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O sol brilhava, forte, por cima deles, e o dia estava agradavelmente quente para o outono, mas Tyrion Lannister gelou quando ouviu aquilo. A minha querida irmã. Coçou a cicatriz no nariz e deu ao dornês uma dose de seu "olho maligno". Mas por que motivo será que ele contou essa história? Estará me testando, ou será que deseja simplesmente torcer meu pinto, como Cersei fez, para me ouvir gritar?
- Não se esqueça de contar essa história ao meu pai. Vai deleitá-lo tanto quanto me deleitou. Especialmente a parte a respeito de meu rabo. Eu realmente tive um, mas ele mandou cortá-lo.
O Príncipe Oberyn soltou um risinho.
- Tornou-se mais divertido desde a última vez que nos encontramos.
- Sim, mas o que tentei foi me tornar mais alto.
- Por falar em divertimento, ouvi uma história curiosa contada pelo intendente de Lorde Buckler. Ele diz que você criou um imposto sobre as bolsas privadas das mulheres.
- É um imposto sobre a prostituição - disse Tyrion, novamente irritado. E foi ideia de meu maldito pai. - Só uma moeda a cada, ah... ato. A Mão do Rei achou que poderia ajudar a melhorar a moralidade na cidade. - E também a pagar o casamento de Joffrey. Não é preciso dizer que, como mestre da moeda, Tyrion tinha arcado com toda a culpa. Bronn dizia que andavam chamando a taxa, nas ruas, de moeda do anão."Toca. a abrir as pernas para o Meio-Homem", gritavam nos bordéis e tabernas, de acordo com o mercenário.
- Vou me certificar de manter a minha bolsa cheia de moedas. Até um príncipe precisa pagar seus impostos.
- Por que precisaria de prostitutas? - olhou de relance para onde Eliaria Sand cavalgava entre as outras mulheres. - Cansou-se da sua amante no caminho?
- Nunca. Dividimos coisas demais. - O Príncipe Oberyn encolheu os ombros. - Mas nunca dividimos uma bela loura, e Eliaria está curiosa. Conhece alguma criatura assim?
- Sou um homem casado. - Embora de casamento ainda não consumado. - Já não me deito com prostitutas. - A menos que queira que sejam enforcadas.
Oberyn mudou abruptamente de assunto.
- Dizem que serão servidos setenta e sete pratos no banquete de casamento do rei.
- Tem fome, meu príncipe?
- Há muito tempo que tenho fome. Embora não de comida. Diga-me, por favor, quando será servida a justiça?
- Justiça. - Sim, é por isso que ele está aqui, devia ter compreendido isso de imediato. - Você era próximo de sua irmã?
- Quando crianças, Elia e eu éramos inseparáveis, assim como seu irmão e sua irmã.
Deuses, espero que não.
- Guerras e casamentos têm nos mantido bem ocupados, Príncipe Oberyn. Receio que ninguém ainda tenha tido tempo para dedicar a assassinatos cheirando a mofo após dezesseis anos, por mais terríveis que tenham sido. Faremos isso, naturalmente, assim que pudermos. Qualquer ajuda que Dorne possa oferecer para restaurar a paz do rei só iria acelerar o início do inquérito do senhor meu pai...
- Anão - disse a Víbora Vermelha, num tom que se tornara acentuadamente menos cordial -, poupe-me de suas mentiras de Lannister. Toma-nos por ovelhas ou por idiotas? Meu irmão não é um homem sedento de sangue, mas também não passou dezesseis anos dormindo. Jon Arryn veio a Lançassolar um ano depois de Robert subir ao trono, e pode ter certeza de que foi seriamente interrogado. Ele e mais uma centena de homens. Não vim para um espetáculo de saltimbanco em forma de inquérito. Vim em busca de justiça para Elia e seus filhos, e vou obtê-la. Começando por esse cretino do Gregor Clegane... mas não termina aí, creio eu. Antes de morrer, a Enormidade que Cavalga irá me dizer de onde vieram suas ordens, por favor garanta isso ao senhor seu pai. - Sorriu. - Um velho septão certa vez disse que eu era a prova viva da bondade dos deuses. Sabe por quê, Duende?
- Não - admitiu Tyrion com cautela.
- Ora, se os deuses fossem cruéis, teriam feito de mim o primogênito de minha mãe, e de Doran seu terceiro filho. Eu sou um homem sedento de sangue, entende? E é comigo que tem de lidar agora, e não com meu paciente, prudente e artrítico irmão.
Tyrion via o sol brilhar na Torrente da Agua Negra a cerca de um quilômetro de distância, e nas muralhas, torres e colinas de Porto Real depois do rio. Olhou de relance por sobre o ombro, para a coluna resplandecente que os seguia pela estrada do rei.
- Fala como quem está à frente de uma grande tropa - disse -, mas não encontro mais de trezentos homens. Vê aquela cidade ali, a norte do rio?
- A pilha de estrume que chama de Porto Real?
- Essa mesma.
- Não só a vejo, como creio que já consigo cheirá-la.
- Então cheire-a bem, senhor. Encha o nariz. Vai descobrir que meio milhão de pessoas fede mais do que trezentas. Cheira os homens de manto dourado? São quase cinco mil. As espadas juramentadas ao meu pai devem somar mais vinte mil. E depois há as rosas. As rosas cheiram tão bem, não é verdade? Especialmente quando há tantas. Cinquenta, sessenta, setenta mil rosas na cidade ou acampadas nos arredores, não sou realmente capaz de dizer quantas restam, mas, seja como for, há mais do que desejo contar.
Martell deu de ombros.
- Na Dorne de antigamente, antes de casarmos com Daeron, dizia-se que todas as flores se curvam perante o sol. Se as rosas tentarem obstruir meu caminho, de bom grado as pisarei.
- Tal como pisou Willas Tyrell?
O dornês não reagiu como era de se esperar.
- Recebi uma carta de Willas há menos de meio ano. Partilhamos o interesse em criação de cavalos de qualidade. Ele nunca nutriu nenhuma má vontade por mim por aquilo que aconteceu na liça. Eu atingi sua placa de peito de forma limpa, mas o pé dele ficou preso num estribo ao cair e o cavalo tombou por cima de seu corpo. Mandei um meistre até ele depois, mas só conseguiu salvar a perna do rapaz. O joelho estava longe de poder ser curado. Se há alguém a culpar, é o palerma do pai dele. Willas Tyrell estava tão verde quanto seu sobretudo e não devia andar em tais companhias. A Flor Gorda atirou-o para torneios numa idade tenra demais, assim como fez com os outros dois. Queria outro Leo Grande-Espinho, e arranjou um aleijado.
- Há quem diga que Sor Loras é melhor do que Leo Grande-Espinho jamais foi - disse Tyrion.
- A rosinha de Renly? Duvido.
- Duvide quanto quiser - disse Tyrion -, mas Sor Loras derrotou muitos bons cavaleiros, incluindo meu irmão Jaime.
- Por derrotar quer dizer derrubar do cavalo, num torneio. Diga-me quem ele matou em batalha, caso queira me assustar.
- Sor Robar Royce e Sor Emmon Cuy, para dar dois exemplos. E os homens dizem que realizou prodigiosos feitos de valor na Água Negra, lutando ao lado do fantasma de Lorde Renly.
- Então os mesmos homens que viram os prodigiosos feitos viram também o fantasma, foi? - O dornês soltou uma leve gargalhada.
Tyrion olhou-o por um longo tempo.
- A casa de Chataya na Rua da Seda tem várias garotas que podem se adequar às suas necessidades. Dancy tem cabelos da cor do mel. Os de Marie são de um branco-louro muito claro. Aconselharia que você mantivesse uma ou outra permanentemente ao seu lado, senhor.
- Permanentemente? - o Príncipe Oberyn ergueu uma sobrancelha fina e negra. - E por que, meu bom Duende?
- Disse que deseja morrer com um seio na mão. - Tyrion avançou a meio galope para onde as balsas esperavam, na margem sul do Água Negra. Suportara tudo que pretendia suportar daquilo que passava por sagacidade em Dorne. No fim, o pai devia ter enviado Joffrey. Ele poderia ter perguntado ao Príncipe Oberyn se sabia em que um dornês diferia de uma cagada de vaca. Aquilo fez Tyrion sorrir, a contragosto. Faria questão de estar presente quando a Víbora Vermelha fosse apresentada ao rei.
O homem no telhado foi o primeiro a morrer. Estava agachado junto à chaminé, a duzentos metros de distância, não mais do que uma vaga sombra na escuridão que antecedia a alvorada, mas quando o céu começou a clarear, agitou-se, espreguiçou-se e ficou em pé. A flecha de Anguy acertou seu peito. Tombou sem força do íngreme degrau de ardósia e caiu diante da porta da septeria.
Os Saltimbancos tinham colocado ali dois guardas, mas o archote deixara-os cegos para a noite, e os fora da lei tinham se arrastado para perto. Kyle e Notch dispararam ao mesmo tempo. Um homem caiu com uma flecha espetada na garganta, o outro, com uma na barriga. O segundo homem deixou o archote cair e as chamas lamberam-no. Soltou um grito quando sua roupa pegou fogo, e isso foi o fim do avanço furtivo. Thoros gritou, e os fora da lei atacaram a sério.
Arya observou de cima do cavalo, no topo da cumeeira arborizada que se elevava diante da septeria, do moinho, da cervejaria, dos estábulos e da desolação de ervas daninhas, árvores queimadas e lama que os rodeavam. As árvores já estavam praticamente nuas, e as poucas folhas marrons e enrugadas que ainda se agarravam aos galhos pouco faziam para obstruir sua visão. Lorde Beric tinha colocado Dick Sem Barba e Mudge de guarda. Arya detestava ser deixada para trás como se fosse alguma criança estúpida, mas pelo menos Gendry também fora mantido ali. Sabia que não devia tentar discutir. Aquilo era uma batalha, e numa batalha era preciso obedecer.
O horizonte a leste transformou-se num clarão de ouro e rosa, e por cima de sua cabeça uma meia-lua espreitou por detrás de nuvens baixas e rápidas. O vento soprava frio, e Arya ouvia o som de água corrente e o ranger da grande roda de madeira do moinho. Havia um cheiro de chuva no ar da alvorada, mas as gotas ainda não caíam. Flechas incendiárias levantaram voo através da névoa da manhã, seguidas por pálidas fitas de fogo, e foram se espetar com um ruído surdo nas paredes de madeira da septeria. Algumas penetraram através de janelas fechadas e, em pouco tempo, finos anéis de fogo começavam a subir através das venezianas perfuradas.
Dois Saltimbancos irromperam lado a lado da septeria, de machado nas mãos. Anguy e os outros arqueiros estavam à espera. Um dos homens morreu de imediato. O outro conseguiu se esquivar, e a flecha rasgou seu ombro. O homem avançou cambaleando, até que mais duas flechas o atingiram, tão depressa que era difícil dizer qual delas foi a primeira. As longas hastes perfuraram sua placa de peito como se fosse feita de seda em vez de aço. Caiu pesadamente. Anguy tinha flechas de ponta larga, mas também possuía outras, com furadores nas pontas. Estes eram capazes de perfurar até placa pesada. Vou aprender a disparar um arco, pensou Arya. Adorava esgrima, mas notava também como as flechas eram boas.
Chamas escalavam a parede oeste da septeria, e uma fumaça espessa jorrava de uma janela quebrada. Um besteiro de Myr esticou a cabeça através de outra janela, disparou um dardo e se agachou de novo para recarregar a arma. Arya também ouvia sons de luta vindos dos estábulos, gritos misturados com os relinchos dos cavalos e o tinir do aço. Matem-nos todos, pensou, com ferocidade. Mordeu o lábio com tanta força que sentiu o gosto do sangue. Não deixem ficar nem um.
O besteiro voltou a aparecer, mas, assim que disparou, três flechas passaram silvando por sua cabeça. Uma chocalhou contra seu elmo. O homem desapareceu, com besta e tudo. Arya via chamas em várias das janelas do segundo andar. Entre a fumaça e a névoa matinal, o ar era uma neblina de preto e branco soprada pelo vento. Anguy e os outros arqueiros estavam se aproximando, a fim de melhor ver os alvos.
Então a septeria entrou em erupção, com os Saltimbancos saltando para o exterior como formigas irritadas. Dois ibbeneses correram pela porta, com escudos marrons e felpudos erguidos bem alto à frente, atrás deles veio um dothraki com um grande arakh curvo e sineta na trança, e, atrás deste, surgiram três mercenários volantenos cobertos de ferozes tatuagens. Outros saltavam por janelas e pulavam para o chão. Arya viu um homem com uma perna passada sobre o parapeito de uma janela ser atingido por uma flecha no peito, e ouviu-o gritar quando caiu. A fumaça estava se tornando mais espessa. Dardos e flechas voavam para todos os lados. Watty caiu com um grunhido, e o arco escorregou de sua mão. Kyle estava tentando encaixar outra flecha em seu arco quando um homem vestido de cota de malha negra trespassou sua barriga com uma lança. Arya ouviu Lorde Beric gritar. E o resto de seu bando jorrou de entre as árvores e das valas, de aço na mão. Viu o luminoso manto amarelo de Limo esvoaçando atrás dele enquanto seu dono abatia o homem que havia matado Kyle. Thoros e Lorde Beric encontravam-se por toda a parte, com as espadas num rodopio de fogo. O sacerdote vermelho golpeou um escudo de peles até que este se desfez em pedaços, enquanto seu cavalo escoiceava o rosto do homem. Um dothraki gritou e atacou o senhor do relâmpago, e a espada flamejante saltou para deter seu arakh. As lâminas beijaram-se, rodopiaram e voltaram a se beijar. Então os cabelos do dothraki pegaram fogo e, um momento mais tarde, ele estava morto. Arya viu também Ned, lutando ao lado do senhor do relâmpago. Não é justo, ele é só um pouco mais velho do que eu, deviam ter me deixado lutar.
A batalha não durou muito tempo. Os Bravos Companheiros que continuavam de pé rapidamente morreram ou jogaram fora as espadas. Dois dos dothraki conseguiram recuperar os cavalos e fugiram, mas só porque Lorde Beric os deixou ir.
- Que levem a notícia a Harrenhal - disse, com a espada em chamas na mão. - Dará ao Senhor Sanguessuga e ao seu bode mais algumas noites sem dormir.
Jack Sortudo, Harwin e Merrit de Vilalua enfrentaram a septeria incendiada em busca de cativos. Emergiram da fumaça e das chamas alguns momentos mais tarde, com oito irmãos pardos, um dos quais tão fraco que Merrit teve de transportá-lo no ombro. Havia também um septão com eles, de ombros curvados e perdendo os cabelos, mas trajando cota de malha negra sobre suas vestes cinzentas.
- Encontrei-o escondido debaixo dos degraus do porão - disse Jack, tossindo.
Thoros sorriu ao vê-lo.
- Você é Utt.
- O Septão Utt. Um homem de deus.
- Que deus ia querer um homem como você? - rosnou Limo.
- Pequei - choramingou o septão. - Eu sei. Eu sei. Perdoe-me, Pai. Oh, como pequei gravemente.
Arya lembrava-se do Septão Utt dos tempos passados em Harrenhal. Shagwell, o Bobo, dizia que ele chorava e rezava sempre por perdão depois de matar o seu garoto mais recente. Às vezes até obrigava os outros Saltimbancos a flagelá-lo. Todos achavam aquilo muito divertido.
Lorde Beric enfiou a espada na bainha, abafando as chamas.
- Deem aos moribundos a dádiva da misericórdia e amarrem os pés e as mãos dos demais, para o julgamento - ordenou, e a ordem foi cumprida.
Os julgamentos foram rápidos. Vários dos fora da lei avançaram para contar coisas que os Bravos Companheiros tinham feito; vilas e aldeias saqueadas, colheitas incendiadas, mulheres violadas e assassinadas, homens mutilados e torturados. Alguns falaram dos rapazes que o Septão Utt tinha dado cabo. O septão chorou e rezou durante todo o julgamento.
- Sou um fraco caniço - disse ao Lorde Beric. - Rezo ao Guerreiro por força, mas os deuses fizeram-me fraco. Tenha misericórdia de minha fraqueza. Os rapazes, os doces rapazes... nunca pretendi lhes fazer mal...
O Septão Utt logo acabou pendurado pelo pescoço, sob um grande olmo, balançando lentamente, nu como no dia de seu nascimento. Os outros Bravos Companheiros seguiram-no, um por um. Alguns lutaram, esperneando e se contorcendo enquanto o laço era apertado em volta de sua garganta. Um dos besteiros não parava de gritar "Eu soldado, eu soldado", com um denso sotaque de Myr. Outro ofereceu-se para levar seus captores a um local onde havia ouro; um terceiro explicou-lhes como daria um bom fora da lei. Todos foram despidos, atados e enforcados. Tom Sete-Cordas tocou uma canção fúnebre para eles em sua harpa, e Thoros implorou ao Senhor da Luz para assar suas almas até o fim dos tempos.
Uma árvore de saltimbancos, pensou Arya ao vê-los pendurados, com a pele branca pintada de um vermelho lúgubre pelas chamas da septeria incendiada. Os corvos já se aproximavam, vindos de lugar nenhum. Ouviu-os crocitando e cacarejando uns para os outros, e sentiu curiosidade em saber o que estariam dizendo. Arya não temera tanto o Septão Utt como Rorge, Dentadas e alguns outros em Harrenhal, mesmo assim estava satisfeita por ele estar morto. Também deviam ter enforcado ou cortado a cabeça do Cão de Caça. Em vez disso, para seu grande descontentamento, os fora da lei trataram o braço queimado de Sandor Clegane, devolveram-lhe a espada, o cavalo e a armadura, e libertaram-no a alguns quilômetros de distância do monte oco. Tudo que tiraram dele foi o ouro.
Em pouco tempo, a septeria ruiu, num estrondo de fumaça e chamas, quando as paredes deixaram de sustentar seu pesado telhado de ardósia. Os oito irmãos pardos observavam com resignação. Eram os que restavam, explicou o mais velho, que usava um pequeno martelo de ferro pendurado em uma correia em volta do pescoço, para simbolizar sua devoção ao Ferreiro.
- Antes da guerra éramos quarenta e quatro, e este lugar era próspero. Tínhamos uma dúzia de vacas leiteiras e um touro, cem colmeias, um vinhedo e um pomar de maçãs. Mas quando os leões chegaram, levaram todo o nosso vinho, mel e leite, abateram as vacas e entregaram o vinhedo à tocha. Depois disso... perdi a conta dos nossos visitantes. Esse falso septão foi apenas o último. Houve um monstro... demos-lhe toda a nossa prata, mas ele tinha certeza de que tínhamos ouro escondido, por isso seus homens mataram-nos um por um para fazer o Irmão Mais Velho falar.
- Como foi que vocês oito sobreviveram? - perguntou Anguy, o Arqueiro.
- Estou envergonhado - disse o velho. - Fui eu. Quando chegou a minha vez de morrer, disse-lhes onde o ouro estava escondido.
- Irmão - disse Thoros de Myr -, a única vergonha foi não lhes dizer imediatamente.
Naquela noite, os fora da lei abrigaram-se na cervejaria junto do pequeno rio. Seus anfitriões tinham um esconderijo cheio de comida sob o chão dos estábulos, e partilharam um jantar simples; pão de aveia, cebolas e uma sopa de couves aguada que tinha um leve gosto de alho. Arya encontrou uma fatia de cenoura flutuando na sua tigela e considerou-se sortuda. Os irmãos nunca perguntaram os nomes aos fora da lei. Eles sabem, pensou Arya. Como podiam não saber? Lorde Beric usava o relâmpago na placa de peito, no escudo e no manto, e Thoros trazia suas vestes vermelhas, ou aquilo que delas restava. Um irmão, um jovem noviço, foi suficientemente ousado para dizer ao sacerdote vermelho para não rezar ao seu falso deus enquanto se encontrasse sob o seu teto.
- Que se dane com isso - disse Limo Manto Limão. - Ele também é o nosso deus, e vocês devem a nós suas miseráveis vidas. E o que tem ele de falso? Seu Ferreiro pode reparar uma espada quebrada, mas será que consegue reparar um homem quebrado?
- Basta, Limo - ordenou Lorde Beric. - Sob o teto deles, honraremos as regras deles.
- O sol não deixará de brilhar se pularmos uma prece ou duas - concordou brandamente Thoros. - Se alguém sabe disso, sou eu.
O próprio Lorde Beric não comeu. Arya nunca o vira comer, embora de tempos em tempos bebesse uma taça de vinho. Tampouco parecia dormir. O seu olho bom fechava-se com frequência, como que devido ao cansaço, mas quando se falava com ele, voltava a se abrir de imediato. O Senhor da Marcha continuava vestido com o seu maltrapilho manto negro e sua placa de peito amassada, com o relâmpago de esmalte lascado. Até dormia com aquela placa de peito. O baço aço negro escondia o terrível ferimento que Cão de Caça provocara nele, da mesma forma que seu espesso cachecol de lã ocultava o anel escuro que tinha em volta da garganta. Mas nada escondia a cabeça rachada, com um grande buraco na têmpora, ou o poço vermelho em carne viva que era o olho que lhe faltava, ou a forma do crânio sob o seu rosto.
Arya olhou-o com prudência, recordando todas as histórias que se contavam dele em Harrenhal. Lorde Beric pareceu sentir seu medo. Virou a cabeça e fez-lhe sinal para se aproximar.
- Eu a assusto, pequena?
- Não. - Arya mordeu o lábio. - É só que... bem... pensei que o Cão de Caça tinha matado você, mas...
- Um ferimento - disse Limo Manto Limão. - Um ferimento grave, sim, mas Thoros curou-o. Nunca existiu curandeiro melhor.
Lorde Beric fitou Limo com uma expressão estranha no olho bom e nenhuma expressão no outro, só cicatrizes e sangue seco.
- Não há melhor curandeiro - concordou num tom fatigado. - Limo, já passa da hora de trocar a guarda, creio eu. Trate disso, por favor.
- Sim, senhor. - O comprido manto amarelo de Limo rodopiou atrás dele ao penetrar na noite ventosa.
- Até os homens corajosos se cegam, às vezes, quando têm medo de ver - disse Lorde Beric depois de Limo partir, - Thoros, quantas vezes já me trouxe de volta?
O sacerdote vermelho inclinou a cabeça.
- E R'hllor quem o traz de volta, senhor. O Senhor da Luz. Eu sou apenas o seu instrumento.
- Quantas vezes? - insistiu Lorde Beric.
- Seis - disse Thoros com relutância. - E é cada vez mais difícil. Tornou-se imprudente, senhor. A morte é assim tão encantadora?
- Encantadora? Não, meu amigo. Encantadora, não.
- Então não a corteje tanto. Lorde Tywin lidera a partir da retaguarda. Lorde Stannis também. O senhor seria sensato se fizesse o mesmo. Uma sétima morte pode significar o fim de nós dois.
Lorde Beric tocou o local por cima da orelha esquerda, onde a têmpora tinha uma reentrância.
- Foi aqui que Sor Burton Crakehall quebrou meu elmo e minha cabeça com um golpe da sua maça. - Tirou o cachecol, expondo a ferida negra que emoldurava seu pescoço. - Esta é a marca que a mantícora fez nas Cataratas Impetuosas. Prendeu um pobre criador de abelhas e a mulher dele, julgando que eram dos meus, e divulgou por todo lado que os enforcaria, a menos que eu me entregasse. Quando fiz isso, enforcou-os mesmo assim, e a mim também, na forca do meio. - Ergueu um dedo para o poço vermelho do seu olho. - Foi aqui que a Montanha enfiou o punhal através de meu visor. - Um sorriso cansado roçou seus lábios. - Com isso, foram três vezes que morri pelas mãos da Casa Clegane. Seria de se imaginar que eu teria aprendido...
Arya sabia que era uma brincadeira, mas Thoros não riu. Apoiou uma mão no ombro de Lorde Beric.
- É melhor não pensar muito nisso.
- Será que eu posso pensar naquilo que quase não recordo? Antigamente tive um castelo na Marca, e houve uma mulher com quem estava prometido que me casasse, mas hoje não conseguiria encontrar esse castelo nem dizer a cor dos cabelos dessa mulher. Quem me armou cavaleiro, velho amigo? Quais eram os meus pratos preferidos? Tudo se desvanece. Às vezes penso que nasci na relva ensanguentada daquele bosque de freixos, com o sabor de fogo na boca e um buraco no peito. Você é a minha mãe, Thoros?
Arya fitou o sacerdote de Myr, todo ele cabelo desgrenhado, farrapos cor-de-rosa e partes de velhas armaduras. Uma barba rala grisalha cobria suas faces e a pele solta por baixo do queixo. Não se parecia muito com os feiticeiros das histórias da Velha Ama, mas mesmo assim...
- Poderia trazer de volta um homem sem cabeça? - perguntou Arya. - Só uma vez, não sei. Poderia fazer isso?
- Não tenho magia, filha. Só preces. Daquela primeira vez, sua senhoria tinha um buraco que atravessava seu corpo e sangue na boca, eu sabia que não havia esperança. Portanto, quando seu pobre peito rasgado parou de se mover, dei-lhe o beijo do bom deus para encaminhá-lo. Enchi a boca com fogo e soprei as chamas para dentro dele, através de sua garganta, para pulmões, coração e alma. Chama-se o último beijo, e vi muitas vezes os velhos sacerdotes concedendo-o aos servos do Senhor quando estes morriam. Eu mesmo o tinha dado uma ou duas vezes, como todos os sacerdotes têm de fazer. Mas nunca antes tinha sentido um morto estremecer enquanto o fogo o enchia, nem visto seus olhos se abrirem. Não fui eu quem o convocou, senhora. Foi o Senhor. R'hllor ainda pretende algo dele. A vida é calor, e o calor é fogo, e o fogo é de Deus e só de Deus.
Arya sentiu lágrimas subindo aos seus olhos. Thoros tinha usado muitas palavras, mas tudo que queriam dizer era não, pelo menos isso compreendeu.
- Seu pai era um homem bom - disse Lorde Beric. - Harwin contou-me muitas coisas sobre ele. Por ele, eu de bom grado renunciaria ao seu resgate, mas necessitamos muito desesperadamente de ouro.
Arya mordeu o lábio. Isso é verdade, suponho. Sabia que ele tinha dado o ouro do Cão de Caça ao Barba-Verde e ao Caçador, para comprarem provisões a sul do Vago.
- A última colheita foi queimada, esta está se afogando, e o inverno chegará em breve - ouviu-o dizer quando os enviara. - O povo precisa de cereais e sementes, e nós precisamos de lâminas e cavalos. Muitos de meus homens montam cavalos ronceiros ou de puxar carreta e mulas contra inimigos montados em corcéis e cavalos de batalha.
Mas Arya não sabia quanto Robb pagaria por ela. Ele agora era um rei, não o rapaz que deixara em Winterfell, com neve derretendo nos cabelos. E se soubesse das coisas que ela tinha feito, do cavalariço e do guarda em Harrenhal e tudo isso...
- E se meu irmão não quiser me resgatar?
- Por que pensaria numa coisa dessas? - perguntou Lorde Beric.
- Bem - disse Arya - Meus cabelos estão uma bagunça, minhas unhas, sujas e meus pés estão duros. - Robb não se importaria com isso, provavelmente, mas a mãe se importaria. A Senhora Catelyn sempre quis que ela fosse como Sansa, que cantasse, dançasse, costurasse e seguisse os bons modos. Só de pensar nisso, Arya tentou pentear os cabelos com os dedos, mas eram só nós e embaraçamentos e tudo que conseguiu foi arrancar um pouco deles. - Estraguei aquele vestido que a Senhora Smallwood me deu, e não costuro lá muito bem. - Mordeu o lábio. - Não costuro particularmente bem, quero dizer. A Septã Mordane costumava dizer que eu tinha mãos de ferreiro.
Gendry soltou uma gargalhada.
- Essas coisinhas moles? - gritou. - Nem sequer conseguiria pegar num martelo.
- Conseguiria se quisesse! - respondeu, furiosa.
Thoros soltou um risinho.
- Seu irmão pagará, filha. Quanto a isso, não tenha medo.
- Sim, mas e se não pagar? - insistiu ela.
Lorde Beric suspirou.
- Então vou mandá-la durante algum tempo para junto da Senhora Smallwood, ou talvez para o meu castelo de Portonegro. Mas estou certo de que isso não será necessário. Assim como Thoros, não tenho o poder para trazer seu pai de volta, mas posso pelo menos tratar de devolvê-la em segurança aos braços de sua mãe.
- Jura? - perguntou-lhe. Yoren também prometeu levá-la para casa, mas em vez disso tinha se deixado matar.
- Pela minha honra como cavaleiro - disse solenemente o senhor do relâmpago.
Estava chovendo quando Limo voltou à cervejaria, resmungando pragas enquanto a água escorria de seu manto amarelo e ia se acumular em poças no chão. Anguy e Jack Sortudo estavam sentados perto da porta, jogando dados, mas não importa o jogo que jogavam, o zarolho do Jack não tinha sorte nenhuma. Tom Sete-Cordas substituiu uma corda em sua harpa e cantou "As lágrimas de mãe", "Quando a mulher de Willum se molhou", "Lorde Harte partiu num dia de chuva" e então "As chuvas de Castamere".
E quem é você, disse o altivo senhor,
pra que a vénia seja profunda?
Só um gato com um manto diferente,
essa é a verdade fecunda.
Num manto de ouro ou num manto vermelho,
suas garras um leão mantém,
E as minhas são longas e afiadas, senhor,
como o senhor as tem também.
E assim falou, e assim conversou,
o senhor de Castamere
Mas agora a chuva chora no seu salão,
e ninguém está lá para a ver.
Sim, agora a chuva chora no seu salão,
e ninguém está lá para a ver.
Por fim, Tom ficou sem canções de chuva e pôs de lado a harpa. Então ouviu-se apenas o som da própria chuva tamborilando no telhado de ardósia da cervejaria. O jogo de dados terminou, e Arya equilibrou-se numa perna e depois na outra, escutando as queixas de Merrit a respeito de seu cavalo ter perdido uma ferradura.
- Eu poderia ferrá-lo - disse Gendry de repente. - Era só um aprendiz, mas o mestre dizia que minha mão tinha sido feita para segurar um martelo. Sei ferrar cavalos, fechar buracos em cotas de malha e tirar amassados de armaduras. Aposto que também conseguiria fazer espadas.
- O que você está dizendo, rapaz? - perguntou Harwin.
- Posso ser o seu ferreiro. - Gendry ajoelhou-se perante Lorde Beric. - Se me aceitar, senhor, poderia ser útil. Já fiz ferramentas e facas, e uma vez fiz um elmo que não era muito ruim. Um dos homens da Montanha roubou-o quando fomos capturados.
Arya mordeu o lábio. Ele também quer me abandonar.
- Estaria melhor servindo Lorde Tully, em Correrrio - disse Lorde Beric. - Não posso pagar por seu trabalho.
- Ninguém nunca pagou. Quero uma forja e comida e um lugar onde possa dormir. Isso basta, senhor.
- Um ferreiro é bem-vindo em quase todo lado. Um armeiro experiente, ainda mais. Por que você preferiria ficar conosco?
Arya viu Gendry franzir seu estúpido rosto, pensando.
- No monte oco, o que disse sobre serem homens do Rei Robert, e irmãos, eu gostei disso. Gostei de ter oferecido ao Cão de Caça um julgamento. Lorde Bolton só enforcava as pessoas, ou cortava a cabeça delas, e Lorde Tywin e Sor Amory eram iguais. Preferiria trabalhar de ferreiro para o senhor.
- Temos muita malha precisando de conserto, senhor. - recordou Jack ao Lorde Beric. - A maior parte foi tirada dos mortos, e há buracos por onde a morte a atravessou.
- Deve ser um retardado, rapaz - disse Limo. - Nós somos fora da lei. Ralé de baixo nascimento, na maioria, exceto sua senhoria. E não pense que será como nas canções bestas de Tom. Não vai andar roubando beijos de uma princesa, nem entrando em torneios com uma armadura roubada. Caso se junte a nós, vai acabar com uma corda no pescoço, ou a cabeça exposta em algum portão de castelo.
- É a mesma coisa que fariam por você - disse Gendry.
- Bem, é verdade - disse Jack Sortudo num tom alegre. - Os corvos esperam por todos nós. Senhor, o rapaz parece ter bastante coragem, e precisamos daquilo que nos traz. O Jack diz: aceite-o.
- E depressa - sugeriu Harwin com um risinho -, antes que a febre passe e ele recupere o juízo.
Um sorriso abatido atravessou os lábios de Lorde Beric.
- Thoros, a minha espada.
Daquela vez o senhor do relâmpago não incendiou a lâmina e limitou-se a apoiá-la levemente no ombro de Gendry.
- Gendry, jura perante os olhos dos deuses e dos homens defender aqueles que não podem defender a si mesmos, proteger todas as mulheres e crianças, obedecer aos seus capitães, ao seu suserano e ao seu rei, lutar bravamente quando necessário e desempenhar as demais tarefas que lhe sejam atribuídas, por mais duras, humildes ou perigosas que possam ser?
- Juro, senhor.
O Senhor da Marcha passou a espada do ombro direito para o esquerdo e disse:
- Levante-se, Sor Gendry, cavaleiro do monte oco, e seja bem-vindo à nossa irmandade.
Da porta, chegou uma gargalhada rude e áspera.
A chuva pingava dele. Seu braço queimado estava enrolado em folhas e linho e bem preso ao peito por uma tosca tipóia de corda, mas as queimaduras mais antigas que marcavam seu rosto cintilavam, negras e lisas, ao brilho da pequena fogueira dos fora da lei.
- Fazendo mais cavaleiros, Dondarrion? - disse o intruso num rosnado. - Devia matá-lo outra vez por causa disso.
Lorde Beric encarou-o friamente.
- Esperava que não o víssemos mais, Clegane. Como nos encontrou?
- Não foi difícil. Fizeram uma fumaceira tão grande que até de Vilavelha se veria.
- O que aconteceu com as sentinelas que coloquei?
A boca de Clegane torceu-se.
- Aqueles dois cegos? Talvez tenha matado ambos. O que faria se assim fosse?
Anguy prendeu uma corda no arco. Notch estava fazendo o mesmo.
- Deseja tanto assim morrer, Sandor? - perguntou Thoros. - Deve estar louco ou bêbado para nos seguir até aqui.
- Bêbado de chuva? Não me deixaram ouro suficiente para comprar uma taça de vinho, seus filhos da puta.
Anguy pegou uma flecha.
- Somos fora da lei. Os fora da lei roubam. Está nas canções, se pedir com jeitinho o Tom talvez lhe cante uma. Fique grato por não termos matado você.
- Venha tentar, Arqueiro. Arranco essa aljava da sua mão e enfio essas flechas pelo seu cuzinho sardento acima.
Anguy ergueu o arco, mas Lorde Beric levantou uma mão antes de ele ter oportunidade de disparar.
- Por que veio até aqui, Clegane?
- Para recuperar o que é meu.
- Seu ouro?
- O que mais poderia ser? Não foi pelo prazer de olhar para a sua cara, Dondarrion, devo dizer. Agora é mais feio do que eu. E também um cavaleiro ladrão, ao que parece.
- Dei-lhe uma nota em troca do ouro - disse calmamente Lorde Beric. - Uma promessa de pagamento para quando a guerra chegar ao fim.
- Limpei o cu com o seu papel. Quero o ouro.
- Não o temos. Mandei-o para o sul, com Barba-Verde e Caçador, para comprar cereais e sementes do lado de lá do Vago.
- Para alimentar todos aqueles cujas colheitas você queimou - disse Gendry.
- Ah, a história agora é essa? - Sandor Clegane soltou outra gargalhada. - Acontece que era isso mesmo que eu pretendia fazer com ele. Alimentar um monte de feios camponeses e suas crias piolhentas.
- Está mentindo - disse Gendry.
- Vejo que o rapaz tem boca. Por que acredita neles e não em mim? Não pode ser pela minha cara, ou pode? - Clegane olhou de relance para Arya. - Vai também armá-la cavaleira? A primeira menina de oito anos cavaleira?
- Tenho doze - mentiu Arya em voz alta - e podia ser cavaleira se quisesse. Também podia ter matado você, só que o Limo roubou a minha faca. - Lembrar-se daquilo ainda a deixava zangada.
- Queixe-se ao Limo, não a mim. E depois enfie o rabo entre as pernas e fuja. Sabe o que os cães fazem com lobos?
- Da próxima vez mato você mesmo. E mato também o seu irmão.
- Não. - Os olhos escuros dele estreitaram-se. - Isso não fará. - Virou-se de novo para Lorde Beric. - Olha, arme o meu cavalo cavaleiro. Ele nunca caga nos salões, e não dá mais coices do que a maioria, merece ser armado cavaleiro. A menos que também pretenda roubá-lo.
- É melhor subir nesse cavalo e ir embora - preveniu Limo.
- Irei com o meu ouro. O próprio deus que adora disse que não sou culpado...
- O Senhor da Luz devolveu-lhe a vida - declarou Thoros de Myr. - Não o proclamou a reencarnação de Baelor, o Abençoado. - O sacerdote vermelho desembainhou a espada, e Arya viu que Jack e Merrit também tinham desembainhado as deles. Lorde Beric ainda segurava a lâmina que usara para armar Gendry. Talvez dessa vez o matem.
A boca do Cão de Caça voltou a se torcer.
- Não são mais do que ladrões comuns.
Limo olhou-o fixamente.
- Seus amigos leões entram numa aldeia qualquer, roubam toda a comida e todas as moedas que conseguirem encontrar, e chamam isso deforragear. Os lobos também, portanto por que não nós? Ninguém o roubou, cão. Foi só bem forrageado.
Sandor Clegane olhou o rosto deles, um a um, como se estivesse tentando gravá-los todos na memória. Então saiu de volta para a escuridão e a chuva intensa de onde viera, sem proferir outra palavra. Os fora da lei ficaram na expectativa, questionando-se...
- É melhor eu verificar o que ele fez às nossas sentinelas. - Harwin espiou cuidadosamente pela porta antes de sair, a fim de se certificar de que Cão de Caça não estava só à espreita lá fora.
- E, de qualquer forma, como terá aquele maldito sacana arranjado todo aquele ouro? - disse Limo Manto Limão, para quebrar a tensão.
Anguy encolheu os ombros.
- Ele ganhou o torneio da Mão. Em Porto Real. - O arqueiro deu um sorriso. - Eu mesmo ganhei uma bela fortuna, mas depois conheci Dancy, Jayde e Alayaya. Ensinaram-me qual é o gosto do cisne assado e como tomar banho em vinho da Árvore.
- Deu cabo dele todo, foi? - riu Harwin.
- Todo não. Comprei estas botas e este excelente punhal.
- Devia era ter comprado alguma terra e tornado uma dessas moças do cisne assado numa mulher honesta - disse Jack Sortudo. - Arranjaria uma colheita de nabos e outra de filhos.
- Que o Guerreiro me proteja! Que desperdício seria transformar o ouro em nabos.
- Eu gosto de nabos - disse Jack, ofendido. - Agora mesmo bem que encararia um purezinho de nabo.
Thoros de Myr não prestou atenção às brincadeiras.
- Cão de Caça perdeu mais do que alguns sacos de moeda - refletiu. - Perdeu também seu dono e o canil. Não pode voltar para os Lannister, o Jovem Lobo nunca o acolheria, e também não é provável que o irmão o receba. Aquele ouro era tudo que lhe restava, parece.
- Inferno - disse Watty, o Moleiro. - Então ele com certeza virá nos assassinar quando estivermos dormindo.
- Não. - Lorde Beric tinha embainhado a espada. - Sandor Clegane mataria todos nós de bom grado, mas não enquanto dormíssemos. Anguy, amanhã vá para a retaguarda com o Dick Sem Barba. Se vir o Clegane ainda farejando atrás de nós, mate seu cavalo.
- E um bom cavalo - protestou Anguy.
- Sim - disse Limo. - É o maldito cavaleiro que deveríamos matar. Poderíamos usar aquele cavalo.
- Eu concordo com o Limo - disse Notch. - Deixe-me pôr penas no cão algumas vezes, desencorajá-lo um pouquinho.
Lorde Beric sacudiu a cabeça.
- Clegane conquistou a vida sob o monte oco. Não a roubarei dele.
- O senhor é sábio - disse Thoros aos outros. - Irmãos, um julgamento pela batalha é algo sagrado. Ouviram-me pedir a Rhllor para dar uma ajuda e viram o seu dedo ardente quebrar a espada de Lorde Beric, justo no momento em que ele se preparava para pôr fim em Clegane. Ao que parece, o Senhor da Luz ainda tem planos para o Cão de Caça de Joffrey.
Harwyn voltou depressa à cervejaria.
- Pé-de-Chouriço estava dormindo como uma pedra, mas inteiro.
- Espere até eu colocar as mãos nele - disse Limo. - Abro um novo olho do cu. Podia ter feito com que todos nós fôssemos mortos.
Ninguém descansou muito confortavelmente naquela noite, sabendo que Sandor Clegane se encontrava lá fora, no escuro, em algum lugar nas imediações. Arya enrolou-se perto do fogo, quente e aconchegada, mas o sono não queria vir. Tirou para fora a moeda que Jaqen Hghar lhe dera e enrolou os dedos em volta dela, mantendo-se deitada por baixo de seu manto. Segurá-la fazia com que se sentisse forte, recordando-se de como havia sido o fantasma de Harrenhal. Na época, ela podia matar com um murmúrio.
Mas Jaqen partiu. Abandonou-a. O Torta Quente também me deixou, e agora é o Gendry que está partindo. Lommy morreu, Yoren morreu, Syrio Forel morreu, até o pai morreu, e Jaqen deu-lhe uma estúpida moeda de ferro e desapareceu.
- Valar morghulis - murmurou suavemente, apertando tanto o punho que as duras arestas da moeda se enterraram na palma de sua mão. - Sor Gregor, Dunsen, Polliver, Raif, o Querido. Cócegas e Cão de Caça. Sor Ilyn, Sor Meryn, Rei Joffrey, Rainha Cersei. - Arya tentou imaginá-los depois de mortos, mas era difícil trazer seus rostos à memória. Conseguia ver Cão de Caça, assim como o irmão, a Montanha, e nunca se esqueceria do rosto de Joffrey, ou do da mãe dele... mas Raif, Dunsen e Polliver desvaneciam-se, e até Cócegas, cujo aspecto era tão banal.
O sono finalmente dominou-a, mas na noite fechada Arya acordou de novo, com uma sensação de formigamento. A fogueira reduzira-se a brasas. Mudge estava em pé, junto à porta, e havia outro guarda fazendo rondas lá fora. A chuva tinha parado, e ouviam-se lobos uivando. Tão perto, pensou, e tantos. Pelo barulho pareciam estar por toda a volta do estábulo, dezenas de animais, talvez centenas. Espero que comam o Cão de Caça. Recordou o que ele havia dito a respeito dos lobos e dos cães.
Chegada a manhã, o Septão Utt ainda oscilava sob a árvore, mas os irmãos pardos andavam pela chuva com pás, cavando covas rasas para os outros mortos. Lorde Beric agradeceu-lhes pelo alojamento da noite e pela refeição e deu-lhes um saco de veados de prata para ajudar na reconstrução. Harwin, o Luke Promissor e Watty, o Moleiro, saíram batendo o terreno, mas não foram encontrados nem lobos nem cães.
Arya estava apertando a correia de sua sela quando Gendry veio encontrá-la para lhe pedir desculpas. Ela pôs um pé no estribo e saltou para a sela, para poder olhá-lo de cima, e não de baixo. Podia fazer espadas em Correrrio para o meu irmão, pensou, mas o que disse foi:
- Se quer ser um estúpido cavaleiro fora da lei e acabar enforcado, por que é que devo me importar? Vou estar em Correrrio, a salvo, com o meu irmão.
Não houve chuva naquele dia, felizmente, e por uma vez avançaram depressa.
Bran
A torre erguia-se numa ilha, com a gêmea refletida nas calmas águas azuis. Quando o vento soprava, ondulações deslocavam-se pela superfície do lago, perseguindo-se umas às outras como crianças brincando. Carvalhos cresciam densos ao longo das margens, um bosque cerrado com um tapete de bolotas caídas por baixo de seus ramos. Depois das árvores ficava a aldeia, ou aquilo que dela restava.
Era a primeira aldeia que viam desde que estiveram nos montes. Meera tinha batido o terreno em frente, para se certificar de que não havia ninguém escondido entre as ruínas. Caminhando com prudência entre carvalhos e macieiras, com sua rede e lança na mão, espantou três veados vermelhos e fez os animais fugirem aos saltos por entre a vegetação rasteira. Verão viu o movimento repentino e imediatamente partiu para perseguir os animais. Bran viu o lobo gigante afastar-se aos saltos, e, por um momento, não havia nada que desejasse mais do que enfiar-se na pele dele e correr junto, mas Meera estava acenando para que avançassem. Relutantemente, deu as costas ao Verão e disse a Hodor para prosseguir até a aldeia. Jojen acompanhou-os.
Bran sabia que o terreno dali até a Muralha era composto por pastagens, campos incultos e colinas baixas e onduladas, prados nas terras altas e brejos nas baixas. Progrediriam muito mais facilmente do que nas montanhas que tinham ficado para trás, mas tanto espaço aberto deixava Meera inquieta.
- Sinto-me nua - confessou. - Não há lugar para nos escondermos.
- De quem é esta terra? - perguntou Jojen a Bran.
- Da Patrulha da Noite - respondeu este. - Esta é a Dádiva. A Nova Dádiva, e a norte dela fica a Dádiva de Brandon. - Meistre Luwin ensinara-lhe a história. - Brandon, o Construtor, deu toda a terra a sul da Muralha aos irmãos negros, dentro de uma distância de vinte e cinco léguas. Para o seu... para o seu sustento e suporte. - Sentiu-se orgulhoso por ainda se lembrar daquela parte. - Alguns meistres dizem que foi outro Brandon qualquer, não o Construtor, mesmo assim é a Dádiva de Brandon. Milhares de anos mais tarde, a Boa Rainha Alysanne visitou a Muralha em seu dragão Asaprata e achou a Patrulha da Noite tão corajosa que levou o Velho Rei a duplicar o tamanho de suas terras, até cinquenta léguas. Portanto, essa foi a Segunda Dádiva. - Fez um gesto com a mão. - Aqui. Tudo isto.
Bran via que ninguém vivia na aldeia havia longos anos. Todas as casas estavam desabando. Até a estalagem. Nunca fora grande coisa como estalagem, pelo aspecto, mas agora tudo que dela restava era uma chaminé de pedra e duas paredes rachadas, erguidas no meio de uma dúzia de macieiras. Uma crescia no meio da sala comum, onde uma camada de úmidas folhas marrons e maçãs em putrefação atapetava o chão. O ar estava pesado, com o cheiro que elas exalavam, um odor nauseabundo de sidra que era quase sufocante. Meera apunhalou algumas maçãs com sua lança para rãs, tentando encontrar alguma que ainda estivesse boa para comer, mas estavam todas marrons e bichadas.
Era um ponto pacífico, calmo, tranquilo e bonito, mas Bran achou que havia tristeza numa estalagem vazia, e Hodor pareceu sentir isso também.
- Hodor? - disse ele, com um ar confuso. - Hodor? Hodor?
- Esta terra é boa. - Jojen pegou um punhado de solo, desfazendo-o entre os dedos. - Uma aldeia, uma estalagem, uma fortaleza robusta no lago, todas essas macieiras... mas onde estão as pessoas, Bran? Por que abandonariam um lugar como este?
- Tinham medo dos selvagens - disse Bran. - Os selvagens passam por cima da Muralha ou atravessam as montanhas, para fazer incursões, roubar e levar mulheres. Se pegam alguém, transformam seu crânio numa taça para beber sangue, costumava dizer a Velha Ama. A Patrulha da Noite não é tão forte como foi nos tempos de Brandon ou da Rainha Alysanne, por isso mais selvagens conseguem passar. Os lugares próximos da Muralha começaram a ser atacados com tanta frequência que o povo se mudou para o sul, para as montanhas ou para as terras dos Umber, a leste da estrada do rei. O povo do Grande-Jon também era atacado, mas não tanto quanto as pessoas que costumavam viver na Dádiva.
Jojen Reed virou a cabeça devagar, ouvindo uma música que só ele era capaz de ouvir.
- Temos de nos abrigar aqui. Vem aí uma tempestade. Uma das grandes.
Bran olhou para o céu. Tinha sido um belo, revigorante e cristalino dia de outono, ensolarado e quase quente, mas era verdade que agora surgiam nuvens escuras a oeste, e o vento parecia estar aumentando.
- Não há telhado na estalagem e só há as duas paredes em pé - ressaltou. - Deveríamos ir para a fortaleza.
- Hodor - disse Hodor. Talvez estivesse de acordo.
- Não temos barco, Bran. - Meera remexeu ociosamente as folhas com a lança para rãs.
- Há um caminho elevado na água. Um caminho de pedra, escondido sob a água. Podíamos chegar lá a pé. - Eles podiam, pelo menos; Bran teria de ir de cavalinho nos ombros de Hodor, mas pelo menos assim ficaria seco.
Os Reed trocaram um olhar.
- Como sabe disso? - perguntou Jojen. - Já esteve aqui, meu príncipe?
- Não. A Velha Ama me contou. A torre tem uma coroa dourada, está vendo? - Apontou para o edifício. Viam-se manchas de tinta dourada descascando por toda a volta, nas ameias. - A Rainha Alysanne dormiu ali, e por isso pintaram os merlões de dourado em sua honra.
- Um caminho elevado? - Jojen estudou o lago. - Tem certeza?
- Absoluta - disse Bran.
Meera encontrou o início com bastante facilidade, depois de saber o que procurar; um caminho de pedra, com um metro de largura, projetado diretamente para dentro do lago. Levou os outros passo a passo, com toda a cautela, testando o caminho com a lança para rãs. Eles viram o local onde o caminho voltava a emergir, saindo da água para a ilha e transformando-se num curto lance de degraus de pedra que levavam à porta da fortaleza.
Trilha, degraus e porta estavam dispostos em linha reta, o que levava a pensar que o caminho elevado seguia direto, mas não era assim. Sob o lago, ele ziguezagueava, rodeando um terço da ilha antes de fazer uma curva brusca para o outro lado. As curvas eram traiçoeiras, e o longo caminho significava que qualquer um que se aproximasse estaria exposto durante muito tempo a tiros de flecha vindos da torre. Além disso, as pedras escondidas estavam cobertas de lodo e eram escorregadias; por duas vezes, Hodor quase pisou em falso e gritou "HODOR!", alarmado, antes de recuperar o equilíbrio. A segunda vez assustou fortemente Bran. Se Hodor caísse no lago com ele no cesto, podia muito bem se afogar, especialmente se o enorme cavalariço entrasse em pânico e se esquecesse de que Bran estava lá, como às vezes acontecia. Talvez devêssemos ter ficado na estalagem, debaixo da macieira, pensou, mas a essa altura era tarde demais.
Felizmente, não houve uma terceira vez, e a água nunca chegou a ultrapassar a cintura de Hodor, embora chegasse ao peito dos Reed. E não muito tempo depois estavam na ilha, subindo os degraus que levavam à fortaleza. A porta ainda era robusta, embora suas pesadas tábuas de carvalho tivessem se deformado com os anos e já não fosse possível fechá-la por completo. Meera abriu-a toda, fazendo as enferrujadas dobradiças de ferro gritar. O lintel era baixo.
- Abaixe, Hodor - disse Bran, e o cavalariço obedeceu, mas não o suficiente para evitar que Bran batesse a cabeça. - Isso doeu - protestou.
- Hodor - disse Hodor, endireitando-se.
Encontravam-se numa caixa-forte sombria, que mal tinha espaço para abrigar os quatro. Degraus esculpidos na parede interior da torre curvavam-se para cima à esquerda e para baixo à direita, por trás de grades de ferro. Bran olhou para cima e viu outra grade bem acima de sua cabeça. Um alçapão. Sentiu-se feliz por não haver ninguém agora lá em cima para despejar óleo fervente por cima deles.
As grades estavam trancadas, mas as barras de ferro encontravam-se vermelhas de ferrugem. Hodor agarrou a porta da esquerda e deu um puxão nela, grunhindo com o esforço. Nada aconteceu. Tentou empurrar, sem sucesso. Sacudiu as barras, chutou-as, empurrou-as com o ombro, chacoalhou-as e esmurrou as dobradiças com uma mão enorme até deixar o ar cheio de lascas de ferrugem, mas a porta de ferro não se movia. A que levava ao porão não se mostrou mais cooperante.
- Não há como entrar - disse Meera, encolhendo os ombros.
O alçapão ficava bem acima da cabeça de Bran, sentado ali em seu cesto às costas de Hodor. O garoto estendeu as mãos e agarrou-se às barras, para testá-las. Quando puxou para baixo, a grade desprendeu-se do teto, numa cascata de ferrugem e pedra esmigalhada.
- HODOR! - gritou Hodor. A pesada grade de ferro deu a Bran outra pancada na cabeça e caiu com estrondo junto aos pés de Jojen quando ele a afastou com as mãos.
Meera soltou uma gargalhada.
- Veja só, meu príncipe - disse -, você é mais forte do que Hodor. - Bran corou.
Com a grade fora do caminho, Hodor foi capaz de erguer Meera e Jojen através do alçapão escancarado. Os cranogmanos pegaram Bran pelos braços e puxaram-no também. Fazer Hodor entrar foi a parte difícil. Ele era pesado demais para os Reed o erguerem como tinham feito com Bran. Por fim, Bran disse-lhe para procurar algumas pedras grandes. Disso a ilha não tinha falta, e Hodor conseguiu empilhá-las até a altura suficiente para se agarrar às bordas esfareladas do alçapão e subir por ele.
- Hodor - ofegou em tom feliz, sorrindo para todos eles.
Viram-se num labirinto de pequenas celas, escuras e vazias, mas Meera explorou até encontrar o caminho de volta aos degraus. Quanto mais subiam, melhor era a luz; no terceiro andar a espessa parede exterior era perfurada por seteiras, o quarto tinha janelas de verdade e o quinto e último era um grande aposento redondo com portas em arco em três lados que se abriam para pequenas varandas de pedra. No quarto ao lado ficava uma latrina, empoleirada por cima de uma calha de escoamento que descarregava diretamente no lago.
Quando chegaram ao telhado, o céu estava completamente encoberto, e as nuvens para oeste mostravam-se negras. O vento soprava com tanta força que levantou o manto de Bran e fez com que ondulasse e batesse.
- Hodor - respondeu Hodor ao barulho.
Meera descreveu um círculo.
- Sinto-me quase uma gigante, aqui por cima do mundo.
- Há árvores no Gargalo que são duas vezes mais altas do que isto - lembrou-lhe o irmão.
- Sim, mas têm outras árvores em volta com a mesma altura - disse Meera. - O mundo no Gargalo é apertado, e o céu é muito menor. Aqui... sente este vento, irmão? E olhe como o mundo se tornou grande.
Era verdade, dali via-se a uma longa distância. A sul erguiam-se os sopés dos montes, com as montanhas cinzentas e verdes mais atrás. As planícies onduladas da Nova Dádiva estendiam-se a perder de vista em todas as outras direções.
- Tinha esperança de conseguirmos ver a Muralha daqui - disse Bran, desapontado. - Foi besteira, ainda devemos estar a cinquenta léguas de distância. - Só de falar nisso sentia-se cansado e com frio também. - Jojen, o que faremos quando chegarmos à Muralha? Meu tio contava sempre como ela é grande. Duzentos metros de altura, e tão espessa na base que os portões são como túneis abertos no gelo. Como é que vamos passar para ir à procura do corvo dos três olhos?
- Há castelos abandonados ao longo da Muralha, segundo ouvi dizer - respondeu Jojen. - Fortalezas construídas pela Patrulha da Noite, mas agora deixadas sem guarnição. Uma delas pode ser o caminho para passar.
A Velha Ama chamava-os de castelos fantasma. Uma vez, Meistre Luwin obrigara Bran a aprender o nome de todos os fortes ao longo da Muralha. Foi uma tarefa difícil; havia dezenove ao todo, embora não mais de dezessete tivessem tido, em algum momento, guarnição. No banquete dado por ocasião da visita do Rei Robert a Winterfell, Bran recitou os nomes para o tio Benjen, de leste para oeste e depois de oeste para leste. Benjen Stark riu e disse:
- Você os conhece melhor do que eu, Bran. Talvez devesse ser você o Primeiro Patrulheiro. Eu fico aqui no seu lugar. - Mas isso foi antes de Bran cair. Antes de ficar mutilado. Quando acordou aleijado de seu sono, o tio já tinha retornado para Castelo Negro.
- Meu tio dizia que os portões eram selados com gelo e pedras sempre que um castelo tinha de ser abandonado - disse Bran.
- Então teremos de abri-los de novo - disse Meera.
Aquilo deixou-o inquieto.
- Não devíamos fazer isso. Podem entrar coisas más vindas do outro lado. Devíamos simplesmente ir a Castelo Negro e dizer ao Senhor Comandante para nos deixar passar.
- Vossa Graça - disse Jojen temos de evitar Castelo Negro, tal como evitamos a estrada do rei. Há centenas de homens lá.
- Homens da Patrulha da Noite - disse Bran. - Eles prestam juramentos, de não participar de guerras ou algo parecido.
- Sim - disse Jojen mas bastaria um homem disposto a quebrar seu juramento para vender o seu segredo aos homens de ferro ou ao Bastardo de Bolton. E não temos certeza se a Patrulha concordaria em nos deixar passar. Podiam decidir nos reter ou nos mandar de volta.
- Mas meu pai era amigo da Patrulha da Noite, e meu tio é Primeiro Patrulheiro. Talvez ele saiba onde vive o corvo de três olhos. E Jon também está em Castelo Negro. - Bran acalentara a esperança de voltar a ver Jon e o tio. Os últimos irmãos negros a visitar Winterfell disseram que Benjen Stark tinha desaparecido durante uma patrulha, mas certamente já teria encontrado uma forma de voltar. - Aposto que a Patrulha até nos daria cavalos - prosseguiu.
- Silêncio. - Jojen fez sombra com a mão sobre os olhos e olhou na direção do sol poente. - Olhem. Há alguma coisa... um cavaleiro, parece. Conseguem vê-lo?
Bran também fez sombra com a mão sobre os olhos, e mesmo assim teve de semicerrá-los. A princípio nada viu, até que um movimento o fez virar-se. Pensou que poderia ser o Verão, mas não era. Um homem a cavalo. Estava afastado demais para conseguir ver muito mais do que isso.
- Hodor? - Hodor também tinha posto a mão sobre os olhos, mas estava olhando para o lugar errado. - Hodor?
- Ele não vem com pressa - disse Meera -, mas parece-me que se dirige para esta aldeia.
- E melhor irmos para dentro antes que sejamos vistos - disse Jojen.
- Verão está perto da aldeia - objetou Bran.
- Verão vai ficar bem - prometeu Meera. - E só um homem montado num cavalo cansado.
Algumas gotas gordas começaram a bater contra a pedra na hora em que o grupo se retirava para o andar inferior. O momento foi bem escolhido; a chuva começou a cair forte pouco tempo depois. Conseguiam ouvi-la vergastando a superfície do lago mesmo através das espessas paredes. Sentaram-se no chão da sala redonda e vazia, no meio das sombras que aumentavam. A varanda virada para o norte dava para a aldeia abandonada. Meera rastejou até lá fora, para espreitar por sobre o lago e ver o que tinha acontecido ao cavaleiro.
- Ele abrigou-se nas ruínas da estalagem - disse-lhes quando voltou para dentro. - Parece que está fazendo uma fogueira na lareira.
- Gostaria que pudéssemos fazer o mesmo - disse Bran. - Estou com frio. Há mobília quebrada no fundo das escadas, eu vi. Poderíamos botar o Hodor para cortá-la e nos aquecermos.
Hodor gostou da ideia.
- Hodor - disse, em tom esperançoso.
Jojen sacudiu a cabeça.
- Fogo significa fumaça. Fumaça vinda desta torre pode ser vista a longa distância.
- Se houver alguém para ver - argumentou a irmã.
- Há o homem na aldeia.
- Um homem.
- Um homem seria o suficiente para levar Bran aos seus inimigos, se for o homem errado. Ainda temos meio pato que sobrou de ontem. Devíamos comer e descansar. Ao amanhecer, o homem seguirá caminho e nós faremos o mesmo.
Jojen conseguiu o que queria, - conseguia sempre. Meera dividiu o pato entre os quatro. Apanhara-o com sua rede no dia anterior, no momento em que a ave tentava levantar voo do charco onde foi surpreendida. Não era tão saboroso frio como havia sido quente e crocante, recém-saído do espeto, mas pelo menos não iriam passar fome. Bran e Meera dividiram o peito, enquanto Jojen comeu a sobrecoxa. Hodor devorou a asa e a coxa, murmurando "Hodor" e lambendo a gordura dos dedos após cada mordida. Era a vez de Bran de contar uma história, e falou-lhes de outro Brandon Stark, aquele que chamavam de Brandon, o Construtor Naval, o qual velejara para lá do Mar do Poente.
Caía o crepúsculo quando pato e história terminaram e a chuva continuava caindo. Bran perguntou a si mesmo se Verão estaria muito longe e se teria caçado algum dos veados.
Sombras cinzentas encheram a torre e, lentamente, foram se transformando em escuridão. Hodor ficou inquieto e começou a andar circulando as paredes, parando toda vez que passava pela latrina, para espiar lá dentro, como se tivesse se esquecido do que havia ali. Jojen ficou em pé, junto da varanda norte, escondido pelas sombras, olhando para a noite e para a chuva. Em algum lugar para o norte, um relâmpago ziguezagueou pelo céu, iluminando o interior da torre por um instante. Hodor deu um salto e soltou um ruído assustado. Bran contou até oito, à espera do trovão. Quando ele chegou, Hodor gritou:
- Hodor!
Espero que o Verão não esteja assustado também, pensou Bran. Os cães nos canis de Winterfell sempre assustavam-se com as trovoadas, assim como Hodor. Devia ir ver o companheiro, para acalmá-lo...
O relâmpago voltou a cair e dessa vez o trovão chegou aos seis.
- Hodor! - berrou de novo Hodor. - HODOR! HODOR! - Pegou a espada, como que para lutar com a tempestade.
Jojen disse:
- Quieto, Hodor. Bran, diga para ele não gritar. Consegue tirar a espada dele, Meera?
- Posso tentar.
- Hodor, chiu - disse Bran. - Fique calado. Chega desse estúpido hodorar. Sente-se.
- Hodor? - o grande homem entregou obedientemente a espada a Meera, mas seu rosto era uma máscara de confusão.
Jojen voltou a se virar para a escuridão, e todos o ouviram prender a respiração.
- O que se passa? - perguntou Meera.
- Homens na aldeia.
- O homem que vimos antes?
- Outros homens. Armados. Vi um machado e lanças também - Nunca antes Jojen tinha soado tanto como o garoto que era. - Vi-os quando o relâmpago caiu, em movimento entre as árvores.
- Quantos?
- Muitos e mais ainda. Demais para contar.
- Montados?
- Não.
- Hodor. - Hodor parecia assustado. - Hodor. Hodor.
Bran também se sentia um pouco assustado, embora não quisesse admitir isso na frente de Meera.
- E se vierem até aqui?
- Não virão. - Ela sentou-se a seu lado. - Por que viriam?
- Em busca de abrigo. - A voz de Jojen era lúgubre. - A menos que a tempestade passe. Meera, você pode ir até lá embaixo barrar a porta?
- Nem sequer conseguiria fechá-la. A madeira está deformada demais. Mas eles não passarão por aqueles portões de ferro.
- Podem passar. Podiam quebrar a fechadura, ou as dobradiças. Ou subir pelo alçapão, como nós fizemos.
Um relâmpago rasgou o céu e Hodor choramingou. Então, um grande trovão rolou por sobre o lago.
- HODOR - rugiu o cavalariço, apertando as orelhas com as mãos e andando em círculos e aos tropeções através das trevas. - HODOR! HODOR! HODOR!
- NÃO. - gritou-lhe Bran. - PARE DE HODORAR!
De nada serviu.
- HOOOODOR! - gemeu Hodor. Meera tentou segurá-lo e acalmá-lo, mas ele era forte demais. Atirou-a para o lado com apenas um encolher de ombros. - HOOOOOODOOOOOOOR! - gritou o cavalariço quando um relâmpago voltou a encher o céu, e agora até Jojen estava gritando, gritando para que Bran e Meera calassem Hodor.
- Fique quieto! - disse Bran numa voz esganiçada e assustada, tentando inutilmente alcançar a perna de Hodor quando ele passou ao seu lado, tentando alcançá-lo, tentando alcançá-lo.
Hodor vacilou e fechou a boca. Balançou lentamente a cabeça de um lado para o outro, deixou-se cair de novo no chão e sentou-se de pernas cruzadas. Quando o trovão ressoou, pareceu quase não ouvi-lo. Os quatro ficaram sentados na torre escura, quase sem se atreverem a respirar.
- Bran, o que você fez? - murmurou Meera.
- Nada. - Bran sacudiu a cabeça. - Não sei. - Mas sabia. Consegui alcançá-lo, da mesma forma que consigo alcançar o Verão. Bran tinha sido Hodor durante meio segundo. Aquilo assustava-o.
- Está acontecendo alguma coisa para lá do lago - disse Jojen. - Acho que vi um homem apontando para a torre.
Não vou ter medo. Ele era o Príncipe de Winterfell, filho de Eddard Stark, quase um homem-feito e, além disso, um warg, já não era um garotinho como Rickon. Verão não teria medo.
- O mais provável é que sejam homens dos Umber - disse. - Ou podem ser Knott, Norrey ou Flint descidos das montanhas, ou mesmo irmãos da Patrulha da Noite. Usavam mantos negros, Jojen?
- De noite, todos os mantos são negros, Vossa Graça. E o relâmpago apareceu e desapareceu depressa demais para eu ver o que vestiam.
Meera mostrava-se prudente.
- Se fossem irmãos negros, estariam montados, não é verdade?
Bran tinha pensado em outra coisa.
- Não importa - disse com confiança. - Eles não poderiam chegar até nós, mesmo se quisessem. A não ser que tenham um barco ou saibam do caminho pela água.
- O caminho elevado! - Meera esfregou os cabelos de Bran e beijou-o na testa. - Nosso querido príncipe! Ele tem razão, Jojen, esses homens não sabem do caminho elevado. E mesmo se soubessem, nunca o encontrariam à noite e na chuva.
- Mas a noite terminará. Se ficarem até de manhã... - Jojen deixou o resto por dizer. Uns momentos mais tarde, disse: - Eles estão alimentando a fogueira que o primeiro homem acendeu. - Um relâmpago cruzou o céu, e a luz encheu a torre e delineou-os nas sombras. Hodor balançava-se de um lado para o outro, cantarolando.
Bran conseguiu sentir o medo de Verão naquele instante luminoso. Fechou dois olhos e abriu um terceiro, e sua pele de garoto deslizou de cima de si como um manto ao deixar a torre para trás...
... e se ver na chuva, com a barriga cheia de veado, aninhando-se com medo na vegetação rasteira enquanto o céu se abria e ressoava por cima de si. O cheiro de maçãs podres e folhas molhadas quase afogava o odor dos homens, mas ele estava lá. Ouviu o tinir e deslizar da pele dura, viu homens se deslocando sob as árvores. Um homem com um pedaço de madeira e uma pele puxada por cima da cabeça passou por ele aos tropeções, deixando-o cego e surdo. O lobo rodeou-o a distância, por trás de um espinheiro que gotejava e por baixo dos ramos nus de uma macieira. Conseguia ouvi-los conversando, e sentiu, sob os odores de chuva, folhas e cavalo, o fedor vivo e vermelho do medo...
Jon
O terreno estava coberto de agulhas de pinheiro e folhas sopradas pelo vento, um tapete de verde e marrom ainda úmido das chuvas recentes. Esguichava água por baixo dos pés do grupo. Enormes carvalhos de ramos nus, altas sentinelas e tropas de pinheiros marciais erguiam-se por toda a volta. Numa colina acima deles, erguia-se outra torre redonda, antiga e vazia, com um espesso musgo verde escalando o seu lado quase até o cume.
- Quem construiu aquilo, assim, tudo em pedra? - perguntou-lhe Ygritte. - Algum rei?
- Não. Foram só os homens que viviam aqui.
- O que aconteceu com eles?
- Morreram ou foram embora. - A Dádiva de Brandon tinha sido cultivada durante milhares de anos, mas, conforme a Patrulha ia minguando, o número de mãos para arar os campos, cuidar das abelhas e plantar os pomares diminui, e assim a natureza reclamou o controle de muitos campos de cultivo e salões. Na Nova Dádiva houve aldeias e castros, cujos impostos, entregues em bens e trabalho, ajudavam a alimentar e vestir os irmãos negros. Mas essas também tinham desaparecido em grande parte.
- Foram tolos por deixar um castelo como este - disse Ygritte.
- É só uma casa-torre. Um pequeno fidalgo qualquer viveu aí um dia, com a família e alguns homens juramentados a ele. Quando chegavam assaltantes, acendia um farol no telhado. Winterfell tem torres três vezes maiores do que estas.
Ela olhou-o como se julgasse que Jon estava inventando aquilo.
- Como é possível que os homens construam tão alto, sem gigantes para levantar as pedras?
Segundo as lendas, Brandon, o Construtor, tinha usado gigantes para ajudar a erguer Winterfell, mas Jon não quis confundir as coisas.
- Os homens conseguem construir a alturas muito maiores do que esta. Em Vilavelha há uma torre mais alta do que a Muralha. - Percebeu que ela não acreditou no que ele dizia. Se pudesse lhe mostrar Winterfell... dar uma flor apanhada nos jardins de vidro, banqueteá-la no Grande Salão e mostrar os reis de pedra em seus tronos. Poderíamos tomar banho nas lagoas quentes e fazer amor à sombra da árvore-coração enquanto os deuses antigos nos vigiavam.
O sonho era agradável... mas Winterfell nunca seria seu para mostrar. Pertencia ao seu irmão, o Rei no Norte. Ele era um Snow, não um Stark. Bastardo, perjuro e vira-casaca...
- Talvez, depois a gente possa voltar para cá e viver naquela torre - disse ela. - Você gostaria, Jon Snow? Depois?
Depois. A palavra era uma estocada de lança. Depois da guerra. Depois da conquista. Depois de os selvagens abrirem uma brecha na Muralha...
Um dia, o senhor seu pai havia falado em fazer novos senhores e instalá-los nos castros abandonados como escudo contra os selvagens. O plano exigiria que a Patrulha cedesse uma grande parte da Dádiva, mas o tio Benjen acreditava que o Senhor Comandante podia ser persuadido a fazer isso, desde que os novos fidalgos pagassem impostos a Castelo Negro, e não a Winterfell.
- Mas é um sonho para a primavera - tinha dito Lorde Eddard. - Com o inverno chegando, nem mesmo a promessa de terras atrairia homens ao norte.
Se o inverno tivesse chegado e partido mais depressa e a primavera tivesse seguido seu curso, eu poderia ter sido escolhido para ocupar uma destas torres em nome de meu pai. Mas Lorde Eddard estava morto e seu irmão Benjen, desaparecido; o escudo que tinham sonhado juntos nunca seria forjado.
- Esta terra pertence à Patrulha - disse Jon.
As narinas dela dilataram-se.
- Ninguém vive aqui.
- Os seus corsários afugentaram-nos.
- Então eram covardes. Se queriam a terra, deviam ter ficado e lutado.
- Talvez estivessem cansados de lutar. Cansados de barrar as portas todas as noites, imaginando se Camisa de Chocalho ou alguém como ele as arrombaria para raptar suas mulheres. Fartos de verem as colheitas roubadas, juntamente com qualquer coisa de valor que possuíssem. É mais fácil ir viver fora do alcance de assaltantes. - Mas, se a Muralha cair, todo o Norte ficará ao alcance deles.
- Você não sabe nada, Jon Snow. São as filhas que são levadas, não as mulheres. São vocês que roubam. Roubaram o mundo inteiro e construíram a Muralha pra manter o povo livre fora dele.
- Ah, é? - às vezes, Jon se esquecia de quão selvagem ela era, e então Ygritte o lembrava disso. - Como foi que isso aconteceu?
- Os deuses fizeram a terra pra todos os homens partilharem. Mas aí os reis chegaram com suas coroas e espadas de aço e disseram que a terra era toda deles. "As árvores são minhas", disseram, "não podem comer as maçãs". "O riacho é meu, não podem pescar aqui. A floresta é minha, não podem caçar. A minha terra, a minha água, o meu castelo, a minha filha, mantenham as mãos longe, senão eu as corto, mas se vocês se ajoelharem, deixo vocês cheirarem." Chamam-nos de ladrões, mas ao menos um ladrão tem que ser corajoso, esperto e rápido. O tipo que ajoelha só tem que ajoelhar.
- Harma e Saco de Ossos não fazem incursões em busca de peixe e maçãs. Roubam espadas e machados. Especiarias, sedas e peles. Arrecadam todas as moedas, anéis e taças incrustadas de jóias que conseguem encontrar, barris de vinho no verão e barris de carne no inverno, e roubam mulheres em todas as estações e levam-nas para lá da Muralha.
- E daí se fazem isso? Cá pra mim, é melhor ser raptada por um homem forte do que ser dada a algum fracote pelo meu pai.
- É o que você diz, mas como é que sabe? E se fosse raptada por alguém que detestasse?
- Ele teria de ser rápido, astuto e bravo pra me raptar. Assim, nossos filhos também seriam fortes e espertos. Por que é que eu ia detestar um homem assim?
- Pode ser que ele nunca se lave, e cheire tão mal como um urso.
- Nesse caso, eu o empurraria pra dentro de um riacho ou atiraria um balde dagua nele. Seja como for, os homens não devem cheirar bem como flores.
- O que as flores têm de errado?
- Nada, pra uma abelha. Pra cama, eu quero um destes. - Ygritte tentou agarrar a parte da frente dos calções de Jon.
Este agarrou o pulso dela.
- E se o homem que a raptasse bebesse demais? - insistiu. - E se fosse brutal ou cruel? - Apertou com mais força, para dar peso ao argumento. - E se fosse mais forte do que você e gostasse de espancá-la até deixá-la em carne viva?
- Cortava a goela dele quando estivesse dormindo. Você não sabe nada, Jon Snow. - Ygritte retorceu-se como uma enguia e libertou-se dele.
Sei uma coisa. Sei que você é selvagem até os ossos. Às vezes era fácil se esquecer disso, quando estavam rindo juntos, ou beijando-se. Mas então um deles diria alguma coisa ou faria algo, e ele subitamente se lembraria da muralha que se erguia entre seus mundos.
- Um homem pode ser dono de uma mulher ou pode ser dono de uma faca - disse-lhe Ygritte -, mas nenhum homem pode ser dono das duas coisas. Todas as meninas aprendem isso com as mães. - Ergueu o queixo em desafio e sacudiu os espessos cabelos ruivos.
- E os homens não podem ser donos da terra, como não podem ser donos do mar ou do céu. Vocês, os ajoelhadores, pensam que são, mas o Mance vai mostrar outra coisa a vocês.
Era uma vanglória bela e corajosa, mas soava vazia. Jon deu um olhar de relance para trás, a fim de se certificar de que o Magnar não pudesse ouvi-lo. Errok, o Grande Furúnculo, e o Dan de Cânhamo caminhavam alguns metros atrás deles, mas não estavam prestando atenção na discussão. O Grande Furúnculo se queixava do traseiro.
- Ygritte - disse em voz baixa -, Mance não pode ganhar esta guerra.
- Claro que pode! - insistiu ela. - Você não sabe nada, Jon Snow. Nunca viu o povo livre lutar!
Os selvagens lutavam como heróis ou demônios, dependendo de quem contava a história, mas no fim das contas acabava dando no mesmo. Eles lutam com uma coragem intrépida, com todos os homens em busca de glória.
- Não duvido de que sejam todos muito corajosos, mas quando chega a hora da batalha, a disciplina sempre vence o valor. No fim, Mance falhará, como todos os Reis-para-lá-da-Muralha antes dele. E quando isso acontecer, morrerão. Todos vocês.
Ygritte pareceu tão zangada que Jon pensou que ela fosse bater nele.
- Todos nós - disse. - Você também. Agora já não é um corvo, Jon Snow. Eu jurei que não era, portanto é melhor não ser. - Empurrou-o contra o tronco de uma árvore e beijou-o em cheio nos lábios, bem ali, no meio da coluna desordenada. Jon ouviu Grigg, o Bode, dizer-lhe para continuar andando. Outra pessoa soltou uma gargalhada. Ele devolveu o beijo, apesar de tudo. Quando enfim se separaram, Ygritte estava corada. - E meu
- sussurrou. - Meu, como eu sou sua. E se morrermos, morremos. Todos os homens têm de morrer, Jon Snow. Mas, primeiro, vivemos.
- Sim. - A voz de Jon estava pesada. - Primeiro vivemos.
Ela sorriu ao ouvir aquilo, mostrando-lhe os dentes tortos que ele, sem saber como, acabara amando. Selvagem até o osso, pensou de novo, com uma sensação doentia e triste na boca do estômago. Dobrou os dedos da mão da espada e perguntou a si mesmo o que Ygritte faria se soubesse o que se passava em seu coração. Ela o trairia caso se sentasse com ela e lhe dissesse que ainda era filho de Ned Stark e um homem da Patrulha da Noite? Esperava que não, mas não se atrevia a correr esse risco. Vidas demais dependiam de sua capacidade para chegar a Castelo Negro antes do Magnar... partindo do princípio de que encontraria uma oportunidade de fugir dos selvagens.
Tinham descido a face sul da Muralha em Guardagris, um castelo abandonado havia duzentos anos. Uma seção dos enormes degraus de pedra tinha ruído havia um século, mesmo assim a descida foi bastante mais fácil do que a subida. Dali, Styr levou-os para o interior profundo da Dádiva, para evitar as habituais patrulhas dos homens de negro. Grigg, o Bode, guiou-os ao redor do punhado de aldeias habitadas que restavam naquelas terras. Além de umas poucas torres redondas que se projetavam para o céu como dedos de pedra, não viram sinal de homens. Marcharam por colinas úmidas e planícies ventosas, sem serem vigiados, sem serem vistos.
Não pode se recusar, não importa o que lhe seja solicitado, tinha dito o Meia-Mão. Cavalgue com eles, coma com eles, lute com eles, durante o tempo que for preciso. E ele cavalgara, ao longo de muitas léguas, e caminhara mais ainda, partilhara o pão e o sal deles e também as mantas de Ygritte, mas ainda assim não confiavam nele. Os Thenn observavam-no noite e dia, alertas a qualquer sinal de traição. Não conseguia se afastar, e logo seria tarde demais.
Lute com eles, disse Qhorin, antes de entregar a vida à Garralonga... mas ainda não havia chegado a esse ponto. Assim que derramar o sangue de um irmão, estou perdido. Então atravesso a Muralha para sempre, e não há caminho de volta.
Após a marcha de cada dia, o Magnar chamava-o para fazer perguntas astutas e perspicazes sobre Castelo Negro, sua guarnição e suas defesas. Jon mentia naquilo que se atrevia e às vezes fingia ignorância, mas Grigg, o Bode, e Errok também estavam ouvindo e eles sabiam o suficiente para deixar Jon cauteloso. Uma mentira evidente demais poderia traí-lo.
Mas a verdade era terrível. Castelo Negro não tinha defesas além da própria Muralha. Nem sequer possuía paliçadas de madeira ou diques de terra. O "castelo" nada mais era do que um aglomerado de torres e fortalezas, dois terços das quais estavam quase em ruínas. Quanto à guarnição, o Velho Urso levara duzentos homens em sua incursão. Teria algum regressado? Jon não tinha como saber. Talvez restassem quatrocentos no castelo, mas a maior parte desses homens era de construtores ou intendentes, não patrulheiros.
Os Thenns eram guerreiros tarimbados, e mais disciplinados do que um selvagem comum; fora sem dúvida por isso que Mance os escolhera. Os defensores de Castelo Negro incluiriam o cego Meistre Aemon e seu intendente meio cego Clydas, o Donal Noye, que não tinha um braço, o bêbado do Septão Cellador, Dick Surdo Follard, o cozinheiro Hobb Três-Dedos, o velho Sor Wynton Stout, bem como Halder, Sapo, Pyp, Albett e o resto dos rapazes que tinham treinado com Jon. E no comando deles estaria Bowen Marsh, com seu rosto vermelho, o rechonchudo Senhor Intendente que fora nomeado castelão na ausência de Lorde Mormont. Às vezes, Edd Doloroso chamava Marsh de "Velha Romã", o que se adequava a ele tão bem quanto "Velho Urso" se ajustava a Mormont.
- Ele é o homem que você quer na liderança quando os inimigos estão em campo - dizia Edd com sua habitual voz severa. - Ele vai contá-los direitinho por você. É um autêntico demônio para as contas, esse.
Se o Magnar pegar Castelo Negro desprevenido, será um massacre sangrento, com rapazes assassinados em suas camas antes mesmo de saberem que estão sob ataque. Jon tinha de preveni-los, mas como? Nunca era mandado para forragear ou caçar, nem lhe era permitido ficar sozinho de vigia. E também temia por Ygritte. Não podia levá-la, mas, se a deixasse, será que o Magnar iria fazê-la responder por sua traição? Dois corações que batem como um só...
Todas as noites dividiam as mesmas peles de dormir, e ele adormecia com a cabeça dela sobre o seu peito e os cabelos ruivos fazendo cócegas em seu queixo. O cheiro dela tinha se tornado uma parte de Jon. Seus dentes tortos, a textura de seu seio quando ele o segurava, o sabor de sua boca... eram o seu júbilo e o seu desespero. Muitas noites ficava acordado, com Ygritte quente ao seu lado, perguntando a si mesmo se o senhor seu pai teria se sentido assim tão confuso com a sua mãe, quem quer que ela tivesse sido. Ygritte montou a armadilha, e Mance Rayder empurrou-me para dentro dela.
Cada dia passado entre os selvagens tornava mais difícil aquilo que tinha de fazer. Teria de arranjar alguma maneira de trair aqueles homens e, quando o fizesse, eles morreriam. Não desejara a sua amizade, tal como não desejara o amor de Ygritte. E no entanto... Os Thenns expressavam-se no Idioma Antigo e raramente falavam com ele, mas era diferente com os homens de Jarl, com os homens que tinham escalado a Muralha. Jon começava a conhecê-los, apesar de não querer: o magro e calmo Errok, o sociável Grigg, o Bode, os rapazes Quort e Bodger, o Dan de Cânhamo, o cordoeiro. O pior de todos era Del, um jovem com cara de cavalo e quase da mesma idade de Jon, que costumava falar em tom sonhador da garota selvagem que pretendia raptar.
- Ela é sortuda, como a sua Ygritte. E beijada pelo fogo.
Jon tinha de morder a língua. Não queria saber nada a respeito da garota de Del ou da mãe de Bodger, do lugar junto ao mar de onde Henk, o Elmo, tinha vindo, de como Grigg ansiava por visitar os homens verdes na Ilha das Caras, ou daquela ocasião em que um alce obrigou Dedo-do-Pé a subir em uma árvore. Não queria ouvir falar do furúnculo no traseiro do Grande Furúnculo, nem da quantidade de cerveja que Polegares de Pedra conseguia beber ou da forma como o irmão mais novo de Quort havia lhe implorado que não partisse com Jarl. Quort não podia ter mais de catorze anos, embora já tivesse raptado uma mulher e tivesse um filho a caminho.
- Pode ser que ele nasça num castelo qualquer - vangloriava-se o rapaz. - Nascido num castelo, como um senhor! - Estava muito arrebatado pelos "castelos" que tinham visto, designando por essa palavra as torres de vigia.
Jon interrogava-se sobre onde estaria agora o Fantasma. Teria ido para Castelo Negro, ou andaria vagueando pelos bosques com alguma alcateia? Não tinha qualquer percepção do lobo gigante, nem mesmo em sonhos. Isso fazia-o sentir como se parte de si mesmo tivesse sido cortada. Até com Ygritte dormindo ao seu lado sentia-se só. Não queria morrer sozinho.
Nessa tarde, as árvores começaram a se tornar mais esparsas, e o grupo marchou para leste, sobre planícies suavemente onduladas. Em volta deles, a grama erguia-se à altura da cintura, e plantações de milho selvagem oscilavam lentamente quando o vento soprava, mas a maior parte do dia foi quente e ensolarado. No entanto, à medida que o pôr do sol se aproximava, nuvens começaram a se acumular, ameaçadoras, a ocidente. Em pouco tempo, engoliram o sol laranja, e Lenn previu que uma tempestade violenta se aproximava. A mãe dele era uma bruxa dos bosques, por isso todos concordavam que o homem possuía um dom para prever o tempo.
- Há uma aldeia aqui perto - disse Grigg, o Bode, ao Magnar. - A quatro ou cinco quilômetros. Poderíamos arranjar abrigo lá. - Styr concordou de imediato.
Foi já bem depois de escurecer e de a tempestade eclodir que chegaram ao lugar. A aldeia encontrava-se junto a um lago e estava abandonada havia tanto tempo que a maior parte das casas tinha ruído. Até a pequena estalagem de madeira que um dia devia ter sido uma visão bem-vinda para os viajantes estava meio derrubada e sem teto. Aqui, pouco abrigo encontraremos, pensou Jon sombriamente. Sempre que o relâmpago caía, via uma torre circular de pedra que se erguia de uma ilha no meio do lago, mas, sem barcos, não tinham como chegar lá.
Errok e Del avançaram cautelosamente para explorar as ruínas, mas Del retornou quase de imediato. Styr fez a coluna parar e mandou uma dúzia de seus Thenns em frente, a trote, de lanças nas mãos. Então Jon também já tinha visto: o clarão de uma fogueira, avermelhando a chaminé da estalagem. Não estamos sozinhos. O temor enrolou-se em seu interior como uma serpente. Ouviu um cavalo relinchar, e depois gritos. Cavalgue com eles, coma com eles, lute com eles, tinha dito Qhorin.
Mas a luta tinha terminado.
- Era só um homem - disse Errok quando voltou. - Um velho com um cavalo.
O Magnar gritou ordens no Idioma Antigo e uma vintena de seus Thenns espalhou-se para estabelecer um perímetro em volta da aldeia, enquanto outros rondaram por entre as casas, a fim de se certificarem de que ninguém mais estava escondido entre o mato e as pedras caídas. Os outros aglomeraram-se na estalagem sem teto, empurrando-se uns aos outros para se aproximarem da lareira. Os galhos partidos que o velho estivera queimando pareciam gerar mais fumaça do que calor, mas qualquer calor era bem-vindo numa noite selvagem e chuvosa como aquela. Dois dos Thenns tinham jogado o homem ao chão e estavam revistando suas coisas. Outro segurava seu cavalo, enquanto outros três saqueavam seus alforjes.
Jon afastou-se. Uma maçã apodrecida estourou sob seu calcanhar. Styr vai matá-lo. O Magnar havia dito isso em Guardagris; quaisquer ajoelhadores que encontrassem seriam mortos de imediato, para terem certeza de que não dariam o alarme. Cavalgue com eles, coma com eles, lute com eles. Será que isso queria dizer que devia ficar mudo e impotente enquanto abriam a garganta de um velho?
Perto do limite da aldeia, Jon viu-se cara a cara com um dos guardas que Styr colocara. O Thenn rosnou qualquer coisa no Idioma Antigo e apontou com a lança para a estalagem. Volte para o lugar a que pertence, adivinhou Jon. Mas que lugar é esse?
Caminhou na direção da água e descobriu um local quase seco sob a parede inclinada de taipa de uma choupana em ruínas que tinha desabado quase por completo. Foi ali que Ygritte o encontrou, sentado, fitando o lago açoitado pela chuva.
- Eu conheço este lugar - disse-lhe quando ela se sentou ao seu lado. - Aquela torre... olhe para o topo da próxima vez que o relâmpago cair e diga-me o que vê.
- Tá bem, se quiser - disse ela, e depois: - Alguns dos Thenns tão dizendo que ouviram barulho ali. Gritos, dizem eles.
- Trovões.
- Eles dizem que são gritos. Podem ser fantasmas.
A fortaleza realmente tinha um aspecto sombrio e assustador, ali erguida, negra, no topo de sua ilha rochosa, com a tempestade vergastando o lago em volta.
- Podíamos dar uma olhada - sugeriu ele. - Duvido que possamos ficar muito mais molhados do que já estamos.
- Nadar? No meio da tempestade? - ela riu da ideia. - Isso é algum truque pra tirar minha roupa, Jon Snow?
- Ainda preciso de um truque para isso? - brincou ele. - Ou será que não sabe nadar? - Jon era um bom nadador, tendo aprendido a arte quando garoto, no grande fosso de Winterfell.
Ygritte esmurrou o braço dele.
- Você não sabe nada, Jon Snow. Eu sou meio peixe, vou lhe mostrar.
- Meio peixe, meio cabra, meio cavalo... há muitas metades em você, Ygritte. - Balançou a cabeça. - Se este lugar é o que eu penso, não teríamos de nadar. Poderíamos ir a pé.
Ela recostou-se e olhou-o.
- Caminhar na água? Que feitiçaria sulista é essa?
- Não é feit... - começou ele no momento em que um enorme relâmpago se precipitou do céu e tocou a superfície do lago. Durante meio segundo o mundo foi brilhante como ao meio-dia. O trovão soou tão alto que Ygritte se assustou e cobriu as orelhas.
- Viu? - perguntou Jon enquanto o som rolava para longe e a noite ficava negra novamente. - Percebeu?
- Amarelo - disse ela. - E isso o que quer dizer? Algumas daquelas pedras em pé lá em cima são amarelas.
- Chamamos de merlões. Foram pintadas de dourado há muito tempo. Isto é Coroa-da-rainha.
Do outro lado do lago, a torre estava negra novamente, uma silhueta tênue, tenuemente entrevista.
- Uma rainha vivia aqui? - perguntou Ygritte.
- Uma rainha passou uma noite aqui. - Foi a Velha Ama que tinha lhe contado a história, mas Meistre Luwin confirmou a maior parte dela. - Alysanne, a esposa do Rei Jaehaerys, o Conciliador. Ele é chamado de Velho Rei por ter reinado durante muito tempo, mas era jovem quando subiu ao Trono de Ferro. Naquela época, era seu costume viajar por todo o reino. Quando veio a Winterfell, trouxe a sua rainha, seis dragões e metade da corte. O rei tinha assuntos a discutir com o seu Protetor do Norte, e Alysanne ficou entediada, por isso montou em seu dragão Asaprata e voou para o norte, a fim de ver a Muralha. Esta aldeia foi um dos lugares onde parou. Mais tarde, o povo pintou o topo de sua fortaleza para se parecer com a coroa de ouro que ela usava quando tinha passado a noite entre eles.
- Nunca vi um dragão.
- Ninguém viu. Os últimos dragões morreram há cem anos ou mais. Mas isso foi há mais tempo.
- A Rainha Alysanne, você diz?
- A Boa Rainha Alysanne, como a chamaram mais tarde. Um dos castelos da Muralha também foi batizado em sua honra. Portão da Rainha. Antes de sua visita, chamavam-no de Portão da Neve.
- Se era assim tão boa, devia ter derrubado aquela Muralha.
Não, pensou ele. A Muralha protege o reino. Dos Outros... e também de você e dos seus, querida.
- Tive outro amigo que também sonhava com dragões. Um anão. Ele disse...
- Jon Snow! - um dos Thenns encontrava-se em pé junto deles, de testa franzida.
- Magnar quer. - Jon achou que podia ser o mesmo homem que o encontrara na porta da gruta na noite anterior à escalada da Muralha, mas não tinha certeza. Ficou em pé. Ygritte veio com ele, o que sempre fazia Styr franzir a testa, mas toda vez que tentava mandá-la embora, ela lembrava-lhe que era uma mulher livre, não uma ajoelhadora. Ia e vinha conforme lhe apetecia.
Foram encontrar o Magnar em pé, embaixo da árvore que crescia no chão da sala comum da estalagem. Seu prisioneiro estava ajoelhado diante da lareira, cercado por lanças de madeira e espadas de bronze. Observou a aproximação de Jon, mas nada disse. A chuva corria pelas paredes e tamborilava nas poucas folhas que ainda se prendiam à árvore, enquanto a fumaça subia rodopiando, densa, da fogueira.
- Ele tem de morrer - disse Styr, o Magnar. - Trate disso, corvo.
O velho não proferiu uma palavra. Limitou-se a olhar para Jon, que estava entre os selvagens. Por entre a chuva e a fumaça, iluminado apenas pelo fogo, não podia ter visto que Jon estava todo vestido de negro exceto pelo manto de pele de ovelha. Ou podia?
Jon tirou Garralonga da bainha. A chuva lavou o aço e a luz da fogueira traçou uma lúgubre linha alaranjada ao longo do gume. Uma fogueira tão pequena para custar a vida de um homem. Recordou o que Qhorin Meia-Mão havia dito quando avistaram a fogueira no Passo dos Guinchos. O fogo é vida aqui em cima, disse-lhes, mas também pode ser morte. Mas aquilo fora nas alturas das Presas de Gelo, nas regiões bravias e sem lei para lá da Muralha. Isso era a Dádiva, protegida pela Patrulha da Noite e pelo poderio de Winterfell. Um homem devia ser livre para acender ali uma fogueira sem morrer por isso.
- Por que hesita? - disse Styr. - Mate-o e acabou.
Mesmo então, o cativo não falou. Podia ter dito "Misericórdia", ou "Roubou-me o cavalo, o dinheiro, a comida, deixe-me ficar com a vida", ou "Não, por favor, não lhe fiz nenhum mal". Podia ter dito mil coisas, ou chorado, ou apelado aos seus deuses. Mas nenhuma palavra poderia salvá-lo agora. Ele talvez soubesse disso. Portanto, manteve a língua sob controle e olhou para Jon, com acusação e súplica no olhar.
Não pode se recusar, não importa o que lhe seja solicitado. Cavalgue com eles, coma com eles, lute com eles... Mas esse velho não tinha oferecido resistência. Teve azar, nada mais. Quem era, de onde viera, onde queria chegar em seu pobre cavalo de dorso muito curvo... nada disso importava.
Ele é um velho, disse Jon a si mesmo. Tem cinquenta anos, talvez sessenta. Viveu uma vida mais longa do que a maioria dos homens. Os Thenns acabarão matando-o de qualquer forma, nada do que eu diga ou faça poderá salvá-lo. Garralonga parecia mais pesada do que chumbo em sua mão, pesada demais para erguer. O homem não parava de encará-lo, com olhos grandes e negros como poços. Vou cair naqueles olhos e me afogar. O Magnar também estava a olhá-lo, e Jon quase conseguia sentir o gosto de sua desconfiança. O homem está morto. Que importa que seja a minha mão a matá-lo? Um golpe resolveria o assunto, rápida e limpamente. Garralonga tinha sido forjada com aço valiriano. Tal como Gelo.
Jon recordou outra morte; o desertor de joelhos, com a cabeça rolando, o tom vivo do sangue na neve... a espada do pai, as palavras do pai, o rosto do pai...
- Vá, Jon Snow - insistiu Ygritte. - Precisa matá-lo. Pra provar que não é um corvo, e sim um membro do povo livre.
- Um velho sentado junto a uma fogueira?
- O Orei tamem tava sentado junto a uma fogueira. E você o matou bem depressa. - O olhar que ela lhe lançou então foi duro. - E tamem queria me matar até ver que eu era uma mulher. E eu tava dormindo.
- Isso foi diferente. Vocês eram soldados... sentinelas.
- Sim, e os corvos não queriam ser vistos. É como a gente agora. É a mesma coisa. Mate-o.
Jon deu as costas ao homem.
- Não.
O Magnar aproximou-se, alto, frio, perigoso.
- Eu disse que sim. Sou eu quem comanda aqui.
- Você comanda os Thenns - disse-lhe Jon não o povo livre.
- Não vejo povo livre nenhum. Vejo um corvo e uma mulher de corvo.
- Eu não sou mulher de corvo coisa nenhuma! - Ygritte arrancou a faca de dentro da bainha. Três passos rápidos e puxou pelos cabelos a cabeça do velho para trás e abriu sua garganta de orelha a orelha. Nem mesmo na morte o homem gritou. - Você não sabe nada, Jon Snow - gritou-lhe e atirou a faca ensanguentada aos pés dele.
O Magnar disse qualquer coisa no Idioma Antigo. Podia estar mandando os Thenns matarem Jon ali mesmo, mas ele nunca saberia se isso era verdade. Um relâmpago tombou do céu, um imenso raio azul-esbranquiçado que atingiu o topo da torre do lago. Conseguiram cheirar sua fúria, e quando o trovão chegou, pareceu sacudir a noite.
E a morte saltou para o meio deles.
O relâmpago tinha ofuscado a visão de Jon, mas ele conseguiu vislumbrar a sombra que se movia a grande velocidade meio segundo antes de ouvir o guincho. O primeiro Thenn morreu como o velho, com sangue jorrando de sua garganta rasgada. Então a luz desapareceu e a silhueta estava de novo girando, rosnando, e outro homem caiu na escuridão. Houve imprecações, gritos, uivos de dor. Jon viu Grande Furúnculo tropeçar e cair para trás, derrubando três homens. Fantasma, pensou, durante um louco instante. O Fantasma saltou a Muralha. Então o relâmpago transformou a noite em dia, e viu o lobo que estava em pé sobre o peito de Del, com sangue escorrendo, negro, de suas mandíbulas. Cinza. Ele é cinza.
A escuridão caiu com o trovão. Os Thenns estavam dando estocadas com as lanças enquanto o lobo voava entre eles. A égua do velho empinou-se, enlouquecida pelo cheiro do massacre e atacou furiosamente com os cascos. Garralonga continuava em sua mão. E, de repente, Jon Snow percebeu que nunca teria uma oportunidade melhor.
Abateu o primeiro homem quando se virou para o lobo, passou por um segundo com um empurrão, golpeou um terceiro. Em meio àquela loucura, ouviu alguém chamar seu nome, mas se foi Ygritte ou o Magnar não soube dizer. O Thenn que lutava para controlar o cavalo nem chegou a vê-lo. Garralonga era leve como uma pena. Brandiu-a contra a barriga da perna do homem e sentiu o aço enterrar-se até o osso. Quando o selvagem caiu, a égua fugiu, mas, sem saber como, Jon conseguiu se agarrar à crina com a mão esquerda e saltar para o dorso dela. Uma mão fechou-se em volta de seu tornozelo, e ele deu um golpe para baixo e viu o rosto de Bodger dissolver-se numa balbúrdia de sangue. O cavalo empinou-se, escoiceando para a frente. Um dos cascos atingiu o Thenn na têmpora, com um crunch.
E então estavam a galope. Jon não fez qualquer esforço para guiar o cavalo. Precisou de todas as suas forças para se manter em cima dele enquanto mergulhavam através da lama, da chuva e dos trovões. Mato úmido chicoteava seu rosto e uma lança passou voando junto à sua orelha. Se o cavalo tropeça e quebra uma pata, apanham-me e matam-me, pensou, mas os deuses antigos acompanharam-no e o cavalo não tropeçou. O relâmpago estremeceu através da cúpula negra do céu e o trovão rolou pelas planícies. Os gritos reduziram-se e morreram atrás de Jon.
Longas horas mais tarde, a chuva parou. Jon deu por si sozinho, num mar de mato alto e negro. Havia uma profunda dor latejante em sua coxa direita. Quando olhou para baixo, ficou surpreendido por ver uma flecha espetada na parte de trás da coxa. Quando foi que isso aconteceu? Agarrou a haste e deu um puxão, mas a ponta da flecha estava profundamente enterrada na carne de sua perna, e a dor quando a puxou foi insuportável. Tentou pensar na loucura na estalagem, mas tudo que conseguiu recordar foi o animal, esguio, cinza e terrível. Era grande demais para ser um lobo comum. Um lobo gigante, portanto. Tinha de ser. Nunca tinha visto um animal mover-se tão depressa. Como um vento cinzento... Poderia Robb ter retornado ao Norte?
Jon sacudiu a cabeça. Não tinha respostas. Era difícil demais pensar... sobre o lobo, o velho, Ygritte, tudo aquilo...
Desajeitadamente deslizou de cima da égua. A perna ferida cedeu sob seu corpo, e ele teve de engolir um grito. Isso vai ser uma agonia. Mas a flecha tinha de sair, e esperar apenas pioraria a situação. Jon colocou a mão em volta das penas, respirou fundo e empurrou a flecha para a frente. Soltou um grunhido e depois um xingamento. Doeu tanto que teve de parar. Estou sangrando como um porco na matança, pensou, mas não havia nada a fazer até que a flecha saísse. Fez uma careta e voltou a tentar... e depressa voltou a parar, tremendo. Tentou novamente. Daquela vez gritou, mas, quando terminou, a ponta da flecha espetava a parte da frente da coxa. Jon comprimiu contra a perna os calções ensanguentados a fim de conseguir pegar melhor na flecha, fez um esgar e puxou lentamente a haste através da perna. Nunca soube como conseguiu terminar aquilo sem desmaiar.
Depois ficou deitado no chão, agarrado ao seu troféu e sangrando calmamente, fraco demais para se mover. Algum tempo depois compreendeu que, caso não se forçasse a se mover, provavelmente sangraria até a morte. Jon rastejou na direção do riacho raso onde a égua matava a sede, lavou a coxa na água fria e apertou-a bem com uma faixa de tecido arrancada do manto. Lavou também a flecha, virando-a nas mãos. As penas eram cinzentas ou brancas? Ygritte usava penas de ganso cinza-claras nas flechas. Terá disparado uma flecha contra mim quando eu fugi? Jon não podia culpá-la por isso. Perguntou a si mesmo se teria apontado para ele ou para o cavalo. Se a égua tivesse caído, estaria condenado.
- Sorte que a minha perna se pôs no caminho - murmurou.
Descansou por algum tempo, para deixar a égua pastar. O animal não vagueou até longe. Isso era bom. Coxo, com uma perna em mau estado, nunca teria conseguido apanhá-la. Precisou de todas as suas forças para se obrigar a ficar em pé e subir ao dorso do animal. Como foi que a montei antes, sem sela nem estribos, e de espada na mão? Essa era outra questão que não conseguia responder.
Um trovão ribombou a distância, mas, por cima de sua cabeça, as nuvens estavam se abrindo. Jon perscrutou o céu até encontrar o Dragão de Gelo e depois virou a égua para o norte, na direção da Muralha e de Castelo Negro. As pulsações de dor no músculo da coxa fizeram-no estremecer quando bateu os calcanhares no cavalo do velho. Vou para casa, disse a si mesmo. Mas se isso era verdade por que se sentia tão vazio?
Cavalgou até de madrugada, enquanto as estrelas olhavam para baixo como se fossem olhos.
Daenerys
Os batedores dothraki tinham-lhe dito como era, mas Dany queria ver por si mesma. Sor Jorah Mormont atravessou com ela, a cavalo, uma floresta de vidoeiros e subiu uma íngreme cumeeira de arenito.
- Estamos suficientemente próximos - avisou-a ao chegar ao topo.
Dany freou a égua e olhou por sobre os campos, para o local onde a tropa de Yunkai atravessava seu caminho. Barba-Branca andara ensinando-lhe a melhor forma de estimar os números de um inimigo.
- Cinco mil - disse, passado um momento.
- Diria que sim. - Sor Jorah apontou. - Aqueles nos flancos são mercenários. Lanceiros e arqueiros a cavalo, com espadas e machados para o trabalho de proximidade. Os Segundos Filhos na ala esquerda, os Corvos Tormentosos na direita. Cerca de quinhentos homens cada. Vê os estandartes?
A harpia de Yunkai agarrava um chicote e uma coleira de ferro em vez de uma corrente. Mas os mercenários hasteavam os próprios estandartes por baixo dos da cidade que serviam: do lado direito, quatro corvos entre relâmpagos cruzados; do esquerdo, uma espada quebrada.
- São os próprios yunkaitas que constituem o centro - destacou Dany. A distância, seus oficiais eram indistinguíveis dos de Astapor; elmos altos e brilhantes e mantos revestidos de cintilantes discos de cobre. - Os soldados que lideram são escravos?
- Em grande parte. Mas não se igualam aos Imaculados. Yunkai é conhecida por treinar escravos de cama, não soldados.
- O que acha? Podemos derrotar este exército?
- Facilmente - disse Sor Jorah.
- Mas não sem sangue. - Grande quantidade de sangue empapou os tijolos de Astapor quando a cidade caiu, embora pouco dele pertencesse a ela ou aos seus. - Podemos ganhar aqui uma batalha, mas a um custo que talvez não nos permita tomar a cidade.
- Esse é sempre um risco, khaleesi. Astapor estava complacente e vulnerável. Yunkai está prevenida.
Dany refletiu. A tropa dos senhores de escravos parecia pequena comparada com a sua, mas os mercenários estavam montados. Viajara tempo demais com os dothraki para não ter um saudável respeito por aquilo que guerreiros a cavalo podiam fazer à infantaria. Os Imaculados poderiam aguentar a carga deles, mas os meus libertados seriam massacrados.
- Os senhores de escravos gostam de falar - disse. - Envie uma mensagem dizendo que os receberei esta noite em minha tenda. E convide também os comandantes das companhias mercenárias para uma visita. Mas não juntos. Os Corvos Tormentosos ao meio-dia, e os Segundos Filhos duas horas mais tarde.
-Às suas ordens - disse Sor Jorah. - Mas se não vierem...
- Virão. Terão curiosidade de ver os dragões e de ouvir o que eu tenho para dizer, e os que forem inteligentes verão aí uma oportunidade para avaliar as minhas forças. - Fez a égua prateada dar meia-volta. - Vou esperá-los em meu pavilhão.
Céus de um azul carregado e ventos fortes acompanharam Dany de volta à sua tropa. O profundo fosso que iria cercar o acampamento já estava meio cavado, e a floresta encontrava-se cheia de Imaculados que cortavam galhos de vidoeiro para afiar e transformar em estacas. Os eunucos não conseguiam dormir em um acampamento que não estivesse fortificado, ou pelo menos era isso que Verme Cinzento insistia em dizer. Ele estava lá, vigiando o trabalho. Dany parou um momento para conversar com o eunuco.
- Yunkai preparou-se para a batalha.
- Isso é bom, Vossa Graça. Estes têm sede de sangue.
Quando ordenou aos Imaculados para selecionarem oficiais de entre as suas fileiras, Verme Cinzento foi o escolhido da esmagadora maioria para o posto mais elevado. Dany colocou Sor Jorah acima dele, a fim de treiná-lo para o comando, e o cavaleiro exilado dizia que, até agora, o jovem eunuco era duro mas justo, rápido em aprender, incansável e totalmente inflexível em sua atenção aos detalhes.
- Os Sábios Mestres reuniram um exército de escravos para nos defrontar.
- Um escravo em Yunkai aprende a natureza dos sete suspiros e as dezesseis posições do prazer, Vossa Graça. Os Imaculados aprendem a natureza das três lanças. O seu Verme Cinzento espera mostrar-lhe.
Uma das primeiras coisas que Dany fez após a queda de Astapor foi abolir o costume de dar aos Imaculados novos nomes de escravo todos os dias. A maioria daqueles que tinham nascido livres voltou aos nomes com que nasceu; pelo menos os que ainda se lembravam deles. Outros adotaram nome de heróis ou deuses, e às vezes armas, pedras preciosas e até flores, o que resultou em soldados com nomes muito peculiares aos ouvidos de Dany. Verme Cinzento permaneceu Verme Cinzento. Quando lhe perguntou por quê, ele disse:
- É um nome de sorte. O nome com que este nasceu estava amaldiçoado. Era o nome que ele tinha quando foi escravizado. Mas Verme Cinzento foi o nome que coube a este no dia em que Daenerys Filha da Tormenta o libertou.
- Se houver uma batalha, que Verme Cinzento mostre sabedoria além de valor - disse-lhe Dany. - Poupe qualquer escravo que fugir ou que jogue fora a sua arma. Quanto menos forem mortos, mais ficarão para se juntar a nós depois.
- Este vai se lembrar.
- Eu sei que sim. Venha à minha tenda ao meio-dia. Quero você lá com os outros oficiais quando tratar com os capitães mercenários. - Dany esporeou a sua prata e dirigiu-se ao acampamento.
Dentro do perímetro que os Imaculados tinham estabelecido, as tendas estavam sendo erguidas em fileiras ordenadas, com seu grande pavilhão dourado no centro. Havia um segundo acampamento logo depois do dela; cinco vezes maior, irregular e caótico, esse segundo acampamento não tinha fossos, não tinha tendas, não tinha sentinelas, não tinha fileiras de cavalos. Aqueles que possuíam cavalos ou mulas dormiam ao lado dos animais, por temerem que fossem roubados. Cabras, ovelhas e cães meio famintos vagueavam livremente entre hordas de mulheres, crianças e velhos. Dany deixara Astapor nas mãos de um conselho de antigos escravos liderado por um curandeiro, um erudito e um sacerdote. Todos homens sensatos, pensava, e justos. Mesmo assim, dezenas de milhares preferiram segui-la para Yunkai em vez de permanecer em Astapor. Dei-lhes a cidade e a maioria estava assustada demais para aceitá-la.
A colcha de retalhos que era a tropa dos libertados fazia a sua parecer pequena, mas eles eram mais um fardo do que uma vantagem. Talvez um em cem possuísse um burro, um camelo ou um boi; a maior parte trazia armas, obtidas pela pilhagem do arsenal de algum dos negociantes de escravos, mas só um em dez era suficientemente forte para lutar, e nenhum se encontrava treinado. Por onde passavam, deixavam a terra nua, como gafanhotos de sandálias. Mas Dany não conseguia se convencer a abandoná-los, como Sor Jorah e seus companheiros de sangue sugeriam. Disse-lhes que eram livres. Não posso dizer-lhes agora que não são livres para se juntarem a mim. Olhou a fumaça que se erguia de suas fogueiras e engoliu um suspiro. Podia ter os melhores soldados de infantaria do mundo, mas também tinha os piores.
Arstan Barba-Branca encontrava-se em pé à porta de sua tenda, enquanto Belwas, o Forte, se sentava de pernas cruzadas na grama, ali perto, comendo uma tigela de figos. Durante a marcha, o dever de guardá-la caía sobre os ombros daqueles dois. Fizera de Jhogo, Aggo e Rakharo seus kos, além de companheiros de sangue, e agora precisava mais deles para comandar os dothraki do que para proteger a sua pessoa. O khalasar era minúsculo, trinta e poucos guerreiros a cavalo, a maior parte dos quais rapazes sem tranças e velhos corcundas. Mas eram toda a cavalaria que possuía, e não se atrevia a passar sem eles. Os Imaculados podiam ser a melhor infantaria do mundo inteiro, como Sor Jorah dizia, mas também precisava de batedores e guardas avançados.
- Yunkai terá a guerra - disse Dany ao Barba-Branca, dentro do pavilhão. Irri e Jhiqui tinham coberto o chão com tapetes, e Missandei acendera um incenso para adoçar o ar poeirento. Drogon e Rhaegal dormiam sobre um montinho de almofadas, enrolados um no outro, mas Viserion estava empoleirado na borda de sua banheira vazia. - Missandei, que língua falam estes yunkai tas? Valiriano?
- Sim, Vossa Graça - disse a garota. - Um dialeto diferente do de Astapor, mas suficientemente próximo para ser entendido. Os senhores de escravos chamam a si próprios de Sábios Mestres.
- Sábios? - Dany sentou-se de pernas cruzadas numa almofada, e Viserion abriu as asas brancas e douradas e esvoaçou para junto dela. - Veremos quão sábios são - disse, enquanto coçava a cabeça escamosa do dragão atrás dos chifres.
Sor Jorah Mormont retornou uma hora mais tarde, acompanhado por três capitães dos Corvos Tormentosos. Os mercenários usavam penas negras em seus elmos polidos, e diziam ser todos iguais em honra e autoridade. Dany estudou-os enquanto Irri e Jhiqui serviam o vinho. Prendahl na Ghezn era um ghiscari atarracado, com rosto largo e cabelos escuros que começavam a ficar grisalhos; Sallor, o Calvo, tinha uma retorcida cicatriz em seu rosto claro de qarteno; e Daario Naharis era extravagante até mesmo para um tyroshi. Sua barba era cortada na forma de uma forquilha de três dentes e pintada de azul, da mesma cor dos olhos e dos cabelos encaracolados que caíam sobre seu colarinho. Os bigodes pontiagudos estavam pintados de dourado. A roupa era toda em tons de amarelo; uma nuvem de renda de Myr da cor da manteiga jorrava do colarinho e das mangas, o gibão era decorado com medalhões de latão com a forma de dentes-de-leão, arabescos ornamentais em ouro subiam até suas coxas pelo cano das botas altas de couro. Luvas de suave camurça amarela estavam enfiadas num cinto de anéis dourados, e tinha as unhas pintadas de azul.
Mas foi Prendahl na Ghezn quem falou pelos mercenários.
- Faria bem em levar daqui a sua gentalha - disse. - Tomou Astapor pela via da traição, mas Yunkai não cairá com tanta facilidade.
- Quinhentos de seus Corvos Tormentosos contra dez mil de meus Imaculados - disse Dany. - Sou apenas uma garotinha, e não compreendo as coisas da guerra, mas suas chances não me parecem boas.
- Os Corvos Tormentosos não resistirão sozinhos - disse Prendahl.
- Corvos tormentosos não resistem a nada. Fogem ao primeiro sinal de trovões. Talvez devessem fugir agora. Ouvi dizer que mercenários são notoriamente pouco confiáveis. De que lhes valerá a dedicação quando os Segundos Filhos passarem para o nosso lado?
- Isso não acontecerá - insistiu Prendahl, inabalável. - E, se acontecesse, não importaria. Os Segundos Filhos não são nada. Lutamos ao lado dos valentes homens de Yunkai.
- Lutam ao lado de rapazes de cama armados com lanças. - Quando virou a cabeça, as sinetas gêmeas que trazia na trança tiniram com suavidade. - Que não venham pedir clemência depois que a batalha começar. Mas se escolherem se juntar agora a mim, o ouro que os yunkaitas lhe pagaram será seu e poderão, além disso, obter uma parte do saque, com grandes recompensas para mais tarde, quando eu controlar o meu reino. Se lutarem pelos Sábios Mestres, o seu pagamento será a morte. Imaginam porventura que Yunkai abrirá os portões quando os meus Imaculados estiverem massacrando vocês à sombra das muralhas?
- Mulher, você zurra como um burro, e não faz mais sentido do que ele.
- Mulher? - Dany soltou um risinho. - Isso foi um insulto? Eu daria o troco, se o julgasse um homem. - Dany enfrentou o olhar do mercenário. - Sou Daenerys Filha da Tormenta da Casa Targaryen, a Não Queimada, Mãe de Dragões, khaleesi dos cavaleiros de Drogo e rainha dos Sete Reinos de Westeros.
- O que você é - disse Prendahl na Ghezn - é uma puta de um senhor dos cavalos. Quando vencermos, será dada ao meu garanhão para que ele monte em você.
Belwas, o Forte, puxou o arakh.
- Belwas, o Forte, dá a feia língua dele à pequena rainha, se ela quiser.
- Não, Belwas. Dei a estes homens salvo-conduto. - Sorriu. - Diga-me o seguinte: os Corvos Tormentosos são escravos ou homens livres?
- Somos uma irmandade de homens livres - declarou Sallor.
- Ótimo. - Dany pôs-se em pé. - Nesse caso, volte e conte aos seus irmãos o que lhe disse. Pode ser que alguns deles prefiram se alimentar de ouro e glória do que de morte. Vou querer a sua resposta de manhã.
Os capitães dos Corvos Tormentosos levantaram-se simultaneamente.
- A nossa resposta não - disse Prendahl na Ghezn. Os companheiros seguiram-no para fora da tenda... mas, ao sair, Daario Naharis olhou de relance para trás e inclinou a cabeça numa despedida polida.
Duas horas mais tarde o comandante dos Segundos Filhos chegou sozinho. Revelou-se um bravosi muito alto, com olhos verde-claros e uma espessa barba vermelha e dourada que quase chegava ao seu cinto. Seu nome era Mero, mas se autodenominava Bastardo do Titã.
Mero entornou imediatamente o vinho, limpou a boca com as costas da mão e olhou de esguelha para Dany.
- Acho que fodi a sua irmã gêmea numa casa do prazer lá na terra. Ou era você?
- Penso que não. Eu me lembraria de um homem de tal magnificência, sem dúvida.
- Sim, é verdade. Nunca nenhuma mulher alguma vez esqueceu o Bastardo do Titã. - O bravosi estendeu a taça para Jhiqui. - Que acha de tirar essa roupa e vir sentar no meu colo? Se me der prazer, posso trazer os Segundos Filhos para o seu lado.
- Se trouxer os Segundos Filhos para o meu lado, posso não mandar capá-lo.
O grandalhão soltou uma gargalhada.
- Garotinha, houve outra mulher, uma vez, que tentou me capar com os dentes. Agora não tem dentes, mas a minha espada é tão longa e grossa quanto sempre foi. Quer que a tire para fora e a mostre?
- Não há necessidade. Depois que os meus eunucos a cortarem, posso examiná-la quando bem entender. - Dany bebeu um gole de vinho. - É verdade que sou apenas uma garotinha, e não conheço as coisas da guerra. Explique-me como pretende derrotar dez mil Imaculados com os seus quinhentos homens. Inocente como sou, suas chances parecem-me fracas.
- Os Segundos Filhos enfrentaram condições piores e ganharam.
- Os Segundos Filhos enfrentaram situações piores e fugiram. Em Qohor, quando os Três Mil defenderam a sua posição. Ou será que nega isso?
- Isso foi há muitos anos e, além disso, antes de os Segundos Filhos serem liderados pelo Bastardo do Titã.
- Então é em você que eles arranjam coragem? - Dany virou-se para Sor Jorah. - Quando a batalha começar, mate este primeiro.
O cavaleiro exilado sorriu.
- De bom grado, Vossa Graça.
- Claro - disse a Mero -, poderia voltar a fugir. Não o impediríamos. Pegue o seu ouro de Yunkai e parta.
- Se já tivesse visto o Titã de Bravos, garota tonta, saberia que não tem rabo para meter entre as pernas.
- Então fique e lute por mim.
- É verdade que valeria a pena lutar por você - disse o bravosi - e eu de bom grado a deixaria beijar minha espada, se eu fosse livre. Mas aceitei as moedas de Yunkai e dei a minha palavra sagrada.
- Moedas podem ser devolvidas - disse ela. - Eu pagarei o mesmo, e mais ainda. Tenho outras cidades a conquistar e um reino inteiro à minha espera a meio mundo de distância. Sirva-me fielmente, e os Segundos Filhos não precisarão voltar a procurar contratos.
O bravosi afagou sua espessa barba vermelha.
- O mesmo e mais ainda, e talvez um beijo para arrematar, há? Ou mais do que um beijo? Para um homem tão magnífico como eu?
- Talvez.
- Vou gostar do sabor de sua língua, eu acho.
Dany sentia a ira de Sor Jorah. Meu urso negro não gosta dessa conversa sobre beijos.
- Pense esta noite no que lhe disse. Posso ter a sua resposta de manhã?
- Pode. - O Bastardo do Titã deu um sorriso. - Posso levar um jarro deste belo vinho aos meus capitães?
- Pode levar um tonel. Vem das adegas dos Bons Mestres de Astapor, e tenho carroças cheias dele.
- Então dê-me uma carroça. Um sinal de sua amizade.
- Você tem uma grande sede.
- Eu sou todo grande. E tenho muitos irmãos. O Bastardo do Titã não bebe sozinho, khaleesi.
- Que seja então uma carroça, se prometer beber à minha saúde.
- Feito! - trovejou o homem. - E feito, e feito! Farei três brindes a você e trarei uma resposta quando o sol nascer.
Mas, quando Mero saiu, Arstan Barba-Branca disse:
- Aquele ali tem má reputação, até em Westeros. Não se deixe iludir por suas maneiras, Vossa Graça. Ele fará três brindes à sua saúde esta noite e amanhã vai violá-la.
- O velho tem razão, por uma vez - disse Sor Jorah. - Os Segundos Filhos são uma companhia antiga, que não é desprovida de valor, mas, sob a liderança de Mero, tornaram-se quase tão maus quanto os Bravos Companheiros. O homem é tão perigoso para quem o emprega como para os seus inimigos. E por isso que o encontra aqui. Nenhuma das Cidades Livres o contrata mais.
- Não é a sua reputação que eu quero, são os seus quinhentos homens a cavalo. E os Corvos Tormentosos, há alguma esperança ali?
- Não - disse Sor Jorah sem rodeios. - Aquele Prendahl é de sangue ghiscari. É provável que tivesse família em Astapor.
- Pena. Bem, talvez não precisemos lutar. Esperemos para ouvir o que os yunkaitas têm a dizer.
Os enviados de Yunkai chegaram ao pôr do sol; cinquenta homens montados em magníficos cavalos negros e um montado em um grande camelo branco. Seus elmos eram duas vezes mais altos do que as cabeças, para não esmagarem as bizarras torções, torres e esculturas de cabelos que tinham por baixo. Tingiam de um amarelo vivo as saias e túnicas de linho e cosiam discos de cobre aos mantos.
O homem do camelo branco apresentou-se como Grazdan mo Eraz. Esguio e duro, possuía um sorriso branco semelhante ao que Kraznis tinha ostentado até Drogon queimar seu rosto. Os cabelos estavam puxados para o alto, num chifre de unicórnio que se projetava de sua testa, e o tokar era debruado de renda de Myr dourada.
- Antiga e gloriosa é Yunkai, a rainha das cidades - disse, quando Dany lhe deu as boas-vindas à sua tenda. - Nossas muralhas são fortes; nossos nobres, orgulhosos e ferozes; nosso povo, desprovido de medo. Nosso é o sangue da antiga Ghis, cujo império já era antigo quando Valíria não passava de uma criança chorosa. Foi sensata por se sentar para conversar, khaleesi. Não encontrará aqui uma conquista fácil.
- Ótimo. Meus Imaculados apreciarão um pouco de luta. - Olhou para Verme Cinzento, que assentiu com a cabeça.
Grazdan fez um largo encolher de ombros.
- Se o que deseja é sangue, pois que jorre. Dizem que libertou os seus eunucos. A liberdade tem tanto significado para um Imaculado como um chapéu para um bacalhau. - Sorriu para Verme Cinzento, mas daria para dizer que o eunuco era feito de pedra. - Voltaremos a escravizar aqueles que sobreviverem, e vamos usá-los para arrancar Astapor das mãos do populacho. Também poderemos fazer de você uma escrava, não duvide. Há casas do prazer em Lys e Tyrosh onde os homens pagariam belas somas para dormir com a última Targaryen.
- É bom ver que sabe quem sou - disse Dany em voz branda.
- Orgulho-me de meu conhecimento do selvagem e disparatado ocidente. - Grazdan abriu as mãos, um gesto de conciliação. - E, no entanto, por que temos de falar tão duramente um ao outro? É verdade que você cometeu selvagerias em Astapor, mas nós, os yunkaitas, somos um povo muito clemente. A sua disputa não é conosco, Vossa Graça. Por que desperdiçar suas forças contra as nossas poderosas muralhas, quando precisa de todos os homens para reconquistar o trono de seu pai no longínquo Westeros? Yunkai só lhe deseja sucesso nessa empreitada. E, para provar a verdade dessas palavras, trouxe-lhe um presente. - Bateu palmas, e dois dos membros de sua escolta avançaram, trazendo uma pesada arca de cedro, reforçada com bronze e ouro. Colocaram-na a seus pés. - Cinquenta mil marcos de ouro - disse Grazdan num tom muito doce. - São seus, num gesto de amizade dos Sábios Mestres de Yunkai. Ouro dado livremente é decerto melhor do que saque comprado com sangue. Portanto, digo-lhe, Daenerys Targaryen, aceite esta arca e parta.
Dany abriu a tampa da arca com um pequeno pé enfiado num chinelo. Estava cheia de moedas de ouro, tal como o enviado dissera. Pegou um punhado e deixou-as correr por entre os dedos. Cintilavam, brilhantes, ao rodar e cair; a maioria era recém-cunhada, com uma pirâmide de degraus numa das faces e a harpia de Ghis na outra.
- Muito lindo. Pergunto a mim mesma quantas arcas como esta encontrarei quando tomar sua cidade.
Ele soltou um risinho.
- Nenhuma, pois nunca fará tal coisa.
- Tenho também um presente para você. - Fechou a arca com estrondo. - Três dias. Na manhã do terceiro dia, mande seus escravos para fora da cidade. Todos. A cada homem, mulher e criança será dada uma arma e tanta comida, roupas, moedas e bens quanto ele ou ela puderem transportar. Será permitido a eles que escolham livremente esses objetos de entre as posses de seus donos, como pagamento pelos anos de servidão. Depois de todos os escravos partirem, vocês abrirão os portões e permitirão que meus Imaculados entrem na cidade e a revistem, para assegurar que ninguém permanece em escravidão. Se fizerem isso, Yunkai não será queimada nem saqueada, e nenhum dos membros de seu povo será molestado. Os Sábios Mestres terão a paz que desejam e terão demonstrado serem realmente sábios. O que diz?
- Digo que é louca.
- Ah, sou? - Dany encolheu os ombros e disse: - Dracarys.
Os dragões responderam. Rhaegal silvou e soltou uma baforada de fumaça, Viserion tentou morder e Drogon cuspiu uma chama rodopiante, vermelha e negra. Esta tocou a prega do tokar de Grazdan e a seda pegou fogo em meio segundo. Marcos de ouro derramaram-se pelos tapetes quando o enviado tropeçou na arca, gritando pragas e batendo no braço até que Barba-Branca lhe despejou um jarro de água em cima, para apagar as chamas.
- Jurou que eu teria salvo-conduto! - lamentou-se o enviado de Yunkai.
- Será que todos os yunkaitas se lamuriam tanto por causa de um tokar chamuscado? Comprarei um novo para você... se entregar seus escravos dentro de três dias. Caso contrário, Drogon dará um beijo mais quente. - Torceu o nariz. - Você se borrou. Leve o ouro e vá, e assegure-se de que os Sábios Mestres ouçam a minha mensagem.
Grazdan mo Eraz colocou o dedo em riste.
- Lamentará essa arrogância, vadia. Esses lagartinhos não a manterão a salvo, garanto. Encheremos o ar de flechas se eles chegarem a menos de uma légua de Yunkai. Acha que é muito difícil matar um dragão?
- É mais difícil do que matar um feitor. Três dias, Grazdan. Diga-lhes. Ao fim do terceiro dia, entrarei em Yunkai, quer me abra os portões, quer não.
A noite já tinha caído por completo quando os yunkaitas partiram do acampamento. Prometia ser uma noite sombria; sem luar, sem estrelas, com um vento gelado e úmido que soprava de oeste. Uma bela noite negra, pensou Dany. Ardiam fogueiras por toda a volta, pequenas estrelas cor de laranja espalhadas por campos e colinas.
- Sor Jorah - disse -, convoque meus companheiros de sangue. - Dany sentou-se num monte de almofadas para esperá-los, com os dragões à sua volta. Quando se reuniram, disse: - Uma hora depois da meia-noite deverá ser tempo suficiente.
- Sim, khaleesi - disse Rakharo. - Tempo para quê?
- Para montar o nosso ataque.
Sor Jorah Mormont franziu a testa.
- Disse aos mercenários...
- ... que queria suas respostas de manhã. Não fiz nenhuma promessa a respeito desta noite. Os Corvos Tormentosos estarão discutindo sobre a minha proposta. Os Segundos Filhos estarão bêbados com o vinho que dei a Mero. E os yunkaitas julgam que têm três dias. Vamos pegá-los com a cobertura desta escuridão.
- Eles deverão ter batedores nos vigiando.
- E, na escuridão, verão centenas de fogueiras queimando - disse Dany. - Se chegarem a ver alguma coisa.
- Khaleesi - disse Jhogo -, eu tratarei desses batedores. Não são cavaleiros, são apenas feitores em cima de cavalos.
- Exatamente - concordou. - Acho que devíamos atacar de três lados. Verme Cinzento, seus Imaculados vão atacá-los pela direita e pela esquerda, enquanto meus kos levam a cavalaria em cunha numa arremetida através do centro. Soldados escravos nunca resistirão a dothraki montados. - Sorriu. - Com certeza, sou apenas uma garotinha e pouco sei de guerra. O que acham, senhores?
- Acho que é a irmã de Rhaegar Targaryen - disse Sor Jorah com um meio-sorriso tristonho.
- Sim - disse Arstan Barba-Branca -, e também uma rainha.
Levaram uma hora para resolver todos os detalhes. Agora começa o momento mais perigoso, pensou Dany quando seus capitães partiram para junto de seus homens. Só podia rezar para que as sombras da noite escondessem do inimigo os preparativos.
Perto da meia-noite, levou um susto quando Sor Jorah passou disparando por Belwas, o Forte.
- Os Imaculados apanharam um dos mercenários tentando entrar no acampamento às escondidas.
- Um espião? - aquilo assustou-a. Se tinham pego um, quantos mais teriam escapado?
- Ele diz que veio trazendo presentes. É o idiota amarelo de cabelos azuis.
Daario Naharis.
- Esse. Então ouvirei o que tem a dizer.
Quando o cavaleiro exilado o trouxe, Dany perguntou a si mesma se já teria havido no mundo dois homens mais diferentes um do outro. O tyroshi era claro onde Sor Jorah era moreno; esguio, enquanto o cavaleiro era musculoso; embelezado com abundantes madeixas, ao passo que o outro ia perdendo os cabelos, e no entanto tinha uma pele lisa onde Mormont era peludo. E seu cavaleiro vestia-se com simplicidade, enquanto o outro homem fazia com que um pavão parecesse monótono, embora, para aquela visita, tivesse colocado um pesado manto negro sobre seus brilhantes adornos amarelos. Transportava uma pesada saca de lona atirada sobre um ombro.
- Kbaleesi - gritou -, trago presentes e alegres novas. Os Corvos Tormentosos são seus. - Um dente de ouro cintilou em sua boca, quando sorriu. - E Daario Naharis também!
Dany tinha dúvidas. Se aquele tyroshi tivesse vindo espiar, aquela declaração podia não passar de uma artimanha desesperada para salvar sua cabeça.
- O que dizem disso Prendahl na Ghezn e Sallor?
- Pouca coisa. - Daario virou a saca e a cabeça de Sallor, o Calvo, e a de Prendahl na Ghezn derramaram-se sobre os tapetes. - Meus presentes para a rainha do dragão.
Viserion farejou o sangue que gotejava do pescoço de Prendahl e soltou um novelo de chamas que atingiu em cheio o rosto do morto, enegrecendo e enchendo de bolhas sua face sem sangue. Dragon e Rhaegal agitaram-se com o cheiro de carne assada.
- Foi você que fez isso? - perguntou Dany, repugnada.
- Eu e ninguém mais. - Se os dragões desconcertavam Daario Naharis, ele escondia bem. A julgar pela atenção que prestava neles, bem podiam ser três gatinhos brincando com um rato.
- Por quê?
- Por ser tão bela. - As mãos dele eram grandes e fortes, e havia algo em seus duros olhos azuis e no grande nariz curvo que sugeria a ferocidade de uma magnífica ave de rapina. - Prendahl falava muito e dizia pouco. - Seu vestuário, apesar de rico, estava muito usado; manchas de sal criavam um padrão em suas botas, o esmalte das unhas estava lascado, a renda mostrava-se manchada pelo suor, e Dany via o ponto onde a bainha do manto estava ficando puída. - E Sallor escarafunchava o nariz como se o ranho dele fosse feito de ouro. - O homem estava em pé, com as mãos cruzadas nos pulsos, descansando as palmas nos botões de suas armas; um arakb dothraki curvo na anca esquerda e um esguio punhal de Myr na direita. Os cabos formavam um par de mulheres douradas, nuas e sensuais.
- Usa essas belas lâminas com habilidade? - perguntou-lhe Dany.
- Prendahl e Sallor diriam que sim, se os mortos falassem. Não conto um dia como vivido, a não ser que tenha amado uma mulher, matado um inimigo ou comido uma bela refeição... e os dias que vivi são tão incontáveis quanto as estrelas no céu. Transformo o massacre num ato de beleza, e muitos acrobatas e dançarinos de fogo suplicaram aos deuses poder ter metade de minha rapidez, um quarto de minha graciosidade. Diria para você o nome de todos os homens que matei, mas, antes de conseguir acabar, seus dragões iriam se tornar tão grandes como castelos, as muralhas de Yunkai ruiriam, transformadas em poeira amarela, e o inverno chegaria, partiria e chegaria novamente.
Dany soltou uma gargalhada. Gostava da presunção que via naquele Daario Naharis.
- Puxe a espada e juramente-a ao meu serviço.
Num piscar de olhos, o arakh de Daario viu-se livre da bainha. A submissão do homem foi tão extravagante como todo o resto nele, um grande mergulho que levou seu rosto até os dedos dos pés de Dany.
- Minha espada é sua. Minha vida é sua. Meu amor é seu. Meu sangue, meu corpo, minhas canções, é dona de tudo. Vivo e morro às suas ordens, bela rainha.
- Então viva - disse Dany - e lute por mim esta noite.
- Isso não seria sensato, minha rainha. - Sor Jorah lançou a Daario um olhar frio e duro. - Mantenha este homem aqui, guardado, até que a batalha esteja concluída e ganha.
Dany refletiu por um momento, e depois balançou a cabeça.
- Se ele puder nos dar os Corvos Tormentosos, a surpresa é certa.
- E se nos trair, a surpresa estará perdida.
Dany voltou a examinar o mercenário. Ele mostrou um tal sorriso que ela corou e afastou o olhar.
- Não trairá.
- Como pode saber isso?
Ela apontou para os pedaços de carne esturricada que os dragões estavam consumindo, uma dentada sangrenta após a outra.
- Eu chamaria aquilo de uma prova de sua sinceridade. Daario Naharis, tenha os seus Corvos Tormentosos prontos para atacar a retaguarda yunkaita quando meu ataque começar. Conseguirá voltar em segurança?
- Se me pararem, direi que andei batendo o terreno e nada vi. - O tyroshi pôs-se em pé, fez uma reverência e saiu a passos largos.
Sor Jorah Mormont deixou-se ficar.
- Vossa Graça - disse, sem rodeios -, isso foi um erro. Nada sabemos sobre esse homem...
- Sabemos que é um grande guerreiro.
- Um grande falador, a senhora quer dizer.
- Ele traz os Corvos Tormentosos para nós. - E tem olhos azuis.
- Quinhentos mercenários de lealdade incerta.
- Todas as lealdades são incertas em tempos como estes - recordou-lhe Dany. E eu serei traída mais duas vezes, uma por ouro e outra por amor.
- Daenerys, tenho o triplo de sua idade - disse Sor Jorah. - Já vi quão falsos são os homens. Muito poucos são dignos de confiança, e Daario Naharis não é um deles. Até na barba tem cores falsas.
Aquilo a deixou irritada.
- Ao passo que você tem uma barba honesta, é isso que está me dizendo? Que é o único homem em que poderei confiar?
Ele endireitou-se.
- Não disse isso.
- É o que diz todos os dias. Pyat Pree é um mentiroso, Xaro é um maquinador, Belwas é um fanfarrão, Arstan, um assassino... pensa que continuo sendo uma garotinha virgem, incapaz de ouvir as palavras por trás das palavras?
- Vossa Graça...
Ela interrompeu-o.
- Você tem sido o melhor amigo que já conheci, um irmão melhor do que Viserys alguma vez foi. É o primeiro membro de minha Guarda Real, o comandante de meu exército, meu conselheiro mais estimado, minha boa mão direita. Honro-o, respeito-o e estimo-o... mas não o desejo, Jorah Mormont, e estou cansada de vê-lo tentando empurrar todos os outros homens do mundo para longe de mim, para que tenha de depender de você e apenas de você. Isso não pode ser, e não me fará amá-lo mais.
Mormont corara quando ela começou a falar, mas, quando Dany terminou, tinha o rosto pálido novamente. Ficou imóvel como pedra.
- Se a minha rainha ordena - disse, seco e frio.
Dany estava suficientemente quente para ambos.
- Ordena - disse. - Ela ordena. E agora vá cuidar de seus Imaculados, sor. Tem uma batalha a travar e vencer.
Quando o cavaleiro foi embora, Dany jogou-se sobre as almofadas, para junto dos dragões. Não pretendera ser tão ríspida com Sor Jorah, mas a contínua suspeita de Mormont finalmente tinha despertado o dragão.
Ele vai me perdoar, disse a si mesma. Sou a suserana dele. Dany deu por si interrogando-se sobre se ele teria razão a respeito de Daario. De repente, sentiu-se muito só. Mirri Maz Duur assegurara que ela nunca mais daria à luz um filho vivo. A Casa Targaryen terminará comigo. Aquilo entristeceu-a.
- Vocês têm de ser os meus filhos - disse aos dragões -, os meus três ferozes filhos. Arstan diz que os dragões vivem mais tempo do que os homens, portanto sobreviverão depois de eu morrer.
Drogon curvou o pescoço para mordiscar sua mão. Tinha dentes muito afiados, mas nunca rompia sua pele quando brincavam assim. Dany riu e fez o dragão rolar de um lado para o outro até que ele rugiu, com a cauda estalando como um chicote. É mais comprido do que era, ela percebeu, e amanhã será ainda mais. Eles agora crescem depressa e, quando forem grandes, terei as minhas asas. Montada num dragão, poderia ir à frente de seus homens para a batalha, como fizera em Astapor, mas, por enquanto, ainda eram pequenos demais para suportar seu peso.
Uma quietude caiu sobre o acampamento, quando a meia-noite chegou e passou. Dany permaneceu em seu pavilhão com as aias, enquanto Arstan Barba-Branca e Belwas, o Forte, montavam guarda. A espera é a parte mais dura. Ficar sentada na tenda com as mãos vazias, enquanto a batalha era travada sem sua presença, fez com que Dany se sentisse de novo quase uma criança.
As horas arrastaram-se sobre patas de tartaruga. Mesmo depois de Jhiqui massagear seus ombros para aliviar a tensão, Dany permaneceu inquieta demais para dormir. Missandei ofereceu-se para cantar uma canção de embalar do Povo Pacífico, mas Dany recusou, movendo a cabeça.
- Traga-me Arstan - disse.
Quando o velho entrou, Dany encontrava-se enrolada em sua pele de hrakkar, cujo cheiro bolorento ainda lhe fazia lembrar Drogo.
- Não consigo dormir quando há homens morrendo por mim, Barba-Branca - disse.
- Fale-me mais a respeito de meu irmão Rhaegar, por favor. Gostei da história que me contou no navio, sobre o modo como ele decidiu que tinha de ser um guerreiro.
- Vossa Graça é bondosa por pedir isso.
- Viserys dizia que nosso irmão ganhou muitos torneios.
Arstan inclinou respeitosamente sua cabeça branca.
- Não é próprio de minha parte negar as palavras de Sua Graça...
- Mas? - disse Dany rispidamente. - Conte-me. Eu ordeno.
- A perícia do Príncipe Rhaegar era inquestionável, mas ele raramente entrava nas liças. Nunca gostou da canção das espadas, como Robert ou Jaime Lannister gostavam. Era algo que tinha de fazer, uma tarefa que o mundo tinha lhe atribuído. Desempenhava-a bem, pois fazia tudo bem. Era essa a sua natureza. Mas não tirava dela nenhuma alegria. Os homens diziam que o Príncipe Rhaegar gostava muito mais da harpa do que da lança.
- Mas ele certamente ganhou alguns torneios - disse Dany, desapontada.
- Quando era novo, Sua Graça participou brilhantemente num torneio em Ponta Tempestade, derrotando Lorde Steffron Baratheon, Lorde Jason Mallister, a Víbora Vermelha de Dorne e um cavaleiro misterioso, que se revelou ser o infame Simon Toy- ne, chefe dos fora da lei da mata do rei. Quebrou doze lanças contra Sor Arthur Dayne nesse dia.
- Então foi ele o campeão?
- Não, Vossa Graça. Essa honra foi para outro cavaleiro da Guarda Real, que derrubou o Príncipe Rhaegar na disputa final.
Dany não queria ouvir falar de Rhaegar sendo derrubado.
- Mas que torneios meu irmão ganhou?
- Vossa Graça. - O velho hesitou. - Ele ganhou o maior torneio de todos.
- Que torneio foi esse? - quis saber Dany.
- O torneio que Lorde Whent montou em Harrenhal, ao lado do Olho de Deus, no ano da falsa primavera. Um evento notável. Além das justas, houve um corpo a corpo no estilo antigo, disputado entre sete equipes de cavaleiros, bem como tiro com arco e arremesso de machados, uma corrida de cavalos, um torneio de cantores, um espetáculo de saltimbancos e muitos banquetes e divertimentos. Lorde Whent era tão mão-aberta quanto rico. As pródigas bolsas que proclamou atraíram centenas de competidores. Até o seu real pai se deslocou para Harrenhal, ele que não abandonava a Fortaleza Vermelha havia longos anos. Os maiores senhores e mais poderosos campeões dos Sete Reinos participaram desse torneio, e o Príncipe de Pedra do Dragão superou todos eles.
- Mas esse foi o torneio em que Lyanna Stark foi coroada rainha do amor e da beleza!
- disse Dany. - A Princesa Elia, esposa dele, estava lá, e, no entanto, meu irmão deu a coroa à garota Stark, e mais tarde roubou-a do prometido dela. Como pôde ter feito uma coisa dessas? A mulher dornesa tratava-o tão mal assim?
- Não cabe a alguém como eu dizer o que pode ter passado pelo coração de seu irmão, Vossa Graça. A Princesa Elia era uma senhora bondosa e graciosa, embora sua saúde sempre tenha sido delicada.
Dany envolveu os ombros com a melhor pele de leão.
- Viserys disse uma vez que a culpa era minha, por ter nascido tarde demais. - Lembrava-se de ter negado acaloradamente, chegando ao ponto de dizer a Viserys que a culpa tinha sido dele, por não ter nascido menina. Ele espancara-a cruelmente por essa insolência. - Se eu tivesse nascido em um momento mais oportuno, disse ele, Rhaegar teria se casado comigo e não com Elia, e tudo teria sido diferente. Se Rhaegar tivesse sido feliz com a esposa, não teria necessitado da garota Stark.
- Talvez fosse assim, Vossa Graça. - Barba-Branca fez uma pausa momentânea. - Mas não tenho certeza de que Rhaegar tivesse a capacidade de ser feliz.
- Faz com que ele pareça tão amargo - protestou Dany.
- Amargo não, não, mas... havia uma melancolia no Príncipe Rhaegar, um sentido... - O velho voltou a hesitar.
- Diga - pediu ela. - Um sentido...?
- ... de tragédia. Ele nasceu em pesar, minha rainha, e essa sombra pairou sobre ele durante toda a vida.
Viserys só falara uma vez do nascimento de Rhaegar. A história talvez o entristecesse demais.
- Era a sombra de Solarestival que o assombrava, não era?
- Sim. E, no entanto, Solarestival era o lugar que o príncipe mais amava. Ia para lá de tempos em tempos, acompanhado apenas de sua harpa. Nem mesmo os cavaleiros da Guarda Real o serviam ali. Gostava de dormir no salão arruinado, sob a lua e as estrelas, e sempre que regressava trazia uma canção. Quando se ouvia o príncipe tocar sua harpa com cordas de prata e cantar a respeito de penumbras, lágrimas e a morte de reis, era impossível não sentir que ele estava cantando sobre si e sobre aqueles que amava.
- E o Usurpador? Ele também tocava canções tristes?
Arstan soltou um risinho.
- Robert? Robert gostava de canções que o fizessem rir, e quanto mais obscenas melhor. Só cantava quando estava bêbado, e então eram coisas do gênero de "Um barril de cerveja", "Cinquenta e quatro tonéis" ou "O urso e a bela donzela". Robert era muito...
Como um só, os dragões ergueram a cabeça e rugiram.
- Cavalos! - Dany pôs-se em pé imediatamente, apertando-se à pele de leão. Lá fora, ouviu Belwas, o Forte, berrar alguma coisa, e depois outras vozes, e o ruído de muitos cavalos. - Irri, vá ver quem...
A aba da tenda abriu-se de rompante e Sor Jorah Mormont entrou. Vinha empoeirado e salpicado de sangue, mas fora isso não parecia afetado pela batalha. O cavaleiro exilado ajoelhou-se perante Dany e disse:
- Vossa Graça, trago-lhe a vitória. Os Corvos Tormentosos viraram a casaca, os escravos fugiram e os Segundos Filhos estavam bêbados demais para lutar, tal como tinha dito. Duzentos mortos, na maioria yunkaitas. Seus escravos jogaram fora as lanças e fugiram, e seus mercenários renderam-se. Temos vários milhares de cativos.
- As nossas perdas?
- Uma dúzia. Se tanto.
Só então se permitiu um sorriso.
- Levante-se, meu bom e corajoso urso. Grazdan foi capturado? Ou o Bastardo do Titã?
- Grazdan foi a Yunkai entregar as suas exigências. - Sor Jorah levantou-se. - Mero fugiu, assim que percebeu que os Corvos Tormentosos tinham passado para o nosso lado. Tenho homens atrás dele. Não deve permanecer foragido por muito tempo.
- Muito bem - disse Dany. - Mercenário ou escravo, poupe todos aqueles que me jurarem lealdade. Se um número suficiente dos Segundos Filhos se juntar a mim, mantenha a companhia intacta.
No dia seguinte, marcharam as três últimas léguas até Yunkai. A cidade tinha sido construída com tijolos amarelos em vez de vermelhos; tirando isso, era uma cópia perfeita de Astapor, com as mesmas muralhas esfarelando-se e maciças pirâmides de degraus, e uma grande harpia montada sobre os portões. A muralha e as torres estavam repletas de besteiros e fundibulários. Sor Jorah e Verme Cinzento posicionaram seus homens, Irri e Jhiqui ergueram o pavilhão de Dany, e esta sentou-se, à espera.
Na manhã do terceiro dia, os portões da cidade abriram-se e uma fileira de escravos começou a sair. Dany montou a prata para ir ao encontro deles. Ao passarem, a pequena Missandei foi-lhes dizendo que deviam a liberdade a Daenerys Nascida na Tormenta, a Não Queimada, Rainha dos Sete Reinos de Westeros e Mãe de Dragões.
- Mhysa! - gritou-lhe um homem de pele mulata.
Ele trazia uma criança ao ombro, uma menininha, e ela gritou a mesma palavra em sua vozinha fina:
- Mhysa! Mhysa!
Dany olhou para Missandei.
- O que estão eles gritando?
- É ghiscari, a antiga língua pura. Quer dizer "Mãe".
Dany sentiu uma leveza no peito. Nunca darei à luz um filho vivo, recordou. Sua mão tremeu ao ser erguida. Talvez tenha sorrido. Deve ter sorrido, pois o homem também sorriu e voltou a gritar, e outros acompanharam o seu grito.
- Mhysa! - gritaram. - Mhysa! Mhysa! - Estavam todos sorrindo para Dany, estendendo as mãos para ela, ajoelhando à sua frente. Alguns chamavam-na de "Maela", outros gritavam "Aelalla" ou "Qathei" ou "Tato", mas qualquer que fosse a língua, todas as palavras tinham o mesmo significado. Mãe. Eles estão me chamando de Mãe.
O cântico cresceu, espalhou-se, avolumou-se. Avolumou-se tanto que assustou sua montaria, e a égua recuou, abanou a cabeça e agitou a cauda cinza-prateada. Avolumou-se até parecer sacudir as muralhas amarelas de Yunkai. Mais escravos saíam pelos portões a cada momento, e, ao chegarem, juntavam-se ao grito. Agora corriam para ela, empurrando-se, tropeçando, desejando tocar sua mão, afagar a crina de sua montaria, beijar seus pés. Seus pobres companheiros de sangue não conseguiam manter todos afastados, e até Belwas, o Forte, grunhiu e resmungou de susto.
Sor Jorah tentou convencê-la a sair dali, mas Dany lembrou-se de um sonho que tivera na Casa dos Imorredouros.
- Eles não me farão mal - disse-lhe. - Eles são meus filhos, Jorah. - Soltou uma gargalhada, bateu com os calcanhares na égua e cavalgou na direção dos escravos, com as sinetas nos cabelos tilintando em doce vitória. Trotou, depois passou a meio-galope e em seguida pôs-se a galope, com a trança ondulando atrás de si. Os escravos libertados abriram caminho para ela."Mãe", gritaram cem gargantas, mil, dez mil."Mãe", cantaram, com os dedos afagando suas pernas enquanto voava através deles. "Mãe, Mãe, Mãe!"
Arya
Quando Arya viu a forma do grande monte erguendo-se a distância, dourado ao sol da tarde, reconheceu-o de imediato. Tinham retornado a Coração Alto.
Ao pôr do sol estavam no topo, acampando onde nenhum mal poderia lhes acontecer. Arya percorreu o círculo de tocos de represeiro com o escudeiro de Lorde Beric, Ned, e ficaram em pé sobre um deles, observando a última luz que desaparecia a oeste. Dali de cima via uma tempestade que se enfurecia para o norte, mas Coração Alto erguia-se acima da chuva. No entanto, não estava acima do vento; as rajadas sopravam com tanta força que era como se alguém estivesse atrás de Arya, puxando-a pelo manto. Porém, quando se virou, não havia ninguém lá.
Fantasmas, recordou. Coração Alto está assombrado.
Fizeram uma grande fogueira no topo do monte, e Thoros de Myr sentou-se de pernas cruzadas diante dela, olhando as profundezas das chamas como se nada mais existisse no mundo inteiro.
- O que ele está fazendo? - perguntou Arya a Ned.
- Às vezes, ele vê coisas nas chamas - disse-lhe o escudeiro. - O passado. O futuro. Coisas que estão acontecendo muito longe.
Arya observou o fogo com os olhos semicerrados, tentando enxergar o que o sacerdote vermelho via, mas só conseguiu ficar com os olhos cheios de lágrimas e, pouco tempo depois, afastou-os da fogueira. Gendry também estava observando o sacerdote vermelho.
- Pode mesmo ver o futuro aí? - ele perguntou de súbito.
Thoros afastou os olhos do fogo, suspirando.
- Aqui, não. Agora não. Mas certos dias, sim, o Senhor da Luz concede-me visões.
Gendry não parecia convencido.
- Meu mestre dizia que você era um bêbado e uma fraude, um sacerdote ruim como nunca houve.
- Isso foi pouco amável. - Thoros soltou um risinho. - Verdadeiro, mas pouco amável. Quem era esse seu mestre? Eu conhecia você, rapaz?
- Eu era aprendiz do mestre armeiro Tobho Mott, na Rua do Aço. Costumava comprar as espadas dele.
- É verdade. Ele cobrava de mim o dobro do que elas valiam, e depois repreendia-me por botar fogo nelas. - Thoros soltou uma gargalhada. - O seu mestre tinha razão. Eu não era um sacerdote lá muito santo. Fui o mais novo de oito filhos, e por isso meu pai deu-me ao Templo Vermelho, mas não teria sido esse o caminho que eu escolheria. Orava as orações e proferia os feitiços, mas também liderava ataques às cozinhas e, de tempos em tempos, encontravam garotas na minha cama. Umas garotas tão malvadas... nunca soube como elas iam parar lá.
"Mas eu tinha um dom para línguas. E quando olhava as chamas, bem, de vez em quando via coisas. Mesmo assim, eu dava mais trabalho do que valia e acabaram me enviando para Porto Real, a fim de trazer a luz do Senhor ao sete vezes embrutecido Westeros. O Rei Aerys gostava tanto de fogo que pensavam que poderia ser convertido. Infelizmente, seus piromantes conheciam truques melhores dos que os meus.
"Porém, o Rei Robert gostava de mim. Da primeira vez que entrei num corpo a corpo com uma espada flamejante, o cavalo de Kevan Lannister empinou-se e atirou-o ao chão, e Sua Graça riu tanto que eu pensei que explodiria. - A recordação fez o sacerdote vermelho sorrir. - Mas aquilo não era maneira de tratar uma lâmina, o seu mestre também tinha razão quanto a isso."
- O fogo consome. - Lorde Beric estava em pé atrás deles, e havia algo na sua voz que silenciou Thoros de imediato. - Ele consome, e quando termina, nada resta. Nada.
- Beric. Querido amigo. - O sacerdote tocou o senhor do relâmpago no antebraço. - O que está dizendo?
- Nada que já não tenha dito. Seis vezes, Thoros? Seis vezes é muito. - Afastou-se abruptamente.
Naquela noite, o vento uivava quase como um lobo, e havia alguns lobos de verdade a oeste dando lições a ele. Notch, Anguy e Merrit de Vilalua estavam de vigia. Ned, Gendry e muitos dos outros dormiam profundamente quando Arya vislumbrou a pequena silhueta clara que se movia por trás dos cavalos, com cabelos finos e brancos esvoaçando loucamente, enquanto se apoiava numa bengala cheia de nós. A mulher não podia ter mais de noventa centímetros de altura. A luz da fogueira fazia seus olhos cintilarem num tom tão vermelho quanto o dos olhos do lobo de Jon. Ele também era um fantasma. Arya esgueirou-se para mais perto e ajoelhou-se a fim de espiar.
Thoros e Limo faziam companhia ao Lorde Beric quando a anã se sentou junto da fogueira sem ser convidada. Olhou-os de soslaio, com olhos que eram como carvões ardentes.
- A Brasa e o Limão vêm de novo me visitar, com Sua Graça, o Senhor dos Cadáveres.
- Um nome de mau agouro. Já lhe pedi que não o usasse.
- Sim, pediu. Mas o fedor da morte é fresco em você, senhor. - Não lhe restava mais do que um dente. - Dê-me vinho, senão vou embora. Meus ossos estão velhos. Minhas articulações doem quando os ventos sopram, e aqui em cima os ventos não param de soprar.
- Um veado de prata por seus sonhos, senhora - disse Lorde Beric, com uma solene cortesia. - E outro se tiver notícias para nos dar.
- Não posso comer um veado de prata e também não posso montá-lo. Um odre de vinho por meus sonhos, e, pelas notícias, um beijo do grande idiota com o manto amarelo. - A pequena mulher soltou um cacarejo. - Sim, um beijo molhado, um pouco de língua. Passou-se tempo demais, demais. A boca dele vai ter gosto de limões e a minha, de ossos. Sou velha demais.
- Sim - protestou Limo. - Velha demais para vinho e beijos. Tudo que levará de mim é a parte romba da espada, bruxa.
- Meus cabelos caem aos montes e ninguém me beija há mil anos. É duro ser tão velha. Bem, nesse caso aceito uma canção. Uma canção do Tom das Sete, pelas notícias.
- Terá a sua canção do Tom - prometeu Lorde Beric. Foi ele mesmo que lhe entregou o odre de vinho.
A anã bebeu profundamente, deixando escorrer vinho pelo queixo abaixo. Quando baixou o odre, limpou a boca com as costas de uma mão enrugada e disse:
- Vinho amargo por notícias amargas, o que poderia ser mais adequado? O rei está morto, isso é suficientemente amargo para você?
O coração de Arya ficou preso na garganta.
- Qual dos malditos reis está morto, velha? - exigiu saber Limo.
- O molhado. O rei da lula gigante, senhores. Sonhei que ele estava morto, e ele morreu, e agora as lulas de ferro viraram-se umas contra as outras. Oh, e Lorde Hoster Tully também morreu, mas vocês sabem disso, não é verdade? No salão dos reis, o bode está só e febril, enquanto o grande cão cai sobre ele. - A velha bebeu outro longo trago de vinho, espremendo o odre enquanto o levava aos lábios.
O grande cão. Estaria a velha falando do Cão de Caça? Ou talvez do irmão, a Montanha que Cavalga? Arya não tinha certeza. Ambos usavam as mesmas armas, três cães negros em fundo amarelo. Metade dos homens por cujas mortes rezava pertenciam a Sor Gregor Clegane; Polliver, Dunsen, Raff, o Querido, Cócegas e o próprio Sor Gregor. Talvez Lorde Beric enforque todos.
- Sonhei com um lobo uivando na chuva, mas ninguém ouvia seu lamento - a anã estava dizendo. - Sonhei com um tal clangor que julguei que minha cabeça fosse estourar, com tambores, berrantes, flautas e gritos, mas o som mais triste era o de pequenas campainhas. Sonhei com uma donzela num banquete com serpentes roxas nos cabelos e veneno pingando das presas delas. E mais tarde voltei a sonhar com essa donzela, matando um gigante selvagem num castelo feito de neve. - Virou vivamente a cabeça e sorriu através das sombras, diretamente para Arya. - Não pode se esconder de mim, filha. Chegue mais perto, agora.
Dedos frios desceram pelo pescoço de Arya. O medo corta mais profundamente do que as espadas, lembrou a si mesma. Levantou-se e aproximou-se cautelosamente da fogueira, pisando levemente nas pontas dos pés, pronta para fugir.
A anã estudou-a com seus sombrios olhos vermelhos.
- Estou vendo você - sussurrou. - Estou vendo você, criança lobo. Criança de sangue. Achava que era o lorde quem cheirava a morte... - Começou a soluçar, fazendo estremecer seu pequeno corpo. - É cruel por vir ao meu monte, cruel. Empanturrei-me de pesar em Solarestival, não preciso do seu. Desapareça daqui, coração negro. Desapareça!
Havia tanto medo na voz dela que Arya deu um passo para trás, perguntando a si mesma se a mulher estaria louca.
- Não assuste a criança - protestou Thoros. - Não há nenhum mal nela.
O dedo de Limo Manto Limão dirigiu-se ao seu nariz quebrado e ele disse:
- Não tenha tanta certeza quanto a isso.
- Ela partirá de manhã, conosco - garantiu Lorde Beric à pequena mulher. - Vamos levá-la para Correrrio, para junto da mãe.
- Não - disse a anã. - Não vão. Quem controla os rios agora é o peixe negro. Se querem a mãe, procurem-na nas Gêmeas. Pois haverá um casamento. - Voltou a soltar um cacarejo. - Olhe os seus fogos, sacerdote cor-de-rosa, e verá. Mas não agora, e não aqui, aqui não verá nada. Este lugar ainda pertence aos antigos deuses... permanecem aqui, assim como eu, encolhidos e frágeis, mas ainda vivos. E não gostam das chamas. Pois o carvalho recorda a bolota, a bolota sonha o carvalho, e o toco vive em ambos. E eles se lembram de quando os Primeiros Homens chegaram com fogo nos punhos. - Bebeu o resto do vinho em quatro longos tragos, atirou o odre para o lado e apontou a bengala ao Lorde Beric. - Quero agora o meu pagamento. Quero a canção que me prometeram.
E então Limo despertou Tom Sete-Cordas de debaixo de suas peles, e trouxe-o bocejando até junto da fogueira com a harpa na mão.
- A mesma canção de sempre? - perguntou.
- Ah, sim. A canção da minha Jenny. Existe mais alguma?
E ele assim cantou, e a anã fechou os olhos e começou a balançar o corpo lentamente de um lado para o outro, murmurando as palavras e chorando. Thoros pegou firmemente na mão de Arya e afastou-se com ela.
- Deixa-a saborear a canção em paz - disse. - É tudo que lhe resta.
Eu não ia fazer mal a ela, pensou Arya.
- O que ela quis dizer com as Gêmeas? Minha mãe está em Correrrio, não está?
- Estava. - O sacerdote vermelho coçou-se por baixo do queixo. - Um casamento, disse ela. Veremos. Mas esteja onde estiver, Lorde Beric vai encontrá-la.
Não muito tempo depois, o céu se abriu. Estourou o relâmpago, o trovão rolou sobre os montes e a chuva começou a cair em lençóis que cegavam. A anã desapareceu tão subitamente como surgira, enquanto os fora da lei catavam galhos e erguiam abrigos improvisados.
Choveu toda a noite e, ao chegar a manhã, Ned, Limo e Watty, o Moleiro, acordaram com arrepios. Watty não conseguiu manter o café da manhã no estômago e o jovem Ned estava ora febril, ora tremendo, com a pele fria e úmida ao toque. Notch disse ao Lorde Beric que havia uma aldeia abandonada a meio dia de viagem para norte; lá encontrariam melhor abrigo, um lugar onde esperar que o pior das chuvas passasse. E assim arrastaram-se para cima das selas e fizeram os cavalos descer o grande monte.
As chuvas não davam trégua. Cavalgaram por florestas e campos de cultivo, vadeando riachos em cheia, nos quais as rápidas águas chegavam à altura da barriga dos cavalos. Arya puxou o capuz do manto para cima da cabeça e encolheu-se, ensopada e tremendo, mas determinada a não esmorecer. Merritt e Mudge logo estavam tossindo tanto quanto Watty, e o pobre Ned parecia ficar mais infeliz a cada quilômetro.
- Quando uso o elmo, a chuva bate no aço e me deixa com dor de cabeça - ele queixou-se. - Mas, quando o tiro, meus cabelos ficam encharcados e colam na minha cara e entram na minha boca.
- Você tem uma faca - sugeriu Gendry. - Se os cabelos o aborrecem tanto assim, raspa a porcaria da cabeça.
Ele não gosta de Ned. O escudeiro parecia a Arya bastante simpático; talvez um pouco tímido, mas de boa índole. Sempre tinha ouvido dizer que os dorneses eram baixos e trigueiros, com cabelos e pequenos olhos negros, mas Ned tinha grandes olhos azuis, tão escuros que quase pareciam púrpuras. E os cabelos eram de um louro claro, mais cinza do que mel.
- Há quanto tempo é escudeiro de Lorde Beric? - perguntou, para afastar a mente dele dos problemas.
- Ele tomou-me como pajem quando se comprometeu com a minha tia. - Tossiu. - Tinha sete anos, mas quando fiz dez me promoveu a escudeiro. Uma vez, ganhei um prêmio, avançando contra anéis.
- Nunca aprendi a usar a lança, mas podia ganhar de você com uma espada - disse Arya. - Já matou alguém?
Aquilo pareceu alarmá-lo.
- Só tenho doze anos.
Matei um rapaz com oito, Arya quase disse, mas achou melhor não fazer isso.
- Mas esteve em batalhas.
- Sim. - Não parecia muito orgulhoso do fato. - Estive no Vau do Saltimbanco. Quando Lorde Beric caiu no rio, arrastei-o para a margem, para que não se afogasse, e fiquei sobre ele de espada na mão. Mas não precisei lutar. Lorde Beric tinha uma lança quebrada espetada nele, por isso ninguém nos incomodou. Quando reagrupamos, o Gergen Verde ajudou a colocar sua senhoria de volta no cavalo.
Arya estava se lembrando do cavalariço em Porto Real. Depois dele houve aquele guarda cuja garganta tinha cortado em Harrenhal, e os homens de Sor Amory, naquela fortaleza junto ao lago. Não sabia se Weese e Chiswyck contavam, ou aqueles que tinham morrido por conta da sopa de doninha... de repente, sentiu-se muito triste.
- Também chamavam meu pai de Ned - disse.
- Eu sei. Vi-o no torneio da Mão. Queria me aproximar e falar com ele, mas não consegui pensar no que dizer. - Ned estremeceu sob o manto, uma faixa encharcada roxo-clara. - Você estava no torneio? Vi sua irmã lá. Sor Loras Tyrell deu-lhe uma rosa.
- Ela me contou. - Tudo parecia ter acontecido há tanto tempo. - Jeyne Poole, a amiga dela, apaixonou-se por seu Lorde Beric.
- Ele está prometido à minha tia. - Ned fez uma expressão de desconforto. - Mas isso foi antes. Antes de ele...
... morrer? pensou Arya, enquanto a voz de Ned se reduzia a um silêncio incômodo. Os cascos dos cavalos faziam sons de sucção ao se soltarem da lama.
- Senhora? - disse Ned por fim. - Você tem um irmão ilegítimo... Jon Snow?
- Ele está com a Patrulha da Noite, na Muralha. - Talvez devesse ir para a Muralha em vez de Correrrio. Jon não se importaria com quem matei ou se me penteei ou não... - Jon é parecido comigo, apesar de ter nascido bastardo. Costumava despentear-me os cabelos e me chamar de "irmãzinha". - De todos, era de Jon que Arya sentia mais falta. Bastava dizer seu nome para ser tomada de tristeza. - Como sabe do Jon?
- Ele é meu irmão de leite.
- Irmão? - Arya não compreendia. - Mas você é de Dorne. Como pode ser do sangue deJon?
- Irmãos de leite. Não de sangue. A senhora minha mãe não tinha leite quando eu era pequeno, e Wylla teve de me amamentar.
Arya não entendeu.
- Quem é Wylla?
- A mãe de Jon Snow. Ele nunca lhe disse? Ela esteve a nosso serviço durante anos e mais anos. Desde antes de eu nascer.
- Jon nunca conheceu a mãe. Nem sequer sabe o nome dela. - Arya deu a Ned um olhar desconfiado. - Conhece-a? Mesmo? - Será que ele está caçoando de mim? - Se mentir, dou um murro na sua cara.
- Wylla foi a minha ama de leite - repetiu o rapaz com solenidade. - Juro pela honra da minha Casa.
- Você tem uma Casa? - a pergunta foi estúpida; ele era um escudeiro, é claro que tinha uma Casa. - Quem é você?
- Senhora? - Ned fez uma expressão embaraçada. - Sou Edric Dayne, o... o Senhor de Tombastela.
Atrás deles, Gendry gemeu.
- Senhores e senhoras - proclamou, num tom de repugnância. Arya arrancou uma maçã apodrecida de um galho de passagem e atirou-a em Gendry, fazendo-a quicar em sua dura cabeça de touro. - Ai - disse ele. - Isso doeu. - Tateou a pele por cima do olho. - Que tipo de senhora atira maçãs nas pessoas?
- O tipo mau - disse Arya, de repente arrependida. Virou-se de novo para Ned. - Lamento não saber quem você era. Senhor.
- A culpa é minha, senhora. - Ele era muito educado.
Jon tem uma mãe. Wylla, o nome dela é Wylla. Teria de se lembrar para poder lhe dizer da próxima vez que o visse. Perguntou a si mesma se ele ainda a chamaria de "irmãzinha". Já não sou assim tão "inha". Ele vai ter que me chamar de outra coisa qualquer. Quando chegasse a Correrrio, talvez pudesse escrever uma carta a Jon e contar-lhe o que Ned havia dito.
- Havia um Arthur Dayne - lembrou-se. - Aquele que chamavam de Espada da Manhã.
- Meu pai era o irmão mais velho de Sor Arthur. A Senhora Ashara era minha tia. Mas nunca a conheci. Ela jogou-se ao mar do alto da Espada Branca antes de eu nascer.
- Por que ela faria uma coisa dessas? - perguntou Arya, surpreendida.
Ned fez uma expressão de desconfiança. Talvez tivesse receio de que ela atirasse qualquer coisa nele.
- O senhor seu pai nunca falou dela? - disse. - Da Senhora Ashara Dayne, de Tombastela?
- Não. Ele a conhecia?
- Antes de Robert ser rei. Ela conheceu o seu pai e os irmãos em Harrenhal, durante o ano da falsa primavera.
- Oh. - Arya não sabia o que mais dizer. - Mas por que foi que ela se jogou no mar?
- Teve o coração partido.
Sansa teria suspirado e derramado uma lágrima pelo amor verdadeiro, mas Arya achava que era simplesmente uma estupidez. Mas não podia dizer isso a Ned, não podia dizer tal coisa sobre a tia do rapaz.
- Alguém o partiu?
Ele hesitou.
- Talvez não me caiba...
- Conte-me.
O rapaz olhou-a de maneira desconfortável.
- Minha tia Allyria diz que a Senhora Ashara e o seu pai se apaixonaram em Harrenhal...
- Não é verdade. Ele amava a senhora minha mãe.
- Estou certo de que sim, senhora, mas...
- Era a única mulher que ele amava.
- Então deve ter encontrado aquele bastardo debaixo de uma folha de repolho - disse Gendry atrás deles.
Arya quis ter outra maçã para fazer quicar no rosto dele.
- Meu pai tinha honra - disse Arya, zangada. - E, seja como for, não estávamos falando com você. Por que é que não volta para o Septo de Pedra e toca as estúpidas sinetas daquela garota?
Gendry ignorou-a.
- Pelo menos o seu pai criou o bastardo dele; o meu não. Nem sequer sei o nome de meu pai. Algum bêbado fedorento, aposto, como os outros que a minha mãe arrastava da cervejaria para casa. Sempre que se zangava comigo, dizia: "Se o seu pai estivesse aqui, batia em você até tirar sangue". Isso é tudo que sei dele. - Cuspiu no chão. - Bem, se estivesse aqui agora, pode ser que eu batesse nele até tirar sangue. Mas está morto, imagino, e o seu pai também está morto, portanto que importa com quem ele se deitou?
A Arya importava, embora não soubesse dizer por quê. Ned estava tentando se desculpar por tê-la perturbado, mas ela não quis ouvir. Encostou os calcanhares no cavalo e deixou os dois para trás. Anguy, o Arqueiro, seguia alguns metros mais à frente. Quando o alcançou, disse:
- Os dorneses mentem, não mentem?
- São famosos por isso. - O arqueiro sorriu. - Mas claro que eles dizem o mesmo de nós, os da Marca, portanto, eis aí. O que foi agora? O Ned é um bom rapaz...
- Ele é só um estúpido mentiroso.
Arya abandonou a trilha, saltou um tronco apodrecido e cruzou um riacho, fazendo espirrar água para todos os lados, ignorando os gritos dos fora da lei atrás de si. Só querem me contar mais mentiras. Pensou em tentar fugir deles, mas eram muitos e conheciam aquelas terras bem demais. De que servia fugir se a apanhassem?
Por fim, foi Harwin que se aproximou.
- Onde acha que vai, senhora? Não devia fugir. Há lobos nesta floresta, e coisas piores.
- Não tenho medo - disse ela. - Aquele rapaz, o Ned, disse...
- Sim, ele me contou. A Senhora Ashara Dayne. É uma história antiga, essa. Ouvi-a uma vez em Winterfell, quando ainda não era mais velho do que a senhora é agora. - Agarrou firmemente no freio dela e virou seu cavalo. - Duvido que haja nela alguma verdade. Mas se houver, qual é o problema? Quando Ned conheceu essa senhora dornesa, o irmão Brandon ainda estava vivo, e era ele o noivo da Senhora Catelyn, portanto não há nenhuma mancha na honra de seu pai. Não há nada como um torneio para aquecer o sangue, e talvez algumas palavras tenham sido murmuradas numa tenda em alguma noite, quem sabe? Palavras ou beijos, talvez mais, mas onde está o mal? A primavera tinha chegado, ou pelo menos era o que pensavam, e nenhum dos dois estava comprometido.
- Mas ela se matou - disse Arya com incerteza. - O Ned diz que ela saltou de uma torre para o mar.
- É verdade - admitiu Harwin enquanto a conduzia de volta -, mas foi por desgosto, aposto. Ela tinha perdido um irmão, a Espada da Manhã. - Balançou a cabeça. – Deixe isso, senhora. Estão mortos, todos eles. Deixe quieto... e, por favor, quando chegarmos a Correrrio, não diga nada sobre ele à sua mãe.
A aldeia ficava mesmo onde Notch havia prometido. Abrigaram-se num estábulo de pedra cinza. Só restava meio telhado, mas isso era meio telhado a mais do que havia em qualquer outro edifício da aldeia. Isso não é uma aldeia, são só pedras pretas e ossos velhos.
- Foram os Lannister que mataram as pessoas que viviam aqui? - perguntou Arya enquanto ajudava Anguy a secar os cavalos.
- Não. - Ele apontou. - Olhe como o musgo cresce alto nas pedras. Ninguém anda por aqui há muito tempo. E há uma árvore crescendo ali da parede, está vendo? Este lugar foi passado pelo archote há muito tempo.
- Então quem foi que fez isso? - perguntou Gendry.
- Hoster Tully. - Notch era um homem curvado, magro e de barba grisalha, nascido naquela região. - Esta era a aldeia de Lorde Goodbrook. Quando Correrrio declarou apoio a Robert, Goodbrook manteve-se fiel ao rei, por isso Lorde Tully caiu sobre ele com fogo e espada. Depois do Tridente, o filho de Goodbrook fez a paz com Robert e Lorde Hoster, mas isso não ajudou em nada os mortos.
Caiu um silêncio. Gendry lançou a Arya um olhar estranho, após o que lhe deu as costas para escovar o cavalo. Lá fora, a chuva caía sem parar.
- Acho que precisamos de uma fogueira - declarou Thoros. - A noite é escura e cheia de terrores. E também molhada, hã? Molhada demais.
Jack Sortudo arrancou um pouco de madeira seca de uma cocheira, enquanto Notch e Merris juntavam palha para fazer o fogo pegar. O próprio Thoros tirou a faísca, e Limo atiçou as chamas com seu grande manto amarelo até deixá-las rugindo e rodopiando. Em pouco tempo, o estábulo ficou quase aquecido. Thoros sentou-se em frente à fogueira de pernas cruzadas, devorando as chamas com os olhos, tal como tinha feito no topo de Coração Alto. Arya observava-o de perto, e uma vez os lábios dele moveram-se e ela julgou ouvi-lo murmurar "Correrrio". Limo começou a andar de um lado para o outro, tossindo, com uma longa sombra a acompanhá-lo a cada passo, enquanto Tom das Sete tirava as botas e esfregava os pés.
- Devo estar louco para voltar a Correrrio - protestou o cantor. - Os Tully nunca deram sorte ao velho Tom. Foi aquela Lysa que me mandou pela estrada de altitude, quando os homens da lua me roubaram o ouro e o cavalo e também toda a roupa. Há cavaleiros no Vale que ainda contam a história de como eu cheguei a pé ao Portão Sangrento só com a harpa pra manter a modéstia. Eles obrigaram-me a cantar "O rapaz do dia de seu nome" e "O rei sem coragem" antes de abrirem aquele portão. Meu único consolo foi que três deles morreram rindo. Nunca mais voltei ao Ninho da Águia e também não canto "O rei sem coragem", nem por todo o ouro do Rochedo...
- Lannisters - disse Thoros. - Rugindo em vermelho e dourado. - Pôs-se em pé e foi até Lorde Beric. Limo e Tom não perderam tempo para juntar-se a eles.
Arya não conseguiu distinguir o que estavam conversando, mas o cantor não parava de olhar de relance para ela, e às tantas Limo irritou-se tanto que esmurrou a parede. Foi então que Lorde Beric lhe fez um gesto para que ela se aproximasse. Era a última coisa que queria fazer, mas Harwyn pôs uma mão na parte de baixo de suas costas e empurrou-a para a frente. Arya deu dois passos e hesitou, cheia de terror.
- Senhor. - Esperou para ouvir o que Lorde Beric diria.
- Diga-lhe - ordenou o senhor do relâmpago a Thoros.
O sacerdote vermelho acocorou-se ao lado dela.
- Senhora - disse o Senhor concedeu-me uma visão de Correrrio. Parecia uma ilha num mar de fogo. As chamas eram leões aos saltos, com longas garras carmesim. E como rugiam! Um mar de Lannisters, senhora. Correrrio será atacado em breve.
Arya sentiu-se como se ele a tivesse esmurrado na barriga.
- Não!
- Querida - disse Thoros -, as chamas não mentem. Às vezes leio-as incorretamente, por ser o idiota cego que sou. Mas não dessa vez, penso. Em breve, os Lannister terão Correrrio sob cerco.
- Robb vai vencê-los. - Arya fez uma expressão obstinada. - Ele vai ganhar deles como ganhou antes.
- Seu irmão pode ter partido - disse Thoros. - E sua mãe também. Não os vi nas chamas. Esse casamento de que a velha falou, um casamento nas Gêmeas... aquela lá tem suas maneiras de saber das coisas. Os represeiros murmuram ao ouvido dela quando dorme. Se ela diz que a sua mãe partiu para as Gêmeas...
Arya virou-se para Tom e Limo.
- Se não me tivessem apanhado, eu poderia estar lá. Poderia estar em casa.
Lorde Beric não prestou atenção àquela explosão.
- Senhora - disse, com uma cortesia fatigada -, reconheceria o irmão do seu avô se o visse? Sor Brynden Tully, chamado Peixe Negro? Poderia ele, porventura, reconhecê-la?
Arya balançou a cabeça, infeliz. Tinha ouvido a mãe falar de Sor Brynden Peixe Negro, mas, se alguma vez o conhecera pessoalmente, havia sido quando era pequena demais para se lembrar.
- Não há grandes chances de o Peixe Negro pagar bom dinheiro por uma garota que não conhece - disse Tom. - Aqueles Tully são uma gente amarga e desconfiada, o mais certo é que ele pense que estamos lhe vendendo um artigo falso.
- Vamos convencê-lo - insistiu Limo Manto Limão. - Ela vai, ou então o Harwin. Correrrio fica mais perto. Sugiro que a levemos para lá, recebamos o ouro e nos livremos de vez da garota.
- E se os leões nos pegarem dentro do castelo? - perguntou Tom. - Não há nada de que fossem gostar mais do que pendurar sua senhoria do topo de Rochedo Casterly numa gaiola.
- Não pretendo ser capturado - disse Lorde Beric. Uma última palavra pairou, por proferir, no ar. Vivo. Todos a ouviram, até mesmo Arya, embora ela não tivesse chegado a sair de seus lábios. - Mesmo assim, não nos atrevemos a ir cegamente até lá. Quero saber onde se encontram os exércitos, tanto os lobos como os leões. Sharna saberá alguma coisa, e o meistre de Lorde Vance saberá mais. O Solar de Bolotas não é longe daqui. A Senhora Smallwood vai nos dar abrigo durante algum tempo enquanto enviamos batedores para investigar...
As palavras dele esbarravam em seus ouvidos como o bater de um tambor, e, de repente, Arya não conseguiu suportar mais. Desejava Correrrio, não o Solar de Bolotas; desejava a mãe e o irmão Robb, não a Senhora Smallwood ou um tio qualquer que nunca chegara a conhecer. Girando sobre si mesma, disparou para a porta, e quando Harwin tentou agarrá-la pelo braço, esquivou-se dele, rápida como uma cobra.
Fora do estábulo continuava a chover, e um relâmpago distante caiu a oeste. Arya correu tão depressa quanto foi capaz. Não sabia para onde ia, sabia apenas que queria ficar sozinha, longe de todas as vozes, longe das palavras vazias deles e de suas promessas quebradas. Tudo que eu queria era ir para Correrrio. A culpa era sua, por ter trazido Gendry e Torta Quente quando abandonou Harrenhal. Teria ficado melhor sozinha. Se estivesse sozinha, os fora da lei nunca a teriam apanhado, e àquela altura já estaria com Robb e a mãe. Eles nunca foram a minha alcateia. Se tivessem sido, não teriam me abandonado. Atravessou uma poça lamacenta espirrando água. Alguém estava gritando seu nome. Provavelmente Harwin, ou Gendry, mas o trovão submergiu-os ao rolar por sobre os montes, meio segundo depois do relâmpago. O senhor do relâmpago, pensou, zangada. Talvez não pudesse morrer, mas podia mentir.
Em algum lugar à sua esquerda, um cavalo relinchou. Arya não podia estar a mais de cinquenta metros do estábulo, mas já se encontrava ensopada até os ossos. Abaixou-se junto ao canto de uma das casas em ruínas, esperando que as paredes cobertas de musgo a protegessem da chuva, e quase colidiu com uma das sentinelas. Uma mão revestida de cota de malha fechou-se com força em volta de seu braço.
- Está me machucando - disse, torcendo-se sob aquela mão. - Solte, eu ia voltar, eu...
- Voltar? - a gargalhada de Sandor Clegane era ferro raspando em pedra. - Que se dane isso, garota lobo. Você é minha. - Só precisou de uma mão para levantá-la do chão e levá-la, esperneando, para o cavalo que o esperava. A chuva fria açoitava a ambos e arrastava seus gritos, e Arya só conseguia pensar naquilo que ele tinha lhe perguntado. Sabe o que os cães fazem aos lobos?
Jaime
Embora a febre persistisse teimosamente, o coto estava cicatrizando bem, e Qyburn - dizia que o braço já não corria perigo. Jaime estava ansioso para ir embora, para deixar Harrenhal, os Saltimbancos Sangrentos e Brienne de Tarth para trás. Uma mulher de verdade esperava por ele na Fortaleza Vermelha.
- Vou mandar Qyburn junto, para cuidar de você durante a viagem até Porto Real - disse Roose Bolton na manhã da partida. - Ele alimenta a esperança de que o seu pai se mostre suficientemente grato para forçar a Cidadela a devolver-lhe a corrente.
- Todos alimentamos esperanças. Se me fizer crescer uma mão nova, meu pai fará dele Grande Meistre.
Walton Pernas-de-Aço comandava a escolta de Jaime; sem papas na língua, brusco, brutal, no fundo um simples soldado. Jaime tinha servido a vida inteira com aquele tipo de homem. Homens como Walton matariam às ordens de seu senhor, violariam quando seu sangue fervesse após a batalha e saqueariam sempre que possível, mas assim que a guerra terminasse voltariam para suas casas, trocariam as lanças por enxadas, casariam com a filha dos vizinhos e criariam uma matilha de filhos ruidosos. Homens daqueles obedeciam sem questionar, mas a profunda crueldade maligna dos Bravos Companheiros não fazia parte de sua natureza.
Ambos os grupos abandonaram Harrenhal na mesma manhã, sob um céu frio e cinzento que prometia chuva. Sor Aenys Frey tinha seguido em marcha três dias antes, avançando para nordeste, rumo à estrada do rei. Bolton pretendia segui-lo.
- O Tridente está em cheia - ele disse a Jaime. - A travessia será difícil, mesmo no vau rubi. Dará as minhas cordiais saudações ao seu pai?
- Desde que dê as minhas a Robb Stark.
- Darei.
Alguns Bravos Companheiros tinham se reunido no pátio para assistir à partida. Jaime foi a trote até junto deles.
- Zoilo. Que bondade a sua vir se despedir de mim. Pyg. Timeon. Sentirão saudades de mim? Não há uma última brincadeira para rirmos, Shagwell? Para aliviar meu caminho estrada afora? E Rorge, veio me dar um beijo de despedida?
- Desapareça, aleijado - disse Rorge.
- Já que insiste tanto. Mas sossegue, voltarei. Um Lannister sempre paga suas dívidas. - Jaime deu meia-volta com o cavalo e voltou a se juntar a Walton Pernas-de-Aço e aos seus duzentos homens.
Lorde Bolton paramentara-o como um cavaleiro, preferindo ignorar a mão em falta que transformava em caricatura esse vestuário guerreiro. Jaime seguia com espada e punhal ao cinto, escudo e elmo pendurados na sela, cota de malha sob um sobretudo marrom-escuro. Mas não era tão idiota para exibir o leão dos Lannister em suas armas, nem o brasão branco puro que era seu de direito como Irmão Juramentado da Guarda Real. No arsenal, tinha encontrado um velho escudo, amassado e fendido, cuja tinta lascada ainda exibia a maior parte do grande morcego negro da Casa Lothston num fundo de prata e ouro. Os Lothston tinham sido os donos de Harrenhal antes dos Whent e foram uma família poderosa em seus dias, mas estavam mortos havia séculos, por isso era improvável que alguém levantasse objeções a ele usar as suas armas. Não seria primo de ninguém, inimigo de ninguém, espada juramentada a ninguém... em suma, não seria ninguém.
Saíram através do portão oriental de Harrenhal, menor, e despediram-se de Roose Bolton e de sua tropa dez quilômetros adiante, virando para sul a fim de seguir a estrada do lago durante algum tempo. Walton pretendia evitar a estrada do rei enquanto pudesse, preferindo os caminhos de agricultores e as trilhas de caça perto do Olho de Deus.
- A estrada do rei seria mais rápida. - Jaime estava ansioso por voltar tão depressa quanto possível para Cersei. Caso se apressassem, até poderia chegar a tempo do casamento de Joffrey.
- Não quero encrenca - disse Pernas-de-Aço. - Só os deuses sabem quem iríamos encontrar nessa estrada do rei.
- Ninguém que pudesse temer, certamente. Tem duzentos homens.
- Tenho mesmo. Mas outros podem ter mais. O senhor disse para levá-lo a salvo ao senhor seu pai, e é isso que eu vou fazer.
Já passei por aqui, refletiu Jaime alguns quilômetros mais à frente, quando passaram por um moinho deserto junto ao lago. Agora cresciam ervas daninhas no local de onde a filha do moleiro havia lhe sorrido timidamente e o próprio moleiro gritara para ele: "O torneio é para o outro lado, sor". Como se eu não soubesse.
Rei Aerys tinha feito um grande espetáculo da investidura de Jaime. Proferiu os votos perante o pavilhão real, ajoelhado na grama verde com a sua armadura branca, enquanto metade do reino o observava. Quando Sor Gerald Hightower o ajudou a se levantar e colocou o manto branco em volta de seus ombros, ressoou uma aclamação tamanha que Jaime ainda a recordava, depois de todos esses anos. Mas, nessa mesma noite, Aerys amargou, declarando que não precisava de sete membros da Guarda Real ali em Harrenhal. Foi ordenado a Jaime que voltasse a Porto Real, para proteger a rainha e o pequeno Príncipe Viserys, que tinham ficado para trás. Mesmo quando o Touro Branco se ofereceu para desempenhar esse dever, a fim de que Jaime pudesse competir no torneio de Lorde Whent, Aerys recusou.
- Ele não conquistará aqui nenhuma glória - tinha dito o rei. - Agora é meu, não de Tywin. Servirá como eu bem entender. O rei sou eu. Eu governo, e ele obedecerá.
Foi então que Jaime compreendeu, pela primeira vez, que não fora sua perícia com a espada e a lança que conquistara para ele o manto branco, nem quaisquer feitos de valor que teria realizado contra a Irmandade da Mata de Rei. Aerys o tinha escolhido para humilhar o seu pai, para roubar o herdeiro de Lorde Tywin.
Mesmo agora, tantos anos depois, a ideia era amarga. E naquele dia, enquanto cavalgava para o sul com seu novo manto branco sobre os ombros, a fim de defender um castelo vazio, havia sido quase intolerável. Se pudesse, teria arrancado o manto naquele momento, mas era tarde demais. Proferira as palavras sob os olhares de metade do reino, e um homem da Guarda Real servia para a vida inteira.
Qyburn se aproximou.
- A mão está incomodando?
- A falta da mão está incomodando. - As manhãs eram a pior hora. Em seus sonhos, Jaime era um homem completo, e todas as madrugadas ficava deitado, meio acordado, e sentia os dedos mexendo. Foi um pesadelo, sussurrava uma parte de si, recusando-se a acreditar, mesmo agora, só um pesadelo. Mas, depois, abria os olhos.
- Ouvi dizer que teve uma visita ontem à noite - disse Qyburn. - Espero que tenha desfrutado dela.
Jaime deu-lhe um olhar frio.
- Ela não disse quem a tinha enviado.
O meistre sorriu com modéstia.
- Sua febre tinha praticamente passado, e pensei que talvez gostasse de um pouco de exercício. Pia é bastante habilidosa, não achou? E tão... solícita.
Ela certamente tinha sido. Deslizou tão depressa porta adentro e das roupas para fora que Jaime achou que ainda estava sonhando.
Só despertou depois que a mulher se enfiou debaixo das mantas e colocou a mão boa dele sobre um seio. E também era uma coisinha bonita.
- Eu não passava de uma criancinha quando o sor veio ao torneio de Lorde Whent e o rei lhe deu o manto - tinha confessado. - Era tão bonito todo de branco, e todos elogiavam o bravo cavaleiro que era. Às vezes, quando estou com algum homem, fecho os olhos e finjo que é você quem está ali, em cima de mim, com a sua pele lisa e seus caracóis dourados. Mas nunca pensei que realmente o teria.
Depois daquilo, mandá-la embora não tinha sido fácil, mas Jaime fez isso mesmo assim. Tenho uma mulher, lembrou a si mesmo.
- Manda mulheres a todos os homens que você sangra? - perguntou a Qyburn.
- É mais frequente que seja Lorde Vargo que as manda a mim. Gosta que eu as examine antes de... bem, basta que lhe diga que uma vez amou insensatamente, e não deseja voltar a fazê-lo. Mas nada tema, Pia é bastante saudável. Assim como a sua donzela de Tarth.
Jaime lançou-lhe um olhar penetrante.
- Brienne?
- Sim. Garota forte, essa. E ainda tem a virgindade intacta. Até a noite passada, pelo menos. - Qyburn soltou um risinho.
- Ele mandou-o examiná-la?
- Com certeza. E... melindroso, digamos.
- Isso diz respeito ao resgate? - perguntou Jaime. - O pai dela exige uma prova de que a garota continua donzela?
- Não ouviu as novidades? - Qyburn encolheu os ombros. - Recebemos uma ave de Lorde Selwyn. Em resposta à minha. A Estrela da Tarde oferece trezentos dragões pela devolução da filha em segurança. Eu disse ao Lorde Vargo que não havia safiras em Tarth, mas ele não quis me dar ouvidos. Está convencido de que a Estrela da Tarde pretende enganá-lo.
- Trezentos dragões é um bom resgate por um cavaleiro. O bode devia aceitar o que lhe oferecem.
- O bode é Senhor de Harrenhal, e o Senhor de Harrenhal não regateia.
A novidade irritou-o, embora achasse que devia ter previsto aquilo. A mentira poupou-a durante algum tempo, garota. Fique grata por isso.
- Se a virgindade dela for tão dura quanto o resto, o bode vai quebrar o pau ao tentar entrar - gracejou.
Jaime calculava que Brienne fosse suficientemente dura para sobreviver a alguns estupros, embora Vargo Hoat pudesse começar a cortar-lhe mãos e pés se a garota resistisse com vigor em excesso. E se o fizer, por que devo me importar? Ainda poderia ter minha mão se ela tivesse me deixado ficar com a espada de meu primo sem ficar estúpida. Ele mesmo quase tinha cortado a perna dela com o seu primeiro golpe, mas depois a garota lhe deu mais do que desejara. O Hoat pode não conhecer a força anormal que ela possui. É melhor que tenha cuidado, senão ela quebra aquele pescoço magricela. E que agradável isso seria.
A companhia de Qyburn estava o deixando farto. Jaime trotou até a cabeça da coluna. Um nortenho chamado Nage, que mais parecia um carrapatozinho, ia à frente de Pernas-de-Aço, com o estandarte de paz; uma bandeira riscada de arco-íris com sete longas pontas, num bastão encimado por uma estrela de sete pontas.
- Vocês, os nortenhos, não deveriam ter uma espécie diferente de bandeira de paz? - perguntou a Walton. - O que são os Sete para vocês?
- Deuses do sul - disse o homem -, mas aquilo de que precisamos é de uma paz do sul para levá-lo a salvo ao seu pai.
Meu pai. Jaime gostaria de saber se Lorde Tywin tinha recebido a exigência de resgate do bode, acompanhada ou não da mão apodrecida. Quanto vale um espadachim sem sua mão da espada? Metade do ouro de Rochedo Casterly? Trezentos dragões? Ou nada? O pai nunca se deixara influenciar indevidamente pelas emoções. O pai de Tywin Lannister, Lorde Tytos, certa vez aprisionara um vassalo indisciplinado, Lorde Tarbeck. A temível Senhora Tarbeck respondeu aprisionando três Lannister, incluindo o jovem Stafford, cuja irmã estava prometida ao primo Tywin.
- Envie-me o meu senhor e amor, senão estes três responderão por qualquer mal que lhe aconteça - a mulher escreveu para Rochedo Casterly.
O jovem Tywin sugeriu que o pai fizesse a vontade dela, mandando de volta Lorde Tarbeck em três pedaços. Mas Lorde Tytos era um tipo mais brando de leão, e a Senhora Tarbeck conquistou mais alguns anos com o seu estúpido senhor, e Stafford se casou, procriou e continuou fazendo asneiras até Cruzaboi. Mas Tywin Lannister perdurara, eterno como o Rochedo Casterly. E agora tem um filho aleijado para somar ao anão, senhor. Como detestará esse fato...
A estrada levou-os a atravessar uma aldeia queimada. Devia ter passado um ano ou mais desde que o lugar fora incendiado. Os casebres estavam enegrecidos e sem telhados, mas as ervas daninhas que cresciam nos campos em volta batiam na cintura. Pernas-de-Aço ordenou uma parada para permitir que dessem água aos cavalos. Também conheço este lugar, pensou Jaime enquanto esperava junto do poço. Houvera uma pequena estalagem no local onde agora se erguiam apenas algumas pedras de fundação e uma chaminé, e ele tinha entrado para beber uma cerveja. Uma criada de olhos escuros trouxe-lhe queijo e maçãs, mas o estalajadeiro recusou o seu dinheiro.
- É uma honra ter um cavaleiro da Guarda Real debaixo de meu teto, sor - o homem disse. - É uma história que vou contar aos meus netos.
Jaime olhou para a chaminé que se projetava por entre as ervas daninhas e perguntou a si mesmo se o homem teria arranjado esses netos. Terá dito a eles que um dia o Regicida bebeu de sua cerveja e comeu de seu queijo e de suas maçãs, ou terá tido vergonha de admitir que alimentou um homem como eu? Não que algum dia chegasse a saber; quem quer que tivesse incendiado a estalagem provavelmente também matara os netos.
Sentiu os dedos fantasma cerrarem-se. Quando Pernas-de-Aço disse que talvez devessem acender uma fogueira e comer um pouco, Jaime sacudiu a cabeça.
- Não gosto deste lugar. Prosseguimos.
Ao cair da noite, deixaram o lago para seguir uma trilha sulcada através de um bosque de carvalhos e olmos. O coto de Jaime latejava surdamente quando Pernas-de-Aço decidiu acampar. Felizmente, Qyburn tinha trazido um odre de vinho de sonhos. Enquanto Walton distribuía os turnos de vigia, Jaime esticou-se junto à fogueira e encostou uma pele de urso enrolada a um toco de árvore para servir de almofada. A garota teria dito que ele devia comer antes de dormir, para manter as forças, mas ele sentia mais cansaço do que fome. Fechou os olhos e esperou sonhar com Cersei. Os sonhos febris eram todos tão vívidos...
Achou-se nu e sozinho, rodeado de inimigos, com uma muralha de pedra por toda a volta, muito próxima. O Rochedo, compreendeu. Sentia seu imenso peso sobre a cabeça. Estava em casa. Estava em casa e inteiro.
Levantou a mão direita e dobrou os dedos para sentir a sua força. Era tão bom quanto sexo. Tão bom quanto lutar de espada na mão. Quatro dedos e um polegar. Tinha sonhado que estava mutilado, mas não era verdade. O alívio entonteceu-o. A minha mão, a minha mão boa. Nada lhe faria mal, desde que estivesse inteiro.
À sua volta, encontrava-se uma dúzia de vultos altos e escuros, vestidos com togas encapuzadas que escondiam seus rostos. Nas mãos, traziam lanças.
- Quem são vocês? - perguntou-lhes em tom de desafio. - O que querem de Rochedo Casterly?
As sombras não deram resposta, limitaram-se a cutucá-lo com a ponta das lanças. Não teve alternativa a não ser descer. Seguiram por uma passagem que se encurvava, com degraus estreitos esculpidos na rocha viva, para baixo e mais para baixo. Tenho de ir para cima, disse a si mesmo. Para cima, não para baixo. Por que estou descendo? Por baixo da terra esperava a sua perdição, soube com a certeza do sonho; algo sombrio e terrível o esperava ali, algo que o desejava. Jaime tentou parar, mas as lanças obrigaram-no a prosseguir. Se ao menos tivesse a espada, nada poderia me fazer mal.
Os degraus terminaram abruptamente numa escuridão cheia de ecos. Jaime teve a sensação de um vasto espaço à sua frente. Parou de súbito, balançando na borda do nada. Uma ponta de lança espetou-se na parte de baixo de suas costas, atirando-o para o abismo. Gritou, mas a queda foi curta. Caiu sobre as mãos e os joelhos, em areia mole e água rasa. Havia cavernas cheias de água bem abaixo de Rochedo Casterly, mas aquela era-lhe estranha.
- O seu lugar. - A voz ecoou; era uma centena de vozes, um milhar, as vozes de todos os Lannister desde Lann, o Esperto, que vivera na aurora dos dias. Mas, acima de tudo, era a voz de seu pai, e ao lado de Lorde Tywin encontrava-se a irmã, pálida e bela, com uma tocha ardendo na mão. Joffrey, o filho que tinham feito juntos, também estava lá, e atrás deles havia mais uma dúzia de silhuetas escuras com cabelos dourados.
- Irmã, por que o pai nos trouxe para cá?
- "Nós"? Este lugar é seu, irmão. Esta escuridão é sua. - A tocha dela era a única luz na caverna. A tocha dela era a única luz no mundo. Virou-se para ir embora.
- Fique comigo - suplicou Jaime. - Não me deixem aqui sozinho. - Mas eles estavam partindo. - Não me deixem no escuro! - algo terrível vivia lá embaixo. - Deem-me ao menos uma espada.
- Eu lhe dei uma espada - disse Lorde Tywin.
Estava a seus pés. Jaime a procurou, apalpando por baixo da água até que sua mão se fechou em torno do cabo. Nada pode me fazer mal desde que tenha uma espada. Ao levantar a arma, um dedo de uma chama pálida tremeluziu na ponta e avançou ao longo do gume, parando a uma mão do cabo. O fogo tinha tomado a cor do próprio aço, por isso ardia com uma luz azul-prateada, e as sombras afastaram-se. Inclinando-se, à escuta, Jaime descreveu um círculo, pronto para qualquer coisa que pudesse saltar das trevas. A água entrou nas suas botas até o tornozelo, terrivelmente fria. Cuidado com a água, disse a si mesmo. Pode haver criaturas vivendo nela, poços escondidos...
De trás veio um grande jorrar de água. Jaime rodopiou para o som... mas a tênue luz revelou apenas Brienne de Tarth, com as mãos presas por pesadas correntes.
- Jurei mantê-lo a salvo - disse teimosamente a garota. - Fiz um juramento. - Nua, ergueu as mãos para Jaime. - Sor. Por favor. Se tivesse a bondade.
Os elos de aço rasgaram-se como seda.
- Uma espada - suplicou Brienne, e ali estava ela, com bainha, cinto e tudo. Afivelou-o em volta de sua larga cintura. A luz era tão tênue que Jaime quase não conseguia vê-la, embora não estivessem afastados mais do que escassas dezenas de centímetros. Nessa luz, ela podia quase ser uma beldade, pensou. Nessa luz, ela podia quase ser um cavaleiro. A espada de Brienne também se incendiou, ardendo com um azul-prateado. As trevas recuaram um pouco mais.
- As chamas arderão enquanto viver - ele ouviu Cersei gritar. - Quando morrerem, você também terá de morrer.
- Irmã! - gritou. - Fique comigo. Fique! - não houve resposta além do som suave de passos que se afastavam.
Brienne moveu sua espada de um lado para o outro, observando as chamas prateadas tremulando e cintilando. Sob os seus pés, um reflexo da lâmina em chamas brilhava na superfície da água negra e lisa. Ela era tão alta e forte quanto se lembrava, mas pareceu a Jaime que agora tinha mais formas de mulher.
- Eles têm um urso lá embaixo? - Brienne caminhava de forma lenta e cuidadosa, de espada na mão; um passo, virar e escutar. Cada passo fazia um pequeno barulho de água. - Um leão das cavernas? Lobos gigantes? Um urso? Diga-me, Jaime. O que vive aqui? O que vive nas trevas?
- A perdição. - Não é um urso, soube ele. Não é um leão. - Só a perdição.
À fria luz azul-prateada das espadas, a grande garota parecia pálida e feroz.
- Não gosto deste lugar.
- Eu mesmo não o aprecio. - As lâminas criavam pequenas ilhas de luz, mas em volta estendia-se um mar de escuridão, sem fim. - Meus pés estão molhados.
- Podíamos voltar pelo caminho por onde nos trouxeram. Se subisse em meus ombros, não teria dificuldade em alcançar a abertura do túnel.
Então poderia encontrar Cersei. Sentiu-se enrijecendo-se com aquele pensamento e virou-se para que Brienne não reparasse.
- Escute. - Ela apoiou uma mão em seu ombro e ele estremeceu com o súbito toque. Ela está quente. - Algo está vindo. - Brienne ergueu a espada para apontar para a esquerda. - Ali.
Jaime espreitou as sombras até que também conseguiu ver. Algo se movia pelas trevas, mas não conseguia distinguir o que seria...
- Um homem a cavalo. Não, dois. Dois cavaleiros, lado a lado.
- Aqui, por baixo do Rochedo? - não fazia sentido. E, no entanto, ali vinham dois cavaleiros, montados em cavalos claros, tanto os homens como as montarias revestidos de armaduras. Os cavalos de batalha emergiram do negrume a passo lento. Eles não fizeram nenhum som, percebeu Jaime. Nenhum esparramar de água, nenhum tinir de malha ou ruído de casco. Lembrou-se de Eddard Stark, percorrendo a cavalo todo o comprimento da sala do trono de Aerys, envolto em silêncio. Só seus olhos tinham falado; olhos de senhor, frios, cinzentos e cheios de julgamento.
- É você, Stark? - gritou Jaime. - Venha. Nunca o temi vivo, não o temo morto.
Brienne tocou seu braço.
- Há mais.
Ele também os viu. Parecia-lhe que estavam todos couraçados de neve, e faixas de névoa fluíam em torvelinhos de seus ombros. As viseiras dos seus elmos estavam fechadas, mas Jaime Lannister não precisava contemplar seus rostos para reconhecê-los.
Cinco tinham sido seus irmãos. Oswell Whent e Jon Darry. Lewyn Martell, um príncipe de Dorne. O Touro Branco, Gerold Hightower. Sor Arthur Dayne, a Espada da Manhã. E, junto a eles, coroado em névoa e pesar com seus longos cabelos fluindo pelas costas, seguia Rhaegar Targaryen, Príncipe de Pedra do Dragão e legítimo herdeiro do Trono de Ferro.
- Vocês não me assustam. - Gritou, girando, quando eles se dividiram e o cercaram. Não sabia para que lado se virar. - Lutarei contra vocês um por um ou todos ao mesmo tempo. Mas com quem a garota vai duelar? Ela fica zangada quando é posta de lado.
- Prestei o juramento de mantê-lo em segurança - disse ela à sombra de Rhaegar. - Prestei um juramento sagrado.
- Todos nós prestamos juramentos - disse Sor Arthur Dayne, num tom tristíssimo.
As sombras desmontaram de seus fantasmagóricos cavalos. Quando puxaram as espadas, não fizeram um som.
- Ele ia queimar a cidade - disse Jaime. - Para não deixar a Robert nada além de cinzas.
- Ele era o seu rei - disse Darry.
- Jurou mantê-lo a salvo - falou Whent.
- E às crianças, a elas também - disse o Príncipe Lewyn.
O Príncipe Rhaegar ardia com uma luz fria, ora branca, ora vermelha, ora escura.
- Eu deixei minha esposa e meus filhos em suas mãos.
- Nunca pensei que ele lhes faria mal. - A espada de Jaime agora emitia menos luz. - Eu estava com o rei...
- Matando o rei - disse Sor Arthur.
- Cortando a garganta dele - falou o Príncipe Lewyn.
- O rei por quem tinha jurado morrer - disse Touro Branco.
Os fogos que corriam ao longo da lâmina estavam se apagando, e Jaime lembrou-se daquilo que Cersei tinha dito. Não. O terror cerrou uma mão em volta de sua garganta. Então sua espada escureceu, e só a de Brienne continuava ardendo enquanto os fantasmas o atacaram.
- Não - disse -, não, não, não. Nãããããããããão!
Com o coração aos saltos, acordou num pulo e deu por si no meio da escuridão estrelada, no interior de um grupo de árvores. Sentia o sabor de bílis na boca e tremia, encharcado em suor, ao mesmo tempo quente e frio. Quando olhou para a mão da espada, viu que o punho terminava em couro e linho, bem apertado em volta de um coto feio. Sentiu que súbitas lágrimas subiam aos seus olhos. Senti, senti a força nos meus dedos e o couro áspero do cabo da espada. A minha mão...
- Senhor. - Qyburn ajoelhou-se ao seu lado, com o rosto paternal todo enrugado de preocupação. - O que houve? Ouvi-o gritar.
Walton Pernas-de-Aço estava em pé sobre eles, alto e severo.
- O que houve? Por que gritou?
- Um sonho... só um sonho. - Jaime fitou o acampamento que o rodeava, momentaneamente desorientado. - Estava no escuro, mas tinha a minha mão de volta. - Olhou para o coto e sentiu-se de novo doente. Não há um lugar como aquele por baixo do Rochedo, pensou. Sentia o estômago dolorido e vazio, e a cabeça latejava no local onde a encostara ao toco de árvore.
Qyburn pôs a mão na testa dele.
- Ainda tem um pouco de febre.
- Um sonho febril. - Jaime estendeu a mão para cima. - Ajudem-me. - Pernas-de-Aço pegou-o pela mão boa e o colocou em pé.
- Outra taça de vinho dos sonhos? - perguntou Qyburn.
- Não. Já sonhei o suficiente por esta noite. - Perguntou a si mesmo quanto tempo faltaria até a alvorada. De algum modo sabia que se fechasse os olhos voltaria àquele lugar escuro e úmido.
- Então leite de papoula? E alguma coisa para a febre? Ainda está fraco, senhor. Precisa dormir, descansar.
Isso é a última coisa que pretendo fazer. O luar cintilava, pálido, no toco de árvore sobre o qual Jaime tinha descansado a cabeça. O musgo cobria-o de tal forma que antes não notara, mas via agora que a madeira era branca. Fez com que pensasse em Winterfell, e na árvore-coração de Ned Stark. Não era ele, pensou. Nunca foi ele. Mas o toco estava morto, e Stark também, bem como todos os outros, Príncipe Rhaegar, Sor Arthur e as crianças. E Aerys. Aerys é o mais morto de todos.
- Acredita em fantasmas, meistre? - perguntou a Qyburn.
O rosto do homem ganhou uma expressão estranha.
- Uma vez, na Cidadela, entrei numa sala vazia e vi uma cadeira vazia. E, no entanto, sabia que uma mulher tinha estado ali apenas um momento antes. A almofada estava comprimida onde ela se sentara, o tecido ainda estava quente e o cheiro dela permanecia no ar. Se deixamos nossos cheiros atrás de nós quando saímos de uma sala, decerto parte de nossa alma deve permanecer quando deixamos esta vida, não? - Qyburn estendeu as mãos. - Mas os arquimeistres não gostavam de minha forma de pensar. Bem, Marwyn gostava, mas era o único.
Jaime passou os dedos pelos cabelos.
- Walton - disse -, sele os cavalos. Quero voltar.
- Voltar? - Pernas-de-Aço olhou-o com uma expressão de dúvida.
Ele acha que enlouqueci. E talvez tenha enlouquecido.
- Deixei uma coisa em Harrenhal.
- E Lorde Vargo quem agora detém o castelo. Ele e seus Saltimbancos Sangrentos.
- Tem o dobro dos homens que ele possui.
- Se não entregá-lo ao seu pai conforme ordenado, Lorde Bolton arranca minha pele. Continuamos rumo a Porto Real.
Em outros tempos, Jaime poderia ter replicado com um sorriso e uma ameaça, mas aleijados manetas não inspiram muito medo. Perguntou a si mesmo o que o irmão faria. Tyrion encontraria uma saída.
- Os Lannister mentem, Pernas-de-Aço. Lorde Bolton não lhe disse isso?
O homem franziu a testa, desconfiado.
- E se tivesse dito?
- Se não me levar de volta a Harrenhal, a canção que vou cantar ao meu pai poderá não ser aquela que o Senhor do Forte do Pavor gostaria de ouvir. Posso até dizer que foi Bolton quem ordenou que minha mão fosse cortada, e Walton Pernas-de-Aço quem manejou a lâmina.
Walton olhou-o boquiaberto.
- Isso não é verdade.
- Não mesmo, mas meu pai acreditará em quem? - Jaime obrigou-se a sorrir, da maneira como costumava fazer quando nada no mundo podia assustá-lo. - Seria tão mais fácil se simplesmente voltássemos. Estaríamos bem depressa de novo a caminho, e eu cantaria uma canção tão simpática em Porto Real que nem acreditaria em seus ouvidos. Ficaria com a garota, e uma bela e gorda bolsa de ouro como agradecimento.
- Ouro? - Walton gostou bastante da ideia. - Quanto ouro?
É meu.
- Ora, quanto você quer?
E quando o valor foi acordado, já estavam a meio caminho de Harrenhal.
Jaime incitou o cavalo muito mais do que no dia anterior, e Pernas-de-Aço e os nortenhos foram obrigados a acompanhar o ritmo dele. Mesmo assim, passou-se o meio-dia antes de chegarem ao castelo que se debruçava sobre o lago. Sob um céu que escurecia e ameaçava desabar, as imensas muralhas e as cinco grandes torres mostravam-se negras e sinistras. Parece tão morto. As muralhas estavam vazias, os portões fechados e trancados. Mas, bem alto, acima da barbacã, um único estandarte pendia, flácido. A cabra negra de Qohor, soube Jaime. Pôs as mãos em volta da boca para gritar.
- Vocês aí! Abram os portões, senão ponho-os abaixo aos chutes!
Foi só quando Qyburn e Pernas-de-Aço somaram as vozes à de Jaime que uma cabeça finalmente surgiu nas ameias lá em cima. O homem arregalou os olhos para eles, e depois desapareceu. Pouco tempo depois, ouviram a porta levadiça sendo içada. Os portões abriram-se, e Jaime Lannister esporeou o cavalo para atravessar a muralha, quase sem dar um relance aos alçapões enquanto passava por baixo. Tinha se preocupado com a possibilidade de o bode não deixá-los entrar, mas parecia que os Bravos Companheiros ainda pensavam neles como aliados. Idiotas.
O pátio exterior encontrava-se deserto; só os compridos estábulos com telhado de ardósia mostravam sinais de vida, e o que interessava a Jaime naquele momento não eram cavalos. Puxou as rédeas e olhou em volta. Ouvia ruídos vindos de algum lugar atrás da Torre dos Fantasmas e homens gritando em meia dúzia de línguas. Pernas-de-Aço e Qy-burn aproximaram-se e pararam junto a Jaime, um de cada lado.
- Vá buscar o que veio buscar, e vamos de novo embora - disse Walton. - Não quero encrenca com os Saltimbancos.
- Diga aos seus homens para manterem as mãos no cabo das espadas, e os Saltimbancos não quererão encrenca com você. Dois para um, lembrai
A cabeça de Jaime virou-se vivamente ao ouvir um rugido distante, tênue mas feroz. Ecoou nas muralhas de Harrenhal, e as gargalhadas subiram como o mar. De repente, compreendeu o que estava acontecendo. Teremos chegado tarde demais? Seu estômago deu um solavanco, e ele espetou com força as esporas no cavalo, atravessando a galope o pátio exterior, passando sob uma ponte de pedra em arco, rodeando a Torre dos Lamentos e cruzando o Pátio das Lâminas.
Tinham-na na arena dos ursos.
Rei Harren, o Negro, quis fazer até as lutas de ursos em estilo suntuoso. A arena tinha dez metros de diâmetro e cinco de profundidade, era fechada por muros de pedra, possuía um chão de areia e era rodeada por seis fileiras de bancos de mármore. Ao desmontar desajeitadamente do cavalo, Jaime viu que os Bravos Companheiros enchiam apenas um quarto dos lugares. Os mercenários estavam tão absortos pelo espetáculo, lá embaixo, que só aqueles que se encontravam do outro lado da arena notaram a sua chegada.
Brienne trajava o mesmo vestido que usara para jantar com Roose Bolton e que tão mal lhe caía. Nada de escudo, nada de placa de peito, nada de cota de malha, nem mesmo couro fervido, só cetim cor-de-rosa e renda de Myr. O bode talvez pensasse que era mais divertida quando estava vestida de mulher. Metade do vestido pendia em farrapos, e o braço esquerdo sangrava onde o urso a arranhara.
Pelo menos deram-lhe uma espada. A garota pegava nela com uma mão, movendo-se de lado, tentando colocar alguma distância entre si e o urso. Não vai dar certo, a arena é pequena demais. Ela tinha de atacar, dar um fim rápido àquilo. Bom aço era adversário à altura para qualquer urso. Mas a garota parecia ter medo de se aproximar. Os Saltimbancos faziam chover sobre ela insultos e sugestões obscenas.
- Isso não nos diz respeito - preveniu Pernas-de-Aço a Jaime. - Lorde Bolton disse que a garota era deles para fazerem com ela o que quisessem.
- O nome dela é Brienne. - Jaime desceu os degraus, passando por uma dúzia de mercenários surpresos. Vargo Hoat ocupava o camarote do senhor, na fila de baixo. - Lorde Vargo - chamou por sobre os gritos.
O qohorik quase cuspiu o vinho.
- Regifida? - tinha uma atadura desajeitada no lado esquerdo do rosto e o linho que cobria sua orelha estava manchado de sangue.
- Tire-a dali.
- Não fe meta nifto, Regifida, a menof que queira outro coto. - Brandiu uma taça de vinho. - O feu alfe fêmea arrancou-me uma orelha com of dentef. Pouco admira que o pai não queira refgatar um monftrengo deites.
Um rugido fez Jaime se virar. O urso tinha dois metros e quarenta de altura. Gregor Clegane com pelagem, pensou, embora provavelmente mais esperto. O animal não tinha o alcance da Montanha com aquela sua monstruosa espada, porém.
Berrando de fúria, o urso mostrou uma boca cheia de grandes dentes amarelos e depois voltou a cair de quatro e arremeteu diretamente contra Brienne. Aqui está a sua oportunidade, pensou Jaime. Ataque! Agora!
Mas, em vez disso, ela furou-o ineficazmente com a ponta da espada. O urso recuou, e avançou logo de seguida, urrando. Brienne deslizou para a esquerda e voltou a lançar uma estocada à cara do urso. Dessa vez, ele ergueu uma pata para afastar a espada com uma pancada.
Ele está cauteloso, percebeu Jaime. Já defrontou outros homens antes. Sabe que espadas e lanças podem feri-lo. Mas isso não o manterá afastado dela por muito tempo.
- Mate-o! - gritou, mas sua voz perdeu-se no meio de todos os outros gritos.
Se Brienne ouviu, não deu sinal. Moveu-se em volta da arena, mantendo as costas viradas para o muro. Perto demais. Se o urso a encurralar contra o muro...
O animal virou-se desajeitadamente, longe e depressa demais. Rápida como uma gata, Brienne mudou de direção. Aí está a garota de que me lembro. Deu um salto adiante para lançar um golpe às costas do urso. Rugindo, a fera voltou a se levantar nas patas traseiras. Brienne afastou-se precipitadamente. Onde está o sangue? Então, de repente, compreendeu.
- Deu uma espada de torneio a ela.
O bode zurrou uma gargalhada, fazendo chover sobre Jaime vinho e cuspe.
- Claro que fim.
- Eu pago o maldito resgate dela. Ouro, safiras, o que quiser. Tire-a dali.
- Quer a garota? Vá bufcá-la.
E foi o que ele fez.
Jaime pôs a mão boa no parapeito de mármore e saltou por cima, rolando ao atingir a areia. O urso virou-se ao ouvir o pof, farejando, observando o novo intruso com precaução. Jaime apoiou-se num joelho. Bem, e o que é que, com os sete infernos, eu faço agora? Encheu o punho de areia.
- Regicida? - ouviu Brienne dizer, estupefata.
- Jaime. - Desdobrou-se, atirando a areia na cara do urso. O animal socou o ar e rugiu como brasas.
- O que você está fazendo aqui?
- Uma estupidez. Fique atrás de mim. - Descreveu um círculo na direção dela, colocando-se entre Brienne e o urso.
- Fique você atrás. Eu tenho a espada.
- Uma espada sem ponta e sem gume. Fique atrás de mim! - viu uma coisa meio enterrada na areia e apanhou-a com a mão boa. O objeto revelou ser um maxilar humano, com um pouco de carne esverdeada ainda presa ao osso, repleto de larvas. Encantador, pensou, perguntando a si mesmo de quem seria a cara que tinha na mão. O urso aproximava-se lentamente, e Jaime sacudiu o braço e atirou osso, carne e larvas na cabeça do urso. Errou por um bom metro. Devia cortar também a mão esquerda, de tão útil que ela me é.
Brienne tentou avançar em volta dele, mas Jaime deu-lhe um pontapé nas pernas e fez com que se desequilibrasse. A garota caiu na areia, agarrada à espada inútil. Jaime escarranchou-se sobre ela, e o urso avançou sobre ambos.
Ouviu-se um profundo tuang, e uma haste com penas brotou de repente sob o olho esquerdo da fera. Sangue e saliva escorreram-lhe da boca aberta, e outro dardo acertou sua pata. O urso rugiu, empinou-se. Voltou a ver Jaime e Brienne e voltou a se arrastar na direção deles. Mais bestas dispararam, rasgando pelagem e carne com seus dardos. A tão curta distância, os besteiros dificilmente falhariam. Os dardos atingiam o urso com a força de maças, mas o animal deu outro passo. Pobre, burro e corajoso bruto. Quando a fera tentou golpeá-lo, afastou-se dançando, gritando, fazendo voar areia. O urso virou-se para seguir o homem que o atormentava e levou mais dois dardos no dorso. Deu um último rosnado trovejante, sentou-se sobre os quartos traseiros, estendeu-se na areia manchada de sangue e morreu.
Brienne ajoelhou-se, agarrando a espada e respirando rápida e irregularmente. Os besteiros de Pernas-de-Aço estavam esticando as cordas de suas bestas e recarregando-as enquanto os Saltimbancos Sangrentos gritavam-lhes xingamentos e ameaças. Jaime viu que Rorge e Três Dedos tinham espadas desembainhadas e Zoilo estava desenrolando o chicote.
- Vofê matou o meu urfo! - guinchou Vargo Hoat.
- E sirvo-lhe o mesmo prato se me causar encrenca - atirou Pernas-de-Aço em resposta. - Vamos levar a garota.
- O nome dela é Brienne - disse Jaime. - Brienne, a donzela de Tarth. Ainda é donzela, espero?
O largo rosto grosseiro da garota ficou vermelho.
- Sim.
- Oh, ótimo - disse Jaime. - Só salvo donzelas. - Dirigindo-se a Hoat, disse: - Terá o seu resgate. Por nós dois. Um Lannister paga suas dívidas. Agora vá buscar cordas e tire-nos daqui.
- Foda-se o resgate - rosnou Rorge. - Mate-os, Hoat. Senão vai acabar desejando ter acabado com eles!
O qohorik hesitou. Metade de seus homens estavam bêbados; os nortenhos, sóbrios como pedras, e eram duas vezes mais numerosos. Alguns dos besteiros já estavam recarregados àquela altura.
- Pufem-nof pra fora - disse Hoat e depois, para Jaime: - Defidi fer mifericordiofo. Diga ao fenhor feu pai.
- Direi, senhor. - Não que isso lhe sirva para alguma coisa.
Foi só depois de estarem a meia légua de Harrenhal e fora do alcance dos arqueiros nas muralhas que Walton Pernas-de-Aço mostrou a sua ira.
- Está louco, Regicida? Pretendia morrer? Nenhum homem pode lutar com um urso de mãos vazias!
- Uma mão vazia e um coto vazio - corrigiu Jaime. - Mas eu tinha esperança de que matasse o animal antes que ele me matasse. De outra forma, Lorde Bolton iria descascá-lo como a uma laranja, não é verdade?
Pernas-de-Aço amaldiçoou-o e chamou-o de Lannister idiota, esporeou o cavalo e galopou ao longo da coluna.
- Sor Jaime? - mesmo com cetim cor-de-rosa sujo e renda rasgada, Brienne parecia mais um homem de vestido do que uma mulher. - Sinto-me grata, mas... você estava bem longe. Por que voltou?
Veio à sua mente uma dúzia de ditos de espírito, cada um mais cruel do que o anterior, mas Jaime limitou-se a encolher os ombros.
- Sonhei com você - disse.
Robb despediu-se três vezes de sua jovem rainha. Uma vez no bosque sagrado, perante a árvore-coração, à vista dos deuses e dos homens. A segunda vez, por baixo da porta levadiça, onde Jeyne o deixou partir com um longo abraço e um beijo ainda mais longo. E, por fim, uma hora depois de atravessar o Pedregoso, quando a garota chegou a galope num cavalo coberto de espuma para suplicar ao seu jovem rei que a levasse junto.
Catelyn viu que Robb ficou tocado por aquele gesto, mas também envergonhado. O dia estava úmido e cinzento, tinha começado a garoar e a última coisa que queria era interromper a marcha para ficar no molhado consolando uma jovem esposa chorosa diante de metade de seu exército. Ele fala com ela gentilmente, pensou ao vê-los juntos, mas por baixo existe irritação.
Durante todo o tempo que o rei e a rainha passaram conversando, Vento Cinzento caminhou ao redor deles, parando apenas para sacudir a chuva do pelo e mostrar os dentes à chuva. Quando Robb deu, por fim, um último beijo em Jeyne, despachou uma dúzia de homens para levá-la para Correrrio e voltou a montar no cavalo, o lobo gigante correu em frente com a rapidez de uma flecha disparada de um grande arco.
- Vejo que a Rainha Jeyne tem um coração amoroso - disse Lothar Frey a Catelyn. - Assim como as minhas irmãs. Ora, era capaz de apostar que nesse mesmo instante Roslin anda dançando pelas Gêmeas, cantarolando "Senhora Tully, Senhora Tully, Senhora Roslin Tully". De manhã, vai ficar levando ao rosto tecidos do vermelho e azul de Correrrio, para imaginar o aspecto que terá com o manto nupcial. - Virou-se na sela para sorrir a Edmure. - Mas o senhor está estranhamente quieto, Lorde Tully. Pergunto a mim mesmo como o senhor se sente.
- Sinto algo bastante semelhante ao que senti no Moinho de Pedra logo antes de os berrantes de guerra soarem - disse Edmure, só em parte brincando.
Lothar soltou uma gargalhada bondosa.
- Rezemos para que o seu casamento termine de forma igualmente feliz, senhor.
E que os deuses nos protejam se não terminar. Catelyn encostou os calcanhares no cavalo, deixando o irmão e Lothar Coxo na companhia um do outro.
Tinha sido ela quem insistiu para que Jeyne permanecesse em Correrrio, enquanto Robb preferiria mantê-la ao seu lado. Lorde Walder podia perfeitamente interpretar a ausência da rainha no casamento como outra desfeita, mas sua presença seria outro tipo de insulto, sal nas feridas do velho.
- Walder Frey tem uma língua afiada e uma longa memória - prevenira o filho. - Não duvido que você seja suficientemente forte para aturar as reprimendas do velho como preço a pagar por sua aliança, mas tem em si muito do seu pai para se segurar sentado enquanto ele lança insultos na cara de Jeyne.
Robb não podia negar a sensatez daquilo. Mas, ao mesmo tempo, nutre ressentimento contra mim, e parte dele me culpa pela ausência dela, embora saiba que foi um bom conselho.
Dos seis Westerling que tinham vindo do Despenhadeiro com o filho, só um permanecia ao seu lado; Sor Raynald, irmão de Jeyne, o porta-estandartes real. Robb tinha enviado o tio de Jeyne, Rolph Spicer, para entregar o jovem Martyn Lannister ao Dente Dourado, no mesmo dia em que recebera o acordo de Lorde Tywin com relação à troca de cativos. Tinha sido um gesto hábil. O filho ficava aliviado de seus receios quanto à segurança de Martyn, Galbart Glover ficava aliviado por saber que o irmão Robett tinha sido posto num navio em Valdocaso, Sor Rolph tinha uma tarefa importante e honrosa... e Vento Cinzento estava de novo ao lado do rei. Onde é o lugar dele.
A Senhora Westerling permaneceu em Correrrio com os filhos; Jeyne, a irmã mais nova, Eleyna, e o jovem Rollam, escudeiro de Robb, que protestou amargamente por ser deixado para trás. E, no entanto, isso também era sensato. Olyvar Frey havia sido escudeiro de Robb e estaria sem dúvida presente no casamento da irmã; exibir a ele seu substituto seria tão insensato como grosseiro. Quanto a Sor Raynald, era um alegre jovem cavaleiro que jurou que nenhum insulto de Walder Frey conseguiria provocá-lo. E rezemos para que só tenhamos de lidar com insultos.
Mas Catelyn tinha seus temores a esse respeito. O senhor seu pai nunca voltara a confiar em Walder Frey após o Tridente, e ela tinha isso sempre em mente. A Rainha Jeyne estaria mais segura atrás das altas e fortes muralhas de Correrrio, com o Peixe Negro a protegê-la. Robb até tinha criado para ele um novo título, Protetor das Marcas Meridionais. Se algum homem conseguiria defender o Tridente, esse homem era Sor Brynden.
Fosse como fosse, Catelyn teria saudades do rosto escarpado do tio, e Robb sentiria a falta dos conselhos dele. Sor Brynden desempenhou um papel em todas as vitórias que o filho conquistara. Galbart Glover tomou seu lugar no comando dos batedores e da escolta dianteira; um bom homem, leal e firme, mas sem o brilhantismo do Peixe Negro.
Atrás da tela de batedores de Glover, a linha de marcha de Robb estendia-se por vários quilômetros. Grande-Jon liderava a vanguarda. Catelyn viajava na coluna principal, rodeada por pesados cavalos de guerra com homens cobertos de aço sobre o dorso. Atrás, vinha o comboio da bagagem, uma procissão de carroças carregadas de comida, forragem, material para acampar, presentes de casamento e os feridos que estavam fracos demais para caminhar, vigiados de perto por Sor Wendel Manderly e seus cavaleiros de Porto Branco. Manadas de ovelhas, cabras e bois descarnados seguiam atrás, e depois vinha uma pequena comitiva de seguidoras de acampamentos, de pés doloridos. Ainda mais para trás, avançava Robin Flint e a retaguarda. Não havia inimigos atrás deles ao longo de centenas de quilômetros, mas Robb não queria correr riscos.
Eram três mil e quinhentos, três mil e quinhentos que tinham passado pelo batismo de sangue no Bosque dos Murmúrios, que tinham ruborizado as espadas na Batalha dos Acampamentos, em Cruzaboi, em Cinzamarca, no Despenhadeiro e ao longo dos montes ricos em ouro do ocidente Lannister. À exceção da pequena comitiva de amigos de Lorde Edmure, os senhores do Tridente tinham ficado para trás, a fim de defender as terras fluviais enquanto o rei recuperava o Norte. Em frente esperavam a noiva de Edmure e a batalha seguinte de Robb... e, para mim, dois filhos mortos, uma cama vazia e um castelo cheio de fantasmas. Era uma perspectiva sem alegria. Brienne, onde você está? Devolva-me as minhas meninas, Brienne. Devolva-as em segurança.
A garoa que os tinha acompanhado quando partiram de Correrrio transformou-se numa chuva suave e constante pelo meio-dia e prosseguiu até bem depois do cair da noite. No dia seguinte, os nortenhos não chegaram a ver o sol, avançando sob céus de chumbo com o capuz vestido, a fim de manter a água afastada dos olhos. Era uma chuva pesada que transformava estradas em lama e campos em atoleiros, enchendo os rios e despindo as árvores de suas folhas. O bater constante das gotas tornava a conversa miúda muito difícil para o pouco que importava, e por isso os homens falavam apenas quando tinham algo a dizer, o que era bastante raro.
- Somos mais fortes do que parecemos, senhora - disse a Senhora Maege Mormont enquanto avançavam. Catelyn tinha começado a nutrir amizade pela Senhora Maege e por sua filha mais velha, Dacey; descobrira que eram mais compreensivas do que a maioria no que dizia respeito a Jaime Lannister. A filha era alta e esguia, a mãe, baixa e robusta, mas vestiam-se de forma semelhante, com cota de malha e couro, com o urso negro da Casa Mormont desenhado nos escudos e nos sobretudos. Aos olhos de Catelyn, era um vestuário bizarro para uma senhora, mas Dacey e a Senhora Maege pareciam mais confortáveis, como guerreiras e como mulheres, do que a garota de Tarth jamais esteve.
- Lutei ao lado do Jovem Lobo em todas as batalhas - disse alegremente Dacey Mormont. - Ainda não perdeu nenhuma.
Não, mas perdeu todo o resto, pensou Catelyn, mas não seria bom dizê-lo em voz alta. Aos nortenhos não faltava coragem, mas estavam longe de casa, com pouco que os sustentasse além da fé em seu jovem rei. Essa fé tinha de ser protegida, a todo custo. Tenho de ser mais forte, disse a si mesma. Tenho de ser forte por Robb. Se me desesperar, a dor vai me consumir. Tudo dependia daquele casamento. Se Edmure e Roslin estivessem felizes um com o outro, se o Atrasado Lorde Frey pudesse ser apaziguado e seu poderio de novo casado com o de Robb... Mesmo assim, que chances teremos, encurralados entre os Lannister e os Greyjoy? Era uma questão que Catelyn não se atrevia a aprofundar, embora Robb tratasse de pouco mais do que isso. Ela via como ele estudava seus mapas sempre que montavam o acampamento, em busca de um plano que lhe pudesse reconquistar o Norte.
O irmão Edmure tinha outras preocupações.
- Não acreditam que todas as filhas de Lorde Walder se parecem com ele, não é -, perguntou, ao sentar-se em seu grande pavilhão listrado, com Catelyn e os amigos.
- Com tantas mães diferentes, algumas das donzelas têm necessariamente de sair atraentes - disse Sor Marq Piper -, mas por que haveria o velho patife de lhe dar uma das bonitas?
- Por absolutamente nada - disse Edmure, deprimido.
Aquilo foi mais do que Catelyn podia suportar.
- Cersei Lannister é atraente - disse, num tom cortante. - Seria mais sensato rezar para que Roslin seja forte e saudável, com uma boa cabeça e um coração leal. - E, com aquilo, deixou-os.
Edmure não acolheu bem aquela atitude. Na marcha do dia seguinte, evitou-a por completo, preferindo a companhia de Marq Piper, Lymond Goodbrook, Patrek Mallister e dos jovens Vance. Eles só o repreendem de brincadeira, disse Catelyn a si mesma quando passaram a toda por ela, naquela tarde, quase sem uma palavra. Sempre fui dura demais com Edmure, e agora o pesar afia todas as minhas palavras. Arrependeu-se da censura. Já havia chuva suficiente caindo do céu sem a ajuda dela. E seria mesmo assim tão terrível desejar uma esposa bonita? Lembrava-se do desapontamento infantil que sofrera da primeira vez que pôs os olhos em Eddard Stark. Imaginara-o como uma versão mais nova do irmão Brandon, mas tinha se enganado. Ned era mais baixo e tinha um rosto mais simples, e era muito melancólico. Falava de forma bastante cortês, mas, por baixo das palavras Catelyn sentia uma frieza oposta ao que era Brandon, cujas alegrias tinham sido tão violentas quanto as iras. Mesmo quando tomou sua virgindade, o amor deles teve mais dever do que paixão. Mas fizemos Robb naquela noite, fizemos juntos um rei. E depois da guerra, em Winterfell, tive amor suficiente para qualquer mulher, depois de encontrar o coração bom e doce que batia por baixo do rosto solene de Ned. Não há motivo para que Edmure não encontre a mesma coisa com a sua Roslin.
Segundo a vontade dos deuses, o caminho levou-os a atravessar o Bosque dos Murmúrios, onde Robb havia conquistado a sua primeira grande vitória. Seguiram o leito do riacho serpenteante no fundo daquele vale apertado e estreito, tal como os homens de Jaime Lannister tinham feito naquela noite fatídica. Naquela época, fazia mais calor, recordou Catelyn, as árvores ainda se mantinham verdes, e o riacho não tinha transbordado das margens. Folhas caídas agora afogavam o curso da água e estendiam-se em emaranhados encharcados por entre as pedras e raízes, e as árvores que tinham escondido o exército de Robb haviam trocado seus trajes verdes por folhas de um dourado opaco, salpicadas de marrom e de um vermelho que fazia Catelyn lembrar de ferrugem e sangue seco. Só os abetos e os pinheiros marciais ainda se mostravam verdes, espetando-se na barriga das nuvens como grandes lanças escuras.
Foram mais do que árvores o que morreu desde então, refletiu. Na noite do Bosque dos Murmúrios, Ned ainda estava vivo em sua cela por baixo da Colina de Aegon, Bran e Rickon encontravam-se a salvo atrás das muralhas de Winterfell. E Theon Greyjoy lutava ao lado de Robb e gabava-se de como quase tinha cruzado espadas com o Regicida. Seria bom que tivesse feito isso. Se Theon tivesse morrido em vez dos filhos de Lorde Karstark, quanto mal teria sido desfeito?
Ao passarem pelo campo de batalha, Catelyn viu sinais da carnificina que ali tinha ocorrido; um elmo virado ao contrário que se enchia de chuva, uma lança estilhaçada, os ossos de um cavalo. Montes de pedra haviam sido erguidos sobre alguns dos homens que ali tinham tombado, mas os assaltantes de túmulos já tinham caído sobre eles. Por entre os montes de pedra, vislumbrou belos tecidos coloridos e pedaços de metal brilhante. Uma vez viu um rosto a olhá-la, com o contorno do crânio emergindo sob a carne marrom em putrefação.
Isso fez com que se interrogasse sobre o local onde Ned acabou por descansar. As irmãs silenciosas tinham levado seus ossos para o Norte, escoltadas por Hallis Mollen e uma pequena guarda de honra. Teria Ned conseguido chegar a Winterfell, para ser enterrado ao lado do irmão Brandon nas criptas escuras sob o castelo? Ou teria a porta se fechado em Fosso Cailin antes de Hal e das irmãs conseguirem passar?
Três mil e quinhentos cavaleiros seguiam o seu caminho sinuoso pelo fundo do vale, através do coração do Bosque dos Murmúrios, mas Catelyn Stark raras vezes havia se sentido mais solitária. Cada légua que vencia levava-a para mais longe de Correrrio, e deu por si imaginando se alguma vez voltaria a ver o castelo. Ou estaria perdido para sempre, como tantas outras coisas?
Cinco dias mais tarde, os batedores retornaram para preveni-los de que as águas da enchente tinham arrastado a ponte de madeira em Feirajusta. Galbart Glover e dois de seus homens mais ousados tentaram levar as montarias a passar a nado o turbulento Ramo Azul em Vaucarneiro. Dois dos cavalos tinham sido arrastados e afogados, juntamente com um dos cavaleiros; o próprio Glover conseguiu se agarrar a um rochedo até que o puxassem para a margem.
- O rio não corria tão alto desde a primavera - disse Edmure. - E se essa chuva continuar a cair, subirá ainda mais.
- Há uma ponte mais a frente, perto de Pedravelhas - recordou Catelyn, que tinha atravessado aquelas terras com frequência na companhia do pai. - E mais antiga e menor, mas se ainda estiver lá...
- Desapareceu, senhora - disse Galbart Glover. - Foi levada antes mesmo da de Feirajusta.
Robb olhou para Catelyn.
- Há mais alguma ponte?
- Não. E os vaus estarão intransitáveis. - Tentou vasculhar a memória. - Se não conseguirmos atravessar o Ramo Azul, teremos de rodeá-lo, por Seterrios e pelo Atoleiro da Bruxa.
- Brejos e estradas ruins, quando elas existem - preveniu Edmure. - O avanço será lento, mas suponho que acabaremos chegando.
- Estou certo de que Lorde Walder esperará - disse Robb. - Lothar enviou-lhe uma ave de Correrrio, ele sabe que estamos a caminho.
- Sim, mas o homem é suscetível e desconfiado por natureza - disse Catelyn. - Pode tomar esse atraso como um insulto deliberado.
- Muito bem, vou pedir perdão também por nossa indolência. Serei um rei de dar dó, desculpando-me a cada duas inspirações. - Robb fez uma careta. - Espero que Bolton tenha atravessado o Tridente antes das chuvas começarem. A estrada do rei segue diretamente para o norte, deverá ter uma marcha fácil. Mesmo a pé, deve chegar às Gêmeas antes de nós.
- E quando tiver juntado os seus homens aos dele e casado o meu irmão, o que vem depois? - perguntou-lhe Catelyn.
- Para o norte. - Robb coçou Vento Cinzento atrás de uma orelha.
- Pelo talude? Contra Fosso Cailin?
Ele deu um sorriso enigmático a ela.
- Essa é uma forma de ir - disse, e ela compreendeu por seu tom de voz que nada mais diria. Um rei sensato guarda coisas para si, lembrou a si mesma.
Chegaram a Pedravelhas depois de mais oito dias de chuva contínua e acamparam sobre a colina com vista para o Ramo Azul, dentro de um forte arruinado dos antigos reis do rio. Suas fundações resistiam entre as ervas daninhas, para mostrar onde tinham se erguido as muralhas e as fortalezas, mas o povo local tinha se apropriado da maior parte das pedras havia muito tempo, para levantar seus celeiros, septos e castros. No entanto, no centro daquilo que antigamente teria sido o pátio do castelo, ainda se erguia um grande sepulcro esculpido, meio escondido por mato marrom que chegava à cintura, no meio de um grupo de freixos.
A tampa do sepulcro tinha sido esculpida para retratar o homem cujos ossos jaziam lá dentro, mas as chuvas e os ventos tinham desempenhado seu papel: conseguiam ver que o rei usava uma barba, mas, fora isso, seu rosto era suave e sem expressão, com apenas vagas sugestões de uma boca, um nariz, olhos e da coroa sobre as têmporas. Suas mãos fechavam-se no cabo de um martelo de guerra em pedra que se apoiava sobre o peito dele. Antigamente, o machado de guerra deveria ter tido gravadas runas que revelavam o nome e a história do morto, mas os séculos tinham-nas levado por completo. A própria pedra estava rachada e se desfazendo nos cantos, descolorida aqui e ali por manchas brancas de líquenes em crescimento, ao passo que rosas selvagens subiam pelos pés do rei e chegavam quase ao peito dele.
Foi ali que Catelyn encontrou Robb, em pé e melancólico no crepúsculo que se aprofundava, acompanhado apenas por Vento Cinzento. A chuva havia parado pela primeira vez, e ele estava com a cabeça nua.
- Este castelo tem um nome? - perguntou em voz baixa quando Catelyn se aproximou.
- Todo o povo o chamava de Pedravelhas quando eu era menina, mas sem dúvida teve outro nome quando ainda era uma sede de reis. - Acampara ali uma vez com o pai, a caminho de Guardamar. Petyr também estava conosco...
- Há uma canção - recordou Robb. - "Jenny de Pedravelhas, com as flores nos cabelos".
- No fim, somos todos só canções. Se tivermos sorte. - Naquele dia brincara de ser Jenny, chegando até a colocar flores nos cabelos. E Petyr fingira ser seu Príncipe das Libélulas. Catelyn não teria mais de doze anos, Petyr era apenas um garotinho.
Robb estudou o sepulcro.
- De quem é esta sepultura?
- Aqui jaz Tristifer, o Quarto de Seu Nome, Rei dos Rios e dos Montes. - Um dia, o pai lhe contara sua história. - Governou do Tridente ao Gargalo, milhares de anos antes de Jenny e de seu príncipe, nos dias em que os reinos dos Primeiros Homens caíam um atrás do outro perante o avanço dos ândalos. Chamavam-no de Martelo da Justiça. Lutou uma centena de batalhas e venceu noventa e nove, ou pelo menos é isso que os cantores dizem, e quando levantou este castelo, era o mais forte de Westeros. - Pousou uma mão no ombro do filho. - Morreu em sua centésima batalha, quando sete reis ândalos juntaram forças contra ele. O quinto Tristifer não se comparava a ele, e em pouco tempo o reino estava perdido, e depois o castelo, e por fim a linhagem. Com Tristifer Quinto morreu a Casa Mudd, que tinha governado as terras fluviais durante os mil anos anteriores à chegada dos ândalos.
- O herdeiro falhou com ele. - Robb passou uma mão sobre a pedra áspera e desgastada. - Tive esperança de deixar Jeyne esperando um bebê... tentamos com bastante frequência, mas não tenho certeza...
- Nem sempre acontece na primeira vez. - Embora tenha acontecido com você. - Nem mesmo na centésima. É muito novo.
- Novo, e um rei - disse ele. - Um rei precisa ter um herdeiro. Se morrer em minha próxima batalha, o reino não pode morrer comigo. Pela lei, Sansa é a seguinte na linha de sucessão, portanto, Winterfell e o Norte devem passar para ela. - A boca dele comprimiu-se. - Para ela, e para o senhor seu esposo. Tyrion Lannister. Não posso permitir que isso aconteça. Não permitirei. Esse anão não pode nunca possuir o Norte.
- Não - concordou Catelyn. - Tem de nomear outro herdeiro, até o momento em que Jeyne lhe dê um filho. - Refletiu por um momento. - O pai do seu pai não tinha irmãos, mas o pai dele tinha uma irmã que se casou com um filho mais novo de Lorde Raymar Royce, do ramo menor da casa. Eles tiveram três filhas, todas as quais casaram com fidalgos do Vale. Um Waynwood e um Corbray com certeza. A mais nova... pode ter sido um Templeton, mas...
- Mãe. - Havia certa rispidez no tom de Robb. - Está se esquecendo. Meu pai teve quatro filhos homens.
Catelyn não tinha se esquecido; não quis encarar o fato, mas ali estava.
- Um Snow não é um Stark.
- Jon é mais Stark do que um fidalgo qualquer do Vale que nunca sequer pôs os olhos em Winterfell.
- Jon é um irmão da Patrulha da Noite, e jurou não tomar esposa nem possuir terras. Aqueles que vestem o negro servem para a vida.
- O mesmo acontece com os cavaleiros da Guarda Real. Isso não impediu os Lannister de arrancar o manto branco de Sor Barristan Selmy e de Sor Boros Blount quando deixaram de ter utilidade para eles. Se eu enviar à patrulha uma centena de homens para o lugar de Jon, aposto que vão encontrar alguma maneira de libertá-lo de seus votos.
Ele está decidido afazer isso. Catelyn sabia como o filho podia ser teimoso.
- Um bastardo não pode herdar.
- E verdade, a menos que seja legitimado por decreto real - disse Robb. - Há mais precedente para isso do que para libertar um Irmão Juramentado de seus votos.
- Precedente - disse ela com amargura. - Sim, Aegon Quarto legitimou todos os seus bastardos no leito de morte. E quanta dor, desgosto, guerra e assassinato nasceram daí? Sei que confia em Jon. Mas pode confiar nos filhos dele? Ou nos filhos deles? Os pretendentes Blackfyre atormentaram os Targaryen ao longo de cinco gerações, até que Barristan, o Ousado, matou os últimos nos Degraus. Se legitimar Jon, não há maneira de torná-lo bastardo de novo. Se ele se casar e tiver filhos, os filhos que você tiver com Jeyne nunca estarão a salvo.
- Jon nunca faria mal a um filho meu.
- Tal como Theon Greyjoy nunca faria mal a Bran e Rickon?
Vento Cinzento saltou para cima da cripta do Rei Tristifer, com os dentes à mostra. O rosto de Robb estava frio.
- Isso é tão cruel quanto injusto. Jon não é como Theon.
- Você reza para que não seja. Já pensou em suas irmãs? E os direitos delas? Concordo que não podemos permitir que o Norte passe para o Duende, mas e Arya? Por lei, ela vem depois de Sansa... sua própria irmã, legítima...
-... e morta. Ninguém viu ou ouviu falar de Arya desde que cortaram a cabeça do pai. Por que você mente para si mesma? Arya partiu, assim como Bran e Rickon, e matarão também Sansa assim que o anão conseguir dela um filho. Jon é o único irmão que me resta. Se eu morrer sem descendência, quero que ele me suceda como Rei no Norte. Tive a esperança de que apoiasse a minha escolha.
- Não posso - disse ela. - Em tudo o mais, Robb. Em tudo. Mas não nessa... nessa loucura. Não me peça isso.
- Não tenho de pedir. Sou o rei. - Robb virou-se e afastou-se, com Vento Cinzento saltando de cima da tumba e pulando atrás dele.
O que eu fiz?, pensou Catelyn, fatigadamente, quando ficou sozinha junto do sepulcro de pedra de Tristifer. Primeiro irrito Edmure, e agora Robb, mas tudo que fiz foi dizer a verdade. Serão os homens tão frágeis que não consigam suportar ouvi-la? Podia ter chorado nesse momento, se o céu não estivesse fazendo isso por ela. Tudo que pôde fazer foi voltar à tenda e sentar-se lá, em silêncio.
Nos dias que se seguiram, Robb esteve por todo lado; cavalgando à cabeça da vanguarda com o Grande-Jon, batendo terreno com Vento Cinzento, correndo para trás a fim de se juntar a Robin Flint e à retaguarda. Os homens diziam com orgulho que o Jovem Lobo era o primeiro a se levantar todas as madrugadas e o último a adormecer à noite, mas Catelyn perguntava a si mesma se ele dormia de todo. Está se tornando tão magro e esfomeado quanto seu lobo selvagem.
- Senhora - disse-lhe Maege Mormont certa manhã enquanto atravessavam uma chuva constante -, parece tão triste. Há algo errado?
O senhor meu esposo está morto e o meu pai também. Dois de meus filhos foram assassinados, a minha filha foi dada a um anão sem fé para lhe dar à luz filhos nojentos, a minha outra filha está desaparecida e é provável que esteja morta e o meu último filho e o meu único irmão estão ambos zangados comigo. O que é que pode haver de errado? No entanto, aquilo era mais verdade do que a Senhora Maege gostaria de ouvir.
- Esta é uma chuva maligna - disse, em vez da verdade. - Sofremos muito, e há mais perigos e desgostos adiante. Precisamos enfrentá-los com ousadia, com berrantes soando e estandartes tremulando cheios de bravura. Mas essa chuva nos abate. Os estandartes pendem, encharcados, e os homens aconchegam-se debaixo de seus mantos e quase não conversam uns com os outros. Só uma chuva maligna gelaria nossos corações quando mais precisamos que eles ardam bem quentes.
Dacey Mormont olhou para o céu.
- Gosto mais de ter água chovendo sobre mim do que flechas.
Catelyn sorriu a contragosto.
- Receio que seja mais corajosa do que eu. Todas as mulheres da Ilha dos Ursos são assim guerreiras?
- Ursas, sim - disse a Senhora Maege. - Temos precisado ser assim. Antigamente, os homens de ferro faziam incursões com os seus dracares, ou se não eram eles, eram os selvagens vindos da Costa Gelada. Os homens na maior parte das vezes estavam longe, na pesca. As esposas que eles deixavam para trás tinham de defender a si e aos seus filhos, para não serem todos levados.
- Há uma imagem esculpida em nosso portão - disse Dacey. - Uma mulher vestida com pele de urso, com um bebê em um braço, mamando. Na outra mão traz um machado de batalha. Não é uma senhora como deve ser, essa, mas sempre gostei dela.
- Uma vez, meu sobrinho Jorah trouxe para casa uma senhora como deve ser - disse a Senhora Maege. - Conquistou-a num torneio. Como ela odiava aquela imagem.
- Sim, e todo o resto também - disse Dacey. - Tinha cabelos que eram como fios de ouro, aquela Lynesse. A pele era como creme. Mas suas mãos suaves não tinham sido feitas para machados.
- Nem as tetas para dar de mamar - disse a mãe, sem rodeios.
Catelyn sabia de quem falavam; Jorah Mormont tinha trazido sua segunda esposa a Winterfell para festas, e certa vez permaneceram durante uma quinzena. Lembrava-se de como a Senhora Lynesse era jovem, bela e infeliz. Uma noite, após várias taças de vinho, confessara a Catelyn que o Norte não era lugar para uma Hightower de Vilavelha.
- Houve uma Tully de Correrrio que sentiu o mesmo um dia - Catelyn respondeu com gentileza, tentando consolá-la -, mas, com o tempo, encontrou aqui muitas coisas que podia amar.
Tudo agora perdido, refletiu. Winterfell e Ned, Bran e Rickon, Sansa, Arya, tudo perdido. Só resta Robb. Teria havido nela muito de Lynesse Hightower, no fim das contas, e pouco dos Stark? Gostaria de ter sabido como manejar um machado, talvez tivesse sido capaz de protegê-los melhor.
Os dias seguiram-se aos dias, e a chuva continuava a cair. Cavalgaram ao longo de toda a extensão do Ramo Azul, passando por Seterrios, onde o rio se desdobrava numa confusão de córregos e riachos, e depois atravessando o Atoleiro da Bruxa, onde lagoas de um verde reluzente esperavam para engolir os incautos e o terreno fofo sugava os cascos dos cavalos como um bebê faminto no peito da mãe. O avanço era mais do que lento. Metade das carroças teve de ser abandonada no lodaçal, e suas cargas foram distribuídas entre mulas e cavalos de tração.
Lorde Jason Mallister alcançou-os nos pântanos do Atoleiro da Bruxa. Restava ainda mais de uma hora de luz do dia quando ele se aproximou com a sua coluna, mas Robb mandou parar de imediato, e Sor Raynald Westerling veio escoltar Catelyn à tenda do rei. Encontrou o filho sentado ao lado de um braseiro, com um mapa sobre as coxas. Vento Cinzento dormia aos seus pés. Grande-Jon acompanhava-o, bem como Galbart Glover, Maege Mormont, Edmure e um homem que Catelyn não reconheceu, um homem robusto e perdendo os cabelos, de aspecto servil. Este não é fidalgo nenhum, compreendeu no momento em que pôs os olhos no estranho. Nem sequer é um guerreiro.
Jason Mallister levantou-se para oferecer a Catelyn a cadeira, Nos cabelos, tinha quase tanto branco como castanho, mas o Senhor de Guardamar ainda era um homem bonito; alto e esguio, com um rosto bem delineado e escanhoado, maçãs do rosto salientes e uns ferozes olhos azul-acinzentados.
- Senhora Stark, é sempre um prazer. Trago boas novas, espero.
- Temos grande necessidade de algumas, senhor. - Sentou-se, ouvindo a chuva tamborilar ruidosamente na lona por cima de sua cabeça.
Robb esperou que Sor Raynald fechasse a aba da tenda.
- Os deuses ouviram as nossas preces, senhores. Lorde Jason trouxe-nos o capitão do Myraham, um navio mercante de Vilavelha. Capitão, conte-lhes o que me disse.
- Sim, Vossa Graça. - O homem lambeu nervosamente os lábios. - O último porto onde estive antes de Guardamar foi Fidalporto, em Pyke. Os homens de ferro não me deixaram sair durante mais de meio ano, pois é. Ordens do Rei Balon. Só que, bom, pra resumir uma história comprida, ele tá morto.
- Balon Greyjoy? - o coração de Catelyn parou por um momento. - Está nos dizendo que Balon Greyjoy está morto?
O pequeno capitão maltrapilho confirmou com a cabeça.
- Sabe como Pyke tá construída num promontório, e parte do castelo tá em rochedos e ilhas ao largo da costa, com pontes entre elas? Bem, segundo me contaram em Fidalporto, veio uma rajada de vento de oeste, com chuva e trovões, e o velho Rei Balon tava atravessando uma das pontes quando o vento a pegou e fez a coisa em pedaços. Deu à costa dois dias depois, todo inchado e partido. Ouvi dizer que os caranguejos comeram seus olhos.
Grande-Jon soltou uma gargalhada.
- Caranguejos-reais, espero eu, para jantar essa geleia real, há?
O capitão balançou afirmativamente a cabeça.
- Sim, mas isso não é tudo, ah, não! - inclinou-se para a frente. - O irmão voltou.
- Victarion? - perguntou Galbart Glover, surpreso.
- Euron. Chamam-no de Olho de Corvo, um pirata mais negro que qualquer outro que tenha içado uma vela. Desapareceu há anos, mas mal Lorde Balon tinha esfriado, lá tava ele, entrando em Fidalporto com o seu Silêncio. Velas pretas e um casco vermelho, e tripulado por mudos. Ouvi dizer que foi a Asshai e voltou. Mas onde quer que tivesse, agora tá em casa e marchou diretinho pra Pyke e sentou o rabo na Cadeira de Pedra do Mar e afogou Lorde Botley numa barrica de água do mar quando ele protestou. Foi nessa hora que eu fugi de volta pro Myraham e icei âncora, esperando conseguir ir embora enquanto as coisas tivessem confusas. E foi o que fiz, e aqui estou.
- Capitão - disse Robb quando o homem terminou -, tem os meus agradecimentos, e não partirá sem uma recompensa. Lorde Jason vai levá-lo de volta ao seu navio quando terminarmos. Por obséquio, espere lá fora.
- Isso espero, Vossa Graça. Isso espero.
Assim que o homem saiu do pavilhão real, Grande-Jon desatou a rir, mas Robb silenciou-o com um olhar.
- Euron Greyjoy não é a ideia de ninguém para um rei, se metade daquilo que Theon disse dele for verdade. Theon é o legítimo herdeiro, a menos que esteja morto... mas Victarion comanda a Frota de Ferro. Não posso crer que permaneça em Fosso Cailin enquanto Euron Olho de Corvo mantiver Cadeira da Pedra do Mar. Ele tem de voltar.
- Também há uma filha - relembrou-lhe Galbart Glover. - Aquela que mantém em seu poder no Bosque Profundo, e a esposa e o filho de Robett.
- Se ficar em Bosque Profundo, isso é tudo que pode esperar manter - disse Robb. - O que é verdade para os irmãos é ainda mais verdade para ela. Terá de zarpar para casa, a fim de expulsar Euron e promover a sua pretensão. - O filho de Catelyn virou-se para Lorde Jason Mallister. - Tem uma frota em Guardamar?
- Uma frota, Vossa Graça? Meia dúzia de dracares e duas galés de guerra. O suficiente para defender as minhas costas contra corsários, mas não posso ter esperança de enfrentar a Frota de Ferro em batalha.
- Nem pediria isso ao senhor. Os homens de ferro irão rumar a Pyke, espero. Theon contou-me como a gente dele pensa. Cada capitão é um rei no seu convés. Todos vão querer ter voz na sucessão. Senhor, preciso que dois de seus dracares contornem o Cabo das Águias e subam o Gargalo até a Atalaia da Água Cinzenta.
Lorde Jason hesitou.
- A floresta úmida é drenada por uma dúzia de cursos de água, todos eles rasos, assoreados e por mapear. Nem chamaria de rios. Os canais andam sempre derivando e se alterando.
Há inúmeros bancos de areia, troncos caídos e emaranhados de árvores em putrefação. E a Atalaia da Água Cinzenta desloca-se. Como os meus navios irão encontrá-la?
- Subam o rio exibindo o meu estandarte. Os cranogmanos vão encontrá-los. Quero dois navios para duplicar as chances de minha mensagem chegar a Howland Reed. A Senhora Maege irá num deles, Galbart no segundo. - Virou-se para os dois que tinha indicado. - Levarão cartas para os meus senhores que permanecem no Norte, mas todas as ordens nelas contidas serão falsas, para o caso de terem o azar de serem capturados. Se isso acontecer, deverão dizer-lhes que se dirigiam ao norte. De volta à Ilha dos Ursos, ou na direção da Costa Pedregosa. - Bateu com um dedo no mapa. - A chave é Fosso Cailin. Lorde Balon sabia disso, e foi por sabê-lo que enviou para lá o irmão Victarion com o núcleo duro das forças Greyjoy.
- Com disputas de sucessão ou sem elas, os homens de ferro não são burros a ponto de abandonar Fosso Cailin - disse a Senhora Maege.
- Não mesmo - admitiu Robb. - Victarion deixará para trás a melhor parte de sua guarnição, suponho. No entanto, cada homem que levar consigo será um homem a menos com que teremos de lutar. E ele irá levar muitos de seus capitães, contem com isso. Os líderes. Precisará desses homens para falar por ele se quiser ter esperança de se sentar na Cadeira da Pedra do Mar.
- Não pode querer atacar pelo talude, Vossa Graça - disse Galbart Glover. - As aproximações são estreitas demais. Não há maneira de desdobrar em linha. Nunca ninguém tomou o Fosso.
- A partir do sul - disse Robb. - Mas se pudermos atacar ao mesmo tempo a partir de norte e de oeste, e pegar os homens de ferro pela retaguarda enquanto eles afastam aquilo que julgam ser o ataque principal, ao longo do talude, então temos uma chance. Depois de me unir a Lorde Bolton e aos Frey, terei mais de doze mil homens. Pretendo dividi-los em três batalhões e fazê-los avançar pelo talude com meio dia de intervalo. Se os Greyjoy têm olhos ao sul do Gargalo, verão todas as minhas forças correndo impetuosamente contra Fosso Cailin.
"Roose Bolton ficará à frente da retaguarda, enquanto eu comandarei o centro. Grande-Jon, você liderará a vanguarda contra Fosso Cailin. Seu ataque deverá ser tão violento que os homens de ferro não tenham tempo para se perguntar se alguém estará se esgueirando sobre eles a partir do norte."
Grande-Jon soltou um risinho.
- É melhor que os seus homens cheguem se esgueirando depressa, senão os meus homens assaltam aquelas muralhas e conquistam Fosso Cailin antes que mostre a cara. Darei o castelo de presente ao senhor quando chegar do passeio.
- Esse é um presente que ficarei feliz em aceitar - disse Robb.
Edmure franzia a testa.
- Fala de atacar os homens de ferro pela retaguarda, senhor, mas como planeja passar para norte deles?
- Há caminhos através do Gargalo que não se encontram em nenhum mapa, tio. Caminhos que só os cranogmanos conhecem... estreitas trilhas entre os pântanos e as estradas aquáticas através dos juncos que só barcos podem seguir. - Virou-se para os dois mensageiros. - Digam a Howland Reed que ele deve me enviar guias, dois dias depois de eu começar a subir o talude. Que os envie para o batalhão central, onde flutua o meu estandarte. Três tropas partirão das Gêmeas, mas só duas chegarão a Fosso Cailin. Meu batalhão vai se dissolver no Gargalo, para voltar a emergir no Febre. Se formos rápidos depois do casamento de meu tio, poderemos estar todos em posição por volta do fim do ano. Cairemos sobre o Fosso de três lados no primeiro dia do novo século, no momento em que os homens de ferro acordarem com martelos batendo nas cabeças do hidromel que vão emborcar na noite anterior.
- Gosto desse plano - disse Grande-Jon. - Gosto bastante dele.
Galbart Glover esfregou a boca.
- Há riscos. Se os cranogmanos falharem...
- Não ficaremos pior do que antes. Mas eles não falharão. Meu pai conhecia o valor de Howland Reed. - Robb enrolou o mapa, e só então olhou para Catelyn. - Mãe.
Ficou tensa.
- Tem algum papel nisso para mim?
- O seu papel é ficar a salvo. Nossa viagem através do Gargalo será perigosa, e nada nos espera no norte a não ser batalhas. Mas Lorde Mallister teve a bondade de se oferecer para mantê-la em segurança em Guardamar até a guerra acabar. Sei que lá estará confortável.
Será esta a minha punição por me opor a ele no assunto de Jon Snow? Ou por ser uma mulher e, pior, uma mãe? Precisou de um momento para perceber que todos a observavam. Eles já sabiam, compreendeu. Catelyn não devia ter se surpreendido. Não conquistara amigos ao libertar o Regicida, e mais de uma vez tinha ouvido Grande-Jon dizer que um campo de batalha não era lugar para mulheres.
A fúria deve ter relampejado em seu rosto, porque Galbart Glover interveio antes que dissesse uma palavra.
- Senhora, Sua Graça é sensato. É melhor que não venha conosco.
- Guardamar será iluminada por sua presença, Senhora Catelyn - disse Lorde Jason Mallister.
- Quer fazer de mim uma prisioneira - disse ela.
- Uma hóspede de honra - insistiu Lorde Jason.
Catelyn virou-se para o filho.
- Não pretendo ofender Lorde Jason - disse, rigidamente -, mas se não puder prosseguir com você, preferiria voltar a Correrrio.
- Deixei a minha esposa em Correrrio. Quero a minha mãe em outro lugar. Se você guardar todos os seus tesouros numa bolsa, só estará tornando a vida daqueles que querem assaltá-lo mais fácil. Após o casamento, irá para Guardamar, e esta é a minha ordem régia. - Robb levantou-se, e, com igual rapidez, seu destino ficou decidido. Pegou uma folha de pergaminho. - Mais uma coisa. Lorde Balon deixou o caos atrás de si, esperamos nós. Eu não farei o mesmo. Mas ainda não tenho um filho, meus irmãos Bran e Rickon estão mortos e minha irmã encontra-se casada com um Lannister. Refleti longa e duramente sobre quem poderá me suceder. Ordeno-lhes agora, como meus senhores legítimos e leais, que coloquem seus selos neste documento como testemunhas de minha decisão.
Deveras um rei, pensou Catelyn, derrotada. Só podia esperar que a armadilha que ele tinha planejado para Fosso Cailin funcionasse tão bem quanto aquela na qual acabara de prendê-la.
Brancarbor, pensou Sam. Por favor, que isto seja Brancarbor. Lembrava-se de Brancarbor. Ficava nos mapas que tinha desenhado, rumo ao norte. Se aquela aldeia fosse Brancarbor, saberia onde se encontravam. Por favor, tem de ser. Desejava isso tanto que se esqueceu dos pés por um instante, esqueceu-se das dores nas panturrilhas e nos rins e dos dedos rígidos e tão gelados que quase não sentia. Até se esqueceu de Lorde Mormont e de Craster, das criaturas e dos Outros. Brancarbor, rezou Sam, a qualquer deus que pudesse estar ouvindo.
Mas todas as aldeias selvagens eram muito parecidas umas com as outras. Um enorme represeiro crescia no centro daquela... mas uma árvore branca não queria necessariamente dizer Brancarbor. O represeiro em Brancarbor não era maior do que aquele? Talvez estivesse se lembrando mal. O rosto esculpido no tronco branco como osso era longo e triste; lágrimas vermelhas de seiva seca escorriam de seus olhos. Era esse o seu aspecto quando viemos para o norte? Sam não conseguia se lembrar.
Em volta da árvore erguia-se um punhado de cabanas de um só cômodo, com telhado de turfa, um edifício comprido feito de troncos e coberto de musgo, um poço de pedra, um curral de ovelhas... mas sem ovelhas, e sem pessoas. Os selvagens tinham partido para se juntar a Mance Rayder nas Presas de Gelo, levando tudo que possuíam, exceto suas casas. Sam sentia-se grato por isso. A noite estava chegando, e seria bom dormir sob um teto, para variar. Estava tão cansado. Parecia que tinha passado metade da vida caminhando. Suas botas estavam se desfazendo, e todas as bolhas em seus pés tinham estourado e se transformado em calos, mas agora tinha bolhas novas debaixo dos calos e os dedos dos pés estavam ficando queimados pelo frio.
Mas era caminhar ou morrer, e Sam sabia disso. Goiva ainda estava fraca do parto e além disso transportava o bebê; precisava mais do cavalo do que ele. O segundo cavalo tinha morrido três dias depois de partirem da Fortaleza de Craster. Era um milagre que tivesse durado tanto, pobre animal meio esfomeado. O peso de Sam tinha provavelmente acabado com ele. Podiam ter tentado montar ambos no cavalo que sobrara, mas Sam temia que a mesma coisa pudesse voltar a acontecer. É melhor que eu caminhe.
Sam deixou Goiva no grande edifício fazendo uma fogueira, enquanto ele enfiava a cabeça nas cabanas. Ela era melhor fazendo fogueiras; ele nunca parecia ser capaz de fazer o fogo pegar; da última vez que tentara tirar uma faísca de pederneira e aço, conseguiu se cortar na faca. Goiva atou-lhe o corte, mas sua mão estava rígida e dolorida, ainda mais desajeitada do que antes. Sabia que devia lavar o ferimento e trocar a atadura, mas tinha medo de olhar para ele. Além disso, fazia tanto frio que detestava tirar as luvas.
Sam não sabia o que esperava encontrar nas casas vazias. Os selvagens talvez tivessem deixado para trás alguma comida. Precisava ir ver. Jon tinha feito uma busca às choupanas em Brancarbor, a caminho do norte. Dentro de uma das cabanas, Sam ouviu uma restolhar de ratazanas vindo de um canto escuro, mas fora isso nada havia, em nenhuma delas, além de palha velha, cheiros antigos e algumas cinzas sob os buracos para a fumaça.
Virou-se para o represeiro e estudou por um momento o rosto nele esculpido. Não é o rosto que vimos, admitiu para si mesmo. A árvore não tem nem metade do tamanho daquela de Brancarbor. Os olhos vermelhos choravam sangue, e também não se lembrava disso. Desajeitadamente, Sam se ajoelhou.
- Deuses antigos, escutem as minhas preces. Os Sete eram os deuses de meu pai, mas proferi as palavras perante vocês quando me juntei à Patrulha. Ajudem-nos agora. Temo que possamos estar perdidos. Também temos fome, e tanto frio. Não sei em que deuses acredito agora, mas... por favor, se estiverem aí, ajudem-nos. Goiva tem um filhinho. - Aquilo foi tudo em que conseguiu pensar para dizer.
O ocaso se aprofundava, as folhas do represeiro restolhavam suavemente, ondulando como mil mãos vermelhas de sangue. Se os deuses de Jon o tinham ouvido ou não, não saberia dizer.
Quando voltou ao salão, Goiva tinha o fogo ardendo. Estava sentada junto a ele, com as peles abertas e o bebê ao peito. Tem tanta fome quanto nós, pensou Sam. A velha dera-lhes às escondidas um pouco da comida de Craster, mas já tinham comido a maior parte. Sam era um fracasso como caçador até em Monte Chifre, onde as presas eram abundantes e tinha cães e caçadores para ajudá-lo; ali, naquela floresta vazia sem fim, as chances de pegar alguma coisa eram remotas. Suas tentativas de pescar em lagos e riachos meio congelados também tinham resultado em tristes fracassos.
- Quanto tempo mais, Sam? - perguntou Goiva. - Ainda está longe?
- Não muito. Não tanto quanto estava. - Sam encolheu-se para fora das alças da mochila, deixou-se cair desajeitadamente no chão e tentou cruzar as pernas. Tinha uma dor tão abominável nas costas devido à caminhada que teria gostado de se encostar em um dos pilares de madeira esculpida que suportavam o telhado, mas a fogueira estava no centro da sala, sob o buraco para a fumaça, e ansiava ainda mais por calor do que por conforto. - Mais alguns dias e devemos chegar lá.
Sam tinha seus mapas, mas se aquilo não era Brancarbor, então os mapas não iam lhe servir muito. Fomos para leste demais para contornar aquele lago, afligiu-se, ou talvez para oeste demais quando tentei voltar. Começava a odiar lagos e rios. Ali nunca havia botes ou pontes, o que implicava fazer a pé o percurso inteiro em volta dos lagos e procurar locais onde fosse possível vadear os rios. Era mais fácil seguir uma trilha de caça do que abrir caminho através do mato, era mais fácil rodear uma serrania do que subi-la. Se Bannen ou Dywen estivessem conosco, a essa altura estaríamos em Castelo Negro, aquecendo os pés na sala comum. Mas Bannen estava morto e Dywen tinha ido embora com Grenn, Edd Doloroso e os outros.
A Muralha tem quase quinhentos quilômetros de comprimento e duzentos metros de altura, lembrou Sam a si mesmo. Se continuassem seguindo para o sul, tinham de encontrá-la, mais cedo ou mais tarde. E ele estava certo de que se dirigiam para o sul. De dia, orientava-se pelo sol, e nas noites limpas podiam seguir a cauda do Dragão de Gelo, se bem que não tivessem viajado muito de noite desde que o segundo cavalo tinha morrido. Até quando a lua estava cheia a escuridão era excessiva debaixo das árvores, e teria sido muito fácil que Sam ou o último garrano quebrassem uma perna. Temos de estar bem a sul a essa altura, temos mesmo.
Não tinha grande certeza era quanto poderiam ter se desviado para leste ou oeste. Sim, chegariam à Muralha... dentro de um dia ou de uma quinzena, decerto não poderia estar mais longe do que isso, decerto que não... mas onde? Aquilo que tinham de encontrar era o portão em Castelo Negro; a única passagem através da Muralha ao longo de uma centena de léguas.
- A Muralha é tão grande como Craster dizia? - perguntou Goiva.
- Maior. - Sam tentou parecer alegre. - É tão grande que nem sequer se conseguem ver os castelos que estão escondidos por detrás. Mas eles estão lá, você vai ver. A Muralha é toda feita de gelo, mas os castelos são de pedra e madeira. Há torres altas e porões profundos e um salão enorme com um grande fogo ardendo na lareira, de noite e de dia. Faz tanto calor lá dentro, Goiva, que nem vai acreditar.
- Poderei ficar junto do fogo? Eu e o garoto? Não por muito tempo, só até ficarmos bem quentinhos?
- Poderá ficar junto do fogo todo o tempo que quiser. Vai ter também o que comer e beber. Vinho aquecido com açúcar, canela e outras coisas e uma tigela de guisado de veado com cebolas, e o pão do Hobb, recém-saído do forno, tão quente que queimará seus dedos. - Sam descalçou uma luva para agitar os dele perto das chamas, e rapidamente se arrependeu. Tinham estado dormentes por causa do frio, mas quando as sensibilidade voltou, doeram tanto que quase gritou. - Às vezes um dos irmãos canta - disse, para afastar a mente da dor. - Daeron era quem cantava melhor, mas mandaram-no para Atalaialeste. Mas ainda temos o Halder. E o Sapo. O nome verdadeiro dele é Todder, mas parece um sapo, e o chamamos assim. Ele gosta de cantar, mas tem uma voz horrível.
- Você canta? - Goiva mudou a posição de suas peles, e passou o bebê de um seio para o outro.
Sam corou.
- Eu... eu conheço algumas canções. Quando era pequeno, gostava de cantar. E também dançava, mas o senhor meu pai nunca gostou que fizesse isso. Ele dizia que se eu queria dar voltas, devia fazer isso no pátio, com uma espada na mão.
- Pode cantar uma canção do sul? Para o bebê?
- Se quiser. - Sam pensou por um momento. - Há uma canção que o nosso septão costumava cantar para mim e para as minhas irmãs, quando éramos pequenos e era hora de irmos para a cama. Chama-se "A canção dos sete". - Limpou a garganta e cantou em voz baixa:
A face do Pai é severa e forte, entre o bem e o mal determina um corte. Pesa a vida, do nascimento à morte, e adora os seus filhinhos.
A Mãe concede a dádiva da vida, pras esposas é apoio e guarida. Um sorriso e pra tudo há saída, e ela ama os seus filhinhos.
O Guerreiro enfrenta o inimigo, e é sempre para todos um abrigo. Com espada e lança e com arco e espigo, protege os seus filhinhos.
A Velha é tão sabedora e antiga, que de todos o destino investiga. Uma candeia de ouro ergue e liga, orienta os seus filhinhos.
O Ferreiro trabalha noite e dia, pra devolver ao mundo a harmonia. Com martelo, arado, fogo e mestria, constrói para os filhinhos.
A Donzela anda pelo céu a dançar, vive quando um amante suspirar. Sorri e as aves aprendem a voar, e dá sonhos aos filhinhos.
Os Sete Deuses que a todos criaram, sempre ouviram aqueles que os chamaram. Podem adormecer, não cairão, eles vigiam-nos, filhinhos. Só fechem os olhos, não cairão, eles vigiam-nos, filhinhos.
Sam lembrou-se da última vez que tinha cantado a canção com a mãe, para embalar o bebê Dickon. O pai ouviu as vozes e arremeteu quarto adentro, furioso.
- Não quero voltar a ver isso - tinha dito Lorde Randyll à mulher num tom duro. - Estragou um rapaz com essas canções moles de septão, quer fazer o mesmo com este bebê? - depois olhou para Sam e disse: - Vá cantar com as suas irmãs, se tem mesmo de cantar. Não quero você perto de meu filho.
O bebê de Goiva tinha adormecido. Era uma coisinha tão minúscula e estava tão quieto que Sam temeu por ele. Nem sequer tinha nome. Interrogara Goiva a respeito disso, mas ela havia dito que dava azar dar nome a uma criança antes de ela fazer dois anos. Eram muitas as que morriam.
Voltou a aconchegar o mamilo dentro das peles.
- Isso foi bonito, Sam. Você canta bem.
- Devia ouvir o Dareon. Tem uma voz doce como hidromel.
- Bebemos o hidromel mais doce que já provei no dia em que Craster fez de mim uma esposa. Naquela época era verão, e não estava tão frio. - Goiva lançou-lhe um olhar de dúvida. - Só cantou sobre seis deuses? O Craster sempre nos disse que vocês, no sul, tinham sete.
- Sete - concordou ele -, mas ninguém canta sobre o Estranho. - O rosto do Estranho era o rosto da morte. Até falar dele deixava Sam desconfortável. - Devíamos comer qualquer coisa. Uma mordida ou duas.
Nada restava além de algumas morcelas, duras como madeira. Sam serrou algumas fatias finas para ambos. O esforço fez seu pulso doer, mas tinha fome suficiente para persistir. Se mastigasse as fatias o suficiente, elas amoleciam e tinham um sabor bom. As esposas de Craster condimentavam-nas com alho.
Depois de terminarem, Sam pediu desculpas e saiu para se aliviar e cuidar do cavalo. Soprava um vento mordente do norte, e as folhas das árvores crepitaram para ele ao passar. Teve de quebrar a fina película de gelo que cobria o riacho para que o cavalo pudesse beber. Era melhor que o levasse para dentro. Não queria acordar ao romper da aurora e descobrir que o cavalo tinha morrido congelado durante a noite. Goiva prosseguiria mesmo se isso acontecesse. A garota era muito corajosa, ao contrário dele. Desejou saber o que faria com ela quando voltasse a Castelo Negro. A garota andava sempre dizendo que seria sua esposa se ele quisesse, mas os irmãos negros não tinham esposas; e, além disso, ele era um Tarly de Monte Chifre, nunca poderia se casar com uma selvagem. Terei de pensar em algo. Desde que cheguemos vivos à Muralha, o resto não importa, não importa nem um pouquinho.
Levar o cavalo até o casarão foi bastante simples. Fazê-lo atravessar a porta não foi, mas Sam persistiu. Goiva já cochilava quando ele conseguiu obrigar o garrano a entrar. Prendeu o cavalo a um canto, pôs um pouco de lenha na fogueira, tirou seu manto pesado e contorceu-se para baixo das peles, ao lado da selvagem. Seu manto era suficientemente grande para cobrir os três e manter o calor de seus corpos.
Goiva cheirava a leite, alho e pelo velho e bolorento, mas já tinha se acostumado a isso. Para Sam, eram cheiros bons. Gostava de dormir ao lado dela. Fazia-o lembrar-se de tempos passados havia muito, quando dividia uma enorme cama em Monte Chifre com duas das irmãs. Aquilo terminou quando Lorde Randyll decidiu que o estava tornando mole como uma menina. Mas dormir sozinho na minha cela fria não me tornou mais duro ou corajoso. Perguntou a si mesmo o que diria o pai se o visse agora. Matei um dos Outros, senhor, imaginava-se dizendo. Apunhalei-o com um punhal de obsidiana, e agora meus irmãos juramentados chamam-me de Sam, o Matador. Mas mesmo em imaginação, Lorde Tarly limitava-se a franzir a testa, descrente.
Os sonhos que teve nessa noite foram estranhos. Estava de volta a Monte Chifre, ao castelo, mas o pai não se encontrava lá. O castelo agora era de Sam. Jon Snow estava com ele. Lorde Mormont, o Velho Urso, também, bem como Grenn, Edd Doloroso, Pyp e o Sapo e todos os outros irmãos da Patrulha, mas usavam cores vivas em vez de negro. Sam sentou-se à mesa e banqueteou-os a todos, cortando grossas fatias de um assado com a espada longa do pai, Veneno do Coração. Havia bolos doces para comer e vinho com mel para beber, havia canto e dança, e todo mundo estava aquecido. Quando o banquete terminou, subiu para dormir; não até o quarto do senhor, onde a mãe e o pai viviam, mas para o quarto que antes dividia com as irmãs. Porém, em vez das irmãs, era Goiva quem esperava na enorme cama macia, sem nenhuma roupa exceto uma grande pele hirsuta, com leite escorrendo de seus seios.
Acordou subitamente, cheio de frio e de terror.
A fogueira reduzira-se a brasas rubras. O próprio ar parecia congelado, de tão intenso que era o frio. No canto, o garrano relinchava e escoiceava as toras. Goiva estava sentada ao lado da fogueira, abraçada ao bebê. Sam sentou-se, atordoado, com o hálito saindo em nuvens brancas de sua boca. O salão encontrava-se escuro, cheio de sombras, negras e outras mais negras ainda. Os pelos de seus braços estavam em pé.
Não é nada, disse a si mesmo. Tenho frio, é só isso.
Então, junto à porta, uma das sombras moveu-se. Uma sombra grande.
Isso ainda é um sonho, rezou Sam. Oh, faça com que eu continue a dormir, faça com que isso seja um pesadelo. Ele está morto, ele está morto, eu vi-o morrer.
- Ele veio buscar o bebê - chorou Goiva. - Sente o cheiro dele. Um bebê recém-nascido fede a vida. Ele veio buscar a vida.
A enorme silhueta escura curvou-se sob o lintel, entrou no salão e aproximou-se deles arrastando os pés. À luz tênue da fogueira, a sombra transformou-se em Paul Pequeno.
- Vá embora - coaxou Sam. - Não o queremos aqui.
As mãos de Paul eram carvão, seu rosto, leite, os olhos brilhavam com um azul amargo. A geada esbranquiçava sua barba e sobre um ombro empoleirava-se um corvo, bicando seu rosto, comendo a carne morta e branca. A bexiga de Sam largou-se, e sentiu o calor que corria pernas abaixo.
- Goiva, acalme o cavalo e leve-o lá para fora. Faça o que eu digo.
- Você... - começou ela.
- Eu tenho a faca. O punhal de vidro de dragão. - Puxou-o às apalpadelas enquanto se punha em pé. Tinha dado a primeira faca a Grenn, mas felizmente lembrou-se de trazer o punhal de Lorde Mormont antes de fugir da Fortaleza de Craster. Agarrou-o bem, afastando-se da fogueira, afastando-se de Goiva e do bebê. - Paul? - pretendera soar bravo, mas a palavra tinha saído como um guincho. - Paul Pequeno. Reconhece-me? Sou o Sam, o gordo Sam, Sam, o Assustado, salvou-me na floresta. Carregou-me quando não consegui dar nem mais um passo. Ninguém mais poderia ter feito isso, mas você fez. - Sam recuou, de faca na mão, fungando. SOM um covarde tão grande. - Não nos faça mal, Paul. Por favor. Por que quereria nos fazer mal?
Goiva começou a engatinhar, de costas, pelo chão de terra batida. A criatura virou a cabeça para olhá-la, mas Sam gritou "NÃO. ", e Paul voltou a se virar. O corvo em seu ombro arrancou-lhe uma tira de carne da bochecha pálida e arruinada. Sam levantou o punhal à sua frente, respirando como um fole de ferreiro. Do outro lado do salão, Goiva chegou junto do garrano. Deuses, deem-me coragem, rezou Sam. Por uma vez, deem-me um pouco de coragem. Só durante tempo suficiente para ela sair.
Paul Pequeno dirigiu-se a ele. Sam recuou até se encostar em uma rústica parede de troncos. Agarrou o punhal com ambas as mãos para mantê-lo firme. A criatura não pareceu temer o vidro de dragão. Talvez não soubesse o que era. Movia-se lentamente, mas Paul Pequeno nunca fora rápido, mesmo em vida. Atrás dele, Goiva murmurou para acalmar o garrano e tentar fazê-lo se dirigir para a porta. Mas o cavalo deve ter sentido um pouco do odor estranho e frio da criatura. De repente, recuou, empinando-se, golpeando com os cascos o ar glacial. Paul girou na direção do som e pareceu perder todo o interesse em Sam.
Não houve tempo para pensar, rezar ou ter medo. Samwell Tarly atirou-se para a frente e mergulhou o punhal nas costas de Paul Pequeno. Meio virada, a criatura não chegou a vê-lo. O corvo soltou um guincho e levantou voo.
- Está morto! - gritou Sam enquanto apunhalava. - Está morto, está morto. - Apunhalava e gritava, uma vez, e outra, e outra, rasgando enormes buracos no pesado manto negro de Paul. Cacos de vidro de dragão voaram por todo lado quando a lâmina se estilhaçou na malha de ferro por baixo da lã.
O gemido de Sam criou uma névoa branca no ar negro. Soltou o cabo agora inútil e deu um passo apressado para trás enquanto Paul Pequeno se virava. Antes de conseguir puxar a outra faca, a faca de aço que todos os irmãos usavam, as mãos negras da criatura fecharam-se sob seu queixo. Os dedos de Paul estavam tão frios que pareciam queimar. Enterraram-se profundamente na carne mole da garganta de Sam. Foge, Goiva, foge, quis gritar, mas quando abriu a boca, apenas surgiu um ruído afogado.
Seus dedos atrapalhados finalmente encontraram o punhal, mas quando o empurrou contra a barriga da criatura, a ponta resvalou nos elos de ferro, e a lâmina saltou rodopiando da mão de Sam. Os dedos de Paul apertaram inexoravelmente e começaram a torcer. Ele vai arrancar minha cabeça, pensou Sam em desespero. Sentia a garganta gelada, tinha os pulmões em fogo. Esmurrou e puxou os pulsos da criatura, inutilmente. O mundo reduziu-se a duas estrelas azuis, a uma terrível dor esmagadora e a um frio tão intenso que as lágrimas congelaram sobre seus olhos. Sam contorceu-se e puxou-se, desesperado... e então inclinou-se para a frente.
Paul Pequeno era grande e poderoso, mas Sam ainda pesava mais do que ele, e as criaturas eram desajeitadas, ele tinha visto no Punho. A súbita mudança de equilíbrio levou Paul a dar um passo cambaleante para trás, e o homem vivo e o morto estatelaram-se juntos. O impacto arrancou uma mão da garganta de Sam, e este conseguiu encher rapidamente os pulmões de ar antes que os dedos gelados e negros voltassem. O sabor do sangue tomou sua boca. Torceu o pescoço, em busca da faca, e viu um tênue clarão laranja. A fogueira! Só restavam brasas e cinzas, mesmo assim... não conseguia respirar, nem pensar... Sam contorceu-se para o lado, puxando Paul consigo... seus braços bateram no chão de terra, tateando, esticando-se, espalhando as cinzas, até por fim encontrarem algo quente... um pedaço de madeira carbonizada, com brasas vermelhas e laranja dentro da parte negra... os dedos fecharam-se em volta dela e enfiou-a na boca de Paul, com tanta força que sentiu os dentes se quebrando.
Mesmo assim, a criatura não fraquejou. Os últimos pensamentos de Sam dirigiram-se à mãe que o amara e ao pai que desiludira. O salão já girava em sua volta quando viu o fio de fumaça que subia de entre os dentes quebrados de Paul. Então o rosto do morto estourou em chamas, e as mãos se foram.
Sam bebeu o ar, e rolou debilmente para longe. A criatura ardia, com geada escorrendo, pingando, de sua barba enquanto a pele, por baixo, enegrecia. Sam ouviu o corvo guinchar, mas Paul não soltou um som. Quando a boca se abriu, só saíram chamas. E os seus olhos... Desapareceu, o brilho azul desapareceu.
Arrastou-se para a porta. O ar estava tão frio que respirar doía, mas era uma dor tão boa e doce. Abaixou-se para sair do salão.
- Goiva? - chamou. - Goiva, matei-o. Gil...
Ela estava em pé, encostada ao represeiro, com o menino nos braços. As criaturas rodeavam-na. Eram uma dúzia, uma vintena, mais... algumas tinham sido selvagens um dia, e ainda usavam peles... mas as que tinham sido irmãos de Sam eram mais numerosas. Viu Lark, o homem das Irmãs, Pé-Leve, Ryles. O quisto no pescoço de Chett estava negro e as pústulas estavam cobertas por uma fina película de gelo. E aquele parecia-se com Hake, embora fosse difícil ter certeza com metade da cabeça faltando. Tinham despedaçado o pobre garrano, e estavam arrancando suas entranhas com mãos que pingavam vermelho. Vapor esbranquiçado subia da barriga dele.
Sam soltou um gemido.
- Não é justo...
"Justo" O corvo pousou em seu ombro. "Justo, justo, justo" Bateu as asas e acompanhou o grito de Goiva. As criaturas estavam quase em cima dela. Sam ouviu as folhas vermelho-escuras do represeiro restolhar, sussurrando umas para as outras numa língua que não conhecia. A própria luz das estrelas parecia se agitar, e por toda a volta as árvores gemiam e estalavam. Sam Tarly ficou da cor do leite coalhado, e seus olhos esbugalharam-se. Corvos! Estavam no represeiro, às centenas, aos milhares, empoleirados em galhos brancos como ossos, espreitando através das folhas. Viu seus bicos abrirem quando gritaram, viu-os abrirem suas asas negras. Guinchando, batendo as asas, caíram sobre as criaturas em nuvens furiosas. Um enxame deles rodeou o rosto de Chett e lançou-lhe bicadas nos olhos azuis, cobriram o homem das Irmãs como moscas, arrancaram pedaços de carne crua de dentro da cabeça desfeita de Hake. Havia tantos que, quando Sam olhou para cima, não conseguiu ver a lua.
"Vá", disse a ave que se empoleirava em seu ombro."Vá, vá, vá."
Sam correu, com nuvens de geada explodindo de sua boca. A toda a volta, as criaturas brandiam os braços contra as asas negras e os bicos certeiros que as atacavam, caindo num silêncio arrepiante sem soltar um grunhido ou um grito. Mas os corvos ignoravam Sam. Pegou na mão de Goiva e puxou-a para longe do represeiro.
- Temos de ir.
- Mas para onde? - Goiva seguiu-o correndo, trazendo o bebê. - Eles mataram o cavalo, como vamos...
- Irmão! - o grito atravessou a noite, atravessando os guinchos de um milhar de corvos. Sob as árvores, um homem, envolto da cabeça aos pés numa confusão de negros e cinza, montava um alce. - Aqui - gritou o cavaleiro. Um capuz engolia seu rosto.
Ele veste negro. Sam empurrou Goiva na direção do homem. O alce era enorme, um alce gigante, com três metros de altura no cachaço, e com um par de chifres que tinham quase outros tantos metros de largura. O animal caiu de joelhos para permitir que montassem.
- Aqui - disse o cavaleiro, estendendo uma mão enluvada para puxar Goiva para trás de si. Então foi a vez de Sam.
- Muito obrigado - bufou. Só quando agarrou a mão oferecida percebeu que o cavaleiro não usava luvas. A mão era negra e fria, com dedos duros como pedra.
Quando atingiram o topo da cumeeira e viram o rio, Sandor Clegane puxou as rédeas com força e praguejou.
A chuva caía de um céu negro de ferro, espicaçando a torrente verde e marrom com dez mil espadas. Deve ter um quilômetro e meio de largura, pensou Arya. As copas de meia centena de árvores projetavam-se das águas rodopiantes, com ramos que tentavam se agarrar ao céu como os braços de homens arrastados pela corrente. Espessos tapetes de folhas encharcadas entupiam a margem, e mais para dentro do canal vislumbrou algo claro e inchado, um veado ou talvez um cavalo morto, deslocando-se rapidamente para jusante. E também se ouvia um som, um rumor surdo no limite da audição, como o ruído que um cão solta logo antes de rosnar.
Arya contorceu-se na sela e sentiu os elos da cota de malha do Cão de Caça enterrando-se em suas costas. Os braços dele rodeavam-na; no esquerdo, o queimado, tinha colocado um braçal de aço para protegê-lo, mas vira-o trocando as ataduras e o braço por baixo continuava em carne viva e cheio de pus. Mas se as queimaduras doíam, Sandor Clegane não demonstrava.
- Isto é a Torrente da Água Negra? - tinham cavalgado tanto pela chuva e na escuridão, através de bosques sem trilhas e aldeias sem nome, que Arya perdera qualquer noção de onde se encontravam.
- E um rio que temos de atravessar, isso é tudo que você precisa saber.
Clegane respondia-lhe de vez em quando, mas prevenira-a para não retrucar. Tinha lhe dado um monte de avisos naquele primeiro dia.
- Da próxima vez que me bater, amarro suas mãos atrás das costas - disse. - Da próxima vez que tentar fugir, amarro seus pés um ao outro. Chore, grite ou volte a me morder, e amordaço você. Podemos seguir montados um atrás do outro, ou posso atirá-la na garupa do cavalo, amarrada como uma porca a caminho da matança. Quem escolhe é você.
Ela escolhera ir montada, mas da primeira vez que acamparam tinha esperado até julgar que ele dormia e arranjado uma grande pedra irregular para lhe esmagar a cabeça. Silenciosa como uma sombra, disse a si mesma enquanto se aproximava dele, pé ante pé, mas o silêncio não fora suficiente. No fim das contas, Cão de Caça não estava dormindo. Ou talvez tivesse acordado. Fosse como fosse, seus olhos se abriram, sua boca torceu-se e ele tirou a pedra de Arya como se ela fosse um bebê. A única coisa que conseguiu fazer foi chutá-lo.
- Dessa vez passa - disse ele quando atirou a pedra para o meio dos arbustos. - Mas se for suficientemente burra para voltar a tentar, vou machucá-la.
- Por que é que não me mata, como fez com o Mycah? - tinha gritado Arya.
A essa altura, ainda estava desafiadora, mais zangada do que assustada.
Ele respondeu agarrando a parte da frente da túnica dela e puxando-a até que encostasse em seu rosto queimado.
- Da próxima vez que disser esse nome, dou-lhe uma sova tão grande que vai desejar que tivesse matado você.
Depois disso, enrolava-a na manta do cavalo todas as noites quando ia dormir e atava cordas em volta da parte de cima e da parte de baixo do corpo dela, deixando-a tão apertada quanto um bebê enfaixado.
Tem de ser a Água Negra, decidiu Arya enquanto observava a chuva açoitando o rio. Cão de Caça era o cão de Joffrey; estava levando-a de volta para a Fortaleza Vermelha, para entregá-la a Joffrey e à rainha. Desejou que o sol surgisse para poder ver em que direção seguiam. Quanto mais olhava para o musgo nas árvores, mais confusa ficava. A Água Negra não era tão larga em Porto Real, mas isso foi antes das chuvas.
- Os vaus vão estar todos impossíveis - disse Sandor Clegane -, e também não me agrada tentar atravessar a nado.
Não há maneira de atravessar, pensou ela. Lorde Beric vai nos alcançar com certeza. Clegane forçara bastante o seu grande garanhão negro, voltando três vezes para trás, a fim de despistar os perseguidores, chegando até a avançar ao longo de quase um quilômetro pelo leito de um riacho em cheia... mas Arya ainda esperava ver os fora da lei sempre que olhava para trás. Tinha tentado ajudá-los arranhando o nome nos troncos de árvores quando ia para o meio dos arbustos tirar a água do joelho, mas na quarta vez Cão de Caça a flagrou e pôs fim à tentativa. Não importa, tinha dito Arya a si mesma, Thoros vai me encontrar em suas chamas. Só que isso não tinha acontecido. Ainda não, pelo menos, e depois de atravessarem o rio...
- A vila de Harroway não deve estar longe - disse Cão de Caça. - Onde o Lorde Roote abriga o cavalo de água de duas cabeças do Velho Rei Andahar. Talvez atravessemos nele.
Arya nunca ouvira falar do Velho Rei Andahar. Também nunca vira um cavalo com duas cabeças, particularmente um que fosse capaz de correr sobre água, mas sabia que não era boa ideia fazer perguntas. Controlou a língua e ficou rígida sobre a sela enquanto Cão de Caça virava a cabeça do garanhão e trotava ao longo da cumeeira, seguindo o rio para jusante. Pelo menos, naquela direção a chuva batia nas costas. Já estava farta de ter a chuva picando os olhos, deixando-a quase cega, e correndo pelo seu rosto como se fossem lágrimas. O5 lobos nunca choram, voltou a lembrar a si mesma.
Não podia passar muito do meio-dia, mas o céu estava escuro como no anoitecer. Arya já tinha perdido a conta dos dias em que não viam o sol. Estava ensopada até os ossos, esfolada pela sela, tinha o nariz entupido e sentia-se dolorida. Também tinha febre, e às vezes tremia descontroladamente, mas quando disse ao Cão de Caça que estava doente, ele limitou-se a rosnar para ela e mandar que ela limpasse o nariz e fechasse a boca.
- Ele passava agora metade do tempo dormindo na sela, confiando que o garanhão seguisse o caminho rural sulcado ou a trilha de caça em que se encontrassem. O cavalo era um corcel pesado, quase tão grande quanto um cavalo de batalha, mas muito mais rápido. Cão de Caça chamava-o de Estranho. Arya tentou roubá-lo uma vez, no momento em que Clegane urinava contra uma árvore, pensando que talvez conseguisse se afastar antes de ele alcançá-la. Estranho quase lhe arrancara o rosto com os dentes. Com o dono, era gentil como um velho castrado, mas com outras pessoas tinha um temperamento tão negro quanto o pelo. Nunca vira um cavalo tão rápido em morder ou escoicear.
Seguiram pela margem do rio durante horas, passando por dois afluentes lamacentos antes de chegarem ao lugar que Sandor Clegane mencionara.
- A Vila de Lorde Harroway - disse, e depois, quando a viu: - Sete infernos! - a vila estava submersa e desolada. As águas da enchente tinham transbordado as margens do rio. Tudo que restava da vila de Harroway era o andar superior de uma estalagem de taipa, a cúpula de sete lados de um septo afundado, dois terços de uma torre redonda de pedra, alguns telhados de sapé bolorentos e uma floresta de chaminés.
Mas Arya viu que saía fumaça da torre, e um barco largo de fundo achatado encontrava-se bem amarrado por baixo de uma janela em arco. O barco tinha uma dúzia de toletes e um par de grandes esculturas de cabeça de cavalo, montadas na proa e na popa. O cavalo de duas cabeças, compreendeu. Havia uma casa de madeira com telhado de turfa bem no meio do convés, e quando Cão de Caça pôs as mãos em volta da boca e gritou, dois homens correram para fora. Um terceiro surgiu na janela da torre, trazendo uma besta engatilhada.
- O que quer? - gritou por sobre as turbulentas águas marrons.
- Leve-nos para o outro lado - gritou o Cão de Caça em resposta.
Os homens no barco conferenciaram um com o outro. Um deles, um homem grisalho com braços fortes e costas arqueadas, aproximou-se da amurada.
- Vai custar dinheiro.
- Então pagarei.
Com o quê?, perguntou Arya a si mesma. Os fora da lei tinham levado o ouro de Clegane, mas talvez Lorde Beric lhe tivesse deixado um pouco de prata e cobre. Uma travessia de barco não devia custar mais do que alguns cobres...
Os barqueiros estavam de novo conversando. Por fim, o das costas arqueadas virou-se e soltou um grito. Surgiram mais seis homens, puxando capuzes por sobre a cabeça para se protegerem da chuva. Outros ainda torceram-se para fora da janela da torre e saltaram para o convés. Metade deles era suficientemente parecida com o homem corcunda para ser de sua família. Alguns desataram as correntes e pegaram em longas varas, enquanto outros encaixaram pesados remos de lâmina larga nos toletes. O barco girou e começou a se aproximar lentamente dos baixios, com os remos batendo regularmente na água de ambos os lados. Sandor Clegane desceu a colina para ir ao seu encontro.
Quando a parte de trás do barco colidiu com a encosta da colina, os barqueiros abriram uma porta larga que havia por baixo da cabeça esculpida do cavalo, e estenderam uma pesada prancha de carvalho. Estranho refugou à beira da água, mas Cão de Caça enterrou os calcanhares no flanco do corcel e incitou-o a subir na prancha. O homem corcunda esperava-os no convés.
- Está úmido o suficiente para você, sorí - perguntou, sorrindo.
A boca de Cão de Caça torceu-se.
- Preciso de seu barco, não das suas gracinhas. - Desmontou e puxou Arya para baixo. Um dos barqueiros estendeu a mão para o freio do Estranho. - Eu não faria isso – disse Clegane, no momento em que o cavalo escoiceava. O homem saltou para trás, escorregou no convés tornado traiçoeiro pela chuva, e estatelou-se sobre o traseiro, xingando.
O barqueiro com as costas arqueadas já não estava sorrindo.
- Podemos levá-lo para o outro lado - disse ele num tom irritado. - Irá custar uma peça de ouro para você. Outra pelo cavalo. Uma terceira pelo rapaz.
- Três dragões? - Clegane latiu uma gargalhada. - Por três dragões devia me tornar dono da porcaria do barco.
- No ano passado, talvez se tornasse. Mas com este rio, vou precisar de mãos extras nas varas e nos remos só para tratar de não sermos arrastados cento e cinquenta quilômetros até o mar. As suas opções são essas. Três dragões, ou então ensinar esse seu cavalo infernal a caminhar sobre a água.
- Gosto de um bandoleiro honesto. Que seja como pretende. Três dragões... quando nos deixar a salvo na margem norte.
- Quero-os agora, senão não vamos. - O homem esticou uma mão grossa e cheia de calos, com a palma para cima.
Clegane sacudiu a espada para que a lâmina se soltasse dentro da bainha.
- Aqui tem as suas opções. Ouro na margem norte, ou aço na margem sul.
O barqueiro ergueu os olhos para o rosto de Cão de Caça. Arya percebeu que o homem não gostou do que viu ali. Tinha uma dúzia de homens atrás de si, homens fortes com remos e varas de madeira dura nas mãos, mas nenhum deles estava se adiantando para ajudá-lo. Juntos, poderiam dominar Sandor Clegane, embora ele provavelmente matasse três ou quatro antes de o derrubarem.
- Como é que eu sei que tem o dinheiro? - perguntou o corcunda após um momento.
Não tem, ela quis gritar. Em vez disso, mordeu o lábio.
- Honra de cavaleiro - disse Cão de Caça, sem sorrir.
Ele nem sequer é um cavaleiro. Também não disse isso.
- Serve. - O barqueiro cuspiu. - Então venha, podemos levá-lo para a outra margem antes de escurecer. Amarre o cavalo, não o quero espantado quando estivermos a caminho. Há um braseiro na cabine se você e o seu filho quiserem se aquecer.
- Não sou o estúpido filho dele! - disse Arya, furiosa. Aquilo era ainda pior do que ser confundida com um menino. Estava tão zangada que poderia ter lhes dito quem realmente era, mas Sandor Clegane agarrou-a pela parte de trás do colarinho e ergueu-a do convés com apenas uma mão.
- Quantas vezes tenho de lhe dizer para fechar a merda dessa boca? - sacudiu-a com tanta força que os dentes matraquearam e depois deixou-a cair. - Vá lá para dentro e seque-se, como o homem disse.
Arya fez o que lhe foi ordenado. O grande braseiro de ferro brilhava, vermelho, enchendo a sala com um calor carregado e sufocante. Era agradável estar junto a ele, aquecer as mãos e secar-se um pouco, mas assim que sentiu o convés mover-se debaixo dos pés, voltou a deslizar pela porta da frente.
O cavalo de duas cabeças deslocava-se lentamente pelos baixios, abrindo caminho por entre as chaminés e os telhados da submersa Harroway. Uma dúzia de homens labutava aos remos, enquanto outros quatro usavam as longas varas para empurrar o barco sempre que se aproximassem de uma pedra, uma árvore ou uma casa afundada. O homem corcunda manejava o leme. A chuva tamborilava nas tábuas lisas do convés e respingava nas grandes cabeças de cavalo esculpidas que ficavam na proa e na popa. Arya estava ficando ensopada de novo, mas não se importava. Queria ver. Viu que o homem com a besta ainda se encontrava na janela da torre. Seus olhos seguiram-na enquanto o barco deslizava por baixo. Perguntou a si mesma se seria ele o tal Lorde Roote que Cão de Caça mencionara. Não se parece muito com um senhor. Mas a verdade era que ela também não se parecia muito com uma senhora.
Depois de estarem fora da vila e no rio propriamente dito, a corrente ficou muito mais forte. Através da neblina cinzenta da chuva Arya conseguiu distinguir um alto pilar de pedra na outra margem, que certamente assinalava o cais para o barco, mas assim que o viu compreendeu que estavam sendo empurrados para longe dele, para jusante. Os remadores agora estavam remando com mais vigor, lutando contra a fúria do rio. Folhas e galhos partidos passaram pelo barco rodopiando, tão depressa como se tivessem sido disparados de uma balista. Os homens das varas inclinavam-se para fora e empurravam para longe qualquer coisa que se aproximasse em excesso. Ali também fazia mais vento. Sempre que se virava para olhar para montante, Arya ficava com o rosto molhado da chuva soprada pelo vento. Estranho relinchava e escoiceava enquanto o convés se movia por baixo de suas patas.
Se eu saltasse pela borda, o rio iria me levar antes mesmo que o Cão de Caça desse por minha falta. Olhou por sobre um ombro, e viu Sandor Clegane lutando com o cavalo assustado, tentando acalmá-lo. Nunca teria uma oportunidade melhor de se ver livre dele. Mas poderia me afogar. Jon costumava dizer que ela nadava como um peixe, mas até um peixe podia ter problemas naquele rio. Mesmo assim, o afogamento podia ser melhor do que Porto Real. Pensou em Joffrey e aproximou-se lentamente da proa. O rio estava marrom-escuro, devido à lama, e era açoitado pela chuva, parecendo-se mais com uma sopa do que com água. Arya perguntou a si mesma se a água estaria muito fria. Não posso ficar muito mais molhada do que estou agora. Apoiou uma mão na amurada.
Mas um súbito grito fez Arya virar a cabeça antes de ter tempo de saltar. Os barqueiros corriam em frente, de varas na mão. Por um momento não compreendeu o que estava acontecendo. Então viu: uma árvore desenraizada, enorme e escura, que vinha direto na direção do barco. Um emaranhado de raízes e ramos projetava-se da água como os braços estendidos de uma grande lula gigante. Os homens remavam freneticamente para trás, tentando evitar uma colisão que poderia virar o barco ou abrir um rombo em seu casco. O velho tinha virado o leme por completo, e o cavalo da proa estava se voltando para jusante, mas muito devagar. Cintilando em castanho e negro, a árvore corria para eles como um aríete.
Não podia estar a mais de três metros da proa quando dois dos barqueiros conseguiram encostar suas longas varas nela. Uma partiu-se, e o longo craaac do estilhaçamento fez com que parecesse que o barco estava se desfazendo por baixo deles. Mas o segundo homem conseguiu dar um forte empurrão no tronco, apenas o suficiente para afastá-lo. A árvore passou pelo barco a grande velocidade, a uma distância apenas de centímetros, com os galhos arranhando a cabeça de cavalo como se fossem garras. No momento em que pareciam estar a salvo, um dos ramos superiores do monstro deu-lhes uma pancada de raspão. O barco pareceu estremecer, e Arya escorregou, caindo dolorosamente sobre um joelho. O homem com a vara quebrada não teve tanta sorte. Arya ouviu-o gritar quando tropeçou na amurada. Depois, as furiosas águas marrons fecharam-se sobre ele, e o barqueiro desapareceu no tempo que Arya demorou para voltar a ficar em pé. Um dos outros homens pegou um rolo de corda, mas não havia ninguém a quem atirá-la.
Talvez seja levado a algum lugar, mais abaixo, Arya tentou dizer a si mesma, mas o pensamento soava oco. Tinha perdido todo o desejo de nadar. Quando Sandor Clegane gritou para que voltasse para dentro antes que lhe desse uma surra, Arya obedeceu docilmente. A essa altura, o barco lutava para voltar à rota, contra um rio que só desejava levá-lo para o mar.
Quando por fim atracaram, foi a uma considerável distância do embarcadouro habitual. O barco bateu com tanta força na margem que outra vara se partiu, e Arya quase se desequilibrou mais uma vez. Sandor Clegane colocou-a no dorso de Estranho como se não fosse mais pesada do que uma boneca. Os barqueiros fitaram-nos com olhos baços e exaustos, todos menos o corcunda, que estendeu a mão.
- Seis dragões - exigiu. - Três pela passagem, e três pelo homem que perdi.
Sandor Clegane esquadrinhou a bolsa e jogou na palma da mão do homem um maço
amarrotado de pergaminho.
- Tome. Fique com dez.
- Dez? - o barqueiro estava confuso. - O que é isso agora?
- Uma nota de um morto, que vale nove mil dragões, ou por aí. - Cão de Caça saltou para a sela atrás de Arya e deu um sorriso desagradável ao homem. - Dez são seus. Um dia voltarei para vir buscar o resto, por isso vê lá se não gasta tudo.
O homem semicerrou os olhos para o pergaminho.
- Escrita. De que vale a escrita? Prometeu ouro. Honra de cavaleiro, você disse.
- Os cavaleiros não têm honra nenhuma. Já é hora de aprender isso, velho. - Cão de Caça esporeou o cavalo e afastou-se a galope através da chuva. Os barqueiros lançaram pragas às suas costas, e um ou dois arremessaram pedras. Clegane ignorou tanto as pedras como as palavras, e pouco tempo depois estavam perdidos na sombra das árvores, com o rio reduzido a um rugido minguante atrás deles. - O barco não voltará a atravessar até amanhã - disse - e aqueles ali não aceitarão promessas de papel dos próximos idiotas que aparecerem. Se os seus amigos vierem atrás de nós, vão ter de ser nadadores fortes como o diabo.
Arya encolheu-se e ficou calada. Valar morghulis, pensou, de mau humor. Sor Ilyn, Sor Meryn, Reijojfrey, Rainha Cersei. Dunsen, Polliver, Rajf, o Querido, Sor Gregor e Cócegas. E Cão de Caça, Cão de Caça, Cão de Caça.
Quando a chuva parou e as nuvens se abriram, estava tremendo e espirrando tanto que Clegane decidiu parar para a noite e até tentou acender uma fogueira. Mas a madeira que reuniram revelou-se encharcada demais. Nada que Cão de Caça fizesse era suficiente para que a centelha pegasse. Por fim, desfez o monte de lenha aos pontapés, irritado.
- Sete malditos infernos - praguejou. - Detesto fogueiras.
Sentaram-se em pedras molhadas por baixo de um carvalho, escutando o lento bater de água que pingava das folhas enquanto comiam um jantar frio de pão duro, queijo bolorento e salsicha defumada. Cão de Caça cortava a carne com o punhal e semicerrou os olhos quando flagrou Arya olhando para a faca.
- Nem pense nisso.
- Não estava pensando - mentiu ela.
Ele fungou, para mostrar o que pensava daquilo, mas deu-lhe uma grossa fatia de salsicha. Arya pôs-se a roê-la, observando-o enquanto comia.
- Nunca bati na sua irmã - disse Cão de Caça. - Mas bato em você, se me levar a isso. Pare de tentar pensar em maneiras de me matar. Nenhuma servirá de nada para você.
Ela não tinha resposta para aquela ameaça. Continuou roendo a salsicha e fitou-o friamente. Dura como pedra, pensou.
- Ao menos você olha para a minha cara. Isso admito, pequena loba. Gosta dela?
- Não. Está toda queimada e é feia.
Clegane ofereceu-lhe um pedaço de queijo com a ponta do punhal.
- É uma tolinha. De que adiantaria se conseguisse fugir? Acabaria sendo capturada por alguém pior.
- Não acabaria nada - insistiu ela. - Não há ninguém pior.
- Não conheceu o meu irmão. Gregor uma vez matou um homem por roncar. Um de seus próprios homens. - Quando sorriu, o lado queimado do rosto retesou-se, torcendo sua boca de uma maneira estranha e desagradável. Ele não tinha lábios desse lado, e a orelha não passava de um resto.
- Conheci o seu irmão, sim senhor. - A Montanha talvez fosse pior, agora que Arya pensava nisso. - Conheci tanto ele qunato Dunsen, Polliver, Raff, o Querido, e Cócegas.
Cão de Caça pareceu surpreso.
- E como é que a preciosa filhinha de Ned Stark chegou a conhecer gente como essa? Gregor nunca traz suas ratazanas de estimação à corte.
- Conheço-os da aldeia. - Comeu o queijo, e estendeu a mão para um naco de pão duro. - A aldeia junto ao lago onde capturaram Gendry, eu e Torta Quente. Também capturaram Lommy Mãos-Verdes, mas Raif, o Querido, matou-o porque tinha a perna ferida.
A boca de Clegane torceu-se.
- Capturou-a? Meu irmão capturou-a? - Isso fez com que risse, um som amargo, em parte trovão, em parte rosnido. - Gregor nunca soube o que tinha nas mãos, não é? Não podia ter sabido, senão tinha arrastado você, esperneando e aos gritos, para Porto Real, e despejado no colo de Cersei. Oh, que maravilha. Não posso me esquecer de lhe dizer, antes de arrancar o coração dele.
Não era a primeira vez que ele falava em matar a Montanha.
- Mas ele é seu irmão - disse Arya, num tom hesitante.
- Nunca teve um irmão que quisesse matar? - voltou a rir. - Ou talvez uma irmã?
- então deve ter visto qualquer coisa em seu rosto, porque se debruçou para mais perto.
- Sansa. É isso, não é? A loba quer matar o passarinho.
- Não - cuspiu-lhe Arya em resposta. - Quero matar você.
- Por que cortei ao meio o seu amiguinho? Matei muitos mais do que ele, garanto. Acha que isso faz de mim um monstro qualquer. Bem, talvez faça, mas também salvei a vida de sua irmã. No dia em que a multidão a derrubou de cima do cavalo, abri caminho pelo meio deles com a espada e trouxe-a de volta ao castelo. Caso contrário, teriam dado a ela o mesmo que deram à Lollys Stokeworth. E cantou para mim. Não sabia disso, não é? Sua irmã cantou para mim uma cançãozinha doce.
- Está mentindo - disse ela de imediato.
- Não sabe nem metade do que pensa que sabe. A Água Negra? Onde, com os sete infernos, você acha que nós estamos? Para onde acha que vamos?
O escárnio na voz dele fez com que ela hesitasse.
- De volta a Porto Real - disse. - Vai me levar a Joffrey e à rainha. - De repente, só pelo modo como ele colocava as questões, compreendeu que se enganava. Mas tinha de dizer alguma coisa.
- Lobinha estúpida e cega. - A voz dele era áspera e dura como um raspar de ferro. - Que se dane o Joffrey, que se dane a rainha, e que se dane aquela gargulazinha retorcida que ela chama de irmão. Estou farto da cidade deles, farto da sua Guarda Real, farto de Lannisters. O que faz um cão com leões, pergunto a você. - Estendeu a mão para o odre de água e bebeu um longo gole. Enquanto limpava a boca, ofereceu o odre a Arya e disse: - O rio era o Tridente, garota. O Tridente, não a Água Negra. Faça o mapa na cabeça, se for capaz. Amanhã devemos chegar à estrada do rei. Devemos avançar a bom ritmo depois disso, direto às Gêmeas. Serei eu quem vai entregá-la àquela sua mãe. Não o nobre senhor do relâmpago ou a fraude flamejante daquele sacerdote, o monstro. - Sorriu ao ver a expressão de seu rosto. - Acha que seus amigos fora da lei são os únicos capazes de farejar um resgate? Dondarrion ficou com o meu ouro, portanto eu fiquei com você. Diria que vale o dobro daquilo que me roubaram. Talvez até valesse mais se a vendesse de volta aos Lannister, como teme, mas não o farei. Até um cão se cansa de levar pontapés. Se este Jovem Lobo tiver a esperteza que os deuses concederam a um sapo, vai fazer de mim fidalgo e vai me suplicar para entrar no seu serviço. Ele precisa de mim, embora possa não saber disso ainda. Talvez chegue mesmo a matar Gregor em seu nome, ele haveria de gostar.
- Ele nunca o aceitará - cuspiu ela em resposta. - Você, não.
- Nesse caso, aceito tanto ouro quanto consiga carregar, rio na cara dele e vou embora. Se ele não me aceitar, seria esperto se me matasse, mas não o fará. É demasiado filho do seu pai, segundo tenho ouvido dizer. Por mim tudo bem. Seja como for, quem ganha sou eu. E você também, loba. Portanto pare de choramingar e de me responder torto, que eu estou farto. Mantenha a boca fechada e faça o que eu lhe disser, e talvez até cheguemos a tempo do maldito casamento de seu tio.
A égua estava esgotada, mas Jon não podia dar descanso a ela. Tinha de chegar à Muralha antes do Magnar. Teria dormido na sela se tivesse uma; na falta disso, já era suficientemente difícil manter-se montado quando acordado. Sua perna ferida doía cada vez mais. Não se atrevia a descansar tempo suficiente para permitir que sarasse. Em vez disso, reabria a ferida sempre que montava.
Quando chegou ao topo de uma elevação e viu os sulcos marrons da estrada do rei à sua frente, abrindo seu caminho sinuoso para o norte através de montes e planícies, deu palmadinhas no pescoço da égua e disse:
- Agora tudo que temos de fazer é seguir a estrada, garota. Em breve chegaremos à Muralha. - A essa altura, sua perna já havia se tornado rígida como madeira, e a febre o tinha deixado fora do ar que dera por si por duas vezes cavalgando na direção errada.
Em breve chegaremos à Muralha. Imaginava os amigos bebendo vinho quente na sala comum. Hobb estaria com suas panelas; Donal Noye, em sua forja; Meistre Aemon, em seus aposentos sob a colônia dos corvos. E o Velho Urso? Sam, Grenn, Edd Doloroso, Dywen com os seus dentes de madeira... Jon só podia rezar para que alguns deles tivessem escapado do Punho.
Ygritte também andava muito em seus pensamentos. Recordava o cheiro de seus cabelos, o calor de seu corpo... e a expressão em seu rosto no momento em que cortava a garganta do velho. Fez mal em amá-la, sussurrava uma voz. Fez mal em deixá-la, insistia uma voz diferente. Perguntava a si mesmo se o pai também se sentira assim dilacerado quando tinha deixado a mãe de Jon para voltar para junto da Senhora Catelyn. Estava juramentado a Senhora Stark, e eu estou juramentado à Patrulha da Noite.
Quando atravessou a Vila Toupeira, estava a tal ponto febril que quase não reconheceu onde se encontrava. A maior parte da aldeia escondia-se no subsolo, com não mais de um punhado de pequenas cabanas à vista, à luz do quarto minguante. O bordel era um casebre não maior do que uma latrina, com uma lanterna vermelha rangendo ao vento, um olho injetado de sangue espiando a escuridão. Jon desmontou no estábulo anexo, quase caindo do cavalo enquanto acordava dois rapazes com um grito.
- Preciso de uma montaria nova, com sela e arreios - disse-lhes, num tom que não admitia discussões. Trouxeram-lhe o que pediu; e também um odre de vinho e meia fatia de pão de centeio. - Acordem a aldeia - disse-lhes. - Previna-os. Há selvagens a sul da Muralha. Juntem os seus bens e dirijam-se a Castelo Negro. - Empurrou-se para o dorso do castrado negro que lhe deram, cerrando os dentes devido às dores que a perna lhe causava, e cavalgou rapidamente para o norte.
À medida que as estrelas começavam a desvanecer no céu oriental, a Muralha foi surgindo à sua frente, erguendo-se acima das árvores e das névoas da manhã. O luar cintilava, pálido, no gelo. Incentivou o castrado a avançar, seguindo a estrada lamacenta e escorregadia até ver as torres de pedra e os edifícios de madeira de Castelo Negro, aninhados como brinquedos quebrados sob a grande falésia de gelo. A essa altura a Muralha brilhava em tons de rosa e púrpura com a primeira luz da alvorada.
Nenhuma sentinela o desafiou ao passar pelos edifícios exteriores. Ninguém surgiu para barrar seu caminho. Castelo Negro parecia tanto uma ruína como Guardagris. Ervas daninhas marrons e quebradiças cresciam entre fendas nas pedras dos pátios. Neve antiga cobria o telhado da Caserna de Pederneira e encostava-se, em montículos empurrados pelo vento, à face norte da Torre de Hardin, onde Jon costumava dormir antes de ser nomeado intendente do Velho Urso. Dedos de fuligem manchavam a Torre do Senhor Comandante, nos locais onde a fumaça se derramara das janelas. Mormont tinha se mudado para a Torre do Rei após o incêndio, mas Jon também não viu luzes ali. Do chão não podia dizer se haveria sentinelas patrulhando a Muralha duzentos metros acima, mas não viu ninguém na enorme escada em zigue-zague que subia a face sul do gelo como se fosse um enorme relâmpago de madeira.
Mas subia fumaça pela chaminé do arsenal; só um fiapo, quase invisível contra o céu cinzento do Norte. Era o bastante. Jon desmontou e mancou para lá. Jorrava calor da porta aberta como se fosse o hálito quente do verão. Lá dentro, Donal Noye manejava só com um braço os seus foles junto ao fogo. Ergueu o olhar ao ouvir barulho.
- Jon Snow?
- Ele mesmo. - Apesar da febre, da exaustão, da perna, do Magnar, do velho, de Ygritte, de Mance, apesar de tudo, Jon sorriu. Era bom estar de volta, era bom ver Noye com a sua grande barriga e a manga arregaçada, com o queixo eriçado de curtos pelos negros.
O ferreiro largou os foles.
- A sua cara...
Quase tinha se esquecido do rosto.
- Um troca-peles tentou arrancar meu olho.
Noye franziu a testa.
- Marcada ou não, é uma cara que eu pensava que não voltaria a ver. Ouvimos dizer que tinha passado para o lado de Mance Rayder.
Jon agarrou-se à porta para se manter em pé.
- Quem lhe disse isso?
- Jarman Buckwell. Ele voltou há uma quinzena. Seus batedores dizem que viram você com os próprios olhos, acompanhando a coluna dos selvagens com um manto de pele de ovelha sobre os ombros. - Noye observou-o. - Vejo que a última parte é verdade.
- É tudo verdade - confessou Jon. - Até aí, pelo menos.
- Nesse caso, devia pegar uma espada para estripá-lo?
- Não. Estava agindo sob ordens. A última ordem de Qhorin Meia-Mão. Noye, onde está a guarnição?
- Defendendo a Muralha contra os seus amigos selvagens.
- Sim, mas onde?
- Por todo lado. Harma Cabeça de Cão foi vista em Atalaiabosque da Lagoa, Camisa de Chocalho no Monte Longo, Chorão perto de Marcagelo. Ao longo de toda a Muralha... estão aqui, estão ali, estão escalando perto do Portão da Rainha, estão atacando os portões de Guardagris, estão se reunindo para atacar Atalaialeste... mas um vislumbre de um manto negro e desaparecem. No dia seguinte, estão em outro lugar qualquer.
Jon engoliu um gemido.
- Simulações. Mance quer que fiquemos bem espalhados, não vê? - E Bowen Marsh fez sua vontade. - O portão está aqui. O ataque será aqui.
Noye atravessou a sala.
- Sua perna está ensopada de sangue.
Jon olhou para baixo, entorpecido. Era verdade. A ferida tinha voltado a abrir.
- Um ferimento de flecha...
- Uma flecha de selvagem. - Não era uma pergunta. Noye só tinha um braço, mas o que tinha era grosso e musculoso. Enfiou-o sob o de Jon para ajudar a apoiá-lo. - Está branco como leite, e fervendo. Vou levá-lo a Aemon.
- Não há tempo para isso. Há selvagens ao sul da Muralha, subindo de Coroa da rrainha para abrir o portão.
- Quantos? - Noye quase carregou Jon porta fora.
- Cento e vinte, e bem armados para selvagens. Armaduras de bronze, alguns pedaços de aço. Quantos homens restam aqui?
- Quarenta e poucos - disse Donal Noye. - Os aleijados e os enfermos, e alguns rapazes verdes ainda em treinamento.
- Se Marsh partiu, quem foi que o nomeou como castelão?
O armeiro soltou uma gargalhada.
- Sor Wynton, que os deuses o protejam. O último cavaleiro no castelo, e tudo mais. O problema é que o Stout parece ter se esquecido e ninguém se apressou em lembrá-lo disso. Suponho que sou o melhor que temos agora como comandante. O mais feroz dos aleijados.
Pelo menos isso era bom. O armeiro maneta era obstinado, duro e bem experimentado na guerra. Sor Wynton Stout, por outro lado... bem, ele tinha sido um bom homem outrora, todos concordavam, mas passara oitenta anos como patrulheiro e tanto suas forças como seu juízo tinham sumido. Uma vez adormeceu durante o jantar e quase se afogou numa tigela de sopa de ervilhas.
- Onde está o seu lobo? - perguntou Noye enquanto atravessavam o pátio.
- Fantasma. Tive de abandoná-lo quando escalei a Muralha. Tinha esperança de que ele tivesse conseguido chegar aqui.
- Lamento, jovem. Não houve sinal dele. - Coxearam até a porta do meistre, no longo edifício de madeira sob a colônia de corvos. O armeiro deu um chute nela. - Clydas!
Após um momento, um homenzinho, de ombros curvados e vestido de negro pôs a cabeça para fora. Seus pequenos olhos cor-de-rosa esbugalharam-se ao ver Jon.
- Deite o moço, vou buscar o meistre.
Ardia um fogo na lareira, e a sala estava quase abafada. O calor deixou Jon sonolento. Assim que Noye o deitou de costas, fechou os olhos para fazer com que o mundo parasse de girar. Ouvia os corvos crocitando e protestando, na colônia, por cima de sua cabeça. "Snow", uma ave estava dizendo."Snow, snow, snow." Jon lembrou-se de que aquilo havia sido obra de Sam. Perguntou a si mesmo se Samwell Tarly teria retornado em segurança, ou se tinham sido apenas as aves dele.
Meistre Aemon não demorou a chegar. Deslocava-se lentamente, com uma mão manchada apoiada no braço de Clydas, enquanto avançava com pequenos passos cautelosos. Em volta de seu pescoço fino, a corrente caía pesadamente, com os elos de ouro e prata cintilando entre ferro, chumbo, estanho e outros metais menos nobres.
- Jon Snow - disse ele -, quando estiver mais forte, precisa me contar tudo o que viu e fez. Donal, ponha uma chaleira de vinho no fogo e os meus ferros também. Vou querê-los em brasa. Clydas, vou precisar daquela sua faca boa e afiada. - O meistre tinha mais de cem anos; era encolhido, frágil, calvo e bem cego. Mas se os seus olhos leitosos nada viam, a sua mente ainda era tão aguçada como sempre fora.
- Há selvagens a caminho - contou Jon, enquanto Clydas lhe abria os calções com uma faca, cortando o pesado pano negro, incrustado de sangue velho e empapado com o novo. - Vindos do sul. Nós escalamos a Muralha...
Meistre Aemon cheirou o curativo improvisado de Jon quando Clydas o cortou.
- Nós?
- Eu acompanhava-os. Qhorin Meia-Mão ordenou-me que me juntasse a eles. - Jon estremeceu quando o dedo do meistre explorou seu ferimento, cutucando e espetando. - O Magnar de Thenn... aaaaaah, isso dói. - Cerrou os dentes. - Onde está o Velho Urso?
- Jon... dói-me dizer isso, mas o Senhor Comandante Mormont foi assassinado na Fortaleza de Craster, pelas mãos de seus Irmãos Juramentados.
- Irm... os nossos próprios homens? - as palavras de Aemon doeram cem vezes mais do que os seus dedos. Jon recordou o Velho Urso como o vira pela última vez, em pé diante de sua tenda com o corvo no braço, crocitando, pedindo milho. Mormont morto? Temera isso desde que vira o resultado da batalha no Punho, mas nem assim o golpe era menor. - Quem foi? Quem é que se virou contra ele?
- Garth de Vilavelha, Ollo Mão-Cortada, Adaga... ladrões, covardes e assassinos, todos eles. Devíamos ter previsto que isso iria acontecer. A Patrulha não é o que já foi. Há homens honestos de menos para manter os patifes na linha. - Donal Noye virou as lâminas do meistre no fogo. - Uma dúzia de homens leais conseguiu voltar. Edd Doloroso, Gigante, seu amigo Auroque. Soubemos da história por eles.
Só uma dúzia? Tinham saído duzentos homens de Castelo Negro com o Senhor Comandante Mormont, duzentos dos melhores homens da Patrulha.
- Isso quer dizer então que Marsh é o Senhor Comandante? - a Velha Romã era amigável, e um diligente Primeiro Intendente, mas era completamente inadequado para enfrentar uma tropa de selvagens.
- Por enquanto, até organizarmos uma eleição - disse Meistre Aemon. - Clydas, traga-me o frasco.
Uma eleição. Com Qhorin Meia-Mão e Sor Jaremy Rykker mortos e Ben Stark ainda desaparecido, quem restava? Nem Bowen Marsh nem Sor Wynton Stout, isso era certo. Teria Thoren Smallwood sobrevivido ao Punho, ou Sor Ottyn Wythers? Não, será Cotter Pyke ou Sor Denys Mallister. Mas qual deles? Os comandantes da Torre Sombria e de Atalaialeste eram bons homens, mas muito diferentes; Sor Denys era cortês e cauteloso, tão cavalheiresco quanto idoso, Pyke era mais jovem, de nascimento bastardo, de língua rude e excessivamente ousado. Pior, os dois homens desprezavam-se mutuamente. O Velho Urso sempre os mantivera afastados, nas extremidades opostas da Muralha. Jon sabia que os Mallister possuíam uma desconfiança congênita com relação aos homens de ferro.
Uma punhalada de dor fez-lhe lembrar os próprios infortúnios. O meistre apertou sua mão.
- Clydas foi buscar leite de papoula.
Jon tentou se levantar.
- Não preciso...
- Precisa - disse Aemon com firmeza. - Isto vai doer.
Donal Noye atravessou a sala e obrigou Jon a se deitar novamente.
- Fique quieto, senão o amarro. - Mesmo com apenas um braço, o ferreiro controlava-o como se fosse uma criança.
Clydas voltou com um frasco verde e uma taça arredondada de pedra. Meistre Aemon encheu-a.
- Beba isto.
Jon tinha mordido o lábio. Sentiu o sabor do sangue misturado com o da sedimentosa poção branca. Quase vomitou.
Clydas trouxe uma bacia de água quente, e Meistre Aemon lavou o pus e o sangue do ferimento. Por mais gentil que fosse, até o toque mais leve fazia com que Jon quisesse gritar.
- Os homens do Magnar são disciplinados e têm armaduras de bronze - disse-lhes. Falar ajudava a manter a mente afastada da perna.
- O Magnar é um senhor em Skagos - disse Noye. - Havia skagositas em Atalaialeste quando cheguei à Muralha, lembro-me de ouvi-los falando dele.
- Jon está usando a palavra em seu sentido mais antigo, creio eu - disse Meistre Aemon -, não como nome de família, mas como título. Deriva do Idioma Antigo.
- Significa senhor - concordou Jon. - Styr é o Magnar de um lugar qualquer chamado Thenn, na extremidade norte das Presas de Gelo. Tem uma centena de seus homens e uma vintena de corsários que conhecem a Dádiva quase tão bem quanto nós. Mas Mance nunca chegou a encontrar o berrante, isso vale de alguma coisa. O Berrante do Inverno. Era isso que ele andava à procura nas escavações que fez nas nascentes do Guadeleite.
Meistre Aemon fez uma pausa, com o pano da lavagem na mão.
- O Berrante do Inverno é uma lenda antiga. O Rei-Para-lá-da-Muralha realmente acredita que tal coisa existe?
- Todos acreditam - disse Jon. - Ygritte disse que abriram uma centena de tumbas... tumbas de reis e heróis, ao longo de todo o vale do Guadeleite, mas não chegaram...
- Quem é Ygritte? - perguntou Donal Noye sem rodeios.
- Uma mulher do povo livre. - Como poderia explicar Ygritte para eles? Ela é quente, esperta e engraçada, e tanto pode beijar um homem como rasgar seu pescoço. - Ela está com Styr, mas não é... é jovem, só uma garota, na verdade, selvagem, mas ela... - Ela matou um velho por fazer uma fogueira. Sentiu a língua inchada e desajeitada. O leite de papoula estava anuviando seus pensamentos. - Quebrei os meus votos com ela. Não queria, mas... - Foi errado. Foi errado amá-la, foi errado deixá-la... - Não fui suficientemente forte. O Meia-Mão ordenou-me, cavalgue com eles, observe, não posso vacilar, eu... - Sentia a cabeça como se estivesse recheada de lã molhada.
Meistre Aemon voltou a cheirar o ferimento de Jon. Então pôs o pano ensanguentado na bacia novamente e disse:
- Donal, a faca quente, por favor. Vou precisar que o mantenha imóvel.
Não gritarei, disse Jon a si mesmo quando viu a lâmina brilhando, rubra. Mas também quebrou esse voto. Donal Noye segurou-o enquanto Clydas ajudava a guiar a mão do meistre. Jon não se mexeu, salvo para esmurrar a mesa, uma vez e outra mais. A dor foi tão enormemente violenta que se sentiu pequeno, fraco e impotente dentro dela, uma criança choramingando no escuro. Ygritte, pensou, quando o fedor da carne queimada subiu ao seu nariz e o som de seu próprio berro ecoou nos ouvidos. Ygritte, tive de fazer isso. Durante meio segundo, a agonia começou a diminuir. Mas então o ferro voltou a tocá-lo e ele desmaiou.
Quando suas pálpebras se abriram, estremecendo, estava envolto em lãs espessas e flutuava. Parecia não ser capaz de se mover, mas não importava. Durante algum tempo, sonhou que Ygritte se encontrava ao seu lado, cuidando dele com mãos suaves. Por fim, fechou os olhos e adormeceu.
A segunda vez que acordou não foi tão branda. O quarto estava escuro, mas sob as mantas a dor tinha voltado, um latejar na perna que se transformava em uma faca quente ao menor movimento. Jon ficou sabendo disso da pior maneira possível, quando tentou ver se ainda tinha a perna. Arquejando, engoliu um grito e voltou a fechar o punho.
- Jon? - uma vela surgiu, e um rosto de que se recordava bem estava olhando-o, com orelhas grandes e tudo. - Não devia se mexer.
- Pyp? - Jon estendeu a mão para cima, e o outro rapaz apertou-a. - Pensava que você tinha ido...
- ... com a Velha Romã? Não, ele acha que eu sou muito pequeno e verde. Grenn também está aqui.
- Também estou aqui. - Grenn aproximou-se do outro lado da cama. - Acabei dormindo.
Jon tinha a garganta seca.
- Água - arquejou. Grenn trouxe-a e levou-a aos lábios de Jon. - Eu vi o Punho - disse depois de beber um longo trago. - O sangue, e os cavalos mortos... Noye disse que uma dúzia de homens conseguiu voltar... quem?
- Dywen conseguiu. Gigante, Edd Doloroso, Doce Donnel Hill, Ulmer, Lew Mão Esquerda, Garth Pena-Cinza. Mais quatro ou cinco. Eu.
- Sam?
Grenn afastou o olhar.
- Ele matou um dos Outros, Jon. Eu vi. Apunhalou-o com aquela faca de vidro de dragão que você fez para ele, e começamos a chamá-lo de Sam, o Matador. Ele detestava.
Sam, o Matador. Jon dificilmente conseguiria imaginar um guerreiro menos provável para receber tal nome do que Sam Tarly.
- O que aconteceu com ele?
- Nós o abandonamos. - Grenn soava infeliz. - Sacudi-o e gritei com ele, até dei um tabefe na cara dele. Gigante tentou puxá-lo para colocá-lo em pé, mas ele era pesado demais. Lembra-se de como ele costumava se enrolar no chão durante o treino e ficar ali choramingando? Na Fortaleza de Craster nem sequer choramingava. Adaga e Ollo estavam desfazendo as paredes à procura de comida, Garth e o outro Garth lutavam, alguns estupravam as mulheres de Craster. Edd Doloroso achou que o grupo do Adaga fosse matar todos os homens leais para evitar que contassem o que eles tinham feito, e eram dois para cada um de nós. Abandonamos Sam com o Velho Urso. Ele não queria se mexer, Jon.
Era seu irmão, quase disse. Como pôde abandoná-lo no meio de selvagens e assassinos?
- Ele pode ainda estar vivo - disse Pyp. - Pode pregar uma surpresa em todos nós e chegar aqui amanhã, a cavalo.
- Com a cabeça de Mance Rayder, sim. - Jon via que Grenn estava tentando parecer alegre. - Sam, o Matador!
Jon tentou se sentar novamente. Foi um erro tão grande como da primeira vez. Gritou, xingando.
- Grenn, vá acordar Meistre Aemon - disse Pyp. - Diga que o Jon precisa de mais leite de papoula.
Sim, pensou Jon.
- Não - disse. - O Magnar...
- Nós sabemos - disse Pyp. - As sentinelas na Muralha receberam ordens para manter um olho virado para o sul, e Donal Noye despachou alguns homens para o Espinhaço do Tempo, para vigiar a estrada do rei. Meistre Aemon também enviou aves para Atalaialeste e a Torre Sombria.
Meistre Aemon aproximou-se da cama, com uma mão no ombro de Grenn.
- Jon, seja brando consigo mesmo. É bom que tenha acordado, mas precisa de um tempo para sarar. Encharcamos o ferimento com vinho fervente e fechamo-lo com um cataplasma de urtigas, sementes de mostarda e pão bolorento, mas se não descansar...
- Não posso. - Jon lutou contra a dor para se sentar. - Mance estará aqui em breve... milhares de homens, gigantes, mamutes... a notícia já foi enviada a Winterfell? Ao rei? - suor pingou de sua testa. Fechou os olhos por um momento.
Grenn dirigiu a Pyp um olhar estranho.
- Ele não sabe.
- Jon - disse Meistre Aemon -, aconteceram muitas coisas enquanto esteve longe, e poucas foram boas. Balon Greyjoy voltou a se coroar e mandou os seus dracares contra o Norte. Brotam reis de todos os lados como ervas daninhas, e enviamos apelos a todos eles, mas nenhum virá. Têm usos mais prementes para as suas espadas, e nós estamos longe e esquecidos. E Winterfell... Jon, seja forte... Winterfell já não existe.
- Não existe? - Jon fitou os olhos brancos e o rosto enrugado de Aemon. - Meus irmãos estão em Winterfell. Bran e Rickon...
O meistre tocou sua testa.
- Lamento tanto, Jon. Seus irmãos morreram por ordem de Theon Greyjoy, depois de tomar Winterfell em nome do pai. Quando os vassalos de seu pai ameaçaram retomar o castelo, Greyjoy entregou-o às chamas.
- Seus irmãos foram vingados - disse Grenn. - O filho de Bolton matou todos os homens de ferro, e dizem que está esfolando Theon Greyjoy centímetro por centímetro pelo que fez.
- Lamento, Jon. - Pyp apertou seu ombro. - Todos lamentamos.
Jon nunca gostara de Theon Greyjoy, mas ele fora protegido do pai. Outro espasmo de dor atacou sua perna e, sem saber como, viu-se de novo deitado de costas.
- Há algum engano - insistiu. - Em Coroadarrainha vi um lobo gigante, um lobo gigante cinza... cinza... ele me reconheceu. - Se Bran estava morto, poderia uma parte dele sobreviver em seu lobo, tal como Orell vivia no interior de sua águia?
- Beba isto. - Grenn levou uma taça aos lábios dele.
Jon bebeu. Tinha a cabeça cheia de lobos e águias e do som dos risos dos irmãos. Os rostos em volta dele começaram a se misturar e a desvanecer. Eles não podem estar mortos. Theon nunca faria isso. E Winterfell... granito cinza, carvalho e ferro, corvos voando em volta das torres, vapor subindo das lagoas quentes no bosque sagrado, os reis de pedra sentados em seus tronos... como podia Winterfell ter desaparecido?
Quando os sonhos o dominaram, viu-se de novo em casa, chapinhando nas lagoas quentes sob um enorme represeiro branco que tinha o rosto do pai. Ygritte acompanhava-o, rindo dele, livrando-se das peles até ficar nua como no dia de seu nome, tentando beijá-lo, mas ele não podia fazê-lo, com o pai a observar, não. Ele era do sangue de Winterfell, um homem da Patrulha da Noite. Não gerarei um bastardo, disse-lhe. Não o farei. Não o farei.
- Você não sabe nada, Jon Snow - sussurrou ela, com a pele se dissolvendo na água quente, e a carne se desprendendo dos ossos até que só restaram o crânio e o esqueleto, e a lagoa borbulhava, espessa e rubra.
Ouviram o Ramo Verde antes de o verem, um sussurro incessante, como o rugido de um grande animal qualquer. O rio era uma torrente fervente, com uma largura vez e meia superior à que tinha no ano anterior, quando Robb dividiu o exército ali e jurou tomar uma Frey como noiva, o preço a pagar pela travessia. Precisava então de Lorde Walder e de sua ponte, e precisa ainda mais deles agora. O coração de Catelyn estava cheio de desconfianças enquanto observava as escuras águas verdes que passavam por ela rodopiando. Não há como vadearmos isto, ou atravessarmos a nado, e pode se passar uma volta de lua até que estas águas baixem novamente.
Quando se aproximaram das Gêmeas, Robb colocou a coroa e chamou Catelyn e Edmure para cavalgarem a seu lado. Sor Raynald Westerling levava o seu estandarte, o lobo gigante de Stark sobre o fundo cor de gelo.
As torres da guarita emergiram da chuva como fantasmas, aparições cinzentas e brumosas que iam ficando mais sólidas à medida que se aproximavam. A fortaleza Frey não era um castelo, mas dois; imagens espelhadas de pedra úmida, erguidas dos lados opostos da água, ligadas por uma grande ponte em arco. No centro dessa ponte estava a Torre da Água, com o rio correndo por baixo, direto e veloz. Tinham sido abertos canais nas margens, para formar fossos que transformavam cada uma das gêmeas numa ilha. As chuvas tinham transformado os fossos em lagos rasos.
Do outro lado das águas turbulentas, Catelyn conseguia ver vários milhares de homens acampados em volta do castelo oriental, com estandartes que pendiam, como outros tantos gatos afogados, das lanças à porta de suas tendas. A chuva tornava impossível distinguir cores e símbolos. A maioria era cinza, parecia a ela, se bem que, sob aquele tipo de céu, todo o mundo parecia cinza.
- Pise aqui com cautela, Robb - disse, prevenindo o filho. - Lorde Walder tem a pele fina e a língua afiada, e alguns desses seus filhos devem sem dúvida ter saído ao pai. Não pode deixar que o provoquem.
- Eu conheço os Frey, mãe. Sei quanto os injuriei e até que ponto necessito deles. Serei doce como um septão.
Catelyn mexeu-se desconfortavelmente na sela.
- Se nos forem oferecidos refrescos na chegada, não recuse sob nenhum pretexto. Aceite o que for oferecido, e coma e beba onde todos possam ver. Se nada for oferecido, peça pão, queijo e uma taça de vinho.
- Estou mais molhado do que faminto...
- Robb, escute-me. Depois de comer do seu pão e sal, tem os direitos do hóspede, e as leis da hospitalidade protegem-no sob o telhado dele.
Robb pareceu mais divertido do que assustado.
- Tenho um exército para me proteger, mãe, não preciso confiar em pão e sal. Mas se Lorde Walder desejar me servir corvo guisado recheado de larvas, vou comê-lo e pedirei uma segunda porção.
Quatro Frey saíram a cavalo da guarita ocidental, envoltos em pesados mantos e espessa lã cinza. Catelyn reconheceu Sor Ryman, filho do falecido Sor Stevron, o primogênito de Lorde Walder. Com o pai morto, Ryman era herdeiro das Gêmeas. O rosto que viu por baixo de seu capuz era robusto, largo e bruto. Os outros três eram provavelmente filhos dele, bisnetos de Lorde Walder.
Edmure confirmou essa suposição.
- Edwyn é o mais velho, o homem pálido e esguio com cara de prisão de ventre. O duro com a barba é Walder Negro, um tipo bem desagradável. Petyr vem no baio, é o rapaz com a cara destroçada. Os irmãos chamam-no de Petyr Espinha. É só um ano ou dois mais velho do que Robb, mas Lorde Walder casou-o aos dez anos com uma mulher com o triplo da idade dele. Deuses, espero que Roslin não se pareça com ele.
Pararam para permitir que os anfitriões viessem até eles. O estandarte de Robb pendia de seu mastro, e o som constante da chuva misturava-se com o estrondo do Ramo Verde em enchente, à direita. Vento Cinzento avançou ligeiramente, de cauda tesa, observando através de olhos rasgados de um dourado escuro. Quando os Frey se aproximaram até meia dúzia de metros, Catelyn ouviu-o rosnar, um ribombar profundo que parecia quase unir-se à fúria do rio. Robb pareceu alarmado.
- Vento Cinzento, aqui. Aqui.
Mas o lobo gigante saltou em frente, rosnando.
O palafrém de Sor Ryman recuou com um relincho de medo, e o de Petyr Espinha empinou-se e derrubou-o. Só Walder Negro manteve a montaria sob controle. Estendeu a mão para o cabo da espada.
- Não! - Robb gritou. - Vento Cinzento, aqui. Aqui. - Catelyn esporeou e colocou-se entre o lobo gigante e os outros cavalos. Lama espirrou dos cascos de sua égua quando cortou o caminho de Vento Cinzento. O lobo desviou-se, e só então pareceu ouvir os chamados de Robb.
- É assim que um Stark faz as pazes? - gritou Walder Negro, com aço nu na mão. - Parece-me uma saudação ruim mandar o seu lobo contra nós. Foi para isso que veio?
Sor Ryman tinha desmontado para ajudar Petyr Espinha a se levantar. O rapaz estava enlameado, mas não se ferira.
- Vim para pedir perdão pela desfeita que fiz à sua Casa e para assistir ao casamento de meu tio. - Robb saltou de sua sela. - Petyr, leve o meu cavalo. O seu quase já chegou ao estábulo.
Petyr olhou para o pai e disse:
- Posso seguir na garupa de um dos meus irmãos.
Os Frey não mostraram qualquer sinal de reverência.
- Chegaram tarde - declarou Sor Ryman.
- As chuvas atrasaram-nos - disse Robb. - Enviei uma ave.
- Não vejo a mulher.
Por a mulher, Sor Ryman referia-se a Jeyne Westerling, e todos sabiam. A Senhora Catelyn sorriu com uma expressão apologética.
- A Rainha Jeyne estava fatigada após tantas viagens, senhores. Sem dúvida ficará feliz em vir visitá-los quando os tempos estiverem mais estáveis.
- Meu avô ficará descontente. - Embora Walder Negro tivesse embainhado a espada, o tom de voz não era mais amigável. - Falei muito a ele sobre a senhora, e ele desejava contemplá-la com os próprios olhos.
Edwyn limpou a garganta.
- Temos aposentos preparados para o senhor na Torre da Água, Vossa Graça - disse a Robb com uma cortesia cuidadosa -, bem como para Lorde Tully e a Senhora Stark. Os senhores seus vassalos também são convidados a se abrigar sob o nosso teto e a participar do banquete de casamento.
- E os meus homens? - perguntou Robb.
- O senhor meu avô lamenta não poder alimentar ou hospedar uma tropa tão grande. Temos sentido grandes dificuldades para encontrar forragem e mantimentos para nossos próprios recrutas. Apesar disso, os seus homens não serão negligenciados. Se atravessarem e montarem acampamento junto do nosso, levaremos barris de vinho e cerveja em quantidade suficiente para que todos bebam à saúde de Lorde Edmure e sua noiva. Erguemos três grandes tendas para banquetes na outra margem, para lhes dar algum abrigo das chuvas.
- O senhor seu pai é muito gentil. Meus homens vão lhe agradecer. Tiveram uma longa e úmida viagem.
Edmure Tully fez o cavalo avançar.
- Quando conhecerei a minha prometida?
- Ela espera o senhor lá dentro - prometeu Edwyn Frey. - Eu sei que irão perdoá-la se parecer tímida. Tem esperado este dia quase com ansiedade, pobre donzela. Mas talvez devamos prosseguir a conversa fora desta chuva?
- Certamente. - Sor Ryman voltou a montar, puxando Petyr Espinha para trás de si. - Se puderem me seguir, meu pai os espera. - Virou a cabeça do palafrém na direção das Gêmeas.
Edmure pôs-se ao lado de Catelyn.
- O Atrasado Lorde Frey podia ter achado por bem vir nos receber em pessoa - protestou. - Sou seu suserano e futuro genro, e Robb é seu rei.
- Quando tiver noventa e um anos, irmão, verá a vontade que tem de andar a cavalo na chuva. - Mas perguntou a si mesma se aquilo seria toda a verdade. Lorde Walder normalmente deslocava-se numa liteira coberta, que teria mantido a maior parte da chuva afastada. Uma desfeita deliberada? Se fosse, podia ser a primeira de muitas outras ainda por vir.
Houve mais problemas na guarita. Vento Cinzento recusou-se a avançar no meio da ponte levadiça, sacudiu a chuva do pelo e uivou à porta levadiça. Robb assobiou impacientemente.
- Vento Cinzento. O que foi? Vento Cinzento, comigo. - Mas o lobo gigante limitou-se a mostrar os dentes. Ele não gosta deste lugar, pensou Catelyn. Robb teve de se agachar e falar calmamente ao lobo antes de o animal consentir em passar sob a porta levadiça. A essa altura, Lothar Coxo e Walder Rivers já tinham se aproximado.
- O que ele teme é o som da água - disse Rivers. - Os animais sabem que devem evitar o rio em cheia.
- Um canil seco e uma perna de carneiro vão deixá-lo bom de novo - disse alegremente Lothar. - Devo chamar nosso mestre dos cães?
- Ele é um lobo gigante, não um cão - disse Robb -, e é perigoso para os homens que não conhece. Sor Raynald, fique com ele. Não o levarei neste estado para o salão de Lorde Walder.
Foi hábil, decidiu Catelyn. Robb mantém também o Westerling longe da vista de Lorde Walder.
A gota e os ossos frágeis tinham cobrado o seu preço do velho Walder Frey. Foram encontrá-lo sentado em seu cadeirão, com uma almofada por baixo e uma manta de arminho sobre as pernas. A cadeira era de carvalho negro, com o espaldar esculpido de modo a se assemelhar a duas robustas torres, unidas por uma ponte em arco, tão maciças que seu abraço transformava o velho numa grotesca criança. Havia algo de abutre em Lorde Walder, e bastante mais de doninha. Sua cabeça calva, manchada pela idade, projetava-se dos ombros descarnados no topo de um longo pescoço cor-de-rosa. Pele solta pendia sob seu queixo recuado, os olhos eram remelentos e enevoados, e a boca desdentada movia-se constantemente, sugando o ar vazio como um bebê suga o seio da mãe.
A oitava Senhora Frey estava em pé ao lado do cadeirão de Lorde Walder. Aos seus pés sentava-se uma versão mais nova de si mesmo, um homem corcunda e magro de cinquenta anos, cujo traje dispendioso de lã azul e cetim cinza era estranhamente realçado por uma coroa e colar ornamentados por minúsculos guizos de latão. A semelhança entre ele e o seu senhor era notável, exceto nos olhos; os de Lorde Walder eram pequenos, sombrios e desconfiados, os do outro, grandes, amigáveis e vagos. Catelyn lembrou-se de que um dos filhos de Lorde Walder tinha sido pai de um débil mental muitos anos antes. Durante visitas anteriores, o Senhor da Travessia teve sempre o cuidado de esconder aquele neto. Será que ele usou sempre uma coroa de bobo, ou terá sido isso pensado como forma de zombar de Robb? Era uma pergunta que não se atrevia a fazer.
Filhos, filhas, netos, maridos, esposas e criados Frey atulhavam o resto do salão. Mas foi o velho que falou.
- Vai me perdoar por não me ajoelhar, eu sei. Minhas pernas já não funcionam como antes, embora aquilo que pende entre elas trabalhe bastante bem, heh. - Sua boca abriu num sorriso desdentado enquanto examinava a coroa de Robb. - Alguns diriam que o rei que se coroa com bronze é um pobre rei, Vossa Graça.
- O bronze e o ferro são mais fortes do que o ouro e a prata - respondeu Robb. - Os antigos Reis do Inverno usavam uma coroa de espadas como esta.
- De pouco lhes serviu quando os dragões chegaram. Heh. - Aquele heh pareceu agradar ao retardado, que balançou a cabeça de um lado para o outro, fazendo tilintar a coroa e o colar. - Senhor - disse Lorde Walder - perdoe o barulho de meu Aegon. Ele tem menos miolos do que um cranogmano e nunca tinha conhecido um rei. É um dos rapazes de Stevron. Chamamos-lhe Guizo.
- Sor Stevron falou dele, senhor. - Robb sorriu para o débil mental. - Prazer em conhecê-lo, Aegon. O seu pai era um homem corajoso.
Guizo fez os guizos soarem. Uma fina linha de cuspe escorreu de um canto de sua boca quando sorriu.
- Poupe o seu real fôlego. Falar com ele é como falar com um penico. - Lorde Walder transferiu o olhar para os outros. - Bem, Senhora Catelyn, vejo que voltou até nós. E o jovem Sor Edmure, o vencedor do Moinho de Pedra. Agora Lorde Tully, terei de me lembrar disso. E o quinto Lorde Tully que conheço. Sobrevivi aos outros quatro, heh. A sua noiva anda por aqui, em algum lugar. Suponho que queira dar uma olhada nela.
- Gostaria, senhor.
- Então dará. Mas vestida. Ela é uma garota recatada, e donzela. Não a verá nua até a noite de núpcias. - Lorde Walder cacarejou. - Heh. Em breve, em breve. - Virou a cabeça. - Benfirey, vá buscar a sua irmã. E seja rápido, Lorde Tully percorreu todo o caminho desde Correrrio. - Um jovem cavaleiro com um sobretudo esquartelado fez uma reverência e retirou-se, e o velho voltou a se virar para Robb. - E onde está a sua noiva, Vossa Graça? A bela Rainha Jeyne. Uma Westerling do Despenhadeiro, segundo me dizem, heh.
- Deixei-a em Correrrio, senhor. Ela estava muito cansada para mais viagens, conforme expliquei a Sor Ryman.
- Isso me deixa muito triste. Queria contemplá-la com meus próprios e fracos olhos. Todos queríamos, heh. Não é verdade, minha senhora?
A pálida e delgada Senhora Frey pareceu sobressaltada por ter sido requisitada a falar.
- S-sim, senhor. Todos nós desejávamos muito prestar homenagem à Rainha Jeyne. Deve ser bela.
- É muito bela, senhora. - Havia uma quietude gelada na voz de Robb que recordou a Catelyn o pai dele.
Ou o velho não a ouviu ou recusou-se a prestar atenção nela.
- Mais bela do que a minha descendência, hehí De outro modo, como teria o seu rosto e formas levado a Graça Real a esquecer sua promessa solene?
Robb suportou a censura com dignidade.
- Não há palavras que possam compensar esse fato, bem sei, mas vim dar satisfações pela desfeita que fiz à sua Casa e suplicar o seu perdão, senhor.
- Satisfações, heh. Sim, jurou dar satisfação, eu lembro. Sou velho, mas não me esqueço dessas coisas. Ao contrário de certos reis, ao que parece. Os jovens não se lembram de nada quando veem um rosto bonito e um belo e firme par de peitos, não é? Eu era igual. Alguns poderão dizer que ainda sou, heh heh. Estariam errados, porém, tão errados quanto você. Mas agora aqui está para fazer as pazes. No entanto, foram as minhas garotas que desprezou. Talvez sejam elas que devam ouvi-lo suplicando perdão, Vossa Graça. As minhas donzelas. Olhe para elas. - Quando sacudiu os dedos, uma chuva de feminilidade abandonou seus lugares junto das paredes para se alinhar sob o estrado. Guizo também começou a se levantar, com os guizos cantando alegremente, mas a Senhora Frey agarrou a manga do retardado e puxou-o para baixo.
Lorde Walder foi-as nomeando.
- A minha filha Arwyn - disse ele indicando uma garota de catorze anos. - Shirei, a mais nova de minhas filhas legítimas. Ami e Marianne são netas. Casei Ami com Sor Pate de Seterrios, mas a Montanha matou esse palerma, e por isso a tenho de volta aqui. Aquela é uma Cersei, mas a chamamos de Pequena Abelha, a mãe é uma Beesbury. Mais netas. Uma é uma Walda, e as outras... bem, têm nomes, sejam eles quais forem...
- Eu sou a Merry, Senhor Avô - disse uma garota.
- É barulhenta, isso é certo. Ao lado da Barulhenta está a minha filha Tyta. Depois outra Walda. Alyx, Marissa... é você, Marissa? Bem que achei. Ela não é sempre careca. O meistre raspou seus cabelos, mas jura que em breve voltarão a crescer. As gêmeas são Serra e Sarra. - Semicerrou os olhos na direção de uma das meninas mais novas. - Heh, você é outra Walda?
A menina não podia ter mais de quatro anos.
- Sou a Walda de Sor Aemon Rivers, senhor bisavô. - Fez uma reverência.
- Há quanto tempo fala? Não que tenha alguma coisa sensata a dizer, seu pai nunca teve. E, além do mais, ele é filho de um bastardo, heh. Vá embora, só queria Freys aqui em cima. O Rei no Norte não se interessa por material ilegítimo. - Lorde Walder olhou de relance para Robb, enquanto Guizo sacudia a cabeça e tilintava. - Aqui estão elas, todas donzelas. Bem, e uma viúva, mas há quem goste de uma mulher já domada. Podia ter escolhido qualquer uma.
- Teria sido uma escolha impossível, senhor - disse Robb com uma cortesia cuidadosa. - São todas adoráveis demais.
Lorde Walder fungou.
- E ainda dizem que os meus olhos são ruins. Algumas serviriam bastante bem, suponho. Outras... bem, não importa. Não eram suficientemente boas para o Rei no Norte, heh. O que tem agora a dizer?
- Minhas senhoras - Robb parecia desesperadamente desconfortável, mas sabia que aquele momento chegaria e enfrentou-o sem vacilar. - Todos os homens devem cumprir com a palavra dada, e os reis mais do que ninguém. Eu prometi me casar com uma de vocês e quebrei esse juramento. A culpa não cabe a vocês. Fiz o que fiz não por desfeita, mas sim porque amava outra. Não há palavras que possam corrigir o que foi feito, bem sei, mas venho perante vocês para lhes pedir perdão, e que os Frey da Travessia e os Stark de Winterfell possam voltar a ser amigos.
As meninas menores agitaram-se ansiosamente. As irmãs mais velhas esperaram por Lorde Walder, em seu trono negro de carvalho. O Guizo sacudiu-se de um lado para o outro, com os guizos tilintando no colar e na coroa.
- Ótimo - disse o Senhor da Travessia. - Isso foi muito bom, Vossa Graça. "Não há palavras que possam corrigir o que foi feito", heh. Bem dito, bem dito. Espero que não se recuse a dançar com as minhas filhas no banquete de casamento. Isso satisfaria o coração de um velho, heh. - Balançou sua cabeça enrugada e rosada para cima e para baixo, de uma forma muito semelhante ao jeito como o neto retardado tinha feito, embora Lorde Walder não usasse guizos. - E ali está ela, Lorde Edmure. A minha filha Roslin, o meu botãozinho mais precioso, heh.
Sor Benfrey introduziu-a no salão. Eram parecidos o suficiente para serem irmãos completos. Considerando a idade, ambos eram filhos da sexta Senhora Frey; uma Rosby, segundo Catelyn julgava recordar.
Roslin era pequena para a idade, com uma pele tão branca como se tivesse acabado de sair de um banho de leite. Tinha um rosto agradável, com um queixo pequeno, nariz delicado e grandes olhos castanhos. Espessos cabelos castanhos caíam em ondas soltas até uma cintura tão minúscula que Edmure seria capaz de envolvê-la com as mãos. Por baixo do corpete rendado de seu vestido azul-claro, os seios pareciam pequenos, mas bem formados.
- Vossa Graça. - A garota ajoelhou-se. - Lorde Edmure, espero não ser um desapontamento para o senhor.
Longe disso, pensou Catelyn. O rosto do irmão tinha se iluminado ao vê-la.
- É para mim um deleite, senhora - disse Edmure. - E sei que o será sempre.
Roslin tinha uma pequena fenda entre dois de seus dentes da frente que a deixava
tímida com os sorrisos, mas a falha era quase cativante. Bastante bonita, pensou Catelyn, mas tão pequena, e tem sangue Rosby. Os Rosby nunca tinham sido robustos. Preferia de longe as constituições de algumas das moças mais velhas presentes no salão; filhas ou netas, não podia ter certeza. Pareciam-se com os Crakehall, e a terceira esposa de Lorde Frey pertencera a essa Casa. Quadris largos para dar à luz crianças, grandes seios para criá-las, braços fortes para carregá-las. Os Crakehall sempre foram uma família de ossos grandes e fortes.
- O senhor é gentil - disse a Senhora Roslin a Edmure.
- A senhora é linda. - Edmure tomou sua mão e ergueu-a. - Mas por que está chorando?
- De alegria - disse Roslin. - Choro de alegria, senhor.
- Basta - interrompeu Lorde Walder. - Pode chorar e sussurrar depois de estar casada, heh. Benfrey, leve a sua irmã de volta aos seus aposentos, ela precisa se preparar para um casamento. E umas núpcias, heh, a melhor parte. Para todos, para todos. - A boca moveu-se para dentro e para fora. - Teremos música, uma música tão doce, e vinho, heh, o tinto correrá, e vamos endireitar algumas coisas tortas. Mas agora estão cansados, e também molhados, pingando no meu chão. Há lareiras à sua espera, e vinho quente com especiarias, e banhos, se os quiserem. Lothar, leve nossos hóspedes às suas acomodações.
- Tenho de tratar da travessia de meus homens para a outra margem, senhor - disse Robb.
- Eles não se perderão - objetou Lorde Walder. - Já atravessaram uma vez, não foi? Quando vieram do norte. Quiseram atravessar, e eu concedi-lhes passagem, e você nunca disse talvez, heh. Mas faça o que quiser. Leve todos os homens pela mão, se assim entender, por mim tanto faz.
- Senhor! - Catelyn quase tinha esquecido. - Alguns alimentos seriam muito bem-vindos. Percorremos muitas léguas sob chuva.
A boca de Walder Frey moveu-se para dentro e para fora.
- Alimentos, heh. Um pão, um pouco de queijo, talvez uma salsicha.
- Algum vinho para empurrar para baixo - disse Robb. - E sal.
- Pão e sal. Heh. Certamente, certamente. - O velho bateu palmas, e criados entraram no salão, trazendo jarros de vinho e bandejas com pão, queijo e manteiga. O próprio Lorde Walder pegou uma taça de tinto e ergueu-a com uma mão pintalgada. - Meus hóspedes - disse. - Meus hóspedes de honra. Sejam bem-vindos sob o meu teto e à minha mesa.
- Agradecemos por sua hospitalidade, senhor - respondeu Robb.
Edmure ecoou as suas palavras, e o mesmo fizeram Grande-Jon, Sor Marq Piper e os outros. Beberam do vinho dele e comeram do seu pão e de sua manteiga. Catelyn provou o vinho e mordiscou um pouco de pão e sentiu-se muito melhor por causa disso. Agora devemos estar a salvo, pensou.
Sabendo como o velho podia ser mesquinho, esperara que os aposentos que lhes seriam dados fossem frios e tristonhos. Mas os Frey pareciam ter feito mais do que amplos preparativos para eles. A câmara nupcial era grande e estava ricamente mobiliada, dominada por uma grande cama com colchão de penas e colunas nos cantos, esculpidas como torres de castelos. Os reposteiros eram do vermelho e azul Tully, uma cortesia simpática. Tapetes perfumados cobriam um chão de tábuas, e uma janela alta e provida de persianas abria-se para o sul. O quarto de Catelyn era pequeno, mas tinha uma mobília bonita e era confortável, com fogo queimando na lareira. Lothar Coxo assegurou-lhes de que Robb teria uma suíte inteira, como era próprio de um rei.
- Se houver algo que estiver fazendo falta, basta que diga a um dos guardas. - Fez uma reverência e retirou-se, coxeando pesadamente enquanto descia os degraus em espiral.
- Devíamos colocar nossos próprios guardas - disse Catelyn ao irmão. Descansaria mais facilmente com homens Stark e Tully à sua porta. A audiência com Lorde Walder não havia sido tão penosa como temera, mesmo assim ficaria feliz quando aquilo terminasse. Alguns dias mais, e Robb partirá para a batalha, e eu para um confortável cativeiro em Guardamar. Não tinha dúvidas de que Lorde Jason lhe ofereceria todas as cortesias, mas a ideia ainda a deprimia.
Ouvia o som dos cavalos, embaixo, vindo da longa coluna de homens montados que abria caminho através da ponte, de castelo a castelo. As pedras travejavam com a passagem de carroças muito carregadas. Catelyn foi até a janela e olhou para fora, a fim de ver a tropa de Robb emergir da gêmea oriental.
- A chuva parece estar diminuindo.
- Agora que estamos aqui dentro. - Edmure estava em pé, junto do fogo, deixando-se lavar pelo calor. - O que achou de Roslin?
Muito pequena e delicada. Dar à luz será duro para ela. Mas o irmão parecia bastante satisfeito com a garota, e por isso tudo que disse foi:
- Doce.
- Creio que ela gostou de mim. Por que estava chorando?
- É uma donzela na véspera do casamento. Algumas lágrimas são normais. - Lysa chorou lagos na manhã do casamento de ambas, embora tivesse conseguido estar de olhos secos e radiante quando Jon Arryn pôs seu manto creme e azul sobre os ombros dela.
- Ela é mais bonita do que me atrevia a esperar. - Edmure levantou uma mão antes de Catelyn poder falar. - Eu sei que há coisas mais importantes, poupe-me do sermão, septã. Mesmo assim... viu algumas das outras donzelas que o Frey exibiu? A que tinha o tique? Seria aquilo a doença dos tremores? E aquelas gêmeas tinham mais crateras e acne no rosto do que o Petyr Espinha. Quando vi aquele bando, soube que Roslin seria careca e zarolha, com a inteligência do Guizo e o temperamento de Walder Negro. Mas ela parece tão gentil quanto bela. - Fez uma expressão perplexa. - Por que haveria a velha doninha de recusar que eu escolhesse se não pretendia me empurrar qualquer coisa hedionda?
- A sua queda por um rosto bonito é bem conhecida - relembrou-lhe Catelyn. - Talvez Lorde Walder realmente queira que seja feliz com a sua noiva. - Ou, o que é mais provável, talvez não tenha querido que você recuasse perante um furúnculo e dificultasse os planos dele. - Ou pode ser que Roslin seja a favorita do velho. O Senhor de Correrrio é uma união muito melhor do que a maior parte das suas filhas pode esperar.
- Isso é verdade. - Mas o irmão ainda parecia incerto. - Será possível que a garota seja estéril?
- Lorde Walder quer que o neto herde Correrrio. Que objetivo teria em lhe dar uma esposa estéril?
- Livra-se de uma filha que ninguém mais aceitaria.
- De pouco lhe serviria. Walder Frey é mesquinho, mas não é burro.
- Mesmo assim... será possível?
- Sim - concedeu Catelyn com relutância. - Há doenças que uma garota pode ter durante a infância que a deixam incapaz de conceber. No entanto, não existe motivo para crer que a Senhora Roslin tenha sofrido delas. - Percorreu o quarto com os olhos. - Os Frey receberam-nos com maior amabilidade do que eu esperava, a bem da verdade.
Edmure soltou uma gargalhada.
- Umas tantas palavras espinhosas e um pouco de regozijo indecoroso. Vindo dele, é cortesia. Esperava que a velha doninha mijasse em nosso vinho e nos obrigasse a elogiar a colheita.
O gracejo deixou Catelyn estranhamente inquieta.
- Se me der licença, eu devia ir vestir uma roupa seca.
- Como queira. - Edmure bocejou. - Eu talvez vá cochilar por uma hora.
Ela retirou-se para o seu quarto. O baú de roupa que trouxera de Correrrio tinha sido carregado para cima e posto aos pés da cama. Depois de se despir e de pendurar a roupa molhada perto da lareira, colocou um vestido quente de lã no vermelho e azul dos Tully, lavou e escovou os cabelos, deixou-os secar, e foi em busca dos Frey.
O trono negro de carvalho de Lorde Walder estava vazio quando entrou no salão, mas alguns de seus filhos estavam bebendo perto do fogo. Lothar Coxo ergueu-se desajeitadamente quando a viu.
- Senhora Catelyn, achei que estivesse descansando. Como posso ser útil?
- Estes são os seus irmãos? - perguntou ela.
- Irmãos, meios-irmãos, cunhados e sobrinhos. Raymund e eu partilhamos uma mãe. Lorde Lucias Vypren é esposo de minha meia-irmã Lythene e Sor Damon é filho deles. Creio que conhece o meu meio-irmão Sor Hosteen. E este é Sor Leslyn Haigh e os filhos, Sor Harys e Sor Donnel.
- Muito prazer, senhores. Sor Perwyn está no castelo? Ele ajudou a me escoltar a Ponta Tempestade e de volta a Correrrio, quando Robb me enviou para falar com Lorde Renly. Gostaria de revê-lo.
- Perwyn não se encontra nas Gêmeas - disse Lothar Coxo. - Darei os seus cumprimentos. Sei que ele sentirá por não se encontrar com a senhora.
- Decerto voltará a tempo do casamento da Senhora Roslin?
- Ele tinha essa esperança - disse Lothar Coxo mas com essa chuva... viu como correm os rios, senhora.
- De fato vi - disse Catelyn. - Posso pedir que me diga como posso falar com o seu meistre?
- Não está bem, senhora? - perguntou Sor Hosteen, um homem imponente, com um forte maxilar quadrado.
- É uma coisa de mulher. Nada que deva preocupá-lo, sor.
Lothar, sempre atencioso, saiu com ela do salão, acompanhou-a por alguns degraus acima e ao longo de uma ponte coberta até outra escada.
- Deverá encontrar Meistre Brenett no torreão lá em cima, senhora.
Catelyn quase esperava que o meistre fosse ser mais um dos filhos de Walder Frey, mas Brenett não se parecia com ele. Era um homem grande e gordo, calvo, com um queixo duplo e não muito asseado, a julgar pelos excrementos de corvo que manchavam as mangas de suas vestes, mas mostrou-se bastante amigável. Quando lhe falou das preocupações de Edmure a respeito da fertilidade da Senhora Roslin, soltou um risinho.
- O senhor seu irmão nada tem a temer, Senhora Catelyn. Ela é pequena, admito, e de ancas estreitas, mas a mãe era igual, e a Senhora Bethany deu ao Lorde Walder um filho a cada ano.
- Quantos sobreviveram à infância? - perguntou ela sem rodeios.
- Cinco. - Contou-os por dedos gordos como salsichas. - Sor Perwyn. Sor Benfrey. Meistre Willamen, que proferiu os votos no ano passado e agora serve Lorde Hunter no Vale. Olyvar, que foi escudeiro de seu filho. E a Senhora Roslin, a mais nova. Quatro rapazes e uma menina. Lorde Edmure terá tantos filhos que não saberá o que fazer com eles.
- Estou certa de que isso lhe agradará. - Então a garota era provavelmente tão fértil como agradável de se ver. Isso deve descansar a mente de Edmure. Lorde Walder não dera ao irmão motivos para se queixar, até onde Catelyn conseguia ver.
Não retornou ao seu quarto depois de deixar o meistre; em vez disso foi até Robb. Encontrou Robin Flint e Sor Wendel Manderly com ele, bem como Grande-Jon e o filho, que ainda chamavam de Pequeno-Jon, embora ameaçasse se tornar mais alto do que o pai. Estavam todos molhados. Outro homem, ainda mais molhado, encontrava-se em pé junto ao fogo com um manto rosa-claro forrado de pele branca.
- Lorde Bolton - disse ela.
- Senhora Catelyn - respondeu ele, com uma voz tênue -, é um prazer voltar a vê-la, mesmo em tempos tão difíceis.
- E bondade sua dizê-lo. - Catelyn conseguia sentir tristeza no aposento. Até Grande-Jon parecia melancólico e vencido. Olhou o rosto carregado dos homens e perguntou: - O que aconteceu?
- Lannisters no Tridente - disse Sor Wendel num tom infeliz. - Meu irmão foi capturado novamente.
- E Lorde Bolton trouxe-nos mais novidades de Winterfell - acrescentou Robb. - Sor Rodrik não foi o único bom homem a morrer. Cley Cerwyn e Leobald Tallhart foram também mortos.
- Cley Cerwyn não passava de um rapaz - disse ela, entristecida. - Então é verdade? Todos mortos e Winterfell destruído?
Os olhos claros de Bolton encontraram-se com os seus.
- Os homens de ferro queimaram tanto o castelo como a vila de Inverno. Parte do seu povo foi levado para o Forte do Pavor por meu filho, Ramsay.
- O seu bastardo foi acusado de graves crimes - relembrou-lhe Catelyn em tom penetrante. - Assassinato, violação e coisas piores.
- Sim - disse Roose Bolton. - Seu sangue está manchado, isso não é possível negar. Mas é um bom guerreiro, tão astuto quanto destemido. Quando os homens de ferro abateram Sor Rodrik, e Leobald Tallhard pouco tempo depois, coube a Ramsay liderar a batalha, e foi o que ele fez. Jura que não vai embainhar a espada enquanto um único Greyjoy permanecer no Norte. Talvez esse serviço possa servir como um pouco de compensação pelos crimes que o seu sangue bastardo o levou a cometer. - Encolheu os ombros. - Ou não. Quando a guerra terminar, Sua Graça deverá avaliar os fatos e julgar. Por ora, espero que a Senhora Walda já tenha me dado um filho legítimo.
Este homem é frio, compreendeu Catelyn, e não era a primeira vez.
- Ramsay mencionou Theon Greyjoy? - quis saber Robb. - Foi também morto, ou conseguiu fugir?
Roose Bolton pegou uma tira rasgada de couro da bolsa que trazia à cintura.
- Meu filho mandou isto com a carta.
Sor Wendel virou seu rosto redondo para longe. Robin Flint e o Pequeno-Jon Umber trocaram um olhar, e Grande-Jon resfolegou como um touro.
- Isso é... pele? - perguntou Robb.
- A pele do mindinho da mão direita de Theon Greyjoy. Meu filho é cruel, confesso. E no entanto... o que é um pouco de pele comparado com a vida de dois jovens príncipes? Era mãe deles, senhora. Posso oferecer-lhe este... pequeno penhor de vingança?
Parte de Catelyn desejou levar o macabro troféu ao coração, mas obrigou-se a resistir.
- Guarde-o. Por favor.
- Esfolar Theon não trará meus irmãos de volta - disse Robb. - Quero a cabeça dele, não a pele.
- Ele é o único filho sobrevivente de Balon Greyjoy - disse suavemente Lorde Bolton, como se eles tivessem esquecido disso - e agora o legítimo Rei das Ilhas de Ferro. Um rei cativo tem grande valor como refém.
- Refém? - a palavra irritou Catelyn. Reféns eram frequentemente trocados. - Lorde Bolton, espero que não esteja sugerindo que libertemos o homem que matou meus filhos.
- Quem quer que conquiste a Cadeira de Pedra do Mar vai querer Theon Greyjoy morto - ressaltou Bolton. - Até acorrentado tem uma pretensão superior à de qualquer um de seus tios. Sugiro que o mantenhamos prisioneiro e que exijamos concessões por parte dos homens de ferro, como preço a pagar por sua execução.
Robb pesou relutantemente a ideia, mas por fim assentiu.
- Sim. Muito bem. Assim sendo, mantenha-o vivo. Por ora. Mantenha-o bem preso no Forte do Pavor até retomarmos o Norte.
Catelyn voltou-se de novo para Roose Bolton.
- Sor Wendel disse algo sobre Lannisters no Tridente?
- Disse, senhora. Culpo-me pelo fato. Atrasei demais a partida de Harrenhal. Aenys Frey partiu vários dias antes de mim e atravessou o vau rubi, embora não sem dificuldade. Mas quando nós chegamos lá, o rio era uma torrente. Não tive alternativa exceto atravessar meus homens em pequenos barcos, os quais possuíamos em quantidade insuficiente. Dois terços de minhas forças encontravam-se na margem norte quando os Lannister atacaram aqueles que ainda esperavam para atravessar. Homens de Norrey, Locke e Burley, principalmente, com Sor Wylis Manderly e seus cavaleiros de Porto Branco na retaguarda. Eu estava do lado errado do Tridente, impotente para lhes prestar assistência. Sor Wylis reagrupou nossos homens o melhor que pôde, mas Gregor Clegane atacou com cavalaria pesada e empurrou-os para o rio. Os que se afogaram foram tantos quanto os abatidos. A maior parte fugiu, mas os demais foram capturados.
Gregor Clegane significava sempre má notícia, pensou Catelyn. Teria Robb de voltar a marchar para o sul a fim de lidar com ele? Ou viria a Montanha a caminho dali?
- Então Clegane atravessou o rio?
- Não. - A voz de Bolton era baixa, mas segura. - Deixei seiscentos homens no vau. Lanceiros dos córregos, das montanhas e da Faca Branca, cem arqueiros Hornwood, alguns cavaleiros livres e cavaleiros menores, e uma poderosa força de homens Stout e Cerwyn para lhes dar apoio. Ronnel Stout e Sor Kyle Condon têm o comando. Sor Kyle era o braço direito do falecido Lorde Cerwyn, como decerto sabe, senhora. Os leões não nadam melhor do que os lobos. Enquanto os rios permanecerem cheios, Sor Gregor não atravessará.
- A última coisa de que necessitamos é a Montanha em nossas costas quando avançarmos pelo talude - disse Robb. - Fez bem, senhor.
- É muita bondade de Vossa Graça. Sofri pesadas perdas no Ramo Verde, e Glover e Tallhart mais ainda em Valdocaso.
- Valdocaso. - Robb fez da palavra uma praga. - Robett Glover responderá por isso quando voltar a vê-lo, garanto.
- Uma loucura - concordou Lorde Bolton -, mas Glover tornou-se imprudente depois de saber que Bosque Profundo tinha caído. O desgosto e o medo fazem isso aos homens.
Valdocaso era um assunto terminado e antigo; eram as batalhas ainda a travar que preocupavam Catelyn.
- Quantos homens trouxe ao meu filho? - perguntou a Roose Bolton num tom contundente.
Os estranhos olhos sem cor do homem estudaram seu rosto por um instante antes de responder.
- Cerca de quinhentos homens de cavalaria e três mil de infantaria, senhora. Homens do Forte do Pavor, na sua maior parte, e alguns de Karhold. Com a lealdade dos Karstark agora tão duvidosa, achei melhor mantê-los por perto. Lamento que não sejam mais.
- Deverá bastar - disse Robb. - Ficará com o comando de minha retaguarda, Lorde Bolton. Pretendo me dirigir ao Gargalo assim que meu tio estiver casado. Vamos para casa.
Os batedores aproximaram-se deles a uma hora do Ramo Verde, quando a carroça se arrastava ao longo de uma estrada lamacenta.
- Fique com a cabeça abaixada e a boca fechada - avisou-a Cão de Caça quando os três esporearam os cavalos na direção deles; um cavaleiro e dois escudeiros, com armaduras leves e montados em palafréns rápidos.
Clegane chicoteou a parelha, um par de velhos cavalos de tração que já tinham conhecido dias melhores. A carroça rangia e oscilava, suas duas enormes rodas de madeira faziam esguichar lama dos profundos sulcos da estrada a cada curva. Estranho seguia atrás, amarrado ao veículo.
O grande corcel de temperamento ruim não usava armadura, jaezes ou arreios, e o próprio Cão de Caça seguia vestido de tecido grosseiro, verde e sujo, e uma capa de um cinza fuliginoso com um capuz que engolia sua cabeça. Desde que mantivesse os olhos baixos não era possível ver seu rosto, enxergava-se apenas o branco de seus olhos espreitando para fora. Parecia um agricultor empobrecido. Mas um agricultor grande. E Arya sabia que sob o tecido grosseiro havia couro fervido e cota de malha oleada. Ela parecia um filho de agricultor, ou talvez de um criador de porcos. E atrás deles seguiam quatro barris rotundos de porco salgado e um de pés de porco em salmoura.
Os homens a cavalo dispersaram-se e cercaram-nos para observá-los antes de se aproximarem. Clegane fez a carroça parar e esperou pacientemente. O cavaleiro portava lança e espada, ao passo que seus escudeiros usavam arcos. O símbolo em seus gibões era uma versão menor daquele que seu chefe trazia cosido ao sobretudo; uma forquilha negra sobre barra dourada à direita, em fundo cor de ferrugem. Arya tinha pensado em se revelar aos primeiros batedores que encontrassem, mas sempre imaginara homens de manto cinzento, com o lobo gigante ao peito. Até poderia ter arriscado, caso tivessem exibido o gigante de Umber ou o punho de Glover, mas não conhecia o cavaleiro da forquilha nem sabia a quem ele servia. A coisa mais parecida com uma forquilha que tinha visto em Winterfell foi o tridente na mão do tritão de Lorde Manderly.
- Tem negócios nas Gêmeas? - perguntou o cavaleiro.
- Porco salgado para o banquete de casamento, por sua mercê, sor. - Cão de Caça murmurou a resposta, de olhos baixos e rosto escondido.
- Porco salgado nunca me agradou. - O cavaleiro da forquilha não deu a Clegane mais do que o mais apressado dos relances e não prestou qualquer atenção em Arya, mas olhou longa e duramente para o Estranho. O garanhão não era nenhum cavalo de tração, isso ficava claro à primeira vista. Um dos escudeiros quase acabou na lama quando o grande corcel negro deu uma mordida em sua montaria. - Como arranjou este animal? - exigiu saber o cavaleiro da forquilha.
- A senhora disse-me para trazê-lo, sor - disse humildemente Clegane. - É um presente de casamento para o jovem Lorde Tully.
- Que senhora? A quem serve?
- À velha Senhora Whent, sor.
- Será que ela pensa que pode comprar Harrenhal de volta com um cavalo? - perguntou o cavaleiro. - Deuses, haverá algum tolo maior do que um velho tolo? - Mas fez sinal para que avançassem. - Sigam em frente, então.
- Sim, senhor. - Cão de Caça voltou a estalar o chicote, e os velhos cavalos de carga retomaram seu cansativo rumo. As rodas tinham se enterrado profundamente na lama durante a pausa, e foi preciso algum tempo para que a parelha retomasse o movimento. A essa altura, os batedores já se afastavam. Clegane dirigiu-lhes um último olhar e fungou. - Sor Donnel Haigh - disse. - Tirei mais cavalos dele do que sou capaz de contar. E armaduras também. Uma vez quase o matei num corpo a corpo.
- Então como é que ele não o reconheceu? - perguntou Arya.
- Porque os cavaleiros são estúpidos, e olhar duas vezes para um camponês bexigoso qualquer estaria abaixo do nível dele. - Deu um toque com o chicote nos cavalos. - Mantenha os olhos baixos e o tom respeitoso, e diga muitas vezes sor, que a maior parte dos cavaleiros nem sequer a verão. Prestam mais atenção nos cavalos do que nos plebeus. Ele podia ter reconhecido o Estranho, se tivesse me visto alguma vez montado nele.
Mas teria reconhecido a sua cara, Arya não tinha dúvidas quanto a isso. Não era fácil esquecer as queimaduras de Sandor Clegane depois de vê-las. E ele também não podia esconder as cicatrizes atrás de um elmo; pelo menos não de um elmo com a forma de um cão rosnando.
Foi para isso que precisaram da carroça e dos pés de porco em salmoura.
- Não vou ser arrastado acorrentado até a presença de seu irmão - tinha lhe dito Cão de Caça - e prefiro não ter de abrir caminho com a espada através de seus homens, para chegar até ele. Portanto, vamos jogar um pequeno jogo.
Um agricultor encontrado por acaso na estrada do rei fornecera-lhes a carroça, os cavalos, o vestuário e os barris, embora não de boa vontade. Cão de Caça tinha roubado tudo na ponta da espada. Quando o agricultor o xingou de ladrão, ele disse:
- Não, sou um forrageiro. Fique agradecido por ficar com a roupa de baixo. Agora tire essas botas. Senão corto suas pernas. A escolha é sua. - O agricultor era tão grande quanto Clegane, mesmo assim preferiu ceder as botas e ficar com as pernas.
O anoitecer foi encontrá-los ainda se arrastando na direção do Ramo Verde e dos castelos gêmeos de Lorde Frey. Estou quase lá, pensou Arya. Sabia que devia se sentir ansiosa, mas tinha um nó apertado na barriga. Talvez fosse só da febre que vinha combatendo, mas talvez não. Na noite anterior teve um pesadelo, um pesadelo terrível. Agora não conseguia se lembrar do sonho, mas a sensação tinha permanecido ao longo de todo o dia. Se algo havia mudado, fora apenas para se tornar mais forte. O medo golpeia mais profundamente do que as espadas. Tinha de ser forte, como o pai havia lhe dito. Nada havia entre ela e a mãe além de um portão de castelo, um rio e um exército... mas era o exército de Robb, portanto ali não havia nenhum perigo real. Não é?
Roose Bolton era um deles, no entanto. O Senhor Sanguessuga, como os fora da lei o chamavam. Isso deixava-a inquieta. Fugira de Harrenhal tanto para se livrar de Bolton como dos Saltimbancos Sangrentos e teve de cortar a garganta de um de seus guardas para fugir. Será que ele sabia que ela tinha feito isso? Ou teria culpado Gendry ou Torta Quente? Teria contado à mãe dela? O que faria se a visse? Provavelmente nem sequer me reconhecerá. Por esses dias, parecia-se mais com uma ratazana afogada do que com a copeira de um senhor. Uma ratazana afogada macho. Cão de Caça tinha cortado mãos-cheias de cabelo apenas dois dias antes. Era um barbeiro ainda pior do que Yoren, e deixara-a meio careca de um lado. Robb também não me reconhecerá, aposto. Ou mesmo a mãe. Era uma garotinha da última vez que os viu, no dia em que Lorde Eddard Stark partiu de Winterfell.
Ouviram a música antes de verem o castelo; o ribombar distante de tambores, o estrondo brônzeo de trombetas, os guinchos finos das gaitas de foles soando tênues sob o rugido do rio e o som da chuva batendo em sua cabeça.
- Perdemos a boda - disse Cão de Caça -, mas parece que a festa ainda dura. Em breve, vou me ver livre de você.
Não, eu é que me verei livre de você, pensou Arya.
Até aquele ponto a estrada seguira principalmente para noroeste, mas agora virava para o oeste, por entre um pomar de macieiras e um milharal submerso e derrubado pela chuva. Passaram pela última das macieiras e ultrapassaram uma elevação, e os castelos, rio e acampamentos surgiram de repente. Havia centenas de cavalos e milhares de homens, a maioria dos quais andando de um lado para o outro em volta das três enormes tendas para banquetes que se erguiam lado a lado, viradas para os portões do castelo, como três grandes salões feitos de lona. Robb tinha montado seu acampamento bem afastado das muralhas, em terreno mais alto e mais seco, mas o Ramo Verde transbordou as margens e até se apoderou de algumas tendas posicionadas sem cuidado.
A música que vinha dos castelos era mais alta ali. O som dos tambores e trombetas rolava pelo acampamento. Mas os músicos no castelo mais próximo não estavam tocando a mesma canção dos do castelo da margem oposta, e aquilo parecia mais uma batalha do que uma canção.
- Eles não são lá muito bons - observou Arya.
Cão de Caça fez um ruído que podia ter sido uma gargalhada.
- Há velhas surdas em Lanisporto queixando-se da barulheira, aposto. Tinha ouvido dizer que os olhos de Walder Frey andavam fraquejando, mas ninguém falou da porcaria dos ouvidos dele.
Arya viu-se desejando que fosse dia. Se o sol estivesse no céu e soprasse vento, poderia ter sido capaz de ver melhor os estandartes. Teria procurado o lobo gigante de Stark, ou talvez o machado de batalha de Cerwyn ou o punho de Glover. Mas, nas sombras da noite, todas as cores pareciam cinza. A chuva reduzira-se a um chuvisco, quase uma névoa, mas um pé-dagua anterior deixara os estandartes tão molhados quanto panos de prato, encharcados e ilegíveis.
Uma cerca de carros e carroças havia sido disposta ao longo do perímetro, para formar uma muralha rudimentar de madeira contra qualquer ataque que pudesse surgir. Foi aí que os guardas os pararam. A lanterna que o sargento transportava dava luz suficiente para que Àrya visse que seu manto era rosa-claro, salpicado com lágrimas vermelhas. Os homens sob o seu comando tinham o símbolo do Senhor Sanguessuga cosido sobre o coração, o homem esfolado do Forte do Pavor. Sandor Clegane contou-lhes a mesma história que tinha usado com os batedores, mas o sargento Bolton era uma noz mais dura de quebrar do que Sor Donnel Haigh.
- Porco salgado não é carne própria para o banquete de casamento de um lorde - disse ele com um ar de escárnio.
- Também tenho pé de porco em salmoura, sor.
- Para o banquete? Não tem, não. O banquete já está quase no fim. E eu sou um nortenho, não um cavaleiro qualquer do sul que ainda mama leite.
- Disseram-me para ir até o intendente ou o cozinheiro...
- O castelo está fechado. Os fidalgos não devem ser incomodados. - O sargento pensou por um momento. - Pode descarregar ali, junto das tendas para banquetes. - Apontou com uma mão revestida de cota de malha. - A cerveja deixa um homem com fome, e o velho Frey não vai sentir falta de alguns pés de porco. Seja como for, não tem dentes para eles. Pergunte pelo Sedgekins, ele vai saber o que fazer com você. - Latiu uma ordem, e seus homens empurraram uma das carroças para o lado, para deixá-los entrar.
O chicote de Cão de Caça incitou a parelha a se aproximar das tendas. Ninguém pareceu prestar nenhuma atenção neles. Passaram chapinhando por fileiras de pavilhões brilhantemente coloridos, com paredes de seda molhada iluminadas como lanternas mágicas por lâmpadas e braseiros que ardiam lá dentro; brilhavam em tons de rosa, ouro e verde, listradas, quadriculadas, axadrezadas, ornamentadas com aves e feras, asnas e estrelas, rodas e armas. Arya vislumbrou uma tenda amarela com seis bolotas nas paredes, três sobre duas sobre uma. Lorde Smallwood, compreendeu, lembrando-se do Solar de Bolotas, tão distante, e da senhora que tinha lhe dito que era bonita.
Mas para cada cintilante pavilhão de seda havia duas dúzias de feltro ou lona, opacos e escuros. Havia também tendas-casernas, suficientemente grandes para abrigar duas vintenas de soldados de infantaria, embora até essas parecessem anãs ao lado das três grandes tendas para banquetes. Já se bebia havia horas, ao que parecia. Arya ouviu brindes gritados e o bater de taças, misturados com os sons habituais dos acampamentos, cavalos relinchando e cães latindo, carroças trovejando pela escuridão, risos e pragas, o tinir e ressoar do aço e da madeira. A música ficou ainda mais alta quando se aproximaram do castelo, mas por baixo dela havia um som mais profundo e escuro: o rio, o Ramo Verde em cheia, rugindo como um leão em sua toca.
Arya torceu-se e virou-se, tentando olhar para todos os lados ao mesmo tempo, na esperança de vislumbrar um lobo gigante, uma tenda decorada em cinza e branco, um rosto que conhecesse de Winterfell. Mas viu apenas estranhos. Fitou um homem que se aliviava nos juncos, mas não era o Alebelly. Viu uma garota seminua fugir de uma tenda aos risos, mas a tenda era azul-clara, e não cinza como a princípio julgara, e o homem que saiu correndo atrás dela usava no gibão um gato-das-árvores, e não um lobo. Por baixo de uma árvore, quatro arqueiros enfiavam cordas enceradas no entalhe de seus arcos, mas não eram arqueiros do pai. Um meistre atravessou o caminho deles, mas era muito novo e magro para ser o Meistre Luwin. Arya fitou as Gêmeas, em cujas torres as janelas altas brilhavam onde quer que houvesse uma vela ardendo. Através da neblina da chuva, os castelos pareciam assustadores e misteriosos, como algo saído de uma das histórias da Velha Ama, mas não eram Winterfell.
A aglomeração era maior junto das tendas para banquetes. As largas abas estavam atadas, abertas, e os homens entravam e saíam com cornos e canecas nas mãos, alguns com seguidoras de acampamentos. Arya deu uma olhada para dentro quando Cão de Caça passou pela primeira das três tendas e viu centenas de homens aglomerados nos bancos e acotovelando-se em volta dos barris de hidromel, cerveja e vinho. Lá dentro quase não havia espaço para as pessoas se moverem, mas ninguém parecia se importar. Pelo menos estavam quentes e secas. Arya, fria e molhada, teve inveja delas. Alguns homens até cantavam. A chuvinha fina e brumosa fumegava em volta da porta devido ao calor que escapava do interior.
- Ao Lorde Edmure e à Senhora Roslin - ouviu uma voz gritar. Todos beberam, e alguém gritou:
- Ao Jovem Lobo e à Rainha Jeyne.
Quem é a Rainha Jeyne?, interrogou-se Arya por um breve momento. A única rainha que conhecia era Cersei.
Buracos para fogueiras tinham sido escavados fora das tendas para banquetes, abrigadas sob rudes dosséis de madeira entrelaçada e peles que mantinham a chuva afastada, desde que caísse na vertical. Mas o vento soprava do rio, e entrava chuva suficiente para fazer as fogueiras silvarem e tremularem. Criados viravam peças de carne enfiadas em espetos por cima das chamas. Os cheiros encheram a boca de Arya de água.
- Não devíamos parar? - perguntou a Sandor Clegane. - Há nortenhos nas tendas. - Reconhecia-os pelas barbas, pelos rostos, pelos mantos de pele de urso e de foca, pelos brindes parcialmente escutados e pelas canções que cantavam; homens Karstark, Umber e dos clãs de montanha. - Aposto que também há homens de Winterfell. - Homens do pai, homens do Jovem Lobo, os lobos gigantes de Stark.
- Seu irmão está no castelo - disse ele. - Sua mãe também. Quer ir até eles ou não?
- Sim - disse ela. - Mas e o Sedgekins? - O sargento tinha lhes falado para perguntar por Sedgekins.
- O Sedgekins pode se foder com um atiçador quente. - Clegane sacudiu o chicote, e mandou-o assobiando através da chuva suave até morder o flanco de um cavalo. - É o seu maldito irmão que eu procuro.
Os tambores retumbavam, retumbavam, retumbavam, e a cabeça de Catelyn retumbava com eles. As gaitas gemiam e as flautas soltavam trinados na galeria dos músicos na extremidade do salão; rabecas guinchavam, trombetas soavam, as gaitas de foles gritavam uma melodia animada, mas era a batida dos tambores que dominava tudo. Os sons ecoavam nas vigas, enquanto os convidados comiam, bebiam e gritavam uns para os outros, logo abaixo. Walder Frey deve ser surdo como uma porta para chamar isso de música. Catelyn bebericou uma taça de vinho e viu Guizo pavonear-se ao som de "Alysanne". Pelo menos julgava que se pretendia que fosse "Alysanne". Com aqueles músicos, podia perfeitamente ter sido "O urso e a bela donzela".
Lá fora ainda chovia, mas dentro das Gêmeas o ar estava pesado e quente. Um fogo rugia na lareira, e filas de archotes ardiam, fumacentas, em arandelas de ferro presas às paredes. Mas a maior parte do calor vinha dos corpos dos convidados do casamento, tão apertados ao longo dos bancos que cada homem que tentava levantar a sua taça dava cotoveladas nas costelas do vizinho.
Até no estrado estavam mais próximos do que Catelyn teria desejado. Tinha sido colocada entre Sor Ryman Frey e Roose Bolton, e ficara com o nariz cheio de ambos. Sor Ryman bebia como se o vinho estivesse prestes a acabar em Westeros, e suava-o todo pelo sovaco. O homem tinha tomado banho em água de limão, achava, mas nenhum limão era capaz de disfarçar tanto suor acre. Roose Bolton tinha um cheiro mais doce, mas que não era mais agradável. Preferia bebericar hipocraz a vinho ou hidromel, e pouco comia.
Catelyn não podia censurá-lo pela falta de apetite. O banquete de casamento começou com uma sopa aguada de alho-poró, seguida por uma salada de feijão verde, cebola e beterraba, lúcio escaldado em leite de amêndoa, montinhos de purê de nabo que já estava frio antes de chegar à mesa, geleia de miolos de vitela e carne de vaca fibrosa cozida em leite. Era um pobre repasto para um rei, e os miolos de vitela embrulharam o estômago de Catelyn. Mas Robb comeu sem protestar, e o irmão de Catelyn estava embevecido demais pela noiva para prestar muita atenção à comida.
Nunca se imaginaria que Edmure passou todo o caminho de Correrrio até as Gêmeas queixando-se de Roslin. Marido e mulher comiam do mesmo prato, bebiam da mesma taça e trocavam castos beijos entre os goles. Edmure mandava embora a maior parte dos pratos. Não podia censurá-lo por isso. Pouco recordava da comida servida em seu banquete de casamento. Terei chegado a prová-la? Ou será que passei o tempo todo fitando o rosto de Ned, tentando perceber quem ele era?
O sorriso da pobre Roslin tinha uma certa fixidez, como se alguém o tivesse costurado ao rosto dela. Bem, é uma donzela casada, mas a noite de núpcias ainda não aconteceu. Sem dúvida está tão aterrorizada quanto eu estava. Robb encontrava-se sentado entre Alyx Frey e a Bela Walda, duas das mais núbeis donzelas Frey.
-"Espero que não se recuse a dançar com as minhas filhas no banquete de casamento" - tinha dito Walder Frey. -"Isso satisfaria o coração de um velho." - Se assim era, seu coração devia estar bem satisfeito; Robb havia desempenhado o seu dever como um rei. Dançou com cada uma das garotas, com a noiva de Edmure e com a oitava Senhora Frey, com a viúva Ami e com a esposa de Roose Bolton, a Walda Gorda, com as gêmeas cheias de espinhas Serra e Sarra, e até com Shirei, a mais nova das filhas de Lorde Walder, que devia ter uns seis anos. Catelyn perguntou a si mesma se o Senhor da Travessia estaria satisfeito, ou se encontraria motivos de queixa em todas as outras filhas e netas que não tiveram a sua vez com o rei.
- Suas irmãs dançam muito bem - ela disse a Sor Ryman Frey, tentando ser agradável.
- São tias e primas. - Sor Ryman bebeu um trago de vinho, com o suor escorrendo pelo rosto e desaparecendo na barba.
Um homem amargo, e embriagado, pensou Catelyn. O Atrasado Lorde Frey podia ser avaro no que tocava a alimentar os seus convidados, mas não tinha economizado na bebida. Cerveja, vinho e hidromel fluíam tão depressa quanto o rio, lá fora. Grande-Jon já estava para lá de bêbado. O filho de Lorde Walder, Merrett, estava competindo com ele, taça atrás de taça, mas Sor Whalen Frey desmaiou tentando acompanhar os dois. Catelyn teria preferido que Lorde Umber tivesse achado por bem permanecer sóbrio, mas dizer ao Grande-Jon para não beber era como lhe pedir para não respirar durante algumas horas.
O Pequeno-Jon Umber e Robin Flint estavam sentados perto de Robb, depois da Bela Walda e de Alyx, respectivamente. Nenhum dos dois estava bebendo; com Patrek Mallister e Dacey Mormont eram, naquela noite, os guardas do filho de Catelyn. Um banquete de casamento não era uma batalha, mas havia sempre perigo quando os homens se metiam nos copos, e um rei nunca devia ficar sem guarda. Catelyn sentia-se satisfeita com isso, e ainda mais com os cintos de espadas pendurados nos cabides ao longo das paredes. Nenhum homem precisa de uma espada para lidar com geleia de miolos de vitela.
- Todos pensavam que o meu senhor escolheria a Bela Walda - disse a Senhora Walda Bolton a Sor Wendel, gritando para ser ouvida por sobre a música. Ela mais parecia uma bola de sebo redonda e cor-de-rosa, com olhos azuis lacrimejantes, cabelos louros e sem força e um enorme busto, mas a voz era um guincho trêmulo. Era difícil imaginá-la no Forte do Pavor, com sua renda cor-de-rosa e capa de veiro. - Mas o senhor meu avô ofereceu a Roose o peso da noiva em prata como dote, e meu senhor de Bolton me escolheu. - Os queixos da garota estremeceram quando riu. - Peso quarenta quilos a mais do que a Bela Walda, mas esta foi a primeira vez que fiquei feliz por isso. Agora sou a Senhora Bolton, e minha prima ainda é donzela e em breve fará dezenove anos, pobrezinha.
Catelyn viu que o Senhor do Forte do Pavor não prestava qualquer atenção à tagarelice. Às vezes provava um pouco disso, uma colher daquilo, arrancando bocados de pão com dedos curtos e fortes, mas a refeição não era capaz de distraí-lo. Bolton fez um brinde aos netos de Lorde Walder quando o banquete de casamento começou, fazendo questão de mencionar que Walder e Walder estavam aos cuidados de seu filho bastardo. Pelo modo como o velho o olhou de viés, com a boca chupando o ar, Catelyn compreendeu que ele tinha ouvido a ameaça subjacente.
Terá alguma vez havido uma boda menos alegre?, perguntou a si mesma até se lembrar de sua pobre Sansa e do casamento com o Duende. Mãe, tenha piedade dela. Ela tem uma alma gentil. O calor, a fumaça e o barulho estavam deixando Catelyn enjoada. Os músicos na galeria podiam ser numerosos e ruidosos, mas não eram particularmente dotados. Catelyn bebeu outro gole de vinho e deixou que um pajem lhe enchesse a taça. Mais algumas horas, e o pior terá chegado ao fim. Amanhã a esta hora Robb terá partido para outra batalha, dessa vez contra os homens de ferro em Fosso Cailin. Era estranho como essa perspectiva parecia quase um alívio. Ele ganhará a sua batalha. Ele ganha todas as suas batalhas, e os homens de ferro estão sem rei. Além disso, Ned ensinou-o bem. Os tambores retumbavam. Guizo voltou a passar à sua frente aos saltos, mas a música era tão alta que quase não conseguiu ouvir seus guizos.
Por sobre o ruído ouviu-se de repente um rosnado, quando dois cães se lançaram um contra o outro, lutando por um resto de carne. Rolaram pelo chão, atirando dentadas, enquanto um uivo de divertimento soava. Alguém lhes deu um banho com um jarro de cerveja, e eles se separaram. Um dos cães dirigiu-se mancando para o estrado. A boca desdentada de Lorde Walder abriu-se numa gargalhada quando o cão encharcado sacudiu cerveja e pelos por cima de três dos seus netos.
Ver os cães fez Catelyn desejar uma vez mais que Vento Cinzento estivesse ali, mas o lobo gigante de Robb não era visto em parte alguma. Lorde Walder recusara-se a deixá-lo entrar no salão.
- O seu animal selvagem tem gosto por carne humana, segundo ouvi dizer, heh
- tinha falado o velho. - Rasga as gargantas, sim. Não quero uma criatura dessas no banquete da minha Roslin, no meio das mulheres e dos pequenos, todos os meus queridos inocentes.
- Vento Cinzento não constitui qualquer perigo para eles, senhor - protestou Robb.
- Desde que eu esteja presente.
- Mas você estava lá, no meu portão, não estava? Quando o lobo atacou os netos que enviei para recebê-los? Contaram-me tudo sobre isso, não pense que não, heh.
- Nenhum mal foi feito...
- Nenhum mal, diz o rei? Nenhum mal? Petyr caiu do cavalo, caiu. Perdi uma esposa da mesma forma, numa queda. - Sua boca moveu-se para dentro e para fora. - Ou teria sido só uma rameira qualquer? A mãe do Walder Bastardo, sim, agora me lembro. Caiu do cavalo e rachou a cabeça. O que faria Vossa Graça se Petyr tivesse quebrado o pescoço, heh? Daria desculpas no lugar de um neto? Não, não, não. Pode ser rei, não direi que não, o Rei no Norte, heh, mas sob o meu teto as regras são minhas. O lobo ou a boda, senhor. Ambos, não.
Catelyn tinha visto como Robb estava furioso, mas ele cedeu com tanta cortesia quanto conseguiu arranjar. "Se Lorde Walder desejar me servir corvo guisado recheado de larvas", tinha dito a ela, "vou comê-lo e pedirei uma segunda porção." E assim fez.
Grande-Jon tinha derrubado para baixo da mesa, na bebida, mais um dos descendentes de Lorde Walder. Daquela vez fora Petyr Espinha. O rapaz tinha um terço do tamanho de Grande-Jon, o que esperava? Lorde Umber limpou a boca, ergueu-se e começou a cantar,
- Havia um urso, um urso, um URSO! Preto e castanho e coberto de pelo! - A voz dele não era nada má, embora estivesse um pouco pesada por causa da bebida.
Infelizmente, os rabequeiros, tambores e flautistas lá em cima estavam tocando "Flores da primavera" que combinava tão bem com as palavras de "O urso e a bela donzela" como caracóis combinavam com uma tigela de mingau de aveia. Até o pobre do Guizo tapou os ouvidos com aquela cacofonia.
Roose Bolton murmurou algumas palavras numa voz fraca demais para ser entendida e afastou-se em busca de uma latrina. O salão repleto de gente estava em constante ebulição com as idas e vindas de convidados e criados. Catelyn sabia que um segundo banquete, para cavaleiros e senhores de um nível um tanto inferior, trovejava no outro castelo. Lorde Walder exilara seus filhos ilegítimos e os descendentes destes para aquele lado do rio, e os nortenhos de Robb tinham começado a se referir àquilo como "o banquete bastardo". Alguns dos convidados estavam sem dúvida escapulindo para ver se os bastardos estavam se divertindo mais do que eles. Alguns talvez se aventurassem até os acampamentos. Os Frey tinham fornecido carroças cheias de vinho, cerveja e hidromel, de modo que os soldados comuns pudessem beber ao casamento de Correrrio e das Gêmeas.
Robb sentou-se no lugar deixado vago por Bolton.
- Mais algumas horas e esta farsa chegará ao fim, mãe - disse em voz baixa, enquanto Grande-Jon cantava sobre a donzela com mel nos cabelos. - Walder Negro tem se mostrado pacato como um cordeiro, finalmente. E o tio Edmure parece bastante contente com a sua noiva. - Inclinou-se por sobre ela. - Sor Ryman?
Sor Ryman Frey piscou e disse:
- Senhor. Sim?
- Tinha a esperança de pedir a Olyvar para me servir como escudeiro quando marchássemos para o norte - disse Robb -, mas não o vejo aqui. Estará no outro banquete?
- Olyvar? - Sor Ryman balançou a cabeça. - Não. Olyvar não. Partiu... partiu dos castelos. Dever.
- Compreendo. - O tom de Robb sugeria o contrário. Quando Sor Ryman nada mais disse, o rei voltou a ficar em pé. - Quer dançar, mãe?
- Obrigada, mas não. - Dançar era a última coisa de que precisava, com a cabeça latejando como estava. - Sem dúvida que uma das filhas de Lorde Walder ficará contente por ser o seu par.
- Ah, sem dúvida. - O sorriso dele era resignado.
Os músicos estavam tocando "Lanças de ferro" a essa altura, enquanto Grande-Jon cantava "O robusto rapaz". Alguém devia apresentá-los uns aos outros, talvez melhorasse a harmonia. Catelyn virou-se para Sor Ryman.
- Ouvi dizer que um de seus primos é cantor.
- Alesander. Filho de Symond. Alyx é irmã dele. - Ergueu uma taça na direção do local onde ela dançava com Robin Flint.
- Alesander tocará para nós esta noite?
Sor Ryman olhou-a de canto de olho.
- Ele não. Está longe. - Limpou suor da testa e levantou-se com dificuldade. - Perdão, minha senhora. Perdão. - Catelyn viu-o cambalear para a porta.
Edmure estava beijando Roslin e apertando sua mão. Em outros pontos do salão, Sor Marq Piper e Sor Danwell Frey apostavam num jogo de bebida, Lothar Coxo dizia qualquer coisa divertida a Sor Hosteen, um dos Frey mais jovens fazia malabarismo com três punhais diante de um grupo de garotas risonhas e Guizo estava sentado no chão, chupando vinho dos dedos. Os serventes traziam enormes bandejas de prata repletas de cortes de cordeiro rosado e suculento, o prato mais apetitoso que tinham visto a noite toda. E Robb dançava com Dacey Mormont.
Quando usava vestido em vez de cota de malha, a filha mais velha da Senhora Maege era bastante bonita; alta e esbelta, com um sorriso recatado que lhe iluminava o longo rosto. Era agradável ver que sabia ser tão graciosa num salão de dança como no pátio de treinos. Catelyn ficou se perguntando se a Senhora Maege já teria chegado ao Gargalo. Levara consigo as outras filhas, porém, sendo uma das companheiras de batalha de Robb, Dacey tinha preferido permanecer ao lado dele. Ele tem o dom que Ned tinha para inspirar lealdade. Olyvar Frey também havia sido devotado ao filho. Robb não tinha dito que Olyvar quis permanecer com ele mesmo depois do casamento com Jeyne?
Sentado no meio de suas torres negras de carvalho, o Senhor da Travessia bateu as mãos manchadas. O ruído que fizeram foi tão tênue que até aqueles que se encontravam no estrado quase não ouviram, mas Sor Aenys e Sor Hosteen viram-no e começaram a bater na mesa com as taças. Lothar Coxo juntou-se a eles, seguido por Marq Piper, Sor Danwell e Sor Raymund. Em pouco tempo, metade dos convidados estava fazendo barulho com as taças. E, por fim, até os músicos na galeria repararam. Flautas, tambores e rabecas foram parando de tocar até que se fez silêncio.
- Vossa Graça - disse Lorde Walder -, o septão rezou as suas preces, algumas palavras foram ditas e Lorde Edmure envolveu a minha querida num manto com um peixe, mas eles ainda não são marido e mulher. Uma espada precisa de uma bainha, heh, e um casamento precisa de uma noite de núpcias. O que diz o meu senhor? Será próprio que os levemos para a cama?
Uma vintena ou mais dos filhos e netos de Walder Frey desatou a bater de novo com as taças, gritando "Para a cama! Para a cama! Para a cama com eles.". Roslin ficou branca. Catelyn perguntou a si mesma se seria a perspectiva de perder a virgindade que assustava a garota, ou a própria tradição das núpcias. Com tantos irmãos, o costume não devia ser estranho a ela, mas era diferente quando se era a pessoa a ser levada. Na noite de casamento de Catelyn, Jory Cassell tinha rasgado seu vestido na pressa de despi-la dele, e Desmond Grell, bêbado, não parava de pedir desculpa pelos gracejos lascivos, apenas para fazer outro logo em seguida. Quando Lorde Dustin a viu nua, disse a Ned que os seios dela o faziam desejar nunca ter sido desmamado. Pobre homem, pensou. Foi para o sul com Ned e não regressou. Catelyn perguntou a si mesma quantos dos homens que ali estavam naquela noite acabariam mortos antes do ano chegar ao fim. Muitos, receio.
Robb ergueu uma mão.
- Se acha que chegou a hora, Lorde Walder, com certeza, vamos levá-los para a cama.
Um rugido de aprovação saudou aquela proclamação. Na galeria, os músicos voltaram a pegar nas flautas, trombetas e rabecas e começaram a tocar "A rainha tirou a sandália, o rei tirou a coroa". Guizo pôs-se a saltitar ora sobre um pé, ora sobre o outro, fazendo a coroa tilintar.
- Ouvi dizer que os homens Tully têm trutas entre as pernas no lugar dos pintos - gritou audaciosamente Alyx Frey. - Será que precisam de uma minhoca para ficarem em pé?
Ao que Sor Marq Piper retorquiu:
- Eu ouvi dizer que as mulheres Frey têm dois portões em vez de um!
E Alyx disse:
- Sim, mas estão os dois fechados e trancados para coisinhas pequenas como você!
Seguiu-se uma rajada de gargalhadas, até que Patrek Mallister subiu em uma mesa
para propor um brinde ao peixe de um olho só de Edmure.
- E que poderoso lúcio ele é! - proclamou.
- Ná, aposto que é um vairão - gritou a Walda Gorda Bolton do lado de Catelyn.
Então, o grito geral de "Para a cama com eles! Para a cama com eles, voltou a soar.
Os convidados invadiram o estrado, com os mais bêbados na frente, como sempre. Os homens e rapazes rodearam Roslin e ergueram-na ao ar enquanto as donzelas e mães presentes no salão puseram Edmure em pé e começaram a puxar sua roupa. Ele ria e gritava-lhes piadas obscenas em resposta, embora a música estivesse alta demais para que Catelyn os ouvisse. Mas ouvia Grande-Jon.
- Dê esta noivinha para mim - berrou enquanto abria caminho entre os outros homens e punha Roslin no ombro. - Olhem esta coisinha! Não tem carne nenhuma!
Catelyn sentiu pena da garota. A maior parte das noivas tentava devolver os gracejos, ou pelo menos fingia se divertir, mas Roslin estava rígida de terror, agarrando-se ao Grande-Jon, como se temesse que ele a deixasse cair. E também está chorando, reparou Catelyn enquanto observava Sor Marq Piper descalçar um dos sapatos da noiva. Espero que Edmure seja gentil com a pobre criança. Música alegre e lasciva ainda jorrava da galeria; a rainha estava agora tirando a combinação e o rei, a túnica.
Sabia que devia se juntar ao aglomerado de mulheres que rodeavam o irmão, mas acabaria apenas por estragar a diversão. A última coisa que se sentia agora era lasciva. Edmure perdoaria sua ausência, disso não duvidava; era muito mais divertido ser despido e deitado por uma vintena de voluptuosas e risonhas Frey do que por uma irmã amarga e magoada.
Enquanto o homem e a donzela eram levados do salão, deixando atrás de si um rastro de roupas, Catelyn viu que Robb também tinha ficado. Walder Frey era suficientemente suscetível para ver nisso algum insulto à filha. Ele devia se juntar aos que levam Roslin para a cama, mas cabe a mim dizer-lhe isso? Sentiu-se tomada pela tensão até reparar que outros também tinham ficado para trás. Petyr Espinha e Sor Whalen Frey continuavam a dormir, com a cabeça apoiada na mesa. Merrett Frey servia-se de outra taça de vinho, enquanto Guizo vagueava pelo salão, roubando nacos de comida dos pratos daqueles que tinham saído. Sor Wendel Manderly atacava com volúpia uma perna de cordeiro. E, claro, Lorde Walder era fraco demais para sair de seu lugar sem ajuda. Mas ele espera que Robb vá. Quase conseguia ouvir o velho perguntando por que motivo Sua Graça não queria ver a filha nua. Os tambores voltaram a retumbar, retumbar, retumbar e retumbar.
Dacey Mormont, que parecia ter sido a única mulher a ficar no salão além de Catelyn, aproximou-se de Edwyn Frey e tocou levemente o braço dele enquanto lhe dizia qualquer coisa ao ouvido. Edwyn afastou-se dela com uma violência imprópria.
- Não - disse, alto demais. - Estou farto de danças por ora.
Dacey empalideceu e afastou-se. Catelyn pôs-se lentamente em pé. O que acabou de acontecer aqui? A dúvida tomou seu coração, onde um instante antes havia apenas a fadiga. Não é nada, tentou dizer a si mesma, está vendo gramequins na lenha, transformou-se numa velha boba, doente de desgosto e medo. Mas algo deve ter transparecido em seu rosto. Até Sor Wendel Manderly reparou.
- Há algum problema? - perguntou, com a perna de cordeiro nas mãos.
Catelyn não lhe respondeu. Em vez disso, foi atrás de Edwyn Frey. Os músicos na galeria tinham finalmente vestido tanto o rei como a rainha com o traje do dia de seu nome. Quase sem um momento de pausa, começaram a tocar um tipo muito diferente de canção. Ninguém cantou a letra, mas Catelyn reconhecia "As chuvas de Castamere" quando a ouvia. Edwyn dirigia-se apressadamente para uma porta. Catelyn apressou-se mais, levada pela música. Seis passos rápidos e o alcançou. E quem é você, disse o altivo senhor, pra que a vénia seja profunda? Agarrou Edwyn pelo braço para virá-lo e ficou gelada quando sentiu os anéis de ferro sob a sua manga de seda.
Catelyn esbofeteou-o com tanta força que lhe abriu o lábio. Olyvar, pensou, e Perwyn, Alesander, todos ausentes. E Roslin chorou...
Edwyn Frey afastou-a com um empurrão. A música afogava todos os outros sons, ecoando nas paredes, como se as próprias pedras estivessem tocando. Robb lançou a Edwyn um olhar furioso e foi bloquear seu caminho... e cambaleou subitamente quando um dardo brotou de seu flanco, logo abaixo do ombro. Se nesse momento gritou, o som foi engolido pelas flautas, trompas e rabecas. Catelyn viu um segundo dardo perfurar a perna dele, viu-o cair. Lá em cima, na galeria, metade dos músicos tinha nas mãos bestas em vez de tambores ou alaúdes. Correu para o filho, até que algo lhe atingiu na lombar, e o duro chão de pedra subiu para lhe dar uma bofetada.
- Robb! - gritou. Viu Pequeno-Jon Umber tirando uma mesa da armação. Dardos de bestas cravaram-se na madeira, um, dois, três, quando ele a atirou para cima de seu rei. Robin Flint estava cercado por um grupo de Freys, cujos punhais subiam e desciam. Sor Wendel Manderly levantou-se imponentemente, agarrado à perna de cordeiro. Um dardo entrou por sua boca aberta e saiu pela parte de trás do pescoço. Sor Wendel estatelou-se para a frente, soltando a tábua da mesa da armação e mandando taças, jarros, bandejas, pratos, nabos, beterrabas e vinho para o chão saltando, derramando e deslizando.
Às costas de Catelyn estavam em brasa. Tenho de chegar até ele. Pequeno-Jon deu uma cacetada no rosto de Sor Raymund Frey com uma perna de carneiro. Mas quando estendeu a mão para o cinto da espada, um dardo de besta fez com que caísse de joelhos. Num manto de ouro ou num manto vermelho, suas garras um leão mantém. Catelyn viu Lucas Blackwood ser abatido por Sor Hosteen Frey. Um dos Vance foi paralisado por Walder Negro enquanto lutava com Sor Harys Haigh. E as minhas são longas e afiadas, senhor, como o senhor as tem também. As bestas atingiram Donnel Locke, Owen Norrey e mais meia dúzia. O jovem Sor Benfrey agarrou Dacey Mormont pelo braço, mas Catelyn viu-a pegar num jarro de vinho com a outra mão e acertar em cheio o rosto de Mormont e correr para a porta. Esta escancarou-se antes de ela conseguir alcançá-la. Sor Ryman Frey entrou no salão, vestido de aço do elmo ao esporão. Uma dúzia de homens de armas Frey apinhou-se na porta atrás dele. Estavam armados com pesados machados longos.
- Misericórdia! - gritou Catelyn, mas trombetas, tambores e o tinir do aço abafaram seu apelo. Sor Ryman enterrou a cabeça de seu machado no estômago de Dacey. A essa altura, jorravam também homens das outras portas, homens revestidos de cota de malha com hirsutos mantos de peles e com aço nas mãos. Nortenhos! Durante meio segundo tomou-os por salvadores, até que um deles cortou a cabeça de Pequeno-Jon com dois violentíssimos golpes de machado. A esperança apagou-se como uma vela na tempestade.
No meio do massacre, o Senhor da Travessia permanecia sentado em seu trono de carvalho esculpido, observando avidamente.
Havia um punhal no chão a alguns centímetros de distância. Talvez tivesse escorregado até ali quando Pequeno-Jon arrancara a mesa da armação, ou talvez tivesse caído da mão de algum moribundo. Catelyn rastejou até ele. As pernas e os braços pareciam chumbo e sua boca tinha gosto de sangue. Matarei Walder Frey, disse a si mesma. Guizo estava mais perto da faca, escondido por baixo de uma mesa, mas apenas se encolheu com medo quando ela pegou a lâmina. Matarei o velho, isso, pelo menos, posso fazer.
Então o tampo de mesa que Pequeno-Jon atirara sobre Robb moveu-se, e o filho apoiou-se com dificuldade nos joelhos. Tinha uma flecha espetada no flanco, uma segunda na perna, uma terceira no peito. Lorde Walder levantou uma mão, e a música parou, menos um tambor. Catelyn ouviu o estrondo da batalha distante, e, mais perto, os uivos selvagens de um lobo. Vento Cinzento, lembrou-se, tarde demais.
- Heh - cacarejou Lorde Walder para Robb -, o Rei no Norte ergue-se. Parece que matamos alguns de seus homens, Vossa Graça. Oh, mas eu vou lhe dar uma satisfação que deixará tudo bem uma vez mais, heh.
Catelyn agarrou uma mão-cheia dos longos cabelos grisalhos de Guizo Frey e arrastou-o para fora de seu esconderijo.
- Lorde Walder! - gritou. - LORDE WALDER! - O tambor batia lento e sonoro, fim bum fim. - Basta - disse Catelyn. - Basta, disse eu. Pagou traição com traição, que fique por aqui. - Quando encostou o punhal na garganta do Guizo, a memória do quarto de doente de Bran voltou, com o toque do aço na própria garganta. O tambor continuava bum fim bum fim bum fim bum. - Por favor - disse. - Ele é meu filho. O meu primeiro filho, e o último. Deixe-o ir. Deixe-o ir, e eu juro que esqueceremos isto... esqueceremos tudo que fez aqui. Juro pelos deuses antigos e pelos novos, nós... nós não buscaremos vingança...
Lorde Walder olhou-a com desconfiança.
- Só um tolo acreditaria nessa bobagem. Toma-me por um tolo, senhora?
- Tomo-o por um pai. Fique comigo como refém, e com Edmure também, caso não o tenha matado. Mas deixe Robb ir.
- Não. - A voz de Robb era tênue como um suspiro. - Mãe, não...
- Sim. Robb, levante-se. Levante-se e saia, por favor, por favor. Salve-se... se não por mim, então por Jeyne.
- Jeyne? - Robb agarrou a borda da mesa e forçou-se a ficar em pé. - Mãe - disse -, o Vento Cinzento...
- Vá até ele. Já. Robb, saia daqui.
Lorde Walder resfolegou.
- E por que é que eu permitiria que ele fizesse isso?
Ela encostou a lâmina com mais força na garganta de Guizo. O retardado rolou os olhos para ela num apelo mudo. Um forte fedor assaltou seu nariz, mas não prestou mais atenção nele do que no soturno e incessante retumbar daquele tambor, bum fim bum fim bum fim bum. Sor Ryman e Walder Negro estavam a rodeá-la pelas costas, mas Catelyn não se importava. Podiam fazer com ela o que quisessem; aprisioná-la, violá-la, matá-la, não interessava. Tinha vivido tempo demais e Ned a esperava. Era por Robb que temia.
- Por minha honra como Tully - disse a Lorde Walder -, por minha honra como Stark, trocarei a vida do seu rapaz pela de Robb. Um filho por um filho. - Sua mão tremia tanto que estava fazendo a cabeça de Guizo tilintar.
Bum, soou o tambor, bum, fim, bum, fim. Os lábios do velho projetaram-se e retraíram-se. A faca tremeu na mão de Catelyn, escorregadia de suor.
- Um filho por um filho, heh - repetiu ele. - Mas esse é um neto... e nunca teve grande utilidade.
Um homem com uma armadura escura e um manto rosa-claro manchado de sangue aproximou-se de Robb.
- Jaime Lannister manda cumprimentos. - Ele espetou a espada no coração do filho de Catelyn e girou.
Robb tinha faltado à palavra, mas Catelyn manteve a sua. Puxou com força os cabelos de Aegon e serrou seu pescoço até a faca começar a raspar em osso. Correu sangue sobre os seus dedos. Os pequenos guizos tilintavam, tilintavam, tilintavam, e o tambor retumbava, bum fim bum.
Por fim, alguém tirou a faca dela. As lágrimas ardiam como vinagre ao correrem por seu rosto. Dez corvos ferozes devastavam seu rosto com garras afiadas, rasgando fitas de carne, deixando profundos sulcos que escorriam, vermelhos de sangue. Sentia o sabor nos lábios.
Dói tanto, pensou. Os nossos filhos, Ned, todos os nossos queridos bebês. Rickon, Bran, Arya, Sansa, Robb... Robb... por favor, Ned, por favor, faça com que pare, faça com que pare de doer... As lágrimas brancas e as vermelhas correram juntas até que seu rosto ficou rasgado e em farrapos, o rosto que Ned amara. Catelyn Stark ergueu as mãos e viu o sangue correr por seus longos dedos, pelos pulsos, por baixo das mangas do vestido. Lentos vermes vermelhos rastejavam ao longo de seus braços e sob a roupa. Faz cócegas. Aquilo fez com que risse até gritar.
- Louca - disse alguém -, perdeu o juízo.
- E outra pessoa disse:
- Dê um fim nela - e uma mão agarrou seus cabelos tal como ela fizera com Guizo, e Catelyn pensou, Não, isso não, não me corte os cabelos, Ned adora meus cabelos. E então o aço chegou-lhe à garganta, e a sua mordida era rubra e fria.
As tendas para banquetes estavam agora atrás deles. Chapinharam por sobre barro molhado e mato arrancado, para longe da luz e de volta às sombras. Em frente erguia-se a guarita do castelo. Arya via tochas em movimento nas muralhas, com as chamas a dançar, sopradas pelo vento. A luz brilhava, baça, sobre cota de malha e elmos molhados. Mais tochas moviam-se pela ponte escura de pedra que unia as Gêmeas, uma coluna de tochas que corria da margem ocidental para a oriental.
- O castelo não está fechado - disse Arya de repente. O sargento tinha dito que estaria, mas se enganou. A porta levadiça estava sendo içada naquele exato instante, e a ponte levadiça já tinha sido baixada por sobre o fosso transbordando de água. Teve receio de que os guardas de Lorde Frey se recusassem a deixá-los entrar. Durante meio segundo mordeu o lábio, ansiosa demais para sorrir.
Cão de Caça freou os animais tão de repente que ela quase caiu da carroça.
- Sete malditos infernos de merda - ouviu-o praguejar, enquanto a roda esquerda começava a se enterrar na lama mole. A carroça foi se inclinando lentamente. - Para o chão - rugiu-lhe Clegane, batendo no ombro dela com o pulso para fazê-la cair de lado.
Aterrissou ligeira, como Syrio lhe ensinara, e pôs-se imediatamente em pé com o rosto cheio de lama.
- Por que fez isto? - gritou.
Cão de Caça também tinha saltado para o chão. Ele arrancou o assento da parte da frente da carroça e estendeu a mão para o cinto da espada que escondera por baixo dele.
Foi só então que Arya ouviu os cavaleiros jorrando do portão do castelo num rio de aço e fogo, com o trovão que os seus corcéis de batalha faziam ao atravessar a ponte levadiça quase sumido sob os tambores que soavam nos castelos. Homens e montarias usavam armaduras de aço, e um em cada dez trazia uma tocha. Os outros tinham machados, alabardas e pesadas lâminas capazes de quebrar ossos e esmagar armaduras.
Em algum lugar, ao longe, ouviu um lobo uivar. Não era um som muito alto, comparado com o ruído do acampamento, a música e o rosnar baixo e ameaçador do rio que corria rápido, mesmo assim ouviu-o. Mas talvez não tivessem sido os ouvidos a ouvi-lo. O som estremeceu através de Arya como uma faca, afiada de fúria e pesar. Mais e mais cavaleiros emergiam do castelo, uma coluna com a largura de quatro homens e que parecia sem fim, cavaleiros, escudeiros e cavaleiros livres, tochas e machados de cabo longo. E também havia barulho vindo de trás.
Quando Arya olhou em volta, viu que só restavam duas das enormes tendas para banquetes onde tinha havido três. A do meio caíra. Por um momento, não compreendeu o que estava vendo. Então, as chamas começaram a lamber a tenda caída, e agora as outras duas caíam também, com o pesado tecido oleado assentando-se sobre os homens que estavam por baixo. Um bando de flechas incendiárias rasgou o ar. A segunda tenda pegou fogo, e logo a terceira. Os gritos tornaram-se tão ruidosos que conseguia ouvir palavras através da música. Silhuetas escuras moviam-se diante das chamas, com o aço de suas armaduras brilhando em tons de laranja quando visto de longe.
Uma batalha, compreendeu Arya. É uma batalha. E os cavaleiros...
Então ficou sem tempo para observar as tendas. Com o rio invadindo as margens, as águas escuras e turbulentas na extremidade da ponte levadiça chegavam à barriga dos cavalos, mas os cavaleiros avançaram através delas mesmo assim, incentivados pela música. Por uma vez, a mesma canção vinha de ambos os castelos. Eu conheço esta canção, compreendeu Arya subitamente. Tom das Sete cantara-a, naquela noite chuvosa em que os fora da lei tinham se abrigado na cervejaria com os irmãos pardos. E quem é você, disse o altivo senhor, pra que a vénia seja profunda?
Os cavaleiros Frey atravessavam com dificuldade a lama e os juncos, mas alguns deles tinham visto a carroça. Arya viu três abandonarem a coluna principal, pisando forte ao longo dos baixios. Só um gato com um manto diferente, essa é a verdade fecunda.
Com um único golpe de espada, Clegane cortou a corda que prendia Estranho e saltou para o dorso do animal. O corcel sabia o que se queria dele. Levantou as orelhas e virou na direção dos corcéis de batalha em carga. Num manto de ouro ou num manto vermelho, suas garras um leão mantém. E as minhas são longas e afiadas, senhor, como o senhor as tem também. Arya rezara centenas e centenas de vezes para que Cão de Caça morresse, mas agora... havia uma pedra em sua mão, escorregadia de lama, e nem sequer se lembrava de tê-la pegado. Contra quem a atiro?
Saltou ao ouvir o estrondo do metal, quando Clegane afastou o primeiro machado. Enquanto lutava com o primeiro homem, o segundo deu a volta por trás dele e desferiu um golpe contra a parte baixa de suas costas. Estranho girava, e Cão de Caça foi atingido por não mais que um golpe de raspão, o bastante para fazer um grande rasgão em sua blusa larga de camponês e expor a cota de malha que tinha por baixo. É um contra três. Arya continuava agarrada à sua pedra. Vão matá-lo com certeza. Pensou em Mycah, no filho do açougueiro que tinha sido seu amigo durante tão pouco tempo.
Então viu o terceiro cavaleiro vindo em sua direção. Arya pôs-se atrás da carroça. O medo golpeia mais profundamente do que as espadas. Ouvia tambores, berrantes de guerra e flautas, garanhões berrando, o guincho do aço batendo em aço, mas todos os sons pareciam muito distantes. A única coisa que existia era o cavaleiro que se aproximava e o machado que ele tinha na mão. Usava um sobretudo sobre a armadura e ela viu as duas torres que o identificavam como um Frey. Não compreendeu. O tio ia se casar com uma filha de Lorde Frey, os Frey eram amigos de seu irmão.
- Não! - gritou enquanto ele rodeava a carroça, mas o homem não prestou atenção nela.
Quando ele avançou, Arya atirou a pedra, da mesma maneira que atirara uma maçã apodrecida em Gendry. Tinha acertado em Gendry bem no meio da testa, mas agora falhou a pontaria, e a pedra rolou, de lado, na têmpora do homem. Foi o suficiente para interromper a arremetida, mas apenas isso. Arya fugiu, correndo nas pontas dos pés pelo terreno lamacento, pondo a carroça de novo entre ambos. O cavaleiro seguiu-a a trote, só trevas por trás da fenda para os olhos. Nem sequer amassara seu elmo. Giraram uma, duas vezes, uma terceira. O cavaleiro amaldiçoou-a.
- Não pode fugir para...
A cabeça do machado acertou em cheio na nuca dele, rasgando-lhe o elmo e o crânio, por baixo, e fazendo-o voar da sela e aterrissar de cara no chão. Atrás dele encontrava-se Cão de Caça, ainda montado no Estranho. Como foi que arranjou um machado?, quase perguntou, antes de compreender. Um dos outros Frey estava encurralado debaixo de seu cavalo moribundo, afogando-se em trinta centímetros de água. O terceiro homem estava estatelado de costas, imóvel. Não tinha usado gorjal, e trinta centímetros de espada partida projetavam-se de debaixo de seu queixo.
- Vá buscar o meu elmo - rosnou-lhe Clegane.
O elmo estava enfiado no fundo de uma saca de maçãs secas, na parte de trás da carroça, escondida atrás dos pés de porco em salmoura. Arya virou a saca e jogou o elmo para Cão de Caça. Ele apanhou-o no ar com uma só mão e enfiou-o na cabeça, e no local onde estivera o homem havia apenas um cão de aço, rosnando para os incêndios.
- Meu irmão...
- Morto - ele gritou em resposta. - Acha que massacrariam os homens dele e o deixariam vivo? - Voltou a cabeça para o acampamento. - Olhe. Olhe, droga.
O acampamento transformara-se num campo de batalha. Não, num antro de carniceiros. As chamas vindas das tendas para banquetes chegavam a meio caminho do céu. Algumas das tendas-casernas também estavam queimando, bem como meia centena de pavilhões de seda. Por todo lado as espadas cantavam. Mas agora a chuva chora em seu salão, e ninguém está lá para a ver. Viu dois cavaleiros perseguindo e abatendo um homem que fugia a pé. Um barril de madeira esmagou-se numa das tendas incendiadas e estourou, e as chamas saltaram, duas vezes mais altas. Uma catapulta, compreendeu. O castelo estava arremessando azeite, ou piche, ou algo parecido.
- Venha comigo. - Sandor Clegane estendeu uma mão para baixo. - Temos que sair daqui, e já. - Estranho sacudiu impacientemente a cabeça, com as ventas se abrindo ao sentir o cheiro de sangue. A canção tinha terminado. Restava apenas um tambor solitário, cujos sons lentos e monótonos ecoavam por sobre o rio como o bater de um coração monstruoso. O céu negro chorava, o rio resmungava, homens praguejavam e morriam. Arya tinha lama nos dentes e o rosto estava molhado. Chuva. É só chuva. Não passa disso.
- Estamos aqui - gritou. Sua voz soava fina e assustada, uma voz de menininha. - Robb está ali no castelo, e minha mãe também. O portão está aberto e tudo. - Não havia mais Freys saindo. Vim até tão longe. - Temos que buscar a minha mãe.
- Cadelinha estúpida. - Os incêndios refletiam-se no focinho de seu elmo e faziam os dentes de aço brilhar. - Se entrar ali, não volta a sair. O Frey talvez a deixe beijar o cadáver de sua mãe.
- Talvez possamos salvá-la...
- Você talvez possa. Eu não estou cansado de viver ainda. - Avançou em sua direção, empurrando-a contra a carroça. - Fique ou parta, loba. Sobreviva ou morra. A escolha...
Arya virou as costas para ele e precipitou-se para o portão. A porta levadiça estava descendo, mas lentamente. Tenho que correr mais depressa. Mas a lama retardou-a, e depois a água. Corra, rápida como um lobo. A ponte levadiça tinha começado a subir, com a água escorrendo dela em cascata e a lama caindo em pesados grumos. Mais depressa. Ouviu um forte esparramar de água e, quando olhou para trás, viu Estranho trovejando em sua perseguição, fazendo voar nuvens de água a cada passo. E viu também o machado, ainda molhado de sangue e miolos. E Arya correu. Agora já não pelo irmão, nem mesmo pela mãe, mas por si mesma. Correu mais depressa do que jamais correra, de cabeça baixa e com os pés fazendo o rio espumar, fugiu dele como Mycah devia ter fugido.
E o machado atingiu-a na nuca.
Jantaram sozinhos, como faziam tantas vezes.
- As ervilhas estão cozidas demais - arriscou sua esposa a certa altura.
- Não importa - disse. - O carneiro também está.
Era uma brincadeira, mas Sansa entendeu como crítica.
- Lamento, senhor.
- Por quê? Quem deve lamentar é um cozinheiro qualquer. Você não. As ervilhas não são de sua jurisdição, Sansa.
- Eu... eu lamento que o senhor meu esposo esteja descontente.
- Qualquer descontentamento que eu possa estar sentindo nada tem a ver com ervilhas. Tenho Joffrey e minha irmã para me descontentar, e também o senhor meu pai, e trezentos malditos dorneses. - Tinha instalado o Príncipe Oberyn e seus senhores numa torre de canto, com vista para a cidade, tão longe dos Tyrell quanto era possível sem expulsá-los por inteiro da Fortaleza Vermelha. Não era nem de perto suficientemente longe. Já tinha ocorrido um distúrbio numa casa de pasto da Baixada das Pulgas que deixou um homem de armas Tyrell morto e dois dos homens de Lorde Gargalen escaldados, e um feio confronto no pátio quando a encarquilhada e minúscula mãe de Mace Tyrell chamara Eliaria Sand de "a prostituta da serpente". Sempre que acontecia de encontrar Oberyn Martell, o príncipe perguntava quando seria feita justiça. Ervilhas cozidas demais eram o último dos problemas de Tyrion, mas não via utilidade em sobrecarregar a sua jovem esposa com eles. Sansa tinha mágoas bastantes sem precisar das suas. - As ervilhas estão boas o suficiente - disse-lhe com concisão. - São verdes e redondas, o que mais podemos esperar de ervilhas? Veja, vou repetir o prato, se agradar à senhora. - Chamou, e Podrick Payne despejou tantas ervilhas em seu prato que já não conseguia ver o carneiro. Isso foi burrice, disse a si mesmo. Agora tenho que comer tudo, caso contrário ela vai começar a lamentar de novo,
O jantar terminou num silêncio tenso, como acontecia com tantos de seus jantares. Depois, enquanto Pod recolhia as taças e bandejas, Sansa pediu a Tyrion licença para visitar o bosque sagrado.
- Como quiser. - Habituara-se às devoções noturnas da esposa. Ela também rezava no septo real e frequentemente acendia velas à Mãe, à Donzela e à Velha. Tyrion achava toda aquela piedade excessiva, a bem da verdade, mas se estivesse no lugar dela, talvez também quisesse a ajuda dos deuses. - Confesso pouco saber dos deuses antigos - disse, tentando ser agradável. - Talvez algum dia possa me esclarecer. Até poderia acompanhá-la.
- Não - disse Sansa de imediato. - E... é gentil em sugerir isso, mas... não há devoções, senhor. Não há sacerdotes, canções ou velas. Só árvores e preces silenciosas. Iria aborrecê-lo.
- Tem certamente razão. - Ela conhece-me melhor do que eu pensava. - Se bem que o som do restolhar de folhas poderia ser mais agradável do que um septão qualquer cantarolando a respeito dos sete aspectos da graça. - Tyrion mandou-a embora com um gesto. - Não me intrometerei. Proteja-se bem, senhora, o vento lá fora é fresco. - Sentiu-se tentado a perguntar o que ela pedia ao rezar, mas Sansa era tão obediente que podia realmente lhe contar, e ele suspeitava de que não gostaria de saber.
Voltou ao trabalho depois que ela saiu, tentando seguir alguns dragões de ouro pelo labirinto dos livros-mestres do Mindinho. Petyr Baelish não acreditara em deixar o ouro guardado e juntando pó, isso era certo, mas quanto mais Tyrion procurava compreender suas contas, mais lhe doía a cabeça. Falar de reproduzir dragões em vez de trancá-los no tesouro estava muito bem, mas alguns daqueles empreendimentos cheiravam pior do que peixe pescado há uma semana. Não teria deixado tão prontamente Joffrey atirar os Homens Chifrudos por cima das muralhas se soubesse quantos dos malditos bastardos tinham recebido empréstimos da coroa. Teria de mandar Bronn encontrar seus herdeiros, mas temia que isso se revelasse tão infrutífero quanto tentar espremer prata de um peixinho-prateado.
Quando a convocatória do senhor seu pai chegou, foi a primeira vez, até onde Tyrion se lembrava, em que se sentiu contente por ver Sor Boros Blount. Fechou os livros-mestres com um sentimento de gratidão, apagou a candeia de azeite com um sopro, amarrou um manto em volta dos ombros e bamboleou através do castelo até a Torre da Mão. O vento era fresco, tal como prevenira Sansa, e havia cheiro de chuva no ar. Quando Lorde Tywin o dispensasse, talvez devesse ir ao bosque sagrado, para trazer Sansa para casa antes que ficasse encharcada.
Mas tudo isso foi varrido da sua cabeça quando entrou no aposento privado da Mão e deparou com Cersei, Sor Kevan e o Grande Meistre Pycelle reunidos em volta de Lorde Tywin e do rei. Joffrey estava quase aos saltos, e Cersei saboreava um sorrisinho cheio de si, embora Lorde Tywin parecesse tão sombrio como sempre. Pergunto-me se ele seria capaz de sorrir, mesmo se quisesse.
- O que aconteceu? - perguntou Tyrion.
O pai estendeu um rolo de pergaminho para ele. Alguém o alisara, mas ainda tentava se enrolar. "A Roslin pegou uma bela truta gorda", dizia a mensagem. "Os irmãos ofereceram-lhe um par de pele de lobo como presente de casamento." Tyrion virou o pergaminho para inspecionar o selo quebrado. A cera era cinza-prateada, e impressas nela encontravam-se as torres gêmeas da Casa Frey.
- O Senhor da Travessia imagina que está sendo poético? Ou será que isso pretende nos confundir? - Tyrion fungou. - A truta deve ser Edmure Tully, as peles...
- Ele está morto. - Joffrey soava tão orgulhoso e feliz que daria para achar que tinha sido ele quem esfolou Robb Stark em pessoa.
Primeiro o Greyjoy, e agora o Stark. Tyrion pensou na criança sua esposa, que naquele momento rezava no bosque sagrado. Rezando aos deuses do pai para que concedam ao irmão a vitória e mantenham a mãe a salvo, sem dúvida. Os deuses antigos não ligavam mais para as preces do que os novos, aparentemente. Talvez devesse sentir-se reconfortado por isso.
- Os reis estão caindo como folhas, neste outono - disse. - Aparentemente, nossa guerrinha está se ganhando sozinha.
- As guerras não se ganham sozinhas, Tyrion - disse Cersei com uma doçura venenosa. - O senhor nosso pai ganhou esta guerra.
- Nada está ganho enquanto tivermos inimigos em campo - preveniu-os Lorde Tywin.
- Os senhores do rio não são nada tolos - concordou a rainha. - Sem os nortenhos, não podem esperar resistir ao poderio combinado de Jardim de Cima, Rochedo Casterly e Dorne. Certamente preferirão a submissão à destruição.
- A maioria, sim - concordou Lorde Tywin. - Resta Correrrio, mas enquanto Walder Frey tiver Edmure Tully como refém, o Peixe Negro não se atreverá a constituir uma ameaça. Jason Mallister e Tytos Blackwood continuarão lutando em nome da honra, mas os Frey podem manter os Mallister encurralados em Guardamar, e com o incitamento certo, Jonos Bracken pode ser persuadido a mudar de fidelidade e atacar os Blackwood. No fim, dobrarão os joelhos, sim. Pretendo oferecer termos generosos. Qualquer castelo que se renda a nós será poupado, exceto um.
- Harrenhal? - disse Tyrion, que conhecia o pai.
- É melhor que o reino se livre desses Bravos Companheiros. Ordenei a Sor Gregor para passar o castelo na espada.
Gregor Clegane. Parecia que o pai pretendia minar a Montanha até a última pepita de minério antes de entregá-la à justiça de Dorne. Os Bravos Companheiros acabariam como cabeças montadas em espigões, e Mindinho entraria de passeio em Harrenhal, sem uma única mancha de sangue naquelas suas belas roupas. Perguntou a si mesmo se Petyr Baelish já teria chegado ao Vale. Se os deuses forem bons, enfrentou com uma tempestade no mar e afundou-se. Mas quando os deuses tinham sido razoavelmente bons?
- Deviam ser todos passados na espada - declarou de repente Joffrey. - Os Mallister, os Blackwood e os Bracken... todos. São traidores. Quero-os mortos, avô. Não quero nenhum termo generoso. - O rei virou-se para o Grande Meistre Pycelle. - E também quero a cabeça de Robb Stark. Escreva ao Lorde Frey e diga-lhe. O rei ordena. Vou servi-la a Sansa em meu banquete de casamento.
- Senhor - disse Sor Kevan numa voz chocada -, a senhora é agora sua tia pelo casamento.
- Uma brincadeira. - Cersei sorriu. - Joff não falava a sério.
- Falava, sim - insistiu Joffrey. - Ele era um traidor, e quero a sua estúpida cabeça. Vou obrigar Sansa a beijá-la.
- Não. - A voz de Tyrion estava enrouquecida. - Sansa já não é sua para atormentar. Veja se percebe isso, monstro.
Joffrey deu um sorriso zombeteiro.
- O monstro é você, tio.
- Ah, sou? - Tyrion inclinou a cabeça. - Então talvez devesse falar comigo mais de mansinho. Os monstros são animais perigosos, e agora os reis parecem andar morrendo como moscas.
- Podia cortar sua língua por dizer isso - disse o jovem rei, corando. - Sou o rei.
Cersei apoiou uma mão protetora no ombro do filho.
- Deixe o anão fazer todas as ameaças que quiser, Joff. Quero que o senhor meu pai e o meu tio vejam aquilo que ele é.
Lorde Tywin ignorou aquilo; foi a Joffrey que se dirigiu.
- Aerys também achava que tinha de lembrar aos homens que era o rei. E também era muito amigo de arrancar línguas. Pode interrogar Sor Ilyn Payne a esse respeito, embora não vá obter resposta.
- Sor Ilyn nunca se atreveu a provocar Aerys como o seu Duende provoca Joff - disse Cersei. - Ouviu Tyrion. "Monstro", disse ele. A Graça Real. E ameaçou-o...
- Fique calada, Cersei. Joffrey, quando os seus inimigos o desafiarem, tem de lhes servir aço e fogo. Mas quando se ajoelham, tem de ajudá-los a se levantar. De outro modo, nunca ninguém dobrará o joelho. E qualquer homem que tenha de dizer "sou o rei" não é rei de verdade. Aerys nunca compreendeu isso, mas você compreenderá. Depois de ganhar a sua guerra, restauraremos a paz régia e a justiça real. Em vez de cabeças, preocupe-se é com o cabaço de Margaery Tyrell.
Joffrey ostentava aquela sua expressão carrancuda e amuada. Cersei tinha-o firmemente preso pelo ombro, mas talvez devesse tê-lo agarrado pela garganta. O rapaz surpreendeu a todos. Em vez de fugir e de ir se enfiar debaixo de uma pedra, Joff ergueu-se com um ar desafiador e disse;
- Fala de Aerys, avô, mas tinha medo dele.
Ora essa, e não é que isso ficou interessante?, pensou Tyrion.
Lorde Tywin estudou o neto em silêncio, com salpicos de ouro brilhando em seus olhos verde-claros.
- Joffrey, peça perdão ao seu avô - disse Cersei.
Ele libertou-se das mãos dela.
- Por que devo pedir perdão? Todo mundo sabe que é verdade. O meu pai ganhou todas as batalhas. Matou o Príncipe Rhaegar e capturou a coroa, enquanto o seu pai estava escondido por baixo de Rochedo Casterly. - O rapaz dirigiu ao avô um olhar de desafio. - Um rei forte age com ousadia, não se limita a conversar.
- Obrigado por essas palavras de sabedoria, Vossa Graça - disse Lorde Tywin, com uma cortesia tão fria que era capaz de fazer cair suas orelhas, congeladas. - Sor Kevan, vejo que o rei está cansado. Por favor, acompanhe-o em segurança de volta ao seu quarto. Pycelle, talvez uma poção suave para ajudar Sua Graça a ter um sono descansado?
- Vinho dos sonhos, senhor?
- Não quero vinho dos sonhos nenhum - insistiu Joffrey.
Lorde Tywin teria dado mais ouvidos a um rato guinchando no canto.
- Vinho dos sonhos servirá. Cersei, Tyrion, fiquem.
Sor Kevan pegou firmemente no braço de Joffrey e levou-o porta afora, atrás da qual dois homens da Guarda Real esperavam. O Grande Meistre Pycelle apressou-se a segui-los o mais depressa que as suas velhas pernas trêmulas conseguiam levá-lo. Tyrion ficou onde estava.
- Pai, lamento - disse Cersei quando a porta foi fechada. - Joff sempre foi teimoso, eu preveni...
- Há léguas e léguas de diferença entre teimoso e burro. "Um rei forte age com ousadia?" Quem lhe disse isso?
- Eu não, garanto - disse Cersei. - O mais provável é que tenha sido algo que ouviu Robert dizer...
- A parte sobre você se esconder por baixo do Rochedo Casterly realmente soa a Robert. - Tyrion não queria que Lorde Tywin se esquecesse dessa parte da conversa.
- Sim, agora me lembro - disse Cersei - Robert disse com frequência a Joff que um rei tem de ser ousado.
- E o que você anda lhe dizendo, se não se importa? Não travei uma guerra para pôr Robert Segundo no Trono de Ferro. Você me levou a crer que o rapaz não gostava nada do pai.
- E por que haveria de gostar? Robert ignorava-o. Teria espancado Joff, se eu tivesse permitido. Aquele bruto com quem me obrigou a casar bateu uma vez no rapaz com tanta força que lhe tirou dois dentes de leite, por causa de uma travessura qualquer com um gato. Eu disse-lhe que o mataria durante o sono se voltasse a fazer isso, e ele não fez, mas às vezes dizia coisas...
- Aparentemente, havia coisas que precisavam ser ditas. - Lorde Tywin acenou-lhe com dois dedos, uma brusca despedida. - Saia.
E ela saiu, fervendo.
- Não é Robert Segundo - disse Tyrion. - E Aerys Terceiro.
- O rapaz tem treze anos. Ainda há tempo. - Lorde Tywin dirigiu-se à janela. Não era característico dele, estava mais perturbado do que queria mostrar. - Precisa de uma boa lição.
Tyrion tinha recebido a sua boa lição aos treze anos. Quase sentiu pena do sobrinho. Por outro lado, ninguém a merecia mais do que ele.
- Basta de falar de Joffrey - disse. - As guerras são ganhas com penas e corvos, não foi o que disse? Tenho de lhe dar os parabéns. Há quanto tempo andava conspirando isso com Walder Frey?
- Essa palavra desagrada-me - disse Lorde Tywin rigidamente.
- E a mim desagrada ser deixado no escuro.
- Não havia motivo para lhe contar. Não tinha participação nenhuma no assunto.
- Cersei foi informada? - quis saber Tyrion.
- Ninguém foi informado, exceto aqueles que tinham um papel a desempenhar. E esses só foram informados daquilo que precisavam saber. Devia saber que não há outra maneira de manter um segredo... especialmente aqui. Meu objetivo era livrar-nos de um inimigo perigoso da forma menos dispendiosa possível, não satisfazer a sua curiosidade ou fazer com que a sua irmã se sentisse importante. - Fechou as venezianas, franzindo a testa. - Você tem certa astúcia, Tyrion, mas a verdade é que fala demais. Essa sua língua solta ainda será o seu fim.
- Devia ter deixado que Joffrey a arrancasse - sugeriu Tyrion.
- Faria bem em não me tentar - disse Lorde Tywin. - Não quero mais conversas sobre isso. Tenho refletido sobre como melhor apaziguar Oberyn Martell e sua comitiva.
- Oh? E é alguma coisa que sou autorizado a saber, ou será que devo deixá-lo sozinho para que possa discutir o assunto consigo?
O pai ignorou o gracejo.
- A presença do Príncipe Oberyn na cidade é um infortúnio. O irmão é um homem cauteloso, um homem racional, sutil, ponderado, até algo indolente. É um homem que pesa as consequências de cada palavra e de cada ato. Mas Oberyn sempre foi meio louco.
- É verdade que tentou mobilizar Dorne em favor de Viserys?
- Ninguém fala disso, mas sim. Voaram corvos e galoparam mensageiros, com mensagens secretas que eu nunca soube o que diziam. Jon Arryn velejou até Lançassolar para devolver os ossos do Príncipe Lewyn, sentou-se com o Príncipe Doran e pôs fim a todo o falatório sobre guerra. Mas, depois disso, Robert nunca foi a Dorne, e o Príncipe Oberyn raramente saiu de lá.
- Bem, agora está aqui, com metade da nobreza de Dorne atrás, e fica mais impaciente a cada dia - disse Tyrion. - Talvez eu devesse mostrar-lhe os bordéis de Porto Real, isso talvez o distraia. Uma ferramenta para cada tarefa, não é assim que as coisas são? A minha ferramenta é sua, pai. Que nunca se diga que a Casa Lannister fez soar as trombetas e eu não respondi.
A boca de Lorde Tywin comprimiu-se.
- Muito divertido. Deverei mandar fazer um traje quadriculado para você, e um chapeuzinho cheio de guizos?
- Se o usar, terei licença para dizer tudo que quiser a respeito de Sua Graça, o Rei Joffrey?
Lorde Tywin voltou a se sentar e disse:
- Fui obrigado a aguentar as loucuras de meu pai. Não aguentarei as suas. Basta.
- Muito bem, já que o pede de um modo tão simpático. Temo que o Víbora Vermelha não vá ser simpático... e tampouco se contente apenas com a cabeça de Sor Gregor.
- Mais um motivo para não dá-la.
- Não dá-la...? - Tyrion estava chocado. - Pensei que estávamos de acordo em que a floresta estava cheia de animais.
- Animais menores. - Os dedos de Lorde Tywin entrelaçaram-se sob o seu queixo. - Sor Gregor serviu-nos bem. Nenhum outro cavaleiro no reino inspira tanto terror em nossos inimigos.
- Oberyn sabe que foi Gregor quem...
- Ele não sabe nada. Ouviu histórias. Mexericos de estábulo e calúnias de cozinha. Não tem nem uma migalha de provas. Sor Gregor certamente não estará disposto a lhe fazer uma confissão. Pretendo mantê-lo bem afastado enquanto os dorneses estiverem em Porto Real.
- E quando Oberyn exigir a justiça que veio obter?
- Direi que foi Sor Amory Lorch quem matou Elia e os filhos - disse calmamente Lorde Tywin. - E você também, se ele perguntar.
- Sor Amory Lorch está morto - disse Tyrion numa voz sem expressão.
- Exatamente. Vargo Hoat ordenou que Sor Amory fosse desmembrado por um urso após a queda de Harrenhal. Isso deve ser suficientemente macabro para apaziguar até Oberyn Martell.
- Pode chamar isso de justiça...
- É justiça. Foi Sor Amory quem me trouxe o corpo da menina, já que tem de saber. Encontrou-a escondida debaixo da cama do pai, como se acreditasse que Rhaegar ainda podia protegê-la. A princesa Elia e o bebê estavam no quarto das crianças, no andar de baixo.
- Bem, é uma história, e não é provável que Sor Amory a negue. O que dirá a Oberyn quando ele perguntar quem deu a Lorch as suas ordens?
- Sor Amory agiu por conta própria, na esperança de conquistar o favor do novo rei. O ódio de Robert por Rhaegar não era nem um pouco secreto.
Pode servir, Tyrion teve de admitir, mas a serpente não ficará contente.
- Longe de mim questionar a sua astúcia, pai, mas em seu lugar creio que teria deixado Robert Baratheon ensanguentar as próprias mãos.
Lorde Tywin fitou-o como se ele tivesse perdido o juízo.
- Então merece aquele traje quadriculado. Tínhamos chegado tarde à causa de Robert. Era necessário demonstrar a nossa lealdade. Quando depus aqueles cadáveres perante o trono, ninguém pôde duvidar de que eu tinha abandonado para sempre a Casa Targaryen. E o alívio de Robert foi palpável. Por mais burro que fosse, até ele sabia que os filhos de Rhaegar tinham de morrer se quisesse que o trono alguma vez estivesse seguro. Mas via-se como um herói, e os heróis não matam crianças. - O pai de Tyrion encolheu os ombros. - Admito que houve brutalidade em excesso. Elia não precisava ter sido ferida de todo, isso foi pura loucura. Em si mesma nada era.
- Então por que foi que a Montanha a matou?
- Porque não lhe disse para poupá-la. Duvido que tenha chegado a mencioná-la. Tinha preocupações maiores. A vanguarda de Ned Stark corria para o sul vinda do Tridente, e temi que se pudesse chegar ao ponto de cruzarmos espadas. E Aerys tinha disposição para assassinar Jaime, sem nenhum motivo além do rancor. Era isso que eu mais temia. Isso e o que o próprio Jaime poderia fazer. - Fechou a mão num punho. - E ainda não tinha compreendido bem o que havia em Gregor Clegane, sabia apenas que ele era enorme e terrível em batalha. O estupro... nem você poderá me acusar de ter dado essa ordem, espero eu. Sor Amory mostrou selvageria quase idêntica com Rhaenys. Mais tarde, perguntei-lhe por que tinham sido necessárias meia centena de estocadas para matar uma garota de... dois anos. Três? Ele disse que ela o chutou e não parava de gritar. Se Lorch tivesse metade dos miolos que os deuses deram a um nabo, teria acalmado a criança com algumas palavras doces e usado uma almofada suave de seda. - Sua boca torceu-se de repugnância. - Tinha sangue nele.
Mas em você não, pai. Não há sangue em Tywin Lannister.
- Foi uma almofada suave de seda que matou Robb Stark?
- Deveria ter sido uma flecha, no banquete de casamento de Edmure Tully. O rapaz era cauteloso demais no campo de batalha. Mantinha seus homens em boa ordem, e cercava-se de batedores e guarda-costas.
- Então Lorde Walder matou-o sob o próprio teto, à própria mesa? - Tyrion fez um punho. - E a Senhora Catelyn?
- Diria que também foi morta. Um par de pele de lobo. O Frey pretendia mantê-la cativa, mas talvez algo tenha dado errado.
- E lá se foi o direito de hóspede.
- O sangue está nas mãos de Walder Frey, não nas minhas.
- Walder Frey é um velho rabugento que vive para acariciar a sua jovem esposa e matutar sobre todas as desfeitas que sofreu. Não duvido que tenha chocado esta feia galinha, mas nunca teria se atrevido a tal coisa sem uma promessa de proteção.
- Suponho que você teria poupado o rapaz e dito a Lorde Frey que a sua fidelidade não lhe fazia falta. Isso teria atirado o velho idiota nos braços dos Stark e teria conquistado mais um ano de guerra. Explique-me como é que é mais nobre matar dez mil homens em batalha do que uma dúzia no jantar. - Quando Tyrion não teve resposta para aquilo, o pai prosseguiu. - O preço foi barato, de qualquer ponto de vista. A coroa atribuirá Correrrio a Sor Emmon Frey depois que o Peixe Negro se render. Lancei e Daven deverão se casar com garotas Frey, Joy deverá se casar com um dos filhos ilegítimos de Lorde Walder quando tiver idade para isso, e Roose Bolton torna-se Protetor do Norte e leva para casa Arya Stark.
- Arya Stark? - Tyrion inclinou a cabeça. - Bolton também? Devia ter compreendido que o Frey não teria estômago para agir sozinho. Mas Arya... Varys e Sor Jacelyn procuraram-na durante mais de meio ano. Arya Stark está morta com certeza.
- Renly também estava, até a Água Negra.
- O que isso quer dizer?
- Talvez Mindinho tenha obtido sucesso onde você e Varys falharam. Lorde Bolton casará a garota com o seu filho bastardo. Permitiremos que o Forte do Pavor lute contra os homens de ferro durante alguns anos e veremos se consegue levar os outros vassalos dos Stark a se ajoelhar. Ao chegar a primavera, todos eles deverão estar no fim de suas forças e prontos para dobrar o joelho. O Norte passará para o seu filho e de Sansa Stark... se alguma vez arranjar suficiente virilidade para gerar um. Não se esqueça de que não é só Joffrey quem tem de pôr fim a uma virgindade.
Não me esqueci, embora tivesse esperança de que você tivesse esquecido.
- E quando acha que Sansa estará mais fértil? - perguntou Tyrion ao pai num tom que pingava ácido. - Antes ou depois de eu lhe contar como assassinamos sua mãe e seu irmão?
Por um momento, pareceu que o rei não tinha ouvido. Stannis não mostrou qualquer prazer com a notícia, nem ira, nem incredulidade, nem mesmo alívio. Encarou a sua Mesa Pintada com os dentes cerrados com força.
- Tem certeza? - perguntou.
- Não estou vendo o corpo, não, Vossa Realdade - disse Salladhor Saan. - Mas na cidade, os leões pavoneiam-se e dançam. O povo está chamando de O Casamento Vermelho. Juram que Lorde Frey cortou a cabeça do rapaz, costurou a cabeça do lobo gigante dele no lugar e pregou uma coroa sobre as orelhas. A senhora mãe dele também foi morta e atirada nua ao rio.
Num casamento, pensou Davos. Sentado à mesa de seu assassino, um hóspede sob o seu teto. Aqueles Frey estão amaldiçoados. Sentia de novo o cheiro do sangue ardendo e ouvia a sanguessuga silvar e cuspir nas brasas quentes do braseiro.
- Foi a ira do Senhor que o matou - declarou Sor Axell Florent. - Isso tem a mão de R'hllor!
- Louvem o Senhor da Luz! - entoou a Rainha Selyse, uma mulher magra e macilenta, com grandes orelhas e um lábio superior peludo.
- Será que a mão de Rhllor é manchada e entrevada? - perguntou Stannis. - Isso parece mais obra de Walder Frey do que de qualquer deus.
- Rhllor escolhe os instrumentos de que necessita. - O rubi na garganta de Melisandre brilhava, rubro. - Seus caminhos são misteriosos, mas nenhum homem pode resistir à sua vontade ardente.
- Nenhum homem pode resistir a ele! - gritou a rainha.
- Fique calada, mulher. Não está numa fogueira noturna agora. - Stannis examinou a Mesa Pintada. - O lobo não deixa herdeiros, a lula gigante deixa muitos. Os leões vão devorá-los, a menos que... Saan, vou precisar de seus navios mais rápidos para levar enviados às Ilhas de Ferro e a Porto Branco. Oferecerei indultos. - O modo como cerrou os dentes mostrou o pouco que gostava da palavra. - Indultos totais, para todos aqueles que se arrependerem da traição e jurarem lealdade ao seu legítimo rei. Têm de compreender...
- Não compreenderão. - A voz de Melisandre era suave. - Lamento, Vossa Graça. Isso não é um fim. Mais falsos reis irão se erguer em breve para tomar a coroa daqueles que morreram.
- Mais? - Stannis parecia com vontade de esganá-la. - Mais usurpadores? Mais traidores?
- Vi nas chamas.
A Rainha Selyse aproximou-se do rei.
- O Senhor da Luz enviou Melisandre para guiá-lo até a glória. Dê ouvidos a ela, suplico. As chamas sagradas de Rhllor não mentem.
- Há mentiras e mentiras, mulher. Mesmo quando essas chamas falam a verdade, estão cheias de truques, parece-me.
- Uma formiga que escute as palavras de um rei pode não compreender o que ele está dizendo - disse Melisandre - e todos os homens são formigas perante o rosto ardente de deus. Se às vezes confundi um aviso com uma profecia ou uma profecia com um aviso, a falha cabe ao leitor, não ao livro. Mas sei isso com certeza: enviados e indultos não lhe serão agora mais úteis do que sanguessugas. Tem de mostrar ao reino um sinal. Um sinal que prove o seu poder!
- Poder? - o rei fungou. - Tenho mil e trezentos homens em Pedra do Dragão, mais trezentos em Ponta Tempestade. - A mão varreu a Mesa Pintada. - O resto de Westeros está nas mãos de meus inimigos. Não tenho frota além da de Salladhor Saan. Não tenho moeda para contratar mercenários. Não tenho expectativas de saque ou glória para atrair cavaleiros livres à minha causa.
- Senhor esposo - disse a Rainha Selyse -, tem mais homens do que Aegon tinha há trezentos anos. Tudo que lhe falta são dragões.
O olhar que Stannis lhe dirigiu era sombrio.
- Nove magos cruzaram o mar para chocar os ovos de Aegon Terceiro. Baelor, o Abençoado, rezou sobre o seu durante meio ano. Aegon, o Quarto, construiu dragões de madeira e ferro. Aerion Chamaviva bebeu fogovivo para se transformar. Os magos falharam, as preces do Rei Baelor não obtiveram resposta, os dragões de madeira queimaram, e o Príncipe Aerion morreu aos gritos.
A Rainha Selyse mostrou-se inflexível.
- Nenhum desses homens era o escolhido de Rhllor. Nenhum cometa vermelho ardeu nos céus para anunciar a sua chegada. Nenhum brandia a Luminífera, a espada vermelha dos heróis. E nenhum deles pagou o preço. A Senhora Melisandre dirá, senhor. Só a morte pode pagar pela vida.
- O garoto? - o rei quase cuspiu as palavras.
- O garoto - concordou a rainha.
- O garoto - ecoou Sor Axell.
- Já estava farto desse maldito garoto antes mesmo de ele nascer - protestou o rei. - Até o nome dele é um rugido aos meus ouvidos e uma nuvem negra que paira sobre a minha alma.
- Dê-me o garoto e nunca mais terá de ouvir pronunciar seu nome novamente - prometeu Melisandre.
Não, mas vai ouvi-lo gritar quando ela o queimar, Davos segurou a língua. Era mais sensato não falar até que o rei ordenasse.
- Dê-me o garoto para Rhllor - disse a mulher vermelha - e a antiga profecia será cumprida. O seu dragão acordará e estenderá suas asas de pedra. O reino será seu.
Sor Axell ajoelhou-se.
- Sobre um joelho dobrado lhe suplico, senhor. Acorde o dragão de pedra e faça os traidores tremerem. Tal como Aegon, começa como Senhor de Pedra do Dragão. Tal como Aegon, conquistará. Que os falsos e os inconstantes sintam as suas chamas.
- A sua própria esposa suplica também, senhor esposo. - A Rainha Selyse ajoelhou-se perante o rei, com as mãos unidas como que em prece. - Robert e Delena profanaram a nossa cama e fizeram cair uma maldição sobre a nossa união. Esse garoto é o sujo fruto de sua fornicação. Levante esta sombra de meu ventre, e eu lhe darei muitos filhos legítimos, eu sei que sim. - Envolveu as pernas dele com os braços. - Ele é apenas um garoto, nascido da luxúria de seu irmão e da vergonha da minha prima.
- Ele é do meu sangue. Pare de me agarrar, mulher. - Rei Stannis pôs uma mão no ombro dela, soltando-se desajeitadamente de seu abraço. - Robert talvez tenha amaldiçoado nosso leito nupcial. Jurou-me que nunca pretendeu me envergonhar, que estava bêbado e não chegou a saber de quem era o quarto em que entrou naquela noite. Mas será que importa? O garoto não tem culpa, seja qual for a verdade.
Melisandre pousou a mão no braço do rei.
- O Senhor da Luz aprecia os inocentes. Não há sacrifício mais precioso. Do seu sangue de rei e do seu fogo sem mácula nascerá um dragão.
Stannis não se afastou do toque de Melisandre como havia se afastado do da rainha. A mulher vermelha era tudo que Selyse não era; jovem, de corpo cheio, e estranhamente bela, com seu rosto em forma de coração, cabelos acobreados e olhos sobrenaturalmente vermelhos.
- Seria uma coisa maravilhosa ver a pedra ganhar vida - admitiu de má vontade.
- E montar um dragão... lembro-me da primeira vez que o meu pai me levou à corte, Robert teve de ir de mãos dadas comigo. Eu não podia ter mais de quatro anos, o que significa que ele devia ter cinco ou seis. Depois concordamos que o rei tinha sido tão nobre como os dragões eram temíveis. - Stannis fungou. - Anos mais tarde, nosso pai disse-nos que Áerys tinha se cortado no trono naquela manhã, e por isso a sua Mão tomara o lugar dele. O homem que tanto nos impressionou foi Tywin Lannister. - Os dedos do rei tocaram a superfície da mesa, traçando levemente um caminho através dos montes envernizados. - Robert tirou os crânios das paredes quando colocou a coroa, mas não suportou a ideia de mandar destruí-los. Asas de dragão sobre Westeros... isso seria uma...
- Vossa Graça! - Davos inclinou-se para a frente. - Posso falar?
Stannis fechou a boca com tanta força que os dentes soltaram um estalido.
- Senhor da Mata de Chuva. Por que julga que fiz de você Mão, se não para falar? - o rei fez um gesto com a mão. - Diga o que quiser.
Guerreiro, dê-me coragem.
- Pouco sei de dragões e menos ainda de deuses... mas a rainha falou de maldições. Ninguém é tão amaldiçoado aos olhos dos deuses e dos homens como quem mata a família.
- Não há deuses além de Rhllor e do Outro, cujo nome não pode ser pronunciado.
- A boca de Melisandre era uma linha dura e vermelha. - E os homens pequenos amaldiçoam aquilo que não são capazes de compreender.
- Eu sou um homem pequeno - admitiu Davos -, portanto, explique-me por que necessita desse garoto, Edric Storm, para acordar o seu grande dragão de pedra, senhora.
- Estava determinado a proferir o nome do garoto tantas vezes quantas pudesse.
- Só a morte pode pagar pela vida, senhor. Uma grande dádiva requer um grande sacrifício.
- Onde está a grandeza numa criança ilegítima?
- Ele tem o sangue de um rei nas veias. Já viu o que até um pouco desse sangue pode fazer...
- Vi a senhora queimar algumas sanguessugas.
- E dois falsos reis estão mortos.
- Robb Stark foi assassinado por Lorde Walder da Travessia, e ouvimos dizer que Balon Greyjoy caiu de uma ponte. Quem foi que as suas sanguessugas mataram?
- Duvida do poder de R'hllor?
Não. Davos lembrava-se bem demais da sombra viva que saíra se contorcendo do ventre da mulher naquela noite sob Ponta Tempestade, das mãos negras empurrando as suas coxas. Aqui tenho de pisar com cuidado, senão uma sombra pode vir me procurar também.
- Até um contrabandista de cebolas sabe distinguir duas cebolas de três. Falta-lhe um rei, senhora.
Stannis resfolegou uma risada.
- Ele pegou-a, senhora. Dois não é igual a três.
- Com certeza, Vossa Graça. Um rei pode morrer por acaso, até dois... mas três? Se Joffrey morrer, no meio de todo o seu poder, rodeado por seus exércitos e sua Guarda Real, isso não mostraria o poder do Senhor em ação?
- Talvez mostre. - O rei falou como se se ressentisse de cada palavra.
- Ou talvez não. - Davos fez o melhor que pôde para esconder o medo.
- Joffrey morrerá - declarou a Rainha Selyse, serena em sua confiança.
- Até pode já estar morto - acrescentou Sor Axell.
Stannis olhou-os com um ar aborrecido.
- São corvos treinados, para crocitarem comigo um de cada vez? Basta.
- Esposo, escute-me... - rogou a rainha.
- Por quê? Dois é diferente de três. Os reis sabem contar tão bem quanto os contrabandistas. Podem ir. - Stannis virou as costas a eles.
Melisandre ajudou a rainha a se levantar. Selyse saiu do aposento, hirta, com a mulher vermelha atrás. Sor Axell deixou-se ficar tempo suficiente para lançar a Davos um último olhar. Um olhar feio num rosto feio, pensou o contrabandista ao encará-lo.
Depois de os outros saírem, Davos pigarreou. O rei ergueu os olhos.
- Ainda está aqui?
- Senhor, a propósito de Edric Storm...
Stannis fez um gesto brusco.
- Poupe-me.
Davos persistiu.
- A sua filha tem aulas com ele e brinca todos os dias em sua companhia no Jardim de Aegon.
- Eu sei disso.
- O coração dela iria se quebrar se algo de mal...
- Também sei disso.
- Se ao menos o visse...
- Já o vi. Parece-se com Robert. Sim, e venera o pai. Deverei falar-lhe da frequência com que o seu querido pai lhe dirigia um pensamento? Meu irmão gostava bastante do fabrico de crianças, mas depois do nascimento eram um aborrecimento.
- Ele pergunta pelo senhor todos os dias, ele...
- Está me irritando, Davos. Não quero ouvir falar mais desse bastardo.
- O nome dele é Edric Storm, senhor.
- Eu sei o nome dele. Terá alguma vez existido um nome mais adequado? Proclama a sua bastardia, o seu elevado nascimento, e o tumulto que traz consigo. Edric Storm. Aí está, eu disse. Está satisfeito, senhor Mão?
- Edric... - começou.
- ... é um garoto! Poderia ser o melhor garoto que alguma vez respirou, que não teria importância. Meu dever é para com o reino. - A mão varreu a Mesa Pintada. - Quantos garotos vivem em Westeros? Quantas garotas? Quantos homens, quantas mulheres? A escuridão vai devorá-los todos, diz ela. A noite que não tem fim. Fala de profecias... um herói renascido no mar, dragões vivos chocados a partir de pedra morta... fala de sinais e jura que apontam para mim. Nunca pedi isso, assim como não pedi ser rei. Mas vou me atrever a não lhe dar ouvidos? - rangeu os dentes. - Não escolhemos o nosso destino. Mas temos... temos de cumprir o nosso dever, não é? Grande ou pequeno, temos de cumprir o nosso dever. Melisandre jura que me viu em suas chamas, enfrentando a escuridão com a Luminífera erguida bem alto. Luminífera! - Stannis soltou uma fungadela derrisória. - Cintila lindamente, admito, mas na Água Negra essa espada mágica não me serviu melhor do que qualquer aço banal. Um dragão teria virado essa batalha. Aegon esteve um dia onde estou agora, olhando para esta mesa. Pensa que lhe chamaríamos hoje Aegon, o Conquistador, se não tivesse tido dragões?
- Vossa Graça - disse Davos -, o preço...
- Eu conheço o preço! Na noite passada, olhando para aquela lareira, também vi coisas nas chamas. Vi um rei, com uma coroa de fogo na testa, ardendo... ardendo, Davos. Sua própria coroa consumiu sua carne e transformou-o em cinzas. Acha que preciso que Melisandre me diga o que isso significa? Ou você? - o rei mudou de posição e sua sombra caiu sobre Porto Real. - Sejoffrey morrer... o que é a vida de um garoto bastardo perante um reino?
- Tudo - disse Davos em voz baixa.
Stannis olhou-o, com as mandíbulas cerradas.
- Vá - disse o rei por fim - antes que consiga se levar de volta à masmorra.
Às vezes os ventos de tempestade sopram com tanta força que um homem não tem alternativa exceto guardar as velas.
- Sim, Vossa Graça. - Davos fez uma reverência, mas, aparentemente, Stannis já o tinha esquecido.
Quando saiu do Tambor de Pedra, fazia frio no pátio. Um vento fresco soprava do leste, fazendo os estandartes baterem ruidosamente ao longo das muralhas. Davos sentia o cheiro do sal no ar. O mar. Adorava aquele cheiro. Fazia-o desejar caminhar de novo por um convés, içar a sua vela e velejar para o sul, para ir até Marya e seus dois filhos pequenos. Agora pensava neles quase todos os dias e ainda mais durante a noite. Parte de si nada desejava mais ardentemente do que pegar Devan e ir para casa. Não posso. Ainda não. Agora sou um senhor e Mão do Rei, não posso falhar com ele.
Ergueu os olhos e fitou as muralhas. Em vez de merlões, um milhar de ornamentos grotescos e de gárgulas olhavam-no lá de cima, cada uma diferente de todas as outras; serpes, grifos, demônios, mantícoras, minotauros, basiliscos, mastins do inferno, cocatrizes, e um milhar de criaturas mais estranhas que brotavam das ameias do castelo como se tivessem nascido ali. E havia dragões por todos os lados. O Grande Salão era um dragão deitado sobre a barriga. Entrava-se por sua boca aberta. As cozinhas eram um dragão enrolado numa bola, com a fumaça e o vapor dos fornos saindo através de suas narinas. As torres eram dragões empoleirados nas muralhas, ou prontos para levantar voo; o Dragão de Vento parecia gritar em desafio, ao passo que a Torre do Dragão Marinho olhava serenamente por sobre as águas. Dragões menores enquadravam os portões. Garras de dragão emergiam das paredes para agarrar archotes, grandes asas de pedra abraçavam o ferreiro e o arsenal, e caudas formavam arcos, pontes e escadas exteriores.
Davos ouvia dizer com frequência que os feiticeiros de Valíria não cortavam e burilavam como os pedreiros vulgares, mas trabalhavam a pedra com fogo e magia como um oleiro trabalharia o barro. Mas agora duvidava. E se fossem dragões verdadeiros, de algum modo transformados em pedra?
- Se a mulher vermelha os trouxer à vida, o castelo ruirá, imagino. Que espécie de dragão está cheia de quartos, escadas e mobília? E de janelas. E de chaminés. E de fossas.
Davos virou-se para deparar com Salladhor Saan ao seu lado.
- Isso significa que perdoou a minha traição, Salla?
O velho pirata brandiu um dedo em sua direção.
- Perdoei, sim. Esqueci, não. Todo aquele bom ouro na Ilha da Garra que podia ter sido meu, fico velho e cansado só de pensar nele. Quando morrer empobrecido, minhas esposas e concubinas vão amaldiçoá-lo, Senhor das Cebolas. Lorde Celtigar tinha muitos belos vinhos que não estou saboreando, uma águia do mar que treinara para levantar voo de seu pulso e um berrante mágico para fazer sair lulas gigantes das profundezas. Muito útil seria esse berrante, para puxar para baixo os tyroshi e outras criaturas incômodas. Mas posso soprar esse berrante? Não, porque o rei fez de meu velho amigo sua Mão. - Deu o braço a Davos e disse: - Os homens da rainha não simpatizam com você, velho amigo. Estou ouvindo dizer que uma certa Mão tem andado fazendo seus próprios amigos. Isso é verdade, não?
Ouve coisas demais, velho pirata. E bom que um contrabandista conheça tão bem os homens como as marés, caso contrário não sobreviverá muito tempo contrabandeando. Os homens da rainha podiam continuar sendo fervorosos seguidores do Senhor da Luz, mas o povo de Pedra do Dragão estava voltando aos deuses que tinha conhecido a vida inteira. Diziam que Stannis estava enfeitiçado, que Melisandre o afastara dos Sete para se curvar perante um demônio qualquer feito de sombras, e que... o pior de todos os pecados... ela e seu deus lhe tinham falhado. E havia cavaleiros e fidalgos que tinham os mesmos sentimentos. Davos tinha ido atrás deles, escolhendo-os com o mesmo cuidado como antes escolhia as suas tripulações. Sor Gerald Gower tinha lutado intrepidamente na Água Negra, mas depois foi ouvido dizendo que R'hllor devia ser um deus fraco, se permitia que seus seguidores fossem escorraçados por um anão e um morto. Sor Andrew Estermont era primo do rei e tinha servido como seu escudeiro anos antes. O Bastardo de Nocticantiga comandou a retaguarda que permitiu que Stannis chegasse à segurança das galés de Salladhor Saan, mas adorava o Guerreiro com uma fé tão feroz quanto ele mesmo. Homens do rei, não homens da rainha. Mas não seria boa ideia gabar-se deles.
- Um certo pirata liseno disse-me uma vez que um bom contrabandista fica longe da vista - respondeu cuidadosamente Davos. - Velas negras, remos abafados e uma tripulação que saiba controlar a língua.
O liseno riu.
- Uma tripulação sem língua é ainda melhor. Mudos grandes e fortes que não saibam ler nem escrever. - Mas depois tornou-se mais sombrio. - Mas agrada-me saber que alguém vigia sua retaguarda, velho amigo. Acha que o rei vai dar o garoto à sacerdotisa vermelha? Um pequeno dragão poderia acabar com esta grande guerra.
O hábito antigo fez Davos levar a mão à sua sorte, mas os ossos dos dedos já não estavam pendurados em seu pescoço, e nada encontrou.
- Ele não fará isso - disse Davos. - Não poderia fazer mal ao seu próprio sangue.
- Lorde Renly ficará feliz por saber disso.
- Renly era um traidor em armas. Edric Storm é inocente de qualquer crime. Sua Graça é um homem justo.
Salla encolheu os ombros.
- Veremos. Ou você verá. Quanto a mim, volto ao mar. Neste mesmo instante, pode haver contrabandistas vis velejando pela Baía da Água Negra, esperando evitar o pagamento das obrigações legais para com o seu senhor. - Deu uma palmada nas costas de Davos. - Cuide-se. Você e seus amigos mudos. Tornou-se muito grande, mas quanto mais alto um homem sobe, maior é a queda.
Davos refletiu sobre aquelas palavras enquanto subia os degraus da Torre do Dragão Marinho que levavam aos aposentos do meistre, sob a colônia dos corvos. Não precisava que Salla lhe dissesse que subira alto demais. Não sei ler, não sei escrever, os lordes me desprezam, nada sei de governar, como posso ser Mão do Rei? Meu lugar é no convés de um navio, não em uma torre de castelo.
Tinha dito isso mesmo ao Meistre Pylos.
- E um capitão notável - respondeu o meistre. - Um capitão governa o seu navio, não é verdade? Tem de navegar por águas traiçoeiras, içar as velas para apanhar o vento que se levanta, saber quando uma tempestade se aproxima e a melhor forma de ultrapassá-la. Isso é muito semelhante.
Pylos pretendera ser amável, mas a sua confiança soava vazia.
- Não é, nem de longe, a mesma coisa! - protestou Davos. - Um reino não é um navio... e ainda bem, caso contrário este reino estaria afundando. Eu conheço de madeira, cordas e água, sim, mas como isso me será útil agora? Onde vou encontrar o vento que empurrará Rei Stannis até seu trono?
O meistre riu daquilo.
- E aí está, senhor. As palavras são vento, entende? E soprou as minhas para longe com o seu bom-senso. Sua Graça sabe o que tem em você, acho.
- Cebolas - disse Davos em tom sombrio. - E isso que ele tem em mim. A Mão do Rei devia ser um senhor bem-nascido, alguém sábio e instruído, um comandante de batalha ou um grande cavaleiro...
- Sor Ryam Redwyne foi o maior cavaleiro de seu tempo e um dos piores Mãos que já serviu um rei. As preces do Septão Murmison faziam milagres, mas como Mão rapidamente conseguiu pôr o reino em peso a rezar por sua morte. Lorde Butterwell era famoso pela inteligência, Myles Smallwood pela coragem, Sor Otto Hightower pela instrução, e no entanto falharam como Mãos, todos eles. Quanto ao nascimento, era frequente os reis do dragão escolherem Mãos de seu próprio sangue, com resultados tão variados quanto Baelor Lança-Quebrada e Baelor, o Cruel. Em contraponto a isso, há o Septão Barth, o filho de ferreiro que o Velho Rei arrancou da biblioteca da Fortaleza Vermelha, que deu ao reino quarenta anos de paz e abundância. - Pylos sorriu. - Leia a história, Lorde Davos, e verá que as suas dúvidas são infundadas.
- Como poderei ler história, se não sou capaz de ler?
- Qualquer homem é capaz de ler, senhor - disse Meistre Pylos. - Não é necessário ter nem magia nem elevado nascimento. Eu estou ensinando a arte ao seu filho, por ordem do rei. Deixe que lhe ensine também.
Era uma oferta amável, que Davos não podia recusar. E assim, todos os dias se dirigia aos aposentos do meistre, no topo da Torre do Dragão Marinho, para franzir a testa perante rolos, pergaminhos e grandes volumes em couro e tentar desvendar mais algumas palavras. O esforço dava-lhe frequentes dores de cabeça, e além disso fazia-o sentir-se um idiota tão grande quanto o Cara-Malhada. O filho Devan ainda não tinha doze anos, e no entanto estava bem à frente do pai, e para a Princesa Shireen e Edric Storm a leitura parecia tão natural quanto a respiração. No que tocava aos livros, Davos era mais criança do que qualquer um deles. Mas persistiu. Era agora Mão do Rei, e uma Mão do Rei devia ler.
Os degraus estreitos e sinuosos da Torre do Dragão Marinho passaram a ser uma dolorosa provação para o Meistre Cressen depois de quebrar a bacia. Davos ainda dava por si sentindo falta do velho. Pensava que Stannis devia partilhar esse sentimento. Pylos parecia esperto, diligente e bem-intencionado, mas era muito jovem, e o rei não se apoiava nele como se apoiara em Cressen. O velho tinha acompanhado Stannis durante tanto tempo... Até que entrou em colisão com Melisandre, e morreu por isso.
No topo dos degraus, Davos ouviu um tênue tinir de guizos que só podia anunciar o Cara-Malhada. O bobo da princesa estava à espera dela junto à porta do meistre, como um cão fiel. Mole como massa de pão e de ombros caídos, tinha uma face larga, tatuada com um padrão de quadrados vermelhos e verdes. Cara-Malhada usava um elmo feito de um par de chifres de veado presos a um balde de estanho. Uma dúzia de guizos pendia dos galhos e tilintava quando ele se movia... o que era o mesmo que dizer constantemente, pois o bobo raramente parava quieto. Tinia e retinia para onde quer que fosse; pouco admirava que Pylos o tivesse exilado das aulas de Shireen.
- Debaixo do mar, o peixe velho come o peixe novo - murmurou o bobo a Davos. Balançou a cabeça e seus guizos tiniram, tilintaram e cantaram. - Eu sei, eu sei, ei, ei, ei.
- Aqui em cima os peixes novos ensinam os peixes velhos - disse Davos, que nunca se sentia tão antigo como quando se sentava para tentar ler. Podia ser diferente se tivesse sido o idoso Meistre Cressen a ensiná-lo, mas Pylos era novo o suficiente para ser seu filho.
Foi encontrar o meistre sentado à sua longa mesa de madeira coberta com livros e pergaminhos, diante de três crianças. A Princesa Shireen sentava-se entre os dois garotos. Até agora, Davos conseguia obter grande prazer de ver seu próprio sangue na companhia de uma princesa e de um bastardo real. Devan será agora um senhor, e não apenas um cavaleiro. O Senhor da Mata de Chuva. Davos sentia mais orgulho nisso do que em ostentar o título. E também sabe ler. Sabe ler e escrever, como se tivesse nascido para isso. Pylos nada tinha a dizer sobre a sua diligência, exceto elogios, e o mestre de armas dizia que Devan também se mostrava promissor com a espada e a lança. E é também um garoto devoto.
- Meus irmãos ascenderam ao Salão da Luz, para ocupar seus lugares junto do Senhor - tinha dito Devan quando o pai lhe contou como os quatro irmãos mais velhos tinham morrido. - Rezarei por eles nas fogueiras noturnas e por você também, pai, para que possa caminhar à Luz do Senhor até o fim dos seus dias. - Um bom dia para o senhor, pai - saudou-o o garoto.
Ele é tão parecido com Dale na sua idade, pensou Davos. Era certo que o filho mais velho nunca havia se vestido tão bem como Devan, com os seus trajes de escudeiro, mas partilhavam o mesmo rosto quadrado e simples, os mesmos olhos castanhos e francos, o mesmo cabelo fino, castanho e solto. As bochechas e o queixo de Devan estavam salpicados de pelos louros, uma penugem que teria envergonhado um pêssego respeitável, embora o rapaz se orgulhasse ferozmente de sua "barba". Tal como Dale se orgulhou da dele, antes. Devan era a mais velha das três crianças que se encontravam à mesa.
Mas Edric Storm era três centímetros mais alto e mais largo de peito e ombros. Nisso era filho de seu pai; e também nunca perdia uma manhã de trabalho com a espada e o escudo. Aqueles que eram suficientemente velhos para terem conhecido Robert e Renly quando crianças diziam que o bastardo se assemelhava mais a eles do que Stannis jamais se assemelhou; os cabelos negros de carvão, os profundos olhos azuis, a boca, o queixo, os malares. Só as orelhas faziam lembrar que a mãe tinha sido uma Florent.
- Sim, bom dia, senhor - ecoou Edric. O garoto podia ser feroz e orgulhoso, mas os meistres, castelões e mestres de armas que o tinham educado o instruíram bem no que dizia respeito à cortesia. - Vem de junto de meu tio? Como passa Sua Graça?
- Bem - mentiu Davos. Para falar a verdade, o rei tinha um ar fatigado, assombrado, mas Davos não viu nenhum motivo para sobrecarregar o garoto com os seus receios. - Espero que não tenha perturbado as suas lições.
- Acabamos de terminar, senhor - disse o Meistre Pylos.
- Estávamos lendo a respeito do Rei Daeron Primeiro. - A Princesa Shireen era uma criança triste, doce e gentil, longe de ser bonita. Stannis dera-lhe o maxilar quadrado e Selyse, as orelhas Florent, e os deuses, em sua cruel sabedoria, tinham achado por bem aumentar a sua falta de graça afligindo-a de escamagris no berço. A doença deixara-lhe um lado do rosto e metade do pescoço cinzento, rachado e duro, embora tanto sua vida quanto sua visão tivessem sido poupadas. - Partiu para a guerra e conquistou Dorne. Chamavam-no de Jovem Dragão.
- Ele adorava falsos deuses - disse Devan -, mas, fora isso, era um grande rei, e muito corajoso em batalha.
- Se era - concordou Edric Storm -, mas o meu pai era mais. O Jovem Dragão nunca venceu três batalhas num só dia.
A princesa olhou-o de olhos esbugalhados.
- O tio Robert venceu três batalhas num só dia?
O bastardo confirmou com a cabeça.
- Foi logo depois de retornar para casa, para convocar os vassalos. Os Lordes Grandison, Cafferen e Fell planejaram juntar forças em Solarestival e marchar sobre Ponta Tempestade, mas ele soube dos planos deles através de um informante e avançou imediatamente com todos os seus cavaleiros e escudeiros. Quando os conspiradores chegaram a Solarestival, um de cada vez, derrotou-os um por um antes de conseguirem juntar forças com os outros. Matou Lorde Fell em combate singular e capturou seu filho, o Machado de Prata.
Devan olhou para Pylos.
- Foi assim que as coisas se passaram?
- Foi o que eu disse, não foi? - disse Edric Storm antes de o meistre ter tempo de responder. - Esmagou os três, e lutou com tanta bravura que Lorde Grandison e Lorde Caíferen se tornaram seus homens, e o Machado de Prata também. Nunca ninguém venceu meu pai.
- Edric, não devia se vangloriar - disse Meistre Pylos. - O Rei Robert sofreu derrotas, como qualquer outro homem. Lorde Tyrell venceu-o em Vaufreixo, e Robert também perdeu muitas justas em torneios.
- Mas ganhou mais do que perdeu. E matou o Príncipe Rhaegar no Tridente.
- Isso é verdade - concordou o meistre. - Mas agora tenho de dar a minha atenção ao Lorde Davos, que espera com tanta paciência. Amanhã leremos mais da Conquista de Dome do Rei Daeron.
A Princesa Shireen e os garotos despediram-se com cortesia. Depois de se retirarem, Meistre Pylos aproximou-se de Davos.
- Senhor, talvez quisesse experimentar um pouco da Conquista de Dome também? - empurrou o estreito livro encadernado em couro para a sua frente. - O Rei Daeron escrevia com uma simplicidade elegante, e sua história é rica em sangue, batalhas e bravura. Seu filho está bastante cativado.
- Meu filho ainda não tem nem doze anos. Eu sou a Mão do Rei. Dê-me outra carta, por favor.
- Às suas ordens, senhor. - Meistre Pylos esquadrinhou a mesa, desenrolando e depois colocando de lado vários recortes de pergaminho. - Não há cartas novas. Talvez uma antiga...
Davos gostava tanto de uma boa história quanto qualquer homem, mas achava que Stannis não o tinha nomeado Mão para se divertir. Seu primeiro dever era ajudar o rei a governar, e para isso tinha de compreender as palavras que os corvos traziam. Descobrira que a melhor forma de aprender algo era fazendo; velas ou pergaminhos, não fazia diferença.
- Isto pode servir para o que queremos. - Pylos passou uma carta para a sua mão.
Davos esticou o pequeno quadrado de pergaminho enrugado e semicerrou os olhos para as letras, minúsculas e difíceis de decifrar. Ler era pesado para os olhos, pelo menos isso aprendera depressa. Às vezes se perguntava se a Cidadela ofereceria uma bolsa de campeão ao meistre que escrevesse numa letra menor. Pylos riu da ideia, mas...
- Aos... cinco reis - leu Davos, com uma breve hesitação em cinco, palavra que não via frequentemente escrita por extenso. - O rei... pa... o rei... para cá?
- Para lá - corrigiu o meistre.
Davos fez uma careta.
- O Rei-para-lá-da-Muralha vem... vem para o sul. Lidera uma... uma... basta...
- Vasta.
- ... uma vasta tropa de sei... selv... selvagens. Lorde M... Mmmor... Mormont enviou um... corvo da... fio... fio...
- Floresta. A floresta assombrada. - Pylos sublinhou as palavras com a ponta do dedo.
- ... a floresta assombrada. Está... sob a... ataque?
- Sim.
Satisfeito, continuou a abrir caminho através da mensagem.
- Out... outras aves chegaram depois, sem notícias. Nós... tememos... que Mormont tenha sido morto com toda... com todas as suas... forcas... não, forças. Nós tememos que Mormont tenha sido morto com todas as suas forças... - De repente, Davos compreendeu o que estava lendo. Virou a carta e viu que a cera que a selara era negra. - Isto vem da Patrulha da Noite. Meistre, o Rei Stannis viu esta carta?
- Eu levei-a ao Lorde Alester quando ela chegou. Naquela época era ele a Mão. Creio que a discutiu com a rainha. Quando lhe perguntei se desejava enviar uma resposta, disse-me para não ser tolo. "Sua Graça não tem homens suficientes para travar suas próprias batalhas, também não os tem para desperdiçar em selvagens" disse-me.
Aquilo era bem verdade. E essa conversa de cinco reis teria sem dúvida enfurecido Stannis.
- Só um homem esfomeado suplica pão a um pedinte - murmurou.
- Perdão, senhor?
- Uma coisa que a minha mulher disse um dia. - Davos tamborilou no tampo da mesa com os seus dedos encurtados.
A primeira vez em que viu a Muralha era mais novo do que Devan e servia a bordo do Gato da Calçada às ordens de Roro Uhoris, um tyroshi conhecido de cima a baixo do mar estreito como Bastardo Cego, embora nem fosse cego nem filho ilegítimo. Roro tinha passado por Skagos e entrado no Mar Tremente, visitando uma centena de pequenas angras que nunca antes tinham visto um navio mercante. Trouxe aço; espadas, machados, elmos, boas camisas de cota de malha, para trocar por peles, marfim, âmbar e obsidiana. Quando o Gato da Calçada voltou para o sul, trazia os porões repletos, mas na Baía das Focas surgiram três galés negras e pastorearam-no até Atalaialeste. Perderam a carga e o Bastardo perdeu a cabeça, pelo crime de vender armas aos selvagens.
Davos tinha comerciado em Atalaialeste nos seus dias de contrabandista. Os irmãos negros eram inimigos duros, mas bons clientes, para um navio com o tipo certo de carga. Mas apesar de ter aceitado o seu dinheiro, nunca esqueceu o modo como a cabeça do Bastardo Cego tinha rolado pelo convés do Gato da Calçada.
- Conheci alguns selvagens quando era garoto - disse ao Meistre Pylos. - Eram ladrões razoáveis, mas ruins na pechincha. Um deles desapareceu com a nossa garota de cabine. Tudo somado, pareceram-me homens como os outros, uns bons, outros maus.
- Homens são homens - concordou Meistre Pylos. - Voltamos à leitura, senhor Mão?
Sou a Mão do Rei, certo. Stannis podia ser o Rei de Westeros no nome, mas na realidade era o Rei da Mesa Pintada. Controlava Pedra do Dragão e Ponta Tempestade e tinha uma aliança cada vez mais incômoda com Salladhor Saan, mas era só. Como podia a Patrulha ter voltado os olhos para ele em busca de ajuda? Podem não saber como ele é fraco, como a sua causa está perdida.
- O Rei Stannis nunca viu esta carta, tem certeza absoluta? E Melisandre também não?
- Não. Deveria levá-la? Tão tarde?
- Não - disse Davos de imediato. - Cumpriu o seu dever quando a levou ao Lorde Alester. - Se Melisandre soubesse desta carta... O que foi que ela disse? Aquele cujo nome não pode ser proferido está reunindo o seu poder, Davos Seawortb. Em breve chegará o frio, e a noite que nunca termina... E Stannis teve uma visão nas chamas, um anel de archotes na neve, rodeados de terror.
- Senhor, está se sentindo mal? - perguntou Pylos.
Estou assustado, meistre, Davos podia ter respondido. Recordava-se de uma história que Salladhor Saan tinha lhe contado, sobre o modo como Azor Ahai temperara a Luminífera mergulhando-a no coração da mulher que amava. Ele matou a mulher para combater a escuridão. Se Stannis for Azor Ahai regressado, será que isso quer dizer que Edric Storm tem de desempenhar o papel de Nissa Nissa?
- Estava pensando, meistre. As minhas desculpas. - Onde está o mal em um rei selvagem qualquer conquistar o Norte? Afinal, Stannis sequer controlava o Norte. Sua Graça dificilmente podia ser acusada de não proteger pessoas que se recusavam a reconhecê-lo como rei. - Dê-me outra carta - disse abruptamente. - Esta é muito...
- ... difícil? - sugeriu Pylos.
Em breve chegará o frio, sussurrara Melisandre, e a noite que nunca termina.
- Perturbadora - disse Davos. - Muito... perturbadora. Outra carta, por favor.
Quando acordaram, viram a fumaça em Vila Toupeira, o lugar estava em chamas. No topo da Torre do Rei, Jon Snow apoiou-se na muleta almofadada que Meistre Aemon lhe dera e observou a nuvem cinzenta subindo. Styr tinha perdido toda a esperança de pegar Castelo Negro desprevenido quando Jon escapou, mesmo assim não teria sido necessário avisar tão claramente que estava chegando. Pode nos matar, refletiu, mas ninguém será massacrado na sua cama. Pelo menos isso consegui.
Sua perna ainda doía como brasas quando se apoiava nela. Naquela manhã precisou que Clydas o ajudasse a vestir a roupa negra recém-lavada e a amarrar as botas, e, quando terminaram, desejou se afogar em leite de papoula. Em vez disso, contentou-se com meia taça de vinho dos sonhos, um pouco de casca de salgueiro para mascar e a muleta. O farol ardia no Espinhaço do Tempo, e a Patrulha da Noite necessitava de todos os homens.
- Posso lutar - tinha insistido quando tentaram impedi-lo.
- Sua perna está curada, - Noye fungou. - Então não vai se importar que lhe dê um pontapezinho?
- Preferia que não o fizesse. Está dura, mas posso coxear por aí suficientemente bem, e ficar em pé lutando, se precisar de mim.
- Preciso de todos os homens que saibam qual das extremidades de uma lança se espeta nos selvagens.
- A pontiaguda. - Jon recordou que um dia tinha dito à irmã mais nova qualquer coisa parecida.
Noye esfregou os pelos que tinha no queixo.
- Pode ser que sirva. Colocamos você numa torre com um arco, mas se cair é melhor que não venha choramingar para mim.
Via a estrada do rei abrindo seu caminho sinuoso para o sul, através de campos marrons pedregosos e por cima de colinas varridas pelo vento. O Magnar chegaria por aquela estrada antes de terminar o dia, com os seus Thenns marchando atrás dele com machados e lanças nas mãos, e seus escudos de bronze e couro nas costas. Grigg, o Bode, Quort, o Grande Furúnculo e os outros virão também. E Ygritte. Os selvagens nunca tinham sido seus amigos, ele não permitiu que fossem seus amigos, mas ela...
Sentia a dor latejar no local onde a flecha de Ygritte tinha atravessado carne e músculo de sua coxa. Lembrava-se também dos olhos do velho e do sangue negro correndo de sua garganta enquanto a tempestade rebentava no céu. Mas lembrava-se melhor da gruta, de como Ygritte era, nua, à luz do archote, do sabor de sua boca quando a abria sob a dele. Ygritte, fique longe. Vá para o sul e pilhe, vá se esconder numa dessas torres redondas de que tanto gostou. Aqui não encontrará nada a não ser a morte.
Do outro lado do pátio, um dos arqueiros no telhado das velhas Casernas de Sílex tinha desatado os calções e estava urinando por uma ameia. Mully. Jon reconheceu-o pelos cabelos oleosos e alaranjados. Viam-se também homens com manto negro em outros telhados e topos de torres, embora nove em dez fossem na verdade feitos de palha. Donal Noye chamava de "as sentinelas-espantalho". Só que os corvos somos nós, refletiu Jon, ejá estamos quase todos bem espantados.
Fosse qual fosse o nome que lhes era dado, os soldados de palha tinham sido ideia de Meistre Aemon. A Patrulha possuía, nos armazéns, mais calções, gibões e túnicas do que homens para enchê-los, sendo assim, por que não rechear algumas dessas roupas com palha, envolver seus ombros com manto e colocá-los em todas as torres e em metade das janelas? Alguns dos espantalhos até seguravam lanças, ou tinham bestas enfiadas debaixo do braço. A esperança era que os Thenns os vissem de longe e decidissem que Castelo Negro se encontrava bem defendido demais para ser atacado.
Jon dividia o topo da Torre do Rei com seis espantalhos, além de dois irmãos de verdade, dos que respiravam. Dick Surdo Follard estava sentado numa ameia, limpando e oleando metodicamente o mecanismo de sua besta, assegurando-se de que a roda girava suavemente, enquanto o rapaz de Vilavelha vagueava impacientemente ao longo dos parapeitos, remexendo a roupa dos homens de palha. Ele talvez pense que lutarão melhor se estiverem na posição certa. Ou talvez a espera esteja mexendo com seus nervos, como está mexendo com os meus.
O rapaz dizia ter dezoito anos, mais do que Jon tinha, mas apesar disso era verde como a grama do verão. Chamavam-no de Cetim, mesmo vestido com a lã, a cota de malha e o couro fervido da Patrulha da Noite; era o nome que obtivera no bordel onde nascera e fora criado. Era bonito como uma menina, com olhos escuros, pele macia e caracóis negros como um corvo. Mas meio ano em Castelo Negro endurecera suas mãos, e Noye dizia que não era ruim com uma besta. Agora, se tinha ou não coragem para enfrentar o que vinha por aí...
Jon usou a muleta para atravessar o topo da torre coxeando. A Torre do Rei não era a mais alta do castelo; a Lança, alta, esguia e arruinada, detinha esse título, embora Othell Yarwyck tivesse declarado que poderia desabar a qualquer momento. A Torre do Rei tampouco era a mais forte das torres: a Torre dos Guardas, junto à estrada do rei, seria uma noz mais dura de quebrar. Mas era suficientemente alta, suficientemente forte, e bem colocada ao lado da Muralha, dominando o portão e a base da escada de madeira.
Na primeira vez que viu Castelo Negro com os próprios olhos, Jon perguntou a si mesmo por que alguém seria tão tolo a ponto de construir um castelo sem muralhas. Como poderia ser defendido?
- Não pode - tinha lhe dito o tio. - E exatamente essa a ideia. A Patrulha da Noite jura não participar nas disputas do reino. Mas, ao longo dos séculos, certos Senhores Comandantes, mais orgulhosos do que sensatos, esqueceram os votos e quase nos destruíram com suas ambições. O Senhor Comandante Runcel Hightower tentou deixar a patrulha como herança ao seu filho bastardo. O Senhor Comandante Rodrik Flint decidiu fazer de si mesmo Rei-para-lá-da-Muralha. Tristan Mudd, o Louco Marq Rankenfell, Robin Hill... sabia que há seiscentos anos os comandantes do Portão da Neve e de Fortenoite partiram para a guerra um contra o outro. E que quando o Senhor Comandante tentou impedi-los, juntaram forças para assassiná-lo? O Stark de Winterfell teve de dar uma mão... e cortar a cabeça deles. Coisa que fez com facilidade, porque os fortes deles não eram defensáveis. A Patrulha da Noite teve novecentos e noventa e seis Senhores Comandantes antes de Jeor Mormont, e em sua maioria foram homens de coragem e honra... mas também tivemos covardes e idiotas, os nossos tiranos e os nossos loucos. Sobrevivemos porque os senhores e reis dos Sete Reinos sabem que não constituímos ameaça para eles, independente de quem nos lidere. Os nossos únicos inimigos estão ao norte, e ao norte temos a Muralha.
Mas agora esses inimigos passaram pela Muralha e chegam do sul, refletiu Jon, e os senhores e reis dos Sete Reinos esqueceram-nos. Estamos encurralados entre o martelo e a bigorna. Sem uma muralha, Castelo Negro não podia ser mantido; Donal Noye sabia disso tão bem quanto todos os outros.
- O castelo não lhes serve para nada - tinha dito o armeiro à sua pequena guarnição. - Cozinhas, sala comum, estábulos, até as torres... que capturem tudo. Vamos esvaziar o arsenal, deslocar todos os abastecimentos que pudermos para o topo da Muralha e resistir em volta do portão.
E assim, Castelo Negro tinha finalmente uma espécie de muralha, uma barricada em forma de crescente, com três metros de altura, feita de material armazenado; barris de pregos e de carneiro salgado, caixotes, fardos de pano preto, troncos empilhados, tábuas, estacas endurecidas pelo fogo e sacos e mais sacos de cereais. O baluarte improvisado rodeava as duas coisas que mais valiam a pena defender: o portão para o norte e a base da grande escada de madeira em zigue-zague que arranhava e escalava a face da Muralha como um relâmpago bêbado, sustentada por traves de madeira grandes como troncos de árvore, profundamente enterradas no gelo.
Jon viu que o último punhado de toupeiras ainda fazia a longa subida, incentivado pelos irmãos. Grenn levava um garotinho nos braços, enquanto Pyp, dois lances abaixo, deixava que um velho se apoiasse em seu ombro. Na base da escada, os aldeões mais velhos esperavam que a gaiola acabasse de fazer o caminho de volta desde o topo da Muralha. Pousou os olhos numa mãe que puxava duas crianças, uma em cada mão, no momento em que um rapaz mais velho passava por eles, correndo pelos degraus. Sessenta metros mais acima, Su Azul-Celeste e a Senhora Meliana (que todos os amigos eram unânimes em dizer que não era senhora coisa nenhuma) estavam paradas num patamar, olhando para o sul. Tinham uma vista da fumaça melhor do que a dele, sem dúvida. Jon perguntou a si mesmo o que acontecera aos aldeões que tinham decidido não fugir. Havia sempre alguns teimosos, estúpidos ou corajosos demais para se refugiarem, alguns que preferiam lutar, esconder-se ou render-se. Os Thenns talvez os poupassem.
O que devíamos ter feito era levar o ataque até eles, pensou. Com cinquenta patrulheiros bem montados, podíamos desbaratá-los na estrada. Mas não tinham cinquenta patrulheiros, nem metade dos cavalos necessários. A guarnição não tinha retornado, e não havia como saber onde estava, ou mesmo se os correios que Noye enviara a tinham alcançado.
A guarnição somos nós, disse Jon a si mesmo, e olhe para nós. Os irmãos que Bowen Marsh deixou para trás eram velhos, aleijados e rapazes ainda verdes, tal como Donal Noye tinha avisado. Via alguns carregando barris pelos degraus acima, e outros na barricada; o velho e robusto Barricas, tão lento como sempre, o Bota Extra, saltitando vivamente sobre a sua perna de madeira esculpida, o meio louco do Calma, que se achava Florian, o Bobo, renascido, o Dilly Dornês, o Alyn Vermelho da Mata de Rosas, o Jovem Henly (bem para lá dos cinquenta anos), o Velho Henly (bem para lá dos setenta), o Hal Peludo, o Pate Malhado da Lagoa da Donzela. Alguns deles viram Jon olhando do topo da Torre do Rei e acenaram para ele. Outros afastaram o olhar. Ainda me julgam um vira-casaca. Isso era desagradável, mas Jon não podia censurá-los. Afinal, ele era um bastardo. Todos sabiam que os bastardos eram desonestos e traiçoeiros por natureza, por terem nascido da luxúria e do engano. E ele tinha feito tantos inimigos como amigos em Castelo Negro... Rast, para começar. Jon certa vez ameaçou ordenar a Fantasma para rasgar sua goela se não parasse de atormentar Samwell Tarly, e Rast não se esquecia de coisas desse tipo. Naquele momento, empilhava folhas secas sob as escadas, mas de vez em quando parava tempo suficiente para dirigir a Jon um olhar maldoso.
- Não - rugiu Donal Noye para três dos homens de Vila Toupeira, lá embaixo. - O piche vai para o guincho, o azeite para as escadas, dardos para bestas para o quarto, o quinto e o sexto patamares, lanças para o primeiro e o segundo. Enfiem a banha de porco debaixo das escadas, sim, aí, entre as tábuas. Os barris de carne são para a barricada. Já, seus empurradores de arado piolhentos, JÁ!
Ele tem uma voz de senhor, pensou Jon. O pai sempre dizia que em batalha os pulmões de um comandante eram tão importantes quanto o braço com que empunhava a espada. "Se as suas ordens não puderem ser ouvidas, não importa quão corajoso ou brilhante um homem seja", dizia Lorde Eddard aos filhos, e por isso Robb e Jon costumavam subir às torres de Winterfell para gritar um ao outro por cima do pátio. Donal Noye teria abafado a ambos. Os toupeiras andavam todos aterrorizados por ele, e com razão, pois o homem ficava o tempo todo ameaçando arrancar suas cabeças.
Três quartos da aldeia tinham levado a sério o aviso de Jon e vindo para Castelo Negro em busca de refúgio. Noye decretara que qualquer homem suficientemente vivo para pegar numa lança ou brandir um machado ajudaria a defender a barricada, caso contrário podiam perfeitamente voltar para casa e correr seus riscos com os Thenns. Tinha esvaziado o arsenal para pôr bom aço em suas mãos, grandes machados de lâmina dupla, punhais afiados como navalhas, espadas longas, clavas, maças de guerra com espigões. Vestidos com gibões de couro tachonado e pequenas camisas de cota de malha, com grevas nas pernas e gorjais para manter as cabeças sobre os ombros, alguns até pareciam soldados. Com pouca luz. Caso se olhe de viés.
Noye também tinha colocado mulheres e crianças para trabalhar. Aqueles que eram novos demais para lutar transportariam água e cuidariam das fogueiras, a parteira de Vila Toupeira ajudaria Clydas e Meistre Aemon com os feridos e o Hobb Três-Dedos de repente tinha tantos assadores, mexedores de panelas e cortadores de cebolas que não sabia o que fazer com eles. Duas das prostitutas tinham se oferecido para lutar e mostraram habilidade suficiente com a besta para lhes ser atribuído um lugar nos degraus a doze metros de altura.
- Está frio. - Cetim tinha enfiado as mãos nas axilas por baixo do manto. Suas bochechas estavam fortemente vermelhas.
Jon obrigou-se a sorrir.
- Nas Presas de Gelo está frio. Isto é um dia fresco de outono.
- Nesse caso, espero nunca ver as Presas de Gelo. Conheci uma garota em Vilavelha que gostava de gelar o vinho. Esse é o melhor lugar para o gelo, acho. No vinho. - Cetim deu um olhar de relance para o sul e franziu a testa. - Acha que as sentinelas-espantalho os assustaram, senhor?
- Podemos ter essa esperança. - Jon supunha que era possível... mas o mais certo era que os selvagens tivessem simplesmente feito uma pausa para se dedicarem a um pouco de estupro e saque em Vila Toupeira. Ou talvez Styr estivesse à espera do cair da noite, para se aproximar com a cobertura da escuridão.
O meio-dia chegou e partiu, ainda sem sinal de Thenns na estrada do rei. Mas Jon ouviu passos dentro da torre, e Owen Idiota saltou do alçapão, vermelho da subida. Trazia um cesto de bolos de leite com passas debaixo de um braço, uma rodela de queijo debaixo do outro, um saco de cebolas pendurado em uma mão.
- O Hobb disse para lhes dar de comer, para o caso de ficarem presos aqui algum tempo.
Ou isso, ou para a nossa última refeição.
- Agradeça ao Hobb por nós, Owen.
Dick Follard era surdo como uma pedra, mas o nariz funcionava bastante bem. Os bolos de leite ainda estavam quentes do forno quando ele enfiou a mão no cesto e tirou um. Encontrou também um pote de manteiga e, com o punhal, espalhou um pouco no bolo.
- Passas - anunciou em tom feliz. - E também frutas secas. - Tinha uma pronúncia carregada, mas era bastante fácil compreendê-lo depois de se habituar a ela.
- Pode ficar com os meus - disse Cetim. - Não tenho fome.
- Coma - disse-lhe Jon. - Não sabemos quando haverá outra oportunidade. - Escolheu dois bolos para si. As frutas secas eram pinhões e, além das passas, havia também pedaços de maçã.
- Os selvagens vêm hoje, Lorde Snow? - perguntou Owen.
- Se vierem, saberá - disse Jon. - Fique à escuta dos berrantes.
- Dois. Dois é para os selvagens. - Owen era alto, de cabelos muito loiros e amigável, um trabalhador incansável, e surpreendentemente hábil quando se tratava de trabalhar a madeira, consertar catapultas e coisas do gênero. Mas, tal como ele alegremente afirmava, a mãe deixara-o cair de cabeça quando era bebê, e metade dos seus miolos tinham se derramado pela orelha.
- Lembra-se para onde deve ir? - perguntou-lhe Jon.
- Donal Noye diz que devo ir para as escadas. Devo subir até o terceiro patamar e disparar a besta contra os selvagens se tentarem escalar a barreira. O terceiro patamar, um, dois, três. - Sacudiu a cabeça para cima e para baixo. - Se os selvagens atacarem, o rei vem e nos ajuda, não é verdade? Ele é um grande guerreiro, o Rei Robert. Com certeza vem. Meistre Aemon enviou-lhe um pássaro.
Não valia a pena contar-lhe que Robert Baratheon estava morto. Esqueceria disso mais uma vez.
- Meistre Aemon enviou-lhe um pássaro - concordou Jon. Aquilo pareceu deixar Owen feliz.
Meistre Aemon tinha enviado um monte de pássaros... não a um rei, mas a quatro. Selvagens ao portão, dizia a mensagem. O reino está em perigo. Envie toda a ajuda que puder para Castelo Negro. Os corvos voaram até lugares tão distantes como Vilavelha e a Cidadela, e para meia centena de castelos de senhores poderosos. Os senhores do norte constituíam a melhor esperança, por isso Aemon enviou duas aves a cada um deles. As aves negras levaram seu apelo aos Umber e aos Bolton, ao Castelo Cerwyn e à Praça de Torrhen, a Karhold e ao Bosque Profundo, à Ilha dos Ursos, a Castelovelho, à Atalaia da Viúva, a Porto Branco, à Vila Acidentada e aos Regatos, às fortalezas de montanha dos Liddle, dos Burley, dos Norrey, dos Harclay e dos Wull. Selvagens ao portão. O norte em perigo. Venha com todas as suas forças.
Bem, os corvos podiam ter asas, mas lordes e reis não as tinham. Se a ajuda estava a caminho, não chegaria hoje.
À medida que a manhã foi se transformando em tarde, a fumaça de Vila Toupeira foi soprada para longe e o céu ao sul ficou de novo limpo. Não há nuvens, pensou Jon. Isso era bom. A chuva ou a neve poderiam condená-los a todos.
Clydas e Meistre Aemon subiram na gaiola do guincho até a segurança do topo da Muralha, e a maior parte das esposas de Vila Toupeira também. Homens com manto negro patrulhavam incansavelmente os topos das torres e gritavam uns aos outros por cima dos pátios. O Septão Cellador liderou os homens da barricada numa prece, suplicando ao Guerreiro que lhes desse forças. Dick Surdo Follard enrolou-se sob seu manto e adormeceu. Cetim percorreu uma centena de léguas aos círculos, ao redor das ameias. A Muralha chorou e o sol atravessou lentamente um céu de um azul intenso. Perto do cair da noite, Owen Idiota voltou com um pão preto e um balde do melhor carneiro de Hobb, cozido num espesso caldo de cerveja e cebolas. Até o Dick acordou para comer. E comeram até a última migalha, usando pedaços de pão para limpar o fundo do balde. Quando terminaram, o sol encontrava-se baixo a oeste, e as sombras estendiam-se, negras e bem definidas, por todo o castelo.
- Acenda a fogueira - disse Jon ao Cetim - e encha a panela de azeite.
Desceu ele próprio as escadas para trancar a porta e tentar afastar um pouco da rigidez de sua perna. Foi um erro, e Jon compreendeu isso rapidamente, mas agarrou-se à muleta e avançou mesmo assim. A porta da Torre do Rei era de carvalho reforçado com ferro. Poderia atrasar os Thenns, mas não os impediria se quisessem entrar. Jon enfiou a tranca nos seus encaixes, fez uma visita à latrina - podia bem ser a sua última oportunidade - e voltou mancando ao topo, fazendo caretas de dor.
O ocidente tinha tomado a cor de um hematoma, mas o céu por cima de sua cabeça mostrava-se azul-cobalto, aprofundando-se até o púrpura, e estrelas começavam a surgir. Jon sentou-se entre dois merlões, com apenas um espantalho de companhia, e observou o Garanhão galopar céu acima. Ou seria o Senhor Chifrudo? Perguntou-se onde estaria agora Fantasma. Também se interrogou sobre Ygritte, e disse a si mesmo que esse caminho levava à loucura.
Eles chegaram de noite, claro. Como ladrões, pensou Jon. Como assassinos.
Cetim urinou-se quando os berrantes soaram, mas Jon fingiu não reparar.
- Vá sacudir o Dick pelo ombro - disse ao rapaz de Vilavelha -, senão ele é capaz de passar a luta toda dormindo.
- Estou assustado. - O rosto de Cetim estava pálido como a morte.
- Eles também. - Jon encostou a muleta em um merlão e pegou o arco, vergando o liso e grosso teixo de Dorne para enfiar uma corda nos entalhes. - Não desperdice dardos, a menos que saiba que tem uma boa chance de acertar - disse quando Cetim retornou depois de acordar Dick. - Temos um grande estoque aqui em cima, mas grande não significa inesgotável. E fique atrás de um merlão para recarregar, não tente se esconder atrás de um espantalho. Eles são feitos de palha, uma flecha vai atravessá-los. - Não se incomodou em dizer qualquer coisa a Dick Follard. Dick sabia ler os lábios se houvesse luz suficiente e tivesse algum interesse no que lhe estava sendo dito, mas já sabia tudo aquilo.
Os três ocuparam posições em três lados da torre redonda. Jon pendurou uma aljava no cinto e puxou uma flecha. A haste era negra, as penas, cinzentas. Ao encaixá-la na corda, lembrou-se de uma coisa que Theon Greyjoy tinha dito certa vez após uma caçada, sorrindo daquele seu jeito habitual: "O javali pode ficar com as suas presas e o urso com as suas garras. Não há nada que seja nem de longe tão mortífero quanto uma pena cinzenta de ganso."
Jon nunca fora nem metade do caçador que Theon era, mas tampouco era estranho ao arco. Havia silhuetas escuras deslizando em volta do arsenal, com as costas tocando a pedra, mas não as via suficientemente bem para desperdiçar uma flecha. Ouviu gritos distantes, e viu os arqueiros na Torre dos Guardas disparando flechas contra o chão. Isso ficava longe demais para interessar a Jon. Mas quando vislumbrou três sombras se separando dos velhos estábulos, a cinquenta metros de distância, aproximou-se da ameia, ergueu o arco e puxou. Os homens corriam, por isso seguiu-os, esperando, esperando...
A flecha soltou um silvo suave quando abandonou a corda. Um momento depois ouviu-se um gemido, e de repente eram apenas duas as sombras que atravessavam o pátio trotando. Corriam o mais depressa que conseguiam, mas Jon já tinha tirado uma segunda flecha da aljava. Daquela vez apressou-se demais e errou. Os selvagens tinham desaparecido quando voltou a encaixar mais uma flecha. Procurou outro alvo e encontrou quatro, correndo em volta da casca vazia da Fortaleza do Senhor Comandante. O luar cintilou em seus machados e lanças e nos pavorosos símbolos que traziam nos escudos redondos de couro; crânios e ossos, serpentes, garras de ursos, retorcidas caras demoníacas. Povo livre, compreendeu. Os Thenns usavam escudos de couro negro fervido, com relevos e bordas de bronze, mas os deles eram simples e sem adornos. Àqueles eram os escudos mais leves, de vime, dos corsários.
Jon puxou a pena de ganso até a orelha, apontou e soltou a flecha e depois encaixou, puxou e soltou de novo. A primeira flecha perfurou o escudo da garra de urso, a segunda, uma garganta. O selvagem gritou ao cair. Ouviu o profundo trum da besta do Dick Surdo à sua esquerda, e, um momento mais tarde, foi a do Cetim que soou.
- Acertei um! - gritou o rapaz em voz rouca. - Acertei no peito de um.
- Acerte outro - gritou Jon.
Agora não tinha de procurar alvos; só precisava escolhê-los. Abateu um arqueiro selvagem no momento em que o homem encaixava uma flecha na corda, e depois enviou uma flecha contra o corsário que atacava a porta da Torre de Hardin com um machado. Daquela vez errou, mas a flecha estremeceu no carvalho e fez o selvagem pensar duas vezes. Foi só quando o homem fugiu que reconheceu o Grande Furúnculo. Meio segundo depois, o velho Mully disparou do telhado das Casernas de Sílex e espetou uma flecha na perna dele, e o homem afastou-se engatinhando, sangrando. Aquilo irá fazer com que deixe de choramingar por causa do furúnculo, pensou Jon.
Quando a aljava se esvaziou, foi buscar outra, e instalou-se numa ameia diferente, lado a lado com Dick Surdo Follard. Jon soltava três flechas para cada dardo que Dick Surdo disparava, mas era essa a vantagem do arco. Havia quem insistisse que a besta penetrava melhor, mas recarregá-la era um processo lento e incômodo. Ouvia os selvagens gritarem uns para os outros, e em algum lugar a oeste ouviu-se o sopro de um berrante de guerra. O mundo era feito de luar e sombras, e o tempo transformou-se num ciclo sem fim de encaixar, puxar e soltar. Uma flecha selvagem rasgou a garganta da sentinela de palha que estava ao seu lado, mas Jon Snow quase nem reparou. Dê-me uma mira limpa sobre o Magnar de Tbenn, suplicou aos deuses do pai. Ao menos o Magnar era um adversário que era capaz de odiar. Dê-me Styr.
Os dedos estavam ficando rígidos e o polegar sangrava, mas Jon continuava a encaixar, puxar e soltar. Uma mancha de fogo chamou sua atenção e virou-se para ver a porta da sala comum em chamas. Passaram-se apenas alguns momentos até todo o grande edifício de madeira estar queimando. Sabia que Hobb Três-Dedos e seus ajudantes de Vila Toupeira estavam a salvo no topo da Muralha, mesmo assim sentiu como que um murro na barriga.
- JON - berrou Dick Surdo em sua voz pesada -, o arsenal. - Viu que havia gente no telhado. Um dos homens levava um archote. Dick saltou para a ameia a fim de ganhar uma posição melhor para o tiro, encostou a besta no ombro e disparou um dardo, com um ruído surdo, contra o homem do archote. Falhou.
Mas o arqueiro lá embaixo, não.
Follard não soltou um som, limitou-se a tombar para a frente, de cabeça, por cima do parapeito. A queda até o pátio era de trinta metros. Jon ouviu o baque no momento em que espreitava de trás de um soldado de palha, tentando ver de onde a flecha teria vindo. A menos de três metros do corpo de Dick Surdo, vislumbrou um escudo de couro, um manto esfarrapado, um matagal de espessos cabelos ruivos. Beijada pelo Jogo, pensou, sortuda. Levantou o arco, mas os dedos recusaram-se a abrir, e ela desapareceu tão subitamente como aparecera. Girou sobre si mesmo, praguejando, e disparou uma flecha contra os homens que se encontravam no telhado do arsenal, mas também errou.
A essa altura os estábulos orientais também já ardiam, com fumaça negra e nuvens de feno em chamas jorrando das cocheiras. Quando o telhado ruiu, labaredas subiram, rugindo tão alto que quase abafaram os berrantes de guerra dos Thenns. Cinquenta deles surgiram em marcha pela estrada do rei, em coluna apertada, com os escudos erguidos por cima da cabeça. Outros aproximavam-se em grupos através da horta, através do pátio das lajes, ao redor do velho poço seco. Três tinham atravessado à machadada as portas dos aposentos de Meistre Aemon na fortaleza de madeira, sob a colônia dos corvos, e uma luta desesperada desenrolava-se no topo da Torre Silenciosa, com espadas opondo-se a machados de bronze. Nada disso importava. A dança avançou, pensou.
Jon atravessou mancando até junto de Cetim e agarrou-o pelo ombro.
- Comigo - gritou. Juntos, dirigiram-se ao parapeito norte, onde a Torre do Rei dava para o portão e a muralha que Donal Noye tinha improvisado com vigas, barris e sacas de cereais.
Os Thenns chegaram lá antes deles. Usavam meios elmos e tinham discos finos de bronze cosidos às suas longas camisas de couro. Muitos empunhavam machados de bronze, embora alguns fossem de pedra lascada. Eram mais os que manejavam lanças curtas e penetrantes, com ponta em forma de folha que cintilava, rubra, à luz vinda dos estábulos incendiados. Gritavam no Idioma Antigo enquanto assaltavam a barricada, lançando estocadas com as lanças, brandindo machados de bronze, derramando milho e sangue com igual desembaraço, enquanto dardos e flechas choviam sobre eles vindos dos arqueiros que Donal Noye posicionara na escada.
- O que fazemos! - gritou o Cetim.
- Matamo-los - gritou Jon em resposta, com uma flecha negra na mão.
Nenhum arqueiro poderia pedir tiros mais fáceis. Os Thenn estavam de costas voltadas para a Torre do Rei enquanto carregavam sobre o crescente, escalando os sacos e os barris para chegar junto dos homens de negro. Tanto Jon como Cetim escolheram por casualidade o mesmo alvo. Tinha acabado de atingir o topo da barricada quando uma flecha se projetou de seu pescoço e um dardo o atingiu entre as omoplatas. Meio segundo depois, uma espada atingiu-o na barriga e ele caiu sobre o homem que vinha atrás. Jon estendeu a mão para a aljava e achou-a de novo vazia. Cetim recarregava a besta. Deixou-o cuidando disso e foi buscar mais flechas, mas não tinha dado mais de três passos quando o alçapão se abriu com estrondo a um metro dele. Maldito inferno, nem sequer ouvi a porta se quebrando.
Não houve tempo para pensar, fazer planos ou gritar por ajuda. Jon deixou o arco cair, estendeu a mão por sobre o ombro, arrancou a Garralonga de sua bainha e enterrou a lâmina no meio da primeira cabeça a se levantar da torre. O bronze não era adversário à altura do aço valiriano. O golpe cortou através do elmo do Thenn e mergulhou profundamente em seu crânio, e o homem tombou de volta para o lugar de onde viera. Jon compreendeu pelos gritos que havia mais atrás dele. Recuou e chamou por Cetim. O homem que subiu a seguir levou um dardo na cara. Também desapareceu.
- O azeite - disse Jon. Cetim anuiu. Juntos agarraram os grossos pegadores acolchoados que tinham deixado junto da fogueira, ergueram a pesada panela de azeite fervente e despejaram-na pelo buraco, sobre os Thenn que se encontravam embaixo. Os guinchos foram piores que qualquer coisa que tivessem ouvido, e Cetim pareceu prestes a botar tudo para fora. Jon fechou o alçapão com um pontapé, pôs a pesada panela de ferro em cima dele, e deu uma forte sacudida no rapaz de rosto bonito. - Vomite mais tarde - gritou. - Venha.
Tinham estado afastados das ameias apenas por alguns momentos, mas embaixo tudo havia mudado. Uma dúzia de irmãos negros e alguns dos homens de Vila Toupeira ainda resistiam em cima dos caixotes e barris, mas os selvagens estavam escalando a barricada ao longo de todo o crescente, empurrando-os para trás. Jon viu um deles espetar a lança na barriga de Rast, de baixo para cima e com tanta força que o ergueu no ar. O Jovem Henly estava morto e o Velho Henly, moribundo e cercado por inimigos. Jon viu o Calma rodopiando e desferindo golpes em todas as direções, rindo como um louco, fazendo o manto esvoaçar ao saltar de barril em barril. Um machado de bronze atingiu-o logo abaixo do joelho, e o riso transformou-se num grito borbulhante.
- Eles estão quebrando - disse o Cetim.
- Não - disse Jon -, já quebraram.
Aconteceu rapidamente. Um dos toupeiras fugiu e depois outro, e subitamente todos os aldeões estavam largando as armas e abandonando a barricada. Os irmãos eram muito poucos para aguentar sozinhos. Jon viu-os tentar formar uma linha para recuar de maneira ordenada, mas os Thenns submergiram-nos com lanças e machados, e então também eles se puseram em fuga. Dilly Dornês escorregou e caiu de cabeça, e um selvagem plantou uma lança entre suas omoplatas. Barricas, lento e sem fôlego, tinha já quase chegado ao degrau inferior quando um Thenn agarrou na extremidade de seu manto e o obrigou a se virar com um puxão... mas um dardo de besta abateu o homem antes que desse tempo para seu machado cair.
- Acertei - exultou Cetim, enquanto Barricas cambaleava na direção da escada e começava a subir os degraus, sobre os joelhos e as mãos.
O portão está perdido. Donal Noye fechara-o e acorrentara-o, mas estava pronto para ser tomado, com as barras de ferro cintilando, vermelhas, com a luz refletida dos incêndios, e o túnel frio e negro por trás. Ninguém tinha recuado para defendê-lo; o único local seguro era o topo da Muralha, depois de subir duzentos metros ao longo da zigue-zagueante escada de madeira.
- A que deuses você reza? - perguntou Jon ao Cetim.
- Aos Sete - disse o rapaz de Vilavelha.
- Então reze - disse-lhe Jon. - Reze aos seus deuses modernos, que eu rezo aos meus antigos. - Tudo mudava ali.
Com a confusão junto ao alçapão, Jon tinha se esquecido de encher a aljava. Atravessou de volta o topo da torre, mancando, e encheu-a, pegando também o arco. A panela não havia se movido de onde a deixara, parecia que por ora se encontravam suficientemente seguros. A dança avançou, e nós estamos a observá-la da galeria, pensou enquanto coxeava de volta. Cetim disparava dardos contra os selvagens que subiam os degraus, e escondia-se atrás de um merlão para recarregar a besta. Além de ser bonito, ele também é rápido.
A verdadeira batalha desenrolava-se nos degraus. Noye tinha posicionado lanceiros nos dois patamares inferiores, mas a fuga precipitada dos aldeãos deixou-os em pânico e tinham-se juntado à debandada, correndo na direção do terceiro patamar com os Thenns a matar todos os que ficassem para trás. Os arqueiros e besteiros nos patamares superiores estavam tentando disparar contra a cabeça dos selvagens. Jon encaixou uma flecha, puxou e soltou, e sentiu-se satisfeito quando um dos Thenns caiu quicando pelos degraus. O calor dos incêndios fazia a Muralha chorar, e as chamas dançavam e cintilavam contra o gelo. Os degraus balançavam com os passos dos homens que tentavam se salvar.
Jon voltou a encaixar, puxar e soltar, mas só havia um Jon e um Cetim, contra uns bons sessenta ou setenta Thenns que arremetiam escadas acima, matando enquanto avançavam, bêbados de vitória. No quarto patamar, três irmãos de manto negro resistiram, ombro com ombro, de espadas na mão, e a batalha passou de novo, brevemente, a um corpo a corpo. Mas eles eram só três, e em pouco tempo a maré de selvagens os submergiu e seu sangue pingou degraus abaixo.
"Um homem nunca está tão vulnerável numa batalha como quando foge. Um homem em fuga é para um soldado como um animal ferido. Alimenta sua sede de sangue", tinha dito certo dia Lorde Eddard a Jon. Os arqueiros no quinto patamar fugiram antes mesmo de a batalha chegar até eles. Era uma debandada, uma rubra debandada.
- Vá buscar os archotes - disse Jon a Cetim. Havia quatro empilhados junto à fogueira, com as pontas enroladas em trapos empapados em azeite. Havia também uma dúzia de flechas incendiárias. O rapaz de Vilavelha enfiou um archote na fogueira até deixá-lo ardendo bem, e trouxe os outros debaixo do braço, por acender. Parecia de novo assustado, e tinha motivos para isso. Jon também estava assustado.
Foi então que viu Styr. O Magnar estava subindo a barricada, por cima das sacas de cereais rasgadas, barris quebrados e dos corpos de amigos e inimigos. Sua armadura de escamas de bronze cintilava, escura, à luz das chamas. Styr tinha tirado o elmo para estudar a cena de seu triunfo, e o filho da puta careca e sem orelhas estava sorrindo. Na mão, trazia uma longa lança de represeiro com uma ornamentada ponta de bronze. Quando viu o portão, apontou para ele com a lança e ladrou qualquer coisa no Idioma Antigo para a meia dúzia de Thenns que o rodeava. Tarde demais, pensou Jon. Você devia ter saltado a barricada à frente de seus homens, podia ter sido capaz de salvar alguns.
Lá em cima soou um berrante de guerra, um sopro longo e grave. Não no topo da Muralha, mas no nono patamar, a cerca de sessenta metros de altura, onde Donal Noye se encontrava.
Jon encaixou uma flecha incendiária no arco, e Cetim acendeu-a com o archote. Aproximou-se do parapeito, puxou, apontou, soltou. Fitas de chamas perseguiram a haste, que ganhou velocidade enquanto caía e atingiu o alvo com um baque surdo, crepitando.
Não era Styr. Eram os degraus. Ou, mais precisamente, os barris, barricas e sacas que Donal Noye havia empilhado por baixo dos degraus, até a altura do primeiro patamar; os barris de piche e azeite para lâmpadas, os sacos de folhas e os trapos embebidos em óleo, as toras rachadas, as cascas de árvore e as aparas de madeira. "Outra vez", disse Jon, e"Outra vez", e "Outra vez". Outros arqueiros estavam também disparando, do topo de todas as torres dentro de alcance, alguns lançando suas flechas para o alto, em grandes arcos, para caírem à frente da Muralha. Quando Jon ficou sem flechas incendiárias, ele e Cetim passaram a acender os archotes e a atirá-los das ameias.
Lá em cima, outro incêndio desabrochava. Os velhos degraus de madeira tinham bebido o óleo como esponjas, e Donal Noye empapara-os, do nono patamar até o sétimo. Jon só podia ter esperança de que a maior parte de sua gente tivesse subido até um lugar seguro antes de Noye arremessar os archotes. Os irmãos negros, pelo menos, sabiam do plano, mas os aldeões não.
O vento e o fogo fizeram o resto. Tudo que Jon precisou fazer foi observar. Com chamas por baixo e por cima, os selvagens não tinham para onde ir. Alguns continuaram a subir, e morreram. Alguns desceram, e morreram. Alguns ficaram onde estavam. Também morreram. Muitos saltaram dos degraus antes de se incendiarem, e morreram da queda. Vinte e poucos Thenns ainda se apertavam uns contra os outros entre os incêndios quando o gelo rachou devido ao calor e todo o terço inferior da escada se desprendeu, com várias toneladas de gelo. Essa foi a última vez que Jon viu Styr, o Magnar de Thenn. A Muralha defende-se, pensou.
Jon pediu a Cetim para ajudá-lo a descer até o pátio. A perna ferida doía tanto que quase não conseguia andar, mesmo com a muleta.
- Traga a tocha - disse ao rapaz de Vilavelha. - Preciso procurar uma pessoa. - Nos degraus havia principalmente Thenns. Certamente alguns membros do povo livre tinham escapado. Gente de Mance, não do Magnar. Ela podia ter sido um deles. Por isso desceram, passando por corpos de homens que tinham testado o alçapão, e Jon ficou vagueando pela escuridão com a muleta debaixo de um braço e o outro em volta dos ombros de um rapaz que tinha sido prostituto em Vilavelha.
A essa altura, os estábulos e a sala comum já estavam reduzidos a brasas fumegantes, mas o fogo ainda ardia furiosamente ao longo da Muralha, subindo degrau por degrau e um patamar após o outro. De tempos em tempos ouviam um gemido e logo um craaaac, e outro pedaço de Muralha tombava com estrondo. O ar estava repleto de cinzas e cristais de gelo.
Encontrou Quort morto, e Polegares de Pedra moribundo. Encontrou alguns Thenns que nunca chegara realmente a conhecer mortos e moribundos. Encontrou Grande Furúnculo, fraco de todo o sangue que tinha perdido, mas ainda vivo.
Encontrou Ygritte estatelada numa mancha de neve velha por baixo da Torre do Senhor Comandante, com uma flecha entre os seios. Os cristais de gelo tinham pousado em seu rosto e, ao luar, parecia que estava usando uma cintilante máscara de prata.
Jon viu que a flecha era negra, mas tinha penas brancas de pato. Não é minha, disse a si mesmo, não é uma das minhas. Mas sentiu como se fosse.
Quando ajoelhou-se na neve ao lado dela, Ygritte abriu os olhos.
- Jon Snow - disse ela, muito baixo. Parecia que a flecha tinha atingido um pulmão. - Isto agora já é um verdadeiro castelo? Não é só uma torre?
- Sim. - Jon pegou na mão dela.
- Bom - sussurrou ela. - Queria ver um castelo de verdade antes... antes de...
- Vai ver uma centena de castelos - prometeu-lhe ele. - A batalha acabou. Meistre Aemon vai cuidar de você. - Tocou os cabelos dela. - E beijada pelo fogo, lembra? Sortuda. Vai ser preciso mais do que uma flecha para matá-la. Aemon vai puxá-la para fora e fazer um curativo em você, e depois arranjamos um pouco de leite de papoula para suas dores.
Ela limitou-se a sorrir.
- Lembra daquela gruta? Devíamos ter ficado naquela gruta. Eu disse.
- Vamos voltar à gruta - disse ele. - Não vai morrer, Ygritte. Não vai.
- Oh. - Ygritte envolveu o rosto dele com a mão. - Você não sabe nada, Jon Snow - suspirou, e morreu.
É só mais um castelo vazio - disse Meera Reed ao olhar a desolação de entulho, ruínas e ervas daninhas.
Não, pensou Bran, é Fortenoite, e isto é o fim do mundo. Nas montanhas, só conseguia pensar em chegar à Muralha e encontrar o corvo de três olhos, mas agora que estavam ali sentia-se cheio de temores. O sonho que tivera... o sonho que Verão tivera... Não, não devo pensar no sonho. Nem sequer o tinha contado aos Reed, embora pelo menos Meera parecesse sentir que havia algo errado. Se nunca falasse dele, talvez pudesse esquecer que o sonhara, e então não teria acontecido, e Robb e Vento Cinzento ainda estariam...
- Hodor. - Hodor deslocou o peso de uma perna para a outra, levando Bran atrás. Estava cansado. Tinham caminhado durante horas. Pelo menos não está assustado. Bran tinha medo daquele lugar, quase tanto quanto tinha de admitir isso aos Reed. Sou um príncipe do Norte, um Stark de Winterfell, quase um homem-feito, tenho de ser tão bravo quanto Robb.
Jojen íitou-o com seus olhos verde-escuros.
- Não há nada aqui que nos faça mal, Vossa Graça.
Bran não tinha tanta certeza. Fortenoite surgia em algumas das histórias mais assustadoras da Velha Ama. Tinha sido ali que o Rei da Noite reinou, antes de seu nome ter sido varrido da memória dos homens. Foi ali que o Cozinheiro Ratazana serviu ao rei ândalo seu empadão de príncipe e bacon, que as setenta e nove sentinelas mantiveram-se de vigia, que o bravo jovem Danny Flint foi violado e assassinado. Era esse o castelo onde o Rei Sherrit rogou a sua praga sobre os ândalos de antigamente, onde os jovens aprendizes tinham enfrentado a coisa saída da noite, onde o cego Symeon Olhos-de-Estrela viu os mastins do inferno lutando. Machado Louco caminhou um dia por aqueles pátios e subiu àquelas torres, assassinando seus irmãos na calada da escuridão.
Tudo aquilo tinha acontecido havia centenas de milhares de anos, com certeza, e algumas daquelas coisas talvez nem tivessem acontecido de verdade. Meistre Luwin dizia sempre que as histórias da Velha Ama não deviam ser engolidas inteiras. Mas, uma vez, o tio viera visitar o pai, e Bran interrogou-o a respeito de Fortenoite. Benjen Stark não chegou a dizer que as histórias eram verdadeiras, mas também não disse que não eram; limitou-se a encolher os ombros e declarar que haviam abandonado Fortenoite há duzentos anos. Como se isso fosse resposta.
Bran forçou-se a olhar em volta. A manhã estava fria mas luminosa, com o sol a brilhar num céu de um azul duro, mas os ruídos não lhe agradavam. O vento causava um assobio nervoso ao estremecer por entre as torres quebradas, os baluartes gemiam e aquietavam-se e ouviam-se ratazanas arrastando-se sob o chão do grande salão. Os filhos do Cozinheiro Ratazana fugindo do pai. Os pátios eram pequenas florestas onde árvores esguias esfregavam seus ramos nus uns nos outros e folhas mortas corriam como baratas por cima de manchas de neve antiga. Havia árvores crescendo onde os estábulos tinham estado, e um represeiro branco e retorcido assomava por um buraco escancarado no telhado em cúpula da cozinha. Até Verão se sentia desconfortável naquele local. Bran enfiou-se em sua pele, só por um instante, para sentir o cheiro do lugar. Também não gostou dele.
E não havia maneira de atravessar.
Bran tinha lhes dito que não haveria. Tinha dito e redito, mas Jojen Reed insistiu em ver com os próprios olhos. Dizia que tivera um sonho verde, e que seus sonhos verdes não mentiam. Também não abrem portões, pensou Bran.
O portão que Fortenoite defendia estava selado desde o dia em que os irmãos negros tinham carregado as mulas e os garranos e partido para Lago Profundo; a sua porta levadiça de ferro encontrava-se descida, as correntes que a içavam tinham sido levadas e o túnel fora preenchido com pedras e entulho, tudo congelado até se tornar tão impenetrável como a própria Muralha.
- Devíamos ter seguido Jon - disse Bran quando o viu. Pensava frequentemente no irmão bastardo, desde a noite em que Verão o vira se afastando na tempestade. - Devíamos ter procurado a estrada do rei e seguido para Castelo Negro.
- Não nos atrevemos, meu príncipe - disse Jojen. - Já lhe disse por quê.
- Mas há selvagens. Eles mataram um homem qualquer e também queriam matar o Jon. Jojen, eram uma centena.
- Foi o que você disse. Nós somos quatro. Ajudou seu irmão, se é que era realmente ele, mas isso quase lhe custou o Verão.
- Eu sei - disse Bran com um ar infeliz.
O lobo gigante tinha matado três deles, talvez mais, mas eram muitos. Depois de formarem um anel apertado em volta do homem alto sem orelhas, tinha tentado se esgueirar através da chuva, mas uma das flechas veio num relâmpago atrás dele e a súbita punhalada de dor expulsou Bran da pele do lobo e fez com que voltasse à sua. Depois que a tempestade finalmente passou, tinham se aninhado no escuro, sem uma fogueira, falando em sussurros quando falavam, escutando a respiração pesada de Hodor e perguntando a si mesmos se os selvagens iriam tentar atravessar o lago de manhã. Bran tentara várias vezes alcançar Verão, mas a dor que encontrou afastou-o, da mesma forma que uma chaleira em brasa nos faz afastar a mão quando tentamos pegá-la. Só Hodor dormiu naquela noite, murmurando "Hodor, hodor", enquanto se debatia e virava. Bran estava aterrorizado pela possibilidade de Verão estar morrendo na escuridão. Por favor, oh deuses antigos, rezou, levaram Winterfell, meu pai e minhas pernas, não levem também o Verão. E protejam também Jon Snow e façam com que os selvagens vão embora.
Não cresciam represeiros naquela ilha pedregosa no lago, mas de algum modo os deuses antigos devem tê-lo ouvido. Os selvagens levaram tempo até partirem na manhã seguinte, despindo os corpos de seus mortos e do velho que tinham matado, e até pescando alguns peixes do lago, e houve um momento assustador quando três deles encontraram o caminho elevado e começaram a avançar pela água... mas o caminho virou e eles não, e dois quase se afogaram antes de os outros os puxarem para terra. O homem alto e careca berrou para eles, com palavras que ecoaram sobre as águas numa língua qualquer que nem mesmo Jojen conhecia, e pouco depois pegaram escudos e lanças e marcharam para nordeste, a mesma direção que Jon seguira. Bran queria partir também, para ir à procura de Verão, mas os Reed disseram que não.
- Vamos ficar mais uma noite - Jojen disse -, colocar algumas léguas entre nós e os selvagens. Não quer voltar a encontrá-los, não é?
Mais tarde nessa noite, Verão voltou de onde quer que estivera escondido, arrastando a pata traseira. Tinha comido partes dos cadáveres na estalagem, afastando os corvos, e depois nadado até a ilha. Meera arrancou a flecha quebrada da pata dele e esfregou a ferida com a seiva de umas plantas que encontrara crescendo em volta da base da torre. O lobo gigante ainda mancava, mas parecia a Bran que o fazia um pouco menos a cada dia. Os deuses tinham escutado.
- Talvez devêssemos tentar outro castelo - disse Meera ao irmão. - Talvez consigamos atravessar o portão em algum outro lugar. Podia ir bater terreno, se você quisesse, seria mais rápida sozinha.
Bran sacudiu a cabeça.
- Se for para leste, tem primeiro o Lago Profundo e depois o Portão da Rainha. Para oeste fica Marcagelo. Mas serão a mesma coisa, só que menores. Todos os portões estão selados, exceto os de Castelo Negro, Atalaialeste e Torre Sombria.
Hodor respondeu "Hodor" àquilo, e os Reed trocaram um olhar.
- Eu pelo menos podia subir até o topo da Muralha - decidiu Meera. - Talvez visse alguma coisa lá em cima.
- O que espera ver? - perguntou Jojen.
- Alguma coisa - disse Meera, e para variar mostrou-se inflexível.
Devia ser eu. Bran ergueu a cabeça para olhar a Muralha e imaginou-se escalando centímetro a centímetro, enfiando os dedos em fendas no gelo e abrindo apoios para os pés aos chutes. A ideia fez Bran sorrir, apesar de tudo, dos sonhos, dos selvagens, de Jon e de tudo. Escalava as muralhas de Winterfell quando era pequeno, e todas as torres também, mas nenhuma tinha sido tão alta, e eram apenas de pedra. A Muralha podia parecer pedra, toda cinzenta e esburacada, mas então as nuvens abriam-se, o sol brilhava sobre ela de uma forma diferente, e de repente transformava-se e ali surgia, branca e azul e cintilante. Era o fim do mundo, dizia sempre a Velha Ama. Do outro lado havia monstros, gigantes e vampiros, mas não podiam passar enquanto a Muralha se mantivesse em pé. Quero ir lá em cima com Meera, pensou Bran. Quero ir lá em cima e ver.
Mas era um garoto quebrado, com pernas inúteis, por isso, tudo o que podia fazer era ficar embaixo assistindo enquanto Meera subia em seu lugar.
Ela não estava realmente escalando, como ele costumava escalar. Estava apenas subindo uns degraus que a Patrulha da Noite talhara havia centenas e milhares de anos. Lembrava-se de Meistre Luwin dizer que Fortenoite era o único castelo onde os degraus tinham sido cortados no gelo da própria Muralha. Ou talvez tivesse sido o tio Benjen. Os castelos mais novos tinham degraus de madeira, ou de pedra, ou longas rampas de terra e cascalho. "O gelo é traiçoeiro demais." Foi o tio que lhe contou aquilo. Ele disse que a superfície exterior da Muralha às vezes chorava lágrimas geladas, embora o núcleo, lá dentro, permanecesse congelado e duro como pedra. Os degraus deviam ter derretido e voltado a congelar mil vezes desde que os últimos irmãos negros tinham abandonado o castelo e, a cada vez que o faziam, encolhiam um pouco e tornavam-se mais lisos, mais arredondados e mais traiçoeiros.
E menores. É quase como se a Muralha estivesse engolindo-os de volta. Meera Reed tinha pés muito seguros, mesmo assim avançava lentamente, deslocando-se de protuberância em protuberância. Em dois locais, onde os degraus praticamente já não existiam, ficou de quatro. Será pior quando descer, pensou Bran, observando. Mesmo assim, desejou ser ele a estar lá em cima. Quando chegou ao topo, engatinhando pelas saliências geladas que eram tudo que restava dos degraus superiores, Meera desapareceu de sua vista.
- Quando é que ela desce? - perguntou Bran a Jojen.
- Quando estiver pronta. Ela vai querer dar uma boa olhada... na Muralha e no que está para lá dela. Devíamos fazer o mesmo aqui embaixo.
- Hodor? - disse Hodor, com ar de dúvida.
- Podíamos encontrar qualquer coisa - insistiu Jojen.
Ou pode ser que alguma coisa nos encontre. Mas Bran não podia dizer isso; não queria que Jojen o julgasse covarde.
E assim foram explorar, com Jojen Reed na liderança, Bran em seu cesto às costas de Hodor e Verão caminhando a seu lado. Uma vez, o lobo gigante enfiou-se de repente numa porta escura e voltou um momento depois com uma ratazana cinza entre os dentes. O Cozinheiro Ratazana, pensou Bran, mas o animal era da cor errada, e só tinha o tamanho de um gato. O Cozinheiro Ratazana era branco e quase tão gigantesco quanto uma porca.
Havia um monte de portas escuras em Fortenoite e um monte de ratazanas. Bran ouvia seus passos ligeiros por armazéns e adegas e pelo labirinto de túneis negros como breu que os ligava. Jojen queria ir espiar lá embaixo, mas a essa ideia Hodor disse "Hodor", e Bran disse "Não". Havia coisas piores do que ratazanas na escuridão por baixo de Fortenoite.
- Este parece um lugar antigo - disse Jojen enquanto atravessavam uma galeria onde a luz do sol caía em feixes poeirentos através de janelas vazias.
- É duas vezes mais velho do que Castelo Negro - disse Bran, recordando. - Foi o primeiro castelo da Muralha, e também o maior. - Mas também foi o primeiro a ser abandonado, ainda no tempo do Velho Rei. Mesmo então, três quartos dele já se encontravam vazios, e era muito dispendioso mantê-lo. A Boa Rainha Alysanne sugeriu que a Patrulha o substituísse por um castelo menor e mais novo, num local a apenas onze quilômetros para leste, onde a Muralha se curvava ao longo da margem de um belo lago verde. Lago Profundo foi pago pelas jóias da rainha e construído por homens que o Velho Rei enviou para o norte, e os irmãos negros entregaram Fortenoite às ratazanas.
Mas isso havia sido dois séculos antes. Agora, Lago Profundo estava tão vazio como o castelo que tinha substituído, e Fortenoite...
- Há fantasmas aqui - disse Bran. Hodor já tinha ouvido todas as histórias, mas Jojen talvez não. - Fantasmas velhos, de antes do Velho Rei, de antes até de Aegon, o Dragão, setenta e nove desertores que foram para o sul a fim de se tornarem fora da lei. Um deles era o filho mais novo de Lorde Ryswell, e por isso, quando chegaram às terras acidentadas, procuraram refúgio em seu castelo, mas Lorde Ryswell aprisionou-os e devolveu-os a Fortenoite. O Senhor Comandante mandou abrir buracos no topo da Muralha, enfiou neles os desertores e selou-os no gelo, vivos. Têm lanças e berrantes e estão todos virados para o norte. Chamam-se as setenta e nove sentinelas. Abandonaram seus postos em vida, portanto, na morte, sua vigília dura para sempre. Anos mais tarde, quando Lorde Ryswell já estava velho e moribundo, fez que o trouxessem para Fortenoite para poder vestir o negro e ficar junto do filho. Enviara-o de volta para a Muralha por uma questão de honra, mas ainda o amava, por isso veio acompanhá-lo na vigília.
Passaram metade do dia esquadrinhando o castelo. Algumas das torres tinham desmoronado, e outras pareciam pouco seguras, mas subiram à torre sineira, onde não havia sinos, e à colônia dos corvos, onde não havia corvos. Sob a cervejaria, encontraram uma adega de enormes barris de carvalho que trovejavam ocamente quando Hodor batia neles com os nós dos dedos. Encontraram uma biblioteca onde as prateleiras e os escaninhos tinham desabado, não havia livros, mas era possível encontrar ratazanas por todo lado. Acharam uma masmorra úmida e fracamente iluminada, com celas suficientes para quinhentos cativos, mas quando Bran pegou numa das barras enferrujadas, ela partiu-se na sua mão. Só restava uma parede em ruínas no grande salão, a casa de banhos parecia estar se afundando no chão, e um enorme espinheiro conquistara o pátio de treinos em frente ao arsenal, onde irmãos negros um dia tinham trabalhado com lanças, escudos e espadas. No entanto, o arsenal e a forja ainda se mantinham em pé, embora as teias de aranha, as ratazanas e a poeira tivessem ocupado o lugar das lâminas, dos foles e da bigorna. Às vezes, Verão ouvia sons aos quais Bran parecia surdo, ou mostrava os dentes a coisa nenhuma, com o pelo do cangote eriçado... mas o Cozinheiro Ratazana não chegou a aparecer, e as setenta e nove sentinelas e o Machado Louco também não. Bran sentiu-se muito aliviado. Talvez seja apenas um castelo vazio em ruínas.
Quando Meera regressou, o sol era somente o fio de uma espada acima dos montes ocidentais.
- O que foi que viu? - perguntou-lhe o irmão Jojen.
- Vi a floresta assombrada - disse ela num tom pensativo. - Montes selvagens que se erguem até perder de vista, cobertos de árvores nunca tocadas por um machado. Vi a luz do sol cintilando num lago e nuvens que se aproximam vindas do oeste. Vi manchas de neve velha e pingentes do tamanho de lanças. Vi até uma águia pairando no céu. Acho que ela também me viu. Acenei para ela.
- Viu algum caminho para baixo? - perguntou Jojen.
Ela sacudiu a cabeça.
- Não. E uma queda livre, e o gelo é tão liso... eu talvez fosse capaz de descer se tivesse uma boa corda e um machado para abrir apoios para as mãos, mas...
- ... mas nós não - terminou Jojen.
- Não - concordou a irmã. - Tem certeza de que este é o lugar que viu no seu sonho? Talvez estejamos no castelo errado.
- Não. O castelo é este. Há um portão aqui.
Sim, pensou Bran, mas está bloqueado por pedra e gelo.
Quando o sol começou a se pôr, as sombras das torres cresceram e o vento soprou com mais força, fazendo rajadas de folhas secas e mortas crepitar nos pátios. As sombras que se reuniam lembraram a Bran outra das histórias da Velha Ama, a história do Rei da Noite. Tinha sido o décimo terceiro homem a liderar a Patrulha da Noite, dizia ela; um guerreiro que não conhecia o medo.
- E esse era o seu defeito - acrescentava -, pois todos os homens devem conhecer o medo. - Sua perdição havia sido uma mulher; uma mulher vislumbrada do topo da Muralha, com a pele branca como a lua e olhos que eram como estrelas azuis. Sem nada temer, ele perseguiu-a, pegou-a e amou-a, embora a pele dela fosse fria como gelo, e quando lhe entregou a sua semente, entregou também sua alma.
"Trouxe-a de volta para Fortenoite e proclamou-a rainha e a si o seu rei, e com estranhas feitiçarias prendeu os Irmãos Juramentados aos seus desígnios. Governaram durante treze anos, o Rei da Noite e sua rainha cadáver, até que por fim o Stark de Winterfell e Joramun dos selvagens se aliaram para libertar a Patrulha da servidão. Após a sua queda, quando se descobriu que o Rei da Noite tinha andado fazendo sacrifícios aos Outros, todos os registros que se referiam a ele foram destruídos e até seu nome foi proibido.
"Alguns dizem que era um Bolton - concluía sempre a Velha Ama. - Alguns falam de um Magnar de Skagos, outros dizem Umber, Flint ou Norrey. Alguns querem nos convencer de que era um Woodfoot, membro da família que governava a Ilha dos Ursos antes da chegada dos homens de ferro. Mas não era. Era um Stark, o irmão do homem que o derrubou. - Então dava sempre um beliscão no nariz de Bran, ele nunca esqueceria disso. - Era um Stark de Winterfell, e quem sabe? Talvez seu nome fosse Brandon. Talvez dormisse nesta mesma cama, neste mesmo quarto."
Não, pensou Bran. Mas caminhou por este castelo, onde vamos dormir esta noite. Não gostava nada daquela ideia. "O Rei da Noite era apenas um homem à luz do dia", dizia sempre a Velha Ama, "mas a noite era por ele governada". E está ficando escuro.
Os Reed decidiram dormir nas cozinhas, um octógono de pedra com uma cúpula quebrada. Parecia oferecer melhor abrigo do que a maior parte dos outros edifícios, apesar de um represeiro retorcido ter aberto caminho através do chão de ardósia ao lado do gigantesco poço central, se estendendo, inclinado, para o buraco no telhado, com os ramos brancos como ossos se esticando para o sol. Era uma árvore estranha, mais esguia do que qualquer outro represeiro que Bran tivesse visto e desprovida de rosto, mas pelo menos fazia-o sentir que os deuses estavam ali com ele.
Era a única coisa de que gostava nas cozinhas, porém. O telhado estava lá, na maior parte, então se manteriam secos caso chovesse, mas não parecia que conseguiriam ficar quentes ali dentro. Era possível sentir o frio se infiltrando através do chão de ardósia. Bran também não gostava das sombras, ou dos enormes fornos de tijolo que os rodeavam como bocas abertas, ou dos enferrujados ganchos para carne, ou das cicatrizes e manchas que via na mesa de açougueiro, junto à parede. Foi ali que o Cozinheiro Ratazana cortou o príncipe em pedaços, compreendeu, e ele assou o empadão num daqueles fornos.
Mas o poço era aquilo de que menos gostava. Tinha uns bons três metros e meio de diâmetro, era todo de pedra, com degraus esculpidos nas paredes, descendo em círculos, cada vez mais para baixo, até se perderem nas trevas. As paredes eram úmidas e estavam cobertas de salitre, mas nenhum deles conseguiu ver a água no fundo, nem mesmo Meera com seus penetrantes olhos de caçadora.
- Talvez não tenha fundo - disse Bran com incerteza.
Hodor espreitou por sobre a borda do poço, que batia na altura do joelho, e disse:
- HODOR! - a palavra ecoou poço abaixo, "Hodorhodorhodorhodor", cada vez mais tênue, "hodorhodorhodorhodor", até se tornar menos do que um murmúrio. Hodor pareceu surpreendido. Então riu e dobrou-se para tirar um pedaço quebrado de ardósia.
- Hodor, não! - disse Bran, mas tarde demais. Hodor atirou a ardósia por sobre a borda. - Não devia ter feito isso. Não sabe o que há lá embaixo. Podia ter machucado alguma coisa ou... ou acordado alguma coisa.
Hodor olhou-o com uma expressão inocente.
- Hodor?
Muito, muito, muito embaixo, ouviram o som da pedra ao encontrar água. Não foi um tchap, não propriamente. Foi mais um glup, como se o que quer que estivesse lá embaixo tivesse aberto uma trêmula boca gélida para engolir a pedra de Hodor. Tênues ecos viajaram poço acima, e por um momento Bran pensou ouvir algo se mover, sacudindo-se de um lado para o outro, na água.
- Talvez não devêssemos ficar aqui - disse, inquieto.
- Junto ao poço? - perguntou Meera. - Ou em Fortenoite?
- Sim - disse Bran.
Ela soltou uma gargalhada e mandou Hodor ir buscar lenha. Verão também foi. A essa altura já era quase noite, e o lobo gigante queria caçar.
Hodor retornou sozinho com ambos os braços carregados de madeira morta e galhos quebrados. Jojen Reed pegou a sua pederneira e a faca e tratou de acender uma fogueira enquanto Meera desossava o peixe que tinha apanhado no último riacho por onde passaram. Bran perguntou a si mesmo quantos anos teriam transcorrido desde que houve pela última vez um jantar preparado nas cozinhas de Fortenoite. Também perguntou a si mesmo quem o teria preparado, embora talvez fosse melhor não saber.
Quando as chamas já ardiam bem, Meera pôs o peixe no fogo. Pelo menos não é um empadão de carne. O Cozinheiro Ratazana tinha feito com o filho do rei ândalo um grande empadão com cebolas, cenouras, cogumelos, montes de pimenta e sal, uma fatia de bacon e um escuro vinho tinto de Dorne. Depois, serviu-o ao pai dele, que elogiou o sabor e pediu para repetir. Mais tarde, os deuses transformaram o cozinheiro numa monstruosa ratazana branca que só podia comer os próprios filhos. Desde então, vagueava por Fortenoite, devorando os filhos, mas sua fome ainda não estava saciada.
- Não foi por assassinato que os deuses o amaldiçoaram - dizia a Velha Ama - nem por servir ao rei ândalo o filho num empadão. Um homem tem direito à vingança. Mas matou um hóspede sob o seu teto, e isso os deuses não podem perdoar.
- Devíamos dormir - disse solenemente Jojen, depois de encherem a barriga. A fogueira queimava baixa. Avivou-a com um pedaço de madeira. - Talvez tenha outro sonho verde para nos mostrar o caminho.
Hodor já estava enrolado e roncando ligeiramente. De tempos em tempos agitava-se sob o seu manto e choramingava qualquer coisa que podia ser "Hodor". Bran arrastou-se para mais perto da fogueira. O calor era agradável, e o suave crepitar das chamas acalmou-o, mas o sono não queria vir. Lá fora, o vento mandava exércitos de folhas mortas marchar pelos pátios e fazia-os arranhar levemente as portas e janelas. Os sons fizeram-no pensar nas histórias da Velha Ama. Quase conseguia ouvir as fantasmagóricas sentinelas chamando umas pelas outras no topo da Muralha e soprando seus fantasmagóricos berrantes de guerra. O pálido luar entrava de viés pelo buraco na cúpula, pintando os ramos do represeiro que se esticavam para o teto. Parecia que a árvore estava tentando pegar a lua e atirá-la no poço. Deuses antigos, orou Bran, se me escutam, não enviem um sonho esta noite. Ou se o fizerem, façam com que seja um sonho bom. Os deuses não responderam.
Bran obrigou-se a fechar os olhos. Talvez até tivesse dormido um pouco, ou talvez estivesse apenas dormitando, flutuando daquela maneira característica de quando se está meio acordado e meio dormindo, tentando não pensar no Machado Louco, no Cozinheiro Ratazana, ou na coisa que chegava na noite.
Então ouviu o ruído.
Seus olhos se abriram. O que foi isso? Segurou a respiração. Terei sonhado? Estaria tendo um estúpido pesadelo? Não queria acordar Meera e Jojen por causa de um pesadelo, mas... ali... um leve som de arrastar, distante... Folhas, são folhas restolhando nas paredes lá fora e raspando umas nas outras... ou o vento, podia ser o vento... Mas o som não vinha lá de fora. Bran sentiu que os pelos de seus braços começavam a se eriçar. O som está aqui dentro, está aqui conosco, e está ficando mais alto. Apoiou-se num cotovelo, à escuta. Havia vento, e também folhas por ele sopradas, mas isso era outra coisa. Passos. Alguém vinha naquela direção. Algo vinha naquela direção.
Sabia que não eram as sentinelas. As sentinelas nunca abandonavam a Muralha. Mas podia haver outros fantasmas em Fortenoite, fantasmas ainda mais terríveis. Lembrou-se do que a Velha Ama disse do Machado Louco, de como ele tinha tirado as botas e percorrido os salões do castelo de pés descalços, na escuridão, sem soltar um som que indicasse onde estava, exceto as gotas de sangue que caíam do machado, dos cotovelos e da ponta de sua barba vermelha e úmida. Ou talvez não fosse o Machado Louco, talvez fosse a coisa que chegava na noite. Todos os aprendizes a tinham visto, dizia a Velha Ama, mas depois, quando contaram ao seu Senhor Comandante, todas as descrições mostraram-se diferentes. E três morreram naquele ano, e o quarto enlouqueceu, e cem anos mais tarde, quando a coisa regressou, os aprendizes foram vistos aos tropeções atrás dela, acorrentados.
Mas isso era apenas uma história. Só estava assustando a si mesmo. Não existia coisa alguma que chegava na noite, foi Meistre Luwin que disse. Se algo assim tivesse existido, desaparecera do mundo, como os gigantes e os dragões. Não é nada, pensou Bran.
Mas os sons agora eram mais altos.
Vem do poço, compreendeu. Isso deixou-o ainda mais assustado. Algo vinha subindo de debaixo do chão, vinha subindo da escuridão. Hodor acordou-o. Acordou-o com aquele estúpido pedaço de ardósia, e agora vem aí. Era difícil ouvir por sobre os roncos de Hodor e o trovejar do próprio coração. Seria o som que o sangue fazia ao pingar de um machado? Ou seria o tênue e distante retinir de algemas fantasmagóricas? Bran escutou com mais atenção. Passos. Eram passos com certeza, cada um ligeiramente mais alto do que o anterior. Mas não conseguia identificar quantos eram. O poço fazia os sons ecoar. Não ouvia nada pingando, e também não ouvia correntes, mas havia algo mais... um som agudo, frágil e lamuriento, como que emitido por alguém com dores, e uma respiração pesada e abafada. Mas os passos eram mais altos. Os passos se aproximavam.
Bran estava assustado demais para gritar. A fogueira reduzira-se a algumas brasas fracas e todos os seus amigos encontravam-se adormecidos. Quase saiu de sua pele e foi em busca do lobo, mas Verão podia estar a quilômetros de distância. Não podia deixar os amigos na escuridão, impotentes para enfrentar o que quer que viesse subindo o poço. Eu disse-lhes para não vir para cá, pensou, infeliz. Eu disse-lhes que havia fantasmas. Eu disse-lhes que devíamos ir para Castelo Negro.
Para Bran, os passos soavam pesados, lentos, imponentes, raspando contra a pedra. Deve ser enorme. Machado Louco era um homem grande na história da Velha Ama, e a coisa que chegava na noite era monstruosa. Em Winterfell, Sansa disse-lhe que os demônios da escuridão não podiam tocá-lo caso se escondesse por baixo da manta. Quase fez isso agora, antes de se lembrar de que era um príncipe, e quase um homem-feito.
Bran contorceu-se pelo chão, arrastando as pernas mortas atrás de si, até conseguir estender a mão e tocar Meera no pé. Ela acordou de imediato. Nunca conhecera alguém que acordasse tão depressa como Meera Reed, ou que ficasse tão alerta tão rapidamente. Bran pôs um dedo sobre a boca para que ela soubesse que não devia falar. Meera ouviu o som de imediato, Bran podia ver no rosto dela; os passos ecoantes, o tênue choramingar, a respiração pesada.
Meera pôs-se em pé sem uma palavra e recolheu as armas. Com a lança de três dentes para caçar rãs na mão direita e as dobras da rede pendendo da esquerda, deslizou descalça para junto do poço. Jojen continuou a dormir, sem perceber nada, enquanto Hodor resmungava e se debatia num sono inquieto. Ela manteve-se nas sombras ao se mover, rodeou o feixe de luz do luar tão silenciosa como uma gata. Bran passou todo o tempo a observá-la, e até ele quase não conseguia ver o tênue reflexo de sua lança. Não posso deixar que ela combata a coisa sozinha, pensou. Verão estava distante, mas...
... deslizou para fora de sua pele e procurou Hodor.
Não era como enfiar-se em Verão. Isso era agora tão fácil que Bran quase nem pensava no que estava fazendo. Com Hodor era mais difícil, como tentar enfiar uma bota esquerda no pé direito. Servia mal, e além disso a bota estava assustada, a bota não sabia o que estava acontecendo e tentava afastar o pé. Sentiu o sabor de vômito no fundo da garganta de Hodor, e isso foi quase o bastante para levá-lo a fugir. Mas, em vez disso, contorceu-se e impulsionou-se, sentou-se, pôs as pernas por baixo de si - as enormes e fortes pernas - e levantou-se. Estou em pé. Deu um passo. Estou andando. Era uma sensação tão estranha que quase caiu. Conseguia ver-se no frio chão de pedra, uma coisinha quebrada, mas agora não estava quebrado. Pegou a espada longa de Hodor. A respiração era tão ruidosa quanto o fole de um ferreiro.
Do poço veio um lamento, um crich penetrante que o atravessou como uma faca. Uma enorme silhueta negra içou-se das trevas e cambaleou na direção do luar, e o medo subiu tão denso em Bran que, antes mesmo de conseguir pensar em puxar a espada de Hodor como pretendera fazer, viu-se de novo no chão, com Hodor rugindo "Hodor hodor HODOR" como fizera na torre do lago sempre que um relâmpago caía. Mas a coisa que chegara na noite também estava gritando, e se agitando violentamente nas dobras da rede de Meera. Bran viu a lança da garota saltar das trevas para apanhá-la, e a coisa cambaleou e caiu, lutando com a rede. O lamento continuava a sair do poço, agora ainda mais ruidoso. No chão, a coisa negra saltou e lutou, guinchando:
- Não, não, não, por favor, NÃO...
Meera ficou por cima do homem, com o luar brilhando, prateado, nos dentes de sua lança para rãs.
- Quem é você? - exigiu saber.
- Sou o SAM - soluçou a coisa negra. - Sam, Sam, sou o Sam, deixe-me sair, você me furou... - Passou rolando pela poça de luar, agitando-se e deixando-se cair, enredado na rede de Meera. Hodor continuava a gritar "Hodor hodor hodor".
Foi Jojen quem alimentou a fogueira com pedaços de madeira e a soprou até que as chamas saltaram, crepitando. Então fez-se a luz, e Bran viu a pálida garota de rosto magro junto à borda do poço, toda embrulhada em peles sob um enorme manto negro, tentando calar o bebê que chorava em seus braços. A coisa no chão estava tentando atravessar a rede com um braço para pegar a faca, mas as voltas não permitiam. Não era nenhuma fera monstruosa, nem o Machado Negro ensopado em sangue; era apenas um homem muito gordo vestido de lã negra, peles negras, couro negro e cota de malha negra.
- Ele é um irmão negro - disse Bran. - Meera, ele é da Patrulha da Noite.
- Hodor? - Hodor acocorou-se para examinar o homem na rede. - Hodor - repetiu, gritando.
- A Patrulha da Noite, sim. - O gordo continuava a respirar como um fole. - Sou um irmão da Patrulha. - Tinha uma corda sob os queixos, forçando sua cabeça para trás, e outras profundamente enterradas no rosto. - Sou um corvo, por favor. Tire-me disto aqui.
De repente, Bran ficou em dúvida.
- E o corvo de três olhos? - Ele não pode ser o corvo de três olhos.
- Acho que não. - O gordo rolou os olhos, mas só havia dois. - Sou só o Sam. Samwell Tarly. Deixe-me sair, a rede está me machucando. - Recomeçou a lutar.
Meera fez um ruído de repugnância.
- Pare de se debater. Se rasgar a minha rede, atiro-o de volta ao poço. Fique quieto que eu o desenredo.
- Quem é você? - perguntou Jojen à garota com o bebê.
- Goiva - disse ela. - Como a flor de goivo. Ele é o Sam. Não queríamos assustá-los. - Embalou o bebê e murmurou para ele, e por fim a criança parou de chorar.
Meera estava desemaranhando o irmão gordo. Jojen dirigiu-se ao poço e espiou lá dentro.
- De onde vieram?
- Da Fortaleza de Craster - disse a garota. - E você o certo?
Jojen virou-se para olhá-la.
- O certo?
- Ele disse que Sam não era o certo - explicou ela. - Que havia mais alguém, disse ele. Aquele que ele havia sido enviado para encontrar.
- Quem foi que disse isso? - quis saber Bran.
- O Mãos-Frias - respondeu Goiva em voz baixa.
Meera puxou uma ponta da rede e o gordo conseguiu se sentar. Bran viu que estava tremendo e ainda lutava para recuperar o fôlego.
- Ele disse que haveria gente - arquejou. - Gente no castelo. Mas eu não sabia que ia encontrá-los bem no topo dos degraus. Não sabia que iriam atirar uma rede em mim e me furar no estômago. - Tocou a barriga com uma mão enluvada de negro. - Estou sangrando? Não consigo ver.
- Foi só uma cutucada para derrubá-lo - disse Meera. - Vem cá, deixe-me ver. - Ajoelhou e tateou em volta do umbigo do gordo. - Está usando cota de malha. Nem cheguei perto da sua pele.
- Bem, doeu do mesmo jeito - lamentou-se Sam.
- É mesmo um irmão da Patrulha da Noite? - perguntou Bran.
Os queixos do gordo balançaram quando confirmou com a cabeça. Sua pele parecia pálida e solta.
- Só um intendente. Cuidava dos corvos de Lorde Mormont. - Por um momento pareceu prestes a chorar. - Mas perdi todos no Punho. A culpa foi minha. E também fiz que nós nos perdêssemos. Nem sequer consegui encontrar a Muralha. Tem cem léguas de comprimento e duzentos metros de altura, e não consegui encontrá-la!
- Bem, agora encontrou - disse Meera. - Levante o traseiro do chão, quero a minha rede de volta.
- Como foi que atravessou a Muralha? - quis saber Jojen enquanto Sam lutava para se levantar. - O poço leva a um rio subterrâneo, foi daí que veio? Nem sequer está úmido...
- Há um portão - disse o gordo Sam. - Um portão escondido, tão velho quanto a própria Muralha. Ele chamou-o de Portão Negro.
Os Reed trocaram um olhar.
- Encontramos esse portão no fundo do poço? - perguntou Jojen.
Sam sacudiu a cabeça.
- Vocês não. Eu vou ter de levá-los.
- Por quê? - quis saber Meera. - Se há um portão...
- Não o encontrarão. Se o encontrassem, ele não se abriria. Para vocês não. É o Portão Negro. - Sam puxou a desbotada lã negra de sua manga. - Só pode ser aberto por um homem da Patrulha da Noite, disse ele. Um Irmão Juramentado que tenha proferido suas palavras.
- Disse ele. - Jojen franziu a testa. - Este... Mãos-Frias?
- Esse não é seu verdadeiro nome - disse Goiva, embalando o bebê. - E só um nome que nós demos para ele, o Sam e eu. As mãos dele eram frias como gelo, mas salvou-nos dos mortos, ele e seus corvos, e trouxe-nos para cá no seu alce.
- O seu alce? - disse Bran, pasmo.
- O seu alce? - disse Meera, sobressaltada.
- Os seus corvos? - disse Jojen.
- Hodor? - disse Hodor.
- Ele era verde? - Bran quis saber. - Tinha chifres?
O gordo mostrou-se confuso.
- O alce?
- O Mãos-Frias - disse Bran com impaciência. - Os homens verdes montam alces, costumava dizer a Velha Ama. Às vezes também têm chifres.
- Ele não era um homem verde. Usava panos negros, como um irmão da Patrulha, mas era pálido como uma criatura, com mãos tão frias que a princípio tive medo. Mas as criaturas têm olhos azuis, e não têm línguas, ou então esqueceram-se de como usá-las. - O gordo virou-se para Jojen. - Ele deve estar à espera. Devíamos ir. Têm alguma coisa mais quente para vestir? O Portão Negro é frio, e o outro lado da Muralha é ainda mais frio. Vocês...
- Por que foi que ele não veio com você? - Meera fez um gesto na direção de Goiva e do bebê. - Eles vieram com você, por que é que ele não veio? Por que foi que não o trouxe também por esse Portão Negro?
- Ele... ele não pode.
- Por quê?
- A Muralha. Disse-nos que a Muralha é mais do que apenas gelo e pedra. Tem feitiços nela urdidos... feitiços antigos, e fortes. Não pode passar para o outro lado da Muralha.
Então caiu um silêncio muito grande sobre a cozinha do castelo. Bran ouvia o suave crepitar das chamas, o vento agitando as folhas na noite, os rangidos do esquálido represeiro que se estendia para a lua. "Do outro lado dos portões vivem os monstros, e também os gigantes e os vampiros", lembrou-se de ouvir a Velha Ama dizer, "mas não podem passar enquanto a Muralha se mantiver forte. Portanto vá dormir, meu pequeno Brandon, meu garotinho". Não tenho nada a temer. Aqui não há monstros.
- Não sou eu quem lhe disseram para trazer - disse Jojen Reed ao gordo Sam em seus trajes negros, manchados e largos. - É ele.
- Oh. - Sam olhou-o com incerteza. Talvez só então tivesse percebido que Bran era aleijado. - Eu não... não sou suficientemente forte para levá-lo, eu...
- O Hodor pode me levar. - Bran apontou para o cesto. - Eu ando naquilo, nas costas dele.
Sam estava a encará-lo.
- E o irmão de Jon Snow. Aquele que caiu...
- Não - disse Jojen. - Aquele garoto está morto.
- Não conte - avisou Bran. - Por favor.
Sam pareceu confuso por um momento, mas por fim disse:
- Eu... eu sei guardar um segredo. A Goiva também. - Quando olhou para ela, a garota confirmou com a cabeça. - O Jon... o Jon também era meu irmão. Foi o melhor amigo que já tive, mas partiu com Qhorin Meia-Mão para bater as Presas de Gelo e não voltou. Estávamos à espera dele no Punho quando... quando...
- Jon está aqui - disse Bran. - Verão o viu. Estava com um grupo de selvagens, mas eles mataram um homem e Jon pegou o cavalo dele e fugiu. Aposto que foi para Castelo Negro.
Sam virou seus olhos grandes para Meera.
- Tem certeza de que era Jon? Viu-o?
- Sou a Meera - disse Meera com um sorriso. - Verão é...
Uma sombra desprendeu-se da cúpula quebrada lá em cima e saltou através do luar. Apesar da pata ferida, o lobo aterrissou leve e silencioso como um floco de neve. A garota chamada Goiva soltou um ruído assustado e apertou o bebê com tanta força contra si que ele começou a chorar de novo.
- Ele não vai fazer mal a vocês - disse Bran. - Este é o Verão.
- Jon disse que todos vocês tinham lobos. - Sam tirou uma luva. - Eu conheço o Fantasma. - Estendeu uma mão trêmula, com dedos brancos, moles e gordos como pequenas salsichas. Verão aproximou-se, farejou-os e deu uma lambida em sua mão.
Foi então que Bran se decidiu.
- Vamos com você.
- Todos vocês? - Sam pareceu surpreso com a ideia.
Meera despenteou os cabelos de Bran.
- Ele é o nosso príncipe.
Verão deu a volta no poço, farejando. Fez uma pausa no degrau superior e olhou para Bran. Ele quer ir.
- Goiva ficará a salvo se deixá-la aqui até voltar? - perguntou-lhes Sam.
- Deve ficar - disse Meera. - E bem-vinda à nossa fogueira.
Jojen disse:
- O castelo está vazio.
Goiva olhou em volta.
- Craster costumava nos contar histórias de castelos, mas não sabia que eram tão grandes.
Isto são só as cozinhas. Bran perguntou a si mesmo o que ela pensaria quando visse Winterfell, se chegasse a vê-lo.
Demoraram alguns minutos para reunir suas coisas e içar Bran para a cadeira de vime às costas de Hodor. Quando ficaram prontos para partir, Goiva estava sentada junto à fogueira, dando de mamar ao bebê.
- Vai voltar para mim - ela disse a Sam.
- Assim que puder - ele prometeu - e depois vamos para um lugar quente. - Quando ouviu aquilo, parte de Bran questionou-se sobre o que estava fazendo. Será que voltarei para um lugar quente?
- Eu vou na frente, conheço o caminho. - Sam hesitou no topo. - Mas há tantos degraus - suspirou, antes de começar a descer. Jojen seguiu-o, depois ia Verão, depois Hodor com Bran de cavalinho. Meera colocou-se na retaguarda, com a lança e a rede na mão.
Foi uma longa descida. O topo do poço estava banhado em luar, mas ele tornava-se mais estreito e mais sombrio a cada volta que davam. Os passos ecoavam nas pedras úmidas, e os sons de água foram ficando mais altos.
- Devíamos ter trazido tochas? - perguntou Jojen.
- Seus olhos vão se ajustar - disse Sam. - Mantenham uma mão na parede, e não cairão.
O poço tornava-se mais escuro e mais frio a cada volta. Quando Bran finalmente ergueu a cabeça para olhar para cima, a boca do poço já não parecia maior do que meia lua ."Hodor", sussurrou Hodor, "Hodorhodorhodorhodorhodorhodor", murmurou o poço em resposta. Os sons de água estavam próximos, mas quando Bran espiou para baixo, viu apenas negrume.
Uma volta ou duas mais tarde, Sam parou de repente. Estava a um quarto de volta de Bran e Hodor, e dois metros mais abaixo, mas Bran quase não o via. Mas via a porta. O Portão Negro, chamara-lhe Sam, mas não era nada negro.
Era represeiro branco, e havia nele um rosto.
Um brilho saía da madeira, como leite e luar, tão fraco que mal parecia tocar em qualquer coisa além da porta propriamente dita, nem sequer em Sam, que estava bem na sua frente. O rosto era velho e pálido, enrugado e encolhido. Parece morto. A boca estava fechada e os olhos também; as faces eram encovadas, a testa mirrada, o queixo caído. Se um homem pudesse viver durante mil anos e não morrer, mas apenas tornar-se mais velho, seu rosto acabaria parecido com este.
A porta abriu os olhos.
Também eram brancos, e cegos.
- Quem é? - perguntou a porta, e o poço sussurrou, "Quem-quem-quem-quem-quem-quem-quem."
- Sou a espada na escuridão - disse Samwell Tarly. - Sou o vigilante nas muralhas. Sou o fogo que arde contra o frio, a luz que traz consigo a alvorada, a trombeta que acorda os que dormem. Sou o escudo que defende os reinos dos homens.
- Então passe - disse a porta. Seus lábios se abriram, se abriram, se abriram e se abriram ainda mais, até que nada restou a não ser uma grande boca escancarada, rodeada por um anel de rugas.
Sam desviou-se e fez sinal para que Jojen passasse na sua frente. Seguiu-se Verão, farejando enquanto seguia, e depois foi a vez de Bran. Hodor abaixou-se, mas não o suficiente. O lábio superior da porta raspou suavemente no topo da cabeça de Bran, e um pingo de água caiu sobre ele e escorreu lentamente por seu nariz. Estava estranhamente quente, e era salgada como uma lágrima.
Meereen era tão grande quanto Astapor e Yunkai juntas. Tal como suas cidades-irmãs, tinha sido construída de tijolos, mas enquanto Astapor era vermelha e Yunkai amarela, Meereen era feita de tijolos de muitas cores. Suas muralhas eram mais altas do que as de Yunkai e estavam em melhor estado, pontilhadas por baluartes e fixadas em grandes torres defensivas em todos os ângulos. Por trás delas via-se o topo da Grande Pirâmide, enorme contra o céu, uma coisa monstruosa com duzentos e cinquenta metros de altura e uma altaneira harpia de bronze no topo.
- A harpia é uma coisa covarde - disse Daario Naharis quando a viu. - Tem coração de mulher e pernas de galinha. Pouco admira que seus filhos se escondam atrás de muralhas.
Mas o herói não se escondia. Atravessou os portões da cidade, revestido de escamas de cobre e azeviche e montado num corcel branco, cujos jaezes listrados de rosa e branco combinavam com o manto de seda que flutuava dos ombros do homem. A lança que trazia tinha quatro metros e vinte de comprimento, pintada numa espiral de rosa e branco, e seus cabelos haviam sido esculpidos, penteados e laqueados, tomando a forma de dois chifres recurvos de carneiro. Cavalgou de um lado para o outro à sombra das muralhas de tijolos multicoloridos, desafiando os sitiantes a enviar um campeão que o defrontasse em combate singular.
Os companheiros de sangue de Dany estavam numa tal febre de ir ao seu encontro que quase começaram a lutar uns contra os outros.
- Sangue do meu sangue - ela disse-lhes -, o lugar de vocês é aqui ao meu lado. Este homem é uma mosca zumbidora, nada mais. Ignorem-no, depressa irá embora. - Aggo, Jhogo e Rakharo eram bravos guerreiros, mas eram jovens, e valiosos demais para arriscar. Mantinham seu khalasar unido, e também eram seus melhores batedores.
- Isso foi sensato - disse Sor Jorah enquanto observavam o homem da porta do seu pavilhão. - Que o idiota ande de um lado para o outro aos gritos até que o cavalo fique coxo. Não nos faz nenhum mal.
- Faz - insistiu Arstan Barba-Branca. - As guerras não são ganhas só com espadas e lanças, sor. Duas tropas de igual força podem se enfrentar, mas uma quebrará e fugirá enquanto a outra resiste. Este herói fortalece a coragem no coração de seus homens e planta as sementes da dúvida nos nossos.
Sor Jorah fungou.
- E se o nosso campeão perdesse, que tipo de semente isso plantaria?
- Um homem que teme a batalha não conquista vitórias, sor.
- Não estamos falando de batalhas. Os portões de Meereen não se abrirão se aquele palerma cair. Por que arriscar uma vida por nada?
- Pela honra, diria eu.
- Já ouvi o suficiente. - Dany não precisava somar as discussões daqueles dois a todos os outros problemas que a afligiam. Meereen apresentava perigos bem mais sérios do que um herói cor-de-rosa e branco gritando insultos, e não podia se permitir distrações. Após Yunkai, sua tropa era constituída por mais de oitenta mil pessoas, mas menos de um quarto dela eram soldados. O resto... bem, Sor Jorah chamava-os de bocas com pés, e em breve estariam passando fome.
Os Grandes Mestres de Meereen tinham se retirado diante do avanço de Dany, colhendo tudo o que podiam e queimando o que não conseguiam colher. Por todo lado, a tropa de Dany fora recebida por campos carbonizados e poços envenenados. E o pior era que os meereeneses tinham pregado uma criança escrava em cada marco quilométrico ao longo da estrada costeira que vinha de Yunkai; tinham-nas pregado ainda vivas, com as entranhas saltando da barriga e sempre um braço estendido apontando o caminho para Meereen. À frente de sua vanguarda, Daario tinha dado ordens para que retirassem as crianças dos marcos antes que Dany fosse obrigada a vê-las, mas ela o desautorizou assim que foi informada disso.
- Eu quero vê-las - disse. - Quero ver cada uma delas, contá-las, e olhar seus rostos. E vou me lembrar.
Quando chegaram a Meereen, erguida na costa salgada ao lado de seu rio, a contagem somava cento e sessenta e três. Eu terei esta cidade, jurou Dany para si mesma mais uma vez.
O herói cor-de-rosa e branco levou uma hora provocando os sitiantes, zombando de sua virilidade, das mães, esposas e deuses. Os defensores de Meereen incentivavam-no a partir das muralhas da cidade.
- O nome dele é Oznak zo Pahl - disse-lhe o Ben Mulato Plumm quando chegou para o conselho de guerra. Era o novo comandante dos Segundos Filhos, escolhido pelo voto de seus mercenários. - Fui guarda-costas do tio dele, antes de me juntar aos Segundos Filhos. Os Grandes Mestres... que maduro monte de vermes. As mulheres não eram muito más, embora olhar para a mulher errada da maneira errada custasse a vida. Conheci um homem, o Scarb, esse Oznak arrancou-lhe o fígado. Disse que estava defendendo a honra de uma senhora, ah, sim, disse que o Scarb a tinha violado com os olhos. Como é que se viola uma mulher com os olhos, pergunto? Mas o tio dele é o homem mais rico de Meereen e o pai comanda a guarda da cidade, por isso tive de fugir como uma ratazana antes que me matasse também.
Viram Oznak zo Pahl desmontar de seu corcel branco, desatar a túnica, puxar o membro viril para fora e dirigir um jato de urina na direção geral do bosque de oliveiras onde o pavilhão dourado de Dany se erguia no meio das árvores queimadas. Ainda estava urinando quando Daario Naharis chegou a cavalo, de arakh na mão.
- Devo cortar aquilo em seu nome e enfiar goela dele abaixo, Vossa Graça? - seu dente brilhava, dourado, no meio do azul de sua barba bifurcada.
- E a sua cidade que eu quero, não o seu pequeno membro. - Mas estava se irritando. Se continuar ignorando isso, meu próprio povo vai me julgar fraca.
Mas quem podia enviar? Precisava tanto de Daario como de seus companheiros de sangue. Sem o extravagante tyroshi, não tinha controle sobre os Corvos Tormentosos, muitos dos quais tinham sido seguidores de Prendahl na Ghezn e Sallor, o Calvo.
No alto das muralhas de Meereen, as zombarias tinham se tornado mais ruidosas, e agora centenas dos defensores estavam seguindo o exemplo do herói e urinavam de cima das muralhas para demonstrar o desprezo que sentiam pelos sitiantes. Estão urinando sobre escravos, para mostrar o pouco que nos temem, pensou. Nunca se atreveriam a tal coisa se o que estivesse em volta de suas muralhas fosse um khalasar dothraki.
- Esse desafio deve ser enfrentado - voltou a dizer Arstan.
- E será - disse Dany, enquanto o herói guardava o pênis. - Diga a Belwas, o Forte, que preciso dele.
Foram encontrar o enorme eunuco pardo sentado à sombra do pavilhão de Dany, comendo uma salsicha. Terminou-a em três dentadas, limpou as mãos engorduradas nas calças e ordenou a Arstan Barba-Branca que fosse buscar suas armas. O idoso escudeiro afiava o arakh de Belwas todas as noites e esfregava-o com óleo vermelho vivo.
Quando Barba-Branca trouxe a espada, Belwas, o Forte, examinou o gume, soltou um grunhido, enfiou a lâmina de volta na bainha de couro e atou o cinto da espada em volta de sua vasta cintura. Arstan também tinha lhe trazido o escudo: um disco redondo de aço não maior do que uma fôrma de torta, que o eunuco segurava com a mão livre em vez de prender ao braço à maneira de Westeros.
- Arranje fígado e cebolas, Barba-Branca - disse Belwas. - Não para agora; para depois. Matar deixa Belwas, o Forte, com fome. - Não esperou resposta e saiu pesadamente do bosque de oliveiras na direção de Oznak zo Pahl.
- Por que aquele, khaleesií - perguntou-lhe Rakharo. - Ele é gordo e estúpido.
- Belwas, o Forte, foi escravo aqui nas arenas de luta. Se este bem-nascido Oznak cair perante um homem como ele, os Grandes Mestres ficarão cobertos de vergonha, ao passo que se vencer... bem, seria uma vitória fraca para alguém tão nobre, uma vitória da qual Meereen não poderá obter orgulho. - E ao contrário de Sor Jorah, Daario, Ben Mulato e seus três companheiros de sangue, o eunuco não liderava tropas, não planejava batalhas e não lhe dava conselhos. Ele nada faz além de comer, gabar-se e berrar para Arstan. Belwas era o homem que mais facilmente podia dispensar. E era hora de saber que tipo de protetor o Magíster Illyrio tinha lhe enviado.
Um clamor de excitação percorreu as linhas de sítio quando Belwas foi visto se deslocando lentamente na direção da cidade, e das muralhas e torres de Meereen vieram gritos e zombarias. Oznak zo Pahl voltou a montar, e esperou, com a lança listrada erguida. O corcel sacudiu impacientemente a cabeça e escavou a terra arenosa. Apesar de tão maciço, o eunuco parecia pequeno ao lado do herói no seu cavalo.
- Um homem cavalheiresco desmontaria - disse Arstan.
Oznak zo Pahl baixou a lança e avançou.
Belwas parou com as pernas bem afastadas. Numa mão tinha o pequeno escudo redondo e na outra, o arakh curvo de que Arstan cuidava com tanto cuidado. Sua grande barriga parda e o peito curvo estavam nus por cima da faixa de seda amarela atada em volta da cintura, e não usava armadura além do colete tachonado de couro, tão absurdamente pequeno que nem sequer cobria seus mamilos.
- Devíamos ter lhe dado cota de malha - disse Dany, de súbito ansiosa.
- A cota de malha só o atrasaria - disse Sor Jorah. - Nas arenas de luta não usam armaduras. O que a multidão corre para ver é sangue.
Voou poeira dos cascos do corcel branco. Oznak trovejou na direção de Belwas, o Forte, com o manto listrado escorrendo de seus ombros. A cidade de Meereen inteira parecia estar incentivando-o com gritos. As aclamações dos sitiantes pareciam poucas e frágeis se comparadas; os Imaculados de Dany mantinham-se em fileiras silenciosas, observando com rostos de pedra. Belwas podia ter também sido feito de pedra. Permaneceu imóvel no caminho do cavalo, com o traje bem apertado nas costas largas. A lança de Oznak foi apontada ao centro de seu peito. A brilhante ponta de aço da arma piscava à luz do sol. Ele vai ser empalado, pensou Dany... no momento em que o eunuco girou para o lado. E, depressa como um piscar de olhos, o cavaleiro estava atrás dele, virando, levantando a lança. Belwas não fez qualquer movimento para atacá-lo. Os meereeneses nas muralhas gritaram ainda mais alto.
- O que ele está fazendo? - quis saber Dany.
- Está dando espetáculo à multidão - disse Sor Jorah.
Oznak fez com que o cavalo rodeasse Belwas num largo círculo, após o que lhe enterrou as esporas no flanco e voltou a avançar. De novo Belwas esperou, e depois girou e afastou a ponta da lança. Dany ouviu a gargalhada trovejante do eunuco ecoar na planície quando o herói passou batido por ele.
- A lança é longa demais - disse Sor Jorah. - Tudo que Belwas tem de fazer é evitar a ponta. Em vez de tentar atravessá-lo tão esteticamente, o palerma devia simplesmente atropelá-lo.
Oznak zo Pahl carregou uma terceira vez, e agora Dany via claramente que ele estava passando por Belwas, como um cavaleiro de Westeros investiria sobre um adversário numa justa, em vez de sobre ele, como um dothraki atacaria um inimigo. O terreno plano permitia que o corcel ganhasse uma boa velocidade, mas também tornava mais fácil para o eunuco esquivar-se da pesada lança de quatro metros.
Da vez seguinte, o herói rosa e branco de Meereen tentou agir por antecipação, e virou a lança para o lado no último segundo para apanhar Belwas, o Forte, quando ele se esquivasse. Mas o eunuco também tinha antecipado essa tática, e dessa vez abaixou-se em vez de girar para o lado. A lança passou inofensivamente por cima de sua cabeça. E de repente Belwas estava rolando e brandindo o arakh afiado como uma navalha num arco de prata. Ouviram o corcel gritar quando a lâmina mordeu suas patas, e então o cavalo caiu, e o herói tombou da sela.
Um súbito silêncio varreu os parapeitos de tijolo de Meereen. Agora era o povo de Dany que gritava e o aclamava.
Oznak saltou para longe do cavalo e conseguiu puxar a espada antes que Belwas, o Forte, caísse sobre ele. Aço cantou contra aço, rápida e furiosamente demais para Dany seguir os golpes. Não podiam ter se passado uma dúzia de segundos antes de o peito de Belwas ficar lavado em sangue, de um corte sofrido abaixo do peitoral, e de Oznak zo Pahl ter um arakh enfiado bem entre seus chifres de carneiro. O eunuco soltou a lâmina e separou a cabeça do herói de seu corpo com três violentos golpes no pescoço. Segurou-a bem alto para que os meereeneses vissem, e em seguida a atirou na direção dos portões da cidade, fazendo-a quicar e rolar pela areia.
- E lá se foi o herói de Meereen - disse Daario, rindo.
- Uma vitória sem significado - preveniu Sor Jorah. - Não conquistaremos Meereen matando seus defensores um de cada vez.
- Pois não - concordou Dany -, mas estou feliz por termos matado este.
Os defensores nas muralhas começaram a disparar suas bestas contra Belwas, mas os dardos não alcançavam o eunuco ou deslizavam inofensivamente pelo chão. Belwas virou as costas à chuva com pontas de aço, baixou as calças, acocorou-se e cagou na direção da cidade. Limpou-se com o manto listrado de Oznak e teve tempo para saquear o cadáver do herói e abater o cavalo moribundo antes de caminhar pesadamente de volta ao bosque de oliveiras.
Os sitiantes deram-lhe sonoras boas-vindas assim que chegou ao acampamento. Os dothraki riram e gritaram, e os Imaculados produziram um grande clangor batendo com as lanças nos escudos.
- Muito bem - disse-lhe Sor Jorah.
Ben Mulato atirou ao eunuco uma ameixa madura e disse:
- Um fruto doce por uma doce luta.
Até as aias dothraki de Dany tiveram palavras de elogio:
- Queríamos trançar seus cabelos e pendurar uma sineta neles, Belwas, o Forte - disse Jhiqui -, mas não tem cabelos para trançarmos.
- Belwas, o Forte, não precisa de sinetas tilintantes. - O eunuco comeu a ameixa de Ben Mulato com quatro grandes mordidas e jogou fora o caroço. - Belwas, o Forte, precisa de fígado e cebolas.
- Vai tê-los - disse Dany. - Belwas, o Forte, está ferido. - O eunuco tinha a barriga vermelha do sangue que brotava do golpe sob o peito carnudo.
- Não é nada. Deixo sempre que me cortem uma vez, antes de matá-los. - Deu uma palmada na barriga ensanguentada. - Conte os cortes e saberá quantos homens Belwas, o Forte, matou.
Mas Dany tinha perdido Khal Drogo devido a um ferimento semelhante, e não estava disposta a deixar aquele sem tratar. Ordenou a Missandei que fosse buscar um certo liberto yunkaita, famoso por seus conhecimentos nas artes curativas. Belwas urrou e protestou, mas Dany repreendeu-o e chamou-o de grande bebê careca até que ele permitiu que o curandeiro estancasse a ferida com vinagre, desse pontos e enfaixasse o peito com faixas de linho ensopadas em vinho ardente. Só depois levou seus capitães e comandantes para dentro do pavilhão para um conselho.
- Tenho de conquistar esta cidade - disse-lhes, sentando-se de pernas cruzadas numa pilha de almofadas, rodeada pelos dragões. Irri e Jhiqui serviram vinho. - Seus celeiros estão transbordando de cheios. Há figos, tâmaras e azeitonas crescendo nos terraços de suas pirâmides, e barris de peixe salgado e carne defumada enterrados em seus porões.
- E também gordas arcas de ouro, prata e pedras preciosas - lembrou-lhes Daario. - Não nos esqueçamos das pedras preciosas.
- Eu examinei as muralhas viradas para terra firme e não vi nenhum ponto fraco - disse Sor Jorah Mormont. - Com tempo, poderíamos conseguir minar por baixo de uma torre e abrir uma brecha, mas o que comeremos enquanto escavamos? Nossas reservas estão praticamente exauridas.
- Não há pontos fracos nas muralhas virados para terra firmei - disse Dany. Meereen erguia-se numa saliência de areia e pedra onde o lento e marrom Skahazadhan desembocava na Baía dos Escravos. A muralha norte da cidade corria ao longo da margem do rio, a muralha oeste ao longo da costa da baía. - Isso significa que poderíamos atacar a partir do rio ou do mar?
- Com três navios? Vamos querer que o Capitão Groleo examine bem a muralha ao longo do rio, mas a menos que esteja em ruínas, isso é apenas uma maneira mais molhada de morrer.
- E se construíssemos torres de cerco? Meu irmão Viserys contava histórias de coisas assim, sei que podem ser construídas.
- De madeira, Vossa Graça - disse Sor Jorah. - Os senhores de escravos queimaram todas as árvores num raio de vinte léguas. Sem madeira, não temos trabucos para esmagar as muralhas, não temos escadas para passarmos por cima delas, não temos torres de cerco, não temos tartarugas e não temos aríetes. Podemos atacar os portões com machados, certamente, mas...
- Viu aquelas cabeças de bronze por cima dos portões? - perguntou Ben Mulato Plumm. - Fileiras de cabeças de harpia de boca aberta? Os meereeneses podem esguichar azeite fervente por essas bocas e cozinhar os seus homens ali mesmo.
Daario Naharis dirigiu a Verme Cinzento um sorriso.
- Talvez os Imaculados devessem manejar os machados. Azeite fervente para vocês não é mais do que um banho quente, segundo ouvi dizer.
- Isso é falso. - Verme Cinzento não devolveu o sorriso. - Estes não sentem as queimaduras como os homens sentem, mas esse azeite cega e mata. Contudo, os Imaculados não temem morrer. Dê a estes aríetes, e derrubamos aqueles portões ou morremos tentando.
- Morreriam - disse Ben Mulato. Em Yunkai, quando tinha recebido o comando dos Segundos Filhos, afirmou ser um veterano de uma centena de batalhas. "Embora não possa dizer que tenha lutado bravamente em todas elas. Existem mercenários velhos e mercenários ousados, mas não há mercenários velhos e ousados." Ela via que isso era verdade.
Dany suspirou.
- Não desperdiçarei a vida de Imaculados, Verme Cinzento. Talvez possamos derrotar a cidade pela fome.
Sor Jorah fez uma expressão infeliz.
- Nós passaremos fome muito antes deles, Vossa Graça. Aqui não há alimentos, nem forragem para nossas mulas e cavalos. Também não gosto da água desse rio. Meereen evacua no Skahazadhan, mas retira a sua água de beber de poços profundos. Já temos relatos de doença nos acampamentos, febre, castanheira e três casos de diarreia sanguinolenta. Haverá mais se ficarmos aqui. Os escravos estão enfraquecidos pela marcha.
- Libertos - corrigiu Dany. - Eles já não são escravos.
- Escravos ou livres, têm fome e em breve estarão doentes. A cidade está mais bem aprovisionada do que nós e pode ser reabastecida por via aquática. Seus três navios não são suficientes para lhes negar acesso tanto ao rio quanto ao mar.
- Então o que aconselha, Sor Jorah?
- Não gostará de ouvir.
- Quero ouvir mesmo assim.
- Como quiser. Digo que deixemos esta cidade em paz. Não pode libertar todos os escravos do mundo, khaleesi. Sua guerra é em Westeros.
- Não me esqueci de Westeros. - Certas noites Dany sonhava com aquela terra legendária que nunca vira. - Mas se deixar que as velhas muralhas de tijolo de Meereen me derrotem tão facilmente, como poderei conquistar os grandes castelos de pedra de Westeros?
- Como Aegon conquistou - disse Sor Jorah. - Com fogo. Quando chegarmos aos Sete Reinos, seus dragões já terão crescido. E teremos também torres de cerco e trabucos, tudo aquilo de que não dispomos aqui... mas o caminho através das Terras do Longo Verão é longo e duro, e há perigos que não podemos conhecer. A senhora parou em Astapor para comprar um exército, não para começar uma guerra. Guarde as lanças e espadas para os Sete Reinos, minha rainha. Deixe Meereen para os meereeneses e marche para oeste em direção a Pentos.
- Derrotada? - disse Dany, irritando-se.
- Quando os covardes se escondem atrás de grandes muralhas, são eles os derrotados, khaleesi - disse Ko Jhogo.
Os outros companheiros de sangue concordaram.
- Sangue do meu sangue - disse Rakharo -, quando os covardes se escondem e queimam a comida e a forragem, os grandes khals têm de procurar inimigos mais corajosos. É sabido.
- É sabido - concordou Jhiqui, enquanto servia o vinho.
- Não por mim. - Dany prezava grandemente os conselhos de Sor Jorah, mas deixar Meereen intacta era mais do que conseguia suportar. Não era capaz de se esquecer das crianças em seus postes, com as aves devorando suas entranhas, seus braços magros apontando para a estrada costeira. - Sor Jorah, diz que não nos resta comida. Se eu marchar para oeste, como conseguirei alimentar os meus libertos?
- Não conseguirá. Lamento, khaleesi. Eles terão de arranjar alimentos para si próprios, ou passarão fome. Muitos e muitos mais ainda morrerão ao longo da marcha, é verdade. Será duro, mas não há maneira de salvá-los. Precisamos pôr esta terra calcinada bem para trás de nós.
Dany deixou um rastro de cadáveres atrás de si quando atravessou o deserto vermelho. Era algo que não queria voltar a ver.
- Não - disse. - Não levarei meu povo para a morte. - Os meus filhos. - Tem de haver alguma maneira de entrar nesta cidade.
- Eu conheço uma maneira. - Ben Mulato Plumm afagou sua barba salpicada de cinza e branco. - Esgotos.
- Esgotos? O que quer dizer?
- Grandes esgotos de tijolo desembocam no Skahazadhan, despejando os dejetos da cidade. Podem ser uma maneira de entrar, para alguns homens. Foi assim que fugi de Meereen, depois de Scarb ficar sem cabeça. - Ben Mulato fez uma careta. - O cheiro nunca me abandonou. Às vezes sonho com ele.
Sor Jorah fez uma expressão de dúvida.
- É mais fácil sair do que entrar, tendo a acreditar. Esses esgotos desembocam no rio, você diz? Isso quer dizer que as desembocaduras estão logo abaixo das muralhas.
- E fechadas com grades de ferro - admitiu Ben Mulato -, se bem que algumas foram comidas pela ferrugem, caso contrário eu teria me afogado em merda. Uma vez lá dentro, é uma longa e malcheirosa subida numa escuridão de breu através de um labirinto de tijolo onde um homem pode se perder para sempre. A sujeira nunca fica abaixo da cintura, e pode subir acima da cabeça, julgando pelas manchas que vi nas paredes. E também há coisas lá embaixo. As maiores ratazanas que você já viu, e coisas piores. Nojentas.
Daario Naharis soltou uma gargalhada.
- Tão nojentas como você, quando saiu de lá? Se algum homem fosse suficientemente tolo para tentar uma coisa dessas, todos os feitores de Meereen conseguiriam cheirá-lo no momento em que emergisse.
Ben Mulato encolheu os ombros.
- Sua Graça perguntou se havia uma maneira de entrar, então eu disse... mas Ben Plumm não volta àqueles esgotos, nem por todo o ouro dos Sete Reinos. No entanto, se houver outros que queiram tentar, força.
Aggo, Jhogo e Verme Cinzento tentaram falar ao mesmo tempo, mas Dany levantou uma mão para pedir silêncio.
- Esses esgotos não parecem promissores. - Sabia que Verme Cinzento levaria seus Imaculados pelos esgotos se ela ordenasse; os companheiros de sangue não fariam menos. Mas nenhum deles era adequado para a tarefa. Os dothraki eram cavaleiros, e a força dos Imaculados residia em sua disciplina no campo de batalha. Posso enviar homens para morrer no meio das trevas com base numa esperança tão frágil? - Tenho de pensar um pouco mais sobre isso. Voltem aos seus deveres.
Seus capitães fizeram reverências e deixaram-na sozinha com as aias e os dragões. Mas no momento em que Ben Mulato saía, Viserion abriu suas asas brancas e esvoaçou indolentemente na direção de sua cabeça. Uma das asas esbofeteou o mercenário no rosto. O dragão branco aterrissou desajeitadamente com uma pata na cabeça do homem e a outra no seu ombro, guinchou e voltou a levantar voo.
- Ele gosta de você, Ben - disse Dany.
- E tem razões para isso. - Ben Mulato soltou uma gargalhada. - Eu tenho cá uma gotinha de sangue de dragão, sabia?
- Você? - Dany estava surpresa. Plumm era uma criatura das companhias livres, um amigável mestiço. Tinha um largo rosto pardo, um nariz quebrado e uma cabeça cheia de cabelos grisalhos crespos, e sua mãe dothraki legara-lhe olhos grandes, escuros e amendoados. Dizia ser em parte bravosi, em parte ilhéu-do-verão, em parte ibenês, em parte qohorik, em parte dothraki, em parte dornês e em parte westerosi, mas aquela era a primeira vez que Dany ouvia falar de sangue Targaryen. Dirigiu-lhe um olhar perscrutador e perguntou: - Como isso seria possível?
- Bem - disse Ben Mulato -, houve um velho Plumm nos Reinos do Poente que casou com uma princesa do dragão. Minha avó contou-me a história. Viveu nos tempos do Rei Aegon.
- Qual dos Reis Aegon? - perguntou Dany. - Houve cinco Aegons governando Westeros. - O filho do irmão teria sido o sexto, mas os homens do Usurpador tinham esmagado a cabeça dele contra uma parede.
- Ah, houve cinco? Bem, isso é uma confusão. Não saberia lhe dar um número, minha rainha. Mas esse velho Plumm era um senhor, deve ter sido um cara famoso nos seus tempos, falado por todos os lados. O caso é, com a sua real licença, que ele tinha um pinto de dezoito decímetros.
As três sinetas na trança de Dany tilintaram quando ela riu.
- Quer dizer centímetros, creio eu.
- Decímetros - disse firmemente Ben Mulato. - Se fossem centímetros, quem se preocuparia em falar dele, Vossa Graça?
Dany riu como uma garotinha.
- Sua avó alegou ter visto esse prodígio?
- Isso foi coisa que a velha bruxa não fez. Era meio ibenesa e meio qohorik, nunca esteve em Westeros, meu avô deve ter lhe contado a história. Um dothraki qualquer matou-o antes de eu nascer.
- E de onde veio o conhecimento de seu avô?
- Uma daquelas histórias contadas em família, suponho. - Ben Mulato encolheu os ombros. - Receio que seja tudo que sei de Aegon, o Sem-Número, ou do poderoso membro do velho Lorde Plumm. É melhor ir tratar de meus Filhos.
- Trate disso - disse-lhe Dany.
Quando Ben Mulato saiu, recostou-se nas almofadas.
- Se você fosse grande - disse a Drogon, coçando-o entre os cornos - eu voaria com você por sobre as muralhas e transformaria aquela harpia em cinzas. - Mas ainda faltavam anos até que seus dragões fossem suficientemente grandes para serem montados. E quando forem, quem os montará? O dragão tem três cabeças, mas eu só tenho uma. Pensou em Daario. Se alguma vez existiu um homem capaz de violar uma mulher com os olhos...
Na verdade, ela era igualmente culpada. Dany dava por si lançando olhares ao tyroshi quando seus capitães vinham aos conselhos, e às vezes, de noite, recordava o modo como o dente de ouro cintilava quando ele sorria. Isso, e seus olhos. Seus brilhantes olhos azuis. Na estrada de Yunkai, Daario trouxe-lhe todas as noites, quando vinha fazer o relatório, uma flor, um broto ou uma planta qualquer... para ajudá-la a conhecer aquela terra, dizia. Vespalgueiro, rosa-penumbrosa, hortelã silvestre, renda-de-senhora, folha-de-adaga, giesteira, comichosa, ouro-de-harpia... E tentou me poupar da visão das crianças mortas. Não devia ter feito isso, mas a intenção era bondosa. E Daario Naharis fazia-a rir, o que Sor Jorah nunca fazia.
Dany tentou imaginar como seria permitir que Daario a beijasse, como Jorah a beijara no navio. A ideia era ao mesmo tempo excitante e perturbadora. É arriscado demais. O mercenário tyroshi não era um homem bom, ninguém precisava lhe contar isso. Sob os sorrisos e gracejos era perigoso, até cruel. Sallor e Prendahl tinham acordado uma manhã como seus parceiros; nessa mesma noite, oferecera-lhe a cabeça deles. Khal Drogo também podia ser cruel, e nunca existiu homem mais perigoso. Mesmo assim, acabou por amá-lo. Poderia amar Daario? O que isso significaria, se o trouxesse para a minha cama? Isso faria dele uma das cabeças do dragão? Sabia que Sor Jorah se zangaria, mas foi ele que disse que ela tinha de tomar dois maridos. Talvez devesse casar com ambos e pôr um ponto final no assunto.
Mas esses eram pensamentos tolos. Tinha uma cidade a tomar, e sonhar com beijos e com os brilhantes olhos azuis de um mercenário qualquer não a ajudaria a abrir uma brecha nas muralhas de Meereen. SOM do sangue do dragão, recordou Dany a si mesma. Seus pensamentos giravam em círculos, como um rato perseguindo a própria cauda. De repente não conseguia mais suportar os estreitos limites do pavilhão nem por mais um momento. Quero sentir o vento no rosto e o aroma do mar.
- Missandei - chamou mande selar a minha prata. E a sua montaria também.
A pequena escriba fez uma reverência.
- Às ordens de Vossa Graça. Deverei chamar seus companheiros de sangue para guardá-la?
- Levaremos Arstan. Não pretendo deixar os acampamentos. - Não tinha inimigos entre seus filhos. E o velho escudeiro não falaria em excesso, como Belwas, nem a olharia como Daario.
O bosque de oliveiras queimadas onde montara o pavilhão ficava junto ao mar, entre o acampamento dothraki e o dos Imaculados. Assim que os cavalos foram selados, Dany e os companheiros seguiram ao longo da orla, para longe da cidade. Mesmo assim, sentia Meereen nas costas, zombando dela. Quando olhou por sobre um ombro, ali estava ela, com o sol da tarde refulgindo na harpia de bronze no topo da Grande Pirâmide. Dentro de Meereen, os senhores de escravos iam se reclinar em breve, vestidos com seus tokars debruados, para se banquetearem com carneiro e azeitonas, fetos de cachorro, arganazes com mel e outros acepipes do gênero, enquanto aqui fora seus filhos passavam fome. Uma súbita e violenta fúria encheu-a. Vou derrotá-los, jurou.
Ao passarem pelas estacas e fossos que rodeavam o acampamento dos eunucos, Dany ouviu Verme Cinzento e seus sargentos fazendo uma companhia passar por uma série de exercícios com escudo, espada curta e lança pesada. Outra companhia banhava-se no mar, vestida apenas com tangas de linho branco. Tinha reparado que os eunucos eram muito asseados. Alguns de seus mercenários cheiravam como se não tivessem tomado banho ou trocado de roupa desde que o pai havia perdido o Trono de Ferro, mas os Imaculados tomavam banho todas as noites, mesmo depois de passarem o dia inteiro em marcha. Quando não havia água disponível, limpavam-se com areia, ao modo dothraki.
Os eunucos ajoelharam à sua passagem, levando punhos fechados ao peito. Dany devolveu a saudação. A maré estava subindo, e a rebentação espumou em volta das patas de sua prata. Via seus navios ao largo. Balerion era o mais próximo; a grande coca anteriormente conhecida como Saduleon, de velas enroladas. Mais além encontravam-se as galés Meraxes e Vhagar, antes chamadas Partida de Joso e Sol de Verão. Na verdade os navios pertenciam ao Magíster Illyrio, e não a ela, e no entanto tinha lhes dado novos nomes quase sem pensar no assunto. Nomes de dragões, e mais do que isso; na antiga Valíria, de antes da Perdição, Balerion, Meraxes e Vhagar tinham sido deuses.
A sul do reino ordenado de estacas, fossos, exercícios e eunucos tomando banho ficavam os acampamentos de seus libertos, um lugar muito mais ruidoso e caótico. Dany tinha armado o melhor que pôde os ex-escravos, com armas de Astapor e Yunkai, e Sor Jorah organizou os homens capazes de lutar em quatro fortes companhias, mas não viu ali ninguém se exercitando. Passaram por uma fogueira feita com madeira trazida pelo mar, onde uma centena de pessoas se reunira para assar a carcaça de um cavalo. Sentia o odor da carne e ouvia a gordura chiando enquanto os assadores viravam o espeto, mas a cena só a fez franzir a testa.
Crianças corriam sob os cavalos do grupo, saltando e gargalhando. Em vez de saudações, vozes chamavam-na de todos os lados numa balbúrdia de idiomas. Alguns dos libertos saudavam-na como "Mãe", enquanto outros suplicavam mercês ou favores. Alguns rezavam para que estranhos deuses a abençoassem e outros pediam que ela abençoasse a eles. Ela sorria para eles, virando-se para a esquerda e para a direita, tocando suas mãos quando as erguiam, deixando que aqueles que ajoelhavam tocassem seu estribo ou sua perna. Muitos dos libertos acreditavam que havia boa sorte em seu toque. Se os ajuda a obter coragem, que me toquem, pensou. Ainda temos duros desafios pela frente.
Dany havia parado para falar com uma grávida que queria que a Mãe de Dragões desse um nome ao seu bebê quando alguém se aproximou e agarrou seu pulso esquerdo. Virando-se, vislumbrou um homem alto e esfarrapado com a cabeça raspada e o rosto queimado pelo sol.
- Com menos força - ela começou a dizer, mas antes de conseguir terminar, ele derrubou-a da sela. O chão avançou sobre si e fez com que perdesse o fôlego, enquanto sua prata relinchava e recuava. Atordoada, Dany rolou para o lado e apoiou-se num cotovelo...
... e então viu a espada.
- Aí está a porca traiçoeira - disse ele. - Eu sabia que acabaria vindo um dia para receber beijos nos pés. - Sua cabeça era calva como um melão, o nariz era vermelho e descascava, mas Dany conhecia aquela voz e aqueles olhos verde-claros. - Vou começar cortando suas tetas. - Dany estava vagamente consciente da voz de Missandei gritando por ajuda. Um liberto deu um passo adiante, mas só um passo. Um golpe rápido e caiu de joelhos, com sangue escorrendo pelo rosto. Mero limpou a espada nos calções. - Quem é o próximo?
- Sou eu. - Arstan Barba-Branca saltou do cavalo e colocou-se por cima dela, com o vento salgado fazendo ondular seus cabelos brancos como neve, e com ambas as mãos no grande bastão de madeira rija.
- Avô - disse Mero -, fuja antes que eu parta seu cajado em dois e o enfie no seu...
O velho fez uma finta com uma das pontas do bastão, puxou-a para trás, e brandiu
a outra mais depressa do que Dany teria acreditado ser possível. O Bastardo do Titã cambaleou para trás, na direção da rebentação, cuspindo sangue e dentes quebrados da ruína de sua boca. Barba-Branca colocou Dany atrás de si. Mero lançou uma estocada no seu rosto. O velho saltou para trás, rápido como um gato. O bastão atingiu as costelas de Mero, fazendo-o recuar. Arstan chapinhou para o lado, parou um golpe em arco, afastou-se, dançando, de uma segunda investida, bloqueou um terceiro golpe no meio do caminho. Os movimentos eram tão rápidos que a garota quase não conseguia segui-los. Missandei estava ajudando Dany a ficar em pé quando esta ouviu um crac. Julgou que o bastão de Arstan tinha se partido até ver o osso irregular que se projetava da panturrilha de Mero. Ao cair, o Bastardo do Titã torceu-se e atacou, enviando a ponta da espada diretamente contra o peito do velho. Barba-Branca afastou sua lâmina quase com desprezo e atingiu violentamente a têmpora do grandalhão com a outra ponta do bastão. Mero estatelou-se, com sangue a borbulhar de sua boca enquanto as ondas o submergiam. Um momento mais tarde os libertos também o submergiram, com facas, pedras e punhos furiosos subindo e descendo num frenesi.
Dany afastou o olhar, nauseada. Sentia-se mais assustada agora do que enquanto os acontecimentos decorriam. Ele podia ter me matado.
- Vossa Graça - Arstan ajoelhou. - Sou um velho, e estou envergonhado. Ele nunca devia ter se aproximado o suficiente para agarrá-la. Fui negligente. Não o reconheci sem a barba e os cabelos.
- Assim como eu. - Dany respirou fundo para parar de tremer. Inimigos por todo lado. - Leve-me de volta à minha tenda. Por favor.
Quando Mormont chegou, estava enrolada em sua pele de leão, bebendo uma taça de vinho com especiarias.
- Examinei a muralha do rio - Sor Jorah começou a dizer. - E alguns centímetros mais alta do que as outras, e igualmente forte. E os meereeneses têm uma dúzia de barcos de fogo amarrados sob os baluartes...
Ela interrompeu-o.
- Podia ter me avisado de que o Bastardo do Titã tinha escapado.
Ele franziu a testa.
- Não vi necessidade de alarmá-la, Vossa Graça. Ofereci uma recompensa pela cabeça dele...
- Pague-a ao Barba-Branca. Mero tem nos acompanhado o tempo todo desde Yunkai. Raspou a barba e perdeu-se entre os libertos, aguardando uma oportunidade de vingança. Arstan matou-o.
Sor Jorah dirigiu ao velho um longo olhar.
- Um escudeiro com um bastão matou Mero de Bravos, foi isso que aconteceu?
- Um bastão - confirmou Dany -, mas não mais um escudeiro. Sor Jorah, é meu desejo que Arstan seja armado cavaleiro.
- Não.
A sonora recusa já era bastante surpreendente. Mais estranho ainda foi vir de ambos os homens ao mesmo tempo.
Sor Jorah puxou a espada.
- O Bastardo do Titã era um homem perigoso. É bom em matar. Quem é você, velho?
- Um cavaleiro melhor do que você, sor - disse friamente Arstan.
Cavaleiro? Dany sentia-se confusa.
- Disse que era um escudeiro.
- E fui, Vossa Graça. - O velho ajoelhou-se. - Fui escudeiro de Lorde Swann na minha juventude, e a pedido do Magíster Illyrio servi também Belwas, o Forte. Mas durante os anos que se passaram entre uma coisa e outra, fui um cavaleiro em Westeros. Não lhe disse mentiras, minha rainha. No entanto, há verdades que calei, e por isso e por todos os meus outros pecados só posso lhe pedir perdão.
- Que verdades calou? - Dany não estava gostando daquilo. - Vai me dizer. Já.
Ele inclinou a cabeça.
- Em Qarth, quando perguntou meu nome, disse-lhe que me chamavam Arstan. Isso é verdade. Muitos homens me chamaram por esse nome enquanto Belwas e eu nos dirigíamos para leste ao seu encontro. Mas não é o meu verdadeiro nome,
Dany estava mais confusa do que zangada. Ele enganou-me, tal como Jorah me avisou, e no entanto acabou de salvar minha vida.
Sor Jorah enrubesceu,
- Mero raspou a barba, mas você deixou crescer uma, não é verdade? Não é à toa que parece tão familiar para mim...
- Conhece-o? - perguntou Dany ao cavaleiro exilado, perdida.
- Vi-o talvez uma dúzia de vezes... de longe, geralmente, quando estava na companhia dos irmãos ou participando de algum torneio. Mas todos os homens dos Sete Reinos conheceram Barristan, o Ousado. - Encostou a ponta da espada no pescoço do velho. - Khaleesi, perante a senhora ajoelha-se Sor Barristan Selmy, Senhor Comandante da Guarda Real, que traiu a sua Casa para servir o Usurpador Robert Baratheon.
O velho cavaleiro sequer pestanejou.
- O corvo chama de preto o melro, e você fala de traição.
- Por que está aqui? - perguntou-lhe Dany. - Se Robert o enviou para me matar, por que salvou minha vida? - Ele serviu ao Usurpador. Ele traiu a memória de Rhaegar e abandonou Viserys para viver e morrer no exílio. Mas se quisesse me ver morta, teria precisado apenas ficar de lado... - Agora quero a verdade completa, por sua honra de cavaleiro. É um homem do Usurpador, ou meu?
- Seu, se me aceitar. - Sor Barristan tinha lágrimas nos olhos. - Aceitei o perdão de Robert, é verdade. Servi-o na Guarda Real e no Conselho. Servi com o Regicida e outros quase tão maus, que mancharam o manto branco que eu usava. Nada poderá perdoar isso. Eu poderia continuar servindo em Porto Real se o vil rapaz sentado no Trono de Ferro não tivesse me posto de lado, envergonha-me admitir. Mas quando ele tirou o manto que o Touro Branco prendeu em volta de meus ombros e mandou homens para me matar nesse mesmo dia, foi como se tivesse tirado uma membrana da frente de meus olhos. Foi então que soube que tinha de procurar meu verdadeiro rei, e morrer a serviço dele...
- Posso conceder esse desejo - disse sombriamente Sor Jorah.
- Silêncio - disse Dany. - Quero ouvir o que ele tem a dizer.
- Talvez tenha de morrer uma morte de traidor - disse Sor Barristan. - Se assim for, não deverei morrer só. Antes de receber o perdão de Robert, lutei contra ele no Tridente. Você estava do outro lado da batalha, Mormont, não é verdade? - Não esperou por uma resposta. - Vossa Graça, lamento tê-la induzido ao erro. Foi a única forma de evitar que os Lannister soubessem que tinha me juntado à senhora. E vigiada, tal como seu irmão era. Lorde Varys relatou durante anos cada movimento de Viserys. Enquanto fiz parte do pequeno conselho, ouvi uma centena de tais relatórios. E desde o dia em que desposou Khal Drogo tem um informante ao seu lado, vendendo seus segredos, trocando sussurros com a Aranha por ouro e promessas.
Ele não pode querer dizer...
- Está enganado. - Dany olhou para Jorah Mormont. - Diga-lhe que está enganado. Não há nenhum informante. Sor Jorah, diga-lhe. Atravessamos juntos o mar dothraki e o deserto vermelho... - Sentia o coração rodopiar como um pássaro apanhado numa armadilha. - Diga-lhe, Jorah. Diga-lhe como entendeu tudo errado.
- Que os Outros o carreguem, Selmy. - Sor Jorah atirou a espada no tapete. - Khaleesi, foi apenas no início, antes de começar a conhecê-la... antes de começar a amá...
- Não diga essa palavra! - afastou-se dele. - Como pôde fazer isso? O que o Usurpador lhe prometeu? Ouro, foi ouro? - os Imorredouros tinham dito que ela seria traída mais duas vezes, uma por ouro e outra por amor. - Diga-me o que lhe foi prometido!
- Varys disse... que eu poderia ir para casa. - Baixou a cabeça.
Eu ia levá-lo para casa! Os dragões pressentiram a sua fúria. Viserion rugiu e uma fumaça cinza subiu de seu focinho. Drogon bateu o ar com asas negras e Rhaegal torceu a cabeça para trás e arrotou uma chama. Devia dizer a palavra e queimar os dois. Não haveria ninguém em que pudesse confiar:1 Ninguém que a mantivesse em segurança?
- Serão todos os cavaleiros de Westeros tão falsos como vocês dois? Saiam, antes que os meus dragões assem ambos. Qual é o cheiro de mentiroso assado? Cheirará tão mal quanto os esgotos de Ben Mulato? Vão!
Sor Barristan levantou-se, hirto e lento. Pela primeira vez, pareceu ter a idade que tinha.
- Para onde devemos ir, Vossa Graça?
- Para o inferno, servir o Rei Robert. - Dany sentiu lágrimas quentes nas bochechas. Dragon gritou, brandindo a cauda de um lado para o outro. - Que os Outros os carreguem. - Vão, vão embora para sempre, vocês dois, da próxima vez que vir suas caras cortarei essas suas cabeças de traidores. Mas não conseguiu dizer tais palavras. Eles me traíram. Mas me salvaram. Mas mentiram. - Vão... - Meu urso, meu feroz eforte urso, o que farei sem ele? E o velho, amigo de meu irmão. - Vão... vão... - Para onde?
E então soube.
Tyrion vestiu-se na escuridão, escutando a respiração suave da esposa que vinha da cama que dividiam. Ela sonha, pensou, quando Sansa murmurou qualquer coisa em voz baixa - um nome, talvez, embora fosse tênue demais para ter certeza - e se virou para o lado. Como marido e mulher, dividiam uma cama de casados, mas era tudo. Até as lágrimas guarda para si.
Esperava angústia e ira quando lhe contou da morte do irmão, mas o rosto de Sansa permaneceu tão imóvel que por um momento temeu que ela não tivesse compreendido. Foi só mais tarde, com uma pesada porta de carvalho entre ambos, que a ouviu soluçar. Tyrion então pensou em ir até ela, para lhe oferecer o conforto que pudesse. Não, teve de lembrar a si mesmo, ela não procurará consolo num Lannister. O máximo que podia fazer era protegê-la dos detalhes mais feios do Casamento Vermelho que continuavam a chegar das Gêmeas. Tinha decidido que Sansa não precisava ouvir como o corpo do irmão havia sido cortado e mutilado; nem como o cadáver da mãe fora atirado nu ao Ramo Verde numa zombaria selvagem dos costumes funerários da Casa Tully. A última coisa de que a garota precisava era mais alimento para seus pesadelos.
Mas não era o bastante. Tinha enrolado seu manto em volta dos ombros dela e jurado protegê-la, mas isso era uma brincadeira tão cruel quanto a coroa que os Frey tinham colocado sobre a cabeça do lobo gigante de Robb Stark depois de a coserem ao seu cadáver decapitado. Sansa também sabia disso. O modo como o olhava, sua rigidez quando subia para a cama... quando estava com ela, nem por um instante conseguia se esquecer de quem era, e do que era. Tal como ela não esquecia. A garota continuava indo todas as noites ao bosque sagrado rezar, e Tyrion imaginava se estaria rezando pela sua morte. Ela tinha perdido o lar, o seu lugar no mundo, e todos aqueles que alguma vez amara ou em quem confiara. O inverno está chegando, avisava o lema dos Stark, e realmente tinha chegado a eles com uma vingança. Mas é o auge do verão para a Casa Lannister. Então por que sinto este maldito frio?
Enfiou as botas, prendeu o manto com um broche de cabeça de leão e deslizou para o salão iluminado por archotes. Pelo menos havia uma vantagem no seu casamento; permitira-lhe fugir da Fortaleza de Maegor. Agora que tinha esposa e criados, o senhor seu pai concordara que necessitava de instalações mais adequadas, e Lorde Gyles viu-se abruptamente despojado de seus espaçosos aposentos no topo da Fortaleza das Cozinhas. E que magníficos aposentos eram, com um grande quarto de dormir e um aposento privado de tamanho adequado, uma sala de banhos e um quarto de vestir para a esposa, e pequenos quartos adjacentes para Pod e para as aias de Sansa. Até a cela de Bronn, perto da escada, tinha uma espécie de janela. Bem, é mais uma fenda para arqueiros, mas deixa a luz entrar. A cozinha principal do castelo ficava bem do outro lado do pátio, era verdade, mas Tyrion achava aqueles sons e cheiros infinitamente preferíveis a dividir Maegor com a irmã. Quanto menos tivesse de ver Cersei, mais chances havia de ser feliz.
Tyrion ouviu Brella roncando quando passou por sua cela. Shae queixava-se disso, mas parecia um preço bastante pequeno a pagar. Foi Varys quem lhe sugeriu a mulher; em outros tempos, ela tinha gerido a casa de Lorde Renly na cidade, o que tinha lhe dado bastante prática em ser cega, surda e muda.
Acendendo um círio, dirigiu-se à escada dos criados e desceu. Os andares abaixo daquele que habitava estavam em silêncio, e não ouviu outros passos além dos seus. Continuou descendo, passando pelo piso térreo e prosseguindo até emergir num porão sombrio com um teto abobadado de pedra. Boa parte do castelo estava interligada pelo subsolo, e a Fortaleza das Cozinhas não era exceção. Tyrion bamboleou-se por uma longa passagem escura até encontrar a porta que queria, empurrou-a e entrou.
Lá dentro, os crânios de dragão esperavam, e Shae também.
- Pensava que o senhor tinha se esquecido de mim. - O vestido dela encontrava-se pendurado em um dente negro quase tão alto quanto ela, e a moça estava em pé dentro das mandíbulas do dragão, nua. Balerion, pensou Tyrion. Ou seria Vhagar? Um crânio de dragão parecia-se muito com os outros.
Só de vê-la já ficou duro.
- Saia daí.
- Não saio. - A moça sorriu seu sorriso mais malicioso. - O senhor vai me arrancar de dentro das mandíbulas do dragão, eu sei. - Mas quando ele se bamboleou para mais perto, ela debruçou-se para a frente e soprou o círio.
- Shae... - Ele estendeu a mão, mas ela rodopiou e escapou dele.
- Vai ter de me pegar. - A voz vinha da esquerda. - O senhor deve ter brincado de monstros e donzelas quando era pequeno.
- Está me chamando de monstro?
- Não mais do que a mim de donzela. - Estava atrás dele, com passos leves no chão. - Vai ter de me pegar mesmo assim.
E ele a pegou, finalmente, mas só porque ela deixou. Quando ela se enfiou para dentro de seu abraço, ele estava corado e sem fôlego de andar tropeçando em crânios de dragão. Tudo foi esquecido num instante quando sentiu os pequenos seios dela comprimidos contra o seu rosto, na escuridão, os pequenos mamilos rijos roçando levemente nos seus lábios e na cicatriz onde tivera o nariz. Tyrion puxou-a para baixo, para o chão.
- Meu gigante - ela ofegou quando a penetrou. - Meu gigante veio me salvar.
Mais tarde, enquanto jaziam abraçados entre os crânios de dragão, Tyrion apoiou nela a cabeça, inalando o cheiro suave e limpo de seus cabelos.
- Devíamos voltar - disse com relutância. - Deve ser quase alvorada. Sansa deve estar acordando.
- Devia dar vinho dos sonhos para ela - disse Shae - como a Senhora Tanda faz com Lollys. Uma taça antes de dormir, e podíamos foder na cama ao lado dela sem que acordasse. - Soltou um risinho. - Talvez devêssemos fazer isso uma noite dessas. O senhor ia gostar? - A mão dela encontrou o seu ombro e pôs-se a massagear seus músculos. - Seu pescoço está duro como pedra. O que o inquieta?
Tyrion não conseguia ver seus dedos em frente do rosto, mesmo assim usou-os para contar as suas aflições.
- A minha esposa. A minha irmã. O meu sobrinho. O meu pai. Os Tyrell. - Teve de passar para a outra mão. - Varys. Pycelle. O Mindinho. A Víbora Vermelha de Dorne. - Tinha chegado ao último dedo. - O rosto que me fita da água quando me lavo.
Shae beijou seu nariz mutilado e cheio de cicatrizes.
- Um rosto corajoso. Um rosto bondoso e amável. Queria poder vê-lo agora.
Sua voz tinha toda a doce inocência do mundo. Inocência? Idiota, ela é uma puta, tudo o que conhece dos homens é o negócio que têm entre as pernas. Idiota, idiota.
- Antes você do que eu. - Tyrion sentou-se. - Temos um longo dia à nossa frente, ambos. Não devia ter apagado aquele círio. Como vamos encontrar as roupas?
Ela riu.
- Talvez tenhamos de ir nus.
E se formos vistos, o senhor meu pai a enforca. Contratar Shae como uma das aias de Sansa tinha lhe dado uma desculpa para ser visto falando com ela, mas Tyrion não se iludia quanto à sua segurança. Varys prevenira-o.
- Eu dei a Shae uma história falsa, mas destinava-se a Lollys e à Senhora Tanda. Sua irmã tem uma mente mais desconfiada. Se me perguntar o que sei...
- Contará alguma mentira inteligente para ela.
- Não. Contarei que a garota é uma seguidora de acampamentos comum que você adquiriu antes da batalha do Ramo Verde e trouxe para Porto Real contra as ordens expressas do senhor seu pai. Não mentirei à rainha.
- Já mentiu antes para ela. Deverei dizer-lhe isso?
O eunuco suspirou.
- Isso corta mais profundamente do que uma faca, senhor. Servi-lhe com lealdade, mas tenho também de servir à sua irmã sempre que puder. Quanto tempo acha que ela me deixaria viver se deixasse de lhe ser útil? Não tenho nenhum feroz mercenário para me proteger, nenhum irmão valente para me vingar, tenho apenas alguns passarinhos que segredam aos meus ouvidos. Com esses segredos tenho de comprar de novo a vida todos os dias.
- Perdoe-me se não choro por você.
- Perdoarei, mas você deve me perdoar se não choro por Shae. Confesso que não compreendo o que há nela para fazer com que um homem inteligente como você aja tão tolamente.
- Poderia entender se não fosse um eunuco.
- Então é isso? Um homem pode ter miolos ou um pedaço de carne entre as pernas, mas as duas coisas não? - Varys abafou um risinho. - Então talvez deva me sentir grato por ter sido cortado.
A Aranha tinha razão. Tyrion tateou na escuridão assombrada por dragões à procura das roupas de baixo, sentindo-se infeliz. O risco que estava correndo deixava-o tenso como um tambor, e havia também culpa. Que os Outros levem a minha culpa, pensou enquanto enfiava a túnica pela cabeça. Por que devo me sentir culpado? Minha esposa não quer nada de mim e rejeita muito em especial a parte que parece desejá-la. Talvez devesse contar a ela sobre Shae. Não era o caso de ser o primeiro homem a ter uma concubina. O próprio oh-tão-honroso pai de Sansa lhe dera um irmão bastardo. Até onde sabia, sua esposa poderia ficar encantada por saber que ele andava fodendo Shae, desde que isso a poupasse de atenções que não desejava.
Não, não me atrevo. Com votos ou sem eles, sua esposa não era digna de confiança. Podia ser donzela entre as pernas, mas dificilmente inocente de traição; uma vez tinha despejado os planos do próprio pai nos ouvidos de Cersei. E as garotas de sua idade não eram conhecidas por manterem segredos.
O único caminho seguro era ver-se livre de Shae. Podia mandá-la a Chataya, refletiu Tyrion, relutantemente. No bordel de Chataya, Shae teria todas as sedas e pedras preciosas que poderia desejar e os mais gentis fregueses de elevado nascimento. Seria de longe uma vida melhor do que a que vivia quando a tinha encontrado.
Ou então, se estivesse cansada de ganhar o pão deitada, podia arranjar-lhe um casamento. Bronn, talvez? O mercenário nunca se recusara a comer do prato de seu senhor, e agora era um cavaleiro, podia almejar um partido melhor do que ela. Ou Sor Tallad? Tyrion vira-o mais do que uma vez fitando Shae com desejo. Por que não? É alto, forte, não é difícil olhá-lo, da cabeça aos pés um jovem cavaleiro talentoso. Claro, Tallad conhecia Shae apenas como a bonita aia de uma jovem senhora em serviço no castelo. Se se casasse com ela e depois ficasse sabendo que ela era uma prostituta...
- Senhor, onde está? Os dragões comeram-no?
- Não. Estou aqui. - Apalpou um crânio de dragão. - Encontrei um sapato, mas acho que é seu.
- O senhor parece muito solene. Desagradei-o?
- Não - disse, com demasiada brusquidão. - Você me agrada sempre. - E aí mora o perigo. Podia sonhar em mandá-la embora em horas como aquela, mas isso nunca durava muito tempo. Tyrion via-a tenuemente no meio das trevas, puxando uma meia de lã por uma perna esguia. Consigo ver. Uma vaga luminosidade vazava pela fileira de longas janelas estreitas abertas bem alto na parede do porão. Os crânios dos dragões Targaryen emergiam da escuridão que os rodeava, negros em fundo cinza. - O dia chega cedo demais. - Um novo dia. Um novo ano. Um novo século. Sobrevivi ao Ramo Verde e à Água Negra, posso perfeitamente sobreviver ao casamento do Reijoffrey.
Shae despendurou o vestido do dente do dragão e enfiou-o pela cabeça.
- Eu subo primeiro. Brella vai querer ajuda com a água do banho. - Debruçou-se para lhe dar um último beijo, na testa. - Meu gigante Lannister. Amo tanto você.
E eu também a amo, querida. Podia ser uma prostituta, mas merecia mais do que o que ele tinha para dar. Vou casá-la com Sor Tallad. Ele parece ser um homem decente. E alto...
Foi um sonho tão bom, pensou Sansa, sonolenta. Estava de volta a Winterfell, correndo pelo bosque sagrado com sua Lady. O pai estava lá, e os irmãos também, todos quentes e em segurança. Se os sonhos pudessem se tornar realidade...
Afastou os cobertores. Tenho de ser brava. Seus tormentos terminariam em breve, de um modo ou de outro. Se Lady estivesse aqui, não teria medo. Mas Lady estava morta; Robb, Bran, Rickon, Arya, o pai, a mãe, até a Septã Mordane. Todos mortos, menos eu. Agora estava sozinha no mundo.
O senhor seu esposo não estava ao seu lado, mas estava habituada a isso. Tyrion dormia mal, e frequentemente acordava antes do nascer do dia. Normalmente ia encontrá-lo no aposento privado, inclinado ao lado de uma vela, perdido num velho pergaminho qualquer ou num livro encadernado em couro. Às vezes o cheiro do pão da manhã que vinha dos fornos levava-o às cozinhas, e às vezes subia ao jardim do telhado, ou ia passear, sozinho, pelo Corredor do Traidor.
Abriu as venezianas e estremeceu quando o arrepio subiu por seus braços. Havia nuvens se acumulando no céu oriental, perfuradas por raios de sol. Parecem dois enormes castelos flutuando no céu da manhã. Sansa conseguia ver as muralhas de pedra arruinadas, suas poderosas fortalezas e barbacãs. Estandartes vaporosos rodopiavam no topo de suas torres e estendiam-se para as estrelas que se desvaneciam rapidamente. O sol erguia-se atrás deles, e viu-os passar de negro a cinza e a mil de tons de rosa, ouro e carmesim. Pouco depois o vento mesclou-os, e passou a haver apenas um castelo onde tinha havido dois.
Ouviu a porta se abrindo quando as aias trouxeram a água quente para o banho. Eram ambas novas ao seu serviço; Tyrion dizia que as mulheres que tomavam conta dela antes eram todas espiãs de Cersei, tal como Sansa sempre suspeitara.
- Venham ver - disse-lhes. - Há um castelo no céu.
Elas foram dar uma olhada.
- E feito de ouro. - Shae tinha cabelos escuros e curtos e olhos ousados. Fazia tudo o que lhe era pedido, mas às vezes dirigia a Sansa os mais insolentes dos olhares. - Um castelo todo feito de ouro, aí está uma coisa que eu gostaria de ver.
- Um castelo, é? - Brella tinha de semicerrar os olhos. - Aquela torre tá caindo, parece. E tudo ruínas, aquilo.
Sansa não queria ouvir falar de torres caindo e castelos arruinados. Fechou as venezianas e disse:
- Somos esperados no café da manhã da rainha. O senhor meu esposo está no aposento privado?
- Não, senhora - disse Brella. - Não o vi.
- Pode ser que tenha ido ver o pai - declarou Shae. - Talvez a Mão do Rei precise de seus conselhos.
Brella deu uma fungada.
- Senhora Sansa, talvez queira entrar na banheira antes que a água esfrie demais.
Sansa deixou que Shae puxasse sua camisa de dormir pela cabeça e entrou na grande banheira de madeira. Sentiu-se tentada a pedir uma taça de vinho, para lhe acalmar os nervos. O casamento estava marcado para o meio-dia no Grande Septo de Baelor, do outro lado da cidade. E, ao cair da noite, o banquete seria dado na sala do trono; mil convidados e setenta e sete pratos, com cantores, malabaristas e saltimbancos. Mas primeiro havia o café da manhã no Salão de Baile da Rainha, para os Lannister e os homens Tyrell - as mulheres Tyrell quebrariam o jejum com Margaery - e cento e tantos cavaleiros e fidalgos. Fizeram de mim uma Lannister, pensou Sansa com amargura.
Brella mandou Shae ir buscar mais água quente enquanto lavava as costas de Sansa.
- Está tremendo, senhora.
- A água não está quente o suficiente - mentiu Sansa.
As aias a vestiam quando Tyrion apareceu, com Podrick Payne a reboque.
- Está adorável, Sansa. - Virou-se para o escudeiro. - Pod, faça a gentileza de me servir uma taça de vinho.
- Vai haver vinho no café da manhã, senhor - disse Sansa.
- Há vinho aqui. Não espera certamente que enfrente a minha irmã sóbrio? É um novo século, senhora. O tricentésimo ano desde a Conquista de Aegon. - O anão pegou a taça de tinto que Podrick tinha lhe entregado e ergueu-a bem alto. - A Aegon. Que cara afortunado. Duas irmãs, duas esposas e três grandes dragões, o que mais pode um homem pedir? - limpou a boca com as costas da mão.
Sansa reparou que as roupas do Duende estavam sujas e em desalinho; parecia que tinha dormido vestido.
- Vai vestir roupa lavada, senhor? Seu gibão novo é muito bonito.
- O gibão é bonito, sim. - Tyrion pôs a taça de lado. - Ande, Pod, vamos ver se encontramos algum vestuário que me faça parecer menos anão. Não vou querer envergonhar a senhora minha esposa.
Quando o Duende retornou pouco depois, estava bastante apresentável, e até um pouco mais alto. Podrick Payne também tinha trocado de roupa, e por uma vez quase parecia um escudeiro como deve ser, embora uma espinha vermelha bastante grande que tinha no canto do nariz estragasse o efeito de seu magnífico traje púrpura, branco e dourado. É um rapaz tão tímido. A princípio, Sansa desconfiava do escudeiro de Tyrion; ele era um Payne, primo de Sor Ilyn Payne, que tinha cortado a cabeça do pai. No entanto, depressa percebeu que Pod tinha tanto medo dela como ela tinha do primo. Sempre que falava com ele, o rapaz ficava do mais alarmante tom de vermelho.
- Púrpura, dourado e branco são as cores da Casa Payne, Podrick? - perguntou-lhe polidamente.
- Não. Isto é, sim. - Corou. - As cores. Nossas armas são axadrezado de púrpura e branco, senhora. Com moedas de ouro. Nos quadrados. Púrpura e branco. Em ambos. - E estudou os pés dela.
- Há uma história por trás dessas moedas - disse Tyrion. - Sem dúvida Pod a confidenciará um dia aos seus dedos dos pés. Agora, porém, somos esperados no Salão de Baile da Rainha. Vamos !
Sansa sentiu-se tentada a pedir para não ir. Podia lhe dizer que tenho um incômodo na barriga, ou que o sangue da lua chegou. Nada desejava mais do que voltar a se enfiar na cama e puxar as cortinas. Tenho de ser corajosa, como Robb, disse a si mesma, ao dar rigidamente o braço ao senhor seu esposo.
No Salão de Baile da Rainha quebraram o jejum com bolinhos de mel assados com amoras silvestres e nozes, fatias de presunto defumado, iscas de peixe empanadas, bacon, peras de outono e um prato dornês de cebolas, queijo e fatias de ovo cozido com malaguetas.
- Nada como um café da manhã robusto para despertar o apetite para o banquete de setenta e sete pratos que se seguirá - comentou Tyrion enquanto os criados enchiam seus pratos. Havia jarros de leite, de hidromel e de um vinho dourado, leve e doce para empurrar a refeição para baixo. Músicos vagueavam por entre as mesas, com gaitas, flautas e rabecas, enquanto Sor Dontos galopava pela sala em seu cavalo de pau de vassoura e o Rapaz Lua fazia ruídos de peido com as bochechas e cantava canções rudes sobre os convidados.
Sansa reparou que Tyrion quase não tocou na comida, embora tivesse bebido várias taças de vinho. Quanto a si, experimentou um pouco dos ovos dorneses, mas as malaguetas queimaram sua boca. Além deles, limitou-se a beliscar a fruta, o peixe e os bolinhos de mel. Cada vez que Joffrey olhava para ela, sentia a barriga tão agitada que era como se tivesse engolido um morcego.
Depois de tirarem a mesa, a rainha presenteou solenemente Joffrey com o manto de esposa com que envolveria os ombros de Margaery.
- E o manto que eu usei quando Robert me tomou como sua rainha, o mesmo manto que a minha mãe, a Senhora Joanna, usou quando se casou com o senhor meu pai. - Sansa pensou que parecia puído, a bem da verdade, mas talvez fosse por ter sido tão usado.
Então chegou a hora dos presentes. Era tradição da Campina dar presentes à noiva e ao noivo na manhã de seu casamento; no dia seguinte receberiam mais presentes como casal, mas as prendas naquele dia eram para cada um individualmente.
De Jalabhar Xho, Joffrey recebeu um grande arco de madeira dourada e uma aljava cheia de longas flechas com penas verdes e escarlates; da Senhora Tanda, um par de botas flexíveis de montar; de Sor Kevan, uma magnífica sela para justas feita de couro vermelho; um broche de ouro vermelho, trabalhado em forma de escorpião, foi dado pelo dornês, o Príncipe Oberyn; recebeu esporas de prata de Sor Addam Marbrand; um pavilhão de torneio em seda vermelha foi o presente de Lorde Mathis Rowan. Lorde Paxter Redwyne apresentou uma bela maquete em madeira da galé de guerra de duzentos remos que estava sendo construída naquele momento na Árvore.
- Se agradar a Vossa Graça, vai se chamar Valor do Rei Joffrey - disse ele, e JofF concedeu que estava muito agradado de fato.
- Farei dele meu navio almirante quando zarpar para Pedra do Dragão a fim de matar meu tio traidor, Stannis - disse.
Ele hoje se faz de rei atencioso. Sansa sabia que Joffrey podia ser galante quando lhe convinha, mas parecia convir-lhe cada vez menos. E de fato, toda a sua cortesia desapareceu de imediato quando Tyrion lhe entregou o seu presente: um enorme livro antigo intitulado Vidas de quatro reis, encadernado em couro e magnificamente recheado de iluminuras. O rei folheou-o sem qualquer interesse.
- E o que é isto, tio?
Um livro. Sansa perguntou a si mesma se Joffrey movia aqueles seus gordos lábios vermiformes quando lia,
- A história dos reinados de Daeron, o Jovem Dragão, Baelor, o Abençoado, Aegon, o Indigno, e Daeron, o Bom, escrita pelo Grande Meistre Kaeth - respondeu o seu pequeno esposo.
- Um livro que todo rei deveria ler, Vossa Graça - disse Sor Kevan.
- Meu pai não tinha tempo para livros. - Joffrey empurrou o presente para longe. - Se lesse menos, tio Duende, talvez a Senhora Sansa tivesse um bebê dentro dela a essa altura. - Riu... e quando o rei ri, a corte ri com ele. - Não fique triste, Sansa, depois de deixar a Rainha Margaery esperando um bebê, visitarei o seu quarto e mostrarei ao meu pequeno tio como se faz.
Sansa enrubesceu. Deu um relance nervoso a Tyrion, com medo do que ele poderia dizer. Aquilo podia se tornar tão feio como a ida para a cama no banquete deles. Mas, por uma vez, o anão encheu a boca com vinho em vez de palavras.
Lorde Mance Tyrell avançou para apresentar o seu presente: um cálice dourado de noventa centímetros de altura, com duas ornamentadas alças curvas e sete lados cintilando de pedras preciosas.
- Sete lados para os sete reinos de Vossa Graça - explicou o pai da noiva. Mostrou-lhes como cada lado ostentava o símbolo de uma das grandes casas: leão de rubi, rosa de esmeralda, veado de ônix, truta de prata, falcão de jade azul, sol de opala e lobo gigante de pérola.
- Uma taça magnífica - disse Joffrey -, mas parece-me que vamos ter de arrancar o lobo e pôr uma lula no seu lugar.
Sansa fingiu não ouvi-lo.
- Margaery e eu beberemos bastante no banquete, sogro. - Joffrey ergueu o cálice acima da cabeça, para que todos o admirassem.
- A maldita coisa é tão alta quanto eu - resmungou Tyrion em voz baixa. - Metade do cálice e Joff estará caindo de bêbado.
Ótimo, pensou ela. Talvez quebre o pescoço.
Lorde Tywin esperou até o fim para entregar ao rei o seu presente: uma espada longa. A bainha era feita de cerejeira, ouro e couro vermelho oleado, incrustado de cabeças de leão em ouro. Sansa viu que os leões tinham olhos de rubi. O salão de baile ficou em silêncio quando Joffrey desembainhou a espada e a ergueu acima da cabeça. Ondulações vermelhas e negras no aço cintilaram à luz da manhã.
- Magnífica - declarou Mathis Rowan.
- Uma espada digna de canções, senhor - disse Lorde Redwyne.
- A espada de um rei - disse Sor Kevan Lannister.
O Rei Joffrey estava tão animado que parecia querer matar alguém ali mesmo e naquele momento. Golpeou o ar e soltou uma gargalhada.
- Uma grande espada deve ter um grande nome, senhores! Como a chamarei?
Sansa lembrou-se de Dente de Leão, a espada que Arya tinha atirado no Tridente, e
da Devoradora de Corações, aquela que ele a obrigara a beijar antes da batalha. Perguntou a si mesma se ele quereria que Margaery beijasse aquela.
Os convidados estavam gritando nomes para a nova arma. Joff rejeitou uma dúzia antes de ouvir um que lhe agradou.
- Lamento da Viúva! - gritou. - Sim! E ela irá criar muitas viúvas! - Voltou a golpear o ar. - E quando enfrentar o meu tio Stannis, quebrará a sua espada mágica em duas.
- Joff experimentou um golpe vertical, forçando Sor Balon Swann a dar um apressado passo para trás. A expressão no rosto de Sor Balon fez ressoar gargalhadas no salão.
- Tenha cuidado, Vossa Graça - avisou Sor Addam Marbrand. - O aço valiriano é perigosamente afiado.
- Eu lembro. - Joffrey fez Lamento da Viúva cair, num violento golpe vertical com as duas mãos, sobre o livro que Tyrion tinha lhe dado. A pesada capa de couro fendeu-se em duas. - Afiado! Eu disse a vocês, não sou estranho ao aço valiriano. - Precisou de meia dúzia de outros golpes para despedaçar o grosso volume, e o rapaz estava sem fôlego quando acabou. Sansa conseguia sentir o marido lutando contra a fúria enquanto Sor Osmund Kettleblack gritava:
- Rezo para que nunca vire esse perigoso gume contra mim, senhor.
- Trate de nunca me dar motivos, sor. - Joffrey deu um piparote com a ponta da espada num naco de Vidas de quatro reis, atirando-o para fora da mesa, e então enfiou a Lamento da Viúva de volta na bainha.
- Vossa Graça - disse Sor Garlan Tyrell. - Talvez não soubesse. Em todo o Westeros não havia mais de quatro cópias desse livro iluminadas pela própria mão de Kaeth.
- Agora há três. - Joffrey desafivelou seu velho cinto da espada para trocá-lo pelo novo. - Você e a Senhora Sansa devem-me um presente melhor, tio Duende. Este está feito em pedaços.
Tyrion estava encarando o sobrinho com seus olhos desiguais.
- Talvez uma faca, senhor. Para combinar com a sua espada. Um punhal do mesmo belo aço valiriano... digamos, com um cabo de osso de dragão?
Joff lançou-lhe um olhar penetrante.
- Você... sim, um punhal para combinar com a minha espada, ótimo. - Fez um aceno.
- Um... um cabo de ouro com rubis. Osso de dragão é simples demais.
- Como quiser, Vossa Graça. - Tyrion bebeu outra taça de vinho. Julgando pela atenção que prestava a Sansa, bem podia estar sozinho em seu aposento privado. Mas quando chegou a hora de partir para o casamento, pegou-a pela mão.
Enquanto atravessavam o pátio, o Príncipe Oberyn de Dorne pôs-se ao lado deles, de braço dado com a amante de cabelos negros. Sansa deu um olhar de relance curioso à mulher. Era filha ilegítima, não era casada, e tinha dado duas filhas bastardas ao príncipe, mas não temia olhar nos olhos nem sequer a rainha. Shae tinha lhe dito que aquela Eliaria adorava uma deusa do amor lisena qualquer.
- Era quase uma prostituta quando ele a encontrou, senhora - confidenciara a aia - e agora é quase uma princesa. - Sansa nunca antes tinha estado tão perto da dornesa. Não é realmente bela, pensou, mas há alguma coisa nela que atrai o olhar.
- Uma vez tive a grande sorte de contemplar a cópia de Vidas de quatro reis que há na Cidadela - o Príncipe Oberyn estava dizendo ao senhor seu esposo. - As iluminuras eram uma maravilha de se ver, mas Kaeth foi muito mais amável com o Rei Viserys do que devia.
Tyrion lançou-lhe um olhar penetrante.
- Muito amável? A meu ver, ele é vergonhosamente mesquinho com Viserys. Devia ter sido Vidas de cinco reis.
O príncipe riu.
- Viserys mal reinou por uma quinzena.
- Reinou durante mais de um ano - disse Tyrion.
Oberyn encolheu os ombros.
- Um ano ou uma quinzena, que importa? Envenenou o próprio sobrinho para conquistar o trono e, depois de tê-lo, não fez nada.
- Baelor matou-se de fome com jejuns - disse Tyrion. - O tio serviu-o lealmente como Mão, tal como tinha servido o Jovem Dragão antes dele. Viserys pode ter reinado apenas por um ano, mas governou por quinze, enquanto Daeron guerreava e Baelor rezava. - Fez uma expressão amarga. - E se realmente eliminou Baelor, pode culpá-lo? Alguém tinha de salvar o reino de suas loucuras.
Sansa estava chocada.
- Mas Baelor, o Abençoado, foi um grande rei. Percorreu descalço o Caminho do Espinhaço para fazer a paz com Dorne e salvou o Cavaleiro do Dragão de um fosso de serpentes. Às víboras recusaram-se a atacá-lo por ele ser tão puro e santo.
O Príncipe Oberyn sorriu.
- Se fosse uma víbora, senhora, quereria morder uma vara sem sangue como Baelor, o Abençoado? Eu preferiria reservar as minhas presas para alguém mais suculento...
- O meu príncipe está brincando com você, Senhora Sansa - disse a mulher, Eliaria Sand. - Os septões e cantores gostam de dizer que as serpentes não morderam Baelor, mas a verdade é muito diferente. Ele foi mordido meia centena de vezes, e devia ter morrido disso.
- Se tivesse, Viserys teria reinado uma dúzia de anos - disse Tyrion - e os Sete Reinos poderiam ter ficado mais bem servidos. Há quem pense que Baelor ficou demente por conta de todo aquele veneno.
- Sim - disse o Príncipe Oberyn -, mas não vi serpentes nesta sua Fortaleza Vermelha. Como explica Joffrey?
- Prefiro não explicar. - Tyrion inclinou rigidamente a cabeça. - Perdoe-nos. Nossa liteira nos aguarda. - O anão ajudou Sansa a subir e escalou desajeitadamente atrás dela. - Feche as cortinas, senhora, por gentileza.
- Precisamos, senhor? - Sansa não queria ficar fechada atrás das cortinas. - O dia está tão agradável.
- É provável que o bom povo de Porto Real atire bosta à liteira se me vir aqui dentro. Faça-nos uma gentileza, senhora. Feche as cortinas.
Ela fez o que lhe foi pedido. Seguiram em silêncio durante algum tempo, enquanto o ar ia se tornando quente e abafado em volta deles.
- Lamento por seu livro, senhor - ela obrigou-se a dizer.
- O livro era de Joffrey. Podia ter aprendido uma coisa ou outra se o tivesse lido. - Parecia distraído. - Eu devia ter sabido. Devia ter visto... uma porção de coisas.
- O punhal talvez lhe agrade mais.
Quando o anão fez uma careta, a cicatriz retesou-se e torceu-se.
- E não é que o rapaz arranjou uma maneira de ganhar um punhal? - felizmente Tyrion não esperou por sua resposta. - Joff discutiu com o seu irmão Robb em Winterfell. Diga-me, havia também maus sentimentos entre Bran e Sua Graça?
- Bran? - a pergunta confundiu-a. - Fala de antes da queda? - Teve de tentar se lembrar. Tudo se passara havia tanto tempo. - Bran era um doce garotinho. Todos gostavam dele. Lembro que ele e Tommen lutaram com espadas de madeira, mas só de brincadeira.
Tyrion caiu num silêncio taciturno. Sansa ouviu o distante tinir de correntes vindo do exterior; a porta levadiça estava sendo erguida. Um momento mais tarde ouviu-se um grito, e a liteira entrou em movimento com um solavanco. Privada do cenário que atravessavam, escolheu fitar as mãos dobradas, desconfortavelmente consciente dos olhos desiguais do marido. Por que ele está me olhando dessa maneira?
- Amava tanto os seus irmãos como eu amo Jaime.
Será isso alguma armadilha Lannister para me levar a proferir traições?
- Meus irmãos eram traidores, e partiram para sepulturas de traidores. É traição amar um traidor.
Seu pequeno esposo fungou.
- Robb levantou armas contra seu legítimo rei. Pela lei, isso fez dele um traidor. Os outros morreram novos demais para saber o que é a traição. - Esfregou o nariz. - Sansa, sabe o que aconteceu com Bran em Winterfell?
- Bran caiu. Andava sempre escalando coisas, e por fim caiu. Sempre tememos que isso acontecesse. E Theon Greyjoy matou-o, mas isso foi mais tarde.
- Theon Greyjoy. - Tyrion suspirou. - A senhora sua mãe acusou-me uma vez... bem, não vou enchê-la com os detalhes sórdidos. Acusou-me falsamente. Nunca fiz mal a seu irmão Bran. E não lhe quero nenhum mal.
O que ele quer que eu diga?
- É bom saber, senhor. - Ele queria algo dela, mas Sansa não sabia o que era. Parece uma criança esfomeada, mas não tenho comida para lhe dar. Por que não me deixa em paz?
Tyrion voltou a esfregar o nariz cheio de escaras e cicatrizes, um feio hábito que atraía o olhar para o seu feio rosto.
- Nunca me perguntou como Robb ou a senhora sua mãe morreram.
- Eu... prefiro não saber. Teria pesadelos.
- Então nada mais direi.
- Isso... isso é gentil de sua parte.
- Ah, sim - disse Tyrion. - Eu sou a própria alma da gentileza. E sei o que são pesadelos.
A nova coroa que o pai oferecera à Fé era duas vezes mais alta do que aquela que a multidão tinha esmagado, uma glória de cristal e fio de ouro. A luz do arco-íris refulgia e cintilava a cada vez que o Alto Septão movia a cabeça, mas Tyrion teve de perguntar a si mesmo como o homem conseguia suportar o peso. E até ele tinha de admitir que Joffrey e Margaery formavam um casal régio, ali em pé, lado a lado, entre as altas estátuas douradas do Pai e da Mãe.
A noiva estava adorável, vestida de seda em tom marfim e renda de Myr, com as saias decoradas com padrões florais realçados com pérola-semente. Como viúva de Renly, podia ter usado as cores Baratheon, ouro e negro, mas chegou como uma Tyrell, num manto de donzela composto por uma centena de rosas de pano de ouro cosidas ao veludo verde. Tyrion perguntou a si mesmo se ela seria realmente donzela. Não que seja provável que Joffrey saiba a diferença.
O rei estava quase tão magnífico quanto a noiva, com o seu gibão de um rosa opaco, sob um manto de veludo de um profundo tom de carmesim, decorado com o seu veado e leão. A coroa assentava com facilidade em seus caracóis, ouro sobre ouro. Eu salvei aquela maldita coroa para ele. Tyrion deslocou o peso desconfortavelmente de um pé para o outro. Não conseguia ficar quieto. Vinho demais. Devia ter pensado em se aliviar antes de saírem da Fortaleza Vermelha. A noite sem dormir que passara com Shae também estava se fazendo sentir, mas acima de tudo queria estrangular o maldito do seu real sobrinho.
Não sou estranho ao aço valiriano, vangloriara-se o rapaz. Os septões andavam sempre falando sobre o modo como o Pai no Céu nos julga a todos. Se o Pai tivesse a bondade de derrubar e esmagar Joff como se fosse um besouro vira-bosta, eu até podia acreditar nisso.
Devia ter percebido há muito tempo. Jaime nunca mandaria outro homem matar em seu nome, e Cersei era esperta demais para usar uma faca cujo rastro poderia levar até si, mas Joff, o arrogante, perverso e estúpido canalha que era...
Recordou a manhã fria em que tinha descido os íngremes degraus exteriores da biblioteca de Winterfell e encontrou o Príncipe Joffrey gracejando com Cão de Caça sobre matar lobos. Mandar um cão matar um lobo, ele tinha dito. Contudo, nem mesmo Joff era tão tolo que ordenasse a Sandor Clegane que matasse um filho de Eddard Stark; Cão de Caça teria procurado Cersei. Em vez disso, o rapaz encontrou a sua ferramenta no duvidoso bando de cavaleiros livres, mercadores e seguidoras de acampamentos que se ligou à comitiva do rei à medida que esta seguia para o norte. Um cretino purulento qualquer disposto a arriscar a vida em troca do favor de um príncipe e de algumas moedas. Tyrion perguntou a si mesmo de quem teria sido a ideia de esperar até Robert partir de Winterfell para abrir a goela de Bran. O mais certo é ter sido de Joff. Sem dúvida pensou que isso era o cúmulo da astúcia.
Tyrion julgava recordar que a adaga do príncipe tinha...
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