rhaegar perdeu no Tridente. Perdeu a batalha, perdeu a guerra, perdeu o reino e perdeu a vida. Seu sangue escorreu rio abaixo com os rubis de sua placa de peito, e Robert, o Usurpador, cavalgou por cima de seu cadáver para roubar o Trono de Ferro. Rhaegar lutou valentemente, Rhaegar lutou com nobreza, lutou com honra. E Rhaegar morreu.

Bran

Nenhuma estrada atravessava os retorcidos vales de montanha que agora percorriam. Mas Entre os picos cinzentos de pedra havia calmos lagos azuis, longos, profundos e estreitos, e as infinitas sombras verdes de florestas de pinheiros. O castanho-avermelhado e o dourado das folhas de outono tornaram-se menos comuns quando abandonaram a mata de lobos para subir as velhas colinas de sílex, e desapareceram quando as colinas se transformaram em montanhas. Gigantescas árvores sentinela cinza-esverdeadas erguiam-se agora por cima deles, ombreando com abetos e pinheiros-marciais numa profusão sem fim. Por baixo, a vegetação rasteira era pouco densa, e o chão da floresta estava atapetado de agulhas verde-escuras.

Quando se perdiam, como aconteceu uma ou duas vezes, bastava-lhes esperar por uma noite fria e límpida em que as nuvens não se intrometessem e olhar para o céu em busca do Dragão de Gelo. A estrela azul no olho do dragão indicava o caminho para o norte, segundo Osha tinha lhe dito um dia. Pensar em Osha fazia Bran se perguntar sobre onde ela estaria. Imaginava-a a salvo em Porto Branco, com Rickon e Cão-Felpudo, comendo enguias, peixe e torta quente de caranguejo com o gordo Lorde Manderly. Ou talvez se aquecessem na Ultima Lareira, diante das fogueiras do Grande-Jon. Mas a vida de Bran transformara-se em dias infinitos e gelados nas costas de Hodor, subindo e descendo em seu cesto as vertentes de montanhas.

- Para cima e para baixo - suspirava às vezes Meera enquanto caminhavam - e depois para baixo e para cima. E depois outra vez para cima e para baixo. Detesto estas suas malditas montanhas, Príncipe Bran.

- Ontem disse que as adorava.

- Ah, e adoro. O senhor meu pai tinha me falado de montanhas, mas nunca tinha visto nenhuma até agora. Adoro-as mais do que consigo expressar.

Bran fez uma careta para ela.

- Mas acabou de dizer que as detestava.

- Por que é que não pode ser as duas coisas? - Meera esticou a mão para apertar o nariz de Bran.

- Porque são coisas diferentes - insistiu ele. - Como a noite e o dia, ou o gelo e o fogo.

- Se o gelo pode queimar - disse Jojen em sua voz solene -, então o amor e o ódio podem se juntar. Montanha ou pântano, não importa. A terra é só uma.

- Uma - concordou a irmã -, mas enrugada demais.

Os vales de altitude raramente lhes faziam o favor de correr de norte para sul, de modo que era frequente verem-se seguindo ao longo de léguas na direção errada, e às vezes eram forçados a voltar.

- Se tivéssemos seguido a estrada do rei, a esta hora já poderíamos estar chegando à Muralha - Bran costumava lembrar aos Reed. Queria encontrar o corvo de três olhos, para poder aprender a voar. Repetira isso meia centena de vezes, até que Meera começou a caçoar dele, proferindo as palavras ao mesmo tempo que ele. - Se tivéssemos seguido a estrada do rei também não teríamos tanta fome - começou então a dizer.

Lá embaixo, nas colinas, não tinham tido falta de alimentos. Meera era uma boa caçadora, e melhor ainda em arrancar peixes dos riachos com a sua lança de três dentes para caçar rãs. Bran gostava de observá-la, admirando a sua rapidez, o modo como arremessava a lança e a puxava de volta com uma truta prateada contorcendo-se na ponta. E também tinham Verão para caçar para eles. O lobo gigante desaparecia quase todas as noites quando o sol se punha, mas estava sempre de volta antes do nascer do dia, normalmente com alguma coisa nas mandíbulas, um esquilo ou uma lebre.

Mas ali, nas montanhas, os riachos eram menores e gelados, e a caça, mais escassa. Meera ainda caçava e pescava quando podia, mas era mais difícil, e certas noites nem o Verão encontrava presas. Era frequente irem dormir de barriga vazia.

Mas Jojen continuava teimosamente determinado a permanecer bem longe das estradas.

- Onde você encontra estradas, encontra viajantes - dizia, com aquela sua maneira de falar -, e os viajantes têm olhos para ver e bocas para espalhar histórias sobre o rapaz aleijado, seu gigante e o lobo que caminha com eles. - Ninguém era capaz de ser tão teimoso quanto Jojen, portanto avançavam com dificuldade por território bravio, e todos os dias iam um pouco mais alto, e caminhavam um pouco mais para o norte.

Havia dias em que chovia, outros eram ventosos, e uma vez foram pegos por uma saraivada tão forte que até Hodor berrou de medo. Nos dias sem nuvens, frequentemente tinham a impressão de que eram as únicas criaturas vivas no mundo inteiro.

- Ninguém vive aqui em cima? - perguntou certa vez Meera Reed, enquanto rodeavam um maciço de granito tão grande quanto Winterfell.

- Há gente - disse-lhe Bran. - Os Umber vivem principalmente a leste da estrada do rei, mas pastoreiam suas ovelhas nos prados de altitude durante o verão. Há os Wull a oeste das montanhas ao longo da Baía de Gelo, os Harclay atrás de nós, nas colinas, e os Knott, Liddle e Norrey e até alguns Flint aqui em cima, nas zonas altas. - A mãe da mãe de seu pai fora uma Flint das montanhas. A Velha Ama certa vez dissera que era o sangue dessa antepassada que levou Bran a gostar tanto de escalar antes da queda. Mas ela tinha morrido muitos, e muitos e muitos mais anos antes de ele nascer, até antes do pai nascer.

- Wull? - disse Meera. - Jojen, não houve um Wull que acompanhou o pai durante a guerra?

- Theo Wull - Jojen ofegava devido à subida. - Costumavam chamá-lo de Baldes.

- E o símbolo deles - disse Bran. - Três baldes marrons sobre azul, com um bordado de xadrez branco e cinza. Lorde Wull veio uma vez a Winterfell, para prestar vassalagem e conversar com o pai, e ele tinha os baldes no escudo. Mas não é um verdadeiro lorde. Bem, é, mas chamam-no só de o Wull, e há também o Knott, o Norrey e o Liddle. Em Winterfell, nós os chamávamos de lordes, mas seus povos não os chamam.

Jojen Reed parou para recuperar o fôlego.

- Acha que essa gente das montanhas sabe que estamos aqui?

- Eles sabem. - Bran avistara-os observando; não com os próprios olhos, mas com os olhos mais sensíveis de Verão, que deixavam escapar muito pouco. - Não nos incomodam se não tentarmos fugir com suas cabras ou cavalos.

E não incomodaram. Só uma vez encontraram um membro do povo da montanha, quand uma súbita carga de água gelada tinha feito com que buscassem abrigo. Verão encontrou-o por eles, farejando uma gruta pouco profunda por trás dos ramos cinza-esverdeados de uma altaneira árvoe sentinela, mas quando Hodor se abaixou sob a saliência rochosa, Bran viu o clarão alaranjado de uma fogueira mais para trás e compreendeu que não estavam sós.

- Entrem e aqueçam-se - chamou uma voz. - Há pedra suficiente para manter a chuva afastada de todas as nossas cabeças.

O homem ofereceu-lhes bolos de aveia e morcela e um gole da cerveja que trazia num odre, mas não lhe disse o nome; e também não perguntou o deles. Bran achou que devia ser um Liddle. O broche que prendia seu manto de pele de esquilo era de ouro e bronze, trabalhado em forma de pinha, e os Liddle usavam pinhas na metade branca de seus escudos verde e branco.

- Aqui é longe da Muralha? - perguntou-lhe Bran enquanto esperavam que a chuva parasse.

- Não muito para o voo do corvo - disse o Liddle, se é que ele era tal coisa. - Mais longe, para aqueles que não têm asas.

Bran então começou:

- Aposto que já estaríamos lá se...

-... tivéssemos seguido a estrada do rei - concluiu Meera com ele.

O Liddle puxou uma faca e começou a desbastar um pedaço de madeira.

- Quando havia um Stark em Winterfell, uma donzela podia percorrer a estrada do ei usando o vestido do dia de seu nome e nada sofrer, e os viajantes encontravam fogo, pão e sal em muitas estalagens e castros. Mas agora as noites são mais frias, e as portas estão fechadas. Há lulas na mata de lobos, e homens esfolados percorrem a estrada do ei, perguntando por forasteiros.

Os Reed trocaram um olhar.

- Homens esfolados? - perguntou Jojen.

- Os rapazes do Bastardo, ora. Ele tava morto, mas agora não tá. E paga bom dinheiro por pele de lobos, segundo um homem ouviu dizer, e talvez até ouro por notícias de certos outros mortos que andam. - Olhou para Bran quando disse aquilo, e para Verão, que estava estendido ao seu lado. - Quanto a essa Muralha - prosseguiu o homem -, não é lugar para onde eu iria. O Velho Urso levou a Patrulha para a floresta assombrada, e tudo que voltou foram seus corvos, quase sem trazer nenhuma mensagem. Asas escuras, palavras escuras, dizia a minha mãe, mas parece-me que quando os pássaros voam calados, isso é ainda mais sombrio. - Atiçou o fogo com o pedaço de madeira. - Era diferente quando havia um Stark em Winterfell. Mas o velho lobo tá morto e o novo foi para o sul jogar o jogo de tronos, e tudo que nos resta são os fantasmas.

- Os lobos voltarão - disse solenemente Jojen.

- E como é que você sabe, rapaz?

- Sonhei com isso.

- Há noites em que sonho com a minha mãe, que enterrei há nove anos - disse o homem -, mas, quando acordo, ela não voltou pra junto de nós.

- Há sonhos e sonhos, senhor.

- Hodor - disse Hodor.

Passaram aquela noite juntos, pois a chuva não cedeu até bem depois de escurecer, e só Verão parecia querer abandonar a gruta. Quando a fogueira se reduziu a brasas, Bran deixou-o ir. O lobo gigante não sentia a umidade como as pessoas, e a noite chamava-o. O luar pintava os bosques molhados em tons de prata e tornava brancos os picos cinzentos. Corujas piavam na escuridão e voavam silenciosamente entre os pinheiros, enquanto cabras brancas se deslocavam pelos flancos das montanhas. Bran fechou os olhos e entregou-se ao sonho de lobo, aos cheiros e sons da meia-noite.

Quando acordaram na manhã seguinte, a fogueira tinha se apagado e o Liddle havia desaparecido, mas deixou-lhes uma morcela e uma dúzia de bolos de aveia bem embrulhados num pano verde e branco. Alguns bolos tinham pinhões misturados na massa e outros, amoras-pretas. Bran comeu um de cada, e não conseguiu decidir de qual tinha gostado mais. Um dia voltaria a haver Stark em Winterfell, disse a si próprio, e então mandaria chamar os Liddle e pagaria cem vezes por cada pinhão e amora.

A trilha que seguiam era um pouco mais fácil naquele dia e, pelo meio-dia, o sol surgiu numa clareira entre as nuvens. Bran sentiu-se quase satisfeito, sentado em seu cesto às costas de Hodor. Cochilou um pouco, embalado pelo balanço regular dos passos do grande cavalariço e pelo suave cantarolar que ele às vezes soltava quando caminhava. Meera acordou-o com um ligeiro toque no braço.

- Olhe - disse ela, apontando para o céu com sua lança de caçar rãs -, uma águia.

Bran levantou a cabeça e viu-a, com asas cinzentas abertas e imóveis, como se flutuassem no vento. Seguiu a ave com os olhos enquanto ela subia aos círculos, perguntando a si mesmo como seria pairar pelo mundo afora com tal ausência de esforço. Ainda melhor do que escalar. Tentou alcançar a águia, abandonar seu estúpido corpo aleijado e subir ao céu para se juntar a ela como fazia com Verão. Os videntes verdes conseguiam fazer isso. Eu também devia ser capaz. Tentou e tentou, até que a águia desapareceu na bruma dourada da tarde.

- Sumiu - disse, desapontado.

- Ainda vamos ver outras - Meera falou. - Elas vivem aqui em cima.

- Suponho que sim.

- Hodor - disse Hodor.

- Hodor - concordou Bran.

Jojen deu um chute numa pinha.

- Parece que o Hodor gosta quando diz o nome dele.

- Hodor não é o verdadeiro nome dele - explicou Bran. - E só uma palavra qualquer que ele diz. A Velha Ama disse-me que seu verdadeiro nome é Walder. Ela era avó da avó dele, ou qualquer coisa do gênero. - Falar da Velha Ama entristecia-o. - Acha que os homens de ferro a mataram? - Não tinham visto o corpo dela em Winterfell. Não se lembrava de ver nenhuma mulher morta, agora que pensava nisso. - Ela nunca fez mal a ninguém, nem mesmo a Theon. Só contava histórias. Theon não ia fazer mal a alguém assim. Certo?

- Algumas pessoas machucam outras só porque podem fazer isso - disse Jojen.

- E não foi Theon quem fez a matança em Winterfell - disse Meera. - Muitos dos mortos eram homens de ferro. - Passou a lança para a outra mão. - Lembre-se das histórias da Velha Ama, Bran. Lembre-se da maneira como ela as contava, do som da voz dela. Enquanto se lembrar, parte dela estará sempre viva em você.

- Vou me lembrar - prometeu ele. Subiram em silêncio durante muito tempo, seguindo uma trilha de animais cheia de curvas ao longo da passagem elevada entre dois picos pedregosos. Pinheiros marciais esqueléticos agarravam-se às vertentes em volta deles. Bem mais à frente Bran viu a cintilação gelada de um rio que caía pelo flanco de uma montanha. Deu por si escutando o ruído da respiração de Jojen e o som quebradiço das agulhas de pinheiro sob os pés de Hodor. - Sabem histórias? - perguntou de repente aos Reed.

Meera soltou uma gargalhada.

- Ah, algumas.

- Algumas - admitiu o irmão.

- Hodor - disse Hodor, cantarolando.

- Podiam contar uma - disse Bran. - Enquanto caminhamos. O Hodor gosta de histórias sobre cavaleiros. Eu também gosto.

- Não há cavaleiros no Gargalo - disse Jojen.

- Por cima da água - corrigiu a irmã. - Mas os pântanos estão cheios de cavaleiros mortos.

- Isso é verdade - disse Jojen. - Ândalos e homens de ferro, Frey e outros tolos, todos os orgulhosos guerreiros que tentaram conquistar a Água Cinzenta. Nem um conseguiu encontrá-la. Entram no Gargalo mas não conseguem sair. E mais cedo ou mais tarde tropeçam nos pântanos, afundam-se sob o peso de todo aquele aço e afogam-se lá, em suas armaduras.

A imagem de cavaleiros afogados debaixo dagua fez Bran arrepiar-se. Mas não levantou objeções; gostava dos arrepios.

- Houve um cavaleiro - disse Meera - no ano da Falsa Primavera. Chamavam-no de Cavaleiro da Árvore que Ri. Esse pode ter sido um cranogmano.

- Ou não. - O rosto de Jojen estava salpicado de sombras verdes. - Tenho certeza de que o Príncipe Bran já ouviu essa história uma centena de vezes.

- Não - disse Bran. - Não ouvi. E, se tivesse ouvido, não me importaria. Às vezes, a Velha Ama voltava a contar as mesmas histórias, mas nós nunca nos importávamos, desde que fossem boas. Ela costumava dizer que as velhas histórias são como velhos amigos. Temos de visitá-las de vez em quando.

- Isso é verdade. - Meera caminhava com o escudo nas costas, afastando do caminho um ramo ou outro com a lança para rãs. Bem quando Bran já começava a achar que ela não ia contar a história, começou: - Num tempo muito distante houve um moço engraçado que vivia no Gargalo. Era pequeno como todos os cranogmanos, mas também era bravo, esperto e forte. Cresceu caçando, pescando e subindo nas árvores e aprendeu toda a magia do meu povo.

Bran tinha quase certeza de que nunca ouvira aquela história.

- Ele tinha os sonhos verdes, como o Jojen?

- Não - disse Meera -, mas era capaz de respirar lama e correr sobre folhas e transformar a terra em água e a água em terra só com uma palavra murmurada. Sabia falar com as árvores, tecer palavras e fazer castelos aparecerem e desaparecerem.

- Gostaria de saber fazer isso - disse Bran em tom de lamento. - Quando é que ele conhece o cavaleiro da árvore?

Meera fez-lhe uma careta.

- Mais depressa, se um certo príncipe ficasse calado.

- Estava só perguntando.

- O rapaz conhecia as magias dos pântanos - prosseguiu ela mas queria mais. É que o nosso povo raramente viaja para longe de casa. Somos gente pequena, e nossos costumes parecem estranhos para certas pessoas, de modo que as pessoas grandes nem sempre nos tratam bem. Mas esse rapaz era mais ousado do que a maioria, e um dia, depois de chegar à idade adulta, decidiu que iria deixar os pântanos para visitar a Ilha das Caras.

- Ninguém visita a Ilha das Caras - questionou Bran. - E onde vivem os homens verdes.

- Eram os homens verdes que ele queria encontrar. Portanto vestiu uma camisa com escamas de bronze cosidas a ela, como a minha, pegou um escudo de couro e uma lança de três dentes, como os meus, e desceu o Ramo Verde remando num pequeno barco de casco de couro.

Bran fechou os olhos para tentar ver o homem em seu pequeno barco de casco de couro. Na sua cabeça, o cranogmano parecia-se com Jojen, só que mais velho e forte e vestido como Meera.

- Passou por baixo das Gêmeas de noite, para que os Frey não o atacassem, e quando chegou ao Tridente, saiu do rio, pôs o barco na cabeça e começou a caminhar. Demorou muitos dias, mas por fim chegou ao Olho de Deus, atirou o barco no lago e remou até a Ilha das Caras.

- E encontrou os homens verdes?

- Sim - disse Meera -, mas essa é outra história, e não cabe a mim contá-la. O meu príncipe pediu cavaleiros.

- Homens verdes também são bons.

- São mesmo - concordou ela, mas nada mais disse sobre eles. - O cranogmano ficou na ilha durante todo esse inverno, mas quando a primavera desabrochou, ouviu o grande mundo a chamá-lo e soube que era hora de partir. Seu barco de couro estava exatamente no local onde o deixara, por isso fez suas despedidas e remou para terra firme. Remou e remou, e por fim viu as distantes torres de um castelo erguendo-se junto ao lago. As torres subiam cada vez mais, à medida que ia se aproximando da margem, até que ele percebeu que aquele devia ser o maior castelo do mundo inteiro.

- Harrenhal! - compreendeu Bran de imediato. - Era Harrenhal!

Meera sorriu.

- Seria? À sombra das suas muralhas viu tendas de muitas cores, brilhantes estandartes balançando ao vento, e cavaleiros vestidos de cota de malha ou de placas de aço e montados em cavalos couraçados. Sentiu o cheiro de carne assando e ouviu o som de risos e o clangor das trombetas dos arautos. Um grande torneio estava prestes a começar, e tinham vindo campeões de todo o território para conquistá-lo. O próprio rei encontrava-se presente, com seu filho, o príncipe-dragão. As Espadas Brancas tinham vindo, para receber um novo irmão em suas fileiras. O senhor da tempestade andava por lá, bem como o senhor da rosa. O grande leão do rochedo tinha brigado com o rei e acabou se mantendo afastado, mas muitos de seus vassalos e cavaleiros compareceram mesmo assim. O cranogmano nunca vira tamanha pompa, e sabia que talvez nunca mais voltaria a ver coisa igual. Parte de si nada mais desejava do que participar daquilo.

Bran conhecia bastante bem essa sensação. Quando era pequeno, só sonhava em ser um cavaleiro. Mas isso fora antes de cair e perder as pernas.

- A filha do grande castelo reinava como rainha do amor e da beleza quando o torneio começou. Cinco campeões tinham jurado defender a sua coroa; seus quatro irmãos de Harrenhal e seu tio famoso, um cavaleiro branco da Guarda Real.

- Era uma donzela bela?

- Era - disse Meera, saltando sobre uma pedra -, mas havia outras ainda mais belas. Uma era a esposa do príncipe-dragão, que havia trazido uma dúzia de damas de companhia para servi-la. Todos os cavaleiros lhe suplicavam favores para atar em volta de suas lanças.

- Isso não vai ser uma daquelas histórias de amor, não é? - perguntou Bran, desconfiado. - O Hodor não gosta lá muito dessas.

- Hodor - disse Hodor, concordando.

- Ele gosta das histórias em que os cavaleiros lutam com monstros.

-Às vezes os monstros são os cavaleiros, Bran. O pequeno cranogmano caminhava pelo campo, desfrutando do dia quente de primavera e sem fazer mal a ninguém, quando foi atacado por três escudeiros. Nenhum deles tinha mais de quinze anos, mesmo assim eram maiores do que ele, todos os três. Do modo como viam as coisas, aquele mundo era deles, e o cranogmano não tinha o direito de estar lá. Roubaram sua lança e atiraram-no ao chão, e o chamaram de papa-rãs.

- Eram Walder? - parecia algo que o Pequeno Walder Frey poderia ter feito.

- Nenhum deles disse o nome, mas ele guardou bem seus rostos na memória, para que pudesse se vingar mais tarde. Derrubaram-no toda vez que tentou se levantar, e chutaram-no quando se enrolou sobre si mesmo no chão. Mas então ouviram um rugido. "Esse que chutam é vassalo de meu pai", uivou a loba.

- Uma loba com quatro patas, ou com duas?

- Duas - disse Meera. - A loba meteu-se no meio dos escudeiros com uma espada de torneio, fazendo-os debandar. O cranogmano estava machucado e ensanguentado, por isso ela levou-o para a sua toca, para limpar as feridas e cobri-las com linho. Aí, ele conheceu os irmãos de matilha dela: o lobo selvagem que os liderava, o lobo calado ao seu lado e o lobinho que era o mais novo dos quatro.

"Nessa noite, haveria um banquete em Harrenhal, para anunciar a abertura do torneio, e a loba insistiu em que o rapaz comparecesse. Ele era de elevado nascimento, com tanto direito a um lugar no banco como qualquer outro homem. Não era fácil contrariar aquela donzela-lobo, e assim ele deixou que o jovem lobinho lhe arranjasse um traje adequado para um banquete real e dirigiu-se ao grande castelo.

"Comeu e bebeu sob o teto de Harren, com os lobos e também com muitas das espadas a eles juramentadas, homens das terras acidentadas, e também alces, ursos e tritões. O príncipe-dragão cantou uma canção tão triste que fez a donzela-lobo soluçar, mas quando o seu irmão lobinho caçoou dela por chorar, ela derramou vinho na cabeça dele. Um irmão negro interveio, pedindo aos cavaleiros para se juntarem à Patrulha da Noite. O senhor da tempestade derrotou o cavaleiro dos crânios e beijos numa batalha de copos de vinho. O cranogmano viu uma donzela com sorridentes olhos púrpuras dançando com uma espada branca, uma serpente vermelha e o senhor dos grifos, e por fim com o lobo silencioso... mas só depois que o lobo selvagem falou com ela em nome do irmão, que era tímido demais para sair de seu banco.

"No meio de toda aquela alegria, o pequeno cranogmano vislumbrou os três escudeiros que o tinham atacado. Um deles servia um cavaleiro forquilha; outro, um porco-espinho, enquanto o terceiro assistia um cavaleiro com duas torres em seu sobretudo, um símbolo que todos os cranogmanos conhecem bem."

- Os Frey - disse Bran. - Os Frey da Travessia.

- Então, assim como agora - concordou ela. - A donzela-lobo também os viu e mostrou-os aos irmãos. "Podia arranjar-lhe um cavalo e uma armadura que talvez servisse", ofereceu o lobinho. O pequeno cranogmano agradeceu, mas não respondeu. Tinha o coração dividido. Os cranogmanos são menores do que a maioria dos homens, mas igualmente orgulhosos. O rapaz não era cavaleiro, nenhum dos seus era. Sentamo-nos mais frequentemente num barco do que num cavalo, e nossas mãos são feitas para remos, não para lanças. Por mais que desejasse obter sua vingança, temia não fazer mais do que papel de bobo, envergonhando seu povo. O lobo silencioso ofereceu ao pequeno cranogmano um lugar em sua tenda naquela noite, mas este, antes de dormir, ajoelhou-se na margem do lago, olhando por sobre a água para onde a Ilha das Caras deveria estar, e proferiu uma prece aos deuses antigos do Norte e do Gargalo...

- Seu pai nunca lhe contou essa história? - perguntou Jojen.

- Era a Velha Ama quem contava histórias. Meera, continue, não pode parar aí.

Hodor devia sentir o mesmo.

- Hodor - disse, e depois: - Hodor hodor hodor hodor.

- Bem - disse Meera -, se quer ouvir o resto...

- Sim. Conte.

- Estavam planejados cinco dias de justas - disse ela. - Também haveria uma grande luta corpo a corpo entre sete equipes, e torneios de tiro ao alvo e arremesso de machados, uma corrida de cavalos e um torneio de cantores...

- Isso tudo não interessa. - Bran contorceu-se impacientemente no cesto que o prendia às costas de Hodor. - Conte o que aconteceu nas justas.

- Às ordens de meu príncipe. A filha do castelo era a rainha do amor e da beleza, com quatro irmãos e um tio para defendê-la, mas todos os quatro filhos de Harrenhal foram derrotados no primeiro dia. Os vencedores tiveram breves reinados como campeões, até serem, por sua vez, derrotados. Aconteceu que, no fim do primeiro dia, o cavaleiro do porco-espinho conquistou um lugar entre os campeões, e na manhã do segundo dia o cavaleiro da forquilha e o cavaleiro das duas torres também saíram vitoriosos. Mas, ao fim da tarde desse segundo dia, quando as sombras se tornavam longas, um misterioso cavaleiro surgiu na liça.

Bran assentiu com a cabeça, com ar sabedor. Cavaleiros misteriosos apareciam frequentemente nos torneios, com elmos que escondiam seus rostos, e escudos ora vazios ora ostentando um símbolo estranho qualquer. Às vezes eram campeões famosos sob disfarce. O Cavaleiro do Dragão certa vez ganhara um torneio como o Cavaleiro das Lágrimas, para poder nomear a irmã rainha do amor e da beleza no lugar da amante do rei. E Barristan, o Ousado, vestiu por duas vezes uma armadura de cavaleiro misterioso, a primeira quando tinha apenas dez anos.

- Aposto que era o pequeno cranogmano.

- Ninguém soube - disse Meera -, mas o cavaleiro misterioso era de baixa estatura e usava uma armadura que mal lhe servia, feita de partes avulsas. O símbolo que trazia no escudo era uma árvore-coração dos velhos deuses, um represeiro branco com uma cara vermelha sorrindo.

- Talvez tenha vindo da Ilha das Caras - disse Bran. - Era verde? - Nas histórias da Velha Ama, os guardiães tinham pele verde-escura e folhas no lugar dos cabelos. Às vezes também tinham chifres, mas Bran não via como o cavaleiro misterioso poderia ter usado um elmo se tivesse chifres. - Aposto que foram os deuses antigos que o enviaram.

- Talvez tenham sido. O cavaleiro misterioso saudou o rei com a lança e dirigiu-se para o fim da liça, onde os cinco campeões tinham seus pavilhões. Sabe quais foram os três que ele desafiou.

- O cavaleiro do porco-espinho, o cavaleiro da forquilha e o cavaleiro das torres gêmeas. - Bran ouvira histórias suficientes para saber isso. - Era o pequeno cranogmano, bem que eu disse.

- Fosse quem fosse, os deuses antigos deram força ao seu braço. O cavaleiro do porco-espinho foi o primeiro a cair, seguido pelo da forquilha e, por fim, o das duas torres foi derrubado. Nenhum deles era apreciado, por isso os plebeus aplaudiram vigorosamente o Cavaleiro da Árvore que Ri, nome pelo qual o novo campeão começou rapidamente a ser conhecido. Quando seus adversários caídos procuraram resgatar cavalos e armaduras, o Cavaleiro da Árvore que Ri falou numa voz trovejante através do elmo: "Ensinem honra aos seus escudeiros, isso será um resgate suficiente". Depois de os cavaleiros derrotados terem punido severamente os escudeiros, seus cavalos e armaduras foram restituídos. E, assim, as preces do pequeno cranogmano foram atendidas... pelos homens verdes, pelos deuses antigos ou pelos filhos da floresta, quem saberá?

Era uma boa história, decidiu Bran depois de pensar nela por um momento ou dois.

- O que aconteceu depois? O Cavaleiro da Árvore que Ri ganhou o torneio e se casou com uma princesa?

- Não - disse Meera. - Nessa noite, no grande castelo, tanto o senhor da tempestade como o cavaleiro dos crânios e dos beijos juraram que iriam desmascará-lo, e o próprio rei exortou os homens a desafiá-lo, declarando que o rosto por trás do elmo não era seu amigo. Mas, na manhã seguinte, quando os arautos sopraram suas trombetas e o rei ocupou seu lugar, só dois campeões apareceram. O Cavaleiro da Árvore que Ri tinha desaparecido. O rei ficou furioso, e até mandou o filho, o príncipe-dragão, procurar o homem, mas tudo que encontraram foi seu escudo pintado, abandonado, pendendo de uma árvore. No fim, foi o príncipe-dragão que ganhou o torneio.

- Oh. - Bran refletiu um pouco acerca da história. - Foi uma boa história. Mas, em vez dos escudeiros, os três cavaleiros maus deviam ter machucado o homem. Então, o pequeno cranogmano poderia ter matado os três. A parte dos resgates é estúpida. E o cavaleiro misterioso devia ter ganhado o torneio, derrotando todos os que o desafiassem, e nomeado a donzela-lobo rainha do amor e da beleza.

- Ela foi nomeada - disse Meera -, mas essa é uma história mais triste.

- Tem certeza de que nunca ouviu essa história antes, Bran? - perguntou Jojen. - O senhor seu pai nunca a contou para você?

Bran sacudiu a cabeça. O dia já estava acabando a essa altura, e longas sombras rastejavam pelos flancos das montanhas, enviando dedos negros por entre os pinheiros. Se o pequeno cranogmano pôde visitar a Ilha das Caras, eu talvez também possa, Todas as histórias concordavam em que os homens verdes possuíam estranhos poderes mágicos. Talvez pudessem ajudá-lo a voltar a andar, ou até a transformá-lo num cavaleiro. Transformaram o pequeno cranogmano num cavaleiro, mesmo que só por um dia, pensou. Um dia seria suficiente.

Davos

A cela era mais quente do que uma cela tinha direito de ser.

Sim, era escura. Uma tremeluzente luz laranja caía através das antigas barras de ferro, vinda do archote enfiado na arandela presa à parede do lado de fora, mas a metade interior da cela permanecia mergulhada em sombras. Também era úmida, como se poderia esperar de uma ilha como Pedra do Dragão, onde o mar nunca estava longe. E havia ratazanas, tantas quantas qualquer masmorra podia esperar ter e mais algumas.

Mas Davos não podia se queixar de frio. As passagens de pedra lisa sob a grande massa de Pedra do Dragão eram sempre quentes, e Davos ouvira dizer com frequência que ficavam mais quentes à medida que se descia. Calculava estar muito abaixo do castelo, e sentia a parede de sua cela quente quando encostava a palma da mão nela. As velhas histórias talvez fossem verdadeiras, e Pedra do Dragão talvez tivesse sido construída com pedras do inferno.

Estava doente quando o levaram até ali. A tosse que o vinha atormentando desde a batalha piorara, e tinha sido também atacado por uma febre. Seus lábios racharam, enchendo-se de bolhas sangrentas, e o calor da cela não o impedira de ter calafrios. Não resistirei por muito tempo, lembrava-se de ter pensado. Morrerei em breve, aqui na escuridão.

Davos descobriu rapidamente que nisso se enganava, tal como em muitas outras coisas. Lembrava-se vagamente de mãos gentis e de uma voz firme, e do jovem Meistre Pylos a olhá-lo de cima. Deram-lhe caldo quente de alho para beber e leite de papoula para lhe tirar as dores e os arrepios. A papoula fez com que dormisse, e enquanto dormia colaram sanguessugas na sua pele, para drenar o sangue ruim. Pelo menos fora isso que concluíra das marcas de sanguessugas que tinha nos braços quando acordou. Pouco tempo depois, a tosse parou, as bolhas desapareceram, e o caldo começou a vir com pedaços de peixe branco, e também cenouras e cebolas. E um dia percebeu que se sentia mais forte do que se sentira desde que o Betha Negra havia se estilhaçado sob os seus pés e o atirado ao rio.

Tinha dois carcereiros para cuidar de si. Um era largo e atarracado, com grandes ombros e mãos enormes e fortes. Usava uma brigantina de couro pontilhada de tachões de ferro, e uma vez por dia trazia a Davos uma tigela de mingau de aveia. Às vezes adoçava-a com mel ou despejava nela um pouco de leite. O outro carcereiro era mais velho, curvado e pálido, com cabelos oleosos, sujos, e pele áspera. Usava um gibão de veludo branco com um anel de estrelas bordado no peito, em fio de ouro. Caía mal nele, ao mesmo tempo curto e largo demais, e estava sujo e rasgado. Esse trazia a Davos pratos de carne com purê, ou guisado de peixe, e uma vez até tinha lhe trazido metade de um empadão de lampreia. A lampreia estava tão condimentada que Davos não conseguira mantê-la no estômago, mesmo assim era um raro acepipe para um prisioneiro numa masmorra.

Nem sol nem luz brilhavam nas masmorras; nenhuma janela perfurava as espessas paredes de pedra. A única maneira de distinguir o dia da noite era através dos carcereiros. Nenhum dos homens falava com ele, embora Davos soubesse que não eram mudos; às vezes ouvia-os trocar algumas palavras rudes na troca da guarda. Nem sequer lhe disseram como se chamavam, por isso deu-lhes nomes inventados. Ao baixo e forte chamou Mingau, ao curvado e pálido, Lampreia, devido ao empadão. Marcava a passagem dos dias pelas refeições que eles traziam e pelas trocas de archotes na arandela fora de sua cela.

Na escuridão, um homem sente-se só e anseia pelo som da voz humana. Davos dirigia-se aos carcereiros sempre que eles vinham à cela, fosse para lhe trazer comida, fosse para trocar o balde dos dejetos. Sabia que os homens seriam surdos a súplicas por liberdade ou misericórdia; em vez disso fazia-lhes perguntas, na esperança de que talvez um dia algum deles pudesse responder. "Que notícias há da guerra?", perguntava, e"O rei está bem?". Pedia notícias do filho Devan, e da Princesa Shireen, e de Salladhor Saan. "Como anda o tempo?", perguntava, e "As tempestades de outono já começaram?", "Os navios ainda percorrem o mar estreito?".

Não importava o que perguntava; eles nunca respondiam, embora às vezes Mingau lhe dirigisse um olhar, fazendo Davos pensar durante meio segundo que ele se preparava para falar. Com o Lampreia nem isso havia. Para ele, não sou um homem, pensou Davos, não passo de uma pedra que come, caga efala. Passado algum tempo, decidiu que gostava muito mais do Mingau. Este parecia pelo menos saber que ele estava vivo, e havia uma estranha espécie de bondade no homem. Davos suspeitava que ele alimentava as ratazanas; era por isso que havia tantas. Uma vez pensou ter ouvido o carcereiro falar com elas como se fossem crianças, mas isso talvez tivesse sido apenas um sonho.

Eles não pretendem me deixar morrer, compreendeu. Estão me mantendo vivo, para um propósito qualquer. Não gostava de pensar no que esse propósito poderia ser. Lorde Sunglass fora confinado nas celas sob Pedra do Dragão durante algum tempo, tal como os filhos de Sor Hubard Rambton; todos acabaram na pira. Devia ter me entregado ao mar, pensou Davos, sentado, fitando o archote do outro lado das barras. Ou deixar que a vela passasse por mim, para morrer em meu rochedo. Prefiro alimentar caranguejos a chamas.

Então, uma noite, enquanto terminava o jantar, Davos sentiu que um estranho brilho o inundava. Olhou para cima por entre as barras e ali estava ela, vestida com um cintilante tom de escarlate, com seu grande rubi na garganta, e os olhos vermelhos brilhando tanto quanto o archote que a banhava.

- Melisandre - disse, com uma calma que não sentia.

- Cavaleiro das Cebolas - respondeu ela, igualmente calma, como se os dois tivessem se encontrado numa escada ou no pátio e trocassem saudações delicadas. - Está bem?

- Melhor do que já estive.

- Falta alguma coisa a você?

- O meu rei. O meu filho. Ambos me fazem falta. - Pôs a tigela de lado e levantou-se. - Veio me queimar?

Os estranhos olhos vermelhos da mulher estudaram-no através das barras.

- Este é um mau lugar, não é? Um lugar escuro e malcheiroso. O bom sol aqui não brilha, e a lua brilhante também não. - Ergueu uma mão para o archote na arandela da parede. - Isto é tudo que existe entre você e as trevas, Cavaleiro das Cebolas. Este pequeno fogo, esta dádiva de R'hllor. Devo apagá-la?

- Não. - Davos aproximou-se das barras. - Por favor. - Não achava que conseguisse aguentar ser deixado só na escuridão completa, sem nada além das ratazanas para lhe fazer companhia.

Os lábios da mulher vermelha curvaram-se para cima num sorriso.

- Então acabou amando o fogo, ao que parece.

- Preciso do archote. - Suas mãos se abriram e fecharam. Não lhe suplicarei. Não suplicarei.

- Sou como este archote, Sor Davos. Ambos somos instrumentos de R'hllor. Fomos feitos para o mesmo fim... para manter a escuridão afastada. Acredita nisso?

- Não. - Talvez devesse ter mentido e dito o que ela queria ouvir, mas Davos estava habituado demais a falar a verdade. - Você é a mãe das trevas. Eu vi isso sob Ponta Tempestade, quando pariu diante de meus olhos.

- Estará o bravo Sor Cebolas assim tão assustado por uma sombra passageira? Se é assim, anime-se. As sombras só vivem quando são geradas pela luz, e os fogos do rei ardem tão fracos que não me atrevo a tirar-lhe mais para fazer outro filho. Isso poderia até matá-lo. - Melisandre aproximou-se. - Mas com outro homem... um homem cujas chamas ainda se erguem quentes... se realmente deseja servir à causa do seu rei, venha uma noite aos meus aposentos. Poderia dar-lhe prazer tal como nunca conheceu e, com seu fogo da vida, poderia gerar...

-... um horror. - Davos afastou-se dela. - Não quero nada com a senhora. Ou com o seu deus. Que os Sete me protejam.

Melisandre suspirou.

- Eles não protegeram Guncer Sunglass. Rezava três vezes por dia, e usava sete estrelas de sete pontas no escudo, mas quando Rhllor lhe estendeu a mão, suas preces transformaram-se em gritos, e ele ardeu. Por que agarrar-se a esses falsos deuses?

- Adorei-os toda a minha vida.

- Toda a sua vida, Davos Seaworth? Tanto faz dizer que era assim ontem. - Sacudiu a cabeça, tristemente. - Nunca temeu dizer a verdade a reis, por que é que mente a si mesmo? Abra os olhos, sor cavaleiro.

- O que quer que eu veja?

- O modo como o mundo é feito. A verdade está à sua volta, basta olhar para ela. A noite é escura e cheia de terrores, o dia, luminoso, belo e cheio de esperança. Uma é negra, o outro, branco. Há gelo e há fogo. Ódio e amor. Amargor e doçura. Macho e fêmea. Dor e prazer. Inverno e verão. Mal e bem. - Ela deu um passo em sua direção. - Vida e morte. Em toda parte há opostos. Em toda parte há a guerra.

- A guerra? - perguntou Davos.

- A guerra - afirmou ela. - Existem dois, Cavaleiro das Cebolas. Nem sete, nem um, nem cem ou mil. Dois! Acha que atravessei metade do mundo para colocar mais um rei frívolo em mais um trono vazio? A guerra é travada desde o começo dos tempos, e, antes de chegar ao fim, todos os homens devem escolher de que lado se encontram. De um lado está Rhllor, o Senhor da Luz, o Coração de Fogo, o Deus da Chama e da Sombra.

Contra ele ergue-se o Grande Outro, cujo nome não pode ser pronunciado, o Senhor das Trevas, a Alma do Gelo, o Deus da Noite e do Terror. A nossa escolha não é entre Baratheon e Lannister, entre Greyjoy e Stark. O que escolhemos é a morte ou a vida. A escuridão ou a luz. - Agarrou as barras da cela com suas mãos esguias e brancas. O grande rubi em sua garganta pareceu pulsar com esplendor próprio. - Portanto, diga-me, Sor Davos Seaworth, e diga-me a verdade: o seu coração arde com a luz brilhante de Rhllor? Ou é negro, frio e cheio de vermes? - Estendeu a mão através das barras e pousou três dedos no peito de Davos, como que para sentir a sua verdade através de carne, lã e couro.

- Meu coração - disse lentamente Davos - está cheio de dúvidas.

Melisandre suspirou.

- Ahhhh, Davos. O bom cavaleiro é honesto até o fim, mesmo no seu dia de trevas. É bom que não tenha mentido para mim. Eu teria sabido. Os servos do Outro frequentemente escondem corações negros sob uma luz vívida, por isso R'hllor dá aos seus sacerdotes o poder de ver através das falsidades. - Afastou-se da cela com um passo ligeiro. - Por que queria me matar?

- Direi - disse Davos - se me disser quem me traiu. - Só poderia ter sido Salladhor Saan, mas ainda agora rezava para que não tivesse sido.

A mulher vermelha soltou uma gargalhada.

- Ninguém o traiu, Cavaleiro das Cebolas. Vi suas intenções nas minhas chamas.

As chamas.

- Se pode ver o futuro nessas chamas, como foi que ardemos na Água Negra? Entregou meus filhos ao fogo... meus filhos, meu navio, meus homens, todos queimando...

Melisandre balançou a cabeça.

- Trata-me injustamente, Cavaleiro das Cebolas. Esses incêndios não foram meus. Se eu estivesse com vocês, sua batalha teria tido um final diferente. Mas Sua Graça estava rodeado de descrentes, e seu orgulho mostrou-se mais forte do que sua fé. A punição foi severa, mas aprendeu com o erro.

Então meus filhos nada mais foram do que uma lição para um rei? Davos sentiu sua boca contrair.

- Agora é noite nos seus Sete Reinos - prosseguiu a mulher vermelha -, mas logo o sol voltará a se levantar. A guerra continua, Davos Seaworth, e certos homens aprenderão em breve que até uma brasa entre cinzas ainda pode causar um grande incêndio. O velho meistre olhava para Stannis e via apenas um homem. Você vê um rei. Ambos se enganam. Ele é o escolhido do Senhor, o guerreiro do fogo. Vi-o à frente da luta contra a escuridão, vi-o nas chamas. As chamas não mentem, caso contrário você não estaria aqui. Isso também está escrito na profecia. Quando a estrela vermelha sangra e as trevas reúnem forças, Azor Ahai renascerá por entre fumaça e sal, para acordar dragões da pedra. A estrela sangrenta já chegou e partiu, e Pedra do Dragão é o local de fumaça e sal. Stannis Baratheon é Azor Ahai renascido! - Os olhos vermelhos da mulher ardiam como fogueiras gêmeas, e pareceram fitar as profundezas da alma de Davos. - Não acredita em mim. Até agora duvida da verdade de Rhllor... e no entanto, serviu-o mesmo assim, e voltará a servi-lo. Vou deixá-lo aqui para pensar em tudo o que lhe disse. E, porque Rhllor é a fonte de todo o bem, deixarei também o archote.

Com um sorriso e um rodopio de saias escarlates, desapareceu. Só o seu odor permaneceu depois de ela partir. Isso e o archote. Davos abaixou-se até o chão da cela e abraçou os joelhos. A luz inconstante do archote varria-o. Depois que os passos de Melisandre deixaram de ser ouvidos, o único som que ficou foi o arranhar das ratazanas. Gelo e fogo, pensou. Branco e preto. Trevas e luz. Davos não podia negar o poder do deus dela. Tinha visto a sombra sair do ventre de Melisandre, e a sacerdotisa sabia coisas que não tinha como saber. Ela viu as minhas intenções nas chamas. Era bom saber que Salla não o vendera, mas a ideia de a mulher vermelha espiar seus segredos com suas fogueiras inquietava-o mais do que conseguiria exprimir. E o que ela quis dizer quando falou que eu servi seu deus e voltarei a servi-lo? Também não tinha gostado disso.

Ergueu os olhos para fitar o archote. Olhou-o durante muito tempo, sem piscar, observando as chamas mudando e tremeluzindo. Tentou ver para além delas, espreitar através da cortina de fogo e vislumbrar o que quer que vivesse lá atrás... mas nada havia, apenas fogo, e após algum tempo seus olhos começaram a lacrimejar.

Ofuscado e cansado, Davos enrolou-se na palha e entregou-se ao sono.

Três dias mais tarde - bem, o Mingau tinha vindo três vezes e o Lampreia, duas - Davos ouviu vozes à porta de sua cela. Sentou-se de imediato, com as costas apoiadas na parede de pedra, escutando os sons de uma luta. Aquilo era novo, uma mudança em seu mundo imutável. O ruído vinha do lado esquerdo, onde os degraus levavam à luz do dia. Conseguia ouvir uma voz de homem, suplicando e gritando.

- ... loucura! - o homem dizia quando surgiu à vista de Davos, arrastado entre dois guardas com corações flamejantes no peito. Mingau vinha à frente deles, fazendo tilintar um anel cheio de chaves, e Sor Axell Florent caminhava atrás. - Axell - disse o prisioneiro em tom de desespero pelo apreço que tem por mim, solte-mel Não pode fazer isso, eu não sou nenhum traidor. - Era um homem de certa idade, alto e esguio, com cabelos prateados, barba pontiaguda e rosto longo e elegante retorcido de medo. - Onde está Selyse, onde está a rainha? Exijo vê-la. Que os Outros carreguem todos vocês! Soltem-mel

Os guardas não prestaram atenção ao alarido que o homem fazia.

- Aqui? - perguntou o Mingau em frente à cela. Davos ficou em pé. Por um instante pensou em tentar precipitar-se sobre eles quando a porta fosse aberta, mas isso era uma loucura. Eles eram muitos, os guardas tinham espadas, e Mingau era forte como um touro.

Sor Axell assentiu bruscamente para o carcereiro.

- Que os traidores gozem da companhia um do outro.

- Eu não sou traidor coisa nenhuma! - guinchou o prisioneiro enquanto Mingau destrancava a porta. Embora estivesse vestido de forma simples, com um gibão de lã cinza e calções pretos, sua maneira de falar identificava-o como nobre. Seu nascimento não o beneficiará aqui, pensou Davos.

Mingau abriu as barras por completo, Sor Axell fez um aceno, e os guardas atiraram seu cativo, de cabeça, para dentro da cela. O homem tropeçou e poderia ter caído, mas Davos agarrou-o. Ele libertou-se imediatamente com uma sacudida e correu cambaleando para a porta, apenas para vê-la fechada na sua cara pálida e mimada.

- Não - gritou. - Nãããããão. - Toda a força abandonou de repente suas pernas e ele deslizou lentamente para o chão, agarrando-se às barras de ferro. Sor Axell, Mingau e os guardas já tinham se virado para partir. - Não podem fazer isso - gritou o prisioneiro para as costas dos homens que se afastavam. - Eu sou a Mão do Rei!

Foi então que Davos o reconheceu.

- É Alester Florent.

O homem virou a cabeça.

- Quem...?

- Sor Davos Seaworth.

Lorde Alester pestanejou.

- Seaworth... o cavaleiro das cebolas. Tentou assassinar Melisandre.

Davos não negou.

- Em Ponta Tempestade usou uma armadura vermelho-dourada, com flores de lápis-lazúli incrustadas na placa de peito. - Estendeu uma mão para ajudar o outro homem a pôr-se em pé.

Lorde Alester sacudiu a palha imunda de suas roupas.

- Eu... eu devo desculpar-me por minha aparência, sor. Minhas arcas foram perdidas quando os Lannister invadiram nosso acampamento. Escapei sem nada exceto a cota de malha que trazia no corpo e os anéis nos dedos.

E ainda usa esses anéis, reparou Davos, que perdera até parte de seus dedos.

- Sem dúvida que algum ajudante de cozinha ou palafreneiro anda agora se pavoneando por Porto Real com o meu gibão fendido de veludo e o manto cravejado de jóias - prosseguiu Lorde Alester, absorto. - Mas a guerra tem seus horrores, como todos sabem. Sem dúvida você também sofreu suas próprias perdas.

- Meu navio - disse Davos. - Todos os meus homens. Quatro de meus filhos.

- Que o... que o Senhor da Luz os faça atravessar as trevas até um mundo melhor - disse o outro homem.

Que o Pai os julgue com justiça, e a Mãe lhes conceda misericórdia, pensou Davos, mas guardou a prece para si. Os Sete não tinham mais lugar em Pedra do Dragão.

- Meu filho está a salvo em Águas Claras - prosseguiu o lorde -, mas perdi um sobrinho no Fúria. Sor Imry, filho de meu irmão Ryam.

Foi Sor Imry Florent quem os levou cegamente pela Torrente da Água Negra adentro, com todos os remos em ação, sem prestar atenção nas pequenas torres de pedra na foz do rio. Não era provável que Davos se esquecesse dele.

- Meu filho Maric era mestre dos remadores de seu sobrinho. - Lembrou-se do último vislumbre que tivera do Fúria, envolto em fogovivo. - Houve alguma notícia de sobreviventes?

- O Fúria queimou e afundou com toda a tripulação - disse sua senhoria. - Seu filho e meu sobrinho perderam-se, com um número incontável de outros bons homens. A própria guerra foi perdida nesse dia, sor.

Esse homem está derrotado. Davos recordou a conversa de Melisandre a respeito das brasas nas cinzas gerarem grandes incêndios. Não me admira que tenha acabado aqui.

- Sua Graça nunca se renderá, senhor.

- Uma loucura, isso é uma loucura. - Lorde Alester voltou a se sentar no chão, como se o esforço de ficar em pé por um momento tivesse sido excessivo para ele. - Stannis Baratheon nunca ocupará o Trono de Ferro. Será traição dizer a verdade? Uma verdade amarga, mas não menos verdadeira por isso. Já não tem frota, à exceção dos lisenos, e Salladhor Saan fugirá assim que avistar uma vela Lannister. A maior parte dos senhores que apoiaram Stannis passaram para o lado de Joffrey ou morreram...

- Até os senhores do mar estreito? Os senhores juramentados a Pedra do Dragão?

Lorde Alester abanou debilmente as mãos.

- Lorde Celtigar foi capturado e rendeu-se. Monford Velaryon morreu com o seu navio, a mulher vermelha queimou Sunglass, e Lorde Bar Emmon tem quinze anos, é gordo e frágil. São esses os senhores do mar estreito. Só restam a Stannis as forças da Casa Florent, contra todo o poderio de Jardim de Cima, Lançassolar e Rochedo Casterly, e agora também da maior parte dos senhores da tempestade. A melhor esperança que resta é tentar salvar qualquer coisa com a paz. Foi isso que tentei fazer. Pela bondade dos deuses, como podem chamar isso de traição?

Davos franziu a testa.

- Senhor, o que fez?

- Traição, não. Traição, nunca. Adoro Sua Graça mais do que qualquer outro homem. Minha própria sobrinha é a rainha dele, e permaneci fiel quando homens mais sensatos desertaram. Sou sua Mão, a Mão do Rei, como posso ser um traidor? Só quis salvar nossas vidas e... honra... sim. - Lambeu os lábios. - Escrevi uma carta. Salladhor Saan jurou que tinha um homem que podia levá-la a Porto Real, ao Lorde Tywin. Sua senhoria é um... um homem de razão, e os meus termos... os termos eram justos... mais do que justos.

- Que termos eram esses, senhor?

- Isto aqui está imundo - disse de repente Lorde Alester. - E esse cheiro... o que é esse cheiro?

- O balde - disse Davos com um gesto. - Aqui não temos latrina. Que termos?

Sua senhoria fitou o balde, horrorizado.

- Que Lorde Stannis retiraria sua pretensão ao Trono de Ferro e se retrataria de tudo o que havia dito a respeito da bastardia de Joffrey, sob a condição de ser aceito de volta à paz do rei e confirmado como Senhor de Pedra do Dragão e Ponta Tempestade. Jurei fazer o mesmo, em troca da devolução da Fortaleza de Águas Claras e de todas as nossas terras. Pensei... Lorde Tywin compreenderia o bom senso de minha proposta. Ele ainda precisa lidar com os Stark e também com os homens de ferro. Sugeri selarmos o acordo casando Shireen com o irmão de Joffrey, Tommen. - Balançou a cabeça. - Os termos... eram os melhores que poderemos alcançar. Até você certamente compreende?

- Sim - disse Davos -, até eu. - A não ser que Stannis gerasse um filho, um casamento assim significaria que Pedra do Dragão e Ponta Tempestade passariam um dia para as mãos de Tommen, o que sem dúvida agradaria a Lorde Tywin. Ao mesmo tempo, os Lannister teriam Shireen como refém para se certificarem de que Stannis não causaria mais rebeliões. - E o que disse Vossa Graça quando lhe propôs esses termos?

- Ele está sempre com a mulher vermelha, e... receio que não esteja no seu juízo completo. Essa conversa sobre um dragão de pedra... loucura, digo eu, pura loucura. Será que não aprendemos nada com Aerion Fogovivo, com os nove magos, com os alquimistas? Será que não aprendemos nada com Solarestival? Nunca bem algum veio desses sonhos de dragões, foi o que eu disse a Axell. A minha maneira era melhor. Mais segura. E Stannis deu-me seu selo, deu-me licença para governar. A Mão fala com a voz do rei.

- Nisso, não. - Davos não era cortesão, e sequer tentou amaciar as palavras. - A rendição não existe em Stannis, enquanto souber que suas razões são justas. Da mesma forma que não pode desdizer as palavras contra Joffrey, quando as crê verdadeiras. E, quanto ao casamento, Tommen nasceu do mesmo incesto que Joffrey, e Sua Graça antes gostaria de ver Shireen morta do que casada com alguém assim.

Uma veia latejava na testa de Florent.

- Ele não tem outra opção.

- Engana-se, senhor. Ele pode escolher morrer como rei.

- E levar-nos com ele? - É isso que deseja, Cavaleiro das Cebolas?

- Não. Mas sou um homem do rei, e não farei qualquer paz sem a permissão dele. Lorde Alester fitou-o impotente por um longo momento e então começou a chorar.

Jon

A última noite caiu, negra e sem lua, mas pela primeira vez o céu estava limpo.

- Vou subir o monte para procurar o Fantasma - disse aos Thenns na entrada da caverna, e eles soltaram um grunhido e deixaram-no passar.

Tantas estrelas, pensou, enquanto subia penosamente a encosta por entre pinheiros, abetos e freixos. O Meistre Luwin ensinara-lhe as estrelas, na infância passada em Winterfell; havia aprendido o nome das doze casas do céu e o dos regentes de cada uma; conseguia encontrar os sete viajantes sagrados para a Fé; era velho amigo do Dragão de Gelo, do Gato das Sombras, da Donzela da Lua e da Espada da Manhã. Dividia todos estes com Ygritte, mas não alguns dos outros. Erguemos os olhos para as mesmas estrelas, e vemos coisas tão diferentes. Segundo ela, a Coroa do Rei era o Berço; o Garanhão era o Senhor Chifrudo; o viajante vermelho, que segundo as orações dos septões era sagrado para o seu Ferreiro, ali em cima era chamado de Ladrão. E quando o Ladrão se encontrava na Donzela da Lua, insistia Ygritte, isso queria dizer que a época era propícia para que um homem raptasse uma mulher.

- Como na noite em que me raptou. O Ladrão estava brilhante naquela noite.

- Não pretendia raptá-la - disse ele. - Nem sabia que era uma mulher até encostar a faca na sua garganta.

- Se matar um homem sem querer, ele vai estar morto do mesmo jeito - disse Ygritte teimosamente. Jon nunca havia conhecido pessoa mais teimosa, exceto talvez sua irmã mais nova, Arya. Será que ela ainda é minha irmã?, perguntou a si próprio. Alguma vez terá sido? Ele nunca realmente fora um Stark, apenas o bastardo sem mãe de Lorde Eddard, que não tinha mais lugar em Winterfell do que Theon Greyjoy. E mesmo isso perdera. Quando um homem da Patrulha da Noite proferia suas palavras, punha de lado sua antiga família e juntava-se a uma nova, mas Jon Snow tinha perdido também esses irmãos.

Encontrou Fantasma no topo do monte, como imaginara. O lobo branco nunca uivava, entanto algo o atraía às alturas mesmo assim, e ficava ali sentado, com o hálito quente levantando-se numa névoa branca enquanto seus olhos vermelhos bebiam as estrelas. Você também tem nomes para elas? - perguntou Jon quando se ajoelhou ao lado do lobo gigante e coçou os espessos pelos brancos do pescoço do animal. - A Lebre? A Corça? A Loba? - Com sua língua úmida e áspera, Fantasma lambeu o rosto de Jon, raspando as crostas onde as garras da águia tinham rasgado sua face. A ave marcou-nos a ambos, Jon pensou. - Fantasma - disse, em voz baixa -, amanhã de manhã passamos sobre a Muralha. Aqui não há degraus, não há gaiola e grua, não há como levá-lo para o outro lado. Temos de nos separar. Compreende?

Na escuridão, os olhos vermelhos do lobo gigante pareciam negros. Encostou o focinho no pescoço de Jon, silencioso como sempre, com o hálito numa névoa quente. Os selvagens chamavam Jon Snow de warg, mas se o era, era dos ruins. Não sabia como vestir uma pele de lobo, como Orell vestia a de sua águia antes de morrer. Um dia Jon sonhara que era Fantasma, e olhava o vale do Guadeleite onde Mance Rayder reunira seu povo, e esse sonho revelou-se verdadeiro. Mas agora não estava sonhando, e isso deixava-lhe apenas as palavras.

- Não pode vir comigo - disse Jon, envolvendo a cabeça do lobo nas mãos e olhando-o profundamente nos olhos. - Tem de ir para Castelo Negro. Compreende? Castelo Negro. Consegue encontrá-lo? O caminho para casa? É só seguir o gelo, para leste e mais para leste, para o sol, e vai encontrá-lo. Em Castelo Negro vão reconhecê-lo, e sua chegada talvez os previna. - Pensara em escrever um aviso para Fantasma levar, mas não tinha tinta nem pergaminho, nem sequer uma pena, e o risco de ser descoberto era grande demais. - Encontramo-nos em Castelo Negro, mas tem de chegar lá sozinho. Temos de caçar sozinhos durante algum tempo. Sozinhos.

O lobo gigante libertou-se de Jon com uma torção do corpo, suas orelhas ergueram-se. E de repente afastou-se aos saltos. Pulou através de um emaranhado de mato, saltou sobre uma árvore caída e correu pela vertente do monte, um traço branco entre as árvores. Para Castelo Negro?, perguntou Jon a si mesmo. Ou atrás de uma lebre? Gostaria de saber. Temia revelar-se tão ruim como warg quanto como irmão juramentado e espião.

Um vento suspirou por entre as árvores, rico com o cheiro de agulhas de pinheiro, puxando sua roupa negra desbotada. Jon via a Muralha erguer-se alta e escura ao sul, uma grande sombra que bloqueava as estrelas. O terreno montanhoso dava-lhe a ideia de que deviam estar em algum lugar entre Torre Sombria e Castelo Negro, provavelmente mais perto da Torre. Havia dias em que se dirigiam para o sul, por entre lagos profundos que se estendiam como dedos finos compridos ao longo de vales estreitos, enquanto cumeadas de sílex e montes vestidos de pinheiros se empurravam uns contra os outros de ambos os lados. Um terreno assim levava a um avanço lento, mas escondia facilmente aqueles que queriam se aproximar da Muralha sem serem vistos.

Corsários selvagens, pensou. Como nós. Como eu.

Para lá daquela Muralha ficavam os Sete Reinos, e tudo aquilo que jurara proteger. Tinha proferido as palavras, empenhado sua vida e sua honra, e o correto seria estar lá em cima, de sentinela. Devia estar levando um berrante aos lábios para chamar a Patrulha da Noite às armas. Mas não tinha berrante. Suspeitava que não seria difícil roubar um dos selvagens, mas o que conseguiria com isso? Mesmo se o soprasse, não haveria ninguém para ouvir. A Muralha tinha cem léguas de comprimento, e a Patrulha estava tristemente reduzida. Todos os fortes, exceto três, tinham sido abandonados; podia não haver nem um irmão num raio de cerca de sessenta e cinco quilômetros, além de si. Se é que ele ainda era um irmão...

Devia ter tentado matar Mance Rayder no Punho, mesmo se isso significasse perder a vida. Isso seria o que Qhorin Meia-Mão teria feito. Mas Jon hesitara, e a oportunidade tinha passado. No dia seguinte partiu para o sul com Styr, o Magnar, Jarl e mais de uma centena de Thenns e batedores escolhidos. Dizia a si mesmo que estava apenas à espera de sua hora, que, quando o momento chegasse, escaparia e se dirigiria a Castelo Negro. O momento nunca chegou. Descansavam a maior parte das noites em aldeias selvagens abandonadas, e Styr punha sempre uma dúzia dos seus Thenns para guardar os cavalos. Jarl vigiava-o desconfiadamente. E Ygritte nunca estava longe, de dia ou de noite.

Dois corações que batem como um só. As palavras zombeteiras de Mance Rayder ressoavam, amargas, em sua cabeça. Jon poucas vezes se sentira tão confuso. Não tenho alternativa, disse a si mesmo da primeira vez, quando ela deslizou para baixo de suas peles de dormir. Se recusá-la, ela compreenderá que sou um vira-casaca. Estou desempenhando o papel que o Meia-Mão me disse para desempenhar.

Seu corpo desempenhou o papel com bastante avidez. Seus lábios nos dela, sua mão deslizando por baixo da camisa de pele de veado de Ygritte em busca de um seio, seu membro viril enrijecendo quando ela esfregou nele o seu monte através da roupa. O5 meus votos, pensou, recordando o grupo de represeiros onde os proferiu, as nove grandes árvores brancas dispostas em círculo, os rostos vermelhos esculpidos observando, escutando. Mas os dedos de Ygritte desatavam seus cordões, e a língua dela estava na sua boca, e a mão dela tinha deslizado para dentro de sua roupa de baixo e trazido-o para fora, e ele já não conseguia ver os represeiros, só Ygritte. Ela mordeu seu pescoço, e ele esfregou o nariz no dela, enterrando-o em seus espessos cabelos ruivos. Sortuda, pensou, ela é sortuda, beijada pelo fogo.

- Não é bom? - sussurrou Ygritte enquanto o guiava para dentro de si. Estava ensopada, lá embaixo, e não era nenhuma donzela, isso era evidente, mas Jon não se importou. Os votos dele, a virgindade dela, nada importava, só interessava o seu calor, a sua boca na dele, o dedo que lhe beliscava o mamilo. - Não é muito bom? - voltou a dizer. - Não tão depressa, oh, devagar, sim, assim. Aí, aí, sim, bom, bom. Não sabe nada, Jon Snow, mas eu posso ensinar. Agora mais depressa. Siiiiim.

Um papel, Jon tentou lembrar a si mesmo mais tarde. Estou desempenhando um papel. Tinha de fazer isso uma vez, para provar que abandonei meus votos. Tive de fazer com que ela confiasse em mim. Não precisava acontecer novamente. Ainda era um homem da Patrulha da Noite, e um filho de Eddard Stark. Fizera o que tinha de ser feito, demonstrara o que tinha de ser demonstrado.

Mas a demonstração tinha sido muito agradável, e Ygritte havia adormecido ao seu lado, com a cabeça apoiada em seu peito, e isso também tinha sido agradável, perigosamente agradável. Voltou a pensar nos represeiros, e nas palavras que disse diante deles. Foi só uma vez, e teve de ser. Até meu pai tropeçou uma vez, quando se esqueceu dos votos de casamento e gerou um bastardo. Jon jurou a si mesmo que não repetiria o mesmo erro. Não voltará a acontecer.

Aconteceu mais duas vezes naquela mesma noite, e de novo de manhã, quando ela acordou e o encontrou duro. Os selvagens já se agitavam a essa altura, e vários não puderam evitar reparar no que estava se passando sob a pilha de peles. Jarl disse-lhes que se apressassem antes de ter de despejar um balde de água em cima deles. Como um par de cães no cio, pensou Jon mais tarde. Será que ele teria se transformado nisso? Sou um homem da Patrulha da Noite, insistia uma vozinha dentro de si, mas todas as noites ela parecia um pouco mais distante, e quando Ygritte beijava suas orelhas ou mordia seu pescoço, não conseguia ouvi-la muito bem. Terá sido isso que aconteceu com meu pai?, perguntava Jon a si mesmo. Seria ele tão fraco quanto eu, quando se desonrou na cama de minha mãe?

Percebeu subitamente que algo subia o monte atrás dele. Durante meio segundo pensou que poderia ser o Fantasma de volta, mas o lobo gigante nunca fazia tanto barulho. Jon desembainhou a Garra-longa num único movimento fluido, mas era apenas um dos Thenns, um homem largo com um elmo de bronze.

- Snow - disse o intruso. - Venha. Magnar quer. - Os homens de Thenn falavam o Idioma Antigo, e a maior parte não sabia mais do que algumas palavras do Idioma Comum.

Jon não estava muito interessado em saber o que Magnar queria, mas não valia a pena discutir com alguém que quase não o compreenderia, por isso seguiu o homem monte abaixo.

A abertura da caverna era uma fenda na rocha que quase não era larga o suficiente para um cavalo, meio escondida por baixo de um pinheiro marcial. Abria para o norte, de modo que o brilho das fogueiras acesas lá dentro não seriam visíveis da Muralha. Mesmo se, por algum infortúnio, uma patrulha passasse no topo da Muralha naquela noite, nada veria além de montes, pinheiros e a cintilação gelada das estrelas num lago semicongelado. Mance Rayder planejara bem a sua arremetida.

Dentro da rocha, a passagem descia seis metros antes de desembocar num espaço tão grande quanto o Grande Salão de Winterfell. Ardiam fogueiras por entre as colunas, com a fumaça subindo, enegrecendo o teto de pedra. Os cavalos tinham sido presos ao longo de uma parede, junto a uma lagoa rasa. Um buraco no centro do chão abria-se para o que podia ser uma caverna ainda maior embaixo, embora a escuridão tornasse difícil ter certeza disso. Jon ouvia também o suave ruído de um riacho subterrâneo que corria em algum lugar lá embaixo.

Jarl estava com Magnar; Mance entregara-lhes o comando conjunto. Jon notou rapidamente que Styr não estava nada satisfeito com isso. Mance Rayder chamou o escuro jovem de "animal de estimação" de Val, que era irmã de Dalla, a sua rainha, o que fazia de Jarl uma espécie de cunhado do Rei-para-lá-da-Muralha. Era evidente que Magnar se ressentia de partilhar sua autoridade. Havia trazido uma centena de Thenns, cinco vezes mais homens do que Jarl, e muitas vezes agia como se ele tivesse o comando completo. Mas Jon sabia que seria o homem mais novo quem os levaria para o outro lado do gelo. Embora não pudesse ter mais do que vinte anos, Jarl já fazia incursões havia oito, e passara por cima da Muralha uma dúzia de vezes com gente como Alfyn Mata-Corvos e Chorão, e mais recentemente com seu próprio bando.

Magnar foi direto.

- Jarl preveniu-me a respeito de corvos patrulhando lá em cima. Diga-me tudo o que sabe dessas patrulhas.

Diga-me, notou Jon, e não diga-nos, apesar de Jarl estar bem ao lado dele. Nada lhe daria mais prazer do que recusar a brusca exigência, mas sabia que Styr mandaria matá-lo pela mais ligeira deslealdade, e a Ygritte também, pelo crime de ser sua.

- Há quatro homens em cada patrulha, dois patrulheiros e dois construtores - disse. - Os construtores devem tomar nota de fendas, derretimentos e outros problemas estruturais, enquanto os patrulheiros procuram sinais de inimigos. Montam mulas.

- Mulas? - o homem sem orelhas franziu a testa. - As mulas são lentas.

- São lentas, mas têm patas mais seguras no gelo. É frequente que as patrulhas sigam pelo topo da Muralha, e, longe de Castelo Negro, os caminhos lá em cima já não recebem cascalho há longos anos. As mulas são criadas em Atalaialeste e especialmente treinadas para o serviço.

- É frequente que sigam pelo topo da Muralha? Nem sempre seguem?

- Não. Uma patrulha em cada quatro segue pela base, para procurar fendas no gelo das fundações ou sinais de abertura de túneis.

Magnar assentiu com a cabeça.

- Até na distante Thenn conhecemos a história de Arson Machado de Gelo e de seu túnel.

Jon também conhecia a história. Arson Machado de Gelo já tinha atravessado metade da Muralha quando seu túnel foi descoberto por patrulheiros vindos de Fortenoite. Não se incomodaram em perturbar suas escavações, limitaram-se a selar o caminho de volta com gelo, pedra e neve. Edd Doloroso costumava dizer que, caso se encostasse a orelha na Muralha, ainda se conseguia ouvir Arson dando machadadas no gelo.

- Quando saem essas patrulhas? Com que frequência?

Jon encolheu os ombros.

- Varia. Ouvi dizer que o Senhor Comandante Qorgyle costumava enviá-las de três em três dias de Castelo Negro para Atalaialeste do Mar, e de dois em dois dias de Castelo Negro para Torre Sombria. Mas a Patrulha tinha mais homens no tempo dele. O Senhor Comandante Mormont prefere variar o número de patrulhas e os dias de sua partida, para tornar mais difícil que alguém saiba de suas idas e vindas. E às vezes o Velho Urso até mandava uma força maior para um dos castelos abandonados durante uma quinzena ou uma volta de lua. - Jon sabia que fora o tio quem dera origem a essa tática. Tudo para deixar o inimigo incerto.

- Portapedra está atualmente guarnecido? - perguntou Jarl. - Guardagris?

Quer dizer então que estamos entre esses dois? Jon manteve o rosto cuidadosamente inexpressivo.

- Só Atalaialeste, Castelo Negro e Torre Sombria tinham guarnições quando eu deixei a Muralha. Não sei dizer o que Bowen Marsh ou Sor Denys poderão ter feito desde então.

- Quantos corvos permanecem dentro dos castelos? - perguntou Styr.

- Quinhentos em Castelo Negro. Duzentos na Torre Sombria, talvez trezentos em Atalaialeste. - Jon havia acrescentado trezentos homens à contagem. Se pudesse ser assim tão fácil..

Mas Jarl não se deixou enganar.

- Ele está mentindo - disse a Styr. - Ou então incluiu aqueles que se perderam no Punho.

I - Corvo - avisou o Magnar não me tome por Mance Rayder. Se mentir para mim, corto sua língua.

- Não sou nenhum corvo, e ninguém me chama de mentiroso. - Jon flexionou os dedos de sua mão da espada.

Magnar de Thenn estudou Jon com seus frios olhos cinzentos.

- Vamos conhecer seus números em breve - disse após um momento. - Vá. Logo mando chamar você se tiver mais perguntas.

Jon inclinou a cabeça rigidamente e partiu. Se todos os selvagens fossem como Styr, seria mais fácil traí-los. Mas os Thenn não eram como o resto do povo livre. Magnar afirmava ser o último dos Primeiros Homens, e governava com mão de ferro. A sua pequena terra de Thenn era um vale elevado de montanha escondido entre os picos setentrionais das Presas de Gelo, rodeado por homens das cavernas, homens de Cornopé, gigantes e os clãs canibais dos rios de gelo. Ygritte dizia que os Thenn eram guerreiros violentos, e que seu Magnar era para eles um deus. Jon conseguia acreditar nisso. Ao contrário de Jarl, Harma ou de Camisa de Chocalho, Styr exigia de seus homens obediência absoluta, e essa disciplina era sem dúvida parte do motivo por que Mance o escolhera para atravessar a Muralha.

Passou pelos Thenns, sentados sobre seus elmos arredondados de bronze, em volta das fogueiras. Onde se meteu Ygritte? Encontrou as coisas dela junto das suas, mas não viu sinal da garota.

- Ela pegou uma tocha e foi para lá - disse-lhe Grigg, o Bode, apontando para o fundo da caverna.

Jon seguiu na direção indicada e deu por si numa sombria sala interior, vagueando um labirinto de colunas e estalactites. Ela não pode estar aqui, estava pensando quando ouviu sua gargalhada. Virou-se para o som, mas dez passos depois estava num beco sem saída, de frente para uma parede lisa de calcário branco e rosa. Confuso, voltou por onde tinha vindo, e então viu-o: um buraco escuro por baixo de uma saliência de pedra úmida. Ajoelhou-se, escutou, ouviu o tênue som de água.

- Ygritte?

- Aqui - veio a voz dela, com um leve eco.

Jon teve de engatinhar uma dúzia de passos até a caverna se abrir à sua volta. Quando voltou a ficar em pé, os olhos precisaram de um momento para se ajustarem. Ygritte tinha trazido uma tocha, mas não havia nenhuma outra luz. Ela encontrava-se junto a uma pequena queda-dagua que jorrava de uma fissura na rocha para uma larga lagoa escura. As chamas amarelas e laranja brilhavam na água verde-clara.

- O que você está fazendo aqui? - perguntou a ela.

- Ouvi água. Quis ver pra onde ia a gruta. - Apontou com a tocha. - Há uma passagem que desce mais. Segui-a durante cem passos antes de voltar.

- Um beco sem saída?

- Não sabe nada, Jon Snow. Continuava, e continuava, e continuava. Há centenas de cavernas nestes montes, e lá embaixo todas se juntam. Há até um caminho por baixo da Muralha. O Caminho de Gorne.

- Gorne - disse Jon. - Gorne foi Rei-para-lá-da-Muralha.

- Sim - disse Ygritte. - Com o irmão Gendel, há três mil anos. Levaram uma tropa do povo livre pelas cavernas e a patrulha não percebeu. Mas quando saíram, os lobos de Winterfell caíram sobre eles.

- Houve uma batalha - recordou Jon. - Gorne matou o Rei do Norte, mas o filho deste pegou o estandarte e tomou a coroa de sua cabeça, e abateu Gorne, por sua vez.

- E o som das espadas acordou os corvos em seus castelos, e saíram todos de preto pra pegar o povo livre pela retaguarda.

- Sim. Gendel tinha o rei ao sul, os Umber a leste e a Patrulha a norte. Ele também morreu.

- Não sabe nada, Jon Snow. Gendel não morreu. Ele abriu caminho com a espada, por entre os corvos, e levou seu povo de volta pro norte com os lobos uivando nos seus calcanhares. Mas Gendel não conhecia as cavernas como Gorne, e escolheu um caminho errado. - Agitou a tocha de um lado para o outro, para que as sombras saltassem e se movessem. - Desceu mais, e mais, e quando tentou voltar pra trás, os caminhos que pareciam familiares acabavam em pedra em vez de céu. Pouco depois, os seus archotes começaram a se apagar, um por um, até que no fim não havia nada além de escuridão. O povo de Gendel nunca mais foi visto, mas nas noites calmas é possível ouvir os filhos dos filhos de seus filhos soluçando por baixo dos montes, ainda à procura de uma saída. Está ouvindo? Consegue ouvi-los?

Tudo que Jon ouvia era a água que caía e o tênue crepitar das chamas.

- Esse caminho por baixo da Muralha também se perdeu?

- Alguns procuraram-no. Aqueles que descem demais encontram os filhos de Gendel, e os filhos de Gendel sempre tão com fome. - Sorrindo, encaixou cuidadosamente a tocha num entalhe de rocha e dirigiu-se a ele. - No escuro não há nada pra comer além de carne - sussurrou, mordendo-lhe o pescoço.

Jon enfiou o nariz nos cabelos dela e encheu-o com seu cheiro.

- Parece a Velha Ama contando a Bran uma história de monstros.

Ygritte deu um murro no ombro dele.

- Ah, sou uma velha, é?

- E mais velha do que eu.

- Sim, e mais sábia. Você não sabe nada, Jon Snow. - Empurrou-o e contorceu-se para fora de seu vestido de pele de coelho.

- O que você está fazendo?

- Estou mostrando a idade que tenho. - Desatou a camisa de pele de veado, atirou-a para o lado, tirou pela cabeça todas as três camisolas de lã que usava por baixo. - Acho que devia me ver.

- Nós não devíamos...

- Devíamos. - Os seios dela saltitaram quando se equilibrou num pé só para puxar uma bota, e depois saltou para o outro pé, para tratar da outra. Seus mamilos eram grandes círculos cor-de-rosa. - Você também - disse Ygritte enquanto puxava para baixo os calções de pele de ovelha de Jon. - Se quer ver, precisa mostrar. Não sabe nada, Jon Snow.

- Sei que desejo você - ouviu sua própria voz dizer, esquecido de todos os votos e honra. Ela estava na sua frente, nua como no dia em que nasceu, e ele estava duro como a rocha que os rodeava. Àquela altura já tinha estado dentro dela meia centena de vezes, mas sempre por baixo das peles, com outras pessoas em volta. Nunca vira como ela era bela. As pernas de Ygritte eram magras, mas bem torneadas; os pelos no local onde as coxas se juntavam, de um vermelho mais vivo do que os que tinha na cabeça. Será que isso jaz dela ainda mais sortuda? Puxou-a para mais perto.

- Adoro seu cheiro - disse. - Adoro seus cabelos vermelhos. Adoro sua boca, e o jeito como me beija. Adoro seu sorriso. Adoro seus peitos. - Beijou-os, primeiro um e depois o outro. - Adoro suas pernas magras, e o que está entre elas. - Ajoelhou-se para beijá-la ali, a princípio levemente em seu monte de vénus, mas Ygritte abriu um pouco as pernas e ele viu o cor-de-rosa no interior e beijou-o também, e saboreou-o. Ela soltou um pequeno arquejo.

- Se adora tudo isso, por que é que ainda tá vestido? - sussurrou. - Não sabe nada, Jon Snow. Nad... ok Ok OHHH.

Mais tarde, ela ficou quase acanhada, ou tão acanhada quanto Ygritte poderia ficar.

- Aquela coisa que você fez - disse, deitada com ele na pilha de roupas. - Com a sua... boca. - Hesitou. - E isso... é isso que os senhores fazem com suas senhoras, lá no sul?

- Acho que não. - Nunca ninguém havia dito a Jon o que os senhores faziam com as suas senhoras. - Eu só... quis beijar ali, foi só isso. Parece que você gostou.

- Sim. Eu... gostei um bocadinho. Ninguém lhe ensinou aquilo?

- Não houve ninguém - confessou ele. - Só você.

- Um donzelo - brincou ela. - Era um donzelo.

Ele deu-lhe um beliscão brincalhão no mamilo mais próximo.

- Eu era um homem da Patrulha da Noite. - Era, ouviu-se dizer. O que seria agora? Não queria debruçar-se sobre esse assunto. - Você era donzela?

Ygritte apoiou-se num cotovelo.

- Tenho dezenove anos, sou uma esposa de lanças e beijada pelo fogo. Como poderia ser donzela?

- Quem foi?

- Um rapaz numa festa, há cinco anos. Tinha vindo comerciar, com os irmãos, e seus cabelos eram como os meus, beijados pelo fogo, por isso pensei que ele devia ter sorte. Mas era fraco. Quando voltou pra me raptar, o Lança-Longa quebrou o braço dele e botou-o para correr, e ele não voltou a tentar, nem uma vez.

- Então não foi o Lança-Longa? - Jon estava aliviado. Gostava do Lança-Longa, com seu rosto simples e modos amigáveis.

Ela esmurrou-o.

- Isso é nojento. Você se deitaria com a sua irmã?

- Lança-Longa não é seu irmão.

- É da minha aldeia. Não sabe nada, Jon Snow. Um homem de verdade rapta uma mulher de longe, pra fortalecer o clã. As mulheres que se deitam com irmãos, pais ou gente do clã ofendem os deuses e são amaldiçoadas com filhos fracos ou doentes. Ou até monstros.

- Craster casa com as próprias filhas - destacou Jon.

Ela voltou a esmurrá-lo.

- Craster é mais da sua gente do que da nossa. O pai dele era um corvo que raptou uma mulher da aldeia de Brancarbor, mas depois de tê-la, voou de volta pra sua Muralha. Uma vez, ela foi a Castelo Negro pra mostrar o filho ao corvo, mas os irmãos sopraram seus berrantes e botaram a mulher pra correr. O sangue do Craster é preto, e ele carrega uma pesada maldição. - Passou os dedos levemente pela barriga dele. - Antes tinha medo de que você fizesse o mesmo. Que fugisse de volta pra Muralha. Você nunca soube o que fazer depois de me raptar.

Jon sentou-se.

- Ygritte, eu não raptei você.

- Raptou, sim. Saltou da montanha e matou o Orell, e antes de eu conseguir chegar ao machado tinha uma faca encostada na minha garganta. Pensei que você ia me possuir naquela hora, ou me matar, ou talvez as duas coisas, mas não. E quando lhe contei a história do Bael, o Bardo, e do modo como ele colheu a rosa de Winterfell, imaginei que ia me colher com certeza na hora, mas não. Não sabe nada, Jon Snow. - Dirigiu-lhe um sorriso acanhado. - Mas pode ser que ande aprendendo umas coisas.

De repente, Jon reparou que a luz oscilava em volta de Ygritte. Olhou ao redor.

- É melhor subirmos. A tocha está quase no fim.

- O corvo tá com medo dos filhos de Gendel? - disse ela, com um sorriso. - E rapidinho pra chegar lá em cima, e eu ainda não acabei o que queria fazer com você, Jon Snow. - Voltou a puxá-lo para baixo e montou nele. - Não quer... - Hesitou.

- O quê? - perguntou ele, enquanto a tocha começava a se apagar.

- Fazer aquilo de novo? - disse Ygritte, muito depressa. - Com a boca? O beijo do senhor? E eu... eu podia ver se você também gosta.

Quando a tocha se extinguiu, Jon Snow já não se importou.

A culpa chegou mais tarde, mas mais fraca do que antes. Se isso é assim tão errado, pensou, por que os deuses fizeram com que desse uma sensação tão boa?

A gruta estava negra como breu quando terminaram. A única luz era o tênue brilho da passagem de volta à caverna maior, onde ardiam vinte fogueiras. Pouco depois andavam tateando e esbarrando um no outro enquanto tentavam se vestir no escuro. Ygritte tropeçou e caiu na lagoa, e soltou um grito devido à água gelada. Quando Jon riu, ela puxou-o também para dentro. Lutaram e espirraram água na escuridão, e então ela acabou de novo nos braços dele, e descobriram que, afinal, ainda não tinham terminado.

- Jon Snow - disse-lhe Ygritte, depois de ele gastar a sua semente dentro dela -, não se mexa agora, querido. Gosto de sentir você aí, gosto mesmo. E se a gente não voltasse pra junto do Styr e do Jarl? E se fôssemos pra dentro, pra nos juntarmos aos filhos de Gendel? Nunca mais quero sair desta gruta, Jon Snow. Nunca mais.

Daeneris

Todos? - a jovem escrava soava cautelosa. - Vossa Graça, os ouvidos sem valor desta ouviram-na mal?

Uma luz fresca e verde filtrava-se pelos painéis de vidro colorido em forma de diamante montados nas paredes triangulares e inclinadas, e uma brisa soprava suavemente pelas portas do terraço, trazendo do jardim que nele crescia o cheiro de frutos e flores.

- Seus ouvidos ouviram bem - disse Dany. - Quero comprar todos. Diga isso aos Bons Mestres, por favor.

Naquele dia, havia escolhido um vestido qarteno. A seda de um tom profundo de violeta realçava a cor púrpura de seus olhos. O corte desnudava seu seio esquerdo. Enquanto os Bons Mestres de Astapor conferenciavam entre si em voz baixa, Dany bebericou vinho ácido de caqui de uma taça alta de prata. Não conseguia compreender tudo que eles estavam dizendo, mas ouvia a avidez.

Cada um dos oito negociantes era servido por dois ou três escravos pessoais... embora um Grazdan, o mais velho, tivesse seis. Para não parecer uma pedinte, Dany tinha trazido seus próprios servidores; Irri e Jhiqui, com suas calças de sedareia e coletes pintados, o velho Barba-Branca e o poderoso Belwas, e seus companheiros de sangue. Sor Jorah encontrava-se atrás dela, sufocando em seu sobretudo verde com o urso negro de Mormont bordado. O cheiro do suor do cavaleiro era uma resposta terrena aos doces perfumes que ensopavam os astapori.

- Todos - rosnou Kraznys mo Nakloz, que naquele dia cheirava a pêssegos. A jovem escrava repetiu a palavra no Idioma Comum de Westeros. - Milhares, temos oito. É isso que ela quer dizer com todos? Há também seis centenas, que farão parte de um nono milhar quando completas. Também as quer?

- Quero - disse Dany quando a questão lhe foi colocada. - Os oito milhares, as seis centenas... e também os que ainda estão em treinamento. Aqueles que não conquistaram os espigões.

Kraznys voltou a se virar para os seus companheiros. De novo conferenciaram entre si. A tradutora tinha dito a Dany seus nomes, mas era difícil guardá-los. Quatro dos homens pareciam se chamar Grazdan, presumivelmente em honra de Grazdan, o Grande, que fundara a Velha Ghis na aurora dos tempos. Todos eram parecidos; homens fortes e carnudos, com pele ambarina, nariz largo e olhos escuros. Seus cabelos hirsutos eram negros, ou de um vermelho-escuro, ou daquela estranha mistura de vermelho e negro que era característica dos ghiscari. Todos se enrolavam em tokars, uma vestimenta que só era autorizada aos homens livres de Astapor.

O Capitão Groleo tinha dito a Dany que era o debrum do tokar que proclamava o estatuto de um homem. Naquela fresca sala verde no topo da pirâmide, dois dos negociantes de escravos usavam tokars debruados de ouro, e um deles, o Grazdan mais velho, exibia um debrum de grandes pérolas brancas que chocalhavam levemente quando ele se mexia no assento ou movimentava um braço.

- Não podemos vender rapazes meio treinados - um dos Grazdan vestido em debrum de prata dizia aos outros.

- Podemos, se o ouro dela for bom - disse um homem mais gordo, cujo debrum era de ouro.

- Eles não são Imaculados. Não mataram seus bebês. Se falharem no campo de batalha, vão nos envergonhar. E mesmo se cortarmos cinco mil garotos crus amanhã, vão se passar dez anos até que estejam prontos para serem vendidos. O que diremos ao próximo comprador que vier em busca de Imaculados?

- Diremos que precisa esperar - disse o gordo. - Ouro na minha bolsa é melhor do que ouro no meu futuro.

Dany deixou-os discutir, bebericando do vinho ácido de caqui e tentando manter o rosto sem expressão, como se não entendesse nada do que diziam. Terei todos, seja qual for o preço, disse a si própria. A cidade tinha uma centena de negociantes de escravos, mas os oito que se encontravam diante dela eram os maiores. Quando vendiam escravos sexuais, trabalhadores rurais, escribas, artesãos e tutores, aqueles homens eram rivais, mas seus ancestrais tinham-nos aliado a fim de criar e vender os Imaculados. Tijolos e sangue construíram Astapor, e tijolos e sangue construíram o seu povo.

Foi Kraznys quem finalmente anunciou a decisão.

- Diga-lhe que obterá os oito milhares, se o seu ouro for suficiente. E as seis centenas, se desejar. Diga-lhe para voltar dentro de um ano, e venderemos a ela mais dois milhares.

- Dentro de um ano estarei em Westeros - disse Dany depois de ouvir a tradução. - Preciso deles agora. Os Imaculados estão bem treinados, mesmo assim muitos caem em batalha. Preciso dos garotos como reforços para apanhar as espadas que caírem. - Pôs o vinho de lado e inclinou-se para a jovem escrava. - Diga aos Bons Mestres que quero até os pequenos que ainda têm seus cachorros. Diga-lhes que pagarei tanto pelo rapaz que cortaram ontem como por um Imaculado com elmo de espigão.

A moça disse-lhes. A resposta continuou a ser não.

Dany franziu a testa, aborrecida.

- Muito bem. Diga-lhes que pagarei o dobro, na condição de obter todos.

- O dobro? - o gordo com o debrum de ouro por pouco não se babou.

- Essa vadiazinha é realmente uma tola - disse Kraznys mo Nakloz. - Devíamos pedir o triplo. Ela está suficientemente desesperada para pagar. Sim, peçamos dez vezes o preço de cada escravo.

O Grazdan alto com a barba pontiaguda falou no Idioma Comum, embora não tão bem quanto a jovem escrava.

- Vossa Graça - rosnou -, Westeros está sendo rico, sim, mas você não está sendo rainha agora. Talvez nunca estará sendo rainha. Até Imaculados podem estar perdendo batalhas para selvagens cavaleiros de aço de Sete Reinos. Estou recordando, os Bons Mestres de Astapor não estão vendendo carne em troca de promessas. Está tendo ouro e bens de comércio suficientes para pagar por todos esses eunucos que está querendo?

- Conhece a resposta para isso melhor do que eu, Bom Mestre - respondeu Dany.

- Seus homens vasculharam meus navios e contaram cada conta de âmbar e frasco de açafrão. Quanto tenho eu?

- Suficiente para comprar um dos milhares - disse o Bom Mestre, com um sorriso desdenhoso. - Mas vai pagar o dobro, está dizendo. Então, cinco centenas é tudo que compra.

- Sua bonita coroa pode pagar outra centena - disse o gordo em valiriano. - A sua coroa dos três dragões.

Dany esperou que as palavras dele fossem traduzidas.

- Minha coroa não está à venda. - Quando Viserys vendeu a coroa da mãe, perdeu a alegria que lhe restava, sobrou apenas a raiva. - Nem escravizarei meu povo, nem venderei seus bens ou cavalos. Mas podem ficar com meus navios. A grande coca Balerion e as galés Vhagar e Meraxes. - Prevenira Groleo e os outros capitães de que podia chegar àquele ponto, embora eles tivessem contestado furiosamente a necessidade da venda. - Três bons navios devem valer mais do que um punhado de reles eunucos.

O Grazdan gordo virou-se para os outros. Voltaram a conferenciar em voz baixa.

- Dois dos milhares - disse o da barba pontiaguda quando voltou a se virar para ela. - É demais, mas os Bons Mestres estão sendo generosos e sua necessidade está sendo grande.

Dois mil nunca serviriam para aquilo que queria fazer. Tenho de obter todos. Dany sabia o que tinha de fazer naquele momento, embora o sabor fosse tão amargo que nem mesmo o vinho de caqui conseguia tirá-lo de sua boca. Refletira longa e duramente, e não havia encontrado outra maneira. É a minha única chance.

- Deem-me todos - disse - e podem ficar com um dragão.

Ouviu-se o som do prender da respiração de Jhiqui ao seu lado. Kraznys sorriu para seus companheiros.

- Não disse? Ela vai nos dar qualquer coisa.

Barba-Branca fitou-a, numa incredulidade chocada. Sua mão tremia agarrada ao bastão.

- Não. - Ajoelhou perante ela. - Vossa Graça, suplico-lhe, conquiste seu trono com dragões, não com escravos. Não pode fazer isso...

- Você é que não pode se atrever a me dar instruções. Sor Jorah, tire Barba-Branca de minha presença.

Mormont agarrou rudemente o velho por um cotovelo, colocou-o em pé com um puxão e levou-o para o terraço.

- Diga aos Bons Mestres que lamento essa interrupção - disse Dany à jovem escrava.

- Diga-lhes que aguardo sua resposta.

Mas sabia qual seria a resposta; podia vê-la na cintilação dos olhos deles e nos sorrisos que grandemente se esforçavam para esconder. Astapor tinha milhares de eunucos, e ainda mais garotos escravos à espera de serem cortados, mas só havia três dragões vivos em todo o grande mundo. E os ghiscari anseiam por dragões. Como podiam não ansiar? Cinco vezes a Velha Ghis havia competido com Valíria quando o mundo era jovem, e cinco vezes havia caído, em derrota desoladora. Pois a Cidade Franca possuía dragões e o Império, não.

O mais velho dos Grazdan agitou-se no assento, e suas pérolas chocalharam baixinho.

- Um dragão à nossa escolha - disse, numa voz fina e dura. - O negro é maior e mais saudável.

- O nome dele é Drogon. - Ela assentiu.

- Todos os seus bens, exceto sua coroa e vestuário real, que lhe permitiremos manter. Os três navios. E Drogon.

- Feito - disse ela, no Idioma Comum.

- Feito - respondeu o velho Grazdan no seu denso valiriano.

Os outros serviram de ecos ao velho do debrum de pérolas.

- Feito - traduziu a jovem escrava - e feito, e feito, oito vezes feito.

- Os Imaculados aprenderão seu idioma selvagem bastante depressa - acrescentou Kraznys mo Nakloz, depois de tudo combinado -, mas até esse momento irá necessitar de um escravo para falar com eles. Aceite esta como presente, um penhor de um bom negócio.

- Aceitarei - disse Dany.

A jovem escrava transmitiu-lhe as palavras dele e a ele as de Dany. Se tinha alguma emoção sobre ser oferecida como penhor, teve o cuidado de não deixar transparecer.

Arstan Barba-Branca também domou a língua quando Dany passou por ele no terraço. Seguiu-a pela escadaria em silêncio, mas ela ouvia seu bastão de madeira rígida fazendo tap-tap nos tijolos vermelhos enquanto caminhavam. Não o censurava por sua fúria. O que fizera foi deplorável. A Mãe de Dragões vendeu o seu filho mais forte. Até a ideia a deixava nauseada.

Mas lá embaixo, na Praça do Orgulho, em pé sobre os quentes tijolos vermelhos entre a pirâmide dos negociantes de escravos e as casernas dos eunucos, Dany virou-se para o velho.

- Barba-Branca - disse -, quero seus conselhos, e nunca deve sentir medo de me dizer o que pensa... quando estivermos sozinhos. Mas nunca me questione na frente de estranhos. Entendido?

- Sim, Vossa Graça - disse ele, em tom infeliz.

- Não sou uma criança - disse-lhe ela. - Sou uma rainha.

- Mas até as rainhas podem errar. Os astapori enganaram-na, Vossa Graça. Um dragão vale mais do que qualquer exército. Aegon provou-o há trezentos anos, no Campo de Fogo.

- Eu sei o que Aegon provou. Pretendo também provar umas coisinhas. - Dany virou-se para a jovem escrava que estava obedientemente em pé ao lado de sua liteira. - Você tem nome, ou precisa tirar um novo todos os dias de dentro de um barril?

- Isso é só para os Imaculados - disse a moça. Então percebeu que a pergunta havia sido feita em Alto Valiriano. Seus olhos esbugalharam-se. - Oh.

- Seu nome é Oh?

- Não. Vossa Graça, perdoe esta pelo descontrole. O nome de sua escrava é Missandei, mas...

- Missandei já não é uma escrava. Liberto-a, a partir deste instante. Junte-se a mim na liteira, quero conversar. - Rakharo ajudou-a a entrar, e Dany fechou as cortinas à poeira e ao calor. - Se ficar comigo, vai me servir como uma de minhas aias - disse, quando se puseram em movimento. - Manterei você ao meu lado para falar por mim como falou por Kraznys. Mas pode deixar o meu serviço na hora que desejar, se tiver um pai ou uma mãe para junto de quem prefira voltar.

- Esta ficará - disse a garota. - Esta... eu... não tenho para onde ir. Esta... eu vou servi-la, e de bom grado.

- Posso dar-lhe liberdade, mas não posso lhe dar segurança - preveniu Dany. - Tenho um mundo para atravessar e guerras para travar. Pode vir a passar fome. Pode adoecer. Pode ser morta.

- Valar morghulis - disse Missandei, em Alto Valiriano.

- Todos os homens têm de morrer - concordou Dany -, mas podemos rezar para que isso demore muito tempo para acontecer. - Encostou-se nas almofadas e tomou a mão da garota nas suas. - Estes Imaculados são realmente destemidos?

- Sim, Vossa Graça.

- Agora está a meu serviço. É verdade que não sentem dor?

- O vinho da coragem mata essas sensações. Quando matam os bebês, já o bebem há anos.

- E são obedientes?

- Tudo que conhecem é a obediência. Se lhes disser para não respirarem, acharão isso mais fácil do que não obedecer.

Dany fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- E quando não precisar mais deles?

- Vossa Graça?

- Quando tiver ganhado a minha guerra e reclamado o trono que era de meu pai, meus cavaleiros embainharão as espadas e voltarão para suas fortalezas, para suas esposas, filhos e mães... para suas vidas. Mas esses eunucos não têm vida. O que farei com oito mil eunucos depois de deixar de haver batalhas a travar?

- Os Imaculados dão bons guardas e excelentes vigias, Vossa Graça - disse Missandei. - E nunca é difícil encontrar um comprador para tropas tão boas e experientes.

- Os homens não são comprados e vendidos em Westeros, segundo me dizem.

- Com todo o respeito, Vossa Graça, os Imaculados não são homens.

- Se os revendesse, como saberia que não seriam usados contra mim? - perguntou Dany sem rodeios. - Fariam isso? Lutariam contra mim, chegariam a me machucar fisicamente?

- Se o seu dono o ordenasse. Eles não questionam, Vossa Graça. Todas as questões lhes foram arrancadas. Eles obedecem. - Parecia perturbada. - Quando não... quando não precisar mais deles... Vossa Graça pode ordenar-lhes que caiam sobre as espadas.

- E até isso fariam?

- Sim - A voz de Missandei suavizara-se. - Vossa Graça.

Dany apertou sua mão.

- Mas preferiria que eu não lhes pedisse isso. Por quê? Por que se preocupa?

- Esta não... eu... Vossa Graça...

- Diga-me.

A garota baixou os olhos.

- Três deles foram antigamente meus irmãos, Vossa Graça.

Então espero que seus irmãos sejam tão corajosos e inteligentes quanto você. Dany voltou a encostar-se na almofada, e deixou que a liteira a levasse em frente, uma última vez de volta ao Balerion, para colocar o seu mundo em ordem. E de volta a Drogon. Sua boca apertou-se numa expressão carrancuda.

A noite que se seguiu foi longa, escura e ventosa. Dany alimentou os dragões como sempre fazia, mas descobriu que ela mesma não tinha apetite. Chorou um pouco, sozinha, em sua cabine, e depois secou as lágrimas durante tempo bastante para mais uma discussão com Groleo.

- O Magíster Illyrio não está aqui - teve finalmente de lhe dizer e se estivesse, também não conseguiria me dissuadir. Preciso mais dos Imaculados do que destes navios, e não quero ouvir nem mais uma palavra.

A ira consumiu-lhe o desgosto e o medo, pelo menos durante algumas horas. Mais tarde chamou os companheiros de sangue à sua cabine, com Sor Jorah. Eram os únicos em quem realmente confiava.

Pretendia dormir depois, para estar bem repousada de manhã, mas uma hora de agitação insone no confinamento abafado da cabine rapidamente a convenceu de que não devia continuar tentando. A porta, encontrou Aggo colocando uma nova corda no arco à luz de uma oscilante candeia de azeite. Rakharo estava sentado no chão, ao seu lado, de pernas cruzadas, afiando o arakh com uma pedra de amolar. Dany disse a ambos para continuarem o que estavam fazendo, e subiu ao convés para tomar um pouco do ar fresco da noite. A tripulação deixou-a em paz enquanto tratava de seus assuntos, mas Sor Jorah rapidamente veio lhe fazer companhia junto à amurada. Ele nunca está longe, pensou Dany. Conhece meus estados de espírito bem demais.

- Khaleesi. Devia estar dormindo. Amanhã estará quente e será duro, garanto-lhe. Precisará de suas forças.

- Lembra-se de Eroeh? - perguntou-lhe ela.

- A garota lhazarena?

- Estavam violando a garota, mas eu impedi-os e coloquei-a sob a minha proteção. Só que quando o meu sol e estrelas morreu, Mago tomou-a de volta, voltou a usá-la e matou-a. Aggo disse que era o seu destino.

- Lembro-me disso - disse Sor Jorah.

- Estive só durante muito tempo, Jorah. Completamente só, tirando o meu irmão. Era uma coisinha tão pequena e assustada. Viserys deveria ter me protegido, mas em vez disso machucava-me e assustava-me mais ainda. Ele não devia ter feito isso. Não era só meu irmão, era meu rei. Por que os deuses criam os reis e as rainhas, se não for para proteger aqueles que não conseguem fazer isso por conta própria?

- Alguns reis criam-se a si mesmos. Foi o que Robert fez.

- Ele não era um verdadeiro rei - disse Dany com desdém. - Não oferecia justiça. Justiça... é para isso que os reis servem.

Sor Jorah não encontrou resposta. Limitou-se a sorrir, e tocou seus cabelos, muito de leve. Foi o bastante.

Naquela noite sonhou que era Rhaegar, a caminho do Tridente. Mas ia montada num dragão, e não num cavalo. Quando viu a tropa rebelde do Usurpador do outro lado do rio, eles tinham armaduras de gelo, mas ela banhou-os em fogo de dragão e eles derreteram-se como orvalho e transformaram o Tridente numa torrente. Uma pequena parte de si sabia que estava sonhando, mas outra parte exultou. Era assim que estava destinado a ser. A outra maneira foi um pesadelo, e só agora acordei.

Acordou subitamente na escuridão de sua cabine, ainda transbordante de triunfo. O Balerion pareceu acordar com ela, e ouviu o tênue ranger de madeira, água batendo de encontro ao casco, um passo no convés por cima de sua cabeça. E algo mais.

Alguém estava com ela na cabine.

- Irri? Jhiqui? Onde estão? - as aias não responderam. Estava escuro demais para ver, mas ouvia-as respirar. - Jorah, é você?

- Eles dormem - disse uma mulher. - Todos eles dormem. - A voz estava muito próxima. - Até os dragões têm de dormir.

Ela está em cima de mim.

- Quem está aí? - Dany tentou ver na escuridão. Julgou detectar uma sombra, o mais tênue contorno de uma silhueta. - O que quer de mim?

- Lembre-se. Para ir para o norte, deve viajar para o sul. Para alcançar o oeste, tem de ir para leste. Para ir em frente, deve voltar para trás, e para tocar a luz, tem de passar sob a sombra.

- Quaithe? - Dany saltou da cama e escancarou a porta. A pálida luz amarela das lanternas inundou a cabine, e Irri e Jhiqui sentaram-se, sonolentas.

- Khaleesi? - murmurou Jhiqui, esfregando os olhos. Viserion acordou e abriu as mandíbulas, e uma baforada de chamas iluminou até os cantos mais escuros. Não havia sinais de uma mulher com uma máscara de laca vermelha. - Khaleesi, não está bem? - perguntou Jhiqui.

- Um sonho. - Dany sacudiu a cabeça. - Tive um sonho, foi só isso. Voltem a dormir. Vamos todas voltar a dormir. - Mas, por mais que tentasse, o sono não queria voltar.

Se olhar para trás, estou perdida, disse Dany a si mesma na manhã seguinte, ao entrar em Astapor pelos portões do porto. Não se atrevia a lembrar a si mesma como, na realidade, era pequena e insignificante a sua comitiva, caso contrário perderia toda a coragem. Naquele dia montava a sua prata, vestida com calças de pelo de cavalo e um colete de couro pintado, com um cinto de medalhões de bronze na cintura e mais dois cruzados entre os seios. Irri e Jhiqui tinham trançado seus cabelos e prendido neles uma minúscula sineta de prata, cujo tilintar cantava uma canção sobre os Imorredouros de Qarth, queimados em seu Palácio de Poeira.

As ruas de tijolo vermelho de Astapor estavam quase repletas nessa manhã. Escravos e criados aglomeravam-se junto às paredes, enquanto os senhores de escravos e suas mulheres tinham vestido seus tokars para observar do alto das pirâmides de degraus. No fim das contas, não são assim tão diferentes dos qartenos, pensou Dany. Querem um vislumbre de dragões que possam contar aos filhos e aos filhos dos filhos. Aquele pensamento fez Dany indagar-se sobre quantos deles chegariam a ter filhos.

Aggo seguia na sua frente, com seu grande arco dothraki. Belwas, o Forte, caminhava à direita de sua égua, e a pequena Missandei à esquerda. Sor Jorah Mormont vinha atrás, de cota de malha e sobretudo, lançando olhares carrancudos a todos os que se aproximassem em excesso. Rakharo e Jhogo protegiam a liteira. Dany ordenara que o topo fosse removido, para que os três dragões pudessem ser acorrentados à plataforma. Irri e Jhiqui seguiam com eles, para tentar mantê-los calmos. Mas Viserion brandia a cauda para um lado e para o outro, e uma fumaça subia, irritada, de suas narinas. Rhaegal também sentia que algo não estava bem. Por três vezes tentou levantar voo, só conseguindo ser puxado para baixo pela pesada corrente que Jhiqui tinha na mão. Drogon enrolara-se numa bola, com as asas e a cauda bem aconchegadas. Só os seus olhos indicavam que não estava dormindo.

O resto do seu povo seguia-os: Groleo e os outros capitães e suas tripulações, e os oitenta e três dothraki que restavam dos cem mil que um dia tinham acompanhado o khalasar de Drogo. Dany tinha colocado os mais velhos e mais fracos no centro da coluna, com as lactantes, as grávidas, as meninas pequenas e os garotos novos demais para trançar o cabelo. Os outros - aquilo que possuía de guerreiros - seguiam no exterior e faziam avançar a sua triste manada, os cento e tantos cavalos descarnados que tinham sobrevivido seja ao deserto vermelho, seja ao negro mar salgado.

Devia mandar bordar um estandarte, pensou enquanto avançava à frente de seu bando andrajoso ao longo dos meandros do rio de Astapor. Fechou os olhos para imaginar seu aspecto: todo de seda negra e leve, e nele o dragão vermelho de três cabeças de Targaryen, exalando chamas douradas. Um estandarte que Rhaegar pudesse ter usado. As margens do rio eram estranhamente tranquilas. Os astapori chamavam-no de Verme. Era largo, lento e cheio de curvas, semeado de minúsculas ilhas cobertas de florestas. Vislumbrou crianças que brincavam numa delas, correndo por entre elegantes estátuas de mármore. Em outra ilha, um casal de amantes beijava-se à sombra de altas árvores verdes, tão desprovidos de vergonha como um dothraki num casamento. Sem roupas, não sabia dizer se eram escravos ou livres.

A Praça do Orgulho, com sua grande harpia de bronze, era pequena demais para conter todos os Imaculados que tinha comprado. Em vez de estarem ali, os escravos tinham sido reunidos na Praça da Punição, em frente ao portão principal de Astapor, para poderem ser levados diretamente da cidade assim que Dany estivesse na posse deles. Ali não havia estátuas de bronze; só uma plataforma de madeira onde escravos rebeldes eram torturados, esfolados e enforcados.

- Os Bons Mestres colocam-nos assim para que sejam a primeira coisa que um novo escravo vê quando entra na cidade - disse-lhe Missandei quando entraram na praça.

A primeira vista, Dany pensou que os castigados tinham pele listrada, como os zebralos dos Jogos Nhai. Então aproximou-se na sua prata e viu a carne viva sob as listras negras em movimento. Moscas. Moscas e larvas. Tinham arrancado a pele dos escravos rebeldes como se descasca uma maçã, numa longa fita enrolada. Um dos homens tinha um braço negro de moscas dos dedos ao cotovelo, e vermelho e branco por baixo. Dany freou o cavalo por baixo dele.

- O que este fez?

- Levantou uma mão contra o dono.

Com o estômago embrulhado, Dany virou sua prata e trotou na direção do centro da praça, e do exército que comprara a um preço tão elevado. Estavam em pé, fileira atrás de fileira, atrás de fileira, seus meios-homens de pedra com coração de tijolo; oito mil e seiscentos com os capacetes de espigão em bronze de Imaculados plenamente treinados, e cerca de cinco mil atrás deles, de cabeça descoberta, mas armados com lanças e espadas curtas. Viu que aqueles que se encontravam mais para trás não passavam de meninos, mas estavam tão rígidos e imóveis quanto os outros.

Kraznys mo Nakloz encontrava-se ali com todos os seus companheiros para saudá-la. Outros astapori de elevado nascimento juntavam-se em grupos atrás deles, bebericando vinho de taças altas de prata, enquanto escravos circulavam entre eles com bandejas cheias de azeitonas, cerejas e figos. O Grazdan mais velho ocupava uma liteira, sustentada por quatro enormes escravos com peles acobreadas. Meia dúzia de lanceiros a cavalo percorria os limites da praça, mantendo afastadas as multidões que tinham vindo assistir. O sol refulgia nos discos de cobre polido costurados aos seus mantos com um brilho que cegava, mas Dany não pôde deixar de reparar como seus cavalos pareciam nervosos. Temem os dragões. E não é de admirar que os temam.

Kraznys ordenou a um escravo que a ajudasse a descer da sela. Ele tinha as mãos ocupadas; uma agarrava o tokar, enquanto a outra empunhava um ornamentado chicote.

- Aqui estão eles. - Olhou para Missandei. - Diga-lhe que são seus... se puder pagar.

- Pode - disse a garota.

Sor Jorah ladrou uma ordem, e a mercadoria foi trazida. Seis fardos de pele de tigre, trezentos rolos de boa seda. Potes de açafrão, potes de mirra, potes de pimenta, curry e cardamomo, uma máscara de ônix, doze macacos de jade, barris de tinta vermelha, preta e verde, uma caixa de raras ametistas negras, uma caixa de pérolas, um barril de azeitonas sem caroço recheadas com lagartas, uma dúzia de barris de bagres cegos em salmoura, um grande gongo de latão e um martelo para bater nele, dezessete olhos de marfim, e uma enorme arca cheia de livros escritos em línguas que Dany não sabia ler. E mais, e mais, e mais. Seu povo empilhou tudo diante dos negociantes de escravos.

Enquanto o pagamento era feito, Kraznys mo Nakloz concedeu-lhe algumas palavras finais sobre o modo de lidar com as tropas.

- Eles ainda estão verdes - disse ele através de Missandei. - Diga à prostituta de Westeros que faria bem em dar-lhes rapidamente o batismo de sangue. Há muitas cidades pequenas no caminho, cidades prontas para serem pilhadas. Qualquer saque que obtenha será apenas seu. Os Imaculados não cobiçam o ouro ou as pedras preciosas. E se capturar prisioneiros, alguns guardas serão suficientes para trazê-los para Astapor. Compraremos os saudáveis, e por um bom preço. E quem sabe? Daqui a dez anos, alguns dos garotos que nos mandar poderão ser por sua vez Imaculados. Assim todos prosperaremos.

Por fim, já não havia mais mercadoria a adicionar à pilha. Seus dothraki voltaram a subir para os cavalos, e Dany disse:

- Isto foi tudo o que pudemos transportar. O resto aguarda nos navios, uma grande quantidade de âmbar, vinho e arroz negro. E vocês têm os próprios navios. Então tudo que nos resta é...

- ... o dragão - terminou o Grazdan com a barba pontiaguda, que falava o Idioma Comum com forte sotaque.

- E aqui está ele. - Sor Jorah e Belwas dirigiram-se ao seu lado para a liteira, onde Drogon e os seus irmãos tostavam ao sol. Jhiqui desprendeu uma ponta da corrente e entregou-a a ela. Quando lhe deu um puxão, o dragão negro ergueu a cabeça, silvando, e abriu asas de noite e escarlate. Kraznys mo Nakloz deu um largo sorriso quando a sombra das asas caiu sobre si.

Dany entregou ao comerciante de escravos a ponta da corrente de Drogon. Em troca, ele presenteou-a com o chicote. O cabo era de osso negro de dragão, elaboradamente esculpido e incrustado de ouro. Nove longas e finas tiras de couro saíam desse cabo, todas rematadas por uma garra dourada. O botão de ouro era uma cabeça de mulher, com dentes pontiagudos de marfim.

- Os dedos da harpia - chamou Kraznys ao açoite.

Dany revirou o chicote na mão. Uma coisa tão leve, com um peso tão grande.

- Então está feito? Eles pertencem a mim?

- Está feito - concordou o homem, dando um forte puxão na corrente para que Drogon descesse da liteira.

Dany montou sua prata. Sentia o coração tamborilando no peito. Sentia um medo desesperado. Seria isso o que o meu irmão teria feito? Perguntou a si mesma se o Príncipe Rhaegar se sentira tão ansioso assim quando viu a tropa do Usurpador em formação do outro lado do Tridente, com todos os seus estandartes flutuando ao vento.

Pôs-se em pé nos estribos e ergueu os dedos da harpia sobre a cabeça, para que todos os Imaculados os vissem.

- ESTÁ FEITO! - gritou, o mais alto que foi capaz. - VOCÊS SÃO MEUS! - Esporeou a égua e galopou ao longo da primeira fileira, mantendo os dedos erguidos. - PERTENCEM AGORA Ao DRAGÃO! FORAM COMPRADOS E PAGOS! ESTÁ FEITO! ESTÁ FEITO!

Vislumbrou o velho Grazdan virando rapidamente a cabeça grisalha. Ele me ouviu falar valiriano. Os outros negociantes de escravos não estavam atentos. Aglomeravam-se em volta de Kraznys e do dragão, gritando conselhos. Embora os astapori puxassem e empurrassem, Drogon não saía da liteira. Fumaça cinza subia de suas mandíbulas abertas, e seu longo pescoço enrolava-se e endireitava-se enquanto ele tentava morder o rosto do feitor.

É hora de atravessar o Tridente, pensou Dany, ao virar-se e trazer a prata de volta. Seus companheiros de sangue aproximaram-se e cercaram-na.

- Está em dificuldades - observou Dany.

- Ele não quer vir - disse Kraznys.

- Há uma razão. Um dragão não é escravo de ninguém. - E Dany chicoteou com toda a força o rosto do negociante de escravos. Kraznys gritou e cambaleou para trás, com sangue escorrendo, vermelho, para sua barba perfumada. Os dedos da harpia tinham quase desfeito suas feições de um golpe, mas Dany não parou para contemplar o estrago. - Drogon - cantou em voz alta, em tom doce, todo o seu medo esquecido. - Dracarys.

O dragão negro abriu as asas e rugiu.

Uma lança de turbilhonantes chamas escuras atingiu em cheio o rosto de Kraznys. Seus olhos derreteram e escorreram pelas maçãs de seu rosto, e o óleo que tinha nos cabelos e barba incendiou-se com tanta violência que, por um instante, o senhor de escravos usou uma coroa flamejante duas vezes mais alta do que sua cabeça. O súbito fedor de carne carbonizada conseguiu sobrepor-se até mesmo ao seu perfume, e seu grito de dor pareceu afogar todos os outros sons.

Então a Praça da Punição estourou em sangue e caos. Os Bons Mestres guinchavam, esbarravam e empurravam-se uns aos outros, tropeçavam, com a pressa, no debrum de seus tokars. Drogon voou quase preguiçosamente contra Kraznys, batendo asas negras. Enquanto oferecia ao senhor de escravos mais um pouco de fogo, Irri e Jhiqui desacorrentaram Viserion e Rhaegal, e de repente havia três dragões no ar. Quando Dany se virou para olhar, um terço dos orgulhosos guerreiros de chifres demoníacos de Astapor lutava para se manter montado em suas aterrorizadas montarias, e outro terço fugia num brilhante clarão de cobre brilhante. Um homem manteve-se sobre a sela tempo suficiente para puxar uma espada, mas o chicote de Jhogo enrolou-se em torno do pescoço dele e cortou seu grito. Outro perdeu uma mão para o arakh de Rakharo e afastou-se, cambaleando e jorrando sangue. Aggo sentou-se calmamente, encaixando flechas na corda de seu arco e disparando-as contra tokars. Não importava nem um pouco que o debrum fosse de prata, ouro ou simples. Belwas, o Forte, também tinha o seu arakh desembainhado, e fazia-o rodopiar enquanto atacava.

Dany ouviu um astapori gritar:

- Lanças! - era Grazdan, o velho Grazdan com seu tokar carregado de pérolas. - Imaculados! Defendam-nos, parem-nos, defendam os seus senhores! Lanças! Espadas!

Quando Rakharo enfiou uma flecha na boca dele, os escravos que sustentavam a sua liteira separaram-se e fugiram, deixando-o cair sem cerimônia no chão. O velho engatinhou até a primeira fileira de eunucos, deixando poças de sangue nos tijolos. Os Imaculados sequer olharam para baixo, para vê-lo morrer. Fileira atrás de fileira, atrás de fileira, permaneceram em pé.

E não se moveram. Os deuses ouviram a minha prece.

- Imaculados! - Dany galopou à frente deles, com a trança de um louro prateado esvoaçando atrás, e a sineta tilintando a cada passo. - Matem os Bons Mestres, matem os soldados, matem todos os homens que usem um tokar ou tenham um chicote nas mãos, mas não façam mal a nenhuma criança com menos de doze anos, e arranquem as correntes de todos os escravos que virem. - Ergueu os dedos da harpia... e então atirou o açoite para longe. - Liberdade! - entoou. - Dracarys! Dracarys!

- Dracarys! - gritaram eles em resposta, a mais bela palavra que já ouvira. - Dracarys! Dracarys! - E por toda a sua volta, feitores fugiam, soluçavam, suplicavam e morriam, e o ar poeirento encheu-se de lanças e fogo.

Sansa

Na manhã em que seu novo vestido devia ficar pronto, as criadas encheram a banheira de Sansa com água quente fumegante e esfregaram-na dos pés à cabeça até a deixarem rosada e reluzente. A própria aia da rainha tratou de suas unhas e escovou e ondulou seus cabelos ruivos para que caíssem por suas costas em suaves caracóis. Trouxe também uma dúzia das essências que Cersei preferia. Sansa escolheu uma fragrância viva e doce, com um toque de limão sob o cheiro de flores. A aia despejou um pouco no dedo e tocou Sansa atrás de cada orelha, e sob o queixo, e então, levemente, nos mamilos.

A própria Cersei chegou com a costureira e ficou vendo enquanto vestiam Sansa com sua roupa nova. A roupa de baixo era toda de seda, mas o vestido era de samito cor de marfim e pano de prata, forrado de cetim prateado. As extremidades de suas longas mangas pontiagudas quase tocavam o chão quando baixava os braços. E era um vestido de mulher, não de menina, não havia dúvida quanto a isso. O corpete era aberto na frente, quase até a barriga, com o profundo "v" coberto por um painel de ornamentada renda de Myr num cinza-claro. As saias eram longas e cheias, a cintura era tão apertada que Sansa teve de prender a respiração quando a amarraram. Trouxeram-lhe também sapatos novos, chinelos de suave pele de corça cinza que abraçavam seus pés como amantes.

- Está muito bela, senhora - disse a costureira quando acabaram de vesti-la.

- Estou, não estou? - Sansa soltou um risinho e girou, fazendo rodopiar as saias ao seu redor. - Oh, estou. - Mal podia esperar que Willas a visse assim. Ele vai me amar, vai mesmo, tem de amar... esquecerá Winterjeü quando me vir, vou me certificar de que esqueça.

A Rainha Cersei estudou-a criticamente.

- Algumas pedras preciosas, acho. As pedras de lua que Joffrey lhe deu.

- Imediatamente, Vossa Graça - respondeu a aia.

Depois de as pedras de lua estarem penduradas nas orelhas de Sansa e em seu pescoço, a rainha fez um aceno com a cabeça.

- Sim. Os deuses foram bons para você, Sansa. É uma menina adorável. Parece quase obsceno esbanjar essa doce inocência naquela gárgula.

- Que gárgula? - Sansa não estava compreendendo. Estaria se referindo a Willas? Como poderia saber? Ninguém sabia além dela, de Margaery e da Rainha dos Espinhos... ah, e Dontos, mas esse não contava.

Cersei Lannister ignorou a pergunta.

- O manto - ordenou, e as mulheres trouxeram-no: um longo manto de veludo branco carregado de pérolas. Um feroz lobo gigante estava bordado nele em fio de prata. Sansa olhou-o com súbito temor. - As cores de seu pai - disse Cersei, enquanto o prendiam em volta do pescoço da garota com uma delicada corrente de prata.

Um manto de donzela. A mão de Sansa subiu à garganta. Teria arrancado aquela coisa se se atrevesse.

- É mais bonita com a boca fechada, Sansa - disse-lhe Cersei. - Venha já, o septão está à espera. E os convidados do casamento também.

- Não - exclamou Sansa. - Não.

- Sim. É protegida da coroa. O rei faz as vezes de seu pai, uma vez que seu irmão é um traidor proscrito. Isso significa que tem todo o direito de dispor de sua mão. Vai se casar com meu irmão Tyrion.

A minha pretensão, pensou, agoniada. Dontos, o bobo, não era assim tão tolo, afinal; tinha visto a verdade. Sansa afastou-se da rainha.

- Não vou. - Vou me casar com Willas, vou ser a senhora de Jardim de Cima, por favor...

- Compreendo a sua relutância. Chore se precisar. Em seu lugar, eu provavelmente arrancaria os cabelos. Ele é um desprezível duendezinho, não há dúvida, mas vai mesmo se casar com ele.

- Não pode me obrigar.

- Claro que podemos. Pode vir calmamente e proferir seus votos como é próprio de uma senhora, ou pode lutar, gritar e dar um espetáculo que deixe os cavalariços aos risinhos, mas seja como for vai acabar casada e na cama com o seu esposo. - A rainha abriu a porta. Sor Meryn Trant e Sor Osmund Kettleblack esperavam lá fora, com a armadura de escamas brancas da Guarda Real. - Escoltem a Senhora Sansa até o septo - disse-lhes. - Carreguem-na, se for preciso, mas tentem não rasgar o vestido. Foi muito caro.

Sansa tentou fugir, mas a aia de Cersei apanhou-a antes de ter percorrido um metro. Sor Meryn Trant dirigiu-lhe um olhar que a fez encolher-se de medo, mas Kettleblack tocou quase gentilmente nela e disse:

- Faça o que lhe dizem, querida, não será assim tão mau. Espera-se que os lobos sejam bravos, não é?

Bravos. Sansa respirou fundo. Eu sou uma Stark, sim, posso ser brava. Estavam todos a observá-la daquela maneira como a tinham olhado no pátio, no dia em que Sor Boros Blount rasgara sua roupa. Nesse dia foi o Duende quem a salvou de um espancamento, o mesmo homem que estava agora à sua espera. Ele não é tão mau quanto os outros, disse a si mesma.

- Eu vou.

Cersei sorriu.

- Eu sabia que sim.

Mais tarde não conseguiria se lembrar de ter saído do quarto, de descer os degraus ou de atravessar o pátio. O simples ato de pôr um pé à frente do outro pareceu tomar toda a sua atenção. Sor Meryn e Sor Osmund caminhavam ao seu lado, usando mantos tão claros quanto o seu, faltando-lhes apenas as pérolas e o lobo gigante que fora de seu pai. O próprio Joffrey encontrava-se à sua espera, nos degraus do septo do castelo. O rei resplandecia de carmesim e ouro, com a coroa na cabeça.

- Hoje sou seu pai - anunciou.

- Não é - irritou-se ela. - Nunca será.

O rosto do rei ensombrou-se.

- Sou. Sou seu pai, e posso casá-la com quem eu desejar. Com qualquer um. Casará com um criador de porcos, se eu ordenar, e vai se deitar com ele na pocilga. - Seus olhos verdes cintilaram de divertimento. - Ou talvez devesse dá-la a Ilyn Payne, gostaria mais dele?

O coração de Sansa deu um salto.

- Por favor, Vossa Graça - suplicou. - Se alguma vez me amou nem que fosse um pouquinho, não me obrigue a casar com seu...

- ... tio? - Tyrion Lannister atravessou as portas do septo. - Vossa Graça - disse a Joffrey. - Tenha a gentileza de me conceder um momento a sós com a Senhora Sansa, por favor.

O rei estava prestes a recusar, mas a mãe lançou-lhe um olhar penetrante. Afastaram-se alguns metros.

Tyrion vestia um gibão de veludo negro coberto de arabescos dourados, botas cujos canos chegavam às suas coxas e que acrescentavam sete centímetros à sua altura, uma corrente de rubis e cabeças de leão. Mas o rasgão em seu rosto estava vermelho e em carne viva, e o nariz era uma hedionda escara.

- Está muito bela, Sansa - disse-lhe.

- É bondade sua, senhor. - Não sabia o que mais responder. Deveria dizer-lhe que é bonito? Vai me achar uma tola ou uma mentirosa. Baixou os olhos e dominou a língua.

- Senhora, isso não é maneira de trazê-la para o seu casamento, peço-lhe perdão. E por fazer isso de forma tão súbita e secreta. O senhor meu pai achou necessário, por razões de estado. De outra forma, teria ido encontrá-la mais cedo, conforme eu desejava. - Bamboleou-se para mais perto. - Não pediu este casamento, eu sei. Eu também não. Mas se a tivesse recusado, eles teriam casado a senhora com meu primo Lancei. Talvez tivesse preferido assim. Ele tem uma idade próxima da sua, e é mais bonito de se ver. Se for esse seu desejo, diga, e eu porei fim a esta farsa.

Não quero nenhum Lannister, ela quis dizer. Quero Willas, quero Jardim de Cima, os cachorros e a barcaça, e filhos chamados Eddard, Bran e Rickon. Mas então lembrou-se do que Dontos havia lhe dito no bosque sagrado. Tyrell ou Lannister, não faz diferença, não é a mim que querem, é só a minha pretensão.

- É gentil, senhor - disse, derrotada. - Sou protegida da coroa e meu dever é casar segundo as ordens do rei.

Ele estudou-a com seus olhos desiguais.

- Eu sei que não sou o tipo de esposo com que as garotas sonham, Sansa - disse, com suavidade -, mas também não sou Joffrey.

- Não - disse ela. - Foi gentil comigo. Eu me lembro.

Tyrion ofereceu-lhe uma mão grossa de dedos curtos.

- Então venha. Vamos cumprir o nosso dever.

E assim ela pousou a mão na dele e ele levou-a até o altar nupcial, onde o septão esperava entre a Mãe e o Pai para unir suas vidas. Sansa viu Dontos, com o seu traje de bobo, olhando-a com grandes olhos redondos. Sor Balon Swann e Sor Boros Blount encontravam-se lá, ostentando o branco da Guarda Real, mas Sor Loras não. Nenhum dos Tyrell está aqui, compreendeu de repente. Mas havia fartura de outras testemunhas; o eunuco Varys, Sor Addam Marbrand, Lorde Philip Foote, Sor Bronn, Jalabhar Xho, uma dúzia de outros. Lorde Gyles tossia, a Senhora Ermesande mamava, e a filha grávida da Senhora Tanda soluçava por nenhum motivo aparente. Que soluce, pensou Sansa. Eu talvez faça o mesmo antes que este dia acabe.

A cerimônia passou como que num sonho. Sansa fez tudo o que lhe foi pedido. Houve preces, votos e cânticos, e grandes velas queimando, uma centena de luzes dançantes, que as lágrimas em seus olhos se transformaram num milhar. Felizmente, ninguém pareceu reparar que ela estava chorando enquanto se encontrava ali, em pé, envolvida nas cores do pai; ou se viram, fingiram não ver. Naquilo que pareceu não ser tempo algum, chegaram à troca dos mantos.

Na condição de pai do reino, Joffrey ocupou o lugar de Eddard Stark. Sansa permaneceu dura como uma lança enquanto as mãos dele passaram sobre seus ombros para lutar contra o broche de seu manto. Uma delas roçou num seio e demorou-se lá, para lhe dar um pequeno apertão. Então o broche abriu-se, e Joff tirou seu manto de donzela com um floreado régio e um sorriso.

A parte do tio não correu tão bem. O manto de noiva que segurava era enorme e pesado, de veludo carmesim ricamente trabalhado com leões e debruado de cetim dourado e rubis. Mas ninguém havia se lembrado de trazer um banco, e Tyrion era meio metro mais baixo do que sua noiva. Quando ele se colocou atrás dela, Sansa sentiu um forte puxão na saia. Ele quer que eu ajoelhe, compreendeu, corando. Ficou mortificada. Não deveria ser assim. Sonhara mil vezes com seu casamento, e em todas elas imaginara o modo como seu noivo ficaria atrás dela, alto e forte, envolveria majestosamente seus ombros com o manto de sua proteção, e a beijaria ternamente no rosto ao debruçar-se para a frente, a fim de lhe prender o broche.

Sentiu outro puxão na saia, mais insistente. Não farei isso. Por que devo poupar os sentimentos dele, quando ninguém se preocupa com os meus?

O anão puxou-a pela terceira vez. Teimosamente, apertou os lábios e fingiu não reparar. Alguém atrás deles soltou um riso abafado. A rainha, pensou, mas não importava. Pouco depois estavam todos rindo, ninguém mais alto do que Joffrey.

- Dontos, de quatro - ordenou o rei. - Meu tio precisa de ajuda para subir até sua noiva.

E foi assim que o senhor seu esposo a cobriu com um manto nas cores da Casa Lannister enquanto se empoleirava nas costas de um bobo.

Quando Sansa se virou, o homenzinho fitava-a, de boca contraída, com o rosto tão vermelho quanto seu manto. De repente, sentiu-se envergonhada por sua teimosia. Alisou as saias e ajoelhou-se diante de Tyrion, para que as cabeças ficassem no mesmo nível.

- Com este beijo empenho o meu amor, e o tomo como meu senhor e esposo.

- Com este beijo empenho o meu amor - respondeu o anão em voz rouca - e a tomo como minha senhora e esposa. - Debruçou-se para a frente, e os lábios tocaram-se brevemente.

Ele é tão feio, pensou Sansa quando o rosto dele se aproximou do seu. É ainda mais feio do que o Cão de Caça.

O septão ergueu bem alto seu cristal, para que a luz arco-íris caísse sobre os dois.

- Aqui, à vista dos deuses e dos homens - disse -, proclamo solenemente que Tyrion da Casa Lannister e Sansa da Casa Stark são marido e mulher, uma carne, um coração, uma alma, agora e sempre, e maldito seja quem se interpuser entre eles.

Teve de morder o lábio para não soluçar.

O banquete de casamento foi servido no Pequeno Salão. Havia talvez cinquenta convidados; a maioria servidores e aliados dos Lannister, juntando-se àqueles que tinham estado no casamento. E ali Sansa encontrou os Tyrell. Margaery olhou-a de um modo cheio de tristeza, e quando a Rainha dos Espinhos entrou, vacilante, entre o Esquerdo e o Direito, sequer a olhou. Elinor, Alia e Megga pareciam determinadas a não conhecê-la. Minhas amigas, pensou Sansa amargamente.

Seu esposo bebeu muito e quase não comeu. Escutava sempre que alguém se levantava para fazer um brinde, e às vezes fazia um brusco aceno de apreço, mas fora isso daria para dizer que seu rosto era feito de pedra. O banquete pareceu prolongar-se sem fim, embora Sansa não tivesse provado nada da comida. Queria que aquilo acabasse, e no entanto temia o seu fim. Pois, após o banquete, vinha a noite de núpcias. Os homens iriam levá-la para sua cama nupcial, despindo-a no caminho e fazendo piadas grosseiras sobre aquilo que a aguardava entre os lençóis, enquanto as mulheres prestariam a Tyrion o mesmo serviço. Só depois de serem enfiados nus na cama é que os deixariam sós, e mesmo então os convidados permaneceriam à porta do aposento nupcial, gritando para dentro sugestões obscenas. A noite de núpcias parecera maravilhosamente maliciosa e excitante quando Sansa era garota, mas, agora que o momento estava quase chegando, sentia apenas terror. Não achava que seria capaz de suportar que arrancassem sua roupa, e estava certa de que rebentaria em lágrimas à primeira brincadeira lúbrica.

Quando os músicos começaram a tocar, Sansa apoiou timidamente a mão sobre a de Tyrion e disse:

- Senhor, lideramos o baile?

A boca dele torceu-se.

- Acho que já lhes demos divertimento suficiente para uma noite, não acha?

- Como quiser, senhor. - Retirou a mão.

Em vez deles, Joffrey e Margaery lideraram. Como é possível que um monstro dance de forma tão bela?, perguntou Sansa a si mesma. Tinha sonhado acordada muitas vezes sobre o modo como dançaria em seu casamento, com todos os olhos postos em si e em seu belo senhor. Nos sonhos, estavam todos sorrindo. Nem sequer o meu esposo sorri.

Outros convidados rapidamente se juntaram ao rei e à sua prometida. Elinor dançou com seu jovem escudeiro, e Megga, com o Príncipe Tommen. A Senhora Merryweather, a bela myrana de cabelos negros e grandes olhos escuros, girava tão provocantemente que em pouco tempo todos os homens presentes no salão a observavam. O Senhor e a Senhora Tyrell moviam-se mais calmamente. Sor Kevan Lannister pediu a honra à Senhora Janna Fossoway, irmã de Lorde Tyrell. Merry Crane juntou-se aos dançarinos com o príncipe exilado Jalabhar Xho, magnífico em seus adornos de penas. Cersei Lannister fez par primeiro com Lorde Redwyne, depois com Lorde Rowan, e por fim com o próprio pai, que dançava com uma graça fluida e séria.

Sansa ficou sentada com as mãos no colo, observando o modo como a rainha se movia, ria e sacudia os louros caracóis. Ela encanta a todos, pensou, entorpecida. Como eu a odeio. Afastou o olhar, dirigindo-o para onde o Rapaz Lua dançava com Dontos.

- Senhora Sansa. - Sor Garlan Tyrell estava em pé junto ao estrado. - Dá-me a honra? Se o seu senhor consentir?

Os olhos desiguais do Duende estreitaram-se.

- A minha senhora pode dançar com quem quiser.

Talvez devesse ter permanecido ao lado do marido, mas queria tanto dançar... e Sor Garlan era irmão de Margaery, de Willas, de seu Cavaleiro das Flores.

- Vejo por que lhe chamam Garlan, o Galante, sor - disse, ao pegar na mão dele.

- É muito amável por dizer isso, minha senhora. Foi meu irmão Willas quem me deu esse nome, por acaso. Para me proteger.

- Para protegê-lo? - Sansa dirigiu-lhe um olhar confuso.

Sor Garlan soltou uma gargalhada.

- Eu era um menininho rechonchudo, temo eu, e nós temos um tio chamado Garth, o Grosseiro. Por isso Willas atacou primeiro, não sem antes me ameaçar com Garlan, o Galo, Garlan, o Gatuno e Garlan, a Gárgula.

Aquilo era tão encantador e inocente que Sansa foi obrigada a rir, apesar de tudo. Depois, sentiu-se absurdamente grata. Sem saber como, o riso tinha lhe dado de novo esperança, ainda que por pouco tempo. Sorrindo, deixou que a música a dominasse, perdendo-se nos passos, no som de flauta, gaita de foles e harpa, no ritmo do tambor... e de tempos em tempos nos braços de Sor Garlan, quando a dança os juntava.

- A senhora minha esposa está muito preocupada com a senhora - disse ele em voz baixa numa dessas vezes.

- A Senhora Leonette é bondosa demais. Diga-lhe que estou bem.

- Uma noiva no seu casamento devia estar mais do que bem. - A voz dele não era desprovida de gentileza. - Parecia à beira das lágrimas.

- Lágrimas de alegria, sor.

- Seus olhos revelam a mentira de sua língua. - Sor Garlan virou-a, puxou-a para o seu lado. - Senhora, vi como olha para meu irmão. Loras é valente e bonito, e todos o amamos muito... mas o seu Duende será melhor marido. Ele é um homem maior do que parece, penso eu.

A música afastou-os antes de Sansa conseguir pensar numa resposta. Foi Mace Tyrell quem surgiu à sua frente, com o rosto vermelho e suado, e depois Lorde Merryweather, e depois o Príncipe Tommen.

- Também quero me casar - disse o rechonchudo principezinho, que tinha nove anos. - Sou mais alto do que o meu tio!

- Eu sei que é - disse Sansa, antes de os pares voltarem a trocar. Sor Kevan disse-lhe que estava bela, Jalabhar Xho disse qualquer coisa na Língua do Verão que ela não compreendeu, e Lorde Redwyne desejou-lhe muitas crianças gordas e longos anos de alegria. E então a dança deixou-a cara a cara com Joffrey.

Sansa retesou-se quando a mão dele tocou na dela, mas o rei apertou sua mão e puxou-a para si.

- Não devia estar com um ar tão triste. Meu tio é uma coisinha feia, mas você ainda terá a mim.

- O senhor irá se casar com Margaery!

- Um rei pode ter outras mulheres. Prostitutas. Meu pai teve. Um dos Aegon também. O terceiro ou o quarto. Teve um monte de prostitutas e um monte de bastardos. - Enquanto rodopiavam ao som da música, Joff deu-lhe um beijo úmido. - Meu tio vai trazê-la à minha cama sempre que eu ordenar.

Sansa balançou a cabeça.

- Não vai.

- Vai, senão corto a cabeça dele. Esse Rei Aegon, ele tinha todas as mulheres que desejava, quer fossem ou não casadas.

Felizmente, era hora de mudar mais uma vez. Mas suas pernas tinham se transformado em madeira, e Lorde Rowan, Sor Tallad e o escudeiro de Elinor devem tê-la achado uma dançarina muito desajeitada. E então viu-se de novo com Sor Garlan, e pouco depois, abençoadamente, a dança terminou.

O alívio foi curto. Assim que a música acabou, ouviu Joffrey dizer:

- Está na hora de levá-los para a cama! Vamos tirar a roupa dela e dar uma passada de olhos no que a loba tem a dar ao meu tio! - Outros homens juntaram-se ruidosamente ao grito.

O anão seu marido ergueu lentamente os olhos da taça de vinho.

- Não haverá nada de noite de núpcias.

Joffrey agarrou o braço de Sansa.

- Haverá, se eu ordenar.

O Duende espetou violentamente o punhal na mesa, onde ficou vibrando, e disse:

- E depois vai ter de servir a sua mulher com um cacete de madeira. Eu castro você, juro.

Caiu um pesado silêncio. Sansa tentou libertar-se de Joffrey, mas ele tinha-a bem agarrada e sua manga rasgou. Ninguém pareceu sequer ouvir. A Rainha Cersei virou-se para o pai.

- Ouviu o que ele disse?

Lorde Tywin levantou-se da cadeira.

- Acho que podemos dispensar a noite de núpcias. Tyrion, tenho certeza de que não pretendia ameaçar a pessoa do rei.

Sansa viu um espasmo de raiva percorrer o rosto do marido.

- Expressei-me mal - disse. - Foi uma brincadeira de mau gosto, senhor.

- Ameaçou me castrar. - disse Joffrey com uma voz esganiçada.

- Ameacei, Vossa Graça - disse Tyrion -, mas foi só por invejar o seu régio membro. O meu é tão pequeno e torto... - Seu rosto contorceu-se num olhar malicioso. - E se cortar minha língua, não me deixará nenhuma maneira de dar prazer a esta encantadora esposa que me deu.

Uma gargalhada explodiu dos lábios de Sor Osmund Kettleblack. Alguém soltou um risinho abafado. Mas Joff não riu, e Lorde Tywin também não.

- Vossa Graça - disse este -, meu filho está bêbado, pode constatar o fato.

- Estou - confessou o Duende -, mas não tão bêbado que não possa tratar da minha noite de núpcias. - Saltou do estrado e agarrou Sansa rudemente. - Venha, mulher, é hora de derrubar a sua porta levadiça. Quero brincar de entrar no castelo.

Corada, Sansa saiu com ele do Pequeno Salão. Que escolha tenho? Tyrion bamboleava-se ao caminhar, especialmente quando caminhava tão depressa quanto agora. Os deuses eram misericordiosos, e nem Joffrey nem nenhum dos outros fez um movimento para segui-los.

Para a noite de núpcias, tinham-lhes concedido o uso de um quarto arejado no alto da Torre da Mão. Tyrion fechou a porta com um pontapé depois de entrarem.

- Há um jarro de bom dourado da Árvore no aparador, Sansa. Quer fazer a gentileza de me servir uma taça?

- Será isso sensato, senhor?

- Não há nada mais sensato. Não estou realmente bêbado, compreende? Mas pretendo ficar.

Sansa encheu uma taça para cada um. Será mais fácil se eu também estiver bêbada. Sentou-se na beira da grande cama de dossel e ingeriu metade do conteúdo de sua taça em três longos goles. Sem dúvida que o vinho era muito bom, mas estava nervosa demais para saboreá-lo. A bebida deixou sua cabeça flutuando.

- Quer que eu tire minhas roupas, senhor?

- Tyrion. - Ele ergueu a cabeça. - Meu nome é Tyrion, Sansa.

- Tyrion. Senhor. Devo tirar o vestido, ou quer me despir? - bebeu mais um gole de vinho.

O Duende virou as costas para ela.

- Da primeira vez que me casei, fomos só nós e um septão bêbado, e alguns porcos como testemunhas. Comemos uma das testemunhas no banquete de casamento. Tysha deu na minha boca pele torrada de porco assado e eu lambi a gordura dos dedos dela, e estávamos rindo quando caímos na cama.

- Foi casado antes? Eu... eu tinha me esquecido.

- Não esqueceu. Nunca soube.

- Quem era ela, senhor? - a contragosto, Sansa sentia curiosidade.

- A Senhora Tysha. - A boca dele torceu-se. - Da Casa Punho de Prata. As armas deles são uma moeda de ouro e cem de prata, num lençol ensanguentado. Nosso casamento foi muito curto... como é próprio de um homem muito baixo, suponho.

Sansa fitou as mãos e nada disse.

- Quantos anos você tem, Sansa? - perguntou Tyrion após um momento.

- Treze - disse ela -, quando a lua virar.

- Deuses, piedade. - O anão bebeu outro gole de vinho. - Bem, conversar não fará você ficar mais velha. Vamos tratar disso, senhora? Se for do seu agrado?

- Será do meu agrado agradar ao senhor meu esposo.

Aquilo pareceu enfurecê-lo.

- Esconde-se atrás da cortesia como se fosse uma muralha de castelo.

- A cortesia é a armadura de uma senhora - disse Sansa. Sua septã sempre lhe dizia isso.

- Eu sou o seu marido. Agora pode tirar a armadura.

- E a roupa?

- Isso também. - Fez um gesto na direção dela com a taça de vinho. - O senhor meu pai ordenou-me que consumasse este casamento.

As mãos de Sansa tremiam quando começou a remexer as roupas. Tinha dez polegares no lugar dos dedos, e todos estavam quebrados. Mas de algum modo conseguiu se desembaraçar dos nós e botões, e o seu manto, o vestido, o espartilho e a seda íntima deslizaram para o chão, até que por fim saiu de dentro da roupa de baixo. A pele de seus braços e pernas ficou arrepiada. Manteve os olhos no chão, tímida demais para olhá-lo, mas quando terminou, lançou-lhe um relance de olhos e viu-o a fitá-la. Havia fome no olho verde, pareceu a ela, e fúria no negro. Sansa não sabia qual dos dois a assustava mais.

- É uma criança - disse ele.

Ela cobriu os seios com as mãos.

- Já floresci.

- Uma criança - repetiu ele mas desejo você. Isso a assusta, Sansa?

- Sim.

- A mim também. Eu sei que sou feio...

- Não, sen...

Ele ergueu-se.

- Não minta, Sansa. Sou deformado, mutilado e pequeno, mas... - Sansa viu que ele procurava as palavras - ... na cama, depois das velas sopradas, não sou pior constituído do que os outros homens. No escuro, sou o Cavaleiro das Flores. - Bebeu um trago de vinho. - Sou generoso. Leal para com aqueles que me são leais. Provei que não sou covarde. E sou mais inteligente do que a maioria, decerto a esperteza deve contar para alguma coisa. Até posso ser bondoso. Temo que a bondade não seja um hábito entre nós, os Lannister, mas sei que tenho alguma, em algum lugar. Poderia ser... poderia ser bom para você.

Ele está tão assustado quanto eu, percebeu Sansa. Isso talvez devesse tê-la deixado mais compreensiva para com ele, mas não a deixou. Tudo que sentiu foi pena, e a pena é a morte do desejo. O anão olhava-a, à espera de que dissesse alguma coisa, mas todas as suas palavras tinham murchado. Só conseguiu ficar ali, em pé, tremendo.

Quando finalmente compreendeu que ela não tinha uma resposta para lhe dar, Tyrion Lannister entornou o resto do vinho.

- Compreendo - disse amargamente. - Vá para a cama, Sansa. Temos de cumprir o nosso dever.

Ela subiu para o colchão de plumas, consciente de que ele a encarava. Uma vela perfumada de cera de abelha ardia na mesa de cabeceira e pétalas de rosas tinham sido espalhadas entre os lençóis. Tinha começado a puxar uma manta para se cobrir quando o ouviu dizer:

- Não.

O frio fazia-a tremer, mas obedeceu. Seus olhos fecharam-se, e esperou. Um momento depois, ouviu o som do marido descalçando as botas, e o roçagar de roupa enquanto se despia. Quando saltou para a cama e pôs uma mão no seu seio, Sansa não conseguiu evitar um estremecimento. Ficou de olhos fechados, com cada músculo tenso, aterrorizada com o que poderia vir em seguida. Ele voltaria a tocá-la? Iria beijá-la? Deveria abrir já as pernas para ele? Não sabia o que era esperado de si.

- Sansa. - A mão tinha desaparecido. - Abra os olhos.

Prometera obedecer; abriu os olhos. Ele estava sentado junto aos seus pés, nu. Onde as pernas se juntavam, seu bastão de homem erguia-se, teso e rijo, de uma mata de ásperos pelos amarelos, mas essa era a única coisa nele que era direita.

- Minha senhora - disse Tyrion - E adorável, não duvide, mas... não posso fazer isso. Que se dane o meu pai. Esperaremos. A volta da lua, um ano, uma estação, o tempo que for preciso. Até que me conheça melhor, e talvez confie um pouco em mim. - O sorriso podia pretender ser tranquilizador, mas sem nariz só o fazia parecer mais grotesco e sinistro.

Olhe para ele, disse Sansa a si mesma, olhe para o seu marido, para todo ele, a Septã Mordane dizia que todos os homens são belos, encontre a beleza dele, tente. Fitou as pernas tortas, a testa inchada e animalesca, o olho verde e o negro, os restos em carne viva de seu nariz e a cicatriz irregular e rosada, o rude emaranhado de pelos amarelos e pretos que nele passava por barba. Até o seu membro viril era feio, grosso e cheio de veias, com uma cabeça bulbosa e roxa. Isso não está certo, isso não é justo, como terei pecado tanto para levar os deuses afazerem isso comigo, como?

- Por minha honra como Lannister - disse o Duende -, juro não tocá-la até que queira que eu o faça.

Precisou de toda a coragem que possuía para olhar aqueles olhos desiguais e dizer:

- E se eu nunca quiser que faça isso, senhor?

A boca dele contraiu-se como se o tivesse esbofeteado.

- Nunca? - Sansa tinha o pescoço tão tenso que quase não conseguiu assentir. - Ora - disse ele -, é por isso que os deuses fazem as prostitutas, para duendes como eu. - Fechou seus dedos curtos e grossos num punho e saltou da cama.

Arya

O Septo de Pedra era a maior localidade que Arya tinha visto desde Porto Real, e Harwin disse-lhe que o pai dela ganhara ali uma batalha famosa.

- Os homens do Rei Louco andavam no encalço de Robert, tentando apanhá-lo antes de conseguir se reunir com seu pai - disse-lhe enquanto se aproximavam do portão. - Robert estava ferido, cercado de alguns amigos que tratavam dele, quando Lorde Connington, a Mão, tomou a cidade com uma força poderosa e ordenou buscas casa a casa. Mas antes de conseguirem encontrá-lo, Lorde Eddard e seu avô caíram sobre a cidade e assaltaram as muralhas. Lorde Connington retrucou ferozmente. Lutou-se pelas ruas e pelos becos, e até nos telhados, e todos os septões bateram os sinos para que o povo soubesse que devia trancar as portas. Robert saiu do esconderijo para se juntar à luta quando os sinos começaram a soar. Dizem que matou seis homens nesse dia. Um deles foi Myles Mooton, um cavaleiro famoso que tinha sido escudeiro do Príncipe Rhaegar. Teria matado também a Mão, mas a batalha nunca os aproximou. Em contrapartida, Connington feriu gravemente seu avô Tully, e matou Sor Denys Arryn, o predileto do Vale. Mas quando viu que o dia estava perdido, fugiu com toda a velocidade dos grifos de seu escudo. Depois, chamaram esse confronto de a Batalha dos Sinos. Robert sempre disse que foi seu pai quem a ganhou, e não ele.

Pelo aspecto do lugar, Arya achou que batalhas mais recentes também tinham sido travadas ali. Os portões da cidade eram feitos de madeira nova e verde; do lado de fora das muralhas ainda se erguia uma pilha de tábuas carbonizadas indicando o que acontecera com os antigos.

Septo de Pedra estava bem fechado, mas quando o capitão do portão viu quem eles eram, abriu uma porta de surtida para eles.

- Como andam de comida? - perguntou Tom quando entraram.

- Não tão mal quanto estávamos. O Caçador trouxe um rebanho de ovelhas, e tem havido algum comércio ao longo da Água Negra. A colheita não foi queimada a sul do rio. Claro, há um monte de gente que quer nos tirar o que temos. Num dia lobos, no outro Saltimbancos, Aqueles que não andam à procura de comida, andam à procura de saque ou de mulheres pra estuprar, e aqueles que não andam por aí por causa de ouro ou de moças andam à procura do maldito Regicida. Dizem que escapuliu bem pelo meio dos dedos de Lorde Edmure.

- Lorde Edmure? - Limo franziu a testa. - Então Lorde Hoster está morto?

- Morto ou morrendo. Acha que o Lannister pode vir pra Água Negra? O Caçador jura que é o caminho mais rápido pra Porto Real. - O capitão não esperou resposta. - Ele levou os cães pra cheirar por aí. Se Sor Jaime anda por estas bandas, vai encontrá-lo. Já vi aqueles cães darem cabo de ursos. Acha que vão gostar do sabor de sangue de leão?

- Um cadáver mastigado não serve a ninguém - disse Limo. - O Caçador também sabe muito bem disso.

- Quando os ocidentais chegaram, estupraram a mulher e a irmã do Caçador, passaram fogo em suas colheitas, comeram metade das ovelhas dele e mataram a outra metade por vontade de fazer mal. Também mataram seis cães e atiraram suas carcaças no poço. Eu diria que um cadáver mastigado lhe serve perfeitamente. E a mim também.

- É melhor que ele não faça isso - disse Limo. - É tudo que eu tenho a dizer. É melhor que não faça isso, e você é um maldito de um idiota.

Arya seguiu entre Harwin e Anguy enquanto os fora da lei avançavam pelas ruas em que o pai lutara antigamente. Via o septo em sua colina e, por baixo, uma robusta fortaleza pouco elevada de pedra cinzenta, que parecia muito menor do que devia ser para uma cidade tão grande. Mas um terço das casas por onde passavam era uma casca enegrecida, e não viu ninguém.

- Os habitantes da cidade estão todos mortos?

- Só desconfiados. - Anguy apontou para dois arqueiros num telhado, e para um grupo de rapazes com o rosto coberto de fuligem acocorados nas ruínas de uma cervejaria. Mais adiante, um padeiro escancarou uma janela e gritou para Limo. O som da voz dele levou mais gente a sair dos esconderijos, e Septo de Pedra pareceu voltar lentamente à vida em volta deles.

Na praça do mercado, no coração da cidade, havia uma fonte com a forma de uma truta saltando, de onde corria água para uma lagoa rasa. Mulheres enchiam ali baldes e jarros. A um par de metros de distância, uma dúzia de gaiolas de ferro pendurava-se, rangendo, de postes de madeira. Gaiolas para corvos, compreendeu Arya. Os corvos estavam quase todos fora das gaiolas, chapinhando na água ou empoleirados nas barras; dentro delas havia homens. Limo puxou as rédeas do cavalo, franzindo a testa.

- O que é isso agora?

- Justiça - respondeu uma mulher junto à fonte.

- Que foi, estão com falta de corda de cânhamo?

- Isso foi feito por determinação de Sor Wilbert? - perguntou Tom.

Um homem soltou uma gargalhada amarga.

- Os leões mataram Sor Wilbert há um ano. Os filhos dele andam todos com o Jovem Lobo, engordando no oeste. Acha que eles dão a mínima pra gente como nós? Foi o Caçador Louco que apanhou esses lobos.

Lobos. Arya gelou. Homens de Robb e do meu pai. Sentiu-se atraída para as gaiolas. As barras deixavam tão pouco espaço que os prisioneiros não podiam se sentar nem se virar; estavam em pé, nus, expostos ao sol, ao vento e à chuva. As primeiras três gaiolas continham mortos. Corvos tinham comido seus olhos, mas as órbitas vazias pareciam segui-la. O quarto homem da fileira agitou-se quando ela passou. Em volta da boca, a sua barba andrajosa estava repleta de sangue e de moscas. Como que explodiram quando ele falou, zumbindo em volta de sua cabeça.

- Água - A palavra era um crocitar. - Por favor... água...

O homem na gaiola seguinte abriu os olhos ao ouvir o som.

- Aqui - disse. - Aqui, eu. - Era um velho; a barba era grisalha e o couro cabeludo, calvo e pintalgado de marrom pela idade.

Depois do velho havia outro morto, um grande homem de barba ruiva, com uma atadura cinzenta em putrefação cobrindo a orelha esquerda e parte da cabeça. Mas o pior estava entre as pernas, onde nada restava além de um buraco marrom coberto por uma crosta e repleto de larvas. Mais à frente encontrava-se um gordo. A gaiola para corvos era tão cruelmente estreita que era difícil entender como conseguiram enfiá-lo lá dentro. O ferro enterrava-se dolorosamente em sua barriga, fazendo sair protuberâncias por entre as barras. Longos dias torrando ao sol tinham-no deixado dolorosamente vermelho da cabeça aos pés. Quando mudou o ponto de apoio de seu peso, a gaiola rangeu e balançou, e Arya viu listras brancas nos locais em que as barras tinham bloqueado sua pele do sol.

- São homens de quem? - perguntou-lhes.

Ao ouvir o som de sua voz, o gordo abriu os olhos. A pele em volta deles estava tão vermelha que pareciam ovos cozidos flutuando num prato de sangue.

- Agua... uma bebida...

- De quem? - repetiu.

- Não ligue para eles, moço - disse-lhe o habitante da cidade. - Não dizem respeito a você. Avance.

- O que foi que eles fizeram? - perguntou-lhe Arya.

- Passaram oito pessoas na espada na Cascata do Acrobata - disse ele. - Queriam encontrar o Regicida, mas ele não estava lá, então trataram de arranjar uns estupros e assassinatos. - Agitou um polegar na direção do cadáver com larvas onde devia estar o membro viril. - Foi aquele que estuprou. Agora avance.

- Uma gota - gritou o gordo para baixo. - Misericórdia, rapaz, uma gota. - O velho ergueu um braço para se agarrar às barras. O movimento fez sua gaiola balançar violentamente.

- Água - arquejou aquele que tinha moscas na barba.

Ela olhou para o cabelo imundo, barbas macilentas e olhos vermelhos, para os lábios secos, rachados e sangrentos. Lobos, voltou a pensar. Como eu. Seria aquela a sua matilha? Como podem ser homens de Robb? Quis bater neles. Quis machucá-los. Quis chorar. Todos pareciam olhá-la, tanto os vivos como os mortos. O velho havia estendido três dedos entre as barras.

- Água - disse -, água.

Arya saltou do cavalo. Não podem me fazer mal, estão morrendo. Tirou sua taça de dentro do rolo de dormir e dirigiu-se à fonte.

- O que você acha que tá fazendo, moço? - disse o habitante da cidade num tom incisivo. - Eles não dizem respeito a você. - Arya levou a taça à boca do peixe. A água derramou-se sobre seus dedos e desceu por sua manga, mas Arya não se mexeu até a taça começar a transbordar. Quando virou-se de volta para as gaiolas, o habitante da cidade pôs-se na sua frente. - Afaste-se deles, moço...

- Ela é uma moça - disse Harwin. - Deixe-a.

- E - disse Limo. - Lorde Beric não gosta de engaiolar homens pra que morram de sede. Por que é que não os enforcam decentemente?

- Não houve nada decente nas coisas que eles fizeram na Cascata do Acrobata - rosnou-lhe o cidadão.

As barras eram próximas demais para introduzir nelas uma taça, mas Harwin e Gendry ajudaram-na a subir na gaiola. Apoiou um pé nas mãos de Harwin, girou para cima dos ombros de Gendry e agarrou-se às barras do topo da gaiola. O gordo virou o rosto para cima e encostou a bochecha no ferro, e Arya despejou a água por cima dele. O homem sugou-a avidamente e deixou que escorresse pela cabeça, rosto e mãos, e depois lambeu a umidade que ficou nas barras. Teria lambido os dedos de Arya se ela não os tivesse afastado. Quando serviu os outros dois da mesma forma, uma multidão tinha se reunido para observá-la.

- O Caçador Louco vai ouvir falar disso - ameaçou um homem. - E não vai gostar. Não vai gostar, não.

- Então vai gostar ainda menos disto. - Anguy colocou uma corda no arco, tirou uma flecha da aljava, encaixou-a, puxou a corda e soltou. O gordo estremeceu quando a flecha se enterrou entre seus queixos, mas a gaiola não o deixou cair. Outras duas flechas acabaram com os outros dois nortenhos. O único som na praça do mercado era o esparramar da água que caía e o zumbir das moscas.

Valar morgbulis, pensou Arya.

No lado oriental da praça do mercado erguia-se uma modesta estalagem com paredes caiadas e janelas quebradas. Metade de seu telhado queimara recentemente, mas o buraco havia sido remendado. Por cima da porta pendia uma telha de madeira onde se encontrava pintado um pêssego com uma grande mordida. Desmontaram junto ao estábulo, que se dispunha diagonalmente, e Barba-Verde berrou por cavalariços.

A rechonchuda estalajadeira ruiva uivou de prazer ao vê-los e prontamente passou a zombar deles.

- Barba-Verde, é? Ou Barba-Grisalha? Pela misericórdia da Mãe, quando foi que envelheceu tanto? Limo, é você? Ainda usa o mesmo manto maltrapilho, hã? Eu sei por que é que nunca o lava, ah, se sei. Tem medo de que o mijo saia todo e a gente veja que na verdade é um cavaleiro da Guarda Real! O Tom das Sete, seu bode velho atrevido. Vem visitar aquele seu filho? Bem, veio tarde, ele saiu pra caçar com aquele maldito Caçador. E não me diga que não é seu!

- Ele não tem a minha voz - protestou fracamente Tom.

- Mas tem o seu nariz. Sim, e as outras partes também, pelo que dizem as garotas. - Então viu Gendry, e deu-lhe um beliscão no rosto. - Olhe para este belo e jovem boi. Espere só a Alyce ver estes braços. Oh, e ainda por cima cora como uma donzela. Bem, a Alyce resolve esse seu problema, rapaz, você vai ver.

Arya nunca tinha visto Gendry ficar tão vermelho.

- Tanásia, deixe o Touro em paz, ele é um bom rapaz - disse Tom Sete-Cordas. - Tudo que precisamos de você é de camas seguras para passar a noite.

- Fale por si, cantor. - Anguy passou o braço em volta de uma jovem e robusta criada, tão sardenta quanto ele.

- Camas, temos - disse a ruiva Tanásia. - Nunca faltaram camas no Pêssego. Mas vão todos à banheira primeiro. Da última vez que seu grupo ficou debaixo do meu teto, deixou as pulgas aqui. - Espetou o dedo no peito do Barba-Verde. - E as suas também eram verdes. Querem comer?

- Se tem comida sobrando, não diremos não - concedeu Tom.

- Ora, e quando foi que você disse "não" a alguma coisa, Tom? - gritou a mulher. - Vou assar um pouco de carneiro para os seus amigos, e uma velha ratazana seca para você. E mais do que merece, mas se me gargarejar uma ou duas canções, pode ser que eu amoleça. Sempre tive piedade dos aflitos. Venham, venham. Cass, Lanna, ponham as panelas no fogo. Jyzene, ajude-me a tirar a roupa deles, que também vamos precisar fervê-la.

E cumpriu todas as ameaças. Arya tentou dizer-lhes que tinham dado banho nela duas vezes no Solar de Bolotas ainda não havia uma quinzena, mas a ruiva não queria ouvir falar do assunto. Duas criadas levaram-na no colo escada acima, discutindo sobre se seria um menino ou uma menina. A que se chamava Helly ganhou, por isso a outra teve de ir buscar a água quente e esfregar as costas de Arya com uma escova eriçada e rígida que quase arrancou sua pele. Então roubaram toda a roupa que a Senhora Smallwood tinha lhe dado e vestiram-na de linho e rendas, como uma das bonecas de Sansa. Mas, pelo menos, quando acabaram, pôde descer e comer.

Ao se sentar na sala comum, em suas estúpidas roupas de menina, Arya lembrou-se do que Syrio Forel havia lhe ensinado, o truque de olhar e ver o que estava lá. Quando olhou, viu mais criadas do que qualquer estalagem poderia querer, em sua maioria jovens e atraentes. E, ao cair a noite, montes de homens começaram a entrar e sair do Pêssego. Não ficavam muito tempo na sala comum, nem mesmo quando Tom pegou sua harpa e começou a cantar "Seis donzelas numa lagoa". Os degraus de madeira eram velhos e íngremes e rangiam furiosamente sempre que um dos homens levava uma garota para cima.

- Aposto que isto é um bordel - murmurou a Gendry.

- Você nem sequer sabe o que é um bordel.

- Sei, sim - insistiu ela. - É como uma estalagem, com garotas.

Ele estava outra vez corando.

- Então o que você está fazendo aqui? - quis saber. - Um bordel não é lugar para uma maldita de uma senhora bem-nascida, todo mundo sabe.

Uma das garotas sentou-se no banco ao lado dele.

- Quem é senhora bem-nascida? A magricela? - Olhou para Arya e riu. - Eu sou filha de um rei.

Arya sabia que estavam caçoando dela.

- Não é nada.

- Bem, poderia ser. - Quando a garota encolheu os ombros, seu vestido escorregou de um lado. - Dizem que o Rei Robert fodeu a minha mãe quando se escondeu aqui, antes da batalha. Não que não tenha possuído também todas as outras garotas, mas Leslyn diz que ele gostava mais da minha mãe.

A garota realmente tinha cabelos parecidos com os do antigo rei, pensou Arya; uma grande e espessa cabeleira, preta como carvão. Mas isso não quer dizer nada. Gendry também tem o mesmo tipo de cabelo. Um monte de gente tem cabelos pretos.

- Sou chamada de Sineta - disse a garota a Gendry. - Por causa da batalha. Aposto que também conseguiria tocar o seu sino. Quer?

- Não - disse ele bruscamente.

- Aposto que quer. - Correu uma mão ao longo do braço dele. - Sou cortesia para amigos de Thoros e do senhor do relâmpago.

- Eu disse que não. - Gendry ficou abruptamente em pé e afastou-se da mesa, saindo para a noite.

Sineta virou-se para Arya.

- Ele não gosta de garotas?

Arya encolheu os ombros.

- É só estúpido. Gosta de polir capacetes e bater espadas com martelos.

- Ah. - Sineta ajeitou de novo o vestido no ombro e foi falar com Jack Sortudo. Não muito tempo depois, estava sentada no colo dele, rindo e bebendo vinho de sua taça. Barba-Verde tinha duas garotas, uma em cada joelho. Anguy tinha desaparecido com a sua sardenta, e Limo também tinha sumido. Tom Sete-Cordas estava sentado junto à lareira, cantando "As donzelas que desabrocham na primavera". Arya bebericou da taça de vinho aguado que a ruiva lhe autorizara, escutando. Do outro lado da praça, os mortos apodreciam em suas gaiolas de corvos, mas dentro do Pêssego todo mundo estava alegre. Só que de algum modo lhe parecia que alguns deles estavam rindo alto demais.

Teria sido uma boa hora para escapar e roubar um cavalo, mas Arya não via como isso a ajudaria. Só poderia chegar até os portões da cidade. Aquele capitão nunca me deixaria passar, e se deixasse, Harwin viria atrás de mim, e aquele Caçador com os seus cães também. Desejou ter o mapa, para poder ver a que distância de Correrrio ficava Septo de Pedra.

Quando sua taça se esvaziou, Arya já bocejava. Gendry não tinha voltado. Tom Sete-Cordas estava cantando "Dois corações que batem como um só", e beijando uma garota diferente no fim de cada verso. No canto, junto à janela, Limo e Harwin conversavam em voz baixa com a ruiva Tanásia.

- ... passou a noite na cela de Jaime - ouviu a mulher dizer. - Ela e outra moça, aquela que matou Renly. Os três juntos, e ao chegar a manhã a Senhora Catelyn libertou-o por amor. - Soltou uma gargalhadinha gutural.

Não é verdade, pensou Arya. Ela nunca faria isso. Sentiu-se triste, zangada e solitária, tudo ao mesmo tempo.

Um velho sentou-se ao seu lado.

- Ora, aqui está um pessegozinho bonito. - O hálito do homem cheirava quase tão mal quanto os mortos nas gaiolas, e seus pequenos olhos de porco percorriam-na de cima a baixo. - O meu querido pessegozinho tem nome?

Durante meio segundo, Arya esqueceu-se de quem se esperava que ela fosse. Não era pêssego nenhum, mas também não podia ser Arya Stark, ali, para um bêbado fedido que não conhecia.

- Eu sou...

- Ela é a minha irmã. - Gendry apoiou uma mão pesada no ombro do velho e apertou. - Deixe-a em paz.

O homem virou-se, desejoso de uma luta, mas, quando viu o tamanho de Gendry, pensou duas vezes.

- Sua irmã, é? Que raio de irmão é você? Nunca traria uma irmã minha ao Pêssego, isso é certo. - Levantou-se do banco e afastou-se resmungando, à procura de uma nova amiga.

- Por que foi que disse aquilo? - Arya levantou-se em um salto. - Você não é meu irmão.

- É verdade - disse ele num tom irritado. - Meu nascimento é baixo demais para ser da família de sua alteza.

Arya surpreendeu-se pela fúria na voz dele.

- Não foi isso que eu quis dizer.

- Foi, sim senhora. - Gendry sentou-se no banco, aninhando uma taça de vinho nas mãos. - Vá embora. Quero beber este vinho em paz. Depois, de repente vou atrás daquela garota de cabelos pretos para tocar o sino dela.

- Mas...

- Eu disse: vá embora. Senhora.

Arya virou-se e deixou-o ali. Um estúpido bastardo cabeça-dura é o que ele é. Podia tocar todos os sinos que quisesse, ela não queria nem saber.

O quarto deles ficava no topo da escada, abaixo do beiral. No Pêssego, talvez não faltassem camas, mas só havia uma para gente como eles. Era uma cama grande, porém. Enchia o quarto quase por completo, e o bolorento colchão estofado de palha parecia suficientemente grande para acomodá-los todos. Por enquanto, no entanto, tinha-o todo para si. Sua roupa de verdade estava pendurada em um gancho na parede, entre as coisas de Gendry e as de Limo. Arya despiu o linho e a renda, enfiou a túnica pela cabeça, subiu para a cama e enterrou-se sob as mantas.

- Rainha Cersei - sussurrou para a almofada. - Rei Joffrey, Sor Ilyn, Sor Meryn. Dunsen, Raff e Polliver. Cócegas, Cão de Caça e Sor Gregor, a Montanha. - Às vezes gostava de embaralhar a ordem dos nomes. Isso ajudava-a a recordar quem eram e o que tinham feito. Alguns talvez estejam mortos, pensou. Talvez, em algum lugar, estejam dentro de gaiolas de ferro, e os corvos estejam bicando seus olhos.

O sono chegou assim que fechou os olhos. Nessa noite, sonhou com lobos, caçando em uma floresta úmida com um pesado cheiro de chuva, putrefação e sangue no ar. Mas, no sonho, eram cheiros bons, e Arya sabia que nada tinha a temer. Era forte, ligeira e feroz, e a sua matilha rodeava-a, seus irmãos e suas irmãs. Perseguiram juntos um cavalo assustado, rasgaram sua garganta e banquetearam-se. E quando a lua surgiu entre as nuvens, jogou a cabeça para trás e uivou.

Mas, quando o dia chegou, acordou com o ladrar de cães.

Arya sentou-se, bocejando. Gendry agitava-se à sua esquerda e Limo Manto Limão roncava sonoramente à direita, mas os latidos lá fora quase não deixavam que o ouvisse. Deve haver meia centena de cães lá fora. Saiu de debaixo das mantas e saltou por cima de Limo, Tom e Jack Sortudo, até chegar à janela. Quando escancarou as venezianas, o vento, a umidade e o frio jorraram juntos para dentro do quarto. O dia estava cinzento e encoberto. Embaixo, na praça, os cães latiam, correndo em círculos, rosnando e uivando. Era uma matilha, grandes mastins negros, lobeiros esguios e cães pastores pretos e brancos, e raças que Arya não conhecia, animais hirsutos e malhados, com grandes dentes amarelos. Entre a estalagem e a fonte encontrava-se uma dúzia de cavaleiros montados em seus cavalos, observando os homens da cidade que abriam a gaiola do gordo e o puxavam pelo braço até que seu corpo inchado caiu no chão. Os cães caíram sobre ele de imediato, arrancando pedaços de carne de seus ossos.

Arya ouviu um dos cavaleiros rir.

- Aqui está seu novo castelo, maldito bastardo Lannister - disse. - Um tanto compacto para um cara como você, mas não se preocupe, a gente enfia você lá dentro. – Ao seu lado estava sentado um prisioneiro, carrancudo, com várias voltas de corda de cânhamo apertadas ao redor dos pulsos. Alguns dos homens da cidade estavam atirando esterco nele, mas o prisioneiro nem vacilava. - Vai apodrecer nessa gaiola - seu captor gritava. - Os corvos vão comer seus olhos enquanto nós gastamos todo este seu bom ouro Lannister! E quando os corvos acabarem, vamos mandar o que sobrar de você ao seu maldito irmão. Embora eu duvide que ele o reconheça.

O barulho tinha acordado metade do Pêssego. Gendry enfiou-se ao lado de Arya na janela, e Tom aproximou-se por trás deles, nu como no dia em que nasceu.

- Que diabo de gritaria é essa? - Limo protestou da cama. - Um homem tá tentando dormir um pouco, diabos!

- Onde está o Barba-Verde? - perguntou Tom.

- Na cama com a Tanásia - disse o Limo. - Por quê?

- É melhor ir atrás dele. E do Arqueiro também. O Caçador Louco voltou, com mais um homem para as gaiolas.

- Lannister - disse Arya. - Eu ouvi-o dizer Lannister.

- Pegaram o Regicida? - quis saber Gendry.

Lá embaixo, na praça, uma pedra atingiu o cativo no rosto, obrigando-o a virar a cabeça. Não é o Regicida, pensou Arya quando viu seu rosto. Os deuses tinham ouvido as suas preces, afinal.

Jon

Fantasma tinha desaparecido quando os selvagens trouxeram os cavalos da gruta. Terá compreendido o que lhe disse sobre Castelo Negro? Jon inspirou o ar fresco da manhã e permitiu-se ter esperança. O céu oriental mostrava-se rosado perto do horizonte e cinza-claro mais acima. A Espada da Manhã ainda podia ser vista ao sul, com a brilhante estrela branca de seu cabo cintilando como um diamante na alvorada, mas os negros e cinza da floresta sombria estavam se transformando mais uma vez em verdes e dourados, vermelhos e castanhos. E, por cima dos pinheiros marciais, carvalhos, freixos e sentinelas, erguia-se a Muralha, com o gelo branco e de brilho fraco sob a poeira e a terra que manchavam sua superfície.

Magnar mandou uma dúzia de homens para oeste e uma dúzia para leste, a fim de subirem os montes mais altos que conseguissem encontrar e ficarem alerta a qualquer sinal de patrulheiros na floresta ou cavaleiros lá em cima, no gelo. Os Thenns transportavam berrantes de guerra reforçados com bronze, a fim de dar avisos caso a Patrulha fosse avistada. Os outros selvagens seguiram atrás de Jarl, e Jon e Ygritte juntaram-se ao grupo. Aquela seria a hora da glória do jovem corsário.

Dizia-se com frequência que a Muralha se erguia a duzentos metros de altura, mas Jarl havia encontrado um lugar onde era ao mesmo tempo mais alta e mais baixa. A frente deles, o gelo subia abruptamente de entre as árvores como uma imensa falésia, coroada por ameias escavadas pelo vento que se projetavam a pelo menos duzentos e quarenta metros de altura, chegando talvez a duzentos e setenta em alguns locais. Mas, ao aproximar-se, Jon compreendeu como isso era enganoso. Brandon, o Construtor, dispusera os blocos das fundações ao longo dos trechos elevados sempre que possível, e naquela zona os montes subiam bruscos e irregulares.

Certa vez, Jon ouvira o tio Benjen dizer que a Muralha era uma espada a leste de Castelo Negro, mas uma serpente a oeste. Era verdade. Estendendo-se sobre um enorme monte encurvado, o gelo mergulhava num vale, subia o topo escalavrado de uma grande crista de granito ao longo de uma légua, ou mais, percorria uma cumeada irregular, voltava a mergulhar num vale ainda mais profundo e depois subia mais e mais alto, saltando de monte em monte até perder de vista, na direção do oeste montanhoso.

Jarl tinha escolhido escalar a extensão de gelo ao longo da crista. Ali, embora o topo da Muralha se erguesse duzentos e quarenta metros acima do chão da floresta, um bom terço dessa altura era composto por terra e pedra em vez de gelo; a encosta era íngreme demais para os cavalos, uma escalada quase tão difícil quanto o Punho dos Primeiros Homens, mas, apesar disso, muito mais fácil de subir do que a face absolutamente vertical da própria Muralha. E, além disso, a crista também era densamente arborizada, fornecendo fácil cobertura. Em outros tempos, irmãos vestidos de negro saíam todos os dias com machados para cortar as árvores invasoras, mas esses dias tinham ficado para trás havia muito, e ali a floresta crescia bem junto ao gelo.

O dia prometia ser úmido e frio, e mais úmido e frio estaria junto à Muralha, sob aquelas toneladas de gelo. Quanto mais perto chegavam, mais os Thenn se retraíam. Eles nunca tinham visto a Muralha, nem mesmo o Magnar, compreendeu Jon. Assusta-os. Nos Sete Reinos dizia-se que a Muralha marcava o fim do mundo. Isso também é verdade para eles. Tudo dependia do lado em que se estava.

E de que lado estou eu? Jon não sabia. Para ficar com Ygritte, teria de se tornar um selvagem, de alma e coração. Se a abandonasse para retornar ao seu dever, o Magnar poderia arrancar o coração da garota. E se a levasse consigo... partindo do princípio de que ela iria, o que era longe de ser certo... bem, dificilmente poderia levá-la de volta para Castelo Negro, para viver entre os irmãos. Um desertor e uma selvagem não podiam esperar boas-vindas em qualquer parte dos Sete Reinos. Suponho que poderíamos ir à procura dos filhos de Gendel. Muito embora fosse provável que nos comessem em vez de nos darem as boas-vindas.

Jon via que a Muralha não atemorizava os assaltantes de Jarl. Todos eles já fizeram isso antes. Jarl gritou nomes quando desmontaram sob a crista, e onze homens juntaram-se à sua volta. Todos eram jovens. O mais velho não parecia ter mais de vinte e cinco anos, e dois dos dez eram mais novos do que Jon. Mas eram todos esguios e rijos; aparentavam uma força vigorosa que lhe fazia lembrar Cobra das Pedras, o irmão que Meia-Mão enviara a pé quando Camisa de Chocalho andava no encalço deles.

Bem à sombra da Muralha, os selvagens fizeram os preparativos, enrolando grossas voltas de corda de cânhamo em um ombro e cruzando o peito, e amarrando estranhas botas de pele de corça de veado. As botas tinham espigões que se projetavam de suas pontas; de ferro para Jarl e outros dois, bronze para alguns, mas era mais frequente serem de osso denteado. Pequenos martelos com cabeça de pedra estavam pendurados em uma anca, e um saco de couro cheio de estacas em outra. Seus machados de gelo eram chifres com pontas aguçadas, atadas com faixas de couro cru a cabos de madeira. Os onze alpinistas agruparam-se em três equipes de quatro homens; o próprio Jarl era o décimo segundo.

- Mance promete espadas para cada membro da primeira equipe a atingir o topo - disse-lhes, com o hálito se condensando no ar frio. - Espadas sulistas de aço forjado em castelo. E também seu nome na canção que vai escrever a respeito disso. O que mais pode um homem livre pedir? Para cima, e que os Outros carreguem os últimos!

Que os Outros carreguem todos eles, pensou Jon, enquanto os observava subindo a íngreme encosta da crista e desaparecendo sob as árvores. Não seria a primeira vez que selvagens escalavam a Muralha, nem sequer a centésima primeira. As patrulhas tropeçavam em alpinistas duas ou três vezes por ano, e às vezes os patrulheiros encontravam os cadáveres estraçalhados daqueles que caíam. Ao longo da costa oriental era mais frequente os corsários construírem barcos para se esgueirarem através da Baía das Focas. No oeste, desciam até as profundezas negras da Garganta para seguir caminho em volta da Torre Sombria. Mas entre esses dois pontos, a única forma de derrotar a Muralha era saltar por cima dela, e muitos atacantes tinham feito isso. São menos os que voltam, porém, pensou, com certo orgulho cruel. Os alpinistas eram obrigados a deixar os cavalos para trás, e muitos dos atacantes mais jovens e inexperientes começavam roubando os primeiros cavalos que encontravam. Então era dado o alarme, corvos levantavam voo, e geralmente a Patrulha da Noite apanhava-os e enforcava-os antes de conseguirem voltar com o saque e as mulheres raptadas. Jon sabia que Jarl não cometeria esse erro, mas não tinha certeza quanto a Styr. O Magnar é um governante, não um corsário. Ele pode não saber como o jogo é jogado.

- Ali estão eles - disse Ygritte, e Jon olhou para cima e viu o primeiro alpinista surgindo por cima das copas das árvores. Era Jarl. Encontrara uma árvore sentinela que se inclinava para a Muralha e levou seus homens pelo tronco, para obter uma partida mais rápida. Nunca deviam ter permitido que a floresta chegasse tão perto. Estão a noventa metros de altura e ainda nem tocaram no gelo propriamente dito.

Viu o selvagem passar cuidadosamente da árvore para a Muralha, esculpindo um apoio para a mão com golpes curtos, mas precisos, do seu machado de gelo, e depois apoiando-se nele. A corda que tinha em volta da cintura prendia-o ao segundo homem da fila, que ainda vinha subindo a árvore. Passo a passo, lentamente, Jarl foi subindo, abrindo apoios para os pés com as botas guarnecidas de espigões quando não conseguia encontrar apoios naturais. Ao chegar a três metros acima da sentinela, parou numa estreita saliência de gelo, pendurou o machado no cinto, puxou o martelo e espetou um espigão de ferro em uma fenda. O segundo homem passou para a Muralha atrás dele enquanto o terceiro escalava até o topo da árvore.

As outras duas equipes não tinham árvores dispostas favoravelmente para lhes ajudar, e não demorou muito até os Thenn começarem a se perguntar se não teriam se perdido ao escalar a crista. Todo o grupo de Jarl já se encontrava na Muralha, a vinte e cinco metros de altura, quando os primeiros alpinistas dos outros grupos surgiram à vista. As equipes estavam espaçadas por cerca de vinte metros. Os quatro de Jarl seguiam pelo centro. A sua esquerda, subia uma equipe liderada por Grigg, o Bode, cuja longa trança loura tornava facilmente detectável de baixo. A esquerda, quem liderava os alpinistas era um homem muito magro chamado Errok.

- Tão devagar - lamentou-se o Magnar em voz alta enquanto observava o avanço dos outros. - Será que ele se esqueceu dos corvos? Devia subir mais depressa, antes de sermos descobertos.

Jon teve de controlar a língua. Lembrava-se bem demais do Passo dos Guinchos, e da escalada ao luar que havia feito com Cobra das Pedras. Naquela noite engolira o coração meia dúzia de vezes e, ao final, doíam seus braços e pernas e os dedos estavam meio congelados. E aquilo era pedra, não gelo. A pedra era sólida. O gelo era uma coisa traiçoeira na melhor das hipóteses e, num dia como aquele, quando a Muralha chorava, o calor da mão de um alpinista podia ser o suficiente para derretê-lo. Os enormes blocos podiam estar gelados e duros como pedra no interior, mas a superfície exterior estaria escorregadia, com fiozinhos de água escorrendo e manchas de gelo deteriorado onde o ar tinha penetrado. Sejam os selvagens o que forem além disso, são corajosos.

Mesmo assim, Jon viu-se desejando que os temores de Styr tivessem fundamento. Se os deuses forem bons, uma patrulha aparecerá por acaso e porá fim nisso.

- Nenhuma muralha pode mantê-lo em segurança - dissera-lhe o pai uma vez, enquanto percorriam as muralhas de Winterfell. - Uma muralha tem apenas a força dos homens que a defendem. - Os selvagens podiam ter cento e vinte homens, mas quatro defensores seriam suficientes para botá-los para correr, com algumas flechas bem colocadas e talvez um balde de pedras.

Mas não apareceram defensores; nem quatro, nem sequer um. O sol subiu no céu e os selvagens subiram a Muralha. Os quatro de Jarl mantiveram-se bem adiantados até o meio-dia, quando atingiram uma extensão de gelo em mau estado. Jarl tinha enrolado a corda em volta de um pináculo esculpido pelo vento e o estava usando para suportar seu peso quando, de repente, ele ruiu por inteiro e se precipitou para o chão, com Jarl ainda preso. Fragmentos de gelo do tamanho da cabeça de um homem bombardearam os três que estavam embaixo, mas eles agarraram-se aos apoios para as mãos, as estacas aguentaram, e Jarl parou bruscamente na ponta da corda.

Quando sua equipe recuperou-se desse azar, Grigg, o Bode, estava quase emparelhado com eles. Os quatro de Errok continuavam muito atrás. A área que estavam subindo parecia lisa e sem buracos, coberta por uma película de gelo derretido que mostrava um brilho úmido onde o sol a roçava. A seção de Grigg parecia mais escura, com traços mais evidentes; longas saliências horizontais onde um bloco havia sido mal posicionado sobre aquele que estava por baixo, rachaduras e fendas, e até mesmo chaminés ao longo das juntas verticais, onde o vento e a água tinham escavado buracos suficientemente grandes para um homem se esconder.

Em pouco tempo Jarl tinha seus homens de novo a subir. Os seus quatro e os de Grigg deslocavam-se quase lado a lado, com os de Errok quinze metros abaixo. Machados de chifre de veado picavam e cortavam, enviando nuvens de cintilantes estilhaços em longas cascatas que caíam sobre as árvores. Martelos de pedra enfiavam estacas no gelo profundamente, para que servissem de fixação para as cordas; as estacas de ferro esgotaram-se antes de chegarem no meio do caminho e, depois disso, os alpinistas usaram chifres e ossos afiados. E os homens chutavam, batendo com os espigões de suas botas contra o gelo duro e resistente, uma e mais outra vez, e outra e outra ainda, até fazerem um apoio para os pés. Eles devem estar com as pernas dormentes, pensou Jon depois de quatro horas. Quanto tempo mais conseguirão continuar com aquilo? Observou tão inquieto quanto o Magnar, com o ouvido atento ao gemido distante de um berrante de guerra Thenn. Mas os berrantes mantiveram-se em silêncio, e não surgiu sinal da Patrulha da Noite.

Depois de seis horas, Jarl voltara a tomar a dianteira em relação a Grigg, o Bode, e seus homens estavam alargando a vantagem.

- O animal de estimação de Mance deve querer uma espada - disse o Magnar, protegendo os olhos da luz. O sol estava alto no céu, e o terço superior da Muralha apresentava-se, quando visto de baixo, de um azul cristalino, com reflexos tão brilhantes que olhá-lo fazia doer os olhos. Os quatro de Jarl e os de Grigg quase se perdiam naquele clarão, embora o grupo de Errok permanecesse na sombra. Em vez de avançarem para cima, estavam se deslocando para o lado a cerca de cento e cinquenta metros de altura, dirigindo-se para uma chaminé. Jon observava seus movimentos lentos quando ouviu o som - um súbito crac que pareceu rolar ao longo do gelo, seguido de um grito de alarme. E então o ar encheu-se de lascas, gritos e homens caindo, quando uma folha de gelo com trinta centímetros de espessura e quinze metros quadrados de área se desprendeu da Muralha e caiu, desfazendo-se, retumbando, varrendo tudo à sua frente. Mesmo no sopé da crista, alguns pedaços vieram girando através das árvores e rolando pela encosta. Jon agarrou Ygritte e puxou-a para baixo para protegê-la, e um dos Thenn foi atingido no rosto por um pedaço que lhe quebrou o nariz.

E quando olharam para cima, Jarl e seu grupo tinham desaparecido. Homens, cordas, estacas, tudo desaparecido; nada restava acima dos cento e oitenta metros. Havia uma ferida na Muralha, no local onde os alpinistas estavam agarrados um instante antes, com um gelo tão liso e branco como mármore polido brilhando ao sol. Muito, muito abaixo, via-se uma mancha vermelha no local onde alguém tinha colidido com um pináculo gelado.

A Muralha defende-se, pensou Jon enquanto ajudava Ygritte a ficar em pé de novo.

Encontraram Jarl numa árvore, empalado num galho rachado e ainda preso pela corda aos três homens que jaziam, quebrados, por baixo dele. Um ainda estava vivo, mas tinha as pernas e a coluna estilhaçadas, bem como a maior parte das costelas.

- Misericórdia - disse quando se aproximaram dele. Um dos Thenn esmagou sua cabeça com uma grande maça de pedra. O Magnar deu ordens, e seus homens começaram a reunir combustível para uma pira.

Os mortos já ardiam no momento em que Grigg, o Bode, atingiu o topo da Muralha. Quando os quatro de Errok se juntaram a eles, nada restava de Jarl e de seu grupo além de ossos e cinzas.

A essa altura, o sol tinha começado a baixar, e os alpinistas desperdiçaram pouco tempo. Desenrolaram as longas voltas de cânhamo que tinham enrolado em volta do peito, ataram-nas umas às outras e atiraram uma ponta para baixo. A ideia de tentar subir cento e cinquenta metros por aquela corda encheu Jon de terror, mas Mance planejara as coisas melhor do que isso. Os corsários que Jarl tinha deixado embaixo desenrolaram uma enorme escada de mão, com degraus de cânhamo entretecido da grossura do braço de um homem, e amarraram-na à corda dos alpinistas. Errok, Grigg e seus homens gemeram e içaram, puxando-a até lá em cima, prenderam-na no topo com espigões, e depois voltaram a baixar a corda para içar uma segunda escada. Havia cinco ao todo.

Quando todas estavam colocadas em seus lugares, o Magnar gritou uma brusca ordem no Idioma Antigo, e cinco de seus Thenn começaram a subir juntos. Mesmo com as escadas não era uma subida fácil. Ygritte observou-os penando durante algum tempo.

- Odeio esta Muralha - disse, numa voz baixa e zangada. - Consegue sentir como é fria.

- E feita de gelo - ressaltou Jon.

- Não sabe nada, Jon Snow. Esta muralha é feita de sangue.

E ela ainda não havia tomado a sua dose. Ao pôr do sol, dois dos Thenn tinham caído da escada e morrido, mas foram os últimos. Era perto da meia-noite quando Jon chegou ao topo. As estrelas estavam de novo no céu, e Ygritte terminou a subida tremendo.

- Quase caí - disse ela, com lágrimas nos olhos. - Duas vezes. Três. A Muralha estava tentando me atirar lá pra baixo, conseguia sentir isso. - Uma das lágrimas libertou-se e escorreu lentamente por seu rosto.

- O pior já ficou para trás. - Jon tentou soar confiante. - Não fique assustada. - Tentou pôr um braço em volta dela.

Ygritte bateu no peito dele com o lado da mão, com tanta força que doeu, mesmo através das camadas de lã, cota de malha e couro fervido que ele vestia.

- Não estou assustada. Não sabe nada, Jon Snow.

- Então está chorando por quê?

- Não é por medo! - bateu violentamente no gelo com um calcanhar, arrancando um naco dele. - Estou chorando porque não encontramos o Berrante do Inverno. Abrimos meia centena de sepulturas e deixamos todas essas sombras à solta no mundo, e não encontramos o Berrante de Joramun, para botar abaixo esta coisa fria!

Jaime

Sua mão ardia.

Ainda, ainda, muito depois de terem apagado o archote que tinham usado para cauterizar seu toco sangrento, dias antes, ainda sentia o fogo atravessando seu braço, e os dedos se torcendo no meio das chamas, os dedos que já não tinha.

Já tinha sido ferido antes, mas nunca assim. Nunca soubera que podia haver uma dor tamanha. Às vezes, sem serem chamadas, velhas preces saíam borbulhando de seus lábios, preces que tinha aprendido quando criança e nas quais não voltara a pensar, preces que proferira pela primeira vez com Cersei ajoelhada ao seu lado no septo de Rochedo Casterly. Às vezes até chorava, até ouvir os Saltimbancos rindo. Então obrigou os olhos a secar e o coração a morrer, e rezou para que a febre queimasse suas lágrimas. Agora sei como Tyrion se sentiu, todas aquelas vezes que riram dele.

Depois de cair pela segunda vez da sela, ataram-no bem a Brienne de Tarth e obrigaram-nos de novo a dividir um cavalo. Um dia, em vez de os colocarem unidos pelas costas, amarraram-nos cara a cara.

- Os amantes - suspirou sonoramente Shagwell -, e que bela visão que formam. Seria cruel separar o bom cavaleiro de sua senhora. - Então soltou aquela sua gargalhada esganiçada e disse: - Ah, mas qual deles é o cavaleiro e qual é a senhora?

Se eu tivesse a minha mão, saberia depressa, pensou Jaime. Seus braços doíam e as pernas estavam dormentes devido às cordas, mas após algum tempo nada disso importava. Seu mundo reduziu-se ao latejar de agonia que era a sua mão fantasma, e a Brienne encostada a si. Pelo menos ela está quente, pensou, consolando-se, embora o hálito da garota fosse tão desagradável quanto o seu.

A mão sempre estava entre os dois. Urswyck a havia pendurado ao pescoço dele com um cordão, e ela balançava de encontro ao seu peito, batendo nos seios de Brienne enquanto Jaime ia perdendo e recuperando os sentidos. Seu olho direito estava fechado devido ao inchaço, um ferimento inflamado no local em que Brienne o golpeara durante a luta, mas era sua mão que mais doía. Sangue e pus jorravam do coto, e a mão em falta latejava toda vez que o cavalo dava um passo.

Tinha a garganta tão inflamada que não podia comer, mas bebia vinho quando davam, e água quando não havia alternativa. Uma vez deram-lhe uma taça, e ele esvaziou-a de um trago só, tremendo, e os Bravos Companheiros estouraram em gargalhadas tão roucas e sonoras que deixaram seus ouvidos doendo.

- Isso que você tá bebendo é mijo de cavalo, Regicida - disse-lhe Rorge. Jaime tinha tanta sede que bebeu mesmo assim, mas depois vomitou tudo. Obrigaram Brienne a lavar o vômito da barba dele, tal como a obrigavam a limpá-lo quando se sujava na sela.

Numa manhã fria e úmida em que estava se sentindo ligeiramente mais forte, foi tomado por um ataque de loucura, estendeu a mão esquerda para a espada do dornês e arrancou-a desajeitadamente da bainha. Não me importa que me mate, pensou, desde que morra lutando, de espada na mão. Mas não deu certo. Shagwell veio contra ele pulando com uma perna de cada vez, dançando agilmente para o lado quando Jaime lhe lançava estocadas. Desequilibrado, cambaleou em frente, brandindo violentamente a espada na direção do bobo, mas Shagwell girou, abaixou-se e fugiu até deixar todos os Saltimbancos rindo das tentativas fúteis de Jaime para atingi-lo. Quando tropeçou numa pedra e caiu de joelhos, o bobo saltou diante dele e pregou um beijo úmido no topo de sua cabeça.

Por fim, Rorge afastou-o com um empurrão e, com um pontapé, arrancou a espada dos fracos dedos de Jaime quando este tentou erguê-la.

- Iffo foi divertido, Regifida - disse Vargo Hoat -, maf fe voltar a tentar, corto fúa outra mão, ou talvef um pé.

Jaime ficou deitado de costas depois, fitando o céu noturno, tentando não sentir a dor que serpenteava seu braço direito acima sempre que o movia. A noite estava estranhamente bela. A lua era um gracioso crescente, e parecia que nunca tinha visto tantas estrelas. A Coroa do Rei encontrava-se no zénite, e via o Garanhão empinando-se, e ali o Cisne. A Donzela da Lua, tímida como sempre, estava meio escondida atrás de um pinheiro. Como uma noite como esta pode ser bela?, perguntou a si mesmo. Por que as estrelas olhariam para alguém como eu?

- Jaime - sussurrou Brienne, tão baixo que pensou que sonhava. - Jaime, o que está fazendo?

- Estou morrendo - murmurou de volta.

- Não - disse ela -, não, tem de sobreviver.

Aquilo deu-lhe vontade de rir.

- Pare de me dizer o que fazer, garota. Eu morro se quiser.

- É assim tão covarde?

A palavra chocou-o. Ele era Jaime Lannister, um cavaleiro da Guarda Real, era o Regicida. Nunca homem algum o chamara de covarde. Chamavam-no de outras coisas, sim; perjuro, mentiroso, assassino. Diziam que era cruel, traiçoeiro, imprudente. Mas covarde, nunca.

- O que posso fazer além de morrer?

- Viver - disse ela -, viver, lutar e procurar vingança. - Mas falou alto demais. Rorge ouviu sua voz, embora não as palavras, e veio chutá-la, gritando-lhe que segurasse a língua se quisesse ficar com ela.

Covarde, pensou Jaime, enquanto Brienne lutava para abafar os gemidos. Será? Roubaram-me a mão da espada. Isso era tudo que eu era, uma mão de espada? Pela bondade dos deuses, será verdade?

A garota tinha razão. Não podia morrer. Cersei esperava-o. Devia sentir falta dele. E Tyrion, seu irmão mais novo, que o amava devido a uma mentira. E seus inimigos também esperavam; o Jovem Lobo, que o derrotara no Bosque dos Murmúrios e matara os homens que o rodeavam, Edmure Tully, que o mantivera em trevas e correntes, estes Bravos Companheiros.

Quando a manhã chegou, obrigou-se a comer. Deram-lhe ração de aveia, comida de cavalo, mas forçou-se a engolir todas as colheradas. Voltou a comer ao cair da noite, e no dia seguinte também. Viva, disse rudemente a si próprio quando a ração parecia prestes a levá-lo ao vômito, viva por Cersei, viva por Tyrion, viva para a vingança. Um Lannister sempre paga as suas dívidas. A mão que não tinha latejava, ardia e fedia. Quando chegar a Porto Real, mandarei forjar uma mão nova, uma mão de ouro, e um dia vou usá-la para rasgar a goela de Vargo Hoat.

Os dias e as noites fundiram-se num incêndio de dor. Dormia na sela, encostado em Brienne, com o nariz cheio do fedor da mão em putrefação, e depois à noite ficava desperto, deitado no chão duro, preso num pesadelo acordado. Apesar de muito fraco, prendiam-no sempre a uma árvore. Dava-lhe um certo consolo frio saber que o temiam tanto assim, mesmo agora.

Brienne ficava sempre amarrada a seu lado. Ficava deitada com as suas cordas como uma grande vaca morta, sem dizer uma palavra. A garota construiu uma fortaleza dentro de si. Devem estuprá-la em breve, mas não podem tocar nela atrás dessas muralhas. Porém, as muralhas de Jaime tinham desaparecido. Tinham-lhe tirado a mão, tinham-lhe tirado a mão da espada, e sem ela não era nada. A outra de nada lhe servia. Desde que aprendera a andar, seu braço esquerdo era o braço do escudo e nada mais. Era a mão direita que fazia dele um cavaleiro; o braço direito que tinha feito dele um homem.

Um dia, ouviu Urswyck dizer qualquer coisa a respeito de Harrenhal, e lembrou-se de que era esse o destino do grupo. Isso fez Jaime rir em voz alta, e isso fez com que Timeon golpeasse seu rosto com um chicote longo e estreito. O corte sangrou, mas comparado com a mão, quase não o sentiu.

- Por que você riu? - perguntou a mulher naquela noite, num sussurro.

- Foi em Harrenhal que me deram o manto branco - sussurrou em resposta. - No grande torneio do Whent. Quis mostrar a todos nós o seu grande castelo e os seus belos filhos. Eu também quis lhes mostrar umas coisas. Só tinha quinze anos, mas ninguém conseguiria me derrotar naquele dia. Aerys não me deixou participar da justa. - Voltou a rir. - Mandou-me embora. Mas agora estou de volta.

Eles ouviram o riso. Naquela noite foi Jaime quem recebeu os pontapés e murros. Também pouco os sentiu, até que Rorge avançou com a bota contra o coto, e então o prisioneiro desmaiou.

Foi na noite seguinte que finalmente apareceram os três piores; Shagwell, Rorge sem nariz e o gordo dothraki Zoilo, aquele que tinha cortado sua mão. Zoilo e Rorge discutiam sobre quem seria o primeiro enquanto se aproximavam; parecia não haver qualquer dúvida de que o bobo seria o último. Shagwell sugeriu que podiam ir os dois primeiro e tomá-la pela frente e por trás. Zoilo e Rorge gostaram da ideia, mas então começaram a discutir sobre quem ficaria com a frente e quem iria por trás.

Também vão deixá-la mutilada, mas por dentro, onde não se vê.

- Garota - sussurrou enquanto Zoilo e Rorge xingavam um ao outro -, deixe-os ficar com a carne, e vá para longe. Terminará mais depressa, e eles obterão menos prazer do ato.

- Eles não vão obter prazer nenhum daquilo que vou lhes dar - murmurou em resposta, desafiadora.

Estúpida cadela teimosa e corajosa. Sabia que ela ia acabar se levando à morte. E que me importa que morra? Se não tivesse sido tão cabeça-dura, eu ainda teria uma mão. E no entanto, ouviu-se sussurrando:

- Deixe que façam o que querem e retire-se para dentro. - Foi o que fizera quando os Stark morreram na sua frente, Lorde Rickard cozinhando dentro de sua armadura enquanto o filho Brandon se estrangulava na tentativa de salvá-lo. - Pense em Renly, se o amava. Pense em Tarth, em montanhas e mares, lagoas, cascatas, seja o que for que tenha na sua Ilha Safira, pense...

Mas, a essa altura, Rorge já tinha ganhado a discussão.

- É a mulher mais feia que eu já vi - disse a Brienne -, mas não ache que não posso deixá-la mais feia ainda. Quer um nariz como o meu? Lute, e fica com um. E dois olhos são demais. Um grito vindo de você e arranco um e obrigo você a comê-lo, e depois arranco a merda dos seus dentes um a um.

- Oh, faça isso, Rorge - pediu Shagwell. - Sem os dentes, ela fica bem parecida com a minha querida mãe. - Soltou um cacarejo. - E eu sempre quis foder a minha querida mãe pelo cu.

Jaime soltou uma risadinha.

- Ora, aí está um bobo engraçado. Tenho uma charada para você, Shagwell. Por que você se importa que ela grite? Ah, espere, eu sei. - E gritou o mais alto que pôde: - SAFIRAS.

Praguejando, Rorge voltou a chutar seu coto. Jaime soltou um uivo. Não fazia ideia de que havia no mundo uma agonia tão grande, foi a última coisa que se lembrava de ter pensado. Era difícil saber quanto tempo esteve desacordado, mas quando a dor o cuspiu, Urswyck estava lá, e o próprio Vargo Hoat também.

- Ela não deve fer tocada - gritou o bode, enchendo Zoilo de perdigotos. - Ela tem de fer donfela, feuf idiotaf! Ela vale um faco de fafiraf! - E daí em diante, Hoat colocou guardas junto a eles todas as noites, para protegê-los de seus próprios homens.

Duas noites passaram em silêncio antes de a garota finalmente encontrar coragem para murmurar:

- Jaime? Por que gritou?

- Por que foi que gritei "safiras", é isso que quer perguntar? Use a cabeça, garota. Acha que esses tipos teriam se importado se eu tivesse gritado "estupro"?

- Não precisava ter gritado nada.

- Já é suficientemente difícil olhar para você com nariz. Além disso, quis obrigar o bode a dizer "fafiraf". - Soltou uma gargalhadinha. - Para você é bom que eu seja um grande mentiroso. Um homem honroso teria dito a verdade sobre a Ilha Safira.

- Seja como for - disse ela. - Agradeço-lhe, sor.

A mão dele estava latejando de novo. Apertou os dentes e disse:

- Um Lannister paga as suas dívidas. Aquilo foi pelo rio, e por aquelas pedras que despejou em cima de Robin Ryger.

O bode quis fazer de sua entrada em Harrenhal um espetáculo, então Jaime foi obrigado a desmontar a um quilômetro e meio dos portões do castelo. Uma corda foi amarrada em volta de sua cintura, e uma segunda em torno dos pulsos de Brienne; as extremidades foram atadas ao arção da sela de Vargo Hoat. Avançaram aos tropeções, lado a lado, atrás do zebralo listrado do qohorik.

A raiva de Jaime manteve-o em movimento. O linho que cobria seu coto estava cinzento e fedia a pus. Seus dedos fantasmas gritavam a cada passo. Eu sou mais forte do que eles pensam, disse a si mesmo. Ainda sou um Lannister. Ainda sou um cavaleiro da Guarda Real. Chegaria a Harrenhal, e depois a Porto Real. Sobreviveria. E vou pagar esta dívida com juros.

Ao se aproximarem das muralhas semelhantes a falésias do monstruoso castelo de Harren, o Negro, Brienne apertou seu braço.

- Lorde Bolton controla este castelo. Os Bolton são vassalos dos Stark.

- Os Bolton esfolam os inimigos. - Isso era tudo que Jaime recordava do nortenho. Tyrion conheceria tudo que havia para saber sobre o senhor do Forte do Pavor, mas encontrava-se a mil léguas de distância, com Cersei. Não posso morrer enquanto Cerseifor viva, disse a si mesmo. Morreremos juntos, assim como nascemos juntos.

A aldeia junto às muralhas tinha sido reduzida a cinzas e pedras enegrecidas, e muitos homens e cavalos tinham acampado recentemente junto à margem do lago, no local onde Lorde Whent havia organizado seu grande torneio no ano da falsa primavera. Um sorriso amargo tocou os lábios de Jaime ao atravessarem aquele terreno revolvido. Alguém tinha escavado uma fossa sanitária no exato local onde ele ajoelhara um dia para proferir seus votos. Nunca sonhei que o doce podia amargar tão depressa. Aerys nem sequer me deixou saborear aquela noite. Honrou-me, e em seguida cuspiu em mim.

- Os estandartes - observou Brienne. - Homem esfolado e torres gêmeas, veja. Homens juramentados ao Rei Robb. Ali, por cima da guarita, cinza sobre fundo branco. Eles exibem o lobo gigante.

Jaime torceu a cabeça para cima, para dar uma olhada.

- É o seu maldito lobo, é verdade - reconheceu. - E aquilo são cabeças que estão ao seu lado.

Soldados, criados e seguidoras de acampamentos reuniram-se para gritar para eles. Uma cadela malhada seguiu-os, latindo e rosnando, pelo acampamento afora, até que um dos lisenos a empalou numa lança e galopou até a cabeça da coluna.

- Transporto o estandarte do Regicida - gritou, sacudindo a cadela morta por cima da cabeça de Jaime.

As muralhas de Harrenhal eram tão espessas que passar por baixo delas era como passar através de um túnel de pedra. Vargo Hoat enviara na frente dois de seus dothraki, a fim de avisar Lorde Bolton de sua chegada, então o pátio exterior estava cheio de curiosos. Afastavam-se para Jaime passar cambaleando, com a corda que trazia enrolada na cintura a puxá-lo sempre que desacelerava.

- Aprefento-lhef o Regifida - proclamou Vargo Hoat naquela sua voz densa e babosa. Uma lança golpeou a parte de baixo das costas de Jaime, fazendo-o estatelar-se.

O instinto levou-o a levantar as mãos para amparar a queda. Quando o coto colidiu com o chão, a dor o deixou cego, e Jaime ficou sem saber como conseguiu apoiar-se num joelho. A sua frente, um lance de largos degraus de pedra levava à entrada de uma das colossais torres redondas de Harrenhal. Cinco cavaleiros e um nortenho encontravam-se lá em cima, olhando-o; este de olhos claros e vestido de lã e peles, os cinco com um aspecto feroz, em armaduras e cotas de malha, ostentando o símbolo das torres gêmeas nos sobretudos.

- Um bando de Freys - declarou Jaime. - Sor Danwell, Sor Aenys, Sor Hosteen. - Conhecia os filhos de Lorde Walder de vista; afinal de contas, a tia casara-se com um deles. - Aceitem as minhas condolências.

- Por quê, sor? - perguntou Sor Danwell Frey.

- Pelo filho de seu irmão, Sor Cleos - disse Jaime. - Acompanhou-nos até que os fora da lei o encheram de flechas. Urswyck e os homens dele tiraram suas coisas e deixaram-no para os lobos.

- Senhores! - Brienne libertou-se e avançou. - Vi seus estandartes. Escutem-me em nome de seus juramentos!

- Quem fala? - quis saber Sor Aenys Frey.

- A ama de leite do Lanister.

- Sou Brienne de Tarth, filha de Lorde Selwyn, a Estrela da Tarde, e sob juramento para com a Casa Stark, assim como vocês.

Sor Aenys cuspiu aos pés dela.

- Isso é para os seus votos. Confiamos na palavra de Robb Stark, e ele pagou nosssa fidelidade com traição.

Ora, aqui temos algo interessante. Jaime torceu-se para ver como Brienne receberia a acusação, mas a garota era obstinada como uma mula com o freio nos dentes.

- Não sei de traição alguma. - Sacudiu, irritada, as cordas que envolviam seus pulsos. - A Senhora Catelyn ordenou-me que entregasse o Lannister ao irmão, em Porto Real...

- Ela estava tentando afogá-lo quando os encontramos - disse Urswyck, o Fiel.

A moça corou.

- Na ira, descontrolei-me, mas nunca o teria matado. Se ele morrer, os Lannister passarão na espada as filhas de minha senhora.

Sor Aenys não pareceu tocado.

- Por que é que devemos nos importar com isso?

- Peçamos um resgate por ele a Correrrio - sugeriu Sor Danwell.

- Rochedo Casterly tem mais ouro - retrucou um dos irmãos.

- Matemo-lo! - disse outro. - A cabeça dele pela de Ned Stark!

Shagwell, o Bobo, com seu traje de losangos cinza e rosa, deu uma cambalhota para os degraus mais baixos e começou a cantar.

- Houve um dia um leão que c'um urso dançou, o-oh, o-oh...

- Filênfio, bobo. - Vargo Hoat deu-lhe uma bofetada. - O Regifida não é para o urfo. Ele é meu.

- Se morrer, não é de ninguém. - Roose Bolton falava tão baixo que os homens se silenciavam para ouvi-lo. - E peço-lhe que recorde, senhor, que não é senhor de Harrenhal até que eu marche para o norte.

A febre tornara Jaime tão destemido quanto tolo.

- Poderá ser este o senhor do Forte do Pavor? Segundo as últimas notícias que tive, meu pai tinha posto o senhor para correr com o rabo entre as pernas. Quando foi que parou de fugir, senhor?

O silêncio de Bolton era cem vezes mais ameaçador do que a malevolência babosa de Vargo Hoat. Claros como a névoa da manhã, seus olhos escondiam mais do que revelavam. Jaime não gostou daqueles olhos. Faziam-lhe lembrar do dia, em Porto Real, em que Ned Stark o encontrara sentado no Trono de Ferro. O senhor do Forte do Pavor finalmente enrugou os lábios e disse:

- Perdeu uma mão.

- Não - disse Jaime -, ela está aqui, pendurada no pescoço.

Roose Bolton estendeu uma mão para baixo, rompeu o cordão e atirou a mão a Hoat.

- Leve isto daqui. Esta coisa ofende minha vista.

- Vou mandá-la ao fenhor feu pai. Vou difer-lhe que tem de pagar fem mil dragõef, fenão devolvemof-lhe o Regifida pedafo por pedafo. E quando refebermof o ouro dele, mandamof o For Jaime ao Karftark e arranjamof também uma donfela! - um rugido de gargalhadas ergueu-se entre os Bravos Companheiros.

- Um belo plano - disse Roose Bolton, com o mesmo tom com que poderia ter dito "Um belo vinho" a um companheiro de jantar embora Lorde Karstark não possa lhe dar a filha dele. Rei Robb deixou-o uma cabeça menor, por traição e assassinato. Quanto ao Lorde Tywin, ele continua em Porto Real, e lá ficará até o ano novo, quando o neto recebe como esposa uma filha de Jardim de Cima.

- Winterfell - disse Brienne. - Quer dizer Winterfell. Rei Joffrey está prometido a Sansa Stark.

- Já não está mais. A Batalha da Água Negra mudou tudo. A rosa e o leão uniram-se lá, para desbaratar a tropa de Stannis Baratheon e reduzir sua frota a cinzas.

Eu avisei, Urswyck, pensou Jaime, e a você também, bode. Quando apostaram contra os leões, perderam mais do que a sua bolsa.

- Há notícias de minha irmã? - perguntou.

- Ela está bem. Assim como o seu... sobrinho. - Bolton fez uma pausa antes de dizer sobrinho, uma pausa que significava eu sei. - Seu irmão também está vivo, embora tenha sido ferido na batalha. - Fez um sinal para um severo nortenho vestido com uma brigantina tachonada. - Leve Sor Jaime a Qyburn. E desamarre as mãos desta mulher. - Quando a corda entre os pulsos de Brienne foi cortada em duas, disse: - Peço as suas desculpas, senhora. Em tempos conturbados assim, é difícil distinguir os amigos dos inimigos.

Brienne esfregou a parte de dentro do pulso, onde o cânhamo esfolara sua pele.

- Senhor, estes homens tentaram me estuprar.

- Ah, é? - Lorde Bolton virou os olhos claros para Vargo Hoat. - Estou descontente. Por isso, e por esse assunto da mão de Sor Jaime.

No pátio havia cinco nortenhos e outros tantos Frey para cada Bravo Companheiro. O bode podia não ser tão inteligente como alguns, mas pelo menos sabia contar até cinco. Manteve-se em silêncio.

- Eles ficaram com a minha espada - disse Brienne -, a minha armadura...

- Não precisará de armadura aqui, senhora - disse-lhe Lorde Bolton. - Em Harrenhal, está sob a minha proteção. Amabel, arranje quartos adequados para a Senhora Brienne. Walton, você vai cuidar imediatamente de Sor Jaime. - Não esperou resposta, virou-se e subiu os degraus, fazendo o manto debruado de peles rodopiar. Jaime teve apenas tempo suficiente para trocar um rápido olhar com Brienne antes de serem levados dali, cada um para seu lado.

Nos aposentos do meistre, por baixo da colônia de corvos, um homem grisalho de ar paternal chamado Qyburn prendeu a respiração quando retirou o linho do toco da mão de Jaime.

- Está assim tão ruim? Vou morrer?

Qyburn enfiou um dedo no ferimento, e torceu o nariz com o jorro de pus.

- Não. Se bem que mais alguns dias... - Cortou a manga de Jaime. - A putrefação espalhou-se. Vê como a carne está mole? Tenho de cortar isto tudo. A coisa mais certa a fazer seria cortar o braço inteiro.

- Se fizer isso, quem morre é você - prometeu Jaime. - Limpe o coto e dê os pontos. Eu corro os meus riscos.

Qyburn franziu a testa.

- Posso deixar o braço superior, cortar pelo cotovelo, mas...

- Se me cortar algum pedaço do braço é melhor que corte o outro também, senão estrangulo-o com ele mais tarde.

Qyburn olhou-o nos olhos. O que quer que tenha visto neles fez com que refletisse cuidadosamente.

- Muito bem. Vou cortar a carne apodrecida, nada mais. Tentarei afastar a putrefação com vinho fervente e um cataplasma de urtigas, sementes de mostarda e bolor de pão. Isso talvez seja suficiente. É sobre a sua cabeça que pesa. Vai querer leite de papoula...

- Não. - Jaime não se atrevia a deixar que o adormecessem; podia ter um braço a menos quando acordasse, não importa o que o homem dissesse.

Qyburn ficou surpreso.

- Vai doer.

- Gritarei.

- Doer muito.

- Gritarei muito alto.

- Vai beber algum vinho, ao menos?

- O Alto Septão reza?

- Quanto a isso, não tenho certeza. Trarei o vinho. Deite-se, que tenho de amarrar seu braço.

Com uma bacia e uma lâmina afiada, Qyburn limpou o coto enquanto Jaime emborcava vinho-forte, babando-se todo enquanto ingeria. A mão esquerda não parecia saber como encontrar sua boca, mas havia uma vantagem nisso. O cheiro de vinho na barba encharcada ajudava a disfarçar o fedor do pus.

Nada ajudou quando chegou o momento de desbastar a carne apodrecida. Jaime gritou e esmurrou a mesa com o punho bom, uma vez e mais outra. Voltou a gritar quando Qyburn despejou vinho fervendo sobre o que restava do coto. Apesar de todas as suas promessas e de todos os seus temores, perdeu os sentidos durante algum tempo. Quando acordou, o meistre estava costurando seu braço com uma agulha e tripa de gato.

- Deixei uma dobra de pele para tapar o pulso.

- Você já fez isso antes - murmurou Jaime numa voz fraca. Sentia o gosto do sangue na boca, onde havia mordido a língua.

- Cotos não são estranhos a nenhum homem que sirva com Vargo Hoat. Ele cria cotos onde quer que vá.

Jaime pensou que Qyburn não parecia um monstro. Era gentil, falava suavemente e tinha uns olhos castanhos calorosos.

- Como é que um meistre acaba na companhia dos Bravos Companheiros?

- A Cidadela tirou a corrente de mim. - Qyburn pôs a agulha de lado. - Também devia fazer alguma coisa com essa ferida acima do olho. A carne está muito inflamada.

Jaime fechou os olhos e deixou que o vinho e Qyburn fizessem seu trabalho.

- Fale-me da batalha. - Na qualidade de cuidador dos corvos de Harrenhal, Qyburn teria sido o primeiro a saber das novidades.

- Lorde Stannis foi pego entre o seu pai e o fogo. Dizem que o Duende incendiou o rio.

Jaime imaginou chamas verdes subindo ao céu, mais altas do que as torres mais altas, enquanto homens em chamas gritavam nas ruas .Já tinha sonhado esse sonho. Era quase engraçado, mas não havia ninguém com quem dividir a piada.

- Abra o olho. - Qyburn ensopou um pano em água morna e limpou com pequenas pancadas a crosta de sangue seco. A pálpebra estava inchada, mas Jaime descobriu que conseguia forçá-la a abrir até a metade. O rosto de Qyburn erguia-se por cima dele. - Como foi que arranjou esta? - perguntou o meistre.

- Presente de uma garota.

- Namoro violento, senhor?

- Essa garota é maior do que eu e mais feia do que você. Também devia tratar dela. Ainda manca da perna que eu feri quando lutamos.

- Perguntarei por ela. O que essa mulher é de você?

- A minha protetora. - Jaime teve de rir, por mais que doesse.

- Vou triturar umas ervas que poderá misturar com o vinho para baixar sua febre. Volte amanhã, e colocarei uma sanguessuga na sua pálpebra para drenar o sangue ruim.

- Uma sanguessuga. Lindo.

- Lorde Bolton gosta muito de sanguessugas - disse Qyburn com um ar afetado.

- Sim - disse Jaime. - Deve gostar.

Tyrion

Nada restava para lá do Portão do Rei além de lama, cinzas e pedaços de osso queimado, mas já havia pessoas vivendo à sombra das muralhas da cidade, e outras vendendo peixe em cima de carrinhos de mão e barris. Tyrion sentiu os olhos deles postos em si quando passou; olhos frios, zangados e sem compaixão. Ninguém se atrevia a falar com ele, ou a tentar barrar seu caminho; pelo menos enquanto tivesse Bronn ao seu lado, vestindo cota de malha negra oleada. Mas se estivesse sozinho, arrancariam-me do cavalo e esmagariam minha cara com uma pedra da calçada, como fizeram com Preston Greenfield.

- Voltam mais depressa do que ratazanas - queixou-se. - Queimamos tudo que tinham uma vez, era de esperar que pudessem ver nisso uma lição.

- Dê-me umas dúzias de mantos dourados, e mato todos - disse Bronn. - Depois de mortos, não voltam.

- Não, mas vêm outros para o lugar deles. Deixe-os estar... mas se começarem outra vez a encostar barracas na muralha, derrube-as imediatamente. A guerra ainda não acabou, não importa o que esses idiotas pensem. - Olhou o Portão da Lama, mais adiante. - Já vi o suficiente por ora. Voltamos amanhã com os mestres da guilda, para rever seus planos. - Suspirou. Bem, queimei a maior parte disso, suponho que seja apenas justo que o reconstrua.

Essa tarefa devia ter sido do tio, mas o sólido, firme e incansável Sor Kevan Lannister não era o mesmo desde que o corvo chegara de Correrrio com a notícia do assassinato do filho. O gêmeo de Willem, Martyn, também fora capturado por Robb Stark, e o irmão mais velho de ambos, Lancei, continuava preso ao leito, atormentado por uma ferida ulcerada que não queria cicatrizar. Com um filho morto e outros dois em perigo mortal, Sor Kevan andava consumido pelo pesar e pelo medo. Lorde Tywin sempre dependera do irmão, mas agora não tinha opção exceto virar-se de novo para o filho anão.

O custo da reconstrução ia ser a ruína, mas não havia alternativa. Porto Real era o principal porto do reino, equiparado apenas por Vilavelha. O rio tinha de ser reaberto, e quanto mais depressa melhor. E onde vou encontrar o maldito dinheiro? Isso era quase suficiente para levá-lo a sentir falta do Mindinho, que tinha zarpado para o norte havia uma quinzena. Enquanto ele dorme com Lysa Arryn e governa o Vale ao seu lado, eu tenho de limpar a confusão que deixou para trás. Se bem que, pelo menos, o pai estava dando um trabalho significativo para ele fazer. Não quer me nomear herdeiro de Rochedo Casterly, mas me usa sempre que pode, pensou Tyrion, enquanto o capitão dos homens de manto dourado lhes fazia sinal para atravessarem o Portão da Lama.

As Três Rameiras ainda dominavam a praça do mercado junto ao portão, mas agora encontravam-se ociosas, e os pedregulhos e barris de piche tinham sido guardados. Havia crianças escalando as grandes estruturas de madeira, subindo como macacos vestidos de tecido grosseiro, para irem se empoleirar nos braços lançadores e gritar uns aos outros.

- Lembre-me de dizer a Sor Addam para colocar aqui alguns de seus homens - disse Tyrion a Bronn enquanto avançavam entre dois dos trabucos. - Um garoto imbecil qualquer é capaz de cair e quebrar a espinha. - Ouviu-se um grito vindo de cima, e um torrão de estrume explodiu no chão, meio metro à frente deles. A égua de Tyrion empinou-se e quase o derrubou. - Pensando bem - disse, depois de controlar o cavalo -, que os fedelhos piolhentos se esmaguem nas pedras como melões passados.

Estava de péssimo humor, e não era só porque um punhado de garotos de rua queriam cobri-lo de bosta. O casamento era uma agonia diária. Sansa Stark mantinha-se donzela, e metade do castelo parecia saber disso. Enquanto selavam os cavalos naquela manhã, ouviu atrás de si dois cavalariços aos risinhos abafados. Quase tinha imaginado que os cavalos também soltavam gargalhadinhas. Arriscara a pele para evitar o ritual nupcial, na esperança de preservar a privacidade de seu quarto, mas essa esperança tinha sido desfeita bem depressa. Ou Sansa fora suficientemente burra para fazer confidências a uma de suas aias, todas elas espiãs de Cersei, ou os responsáveis eram Varys e seus passarinhos.

Que diferença fazia? Riam dele do mesmo jeito. A única pessoa na Fortaleza Vermelha que não parecia achar seu casamento uma fonte de divertimento era a senhora sua esposa.

A infelicidade de Sansa aprofundava-se a cada dia. Tyrion teria de bom grado aberto caminho através de sua cortesia para lhe dar o conforto que pudesse, mas não servia de nada. Nenhuma palavra conseguiria algum dia torná-lo belo aos olhos dela. Ou menos Lannister. Era aquela a esposa que lhe tinham dado, pelo resto de sua vida, e odiava isso.

E as noites que passavam juntos na grande cama eram outra fonte de tormento. Já não conseguia suportar dormir nu, como era seu costume. A esposa estava bem treinada demais para soltar uma palavra pouco amável, mas a repugnância nos olhos dela sempre que olhava seu corpo era mais do que conseguia suportar. Tyrion ordenara a Sansa que também usasse uma camisa de dormir. Desejo-a, percebeu. Desejo Winterfell, sim, mas também desejo Sansa, seja criança, seja mulher, seja o que for. Quero confortá-la. Quero ouvi-la rir. Quero que venha até mim por vontade própria, que me traga as suas alegrias, as suas mágoas e o seu desejo. Sua boca torceu-se num sorriso amargo. Sim, e também quero ser alto como Jaime e forte como Sor Gregor, a Montanha, por todo o bem que isso traz.

Involuntariamente, seus pensamentos saltaram para Shae. Tyrion não queria que ela ouvisse a novidade de outros lábios que não os seus, então tinha ordenado a Varys que a trouxesse até ele na noite anterior ao casamento. Voltaram a se encontrar nos aposentos do eunuco, e quando Shae tinha começado a desatar os nós do seu gibão, ele pegou-a pelo pulso e a afastou.

- Espere - disse -, há uma coisa que tenho de lhe dizer. Amanhã deverei me casar...

- ... com Sansa Stark. Eu sei.

Tinha perdido a fala por um instante. A essa altura nem mesmo Sansa sabia.

- Como pode saber? Varys contou?

- Um pajem qualquer estava contando a história a Sor Tallad quando levei Lollys ao septo. Ouvira-a de uma criada que ouviu Sor Kevan falar com seu pai. - Desembaraçou-se das mãos de Tyrion e despiu o vestido pela cabeça. Como sempre, por baixo estava nua. - Não me importa. Ela é só uma garotinha. Vai deixá-la com uma barrigona e voltar para mim.

Uma parte dele tinha esperado menos indiferença. Tinha esperado, escarneceu amargamente, mas agora sabe como é, anão. Shae é todo o amor que provavelmente terá.

A Rua da Lama estava cheia de gente, mas tanto os soldados como os habitantes da cidade abriam caminho para deixar passar o Duende e sua escolta. Crianças de olhos encovados fervilhavam pelo chão, algumas olhando para cima num apelo silencioso, enquanto outras mendigavam ruidosamente. Tyrion tirou um grande punhado de moedas de cobre de sua bolsa e atirou-as ao ar, e as crianças desataram a correr atrás delas, aos empurrões e aos gritos. As mais afortunadas talvez conseguissem comprar uma fatia de pão bolorento naquela noite. Nunca vira mercados tão cheios de gente, e apesar de toda a comida que os Tyrell vinham trazendo, os preços mantinham-se absurdamente elevados. Seis cobres por um melão, um veado de prata por oito galões de milho, um dragão por um quarto de vaca ou seis leitões magricelas. E, apesar disso, não parecia faltar compradores. Homens doentiamente descarnados e mulheres de aspecto desvairado aglomeravam-se em volta de todas as carroças e bancadas, enquanto pessoas ainda mais esfarrapadas as olhavam, mal-humoradas, das vielas.

- Por aqui - disse Bronn quando chegaram ao princípio do Gancho. - Ainda quer...?

- Quero. - A zona ribeirinha fora uma desculpa conveniente, mas Tyrion tinha outro objetivo em mente. Não era tarefa que lhe desse prazer, mas precisava ser desempenhada. Viraram as costas à Colina de Aegon e dirigiram-se ao labirinto de ruas menores que se aglomeravam em volta do sopé da Colina de Visenya. Bronn ia na frente. Uma ou duas vezes Tyrion olhou discretamente sobre o ombro para ver se eram seguidos, mas não havia nada para ver além do populacho habitual: um carroceiro espancando o cavalo, uma velha atirando os dejetos da noite pela janela, dois garotinhos lutando com paus, três homens de manto dourado escoltando um prisioneiro... todos pareciam inocentes, mas qualquer um podia ser o seu fim. Varys tinha informantes por todos os lados.

Viraram uma esquina, e de novo a seguinte, e atravessaram lentamente uma multidão de mulheres junto a um poço. Bronn levou-o por uma ruela curva, por uma viela, por baixo de uma arcada bastante destruída. Atravessaram as ruínas de uma casa que havia queimado e levaram os cavalos pela arreata ao longo de um breve lance de degraus de pedra. Os edifícios eram próximos e pobres. Bronn parou no início de uma viela torta, estreita demais para que dois cavaleiros a percorressem lado a lado.

- Há duas reentrâncias e depois um beco sem saída. O antro fica no porão do último edifício.

Tyrion saltou do cavalo.

- Certifique-se de que ninguém entre ou saia até eu voltar. Não vou demorar. -Introduziu sua mão no manto, para se certificar de que o ouro ainda estava no bolso escondido. Trinta dragões. Uma maldita fortuna para um tipo como ele. Bamboleou-se rapidamente viela afora, ansioso para resolver aquilo.

A taberna era um lugar soturno, escuro e úmido, com paredes embranquecidas por salitre e o teto tão baixo que Bronn teria de se abaixar para não bater a cabeça nas vigas. Tyrion Lannister não teria tal problema. Àquela hora, a sala da frente encontrava-se vazia, exceto por uma mulher de olhos mortos, sentada num banco atrás de um balcão feito de tábuas rudemente cortadas. Entregou-lhe uma taça de vinho amargo e disse:

- Lá atrás.

A sala de trás era ainda mais escura. Uma vela tremeluzente ardia sobre uma mesa baixa, ao lado de um jarro de vinho. O homem por trás dela não tinha um aspecto muito ameaçador: baixo - ainda que todos os homens fossem altos para Tyrion -, com cabelos castanhos que rareavam, bochechas rosadas e uma pequena barriga empurrando os botões de osso do seu gibão de pele de veado. Nas mãos suaves, brandia uma harpa de madeira com doze cordas, que era mais mortífera do que uma espada.

Tyrion sentou-se diante do homem.

- Symon Língua de Prata.

O homem inclinou-se. Era calvo no alto da cabeça.

- Senhor Mão - disse.

- Está me confundindo. Meu pai é a Mão do Rei. Receio que eu já nem sequer seja um dedo.

- Vai voltar a subir, estou certo. Um homem como você. Minha querida senhora Shae contou que é recém-casado. Seria bom se tivesse me chamado mais cedo. Iria me sentir honrado por cantar em seu banquete.

- A última coisa de que minha esposa precisa é de mais canções - disse Tyrion. - E quanto a Shae, ambos sabemos que ela não é senhora nenhuma, e eu agradeceria se você não dissesse o nome dela em voz alta.

- Às ordens da Mão - disse Symon.

Da última vez que Tyrion tinha visto o homem, uma palavra ríspida fora o suficiente para deixá-lo suando, mas o cantor parecia ter encontrado alguma coragem em algum lugar. Provavelmente naquele jarro. Ou talvez fosse o próprio Tyrion o culpado por aquela nova ousadia. Ameacei-o, mas nada chegou a se seguir à ameaça, portanto agora pensa que não tenho dentes. Suspirou.

- Dizem que é um cantor muito dotado.

- É muita amabilidade sua dizê-lo, senhor.

Tyrion concedeu-lhe um sorriso.

- Creio que está na hora de levar sua música às Cidades Livres. Em Bravos, Pentos e Lys são grandes amantes de canções, e generosos com aqueles que lhes agradam. - Bebeu um gole de vinho. Apesar de ser uma porcaria, era forte. - Uma turnê por todas as nove cidades seria o melhor. Não quer negar a ninguém a alegria de ouvi-lo cantar. Um ano em cada uma deve bastar. - Enfiou a mão no interior do manto, onde tinha escondido o ouro. - Com o porto fechado, terá de ir a Valdocaso para embarcar, mas Bronn vai lhe arranjar um cavalo, e vou me sentir honrado se permitir que pague sua passagem...

- Mas, senhor - objetou o homem -, nunca me ouviu cantar. Peço que escute por um momento. - Os dedos dele moveram-se habilmente sobre as cordas da harpa, e uma música suave encheu a adega. Symon começou a cantar.

Cavalgou pelas ruas da cidade, desde o alto de sua colina, Por becos e degraus e calçadas, para os braços de sua menina. Porque ela era o secreto tesouro, sua vergonha e seu prazer. E a corrente e o forte nada são, comparados com beijos de mulher.

- Há mais - disse o homem quando parou de tocar. - Ah, bem mais. O refrão é particularmente bonito, na minha opinião. Porque mãos de ouro são sempre frias, mas há calor em mãos de mulher...

- Basta. - Tyrion puxou os dedos de dentro do manto, vazios. - Isso não é canção que eu queira ouvir novamente. Nunca mais.

- Não? - Symon Língua de Prata pôs a harpa de lado e bebeu o gole de vinho. - É uma pena. Seja como for, cada homem tem a sua canção, como o meu velho mestre costumava dizer quando me ensinou a tocar. Outros podem gostar mais desta minha música. A rainha, talvez. Ou o senhor seu pai.

Tyrion esfregou a cicatriz de seu nariz e disse:

- Meu pai não tem tempo para cantores, e minha irmã não é tão generosa como imagina. Um homem sensato ganharia mais com o silêncio do que com canções. - Não podia deixar as coisas muito mais claras do que aquilo.

Symon pareceu compreender bem depressa o que Tyrion queria dizer.

- Vai achar meu preço modesto, senhor.

- É bom saber. - Tyrion temia que trinta dragões de ouro não seriam suficientes para resolver a situação. - Diga-me qual é.

- No banquete de casamento do Rei Joffrey - disse o homem - deverá haver um torneio de cantores.

- E malabaristas, bobos e ursos dançarinos.

- Só um urso dançarino, senhor - disse Symon, deixando claro que tinha seguido os preparativos de Cersei com muito mais interesse do que Tyrion -, mas sete cantores. Galeyon de Cuy, Bethany Dedos-Belos, Aemon Costayne, Alaric de Eysen, Hamish, o Harpista, Collio Quaynis e Orland de Vilavelha vão competir por um alaúde dourado com cordas de prata... e, no entanto, inexplicavelmente, nenhum convite foi enviado ao homem que é mestre de todos eles.

- Deixe-me adivinhar. Symon Língua de Prata?

Symon sorriu com modéstia.

- Estou preparado para demonstrar a verdade da minha vanglória perante o rei e a corte. Hamish é velho, e esquece frequentemente aquilo que está cantando. E Collio, com aquele absurdo sotaque tyroshi! Se você compreender uma palavra em três, pode se considerar com sorte.

- Foi minha querida irmã quem organizou o banquete. Mesmo se pudesse lhe assegurar este convite, poderia parecer estranho. Sete reinos, sete votos, sete desafios, setenta e sete pratos... mas oito cantores? O que pensaria o Alto Septão?

- Não sabia que era um homem devoto, senhor.

- A questão não é a devoção. Certas formalidades têm de ser seguidas.

Symon bebeu um gole de vinho.

- Apesar disso... a vida de um cantor não é desprovida de perigos. Oferecemos o nosso talento em cervejarias e tabernas, perante bêbados descontrolados. Se um dos sete de sua irmã sofrer algum imprevisto, espero que possa pensar em mim para ocupar seu lugar. - Deu um sorriso astuto, desmesuradamente satisfeito consigo mesmo.

- Seis cantores seria tão despropositado quanto oito, certamente. Tentarei me informar sobre a saúde dos sete de Cersei. Se algum deles estiver indisposto, Bronn vai encontrá-lo.

- Muito bem, senhor. - Symon podia ter deixado as coisas assim, mas, transbordante de triunfo, acrescentou: - Eu vou cantar na noite da boda do Rei JofFrey. Se por acaso for chamado à corte, ora, vou querer oferecer ao rei as minhas melhores composições, canções que cantei mil vezes e que certamente agradarão. Mas se der por mim cantando em alguma triste taberna... bem, essa seria uma ocasião adequada para experimentar a minha nova canção. Porque mãos de ouro são sempre frias, mas há calor em mãos de mulher.

- Isso não será necessário - disse Tyrion. - Tem a minha palavra de Lannister de que Bronn o visitará em breve.

- Muito bem, senhor. - O cantor barrigudo e perdendo cabelos voltou a pegar a harpa.

Bronn esperava junto dos cavalos, na entrada da viela. Ajudou Tyrion a subir para a sela.

- Quando é que levo o homem para Valdocaso?

- Não leva. - Tyrion virou o cavalo. - Dê-lhe três dias, e depois informe-o de que Hamish, o Harpista, quebrou o braço. Diga-lhe que suas roupas nunca servirão para a corte, e que tem de imediatamente arranjar um traje novo. Ele virá com você a toda velocidade. - Fez uma careta. - Pode querer ficar com a língua dele, ouvi dizer que é de prata. O resto dele nunca deverá ser encontrado.

Bronn deu um sorriso.

- Conheço uma casa de pasto na Baixada das Pulgas que faz uma saborosa panela de castanho. Ouvi dizer que tem todos os tipos de carne.

- Certifique-se de que eu nunca coma lá. - Tyrion pôs o cavalo a trote. Gostaria de um banho, e quanto mais quente melhor.

Mas até esse modesto prazer lhe foi negado, pois assim que voltou aos seus aposentos, Podrick Payne informou-o de que tinha sido convocado à Torre da Mão.

- Sua senhoria deseja vê-lo. A Mão. Lorde Tywin.

- Eu me lembro de quem é Mão, Pod - disse Tyrion. - Perdi o nariz, não os miolos.

Bronn soltou uma gargalhada.

- Não arranque a cabeça do rapaz a dentadas.

- E por que não? Ele nunca a usa. - Tyrion perguntava a si mesmo o que teria feito agora. Ou o que não fiz, mais provavelmente. Uma convocatória de Lorde Tywin trazia sempre preocupação; o pai nunca mandava buscá-lo só para dividir uma refeição ou uma taça de vinho, isso era certo.

Quando entrou no aposento privado do pai, alguns momentos mais tarde, ouviu uma voz dizendo:

- ... cerejeira para as bainhas, ligadas com couro vermelho e ornamentadas com uma fileira de tachões em forma de cabeça de leão e de ouro puro. Talvez com granadas para os olhos...

- Rubis - disse Lorde Tywin. - Às granadas falta o fogo.

Tyrion pigarreou.

- Senhor. Mandou me chamar?

O pai olhou para cima.

- Chamei. Venha aqui ver isso. - Uma trouxa de oleado encontrava-se sobre a mesa, entre eles, e Lorde Tywin tinha uma espada longa na mão. - Um presente de casamento para Joffrey - disse a Tyrion. A luz que entrava pelas vidraças em forma de diamante fazia a lâmina tremeluzir de negro e vermelho quando Lorde Tywin a virou para inspecionar o gume, enquanto o botão e a guarda flamejavam de ouro. - Com este falatório besta a respeito de Stannis e sua espada mágica, pareceu-me melhor que déssemos também a Joffrey algo de extraordinário. Um rei deve usar uma espada régia.

- Isso é espada demais para Joff - disse Tyrion.

- Ele ainda vai crescer. Tome, sinta o peso. - Ofereceu-lhe a arma, pelo cabo.

A espada era muito mais leve do que esperava. Ao virá-la na mão, compreendeu o porquê. Só um metal podia ter se tornado tão fino e manter força suficiente para a batalha, e não era possível confundir aquelas ondulações, os sinais de um aço que havia sido dobrado sobre si próprio muitos milhares de vezes.

- Aço valiriano?

- Sim - disse Lorde Tywin num tom de profunda satisfação.

Finalmente, pai? Lâminas de aço valiriano eram raras e caras, mas ainda havia milhares no mundo, talvez duzentas só nos Sete Reinos. Sempre aborrecera o pai que nenhuma pertencesse à Casa Lannister. Os antigos reis do Rochedo tinham possuído uma arma dessas, mas a espada longa Brilhante Rugido perdeu-se quando o segundo Rei Tommen a levou de volta a Valíria em sua estúpida demanda. Nunca havia regressado; e o tio Gery também não, o mais novo e mais imprudente dos irmãos do pai, que partira em busca da espada perdida cerca de oito anos antes.

Lorde Tywin oferecera-se pelo menos três vezes para comprar espadas valirianas de casas menores e empobrecidas, mas suas propostas foram sempre firmemente rejeitadas. Os fidalgotes separavam-se de bom grado de suas filhas, se um Lannister viesse pedi-las, mas estimavam as velhas espadas de família.

Tyrion perguntou a si mesmo de onde teria vindo o metal para aquela. Alguns mestres armeiros podiam voltar a trabalhar aço valiriano, mas os segredos de sua manufatura tinham sido perdidos quando a Perdição chegou à antiga Valíria.

- As cores são estranhas - comentou enquanto virava a lâmina à luz do sol. A maior parte do aço valiriano era de um cinza tão escuro que parecia quase negro, como era o caso daquela espada. Mas misturado nas dobras encontrava-se um vermelho tão profundo quanto o cinza. As duas cores enrolavam-se uma sobre a outra, sem chegarem a se tocar, com cada ondulação distinta, como ondas de noite e sangue em algum litoral de aço. - Como obteve este padrão? Nunca vi nada parecido.

- Nem eu, senhor - disse o armeiro. - Confesso que estas cores não eram o que eu pretendia, e não sei se sou capaz de duplicá-las. O senhor seu pai pediu-me o carmesim de sua Casa, e foi essa a cor que tentei infundir no metal. Mas o aço valiriano é obstinado. Estas velhas espadas têm memória, dizem, e não mudam facilmente. Usei meia centena de feitiços e clareei o vermelho algumas vezes, mas a cor escurecia sempre, como se a lâmina estivesse bebendo o sol dela. E algumas dobras não quiseram aceitar o vermelho de jeito nenhum, como pode ver. Se os senhores de Lannister estiverem insatisfeitos, voltarei, naturalmente, a tentar, tantas vezes quanto desejarem, mas...

- Não é necessário - disse Lorde Tywin. - Isto servirá.

- Uma espada carmesim pode brilhar agradavelmente ao sol, mas a bem da verdade gosto mais destas cores - disse Tyrion. - Têm uma beleza ameaçadora... e tornam esta lâmina única. Não há outra espada como ela no mundo inteiro, creio eu.

- Há uma. - O armeiro debruçou-se sobre a mesa e desenrolou a trouxa de oleado, revelando uma segunda espada longa.

Tyrion pousou a espada de Joffrey e pegou a outra. Ainda que não fossem irmãs gêmeas, as duas eram certamente primas próximas. Esta era mais grossa e mais pesada, pouco mais de um centímetro mais larga e sete centímetros mais longa, mas partilhavam as mesmas linhas belas e limpas e a mesma cor única, as ondulações de sangue e noite. Três sulcos, profundamente incisos, corriam na segunda lâmina, do cabo à ponta; a espada do rei tinha apenas dois. O cabo da arma de Joff era bastante mais ornamentado, os braços da guarda esculpidos em forma de patas de leão com garras de rubi projetadas, mas ambas as espadas tinham punhos de couro vermelho finamente trabalhado e cabeças de leão em ouro como botões.

- Magnífico. - Mesmo em mãos tão inábeis como as de Tyrion, a lâmina parecia viva. - Nunca senti melhor balanço.

- Destina-se ao meu filho.

Não vale a pena perguntar qual deles. Tyrion colocou a espada de Jaime de volta na mesa, ao lado da de Joffrey, perguntando a si mesmo se Robb Stark deixaria o irmão viver tempo suficiente para empunhá-la. Nosso pai certamente deve pensar que sim; caso contrário, para que mandar forjar esta lâmina?

- Fez um bom trabalho, Mestre Mott - disse Lorde Tywin ao armeiro. - Meu intendente tratará do seu pagamento. E lembre-se: rubis para as bainhas.

- Lembrarei, senhor. É muito generoso. - O homem voltou a enrolar as espadas no oleado, enfiou a trouxa debaixo de um braço e ajoelhou-se. - É uma honra servir a Mão do Rei. Entregarei as espadas um dia antes do casamento.

- Certifique-se disso.

Depois de os guardas acompanharem o armeiro até a porta, Tyrion subiu para uma cadeira.

- Então... uma espada para Joff, uma espada para Jaime e nem sequer um punhal para o anão. É assim que as coisas são, pai?

- O aço era suficiente para duas lâminas, não para três. Se precisa de um punhal, vá buscar um no arsenal. Robert deixou uns cem quando morreu. Gerion deu-lhe um punhal dourado com cabo de marfim e botão de punho de safira como presente de casamento, e metade dos enviados que vieram à corte tentaram obter favores presenteando Sua Graça com facas incrustadas de jóias e espadas com relevos de prata.

Tyrion sorriu.

- Teriam agradado mais se o tivessem presenteado com as suas filhas.

- Sem dúvida. A única lâmina que usava era a faca de caçar que tinha sido presente de Jon Arryn quando era garoto. - Lorde Tywin sacudiu uma mão, deixando de lado o Rei Robert e todas as suas facas. - O que você encontrou na zona ribeirinha?

- Lama - disse Tyrion - e algumas coisas mortas que ninguém se incomodou em enterrar. Antes de podermos reabrir o porto, o Água Negra terá de ser dragado, e os navios afundados, desfeitos ou tirados da água. Três quartos dos cais precisam de reparos, e alguns poderão precisar ser demolidos e reconstruídos. O mercado de peixe desapareceu por completo, e tanto o Portão do Rio como o Portão do Rei foram rachados pelos aríetes de Stannis e devem ser substituídos. Tremo de pensar no custo. - Se é verdade que caga ouro, pai, arranje uma latrina e ponha-se em ação, teve vontade de dizer, mas não era assim tão tolo.

- Arranjará todo o ouro que for necessário.

- Ah, é? Onde? O tesouro está vazio, já tinha dito ao senhor. Ainda não acabamos de pagar aos alquimistas por todo aquele fogovivo, nem aos ferreiros pela minha corrente e Cersei comprometeu a coroa a pagar metade do custo da boda de Joffrey: setenta e sete pratos, que os Outros os carreguem, mil convidados, uma torta cheia de pombas, cantores, malabaristas...

- A extravagância tem seus usos. Temos de demonstrar o poderio e a riqueza de Rochedo Casterly para que todo o reino veja.

- Então talvez deva ser o Rochedo Casterly responsável por pagar.

- Por quê? Vi as contas de Mindinho. Os rendimentos da coroa são dez vezes maiores do que eram no tempo de Aerys.

- Tal como as despesas. Robert era tão generoso com o dinheiro como com o pinto. Mindinho fez grandes empréstimos. De você, entre outros. Sim, os rendimentos são consideráveis, mas quase não chegam para cobrir a usura dos empréstimos de Mindinho. Quer perdoar a dívida da coroa para com a Casa Lannister?

- Não diga idiotices.

- Então talvez sete pratos fossem suficientes. Trezentos convidados em vez de mil. Ouvi dizer que um casamento pode ter o mesmo valor sem um urso dançarino.

- Os Tyrell iriam nos julgar avarentos. Quero o casamento e a zona ribeirinha. Se não conseguir pagar as duas coisas, diga, que eu arranjo um mestre da moeda que consiga.

A desgraça de ser afastado depois de tão pouco tempo não era algo que Tyrion quisesse ter que suportar.

- Eu encontrarei o dinheiro.

- Encontrará - garantiu o pai -, e já que está com a mão na massa, veja se também consegue encontrar a cama de sua esposa.

Então o falatório chegou até ele.

- Já encontrei, muito obrigado. E aquele móvel entre a janela e a lareira, com o dossel de veludo e o colchão cheio de plumas de ganso.

- Agrada-me que conheça isso. Agora talvez devesse tentar conhecer a mulher que a divide com você.

Mulher? Criança, você quer dizer.

- Alguma aranha andou sussurrando no seu ouvido, ou tenho de apresentar agradecimentos à minha querida irmã? - Tendo em conta as coisas que se passavam sob as mantas de Cersei, seria de se pensar que ela teria a decência de manter o nariz longe daquilo. - Diga-me, por que é que todas as aias de Sansa são mulheres a serviço de Cersei? Estou farto de ser espionado em meus próprios aposentos.

- Se não gosta das criadas de sua esposa, mande-as embora e contrate outras mais do seu agrado. Está no seu direito. O que me preocupa é a virgindade de sua esposa, não as aias dela. Esta... delicadeza confunde-me. Parece não ter dificuldade em se deitar com prostitutas. A garota Stark é feita de outra forma?

- Por que diabos lhe interessa tanto o lugar onde enfio o caralho? - quis saber Tyrion. - Sansa é nova demais.

- Tem idade suficiente para ser Senhora de Winterfell depois que o irmão estiver morto. Tire sua virgindade e ficará um passo mais perto de obter o Norte. Faça-lhe um filho, e o prêmio está praticamente ganho. Precisa que eu lhe lembre que um casamento que não foi consumado pode ser posto de lado?

- Pelo Alto Septão ou um Concílio da Fé. Nosso atual Alto Septão é uma foca treinada que ladra lindamente quando recebe ordens para tal. E mais provável que o meu casamento seja anulado pelo Rapaz Lua do que por ele.

- Talvez devesse ter casado Sansa Stark com o Rapaz Lua. Ele talvez soubesse o que fazer com ela.

As mãos de Tyrion fecharam-se nos braços da cadeira.

- Já ouvi tudo o que pretendo ouvir sobre a virgindade de minha esposa. Mas já que estamos discutindo casamentos, por que é que não ouço nada sobre as núpcias iminentes de minha irmã? Se bem me lembro...

Lorde Tywin interrompeu-o.

- Mace Tyrell recusou minha oferta para casar Cersei com seu herdeiro Willas.

- Recusou a nossa querida Cersei? - aquilo deixava Tyrion com o humor muito melhor.

- Quando abordei com ele pela primeira vez o assunto da união, pareceu bastante bem disposto - disse o pai. - Um dia mais tarde e tudo mudou. Obra da velha. Ela intimida implacavelmente o filho. Varys afirma que ela lhe disse que sua irmã era velha e usada demais para seu precioso neto perneta.

- Cersei deve ter adorado isso. - Soltou uma gargalhada.

Lorde Tywin lançou-lhe um frio olhar.

- Ela não sabe. Nem saberá. É melhor para todos se a oferta nunca tiver sido feita. Veja se não se esquece disso, Tyrion. A oferta nunca foi feita.

- Que oferta? - Tyrion tinha fortes suspeitas de que Lorde Tyrell podia acabar lamentando aquele vexame.

- Sua irmã será casada. A questão é: com quem? Tenho várias ideias... - Antes de poder enumerá-las, ouviu-se uma pequena batida na porta e um guarda enfiou a cabeça na sala para anunciar o Grande Meistre Pycelle. - Pode entrar - disse Lorde Tywin.

Pycelle entrou vacilante, apoiado em uma bengala, e parou durante tempo suficiente para lançar a Tyrion um olhar capaz de coalhar leite. Sua outrora magnífica barba branca, que alguém tinha incompreensivelmente aparado, estava crescendo rala e fina, deixando-o com disformes pelancas cor-de-rosa penduradas por baixo do queixo.

- Senhor Mão - disse o velho, fazendo a reverência mais profunda que conseguia sem cair -, chegou outra ave de Castelo Negro. Talvez possamos falar em particular?

- Não há necessidade. - Lorde Tywin fez sinal ao Grande Meistre Pycelle que se sentasse. - Tyrion pode ficar.

Oooooh, posso? Esfregou o nariz e esperou.

Pycelle limpou a garganta, o que envolvia bastante tosse e ruidosas escarradas.

- A carta é do mesmo Bowen Marsh que enviou a última. O castelão. Escreve que Lorde Mormont enviou notícia de grande número de selvagens se deslocando para o sul.

- As terras para lá da Muralha não podem suportar grande número de pessoas - disse firmemente Lorde Tywin. - Esse aviso não é novo.

- Este último é, senhor. Mormont enviou uma ave da floresta assombrada, relatando que estava sob ataque. Mais corvos chegaram mais tarde, mas nenhum com cartas. Bowen Marsh teme que Lorde Mormont tenha sido morto, com todas as suas forças.

Tyrion gostava bastante do velho Jeor Mormont, com seu jeito rude e a ave falante.

- Essa informação é segura? - perguntou.

- Não - admitiu Pycelle -, mas nenhum dos homens de Mormont retornou, por enquanto. Marsh teme que os selvagens os tenham matado, e que a própria Muralha possa ser atacada em seguida. - Remexeu nas vestes e encontrou o papel. - Aqui está a carta dele, senhor, um apelo a todos os cinco reis. Quer homens, tantos quantos possamos mandar.

- Cinco reis? - o pai estava aborrecido. - Há um rei em Westeros. Esses tolos de negro podiam tentar se lembrar disso, se desejam que Sua Graça lhes dê ouvidos. Quando responder, diga-lhe que Renly está morto e que os outros são traidores e farsantes.

- Sem dúvida ficarão contentes por saber disso. A Muralha fica a um mundo de distância e é frequente que as notícias cheguem tarde lá. - Pycelle meneou a cabeça para cima e para baixo. - O que deverei dizer a Marsh a respeito dos homens que pede? Devemos convocar o conselho...

- Não há necessidade. A Patrulha da Noite é formada por um bando de ladrões, assassinos e grosseirões ilegítimos, mas ocorre-me que poderiam demonstrar ser diferentes, desde que tivessem a disciplina adequada. Se Mormont está realmente morto, os irmãos negros têm de escolher um novo Senhor Comandante.

Pycelle lançou a Tyrion um olhar malicioso.

- Uma excelente ideia, senhor. Conheço o homem certo. Janos Slynt.

Tyrion não gostou nada daquela ideia.

- Os irmãos negros escolhem seu próprio comandante - lembrou-lhes. - Lorde Slynt é novo na Muralha. Eu sei, fui eu quem o mandou para lá. Por que haveriam de preferi-lo a uma dúzia de homens com mais tempo na Patrulha?

- Porque - disse o pai, num tom que sugeria que Tyrion era um completo simplório -, se não votarem como lhes é dito, a sua Muralha poderá derreter antes de ver mais algum homem.

Sim, isso irá funcionar. Tyrion puxou-se para a frente.

- Janos Slynt é o homem errado, pai. Seríamos mais bem servidos pelo comandante da Torre Sombria. Ou de Atalaialeste do Mar.

- O comandante da Torre Sombria é um Mallister de Guardamar. Atalaialeste é governada por um homem de ferro. - O tom de Lorde Tywin era claro em dizer que nenhum serviria os seus propósitos.

- Janos Slynt é filho de um açougueiro - recordou Tyrion ao pai em tom enérgico. - Você mesmo me disse...

- Eu me lembro do que lhe disse. No entanto, Castelo Negro não é Harrenhal. A Patrulha da Noite não é o conselho real. Há uma ferramenta para cada tarefa, e uma tarefa para cada ferramenta.

A ira de Tyrion estourou.

- Lorde Janos é uma armadura oca, que se venderá a quem pagar melhor.

- Conto isso como um ponto a seu favor. Quem poderia mais do que nós? - virou-se para Pycelle. - Envie um corvo. Escreva que o Rei Joffrey ficou profundamente entristecido ao ouvir a notícia da morte do Senhor Comandante Mormont, mas lamenta não poder dispensar nenhum homem a essa altura, quando tantos rebeldes e usurpadores permanecem em campo. Sugira que as coisas podem ser bastante diferentes depois que o trono ficar seguro... desde que o rei tenha plena confiança na liderança da Patrulha. Para encerrar, solicite a Marsh que dê os melhores cumprimentos de Sua Graça ao seu fiel amigo e servidor, Lorde Janos Slynt.

- Sim, senhor. - Pycelle voltou a balançar sua cabeça mirrada. - Escreverei conforme as ordens da Mão. Com grande prazer.

Devia ter aparado sua cabeça em vez da barba, refletiu Tyrion. E Slynt devia ter ido tomar um banho com seu querido amigo Aliar Deem. Pelo menos não havia cometido o mesmo erro estúpido com Symon Língua de Prata. Vê, pai?, quis gritar. Vê como eu aprendo depressa as minhas lições?

No sótão, uma mulher estava dando ruidosamente à luz, enquanto embaixo um homem jazia, moribundo, junto ao fogo. Samwell Tarly não saberia dizer qual dos dois o assustava mais.

Tinham coberto o pobre Bannen com uma pilha de peles e alimentado bem o fogo, mas tudo que ele conseguia dizer era:

- Tenho frio. Por favor, tenho tanto frio. - Sam estava tentando alimentá-lo com caldo de cebola, mas ele não conseguia engolir. O caldo escorria sobre seus lábios e queixo abaixo assim que Sam o enfiava na boca com uma colher.

- Esse está morto. - Craster olhou o homem com indiferença enquanto atacava uma salsicha. - Era melhor enfiar uma faca no peito dele do que essa colher pela goela abaixo, se quer a minha opinião.

- Não me lembro de termos pedido a sua opinião. - O Gigante não tinha mais de um metro e meio de altura (seu verdadeiro nome era Bedwyck), mas apesar disso era um homenzinho feroz. - Matador, pediu conselhos ao Craster?

Sam encolheu-se por causa do nome, mas sacudiu a cabeça. Encheu mais uma colherada, levou-a à boca de Bannen e tentou despejá-la entre seus lábios.

- Comida e fogo - estava o Gigante dizendo -, foi tudo que lhe pedimos. E a comida vem de má vontade.

- Contente-se por não lhe dar também o fogo de má vontade. - Craster era um homem corpulento, tornado ainda mais corpulento pelas esfarrapadas e malcheirosas peles de ovelha que usava dia e noite. Tinha o nariz largo e achatado, a boca caída para um lado e uma orelha em falta. E, embora seus cabelos eriçados e sua barba emaranhada fossem grisalhos, suas mãos duras e nodosas ainda pareciam suficientemente fortes para machucar. - Dei-lhes de comer o que pude, mas vocês, corvos, estão sempre com fome. Vocês têm sorte por eu ser um homem devoto, senão teria botado todos para correr. Acha que gosto de tipos como ele, morrendo sobre o meu chão? Acha que preciso de todas as suas bocas, homenzinho? - O selvagem cuspiu. - Corvos. Quando foi que um pássaro preto trouxe o bem à casa de um homem, pergunto a você? Nunca. Nunca.

Mais caldo escorreu pelo canto da boca de Bannen. Sam limpou-o com um canto da manga. Os olhos do patrulheiro estavam abertos, mas nada viam.

- Tenho frio - voltou a dizer, num sussurro. Um meistre poderia ter sabido como salvá-lo, mas eles não tinham meistre. Kedge Olho-Branco cortara o pé retalhado de Bannen nove dias antes, num jorro de pus e sangue que deixou Sam agoniado, mas tinha sido pouco e tarde demais. - Tenho tanto frio - repetiram os lábios pálidos.

Em volta do salão, uma esfarrapada vintena de irmãos negros agachavam-se no chão ou sentavam-se em bancos grosseiros, bebendo taças do mesmo caldo ralo de cebola e roendo pedaços de pão duro. Alguns deles estavam feridos com maior gravidade do que Bannen. Fornio tinha passado vários dias em delírio, e o ombro de Sor Byam vertia um fétido pus amarelo. Quando deixaram Castelo Negro, Bernarr Castanho levava sacos de fogo de Myr, unguento de mostarda, alho moído, tanásia, papoula, cobre-de-rei e outras ervas curativas. Até sono-doce, que concedia a dádiva da morte sem dor. Mas Bernarr Castanho morreu no Punho e ninguém pensou em procurar os remédios do Meistre Aemon. Hake também sabia algo sobre ervas, como cozinheiro que era, mas Hake igualmente tinha ficado para trás. Por isso, cabia aos intendentes sobreviventes fazer o que pudessem pelos feridos, e isso era muito pouco. Pelo menos aqui estão secos, com um fogo para aquecê-los. Mas precisam de mais comida.

Todos precisavam de mais comida. Os homens andavam resmungando havia dias. Karl Pé-Torto andava sempre dizendo que Craster tinha de ter uma despensa escondida, e Garth de Vilavelha começou a servir de eco, quando estava fora do alcance dos ouvidos do Senhor Comandante. Sam pensara em pedir algo mais nutritivo, pelo menos para os feridos, mas não tinha coragem. Os olhos de Craster eram frios e maus, e sempre que o selvagem olhava na sua direção, as mãos dele torciam-se um pouco, como se quisessem se fechar em punhos. Será que ele sabe que falei com Goiva da última vez que estivemos aqui?, perguntava a si mesmo. Será que ela lhe contou que eu disse que a levaríamos? Será que ele arrancou isso dela na porrada?

- Tenho frio - disse Bannen. - Por favor, tenho frio.

Apesar de todo o calor e fumaça que havia no salão de Craster, o próprio Sam sentia frio. E cansaço, tanto cansaço. Precisava dormir, mas sempre que fechava os olhos sonhava com neve soprada pelo vento e mortos arrastando os pés em sua direção, com mãos negras e brilhantes olhos azuis.

Em cima, no sótão, Goiva soltou um soluço trêmulo que ecoou ao longo do comprido salão sem janelas.

- Empurre - ouviu uma das esposas mais velhas de Craster dizer à garota. - Mais forte. Mais forte. Grite, se ajudar. - E ela gritou, tão alto que Sam se encolheu.

Craster virou a cabeça para lançar às mulheres um olhar irritado.

- Já tô mais que farto desses gritos - berrou-lhes. - Dê um trapo pra ela morder, senão vou aí em cima e faço-a provar a minha mão.

E Sam sabia que ele faria. Craster tinha dezenove mulheres, mas nenhuma se atreveria a interferir depois de ele começar a subir a escada. Assim como os irmãos negros não interferiram duas noites antes, quando ele tinha espancado uma das garotas mais novas. Houve resmungos, certamente.

- Ele está matando a garota - Garth de Viaverde falou.

Karl Pé-Torto riu e disse:

- Se ele não quiser aquele bombonzinho, pode dar para mim.

Bernarr Negro praguejou em voz baixa e irritada, e Alan de Rosby levantou-se e saiu para não ter de ouvir.

- O teto é dele, as regras também - recordou-lhes o patrulheiro Ronnel Harcley. - Craster é amigo da Patrulha.

Um amigo, pensou Sam, enquanto escutava os gritos abafados de Goiva. Craster era um homem brutal que governava as mulheres e filhas com mão de ferro, mesmo assim sua fortaleza era um refúgio.

- Corvos congelados - tinha zombado Craster quando entraram, em desordem, os poucos que tinham sobrevivido à neve, às criaturas e ao frio penetrante. - E um bando bem menor do que o que foi pro norte. - Mas tinha cedido lugar a eles no seu chão, um teto para manter a neve afastada, um fogo onde puderam se secar, e suas mulheres tinham trazido taças de vinho quente para levar algum calor à barriga deles. - Malditos corvos - chamava-lhes, mas também os alimentava, por menor que fosse a ração.

Somos hóspedes, lembrou Sam a si mesmo. Goiva é dele. Filha dele, mulher dele. O teto é dele, as regras também.

A primeira vez em que estivera na Fortaleza de Craster, Goiva viera suplicar-lhe ajuda, e Sam emprestara seu manto negro para esconder sua barriga quando foi à procura de Jon Snow. Espera-se que os cavaleiros defendam mulheres e crianças. Só alguns dos irmãos negros eram cavaleiros, mesmo assim... Todos proferimos as palavras, pensou Sam. Som o escudo que defende os reinos dos homens. Uma mulher era uma mulher, mesmo que fosse selvagem. Devíamos ajudá-la. Devíamos. Era pelo filho que Goiva temia; tinha medo de que pudesse ser um menino. Craster criava as filhas para se tornarem suas esposas, mas não se viam nem homens nem garotos no seu complexo. Goiva tinha dito a Jon que Craster entregava os filhos aos deuses. Se os deuses forem bons, vão enviar uma filha, rezou Sam.

Em cima, no sótão, Goiva abafou um grito.

- E isso - disse uma mulher. - Agora mais um empurrão. Oh, estou vendo a cabeça dele.

Dela, pensou Sam, infeliz. A cabeça dela, dela.

- Frio - disse Bannen fracamente. - Por favor. Tenho tanto frio. - Sam pôs de lado a tigela e a colher, estendeu outra pele para cima do moribundo, enfiou outro graveto no fogo. Goiva soltou um guincho e começou a arquejar. Craster roeu sua morcela dura. Tinha morcelas para si e para suas mulheres, mas não para a Patrulha.

- Mulheres - lamentou-se. - Berram de uma maneira... Uma vez tive uma porca gorda que deu à luz uma ninhada de oito sem soltar mais que um grunhido. - Mastigando, virou a cabeça para olhar de soslaio e com desprezo para Sam. - Era quase tão gorda quanto você, rapaz. Matador. - Soltou uma gargalhada.

Aquilo foi mais do que Sam conseguia suportar. Afastou-se da fogueira tropeçando, passando desajeitadamente por cima e em volta dos homens que estavam dormindo, agachados ou morrendo no chão de terra batida. A fumaça, os gritos e os gemidos estavam fazendo com que se sentisse prestes a desmaiar. Baixando a cabeça, empurrou as abas de pele de veado que serviam de porta a Craster e saiu para a tarde.

O dia estava nublado, mas ainda era suficientemente luminoso para cegá-lo após a escuridão do salão. Montes de neve pesavam nos ramos das árvores ao redor e cobriam as colinas douradas e acastanhadas, mas menos do que antes. A tempestade tinha terminado, e os dias passados na Fortaleza de Craster tinham sido... bem, quentes talvez não, mas de um frio não tão penetrante. Sam ouvia o suave ploc-ploc-ploc da água derretendo nos pingentes que decoravam a borda do espesso telhado de colmo. Inspirou, profunda e tremulamente, e olhou em volta.

Para oeste, Ollo Mão-Cortada e Tim Stone deslocavam-se entre os cavalos, dando de comer e beber aos garranos que restavam.

Para o lado de onde o vento soprava, outros irmãos matavam e esfolavam os animais que estavam fracos demais para prosseguir. Lanceiros e arqueiros faziam rondas por trás dos diques de terra que eram a única defesa de Craster contra o que quer que se escondesse na floresta do outro lado, enquanto uma dezena de fogueiras para cozinhar soltavam espessas nuvens de fumaça cinza-azulada. Sam ouvia os ecos distantes de machados trabalhando na floresta, onde um grupo de trabalho recolhia a lenha necessária para manter as chamas ardendo durante toda a noite. As noites eram a pior hora. Quando escurecia. E esfriava.

Não tinha havido nenhum ataque desde que estavam na Fortaleza de Craster, nem de criaturas, nem de Outros. Nem haveria, segundo Craster.

- Um homem devoto não tem motivo para temer tais coisas. Disse isso mesmo a Mance Rayder, quando ele veio meter o nariz aqui. Não me deu mais ouvidos do que vocês, os corvos, com suas espadas e suas malditas fogueiras. Isso não vai ajudá-los em nada quando o frio branco chegar. A essa altura, só os deuses os ajudarão. É melhor ficar de bem com os deuses.

Goiva também havia falado do frio branco e contara-lhes que tipo de oferendas Craster fazia aos seus deuses. Sam quis matá-lo quando soube. Não há leis para lá da Muralha, lembrou a si mesmo, e Craster é um amigo da Patrulha.

Um grito rouco veio de detrás do edifício de taipa. Sam foi ver o que se passava. O chão sob seus pés era uma massa de neve em liquefação e lama mole que Edd Doloroso insistia ser composta pela merda do Craster. No entanto, era mais densa do que merda; sugava com tanta força as botas de Sam que ele sentiu uma tentando sair.

Por trás de uma horta e de um curral de ovelhas vazio, uma dúzia de irmãos negros disparava flechas contra um alvo que tinham feito de feno e palha. O intendente magro e louro que chamavam de Doce Donnel tinha espetado uma bem ao lado do centro do alvo, disparada de uma distância de cinquenta metros.

- Faça melhor do que isso, velho - disse.

- Tá bem, eu faço. - Ulmer, recurvado, de barba grisalha e pele e membros flácidos, dirigiu-se à marca e tirou uma flecha da aljava que trazia à cintura. Na juventude, tinha sido um fora da lei, um membro da infame Irmandade da Mata de Rei. Afirmava ter um dia atravessado com uma flecha a mão do Touro Branco da Guarda Real, para roubar um beijo dos lábios de uma princesa de Dorne. Também roubara suas jóias e um baú de dragões de ouro, mas era do beijo que gostava de se gabar quando estava de pileque.

Encaixou uma flecha e puxou a corda, todo ele suave como seda de verão, e então deixou-a voar. A flecha atingiu o alvo dois centímetros e meio mais perto do centro do que a de Donnel Hill.

- E suficiente, moço? - disse, dando um passo para trás.

- E mais do que suficiente - disse o homem mais novo, de má vontade. - O vento cruzado ajudou você. Soprava com mais força quando eu disparei.

- Nesse caso, devia tê-lo considerado. Tem um bom olho e uma mão firme, mas vai precisar de bem mais do que isso para ganhar de um homem da mata de rei. Quem me ensinou a dobrar o arco foi o Fletcher Dick, e nunca existiu melhor arqueiro. Já lhe contei a história do Fletcher Dick?

- Só trezentas vezes. - Todos os homens de Castelo Negro tinham ouvido as histórias de Ulmer sobre o grande bando de fora da lei de outros tempos; sobre Simon Toyne e o Cavaleiro Sorridente, sobre Oswyn Pescoço-Comprido, o Três Vezes Enforcado, sobre Wenda, o Corço Branco, sobre Fletcher Dick, sobre o Bem Barrigudo e todos os outros. Em busca de uma escapatória, o Doce Donnell olhou em volta e viu Sam no meio da lama. - Matador - chamou. - Venha, mostre-nos como matou o Outro. - E estendeu o grande arco de teixo.

Sam corou.

- Não foi com uma flecha, foi com um punhal, vidro de dragão... - Sabia o que aconteceria se pegasse o arco. Erraria o alvo e enviaria a flecha por cima do dique até as árvores. E então ouviria os risos.

- Não importa - disse Alan de Rosby, outro bom arqueiro. - Estamos todos com vontade de ver o Matador disparar o arco. Não estamos, rapazes?

Não conseguia encará-los; os sorrisos de escárnio, as pequenas brincadeiras maldosas, o desprezo em seus olhos. Sam virou-se para ir embora por onde tinha vindo, mas o pé direito afundou-se profundamente na lama, e quando tentou puxá-lo, a bota saiu. Teve de ajoelhar para soltá-la, com as gargalhadas ressoando em seus ouvidos. Apesar de todas as meias que tinha calçadas, quando conseguiu fugir, a neve que derretia já as tinha empapado até os dedos do pé. Imprestável, pensou, infeliz. Meu pai conhecia-me bem. Não tenho o direito de estar vivo quando tantos homens corajosos morreram.

Grenn estava cuidando da fogueira ao sul do portão do complexo, como dorso nu enquanto rachava a madeira. Tinha o rosto vermelho do esforço e o suor evaporava-se da sua pele em nuvenzinhas de vapor. Mas sorriu quando Sam se aproximou, bufando.

- Os Outros ficaram com a sua bota, Matador?

Ele também?

- Foi a lama. Não me chame disso, por favor.

- Por que não? - Grenn parecia honestamente surpreso. - É um bom nome, e arranjou-o com justiça.

Pyp costumava provocar Grenn por ter a cabeça dura como a muralha de um castelo, portanto Sam explicou pacientemente.

- É só uma maneira diferente de me chamarem de covarde - disse, apoiado na perna esquerda e esforçando-se para enfiar o pé direito novamente na bota lamacenta. - Estão caçoando de mim, da mesma maneira que caçoam do Bedwyck quando o chamam de Gigante.

- Mas ele não é um gigante - disse Grenn - e o Paul nunca foi pequeno. Bem, talvez fosse quando era bebê de peito, mas depois disso não. Mas você matou mesmo o Outro, portanto não é a mesma coisa.

- Eu só... eu nunca... eu estava assustado!

- Não mais do que eu. É só o Pyp que diz que eu sou burro demais para me assustar. Fico tão assustado quanto qualquer um. - Grenn dobrou-se para apanhar uma tora partida e atirou-a na fogueira. - Costumava ter medo do Jon, sempre que tinha de lutar com ele. Ele era muito rápido e lutava como se quisesse me matar. - A madeira verde e úmida caiu nas chamas, fumegando antes de pegar fogo. - Mas nunca contei. Às vezes acho que todo mundo anda só fingindo ter coragem, e nenhum de nós a temos de verdade. Vai ver é fingindo que arranjamos coragem, não sei. Deixe que chamem você de Matador, e daí?

- Nunca gostou que Sor Alliser o chamasse de Auroque.

- Ele estava dizendo que eu sou grande e estúpido. - Grenn coçou a barba. - Mas se o Pyp quisesse me chamar de Auroque, poderia. Ou você, ou o Jon. Um auroque é um animal feroz e forte, por isso não é assim tão ruim, e eu sou grande, e estou ficando maior. Você não gostaria mais de ser Sam, o Matador, do que o Sor Porquinho?

- Por que não posso ser só o Samwell Tarly? - sentou-se pesadamente em uma tora úmida que Grenn ainda não tinha cortado. - Foi o vidro de dragão que o matou. Não fui eu, foi o vidro de dragão.

Sam tinha contado a eles, tinha contado a todos. Sabia que alguns não acreditavam nele. O Adaga havia mostrado a Sam a sua adaga e dito:

- Tenho ferro, pra que quero vidro? - Bernarr Negro e os três Garths deixaram claro que duvidavam de toda a história, e Rolley de Vilirmãs chegou a ponto de dizer:

- O mais certo é que tenha apunhalado uns arbustos que se mexiam e tenha descoberto depois que era o Paul Pequeno dando uma cagada, por isso inventou uma mentira.

Mas Dywen tinha escutado, assim como Edd Doloroso, e obrigaram Sam e Grenn a contar ao Senhor Comandante. Mormont passou toda a história com a testa franzida e colocou questões contundentes, mas era um homem cauteloso demais para rejeitar qualquer possibilidade de obter proveito. Pediu a Sam todo o vidro de dragão que trazia na mochila, embora fosse bem pouco. Sempre que Sam pensava no tesouro que Jon encontrara enterrado sob o Punho sentia vontade de chorar. Havia lâminas de punhal e pontas de lança, e pelo menos duzentas ou trezentas pontas de flecha. Jon tinha feito punhais para si, para Sam e para o Senhor Comandante Mormont, e deu a Sam uma ponta de lança, um velho chifre quebrado e algumas pontas de flecha. Grenn também ficou com um punhado de pontas de flecha, mas era tudo.

Portanto, tudo que tinham agora era o punhal de Mormont e aquele que Sam dera a Grenn, mais dezenove flechas e uma grande lança de madeira dura, com uma ponta negra de vidro de dragão. As sentinelas entregavam a lança umas às outras quando o turno mudava, e Mormont tinha distribuído as flechas entre seus melhores arqueiros. Bill Resmungão, Garth Pena-Cinza, Ronnel Harcley, Doce Donnel Hill e Alan de Rosby tinham três cada um, e Ulmer quatro. Mas mesmo se acertassem todos os disparos, logo ficariam reduzidos a flechas incendiárias, como todos os outros. Tinham disparado centenas de flechas incendiárias no Punho, mas as criaturas continuaram a vir.

Não será suficiente, pensou Sam. As paliçadas inclinadas de lama e neve em derretimento de Craster pouco segurariam o passo das criaturas, que tinham escalado as encostas muito mais íngremes do Punho e saltado em grande número a muralha anelar. E em vez de trezentos homens alinhados em fileiras organizadas, as criaturas encontrariam quarenta e um sobreviventes esfarrapados para combatê-las, nove dos quais feridos demais para lutar. Quarenta e quatro tinham entrado aos tropeções no reduto de Craster, dos sessenta e tantos que conseguiram fugir do Punho, mas três morreram em decorrência dos ferimentos, e Bannen em breve seria o quarto.

- Acha que as criaturas foram embora? - perguntou Sam a Grenn. - Por que é que não vêm acabar conosco?

- Elas só vêm quando está frio.

- Sim - disse Sam -, mas é o frio que traz as criaturas, ou são as criaturas que trazem o frio?

- Que importa? - o machado de Grenn fez voar lascas de madeira. - Vêm juntos, e é isso que interessa. E agora que a gente sabe que o vidro de dragão as mata, talvez nem sequer venham. Talvez agora tenham medo de nós.

Sam quis poder acreditar naquilo, mas parecia-lhe que quando se estava morto, o medo não tinha mais significado do que a dor, o amor ou o dever. Envolveu as pernas com os braços, suando sob as camadas de lã, couro e peles que o cobriam. O punhal de pedra de dragão tinha derretido a coisa pálida na floresta, é verdade... mas Grenn estava falando como se ele fizesse o mesmo às criaturas. Não sabemos se é assim, pensou. Na verdade, não sabemos nada. Gostaria que Jon estivesse aqui. Sam gostava de Grenn, mas não podia falar com ele da mesma forma. Eu sei que Jon não me chamaria de Matador. E poderia conversar com ele a respeito do bebê de Goiva. Mas Jon partira com Qhorin Meia-Mão, e não tinham recebido notícias dele desde então. Ele também tinha um punhal de vidro de dragão, mas terá pensado em usá-lo? Estará morto e deitado congelado em algum desfiladeiro... ou, pior, estará morto e caminhando?

Não conseguia entender por que motivo os deuses quereriam levar Jon e Bannen e deixá-lo aqui, covarde e desajeitado como era. Devia ter morrido no Punho, onde se mijara três vezes e além disso perdera a espada. E teria morrido na floresta, se o Paul Pequeno não tivesse vindo carregá-lo. Gostaria que tudo isso fosse um sonho. Então poderia acordar. Como seria bom acordar no Punho dos Primeiros Homens com todos os irmãos ainda ao seu redor, até mesmo Jon e o Fantasma. Ou, melhor ainda, acordar em Castelo Negro, atrás da Muralha, e ir até a sala comum para comer uma tigela do espesso mingau de trigo do Hobb Três-Dedos, com uma grande colherada de manteiga derretendo no meio e um bocado de mel. Só de pensar nisso, seu estômago vazio ressoou.

"Neve."

Sam olhou para cima ao ouvir o som. O corvo do Senhor Comandante Mormont circundava a fogueira, batendo o ar com grandes asas negras.

"Neve", crocitou a ave. "Neve, neve."

Onde quer que o corvo fosse, Mormont surgiria pouco depois. O Senhor Comandante emergiu de entre as árvores, montado em seu garrano, entre o velho Dywen e o patrulheiro com cara de raposa chamado Ronnel Harclay, que tinha sido promovido ao lugar de Thoren Smallwood. Os lanceiros ao portão gritaram um desafio, e o Velho Urso respondeu com um resmungo de impaciência:

- Quem, nos sete infernos, vocês acham que vem lá? Os Outros levaram seus olhos? - passou a cavalo entre os postes do portão, um dos quais exibia um crânio de carneiro e o outro um de urso, e em seguida puxou as rédeas ao animal, ergueu um punho e assobiou. O corvo desceu ao seu chamado.

- Senhor - ouviu Ronnel Harclay dizer -, temos só vinte e duas montarias, e duvido que metade delas chegue à Muralha.

- Eu sei - resmungou Mormont. - Mas temos de ir mesmo assim. Craster deixou isso claro. - Lançou um relance de olhos para oeste, onde um grupo de nuvens escuras escondia o sol. - Os deuses deram-nos uma folga, mas durante quanto tempo? - Mormont saltou da sela, sobressaltando o corvo, que voltou a levantar voo. Então viu Sam e berrou: - Tarly!

- Eu? - Sam pôs-se desajeitadamente em pé.

"Eu?" O corvo pousou na cabeça do velho. "Em?"

- Seu nome é Tarly? Tem algum irmão nas redondezas? Sim, você. Feche a boca e venha comigo.

- Com o senhor? - as palavras jorraram num guincho.

O Senhor Comandante Mormont fulminou-o com o olhar.

- É um homem da Patrulha da Noite. Tente não sujar a roupa de baixo sempre que olho para você. Venha, disse eu. - As botas de Mormont faziam sons úmidos na lama e Sam teve de se apressar para acompanhá-lo. - Tenho pensado nesse seu vidro de dragão.

- Não é meu - disse Sam.

- Está bem, no vidro de dragão de Jon Snow. Se punhais de vidro de dragão são aquilo de que necessitamos, por que é que só temos dois? Cada homem na Muralha devia ser armado com um no dia em que profere suas palavras.

- Não sabíamos...

- Não sabíamos! Mas um dia devemos ter sabido. A Patrulha da Noite esqueceu a sua verdadeira função, Tarly. Não se constrói uma muralha com duzentos metros de altura para evitar que selvagens vestidos de peles raptem mulheres. A Muralha foi feita para defender os reinos dos homens... e não contra outros homens, que é o que os selvagens são, se olharmos bem as coisas. Demasiados anos, Tarly, demasiadas centenas e milhares de anos. Perdemos de vista o verdadeiro inimigo. E agora ele está aqui, mas não sabemos como lutar contra ele. O vidro de dragão é feito por dragões, como o povo gosta de dizer?

- Os m... meistres pensam que não - gaguejou Sam. - Os meistres dizem que vem dos fogos da terra. Chamam de obsidiana.

Mormont fungou.

- Podiam chamar de torta de limão, que eu não me importaria. Se mata como você diz, quero mais.

Sam tropeçou.

- O Jon encontrou mais, no Punho. Centenas de pontas de flecha, e também pontas de lança...

- Você já tinha dito. De pouco nos vale aqui. Para chegarmos de novo ao Punho teríamos de estar armados com as armas que não teremos até chegarmos ao maldito Punho. E ainda temos de lidar com os selvagens. Precisamos encontrar vidro de dragão em outro lugar qualquer.

Sam quase tinha se esquecido dos selvagens, com tudo que acontecera nos últimos tempos.

- Os filhos da floresta usavam lâminas de vidro de dragão - disse. - Deviam saber onde encontrar obsidiana.

- Os filhos da floresta estão todos mortos - disse Mormont. - Os Primeiros Homens mataram metade deles com lâminas de bronze, e os Ândalos concluíram o serviço com ferro. Por que um punhal de vidro deveria...

O Velho Urso interrompeu-se quando Craster surgiu de entre as abas de pele de veado de sua porta. O selvagem sorria, revelando uma boca cheia de dentes marrons e estragados.

- Tenho um filho.

"Filho", crocitou o corvo de Mormont."Filho, filho, filho."

O rosto do Senhor Comandante ficou rígido.

- Fico contente por você.

- Ah, fica? Quanto a mim, ficarei contente quando você e seus homens forem embora. Já é mais que tempo, tô achando.

- Assim que nossos feridos estejam suficientemente fortes...

- Eles estão tão fortes quanto poderiam ficar, velho corvo, e ambos sabemos disso. Quanto àqueles que tão morrendo, e também sabe quem são, corte suas malditas goelas e acabe com o problema. Ou então deixe-os, se não tiver estômago, e eu tratarei deles.

O Senhor Comandante Mormont irritou-se.

- Thoren Smallwood dizia que era amigo da Patrulha...

- Sim - disse Craster. - Dei-lhes tudo aquilo que podia dispensar, mas o Inverno vem aí, e agora a garota me empatou com mais uma boca chorona para sustentar.

- Podíamos levá-lo - guinchou alguém.

A cabeça de Craster virou-se. Seus olhos estreitaram-se. Cuspiu aos pés de Sam.

- O que foi que disse, Matador?

Sam abriu e fechou a boca.

- Eu... eu... eu só quis dizer... se não o quisesse... a sua boca para sustentar... com o Inverno vindo aí, nós... nós podíamos levá-lo, e...

- O meu filho. O meu sangue. Acha que iria dá-lo a corvos?

- Só pensei... - Você não tem filhos, você os abandona, foi o que Goiva disse, você os deixa na floresta, é por isso que só tem esposas, e filhas que crescem para se transformarem em esposas.

- Cale-se, Sam - disse o Senhor Comandante. - Já disse o bastante. Mais do que o suficiente. Vá para dentro.

- S-senhor...

- Vá para dentro!

Corado, Sam atravessou as peles de veado, voltando à escuridão do salão. Mormont seguiu-o.

- Que espécie de idiota você é? - disse o velho lá dentro, com a voz estrangulada e zangada. - Mesmo se Craster nos desse a criança, estaria morta antes de chegarmos à Muralha. Precisamos tanto de um recém-nascido para cuidar como de mais neve. Tem leite para lhe dar nessas suas grandes tetas? Ou pensava em levar também a mãe?

- Ela quer vir - disse Sam. - Suplicou-me...

Mormont ergueu uma mão.

- Não ouvirei nem mais uma palavra sobre isso, Tarly. Foi-lhe dito e redito para se manter bem longe das esposas de Craster.

- Ela é filha dele - disse Sam numa voz fraca.

- Vá cuidar de Bannen. Já. Antes que me deixe furioso.

- Sim, senhor. - Sam afastou-se correndo, tremendo.

Mas quando chegou à fogueira, foi só a tempo de ver o Gigante puxar um manto de peles por sobre a cabeça de Bannen.

- Ele dizia que tinha frio - disse o pequeno homem. - Espero que tenha ido para algum lugar quente, espero mesmo.

- O ferimento... - disse Sam.

- Que se foda o ferimento. - O Adaga deu uma pancada no cadáver com o pé. - Ele tinha o pé ferido. Conheci um homem lá na minha aldeia que perdeu um pé. Viveu até os quarenta e nove.

- O frio - disse Sam. - Ele não chegou a se aquecer.

- Ele não chegou a comer - disse o Adaga. - Não como deve ser. Aquele bastardo do Craster matou-o de fome.

Sam olhou em volta ansiosamente, mas Craster não tinha retornado ao salão. Se tivesse, as coisas poderiam ter ficado feias. O selvagem odiava bastardos, embora os patrulheiros dissessem que ele próprio era ilegítimo, gerado numa mulher selvagem por um corvo morto havia muito tempo.

- Craster tem os seus para alimentar - disse o Gigante. - Todas essas mulheres. Ele deu-nos o que pôde.

- Não acredite nessa lorota. No dia em que formos embora, vai furar uma barrica de hidromel e se sentar pra se banquetear com presunto e mel. E vai rir imaginando a gente passando fome na neve. Ele é um maldito selvagem, não passa disso. Nenhum deles é amigo da Patrulha. - Chutou o cadáver de Bannen. - Se não acredita em mim, pergunte a ele.

Queimaram o cadáver do patrulheiro ao pôr do sol, na fogueira que Grenn tinha passado o dia alimentando. Tim Stone e Garth de Vilavelha transportaram o cadáver nu e fizeram-no balançar duas vezes entre eles antes de o lançarem às chamas. Os irmãos sobreviventes dividiram entre si a roupa dele, as armas, a armadura, e tudo mais que possuía. Em Castelo Negro, a Patrulha da Noite enterrava seus mortos com toda a cerimônia que lhes era devida. Mas não estavam em Castelo Negro. E ossos não voltam como criaturas.

- O nome dele era Bannen - disse o Senhor Comandante Mormont, quando as chamas o envolveram. - Era um homem corajoso, um bom patrulheiro. Veio até nós de... de onde ele veio?

- Lá de baixo, dos lados de Porto Branco - gritou alguém.

Mormont fez um aceno.

- Veio até nós de Porto Branco e nunca falhou no seu dever. Cumpriu seus votos o melhor que pôde, percorreu longas distâncias, lutou ferozmente. Não voltaremos a ver alguém como ele.

- E agora terminou a sua vigia - disseram os irmãos negros, num cântico solene.

- E agora terminou a sua vigia - ecoou Mormont.

"Terminou", gritou seu corvo."Terminou."

Sam tinha os olhos vermelhos e sentia-se enjoado devido à fumaça. Quando olhou para o fogo, teve a impressão de ver Bannen sentado, com as mãos fechando-se em punhos, como que para lutar contra as chamas que o consumiam, mas foi apenas por um instante, antes que as volutas de fumaça escondessem tudo. Mas o pior era o cheiro. Se tivesse sido um cheiro ruim e desagradável, podia ter suportado, mas o irmão que ardia cheirava tanto a porco assado que ficou com água na boca, e isso era tão horrível que, assim que o pássaro grasnou "terminou", Sam correu para trás do edifício para vomitar na vala.

Estava ali, ajoelhado na lama, quando Edd Doloroso se aproximou.

- Escavando à procura de minhocas, Sam? Ou está só enjoado?

- Enjoado - disse Sam numa voz frágil, limpando a boca com as costas da mão. - O cheiro...

- Não sabia que o Bannen podia cheirar tão bem. - O tom de Edd era tão sombrio como sempre. - Quase desejei cortar uma fatia dele. Se tivesse um pouco de molho de maçã talvez tivesse cortado. O porco sempre fica mais gostoso com molho de maçã, acho eu. - Edd desatou os nós da roupa e tirou o pinto para fora. - É melhor não morrer, Sam, senão tenho medo de sucumbir. Vai haver mais pele pururuca em você do que o Bannen jamais teve, e eu nunca consegui resistir a um pouco de pururuca. - Suspirou quando a urina começou a sair em arco, amarela e fumegante. - Seguimos a cavalo à primeira luz da aurora, você sabia? Faça sol ou faça neve, segundo me disse o Velho Urso.

Sol ou neve. Sam lançou um olhar ansioso ao céu.

- Neve? - guinchou. - Nós... a cavalo? Todos?

- Bem, não, alguns terão de caminhar. - Sacudiu. - O Dywen diz que temos de aprender a montar cavalos mortos, como os Outros fazem. Diz que isso pouparia na comida. Quanto será que come um cavalo morto? - Edd amarrou os nós. - Não posso dizer que a ideia me agrade. Depois de descobrirem uma maneira de dominar um cavalo morto, é a nossa vez. E o mais certo é que eu seja o primeiro. "Edd", vão dizer, "morrer já não é desculpa para ficar deitado, portanto levante-se e pegue essa lança, pois está de vigia esta noite". Bem, eu não devia ser tão pessimista. Pode ser que morra antes de eles descobrirem isso.

Pode ser que todos nós morramos, e mais depressa do que gostaríamos, pensou Sam, enquanto levantava-se, desajeitadamente.

Quando Craster soube que seus indesejados hóspedes partiriam na manhã seguinte, o selvagem ficou quase amigável, ou tão perto disso quanto podia ficar.

- Já era tempo - disse -, aqui não é o lugar de vocês, já tinha lhes dito. Seja como for, vou me despedir de vocês como deve ser, com um banquete. Bem, com uma refeição. Minhas esposas podem assar esses cavalos que mataram, e eu arranjo cerveja e pão. - Exibiu seu sorriso marrom. - Não há nada melhor do que cerveja e carne de cavalo. Eu digo sempre que quem não pode montá-los deve comê-los.

As esposas e filhas dele trouxeram os bancos e as longas mesas feitas de troncos, e também cozinharam e serviram. Com exceção de Goiva, Sam quase não conseguia distinguir as mulheres umas das outras. Algumas eram velhas e outras novas, e algumas eram só garotas, mas muitas eram não só esposas de Craster mas também filhas dele, e todas tinham mais ou menos o mesmo aspecto. Enquanto tratavam do seu serviço, falavam umas com as outras em voz baixa, mas nunca se dirigiam aos homens de negro.

Craster não possuía mais do que uma cadeira. Sentou-se nela, vestido com um gibão sem mangas de pele de ovelha. Seus braços grossos estavam cobertos de pelos brancos, e em volta de um pulso tinha um aro retorcido de ouro. O Senhor Comandante Mormont ocupou seu lugar ao topo do banco, à sua direita, enquanto os irmãos se aglomeravam, joelho contra joelho; uma dúzia ficou lá fora, para guardar o portão e cuidar das fogueiras.

Sam arranjou lugar entre Grenn e o Órfão Oss, com o estômago a resmungar. A carne de cavalo assada pingava de gordura enquanto as esposas de Craster rodavam os espetos por cima da fogueira, e o cheiro que ela exalava deixou-o de novo com água na boca, mas isso fez com que se lembrasse de Bannen. Por mais fome que tivesse, Sam sabia que vomitaria se desse apenas uma mordida. Como podiam comer os pobres e leais garranos que os tinham trazido até tão longe? Quando as esposas de Craster trouxeram cebolas, pegou avidamente uma. Um dos lados estava negro de podridão, mas cortou essa parte com o punhal e comeu crua a metade boa. Também havia pães, mas apenas dois filões. Quando Ulmer pediu mais, a mulher limitou-se a negar com um movimento de cabeça, Foi então que a confusão começou.

- Dois pães? - queixou-se Karl Pé-Torto de seu lugar no banco. - Suas mulheres são assim tão burras? Precisamos de mais pão do que isso!

O Senhor Comandante Mormont dirigiu-lhe um olhar duro.

- Aceite o que lhe é dado e agradeça. Gostaria mais de estar no meio da tempestade comendo neve?

- Estaremos lá bem depressa. - Karl Pé-Torto não vacilou diante da fúria do Velho Urso. - Preferia comer o que o Craster está escondendo, senhor.

Craster estreitou os olhos.

- Dou aos corvos o suficiente. Tenho as minhas mulheres para sustentar.

Punhal espetou um pedaço de carne de cavalo.

- Pois bem. Então admite que tem uma despensa escondida. De que outra forma aguentaria um Inverno?

- Sou um homem devoto... - começou Craster.

- E um sovina - disse Karl - e um mentiroso.

- Presuntos - disse Garth de Vilavelha, com uma voz cheia de reverência. - Da última vez que viemos aqui havia porcos. Aposto que ele tem presuntos escondidos em algum lugar. Presuntos defumados e salgados, e bacon também.

- Salsichas - disse Adaga. - Daquelas compridas e pretas, são como rocha, conservam-se durante anos. Aposto que ele tem umas cem, penduradas num porão qualquer.

- Aveia - sugeriu Ollo Mão-Cortada. - Grão, cevada.

"Grão", disse o corvo de Mormont, batendo as asas."Grão, grão, grão, grão, grão"

- Basta - disse o Senhor Comandante Mormont, por cima dos gritos roucos da ave. - Calem-se todos. Isso é uma loucura.

- Maçãs - disse Garth de Viaverde. - Barris e barris de maçãs frescas de Outono. Há macieiras lá fora, eu vi.

- Frutos silvestres secos. Repolhos. Pinhões.

"Grão, grão, grão."

- Carneiro salgado. Há um curral de ovelhas. Ele tem barricas e barricas de carneiro armazenadas, eu sei que tem.

Àquela altura, Craster já parecia a ponto de pô-los todos no espeto. O Senhor Comandante Mormont levantou-se.

- Silêncio. Não quero ouvir mais dessa conversa.

- Então encha as orelhas de pão, velho. - Karl Pé-Torto afastou-se da mesa. - Ou será que já engoliu a porra da sua migalha?

Sam viu o rosto do Velho Urso ficar vermelho.

- Esqueceu-se de quem eu sou? Sente-se, coma e cale-se. Isto é uma ordem.

Ninguém falou. Ninguém se moveu. Todos os olhos estavam postos no Senhor Comandante e no grande patrulheiro manco, enquanto os dois se encaravam por cima da mesa. Pareceu a Sam que Karl tinha sido o primeiro a ceder e se preparava para se sentar, embora carrancudo...

... mas Craster levantou-se, e tinha o machado na mão. O grande machado de aço negro que Mormont lhe dera como presente de hospedagem.

- Não - rosnou. - Não vai sentar. Ninguém que me chame de sovina dorme debaixo do meu teto e come à minha mesa. Fora daqui, aleijado. E você também, e você, e você. - espetou a cabeça do machado na direção de Adaga, Garth e Garth. - Vão dormir no frio, de barriga vazia, o bando todo, senão...

- Maldito bastardo! - Sam ouviu um dos Garth xingar. Nunca chegou a saber qual deles.

- Quem me chamou de bastardo? - rugiu Craster, varrendo pratos, carne e taças de vinho da mesa com a mão esquerda enquanto erguia o machado com a direita.

- Não é mais do que o que todos sabem - respondeu Karl.

Craster deslocou-se mais depressa do que Sam teria acreditado ser possível, saltando sobre a mesa de machado na mão. Uma mulher gritou, Garth Viaverde e o Órfão Oss sacaram facas, Karl deu um salto para trás e tropeçou em Sor Byam, que se encontrava no chão, ferido. Num instante Craster vinha atrás dele, cuspindo palavrões. No seguinte estava cuspindo sangue. Adaga agarrara-o pelos cabelos, puxara sua cabeça para trás e abrira sua goela de orelha a orelha com um longo golpe. Então deu um forte empurrão nele, e o selvagem caiu para a frente, estatelando-se de cabeça sobre Sor Byam. Byam gritou de agonia enquanto Craster se afogava no próprio sangue, deixando o machado escorregar de seus dedos. Duas das mulheres de Craster choravam, uma terceira praguejava, uma quarta voou contra o Doce Donnel e tentou arrancar seus olhos com as unhas. Este atirou-a ao chão. O Senhor Comandante ficou diante do cadáver de Craster, escuro de raiva.

- Os deuses vão nos amaldiçoar - gritou. - Não há crime mais hediondo do que um hóspede trazer assassinato para o salão de um homem. Por todas as leis do lar, nós...

- Não há leis para lá da Muralha, velho. Lembra? - Adaga agarrou uma das esposas de Craster pelo braço e pôs a ponta do punhal ensanguentado debaixo do queixo dela. - Mostre-nos onde ele guarda a comida, senão acontece com você o mesmo que com ele, mulher.

- Largue-a. - Mormont deu um passo. - Vou decapitá-lo por isso, seu...

Garth de Viaverde bloqueou seu caminho, e Ollo Mão-Cortada empurrou-o para trás. Ambos tinham armas na mão.

- Cuidado com a língua - preveniu Ollo.

Mas, em vez de lhe obedecer, o Senhor Comandante tentou tirar o punhal dele. Ollo só tinha uma mão, mas essa era rápida. Libertou-se das mãos do velho, enfiou a faca na barriga de Mormont e puxou-a de volta, toda vermelha. E então o mundo enlouqueceu.

Mais tarde, muito mais tarde, Sam deu por si sentado de pernas cruzadas no chão, com a cabeça de Mormont no colo. Não se lembrava de como tinha chegado ali, ou de muito mais do que havia acontecido depois de o Velho Urso ser apunhalado. Lembrava-se de que Garth de Viaverde matara Garth de Vilavelha, mas não se lembrava por quê. Rolley de Vilirmãs tinha caído do sótão e quebrado o pescoço depois de subir a escada para provar as mulheres de Craster. Grenn...

Grenn tinha gritado e estapeado Sam, e então fugido com Gigante, Edd Doloroso e alguns dos outros. Craster continuava caído por cima de Sor Byam, mas o cavaleiro ferido já não gemia. Quatro homens de negro estavam sentados no banco comendo pedaços queimados de carne de cavalo enquanto Ollo copulava sobre a mesa com uma mulher em lágrimas.

- Tarly. - Quando tentou falar, o sangue pingou da boca do Velho Urso para cima de sua barba. - Tarly, vá. Vá.

- Para onde, senhor? - tinha a voz monocórdica e sem vida. Não tenho medo. Era uma sensação estranha. - Não há para onde ir.

- A Muralha. Dirija-se à Muralha. Já.

"Já", crocitou o corvo. "Já, já." A ave caminhou ao longo do braço do velho até o seu peito e arrancou-lhe um pelo da barba.

- Tem. Tem de lhes contar.

- Contar o quê, senhor? - perguntou Sam polidamente.

- Tudo. O Punho. Os selvagens. Vidro de dragão. Isto. Tudo. - Sua respiração era agora muito superficial e sua voz, um sussurro. - Diga ao meu filho. Jorah. Diga-lhe, vista o negro. Meu desejo. último desejo.

"Desejo?" O corvo ergueu a cabeça, com os olhos negros como contas brilhando. "Grão?", perguntou a ave.

- Grão, não - disse Mormont fracamente. - Diga a Jorah. Perdoo-o. Meu filho. Por favor. Vá.

- É longe demais - disse Sam. - Nunca chegarei à Muralha, senhor. - Estava tão cansado. Tudo que queria era dormir, dormir e dormir, e nunca acordar, e sabia que se ficasse ali tempo suficiente, Adaga, Ollo Mão-Cortada ou Karl Pé-Torto se zangariam com ele e lhe concederiam o desejo, só para o verem morrer. - Preferia ficar com o senhor. Veja, já não estou assustado. Com o senhor, ou... com nada.

- Devia estar - disse uma voz de mulher.

Três das mulheres de Craster estavam em pé por cima deles. Duas eram velhas macilentas que ele não conhecia, mas Goiva encontrava-se entre elas, toda enrolada em peles e embalando uma trouxa de pelo marrom e branco que devia conter seu bebê.

- Nós não devemos falar com as esposas de Craster - disse-lhes Sam. - Temos ordens.

- Isso agora acabou - disse a velha da direita.

- Os corvos mais pretos estão lá embaixo no porão, empanturrando-se - disse a velha da esquerda -, ou lá em cima no sótão com as mais novas. Mas vão voltar depressa. É melhor que já tenha ido embora quando voltarem. Os cavalos fugiram, mas Dyah apanhou dois.

- Disse que me ajudaria - lembrou-lhe Goiva.

- Eu disse que Jon a ajudaria. Jon é corajoso, e um bom guerreiro, mas acho que deve estar morto. Eu sou um covarde. E gordo. Olhe só como sou gordo. Além disso, Lorde Mormont está ferido. Não vê? Não poderia abandonar o Senhor Comandante.

- Filho - disse a outra velha -, esse velho corvo foi embora na sua frente. Olhe.

A cabeça de Mormont continuava no seu colo, mas os olhos estavam abertos e fixos e os lábios já não se moviam. O corvo inclinou a cabeça e crocitou, e depois olhou para cima, para Sam. "Grão?"

- Não há grão. Ele não tem grão. - Sam fechou os olhos do Velho Urso e tentou pensar numa prece, mas tudo que lhe veio à cabeça foi: - Mãe, tenha piedade. Mãe, tenha piedade. Mãe, tenha piedade.

- Sua mãe não pode ajudar em nada - disse a velha da esquerda. - Esse velho morto também não. Pegue sua espada e leve aquele grande manto quente de peles dele e leve o cavalo dele se conseguir encontrá-lo. E vá embora.

- A garota não mente - disse a velha da direita. - Ela é minha filha, e arranquei a mentira dela na marra há um bom tempo. Disse que a ajudaria. Faça o que a Ferny diz, rapaz. Leva a garota e depressa.

"Depressa", disse o corvo."Depressa depressa depressa."

- Para onde? - perguntou Sam, confuso. - Para onde devo levá-la?

- Para algum lugar quente - disseram as duas velhas em uníssono. Goiva estava chorando.

- Eu e o bebê. Por favor. Serei sua mulher como fui de Craster. Por favor, sor corvo. Ele é um menino, exatamente como Neila disse que seria. Se não o levar, eles levam.

- Eles? - disse Sam, e o corvo ergueu a cabeça negra e repetiu, num eco: "Eles. Eles. Eles."

- Os irmãos do garoto - disse a velha da esquerda. - Os filhos de Craster. O frio branco está se erguendo lá fora, corvo. Sinto nos meus ossos. Estes pobres ossos velhos não mentem. Eles estarão aqui em breve, os filhos.

Arya

Seus olhos tinham se acostumado ao negrume. Quando Harwin puxou o capuz da cabeça dela, o clarão avermelhado dentro do monte oco fez Arya piscar como uma coruja estúpida.

Uma enorme cova para fogueiras tinha sido escavada no centro do chão de terra, e as chamas que ali ardiam subiam rodopiando e crepitando para o teto manchado de fumaça. As paredes eram de pedra e terra em partes iguais, com enormes raízes brancas que se retorciam por elas como se fossem um milhar de lentas serpentes pálidas. Enquanto observava, pessoas emergiram de entre essas raízes; saindo das sombras para lançar um olhar sobre os cativos, aparecendo nas aberturas de túneis negros como breu, saltando de fendas e frestas por todos os lados. Num ponto, do outro lado da fogueira, as raízes formavam uma espécie de escadaria que levava a um vão na terra onde um homem se encontrava sentado, quase perdido no emaranhado do represeiro.

Limo tirou o capuz de Gendry.

- Que lugar é este? - perguntou o Touro.

- É um lugar antigo, profundo e secreto. Um refúgio onde nem lobos nem leões vêm zanzar.

Nem lobos nem leões. Arya ficou arrepiada. Lembrou-se do sonho que tivera, e do sabor de sangue de quando tinha arrancado do ombro o braço do homem.

Embora a fogueira fosse grande, a gruta era maior; tornando difícil dizer onde começava e onde terminava. As aberturas de túneis podiam ter meio metro de profundidade ou prolongar-se por três quilômetros. Arya viu homens, mulheres e crianças, todos a observá-la cautelosamente.

Barba-Verde disse:

- Aqui está o feiticeiro, esquilo magricela. Agora vai ter as suas respostas. - Apontou para a fogueira, onde Tom Sete-Cordas conversava com um homem alto e magro com peças desencontradas de velhas armaduras afiveladas por cima de uma maltrapilha veste cor-de-rosa. Este não pode ser lhoros de Myr. Nas lembranças que Arya guardava, o sacerdote vermelho era um homem gordo de rosto liso e uma brilhante cabeça calva. Aquele homem tinha uma cara seca e a cabeça repleta de cabelos grisalhos armados. Algo que Tom disse fez com que ele a olhasse, e Arya pensou que o homem estivesse prestes a ir até ela. Mas então surgiu o Caçador Louco, empurrando seu cativo para a luz, e ela e Gendry foram esquecidos.

O Caçador revelou-se um homem atarracado, vestido de couro remendado castanho-amarelado, com os cabelos a rarear e um queixo recuado, além de briguento. No Septo de Pedra, ela achara que Limo e Barba-Verde ficariam em pedaços quando o enfrentaram ao pé das gaiolas para corvos, para reclamar o seu prisioneiro em nome do senhor do relâmpago. Os cães tinham-nos rodeado, farejando e rosnando. Mas Tom das Sete acalmou-os com sua música, Tanásia atravessou a praça com o avental cheio de ossos e carneiro gordo, e Limo apontou para Anguy, à janela do bordel, em pé com uma flecha preparada. O Caçador Louco amaldiçoou-os todos, chamando-os de lambe-botas, mas acabou concordando em levar o homem que tinha capturado ao Lorde Beric para ser julgado.

Tinham amarrado os pulsos dele com corda de cânhamo, posto um laço em volta do pescoço e enfiado um saco na cabeça, mesmo assim o homem era perigoso. Arya podia senti-lo pairando na gruta. Thoros - se é que aquele era Thoros - foi encontrar captor e cativo a meio caminho da fogueira.

- Como foi que o capturou? - perguntou o sacerdote.

- Os cães apanharam o cheiro. Estava se recuperando de uma bebedeira debaixo de um salgueiro, por incrível que pareça.

- Traído por sua própria espécie. - Thoros virou-se para o prisioneiro e arrancou seu capuz. - Bem-vindo ao nosso humilde salão, cão. Não é tão grandioso quanto a sala de trono de Robert, mas a companhia é melhor.

As chamas oscilantes pintaram o rosto queimado de Sandor Clegane com sombras cor de laranja, deixando-o com um aspecto ainda mais terrível do que à luz do dia. Quando puxou a corda que lhe atava os pulsos, lascas de sangue seco caíram no chão. A boca do Cão de Caça torceu-se.

- Conheço você - disse ele a Thoros.

- Conheceu. Em lutas corpo a corpo costumava amaldiçoar a minha espada flamejante, embora por três vezes eu o tenha derrotado com ela.

- Thoros de Myr. Costumava raspar a cabeça.

- Para denotar um coração humilde, embora na realidade meu coração fosse vaidoso. Além disso, perdi a navalha na floresta. - O sacerdote deu um tapinha na barriga. - Sou menos do que era, mas sou mais. Um ano no meio da natureza derrete a carne do corpo de um homem. Bem que gostaria de encontrar um alfaiate que me apertasse a pele. Poderia voltar a parecer jovem, e belas donzelas iriam me banhar com beijos.

- Só as cegas, sacerdote.

Os fora da lei riram, nenhum tão alto quanto Thoros.

- Exatamente. Mas não sou o falso sacerdote que conhecia. O Senhor da Luz despertou no meu coração. Muitos poderes há muito adormecidos estão despertando, e há forças em movimento sobre a terra. Vi-as nas minhas chamas.

Cão de Caça não se mostrou impressionado.

- Que se fodam as suas chamas. E que se foda você também. - Passou o olhar pelos outros. - Anda em estranha companhia para um homem santo.

- Estes são meus irmãos - disse Thoros simplesmente.

Limo Manto Limão abriu caminho entre os outros. Ele e Barba-Verde eram os únicos homens com altura suficiente para olhar Cão de Caça nos olhos.

- Tenha cuidado com a maneira como late, cão. Temos a sua vida nas mãos.

- Então é melhor que você limpe a merda dos dedos. - Cão de Caça soltou uma gargalhada. - Há quanto tempo estão escondidos neste buraco?

Anguy, o Arqueiro, irritou-se com a sugestão de covardia.

- Pergunte ao bode se temos estado escondidos, Cão de Caça. Pergunte ao seu irmão. Pergunte ao senhor das sanguessugas. Tiramos sangue de todos eles.

- Vocês? Não me façam rir. Parecem mais guardadores de porcos do que soldados.

- Alguns de nós éramos guardadores de porcos - disse um homem baixo que Arya não conhecia. - E alguns éramos curtidores, cantores ou pedreiros. Mas isso foi antes de vir a guerra.

- Quando partimos de Porto Real, éramos homens de Winterfell, homens de Darry e homens de Portonegro, homens dos Mallery e homens dos Wylde. Éramos cavaleiros, escudeiros e homens de armas, senhores e plebeus, unidos apenas pelo nosso objetivo.

- A voz vinha do homem sentado entre as raízes de represeiro a meia altura da parede.

- Seis vintenas de nós partiram para levar a justiça do rei ao seu irmão. - O orador vinha descendo o emaranhado de degraus em direção ao chão. - Seis vintenas de homens bravos e leais, liderados por um tolo com um manto estrelado. - Um homem que mais parecia um espantalho, ele usava um manto negro em farrapos salpicado de estrelas e uma placa de peito de ferro amassada por uma centena de batalhas. Um matagal de pelos ruivo-alourados escondia a maior parte de seu rosto, exceto numa zona calva por cima de sua orelha esquerda, onde um golpe havia aberto uma concavidade na cabeça. - Mais de oitenta membros da nossa companhia estão agora mortos, mas outros pegaram as espadas que caíram de suas mãos. - Quando chegou ao chão, os fora da lei afastaram-se para deixá-lo passar. Arya viu que ele tinha perdido um dos olhos, e a pele em volta da órbita estava pregueada e cheia de cicatrizes, e ostentava um anel negro em volta do pescoço. - Com a ajuda deles, continuamos a lutar o melhor que podemos, por Robert e pelo reino.

- Robert? - arranhou Sandor Clegane, incrédulo.

- Ned Stark enviou-nos - disse Jack Sortudo com seu elmo redondo mas ele estava sentado no Trono de Ferro quando nos deu as ordens, portanto nunca fomos realmente homens dele, e sim de Robert.

- Robert agora é o rei dos vermes. É por isso que estão debaixo da terra, para serem a sua corte?

- O rei está morto - admitiu o cavaleiro-espantalho -, mas continuamos a ser homens do rei, embora o estandarte real que trazíamos tenha sido perdido no Vau do Saltimbanco quando os carniceiros de seu irmão caíram sobre nós. - Tocou o peito com um punho. - Robert foi morto, mas sua terra perdura. E nós a defendemos.

- Defendem-wa? - Cão de Caça resfolegou. - Ela é a sua mãe, Dondarrion? Ou a sua puta?

Dondarrion? Beric Dondarrion tinha sido belo; Jeyne, a amiga de Sansa, apaixonara-se por ele. Nem mesmo Jeyne Poole era tão cega para achar aquele homem bonito. Mas quando Arya voltou a olhar para ele, viu os restos de um relâmpago bifurcado de cor púrpura, no esmalte rachado de sua placa de peito.

- Sua terra é feita de pedras, árvores e rios - Cão de Caça estava dizendo. - As pedras precisam de quem as defenda? Robert acharia que não. Qualquer coisa que não pudesse foder, combater ou beber aborrecia-o, assim como vocês, os... bravos companheiros.

O ultraje varreu o monte oco.

- Volte a nos chamar por esse nome, cão, e engolirá a língua. - Limo puxou a espada.

Cão de Caça fitou a arma com desprezo.

- Ora, aqui está um homem corajoso, mostrando aço a um prisioneiro amarrado. Por que é que não me desata? Veremos então como anda essa coragem. - Lançou um olhar ao Caçador Louco que se encontrava atrás dele. - E você? Ou será que deixou toda a sua coragem nos canis?

- Não, mas devia tê-lo deixado numa gaiola para corvos. - Caçador puxou uma faca. - E ainda posso fazer isso.

Cão de Caça riu na cara dele.

- Aqui somos irmãos - declarou Thoros de Myr. - Irmãos sagrados juramentados ao reino, ao nosso deus e uns aos outros.

- A irmandade sem estandartes. - Tom Sete-Cordas fez soar uma corda. - Os cavaleiros do monte oco.

- Cavaleiros? - Clegane transformou a palavra em chacota. - Dondarrion é um cavaleiro, mas o resto de vocês é o mais lamentável bando de fora da lei e homens quebrados que eu já vi. Cago homens melhores do que vocês.

- Qualquer cavaleiro pode armar cavaleiros - disse o espantalho que era Beric Dondarrion - e todos os homens que vê na sua frente sentiram uma espada no ombro. Somos a companhia esquecida.

- Mande-me embora e também os esqueço - rouquejou Clegane. - Mas se pretende me assassinar, então trate disso de uma vez. Roubou minha espada, meu cavalo e meu ouro, portanto roube minha vida e acabou-se... mas poupe-me desses balidos devotados.

- Morrerá em breve, cão - prometeu Thoros -, mas não será assassinato, e sim justiça.

- Sim - disse o Caçador Louco -, é um destino mais bondoso do que merece por tudo aquilo que a sua laia tem feito. Leões, vocês chamam a si mesmos. Em Sherrer e no Vau do Saltimbanco foram estupradas meninas de seis e sete anos, e bebês de peito foram cortados em dois enquanto as mães eram obrigadas a ver. Nenhum leão jamais matou tão cruelmente.

- Não estive em Sherrer nem no Vau do Saltimbanco - disse-lhe Cão de Caça. - Deposite suas crianças mortas em outra porta qualquer.

Foi Thoros quem respondeu.

- Nega que a Casa Clegane foi construída sobre os ossos de crianças mortas? Vi-os depositando o Príncipe Aegon e a Princesa Rhaenys perante o Trono de Ferro. O certo seria suas armas terem dois bebês ensanguentados em vez daqueles cães feios.

A boca de Cão de Caça retorceu-se.

- Toma-me por meu irmão? Agora é crime nascer Clegane?

- O assassinato é um crime.

- Quem foi que eu assassinei?

- Lorde Lothar Mallery e Sor Gladden Wylde - disse Harwin.

- Meus irmãos Lister e Lennocks - declarou Jack Sortudo.

- O pai de família Beck e Mudge, o filho do moleiro, de Bosque de Donnel - gritou uma velha das sombras.

- A viúva de Merriman, que amava tão bem - acrescentou Barba-Verde.

- Aqueles septões no Charco Lamacento.

- Sor Andrey Charlton. O seu escudeiro, Lucas Roote. Todos os homens, mulheres e crianças em Campopedra e no Moinho do Rato.

- O Senhor e a Senhora Deddings, que eram tão ricos.

Tom Sete-Cordas começou a enumerar.

- Alyn de Winterfell, Joth Arco-Ligeiro, Matt Pequeno e a irmã, Randa, Anvil Ryn. Sor Ormond. Sor Dudley. Pate de Mory, Pate de Bosquelança, Velho Pate e Pate de Bosque de Shermer. Wyl Cego, o entalhador. Patroa Maerie. Maerie, a Prostituta. Becca Padeira. Sor Raymun Darry, Lorde Darry, o jovem Lorde Darry. Bastardo de Bracken. Fletcher Will. Harsley. Patroa Nolla...

- Basta. - O rosto de Cão de Caça estava comprimido de fúria. - Está fazendo barulho. Esses nomes não significam nada. Quem eram eles?

- Pessoas - disse Lorde Beric. - Pessoas grandes e pequenas, jovens e velhas. Pessoas boas e pessoas más, que morreram na ponta de lanças Lannister ou viram a barriga aberta por espadas Lannister.

- Não era a minha espada na barriga deles. Quem disser isso é um mentiroso.

- Serve aos Lannister de Rochedo Casterly - disse Thoros.

- Servi, antigamente. Eu e mais milhares. Será cada um de nós culpado pelos crimes dos outros? - Clegane escarrou. - Pode ser que sejam cavaleiros, afinal. Mentem como cavaleiros, pode ser que assassinem como cavaleiros.

Limo e Jack Sortudo começaram a gritar com ele, mas Dondarrion levantou uma mão para pedir silêncio.

- Conte-nos o que quer dizer com isso, Clegane.

- Um cavaleiro é uma espada com um cavalo. O resto, os votos e os óleos sagrados e os favores das senhoras, são fitas de seda atadas em volta da espada. A espada talvez seja mais bonita com fitas penduradas nela, mas mata igualmente bem sem elas. Bem, que se fodam as suas fitas, e que enfiem as suas espadas no cu. Eu sou igual a vocês. A única diferença é que não minto a respeito do que sou. Portanto matem-me, mas não me chamem de assassino enquanto ficam aí dizendo uns aos outros que a sua merda não fede. Estão me ouvindo?

Arya espremeu-se tão depressa para a frente de Barba-Verde que ele nem a viu.

- Você é um assassino! - gritou. - Matou o Mycah, e não diga que não matou. Assassinou-o!

Cão de Caça fitou-a sem sequer um lampejo de reconhecimento.

- E quem era esse Mycah, menino?

- Não sou um menino! Mas o Mycah era. Era filho de um açougueiro e você o matou. Jory disse que você quase o cortou ao meio, e ele sequer tinha uma espada. - Agora, conseguia sentir os olhos deles sobre si, as mulheres, as crianças e os homens que se denominavam cavaleiros do monte oco.

- Quem é essa agora? - perguntou alguém.

Cão de Caça respondeu.

- Sete infernos. A irmã mais nova. A fedelha que atirou a linda espada de Joffrey ao rio. - Soltou um latido de riso. - Não sabe que está morta?

- Não, você é que está morto - disparou ela de volta.

Harwin pegou o braço de Arya e puxou-a para trás enquanto Lorde Beric dizia:

- A garota chamou-o de assassino. Nega ter matado esse filho de açougueiro, Mycah?

O grandalhão encolheu os ombros.

- Eu era defensor juramentado de Joffrey. O filho do açougueiro atacou um príncipe de sangue.

- Isso é uma mentira. - Arya sacudiu-se entre as mãos de Harwin. - Fui eu. Eu é que bati no Joífrey e joguei o dente de leão no rio. Mycah só fugiu, como eu lhe disse para fazer.

- Viu o rapaz atacar o Príncipe Joffrey? - perguntou Lorde Beric Dondarrion ao Cão de Caça.

- Ouvi a história dos lábios reais. Não me cabe questionar príncipes. - Clegane sacudiu as mãos na direção de Arya. - A própria irmã desta contou a mesma história diante de seu precioso Robert.

- A Sansa é só uma mentirosa - disse Arya, de novo furiosa com a irmã. - Não foi como ela disse. Não foi.

Thoros puxou Lorde Beric de lado. Os dois homens conversaram em murmúrios enquanto Arya fervia. Eles têm de matá-lo. Rezei para ele morrer, centenas e centenas de vezes.

Beric Dondarrion virou-se de novo para Cão de Caça.

- Foi acusado de assassinato, mas ninguém aqui conhece a verdade ou a falsidade da acusação, portanto não cabe a nós julgá-lo. Agora só o Senhor da Luz pode fazer isso. Condeno-o a ser julgado por batalha.

Cão de Caça franziu a testa, desconfiado, como se não acreditasse em seus próprios ouvidos.

- Você é tolo ou é louco?

- Nem uma coisa nem outra. Sou um senhor justo. Prove a sua inocência com uma arma, e ficará livre para partir.

- Não - gritou Arya, antes de Harwin cobrir sua boca. Não, eles não podem fazer isso, ele ficará livre. Cão de Caça era mortífero com uma espada, todos sabiam disso. Ele vai rir deles, pensou.

E foi o que ele fez, uma longa gargalhada áspera que ecoou nas paredes da caverna, uma gargalhada sufocada de desprezo.

- Então, quem vai ser? - olhou para o Limo Manto Limão. - O corajoso com o manto cor de mijo? Não? E que tal você, Caçador? Já chutou alguns cães, experimente comigo. - Viu Barba-Verde. - Você é suficientemente grande, Tyrosh, avance. Ou será que espera que seja a garotinha a lutar comigo? - Voltou a rir. - Venha, quem quer morrer?

- Serei eu quem você enfrentará - disse Lorde Beric Dondarrion.

Arya recordou todas as histórias. Ele não pode ser morto, pensou, esperando com um último fio de esperança. Caçador Louco cortou as cordas que prendiam as mãos de Sandor Clegane.

- Vou precisar de espada e armadura. - Cão de Caça esfregou um pulso ferido.

- Terá a sua espada - declarou Lorde Beric -, mas a armadura terá de ser a sua inocência.

A boca de Clegane torceu-se.

- Minha inocência contra a sua placa de peito, é assim que funciona?

- Ned, ajude-me a tirar a placa de peito.

Arya ficou arrepiada quando Lorde Beric disse o nome do pai, mas este Ned era só um garoto, um escudeiro de cabelos claros que não teria mais de dez ou doze anos.

Aproximou-se rapidamente para abrir as fivelas que prendiam o aço amassado em volta do senhor da Marcha. O almofadado por baixo estava podre de velhice e suor, e caiu quando o metal foi desprendido. Gendry prendeu a respiração.

- Mãe, misericórdia.

As costelas de Lorde Beric delineavam-se vivamente por baixo de sua pele. Uma cratera enrugada marcava seu peito imediatamente acima do mamilo esquerdo, e quando se virou para pedir uma espada e um escudo, Arya viu uma cicatriz condizente em suas costas. A lança atravessou-o. Cão de Caça tinha visto também. Estará assustado? Arya queria-o assustado antes de morrer, tão assustado como Mycah deve ter se sentido.

Ned trouxe ao Lorde Beric o cinto da espada e um longo sobretudo negro. Destinava-se a ser usado sobre a armadura, e por isso envolvia seu corpo com folga, mas nele crepitava o relâmpago púrpura bifurcado da sua Casa. Desembainhou a espada e devolveu o cinto ao escudeiro.

Thoros trouxe ao Cão de Caça seu cinto da espada.

- Um cão tem honra? - perguntou o sacerdote. - Caso pense em tentar abrir caminho para a liberdade com a espada ou tomar alguma criança como refém... Anguy, Dennet, Kyle, encham-no de penas ao primeiro sinal de traição. - Só depois de os três arqueiros prepararem suas flechas é que Thoros entregou a Clegane o cinto.

Cão de Caça libertou a espada com um movimento brusco e jogou fora a bainha. Caçador Louco entregou-lhe seu escudo de carvalho, cheio de tachões de ferro e pintado de amarelo, exibindo os três cães negros de Clegane. O pequeno Ned ajudou Lorde Beric com seu escudo, tão desgastado e cheio de marcas de golpes que o relâmpago púrpura e as estrelas esparramadas tinham sido quase obliterados.

Mas quando Cão de Caça ameaçou se aproximar do adversário, Thoros de Myr impediu-o.

- Primeiro oramos. - Virou-se para o fogo e ergueu os braços. - Senhor da Luz, olhe para nós.

Por toda a gruta, a irmandade sem estandartes ergueu as vozes em resposta.

- Senhor da Luz, defenda-nos.

- Senhor da Luz, proteja-nos na escuridão.

- Senhor da Luz, brilhe sobre nós.

- Acenda a sua chama entre nós, R'hllor - disse o sacerdote vermelho. - Mostre-nos a verdade ou a falsidade deste homem. Abata-o se for culpado, e empreste força à sua espada se for inocente. Senhor da Luz, dê-nos sabedoria.

- Pois a noite é escura - entoaram os outros, com a voz de Harwin e a de Anguy soando mais altas que a dos demais - e cheia de terrores.

- Esta gruta também é escura - disse Cão de Caça -, mas aqui o terror sou eu. Espero que seu deus seja bom, Dondarrion. Vai encontrá-lo em breve.

Sem sorrir, Lorde Beric apoiou o gume da espada na palma da mão esquerda e puxou-a lentamente para baixo. O sangue correu, escuro, do golpe que ele fez, e espalhou-se pelo aço.

E então a espada incendiou-se.

Arya ouviu Gendry sussurrar uma prece.

- Que queime nos sete infernos - praguejou Cão de Caça. - Você e Thoros também. - Lançou um olhar de relance ao sacerdote vermelho. - Quando acabar com ele, você é o próximo, Myr.

- Cada palavra que pronuncia proclama a sua culpa, cão - respondeu Thoros, enquanto Limo, Barba-Verde e Jack Sortudo gritavam ameaças e pragas. O próprio Lorde Beric esperava em silêncio, calmo como águas paradas, com o escudo no braço esquerdo e a espada ardendo na mão direita. Mate-o, pensou Arya, por favor, tem de matá-lo. Iluminado de baixo, seu rosto era uma máscara de morte, o olho em falta, um ferimento vermelho e revolto. A espada estava em chamas da ponta ao copo, mas Dondarrion parecia não sentir o calor. Estava tão imóvel que podia ter sido esculpido em pedra.

Mas quando Cão de Caça avançou sobre ele, moveu-se bastante depressa.

A espada flamejante saltou para parar a fria, com longas flâmulas de fogo a segui-la como as fitas de que Cão de Caça falara. Aço ressoou em aço. Assim que o seu primeiro golpe foi parado, Clegane lançou um segundo, mas daquela vez o escudo de Lorde Beric colocou-se no caminho da espada, e voaram lascas de madeira com a força da pancada. As estocadas vieram duras e rápidas, de baixo e de cima, da direita e da esquerda, e todas elas foram bloqueadas por Dondarrion. As chamas rodopiavam em volta de sua espada e deixavam para trás fantasmas vermelhos e amarelos marcando sua passagem. Cada movimento de Lorde Beric atiçava-as e fazia-as arder mais fortemente até parecer que o senhor do relâmpago se encontrava no interior de uma jaula de fogo.

- É fogo vivo? - perguntou Arya a Gendry.

- Não. Isso é diferente. Isso é...

- ... magia? - concluiu ela no momento em que Cão de Caça recuava.

Agora era Lorde Beric que atacava, enchendo o ar com cordões de fogo, fazendo o homem maior apoiar-se nos calcanhares. Clegane parou um golpe elevado com o escudo, e um cão pintado perdeu uma cabeça. Contra-atacou, e Dondarrion interpôs o seu escudo e atirou um golpe incendiário para trás. A irmandade fora da lei incitava seu chefe aos gritos. "É seu?', ouviu Arya, e "Vai nele! Vai nele! Vai nele. Cão de Caça parou um golpe dirigido à sua cabeça, fazendo uma careta quando o calor das chamas colidiu com seu rosto. Soltou um grunhido e uma praga e cambaleou para trás.

Lorde Beric não lhe deu descanso. Pressionou duramente o homem maior, sem parar um momento de movimentar o braço. As espadas colidiram, saltaram para longe e voltaram a colidir, voaram lascas do escudo do relâmpago enquanto chamas rodopiantes beijavam os cães uma, duas, três vezes. Cão de Caça moveu-se para a direita, mas Dondarrion bloqueou-o com um rápido passo para o lado e empurrou-o para o outro ... na direção do soturno clarão vermelho da fogueira. Clegane cedeu terreno até sentir o calor em suas costas. Um rápido relance de olhos sobre o ombro mostrou-lhe o que havia atrás de si, e quase lhe custou a cabeça quando Lorde Beric atacou novamente.

Arya viu o branco nos olhos de Sandor Clegane quando voltou a arremeter para a frente. Três passos adiante e dois para trás, um movimento para a esquerda que Lorde Beric bloqueou, mais dois passos para a frente e um para trás, clang e clang, e os grandes escudos de carvalho recebiam um golpe após outro, após outro. Os cabelos escuros e escorridos de Cão de Caça colavam-se à sua testa, num brilho de suor. Suor de vinho, pensou Arya, lembrando-se de que ele fora capturado bêbado. Julgou ver o início do medo despertando em seus olhos. Ele vai perder, disse a si mesma, exultante, enquanto a espada flamejante de Lorde Beric rodopiava e golpeava. Numa violenta saraivada, o senhor do relâmpago recuperou todo o terreno que Cão de Caça ganhara, voltando a deixar Clegane cambaleando à beira da fogueira. Ele vai morrer, vai, vai. Ficou nas pontas dos pés para ver melhor.

- Maldito bastardo! - gritou Cão de Caça ao sentir o fogo lamber a parte de trás de suas coxas. Avançou, brandindo a pesada espada cada vez com mais violência, tentando esmagar o homem menor com força bruta, tentando quebrar lâmina, escudo ou braço. Mas as chamas das defesas de Dondarrion tentaram morder seus olhos, e quando Cão de Caça se afastou delas com uma sacudida, perdeu o apoio e caiu sobre um joelho. Lorde Beric aproximou-se de imediato, com um golpe para baixo que gritou pelo ar e foi seguido por flâmulas de fogo. Ofegando de exaustão, Clegane pôs o escudo por cima da cabeça bem a tempo, e a gruta ressoou com o sonoro crac do carvalho lascado.

- O escudo dele pegou fogo - disse Gendry numa voz abafada. Arya viu isso no mesmo instante. As chamas espalharam-se pela rachada tinta amarela, e os três cães negros foram engolidos.

Sandor Clegane tinha conseguido ficar em pé novamente com um contra-ataque temerário. Só depois de Lorde Beric ter recuado um passo é que Cão de Caça pareceu notar que o fogo que rugia tão perto de seu rosto era seu próprio escudo queimando. Com um grito de repugnância, golpeou violentamente o carvalho partido, completando sua destruição. O escudo estilhaçou-se, e uma parte voou, rodopiando, ainda em chamas, enquanto a outra se agarrava teimosamente ao antebraço de Clegane. Seus esforços para se libertar só conseguiram atiçar as chamas. A manga pegou fogo, e agora era todo o seu braço esquerdo que queimava.

- Acabe com ele! - gritou Barba-Verde ao Lorde Beric, e outras vozes uniram-se num cântico de"Culpado. Arya gritou com os demais. "Culpado, culpado, mate-o, culpado!"

Suave como seda de verão, Lorde Beric deslizou para perto, com o propósito de dar cabo do homem à sua frente. Cão de Caça soltou um grito áspero, levantou a espada com ambas as mãos e fez com que caísse com todas as suas forças. Lorde Beric bloqueou facilmente o golpe...

- Nããããããããããão - gritou Arya.

... mas a espada flamejante partiu-se em duas, e o aço frio do Cão de Caça lavrou a carne de Lorde Beric onde o ombro se juntava ao pescoço, e abriu um golpe limpo dali até o esterno. O sangue irrompeu num jorro quente e negro.

Sandor Clegane deu um salto para trás, ainda ardendo. Arrancou os restos do escudo e atirou-os para longe com uma praga, depois rolou na terra para abafar o fogo que corria por seu braço.

Os joelhos de Lorde Beric dobraram-se lentamente, como que para rezar. Quando sua boca se abriu, só sangue saiu dela. A espada de Cão de Caça ainda estava em seu corpo quando tombou para a frente. A terra bebeu seu sangue. Sob o monte oco não se ouviu um som além do suave crepitar das chamas e do ganido que Cão de Caça soltou quando tentou se levantar. Arya só conseguia pensar em Mycah e em todas as estúpidas preces que rezara para que Cão de Caça morresse. Se existem deuses, por que Lorde Beric não ganhou? Ela sabia que Cão de Caça era culpado.

- Por favor - rouquejou Sandor Clegane, agarrado ao braço. - Estou queimado. Ajudem-me. Alguém. Ajudem-me. - Estava chorando. - Por favor.

Arya olhou-o com espanto. Ele está chorando como um bebezinho, pensou.

- Melly, cuide dos ferimentos dele - disse Thoros. - Limo, Jack, ajudem-me com Lorde Beric. Ned, é melhor que venha também. - O sacerdote vermelho arrancou a espada de Cão de Caça do corpo caído de seu senhor e espetou-a na terra empapada de sangue. Limo deslizou suas grandes mãos sob os braços de Dondarrion, enquanto Jack Sortudo o pegava pelos pés. Levaram-no ao redor da fogueira, para a escuridão de um dos túneis. Thoros e o pequeno Ned seguiram-nos.

Caçador Louco cuspiu.

- Acho que devíamos levá-lo de volta para o Septo de Pedra e enfiá-lo numa gaiola para corvos.

- Sim - disse Arya. - Ele assassinou Mycah. Assassinou mesmo.

- Que esquilo mais zangado - murmurou Barba-Verde.

Harwin suspirou.

- R'hllor considerou-o inocente.

- Quem é o Ruloreí - Arya nem conseguia pronunciar o nome.

- Senhor da Luz. Thoros ensinou-nos...

Arya não queria saber o que Thoros tinha ensinado a eles. Puxou o punhal de Barba-Verde de sua bainha e girou para longe antes de ele conseguir agarrá-la. Gendry também tentou apanhá-la, mas sempre tinha sido rápida demais para ele.

Tom Sete-Cordas e uma mulher qualquer estavam ajudando Cão de Caça a ficar em pé. O aspecto do braço dele chocou-a de tal modo que a deixou sem fala. Havia uma faixa cor-de-rosa no local onde a correia de couro estava presa, mas, por cima e por baixo, a pele encontrava-se rachada, vermelha e sangrando desde o cotovelo até o pulso. Quando seus olhos se encontraram com os dela, sua boca retorceu-se.

- Quer tanto assim que eu morra? Então vá, menina-lobo. Enfie em mim. É mais limpo do que o fogo. - Clegane tentou ficar em pé, mas quando se moveu, um pedaço de carne queimada desprendeu-se de seu braço e os joelhos perderam a força. Tom segurou-o pelo braço bom e manteve-o em pé.

O braço dele, pensou Arya, e o rosto. Mas ele era o Cão de Caça. Merecia queimar num inferno ardente. Sentiu a faca pesada na mão. Apertou-a com mais força.

- Você matou Mycah - voltou a dizer, desafiando-o a negar. - Conte a eles. Matou. Matou.

- Matei. - Todo o seu rosto se torceu. - Persegui-o a cavalo, cortei-o ao meio e ri. Também os vi espancarem sua irmã até sair sangue, e vi-os cortar a cabeça de seu pai.

Limo agarrou o pulso de Arya e torceu-o, tirando o punhal dela. Ela chutou-o, mas ele não retrucou.

- Vá para o inferno, Cão de Caça - gritou para Sandor Clegane numa fúria impotente de mãos vazias. - Você vai para o inferno!

- Ele já foi - disse uma voz, pouco mais forte do que um murmúrio.

Quando Arya se virou, Lorde Beric Dondarrion estava em pé atrás dela, agarrando o ombro de Thoros com a mão ensanguentada.

Catelyn

Que os reis do Inverno fiquem com a sua cripta fria debaixo da terra, pensou Catelyn. Os pTully tiravam a sua força do rio, e era ao rio que retornavam depois de suas vidas terem cumprido seus percursos.

Deitaram Lorde Hoster num esguio barco de madeira, revestido por uma brilhante armadura de prata, com placa e cota de malha. O manto estava aberto por baixo dele, em ondas de azul e vermelho. O sobretudo também era azul e vermelho. Uma truta, com escamas de prata e bronze, coroava o grande elmo que colocaram ao lado de sua cabeça. Sobre o peito, pousaram uma espada de madeira pintada e fecharam seus dedos sobre o cabo. Manoplas de cota de malha escondiam suas mãos enfraquecidas e faziam com que quase parecesse forte de novo. Seu pesado escudo de carvalho e ferro estava apoiado junto ao seu flanco esquerdo, e o berrante à direita. O resto do barco fora enchido de madeira trazida pelo rio, gravetos, pedaços de pergaminho e pedras, para torná-lo pesado na água. Seu estandarte flutuava à proa, a truta saltante de Correrrio.

Foram escolhidos sete homens para empurrar o barco funerário para dentro da água, em honra às sete faces de deus. Robb era um deles, na qualidade de suserano de Lorde Hoster. Acompanhavam-no os lordes Bracken, Blackwood, Vance e Mallister, Sor Marq Piper... e o Coxo Lothar Frey, que chegara das Gêmeas com a resposta que aguardavam. Em sua escolta vieram quarenta soldados, comandados por Walder Rivers, o mais velho dos bastardos de Lorde Walder, um homem severo e grisalho com uma formidável reputação como guerreiro. Sua chegada, apenas horas após o falecimento de Lorde Hoster, tinha deixado Edmure em fúria.

- Walder Frey devia ser esfolado e esquartejado - gritou. - Manda um aleijado e um bastardo para negociar conosco, não me diga que não pretende nos insultar com isso.

- Não tenho qualquer dúvida de que Lorde Walder escolheu seus enviados com cuidado - replicou Catelyn. - Foi um ato impertinente, uma forma mesquinha de vingança, mas lembre-se de quem é o homem com quem estamos lidando. O pai costumava chamá-lo de Atrasado Lorde Frey. O homem tem um gênio ruim, e é acima de tudo orgulhoso.

Abençoadamente, o filho mostrara mais bom senso do que o irmão. Robb cumprimentou os Frey com toda a cortesia, encontrou lugar nas casernas para a escolta e pediu calmamente a Sor Desmond Grell que se afastasse para que Lothar pudesse ter a honra de ajudar a enviar Lorde Hoster para sua última viagem. Meu filho ganhou noções de sabedoria que estão para além de sua idade. A Casa Frey podia ter abandonado o Rei no Norte, mas o Senhor da Travessia ainda era o mais poderoso dos vassalos de Correrrio, e Lothar encontrava-se ali em seu nome.

Os sete lançaram Lorde Hoster da escada de água, descendo os degraus enquanto a porta levadiça era içada. Lothar Frey, um homem corpulento e pouco musculoso, respirava pesadamente enquanto empurravam o barco para a corrente. Jason Mallister e Tytos Blackwood, à proa, entraram no rio até o peito, para pôr o barco no curso certo.

Catelyn observou das ameias, esperando e vigiando, como esperara e vigiara tantas vezes antes. Embaixo, o rápido e turbulento Pedregoso mergulhava como uma lança no flanco do largo Ramo Vermelho, agitando as lamacentas águas turvas do rio maior com sua corrente azul-esbranquiçada. Uma névoa matinal pairava sobre a água, fina como gaze e como os filamentos da memória.

Bran e Rickon estarão à espera dele, pensou tristemente Catelyn, tal como eu costumava esperar antigamente.

A esguia embarcação saiu, à deriva, sob a arcada de pedra vermelha do Portão da Água, ganhando velocidade ao ser apanhada pela impetuosa corrente do Pedregoso e empurrada na direção da zona turbulenta onde as águas se encontravam. No momento em que o barco emergiu de sob o abrigo das grandes muralhas do castelo, sua vela quadrada encheu-se de vento, e Catelyn viu a luz do sol relampejar no elmo do pai. O leme de Lorde Holter Tully manteve-se firme, e ele velejou serenamente pelo centro do canal, na direção do sol nascente.

- Agora - disse o tio. Ao lado dele, o irmão Edmure (agora Lorde Edmure de fato, e quanto tempo levaria para se habituar a isso?) encaixou uma flecha na corda do arco. O escudeiro aproximou um tição da ponta. Edmure esperou até a chama pegar, e então ergueu o grande arco, puxou a corda até a orelha e soltou. Com um profundo trum, a flecha ergueu-se no ar. Catelyn seguiu seu voo com os olhos e o coração, até que mergulhasse na água com um silvo suave, bem à popa do barco de Lorde Hoster.

Edmure soltou uma praga em voz baixa.

- O vento - disse, pegando uma segunda flecha. - Outra vez. - O tição beijou o trapo ensopado em óleo atrás da ponta da flecha, as chamas subiram, Edmure ergueu o arco, puxou e soltou. A flecha voou alto e longe. Longe demais. Desapareceu no rio uma dúzia de metros para lá do barco, e o fogo tremeluziu e apagou-se num instante. Um rubor estava subindo pelo pescoço de Edmure, tão vermelho quanto sua barba. - De novo - ordenou, tirando uma terceira flecha da aljava. Está tão tenso quanto a corda de seu arco, pensou Catelyn.

Sor Brynden deve ter visto o mesmo.

- Permita-me, senhor - ofereceu.

- Eu consigo - insistiu Edmure. Deixou-os acender a flecha, levantou bruscamente o arco, respirou fundo, puxou a corda. Por um longo momento pareceu hesitar enquanto o fogo subia lentamente a haste, crepitando. Por fim soltou. A flecha subiu como um relâmpago, e por fim voltou a curvar para baixo, caindo, caindo... e passando com um silvo pela vela enfunada.

Um erro por pouco, não mais do que uma mão, mas mesmo assim um erro.

- Que os Outros levem isto! - praguejou o irmão de Catelyn. O barco estava quase fora de alcance, deslizando rio abaixo, penetrando e saindo das névoas fluviais. Sem uma palavra, Edmure entregou o arco ao tio.

- Depressa - disse Sor Brynden. Encaixou uma flecha, manteve-a firme para receber o tição, puxou e soltou antes de Catelyn ter certeza de que o fogo tinha pegado,... mas quando a flecha subiu, viu as chamas a segui-la pelo ar, uma flâmula laranja-clara. O barco tinha desaparecido na névoa. Caindo, a flecha em chamas foi também engolida... mas só por um segundo. Então viram o vermelho desabrochar em flor, súbito como a esperança. A vela incendiou-se, e o nevoeiro incandesceu, cor-de-rosa e laranja. Por um momento, Catelyn viu claramente a silhueta do barco, decorada pela grinalda de chamas saltitantes.

Espere-me, gatinha, ouviu-o murmurar.

Catelyn estendeu cegamente a mão, tateando em busca da do irmão, mas Edmure afastara-se, para ficar só, no ponto mais elevado das ameias. Foi o tio Brynden quem pegou na sua mão em vez do irmão, entrelaçando seus fortes dedos aos dela. Juntos, observaram o pequeno incêndio diminuir à medida que o barco em chamas se afastava na distância.

E então desapareceu... ainda à deriva pelo rio abaixo, talvez, ou quebrado e se afundando. O peso da armadura levaria Lorde Hoster para o fundo, para descansar na lama mole do leito do rio, nos salões aquáticos onde os Tully concediam eternas audiências, com cardumes de peixes como seus últimos servidores.

Assim que o barco em chamas desapareceu da vista de quem estava no castelo, Edmure foi embora. Catelyn teria gostado de abraçá-lo, ainda que só por um momento; teria gostado de se sentar por uma hora, por uma noite ou por uma volta de lua, para falar do morto e fazer luto. Mas sabia tão bem quanto ele que aquela não era a hora certa; ele era agora senhor de Correrrio, e seus cavaleiros estavam à sua volta, murmurando condolências e promessas de lealdade, separando-o de algo tão pequeno como a dor de uma irmã. Edmure escutava, sem ouvir nenhuma das palavras.

- Não é desonra falhar o tiro - disse-lhe o tio em voz baixa. - Alguém devia dizer isso a Edmure. No dia em que o senhor meu pai desceu o rio, Hoster também falhou.

- Com a primeira flecha. - Catelyn era nova demais para se lembrar, mas Lorde Hoster contara a história com frequência. - A segunda atingiu a vela. - Suspirou.

Edmure não era tão forte quanto parecia. A morte do pai havia sido uma misericórdia quando enfim chegou, mesmo assim atingiu duramente o irmão.

Na noite anterior, embriagado, desabou e chorou, cheio de remorsos por coisas que não tinha feito e palavras que não tinha dito. Disse-lhe entre lágrimas que nunca devia ter saído para travar a sua batalha nos vaus; que devia ter ficado junto à cabeceira do pai.

- Devia ter estado com ele, como você esteve - tinha dito. - Ele falou de mim no fim? Diga-me a verdade, Cat. Ele perguntou por mim?

A última palavra de Lorde Hoster havia sido "Tanásia", mas Catelyn não conseguia se levar a dizer isso.

- Ele murmurou o seu nome - mentiu, e o irmão assentiu, grato, e beijou sua mão. Se ele não tivesse tentado afogar o pesar e a culpa, poderia ter sido capaz de dominar um arco, pensou consigo mesma, suspirando, mas isso era algo que não se atrevia a dizer.

Peixe Negro levou-a das ameias até onde Robb se encontrava entre os vassalos, com sua jovem rainha ao lado. Quando a viu, o filho tomou-a nos braços, em silêncio.

- Lorde Hoster parecia nobre como um rei, senhora - murmurou Jeyne. - Gostaria de ter tido a oportunidade de conhecê-lo.

- E eu de conhecê-lo melhor - acrescentou Robb.

- Ele também teria gostado disso - disse Catelyn. - Havia léguas demais entre Correrrio e Winterfell. - E montanhas, rios e exércitos demais entre Correrrio e o Ninho da Águia, ao que parece. Lysa não tinha respondido à sua carta.

E de Porto Real chegara também só silêncio. Esperava que àquela altura Brienne e Sor Cleos já tivessem chegado à cidade com o seu cativo. Até podia acontecer de Brienne retornar, trazendo consigo as meninas. Sor Cleos jurou que obrigaria o Duende a enviar o corvo assim que a troca fosse feita. Ele jurou! Mas os corvos nem sempre chegavam ao destino. Algum arqueiro podia ter abatido e assado a ave para o jantar. A carta que poderia deixar seu coração em paz talvez agora estivesse junto às cinzas de uma fogueira, ao lado de uma pilha de ossos de corvo.

Outros esperavam para entregar a Robb as suas condolências, e Catelyn afastou-se pacientemente enquanto Lorde Jason Mallister, Grande-Jon e Sor Rolph Spicer falavam com ele, um de cada vez. Mas quando Lothar Frey se aproximou, ela puxou-o pela manga. Robb virou-se e esperou para ouvir o que Lothar ia dizer.

- Vossa Graça - rechonchudo e com cerca de trinta e cinco anos, Lothar Frey tinha olhos juntos, uma barba pontiaguda e cabelos escuros que caíam em caracóis sobre os ombros. Uma perna, torcida no parto, dera-lhe o nome de Coxo Lothar. Havia servido como intendente do pai durante a última dúzia de anos. - É com relutância que nos intrometemos em seu luto, mas talvez possa nos conceder uma audiência esta noite?

- Com todo o prazer - disse Robb. - Nunca foi minha intenção semear a inimizade entre nós.

- Nem minha ser a causa disso - disse a Rainha Jeyne.

Lothar Frey sorriu.

- Compreendo, e o senhor meu pai também. Ele instruiu-me para dizer que já foi jovem um dia, e se lembra bem do que é se deixar levar pelo coração.

Catelyn duvidava muito de que Lorde Walder tivesse dito tal coisa, ou que alguma vez tivesse se deixado levar pelo coração. O senhor da Travessia sobrevivera a sete esposas e estava agora casado com a oitava, mas falava delas apenas como aquecedoras de cama e éguas de reprodução. Apesar disso, as palavras eram bonitas, e dificilmente poderia levantar objeções ao elogio. Robb tampouco o fez.

- Seu pai é muito atencioso - disse. - Esperarei ansiosamente a nossa conversa.

Lothar fez uma reverência, beijou a mão da rainha e retirou-se. A essa altura, uma dúzia de outros homens já tinha se reunido para dar uma palavra ao rei. Robb falou com todos, deixando um agradecimento aqui, um sorriso ali, conforme era necessário. Só se virou para Catelyn depois que o último foi embora.

- Há algo que temos de discutir. Pode vir comigo?

-Às suas ordens, Vossa Graça.

- Não foi uma ordem, mãe.

- Então será um prazer.

- O filho tratara-a com bastante gentileza desde que retornara a Correrrio, mas raramente a procurava. Se ele se sentia mais confortável com sua jovem rainha, Catelyn não podia censurá-lo. Jeyne faz Robb sorrir, e eu nada tenho a partilhar com ele exceto o pesar. Robb também parecia apreciar a companhia dos irmãos de sua esposa; o jovem Rollam, seu escudeiro, e Sor Raynald, seu porta-estandartes. Está substituindo aqueles que perdeu, percebeu Catelyn quando os viu juntos. Rollam ocupou o lugar de Bran, e Raynald é em parte Theon e em parte Jon Snow. Só quando estava com os Westerling é que via Robb sorrir, ou o ouvia rir como o rapaz que era. Para os outros era sempre o Rei no Norte, com a cabeça sobrecarregada com o peso da coroa, mesmo quando sua testa estava nua.

Robb deu um beijo carinhoso na mulher, prometeu encontrá-la em seus aposentos e saiu com a senhora sua mãe. Seus passos levaram-nos para o bosque sagrado.

- Lothar pareceu amigável, e isso é sinal esperançoso. Precisamos dos Frey.

- Isso não significa que viremos a tê-los.

Ele assentiu com a cabeça. Havia um ar sombrio em seu rosto e uma inclinação em seus ombros que fez com que o coração de Catelyn se dirigisse a ele. A coroa o está esmagando, pensou. Ele deseja tanto ser um bom rei, ser bravo, honroso e inteligente, mas o peso é excessivo para ser suportado por um rapaz. Robb estava fazendo tudo que podia, mas os golpes continuavam caindo, um após outro, sem darem descanso. Quando lhe trouxeram a notícia da batalha em Valdocaso, onde Lorde Randyll Tarly desbaratara as forças de Robett Glover e de Sor Heiman Tallhart, seria de se esperar vê-lo enfurecido, mas ele limitou-se a olhar, numa incredulidade estupidificada, e dizer:

- Valdocaso, no mar estreito? Por que eles iriam para Valdocaso? - sacudiu a cabeça, desconcertado. - Um terço de minha infantaria perdido por Valdocaso?

- Os homens de ferro têm o meu castelo e agora os Lannister têm o meu irmão - disse Galbart Glover, numa voz carregada de desespero. Robett Glover sobreviveu à batalha, mas fora capturado perto da estrada do rei não muito mais tarde.

- Não será por muito tempo - prometeu o filho de Catelyn. - Vou oferecer Martyn Lannister em troca dele. Lorde Tywin terá de aceitar, por causa do irmão. - Martyn era filho de Sor Kevan, irmão gêmeo de Willem, que Lorde Karstark assassinara. Catelyn sabia que aqueles homicídios ainda perturbavam o filho. Ele tinha triplicado a guarda em volta de Martyn, mas ainda temia por sua segurança.

- Devia ter trocado o Regicida por Sansa quando me pediu - disse Robb no momento em que entraram na galeria. - Se tivesse proposto casá-la com o Cavaleiro das Flores, os Tyrell poderiam ser nossos e não de JofFrey. Devia ter pensado nisso.

- Sua cabeça estava nas suas batalhas, e com razão. Nem mesmo um rei pode pensar em tudo.

- Batalhas - resmungou Robb enquanto seguiam sob as árvores. - Ganhei todas as batalhas mas, sem saber como, estou perdendo a guerra. - Olhou para cima, como se a resposta pudesse estar escrita no céu. - Os homens de ferro controlam Winterfell e também Fosso Cailin. O pai está morto, Bran e Rickon também, e talvez até Arya. E agora também o seu pai.

Não podia permitir que ele se desesperasse. Conhecia bem demais o sabor dessa bebida.

- Meu pai esteve moribundo durante muito tempo. Você não podia ter mudado isso. Cometeu erros, Robb, mas que rei não os comete? Ned estaria orgulhoso de você.

- Mãe, há uma coisa que precisa saber.

O coração de Catelyn parou por um instante. Isso é algo que ele detesta. Algo que tem medo de me contar. Tudo em que conseguiu pensar foi em Brienne e na sua missão.

- É o Regicida?

- Não. É Sansa.

Está morta, pensou imediatamente Catelyn. Brienne falhou, Jaime está morto, e Cersei matou a minha querida menina por vingança. Por um momento quase não conseguiu falar.

- Ela... ela partiu, Robb?

- Partiu? - ele pareceu sobressaltado. - Morta? Ah, mãe, não, isso não, não lhe fizeram mal, dessa forma não, só... chegou uma ave ontem à noite, mas não consegui arranjar coragem de lhe contar até que seu pai fosse enviado para o descanso dele. - Robb pegou na mão dela. - Casaram-na com Tyrion Lannister.

Os dedos de Catelyn agarraram-se aos dele.

- O Duende.

- Sim.

- Ele jurou trocá-la pelo irmão - disse, entorpecida. - Sansa e Arya. Teríamos as duas de volta se devolvêssemos o seu precioso Jaime, ele jurou perante toda a corte. Como pôde se casar com ela depois de dizer aquilo à vista dos deuses e dos homens?

- É irmão do Regicida. A quebra de promessas corre no sangue deles. - Os dedos de Robb rasparam o botão de sua espada. - Se pudesse, cortaria aquela cabeça feia dele. Sansa seria então viúva, e livre. Não há outra maneira, que eu veja. Obrigaram-na a pronunciar os votos perante um septão e a vestir um manto carmesim.

Catelyn recordou o homenzinho retorcido que tinha capturado na estalagem do entroncamento e levado até o Ninho da Águia.

- Devia ter deixado que Lysa o atirasse por sua Porta da Lua. Minha pobre, querida, Sansa... por que alguém faria isso com ela?

- Por Winterfell - disse Robb de imediato. - Com Bran e Rickon mortos, Sansa é minha herdeira. Se algo acontecer comigo...

Catelyn agarrou com força a mão dele.

- Nada acontecerá a você. Nada. Eu não suportaria. Eles roubaram-me Ned e os seus irmãos. Sansa está casada, Arya, perdida, meu pai, morto... se algo de mal acontecer com você, eu enlouqueço, Robb. É tudo que me resta. É tudo que resta ao norte.

- Ainda não estou morto, mãe.

De repente, Catelyn sentiu-se repleta de terror.

- As guerras não têm de ser travadas até a última gota de sangue. - Até ela conseguia ouvir o desespero em sua voz. - Não seria o primeiro rei a dobrar o joelho, nem sequer o primeiro Stark.

A boca dele apertou-se.

- Não. Nunca.

- Não há vergonha nisso. Balon Greyjoy dobrou o joelho a Robert quando sua rebelião falhou. Torrhen Stark preferiu dobrar o joelho diante de Aegon, o Conquistador, a obrigar seu exército a enfrentar os incêndios.

- Aegon matou o pai do Rei Torrhen? - ele puxou suas mãos de entre as dela. - Nunca, já disse.

Agora está brincando de rapaz, não de rei.

- Os Lannister não precisam do Norte. Irão exigir homenagens e reféns, nada mais... e o Duende ficará com Sansa, façamos o que fizermos, portanto, já têm o seu refém. Os homens de ferro serão um inimigo mais implacável, garanto. Para ter alguma esperança de manter o Norte, os Greyjoy não podem deixar vivo nem um rebento da Casa Stark, para não terem quem dispute o direito ao trono com eles. Theon assassinou Bran e Rickon, agora basta-lhes matar você... sim, e Jeyne. Acha que Lorde Balon pode se dar ao luxo de deixá-la viver para lhe dar herdeiros?

O rosto de Robb estava frio.

- Foi por isso que libertou o Regicida? Para fazer a paz com os Lannister?

- Libertei Jaime por Sansa... e por Arya, se ainda estiver viva. Sabe disso. Mas se nutria alguma esperança de comprar também a paz, seria isso assim tão ruim?

- Sim - disse ele. - Os Lannister mataram meu pai.

- Acha que me esqueci disso?

- Não sei. Esqueceu?

Catelyn nunca batera nos filhos quando em fúria, mas naquele momento quase bateu em Robb. Precisou de um grande esforço para lembrar-se de como ele devia sentir-se assustado e só.

- Você é Rei no Norte, a escolha é sua. Só peço que pense no que eu disse. Os cantores põem nas alturas os reis que morrem valentemente em batalha, mas a sua vida vale mais do que uma canção. Pelo menos para mim, que fui quem a deu. - Baixou a cabeça. - Tenho licença para ir embora?

- Sim. - Ele virou as costas a ela e puxou a espada. Catelyn não saberia dizer o que o filho pretendia fazer com ela. Ali não havia inimigos, não havia ninguém com quem lutar. Só estavam lá os dois, por entre árvores altas e folhas caídas. Há batalhas que nenhuma espada pode ganhar, quis lhe dizer, mas temia que o rei estivesse surdo para palavras assim.

Horas mais tarde, estava costurando em seu quarto quando o jovem Rollam Westerling veio correndo chamá-la para o jantar. Ótimo, pensou Catelyn, aliviada. Não tinha certeza de que o filho a quereria lá, depois da discussão que tinham tido.

- Um escudeiro cumpridor - disse a Rollam com um ar grave. Bran teria sido igual

Se Robb parecia frio à mesa e Edmure mal-humorado, o Coxo Lothar compensava a ambos. Era um modelo de cortesia, recordando calorosamente Lorde Hoster, dando a Catelyn amáveis condolências pela perda de Bran e Rickon, elogiando Edmure pela vitória no Moinho de Pedra, e agradecendo a Robb pela-justiça rápida e segura" que fizera com Rickard Karstark. O irmão bastardo de Lothar, Walder Rivers, era bem diferente; um homem amargo e ríspido, com o rosto suspeito do velho Lorde Walder, falava raramente e dedicava a maior parte de sua atenção aos alimentos e às bebidas que eram colocados na sua frente.

Depois de proferidas todas as palavras vazias, a rainha e os demais Westerling pediram licença, os restos da refeição foram levados, e Lothar Frey pigarreou.

- Antes de passarmos ao assunto que nos trouxe aqui, há outra questão - disse com solenidade. - Uma questão grave, temo. Esperei que não coubesse a mim trazer essas notícias a vocês, mas aparentemente tem de ser assim. O senhor meu pai recebeu uma carta dos netos.

Catelyn tinha estado tão perdida em desgosto pelos seus que quase havia se esquecido dos dois Frey que aceitara criar. Mais, não, pensou. Pela misericórdia da Mãe, quantos golpes mais poderemos suportar? De algum modo sabia que as palavras que ouviria em seguida iriam mergulhar mais uma lâmina no seu coração.

- Os netos em Winterfell? - obrigou-se a perguntar. - Os meus protegidos?

- Walder e Walder, sim. Mas, no momento, eles encontram-se no Forte do Pavor, senhora. Dói-me contar-lhe isso, mas houve uma batalha. Winterfell foi incendiado.

- Incendiado? - a voz de Robb estava incrédula.

- Seus senhores do norte tentaram tomar o castelo de volta dos homens de ferro. Quando Theon Greyjoy viu que a conquista estava perdida, passou o archote no castelo.

- Não ouvimos dizer nada de batalha alguma - falou Sor Brynden.

- Os meus sobrinhos são novos, admito, mas estavam lá. O Grande Walder escreveu a carta, embora o primo também tenha assinado. Pelo relato deles a coisa foi sangrenta. Seu castelão foi morto. Sor Rodrik, era esse o nome dele?

- Sor Rodrik Cassei - disse Catelyn, atordoada. Aquela leal, corajosa e querida velha alma. Quase conseguia vê-lo puxando as ferozes suíças brancas. - E o resto do nosso povo?

- Temo que os homens de ferro tenham matado muitos deles na espada.

Sem palavras devido à fúria, Robb atirou um punho contra a mesa e virou o rosto para que os Frey não vissem suas lágrimas.

Mas a mãe viu. O mundo fica um pouco mais escuro a cada dia. Os pensamentos de Catelyn estenderam-se para a filha pequena de Sor Rodrik, Beth, para o incansável Meistre Luwin e o alegre Septão Chayle, Mikken em sua forja, Farlen e Palia nos canis, a Velha Ama e o simples Hodor. Sentiu o coração doente.

- Por favor, que não sejam todos.

- Não - disse o Coxo Lothar. - As mulheres e crianças esconderam-se, com os meus sobrinhos Walder e Walder entre elas. Com Winterfell em ruínas, os sobreviventes foram levados para o Forte do Pavor por um filho de Lorde Bolton.

- Um filho de Bolton? - a voz de Robb estava tensa.

Walder Rivers interveio.

- Um filho bastardo, creio.

- Não seria Ramsay Snow? Lorde Roose tem mais algum bastardo? - Robb franziu a testa. - Esse Ramsay era um monstro e um assassino, e morreu como um covarde. Ou pelo menos foi o que me disseram.

- Nada posso dizer quanto a isso. Em todas as guerras existe muita confusão. Muitas notícias falsas. Tudo que posso lhe dizer é que meus sobrinhos afirmam que foi o filho bastardo de Bolton quem salvou as mulheres de Winterfell e os pequenos. Agora todos os que restam estão em segurança no Forte do Pavor.

- Theon - disse subitamente Robb. - O que aconteceu com Theon Greyjoy? Foi morto?

O Coxo Lothar abriu as mãos.

- Isso não sei dizer, Vossa Graça. Walder e Walder não fazem menção ao destino dele. Lorde Bolton talvez saiba, caso tenha recebido notícias desse filho dele.

Sor Brynden disse:

- Certamente lhe perguntaremos.

- Vejo que estão todos perturbados. Lamento ter lhes trazido esse novo desgosto. Talvez devêssemos adiar nossa reunião até amanhã. Nosso assunto pode esperar até terem se recomposto...

- Não - disse Robb -, quero a questão resolvida.

Edmure assentiu.

- Eu também. Tem uma resposta para a nossa proposta, senhor?

- Tenho. - Lothar sorriu. - O senhor meu pai pede-me que diga a Vossa Graça que concordará com essa nova aliança de matrimônio entre as nossas casas e em renovar a sua lealdade ao Rei no Norte sob a condição de que a Graça Real peça perdão pelo insulto feito à Casa Frey, na sua real pessoa, cara a cara.

Um pedido de desculpas era um preço bastante pequeno a pagar, mas Catelyn sentiu imediato desagrado por aquela mesquinha condição imposta por Lorde Walder.

- Estou satisfeito - disse cautelosamente Robb. - Nunca foi meu desejo causar essa fratura entre nós, Lothar. Os Frey lutaram valentemente pela minha causa. Gostaria de tê-los de novo ao meu lado.

- É muita gentileza, Vossa Graça. Uma vez esses termos aceitos, fui instruído para oferecer ao Lorde Tully a mão de minha irmã, a Senhora Roslin, uma donzela de dezesseis anos. Roslin é a filha mais nova de meu pai e da Senhora Bethany da Casa Rosby, sua sexta esposa. Tem um temperamento afável e um dom para a música.

Edmure mexeu-se na cadeira.

- Não seria melhor se eu primeiro a conhecesse?

- Vai conhecê-la quando se casarem - disse bruscamente Walder Rivers, - A menos que Lorde Tully sinta necessidade de contar seus dentes primeiro.

Edmure conteve o gênio.

- Confiarei em sua palavra no que diz respeito aos seus dentes, mas seria agradável se pudesse contemplar o seu rosto antes de desposá-la.

- Tem de aceitá-la agora, senhor - disse Walder Rivers. - Caso contrário a oferta de meu pai será retirada.

O Coxo Lotar abriu as mãos.

- Meu irmão tem a falta de modos de um soldado, mas o que diz é verdade. É desejo do senhor meu pai que este casamento ocorra imediatamente.

- Imediatamente? - Edmure soou tão infeliz que Catelyn teve o indigno pensamento de que ele talvez alimentasse ideias de quebrar a promessa após o fim da guerra.

- Será que Lorde Walder esqueceu-se de que estamos travando uma guerra? - perguntou Brynden Peixe Negro num tom duro.

- Nem um pouco - disse Lothar. - É por isso que insiste que o casamento aconteça agora, sor. Os homens morrem na guerra, até aqueles que são jovens e fortes. O que aconteceria à nossa aliança se Lorde Edmure caísse antes de tomar Roslin como esposa? E também deve-se levar em conta a idade de meu pai. Já tem mais de noventa anos e não é provável que veja o fim dessas lutas. Seu nobre coração ficaria em paz se pudesse ver sua querida Roslin casada e em segurança antes de os deuses o levarem, para poder morrer sabendo que a garota teria um esposo forte para lhe dar carinho e protegê-la.

Todos nós queremos que Lorde Walder morra feliz. Catelyn estava ficando cada vez menos confortável com aquele acordo.

- Meu irmão acabou de perder o pai. Precisa de tempo para o luto.

- Roslin é uma garota alegre - disse Lothar. - Pode ser exatamente aquilo de que Lorde Edmure precisa para o ajudar a superar o desgosto.

- E meu pai ganhou aversão a noivados longos - acrescentou o bastardo Walder Rivers. - Não consigo imaginar o motivo.

Robb lançou-lhe um frio olhar.

- Compreendo o que quer dizer, Rivers. Por favor, deixem-nos a sós.

- Às ordens de Sua Graça. - O Coxo Lothar ergueu-se, e o irmão bastardo ajudou-o a manquejar para fora da sala.

Edmure estava fervendo de raiva.

- É quase como se estivessem dizendo que a minha palavra de nada vale. Por que devo deixar que aquela velha doninha escolha a minha noiva? Lorde Walder tem outras filhas além dessa Roslin. E netas também. Deviam ser oferecidas a mim as mesmas opções que a você. Sou o suserano dele, ele devia transbordar de alegria por eu estar disposto a me casar com qualquer uma delas.

- Ele é um homem orgulhoso e nós o ferimos - disse Catelyn.

- Que os Outros levem o seu orgulho! Não serei envergonhado em meu próprio salão. A minha resposta é não.

Robb lançou-lhe um olhar cansado.

- Não ordenarei que faça isso. Isso não. Mas, se recusar, Lorde Frey vai encarar como outra desfeita, e qualquer esperança de colocar a situação nos eixos será perdida.

- Não pode saber se será assim - insistiu Edmure. - O Frey me quer para uma de suas filhas desde o dia em que nasci. Não deixará que uma chance dessas escape daqueles seus dedos ambiciosos. Quando Lothar lhe levar a nossa resposta, ele retornará todo adulador e aceitará um noivado... com uma filha que eu escolher.

- Talvez, a seu tempo - disse Brynden Peixe Negro. - Mas será que podemos esperar enquanto Lothar anda para trás e para a frente com propostas e contrapropostas?

As mãos de Robb fecharam-se em punhos.

- Eu tenho de voltar para o Norte. Meus irmãos mortos, Winterfell incendiado, meu povo submetido à espada... só os deuses sabem o que esse bastardo de Bolton anda fazendo, ou se Theon ainda está vivo e à solta. Não posso ficar aqui sentado, à espera de um casamento que pode ou não acontecer.

- Tem de acontecer - disse Catelyn, embora sem alegria. - Não desejo mais do que você aguentar os insultos e as queixas de Walder Frey, irmão, mas não vejo aqui muitas opções. Sem esse casamento, a causa de Robb está perdida. Edmure, temos de aceitar.

- Temos de aceitar? - ecoou ele num tom impertinente. - Não a vejo se oferecendo para se tornar a nona Senhora Frey, Cat.

- A oitava Senhora Frey ainda está viva e bem de saúde, que eu saiba - respondeu ela. Felizmente. Caso contrário, poderia bem ter chegado a esse ponto, pelo que conhecia de Lorde Walder.

Peixe Negro disse:

- Eu sou o último homem nos Sete Reinos a poder dizer a alguém com quem se casar, sobrinho. No entanto, você disse algo a respeito de uma reparação por sua Batalha dos Vaus.

- Tinha em mente um tipo diferente de reparação. Combate singular com o Regicida. Sete anos de penitência como irmão suplicante. Atravessar o mar do poente a nado com as pernas amarradas. - Quando viu que ninguém sorria, Edmure atirou as mãos ao ar. - Que os Outros carreguem todos vocês! Muito bem, casarei com a garota. Como reparação.

Davos

Lorde Alester olhou vivamente para cima.

- Vozes - disse. - Está ouvindo, Davos? Alguém vem nos buscar.

- Lampreia - disse Davos. - Está na hora do jantar, ou perto disso. - Na noite anterior, Lampreia trouxera meio empadão de carne com bacon e também um jarro de hidromel. Só de pensar nisso sua barriga começou a roncar.

- Não, é mais de uma pessoa.

Ele tem razão. Davos ouvia pelo menos duas vozes, e passos se tornavam mais sonoros. Ficou em pé e dirigiu-se às barras.

Lorde Alester sacudiu a palha da roupa.

- O rei mandou me buscar. Ou então a rainha, sim, Selyse nunca me deixaria ficar aqui apodrecendo, logo eu, de seu próprio sangue.

Fora da cela, Lampreia surgiu com um molho de chaves na mão. Sor Axell Florent e quatro guardas seguiam-no de perto. Esperaram sob o archote enquanto Lampreia procurava a chave certa.

- Axell - disse Lorde Alester. - Pela bondade dos deuses. É o rei que manda me buscar, ou a rainha?

- Ninguém mandou buscá-lo, traidor - disse Sor Axell.

Lorde Alester recuou como se tivesse levado um tapa.

- Não, juro, não cometi nenhuma traição. Por que não me escuta? Se ao menos Sua Graça me deixasse explicar...

Lampreia enfiou uma grande chave de ferro na fechadura, virou-a e abriu a cela. As ferraduras enferrujadas guincharam num protesto.

- Você - disse ele a Davos. - Venha.

- Para onde? - Davos olhou para Sor Axell. - Diga-me a verdade, sor, pretendem me queimar?

- Mandaram chamá-lo. Consegue andar?

- Consigo. - Davos saiu da cela. Lorde Alester soltou um grito de consternação quando Lampreia voltou a fechar a porta com estrondo.

- Traga o archote - ordenou Sor Axell ao carcereiro. - Deixe o traidor nas trevas.

- Não - disse o irmão. - Axell, por favor, não leve a luz... que os deuses tenham piedade...

- Deuses? Só existem R'hllor e o Outro. - Sor Axell gesticulou categoricamente, e um de seus guardas puxou o archote da arandela e começou a subir a escada à frente dos demais.

- Está me levando até Melisandre? - perguntou Davos.

- Ela estará lá - disse Sor Axell. - Nunca está longe do rei. Mas é Sua Graça em pessoa quem manda buscá-lo.

Davos levou a mão ao peito, ao local onde a sua sorte estivera pendurada por uma correia, dentro de uma bolsa de couro. Desapareceu, lembrou-se, e as pontas de meus dedos com ela. Mas as mãos ainda eram suficientemente longas para se fechar em volta da garganta de uma mulher, pensou, especialmente uma garganta esguia como a dela.

E subiram, ascendendo em fila indiana pela escada em caracol. As paredes eram de pedra escura, áspera, fria ao toque. A luz das tochas seguia à frente e, nas paredes, as sombras dos homens marchavam ao lado deles. Na terceira volta, passaram por um portão de ferro que se abria para a escuridão, e por um outro na quinta volta. Davos calculou que, a essa altura, deviam estar perto da superfície, talvez já acima dela. A terceira porta a que chegaram era feita de madeira, mas continuaram a subir. Agora as paredes eram interrompidas por estreitas fendas para arqueiros, mas nenhuma brecha de luz do sol abria caminho através da espessura da pedra. Lá fora era noite.

Suas pernas doíam quando Sor Axell escancarou uma porta pesada e, com gestos, lhe indicou que passasse. Para lá da porta, uma ponte elevada de pedra fazia um arco sobre o vazio e levava à maciça torre central que tinha o nome de Tambor de Pedra. Um vento marítimo soprava incessantemente pelas arcadas que suportavam o telhado, e quando cruzou a ponte, Davos conseguiu sentir o cheiro da água salgada. Respirou fundo, enchendo os pulmões com o ar puro e frio. Vento e água, deem-me forças, orou. Uma enorme fogueira ardia no pátio lá embaixo, para manter afastados os terrores da escuridão, e os homens da rainha encontravam-se reunidos ao seu redor, cantando louvores ao seu novo deus vermelho.

Estavam no centro da ponte quando Sor Axell parou subitamente. Fez um gesto brusco com a mão, e seus homens afastaram-se para onde não pudessem ouvi-los.

- Se a escolha fosse minha, queimaria você com o meu irmão Alester - disse a Davos. - São ambos traidores.

- Diga o que quiser. Eu nunca trairia o Rei Stannis.

- Trairia. Trairá. Vejo em seu rosto. E também vi nas chamas. Rhllor abençoou-me com esse dom. Tal como à Senhora Melisandre, mostra-me o futuro no fogo. Stannis Baratheon irá sentar no Trono de Ferro. Eu vi. E sei o que tem de ser feito. Sua Graça precisa fazer de mim sua Mão, no lugar de meu irmão traidor. E você vai lhe dizer exatamente isso.

Ah, vou? Davos nada disse.

- A rainha pediu a minha nomeação - prosseguiu Sor Axell. - Até seu velho amigo de Lys, o pirata Saan, até ele diz o mesmo. Construímos juntos um plano, ele e eu. Mas Sua Graça não age. A derrota o corrói por dentro, um verme negro em sua alma. Cabe a nós, os que o amamos, mostrar-lhe o que fazer. Se é tão devotado à sua causa como diz, contrabandista, irá juntar sua voz à nossa. Diga-lhe que eu sou a única Mão de que ele necessita. Diga-lhe e, quando zarparmos, vou me assegurar de que você tenha um novo navio.

Um navio. Davos estudou o rosto do outro. Sor Axell tinha grandes orelhas Florent, muito semelhantes às da rainha. Pelos ralos cresciam nelas, tal como nas narinas; mais pelos brotavam em tufos e manchas por baixo de seu queixo duplo. Seu nariz era largo e a testa, proeminente, os olhos eram juntos e hostis. Ele antes me daria uma pira do que um navio, foi o que afirmou, mas se lhe fizer esse favor...

- Se acha que pode me trair - disse Sor Axell rogo que se lembre de que sou castelão de Pedra do Dragão há muito tempo. A guarnição é minha. Talvez não possa queimá-lo sem o consentimento do rei, mas quem dirá que não poderia sofrer uma queda? - apoiou uma mão carnuda na parte de trás do pescoço de Davos e empurrou-o com força contra a balaustrada da ponte, que chegava à cintura, e depois empurrou com um pouco mais de força, para obrigar sua cabeça a projetar-se sobre o pátio. - Está me ouvindo?

- Estou - disse Davos. E atreve-se a me chamar de traidor?

Sor Axell largou-o.

- Ótimo. - Sorriu. - Sua Graça aguarda. É melhor não o fazermos esperar.

Bem no topo do Tambor de Pedra, dentro da grande sala redonda chamada Câmara da Mesa Pintada, foram encontrar Stannis Baratheon em pé, atrás do objeto que dava nome ao salão, uma maciça prancha de madeira esculpida e pintada com a forma de Westeros, tal como havia sido nos tempos de Aegon, o Conquistador. Um braseiro de ferro estava ao lado do rei, com as brasas brilhando num tom laranja avermelhado. Quatro janelas altas e pontiagudas olhavam para norte, sul, leste e oeste. Para além delas ficava a noite e o céu estrelado. Davos ouvia o vento em movimento e, mais baixos, os sons do mar.

- Vossa Graça - disse Sor Axell -, segundo as suas ordens, trouxe o Cavaleiro das Cebolas.

- Estou vendo que sim. - Stannis usava uma túnica de lã cinza, um manto vermelho-escuro e um cinto simples de couro negro, de onde pendiam a espada e o punhal. Uma coroa de ouro vermelho com pontas em forma de chama rodeava sua testa. Sua aparência foi um choque. Parecia dez anos mais velho do que o homem que Davos tinha deixado em Ponta Tempestade quando zarpou para a Água Negra e para a batalha que seria a ruína deles. A barba do rei, aparada rente, incluía vários pelos grisalhos, e ele tinha perdido quinze quilos ou mais. Nunca foi um homem carnudo, mas, agora, os ossos moviam-se sob a sua pele como lanças, lutando para atravessá-la. Até a coroa parecia grande demais para a sua cabeça. Os olhos eram poços azuis perdidos em profundas covas, e conseguia-se ver a forma do crânio sob o rosto.

Mas quando viu Davos, um tênue sorriso roçou seus lábios.

- Então o mar devolveu-me meu cavaleiro do peixe e das cebolas.

- Devolveu, Vossa Graça. - Será que sabe que me tinha numa masmorra? Davos ajoelhou-se.

- Levante-se, Sor Davos - ordenou Stannis. - Senti sua falta, sor. Tenho necessidade de bons conselhos, e você nunca me deu outra coisa. Portanto, diga-me a verdade: qual é a pena por traição?

A palavra pairou no ar. Uma palavra medonha, pensou Davos. Estaria sendo pedido a ele que condenasse o companheiro de cela? Ou talvez a si próprio? Os reis conhecem melhor do que qualquer outro homem a pena por traição.

- Traição? - conseguiu enfim dizer, em voz fraca.

- De que mais chamaria renegar o rei e tentar roubar o trono que é dele por direito? Volto a perguntar: qual é a pena por traição, segundo a lei?

Davos não tinha alternativa exceto responder.

- A morte - disse. - A pena é a morte, Vossa Graça.

- Sempre foi assim. Eu não sou... um homem cruel, Sor Davos. Conhece-me. Conhece-me há muito tempo. Este decreto não é meu. Sempre foi assim, desde os tempos de Aegon, e mesmo antes. Daemon Blackfyre, os irmãos Toyne, o Rei Abutre, o Grande Meistre Hareth... traidores sempre pagaram com a vida... até Rhaenyra Targaryen. Era filha de um rei e mãe de mais dois, e no entanto teve uma morte de traidora por tentar usurpar a coroa do irmão. E a lei. Lei, Davos. Não crueldade.

- Sim, Vossa Graça. - Ele não fala de mim. Davos sentiu um momento de compaixão por seu companheiro de cela, lá embaixo, no escuro. Sabia que deveria manter silêncio, mas estava cansado e doente até o âmago, e ouviu-se dizer: - Senhor, Lorde Florent não pretendeu trair.

- Os contrabandistas têm outro nome para o ato? Fiz dele Mão, e ele teria vendido meus direitos por uma tigela de creme de ervilhas. Até lhes teria dado Shireen. Minha única filha, que ele teria casado com um bastardo nascido do incesto. - A voz do rei estava carregada de fúria. - Meu irmão tinha um dom para inspirar lealdade. Até nos adversários. Em Solarestival ganhou três batalhas num só dia, e trouxe Lorde Grandison e Lorde Cafferen para Ponta Tempestade como prisioneiros. Pendurou seus estandartes como troféus no salão. Os corços brancos de Cafferen estavam manchados de sangue, e o leão adormecido de Grandison encontrava-se quase rasgado em dois. E, no entanto, eles passavam noites sentados por baixo desses estandartes, bebendo e festejando com Robert. Até os levou à caça. "Esses homens queriam entregá-lo a Aerys para ser queimado", eu disse-lhe depois de vê-los arremessando machados no pátio. "Não devia pôr machados em suas mãos." Robert limitou-se a rir. Eu teria atirado Grandison e Cafferen numa masmorra, mas ele transformou-os em amigos. Lorde Cafferen morreu no Castelo de Vaufreixo, abatido por Randyll Tarly enquanto lutava por Robert. Lorde Grandison foi ferido no Tridente e morreu em decorrência disso um ano mais tarde. Meu irmão fez com que o amassem, mas, ao que parece, eu só inspiro traição. Até no meu próprio sangue e família. Irmão, avô, primos, tio da esposa...

- Vossa Graça - disse Sor Axell -, eu imploro, dê-me a oportunidade de lhe provar que nem todos os Florent são assim tão fracos.

- Sor Axell gostaria de me levar a retomar a guerra - disse o Rei Stannis a Davos. - Os Lannister acham que estou acabado e derrotado, e os senhores meus vassalos abandonaram-me, quase todos. Até Lorde Estermont, pai de minha própria mãe, dobrou o joelho a Joffrey. Os poucos homens leais que me restam vão perdendo o ânimo. Desperdiçam seus dias bebendo e jogando e lambem as feridas como vira-latas enxotados.

- A batalha voltará a incendiar seus corações, Vossa Graça - disse Sor Axell. - A derrota é uma doença, e a vitória é a cura.

- Vitória. - A boca do rei retorceu-se. - Há vitórias e vitórias, sor. Mas conte o seu plano a Sor Davos. Quero ouvir o que ele pensa do que você propõe.

Sor Axell virou-se para Davos, com uma expressão no rosto bem próxima à expressão que o orgulhoso Lorde Belgrave deve ter feito no dia em que o Rei Baelor, o Abençoado, lhe ordenou que lavasse os pés ulcerados do pedinte. Apesar disso, obedeceu.

O plano que Sor Axell concebera com Salladhor Saan era simples. A algumas horas de viagem de Pedra do Dragão estava a Ilha da Garra, sede marítima ancestral da Casa Celtigar. Lorde Ardrian Celtigar lutara sob o coração flamejante na Água Negra, mas, depois de capturado, não perdeu tempo até passar para o lado de Joffrey. Ainda permanecia em Porto Real.

- Com medo demais da fúria de Sua Graça para se aproximar de Pedra do Dragão, sem dúvida - declarou Sor Axell. - E sensatamente. O homem traiu seu legítimo rei.

Sor Axell propunha usar a frota de Salladhor Saan e os homens que escaparam da Água Negra - Stannis ainda tinha cerca de mil e quinhentos homens em Pedra do Dragão, mais de metade dos quais pertenciam aos Florent - a fim de exigir compensação pela deserção de Lorde Celtigar. A Ilha da Garra tinha uma guarnição leve, e dizia-se que o castelo estava recheado de tapetes de Myr, vidro volanteno, baixelas de ouro e prata, taças cravejadas de jóias, magníficos falcões, um machado de aço valiriano, um berrante que era capaz de invocar monstros vindos das profundezas, baús de rubis, e mais vinho do que um homem conseguiria beber em cem anos. Embora o Celtigar tivesse mostrado ao mundo um rosto avarento, nunca impusera limites ao seu próprio conforto.

- Sugiro que imponha a tocha ao seu castelo e a espada ao seu povo - concluiu Sor Axell. - Que deixe a Ilha da Garra numa desolação de cinzas e ossos, adequada apenas para gralhas pretas, para que o reino veja o destino que aguarda aqueles que se deitam na cama dos Lannister.

Stannis ouviu em silêncio a récita de Sor Axell, mexendo lentamente o maxilar de um lado para o outro. Quando terminou de ouvir, disse:

- Creio que pode ser realizado. O risco é pequeno. Joffrey não tem força no mar até que Lorde Redwyne zarpe da Árvore. O saque pode servir para manter leal esse pirata liseno do Salladhor Saan durante algum tempo. A Ilha da Garra em si não tem valor algum, mas sua queda pode servir de aviso ao Lorde Tywin que a minha causa ainda não está acabada. - O rei virou-se de novo para Davos. - Fale a verdade, sor. O que acha da proposta de Sor Axell?

Fale a verdade, sor. Davos lembrou-se da cela escura que dividira com Lorde Alester, lembrou-se de Lampreia e de Mingau. Pensou nas promessas que Sor Axell havia feito na ponte por cima do pátio. Um navio ou um empurrão, o que será? Mas aquele que perguntava era Stannis.

- Vossa Graça - disse lentamente -, acho uma loucura... sim, e uma covardia.

- Covardia? - Sor Axell quase gritou. - Ninguém me chama de covarde perante meu rei!

- Silêncio - ordenou Stannis. - Sor Davos, prossiga, quero ouvir suas razões.

Davos virou-se para encarar Sor Axell.

- Diz que devíamos mostrar ao reino que ainda não estamos acabados. Dar um golpe. Sim, fazer a guerra... mas com que inimigo? Não vai encontrar nenhum Lannister na Ilha da Garra.

- Encontraremos traidores - disse Sor Axell -, se bem que eu possa até encontrar alguns mais perto de casa. Até mesmo nesta sala.

Davos ignorou a provocação.

- Não duvido de que Lorde Celtigar tenha dobrado o joelho ao jovem Joffrey. É um homem velho e acabado, que nada mais deseja do que terminar seus dias no seu castelo, bebendo seu bom vinho de uma de suas taças cravejadas de jóias. - Voltou-se novamente para Stannis. - E, no entanto, veio quando o chamou, senhor. Veio, com seus navios e suas espadas. Esteve ao seu lado em Ponta Tempestade quando Lorde Renly caiu sobre nós, e seus navios subiram a Água Negra. Seus homens lutaram pelo senhor, mataram pelo senhor, arderam pelo senhor. A Ilha da Garra tem fracas defesas, sim. É defendida por mulheres, crianças e velhos. E por quê? Porque seus maridos, filhos e pais morreram na Água Negra, eis o porquê. Morreram nos remos, ou com espadas nas mãos, lutando sob as nossas bandeiras. E, no entanto, Sor Axell propõe que ataquemos as casas que eles deixaram para trás, que violemos suas viúvas e que submetamos seus filhos à espada. Essas pessoas não são traidoras...

- Mas são - insistiu Sor Axell. - Nem todos os homens de Celtigar foram mortos na Água Negra. Centenas foram capturados com o seu senhor e dobraram o joelho quando ele o fez.

- Quando ele o fez - repetiu Davos. - Eram seus homens. Estavam juramentados a ele. Que alternativa foi dada a eles?

- Todo homem tem alternativas. Podiam ter se recusado. Alguns se recusaram e morreram por isso. Mas morreram honestos e leais.

- Alguns homens são mais fortes do que outros. - Era uma resposta fraca, e Davos sabia disso. Stannis Baratheon era um homem com determinação de ferro, que nem compreendia nem perdoava a fraqueza nos outros. Estou perdendo, pensou, desesperando-se.

- É dever de todos os homens permanecerem leais ao seu legítimo rei, mesmo se o senhor que servem se revela falso - declarou Stannis num tom que não admitia discussões.

Um desvario desesperado dominou Davos, uma temeridade próxima da loucura.

- Tal como o senhor permaneceu leal ao Rei Aerys quando seu irmão convocou os vassalos? - deixou escapar.

Seguiu-se um pesado silêncio, até que Sor Axell gritou:

- Traição! - e desembainhou o punhal. - Vossa Graça, ele diz essa infâmia na sua cara!

Davos ouvia Stannis rangendo os dentes. Uma veia latejava, azul e inchada, na testa do rei. Os olhos dos dois encontraram-se.

- Guarde essa faca, Sor Axell. E deixe-nos.

- Se Vossa Graça desejar...

- Desejo que vá embora - disse Stannis. - Saia da minha presença e mande-me Melisandre.

- Às suas ordens. - Sor Axell voltou a embainhar a faca, fez uma reverência e apressou-se em direção à porta. Suas botas ressoavam contra o chão, furiosas.

- Sempre abusou de minha indulgência - preveniu-o Stannis quando ficaram sozinhos. - Posso encurtar sua língua tão facilmente como encurtei seus dedos, contrabandista.

- Eu pertenço ao senhor, Vossa Graça. Por isso a língua é sua, para fazer com ela o que quiser.

- Pois é - disse ele, mais calmo. - E eu quero que ela fale a verdade. Mesmo que a verdade às vezes tenha um gosto amargo. Aerys? Se soubesse... essa foi uma escolha difícil. Meu sangue ou meu suserano. Meu irmão ou meu rei. - Fez uma careta. - Alguma vez viu o Trono de Ferro? As farpas no encosto, as fitas de aço retorcido, as pontas espetadas de espadas e facas, todas emaranhadas e derretidas? Não é um assento confortável, sor. Aerys cortava-se tantas vezes que os homens começaram a chamá-lo de Rei Crosta, e Maegor, o Cruel, foi assassinado nessa cadeira. Por essa cadeira, segundo a versão que alguns contam. Não é assento em que um homem possa descansar descontraído. Muitas vezes me pergunto por que será que meus irmãos o desejaram tão desesperadamente.

- Então por que é que o senhor o deseja? - perguntou-lhe Davos.

- Não é questão de desejo. O trono é meu, como herdeiro de Robert. Essa é a lei. Depois de mim, deve passar para a minha filha, a menos que Selyse finalmente me dê um filho. - Passou três dedos levemente pela mesa, sobre as camadas de verniz liso e duro, escurecido pela idade. - Eu sou rei. Os quereres não entram nisso. Tenho um dever para com a minha filha. Para com o reino. Até para com Robert. Ele gostava pouco de mim, eu sei, mas era meu irmão. A mulher Lannister pôs os chifres nele e fez dele um bobo vestido de xadrez. Até pode tê-lo assassinado, tal como assassinou Jon Arryn e Ned Stark. Para crimes assim tem de haver justiça. Começando por Cersei e suas abominações. Mas só para começar. Pretendo esfregar aquela corte até ficar limpa. Como Robert devia ter feito, depois do Tridente, Sor Barristan disse-me uma vez que a podridão no reinado do Rei Aerys começou com Varys. O eunuco nunca devia ter sido perdoado. Tal como o Regicida. No mínimo, Robert devia ter arrancado de Jaime o manto branco e enviado o homem para a Muralha, como Lorde Stark lhe pediu. Em vez disso, deu ouvidos a Jon Arryn. Eu ainda estava em Ponta Tempestade, sob cerco e sem ser consultado. - Virou-se abruptamente, para lançar a Davos um olhar duro e astuto. - E agora a verdade. Por que quis assassinar a Senhora Melisandre?

Então ele sabe. Davos não podia mentir.

- Quatro de meus filhos arderam na Água Negra. Ela entregou-os às chamas.

- Está sendo injusto com Melisandre. Aqueles incêndios não foram obra dela. Amaldiçoe o Duende, amaldiçoe os piromantes, amaldiçoe aquele idiota do Florent que avançou com a minha frota para dentro das mandíbulas de uma armadilha. Ou amaldiçoe-me por meu orgulho obstinado, por mandá-la embora quando mais precisava dela. Mas Melisandre não. Ela continua sendo minha fiel servidora.

- Meistre Cressen era seu fiel servidor. Ela matou-o, tal como matou Sor Cortnay Penrose e seu irmão Renly.

- Agora soa como um tolo - protestou o rei. - Ela viu o fim de Renly nas chamas, sim, mas não desempenhou nele um papel maior do que eu. A sacerdotisa estava na minha companhia. Seu Devan poderá confirmar. Pergunte a ele, se duvida de mim. Ela teria poupado Renly se tivesse podido. Foi Melisandre quem me pediu para me encontrar com ele e lhe dar uma última chance de reparar sua traição. E foi Melisandre quem me disse para mandar buscar você quando Sor Axell quis entregá-lo a Rhllor. - Deu um fino sorriso. - Isso o surpreende?

- Sim. Melisandre sabe que não sou amigo dela ou de seu deus vermelho.

- Mas é meu amigo. Ela também sabe disso. - Fez sinal para que Davos se aproximasse. - O garoto está doente. Meistre Pylos tem andado sangrando-o.

- O garoto? - os pensamentos de Davos rumaram ao seu Devan, o escudeiro do rei. - Meu filho, senhor?

- Devan? Bom garoto. Tem nele muito de você. É o bastardo de Robert que está doente, o garoto que encontramos em Ponta Tempestade.

Edric Storm.

- Falei com ele no Jardim de Aegon.

- Tal como ela quis. Tal como ela viu. - Stannis suspirou. - O garoto encantou-o? Tem esse dom. Tirou isso do pai, com o sangue. Sabe que é filho de um rei, mas prefere esquecer que é ilegítimo. E adora Robert, tal como Renly adorava quando era novo. O meu real irmão se fazia de pai amigo durante as suas visitas a Ponta Tempestade, e havia presentes... espadas, pôneis e mantos forrados de peles. Trabalho do eunuco, todos eles. O garoto escrevia para a Fortaleza Vermelha, cheio de agradecimentos, e Robert ria e perguntava a Varys o que tinha enviado naquele ano. Renly não era melhor. Deixou a educação do garoto a castelões e meistres, e todos eles caíram vítimas de seu encanto. Penrose preferiu morrer a entregá-lo. - O rei rangeu os dentes. - Isso ainda me enfurece. Como ele pôde pensar que eu iria fazer mal ao garoto? Escolhi Robert, não escolhi? Quando esse duro dia chegou. Escolhi o sangue em detrimento da honra.

Ele não usa o nome do garoto. Isso deixou Davos muito desconfortável.

- Espero que o jovem Edric se recupere rapidamente.

Stannis sacudiu uma mão, colocando de lado a sua preocupação.

- É um resfriado, nada mais. Ele tosse, tem arrepios e febre. Em breve, Meistre Pylos irá deixá-lo bom. Em si mesmo, o garoto não é nada, entende? Mas nas veias dele corre o sangue de meu irmão. Há poder no sangue de um rei, diz ela.

Davos não teve de perguntar quem ela era.

Stannis tocou a Mesa Pintada.

- Olhe-o, Cavaleiro das Cebolas. Meu reino de direito. Meu Westeros. - Passou uma mão pelo mapa. - Essa conversa de Sete Reinos é uma loucura. Aegon compreendeu isso há trezentos anos, quando estava onde nos encontramos agora. Pintaram esta mesa por ordem dele. Pintaram rios e baías, colinas e montanhas, castelos, cidades e vilas francas, lagos, pântanos e florestas... mas nenhuma fronteira. É tudo um só. Um reino, para que um rei o governe sozinho.

- Um rei - concordou Davos. - Um rei significa a paz.

- Eu trarei justiça a Westeros. Algo que Sor Axell compreende tão mal quanto compreende a guerra. A Ilha da Garra não me traria nada... e seria uma coisa maligna, como você disse. Celtigar tem de pagar o preço da traição pessoalmente. E quando eu subir ao trono, pagará. Cada homem colherá o que semeou, do mais alto dos senhores ao mais baixo rato de sarjeta. E alguns perderão mais do que as pontas dos dedos, garanto. Fizeram o meu reino sangrar, e não me esqueço disso. - O Rei Stannis afastou-se da mesa. - De joelhos, Cavaleiro das Cebolas.

- Vossa Graça?

- Pelas cebolas e pelo peixe, fiz-lhe um dia cavaleiro. Por isso, estou decidido a fazê-lo senhor.

Isso? Davos não entendia.

- Sinto-me satisfeito por ser seu cavaleiro, Vossa Graça. Não saberia como começar a ser senhorial.

- Ótimo. Ser senhorial é ser falso. Aprendi duramente essa lição. Agora, ajoelhe-se. É o seu rei que o ordena.

Davos ajoelhou-se e Stannis puxou a espada. Melisandre chamara-a de Luminífera; a espada vermelha dos heróis, arrancada dos fogos onde os sete deuses eram consumidos. A sala pareceu ficar mais luminosa quando a lâmina saiu de dentro da bainha. O aço possuía brilho; ora laranja, ora amarelo, ora vermelho. O ar tremeluzia em volta dela, e nenhuma jóia algum dia cintilou tão vivamente. Mas quando Stannis tocou com ela no ombro de Davos, este não a sentiu diferente de qualquer outra espada.

- Sor Davos da Casa Seaworth - disse o rei é meu verdadeiro e honesto vassalo, agora e para sempre?

- Sou, Vossa Graça.

- E jura servir-me com lealdade todos os seus dias, dar-me conselhos honestos e obediência rápida, defender os meus direitos e o meu reino contra todos os adversários, em grandes e pequenas batalhas, proteger o meu povo e punir os inimigos?

- Sim, Vossa Graça.

- Então volte a levantar-se, Davos Seaworth, e levante-se como Senhor da Mata de Chuva, Almirante do Mar Estreito e Mão do Rei.

Por um momento, Davos ficou atordoado demais para se mexer. Hoje de manhã acordei em sua masmorra.

- Vossa Graça, não pode... eu não sou o homem certo para ser Mão do Rei.

- Não há homem mais certo. - Stannis embainhou Luminífera, ofereceu a mão a Davos e ajudou-o a se levantar.

- Sou de baixo nascimento - recordou-lhe. - Um contrabandista elevado a nobre. Seus senhores nunca me obedecerão.

- Então arranjaremos novos senhores.

- Mas... eu não sei ler... nem escrever.

- Meistre Pylos pode ler por você. Quanto a escrever, meu último Mão escreveu tanto que sua cabeça saiu de cima de seus ombros. Tudo que lhe peço é aquilo que sempre me deu. Honestidade. Lealdade. Serviço.

- Certamente haverá alguém melhor... algum grande senhor...

Stannis fungou.

- Bar Emmon, aquele rapaz? Meu avô sem fé? Celtigar abandonou-me, o novo Velaryon tem seis anos, e o novo Sunglass zarpou para Volantis depois de eu queimar seu irmão. - Fez um gesto irritado. - Restam alguns bons homens, é verdade. Sor Gilbert Farring ainda controla Ponta Tempestade em meu nome, com duzentos homens leais. Lorde Morrigen, o Bastardo de Nocticantiga, o jovem Chyttering, meu primo Andrew... mas não confio em nenhum deles como confio em você, senhor da Mata de Chuva. Será minha Mão. É o senhor que eu quero ao meu lado para a batalha.

Outra batalha será o fim de todos nós, pensou Davos. Lorde Mester viu isso com bastante clareza.

- Vossa Graça pediu conselhos honestos. Então honestamente... faltam-nos as forças para outra batalha contra os Lannister.

- Sua Graça está falando da grande batalha - disse uma voz de mulher, enriquecida com o sotaque do leste. Melisandre encontrava-se junto à porta, vestida com suas sedas vermelhas e seus cintilantes cetins, com um prato de prata tampado nas mãos. - Essas guerrinhas não são mais do que uma briga de crianças diante daquilo que está por vir. Aquele cujo nome não pode ser proferido está reunindo o seu poder, Davos Seaworth, um poder impiedoso, maligno e poderoso para lá de todas as medidas. Em breve chegará o frio, e a noite que nunca termina. - Apoiou o prato de prata na Mesa Pintada. - A não ser que homens verdadeiros encontrem a coragem de lutar contra ele. Homens cujo coração seja fogo.

Stannis fitou o prato de prata.

- Ela mostrou-me, Lorde Davos. Nas chamas.

- Viu isso, senhor? - mentir sobre uma coisa dessas não seria algo que Stannis Baratheon faria.

- Com meus próprios olhos. Depois da batalha, quando estava perdido em desespero, a Senhora Melisandre pediu-me para fitar o fogo da lareira. A chaminé puxava o ar com força, e pedacinhos de cinzas erguiam-se do fogo. Eu fitei-os, sentindo-me um pouco tolo, mas ela me pediu para olhar mais fundo, e... as cinzas eram brancas, erguendo-se na corrente ascendente de ar, mas de repente era como se estivessem caindo. Neve, pensei. Então as fagulhas no ar pareceram formar um círculo, para se transformarem em um anel de archotes, e eu estava olhando através do fogo para um monte alto qualquer numa floresta. As brasas tinham se transformado em homens de negro atrás dos archotes, e havia silhuetas em movimento através da neve. Apesar de todo o calor do fogo, senti um frio tão terrível que me arrepiei, e quando isso aconteceu, a visão desapareceu, e o fogo era de novo apenas um fogo. Mas o que vi foi real, apostaria nisso o meu reino.

- E foi o que fez - disse Melisandre.

A convicção na voz do rei assustou Davos profundamente.

- Um monte numa floresta... silhuetas na neve... eu não...

- Significa que a batalha começou - disse Melisandre. - A areia corre agora mais depressa pela ampulheta, e o tempo do homem sobre a terra está quase no fim. Temos de agir com ousadia, senão toda a esperança estará perdida. Westeros tem de se unir sob seu único rei verdadeiro, o príncipe que foi prometido, Senhor de Pedra do Dragão e escolhido de R'hllor.

- Então R'hllor faz estranhas escolhas. - O rei fez uma careta, como quem saboreia algo desagradável. - Por que eu e não meus irmãos? Renly e seu pêssego. Em meus sonhos, vejo o sumo escorrendo da boca dele, e o sangue da garganta. Se tivesse cumprido seu dever para com o irmão, teríamos esmagado Lorde Tywin. Uma vitória de que até Robert poderia se orgulhar. Robert... - Seus dentes rangeram, de um lado para o outro. - Ele também aparece em meus sonhos. Rindo. Bebendo. Vangloriando-se. Eram as coisas que ele fazia melhor. Isso, e lutar. Nunca o venci em nada. O Senhor da Luz devia ter feito de Robert o seu campeão. Por que eu?

- Porque é um homem reto - disse Melisandre.

- Um homem reto. - Stannis tocou com um dedo a bandeja de prata tampada. - Com sanguessugas.

- Sim - falou Melisandre -, mas tenho de lhe dizer de novo, esta não é a maneira certa.

- Jurou que daria certo. - O rei parecia zangado.

- Dará... e não dará.

- Ou uma coisa ou a outra.

- Ambas.

- Fale com sentido comigo, mulher.

- Quando os fogos falarem mais claramente, o mesmo farei eu. Há verdade nas chamas, mas nem sempre é fácil ver. - O grande rubi em sua garganta bebia fogo do clarão do braseiro. - Dê-me o garoto, Vossa Graça. É a maneira mais segura. A melhor maneira. Dê-me o garoto e acordarei o dragão de pedra.

- Já lhe disse que não.

- Ele é apenas um garoto ilegítimo, contra todos os garotos de Westeros e todas as garotas também. Contra todas as crianças que podem nunca chegar a nascer, em todos os reinos do mundo.

- O garoto é inocente.

- O garoto conspurcou sua cama nupcial e, se assim não fosse, certamente teria filhos seus. Ele envergonhou-o.

- Quem fez isso foi Robert. Não o garoto. Minha filha tornou-se amiga dele. E ele é do meu próprio sangue.

- É do sangue de seu irmão - disse Melisandre. - Do sangue de um rei. Só o sangue de um rei pode acordar o dragão de pedra.

Stannis rangeu os dentes.

- Não quero ouvir mais nada sobre isso. Os dragões acabaram-se. Os Targaryen tentaram trazê-los de volta meia dúzia de vezes. E fizeram papel de bobos, ou de cadáveres. Cara-Malhada é o único bobo de que precisamos neste rochedo esquecido por deus. Você tem as sanguessugas. Faça o seu trabalho.

Melisandre inclinou rigidamente a cabeça e disse:

- Às ordens de meu rei. - Enfiou a mão direita na manga esquerda e atirou um punhado de pó dentro do braseiro. Os carvões rugiram. Enquanto chamas pálidas se contorciam por cima deles, a mulher vermelha pegou o prato de prata e levou-o ao rei. Davos viu-a levantar a tampa. Por baixo dela encontravam-se três grandes sanguessugas negras, inchadas com sangue.

O sangue do garoto, soube Davos. Sangue de um rei.

Stannis estendeu uma mão, e seus dedos fecharam-se em volta de uma das sanguessugas.

- Diga o nome - ordenou Melisandre.

A sanguessuga retorcia-se na mão do rei, tentando se prender a um de seus dedos.

- O usurpador - disse ele. - Joffrey Baratheon. - Quando atirou a sanguessuga no fogo, ela enrolou-se entre os carvões como uma folha de outono e incendiou-se.

Stannis agarrou a segunda.

- O usurpador - declarou, dessa vez mais alto. - Balon Greyjoy. - Deu-lhe um piparote ligeiro para dentro do braseiro, e o corpo do animal abriu-se e crepitou. O sangue jorrou de seu interior, silvando e fumegando.

A última sanguessuga estava na mão do rei. Estudou aquela por um momento, enquanto se contorcia entre seus dedos.

- O usurpador - disse por fim. - Robb Stark. - E atirou-a para as chamas.

Jaime

A casa de banhos de Harrenhal era uma sala sombria, repleta de vapor e com teto baixo, cheia de grandes banheiras de pedra. Quando fizeram Jaime entrar, foram encontrar Brienne sentada numa delas, esfregando o braço quase furiosamente.

- Com menos força, garota - gritou ele. - Assim faz sair a pele. - Ela deixou cair a escova e cobriu os peitos com mãos tão grandes quanto as de Gregor Clegane. Os pequenos botões pontiagudos que estava tão decidida a esconder teriam parecido mais naturais em qualquer garotinha de dez anos do que em seu peito amplo e musculoso.

- O que está fazendo aqui? - exigiu saber.

- Lorde Bolton insiste que eu jante com ele, mas esqueceu de convidar as minhas pulgas. - Jaime puxou o guarda com a mão esquerda. - Ajude-me a tirar estes farrapos fedorentos. - Com apenas uma mão nem sequer era capaz de desatar os calções. O homem obedeceu de má vontade, mas obedeceu. - Agora deixe-nos - disse Jaime quando sua roupa já jazia numa pilha no chão úmido de pedra. - A Senhora de Tarth não quer ralé como você olhando de boca aberta para os peitos dela. - Apontou com o coto para a mulher com rosto de machadinha que prestava assistência a Brienne. - Você também. Espere lá fora. Só há essa porta, e a garota é grande demais para tentar subir por uma chaminé.

O hábito de obediência estava profundamente entranhado. A mulher seguiu o guarda para fora, deixando a casa de banhos para os dois. As banheiras tinham tamanho suficiente para seis ou sete pessoas, à moda das Cidades Livres, e Jaime entrou na da moça, desajeitado e lento. Tinha ambos os olhos abertos, embora o direito ainda estivesse um pouco inchado, apesar das sanguessugas de Qyburn. Jaime sentia-se com cento e nove anos, o que era bastante melhor do que se sentia quando tinha chegado a Harrenhal.

Brienne encolheu-se para longe dele.

- Há outras banheiras.

- Esta está bastante boa para mim. - Imergiu-se na água fumegante, com cautela, até o queixo. - Não tenha medo, garota. Suas coxas estão roxas e verdes e não estou interessado no que tem entre elas. - Teve de apoiar o braço direito na borda da banheira, pois Qyburn prevenira-o para manter o linho seco. Conseguia sentir a tensão desaparecendo de suas pernas, mas a cabeça começou a girar. - Se eu desmaiar, puxe-me para fora. Nunca nenhum Lannister se afogou no banho, e não pretendo ser o primeiro.

- Por que me importaria se morresse?

- Prestou um voto solene. - Sorriu quando um rubor subiu pela grossa coluna branca que era o pescoço da garota. Ela virou as costas para ele. - Continua se fazendo de donzela recatada? O que é que você acha que eu ainda não vi? - procurou às apalpadelas a escova que ela tinha deixado cair, encontrou-a com os dedos e começou a se esfregar sem método. Até isso era difícil e incômodo. Minha mão esquerda não presta para nada.

Apesar de tudo, a água escureceu à medida que a sujeira incrustada que tinha na pele foi se dissolvendo. A garota manteve as costas voltadas para ele, com os músculos de seus grandes ombros corcovados e duros.

- Ver o meu coto aflige-a assim tanto? - perguntou Jaime. - Deveria estar satisfeita. Perdi a mão com que matei o rei. A mão que atirou o pequeno Stark daquela torre. A mão que enfiava entre as coxas de minha irmã para deixá-la molhada. - Pôs o coto diante do rosto dela. - Não admira que Renly tenha morrido, com você a guardá-lo.

Brienne ficou em pé de um salto, como se Jaime tivesse batido nela, fazendo com que uma onda de água quente percorresse a banheira. Jaime obteve um vislumbre do espesso matagal louro que a garota tinha entre as coxas quando ela saiu da banheira. Era muito mais peluda do que sua irmã. Absurdamente, sentiu o pau se agitar dentro da água. Agora sei que estou há tempo demais longe de Cersei. Desviou os olhos, perturbado pela resposta de seu corpo.

- Isso foi indigno - murmurou. - Fui estropiado e estou amargo. Perdoe-me, garota. Protegeu-me tão bem quanto qualquer homem poderia proteger, e melhor do que a maioria.

Ela enrolou sua nudez numa toalha.

- Está zombando de mim?

Aquilo voltou a enfurecê-lo.

- Terá uma cabeça tão dura como a muralha de um castelo? Isso foi um pedido de desculpas. Estou farto de lutar com você. O que diz de fazermos uma trégua?

- As tréguas constroem-se com base na confiança. Quer que eu confie...

- No Regicida, sim. O perjuro que assassinou o pobrezinho do Aerys Targaryen. - Jaime fungou. - Não é de Aerys que me arrependo, é de Robert. "Ouvi dizer que chamam você de Regicida", disse-me no banquete de sua coroação. "Que não pense em fazer disso um hábito." E riu. Por que é que ninguém chama Robert de perjuro? Ele despedaçou o reino, e no entanto eu é que tenho merda no lugar da honra.

- Robert fez o que fez por amor. - A água escorria pelas pernas de Brienne e formava uma poça sob seus pés.

- Robert fez o que fez por orgulho, uma boceta e um rosto bonito. - Fechou a mão em punho... ou teria fechado, se tivesse mão. A dor atravessou seu braço, cruel como uma gargalhada.

- Ele foi à guerra para salvar o reino - insistiu ela.

Para salvar o reino.

- Sabia que meu irmão incendiou a Torrente da Água Negra? O fogovivo arde na água. Aerys teria tomado banho nele se tivesse se atrevido. Todos os Targaryen eram loucos por fogo. - Jaime sentia-se entontecido. Será por causa do calor que faz aqui, do veneno que tenho no coração, dos restos da febre? Não sou eu mesmo. Recostou-se até que a água chegou na altura de seu queixo. - Sujei o meu manto branco... nesse dia usava a armadura dourada, mas...

- Armadura dourada? - a voz dela soava distante, tênue.

Jaime flutuava no calor, na memória.

- Depois que grifos dançantes perdeu a Batalha dos Sinos, Aerys exilou-o. - Por que estou dizendo isso a esta criança absurdamente feia? - Tinha finalmente compreendido que Robert não era um mero senhor fora da lei que pudesse ser esmagado ao seu bel-prazer, mas sim a maior ameaça que a Casa Targaryen havia enfrentado desde Daemon Blackfyre. O rei rudemente lembrou Lewyn Martell de que tinha Elia em seu poder e ordenou-lhe que fosse comandar os dez mil dorneses que subiam a estrada do rei. Jon Darry e Barristan Selmy cavalgaram para o Septo de Pedra a fim de reunirem todos os homens dos grifos que conseguissem, e o Príncipe Rhaegar retornou do sul e persuadiu o pai a engolir o orgulho e mandar chamar meu pai. Mas nenhum corvo voltou de Rochedo Casterly, e isso deixou o rei ainda mais assustado. Via traidores em todo lugar, e Varys estava sempre lá para apontar algum que ele pudesse ter deixado escapar. Assim, Sua Graça ordenou que seus alquimistas escondessem reservas de fogovivo por todo Porto Real. Sob o Septo de Baelor e os casebres da Baixada das Pulgas, por baixo de estábulos e armazéns, em todos os sete portões, até mesmo nos porões da própria Fortaleza Vermelha.

"Tudo foi feito no maior segredo por um punhado de mestres piromantes. Nem sequer confiaram em seus próprios acólitos para ajudar. Os olhos da rainha já estavam fechados havia anos, e Rhaegar andava ocupado organizando um exército. Mas o novo ocupante do cargo de Mão de Aerys, o da maça e punhal, não era inteiramente burro, e com Rossart, Belis e Garigus entrando e saindo noite e dia, começou a desconfiar. Chelsted, era esse o nome dele, Lorde Chelsted. "O nome veio-lhe de súbito à memória, com o contar da história." Eu julgava o homem covarde, mas no dia em que confrontou Aerys encontrou coragem em algum lugar. Fez tudo que pôde para dissuadi-lo. Argumentou, gracejou, ameaçou e por fim implorou. Quando isso falhou, tirou a corrente do cargo e jogou-a no chão. Por causa disso, Aerys queimou-o vivo, e pendurou a corrente no pescoço de Rossart, seu piromante preferido. O homem que cozinhara Lorde Rickard Stark em sua própria armadura. E, durante todo esse tempo, eu fiquei em pé com a minha armadura branca, na base do Trono de Ferro, imóvel como um cadáver, guardando o meu suserano e todos os seus queridos segredos.

"Todos os meus irmãos juramentados estavam longe, compreende? Mas Aerys gostava de me manter por perto. Eu era filho do meu pai, por isso não confiava em mim. Queria-me onde Varys pudesse me vigiar, de dia e de noite. Portanto, ouvi tudo. "Recordou como os olhos de Rossart costumavam brilhar quando desenrolava seus mapas para mostrar onde a substância devia ser colocada. Garigus e Belis eram iguais." Rhaegar defrontou Robert no Tridente, e já sabe o que aconteceu aí. Quando a notícia chegou à corte, Aerys enviou a rainha para Pedra do Dragão com o Príncipe Viserys. A Princesa Elia também queria ir, mas ele proibiu-a. De algum modo, tinha se convencido de que o Príncipe Lewyn devia ter traído Rhaegar no Tridente, mas achava que podia manter Dorne leal desde que mantivesse Elia e Aegon junto a si. - Os traidores querem a minha cidade, ouvi-o dizer a Rossart,'mas não lhes darei nada a não ser cinzas. Que Robert seja rei de ossos carbonizados e carne esturricada. Os Targaryen nunca enterram seus mortos, queimam-nos. Aerys queria ter a maior pira funerária de todas. Se bem que, a bem da verdade, não creio que ele realmente esperasse morrer. Tal como Aerion Chama-Viva, antes dele, Aerys acreditava que o fogo o transformaria... que se ergueria novamente, renascido como dragão, e transformaria todos os inimigos em cinzas.

"Ned Stark corria para o sul com a vanguarda de Robert, mas as forças de meu pai chegaram primeiro à cidade. Pycelle convenceu o rei de que seu Guardião do Oeste viera defendê-lo, por isso mandou abrir os portões. A única vez em que devia ter dado ouvidos a Varys, ignorou-o. Meu pai mantivera-se afastado da guerra, remoendo todas as desfeitas que Aerys tinha feito a ele e determinado a ver a Casa Lannister do lado dos vencedores. O Tridente decidiu-o.

"Coube a mim defender a Fortaleza Vermelha, mas eu sabia que estávamos perdidos. Mandei uma mensagem a Aerys, pedindo sua autorização para combinar uma rendição. Meu homem regressou com uma ordem régia.'Traga-me a cabeça de seu pai, se não for um traidor. - Aerys não se renderia. Meu mensageiro disse-me que Lorde Rossart se encontrava com ele. Eu sabia o que isso queria dizer.

"Quando encontrei Rossart, ele estava vestido como um homem de armas comum e caminhava apressado na direção de uma porta falsa. Foi quem matei primeiro. E depois matei Aerys, antes que ele pudesse encontrar mais alguém que levasse sua mensagem aos piromantes. Dias mais tarde, cacei os outros e matei-os também. Belis ofereceu-me ouro, e Garigus chorou por misericórdia. Bem, uma espada é mais misericordiosa do que o fogo, mas não me parece que Garigus tenha gostado muito da bondade que lhe fiz."

A água tinha esfriado. Quando Jaime abriu os olhos, deu por si fitando o coto da sua mão da espada. A mão que fez de mim Regicida. O bode privara-o da glória e da vergonha, tudo ao mesmo tempo. Deixando o quê? Quem sou eu agora?

A garota tinha um aspecto ridículo, apertando a toalha aos seus pobres peitos, com as grossas pernas brancas saindo por baixo.

- Minha história deixou-a sem fala? Vá lá, amaldiçoe-me, beije-me ou chame-me de mentiroso. Qualquer coisa.

- Se isso é verdade, por que é que ninguém sabe?

- Os cavaleiros da Guarda Real juram guardar os segredos do rei. Queria que quebrasse o juramento? - Jaime soltou uma gargalhada. - Acha que o nobre Senhor de Winterfell queria ouvir as minhas débeis explicações? Um homem tão honroso. Bastou olhar para mim para me julgar culpado. - Jaime pôs-se em pé, com a água escorrendo fria por seu peito. - Com que direito o lobo julga o leão? Com que direito? - um violento arrepio dominou-o, e bateu com o coto contra a borda da banheira quando tentava sair dela.

A dor trespassou-o... e de repente a casa de banhos estava girando. Brienne apanhou-o antes de ele cair. O braço dela estava todo arrepiado, úmido e gelado, mas a garota era forte, e mais gentil do que ele julgara. Mais gentil do que Cersei, pensou enquanto ela o ajudava a sair da banheira, com pernas bambas como um pau mole.

- Guardas! - ouviu a garota gritar. - O Regicida!

Jaime, pensou ele, meu nome é Jaime.

Quando acordou, jazia no chão úmido com os guardas, a moça e Qyburn em pé à sua volta, com expressões preocupadas no rosto. Brienne estava nua, mas no momento parecia ter se esquecido do fato.

- O calor das banheiras é capaz disso - Meistre Qyburn estava lhes dizendo. Não, ele não é um meistre, tiraram seu colar. - E também ainda há veneno em seu sangue, e está malnutrido. O que lhe têm dado para comer?

- Vermes, mijo e vômito cinzento - informou Jaime.

- Pão duro, água e mingau de aveia - insistiu o guarda. - Mas ele quase não come. O que devemos fazer com ele?

- Esfreguem-no, vistam-no e carreguem-no até a Pira do Rei, se for preciso - disse Qyburn. - Lorde Bolton insiste em jantar com ele esta noite. Começamos a ficar sem tempo.

- Tragam roupas limpas para ele - disse Brienne vou me certificar de que se lave e se vista.

Os outros ficaram mais do que satisfeitos por ceder a tarefa à garota. Puseram-no de pé e sentaram-no num banco de pedra junto da parede. Brienne afastou-se para recuperar a toalha, e voltou com uma escova rija para acabar de esfregá-lo. Um dos guardas deu-lhe uma navalha para aparar a barba de Jaime. Qyburn retornou com roupas de baixo de tecido grosseiro, uns calções limpos de lã negra, uma túnica larga e verde, e um gibão de couro amarrado na frente. Jaime já se sentia menos tonto a essa altura, embora igualmente desajeitado. Com a ajuda da garota conseguiu se vestir.

- Agora só preciso de um espelho de prata.

Meistre Sangrento também trouxera roupa lavada para Brienne; um vestido de cetim cor-de-rosa manchado e uma túnica de linho.

- Lamento, senhora. Estes são os únicos trajes de mulher que temos em Harrenhal grandes o suficiente para você.

Tornou-se evidente de imediato que o vestido fora cortado para alguém com braços mais esbeltos, pernas mais curtas e seios muito mais cheios. A fina renda de Myr pouco fazia para ocultar os hematomas que manchavam a pele de Brienne. Juntando tudo, o vestido fazia a garota parecer ridícula. Ela tem ombros mais largos do que os meus e um pescoço maior, pensou Jaime. Pouco admira que prefira vestir cota de malha. E o rosa também não era cor que a favorecesse. Uma dúzia de piadas cruéis vieram-lhe à cabeça, mas, por uma vez, manteve-as lá dentro. Era melhor não irritá-la; Jaime não tinha chance contra ela, com uma mão apenas.

Qyburn também tinha trazido um frasco.

- O que é isso? - perguntou Jaime quando o meistre sem colar insistiu para que bebesse.

- Alcaçuz macerado em vinagre, com mel e cravo. Vai dar alguma força e limpar a sua cabeça.

- Traga-me a poção que faz nascer novas mãos - disse Jaime. - É essa que eu desejo.

- Beba - disse Brienne, sem sorrir, e ele bebeu.

Passou-se meia hora até que se sentisse suficientemente forte para ficar em pé. Depois do calor sombrio e úmido da casa de banhos, o ar lá fora foi como um tapa na cara.

- A esta hora, o senhor deve andar à procura dele - disse um guarda a Qyburn. - E dela também. Tenho de carregá-lo?

- Ainda consigo andar. Brienne, dê-me o braço.

Agarrando-se a ela, Jaime permitiu que o pastoreassem através do pátio e para o interior de um grande salão cheio de correntes de ar, que era maior até do que a sala do trono em Porto Real. Enormes lareiras abriam-se nas paredes, uma a cada três metros, mais ou menos, em maior número do que ele era capaz de contar, mas nenhum fogo fora aceso, e o frio entre as paredes chegava aos ossos. Uma dúzia de lanceiros com manto de peles guardava as portas e os degraus que levavam às duas galerias superiores. E, no centro daquele imenso vazio, em uma mesa de montar rodeada por aquilo que parecia ser acres de assoalho liso de ardósia, o Senhor do Forte do Pavor aguardava, servido apenas por um copeiro.

- Senhor - disse Brienne, quando se aproximaram dele.

Os olhos de Roose Bolton eram mais claros do que pedra, mais escuros do que leite, e sua voz tinha a suavidade das aranhas.

- Agrada-me vê-lo suficientemente forte para me fazer companhia, sor. Senhora, sente-se. - Fez um gesto para o queijo, o pão, as carnes frias e as frutas que cobriam a mesa. - Preferem branco ou tinto? Receio que sejam de uma colheita banal. Sor Amory deixou a adega da Senhora Whent quase seca.

- Confio que o tenha mandado matar por isso. - Jaime deslizou rapidamente para a cadeira que lhe foi oferecida, de modo que Bolton não pudesse ver quão fraco se encontrava. - Branco é para os Stark. Bebo do tinto, como um bom Lannister.

- Eu preferiria água - disse Brienne.

- Elmar, o tinto para Sor Jaime, água para a Senhora Brienne e hipocraz para mim. - Bolton sacudiu uma mão na direção da escolta, mandando-a embora, e os homens se retiraram em silêncio.

O hábito levou Jaime a estender a mão direita para o vinho. O coto fez a taça balançar, salpicando de vermelho vivo suas ataduras de linho limpas e forçando-o a pegar a taça com a mão esquerda antes que ela caísse, mas Bolton fingiu não notar sua falta de jeito. O nortenho serviu-se de uma ameixa seca e comeu-a com pequenas e rápidas dentadas.

- Experimente estas ameixas, Sor Jaime. São extremamente doces, e também ajudam as tripas a trabalhar. Lorde Vargo tirou-as de uma estalagem antes de incendiá-la.

- Minhas tripas trabalham bem, o bode não é lorde nenhum, e suas ameixas não me despertam nem metade do interesse que sinto por suas intenções.

- A seu respeito? - um leve sorriso tocou os lábios de Roose Bolton. - É um troféu perigoso, sor. Semeia a discórdia onde quer que vá. Até aqui, em minha feliz casa de Harrenhal. - Sua voz era um milímetro acima de um murmúrio. - E em Correrrio também, ao que parece. Sabe que Edmure Tully ofereceu mil dragões de ouro por sua recaptura?

Só isso?

- Minha irmã pagará dez vezes esse valor.

- Ah, sim? - de novo aquele sorriso, exibido por um instante, desaparecido no seguinte. - Dez mil dragões é uma soma formidável. Claro, deve-se também considerar a oferta de Lorde Karstark. Ele promete a mão da filha dele ao homem que lhe trouxer sua cabeça.

- Só mesmo seu bode para entender isso ao contrário - disse Jaime.

Bolton soltou um suave risinho.

- Harrion Karstark era cativo aqui quando tomamos o castelo, sabia? Dei-lhe todos os homens de Karhold que ainda tinha comigo e mandei-o com Glover. Espero que nada de mal lhe aconteça em Valdocaso... caso contrário, Alys Karstark será tudo que resta da descendência de Lorde Rickard. - Escolheu outra ameixa seca. - Felizmente para você não preciso de uma esposa. Casei com a Senhora Walda Frey enquanto estava nas Gêmeas.

- A Bela Walda? - desajeitadamente, Jaime tentou segurar o pão com o coto enquanto o partia com a mão esquerda.

- A Walda Gorda. O senhor de Frey ofereceu-me o peso de minha noiva em prata como dote, portanto fiz a escolha apropriada. Elmar, parta um pouco de pão para Sor Jaime.

O rapaz arrancou um bocado do tamanho de um punho de uma das extremidades do pão e entregou-o a Jaime. Brienne partiu seu próprio pão.

- Lorde Bolton - perguntou a garota -, dizem que pretende entregar Harrenhal a Vargo Hoat.

- Foi esse o seu preço - disse Lorde Bolton. - Os Lannister não são os únicos que pagam as suas dívidas. Em todo o caso, tenho de me retirar em breve. Edmure Tully deverá se casar com a Senhora Roslin Frey nas Gêmeas, e meu rei ordena-me que esteja presente.

- Edmure vai se casar? - perguntou Jaime. - Não é Robb Stark?

- Sua Graça o Rei Robb já se casou. - Bolton cuspiu um caroço de ameixa na mão e deixou-o de lado. - Com uma Westerling do Despenhadeiro. Foi-me dito que o nome dela é Jeyne. Sem dúvida a conhece, sor. O pai dela é vassalo do seu.

- Meu pai tem bastantes vassalos, e a maioria deles tem filhas. - Jaime tateou só com uma mão em busca da taça, tentando se recordar daquela Jeyne. Os Westerling eram uma casa antiga, com mais orgulho do que poder.

- Isso não pode ser verdade - disse teimosamente Brienne. - O Rei Robb jurou se casar com uma Frey. Ele nunca quebraria a promessa, ele...

- Sua Graça é um rapaz de dezesseis anos - disse brandamente Roose Bolton. - E eu agradeceria se não questionasse a minha palavra, senhora.

Jaime quase sentiu pena de Robb Stark. Ele ganhou a guerra no campo de batalha e perdeu-a numa cama, pobre tolo.

- Lorde Walder aprecia jantar truta em vez de lobo? - perguntou.

- Oh, truta dá um jantar saboroso. - Bolton levantou um dedo pálido para o copeiro. - Embora meu pobre Elmar tenha sido posto de lado. Ele deveria se casar com Arya Stark, mas meu sogro Frey não teve escolha exceto quebrar o noivado, quando o Rei Robb o traiu.

- Há alguma notícia de Arya Stark? - Brienne inclinou-se para a frente. - A Senhora Catelyn temeu que... a garota ainda está viva?

- Oh, sim - disse o Senhor do Forte do Pavor.

- Tem conhecimento seguro desse fato, senhor?

Roose Bolton encolheu os ombros.

- Arya Stark andou perdida durante algum tempo, é verdade, mas agora foi encontrada. Pretendo enviá-la de volta ao Norte em segurança.

- Tanto ela quanto a irmã - disse Brienne. - Tyrion Lannister prometeu-nos ambas as garotas em troca do irmão.

Aquilo pareceu divertir o Senhor do Forte do Pavor.

- Minha senhora, ninguém lhe disse? Os Lannister mentem.

- Isso é uma desfeita à honra de minha Casa? - Jaime pegou a faca do queijo com a mão boa. - Uma ponta redonda, e pouco afiada - disse, deslizando o polegar pelo gume da lâmina -, mas entrará em seu olho mesmo assim. - O suor cobriu sua testa de gotículas. Só podia esperar que não parecesse tão fraco quanto se sentia.

O pequeno sorriso de Lorde Bolton fez outra visita aos seus lábios.

- Fala com ousadia, para um homem que precisa de ajuda para partir o pão. Recordo-lhe de que meus guardas se encontram em toda a nossa volta.

- Em toda a nossa volta e a meia légua de distância. - Jaime lançou um olhar de relance ao longo do vasto comprimento do salão. - Quando chegarem até nós, estará tão morto como Aerys.

- É pouco cavalheiresco lançar ameaças ao seu anfitrião por cima de seus próprios queijos e azeitonas - disse o Senhor do Forte do Pavor, em tom de reprimenda. - No Norte ainda temos como sagradas as leis da hospitalidade.

- Eu aqui sou um prisioneiro, não um hóspede. Seu bode cortou minha mão. Se acha que um punhado de ameixas secas fará com que me esqueça disso, está muito enganado.

Aquilo surpreendeu Roose Bolton.

- Talvez esteja. Talvez deva fazer de você um presente de casamento para Edmure Tully... ou cortar sua cabeça, como sua irmã fez a Eddard Stark.

- Não aconselharia isso. Rochedo Casterly tem boa memória.

- Há mil léguas de montanha, mar e pântano entre as minhas muralhas e o seu rochedo. A inimizade dos Lannister pouco significa para um Bolton.

- A amizade dos Lannister poderia significar muito. - Jaime julgava conhecer o jogo que agora jogavam. Mas será que a garota também o conhece? Não se atreveu a olhar para ver.

- Não estou certo de que sejam o tipo de amigos que um homem sensato quereria. - Roose Bolton fez um gesto para chamar o garoto. - Elmar, corte uma fatia de assado para os nossos convidados.

Brienne foi servida primeiro, mas não fez qualquer movimento para comer.

- Senhor - disse -, Sor Jaime deve ser trocado pelas filhas da Senhora Catelyn. Deve nos libertar para prosseguirmos o nosso caminho.

- O corvo que chegou de Correrrio falou de uma fuga, não de uma troca. E se ajudou este prisioneiro a escapar de suas correntes, é culpada de traição, senhora.

A grande moça pôs-se em pé.

- Eu sirvo a Senhora Stark.

- E eu sirvo o Rei no Norte. Ou o Rei que Perdeu o Norte, como alguns o chamam agora. O qual nunca desejou negociar Sor Jaime com os Lannister.

- Sente-se e coma, Brienne - exortou Jaime, enquanto Elmar colocava uma fatia de assado à sua frente, escura e sangrando. - Se Bolton pretendesse nos matar, não estaria desperdiçando suas preciosas ameixas conosco, colocando suas tripas em tamanho perigo. - Fitou a carne e compreendeu que não tinha como cortá-la só com uma mão. Agora valho menos do que uma menina, pensou. O bode equilibrou a troca, embora eu duvide que a Senhora Catelyn lhe agradeça quando Cersei lhe devolver as cachorrinhas em igual estado. A ideia levou Jaime a fazer uma careta. Também arcarei com a culpa por isso, aposto.

Roose Bolton cortou metodicamente sua carne, fazendo o sangue escorrer pelo prato.

- Senhora Brienne, vai se sentar se lhe disser que espero deixar Sor Jaime prosseguir viagem, tal como você e a Senhora Stark desejam?

- Eu... o senhor nos deixaria prosseguir? - a garota soava cautelosa, mas sentou-se. - Isso é bom, senhor.

- E. No entanto, Lorde Vargo criou-me uma pequena... dificuldade. - Virou os olhos claros para Jaime. - Sabe por que motivo Hoat cortou sua mão?

- Ele gosta de cortar mãos. - O linho que cobria o coto de Jaime estava salpicado de sangue e vinho. - Também gosta de cortar pés. Não parece precisar de um motivo.

- No entanto, tinha um. Hoat é mais astuto do que parece. Nenhum homem comanda por muito tempo uma companhia como os Bravos Companheiros, a menos que tenha alguns miolos. - Bolton apunhalou um bocado de carne com a ponta de seu punhal, colocou-o na boca, mastigou pensativamente, engoliu. - Lorde Vargo abandonou a Casa Lannister porque eu lhe ofereci Harrenhal, uma recompensa mil vezes maior do que qualquer uma que pudesse esperar obter de Lorde Tywin. Sendo estranho a Westeros, ele não sabia que o prêmio estava envenenado.

- A maldição de Harren, o Negro? - zombou Jaime.

- A maldição de Tywin Lannister. - Bolton estendeu a taça e Elmar voltou a enchê-la em silêncio. - O nosso bode devia ter consultado os Tarbeck ou os Reyne. Eles talvez o tivessem prevenido de como o senhor seu pai lida com a traição.

- Não há nenhum Tarbeck ou Reyne - disse Jaime.

- É exatamente aí que eu quero chegar. Não há dúvida de que Lorde Vargo esperava que Lorde Stannis triunfasse em Porto Real, e então confirmasse a sua posse deste castelo como forma de gratidão pelo pequeno papel que ele desempenhou na queda da Casa Lannister. - Soltou um risinho seco. - Temo que ele também saiba pouco sobre Stannis Baratheon. Este podia ter-lhe dado Harrenhal pelos serviços prestados, mas teria dado também um nó corrediço por seus crimes.

- Um nó corrediço é mais simpático do que aquilo que receberá de meu pai.

- A essa altura, ele já chegou à mesma conclusão. Com Stannis derrotado e Renly morto, só uma vitória Stark pode salvá-lo da vingança de Lorde Tywin, mas as chances de isso acontecer estão ficando perigosamente escassas.

- O Rei Robb ganhou todas as batalhas - disse Brienne em tom resoluto, tão obstinadamente leal de discurso como era de atos.

- Ganhou todas as batalhas enquanto perdia os Frey, os Karstark, Winterfell e o Norte. É uma pena que o lobo seja tão novo. Os rapazes de dezesseis anos pensam sempre que são imortais e invencíveis. Um homem mais velho dobraria o joelho, penso eu. Após uma guerra há sempre uma paz, e com a paz há perdões... para gente como Robb Stark, pelo menos. Não para homens como Vargo Hoat. - Bolton dirigiu a Jaime um pequeno sorriso. - Ambos os lados o usaram, mas nenhum derramará uma lágrima com a sua morte. Os Bravos Companheiros não lutaram na Batalha da Água Negra, mas morreram lá mesmo assim.

- Vai me perdoar se não fizer luto?

- Não tem piedade de nosso desgraçado e condenado bode? Ah, mas os deuses devem ter... caso contrário, por que teriam colocado você nas mãos dele? - Bolton mastigou outro pedaço de carne. - Karhold é menor e pior do que Harrenhal, mas fica bem fora de alcance das garras do leão. Depois de se casar com Alys Karstark, Hoat pode se tornar um verdadeiro senhor. Se conseguisse arrecadar algum ouro de seu pai, melhor ainda, mas entregaria o sor ao Lorde Rickard, não importa a quantia que Lorde Tyrion pagasse. Seu preço seria a donzela e um refúgio seguro.

"Mas para vendê-lo tem de mantê-lo em sua posse, e as terras fluviais estão cheias de homens que de bom grado o raptariam. Glover e Tallhart foram derrotados em Valdocaso, mas restos de sua tropa ainda andam por aí, com a Montanha a massacrar os que ficam para trás.

Mil Karstarks percorrem as terras a sul e a leste de Correrrio, à sua caça. Em outros pontos, há homens de Darry deixados sem senhor e sem lei, matilhas de lobos de quatro patas, e os bandos de foras da lei do senhor do relâmpago. Dondarrion de bom grado enforcaria você e o bode na mesma árvore. - O Senhor do Forte do Pavor ensopou um pedaço de pão no sangue.

- Harrenhal era o único lugar onde Lorde Vargo poderia ter esperança de mantê-lo a salvo, mas aqui os seus Bravos Companheiros estão em grande desvantagem numérica em relação aos meus homens, e a Sor Aenys e seus Frey. Ele sem dúvida temia que eu o devolvesse a Sor Edmure em Correrrio... ou pior, que o deixasse seguir caminho para junto de seu pai.

"Ao mutilá-lo, pretendeu remover a ameaça de sua espada, arranjar uma lembrança macabra para enviar ao seu pai e diminuir o valor que teria para mim. Pois ele é homem meu, tal como eu sou um homem do Rei Robb. Portanto, o crime dele é meu, ou pode assim parecer aos olhos de seu pai. E aí reside a minha... pequena dificuldade. - Fitou Jaime, sem pestanejar, com os olhos claros, expectante, gelado.

Estou vendo.

- Quer que o absolva de culpa. Que diga ao meu pai que este coto não é obra sua. - Jaime soltou uma gargalhada. - Senhor, mande-me para Cersei, e eu cantarei uma canção tão doce quanto quiser sobre a gentil forma como me tratou. - Sabia que qualquer outra resposta significava que Bolton voltaria a entregá-lo ao bode. - Se eu tivesse uma mão, escreveria. Como fui mutilado pelo mercenário que meu próprio pai trouxe para Westeros, e resgatado pelo nobre Lorde Bolton.

- Confiarei na sua palavra, sor.

Eis algo que não ouço com frequência.

- Quando nos será permitido que partamos? E como planeja fazer que eu passe por todos esses lobos, salteadores e Karstark?

- Partirá quando Qyburn disser que está suficientemente forte, com uma forte escolta de homens selecionados e sob o comando de meu capitão, Walton. Chamam-no de Pernas de Aço. Um soldado de férrea lealdade. Walton vai entregá-lo a salvo e inteiro em Porto Real.

- Desde que as filhas da Senhora Catelyn também sejam entregues a salvo e inteiras

- disse a garota. - Senhor, a proteção desse seu Walton é bem-vinda, mas as meninas estão a meu cargo.

O Senhor do Forte do Pavor deu-lhe um relance de olhos desinteressado.

- Já não tem de se preocupar com as meninas, senhora. A Senhora Sansa é esposa do anão, só os deuses podem separá-los agora.

- A esposa dele? - disse Brienne, espantada. - Do Duende? Mas... ele jurou, perante a corte inteira, à vista dos deuses e dos homens...

Ela é tão inocente. Jaime estava quase tão surpreso quanto a garota, mas escondia melhor. Sansa Stark, isso deve ter posto um sorriso na cara de Tyrion. Lembrou-se de como o irmão fora feliz com a pequena filha do caseiro... durante uma quinzena.

- O que o Duende jurou ou deixou de jurar pouco importa agora - disse Lorde Bolton. - Principalmente a você. - A garota pareceu quase machucada. Talvez tenha finalmente sentido as mandíbulas de aço da armadilha quando Roose Bolton fez sinal aos guardas. - Sor Jaime prosseguirá até Porto Real. Receio que eu não tenha dito nada a seu respeito. Seria pouco escrupuloso de minha parte privar Lorde Vargo de ambos os seus troféus. - O Senhor do Forte do Pavor estendeu a mão para outra ameixa. - Se fosse você, senhora, iria me preocupar menos com os Stark e bastante mais com safiras.

Um cavalo relinchou impacientemente atrás dele, entre as fileiras de homens de manto dourado formadas na estrada. Tyrion ouvia também Lorde Gyles tossir. Não tinha pedido a presença de Gyles, tal como não solicitara as de Sor Addam, Jalabhar Xho ou qualquer um dos demais, mas o senhor seu pai achou que Doran Martell talvez não gostasse se apenas um anão viesse escoltá-lo na travessia do Água Negra.

O próprio Joffrey devia ter vindo ao encontro dos dorneses, refletiu enquanto esperava, mas ele estragaria tudo, sem dúvida. Nos últimos tempos, o rei andava repetindo piadinhas sobre os dorneses que tinha ouvido dos homens de armas de Mace Tyrell. Quantos dorneses são necessários para pôr a ferradura em um cavalo? Nove. Um para prender a ferradura e oito para levantar o cavalo. Por algum motivo, parecia a Tyrion que Doran Martell não acharia aquilo divertido.

Viu os estandartes esvoaçando quando os cavaleiros emergiram da verde floresta viva numa longa coluna poeirenta. Dali até o rio, só restavam árvores nuas e enegrecidas, um legado de sua batalha. Estandartes demais, pensou amargamente, enquanto observava as cinzas que eram levantadas pelos cascos dos cavalos que se aproximavam, tal como tinham sido erguidas pelos cascos da vanguarda Tyrell antes de ela esmagar Stannis pelo flanco. Aparentemente, Martell trouxe metade dos senhores de Dome. Tentou pensar em algum bem que pudesse advir disso, mas não conseguiu.

- Conta quantos estandartes? - perguntou a Bronn.

O cavaleiro mercenário pôs a mão acima dos olhos para tapar o sol.

- Oito... não, nove.

Tyrion virou-se na sela.

- Pod, venha aqui. Descreva as armas que vê e diga-me que casas representam.

Podrick Payne aproximou-se em seu castrado. Transportava o estandarte real, o grande veado e leão de Joffrey, e lutava com o seu peso. Bronn levava o estandarte de Tyrion, o leão de Lannister em ouro sobre carmesim.

Ele está ficando mais alto, percebeu Tyrion quando Pod ficou em pé sobre os estribos para ver melhor. Em breve vai fazer sombra em mim como todos os outros. O garoto andara fazendo um estudo diligente da heráldica de Dorne, por ordem de Tyrion, mas estava nervoso, como sempre.

- Não consigo ver. O vento está agitando os estandartes.

- Bronn, diga ao garoto o que vê.

Bronn parecia muito cavaleiro naquele dia, com gibão e manto novos, e o colar flamejante sobre o peito.

- Um sol vermelho em fundo laranja - anunciou - com uma lança espetada na parte de trás.

- Martell - disse imediatamente Podrick Payne, visivelmente aliviado. - A Casa Martell de Lançassolar, senhor. O Príncipe de Dorne.

- Até meu cavalo saberia essa - disse secamente Tyrion. - Mande outra, Bronn.

- Há uma bandeira púrpura com bolas amarelas.

- Limões? - perguntou Pod em tom esperançoso. - Um fundo púrpura coberto de limões? Da Casa Dalt? De... de Limoeiros.

- Pode ser. A próxima é um grande pássaro preto sobre fundo amarelo. Com qualquer coisa rosa ou branca nas garras, é difícil saber o que, com a bandeira tremulando.

- O abutre de Blackmont segura um bebê nas garras - disse Pod. - A Casa Black- mont de Monpreto, sor.

Bronn soltou uma gargalhada.

- Outra vez lendo livros? Os livros vão arruinar seu olho da espada, garoto. Também vejo um crânio. Um estandarte preto.

- O crânio coroado da Casa Manwoody, osso e ouro sobre negro. - Pod soava mais confiante a cada resposta correta. - Os Manwoody de Tumbarreal.

- Três aranhas pretas?

- São escorpiões, sor. Casa Qorgyle de Arenito, três escorpiões negros sobre vermelho.

- Vermelho e amarelo, com uma linha em zigue-zague entre eles.

- As chamas de Toca do Inferno. Casa Uller.

Tyrion estava impressionado. O rapaz não é nada burro, depois de desatada a língua.

- Continue, Pod - instou. - Se acertar todos, lhe darei um presente.

- Uma rodela com fatias vermelhas e pretas - disse Bronn. - Há uma mão dourada no centro.

- A Casa Allyrion de Graçadivina.

- Uma galinha vermelha comendo uma cobra, parece.

- Os Gargalen de Costa do Sal. Um basilisco. Sor. Perdão. Não é galinha. Vermelho, com uma serpente negra no bico.

- Muito bem! - exclamou Tyrion. - Mais um, garoto.

Bronn examinou as fileiras de dorneses que se aproximavam.

- O último é uma pena dourada sobre xadrez verde.

- Jordayne da Penha.

Tyrion soltou uma gargalhada.

- Nove, e muito bem. Eu mesmo não teria conseguido identificar a todos. - Aquilo era uma mentira, mas daria ao rapaz certo orgulho, e isso era algo de que ele precisava desesperadamente.

O Martell traz alguns formidáveis companheiros, ao que parece. Nenhuma das casas que Pod havia identificado era pequena ou insignificante. Nove dos maiores senhores de Dorne subiam a estrada do rei, eles ou seus herdeiros, e de algum modo não parecia a Tyrion que tivessem percorrido toda aquela distância só para ver o urso dançarino. Havia ali uma mensagem. E não é uma mensagem que me agrada. Perguntou a si mesmo se teria sido um erro enviar Myrcella para Lançassolar.

- Senhor - disse Pod, com uma certa timidez não há nenhuma liteira.

Tyrion virou vivamente a cabeça. O rapaz tinha razão.

- Doran Martell viaja sempre numa liteira - disse o garoto. - Uma liteira entalhada, com cortinas de seda e sóis nos panos.

Tyrion tinha ouvido dizer o mesmo. O Príncipe Doran tinha já mais de cinquenta anos e sofria de gota. Ele pode ter desejado fazer um tempo melhor, disse a si mesmo. Pode ter temido que sua liteira constituísse um alvo tentador demais para bandoleiros, ou que se revelasse incômoda demais nas passagens de altitude do Caminho do Espinhaço. Talvez esteja melhor da gota.

Então por que tinha um pressentimento tão ruim a respeito daquilo?

Aquela espera era intolerável.

- Estandartes, em frente - exclamou. - Vamos ao encontro deles. - Esporeou o cavalo. Bronn e Pod seguiram-no, um de cada lado. Quando os dorneses viram que eles se puseram em movimento, esporearam as próprias montarias, fazendo ondular os estandartes ao avançar. De suas ornamentadas selas pendiam os escudos redondos de metal que preferiam, e muitos traziam feixes de curtas lanças de arremesso, ou os arcos dorneses de dupla curvatura que sabiam usar tão bem de cima dos cavalos.

Havia três tipos de dorneses, observara o primeiro Rei Daeron. Havia os dorneses salgados, que viviam ao longo das costas, os dorneses arenosos dos desertos e longos vales fluviais e os dorneses pedregosos, que construíam suas fortalezas nos passos e nas alturas das Montanhas Vermelhas. Os dorneses salgados eram os que tinham mais sangue de Roine e os pedregosos, os que menos tinham.

Os três tipos pareciam bem representados na comitiva de Doran. Os dorneses salgados eram ágeis e escuros, com uma pele lisa cor de azeitona e longos cabelos negros tremulando ao vento. Os dorneses arenosos eram ainda mais escuros, com o rosto bronzeado pelo quente sol de Dorne até tomar um tom pardo-escuro. Enrolavam longos lenços de cores claras em volta dos elmos, para se protegerem da insolação. Os dorneses pedregosos eram maiores e mais claros, filhos dos ândalos e dos primeiros homens, de cabelos castanhos ou louros, com um rosto que ganhava sardas ou queimava ao sol em vez de se bronzear.

Os senhores usavam vestes de seda e cetim, com cintos cravejados de jóias e mangas soltas. Suas armaduras eram fortemente esmaltadas e possuíam relevos de cobre polido, prata cintilante e suave ouro vermelho. Vinham montados em cavalos vermelhos e dourados e alguns brancos como a neve, todos eles esguios e ligeiros, com pescoço longo e cabeça estreita e bela. Os legendários corcéis de areia de Dorne eram menores do que cavalos de guerra propriamente ditos e não aguentavam todo o peso das armaduras que estes costumavam usar, mas dizia-se que eram capazes de correr durante um dia, uma noite e o dia seguinte sem nunca se cansar.

O líder dornês vinha montado num garanhão negro como o pecado, com crina e cauda da cor do fogo. Sentava-se na sela como se ali tivesse nascido, alto, esguio, gracioso. Um manto de seda vermelho-clara flutuava preso aos seus ombros, e sua camisa era couraçada com fileiras sobrepostas de discos de cobre, que cintilavam como um milhar de moedas recém-cunhadas quando ele se movia. Seu grande elmo dourado exibia um sol de cobre na testa, e o escudo redondo pendurado atrás dele trazia o sol e a lança da Casa Martell em sua superfície de metal polido.

Um sol Martell, mas dez anos novo demais, pensou Tyrion ao puxar as rédeas do cavalo, e também em muito boa forma, e muito mais feroz do que deveria. A essa altura, já sabia com o que tinha de lidar. Quantos dorneses são necessários para começar uma guerra?, perguntou a si mesmo. Só um. E, no entanto, não tinha outra alternativa.

- Prazer, senhores. Recebemos notícias de sua chegada, e Sua Graça, o Rei Joffrey, pediu-me para vir ao seu encontro, a fim de lhes dar as boas-vindas em seu nome. O senhor meu pai, a Mão do Rei, manda igualmente as suas saudações. - Fingiu uma confusão amigável. - Qual dos senhores é o Príncipe Doran?

- A saúde de meu irmão exige que permaneça em Lançassolar. - O príncipe infante tirou o elmo. Por baixo, seu rosto era marcado e sombrio, com finas sobrancelhas arqueadas sobre olhos grandes, tão negros e brilhantes como lagoas de betume. Só alguns fios de prata manchavam o lustroso cabelo negro que se afastava de sua testa, formando, ao centro, um bico tão marcado quanto seu nariz. Um dornês salgado, com toda a certeza. - O Príncipe Doran enviou-me para ocupar o lugar dele no conselho do Rei Joffrey, se Sua Graça desejar.

- Sua Graça ficará muito honrada por ter o conselho de um guerreiro de tanto renome como o Príncipe Oberyn de Dorne - disse Tyrion, ao mesmo tempo que pensava: Isso vai significar sangue nas sarjetas. - E os seus nobres companheiros também são muito bem-vindos.

- Permita-me que os apresente, senhor de Lannister. Sor Deziel Dalt, de Limoeiros. Lorde Tremond Gargalen. Lorde Harmen Uller e seu irmão, Sor Ulwyck. Sor Ryon Allyrion e seu filho natural, Sor Daemon Sand, o Bastardo de Graçadivina. Lorde Dagos Manwoody, seu irmão, Sor Myles, seus filhos Mors e Dickon. Sor Arron Qorgyle. E não poderia deixar de mencionar as senhoras. Myria Jordayne, herdeira da Penha. Senhora Larra Blackmont, sua filha Jynessa, e o filho Perros. - Ergueu uma mão esguia para uma mulher de cabelos negros que se encontrava na retaguarda, fazendo-lhe sinal para que se aproximasse. - E esta é Eliaria Sand, minha amante.

Tyrion engoliu um gemido. Sua amante, e bastarda. Cersei vai ter um chilique daqueles se ele a quiser no casamento. Se atribuísse à mulher um lugar em algum canto escuro afastado dos nobres, a irmã iria se arriscar a despertar a fúria do Víbora Vermelha. Sentá-la ao lado dele faria com que todas as outras mulheres no estrado se ofendessem. O Príncipe Doran tinha a intenção de provocar um quiproquó?

O Príncipe Oberyn virou o cavalo para trás, para defrontar os outros dorneses.

- Eliaria, senhores e senhoras, sores, vejam como o Rei Joffrey gosta de nós. Sua Graça teve a bondade de enviar o próprio tio Duende para nos levar à sua corte.

Bronn respondeu com um resfolego de risada, e Tyrion foi obrigado a também fingir divertimento.

- Não sozinho, senhores. Isso seria uma tarefa gigantesca demais para um homem pequeno como eu. - A essa altura, sua comitiva já tinha se aproximado, por isso foi sua vez de enumerar os nomes. - Permitam-me que lhes apresente Sor Flement Brax, herdeiro de Valcorno. Lorde Gyles de Rosby. Sor Addam Marbrand, Senhor Comandante da Patrulha da Cidade. Jalabhar Xho, Príncipe do Vale da Flor Vermelha. Sor Harys Swyft, sogro de meu tio Kevan. Sor Merlon Crakehall. Sor Philip Foote e Sor Bronn da Água Negra, dois heróis de nossa recente batalha contra o rebelde Stannis Baratheon. E meu escudeiro, o jovem Podrick da Casa Payne. - Os nomes iam ressoando bem à medida que Tyrion os desenrolava, mas aqueles que os possuíam não eram um grupo nem de longe tão distinto e formidável quanto aquele que acompanhava o Príncipe Oberyn, como ambos sabiam perfeitamente,

- Senhor de Lannister - disse a Senhora Blackmont percorremos um caminho longo e poeirento, e um pouco de descanso seria muito bem-vindo, para restaurarmos as forças. Podemos prosseguir para a cidade?

- Imediatamente, senhora. - Tyrion virou a cabeça do cavalo e chamou por Sor Addam Marbrand. Os homens de manto dourado que constituíam a maior parte de sua guarda de honra manobraram vivamente os cavalos à ordem de Sor Addam, e a coluna dirigiu-se para o rio e para Porto Real.

Oberyn Nymeros Martell, resmungou Tyrion, em surdina, enquanto se punha ao lado do homem. A Víbora Vermelha de Dome. E o que, com os sete infernos, esperam que eu faça com ele?

Conhecia o homem apenas de reputação, certamente... mas a reputação era assustadora. Quando mal tinha dezesseis anos, o Príncipe Oberyn fora encontrado na cama com a amante do velho Lorde Yronwood, um homem enorme, de feroz reputação e gênio tempestuoso. Seguiu-se um duelo, embora, em vista da juventude e do elevado nascimento do príncipe, fosse apenas até o primeiro sangue. Ambos os homens receberam golpes, e a honra foi satisfeita. Mas o Príncipe Oberyn recuperou-se rapidamente, ao passo que os ferimentos de Lorde Yronwood gangrenaram e o levaram à morte. Depois de seu falecimento, os homens começaram a murmurar que Oberyn lutara com uma espada envenenada, e daí em diante tanto os amigos como os adversários passaram a chamá-lo de Víbora Vermelha.

Isso havia acontecido muitos anos antes, com certeza. O rapaz de dezesseis anos era agora um homem com mais de quarenta e sua lenda tornara-se mais sombria. Tinha viajado pelas Cidades Livres, onde aprendeu a arte dos venenos, e talvez artes ainda mais negras, caso se acreditasse nos rumores. Estudou na Cidadela, chegando até a forjar seis elos de uma corrente de meistre antes de se aborrecer. Serviu como soldado nas Terras Disputadas, do outro lado do mar estreito, acompanhando os Segundos Filhos durante algum tempo antes de formar a própria companhia. Seus torneios, suas batalhas, seus duelos, seus cavalos, sua luxúria... dizia-se que dormia tanto com homens quanto com mulheres e que tinha gerado bastardas por todo o Dorne. Os homens chamavam suas filhas de serpentes de areia. Até onde Tyrion sabia, o Príncipe Oberyn nunca fora pai de um filho.

E, claro, tinha mutilado o herdeiro de Jardim de Cima.

Não há homem nos Sete Reinos que seja menos bem-vindo a um casamento Tyrell, pensou Tyrion. Mandar o Príncipe Oberyn para Porto Real enquanto a cidade ainda abrigava Lorde Mace Tyrell, dois de seus filhos e milhares de seus homens de armas era uma provocação tão perigosa quanto o próprio Príncipe Oberyn. Uma palavra errada, um gracejo feito num momento inoportuno, um olhar serão o suficiente, e nossos nobres aliados vão se lançar às gargantas uns dos outros.

- Já nos encontramos uma vez - disse o príncipe dornês a Tyrion, com ligeireza, enquanto cavalgavam lado a lado pela estrada do rei, passando por campos de cinzas e esqueletos de árvores. - Mas não espero que se lembre. Era ainda menor do que é agora.

Na voz do homem, havia uma aresta de zombaria que desagradava a Tyrion, mas não ia permitir que o dornês o provocasse.

- Quando aconteceu isso, senhor? - perguntou, num tom de interesse educado.

- Oh, há muitos e muitos anos, quando minha mãe governava em Dorne e o senhor seu pai era Mão de um rei diferente.

Não tão diferente quanto possa pensar, refletiu Tyrion.

- Foi quando visitei Rochedo Casterly com a minha mãe, o seu consorte e a minha irmã Elia. Tinha, oh, catorze, quinze anos, por aí, e Elia era um ano mais velha. O seu irmão e sua irmã tinham oito ou nove anos, se bem me lembro, e você havia acabado de nascer.

Estranha hora para uma visita. A mãe havia morrido no parto, então os Martell teriam encontrado Rochedo Casterly profundamente mergulhado em luto. Especialmente o pai. Lorde Tywin raras vezes mencionava a mulher, mas Tyrion ouviu os tios falarem do amor que havia entre eles. Naqueles tempos, o pai era Mão de Aerys, e muitos diziam que Lorde Tywin Lannister governava os Sete Reinos, mas a Senhora Joanna governava Lorde Tywin.

- Ele não era o mesmo homem depois que ela morreu, Duende - disse-lhe um dia o tio Gery. - A melhor parte dele morreu com ela. - Gerion era o mais novo dos quatro filhos de Lorde Tytos Lannister, e o tio de que Tyrion mais gostava.

Mas agora estava desaparecido, perdido além dos mares, e o próprio Tyrion tinha levado a Senhora Joanna para a sepultura.

- Achou Rochedo Casterly do seu agrado, senhor?

- Pouco. O seu pai ignorou-nos todo o tempo que lá estivemos, depois de ordenar a Sor Kevan que tratasse de nos entreter. A cela que me deram tinha uma cama de penas e tapetes de Myr no chão, mas era escura e não tinha janelas, muito semelhante a uma masmorra se você parar para pensar, tal como eu disse a Elia na época. Seus céus eram cinzentos demais, seus vinhos, doces demais, suas mulheres, castas demais, sua comida, insípida demais... e você foi o maior desapontamento de todos.

- Tinha acabado de nascer. O que esperava de mim?

- Enormidade - respondeu o príncipe de cabelo negro. - Era pequeno mas afamado. Estávamos em Vilavelha quando de seu nascimento, e a cidade só falava do monstro que tinha nascido da Mão do Rei, e de como aquilo podia ser um mau presságio para o reino.

- Fome, peste e guerra, sem dúvida. - Tyrion deu um sorriso amargo. - E sempre fome, peste e guerra. Ah, e o inverno, e a longa noite que nunca termina.

- Tudo isso - disse o Príncipe Oberyn - e também a queda de seu pai. Ouvi um irmão mendicante pregar que Lorde Tywin se tornara maior do que o Rei Aerys, mas só um deus deve estar acima de um rei. Você seria a sua maldição, uma punição enviada pelos deuses para lhe ensinar que não era melhor do que qualquer outro homem.

- Eu tento, mas ele recusa-se a aprender. - Tyrion soltou um suspiro. - Prossiga, por favor. Adoro uma boa história.

- E é natural, pois a história que se contava de você era que tinha um rabo, duro e recurvado como o de um porco. A sua cabeça era monstruosamente grande, segundo ouvimos dizer, com vez e meia o tamanho do seu corpo, e havia nascido com densos cabelos pretos e também com barba, um olho maligno e garras de leão. Seus dentes eram tão longos que não podia fechar a boca, e entre as pernas encontravam-se as partes privadas de uma menina, assim como as de um menino.

- A vida seria muito mais simples se os homens pudessem se foder a si mesmos, não acha? E eu consigo me lembrar de algumas ocasiões em que garras e dentes poderiam ter se revelado úteis. Mesmo assim, começo a ver a natureza de sua queixa.

Bronn soltou uma risadinha, mas Oberyn apenas sorriu.

- Podíamos nem tê-lo visto, se não fosse a sua querida irmã. Você nunca aparecia à mesa ou nos salões, se bem que às vezes, à noite, ouvíssemos um bebê berrando nas profundezas do Rochedo. Tinha uma voz monstruosamente alta, isso garanto. Chorava durante horas, e nada o sossegava a não ser uma teta de mulher.

- Continua a ser assim, curiosamente.

Dessa vez o Príncipe Oberyn riu.

- É um gosto que partilhamos. Lorde Gargalen disse-me uma vez que esperava morrer com uma espada na mão, ao que eu respondi que preferiria partir com um seio na minha.

Tyrion teve de sorrir.

- Falava de minha irmã?

- Cersei prometeu a Elia que iria mostrá-lo a nós. Na véspera do dia em que devíamos zarpar, enquanto minha mãe e seu pai estavam fechados, juntos, sua irmã e Jaime levaram-nos até o seu quarto. A sua ama de leite tentou nos mandar embora, mas Cersei não quis nem saber. "Ele é meu", ela disse,"e você é só uma vaca leiteira, não pode me dizer o que fazer. Quieta, senão mando meu pai cortar sua língua. Uma vaca não precisa de língua, só precisa de úberes".

- Sua Graça aprendeu o encanto numa idade precoce - disse Tyrion, divertido com a ideia da irmã a reclamá-lo como seu. Os deuses sabem como nunca mais se esforçou em reclamar por mim.

- Cersei até tirou seus cueiros para que víssemos melhor - prosseguiu o príncipe dornês. - Realmente possuía um olho maligno, e um pouco de penugem negra no couro cabeludo. A sua cabeça talvez fosse maior do que a da maior parte dos bebês... mas não havia rabo, nem barba, nem dentes ou garras, e nada entre as suas pernas além de um minúsculo pinto cor-de-rosa. Depois de todos os maravilhosos murmúrios, o Castigo de Lorde Tywin revelou ser apenas um hediondo bebê vermelho, com pernas atrofiadas. Elia até fez o ruído que as meninas fazem ao ver bebês, estou certo de que já o ouviu. O mesmo ruído que fazem por causa de gatinhos fofos ou cachorros brincalhões. Creio que desejou embalá-lo, por mais feio que fosse. Quando eu comentei que parecia uma espécie fraca de monstro, a sua irmã disse:"Ele matou a minha mãe" e torceu o seu pintinho com tanta força que pensei que poderia arrancá-lo. Você guinchou, mas foi só quando o seu irmão Jaime disse "Largue-o, está machucando-o" que Cersei o soltou. "Não importa" disse-nos. "Todo mundo diz que ele deve morrer em breve. Nem devia ter sobrevivido tanto tempo."

 

 

                                                                  CONTINUA

 

 

O sol brilhava, forte, por cima deles, e o dia estava agradavelmente quente para o outono, mas Tyrion Lannister gelou quando ouviu aquilo. A minha querida irmã. Coçou a cicatriz no nariz e deu ao dornês uma dose de seu "olho maligno". Mas por que motivo será que ele contou essa história? Estará me testando, ou será que deseja simplesmente torcer meu pinto, como Cersei fez, para me ouvir gritar?

- Não se esqueça de contar essa história ao meu pai. Vai deleitá-lo tanto quanto me deleitou. Especialmente a parte a respeito de meu rabo. Eu realmente tive um, mas ele mandou cortá-lo.

O Príncipe Oberyn soltou um risinho.

- Tornou-se mais divertido desde a última vez que nos encontramos.

- Sim, mas o que tentei foi me tornar mais alto.

- Por falar em divertimento, ouvi uma história curiosa contada pelo intendente de Lorde Buckler. Ele diz que você criou um imposto sobre as bolsas privadas das mulheres.

 

 

 

 

- É um imposto sobre a prostituição - disse Tyrion, novamente irritado. E foi ideia de meu maldito pai. - Só uma moeda a cada, ah... ato. A Mão do Rei achou que poderia ajudar a melhorar a moralidade na cidade. - E também a pagar o casamento de Joffrey. Não é preciso dizer que, como mestre da moeda, Tyrion tinha arcado com toda a culpa. Bronn dizia que andavam chamando a taxa, nas ruas, de moeda do anão."Toca. a abrir as pernas para o Meio-Homem", gritavam nos bordéis e tabernas, de acordo com o mercenário.

- Vou me certificar de manter a minha bolsa cheia de moedas. Até um príncipe precisa pagar seus impostos.

- Por que precisaria de prostitutas? - olhou de relance para onde Eliaria Sand cavalgava entre as outras mulheres. - Cansou-se da sua amante no caminho?

- Nunca. Dividimos coisas demais. - O Príncipe Oberyn encolheu os ombros. - Mas nunca dividimos uma bela loura, e Eliaria está curiosa. Conhece alguma criatura assim?

- Sou um homem casado. - Embora de casamento ainda não consumado. - Já não me deito com prostitutas. - A menos que queira que sejam enforcadas.

Oberyn mudou abruptamente de assunto.

- Dizem que serão servidos setenta e sete pratos no banquete de casamento do rei.

- Tem fome, meu príncipe?

- Há muito tempo que tenho fome. Embora não de comida. Diga-me, por favor, quando será servida a justiça?

- Justiça. - Sim, é por isso que ele está aqui, devia ter compreendido isso de imediato. - Você era próximo de sua irmã?

- Quando crianças, Elia e eu éramos inseparáveis, assim como seu irmão e sua irmã.

Deuses, espero que não.

- Guerras e casamentos têm nos mantido bem ocupados, Príncipe Oberyn. Receio que ninguém ainda tenha tido tempo para dedicar a assassinatos cheirando a mofo após dezesseis anos, por mais terríveis que tenham sido. Faremos isso, naturalmente, assim que pudermos. Qualquer ajuda que Dorne possa oferecer para restaurar a paz do rei só iria...

 

 

                                                                 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades