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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ÚLTIMA DELEGACIA / Patricia Cornwell
A ÚLTIMA DELEGACIA / Patricia Cornwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O crepúsculo frio cede sua cor arroxeada à completa escuridão, e me sinto agradecida porque as cortinas de meu quarto são pesadas o bastante para absorver até a mais tênue sugestão de minha silhueta enquanto me movo arrumando as malas. A vida não poderia ser mais anormal do que é agora. “Quero beber alguma coisa”, anuncio ao abrir uma gaveta da cômoda. “Quero acender a lareira, tomar uma bebida e fazer uma massa. Talharim amarelo e verde, pimentão, lingüiça. Le pappardelle del Cantunzein. Eu sempre quis tirar um ano sabático, ir à Itália, aprender italiano, aprender mesmo. Falar italiano. Não só os nomes das comidas. Ou talvez a França. Vou para a França. Talvez eu vá para lá neste exato minuto”, acrescento com um tom de desamparo mesclado com raiva. “Eu poderia viver em Paris. Tranqüilamente.” É meu jeito de rejeitar a Virgínia e todos que estão nela. O capitão Pete Marino, da polícia de Richmond, domina meu quarto como um farol espesso, suas mãos gigantes enfiadas nos bolsos do jeans. Ele não se oferece para me ajudar a arrumar a maleta e as sacolas abertas sobre a cama, pois me conhece o bastante para nem pensar nisso. Marino pode parecer um caipira, falar como um caipira, mas é espertíssimo, sensível e muito perceptivo. Neste exato momento, por exemplo, ele se dá conta de um fato simples: não faz nem vinte e quatro horas um homem chamado Jean-Baptiste Chandonne caminhou pela neve debaixo de uma lua cheia e, usando de astúcia, entrou em minha casa. Já estou intimamente familiarizada com o modus operandi de Chandonne, portanto posso visualizar com segurança o que ele teria feito comigo se tivesse a chance. Mas não consigo me sujeitar a imagens anatomicamente corretas de meu próprio corpo morto a marteladas, e ninguém poderia descrever uma coisa dessas com mais precisão do que eu. Sou patologista forense, formada em direito, a legista-chefe da Virgínia. Fiz a autópsia de duas mulheres que Chandonne matou recentemente aqui em Richmond e revisei os casos de sete outras que ele assassinou em Paris. Para mim, é mais seguro dizer o que ele fez com aquelas vítimas: bateu nelas com selvageria, mordeu-lhes os seios, mãos e pés, brincou com o sangue delas. Ele nem sempre usa a mesma arma. Na noite passada, estava armado com uma picareta de entalhar, uma ferramenta peculiar usada por pedreiros. É muito parecida com uma picareta comum. Sei com certeza o que uma picareta de entalhar pode fazer a um corpo humano porque Chandonne usou uma — a mesma, presumo — em Diane Bray, sua segunda vítima em Richmond, a policial que ele matou há dois dias, na quinta-feira. “Que dia é hoje?”, pergunto ao capitão Marino. “Sábado, não é?” “É. Sábado.” “Dezoito de dezembro. Uma semana para o Natal. Boas-festas.” Abro um bolso lateral da maleta.


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“É. Dezoito de dezembro.” Ele me olha como se eu fosse alguém que pode sem mais nem menos perder a razão a qualquer momento, e seus olhos injetados refletem uma prudência que permeia minha casa. A desconfiança no ar é palpável. Para mim ela tem gosto de poeira. Cheira a ozônio. É úmida. O silvo molhado de pneus na rua, a confusão de pés, vozes e conversa pelo rádio formam uma desarmonia infernal enquanto os agentes da lei ocupam minha propriedade. Sou violada. Cada centímetro de minha casa é exposto, cada faceta de minha vida é desnudada. Posso muito bem ser um corpo nu em uma de minhas mesas de aço no necrotério. Portanto, Marino sabe que não deve perguntar se pode me ajudar a fazer as malas. Ah, sim, tenho certeza de que ele sabe muito bem que é melhor não ousar sequer pensar em tocar em alguma coisa, um sapato, uma meia, uma escova de cabelo, um vidro de xampu, nem mesmo o item mais insignificante. A polícia me pediu para deixar a robusta casa de pedra de sonho que construí em meu calmo e cercado condomínio no West End. Dá para imaginar? Estou certa de que Jean-Baptiste Chandonne — Le Loup-garou ou O Lobisomem, como ele próprio se chama — está sendo mais bem tratado do que eu. A lei proporciona a pessoas como ele todos os direitos imagináveis: conforto, sigilo, acomodação grátis, comida e bebida grátis, e assistência médica grátis na ala forense da Faculdade de Medicina da Virgínia, de cujo corpo docente faço parte. Marino não tomou banho nem dormiu nas últimas vinte e quatro horas, no mínimo. Quando passo por ele, sinto o cheiro medonho do corpo de Chandonne e sou apunhalada pela náusea, uma torção ardente em meu estômago que me bloqueia o cérebro e me deixa instantaneamente coberta de suor frio. Eu me aprumo e inspiro profundamente para dissipar a alucinação olfativa, quando minha atenção é atraída, para além das janelas, por um carro que desacelera. Sou capaz de reconhecer a pausa mais sutil no tráfego e saber quando ela se tornará alguém estacionando na frente da casa. É um ritmo que passei horas ouvindo. As pessoas ficam pasmas. Os vizinhos se viram para olhar e param no meio da rua. Cambaleio numa estranha embriaguez de emoções, num minuto aturdida, no seguinte, apavorada. Oscilo da exaustão à mania, da depressão à tranqüilidade, e por baixo de tudo há uma excitação efervescente, como se meu sangue estivesse cheio de gás. Uma porta de carro se fecha diante da casa. “O que foi?”, me queixo. “Quem é agora? O FBI?” Abro outra gaveta. “Marino, chega.” Faço com as mãos o gesto de vá se ferrar. “Tire-os da minha casa, todos eles. Agora.” A fúria bruxuleia como miragens sobre asfalto quente. “Assim eu posso acabar de arrumar as malas e ir embora daqui. Eles não podem sair só o tempo suficiente para que eu vá embora?” Minhas mãos tremem enquanto remexo as meias. “Já é demais eles estarem em meu jardim.” Jogo um par de meias numa sacola. “É demais eles estarem aqui de qualquer jeito.” Outro par. “Eles podem voltar quando eu sair.” E lanço outro par e erro, e me abaixo para pegá-lo. “Eles podiam pelo menos me deixar andar por minha própria casa.” Outro par. “E me deixar ir embora em paz, sem ninguém bisbilhotando.” Guardo um par na gaveta. “Por que diabos estão na minha cozinha?” Mudo de idéia e pego as meias que acabei de guardar. “Por que estão em meu escritório? Eu disse a eles para
não entrarem lá.” “Nós temos de olhar tudo, doutora”, é o que Marino tem a dizer. Ele senta no pé de minha cama, e isso também é errado. Quero dizer a ele que saia de minha cama e de meu quarto. É a única coisa que posso fazer para não ordenar a ele que saia de minha casa e possivelmente de minha vida. Não importa há quanto tempo eu o conheço nem por quantas coisas passamos juntos. “Como está o cotovelo, doutora?” Ele aponta o gesso que imobiliza meu braço esquerdo, parecendo uma chaminé de fogão. “Está fraturado. A dor é infernal.” Fecho a gaveta com força. “Está tomando seu remédio?” “Vou sobreviver.” Ele observa cada movimento meu. “Você precisa tomar aquele troço que eles lhe deram.” De repente invertemos os papéis. Eu ajo como o policial rude enquanto ele é lógico e calmo como a advogada-médica que eu devo ser. Volto ao closet revestido de cedro e começo a juntar blusas e colocá-las na maleta, certificandome de que os botões de cima estejam abotoados, alisando a seda e o algodão com a mão direita. Meu cotovelo esquerdo lateja como uma dor de dente, minha carne transpira e coça dentro do gesso. Passei a maior parte do dia no hospital — engessar um membro fraturado não é um procedimento demorado, mas os médicos insistiram em me examinar com cuidado para ter certeza de que eu não tinha outros ferimentos. Expliquei várias vezes que ao fugir de casa caí na escada da frente e fraturei o cotovelo, nada mais. Jean-Baptiste Chardonne não teve nenhuma chance de me tocar. Escapei e estou bem, fiquei repetindo enquanto tirava uma radiografia atrás da outra. A equipe do hospital me reteve para observação até o fim da tarde, e houve um entra-e-sai de detetives na sala de exame. Eles pegaram minhas roupas. Minha sobrinha, Lucy, teve de me levar alguma coisa para vestir. Não dormi nada. O som do telefone perfura o ar como uma lâmina. Pego a extensão ao lado da cama. “Doutora Scarpetta”, anuncio no bocal, e minha voz dizendo meu nome me lembra de chamadas no meio da noite, quando atendo ao telefone e um detetive me dá notícias muito ruins sobre uma cena de morte em algum lugar. Ouvir meu grave auto-anúncio usual dispara a imagem que até agora tentei evitar: meu corpo violentado em minha cama, sangue salpicado por todo o quarto, este quarto, e meu médico-legista assistente atendendo a ligação, e a expressão em seu rosto quando o policial — provavelmente Marino — conta a ele que fui assassinada e que alguém, sabe Deus quem, precisa comparecer à cena do crime. Ocorre-me que possivelmente ninguém de meu departamento poderia atender ao chamado. Eu ajudei a Virgínia a projetar o melhor plano de emergência de qualquer estado do país. Podemos lidar com um grande desastre aéreo, com a explosão de uma bomba no estádio ou com uma enchente, mas o que funcionaria se algo acontecesse comigo? Trazer um patologista forense de uma jurisdição vizinha, talvez Washington, suponho. O problema é que conheço quase todos os patologistas forenses da costa Oeste e morreria de pena de quem tivesse de lidar com meu corpo morto. É muito difícil trabalhar em um caso quando se conhece a vítima. Esses pensamentos voam por minha mente como
pássaros sobressaltados quando Lucy me pergunta ao telefone se preciso de alguma coisa, e garanto a ela que estou ótima, o que é perfeitamente ridículo. “Bom, ótima você não pode estar”, ela retruca. “Fazendo as malas”, digo. “Marino está comigo e eu estou fazendo as malas”, repito, enquanto meus olhos se fixam, congelados, em Marino. A atenção dele vaga por toda parte, e me dou conta de que ele nunca esteve em meu quarto antes. Não quero nem imaginar suas fantasias. Conheço-o há muitos anos e sempre tive consciência de que seu respeito por mim é misturado com insegurança e atração sexual. Ele é um brutamontes com uma barrigona de cerveja e um rosto grande e desgostoso, e seu cabelo descolorido migrou de forma nada atraente da cabeça para outras partes do corpo. Ouço minha sobrinha ao telefone enquanto os olhos de Marino se movem tateantes por meus espaços privados: minhas cômodas, meu closet, as gavetas abertas, o que estou pondo nas malas e meus seios. Quando Lucy levou tênis, meias e uma roupa de ginástica para o hospital, não pensou em incluir um sutiã, e o melhor que pude fazer quando cheguei aqui foi me cobrir com um velho e volumoso avental de laboratório que uso como guarda-pó quando faço alguma tarefa em casa. “Imagino que eles não querem você aí”, a voz de Lucy soa na linha. É uma longa história, mas minha sobrinha é agente do Departamento de Álcool, Tabaco e Armas de Fogo (ATF), e quando a polícia chegou não conseguiu tirá-la de minha propriedade com suficiente rapidez. Talvez saber algumas coisas seja algo perigoso, e eles temiam que uma agente federal importante se incluísse na investigação. Não sei, mas ela está se sentindo culpada por não estar aqui para me defender na noite passada e eu quase ter sido assassinada, e agora de novo por não estar aqui para me defender. Deixo claro que não a culpo de modo algum. Também não consigo parar de imaginar como minha vida teria sido diferente se ela estivesse em casa comigo quando Chandonne apareceu — e não na rua cuidando de uma namorada. Talvez Chandonne tivesse sabido que eu não estava sozinha e ficasse longe, ou fosse surpreendido por outra pessoa na casa e tivesse fugido, ou tivesse deixado para me matar no dia seguinte, ou na noite seguinte, ou no Natal, ou no novo milênio. Ando compassadamente enquanto ouço as explicações e os comentários ofegantes de Lucy no telefone sem fio, e quando passo pelo espelho de corpo inteiro vejo meu reflexo. O cabelo louro e curto está desgrenhado, a sobrancelha está contraída numa mistura de franzido e quase lágrimas. O avental de laboratório está encardido e manchado e não é nada adequado a uma chefe. Estou muito pálida. O desejo de uma bebida e um cigarro é atipicamente forte, quase insuportável, como se quase ter sido assassinada tivesse me transformado numa junkie instantânea. Imagino estar sozinha em minha casa. Nada aconteceu. Estou curtindo um cigarro, um copo de vinho francês, talvez um bordeaux, porque o bordeaux é menos complicado que o borgonha. O bordeaux é como um velho bom amigo que não precisamos decifrar. Dissipo a fantasia com o fato: não importa o que Lucy fez ou deixou de fazer. No fim, Chandonne teria vindo me matar, e tenho a sensação de que um terrível julgamento esteve esperando por mim durante toda a minha vida, marcando minha porta como o Anjo da Morte. O bizarro é que ainda estou aqui.
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Sei pela voz de Lucy que ela está apavorada. Minha brilhante e vigorosa sobrinha, agente federal, piloto de helicóptero e obcecada por condicionamento físico, raramente fica apavorada. “Estou realmente me sentindo mal”, ela continua a se repetir ao telefone, enquanto Marino mantém sua posição em minha cama e eu ando. “Pois não devia”, digo a ela. “A polícia não quer ninguém aqui, e pode acreditar que você não gostaria de estar aqui. Suponho que você esteja com Jo, e isso é ótimo.” Digo isso a ela como se não fizesse nenhuma diferença para mim, como se não me incomodasse o fato de ela estar lá e não aqui e eu não tê-la visto o dia inteiro. Mas faz diferença. Me incomoda. Porém, tenho o hábito de oferecer às pessoas uma saída. Não gosto de ser rejeitada, especialmente por Lucy Farinelli, que criei como uma filha. Ela hesita antes de responder. “Na verdade estou no centro, no Jefferson.” Tento entender isso. O Jefferson é o melhor hotel da cidade, e não sei por que ela iria para um hotel, muito menos um elegante e caro. As lágrimas me fazem arder os olhos e eu as retenho à força, pigarreando, abafando a angústia. “Ah”, digo. “Que bom. Imagino que Jo esteja com você no hotel.” “Não, com a família dela. Olhe, eu acabei de fazer o check-in. Tenho um quarto para você. Que acha de eu ir buscá-la?” “Um hotel provavelmente não é uma boa idéia neste momento.” Ela pensou em mim e quer que eu esteja com ela. Sinto-me um pouco melhor. “Anna me pediu para ficar com ela. Considerando tudo, acho que para mim é melhor ira para a casa dela. Ela também convidou você. Mas você já deve ter se instalado.” “Como Anna soube?”, pergunta Lucy. “Ela ouviu no noticiário?” Como o atentado contra minha vida aconteceu tarde da noite, só estará nos jornais amanhã de manhã. Mas suponho que tenha havido uma tempestade de notícias no rádio e na televisão. Ao pensar nisso agora, não imagino como Anna soube. Lucy diz que precisa ficar no hotel, mas vai tentar me visitar à noite. Desligamos. “Se a mídia descobrir que você está num hotel, não vai lhe faltar mais nada. Eles vão estar atrás de tudo quanto é arbusto”, diz Marino, o cenho muito franzido, numa expressão apavorante. “Onde ela está?” Repito o que Lucy me contou e quase desejo não ter falado com ela. Só serviu para me deixar pior. Aprisionada, sinto-me aprisionada, como se estivesse dentro de um sino de mergulho a uma profundidade de trezentos metros, desconectada, atordoada, o mundo a minha volta de repente irreconhecível e surreal. Estou entorpecida, mas cada um de meus nervos pega fogo. “O Jefferson?”, diz Marino. “Você deve estar brincando! Ela ganhou na loteria, por acaso? Não pensou que a mídia pode descobrir que ela está lá? Parece que tem merda na cabeça!”
Volto a arrumar as malas. Não consigo responder às perguntas dele. Estou cansada de perguntas. “E ela não foi para a casa da Jo. Ah”, prossegue, “que interessante. Eu nunca achei que aquilo ia durar.” Ele boceja alto e coça o rosto gordo e troncudo enquanto me olha a dobrar conjuntos de saia e blusa sobre uma cadeira, continuando a pegar roupas para o trabalho. Para ser justa com Marino, devo reconhecer que ele tentou se controlar, e até ser atencioso, desde quando cheguei em casa do hospital. Para ele é difícil ter um comportamento decente até nas melhores circunstâncias, que certamente não são aquelas em que se encontra agora. Ele está esgotado, sem dormir e alimentado por cafeína e junk food, e não permito que fume em minha casa. Para que ele se descontrolasse e retomasse seu caráter rude e desbocado, era só uma questão de tempo. Testemunho a metamorfose e fico estranhamente aliviada com ela. Estou desesperada por coisas conhecidas, por mais desagradáveis que sejam. Marino começa a falar sobre o que Lucy fez na noite passada, quando parou na frente da casa e descobriu Jean-Baptiste Chandonne e eu em meu jardim nevado. “Olhe, não é que eu a culpe por querer estourar os miolos do delinqüente”, ele comenta. “Mas é aí que entra o treinamento que a gente recebe. Não importa se é sua tia ou seu filho que está envolvido, você tem de fazer o que foi treinado para fazer, e ela não fez isso. Com toda a certeza não fez. O que ela fez foi enlouquecer.” “Eu vi você enlouquecer algumas vezes”, lembro a ele. “Bom, na minha opinião eles nunca deveriam tê-la jogado naquele trabalho secreto em Miami.” Lucy está alocada na unidade do ATF em Miami e veio para cá, entre outros motivos, para passar os feriados. “Às vezes as pessoas se aproximam demais dos bandidos e começam a se identificar com eles. Lucy está em modo de matar. Ela está louca pra atirar, doutora.” “Isso não é justo.” Percebo que peguei pares de sapatos demais. “Me diga o que você teria feito se tivesse chegado a minha casa primeiro em vez dela.” Interrompo o que estou fazendo e olho para ele. “Pelo menos parar um nanossegundo e avaliar a situação antes de ir lá botar um revólver na cabeça do babaca. Que merda. O cara estava tão atrapalhado que não conseguia nem ver o que estava fazendo. Ele estava se esgoelando por causa dessa porcaria química que você jogou nos olhos dele. Nesse momento ele não estava armado. Não ia machucar ninguém. Isso era óbvio. E também era óbvio que você estava ferida. Então, se fosse eu, tinha chamado uma ambulância, e Lucy nem pensou em fazer isso. Ela é imprevisível, doutora. E eu não quero ela na casa com tudo que está acontecendo aqui. Foi por isso que nós a entrevistamos na delegacia, pegamos suas declarações em um lugar neutro para acalmá-la.” “Não considero uma sala de interrogatório um lugar neutro”, retruco. “Bom, a casa onde sua tia Kay quase foi massacrada também não é exatamente um lugar neutro.” Não discordo dele, mas seu tom está envenenado pelo sarcasmo. Começo a me sentir ofendida. “Seja como for, tenho de lhe dizer que tive uma sensação realmente ruim
a respeito de ela ficar sozinha num hotel agora”, ele acrescenta, coçando o rosto de novo, e por mais que diga o contrário ele acha minha sobrinha o máximo e faria qualquer coisa por ela. Ele a conhece desde quando ela tinha dez anos, e a apresentou a caminhonetes, motores grandes, revólveres e toda espécie dos chamados interesses masculinos pelos quais ele agora a critica por ter em sua vida. “Eu posso dar uma checada na pilantrinha depois que deixar você na casa de Anna. Não que eu ache que alguém se importe com minhas sensações ruins”, ele retrocede vários pensamentos. “Como no caso de Jay Talley. Claro, isso não é problema meu. Aquele desgraçado egoísta.” “Ele me esperou o tempo inteiro no hospital”, defendo Jay mais uma vez, desviando o ciúme indisfarçado de Marino. Jay é o encarregado no ATF pelos contatos com a Interpol. Não o conheço muito bem, mas dormi com ele em Paris há quatro dias. “E eu fiquei lá treze ou catorze horas”, continuo, enquanto Marino praticamente revira os olhos. “Não chamo isso de egoísmo.” “Porra!”, diz Marino. “Onde é que você ouviu esse conto de fadas?” Seus olhos queimam de ressentimento. Ele desprezou Jay desde a primeira vez em que pôs os olhos nele, na França. “Eu não posso acreditar. Ele fez você pensar que ele esteve no hospital o tempo todo? Ele nem esperou por você! Isso é totalmente absurdo. Ele levou você até lá na porra do carro branco dele e voltou imediatamente para cá. Depois ligou perguntando quando você estaria pronta para ser dispensada e voltou ao hospital para pegá-la.” “O que me parece inteiramente razoável.” Escondo minha consternação. “Não fazia sentido ele ficar lá sentado sem fazer nada. E ele não me disse que ficou lá o tempo todo. Eu é que supus isso.” “Claro, e por quê? Porque ele fez você supor isso. Ele fez você pensar uma coisa que não é verdade, e você nem se incomoda com isso? No meu livro, isso é conhecido como falha de caráter. É chamado mentir... O que é?”, ele muda abruptamente o tom. Alguém está no vão da porta de meu quarto. Uma oficial uniformizada em cujo crachá de identificação se lê M. I. Calloway entra no quarto. “Desculpe”, de pronto ela se dirige a Marino. “Capitão, eu não sabia que o senhor estava aqui.” “Bom, agora sabe.” Ele dirige a ela um olhar lúgubre. “Doutora Scarpetta?” Os grandes olhos dela parecem bolas de pinguepongue, quicando para um lado e para outro entre mim e Marino. “Preciso perguntar à senhora sobre o frasco. Onde o frasco do produto químico, a formulina...” “Formalina”, corrijo-a calmamente. “Certo”, ela diz. “Exatamente, quer dizer, onde exatamente estava o frasco quando a senhora o pegou?” Marino permanece no pé da minha cama, como se tivesse sentado ali todos os dias de sua vida. Começa a sentir falta dos cigarros. “A mesa de centro na sala grande”, respondo a Calloway. “Eu já disse isso a todo mundo.” “Sim, senhora, mas onde na mesa de centro? É uma mesa bem grande. Realmente sinto muito por incomodá-la com isso. Mas estamos tentando reconstruir como tudo aconteceu, porque depois vai ficar mais difícil lembrar.”
Marino saca lentamente um Lucky Strike do maço. “Calloway?” Ele nem olha para ela. “Desde quando você é detetive? Acho que não me lembro de você na Equipe A.” Ele é o chefe da unidade de crimes violentos do Departamento de Polícia de Richmond, conhecida como Equipe A. “Nós só não temos certeza de onde o frasco estava, capitão.” As bochechas dela estão em brasa. Os tiras provavelmente imaginaram que uma mulher vir aqui me interrogar seria menos intrusivo do que um homem. Talvez seus colegas a tenham enviado por essa razão, ou talvez ela tenha recebido a tarefa simplesmente porque ninguém mais queria se meter comigo. “Quando você entra na sala grande e fica de frente para a mesa de centro, é o canto direito da mesa mais perto de você”, digo a ela. Passei por isso muitas vezes. Nada é claro. O que aconteceu é um borrão, uma torção irreal da realidade. “E esse é aproximadamente o lugar onde a senhora estava quando jogou o produto químico nele?”, Calloway pergunta. “Não. Eu estava do outro lado do sofá. Perto da porta de correr de vidro. Ele estava me perseguindo e eu terminei ali”, explico. “E depois que a senhora correu direto para fora da casa...?” Calloway rabisca algo em seu bloquinho de anotações. “Pela sala de jantar”, eu a interrompo. “Onde estava minha pistola, onde eu a pusera na mesa da sala de jantar, mais cedo. Não é um bom lugar para deixá-la, reconheço.” Minha mente vagueia. Tenho a sensação de que estou com um grave jet lag. “Apertei o alarme de pânico e saí pela porta da frente. Com a pistola, a Glock . Mas escorreguei no gelo e fraturei o cotovelo. Não consegui puxar o cursor, não com uma mão só.” Ela anota isso também. Minha história é aborrecida e repetida. Se eu tiver de contá-la mais uma vez, talvez perca as estribeiras, e nenhum tira neste planeta já me viu perder as estribeiras. “A senhora não a disparou?” Ela levanta os olhos em minha direção e umedece os lábios. “Eu não consegui engatilhá-la.” “A senhora não tentou dispará-la?” “Não sei o que você quer dizer com tentar. Eu não consegui engatilhá-la.” “Mas a senhora tentou?” “Você precisa de um tradutor ou algo do tipo?” Marino entra em erupção. O modo ameaçador como ele olha para M. I. Calloway me faz lembrar o ponto vermelho com que uma mira de laser marca uma pessoa antes da partida da bala. “A pistola não estava engatilhada e ela não a disparou, pegou isso?”, ele repete de forma lenta e rude. “Quantos cartuchos há no pente?” Ele se dirige a mim. “Dezoito? É uma Glock Dezessete, leva dezoito no pente e um na câmara, certo?” “Não sei”, digo a ele. “Provavelmente não são dezoito, definitivamente não. É difícil conseguir colocar tantas balas porque a mola é dura, a mola no pente.”
“Certo, certo. Você se lembra da última vez que disparou essa arma?” “Na última vez em que eu estive no estande de tiro. Faz pelo menos alguns meses.” “Você sempre limpa suas armas depois que vai ao estande de tiro, não é, doutora?” “Sim.” Estou no meio do meu quarto, piscando. Minha cabeça dói e as luzes me ferem os olhos. “Você olhou a arma, Calloway? Quer dizer, você a examinou, certo?” Mais uma vez ele crava nela seu olhar de laser. “Então, qual é o problema?” Ele sacode a mão para ela como se ela fosse uma chata estúpida. “Me diga o que encontrou.” Ela hesita. Sinto que não quer dar a informação na minha frente. A pergunta de Marino paira pesada como umidade prestes a se precipitar. Decido pegar duas saias, uma azul-marinho, uma cinza, e dobro-as sobre a cadeira. “Há catorze cartuchos no pente”, Calloway diz a ele num tom militar robótico. “Não havia nenhum na câmara. Não estava engatilhada. E parece limpa.” “Muito bem. Então não estava engatilhada e ela não a disparou. E era uma noite escura e tempestuosa e três índios estavam sentados em volta de uma fogueira. Vamos ficar dando voltas sem sair do lugar ou vamos em frente?” Ele está suando e o cheiro de seu corpo sobe com seu calor. “Olhe, não há nada novo a acrescentar”, digo, de repente à beira das lágrimas, fria e tremendo, e sentindo de novo o horrível fedor de Chandonne. “E por que a senhora estava com o frasco em casa? E o que exatamente havia nele? Aquela substância que a senhora usa no necrotério, certo?” Calloway se posiciona de modo a tirar Marino de sua linha de visão. “Formalina. Uma solução de formaldeído a dez por cento conhecida como formalina”, digo. “É usada no necrotério para fixar tecidos, sim. Secções de órgãos. Pele, nesse caso.” Joguei um produto químico cáustico nos olhos de outro ser humano. Eu o mutilei. Talvez o tenha cegado permanentemente. Imagino-o preso com correias em uma cama na ala prisional do nono andar da Faculdade de Medicina da Virgínia. Salvei minha vida e não sinto nenhuma satisfação com isso. Só me sinto arrasada. “Então a senhora tinha tecido humano em casa. A pele. Uma tatuagem. Daquele corpo não identificado no porto? Aquele que estava no contêiner do cargueiro?” O som da voz de Calloway, de sua caneta, das páginas virando, me lembra os repórteres. “Não quero parecer estúpida, mas por que a senhora teria algo assim em casa?” Explico que tivemos muita dificuldade em identificar o corpo do porto. Não tínhamos nada além de uma tatuagem, na verdade, e na semana passada fui a Petersburg e pedi a um tatuador experiente para examinar a tatuagem, que levei em minha valise. Depois vim direto para casa, e é por isso que a tatuagem em seu frasco de formalina estava em minha casa a noite passada. “Normalmente eu não teria algo desse tipo em casa”, acrescento.
“A senhora a manteve em casa por uma semana?”, ela pergunta com uma expressão de dúvida. “Estava acontecendo muita coisa. Kim Luong foi assassinada. Minha sobrinha quase foi morta em um tiroteio em Miami. Fui convocada a viajar para fora do país, para Lyon, na França. A Interpol queria me ver, para conversar sobre sete mulheres que ele” — me refiro a Chandonne — “provavelmente tinha assassinado em Paris e sobre a suspeita de que o homem morto no contêiner do cargueiro pudesse ser Thomas Chandonne, o irmão, irmão do assassino, ambos filhos desse cartel criminoso Chandonne que metade das forças policiais do universo tem tentado liquidar para sempre. Depois a chefe de polícia interina Bray foi assassinada. Eu devia ter devolvido a tatuagem ao necrotério?” Minha cabeça lateja. “Sim, com certeza devia. Mas eu estava distraída. E esqueci.” Quase grito com ela. “A senhora esqueceu”, repete a oficial Calloway, enquanto Marino ouve com uma fúria crescente, tentando deixá-la fazer seu trabalho e ao mesmo tempo a desprezando. “Doutora Scarpetta, a senhora tem outras partes de corpos em sua casa?”, Calloway pergunta então. Uma estocada de dor penetra em meu olho direito. Estou começando a ter uma enxaqueca. “Que porra de pergunta é essa?”, Marino ergue a voz mais um decibel. “Eu só não queria que de repente esbarrássemos em alguma outra coisa do tipo fluidos corporais ou produtos químicos ou...” “Não, não.” Balanço a cabeça e volto minha atenção para uma pilha de calças e camisas pólo cuidadosamente dobradas. “Só lâminas.” “Lâminas?” “Para histologia”, explico vagamente. “Para quê?” “Calloway, acabou.” As palavras de Marino soam como um pequeno martelo de leiloeiro enquanto ele se levanta da cama. “Eu só quero ter certeza de que não precisamos nos preocupar com outros riscos”, ela diz a ele, e suas bochechas vermelhas e o brilho em seus olhos desmentem sua subordinação. Ela odeia Marino. Muita gente odeia. “O único risco com que você tem que se preocupar é aquele para o qual você está olhando”, Marino retruca. “Que tal dar à doutora um pouco de privacidade, adiar um pouco as perguntas idiotas?” Calloway é uma mulher sem queixo, nada atraente, com quadris largos e ombros estreitos, e seu corpo está tenso de raiva e constrangimento. Ela se vira e sai do quarto, suas pisadas absorvidas pela passadeira persa do corredor. “O que ela está pensando? Que você coleciona troféus ou algo do tipo?”, diz Marino. “Que você traz para casa suvenires como o porra do Jeffrey Dahmer?* Faça-me o favor.” “Não agüento mais isso.” Arrumo as camisas pólo perfeitamente dobradas na sacola. “Vai ter de agüentar, doutora. Mas não tem de agüentar mais nada por hoje.” Exausto, ele volta a sentar no pé de minha cama. “Mantenha seus detetives longe de mim”, aviso a ele. “Não quero ver mais
nenhum policial. Não fui eu que fiz algo errado.” “Se eles conseguirem mais alguma coisa vão me informar. Esta investigação é minha, mesmo que pessoas como Calloway ainda não tenham percebido. Mas não é comigo que você tem que se preocupar. É como pegar uma senha e entrar na fila da delicatessen, de tanta gente que quer falar com você.” Empilho calças em cima das camisas pólo, depois inverto a ordem, pondo as camisas em cima para que não fiquem enrugadas. “Claro que não chega nem perto da quantidade de pessoas que quer falar com ele.” Ele se refere a Chandonne. “Todos esses especialistas em perfil psicológico e psiquiatras forenses e a mídia e o diabo a quatro.” Marino percorre a lista do Quem é Quem. Paro de guardar coisas. Não tenho nenhuma intenção de pegar lingerie enquanto Marino assiste. Recuso-me a escolher produtos de toalete com ele testemunhando tudo. “Preciso ficar alguns minutos sozinha”, digo a ele. Ele fica olhando para mim, os olhos vermelhos, o rosto da cor de vinho. Até sua careca está vermelha, e ele está todo amarrotado, de jeans e camiseta, com uma barriga de grávida de nove meses, as botas Red Wing enormes e sujas. Posso ver sua mente trabalhando. Ele não quer me deixar sozinha e parece estar ponderando preocupações que não vai dividir comigo. Um pensamento paranóide surge como fumaça escura em minha mente. Ele não confia em mim. Talvez pense que sou uma suicida. “Marino, por favor. Você não pode ficar lá fora e manter as pessoas longe enquanto termino aqui? Vá até meu carro e pegue minha valise de cena do crime no porta-malas. Se eu for chamada para fazer alguma coisa... bom, preciso estar com ela. A chave está na gaveta do armário da cozinha, a de cima à direita — onde guardo todas as minhas chaves. Por favor. Aliás, pensando bem, preciso do meu carro. Imagino que vou pegar meu carro, e você pode deixar a valise nele.” Estou num redemoinho de confusão. Ele hesita. “Você não pode pegar seu carro.” “Que merda!”, deixo escapar. “Não me diga que eles têm de examinar meu carro também. Isso é insano.” “Olhe. A primeira vez que seu alarme disparou ontem à noite, foi porque alguém tentou entrar em sua garagem.” “O que você quer dizer com alguém?”, retruco, enquanto a dor da enxaqueca me queima as têmporas e me turva a visão. “Nós sabemos exatamente quem. Ele arrombou a porta de minha garagem porque queria que o alarme disparasse. Ele queria que a polícia viesse até aqui. Assim não pareceria estranho se a polícia voltasse um pouco depois porque um vizinho tinha informado sobre a hipótese de haver um ladrão em minha propriedade.” Foi Jean-Baptiste Chardonne quem voltou. Ele personificava a polícia. Ainda não consigo acreditar que fui enganada por isso. “Nós ainda não temos todas as respostas”, diz Marino. “Por que não consigo parar de sentir que você não acredita em mim?” “Você precisa ir para a casa de Anna e dormir.”
“Ele não tocou em meu carro”, asseguro. “Não entrou em minha garagem. Não quero que ninguém toque em meu carro. Quero pegá-lo hoje à noite. Só quero que você deixe a valise no porta-malas.” “Hoje à noite, não.” Marino sai e bate a porta. Estou desesperada por uma bebida, para interromper as ferroadas elétricas em meu sistema nervoso central, mas o que posso fazer? Andar até o bar e dizer aos policiais que saiam de meu caminho enquanto encontro o scotch? Saber que bebida alcoólica provavelmente não vai aliviar em nada minha dor de cabeça não me abala. Estou tão infeliz que não me preocupo com o que pode me fazer bem ou não agora. No banheiro, remexo em outras gavetas e deixo cair vários batons no chão. Eles rolam entre o vaso e a banheira. Estou tonta quando me abaixo para pegá-los, tateando desajeitada com o braço direito, e tudo isso é ainda mais difícil porque sou canhota. Paro para avaliar os perfumes bem organizados no toucador e pego com todo o cuidado o frasquinho com tampa de metal dourado de 24, Faubourg, de Hermès. Seu toque é frio. Ergo a ponta do vaporizador até a altura do nariz e o cheiro erótico picante que Benton Wesley adorava me enche os olhos de lágrimas, e meu coração parece que vai fatalmente sair do ritmo. Há mais de um ano que não uso esse perfume, desde quando Benton foi assassinado. Agora eu fui assassinada, digo a ele em minha mente latejante. E ainda estou aqui, Benton, ainda estou aqui. Você era um especialista em perfis psicológicos do FBI, sabia como dissecar as psiques de monstros e interpretar e prever o comportamento deles. Você teria pressentido que isso iria acontecer, não teria? Teria previsto e evitado. Por que você não estava aqui, Benton? Eu estaria bem se você estivesse aqui. Percebo alguém batendo na porta de meu quarto. “Só um minuto”, grito, pigarreando e enxugando os olhos. Jogo água fria no rosto e ponho o perfume Hermès na sacola. Vou até a porta, esperando ver Marino. Mas quem entra é Jay Talley, em uniforme de combate do ATF e com uma barba de um dia que torna sinistra sua beleza morena. É um dos homens mais bonitos que já conheci, com um corpo primorosamente esculpido e uma sensualidade que exala de seus poros como música. “Só vim dar um alô antes de você sair.” Seus olhos fulminam os meus. Parecem me sentir e me explorar do jeito como suas mãos e sua boca fizeram há quatro dias na França. “O que posso lhe dizer?” Deixo-o entrar no quarto e de repente me dou conta de meu aspecto. Não quero que ele me veja assim. “Tenho de sair de minha própria casa. É quase Natal. Meu braço está doendo. Minha cabeça está doendo. Tirando isso, estou ótima.” “Eu levo você até a casa da doutora Zenner. Eu gostaria de fazer isso, Kay.” Absorvo vagamente a idéia de que ele sabe onde vou passar a noite. Marino prometeu que meu paradeiro seria mantido em segredo. Jay fecha a porta e pega minha mão, e a única coisa que consigo pensar é que ele não esperou por mim no hospital e agora quer me levar para outro lugar. “Deixe-me ajudá-la com isso. Eu me preocupo com você”, ele diz. “Ninguém parecia muito preocupado ontem à noite”, replico, me
lembrando de que quando ele me trouxe para casa do hospital e eu lhe agradeci por me esperar, por estar lá, ele não sugeriu nem uma vez que não tinha ficado lá. “Você e toda a sua equipe de resposta inicial lá e o desgraçado simplesmente anda até a porta de minha casa”, prossigo. “Você voa de Paris até aqui para liderar uma maldita Equipe Internacional de Resposta em sua grande caçada a esse cara, e que piada! Que filme ruim — todos aqueles policiais grandões com o equipamento e os rifles de assalto deles, e o monstro vem passeando até minha casa.” Os olhos de Jay começam a vagar por áreas de minha anatomia como se elas fossem locais de parada que ele está autorizado a revisitar. Que ele possa pensar em meu corpo num momento como este me deixa chocada e com uma sensação de repulsa. Em Paris achei que estava me apaixonando por ele. Diante dele aqui em meu quarto, e vendo-o francamente interessado no que está debaixo de meu avental, percebo que não o amo nem um pouco. “Você está só indisposta. Meu Deus, e por que não estaria? Estou preocupado com você. Estou aqui para apoiá-la.” Ele tenta me tocar e eu me afasto. “Nós tivemos uma tarde.” Já disse isso a ele antes, mas agora falo sério. “Algumas horas. Um encontro, Jay.” “Um erro?” A mágoa torna sua voz cortante. Uma raiva sombria pisca em seus olhos. “Não tente transformar uma tarde em uma vida, em algo com significado permanente. Não é por aí. Sinto muito. Pelo amor de Deus.” Minha indignação cresce. “Não queira nada de mim agora.” Ando para longe dele, gesticulando com meu braço bom. “O que você está fazendo? Que diabo você está fazendo?” Ele levanta a mão e segura a cabeça, desviando meus golpes, reconhecendo seu erro. Não consigo saber se ele é sincero. “Não sei o que estou fazendo. Sendo estúpido, deve ser isso”, ele diz. “Não pretendo nada. Estúpido, sou estúpido por sentir o que sinto por você. Não jogue isso em mim. Por favor.” Ele me olha intensamente e abre a porta. “Estou aqui para apoiá-la, Kay. Je t’aime.” Percebo que Jay tem um modo de dizer adeus que me faz sentir que talvez eu nunca mais o veja. Um pânico atávico excita minha psique mais profunda, e resisto à tentação de chamá-lo para me desculpar, prometer que logo vamos sair para jantar ou beber. Fecho os olhos e esfrego as têmporas, me recostando um pouco no pé da cama. Digo a mim mesma que não sei o que estou fazendo agora e não devo fazer nada. Marino está no corredor, um cigarro apagado preso no canto da boca, e posso senti-lo tentando me ler e entender o que acabou de acontecer enquanto Jay estava em meu quarto com a porta fechada. Meu olhar se demora no corredor vazio, eu meio que esperando que Jay reapareça e ao mesmo tempo apavorada com essa idéia. Marino pega minha bagagem, e os policiais se calam quando me aproximo. Evitam olhar em minha direção enquanto se movem por minha sala grande, os cintos de utilidades rangendo, o equipamento que eles manipulam estalando e batendo. Um investigador tira fotos da mesa de centro, o flash explodindo branco e brilhante. Outra pessoa está gravando um vídeo
enquanto um técnico de cena do crime instala uma fonte de luz alternativa chamada Luma-Lite, que pode detectar impressões digitais, drogas e fluidos corporais que não são visíveis a olho nu. Em meu prédio, no centro da cidade, há um Luma-Lite que uso rotineiramente em corpos em cenas de crime e no necrotério. Ver um Luma-Lite dentro de minha casa me dá uma sensação indescritível. Há manchas de poeira escura nos móveis e nas paredes, e o tapete persa colorido foi enrolado, expondo o carvalho francês antigo que está embaixo. No chão, há um abajur de mesa desligado da tomada. O segundo sofá tem crateras no lugar das almofadas, o ar está gorduroso e acre com o odor residual de formalina. Ao lado da sala grande e perto da porta da frente fica a sala de jantar, e pela porta aberta sou saudada pela visão de um saco de papel marrom selado com fita amarela usada para identificar evidências, datado, rubricado e etiquetado como roupas Scarpetta. Dentro dele estão calça, suéter, meias, sapatos, sutiã e calcinha que eu estava usando ontem à noite, roupas tiradas de mim no hospital. O saco e outras evidências e flashes e equipamentos estão em cima de minha adorada mesa de jantar de eucalipto avermelhado, como se ela fosse uma bancada de trabalho. Os policiais puseram capas nas cadeiras, e em todos os lugares há impressões digitais sujas e molhadas. Minha boca está seca, minhas juntas, debilitadas de vergonha e raiva. “Ei, Marino!”, rosna um policial. “Righter está procurando você.” Buford Righter é o promotor estadual. Procuro localizar Jay. Ele não está em lugar nenhum. “Diga a ele para pegar um número e esperar na fila”, Marino se aferra a sua alusão à delicatessen. Acende o cigarro quando abro a porta da frente, e o ar frio me pica o rosto e me faz lacrimejar. “Você pegou minha valise de cena do crime?”, pergunto a ele. “Está na caminhonete”, ele diz, como um marido condescendente a quem se pediu para pegar o livro de bolso da mulher. “Por que Righter está ligando?”, quero saber. “Bando de voyeurs”, ele resmunga. A caminhonete de Marino está na rua em frente à casa, e dois pneus enormes deixaram uma trilha em meu gramado nevado revolvido. Buford Righter e eu trabalhamos juntos em muitos casos ao longo dos anos, e me sinto ofendida por ele não ter me perguntado diretamente se podia vir a minha casa. Aliás, ele não entrou em contato comigo para saber como estou e me dizer que está contente por eu estar viva. “Se você quer saber, as pessoas só querem ver sua casa”, diz Marino. “Então dão essas desculpas sobre a necessidade de verificar uma coisa ou outra.” A neve derretida penetra em meus sapatos enquanto ando com todo cuidado até a entrada para carros. “Você não tem idéia de quantas pessoas me perguntam como é sua casa. Até parece que você é a lady Di ou alguém do tipo. Além disso, Righter mete o nariz em tudo, não consegue agüentar ficar fora do circuito. É o maior caso desde Jack, o Estripador. Righter está nos torrando o saco.”
De repente, flashes explodem numa seqüência gaguejante de luz branca brilhante e eu quase escorrego. Xingo bem alto. Os fotógrafos conseguiram passar pela guarita da segurança do condomínio. Três deles correm para mim num clarão de flashes enquanto luto com um braço para subir no banco da frente da caminhonete. “Ei!”, Marino grita para o transgressor mais próximo, uma mulher. “Sua vaca desgraçada!” Ele investe para cima dela, tentando bloquear a câmera, e ela perde o pé. Cai sentada com violência na rua escorregadia, e seu equipamento emite um baque e se espalha. “Estúpido!”, ela grita para ele. “Estúpido!” “Entre na caminhonete! Entre na caminhonete!”, Marino grita para mim. “Babaca!” Meu coração bate tão forte que pressiona as costelas. “Vou processar você, seu babaca!” Mais flashes, e eu prendo o casaco na porta ao fechá-la, e tenho de abrir e fechar de novo enquanto Marino enfia minha bagagem na traseira e pula para o assento do motorista, dando partida no motor, que ronca como o de um iate. A fotógrafa está tentando se levantar, e me ocorre que eu devia verificar se ela não está ferida. “Devíamos ver se ela não se machucou”, digo, olhando para fora pela janela. “De jeito nenhum. Nem fodendo.” A caminhonete dá uma guinada para entrar na rua, joga para um lado e para outro e acelera. “Quem são eles?” A adrenalina bombeia. Pontos azuis flutuam diante de meus olhos. “Uns panacas. É isso o que eles são.” Ele agarra o microfone do radiotransmissor. “Unidade nove”, anuncia. “Unidade nove”, retorna o controlador. “Não preciso de fotos minhas, de minha casa...”, levanto a voz. Cada célula de meu corpo se acende para protestar contra a injustiça de tudo isso. “Contate a unidade três-vinte, peça a ele para me ligar no celular.” Marino segura o microfone colado à boca. A unidade três-vinte responde a ele no ato, o celular vibrando como um enorme inseto. Marino abre o aparelho e fala. “A mídia achou um jeito de entrar no condomínio. Fotógrafos. Acho que eles estacionaram em algum lugar de Windsor Farms, seguiram a pé, pularam a cerca e passaram por aquela área gramada aberta atrás da guarita da segurança. Mande unidades para procurar carros que estejam estacionados onde não deveriam estar e reboque todos. Eles invadiram a propriedade da doutora, prenda-os.” Ele termina a ligação, fechando o aparelho como se fosse o capitão Kirk e tivesse acabado de ordenar que a Enterprise atacasse. Diminuímos a marcha na guarita da segurança e Joe sai dela. É um velho que sempre se orgulhou de usar seu uniforme marrom da Pinkerton, e é muito legal, educado e protetor, mas eu não gostaria de depender dele e de seus colegas para nada além da triagem de visitantes. Eu não devia estar nem um pouco surpresa de Chandonne ter entrado no condomínio, e agora a mídia. O rosto flácido e enrugado de Joe fica constrangido quando ele percebe que estou na caminhonete.
“Ei, cara”, Marino diz, áspero, pela janela aberta, “como os fotógrafos entraram aqui?” “O quê?” Joe entra instantaneamente no modo de proteção, seus olhos apertados enquanto ele olha para a escorregadia rua vazia, as luzes de vapor de sódio formando auras amarelas no alto dos postes. “Na frente da casa da doutora. Pelo menos três deles.” “Eles não vieram por aqui”, declara Joe. Volta para a guarita e pega o fone. Nós seguimos em frente. “Isso é o máximo que podemos fazer, doutora”, diz Marino. “Você pode também enfiar a cabeça na areia, porque vai haver fotos e merda em tudo quanto é canto.” Olho pela janela para as adoráveis casas georgianas brilhando de festividade natalina. “A má notícia é que seu risco de segurança acaba de subir mais um quilômetro.” Ele está fazendo um sermão, me dizendo o que já sei e não tenho nenhum interesse em discutir agora. “Porque agora meio mundo vai ver sua bela e elegante casa e saber exatamente onde você mora. O problema, e isso é que me deixa muito preocupado, é que coisas como essas fazem aparecer outros delinqüentes. Dá idéias a eles. Eles começam imaginando que você é uma vítima e ficam excitados com isso, como aqueles babacas que vão ao tribunal, para ficar ouvindo relatos de casos de estupro.” Ele desacelera até parar no cruzamento da Canterbury Road com a West Cary Street, e faróis passam por nós quando um sedã compacto de cor escura vira e reduz a velocidade. Reconheço o rosto estreito e insípido de Buford Righter olhando para a caminhonete de Marino. Righter e Marino abaixam os vidros das janelas. “Você está saindo...?”, Righter começa a dizer, quando seus olhos passam por Marino e pousam em mim, surpresos. Tenho a sensação enervante de que sou a última pessoa que ele quer ver. “Sinto muito por seu problema”, Righter diz estranhamente a mim, como se o que está acontecendo em minha vida não passasse de um problema, um inconveniente, algo desagradável. “É, estou indo embora.” Marino dá uma tragada no cigarro, nada solícito. Ele já expressou sua opinião sobre Righter aparecer em minha casa. É uma coisa desnecessária, e mesmo que realmente ache que é tão importante ele próprio examinar a cena do crime, por que não fez isso antes, quando eu estava no hospital? Righter aperta mais o casaco em torno do pescoço, a luz das lâmpadas da rua cintilando em seus óculos. Ele assente com a cabeça e me diz: “Cuide-se. Fico contente de você estar bem”, resolvido a admitir o que chamou de meu problema. “Isto é realmente difícil para todos nós.” Um pensamento me toma antes de ser externado em palavras. “Falo com você”, ele promete a Marino. Os vidros das janelas sobem. Prosseguimos. “Me dê um cigarro”, digo a Marino. “Suponho que ele não veio a minha casa hoje cedo”, digo então. “Bom, para falar a verdade, veio. Por volta das dez da manhã.” Ele me oferece o maço de Lucky Strike sem filtro e a chama sobe do isqueiro que ele
segura diante de mim. A raiva serpeia em minhas entranhas, e minha nuca está quente, a pressão em minha cabeça é quase insuportável. O medo se revolve dentro de mim como uma fera que desperta. Fico indelicada, empurrando o isqueiro do painel, deixando descortesmente o braço de Marino estendido com o isqueiro Bic aceso. “Obrigada por me contar”, retruco abruptamente. “Você se importa de eu perguntar quem mais esteve em minha casa? E quantas vezes? E por quanto tempo ficaram lá, e no que tocaram?” “Ei, não venha descontar em mim”, ele adverte. Eu conheço esse tom. Ele está prestes a perder a paciência comigo e com minha confusão. Somos como sistemas atmosféricos prestes a colidir, e não quero que isso aconteça. A última coisa de que preciso agora é uma guerra com Marino. Puxo a fumaça até a ponta soltar espirais amarelas brilhantes e inalo profundamente, e o soco do tabaco puro me faz rodopiar. Andamos vários minutos em inflexível silêncio, e quando finalmente falo, minha voz soa entorpecida, meu cérebro febril vidrado como as ruas, a dor pesada da depressão se espalhando por minhas costelas. “Sei que você só está fazendo o que precisa ser feito. Aprecio sua atitude”, forço as palavras. “Mesmo que não demonstre.” “Você não precisa explicar nada.” Ele suga o cigarro, nós dois lançando ondas de fumaça na direção de nossas janelas parcialmente abertas. “Sei exatamente como você está se sentindo”, ele acrescenta. “Acho difícil você saber.” O ressentimento me sobe pela garganta como bile. “Nem eu mesma sei.” “Eu entendo muito mais do que você reconhece”, ele diz. “Um dia você vai ver isso, doutora. Não há meio de você ver isso agora, e eu lhe digo que não vai melhorar nada nos próximos dias e semanas. É assim que funciona. O dano real ainda nem começou. Já perdi a conta de quantas vezes vi isso, o que acontece com as pessoas quando elas são vitimizadas.” Eu não quero absolutamente ouvir nem uma palavra sobre isso. “É ótimo você estar indo para onde vai”, ele diz. “É exatamente o que o médico mandou fazer, em mais de um sentido.” “Não vou ficar com Anna porque o médico mandou”, retruco irritada. “Vou ficar com ela porque é minha amiga.” “Você é uma vítima e tem de lidar com esse fato, e precisa de ajuda para lidar com isso. Não importa que você seja uma advogada-médica-chefe índia.” Marino não pára de falar, em parte porque está procurando briga. Ele quer um foco para sua raiva. Posso ver o que está por vir, e a raiva sobe rastejando por meu pescoço e me esquenta a raiz dos cabelos. “Ser vítima é o grande equalizador”, segue Marino, a maior autoridade mundial no assunto. Pronuncio as palavras lentamente. “Eu não sou vítima.” Minha voz tremula como fogo. “Há uma diferença entre ser vitimizada e ser vítima. Não sou um espetáculo de feira de distúrbios de personalidade.” Meu tom murcha. “Não me tornei o que ele queria me tornar” — claro que falo de Chandonne — “e, mesmo que ele tivesse conseguido fazer o que queria, eu não seria o que ele tentou projetar em mim. Estaria apenas morta. Não mudada. Nem nada menos do que sou. Apenas morta.”
Sinto Marino recuar em seu espaço escuro e alto do outro lado de sua enorme caminhonete de macho. Ele não entende o que digo ou sinto e provavelmente nunca entenderá. Reage como se eu o esbofeteasse no rosto ou lhe desse uma joelhada no saco. “Eu estou falando de realidade”, ele revida. “Um de nós dois tem de fazer isso.” “A realidade é que estou viva.” “É. Um baita dum milagre.” “Eu devia saber que você faria isso.” Fico calma e fria. “É tão previsível. As pessoas culpam a presa e não o predador, criticam o ferido e não o idiota que feriu.” Tremo no escuro. “Vá se danar. Vá se danar, Marino.” “Até agora eu não consigo acreditar que você abriu a porta!”, ele grita. O que aconteceu comigo o faz sentir-se impotente. “E onde estavam vocês?” Torno a lembrá-lo de um fato desagradável. “Seria ótimo se pelo menos um ou dois tivessem ficado de olho em minha propriedade. Já que vocês estavam tão preocupados com a possibilidade de ele vir me procurar.” “Eu falei com você pelo telefone, lembra?” Ele ataca de outro ângulo. “Você disse que estava bem. Eu lhe disse para não se mexer, que nós íamos descobrir onde o filho-da-puta estava escondido, que sabíamos que ele tinha saído para algum lugar, provavelmente procurando outra mulher para bater e morder e essa merda toda. E o que você faz, Doutora Policial? Abre a porra da porta quando alguém bate! À meia-noite! ” Eu pensei que a pessoa era da polícia. Ele disse que era da polícia. “Por quê?” Marino agora está gritando, socando o volante como uma criança descontrolada. “Hem? Por quê? Porra, me diga!” Sabíamos fazia dias quem era o assassino, que ele era o anormal espiritual e físico chamado Chandonne. Sabíamos que ele era francês e onde sua família de criminosos morava em Paris. A pessoa que bateu na porta de minha casa não tinha nem um sinal de sotaque francês. Polícia. Não chamei a polícia, falei, sem abrir a porta. Senhora, recebemos um chamado a respeito de um elemento suspeito em sua propriedade. Está tudo bem? Ele não tinha um pingo de sotaque. Jamais pensei que ele falasse sem sotaque. Isso nunca me ocorreu, nem uma vez. Mesmo que eu revivesse a noite passada, continuaria não me ocorrendo. A polícia tinha acabado de sair de minha casa quando o alarme soou. Não pareceu nada suspeito que eles voltassem. Supus incorretamente que estavam vigiando minha propriedade. Foi muito rápido. Abri a porta e a luz da entrada estava apagada, e senti o mau cheiro, como de cachorro molhado, na noite fria e escura. “Oi! Tem alguém aí?”, Marino grita, cutucando com força meu ombro. “Não toque em mim!”, digo num sobressalto, ofego e me afasto bruscamente dele, e a caminhonete dá uma guinada. O silêncio que se segue torna o ar pesado como água a centenas de metros de profundidade, e imagens
horríveis ressurgem em meus pensamentos mais sombrios. A esquecida cinza do cigarro está tão comprida que não consigo jogá-la no cinzeiro a tempo. Chamusco meu colo. “Você pode virar no Shopping Center Stonypoint, se quiser”, digo a Marino. “É mais rápido.”
* Assassino serial americano que matou dezessete homens entre 1978 e 1991. Em seu apartamento, foram descobertos restos do corpo de onze de suas vítimas. Condenado à prisão perpétua em Wisconsin (onde não há pena de morte), acabou sendo morto por outro prisioneiro. (N. T.)
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A imponente casa em estilo neoclássico da dra. Anna Zenner assoma iluminada na noite, na margem sul do rio James. A mansão, como os vizinhos a chamam, tem grandes colunas coríntias e é um exemplo local da crença de Thomas Jefferson e George Washington de que a arquitetura da nova nação deveria expressar a grandiosidade e a dignidade do mundo antigo. Anna é do mundo antigo, uma alemã de primeira. Creio que ela nasceu na Alemanha. Pensando nisso agora, não me lembro de ela ter me dito alguma vez onde nasceu. Luzes brancas de festa cintilam nas árvores, e as velas nas muitas janelas da casa de Anna brilham calorosamente, me fazendo lembrar dos Natais em Miami durante o final dos anos 1950, quando eu era criança. Na rara ocasião em que a leucemia de meu pai esteve em remissão, ele adorava nos levar para passear de carro por Coral Gables para olhar abobalhados casas que ele chamava de villas, como se de algum modo sua capacidade de nos mostrar lugares assim o tornasse parte daquele mundo. Lembro-me de fantasiar sobre as pessoas privilegiadas que viviam naquelas casas, com seus muros graciosos e Bentleys e festas de churrasco ou camarão sete dias por semana. Ninguém que vivia daquele jeito podia ser pobre ou doente, ou considerado lixo por pessoas que não gostavam de italianos ou de católicos, nem de imigrantes chamados Scarpetta. Esse é um nome incomum de uma linhagem sobre a qual realmente não sei muito. Os Scarpetta vivem neste país há duas gerações, pelo menos é o que afirmava meu pai, mas não sei quem são os outros Scarpetta. Nunca os conheci. Me disseram que eles vieram de Verona, que meus antepassados eram agricultores e trabalhadores de ferrovia. Estou certa de que só tenho uma irmã, mais nova do que eu, chamada Dorothy. Foi casada por pouco tempo com um brasileiro que tinha o dobro da idade dela e que supostamente é o pai de Lucy. Digo supostamente porque, no caso de Dorothy, só um exame de DNA me convenceria de com quem ela estava na cama na ocasião em que minha sobrinha foi concebida. O quarto casamento de minha irmã foi com um Farinelli, e depois disso Lucy parou de mudar de sobrenome. À exceção de minha mãe, sou a única Scarpetta que sobrou, que eu saiba. Marino pára diante dos formidáveis portões de ferro preto e seu braço comprido se estica para pressionar o botão do intercomunicador. Um zunido eletrônico e um clique alto, e os portões se abrem lentamente como as asas de um corvo. Não sei por que Anna trocou sua terra natal pela Virgínia e nunca se casou. Nunca perguntei a ela por que se estabeleceu como psiquiatra clínica nesta modesta cidade sulista, quando poderia ter ido para qualquer lugar. Não sei por que de repente estou me perguntando sobre a vida dela. Pensamentos são falhas esquisitas. Saio com cuidado da caminhonete de Marino e piso no pavimento de granito. É como se eu estivesse com problemas de software. Todos
os tipos de arquivo se abrem e se fecham espontaneamente, e mensagens de sistema estão piscando. Não tenho certeza da idade exata de Anna, só de que ela tem por volta de setenta e cinco anos. Pelo que sei, ela nunca me contou onde fez faculdade ou a escola de medicina. Trocamos informações e opiniões durante anos, mas raramente nossas vulnerabilidades e fatos íntimos. De repente fico muito incomodada por saber tão pouco sobre Anna, e me sinto envergonhada enquanto subo os degraus limpíssimos da frente de sua casa, um por vez, escorregando minha mão boa ao longo do frio corrimão de ferro. Ela abre a porta e seu rosto perspicaz se suaviza. Ela olha para meu gesso grosso e curvo, para a tipóia azul, depois encontra meus olhos. “Kay, estou tão contente de ver você”, diz, me saudando do modo como sempre faz. “Como vai, doutora Zenner?”, pergunta Marino. Seu entusiasmo é exagerado quando ele abandona seu jeito característico para mostrar como é popular e charmoso e como se importa pouco comigo. “Tem alguma coisa cheirando mmm-mmm bem. Está cozinhando para mim de novo?” “Hoje não, capitão.” Anna não tem nenhum interesse nele nem em sua fanfarronice. Ela beija minhas duas bochechas, tomando cuidado com meu ferimento e sem me apertar com força, mas sinto seu coração no leve toque de seus dedos. No vestíbulo, Marino põe minhas malas sobre um esplêndido tapete de seda, acima do qual um candelabro de cristal cintila como gelo se formando no espaço. “Você pode levar um pouco de sopa”, ela diz a Marino. “Tenho bastante. Muito saudável. Sem gordura.” “Se não tem gordura, é contra a minha religião. Vou cair fora.” Ele evita olhar para mim. “Onde está Lucy?” Anna me ajuda a tirar o casaco, e eu luto para fazer a manga passar pelo gesso, e fico consternada ao perceber que ainda estou usando o avental de laboratório. “Você não tem nenhum autógrafo nele”, ela diz, porque ninguém assinou meu gesso, nem vai assinar. Anna tem um senso de humor árido e elitista. Ela pode ser muito engraçada sem dar nem um sinal de sorrir, e quem não estiver atento e não pensar rápido perde completamente a piada. “Sua casa não é suficientemente boa, então ela está no Jefferson”, Marino comenta com ironia. Anna entra no closet do hall para pendurar meu casaco. Minha energia nervosa está se dissipando depressa. A depressão me aperta o peito com mais força e aumenta a pressão em volta de meu coração. Marino continua a fingir que não existo. “É claro que ela pode ficar aqui. Ela é sempre bem-vinda e eu gostaria muito de vê-la”, Anna me diz. Mesmo depois de décadas, seu sotaque alemão não se atenuou. Ela ainda fala em refeições nutritivas, adotando ângulos canhestros para transmitir um pensamento do cérebro para a língua e raramente usando contrações. Sempre acreditei que ela prefere o alemão e só fala inglês porque não tem escolha. Pela porta aberta vejo Marino sair. “Por que você se mudou para cá, Anna?” Agora estou falando sem seqüência lógica. “Para cá? Você quer dizer esta casa?” Ela me observa.
“Richmond. Por que Richmond?” “Isso é fácil. Amor.” Ela diz isso de forma prosaica, sem nenhum traço de sentimento a respeito do assunto. A temperatura diminuiu com o cair da noite, e as enormes botas de Marino trituram a camada de neve dura. “Que amor?”, pergunto a ela. “Uma pessoa que se revelou uma perda de tempo.” Marino chuta o estribo para soltar a neve antes de entrar em sua caminhonete pulsante, o motor roncando como as entranhas de um grande navio, a descarga lançada com força do escapamento. Ele sente que estou olhando e finge em grande estilo que não percebe ou não se importa enquanto fecha a porta e engata a primeira. A neve é expelida dos enormes pneus quando o carro começa a andar. Anna fecha a porta da frente enquanto permaneço diante dela, perdida num vórtice de pensamentos e sentimentos espiralantes. “Precisamos instalar você”, ela me diz, tocando em meu braço e acenando para que eu a siga. Recobro a consciência. “Ele está com raiva de mim.” “Se ele não estivesse com raiva de alguma coisa — ou sendo grosseiro —, eu pensaria que ele está doente.” “Ele está com raiva de mim porque eu quase fui assassinada.” Minha voz soa muito cansada. “Todo mundo está com raiva de mim.” “Você está esgotada.” Ela pára no corredor da entrada para ouvir o que tenho a dizer. “Será que eu devo me desculpar porque alguém tentou me matar?” Os protestos desmoronam. “Eu pedi isso? Fiz alguma coisa errada? Tudo bem, eu abri a porta. Não fui perfeita, mas estou aqui, não estou? Estou viva, não estou? Nós todos estamos vivos e bem, não estamos? Por que todo mundo está com raiva de mim?” “Nem todo mundo está”, replica Anna. “Por que a culpa é minha?” “Você acha que a culpa é sua?” Ela me estuda com uma expressão que só pode ser descrita como radiológica. Anna enxerga diretamente meus ossos. “É claro que não”, replico. “Sei que a culpa não é minha.” Ela tranca a porta, depois liga o alarme e me leva para a cozinha. Tento me lembrar da última vez que comi ou de que dia da semana é hoje. Então tenho um vislumbre. Sábado. Já perguntei isso várias vezes. Vinte horas se passaram desde que quase morri. A mesa está posta para dois, e um grande caldeirão de sopa cozinha em fogo brando no fogão. Sinto cheiro de pão assando e de repente fico nauseada e ao mesmo tempo morta de fome, e apesar de tudo isso registro um detalhe. Se Anna estava esperando Lucy, por que a mesa não foi posta para três? “Quando Lucy vai voltar para Miami?” Anna parece ler meus pensamentos enquanto levanta a tampa do caldeirão e mexe a sopa com uma colher comprida de madeira. “O que você quer beber? Scotch?” “Um forte.” Ela desarrolha uma garrafa de uísque puro malte Glenmorangie Sherry
Wood Finish e derrama sua preciosa essência rosada sobre o gelo em copos de cristal lapidado. “Não sei bem quando Lucy vai embora. Na verdade, não tenho a menor idéia.” Começo a preencher as lacunas para ela. “O ATF esteve envolvido em um flagrante em Miami que acabou mal, muito mal. Houve um tiroteio. Lucy...” “Sim, sim, Kay, eu conheço essa parte.” Anna me entrega meu drinque. Ela pode soar impaciente mesmo quando está muito calma. “Apareceu tudo no noticiário. E eu liguei para você. Lembra? Nós falamos sobre Lucy.” “Ah, está certo”, murmuro. Anna senta na cadeira em frente à minha, cotovelos na mesa, inclinandose para conversar. É uma mulher maravilhosamente saudável e intensa, alta e firme, uma Leni Riefenstahl esclarecida além de seu tempo e não intimidada pelos anos. O conjunto de ginástica azul que ela está usando dá a seus olhos o mesmo tom surpreendente de centáureas, e seu cabelo prateado está puxado para trás em um rabo-de-cavalo elegante preso por uma faixa de veludo preto. Não sei se ela foi submetida a uma cirurgia plástica ou qualquer outro procedimento cosmético, mas suspeito que a medicina moderna tem algo a ver com sua aparência. Anna poderia facilmente passar por uma mulher em seus cinqüenta anos. “Suponho que Lucy veio ficar com você enquanto o incidente é investigado”, ela comenta. “Posso imaginar a burocracia.” O flagrante acabou da pior maneira possível. Lucy matou dois membros de um cartel internacional de contrabando de armas, que agora sabemos estar ligado à família de criminosos Chandonne. Lucy inadvertidamente feriu Jo, uma agente da DEA que na época era sua namorada. Burocracia não é a palavra certa para isso. “Mas acho que você não conhece a parte sobre Jo”, digo a Anna. “A parceira dela na HIDTA.” “Eu não sei o que é HIDTA.” “Área de Alta Intensidade de Tráfico de Drogas. Uma força-tarefa constituída de diferentes órgãos policiais que trabalham com crimes violentos. ATF, DEA, FBI, polícia de Miami-Dade”, digo a ela. “Quando o flagrante desandou há duas semanas, Jo foi baleada na perna. Descobriu-se que a bala saiu da arma da própria Lucy.” Anna ouve, bebericando o scotch. “Então Lucy atirou em Jo acidentalmente, e depois, é claro, o que vem à tona é o relacionamento pessoal delas”, continuo. “Que foi muito tenso. Não sei o que está acontecendo com elas agora, para dizer a verdade. Mas Lucy está aqui. Imagino que ela vá ficar até o fim dos feriados, mas depois, quem sabe?” “Eu não sabia que ela e Janet tinham rompido”, observa Anna. “Faz muito tempo.” “Eu sinto muito.” Ela está sinceramente incomodada com as notícias. “Eu gostava muito de Janet.” Já faz bastante tempo que não se fala de Janet. Lucy nunca diz nada sobre ela. Percebo que sinto muita falta de Janet e ainda penso que ela exercia uma influência madura e estabilizadora sobre minha sobrinha. Para ser honesta,
realmente não gosto de Jo. Não sei ao certo por quê. Talvez, considero enquanto pego meu drinque, seja simplesmente porque ela não é Janet. “E Jo está em Richmond?”, Anna procura saber mais da história. “Ironicamente, ela é daqui, embora não seja por isso que ela e Lucy terminaram juntas. Elas se conheceram em Miami, no trabalho. Jo vai passar um tempo se recuperando em Richmond, com os pais, imagino. Não me pergunte se isso vai dar certo. Eles são cristãos fundamentalistas e não exatamente apóiam o estilo de vida da filha.” “Lucy nunca escolhe nada fácil”, diz Anna, e está certa. “Tiros e mais tiros. Por que ela tem essa ligação com matar pessoas? Graças a Deus ela não matou de novo.” O peso em meu peito fica mais forte. Meu sangue parece ter se transformado em metal pesado. “Que ligação é essa que ela tem com matar?”, Anna instiga. “O que aconteceu dessa vez me preocupa. Se for verdade o que ouvi na TV.” “Eu não liguei a TV. Não sei o que estão dizendo.” Dou um gole em meu uísque e penso de novo em cigarros. Já parei tantas vezes. “Ela quase o matou, o tal francês, Jean-Baptiste Chandonne. Ela estava com a arma apontada para ele, mas você a impediu.” Os olhos de Anna me perfuram o crânio, sondando segredos. “Me conte.” Descrevo a ela o que aconteceu. Lucy tinha ido à Faculdade de Medicina da Virgínia para levar Jo do hospital para casa, e quando elas chegaram a minha casa, depois da meia-noite, Chandonne e eu estávamos no gramado da frente. A Lucy que evoco em minha memória parece uma pessoa estranha e violenta que não conheço, seu rosto irreconhecivelmente distorcido pela fúria quando ela apontou a pistola para ele, o dedo no gatilho, e eu implorei a ela que não atirasse. Ela estava berrando com ele, xingando-o enquanto eu gritava não, não, Lucy, não! Chandonne estava tomado por um pânico indizível, cego e agitado, esfregando neve nos olhos queimados com produto químico, gemendo e implorando que alguém o ajudasse. Nesse momento, Anna interrompe minha história. “Ele estava falando francês?”, ela pergunta. A pergunta me pega de surpresa. Tento lembrar. “Acho que sim.” “Então você entende francês.” Paro de novo. “Bem, tive aulas de francês no colegial. Só sei que na hora me pareceu que ele estava gritando para que eu o ajudasse. Eu tinha a impressão de entender o que ele dizia.” “Você tentou ajudá-lo?” “Eu estava tentando salvar a vida dele, tentando impedir Lucy de matá-lo.” “Mas você fez isso por Lucy, não por ele. Você não estava realmente tentando salvar a vida dele. Estava tentando impedir Lucy de arruinar a vida dela.” Pensamentos colidem, anulando um ao outro. Não replico. “Ela queria matá-lo”, continua Anna. “Essa era claramente a intenção dela.” Faço que sim com a cabeça, olhando para o vazio, revivendo tudo. Lucy,
Lucy. Gritei repetidamente o nome dela, tentando desfazer o encantamento homicida que a dominava. Lucy. Rastejei para mais perto dela no gramado nevado. Abaixe a arma. Lucy, você não quer fazer isso. Por favor . Abaixe a arma. Chandonne rolava e se contorcia, emitindo os sons horríveis de um animal ferido, e Lucy estava de joelhos, em posição de combate, a arma tremendo nas duas mãos enquanto ela a apontava para a cabeça dele. Então pés e pernas nos cercaram. Agentes do ATF e da polícia em uniforme de combate escuro segurando rifles e pistolas formigavam em meu gramado. Nenhum deles sabia o que fazer enquanto eu implorava a minha sobrinha que não matasse Chandonne a sangue-frio. Já chega de matança, imploro a Lucy enquanto me ponho a centímetros dela, meu braço esquerdo fraturado e inútil. Não faça isso. Não faça isso, por favor. Nós amamos você. “Você tem certeza de que Lucy tinha intenção de matá-lo, mesmo ele estando indefeso?”, pergunta Anna outra vez. “Sim”, respondo. “Tenho certeza.” “Então devemos considerar que talvez não fosse necessário para ela matar aqueles homens em Miami?” “Aquilo foi totalmente diferente, Anna”, retruco. “E não posso culpar Lucy pelo modo como ela reagiu quando o viu na frente de minha casa — ele e eu no chão, na neve, a menos de trinta centímetros um do outro. Ela sabia muito bem por que ele tinha ido a minha casa, o que ele planejava para mim. Se você fosse Lucy, como se sentiria?” “Não consigo imaginar.” “Está certo”, replico. “Acho que ninguém pode imaginar algo desse tipo até acontecer. Sei que, se fosse eu que estivesse dirigindo e fosse Lucy que estivesse no jardim, e ele tivesse tentado matá-la, eu...” Paro, analisando a hipótese, sem ser realmente capaz de completar o pensamento. “Você o teria matado”, Anna conclui o que deve suspeitar que eu ia dizer. “Bem, eu poderia.” “Mesmo que ele não fosse uma ameaça? Ele não estava totalmente apavorado, cego e imprestável?” “É difícil saber se a outra pessoa está imprestável, Anna. O que eu podia saber lá na neve, no escuro, com um braço quebrado, aterrorizada?” “Ah. Mas você sabia o bastante para convencer Lucy a não matá-lo.” Ela se levanta e eu a observo enquanto ela tira uma concha do suporte de ferro para panelas suspenso no alto e enche grandes tigelas de louça de barro, o vapor subindo em nuvens aromáticas. Ela põe a sopa na mesa, me dando tempo para pensar sobre o que acabou de dizer. “Você já parou para pensar que sua vida parece uma de suas certidões de óbito mais complicadas?” Então ela diz “Devido a, devido a, devido a ”. Faz gestos com as mãos, conduzindo sua orquestra de ênfases. “Você se encontra agora numa determinada posição devido a isso e aquilo e devido a etcétera, etcétera, e tudo remonta ao ferimento original. A morte de seu pai.” Faço um esforço para me lembrar do que contei a ela sobre meu passado. “Você é quem é na vida porque se tornou uma estudiosa da morte muito
cedo”, ela continua. “A maior parte de sua infância você viveu com a morte de seu pai.” A sopa é de frango com verduras, e eu detecto folhas de louro e xerez. Não sei se consigo comer. Anna calça luvas e tira pãezinhos do forno. Serve pão quente em pratinhos com manteiga e mel. “Parece que seu carma é retornar à cena, por assim dizer, repetidamente”, ela analisa. “A cena da morte de seu pai, daquela perda original. Como se de algum modo você fosse desfazê-la. Mas você só faz repeti-la. O padrão mais antigo da natureza humana. Eu o vejo todos os dias.” “Isso não tem nada a ver com meu pai.” Pego minha colher. “Não tem nada a ver com minha infância, e, para falar a verdade, a última coisa que me preocupa agora é minha infância.” “Isso tem a ver com não sentir.” Ela puxa sua cadeira e senta outra vez. “Com aprender a não sentir porque sentir era muito doloroso.” A sopa está quente demais e ela a mexe preguiçosamente com uma pesada colher de prata gravada. “Quando você era criança, não podia viver com a destruição iminente em sua casa, o medo, o pesar, a raiva. Você se fechou.” “Às vezes a gente precisa fazer isso.” “Nunca é bom fazer isso.” Ela balança a cabeça. “Às vezes fazer isso é sobreviver”, discordo. “Fechamento é negação. Quando você nega o passado, vai repeti-lo. Você é uma prova viva disso. Sua vida tem sido uma perda após outra desde a perda original. Ironicamente, você transformou a perda em profissão, a médica que ouve os mortos, a médica que senta à cabeceira dos mortos. Seu divórcio de Tony. A morte de Mark. Depois o ano passado, o assassinato de Benton. Depois Lucy no tiroteio, e você quase a perdeu. E agora, finalmente, você. Perdas e mais perdas.” A dor da morte de Benton é horrivelmente viva. Temo que seja sempre viva, que eu nunca escape do oco, do eco de salas vazias em minha alma e da angústia em meu coração. Sinto-me de novo ultrajada toda vez que penso nos policiais em minha casa tocando inadvertidamente coisas que pertenceram a Benton, esfregando suas pinturas, procurando lama no belo tapete que ele me deu de presente de Natal. Ninguém sabendo. Ninguém se importando. “Um padrão como esse”, comenta Anna, “se não for detido, adquire uma energia irrefreável e suga tudo para dentro de seu buraco negro.” Digo a ela que minha vida não está num buraco negro. Não nego que há um padrão. Eu teria de ser impenetrável como lodo para não percebê-lo. Mas em um aspecto discordo inflexivelmente. “Me incomoda muito ouvir você sugerir que eu o levei até a porta de minha casa”, digo a ela, me referindo outra vez a Chandonne, que mal suporto chamar pelo nome. “Que de algum modo eu fiz tudo para levar um assassino a minha casa. Se é isso que estou ouvindo de você. Se é mesmo isso que você está dizendo.” “É o que estou perguntando.” Ela passa manteiga num pãozinho. “É o que estou perguntando a você, Kay”, ela repete sombriamente. “Anna, em nome de Deus, como você pode pensar que eu de algum modo provocaria meu próprio assassinato?”
“Porque você não seria a primeira nem a última pessoa a fazer algo assim. Não é consciente.” “Não eu. Nem subconsciente nem inconscientemente”, afirmo. “Há muita profecia auto-realizada aqui. Você. Depois Lucy. Ela quase se tornou aquilo que ela combate. Tome cuidado com quem você escolhe como inimigo, porque muito provavelmente é com ele que você se torna mais parecido”, Anna lança no ar a citação de Nietzsche. Ela serve palavras que me ouviu dizer no passado. “Eu não quis que ele fosse a minha casa”, repito devagar e monocordicamente. Continuo evitando dizer o nome de Chandonne porque não quero dar a ele o poder de ser uma pessoa real para mim. “Como ele soube onde você mora?”, Anna continua seu interrogatório. “Saiu no noticiário várias vezes ao longo dos anos, infelizmente”, conjeturo. “Não sei como ele sabia.” “O quê? Ele foi à biblioteca e procurou seu endereço em microfilmes? Essa criatura deformada de modo tão hediondo que raramente saía à luz do dia? Essa anomalia congênita com cara de cachorro, com praticamente cada centímetro do rosto e do corpo coberto com lanugem comprida, com cabelos claros de bebê? Ele foi à biblioteca pública?” Ela deixa o absurdo disso pairar sobre nós. “Não sei como ele sabia”, repito. “Onde ele estava escondido não é longe de minha casa.” Estou ficando transtornada. “Não me culpe. Ninguém tem o direito de me culpar pelo que ele fez. Por que você está me culpando?” “Nós criamos nossos mundos. Nós destruímos nossos mundos. É simples assim, Kay”, ela me responde. “Não posso acreditar que você pense nem por um minuto que eu queria que ele viesse atrás de mim. Logo eu.” Uma imagem de Kim Luong lampeja. Eu me lembro de ossos faciais fraturados se despedaçando sob meus dedos calçados com luvas de látex. Me lembro do pungente odor doce de sangue coagulado no depósito quente e sem ar para onde Chandonne arrastou o corpo moribundo de Kim, para poder liberar sua luxúria frenética, batendo, mordendo e se lambuzando com o sangue dela. “Aquelas mulheres também não provocaram isso”, digo com emoção. “Eu não conhecia essas mulheres”, diz Anna. “Não posso falar do que elas fizeram ou deixaram de fazer.” Uma imagem de Diane Bray lampeja, sua beleza arrogante violentada, destruída e exposta cruamente no colchão nu de seu quarto. Ela estava completamente irreconhecível quando ele acabou com ela, parecendo odiá-la mais completamente que a Kim Luong — mais completamente que às mulheres que acreditamos que ele tenha assassinado em Paris antes de vir para Richmond. Erguendo a voz, pergunto a Anna se Chandonne se reconheceu em Bray e isso excitou seu ódio por si próprio até o nível mais alto. Diane Bray era esperta e fria. Era cruel e abusava do poder com a mesma prontidão com que respirava. “Você tinha todos os bons motivos para odiá-la”, é a resposta de Anna. Isso me faz parar em minhas trilhas mentais. Não respondo de imediato. Tento me lembrar se alguma vez disse que odiava alguém ou, pior, se realmente
me senti culpada por isso. Odiar outra pessoa é errado. Nunca é certo. O ódio é um crime do espírito que leva a crimes da carne. É o ódio que leva tantos de meus pacientes a minha porta. Digo a Anna que não odiava Diane Bray, embora ela achasse que era sua missão me subjugar e quase tenha conseguido minha demissão. Bray era patologicamente ciumenta e ambiciosa. Mas não, digo a Anna, eu não odiava Diane Bray. Ela era má, concluo. Mas não merecia o que ele fez com ela. E certamente ela não provocou aquilo. “Você acha que não?” Anna questiona tudo. “Você não acha que ele fez com ela, simbolicamente, o que ela estava fazendo com você? Obsessão. Meterse à força em sua vida quando você estava vulnerável. Atacar, degradar, destruir — uma subjugação que a excitava, talvez até sexualmente. O que é que você me disse tantas vezes? As pessoas morrem do modo como vivem.” “Muitas delas.” “E ela?” “Simbolicamente, como você diz?”, replico. “Talvez.” “E você, Kay? Você quase morreu do modo como vive?” “Eu não morri, Anna.” “Mas quase morreu”, ela repete. “E antes de ele ir até sua porta, você tinha quase desistido. Você quase parou de viver quando Benton morreu.” Meus olhos lacrimejam. “O que você acha que aconteceria com você se Diane Bray não tivesse morrido?”, Anna pergunta então. Bray dirigia o Departamento de Polícia de Richmond e enganava as pessoas que importavam. Em pouquíssimo tempo, construiu um nome na Virgínia, e ironicamente seu narcisismo, sua sede de poder e reconhecimento, ao que parece, talvez tenham sido o que atraiu Chandonne para ela. Pergunto-me se ele primeiro a perseguiu. Pergunto-me se ele me perseguiu, e suponho que a resposta às duas perguntas é que provavelmente ele fez isso. “Você acha que ainda seria legista-chefe se Diane Bray estivesse viva?” O olhar de Anna é inabalável. “Eu não a deixaria ganhar.” Provo minha sopa e meu estômago se agita. “Não importa quão diabólica ela fosse, eu não teria permitido que isso acontecesse. Sou eu que decido minha vida. Ela é minha para eu fazer dela o que quiser.” “Talvez você esteja contente por ela ter morrido”, diz Anna. “O mundo está melhor sem ela.” Empurro o jogo americano e tudo que está nele para bem longe de mim. “A verdade é essa. O mundo fica melhor sem pessoas como ela. O mundo seria melhor sem ele.” “Melhor sem Chandonne?” Concordo com um movimento de cabeça. “Então talvez você desejasse que Lucy o matasse, afinal?”, ela sugere calmamente, e Anna sabe como exigir a verdade sem ser agressiva ou sentenciosa. “Talvez você acionasse a chave, como se diz?” “Não.” Balanço a cabeça. “Não, eu não aciono a chave para ninguém. Não consigo comer. Sinto muito ter lhe dado tanto trabalho. Espero não estar ficando doente.”
“Já falamos o suficiente por ora.” Anna de repente é a mãe decidindo a hora de dormir. “Amanhã é domingo, um dia bom para ficar em casa, se aquietar e descansar. Vou zerar minha agenda, cancelar todos os compromissos para segunda-feira. E depois vou cancelar a terça e a quarta e o resto da semana, se for preciso.” Tento objetar, mas ela não ouve. “O bom de ter a minha idade é que posso fazer o que quiser”, ela acrescenta. “Estou de plantão para as emergências. Mas nada além disso. E neste momento você é minha maior emergência, Kay.” “Eu não sou uma emergência.” Levanto-me da mesa. Anna me ajuda com a bagagem e me conduz por um longo corredor que leva à ala oeste de sua majestosa casa. O quarto de hóspedes onde devo ficar por um período indeterminado é dominado por uma grande cama de madeira de teixo que, como a maior parte da mobília da casa, é Biedermeier dourado desbotado. A decoração é contida, com linhas retas e simples, mas acolchoados e travesseiros e pesadas cortinas que caem em cascatas de seda champanhe sobre o piso de madeira de lei indicam sua verdadeira natureza. A motivação de Anna na vida é o conforto dos outros, curar e banir o medo e celebrar a beleza pura. “Do que mais você precisa?” Ela pendura minhas roupas. Ajudo a guardar outros itens nas gavetas da cômoda e me dou conta de que estou tremendo de novo. “Você precisa de alguma coisa para dormir?” Ela enfileira meus sapatos no chão do closet. Tomar um Ativan ou algum outro sedativo é uma proposta tentadora à qual resisto. “Sempre tive medo de tornar isso um hábito”, respondo vagamente. “Você pode ver como eu sou com o cigarro. Não sou confiável.” Anna olha para mim. “É muito importante que você consiga dormir, Kay. Não há amigo melhor para a depressão.” Não tenho certeza do que ela está dizendo, mas sei o que tem em mente. Eu estou deprimida. Provavelmente vou continuar deprimida, e a privação de sono torna tudo muito pior. Em toda a minha vida, a insônia me atacou como artrite, e quando me tornei médica tive de resistir ao hábito fácil de abusar de minha própria loja de doces. As drogas controladas sempre estiveram disponíveis. E sempre fiquei longe delas. Anna me deixa e eu sento na cama com as luzes apagadas, olhando no escuro, meio acreditando que quando a manhã chegar descobrirei que o que aconteceu é apenas mais um de meus pesadelos, outro horror que rastejou de minhas camadas mais profundas quando eu não estava exatamente consciente. Minha voz racional sonda meu interior como uma lanterna, mas não dispersa nada. Não consigo iluminar nenhum significado para o fato de eu quase ter sido mutilada e morta, nem para como isso afeta o resto de minha vida. Não consigo senti-lo. Não consigo entendê-lo. Meu Deus, me ajude. Me deito de lado e fecho os olhos. Com Deus me deito, minha mãe costumava rezar comigo, mas eu sempre pensava que as palavras eram realmente mais para meu pai em seu leito de doente no corredor. Às vezes, quando minha mãe saía de meu quarto, eu inseria pronomes masculinos nos versos. Se ele morrer antes de acordar, rezo ao
Senhor que leve sua alma, e chorava até dormir.
3
Sou acordada na manhã seguinte por vozes na casa e tenho a sensação perturbadora de que o telefone tocou a noite toda. Não sei ao certo se isso foi um sonho. Por um momento pavoroso não tenho idéia de onde estou, então vou aos poucos me dando conta, numa onda nauseante e assustadora. Levanto-me apoiando-me nos travesseiros e fico parada por um momento. Posso perceber através das cortinas fechadas que o sol está outra vez ausente, não oferecendo nada além de cinza. Visto um robe felpudo que está pendurado atrás da porta do banheiro e calço um par de meias antes de me aventurar a sair para ver quem mais está na casa. Espero que o visitante seja Lucy, e é. Ela e Anna estão na cozinha. Pequenos flocos de neve caem além das amplas janelas que dão para o quintal e o rio azul-acinzentado. Árvores nuas delineadas sombriamente em oposição ao dia movem-se devagar ao vento, e fumaça de lenha sobe da casa do vizinho mais próximo. Lucy está vestida com um agasalho de ginástica desbotado que restou de quando ela fez os cursos de computação e robótica no MIT. Aparentemente penteou seu cabelo curto castanho-avermelhado com os dedos, e parece incomumente soturna, com um olhar injetado e vítreo que associo a excesso de bebida na noite passada. “Você acabou de chegar?”, digo, abraçando-a. “Na verdade, ontem à noite”, ela responde, me apertando com força. “Não pude resistir. Pensei em vir para cá e nós fazermos um baile do pijama. Mas você já tinha entregado os pontos. A culpa é minha, por ter chegado tão tarde.” “Ah, não.” Sinto um buraco por dentro. “Você devia ter me acordado. Por que não acordou?” “Sem chance. Como está o braço?” “Não dói muito.” Isso não é inteiramente verdade. “Você saiu do Jefferson?” “Não, ainda estou lá.” A expressão de Lucy é ilegível. Ela cai no chão e tira a calça do agasalho, deixando à mostra uma bermuda de ginástica brilhante de spandex. “Temo que sua sobrinha tenha sido uma má influência”, diz Anna. “Ela trouxe uma ótima garrafa de Veuve Clicquot e nós ficamos acordadas até tarde. Eu não ia deixá-la voltar para o centro.” Sinto uma pontada de dor, ou talvez seja ciúme. “Champanhe? Estamos celebrando alguma coisa?”, pergunto. Anna responde encolhendo levemente os ombros. Está preocupada. Sinto que carrega muitos pensamentos pesados que não quer expor na minha frente, e imagino se o telefone realmente tocou ontem à noite. Lucy abre o zíper de sua jaqueta, revelando mais náilon azul e preto brilhante que adere como pintura a seu corpo forte e atlético.
“Sim. Celebrando”, diz Lucy, com amargura na voz. “O ATF me pôs em licença administrativa.” Não posso acreditar que ouvi direito. Licença administrativa é o mesmo que suspensão. É o primeiro passo para a demissão. Olho para Anna em busca de algum sinal de que ela já sabia disso, mas ela parece tão surpresa quanto eu. “Eles me puseram na praia.” A gíria do ATF para suspensão. “Vou receber uma carta na semana que vem, por aí, que vai citar todas as minhas transgressões.” Lucy simula um ar blasé, mas conheço-a bem demais para ser enganada. A raiva é praticamente a única coisa que vi saindo dela nos últimos meses e anos, e está lá agora, fundida debaixo de suas muitas camadas complexas. “Eles vão me dar todas as razões pelas quais devo ser demitida, e eu posso apelar. A menos que eu decida mandar tudo à merda e me demita. E eu posso fazer isso. Não preciso deles.” “Por quê? Por que aconteceu isso? Não foi por causa dele.” Refiro-me a Chandonne. Com raras exceções, quando um agente esteve em um tiroteio ou algum outro incidente crítico, a rotina é envolvê-lo imediatamente em apoio dos colegas e atribuir a ele uma tarefa menos estressante, como uma investigação de incêndio criminoso, em vez do perigoso trabalho secreto que Lucy estava fazendo em Miami. Se a pessoa é emocionalmente incapaz de lidar com a situação, pode-se até conceder a ela uma licença por trauma. Mas licença administrativa é outra história. É punição, pura e simples. Lucy ergue os olhos para mim de seu lugar no chão, com as pernas estiradas e as mãos plantadas atrás das costas. “É a velha história do se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, ela retruca. “Se eu tivesse atirado nele, teria de pagar. Não atirei e tenho de pagar.” “Você esteve num tiroteio em Miami, e logo depois você vem para Richmond e quase atira em outra pessoa.” Anna declara a verdade. Não importa se a outra pessoa é um assassino serial que invadiu minha casa. Lucy tem um histórico de recorrer à força que antecede mesmo o incidente em Miami. Seu passado problemático pesa fortemente na cozinha de Anna como uma frente de baixa pressão. “Sou a primeira a admitir isso”, retruca Lucy. “Todos queríamos acabar com ele. Você não acha que Marino queria?” Seu olhar encontra o meu. “Você acha que todos os policiais, todos os agentes que apareceram em sua casa não queriam puxar o gatilho? Eles acham que eu sou uma espécie de mercenária, uma psicótica que se excita matando pessoas. Pelo menos é isso que estão sugerindo.” “Você precisa de uma pausa”, diz Anna com franqueza. “Talvez seja isso e nada mais.” “Não é só isso. Ora, se um dos meus colegas tivesse feito o que fiz em Miami, seria um herói. Se um deles quase matasse Chandonne, os executivos em Washington estariam aplaudindo sua contenção, não o acusando por quase fazer algo. Como se pode punir alguém por quase fazer algo? Na verdade, como se pode jamais provar que alguém quase fez algo?”
“Bem, eles vão ter de provar”, minha porção advogada e investigadora diz a ela. Ao mesmo tempo me lembro de que Chandonne quase fez algo comigo. Mas ele não fez realmente, não importa qual fosse sua intenção, e sua defesa legal final vai extrair muito desse fato. “Eles podem fazer o que quiserem”, diz Lucy, enquanto a mágoa e a raiva crescem. “Podem me demitir. Ou me levar de volta e estacionar meu traseiro em uma escrivaninha numa salinha sem janela em algum lugar de Dakota do Sul ou do Alasca. Ou me enterrar em algum departamentozinho, como o de audiovisual.” “Kay, você ainda não tomou café.” Anna tenta dissipar a tensão crescente. “Então talvez esse seja o meu problema. Talvez seja por isso que nada faz sentido esta manhã.” Vou para a cafeteira perto da pia. “Alguém mais quer?” Não há outros interessados. Encho uma xícara enquanto Lucy se curva em alongamentos extremos, e é sempre assombroso vê-la se mover, líquida e maleável, seus músculos chamando atenção sem deliberação ou estardalhaço. Tendo começado a vida gorducha e lenta, ela passou anos se construindo como uma máquina que responde do modo que ela exige, muito semelhante ao helicóptero que ela pilota. Talvez seja seu sangue brasileiro que acrescenta o fogo escuro a sua beleza, mas Lucy é eletrizante. As pessoas fixam os olhos nela em todos os lugares aonde ela vai, e sua reação é, no máximo, dar de ombros. “Não sei como você pode sair para correr num tempo como este”, Anna diz a ela. “Eu gosto da dor.” Lucy bate em seu bolso traseiro, onde está uma pistola. “Nós precisamos falar mais sobre isso, imaginar o que você vai fazer.” A cafeína desfibrila meu lento coração e com um tranco me devolve a clareza de raciocínio. “Depois de correr, vou me exercitar na academia”, diz Lucy. “Vou demorar um pouco.” “Dor e mais dor”, Anna reflete. Quando olho para minha sobrinha, só consigo pensar em como é extraordinária e em como a vida foi injusta com ela. Lucy nunca conheceu seu pai biológico, e então Benton apareceu e foi o pai que ela nunca teve, e ela também o perdeu. Sua mãe é uma mulher autocentrada, que compete demais com Lucy para conseguir amá-la, se é que minha irmã, Dorothy, é capaz de amar alguém, e realmente não acredito que seja. Lucy é possivelmente a pessoa mais inteligente e complexa que conheço. Isso não lhe valeu muitos fãs. Ela sempre foi irreprimível, e ao vê-la sair voando da cozinha como um corredor olímpico, armada e perigosa, me lembro de quando ela começou o primário, aos quatro anos e meio de idade, e foi reprovada por mau comportamento. “Como é que alguém pode ser reprovado por mau comportamento?”, perguntei a Dorothy quando ela me telefonou furiosa para se queixar da terrível dificuldade de ser mãe de Lucy. “Ela fala o tempo todo, interrompe os outros alunos e está sempre levantando a mão para fazer perguntas!”, Dorothy despejou ao telefone. “Você sabe o que a professora escreveu no relatório dela? Aqui! Deixe eu ler para você! Lucy não trabalha nem brinca bem com os outros. Ela é exibida e sabe-tudo
e está constantemente desmontando coisas, como o apontador de lápis e maçanetas de porta.” Lucy é gay. Isso é provavelmente o mais injusto de tudo, porque é algo que ela não pode superar nem controlar. A homossexualidade é injusta porque cria injustiça. Por isso fiquei infeliz quando descobri essa parte da vida de minha sobrinha. Não quero, desesperadamente, que ela sofra. Também me obrigo a admitir que consegui ignorar o óbvio até agora. O ATF não vai ser generoso nem magnânimo, e Lucy provavelmente sabe disso há algum tempo. A administração em Washington não vai olhar para tudo o que ela realizou, vai focalizá-la com as lentes distorcidas do preconceito e do ciúme. “Vai ser uma caça às bruxas”, digo depois de Lucy ter saído. Anna quebra ovos em uma tigela. “Eles querem que ela saia, Anna.” Ela joga as cascas na pia, abre a geladeira, tira uma caixa de leite e olha a data de validade. “Há quem pense que ela é uma heroína”, ela diz. “Os órgãos policiais toleram as mulheres. Não as celebram nem punem aquelas que se tornam heroínas. Esse é o segredinho sujo sobre o qual ninguém quer falar”, digo. Anna bate vigorosamente os ovos com um garfo. “É uma história igual à nossa”, continuo. “Fizemos faculdade de medicina em uma época em que tínhamos de nos desculpar por pegar os lugares dos homens. Em alguns casos, éramos evitadas, sabotadas. Na turma do primeiro ano de minha faculdade havia três outras mulheres. Quantas havia na sua?” “Em Viena era diferente.” “Viena?” Meus pensamentos evaporam. “Onde eu me formei”, ela me informa. “Ah.” Sinto-me de novo culpada quando fico sabendo de mais um detalhe sobre minha amiga. “Quando cheguei aqui, tudo que você está dizendo sobre a situação das mulheres hoje era exatamente igual.” A boca de Anna forma uma linha dura enquanto ela põe os ovos batidos em uma frigideira de ferro fundido. “Eu me lembro de como era quando me mudei para a Virgínia. De como fui tratada.” “Pode acreditar que sei tudo sobre isso.” “Eu estava trinta anos a sua frente, Kay. Você realmente não sabe tudo sobre isso.” Os ovos cozinham e borbulham. Eu me apóio no balcão, tomando café preto, desejando ter estado acordada quando Lucy chegou na noite passada, padecendo porque não falei com ela. Tive de descobrir as novidades dela assim, quase como um a propósito. “Ela conversou com você?”, pergunto a Anna. “Sobre o que acabou de nos contar?” Ela dobra os ovos repetidas vezes. “Pensando nisso agora, acho que ela apareceu com champanhe porque queria contar a você. Um efeito muito inadequado, considerando as novidades.” Ela tira muffins ingleses multigrão da torradeira. “É fácil supor que os psiquiatras têm essas conversas aprofundadas com todo mundo, quando na verdade as pessoas raramente me contam seus
verdadeiros sentimentos, mesmo quando me pagam por hora.” Ela leva nossos pratos para a mesa. “Basicamente, as pessoas me contam o que pensam. Esse é o problema. As pessoas pensam demais.” “Eles não vão fazer estardalhaço.” Estou de novo preocupada com o ATF quando Anna e eu sentamos uma de frente para a outra. “Vão atacar de forma dissimulada como o FBI. E na verdade o FBI a dispensou pela mesma razão. Ela era a estrela em ascensão deles, um gênio da computação, piloto de helicóptero, a primeira mulher na Equipe de Resgate de Reféns.” Percorro o currículo de Lucy enquanto a expressão de Anna fica cada vez mais cética. Nós duas sabemos que é desnecessário que eu recite tudo isso. Ela conhece Lucy desde quando ela era criança. “Então a carta gay foi jogada.” Não consigo parar. “Bem, ela saiu do FBI para o ATF, e lá vamos nós outra vez. A história se repete o tempo todo. Por que você está me olhando assim?” “Porque você está se consumindo com os problemas de Lucy, quando os seus são maiores que o Mont Blanc.” Minha atenção vagueia para fora da janela. Um gaio azul bebe água no bebedouro de pássaros, as penas eriçadas, sementes de girassol caindo e salpicando como grãos de chumbo a terra nevada. Dedos pálidos de luz do sol sondam a manhã nublada. Giro nervosamente minha xícara de café em pequenos círculos sobre a mesa. Meu cotovelo lateja lenta e profundamente enquanto comemos. Sejam quais forem meus problemas, resisto a falar sobre eles, como se verbalizá-los de algum modo lhes desse vida — como se eles já não a tivessem. Anna não me pressiona. Ficamos em silêncio. Os talheres tinem ao bater nos pratos e a neve cai mais grossa, congelando arbustos e árvores e pairando como uma névoa sobre o rio. Volto a meu quarto e tomo um demorado banho quente, meu gesso apoiado na banheira. Estou me vestindo com dificuldade, me dando conta de que provavelmente nunca conseguirei dar nó em cadarços só com uma mão, quando a campainha toca. Pouco depois, Anna bate na porta e pergunta se estou vestida. Pensamentos florescem sombrios e revolvem-se como tempestades. Não estou esperando companhia. “Quem é?”, grito. “Buford Righter”, ela diz.
4
Pelas costas, o promotor estadual é chamado de muitas coisas: Easy Righter (ele é fraco), Righter Wrong (indeciso), Fighter Righter (tudo menos), Booford (apavorado com a própria sombra).* Sempre alinhado, sempre apropriado, Righter é sempre o cavalheiro virginiano que foi treinado para ser, na zona rural do condado da Carolina de suas raízes. Ninguém o ama. Ninguém o odeia. Ele não é temido nem respeitado. Righter não tem bala. Não consigo me lembrar de jamais tê-lo visto emocionado, por mais cruel ou triste que fosse o caso. Pior, ele é melindroso quando se trata de detalhes que levo ao fórum, preferindo se concentrar em aspectos da legislação, e não na assombrosa desordem humana deixada pelas violações da lei. O resultado de sua evitação do necrotério é que ele não é versado em ciência e medicina forense como deveria ser. De fato, é o único promotor público que conheço que não parece se importar em estipular a causa da morte. Em outras palavras, ele permite que os registros escritos falem pelo legista no tribunal. Isso é uma paródia. Para mim, constitui negligência. Quando o legista não está no tribunal, em certo sentido, o corpo também não está, e os jurados não visualizam a vítima nem o que ela passou durante o processo de morte violenta. Termos clínicos em protocolos simplesmente não evocam o terror do sofrimento, e por essa razão é normalmente a defesa, e não a promotoria, que quer estipular a causa da morte. “Buford, como vai?” Estendo a mão e ele olha para meu gesso e minha tipóia, depois para meus cadarços desamarrados e para a fralda de minha camisa, pendurada. Ele nunca me viu usando nada menos que um tailleur ou terninho e sempre em um cenário adequado a minha posição profissional, e suas sobrancelhas se franzem numa expressão que supostamente evidencia compaixão e compreensão amáveis, a humildade e o cuidado daqueles escolhidos por Deus para governar as criaturas menores. Esse tipo é abundante entre as primeiras famílias da Virgínia, pessoas empoeiradas e privilegiadas que refinaram a habilidade de disfarçar seu elitismo e sua arrogância embaixo de uma pesada aura de fardo, como se para eles fosse dificílimo serem quem são. “Eu é que pergunto: como vai você?”, ele diz, voltando a sentar-se na bela sala de estar oval de Anna, com teto abobadado e vista para o rio. “Realmente não sei como responder, Buford.” Escolho uma cadeira de balanço. “Toda vez que alguém pergunta, minha mente é reinicializada.” Anna deve ter acabado de acender a lareira e desapareceu, e tenho a sensação incômoda de que sua ausência representa mais do que a cortesia de não se intrometer. “Não fico nem um pouco surpreso. Não sei nem como você é capaz de funcionar depois do que passou.” Righter fala com um sotaque virginiano arrastado e xaroposo. “Claro que peço desculpas por chegar assim sem pedir licença, Kay, mas aconteceu uma coisa, uma coisa inesperada. Bela residência,
não é?” Ele continua a inspecionar o ambiente. “Ela construiu ou já existia?” Não sei nem quero saber. “Vocês são muito próximas, eu deduzo”, ele acrescenta. Não sei ao certo se ele está só de lero-lero ou jogando verde. “Ela tem sido uma boa amiga”, replico. “Sei que ela acha você o máximo. O que quer dizer”, ele segue, “que você não poderia estar sob melhores cuidados neste momento, na minha opinião.” Fico ofendida por ele estar sugerindo que estou sob os cuidados de alguém, como se eu fosse uma paciente numa enfermaria, e digo isso. “Oh, entendo.” Ele continua sua varredura das pinturas a óleo nas paredes rosa-claras, dos objetos decorativos de vidro, das esculturas e da mobília européia. “Então vocês não têm uma relação profissional? Nunca tiveram?” “Não literalmente”, respondo irritada. “Nunca tive uma consulta com ela.” “Ela alguma vez receitou medicamentos para você?”, ele continua, afável. “Não que eu me lembre.” “Puxa, nem acredito que é quase Natal.” Righter suspira, sua atenção vagando entre mim e o rio. Para usar um termo de Lucy, ele está ridículo em suas calças bávaras de lã verde-escura presas por botão e enfiadas em botas de borracha forradas de lã e sola grande. Usa também um suéter de lã xadrez Burberry abotoado até o queixo, como se estivesse em dúvida sobre se hoje vai escalar uma montanha ou jogar golfe na Escócia. “Bem”, ele diz, “vou lhe contar por que estou aqui. Marino me ligou há umas duas horas. Houve um desenvolvimento imprevisto no caso Chandonne.” A punhalada da traição é instantânea. Marino não me disse nada. Ele nem se preocupou em saber como estou esta manhã. “Vou resumir para você da melhor maneira possível.” Righter cruza as pernas e pousa gravemente as mãos no colo, uma fina aliança de casamento e um anel de formatura da Universidade da Virgínia cintilando na luz artificial. “Kay, estou certo de que você sabe que a notícia sobre o que aconteceu em sua casa e a subseqüente apreensão de Chandonne apareceu em todos os noticiários. E estou dizendo em todos mesmo. Tenho certeza de que você acompanhou isso e pode apreciar a magnitude do que vou lhe dizer.” O medo é uma emoção fascinante. Estudei-o infindavelmente e costumo dizer às pessoas que o melhor exemplo de como ele funciona é a reação de outro motorista quando seu carro surge na frente dele e quase bate. Em segundos o pânico se transforma em raiva e a outra pessoa enfia a mão na buzina, faz gestos obscenos ou, hoje em dia, atira em você. Faço a progressão completa, o medo estridente transformando-se em fúria. “Não acompanhei o noticiário deliberadamente, e com certeza não vou apreciar a magnitude do que você vai me dizer”, replico. “Nunca aprecio ter minha privacidade violada.” “Os assassinatos de Kim Luong e Diane Bray chamaram muita atenção, mas nada comparável a isto — a tentativa de assassinato contra você”, ele continua. “Suponho, então, que você não viu o Washington Post de hoje.” Apenas olho para ele, fervilhando.
“Foto de primeira página de Chandonne na maca sendo carregado para o pronto-socorro, seus ombros peludos saindo dos lençóis como uma espécie de cachorro de pêlo comprido. Claro, o rosto dele estava coberto por ataduras, mas certamente se podia perceber como ele é grotesco. E os tablóides. Você pode imaginar. Lobisomem em Richmond, A Bela e a Fera, esse tipo de coisa.” O desprezo se insinua na voz dele, como se o sensacionalismo fosse obsceno, e sou sujeitada a uma imagem indesejável dele fazendo amor com a esposa. Posso visualizá-lo trepando de meias. Suspeito que ele considera o sexo uma indignidade, o juiz de biologia primitivo anulando seu eu superior. Ouvi rumores. No banheiro dos homens, ele não usa mictórios nem privadas na frente de ninguém. Lava as mãos compulsivamente. Tudo isso está zumbindo em minha mente enquanto ele continua sentado de modo tão apropriado e revela a degradante exposição pública que Chandonne me causou. “Você sabe se apareceram fotos de minha casa em algum lugar?”, tenho de perguntar. “Havia fotógrafos quando eu saí de casa na noite passada.” “Bem, eu sei que alguns helicópteros sobrevoaram a casa esta manhã. Alguém me contou”, ele responde, fazendo-me suspeitar no mesmo instante que voltou a minha casa e testemunhou isso ele próprio. “Tirando fotografias aéreas.” Ele olha fixo para a neve caindo. “Imagino que o clima pôs um fim nisso. A guarita de segurança tem impedido a entrada de poucos carros. A imprensa, os curiosos. De uma forma imprevista, é ótimo você estar com a doutora Zenner. É engraçado como as coisas se resolvem.” Ele pára, olhando outra vez para o rio. Um bando de gansos selvagens circula, como se esperando instruções da torre. “Normalmente, eu recomendaria que você não voltasse para sua casa até depois do julgamento...” “Até depois do julgamento?”, interrompo. “Se o julgamento fosse aqui”, ele passa à revelação seguinte, que eu automaticamente suponho seja uma referência a uma mudança de foro. “O que você está dizendo é que o julgamento provavelmente será transferido para fora de Richmond”, interrompo. “E o que você entende por normalmente ?” “Era o que eu ia lhe dizer. Marino recebeu um telefonema do gabinete do promotor distrital de Manhattan.” “Hoje de manhã? É esse o novo desenvolvimento?” Estou desconcertada. “O que Nova York tem a ver com isso?” “Foi há umas duas horas”, ele prossegue. “A chefe da divisão de crimes sexuais, uma mulher chamada Jaime Berger — um nome esquisito, soletra-se JA-I-M-E, mas pronuncia-se Jamie. Talvez você tenha ouvido falar dela. De fato eu não me surpreenderia se vocês se conhecessem.” “Nunca fomos apresentadas”, replico. “Mas ouvi falar nela.” “Sexta-feira, 15 de dezembro, há dois anos”, continua Righter, “o corpo de uma mulher negra de vinte e oito anos foi encontrado em Nova York, num apartamento na região da Segunda Avenida com a rua 77, Upper East Side. Aparentemente uma mulher que era meteorologista na TV, é..., apresentava a previsão do tempo, na CNBC. Não sei se você soube do caso.”
Contra minha vontade, começo a fazer ligações. “Quando ela não apareceu no estúdio naquela manhã bem cedo, a manhã do dia 15, e não atendeu o telefone, alguém foi procurá-la. A vítima” — Righter puxa uma minúscula agenda do bolso de trás da calça e folheia as páginas —, “o nome é Susan Pless. Bem, o corpo dela está em seu quarto, sobre o tapete ao lado da cama. Roupas rasgadas da cintura para cima, rosto e cabeça tão machucados que parece que ela esteve num desastre aéreo.” Ele olha para mim. “E isso é uma citação, a parte do desastre de avião — supostamente foi essa a descrição que Berger deu a Marino. Qual era a palavra que você costumava usar? Lembra do caso em que os adolescentes bêbados estavam correndo numa picape e um deles decidiu pendurar metade do corpo fora da janela e teve a infelicidade de encontrar uma árvore?” “Atolamento”, respondo em voz baixa enquanto absorvo o que ele está dizendo. “Rosto afundado devido a um forte impacto, como o que se pode encontrar em desastres aéreos ou em casos nos quais as pessoas pularam ou caíram de lugares altos e bateram primeiro o rosto. Há dois anos?” Meus pensamentos rodopiam. “Como isso é possível?” “Não vou contar os detalhes sanguinários.” Ele folheia mais páginas de sua agenda. “Mas havia marcas de mordida, inclusive nas mãos e nos pés, e muitos cabelos claros compridos e esquisitos aderidos ao sangue, que à primeira vista se presumiu serem pêlos de animal. Talvez um gato angorá de pêlos longos ou algo do tipo.” Ele levanta os olhos para mim. “Você deve estar captando o sentido.” O tempo todo supusemos que a viagem de Chandonne a Richmond era a primeira que ele fazia aos Estados Unidos. Não temos nenhuma razão lógica para essa suposição além do fato de o imaginarmos como uma espécie de Quasímodo que passou a vida escondido no porão da casa de sua poderosa família em Paris. Também supusemos que veio de navio de Antuérpia a Richmond ao mesmo tempo que o cadáver de seu irmão seguia em nossa direção. Será que erramos nisso também? Digo tudo isso a Righter. “Você sabe o que a Interpol conjeturou, de qualquer forma”, ele comenta. “Que ele estava a bordo do Sirius usando um nome falso”, recordo, “um homem chamado Pascal, que foi imediatamente levado ao aeroporto quando o navio chegou ao porto aqui em Richmond no começo de dezembro. Supostamente uma emergência familiar exigiu que ele voasse de volta para a Europa.” Repito a informação que recebi de Jay Talley quando me encontrava na Interpol de Lyon na semana passada. “Mas ninguém o viu realmente a bordo do avião, portanto se supôs que Pascal era na verdade Chandonne e que ele não voou para lugar nenhum, ficou aqui e começou a matar. Mas se esse cara entra e sai dos Estados Unidos com tanta facilidade, é impossível saber quanto tempo ele ficou no país, quando ele chegou aqui ou qualquer outra coisa. Chega de teorias.” “Bem, suponho que muitas delas podem acabar sendo revistas antes de tudo acabar. Sem pretender desrespeitar a Interpol ou qualquer outra pessoa.” Righter cruza de novo as pernas e parece estranhamente satisfeito. “Ele foi localizado? O tal Pascal?” Righter não sabe, mas especula que, seja quem for o verdadeiro Pascal — supondo que ele exista —, provavelmente é apenas mais uma maçã podre
envolvida com o cartel do crime da família Chandonne. “Mais um cara com nome falso, possivelmente até um sócio do cara morto que estava no contêiner”, Righter especula. “O irmão, imagino. Thomas Chandonne, que temos certeza de que estava envolvido nos negócios da família.” “Suponho que Berger ouviu a notícia da detenção de Chandonne, soube de seus assassinatos e nos telefonou”, digo. “Considerando o modus operandi, isso está correto. Ela diz que o caso de Susan Pless sempre a perseguiu. Berger está com uma pressa infernal para comparar o DNA. Aparentemente conseguiu sêmen e eles obtiveram um perfil com base nele, já faz dois anos.” “Então no caso de Susan o sêmen foi analisado”, pondero, um tanto surpresa, porque laboratórios com excesso de trabalho e poucos recursos financeiros não analisam provas de DNA até que haja um suspeito para comparar — especialmente quando não há um banco de dados extenso a ser verificado na esperança de uma coincidência. Em 1997, o banco de dados de Nova York nem sequer existia. “Isso significa que eles tinham originalmente um suspeito?”, pergunto. “Acho que eles tinham um cara em mente, mas o resultado não bateu”, responde Righter. “Só sei que eles conseguiram um perfil e vamos levar o DNA de Chandonne para o legista de lá imediatamente — na verdade, a amostra já deve estar a caminho. Para dizer o óbvio, temos de saber se há uma coincidência antes da citação de Chandonne aqui em Richmond. Temos de nos antecipar, e a boa notícia é que ganhamos de presente pelo menos alguns dias extras devido à condição médica dele, às queimaduras químicas nos olhos dele.” Ele fala como se eu não tivesse nada a ver com isso. “Eu meio que gosto do momento precioso de que você sempre fala, aquele breve período de tempo que se tem para salvar alguém que sofreu um acidente horrível ou coisa assim. Este é nosso momento precioso. Vamos comparar as amostras de DNA e ver se Chandonne é de fato a pessoa que matou a mulher em Nova York há dois anos.” Righter tem o hábito irritante de repetir coisas que eu disse, como se isso de algum modo o deixasse imune, por permanecer ignorante sobre assuntos que realmente importam. “E as marcas de mordida?”, pergunto. “Havia alguma informação sobre elas? Chandonne tem uma dentição muito incomum.” “Sabe, Kay”, ele diz, “eu realmente não tratei desse tipo de detalhe.” É claro que ele não trataria. Tento obter a verdade, a verdadeira razão pela qual ele veio me ver esta manhã. “E se o DNA apontar para Chandonne? Você quer saber antes da citação dele aqui? Por quê?” É uma pergunta retórica. Acho que sei por quê. “Você não quer que ele seja citado aqui. Pretende transferi-lo para Nova York e deixar que ele seja julgado lá primeiro.” Ele evita meus olhos. “Por que você faria isso, Buford?”, prossigo, enquanto me convenço de que isso é exatamente o que ele decidiu. “De modo que você possa lavar as mãos em relação a ele? Enviá-lo para a prisão de Riker’s Island e se livrar dele? E não fazer justiça aos casos aqui? Sejamos honestos, Buford, se eles conseguirem uma condenação por assassinato em primeiro grau em Manhattan, você não vai se
preocupar em julgá-lo aqui, vai?” Ele me dá um de seus olhares sinceros. “Todos na comunidade sempre respeitaram muito você”, ele me surpreende ao dizer. “Sempre respeitaram?” O alarme me atinge como água fria. “E não respeitam mais?” “Só estou lhe dizendo que entendo como você se sente — que você e essas outras pobres mulheres merecem que ele seja punido em toda a extensão da...” “Então imagino que o desgraçado simplesmente vai se livrar do que tentou fazer comigo”, corto-o impetuosamente. Por baixo de tudo isso está o medo. O medo da rejeição. O medo do abandono. “Imagino que ele simplesmente vai se livrar do que fez a essas outras pobres mulheres, como você diz. Estou certa?” “Eles têm pena de morte em Nova York”, ele replica. “Ah, pelo amor de Deus”, exclamo enojada. Fixo meu olhar nele intensamente, energicamente, como o foco da lente de aumento que eu usava em experiências infantis para queimar buracos no papel e em folhas mortas. “E alguma vez eles a aplicaram?” Ele sabe que a resposta é nunca. Ninguém jamais é executado em Manhattan. “E também não há nenhuma garantia de que ela seria aplicada na Virgínia”, Righter responde aceitavelmente. “O acusado não é cidadão americano. Ele tem uma doença ou deformidade bizarra ou seja lá o que for. Não sabemos nem se ele fala inglês.” “Ele certamente falou inglês quando foi a minha casa.” “Pelo que sabemos, ele pode escapar com base em insanidade.” “Suponho que isso dependa da capacidade do promotor, Buford.” Righter pisca. Os músculos de sua mandíbula se tensionam. Ele parece uma paródia hollywoodiana de um contador — todo abotoado e com óculos pequenos — que acabou de ser submetido a um cheiro ofensivo. “Você falou com Berger?”, pergunto a ele. “Deve ter falado. Você não poderia ter aparecido com isso por conta própria. Vocês dois fizeram um acordo.” “Nós trocamos idéias. Há pressões, Kay. É preciso avaliar isso. Por um lado, ele é francês. Você tem idéia de como os franceses reagiriam se tentássemos executar um de seus compatriotas aqui na Virgínia?” “Ah, meu Deus”, deixo escapar. “Isso não tem nada a ver com pena de morte. Tem a ver com punição, ponto. Você sabe como eu me sinto em relação à pena de morte, Buford. Sou contra. E fico cada vez mais contra à medida que envelheço. Mas ele devia ser responsabilizado pelo que fez aqui na Virgínia, droga.” Righter não diz nada, e olha de novo pela janela. “Então você e Berger concordaram que, se o DNA Coincidir, Manhattan pode ficar com Chandonne”, resumo. “Pense bem. Isso é o melhor que podemos esperar em termos de mudança de foro, por assim dizer.” Righter me olha outra vez. “E você sabe muito bem que o caso nunca seria julgado aqui em Richmond com toda a publicidade e tal. Nós provavelmente seríamos todos mandados para um tribunal rural a um milhão de quilômetros daqui, e você gostaria de agüentar isso por semanas, talvez
meses?” “Está certo.” Levanto-me e remexo a lenha com o atiçador de brasas, o calor me batendo no rosto, fagulhas subindo pela chaminé como um bando de estorninhos espectrais. “Que Deus não permita que sejamos incomodados.” Empurro a lenha usando meu braço bom, como se tentasse apagar o fogo. Volto a sentar, corada e à beira das lágrimas. Sei tudo sobre síndrome de estresse póstraumático e aceito que estou com esse distúrbio. Vivo ansiosa e me sobressalto facilmente. Há pouco tempo sintonizei uma estação local de música clássica e Pachelbel me encheu de pesar e comecei a soluçar. Conheço os sintomas. Engulo em seco e me aprumo. Righter me observa em silêncio, com um olhar cansado de nobreza triste, como se fosse Robert E. Lee se lembrando de uma batalha dolorosa. “O que vai acontecer comigo?”, pergunto. “Ou eu devo apenas tocar a vida como se nunca tivesse trabalhado com esses horríveis assassinatos — como se eu nunca tivesse feito a autópsia das vítimas dele ou fugido de minha vida quando ele entrou à força em minha casa? Qual será meu papel nisso, Buford, supondo que ele seja julgado em Nova York?” “Isso caberá à senhorita Berger”, ele responde. “Almoços grátis.” É uma expressão que uso quando me refiro a vítimas que nunca obtêm justiça. No cenário que Righter está sugerindo, eu, por exemplo, seria um almoço grátis, porque Chandonne jamais será julgado em Nova York pelo que tentou fazer comigo em Richmond. De forma ainda mais ultrajante, ele não receberá nem um tapa na mão pelos assassinatos que cometeu aqui. “Você acaba de jogar esta cidade inteira aos lobos”, digo a ele. Ele percebe o duplo sentido no mesmo momento que eu. Vejo isso em seus olhos. Richmond já foi jogada a um lobo, Chandonne, cujo modus operandi quando ele começou a matar na França era deixar bilhetes assinados Le Loupgarou, O Lobisomem. Agora a justiça para as vítimas desta cidade estará nas mãos de estranhos ou, mais precisamente, não haverá justiça nenhuma. Tudo pode acontecer. Tudo vai acontecer. “E se a França pedir que ele seja extraditado?”, desafio Righter. “E se Nova York autorizar a extradição?” “Nós podemos citar e se até a lua ficar azul”, ele diz. Olho para ele com franco desprezo. “Não tome isso como algo pessoal, Kay.” Righter me lança de novo aquele olhar pio e triste. “Não transforme isso em sua guerra pessoal. Nós só queremos pôr o bastardo fora de ação. Não importa quem consiga fazer isso.” Levanto da minha cadeira. “Bem, importa sim. Com toda certeza importa”, digo a ele. “Você é um covarde, Buford.” Dou as costas a ele e saio da sala. Minutos depois, atrás da porta fechada em minha ala da casa, ouço Anna indicando a saída a Righter. Obviamente, ele se demorou o suficiente para falar com ela, e imagino o que ele pode ter dito a meu respeito. Sento na beirada da cama, totalmente perdida. Não consigo me lembrar de jamais ter sentido esta solidão, este pavor, e fico aliviada quando ouço Anna vindo pelo corredor. Ela
bate de leve em minha porta. “Entre”, digo com voz vacilante. Ela fica parada no vão da porta olhando para mim. Sinto-me como uma criança, impotente, desesperada, tola. “Eu insultei Righter”, conto a ela. “Não importa se o que eu disse é verdade. Chamei-o de covarde.” “Ele acha que neste momento você está perturbada”, ela replica. “Está preocupado. Ele também é ein Mann ohne Rückgrat. Um homem sem fibra, como dizemos no lugar de onde eu venho.” Ela ri um pouco. “Anna, eu não estou perturbada.” “Por que estamos aqui quando podemos defrutar a lareira?”, ela diz. Ela pretende falar comigo. “O.k.”, concedo, “você venceu.”
(*) Aqui há vários trocadilhos: primeiro com easy rider, “aquele que leva uma vida fácil” e também título original do filme Sem destino (1969); depois com right or wrong, “certo ou errado”; em “Fighter Righter”, fighter pode ser “combatente” ou “persistente”; em Booford, boo é o nosso “buu”, som feito para assustar. (N. T.)
5
Nunca fui paciente de Anna. Aliás, nunca fiz nenhum tipo de psicoterapia, o que não quer dizer que nunca precisei. Certamente precisei. Não conheço ninguém que não possa se beneficiar de um bom aconselhamento. O problema é que sou muito reservada e não confio facilmente nas pessoas, e por boas razões. Não existe discrição absoluta. Sou médica. Conheço outros médicos. Os médicos falam uns com os outros e com a família e os amigos. Contam segredos que juram sobre Hipócrates que nunca revelarão a outra pessoa. Anna apaga as luzes. O final da manhã é nublado e escuro como o anoitecer, e as paredes pintadas de rosa refletem a luz da lareira e tornam a sala irresistivelmente aconchegante. De repente fico inibida. Anna criou condições propícias para que eu me abra. Pego a cadeira de balanço e ela puxa um divã para perto de si e se empoleira na beirada dele, me encarando como um grande pássaro curvado sobre seu ninho. “Você não vai sair desta situação se não falar.” Ela é brutalmente direta. Sinto a angústia subir pela garganta e tento engoli-la. “Você está traumatizada”, continua Anna. “Kay, você não é feita de aço. Nem mesmo você pode agüentar tanto e simplesmente continuar como se nada tivesse acontecido. Tantas vezes eu liguei para você depois da morte de Benton, e você não encontrou tempo para mim. Por quê? Porque você não queria falar.” Desta vez não consigo esconder minhas emoções. As lágrimas me escorrem pelo rosto e caem em meu colo como sangue. “Eu sempre digo a meus pacientes, quando eles não enfrentam seus problemas, que vão acabar tendo de fazer um ajuste de contas.” Anna se inclina para a frente, intensamente concentrada nas palavras que dispara direto para meu coração. “Este é o momento de você fazer um ajuste de contas.” Ela aponta para mim, os olhos fixos em meu rosto. “Agora você vai conversar comigo, Kay Scarpetta.” Mal olho para meu colo. Minha calça está salpicada de lágrimas e faço a associação disparatada de que as lágrimas são perfeitamente redondas porque caem em um ângulo de noventa graus. “Nunca vou me livrar disso”, sussurro baixinho. “Livrar-se do quê?” Isso fisga o interesse de Anna. “Do que eu faço. Tudo me faz lembrar de algo do meu trabalho. Eu não falo sobre isso.” “Quero que você fale sobre isso agora”, ela me diz. “É bobagem.” Ela espera, a pescadora paciente, sabendo que estou tocando no anzol. Então eu o pego. Dou a Anna exemplos que considero embaraçosos, se não ridículos. Conto a ela que nunca tomo suco de tomate, nem V8, nem Bloody Mary com gelo, porque quando o gelo começa a derreter parece sangue em coagulação se separando do soro. Parei de comer fígado na faculdade de
medicina, e não posso admitir a idéia de considerar qualquer tipo de órgão como algo a ser posto em minha boca. Recordo uma manhã em Hilton Head Island, em que Benton e eu estávamos andando na praia, e o recuo da arrebentação tinha deixado áreas de areia cinza ondulada que se pareciam muito com o revestimento interno do estômago. Meus pensamentos se torcem e viram onde querem, e uma viagem à França se revela pela primeira vez em anos. Em uma das raras ocasiões nas quais Benton e eu realmente nos afastamos do trabalho, fizemos o roteiro dos Grand Vins de Bourgogne e fomos recebidos pelos reverenciados domaines de Drouhin e Dugat, e provamos dos tonéis de Chambertin, Montrachet, Musigny e Vosne-Romanée. “Eu me lembro de ter me comovido de maneiras que não sou capaz de descrever.” Compartilho lembranças que nem sabia que ainda tinha. “A luz do começo da primavera variando nas colinas e a extensão nodosa de videiras de inverno podadas, todas erguendo as mãos do mesmo modo, oferecendo o melhor que têm, sua essência, a nós. E tantas vezes não sentimos seu caráter, não reservamos tempo para encontrar a harmonia em tons sutis, a sinfonia que os vinhos finos tocam em nossa língua se deixarmos.” Minha voz morre. Anna espera em silêncio que eu volte. “Como eu só ser perguntada sobre meus casos”, prossigo. “Só ser perguntada sobre os horrores que vejo, quando há tanta coisa mais em mim. Eu não sou uma emoção barata com uma tampa atarrachada.” “Você se sente sozinha”, Anna observa com delicadeza. “E incompreendida. Talvez tão desumanizada quanto seus pacientes mortos.” Não respondo a ela, mas continuo com minhas analogias, descrevendo quando Benton e eu viajamos de trem pela França durante várias semanas, terminando em Bordeaux, e os telhados se tornaram mais vermelhos no sul. O primeiro toque de primavera criava um verde bruxuleante irreal nas árvores, e veios de água e os cursos maiores eram aspirados para o mar, como os vasos sangüíneos no corpo começam e terminam no coração. “Fico constantemente chocada com a simetria na natureza, o modo como os riachos e os tributários do ar parecem o sistema de circulação, e as rochas me lembram velhos ossos espalhados”, digo. “E o cérebro começa liso e com o tempo se torna espiralado e fendido, de forma muito semelhante a como as montanhas se diferenciam ao longo de milhares de anos. Estamos sujeitos às mesmas leis da física. Mas ao mesmo tempo não estamos. O cérebro, por exemplo, não tem a aparência do que faz. Num exame grosseiro, ele é tão excitante quanto um cogumelo.” Anna concorda com a cabeça. Ela pergunta se dividi alguma dessas reflexões com Benton. Digo que não. Ela quer saber por que não me senti disposta a compartilhar coisas que lhe parecem percepções inofensivas com ele, meu amado, e digo a ela que preciso pensar sobre isso um minuto. Não tenho certeza da resposta. “Não.” Ela me estimula. “Não pense. Sinta.” Eu pondero. “Não. Sinta, Kay. Sinta.” Ela põe a mão sobre o coração. “Eu tenho de pensar. Foi pensando que cheguei aonde cheguei na vida”, retruco defensivamente, de modo abrupto, saindo do espaço incomum no qual acabei de estar. Agora estou de volta à sala de Anna e entendo tudo que
aconteceu comigo. “Você chegou aonde chegou na vida sabendo”, ela diz. “E saber é perceber. Pensar é o modo como processamos o que percebemos, e muitas vezes pensar mascara a verdade. Por que você não quis partilhar seu lado mais poético com Benton?” “Porque eu realmente não reconheço esse lado. É um lado inútil. Comparar o cérebro com um cogumelo no tribunal, por exemplo, não levaria a lugar nenhum”, respondo. “Ah.” Outra vez Anna concorda com a cabeça. “Você faz analogias no tribunal o tempo todo. É por isso que é uma testemunha tão eficaz. Você evoca imagens para que pessoas comuns possam entender. Por que você não contou a Benton as associações que acaba de me contar?” Paro de me balançar e reposiciono o braço quebrado, descansando o gesso no colo. Desvio a cabeça da direção de Anna e olho para o rio lá fora, sentindome de repente tão evasiva quanto Buford Righter. Dezenas de gansos selvagens se reuniram em volta do velho plátano. Eles estão sobre o gramado como cabaças escuras de pescoço comprido, e arfam e batem as asas, e dão bicadas em busca de comida. “Não quero atravessar esse espelho”, digo a ela. “Não é só que eu não quisesse contar a Benton. Eu não quero contar a ninguém. Não quero contar de jeito nenhum. E ao não repetir imagens e associações involuntárias, eu não, bem, eu não...” Mais uma vez Anna assente com a cabeça, agora de forma mais profunda. “Ao não reconhecê-las, você não convida sua imaginação a trabalhar”, ela conclui meu pensamento. “Eu tenho de ser clínica, objetiva. Pelo menos você devia entender.” Ela me observa antes de responder. “É isso? Ou pode ser que você esteja evitando o sofrimento insuportável que com toda certeza provocaria se permitisse que sua imaginação se envolvesse em seus casos?” Ela chega mais perto, apoiando os cotovelos nos joelhos, gesticulando. “E se, por exemplo” — ela pára de falar de um modo dramático — “você pudesse pegar os fatos da ciência e da medicina e usar a imaginação para reconstruir em detalhes os últimos minutos da vida de Diane Bray? E se você pudesse evocar isso como um filme e assistir — vê-la ao ser atacada, ver sua hemorragia, ela ser mordida e espancada? Vê-la morrer?” “Isso seria indizivelmente medonho”, mal respondo. “Como seria convincente se um júri pudesse ver um filme como esse”, ela diz. Impulsos nervosos fervem por baixo de minha pele como milhares de peixinhos. “Mas se você atravessasse esse espelho, como você chama”, ela continua, “onde isso poderia terminar?” Ela joga as mãos para cima. “Ah. Talvez não terminasse, e você seria obrigada a assistir ao filme da morte de Benton.” Fecho os olhos. Resisto a ela. Não. Por favor, Senhor, não me faça ver isso. Um vislumbre de Benton no escuro, uma pistola apontada para ele e o som de catraca, o estalo do aço quando o algemam. Insultos. Eles o insultariam, Senhor FBI, você é tão esperto, o que vamos fazer agora, Senhor Especialista em Perfis
Psicológicos? Você pode ler nossas mentes, nos decifrar , prever? Hein? Ele não responderia. Não perguntaria nada a eles enquanto eles o levavam à força para um pequeno depósito de um mercado da vizinhança na margem oeste da Universidade da Pensilvânia que fechara às cinco da tarde. Benton ia morrer. Eles o atormentariam e torturariam, e essa era a parte em que ele se concentraria — como abreviar o medo e a degradação que ele sabia que eles lhe infligiriam se tivessem tempo. A escuridão e o riscar de um fósforo. O rosto dele oscilando à luz de uma pequena chama que tremula com cada agitação do ar quando aqueles dois desgraçados psicopatas se deslocam no espaço atulhado de um mercadinho de merda de um paquistanês que eles incendiaram depois que ele morreu. Minhas pálpebras se abrem. Anna está falando comigo. O suor frio escorre por meu corpo como insetos. “Desculpe. O que você disse?” “Muito, muito doloroso.” O rosto dela se derrete de compaixão. “Nem consigo imaginar.” Benton entra em minha mente. Ele usa sua calça cáqui preferida e seus tênis de corrida Saucony. Era a única marca que ele usava, e eu costumava chamá-lo de meticuloso porque ele era muito específico quando realmente gostava de alguma coisa. E ele está com o velho moleton da Universidade da Virgínia que Lucy deu a ele, azul-escuro com letras laranja brilhantes, que com o passar dos anos ficou muito desbotado e macio. Ele cortou as mangas porque eram muito curtas, e sempre gostei da aparência dele naquele velho suéter surrado, com seu cabelo prateado, seu perfil limpo, os mistérios por trás de seus intensos olhos escuros. As mãos dele estão levemente curvadas em torno dos braços de sua cadeira. Ele tem dedos de pianista, longos e finos, expressivos quando fala, e sempre gentis quando me tocam, o que com o tempo ocorre cada vez menos. Estou dizendo isso em voz alta a Anna, falando no presente sobre um homem que está morto há mais de um ano. “Que segredos você acha que ele escondeu de você?”, pergunta Anna. “Que mistérios você via nos olhos dele?” “Ah, meu Deus. Principalmente sobre trabalho.” Minha respiração tremula, meu coração foge de medo. “Ele guardava muitos detalhes só para si. Detalhes sobre o que via em certos casos, coisas que achava tão terríveis que ninguém mais devia passar por elas.” “Nem você? Existe alguma coisa que você não tenha visto?” “O medo delas”, falo calmamente. “Eu não tenho de ver o terror delas. Não quero ouvir seus gritos.” “Mas você o reconstrói.” “Não é a mesma coisa. Com certeza não é. Muitos dos assassinos com quem Benton lidou gostavam de fotografar, gravar os sons e em alguns casos vídeos do que faziam com as vítimas. Benton tinha de assistir. E ouvir. Eu sempre sabia. Ele chegava com um aspecto sombrio. Não falava muito durante o jantar, nem comia muito, e nessas noites bebia mais que o normal.” “Mas ele não lhe contava...” “Nunca”, interrompo-a emocionada. “Nunca. Esse era o Cemitério Indígena dele e ninguém estava autorizado a entrar nele. Eu lecionei em uma
escola de investigação de mortes em Saint Louis. Isso foi no começo de minha carreira, antes de eu me mudar para cá, quando ainda era subchefe em Miami. Eu estava fazendo um curso sobre afogamento e resolvi que, como já estava lá, ia freqüentar a escola a semana inteira. Uma tarde, um psiquiatra forense deu uma aula sobre homicídio sexual. Ele mostrou slides de vítimas vivas. Uma mulher estava presa a uma cadeira e seu agressor tinha amarrado uma corda em um de seus seios e inserido agulhas no mamilo. Até hoje não consigo suportar a visão dos olhos dela. Eles eram lagos escuros cheios de terror, e sua boca estava muito aberta enquanto ela gritava. E eu vi videoteipes”, prossigo monotonamente. “Uma mulher, raptada, atada, torturada e prestes a receber um tiro na cabeça. Ela choraminga, pedindo a mãe. Implorando, gritando. Acho que ela estava em um porão, a imagem era escura, granulosa. O som da pistola disparando. E o silêncio.” Anna não diz nada. A lareira estala e pipoca. “Eu era a única mulher numa sala com cerca de sessenta policiais”, acrescento. “Pior ainda, então, porque as vítimas eram mulheres e você era a única mulher”, diz Anna. Sinto raiva quando me lembro do modo como alguns homens olhavam para os slides e os videoteipes. “A mutilação sexual excitava alguns deles”, digo. “Eu podia ver no rosto deles, podia sentir. Acontecia a mesma coisa com alguns dos especialistas em perfil psicológico, colegas de Benton na unidade. Eles descreviam o modo como Bundy* estuprava uma mulher por trás enquanto a estrangulava. Os olhos abaulados, a língua projetada. Ele tinha orgasmo enquanto ela morria. E esses homens com quem Benton trabalhava gostavam um pouco demais de contar isso. Você tem idéia de como é isso?” Fixo nela um olhar que é afiado como uma unha. “Ver um corpo morto, ver fotos, vídeos, de alguém brutalizado, de alguém sofrendo e aterrorizado, e perceber que as pessoas em volta de você estão secretamente gostando? Que elas consideram aquilo excitante?” “Você acha que Benton também sentia isso?” “Não. Ele testemunhava essas coisas toda semana, talvez até todo dia. Excitante, nunca. Ele tinha de ouvir os gritos delas.” Comecei a divagar. “Ele tinha de ouvi-las chorar e implorar. Aquelas pobres pessoas não sabiam. Mesmo que soubessem, não poderiam ter evitado.” “Não sabiam? O que aquelas pessoas não sabiam?” “Que os sádicos sexuais só ficam mais excitados com os gritos. Com as súplicas. Com o medo”, respondo. “Você acha que Benton gritou ou suplicou quando seus assassinos o seqüestraram e o levaram para aquele prédio escuro?” Anna está prestes a conseguir o que quer. “Eu vi o relatório da autópsia dele.” Escorrego para meu esconderijo clínico. “Não há na verdade nada nele que me diga definitivamente o que aconteceu antes da morte. Ele estava muito queimado pelo fogo. Muito tecido desapareceu, não foi possível ver, por exemplo, se ele ainda tinha pressão sangüínea quando eles o cortaram.”
“Ele tinha um ferimento de bala na cabeça, não tinha?”, Anna pergunta. “Sim.” “O que você acha que aconteceu primeiro?” Fico olhando para ela em silêncio. Não reconstruí o que provocou a morte dele. Nunca fui capaz de me convencer a fazer isso. “Visualize, Kay”, diz Anna. “Você sabe, não é? Você trabalhou com mortes demais para não saber o que aconteceu.” Minha mente está escura, tão escura quanto aquele mercadinho em Filadélfia. “Ele fez alguma coisa, não fez?” Ela pressiona, inclinando-se em minha direção, quase se encostando no divã. “Ele venceu, não foi?” “Venceu?” Pigarreio. “Venceu! Eles cortaram o rosto dele e o queimaram e você diz que ele venceu?” Ela espera que eu faça a ligação. Quando não digo nada mais, ela se levanta e anda até a lareira, tocando de leve meu ombro ao passar. Joga outra acha no fogo, olha para mim e diz: “Kay, me responda uma coisa. Por que eles atirariam nele depois do fato?”. Esfrego os olhos e suspiro. “Cortar o rosto fazia parte do modus operandi”, ela prossegue. “Do que Newton Joyce gostava de fazer com suas vítimas.” Ela se refere ao cruel parceiro da cruel Carrie Grethen — um par de psicopatas que fariam Bonnie e Clyde parecerem personagens de um desenho animado de manhã de sábado de minha juventude. “Remover o rosto delas e guardar no freezer como suvenir, e como o rosto de Joyce era tão tosco, tão marcado pela acne”, Anna continua, “ele roubava o que invejava, a beleza. Certo?” “Certo, suponho. Até onde podemos ir com essa teoria sobre o motivo de as pessoas fazerem o que fazem.” “E era importante que Joyce fizesse as excisões cuidadosamente e não danificasse os rostos. Por isso ele não atirava nas vítimas, certamente não na cabeça. Ele não queria correr o risco de causar nenhum dano ao rosto, ao couro cabeludo. E atirar é muito fácil.” Anna dá de ombros. “Rápido. Talvez misericordioso. É muito melhor receber um tiro do que ter o rosto cortado. Então por que Newton Joyce e Carrie Grethen atiraram em Benton?” Anna está de pé diante de mim. Levanto os olhos para ela. “Ele disse alguma coisa”, respondo, lentamente, finalmente. “Deve ter dito.” “Sim.” Anna volta a sentar. “Sim, sim.” Ela me encoraja com as mãos, como se orientasse o tráfego a atravessar um cruzamento. “O quê, o quê? Me diga, Kay.” Respondo que não sei o que Benton disse a Newton Joyce e Carrie Grethen. Mas ele disse ou fez alguma coisa que levou um deles a perder o controle do jogo. Foi um impulso, uma reação involuntária, quando um deles encostou a arma na cabeça de Benton e puxou o gatilho. Bum. E a diversão acabou. Não importa o que fizessem a ele depois disso, não tinha importância. Ele estava morto ou morrendo. Inconsciente. Ele não sentiu a faca. Talvez nem a tenha visto.
“Você conhecia Benton muito bem”, diz Anna. “E conhecia seus assassinos, ou pelo menos conhecia Carrie Grethen — você tivera experiências com ela no passado. O que você acha que Benton disse, e para quem? Quem atirou nele?” “Eu não posso...” “Você pode.” Olho para ela. “Quem perdeu o controle?” Ela me faz ir mais longe do que jamais pensei que poderia ir. “Ela.” Puxo isso do fundo. “Carrie. Porque era uma questão pessoal. Ela estivera em volta de Benton desde os velhos tempos, desde o começo, quando estava em Quantico, na Unidade de Pesquisa de Engenharia.” “Onde ela também conheceu Lucy muitos anos atrás, talvez há uns dez anos.” “Sim, Benton conhecia Carrie, provavelmente tão bem quanto se pode conhecer uma mente de réptil como a dela”, acrescento. “O que ele disse a ela?” Os olhos de Anna estão cravados em mim. “Provavelmente alguma coisa sobre Lucy”, digo. “Alguma coisa sobre Lucy que insultaria Carrie. Ele insultou Carrie, escarneceu dela a respeito de Lucy, creio que foi isso.” Tenho uma conexão direta entre meu subconsciente e minha língua. Não preciso nem pensar. “Carrie e Lucy eram amantes em Quantico”, Anna acrescenta mais uma peça. “As duas trabalhavam no computador de inteligência artificial na Unidade de Pesquisa de Engenharia.” “Lucy era estagiária, apenas uma adolescente, uma criança, e Carrie a seduziu. Elas trabalhavam juntas no sistema de computação. Eu consegui esse estágio para Lucy”, acrescento com amargura. “Eu, sua tia influente e poderosa.” “Não resultou exatamente no que você pretendia, não é?”, sugere Anna. “Carrie a usou.” “Fez Lucy virar gay?” “Não. Eu não chegaria a tanto”, digo. “Não é possível fazer as pessoas virarem gays.” “Fez Benton morrer? Isso você pode admitir?” “Não sei, Anna.” “Um passado volátil, uma história pessoal. Sim. Benton disse algo sobre Lucy, e Carrie se descontrolou e atirou nele”, resume Anna. “Ele não morreu do modo como eles planejaram.” Ela soa triunfante. “Não morreu.” Eu me balanço em silêncio, olhando lá fora para uma manhã cinza que se tornou turbulenta. O vento sopra em rajadas violentas que arremessam galhos e caules mortos pelo quintal de Anna, fazendo-me lembrar das raivosas árvores lançando maçãs em Dorothy em O mágico de Oz. Então Anna se levanta de repente, como se se lembrasse de um compromisso. Ela me deixa para ir cuidar de outros afazeres na casa. Por ora, já falamos o suficiente. Decido me retirar para a cozinha, e é lá que Lucy me encontra por volta do meio-dia, depois de ter
feito seus exercícios. Estou abrindo uma lata de tomates quando ela entra, os primeiros estágios de um molho marinara borbulhando no fogão. “Quer ajuda?” Ela olha para cebolas, pimentas e cogumelos na tábua de cortar. “Deve ser meio difícil cortar com uma mão só.” “Pegue um banco”, digo a ela. “Talvez você fique impressionada de ver como eu consigo me virar sozinha.” Exagero a bravata quando termino de abrir a lata sem ajuda, e ela sorri enquanto puxa um banco do outro lado do balcão e senta. Ainda está usando as roupas de ginástica, e seus olhos têm uma aparência, uma luz secreta, que me lembra o rio refletindo a luz do sol de manhã bem cedo. Equilibro uma cebola com dois dedos de minha mão esquerda imobilizada e começo a fatiar. “Lembra do nosso jogo?” Ponho as fatias horizontalmente e começo a picar. “Quando você tinha dez anos? Ou você não consegue se lembrar de algo tão distante? Eu com certeza nunca vou esquecer”, digo em um tom que pretende fazer Lucy se recordar de como era uma pirralha impossível quando criança. “Aposto que você não faz a menor idéia de quantas vezes eu teria posto você de licença administrativa, se pudesse.” Arrisco expor essa verdade dolorosa. Talvez esteja me sentindo atrevida por causa de minha conversa franca com Anna, que me deixou nervosa e ao mesmo tempo alegre. “Eu não era tão ruim assim.” Os olhos de Lucy dançam porque ela adora ouvir como era um terrorzinho quando ficava comigo, em criança. Deixo cair punhados de cebola picada no molho e mexo. “Soro da Verdade. Lembra do jogo?”, pergunto a ela. “Eu chegava em casa, normalmente do trabalho, e podia saber pelo aspecto de seu rosto que você tinha aprontado alguma coisa. Então sentava você numa grande cadeira vermelha na sala, lembra? Era ao lado da lareira em minha antiga casa em Windsor Farms. E levava para você um copo de suco e lhe dizia que era soro da verdade. E você bebia e confessava.” “Como na vez que eu formatei seu computador enquanto você estava fora.” Ela dá uma gargalhada. “Só dez anos e formata meu disco rígido. Eu quase tive um ataque do coração”, lembro. “Ei, mas eu fiz uma cópia de todos os seus arquivos antes. Eu só queria lhe dar um susto.” Ela realmente está gostando disso. “Bom, eu quase mandei você de volta para casa.” Enxugo as pontas dos dedos da mão esquerda com um pano de prato, para que meu gesso não fique cheirando a cebola, enquanto sinto uma onda de suave tristeza. Não me lembro realmente do motivo pelo qual Lucy veio ficar comigo em sua primeira visita a Richmond, mas eu não sabia cuidar de crianças, era nova no emprego e estava sob uma tremenda pressão. Houve uma espécie de crise com Dorothy. Talvez ela tenha fugido e se casado de novo, ou talvez eu fosse uma tonta. Lucy me adorava e eu não estava acostumada a ser adorada. Sempre que ia visitá-la em Miami, ela me seguia pela casa toda, para todo lugar aonde eu ia, movendo-se tenazmente junto com meus pés, como uma bola de futebol. “Você não ia me mandar de volta para casa.” Lucy está me provocando, mas percebo a dúvida em seus olhos. O medo de não ser querida se baseia em
sua experiência de vida. “Só porque eu não me sentia capaz de cuidar de você”, retruco, me encostando na pia. “Não porque você não estivesse me deixando louca, de tão irritante que era.” Ela ri de novo. “Mas não, eu não teria mandado você de volta para casa. Nós duas ficaríamos arrasadas. Eu não conseguiria.” Balanço a cabeça. “Dou graças a Deus por nosso joguinho. Era praticamente o único jeito de eu saber o que se passava dentro de você ou que travessura fazia quando eu saía de casa, para trabalhar ou qualquer outra coisa. Então, preciso lhe servir um suco ou um copo de vinho, ou vai me contar o que está acontecendo com você? Eu não nasci ontem, Lucy. Você não está hospedada num hotel só por prazer. Está aprontando alguma coisa.” “Não sou a primeira mulher que eles forçam a sair”, ela começa. “Você seria a melhor mulher que eles já forçaram a sair”, respondo. “Lembra de Teun McGovern?” “Vou me lembrar dela pelo resto da vida.” Teun — que se pronuncia TiUn — foi a primeira supervisora de Lucy no ATF em Filadélfia, uma mulher extraordinária que foi maravilhosa comigo quando Benton foi morto. “Por favor, não me diga que aconteceu alguma coisa com Teun”, digo preocupada. “Ela se demitiu faz uns seis meses”, replica Lucy. “Parece que o ATF queria que ela se mudasse para Los Angeles e fosse a SAC daquela divisão de campo. A pior atribuição da face da Terra. Ninguém quer Los Angeles.” Um SAC é um agente especial encarregado, e pouquíssimas mulheres nos órgãos policiais federais acabam dirigindo divisões de campo inteiras. Lucy me diz que a resposta de McGovern foi se demitir e abrir uma espécie de empresa particular de investigações. “A Última Delegacia”, diz ela, se animando. “Um nome bem legal, não é? Baseada em Nova York. Teun está reunindo investigadores de incêndios criminosos, especialistas em bombas, policiais, advogados, todos os tipos de pessoas para ajudar, e em menos de seis meses já conseguiu clientes. Virou meio que uma sociedade secreta. Há um verdadeiro alvoroço nas ruas. Quando der merda, chame A Última Delegacia — aonde você vai quando não há mais nenhum lugar para ir.” Mexo o molho de tomate borbulhante e provo um pouco. “Obviamente você tem estado em contato com Teun desde que saiu de Filadélfia.” Ponho algumas colherinhas de azeite de oliva. “Dane-se. Acho que vai servir, mas não para o molho da salada.” Levanto a garrafa e fecho a cara. “O azeite de oliva é prensado ainda com os caroços, é como espremer laranjas sem descascá-las, em boa coisa não pode dar.” “Por que será que eu tenho a impressão de que Anna não é uma aficionada de coisas italianas?”, Lucy comenta com sarcasmo. “Bom, nós só precisamos educá-la. Lista de compras.” Aponto com a cabeça na direção de um bloco de notas e uma caneta ao lado do telefone. “Primeiro item, azeite de oliva extravirgem italiano do tipo integrado — descaroçado antes de prensado. Mission Olives Supremo é um muito bom, se você conseguir encontrar. Nem um vestígio de amargor.” Lucy toma nota. “Teun e eu mantivemos contato”, ela me informa. “Você está envolvida de alguma forma no que ela está fazendo?” Sei que é
para isso que a conversa se dirige. “Eu não diria isso.” “Alho amassado. Na seção de refrigerados, em potinhos. Vou dar uma de preguiçosa.” Pego uma tigela de carne magra picada que cozinhei bem e da qual tirei a gordura. “Não é um bom momento para eu amassar alho.” Ponho a carne no molho. “Quanto você está envolvida?” Abro a geladeira e olho nas gavetas. É claro que Anna não tem ervas frescas. Lucy suspira. “Puxa, tia Kay. Não tenho certeza se você vai querer ouvir essa história.” Até pouco tempo atrás, minha sobrinha e eu não conversávamos muito, e nossas conversas foram sempre superficiais. No ano passado, foram raras as ocasiões em que nos vimos. Ela se mudou para Miami, e depois da morte de Benton nós duas nos isolamos em verdadeiros bunkers. Tento ler as histórias escondidas nos olhos de Lucy e começo instantaneamente a imaginar possibilidades. Suspeito do relacionamento dela com McGovern, e suspeitava no ano passado, quando todas nós fomos convocadas para uma cena de incêndio criminoso catastrófico em Warrenton, Virgínia, um homicídio disfarçado de incêndio que acabou se revelando o primeiro de vários tramados por Carrie Grethen. “Orégano, manjericão e salsa frescos”, dito a lista de compras. “E uma fatia pequena de parmesão Reggiano. Lucy, basta você me dizer a verdade.” Procuro temperos. McGovern tem mais ou menos minha idade e é solteira — ou pelo menos era, na última vez que a vi. Fecho a porta de um armário e encaro minha sobrinha. “Você e Teun estão envolvidas?” “Nós não éramos desse jeito.” “Não eram?” “Na verdade, você é quem pode falar sobre isso”, Lucy diz com rancor. “Que tal você e Jay?” “Ele não trabalha para mim”, replico. “E com certeza eu não trabalho para ele. E não quero falar sobre ele. Estamos falando sobre você.” “Odeio quando você me rejeita, tia Kay”, ela diz calmamente. “Não estou rejeitando você”, me desculpo. “Só me preocupo quando pessoas que trabalham juntas ficam muito próximas. Acredito em limites.” “Você trabalhava com Benton.” Ela aponta outra de minhas exceções a minhas próprias regras. Bato com a colher na panela. “Fiz muitas coisas na vida que digo para você não fazer. E digo porque cometi o erro antes.” “Você alguma vez já fez um bico?” Lucy estende a base da coluna e gira os ombros. Franzo o cenho. “Bico? Não que eu me lembre.” “Tudo bem. Hora do soro da verdade. Eu faço um bico ilegal e Teun é a maior financiadora — a principal acionista de A Última Delegacia. Aí está. Toda a verdade. Você vai ouvi falar dela.” “Vamos sentar.” Conduzo-nos para a mesa e puxamos cadeiras. “Tudo começou acidentalmente”, Lucy inicia. “Há uns dois anos, criei uma ferramenta de busca para meu uso particular. Nesse meio-tempo, eu ouvia
falar das fortunas que as pessoas estavam ganhando com tecnologia para internet. Então eu pensei, que se dane, e vendi a ferramenta de busca por setecentos e cinqüenta mil dólares.” Não fico chocada. As possibilidades de ganho de Lucy só foram limitadas pela escolha profissional que ela fez. “Depois tive outra idéia, quando apreendi um punhado de computadores numa batida”, ela continua. “Eu estava ajudando a recuperar e-mails deletados e isso me fez pensar em como todos nós somos vulneráveis a ter os fantasmas de nossas comunicações eletrônicas invocados para nos assustar. Então imaginei uma maneira de misturar e-mails. Fragmentá-los, para usar uma linguagem figurativa. Agora existem vários pacotes de software para esse tipo de coisa. Eu ganhei uma porrada de dinheiro com esse brainstorm.” Minha pergunta seguinte não é nada diplomática. O ATF sabe que ela inventou tecnologia que poderia frustrar os esforços dos órgãos policiais para recuperar os e-mails dos criminosos? Lucy responde que alguém ia acabar aparecendo com essa tecnologia, e que a privacidade das pessoas que cumprem a lei também precisa ser protegida. A ATF não sabe das atividades empresariais dela nem que ela tem investido em invenções para a internet e em ações. Até este momento, só seu consultor financeiro e Teun McGovern têm conhecimento do fato de que Lucy é uma multimilionária que está comprando seu próprio helicóptero. “Então foi assim que Teun conseguiu montar seu próprio negócio em uma cidade tão cara como Nova York”, suponho. “Exatamente”, diz Lucy. “E é por isso que eu não vou brigar com o ATF, ou pelo menos é uma boa razão para eu não fazer isso. Se brigasse com eles, a verdade sobre o que andei fazendo no meu tempo livre provavelmente iria aparecer. O Departamento de Assuntos Internos, o gabinete do inspetor-geral, todo mundo iria fuçar. Eles encontrariam mais pregos para cravar em minha reputação enquanto me pendurariam em sua absurda cruz burocrática. Por que diabos eu ia querer fazer isso comigo?” “Se você não combater a injustiça, outros vão sofrer com ela, Lucy. E talvez essas pessoas não tenham milhões de dólares, um helicóptero e uma empresa em Nova York a que possam recorrer quando tentarem começar uma vida nova.” “É exatamente para isso que existe A Última Delegacia”, ela replica. “Combater a injustiça. Mas eu vou combatê-la do meu jeito.” “Legalmente, esse seu bico não está incluído no âmbito do caso que o ATF está movendo contra você, Lucy”, diz minha porção advogada. “Mas ganhar dinheiro por fora questiona minha veracidade, supostamente, não é?” Ela mostra o outro lado da coisa. “ O ATF acusou você de faltar com a verdade? Chamaram você de desonesta?” “Bom, não. Isso não vai constar de nenhuma carta deles. Com certeza. Mas a verdade, tia Kay, é que eu descumpri as regras. Ninguém deve ganhar dinheiro de outra fonte enquanto está empregado pelo ATF, pelo FBI ou por qualquer outro órgão policial federal. Não concordo com essa proibição. Ela não é justa.
Os tiras fazem bicos. Nós, não. Eu acho que sempre soube que não ia ficar muito tempo com os federais.” Ela se levanta da mesa. “Então cuidei do meu futuro. Talvez estivesse apenas cheia de tudo. Não quero passar o resto da vida recebendo ordens de outras pessoas.” “Se você quer sair do ATF, faça com que isso seja uma escolha sua, não deles.” “A escolha é minha”, ela diz, com um traço de irritação na voz. “Acho melhor eu ir ao mercado.” Vou até a porta, de braços dados com ela. “Obrigada”, digo. “Você me contar significa tudo para mim.” “Vou ensinar a você como pilotar helicóptero.” Ela veste o casaco. “Talvez seja mesmo o caso”, digo. “Estive em um bocado de espaços desconhecidos hoje. Imagino que um pouco mais não vai ter importância.”
(*) Theodore Robert Bundy, um dos mais terríveis assassinos seriais americanos, matou 35 mulheres em quatro anos. Condenado à morte na cadeira elétrica, foi executado em 1989. (N. T.)
6
Durante anos correu a piada grosseira de que os virginianos vão a Nova York em busca de arte e Nova York vem à Virgínia em busca de um lugar para jogar o lixo. O prefeito Giuliani quase começou outra guerra civil quando fez essa piada maliciosa durante a guerra muito divulgada com Jim Gilmore, na época governador da Virgínia, sobre o direito que Manhattan tinha de despachar milhões de toneladas de lixo nortista para nossos aterros sanitários sulistas. Posso imaginar a reação quando se começar a falar que também temos de ir a Nova York em busca de justiça. Durante todo o meu período como legista-chefe da Virgínia, Jaime Berger tem sido a chefe da unidade de crimes sexuais do gabinete do promotor distrital de Manhattan. Embora nunca tenhamos nos encontrado, muitas vezes somos mencionadas juntas. Diz-se que, entre as profissionais do sexo feminino, eu sou a mais famosa patologista forense do país, e ela, a mais famosa promotora. Até agora, a única reação que eu talvez tenha tido a essa afirmação é que não quero ser famosa e não confio nas pessoas que são, e que do sexo feminino não deveria ser um adjetivo. Quando se trata de homens bem-sucedidos ninguém fala em médico do sexo masculino ou presidente de empresa do sexo masculino. Nos últimos dias, passei horas no computador de Anna pesquisando Berger na internet. Tentei não ficar impressionada, mas não consegui. Não sabia, por exemplo, que ela é bolsista Rhodes ou que depois da eleição de Clinton ela fez parte da lista de candidatos a secretário de Justiça e, segundo a revista Time, ficou particularmente aliviada quando a escolhida foi Janet Reno. Berger não queria abrir mão de atuar na promotoria. Supostamente, ela recusou cargos na magistratura e ofertas assombrosas de firmas de advocacia pela mesma razão, e é tão admirada por seus pares que eles criaram uma bolsa na área de serviço público com o nome dela em Harvard, onde se graduou. Estranhamente, fala-se muito pouco sobre sua vida pessoal, exceto que ela joga tênis — muito bem, é claro. Ela se exercita com um treinador três manhãs por semana em um clube de Nova York e corre de cinco a seis quilômetros por dia. Seu restaurante preferido é o Primola. Me consolo um pouco com o fato de ela gostar de comida italiana. Agora é quarta-feira, comecinho da noite, e Lucy e eu estamos fazendo compras de Natal. Olhei e comprei tudo que pude agüentar, a mente envenenada por preocupações, o braço doendo loucamente dentro de seu casulo de gesso, a vontade de fumar beirando a luxúria. Lucy está em algum lugar dentro do Regency Mall cuidando de sua lista, e eu procuro um lugar onde possa fugir da multidão agitada. Milhares de pessoas esperaram até três dias antes do Natal para encontrar presentes especiais e atenciosos para as pessoas que são importantes em suas vidas. Vozes e movimento ininterrupto se combinam em um bramido constante que causa um curto-circuito entre pensamentos e a conversa normal, e a música de festa eletrônica deixa meus nervos, que já estão vibrando,
completamente defasados. Encaro a vitrine da Sea Dream Leather, de costas para pessoas barulhentas que, como dedos inábeis num piano, empurram, param e forçam a passagem sem alegria. Pressionando o celular contra a orelha, cedo a um novo vício. Checo meu correio de voz, provavelmente pela décima vez hoje. Ele se tornou minha escassa ligação secreta com minha existência anterior. Recorrer a minhas mensagens é a única maneira de eu conseguir me sentir em casa. Há quatro chamadas. Rose, minha secretária, ligou para saber como estou me mantendo. Minha mãe deixou uma longa queixa sobre a vida. O serviço de atendimento a clientes da AT&T tentou me avisar a respeito de uma cobrança, e meu legista assistente, Jack Fielding, precisa falar comigo. Ligo imediatamente para ele. “Quase não consigo escutar você”, sua voz arranhada soa em um de meus ouvidos, enquanto cubro o outro com a mão. Ao fundo, um de seus filhos chora. “Não estou num lugar bom para falar”, digo a ele. “Nem eu. Minha ex está aqui. Deus seja louvado!” “O que aconteceu?”, digo. “Uma pessoa da promotoria de Nova York acabou de me ligar.” Chocada, me controlo para parecer calma, quase indiferente, quando pergunto a ele o nome dessa pessoa. Ele diz que Jaime Berger ligou para a casa dele há algumas horas. Queria saber se ele assistira à autópsia que fiz em Lim Kuong e Diane Bray. “Interessante”, comento. “Seu número não está fora da lista telefônica?” “Righter deu a ela”, ele me informa. A paranóia se inflama. A dor da traição irrompe. Righter deu a ela o número de Jack , e não o meu? “Por que ele não disse a ela para me ligar?”, pergunto. Jack faz uma pausa enquanto mais uma criança se junta ao coro desordenado em sua casa. “Não sei. Eu disse a ela que não assisti oficialmente. Foi você que fez as autópsias. Não sou listado nos protocolos como testemunha. Eu disse que ela precisa realmente falar com você.” “O que ela respondeu quando você lhe contou isso?” “Começou a me fazer perguntas, obviamente tem cópia dos relatórios.” Righter de novo. Cópias do relatório inicial de investigação do médicolegista e dos protocolos de autópsia vão para o gabinete do promotor estadual. Sinto-me tonta. Agora parece que dois promotores me desdenharam, e o medo e a perplexidade se juntam como um exército de formigas causticantes, ocupando meu mundo interior, ferroando minha psique. O que está acontecendo é sinistro e cruel. Está além de qualquer coisa que jamais imaginei em meus momentos mais intranqüilos. A voz de Jack soa distante através da estática que parece uma projeção do caos em minha mente. Entendo que Berger estava muito calma e soava como se estivesse num telefone de carro, depois algo sobre promotores especiais. “Eu pensava que eles só eram convocados para o presidente ou para a cidade de Waco ou coisa do tipo”, ele diz, quando a ligação de repente fica nítida e ele grita — para a ex-mulher, suponho — “Você pode levá-los para o outro quarto? Estou no telefone! Puta que pariu”, ele deixa escapar, “olhe, jamais
tenha filhos”. “Como assim, promotor especial ?”, indago. “Que tipo de promotor especial?” Jack faz uma pausa. “Eu imagino que eles a estão mandando para cá para atuar no caso porque Fighter Righter não quer fazer isso”, ele responde com um nervosismo repentino. Na verdade, soa evasivo. “Parece que eles tiveram um caso em Nova York.” Tomo cuidado com o que digo. “É por isso que ela está envolvida, pelo menos foi o que eu soube.” “Você quer dizer um caso como o nosso?” “Há dois anos.” “Não diga! Para mim é novidade. Tudo bem. Ela não disse nada sobre isso. Só quer saber dos casos daqui”, diz Jack . “Quantos para a manhã, até agora?”, indago sobre o trabalho que temos para amanhã. “Até agora cinco. Incluindo um esquisito que vai ser um pé no saco. Homem jovem, branco — talvez hispânico —, encontrado dentro de um quarto de motel. Parece que o quarto foi incendiado. Nenhuma identificação. Uma agulha enfiada no braço dele, portanto não sabemos se é um caso de overdose de droga ou de inalação de fumaça.” “Não vamos falar disso num telefone celular”, eu o corto, olhando em volta. “Falamos disso amanhã de manhã. Eu vou cuidar dele.” Depois de uma longa pausa de surpresa, ele diz: “Você tem certeza? Porque eu...”. “Tenho certeza, Jack.” Não fui ao trabalho a semana inteira. “Tchau.” Devo encontrar Lucy em frente à Waldenbooks às sete e meia, e me aventuro a reingressar na multidão agitada. Assim que paro no lugar combinado percebo um homem familiar, grande e de aspecto mal-humorado, subindo pela escada rolante. Marino morde um pretzel macio e lambe os dedos enquanto mantém os olhos grudados na adolescente que está um degrau acima dele. O jeans e o suéter justos não fazem nenhum mistério sobre as curvas, depressões e elevações da jovem, e mesmo desta distância posso ver que Marino está mapeando os caminhos dela e imaginando como seria viajar por eles. Observo-o ser levado por degraus de aço apinhados de gente, totalmente envolvido com o pretzel, mastigando de boca aberta, com lascívia. A calça jeans baggy desbotada se encaixa abaixo de sua pança protuberante, e suas mãos grandes parecem luvas de beisebol projetando-se das mangas de um blusão vermelho da Nascar. Um boné da Nascar cobre sua careca, e ele usa ridículos óculos de aro de metal do tamanho usado por Elvis. Seu rosto carnudo está sulcado pela insatisfação e tem a aparência preguiçosa e avermelhada de dissipação crônica, e sinto um sobressalto ao me dar conta de como ele é infeliz em seu corpo, de quanto ele combate a carne que agora lhe decepciona tanto. Marino me faz pensar em alguém que cuidou muito mal de seu carro, forçandoo demais, deixando-o enferrujar e se desmanchar, e depois odiando-o violentamente. Imagino Marino fechando o capô com toda força e chutando os pneus.
Trabalhamos em nosso primeiro caso juntos logo depois que eu me mudei de Miami para cá, e desde o começo ele foi grosseiro, condescendente e positivamente chato. Eu tinha certeza de que, ao aceitar o cargo de legista-chefe da Virgínia, havia cometido o maior erro de minha vida. Em Miami, eu conquistara o respeito dos órgãos policiais e da comunidade médica e científica. A imprensa me tratava razoavelmente bem e eu desfrutava de uma ascensão a um estrelato de pequena grandeza que me dava confiança e tranqüilidade. O gênero não parecia ser um problema até eu conhecer Peter Marino, filho de uma família de trabalhadores italianos esforçados de New Jersey, ex-policial de Nova York, agora divorciado da namorada de infância, pai de um filho sobre o qual nunca fala. Ele parece a iluminação excessiva de um camarim. Eu estava relativamente confortável comigo mesma até ver meu reflexo nele. Neste instante, estou perturbada o bastante para aceitar que as falhas que ele me atribui são provavelmente verdadeiras. Ele me vê encostada na vitrine da loja, guardando o celular na bolsa, as sacolas de compras a meus pés, e aceno para ele. Marino manobra sua corpulência entre pessoas simpáticas que no momento não estão pensando em assassinos, julgamentos ou promotores de Nova York. “O que você está fazendo aqui?”, ele me pergunta, como se eu estivesse invadindo um local proibido. “Comprando seu presente de Natal”, digo. Ele dá outra mordida no pretzel. Ao que parece, foi a única coisa que comprou. “E você?”, indago. “Vim sentar no colo de Papai Noel e tirar uma foto.” “Não pare por minha causa.” “Bipei para Lucy. Ela me disse onde você provavelmente estava neste zoológico. Achei que talvez precisasse de alguém para carregar as sacolas, já que está meio desprovida de braços no momento. Como você vai fazer autópsias com essa coisa?” Ele indica meu gesso. Sei por que ele está aqui. Detecto o bramido distante de informação que vem em minha direção como uma avalanche. Suspiro. Lenta, mas seguramente, estou me rendendo ao fato de que minha vida só vai piorar. “Tá bom, Marino, o que foi?”, pergunto. “O que aconteceu agora?” “Doutora, vai estar no jornal amanhã.” Ele se abaixa para pegar minhas sacolas. “Righter me ligou agora há pouco. O DNA bate. Parece que o Lobisomem atacou a moça do tempo em Nova York há dois anos, e aparentemente o babaca decidiu que está forte o suficiente para deixar a Faculdade de Medicina da Virgínia e não vai lutar contra a extradição para a Big Apple — feliz da vida de sair depressinha da Virgínia. É uma coincidência estranha o filho-da-puta decidir deixar a cidade no mesmo dia do serviço em memória de Bray.” “Que serviço é esse?” Pensamentos se chocam vindos de todas as direções. “Na St. Bridget.” Eu também não sabia que Bray era católica e por acaso freqüentava a igreja da qual faço parte. Uma sensação sinistra me sobe pela espinha. Não importa qual mundo eu ocupe, parecia que a missão dela era invadi-lo e me eclipsar. Que ela pudesse sequer ter tentado fazer isso em minha modesta igreja
me lembra de como ela era absolutamente cruel e arrogante. “Então Chandonne é transportado para fora de Richmond no mesmo dia em que devemos dar adeus à última mulher que ele assassinou”, continua Marino, de olho em cada comprador que passa por nós. “Não acho que a escolha do momento seja coincidência. A cada movimento que ele fizer, a imprensa vai correr para lá como um rebanho. Então ele vai ofuscar Bray, surrupiar o brado dela, porque a mídia vai estar muito mais interessada no que ele está fazendo do que em quem aparece para mostrar consideração por uma de suas vítimas. Se alguém aparecer por lá. Eu sei que não vou, não depois de toda a merda que ela fez para tornar minha vida feliz. Ah, e é claro que enquanto estamos aqui conversando Berger está vindo para cá. Imagino que com um nome desses ela provavelmente não festeja o Natal”, ele acrescenta. Localizamos Lucy ao mesmo tempo que uma gangue de garotos barulhentos e agitados. Eles têm cortes de cabelo hiperdescolados, usam jeans cargo praticamente abaixo da virilha e fazem exageradas caras de espanto, babando por minha sobrinha, que usa legging preta, botas militares desgastadas e uma jaqueta de piloto antiga que resgatou de algum brechó de roupas de época. Marino lança a seus admiradores um olhar que seria mortal se o clarão de ódio no coração de uma pessoa pudesse penetrar a pele e perfurar órgãos vitais. Os garotos andam aos soquinhos, gingam, arrastando os pés em enormes tênis de basquete de couro, e eu penso em filhotes de cachorro que ainda não conseguem se sustentar sobre as patas. “O que você comprou para mim?”, Marino pergunta a Lucy. “Um suprimento de um ano de raiz de maca.” “Que diabo é raiz de maca?” “Na próxima vez que você for jogar boliche com uma mulher realmente gostosa, vai apreciar meu presente”, diz ela. “Você não comprou mesmo isso para ele.” Quase acredito nela. Marino bufa. Lucy ri, parecendo jovial demais para quem está prestes a ser demitida, milionária ou não. Quando saímos para o estacionamento, o ar está úmido e muito frio. Faróis cegam minha visão no escuro, e em todos os lugares para onde olho só vejo carros e pessoas apressados. Festões prateados bruxuleiam nos postes de iluminação, e os motoristas circulam como tubarões, procurando vagas perto das entradas do shopping, como se andar algumas centenas de metros fosse a pior coisa que pudesse acontecer a uma pessoa. “Odeio esta época do ano. Eu queria ser judia”, comenta Lucy com ironia, como se soubesse da alusão feita há pouco por Marino à etnia de Berger. “Berger era promotora distrital quando você começou em Nova York?”, pergunto-lhe enquanto ele põe meus pacotes na velha Suburban verde de Lucy. “Tinha acabado de começar.” Ele fecha a porta traseira. “Nunca fui apresentado a ela.” “O que você soube dela?”, pergunto. “Realmente gostosa, com tetas enormes.” “Marino, você é tão evoluído”, diz Lucy. “Ei.” Ele balança a cabeça ao se despedir. “Não me pergunte uma coisa se você não quer saber a resposta.”
Vejo seu corpanzil indistinto se mover no meio de uma confusão de faróis, compradores e sombras. O céu está leitoso à luz de uma lua imperfeita, e a neve cai em flocos pequenos e lentos. Lucy sai da vaga e entra com cuidado numa fila de carros. Em seu chaveiro, balança um medalhão de prata gravado com o logo das Whirly-Girls, um nome aparentemente frívolo para uma associação internacional muito séria de mulheres que pilotam helicóptero. Lucy, que não se associa a nada, é uma associada ardorosa, e me sinto agradecida porque, apesar de tudo o mais estar dando errado, pelo menos o presente de Natal dela está guardado com segurança em uma de minhas sacolas. Meses atrás, conspirei com a joalheria Schwarzchild’s para que eles fizessem um colar de ouro das WhirlyGirls para Lucy. O momento é perfeito, especialmente considerando as recentes revelações sobre os planos de vida dela. “O que exatamente você vai fazer com seu helicóptero? Você vai mesmo ter um?”, pergunto. Em parte, quero desviar a conversa de Nova York e Berger. Ainda estou irritada pelo que Jack disse ao telefone, e uma sombra caiu sobre minha psique. Algo mais me incomoda e não estou bem certa do que é. “Um Bell quatro-zero-sete, é, vou ter um.” Lucy mergulha numa sucessão infindável de lanternas vermelhas que flui preguiçosamente pela Parham Road. “O que eu planejo fazer com ele? Voar, é isso. E usá-lo na empresa.” “Quanto a essa nova atividade, o que vai acontecer agora?” “Bom, Teun está morando em Nova York. Então minha nova sede vai ser lá.” “Me fale mais sobre Teun”, sugiro. “Ela tem família? Onde ela vai passar o Natal?” Lucy dirige olhando fixo para a frente, sempre o piloto sério. “Me deixe voltar um pouco atrás, lhe contar uma historinha, tia Kay. Quando ela soube do tiroteio em Miami, entrou em contato comigo. Então eu fui a Nova York na semana seguinte e passei por momentos muitos difíceis.” Eu me lembro muito bem. Lucy desapareceu, deixando-me em pânico. Eu a localizei por telefone em Greenwich Village, onde ela estava no Rubyfruit, na Hudson, um lugar badalado no Village. Lucy estava transtornada. E bebendo. Achei que estava com raiva e magoada por causa de problemas com Jo. Agora a história está mudando bem diante de meus olhos. Lucy está envolvida financeiramente com Teun McGovern desde o último verão, mas foi só nesse incidente em Nova York na semana passada que ela tomou a decisão de mudar toda a sua vida. “Ann me pergunta se há alguém para quem ela possa ligar”, Lucy explica. “Eu não estava exatamente com disposição para voltar para meu hotel.” “Ann?” “Uma ex-policial. É a dona do bar.” “Ah, tudo bem.” “Confesso que eu estava muito cansada, e disse a Ann para tentar Teun”, diz Lucy. “A próxima coisa de que me lembro é Teun entrando no bar. Ela me encheu de café e nós ficamos a noite toda conversando. Principalmente sobre minha situação com Jo, com o ATF, com tudo. Eu não estava feliz.” Ela olha para mim. “Acho que estou pronta para uma mudança há muito, muito tempo.
Naquela noite tomei uma decisão. Ela já estava tomada mesmo antes de essa outra coisa acontecer.” Essa outra coisa quer dizer Chandonne tentar me matar. “Graças a Deus Teun estava lá comigo.” Ela não se refere ao bar. Está falando de McGovern estar lá em geral, e sinto a felicidade se irradiar de algum espaço profundo em seu âmago. A psicologia comum dita que outras pessoas e tarefas não podem fazer você feliz. Você próprio tem de se fazer feliz. Mas isso não é totalmente verdade. Ao que parece, McGovern e A Última Delegacia fazem Lucy feliz. “E já fazia algum tempo que você estava envolvida com A Última Delegacia?” Estimulo-a a continuar com a história. “Desde o último verão? Foi aí que surgiu a idéia?” “Começou como uma piada nos velhos tempos, em Filadélfia, quando Teun e eu ficamos quase enlouquecidas por burocratas lobotomizados, por pessoas que só atrapalhavam, por assistir como vítimas inocentes são trituradas pelo sistema. Nós imaginamos uma organização fictícia que apelidei de A Última Delegacia. Nós dizíamos: Aonde você vai quando não há nenhum lugar para ir?”. Seu sorriso é forçado e sinto que sua novidade entusiasmada está prestes a ganhar nuances questionáveis. Lucy vai me dizer algo que não quero ouvir. “Acho que você percebe que isso significa que preciso me mudar para Nova York”, ela diz. “Logo.” Righter cedeu o caso a Nova York e agora Lucy vai se mudar para Nova York . Aumento o aquecimento e aperto mais o casaco em volta do corpo. “Acho que Teun encontrou um apartamento para mim no Upper East Side. A uns cinco minutos a pé do parque. Na 67 com a Lexington”, ela diz. “Foi rápido”, comento. “E é perto de onde Susan Pless foi morta”, acrescento, como se esse fosse um sinal agourento. “Por que essa parte da cidade? O escritório de Teun fica perto de lá?” “A alguns quarteirões. Ela está a apenas algumas portas da décima nona delegacia, e aparentemente conhece alguns caras do Departamento de Polícia de Nova York que trabalham naquela área.” “E Teun nunca tinha ouvido falar em Susan Pless, nesse assassinato? É estranho pensar que ela foi parar a apenas algumas quadras de lá.” Sou arrastada pela negatividade. Não consigo evitar. “Ela sabe sobre o assassinato porque nós discutimos o que está acontecendo com você”, Lucy responde. “Antes disso ela nunca tinha ouvido falar no caso. Nem eu. Imagino que a preocupação de nossa vizinhança é o Estuprador do East Side, e na verdade isso foi uma coisa em que nos envolvemos. Esses estupros vêm acontecendo há uns cinco anos, o mesmo cara, gosta de louras de trinta a quarenta e poucos anos, normalmente elas tomaram alguns drinques, acabaram de sair do bar, e ele as ataca quando elas estão indo para seus apartamentos. O primeiro DNA De John Doe* de Nova York. Temos seu DNA, mas não temos uma identidade.” Todos os caminhos parecem levar a Jaime Berger. O Estuprador do East Side seria com toda certeza um caso de alta prioridade para o gabinete dela. “Vou pintar meu cabelo de louro e começar a ir a pé para casa tarde da noite”, Lucy ironiza, e acredito que ela seria capaz de fazer isso. Quero dizer a Lucy que o caminho que ela escolheu é estimulante e que
estou animada por ela, mas as palavras não saem. Ela morou em muitos lugares que não ficam perto de Richmond, mas, por alguma razão, agora parece que finalmente está saindo de casa de vez, que é uma adulta. De repente viro minha mãe, criticando, apontando os inconvenientes, as desvantagens, levantando o tapete para olhar aquele canto que não vi quando limpei a casa, olhando meu boletim cheio de As e comentando que vergonha é eu não ter amigos, provando o que cozinho e achando que falta alguma coisa. “O que você vai fazer com seu helicóptero? Vai mantê-lo lá?”, ouço-me dizer a minha sobrinha. “Parece que isso vai ser um problema.” “Provavelmente em Teterboro.” “Então você vai ter de ir até New Jersey quando quiser voar?” “Não é tão longe.” “E também tem o custo de vida lá. E você e Teun...”, persisto. “Qual o problema com Teun e eu?” A voz de Lucy perdeu a animação. “Por que você fica insistindo nisso?” A raiva aparece. “Eu não trabalho mais para ela. Ela não é mais do ATF nem minha supervisora. Não há nada de errado em sermos amigas.” Minhas impressões digitais estão por toda a cena do crime de seu desapontamento, sua mágoa. Pior, os ecos de Dorothy estão em minha voz. Estou envergonhada de mim mesma, profundamente envergonhada. “Lucy, me desculpe.” Estendo o braço e pego a mão dela com as pontas dos dedos de minha mão engessada. “Não quero que você vá embora. Estou me sentindo egoísta. Estou sendo egoísta. Me desculpe.” “Eu não vou deixar você. Vou ficar indo e voltando. São só duas horas de helicóptero. Está tudo bem.” Ela olha para mim. “Por que você não vem trabalhar com a gente, tia Kay?” Ela expõe o que posso perceber que não é uma idéia nova. Obviamente, ela e McGovern discutiram muito sobre mim, inclusive meu possível papel na empresa delas. Essa percepção me dá uma sensação peculiar. Resisti a contemplar meu futuro e de repente ele surge diante de mim como uma grande tela vazia. Embora em minha mente eu saiba que o modo como vivi até agora é passado, ainda não aceitei essa verdade em meu coração. “Por que você não se estabelece por conta própria em vez de esperar o Estado dizer a você o que fazer?”, continua Lucy. “Você alguma vez pensou nisso a sério?” “Esse sempre foi o plano para depois”, respondo. “Bom, o depois está aqui”, ela me diz. “O século XX termina exatamente em nove dias.”
(*) John Doe: nome usado nos Estados Unidos, para homens cuja identidade é desconhecida ou mantida em segredo, especialmente em tribunais (no caso de mulheres, usa-se Jane Doe). (N. T.)
7
É quase meia-noite. Estou sentada diante da lareira na cadeira de balanço entalhada à mão que é a única sugestão de rusticidade na casa de Anna. Ela pôs sua cadeira em um ângulo deliberado para que possa olhar para mim mas eu não tenha de olhar para ela, se eu me vir numa descoberta sensível de minha própria evidência psicológica. Aprendi ultimamente que nunca sei o que posso encontrar durante minhas conversas com Anna, como se eu fosse uma cena de crime que investigo pela primeira vez. As luzes estão apagadas na sala de estar, a lareira, em seus estágios finais de apagamento. A incandescência se espalha por carvões crepitantes que emitem tons de laranja enquanto conto a Anna sobre uma noite de domingo em novembro, pouco mais de um ano atrás, quando Benton demonstrou por mim um ódio que não lhe era característico. “Quando você diz que não era característico, quer dizer o quê?”, pergunta Anna, em seu tom grave e calmo. “Ele estava acostumado com minhas peregrinações tarde da noite quando eu não conseguia me aquietar, quando ficava acordada até tarde e trabalhava. Na noite em questão ele caiu no sono enquanto lia na cama. Isso não era incomum, e era minha deixa de que agora eu podia usar o tempo como quisesse. Anseio pelo silêncio, a solidão absoluta que se instala quando o resto do mundo está inconsciente e não precisa de algo de mim.” “Você sempre sentiu essa necessidade?” “Sempre”, digo a ela. “É quando me animo. Entro em mim mesma quando estou absolutamente só. Preciso do tempo. Tenho de tê-lo.” “O que aconteceu na noite que você menciona?”, ela pergunta. “Eu me levantei e tirei o livro do colo dele, apaguei a luz”, respondo. “O que ele estava lendo?” A pergunta dela me pega de surpresa. Tenho de pensar. Não me lembro claramente, mas me parece que Benton estava lendo sobre Jamestown, a primeira colônia inglesa na América, que fica a menos de uma hora de carro a leste de Richmond. Ele estava muito interessado em história e tinha se especializado em história e psicologia na faculdade, e depois sua curiosidade a respeito de Jamestown foi inflamada quando arqueólogos começaram a fazer escavações lá e descobriram o forte original. Lentamente tudo volta a minha mente: o livro que Benton estava lendo na cama era uma coletânea de narrativas, muitas delas escritas por John Smith. Não me recordo do título, digo a Anna. Suponho que o livro ainda está em algum lugar de minha casa, e a idéia de deparar com ele um dia desses me aflige. Prossigo com minha história. “Saí do quarto, fechei a porta sem fazer barulho e fui pelo corredor até meu escritório”, digo. “Você sabe que quando faço autópsias tiro secções de cada órgão e às vezes de ferimentos também. O tecido vai para o laboratório de histologia, para que sejam feitas lâminas que tenho de revisar. Nunca consigo manter em dia os ditados usando o microgravador e costumo levar pastas de
lâminas para casa, e é claro que a polícia me perguntou sobre tudo isso. É engraçado, mas minhas atividades normais parecem mundanas e inquestionáveis até serem inspecionadas por outros. É aí que percebo que não vivo como as outras pessoas.” “Por que você acha que a polícia queria saber sobre as lâminas que você poderia ter em casa?”, pergunta Anna. “Porque eles queriam saber de tudo.” Volto a minha história sobre Benton, descrevendo que estava em meu escritório, curvada sobre o microscópio, perdida em neurônios tingidos de metal pesado que pareciam um enxame de criaturas roxas e douradas de um olho só, com tentáculos. Senti uma presença atrás de mim e ao me virar vi Benton parado na soleira da porta, o rosto tomado por um brilho lúgubre e agourento, como fogo-de-santelmo antes de um raio cair. Não consegue dormir?, ele me perguntou, num tom indelicado e sarcástico que não parecia o dele. Empurrei a cadeira para longe de meu poderoso microscópio Nikon. Se você conseguir ensinar essa coisa a trepar , não vai precisar de mim para nada, ele disse, e seus olhos me fuzilaram com a fúria brilhante das células que eu estava olhando. Vestido só com a calça do pijama, Benton estava pálido na meia-luz que emanava do abajur em minha escrivaninha, seu peito arfante e molhado de suor, as veias encordoadas em seus braços, o cabelo prateado grudado na testa. Perguntei a ele qual era o problema afinal, e ele me mandou voltar para a cama, me cutucando com o dedo. Nesse momento Anna me interrompe. “Não houve nada antes disso? Nenhum tipo de aviso?” Ela também conhecia Benton. Esse não era ele. Era um alienígena que invadira o corpo de Benton. “Nada”, respondo. “Nenhum aviso.” Eu me balanço lentamente, sem parar. A madeira incandescente pipoca. “O último lugar para onde eu queria ir com ele naquele momento era a cama. Talvez ele tenha sido o principal especialista em perfil psicológico do FBI, mas, apesar de todas as suas façanhas na leitura de outras pessoas, ele conseguia ser frio e fechado como uma pedra. Eu não tinha a intenção de ficar olhando para o escuro a noite toda enquanto ele ficava deitado de costas para mim, mudo, mal respirando. Mas violento e cruel ele não era. Ele nunca me falara de maneira tão degradante e ofensiva. Podia não haver outras coisas entre nós, Anna, mas havia respeito. Nós sempre nos tratamos com respeito.” “E ele disse a você o que havia de errado?” Sorrio com amargura. “Quando ele fez o comentário grosseiro sobre eu ensinar meu microscópio a trepar, isso me disse.” Benton e eu nos sentíamos à vontade vivendo na minha casa, mas ele nunca deixou de se sentir um hóspede. A casa é minha e tudo nela é meu. No último ano de vida, ele estava desiludido com a carreira, e quando reflito sobre aquele período agora percebo que ele estava cansado, sem propósito e com medo de ficar velho. Tudo isso minou nossa intimidade. A parte sexual de nosso relacionamento virou um aeroporto abandonado que parecia normal de longe, mas não tinha ninguém na torre de controle. Nenhuma aterrissagem, nenhuma decolagem, só um precário contato
ocasional, porque achávamos que devíamos, por causa da acessibilidade e do hábito, imagino.” “Quando vocês faziam sexo, quem normalmente tomava a iniciativa?”, pergunta Anna. “No fim, só ele. Mais por desespero do que por desejo. Talvez até por frustração. É, frustração”, concluo. Anna me observa, seu rosto em sombras que se aprofundam à medida que o fogo morre. Seu cotovelo está apoiado no braço da poltrona, o queixo descansa sobre o indicador, numa pose que ficou associada aos momentos intensos que passamos juntas nas últimas noites. A sala de estar dela se tornou um confessionário escuro onde consigo estar emocionalmente recém-nascida e nua e não sentir vergonha. Não vejo nossas sessões como terapia, e sim como um sacerdócio de amizade que é sagrado e seguro. Comecei a contar a outro ser humano como sou. “Vamos voltar à noite em que ele ficou tão irritado”, Anna pilota. “Você consegue se lembrar de quando exatamente foi isso?” “Apenas algumas semanas antes de ele ser assassinado.” Falo calmamente, hipnotizada por carvões que parecem pele de jacaré em brasa. “Benton sabia de minha necessidade de espaço. Mesmo nas noites em que transávamos, não era incomum eu esperar até que ele dormisse e me levantar furtivamente, como uma adúltera, para ir ao meu escritório. Ele era compreensivo com minhas infidelidades.” Sinto que Anna sorri no escuro. “Raramente ele se queixava quando esticava o braço para me tocar e sentia um espaço vazio no meu lado da cama”, explico. “Ele aceitava minha necessidade de ficar sozinha, ou parecia que aceitava. Eu nunca soube como meus hábitos noturnos o magoavam, até aquela noite em que ele entrou em meu escritório.” “Eram realmente seus hábitos noturnos?”, indaga Anna. “Ou seu distanciamento?” “Eu não me vejo como uma pessoa distanciada.” “Você se vê como alguém que se liga aos outros?” Analiso, buscando em todos os lugares dentro de mim uma verdade que sempre temi. “Você se ligou a Benton?”, prossegue Anna. “Vamos começar por ele. Ele foi seu relacionamento mais significativo. Certamente foi o mais longo.” “Se eu me liguei a ele?” Encaro a pergunta como uma bola de tênis que estou prestes a sacar, sem ter certeza do ângulo, do efeito ou da força. “Sim e não. Benton foi um dos homens mais atraentes e mais gentis que conheci. Sensível. Profundo e inteligente. Eu podia falar com ele sobre qualquer coisa.” “Mas falava? Tenho a impressão de que não falava.” É claro que Anna está me sacando muito bem. Suspiro. “Não tenho certeza se alguma vez falei com alguém sobre absolutamente qualquer coisa.” “Talvez Benton fosse digno de confiança”, ela sugere. “Talvez”, retruco. “Sei que havia lugares profundos em mim que ele nunca alcançou. E eu também não queria que ele fizesse isso, não queria que houvesse algo tão intenso, tão próximo. Suponho que o fato de termos começado como
começamos explique isso em parte. Ele era casado. Sempre voltava para casa, para a mulher dele, Connie. Isso aconteceu durante anos. Nós estávamos em lados opostos de uma parede, separados, só nos tocando quando conseguíamos saltar acima dela. Meu Deus, eu jamais faria isso de novo, não importa com quem.” “Culpa?” “Claro”, respondo. “Todo bom católico sente culpa. No começo, eu me sentia terrivelmente culpada. Nunca fui do tipo que infringe regras. Não sou como Lucy, ou talvez eu deva dizer que ela não é como eu. Se as regras são irracionais e ignorantes, ela as infringe a torto e a direito. Droga, eu não levo nem multa por excesso de velocidade, Anna.” Nesse momento ela se inclina para a frente e ergue a mão. É seu sinal. Eu disse algo importante. “Regras”, ela diz. “O que são regras?” “Uma definição? Você quer uma definição de regras?” “O que são as regras para você? Sim, quero sua definição.” “Certo e errado”, respondo. “O que é legal versus o que é ilegal. Moral versus imoral. Humano versus desumano.” “Dormir com uma pessoa casada é imoral, errado, desumano?” “No mínimo é estúpido. Mas é errado, sim. Não um erro fatal, nem um pecado imperdoável, nem ilegal, mas é desonesto. Sim, definitivamente desonesto. É infringir uma regra, sim.” “Então você admite que é capaz de praticar uma desonestidade.” “Admito que sou capaz de ser estúpida.” “E desonesta?” Ela não me deixa fugir da questão. “Todo mundo é capaz de qualquer coisa. Meu caso com Benton era desonesto. Eu indiretamente menti porque escondi o que estava fazendo. Apresentei uma fachada aos outros, inclusive a Connie, que era falsa. Simplesmente falsa. Então eu sou capaz de enganar, de mentir? É evidente que sou.” A confissão me deprime profundamente. “E quanto ao homicídio? Qual é a regra para o homicídio? Errado? Imoral? É sempre errado matar? Você matou”, diz Anna. “Para me defender.” Quanto a isso me sinto forte e segura. “Só quando não tinha nenhuma escolha, porque a pessoa ia me matar ou matar mais alguém.” “Você cometeu um pecado? Não matarás.” “Absolutamente não.” Agora estou ficando frustrada. “É fácil fazer julgamentos sobre questões que se olha de longe, do ponto de vista da moralidade e do idealismo. É diferente quando você é confrontada por um assassino que está segurando uma faca encostada na garganta de outra pessoa ou tentando pegar uma pistola para matar você. O pecado seria não fazer nada, permitir que uma pessoa inocente morresse. Não sinto nenhum remorso”, digo a Anna. “O que você sente?” Fecho os olhos por um momento, a luz da lareira atravessando minhas pálpebras. “Náusea. Não consigo pensar naquelas mortes sem ficar nauseada. O que eu fiz não foi errado. Não tive escolha. Mas eu também não chamaria isso de certo, imagino que você entenda a diferença. Quando Temple Gault estava se
esvaindo em sangue na minha frente e implorando minha ajuda, não tenho realmente palavras para descrever como me senti, nem como me sinto agora ao me lembrar daquilo.” “Isso aconteceu no túnel do metrô em Nova York. Há uns quatro ou cinco anos?”, ela pergunta, e eu concordo com a cabeça. “O ex-parceiro de Carrie Grethen no crime. Gault era o mentor dela, em certo sentido. Está certo?” Concordo de novo. “Interessante”, diz ela. “Você matou o parceiro de Carrie e depois ela matou o seu. Uma ligação, talvez?” “Não faço a menor idéia. Nunca olhei para isso dessa maneira.” A idéia me deixa chocada. Nunca me ocorreu e agora parece tão óbvia. “Gault mereceu morrer, na sua opinião?”, ela pergunta. “Algumas pessoas diriam que ele perdeu o direito de viver neste mundo e que estamos muito melhor sem ele. Mas, meu Deus, eu não teria escolhido ser a pessoa que executaria a sentença, Anna. Nunca, nunca. O sangue estava jorrando dos dedos dele. Eu vi medo em seus olhos, terror, pânico, o demônio que havia nele tinha sumido. Ele era apenas um ser humano morrendo. E eu tinha causado aquilo. E ele chorava e implorava que eu fizesse o sangramento parar.” Parei de balançar a cadeira. Sinto toda a atenção de Anna em mim. “Sim”, digo finalmente. “Sim, é horrível. Simplesmente horrível. Às vezes eu sonho com ele. Como eu o matei, ele sempre fará parte de mim. Esse é o preço que eu pago.” “E Jean-Baptiste Chandonne?” “Eu não quero machucar mais ninguém.” Olho fixamente para o fogo que se extingue. “Pelo menos ele está vivo?” “Isso não me traz nenhum alívio. Como é que eu posso me consolar? Pessoas como ele não param de machucar os outros, mesmo depois que estão presas. O demônio continua vivo. Esse é meu enigma. Não quero que elas morram, mas conheço o dano que causam enquanto estão vivas. Por qualquer lado que você encare a coisa, é um jogo de perde-perde”, digo a Anna. Ela não diz nada. Seu método é oferecer mais silêncios do que opiniões. O desgosto palpita em meu peito e meu coração bate em um staccato de medo. “Suponho que eu seria punida se tivesse matado Chandonne”, acrescento. “Sem dúvida serei punida porque não o fiz.” “Você não pôde salvar a vida de Benton.” A voz de Anna preenche o espaço entre nós. Balanço a cabeça enquanto meus olhos se enchem de lágrimas. “Você acha que devia ter conseguido defendê-lo, também?”, ela pergunta. Engulo em seco, e espasmos dessa perda agonizante me roubam a capacidade de falar. “Você não o ajudou, Kay? E agora sua penitência é erradicar os monstros, talvez? Fazer isso por Benton, porque você deixou os monstros o matarem? Porque você não o salvou?” Minha impotência, meu ultraje fervem. “Ele próprio não se salvou, danese. Benton caminhou para seu assassinato como um cachorro ou um gato caminham para morrer, porque era hora. Droga!” Ponho tudo para fora. “Droga! Benton estava sempre reclamando de rugas, e incômodos, e dores, mesmo durante os primeiros anos de nosso relacionamento. Você sabe que ele
era mais velho do que eu. Talvez por isso envelhecer o ameaçasse mais. Não sei. Mas quando ele estava com quarenta e poucos anos, não conseguia olhar para o espelho sem balançar a cabeça e se queixar. ‘Não quero ficar velho, Kay.’ Era isso o que ele dizia. “Me lembro de uma vez, no fim da tarde, quando estávamos tomando banho juntos e ele se queixava de seu corpo. ‘Ninguém quer ficar velho’, eu disse a ele. ‘Mas eu não quero mesmo — a ponto de pensar que não consigo sobreviver a isso’, ele respondeu. ‘Nós temos de sobreviver à velhice. É egoísta não fazer isso, Benton’, eu disse. ‘E, além disso, nós não sobrevivemos à juventude?’ Ah! Ele achou que eu estava sendo irônica. E eu não estava. Perguntei a ele quantos dias de nossa juventude tinham sido gastos esperando pelo amanhã. Porque de algum modo o amanhã ia ser melhor. Ele pensou nisso por um momento enquanto me puxava mais para perto na banheira, me tocando e me acariciando debaixo do vapor de água quente perfumada com lavanda. Naqueles dias, quando nossas células se eletrizavam instantaneamente assim que entravam em contato, ele sabia exatamente como me deixar excitada. Naquela época, quando era bom. ‘É’, ele considerou, ‘é verdade. Eu sempre esperei pelo amanhã, achando que o amanhã ia ser melhor. Isso é sobrevivência, Kay. Se você não achar que amanhã ou no próximo ano ou no ano depois do próximo vai ser melhor, para que se preocupar?’” Paro de falar por um momento, balançando a cadeira. Digo a Anna: “Bom, ele parou de se preocupar. Benton morreu porque não acreditava mais que o que havia no futuro era melhor que o passado. Não importa que tenha sido outra pessoa que tirou a vida dele. Foi Benton que decidiu”. Minhas lágrimas secaram e me sinto oca por dentro, derrotada e furiosa. A luz fraca me ilumina o rosto quando olho para o clarão da lareira. “Eu quero que você se ferre, Benton”, murmuro para carvões fumacentos. “Que se ferre por ter desistido.” “Foi por isso que você transou com Jay Talley?”, pergunta Anna. “Para ferrar Benton? Para puni-lo por deixar você, por morrer?” “Se foi isso, não foi consciente.” “Como você se sente?” Tento sentir. “Morta. Depois que Benton foi assassinado...?” Considero isso. “Morta”, concluo. “Me sinto morta. Não consegui sentir nada. Eu penso que transei com Jay...” “Não o que você pensa. O que você sente”, me lembra ela gentilmente. “Sim. O problema todo era esse. Querer sentir, ficar desesperada para sentir alguma coisa, qualquer coisa”, digo a ela. “Transar com Jay ajudou você a sentir alguma coisa, qualquer coisa?” “Eu penso que fez eu me sentir vulgar”, respondo. “Não o que você pensa”, ela me lembra outra vez. “Eu senti fome, desejo, raiva, egoísmo, liberdade. Ah, sim, liberdade.” “Liberdade da morte de Benton, ou talvez de Benton? Ele era um tanto reprimido, não era? Era cauteloso. Tinha um superego muito poderoso. Benton Wesley era um homem que fazia as coisas do modo apropriado. Como era o sexo com ele? Era apropriado?”, Anna quer saber. “Atencioso”, digo. “Gentil e sensível.”
“Ah. Atencioso. Bem, isso já é alguma coisa”, diz Anna, com uma insinuação de ironia que chama a atenção para o que acabei de revelar. “Nunca era suficientemente faminto, nunca puramente erótico.” Falo com mais franqueza. “Tenho de admitir que muitas vezes eu ficava pensando enquanto estávamos transando. É bastante ruim pensar enquanto falo com você, Anna, mas ninguém devia pensar enquanto transa. Não devia haver pensamentos, só um prazer insuportável.” “Você gosta de sexo?” Rio, surpresa. Jamais alguém me perguntou uma coisa dessas. “Ah, sim, mas varia. Já tive sexo muito bom, sexo bom, sexo certo, sexo chato, sexo ruim. O sexo é uma criatura estranha. Não tenho nem certeza do que penso do sexo. Mas espero não ter tido o premier grand cru do sexo.” Aludo ao bordeaux superior. O sexo é muito parecido com o vinho, e, para falar a verdade, meus encontros com amantes normalmente terminam na parte village do vinhedo: na parte baixa da encosta, bastante comum e de preço modesto — realmente, nada especial. “Não acredito que já tive meu melhor sexo, minha harmonia sexual mais profunda, mais erótica, com outra pessoa. Não tive, ainda não, de jeito nenhum.” Estou divagando, falando aos solavancos enquanto tento entender e argumentar comigo sobre se quero pelo menos entender. “Não sei. Bom, imagino que tenha de me perguntar como deve ser importante, de como é importante.” “Considerando como você ganha a vida, Kay, você deve saber como o sexo é importante. Sexo é poder. É vida e morte”, declara Anna. “Claro, no que você vê, estamos falando principalmente sobre um poder do qual se abusou terrivelmente. Chandonne é um bom exemplo. Ele se satisfaz sexualmente subjugando, causando sofrimento, brincando de Deus e decidindo quem vive e quem morre, e como.” “Com certeza.” “O poder o excita sexualmente. Excita a maioria das pessoas.” “É o maior afrodisíaco”, concordo. “Se as pessoas forem honestas a esse respeito.” “Diane Bray é outro exemplo. Uma mulher bela e provocante que usava seu sex appeal para subjugar, para controlar os outros. Pelo menos essa é a impressão que eu tenho”, diz Anna. “É a impressão que ela dava”, digo. “Você acha que ela tinha atração sexual por você?”, pergunta Anna. Avalio isso clinicamente. Incomodada com a idéia, mantenho-a longe de mim e a estudo como um órgão que estou dissecando. “Isso nunca me passou pela cabeça”, decido. “Então provavelmente não existia, senão eu teria captado os sinais.” Anna não me responde. “Possivelmente”, tergiverso. Anna não compra a idéia. “Você não me contou que ela tentou usar Marino para ser apresentada a você?”, ela me lembra. “Que ela queria almoçar com você, fazer amizade, conhecê-la, e tentou conseguir isso por meio dele?” “Foi o que Marino me disse”, respondo. “Porque ela tinha atração sexual por você, talvez? Isso teria sido sua
subjugação final, não seria? Se ela não só arruinasse sua carreira, mas ao fazê-lo se servisse de seu corpo e portanto se apropriasse de cada aspecto de sua existência? Não é isso o que Chandonne e outros como ele fazem? Eles também devem sentir atração. Acontece simplesmente que eles a expressam de uma forma diferente da que as outras pessoas usam. E nós sabemos o que você fez com Chandonne quando ele tentou expressar sua atração por você. Foi o maior erro dele, não? Ele a olhou com desejo e você o cegou. Pelo menos temporariamente.” Ela pára de falar, o queixo apoiado no dedo, os olhos firmes em mim. Agora estou olhando diretamente para ela. Tenho de novo aquela sensação. Quase a descreveria como um aviso. Simplesmente não consigo nomeá-la. “O que você teria feito se Diane Bray tentasse expressar sua atração sexual por você, supondo que ela existisse? Se ela tivesse lhe passado uma cantada?”, Anna continua a cavar. “Eu tenho maneiras de desviar propostas indesejadas”, respondo. “De mulheres, também?” “De qualquer pessoa.” “Então você já recebeu propostas de mulheres?” “Uma vez ou outra, ao longo dos anos.” É uma pergunta óbvia com uma resposta óbvia. Não vivo numa caverna. “Sim, certamente convivi com mulheres que mostram um interesse a que não posso corresponder”, digo. “Não pode ou não quer?” “As duas coisas.” “E como você se sente quando é uma mulher que a deseja? É diferente de quando é um homem?” “Você está tentando descobrir se eu sou homofóbica, Anna?” “Você é?” Considero isso. Vou até o mais fundo que consigo para ver se me sinto desconfortável com a homossexualidade. Sempre me apressei a garantir a Lucy que não tenho nenhum problema com relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo além das dificuldades que eles trazem. “Não tenho nenhum problema com isso”, respondo. “Realmente e verdadeiramente. Só que não é minha preferência. Não é minha escolha.” “As pessoas escolhem?” “Em certo sentido.” Disso tenho certeza. “E digo isso porque acredito que as pessoas sentem muitas atrações que não são aquilo com que se sentiriam mais à vontade, e portanto não as põem em prática. Posso entender Lucy. Eu a vi com suas namoradas e de certa forma invejo a proximidade delas, porque, embora enfrentem a dificuldade de ir contra a maioria, elas também têm a vantagem da amizade especial que as mulheres são capazes de ter entre si. É mais difícil homens e mulheres serem almas gêmeas, terem uma amizade profunda. Isso eu admito. Mas penso que a diferença importante entre mim e Lucy é que não espero ser a alma gêmea de um homem, e os homens a fazem sentir-se subjugada. E a verdadeira intimidade não pode ocorrer sem um equilíbrio de poder entre os indivíduos. Então, como não me sinto subjugada pelos homens, escolho-os fisicamente.” Anna não diz nada. “Isso é provavelmente o máximo de
entendimento que jamais terei desse assunto”, acrescento. “Nem tudo pode ser explicado. Lucy e as atrações e necessidades dela não podem ser completamente explicadas. Nem as minhas.” “Você realmente não acha que pode ser a alma gêmea de um homem? Então talvez suas expectativas sejam baixas demais? É possível?” “Muito possível.” Quase rio. “Se alguém merece ter baixas expectativas, sou eu, depois de todos os relacionamentos que ferrei”, acrescento. “Você já sentiu atração por uma mulher?”, Anna finalmente chega ao ponto. Imaginei que chegaria. “Conheci algumas mulheres muito interessantes”, admito. “Me lembro de na adolescência ter tido paixões por professoras.” “Com paixões você quer dizer sentimentos sexuais?” “Paixões envolvem sentimentos sexuais. Por mais inocentes e ingênuas que sejam. Muitas garotas se apaixonam por professoras, especialmente quando estão numa escola paroquial cujo corpo docente é formado exclusivamente por mulheres.” “Freiras.” Rio. “Sim, imagine se apaixonar por uma freira.” “Imagino que algumas dessas freiras também se apaixonam umas pelas outras”, observa Anna. Sou invadida por uma nuvem negra de incerteza e constrangimento, e um aviso se insinua em minha consciência. Não sei por que Anna está tão concentrada em sexo, particularmente sexo homossexual, e penso na possibilidade de ela ser lésbica e por isso nunca ter se casado, ou talvez estar me testando para ver como eu reagiria se finalmente, depois de tantos anos, ela me contasse a verdade a seu respeito. Fico magoada de pensar que talvez ela tenha, por medo, escondido de mim um detalhe tão importante. “Você me disse que se mudou para Richmond por amor.” É a minha vez de sondar. “E a pessoa se revelou uma perda de tempo. Por que você não voltou para a Alemanha? Por que você ficou em Richmond, Anna?” “Eu cursei medicina em Viena, e sou da Áustria, não da Alemanha”, ela me conta. “Cresci num Schloss, um castelo, que era de minha família fazia centenas de anos, perto de Linz, à margem do rio Danúbio, e durante a guerra os nazistas viviam na casa conosco. Minha mãe, meu pai, minhas duas irmãs mais velhas e meu irmão mais novo. E da janela eu podia ver a fumaça do crematório a uns quinze quilômetros de distância, em Mauthausen, um campo de concentração de péssima fama, uma imensa pedreira onde os prisioneiros eram forçados a minerar granito, subindo centenas de degraus com enormes blocos de pedra nas costas, e se eles cambaleassem eram surrados ou empurrados para o abismo. Judeus, republicanos espanhóis, russos, homossexuais. “Todos os dias, nuvens escuras de morte tingiam o horizonte, e eu via meu pai com o olhar vidrado e suspirando quando ele pensava que ninguém estava olhando. Eu podia sentir sua dor e sua profunda vergonha. Como não podíamos fazer nada a respeito do que acontecia, era fácil se refugiar na negação. A maioria dos austríacos negava o que estava acontecendo em nosso belo país. Isso para mim era imperdoável, mas não podia ser evitado. Meu pai era muito rico e
influente, mas ir contra os nazistas era terminar em um campo ou ser morto no ato. Ainda posso ouvir as risadas e o tilintar de copos em minha casa, como se aqueles monstros fossem nossos melhores amigos. Um deles começou a ir ao meu quarto à noite. Eu tinha dezessete anos. Isso durou dois anos. Eu nunca disse uma palavra porque sabia que meu pai não podia fazer nada, e suspeito que ele sabia do que ocorria. Ah, sim, estou certa disso. Eu me preocupava com que a mesma coisa acontecesse com minhas irmãs, e tenho certeza de que acontecia. Depois da guerra, concluí minha educação e conheci um estudante de música americano em Viena. Ele era um ótimo violinista, muito animado e espirituoso, e eu vim para os Estados Unidos com ele. Principalmente porque eu não conseguia mais viver na Áustria. Não conseguia viver com aquilo que minha família tinha evitado enxergar, e mesmo agora, quando vejo o campo de minha terra natal, a imagem é tingida de fumaça escura e agourenta. Às vezes eu a vejo em minha mente. Sempre.” A sala de estar de Anna está gelada, e as brasas espalhadas na lareira parecem dezenas de olhos irregulares brilhando no escuro. “O que aconteceu com o músico americano?”, pergunto a ela. “Suponho que a realidade se apresentou.” Sua voz está afetada pela tristeza. “Uma coisa era ele se apaixonar por uma jovem psiquiatra austríaca em uma das cidades mais belas e mais românticas do mundo. Outra bem diferente era trazê-la para a Virgínia, para a ex-capital dos confederados, onde as pessoas ainda têm bandeiras da Confederação por toda parte. Comecei minha residência na Faculdade de Medicina da Virgínia e James tocou na sinfônica de Richmond por vários anos. Então ele se mudou para Washington e nós rompemos. Ainda bem que não nos casamos. Pelo menos eu não tive essa complicação, nem filhos.” “E sua família?” “Minhas irmãs morreram. Tenho um irmão em Viena. Ele está envolvido em negócios bancários, como meu pai. Acho que devíamos dormir um pouco”, diz Anna. Sinto calafrios quando entro debaixo das cobertas, e estico as pernas e ponho um travesseiro debaixo de meu braço quebrado. Falar com Anna me deixou muito instável, como terra prestes a desmoronar. Sinto dores fantasmas em partes de mim que fazem parte do passado, não existem mais, e meu espírito está sobrecarregado pelo fardo adicional da história que ela contou sobre sua vida. É claro que ela não se disporia a expor seu passado para a maioria das pessoas. Uma associação com o nazismo é um estigma terrível, mesmo agora, e considerar esse fato me leva a pintar a conduta e a vida privilegiada de Anna numa tela muito diferente. Não importa que ela tivesse tão pouca possibilidade de escolher quem ficava na casa de sua família quanto tinha de opinar sobre com quem faria sexo quando tinha dezessete anos. Se outros soubessem, ela não seria perdoada. “Meu Deus”, murmuro, de olhos pregados no teto do quarto de hóspedes de Anna. “Meu querido Deus.”
8
Mesmo nos momentos em que estou mais sobrecarregada e atrapalhada, gosto do lugar onde trabalho. Estou sempre consciente de que o sistema de medicina legal que chefio é provavelmente o melhor do país, se não do mundo, e de que co-dirijo o Instituto de Ciência e Medicina Forense da Virgínia, a primeira academia de treinamento desse tipo. E posso fazer tudo isso em uma das mais avançadas instalações forenses que já conheci. Nosso novo prédio de trinta milhões de dólares, com doze mil metros quadrados, é chamado Biotech II e é o centro do Biotechnology Research Park, que transformou de forma assombrosa o centro de Richmond ao substituir implacavelmente lojas de departamento abandonadas e outras construções de madeira por elegantes edifícios de tijolo e vidro. O Biotech recuperou uma cidade que continuou a ser maltratada durante muito tempo depois de aqueles agressores nortistas terem dado o último tiro. Quando me mudei para cá, no final dos anos 1980, Richmond liderava regularmente a lista das cidades com taxas mais altas de homicídio per capita nos Estados Unidos. As empresas fugiam para condados vizinhos. Praticamente ninguém ia ao centro depois do horário de trabalho. Não se pode mais dizer isso. Notavelmente, Richmond está se tornando uma cidade de ciência e esclarecimento, e confesso que nunca achei que isso fosse possível. Confesso que odiava Richmond quando me mudei para cá, por razões muito mais profundas que a grosseria de Marino ou a falta que eu sentia de Miami. Acredito que as cidades têm personalidade; elas assumem a energia das pessoas que as ocupam e as governam. Durante sua pior época, Richmond era teimosa e intolerante, e sofria com a arrogância ferida de uma cidade decadente que agora era controlada pelas próprias pessoas que ela antes dominava ou em alguns casos possuía. Havia um exclusivismo enlouquecedor que levava pessoas como eu a sentirem-se diminuídas e solitárias. Em tudo isso eu detectava os vestígios de danos e indignidades antigos, com a mesma certeza com que os descubro em corpos. Descobria tristeza espiritual na névoa pesarosa que durante os meses do verão paira como fumaça de batalha sobre pântanos e grupos intermináveis de pinheiros esqueléticos e é arrastada ao longo do rio, envolvendo as feridas de pilhas de tijolos e fundições e campos de prisioneiros que restaram daquela guerra horrível. Eu sentia compaixão. Não desisti de Richmond. Nesta manhã, luto contra minha crença crescente de que Richmond desistiu de mim. Os topos dos edifícios do centro da cidade desapareceram em meio às nuvens, a neve torna o ar espesso. Olho para fora pela janela de minha sala, distraída por grandes flocos levados pelo vento, enquanto os telefones tocam e as pessoas passam pelo corredor. Preocupa-me a possibilidade de o governo da cidade e do estado suspenderem suas atividades. Isso não pode acontecer no primeiro dia de minha volta ao trabalho. “Rose?”, grito para minha secretária na sala ao lado. “Você está
acompanhando a previsão do tempo?” “Neve”, ela responde. “Posso imaginar. Eles ainda não suspenderam nada, não é?” Pego meu café e fico em silêncio, maravilhada com a implacável tempestade branca que tomou nossa cidade. Países das maravilhas invernais costumam adornar o município a oeste de Charlottesville e a norte de Fredericksburg, e Richmond é excluída. A explicação que sempre ouvi é que em nossa área o rio James aquece o ar apenas o suficiente para substituir a neve por chuvas geladas que se precipitam como as tropas de Grant para paralisar a Terra. “Acúmulo possivelmente de vinte centímetros. Redução no final da tarde com zonas de baixa pressão na faixa de vinte a trinta milibares.” Rose deve ter acessado uma atualização da previsão de tempo na internet. “As máximas não devem ultrapassar a temperatura de congelamento nos próximos três dias. Parece que teremos um Natal branco. Não é ótimo?” “Rose, o que você vai fazer no Natal?” “Nada demais”, ela responde. Passo os olhos por pilhas de arquivos de casos e certidões de óbito e afasto anotações de mensagens telefônicas, correspondência e memorandos internos. Não consigo ver o tampo de minha escrivaninha e não sei por onde começar. “Vinte centímetros? Vão declarar estado de emergência”, comento. “Precisamos descobrir se alguma coisa vai fechar além das escolas. O que na minha programação ainda não foi cancelado?” Rose está cansada de gritar para mim através da parede. Anda até minha sala, elegante em uma calça cinza e um suéter branco de gola alta, seu cabelo grisalho preso em uma trança. Raramente ela está sem minha agenda grande, e logo a abre. Corre o dedo sobre o que está anotado para hoje, esquadrinhando através de seus óculos de leitura. “O mais evidente é que agora temos seis casos e ainda não são nem oito horas”, ela informa. “Você foi convocada para o tribunal, mas tenho a sensação de que isso não vai acontecer.” “Qual é o caso?” “Vamos ver. Mayo Brown. Acho que não me lembro dele.” “Uma exumação”, lembro. “Homicídio por envenenamento, um caso muito duvidoso.” O caso está em algum lugar em minha escrivaninha. Começo a procurá-lo e sinto a tensão nos músculos do pescoço e dos ombros. Na última vez que vi Buford Righter em minha sala, foi para tratar desse mesmo caso, que estava fadado a não criar nada além de confusão no tribunal, mesmo depois de eu passar quatro horas explicando a ele o efeito de diluição nos níveis de droga quando o corpo é embalsamado, e que não há nenhum método satisfatório para quantificar a taxa de degradação em tecido embalsamado. Examinei os relatórios de toxicologia e preparei Righter para a defesa da diluição. O fluido de embalsamamento remove o sangue e dilui os níveis de droga, instruí-o. Portanto, se o nível de codeína do morto estiver no ponto mais baixo da escala de dose gravemente letal, antes do embalsamamento o nível só podia estar mais alto. Expliquei meticulosamente que é nisso que ele precisa se concentrar porque a defesa vai turvar as águas com a contraposição entre heroína e codeína. Estávamos sentados na mesa oval em minha sala de reuniões particular,
papéis espalhados a nossa frente. Righter tende a ficar muito descontrolado quando está confuso, frustrado ou apenas entediado. Ele permaneceu o tempo todo pegando relatórios e olhando para eles com desaprovação, depois guardando-os, bufando como uma baleia quando vem à tona. “Isso é grego”, dizia. “Como é possível fazer o júri entender coisas do tipo 6-monoacetilmorfina é um marcador para heroína, e como ele não foi detectado, isso não significa necessariamente que a heroína estava presente, mas se estivesse presente, isso significaria que a heroína também estava? Em contraposição a dizer que a codeína é medicinal?” Eu disse a ele que meu argumento era esse, justamente aquilo em que ele não queria se concentrar. Agarre-se à questão da diluição, eu disse — que o nível tinha de ser mais alto antes de a pessoa ser embalsamada. A morfina é um metabolito da heroína. E também é um metabolito da codeína e, quando a codeína é metabolizada no sangue, obtemos níveis muito baixos de morfina. Não podemos dizer nada definitivo aqui, exceto que não temos marcador para heroína, e não temos níveis de codeína e morfina, o que indica que o homem tomou alguma coisa — voluntariamente ou não — antes de morrer; pintei o cenário para ele. E era uma dose muito mais alta do que é indicado agora, por causa do embalsamamento, enfatizei mais uma vez. Mas esses resultados provam que a mulher do cara o envenenou com Tylenol Três, por exemplo? Não. Não se imobilize no beco sem saída da 6-monoacetilmorfina, eu disse vezes sem conta a Buford Righter. Percebo que estou obcecada. Sentada a minha escrivaninha, vasculho irritada pilhas de trabalho acumulado enquanto me angustio por causa da quantidade de problemas que tive de enfrentar para preparar Righter para mais um caso, prometendo que estaria lá para apoiá-lo, como sempre estive. É uma pena que ele não pareça inclinado a devolver o favor. Sou um almoço grátis. Todas as vítimas de Chandonne na Virgínia são almoços grátis. Simplesmente não posso aceitar isso e também estou começando a ficar muito ressentida com Jaime Berger. “Bom, verifique com os tribunais”, digo a Rose. “E, a propósito, ele está sendo liberado da Faculdade de Medicina da Virgínia agora de manhã.” Resisto a dizer o nome de Jean-Baptiste Chandonne. “Aguarde os telefonemas costumeiros da mídia.” “Ouvi no noticiário que uma promotora de Nova York está na cidade.” Rose folheia as páginas de minha agenda. Não quer olhar para mim. “Não seria ótimo se ela ficasse coberta de neve?” Levanto de minha escrivaninha, tiro o avental de laboratório e o penduro nas costas da cadeira. “Imagino que não recebemos nenhum chamado dela.” “Ela não ligou para cá, não para você.” Minha secretária sugere que sabe que Berger procurou Jack ou pelo menos alguém além de mim. Estou muito traquejada em manter a cabeça ocupada com as tarefas e desviar qualquer esforço da parte de outra pessoa para sondar uma área que prefiro evitar. “Para abreviar as coisas”, digo antes que Rose me dê um de seus olhares significativos, “vamos pular a reunião da equipe. Precisamos tirar esses corpos daqui antes que o tempo piore.” Rose é minha secretária há dez anos. É minha mãe no trabalho. Ela me conhece melhor do que qualquer outra pessoa, mas não abusa de sua posição me
empurrando para onde não quero ir. A curiosidade sobre Jaime Berger chia na superfície dos pensamentos de Rose. Posso ver as perguntas surgindo em seus olhos. Mas ela não pergunta. Sabe muito bem como me sinto sobre o caso ser julgado em Nova York e não aqui, e que não quero falar sobre isso. “Acho que o doutor Chong e o doutor Fielding já estão no necrotério”, ela diz. “Ainda não vi a doutora Forbes.” Ocorre-me que mesmo que o caso de Mayo Brown vá adiante hoje — mesmo que os tribunais não fechem por causa da neve —, Righter não vai me ligar. Ele vai estipular meu relatório e convocar um toxicologista para depor, no máximo. Não há maneira de Righter me encarar depois que o chamei de covarde, especialmente porque a acusação é verdadeira e uma parte dele deve saber disso. Provavelmente ele vai encontrar um jeito de me evitar pelo resto de sua vida, e esse pensamento desagradável leva a outro quando cruzo o hall. O que tudo isso me pressagia? Empurro a porta do banheiro feminino e faço a transição dos tapetes e painéis civilizados para uma série de vestiários, um mundo de riscos biológicos, desolação e ataques violentos aos sentidos. No caminho, livramo-nos dos sapatos e da roupa, guardando-os em segurança em armários com chave verdeazulados. Mantenho um par Nike especial estacionado perto da porta que dá para a sala de autópsia. Os calçados jamais devem pisar outra vez o território dos vivos, e quando for hora de me livrar deles vou queimá-los. Ponho desajeitadamente o paletó, a calça e a blusa branca de seda em cabides, meu cotovelo esquerdo latejando. Luto para me enfiar em uma beca cirúrgica Mega Shield, que tem palas frontais e mangas resistentes a vírus, costuras seladas e uma gola hermeticamente fechada que é um elegante colarinho alto. Ponho os protetores de calçados, depois touca e máscara cirúrgicas. O toque final de minha proteção contra fluidos é um escudo para o rosto, para evitar que meus olhos sejam atingidos por salpicos que contenham horrores como hepatite ou HIV. Portas de aço inoxidável abrem-se automaticamente, e meus pés fazem som de papel sobre o piso de vinil cor da pele com acabamento em epóxi do setor de autópsia, onde há risco biológico. Médicos de azul pairam sobre cinco mesas de aço inoxidável brilhante presas a pias de aço, a água correndo, tubos sugando, as radiografias em caixas de luz formando uma galeria em branco-epreto de sombras em forma de órgãos, ossos opacos e pequenos fragmentos de bala brilhantes que, como lascas de metal soltas em aviões, quebram coisas, provocam vazamentos e interrompem o funcionamento de engrenagens vitais. De grampos dentro de gabinetes de segurança, pendem cartões de amostras de DNA que foram tingidos com sangue. Secando debaixo de uma coifa, parecemse estranhamente com bandeirinhas japonesas. De monitores de TV em circuito fechado instalados nos cantos, um motor de carro ruge alto no estacionamento, uma funerária que chega para entregar ou pegar uma encomenda. Esse é meu teatro. É onde atuo. Por mais que a média das pessoas possa achar indesejáveis os odores, as visões e os sons mórbidos que correm para me saudar, sinto-me abrupta e imensamente aliviada. Meu coração se exalta quando os médicos levantam os olhos para mim e me dão bom-dia com a cabeça. Estou em meu
elemento. Em casa. Um fedor acre de fumaça infecta a comprida sala de teto alto, e localizo o corpo nu, magro e coberto de fuligem em uma maca com rodízios coberta com lençol colocada fora do local de passagem. Sozinho, frio e calado, o homem morto espera sua vez. Espera por mim. Sou a última pessoa com quem ele jamais falará em uma linguagem que importa. O nome na etiqueta do dedo do pé, rabiscado com marcador permanente, é, lamentavelmente, John Do. Alguém não conseguiu soletrar Doe corretamente. Abro um pacote de luvas de látex e fico satisfeita por conseguir enfiar uma por cima do gesso, que também está protegido pela manga à prova de fluidos. Não estou usando a tipóia e por enquanto não precisarei recorrer à mão direita para fazer autópsias. Embora ser canhota em um mundo destro traga dificuldades, não deixa de ter vantagens. Muitos de nós são ambidestros ou pelo menos razoavelmente funcionais com ambos os lados. Meus doloridos ossos fraturados emitem lembretes de que nem tudo vai bem em meu mundo, não importa com que tenacidade eu enfrente minhas tarefas, quão intensamente me concentre no trabalho. Circulo devagar meu paciente, inclinando-me para perto, olhando. Uma seringa ainda está enfiada na curva de seu braço direito, e a parte superior de seu corpo está coberta por bolhas de queimaduras de segundo grau, cujas bordas têm coloração vermelho brilhante. A pele está raiada de preto com fuligem, que é espessa dentro do nariz e da boca. Ele me diz que estava vivo quando o fogo começou. Tinha de estar respirando, para inalar fumaça. Tinha de ter pressão arterial, para que fosse bombeado fluido para dentro de suas queimaduras, para que estas formassem bolhas e tivessem a borda vermelho brilhante. As circunstâncias de um incêndio provocado e a agulha em seu braço certamente poderiam sugerir suicídio. Mas no alto de sua coxa direita ele tem uma contusão que está inchada até o tamanho de uma tangerina e é roxa. Palpo-a. Enrijecida, dura como rocha. Parece recente. Como aconteceu? A agulha está em seu braço direito, indicando que, se ele próprio aplicou a injeção, muito provavelmente é canhoto, embora o braço direito seja mais musculoso que o esquerdo, o que sugere que ele é destro. Por que ele está nu? “Ainda não temos a identificação dele?”, ergo a voz em direção a Jack Fielding. “Nenhuma outra informação.” Ele encaixa uma lâmina nova em um bisturi. “O detetive deveria estar aqui.” “Foi encontrado despido?” “É.” Corro meus dedos enluvados pelo cabelo grosso, carbonizado, do homem morto para ver de que cor ele é. Não vai ficar da cor certa até o lavarmos, mas o pêlo do corpo e os pêlos púbicos são escuros. Ele está barbeado e tem as maçãs do rosto saltadas, o nariz fino e o maxilar quadrado. As queimaduras da testa e do queixo precisarão ser cobertas com maquiagem funerária antes que possamos divulgar uma foto dele para efeito de identificação, se for o caso. Ele está totalmente rígido, braços alinhados com os lados do corpo, dedos levemente curvados. O livor mortis, ou a migração do sangue para regiões pendentes do corpo devido à força da gravidade, também está estabilizado, causando uma
vermelhidão forte nas laterais das pernas e das nádegas, cuja parte de trás está esbranquiçada onde quer que tenham sido encostadas, na parede ou no chão, depois da morte. Seguro-o inclinado sobre um dos lados do corpo para verificar ferimentos nas costas e encontro abrasões lineares paralelas sobre a omoplata. Marcas de arrasto. Há uma queimadura entre os ossos do ombro e outra na base da nuca. Grudado a uma das queimaduras, há um fragmento de um material semelhante a plástico, estreito, com cerca de cinco centímetros de comprimento, branco e com um pequeno texto impresso em azul, como os que se podem ver na parte de trás de uma embalagem de produto comestível. Removo o fragmento com fórceps e seguro-o contra a lâmpada cirúrgica. O papel parece mais um plástico fino e flexível, material que associo com embalagem de balas ou salgadinhos. Decifro as palavras este produto e 9-4 EST, um número de telefone para ligações gratuitas e um endereço de website. O fragmento vai para dentro de um saco de evidências. “Jack?”, chamo, e começo a recolher formulários em branco e diagramas corporais, prendendo-os em uma prancheta. “Não posso acreditar que você vai trabalhar com esse gesso.” Ele caminha pela sala de autópsia, os bíceps salientes espremidos nas mangas pequenas de seu jaleco. Meu assistente talvez seja famoso por seu corpo, mas nenhuma quantidade de exercícios de levantamento de peso ou de creme de chocolate Myoplex com alto teor de proteína consegue impedi-lo de perder cabelo. É sinistro, mas nas últimas semanas seu cabelo castanho-claro começou a cair diante de nossos olhos, grudando na roupa dele ou sendo levado pelo ar, como se ele estivesse na muda. Ele faz cara feia ao ver o erro de grafia na etiqueta do dedo do pé. “O cara do serviço de remoção deve ser asiático. John Dooo.” “Quem é o detetive?”, pergunto. “Stanfield. Não conheço. Não fure sua luva senão você vai passar as próximas semanas usando um risco biológico.” Ele indica meu gesso coberto de látex. “Por falar nisso, o que você faria?” “Tiraria e poria um novo.” “Então talvez devamos ter gessos descartáveis aqui.” “Estou com vontade de tirar de qualquer jeito. O padrão de queimadura desse cara não está fazendo sentido para mim”, digo a ele. “Sabemos a que distância o corpo estava do fogo?” “A cerca de três metros da cama. Me disseram que a cama é a única coisa que queimou, e só parcialmente. Ele estava nu, sentado no chão, com as costas contra a parede.” “Eu me pergunto por que só a parte superior do corpo foi queimada.” Aponto queimaduras discretas do tamanho e do formato de moedas de prata de um dólar. “Braços, peito. Tem uma aqui no ombro esquerdo. E estas no rosto. E também há várias nas costas, que deveriam ter sido poupadas se ele estava encostado na parede. E as marcas de arrasto?” “Na minha opinião, quando os bombeiros chegaram lá arrastaram o corpo para o estacionamento. Uma coisa é certa, ele devia estar inconsciente ou incapacitado quando o incêndio começou”, diz Jack. “Não consigo imaginar um
motivo para alguém ficar lá sentado se queimando e aspirando fumaça. Obviamente é essa época de boas-festas.” Meu assistente exibe uma fadiga de ressaca que me leva a suspeitar que teve uma noite muito ruim. Imagino que ele e a ex-mulher tiveram uma de suas explosões. “Todo mundo se matando. Aquela mulher ali.” Ele aponta para o corpo na mesa 1, onde o dr. Chong está montado numa escada de mão, tirando fotos. “Morta no chão da cozinha, um travesseiro, um lençol. O vizinho ouviu um tiro. A mãe a encontrou. Há um bilhete. E atrás da porta número dois” — Jack olha para a mesa 2 — “uma morte num automóvel que a polícia estadual suspeita que é um suicídio. Ela tem ferimentos por todo o corpo. O carro foi cravado numa árvore.” “As roupas dela vieram?” “Sim.” “Vamos fazer radiografias dos pés dela e pedir ao laboratório que verifique a planta dos pés, para ver se ela estava freando ou acelerando quando bateu na árvore.” Sombreio áreas de um diagrama corporal, indicando fuligem. “E temos um diabético com um histórico de overdose”, Jack recita nossa lista de hóspedes da manhã. “Foi encontrado no quintal. A questão é drogas, álcool ou exposição ao tempo.” “Ou uma combinação de tudo isso.” “Certo. Mas entendo o que você está dizendo sobre as queimaduras.” Ele se inclina para olhar mais de perto, piscando muito, o que me lembra que usa lentes de contato. “E é estranho que todas elas tenham mais ou menos o mesmo tamanho e o mesmo formato. Quer que eu a ajude nisso?” “Obrigada. Eu dou um jeito. Como você está?” Ergo a vista da prancheta. Os olhos dele estão cansados, sua beleza infantil parece tensa. “Talvez possamos sair para tomar um café”, ele diz. “Um dia desses. E eu é que devo perguntar como você está.” Dou um tapinha em seu ombro para informá-lo de que estou bem. “Bem, na medida do possível, Jack”, acrescento. Começo o exame externo de John Doe com um PERK, ou kit de recuperação de evidências físicas. Trata-se de uma tarefa decididamente desagradável, que envolve limpar orifícios, cortar as unhas da mão e arrancar cabelos da cabeça e os pêlos púbicos e de outras áreas do corpo. Nós usamos o PERK em todos os corpos nos quais haja alguma razão para suspeitar de qualquer coisa que não seja morte natural, e sempre o uso num corpo que esteja nu, a menos que haja algum motivo aceitável para que a pessoa não estivesse vestida quando morreu — na banheira ou na mesa de operação, por exemplo. Normalmente, não poupo meus pacientes de indignidades. Não posso. Às vezes as evidências mais importantes se escondem nas cavidades mais escuras, mais delicadas, e estão grudadas debaixo das unhas e do cabelo. Ao violar os lugares mais íntimos desse homem, descubro cicatrizes de lacerações em seu ânus. Ele tem abrasões nos cantos da boca. Há fibras aderidas a sua língua e à parte interna de suas bochechas. Percorro cada centímetro dele com uma lente, e a história que ele conta se torna mais suspeita. Seus cotovelos e joelhos estão levemente escoriados e cobertos com poeira e fibras, que coleto ordinariamente pressionando-as com o
lado adesivo de post-its, os quais guardo em sacos plásticos selados. Sobre as proeminências de ambos os pulsos há abrasões marrom-avermelhadas ressecadas formando circunferências incompletas e diminutas lesões de pele. Extraio sangue das veias ilíacas e fluido vítreo dos olhos, e tubos de ensaio sobem pelo elevador para o laboratório de toxicologia do terceiro andar para testes imediatos de álcool e monóxido de carbono. Às dez e meia, estou rebatendo o tecido da incisão em Y quando noto um homem alto, mais velho, vindo em direção a minha estação de trabalho. Ele tem um rosto largo e cansado e se mantém a uma distância segura de minha mesa, e traz na mão um saco de papel marrom de supermercado, cujo topo está dobrado e selado com fita vermelha usada para identificar evidências. Tenho uma visão instantânea de minhas roupas ensacadas sobre minha mesa de jantar de eucalipto avermelhado. “Detetive Stanfield, suponho.” Suspendo uma aba de pele e a solto das costelas com pequenos e rápidos golpes de bisturi. “Bom dia.” Ele se retrai quando vê o corpo. “Bom, imagino que não para ele.” Stanfield não se preocupou em colocar um traje protetor sobre seu desajeitado terno de espinha-de-peixe. Não usa luvas nem protetores de sapato. Olha para meu volumoso braço esquerdo e se abstém de perguntar como o quebrei, o que me diz que ele já sabe. Lembro-me de que minha vida esteve em todos os noticiários, que me recuso terminantemente a acompanhar. Anna meio que me acusou de ser covarde, até onde uma psiquiatra está autorizada a acusar, e na verdade ela jamais usaria a palavra “covarde”. “Negação”, é o que ela diz. Não me importo. Permaneço longe dos jornais. Não vejo nem ouço nada que seja dito a meu respeito. “Desculpe ter demorado tanto, mas as estradas estão prestes a se tornar intransitáveis, senhora”, diz Stanfield. “Espero que a senhora tenha correntes para os pneus, porque eu não tinha e fiquei preso. Tive de chamar o reboque e depois esperar colocarem as correntes, e é por isso que não cheguei aqui antes. A senhora descobriu alguma coisa?” “A taxa de CO dele é de setenta e cinco por cento.” Em linguagem popular, monóxido de carbono. “Percebeu como o sangue é vermelho-cereja? Típico em níveis altos de CO.” Pego tesouras para costelas do carrinho cirúrgico. “A taxa de álcool é zero.” “Então foi o fogo que o pegou, certo?” “Sabemos que ele tinha uma agulha no braço, mas a causa da morte é envenenamento por monóxido de carbono. Infelizmente isso não diz muita coisa.” Corto as costelas. “Ele tem alargamento anal — evidência de atividade homossexual, em outras palavras — e seus pulsos foram amarrados em algum momento anterior à morte. Parece que foi amordaçado.” Indico as escoriações nos pulsos e nos cantos da boca. Os olhos de Stanfield se arregalam. “As escoriações nos pulsos não formaram casca”, prossigo. “Não parecem velhas, em outras palavras. E como ele tem fibras na boca, pode ter certeza de que foi amordaçado na hora da morte ou perto disso.” Seguro uma lente sobre a fossa anticubital, ou curva do braço, e mostro a Stanfield duas minúsculas manchas de sangue. “Locais de injeção recentes”, explico. “Mas o interessante é que ele não
tem nenhuma marca de agulha antiga que sugira um histórico de uso de drogas. Vou enviar um pedaço de fígado para verificar se há triadite — uma inflamação do sistema de suporte estrutural do duto da artéria e da veia biliares. E vamos ver o que retorna do exame toxicológico.” “Imagino que ele podia ter AIDS.” Essa é a coisa mais importante que vem à mente do detetive Stanfield. “Vamos fazer nele um teste de HIV”, retruco. Stanfield recua mais um passo quando removo a armadura óssea triangular de costelas. Isso é uma deixa para Laura Turkel, emprestada a nós pela unidade de registro de túmulos da Base Militar de Fort Lee, em Petersburg. Ela é muito atenciosa e prestativa, e quase me bate continência quando aparece de repente na extremidade da mesa. Turk , turca, como todos a chamam, sempre se refere a mim como “Chefe”. Imagino que para ela “Chefe” é um posto, e médica, não. “Tudo pronto para eu abrir o crânio, Chefe?” Sua pergunta é um anúncio que não exige resposta. Turk é como muitas mulheres das forças armadas que vêm aqui — duronas, ansiosas, com pressa de eclipsar os homens, que, para falar a verdade, costumam ser os melindrosos. “Aquela senhora na qual o doutor Chong está trabalhando”, Turk diz enquanto conecta a serra Stryker no carretel de fio suspenso, “ela deixou um testamento e até escreveu seu próprio obituário. Deixou todos os papéis do seguro em ordem, tudo. Encadernou tudo e deixou junto com sua aliança de casamento na mesa da cozinha antes de se deitar no lençol e dar um tiro na cabeça. A senhora pode imaginar? Triste, realmente triste.” “É muito triste.” Os órgãos formam um bloco brilhante quando os suspendo juntos e os ponho numa tábua de corte. “Se você vai ficar aqui, realmente deve se cobrir.” Dirijo-me a Stanfield. “Alguém lhe mostrou onde estavam as coisas no vestiário?” Ele olha inexpressivamente para os punhos de minhas mangas encharcadas de sangue, para o sangue salpicado na frente de minha beca. “Senhora, se não se importar, eu gostaria de lhe mostrar o que consegui”, ele diz. “Será que podemos sentar um minuto? Depois eu preciso ir embora antes que o tempo piore. Daqui a pouco vai ser preciso o trenó do Papai Noel para ir a qualquer lugar.” Turk pega um bisturi e faz uma incisão em torno da parte de trás da cabeça, de orelha a orelha. Ela rebate o couro cabeludo e o puxa para a frente, e o rosto fica frouxo, desmoronando em trágico protesto antes de ficar do avesso, como uma meia dobrada. A cúpula do crânio exposta cintila imaculadamente branca, e dou uma boa olhada nela. Nenhum hematoma. Nenhum entalhe ou fratura. O zunido da serra elétrica soa como um híbrido de serra de mesa com broca de dentista enquanto tiro minhas luvas e as ponho numa lata de lixo vermelha, para material de risco biológico. Peço a Stanfield que me siga até a longa bancada que corre por toda a extensão da parede oposta às estações de autópsia. Puxamos cadeiras. “Tenho de ser honesto com a senhora”, Stanfield começa, com um lento e negativo balançar de cabeça. “Não temos nenhuma pista que sirva de ponto de partida neste caso. A única coisa que posso lhe dizer é que esse homem” — ele indica o corpo na mesa — “se registrou no Fort James Motel and Campground
ontem, às três da tarde.” “Onde exatamente fica o Fort James Motel and Campground?” “Na rodovia Cinco Oeste, a não mais de dez minutos da faculdade William and Mary.” “Você falou com a recepcionista desse motel, o Fort James Motel?” “A moça da recepção, sim, senhora, falei.” Ele abre um envelope grande de papel kraft e saca dele um punhado de fotos Polaroid. “O nome dela é Bev Kiffin.” Ele o soletra para mim, tirando óculos de leitura de um bolso interno do casaco, suas mãos tremendo levemente quando ele folheia as páginas de um bloco de notas. “Ela disse que o jovem entrou e disse que queria um especial mil seiscentos e sete.” “Perdão. Um o quê?” Deponho a esferográfica sobre as anotações que estou tomando. “Cento e sessenta dólares e setenta centavos de segunda a sexta. São cinco noites. Mil seiscentos e sete. A tarifa normal é de quarenta e seis dólares por noite, o que é muito alto para um lugar como aquele, na minha opinião. Mas a senhora conhece as armadilhas para turistas.” “Mil seiscentos e sete? Como na data em que Jamestown foi fundada?” Parece estranho ouvir uma referência a Jamestown. Acabei de mencionar Jamestown a Anna na noite passada quando falava sobre Benton. Stanfield faz que sim com um forte aceno de cabeça. “Como em Jamestown. Mil seiscentos e sete. É a tarifa executiva, pelo menos é assim que a chamam. O total para a semana de trabalho, e deixe-me acrescentar, senhora, esse não é um motel muito bom, de jeito nenhum, senhora. Eu o chamaria de pulgueiro.” “Ele tem um histórico de crimes?” “Ah, não. Não, senhora. Nenhuma história de crime que eu saiba, absolutamente.” “Apenas deteriorado.” “Apenas deteriorado”, ele concorda enfaticamente. O detetive Stanfield tem um modo característico de falar com ênfase, como quem está acostumado a ensinar uma criança lenta, que precisa que palavras importantes sejam repetidas ou enfatizadas. Ele dispõe as fotografias bem alinhadas na bancada e eu olho para elas. “Foi você quem tirou?”, suponho. “Sim, senhora, eu mesmo.” Como o detetive, o que ele captou no filme é enfático e preciso: a porta com o número 14, a vista do quarto pelo vão da porta, a cama chamuscada, os danos causados pela fumaça nas cortinas e nas paredes. Há uma única cômoda e um local para pendurar roupas que não passa de uma vareta em uma área recuada bem atrás da porta. Noto que o colchão na cama tem vestígios de cobertor e lençóis brancos, nada mais. Pergunto a Stanfield se ele enviou a roupa de cama ao laboratório para examinar a presença de catalisadores. Ele responde que não havia nada na cama que pudesse ser examinado, apenas áreas queimadas do colchão, que ele pôs dentro de uma lata de tinta hermeticamente selada — “de acordo com os procedimentos” são suas palavras exatas, as palavras de alguém muito inexperiente no trabalho de investigação. Mas ele
concorda que é estranha a ausência de roupa de cama. “Elas estavam na cama quando ele se registrou?”, pergunto. “A senhora Kiffin diz que não o acompanhou ao quarto, mas é certo que a cama estava feita adequadamente, porque ela própria a arrumou depois que o último hóspede saiu, vários dias atrás”, ele responde, o que é bom. Pelo menos ele pensou em perguntar a ela sobre isso. “E a bagagem?”, pergunto. “A vítima tinha bagagem?” “Não encontrei nenhuma bagagem.” “E quando os bombeiros chegaram lá?” “Eles foram chamados às cinco e vinte e dois da tarde.” “Quem chamou?” “Alguém que passou de carro por lá, mas não se identificou. Viu a fumaça e ligou do telefone do carro. Nesta época do ano o motel não tem muito movimento, segundo a senhora Kiffin. Ela diz que cerca de três quartos dos apartamentos estavam vazios ontem, já que é quase Natal e o tempo está ruim e tal. A senhora pode ver olhando a cama, o fogo não ia para lugar nenhum.” Ele toca várias fotografias com um dedo grosso e áspero. “Já estava quase extinto quando os caminhões dos bombeiros chegaram lá. Eles só usaram extintores, não precisaram nem tirar as mangueiras, o que é bom para nós. Estas são as roupas dele.” Ele me mostra uma fotografia de uma pilha escura de roupas no chão, perto da porta do banheiro, que está aberta. Consigo ver uma calça, uma camiseta, um casaco e sapatos. A seguir olho uma fotografia tirada dentro do banheiro. Na pia há um balde de gelo de plástico cor de cobre, copos plásticos cobertos com celofane e um pequeno sabonete ainda na embalagem. Stanfield pesca em um bolso um canivete pequeno, abre a lâmina e corta a fita para evidências que sela o saco de papel que trouxe. “As roupas dele”, ele explica. “Pelo menos eu suponho que sejam dele.” “Espere”, digo. Levanto-me e cubro uma maca com um lençol limpo, calço luvas novas e pergunto a ele se foi recuperada uma carteira ou outros objetos pessoais. Ele me diz que não. Sinto cheiro de urina quando tiro as roupas do saco, preocupada com que, se alguma evidência minúscula for desprendida, ela caia no lençol. Examino uma cueca slip e uma calça de cashmere Giorgio Armani, ambas pretas, ambas encharcadas de urina. “Ele molhou as calças”, digo a Stanfield. Ele apenas balança a cabeça e dá de ombros, mas a dúvida atravessa seus olhos — talvez dúvida contaminada por medo. Nada disso está fazendo muito sentido, mas minha sensação é clara. Este homem pode ter se hospedado sozinho, mas em algum momento outra pessoa entrou no quadro, e estou imaginando se a vítima perdeu o controle da bexiga porque estava aterrorizada. “A senhora da recepção, senhora Kiffin, se lembra de ele estar vestido assim quando se registrou?”, pergunto enquanto viro os bolsos do avesso para ver se há algo neles. Não há. “Não perguntei a ela”, responde Stanfield. “Então ele não tem nada nos bolsos. Isso é meio incomum.” “Ninguém os examinou na cena do crime?”
“Bom, eu não ensaquei as roupas, para falar a verdade. Foi outro oficial que fez isso, mas tenho certeza de que ninguém examinou os bolsos, ou pelo menos não foram encontrados objetos pessoais, senão eu saberia e os teria comigo”, ele diz. “Bem, que tal você ligar imediatamente para a senhora Kiffin e ver se ela se lembra de ele estar usando esta roupa quando se registrou?” De modo polido, digo a Stanfield que faça o seu trabalho. “E quanto a um carro? Sabemos como ele chegou ao motel?” “Até agora não apareceu nenhum veículo.” “O modo como ele estava vestido é certamente incoerente com um motel barato, detetive Stanfield.” Desenho uma calça num formulário de diagrama de roupas. O casaco preto e a camiseta preta, assim como o cinto, os sapatos e as meias, são de grifes caras, e isso me faz pensar em Jean-Baptiste Chandonne, cujos pêlos finos como os de um bebê foram encontrados por todo o corpo em decomposição de Thomas quando ele apareceu no porto de Richmond no início deste mês. Comento com Stanfield a semelhança das roupas. A teoria mais aceita, explico a ele, é que Jean-Baptiste Chandonne assassinou o irmão, Thomas, provavelmente em Antuérpia, Bélgica, e trocou de roupa com ele antes de trancar o corpo em um contêiner de carga com destino a Richmond. “Porque a senhora encontrou todos aqueles cabelos sobre os quais tenho lido no jornal?” Stanfield está tentando entender o que seria difícil mesmo para o investigador mais experiente que tenha visto tudo. “Isso e os achados microscópicos que estão relacionados a diatomáceas — algas —, compatíveis com uma região do Sena perto da casa de Chandonne na Île de Saint-Louis, em Paris.” Continuo a falar. Stanfield está completamente perdido. “Olhe, o que posso lhe dizer, detetive Stanfield, é que esse homem” — refiro-me a Jean-Baptiste Chandonne — “tem uma doença congênita muito rara e supostamente ele costumava se banhar no Sena, talvez achando que isso podia curá-lo. Temos motivos para acreditar que as roupas que estavam no corpo de seu irmão eram originalmente de Jean Baptiste. Faz sentido?” Estou desenhando um cinto e observando pela marca no couro qual furo era mais usado. “Bom, para falar a verdade”, responde Stanfield, “não tenho ouvido falar sobre nada além desse caso estranho e desse tal de Lobisomem. Quer dizer, realmente é só disso que a gente fica sabendo quando liga a TV ou pega o jornal, e eu imagino que a senhora sabe disso, e a propósito, sinto muito mesmo pelo que aconteceu com a senhora e, para falar a verdade, não consigo nem imaginar como a senhora pode estar aqui ou pensar direito. Meu Deus!” Ele balança a cabeça. “Minha mulher disse que se uma coisa como essa aparecesse em nossa porta, ele não ia precisar fazer nada com ela. Ela morria no ato, de ataque cardíaco.” Capto uma centelha de suas apreensões a meu respeito. Ele está se perguntando se estou inteiramente racional neste momento, se eu poderia estar apenas projetando — se de algum modo tudo que experimento está contaminado por Jean-Baptiste Chandonne. Puxo o diagrama de roupas da prancheta e ponhoo junto com os papéis de John Doe enquanto Stanfield digita um número que lê
em seu bloco de anotações. Observo-o enfiar um dedo na orelha que está livre, apertando os olhos, como se eles estivessem sendo feridos pelo fato de Turk estar serrando mais um crânio. Posso ouvir o que ele diz. Ele desliga e volta para onde estou enquanto lê o display de seu pager. “Bem, temos boas e más notícias”, ele anuncia. “A moça, a senhora Kiffin, se lembra de ele estar muito bem vestido, com um terno preto. Essa é a boa notícia. A má notícia é que ela também se lembra de que ele tinha uma chave na mão, uma dessas com controle remoto que muitos carros novos caros têm.” “Mas não há nenhum carro”, respondo. “Não, senhora, nenhum carro. Nem chave”, ele diz. “Parece mesmo que, o que quer que ele tenha feito, teve ajuda de alguém. A senhora acha que talvez alguém o tenha drogado e depois tentado queimá-lo para esconder as provas?” “Acho que seria melhor considerarmos seriamente a possibilidade de homicídio.” Declaro o óbvio. “Precisamos tirar as impressões digitais dele e ver se coincidem com alguém no AFIS.” O AFIS — Automated Fingerprint Identification System, ou sistema automático de identificação de impressões digitais — permite que transfiramos impressões digitais escaneadas para um computador e as comparemos com aquelas que estão em uma base de dados que tem links para todos os estados. Se esse homem morto tiver um histórico de crimes neste país, ou se suas impressões digitais estiverem na base de dados por algum outro motivo, muito provavelmente obteremos uma coincidência. Calço um par de luvas novas, fazendo o possível para cobrir o gesso que envolve minha palma da mão e meu polegar esquerdos. Tirar impressões digitais de cadáveres requer uma ferramenta simples chamada colher. Trata-se de nada mais do que um apetrecho de metal curvo com formato muito semelhante ao de um tubo oco cortado longitudinalmente. Uma tira de papel branco é enfiada através de fendas que há na colher, de modo que a superfície do papel fique curvada para acomodar os contornos de dedos que perderam a flexibilidade ou não mais obedecem à vontade de seu dono. A cada impressão digital, a tira é avançada para o próximo quadrado limpo do papel. Não é um procedimento difícil. Nem exige grande inteligência. Mas quando digo a Stanfield onde estão as colheres, ele franze o cenho, como se eu tivesse falado com ele em uma língua estrangeira. Pergunto a ele se alguma vez já tirou impressões digitais de um cadáver. Ele admite que não. “Espere”, digo, e vou até o telefone e digito o ramal do laboratório de impressões digitais. Ninguém atende. Tento a telefonista. Sou informada de que todos faltaram hoje por causa do tempo. Pego de uma gaveta uma colher e uma carimbeira. Turk enxuga as mãos do morto e eu entinto seus dedos, pressionandoos um por vez contra a tira de papel curvo. “O que posso fazer, se você não tiver nenhuma objeção”, digo a Stanfield, “é ver se a prefeitura de Richmond põe isso no AFIS para o caso não ficar parado.” Pressiono um polegar dentro da colher enquanto Stanfield observa com uma expressão antipática. Ele é uma dessas pessoas que odeiam o necrotério e não conseguem sair dele tão depressa quanto gostariam. “Parece que não há ninguém no laboratório para nos ajudar agora, e
quanto mais cedo soubermos quem é esse cara, melhor”, explico. “E eu gostaria de mandar as impressões digitais e outras informações para a Interpol, para o caso de esse homem ter ligações internacionais.” “Tudo bem”, diz Stanfield, concordando mais uma vez com a cabeça enquanto dá uma olhada em seu relógio. “Você já lidou com a Interpol?”, pergunto. “Não posso dizer que já fiz isso, senhora. Eles são uma espécie de espiões, não são?” Bipo Marino para ver se ele pode ajudar. Ele chega quarenta e cinco minutos depois, quando Stanfield já foi embora há muito tempo e Turk está pondo os órgãos seccionados de John Doe numa sacola de plástico grosso que ela vai colocar na cavidade do corpo antes de costurar a incisão em Y. “Ei, Turk”, Marino a cumprimenta quando passa pelas portas de aço abertas. “Congelando sobras de novo?” Ela olha para ele com uma sobrancelha erguida e um meio sorriso. Marino gosta de Turk. Gosta tanto que é sempre grosseiro com ela. Turk não tem a aparência que se poderia imaginar por seu apelido. É pequena, tem uma beleza limpa e uma pele cor de creme, e seus cabelos louros compridos são puxados para trás e presos num vistoso rabo-de-cavalo. Ela enfia um barbante branco encerado numa agulha de sutura tamanho doze enquanto Marino continua a provocá-la. “Pode estar certa”, ele diz, “se algum dia eu me cortar, não vou procurar você para dar os pontos, Turk .” Ela ri, enfiando a comprida agulha angulada na carne e puxando o barbante. Marino está com cara de ressaca, os olhos injetados e inchados. Apesar de seus gracejos, ele está de mau humor. “Você esqueceu de dormir ontem?”, pergunto a ele. “Mais ou menos. É uma longa história.” Ele tenta me ignorar, observando Turk e estranhamente distraído e pouco à vontade. Desamarro minha beca e tiro o protetor de rosto, a máscara e a touca cirúrgica. “Veja com que rapidez vocês conseguem pôr isso no computador”, digo a ele, toda formal e não especialmente amistosa. Ele está guardando segredos de mim e estou chateada por sua pavoneada exibição de comportamento adolescente. “A situação aqui está bem ruim, Marino.” Ele deixa de prestar atenção em Turk e se concentra em mim. Fica sério. Abandona a encenação infantil. “Que tal você me contar o que está acontecendo enquanto eu fumo?”, ele diz, olhando-me nos olhos pela primeira vez em dias. Em meu prédio não é permitido fumar, o que não impede várias pessoas muito importantes de acender cigarros em suas salas quando estão cercadas de pessoas que não vão denunciá-las. No necrotério, não me importa quem peça. Não permito fumar, ponto. Não é que nossa clientela precise se preocupar por inalar fumaça de segunda mão, minha preocupação é com os vivos, que no necrotério não devem fazer nada que exija um contato entre as mãos e a boca. Não é permitido comer, beber ou fumar, e desestimulo o ato de mascar chicletes ou chupar balas ou drops. Nossa área para fumantes consiste em duas cadeiras ao lado de um cinzeiro de pé perto das máquinas de refrigerante, na baia do estacionamento. Nesta época do ano, não é um lugar confortável para se sentar,
mas oferece privacidade. O caso do condado de James City está fora da jurisdição de Marino, mas preciso contar a ele sobre as roupas. “Tenho um pressentimento”, resumo. Sentado na cadeira de plástico, pernas abertas, ele joga a cinza em direção ao cinzeiro. Não conseguimos ver nossos bafejos. “É, eu também não gosto disso”, ele responde. “É fato que pode ser coincidência, doutora. Mas outro fato é que a família Chandonne é apavorante. O que não sabemos é o que acontecerá agora que o patinho feio deles está preso nos Estados Unidos por assassinato — agora que ele conseguiu chamar tanta atenção para seu papai Chefão e tudo mais. Essas são pessoas ruins capazes de qualquer coisa, na minha opinião. Pode acreditar em mim, estou só começando a perceber como eles são realmente maus”, ele acrescenta de forma enigmática. “Não gosto do crime organizado, doutora. De jeito nenhum. Quando eu comecei, eles administravam tudo.” Seus olhos endurecem quando ele diz isso. “E ainda fazem isso, a única diferença é que não há mais nenhuma regra, nenhum respeito. Não sei que diabo esse cara estava fazendo perto de Jamestown, mas com certeza não era turismo. E Chandonne está a apenas uns cem quilômetros de distância, no hospital. Alguma coisa está acontecendo.” “Marino, vamos pôr imediatamente a Interpol nisso”, digo. Cabe à polícia relatar informações sobre pessoas à Interpol, e para fazer isso Marino terá de entrar em contato com o oficial de ligação na polícia estadual, que vai passar informações sobre o caso ao escritório central da Interpol nos Estados Unidos, em Washington. O que vamos pedir à Interpol é que emita um alerta internacional sobre nosso caso e pesquise a enorme base de dados de informações criminais em seu secretariado-geral, em Lyon. Os alertas são codificados por cores: o vermelho significa prisão imediata com provável extradição; o azul é para alguém que é procurado, mas cuja identidade não está absolutamente clara; o verde é um alerta sobre pessoas que provavelmente vão cometer crimes, transgressores habituais, como molestadores de crianças e pornógrafos; o amarelo é para pessoas desaparecidas; e o preto é para cadáveres não identificados, aqueles que muito provavelmente são fugitivos e também são codificados em vermelho. Meu caso será meu segundo alerta preto neste ano, depois daquele, poucas semanas atrás, quando o corpo em estado avançado de decomposição de Thomas Chandonne foi descoberto em um contêiner de carga no porto de Richmond. “Tudo bem, vamos passar à Interpol uma foto, as impressões digitais e seu relatório de autópsia”, Marino anota mentalmente. “Vou fazer isso assim que sair daqui. Só espero que Stanfield não ache que estou me aproveitando do trabalho dele.” Ele diz isso mais como um aviso. Marino não se importa de estar se aproveitando do trabalho de Stanfield, mas não quer confusão. “Ele não tem pistas, Marino.” “É uma pena, porque o condado de James City tem policiais muito bons”, ele responde. “O problema é que o cunhado de Stanfield é o deputado Matthew Dinwiddie, portanto Stanfield sempre conseguiu ser bem tratado aqui e tem tanto trabalho de investigação de homicídios quanto o ursinho Pooh. Mas eu imagino que ele pôs esse em sua lista de desejos e que Dimwit,* como o chamo, deve ter
paparicado o chefe para ele fazer isso.” “Veja o que consegue fazer”, digo. Ele acende outro cigarro, seus olhos perambulando pelo estacionamento, seus pensamentos quase palpáveis. Resisto a fumar. O desejo é terrível, e me odeio por ter retomado o hábito. De algum modo, sempre penso que consigo fumar só mais um, e sempre me engano. Marino e eu partilhamos um silêncio desajeitado. Finalmente, trago à tona o assunto do caso Chandonne e o que Righter me contou no domingo. “Você vai me contar o que está acontecendo?”, digo calmamente a Marino. “Suponho que ele foi liberado do hospital hoje de manhã cedo, e suponho que você estava lá. E suponho que você se encontrou com Berger.” Ele dá uma tragada no cigarro, ganhando tempo. “É, doutora, eu estava lá. Maldito zoológico.” Suas palavras são levadas pela fumaça. “Havia até repórteres da Europa.” Ele olha para mim, e sinto que há muita coisa que ele não vai me contar, o que me deprime profundamente. “Para mim, eles deviam prender babacas como ele no Triângulo das Bermudas e não deixar ninguém falar com eles nem tirar fotos deles”, ele continua. “Não é certo, só que neste caso o cara é tão feio que provavelmente criou problemas técnicos para todo mundo, quebrou um bocado de câmeras caras. Eles o trouxeram para fora em correntes suficientes para ancorar um navio de guerra, guiando-o como se ele estivesse totalmente cego. Ele tinha ataduras sobre os olhos, fingindo que estava sentindo dores, o tempo todo.” “Você falou com ele?” Isso é o que realmente quero saber. “O show não era meu”, ele responde estranhamente, olhando para o estacionamento, tensionando os músculos do maxilar. “Estão dizendo que ele talvez tenha de fazer transplante de córnea. Porra. Há todas essas pessoas no mundo que não podem se dar ao luxo nem de ter óculos, e esse merda desse peludo vai ganhar córneas novas. E imagino que os contribuintes vão bancar essa cirurgia corretiva, assim como pagamos todos esses médicos e enfermeiras e sabe Deus quem mais para tomar conta do traseiro dele.” Ele joga o cigarro no cinzeiro. “Acho bom eu me apressar.” Relutante, ele se levanta. Quer falar comigo, mas por alguma razão não fala. “Lucy e eu vamos tomar uma cerveja mais tarde. Ela disse que tem grandes novidades para mim.” “Vou deixar que ela mesma conte”, respondo. Ele me olha de lado. “Então você vai me deixar na dúvida, é isso?” Começo a dizer que ele é que é especialista nisso. “Nem uma pista? Quer dizer, é notícia boa ou ruim? Não me diga que ela está grávida”, ele acrescenta com ironia enquanto segura a porta para mim e saímos do estacionamento. Na sala de autópsia, Turk está lavando minha estação de trabalho com uma mangueira, a água respingando e as grelhas de aço tinindo alto enquanto ela passa a esponja na mesa. Quando me vê, grita acima do clamor que Rose está me procurando. Vou até o telefone. “Os tribunais estão fechados”, Rose me diz. “Mas o gabinete de Righter diz que ele planeja estipular seu depoimento de qualquer jeito. Portanto, não precisa se preocupar.” “Que choque.” Do que foi mesmo que Anna o chamou? Ein Mann alguma
coisa. Sem fibra. “E seu banco ligou. Um homem chamado Greenwood quer que você ligue para ele.” Minha secretária me passa um número. Sempre que meu banco me procura fico paranóica. Ou os investimentos afundaram ou minha conta está estourada porque o computador está em pane ou há algum outro problema. Localizo o sr. Greenwood no setor de contas pessoais. “Sinto muito”, diz ele com indiferença. “Essa mensagem foi um engano. Um mal-entendido, doutora Scarpetta. Sinto muito a senhora ter sido incomodada.” “Então ninguém precisa falar comigo. Nenhum problema?” Estou perplexa. Falo com o sr. Greenwood há anos e ele está agindo como se não me conhecesse. “Foi um engano”, ele repete no mesmo tom distante. “Peço desculpas mais uma vez. Tenha um bom dia.”
(*) Dimwit: obtuso. (N. T.)
9
Passo as horas seguintes em minha mesa, ditando o relatório da autópsia de John Doe, retornando ligações telefônicas e rubricando papéis, e saio do escritório no final da tarde, seguindo para oeste. A luz do sol é filtrada por aberturas nas nuvens, e rajadas de vento desprendem folhas que caem adejando como pássaros preguiçosos. Parou de nevar e a temperatura está subindo, o mundo pinga e chia com os sons molhados do tráfego. Conduzo o Lincoln Navigator prateado de Anna para a Three Chopt Road enquanto os noticiários no rádio falam sem parar sobre a remoção de JeanBaptiste Chandonne para fora da cidade. Dá-se destaque às ataduras sobre seus olhos e às queimaduras químicas. A história sobre eu tê-lo mutilado para salvar minha vida ganhou força. Os repórteres descobriram seu ângulo. A justiça é cega. A dra. Scarpetta executou a punição corporal clássica. “Cegar alguém, olha, pensem nisso”, diz um apresentador no ar. “Como era o nome daquele cara no Shakespeare? Lembram?, eles arrancaram os olhos dele. Rei Lear? Vocês viram o filme? O velho rei teve de pôr ovos crus ou algo do tipo nos buracos dos olhos para que não doesse muito. Uma coisa realmente brutal.” A calçada que leva às portas duplas da frente da igreja St. Bridget está coberta de sal e neve derretida, e há no máximo vinte carros no estacionamento. É como Marino previu. Não há muitos policiais, nem imprensa. O tempo talvez tenha mantido a multidão longe da velha igreja gótica de tijolos, mas o mais provável é que a própria morta seja responsável por isso. Eu, por exemplo, não estou aqui por respeito ou afeição, nem mesmo por uma sensação de perda. Desabotôo meu casaco e entro no nártex enquanto tento fugir da verdade incômoda: eu não conseguia suportar Diane Bray e só vim aqui por obrigação. Ela era uma oficial de polícia. Eu a conhecia. Foi minha paciente. Logo na entrada do nártex há uma grande fotografia dela numa mesa, e fico chocada de ver sua insolente beleza autocentrada, o gélido lampejo de crueldade em seus olhos que nenhuma câmera conseguiria disfarçar, não importa o ângulo, a iluminação ou as habilidades do fotógrafo. Diane Bray me odiava por razões que ainda não entendo completamente. Segundo dizem, ela era obcecada comigo e com meu poder e se concentrava em cada uma de minhas dimensões como eu própria nunca fiz. Suponho que eu não me veja do modo como ela me via, e demorei a perceber quando ela começou suas agressões, sua guerra incrivelmente intensa contra mim, que culminou com sua aspiração a ocupar um cargo de secretária estadual da Virgínia. Bray tinha calculado tudo. Ela pretendia transferir a divisão de legistas do Departamento de Saúde para a Segurança Pública, e então, se tudo corresse de acordo com o planejado, poderia dar um jeito de manobrar o governador para nomeá-la secretária da Segurança Pública. Feito isso, eu passaria a responder a ela, e ela poderia até ter o prazer de me demitir. Por quê? Continuo a buscar
motivos razoáveis e não consigo encontrar nenhum que me satisfaça inteiramente. Eu nunca tinha sequer ouvido falar de Bray antes de ela ingressar no Departamento de Polícia de Richmond, no ano passado. Mas ela certamente me conhecia e se mudou para minha bela cidade com tramas e esquemas prontos para me anular sadicamente, lentamente, por meio de uma série chocante de perturbações, calúnias, obstruções e humilhações profissionais, até que por fim arruinasse minha carreira, minha vida. Suponho que, em suas fantasias, o clímax de suas maquinações desalmadas teria sido eu abrir mão de meu cargo em desgraça, me suicidar e deixar um bilhete dizendo que a culpa era dela. Em vez disso, eu estou aqui. Ela, não. O fato de ter sido eu a pessoa que cuidou de seus restos brutalizados é uma ironia indescritível. Alguns policiais em uniforme de gala estão conversando, e, perto da porta do santuário, o chefe Rodney Harris está com o padre O’Connor. Também há civis, pessoas em roupas finas que não parecem familiares, e sinto pelo modo perdido e aéreo como eles olham em volta que não são daqui. Pego um missal e espero para falar com o chefe Harris e meu padre. “Sim, sim, eu entendo”, diz o padre O’Connor. Ele parece sereno em uma longa túnica creme, seus dedos entrelaçados na cintura. Percebo com uma pontada de culpa que não o vejo desde a Páscoa. “Bem, padre, não posso. Essa é a parte que não consigo aceitar”, Harris responde, seu escasso cabelo vermelho bem puxado para trás, o rosto flácido e desagradável. Ele é um homem baixo com um corpo mole que é geneticamente codificado para ser gordo, e parece um mascote da Pillsbury, o bonequinho de farinha, em uniforme de gala. Harris não é um homem atraente e se ofende com mulheres poderosas. Nunca entendi por que ele contratou Diane Bray, e só posso supor que não foi pelas razões certas. “Nem sempre conseguimos entender a vontade de Deus”, diz o padre O’Connor, e então me vê. “Doutora Scarpetta.” Ele sorri e toma minha mão nas suas. “Que bom que a senhora veio. A senhora tem estado em meus pensamentos e em minhas preces.” A pressão de seus dedos e a luz em seus olhos me transmitem que ele entende o que aconteceu comigo e se preocupa. “Como está seu braço? Gostaria que a senhora viesse me ver quando puder.” “Obrigada, padre.” Estendo a mão para o chefe Harris. “Sei que este é um momento difícil para seu departamento”, digo a ele. “E para o senhor pessoalmente.” “Muito, muito triste”, ele diz, desviando o olhar para outras pessoas enquanto me dá um aperto de mão brusco e superficial. A última vez que vi Harris foi na casa de Bray, quando ele entrou e foi confrontado pela visão estarrecedora de seu corpo. Aquele momento permanecerá eternamente entre mim e ele. Ele nunca deveria ter ido à cena do crime. Não havia nenhuma boa razão para que ele visse sua substituta tão completamente degradada, e sempre ficarei ressentida com ele por isso. Tenho uma aversão especial por pessoas que tratam cenas de crime de forma insensível e desrespeitosa, e o aparecimento de Harris na cena de Bray foi um jogo de poder e uma indulgência ao voyeurismo, e ele sabe que sei disso. Caminho para o santuário e sinto seus olhos em minhas costas. Do órgão vem num crescendo o
som de “Amazing grace”, e as pessoas andam pelo corredor central à procura de lugares nos bancos. Santos e cenas da crucificação fulguram em belos vitrais, e cruzes de mármore e de bronze lampejam. Sento-me num dos bancos, e momentos depois a procissão começa. Os estranhos vestidos com elegância que notei antes seguem o padre. Um jovem cruciferário leva a cruz, enquanto um homem de terno preto transporta a urna esmaltada em vermelho e dourado que contém as cinzas de Diane Bray. Um casal de idosos, de mãos dadas, enxuga de leve as lágrimas. Padre O’Connor cumprimenta todos, e fico sabendo que os pais e dois irmãos de Bray estão aqui. Vieram do norte de Nova York, de Delaware e de Washington, e amavam muito Diane. O serviço é simples. Não é longo. Padre O’Connor borrifa água benta sobre a urna. Ninguém além do chefe Harris profere nenhuma reflexão ou elogio, e o que ele diz é afetado e genérico. “Ela ingressou de bom grado em uma profissão cujo objetivo é ajudar os outros.” Ele está de pé, retesado, atrás do púlpito e lê suas anotações. “Sabendo a cada dia que estava se pondo em risco, pois essa é a vida da polícia. Aprendemos a olhar a morte de frente e não ter medo. Sabemos o que é estar sozinho e mesmo ser odiado, e ainda assim não temos medo. Sabemos o que é ser um pára-raios para o mal, para aqueles que estão neste planeta para tirar dos outros.” A madeira range quando as pessoas se mexem nos bancos. Enquanto ouve, padre O’Connor sorri gentilmente, com a cabeça inclinada. Desligo-me de Harris. Nunca compareci a uma cerimônia religiosa tão estéril e falsa, e me encolho por dentro, desalentada. A liturgia, as aclamações do evangelho, os cantos e as preces não transmitem nem música nem paixão, porque Diane Bray não amava ninguém, nem a si própria. Sua vida gananciosa e astuciosa mal deixou um sussurro. Todos saímos em silêncio, aventurando-nos na noite escura e fria para encontrar nossos carros e escapar. Ando energicamente com a cabeça curvada, como faço quando desejo evitar outras pessoas. Percebo sons, uma presença, e ao abrir a porta do carro me viro. Alguém me seguiu. “Doutora Scarpetta?” Os traços refinados da mulher são acentuados pelo brilho desigual das lâmpadas da rua, seus olhos profundamente sombreados, e ela usa um casaco comprido de vison. Uma sugestão de reconhecimento faísca em algum lugar no fundo de minha mente. “Eu não sabia que você estaria aqui, mas certamente estou contente”, ela acrescenta. Percebo seu sotaque de Nova York e sou sacudida pelo choque antes de compreender. “Sou Jaime Berger”, ela diz, estendendo uma mão enluvada. “Precisamos conversar.”
 
 
“Você estava na cerimônia?” Essas são as primeiras palavras que me saem da boca. Eu não a vi lá. Estou suficientemente paranóica para considerar que Jaime Berger nem entrou na igreja, ficou me esperando no estacionamento. “Você conhecia Diane Bray?”, pergunto a ela. “Estou conhecendo agora.” Berger levanta a gola do casaco, sua expiração visível no ar frio. Olha para o relógio e pressiona um botão. O mostrador luminescente brilha numa luz verde pálida. “Imagino que você não vai voltar para o escritório.”
“Eu não planejava fazer isso, mas posso”, digo sem entusiasmo. Ela quer conversar sobre os assassinatos de Kim Luong e Diane Bray. E, claro, também está interessada no corpo não identificado do porto — aquele que todos supomos seja do irmão de Chandonne, Thomas. Mas se esse caso algum dia chegar a um tribunal, ela acrescenta, não vai ser neste país. Esse é o modo que ela encontra de me contar que Thomas Chandonne é mais um almoço grátis. Jean-Baptiste assassinou o irmão e se safou. Subo para o banco do motorista do Navigator. “Você gosta de seu carro?”, ela faz o que parece uma pergunta sem sentido, imprópria para um momento como este. Já estou me sentindo testada. Intuo num instante que Berger não faz nada, não pergunta nada sem uma razão. Ela inspeciona o luxuoso utilitário esportivo que Anna está me deixando usar enquanto meu sedã permanece estranhamente proibido para mim. “É emprestado. Talvez seja melhor você me seguir, senhorita Berger”, digo. “Há partes da cidade nas quais você não ia gostar nada de se perder depois que escurecer.” “Estou pensando se você poderia localizar Pete Marino.” Ela aponta uma chave com controle remoto para seu veículo utilitário esportivo, um Mercedes ML430 branco com placas de Nova York, e os faróis se acendem quando as portas se destravam. “Talvez fosse bom todos nós conversarmos.” Dou partida no motor e tremo no escuro. A noite está úmida e água gelada goteja das árvores. O frio penetra por dentro de meu gesso e chega às fissuras de meu cotovelo fraturado, tomando espaços extremamente sensíveis onde vivem terminações nervosas e tutano, e eles começam a se queixar em latejos intensos. Localizo Marino pelo pager e me dou conta de que não sei o número do telefone do carro de Anna. Remexo em minha bolsa para encontrar o celular enquanto viro a direção com as pontas dos dedos do braço quebrado e fico de olho nos faróis do carro de Berger no retrovisor interno. Marino me liga de volta longos minutos depois. Conto a ele o que aconteceu e ele reage com um cinismo típico, mas por baixo dele há uma corrente de excitação, talvez raiva, talvez outra coisa. “É, bom, eu não acredito em coincidências”, ele diz bruscamente. “Apenas aconteceu de você ir ao culto em memória de Bray e por acaso Berger estar lá? Para início de conversa, por que diabo ela foi?” “Não sei por quê”, respondo. “Mas, se eu não conhecesse a cidade e os personagens envolvidos, ia querer ver quem se preocupava com Bray o suficiente para aparecer por lá. E também ia querer saber quem não se preocupava.” Tento ser lógica. “Ela não contou a você que ia? Quando você se encontrou com ela ontem à noite?” Estou exaltada. “Quero saber o que aconteceu nesse encontro.” “Não disse nada sobre isso”, ele responde. “Estava preocupada com outras coisas.” “Tais como? Ou isso é segredo?” Ele fica em silêncio por um longo momento. “Olhe, doutora”, diz finalmente, “esse caso não é meu. É de Nova York, e eu estou só fazendo o que me mandam. Se você quer saber das coisas, pergunte a ela, porque é desse jeito que ela quer que seja.” Sua voz está endurecida pelo ressentimento. “E eu estou no meio da adorável Mosby Court e tenho mais coisas para fazer do que pular
cada vez que ela estala seus elegantes dedos de cidade grande.” Mosby Court não é o bairro residencial principesco cujo nome sugere, mas um dos sete projetos residenciais de baixa renda da cidade. Todos são chamados courts e quatro têm o nome de virginianos de destaque: um ator, um educador, um próspero dono de tabacaria, um herói da Guerra de Secessão. Espero que Marino não esteja em Mosby Court porque houve outra morte. “Você não está me trazendo mais trabalho, está?”, pergunto. “Outro ‘assassinato de contravenção’.” Não rio desse código intolerante — esse rótulo cínico para um jovem negro atingido por vários tiros, provavelmente na rua, provavelmente por causa de drogas, provavelmente vestido com roupas de ginástica e tênis de basquete caros, e ninguém viu nada. “Encontro você na baia”, diz Marino, mal-humorado. “Em cinco ou dez minutos.” Parou de nevar completamente, e a temperatura permanece quente o bastante para evitar que a cidade feche de novo por causa do acúmulo de neve e sujeira. O centro está enfeitado para as festas, a silhueta dos edifícios orlada com luzes brancas, algumas queimadas. Em frente ao James Center, as pessoas encostaram os carros para explorar uma rena esplendorosa esculpida de luz, e na rua 9 o prédio da Assembléia irradia seu brilho como um ovo através dos ramos nus de árvores antigas, e a mansão amarelo-pálido vizinha a ele exibe sua elegância com velas em todas as janelas. Capto um vislumbre de casais em trajes de noite saindo de carros no estacionamento e me lembro com pânico que esta é a noite da festa de Natal do governador para os altos funcionários estaduais. Enviei meu RSVP há mais de um mês, confirmando que compareceria. Ó Deus. Não passará despercebido ao governador Mike Mitchel e a sua esposa, Edith, que não apareci, e o impulso para me desviar para o terreno da Assembléia é tão forte que aciono a luz de seta. Com a mesma prontidão a desligo. Não posso ir, nem mesmo por quinze minutos. O que eu faria com Jaime Berger? Levá-la comigo? Apresentá-la a todos? Sorrio com tristeza e balanço a cabeça dentro da cabine escura quando imagino os olhares que receberia, quando fantasio sobre o que aconteceria se a imprensa descobrisse. Como trabalhei para o governo durante toda a minha carreira, nunca subestimo o potencial para o mundano. O número de telefone da mansão do governo é público, e o auxílio à lista pode fazer a ligação automaticamente por um adicional de cinqüenta cents. Por um momento, falo com um funcionário executivo da unidade de proteção, e, antes que possa explicar a ele que quero apenas passar uma mensagem, o soldado me põe na espera. Um tom soa a intervalos regulares, como se o tempo de minha chamada estivesse sendo computado, e imagino se as ligações para a mansão são gravadas. Do outro lado da Broad Street, uma parte mais velha e mais lúgubre da cidade dá lugar ao novo império de tijolo e vidro da Biotech, da qual meu edifício é a âncora. Checo o retrovisor à procura do carro de Berger. Ela me segue obstinadamente, seus lábios se movendo em meu espelho. Está ao telefone, e tenho uma sensação incômoda quando a vejo dizer palavras que não entendo. “Kay?” A voz do governador Mitchell soa de repente no telefone viva-voz
do carro de Anna. Minha voz é de surpresa quando me apresso a dizer a ele que não esperava perturbá-lo, que sinto muitíssimo perder sua festa nesta noite. Ele não responde logo, e sua hesitação é um modo de dizer que estou cometendo um erro ao não comparecer. Mitchell é um homem que reconhece uma oportunidade e sabe como se apoderar dela. No seu modo de pensar, abrir mão de uma chance de passar ainda que apenas um momento com ele e outros líderes poderosos do estado é tolice, especialmente agora. Sim, justamente agora. “A promotora de Nova York está na cidade.” Não preciso dizer para quais casos. “Estou indo encontrá-la agora, governador. Espero que o senhor entenda.” “Acho que seria uma boa idéia eu e você também nos encontrarmos.” Ele é firme. “Eu pretendia falar com você reservadamente na festa.” Tenho a sensação de pisar em cacos de vidro, com medo de olhar porque posso descobrir que estou sangrando. “Quando for conveniente para o senhor, governador Mitchell”, respondo respeitosamente. “Por que você não dá uma parada na mansão quando for para casa?” “Provavelmente estarei livre em cerca de duas horas”, digo a ele. “Até lá, então, Kay. Transmita meus cumprimentos à senhorita Berger”, ele prossegue. “Quando eu era secretário de Justiça, tivemos um caso que envolveu o gabinete dela. Qualquer hora lhe conto sobre isso.” Na rua 4, a baia fechada onde os corpos são recebidos parece um iglu quadrado cinza anexado à lateral de meu edifício. Subo a rampa e paro na enorme porta da garagem, e me dou conta com grande frustração de que não tenho como entrar. O controle remoto está no meu carro, que está na garagem de minha casa, da qual fui banida. Teclo o número do atendente do necrotério fora do expediente. “Arnold?”, digo quando ele responde no sexto toque. “Você poderia por favor abrir a porta da baia?” “Ah, claro, senhora.” Ele parece grogue e confuso, como se eu o tivesse acordado. “Já estou indo, senhora. Seu controle não está funcionando?” Tento ser paciente. Arnold é uma dessas pessoas dominadas pela inércia. Ele luta contra a gravidade. A gravidade vence. Tenho de me lembrar o tempo todo que é inútil ficar zangada com ele. Pessoas muito motivadas não brigam pelo emprego dele. Berger parou atrás de mim e Marino está atrás dela, todos nós esperando que a porta suba, franqueando nossa entrada no reino dos mortos. Meu celular toca. “Bom, isto não é nada agradável”, diz Marino em meu ouvido. “Aparentemente ela e o governador se conhecem.” Vejo um furgão escuro entrar na rampa atrás do Crown Victoria azul-escuro de Marino. A porta da baia começa a subir emitindo ganidos, como se se lamentasse. “Muito bem. Você não acha que ele tem algo a ver com a transferência do Lobisomem para Nova York, acha?” “Não sei mais o que pensar”, confesso. A baia é grande o bastante para acomodar todos nós, e saímos ao mesmo tempo, o ronco dos motores e o fechar das portas amplificados pelo concreto. O ar frio atinge outra vez meu cotovelo fraturado, e fico desconcertada ao ver Marino de terno e gravata. “Você está ótimo”, comento secamente. Ele acende um cigarro, mirando com os olhos
apertados a figura envolta em vison de Berger quando ela se curva para dentro de seu Mercedes para pegar coisas no banco de trás. Dois homens de casaco comprido escuro abrem a porta de trás do furgão, expondo a maca e sua agourenta carga coberta. “Acredite se quiser”, Marino me diz, “eu ia dar uma passada na igreja, apesar de tudo, e esse cara decide ser assassinado.” Ele aponta para o cadáver na traseira do furgão. “Está parecendo que é um pouco mais complicado do que pensamos no início. Talvez mais do que um caso de renovação urbana.” Berger anda em nossa direção, sobrecarregada com livros, arquivos sanfonados e uma robusta maleta de couro. “Você veio preparada.” Marino olha para ela com cara de desânimo. O alumínio estala quando as pernas da maca se abrem. A porta traseira do furgão se fecha com um baque. “Fico realmente agradecida por vocês terem vindo tão depressa”, diz Berger. No clarão da baia iluminada, noto as belas linhas de seu rosto e seu pescoço, as tênues covas nas bochechas, que revelam sua idade. Numa olhada rápida, se estivesse maquiada para ser fotografada, ela poderia aparentar ter trinta e cinco anos. Suspeito que é alguns anos mais velha do que eu, deve estar perto dos cinqüenta. Os traços angulosos, o cabelo escuro curto e os dentes perfeitos compõem um retrato conhecido, e eu a ligo à especialista que vi na Court TV. Ela começa a se parecer com as fotos que baixei da internet quando usei ferramentas de busca para encontrá-la no ciberespaço, para poder me preparar para esta invasão do que parece ser uma galáxia alienígena. Marino não se oferece para ajudá-la a carregar nada. Ele a ignora do mesmo modo que faz comigo quando está irritado, ressentido ou enciumado. Destranco a porta que dá para a parte interna enquanto os atendentes empurram a maca em nossa direção, e reconheço os dois homens mas não consigo me lembrar de seus nomes. Um deles olha para Berger fascinado. “A senhora é aquela moça que estava na TV”, ele começa. “Minha nossa. A juíza.” “Lamento decepcioná-lo. Não sou juíza.” Berger olha para eles e sorri. “A senhora não é a juíza? Jura?” A maca atravessa rangendo o vão da porta. “Imagino que a senhora quer que ele fique no congelador”, um deles me diz. “Sim”, respondo. “Você sabe onde registrá-lo. Arnold está por aí em algum lugar.” “Sim, senhora, eu sei o que fazer.” Nenhum dos atendentes dá indicação alguma de que eu poderia ter acabado em seu furgão no fim de semana passado, se outra entrega tivesse mudado meu destino. Observo que as pessoas que trabalham para funerárias e serviços de remoção de corpos não ficam chocadas nem comovidas com muita coisa. Não me escapa que esses dois caras estão mais impressionados com a celebridade de Berger do que com o fato de sua legista-chefe ter a sorte de estar viva e ter uma imagem pública muito ruim ultimamente. “A senhora está preparada para o Natal?”, um deles me pergunta. “Nunca estou”, respondo. “Desejo que os senhores tenham um feliz Natal.” “Muito mais feliz do que o dele.” Apontando para o corpo ensacado, eles empurram a maca na direção da recepção do necrotério, onde preencherão uma
etiqueta de identificação a ser presa num dedo do pé e registrarão o mais novo paciente. Pressiono botões para abrir vários conjuntos de portas de aço inoxidável enquanto caminhamos sobre pisos desinfetados, passando por congeladores e pelas salas onde são feitas autópsias. Desodorizadores industriais atravancam o caminho, e Marino fala do caso de Mosby Court. Berger não pergunta nada, mas ele parece pensar que ela quer saber. Ou talvez esteja só se exibindo. “Primeiro, pareceu um tiro dado de um carro em movimento, já que ele estava na rua e tinha a cabeça ensangüentada. Mas devo dizer que agora estou me perguntando se ele não foi atropelado por um carro”, ele nos informa. Abro as portas que levam ao silêncio sombrio da ala administrativa enquanto ele conta a Berger todos os detalhes de um caso que ainda nem discutiu comigo. Conduzoos a minha sala de reuniões e tiramos os casacos. Berger veste calça de lã escura e um suéter preto grosso, que não acentua mas certamente não esconde seu volumoso busto. Ela tem a constituição esbelta e firme de uma atleta, e suas botas Vibram desgastadas sugerem que irá a qualquer lugar e fará qualquer coisa que o trabalho exigir. Ela puxa uma cadeira e começa a arrumar maleta, arquivos e livros sobre a mesa redonda de madeira. “Veja, ele tem queimaduras aqui e aqui.” Marino aponta para sua bochecha esquerda e seu pescoço e saca fotos Polaroid do bolso interno do paletó. Ele toma a decisão inteligente de passá-las primeiro para mim. “Por que um atropelado teria queimaduras?” Minha pergunta é uma refutação, e estou ficando incomodada. “Se ele fosse empurrado enquanto o carro estava em movimento, ou fosse queimado pelo cano do escapamento”, sugere Marino, sem certeza, sem realmente se importar. Ele tem outros assuntos em mente. “É improvável”, respondo num tom ameaçador. “Merda”, diz Marino, e começa a compreender quando nossos olhares se encontram. “Eu não olhei para ele, já estava num saco quando cheguei lá. Droga, só me orientei pelo que soube dos caras que estavam na cena. Merda”, diz de novo, olhando para Berger, seu rosto obscurecido por um misto de constrangimento e irritação. “Eles já tinham ensacado o corpo quando cheguei lá. Estúpidos como um saco de martelos, todos eles.” O homem que está nas Polaroids tem a pele clara, traços atraentes e cabelo curto encaracolado tingido de amarelo gema. Em sua orelha esquerda há uma pequena argola de ouro. Percebo instantaneamente que suas queimaduras não foram provocadas por um cano de escapamento, que deixaria marcas elípticas e não estas, perfeitamente redondas, do tamanho de moedas de prata de um dólar e empoladas. Ele estava vivo quando se queimou. Olho demoradamente para Marino. Ele faz a ligação e explode, balançando a cabeça. “Temos identificação?”, pergunto a ele. “Não temos nenhuma pista.” Ele alisa para trás o cabelo, que a esta altura de sua vida não passa de uma franja cinzenta grudada com gel no alto da ampla careca. Sua aparência ficaria muito melhor se ele rapasse a cabeça. “Ninguém na área diz que já o viu antes, e nenhum dos meus rapazes acha que ele se parece com alguém que costumávamos ver por lá na rua.” “Preciso olhar o corpo agora.” Levanto-me da mesa.
Marino empurra sua cadeira. Berger me observa com olhos azuis penetrantes. Ela parou de espalhar seus papéis. “Você se importa se eu for junto?”, pergunta. Eu me importo, mas ela está aqui. É uma profissional. Seria impensavelmente grosseiro de minha parte dar a entender que ela poderia não agir como tal ou sugerir que não confio nela. Ando até a porta ao lado para pegar o avental de laboratório em minha sala. “Imagino que você não tem como saber se é possível que esse cara fosse gay. Imagino que aquela não é uma área onde gays circulam ou ficam.” Interrogo Marino enquanto saímos da sala de reuniões. “Há prostituição masculina em Mosby Court?” “Agora que você falou, acho que ele tem essa aparência”, responde Marino. “Um dos policiais disse que ele é uma espécie de ‘bonitinho’, com aquele tipo de corpo sarado. E usava brinco. Mas, como eu disse, não vi o corpo.” “Acredito que você ganha o prêmio para estereótipos”, Berger comenta com ele. “E eu achei que meu pessoal era ruim.” “Ah, é? Que pessoal?” Marino está a um milímetro de cair matando sobre ela. “Do meu gabinete”, ela diz com um ar blasé. “A equipe de investigação.” “Ah, é? Você tem seus próprios policiais da polícia de Nova York? Que ótimo. Quantos?” “Cerca de cinqüenta.” “Eles trabalham em seu prédio?” Posso ouvir no tom dele. Berger o faz sentir-se completamente ameaçado. “Sim.” Ela não transmite isso com nenhuma espécie de condescendência ou arrogância, simplesmente relata os fatos. Marino se adianta a ela e devolve: “Bom, é um bocado de gente”. Os atendentes do serviço de remoção estão na recepção batendo papo com Arnold. Ele parece chocado quando me vê, como se o tivéssemos apanhado no meio de algo que não devia estar fazendo, mas esse é o jeito dele. É um homem tímido, quieto. Como uma mariposa que começou a adquirir a cor de seu ambiente, está pálido, sua pele tem um tom cinza doentio, e uma alergia crônica mantém seus olhos avermelhados e lacrimejando. O segundo John Doe do dia está no meio do saguão, fechado dentro de um saco felpudo cor de vinho bordado com o nome do serviço de remoção, Whitkin Brothers. De repente me lembro dos nomes dos atendentes. Claro, eles são os irmãos Whitkin. “Eu cuido dele.” Informo aos irmãos que eles não precisam levar o corpo para o congelador nem transferi-lo para outra maca. “Não custa nada para nós”, eles se apressam a dizer, nervosos, como se eu estivesse sugerindo que estão matando o tempo. “Está tudo bem. Primeiro preciso ficar um tempo com ele”, digo, e empurro a maca através da porta de aço dupla, e pego luvas e protetores para os sapatos. Gasto algum tempo nas tarefas necessárias de registrar John Doe no livro de autópsias, atribuir um número a ele e fotografá-lo. Sinto cheiro de urina.
 
 
O setor de autópsia está brilhante e claro, vazio dos sons e visões habituais. A quietude é um alívio. Depois de todos esses anos, o clamor constante de água corrente nas pias de aço, de serras Stryker, de aço batendo em aço me deixa tensa e cansada. O necrotério pode ser surpreendentemente barulhento. Os mortos são enfáticos em suas exigências e em suas cores sangrentas, e este novo paciente vai resistir a mim. Já posso perceber. Ele está completamente rígido e não parece disposto a permitir que eu o dispa ou abra sua boca para olhar a língua ou os dentes, não sem luta. Abro o saco e sinto cheiro de urina. Puxo uma lâmpada cirúrgica para perto e palpo a cabeça dele, não sentindo nenhuma fratura. O sangue espalhado pelo maxilar e gotas na frente do casaco indicam que ele estava de pé quando sangrou. Dirijo a luz para as narinas. “Ele tinha um sangramento no nariz”, relato a Marino e Berger. “Por enquanto, não estou vendo nenhum ferimento na cabeça.” Começo a examinar as queimaduras com uma lupa enquanto Berger se aproxima para observar. Noto fibras e sujeira aderidas à pele empolada, e encontro abrasões nos cantos da boca e na parte interna das bochechas. Enrolo as mangas do casaco de seu agasalho de ginástica e olho os punhos. Marcas de faixas muito apertadas deixaram depressões pronunciadas na pele, e quando abro o casaco encontro duas queimaduras centradas diretamente no umbigo e no mamilo esquerdo. Berger está tão próxima que sua touca roça em mim. “Está muito frio para sair só com uma roupa de ginástica, sem uma camiseta ou outra roupa por baixo”, observo para Marino. “Os bolsos dele foram verificados na cena?” “Era melhor esperar para fazer isso aqui, onde você consegue ver o que tem algum valor”, ele responde. Enfio as mãos nos bolsos da calça e no casaco do agasalho e não encontro nada. Abaixo a calça e vejo que o short de corrida azul está encharcado de urina, e o cheiro de amônia envia um alerta para minha psique, e os pêlos de minha pele inteira se eriçam como sentinelas. Raramente a morte me apavora. Este homem, sim. Verifico o bolso interno do short e retiro uma chave de aço onde está gravado Não duplicar, e com marcador permanente está escrito o número 233. “Talvez um hotel, ou uma casa?”, pergunto em voz alta enquanto ponho a chave dentro de um saco de plástico transparente e sou picada por outras sensações paranóides. “Talvez um cofre.” Dois-três-três era o número da caixa postal de minha família quando eu era criança, em Miami. Eu não chegaria a dizer que 233 é meu número de sorte, mas é um número que usei muitas vezes para senhas e combinações de fechaduras, porque não é óbvio e consigo me lembrar dele. “Há alguma coisa que possa sugerir quem o matou?”, pergunta Berger. “Por enquanto, não. Imagino que ainda não demos sorte com o AFIS ou a Interpol, não é?”, digo a Marino. “Não temos nenhuma identificação, portanto, quem quer que seja o cara do motel, não está no AFIS. E nada da Interpol por enquanto, o que também não é necessariamente bom. Quando é óbvio, normalmente se sabe em uma hora”, diz ele. “Vamos tirar as impressões desse cara e enviar para o AFIS o mais rápido
possível.” Tento não parecer ansiosa. Com uma lupa verifico as mãos, frente e costas, para o caso de haver qualquer evidência residual que possa ser desprendida quando eu tirar as impressões digitais. Prendo as unhas com grampos e ponho-as em um envelope que rotulo e deixo numa bancada com o início da papelada, depois entinto as pontas dos dedos e Marino me ajuda com a colher. Tiro dois conjuntos de impressões. Berger está em silêncio e muito curiosa durante tudo isso, e sinto seu olhar perscrutador como o calor de uma lâmpada brilhante. Ela observa cada movimento meu, ouve todas as minhas perguntas e instruções. Não me concentro nela, mas estou ciente de sua atenção, e no fundo de minha consciência sei que essa mulher está fazendo avaliações das quais posso ou não gostar. Arrumo o lençol em volta do corpo e fecho o saco, acenando para que Berger e Marino me sigam enquanto empurro a maca na direção do congelador, encosto-a numa parede e abro a porta de aço inoxidável. O fedor de morte irrompe numa frente fria. Há poucos residentes esta noite, só seis, e verifico as etiquetas nos zíperes dos sacos, procurando o John Doe do motel. Quando o encontro, descubro seu rosto e aponto para as queimaduras e as escoriações na boca e em volta dos punhos. “Porra”, diz Marino. “Que diabo é isso? Algum assassino serial à solta amarrando pessoas e torturando-as com um secador de cabelos?” “Precisamos informar Stanfield imediatamente sobre isso”, repondo a ele, porque é evidente que a morte do John Doe do motel pode estar ligada ao corpo despejado em Mosby Court. Olho para Marino, lendo seus pensamentos. “Eu sei.” Ele não se esforça em disfarçar seu desdém por contar qualquer coisa a Stanfield. “Temos de contar a ele, Marino”, acrescento. Saímos do congelador e ele vai para o telefone de parede “limpo”. “Você consegue encontrar o caminho para a sala de reuniões?”, pergunto a Berger. “Com certeza.” Ela parece quase vidrada, talvez confusa enquanto pensamentos distantes aparecem em seus olhos. “Eu vou já para lá”, digo a ela. “Lamento a interrupção.” Ela hesita no vão da porta, desamarrando sua touca cirúrgica. “É estranho. Mas eu tive um caso há uns dois meses, uma mulher torturada com uma pistola de ar quente. As queimaduras eram muito semelhantes às desses dois casos.” Ela se inclina para tirar os protetores de sapato e deixa-os cair na lata de lixo. “Amordaçada, amarrada, e tinha queimaduras redondas no rosto e nos seios.” “E eles pegaram quem fez isso?”, logo pergunto, nada contente com o paralelo. “Um empreiteiro que estava trabalhando no prédio onde ela morava”, diz Berger, franzindo levemente o cenho. “A pistola de ar quente era para remover a pintura. O cara era realmente um horror, ruim mesmo — entrou no apartamento dela por volta das três da manhã, estuprou-a, estrangulou-a, enfim, fez o serviço completo, e quando saiu, várias horas depois, seu caminhão havia sido roubado. Bem-vindo a Nova York . Então a ficha cai, ele chama a polícia, e a cena seguinte é ele numa radiopatrulha, uma mochila no colo, dando uma declaração sobre o caminhão roubado, e ao mesmo tempo a empregada da vítima chega ao apartamento, encontra o corpo, começa a gritar histericamente e liga para o setor de emergência da polícia. O assassino está sentado bem ali no carro da
polícia quando os detetives chegam, e ele tenta correr. Uma pista. Descobre-se que o idiota tem corda de varal e uma pistola de ar quente na mochila.” “Falou-se muito desse caso na imprensa?” “Só na imprensa local. O Times, os tablóides.” “Esperemos que ele não tenha dado a idéia a mais alguém”, digo.
10
Espera-se que eu lide com qualquer visão, imagem, cheiro ou som sem me sobressaltar. Não estou autorizada a reagir ao horror como fazem as pessoas normais. Minha tarefa é reconstruir a dor sem senti-la eu própria, evocar o terror e não permitir que ele me siga até em casa. Espera-se que eu mergulhe na arte sádica de Jean-Baptiste Chandonne sem imaginar que sua próxima obra de mutilação deveria ser eu. Ele é um dos poucos assassinos que vi que se parece com o que faz, o monstro clássico. Mas não saltou das páginas de Mary Shelley. Chandonne é real. É hediondo, seu rosto formado de duas metades juntadas de forma desigual, um olho mais baixo que o outro, os dentes muito espaçados, pequenos e pontudos como os de um animal. Seu corpo inteiro é coberto por pêlos longos e descorados, finos como os de um bebê, mas são seus olhos que me perturbam mais. Vi o diabo naquele olhar, uma lascívia que parecia iluminar o ar quando ele forçou a entrada em minha casa e fechou a porta com um coice. Sua intuição e sua inteligência para o mal são palpáveis, e, embora eu resista a sentir sequer um sopro de piedade por ele, sei que o sofrimento que Chandonne causa a outros é uma projeção de sua própria desgraça, uma recriação transitória do pesadelo que ele suporta a cada batida de seu coração odioso. Encontrei Berger na sala de reuniões e agora ela me acompanha pelo corredor enquanto explico que Chandonne sofre de uma doença rara chamada hipertricose congênita. Ela ocorre só em uma de cada bilhão de pessoas, se se confiar em estatísticas desse tipo. Antes dele, eu só tinha encontrado um outro caso dessa cruel doença genética, quando era médica residente em Miami, fazendo estágio em pediatria, e uma mexicana deu à luz uma das piores deformidades da vida humana que já vi. A menininha era coberta de um cabelo cinza comprido que só poupava suas membranas mucosas, as palmas das mãos e as solas dos pés. Longos tufos se projetavam das narinas e das orelhas, e ela tinha três mamilos. Pessoas portadoras de hipertricose podem ser excessivamente sensíveis à luz e sofrem anomalias dos dentes e da genitália. Podem ter dedos a mais nas mãos e nos pés. Em séculos passados essas pessoas infelizes eram vendidas para parques de diversão ou cortes reais. Algumas eram acusadas de ser lobisomens. “Então você acha que há um significado no fato de ele morder suas vítimas nas palmas das mãos e nos pés?”, pergunta Berger. Sua voz é forte e modulada. Eu quase a chamaria de voz de televisão: grave e cristalina, que atrai a atenção. “Talvez porque essas são as únicas áreas de seu corpo que não são cobertas com cabelo? Bem, não sei”, ela reconsidera. “Mas eu teria de supor que há uma espécie de associação sexual, como, por exemplo, pessoas que têm fetiche por pés. Mas nunca vi um caso em que alguém mordesse mãos e pés.” Acendo as luzes da sala da frente e passo uma chave eletrônica sobre a fechadura da câmara à prova de fogo que chamamos de sala de evidências,
onde a porta e as paredes são reforçadas com aço e um sistema de computador registra o código de quem entra, e quando, e por quanto tempo a pessoa permanece no local. Raramente temos muita coisa em termos de objetos pessoais guardada aqui. Em geral a polícia leva esses itens para a sala de pertences ou nós os devolvemos às famílias. A razão pela qual insisti em que essa sala fosse construída é que encaro a realidade de que nenhum edifício é imune a vazamentos e preciso de um lugar seguro para guardar casos extremamente sensíveis. Numa parede preta há pesados gabinetes de aço. Abro um deles e retiro dois arquivos volumosos selados com fita grossa que rubriquei para que ninguém possa bisbilhotar sem meu conhecimento. Anoto os números dos casos de Kim Luong e Diane Bray no livro de registro ao lado da impressora, que acabou de imprimir meu código e o tempo. Berger e eu continuamos a falar enquanto seguimos pelo corredor de volta à sala de reuniões onde Marino nos espera, impaciente, tenso. “Por que você não pediu a um psicólogo forense que desse uma olhada nesses casos?”, Berger me pergunta quando passamos pelo vão da porta. Instalo os arquivos na mesa e olho para Marino. Ele não pode aceitar isso. Não é minha responsabilidade enviar casos para os especialistas em perfil psicológico. “Um psicólogo forense? Para quê?”, ele responde a Berger de uma maneira que só pode ser descrita como conflituosa. “O objetivo de traçar o perfil psicológico é delinear que tipo de criminoso fez a coisa. E nós já sabemos que tipo de criminoso ele é.” “Mas e o motivo? O significado, a emoção, o simbolismo? Esses tipos de análise. Eu gostaria de ouvir o que um psicólogo forense tem a dizer.” Ela não dá atenção a ele. “Especialmente sobre as mãos e os pés. É estranho.” Ainda está concentrada nesse detalhe. “Para mim, a maioria dos perfis psicológicos distorce a verdade”, segue Marino. “Não que eu não ache que há alguns caras que realmente têm o dom, mas a maioria só diz bobagem. Você pega um criminoso como Chandonne, que gosta de morder mãos e pés, e não precisa de nenhum especialista em perfis psicológicos do FBI para considerar que talvez essas partes tenham um significado para o cara. Como talvez ele ter alguma esquisitice nas próprias mãos e pés — ou, como neste caso, o oposto disso. Esses são os únicos lugares onde ele não tem cabelo, além da droga da boca dele e talvez do ânus.” “Eu posso entender que ele destrua o que odeia em si mesmo, que ele mutile aquelas áreas do corpo de suas vítimas, como o rosto.” Ela não se deixa intimidar por Marino. “Mas eu não sei. As mãos e os pés. Há algo mais aí.” Todos os gestos e inflexões de Berger repelem Marino. “É, mas a parte do frango de que ele mais gosta é a carne branca”, solta Marino. Ele e Berger agem como se fossem amantes brigando. “Esse é o negócio dele. Mulheres com tetas grandes. Ele deve pensar em alguma coisa ligada à mãe quando escolhe vítimas com certos tipos de corpo. Também não é preciso nenhum especialista do FBI para ligar os pontos.” Não digo nada, mas olho para Marino de um jeito que diz muito. Ele está agindo como um bobo insensível, aparentemente tão preocupado em combater
essa mulher que não consegue perceber o que está dizendo na minha frente. Ele sabe muito bem que Benton tinha um dom genuíno baseado na ciência e em uma base de dados significativa que o FBI construiu estudando e entrevistando milhares de criminosos violentos. E não gosto de ouvir referências aos tipos de corpo das vítimas, já que o meu também foi escolhido por Chandonne. “Sabe, eu não gosto da palavra ‘teta’.” Berger diz isso de modo prosaico, como se informasse ao garçom que não quer mais molho béarnaise. Ela olha serenamente para Marino. “Você sabe ao menos o que é teta, capitão?” Dessa vez ele fica sem palavras. “Pode ser manancial, fonte”, ela prossegue, mexendo em seus papéis, e a energia das mãos trai sua irritação. “Ou uma mamata, um negócio fácil. E até uma letra grega, que no caso se pronuncia com o ‘e’ aberto. Aliás, a origem da palavra é grega. Etimologia. E não estou falando do estudo de besouros. Isso seria com N — entomologia. Estou falando de palavras. Que podem ofender. E revidar a ofensa. Bolas, por exemplo, pode ser algo usado em jogos — tênis, futebol. Ou se referir ao cérebro muito limitado que há entre as pernas de homens que falam em tetas.” Ela pára e fica olhando para ele. “Agora que já cruzamos nossa barreira lingüística, podemos continuar?” Ela me dirige um olhar expectante. O rosto de Marino está da cor de um rabanete. “Você já tem cópias dos relatórios de autópsia?” Sei a resposta, mas de qualquer modo pergunto a ela. “Eu os li inúmeras vezes”, ela responde. Removo a fita das pastas e as empurro na direção dela, enquanto Marino estala os dedos e evita nos encarar. Berger tira de um envelope fotografias coloridas. “O que vocês podem me dizer?”, pergunta. “Kim Luong”, Marino começa num tom contido, fazendo-me lembrar de M. I. Calloway depois que ele insistiu em humilhá-la. Ele está fervilhando. “Uma asiática de trinta anos, trabalhava meio período numa loja de conveniência no West End chamada Quik Cary. Parece que Chandonne esperou até ela ficar sozinha na loja. Isso foi à noite.” “Quinta-feira, 9 de dezembro”, diz Berger, olhando uma foto do corpo de Luong, seminu e mutilado. “É. O alarme contra ladrões disparou às sete e dezesseis”, ele diz, e eu fico desconcertada. Sobre o que Marino e Berger conversaram ontem à noite, se não foi sobre isso? Supus que ele se encontrou com ela para tratar dos aspectos investigativos dos casos, mas agora parece claro que eles não discutiram os assassinatos de Luong e Bray. Berger franze o cenho, olhando outra fotografia. “Sete e dezesseis da noite? Isso foi quando ele entrou na loja ou quando saiu?” “Quando ele saiu. Por uma porta dos fundos onde há um sistema de alarme separado, que estava sempre ligado. Portanto, ele entrou na loja algum tempo antes disso, pela porta da frente, provavelmente logo depois de escurecer. Ele tinha uma arma, entrou, atirou nela quando ela estava sentada atrás do balcão. Então ele pendurou a placa de ‘fechado’, trancou a porta e a arrastou para o depósito para fazer o que queria com ela.” Marino está lacônico e bem
comportado, mas por baixo de tudo isso há uma mistura química que começo a reconhecer. Ele quer impressionar, depreciar e levar Jaime Berger para a cama, e tudo isso tem a ver com suas feridas dolorosas de solidão e insegurança, e com suas frustrações, e comigo. Quando o vejo lutando para esconder seu constrangimento atrás de um muro de indiferença, sinto pena. Se ao menos Marino não chamasse para si a infelicidade. Se ao menos ele não provocasse momentos desagradáveis como este. “Ela estava viva quando ele começou a bater nela e mordê-la?” Berger dirige essa pergunta a mim, enquanto olha vagarosamente outras fotografias. “Sim”, respondo. “Com base em quê?” “Havia reação do tecido aos ferimentos do rosto suficiente para sugerir que ela estava viva quando ele começou a bater nela. O que não conseguimos saber é se ela estava consciente. Ou, melhor, por quanto tempo ela ficou consciente”, digo. “Tenho videoteipes das cenas”, oferece Marino, num tom que sugere cansaço. “Eu quero tudo.” Berger deixa isso muito claro. “Pelo menos eu filmei as cenas de Luong e Diane. Não a do irmão, Thomas. Nós não o filmamos no contêiner de carga, o que é provavelmente uma sorte.” Marino boceja, o que torna sua representação mais ridícula e irritante. “Você foi a todas as cenas?”, Berger me pergunta. “Fui.” Ela olha outra fotografia. “Nunca mais vou comer queijo gorgonzola, não depois de ter passado um tempo me dedicando ao velho Thomas.” A hostilidade chega à superfície da pele de Marino. “Eu estava pensando em tomar um café”, digo a ele. “Você se importa?” “Me importo com o quê?” “Em pegar um bule.” Olho para ele de um jeito que sugere enfaticamente que ele me deixe sozinha com Berger por alguns minutos. “Não sei bem como funciona a máquina de café daqui.” A desculpa dele é estúpida. “Tenho certeza de que você vai descobrir”, respondo. “Estou vendo que vocês dois se dão muito bem”, observo com ironia quando Marino está no corredor e não pode nos ouvir. “Nós tivemos oportunidade de nos conhecer hoje de manhã, de manhã cedinho, devo acrescentar.” Berger levanta os olhos para mim. “No hospital, antes de Chandonne iniciar sua alegre viagem.” “Permita-me sugerir, senhorita Berger, que se você vai ficar mais algum tempo por aqui, deve começar dizendo a ele que se concentre na missão. Ele parece estar travando uma luta com você que é mais importante que qualquer outra coisa, e isso não ajuda em nada.” Ela continua a estudar as fotografias sem nenhuma expressão no rosto. “Meu Deus, é como se elas tivessem sido atacadas por um animal. Exatamente como Susan Pless, meu caso. Estas poderiam ser fotos do corpo dela. Estou quase
disposta a acreditar em lobisomens. Claro, existe a teoria no folclore de que a idéia de lobisomens pode ter se baseado em pessoas reais que sofriam de hipertricose.” Não sei ao certo se ela está tentando me mostrar quanto pesquisou, ou se está desviando do que acabei de dizer sobre Marino. Ela olha para mim. “Agradeço seu conselho. Sei que você sempre trabalhou com ele, portanto ele não pode ser totalmente ruim.” “E não é. Você não vai encontrar um detetive melhor.” “E me deixe adivinhar. Ele era detestável quando você o conheceu?” “Ele ainda é detestável”, respondo. Berger ri. “Marino e eu temos algumas questões que ainda não resolvemos. Evidentemente ele não está acostumado com promotores que lhe digam como vai funcionar um caso. Em Nova York é um pouco diferente”, ela me lembra. “Por exemplo, policiais não podem prender um acusado em um caso de homicídio sem a aprovação do promotor distrital. Nós administramos os casos lá, e francamente” — ela pega exames de laboratório — “funciona muito melhor. Marino acha extremamente necessário estar no comando, e ele protege demais você. E tem ciúme de qualquer pessoa que apareça em sua vida”, ela resume, passando os olhos pelos exames. “Nada de álcool, exceto no caso de Diane Bray. Zero-vírgula-zero-três. Não sugere que ela tomou uma ou duas cervejas e comeu pizza antes de o assassino aparecer?” Ela espalha fotografias pela mesa. “Acho que nunca vi alguém tão machucado. Uma fúria inacreditável. E luxúria, se é que se pode chamar isso de luxúria. Acho que não existe uma palavra para descrever o que ele poderia estar sentindo.” “A palavra é ‘maldade’.” “Suponho que vai demorar um pouco para sabermos sobre outras drogas.” “Vamos fazer testes para os suspeitos usuais. Mas isso leva semanas”, digo a ela. Ela espalha mais fotografias, escolhendo-as como se estivesse jogando paciência. “Como você se sente vendo isso, sabendo que poderia ter sido você?” “Eu não penso nisso”, respondo. “No que você pensa?” “No que os ferimentos me dizem.” “Que é o quê?” Pego uma fotografia de Kim Luong — segundo dizem, uma jovem alegre, maravilhosa, que estava trabalhando para poder cursar enfermagem. “O padrão do sangue”, descrevo. “Praticamente cada centímetro da pele exposta está coberto de manchas de sangue. Ele fez pintura com os dedos.” “Depois que elas estavam mortas.” “Presumivelmente. Nesta foto” — mostro a ela — “você pode ver claramente o ferimento do tiro na frente do pescoço dela. Atingiu a carótida e a medula. Ela devia estar paralisada do pescoço para baixo quando ele a arrastou para o depósito.” “E com uma hemorragia. Por causa do rompimento da carótida.” “Com toda certeza. Você pode ver o padrão de borrifo de sangue arterial nas prateleiras pelas quais ele passou ao arrastá-la.” Inclino-me para mais perto dela e mostro aquilo a que me refiro em várias fotografias. “Grandes áreas
salpicadas de sangue que começam a ficar mais baixas e mais fracas à medida que ela é arrastada para mais perto do depósito.” “Consciente?” Berger está fascinada e inflexível. “O ferimento na medula não foi imediatamente fatal.” “Quanto tempo ela pode ter sobrevivido, sangrando desse jeito?” “Minutos.” Encontro uma fotografia da autópsia que mostra a medula após ter sido removida do corpo e posta no centro de uma toalha verde, ao lado de uma régua de plástico branca, para dar uma idéia da escala. A medula lisa cor de creme tem uma contusão violenta roxo-azulada e uma parte rompida numa área relacionada ao ferimento do tiro, que penetrou no pescoço de Luong entre o quinto e o sexto discos cervicais. “Ela deve ter ficado instantaneamente paralisada”, explico, “mas a contusão significa que ela tinha pressão sangüínea, que o coração ainda estava bombeando, e de qualquer forma sabemos isso pelo borrifo de sangue na cena do crime. Portanto, sim. Ela provavelmente estava consciente quando ele a arrastou pelos pés pelo corredor até o depósito. O que não posso dizer é por quanto tempo ela ficou consciente.” “Ela teria conseguido ver o que ele estava fazendo e observar seu próprio sangue jorrando do pescoço enquanto sangrava até morrer?” A expressão de Berger é intensa, seus olhos incendiados por uma energia de alta voltagem. “De novo, depende de quanto tempo ela ficou consciente”, digo a ela. “Mas há uma possibilidade de ela ter ficado consciente durante todo o tempo em que ele a arrastou pelo corredor, até o depósito?” “Com certeza.” “Ela conseguia falar ou gritar?” “Talvez ela não conseguisse fazer nada.” “Mas, supondo que ninguém a ouviu gritar, isso não significaria que ela estava inconsciente?” “Não, não necessariamente”, respondo. “Se você levasse um tiro no pescoço e tivesse uma hemorragia e fosse arrastada...” “Especialmente se arrastada por alguém com a aparência dele.” “Sim. Você poderia ficar aterrorizada demais para gritar. Ele pode ter dito a ela para calar a boca, aliás.” “Bom.” Berger parece satisfeita. “Como você sabe que ele a arrastou pelos pés?” “O padrão de arrasto do sangue feito pelo cabelo comprido dela, e trilhas de sangue dos dedos dela acima da cabeça”, descrevo. “Se você está paralisada e sendo arrastada pelos tornozelos, por exemplo, seus braços vão se espalhar. Como quando se brinca de anjo na neve.” “O impulso humano não seria agarrar o pescoço e tentar parar o sangramento?”, pergunta Berger. “E ela não consegue. Está paralisada e acordada assistindo à própria morte e imaginando que diabo ele vai fazer com ela a seguir.” Ela faz uma pausa para causar impacto. Berger pensa no júri, e já posso dizer que não foi por acaso que ela conquistou sua incrível reputação. “Essas mulheres realmente sofreram”, ela acrescenta calmamente. “Com toda a certeza.” Minha blusa está encharcada e estou novamente fria.
“Você previu que teria o mesmo tratamento?” Ela olha para mim com um desafio nos olhos, como se me provocasse a explorar tudo que me passou pela cabeça quando Chandonne entrou em minha casa e tentou cobrir minha cabeça com seu casaco. “Você consegue se lembrar de alguma coisa que pensou?”, ela estimula. “O que você sentiu? Ou tudo aconteceu tão rápido...” “Rápido”, interrompo-a. “Sim, aconteceu rápido. Rápido e por uma eternidade. Quando estamos em pânico, lutando por nossa vida, nossos relógios internos param de funcionar. Esse não é um fato médico, só uma observação pessoal”, acrescento, tateando, tentando encontrar o caminho entre lembranças que não são completas. “Então minutos podem ter parecido horas para Kim Luong”, Berger deduz. “Chandonne ficou com você provavelmente só alguns minutos enquanto a perseguia pela sala. Quanto tempo pareceu durar?” Ela está totalmente concentrada nisso, os olhos cravados em mim. “Pareceu...” Luto para descrever o que senti. Não há base para comparação. “Um rodopio...” Minha voz some enquanto olho para o vazio, sem piscar, suando e aterrorizada. “Um rodopio?” Berger parece um pouco incrédula. “Você pode explicar o que quer dizer com isso, um rodopio?” “Como a realidade se distorcendo, se ondulando, como o vento encrespando a água, do modo como uma poça fica quando é atingida pelo vento, todos os seus sentidos de repente tão aguçados que o instinto de sobrevivência animal domina o cérebro. Você ouve o ar se movendo. Vê o ar se movendo. Tudo parece estar em câmara lenta, desmoronando sobre si mesmo, interminavelmente. Você vê tudo, cada detalhe do que está acontecendo, e percebe...” “Percebe?”, estimula Berger. “Sim, percebe”, continuo. “Percebe o cabelo nas mãos dele iluminado como filamentos, parecido com linhas de pescar, quase translúcido. Percebe que ele está quase feliz.” “Feliz? O que você quer dizer?”, pergunta Berger. “Ele estava rindo?” “Eu diria outra coisa. Não era bem um riso, era algo primitivo, a alegria, a luxúria, a fome enraivecida que se vê nos olhos de um animal prestes a ser alimentado com carne crua fresca.” Respiro fundo, olhando para a parede de minha sala de reuniões, para um calendário com uma cena de neve de Natal. Berger está rígida, com as mãos imóveis sobre a mesa. “O problema não é o que você observa, é o que você lembra”, prossigo, mais lúcida. “Acho que o choque disso tudo causa um erro de disco, e você não consegue se lembrar com o mesmo grau de atenção extrema aos detalhes. Talvez isso também seja sobrevivência. Talvez precisemos esquecer algumas coisas para não revivê-las. Esquecer faz parte da cura. Como a moça que corria no Central Park e foi arrastada por uma gangue, surrada, mordida, abandonada como morta. Por que ela ia querer se lembrar? E eu sei que você conhece bem o caso”, acrescento com ironia. O caso foi de Berger, claro. A promotora distrital assistente Berger se mexe na cadeira. “Mas você se lembra”, ela observa calmamente. “E você tinha visto o que Chandonne faz com
suas vítimas. ‘Lacerações severas no rosto’.” Ela começa a ler em voz alta o relatório da autópsia de Luong. “‘Extensas fraturas trituradas do osso parietal direito... fratura do osso frontal direito... chegando à linha média... hematoma subdural bilateral... rompimento da dura-máter acompanhado de hemorragia subaracnóide... fraturas com afundamento que levaram a parte interna do osso plano do crânio a penetrar no cérebro subjacente... fraturas com aspecto de casca de ovo... coagulação...’” “A coagulação sugere um tempo de sobrevivência de pelo menos seis minutos a partir do instante em que ocorreu o ferimento.” Volto a meu papel de intérprete dos mortos. “Um tempo enorme”, observa Berger, e posso imaginá-la fazendo um júri ficar em silêncio por seis minutos para mostrar a eles exatamente a duração. “Os ossos faciais esmagados, e aqui” — toco áreas de uma fotografia — “as roturas e os rasgos na pele feitos por uma espécie de ferramenta que deixou um padrão de ferimentos redondos e lineares.” “Uma surra de pistola.” “Neste caso, no caso de Luong, sim. No caso de Bray, ele usou um tipo incomum de martelo.” “Uma picareta de entalhar.” “Pelo que vejo, você fez a lição de casa.” “É um hábito esquisito que eu tenho”, ela diz. “Premeditação”, prossigo. “Ele trouxe suas armas para as cenas ou usou algo que encontrou quando chegou lá? E esta foto aqui” — pego outro horror — “mostra contusões nos nós dos dedos, de socos. Portanto ele também usou os punhos para bater nela, e desse ângulo podemos ver o suéter e o sutiã dela no chão. Parece que ele os arrancou com as mãos nuas.” “Com base em quê?” “No microscópio você pode ver que as fibras estão rasgadas e não cortadas”, respondo. Berger observa um diagrama corporal. “Acho que nunca vi tantas marcas de mordida feitas por um ser humano. Enlouquecido. Alguma razão para suspeitar que ele pudesse estar sob efeito de drogas quando cometeu esses assassinatos?” “Eu não teria como saber.” “E quando você se encontrou com ele?”, ela pergunta. “Quando ele a atacou no sábado, pouco depois da meia-noite. A propósito, ele tinha o mesmo tipo esquisito de martelo, pelo que entendo? Uma picareta de entalhar?” “ ‘Enlouquecido’ é uma boa palavra para descrevê-lo. Mas eu não teria nenhuma razão para saber se ele estava drogado.” Faço uma pausa. “Sim, ele estava com uma picareta de entalhar quando tentou me atacar.” “Tentou? Vamos expor os fatos.” Ela me encara. “Ele a atacou. Não tentou. Ele a atacou e você escapou. Você deu uma boa olhada na picareta?” “Bem pensado, já que estamos expondo os fatos. Era um tipo de ferramenta. Eu sei como é uma picareta de entalhar.” “Do que você se lembra? O rodopio”, ela se refere a minha estranha descrição. “Aqueles minutos intermináveis, os fios do cabelo nas mãos dele
iluminados como um filamento.” Visualizo um cabo preto espiralado. “Eu vi a espiral”, conto a ela da melhor forma que consigo. “Eu me lembro disso. É muito incomum. Uma picareta de entalhar tem um cabo que parece uma mola grossa, preta.” “Tem certeza? Foi isso que você viu quando ele a atacou?”, ela me pressiona. “Tenho uma vaga certeza.” “Seria útil se sua certeza fosse mais do que vaga”, ela responde. “Eu vi a ponta dela. Como um grande bico preto. Quando ele a levantou para me golpear. Sim, tenho certeza. Ele tinha uma picareta de entalhar.” Assumo uma atitude de desafio. “Era exatamente o que ele tinha.” “Eles coletaram o sangue de Chandonne no pronto-socorro”, Berger me informa. “Negativo para drogas e álcool.” Ela está me testando. Já sabia que o teste de Chandonne dera negativo para drogas e álcool, mas reteve esse detalhe por tempo suficiente para ouvir minhas impressões. Ela quer ver se consigo ser objetiva quando falo sobre meu caso. Quer ver se consigo me ater aos fatos. Ouço Marino no corredor. Ele entra com três xícaras de isopor fumegantes e as põe na mesa, empurrando um café preto na minha direção. “Não sei o que você toma, mas tem creme”, diz ele com rudeza a Berger. “E o seu realmente está cheio de creme e açúcar, porque de jeito nenhum eu ia querer fazer algo que pudesse me privar de minha nutrição.” “Qual a gravidade do dano que alguém sofreria se fosse atingido com formalina nos olhos?”, Berger me pergunta. “Depende da rapidez com que a pessoa fosse lavada”, respondo objetivamente, como se a indagação dela fosse teórica, e não uma alusão ao fato de eu ter mutilado outro ser humano. “Deve doer como o diabo. É um ácido, certo? Eu vi o que ele faz no tecido — transforma em borracha”, ela comenta. “Não literalmente.” “Claro que não literalmente”, ela concorda, com um traço de sorriso que sugere que eu deveria me descontrair um pouco, como se isso fosse possível. “Se você colocar tecido em uma suspensão de formalina por muito tempo, ou injetá-la — em embalsamamento, por exemplo”, explico, “nesse caso, sim, ela fixa o tecido, preserva-o indefinidamente.” Mas Berger tem pouco interesse na ciência da formalina. Não tenho certeza nem mesmo de que ela esteja interessada na extensão de qualquer dano permanente que o produto químico possa ter causado a Chandonne. Tenho a sensação de que ela está mais concentrada em como me sinto a respeito de causar a ele dor e provavelmente uma incapacitação. Ela não me pergunta. Apenas olha para mim. Estou começando a sentir o peso desses olhares. Os olhos dela são como mãos experientes palpando em busca de qualquer anomalia ou suscetibilidade. “Temos alguma idéia de quem vai ser o advogado dele?” Marino nos lembra de que está presente. Berger bebe seu café. “A pergunta de seis milhões de dólares.” “Então você não tem nenhuma pista”, diz Marino, desconfiado.
“Ah, eu tenho uma pista. Será alguém de quem você definitivamente não vai gostar.” “Ora”, ele retruca. “Isso é fácil de prever. Nunca conheci um advogado de quem eu gostasse.” “Pelo menos esse será um problema meu”, ela diz. “Não seu.” Ela o põe de novo em seu lugar. Eu também me irrito com isso. “Olhe”, digo a ela, “julgá-lo em Nova York é uma coisa que não me agrada.” “Eu entendo como você se sente.” “Eu tenho sérias dúvidas a esse respeito.” “Bem, eu conversei com seu amigo, o senhor Righter — o bastante para dizer a você exatamente o que ocorreria se vocês julgassem monsieur Chandonne aqui na Virgínia.” Agora ela está serena, é a especialista, apenas um pouco sardônica. “O tribunal recusaria a acusação de se passar por policial e reduziria a tentativa de assassinato para invasão de domicílio com intenção de cometer assassinato.” Ela faz uma pausa, esperando minha reação. “Ele na verdade não tocou em você. Esse é o problema.” “Na verdade, o problema teria sido se ele tivesse tocado”, respondo, recusando-me a mostrar que ela está realmente começando a me irritar. “Ele pode ter erguido aquela picareta para atingir você, mas não atingiu.” Seus olhos estão fixados nos meus. “Pelo que somos todos gratos.” “Você sabe o que dizem, seus direitos só são valorizados quando são transgredidos.” Pego meu café. “Righter teria feito uma moção para que todas as acusações fossem combinadas em um único julgamento, doutora Scarpetta. E então qual teria sido o seu papel? Testemunha especialista? Testemunha factual? Ou vítima? O conflito é claramente visível. Ou você testemunha como legista e o ataque a você é deixado completamente de fora, ou você é simplesmente uma vítima que sobreviveu e outra pessoa testemunha em seu caso. Ou pior” — ela pára para criar impacto — “Righter estipula seus relatórios. Ele parece ter o hábito de fazer isso, pelo que entendo.” “O cara tem a fibra de uma meia vazia”, diz Marino. “Mas a doutora está certa. Chandonne deve pagar pelo que tentou fazer com ela. E com toda a certeza ele devia pagar pelo que fez com as outras duas mulheres. E deve pegar pena de morte. Pelo menos aqui, nós o fritaríamos.” “Não se a doutora Scarpetta estivesse de alguma forma desacreditada como testemunha, capitão. Um bom advogado de defesa não demoraria para pintá-la como uma pessoa com conflito de interesses e jogaria muita tinta na água.” “Não importa. Tudo é discutível, certo?”, diz Marino. “Ele não está sendo julgado aqui e eu não nasci ontem. Ele nunca vai ser julgado aqui. Vocês vão trancá-lo, e nós, os insignificantes daqui, nunca teremos chance de ir ao tribunal.” “O que ele estava fazendo em Nova York dois anos atrás?”, pergunto. “Você tem alguma idéia sobre isso?” “Ah”, diz Marino, como se conhecesse detalhes que ainda não foram partilhados comigo. “Essa história é boa.”
“Seria possível que a família dele tivesse conexões em minha bela cidade?”, sugere Berger, com aparente desinteresse. “Mas que diabo, eles provavelmente têm uma porra dum apartamento de cobertura”, retruca Marino. “E Richmond?”, continua Berger. “Richmond não é um ponto de parada entre Nova York e Miami, pelo corredor de drogas da I-95?” “Ah, sim”, responde Marino. “Antes de o Projeto Exílio começar e processar aqueles parasitas que cumpriam pena em prisão federal se fossem apanhados com armas ou drogas. É, Richmond era um lugar realmente popular para fazer negócios. Então, se o cartel Chandonne está em Miami — e já sabemos disso, com base no trabalho secreto que Lucy estava fazendo lá — e se há uma grande conexão em Nova York, não é nenhuma surpresa que as armas e as drogas do cartel estivessem vindo parar em Richmond também.” “Estivessem?”, ela pergunta. “Talvez ainda estejam.” “Imagino que tudo isso vai manter o ATF ocupado por um bom tempo”, digo. “Ah”, Marino bufa outra vez. Há uma pausa tensa, então Berger diz: “Bem, já que vocês tocaram no assunto”. Seu jeito me diz que ela está prestes a me dar notícias que não vou apreciar. “Parece que o ATF tem um probleminha. Assim como o FBI e a polícia francesa. A esperança, obviamente, era usar a prisão de Chandonne como uma oportunidade para obter mandados de busca na casa da família dele em Paris e talvez encontrar evidências que pudessem ajudar a desmontar o cartel. Mas estamos tendo um pouco de dificuldade para colocar Jean-Baptiste dentro da casa da família. De fato, não temos nada para provar quem ele é. Nem carteira de motorista, nem passaporte, nem certidão de nascimento. Não existe sequer um registro desse homem bizarro. Só seu DNA, que é tão próximo do DNA do homem encontrado no porto daqui que podemos supor que eles provavelmente são parentes, provavelmente irmãos. Mas eu preciso de algo mais tangível do que isso para conseguir que o júri fique do meu lado.” “E não há a menor hipótese de a família dele se apresentar e reivindicar o Loup-garou”, diz Marino, num francês horrível. “Essa é a razão de não haver nenhum registro dele, certo? Os poderosos Chandonne não querem que o mundo saiba que eles têm um filho que é uma anomalia de traseiro peludo e que é um assassino serial.” “Espere um minuto”, eu os interrompo. “Ele não se identificou quando foi preso? De onde obtivemos o nome Chandonne, se não dele?” “Nós o obtivemos dele.” Marino esfrega o rosto com as mãos. “Merda. Mostre o teipe a ela”, ele dispara de repente para Berger. Não tenho idéia sobre de que teipe ele está falando, e Berger não está nada feliz por ele tê-lo mencionado. “A doutora tem o direito de saber”, ele diz. “O que temos aqui é uma nova versão de um acusado que tem um perfil de DNA, mas não tem nenhuma identidade.” Berger evita o assunto que Marino tentou introduzir. Que teipe?, penso, enquanto a paranóia aumenta. Que teipe? “Você está com ele?” Marino trata Berger com franca hostilidade, os dois
se enfrentando em um quadro vivo de raiva empedernida, olhando um para o outro por cima da mesa. O rosto dele se endurece. Ele agarra afrontosamente a maleta dela e a puxa para perto de si, como se planejasse se servir do que quer que haja dentro dela. Berger põe a mão em cima da maleta com um olhar atordoante. “Capitão”, ela adverte, num tom que pressagia o pior problema que ele jamais enfrentou. Marino retira a mão, seu rosto vermelho de fúria. Berger abre a maleta e me dá toda a sua atenção. “Eu tenho intenção de mostrar o teipe a você”, ela mede as palavras. “Apenas não ia fazer isso neste exato momento, mas podemos.” Ela está bastante controlada, mas consigo ver que está muito irritada quando tira um teipe de um envelope pardo. Levanta-se e o insere no aparelho de videocassete. “Alguém sabe como operar esta coisa?”
11
Ligo a televisão e passo o controle remoto a Berger. “Doutora Scarpetta”, ela ignora completamente Marino, “antes de iniciarmos isto, vou lhe dar um pequeno resumo de como o gabinete do promotor distrital funciona em Manhattan. Como já mencionei, fazemos algumas coisas de forma muito diferente do que vocês estão acostumados a fazer aqui na Virgínia. Eu esperava lhe explicar tudo isso antes de sujeitá-la ao que vai ver agora. Você está familiarizada com nosso sistema de plantão para homicídios?” “Não”, respondo, e meus nervos se tensionam e começam a zunir. “Vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, um promotor distrital assistente fica de plantão para o caso de ocorrer um homicídio ou a polícia localizar um acusado. Em Manhattan, os policiais não podem prender um acusado sem que o gabinete do promotor distrital autorize, como já expliquei. Isso serve para garantir que tudo — mandados de busca, por exemplo — seja executado de forma adequada. É comum que o promotor, o assistente, vá à cena do crime, e em uma situação em que um acusado é preso, se ele se dispuser a ser entrevistado pelo assistente, pulamos tudo isso. Capitão Marino”, ela se dirige a ele com frieza, “você começou no Departamento de Polícia de Nova York, mas deve ter sido antes de tudo isso ser implementado.” “Nunca tinha ouvido falar sobre isso até hoje”, ele resmunga, seu rosto ainda perigosamente vermelho. “E sobre processo vertical?” “Parece um ato sexual”, responde Marino. Berger finge que não ouviu a resposta. “Idéia de Morgenthau”, ela me diz. Robert Morgenthau é o promotor distrital de Manhattan há quase vinte e cinco anos. É uma lenda. É óbvio que Berger adora trabalhar para ele. Alguma coisa se acende lá no fundo de mim. Inveja? Não, talvez melancolia. Estou cansada. Tenho uma sensação crescente de impotência. Não tenho ninguém além de Marino, que é tudo menos inovador ou esclarecido. Marino não é uma lenda, e neste exato momento não adoro trabalhar com ele, e nem sequer quero tê-lo por perto. “O promotor assume o caso desde o início.” Berger começa a explicar o que é o processo vertical. “Então não precisamos lidar com três ou quatro pessoas que já entrevistaram nossas testemunhas ou a vítima. Se um caso é meu, por exemplo, posso literalmente começar na cena do crime e terminar no tribunal. Uma pureza que não pode absolutamente ser contestada. Se tiver sorte, interrogo o acusado antes que ele contrate um advogado — obviamente, nenhum advogado de defesa vai concordar com que seu cliente fale comigo.” Ela aciona o controle remoto. “Felizmente, peguei Chandonne antes de ele ter um advogado. Entrevistei-o várias vezes no hospital a partir das três da manhã de hoje, um horário um tanto desumano.” Dizer que estou chocada seria uma trivialização grosseira de minha reação
ao que ela acaba de revelar. Não é possível que Jean-Baptiste Chandonne tenha concordado em falar com alguém. “Evidentemente, você está um pouco surpresa.” O comentário de Berger me parece retórico, como se ela quisesse provar alguma coisa. “Pode-se dizer que sim”, respondo. “Talvez não tenha realmente lhe ocorrido que seu atacante é capaz de andar, falar, mascar chiclete, beber Pepsi? Talvez ele não lhe pareça plenamente humano?”, ela sugere. “Talvez você pense que ele é realmente um lobisomem.” Na verdade, não o vi quando ele falou de modo convincente do outro lado da porta da frente de minha casa. Polícia. Está tudo bem aí? Depois disso, ele foi um monstro. Sim, um monstro. Um monstro me atacando com uma ferramenta de ferro preto que parecia algo saído da Torre de Londres. Então ele começou a grunhir, gritar e ter um comportamento muito semelhante a sua aparência, que é hedionda e sobrenatural. Uma fera. Berger sorri com certo cansaço. “Agora você está prestes a ver nosso desafio, doutora Scarpetta. Chandonne não é louco. Não é sobrenatural. E nós não queremos que os jurados o enquadrem em um padrão diferente apenas porque ele tem uma doença infeliz. Mas também quero que eles o vejam agora, antes que ele esteja limpo e usando um terno de três peças. Penso que os jurados precisam avaliar plenamente o terror que as vítimas dele sentiram, você não acha?” Ela me olha nos olhos. “Isso pode ajudá-los a perceber que ninguém em sã consciência o teria convidado a entrar em casa.” “Por quê? Ele disse que eu o convidei?” Minha boca está seca. “Ele disse muitas coisas”, responde Berger. “O maior monte de asneiras que já ouvi”, diz Marino, enojado. “Mas eu soube disso no ato. Vou ao quarto dele na noite passada, certo? Digo a ele que a senhorita Berger quer entrevistá-lo, e ele me pergunta como ela é. Eu não digo uma palavra, finjo que concordo com o babaca. Digo a ele, ‘Bom, vamos dizer o seguinte, John. Para muitos caras é muito duro — sem querer fazer trocadilho — se concentrar quando ela está por perto, você entende o que estou dizendo, certo?’” John, penso, entorpecida. Marino o chama de John. “Testando, um, dois, três, um dois, três”, uma voz soa no teipe, e uma parede de concreto enche a tela. A câmera começa a focalizar uma mesa vazia e uma cadeira. Ao fundo, um telefone toca. “Ele quer saber se ela tem um belo corpo, e, senhorita Berger, espero que me desculpe por fazer referência a ele.” Marino destila sarcasmo, ainda furioso com ela por razões que ainda não consigo entender totalmente. “Mas estou só repetindo o que o merdinha disse. Então eu digo a ele, ‘Puxa, nem é certo eu comentar, mas, como eu disse, os caras nem conseguem pensar direito quando ela está por perto. Pelo menos os caras direitos não conseguem pensar direito’.” Sei muito bem que não foi isso o que Marino disse. Na verdade, duvido que Chandonne tenha perguntado como era Berger. O mais provável é que a sugestão de que ela tem uma aparência sexy tenha vindo de Marino, para convencer Chandonne a falar com ela, e quando me recordo do comentário grosseiro que Marino fez sobre Berger quando estávamos indo para o carro de Lucy, ontem à
noite, sinto uma onda de ressentimento, de raiva. Estou cheia dele e de seu machismo. Estou cheia de seu chauvinismo e de sua grosseria de macho. “Que diabo é isso?” Tenho a sensação de que estou dando um banho de água fria nele. “As partes do corpo feminino têm de entrar em toda conversa? Você acha possível, Marino, se concentrar neste caso sem ficar obcecado com o tamanho dos seios de uma mulher?” “Testando, um, dois, três, um, dois, três”, a voz do câmera soa de novo no teipe. O telefone pára de tocar. Ouve-se o arrastar de pés e vozes murmurando. “Vamos pô-lo sentado aqui, nesta mesa e nesta cadeira.” Reconheço a voz de Marino no teipe, e ao fundo alguém bate na porta. “A questão é que Chandonne falou.” Berger está olhando para mim, me palpando de novo com seus olhos, descobrindo minhas fraquezas, meus pontos sensíveis. “Ele falou muito comigo.” “Seja lá para que isso sirva.” Marino olha irritado para a tela da TV. Então é isso. Marino pode ter induzido Chandonne a falar com Berger, mas a verdade é que ele queria que Chandonne falasse com ele. A câmera é fixada e só vejo o que está diretamente diante dela. A barrigona de Marino entra no quadro quando ele puxa uma cadeira de madeira, e alguém de terno azul-escuro e gravata vermelha ajuda Marino a guiar Chandonne até a cadeira. Chandonne está vestido com uma roupa de hospital de mangas curtas, e fios de cabelo compridos e pálidos pendem de seus braços em emaranhados ondulados e macios da cor de mel. O cabelo se esparrama sobre a gola em V e sobe pelo pescoço em redemoinhos repulsivos. Ele se senta e sua cabeça entra na tela, coberta de ataduras desde o meio da testa até a ponta do nariz. Logo em volta das ataduras, a pele foi depilada e é branca como leite, como se nunca tivesse apanhado sol. “Posso tomar minha Pepsi, por favor?”, pergunta Chandonne. Nada lhe restringe os movimentos, nem sequer algemas. “Você quer que eu abra?”, diz Marino a ele. Nenhuma resposta. Berger passa diante da câmera e noto que está usando um terninho chocolate com ombreiras. Ela se senta diante de Chandonne. Só vejo a parte de trás de sua cabeça e de seus ombros. “Você quer outra bebida, John?”, Marino pergunta ao homem que tentou me matar. “Daqui a um minuto. Posso fumar?”, diz Chandonne. Sua voz é suave e tem forte sotaque francês. Ele é polido e calmo. Mantenho os olhos na tela da TV, minha concentração oscilando. Sinto outra vez distúrbios elétricos, estresse pós-traumático, meus nervos saltam como água batendo em graxa quente, e estou começando a ter outra dor de cabeça forte. O braço com manga azul-escura e punho branco entra na tela, pondo uma bebida e um maço de cigarros Camel diante de Chandonne, e reconheço o copo de papel alto azul e branco da lanchonete do hospital. Uma cadeira é arrastada para trás, e vejo o braço de manga azul acender um cigarro para Chandonne. “Senhor Chandonne.” A voz de Berger soa descontraída e segura, como se ela falasse todo dia com assassinos seriais mutantes. “Vou começar me apresentando. Sou Jaime Berger, promotora do gabinete do promotor distrital do
condado de Nova York . Em Manhattan.” Chandonne levanta uma das mãos e toca levemente nas ataduras. Os dorsos de seus dedos são cobertos de um pêlo claro felpudo, quase albino, incolor. Deve ter um centímetro de comprimento, como se até recentemente ele depilasse as costas das mãos. Tenho visões dessas mãos tentando me pegar. As unhas estão compridas e sujas, e pela primeira vez percebo os contornos de músculos potentes, não espessos e salientes como o de homens que se exercitam obsessivamente, mas desgastados e duros, o hábitat físico de alguém que, como um animal, usa o corpo para se alimentar, lutar e fugir, para sobreviver. Sua força parece contradizer nossa suposição de que ele teve uma vida muito sedentária e inútil, escondido no hôtel particulier de sua família, como são chamadas as elegantes residências da Île de Saint-Louis. “Você já conhece o capitão Marino”, diz Berger a Chandonne. “Também está presente o oficial Escudero, de meu gabinete — ele é o câmera. E o agente especial Jay Talley, do ATF.” Sinto que Berger me olha. Evito olhar. Abstenho-me de interromper para perguntar Por quê? Por que Jay está lá?. Ocorre-me que ela é exatamente o tipo de mulher por quem ele se sentiria atraído — intensamente. Tiro um lenço do bolso do casaco e enxugo o suor frio em minha sobrancelha. “Você sabe que isto está sendo gravado e não tem nenhuma objeção a isso”, Berger diz no teipe. “Sim.” Chandonne dá uma tragada no cigarro e um fiapo de fumo fica grudado na ponta de sua língua. “Senhor, vou lhe fazer algumas perguntas sobre a morte de Susan Pless, em 15 de dezembro de 1997.” Chandonne não reage. Pega a Pepsi e procura o canudo com seus lábios rosados e desiguais, enquanto Berger prossegue, fornecendo a ele o endereço da vítima no Upper East Side de Nova York. Ela diz que, antes de prosseguirem, quer informá-lo de seus direitos, embora ele já tenha sido informado sobre eles muitas vezes por sabe Deus quem. Chandonne ouve. Talvez seja minha imaginação, mas ele parece estar se divertindo. Aparentemente não está aflito e não se sente nem um pouco intimidado. Está calmo e cortês, suas horríveis mãos peludas pousadas em cima da mesa ou tocando as ataduras, como se para nos lembrar do que nós fizemos — eu fiz — a ele. “Tudo que você disser pode ser usado contra você no tribunal”, continua Berger. “Você entende? E seria útil se você dissesse sim ou não em vez de concordar com a cabeça.” “Eu entendo.” Ele coopera quase amavelmente. “Você tem o direito de consultar um advogado agora, antes de qualquer pergunta, ou de ter um advogado presente durante o interrogatório. Você entende?” “Sim.” “E se você não tiver um advogado ou não puder pagar um, terá direito a um gratuito. Você entende?” A isso, Chandonne pega de novo a Pepsi. Berger continua incansavelmente
a se certificar de que ele e o mundo saibam que este processo é legal e justo e de que Chandonne está completamente informado e falando com ela por vontade própria, livremente, sem nenhum tipo de pressão. “Agora que foi informado de seus direitos”, ela conclui sua abertura confiante e convincente, “você vai dizer a verdade sobre o que aconteceu?” “Eu sempre digo a verdade”, responde Chandonne, brandamente. “E esses direitos foram lidos diante do oficial Escudero, do capitão Marino e do agente especial Jay Talley. Você entendeu esses direitos?” “Sim.” “Por que não me conta com suas próprias palavras o que aconteceu a Susan Pless?”, diz Berger. “Ela era muito legal”, responde Chandonne, para minha surpresa. “Ainda me sinto mal pelo que aconteceu.” “É, aposto que se sente”, murmura sardonicamente Marino em minha sala de reuniões. Berger imediatamente aperta a tecla de pausa. “Capitão”, ela dispara, “sem editar.” O mau humor de Marino é como um gás venenoso. Berger aciona o controle remoto, e no teipe ela está perguntando a Chandonne como ele e Susan Pless se conheceram. Ele responde que se conheceram em um restaurante chamado Lumi, na rua 70, entre a Terceira Avenida e a Lexington. “O que você estava fazendo? Comendo lá, trabalhando lá?”, Berger prossegue. “Comendo lá, sozinho. Ela entrou, também sozinha. Eu bebia uma garrafa muito boa de vinho italiano. Um Massolino Barolo 1993. Ela era muito bonita.” Barolo é meu vinho italiano preferido. A garrafa que ele menciona é cara. Chandonne continua a contar sua história. Ele estava comendo antepasto — “Crostini di polenta con funghi trifolati e olio tartufato”, diz ele num italiano perfeito — quando percebeu uma estonteante afro-americana entrar sozinha no restaurante. O maître tratou-a como se ela fosse uma cliente importante e costumeira, e deu a ela uma mesa de canto. “Ela estava muito elegante”, diz Chandonne. “Evidentemente não era uma prostituta.” Ele pediu ao maître para perguntar a ela se queria sentar-se à sua mesa, e ela foi muito fácil. “O que você quer dizer com muito fácil ?”, pergunta Berger. Chandonne dá de ombros e pega de novo a Pepsi. Suga sem pressa o canudinho. “Acho que vou querer outra.” Ele levanta o copo e o braço com manga azul — o braço de Jay Talley — o pega. Chandonne tenta às cegas pegar o maço de cigarros, a mão peluda tateando sobre a mesa. “O que você quer dizer quando diz que Susan foi muito fácil ?”, Berger pergunta outra vez. “Não precisei fazer nada para persuadi-la a juntar-se a mim. Ela veio até minha mesa e se sentou. E tivemos uma ótima conversa.” Não reconheço a voz dele. “Sobre o que vocês conversaram?”, pergunta Berger. Chandonne toca de novo nas ataduras, e imagino esse homem hediondo
com seus longos pêlos sentado em um lugar público, comendo comida refinada, bebendo vinho fino e paquerando mulheres. Ocorre-me a idéia esquisita de que Chandonne pode ter suspeitado de que Berger me mostraria esse teipe. A comida e o vinho italianos serão algo que ele menciona por minha causa? Estará ele escarnecendo de mim? O que ele sabe a meu respeito? Nada, respondo. Não há motivo para ele saber nada sobre mim. Agora ele está dizendo a Berger que ele e Susan Pless discutiram política e música durante o jantar. Quando Berger pergunta se ele sabia como Susan ganhava a vida, ele responde que ela lhe contou que trabalhava numa estação de televisão. “Eu disse a ela, ‘então você é a famosa’, e ela riu”, diz Chandonne. “Você a tinha visto alguma vez na televisão?”, pergunta Berger. “Eu não assisto muito televisão.” Ele solta lentamente a fumaça. “Agora, é claro, eu não assisto nada. Não consigo ver.” “Apenas responda à pergunta, senhor. Não perguntei se você assiste muito televisão, mas se tinha visto alguma vez Susan na televisão.” Faço um esforço para reconhecer a voz dele enquanto o medo me pica a carne e minhas mãos começam a tremer. Sua voz é completamente desconhecida. Não se parece em nada com a voz que ouvi do outro lado de minha porta. Polícia. Senhora, recebemos um chamado a respeito de um elemento suspeito em sua propriedade. “Não me lembro de vê-la na televisão”, responde Chandonne. “O que aconteceu depois?”, pergunta Berger. “Nós comemos. Bebemos o vinho, e eu perguntei a ela se gostaria de ir a algum lugar tomar um pouco de champanhe.” “Algum lugar? Onde você estava hospedado?” “No Barbizon Hotel, mas não com meu nome verdadeiro. Eu tinha acabado de chegar de Paris e só ia ficar em Nova York alguns dias.” “Com que nome você se registrou?” “Não me lembro.” “Como você pagou?” “Em dinheiro.” “E por que você tinha ido a Nova York?” “Eu estava com muito medo.” Em minha sala de reuniões, Marino se mexe na cadeira e explode, com cara de nojo. Ele edita outra vez. “Segurem-se em suas cadeiras, pessoal. Agora vem a parte boa.” “Com medo?”, a voz de Berger soa no teipe. “Você estava com medo de quê?” “Essas pessoas que estão atrás de mim. Seu governo. Tudo tem a ver com isso.” Chandonne toca de novo nas ataduras, primeiro com uma mão, depois com a que segura o cigarro. A fumaça rodopia em volta de sua cabeça. “Porque eles estão me usando — têm me usado — para pegar minha família. Por causa de boatos inverídicos sobre minha família...” “Espere. Espere um minuto”, interrompe Berger. Pelo canto do olho vejo Marino balançando a cabeça com irritação. Ele se
recosta na cadeira e cruza os braços sobre a barriga inchada. “Você recebe o que pede”, ele murmura, e só posso supor que ele quer dizer que Berger jamais deveria ter entrevistado Chandonne. Foi um erro. O teipe vai prejudicar mais do que ajudar. “Capitão, por favor”, a Berger real nesta sala diz a Marino em um tom que transmite seriedade, enquanto sua voz no teipe pergunta a Chandonne: “Senhor, quem o está acusando?”. “FBI, Interpol. Talvez até a CIA. Não sei exatamente.” “É”, diz Marino com sarcasmo, levantando-se da mesa. “Ele não menciona o ATF porque ninguém nunca ouviu falar do ATF. Não está nem no corretor ortográfico.” O ódio de Marino por Talley, além do que está acontecendo com a carreira de Lucy, o levou a odiar tudo que tenha qualquer coisa a ver com o ATF. Dessa vez Berger não diz nada. Simplesmente o ignora. No teipe ela confronta Chandonne, sua natureza direta insistindo: “Senhor, preciso que entenda como é importante que diga a verdade agora. Você entende como é importante que seja absolutamente verdadeiro comigo?”. “Eu digo a verdade”, diz ele, com brandura e seriedade. “Sei que parece inacreditável. Parece incrível, mas tudo isso tem a ver com minha poderosa família. Todos na França os conhecem. Eles vivem há centenas de anos na Île de Saint-Louis e há boatos de que estão ligados ao crime organizado, como a máfia, o que não é absolutamente verdade. É aí que está a confusão. Eu nunca vivi com eles.” “Mas você faz parte dessa família poderosa. É filho deles?” “Sim.” “Você tem irmãos e irmãs?” “Eu tinha um irmão. Thomas.” “Tinha?” “Ele morreu. Você sabe disso. É por isso que estou aqui.” “Eu gostaria de voltar a isso. Mas vamos falar sobre sua família em Paris. Você está me dizendo que não mora com sua família e nunca morou com eles?” “Nunca.” “Por que isso? Por que nunca viveu com sua família?” “Eles nunca me quiseram. Quando eu era pequeno eles pagavam um casal sem filhos para cuidar de mim, assim ninguém saberia.” “Saberia o quê?” “Que sou filho de monsieur Thierry Chandonne.” “Por que seu pai não queria que as pessoas soubessem que você é filho dele?” “Você olha para mim e faz uma pergunta dessas?” A raiva tensiona sua boca. “Estou lhe fazendo uma pergunta. Por que seu pai não queria que as pessoas soubessem que você é filho dele?” “Ah, tudo bem. Vou fingir que você não nota minha aparência. Você é muito gentil de fingir que não percebe.” Há algo de escárnio em sua voz. “Eu tenho uma doença grave. Lamentavelmente, minha família tem vergonha de
mim.” “Onde vive esse casal? Essas pessoas que você diz que cuidaram de você?” “No Quai de l’Horloge, bem perto da Conciergerie.” “A prisão? Onde Maria Antonieta foi presa durante a Revolução Francesa?” “A Conciergerie é muito famosa, claro. Um lugar turístico. As pessoas parecem dar muita importância a prisões, câmaras de tortura e decapitações. Especialmente americanos. Nunca entendi isso. E vocês vão me matar. Os Estados Unidos vão me matar facilmente. Vocês matam todo mundo. É tudo parte do grande plano, da conspiração.” “Onde exatamente no Quai de l’Horloge? Eu pensava que todo aquele imenso quarteirão era o Palais de Justice e a Conciergerie.” Berger pronuncia francês como alguém que fala francês. “Sim, há alguns apartamentos, muito caros. Você está dizendo que sua família adotiva morava lá?” “Muito perto de lá.” “Qual é o nome desse casal?” “Olivier e Christine Chabaud. Infelizmente, os dois morreram, há muitos anos.” “O que eles faziam? Em que trabalhavam?” “Ele era boucher. Ela era coiffeureuse.” “Um açougueiro e uma cabeleireira?” O tom de Berger sugere que ela não acredita nele e sabe muito bem que ele está zombando dela e de todos nós. JeanBaptiste Chandonne é um açougueiro. E é coberto de cabelo. “Um açougueiro e uma cabeleireira, sim”, afirma Chandonne. “Você alguma vez viu sua família, os Chandonne, enquanto morava com essas outras pessoas perto da prisão?” “Uma vez ou outra, quando aparecia na casa. Sempre depois que estava escuro, para que as pessoas não me vissem.” “Para que as pessoas não o vissem? Por que você não queria que as pessoas o vissem?” “É como eu disse.” Ele bate a cinza às cegas. “Minha família não queria que as pessoas soubessem que eu sou filho deles. Isso geraria muitos problemas. Ele é muito, muito conhecido. Realmente não posso culpá-lo. Então eu ia tarde da noite, quando estava escuro e as ruas da Île de Saint-Louis estavam desertas, e às vezes eu pegava dinheiro e outras coisas deles.” “Eles deixavam você entrar na casa?” Berger está desesperada para colocá-lo dentro da casa da família, assim as autoridades podem ter uma causa provável para o mandado de busca. Já posso ver que Chandonne é um mestre do jogo. Sabe muito bem que ela quer colocá-lo dentro do incrível hôtel particulier dos Chandonne na Île de Saint-Louis, uma casa que vi com meus próprios olhos quando estive recentemente em Paris. Posso esperar a vida toda e jamais verei esse mandado de busca. “Sim. Mas eu não ficava muito tempo, e não entrava em todos os aposentos”, diz ele a Berger enquanto fuma calmamente. “Há muitos aposentos na casa de minha família nos quais nunca estive. Só a cozinha e... preciso
pensar... a cozinha e os aposentos dos empregados, e só dentro. Basicamente, como você vê, eu tive de me virar sozinho.” “Senhor, quando foi a última vez que visitou a casa de sua família?” “Ah, nenhuma vez ultimamente. Há dois anos, pelo menos. Eu realmente não me lembro.” “Você não se lembra? Se não sabe, apenas diga que não sabe. Não estou pedindo a você que adivinhe.” “Não sei. Mas não recentemente, disso tenho certeza.” Berger aciona o controle remoto e a imagem é congelada. “Você percebe o jogo dele, é claro”, ela me diz. “Primeiro, ele nos dá informações que não podemos confirmar. Pessoas que estão mortas. Dinheiro em um hotel onde ele se registrou com um nome falso do qual não consegue se lembrar. E agora, nenhuma base para o mandado de busca na casa de sua família, porque ele está dizendo que nunca viveu lá e mal entrou nela. E com certeza não recentemente. Nenhuma causa provável e que seja nova.” “Que inferno! Nenhuma causa provável, ponto”, acrescenta Marino. “Não a menos que consigamos testemunhas que o tenham visto entrar e sair da casa da família.”
12
Berger retorna ao teipe. Está perguntando a Chandonne: “Você está empregado, ou já esteve alguma vez?”. “Uma vez ou outra”, ele responde calmamente. “O que eu consigo encontrar.” “No entanto, você pôde se dar ao luxo de ficar em um hotel caro e comer em um restaurante caro de Nova York? E comprar uma boa garrafa de vinho italiano? Onde conseguiu dinheiro para tudo isso, senhor?” A isso, Chandonne hesita. Ele boceja, dando-nos uma visão chocante de seus dentes grotescos. Pequenos e pontudos, eles são bem espaçados e cinzentos. “Desculpe. Estou muito cansado. Não tenho muita força.” Ele toca de novo em suas ataduras. Berger lhe lembra que ele está falando porque quer. Ninguém o está forçando. Ela se oferece para parar, mas ele diz que vai continuar um pouco mais, talvez mais alguns minutos. “Estive na rua boa parte de minha vida quando não conseguia encontrar um trabalho”, ele diz. “Às vezes mendigo, mas na maioria das vezes encontro algum emprego. Lavar louça, varrer. Uma vez até dirigi uma motocrotte.” “E o que é isso?” “Um trottin’net. Uma dessas motocicletas verdes que há em Paris, que limpam as calçadas, sabe, com aspirador que recolhe cocô de cachorro.” “Você tem licença para dirigir?” “Não.” “Então, como você dirige um trottin’net ?” “Se for abaixo de cento e vinte e cinco cilindradas não é preciso licença, e as motocrottes só chegam a uns vinte quilômetros por hora.” Isso tudo é lorota. Mais uma vez, ele está zombando de nós. Marino se mexe na cadeira em minha sala de reuniões. “O babaca tem resposta para tudo, não é?” “Você consegue dinheiro de algum outro jeito?”, Berger está perguntando a Chandonne. “Bem, de mulheres, às vezes.” “E como você consegue dinheiro de mulheres?” “Se elas me derem. Admito que as mulheres são minha fraqueza. Adoro mulheres — a aparência delas, o cheiro, o tato, o gosto.” Ele, que afunda os dentes em mulheres que brutaliza e assassina, diz tudo isso em um tom gentil. Finge perfeita inocência. Começou a flexionar os dedos na mesa, como se eles estivessem duros, espalhando-os para um lado e para outro, lentamente, o pêlo brilhando. “Você gosta do gosto delas?” Berger está ficando mais agressiva. “É por isso que você as morde?”
“Eu não as mordo.” “Você não mordeu Susan?” “Não.” “Senhor, ela estava coberta de marcas de mordida.” “Eu não fiz aquilo. Eles fizeram. Sou seguido e são eles que matam. Eles matam minhas namoradas.” “Eles?” “Eu contei a você. Agentes do governo. FBI, Interpol. Para poderem pegar minha família.” “Se sua família teve tanto cuidado em escondê-lo do mundo, como essas pessoas — FBI, Interpol, o que for — sabem que você é um Chandonne?” “Elas devem ter me visto sair da casa algumas vezes, e me seguido. Ou talvez alguém tenha contado a elas.” “E você acha que faz pelo menos dois anos desde a última vez em que esteve na casa de sua família?”, ela tenta de novo. “Pelo menos.” “Há quanto tempo você acha que está sendo seguido?” “Muitos anos. Talvez há uns cinco anos. É difícil saber. Eles são muito inteligentes.” “E como você poderia ajudar essas pessoas a, aspas, pegar sua família ?”, pergunta Berger. “Se eles conseguirem me pintar como um assassino terrível, a polícia poderia entrar na casa de minha família. Eles não encontrariam nada. Minha família é inocente. É tudo política. Meu pai é muito poderoso politicamente. Além disso, eu não sei. Só posso dizer o que tem acontecido comigo, com minha vida, e é tudo uma conspiração para me trazer para este país e ser preso e depois condenado à morte. Porque vocês, americanos, matam pessoas mesmo quando elas são inocentes. Isso é sabido.” Sua declaração parece esgotá-lo, como se estivesse cansado de repeti-la. “Senhor, onde aprendeu a falar inglês?”, pergunta Berger. “Aprendi sozinho. E quando eu era mais jovem, meu pai me dava livros sempre que eu podia aparecer na casa. Eu lia muitos livros.” “Em inglês?” “Sim. Eu queria aprender inglês muito bem. Meu pai fala muitas línguas porque trabalha com transporte internacional e lida com muitos países estrangeiros.” “Inclusive este país? Os Estados Unidos?” “Sim.” O braço de Talley entra no quadro mais uma vez enquanto ele serve outra Pepsi. Chandonne enfia avidamente o canudinho entre os lábios e suga fazendo barulho. “Que tipo de livros você lia?”, continua Berger. “Muitas histórias e outros livros para me educar, porque eu mesmo tinha de me instruir, sabe? Nunca fui à escola.” “E onde estão esses livros agora?” “Ah, eu não saberia dizer. Perdidos. Porque às vezes não tenho casa e
perambulo muito. Sempre em movimento, olhando por cima do ombro por causa dessas pessoas que me seguem.” “Você sabe alguma outra língua além de francês e inglês?”, pergunta Berger. “Italiano. Um pouco de alemão.” Ele arrota calmamente. “E essas você também aprendeu sozinho?” “Eu encontro jornais em muitas línguas em Paris e também aprendi assim. Algumas vezes eu durmo deitado sobre jornais. Quando não tenho abrigo.” “Ele está me cortando o coração.” Marino não consegue se conter, enquanto Berger diz a Chandonne, no teipe, “Vamos voltar a Susan, à morte dela em 15 de dezembro, dois anos atrás, em Nova York. Conte-me sobre essa noite, a noite em que você diz que conheceu Susan no Lumi. O que exatamente aconteceu?” Chandonne suspira como se estivesse ficando mais cansado a cada segundo. Ele toca nas ataduras com freqüência, e percebo que suas mãos tremem. “Preciso comer alguma coisa”, diz ele. “Estou me sentindo débil, muito fraco.” Berger aciona o controle remoto e o quadro se congela e fica embaçado. “Nós paramos por cerca de uma hora”, ela me diz. “O tempo suficiente para ele comer alguma coisa e descansar.” “É, o cara com toda certeza conhece o sistema”, Marino me diz, como se eu ainda não tivesse percebido. “E a história desse casal que o criou é absurda. Ele está só protegendo sua família de mafiosos.” “Estava pensando se você conhece o restaurante Lumi”, me diz Berger. “Não que eu me lembre”, respondo. “Bem, é interessante. Quando começamos a investigar o assassinato de Susan, há dois anos, sabíamos que ela tinha jantado no Lumi na noite em que fora morta porque a pessoa que a serviu chamou a polícia assim que ouviu a notícia. O legista encontrou até vestígios da refeição no estômago dela, indicando que ela provavelmente tinha comido no máximo algumas horas antes de morrer.” “Ela estava sozinha no restaurante?”, pergunto. “Chegou sozinha e se reuniu a um homem que também estava sozinho, só que ele não era uma anomalia — definitivamente não. Foi descrito como alto, de ombros largos, bem vestido, com boa aparência. Claramente alguém para quem o dinheiro não era problema, ou pelo menos ele passava essa impressão.” “Você sabe o que ele pediu?”, pergunto. Berger passa os dedos pelo cabelo. É a primeira vez que a vejo perturbada. De fato, a palavra assombrada me vem à mente. “Ele pagou em dinheiro, mas o garçom se lembrava do que tinha servido a ela e a seu acompanhante. Ele comeu polenta e cogumelos e tomou uma garrafa de vinho, exatamente o que Chandonne descreveu no teipe. Susan comeu um antepasto de legumes grelhados com óleo de oliva, e cordeiro, o que, aliás, é coerente com o que havia em seu estômago.” “Cacete”, diz Marino. Evidentemente, essa parte é nova para ele. “Como diabo isso pôde acontecer? Seria preciso um bocado de efeitos especiais de Hollywood para transformar essa bola de pêlos horrorosa em um cara atraente
para as mulheres.” “A menos que não fosse ele”, digo. “Poderia ser o irmão dele, Thomas? E Jean-Baptiste poderia tê-lo seguido?” Mal posso acreditar no que disse. Chamei o monstro pelo nome. “Uma idéia muito lógica”, diz Berger. “Mas há outra coisa que não se ajusta ao cenário. O porteiro do apartamento de Susan se lembra de ela ter chegado com um homem que corresponde à descrição daquele que estava no Lumi. Isso foi por volta de nove da noite. O turno do porteiro ia até as sete da manhã seguinte, portanto ele estava lá quando o homem saiu, por volta das três e meia da manhã, horário em que Susan normalmente saía para o trabalho. Ela devia estar na estação de televisão por volta de quatro ou quatro e meia, porque o noticiário começa às cinco. Seu corpo foi encontrado por volta das sete da manhã, e, segundo o legista, Susan estava morta havia várias horas. O principal suspeito sempre foi o estranho com quem ela se encontrou no restaurante. De fato, não consigo ver como poderia ser outra pessoa além desse cara. Ele a mata. Passa algum tempo mutilando seu corpo. Sai às três e meia, e nunca mais se encontra nenhum vestígio dele. E, se ele não é culpado, por que não entrou em contato com a polícia quando ouviu a notícia do assassinato dela? E Deus sabe que a notícia foi divulgada em tudo quanto é lugar.” Tenho uma sensação estranha ao me dar conta de que soube desse caso quando ele aconteceu. De repente, estou me lembrando vagamente de detalhes que faziam parte das enormes e sensacionais histórias da época. É atordoante considerar que, quando ouvi falar de Susan dois anos atrás, não tive nenhuma idéia de que acabaria envolvida em seu caso, especialmente desta forma. “A menos que ele não seja de lá ou nem sequer deste país”, sugere Marinho. Berger faz um gesto de interrogação, com as palmas das mãos viradas para cima. Estou tentando calcular o alcance das evidências que ela apresentou e obtenho respostas que nem sequer começam a fazer sentido. “Se ela comeu entre sete e nove da noite, a comida deveria estar basicamente digerida às onze da noite”, observo. “Supondo que o legista esteja correto no tempo de morte que estimou, se ela morreu várias horas antes de seu corpo ser encontrado — digamos, à uma ou às duas da manhã —, então seu estômago devia estar vazio antes disso.” “A explicação foi estresse. Ela estava apavorada e sua digestão deve ter ficado lenta”, diz Berger. “Isso faz sentido quando se fala de um estranho escondido no armário e saltando em cima da pessoa quando ela chega em casa. Mas aparentemente Susan estava bem à vontade com esse homem, para convidá-lo a ir a seu apartamento”, proponho. “E estava bastante à vontade para não se preocupar se o porteiro o veria entrar e depois sair bem mais tarde. E quanto ao material vaginal coletado?” “Positivo para fluido seminal.” “Esse cara” — indico Chandonne — “não faz penetração vaginal, e não há nenhuma evidência de que ele ejacule”, lembro a Berger. “Não nos assassinatos de Paris, e certamente não nos daqui. As vítimas estão sempre vestidas da cintura
para baixo. Não têm ferimentos da cintura para baixo. Ele não parece nem de longe interessado nelas da cintura para baixo, exceto nos pés. Fiquei com a impressão de que Susan também estava vestida da cintura para baixo.” “Estava, com a calça do pijama. Mas ela tinha fluido seminal — possivelmente indicando sexo consensual, pelo menos no início. Certamente não depois disso, não quando se vê o que ele fez com ela”, responde Berger. “O DNA do fluido seminal coincide com o de Chandonne. Depois temos estranhos pêlos longos que com toda a certeza parecem os dele.” Ela acena com a cabeça para a televisão. “E vocês fizeram o teste do irmão, Thomas, certo? E o DNA dele não é idêntico ao de Jean-Baptiste, portanto não parece que Thomas deixou o fluido seminal.” “Os perfis de DNA deles são muito próximos, mas não idênticos”, concordo. “E não seriam mesmo, a menos que os irmãos fossem gêmeos idênticos, o que evidentemente não são.” “Como você tem certeza disso?”, pergunta Marino. “Se Thomas e Jean-Baptiste fossem gêmeos idênticos”, explico, “os dois teriam hipertricose congênita. Não apenas um deles.” “Então, como você explica isso?”, Berger me pergunta. “Uma correspondência genética em todos os casos, mas as descrições dos assassinos parecem indicar que eles não podem ser a mesma pessoa.” “Se o DNA no caso de Susan corresponde ao de Jean-Baptiste Chandonne, então só posso explicar isso concluindo que o homem que deixou o apartamento dela às três e meia da manhã não é o mesmo que a matou”, respondo. “Chandonne a matou. Mas o homem que as pessoas viram com ela não era Chandonne.” “Então talvez o lobisomem as trace de vez em quando, afinal”, acrescenta Marino. “Ou tente fazer isso e nós apenas não saibamos disso porque ele normalmente não deixa nenhum suco.” “E depois?”, Berger o desafia. “Veste de novo a calça nelas? Veste-as da cintura para baixo depois do ato?” “Ei, não estamos falando de alguém que faça as coisas do jeito normal. E quase me esqueci de lhe dizer.” Ele olha para mim. “Uma das enfermeiras deu uma espiada no que ele carrega. Não é cortado.” É o jargão de Marino para não circuncidado. “E é menor do que uma salsicha Viena.” Ele nos mostra com um gesto, mantendo o polegar e o indicador a uma distância de pouco mais de dois centímetros. “Não admira que o delinqüente esteja de péssimo humor o tempo inteiro.”
13
Com um clique do controle remoto, sou levada de volta à sala de interrogatório de concreto da ala forense da Faculdade de Medicina da Virgínia. De volta a Jean-Baptiste Chandonne, que quer que acreditemos que ele é capaz, de algum modo, de transformar sua aparência singularmente hedionda em uma aparência elegante quando está disposto a sair para jantar e paquerar uma mulher. Impossível. Seu torso com a cobertura de cabelo imaturo espiralado enche a tela da televisão enquanto ele é conduzido de volta a sua cadeira, e quando sua cabeça entra no quadro fico chocada ao descobrir que as ataduras foram removidas, e que seus olhos agora estão escondidos por óculos escuros de plástico Solar Shield, a pele em torno deles com um tom rosado de irritação. As sobrancelhas são compridas e confluentes, como se alguém tivesse tirado uma faixa de pêlo felpudo e colado no supercílio. O mesmo pêlo pálido felpudo lhe cobre a testa e as têmporas. Berger e eu estamos em minha sala de reuniões. Ainda nem são sete e meia, e Marino saiu, por duas razões: recebeu um chamado sobre uma possível identificação do corpo encontrado na rua em Mosby Court, e Berger o estimulou a não voltar. Disse que precisava ficar algum tempo sozinha comigo. Acho que ela também estava cheia dele, e não a culpo por isso. Marino deixou muito claro que discorda do modo como ela entrevistou Chandonne, e do simples fato de ela tê-lo feito. Não existe um investigador neste planeta que não gostaria de entrevistar um assassino anômalo tão notório. Acontece que a fera escolheu a bela, e Marino está simplesmente fervendo. Enquanto ouço Berger lembrar a Chandonne no teipe que ele entende seus direitos e concordou em continuar a falar com ela, sou tomada de modo mais convincente por uma certa realidade. Sou uma pequena criatura apanhada em uma rede, uma rede do mal tecida de fios que parece envolver todo o globo como linhas de latitude e longitude. A tentativa de Chandonne de me assassinar foi incidental a seus propósitos. Fui apenas um divertimento. Se ele imagina que estou assistindo à sua entrevista gravada, então ainda sou um divertimento. Nada mais. Ocorre-me que, se ele tivesse conseguido me estraçalhar, já estaria concentrado em alguma coisa nova e eu não seria nada além de um breve momento, uma polução noturna em sua vida odiosa e infernal. “E o detetive lhe deu algo para comer e beber, senhor, está certo?”, Berger pergunta a Chandonne. “Sim.” “E o que foi?” “Um hambúrguer e uma Pepsi.” “E batatas fritas?” “Batata! Batatas fritas.” Ele parece achar isso divertido. “Então você recebeu tudo de que precisava, está certo?”, ela pergunta. “Sim.”
“E a equipe do hospital removeu suas ataduras e lhe deu óculos especiais. Você está confortável?” “Sinto um pouco de dor.” “E lhe deram algum analgésico?” “Sim.” “Tylenol. Está certo?” “Sim, eu suponho. Dois comprimidos.” “E nada além disso. Nada que possa interferir em seu pensamento.” “Não, nada.” Seus óculos escuros estão fixos nela. “E ninguém o está forçando a falar comigo ou fez a você nenhuma promessa, está certo?” Os ombros dela se movem enquanto ela vira uma página no que eu suponho seja um bloco de memorandos. “Sim.” “Senhor, fiz alguma ameaça ou promessa para conseguir que você falasse comigo?” Isso prossegue indefinidamente enquanto Berger percorre sua lista de checagem. Ela está se certificando de que a representação final de Chandonne não terá nenhuma oportunidade de dizer que ele foi intimidado, abusado ou tratado injustamente de nenhuma forma. Ele está sentado quieto em sua cadeira, os braços dobrados um sobre o outro em um emaranhado de cabelo que se espalha sobre o topo da mesa e cai em grumos repulsivos, como barbas de milho sujas, das mangas curtas de sua camisa modelo hospitalar. Nada no modo como sua anatomia foi construída funciona. Ele me lembra antigos filmes pretensamente engraçados onde há meninos bobos na praia que enterram um ao outro na areia e pintam olhos na testa, fazendo a barba parecer cabelo da cabeça, ou usam óculos escuros atrás da cabeça, ou se ajoelham e põem sapatos nos joelhos para se transformarem em anões — e as pessoas sempre se viram para olhar essas criaturas anormais, porque acham divertido. Não há nada divertido em Chandonne. Não consigo nem sentir pena dele. Minha irritação se revolve como um grande tubarão bem abaixo da superfície de minha postura estóica. “Vamos voltar à noite em que você diz que conheceu Susan Pless”, diz Berger a ele no teipe. “No Lumi. Fica na esquina da rua 70 com a Lexington?” “Sim, sim.” “Você estava dizendo que vocês jantaram juntos e depois você perguntou a ela se gostaria de ir tomar um pouco de champanhe com você em algum lugar. Senhor, está ciente de que a descrição do cavalheiro que Susan conheceu e com quem jantou naquela noite não corresponde em nada à sua?” “Não tenho como saber.” “Mas você deve estar ciente de que tem uma doença grave que o leva a ter uma aparência muito diferente da das outras pessoas, e é difícil imaginar, portanto, que você poderia ser confundido com alguém que absolutamente não tem a sua doença. Hipertricose. Não é isso que você tem?” Capto a piscada quase imperceptível de Chandonne atrás dos óculos escuros. Berger tocou num ponto sensível. Os músculos do rosto dele estão tensos. Ele começa a flexionar os dedos outra vez. “É esse o nome de sua doença? Você sabe como ela é chamada?”, Berger
diz a ele. “Eu sei o que é”, responde Chandonne, em um tom mais tenso. “E você viveu com ela durante toda a sua vida?” Ele fica olhando para ela. “Por favor, responda à pergunta, senhor.” “É claro. Essa é uma pergunta estúpida. O que você acha? Que a gente pega isso como se pega um resfriado?” “Meu argumento é que você não se parece com outras pessoas, e portanto estou tendo muita dificuldade em imaginar que você poderia ser confundido com um homem descrito como de boa aparência e bonito, sem nenhum pêlo facial.” Ela pára. Está atiçando-o. Quer que ele perca o controle. “Alguém bem vestido em um terno caro.” Outra pausa. “Você não acaba de me contar que viveu praticamente como um sem-teto? Como aquele homem no Lumi poderia ser você, senhor?” “Eu usava um terno preto, uma camisa e uma gravata.” Ódio. A verdadeira natureza de Chandonne começou a brilhar através de seu manto de engano negro, como uma distante estrela fria. Espero que ele se jogue por cima da mesa a qualquer momento e esmague a garganta de Berger ou estoure a cabeça dela na parede antes que Marino ou qualquer outra pessoa consiga impedi-lo. Quase parei de respirar. Lembro-me de que Berger está viva e bem, sentada à mesa comigo dentro de minha sala de reuniões. É quinta-feira à noite. Em quatro horas, fará exatamente cinco dias que Chandonne invadiu minha casa e tentou me matar com uma picareta de entalhar. “Passei por períodos em que minha condição não era tão ruim como é agora.” Chandonne se controlou. Sua polidez volta. “O estresse a piora. Eu passei por muito estresse. Por causa deles.” “E quem são eles?” “Os agentes americanos que montaram uma cilada para mim. Quando comecei a perceber o que estava acontecendo, que eles estavam montando uma cilada para parecer que eu era um assassino, tornei-me um fugitivo. Minha saúde se deteriorou da pior maneira que já aconteceu, e quanto pior eu ficava, mais tinha de me esconder. Eu não tive sempre esta aparência.” Seus óculos escuros se desviam um pouco da câmera quando ele olha para Berger. “Quando conheci Susan, minha aparência era totalmente diferente. Eu podia me depilar. Podia conseguir empregos e me manter neles e até parecer bom. E às vezes tinha roupas e dinheiro, porque meu irmão me ajudava.” Berger pára o teipe e me diz: “Essa parte do estresse pode ser verdadeira?”. “O estresse tende a piorar tudo”, respondo. “Mas esse homem nunca teve uma aparência boa. Não importa o que ele diga.” “Você está falando de Thomas”, a voz de Berger continua no teipe. “Thomas lhe dava roupas, dinheiro, talvez outras coisas?” “Sim.” “Você diz que estava usando um terno preto no Lumi aquela noite. Thomas lhe deu o terno?” “Sim. Ele gostava de roupas muito finas. Nós tínhamos mais ou menos o
mesmo tamanho.” “E você jantou com Susan. E depois? O que aconteceu quando vocês terminaram de comer? Você pagou a conta?” “É claro. Eu sou um cavalheiro.” “De quanto foi a conta?” “Duzentos e vinte e um dólares, sem incluir a gorjeta.” Berger corrobora o que ele diz, enquanto na tela da TV está olhando bem para a frente: “E a conta foi exatamente essa. O homem pagou em dinheiro e deixou duas notas de vinte dólares na mesa”. Questiono Berger detalhadamente sobre quanto do restaurante, da conta, da gorjeta foi divulgado publicamente. “Alguma dessas coisas apareceu na imprensa?”, pergunto. “Não. Então, se não foi ele, como ele soube de quanto foi a conta?” A frustração permeia sua voz. No teipe, ela pergunta a Chandonne sobre a gorjeta. Ele afirma que deixou quarenta dólares. “Duas de vinte, eu acho”, ele diz. “E depois? Vocês saíram do restaurante?” “Nós decidimos tomar um drinque no apartamento dela”, diz ele.
14
Nesse ponto Chandonne dá muitos detalhes. Afirma que saiu do Lumi com Susan Pless. Estava muito frio, mas eles decidiram caminhar porque o apartamento dela ficava a apenas alguns quarteirões do restaurante. Ele descreve a lua e as nuvens em detalhes sensíveis, quase poéticos. O céu estava raiado de giz branco azulado e a lua, parcialmente obscurecida e cheia. Uma lua cheia sempre o excitou sexualmente, ele diz, porque o faz lembrar de uma barriga de grávida, de nádegas, de seios. Rajadas de vento açoitavam os altos prédios de apartamentos, e em dado momento ele tirou seu cachecol e o pôs em volta de Susan para aquecê-la. Ele afirma que usava uma capa longa de cashmere escuro, e eu me lembro de a legista-chefe da França, dra. Ruth Stvan, me contando sobre seu encontro com o homem que acreditamos fosse Chandonne. Visitei a dra. Stvan no Institut Médico-Légal há menos de duas semanas porque a Interpol me pediu para rever os casos de Paris com ela, e durante nossa conversa ela me contou sobre uma noite em que um homem foi a sua casa, fingindo que estava com problemas no carro. Ele pediu para usar o telefone, e ela se recordou de que ele usava um casaco longo escuro e parecia um cavalheiro. Mas a dra. Stvan disse algo mais quando estive com ela. Lembrou-se de que o homem tinha um cheiro de suor estranho, muito desagradável. Cheirava como um cachorro molhado. E ele a deixou intranqüila, muito intranqüila. Ela sentiu o mal. Ainda assim, talvez ela o tivesse deixado entrar ou, o mais provável, ele tivesse forçado a entrada, não fosse por um acontecimento milagroso. O marido da dra. Stvan é chef de um famoso restaurante de Paris chamado Le Dome. Ele estava em casa doente naquela noite e a chamou de outro aposento, querendo saber quem estava à porta. O estranho de casaco escuro fugiu. No dia seguinte foi entregue um bilhete à dra. Stvan. Estava datilografado em um pedaço de papel marrom rasgado e ensangüentado, e assinado Le Loup-garou. Ainda preciso realmente encarar minha negação do que devia ser óbvio. A dra. Stvan fez a autópsia das vítimas francesas de Chandonne e depois ele foi atrás dela. Eu fiz a autópsia de suas vítimas americanas e não tomei medidas sérias para evitar que ele me seguisse. Um importante denominador comum subjaz a essa negação: as pessoas tendem a acreditar que as coisas ruins só acontecem com os outros. “Você pode descrever como era o porteiro?”, Berger pergunta a Chandonne no teipe. “Um bigode fino. De uniforme”, diz Chandonne. “Ela o chamou de Juan.” “Espere um minuto”, digo. Berger pára o teipe outra vez. “Ele tinha cheiro de suor?”, pergunto a ela. “Quando você estava na sala com ele hoje de manhã.” Indico a televisão. “Quando você o entrevistou, ele tinha...” “Não brinque”, ela interrompe. “Tinha cheiro de cachorro sujo. Uma
mistura estranha de pêlo molhado e cheiro ruim de suor forte. Chegava a dar náuseas. Imagino que o hospital não deu um banho nele.” É um equívoco pensar que as pessoas são automaticamente banhadas no hospital. Em geral, só os ferimentos são lavados, a menos que a pessoa seja um paciente de longo prazo. “Quando o assassinato de Susan foi investigado há dois anos, alguém no Lumi mencionou cheiro de suor? Que o homem com quem ela estava cheirava mal?”, pergunto. “Não”, responde Berger. “De jeito nenhum. De novo, não consigo imaginar como essa pessoa poderia ser Chandonne. Mas ouça. Vai ficar mais estranho.” Durante os dez minutos seguintes assisto a Chandonne sugar mais Pepsi enquanto fuma e conta o incrível relato de sua suposta visita com Susan Pless ao apartamento dela. Ele descreve onde ela morava em detalhes surpreendentes, dos tapetes no chão de madeira aos estofados florais e aos abajures Tiffany falsos. Diz que não ficou impressionado com o gosto dela em arte, que ela tinha muitos pôsteres de exposições de museu bastante triviais e algumas gravuras de paisagens marinhas e de cavalos. Ela gostava de cavalos, ele diz. Contou a ele que tinha crescido na companhia de cavalos e sentia muito a falta deles. Berger bate na mesa em minha sala de reuniões toda vez que verifica o que ele está dizendo. Sim, a descrição que ele faz do interior do apartamento de Susan certamente leva a acreditar que ele esteve lá em algum momento. Sim, Susan cresceu na companhia de cavalos. Sim, sim, a tudo. “Não é possível!” Balanço a cabeça enquanto o medo me revira o estômago. Tenho medo de aonde isso vai levar. Resisto a pensar nisso. Mas uma parte de mim não consegue parar de pensar. Chandonne vai dizer que eu o convidei a entrar em minha casa. “E que horas são agora?”, Berger pergunta a ele no teipe. “Você disse que Susan abriu uma garrafa de vinho branco. Que hora era quando ela fez isso?” “Dez ou onze. Não me lembro. O vinho não era bom.” “Nesse momento, quanto você tinha bebido?” “Ah, metade de uma garrafa de vinho no restaurante. Não bebi muito do vinho que ela me serviu depois. Vinho californiano barato.” “Então você não estava bêbado.” “Eu nunca fico bêbado.” “Você estava pensando com clareza.” “É claro.” “Em sua opinião, Susan estava bêbada?” “Talvez só um pouco. Eu diria feliz, ela estava feliz. Então nós nos sentamos num sofá na sala de estar dela. Tem uma vista muito bonita, para o sudoeste. Da sala de estar pode-se ver o luminoso vermelho do hotel Essex House no parque.” “Tudo verdade”, Berger me diz enquanto bate outra vez na mesa. “E a taxa de álcool dela era zero-vírgula-onze”, ela acrescenta detalhes do exame pósmorte de Susan. “O que aconteceu então?”, ela está perguntando a Chandonne. “Nós nos damos as mãos. Ela põe meus dedos em sua boca, um após outro,
muito sexy. Começamos a nos beijar.” “Você sabe que hora era nesse momento?” “Eu não tinha nenhum motivo para ficar olhando para o meu relógio.” “Você estava usando relógio?” “Sim.” “Você ainda tem esse relógio?” “Não. Eles tornaram minha vida pior.” Ele cospe a palavra eles. A saliva é borrifada no ar toda vez que ele diz “eles”, com uma aversão que parece genuína. “Eu não tinha mais dinheiro. Penhorei o relógio há mais ou menos um ano.” “Eles? As mesmas pessoas a que você se refere o tempo todo? Agentes policiais?” “Agentes federais americanos.” “Voltemos a Susan”, Berger o dirige. “Eu sou tímido. Não sei quantos detalhes você quer que eu conte sobre esse momento.” Ele pega sua Pepsi e seus lábios envolvem o canudo como vermes cinzentos. Não consigo imaginar alguém querendo beijar esses lábios. Não consigo imaginar ninguém querendo tocar nesse homem. “Quero que você me conte tudo de que se lembra”, Berger diz a ele. “A verdade, senhor.” Chandonne põe a Pepsi na mesa, e fico levemente perturbada quando o braço de Talley entra de novo no quadro. Ele acende mais um Camel para Chandonne. Imagino se ocorre a Chandonne que Talley é um agente federal, que ele é uma das pessoas que Chandonne diz que o têm seguido e estão arruinando sua vida. “Sim, vou lhe contar. Não quero, mas estou tentando ser cooperativo.” Chandonne exala a fumaça. “Por favor, continue. Todos os detalhes de que você conseguir se lembrar.” “Nós nos beijamos por algum tempo e a coisa progrediu rapidamente.” Ele não diz nada mais. “O que você quer dizer com progrediu rapidamente?” Em geral, é suficiente alguém dizer que fez sexo e parar por aí. Em geral, o policial ou advogado que conduz a entrevista, ou o interrogatório direto ou para checagem de um testemunho contrário, não considera relevante pedir detalhes explícitos. Mas a violência sexual praticada contra Susan e todas as mulheres que acreditamos que Chandonne tenha assassinado torna importante o conhecimento dos detalhes, todos os detalhes do que pode ser a noção que ele tem de sexo. “Não sei se devo”, diz Chandonne, jogando com Berger outra vez. Ele quer ser persuadido. “Por quê?”, pergunta Berger. “Não quero falar sobre essas coisas, certamente não na presença de uma mulher.” “Seria melhor para todos nós se você me visse como uma promotora, e não como uma mulher”, Berger diz a ele. “Não consigo falar com você e não pensar mulher ”, ele diz brandamente. Sorri um pouco. “Você é muito bonita.”
“Você consegue me ver?” “Muito pouco, na verdade não. Mas posso dizer que você é bonita. Ouvi dizer que é.” “Senhor, peço que não faça mais nenhuma referência pessoal a mim. Estamos esclarecidos sobre isso?” Ele olha para ela e faz que sim com a cabeça. “Senhor, o que exatamente você fez depois que começou a beijar Susan? Você a tocou, a acariciou, tirou a roupa dela? Ela o tocou, o acariciou, tirou sua roupa? O quê? Você se lembra do que ela estava usando aquela noite?” “Calça de couro marrom. Eu a descreveria como da cor de chocolate belga. Era justa, mas não de um modo vulgar. Ela usava botas, botas de cano médio de couro marrom. E um top preto, uma espécie de body. De mangas compridas.” Ele olha para o teto. “Gola redonda, muito cavado. O tipo de top que é fechado com botões de pressão entre as pernas.” Ele faz um movimento de pressionar. Seus dedos, com o pêlo curto e claro, me lembram cactos, cavalinhas. “Um bodysuit”, Berger o ajuda. “Sim. Fiquei um pouco confuso no início quando tentei tocá-la e não consegui tirar o top.” “Você estava tentando pôr as mãos debaixo do top dela mas não conseguia porque era um bodysuit que estava abotoado entre as pernas dela?” “Sim, é isso.” “E qual foi a reação dela quando você tentou tirar o top?” “Ela riu com minha confusão e me gozou.” “Ela gozou de você?” “Oh, não com maldade. Ela achou que eu era divertido. Fez uma brincadeira. Disse alguma coisa sobre os franceses. Espera-se que sejamos amantes muito habilidosos, você sabe.” “Então ela sabia que você é da França.” “Mas é claro”, Chandonne responde de modo afável. “Ela falava francês?” “Não.” “Ela disse isso a você ou você só supôs?” “Eu perguntei no jantar se ela falava francês.” “Então ela o provocou, a respeito do bodysuit.” “Sim. Provocou. Ela escorregou minha mão por sua calça e me ajudou a abrir os botões. Eu me lembro que ela estava excitada e que fiquei um pouco surpreso de ela se excitar tão rapidamente.” “E você sabe que ela estava excitada porque...?” “Molhada”, diz Chandonne. “Ela estava muito molhada. Eu realmente não gosto de dizer tudo isso.” Seu rosto está animado. Ele adora dizer tudo isso. “É realmente necessário que eu continue a dar esses detalhes?” “Por favor, senhor. Tudo de que você conseguir se lembrar.” Berger é firme e fria. Chandonne poderia muito bem estar contando a ela sobre um relógio que ele desmontou.
“Começo a tocar nos seios dela e abro o sutiã.” “Você se lembra como era o sutiã dela?” “Era preto.” “As luzes estavam acesas?” “Não. Mas o sutiã tinha uma cor escura, acho que preto. Posso ter me enganado. Mas não era uma cor clara.” “Como você o tirou?” Chandonne pára de falar, seus óculos escuros cravados na câmera. “Apenas o abri atrás.” Ele faz com os dedos um movimento de abertura. “Você não o arrancou?” “É claro que não.” “Senhor, o sutiã dela estava rompido na frente. Literalmente rasgado em dois.” “Eu não fiz isso. Outra pessoa deve ter feito depois que eu saí.” “Está bem, vamos voltar ao momento em que você tirou o sutiã. Nesse momento a calça dela está desabotoada?” “Desabotoada, mas ela ainda não a tirou. Eu tiro o top. Sou muito oral, como você pode ver. Ela gostou muito disso. Foi difícil acalmá-la.” “Por favor, explique o que você quer dizer com ‘foi difícil acalmá-la’.” “Ela começou a me agarrar. Entre minhas pernas, tentando tirar minha calça, e eu não estava pronto. Ainda tinha muito a fazer.” “Muito a fazer? O que mais você tinha a fazer, senhor?” “Eu não estava pronto para acabar.” “O que você quer dizer com acabar? Acabar o sexo? Acabar o quê?” Acabar com a vida dela, penso. “Acabar de fazer amor”, ele responde. Odeio isso. Não consigo agüentar ouvir as fantasias dele, especialmente quando considero que ele talvez saiba que estou ouvindo, que ele está me sujeitando a elas, assim como está sujeitando Berger, e que Talley está ouvindo, sentado bem ali, assistindo. Talley não é muito diferente de Chandonne. Os dois odeiam secretamente as mulheres, não importa quanto as desejem. Não percebi a verdade a respeito de Talley até quando era muito tarde, até ele estar em minha cama em meu quarto de hotel em Paris. Imagino-o perto de Berger na pequena sala de entrevista do hospital. Quase posso ver o que passa pela mente dele enquanto Chandonne nos dá um relato de uma noite erótica que ele provavelmente nunca viveu em toda a sua existência. “Ela tinha um corpo adorável e eu queria apreciá-lo um pouco, mas ela era muito insistente. Não conseguia esperar.” Chandonne saboreia cada palavra. “Então nós fomos para o quarto. Ficamos na cama dela e tiramos as roupas e fizemos amor.” “Foi ela quem tirou as próprias roupas ou você fez tudo? Além de ajudar a desabotoar o bodysuit ?”, ela pergunta, com uma insinuação de sua descrença subjacente e esmagadora em relação à veracidade dele. “Eu tirei todas as roupas dela. E ela tirou as minhas”, ele diz. “Ela fez algum comentário sobre seu corpo?”, pergunta Berger. “Você
tinha depilado o corpo inteiro?” “Sim.” “E ela não percebeu?” “Eu estava muito liso. Ela não percebeu. Você deve entender, aconteceu muita coisa comigo desde então, por causa deles.” “O que aconteceu?” “Fui seguido e perseguido e machucado. Fui emboscado por alguns homens alguns meses depois da noite com Susan. Eles machucaram muito meu rosto. Cortaram meu lábio, esmagaram ossos aqui em meu rosto.” Ele toca nos óculos, indicando as órbitas dos olhos. “Tive muitos problemas dentários quando criança devido a minha condição, e por isso tive de ser submetido a muitos tratamentos. Coroas nos dentes da frente para que eles parecessem mais normais.” “Esse casal com quem você diz que ficou pagou por esse trabalho dentário?” “Minha família os ajudou com dinheiro.” “Você se depilava antes de ir ao dentista?” “Eu depilava aquelas áreas que apareceriam. Como meu rosto. Sempre, se eu saísse durante o dia. Quando me bateram, meus dentes da frente foram quebrados, minhas coroas foram quebradas, e no fim, bem, você pode ver como meus dentes estão agora.” “Onde isso ocorreu?” “Eu ainda estava em Nova York.” “Você recebeu tratamento médico ou contou esse ataque à polícia?”, pergunta Berger. “Ah, isso teria sido impossível. Os chefes dos órgãos policiais estão todos juntos nisso, é claro. Foram eles que fizeram isso comigo. Eu não podia relatar nada. Não recebi nenhum tratamento médico. Virei um nômade, sempre me escondendo. Arruinado.” “E o nome do seu dentista?” “Ah, isso faz muito tempo. Duvido que ele ainda esteja vivo. O nome dele era Corps. Maurice Corps. Seu consultório era na rue Cabanis, acho.” “Corps, como em corpo, cadáver?”, comento com Berger. “E Cabanis é uma brincadeira com cannabis, maconha?” Balanço a cabeça, enojada e pasma. “Então você e Susan fizeram sexo na cama dela.” Berger volta a isso no teipe. “Por favor, continue. Quanto tempo vocês ficaram na cama?” “Eu diria que até as três da manhã. Então ela me disse que eu tinha de ir embora porque ela precisava se aprontar para o trabalho. Portanto eu me vesti, e nós combinamos de nos ver outra vez naquela noite. Dissemos que nos encontraríamos às sete no L’Absinthe, um bistrô francês na vizinhança.” “Você diz que se vestiu. E ela? Estava vestida quando você saiu?” “Estava com um pijama de cetim. Ela o vestiu e me deu um beijo de despedida na porta.” “Então você desceu? Viu alguém?” “Juan, o porteiro. Saí e caminhei um pouco. Encontrei um café e tomei um café-da-manhã. Eu estava muito faminto.” Ele pára. “Neil’s. O nome é esse.
Fica bem em frente ao Lumi.” “Você se lembra do que comeu?” “Espresso.” “Você estava muito faminto, mas só tomou um espresso?” Berger deixa claro que se concentra na palavra “faminto” e que percebe que ele está zombando dela, enganando-a. A fome de Chandonne não era por café-damanhã. Ele estava saboreando a visão da violência, da destruição de carne e sangue, porque acabara de deixar para trás uma mulher que havia violentado até a morte e mordido. Não importa o que ele diga, é isso que ele fez. O desgraçado. O maldito desgraçado mentiroso. “Senhor, quando soube que Susan foi assassinada?”, Berger pergunta a ele. “Ela não apareceu para jantar naquela noite.” “Bem, suponho que não.” “Então no dia seguinte...” “Isso seria 15 ou 16 de dezembro?”, pergunta Berger, e ela está aumentando o ritmo, indicando a ele que está cheia de seu jogo. “Dezesseis”, ele diz. “Li sobre ela no jornal na manhã seguinte ao dia em que ela devia me encontrar no L’Absinthe.” Ele agora encena o ato de ficar triste com o que aconteceu. “Eu fiquei chocado.” Ele funga. “Obviamente, ela não apareceu no L’Absinthe na noite anterior. Mas você está dizendo que foi?” “Eu tomei um copo de vinho no bar e esperei. Por fim, saí.” “Você mencionou a alguém no restaurante que estava esperando por ela?” “Sim. Perguntei ao maître se ela havia aparecido e talvez deixado um recado para mim. Eles sabiam quem ela era pelo fato de ela estar na TV.” Berger o questiona detalhadamente sobre o maître, perguntando o nome dele, o que Chandonne estava usando naquela noite, quanto pagou pelo vinho e se foi em dinheiro, e quando ele perguntou sobre Susan, se deu seu nome. É claro que não. Ela gasta cinco minutos nisso. Diz a mim que a polícia havia contatado o bistrô e sabido que um homem havia aparecido e dito que estava esperando por Susan Pless. Tudo isso foi checado exaustivamente na época. É verdade. A descrição do modo como o homem estava vestido é idêntica à descrição de Chandonne de como estava vestido naquela noite. O homem pediu um copo de vinho tinto no bar e perguntou se Susan havia aparecido ou deixado um recado, e não deu seu nome. Esse homem também corresponde à descrição do homem que tinha estado no Lumi com Susan na noite anterior. “E você contou a alguém que tinha estado com ela na noite de seu assassinato?”, diz Berger no teipe. “Não. Como eu sabia o que acontecera, não podia dizer nada.” “E o que você sabia que acontecera?” “Eles tinham feito aquilo. Eles tinham feito aquilo com ela. Para me montar outra cilada.” “Outra?” “Eu tive mulheres em Paris antes disso. Eles também fizeram isso com elas.”
“Essas mulheres foram antes da morte de Susan?” “Talvez uma ou duas antes. Algumas depois também. A mesma coisa aconteceu com todas elas porque eu fui seguido. É por isso que me escondi cada vez mais, e o estresse e as dificuldades tornaram minha condição tão pior. Foi um pesadelo e eu não disse nada. Quem acreditaria em mim?” “Boa pergunta”, responde Berger, contundente. “Porque, sabe de uma coisa? Eu, por exemplo, não acredito em você, senhor. Você assassinou Susan, não foi, senhor?” “Não.” “Você a estuprou, não foi, senhor?” “Não.” “Você bateu nela e a mordeu, não foi, senhor?” “Não. É por isso que não contei nada a ninguém. Quem acreditaria em mim? Quem acreditaria que pessoas estão tentando me destruir só porque acham que meu pai é um criminoso, um chefão?” “Você nunca contou à polícia nem a ninguém que talvez tivesse sido a última pessoa a ver Susan viva porque a assassinou, não foi, senhor?” “Não contei a ninguém. Se tivesse contado, teria sido culpado pela morte dela, exatamente como você está me culpando. Voltei a Paris. Perambulei por lá. Esperava que eles me esquecessem, mas não esqueceram. Você pode ver que não esqueceram.” “Senhor, você está ciente de que Susan estava coberta de marcas e de que sua saliva foi encontrada nessas marcas, e de que o teste de DNA dela e do fluido seminal encontrado na vagina dela coincide com seu DNA?” Ele apenas fixa aquelas lentes escuras em Berger. “Você sabe o que é DNA, não sabe?” “Eu esperava que meu DNA aparecesse.” “Porque bateu nela.” “Nunca bati nela. Mas sou muito oral. Eu...” Ele pára. “Você o quê? O que você fez que pode explicar o fato de sua saliva estar nas marcas de mordida que você diz que não infligiu?” “Eu sou muito oral”, ele diz outra vez. “Chupo e lambo. O corpo inteiro.” “Onde especificamente? Você quer dizer literalmente cada centímetro do corpo?” “Sim. Todo ele. Adoro um corpo de mulher. Cada centímetro dele. Talvez porque eu não tenha... Talvez porque ele seja tão bonito, e beleza é algo que eu nunca posso ter, você entende. Então eu as adoro. Minhas mulheres. A carne delas.” “Você lambe e beija os pés delas, por exemplo?” “Sim.” “As solas dos pés?” “Todos os lugares.” “Você já mordeu os seios de uma mulher?” “Não. Ela tinha seios muito bonitos.” “Mas você os chupou, os lambeu?” “Obsessivamente.”
“Os seios são importantes para você?” “Ah, sim. Muito — não escondo isso.” “Você procura mulheres de seios grandes?” “Eu gosto de um tipo.” “Qual é exatamente seu tipo?” “Fartas.” Ele põe as mãos em concha sobre o peito e a tensão sexual resplandece em seu rosto enquanto ele descreve o tipo de mulher que o excita. Talvez seja minha imaginação, mas seus olhos brilham atrás dos óculos escuros. “Mas não gordas. Não gosto de mulheres gordas, não, não. Esbeltas na cintura e nos quadris, mas com seios fartos.” Ele põe de novo as mãos em concha, como se estivesse agarrando bolas de vôlei, e as veias ressaltam em seus braços e seus músculos se tensionam. “E Susan era seu tipo?” Berger é completamente inabalável. “No instante em que a vi no restaurante, fiquei atraído”, ele responde. “No Lumi?” “Sim.” “Foram encontrados cabelos no corpo dela”, diz então Berger. “Você está ciente de que um cabelo incomumente longo, semelhante ao de um bebê, coerente com seu cabelo incomum, semelhante ao de um bebê, foi encontrado no corpo dela? Como isso pode ter acontecido se você tinha se depilado? Você não acabou de me dizer que depilou o corpo inteiro?” “Eles plantam coisas. Tenho certeza disso.” “As mesmas pessoas que estão tentando pegá-lo?” “Sim.” “E onde eles conseguiriam seu cabelo?” “Houve um período, em Paris, há uns cinco anos, em que eu comecei a sentir que alguém estava atrás de mim”, ele diz. “Tive a sensação de que estava sendo observado, seguido. Não imaginava por quê. Mas quando eu era mais novo nem sempre depilava meu corpo. Minhas costas, você pode imaginar. É muito difícil de alcançar, é difícil depilar minhas costas, realmente impossível, então às vezes passavam-se muitos, muitos meses, e você sabe, quando eu era mais jovem, era mais tímido com as mulheres e raramente me aproximava delas. Então eu não pensava tanto em me depilar, apenas me escondia embaixo de calça comprida e mangas compridas e só depilava as mãos, o pescoço e o rosto.” Ele toca em sua bochecha. “Um dia eu cheguei em casa, no apartamento onde meus pais adotivos viviam...” “Seus pais adotivos ainda estavam vivos nesse momento? O casal que você mencionou? Que vivia perto da prisão?”, ela acrescenta com um traço de ironia. “Não. Mas eu ainda consegui viver lá por algum tempo. Não era caro e eu tinha trabalho, bicos. Chego em casa e percebo que alguém esteve lá. Era estranho. Não faltava nada exceto as cobertas de minha cama. Penso, bem, não foi tão ruim. Pelo menos, quem quer que seja só levou isso. Então aconteceu de novo várias outras vezes. Agora percebo que eram eles. Eles queriam meu cabelo. Foi por isso que levaram minhas cobertas. Porque eu perco muito cabelo, você entende?” Ele toca em emaranhados de cabelo no alto da cabeça. “Ele está sempre caindo se eu não depilar. Fica grudado em coisas quando está muito
comprido.” Ele levanta um braço para mostrar a ela, e o cabelo comprido flutua no ar. “Então você está dizendo que não tinha cabelo comprido quando encontrou Susan? Nem mesmo nas costas?” “De jeito nenhum. Se vocês encontraram cabelos compridos no corpo dela, eles foram postos lá, você entende o que estou dizendo? Ainda assim, admito que sou culpado pelo assassinato dela.”
15
“Por que você é culpado?”, pergunta Berger a Chandonne. “Por que você diria que a culpa pela morte de Susan é sua?” “Porque eles me seguiram”, ele responde. “Devem ter chegado logo depois que eu saí, e fizeram aquilo com ela.” “E eles o seguiram até Richmond também, senhor? Por que você veio para cá?” “Vim por causa de meu irmão.” “Explique isso”, retruca Berger. “Ouvi falar do corpo no porto, e me convenci de que era meu irmão, Thomas.” “De que seu irmão vivia?” “Ele trabalhava no negócio de transporte com meu pai. Era alguns anos mais velho. Thomas era bom para mim. Eu não o via muito, mas ele me dava suas roupas quando não as queria mais, e outras coisas, como lhe contei. E dinheiro. Sei que a última vez que o vi, uns dois meses atrás em Paris, ele estava apavorado com alguma coisa ruim que ia acontecer com ele.” “Onde em Paris foi esse encontro com Thomas?” “Faubourg Saint-Antoine. Ele adorava ir para onde estão os jovens artistas e os clubes noturnos, e nós nos encontramos em um beco de pedra. Cour des Trois Frères, onde ficam os artesãos, sabe, não muito longe do Sans Sanz e de Balanjo, e, é claro, do Bar Américain, onde podemos pagar uma garota para nos fazer companhia. Ele me deu dinheiro e disse que ia para a Bélgica, para Antuérpia, e depois para este país. Nunca mais eu soube dele, e depois chegou a notícia sobre o corpo.” “E onde você soube dessa notícia?” “Eu lhe disse que consigo muitos jornais. Recolho o que as pessoas jogam fora. E muitos turistas que não falam francês lêem a versão internacional do USA Today. Havia uma pequena história nele sobre o corpo encontrado aqui, e eu soube imediatamente que era meu irmão. Tive certeza. Por isso, vim para Richmond. Eu tinha de saber.” “Como você chegou aqui?” Chandonne suspira. Parece outra vez fatigado. Toca na pele inflamada, em carne viva, em torno do nariz. “Não quero dizer”, responde. “Por que não quer dizer?” “Tenho medo de que vocês usem isso contra mim.” “Senhor, preciso que você me fale a verdade.” “Sou um batedor de carteira. Peguei a carteira de um homem que deixou o casaco dobrado sobre um monumento no Père-Lachaise, o mais famoso cemitério de Paris, onde parte de minha família está enterrada. Uma concession à perpetuité ”, ele diz com orgulho. “Sujeito estúpido. Um americano. Era uma
carteira grande, do tipo em que as pessoas guardam passaportes e bilhetes aéreos. Fiz isso muitas vezes, lamento lhe dizer. Faz parte de viver na rua, e eu vivi na rua cada vez mais desde que eles começaram a me seguir.” “Essas mesmas pessoas outra vez. Agentes federais.” “Sim, sim. Agentes, juízes, todos. Imediatamente peguei o avião porque não queria dar ao homem tempo para informar a perda da carteira e depois alguém me parar no portão do aeroporto. Era um bilhete de volta, classe econômica, para Nova York.” “Você saiu de qual aeroporto, e quando?” “De Gaulle. Deve ter sido na quinta-feira passada.” “Dezesseis de dezembro?” “Sim. Cheguei de manhã cedo e peguei um trem para Richmond. Eu tinha setecentos dólares, por causa do que tinha pegado do sujeito.” “Você ainda tem a carteira e o passaporte?” “Não, nunca. Isso seria burrice. Joguei-os no lixo.” “No lixo, onde?” “Na estação de trem em Nova York . Não posso dizer exatamente onde. Tomei o trem...” “E durante suas viagens ninguém olhava para você? Você não estava depilado, senhor? Ninguém ficava olhando-o nem reagia a você?” “Escondi meu cabelo em uma rede debaixo de um chapéu. E estava de mangas compridas e com um colarinho alto.” Ele hesita. “Há outra coisa que faço quando estou com esta aparência, quando não cortei o cabelo. Uso uma máscara. O tipo de máscara que as pessoas põem no nariz e na boca quando têm alergias graves. E uso luvas de algodão pretas e óculos escuros grandes.” “Foi isso que você usou no avião e no trem?” “Sim. Funciona muito bem. As pessoas se afastam de mim, e eu, nesse caso, tive uma fileira inteira de assentos só para mim. Então, dormi.” “Você ainda tem a máscara, o chapéu, as luvas e os óculos?” Chandonne pára para pensar antes de responder. Ela lançou para ele uma bola curva e ele está em dúvida. “Talvez eu possa encontrá-los”, ele tergiversa. “O que você fez quando chegou a Richmond?”, pergunta Berger. “Saí do trem.” Durante alguns minutos ela o questiona sobre isso. Onde é a estação de trem? Ele tomou um táxi? Como se movimentou? O que exatamente pensou que faria a respeito do irmão? As respostas dele são lúcidas. Tudo o que ele descreve faz parecer plausível que possa ter estado onde afirma ter estado, como na estação da Amtrak na Staples Mill Road e em um táxi azul que o deixou numa espelunca, um motel na avenida Chamberlayne, onde ele pagou vinte dólares por um quarto, usando outra vez um nome falso e pagando em dinheiro. De lá, afirma que ligou para meu departamento para ter informações sobre o corpo não identificado que ele diz que é de seu irmão. “Pedi para falar com o legista, mas ninguém me ajudou”, ele está dizendo a Berger. “Com quem você falou?”, ela pergunta. “Era uma mulher. Talvez uma secretária.” “Essa secretária lhe deu o nome da pessoa?”
“Sim. Scarpetta. Então eu peço para falar com ele, e a secretária me diz que Scarpetta era uma mulher. Então eu disse, tudo bem. Posso falar com ela? E ela está ocupada. Não deixo meu nome nem número de telefone, é claro, porque tenho de continuar a tomar cuidado. Talvez esteja sendo seguido outra vez. Como posso saber? Então pego um jornal e leio sobre um assassinato aqui, uma moça numa loja morta uma semana antes, e fico chocado — aterrorizado. Eles estão aqui.” “As mesmas pessoas? Aquelas que você diz que o estão perseguindo?” “Eles estão aqui, você não vê? Eles mataram meu irmão e sabiam que eu viria encontrá-lo.” “Eles certamente são espantosos, não são, senhor? Têm de ser mesmo muito espantosos, para saber que você viria para Richmond, Virgínia, porque acabara de ler um USA Today jogado fora e soubera que tinha aparecido um corpo aqui, e que você suporia que é o de Thomas, e roubaria um passaporte e uma carteira e partiria para cá.” “Eles sabiam que eu viria. Eu amo meu irmão. Meu irmão é tudo que tenho na vida. É a única pessoa que sempre foi boa comigo. E eu preciso descobrir por causa do papai. Pobre papai.” “E quanto a sua mãe? Ela não ficaria perturbada ao saber que Thomas está morto?” “Ela bebe muito.” “Sua mãe é alcoólatra?” “Ela está sempre bebendo.” “Todos os dias?” “Todos os dias, o dia todo. E depois ela fica irritada ou chora muito.” “Você não vive com ela mas sabe que ela bebe todos os dias e o dia todo?” “Thomas me contava. A vida dela foi assim desde quando consigo me lembrar. Sempre me disseram que ela estava bêbada. Nas poucas vezes em que fui à casa, ela estava bêbada. Uma vez me disseram que minha doença poderia ter ocorrido porque ela estava bêbada quando ficou grávida de mim.” Berger olha para mim. “É possível?” “Síndrome alcoólica fetal?”, considero. “É provável que não. Geralmente haveria um sério retardamento do desenvolvimento mental e físico se a mãe fosse alcoólatra crônica, e mudanças cutâneas como hipertricose seriam o menor dos problemas da criança.” “Isso não significa que ele não acredite que ela é responsável por sua doença.” “Ele certamente pode acreditar nisso”, concordo com ela. “O que ajuda a explicar o ódio extremo que ele sente por mulheres.” “Tanto quanto qualquer coisa pode explicar esse tipo de ódio”, respondo. No teipe, Berger conduziu Chandonne de volta ao assunto de sua suposta ligação para o necrotério aqui em Richmond. “Então você tentou falar com a doutora Scarpetta ao telefone, mas não conseguiu. E depois?” “Então no dia seguinte, sexta-feira, ouço na TV em meu quarto do motel que outra mulher foi assassinada. Dessa vez uma policial. Eles interrompem a
programação para dar a notícia, sabe, e estou assistindo quando isso acontece, e em seguida as câmaras focalizam um grande carro preto chegando à cena e dizem que é a legista. É ela, Scarpetta. Então tenho a idéia de ir até lá imediatamente. Vou esperar até que ela esteja saindo da cena e abordá-la. Vou contar a ela o que preciso contar. Então pego um táxi.” Aqui sua notável memória falha. Ele não se lembra de nada sobre a empresa de táxi, nem sequer a cor do carro, só que o motorista era um “negro”. Provavelmente oito por cento dos motoristas de táxi em Richmond são negros. Chandonne afirma que enquanto é levado à cena — e ele sabe o endereço porque foi mencionado no noticiário — ouve outra notícia urgente. Desta vez o público está sendo advertido sobre o assassino, que ele talvez tenha uma doença estranha que o leva a ter uma aparência muito incomum. A descrição hipertricótica corresponde à de Chandonne. “Agora eu sei, com certeza”, ele prossegue. “Eles montaram a armadilha e o mundo inteiro acha que eu matei essas mulheres em Richmond. Então entro em pânico no banco traseiro do táxi, tentando imaginar o que fazer. Digo ao motorista, ‘Você conhece essa moça de quem estão falando? Scarpetta?’. Ele diz que todos na cidade a conhecem. Pergunto onde ela mora e digo que sou turista. Ele me leva para o bairro dela, mas não entramos porque há guardas e um portão. Mas sei o suficiente para encontrá-la. Saio do táxi a vários quarteirões de lá. Estou determinado a encontrá-la antes que seja tarde demais.” “Tarde demais para quê?”, pergunta Berger. “Antes que outra pessoa seja morta. Preciso voltar mais tarde nessa noite e de algum modo conseguir que ela abra a porta para que eu possa conversar com ela. Sabe, é claro que estou preocupado com que eles a matem antes. É o padrão deles, você entende. Eles fizeram isso em Paris, você sabe. Tentaram assassinar a legista de lá. Ela teve muita sorte.” “Senhor, vamos nos ater ao assunto do que aconteceu aqui em Richmond. Me diga o que aconteceu a seguir. Quando é isso, meio da manhã de sexta-feira, 17 de dezembro, sexta-feira passada? O que você fez depois que o táxi o deixou? O que fez no resto do dia?” “Perambulei. Encontrei uma casa abandonada à margem do rio e entrei nela, só para não ficar exposto ao tempo.” “Você sabe onde fica essa casa?” “Não posso lhe dizer, mas não é longe do bairro dela.” “Do bairro da doutora Scarpetta?” “Sim.” “Você poderia encontrar essa casa outra vez, essa onde você ficou, não poderia, senhor?” “Ela está em construção. É muito grande. Uma mansão na qual ninguém vive agora. Sei onde fica.” Berger me diz: “A casa onde eles pensam que ele estava o tempo inteiro em que esteve aqui?”. Concordo com a cabeça. Conheço a casa. Penso nas pobres pessoas a quem ela pertença e não consigo imaginá-las querendo morar lá outra vez. Chandonne diz que se escondeu na mansão abandonada até anoitecer. Várias
vezes naquela noite ele se aventurou, evitando o portão da guarda do meu condomínio, simplesmente seguindo o rio e trilhas que passam atrás dele. Ele afirma ter batido na minha porta no começo da noite e não ter tido resposta. Nesse ponto, Berger me pergunta a que horas cheguei em casa naquela noite. Digo que foi depois das oito. Eu tinha parado na Pleasant’s Hardware depois de sair do escritório. Queria dar uma olhada nas ferramentas porque estava perplexa com os estranhos ferimentos que encontrara no corpo de Diane Bray, e com as manchas de sangue deixadas no colchão quando o assassino depusera a ferramenta ensangüentada com a qual tinha batido nela. Foi durante essa busca na Pleasant’s Hardware que deparei com uma picareta de entalhar, e comprei uma e fui para casa, digo a Berger. Chandonne continua, e declara que começou a ficar com medo de ir me encontrar. Afirma que havia muitos carros de polícia cruzando o bairro, e que em certo momento, quando chegou a minha casa, mais tarde, havia duas radiopatrulhas estacionadas em frente. Foi por isso que meu alarme disparou — quando Chandonne forçou a porta de minha garagem para que a polícia viesse. Claro que ele diz a Berger que não foi ele quem disparou o alarme. Foram eles — devem ter sido eles, ele diz. Agora já é perto de meia-noite. Está nevando muito. Ele se esconde atrás das árvores perto da minha casa e espera até que a polícia saia. Diz que essa é sua última chance, ele precisa falar comigo. Acredita que eles estão na área e vão me matar. Então ele vai até a porta da frente da minha casa e bate. “Com o que você bateu?”, Berger pergunta a ele. “Eu me lembro que havia uma aldrava. Acho que a usei.” Ele toma o resto de sua Pepsi, e Marino, no teipe, pergunta-lhe se quer outra. Chandonne balança a cabeça e boceja. Está falando sobre ir até minha casa para estourar meus miolos, e o desgraçado boceja. “Por que você não tocou a campainha?”, Berger quer saber. Isso é importante. Minha campainha ativa o sistema de câmera. Se Chandonne tivesse tocado a campainha, eu teria conseguido vê-lo numa tela de vídeo dentro da casa. “Não sei”, ele responde. “Eu vi a aldrava e a usei.” “Você disse alguma coisa?” “No começo, não. Então ouvi uma mulher perguntar ‘Quem é?’.” “E o que você disse?” “Disse a ela meu nome. Disse que tinha informações sobre o corpo que ela estava tentando identificar e que por favor me deixasse falar com ela.” “Você disse seu nome a ela? Você se identificou como Jean-Baptiste Chandonne?” “Sim. Disse que tinha vindo de Paris e tentado falar com ela em seu escritório.” Ele boceja outra vez. “Então acontece a coisa mais surpreendente”, ele continua. “A porta se abre de repente e ela está lá. Diz para eu entrar, e quando faço isso ela bate a porta atrás de mim e não consigo acreditar. De repente ela tem um martelo e está tentando bater em mim.” “De repente ela tem um martelo? Onde ela o conseguiu? Ele simplesmente apareceu do nada?”
“Acredito que ela o pegou debaixo de uma mesa bem ao lado da porta. Não sei. Aconteceu muito rápido. Tento fugir dela. Corro até a sala, gritando que ela pare, e é aí que acontece o mais terrível. Foi rápido. Só me lembro que eu estava do outro lado do sofá, então algo me atingiu no rosto. Tive a sensação de que havia fogo líquido em meus olhos. Nunca senti algo tão, tão...” Ele funga outra vez. “A dor. Eu estava gritando e tentando tirar aquilo de meus olhos. Tentando sair da casa. Sabia que ela ia me matar e de repente me passou pela cabeça que ela é um deles. Eles. Finalmente eles me pegaram. Caí direto na armadilha! Estava planejado o tempo todo que ela pegasse o corpo de meu irmão porque ela é eles. Agora eu seria preso e eles finalmente teriam a oportunidade que querem, finalmente, finalmente.” “E o que eles querem?”, Berger pergunta a ele. “Diga-me outra vez, porque estou tendo muita dificuldade em entender essa parte, e mais ainda em acreditar.” “Eles querem meu pai!”, diz ele, com a primeira emoção que vi. “Pegar papai! Encontrar um motivo para pegá-lo, destruí-lo. Fazer parecer que meu pai tem um filho que é um assassino para que possam pegar minha família. Tudo isso durante anos! E eu sou um Chandonne e olhe só para mim! Olhe para mim! ” Ele estende os braços em uma pose de crucificação, o cabelo flutuando de seu corpo. Observo em choque quando ele tira os óculos escuros e a luz atinge seus olhos tenros, queimados. Olho fixo para aqueles olhos vermelhos, quimicamente queimados. Eles não parecem focalizar nada, e as lágrimas rolam pelo rosto dele. “Estou arruinado!”, ele grita. “Estou feio e cego e sendo acusado de crimes que não cometi! Vocês, americanos, querem executar um francês! Não é isso?! Para dar um exemplo!” Cadeiras se arrastam fazendo muito barulho, e Marino e Talley estão em cima dele, segurando-o em sua cadeira. “Eu não matei ninguém! Ela tentou me matar! Olhem o que ela fez comigo! ” E Berger está dizendo calmamente a ele: “Já estamos nisso há uma hora. Vamos parar agora. Já é suficiente. Acalme-se, acalme-se”. Quadros piscam e barras enchem a tela antes de ela assumir a cor azul brilhante de uma tarde perfeita. Berger desliga o videocassete. Permaneço num silêncio atônito. “Odeio lhe dizer.” Ela quebra o encanto aterrador que Chandonne lançou em minha pequena sala particular de reuniões. “Há alguns idiotas paranóides e antigoverno neste mundo que vão achar esse cara confiável. Esperemos que nenhum deles termine no júri. Basta um.”
16
“Jay Talley”, diz Berger, para minha surpresa. Agora que Chandonne sumiu de nosso meio com o simples acionamento de um controle remoto, essa promotora de Nova York não perde tempo em mudar seu foco intenso para mim. Voltamos a uma realidade pequena e amena — uma sala de reuniões com uma mesa de madeira redonda, estantes de madeira embutidas e uma tela de televisão vazia. Arquivos de casos e fotos sangrentas estão espalhados diante de nós, esquecidos, ignorados, porque Chandonne se apossou de tudo e todos durante as últimas duas horas. “Você quer falar, ou eu devo começar lhe contando o que sei?”, Berger me confronta. “Não sei ao certo o que você quer que eu fale.” Fico confusa, depois ofendida, depois furiosa de novo quando penso na presença de Talley na entrevista com Chandonne. Imagino Berger falando com Talley antes e depois de ela ter interrogado Chandonne e durante a parada que ele fez para descansar e comer alguma coisa. Berger passou horas com Talley e Marino. “Sendo mais específica”, acrescento, “o que isso tem a ver com seu caso de Nova York?” “Doutora Scarpetta.” Ela se recosta na cadeira. Tenho a sensação de que estive nesta sala com ela durante metade de minha vida, e estou atrasada. Estou irremediavelmente atrasada para o encontro com o governador. “Por mais difícil que seja para você”, diz Berger, “peço que confie em mim. Será que consegue?” “Não sei mais em quem confiar”, respondo com sinceridade. Ela sorri um pouco e suspira. “Isso é honesto. Bastante justo. Você não tem nenhuma razão para confiar em mim. Talvez não tenha nenhuma razão para confiar em ninguém. Mas você realmente não tem nenhuma razão factual para não confiar em mim como uma profissional cujo único propósito é fazer Chandonne pagar por seus crimes — se ele assassinou essas mulheres.” “Se?”, pergunto. “Temos de provar isso. E absolutamente nenhuma coisa que eu possa saber sobre o que aconteceu aqui nesses casos de Richmond é desprezível para mim. Garanto a você, não estou tentando ser voyeur nem violar sua privacidade. Mas preciso ter o contexto completo. Francamente, preciso saber com que diabo estou lidando, e minha dificuldade é que não sei quem são todos os personagens, nem o que eles são, nem se algum deles poderia de algum modo se sobrepor a meu caso em Nova York . Por exemplo, o hábito de Diane Bray de tomar remédios controlados de fato poderia ser um indicador de outra atividade ilegal, possivelmente ligada ao crime organizado, à família Chandonne? Ou possivelmente até ligada ao motivo pelo qual o corpo de Thomas acabou em Richmond?” “A propósito.” Estou presa a outro assunto, isto é, minha credibilidade. “Como Chandonne explica que havia duas picaretas de entalhar na minha casa? Sim, eu comprei uma na loja de ferramentas, como lhe contei. Então de onde
veio a outra, se ele não trouxe uma com ele? E se eu queria matá-lo, por que não usei a pistola? Minha Glock estava bem ali na mesa da sala de jantar.” Berger hesita e foge completamente de minhas perguntas. “Se eu não sei de toda a verdade, fica muito difícil saber o que é relevante para meu caso e o que não é.” “Entendo isso.” “Podemos começar pela situação de sua relação com Jay agora?” “Ele me levou de carro ao hospital.” Desisto. Evidentemente não sou eu quem vai fazer as perguntas nesta situação. “Quando quebrei o braço. Ele apareceu com a polícia, o ATF, e eu falei rapidamente com ele no sábado à tarde, enquanto a polícia ainda estava na minha casa.” “Você tem alguma idéia de por que ele achou necessário voar da França até aqui para auxiliar na caçada a Chandonne?” “Só posso supor que é porque ele está muito familiarizado com o caso.” “Ou foi uma desculpa para ver você?” “Quem tem de responder isso é ele.” “Você está se encontrando com ele?” “Não desde a tarde de sábado, como eu disse.” “Por que não? Você acha que o relacionamento acabou?” “Nunca achei que ele tivesse começado.” “Mas você dormiu com ele.” Ela ergue uma sobrancelha. “Então sou culpada de falta de critério.” “Ele é bonito, brilhante. E jovem. É mais provável que algumas pessoas condenem você por bom gosto. Ele é solteiro. Você também. Não é como se você cometesse adultério.” Ela faz uma pausa. Estará aludindo a Benton, ao fato de que eu fui culpada de adultério no passado? “Jay Talley tem muito dinheiro, não é?” Ela bate sua caneta com ponta porosa no bloco de memorandos, um metrônomo medindo os maus momentos que estou passando. “Da família dele, supostamente. Vou checar isso. E, a propósito, você deve saber que falei com ele, com Jay. Longamente.” “Suponho que você falou com o mundo inteiro. O que ainda não consegui descobrir é como você teve tempo para isso.” “Houve um pequeno intervalo na Faculdade de Medicina da Virgínia, no hospital da faculdade.” Imagino-a tomando café com Talley. Posso visualizar o olhar no rosto dele, sua postura. Pergunto-me se ela têm atração por ele. “Conversei com Talley e com Marino enquanto Chandonne tinha seus vários períodos de descanso e coisas do tipo.” As mãos dela repousam dobradas sobre um bloco de notas gravado com a insígnia de seu gabinete. Ela não fez nenhuma anotação, nem uma palavra o tempo inteiro em que estivemos nesta sala. Já está maquinando que a defesa fará reivindicações baseadas no precedente estabelecido no caso Rosário. A defesa tem direito de ver tudo que tenha sido anotado pela promotoria que possa prejudicar seu cliente. Portanto, não escreve nada. De vez em quando ela rabisca alguma coisa. Encheu duas páginas com garatujas desde que entrou em minha sala de reuniões. Um sinal de alerta aparece em minha mente. Ela está me tratando como testemunha. Eu não
deveria ser uma testemunha, não em seu caso de Nova York . “Estou com a impressão de que você está se perguntando se Jay está de alguma maneira envolvido...”, começo a dizer. Berger me interrompe, franzindo o cenho. “Vou revirar tudo”, diz ela. “É possível? Neste momento, estou prestes a acreditar que tudo é possível. Em que posição maravilhosa Talley estaria se estivesse em conluio com os Chandonne, certo? Interpol, ah, isso vem a calhar para um cartel do crime. Ele liga para você e a leva até a França, talvez com o propósito de ver o que você sabe sobre o incontrolável Jean-Baptiste. De repente, Talley está em Richmond para a caçada ao cara.” Ela cruza os braços e me penetra outra vez com aquele olhar. “Eu não gosto dele. Estou surpresa de que você tenha gostado.” “Olhe”, digo, com um traço de derrota na voz. “Jay e eu fomos íntimos em Paris por um período de vinte e quatro horas, no máximo.” “Vocês fizeram sexo. Discutiram em um restaurante naquela tarde e você explodiu, com ciúme porque ele estava olhando para outra mulher...” “O quê?”, explodo. “Ele disse isso ?” Ela me olha em silêncio. Seu tom não é diferente daquele que ela usou com Chandonne, um monstro terrível. Agora ela está entrevistando a mim, uma pessoa terrível. É assim que me sinto. “Não teve nada a ver com outra mulher”, respondo. “Que outra mulher? Eu certamente não tive ciúme. Ele estava agindo de um jeito muito agressivo e petulante e eu me enchi.” “O Café Runtz, na rue Favard. Você fez uma senhora cena.” Ela continua minha história, ou pelo menos a versão dela que Jay lhe forneceu. “Eu não fiz uma cena. Eu me levantei da mesa e saí, ponto.” “De lá você voltou ao hotel, pegou um táxi e foi para a Île de Saint-Louis, onde mora a família de Chandonne. Caminhou por lá até escurecer, olhando para a casa de Chandonne, depois pegou uma amostra de água do Sena.” O que ela acabou de dizer envia choques elétricos para todas as minhas células. O suor escorre em gotas grossas por baixo de minha blusa. Nunca contei a Jay o que fiz depois de deixá-lo no restaurante. Como Berger sabe de tudo isso? Como Jay soube, se foi ele quem contou a ela? Marino. Quanto Marino contou a ela? “Qual era seu verdadeiro propósito ao encontrar a casa de Chandonne? O que você achava que isso podia lhe dizer?”, pergunta Berger. “Se eu soubesse o que alguma coisa me diria, não precisaria investigar”, respondo. “Quanto à amostra de água, como você sabe pelos relatórios do laboratório, encontramos diatomáceas, ou algas microscópicas, na roupa do corpo não identificado do porto de Richmond — do corpo de Thomas. Eu queria uma amostra da água perto da casa de Chandonne para ver se havia alguma chance de o mesmo tipo de diatomácea estar presente naquela área do Sena. E estava. As diatomáceas de água doce eram coerentes com aquelas que encontrei no interior da roupa do corpo, do corpo de Thomas, e nada disso importa. Você não está acusando Jean-Baptiste pelo assassinato de seu suposto irmão, já que esse provavelmente aconteceu na Bélgica. Você já deixou isso claro.” “Mas a amostra de água é importante.” “Por quê?”
“Qualquer coisa que tenha acontecido me revela mais sobre o acusado e possivelmente leva ao motivo. E o mais importante, à identidade e à intenção.” Identidade e intenção. Essas palavras bramem em minha mente como um trem. Sou advogada. Sei o que elas significam. “Por que você pegou a amostra de água? Você coleta rotineiramente evidências que não estejam associadas de forma direta com um corpo? Em outras palavras, coletar amostras de água realmente não é da sua jurisdição, especialmente em um país estrangeiro. Por que você foi à França? Isso não é um pouco fora do comum para uma legista?” “A Interpol me convocou. Você mesma acabou de observar isso.” “Jay Talley a convocou, sendo mais específica.” “Ele representa a Interpol. Ele o responsável no ATF Pela ligação com a Interpol.” “Eu me pergunto por que realmente ele orquestrou sua ida até lá.” Ela faz uma pausa para permitir que um calafrio de medo atinja meu cérebro. Ocorreme que Jay pode ter me manipulado por motivos que não tenho certeza se consigo suportar imaginar. “Talley tem muitas camadas”, Berger acrescenta, enigmática. “Se Jean-Baptiste fosse julgado aqui, suponho que é mais provável que Talley seria usado pela defesa do que pela acusação. Possivelmente para desacreditá-la como testemunha.” O calor me sobe pelo pescoço. Meu rosto queima. O medo me atinge como uma granada, desfazendo qualquer esperança que eu tivesse de que algo desse tipo não acontecesse. “Deixe-me perguntar uma coisa a você.” Expresso inteiramente meu ultraje. É tudo que consigo fazer para manter a voz firme. “Há alguma coisa que você não saiba sobre a minha vida?” “Muita coisa.” “Por que tenho a sensação que sou a pessoa que está prestes a ser indiciada, senhorita Berger?” “Não sei. Por que você se sente assim?” “Estou tentando não tomar nada disso em termos pessoais. Mas está ficando mais difícil a cada minuto.” Berger não ri. A resolução faz seus olhos faiscarem e endurece seu tom. “Vai ficar muito pessoal. Recomendo vivamente que você não tome isso dessa maneira. Você sabe como funciona. A prática efetiva de um crime é incidental ao dano real que suas sensações causam. Jean-Baptiste Chandonne não deu um único soco em você no momento em que invadiu sua casa. É agora que ele começa a ferir você. Ele a feriu. Ele vai feri-la. Embora esteja preso, vai dar socos em você diariamente. Ele iniciou um processo cruel e mortal, a violação de Kay Scarpetta. Já começou. Sinto muito. É um fato da vida que você conhece muito bem.” Devolvo em silêncio seu olhar. Minha boca está seca. Meu coração parece bater fora do ritmo. “Não é justo, é?”, ela diz no tom cortante de uma promotora que sabe como desmontar seres humanos tão completamente como eu sei. “Mas estou certa de que seus pacientes não gostariam de ser despidos em sua mesa, com sua faca, de ter seus bolsos e orifícios explorados, se soubessem. E há, sim, um
bocado de coisas que não sei sobre sua vida. E, sim, você não vai gostar de minha sondagem. E, sim, você vai cooperar, se for a pessoa de quem ouvi falar. E, sim, droga, eu preciso desesperadamente de sua ajuda, senão este caso está completamente ferrado.” “Porque você vai tentar incluir as outras maldades praticadas por ele, não vai?” Ponho tudo para fora. “Baseada no caso Molineux.” Ela hesita. Seus olhos permanecem em mim e se acendem por um instante, como se eu tivesse acabado de dizer algo que a enche de alegria ou talvez de um novo respeito. Então, com a mesma rapidez, esses olhos me excluem outra vez, e ela diz: “Ainda não tenho certeza do que vou fazer”. Não acredito nela. Sou a única testemunha viva. A única. Ela tem toda a intenção de me incluir no caso — colocar em julgamento todos os crimes de Chandonne, todos magnificamente apresentados no reduzido contexto de uma pobre mulher que ele assassinou em Manhattan há dois anos. Chandonne é esperto. Mas talvez tenha cometido um erro fatal no videoteipe. Ele deu a Berger as armas de que ela precisa para apelar ao caso Molineux: identidade e intenção. Posso identificar Chandonne. Sei muito bem qual era sua intenção quando ele entrou à força em minha casa. Sou a única pessoa viva que pode se contrapor a suas mentiras. “Então agora nós martelamos minha credibilidade.” O trocadilho sem graça é deliberado. Ela está me golpeando exatamente como Chandonne fez, mas por uma razão muito diferente, é claro. Ela não quer me destruir. Quer ter certeza de que eu não seja destruída. “Por que você dormiu com Jay Talley?”, ela volta ao assunto. “Porque ele estava lá, droga!”, retruco. Ela irrompe em uma gargalhada, que a faz jogar-se contra as costas da cadeira. Não estou tentando ser divertida. Estou, se tanto, enojada. “Essa é a verdade banal, senhorita Berger”, acrescento. “Por favor, me chame de Jaime.” Ela suspira. “Nem sempre sei as respostas, mesmo as que deveria saber. Tais como por que tive meu momento com Jay. Mas tenho vergonha dele. Até alguns minutos atrás, eu me sentia culpada por isso, com muito medo de tê-lo usado, de tê-lo magoado. Mas pelo menos não saí por aí contando para as pessoas.” Para isso ela não tem resposta. “Eu devia ter percebido que ele mal saiu da puberdade”, continuo, enquanto minha indignação se mostra vivamente diante de nossos olhos. “Nada melhor do que os adolescentes que babavam por minha sobrinha no shopping ontem à noite. Hormônios ambulantes. Então Jay se gabou disso, estou certa, contou a todo mundo, inclusive a você. E devo acrescentar...” Paro. Engulo. A raiva parece um caroço em minha garganta. “Devo acrescentar que alguns detalhes não são da sua conta e nunca serão. Peço a você, senhorita Berger, por uma questão de cortesia profissional, que não vá a lugares que não são da sua alçada.” “Se pelo menos os outros respeitassem isso.” Faço questão de olhar outra vez para meu relógio. Mas não posso sair, não
antes de perguntar a ela o mais importante. “Você acredita que ele me atacou?” Ela sabe que dessa vez me refiro a Chandonne. “Há alguma razão pela qual eu não deveria acreditar?” “Obviamente, meu relato de testemunha ocular transforma todas as outras coisas que ele disse no absurdo que na verdade são”, respondo. “Não foram eles. Não havia nenhum eles. Só aquele filho-da-mãe desgraçado fingindo ser a polícia e me atacando com um martelo. Gostaria de saber como ele pretende explicar isso. Você perguntou a ele por que havia duas picaretas de entalhar na minha casa? Posso provar com o recibo da loja de ferramentas que só comprei uma.” Insisto nesse ponto. “Então, de onde veio a outra?” “Quero lhe perguntar uma coisa.” Outra vez, ela evita me responder. “Há alguma possibilidade de que você só tenha suposto que ele a estava atacando? De que você o tenha visto e entrado em pânico? Tem certeza de que ele tinha uma picareta de entalhar e estava atacando você com ela?” Olho fixo para ela. “Suposto que ele estava me atacando? Que explicação poderia haver para ele estar dentro da minha casa?” “Bem, você abriu a porta. Isso nós sabemos, certo?” “Você não está me perguntando se ele foi convidado, está?” Olho para ela em desafio, praticamente mordendo as bochechas. Minhas mãos tremem. Quando ela não responde, empurro minha cadeira para trás. “Não tenho de ficar sentada aqui agüentando isso. Passou do ridículo para o extremamente ridículo!” “Doutora Scarpetta, como você se sentiria se fosse sugerido publicamente que você, de fato, convidou Chandonne para entrar na sua casa e o atacou? Por razão nenhuma, a não ser, talvez, estar em pânico? Ou pior. Que você faz parte da conspiração, como ele declarou no teipe — você e Jay Talley. O que também ajuda a explicar por que você foi a Paris e dormiu com Talley, e depois encontrou a doutora Stvan e tirou evidências do necrotério.” “Como eu me sentiria? Não sei mais o que dizer.” “Você é a única testemunha, a única pessoa viva que sabe que o que Chandonne está dizendo não passa de mentiras e mais mentiras. Se você está dizendo a verdade, então este caso depende totalmente de você.” “Não sou testemunha no seu caso”, lembro a ela. “Não tive nada a ver com a investigação do assassinato de Susan Pless.” “Preciso de sua ajuda. E vai levar muito, muito tempo.” “Não vou ajudá-la. Não se você vai começar a questionar minha veracidade e minha condição mental.” “Na verdade, não questiono nenhuma delas. Mas a defesa vai questionar. A sério. De forma excruciante.” Ela está abrindo cuidadosamente seu caminho pelas bordas de uma realidade que ainda precisa partilhar comigo. O advogado da outra parte. Suspeito que ela sabe quem é. Ela sabe exatamente quem vai terminar o que Chandonne começou: meu desmantelamento, minha humilhação, para que o mundo inteiro veja. Meu coração bate em baques surdos. Sinto-me morta. Minha vida acabou de terminar bem diante de meus olhos. “Vou precisar que você vá a Nova York em algum momento”, Berger está dizendo. “Quanto antes melhor. E, a propósito, devo adverti-la para que seja muito, muito cuidadosa sobre com quem conversa neste momento. Não
recomendo, por exemplo, que você fale com ninguém sobre esses casos sem falar comigo primeiro.” Ela começa a arrumar sua papelada e seus livros. “Aconselho-a não ter nenhum contato direto com Talley.” Seus olhos encontram os meus enquanto ela fecha sua maleta. “Infelizmente, acho que vamos ter um presente de Natal do qual não vamos gostar.” Levantamos de nossas cadeiras e nos encaramos. “Quem?”, pergunto com voz cansada. “Você sabe quem vai representá-lo, não sabe? É por isso que ficou a noite toda com ele. Queria falar com ele antes que seu advogado fechasse a porta.” “Tudo verdade”, ela responde com um traço de irritação. “A questão é se eu fui enganada nessa história.” Olhamos uma para a outra por cima da superfície brilhante da mesa de madeira. “Acho uma coincidência um pouco excessiva que uma hora depois de minha última entrevista com Chandonne eu tenha sido informada de que ele tem advogado”, ela acrescenta. “Suspeito que ele já sabia quem era seu advogado e talvez, de fato, o tivesse contratado. Mas Chandonne e o saco de lixo a quem ele está ligado acreditariam que esse teipe” — ela bate em sua maleta — “só nos prejudicaria e o ajudaria.” “Porque os jurados ou acreditariam nele, ou pensariam que ele é paranóico e louco”, resumo. Ela assente. “Ah, claro. Eles vão tentar insanidade, se tudo mais falhar. E nós não queremos que o senhor Chandonne vá para Kirby, queremos?” Kirby é um famoso hospital psiquiátrico forense em Nova York. É onde Carrie Grethen ficou presa antes de fugir e assassinar Benton. Berger tocou em mais uma parte de minha história dolorosa. “Então você sabe sobre Carrie”, digo num tom de derrota enquanto saímos da sala de reuniões, que eu jamais verei da mesma forma. Ela também se tornou uma cena de crime. Meu mundo inteiro está virando uma. “Fiz algumas pesquisas a seu respeito”, diz Berger, quase se desculpando. “E você está certa, sei quem vai representar Chandonne, e não é uma boa notícia. Na verdade é uma coisa horrorosa.” Ela veste seu casaco de vison enquanto andamos pelo corredor. “Você já se encontrou alguma vez com o filho de Marino?” Paro e fico olhando para ela, estarrecida. “Não conheço ninguém que jamais tenha visto o filho dele”, respondo. “Vamos, vamos para sua festa. Eu explico enquanto caminhamos.” Berger carrega seus livros e arquivos, andando devagar sobre o carpete silencioso. “Rocco Marino, carinhosamente conhecido como ‘Rocky’, é um advogado de defesa criminalista excepcionalmente inescrupuloso que tem predileção por representar a máfia e outros que valha a pena de tirar de situações difíceis, por qualquer meio. É um exibido. Adora publicidade.” Ela ergue o olhar para mim. “Mais que tudo, ele adora machucar as pessoas. É o seu jeito de se sentir poderoso.” Apago as luzes do corredor, lançando-nos brevemente na escuridão enquanto nos aproximamos do primeiro conjunto de portas de aço inoxidável. “Há alguns anos — na faculdade de direito, me contaram”, ela continua, “Rocky mudou seu último nome para Caggiano. Uma última rejeição do pai que
ele despreza, suponho.” Hesito, encarando-a em meio a sombras profundas. Não quero que ela veja a expressão em meu rosto, que detecte minha sensação de completa ruína. Eu sempre soube que Marino odeia o filho. Cogitei muitas teorias sobre o motivo. Talvez Rocky seja gay ou drogadicto, ou simplesmente um fracassado. Certamente ficou claro que Rocky é uma espécie de anátema para o pai, e agora eu sei. Estou chocada pela ironia amarga, pela vergonha disso tudo. Meu Deus. “Rocky dito Caggiano soube do caso e se apresentou voluntariamente?”, pergunto. “Talvez. Pode ser também que os laços da família Chandonne com o crime organizado o tenham levado ao filho deles, ou talvez Rocky já estivesse ligado a eles. Pode ser uma combinação — ligações pessoais e ligações do próprio Rocky. Mas cheira um pouco a jogar pai e filho no Coliseu. Patricídio diante do mundo, se bem que indiretamente. Marino não necessariamente vai testemunhar no julgamento de Chandonne em Nova York, mas poderia acontecer, dependendo dos desdobramentos do caso.” Sei quais serão os desdobramentos. Está tudo claro para mim. Berger veio a Richmond com toda a intenção de inserir esses casos no de Nova York. Eu não ficarei surpresa se ela conseguir de algum modo incluir também os casos de Paris. “Mas de qualquer forma”, ela diz, “Chandonne sempre parecerá um caso de Marino. Policiais como ele se importam com o que acontece. E o fato de Rocky representar Chandonne me põe numa posição infeliz. Se o caso fosse em Richmond, eu iria ao juiz ex parte e apontaria o óbvio conflito de interesses. Provavelmente ele seria expulso da sala do juiz e advertido. Mas, no mínimo, eu posso conseguir que o juiz ou juíza requisite um advogado que atue em conjunto com o advogado principal na equipe de defesa do acusado, de modo que o filho não interrogue realmente o pai.” Pressiono um botão e outras portas de aço se abrem. “Mas eu criaria uma tempestade de protestos”, ela prossegue. “E talvez o tribunal decidisse em meu favor, ou, no mínimo, eu usaria a situação para obter a simpatia do júri, mostrar como Chandonne e seu advogado são maus.” “Não importa que desdobramentos seu caso tenha em Nova York, Marino não vai ser uma testemunha factual.” Percebo aonde ela quer chegar com aquilo. “Não no assassinato de Susan Pless. Portanto, você não vai ter nenhuma sorte ao tentar se livrar de Rocky.” “Exatamente. Não haverá nenhum conflito. Nada que eu possa fazer a respeito. E Rocky é venenoso.” Nossa conversa continua na baia, onde esperamos no frio por nossos carros. A dureza do concreto à nossa volta parece um símbolo das realidades que enfrentamos agora. A vida tornou-se dura e imperdoável. Não há nada à vista, nem uma saída. Não consigo imaginar como Marino vai se sentir quando descobrir que o próprio monstro que ele ajudou a prender será defendido por seu filho Rocky. “Evidentemente, Marino não sabe”, digo. “Talvez eu tenha sido negligente por ainda não ter contado a ele”, ela responde. “Mas ele já é um transtorno suficiente. Achei que devia esperar para
soltar essa bomba amanhã ou depois de amanhã. Você sabe que ele não gostou nada de eu ter entrevistado Chandonne”, ela acrescenta, com um lampejo de triunfo. “Eu notei.” “Eu tive um caso com Rocky há vários anos.” Ela destranca a porta de seu carro. Inclina-se para dentro para dar a partida e ligar o aquecimento. “Um homem rico em viagem de negócios em Nova York é atacado por um garoto com uma faca.” Ela se ergue e me encara. “O homem luta e consegue derrubar o garoto, bate a cabeça dele na calçada, fazendo-o desmaiar, mas não antes de ele esfaquear o homem no peito. O homem morre. O garoto é hospitalizado por algum tempo, mas se recupera. Rocky tentou transformar o caso em autodefesa, mas felizmente o júri não aceitou.” “Tenho certeza de que isso tornou o senhor Caggiano seu fã pelo resto da vida.” “O que eu não consegui evitar foi que ele representasse o garoto em uma ação civil, pedindo dez milhões por supostos danos emocionais permanentes, bláblá-blá. A família do homem assassinado acabou fazendo um acordo. Por quê? Porque simplesmente não conseguiam mais agüentar aquilo. Havia muita sujeira acontecendo nos bastidores — assédio, coisas estranhas. Eles foram assaltados. Um de seus carros foi roubado. O filhote de terrier deles foi envenenado. E assim por diante, e tudo isso, estou convencida, foi orquestrado por Rocky Marino Caggiano. Mas eu nunca consegui provar.” Ela entra em sua perua Mercedes. “O modus operandi dele é muito simples. Ele esconde tudo que consegue e põe todos em julgamento, exceto o acusado. E é também um péssimo perdedor.” Lembro-me de Marino me contar uma vez, anos atrás, que queria que Rocky morresse. “Então talvez isso seja parte da motivação dele?”, pergunto. “Vingança. Não apenas pegar o pai, mas pegar você? E fazer isso com toda a publicidade.” “Pode ser”, Berger me diz da cabine alta de sua perua. “Seja qual for o motivo dele, quero que você saiba que planejo protestar de qualquer maneira. Nem posso lhe dizer se vai funcionar, já que isso realmente não constitui uma violação ética. Cabe ao juiz.” Ela passa o cinto de segurança sobre o peito. “Como você vai passar a véspera de Natal, Kay?” Então agora sou Kay. Tenho de pensar um minuto. A véspera do Natal é amanhã. “Preciso dar continuidade a uns casos, aqueles com as queimaduras”, respondo. Ela assente com a cabeça. “É importante voltarmos às cenas dos crimes de Chandonne enquanto elas ainda existem.” Inclusive minha casa, penso. “Você poderia me encontrar amanhã à tarde?”, ela pergunta. “Qualquer tempo que você puder me conceder. Vou trabalhar no feriado. Mas não pretendo estragar o seu.” Tenho de rir da ironia. O feriado. Sim, Feliz Natal. Berger me deu um presente e nem sabe disso. Ela me ajudou a tomar uma decisão, uma decisão importante, talvez a mais importante da minha vida. Vou me demitir, e o governador vai ser o primeiro a saber. “Ligo para você quando acabar no
condado de James City”, digo a ela. “Podemos tentar às duas.” “Eu pego você”, ela diz.
17
São quase dez horas quando saio da rua 9 e entro na Capitol Square, passando pela estátua iluminada de George Washington montado em seu cavalo, e dou a volta no pórtico sul do edifício projetado por Thomas Jefferson, onde uma árvore iluminada de quatro metros de altura, decorada com bolas de vidro, assoma atrás de grossas colunas brancas. Lembro-me de que a festa do governador era informal, e não um jantar, e fico aliviada com os sinais de que seus convidados já saíram. Não encontro nenhum carro nos espaços destinados a legisladores e visitantes. A mansão executiva do começo do século XIX é de estuque amarelo-claro com remates e colunas brancos. Segundo a lenda, ela foi salva por uma brigada antiincêndio quando os habitantes de Richmond queimaram a própria cidade no final da Guerra de Secessão. Na tradição atenuada dos Natais da Virgínia, velas brilham, grinaldas de flores frescas pendem de todas as janelas e ramos de sempre-vivas decoram os portões de ferro pretos. Abaixo o vidro quando um guarda da assembléia estadual anda até meu carro. “Posso ajudá-la?”, ele pergunta com ar de suspeita. “Estou aqui para ver o governador Mitchell.” Já estive algumas vezes na mansão, mas não a esta hora nem num grande utilitário esportivo Lincoln. “Sou a doutora Scarpetta. Estou um pouco atrasada. Se for tarde demais, eu compreendo. Por favor, diga a ele que sinto muito.” O guarda se anima. “Não reconheci a senhora nesse carro. A senhora se livrou de seu Mercedes? Espere aqui só um minuto.” Ele pega o telefone dentro da cabine enquanto olho para a Capitol Square e sou tocada pela ambivalência, depois pela tristeza. Perdi esta cidade. Não posso voltar. Posso culpar Chandonne por isso, mas isso não é tudo, se eu for honesta comigo mesma. É hora de fazer a coisa mais difícil. Mudar. Lucy me encorajou, ou talvez tenha feito eu me ver no que me tornei, que é algo entrincheirado, estático, institucionalizado. Fui a legista-chefe da Virgínia por mais de uma década. Estou beirando os cinqüenta anos. Não gosto de minha única irmã. Minha mãe é uma pessoa difícil e sua saúde não é boa. Lucy está de mudança para Nova York. Benton morreu. Estou sozinha. “Feliz Natal, doutora Scarpetta.” O guarda se inclina para perto de minha janela e abaixa a voz. O nome em seu crachá de latão é Renquist. “Quero que a senhora saiba que eu tenho ódio do que aconteceu, mas estou contente por a senhora ter conseguido pegar aquele filho-da-mãe. A senhora realmente pensou rápido.” “Obrigada, oficial Renquist.” “A senhora não vai mais me ver por aqui depois do primeiro dia do ano”, ele continua. “Eles me transferiram para investigações à paisana.” “Espero que seja bom.” “Oh, sim, senhora.”
“Vamos sentir sua falta.” “Talvez eu a veja em um caso.” Espero que não. Se ele me vir em um caso, isso significará que mais alguém morreu. Ele me faz um aceno firme, guiando-me para os portões. “A senhora pode parar bem em frente.” Mudança. Sim, mudança. De repente, estou cercada por ela. Dentro de treze meses, o governador Mitchell terá ido embora também, e isso é perturbador. Gosto dele. Gosto especialmente de sua esposa, Edith. Na Virgínia, os governadores têm um limite de um mandato, e a cada quatro anos o mundo desmorona. Centenas de empregados são transferidos, demitidos e contratados. Números de telefone são mudados. Computadores são formatados. As descrições de funções não mais se aplicam, mesmo que as funções continuem a existir. Arquivos desaparecem ou são destruídos. Os menus da mansão são refeitos ou rasgados. A única constância é a equipe da própria mansão. Os mesmos presidiários fazem a jardinagem e pequenas tarefas externas, e as mesmas pessoas cozinham e limpam, ou, pelo menos, se forem trocadas, isso não tem nada a ver com política. Aaron, por exemplo, é o mordomo desde quando cheguei à Virgínia. É um afro-americano alto e bonito, e está esbelto e gracioso em um casaco branco longo e imaculado com uma gravata-borboleta preta. “Aaron, como vai?”, pergunto enquanto caminho para o hall de entrada, deslumbrante com sua iluminação de cristal que emite um brilho, candelabro a candelabro, através de arcadas circulares por todo o caminho até os fundos da casa. Entre os dois salões de baile está a árvore de Natal decorada com bolas vermelhas e luzes brancas. Paredes e frisos de gesso foram restaurados recentemente para o cinza-e-branco original e parecem cerâmica Wedgwood. Aaron pega meu casaco. Diz que está bem e contente de me ver, usando poucas palavras, porque é um mestre na arte de ser cortês sem fazer estardalhaço. Bem na entrada, de cada um dos lados, há duas salas de estar com tapetes de Bruxelas e antigüidades formidáveis. O papel de parede na sala dos homens tem uma borda greco-romana. O da sala das mulheres, uma borda floral. A psicologia dessas áreas é simples. Elas permitem que o governador receba convidados sem nunca realmente admiti-los na mansão. As pessoas têm direito a uma audiência na porta da frente e não devem ficar muito tempo. Aaron me guia por essas históricas salas impessoais até uma escada acarpetada em estilo Federal de estrelas pretas contra um fundo vermelho, que leva aos aposentos pessoais da primeira-família. Emerjo em uma área com piso de madeira de abeto e cadeiras e sofás acessíveis, onde Edith Mitchell espera por mim vestida com um terninho de seda vermelha esvoaçante. Ela me abraça e sinto um aroma levemente exótico. “Quando vamos jogar tênis de novo?”, ela pergunta secamente, olhando para meu gesso. “É um esporte implacável se você pára por um ano, está de braço quebrado e voltou a fumar”, digo. Minha referência ao ano passado não lhe escapa. Quem me conhece sabe que depois do assassinato de Benton me escondi num vórtice escuro de movimento frenético e perpétuo. Parei de ver os amigos. Não saí nem recebi as
pessoas. Raramente fiz exercícios. Só fiz trabalhar. Não vi nada que ocorria à minha volta. Não ouvi o que as pessoas me diziam. Não senti. A comida não tinha gosto. Raramente eu percebia como estava o tempo. Nas palavras de Anna, tornei-me privada de sentidos. Durante isso tudo, de algum modo, não cometi erros em meus casos. No máximo, fiquei mais obsessiva com eles. Mas meu absentismo como ser humano foi prejudicial no trabalho. Não fui uma boa administradora e isso começou a aparecer. Certamente, fui uma amiga imprestável para todos que conheço. “Como você está?”, ela pergunta, gentil. “Bem, na medida do possível.” “Por favor, sente-se. Mike está atendendo uma ligação”, Edith me conta. “Imagino que ele não falou o suficiente com as pessoas na festa.” Ela ri e rola os olhos como se estivesse falando de um menino travesso. Edith nunca assumiu realmente o papel de primeira-dama, não na tradição da comunidade da Virgínia, e, embora talvez tenha seus detratores, passou também a ser celebrada como uma mulher forte e moderna. Ela é uma arqueóloga historiadora que não desistiu da carreira quando o marido assumiu o governo e evita eventos oficiais que considera frívolos ou um desperdício de tempo. Mas é a parceira devotada do marido, e criou três filhos, que já estão crescidos ou na faculdade. Perto de completar cinqüenta anos, tem cabelo castanho-escuro, que usa cortado reto, na altura do pescoço, e escovado para trás. Em seus olhos, quase da cor de âmbar, pensamentos e perguntas se revolvem. Ela tem algo em mente. “Eu ia chamar você para conversar na festa. Kay, estou contente de você ter ligado. Obrigada por ter vindo. Você sabe que não é do meu feitio me intrometer em seus casos”, ela continua, “mas tenho de dizer que estou realmente perturbada por um que acabei de ler no jornal — o homem encontrado naquele motel horroroso perto de Jamestown. Mike e eu estamos muito preocupados, bem, obviamente por causa da ligação com Jamestown.” “Não sei de nenhuma ligação com Jamestown.” Estou desnorteada, e meu primeiro pensamento é que surgiu alguma informação que ela conhece e eu não. “Nenhuma ligação com a escavação arqueológica. Não que eu saiba.” “Percepções”, ela diz simplesmente. “No mínimo.” Jamestown é a paixão de Edith Mitchell. Sua profissão a levou ao sítio anos atrás, e então ela se tornou uma defensora dele em sua atual posição política. Desencavou buracos de postes e ossos humanos e procurou incansavelmente atrair o interesse de potenciais financiadores e da mídia. “Eu passo de carro por esse motel quase todas as vezes que vou lá, porque para ir ao centro da cidade é mais perto pegar a rodovia 5 em vez da 64.” Uma sombra passa por seu rosto. “Uma verdadeira pocilga. Não posso dizer que ficaria surpresa se algo de ruim acontecesse lá. Parece o tipo de lugar freqüentado por traficantes de drogas e prostitutas. Você foi à cena?” “Ainda não.” “Quer beber alguma coisa, Kay? Tenho um uísque muito bom que contrabandeei da Irlanda no mês passado. Sei que você gosta de uísque irlandês.” “Só se você for tomar um.”
Ela pega o fone e pede a Aaron que traga a garrafa de Black Bush e três copos. “O que está acontecendo em Jamestown atualmente?” O ar está carregado com uma pátina de fumaça de charuto que desperta minha frustrante fome de cigarros. “Acho que a última vez que estive lá foi há três ou quatro anos”, digo a ela. “Quando encontramos JR”, ela lembra. “Sim.” “Faz tanto tempo assim que você foi lá?” “Mil novecentos e noventa e seis, acho.” “Bem, você deve ir ver o que estamos fazendo. É surpreendente como a área do forte mudou, e os artefatos, centenas de milhares deles, como você provavelmente sabe pelo noticiário. Fizemos estudos isotópicos em alguns dos ossos, que acho que você julgaria interessantes, Kay. JR continua a ser nosso maior mistério. O perfil isotópico dele não era nada coerente com uma dieta de milho ou trigo, então não sabíamos o que concluir disso, exceto que talvez ele não fosse inglês. Portanto, enviamos um de seus dentes para um laboratório na Inglaterra, para um teste de DNA.” JR é a sigla para Jamestown Rediscovery, Redescobrimento de Jamestown. É o prefixo atribuído a todos os remanescentes descobertos na escavação, mas, neste caso, Edith se refere especificamente ao centésimo segundo remanescente, desenterrado na terceira camada, ou camada C, de solo. JR102C é um túmulo. Ele se tornou o túmulo mais celebrado da escavação porque pensa-se que o esqueleto dentro dele seria o de um jovem que chegou a Jamestown com John Smith em maio de 1607 e morreu com um tiro naquele outono. Diante da primeira sugestão de violência contra o ocupante do caixão violado, Edith e o principal arqueólogo me chamaram para ir ao sítio, onde, juntos, tiramos a sujeira de uma bala de mosquete calibre dezesseis de vinte e um tiros, que havia fraturado a tíbia e a girado cento e oitenta graus, de modo que o pé estava apontando para trás. O ferimento teria rasgado, se não rompido, a artéria poplítea atrás do joelho, e JR, como desde então ele se tornou afetuosamente conhecido, teria sangrado rapidamente até morrer. É claro que houve um grande interesse no que foi imediatamente apelidado de o primeiro assassinato na América, uma afirmação muito presunçosa, já que não podemos dizer com certeza que foi um assassinato ou que foi o primeiro, e o Novo Mundo ainda não era exatamente a América. Provamos, a partir de exames forenses, que JR recebeu um tiro de uma arma européia chamada arcabuz e que, com base no espalhamento do tiro, a arma foi disparada de uma distância de aproximadamente cinco metros. Ele não poderia provavelmente ter dado o tiro em si mesmo por acidente. Pode-se deduzir que um dos colonos seus companheiros seria o culpado, o que leva à noção não tão forçada de que o carma da América, tristemente, parece ser nos matarmos uns aos outros. “Tudo passou a ser feito em locais abrigados durante o inverno.” Edith tira o paletó e o coloca nas costas do sofá. “Catalogar artefatos, anotar as descobertas, todas as coisas que não podemos fazer enquanto trabalhamos no sítio. E, é claro, levantamento de fundos. Essa parte horrível da vida que tende a
cair em meu colo cada vez mais hoje em dia. O que me leva ao assunto que quero tratar com você. Recebi uma ligação telefônica muito perturbadora de um de nossos legisladores que leu sobre a morte no motel. Está alvoroçado, o que é uma infelicidade, porque ele vai terminar fazendo exatamente aquilo que disse que não quer, que é chamar a atenção para o caso.” “Alvoroçado a respeito do quê?”, estranho. “Houve poucas informações nos jornais.” A expressão de Edith se endurece. Quem quer que seja o legislador, ela obviamente o acha um inútil. “Ele é da área de Jamestown”, ela me diz. “Parece pensar que o caso talvez seja um crime de ódio, que a vítima era gay.” Há um leve soar de passos na escada acarpetada e Aaron aparece com uma bandeja, uma garrafa e três copos para uísque gravados com o selo do governo estadual. “Nem preciso dizer que uma coisa como essa poderia comprometer seriamente o que estamos fazendo lá.” Ela escolhe as palavras com cuidado enquanto Aaron serve o Black Bush. Uma porta ao lado da área de estar se abre e o governador emerge de seu escritório particular, envolto em uma corrente de fumaça de charuto, com o smoking e a gravata desabotoados. “Kay, me desculpe por fazê-la esperar”, ele diz ao me abraçar. “Tive de apagar uns incêndios. Talvez Edith tenha dado a pista a você.” “Ela estava começando a me contar”, respondo.
18
O governador Mitchell está visivelmente perturbado. Sua esposa se levanta para permitir que conversemos em particular, e eles dois falam rapidamente sobre o chamado que precisa ser feito para uma de suas filhas, então Edith me dá boa-noite e sai. O governador acende outro charuto. É um homem vigoroso, de boa aparência, com um corpo forte de ex-jogador de futebol e o cabelo branco como areia do Caribe. “Eu ia tentar falar com você amanhã, mas não sabia se você ia viajar no feriado”, ele começa. “Obrigado por vir.” O uísque aquece minha garganta a cada gole enquanto iniciamos uma conversa polida sobre os planos para o Natal e como estão indo as coisas no Instituto de Ciência e Medicina Forense da Virgínia. Cada vez que respiro, penso no detetive Stanfield. Aquele tonto. Ele obviamente divulgou informações sensíveis sobre o caso, e justamente para um maldito político, seu cunhado, o deputado Dinwiddie. O governador é um homem astuto. E o mais importante, ele começou sua carreira como promotor. Sabe como estou furiosa e por quê. “O deputado Dinwiddie tem tendência a cutucar casa de marimbondo”, o governador confirma quem é o criador de caso. Dinwiddie é um chato militante que nunca deixa o mundo esquecer que sua linhagem pode ser remontada, embora de forma muito indireta, ao chefe Powhatan, o pai de Pocahontas. “O detetive errou em contar qualquer coisa a Dinwiddie”, respondo. “E Dinwiddie errou em contar a vocês ou a qualquer outra pessoa. Esse é um caso criminal. Não tem nada a ver com o aniversário de quatrocentos anos de Jamestown. Nem com turismo ou política. Trata-se de um homem que foi muito provavelmente torturado e queimado em um quarto de motel.” “Nenhuma dúvida sobre isso”, responde Mitchell. “Mas há certas realidades que temos de considerar. Um crime de ódio que possa de qualquer forma parecer ligado a Jamestown seria catastrófico.” “Não sei de nenhuma ligação com Jamestown, além do fato de que a vítima se registrou em um motel da área de Jamestown que oferece um pacote especial chamado mil seiscentos e sete.” Estou ficando exasperada. “Com toda a publicidade que Jamestown já conseguiu, só essa informação é suficiente para atiçar as antenas da mídia.” Ele rola o charuto nos dedos e lentamente o leva aos lábios. “Projeta-se que a celebração de 2007 poderia acabar gerando um bilhão de dólares de receita para o estado. É nossa feira mundial, Kay. No ano que vem Jamestown vai ser comemorada em uma moeda, um quarto de dólar. Equipes de notícias têm ido às pencas para o local da escavação.” Ele se levanta para atiçar o fogo e sou levada de volta no tempo a seu antigo terno amarrotado e suas maneiras despojadas, a seu escritório abarrotado, atulhado de arquivos e livros no District Courts Building. Tivemos muitos casos juntos, alguns deles os marcos mais dolorosos de minha história, aqueles tipos de crimes cruéis, aleatórios, cujas vítimas ainda assombram minha mente: a
entregadora de jornais abduzida de sua rota, estuprada e deixada a morrer lentamente; a velha que recebeu um tiro gratuito enquanto estendia roupas no varal; as múltiplas pessoas mortas pelos irmãos Briley.* Mitchell e eu ficávamos angustiados com tantos atos de violência, e eu senti sua falta quando ele assumiu um cargo mais alto. O sucesso separa os amigos. A política, especialmente, é ruinosa para os relacionamentos, porque a própria natureza da política é recriar a pessoa. O Mike Mitchell que conheci foi substituído por um estadista que aprendeu a processar suas crenças impetuosas por meio de sub-rotinas seguras e meticulosamente calculadas. Ele tem um plano. Tem um plano para mim. “Tanto quanto você, não gosto de ver a mídia alimentando o frenesi”, digo a ele. Ele recoloca o atiçador no suporte de latão e fuma de costas para a lareira, seu rosto congestionado pelo calor. A madeira estala e chia. “O que podemos fazer com relação a isso, Kay?” “Diga a Dinwiddie para manter a boca fechada.” “O Senhor Manchete?” Ele dá um sorriso torto. “Que foi muito enfático ao observar que há quem pense que Jamestown foi palco do crime de ódio original — contra os nativos americanos?” “Bem, acho que também é muito odioso matar, escalpelar e deixar as pessoas sem comer até morrerem. Parece que sempre houve muito ódio desde o começo dos tempos. Não seria eu quem iria usar o termo ‘crime de ódio’, governador. Não está em nenhum formulário que eu preencha, em nenhum quadradinho que eu tique numa certidão de óbito. Como o senhor sabe muito bem, quem usa esse rótulo é a promotoria, ou os investigadores, não a legista.” “E qual é sua opinião?” Conto a ele sobre o segundo corpo encontrado em Richmond no final da tarde. Preocupa-me que as mortes estejam relacionadas. “Com base em quê?” Seu charuto queima em um cinzeiro. Ele esfrega o rosto e massageia as têmporas como se estivesse com dor de cabeça. “Eles devem ter sido amarrados”, respondo. “E há queimaduras.” “Queimaduras? Mas o primeiro cara estava num incêndio. Por que o segundo tem queimaduras?” “Suspeito de tortura.” “Gay?” “Nenhuma evidência disso na segunda vítima. Mas não podemos descartar.” “Sabemos quem ele é ou se é daqui?” “Por enquanto não. Nenhuma das vítimas tem objetos pessoais.” “O que sugere que alguém que está envolvido não quer que sejam identificados. Ou roubo. Ou as duas coisas.” “Possivelmente.” “Me conte mais sobre as queimaduras”, diz o governador. Descrevo-as. Menciono o caso que Berger teve em Nova York, e as ansiedades do governador se tornam mais palpáveis. A irritação aparece em seu rosto. “Esse tipo de especulação não pode sair desta sala”, ele diz. “A última coisa de que precisamos é mais uma ligação com Nova York . Só faltava essa!”
“Não há nenhuma evidência de uma ligação, a menos que alguém simplesmente tenha tirado a idéia do noticiário”, respondo. “Aliás, não posso dizer com certeza que uma pistola de ar quente foi usada nos casos aqui.” “Você não acha um pouco estranho que os assassinatos de Chandonne tenham uma ligação com Nova York? Então o julgamento é mudado para lá. Agora, de repente, temos dois assassinatos aqui que são semelhantes a outro em Nova York?” “E, é estranho. Governador, o que posso dizer com certeza é que não tenho nenhuma intenção de tornar os relatórios de autópsia um elemento importante para alimentar as agendas políticas de outras pessoas. Vou, como sempre, me ater aos fatos e evitar especular. Sugiro que pensemos em termos de administrar e não de suprimir.” “Droga. Vai ser um inferno”, ele murmura em meio a uma nuvem de fumaça. “Espero que não”, digo a ele. “E seu caso? O lobisomem francês, como algumas pessoas o estão chamando?” Mitchell finalmente chega a isso. “O que tudo isso vai fazer com você, humm?” Ele se senta outra vez e me lança um de seus olhares mais sérios. Bebo meu uísque, imaginando como contar a ele. Não há realmente nenhuma maneira graciosa de dizer. “O que vai fazer comigo?” Sorrio pesarosamente. “Deve ser horrível. Estou contente de você ter apanhado o filho-da-mãe.” Lágrimas brilham em seus olhos, e ele logo desvia o olhar. Mitchell é outra vez o promotor. Estamos à vontade. Somos velhos colegas, velhos amigos. Fico tocada, muito tocada, e ao mesmo tempo deprimida. O passado é passado. E Mitchell é o governador. Provavelmente vai para Washington. Eu sou a legista-chefe da Virgínia e ele é meu chefe. Estou prestes a contar a ele que tenho de renunciar a meu cargo de chefe. “Não acho que seja do meu interesse nem do interesse do governo que eu continue a ocupar meu cargo.” Pronto. Falei. Ele apenas me olha. “Vou apresentar isso mais formalmente, é claro, por escrito. Mas já tomei a decisão. Vou me demitir no dia 1o de janeiro. Claro que vou ficar enquanto o senhor precisar de mim, enquanto procura meu substituto.” Me pergunto se ele estava esperando por isso. Talvez esteja aliviado. Talvez esteja irritado. “Você não é covarde, Kay”, diz ele. “Isso é uma coisa que você nunca foi. Não deixe que idiotas a intimidem, droga.” “Não estou renunciando a minha profissão. Apenas mudando os limites. Ninguém está me intimidando.” “Ah, sim, limites”, observa o governador, recostando-se nas almofadas e me estudando. “Dá a impressão de que você vai começar a trabalhar para quem pagar mais.” “Por favor.” Nós dois temos a mesma aversão por especialistas cuja escolha de que lado representar se baseia em dinheiro, não em justiça. “Você sabe o que eu quero dizer.” Ele reacende seu charuto e olha para o vazio, já maquinando um novo plano. Posso ver sua mente funcionando.
“Vou trabalhar como contratada”, digo. “Mas nunca vou me vender. Na verdade, a primeira coisa que tenho a fazer não vai me render um tostão, Mike. O caso de Nova York . Tenho de ajudar e vai tomar boa parte do meu tempo.” “Tudo bem. Então é simples. Você vai trabalhar como contratada, Kay, e o governo estadual vai ser seu primeiro cliente. Vamos contratá-la como chefe interina até que haja uma melhor solução para a Virgínia. Espero que seus preços sejam razoáveis”, ele brinca. Isso não é absolutamente o que eu esperava ouvir. “Você parece surpresa”, ele observa. “E estou.” “Por quê?” “Talvez Buford Righter possa explicar”, começo a dizer, e minha indignação cresce de novo. “Temos duas mulheres assassinadas de forma horrenda nesta cidade e, não importa o motivo, não acho que seja certo que o assassino delas esteja agora em Nova York. Não posso evitar, Mike. Sinto que a culpa é minha. Sinto que comprometi os casos aqui porque Chandonne veio atrás de mim. Tenho a sensação de que me tornei um fardo.” “Ah, Buford”, Mitchell comenta num tom afável. “Bem, ele é um cara bastante bom, mas um promotor estadual repugnante, Kay. E não acho que deixar Nova York ficar com Chandonne seja uma idéia assim tão ruim, à luz das circunstâncias.” Suas palavras têm o peso de muitas considerações, e suspeito que o modo como os europeus reagiriam se a Virgínia executasse um francês não é a menor delas, e a Virgínia é conhecida pelo número de pessoas que condena à morte todos os anos. Faço autópsias de cada uma delas. Conheço muito bem as estatísticas. “Até eu ficaria um pouco confuso sobre como lidar com esse caso”, Mitchell acrescenta com uma pausa pensada. Tenho a sensação de que o céu está prestes a cair. Os segredos crepitam como eletricidade estática, mas não há sentido em tentar sondá-los. O governador Mitchell não será persuadido a fornecer nenhuma informação que não esteja disposto a dar. “Tente não tomar tudo isso como algo pessoal, Kay”, ele aconselha. “Eu apóio você. E vou continuar a fazê-lo. Trabalhei com você muito tempo e a conheço.” “Todos dizem para eu não tomar isso como coisa pessoal.” Sorrio um pouco. A sensação agourenta se reforça. Ele diz que vai continuar a me apoiar, como se estivesse sugerindo que há razões pelas quais não deveria fazê-lo. “Edith, meus filhos, minha equipe, todos me dizem a mesma coisa”, diz ele. “E eu ainda tomo as coisas pessoalmente. Apenas não deixo transparecer que faço isso.” “Então você não teve nada a ver com Berger — com essa notável mudança de foro, por assim dizer?”, tenho de perguntar. Ele afina a ponta da cinza, rolando lentamente o charuto, soltando baforadas, ganhando tempo. Ele teve algo a ver com isso. Teve tudo a ver com isso, estou convencida. “Ela é realmente boa, Kay.” Sua não-resposta é uma resposta. Aceito isso. Resisto a forçar a sondar. Apenas pergunto como exatamente ele a conheceu.
“Bem, você sabe que nós dois cursamos direito na Universidade da Virgínia”, diz ele. “Então, quando eu era secretário de Justiça, tive um caso. Você deve se lembrar, pois teve a ver com seu departamento. A socialite de Nova York que fez um enorme seguro de vida para o marido um mês antes de o assassinar em um hotel em Fairfax. Ela tentou apresentar a coisa como um suicídio a bala.” Eu me lembro muito bem. Depois ela moveu contra mim e ao meu escritório uma ação, acusando-nos de desonestidade, entre outras coisas, por supostamente fazer um conluio com a seguradora para falsificar registros de forma que nenhuma indenização lhe fosse paga. “Berger se envolveu porque acabou vindo à tona que o primeiro marido da mulher havia morrido em circunstâncias suspeitas em Nova York alguns anos antes”, diz Mitchell. “Parece que ele era um homem mais velho, com a saúde debilitada, e se afogou na banheira apenas um mês antes de a esposa fazer um enorme seguro de vida. O legista encontrou escoriações que poderiam indicar uma luta, e manteve o caso em suspenso por muito tempo, esperando que a investigação trouxesse algo conclusivo. Mas não trouxe. O gabinete do promotor distrital simplesmente não conseguiu provar o caso. Então a mulher também processa a legista de lá. Por calúnia, coação emocional, absurdos desse tipo. Eu tive inúmeras conversas com o pessoal de lá, principalmente o promotor distrital, mas também com Jaime. Comparando anotações.” “Suponho que os federais podem tentar fazer Chandonne se entusiasmar e denunciar sua família criminosa. Vamos fazer um trato”, digo. “E depois?” “Acho que você pode apostar nisso”, Mitchell replica solenemente. “Então é isso.” Agora sei. “Ele tem a garantia de não pegar a pena de morte? É esse o trato.” “Morgenthau não é conhecido por condenar as pessoas à morte”, diz ele. “Mas eu sou. Eu sou um macaco velho durão.” O governador acabou de me dar pistas sobre as negociações que ocorreram. Os federais trabalham com Chandonne. Em troca, Chandonne é julgado em Nova York, onde tem a garantia de que não receberá a pena de morte. Não importa o que aconteça, o governador Mitchell não parece mal. Não é mais problema dele. Não é mais problema da Virgínia. Não vamos provocar um incidente internacional enfiando uma agulha no braço de Chandonne. “É uma pena”, resumo. “Não que eu acredite em pena capital, Mike, mas é uma pena que a política tenha entrado nisso. Acabo de ouvir várias horas gravadas de mentiras de Chandonne. Ele não vai ajudar ninguém a pegar sua família. Nunca. E posso dizer mais uma coisa, se ele terminar em Kirby ou em Bellevue, vai conseguir um jeito de sair de lá. Vai matar de novo. Então, por um lado, estou contente de que haja uma excelente promotora no caso, e não Righter. Righter é um covarde. Mas, por outro lado, sinto que tenhamos perdido o controle sobre Chandonne.” Mitchell se inclina para a frente e apóia as mãos nos joelhos, uma posição que indica que nossa conversa terminou. Ele não vai discutir mais a questão comigo, e isso também diz muito. “Foi bom você ter vindo, Kay”, diz ele. E sustenta meu olhar. Essa é sua maneira de dizer “Não faça perguntas”.
(*) Os irmãos Linwood e James Briley foram executados na Virgínia em outubro de 1984 e abril de 1985, respectivamente. Linwood assassinou um discjóquei em 1979 durante uma bebedeira. Na mesma ocasião, James estuprou e matou uma mulher grávida de oito meses e o filho dela, de cinco anos. Em 1984, os irmãos Briley lideraram uma fuga de cinco prisioneiros condenados à morte, a maior da história dos Estados Unidos, mas foram recapturados dezenove dias depois. (N. T.)
19
Aaron me conduz de volta à escada e me dá um leve sorriso quando abre a porta da frente. O guarda acena para mim quando me dirijo para os portões. Tenho a sensação de fechamento, de finalidade, enquanto sigo para a Capitol Square, a mansão desaparecendo em meu retrovisor. Deixei alguma coisa. Acabo de sair de minha vida tal como a conheci até hoje, e descobri uma ruga de desconfiança em relação a um homem que sempre admirei tanto. Não, não acho que Mitchell tenha feito nada errado. Mas sei que ele não esteve francamente comigo, não por inteiro. Ele é diretamente responsável por Chandonne ter saído de nossa jurisdição, e a razão é política, não de justiça. Sinto isso. Estou certa disso. Mike Mitchell não é mais o promotor. É o governador. Por que eu deveria me surpreender? Que diabo eu esperava? O centro da cidade parece hostil e estranho enquanto sigo pela rua 8 para pegar a via expressa. Observo os rostos de pessoas que passam dirigindo por mim e fico maravilhada com o fato de que virtualmente nenhuma delas está presente no momento que ocupam. Elas dirigem e olham no espelho, pegam alguma coisa no assento ou mexem no rádio, ou falam ao telefone ou com seus passageiros. Não percebem a estranha que as observa. Vejo rostos com tanta clareza que sou capaz de determinar se eles são belos ou atraentes, se têm cicatrizes de acne ou dentes bons. Percebo que há pelo menos uma grande diferença entre assassinos e suas vítimas: os assassinos estão presentes. Eles vivem o momento por inteiro, observando seu entorno, intensamente conscientes de cada detalhe e de como ele pode beneficiá-los ou comprometê-los. Observam os estranhos. Fixam-se em um rosto e decidem seguir a pessoa até em casa. Imagino se é assim que os dois jovens, meus últimos pacientes, foram escolhidos. Me pergunto com que tipo de predador estou lidando aqui. Me pergunto qual é a verdadeira agenda do governador, para esperar para falar comigo esta noite, e por que ele e a primeira-dama perguntaram sobre o caso do condado de James City. Alguma coisa está acontecendo. Alguma coisa ruim. Ligo para o telefone da minha casa e há sete mensagens. Três são de Lucy. Ela não me diz o que quer, só que está me procurando. Tento falar com ela no celular, e quando ela responde sinto a tensão. Sinto que não está sozinha. “Está tudo bem?”, pergunto. Ela hesita. “Tia Kay, eu gostaria de levar Teun comigo.” “Teun está em Richmond?”, digo, surpresa. “Podemos estar na casa de Anna em uns quinze minutos”, diz Lucy. Os sinais chegam rápidos e fortes. Não posso identificar o que é que está batendo em meu subconsciente, tentando me fazer reconhecer uma verdade muito importante. Qual é ela, droga? Minha perturbação é tanta que estou sobressaltada e confusa. Um motorista atrás de mim toca a buzina e meu coração salta. Arfo. Percebo que o farol abriu. A lua está incompleta e encoberta por nuvens, o rio James é uma planície de escuridão embaixo da ponte Huguenot
quando passo em direção ao sul da cidade. Estaciono diante casa de Anna, atrás da Suburban de Lucy, e instantaneamente a porta da frente da casa se abre. Parece que Lucy e Teun acabaram de chegar. Elas e Anna estão no vestíbulo, sob o candelabro de cristal cintilante. Os olhos de McGovern encontram os meus e ela sorri de forma tranqüilizadora, como se para me fazer saber que eu ficarei bem. Ela cortou o cabelo curto e ainda é uma mulher muito atraente, esbelta e com jeito de garota numa legging preta e um casaco de couro comprido. Nós nos abraçamos, e me lembro de que ela é firme e controlada mas gentil. Estou contente, imensamente contente, de vê-la. “Entrem, entrem”, diz Anna. “Feliz Natal, quase. Não é engraçado?” Mas sua expressão é tudo menos engraçada. Seu rosto está carregado, os olhos cansados de preocupação e fadiga. Ela me pega olhando-a e tenta sorrir. Vamos todas para a cozinha ao mesmo tempo. Anna está perguntando sobre bebidas e salgadinhos. Todas comeram? Lucy e Teun querem passar a noite aqui? Ninguém deve ficar em um hotel na noite de Natal — isso seria um crime. Ela fala sem parar, e suas mãos estão trêmulas quando pega garrafas em um armário, enfileirando uísques e outras bebidas. Agora os sinais estão chegando tão rápido que mal ouço o que qualquer uma delas está dizendo. Então o momento de reconhecimento explode em minha psique. Eu o capto. A verdade me perpassa em uma corrente sacolejante enquanto Anna me serve um scotch. Eu disse a Berger que não tenho nenhum segredo profundo, obscuro. O que quis dizer é que sempre fui reservada. Não conto às pessoas nada que possa ser usado contra mim. Sou cuidadosa por natureza. Mas ultimamente tenho conversado com Anna. Passei horas explorando os recantos mais profundos de minha vida. Contei a ela coisas que nem sei ao certo se já sabia, e nunca paguei por essas sessões. Elas não estão protegidas pela confidencialidade que há entre médico e paciente. Rocky Caggiano poderia intimar Anna a depor, e quando olho para ela agora suponho que foi isso que ocorreu. Pego o copo de scotch dela, nossos olhares fixos uma na outra. “Aconteceu alguma coisa”, digo. Ela desvia o olhar. Imagino o cenário. Berger vai invalidar a intimação. É ridículo. Caggiano está me assediando, tentando me intimidar, pura e simplesmente, e isso não vai funcionar. Dane-se ele. Tenho tudo imaginado e resolvido, rápido assim, porque sou uma profissional em evitar qualquer verdade que impacte diretamente meu íntimo, meu bem-estar, meus sentimentos. “Me conte, Anna”, digo. O silêncio enche a cozinha. Lucy e McGovern pararam de falar. Lucy se aproxima e me abraça. “Nós estamos aqui para apoiá-la”, diz ela. “Pode apostar.” McGovern faz para mim um sinal de positivo. Seus esforços para me tranqüilizar deixam no ar uma onda de presságio enquanto elas desaparecem na sala de estar. Anna olha para mim, e é a primeira vez que vejo pelo menos uma sugestão de lágrimas em minha estóica amiga austríaca. “Fiz uma coisa terrível, Kay.” Ela pigarreia e, com o semblante inexpressivo, enche outro copo com gelo da geladeira. Deixa cair um cubo de gelo no chão e ele escorrega até atrás da lata de lixo. “Um auxiliar do xerife. Não pude acreditar quando a campainha de meu portão tocou hoje de manhã. E
lá está um auxiliar com uma intimação. Fazer isso comigo em casa é muito ruim. Sempre recebo intimações em meu consultório. Isso não é incomum, sou chamada como especialista para testemunhar de vez em quando, como você sabe. Não posso acreditar que ele fez isso comigo. Eu confiei nele.” Dúvida. A negação me estremece. O primeiro sopro de medo atinge meu sistema nervoso central. “Quem fez isso com você?”, digo. “Rocky?” “Quem?” Ela parece desconcertada. “Ah, meu Deus”, murmuro. “Ah, meu Deus.” Apóio-me no balcão. Isso não tem nada a ver com Chandonne. Não pode ser. Se Caggiano não intimou Anna, só há uma outra possibilidade, e não é Berger. Claro, a promotoria não teria nenhuma razão para falar com Anna. Penso no estranho telefonema de meu banco, na mensagem da AT&T, no comportamento de Righter e no olhar em seu rosto quando ele me viu na caminhonete de Marino no sábado à noite. Repasso a repentina necessidade do governador de me ver, seu jeito evasivo, até o humor azedo de Marino e o modo como ele tem me evitado, e considero mais uma vez a repentina perda de cabelo de Jack e seus temores de assumir a chefia. Tudo se encaixa e forma uma composição inacreditável. Estou com problemas. Querido Deus, estou com problemas sérios. Minhas mãos começam a tremer. Anna está divagando, gaguejando, tropeçando nas palavras como se tivesse recorrido involuntariamente à língua que aprendeu primeiro na vida, que não é inglês. Ela luta. Confirma o que agora sou forçada a suspeitar. Anna foi intimada por um grande júri especial. Um grande júri especial de Richmond está me investigando para ver se há evidências suficientes para me indiciar pelo assassinato de Diane Bray. Anna foi usada, ela diz. Montaram uma cilada para ela. “Quem montou a cilada? Righter? Buford está por trás disso?”, pergunto. Anna confirma com a cabeça. “Nunca vou perdoá-lo. Eu disse a ele”, ela jura. Vamos para a sala de estar, onde pego um telefone sem fio em um elegante suporte de teixo. “Você sabe que não precisa me contar tudo isso, Anna.” Tento o número da casa de Marino. Estou determinada a me manter notavelmente calma. “Tenho certeza de que Buford não ia gostar disso. Então talvez você não deva falar comigo.” “Eu não me importo com o que devo ou não contar. No momento em que recebi a intimação, Buford me ligou e explicou o que precisava de mim. Chamei Lucy imediatamente.” Anna continua a falar num inglês quebrado enquanto olha com uma expressão vazia para McGovern. Parece ocorrer a Anna que ela não tem a menor idéia de quem é McGovern ou de por que ela está em sua casa. “A que hora o auxiliar apareceu em sua casa com a intimação?”, pergunto a ela. O telefone de Marino cai direto no correio de voz. “Droga”, murmuro. Ele está ao telefone. Deixo uma mensagem pedindo que ligue para mim. É urgente. “Mais ou menos às dez da manhã de hoje”, responde Anna. “Interessante”, digo. “Mais ou menos na mesma hora em que Chandonne foi transferido para Nova York. E depois do serviço em memória de Bray, quando encontrei Berger pela primeira vez.” “Em sua mente, como tudo isso se liga?” McGovern está ouvindo
atentamente, com os olhos astutos e experientes cravados em mim. Ela foi uma das investigadoras de incêndios certificadas mais talentosas do ATF, antes de ser promovida à supervisão pelas mesmas pessoas que acabariam levando-a a se demitir. “Não sei ao certo”, respondo. “A não ser que Berger estava interessada em ver quem apareceria no serviço em memória de Bray. Agora estou me perguntando se ela queria ver se eu iria, e se isso pode indicar que ela sabe que estou sendo investigada e está me checando por conta própria.” O telefone de Anna toca. “Residência Zenner”, respondo. “O que está acontecendo?”, Marino diz em voz alta, acima do som da televisão. “Estou só começando a ter idéia”, respondo. Ele percebe instantaneamente pelo meu tom que não deve fazer perguntas, mas pegar sua caminhonete e vir para cá agora mesmo. Chegou a hora da verdade. Chega de jogos e segredos, digo a ele. Esperamos por ele em frente à lareira na sala de estar de Anna, onde há uma árvore coberta de lâmpadas brancas e festões e decorada com animais de vidro e frutas de madeira, cheia de presentes embaixo. Repasso em silêncio cada palavra que disse a Anna, tentando me lembrar do que ela certamente se lembrará quando Righter lhe perguntar, sob juramento, a meu respeito diante de jurados, também sob juramento, que vão decidir se devo ser julgada por assassinato. Meu coração é agarrado por dedos frios de medo bruto, mas pareço razoável quando falo. Por fora estou tranqüila quando Anna entra em detalhes sobre como caiu na cilada. Começou quando Righter entrou em contato com ela na terça-feira, 14 de dezembro.


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Ela gasta uns bons quinze minutos explicando que Righter ligou como amigo, um amigo preocupado. As pessoas estavam falando a meu respeito. Ele tinha ouvido coisas que achava que devia verificar, e sabia que eu e Anna éramos próximas. “Isso não está fazendo nenhum sentido”, diz Lucy. “Diane Bray não tinha nem sido assassinada ainda. Por que Righter estava falando com Anna tão cedo?” “Não consigo entender”, concorda Teun. “Alguma coisa realmente fede nisso.” Ela e Lucy estão sentadas no chão diante da lareira. Estou em minha cadeira de balanço usual, e Anna, no divã, sentada bem ereta. “Quando Righter ligou no dia 14, o que exatamente ele disse a você?”, pergunto a Anna. “Como ele iniciou a conversa?” Ela me olha nos olhos. “Havia preocupação com sua saúde mental. Essa foi a primeira coisa que ele disse.” Simplesmente concordo com a cabeça. Não estou ofendida. Embora seja verdade que oscilei muito depois que Benton foi assassinado, nunca estive mentalmente doente. Estou segura de minha sanidade e de minha capacidade de raciocinar e pensar. Só sou culpada de ter fugido da dor. “Sei que não lidei bem com a morte de Benton”, admito. “Como é que alguém consegue lidar bem com uma coisa dessas?”, diz Lucy. “Não, não. Não era isso que Buford queria dizer”, diz Anna.


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“Ele não estava ligando por causa do modo como você administrava a dor, Kay. Estava ligando por causa de Diane Bray, de seu relacionamento com ela.” “Que relacionamento?” No mesmo instante me pergunto se Bray ligou para Righter — mais uma armadilha que ela montou para mim. “Eu mal a conhecia.” Os olhos de Anna estão fixos nos meus, a sombra do fogo oscilando em seu rosto. Fico de novo surpresa ao ver como ela parece velha, como se tivesse envelhecido dez anos em um dia. “Você tinha tido uma série de confrontos com ela. Você me contou isso”, ela replica. “Instigada por ela”, respondo no ato. “Nós não tínhamos um relacionamento pessoal. Nem sequer um relacionamento social.” “Acho que, quando você entra em guerra contra alguém, isso é pessoal. Mesmo pessoas que se odeiam têm um relacionamento pessoal, acho que você entende o que estou dizendo. Certamente, ela havia se tornado muito pessoal em relação a você, Kay. Lançando boatos. Mentindo a seu respeito. Criando uma coluna médica fictícia na internet como se fosse você que a escrevesse, fazendoa de boba e pondo você em dificuldade com o secretário de Segurança Pública e até com o governador.” “Acabo de falar com o governador. Não acho que esteja tendo nenhuma dificuldade com ele.” Digo isso e ao mesmo tempo acho curioso. Se Mitchell sabe que estou sendo investigada por um grande júri especial, e sei que deve saber, então por que ele não aceitou minha demissão e deu graças a Deus por se livrar de mim e da minha vida confusa? “Ela também pôs em risco a carreira de Marino porque ele é seu auxiliar”, continua Anna. O único pensamento que me ocorre é que Marino não gostaria nada de ser chamado de meu auxiliar. Como numa resposta à deixa, o interfone toca, anunciando que ele está no portão da frente. “Sabotando sua carreira, em outras palavras.” Anna se levanta. “Não está correto? Não foi isso que você me contou?” Ela pressiona um botão num console na parede, de repente energizada. A raiva expulsa sua depressão. “Sim? Quem é?”, diz com aspereza ao microfone. “Eu, meu bem.” Os sons rudes de Marino e de sua caminhonete enchem a sala. “Oh, se ele me chamar de meu bem outra vez eu vou matá-lo.” Anna ergue as mãos no ar. Vai até a porta, e então Marino entra na sala. Ele saiu de casa tão depressa que não se preocupou em pegar um casaco, usa só um agasalho de ginástica cinza e tênis. Fica embasbacado quando vê McGovern sentada ao pé da lareira, olhando para ele de sua posição indígena no chão. “Macacos me mordam!”, diz Marino. “Quem é vivo sempre aparece.” “Também acho muito bom ver você, Marino”, replica McGovern. “Alguém quer me contar que diabo está acontecendo?” Ele puxa uma poltrona para mais perto da lareira e se senta, olhando de um rosto para outro, tentando ler a situação, fingindo-se de tonto, como se já não soubesse. Acredito que ele sabe. Ah, sim, agora está claro por que ele tem agido de forma tão...

 

 

 

                                                                  

 

                                                   

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