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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A VALSA INACABADA / Catherine Clement
A VALSA INACABADA / Catherine Clement

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                                VIENA, FEVEREIRO DE 1874

Não está a pensar nisso a sério! Perturbada, Ida juntara as mãos, como para uma inútil prece. Era um desejo louco, perigoso, uma ideia capaz de destruir as vidas de ambas... Não podia permitir que o fizesse. Era preciso impedi-la a todo o custo. Um dever.

De braços cruzados, virando desdenhosamente a cabecinha coroada de escuras tranças, a jovem senhora olhava-a do alto da sua elevada estatura, em ar de desafio. O vestido que acabava de tirar jazia ainda numa poltrona, para onde atirara descuidadamente as pérolas, o diadema e o leque de plumas; em cima do corpo tinha apenas a ligeira armação de verga, as meias e a camisa. O sarau fora longo, difícil e solene; Ida estava a cair de sono e ela!... Incorrigível. Ida sabia de cor o que significava aquele arco colérico e negro, quando as sobrancelhas se uniam, espessas, voluntariosas, indomáveis. Inútil insistir. Mas o caso era demasiado grave; Ida arriscou.

- Então, aquele fiacre que espera à porta, é para nos levar ao Grande Baile! Um baile de máscaras! Um sítio mal afamado, onde os homens têm o direito de... Com todas as mulheres! Já pensou nisso? É uma loucura!

- E porquê? - disse ela fazendo rodar graciosamente a crinolina. - Não me acha capaz de jogar o jogo das aparências? Pensa talvez que sou demasiado velha?

- Não, não! - protestou a pobre Ida - mas vão reconhecê-la, não a vão deixar passar, vão...

- O quê? Vão entregar-me à polícia? Havia de ter graça! Vamos, basta de hesitações. Traga os dominós do guarda-roupa. O vermelho e o amarelo. Ah! E um vestido preto, o que está à esquerda, mesmo ao fundo. Com o requife de cetim branco.

- Um simples vestido preto? - espantou-se Ida. - Mas...

- Mas seremos burguesas, minha cara! - replicou ela numa gargalhada. Ida encolheu os ombros, desenlaçou as mãos e contemplou-as sem dizer nada. Não se mexer. Fazer de morta.

- Vamos! - repetiu a jovem senhora batendo o pé. - Vai ser preciso ir lá eu? Condessa, a senhora cansa-me!

Ida levantou-se reticente. O seu dever ordenava-lhe também que obedecesse. “A menos que lhe apresente a minha demissão imediatamente, aqui e agora, - cogitou ela abrindo o guarda-roupa. - Mas não, isso não a deteria. Iria sozinha e pronto. Sem acompanhante! Estaria perdida. E preciso protegê-la mesmo contra a sua vontade. Ela sabe disso, a maldita, estou nas mãos dela...”

A jovem senhora sentou-se no leito e alisou a colcha. Ida tinha de ceder à sua vontade... Tanto pior para ela! Jamais haveria uma ocasião tão propícia. Pensavam que estava já deitada, os criados tinham ido embora, o marido estava longe, na Rússia...

- Que fique onde está, bem longe! - resmungou fazendo uma careta ao retrato da parede. - Só uma vez. Apenas uma vez pequenina, mínima...

Desdobrou as longas pernas, ergueu-se de um salto e, de braços pousados nos ombros como se se abraçasse ternamente, começou a rodopiar sobre si própria inclinando a cabeça, valsando com um par invisível. Os pesados cabelos entrançados caíram-lhe pelas costas, até à curvatura dos rins, no lugar onde se prendiam os saiotes de cambraia. Por cima do ombro, lobrigou o seu reflexo num espelho, imobilizou-se.

As mãos desceram até à cintura, desapertaram a crinolina... Reteve a respiração, por sobre o espartilho muito justo, os dedos quase se tocavam. Virou-se para examinar o cabelo e sorriu tristemente à sua imagem.

- Para quê... Trinta e seis anos e nem um cabelo branco! E para quem estes cinquenta centímetros de cintura? Ninguém aproveita, excepto tu, minha filha. Sim, minha linda, és a mais perfeita, minha beleza, meu encanto, sim...

E arredondando os lábios, depôs um beijo no espelho.

- Muito bem - murmurou apagando a marca com a ponta dos dedos.

- Veremos se tudo isto interessa ao comum dos mortais. Mas que está Ida a fazer? Está a demorar muito! Oh! Vou-me zangar...

Abria energicamente a porta do guarda-roupa quando a infeliz Ida apareceu, ajoujada de pesadas sedas brocadas e de rosto fechado.

- Finalmente! Começava a desesperar! - exclamou a jovem senhora.

- Não faça essa cara... Dir-se-ia que está de luto. Já agora, vá buscar a peruca que comprei em Buda. A loura, a que tem reflexos arruivados.

- Com o dominó vermelho? - perguntou Ida. - Fica feio.

- Pois bem! Levarei o amarelo, e ficarei parecida com um papagaio. Ponha-o em cima da cama. Devagar! Vai estragar tudo. É uma criada de quarto detestável, minha cara. Não! Não diga nada, eu bem sei, santo Deus, que não está a desempenhar as suas funções de leitora. Ajude-me a vestir... Isso. Agora, desdobre-me esse manto amarelo...

De lábios franzidos, mãos hesitantes, Ida virava a cara enquanto estendia as mangas abertas do dominó de brocado. Aquela maneira de falar não pressagiava nada de bom.

- Pare de tremer, condessa - intimou de súbito a jovem senhora em voz cortante. - Não vai começar a chorar só porque vamos ao baile de máscaras! Ora vamos, seja um pouco razoável: como hei-de eu conhecer o povo se não mantenho o meu anonimato?

- O povo - cortou a outra com um risinho. - Pois pensa realmente que o vai encontrar lá? O povo? Ele não vai lá estar.

- Sempre há-de estar mais lá do que aqui - respondeu a jovem senhora secamente. - Estou farta de ouvir falar dos povos do Império sem nunca verificar o que têm eles na cabeça. Nos gabinetes dos ministérios, são constante-mente preparadas guerras contra uns infelizes, uns fracos que fogem, que são oprimidos, e eu não hei-de saber o que pensa o povo? De qualquer modo, não volto atrás.

- Pensa que não sei? - murmurou Ida ajeitando as pregas do dominó.

- Mas se formos apanhadas, eu serei despedida, exilada! E a mim que vão julgar. E através de mim, a Hungria, o meu país!

- Nunca na vida! - cantarolou ela mirando-se no espelho. - Exilada? Opor-me-ei. Arranje-me umas luvas. Na cómoda, ali. Isso mesmo. As gavetas estão abertas. .

Ida estendeu-lhe um par de luvas de pelica branca, com uma coroa bordada.

- Brancas? - espantou-se a jovem senhora. - Não fica bem. Na terceira gaveta, de renda preta.

- Vão ver-lhe as mãos! - indignou-se Ida.

- Espero bem que sim! Não se vai a um baile de máscaras com luvas de pelica branca. E depois a coroa, Ida, identificar-me-iam à primeira vista. A peruca está na parte de cima do guarda-roupa, por baixo das capelinas.

Empoleirada numa cadeira, Ida extraiu uma cascata de caracóis ruivos que lhe escaparam e caíram no tapete. Imóvel no dominó, a jovem senhora sorriu maldosamente.

- A senhora não tem boas mãos, condessa - admoestou ela num tom trocista. - Meu Deus, como está desajeitada hoje...

De lágrimas nos olhos, Ida apanhou a peruca, e estendeu-lha silenciosamente.

- Agora é enrolar o meu cabelo. Ajude-me. Eu trato das madeixas da frente, torça as tranças como puder. Os ganchos. Em cima da mesa. Dê-mos.

Num gesto expedito, espetou os ganchos e tufou os caracóis postiços.

- As tranças, debaixo da peruca - ordenou. - Experimente pôr agora os ganchos... Com cuidado! Picou-me a orelha! Que imbecil!

Ida quedou-se de repente e começou a chorar sem ruído. A jovem senhora lobrigou as lágrimas no espelho e, de gancho na ponta dos dedos, girou sobre si mesma, agilmente.

- Meu Deus! - exclamou abraçando-a. - Ida, minha querida, não chore... É por minha causa? Não fiz de propósito, sabe como às vezes me exalto... Não deve levar-me a mal. Minha querida, minha amiga, bem sabe como gosto de si...

Com a cabeça apoiada no jovem ombro, de braços caídos, Ida soluçava sem se conter.

- Isso, minha linda - murmurou afagando-lhe os cabelos castanhos. - Não vou aborrecê-la mais, acabou. Eu trato de tudo. Dê-me os seus lábios com muito juizinho.

Ida ergueu a cabeça, e estendeu a boca, obediente. A jovem senhora deu-lhe um beijo rápido e afastou-se, abanando-se com a mão.

- Bom! - fez ela num tom jovial. - Não temos tempo para mais brincadeiras. Agora é a sua vez, minha cara. Eu vou ser a sua camareira, não, não proteste, eu é que faço.

E pegando no pesado dominó carmesim com surpreendente vigor, estendeu as mangas à companheira.

- Enfie a mão... Baixe o braço... Dê-me o outro... Pronto - disse satisfeita, ajeitando as pregas à roda de uma Ida ruborizada. - Agora, o mais importante.

Em grandes passadas, dirigiu-se ao toucador, pegou numa borla, mergulhou-a numa caixa de pó de arroz e passou-a cuidadosamente pelas faces de Ida.

- Ficou um pouco branco - observou, recuando para melhor avaliar a sua obra. - E ainda se notam vestígios de lágrimas. Daqui a cinco minutos, volto a pôr. Mas não quero mais prantos, por favor. Onde estão os ganchos? Esta minha peruca não está bem.

Com uma rapidez espantosa, meteu as frondosas tranças debaixo da cabeleira ruiva e espetou uma floresta de ganchos para a prender. Depois de tudo bem arranjado, abanou a cabeça e olhou-se ao espelho.

- Isto repuxa-me - queixou-se, fazendo uma careta. - Estes cabelos são o meu martírio. É bastante feio este tom de ruivo! Não achas, Ida?

- Mesmo assim, a senhora é tão linda - murmurou Ida.

- Eu sei! - disse ela batendo o pé. - Mas estou suficientemente irreconhecível?

- Quer dizer... - hesitou Ida. - A mim parece-me que a reconheceria debaixo de qualquer disfarce.

- Não me tranquilizas nada - replicou ela despeitada. - Traz-me a máscara e veremos.

Quando a renda preta caiu sobre o queixo redondo, a jovem senhora fechou o dominó com um movimento brusco e calçou lentamente as luvas. Depois, deitando a cabeça para trás, começou a rir às gargalhadas. Ida juntou as mãos num movimento de espanto.

- Nunca a ouvi rir assim!

- Diz antes que nunca me ouviste rir, minha cara - volveu ela suspirando. - Ninguém me ouviu rir. Nem sequer tu.

“Ninguém me conhece, pensava ela, com raiva. Nem sequer tu, a minha confidente, a minha amiga mais chegada. Ríspida, desdenhosa, eu? Vamos ver.”

- O que é que nos falta? - perguntou, brusca. - Uma bolsa... Lenço... Aqui está ele. Um leque. O mais simples, em tafetá preto, sem enfeites. Mas realmente...

Correu a um pequeno móvel, abriu uma gaveta e, de mãos enluvadas, procurou durante algum tempo.

- Cá está! - bradou, triunfante.

- Uma das suas estrelas de diamantes? São célebres no^nundo inteiro... Tem a certeza que...

- Se só levar uma, isolada, não a vão reconhecer. E olha - acrescentou prendendo graciosamente a estrela nos caracóis ruivos - pelo menos disfarça este horror...

- Não o nego - reconheceu Ida num tom afectado. - Mas é imprudente.

- Vamos embora, Ida - replicou a jovem senhora encolhendo' os ombros. Ida pegara na bolsa, verificara o lenço, um leque pendia-lhe do punho enluvado. Mas não arredava pé.

- Então! Não mandaste o fiacre embora, pois não? Estrangulava-te! Com um gesto receoso, Ida apontou a borla pousada no toucador.

- O pó de arroz, nos vestígios, o meu rosto - balbuciou. - A senhora... quero dizer Sua...

- Chiu... - fez a jovem pondo um dedo nos lábios da companheira.

- Tinha-me esquecido.

Em toques leves, empoou-lhe o nariz, as faces, o queixo, e afagou-lhe a fronte.

- Sou odiosa - e sacudiu a luva de renda onde o pó deixara uma pálida nuvem. - Uma menina mimada. Não percebo como me suportam. És um anjo. Já não se nota nada, nem uma lágrima!

E com um gesto rápido, baixou o capuz sobre a peruca ruiva.

- Quando chegarmos ao Baile, procuramos uma mesa no primeiro balcão - disse ela gravemente. - Não falas com ninguém.

- Não - replicou Ida, dócil.

- Estaremos de regresso antes da meia-noite.

- Sim, sim! Por favor.

- Não deixas ninguém aproximar-se de mim, prometes?

- Ninguém.

- Dinheiro! Tens florins?

- Na minha bolsa - respondeu Ida num suspiro.

- Já me esquecia - sobressaltou-se a jovem tirando as luvas. - A minha aliança.

- Não vai tirar a aliança! - assustou-se a companheira.

- Já está - disse ela mostrando o anelar. - Esta noite sou viúva.

- É um gesto sacrílego!

- Se Deus existe, há-de perdoar-me. Aliás não vai acontecer nada.

- Oxalá que não - replicou Ida. - Os terroristas na Rússia...

- Está calada! Vais atrair a má sorte com essas ideias negras! E vais-me chamar Gabriela, como a pobre Schmid, se ela soubesse... Repete.

- Gabriela - fez Ida em voz sumida.

- Vais tratar-me por tu. Experimenta.

- Tu... Tu és a Gabriela - tentou Ida timidamente. - O nome da criada de quarto... É difícil.

- Não é nada! - gritou ela impaciente. - Eu não te trato por tu?

- A senhora não é a mesma coisa - balbuciou Ida com desespero.

- Eu disse o tratamento por tu! - e o leque deu uma pancada seca no braço da companheira.

- Eu... eu juro que não torno a fazer - replicou Ida desorientada.

- Está bem. Que Deus nos proteja - suspirou a jovem fazendo rapidamente o sinal da cruz. - A hora da verdade, minha cara. Não vou ser reconhecida. Viva la liberta.!

E agarrando na mão da companheira, precipitou-se para fora do quarto em desordem.

“Vou finalmente rir, mostrar os meus dentes feios, os meus dentes amarelos, e ninguém dará por nada...”, cantarolava ela descendo as escadas.

A ele fora a mãe quem o preparara. Enfim, se é que isso se pode dizer a respeito de um rapagão de vinte e seis anos; se fosse apenas uma questão de arranjar o fraque para um baile normal, a boa senhora Taschnik ter-se-ia contentado com a verificação do colarinho, dos botões do colete e do verniz dos sapatos de cerimónia. Mas tratava-se de um Baile de Máscaras onde o filho ia pela primeira vez.

Ele consultara o melhor amigo, Willibald Strummacher, vienense de gema, que o aconselhara a ocultar o rosto sob um disfarce, e a senhora Taschnik confeccionara com amor uma touca onde a máscara do seu bem-amado Franz se adaptaria. De brim preto, bem ajustada ao crânio, com, solidamente cosidos dos lados, dois bicos de veludo debruados a pele de esquilo, o gorro era suposto representar a cabeça de um morcego. A escolha não tinha nada a ver com o amor por esses pequenos mamíferos, mas sim com a paixão pela música.

A senhora Taschnik dedicava a Johann Strauss - pai - um verdadeiro culto. Ele morrera havia mais de vinte anos; mas, por um milagroso acaso, Johann Strauss, filho, fixara-se mesmo ao lado da casa dos Taschnik, em Hietzing, junto à floresta vienense; no jardim, a apanhar cerejas, podia-se ouvir o compositor ao piano enquanto sua mulher, Jetty, se exercitava no canto das melodias que, em breve, seriam valsas no Prater. Por razões que nada tinham a ver com a música mas sim com a política, a senhora Taschnik não gostava de Strauss filho, esse valdevinos que fora visto armado de espingarda nas barricadas, durante a revolução de 1848. A senhora Taschnik era pelos conservadores, e portanto pelo falecido Johann Strauss pai; ela lá tinha as suas razões.

A despeito dos protestos maternos, a loucura da valsa também arrebatara Franz. O jovem apaixonara-se pelas melodias que o vento espalhava ao acaso das folhas das árvores; travara mesmo conhecimento com o ilustre maestro que preparava, para a Primavera, a sua primeira opereta, tirada de uma comédia francesa, Xe éveiãon, que o mago da música preferira intitular O Morcego.

Franz conseguira convencer a mãe a celebrar antecipadamente esse notável evento que poria fim aos infortúnios do ano de 1873. O maldito ano da Exposição universal, por uma bizarra artimanha da razão, suscitara, não só a epidemia de cólera, como a terrível Sexta-Feira Negra que, num dia de craque na Bolsa, arruinara os burgueses de Viena.

O Morcego de Johann Strauss lavaria as duas máculas; era o que se podia ler nas gazetas, e os Vienenses ficaram logo convencidos.

- Mas eu não pareço mais um gato? -perguntou o jovem, plantado diante do toucador da mãe.

- Põe a capa, Franzi - assegurou a senhora Taschnik. - Basta-te agitá-la com os teus longos braços para ficares tal-qual um morcego. E depois os gatos não têm tanto pêlo nas orelhas. Agora o bigode.

Franz pegou na rolha queimada que a mãe lhe estendia, e guarneceu de negro a parte de cima dos seus lábios juvenis. A mãe achou que não estava famoso. Pegou na rolha e, pondo-se em bicos de pés, quis tentar desenhar uns bigodes finos; mas Franz media quase dois metros e ela, decididamente, era muito baixinha; teria sido preciso um banco, e o resultado era ainda pior; com um pano limparam tudo, enervaram-se, e depois, acabando por admitir que o óptimo é inimigo do bom, concluíram que um traço negro bastaria. Finalmente, por comodidade, decidiram acrescentar uma mascarilha branca.

O rapaz nunca conhecera o pai. Gustav Taschnik morrera por causa de uma bala perdida durante a insurreição de 1848, quando, jovem membro da Guarda-Nacional fiel ao governo imperial, tentava proteger o Palácio Imperial do assalto de operários e estudantes.

Fora um mês após os acontecimentos de Outubro; o conde Latour, ministro da Guerra, fora linchado. Haviam-no enforcado no seu belo uniforme vermelho e branco, a Revolução atingira os subúrbios, incendiara a igreja dos Agostinhos e uma parte do palácio, o Império tremera, depois recuperara o equilíbrio. Nessa altura, em Novembro, o exército imperial cercava a cidade que já reocupara em parte. Os insurrectos ainda esperavam auxílio das tropas recrutadas pelo partido Magiar, e as barricadas aguentavam-se; o pai de Franz, homem sossegado e conciliador, quisera convencê-los a renderem-se. Virara a espingarda ao contrário levantando a coronha e avançara a passos lentos, sozinho; a bala varara-lhe a cabeça, e a barricada uivara de alegria. Dois soldados morávios entregaram o corpo à mulher que esperava um filho.

Os insurrectos acabaram por se render, o Imperador Ferdinando abdicara e o jovem arquiduque Francisco José sucedera-lhe. O pequeno Taschnik nascera, e a mãe dera-lhe o nome de Francisco, em homenagem ao novo soberano. Taschnik pai, dizia ela com frequência, morrera gratuitamente, e a simples palavra “proletário” fazia-a desfalecer. “Ordem, negócios e valsa, é do que precisamos”, repetia para quem a quisesse ouvir. A senhora Taschnik não se podia queixar.

O marechal Radetzky restabelecera a ordem à força de execuções sumárias, de flagelações públicas e de torturas; ao arrancar, na capital do Império, com a construção dos enormes edifícios do Ring, o Imperador dera novo impulso aos negócios; a guerra entre a Prússia e a França fechara a Bolsa de Paris e elevara a de Viena aos píncaros da especulação, pelo menos até à Sexta-Feira Negra; a valsa, essa, nunca parara. E a senhora Taschnik dedicava ao falecido Johann Strauss uma tão grande adoração porque ele fora fiel às tropas imperiais em 1848. E fizera mais: para homenagear o velho marechal, compusera a sua obra-prima, marcha deRadetzky.

Mas a senhora Taschnik via-se na obrigação de admitir a derrota do seu compositor preferido. Assim era; Viena, de curta memória, dedicava a Strauss filho uma adoração sem limites, à qual não era indicado resistir muito tempo. E se a senhora Taschnik resmungava em público, para marcar as suas preferências conservadoras, perdoava secretamente ao jovem Strauss o facto de ele ter seguido os amotinados, pois a valsa era um valor seguro, e um filho Strauss, apesar de insurrecto vermelho, sempre era a valsa.

Não se passava, no entanto, um único dia sem que ela lembrasse ao filho o sacrifício paterno.

- Se o teu pai te visse - suspirou estendendo-lhe a capa. - Aqueles malditos operários dos subúrbios... E pensar que ele nem chegou a saber que tinha um rapaz...

O jovem gigante beijou-lhe a testa e partiu. Adorava a mãe, mas achava-a um pouco rígida, às vezes até francamente reaccionária, como se dizia em Viena nos círculos progressistas; e perguntava a si próprio muitas vezes se seu pai tomara realmente o partido das tropas imperiais. A bem dizer, ele não aderia à piedosa versão materna.

Pois tinha uma suspeita: era possível que o pai tivesse virado e levantado no ar a coronha da espingarda. Mas não fora abatido pelas barricadas; conseguira chegar junto dos insurrectos que o haviam acolhido com gritos de alegria; em seguida, uma bala atingira-o, uma bala de má sina, uma bala entre os dois campos. Para fundamentar esta hipótese, o jovem Franz tinha apenas uma frágil prova, uma carta encontrada entre os papéis do pai e assinada por um certo Karl Marx, um agitador alemão que, em Agosto de 1848, falara perante a Associação dos operários. O pai de Franz, marceneiro de profissão, assistira ao meeting, ou ajudara a organizá-lo, e o alemão agradecia-lhe em duas palavras. Não era grande coisa; era todavia o bastante para semear dúvidas no espírito do jovem que guardava a epístola de Marx bem guardadinha numa caixa de folha, como uma carta de amor.

Duma coisa tinha a certeza: se fosse ele teria estado com os estudantes nas barricadas. Como Johann Strauss filho, autor da Valsa da Liberdade, e da Marcha da "Revolução. Mas sobre isso, nem pensar em dizer uma palavra que fosse à senhora Taschnik.

- Que bom filho - disse ela, depois de ele ter fechado devagar a porta.

 

 

 

 

                                               O GRANDE BAILE DE MÁSCARAS

 

                 O DOMINÓ AMARELO

Gostaria que me deixassem Em repouso, enfim tranquila Pois na verdade apenas sou Um ser humano como toda a gente.

Elisabeth

Ofiacre parara diante dos degraus do edifício; quando as portas se abriam, deixavam passar confusas lufadas de música que logo desapareciam. A jovem senhora de dominó amarelo foi a primeira a descer, e aspirou longamente o ar gelado.

- Como é bom, o frio - murmurou para si mesma. - É a primeira vez que em Viena posso respirar o ar da cidade; sinto-me como se andasse à caça. O ar penetrante, o céu limpo, só me faltam o cavalo e os cães. Ida!

- Realmente, estes fiacres são desconfortáveis - resmungou Ida debatendo-se no tafetá do seu dominó; - prefiro o seu cabriole.

- O teu cabriole!

- Mas não está aqui ninguém!

- Dei-lhe uma ordem, condessa - replicou a jovem.

E agarrando solidamente a companheira por um braço, dirigiu-se para o edifício iluminado. Junto aos degraus, fez uma pausa e virou a cabeça, como se hesitasse.

- Quer regressar à Hof... a casa, minha senhora? - apressou-se logo Ida a dizer.

- Nunca na vida! É apenas... Todas estas luzes, este barulho, esta multidão...

- É seguramente um grande baile - insinuou Ida, pérfida. - Há-de estar muita gente. Mas não era o que pretendia?

23

O dominó amarelo apertou os lábios sem responder e subiu os degraus num esvoaçar de sedas douradas.

- Não tenho medo. Não insistas, Ida. Ah!

Um homem que descia roçara por ela a sua capa, sem reparar. Petrificada, levou a mão à face, como se ele a tivesse esbofeteado. Ida precipitou-se.

- Não é nada - murmurou a jovem a custo. - Simples inadvertência. O pobre homem não sabia... Avancemos.

Mas os dançarinos entravam e saíam em desordem, empurrando-se alegremente. As pessoas riam, transpiravam, enxugavam a testa com a mão, e vinham respirar o ar frio para refrescar; as mulheres, por vezes, soltavam risadas, os homens apertavam-nas contra si, beijavam-nas no pescoço, faziam-lhes cócegas amarrotando-lhes as rendas. Das bocas saíam hálitos brumosos, e as gargalhadas ecoavam no frio como tiros de espingarda.

A jovem senhora teve um arrepio, avistou um par de namorados abraçados, parou de novo, lançou em volta um olhar desorientado, e retomou a marcha tremendo de cólera.

- Hei-de conseguir - silvou.

- Não está acostumada - apiedou-se Ida. - Evidentemente, sem protocolo...

- Queres fazer o favor de te calares?! Vais fazer com que sejamos apanhadas. Segura a porta para eu poder passar. E renuncia a essa forma de tratamento, pela última vez...

Penetraram no grande vestíbulo, no meio do burburinho e dos tecidos amarrotados. Por todo o lado, deslizavam mulheres em dominó, de capuz na cabeça, com o rosto emoldurado de rendas, e os olhos pisados pelo veludo das mascarilhas. Cor de malva ou de rosa, escarlates ou azuis, desdobravam-se as sedas leves das capas italianas que as dissimulavam inteiramente. Em torno delas rodopiavam os homens, vestidos de preto, de fraque, e de gravata branca. Todos iguais, cingidos por coletes de fustão, com as luvas imaculadas na mão. Um exército de formigas disposto em volta de asas borboleteantes que, presas de pânico ou de alegria, esvoaçavam em desordem ao som de músicas desvairadas.

O dominó amarelo deteve-se de chofre, e desdobrou o leque diante do rosto. - Avancemos - disse a companheira. - Se ficarmos aqui far-nos-emos notadas.

- Espera um pouco - murmurou ela. - Tenho medo.

- Que lhe disse eu? Está bem arranjada! Quer ir-se embora?

- Nunca! - bradou a jovem.

- Ah! Nunca deve dizer nunca, linda dama - exclamou um fraque que surgiu da sombra. - Querem companhia? Aqui estou eu!

- Obrigada, não vale a pena - respondeu Ida - nós vamos subir.

- Mas não sozinhas - disse o homem fazendo deslizar a mão pelo tafetá vermelho. - Dê-me o braço.

- Basta, senhor! - indignou-se Ida. - Eu não o conheço.

- Olá! Vocês estão a ouvir? - gritou o homem. - Aqui está um dominó zangado, e sabem porquê? Porque não me conhece! Estão a chegar da província ou quê?

Como caídos do céu de tectos pintados, três fraques rodearam-nas, de braços abertos para lhes barrarem o caminho.

- Vamos explicar-lhes os usos e costumes - começou o mais alto. - O Grande Baile de Máscaras, minhas senhoras! Ninguém conhece ninguém, e justamente...

- Trava-se conhecimento com os desconhecidos, nisso consiste todo o prazer! - continuou o segundo.

- E só no fim, de madrugada, se tira a máscara...

- Entretanto não se diz nada, e é deixarmo-nos ir muito simplesmente, minhas pombinhas...

- Pombinhas! - bradou Ida horrorizada. - Como se atreve?

- Lindas pombinhas, sim - gritou o mais alto dos fraques, enquanto o terceiro, o que não dissera nada, agitou os braços e, de olhos semicerrados, começou a soltar uma espécie de arrulhos.

- Vá lá, um gesto simpático, minha linda - motejou o mais baixo em ar sedutor. - Gusti! A grande é de bom tamanho para ti, a do dominó amarelo!

- Um beijo por favor, princesa... - fez o homem rodopiando. - Ninguém morre disso!

Petrificada, a desconhecida crispava-se sobre o leque, os homens tinham começado a andar à roda, à roda como grandes pássaros, pegas ou gralhas, pensou ela, de bico aberto, a grasnar, oprimiam-na, uma mão passou-lhe diante dos olhos que ela fechou bruscamente, tinham chegado mais homens, os risos aproximavam-se, tão fortes que ela tapou os ouvidos com as palmas das luvas pretas, o leque caiu.

- Deixem-na sossegada! - gritou uma voz.

- Mais um peralvilho que nos vem estragar a festa! - rosnou descontente o fraque mais alto.

O círculo alargou-se; os olhares dirigiram-se para o importuno. Envolto numa capa, o homem, um verdadeiro gigante, permanecia perfeitamente imóvel. Trazia na cabeça um estranho gorro, com orelhinhas de veludo debruadas a pele, e no nariz, uma simples mascarilha branca. Cautelosamente, avançou. Os outros recuaram: ele era muito bem constituído, muito forte.

- Aterrorizar mulheres, meus senhores, não está certo - disse ele curvando a sua imensa estatura para apanhar o leque.

- Mas que fanfarrão vem a ser este? - murmurou o primeiro fraque. - E até se mascar ou!

Mas ele, sem se preocupar com os murmúrios, abriu caminho por entre o grupo e estendeu o leque à mulher do dominó amarelo.

- Minha senhora, considere-se libertada - disse ele inclinando-se. Num gesto rápido, ela recuperou o objecto e desdobrou-o. O leque agitou- se ligeiramente, depois descaiu como um pássaro que se pousa.

- O senhor é um gentleman - disse ela estendendo a mão enluvada.

O gigante agarrou delicadamente a mão estendida e apertou-a com mil precauções. O dominó amarelo soltou um gritinho de surpresa, e o leque voltou a tapar-lhe o rosto.

- Quer que a acompanhe? -propôs ele, curvando amavelmente as orelhas ridículas.

- Não vale a pena!

- Sim, sim! Acompanhe-nos, senhor - exclamou Ida ao mesmo tempo.

Furiosa, a jovem deu, com o leque, uma pequena pancada no braço da companheira. Ida calou-se. Desconcertado, o gigante hesitou e permaneceu de braços caídos. Num abrir e fechar de olhos, a jovem arrastou o dominó vermelho, fugiram as duas. Um dançarino deu uma gargalhada.

- É para aprenderes a mostrar-te galante! Escaparam-te por entre os dedos, meu velho! Ouve lá, porque é que te mascaraste quando o regulamento do Baile proíbe tal coisa?

- Proíbe? Como assim? - tartamudeou o gigante, desconcertado. - Mas tinham-me dito... Willibald recomendara-me...

- O teu Willy fez pouco de ti, foi o que foi! - disse um deles com uma estrondosa risada. - Olha à tua volta: és o único!

Embaraçado, o gigante tirou a máscara suspirando, e desfez a touca que atirou para um canto. Era um homem muito jovem, quase uma criança, com um belo rosto um pouco corado, e grandes olhos espantados e azuis.

- Pois é verdade, fui enganado - admitiu despenteando o cabelo escuro. - Até calha bem, estava cheio de calor. Elas desapareceram... Ainda assim vocês estavam a exagerar!

- Ora! Duas que se perdem, dez que se encontram... Vá, camarada, vem connosco. Pelo menos vais divertir-te um bocado.

Os dois dominós passaram pelos estreitos corredores onde se cruzavam casais que se acotovelavam; as mãos enluvadas apertavam-se para não se perderem, os capuzes de seda escorregavam pelas espáduas nuas, pondo a descoberto penteados meio desfeitos, olhos húmidos, suores ligeiros na base da nuca. A confusão era infernal; Ida agarrou o pulso do dominó amarelo e apertou-o com tanta força que quase o esmagava. Deixava-se levar sem resistir. Os cotovelos desajeitados dos dançarinos mais baixos bateram-lhe nas ancas, ela gritou com pouca força, um gnomo voltou-se e pisou-lhe os dedos do pé, uma rapariga gorda tropeçou, torceu o tornozelo e conseguiu recuperar o equilíbrio agarrando-se-lhe ao braço, por acaso, sem pedir desculpas. Era tarde de mais para recuar, abriu-se uma porta, empurraram-nas pela abertura. Ofuscadas pela luz, detiveram-se no limiar da Sala Dourada, sãs e salvas.

A orquestra começara as valsas, e os dançarinos rodopiavam como loucos, chocando uns com os outros e soltando exclamações alegres. Por vezes, um par perdia o equilíbrio e caía no chão, numa embrulhada de crinolinas e de saiotes de onde sobressaíam, enredados, as meias brancas e as calças pretas. Era uma fúria, uma violência desenfreada, uma guerra para se conservarem em pé; as mulheres fechavam os olhos, os homens lançavam para um lado e para o outro olhares aflitos para evitar colisões, e perdia-se o fôlego. A valsa parecia querer terminar, e quando se pensava que estava no fim, recomeçava sorrateiramente mais uma vertigem, outra e mais outra, até que finalmente tudo parava. Então as dançarinas cambaleavam soltando profundos suspiros, e os respectivos pares davam-lhes palmadinhas nas mãos com um ar orgulhoso e aliviado.

- Como eles dançam... - murmurou a jovem espantada.

- Tem vazão, é horrível - gemeu Ida. - Quando penso nos nossos bailes...

- Eu disse que achava horrível? Divertem-se...

- Mas que vulgaridade! - continuou Ida. - Repare como transpiram! E a senhora que detesta isso! Certamente não vai dançar!

- Com quem, minha pobre Ida? - disse ela tristemente. - Olha, vamos arranjar uma mesa na galeria, estaremos melhor para podermos observar.

Subir a estreita escada foi uma empresa difícil; as pessoas agarravam-se, empurravam-se, roçavam umas pelas outras, e o dominó amarelo tinha movimentos de recuo, como se de cada uma das vezes a ferissem. As mulheres atiravam-se, erguendo afoitamente as saias, e os homens voltavam-se à vista das meias brancas, lançando uns aos outros em voz alta comentários que fizeram corar a jovem. Cingida no dominó, ela apertava com uma mão a mascarilha contra o rosto e, com a outra, protegia-se com o leque. Em cada degrau, encolhia-se junto ao corrimão e debalde esperava um momento mais calmo; depois, passado um instante, arremetia, de cabeça baixa, para o degrau seguinte. Um grupo de rapazes que descia rodeou-a; debateu-se em silêncio e conseguiu libertar-se. Houve uma aberta súbita na multidão, que ela aproveitou logo, erguendo, por seu turno, o dominó amarelo e as saias pretas do vestido, e correndo pelos degraus acima.

- Uf! - suspirou ela quando chegaram ao cimo das escadas. - Realmente, não estou habituada. Que exercício!

- Ainda é preciso encontrar uma mesa... - gemeu Ida abrindo a porta de um camarote de onde saíam risos.

Cheio. O segundo também. Por sorte, acabaram por encontrar uma mesa minúscula no camarote mais recuado. Assim que se sentaram, a jovem mergulhou o rosto nas palmas das mãos e soltou um suspiro de cortar o coração.

Ida desabotoou as luvas, secretamente radiante. Por aquele andar, ela iria cansar-se depressa, e a aventura não duraria muito.

- O seu escarpim... O direito, já está cheio de pó - constatou ela. - Devem tê-la pisado. Um sapato estragado. ^ - Não tem importância nenhuma. Obrigam-me a dá-los todos os dias aos pobres.

- Porque recusou a oferta daquele jovem? - recomeçou Ida com uma pontinha de irritação. - Ele ter-nos-ia protegido daquela confusão!

- Ele não beijou a mão que lhe estendi - cortou a jovem em tom desdenhoso. - Apertou-a! É um rústico.

- Um simples adolescente, não conhece os usos e costumes! E que nos livrou de trabalhos! A senhora é muito injusta!

- Ah! Cala-te! Não pensei. E tu, estás a esquecer-te de me tratares por tu. Ida corou de embaraço e quis fazer um esforço.

- Queres que vá buscar-te uma bebida? - perguntou ela em voz sumida. - Está calor...

- Porque não? - respondeu negligentemente a jovem. - Não te demores muito. E depois olha! Não, vai antes buscar-me esse rapaz. Ele é tão alto que não hás-de ter dificuldade em encontrá-lo. Tens razão, fui muito indelicada. Dir-lhe-ei qualquer coisa, isso distrair-me-á. Vai!

Ida lá foi à procura de má vontade. O dominó amarelo abriu o leque e contemplou os dançarinos que começavam de novo a valsar. Contou dez dominós carmesins, vinte e cinco cor de tinta e já todos sujos, três violeta, dois cinzentos, dos quais um cinzento-pérola. Bem depressa se fartou: ao nono dominó verde, parou. Não tinha visto nenhum dominó amarelo.

Cansada de esticar o pescoço para observar os dançarinos, escolheu contemplar o tecto, onde as ninfas rosadas se deitavam em torno de um Baco gorducho; coroado de parras e de cachos, de taça na mão, ele fitava vagamente um amontoado de nuvens bojudas, e o céu outonal, no horizonte, de um azul imperturbável. As loucas companheiras do deus da vinha eram desencorajadoras. Habitualmente, para se distrair nas cerimónias oficiais, entregava-se a uma contagem minuciosa dos objectos decorativos. Deteve-se nas cariátides douradas - quinze; nas estátuas de mármore imaculado, que enlanguesciam por cima das portas majestosas, umas armadas de foices, as outras de louros, duas a duas, eternamente frente a frente - doze; os brancos medalhões esculpidos, talvez sessenta, inúmeros, e não conseguiu dissipar a melancolia. Incongruentes, os gritos, os risos e os violinos perturbavam a serenidade dos deuses e das deusas.

Em seguida examinou detalhadamente os enormes lustres um a um. Contou dez, dos quais um começava a apagar-se.

Depois foi a vez dos ramos de jarros e de lírios, célebres em toda a cidade, e que eram mandados vir, com elevados custos, da Riviera.

- É cansativo, todo este branco - murmurou a jovem contendo um bocejo por detrás do leque.

Finalmente pensou que ninguém vinha convidá-la para dançar e uma angústia surda começou a roer-lhe o peito.

- Esta falsa cabeleira está talvez de lado... Ou então é este dominó. Que cor absurda! O amarelo não fica bem a ninguém. Se ao menos eu pudesse tirar esta máscara...

Soprou a barba de renda, para tomar um pouco de ar, e começou a rir.

- Aborreço-me! - disse em voz alta. - Que engraçado! Mas que é que procuram todas estas pessoas que parecem divertir-se tanto! E que andará Ida a fazer...

Num gesto rápido, debruçou-se na balaustrada. O dominó vermelho errava por entre a multidão. De súbito, a jovem lobrigou o gigante encostado a uma cariátide. Estava pensativo.

- Ei-lo! E ela não o vê... É certo que ele já não tem a capa... Nem a máscara. Ah! Está melhor, muito melhor. Mas é uma criança! Aposto que tem olhos azuis. A tez um pouco rosada, talvez... Ida! - gritou ela sem se conter agitando o leque. - Ida!

Ida olhou timidamente em volta. O gigante aproximava-se.

- Acho que estão a chamá-la, lá de cima - disse ele baixo apontando para a galeria.

- O senhor? - exclamou Ida aliviada. - Andava precisamente à sua procura. Estão à sua espera. Há quem esteja um pouco entediada e deseje a sua companhia.

- O dominó amarelo? Ora vejam... Que honra! - troçou o jovem. - Como sou bom rapaz, aceito o convite.

Do seu poleiro, o dominó amarelo via-os aproximarem-se; entrincheirado por detrás das nuvens académicas, Baco mirava-a do alto do tecto pintado. O gigante guiava o dominó vermelho como quem guia um cavalo, empurrando, puxando, abrindo caminho; daí a segundos entrariam no camarim, estariam ali, diante dela, seria preciso falar, mostrar-se amável, ficar de pé, sorrir... A jovem virou a cabeça.

- Pronto, aqui está o convidado, filha-anunciou Ida num tom falsamente desenvolto.

Ele não parecia zangado; torcia as luvas, enleado, como um camponês endo-mingado. Numa olhadela rápida, ela passou em revista o fraque impecável, a gravata branca em volta de um colarinho engomado, o colete de fustão, a corrente de ouro do relógio, subiu até à flor da lapela e deteve-se no rosto. Uma curiosa sombra negra manchava-lhe a parte de cima dos lábios, no lugar do bigode.

- Meu caro senhor-começou a jovem abanando-se furiosamente - creio que não lhe agradeci o suficiente. Quer ficar um pouco na nossa companhia?

O gigante ficou estúpido, a olhar para o movimento do leque.

- Então! É surdo ? Convido-o para a minha mesa - disse ela com um gesto gracioso.

Ele sentou-se desajeitadamente e permaneceu calado. A desconhecida falava demasiado bem.

- Já não está mascarado - disse ela à laia de preâmbulo.

- Fiz mal em ter vindo como vim, ao que parece, minha senhora. Um amigo pregou-me uma partida; e eu arranjara-me para um verdadeiro baile de máscaras. Queria vir de morcego...

- Morcego? Ah! Aquelas orelhinhas peludas...

- Pois - disse ele bem-disposto. - Todos aqueles pêlos me faziam muito calor.

- E... por cima do... do lábio, aí... - disse ela contendo o riso, de mão na boca.

- Oh! - bradou ele tirando o lenço. - É um falso bigode feito a carvão. Tinha-me esquecido... Devo estar ridículo! E assim, está melhor?

- De facto melhora a sua aparência - murmurou ela recuperando o fôlego.

- Ainda não tenho bigode. Minha mãe diz que não devo perder a esperança.

- Agora, travemos conhecimento - disse ela apoiando-se familiarmente nos cotovelos em frente dele. - Quem é o senhor?

- A regra não é essa... bela máscara - respondeu ele numa voz hesitante.

- Ninguém diz quem é antes da madrugada, e são... exactamente onze horas - acrescentou tirando o relógio. - Dir-lhe-ei daqui a pouco.

- Que contrariedade! Justamente eu tinha vontade de o conhecer. Abra uma excepção, peço-lhe. Por mim.

- Ao menos, deixe o seu leque descansado... Para eu lhe ver os olhos.

- O leque? - repetiu ela passando-o lentamente diante do rosto do rapaz.

- O leque, mas o leque sou eu, caro senhor. Tem de se habituar.

Ele recuou e, pestanejando, fez um gesto como que a proteger-se.

- Tem medo? - disse a voz trocista. - De um leque?

- É que... A senhora exagera - replicou ele timidamente. - Eu não tenho as suas maneiras, e bem vejo que pertencemos a mundos diferentes. Esse brocado dourado, essas luvas de renda, o seu jeito de manejar o leque tão prontamente...

- Lerias! - disse ela com autoridade. - Apresente-se.

A ordem estalou como uma chicotada, o jovem pestanejou de novo. Inspirou profundamente.

- Mas se lhe estou a dizer que não é costume! - exclamou por fim. - A senhora é teimosa!

- Muito! Vamos, caro senhor...

- Digo-lhe o meu nome se vier dançar - murmurou ele muito depressa.

- Minha senhora! - bradou Ida endireitando-se logo. - Não aceite!

- Minha senhora?

A jovem disfarçou um sorriso. Misturar-se à multidão em delírio, conhecer a embriaguês daquele povo tão alegre, ser finalmente anónima, livre!

- Ao seu dispor, cavalheiro. Não preste atenção à minha amiga; ela tem, por vezes, umas maneiras estranhas.

E levantou-se, revelando a sua elevada estatura. Estupefacto, o jovem olhou aquela mulher alta, cuja cabecinha se endireitava como a de um pássaro, de colo erguido.

- Meu Deus, mas é quase da minha altura!

- Perfeito para dançar - observou ela apresentando-lhe o braço. - Vamos. Mas ele tomou-lhe o cotovelo, por baixo. Ela sobressaltou-se.

- Magoei-a?

- Por baixo não. Mas por cima - respondeu ela, e curvou-lhe o braço com brandura. - Faça o favor.

Ida deixou-se cair pesadamente na cadeira. Valsar com um desconhecido!

O gigante descia a escada com cuidado, afastando os dançarinos com uma mão segura. De vez em quando, voltava-se para o seu par cujo dominó roçava pelos degraus com elegância. Protegida pelo seu guardião acidental, ela descia de um modo soberbo. O pezinho pousava sem hesitar em cada degrau, as pregas de brocado rodeavam-na com um ligeiro rumor de sedas, e ela! De cabeça erguida, o olhar fito no horizonte, dominava os dançarinos, o baile, o mundo inteiro.

“Onde aprendeu ela isto? - cogitava ele. - Oh! Sinto que é uma aventura pouco habitual. Uma condessa, pelo menos. Não se desce uma escada com tanta facilidade sem prática. Deve ser muito bela para se esconder assim...”

Ao chegar à pista, a jovem parou de chofre, como um cavalo mal-ensinado e que se recusa a obedecer. Franz agarrou-a pela cintura; ela soltou um grito de criança.

Ele até valsava bem.

- Não fique crispada - disse-lhe ele rodopiando. - Tenho uma vantagem quando danço. Como sou alto, evito os obstáculos. Olhe, este gordo que vem contra nós sem nos ver, upa! Passou...

Ela cerrava os dentes e olhava para todos os lados, aflita.

- Deixe os olhos sossegados, vai ficar tonta. E os braços... Se os mantém assim tensos, não me responsabilizo pelo que possa acontecer. Sabe que é o cavalheiro que conta na valsa? A dama só tem que se deixar conduzir...

- Pare de me dar lições! - bradou ela, furiosa. - Eu sei valsar!

- Deveras? - e fê-la voltear ainda mais depressa.

As pregas do dominó começaram a esvoaçar, descobrindo o vestido preto e os pezinhos calçados de seda. A jovem fechou os olhos e abandonou-se. O gigante transportava-a ao auge da velocidade e ria cada vez mais. Quando a valsa terminou, os dançarinos tinham uma postura oblíqua, o chão vinha ao encontro dela, os rostos perdiam os contornos, uma sombra negra apertava-a tanto que ela vacilou, quase caiu, e equilibrou-se encostando-se àquele largo ombro.

- Não posso mais... Anda tudo à roda...

- É a valsa, minha senhora - exclamou o seu par estreitando-a contra si.

- Não tenha medo. Respire devagar... Isso.

A jovem recuperou o fôlego e desprendeu-se bruscamente.

- A senhora diz que sabe valsar, mas eu bem vejo que não está habituada.

- Eu não... Não se valsa assim, meu caro senhor! - exclamou ela. - Tão depressa!

- Qual seria o prazer, se assim não fosse? - indagou ele enlaçando-a de novo pela cintura. - Outra vez.

Ela sacudia a cabeça, dizia “não” em voz baixa, mas era tarde de mais.

- Sangue inewnse, do nosso grande Johann Strauss - anunciou o gigante.

- É uma valsa um pouco lenta. Podemos conversar. Chamo-me Franz Taschnik. Queria saber quem eu sou? Já está. E a senhora?

Ela fez de conta que não ouviu, e começou a examiná-lo. Já não tinha a tez avermelhada; e os olhos eram de facto azuis, de um azul ingénuo e terno, escurecido por espantosas pestanas pretas, extremamente bastas, pestanas de mulher. Onde é que ela já vira aquele olhar? Tinha os lábios carnudos, as faces cheias, cabelo preto tão encaracolado que era quase carapinha, a pele clara, um queixo com covinhas de menino; e o sorriso era de uma inocência desarmante. Vista de perto, a pele imberbe conservava ainda uma marcazinha de carvão sob o nariz.

- É austríaco - disse ela triunfalmente.

- Está visto! A senhora não?

- Nasceu em Viena, aposto...

- Perto, em Hietzing, mesmo ao pé das colinas. Mas a senhora não é vienense, bem se vê...

- Como sabe?

- Ora! Uma impressão. Tem os modos de uma rainha que não é de cá. Ela riu, com aquele riso sonoro que Ida não conhecia. Surpreendido, ele afastou-a ligeiramente e quis olhá-la nos olhos, que ela logo desviou.

- Não é o seu riso - murmurou ele. - Não condiz. Apertou-a com um pouco mais de força.

- A senhora cheira bem - constatou ele rodopiando mais depressa.

- Nunca uso perfume! Detesto.

- Então é o seu odor - disse ele inclinando-se-lhe para o pescoço.

- Cheiro a limpo - respondeu ela irritada. - As mulheres não se lavam neste país.

- Ora essa! Que quer dizer? A senhora mete-se todas as manhãs numa tina de água gelada, como a Imperatriz?

Ela abriu a boca, quis responder e calou-se. Ele pensou ter ganho a partida.

- Decididamente, é quase tão alta como eu - disse ele enternecido.

- Ah! E isso desagrada-lhe?

- Não tenho muitas vezes a sorte de valsar com um par à minha altura. De verdade. Principalmente quando a senhora não ri como as outras mulheres.

Ela ergueu as rendas da máscara e sorriu-lhe, sem descerrar os lábios, gravemente.

- Parece-me já a ter visto - resmungou o gigante. - Esse sorriso lembra-me qualquer coisa... Eu conheço-a, de certeza... Diga-me o seu nome.

- Não antes da madrugada...

- Ah! Ele é isso - replicou o jovem fingindo-se zangado. - Pois então, não vai deixar de valsar tão cedo. Fui eu que a achei, fica comigo. Valsaremos até à hora em que todas as máscaras caem. E eu verei então quem a senhora é.

- O senhor está a magoar-me - disse ela friamente. - Quero parar.

- Mas eu não quero - respondeu ele presenteando-a com um sorriso sedutor. - Não estamos a dançar bem? Veja como os seus braços combinam bem com os meus...

Sentiu-a logo retesar-se.

- Por mais que tente, nós fazemos um belo par - murmurou-lhe ele ao ouvido.

E conduziu-a delicadamente, insensivelmente, mais depressa. Ela deixou de resistir. Os lustres multiplicaram-se, as luzes transformaram-se em estrelas, já não sentia nem as pernas nem o corpo, mas apenas uma força que com ela levantava voo, uma energia mais poderosa do que a vontade e que a dobrava como um rebento novo de avelaneira na mata... A orquestra era de uma ternura desconhecida, a música corria-lhe nas veias, o jovem gigante desaparecia numa bruma de felicidade, ela via-lhe apenas os olhos brilhantes e claros esbatidos pela luz, ela era apenas dança, fundia-se na valsa, desfalecia...

Parou tudo. Aturdida, fechou os olhos e agarrou-se à casaca do rapaz num gesto infantil.

- Magnífico - murmurou ele com orgulho. - A isto se chama valsar. Quer beber alguma coisa?

- Oh sim! Um refresco... Tenho sede.

O gigante teve o cuidado de arredondar o braço, e olhou para a mãozinha enluvada que se lhe pousava no punho, levemente.

- Não sei se é o céu que a envia, minha querida - sussurrou ele - ou o diabo. Mas não a largo até à alvorada.

Ela suspirou. Partiria antes do nascer do Sol. A alvorada? Tinha de ver-se livre do rapaz. E perder para sempre a esperança de valsar nos seus braços.

Instalou-a cautelosamente à mesa, diante da qual Ida continuava à espera.

- Até que enfim! - bradou ela. - Estava a ficar preocupada...

- Por causa de uma simples valsa! - disse a jovem desenvolta. - Deverias arriscar-te, minha cara. Trata de arranjar um par, se fazes favor.

O tom não admitia réplica. Ida percebeu que devia obedecer. Lançou um olhar ao jovem, mas, com um gesto, o dominó amarelo deu-lhe a entender que isso nem pensar. Ida suspirou.

- Não conheço ninguém - murmurou.

- Vou tratar do assunto, senhorita Ida - afirmou o gigante com firmeza e desapareceu na multidão.

A jovem abanava-se com gestos lentos.

- Ele não a apertou muito, com aquelas grandes mãos? - quis saber Ida com um ar desconfiado.

- Nem um bocadinho!

- Está muito pensativa - constatou Ida. - O rapaz já está rendido aos seus encantos, é claro!

- Conheces algum homem que me resista? Não duvido que esteja enamorado; aconteceu, pronto.

- Pronto! - repetiu Ida assombrada.

- Olha - atirou a jovem apontando com o leque - ei-lo que volta com o teu par. Desejo-te muitas felicidades.

O gigante puxava pela mão um homem de bastante bom aspecto, e que olhava para as duas mulheres com curiosidade.

- Aqui está... é... Apresento-vos... Enfim, este é o meu amigo Willibald Strummacher, falei-lhe das senhoras, e ele quer conhecer-vos.

- Diz antes que me sentirei muito honrado por conhecer estas senhoras - apressou-se a corrigir Willibald. - E encantado por ser o par de um tão bonito dominó amarelo - acrescentou acercando-se da jovem.

- É a minha amiga Ida que quer dançar, caro senhor. O dominó vermelho.

- Ah sim? - admirou-se Willibald girando sobre os calcanhares. - Pois bem, senhora dona Ida...

Ida fez uma careta, tomou o braço que lhe estendiam, e foi-se embora contrariada.

- O seu amigo é muito bem educado - disse a desconhecida.

- É, não é? - exclamou Franz. - Oh! É de boas famílias; o pai é notário no Tirol, muito rico, e ele tem maneiras... muito boas maneiras. Eu não tenho essa sorte - acrescentou embaraçado.

- Tem sim - suspirou ela.

- Deveras, a senhora não me acha muito desajeitado, pouco expedito?

- inquietou-se o jovem. - Minha mãe está sempre a dizer-me...

- Deixe lá a senhora sua mãe. Não tínhamos falado de um refresco?

- Que estúpido sou! Esqueci-me. Laranjada? Limonada? Ela fez um trejeito de desagrado.

- Então, ponche! Bem estimulante. Vou já. Não me demoro. Olhou-o enquanto ele se afastava evitando os dançarinos que se comprimiam em torno do bufete.

- Um bom rapaz - murmurou - um belo filho da Áustria de coração simples... Como me fez valsar! Ainda estou tonta. Não é compassado como nos nossos bailes, tem vida!

Tirou as luvas num gesto descuidado, e olhou para as mãos. No anelar, a aliança deixara uma ligeira marca mais clara.

Ele regressava, segurando duas taças cheias de um líquido fumegante. Ela enfiou as luvas à pressa.

- Está quente - disse ele pousando-as delicadamente. - Não se queime.

- Fico muito agradecida pelo seu cuidado...

- Como fala bem! - exclamou ele sentando-se na borda da cadeira.

- Beba depressa.

Ela começou a beber aos golinhos, mordendo os lábios.

- Mas este ponche está a escaldar! É forte! O que é que tem dentro?

- Ora! O que põem no ponche! - bradou Franz. - Rum, limão, canela, cravinho e certamente um pouco de scbnaps' para reforçar...

 

1 Aguardente. (N. da T.)

 

- Schnaps - murmurou ela pousando a taça.

- Não gosta? Eu adoro. Bebo à nossa noite. De um trago!

E bebeu, com a cabeça atirada para trás. A jovem não podia desprender os olhos da garganta que entumescia cadenciadamente. Com um dedo, teria podido acariciar a maçã-de-adão saltitante, acompanhar o movimento...

- Agora é a sua vez - disse ele tirando um lenço para limpar os lábios.

- É tão enebriante como a valsa. Experimente...

Ela agarrou na taça, inspirou e bebeu com afoiteza. Os olhos avermelharam-se-lhe, espirrou.

- Ui! - gritou ela abrindo a bolsa. - É forte. Não encontro o lenço.

- Tome - disse ele estendendo-lhe o dele. - Tem os olhos a chorar.

- Não estou a chorar! É este álcool, também. Há muito tempo que não bebia assim.

- Então não é a primeira vez!

- Não, não! Quando eu era pequena, o meu pai dava-me do seu cantil durante os nossos passeios pela montanha. Eu bebia grandes goladas, e ele ria, ria!

- E agora?

- Agora não é possível - disse ela em voz triste.

- E o que dá viver na sociedade - suspirou ele. - Segundo presumo, o seu pai é um homem da terra.

- Pode dizer-se que sim - respondeu ela abrindo o leque para dissimular um sorriso. - Também é músico. Toca muito bem cítara.

- Não se vive sem música. Eu, é violino. Oh! Não sou um virtuoso, mas enfim, toco afinado.

- E toca o quê? - perguntou ela amavelmente.

- Haydn, para trabalhar a sério, Mozart, quando me entusiasmo... Gostaria de encontrar alguém para aprender a tocar as sonatas de Beethoven. Mas o que prefiro acima de tudo, são as valsas do nosso Johann Strauss! - exclamou ele.

- Sou doido por elas.

- Ah sim? - deixou escapar a jovem com enfado. - Não tenho a certeza de adorar a música desse senhor Strauss. Nem a cara dele. Quando ele se empertiga como um galarote endiabrado, com os cabelos frisados e aquele ar estranho...

- Mas em Viena, é um deus!

- Oh! Viena...

- A mais bela cidade do mundo, minha senhora! Aqui vive-se para a música e para a dança como em mais nenhum outro lugar... Olhe para este baile!

Sentiu-a reticente e calou-se.

- A senhora não é de cá... - repetiu.

- O senhor monta? - atirou ela à queima-roupa.

- Se monto? - perguntou o jovem indeciso. - Se subo às montanhas? O leque bateu-lhe no punho.

- Pergunto-lhe se anda a cavalo!

- Ah! Perdão, não tinha percebido - respondeu Franz, envergonhado. - Não, não monto, como a senhora diz. Enfim, de tempos a tempos, em casa de meu tio, no campo.

- Então também não caça - afirmou a desconhecida num tom que não admitia discussão.

- Não gosto de matar os animais, sabe. Oiço os pássaros, vejo correr os coelhos, dou de comer aos pintarroxos no Inverno. E...

Interrompeu-se. Ela já não o ouvia e olhava para outro lado. Inquieto, puxou-lhe pela manga.

- Falo de mais. Minha mãe está sempre a dizer que sou um tagarela. Não sou?

- De todo... Tem uma profissão?

- Sou funcionário público, minha senhora. Escriturário da Corte e do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Acabo de passar no concurso. É uma bonita profissão.

- Ah sim? - suspirou a desconhecida. - Diplomata, então?

- Bem vê que não pertenço à nobreza - corou ele. - Não, estou no departamento dos assuntos ministeriais. Parece que é quase tão bom como a secção diplomática, e é com certeza melhor que a consular. Viaja-se sem sair do mesmo sítio.

- Divertido - atirou ela.

- É muito arrumadinho. Eu gosto da ordem.

- O senhor há-de arrumar-se. E há-de casar - murmurou ela após um silêncio.

Ele não respondeu. Ela tamborilava com os dedos na toalha com uma indiferença calculada, e as rendas da máscara erguiam-se ao ritmo da respiração. Ele sentiu-a terrivelmente triste.

- Com tudo isto, a senhora atormenta-me com perguntas - disse ele com vivacidade - e não me disse de onde era. Olhe, vou tentar adivinhar. É da Baviera.

- Eu! - protestou a desconhecida. - Mas é que a senhora cheira a campo. Os seus cabelos, dir-se-ia, não sei, o aroma do feno acabado de cortar. A região dos lagos, Salzkammergut? Bad Ischl?

- Bad Ischl - repetiu ela com um risinho. - Essa cidadezinha burguêsmente adormecida à beira do rio, com coretos, gerânios nas janelas e mobílias Biedermeyer em todas as casas... Acha realmente que eu tenho um ar Biedermeyer?

- Não gosta? - espantou-se Franz. - Eu adoro Bad Ischl. Aparentemente conhece bem o lugar.

- Oh sim - suspirou a jovem. - Mas não nasci lá.

- Viveu lá. E foi infeliz.

- Não seja indiscreto! - exclamou ela ameaçando-o com o leque. - Passo lá, por vezes, algum tempo, confesso. E aborreço-me horrivelmente. Imagine, as senhoras no passeio, e as polcas, os barcos floridos, as minas de sal que é preciso visitar, e as flores nas varandas, e a cura, a água que é preciso beber ao longo do dia...

- Pois então! Tudo o que eu gosto neste mundo. Minha mãe levou-me lá uma vez. Foi lá que o nosso Imperador ficou noivo, sabia?

- Ora aí está - murmurou ela em surdina.

- Vi a residência da Coroa Dourada - prosseguiu o jovem sem a escutar - as janelas decoradas de estuque branco, o próprio lugar onde ele declarou o seu amor, consegue imaginar? Oh! Que bela casa! E que belo momento deve ter sido!

- Acha? Ela tinha apenas quinze anos e ficou com a vida aprisionada! Lamento-a...

- A senhora tem cada ideia - indignou-se Franz franzindo o sobrolho.

- Porque diz isso?

- Porque... Acho-o muito exagerado.

- E a senhora muito cruel! Quer destruir-me os sonhos? Em Bad Ischl, o ar era leve, tão leve que se respirava... não sei, um pouco de ternura, as brumas nas montanhas eram cinzentas...

- Azuis - corrigiu a jovem. - Em Bad Ischl as montanhas são azuis.

- Eu não dizia? - observou ele triunfalmente.

- Vá lá! Concedo-lhe as montanhas. Mais nada.

- Nem sequer o noivado? Minha mãe comprou o álbum, folheio-o muitas vezes, com os retratos deles, ele fardado de tenente-coronel, e ela de vestido branco com fitas pretas no pescoço... Eu gosto deles, de ambos. Deixe-mos.

- Falemos de outra coisa, está bem? O Imperador não me interessa.

- Se a ouvissem, minha senhora... - disse o jovem respeitosamente.

- Ora! O que é um Imperador? - atirou a desconhecida inclinando-se para ele. - Um funcionariozinho que administra os seus súbditos sem reflectir... Um tirano que não conhece o seu povo! Eu sou pela república.

- Minha senhora! Proíbo-a!

- Proíbe-me? Deveras? Pois bem! Vá buscar a polícia! Olhe, aqueles dois homens sombrios de ar grave, e que andam de um lado para o outro a espiar... Vá ter com eles!

- Mas - perguntou ele desconcertado - quem é afinal a senhora para desafiar o Imperador?

Ela não respondeu e desapertou o casaco dourado. O vestido preto apareceu, e a carne transparente, um pouco brilhante de suor.

- A sua pele... - balbuciou o jovem desorientado.

- E então? - disse ela fitando-o através da máscara.

- É tão branca... Tire a máscara. Por um instante só.

Num gesto rápido, ela levantou a gola do dominó. Franz soltou um fundo suspiro. | - Tudo o que sei é que a senhora não é uma mulher comum - resmungou ele.

- É claro que sou, garanto-lhe. Não tenho um vestidinho preto simples?

- Oh não! Eu bem vi. Os botões são de azeviche. Não sou assim tão estúpido. A senhora não é de Bad Ischl. Não é francesa, pois não?

- E se fosse?

- Não gosto dos Franceses - respondeu o jovem pesaroso. - São os nossos piores inimigos. Piores que os Prussianos.

- A guerra acabou. E o senhor é jovem de mais para ter sido soldado.

- Ter-me-ia batido como um leão!

- Sabe o que é um ferido? - perguntou ela apaixonadamente. - E um grande corpo mole em cima de uma maca, são os pensos amarelos de pus e que exsudam, são gemidos horríveis, bocas torcidas de dor, um fedor intolerável, jovens como o senhor, e chamam pela mãe...

- Como a senhora diz isso...

- ... pernas gangrenadas, ou pernas a menos, tocos ensanguentados envoltos em trapos - continuou ela numa voz febril - e o senhor então gostaria de combater?

- Dir-se-ia... como se... a senhora tivesse estado no campo de batalha - articulou ele com dificuldade.

- Estava no hospital para onde levavam os feridos, depois do horror de Solferino - gritou ela sem se conter. - E não desejo vê-lo a si um dia naquele estado...

- A senhora tratou dos nossos soldados? Ah, muito bem! - exclamou o jovem tomando-lhe as mãos.

Ela arfava, com as duas mãos prisioneiras; ele aproximou os lábios, e tocou-lhe ao de leve nas rendas da máscara.

- Tenha juízo - disse ela recuando imediatamente. - Não se aproveite dos meus feridos.

- Perdoe-me - respondeu ele timidamente. - Não vou aborrecê-la mais. Mas é tão arrebatador...

- O sangue, o pus, arrebatadores? Vá dizer isso aos infelizes que se massacram hoje em dia nos Balcãs... O senhor é uma criança!

- Sou! E como um amputado no cais da estação, grito, e pronto! Importo-me pouco com os Balcãs, sabe? Não tem um pouco de compaixão por mim?

Ela começou a rir, um doce riso contido, abrindo o leque.

- Estamos no baile e eis aqui um jovem encantador, de boa aparência, com um belo futuro pela frente, que dança lindamente e que quer que eu tenha pena dele!

- Ele quer contemplar o rosto da amiga - gemeu ele num tom pueril.

- Posso chamar-lhe minha amiga?

- Porque não?

- Isso quer dizer que voltaremos a ver-nos? - interrogou ele aproximando a cadeira. - Diga-me ao menos o seu nome...

- Vamos dançar - intimou ela levantando-se num esvoaçar de sedas.

- O senhor afinal diz muitos disparates.

- Bom! - murmurou Franz entredentes. - A valsa vai entontecê-la, e eu hei-de arrancar-lhe o nome.

E conduziu-a através da multidão, puxando-a pelo braço. Ela resistia, apanhava as pregas do dominó, sem dizer palavra, e ele ria à gargalhada. Vencida, deixou-se levar. Então ele segurou-a pela cintura, e desceu de escantilhão a escada apertando contra si aquela bela presa sedosa.

- Sou mais forte do que a senhora, apesar de tudo - bradou ele detendo-se bruscamente ao fundo das escadas.

Ela não respondeu.

- Mas tem uns braços notáveis, muito musculosos. Não se faça rogada e ponha-mos gentilmente à volta do pescoço.

- À volta do pescoço? - assustou-se ela. - É muito inconveniente!

- Pois bem, no baile das engomadeiras, dança-se assim. Nunca lá foi? Eu vou lá de vez em quando. Está pronta?

- Como uma lavadeira? Estou! - respondeu ela com determinação.

Quando ele lhe pôs as mãos nas ancas, sentiu-a estremecer. A valsa começava lentamente.

- Não é difícil - disse ela com um riso um pouco forçado. - Mas o senhor está a apertar-me.

- Como posso fazer de outro modo? - resmungou ele. - Este maldito dominó...

- É só por isso?

E afastando-o bruscamente, deixou de repente cair o dominó. A pesada seda estendeu-se no chão. Ela apareceu cingida no vestido preto, tão alta, tão magra que ele abriu os braços.

- A senhora é... A senhora... - Apanhe o dominó - ordenou ela. - E ponha-o onde quiser. Vamos! Os dançarinos em torno deles tropeçavam nas pregas da seda e começavam a pisá-la. Ela bateu-lhe no ombro, impaciente. Ele obedeceu sem protestar, agarrou no dominó, pousou-o na balaustrada de um camarote e ficou desajeitadamente diante dela.

- Vamos! - repetia ela. - Onde estão os seus tão poderosos braços?

- É que... Tem um ar tão frágil - balbuciou.

- Bagatelas! Eu estou à espera, caro senhor.

Então ele atirou-se a ela e agarrou-a com força. A valsa era mais rápida, ela fechou os olhos. Ele apertou-a mais, aproximou a cabeça, ela abandonou-se, sentiu o hálito dele no pescoço, suspirou de bem-estar. O jovem girava com tanta ligeireza que ela deixou de sentir o chão debaixo dos pés. A música fez-se violenta, arrebatada, os dançarinos começaram a soltar gritos selvagens, o baile estava febril; o jovem inclinou a cabeça e segredou ao ouvido.

- Diz-me o teu nome... Ela abanou a cabeça.

- Ema?

- Não digo nada - respondeu ela de olhos fechados.

- Fanny? Gostava tanto... - sussurrou ele ternamente.

- Deixe-me...

A boca dele deslizou um pouco e beijou as rendas.

- Vejo-te os lábios - segredou recuando um pouco. - Pelo menos, sorri para mim!

- Agora não. Dói-me a cabeça...

- És bonita de mais - resmungou. - Não devia ser assim.

E num gesto decidido, desprendendo uma das mãos, levantou as rendas e beijou-a. Ela quis libertar-se, gritou sob o beijo, feroz, de lábios cerrados... Ele recuou a cabeça, não conseguira abrir-lhe a boca.

- Calma... Ninguém foge daqui. Era apenas um beijinho...

- Meu caro senhor! É indigno!

- A valsa está quase a acabar - disse ele abrandando.

E deteve-se delicadamente. Ela conservou os braços à volta do pescoço dele.

- Amo-a - sussurrou ele.

- Agora não... - gemeu ela. - Vou cair...

Respirava com força. Ele inclinou-se para ela e ajeitou-lhe a gola do vestido preto.

- Não está zangada, pois não? - disse em voz rouca.

- Estou!

- Fanny, por favor...

- Mas eu não me chamo Fanny! - gritou, furiosa. - Que maçador que é!

- Vejo que já está melhor. Já não tem a cabeça a andar à roda, está outra vez a ser desagradável...

- Vamos lá para cima, peço-lhe. E traga esse dominó.

- Mas perdoa-me? - murmurou-lhe ao ouvido.

- Veremos; acompanhe-me até à galeria.

- Aonde? - perguntou ele desorientado. - O que é que disse?

- Galeria! - exclamou ela batendo o pé. - Lá acima!

- Ah! - fez ele dando uma palmada na testa. - Ao primeiro andar! Usa cada palavra...

Regressaram ao camarote em silêncio. Ele não ousava tocar-lhe.

- Não estou a ver a Ida - murmurou ela bruscamente.

- Eu vi-a, está a dançar. Também tem direito.

- Mas está a fazer-se tarde - insistiu. - Tenho de ir-me embora...

- Tão cedo? Fanny!

- Outra vez! Vai-me dizer porque gosta tanto desse nome? - exclamou ela irritada.

- É por causa de uma bailarina de antigamente - disse ele a sorrir enlevado - temos o retrato dela lá em casa, chamava-se Fanny Isler, tão bonita de saia branca, com rosas na cabeça...

- Essler - corrigiu a jovem. - Fanny Essler.

- Precisamente, estava a ver se me lembrava bem do nome. Evidentemente a senhora conhece-a...

- Mas não sou nada parecida com ela!

- Tem a mesma altura, os mesmos braços e o mesmo sorriso do retrato. Para mim, vai ser Fanny. Ou então diga-me o seu verdadeiro nome...

- Seja Fanny. Sentemo-nos, está bem?

O leque recomeçou a sua lenta corrida em volta do rosto. Franz já não sabia o que dizer. Uma película de silêncio envolvia-os a ambos, frágil. A desconhecida permanecia imóvel, e o leque parou. Finalmente. h - “A sorte é uma galdéria, uma galdéria sem sentimentos” - citou de súbito o jovem a meia-voz.

- ... “Da fronte afasta-te uma madeixa, dá um furtivo beijo, e depois desaparece” - continuou a desconhecida sem pensar. - Heinrich Heine.

- Como? a senhora conhece Heine?

- É o meu deus! Adoro-o. Mas o senhor também! Nunca pensei - acrescentou ingenuamente.

- E no entanto eu também gosto dele, como a senhora - afirmou o jovem juntando as mãos com fervor. - Aí está um bom poeta!

- Que se exilou em Paris... Um revolucionário! Um judeu inspirado!

- Ah! Agora já sei. A senhora é judia!

- Bem gostaria - volveu ela com um brilho nos olhos. - Mas não tenho essa sorte.

- Defende os judeus... - murmurou ele. - Minha mãe diz, contudo, que esses traficantes, esses intrujões arruinaram Viena desde...

O leque abriu-se de chofre.

- Ah! O senhor é afinal muito estúpido! - exclamou ela. - A senhora sua mãe fala do craque do ano passado, calculo eu? Da Sexta-Feira Negra, da queda da Bolsa, da fuga dos Rothschild? Disparates, caro senhor! Os nossos melhores aliados são os judeus! Caluniam-nos!

- Alto lá! Acalme-se!

- A senhora sua mãe prefere sem dúvida os Alemães, não? - continuou ela enraivecida. - Pois faz muito mal!

- Eu não disse isso! Eu sou liberal, sabia?

- Eu também! - gritou ela, e o leque estalou de novo.

Olhavam-se fixamente, ela arfava, ele contemplava aquela mulher enfurecida, da qual apenas distinguia um olhar negro e brilhante, e que não se assemelhava a nenhuma outra.

- Porquê nós? - murmurou ele de repente.

- E eu sei? - respondeu ela pestanejando. - A sorte não tem sentimentos, afasta uma madeixa...

E, num gesto inesperado, afagou-lhe os cabelos. Ele agarrou-lhe na mão.

- Fale-me da sua bem-amada - murmurou ela retirando a mão.

- Não tenho.

- Mas teve uma bem-amada - insistiu ela. - Perdeu-a, talvez.

- Umas aventuras, não digo que não...

- Conte-me - pediu ela com entusiasmo.

- Mas... oh, nada - gaguejou ele corando. - São coisas que não se dizem...

- Precisamente. E interessante!

- A senhora é muito curiosa! Se eu fizesse o mesmo? É casada?

- Olhe para as minhas mãos - disse ela, tirando as luvas. - Sou viúva.

- E não usa a aliança do seu defunto marido?

- É que... Casaram-me muito cedo - disse ela, embaraçada.

- Ah! - observou gravemente o jovem. - Como a nossa Imperatriz. Por isso é que há pouco estava zangada.

- Pois foi - suspirou ela aliviada.

- E não o amava, tenho a certeza. Eu, por exemplo, logo ao primeiro olhar soube que a...

- Deixe-se de infantilidades - cortou ela.

- É verdade - continuou ele, obstinado - sei que poderia amá-la deveras. Mesmo sem lhe ter visto o rosto. Isso nem se discute.

- Que idade é que tem?

- Vinte e três anos.

Mentira descaradamente. Ela pôs-se a rir deitando a cabeça para trás.

- Não se ria! Era a idade que tinha o nosso Imperador quando se apaixonou.

- Outra vez! - exclamou ela com irritação.

- Há quem diga que me pareço com ele.

Ela deu uma daquelas gargalhadas ruidosas de que ele não gostava.

- Não se ria assim - murmurou. - Faça-me esse favor. Estou a incomodá-la?

- Não, de modo nenhum - respondeu ela pondo-se de novo séria. - Não queria ofendê-lo. Quanto ao Imperador... É verdade que, de longe, o senhor tem os olhos do mesmo azul...

- Está a ver!

- E talvez também a boca...

- Chame-me Franzi - murmurou ele, enlevado.

Ela estremeceu. Franzi! E ele aproximava-se, de olhos ainda mais azuis, com os lindos lábios entreabertos...

- Só o meu nome - suplicava. - Será pedir muito? Um gesto de boa-vontade... Então! Fran-zi. Será assim tão difícil?

Pegara-lhe na mão e não a largava. Ela soltou um gritinho.

- Estás presa - disse ele baixinho. - Chama-me Franzi. É um nome de imperador. Tenho vontade de o ouvir dessa boca invisível. Vá lá...

- Não posso - afirmou ela num tom contundente.

“Como ela fala! - cogitou o jovem. - Dir-se-ia que dá uma ordem a um moço de estrebaria. Uma aristocrata, de certeza. Tenho de tirar isto a limpo.” E apertou-a mais.

Ela quis tirar a mão, torceu o braço em vão, e fez um esgar de dor. Ele resistia. De súbito, com a outra mão, bateu-lhe com o leque, em pleno rosto. Ele parou de rir.

- Ora esta! Vais longe de mais - gritou levantando-se. - Mandas-me procurar no meio da multidão, envias-me a tua acompanhante, pescas-me como se eu fosse um peixe, fico às tuas ordens, queres dançar, dançamos, queres beber e eu corro a buscar ponche, fazes-me perguntas, eu respondo, e é assim que me tratas! Quem pensas que és? A Imperatriz, se calhar?

Ela voltou-se, num movimento tão brusco e tão desesperado que o jovem se deteve, perplexo. A desconhecida mergulhara o rosto nas palmas das mãos nuas.

- Perdoe-me - disse ela em voz abafada, levantando humildemente a cabeça. - Então o senhor chama-se... Franzi?

- Ah! Está melhor-exclamou ele sentando-se outra vez. - Quando quer, é como na valsa, é tão... Não tenho palavras.

- Pois bem, não diga nada. E vamos dançar de novo.

- Só mais um instante - pediu ele. - Se não é Fanny, é Vilma, então? Não?

Não houve resposta. Mas o leque abriu-se docemente, afavelmente.

- Frieda? - insistiu ele.

O leque adejava como uma asa.

- Katinka? Também não? Sissi?

O leque fechou-se com um estalido seco.

- Chamo-me Gabriela - disse a desconhecida num sopro de voz.

- Que distinto! - ironizou o jovem. - Não acredito. Não, o seu verdadeiro nome é certamente Sissi.

- Porquê? - cortou ela.

- Ah! Porque eu acertei - disse ele. - A senhora fez estalar o leque quando eu disse “Sissi”. E aliás parece-se muito com ela.

- Como sabe? Não me viu o rosto. E depois não tenho o cabelo como o dela, sou morena, por ventura?

- Eu estou a ver junto à orelha um lindo caracolinho que nada tem de louro, e aposto que usa peruca.

- De modo nenhum! - afirmou a jovem apalpando o cabelo.

- A senhora tem as costas muito direitas, uma cinta que me cabe nas mãos, e os olhos da cor dos da nossa Imperatriz. Até lhe copiou as estrelas que lhe enfeitam o cabelo, e como não é tão rica como ela, só tem uma, mas que lhe fica tão bem... Oh! sim, a senhora parece-se com ela...

Lentamente, o leque retomou o seu lugar diante da máscara.

- Aí vem a sua amiga. Ela, pelo menos, não está com ar de quem enjeita o divertimento. Repare.

Willibald Strummacher dava o braço a Ida, e ambos riam com gosto.

Willy olhou primeiro um, depois o outro, com perplexidade. Ida sentou-se e parou de rir.

- Vejo que te divertes, Ida - disse a jovem em tom severo.

- Não é proibido - murmurou Ida. - Este senhor dança muito bem, experimentámos tudo. A valsa, a polca... E tu?

- Eu? Eu contentei-me com a valsa.

Franz fez-se vermelho de cólera e virou a cabeça.

- Sabem que está na hora da quadrilha? - interveio Willibald. - Os dançarinos estão a juntar-se...

- A quadrilha? - exclamou a jovem interessada.

- Concede-me a honra de a dançar comigo, minha senhora? - pediu Willibald com ar grave e afectado.

- Sinto-me um pouco fatigada. Mas a minha amiga Ida morre de vontade... Senhor Franz, seja o par da minha amiga na quadrilha. Peço-lhe.

- Achas que sim? - hesitou Ida, inquieta.

- Quero ver-te dançar isso. O senhor... Willibald, não é? Far-me-á companhia.

- Com todo o prazer, minha senhora - disse Willibald, solícito. - Meu caro Franz... Mãos à obra!

O jovem tomou o braço de Ida, suspirando.

- Como é que fazes para ser obedecida, Sissi? Decides tudo, e as pessoas vão atrás...

- Sissi? - murmurou Ida num sopro de voz.

- Este senhor decidiu chamar-me Sissi esta noite - retorquiu precipitadamente o dominó amarelo. - Ele acha que me pareço com a Imperatriz. Não é de morrer a rir?

- Não sou muito bom na quadrilha, previno-a, senhorita Ida - disse o gigante conduzindo o dominó vermelho - mas enfim...

O mestre de cerimónias, cingido numa casaca perfeita, tomara posição diante das longas filas de dançarinos.

“Atenção... - gritou - vamos começar, primeira volta! Para as damas... Reverência. Dar as mãos à inglesa. Balance... À direita. Troca o par! Pro-me-nade! A esquerda... Ba-lan-cé. Virar, as damas dão as mãos!”

A orquestra seguia lenta, e os dançarinos, de testa franzida, atentos para não se enganarem nas figuras. Seguras por dois dançarinos ao mesmo tempo, as mulheres inclinavam-se até ao chão numa profunda vénia que fazia com que as saias dos vestidos parecessem corolas de flores... Franz, de punho na anca, fazia desajeitadamente Ida girar sobre si própria, e o pesado dominó vermelho atrapalhava as raparigas que estavam ao lado dela.

- Ida deveria ter deixado aqui o dominó - murmurou a jovem. - Está a estorvar.

- Ah! Esses dominós - suspirou Willibald chegando a cadeira. - São tão incómodos...

- Mas muito bonitos, não?

- Dignos das grandes damas que as senhoras são. E que querem conhecer os prazeres populares, não é verdade? Não há mal nenhum em querer mudar de ambiente por uma noite. E pode compreender-se que...

- Não se pode compreender nada - cortou ela. - Somos húngaras, estamos em Viena de passagem e é tudo.

- Húngaras... A tua amiga disse-me vagamente isso, de facto - disse ele, pensativo. - Posso dizer-te uma coisa?

- Acho que não - replicou a jovem. - Não estou com disposição para ouvir sermões.

- Mas ainda assim vais fazer o favor de me ouvires - insistiu Willibald. - Vi-te dançar há pouco com o meu amigo...

“Segunda volta! Frente-a-frente... Troca de pares... Meia volta! Dão as mãos à inglesa... Não esquecer o balance... A direita! Promenade... A esquerda!” gritava o mestre de cerimónias, e a longa fila dos dançarinos ondulava sob as suas ordens, desenhando no soalho um volúvel arabesco. A desconhecida agarrou no leque e abriu-o completamente.

- Ele olhava para ti como para uma santa num altar, que eu bem vi - prosseguiu Willibald. - Ele prende-se com facilidade... Tem cuidado.

- Com quê, se faz favor?

- Com ele, minha senhora. Não consigo - disse ele mudando de tom. Ela debruçou-se ostensivamente por cima da balaustrada, e mergulhou na contemplação da quadrilha. A orquestra acelerava e os dançarinos enganavam-se alegremente nas figuras.

- Vão na quinta volta - atirou ela despreocupadamente. - E... Oh! Estou a ver a Ida! Mas está a sair-se muito bem!

- Não desvie o rumo da conversa - resmungou Willibald. - Tenho muita afeição pelo meu amigo Franz.

“Sexta volta - anunciou o mestre de cerimónias. - Mais depressa! Frente-a-frente, promenade, à direita balance, troca o par, mais depressa, em fila, à esquerda, reverência... Cuidado!” Os rapazes começaram a cantar em coro, ao ritmo dos tacões que batiam no chão com estrondo.

- É um vendaval! E magnífico! - exclamou a jovem batendo palmas.

- ... E eu não gostaria que a senhora lhe despedaçasse o coração - continuou Willibald. - Eu estava mesmo atrás quando ele lhe disse que a amava.

Ela virou-se de chofre.

- Ida também? Ela ouviu?

- Ah! Não quer que se saiba! - escarneceu Willibald. - Se ela ouviu? Não sei, minha senhora. Mas eu tenho bom ouvido. Não toque no Franz.

- Até parece que vou devorá-lo! - troçou a jovem. - Não fiz nada de mal...

- É verdade... Mas quando se é da sua estirpe, minha senhora... Ela sobressaltou-se.

- Bem vê - disse ele calmamente. - Franz é um honesto rapaz, muito promissor. Não lhe estrague o futuro com um namoro de uma noite.

- O senhor vai longe de mais - disse ela com frieza. - Nada o autoriza...

- Nada, realmente, minha senhora. Excepto o facto de eu ser mais velho que o meu amigo e de conhecer um pouco a vida. Temos em Viena muitas damas da Corte que...

- Não lhe permito!

- Façamos de conta que eu nada disse, minha senhora.

- Prefiro assim - atirou ela abanando-se com o leque.

A quadrilha parecia que tinha o diabo no corpo. A orquestra ia tão depressa que os dançarinos arfavam. As raparigas perdiam as flores que tinham nos cabelos, os rapazes empurravam-se, e de súbito, ecoaram gritos furiosos. Os dançarinos lançavam-se ao assalto da sala, em hordas desenfreadas, berrando a plenos pulmões.

- Que entusiasmo! - bradou a jovem esquecendo o amuo.

- É o galope - constatou Willibald. - A senhora deve dançar soberba-mente. Mas com uma peruca, evidentemente...

- Uma peruca? - murmurou ela desconcertada.

- Salta à vista que é uma peruca. “

- O senhor ofende-me.

- Mas eu não procuro saber quem a senhora é - insinuou ele. - Não sou tão louco como o meu amigo Franz. Que já morre de amores por si sem a ter visto à luz do dia, e que não se vai recompor!

- Toda a gente se recompõe após esses pequenos desgostos, meu caro senhor - vaticinou ela, mais afável - transformando-os em poemas e conservando deles deliciosas recordações...

O galope convertia-se em balbúrdia. Os dançarinos executavam a última figura da quadrilha, a mais difícil: um atrás do outro, os pares deviam parar para deixarem passar debaixo dos braços erguidos o resto da fila, que galopava até ao ponto em que tinha de se deter, e onde geralmente todos se atrapalhavam. O mestre de cerimónias relançava o galope, depois subitamente dava a ordem de inverter o movimento: “Meia volta!” e lá partiam eles em sentido contrário, aos berros. As raparigas mais animadas rasgavam os saiotes de renda, e os rapazes mais desastrados estatelavam-se de pernas para o ar, traídos pelos sapatos escorregadios.

Finalmente, quando todos os dançarinos estavam caídos no chão, uns em cima dos outros, quando as pernas se emaranhavam e as saias se levantavam, os suspiros encantados sucediam aos berros, e a quadrilha, forçosamente, esgotava-se. De chofre, a orquestra parava a música, e os dançarinos erguiam-se com um derradeiro “Upa!” tonitruante, aplaudindo o feito levado a cabo.

As dançarinas abatiam-se sobre as cadeiras, os dançarinos enxugavam a testa, a orquesta pousava os instrumentos, os músicos pareciam extenuados, e o mestre de cerimónias esfalfava-se ainda, procurando reunir o que restava de um ajuntamento disperso.

- Eles vão voltar - disse bruscamente Willibald. - Falemos de outra coisa, olhe, dos seus cavalos.

- Dos meus cavalos? - perguntou ela surpreendida. - Como sabe?

- Ora aí está! - exclamou ele. - Não me enganei. A senhora tem o porte de uma amazona perfeita. Não se é ágil e flexível como a senhora...

- Pelo menos, os meus cavalos obedecem-me - atirou ela.

- O mundo inteiro obedecer-lhe-ia se a senhora tivesse o poder... Mas caluda, ei-los.

Ida regressava, toda afogueada, com aquele ar enlanguescido e contente que é dado pelo sentimento do trabalho realizado. O jovem vinha atrás ajeitando o colete sob a casaca.

- Pois muito bem, minha cara! - disse acidamente a desconhecida. - Vejo que o nosso amigo Franz cuidou bem de ti.

Franz sentou-se na beira de uma cadeira e mendigou um olhar. A desconhecida desviou a cabeça com um ar amuado. Ele soltou um profundo suspiro. Fez-se um silêncio desagradável.

- Ida - disse a jovem - desejo retirar-me por um instante. Vem comigo. Franz levantou-se precipitadamente; Willibald reteve-o por um braço.

- É à direita, desce-se a escada, atrás da orquestra, uma salinha ao fundo - murmurou Willibald. - Querem que as acompanhemos?

- Não vale a pena - respondeu Ida toda vermelha. - Haveremos de encontrar.

Afastaram-se ambas deslizando sobre o soalho.

- Que bronco - suspirou Willibald.

- É que elas não falam como as outras - gaguejou Franz. - Retirar-se, eu não percebo!

- Sê prudente. Caça grossa. Não te deixes levar.

- Oh! Quanto a isso, já vi! Duas aristocratas!

- Evidentemente. O que é que conseguiste saber?

- Bom... - reflectiu o jovem. - Ela não é de Viena; viveu em Bad Ischl, que detesta... Tratou dos feridos depois do desastre de Sadowa...

- Deveras! Uma enfermeira?

- Claro que não! - respondeu Franz inflamado. - Se fosse uma enfermeira eu tinha-a tratado logo por tu! E não consigo... Não se consegue dizer tu a esta mulher!

- Eu reparei - disse Willibald muito depressa. - Eu também não consegui muito tempo. Que mais?

- Gosta de cavalos, monta... E... Confundo tudo. Ah! Sim. Cita Heine, como eu. Que mais? Não sei. Não tem importância!

- Tem mais do que julgas - disse pensativamente Willy. - Uma dama da Corte?

- Não! É republicana.

- Ora vejam lá. Então, decididamente, é húngara. Os Húngaros são facilmente republicanos. Mesmo assim tem cuidado.

- Não sei porquê - retorquiu fogosamente o jovem. - É uma mulher adorável...

- Que te trata mal - cortou Willibald.

- De uma beleza de cortar a respiração...

- Que se recusa a mostrar-te.

- Que dança admiravelmente... "*”

- Mas que dá ordens como uma princesa - atirou Willibald.

- É uma princesa! - afirmou o jovem. - Uma princesa de coração magoado...

- E que tu queres consolar - concluiu Willibald. - Pois é! Está a demorar, a tua princesa. Para teu bem, oxalá não seja verdadeira. Uma actriz, talvez?

As duas mulheres tinham-se perdido no emaranhado dos corredores, onde as portas davam para pequenas salas cheias de dançarinos amontoados em volta dos bufetes. Com grande dificuldade, tinham encontrado os vestiários, e tinham-se visto obrigadas a fazer bicha, com as outras. As mulheres observavam-se umas às outras, espiavam os tecidos amarrotados, a maquilhagem que começava a esborratar, os penteados desfeitos, as nódoas nos corpetes dos vestidos, trocavam sorrisos comprometidos, e tapavam o nariz com os lenços.

- Vamos, minhas senhoras, um pouco mais depressa! - gritou a encarregada do vestiário. - Ou então voltem mais tarde!

Houve quem não gostasse. Ida, incomodada, andava, numa roda-viva, de um lado para o outro.

- Pára! - disse-lhe a jovem. - Fazes-me tonturas.

- É insuportável - murmurou Ida. - E este cheiro... E se nos fôssemos embora?

- Não!

- Com estas bacias que andam sabe-se lá por onde? Não estou a reconhecê-la!

- O tratamento por tu, Ida - disse a jovem entredentes. - Para grandes males grandes remédios. Não é pior do que um hospital.

Ela abanava-se com o leque, tranquilamente, franzindo de vez em quando as narinas, deitando uns olhares de revés, divertidos.

- Estamos quase a ser nós - disse. - Uma de cada vez.

- Que horror - gemeu Ida. - Quando podíamos estar lá tão bem, com comodidade... Que ideia!

- Chega! Lá, como tu dizes, ainda se utilizam as cadeiras sem fundo quando é preciso.

E desapareceu pela porta que a encarregada do vestiário lhe abria. Quando saiu, sorria radiante.

- Pois bem! Não se morre! - disse rindo. - E a tua vez...

- Não, muito obrigada - murmurou Ida, com os lábios brancos. - Vamos depressa para cima, falta-me o ar.

- Ah! Não és nada curiosa, tu! - exclamou a jovem. - E como cuidas que fazem as pessoas normais, hem? E a Natureza? É toda-poderosa, Ida!

- Mas que lugar para expor a sua filosofia social! - indignou-se Ida puxando-a.

Quando as viram aproximar-se, os dois homens levantaram-se. Willibald sentiu-se na obrigação de propor uma valsa à senhorita Ida, que aceitou, a um olhar da desconhecida de dominó amarelo. “Este senhor e eu temos de conversar”, precisou ela.

Franz esperou que eles desaparecessem e aproximou a cadeira.

- Então, visto isso, quer conversar.

- Mas é claro - disse ela graciosamente. - Onde estávamos nós?

- Na sua semelhança com a Impera...

- Esse capítulo estava encerrado, parece-me - cortou a jovem.

- Se minha mãe a visse, diria o mesmo que eu - continuou Franz, obstinado.

- Oiça - proferiu ela ameaçando-o com o leque. - Tenho o maior respeito pela senhora sua mãe, mas apreciaria bastante que me dispensasse das suas citações. Terei eu o ar de uma rapariga casadoira para que esteja sempre a falar das apreciações da mamã?

- A senhora tem justamente tudo de uma rapariguinha - murmurou ele perturbado.

- Uma rapariguinha, eu? Ora vamos, não está a falar a sério.

- Estou sim. Oh! Calculo que seja uma pessoa vivida. Talvez até tenha filhos, é possível. Mas há em si um não sei quê de jovem, de fresco, qualquer coisa de intacto... E se me atrevesse...

- Pois bem! atreva-se...

- É como se fosse virgem, perdoe-me, minha senhora. Está dito! - exclamou abrindo os braços num gesto de impotência.

Ela manteve-se em silêncio e não se mexeu.

- Choquei-a - disse o jovem, enleado. Agitou-se na cadeira e quis pegar-lhe nas mãos.

- Não fique calada! Diga qualquer coisa, seja má, um bocadinho, se quiser! Não me deixe sozinho no escuro... Eu não sei como falar às mulheres.

- Fala muito bem, pelo contrário - volveu ela, pensativa.

- Olhe! Eu disse-lhe a minha idade. Diga-me a sua.

- É pergunta que se faça a uma senhora?

- Raios! - bradou Franz.

- Não praguejes - suspirou a voz. - Diz-me quantos anos me dás?

O jovem hesitou. Vinte, trinta, ou mais? Sob um dominó as mulheres não tinham idade.

- Trinta e seis anos - atirou ele triunfante. - Como a Imperatriz. Que foi avó justamente ontem.

O leque partiu como uma seta e deslizou pela mesa fora. A desconhecida ergueu-se de um salto.

- É de mais - gritou. - Eu nasci na Hungria, o meu nome é Gabriela e estou farta das suas comparações!

- Tome, pegue no seu brinquedo - disse ele estendendo-lhe o leque. - Gabriela? Eu preferia Fanny. Húngara? Está a mentir.

- Será preciso eu pôr-me a cantar czardas para convencê-lo?

- atirou ela voltando a sentar-se.

- Oiça - murmurou ele com emoção. - Nós não somos personagens de opereta. Eu sou apenas um mísero escriturário da Corte, minha senhora, mas sei ver e ouvir. Que faz uma grande dama como a senhora com um modesto empregado como eu? Não sei. A senhora tem as suas razões, as condessas os caprichos delas e talvez a senhora tenha decidido brincar comigo como brinca com o leque, que tão bem sabe afastar para longe depois de ele ter desempenhado o seu papel. Mas eu não brinco; e tenho a minha dignidade. Por mais que a senhora faça, eu adivinho que a sua beleza é uma tentação para o mais santo. Então para um rapaz, imagine! Minha senhora, é muito fácil...

O leque retomara o seu nervoso esvoaçar.

- Que tirada! - retorquiu a desconhecida em voz tensa. - Tem eloquência, reconheço. Talvez seja até... comovente - sim, creio que é o termo, comovente. E que espera obter com essa perlenga? Que quer de mim?

- Ver-lhe o rosto - murmurou ele. - Nada mais.

- É impossível, impossível... - respondeu a voz debilmente. - Peça-me outra coisa. Olhe, falemos antes da sua Imperatriz, já que na sua opinião eu me pareço com ela. Gosta então dela?

- Se gosto dela? - exclamou o jovem dando uma gargalhada. - Tanto quanto se pode gostar de um fantasma. Não sabe que ela vive em Buda,na Hungria?

- Bem se vê que não conheces essa cidade. As colinas dominam ° Danúbio, o ar é penetrante e inspirado, as pontes galgam alegremente o rio, e depois há os ciganos... É-se livre, vive-se, abarca-se o mundo!

- Mas em Viena também temos as nossas colinas! O Kahlenberg, os botequins, o vinho novo no Outono, e os violinos nas vinhas... Não?

- Em Viena o vento não presta, destrói a alma - disse a jovem sombriamente. - Os palácios são enormes e tristes, construções horríveis, contaminados por correntes de ar, a gente sufoca, não respira... Enquanto que Jia Hungria! Imagina os cavalos que galopam na puszta, de crinas ao vento, as cardas endemoninhadas, é isso a vida! Sabe ao menos o que é delibab

- Não - disse ele corando. - Uma espécie de árvore?

Ela riu. O jovem era delicioso. Ela acabava de descobrir com quem se pareciam as compridas pestanas negras e o olhar azul. Com o seu jovem primo Luís da Baviera.

- Delibab é uma miragem, é preciso ver - disse ela. - É a alma húngara.

- E a senhora pensa que a nossa Imperatriz prefere a Hungria por causa dos ciganos, dos cavalos, e desse baobab que não se pode descrever?

- Talvez também se sinta mais amada por lá - suspirou a voz atrás do leque. - São muito cruéis com essa pobre mulher.

- Uma pobre mulher, Elisabeth de Áustria? Tendo o Império e o Imperador a seus pés? E que faz ela do nosso Imperador? Um marido abandonado, talvez enganado...

- Enganado? Jamais!

- Então a senhora conhece-a - retorquiu Franz calmamente. - Eu tinha razão. A senhora pertence à Corte.

- Eu sou húngara, meu caro senhor, não será isso suficiente para defender a honra da minha Rainha, que está a ser tão duramente atacada? Alguma vez a viu?

Franz aproximou o rosto e agarrou na mão enluvada que segurava o leque.

- Eu era pequeno quando ela chegou da Baviera, e os meus pais levaram-me ao cais para a receber. Minha mãe sabia tudo sobre a maneira dela se vestir, e azucrinava-me os ouvidos com o papagaio branco que o nosso jovem Imperador lhe oferecera. Lembro-me do modo como ela pronunciava o nome Sissi, com adoração, dir-se-ia que com um sabor de chocolate...

- Encantador - concedeu a desconhecida. - O papagaio era branco, mas cor-de-rosa, com um bico vermelho.

- Ah sim? - admirou-se Franz. - No entanto, minha mãe... Enfim. O meu pai pôs-me às cavalitas para eu ver melhor a nossa princesa, mas a multidão era tão densa que não a vi nesse dia. Parece que ela estava muito pálida de cansaço. Chamavam-lhe “Rosa da Baviera”. Minha mãe preocupava-se muito com ela. Nessa época, em Viena, adoravam-na!

- Enquanto que hoje a detestam, não é? - murmurou a jovem.

- Se ela se mostrar um pouco mais, adorá-la-ão como no primeiro dia - afirmou o jovem. - Olhe, essa recordação da infância marcou-me para a vida inteira. No dia seguinte, dia do casamento, estávamos na primeira fila para ver passar o coche imperial, e aí vi-a!

- De perto?

- De muito perto! - exclamou ele com exaltação. - Estávamos postados à beira do passeio, a dois passos da igreja dos Agostinhos. Ela desceu lentamente, um pezinho, o outro, hesitando, e de súbito vi-lhe a mão, tão esguia como a sua, enluvada de branco, e que voava como um pássaro para a tiara de diamantes... Tinha-se prendido à parte de cima do coche!

- Lembro-me - murmurou a desconhecida numa voz inaudível. - Foi horrível...

- Mas eu era pequeno, via-a de baixo... E reparei que tinha lágrimas nos olhos.

- Como podes tu lembrar-te - cortou ela. - Andavas de cueiros!

- Tinha seis anos... Não, três! - retorquiu ele - e depois a mim também me contaram, como a si! Ela chorava tanto que eu dei um berro! Minha mãe teve medo do escândalo, os polícias olhavam-na de lado, e levou-me dali bem depressa e eu nunca mais a vi.

- A vida é mesmo estranha, meu caro Franzi...

- Ah! Trata-me pelo meu nome, obrigado - disse ele beijando-lhe os dedos. - Mas se conhece a Imperatriz, diga-me, ela é tão linda como dizem?

A desconhecida começou a rir e o leque aquietou-se.

- Não é destituída de graça. Principalmente o cabelo, comprido...

- Dizem que lhe dá pelo fundo das costas... É verdade?

- Pelos pés! Como apele de um animal! Um suplício!

- Dizem que toma banho de água gelada, de manhã cedo...

- Todos os dias às cinco horas.

- Parece que ela adestra cavalos como no circo!

- Herdou isso do pai, o duque Max - declarou a desconhecida gravemente. - São ambos eméritos mestres de equitação.

- E até, que faz ginástica!

- Não entendo esse tom de mofa. É excelente para a saúde.

- Mas ainda assim é indecente! Não, não me diga que ela tem o juízo todo. Que imperatriz é que se põe a fazer acrobacias?

- E que pessoa bem educada é que se põe a fazer tantas perguntas? - replicou a desconhecida abanando-se de novo. - Olhe, estou outra vez com sede. Vá-me buscar uma cerveja, por favor.

- Já sei! - exclamou o jovem dando uma palmada na testa. - Para a conhecer tão bem, deve ser dama de companhia dela! Que pateta eu fui por não ter percebido antes! Vou já buscar-lhe a bebida...

Afastou-se e depois voltou a correr e apoderou-se do leque.

- Levo isto como penhor. Assim não poderá fugir.

“Dama de companhia dela! - cogitou a jovem pensativa. - Que adorável criança... Faz-me lembrar o meu pastor-alemão, com o olhar afável e o focinho húmido a pedir festas. Não devo humilhá-lo. Meu Deus! Como deixar o baile sem o magoar? Tenho de me ir embora. Agora. Ficará com o leque.”

Estava já a fechar as abas do dominó amarelo quando se lembrou bruscamente de Ida que não voltara ainda. Tornou a sentar-se.

“Não posso abandoná-la assim. Ela seria capaz de se afligir, de dar o alarme... Não! Estou presa. Querias ser livre, minha linda... Eis-te prisioneira da tua liberdade. Aferrolhada por um bonito rapaz que te faz a corte como a uma leiteirazinha dos subúrbios! Numa sala de baile onde está imenso calor! Se ao menos eu pudesse tirar esta máscara, este espesso brocado!”

E num gesto lânguido, afastou a gola do dominó para apanhar um pouco de ar. Dois homens que passavam, cambaleando, detiveram-se.

- Viste aquele colo? Uma alvura de sonho! - cochichou o primeiro.

- Não sei quem é a brejeira, mas se as feições correspondem às promessas do decote... - respondeu o segundo dando-lhe uma cotovelada.

Aproximaram-se devagar por trás dela. A desconhecida não os ouviu.

- Um beijo, minha linda! - pediu o primeiro segurando-lhe os ombros.

- Então, sozinha a esta hora? - insinuou o segundo pousando os lábios no ombro descoberto.

- Não me toquem! - gritou ela debatendo-se. - É indigno! Não têm o direito!

- Não te faças arisca, minha querida - vociferou o primeiro agarrando-a brutalmente. - Uma mulher que vem sozinha ao baile sabe muito bem o que a espera!

- Acudam! - disse ela debilmente apertando com força a máscara. - Ó da guarda! Ida, socorro!

- Isso, chama a Ida - rosnou o primeiro.

- E a guarda! Mas por quem é que ela se toma! - disse o outro acariciando-lhe o colo com um dedo negligente.

- Essa senhora está comigo! - gritou uma voz atrás deles. - Façam o favor de a deixarem sossegada.

Franz, rubro de cólera, uma taça de champanhe em cada mão, todo ele se insurgia do alto da sua enorme estatura. Os homens contemplaram o jovem gigante, e largaram a presa. A desconhecida reajustava a máscara com nervosismo. Franz pousou calmamente as taças na mesa.

- Desculpe lá, a gente não podia adivinhar - resmungou um dos homens. - Não faz mal, mas o senhor não devia deixar a sua amiga sozinha no meio de um baile, ela tem a pele demasiado alva...

- Já não havia cerveja. Trouxe champanhe... Quer brindar comigo? - murmurou docemente Franz.

- Quero - disse ela tremendo. - Muito obrigada. Tive muito medo.

- Não foi nada - disse ele erguendo a taça. - A si, minha senhora.

- É que não estou habituada, sabe - acrescentou ela, embaraçada.

- Eu sei. A ti. A nós, Gabriela.

Pela primeira vez, inclinou-se para ele com um sorriso, e ofereceu-lhe, de bem perto, o olhar castanho-avermelhado. Deslumbrado, ele fechou os olhos.

- E como o céu com a primeira estrela...

- Que criança que é! Daqui a pouco já me terá esquecido - atirou ela com uma alegria forçada.

- Nunca, minha senhora - disse ele com fervor.

- Uma única noite, uma noite de baile! Não mais voltaremos a ver-nos.

- Hei-de encontrá-la!

- Não há-de conseguir! Eu não tenho pátria. Ando sempre em viagem.

- Se for preciso, faço-me lacaio em Hofburg!

- Não diga isso!

- Brindemos-suplicou ele. - Quero vê-la beber ao mesmo tempo que eu. Ela sustentou-lhe o olhar e bebeu com elegância. Ele devorava-a com os olhos.

- Então! Que esperas? Já acabei! - exclamou ela.

- Pus uma droga no champanhe sem lhe dizer. É um filtro de amor. Bebo como Tristão no barco...

E bebeu gravemente, de olhos fechados.

- Franz, oiça. Você tem vinte e três anos e adivinhou a minha idade. Temos perto de quinze anos de diferença.

- Isso é-me completamente indiferente! - gritou ele. - Menti-lhe, calcule. Não tenho vinte e três mas vinte e seis.

- E se eu lhe disser que também lhe menti, e que sou casada? - atirou ela febrilmente.

- Paciência - murmurou ele de lágrimas nos olhos. - Isolda também era casada. Casada! Pensa que eu não desconfiava? As suas hesitações, o seu ar culpado - não se enerve! -, a sua vontade de fugir a todo o momento, e esse medo que eu sinto em si, essas lágrimas... E no seu anelar, a marca branca da aliança que deve ter tirado esta noite, não foi? Casada? Nem era preciso dizer. Que tenho eu com isso?

- É uma criança - suspirou ela.

- Já o disse. Sabe? Uma criança procura a mãe por todo o lado, e por todo o lado eu a procurarei. Já a partir de amanhã.

- Franz, tenho de o deixar - declarou ela em voz firme.

- A sua amiga não voltou. Quer ir-se embora? Pois bem! Vamos juntos. Tanto pior para o dominó vermelho.

- Por favor - suplicou ela, insistente. - Esperemos juntos, ajuizadamente. Depois vai deixar-nos. E não nos seguirá. Não estrague a recordação de um momento encantador. E um rapaz simpático, tão sedutor...

- Ah! - triunfou ele. - O filtro está a fazer efeito!

- Se procurar ver-me de novo, passar-se-ão coisas terríveis! - proferiu ela em voz baixa.

- Não seria a primeira vienense a ter um amante! - atirou ele apertando-lhe mais as mãos.

- Não seja vulgar! Arrisca-se...

- Arrisco-me a quê? A que me metam na prisão?

- Sim! - respondeu ela sem pensar.

Com o entusiasmo assim quebrado, o jovem largou as mãos da desconhecida.

- A senhora nem sequer é condessa. É um nível ainda mais elevado - disse ele lentamente. - A prisão! Mas então quem é a senhora?

Ela virara a cabeça e observava a multidão, desesperadamente, sem responder. Um clarão de tafetá vermelho passava e tornava a passar entre os dançarinos.

- Ida vem aí - murmurou ela com alívio. - Desta vez vou abandoná-lo.

- Para me meterem na prisão, a senhora deve possuir um título de alteza - disse ele prosseguindo na sua ideia. - Tenho a certeza de que não estava a brincar...

- Não pense mais nisso! E cale-se, não quero que Ida saiba...

- Ora vejam! Tem segredos para a sua amiga?

Através dos orifícios da máscara, Franz via os olhos da desconhecida lançarem miradas de animal perseguido; torcia febrilmente a armação do leque, e apertava contra o corpo as pesadas pregas do brocado de cambiantes dourados. O dominó vermelho aproximava-se.

- O senhor Willibald não me queria largar, dançámos várias valsas, muito longas - disse Ida em voz ofegante. - Encontrou uma pessoa pelo caminho, um amigo, e eu deixei-o para vir ter convosco. Felizmente que este senhor te fazia companhia...

- Felizmente de facto - disse a desconhecida. - Este senhor protegeu-me dos importunos. Vamo-nos embora, Ida.

Franz não se mexera. De olhar fixo, observava o leque na ponta dos dedos enluvados.

- Então, caro senhor? - exclamou ela em voz jovial. - Não nos diz adeus? Não ouve - acrescentou voltando-se para a companheira. - Senhor!

O leque bateu ao de leve no ombro do jovem imóvel.

- Deixe-o, minha senhora - segredou Ida. - Se calhar bebeu de mais.

- De modo nenhum! Tu não percebes nada. Não posso deixá-lo assim. Franz! Franzi... - murmurou ela numa voz alterada. - Não queres despedir-te da tua Gabriela? Responde, meu pequenino, Schatzi. 1 Vossa Majestade perdeu a cabeça! - assustou-se o dominó vermelho.

Franz ergueu-se de um salto. O leque abatera-se violentamente sobre Ida.

- Vossa Majestade! - bradou ele com assombro.

- Não lhe ligues, Franzi - atalhou vivamente a desconhecida. - Ela está embriagada... Não é, Ida?

- Elisabeth - balbuciou o jovem. - A senhora é Elisabeth. O que é que me vai acontecer?

- Nada - sussurrou ela - nada! Não sou Elisabeth!

- A senhora é a Imperatriz - soluçou ele. - Que fiz eu?

- O meu nome é Gabriela, Gabriela, estás a ouvir, pequeno? Mas se eu

 

1 Diminutivo de schatz, querido em alemão. (N. da T.)

 

fosse a Imperatriz, pensas realmente que estaria aqui, com a População? Ora vamos...

- Eu penso que a senhora é capaz de tudo!

- Até de me parecer com a Imperatriz - ironizou ela dando uma gargalhada forçada. - Confesso que quis enganar-te, Franzi. Ida desempenhou bem o seu papel. Agora deixa-nos partir, peço-te.

- A senhora não está prisioneira - murmurou Franz num tom amargo Quem a retém? Ninguém.

- É que eu não quero que percas a cabeça! - gritou ela batendo o Pé. - Ida... Explica a este jovem teimoso...

- Quer dizer... - começou Ida com um ar embaraçado. - É verdade que quisemos pregar uma partida. Esta senhora - enfim, a minha amiga Gabriela - muitas vezes, de brincadeira, chamo-lhe Majestade, por troça. •• Porque na nossa terra, na Hungria, todas as senhoras se querem parecer com a Imperatriz e Gabriela... Enfim, tem muitos traços comuns... E verdade, Tem de acreditar em mim.

- Mas acredito, minha senhora - respondeu o jovem com mágoa- Sou obrigado a isso.

Elas rodeavam-no, solícitas, e ele, muito pálido, baixava o's olhos- Chama-me Gabriela - suplicou a jovem. - Franzi... uma última vez -Ele pusera as mãos no rosto, como Uma criança que chorava.

- Estás zangado - suspirou a desconhecida.

Ele ergueu a cabeça, fitou-a com uns olhos onde já havia lágrimas'e abriu os braços em sinal de impotência.

- Eu escrevo-te - disse ela bruscamente. - Dá-me o teu endereço -Num gesto mecânico, ele tirou um cartão do colete e estendeu-o em silêncio - Franz Taschnik - murmurou ela lendo com um ar Concentrado - Não me esqueço, juro. Diz-me adeus...

Ele abriu a boca, quis falar, e a voz estrangulou-se-lhe na garganta - Adeus, Franzi - murmurou a jovem acariciando-lhe ^ a face E dando o braço ao dominó vermelho, deslizou graciosamente Por entre a multidão.

 

Aniquilado, Franz viu-a descer a grande escadaria.

“E foi ela quem eu beijei? foi ela quem se deixou beijar? Ela que até recusa ser vista em público! E o Imperador? Oh! não! Quem sou eu para que ela assim se tenha abandonado? Aquela aliança que lhe faltava no dedo... Não, estou enganado. Completamente impossível. Contudo, aquela elegância... A estatura - é única no mundo! E o ar de comando... As formas de tratamento - o senhor e tu - que se misturavam constantemente! E vai-se embora! E eu disse-lhe que a amava!”

Franz apoiou a cabeça na mesa e chorou em silêncio. Os dançarinos voltavam-se para ver aquele jovem colosso bem posto, e que parecia tão triste; alguns detinham-se abanando a cabeça. Estava a chegar a madrugada e o baile fomentava em segredo loucuras, êxtases, mágoas, era banal, em suma. Ninguém veio consolá-lo.

“Coragem - pensou ele enxugando as lágrimas. - Nada está decidido. É preciso saber quem é ela, ter a certeza. E se calhar descobre-se que é uma galdéria que se faz passar pela Imperatriz, uma atrevida que se diverte com os rapazes novos!”

Levantou-se de um salto. Apanhá-la, depressa!

Precipitou-se feito louco através da sala de baile, afastando os dançarinos com brutalidade, de lábios apertados, de cenho franzido, com um ar tão furibundo que as mulheres se voltavam para o olharem.

- Um que bebeu de mais! - observou uma.

- Eu acho que se sente infeliz - suspirou uma rapariga condoída. - Um desgosto de amor, com certeza!

- Em todo o caso, é um mal-educado! - exclamou uma terceira, ajeitando o vestido amarrotado. - A não ser no galope, não se corre como um doido num baile, toda a gente sabe isso!

Os respectivos pares encolhiam os ombros rodopiando cada vez mais; era apenas qualquer coisa que lhe correra mal, perdera a sua conquista, mas acabaria por encontrá-la num quarto de aluguer nalgum sítio galante, como toda a gente. Nada de importante.

Através de uma espécie de névoa, Franz avistou de súbito, roçando o dourado dos balaústres, o brocado amarelo e o tafetá carmesim, Gabriela e Ida. Os dois dominós haviam percorrido a sala e preparavam-se para sair pelo grande vestíbulo. Escondeu-se atrás de uma coluna; elas não o tinham visto.

A jovem caminhava de cabeça baixa, com o leque na mão, aberto como um escudo; e Ida seguia-a, de mãos erguidas para se proteger de um perigo invisível.

“Têm medo, - pensou ele. - Pareciam tão assustadas às vezes... Mas se houver um marido no caso, é compreensível... Tenho de lhe arrancar a máscara. Tem de ser!”

Saindo por uma porta lateral, ultrapassou-as e procurou com os olhos um coche, um cabriole, uma carruagem imperial... O frio cortou-lhe a respiração.

Uma fila de fiacres esperava sob o céu gelado; os cocheiros reconfortavam-se bebendo vinho quente; os cavalos, debaixo das mantas aos quadrados, sopravam pelas ventas nuvens húmidas levantando a cabeça. Não havia nenhum cabriole imperial. De repente, os dois dominós saíram cobrindo-se com os capuzes. Franz seguiu-as sem fazer ruído. Deteve-o uma mão que estendia raminhos de violetas. Uma mãozinha nua, roxa de frio.

- Violetas para as damas! - anunciou uma voz de criança. - Compra as minhas flores meu bom senhor. Tenho tanta fome! Só para uma sopa de Kno1. Por favor.

Embrulhada num casaco coçado, a rapariguinha parecia ter dez anos, não mais. De coração oprimido, Franz pegou nos raminhos, seis ao todo, e tirou uma nota de que a mão logo se apoderou. Mais adiante, ao cimo dos degraus, as duas mulheres não tinham visto nada.

- Toma - segredou ele devolvendo os raminhos - só quero um. Guarda os outros, pequena.

- Onde está o nosso fiacre? - impacientava-se o dominó amarelo em voz alta. - Devia estar à nossa espera do lado esquerdo. Oxalá aquele Franzi não nos tenha seguido!

- Além! - exclamou Ida. - Estou a ver o nosso cocheiro, a uns dez metros, do lado da igreja de S. Carlos. Vamos ficar com os pés cheios de neve, temos de ir depressa.

A desconhecida levantou as pregas do dominó e começou a correr; Ida foi atrás dela bufando. Em duas passadas, Franz adiantou-se-lhes e estava já diante do fiacre. Quando elas alcançaram a carruagem, ele segurava na porta, determinado, com o raminho na mão.

- O senhor! - exclamou a jovem. - Vá-se embora!

- Nem pensar! Imaginou o quê? Que eu ia deixá-la fugir sem dizer nada? Mande-me para a prisão se quiser. Agora, perdoe...

Num gesto decidido, puxou a franja de rendas para arrancar a máscara. Ida pôs-se a gritar, a desconhecida levantou o leque que Franz apanhou no ar.

- Desta vez não - disse ele torcendo-lhe o pulso. - Chega de pancadas. Não sou o seu cavalo. Tenho de saber... E se é a Imperatriz, que Deus me proteja!

 

1 Prato constituído por uma espécie de almôndegas confeccionadas à base de farinha e cozidas em caldo. (N. da T.)

 

Ela arfava, protegendo com a outra mão a máscara. Ele forçava-a lentamente, em silêncio, ela estava perdida, a máscara deslizava... Bruscamente ela largou o leque e desprendeu-se como uma serpente. Surpreendido o jovem recuou. Então, com uma força espantosa, ela empurrou-o violentamente e enfiou-se no fiacre.

- Depressa, Ida - ordenou. - E você, toca a andar - gritou para o cocheiro. - Dê a volta pelos subúrbios!

 

                                                 A ABERTURA DA CAÇA

Soou a hora da tentação

E voltei fará casa, medrosa como um cão.

Elisabeth

Caído na neve, com a respiração entrecortada, Franz ouviu o grito breve do cocheiro, os cascos dos cavalos no chão salgado; o fiacre sumiu como um fantasma. O jovem levantou a cabeça para o céu onde brilhavam as frias estrelas do Inverno, e apercebeu-se de que tinha ainda o leque na mão. As violetas jaziam mais adiante na lama. Saindo da sombra, a pequena vendedeira apanhou-as.

- Leque, meu sapatinho de cristal - clamou ele. - Hei-de voltar a vê-la, juro. Ela há-de receber as violetas.

- Toma, senhor, toma o teu raminho - murmurou a miúda. - Nem sequer foi pisado.

- Fica com ele se quiseres - disse ele reerguendo-se com dificuldade. -Já não preciso.

- Uma malcriadona, a mulher de amarelo - disse a rapariga. - Vi tudo. Obrigada pelas flores. Ela não as merece.

No interior da sala de música, ecoavam as valsas da noite e as gargalhadas. A madrugada estava a chegar, o baile fenecia. Franz caminhou em direcção às luzes.

- Ora! Voltar lá para dentro? Para ir ver meninas casadoiras? Retomar os meus hábitos? E que fazer do leque? Escondê-lo debaixo da casaca? Queimar-me-ia o peito...

Parou debaixo de um candeeiro, abriu-o com um gesto inábil e examinou-o.

- Nenhum brasão, nenhum sinal. É ela. Uma outra qualquer teria conservado a coroa.

Abanou-se desajeitadamente, praguejou, e fechou o tafetá num repente de raiva.

- Não percas a cabeça, Franzi, por favor - resmoneou. - É uma louca... A Imperatriz neste baile de máscaras? De dominó amarelo e peruca ruiva? Não faz sentido. Vá lá! Resta-te o leque. A minha mãe vai fartar-se de rir... Que aventura!

Limpou os olhos, deu três passos na penumbra, e embateu numa parede que não vira; o leque quebrou-se com um ruído seco.

- Hei-de encontrá-la! - gritou brandindo-o apontado ao céu.

Os cocheiros de fiacre, espantados, viraram a cabeça, e viram afastar-se no azul da noite um jovem sem pelica e que segurava bem alto um leque preto partido, como um trofeu de caça.

- Olha - resmungou um velho -um que foi abandonado pela namorada. Até se esqueceu do casaco. Ah! A mocidade...

- Qual quê - fez outro. - Ela não quis mostrar quem era, brigaram, ela atirou-o ao chão. Era forte!

- Bom... Ela deve ter-lhe marcado um encontro para amanhã no café Sacher, e ele vai, o parvalhão!

O fiacre seguia a passo; os cavalos hesitavam sobre a neve gelada. Nas ruas desertas, casais isolados, saídos do baile, trotavam sem se apressarem, de braço dado... Velhos, certamente, demasiado fatigados para aguentarem até de manhã. O cocheiro cumprira as ordens; sem fazer perguntas, passara pelos subúrbios o que alongava a corrida em cerca de uma hora, um ganho inesperado. As duas mulheres não falavam; Ida tirou um lenço e limpou discretamente as pálpebras. O silêncio da companheira não lhe anunciava nada de bom.

- É um desastre - murmurou finalmente Ida de dentes cerrados.

- De quem é a culpa? - atirou a jovem.

- Eu não tenho desculpas, Majestade... - gemeu Ida.

- Pois não! Estragou tudo.

- Mas toda aquela gente, o calor, aquele frenesim... perdi a cabeça...

- A senhora, condessa, a senhora em quem eu depositei toda a minha confiança! - explodiu a jovem. - E que vou eu fazer agora?

- Oh! Nada, por favor, Majestade - suplicou Ida.

- Mas eu e esse rapaz conversámos muito!

- Que lhe disse?

- Já não sei... Pequenos nadas... Aquelas coisas que os jovens querem saber, sei lá! - respondeu ela exasperada.

- Pois então! Ele há-de andar um pouco agitado, há-de procurá-la nos desfiles, e não a reconhecerá.

- Mas é um rapaz que está desesperado - murmurou a jovem.

- Que grande coisa!

- Não me agrada. Reparaste nas violetas? Poderia ter ficado com elas, ao menos... Ele vai sentir-se infeliz!

- Não pode fazer nada - disse Ida com irritação. - Deixe lá o rapaz e não pense mais nisso. Aliás, quem é ele, sabe?

- É escriturário da Corte - respondeu logo ela. - Nos Negócios Estrangeiros, secção ministerial.

- Um manga-de-alpaca! - exclamou Ida assombrada. - Nem sequer diplomata é! Podia ter escolhido melhor!

- Não! Vale mais isso do que ser príncipe. E tu não percebes nada destas coisas.

- Seja - disse prudentemente Ida batendo em retirada. - Mas com essa profissão ele não tem nenhuma hipótese de a encontrar.

- Nenhuma - suspirou a jovem.

O cocheiro parou diante dos guardas da Burg. Ida baixou o capuz do dominó e pôs o nariz fora da portinhola.

- Condessa Ferenczi, serviço da Imperatriz. Reconhece-me com certeza. Deixe passar.

Os soldados abriram o portão. O cocheiro foi pago e retirou-se sem dizer palavra, e as duas mulheres desapareceram sob uma arcada mal iluminada. A poucos passos da grande Praça dos Heróis, ocultava-se à esquerda a porta secreta que dava para um estreito corredor, directamente na Hofburg, o imenso palácio imperial.

Os escuros corredores eram intermináveis; sob os tectos baixos, o chão estava escorregadio, e as duas mulheres avançavam a passo hesitante.

- Devia ter pedido uma lanterna no posto da guarda - bradou Ida Ferenczi - não se vê nada...

A jovem não respondeu e, soerguendo o dominó com as mãos, começou bruscamente a correr, ligeira.

- Venha, condessa! - gritou numa gargalhada. - Venha cá!

- Sua majestade tem olhos de gato! - lamentou-se Ida Ferenczi atrapalhando-se com as pregas vermelhas. - Eu não consigo correr!

- Então! Estou à espera! - exclamou a voz imperiosa. - Despache-se...

Ida arregaçou as saias como uma camponesa e correu ofegando. Negligentemente encostada à parede, a Imperatriz pusera a mão no puxador de uma pequena porta escondida.

- Chegámos. Ajude-me - disse ela deixando cair o dominó. - Vai também tirar o seu. Ah! mas é muito pesado para si. Eu levo os dois.

Num abrir e fechar de olhos, tinha enrolado o fato dela, arrancado o brocado carmesim dos ombros da companheira, e agarrado em tudo.

- Sua Majestade tem realmente uma força incrível! - disse Ida com admiração.

- Deixe a minha majestade sossegada, ela já serviu de mais esta noite - atalhou ela, irritada. - E abra-me essa porta.

Alguns degraus, uma antecâmara, três salões... A jovem parecia que voava.

- Pronto - disse parando de repente. - Os seus aposentos. Tome isto e dê-me as boas noites como uma boa menina.

- Sua majestade... Não sei... - respondeu Ida pegando com dificuldade na pesada trouxa de seda. - Deixe-me ao menos ajudá-la a arranjar-se para dormir...

- Não! Eu trato disso sozinha - cortou ela. - Vá! E despediu-a com um gesto violento.

“E agora, agora que estará ele a fazer? Examina o leque - quanto a isso não há perigo, não encontra nada. Deve ter seguido com os olhos a direcção que tomou o fiacre - mas fizemos um grande desvio para voltar aqui. Terá voltado para as valsas? Não; está muito infeliz, muito exaltado. Então deve voltar para casa. Talvez sem a capa, deve ter-se esquecido dela. Que fará um jovem apaixonado quando não é Imperador?”

Cuidadosamente estendidas sobre o leito, a comprida camisa de renda, a romeira com fitinhas brancas e a leve touca de dormir esperavam. Olhou para tudo aquilo com ódio.

- Abafo - murmurou erguendo-se em toda a sua altura - este vestido está amarrotado, sujo... E esta horrível peruca ruiva!

Com um gesto gracioso, levantou os braços, pegou na peruca e tirou um a um os ganchos que a prendiam.

- Isto nunca mais tem fim - resmungou puxando os canudos emaranhados - estão presos nos meus cabelos... Estes caracóis ruivos não me querem deixar, gostam de mim, e eu! Eu detesto-os!

Correu ao espelho e arrancou tudo, gemendo. Esgazeada, com olheiras, o cabelo ainda cheio de ganchos, estava tão desfigurada que não conteve um grito de dor.

- E há quem diga que sou a mais bela mulher da Europa! Ah! Se me vissem assim, esses cortesãos invejosos, como se regozijariam... Reparem todos, a pele está baça, cheia de rugas junto aos olhos, a boca tem pregas de azedume, e estas tranças - acrescentou soerguendo a cabeleira inerte - estas belas tranças de reflexos fulvos, o orgulho dela, vejam como estão poeirentas... Ah! quiseste ir ao baile de máscaras, minha linda... E estás a ver o resultado? Não quiseste dizer-lhe que eras avó, hein? Não te atreveste! Uma velha, é o que tu és...

Desabotoou o corpete do vestido, entreabriu a camisa e agarrou nos seios com ambas as mãos.

- Isto está a ficar flácido... E aqui, no meio, está a enrugar-se, aqui - observou ela despindo o vestido num repente - as costas encurvam-se, a cintura...

Pôs as mãos na cintura.

- Não - murmurou - nada a dizer. Está na mesma. Mas o resto... Deixou cair o saiote, desfez-se, num abrir e fechar de olhos, das meias, das ligas de seda, da camisa, e achou-se nua. As roupas jaziam por terra em desordem, e ela, imóvel, ali estava, sem um gesto para as apanhar.

- Pronto - disse em voz átona. - Quando eu morrer, abrem-me ao meio, tiram-me o coração para o meterem numa urna, e as entranhas também, noutra. Não me darão tréguas. Os cirurgiões cosem depois a pele com pontos grosseiros e a minha carcaça vazia vai para os Capuchos, para a Cripta. É isso que espera esta carne inútil? Para que serve o Império? Para me retalharem como no açougue depois de morta?

O indicador foi descendo ao longo de uma linha invisível, da raiz dos seios até à saliência do púbis, que cobriu com a mão, bruscamente.

- É assim que esse homem não me há-de ver nunca. Nunca há-de pôr os olhos num monte de trapos sujos caídos aos meus pés, nem nas marcas das ligas nas minhas coxas, nem nas manchas vermelhas no meu peito... Não será preferível assim? Gostarias de ter este grande corpo branco contra o teu? Responde!

A jovem fez uma careta e colocou-se bem em frente do espelho.

- Vamos lá, responde! - gritou pondo a mão no vidro. - Porque querias tu aquele homem? Que procuravas tu ao deixá-lo falar como uma gralha, e a senhora sua mãe, e as suas recordações, e Bad Ischl, e tu, cuja imagem ele conservara, tu, com quem ele sonhava sem saber? Tu que ele também desprezava, e que terá adorado, durante uma noite, uma única noite inútil?

Um uivo varou a escuridão, um cão talvez, ou uma criança ao longe... Ela estremeceu.

- Estou louca - sussurrou passando a mão pela testa. - Água!

Correu para um jarro e borrifou-se dos pés à cabeça. Com uns ligeiros grunhidos de fúria, desfez violentamente as tranças que lhe rolaram até ao fundo das costas, libertas, a escorrer de gotas de água e de reflexos avermelhados. E envolveu-se naquele manto molhado, com que se cobriu inteiramente.

- Um animal, é o que eu sou - disse ela erguendo as madeixas. - Vocês magoaram-me - acrescentou enrolando-as nos dedos - repuxaram-me a cabeça, sentia-vos prisioneiras e vingaram-se, castigaram-me... Castigam-me todos os dias. Vou acabar por vos cortar, sabem? Que ideia também, a de vos esconder debaixo de postiços ruivos, não é? Mas é que estava farta de vocês - continuou ela deitando o cabelo para trás - é que já não suporto o vosso peso nos meus ombros!

Torceu as serpentes daquelas madeixas selvagens, murmurou-lhes palavras sem nexo: “ Só de vê-lo, aquele rapazote austríaco, os músculos que se movem sob a pele branca, como un lipizzano, enorme, tão terno, de olhos húmidos, um belo cavalo rústico, que não me montará nunca, nunca...”

- Não é como o Outro - disse ela alto com uma olhadela ao retrato na parede. - Ele é o contrário: elegância, mas um espírito grosseiro, um corpo pesado, apressado, umas mãos febris, com unhas de besta...

Os ombros curvaram-se-lhe, cruzou as mãos no peito, e encarou o retrato.

Fardado de tenente-coronel, cingido pelo uniforme branco, o peito constelado de insígnias de diamantes, a mão sobre um livro e o olhar azul, o Imperador Francisco José, eternamente jovem, contemplava o horizonte com a serenidade de um deus vulgar.

- Eu não o enganei - disse ela encolhendo os ombros - calcule. O senhor tem as suas amantes e eu não. Fez-me quatro filhos, roubou-me a minha juventude... Pois bem! Esta noite recuperei-a, durante duas ou três valsas e uma taça de ponche escaldante, e pronto. Não me olhe com esse seu ar oficial... Já não tenho medo de si. Quando ele me beijou, apertei bem os lábios. Fui-lhe fiel. Hei-de sê-lo sempre, a culpa não é sua. Simplesmente tenho aquele jovem que jamais saberá quem eu sou, e que me amará apesar da sua existência. E o senhor também não - atirou ela erguendo o punho - o senhor não há-de saber nada! Quando voltar da Rússia, onde naturalmente ninguém o vai matar, eu estarei fora do seu alcance, em Buda. Em minha casa, está a ouvir? Longe daqui!

“Tenho frio - pensou ela, arrepiada - estou embriagada, tenho sede, ele não está aqui para me dar de beber, e estou a falar como uma demente... Para a cama!”

E sem sequer se enxugar, sem vestir a roupa de dormir, a Imperatriz enfiou-se entre os lençóis, titubeando.

- Amanhã, ele vai à minha procura. Tenho o cartão dele, podia ir visitá-lo, surpreendê-lo... Não! Ridículo. De perto, ele seria obsceno, como são todos. Não, vou preservar o sonho, vou...

Voltou-se na cama, de repente, de boca na almofada, sobre o cabelo molhado.

- Vou ao Prater, a cavalo. Ele vai lá estar. Não, vou antes de carruagem, ele aproxima-se, eu mando-o subir, aconchegamo-nos um contra o outro em silêncio, ele pega-me na mão, eu tenho outra vez dezasseis anos, ele ama-me... Esquece-se a sua majestade, acaba-se a sua alteza imperial... Como é doce a embriaguez... Meu inocente, meu pequenino querido... eu saberei montar-te, a chicote! Chicote...

Balbuciava ainda, suspirando, passeando as mãos pelo corpo, quando o sono a tomou, de repente.

Franz prosseguia o seu caminho através das ruas brancas, saltando por cima dos passeios para evitar os duros montículos de neve acumulada. Estava um frio de rachar, e o jovem corria para se aquecer. Depois cansou-se, tropeçou, procurou um Beisl aberto àquela hora tardia, e achou um botequim fumarento onde pediu uma slibowitz, que engoliu de um trago. A aguardente activou-lhe a circulação.

- Mas que belo leque - fez uma vozinha a seu lado. - Deixa ver...

- Não! - rosnou ele sem se mexer. - Não é meu...

- Não me digas - respondeu a voz, trocista. - Vá lá, mostra, eu depois devolvo... Não queres? Paciência, eu tiro-to...

Uma mão de unhas roídas insinuou-se-lhe sob o braço e apoderou-se do leque. Ele voltou-se de chofre: era uma rapariga muito novinha, de saias vermelhas, de meias às riscas, uma miúda que contemplava, radiante, o que furtara.

- Safa... Tafetá! Todo preto! - assobiou ela abrindo cautelosamente o leque, com as duas mãos.

- Deixa isso quieto, pequena - intimou o jovem devagar. - Não é para ti.

- Achas? - fez ela abanando-se. - Não pareço mesmo uma dama?

Manipulava o leque desajeitadamente, rindo, e a vareta partida pendia lastimosamente como uma asa quebrada. A miúda sorria abertamente, tão encantada que Franz não teve coragem de lhe tirar o brinquedo.

- Que idade tens? - perguntou com um sorriso.

- Treze anos - respondeu ela orgulhosamente. - A idade de que os cavalheiros gostam. A prova é que estou aqui - acrescentou dando uma volta sobre os tacões pretos.

Os homens sentados às mesas, que Franz não tinha visto, puseram-se a rir ao fundo da sala.

- Devolve-me o leque - suplicou ele, rubro de embaraço. - Não tens vergonha!

- Não me posso permitir tal coisa, meu príncipe - replicou a miúda. - Dá-mo, eu subo contigo se quiseres. Ainda não estou siflítica, sabes!

Furioso, precipitou-se para ela e quis tirar-lhe o objecto. Ela debateu-se, caiu para cima dele, ele levantou a mão, ela protegeu o rosto, sem um grito. Caindo em si, ele parou.

- Não te vou bater - disse, envergonhado. - Não sejas má...

- Mas eu nunca sou má - disse ela recuando. - Toma lá, aqui tens o teu coiso, já não o quero, está todo estragado. Devolvo-to! - acrescentou atirando-lhe o leque à cara.

E foi-se embora, amuada, meneando-se. Franz remexeu nos bolsos e tirou uma nota que foi pôr em cima da mesa onde ela se foi sentar.

- Para mim?

- Se te fores deitar.

- Bom, então subimos. E dás-me o leque.

- Não... - murmurou o jovem, constrangido - não! Tu sobes sozinha, eu vou-me embora, e pronto.

A miúda encolheu os ombros, enfiou a nota na meia e mediu-o de alto a baixo.

- Vais devolver o leque, não vais? Ela deve ser muito distinta para ter uma coisa assim...

- É - respondeu Franz maquinalmente.

- Uma verdadeira dama? - insistiu a rapariga. - Com cheirinho e flores no cabelo?

- Não - continuou Franz sem pensar - simplesmente uma estrela.

- Uma estrela? - exclamou a miúda arregalando os olhos. - De pérolas?

- De diamantes - suspirou ele.

- Oh! Então é a Imperatriz - afirmou ela com um ar muito sério. - Como no retrato, com os cabelos cheios de estrelas.

- Pois é - concluiu tristemente Franz. - Estás a ver que é preciso devolver-lhe o leque preto.

- Pois sim! - anuiu ela bocejando. - Mas olha que ela não há-de ficar nada satisfeita por lho teres partido.

Ele foi-se embora, de coração oprimido; a rapariguinha deixara-se cair sobre a mesa.

- É assim esta cidade - rosnou ele ao sair - dança a valsa e prostitui as crianças. Depois há quem se espante ao ver a sífilis matar a pouco e pouco, em silêncio, até ao momento em que zás! Limpa um homem em dois dias, de um tumor na cabeça! Vai tudo ao baile, e ao domingo vão servir a sopa dos pobres tapando o nariz, por caridade... Ah! Somos todos bons cristãos! Compramos um raminho de flores à saída do baile de máscaras, esvaziamos os bolsos, ficamos satisfeitos e vamo-nos embora sem mais cuidados! E a outra que fez pouco de mim, a outra de renda nas mãos e brocado dourado! Estou cansado. Numa única noite, a outra e esta miúda! Para mim sozinho! É de mais...

Um fiacre passava, mandou-o parar e atirou-se para dentro da carruagem.

No quarto de Ida Ferenczi, os dois dominós jaziam numa poltrona, amarrotados, sujos; e ela, aflita, sentada na cama, olhava-os sem os ver, torcendo um lenço.

Conhecia-a bem: a sua rainha tinha bom coração. Amanhã, de manhãzinha, às cinco horas, faria os seus exercícios, tomaria um banho gelado, e sorrir-lhe-ia com a graça do costume. Ida ler-lhe-ia as cartas enquanto a penteavam, a vida recomeçaria igual e tudo seria esquecido. Ela perdoaria. Mas ele? E se ele a descobria?

Levantou-se, preocupada, pegou num papel, numa caneta. Prevenir a polícia? Franz... Como é que ele dizia? Bascher? Taschler? Taschnik!... Achara o nome. Seria suficiente? Ora! Era o trabalho dos polícias. O dela era o de avisar.

Sentou-se diante de uma escrivaninha, e ficou de caneta no ar.

- Mas seria uma cobardia apesar de tudo - murmurou. - Ele não fez nada de mal... E se ela sabe! Não! Não é possível.

Desabotoou o vestido e começou a chorar. Ele beijara-a... E essa coisinha de nada tocara profundamente a sua Imperatriz, a sua pura Elisabeth! Ela que não gostava de intimidades! Ainda se fosse um nobre húngaro como havia tantos a fazerem-lhe a corte, mas não! Um escriturariozeco! Um funcionário público! Que vergonha! E com uma palavra ela revelara tudo... Assoou-se, limpou os olhos, e depois desatou o espartilho com tanta força que partiu um cordão.

- Ora toma - fez ela atirando-o para o chão. - E toma - prosseguiu puxando brutalmente as ligas - e toma!

Uma após outra, as peças de roupa interior caíam no tapete. Quando só restava a camisa, com um gesto, rasgou-a de alto a baixo.

- Para queimar - murmurou. - Não quero voltar a usar nenhuma destas malditas roupas. Nada que me possa lembrar aquele desgraçado baile. E aquele Willibald que me apertava a dançar!

Acalmou-se e contemplou, enleada, a cambraia em farrapos.

Estava sozinha. Votada ao celibato - sabia-o de antemão, já que a Imperatriz exigia das suas companheiras um celibato interminável, e a mais estrita castidade. Nada de homem. Se uma delas se casava, era expulsa. Ida vivia como uma freira aos pés daquela mulher, cedia-lhe tudo, iam ao baile escondidas e anónimas e não era que a Imperatriz se deixava beijar pelo primeiro que aparecia!

- Vejam lá se o outro, o Willibald, me beijou! - resmungou. Mecanicamente, enfiou a roupa de dormir, soltou o cabelo, entrançou-o como devia ser e molhou um pedaço de tecido no jarro de água. Ela protegeria a Imperatriz...

- ...Porque ela não vai ficar por aqui - disse enquanto lavava o rosto. - Como é que ele dizia? “Acho-a capaz de tudo.” Tinha razão, o rapaz. Ela seria muito bem capaz de fazer tudo para o voltar a ver. Oh! Vou tomar a coisa a meu cargo. Ela só me tem a mim no mundo, é o que ela me diz todos os dias. Não a vou deixar comprometer-se com aquele rapaz...

Abriu a cama, deu umas pancadinhas na almofada e deitou-se de lado.

No dia seguinte, de manhãzinha, falaria com ela. Esclareceriam tudo. A Imperatriz já estava certamente a dormir... Dormia sempre como uma criança. E quando queria era tão terna, apesar de tudo... Muitíssimo ríspida às vezes, mas tão doce...

A senhora Taschnik preparava o café da manhã. O leite aquecia ao canto do fogão. O céu clareava, um céu azul-turquesa. O dia seria frio e bonito. Franz não tardaria a descer. Pelo menos, se conseguisse acordar.

Só Deus sabia a que horas voltara ele do baile... À meia-noite, acordada em sobressalto, olhara o relógio, ouvira um ruído surdo, e depois mais nada. Atenta ao silêncio, escutara, do outro lado da porta o gato miar, o filho não tinha chegado. Virara-se, resmungando, debaixo do edredão; meia-noite, aliás, era o momento da quadrilha, cedo de mais para um jovem. Mas não voltara a adormecer.

Também ela, na mocidade, apreciara a valsa. Fora antes da revolução fatal, quando os dois reis da época disputavam os favores da cidade, Lanner e Strauss, Strauss e Lanner, a ponto de não se saber qual deles a gente ouvia, de tal modo eles se degladiavam através da música. Quando era ainda pequena já os pais a levavam a ouvir os duzentos músicos do falecido Johann Strauss, ao café Zum Sperl; Lanner tinha o Grande Baile de Máscaras, Strauss o Sperl, eram rivais e amigos, e depois zangaram-se, Lanner morrera, Strauss triunfara. O seu finado marido continuara a gostar muito dos ritmos graciosos e lentos de Lanner. Lembrava-se muito bem, dizia ele: “Cheira ainda a campo, são os Lãndler dos bons velhos tempos...” Mas ela já então preferia Strauss.

O mais velho, é claro. Como toda a cidade, ouvira falar do desafio épico que o filho Strauss, esse diabo, lançara ao pai, numa noite de Outono, quatro anos antes da revolução, em Schõnbrunn, longe de Viena, mas tão perto de Hietzing que, por pouco, ela teria podido ouvir os ecos do conceito no Casino Dommayer. Apesar da oposição do grande Strauss, o jovem Johann para formar uma orquestra, arrebanhara aqui e ali uns vadios e compusera as suas próprias valsas. A sala estava cheia que nem um ovo, Viena rendera-se ao novo vencedor, e o próprio pai Strauss, que se deslocara para assistir ao evento, fora obrigado a reconhecer; o filho ganhara.

A senhora Taschnik nunca mais acabava de repisar os seus rancores. Não era uma vergonha? O pobre Johann pai morrera de escarlatina, apagara-se como uma vela. Enfim...

“Nos bailes ainda vá lá, mas na parada imperial apesar de tudo ainda é a música do pai que se toca!” Porque ela tinha a certeza: Marcha Radetzkyhzúa. de ser como o Império, imortal.

O seu Franzi gostava da música de Johann Strauss filho. Ela não se acostumava àquilo. O ilustre vizinho provocava-a e compunha ao piano; enquanto estendia a roupa, apanhava trechos de polca e melodias a três tempos... Lenta ou arrebatada, a valsa nascia no jardim do lado. E a senhora Taschnik bem sentia, pelo encanto envolvente dos esboços fragmentados, o espírito diabólico do patife incorrigível, esse vermelho que encarnava todas as forças do mal. Recolhia a roupa e praguejava em silêncio. Uma vez, uma única, ousara explodir abertamente, Franz respondera-lhe desabridamente. “O velho Strauss não passava de um porco reacionário! - berrara Franzi. - O diabo que o carregue!” A senhora Taschnik ia desmaiando. “Estás a atraiçoar a memória do teu pai!” - gritara ela antes de se deixar cair numa cadeira, arquejante, e Franz calara-se, mortificado.

Depois do incidente, a senhora Taschnik fizera marcha atrás. Admitira de má vontade o sucesso da valsa mais célebre de Strauss filho, O Belo THemúbio AzuL Quanto a Franz, por puro respeito filial, ia até conceder alguma valia à Marcha de "Radetzky: tinha animação, vivacidade, em resumo o suficiente para fazer marchar um exército. Aliás, presentemente, quando se falava de valsas em casa dos Taschnik, evocavam-se “os Strauss” sem especificar; já não se discutia. Mas a senhora Taschnik não abdicava das suas ideias.

E era por causa das valsas do Strauss filho que Franzi tardava a chegar. Agora os ricos valsavam, no Grande Baile, junto dos poderosos do momento, “meu Deus, o que é que irá acontecer?” cogitava ela vendo as horas. Com essas mulheres de má vida que escondem os vícios debaixo dos grandes dominós... Duas horas. Fora apanhado, de certeza; tinha começado um namorico. Amaldiçoou a valsa, que não mais poderia dançar. Um pouco de corpulência não prejudica, pensou, mas é preciso que o cavalheiro possa rodear a cintura do seu par, e cintura ela já não tinha-As quatro horas ouvira-o enfim subir pesadamente a escada, e caíra num sono pouco reparador. Às seis horas levantara-se e, mecanicamente, descera a preparar o café. Franz ia acordar. Senãou-se na poltrona, bocejando.

Um som forte e regular martelava-lhe os ouvidos; ao longe, um bando de sinos lançava-se ao assalto do céu; Franz abriu os olhos e reconheceu o papel pintado do quarto. Deitara-se completamente vestido, com a mão em cima do leque quebrado.

- Os sinos... - resmungou. - E este barulho! Um caldeireiro? A mãe não me acordou? Mas que horas serão?

Levantou-se com dificuldade e foi à janela. Nas carrocinhas puxadas por cães, as leiteiras embiocadas levavam já os baldes vazios; os padeiros já não tinham nada nos cabazes; as mulheres, nos seus agasalhos de peles, transportavam cestos cheios de vitualhas, um grupo de judeus de cafetãs pretos conversava batendo com os pés na calçada, era dia claro e o céu estava de um azul insolente.

- Oito horas - suspirou o jovem passando a mão pelo queixo. - Para ir ao escritório já é tarde, não vou ter tempo de fazer a barba. Em que estado eu fiquei! O fraque está todo amarrotado, o colete... E os sapatos! Sem arranjo. Todos estalados. Foi a neve, esta noite... E tenho os pés inchados. Franz Taschnik, és um imbecil.

Despiu-se rapidamente e, pegando no jarro de porcelana, despejou-o de uma vez só sobre o corpo imenso. Arrepiou-se.

- Nunca me tinha acontecido tal coisa - disse ele esfregando-se vigorosamente - deitar-me vestido! Enfim...

Cantarolava alegremente, e começou a assobiar: “A sorte é uma galdéria, uma galdéria sem sentimentos...” quando de súbito o olhar lhe cai sobre o leque de tafetá preto. De toalha na mão, imobilizou-se bruscamente.

- Está bom tempo, ela vai ao Prater - murmurou. - No seu alazão, ela vai lá estar... E eu também. Já que falto ao escritório hoje de manhã...

Abriu o armário, ficou um instante pensativo diante do guarda-roupa, escolheu umas calças cremes, uma casaca castanha... Depressa! ela tinha fama de ser muito matinal.

Num abrir e fechar de olhos Franz estava vestido. Ajustou a gravata, e apercebeu-se de que se tinha esquecido de fazer a barba. Pegou na navalha a toda a pressa, e ao primeiro frio da comprida lâmina sobre a pele, cortou-se.

- Raios! - queixou-se ele dando palmadinhas na face. - Não tenho sorte nenhuma. Logo hoje, um arranhão. O casaco...

Antes de sair do quarto, parou diante do espelho. Um jovem de grandes olheiras fitava-o com severidade, um gigante de rosto cortado por um fino golpe que ainda sangrava.

- Não está apresentável para ir ter com uma Imperatriz, caro senhor - gorjeou ele fazendo uma voz de mulher.

- ... Não? Pois bem, paciência! Está aberta a caça! - continuou retomando o seu tom de voz, e desandou pela escada abaixo.

A senhora Taschnik adormecera na poltrona. Franz passou por ela devagarinho, empurrou a porta com a agilidade de um gato, e saiu sem ruído para o frio do dia claro.

Sentada diante do toucador, com uma casaquinha branca pelas costas, a jovem senhora abandonava a cabeça às mãos da cabeleireira oficial, que alisava as madeixas onduladas uma a uma, cuidadosamente. A criada de quarto, com os braços cheios de roupas, esperava junto à cama, e Ida, de olhos baixos, sentada na beira de uma poltrona, abria o correio em silêncio.

- Gostaria de falar consigo, minha senhora-disse ela de súbito, tossicando.

- Então fale - respondeu a Imperatriz.

- É sobre... Sobre a nossa noite de ontem - murmurou Ida embaraçada.

- O baile da Corte? - atirou a jovem senhora num tom neutro. - Diga. Foi bastante aborrecido.

A cabeleireira inclinou-se para fazer uma primeira trança.

- Ai! - gritou ela segurando o cabelo. - Está a puxar-me os cabelos, minha amiga!

- Vossa Majestade mexeu-se - desculpou-se a cabeleireira. - Apanhou-me de surpresa...

Está a ver, condessa! - sussurrou a jovem senhora. - Ao mínimo movimento os meus cabelos embaraçam-se e magoam-me. Não me incomode enquanto me fazem as tranças. Enrole-as muito bem enroladas - disse ela à cabeleireira - vou galopar.

Os dedos da cabeleireira apartavam os cabelos com uma destreza espantosa; a segunda trança apareceu.

Vossa Majestade não receia certos encontros no Prater...? - arriscou a leitora cautelosamente.

Que encontros? - replicou a jovem com ar inocente. - Quando monto a cavalo, não me detenho.

- E verdade - murmurou Ida. - Mas preferia segui-la de carruagem. Ao menos hoje, minha senhora.

A Imperatriz franziu o sobrolho; mas talvez fosse por causa dos ganchos na coroa de tranças que lhe fixavam na nuca. Ida recuou.

- Vossa Majestade está livre - anunciou a cabeleireira inclinando-se numa reverência. - Está pronto.

Ergueu-se de um salto e apalpou a construção.

- Bem sólido, perfeito. As botas vermelhas, Gabriela - pediu ela à camarista. - Faça o favor de mas calçar.

De pernas esticadas, enfiou-se nas botas que a criada de quarto empurrava, vestiu um casaco preto e deixou-se apertar numa comprida saia de amazona em tecido escuro.

Quando estou na Hungria ninguém vai ver-me galopar - suspirou. - Mas em Viena, devoram-me com os olhos... Detesto esta cidade. O chapéu preto. O lenço de pescoço está aqui. As luvas. Falta alguma coisa?

- O pingalim - disse Ida.

A jovem correu a uma mesa onde se alinhavam vários e escolheu um de castão de nacre.

- Pode levar o meu cabriole, condessa, se quiser, e seguir-me - atirou ela. E se o meu cavalo estiver cansado, conversaremos.

O jovem engolira à pressa um café muito quente a caminho do Prater, atravessara os acampamentos adormecidos ao longo das paliçadas, depois correra até aos bosques, através dos relvados. Os campos estavam quase desertos; raros passeantes caminhavam depressa, de nariz enfiado nos abafos, e alguns cavaleiros passavam a trote por entre as árvores cobertas de neve. Franz percorrera os caminhos tiritando. Durante uma hora, não vira nem sombra de uma mulher.

- Ela há-de vir - disse esfregando as luvas uma na outra. - Mas nunca mais vem... E tenho o estômago a dar horas. E se fosse comer qualquer coisa?

Olhou de soslaio para uma encruzilhada um pouco mais adiante; debaixo de um toldo, havia à venda salsichas e vinho quente. O aroma da canela e da gordura queimada fez-lhe palpitar as narinas. Mesmo ao lado, um vendedor de castanhas atiçava filosoficamente o lume.

“Mas tenho de me afastar das pistas dos cavaleiros... - pensou o jovem, hesitando. - Não! Espero por ela aqui. Ou então as castanhas?”

Não aguentou mais, e correu a comprar um cartuxo cheio de castanhas bem quentes. A primeira que comeu queimou-lhe o céu da boca.

- Viva o Inverno! Não há nada que chegue ao prazer de nos engasgarmos de manhã cedo com castanhas douradinhas!

O vendedor aprovou fazendo que sim com a cabeça.

Franz abria a boca para comer outra castanha quando avistou ao longe a amazona num cavalo baio. Vinha em trote curto, e o lenço de seda branca ondulava por cima do fato preto.

- Olha! A nossa Imperatriz - constatou o vendedor de castanhas, fleu-mático. - Há muito tempo que a gente não a via por aqui... Não deixa de ser bom!

Franz permaneceu estupefacto, com a boca aberta e a castanha na mão. A amazona prosseguia o seu caminho sem o ver, e ele não lhe distinguia as feições. Ela ia passar, estava a passar... Rapidamente, deitou fora o cartuxo, limpou o queixo, e precipitou-se.

- Já não lhe agradam as minhas castanhas? - gritou de longe o vendedor, zangado.

Decidido, Franz colocou-se no carreiro, ofegando. Conseguira chegar primeiro.

- Ou ela pára, ou me mata! - murmurou ele, excitado. - Vem, minha linda, vem depressa! A galope! Estou à tua espera!

A amazona aproximava-se dele em andamento rápido e o cavalo vacilou ao ver o jovem. Franz fincou as botas na neve e esperou, firme. O animal relinchou; a jovem senhora inclinou-se sobre as crinas.

- Vamos! - gritou erguendo o pingalim. - Avança Rosy!

O cavalo empinou-se; a amazona deixou correr as rédeas, Franz lobrigou-lhe o vermelho das botas e fechou os olhos. Um breve grito, um terrível estrondo, um sopro ruidoso, uma nuvem de neve... Quando ele se atreveu a olhar, a amazona passara. Lançada a galope, desaparecia na bruma iluminada pelo sol.

- Nem sequer me olhou - gemeu ele - e nem a vi!

O caminho estava deserto. Da cavaleira desaparecida e do seu cavalo baio, restava apenas a terra espezinhada, grandes buracos negros na neve, e a erva rangente do Inverno. Num rasgo de vergonha, o jovem pensou nas guerras que devastavam as montanhas longínquas, na Bósnia, e que também deixavam marcas no branco do Inverno, manchas vermelhas como as botas da Imperatriz.

Ida postara-se no redondo da encruzilhada, em pleno bosque. Quando avistou o cabriole laçado a preto, a amazona deteve o cavalo, e inclinou-se para a vidraça aberta.

- Viste? - gritou. - Ele estava lá!

- Quase o matava! - murmurou Ida, lívida.

- Eu tinha razão - disse a jovem a meia voz. - Ele veio...

- Pois estava à espera que viesse? - bradou Ida.

- É corajoso - replicou a jovem brandindo o pingalim. - Gosto!

E partiu de novo a galope num esvoaçar furioso. Ida teve a impressão que ela lhe gritava de longe: “Até já”, mas com ela nunca.se sabia.

No dia seguinte, Franz levantou-se com o sol e, muito antes de os ministérios abrirem as portas, foi rondar a Hofburg das mil portas. A grande massa escura não acordava do seu sono, apesar da agitação contida dos fornecedores e dos soldados, que iam e vinham esfregando as mãos para se aquecerem. Os primeiros alvores do dia iluminavam o dourado das armas imperiais, mas apesar de se saber que suas majestades estavam levantadas desde a aurora, o Império ainda não despertara. Franz também não; não estava acostumado.

No primeiro dia, esperou uma hora diante de um piquete da guarda; viu sair várias carruagens, das quais duas muito escuras e armoriadas, e o coração pulsou-lhe no peito, em vão: nenhuma mulher. No segundo dia mudou de porta, continuava a estar muito frio, e numerosas carroças entraram no palácio, carregadas de barris, ou cobertas com toldos, entregas de mercadorias. Não saiu nenhum veículo oficial. No terceiro dia, à terceira porta, o vento soprava entre os aguaceiros de neve, e o céu baixo caía sobre a cidade; Franz lobrigou vagamente as confusas silhuetas de senhores gordos agasalhados em peles, e continuava a não se ver nenhuma mulher. Nesse dia decidiu informar-se, como quem não quer a coisa; o primeiro soldado da guarda mandou-o passear, o segundo aceitou tabaco e falou: a Imperatriz saía sempre num cabriole não armoriado, inteiramente preto, e passava pela porta menos majestosa.

- Ela não quer é que a incomodem - casquinou o soldado enchendo o cachimbo. -- Mas se quiseres absolutamente vê-la, camarada, o melhor é postares-te um pouco mais longe, diante da pastelaria Demel. Pode ser que tenhas sorte. Servus, meu velho! E obrigadinho pelo tabaco!

Demel ficava a dois passos da Hofburg, Demel abria tarde, e durante três dias Franz levantara-se cedo para nada.

Foi pois trabalhar como de costume, à espera do fim da tarde.

No ministério dos Negócios Estrangeiros, geralmente baptizado “Ballhaus-platz” por causa da praça onde se erguia o edifício, havia inquietação quanto aos resultados da visita do Imperador a S. Petersburgo; fora uma ideia do ministro, o húngaro Andrassy, que queria a todo o custo estreitar os laços entre o Tzar e o Imperador. Oficialmente, os soberanos deviam “tratar da questão do Oriente”, quer dizer debater a partilha dos despojos da Sublime Porta, esse Império otomano que se tornara, em linguagem diplomática, “o homem doente” da Europa.

Oficiosamente - era nos gabinetes um segredo de Polichinelo -, o Imperador queria sobretudo garantir a neutralidade da Rússia. Porque os generais austríacos, pelo menos os mais duros, encaravam seriamente uma intervenção militar nos Balcãs, na Bósnia e na Herzegovina. O ministro Andrassy era contra, a Corte era a favor, e o Imperador hesitava.

Os Eslavos do Sul, cristãos, começavam a rebelar-se contra os nobres muçulmanos, cuja pesada tutela parecia estar a chegar ao fim. Nos corredores, certos jovens diplomatas demasiado zelosos falavam compungidos dos “raias - os cristãos -, da “robote” - um novo imposto sobre a terra -, da “tretina” - o imposto em fruta e legumes -, sem esquecer os velhos tributos, que datavam do esplendor da Sublime Porta, o “harac”, pela isenção do serviço militar, o “vergui”, imposto imobiliário, a “dízima”, sobre os cereais... Os desgraçados cristãos da Bósnia e da Herzegovina tinham muita necessidade de assistência.

Mas, apesar de os pronunciarem com o deleite das pessoas bem informadas, os termos otomanos arranhavam a boca dos diplomatas do ministério; em Viena não estavam esquecidas as antigas ameaças de invasões turcas, e a Sublime Porta continuava a suscitar as velhas emoções, recordações de cercos e de batalhas.

Socorrer os cristãos oprimidos tornava-se um dever europeu. O ministro Andrassy repetia-o com frequência, não sem lembrar todavia que o maior perigo seria vê-los constituírem um Estado eslavo autónomo junto às fronteiras do Império: devia ser feito tudo para favorecer negociações pacíficas. Não obstante, desde o ano anterior, a opinião pública estava a ser preparada para uma operação de envergadura.

Os jovens diplomatas exercitavam-se então repetindo em sérvio um rifão que, para quem os quisesse ouvir, resumia o porquê da situação: “Krascaninu suda nema”, para o cristão não há justiça. A compaixão pelos pobres Eslavos do Sul, o respeito infinito que bruscamente se manifestava pela coragem dos Jugo-Eslavos, a admiração pela “Zadruga”, essa associação patriarcal agrícola, em suma, a súbita chama serviofila enchia com tanta força os corações diplomáticos que na secção administrativa, onde trabalhavam os escriturários Taschnik e Strummacher, ninguém tinha a menor dúvida sobre a realidade.

O ministro Andrassy talvez não fosse o autor do projecto de intervenção na Bósnia; a ideia talvez viesse da Corte. Mas por mais que o ministro resistisse, não aguentaria muito tempo. Em breve haveria outra guerra. Tanto mais que importantes investimentos nas novas linhas de caminho-de-ferro através dos Balcãs tornavam a intervenção inevitável.

- Ouvi o chefe de secção falar de uma organização secreta de propaganda eslava - segredou Willy com um ar sombrio. - E novos refugiados da Bósnia acabaram de chegar à capital. Estás a ver! A coisa está para durar.

Franz ouvia-o distraidamente e preenchia documentos sobre as despesas do pessoal enquanto pensava que se estava a fazer tarde, e que ia faltar ao encontro secreto com a Imperatriz, em frente da pastelaria Demel.

- O Imperador quer a guerra, vai tê-la... - continuou Willy baixinho. - Tu não me estás a ouvir, Franzi!

Não era um dia favorável às conversas políticas. Franz esperou febrilmente a hora do fecho das repartições.

Tinha resolvido pôr-se de atalaia em frente das montras verde-garrafa do ilustre pasteleiro. A neve não parava de cair; os clientes, de nariz baixo, entravam e saíam sem se demorarem, o cabriole não veio, e era o quarto dia. A noite caíra há muito, e as luzes reflectiam-se debilmente no chão lamacento. A pesada cortina de ferro estava já a ser corrida, quando ele ouviu o barulho abafado dos cascos.

O cabriole preto acabava de parar um pouco mais longe. Franz precipitou-se para a carruagem e viu-a através do vidro. Com um chapéu de pêlo cinzento, o queixo enterrado numa pele imaculada, o rosto sério, os lábios invisíveis, era Elisabeth, quase parecida com os retratos, mais pálida ainda, transparente. Ao vê-la assim bem de perto, tão simples e tão vulnerável, Franz começou a tremer todo, e num gesto receoso tirou o chapéu.

Ela olhou-o como se ele não existisse, ergueu a mão enluvada e acenou, um pequeno aceno rotineiro como sempre em público. Depois baixou a cortina diante da janela, e desapareceu. O cabriole retomou logo a marcha, e Franz pensou ter visto a cortina traseira levantar-se e uma mão limpar o gelo do vidro.

Ela nada mostrara, nada traíra. Era a Imperatriz num dos seus dias bons, suficientemente bons para um gesto oficial e um olhar distante. De raiva, Franz atirou o chapéu para o chão. Não era, não podia ser a Gabriela do baile de máscaras.

- Então, estás com uma cara... - exclamou Willibald ao ver o amigo entrar no café Landtmann. - Vem para aqui... Desde aquele famoso baile que não conversamos. Chegas tarde ao ministério, ligas tanto à viagem imperial à Rússia como à primeira camisa que vestiste... Palavra de honra - acrescentou, olhando-o com atenção - tens o rosto desfigurado.

- Estou cansado - resmungou Franz. - É este Inverno que nunca mais acaba.

- Pois - replicou Willibald. - E o dominó amarelo. Quando penso que os Turcos massacram os pobres raias da Bósnia! E enquanto isso, tu, um bom austríaco, aferras-te a uma qualquer com quem nem sequer dormiste!

Franz enterrou-se no assento, a um canto, sem uma palavra.

- Continuas sem saber quem ela é, não continuas? Ela não disse nada, é claro...

- Não! Enfim, disse... - bradou Franz exasperado.

- Espera lá... Que quer dizer “enfim, disse”? Deitou ou não deitou tudo cá para fora?

- Não posso dizer nada - murmurou Franz. - É segredo.

- Ah! - fez Willibald gravemente. - Então ela descoseu-se.

- Ela, não! Mas Ida... Não vais acreditar - disse o jovem desanimado.

- Rapaz, um café com cheirinho para o senhor Taschnik e uma taça de branco! - gritou muito depressa Willibald chamando um criado. - E não poupem na aguardente!

- É para já, senhor Strummacher.

O criado trotou sem se apressar até à copa. Quando o café com cheirinho chegou à mesa, o gordo Strummacher deu umas palmadinhas no ombro do companheiro e começou a beberricar o vinho branco.

- Vais-me engolir isso, rapaz. Então, com que é que ela se descaiu, a bela Ida?

- Tratou-a pelo título... - suspirou Franz.

- Deixa-me adivinhar. Condessa? Demasiado banal. Baronesa? Duquesa? Não? Arquiduquesa? Também não? Então o quê? Confessa!

- Vossa Majestade - sussurrou Franz baixando a cabeça. Com a surpresa, Willibald entornou a taça de vinho branco.

- Queres deixar-te de brincadeiras? - rosnou ele baixinho. - A Imperatriz? Ora adeus! Imbecil!

- Acabo de me aperceber disso - confessou o jovem envergonhado. - Primeiro estive no Prater, vi-a a cavalo, quase me deitou por terra... Mal a vi porque fechei os olhos! Vi-lhe as botas. Escarlates.

- Já é um princípio - troçou Willibald. - Aposto que depois arranjaste maneira de a veres no cabriole...

- Exacto. E acabo de a ver de perto. E bela como uma estátua! Mas não é a mulher do dominó amarelo. A Imperatriz tem olhos escuros, quase pretos; e a outra um olhar dourado, um pouco como o de uma ave de rapina... E depois ela ter-me-ia sorrido!

- Porque tu imaginaste... É de mais! - exclamou Willibald com um largo riso. - Ouve, também eu, durante uns minutos, tive essa ideia. Mas não podia ser. Tratou-nos com demasiada familiaridade. E depois... Era demasiado simpática. Demasiado faladora. Demasiado... Enfim!

- No entanto, aquela cintura - balbuciou Franz - aquela distinção...

- A cintura? Não dancei com ela. Mas no grupo das minhas amigas descubro-te três donzelas com uma cintura que a gente abarca com as duas mãos!

- Mas o leque. O leque sem brazão... E Bad Ischl - suplicou Franz à beira das lágrimas - será que o dominó amarelo não me falou de Bad Ischl?

- A estância mais mundana do Império! Que bela prova! - ironizou Willibald. - Palavra de honra, estás apaixonado!

- Estou - murmurou Franz. - Por um fantasma.

- Engole o café enquanto está quente. Sabes o que te digo? Amas uma simula-do-ra.

- Achas? - implorou Franz. - Mas contudo... A maneira de colocar a cabeça, era mesmo...

- Meu idiota! - trovejou Willibald. - Imagina por um momento - apenas por hipótese, está bem? - que o teu dominó seja a Imperatriz. Estarias em muito maus lençóis!

O jovem encolheu-se ligeiramente e fechou os olhos. Willibald deu-lhe uma palmada amigável no ombro e encomendou uma cerveja. Franz roía as unhas.

- E porque é que a outra lhe teria chamado Vossa Majestade? - gritou ele subitamente. - Ah! Estás a ver! Ficas perturbado.

- Mas com certeza para troçar de ti - replicou Willibald após um longo silêncio. - Tinham tudo combinado. Com farsantes daquele género!

- Foi o que disseram - suspirou Franz. - Deixei que me enganassem como se fosse um garoto.

- Já estás a recuperar o raciocínio - disse Willibald. - O melhor, acredita, é esqueceres. Mereces melhor mesmo numa simples aventura. Aquelas fulanas não eram coisa boa.

- Nada disso! - gritou Franz. - Ela cita Heine!

- E então?

- Então a Imperatriz também adora esse poeta - murmurou Franz torcendo o casaco. - E as mulheres de vida fácil nunca o citariam!

- Que ideia - concluiu Willibald. - A ideia mais estúpida que eu já ouvi. Um poeta, um Judeu ainda por cima, como prova de identidade de uma pega! Seria muito melhor que te interessasses menos por essa marafona e um pouco mais pelo destino dos cristãos nos Balcãs...

A Imperatriz, com a mão no peito, encostou-se aos estofos do cabriole.

“Estive prestes a sorrir-pensou olhando os dedos trémulos. - Um segundo mais e sorria-lhe! Que esforço... O olhar, principalmente...”

Endireitou-se, tirou as luvas brancas, e torturou nervosamente a aliança. De cada vez que pretendia passear a pé, a turba aglutinava-se em volta dela. Os transeuntes acorriam de todo o lado, as senhoras com gritinhos radiantes, as crianças que eram empurradas para ficarem na primeira fila, na esperança de receberem um rebuçado, um beijo, uma recordação para mais tarde, num ápice o mal estava feito. Um bando de predadores de olho vivo, clamando alto, pássaros ou cães, ladrando à volta do charco onde estava o veado moribundo, ela, a presa, vencida.

Da última vez fora no Graben: a sua dama de companhia, a condessa Maria, quase caíra, e ela, pálida, muda, esforçava-se por sorrir de dentes cerrados, estendia a mão enluvada, murmurava “com licença, deixem-me passar, com licença”... A condessa Maria gritava: “Estão a asfixiar a Imperatriz! Arredem!” Mas não havia nada a fazer, continuavam a chegar, aclamavam-na, eram aos milhares. “Socorro!” gritara a condessa em vão...

A polícia não conseguira aproximar-se. Haviam-se livrado daquilo por milagre. E desse pesadelo ficara a lembrança dos milhares de pupilas vivas, ávidas, querendo roubar a sua imagem. Como os olhos do jovem do baile de máscaras. Se ele tivesse colado os olhos ao vidro...

Hospital de Munique. Fora também no ano anterior. A cólera alcançara a capital da Baviera e bruscamente sentira aumentar em si a pulsão que lhe era familiar: iria visitar os doentes, tinha de ir. A paixão do perigo, o gosto do sofrimento humano triunfavam sempre sobre a razão; nada a conseguiu dissuadir. Um moribundo estendera-lhe a mão, ela tomara-lha, sob o olhar inquieto dos médicos. Sentara-se-lhe à cabeceira, dissera-lhe palavras bondosas e inúteis. “Vou morrer em breve”, respondera-lhe ele numa angustiada adoração. E sorrira, um hediondo sorriso seco, que lhe punha a descoberto os dentes, olhara-a como à Virgem ou à morte. E era esse olhar que ela temia. Colado ao vidro.

Ao regressar a casa, tirara as luvas, que tinham sido queimadas. O doente falecera nessa mesma noite. A Baviera inteira ficara maravilhada com a sua caridade cristã; mas Viena não dera por nada. E ela estremecia de medo e satisfação à lembrança da agonia, um instante mais e teria ouvido o último suspiro...

“O meu coração está a bater com muita força - pensou pondo a mão no peito. - Há quanto tempo não o sentia eu viver assim? Há muito... Esse Franz, esse rapazito de nada, excita-me tanto como o meu cavalo!”

- Tenho de falar com Ida - murmurou. - Se não descubro qualquer coisa, aquele jovem louco acabará por pôr em perigo a minha segurança.

 

                                         AS CARTAS DE GABRIELA

A minha alma suspira, exulta, chora Unida que estava esta noite a tua E satisfeita, palpita e ainda estremece.

Elisabeth

Não, minha senhora, não! - bradou Ida. - Não me peça que aprove tal ideia. Uma carta sua, dirigida a esse funcionariozeco!

- Disfarço a letra - murmurou a jovem embaraçada. - Tenta compreender... É a única maneira. Assino Gabriela, a carta virá de longe, baralho as pistas, ele será assim obrigado a admitir que o dominó amarelo não era... Enfim, estás a perceber.

- Percebo sobretudo que está desejosa de lhe escrever! - exclamou Ida. - A senhora que afirma desprezar todos os homens! Não estou a reconhecê-la.

- Ele é uma criança. Não está corrompido...

- Como é que sabe? - atalhou a condessa secamente. - Lá porque ele a espia no Prater e a persegue pelas ruas de Viena, já acha que ele é fiel? É um pouco precipitado!

- Justamente. Quero pô-lo à prova.

- Ridículo! Em pleno século dezanove! Na época do comboio e da máquina a vapor! A senhora tem sentimentos de costureirinha!

Ida percorria o quarto a grandes passadas, sem conter a irritação.

- Pára de te agitares - murmurou a Imperatriz. - Estás com ciúmes.

- Ciúmes, eu? - riu-se Ida. - Decididamente...

- Decididamente, vou-lhe escrever. Aliás prometi-lhe.

- Ele não pediu nada!

- Mas eu cumpro sempre as minhas promessas, bem sabes - respondeu ela sorrindo.

- Vossa Majestade pensa que encontrou a sua alma gémea. O seu trovador...

- Claro que não! É apenas uma brincadeira...

- É o que eu digo - concluiu Ida num tom que não admitia réplica. - E de onde partirá a carta? Certamente não de Viena?

- Minha irmã vai amanhã para Munique. Para uma primeira carta, é exactamente do que preciso.

Ida ergueu os olhos ao céu e juntou as mãos.

- Lá estás tu a rezar - ironizou a jovem.

Nunca escrevera cartas de amor.

Quando o Outro a escolhera, tão depressa, em poucas horas, ainda ela não havia completado dezasseis anos. Fora preciso responder sem demora, a mãe e a tia andavam à volta dela - aceita! diz que sim! - não a largavam, tratavam de a convencer com o argumento supremo: não se recusa o Imperador da Áustria. Quanto tempo para aceitar Francisco José como esposo? Apressadas, as duas irmãs, a arquiduquesa e a duquesa, uma com aquele tom cortante e os ares altivos, a outra com modos suplicantes. Enterrara-se, de pernas encolhidas, no fundo de um canapé, tapara os ouvidos para não as ouvir, era em Agosto, estava calor, um moscardo embatia contra um vidro e era isso que ela escutava, o insecto aveludado voando perdidamente e que parecia dizer-lhe no seu ziguezaguear: “Sissi Sie mússen es sagen, Sie mússen es sagen Sissi...”1 Gritara “Não!”, e escondera o rosto entre as mãos. Depois, no meio do maior silêncio, afastara os dedos e vira os olhos coléricos da mãe, um olhar desconhecido, terrível, estava pronunciada a sentença, “Não se recusa o Imperador da Áustria”. Apenas dez minutos para aceitar um desconhecido no seu leito.

Tudo se jogara na véspera, em Bad Ischl, precisamente quando sua irmã Helena ia ficar noiva desse jovem todo-poderoso que, bruscamente, decidira outra coisa. O Imperador nem queria crer no que lhe acontecia, estava apaixonado. Fora apanhado de surpresa, a ponto de fazer frente à arquiduquesa sua mãe; e também isso lhe custava a crer. Para ele a coisa estava resolvida, concluída, era indiscutível. Em nenhum momento perguntou a si próprio o que teria ela em mente. Ela, a interessada.

 

“Sissi deve dizê-lo, deve dizê-lo Sissi.” (N. da T.)

 

E de cada vez que pensava nisso, vinha-lhe a recordação absurda dos gerânios nas janelas, do moscardo aos ziguezagues e das valsas que ouvia à beira do Ischl. Dissera que sim. As possibilidades de agir de outro modo... No momento seguinte era tarde de mais, Augenblick*, o tempo de um pica-peixe no lago, um clarão azul. Dissera ela esse “sim” que lhe despedaçara a vida? Na verdade, não se lembrava. Acenara com a cabeça, apertara o peito, sufocada, deitara duas lágrimas de emoção, baixara os olhos, a mãe beijara-a, e pronto. Fora então que pronunciara as palavras que enterneceram toda a Áustria: “Se ao menos ele não fosse Imperador.”

Fora também então que caíra em si. Somente então. Tinha a cabeça cheia de medos que nunca a abandonariam: como vive uma Imperatriz, terei eu um pouco de liberdade e, confusa, imensa, a angústia de não o amar. Forçamo-nos, dizia a mãe. Aliás não é de bom tom. Amava eu o teu pai? Não. Nas nossas famílias, não se coloca a questão do amor; e o que importa, minha filha, é a aliança. Entre uma simples duquesa, nem sequer muito autêntica, e um Habsburgo, a aliança não se discute. É mais do que uma sorte, menina, é um destino, uma eleição. Uma Assunção!

Mas a boca dele na minha, pensara a pequena em desespero, a pele dele, e de noite sobretudo, de noite, despida... Nada a fazer. A partir do dia seguinte, era oficial: Sissi amava Franzi. Ele pegara-lhe na mão e conduzira-a diante do padre na grande igreja de Bad Ischl, e quando saíram, pela porta barroca de tijolos vermelhos e mármore branco, sob o escudo armoriado com a águia negra e dupla dos Habsburgo, apresentara a noiva ao povo.

Pela primeira vez, ela ouvira aqueles gritos de bestas-feras, que diziam ser de júbilo. Prisioneira.

O jovem Imperador apaixonado fora-se embora, depois regressara, comovido como um qualquer tenentezinho. Entretanto tinha sido preciso escrever-lhe cartas bem comportadas, que eram lidas nas suas costas antes de serem enviadas. Mais tarde, é claro, durante a guerra, ele estava na frente em Itália, pendia a ameaça da derrota de Solf erino, ela escrevera. Mas para exprimir a angústia, encontrara apenas uma única palavra de amor, sempre a mesma, uma artifício: “Amas-me?”

- Em plena guerra! A um soldado que combate! És um monstro! - gritou ela ao espelho. - E ele respondia-me que sim, o teu homenzinho, o teu pequenino! Ah! Pobre velho querido Franzi.

E desde então? Demasiado perigoso. Ninguém. Pela primeira vez na vida, era livre de escrever uma carta de amor. Livre a ponto de não saber como fazer.

 

1 Um abrir e fechar de olhos. (N. da T.)

 

- Aos trinta e seis anos! - exclamou com desespero. - Não hei-de conseguir nunca.

Contudo, ela amara, uma vez, aos catorze anos. Conhecera a obsessão de um nome, a busca de um odor num lenço de pescoço que roubara, quase por acaso, e a dependência diária das ocupações dele, do acaso dos encontros, às escondidas, em público, a todo o instante. Chamava-se Richard, era conde, e depois morreu de tísica. A mãe compreendera antes dela o idílio com o escudeiro, e ele era de posição social inferior. Exilado, depressa perdera as forças. Tinha mais ou menos a idade deste jovem.

Ela escrevera um poema um pouco desajeitado à memória dele. Mas enquanto viver, não lhe escreva nunca.

“Vejamos, - pensou sem se apressar. - Primeiro é preciso compreender-lhe os sentimentos. Até aqui não me enganei: sem termos dito nada, tínhamos encontro no Prater. Ele ama-me. E como é que ele me ama? Não é um desejo vulgar, oh! não! Este rapaz é um poeta. Que sou eu para ele? Uma mulher ideal. Uma voz por detrás de um leque, uma alma... É isso. Uma alma antes de mais nada. Acho que descobri.”

Sentou-se a uma escrivaninha e começou a redigir, numa grande letra azul de traços apressados. De uma assentada. “Meu caro pequeno, não o esperava na minha pobre vida de exilada, e você certamente também não. Fomos apanhados de surpresa num turbilhão imprevisto e as nossas almas encontraram-se. As aventuras que teve divertiram-no, segundo me disse, mas nunca tinha encontrado ninguém a quem falar de coração aberto. Quanto a mim, tinha razão; a vida passou por mim sem me atingir, apesar dos desgostos, das fugas desesperadas, e você tocou-me. Mas estamos condenados a perdermo-nos... E a cintilante miragem permanecerá inacessível. Escrevo-lhe de Munique, já que assim lho havia prometido. Não posso voltar a vê-lo, mas pode escrever-me para a posta-restante, para esta cidade onde resido durante algum tempo.”

E, num só gesto, assinou Gabriela.

Depois do café com cheirinho, Franz aceitara uma cerveja. A título excepcional. Depois outra. Depois uma terceira, uma cerveja de malte da Baviera. O Landtmann ficara vazio. Com pressa de voltar para casa, ou de ir ao encontro de alguma das suas amiguinhas como era seu costume, Willibald abandonara-o e os criados foram apagando um candeeiro, depois outro; por fim, o chefe de mesa aproximara-se do jovem e batera-lhe no ombro. “Vamos fechar”, dissera ele delicadamente. Franz levantara-se cambaleando um pouco, gritando um “Servusl” avinhado.

Do café, avistava-se ao longe a massa escura da Hofburg. Três janelas fulvas na noite. E o silêncio. Onde dormiria ela? E se de súbito ela passasse como uma sombra chinesa, com o elegante colo e as célebres tranças em coroa? Ou de cabelos caídos e braços nus? Ela afastava a cortina de renda, inclinava a cabeça e olhava para a neve na rua, via-o, de joelhos e transido, abria a janela e gritava: “É uma autêntica criança! Suba.”

Foi aos bordos até ao palácio, postou-se sob as janelas da Burg. Uma só permanecia iluminada.

Com os dedos na boca, assobiou: não houve nenhum movimento. Elevou a voz e cantou “Gabriela!”, ela não apareceu. Estava quase a arriscar um “Sissi” gritante, quando um guarda apareceu, com uma lanterna.

- É proibido estacionar aqui! Raspa-te! Gehl1

- Tá bem! Vou-me embora! - fez ele agitando a mão.

- Vadio - resmungou o guarda voltando para a guarita.

- Vai falando - proferiu Franz num arroto - que eu vou ficando.

E num movimento rígido, atirou-se de joelhos para a lama. “Deve ser suficiente... - pensou. - Mostra-te... Abre lá! Não sentes que estou aqui? Parece que tu não és tu, hein? E eu tenho a certeza. É claro que bebi. E depois? Quando te casaste com o Imperador dizia-se que gostavas de cerveja. Não és tu a Gabriela? Prova-o. Oh! Fizeste de conta que não me viste, és esperta... Mas eu sou persistente. Vais abrir? Vou contar: um... Por favor! Dois... Sei que me estás a ver.”

- E três - murmurou erguendo-se com dificuldade. - Tenho a cabeça a andar à roda. Mais umas calças estragadas. E vou apanhar frio.

- Não - disse a jovem rasgando a carta que acabava de escrever - não, assim não está bem. “Meu caro pequeno...” Ele vai achar que tudo lhe é permitido. Revelo demasiado de mim própria - sou imprudente. E depois é preciso falar-lhe um pouco dele.

Pegou noutra folha branca e escreveu sem pressas: “Caro amigo.”

- É melhor assim. Baralhemos as pistas... “Ficará espantado ao receber as

 

1 Vai! (N. da T.)

 

minhas primeiras linhas de Munique.” Bem. “E aproveito para lhe dar notícias como tinha prometido.” Perfeito!

De caneta na mão, deteve-se, hesitante.

- Um pouco frio... Ele há-de ter espiado todas as manhãs a vinda do correio, de coração aos saltos. “Com quanta ansiedade, com que palpitações as tem esperado! Não, não negue. Sei tão bem como o meu caro amigo o que sente desde a nossa famosa noite.” “Nossa...” Demasiado íntimo.

Riscou a palavra “nossa”, acrescentou “aquela” e piscou os olhos para avaliar o efeito da rasura.

- Aquela famosa noite... Decididamente, não. Tenho de voltar ao princípio - suspirou amachucando o segundo rascunho.

“Meu caro jovem, ficará espantado ao receber as minhas primeiras linhas de Munique. Estou aqui de passagem por algumas horas e aproveito para lhe dar notícias, de acordo com o prometido. Não o esperava na minha pobre vida de exilada, e você também não, que eu bem vi. Esperava receber esta carta? Não sei. Quando peguei no seu cartão, você estava profundamente desesperado. Imagino os seus sentimentos! As noites e os dias passaram, intermináveis horas sem esperança, sem resposta, a não ser uma carta que talvez não viesse nunca... Com que ansiedade a esperou! Não o negue. Não tenha receio... Temos em comum a recordação de um baile; e por demais sei eu o que sente desde a noite do nosso encontro.” Releu com satisfação o que escrevera. i, - Leve, elegante, carinhoso mas não em demasia... - murmurou. - Ele ficará feliz. Mas não era a sua primeira aventura... Ele tem experiência e eu não!

Com as mãos húmidas, a cabeça confusa, sentiu-se ameaçada por uma deliciosa traição, um abandono sentimental que nem parecia coisa sua. A excitação invadiu-a.

“Falou - escreveu ela sem reflectir - a milhares de mulheres e de raparigas; pensou sem dúvida que se divertia, mas o seu espírito nunca encontrou a alma gémea. Não podemos enganar-nos um ao outro, meu caro jovem. Finalmente encontrou, numa miragem cintilante, o que há muitos anos procurava...”

- Ah! Ficou realmente bem - disse. - A miragem está perfeita. Com um pouco de sorte ele terá perguntado a um húngaro o significado de delibab, ele vai perceber.

“... mas à medida que nos aproximamos, a miragem esvai-se e não torna, e quando julgamos tocá-la, é para a perdermos para sempre” - escreveu ela aplicadamente. - Acabaram-se as ilusões, Gabriela. Basta. Assina e fecha a carta. Senão, não a mandas.

E nas costas do envelope, escreveu:

Çabrida, posta-restante, Munique.

Nenhum apelido. Depois, num movimento apaixonado, beijou o papel para aí deixar a marca dos lábios.

Foi isto no exacto instante em que FranzTaschnik, de boca pastosa, se deixava cair em cima do edredão maldizendo a sua própria parvoíce.

- Essa agora! - repetiu o jovem sentando-se na cama.

A mãe estendera-lhe o envelope com um olhar maldoso, “Uma carta para ti, Franzi”, depois começara a fazer mais café, como se nada fosse. E ele, apalermado, contemplava o pedaço de papel com uma letra desconhecida, de grandes traços insolentes de uma nobreza desenvolta, a tinta azul, com um carimbo de Munique.

Estupidamente, exclamara “Essa agora”, a mãe erguera os olhos, “Nem te pergunto quem te escreve de Munique”, resmungara. Abraçara-a, ela debatera-se, furiosa, a cafeteira entornara-se. “Bonito serviço!” gritara a digna senhora Taschnik. Franz já tinha desaparecido pelas escadas, com a carta na mão.

Rasgou o envelope sem nenhum cuidado, apressou-se a ver a assinatura, Gabriela. Leu a toda a pressa, procurou a palavra “amor”, e atirou-se sobre a almofada amachucando o papel.

- Nada! Ela não me ama! - murmurou. - Fria como Desdémona. Aquela mulher foi um sonho.

Depois alisou a carta, endireitou-a bem em cima do lençol.

- Ora vejamos. Cientificamente. “Meu caro jovem...” Muito maternal. Mas a continuação! Imaginar que estou ansioso! O que é que ela pensa? Que estou à espera dela? Que tenho esperanças? “ Não o negue”... É claro que nego! Nego, minha senhora... E imagina que sabe o que se passa comigo? Eu digo-lhe: estou decidido a esquecê-la, e pronto! “ Milhares de mulheres” - ela exagera. Três ou quatro, talvez...

Pensativo, pôs-se a contar pelos dedos, “Margrit, Elsa, Amélia, Margot, Greta... umas seis, vá lá, as outras esqueci-lhes os nomes”.

- Bom! - disse levantando-se. - Essa louca diz mais o quê? “A alma gémea”...

De súbito os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. A alma gémea... Era simpático, isso. De repente a cólera abandonou-o.

No momento seguinte, depois de ter fechado a porta à chave, escrevia furiosamente.

“Caro dominó amarelo, é verdade que aguardei a tua carta sem grandes esperanças. Calcula que nem conheço o teu rosto... És bela, não duvido, mas como acreditar na tua promessa? Parecias tão assustada... Imagino os teus receios, escreves às escondidas, não és livre, e arranjas coragem para correr esse risco por mim! Não te digo da doçura das minhas recordações porque sei que as conheces e que talvez as partilhes, num suspiro... Lembra-te do filtro, ele faz efeito! Mas, bela dama desconhecida, querida Gabriela, poderás tu, ao menos responder às perguntas do teu adorador?”

- É de mais - murmurou. - Admirador é melhor.

E rasurou “adorador” com cuidado, escreveu por cima “admirador” de modo que ainda se podia ler a primeira palavra sob a segunda.

“Diz-me, primeiro, se ainda pensas em mim. Se a resposta for sim, quero saber quando; de manhã, ao levantar, quando a tua linda cabecinha toda se enfeita i do castanho dos teus cabelos, ou à noite quando adormeces... Depois, em que é que ocupas o teu tempo? Como são os teus cavalos, de que cor são eles? És uma | mulher ciumenta? Eu, devo prevenir-te que sou uma espécie de Otelo. E finalmente, quando voltarei a ver-te? Disseste-me que ias deixar Viena e eu não acreditei. Procurei-te por todo o lado, sob as faias do Prater, pelas ruas, e às vezes pensei que te avistava, pois sabes com quem te pareces? Não te digo, que ficas zangada. Mas se desta vez não responderes, saberei realmente, então, o que é a ansiedade. Somente então. Apaixonadamente ao teu serviço:”

E assinou lentamente. Sublinhou “Somente então”, e contemplou o que fizera soltando um profundo suspiro. Procurou um envelope e não encontrou.

- Um envelope! Depressa! - gritou para a mãe enquanto enfiava o espesso sobretudo.

- Ali, na gaveta do aparador - disse a senhora Taschnik. - Pareces muito apressado, bebe o café...

- Não o deixes arrefecer! Volto já! Vou só aos correios...

“Tch..., - pensou a mãe abanando a cabeça. - Isto não é mulher que nos convenha. Trabalhos.”

Sentada, envolta num roupão de cetim branco, a jovem escutava a leitora que lhe lia o correio enquanto lhe penteavam o cabelo.

- Ainda há isto, Majestade - acrescentou Ida estendendo-lhe o último sobrescrito. - Talvez uma carta anónima.

- Porquê, condessa?

- Uma carta que vem da posta-restante, de Munique - respondeu Ida. __Não é habitual. Devo abrir?

- Não! - gritou ela voltando muito depressa a cabeça.

A cabeleireira mordeu os lábios e pediu desculpa. A responsabilidade não era dela, Sua Majestade mexera-se um pouco, e os cabelos eram tão pesados...

- Você diz sempre isso - disse ela fazendo beicinho.

- Mas Vossa Majestade não pára de se agitar - interveio Ida.

- Deixem-me, ambas! - gritou ela com impaciência.

E agarrou na carta. As duas mulheres saíram lentamente, recuando, como exigia a etiqueta.

“Como é criança, - pensou enquanto corria os olhos pelo papel, - responde logo!”

Ida voltou em bicos de pés, entreabriu a porta e viu-a apertar a carta contra o rosto.

- É de novo esse rapaz - bradou aproximando-se resolutamente. - E encarregou Rustimo, esse pobre negro, de ir buscar, a Munique, as cartas para Gabriela?

A Imperatriz voltou-se, surpreendida, e deixou cair a carta.

- É aquele Franzi do Baile de Máscaras! - disse Ida apanhando o papel.

- E se for? Olha, lê, minha curiosa!

- Não, oh! não! Não quero saber - exclamou Ida. - Bem sabe o que penso sobre essa aventura.

- Ida, ele é tão gentil! Lê, é inconsequente, vês, posta-restante, Munique, e olha, “caro dominó amarelo”... Ele não desconfia! É delicioso!

- Vai responder? - perguntou a leitora mais calma. - Espero que não!

- Não queres ler? Por favor. Sentir-me-ei menos culpada.

- Está a ver - suspirou Ida. - Vá lá, eu obedeço. Ida percorreu a carta e devolveu-a sem sorrir.

- Durante quanto tempo mais vai prestar-se a esta brincadeira?

- Não é adorável? - perguntou ela timidamente.

- É apenas jovem - murmurou Ida entredentes. - Geralmente a senhora foge deles. E detesta sentimentos.

Não, ela não gostava de sentimentos.

O Outro, em Bad Ischl, durante o noivado, transbordava de sentimentos deliciosos. Ela aceitara confiadamente; uma vez na intimidade, ele mostrara-se afável, carinhoso, com gestos atenciosos e expressões tocantes. Era pouco pródigo nas palavras que pronunciava e limitava-se a repetir-lhe a sua felicidade, o seu amor, de modo um pouco tolo. Ela convencera-se mesmo de que ele a faria feliz, apesar do título de Imperador. Até ao momento preciso em que se deitara em cima dela, com todo o peso do seu corpo, sem avisar, rosnando outras palavras, roucas, ordinárias, palavras vindas de longe, que ela sabia de cor, que tinha ouvido nos campos, de Verão, que a faziam antecipadamente estremecer de medo e de prazer - palavras que a fizeram dar urros de dor, como um animal.

Até ao momento em que ele se deixara cair para o lado com um horrível suspiro de satisfação. Fora desferido o golpe. Era só para aquilo que serviam os sentimentos. Os da mãe e os da tia. Os do marido, os dos pretendentes todos. Toda a solenidade do coração para dissimular o estupro. Os arrulhos dos namorados, os ternos arrebatamentos das mulheres, e as canções de amor, ah, o capital de Viena, os “Amas-me de verdade?”, os “Sou teu”, os “Diz-me outra vez”, esse engodo de palavras mentirosas, decifrara-o ela nos lábios das raparigas, no olhar dos homens, e agora sabia. A comédia dos sentimentos destruía o desejo e a vida. Ida tinha razão: porquê abrir uma excepção para um jovem desconhecido?

Não caíra ele na armadilha do puro amor? Não se tinha ele atolado por fim, como os outros? Que tinha ele de tão especial que o protegesse da sua secreta repugnância? A beleza? Oh! Não! O Outro também era belo, o mais belo homem do Império, a encarnação da juventude. Aquele Franzido baile de máscaras era outra coisa. Cândido, fresco, inocente, directo - era isso, era exactamente a palavra, directo, sem artifícios. Acima de tudo desaparecera, o ingénuo; ele aceitava aquele laço de ausência, aquelas cartas de Munique, aquelas palavras vindas de lado nenhum, aquela escassez de tudo. Consentia.

Para um vienense era extravagante; os Austríacos não eram apreciadores de tais delicadezas. Os Austríacos adoravam o veludo para os sentimentos e chafurdavam depois na brutalidade. As putas nas ruas de Viena, as rapariguinhas que se vendiam nos pardieiros, ela sabia da existência dessas coisas. Apurando o ouvido, escutara os endereços, os risos, esse tráfico em que a nobre Vénus rebolara pelos passeios da cidade, até dar à luz uma palavra que era repetida sem cessar, “venéria”

Venéria, a doença mortal, galopava, de soldado em prostituta, de burguês em criada, pelos bailes, pelos hotéis, pelos palácios, pelos passeios, galopava de costureiras em floristas, cantoras, galopava até às condessas a quem a Corte chamava “higiénicas”, e que ao iniciá-lo, por ordem da mãe, o haviam infectado, a Ele, ao Imperador. Venérios, os mimos dos sentimentos, até à manhã em que se descobre uma chaga nos lábios secretos, o pus escorre, tem-se dezasseis anos, não se sabe nada, no corpo instalou-se a podridão que foi chamada amor louco antes de receber o nome verdadeiro... O cancro duro, a sífilis.

Tratamento à base de mercúrio. Pomadas que deixavam a pele negra. Envoltórios de panos muito quentes, para suar bem. Tisanas nojentas, mezinhas caseiras, pimpinela, carvalhinha, salsaparrilha para salivar, vários litros por dia, diziam que o mal se ia embora com os sucos da boca... Dores de cabeça, náuseas, mal-estar. Um mundo de turvos humores e de cheiros medicinais. Secretos, os cuidados; secreto, o mal imperial. Não existe. Ninguém sabe de onde vem; andou por Viena inteira, passou por aqui, entrou pela janela, no orifício inocente e vergonhoso, vindo de parte nenhuma para matar o amor. E a Corte que espreita, que bisbilhota, que vigia... Com a cabeça a andar à roda, o passo pesado, o sexo purulento, tem-se dezasseis anos, não se perdoa. O Imperador não tem culpa; o corpo do Imperador é sagrado. O Imperador não tem que responder pelos seus pecadilhos juvenis.

Os médicos tinham tido um comportamento higiénico; aliás ela curar-se-ia depressa, sem qualquer sequela, tinham a certeza. A menos que a terrível doença voltasse uns anos mais tarde, sabia-se lá... Porque a sífilis secundária só aparecia dois ou três anos depois, com a roséola e o horrível sarcoma de Karposi, as manchas negras na pele; quanto à sífilis terciácia, dissimulava-se durante doze anos e, de repente, em alguns dias, fulminava. Tumor que carcomia o rosto, subia ao cérebro, e era a morte. Sentira-se condenada.

Perdida por cem, perdida por mil, vingara-se deles, fizera-se ainda mais doente. Aprendera a tossir. Nada mais a penetraria; deixou de comer. Descobriu o encanto do desmaio, e o arrebatamento do último instante, antes do abismo obscuro. Saboreou a inquietação e os rumores, a angústia dos seus, a sombra da morte, muito próxima. Por duas vezes a declararam tuberculosa; tinha oficialmente os dias contados. Alguém recusaria a liberdade a uma mulher que vai morrer?

Obtivera, duas vezes seguidas, férias na Madeira. Voltara logo à vida; mas quando a haviam forçado a regressar a Viena, assim que o Outro lhe entrara no quarto, ela voltou a tossir. Dez anos de luta entre o seu corpo, Viena e ele.

- Não responde - disse Ida. - Em que é que está a pensar?

- É verdade, não gosto dos sentimentos - respondeu. - Mas este jovem não é como os outros.

- Um vienense! Aquilo que sempre recusou! Já esqueceu o passado?

Aos vinte e seis anos exactamente, ganhara aquela guerra. O inimigo enviara emissários à Madeira, em vão; acabara por ir pessoalmente, e concedera tudo, o despedimento das damas de companhia austríacas, o direito de ver os filhos, a independência. A porta conjugal trancada. Só com essas condições ela aceitara retomar o seu lugar junto do esposo vencido, e viver. A vitória embelezara-a. O inimigo teve de contentar-se em negociar passo a passo a entrada num quarto que doravante já não era dele, mas dela. Sem nada conhecer destes combates, Viena farejara a derrota do seu Imperador; a cidade que adorara a noivinha bávara, e que rezara pela jovem Imperatriz agonizante, a cidade começou a rejeitá-la quando ela se tornou mulher.

As ruas de Viena tresandavam a amor; ela só se curara mais tarde, quando na vida lhe surgira, intacta, selvagem como ela, a sua Hungria bem-amada. Esse amor protegia-a de todos os outros.

Começara no primeiro dia, assim que ela avistara os cavalos livres e as planícies. A Áustria receava os Húngaros, demasiado rebeldes; a Áustria era a força pomposa. A Hungria era a galhardia, a loucura; era a simplicidade, o sorriso, algo de ingénuo e fresco, tal qual como o jovem do baile. Por todo o lado os Húngaros a haviam acolhido festejando-a; curiosamente, não a tinham asfixiado. Os olhares destemidos, os joelhos flectidos, os gritos afectuosos não a haviam assustado, não, pelo contrário sentira-se em família. A Áustria era a ordem e a etiqueta, o exército, o atroz Radetzky, o triunfo da repressão política; era o cérebro das guerras sangrentas, o das derrotas inúteis, Solferino, Sadowa, essas carnificinas. A Áustria esmagara a Hungria; que mais seria preciso para que ela se ligasse a essa terra sem hesitar?

A Hungria vivia numa encantadora desordem que lhe fazia lembrar a sua infância sem regras. Na Hungria, dançara sem cerimónias; os nobres magiares chamaram-lhe prima. E quando, às dezenas, descambaram para o sentimento, tinham feito o bem mais precioso, uma espécie de amor cortês, à antiga; ela tornara-se a sua Dama, e eles trovadores, sem jamais agitar o lago profundo, o requintado encanto da distância.

Eles tinham, na Hungria, uma estranha palavra cuja pronúncia fazia lembrar o ruído de um berlinde rolando pelo chão, “delibab”; tinham também esse fenómeno extravagante, próprio dos desertos, uma partida do Oriente, surpreendentes miragens ao longe na puszta, e que a palavra “delibab” traduzia. O ar estremecia, enrugado como a água de um charco a que se atirou uma pedra, o ar vibrava. Podia ver-se aparecer uma aldeia, um castelo, os sonhos. Na Hungria ela estava no centro do Delibab.

Gostara tanto de Buda que da segunda viagem aí perdera uma filha, em poucas horas. A pequena Sofia, a mais velha, finara-se sem poder respirar, como se fosse preciso pagar com uma vida o preço daquela paixão insensata. Em Buda, conhecera a dor, e transformara-se de repente num adulto precoce, desconfiada, para sempre distante. E quando voltava aos lugares onde sofrera, reconhecia o travo que jamais a abandonava, o de morrer depressa, da chama que alguém apaga, o risco absoluto, o perigo - a ausência.

Ela própria se surpreendera com a facilidade com que aprendera a língua dos Húngaros, uma vez que não conseguira falar nem italiano, nem francês, nem checo. Mas húngaro! Porque era uma língua opaca, entregara-se-lhe de alma e coração; a ponto de não falar senão aquela língua, como um código secreto, proibido aos Vienenses, e que o Outro pronunciava com dificuldade. No início da sua educação imperial, certamente por descuido, tinham-lhe dado um perceptor húngaro, um velho muito digno, que destilara, dia após dia as ideias do liberalismo magiar, secretamente. Dentro dela, a rebelde estremecera; o velho professor tinha razão. Mais tarde, quando cresceu, utilizou o que sabia. A ponto de vender a sua presença em Viena; a ponto de se vender a si própria a todo o Império, em troca da dignidade dos Húngaros. Sem ela, o Imperador não teria sido rei da Hungria; sem ela, ele teria permanecido um simples Imperador austríaco, uma espécie de tirano longínquo que se dirigia pomposamente “aos seus povos”. A Prússia oferecera a ocasião sonhada: uma guerra com a Áustria.

Após a desastrosa derrota de Sadowa, quando a Prússia vencera a Áustria, ela retirara-se para Buda, a sua cidade; de lá, defendera, negociando durante meses, a posição da Hungria. O Outro cedera. O Império passara a ser austro-húngaro, em partes iguais, ou quase. O Imperador aceitara finalmente ser coroado rei da Hungria; a monarquia austríaca já não era una, mas dupla.

- Esqueceu-se de como foi tratada na Corte quando chegou da Baviera? - continuava Ida. - Quantas afrontas e humilhações! Não sou eu que invento, foi a senhora mesma quem mas contou! Sempre me disse que não gostava de Viena. E agora esse jovem, um vienense...

Mas ela não prestava atenção. Continuava a pensar na Hungria.

O dia da coroação em Buda continuava a ser o mais belo da sua vida. Porque era a Rainha que aclamavam; e embora fosse o Rei Francisco José quem, num cavalo branco, escalava a colina feita de terras trazidas de toda a Hungria, para aí erguer bem alto a espada, aquela que era adorada, era Erzsebet, era ela. Tinha dois títulos e dois corações: a Imperatriz, que odiava a Áustria, a Rainha, que amava a Hungria. Poderia ela dar maior prova de amor do que aquele filho concebido na noite de Buda? Depois da coroação decidira abrir a porta do quarto.

Não ao marido, não ao Imperador. Mas ao novo Rei da Hungria, morto de cansaço e também extremamente comovido. Ele não era mau, no fundo. Ela soprara as velas, apagara as luzes. As palavras vieram sozinhas: “Quero um filho!” Ele titubeara: “Mas, já temos...” Não o deixara terminar. “Quero um último filho, aqui, já!” E como um cão obediente, ele deitara-se logo, confiante, feliz, ingénuo. A coisa não tinha sido muito desagradável. Esquecera o Imperador; fechando os olhos, deixara-se penetrar por um membro anónimo, encarnação do povo que a havia aplaudido loucamente. O esposo não saberia nunca que naquele instante preciso ela o enganara com a Hungria inteira, aquele fantasma de arcanjo de que lhe nascera uma filha, “Kedvésem”, a querida.

É claro que a criança recebera um nome imperial, Maria Valéria, segunda arquiduquesa após a irmã Gisela. E claro que houve logo quem se apressasse a lembrar a pequena morta, Sofia, que “a querida” substituíra. Ela arrancara a Querida ao destino das crianças imperiais: não, não a separariam da mãe a pretexto de cuidados médicos, não seria criada por condessas exteriores, não, não lha roubariam como tinham feito com os outros três. A Querida era dela. Dela e da Hungria.

Por vezes, punha-se a pensar que a Querida era a sua única filha; depois, precisava de um tempo para se recordar que pusera no mundo três outros filhos, Sofia, que morrera, Gisela e Rodolfo. Mas Gisela nunca gostara da mãe, e cedo se afastara para uma fria distância; Gisela, que lhe fora tirada nd(dia do nascimento e por longos anos, estava de antemão perdida. Aliás, Gisela casara no ano anterior com um príncipe da Baviera; escapara-se, teria uma quantidade de filhos, o primeiro já nascera, que fosse muito feliz!

Quanto a Rodolfo, ela esperara demasiado para o recuperar. Quando finalmente o reencontrou, após a vitória conjugal, ele era um verdadeiro homenzinho, de carácter difícil, uma criança susceptível e tensa, de uma ternura incómoda. Um jovem Príncipe Herdeiro que fora educado com dureza, e que se inteiriçava para suportar os duches gelados ao amanhecer, as zombarias, a disciplina. O Imperador decidira fazer do filho o melhor atirador do Império; a título de exercício, o perceptor fazia disparos de pistola junto do ouvido da criança, e Rodolfo, depois de mil e um sustos, concebera uma verdadeira paixão pelos tiros. Um verdadeiro caçador em ponto pequeno; aos nove anos matara o primeiro veado. Para o Outro, tudo estava em ordem.

Ela não tinha culpa; quem decidira fazer dela mãe aos dezassete anos? Quem lhe havia tirado a carne da sua carne, quem a havia privado das carícias, dos beijos, das bochechinhas gorduchas, quem lhe havia roubado dois bebés?

Então, quando transbordava de raiva, vinha-lhe à memória a recordação da filha morta em Buda, os minúsculos lábios azulados, as flores perfumadas de mais sobre o corpinho frio, e os remorsos.

Ficar em Viena porquê? Há alguns dias, o Outro regressara da Rússia; acolhera-o calmamente, com aquele bonito movimento de cabeça que sempre o tranquilizava, “Estou aqui, vê, estava à sua espera”, e depois ele retomara o trabalho sem hesitar. Haviam falado como marido e mulher, ela não se exaltara, ele fizera perguntas anódinas, ela cumprira o seu dever de conversa quotidiana, em suma, nada a impedia doravante de partir para Buda. Os cavalos esperavam-na. - Está muito pensativa - interveio Ida. - Já não estava a ouvir nada do que eu disse.

- Estava a pensar que é tempo de ir embora, sabes - disse ela baixinho. - Para longe daqui.

- E não vai responder àquele jovem, pois não?

- Oh! Já nem me lembrava - exclamou. - Talvez mais uma vez, a última. Depois, na Hungria, esqueço, bem sabes.

Um mês mais tarde, a segunda carta chegou com os primeiros botões de açafrão. Fora enviada de Londres e deixou Franz enlevado. Londres...

A desconhecida não mentira; passava a vida em viagens, tudo o que dissera era verdade. Aborrecia-se imenso; para Franz isso era um presente do céu.

“Por que razão terá Londres a reputação de ser uma cidade admirável? - escrevia o dominó amarelo.-Não faço a mais pequena ideia. O prestígio da Coroa? Mais uma Rainha que se acha o centro do mundo... Detesto Londres. Não me darei ao trabalho de te descrever o mais pequeno j ardim, o mais pequeno edifício: pega num bom guia, um Baedeker, e é o suficiente. A minha vida decorre, aqui como em qualquer outro lugar, sem paixão, sem emoção. Os Ingleses são indolentes e afectados, têm esposas todas empertigadas de distinção, toda a gente se exprime com elegância e ninguém diz nunca nada de interessante. A minha vida? Algumas velhotas pouco locazes, um buldogue quezilento, um passeio por Hyde Park com o meu companheiro de quatro patas babando-se alegremente, algumas recepções, resumindo, um aborrecimento monumental - como em Viena.”

- É porque tem saudades minhas! - repetia o jovem.

Aliás ela escrevia isso mesmo, provocante: “Sim, Franz, até tu me distrairias aqui!”

À primeira leitura, o “até tu” magoara-o. Mas ao reler a carta de Gabriela, Franz descobrira que aquelas duas palavrinhas, “até tu”, tinham sido escritas com uma mão que tremia um pouco. Era a confissão que ele esperava. E ela falava de Viena com tanta ternura... “Detesto Londres a um ponto tal que até quase sinto saudades de Viena. E contudo bem sabes o pouco afecto que tenho por essa cidade onde te conheci... Pois bem! Aqui, sinto falta dela, à maneira dos gatos, sinto falta do lugar, não das pessoas... Penso em Viena como num território bem conhecido, onde tenho o costume de me aninhar em cima de um canapé.”

O lugar era ele. O canapé, era ele. Ela ali se aninhara por uma noite, aflorara-lhe os ombros com o aveludado das patas, e as garras eram o leque. Ela era gata, e ele a propriedade, vasta como o universo e rigorosamente balizada, um camarote num baile, três passos numa pista de dança, um espaço ilimitado, algumas palavras enamoradas. Ele não pertencia ao mundo daqueles homens que tanto a haviam magoado. Ele nada mais era do que um lugar de repouso, um paraíso, de onde tinham sido expulsos ao mesmo tempo.

E depois, aquele doce fim, principalmente... “E agora desejo-te boa noite, no meu relógio já passa da meia-noite.

Sonharás comigo a esta hora, ou derramarás pela noite uma canção nostálgica?”

A primeira vez que leu aquelas encantadoras palavras, sentiu-se comovidíssimo; correra à mesa para lhe responder. Mas as frases não vieram; relera e compreendera o porquê da sua inspiração deficiente. A quem escrever palavras de amor? A Gabriela ou a Elisabeth?

A Imperatriz não estava em Londres; tornava-se impassível qualquer confusão entre o dominó amarelo e a soberana.

Gabriela era uma mulher como as outras, e que procurava distrair-se. Uma frustrada que tentava uma conquista. O jovem releu a carta, e dobrou-a, um pouco triste. Desta vez, como não era a Imperatriz, Gabriela esperaria.

O tempo de dissipar as últimas dúvidas, de esquecer a amazona, ou de prolongar a bela ilusão até aos primeiros dias da Primavera.

A imagem deslumbrante da indiferente Imperatriz desaparecera com o Inverno; Franz não voltara a vê-la. Nas ervas do Prater, havia ainda alguns restos de neve endurecida; os dias estavam maiores, o céu perdia a sua dureza, em breve despontariam os junquilhos.

Os refugiados bósnios eram cada vez mais numerosos; alguns chegavam com os seus rebanhos. Davam-lhes terras incultas, e o Parlamento acabava de votar verbas para os auxiliar. Oficialmente, o ministro Andrassy queria ver mantido o statu quo; oficiosamente a história era outra, e Willy, que bisbilhotava por todo o lado, garantia que os soldados seriam em breve mobilizados. Mas como ele repetia a mesma previsão desde há um ano, Franz encolhia os ombros, e não acreditava.

A cinco do mês de Abril, Johann Strauss, o filho, apresentara finalmente a tão esperada ópera O Morcego, no Theater-An-Der-Wien, onde Beethoven criara o seu Jide&o; Franz fora assistir com a mãe. O público não apreciara a leviandade dos adultérios dos novos-ricos vienenses, nem o champanhe que corria a rodos numa prisão de fantasia. Murmurava-se que provavelmente o filho Strauss não lia os jornais; não ouvira falar do craque do ano anterior, nem conhecia a ruína dos seus concidadãos. Aquela expedita farsa não agradou; O Morcego foi um fracasso. A senhora Taschnik resmungou que sempre o soubera e que ela bem o dissera; Franz não ousou dizer-lhe que adorara o segundo acto, que se desenrolava numa festa em casa de um príncipe russo, um travesti. Ao som de uma música desvairada, uma austríaca uma pouco leviana disfarçava-se de condessa húngara, de leque na mão; por detrás das máscaras de um baile desenfreado escondiam-se uma ternura alucinada e uns quiproquós amorosos.

Quando passeava pelas veredas do parque, Franz já não procurava com os olhos a amazona no seu cavalo; pensava na outra passeante, puxada pelo buldogue arquejante e baboso, no Hyde Park, naquela desconhecida que se detinha por vezes encostada ao tronco de um choupo, sob a chuva, para lhe dedicar o sorriso que ele entrevira no baile.

Franz trazia a segunda carta no bolso do colete. Agora já não duvidava, voltaria a ver o seu dominó amarelo. Uma vez que era Gabriela.

Mas assim que o narizinho amarelo dos primeiros junquilhos fez a sua aparição, saiu num jornal vienense uma fotografia da Imperatriz com o seu buldogue preferido, um dos seus últimos caprichos. Séria, de lábios cerrados, com um fato de amazona de veludo, segurava graciosamente na trela. Como sempre nas fotografias, tinha um olhar triste.

Um buldogue! Franz nem queria acreditar. O buldogue não era uma coincidência, era um sinal que ela colocara propositadamente no seu caminho. Com uma certeza doravante bem arreigada, Franz recomeçou a sua perseguição à desconhecida, e voltou ao Prater, com o coração aos saltos.

Mas no momento em que a imprensa publicou a foto, quando toda a gente pensava que ela ainda estava em Viena, a Imperatriz partira já para a Hungria a fim de ter lições de alta-escola com uma cavaleira de circo, uma francesa, Élise Renz. Num castelo, presente dos Húngaros, perto de Budapeste, em Gôdõllõ.

 

                                               ALTA ESCOLA

Mas o amor precisa de liberdade para poder andar pelo mundo Um castelo seria uma grilheta Enquanto o amor é vagabundo

Elisabeth

Não! Ele está a marcar passo, não está a trotar! Assim não, Majestade! Outra vez!

A cavaleira francesa não deixava passar nada. De pé no meio da pista, batia nas compridas saias com uma chibata, atenta ao mais pequeno erro da sua imperial aluna. No pequeno picadeiro de madeira que o Imperador mandara construir para a esposa, não havia ninguém a não ser as duas mulheres,, uma que, com um fato de amazona escuro e os cabelos escondidos sob o gorro, montava o alazão dourado e, no centro, Élise Renz. O cavalo parou.

- Ouça - gritou a cavaleira. - Ele já não percebe nada. A senhora não está com ele. Está a pensar noutra coisa, e ele não lhe perdoa. Fique junto à parede. Faça-lhe festas. Isso!... Calma, muita calma, não lhe peça nada. Não se mexa...

A cavaleira aproximou-se da cabeça do animal e, tomando as rédeas perto do freio com a mão esquerda, tocou-lhe com a ponta da chibata nas espáduas. O cavalo começou a trotar sem sair do lugar, de forma um pouco precipitada, sem harmonia.

- Está a ver! - constatou a cavaleira. - Ele lembra-se das lições que lhe dei a pé. Pense no movimento, esteja atenta à dança do cavalo... A cadência, Majestade, a cadência, como o ritmo de uma valsa. O seu ponto de equilíbrio deve estar ligeiramente atrás do dele, de modo que ele possa flectir as ancas e ficar ao mesmo tempo diante de si. Deixe-se ir na dança agora... Anca esquerda... Anca direita... Mais abandono, Majestade! Não o constranja. Devagarinho, meu lindo, devagarinho... Procure o estado de graça, o instante perfeito... Sentiu alguma coisa? Compreendeu?

- Nada - respondeu a jovem franzindo o sobrolho. - Excepto que é preciso obrigá-lo a vergar as ancas através de outros exercícios como o... Como é que você costuma dizer? O recuar?

- Isso mesmo, Majestade... Realmente na nossa terra dizemos “o recuar”. Vamos ver. Coloque o cavalo junto da parede, à mão esquerda... Volta a passo! Espádua para dentro, à esquerda. Abrande, conte os passos. Um, dois, três, quatro, assim está bem, mantenha os pulsos em cadência com o pousar dos membros. Mão esquerda, dianteiro esquerdo; mão direita, dianteiro direito. Cuidado! Lentamente, perna atenta por favor. Mão leve, Majestade. Descontraia-lhe a boca e feche progressivamente os dedos nas rédeas. Vai iniciar o recuar. Endireite-se... Um passo atrás, dois, três... STOP! A trote. Agora, recompense-o. Sentiu-lhe a fraqueza do jarrete direito quando ele começou?

A amazona inclinou-se para a orelha do cavalo, e acariciou-lhe o pescoço falando-lhe baixinho em húngaro. Elise aproximou-se. - Se voltar a fazer isto, várias vezes, verá que ele passa ao trote sozinho. Se fechar de novo os dedos nas rédeas, ele dará início espontaneamente ao piafé. Se não, é porque lhe dói demasiado o jarrete direito e não está preparado. Será necessário mudar de animal.

- Mas é o meu cavalo preferido! - indignou-se a jovem. - É o meu Red Rose...

- O que não quer dizer que ele seja capaz de fazer um piafé como deve ser, Majestade. E ainda só vamos no princípio! Certos cavalos...

- Hei-de conseguir - fez ela, irritada.

A cavaleira sorriu e cruzou os braços. A jovem recomeçou o movimento, uma vez, duas vezes, três vezes, e o alazão parecia sofrer ao levantar os membros. Com um sorriso desagradável, a jovem insistiu. De súbito, Red Rose recuou inopinadamente, a pata traseira escorregou, o cavalo defendeu-se com fúria.

A amazona ficou lívida, a cavaleira precipitou-se e tomou o animal pela brida.

- Desça... Ele não está preparado. A senhora não ligou ao que eu disse. Eu arranjo-lhe outro bem melhor, estamos na Hungria, não será difícil.

Mas ela, de rosto vermelho, abanou a cabeça e não se mexeu. A cavaleira lançou-lhe um olhar furioso, e puxou o cavalo para fazê-lo avançar. Para os estábulos, na cavalariça. A jovem pôs-se a gritar, não, não queria, havia de continuar, estava decidida. Êlise Renz teimou; a surda luta entre as duas mulheres perturbava o alazão cujas orelhas se levantavam e baixavam, inquietas.

- A senhora quer tudo, logo logo, muito depressa - ralhou a cavaleira. - E sem saber o quê exactamente! Peça pouco, Majestade, mas muitas vezes. Não há indisciplina em alta escola! Sabe que o magoou? A senhora é louca!

- E você uma insolente - bradou a jovem. - Ah! É bem francesa! Deixe-me! Já não preciso de si!

- Deveras? - disse a cavaleira largando o animal.

Desequilibrado, Red Rose empinou-se. A jovem deu um grito, ia caindo, inclinou-se para as crinas sedosas, abraçando o pescoço do cavalo.

- Perfeito! - comentou Élise. - Reagiu bem. Faça de novo o recuar, mas previno-a de que ele não irá até ao piafé! Não está suficientemente preparado. Dói-lhe.

- E a mim também - disse de repente a jovem saltando com ligeireza para o chão. - Tome, pegue nas rédeas. Recomeçaremos amanhã, com ele.

Em silêncio, reconduziram Red Rose à cavalariça. Élise deixou o moço desapertar a correia, puxar os estribos e retirar a sela ao alazão; mas Élise quis ser ela mesma a escová-lo. Red Rose transpirara muito. Encostada às tábuas da estrebaria a jovem olhava-a tristemente.

- Amo este cavalo, percebes Élise? Amo-o!

Élise não respondeu. Com os cavalos passava-se o mesmo que com os humanos; uns podiam, outros não, era assim. Mas a Imperatriz não aceitava sequer a ideia de fracasso; mais depressa seria capaz de ferir aquele alazão que amava, do que de renunciar. O aço roçara no sítio da focinheira, estava a sangrar. A Imperatriz nada vira.

- Também gosto deste cheiro a tigre e a espuma, depois do esforço - murmurou a jovem. - É uma coisa diferente do suor de um homem... Fala-me dos teus amores, Élise. Não há apenas cavalos na tua via! calculo eu...

Élise virou-se com a rapidez de uma flecha, e olhou a Imperatriz bem nos olhos, com ar de desafio. A jovem baixou as pálpebras e deu três passos.

- Isso interessa-me - continuou aproximando-se até quase a tocar. - Tenho a certeza que me interessa.

A cavaleira contemplou-a longamente, esboçou uma carícia, na face imperial, soltou um breve suspiro e afastou a amazona do seu caminho.

- Primeiro é preciso montar escarranchada - disse. - Como um homem.

Tentara encurtar a saia de amazona, mas não adiantava, escarranchar-se no animal continuava a ser impossível. Reflectira longamente, depois convocara Élise, que ali estava diante dela, irónica, de braços cruzados.

- Mas afinal como é que tu fazes? - impacientou-se a jovem.

- Sua Majestade deveria ser mais precisa - respondeu a cavaleira. - Fazer o quê, ao certo?

- Tu bem sabes - murmurou numa voz inaudível. - Para montar à homem.

Élise começou a rir, e num repente levantou as saias, pondo a descoberto as pernas moldadas por umas calças justas de cabedal preto.

- Aqui está - disse ela tranquilamente. - São calças, Majestade, mais nada. Fascinada, a jovem aproximou a mão, aflorou uma coxa e fechou o punho.

- Vamos! - ordenou a cavaleira sem se mexer. - Verifique por si mesma, está morta por isso...

A jovem fez deslizar a palma da mão pelos músculos, até ao sítio em que começavam as botas, depois ajoelhou-se, baixou a cabeça e palpou suavemente as pernas. O cabedal vivia sob as carícias, Élise fechou os olhos.

- Pode ir até mais acima - murmurou a cavaleira - se quiser. Para verificar que não há nada que estorve entrepernas.

A jovem levantou-se de um salto, com a respiração alterada, e escondeu as mãos atrás das costas.

- O cabedal é excelente-sussurrou com um risinho. - E achas que posso...

- Oh! Eu não acho nada - respondeu a cavaleira baixando as saias. - Vossa Majestade é o único juiz.

- Está bem. Depois vejo. Em camurça, talvez, seria melhor?

- Desde que se possa abrir as pernas e sentir o cavalo onde é preciso, tudo serve, Majestade - disse a cavaleira num sorriso.

No dia seguinte, de manhãzinha, a Imperatriz convocou criadas de quarto e costureiras. As peças de camurça macia esperavam em cima de uma poltrona. “Vão coser-mas directamente - ordenou. - em mim.” Foi interminável e difícil; as agulhas às vezes escorregavam, furando a pele e picando-a; a jovem não se mexia. Do corpete de renda para baixo surgia pouco a pouco a estranha imagem de um ser meio mulher, meio centauro, com um busto gracioso e coxas musculosas, revestidas de uma cor fulva, animal. Sobre os pés descalços pendiam inúteis farrapos de camurça. As costureiras, atónitas, olhavam-na enquanto andava de um lado para o outro, apalpando a sua nova pele para verificar se era sólida. A camareira, maquinalmente, estendeu a saia de amazona, aberta.

- Não vale a pena. As botas, as luvas, o pingalim e o casaco. Chega.

- Mas Vossa Majestade não pode! - bradou a camareira horrorizada... Já tinha saído e corria para a cavalariça. Ela própria selou Red Rose com uma sela de homem, ajeitou o cabelo entrançado, e saltou para o cavalo. Red Rose vacilou ligeiramente; as calças deram de si, um ponto rebentou, a jovem praguejou entredentes e inclinou-se sobre o pescoço do animal. “Sou eu, Red Rose, agora anda, a passo...”

A passo corria tudo bem, as pernas mal sentiam; a trote, o equilíbrio era um pouco diferente. A galope, excitou-se; de coxas tensas, ia tão depressa que nem sentiu os cabelos que se despenteavam, tão depressa que esqueceu tudo, excepto o prazer violento que lhe crispou os lábios, e a fez curvar-se sobre o alazão dourado.

Quando voltou à cavalariça, Élise esperava-a para a lição.

- Vejo que Vossa Majestade se decidiu - disse a cavaleira. - Não é verdade que é outra coisa?

A jovem saltou para o chão, beijou o animal e não respondeu.

- As suas tranças desfizeram-se pelo caminho - disse Élise aproximando-se. - E os seus olhos estão muito brilhantes. Deixe-me ajudá-la a arranjar o cabelo.

- Não - gemeu ela. - Preciso de um pouco de repouso.

Mas Elise agarrara as tranças fulvas, enrolava-as, espetava desajeitadamente os ganchos, “Que haveriam de dizer - resmungava - se a encontrassem assim, é preciso ter um ar bem comportado, pequenina”, e os cabelos escorregadios recusavam a coroa. Élise impacientou-se, puxou de mansinho as tranças e aproximou dos seus lábios o rostozinho de olhar assustado.

- E se alguém entra - murmurou a voz infantil.

- Ninguém entra - asseverou Élise.

No ministério, o estranho comportamento do escriturário Taschnik suscitava alguma preocupação. É certo que sempre fora um pouco distraído; esquecia com frequência o chapéu à saída, ou então chegava sem sobretudo, com a gravata torcida. Mas ninguém podia contestar a seriedade do seu trabalho; era um dos melhores elementos da divisão administrativa, um dos que tinha os processos mais bem organizados, de uma escrupulosa exactidão, a ponto de os seus superiores encararem a possibilidade de o promoverem ao orçamento geral do ministério depois de lhe terem sucessivamente confiado as despesas do pessoal e as imobiliárias. Ora há algum tempo, para grande espanto dos colegas, o escriturário Taschnik acumulava lapsos.

- Já não consigo fazer nada... Mas que se vá embora! Que saia de Viena, pelo menos! - murmurava ele assim que tinha um instante de solidão. – Uma mulher que nunca está quieta, agora há quase um mês que não viaja! E não a vejo! Ela foge de mim!

“Ela” já não era ninguém. Sombra de Imperatriz, fantasma sem rosto, ela tinha o olhar triste de Elisabeth na fotografia do buldogue, e o sorriso malicioso da desconhecida de dominó amarelo. “Ela” era dupla, e estragava-lhe a vida.

- Voltaste a esquecer-te de juntar a nota de remessa ao processo moscovita, Franzi - suspirava Willibald. - Como ontem ao da embaixada de Paris... Ele está furioso!

- Quem? - perguntou Franz sobressaltado. - De que é que estás a falar?

- Do conde Schónburg-Hartenberg, o nosso chefe de secção, Taschnik! O teu superior e o meu! Onde é que tens a cabeça? Ainda é esse dominó amarelo, imagino! Vai mas é a um bordel, e deixa-nos em paz com a tua misteriosa!

- Quero saber - teimou Franz. - E hei-de saber!

- Se continuas a obstinar-te nessa estúpida ideia - resmungou Willy em voz baixa - vais ter de esperar, rapaz. A dama já não está em Viena. Está em Gõdõllõ, onde se diverte com uma cavaleira de circo... Eu dava-te os dominós amarelos!

O jovem gigante erguera-se em toda a sua altura, muito pálido, deitando ao chão a cadeira. Intimidado, Willy encolhera-se no assento, e Franz, com vergonha do escândalo, voltara a sentar-se em silêncio, de lágrimas nos olhos. Então ela partira para a Hungria!

- Pelo menos, trabalha, rapaz - suplicara Willibald. - Está em jogo o teu futuro de funcionário público, e com isso não se brinca...

As lições de Gódõllõ tornaram-se públicas; a imprensa referia-se a elas com frequência, com uma admiração ambígua. No adestramento, a Imperatriz fizera muitos progressos. Aprendera os passos, e sabia comandar os cavalos até fazê-los levantar a pata, graciosamente suspensa no ar, nesse difícil movimento a que a escola francesa chamava o piafé, e que apenas os perfeitos cavaleiros dominam.

- Só circo - comentavam os lacaios. - É com brincadeiras dessas que se diverte uma Imperatriz? Também, é essa acrobata, essa francesa, que a enfeitiça...

Todas as manhãs a jovem mandava que lhe cosessem as calças de camurça mesmo por cima da pele. Todas as manhãs, ia cavalgar a galope, escarranchada, na companhia de Élise. E todos os dias regressava encantada desses passeios intermináveis.

A notícia ia-se espalhando, e foi tão longe que atingiu Viena, que começou a murmurar.

Élise, por vezes, preocupava-se, mas a jovem não tolerava que lhe dessem conselhos, que lhe fizessem advertências.

- Não permito nada! - gritava. - Sou livre de fazer o que quero, e ninguém, estás a ouvir, ninguém tem o direito de me dar ordens!

- E o Imperador? - suspirava Élise.

- Ele sabe com o que conta. Há quase dez anos que ele deixou de ter o direito de fiscalizar o modo como emprego o meu tempo. Em Viena, obedeço. Mas aqui! E depois, onde está o mal? Não vou de calças para as ruas de Buda!

- É louca - repetia a cavaleira. - Um dia vou ter que me ir embora. Mas a jovem não queria saber. Simplesmente, acrescentara ela uma noite, um pouco melancólica, conhecia-se bem; as suas paixões eram de curta duração. Por exemplo, com os cavalos, adorava-os durante seis meses, depois, se o animal envelhecia, ou se era teimoso, o seu amor derretia-se como neve ao sol.

- Não há ninguém mais infiel - confessava ela com abandono. - Algumas vezes, vem-me uma lassidão desconhecida, já não suporto, mudo de cavalo, e o anterior, olha...

Um dia em que se tinham detido numa pequena clareira, a Imperatriz contou-lhe negligentemente o Baile de Máscaras, com um ar um pouco sonhador; evocou o jovem, falou das cartas, que achava espirituosas. “Não é engraçadíssimo? Acho que estou enamorada”, concluiu inocentemente.

Élise voltou-se de repente, de chibata na mão. Arfando, a jovem recuou a tempo; correu a refugiar-se junto de Red Rose. Élise reparou então no desagradável sorriso repuxado, no ar dissimulado, e no desafio no olhar da companheira.

- Brevemente vou decidir aprender equitação à espanhola - disse ela em tom brusco. - Pois no que diz respeito à francesa, parece-me que já vi tudo. Não?

No dia seguinte, Élise fora-se embora. Red Rose foi substituído por Sara, uma égua irlandesa pigarça, de ventas rosadas, um animal fino e manso. Em Viena, soube-se com alívio que a Imperatriz teria doravante lições com cavaleiros vie-nenses, segundo a tradição herdada da Espanha, de uma época em que o sol nunca se punha no Império. Montaria os solenes lipizzanos brancos, orgulho dos Habsburgo. Assim que regressasse da Hungria.

Enquanto esperava essa data improvável, não renunciara nem às calças de camurça nem a galopar escarranchada. Largada através das planícies, libertara-se de Élise. O jovem do Baile de Máscaras regressou aos seus sonhos solitários; para o prazer, a égua Sara bastaria, até à chegada da Primavera.

Depois do desentendimento com Willy, Franz começou a reflectir. O jovem não prestava qualquer atenção aos mexericos de Viena, que corriam pelos cafés para grande alegria dos noticiaristas. A história da cavaleira francesa não era digna de crédito. Entre a sua Gabriela e aquele caso escabroso, não havia nenhuma relação; Gabriela era esquiva, pudica como uma rapariguinha de dezasseis anos, como a Imperatriz, uma mulher pura e sem mácula, que Viena caluniava todos os dias. Por vezes, e era uma sensação bastante desagradável, Franz pensava naquela paixão pelos cavalos, de que a desconhecida falara no baile; mas quê! As pessoas tinham o direito de “montar” sem pecar...

Não, o que mais o preocupava era a história do cão. A fotografia oficial da Imperatriz com o buldogue obcecava o espírito do jovem funcionário: Gabriela, ou Elisabeth? O banal, ou o impossível? Porque se era a Imperatriz... Tinha calafrios todas as noites.

Como ela própria sugeria na carta, comprou um guia Baedeker e, depois de o ter lido, pensou que a desconhecida poderia ter escrito a carta em qualquer lado, com aquele livro na mão. De Londres, ela não dizia quase nada; algumas frases bem construídas, ah!, lá isso sabia escrever. Ele investigou. Fez perguntas aos amigos no café, foi ter com o guarda a quem oferecera tabaco, fê-lo falar, e acabou por encontrar um indício.

A rainha das Duas Sicílias, irmã da Imperatriz, dirigira-se a Munique três semanas antes; e atravessara o Canal para chegar a Londres quinze dias mais tarde. Nada mais fácil de conceber do que esse simples favor entre parentes: a rainha das Duas Sicílias poderia ter posto no correio a primeira carta em Munique, e a segunda em Londres. Da hipótese, o jovem saltou para as conclusões.

Com que então, não só tinha sido usado durante uma noite inteira, como continuava a ser enganado! Escreviam-lhe às escondidas, e quando o encontravam no Prater, não detinham o cavalo!

Imaginou tudo e mais alguma coisa. Que a Imperatriz escrevia as cartas no meio das suas damas de companhia; que todas davam sugestões e se riam; que a Imperatriz fazia circular o papel antes de o dobrar em quatro e contava à porfia o Baile de Máscaras...

- E calculem que me confessou o seu amor enquanto valsávamos! - zombava ela de olhos a rir. - E pensar que ele continua a acreditar que eu sou outra, não é de morrer a rir? Um funcionariozito pretencioso...

Quando chegava àquele ponto, era em geral enquanto andava pelas ruas, Franz corava de tal modo que procurava um lenço para limpar a testa, olhando de soslaio o seu próprio reflexo nos espelhos das lojas. Imaginou também que ela dissera tudo ao Imperador assim que ele regressara de São Petersburgo... Deveriam ter gracejado juntos, esse Taschnik merecia uma recompensa, um dia haveria de ter uma promoção inesperada, passaria a ser secretário de primeira classe, talvez mais ainda, mudaria de categoria e seria cônsul em Roma, ou em Milão... O Imperador diria: “Bom, bom”, dar-lhe-ia uma palmada amigável no ombro, ele lançar-se-ia a seus pés.

Ou então seria expulso do ministério sem nenhuma explicação. Este pensamento deixava-o sem forças. Como um pé-de-vento, entrava sem pensar no primeiro café, pedia um chocolate à moda antiga, com muitas natas. O melhor contra as ideias sombrias.

Então recordava que o dominó amarelo odiava o Imperador, que dissera dele coisas pavorosas, e que estava a imaginar coisas sem sentido. Então não tinha dúvidas: Gabriela era apenas Gabriela. No minuto seguinte, pensava no leque, no buldogue, e voltava a ter suspeitas.

- Resta-me uma possibilidade - pensava. - Escrevo e armo-lhe uma ratoeira. Ela responde, e acabará por cair. Então...

Então ele não fazia ideia da continuação. Então nada. Se fosse apenas Gabriela... Talvez deixasse de amá-la assim. Mas se fosse a Imperatriz! Era pior. Ou a maior felicidade, ele já não sabia.

Num dia límpido e ameno, inspirado pelas primaveras, Franz acabou por se decidir a responder à carta de Londres. Mas por causa da fotografia do buldogue, complicou as coisas. Inventou para si um cão imaginário, de que forneceu uma imagem precisa - seria um setter irlandês -, mal o descreveu, e pediu à desconhecida que adivinhasse a raça do animal, para a levar a admitir os seus conhecimentos caninos. Fez todo o tipo de perguntas, andou de adivinhas em enigmas, exigiu saber o que lia ela, e acabou por abordar paragens mais perigosas.

Fantasiou uma viagem aos lagos italianos com a mãe, para rivalizar com a desconhecida; ficou particularmente orgulhoso com as descrições que fez do lago de Como, cujos verdes profundos ele recordava da leitura dos guias italianos. Foi prolixo sobre as barcas cobertas de arcos floridos. As aguarelas representando embarcações nos lagos italianos faziam furor em Viena; vira-as numa loja perto de Demel. Depois, uma coisa puxando outra, insinuou que talvez ela não tivesse escrito de Londres. E aliás, qual era o seu verdadeiro nome? Gabriela? Decididamente, não tinha a certeza.

Era preciso provocá-la um pouco. As armadilhas pareciam pueris, as palavras rebuscadas. A carta era um pouco desconexa; Franz não estava muito satisfeito com ela. Mas, afinal de contas, exprimia bastante bem o estado de exasperação em que vivia; enviou-a, como quem lança uma garrafa ao mar.

Também em Gõdõllõ desabrochavam os junquilhos. É certo que o parque tinha ainda um aspecto inverniço, aqui e ali ainda havia uns montes de neve tardia, mas os botões dos salgueiros já tinham aberto em flores penugentas, e os choupos tingiam-se de vermelho; era o sinal. A Imperatriz decidiu festejar a chegada da Primavera.

Excepto a menina, a Querida, e os lacaios, ninguém no castelo era austríaco. A jovem senhora levara a ama inglesa e a fiel Ida. A quem era necessário acrescentar um ser que suscitava o horror indignado do pessoal, o negro Rustimo, que a Imperatriz adorava. Como ela, Rustimo gostava de animais, passeava os cães, dava cenouras ao burro e sabia falar com o célebre papagaio cor-de-rosa que começava a envelhecer. E como se isso não bastasse, ela acabava de convidar ciganos!

- Toda essa ralé vai devastar-nos os salões - suspirava o intendente e opinavam os lacaios, enquanto preparavam as bandejas de prata. - Não ponham o talher completo, uma faca é quanto basta para essa gentalha. Ah! E contem as colheres de chá, por favor. Não se esqueçam.

E como a festa teria lugar no parque assim que o tempo permitisse, o intendente espreitava as nuvens à espera de chuva. Baldadamente.

Os ciganos chegaram, empoleirados numa carroça, as mulheres sentadas, os homens em pé, de violino debaixo do braço. Ao vê-los acenar com as mãos alegremente, os lacaios entristeceram. Só faltavam os judeus para compor o ramalhete.

Sentada numa manta, a jovem senhora esperava os convidados num prado ainda amarelo, onde haviam colocado toalhas no chão, empilhado pratos, posto copos. Excepcionalmente, renunciara ao fato de amazona e vestia uma espessa pelica sobre um vestido simples de algodão branco e tinha, em volta do pescoço, uma fita de veludo preto; nas tranças espetara as primeiras primaveras, de um amarelo luminoso. A seu lado, a pequena arquiduquesa Maria Valéria pontificava, sentada num tamborete de renda, e contemplava gravemente o criado negro da mãe. Para a circunstância, Rustimo envergara o fato de cerimónia: turbante dourado, calças tufadas e túnica bordada, segundo a tradição dos Mamelucos.

Alinhados como para um desfile, os lacaios estavam um pouco mais longe, de mãos atrás das costas.

- Não há que negar - suspirou um rapaz - a nossa Imperatriz tem um ar das Mil e Uma Noites. Olhem como é linda...

- Uma maluca é o que ela é! - rosnou um velho. - Espera e verás. Ainda por cima a gente congela. Está um frio dos diabos...

A carroça dos ciganos, puxada por um pesado cavalo de crina avermelhada, avançou mesmo até junto dos lacaios. Retiraram o xilofone e instalaram-no. A jovem senhora ergueu-se de um salto. Com a face inclinada, um violinista tirava do arco adoráveis queixumes enamorados; as mulheres sacudiram-se, abanaram a roda dos grandes saiotes vermelhos e sentaram-se na relva fazendo tinir as pulseiras de prata. Rustimo fez sinal aos lacaios que ajeitaram as luvas brancas e trouxeram, em bandejas de prata, as empadas e os salmões. - Comam, não se privem! - bradou a Imperatriz. - Há mais coisas, e bolos, vão ver...

E andava de um lado para o outro rodopiando graciosamente, chamava um lacaio para servir vinho branco, verificava se todos tinham pãezinhos redondos, dava um bolo à filha, limpava-lhe carinhosamente a boca cheia de migalhas, ralhava com um lacaio porque havia um prato vazio, seguida por um Rustimo que sorria abertamente e a ajudava o melhor que podia.

- Se ela se esforçasse, nem que fosse metade disto, na Hofburg - resmungou o velho lacaio. - Mas não, tudo para os ladrões e para os pobres!

- Ela não comeu nada - notou o rapaz.

- Comeu sim, uma noz.

Por fim acabou por se sentar. Uma velha cigana acocorou-se junto dela e pegou-lhe no pulso.

- Olha, olha para ali - rosnou o velho lacaio. - Agora mandou ler as linhas da mão!

Mas mal ele tinha acabado a frase, a situação invertera-se. A jovem senhora apoderara-se da mão escura da cigana, e era ela que seguia as linhas, com um indicador seguro e firme, de sobrolho franzido. Bruscamente a cigana fechou a mão e libertou-se.

- Ah! A Imperatriz deve ter acertado, de certeza! - casquinou o velho lacaio. - As ciganas detestam isso!

- Então ela é vidente, ainda por cima... - murmurou o rapaz, boquiaberto. E quando o piquenique estava a terminar, a jovem senhora apercebeu-se de que faltavam na festa os animais. Rustimo foi buscar o papagaio, a cigana encarregou-se do burro. O pássaro bateu as asas, gritou desagradavtlmente, e o burro pôs-se a escocinhar, furioso. Só parou debaixo de um grande pinheiro.

Ela correu para ele, abraçou-o, beijou-o, encostou a cabeça ao pêlo hirsuto, o burro fechou os olhos e imobilizou-se.

- Vês! - disse ela à cigana. - Faço dele o que quero!

Depois, pegando-lhe no focinho, olhou-o bem nos olhos amarelos. As longas pestanas do burro baixaram-se.

- Sabes com quem tè pareces, meu lindo? - sussurrou-lhe ela ao ouvido. - Com o Imperador. Não digas a ninguém, é o meu segredo...

- Que está a dizer-lhe? - gritou Ida. - Palavrinhas doces?

Mas ela não ouvia nada. Perdida nos seus pensamentos, acariciava a cabeça do burro imóvel. O Outro também tinha olhos doces, longas pestanas, as suíças frisadas tinham o mesmo toque crespo, o Outro tinha também, profundamente oculta, aquela inércia obstinada, e aquela maneira de ceder ao que ela queria sem jamais recuar abertamente, já que era Imperador.

A festa terminou cedo, a meio da tarde, quando o Sol se foi. Os ciganos tinham tocado sem descanso, infatigáveis; tinham conseguido pôr a menina em cima do burro, o animal consentira em dar três passos antes de sacudir perigosamente a cabeça. A criança berrou, a jovem senhora precipitou-se gritando “Kedvesem!”, minha querida, e levou-a, apertada contra o peito, dançando como uma fada. Depois o sol enfraqueceu. Ao longe, amontoavam-se grandes nuvens negras, reunidas para uma violenta trovoada de Primavera; a saraivada não tardaria. Levantou-se vento; a menina teve um arrepio. Os lacaios tinham acabado de levantar os pratos e contavam discretamente a baixela quando a Imperatriz decidiu voltar para casa, precisamente antes das primeiras gotas de chuva.

Já chovia um pouco quando viu, no meio do caminho, uma pega que saltitava na erva.

- Meu Deus - suspirou. - O que é que irá acontecer?

E imediatamente, a Imperatriz executou três pequenas vénias, sob o olhar espantado dos lacaios. O pássaro detivera-se, imóvel.

- Não é nada - disse o mais velho. - Sua Majestade é muito supersticiosa. As pegas dão azar, a não ser que a gente as cumprimente três vezes. Quando eu lhes dizia que ela era maluca...

No momento em que a pega levantou voo, rebentou a trovoada. Foi preciso correr até casa.

Foi Ida quem encontrou a carta numa salva, no salão particular. O vagomestre vinha de Viena, e a carta de Munique, como de costume.

- Vossa Majestade recebeu correio - disse ela.

- Deixa, vejo amanhã - respondeu a jovem senhora sacudindo o cabelo molhado. - Estou cansada.

- De Munique, minha senhora... - murmurou Ida. - E desta vez não foi Rustimo quem a foi buscar à posta-restante!

- Posta-restante?

Correu para o quarto com a filha atrás. “Querido dominó amarelo, Londres já não me chega. Comprei um Baedeker como me aconselhaste, e bem vi: podes escrever de um sítio qualquer, sem estares em Londres, com aquele guia. Que belo exercício! Sem ter tanto jeito como tu para a literatura, eu poderia fazer a mesma coisa. O certo é que não tenho nem a tua educação nem o teu nascimento, e é muito fácil enganarem-me...”

- Oh! O meu jovenzinho está zangado - murmurou. - Mais inteligente do que eu pensava.

A menina puxou pelo vestido da mãe - festinhas, quero festinhas - gemia ela - ao colo, tenho medo dos relâmpagos, tenho frio...

- Anda. Mas está quietinha.

“... E portanto vou fazer-te uma quantidade de perguntas. Onde vives exactamente? Em Londres, de verdade? Porque não no teu castelo na Hungria? Uma vez que aí nasceste. Depois, não acredito que te chames Gabriela. Diz-me o teu verdadeiro nome.”

- Porque é que te mexes tanto, mamã? O que é que estás a ler, mamã? - perguntou a pequena agarrando na carta. - Diz lá!

- Queres fazer o favor de me dar isso já! - bradou. - Senão toco a campainha e vão-te deitar!

A criança pousou a cabeça no ombro da mãe, choramingando: “Estou cansada, mamã”, a jovem senhora apertou-a com mais força e continuou a ler. Lá fora, a trovoada continuava.

“Enfim, ambos gostamos de cães, pois falas-me do teu buldogue. A propósito disso, vi numa montra uma bela fotografia da nossa Imperatriz com um buldogue.”

- Ele desconfia! - exclamou ela. - Que sorte!

“... Gostaria de te propor uma adivinha: diz-me de que raça é o meu cão. Um animal de tamanho médio, de pêlo comprido cor de mel. Para terminar, gostava de saber o que lês. Porque conheces Heine mas eu não sei mais nada. Es uma pessoa educada, viajas, e calcula tu, eu também. Estou justamente de regresso do lago de Garda, onde fui com minha mãe. A água é de um azul incrível, de uma profundidade capaz de engolir feiticeiras; pode andar-se em lindas barcas com flores, debaixo de uns arcos encurvados, enquanto uns músicos improvisados tocam bandolim... Conheces certamente tudo isto melhor do que,.eu. Gostaria de saber dos teus périplos, ó grande viajante... É isso que espero. Perdoa estas linhas desajeitadas, não tenho o dom da escrita, mas se te dignares recordar, ao menos sei dançar a valsa. Não é, Kedvesem?”

- Agora começa com o húngaro - sussurrou - meu Deus...

Em breve, na puszta, pela força do calor vibrante apareceria o misterioso delibab; em breve tornaria a ver, vagabundeando, os cavalos selvagens de crinas ao vento, os gansos bamboleando-se pelos caminhos, e as cegonhas a preto e branco, pássaros livres. Em breve, dentro de dois ou três meses. No Verão.

A tempestade acalmara, a menina adormecera. A jovem senhora depôs um beijo nos caracóis húmidos, apertou a carta dobrada contra o peito, e levantou-se devagarinho para não acordar a sua filha perferida.

A noite viera e não parava de chover; um criado trouxera a tisana nocturna. Lá fora, as rajadas de vento batiam nas portadas das janelas.

- Quase não comeu em todo o dia, uma vez mais - disse Ida suspirando. - Por este andar vai ficar doente.

- Não me perguntas o que escreve o meu jovenzinho? Isso espanta-me.

- Oh! Perguntas e suspiros, suponho eu. Já não digo nada, não me segue os conselhos. Bem pelo contrário.

- Pois bem! Desta vez exijo-os! - exclamou. - Calcula que não é nada parvo, o austriacozito. Adivinhou que não lhe escrevia de Londres. E tens razão, faz perguntas.

- Que perguntas? Eu bem disse, minha senhora...

- Que leio eu, que vida levo, qual é o meu verdadeiro nome - não te assustes! -, as minhas viagens, ah, e também quer que adivinhe a raça do cão dele. Não é ridículo?

Falara sem descerrar os lábios, com uma precipitação tal que Ida pousou a chávena. Estava corada, emocionada. Apaixonada - pensou Ida de repente. Será que ela própria tem consciência disso?

- O cão dele? É grotesco - disse Ida, displicente.

De olhos brilhantes, lábios entreabertos, a jovem senhora olhava-a com uma espécie de esperança. Ida começou a reflectir intensamente.

- Penso que deveria responder - disse, por fim.

- Estás a ver! - triunfou a Imperatriz. - É essa a minha opinião. Para afastar as suspeitas.

- Naturalmante. Mas penso também que, desta vez, deveria mostrar-me a carta. Não! Não pense que eu sou indiscreta, mas poderia deixar escapar uma palavra, uma imprudência... Enquanto que se eu ler...

- ... Escrevo de modo diferente - concluiu a jovem senhora com azedume.

Um silêncio hostil levantou-se entre ambas como uma parede. A Imperatriz marcava o compasso de uma invisível valsa, torturando as rendas do punho direito.

- Com mil raios! Ganhaste, aborreces-me - exclamou ela levantando-se bruscamente. - Para a cama!

- Está bem, não pragueje, podem ouvi-la, é a praga preferida de Sua Alteza seu pai, eu sei, mas uma Imperatriz não diz essas coisas - ralhava Ida enquanto a acompanhava ao quarto.

- Uma Imperatriz também não escreve cartas a um desconhecido - disse a jovem senhora dando-lhe a mão a beijar. - E, contudo, é o que vou fazer, e a conselho seu, minha cara.

A carta seguinte vinha também de Londres.

A senhora Taschnik levara-a ao filho quando ele ainda estava na cama. Chegara na tarde anterior.

- Vem outra vez do estrangeiro - proferira ela friamente cheirando o envelope antes de o atirar para cima da almofada.

Ele bocejara ostensivamente, fingira espreguiçar-se enquanto escondia a carta com o cotovelo, mas a senhora Taschnik sentara-se na beira da cama com ar decidido.

- Não te pergunto quem é essa mulher, Franzi - começara ela num tom delico-doce ajeitando os óculos.

- Faz bem, mãe. Porque não é nenhuma mulher. E um amigo meu, adido de embaixada em Londres.

- Pensava que tinham um sistema, como é que tu dizes..., uma espécie de mala para diplomatas...

- Mala diplomática, ah, mas é que... Precisamente, ele prefere evitar - retorquiu o jovem embaraçado. - É propositado.

- Ah - disse ela sem convicção. - E onde é que estiveste esta noite?

- No café, mãe - respondeu ele ajuizadamente.

O que não era completamente verdade. Na Primavera, as costureirinhas iam dançar aos bailezinhos de subúrbio. Não que estivessem privadas de dança durante o Carnaval, mas em Fevereiro estava muito frio para se valsar na rua. Ao primeiro raio de Sol, apareciam os músicos, os donos das hospedarias punham cá fora as mesas redondas, e valsava-se entre amigos, longe dos faustos dos bailes da alta. Franz sentava-se tranquilamente, pedia um vinho branco misturado com água gasosa, e punha-se a mirar as raparigas que dançavam juntas. A senhora Taschnik teria ficado horrorizada; as costureirinhas eram mulheres fáceis, de amores perigosos, a doença andava pela cidade, e embora fosse de bom tom, para um rapaz, fazer a sua iniciação no baile das lavadeiras, não se falava nisso, e pronto.

Assim Franz Taschnik comportou-se como um filho respeitador e mentiu, como era seu dever. Não tinha pressa de abrir a carta. Vinha-lhe a pouco e pouco à memória a noite anterior.

Arranjara uma loirita magrizela, uma rapariga sem pretensões que uma mulher alta e larga de ombros apertava com bastante força, e que lhe atirara, como que a pedir socorro, uma generosa piscadela de olho. Não resistira, pegara na rapariga pela cintura, e lançara-se numa daquelas valsas balançadas que não se dançavam entre burgueses. Um pouco mais tarde, propunha-lhe um “quarto de aluguer” num hotel especializado, e a rapariga assobiou, estupefacta.

- Um quarto de aluguer? Para mim? Tenho um quarto, com uma amiga, aqui perto, só tenho que lhe dizer para não ir para casa...

- Tu mereces - dissera ele com sinceridade. - De verdade. É a primeira vez?

Ela rira-se, envergonhada. Ele insistira e ela fora com ele a um hotel seu conhecido, sempre o mesmo, que tinha salas privadas não muito caras. Um mordomo de fraque um pouco duvidoso abrira obsequiosamente as portas de dois batentes, e a rapariga contemplara a mesa coberta por uma toalha branca, os copos de pé alto, o champanhe no balde de gelo, e o canapé cor de malva. Olhava para tudo como uma criança para uma árvore de Natal, alisando a toalha com a ponta dos dedos. Franz gostava de extasiar as raparigas, principalmente quando eram pobres; sentiu-se feliz.

Ela chamava-se Friedl, era engomadeira, era virgem. Crispara-se, gritara de dor, dissera “não faz mal, tem de haver uma primeira vez”, depois surpreendera-o pelas audácias que teve, virgem no entanto, quem lhe ensinara? Ele pensara na mulher um pouco masculina com quem Friedl dançava no baile das costureiras, tomou-a de novo, teve um prazer extremo, violento, inesperado. O champanhe permanecera intacto, ela levantara-se toda nua, abrira-o com toda a facilidade - mãos fortes - pensara ele - mãos fortes e ancas redondas, uma cintura desonho, que esposa daria, é pena. E eJa, de taça na mão, molhou o indicador no champanhe e humedeceu-lhe os lábios. Uma graça.

Embriagaram-se muito depressa, e adormeceram como duas crianças. Às duas horas o mordomo viera tossir atrás da porta.

Ela vestira-se enxugando uma lágrima que ele não entendeu. E depois rira, e saltara-lhe ao pescoço “meu fofinho, a gente vai voltar a ver-se, não vai?” E ele sentira-se culpado.

“Da próxima vez...”, dizia ela apertando as botinas. Não haveria próxima vez, e esse pensamento causava-lhe já remorsos. Levou-a a casa, ela dera-lhe o braço em silêncio. Não ousava pagar-lhe, mas ela, delicadamente, murmurou-lhe num último beijo “dá-me qualquer coisita, senão ralham-me, não é tanto por mim mas...”, então ele tirou a carteira.

Acordara entorpecido, ainda tonto de prazer, com um aperto indefinível no peito.

- Está na altura de me casar - murmurou enquanto abria o envelope.

A carta era interminável; Franz devorou-a num abrir e fechar de olhos, procurando maquinalmente a palavra carinhosa que não havia. Achou as frases rebuscadas, o estilo saltitante, e o conjunto sem interesse. Boa para deitar pela retrete abaixo. Amarrotou-a com raiva e tornou a deitar-se.

Que tinha ele a ganhar com aquela aventura sem futuro? As mulheres eram fáceis; porquê incomodar-se com uma peneirenta que se armava em misteriosa e troçava dele? Era bela, com certeza; mas afinal de contas não a vira. É certo que era alta e fina; mas os lábios que mantinha fechados pareciam feitos para resistir ao desejo. Distinta, mas altiva; esquiva, desdenhosa. Vá lá! Era preciso abandonar Gabriela.

Casar-se... Seria preciso passar pela escolha da mãe, aceitar uma mulher-zinha corada, de cabelos cuidadosamente frisados, loira e gordinha, uma verdadeira menina casadoira? Uma parvalhona que não lia, e que só saberia, talvez, tocar vagamente ao piano algumas músicas convencionais? Iriam à missa ao domingo, ela faria amorosamente almôndegas para o caldo; com as mãos pegajosas de massa, enfiaria o damasco no meio do tradicional pastel, prepararia o café matinal, esperá-lo-ia à noite com um beijo na face, e apagaria a luz na cama, já debaixo do edredão...

Não! Primeiro, havia de ser uma morena. Muito alta. Teria olhos escuros, com reflexos fulvos ao sol; um olhar irisado. Uma pele nacarada, nem muito escura nem pálida, com um brilho silvestre, um pouco como uma raposa. Não seria nem demasiado doce, nem demasiado obediente, seria um pouco triste, com um sorriso enigmático... Como a desconhecida do baile.

Sobressaltou-se. Endireitou o papel. E releu a carta de Londres, lentamente. O “caro amigo” da primeira linha não significava nada. Ele havia-a, escrevia ela, “distraído”! Enraiveceu-se. Depois descobriu que ela mordera a isca: “Porque razão recusas o nome que te dei? Não gostas de Gabriela? Foi assim que me chamaram quando nasci. Uma dádiva do céu. Gabriela! Põe no masculino. Gabriel... Não foi esse divino companheiro de Deus que proibiu o céu ao comum dos mortais, aos simples homens como tu? Gabriela convém-me perfeitamente. Proibida, meu filho, sou eu para ti. Tens alguma coisa contra este lindo nome de arcanjo?”

“Em cheio”, pensou ele. “E depois, escrevia ela, dir-se-ia que imaginas que não estou em Inglaterra. Que ideia! Estou em Londres. E aborreço-me. Poderás dizer-me por que razão teria eu inventado tal mentira? Não tens resposta, meu filho. Escusado será falar do resto.”

Vinham a seguir ladainhas nostálgicas sobre o encanto de Viena, e que soavam a falso. Ela detestava Viena, não o escondera, e pretendia agora ter saudades dos “divertimentos”. Ela, divertir-se? A menos dotada do mundo para tal. Rejubilou, “apanhei-a”, pensou. Depois voltava a Inglaterra, convidava-o - não corria nenhum risco - e fugia à adivinha sobre os cães. “Pois confesso, dizia ela, que gosto pouco de cães. Nem vale a pena dizer-te que não tenho maneira de adivinhar a raça do teu cão, o que, aliás, não me interessa nem um pouco. Para me ilucidar sobre o assunto, e se realmente isso é importante para ti, poderias enviar-me a tua fotografia com o teu fiel servidor...”

Fiel servidor! Só os amadores de cães utilizavam semelhantes termos. A paixão da Imperatriz pelos cães enchia as colunas dos jornais.

Em resumo, ela mentia. Não estava em Londres, não viajara, adorava cães, não se chamava Gabriela. Mentirosa.

Quando chegou às três últimas linhas, pensou que estava a sonhar. Três linhas um pouco trémulas, e em que não reparara. Palavras que ela poderia ter proferido a meia-voz, com aquele estranho murmúrio sussurrado que a tornava semelhante a uma espécie de Lorelei. “Insinuei-me na tua vida, escrevia ela, sem querer, sem saber. Não tenho culpa. Diz-me, queres romper esses laços, queres? Agora, ainda é possível. Mas mais tarde, quem sabe?” Ah! Era ela, inteira. Fugidia, escorregadia, provocadora, uma sedutora de génio, enguia ou polvo, sereia ou ninfa, mas marinha de certeza, coberta de escamas, a cheirar a sal e conchas, envolta nos seus próprios cabelos, uma filha das águas...

“Diz-me, queres romper esses laços?”

- A cabra - gemeu Franz. - Bem gostaria.

“Diz-me, queres romper esses laços, queres? Agora, ainda é possível...”

- Libertar-me desta mafarrica. Tem de ser.

“Insinuei-me na tua vida sem querer, sem saber. E não tenho culpa. Diz-me, queres romper esses laços ?”

- Seria ela sincera, afinal? E verdade que éramos dois inocentes - murmurou beijando o papel.

“Diz lá, queres romper esta ligação, queres?”

- Ainda não - gritou saindo da cama. - A caça não terminou. Primeiro tenho de saber quem és. Depois, veremos.

Depois de se arranjar e de beber o café, pensou na fotografia que ela lhe pedia, com o setter irlandês. Havia de achar alguém para lhe emprestar um, se não...

Se não, não mandaria nenhum retrato. Deus sabe o que ela e as damas de companhia poderiam fazer com tal coisa.

 

                                         OS DESENCONTROS

Partiste, sumiste definitivamente Quem bruscamente te arrancou de mim? Queres curar-te da louca febre selvagem Queres fugir da terra onde me acho?

Elisabeth

Os dias continuavam cinzentos; chovia em Viena. Willibald torcera o pé, estava de mau humor. Em Ballhausplatz, um húngaro acabava de entrar ao serviço, um homem baixo e de fraca constituição, de olhar vivo e cabelo encaracolado, e que se apresentara batendo os calcanhares. “Attila Erdos” anunciara orgulhosamente.

Willy medira-o de alto a baixo em silêncio, e Franz, perdido nos seus pensamentos, mal lhe dirigira a palavra. O húngaro tentara em vão estabelecer contacto, depois sentara-se à secretária. Nunca era fácil aterrar nos gabinetes de Ballhausplatz, principalmente para um húngaro.

- Attila - resmungou Willy quando deixaram o ministério - mais um nome de bárbaro... Da Hungria não vem nada de bom, excepto o goulasch e o vinho de Balaton. Reparaste nas botas dele? Botas, na cidade, e a brilhar como espelhos!

- Mas tem um ar afável - respondeu Franz. - E é de uma perfeita cortesia.

- Tu e as tuas caridades imbecis! - gritou Willy. - Preferia um austríaco, um verdadeiro. Tu me dirás que o nosso ministro, o conde Andrassy, é magiar, que os da Transleitânia são nossos irmãos, que formamos um único povo unido por duas coroas, que...

- Não digo nada disso. Estás a tornar-te impossível, Willy!

- Sofro de um desgosto de amor, meu velho - murmurou o gordo. - A minha mãe tinha-me arranjado uma noiva na aldeia, uma jovem de vinte anos, com dote, engraçadita, um tanto brejeira também... Enfim, sabes lá, estava enamorado. O pai acabou por considerar que eu não estava à altura. Ela era certamente bonita de mais. Acreditei... E depois nada. Sem contar que o tempo não perdoa; imagina, trinta e cinco anos!

Dos amores de Willy, Franz não sabia quase nada. O gordo armava-se frequentemente em homem com experiência; quem o ouvisse diria que as aventuras dele não tinham conta. Aparecia regularmente no ministério com uma sobrecasaca nova, de flor ao peito, punha-se com ares misteriosos e esfregava as mãos. “Acho que é desta”, confiava ele sem fornecer pormenores.

Algumas semanas mais tarde, chegava com a barba mal feita, de mau humor, como nesse dia, justamente. O famoso “Acho que é desta” datava aproximadamente de um mês atrás. Franz pôs-lhe um braço pelos ombros e levou-o ao café, onde Willy se embebedou com vinho branco, que tornava a embriaguez mais leve, dizia ele.

Decididamente, um dia triste. A chuva não parava de cair e o vento entretinha-se a dobrar os ramos das árvores recentemente plantadas diante dos Paços do Concelho. Franz apanhou o eléctrico pensando na carta de Londres, que dobrara em quatro e guardara no bolso da sobrecasaca.

A senhora Taschnik bem tentara que o filho se abrisse com ela, mas ele, a pretexto de uma dor de cabeça, retirou-se para o quarto. Estava cheio de arrepios.

Gelado, Franz embrulhou-se na pelica, abriu a porta do fogão de faiança e tirou a carta do bolso. O calor tornou-se asfixiante; o jovem atirou a pelica para um canto, despiu o colete, a camisa, e ficou em tronco nu, sentado à mesa. As letras dançavam-lhe diante dos olhos, deformadas pelas rugas do papel; já nem as via. Maquinalmente, coçando as axilas, agarrou os pêlos abundantes, ásperos e crespos como um púbis de mulher. Da pele da desconhecida, que sabia ele ao certo? Mal se lembrava de um cheiro de floresta, algo entre o húmus e o jasmim...

Contemplou os pêlos loiros dos antebraços, estendeu as mãos enormes e achou que eram feitas para um corpo de mulher. O pior é que não sabia bem para qual; o pior era a desconhecida atravessada no seu caminho, e aquele enigma que o obcecava.

Escreveu de um jacto, com uma espécie de raiva. “Caro dominó amarelo, tu pensas que eu sou burro. Para quê enganar um jovem inocente que não te fez mal nenhum? Agradei-te uma noite; enfeitiçaste-me. Do que me escreves, não acredito numa única palavra. Estarias em Londres como ? És austríaca, minha cara; não te chamas Gabriela, pois o teu verdadeiro nome eu sei qual é. Não o escrevo por respeito. Qual o austríaco que não reconheceria em ti o ídolo de todo um povo? Que outra mulher teria um tal ar de majestade? Tinhas de me mentir, mentiste, muito bem. Perguntas-me se quero romper esta ligação? Não vou responder. A ligação entre nós, foste tu quem a quis; sem ti, eu não lhe posso pôr fim. Se alguma coisa ainda sentes pelo infeliz que fizeste teu prisioneiro, liberta-o, minha cara, liberta-me.”

E para ter a certeza absoluta de não voltar atrás, fechou logo o envelope.

A carta seguiu o seu caminho até Munique, posta-restante; e aí ficou adormecida durante um mês inteiro.

A Imperatriz consentira finalmente em deixar a Hungria; do mesmo modo que os dias bonitos, também ela estava de regresso a Viena, onde a esperavam as cerimónias habituais, a procissão do Corpo-de-Deus, algumas recepções dadas em honra das delegações vindas dos confins do Império, em companhia do Imperador, pobre Imperador. A Corte fora atrás dos rumores; comentava-se muito que em Gõdõllõ a Imperatriz se mostrara demasiado íntima com a sua cavaleira, uma rapariga do circo Renz, uma francesa, bem entendido. O Imperador tinha ficado preocupado, mas a Imperatriz teria convencido o esposo que se tratava de uma mulher absolutamente respeitável.

- O que é certo é que ela se raspou, a Renz! - comentava Willibald com um riso escarninho. - Também, a nossa Imperatriz exagera. Dar-se com uma acrobata! E porque não passar através de um arco em fogo, já agora!

- Perdão? - sobressaltou-se o húngaro. - Quer fazer o favor de me dizer de quem é que o senhor está a falar?

- Da Imperatriz, ora essa! De quem é que havia de ser? Não querem lá ver o campónio do Danúbio!

O húngaro erguera-se completamente sem cor. “Acalma-te, Willy, então, não estás bom da cabeça” - sussurrou Franz, inquieto. Tarde de mais. Attila derrubara a mesa e pegava em Willibald pelos colarinhos.

- Não se insulta nunca a Rainha na minha presença! - rosnou ele. - Não volte a fazê-lo! Ou faço-o em papas. Vocês, Austríacos, odeiam-na, eu sei; mas ela é nossa, fiquem sabendo, nossa!

Largou-o de repente e o gordo rebolou pelo chão. O húngaro sacudiu-se, ajeitou os punhos da camisa e atirou-lhe um pontapé aos rins. Willy levantou-se a gemer.

- Nós somos assim - rematou Attila recuperando o fôlego.

- Não faz mal, o senhor tem uma força incrível - disse Franz calmamente. - Como é que conseguiu levantá-lo do chão?

- Mas tive razão, não tive? - exclamou o húngaro. - Tenho a certeza que me aprova. Aliás, o senhor nem mexeu um dedo. O senhor é diferente, é uma coisa que se vê logo.

- Oh! ele - gritou Willy de longe - é outra coisa. Está apaixonado pela Imperatriz! Desde que julga que a sedu...

Antes de ter tido tempo de terminar a frase já estava encostado à parede. Franz correra como uma seta e tapava-lhe a boca.

- Interessante - comentou o húngaro. - Pelo que vejo, este senhor encontrou finalmente interlocutores à altura. Por hoje já tem a sua conta. Então, conhece a minha Rainha?

- E se nos tratássemos por tu? - sugeriu Franz. - Eu sou Franz; podes tratar-me por Franzi...

Willy amuou.

Franz e Attila travaram conhecimento; o húngaro, encantado, andava sempre com ele. Tinham a mesma idade; durante a Revolução, o pai de Attila estivera preso, fora certamente torturado, o certo é que mal fora libertado morrera de esgotamento. Eram ambos filhos únicos, e as mães respectivas pareciam-se uma com a outra: possessivas, conservadoras. Partilhavam as mesmas convicções liberais; o futuro pertencia aos espíritos modernistas, ao progresso técnico, e à tolerância. O Império estava espartilhado e espartilhava os povos.

Sobre esse aspecto os dois jovens tinham pontos de vista diferentes. Para Attila, a autonomia húngara garantia as liberdades de todos os povos do Império. Franz não estava completamente convencido: por causa da insolente soberba da Hungria, o parlamento checo, fechado em 1867 quando fora instaurada a Dupla Monarquia, ainda não fora reaberto. Os Eslavos do Norte, Checos e Eslovacos unidos na mesma humilhação, sentiam-se traídos pelo Imperador que, por sugestão do ministro Andrassy, acabava, ainda por cima, de se desfazer dos Polacos, cedendo-os a Bismarck. Quanto aos Eslavos do Sul, clamavam por auxílio com insistência crescente e os tumultos eram cada vez mais sangrentos. Armados de forquilhas e paus, os camponeses revoltados pilhavam as praças-fortes muçulmanas e faziam emboscadas por toda a Bósnia. Massacre em cima de massacre, mas ainda não se vislumbrava nenhuma intervenção.

O húngaro acenava com a cabeça, com um ar embaraçado, e concordava que era preciso mudar o estado do Império, abrir a Dupla Monarquia aos outros povos. Um dia, talvez.

Quando, por fim, se atreveram a falar dos respectivos amores, Franz deu alguns conselhos e recomendou cuidado por causa da doença.

- E essa história com a Rainha, pois parece que a conheces... - questionou prudentemente Attila ao fim de uma semana.

No primeiro dia, Franz respondeu que era pura invenção; no segundo, admitiu que o gordo não mentira, enfim, não mentira inteiramente; no terceiro, evocou o baile, sem insistir. Quando finalmente confessou tudo, o húngaro ficou embaraçado.

- Se assim foi - repetia. - Com alguma sorte...

Mas a última carta de Franz permanecia sem resposta. Attila começou, por sua vez, a sonhar; entrevira a Rainha no dia da coroação, quando tinha apenas dezanove anos. Através dos vidros do coche, reconhecera a tiara de diamantes, lobrigara o corpete de veludo preto e as célebres fiadas de pérolas cruzadas à húngara, por cima da renda. O traje tradicional fora adaptado por Worms, o grande costureiro francês; o vestido era simplesmente admirável. Uma mão, que parecia pequena, erguera-se, acenara, e depois retirara-se com timidez.

- Será que a vi realmente? Eu estava longe... E depois não sou alto... Talvez o delibabl - concluiu.

- O quê? - exclamou Franz estupefacto. - Ela também falava disso!

- Ah! Eu explico, ou pelo menos posso tentar - disse Attila misteriosamente. - É preciso ver-se o delibab. Na nossa terra, na Hungria. É uma especialidade

Willy adoeceu. Tinha os gânglios inchados e febre; os outros dois pensaram que fosse por estar mal de amores. Mas quando regressou ao serviço, um mês mais tarde, tinha-lhe caído o cabelo. Não quis comentar o seu estado de saúde - uma afecção que lhe vinha da infância - dizia ele. Mas tinha emagrecido tanto, estava tão em baixo que, cheios de remorsos, Franz e Attila lhe perdoaram.

Os castanheiros floriram, a começar pelos brancos; os cor-de-rosa floririam mais tarde. No Prater os relvados estavam verdes, e as carruagens seguiam apressadas pelos caminhos. Os pregoeiros regressaram com as suas poderosas vozes, as raparigas usavam chapéus claros e violetas nos decotes. Nas colinas, os estalajadeiros punham as mesas nos jardins, e as pequenas orquestras tocavam até fartar todas as noites. As janelas da moradia dos Strauss abriram-se de novo, e a senhora Taschnik pôde voltar a protestar contra aquele maléfico fazedor de encantamentos, cujas melodias se desfiavam sob as cerejeiras.

Uma manhã, Franz não resistiu, levantou-se cedo e correu ao hipódromo de Freudenau. A carta dele punira havia cerca de um mês; a Imperatriz, retida na capital por motivos inexplicados, não fora ao casamento do irmão com a infanta de Portugal; era o que os jornais diziam. Portanto, estava em Viena. Mas Franz não a encontrou no hipódromo.

Nem tão pouco nas veredas do Prater. Vagueou em volta da casa Demel, fez perguntas às empregadas, que a não tinham visto desde o Inverno. “Dir-se-ia que se esconde”, disse uma delas.

- De certeza que se esconde - comentou o húngaro. - Mas tenho dois convites para a inauguração da exposição floral. Repara: “sob o alto patrocínio de Sua Majestade a Imperatriz”... Tentemos.

Ela foi, de cetim cor-de-rosa e preto. Franz reconheceu o célebre rosto, a boca fechada, o sorriso enigmático, e o olhar velado pelas sombras das palmeiras que lhe desenhavam estranhas jelosias na pele clara. Attila pôs-se em sentido. Rodeada de murmúrios de admiração, com um leque na ponta dos dedos, ela avançava num passo insensivelmente balanceado, qual gracioso navio deslizando sobre águas invisíveis.

Franz postou-se diante de um maciço de azáleas, numa esquina que ela não podia evitar. E não evitou. Os olhares deles cruzaram-se. Franz estendeu uma mão hesitante, e inclinou-se profundamente.

Ela esteve quase a deter-se, fez uma pausa interminável, depois acelerou o passo. Mas no momento em que ia a desaparecer, bruscamente, voltou-se.

- Meu Deus! É ainda mais bela do que nos retratos! - murmurou Attila, deslumbrado. - Então?

- Então não sei - hesitou Franz. - Não te esqueças que eu nunca a vi...

- Mas ela voltou-se!

O acontecimento foi objecto de longas conversas. Não se podia negar os factos: ela vira-o, imobilizara-se, voltara-se. Tinha feito algum gesto de conivência? Não. Que lera ele nos seus olhos? Difícil de dizer. Ele pensava tê-la visto franzir as pálpebras, como se fosse míope. Acerca do que cintilara num tal olhar, ele não estava bem certo. Um rápido clarão, um negrume doce e colérico?

Mas não reconhecia nada do frágil brilho que tanto o encantara. Nada, excepto talvez um ligeiro ondular das ancas. Nada, excepto o rosto de arcanjo que ele adivinhara naquela famosa noite. E o movimento do leque.

Tornou a vê-la, no Prater, por acaso, num fim de tarde em que não a procurava. Precisamente por essa época, decidira aprender a montar. Franz tinha em cada perna quinze dias de lições; o cavalo era uma velha pileca para principiantes, um baio castanho bastante manso, em cima do qual procurava a melhor posição.

O Sol de Junho não se pusera ainda, o céu empalidecia, uma Lua branca e difusa esboçava-se vagamente, os pardais reuniam-se no cimo da ramaria para um concerto de chilreios. Àquela hora não corria o risco de a encontrar. Saboreava pois a longa tarde que tornava maior a alegria de viver. O Prater era um local de delícias, como nenhum outro lugar do mundo.

Em cima do pequeno palco do Teatro de Polichinelo, um Pierrot barrigudo troçava de um Pantalon narigudo; um pouco mais adiante, um vendedor que carregava nos “rr” apregoava os milagres de uma garrafinha mágica; os caramanchões dos botequins dobravam-se ao peso dos lilases, e os clientes bebiam vinho branco misturado com água, o Gespritzt, mirando as transeuntes que davam cotoveladas umas às outras rindo à gargalhada. As Siisse Mddel, as raparigas melosas que eram o encanto de Viena, pareciam ter-se reunido de propósito para tirar proveito de tudo aquilo; eram engomadeiras ou costureiras; o São João estava a chegar, e os saiotes deixavam ver as botinas ou as meias às riscas. O jovem incitou o cavalo e internou-se na mata. Começava a sentir-se à vontade em cima do animal; dessa vez não estava a pensar na desconhecida.

Cruzou-se com ele de caleche, vestida de musselina preta, com uma sombrinha branca na mão; de repente, ele estava no meio do caminho. Surpreendido, levantou um braço, quis chamar, gritou “Gabriela!”, e eis que ela se volta outra vez...

O mesmo clarão. Assustadas, as pálpebras bateram, abriram-se; gravemente, inclinou a cabeça, como a pedir desculpa. Depois virou a sombrinha para se esconder; a caleche avançou, os cavalos roçaram pelo de Franz, que deu um puxão nas rédeas com um gesto desajeitado...

A Imperatriz passara. O coração de Franz batia tão depressa que nesse instante não tinha dúvidas nenhumas: era ela. Mais amedrontada do que nunca.

A carta de Munique, posta-restante, chegara às mãos da destinatária imediatamente antes da exposição floral.

No momento em que lha levaram, a Imperatriz teve um sobressalto e abriu o envelope a tremer; a resposta tardara, é certo, mas afinal o jovem não deixara de cumprir a sua missão. Quando acabou de ler, deixou cair o papel. A carta de Franzi era uma verdadeira bofetada.

Da carta de Londres - escrita em Gõdõllõ na febre de uma Primavera perversa -, ficara-lhe apenas uma lembrança confusa; evocara o Oriente, os cães, alguns títulos de livros, era afinal de contas bastante engraçada, um pouco espirituosa, mas o quê! Deixara-se ir, sem receio... Que erro cometera? Onde é que o tinha atingido? Era a reacção de alguém ferido, a de um animal acuado no fim de uma perseguição...

“Diz-me, queres romper esta ligação?” Sim, escrevera essas palavras devastadoras... Mas ao responder tão violentamente, o jovem quebrara o encanto; a ligação estava desfeita, era definitivo. Amarrotou raivosamente a carta.

- Queres que te libertem, pobre criatura, pois bem, vai-te embora! - gritou pisando o papel. - Fiz-te prisioneiro, eu? Enfeiticei-te? Vai para o diabo!

Depois de se acalmar, apanhou a carta, dobrou-a em quatro e enfiou-a no decote, onde ninguém a encontraria. Ele não era mau, no fundo; era bom rapaz, só um pouco esperto de mais. Não escreveria mais; enfim, não escreveria já. Tinha de deixar passar a tormenta, ele tinha de pedir perdão, de joelhos, e então, oh, então, como ela ficaria meiga, generosa, e até, se ele quisesse, aceitaria vê-lo outra vez...

Enxugou as lágrimas diante do toucador do quarto. Quantos anos lhe restariam para agradar a um jovem? Dois anos, três talvez? Ele tornava-se assim o garante da beleza dela. Quem mais a olharia, a não ser aquele Franzi, aquele escriturariozinho de ministério, aquele coração ardente e sincero? Os outros, ah! os outros mentiam, todos...

Entretanto, distância primeiro, e silêncio. Havia certamente de voltar a vê-lo. Talvez no dia seguinte, no meio das hortênsias e das orquídeas. Aliás...

Ao aceitar inaugurar a exposição floral, a Imperatriz imaginara que o seu jovem estaria lá; premeditara a paragem, a hesitação, e a indiferença calculada. Autorizaria a si mesma a troca de olhares, para aproveitar mais um pouco daquela adoração obstinada; ele não saberia de nada, seria delicioso. Mas para seu grande espanto, não conseguiu evitar voltar-se. E isso, não tinha decidido. Desde aquele impulso incontrolado, esperava um sinal dele.

Também não previra a aparição no Prater, à beira do caminho; assustou-se muito e sentiu-se acossada. Pela primeira vez, o encontro deixou-lhe na boca um travo amargo. Achara-o mais bonito no Verão do que no Inverno; era decididamente muito alto, muito forte, mais elegante do que antes, e ela, paralisada, contentara-se em passar, inclinando a cabeça...

Era demasiado estúpido, e demasiado cruel. Começava a sentir-lhe a falta. Era ele quem se tornava agora inacessível. Os papéis invertiam-se. Deixaria de escrever ao seu jovem; decididamente, aqueles sentimentos nem pareciam coisa sua.

Segundo Willibald, o dominó amarelo haveria de responder à última carta de Franz, sem sombra de dúvidas. Concederia finalmente um encontro, um verdadeiro encontro, num quarto de aluguer. Chegaria com o rosto escondido por um véu; mas após os preliminares, tiraria o veuzinho, e Franz poderia afinal constatar que se tratava de Gabriela, e de mais ninguém. E quando, para terminar, ele a tivesse derrubado sobre o sofá, ficaria aliviado. “Verás! Estou habituado a essas mulheres - repetia. - Em cima do sofá.”

Mas para Attila, que partilhava as convicções de Franz, se Gabriela era Elisa-beth, haveria de calar-se ferozmente. Os três comparsas estavam de acordo sobre um único ponto: em circunstância alguma deveria o jovem dar o primeiro passo.

Franz achava que a ruptura era irremediável. Exigiu dos amigos silêncio sobre aquele caso; que não se falasse mais naquilo, por favor, e que o deixassem em paz! Aliás estava muito calor. A Imperatriz viajara de novo, a cesura do Verão realizava o seu trabalho. Voltar-se-ia ao assunto mais tarde, talvez, ou então nunca mais.

No Outono, os três amigos frequentaram os botequins das colinas; a saúde de Willy restabelecera-se, estava mais bem-disposto, tinha finalmente aceitado a presença do jovem húngaro. A intervenção na Bósnia ainda não fora decidida, apesar dos combates mortíferos entre muçulmanos e cristãos. Segundo Willy, que estava decididamente melhor uma vez que espalhava os mexericos, o Imperador tinha uma aventura com uma vendedeira de flores, uma certa Nahowski que conhecera no parque, em Schõnbrunn.

- E o nome dela? - insinuou Franz, interessado.

- Anna, simplesmente-respondeu Willibald.-Um nome bem austríaco.

- É bonito, Anna - observou Franz, pensativo.

- Pois é! E depois isso alivia-te a consciência, não? Pois se o Imperador é infiel... - sugeriu Atilla que pensava na sua Rainha.

O jovem húngaro apaixonou-se por uma cantora que ouvira no café onde Johann Strauss dirigia uma orquestra; era uma soprano, de cabelo louro-arruivado, e que instantaneamente passou a ser “A Ruça”. Os amigos acharam-na simpática mas vulgar; era apenas uma vozinha sem talento.

Para não ficar atrás, Willy afirmou que desta vez é que era. A noiva já não era muito nova, mas era insinuante, a fazer fé no que dizia a mãe dele; e, caso raro, três meses se passaram sem qualquer decepção.

A Imperatriz andava em viagem por Inglaterra; foi a Londres, e Franz ficou nostálgico. De acordo com os jornais, ela teria visitado o maior asilo de alienados do mundo, em Bedlam, cujo interesse ninguém em Viena percebia; e pela primeira vez participara numa partida de caça a cavalo, o que parecia um pouco mais conveniente. Mas como Franz proibira qualquer conversa sobre o assunto, Willibald e Attila ficaram calados.

- Esperemos a época dos bailes - segredava Willy ao ouvido do húngaro. - Aposto que lhe volta aquela ideia fixa.

As árvores perderam as folhas, o vento recomeçou com as lufadas gélidas, com as rajadas desagradáveis. A primeira neve caiu em Novembro, mal terminadas as vindimas nas colinas. Os Vienenses enfiaram as pelicas, e os pobres começaram a tiritar. Faltavam apenas dois meses para o começo do Carnaval; e a excitação invadia já o coração da mocidade. Como quem não quer a coisa, Willy abordou a questão dos bailes: onde iriam eles ? O Grande Baile de Máscaras teria lugar na mesma sala do ano anterior; a data já era conhecida, 22 de Fevereiro. Franz fez-se desentendido.

Recusou mesmo, obstinadamente, ir. Os outros dois prepararam-se; Attila pretendia que a amiga levaria um dominó preto e branco, da cor dos fraques masculinos. Na véspera do Grande Baile, Franz deixou-os partir um pouco mais cedo, e pareceu concentrar-se num processo complicado, um caso de adiamento de créditos orçamentais, que dava dores de cabeça ao chefe de secção.

Na manhã do baile, Franz evitou o Prater, e decidiu passear pelo Stadtpark, o jardim público mais recente. O chão estava tão gelado que eram raros os passeantes. Os patos bamboleavam-se desajeitadamente em cima do gelo do lago; os cisnes, poisados como se fossem galinhas, pareciam chocar um ovo misterioso e enorme. Franz contemplou as grandes aves imóveis, cujo pescoço se inclinava por vezes a tremer. Prisioneiras.

Franz regressou precipitadamente ao ministério; mudara de ideias. Os amigos não ficaram nada surpreendidos.

Quando penetraram no vestíbulo da sala de baile, Franz teve uma espécie de alucinação; os risos e as valsas não haviam mudado, as sedas rodopiantes também não. Estava de novo aberta a caça ao dominó amarelo; Willy encarregara-se dos vermelhos, em memória do passado.

Encontrou um a seu gosto, com quem andou sempre, e que não era Ida. Ao olhar de perto a conquista de Willy, Franz pensou reconhecer a engomadeira, a Friedl que ele levara a um quarto de aluguer, no ano anterior. Não se enganara: a rapariga aproveitou a confusão para lhe fazer um sinal de conivência, levantando um pouco a máscara. Depois pôs um dedo nos lábios; Franz percebeu que não devia dizer nada. Ela estava um pouco alegre de mais, e tinha os olhos um pouco brilhantes de mais. O champanhe ou a sífilis?

Attila mergulhou no baile com a sua cantora de dominó preto e branco. Franz vagueou toda a noite sem resultados; contara pelo menos seis dominós amarelos, cujas pregas dissimulavam mulheres baixas. Andou atrás das grandes estaturas, desencantou uma, filou-a pela manga, mas quando ela se voltou, ele viu uns olhos claros. Willy saíra com a Friedl, os dados estavam lançados; Attila rodopiava pela pista sem descanso. Franz foi-se embora de coração vazio, achando que era um imbecil.

Vingou-se escrevendo uma carta violenta, que rasgou a seguir. A desconhecida desaparecera da sua vida. Ele bem fizera por isso e ela acedera ao seu desejo. Para acabar com aquilo definitivamente, precisava de encontrar agora a outra mulher, cuja imagem se ia esboçando à medida que Gabriela se afastava.

Foi buscar o leque partido, abriu-o... Estava de asa caída, o leque; Franzi releu as cartas sem demasiada emoção e fechou-as numa caixa vazia, ainda pegajosa do açúcar dos rebuçados que contivera. Caso arquivado.

Da famosa noite do Grande Baile de Máscaras, restavam apenas as frias estrelas de um céu de Inverno, de onde uma se desprendera para ir pousar na peruca ruiva de uma mulher que aparecera por milagre, e que decidira desaparecer.

 

                                                     A LEBRE E O JAVALI

 

                         ANNA, OU A MÚSICA

A princesa Sabbat que é mesmo A tranquilidade em pessoa Detesta os torneios intelectuais E os debates de todo o género

Não suporta o entusiasmo Que bate o pé e que declama Nem a comoção que nos assalta De cabelos soltos ao vento

Heinrich Heine, Melodias hebraicas

Ora precisamente, num domingo, Franz deambulava junto ao mercado central, onde a mãe o encarregara de comprar sementes de papoila, quando ouviu ao longe, no passeio, estranhas sonoridades.

Era uma daquelas pequenas orquestras que passavam por vezes em Viena no Inverno, vindas da longínqua Galícia, talvez, ou da Bukovina, e que se instalavam a um canto de uma praça. Como únicos instrumentos, um contrabaixo, um violino, um acordeão, quase nada; de boné enfiado na cabeça, apertados em casacões muito justos, os músicos inclinavam-se para as cordas e teclado, sem olhar para aqueles que passavam e que pouco a pouco se detinham, de tal modo a música era bela.

E contudo quase não era música. O contrabaixo insistia em três notas, o acordeão e o violino contidos, quase nada, apenas o necessário para uma canção triste. Mal tocavam, como se emergissem de um longo sono; aqueles gestos entorpecidos pareciam cada vez mais lentos, aqueles olhos fechados mergulhavam no interior da alma, e as pessoas que passavam amontoavam-se em torno, também elas entorpecidas por uma lenta preguiça.

E daquele embrião de orquestra, daquela música rudimentar, nascia uma melodia de partir o coração, e que se derramava como lágrimas sobre a cidade. Poder-se-ia dizer que se ficava com o coração despedaçado? Não. Ficava-se feliz. O espírito começava a derreter sob um pálido Sol, como um pedaço de neve endurecida que um anjo tivesse aquecido. De mãos nos bolsos e nariz enfiado nos casacos, as pessoas não se iam embora; por vezes, uma delas atirava uma moeda aos pés dos músicos, um tostão que caía com um ruído incongruente, sonoro, e os outros, incomodados, faziam “chiu”, para não perturbar a música, que aliás não se importava. Começava a dançar, a música.

Porque, de súbito, quando o mundo parecia finalmente descongelado, o violinista fazia um sinal, o acordeonista abria os olhos, e o contrabaixista afadigava-se. Num abrir e fechar de olhos, era uma dança desenfreada, as pessoas começavam a assobiar, as crianças batiam palmas acompanhando o ritmo, e a pequena multidão esboçava um sorriso. Franz também sorria, encantado. Era a valsa de antes da valsa, o campo na cidade e no entanto, não era o campo; era uma cidade em passeio, uma valsa nómada vinda do fim do mundo e que desde sempre alimentava Viena com o seu sangue. Era o andamento da valsa e no entanto, apetecia chorar, morrer-No preciso momento em que pensava em morrer, viu-a. Na verdade, foi uma botina branca que ele avistou ao princípio. Uma botina um bocado suja que batia o compasso, batia sem cessar, uma diabinha que parecia dirigir a música. Por sobre a botina caía um casaco comprido azul, um pouco usado, e do casaco saía um regalo de astracã, preto como a gola levantada. E por cima da gola flutuava uma aparição. Escondida na pele, uma jovem, de lágrimas nos olhos. Uma morena alta, de compridos cabelos escuros caídos pelos ombros, com madeixas de reflexos fulvos.

Pensou que fosse Gabriela incógnita, a deusa das estrelas. Sim, pensou mesmo. Ela sentiu que ele a olhava demasiado, franziu a testa, e sorriu-lhe abertamente. Por aquele sinal, aqueles dentes brilhantes, aquela boca que não recusava abrir-se, reconheceu que não era ela, mas uma outra, a outra da outra, enfim, ele já não sabia nada, a não ser que lhe tomou o braço como se a conhecesse desde sempre, e que assim começou a história deles. No mesmo instante em que um homem gordo e arrogante cuspiu diante dos músicos dizendo em voz alta: “Músicos judeus outra vez! Porcos semíticos! Mas quem será que nos livra desta corja...”

Então, como no fim de um sonho, a orquestra parou, e os músicos voltaram a ser homens de bigode, com rugas e mãos de gente pobre, de quem fora esquecido pelo caminho. Então passaram a ser apenas artistas judeus a tocar nas ruas de Viena, e um deles estendeu o boné para receber a espórtula.

Do seu regalo, a rapariga tirou uma nota que foi depositar em cima do violino. Estava a chorar.

Mais tarde, no Beisl onde Franz a levara para a consolar, a rapariga disse-lhe chamar-se Anna Baumann. Nascera na Morávia; mas fora criada em casa de um avô na Bukovina. Era judia. “Aquela orquestra, é a minha música, disse-lhe ela, é o shtetl, as casas de paredes brancas e as ruas de lama, os cafetãs dos velhos e o pescoço de ganso recheado, os meninos de pés descalços, os lenços nas cabeças das mulheres, o senhor é daqui, não pode compreender.”

A Bukovina era o mais longínquo território do Império; durante muito tempo pertencera à Turquia. Para Franz, a Bukovina fazia parte daquelas paragens obscuras e misteriosas a que no ministério se chamava “as orlas” do Império, ou “os confins”, como se se tratasse do fim do mundo. Um mau funcionário era mandado para a Bukovina como se fosse para o exílio. Nessas terras, os colonos do Império, um terço soldados, dois terços agricultores, não eram dos mais acomodados; em troca de uma semana de serviço militar por mês, beneficiavam de privilégios que defendiam com unhas e dentes. Chamavam-lhes “os dos confins”, como se se tratasse de uma espécie remota encarregada de reforçar as estremas imperiais, com armas e charrua ao mesmo tempo.

Nessas terras, a vida era lamacenta, opaca, cheia de brigas de campanário e de sinagoga; os judeus “antigos”, chegados após a queda do Templo, opunham-se aos “novos”, vindos da Polónia e da Rússia. Os Antigos mantinham as tradições que os Novos rejeitavam em prol do modernismo. Era um combate de fim do mundo. À ideia de que a jovem vinha dessa região perdida, Franz sentiu surgir dentro de si uma ternura a que se misturava um misterioso respeito.

Das aldeias judias, a que Anna chamava shtetl, ele sabia apenas o que os Vienenses contavam: sujidade, podridão, que viviam em cima uns dos outros, que os homens tinham longas barbas e compridas suíças aneladas, uma vida atrasada, animais por todo o lado, galinhas dentro das casas, em suma, uma porcaria. E descobria de repente, à luz dos olhos de Anna, a profunda luminosidade do negro, a suavidade de um queixo, o largo horizonte de uma claridade íntima, e a mãe da música. Vasta como ela, e como ela, impalpável.

Anna Baumann vivia de lições de piano que dava em casas de família. Num ápice, ele teve a certeza de que ela seria sua mulher, e que juntos haveriam de tocar sonatas até ao fim dos tempos. Foi com ela a pé até Leopoldstadt, o bairro onde se instalavam os judeus da Galícia, e onde Anna vivia num quartinho de um segundo andar de uma casa cinzenta. O trajecto era longo, caminharam com todos os vagares, lado a dado. Ele quis beijar-lhe a mão, que ela mantinha no regalo; timidamente, tirou o chapéu, ela desaparecera pela escada acima.

Somente mais tarde pensou na mãe, que não gostava dos judeus. Ainda mais tarde, durante a noite, voltou a pensar na desconhecida sem nome que citava Heine e adorava os judeus. Pela primeira vez, a estranha mulher do Grande Baile de Máscaras pareceu-lhe uma fada boa, que teria simplesmente querido prepará-lo para o comprido cabelo preto, para uns olhos de pássaro triste e frágil, para uma música ignorada. Adormeceu abençoando-a e, como o eco dentro de um sonho, ela repetia: “O senhor é uma criança, que criança...”

Um mês mais tarde, quando Abril reanimava os tufos de campainhas-de-inverno, Franz anunciou à mãe que ia casar, e que não admitia qualquer contestação à escolha que fizera. A sua prometida não era rica; não era austríaca, queria-a mesmo sem dote, chamava-se Anna Baumann. A senhora Taschnik não precisou de outros detalhes para adivinhar que a noiva do filho pertencia à raça maldita. No momento em que a viu, teve a certeza. A poder de muita insistência, foi sabendo mais coisas.

Simão, o avô de Anna, nascera num shtetl na Bukovina, onde tinha uma estalagem; a aldeia chamava-se Sagadora, ficava perto de Czernowitz, e o nome de Sagadora significava “A Montanha dos Puros”. Aí se mantinham as tradições do hassidismo vindo da vizinha Polónia, com uma perseverança obstinada; os rabinos eram obrigatoriamente seres inspirados e eram venerados como os novos Justos, iluminados pelo Senhor que lhes conferia dons miraculosos.

Depois, os tempos mudaram para Simão Baumann. O filho mais velho, Moisés, fora viver para a Morávia onde conseguira montar uma destilaria. Quanto ao mais novo, Abraão, o pai de Anna, era retroseiro em Kalischt, tranquila cidade morávia com casas de frontaria baixa e igrejas de cúpulas avermelhadas. Ao longe, os campos de cevada e de trigo estremeciam calmamente, e o pequeno comércio prosperava, sob o regime de uma assimilação simultaneamente desejada pelas gerações mais novas e consentida pelo Império.

Não sem algumas restrições: como apenas os filhos mais velhos dos judeus tinham direito a constituir família, Abraão Baumann, filho mais novo de Simão o hasside, desposou Riva, sua noiva, diante do rabino, em segredo. Tiveram uma filha que não foi declarada, e a quem deram o nome de Anna, retirando o “H” ao hebreu Hannah, para ficar mais moderno. Legalmente, Anna era pois uma filha natural. A mãe, de saúde frágil, morreu quase em seguida; e a menina foi criada pelo avô Simão, em Sagadora. O velho hasside apressou-se a acrescentar o “H” ao nome da neta.

Aos dezasseis anos, Anna fora ter com o pai a Kalischt, e voltara a perder o “H” do seu nome judaico. A família Baumann tinha alguma coisa de seu; na Morávia, os judeus, como se sabe, viviam com a confiança de pessoas de bem. Anna recordava-se do shtetl, falava iidiche e ainda sabia um pouco de hebreu, pois Simão Baumann, como bom judeu “Antigo”, opunha-se à assimilação imperial. Mas contrariamente ao pai, Abraão Baumann reivindicava alto e bom som as exigências da “Haskala”, as Luzes judaicas; era preciso falar alemão, perder o sotaque dos judeus do Leste, aumentar os conhecimentos e sair do ghetto. Depois de ter deixado Sagadora, a jovem seguira em Kalischt a vontade do pai: instrução, leitura, e mais instrução.

Interminavelmente, Franz explicou à mãe a evolução dos judeus no Império. Baldadamente. Nenhuma daquelas subtilezas abalava a hostilidade da senhora Taschnik. Ainda se esses Baumann fossem judeus da Corte, dessas famílias nobilitadas, vá lá! Mas judeus dos ghettos, era a choldra... Seria preciso suportar no casamento o avô de cafetã sebento e canudos a cair pelas orelhas abaixo? Aceitar essa humilhação?

A senhora Taschnik invocou o assassínio de Cristo, as criancinhas a quem os judeus tinham cortado o pescoço ainda no século anterior, esses vampiros! Recordou-lhe a morte do pai, a bala nas barricadas, e o sangue alemão que lhe corria nas veias. Deitou lágrimas amargas, zangou-se, e chegou até a fingir uma síncope; o filho pegava nela, levava-a até à poltrona, ajoelhava-se diante dela. “Meu filho, meu querido filho, não me traias”, gemia ela, de mão no peito, mas bem via naquele olhar obstinado que ele não estava disposto a ceder.

“Mãe, repetia obstinadamente, não faça a sua infelicidade.” Aquele “sua” fazia-a estremecer, recomeçava a chorar, e ele ia-se embora batendo com a porta. Para ir ter com ela, a estrangeira. Sem esperar o seu consentimento já a tinha apresentado aos amigos...

Então, recordava o marido defunto, meigo e teimoso, como Franz, e que só fazia o que lhe dava na gana. Do falecido Gustav Taschnik já só restava um retrato na parede, numa grande moldura dourada, onde o querido desaparecido sorria para a eternidade. Ali estava o mártir da revolução de 1848, de uma dignidade perfeita, com um colarinho preto, alto, uma gravata branca onde brilhava um rubi que desaparecera na noite das barricadas. Mas continuava a ter aquele sorriso feliz e ingénuo, o mesmo que Franz tinha hoje, um bom sorriso, vocacionado para a felicidade.

Na noite de Verão em que se tinham conhecido, diante da orquestra deJohann Strauss pai, ele quase se casara com ela enquanto valsavam; ela não pudera resistir. Um grande diabo de cabelo de azeviche, com olhos negros que varavam o coração, parecia mesmo um cigano... A sua própria mãe, da família Teinberg, desconfiara que aquele Taschnik era judeu - ninguém é assim tão escuro - dizia ela. E embora não tivesse podido provar nada, embora os ascendentes do senhor Gustav Taschnik fossem ostensivamente da província da Estíria, a mãe fartara-se de chorar - como ela agora.

As mães tinham sempre razão. A senhora Taschnik casara com um nómada. O seu defunto marido gostava de vaguear ao acaso pelas ruas, voltava tarde para casa, aquilo já não era vida para ela, até àquela maldita noite em que ele lhe dissera calmamente: “Vou ver o que andam afinal eles a fazer, aqueles estudantes”, e tinham-lho trazido em estado de cadáver. Saberia ela realmente o que fizera ele nas barricadas? Acreditara nos vizinhos, na polícia, por comodidade, para evitar aborrecimentos. A versão oficial convinha ao futuro da criança que já trazia no seu seio. Depois Franz crescera, fizera os exames, andara, às escondidas, atrás das raparigas, comportara-se sempre, sob todos os aspectos, como um bom rapaz, até ao dia em que de repente decidira ir ao Grande Baile de Máscaras. “Vou ver como é afinal esse baile”. Tal e qual o pai. As mesmas palavras.

Desde essa noite, Franzi mudara. Recebera três ou quatro elegantes envelopes, começara a voltar tarde para casa, ficara mais pensativo. A senhora Taschnik pusera-se à procura, no meio que frequentava, de uma menina casadoira, mas antes que pudesse apresentar-lhe fosse quem fosse, ele traz-lhe uma pobretanas, uma judia, uma filha natural!

Apesar de ter os olhos azuis, Franz parecia-se demasiado com o pai para renunciar à rapariga. Em vez disso era até capaz de se ir embora e de a deixar sozinha.

Em Julho desse ano, um ano após aquele Grande Baile, a Herzegovina revoltou-se, gritando: “Abaixo os Turcos!” A revolta dos Sérvios passava a ser a guerra contra o Otomano.

Em Agosto, foi a vez da Bósnia, que queria a independência. Andrassy encetou negociações cerradas com os Russos, para garantir à partida a neutralidade deles. Willy estava triunfante: a sua tese começava a verificar-se. Mas o ministro Andrassy contentou-se com o reforço da vigilância das fronteiras. Já não dava para entender nada.

Kttila fê-lo notar suavemente que os Eslavos da Herzegovina não gritavam só “Abaixo os Turcos!”... Não, eles gritavam também “Abaixo os Schwabi!” e os Schwabi eram os Alemães, fossem eles de Viena ou de Berlim. Willy exaltou-se.

Franz, que estava a ficar acostumado àquelas disputas, fechou-lhes o bico afirmando alto e bom som que, com guerra ou sem ela, tinha a firme intenção de casar com Anna e que a mãe acabaria por chegar-se à razão. Não queria voltar a ouvir falar nem dos Eslavos da Bósnia, nem dos da Herzegovina, nem de Alemães nem de Turcos, e desejava proteger aquela sua felicidade novinha em folha. Que não o incomodassem com os povos dos Balcãs!

Os dois amigos tinham aceitado Anna da melhor vontade. Willy principalmente, seduzido pelo profundo encanto dos olhos da jovem, e pelo delicioso sotaque dos judeus de Leste. Atilla era mais reservado; porque em questões de política, Anna tinha as suas próprias ideias e apoiava ardentemente as reivindicações dos Eslavos oprimidos, os do Norte, Checos e Eslovacos, e os do Sul, que nunca mais eram socorridos.

- E desde quando é que as mulheres falam de política? - insurgia-se Attila assim que Franz virava costas.

- Espera um pouco - assegurava Willy - e verás... Depois do casamento, tudo entra nos eixos. Anna vai preparar-nos bons petiscos da terra dela, carpa recheada, Liptauer com paprika, e naquelas terras distantes as mulheres não têm rival a fazer Knõdels... Jeitosa, a Anna Baumann! Assimilar-se-á definitivamente, e tornar-se-á uma boa austríaca. Eu cá sou a favor da assimilação dos judeus do Império.

Attila não era da mesma opinião, mas rezignava-se. Quando passeavam todos juntos pelos caminhos do Prater, a jovem atribuía muitas responsabilidades às pretensões húngaras e, numa voz meiga, denunciava a magiarização forçada, que a Hungria levava ao extremo sem qualquer consideração pelos outros povos. E o jovem húngaro não tinha nenhuma vontade de perder o seu novo amigo.

- Quando forem casados, quem vai mandar é ela, sou eu que te digo! - resmungava Attila.

A senhora Taschnik cedera, como já sua mãe havia cedido. De acordo com os costumes em vigor na capital imperial, Anna recebeu na igreja um belíssimo certificado de baptismo; casaram no ano seguinte, em 1876, na Primavera, sem aparato, Franz de casaco de veludo e chapéu de feltro cinzento, Anna de vestido de seda branca com clematites, roubadas nos campos vizinhos, no cabelo. Willibald Strummacher era a testemunha da noiva; a outra, a de Franz, era naturalmente o húngaro Attila Erdos. A família Baumann não apareceu: também ela se mostrava hostil, o avô sobretudo, o hasside, furioso com o que chamava uma traição. E apesar do seu espírito aberto, o pai da noiva, Abraão, recusou assistir ao casamento da filha, porque a assimilação, dizia ele, não passava pelos cristãos, os goyim. Tudo o que é de mais não presta.

Nesse ano, Johann Strauss compusera Cagíiostro em. Viena, uma opereta recheada de marchas e de polcas rápidas, e cuja música vibrante tinha umas sonoridades militares. Depois do copo-d'água, servido sob as cerejeiras e cozinhado pela senhora Taschnik, surgiu um trio de músicos.

Era uma surpresa, um presente de Attila e de Willy. A pequena orquestra executou melodias da opereta; depois, para puxar ao sentimento, uma valsa célebre, nudlieres e canções, antes de terminar, como exigia a tradição por O (Beco Danúbio Skail A senhora Taschnik enxugou uma lágrima, e Franz, radioso, beijou a sua Anna sob os aplausos dos seus dois amigos.

Na véspera, os cônsules da França e da Alemanha haviam sido assassinados em Salónica por terroristas muçulmanos; a revolta da Bósnia alastrara até à Bulgária; a situação estava a ficar crítica nos Balcãs. As chancelarias andavam muito agitadas; no ministério, onde toda a gente andava de má catadura, felicitaram Franz de fugida. O momento era grave; e esperava-se que as núpcias do jovem escriturário não se ressentissem das tormentas que ameaçavam a Europa. “A vida continua, meu rapaz!”, disse paternalmente o chefe de secção.

A senhora Taschnik refugiou-se num mutismo eloquente, mas aceitou com secreto alívio a instalação do jovem casal sob o tecto da casa de Hietzing. Depois, Anna começou a levantar-se cedo; fazia o café, e nada mal, não senhor; estendia a roupa, e a senhora Taschnik deixou-se lentamente levar por uma preguiça desconhecida. Embora...

Aquela gente, dizia-se, não era asseada.

Durante muito tempo desconfiou que a nora não se lavava, e remexia ruidosamente nos jarros de porcelana, fazendo correr água em abundância, proferindo pesadas alusões: “Minha filha - gritava ela- é preciso uma limpeza impecável! Água! Muita água! Para limpar as máculas, tudo o que se faz é pouco, fique sabendo!”

Anna ria. Quando a nora ia fazer compras, a senhora Taschnik trotava até aos armários, e examinava cuidadosamente a roupa; mas não havia nada a dizer. O filho parecia estar nos píncaros da felicidade. Franz comprara um piano direito.

Ao domingo, Anna e o marido tocavam juntos, e a senhora Taschnik começara a escutá-los, ele, curvado sobre o violino, de olhos presos à partitura, ela, de mãos correndo sobre o teclado e de corpo vibrante como se dançasse... Depois, a cafeteira cantava na cozinha, e a senhora Taschnik pensava no café da noite, com uma onça de natas e talvez um dedo de aguardente de alperce; e no Verão, instalada debaixo da cerejeira, a senhora Taschnik adormecia ao som das melodias maravilhosas, deixando cair o bordado. Qualquer coisa parecida com a felicidade.

A velha senhora já não protestava, e ia vivendo. Pouco a pouco habituou-se a não fazer nada; quando o tempo deixava, passava os dias no jardim, estendida numa preguiceira que o filho lhe oferecera.

Em Junho, Anna apercebeu-se de que esperava um filho. Franz estava radiante, a senhora Taschnik inquieta; ia ser preciso voltar às tarefas domésticas... Mas a nora continuou a ocupar-se de tudo em casa, e a senhora Taschnik engordava ao mesmo tempo que a jovem, sem sequer se dar conta. A medida que a gordura crescia, e com a ajuda da preguiça, a boa senhora Taschnik foi deixando as reticências que tinha.

 

                                             A GUERRA DA BÓSNIA

O pobre povo transpira e lavra penosamente o campo. Em vão... em breve lhe roubarão Como sempre, o seu dinheiro, Pois são bem caros, os canhões! E vão ser bem necessários Nos tempos que vão correndo Em que as paradas são altas... Se não existissem reis, quem sabe, Talvez não houvesse guerras E não haveria a avidez sedenta De após as batalhas, nem a vitória.

Elisabeth

O Verão tornou-se ameaçador. Ballhausplatz fervilhava de sinistros rumores; a situação europeia não conhecia melhoras. Disraeli, o primeiro-ministro britânico, declarara que não havia nada a fazer quanto às disposições belicosas dos povos dos Balcãs, e que o massacre era inevitável.

“É preciso uma sangria!” anunciara.

Para cúmulo, dera-se em Constantinopla um golpe palaciano; tinham assassinado o sultão Abdul Aziz, e o seu sucessor Mourad fora deposto. O novo sultão, Abdul Hamid II, acabava de subir ao trono, e começava o reinado no meio da repressão. A 2 de Julho de 1876, o príncipe da Sérvia declarou-lhe guerra; o príncipe do Montenegro fez o mesmo, e marchou sobre Mostar.

As chancelarias europeias avisaram os dois principados que nada deviam esperar delas, e depois resignaram-se a ir auxiliá-los. O ministro Andrassy começava a pronunciar-se: “A Áustria - dizia ele - não pode deixar que se crie junto às suas

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fronteiras um Estado Eslavo do Sul, a Áustria tem de ocupar a Bósnia...” Willy exultava.

Mas Franz tinha outras preocupações. Em poucas semanas, a senhora Taschnik envelhecera. O passo tornou-se-lhe mais pesado, começou a sentir faltas de ar, o médico aconselhou repouso. O jovem casal desvelava-se em redor da doente.

Franz já não pensava na desconhecida do baile, sobre quem nada dissera à esposa. Para maior segurança, escondera o leque e as cartas numa gaveta da secretária, no ministério. A bem dizer, quando pegara naquelas recordações, tinha a firme intenção de se livrar delas; poderia tê-las deitado no lixo, ou atrás de um arbusto, mas não foi capaz. Umas cartas assim. Um objecto tão bonito.

Nove meses após o começo da guerra entre a Sérvia e o Montenegro de um lado, e a Turquia do outro, os Russos entraram na dança, e juntaram-se à coligação eslava. Depois de muito esforço, chegaram às portas de Constantinopla, que cedeu, vencida.

Reuniu-se uma conferência internacional nas margens do Bósforo; as potências europeias haviam preparado um plano de paz entre a Sublime Porta, a Sérvia e o Montenegro. Seis meses mais tarde, a conferência fracassava. Os embaixadores europeus deixaram a capital do Império otomano, doravante isolado. No ministério, comentava-se pelos corredores que a coisa terminara, e que se iria finalmente tratar “o homem doente” de uma vez por todas.

Um mês antes da queda de Constantinopla, Anna deu à luz uma menina que recebeu o nome bem cristão de Emília, e que para toda a gente passou logo a ser a Emmy. A criança tinha os olhos claros do pai, e o mais lindo cabelo do mundo, encaracolado e preto. “Como o avô!” enterneceu-se a senhora Taschnik, encantada.

Mas as faltas de ar transformaram-se em enfisema, ao qual vieram juntar-se um malvado reumatismo e umas palpitações que não auguravam nada de bom; tinha as faces encarniçadas e quase não andava. O médico, consultado de novo, não mostrou grande optimismo. A senhora Taschnik, que quase não se queixava, deixou-se mimar pelo filho e pela nora.

Franz, que odiava os boatos sobre guerras, percebeu vagamente que a Áus-tria-Hungria ia intervir a Leste, sem que ninguém pudesse prever o desfecho de tal aventura. Mas a família era mais importante para ele do que o destino da Bósnia, e ocupava-se sobretudo da filha e de Anna, que cuidava da sogra com uma dedicação irrepreensível.

A senhora Taschnik morreu de apoplexia alguns dias depois do baptismo da neta. Anna preparou ela mesma o corpo, pôs-lhe um crucifixo entre os dedos inteiriçados, atou a ligadura que lhe segurava o queixo, disfarçou as manchas azuladas do rosto com a sua borla de pó-de-arroz. “Para ela não ter um ar muito sujo”, permitiu-se murmurar antes de autorizar o marido a entrar no quarto fúnebre.

Depois da morte da senhora Taschnik, e apesar da gravidade da situação internacional, os esposos Taschnik entraram no universo macio da felicidade conjugal com um à-vontade que nada poderia afectar, nem os rumores do ministério, nem os modestos meios financeiros da casa. Nada, excepto a desgraça que se abateu sobre a moradia vizinha, a de Johann Strauss.

Uma noite, quando voltava para casa de madrugada, o maestro sentiu atrás da porta um obstáculo resistente; e, quando conseguiu entrar, viu o cadáver da mulher que jazia a seus pés. Jetty morrera sem dizer nada, ninguém sabia como nem porquê. Willy assegurava que ela vira chegar o filho, cuja existência escondera cuidadosamente do pobre Johann Strauss; com o susto, o coração parara. Mas os mexericos de Willy...

Do jardim, Franz e Anna observaram tristemente os preparativos funerários; estava-se no início da Primavera, quase na data do aniversário da malfadada estreia de O Morcego, em Abril; alguém abriu uma janela e eles ouviram os soluços do ilustre compositor. Estenderam faixas pretas na fachada da moradia; fizeram o mesmo no Theater-an-der-Wien, de acordo com o que era costume. Johann Strauss não suportou mais aquela casa de Hietzing e partiu para Itália.

Foi um acontecimento triste, mas não foi o mais grave. Apesar do seu temperamento optimista, Franz começava finalmente a compartilhar das inquietações de Willy a propósito dos Balcãs. Era mais forte do que ele: Franz Taschnik recusava confrontar-se com as ameaças que pesavam sobre a perpetuidade do Império. Mas Johann Strauss acabava de compor uma valsa com um edificante título, A 9ª morada do queneiro, e Franz tomou bruscamente consciência do perigo.

- Não querias saber! Tinhas proibido que te falássemos dos Balcãs... - suspirava Willy. - Ora não era a gente que te ia incomodar!

Em 1878, a Europa pareceu decidida a resolver os conflitos dos Balcãs; desta vez, como diria Willy, é que ia ser, de certeza. Depois da dolorosa derrota, a Turquia concluíra um acordo com a Rússia, o tratado de San Stefano, que estabelecia a existência de uma grande Bulgária, um imenso Estado eslavo. A Áus-tria-Hungria insurgiu-se logo, e lançou a ideia de um congresso internacional; Bismarck aproveitou a ocasião e convidou as potências europeias para Berlim, em Junho.

Ora aí estava. Ia ser assegurada, “de comum acordo e com base em novas garantias”, a estabilidade de que a Europa tanto necessitava. E todo o problema girava em torno da soberania do Império otomano, de quem se esperava que consentisse em melhorar a sorte dos cristãos dos seus territórios, e que aceitasse “capitulações”.

O governo Imperial e Real da Áustria-Hungria, pela voz do ministro An-drassy, propôs a ocupação da Bulgária pelas tropas russas, durante seis meses, até à conclusão da paz.

- Pronto! - gritou Willy. - A seguir podemos ocupar a Bósnia!

- Mas até parece que queres a guerra - indignou-se Franz. - Sabes ao menos o que é um ferido? As pernas amputadas, o pus, os pensos sujos, os cotos embrulhados em panos impróprios...

De súbito, apercebeu-se de que retomava as palavras da desconhecida do baile e calou-se. Willy balbuciou umas quantas frases confusas de onde sobressaía que, em definitivo, o destino da Áustria se jogaria por força a Leste do Império.

- A Ost-Politik, toda a gente sabe isso - deixou escapar Franz. - Repisa a lição diplomática!... Velho como o mundo.

O que já não era tão velho, era a Comissão Europeia, emanada do Congresso de Berlim, uma instituição que se esperava trouxesse a paz.

A Comissão tomou uma primeira resolução: em caso de prolongamento das perturbações na Bósnia, enviaria um contingente de dez mil homens para separar os combatentes. Depois, tendo cumprido o seu dever de fachada, a dita Comissão pôs-se a traçar as fronteiras.

A Roménia teve de ceder aos Russos a Bessarábia, com a condição de ser respeitada a igualdade dos cultos. A Áustria exigiu a independência da Sérvia, e obteve-a. Apesar da oposição da Itália, conseguiu uma pequena comuna estratégica no Montenegro, estado que não tinha direito nem a uma marinha de guerra nem a fortificações.

- Detalhes - rosnava Willy. - Restam a Bósnia e a Herzegovina. A ver vamos...

Desta vez, ele tinha razão.

Em Berlim, o ministro Andrassy sugeriu que as potências reunidas concedessem à Áustria-Hungria um mandato para restabelecer a ordem na Bósnia, e administrá-la em nome do sultão.

Tratar-se-ia, naturalmente, de uma ocupação pacífica, sem operações militares. A missão austríaca seria claramente definida: “Prestar auxílio ao governo otomano, para operar o repatriamento dos refugiados e manter a ordem, protegendo de igual modo muçulmanos e cristãos.” Os exércitos teriam instruções muito rigorosas. Tratava-se de uma espécie de policiamento internacional, que a Áustria estava disposta a assegurar para a manutenção da paz.

A mobilização começou secretamente em Maio de 1878. Alguns dias mais tarde, as tropas imperiais ocupavam, no Danúbio, a ilhota Adah-Kaleh, que era chamada em linguagem diplomática “a chave do baixo Danúbio”. O ministro Andrassy declarou estar convencido de que, com as finanças esgotadas e as forças militares dispersas, a Rússia não ousaria intervir.

O mandato foi concedido pelo Congresso de Berlim em Julho; o senhor Vogue, embaixador de França em Viena, escreveu ao seu ministro que o Congresso acabava de dotar a Áustria de uma verdadeira Argélia. O ministro Andrassy garantiu ao embaixador que, não tendo uma intervenção activa, a França se comportava dignamente, e preservava o reconhecimento dos seus direitos sobre os lugares santos, em Jerusalém. A Inglaterra, entretanto, ocupara Chipre, e Ballhausplatz vivia numa agitação contínua.

De uma forma geral, os jornais de Viena e de Budapeste aprovavam a ideia da intervenção militar.

No fim de Julho, a imprensa publicou a proclamação aos habitantes da Bósnia e da Herzegovina que os primeiros soldados que lá chegaram haviam afixado nas paredes dos edifícios.

habitantes da (Bósnia e da erzegovina!

Colocai-vos com confiança sob a protecção dos gloriosos estandartes da Áustria-Hungria!

Acolhei os nossos soldados como amigos, submetei-vos às autoridades, voltai às vossas ocupações, o fruto do vosso trabalho será bem defendido!

Willy pagou uma rodada geral no café Landtmann; quem o ouvisse diria que para entrar na Bósnia, uma companhia de hussardos e uma fanfarra militar era o bastante. Dessa vez, Attila não o contradisse: Willy limitava-se a retomar as palavras que o ministro Andrassy deixava escapar nas festas mundanas. Mas Franz não era da mesma opinião. Vaticinou combates terríveis e uma firme resistência; aliás, no que dizia respeito à guerra, a opinião pública, tanto em Viena como em Budapeste, começava a mudar de ideias.

À compaixão inicial sucedera uma desconfiada reprovação daquilo que, toda a gente o sentia, não tardaria a transformar-se numa verdadeira guerra. O destino do Império tomava um rumo decisivo.

- Mas se isso protege a paz - murmurava suavemente Attila.

- E a honra da bandeira imperial! - clamava Willy. - É preciso ir até ao fim!

As tropas do exército austro-húngaro, compostas por sessenta mil soldados, penetraram na Bósnia em princípios de Agosto. Às primeiras escaramuças sucederam-se combates mais sérios, aos quais se juntaram batalhões de artilheiros turcos. O número de mortos do Império era mantido em segredo.

Em Tuzla, a vigésima divisão foi derrotada pela artilharia dos “insurrectos”. Os exércitos austríacos começaram a usar os canhões; sob o calor do Verão, os corpos dos soldados decompunham-se em poucas horas. Os Bósnios resistiam. Em Viena, o embaixador da Sublime Porta defendia que a luta era legítima, e afirmava que os vinte mil refugiados, instalados aqui e ali à volta de Viena, nunca tinham existido. Pura invenção, destinada a desonrar o Império otomano! Bal-lhausplatz afligiu-se. Era preciso, custasse o que custasse, tomar Sarajevo. Mas os atiradores embuscados e os batalhões turcos davam que fazer ao exército austríaco: Sarajevo resistia.

O governo de Sua Majestade Imperial e Real decidiu enviar reforços; dezassete mil soldados suplementares, na sua maior parte da Boémia, partiram para a Bósnia.

A 20 de Agosto, após sangrentos confrontos, o exército austríaco ocupou Sarajevo. As represálias foram terríveis.

A imprensa estava dividida: por um lado, admirava a coragem heróica dos soldados, e a bravura do general Philippovitch, “muito croata e muito católico”, homem severo e duro, impiedoso para com os vencidos muçulmanos; por outro, desaprovava as atrocidades cometidas sobre as populações civis, e o enorme custo de toda a operação. O ministério da Guerra decidiu começar sem demora as obras do caminho-de-ferro até Bangaluka.

Em finais de Setembro, chegava-se ao fim das operações. Terminada a guerra, iniciou-se a ocupação propriamente dita da Bósnia. As tropas austríacas empreenderam a construção de novos edifícios, destruíram algumas velharias otomanas declaradas obsoletas, parques para caravanas, banhos públicos e outras coisas que tais, e começaram a pôr ordem no país. Em nome do sultão, bem entendido.

A extrema esquerda organizou um meeting de protesto, ao qual Anna Taschnik quis absolutamente ir. Franz já não sabia o que pensar: os amigos aprovavam sem reservas a ocupação, principalmente Attila. Willy, por seu lado, dedicava-se ao estudo da gastronomia da região conquistada, e falava gulosamente das baklavas e do vinho de Zilavka, que não tardaria a aparecer no mercado, em Viena.

Nas chancelarias estrangeiras, era muito notado o facto de, durante todo aquele tempo, a Imperatriz ter permanecido em Gõdóllõ, com um dos irmãos, entregando-se diariamente aos encantos da montaria. Os telegramas diplomáticos mencionavam o caso sem comentários, no final das descrições da guerra da Bósnia. Uma guerra como as outras, em suma, com a sua conta de crianças mutiladas, e as futilidades que há por toda a parte.

Em Novembro, atascadas em lama até ao pescoço, as tropas austríacas regressaram de Sarajevo; e os funcionários partiram para lá a fim de dar continuidade ao trabalho. A guerra estava realmente acabada.

Mas em Dezembro, inevitável consequência das desordens nos Balcãs, uma misteriosa “Sociedade da Morte”, agrupamento de anarquistas sérvios, fez a sua aparição. O senhor Marx, director da polícia, garantiu no entanto a Sua Majestade Imperial e Real que não havia nenhum anarquista no território do Império.

Willy voltou a consumir uma ou duas noivas longínquas, e ficou de novo doente. Desapareceu para se tratar, e voltou depois, mais magro, pálido, com uma feia mancha preta na testa que mais parecia uma espécie de verruga. Franz ficou muito preocupado e resolveu, com cautela, fazer ao amigo umas quantas perguntas. Resmungando, Willibald lá confessou que apanhara sífilis, mas que fora logo tratar-se. Os médicos afiançavam que estava curado, definitivamente.

- Acho que foi aquela pequena de dominó vermelho - resmoneava - a que arranjei em 75, lembras-te? Picantezinha que ela era... mas acabou-se. Acabaram-se as damas! Vou-me casar. Aliás, acho que desta é que é...

E lá embarcava de novo nos seus sonhos matrimoniais.

Franz assustou-se. A doença passava pela Friedl. Por mais que estivesse convencido que a tinha desflorado e que não correra nenhum risco, examinou o corpo com cuidado, em vão. Mas Johann Strauss lançara uma nova opereta que intitulara Cotin-Maiãard e Franz continuou preocupado, por superstição. Aqueles olhos tapados, aquelas histórias de máscaras, todos aqueles disfarces não prestavam para nada.

Attila, abandonado pela cantora, encontrou logo outra, que não era ruiva, desta vez, “uma grande pândega”, dizia ele, e que o adorava. Por força do hábito continuaram a chamar-lhe “A Ruça”, apesar dela ter cabelos de azeviche.

Ao domingo, Atilla e Willy dirigiam-se à casa de Hietzing, onde Anna preparara o cozido vienense, o tafelspitz, acompanhado de compota de maçã e de pasta de rábano silvestre. Acrescentava uma entrada de arenques marinados; e quanto aos crepes com doce de alperce, os dela não tinham rival. O lar dos Taschnik tornou-se um paraíso; Anna convencera os três amigos a dedicarem-se à música de câmara.

Willy lembrara-se de que aprendera em pequeno a tocar violoncelo; comprara um soberbo instrumento novinho em folha, que ficava durante a semana em casa dos Taschnik. Ao domingo, chegava cedo e ensaiava. Attila, envergonhado, reconhecia que à parte o tambor, que não servia, não podiam contar com ele como músico. Mas, pelo menos, era capaz de cantar. Anna meteu-lhe nas mãos os Lieder de Schubert e Attila protestou: nunca, jamais, em tempo algum conseguiria lá chegar. Intimado a ensaiar, lá se decidiu, e praticava ao fundo do jardim, na Primavera. Quanto a Franz, esse não precisava que o persuadissem.

Todas as noites, quando ele voltava para casa, Anna sentava-se ao piano. Os dois esposos percorriam sem descanso o vasto reportório de todas as sonatas e sonatinas: Beethoven, Mozart, Schubert, e até mesmo Schumann. E a discreta Anna aperfeiçoara a educação do seu Franzi levando-o aos conceitos, que era o que não faltava em Viena.

Acabou mesmo por convencer os outros dois, que os acompanhavam refilando. Willy, que muitas vezes adormecia, acordou ao som da música de Wagner, um recém-chegado que suscitava muita polémica. “Isto é que é música, música alemã, da verdadeira! - clamava ele. - Da que nos transporta ao reino dos mitos... Bem melhor do que a que vem de Itália!”

E uma vez que Willibald se entusiasmava com Wagner, Attila, por princípio, escolhera o campo de Brahms, o outro grande músico, de cuja obra não percebia nada, mas que compusera as Danças húngaras de belo efeito. Entre Brahms e Wagner, a luta era renhida; gostava-se de um ou do outro, era preciso escolher. Franz e Anna, que detestavam disputas, recusaram pronunciar-se. “Há lugar para todos em Viena” dizia Anna.

Mas quando Franz soube da grande amizade vienense que ligava os dois Johann, Strauss e Brahms, pendeu para o campo dos antiwagnerianos. Na casa de Hietzing, as discussões passaram a ser renhidas; a doce Anna pôs toda a gente na ordem exigindo que se voltasse à música dominical.

Ensaiando afincadamente todos os domingos as árias menos difíceis da Viagem de Inverno, o húngaro conseguiu alguns resultados que o deixaram extremamente orgulhoso. Anna acompanhava-o ao piano; Attila fazia poses presumidas e, de mão no peito, massacrava o pobre Schubert. Mas quando se chegava aos trios, era outra coisa.

Porque Willy surpreendeu os três amigos pela qualidade da sua execução. Aceitara mesmo, grande milagre, tocar o Trio opus 8, de Brahms.

- Uma obra da juventude, ainda vá - resmungava ele para não dar parte de fraco.

Com o violoncelo entalado entre as pernas, tirava do instrumento sons doloridos e ternos que ninguém esperava da parte de um homem ríspido como ele. E quando Anna lhe dizia a meia-voz: “É lindo, Willibald”, ele erguia para ela uns olhos tão cheios de sofrimento que ela desviava o rosto, para não chorar.

- O teu amigo não anda bem - repetia ela a Franz. - Basta escutares o violoncelo para perceberes.

- Cuida tu dele - suspirava o bom gigante. - Ele precisa de afecto. E como a guerra terminara, foram anos calmos e doces.

Franz teria sido perfeitamente feliz se a esposa, que ele adorava, gostasse da valsa. Não que ela a enjeitasse; até gostava de ouvir. Mas quando se tratava de dançar, era impossível. Hirta, crispada, tropeçava e nada, nem sequer a larga mão do marido, conseguia fazê-la acompanhar o ritmo.

Numa noite mais terna, Franz descobriu a explicação. Os hassides do shtetl da Bukovina onde a esposa crescera, eram também dançarinos que giravam sobre si próprios, de braços estendidos, até ao êxtase. Girar, era a actividade sagrada do avô Simão Baumann, que ela vira com frequência, de olhar vago, perdido numa embriaguez à qual as mulheres não tinham direito. Assim que começava a valsar, Anna sentia que os músculos lhe pesavam e que as pernas fraquejavam. “Acho que o meu avô Simão me rogou uma praga - dizia ela rindo. - Estou proibida de valsar.” Franz ficou um pouco ressentido com aquele antepassado desconhecido, e depois resignou-se.

A música, a verdadeira, era tão boa como a valsa.

Emmy fora um bebé turbulento, que se recusava a dormir de noite, uma diabinha que não parava quieta, e que toda a gente adorava; em particular o húngaro, que lhe fazia todas as vontades. A maliciosa Emmy fazia os encantos dos dois amigos, principalmente de Attila, que a levava muitas vezes a passear nas carrocinhas puxadas por burros, no Prater. Para maior comodidade decidiu-se que a criança os trataria por “Tio Willy” e “Tio Attila”; nenhum deles se casara ainda.

Por vezes, quando Anna desaparecia na cozinha, Willy piscava o olho e lembrava a Franz o Grande Baile de Máscaras. “Não te digo que fossem bons tempos, meu velho - suspirava - mas aquela Gabriela, no fundo, que criatura pouco vulgar... Achas que volta a aparecer um dia?”

Franz respondia que Gabriela lhe permitira conhecer Anna. E que nunca mais voltara a ter notícias da desconhecida do baile.

Aliás, acrescentava, a Imperatriz viajava cada vez mais; em França tivera um acidente a cavalo, pouco faltara para serem obrigados a cortarem-lhe o cabelo; o Imperador ficara muito abalado. Ia com frequência a Inglaterra, onde se murmurava muito a propósito do mestre de equitação inglês, um certo Middleton, com quem ela tratava tão familiarmente como com a cavaleira francesa doutros tempos. Para enraivecer o húngaro, Willy acusava a Imperatriz de todos os pecados do mundo; o outro mordia a isca e Franz entrava na dança. Aquelas batalhas campais, que já não divertiam ninguém, resolviam-se no Landtmann em torno de cafés bem regados a aguardente, com graçolas pesadas que irritavam profundamente o honesto Franzi de coração sensível.

A Imperatriz atraía as fúrias dos Vienenses como um pára-raios atrai a trovoada. Quando Willy atacava, ele não podia deixar de a defender. Para o gordo, era uma brincadeira; mas para Franz, por causa de Gabriela, a Imperatriz continuava a ser uma causa sagrada.

No segredo do seu coração ele sentia que a conhecia como pessoa; e quando lhe falavam das extravagâncias da Imperatriz, ele poderia fornecer a explicação. Não se arriscava, porém: quem acreditaria que ela era tímida, esquiva, quem compreenderia que ela não era ternamente amada?

Tão ternamente que se iam celebrar as bodas de prata do casal imperial, em Viena, com grande aparato e com a participação de todas as corporações reunidas.

 

                                   O DESFILE DO MESTRE MAKART

Avançai, raça de Habsburgo! Abandonai a sombra que vos protege Vinde todos servir hoje Vosso povo de direito divino...

Elisabeth

Os preparativos tinham começado em Janeiro de 1879; as cerimónias propriamente ditas estavam previstas para o mês de Abril. O conselho municipal decidira solenemente que a capital do Império ostentaria todas as suas magnificências para celebrar com dignidade aquele notável evento.

Nada mais justo; após alguns escândalos, a recordação do famoso craque de 1873 tinha-se finalmente desvanecido. Reatavam-se os negócios, o Imperador contivera a agitação em todo o Império, a ocupação da Bósnia corria mais ou menos bem e até os Balcãs estavam quase calmos, desde que observados a uma certa distância.

Do lado de S. Petersburgo, cuja sombra ameaçadora permanecia, se tudo não corria da melhor maneira entre o Tzar e o Imperador, também não havia propriamente conflito. Tinha-se conseguido renovar o compromisso austro-húngaro. Evidentemente, a hegemonia magiar não contentava toda a gente; na Polónia, os estudantes tinham lutado com a polícia; o parlamento checo mantivera-se fechado, e os Eslavos contestavam cada dia com mais força os privilégios exorbitantes dos Magiares a quem tudo era devido, a partilha do poder, as finanças, a ascendência da língua, as escolas, em resumo, uma arrogante superioridade.

Mas como as coisas são o que são e sendo o Império um eterno equilíbrio instável, tudo corria pelo melhor no melhor dos mundos. Num impulso de entusiasmo inesperado, as associações e as corporações juntaram-se ao conselho municipal, e pediram ao célebre pintor Makart, ídolo da renovação da pintura clássica, que organizasse um desfile gigantesco em trajes renascentistas, para as bodas de prata dos soberanos.

- Parece que na Burg também se fazem preparativos - disse Willibald beberricando a sua slibowitz. - É absolutamente confidencial: uma série de quadros vivos, com os arquiduques e as arquiduquesas como figurantes. Em casa do arquiduque Carlos Luís. Toda a história da Áustria!

- E a Hungria? - insurgiu-se logo Attila.

- Ah! Mas vai haver a reconquista de Buda aos Otomanos, estás a ver, está tudo pensado!

- Mas como é que tu fazes para saber o que se passa no palácio? - rosnou Franz. - É uma criada de quarto ou uma ajudante de cozinha? Diz-nos o nome dela...

- Faço a minha obrigação! - replicou Willy indignado. - No outro dia, quando passava pelo gabinete do chefe de secção, a porta estava aberta, e...

- E o senhor não conseguiu deixar de ouvir, não foi?

- No interesse do Império! Para melhor conhecer a Corte! Olha, parece também que a Imperatriz gasta dinheiro às mãos cheias com os cavalos! Estás a ver!

- Estou a ver é que não perdes uma ocasião para falar dela! - bradou Franz.

- Eu? - espantou-se Willy. - Limito-me a repetir o que se diz... Que o Imperador está sozinho, que se levanta às quatro horas da manhã, que trabalha todo o dia e que ela não está, nunca está! Tu estás sempre a defendê-la! E eu bem sei porquê!

- Está bem - murmurou Franz. - Não voltes ao mesmo. Então os arquiduques tratam da Hungria, que dizes a isso, Attila?

- A partida, prefiro o desfile - disse o húngaro com uma careta enjoada. - Se ao menos a gente pudesse participar!

- Eu participo - atirou Franz descuidadamente. - Através da Sociedade dos Cantores. Eles precisavam de um figurante que fosse alto para o carro dos caminhos-de-ferro, e ninguém tinha a altura necessária, então...

- Eu também - murmurou Willibald. - Fiz-me passar por vinhateiro; aliás não é mentira! O meu pai tem uma latada...

- E então eu? - clamou Attila. -Vocês, os Vienenses, desenvencilham-se sempre, mas o pobre húngaro, não é, fica de fora!

- Cá está o perseguido que volta à carga - observou Willy rindo. - Se quiseres, vens comigo.

- Vinhateiro! É muito ordinário. Nunca. Não, não, eu depois aplaudo-vos de longe - concluiu Attila.

No dia seguinte confessou que iria no carro das belas-artes. “Uma amiga - disse ele corando - que vai fazer de modelo, oh, muito decente, apresentou-me aos artistas, farei de estátua grega, com uma couraça e um elmo. Faz-se o que se pode...”

Esperavam o fim de Março, altura em que começavam as provas e os ensaios.

Na Irlanda, a manhã chegava ao fim; desde o nascer do dia que a Imperatriz galopava no seu cavalo murzelo, a que dera o nome de Dominó porque tinha em redor dos olhos uma mancha branca, como uma mascarilha de carnaval, dizia ela. O vento picava-lhe os olhos, a bruma por vezes cegava-a, mas lá ia, voava, enquanto atrás o mestre de equitação inglês a seguia com dificuldade.

Por fim, como deixou de o ouvir, parou. Ao longe, uma sebe alta barrava-lhe o caminho, mesmo por detrás das últimas árvores da floresta. Dominó fez um movimento nervoso com a cabeça, depois acalmou. Isso, devagarinho - murmurava ela afagando o pescoço sedoso - estamos finalmente sozinhos, amor, meu agitado...

Uma lebre surgiu bruscamente de uma moita, e parou de chofre, de patas no ar e focinho inquieto; Dominó resfolegou. Em três poderosos saltos, a lebre desapareceu no horizonte. Com a mão em pala sobre o rosto, ela seguiu-a com os olhos, mas o sol de repente encandeou-a. Da lebre nada mais restava.

- O que eu sou é isto - disse baixinho - uma lebre. Chego, observo, tenho medo, oiço um espirro, vou-me embora e depois desapareço. Acabou-se a lebre! Acabou-se a Sissi... Como seria bom evaporar-me ao Sol!

Voltou-se; o inglês ainda não se via. Irritada, tirou o leque de cabedal, entalado debaixo da sela.

- Middleton! - gritou. - Estou à sua espera, meu caro!

Por fim ele chegou, com o rosto vermelho do esforço, de cenho carregado, furioso.

- Ainda parte o pescoço, Majestade - vaticinou ele num tom arrogante. - E quebra-lhe as costas a ele; depois vai ser preciso abater o seu Dominai - A minha raposa vermelha não está contente - disse ela rindo às gargalhadas. - Talvez esteja um pouco cansada?

- Cansado? Absolutamente nada - respondeu Bay Middleton sem fôlego. - Mas deveríamos voltar para trás.

- Deveras - bradou ela fechando o leque com uma pancada seca. - Está a ver aquela sebe além?

- Não está a pensar... - balbuciou o cavaleiro aterrado.

Antes que ele pudesse terminar a frase já ela incitava Dominó. Middleton gritou “Não!”, ela já se fora, ele seguiu-a, apanhou-a. A dois metros do obstáculo, ela ergueu-se do chão de repente, ele pensou que o coração lhe rebentava, e saltou por sua vez.

Do outro lado da sebe, um monge, armado de uma serpete, podava calmamente as pereiras do convento quando ouviu a respiração dos cavalos. Avistou umas patas no ar, e viu cair em cima das belas plantas novinhas de alho-francês e de azedas, que ele alinhara na véspera, dois cavalos, dois cavaleiros, um velho de suíças ruivas, um jovem de cor pálida, de calções pretos, chapéu alto de baile na cabeça e luvas escuras de cabedal. O olhar do monge-jardineiro foi alternativamente do adolescente misterioso às fileiras de alhos-franceses estragados, espezinhados pelos cavalos.

Depois o jovem tirou o chapéu de repente, e umas tranças compridas escorregaram-lhe pelos ombros. Inclinou-se para o homem ruivo e segredou-lhe umas palavras ao ouvido.

- Padre - anunciou o cavaleiro tirando o chapéu - tem diante de si a Imperatriz da Áustria que lhe pede muitas desculpas. Transpôs a cerca por inadvertência... No que respeita aos prejuízos dos legumes, será indemnizado, bem entendido.

Com o abalo, o monge largou a serpete, fez uma vénia desajeitada e precipitou-se para o convento.

- Ora!- fez ela. - Os Irlandeses adoram-me. Vai ver que nos vão oferecer café com bolinhos.

- Gostam de si até de mais, na opinião dos meus compatriotas. A senhora é católica...

- Oh! Muito pouco.

- O bastante para lhes dar ideias de desforra, não sabia?

- Isso só me satisfaz. Gosto da desordem.

- Ali right... O que não impede que um dia quebre o pescoço - resmungou ele.

- William, o senhor aborrece-me. Olhe, aí vem o abade a receber-nos, eu tinha razão. Então, minha raposa vermelha, não foi uma boa ideia? Ao menos, aqui divirto-me, vivo! Enquanto que em Viena... Sabe o que estão lá a fazer? A preparar as minhas bodas de prata. E é capaz de imaginar o que contam?

Que em vez de vinte anos de casados, vamos festejar os nossos vinte anos de cansados!

Começou a rir. O inglês esboçou um sorriso de boa educação. Depois ela deu meia volta e colocou-se de frente para ele, com o pingalim insolentemente erguido.

- As minhas bodas de prata... Olhe bem para mim. Francamente, Middleton, acha-me suficientemente velha para aceitar uma coisa dessas?

Aproximava-se o momento das provas. Hans Makart era um grande artista; desencantara documentos, desenhara trajes para todas as corporações, e estavam a ser confeccionados em cadeia metros e metros de gaze para as mangas, veludo para as bragas, cambraia engomada para as golas pregueadas da época, sem contar os aventais de couro para vinhateiros e caldeireiros, as gorras e as plumas para os estudantes, as couraças para os soldados... Enfim, era um trabalho que todos concordavam ser titânico.

As oficinas tinham sido instaladas no Prater; todos os figurantes foram convocados numa manhã de Março. O ar ainda estava bastante fresco, e as pessoas aqueciam-se como podiam, com aguardente que passava de mão em mão. Willibald, no canto dos vinhateiros, foi o primeiro a aparecer; estava vestido de verde da cabeça aos pés que trazia enfiados em tamancos de verniz, com um pequeno toque de vermelho na camisa de algodão grosso. Tinham-lhe posto o cabelo para o lado e feito uma poupa às ondinhas, e puseram-lhe um cesto de vindima às costas.

Franz tinha uma vestimenta constituída por uma couraça preta de onde saíam umas mangas golpeadas de fundo escarlate, umas bragas amarelas e uma pequena gola pregueada; empunhava uma comprida alabarda de madeira, muito bem imitada. Faltava Attila, que apareceu quase nu, tiritando debaixo de uma toga, armado de uma curta espada antiga e de um escudo redondo. Olharam uns para os outros sem dizer palavra.

- Faltam as uvas no cesto, depois põem-nas - resmungou Willy por fim, virando a cabeça. - Será que não é... Enfim... Não estou muito gordo?

- Para um vinhateiro, não está mal... - disse Attila. - Mas eu estou gelado! E sabem que me vão pintar de branco? Cabelos e tudo.

- A gola faz-me comichão - murmurou Franz coçando o pescoço. - Ainda me falta o chapéu: com plumas pretas, ao que parece. Meteram-me a alabarda nas mãos porque sou o mais alto. Estamos bem arranjados!

- Vai tudo correr bem - afirmou Willy. - Evidentemente, de manhã, ao frio, reconheço que... Mas vocês vão ver, daqui a um mês, ao Sol de Abril, vamos ficar deslumbrantes, magníficos! E depois vai haver música.

Franz tentou rir, mas sem vontade. De todo o lado saíam artesãos, soldados, burgueses, arcabuzeiros, com os fatos de esguelha, e que saltitavam ora num pé ora no outro. Apenas as raparigas que faziam de modelos no carro dos artistas se pavoneavam nas compridas e imaculadas togas, punham no cabelo fitas à grega, e derramavam uns olhares maliciosos sobre todos aqueles burgueses, aqueles senhores da Renascença, que as miravam de longe com cobiça.

- Bom! Já que é preciso... - murmurou Willibald ajeitando o cesto que tinha às costas. - Vou para cima do meu carro, que está ali, para me debruçar sobre o meu barril. Tu é que tens sorte, Attila, vais com as brejeiras...

- Mas não é para mim que elas olham - exclamou o húngaro com despeito - é para ti, Franzi, naturalmente!

- Não o posso evitar - gaguejou Franz embaraçado - é que sou muito alto, é por isso...

- A tua Imperatriz só te verá a ti - atirou Willy com azedume. - Se se dignar voltar da Irlanda para o desfile!

- Já voltou, dom sabichão! - indignou-se logo Franz. - Imediatamente após as inundações de Szezenyi, na Hungria!

- Ah sim? Escapou-me. Evidentemente, a ti nada te escapa...

- Basta! - gritou Attila. - Nem mais uma palavra acerca da minha Rainha!

O programa das festividades era esmagador; no dia 20 de Abril, recepção na Burg para as delegações vindas de todo o Império, discursos oficiais, estar de pé, sem fraquejar, dar a mão a beijar, receber flores, discursos oficiais, sorrir, cumprimentar, sorrir... À noite, quadros vivos no salão nobre do palácio de Carlos Luís; o Príncipe Herdeiro, Rodolfo, seria o convidado de honra.

Depois vinha a inauguração da nova igreja votiva, especialmente construída em memória do atentado de 1848, quando o jovem Imperador, de pescoço ferido pelo punhal de um rebelde, quase morrera; finalmente, chegava-se ao culminar dos eventos, o tão esperado desfile das corporações de Viena, no dia 24 de Abril. Horas e horas na tribuna oficial, sem poder sair. Um pesadelo.

Naquele dia, na igreja dos Capuchos, a Imperatriz subia a nave pelo braço do esposo para assistirem à missa de aniversário. Como era avó, vestira-se de cinzento - mas tão prateado, bordado de pérolas de um rosa tão clarinho, que dir-se-ia a rainha das fadas, a “Fairy Queen”, como diziam os seus adoradores do outro lado da Mancha. Pelo murmúrio que saudou a sua aparição assim que desceu do coche, compreendeu que ainda deixava as pessoas maravilhadas. Quando chegou o momento de pôr o pé no degrau, estremeceu à lembrança do diadema que outrora se prendera, com o véu e os brilhantes. Mas em vez de chorar, cerrou os dentes, e abordou orgulhosamente a entrada na igreja, enquanto o Outro a contemplava com um inalterável enlevo.

Como era estranho! Sentado no cadeirão imperial, quase nunca se mexia; apenas estendia a perna, imperceptivelmente. Às vezes, afagava uma das suíças, do lado direito, com uma mão enluvada de um branco imaculado; tudo nele era perfeitamente conforme aos seus retratos. Quantas vezes tentara ela fazê-lo sair daquela moldura dourada, quantas vezes suscitara verdadeiras crises para obter um gesto irado, uma emoção, qualquer coisa com um pouco de paixão... Mas não! Ele fitava-a com um olhar firme, confusamente inquieto, sem mais, cheio daquela ternura impávida e obstinada, tão fastidioso...

Mortalmente fastidioso. Estaria a pensar em quê ? Já deixara de se questionar sobre isso; em nada, certamente, como de costume. Vira-o feliz, nos primeiros tempos, quando ela sofria mil mortes à aproximação das noites conjugais; feliz, apenas, contente por viver. Mas embora fosse, por vezes, capaz de sentir felicidade, nunca o vira sofrer. Nem sequer quando ela o deixara, por duas vezes, durante as suas doenças. Oh, é claro! Lamentara-se, mas oficialmente, com a dignidade que convém a um soberano; demasiado orgulho, ou demasiada paciência. Uma impassividade tão controlada que era quase indiferença. E quando ela agora partia, ele não protestava; o imbecil. Satisfeito quando ela voltava, satisfeito quando se ia embora. Sempre com a mesma disposição.

Virou ligeiramente a cabeça para o olhar de lado; como atraído por um íman, ele deitou-lhe uma olhadela rápida e cheia de ansiedade; a estátua animou-se, “Afinal continua a amar-me à maneira dele”, constatou não sem prazer, “coitado!” Para o tranquilizar colocou a mão sobre a dele e segredou “Não, nada...”. Ele retomou logo a pose, esboçando um suspiro.

Ganhara aquela longa batalha, começada vinte e cinco anos antes por um unilateral amor à primeira vista. Subitamente, teve uma ideia, uma daquelas ideias que vêm aos vencedores. Para lhe fazer companhia, era preciso uma segunda mulher, que ela própria escolheria, que ela protegeria. Uma mulher que seria sua amiga, de modo que ninguém no mundo poderia contestar-lhe a honestidade.

Viu-se de repente como uma generosa alcoviteira, abençoando uma união adúltera arranjada por ela, nas barbas de Viena, na frente de todo o Império; foi tomada de uma daquelas súbitas crises de riso incontrolável que a punham fora de si, e ajoelhou-se bruscamente, com a cabeça entre as mãos para esconder a hilariedade.

Ele tossicou, agitou-se um pouco. Ela mordia o interior das faces, abismava-se mais numa piedade fingida, os Vienenses iam achá-la fervorosa; finalmente conseguiu levantar-se. Umas belas lágrimas de riso tinham-lhe deslizado pelas faces pálidas; ele pensou que fosse da comoção, beijou-lhe a mão, agradecido, e ajudou-a a sentar-se.

No dia 24 de Abril, a chuva caiu durante todo o dia; adiou-se o desfile. No dia 25, a chuva continuava; o concelho municipal estava desolado, adiou-se de novo. O mau tempo persistiu no dia 26, até à noite. Finalmente, no dia 27, deixou de chover; um Sol fraquinho aparecia de vez em quando. Ia-se tentar.

A convocatória fora feita para 27 de Abril, antes do nascer do Sol; desde as primeiras horas da madrugada, os carpinteiros e os correeiros inspeccionavam os carros, à luz de lanternas que dançavam no escuro do arvoredo. Quando Franz chegou ao Prater, os carros estavam todos fora dos alpendres, e toda a gente perscrutava o céu.

Por volta da meia-noite, Anna fora buscar as peças do fato, e ajudara Franz a vestir-se. As bragas estavam bem; mas uma das meias vermelhas tinha uma malha caída. Anna ajoelhou-se para coser e, ao cortar a linha com os dentes, fê-lo tão junto à perna que ele pensou que ela ia morder-lhe; ela desatou a rir. Quando chegou a vez da couraça, as fitas rebentaram uma a uma; a engenhosa Anna substituiu-as por fitas de seda que guardava para os chapéus, fitas cor-de-rosa de belo efeito. Para impedir a gola de lhe fazer comichão, confeccionara uma espécie de contorno do pescoço em cetim. Por fim era só colocar o gorro de veludo, enfeitado com penas de galo, pretas e brilhantes. Anna recuou para apreciar o conjunto: o traje Renascença marcava a barriga da perna, realçava o busto, endireitava as costas, e o seu Franzi seria o mais belo alabardeiro do desfile.

Ela previra acompanhá-lo; mas no momento da partida recusou. Franz ia zangar-se quando ela se lhe pendurou ao pescoço, esmagando os gomos da gola engomada. Anna esperava um segundo filho. Ele obrigou-a a voltar para a cama, e foi-se embora, de coração aos saltos, com a alabarda às costas, apanhar o primeiro eléctrico para o Prater.

- Quando ele nascer, deixo crescer o bigode - pensava. - E contrataremos uma ama da Morávia, com uma touca de fitas pretas.

Um milhão de pessoas nas ruas, e só no desfile, dez mil figurantes! - exclamavam de todos os lados no camarote imperial. - É um triunfo! - Sim, se não chover daqui a pouco, reparem na direcção do vento, não é bom sinal. - Mas pelo menos teremos a entrada do cortejo, e depois estamos abrigados...

Sentada no grande cadeirão de madeira dourada, a Imperatriz mal ouvia as conversas dos convidados oficiais. Aquele burburinho interminável do outro lado dos velhos edifícios, aquela multidão fremente, era o seu terror, a sua fobia. Contudo, o palanque da família imperial, encostado ao arco do triunfo, isolava as magnificentes figuras: empoleirados num estrado vermelho e protegidos por um dossel carmesim, estavam no lugar que lhes competia, no alto.

Mesmo por trás dela, seu filho Rodolfo segurava-lhe no braço para a proteger dos temores que ele conhecia de cor. “Vai tudo correr bem, mãe; eu estou aqui - segredava-lhe ele ao ouvido. - Não tenha medo.” E quando a sentiu realmente um pouco nervosa de mais, beijou-lhe o pescoço, furtivamente. “Pára com isso!” exclamou ela, impaciente.

Nada a fazer; teria preferido estar lá em baixo, de guarda-chuva, empurrada por operários de boné, anónima, como uma pessoa qualquer. Durante mais de duas horas não poderia escapar aos olhares dos Vienenses. Enfim, estava sentada; a Imperatriz abriu o leque. O Imperador acabava de aceitar a homenagem pública da população da sua capital, e já se via aparecer pela grande porta da Burg o mestre das cerimónias, Hans Makart, a cavalo, com um sóbrio gibão de veludo preto como a sua célebre barba, e de bragas a condizer. Um homem estranho e reservado, adorado pela multidão que se amontoava atrás das vidraças dos cafés quando ele jogava xadrês.

Um arauto precedia as trombetas a cavalo, arvorando nos instrumentos o estandarte com as armas de Viena; depois vinham os bombeiros, três mil homens, de uniforme brasonado, mas com mangueiras modernas, e à mistura com capacetes da época renascentista, agulhetas e ponteiras da última moda. Vinham atrás os estudantes com gorras de plumas, e os cantores, que desfilaram ao som de velhas marchas nostálgicas. Por fim apareceram os carros.

A Imperatriz aborrecia-se um pouco menos.

O primeiro carro, com oito cavalos ajaezados a verde, era o dos vinhateiros; enquanto atravessavam a Praça dos Heróis, tiraram vinho dos tonéis gigantescos, e todos juntos, ergueram os copos à saúde do casal imperial, ao passarem diante da tribuna. Alguns, muito emocionados, cambalearam; um homem um pouco gordo de mais perdeu o equilíbrio e caiu de pernas para o ar, com o cesto às costas; as uvas de algodão espalharam-se pelo chão. O camarote imperial riu muito.

Vieram os caldeireiros, os estofadores, os moleiros, os carpinteiros, e todos levantavam os utensílios ao passar diante do camarote imperial; todos tinham simpáticas caratonhas satisfeitas, suavam sob os trajes, e limpavam a testa com grandes lenços assim que passavam. Na tribuna, as pessoas extasiavam-se: tanta imaginação, espontaneidade, afecto! Era tocante. A Imperatriz achou cansativo aquele fervor que nunca mais acabava, e abriu o leque para reprimir um bocejo. Todos aqueles trapos Renascença!

Quando apareceu o carro dos caminhos-de-ferro, a turba reteve a respiração. Era o maior, o mais comprido; em cima de uma plataforma gigante, chegava uma locomotiva preta e brilhante, polida por mecânicos de gibão preto e branco. O contraste era tão vivo que a tribuna imperial aplaudiu entusiasticamente. Com um fim decorativo, Makart mandara entrançar nas rodas e nos eixos grinaldas de miosótis, e na parte da frente da máquina, mesmo no sítio onde adejavam as bandeirolas, um alabardeiro enorme montava orgulhosamente a guarda; era soberbo.

Ela fechou o leque, inclinou-se um pouco para olhar para aquele surpreendente espectáculo, o alabardeiro ajoelhou-se, levantou a cabeça, tirou o chapéu e cumprimentou. Ela franziu o sobrolho: aquele rosto... era seu conhecido. Ele? Impossível. Nesse momento ele sorriu-lhe.

Então ela reconheceu o olhar de criança, o cabelo escuro e ondulado, o rosto jovial, o jovem do Grande Baile, Franzi - qual era o apelido? - Taschnik. Sim, Franz Taschnik. Escriturário da Corte nos Negócios Estrangeiros. Como é que ele fora ali parar, vestido de alabardeiro? Que fazia ele no carro dos caminhos-de-ferro? Ora! Tudo premeditado para voltar a vê-la; invadiu-a uma onda de calor, teve vergonha, teve medo, aquela gente nova era capaz de tudo, ele ia gritar “meu amor”, talvez...

A locomotiva passava, e ele, em cima do carro, virava a cabeça, não deixava de olhar para ela...

Lembrou-se bruscamente da sombra preta por cima dos lábios dele, aquela marca de rolha queimada que a fizera rir, na noite do baile. Ali estava ele outra vez mascarado. Que bom rapazinho... Esteve quase a fazer-lhe um sinal, levantar a mão como uma costureirinha, e brandiu lentamente o leque para o evitar. Quanto a ele, desta vez fora a mulher que o arranjara; sentia-se grotesco disfarçado de alabardeiro, mas subia-lhe ao rosto um brilho de cólera e ternura. Decidiu fixar os olhos na face pura que o leque já começava a esconder.

Insistia, fixava-a tão intensamente que com um movimento de leque ela desapareceu-lhe da vista. Quando ela se atreveu a olhar de novo, a locomotiva já tinha passado. Fechou o leque com pesar. Justamente a chuva começava a cair; ela levantou-se, quis ir-se embora.

- Fique, mãe, por favor - pediu o Príncipe Herdeiro apertando-lhe o braço.

Libertou-se - não, não! - Queria sair dali, estava cansada, e aliás chovia. Prontamente, puxaram para trás os cadeirões de veludo. Rodolfo agarrou na mãe e sentou-a à força - mas que queria ele afinal?

O carro que assomava à porta da Burg era o dos impressores: representava uma imprensa majestosa que rolava debaixo de chuva. Quando o carro passou diante da tribuna, o mestre-impressor, de barrete alemão para evocar Gutenberg, tirou de debaixo da imprensa um espesso volume onde brilhava em letras de ouro:

 

                   QUI 90 E DIJIS DJUSIO

 

Rodolfo inclinou-se para a mãe e depôs-lhe um terno beijo na face. Então, cheia de remorsos, a Imperatriz lembrou-se de que o filho publicara justamente aquele título, o seu primeiro livro como escritor. Ele começou a explicar-lhe que tinha querido fazer-lhe a surpresa daquele carro com a cumplicidade de Makart, que era só para ela, que estava tão feliz...

Ela pegou na mão do filho e conservou-a entre as suas. Ele falava muito depressa, com muitas palavras; herdara o nervosismo dela. Era um rapaz sensível, susceptível, que teria sido preciso tranquilizar. Não sabendo o que fazer, levou a mão de Rodolfo aos lábios e beijou-a. O Imperador deitou-lhes um olhar reprovador; o Príncipe imperial retirou a mão muito depressa e pô-la atrás das costas. A Imperatriz suspirou.

A chuvada transformara-se em aguaceiro. Restava um último carro, o dos artistas, representando um atelier onde uns pinta-monos disfarçados de Rem-brandt, pintavam; os modelos faziam poses. A multidão aplaudiu as mulheres envoltas em tecidos drapeados, tanto mais que a chuva lhes colava as musselinas às formas; mas à beirinha do carro, um figurante baixo, mascarado de estátua de gesso, estava a perder a pouco e pouco o revestimento branco, lavado pela água que caía das nuvens. Estóico, não se mexeu; a pele clara ia aparecendo, coberta de pêlos castanhos. A Imperatriz dignou-se esboçar a sombra de um sorriso.

À uma hora da tarde, dois quadros de caça terminaram o desfile, um medieval, o outro perfeitamente moderno, com matilhas de cães de língua de fora e encharcados. Estavam representadas todas as caças; ao veado, à cabra-montesa, ao falcão, ao javali, ao urso. Finalmente, para rematar, Hans Makart reapareceu em cima do cavalo imaculado, rodeado pelo seu estado-maior, pintores, arquitectos e escultores. Quando deixaram de se ouvir os últimos sons produzidos pela Sociedade dos Cantores, a soberana levantou-se à pressa e escapou-se finalmente, seguida pelo olhar rancoroso do filho, que soltou um suspiro. A mãe era inapreensível.

Furioso por ter caído no chão, Willy decidiu deixar de beber durante um mês, para emagrecer um pouco; Attila, que apanhara frio, ficou de cama uma semana; quanto a Franz, tinha a certeza, desta vez, de ter reconhecido Gabriela.

Ninguém no mundo manejava o leque com tanta graça e agilidade. Ninguém sabia esconder-se tão depressa como aquela mulher cujo olhar ele sustentara em público. Doravante, nada o demoveria dessa convicção. Mas não disse nada à esposa, para não perturbar a gravidez que começava. De resto, era coisa sem importância.

 

                   O GRANDE VEADO BRANCO DE POTSDAM

Queridos povos deste vasto Império Como vos admiro em segredo! Dais o vosso sangue, e o suor Para alimentar a depravada corja!

Elbabeth

A criança nasceu, um rapaz Taschnik, e Franz pôs-lhe o nome de Anton mas começaram logo a chamar-lhe Toni; tinha os olhos pretos da mãe, e o cabelo louro, como a avó católica. No auge da alegria, Franz afirmava a quem o quisesse ouvir que o filho havia de ser um verdadeiro diplomata, ainda que para tal fosse preciso obter um título de nobreza. Arma tinha outras ideias; o filho dela havia de ser compositor ou chefe de orquestra, e mais nada. Aliás, como por acaso, a última valsa do maestro chamava-se 'Pomos Cá, toca a recomeçar!, e o casal Taschnik viu nisso um sinal de encorajamento.

Nesse ano, em 1880, soube-se na capital que o Príncipe Herdeiro ia desposar uma princesa da Bélgica, uma pequena Estefânia de quinze anos. Franz deu consigo a pensar nas palavras da desconhecida: a Imperatriz também tinha quinze anos quando o Imperador decidira casar com ela.

- E então? - repetia Willy. - É uma linda idade! Desde que seja bonita, que ele fique satisfeito e que ela nos dê uns belos rapazes...

Viena repetia esta mesma lengalenga, e não dizia mais do que o Imperador e o filho, a família imperial, o papa e toda a cristandade. O Príncipe Herdeiro transformara-se no mais destacado jovem da Áustria, um digno sucessor de seu pai; ia casar, era a ordem natural das coisas. Ninguém se queixava, excepto a Imperatriz que não dizia nada.

Preparava-se para voltar de uma caçada na Irlanda quando teve conhecimento da novidade, por um telegrama oficial e sucinto, sem assinatura: “O Príncipe Herdeiro ficou noivo da princesa Estefânia da Bélgica.”

Tão depressa! Sem a avisar! No momento em que ela estava longe... Privá-la assim do galope, tão de repente! Começara a tremer, a tremer com tanta força que a dama da companhia, a condessa Maria, pensara que tivesse acontecido uma grande desgraça.

- Graças a Deus - dissera a condessa - não é nenhum desastre!

- Se Deus quiser, de facto, condessa... - respondera ela, mas continuava perturbada.

O seu pequeno Rudi, casado! Mas era ainda uma criança... E quando a condessa lhe fazia notar, suavemente, que a criança tinha vinte e dois anos, ela virava a cabeça, irritada. Não estava preparado para o casamento, dizia.

- Mas sabe, Maria? Ninguém está nunca preparado para se casar, ninguém... - acrescentava com azedume.

Na verdade, o filho parecia-se demasiado com ela. Encantador, passava por ser o maior sedutor do Império, mas a mãe conhecia-lhe bem o olhar um pouco fugidio, instável, e as pálpebras palpitantes de nervosismo. O olhar receoso da lebre sempre alerta.

Andava de conquista em conquista, era um jovem brilhante e entusiasta - isso era a lenda. E verdade que era um bonito rapaz, com a franja caída para a testa e a barba “à pescador”, muito na moda desde que ele a usava assim. O uniforme ficava-lhe lindamente: não tinha ele recebido no dia em que nascera, de acordo com a tradição, um regimento de infantaria de que era comandante? Aos seis anos, exibia-se fardado de coronel; o dólman assentava-lhe na perfeição. Em Praga, para onde o pai o mandara com uma guarnição militar, todas as mulheres lhe faziam olhinhos... Resumindo, uma mãe só poderia ter motivos de orgulho.

Mas ela não. Debaixo do brilho, detectara há muito tempo uma chama sombria, uma hostilidade mal dissimulada, dirigida ora contra o pai, ora contra ela, dependia. Ao mesmo tempo, movimentos de violenta adoração que passavam do ódio ao amor com tanta rapidez que ela ficava atónita. Aquela maneira de a beijar abraçando-a com força, quase a sufocando...

Rodolfo era radical, íntegro, fogosamente apegado às liberdades; não gostava do Império. Como ela. Tinha amigos republicanos, que ela lhe invejava, às vezes; como era homem, era independente. Como lhe teria ela transmitido aquela secreta herança libertária que era obrigada a dissimular? Não pudera mimá-lo quando era pequeno; deixara de lhe dar atenção para se dedicar à Querida; não se ocupara do filho e eis que ele se tornara o seu vivo retrato, um espelho de juventude insolente, um rapaz livre de se entregar a todos os prazeres, a todos os excessos! Mulheres, bebidas, a caça sobretudo, e os tiros, sempre os tiros...

Porque o que ela apreciava na caça, era a perseguição a galope. No momento em que se dava aos cães as entranhas do animal, ela desviava os olhos. Rodolfo atirava a tudo, até aos piscos, que por bravata devorava em seguida. Aos vinte anos, após um gesto desastrado, uma bala trespassara-lhe a mão. E dois anos antes, abatera em Potsdam um grande veado branco.

Quem mata um animal branco morre de morte violenta, dizia o ditado. Como se ele não soubesse! Fizera de propósito, tinha a certeza... Um dia, tinha feito uma matança de aves de jardim, chapins, pardais, gralhas, passarinhos, acrescentara uma galinhola e pintara tudo a aguarelas, não sem talento. Fora no ano do casamento da irmã, Gisela - um ano antes de ela ter conhecido aquele rapaz, como é que ele se chamava? Franz Tasch...ner? Decididamente, nunca se lembrava do apelido. Enfim, o seu rapaz, o único por quem ela sentira alguma coisa. Não era justo. Nada era justo.

E depois, Rudi gostava demasiado dela. Filho devorador, que não deixava passar nada. Que verificava sem cessar se a mãe continuava a usar o medalhão onde guardara uma madeixa dos seus cabelos de menino. O olhar que ele lhe deitara no ano anterior, quando, inadvertidamente, ela se esquecera do seu primeiro livro, aquele Quinze dias no Danúbio solenemente apresentado no último carro das bodas de prata, em Viena... Parecia dizer: “Não gostas de mim.” “Mãe malvada!”

O pior dizia respeito à Querida, de quem tinha muitíssimos ciúmes. Aos vinte e dois anos! E o que decidira ele escolher para esposa? Uma princesa a quem ela dera um beijo uma vez em Bruxelas, uma garota que nem sequer era bonita! Se ao menos tivesse sido ele próprio a escolhê-la! Mas não! Inclinara-se diante das combinações do Império, das trocas europeias, estupidamente, ele, o rebelde! Ela ouvira falar daquele projecto e não acreditara nem por um instante. O seu filho não aceitaria a primeira que lhe pusessem à frente; aliás, já recusara outras; ele esperaria.

Afinal, o rebelde cedera.

Quando regressou a Viena, convocou-o aos seus aposentos, e perguntou-lhe carinhosamente se ele se informara sobre a formação da noiva.

Surpreendido, Rodolfo afirmou que ela recebera uma excelente educação; o conde Chotek, encarregado das negociações, afirmara que a conversação da princesa era “tocante de juvenilidade e no entanto muito espirituosa”. Ela encolheu os ombros. Não era isso, insistiu: a pequena estava formada? Rodolfo não percebia, torcia o bigode com ar embaraçado, não era capaz de adivinhar o que a mãe queria, realmente não, não estava a ver...

- Pergunto se já é menstruada! - gritou ela.

Não pensara nisso. Fulminou-o com um olhar sombrio. O digno Chotek informou-se junto da família da Bélgica, que admitiu, reticente, a embaraçosa verdade: “A puberdade da princesa não estava ainda totalmente concluída.” Alegaram que tivera tifo aos oito anos, que isso explicava o atraso, que... Mas a Imperatriz não quis saber. Rodolfo não casaria com ela antes do primeiro período menstrual; senão, ela não daria o seu consentimento.

- Isso dar-te-ia má sorte - dizia. -Já aquele desgraçado veado branco de Potsdam...

- Não terá encontrado uma pega no caminho, por acaso, querida mãe? - respondia ele rindo à socapa.

Decididamente, a Imperatriz era de uma incorrigível superstição.

Mais tarde, apercebeu-se de que Estefânia tinha a mesma idade da mãe quando ficara noiva; ficou muito abalado. Na verdade, a princesa da Bélgica só tinha a seu favor a juventude; mas nas coisas do amor, Rodolfo seguia a moda. Uma menina na cama não era nada que lhe desagradasse. Resignou-se, porém; esperar-se-ia pela menstruação da princesa, que veio quando tinha de vir, um ano mais tarde.

O Príncipe passou o ano a brincar aos noivos oficiais, com o entusiasmo de um noviço cheio de zelo, os olhos brilhantes e o ar enamorado. E chegou o dia em que foi receber a mãe à chegada do comboio à Bélgica, para lhe apresentar a noiva.

A jovem Estefânia, intimidada, ataviada com uns arrebiques complicados, tinha o ar de uma criada mascarada de princesa. A Imperatriz, de veludo azul-escuro e zibelina, parecia a noiva ideal que se desejaria para um filho. Todos o notaram, inclusive os noivos, e principalmente a Imperatriz. Quando desceu para o cais da estação, Rudi atirara-se-lhe ao pescoço com uma paixão tal que a assustou.

Não, ele não amava Estefânia. Ele não podia enamorar-se de uma rapariguinha loura, sem pestanas nem sobrancelhas, uma palerma sem graça! Uma princesa com uma pele de porcelana, pálida, tão branca... Como o velho veado de Potsdam. A angústia regressou a galope, depois atenuou-se. Ora adeus! Seria um desastre, como todos os casamentos, aliás. Para recuperar o filho, bastava-lhe esperar, pensava. Todas as belas mulheres de Viena partilhavam esse sentimento: não ficariam privadas do amante ideal.

Mas Rodolfo importava-se pouco com os frémitos que provocava no seio das damas. O noivado, o aparato, as representações, as intrigas sentimentais e os amuos da mãe, tudo isso mais não era do que aparência. O Príncipe Herdeiro tinha uma outra vida, secreta e apaixonante.

Acabava de conhecer um judeu da Galícia, um brilhante jornalista, Moritz Szeps, que lançara o eues Tagôtatt, cujo primeiro número saíra num 14 de Julho, em 1867, com um subtítulo retumbante: Órgão Democrático. Moritz Szeps era cunhado de Georges Clemenceau.

Ao Reues TagèCatt sucedera o WknerTagbíatt, onde o príncipe começara por dar sugestões para temas de artigos antes de ele próprio os escrever sob um pseudónimo, “Julius Felix”; em seguida, Moritz Szeps, copiava-os pelo seu punho, para evitar que a letra do Príncipe Herdeiro fosse reconhecida.

Veiculava as suas ideias: o amor do progresso, o ódio aos burocratas, o horror do Império e do Imperador, a defesa do direito dos povos e das minorias, uma violenta rejeição da Alemanha, e principalmente de Bismarck, o Chanceler de Ferro que reduzira pela guerra o poderio do Império austríaco, e que ameaçava as liberdades da Europa inteira. A simpática brochura sobre o Danúbio só existia para desviar as atenções. Apenas os amigos do Príncipe, vigiados de perto pela polícia imperial, sabiam que por detrás da imagem despreocupada de um herdeiro-poeta se escondia um revoltado.

Era outro Rodolfo, o político. O Príncipe que, enquanto vivera em Praga sem se deixar ficar encerrado nos salões dourados e brancos do Hradschin, o majestoso castelo que domina as colinas de Mala Strana, conquistara o coração dos Checos. Era o liberal que os via abandonados, oprimidos pela arrogância húngara; era o progressista que queria reformar o Império, e colocar-se à cabeça de uma federação republicana; era um jovem dissimulado, ardente, que queria para os outros a liberdade de que fora privado, em criança, por uma educação militar e perceptores bárbaros.

Não perdoava nada. Nem o acordar de madrugada, nem os tiros junto do ouvido, nem a ausência daquela mãe distante, exilada primeiro num outro canto da Burg, depois na Madeira, e finalmente em todo o sítio onde ele não estava. Onde se encontrava ela? Em viagem, a cavalo, no circo, em passeio, nas mãos da cabeleireira, a fazer ginástica, e à noite na cama, às nove horas, inacessível. Nunca estava. E quando, porventura, conseguia surpreendê-la enquanto se arranjava, encontrava-a no meio de um aparato insano, com as tranças penduradas no lustre com fitas de seda, e ela, imóvel como uma deusa num templo...

- É para me aliviar as dores de cabeça - suspirava ela. - O meu cabelo é tão pesado! Dói-me tanto a cabeça!

Aquela bela cabeça! Dir-se-ia uma aranha no centro da teia.

Tantos talentos desperdiçados, uma tal beleza, para nada, uma insuportável ociosa, uma inteligência desaproveitada, ah, às vezes, só lhe apetecia matá-la. Não se mata por amor?

Quanto ao amor precisamente, nunca o encontrara, nem nos outros, nem por si mesmo. A mãe não amava o Imperador, que adorava a esposa; mas não era verdadeiro amor, pois não era partilhado. Mulheres, eram mais que muitas, até enjoava. Tinha uma amante de quem até gostava; era uma prostituta, Mizzi, que sabia estar comprada pela polícia. Uma boa pequena, no fundo, e que utilizava com frequência, para fazer confidências calculadas que dissimulavam outras, que calava. Estefânia não era o amor; era um encanto de criança de quem esperava tranquilidade, e filhos. Se não apanhasse a doença... Aquela maldição que andava por Viena, e que, depois do cancro mole e do Kaposi, destruía o espírito. Vá lá a gente acreditar no amor em Viena... Que embuste!

Porque Viena não passava de um enorme e maravilhoso embuste, uma cidade apodrecida pela sífilis, e que escondia por baixo de um vestido de seda os saiotes emporcalhados. Viena era a capital falsa de um Império de duas cabeças, duas águias cujas asas manchadas de podridão se estendiam sobre povos infelizes; os Boémios, os Morávios, a gente da Galícia, a da Bukovina, os Sérvios e os Croatas, os Venezianos de Trentino, sem esquecer os ciganos tão caros ao coração de sua mãe; e os Alemães também, que haveriam de agitar-se um dia, como os outros. O Império inteiro apodrecia, como o peixe, a começar pela cabeça, por causa de um Imperador embrutecido por duas derrotas, a primeira face à Itália e à França, Solferino - 1859, a segunda face à Prússia, Sadowa - 1866. Sadowa, Solferino, os nomes dançavam-lhe na memória, dançavam, pois Viena não parava de organizar bailes.

Mas o Príncipe Herdeiro acarinhava os bailes populares, onde os subúrbios se divertiam. Por vezes, ia a esses bailes incógnito, uma mania que herdara da mãe, de cujas repetidas fugas ele suspeitava; não havia quem dissesse que ela andara por Londres anonimamente pelo braço de um inglês? Não desejara ela ir, mascarada, ao baile Mabille? Só Deus sabia por que bailes vienenses andara ela em dominó.

Numa noite de terça-feira-gorda, quando a boa sociedade se dirigia, como todos os anos ao nobre Grande Baile, ele foi a um pequeno baile de máscaras um pouco ordinário. Não tivera grandes preocupações com o traje; contentara-se com uma mascarilha e com uma coroa ridícula que ele achara engraçada para um Príncipe Herdeiro. O baile realizava-se num mercado enfeitado com grinaldas. Instalou-se a uma mesa, pediu uma aguardente, e observou os dançarinos.

Contou dez toucados medievais, em bico, oito lavradeiras com cerejas no chapéu, seis diabos com caudas de algodão e cornos vermelhos por cima dos barretes pretos, doze ciganas com compridas saias de roda, o rosto coberto de fuligem e a cabeça rodeada de cequins dourados, três princesas de coroas grosseiramente recortadas em cartão prateado, e um rei, um único, uma espécie de Carlos Magno de grandes barbas com um manto azul com flores-de-lis bordadas, vagamente francês. Em suma, estavam dois reis de Carnaval naquele baile: o falso, e o verdadeiro, ele.

De súbito, os seus olhos dourados detiveram-se numa das três princesas, uma miúda esguia de rosto arredondado, e que tinha uns incríveis cabelos louros, quase tão compridos como os de sua mãe. Parara de dançar. Saltando diante dela, de mãos no chão e pés no ar, um Pierrot branco fez uma pirueta acrobática, dando um grito de alegria.

- E upa, minhas senhoras! Querem mais? Upa! - gritava ele recomeçando a ginástica.

As pessoas aglomeravam-se em volta; o Pierrot levantou-se e desmanchou a gola redonda do fato, recuperando o fôlego. Radiante, a pequena bateu palmas; o Pierrot inclinou-se com elegância, mimando um cumprimento com um chapéu imaginário.

- Tão engraçado! - fez ela em voz alta.

O Pierrot, de mãos nas ancas, barrava-lhe o caminho.

- Não se passa sem pagar! Vá lá, princesa, um beijinho!

E estendeu os lábios escarlates esbugalhando os olhos. A pequena tentou fugir, mas a multidão rindo, galhofeira, não deixava.

- Ele tem razão - clamou uma lavradeira de voz esganiçada. - Um beijinho à princesa!

- Não há mal nenhum nisso, minha filha - sentenciou uma matrona vestida de Dogesa. - Tens de dar...

- Ainda por cima ele até é bonito, o Pierrot - suspirou uma Colombina. - Anda lá que se ela não quiser, eu dou-te...

Era muito divertido. Mas a rapariga não pensava assim. Esbofeteou o Pierrot que se atirou a ela; tentaram separá-los, houve troca de socos, o caso transformava-se em zaragata. Foi preciso intervir; não que o Príncipe fosse dotado de uma força de lutador de feira, não, mas enfim tinha preparação, e depois estava habituado a comandar batalhões... O certo é que utilizando apenas a voz fez recuar a turba pegou na pequena e afastou o Pierrot. A rapariga perdera a coroa; o Príncipe deu_ -lhe a dele em troca.

Ela chamava-se Friedl, tinha a pele muito branca, o que se seguiu ela esperar e terminou num quarto de aluguer num hotel muito chique, onde o conheciam bem.

Desde a noite do Carnaval, sentia uma certa nostalgia à ideia de se casar. algumas semanas mais tarde teve um pouco de febre. Pensou que talvez a princesa do baile tivesse a doença, depois deixou de pensar. Porque assim que tal pensamento surgia, fumava uma boa cachimbada de ópio para o fazer desaparecer.

 

                               O GRANDE JAVALI NEGRO

Eu, pobre lebre exausta, Quero descansar, deixem-me! Até ao soar da trompa Aqui vou ficar, quieta

Estenderei as quatro patas De língua de fora, ofegante Pois eram bichos grandes de mais Sob opêlo, apulga éfatigante...

Mas agora sob a folhagem Escondida no fundo do arvoredo Talvez consiga finalmente Encontrar paz e esquecimento

Elisabeth

As festividades do casamento começaram a 6 de Maio de 1881, para grande júbilo dos Vienenses. Os noivos apareceram à varanda do castelo de Schõnbrunn; Estefânia, de ar acanhado, acenou com a mão timidamente. Os basbaques mais matinais contavam aos retardatários que tinham visto, com os próprios olhos, a jovem princesa, vestindo um roupão ligeiro e de ramo de flores na mão, correr como uma ninfa debaixo das vastas arcadas.

- Têm olhos de lince - observou Franz, pragmático. - Do gradeamento até às arcadas vão bem uns quinhentos metros.

- Isso sim! Bazófias! - dizia Willy, furioso por não ter sido ele a presenciar a cena. - O protocolo não autorizaria esses desmandos!

Anna achava o episódio encantador; a jovem Emmy ficou toda entusiasmada. E juraram que não haviam de perder nada do cortejo nupcial que atravessaria Viena, no dia 8 de Maio, com sessenta e duas carruagens.

Mas como no desfile das bodas de prata, estava a chover.

O cortejo esperou pelo fim do aguaceiro; os Vienenses impacientaram-se. Emmy gemia e queixava-se que lhe doíam os joelhos; Attila tentou em vão arrancar-lhe um sorriso, enquanto Willy começava a pensar que talvez tivessem tempo de ir tomar um chocolate...

... Quando subitamente, de um estrado montado na Praça dos Heróis, se elevou uma valsa adorável. Franz sorriu sob o bigode, pôs-se em bicos de pés e, dominando a multidão do alto da sua elevada estatura, avistou o seu compositor favorito, de cabelo revolto, violino na mão, dirigindo a orquestra debaixo da bátega da água. Johann Strauss acabava de entrar em acção. Para a circunstância, o maestro compusera uma valsa dedicada à princesa, e que tinha um título suave, liamos de mirtos. Não foi preciso mais nada para transformar o humor vienense, que passou num abrir e fechar de olhos de enfadado a entusiasta. Como o cortejo não vinha, o maestro bisou a valsa.

Ao cair da noite, um arraial popular remataria a jornada no parque de Schònbrunn. A pequena Emmy viu aparecer no céu escuro duas iniciais de fogo, imensas, resplandecentes: Rodolfo e Estefânia.

- Quando me casar, hei-de ter um E no meio das estrelas! - exclamou Emmy maravilhada.

- E a outra inicial? - perguntou o húngaro às gargalhadas.

No dia seguinte, 9 de Maio, foi o dia da “Jubilosa Entrada”: em conformidade com as tradições que remontavam à Entrada dos Príncipes no século XVI, período áureo da dinastia, a recém-chegada à casa Habsburgo penetraria solenemente em Viena. A jovem princesa partiria do Theresianum e dirigir-se-ia à Burg; continuava a chover. Mas quando o coche dourado passou diante da escola evangélica, um medalhão representando as armas imperiais despregou-se e caiu no chão.

- Mau sinal - murmurou Willy com um ar soturno.

Na igreja dos Agostinhos, onde o Imperador casara, os jovens trocaram o juramento nupcial. A imprensa descreveu longamente o vestido cor-de-rosa da noiva, a cauda de quatro metros, o fato cinzento-claro da Imperatriz Elisabeth, e o azul da Rainha dos Belgas. Mas ninguém evocou o “sim” do Príncipe Herdeiro, tão grave e tão triste que mal se ouviu na nave.

Um “sim” logo coberto pelas salvas em honra do jovem casal, pelos sinos da capital, pelos hinos nacionais dos dois países e pelas aclamações da multidão.

Foi nesse ano que chegou aos gabinetes de Ballhausplatz um telegrama, vindo de Atenas, que assinalava sérias perturbações nos Balcãs. Desde a infeliz guerra da Bósnia, o campo dos conflitos alastrava de dia para dia.

Normalmente, a secção dos assuntos administrativos não tinha que tratar dos telegramas. Mas o gabinete de distribuição enganou-se no número da guia, e o telegrama foi parar às mãos de Franz. Estava prestes a encaminhá-lo para quem de direito quando a curiosidade o deteve.

- Três páginas e meia, uma miséria - respondera ele a Willibald que, curioso, lia por detrás das suas costas. - Vejamos de que se trata, uma vez sem exemplo. Depois entrega-se.

“Senhor ministro, acabam de me comunicar um relatório de Corfu...” Corfu! Era onde ela estava! A notícia vinha nos jornais: apaixonada pela Odisseia, a Imperatriz ficara pela ilha de Corfu, onde Ulisses encontrara refúgio. ...”que pinta a situação do Épiro com as mais negras cores. Resulta do relatório que a vida, os bens e a honra dos cristãos estão à mercê dos Albaneses muçulmanos, que cometem os maiores crimes. Num lugar, perto de Delvino, um cristão, tendo sido assaltado por cães, atirou-lhes pedras para os afastar.”

- Bom! - disse ele - e depois? As pessoas não se batem por causa de cães, apesar de tudo...

- Espera - retorquiu Willibald. - Aposto que sim.

“Entretanto um pastor muçulmano fez fogo sobre o cristão que, tirando o punhal, se colocou em posição de defesa. O muçulmano lançou-se então sobre o cristão de iatagã em riste. Mas o cristão conseguiu aparar o golpe e, naquela luta corpo a corpo, matou o muçulmano e fugiu. Os amigos do muçulmano dirigiram-se então à aldeia onde o cristão vivia, incendiaram-lhe a casa e cometeram os actos mais bárbaros contra todos os habitantes, sem poupar a honra das mulheres.”

- E tudo isso pelos cães! - exclamou Franz aterrado.

- São todos a mesma coisa - comentava Willibald sobriamente. - Assim que se sai do Império, é só selvagens. Ah! Como eu gostaria de um Bismarck para nos ajudar a domar essas feras! Um punho de ferro é do que precisamos.

- Um Radetzky, se calhar? - interveio, azedo, Attila. - O senhor gostaria de uma repressão bem sangrenta, com enforcamentos e execuções sumárias?

- Calem-se - cortou Franz. - Vou continuar. “A autoridade enviou ao local um oficial com vinte soldados para proceder a uma investigação. Mas mal chegaram à aldeia, exigiram dos habitantes que lhes fossem fornecidos alimentos e, não contentes com o que aqueles desgraçados cristãos lhes puderam oferecer, meteram na prisão os primazes da localidade depois de impiedosamente espancados. Sobreveio uma rixa entre os soldados e os habitantes, e estes últimos foram obrigados a abandonar em massa a aldeia para irem procurar asilo em Corfu. Famílias inteiras abandonam diariamente os seus lares e emigram para Corfu à procura de asilo. Todos estes emigrantes estão na mais completa miséria, cobertos de farrapos e sem pão para a boca. O auxílio do governo e a caridade privada já não são suficientes.”

- Isto é o que se passa nas orlas do nosso Império, Willibald - exclamou ele brandindo o telegrama. - As pessoas matam-se umas às outras por causa de uns cães que ladram! Escorraçam-nos de todos os lados!

- Strummacher! Taschnik! A guia 2379, onde é que a puseram?

- ouviu-se a voz do chefe de secção através da porta.

Attila pegou prontamente no papel que faltava, e correu para a sala vizinha. Os dois comparsas arrumaram o telegrama para o caso do chefe espreitar para o gabinete.

- Imagina só, hipótese pura e simples, se o Imperador não existisse para conservar todas as nossas gentes reunidas - suspirou Willibald. - Consegues imaginar a catástrofe? Mas a propósito de imperador, ela não está de visita a Corfu, aquela tresloucada?

O telegrama perdido voltou à secção diplomática de onde nunca deveria ter saído; no gabinete dos escriturários não se falou mais de Córfu.

Na Primavera, Franz soube pelos jornais que a Imperatriz assistiria à parada militar. Impulsivamente virou a página que teria preferido não ler; as mãos tremiam-lhe e tinha a cabeça a andar à roda.

- Isto nunca mais acaba! - resmungou, furioso.

Seis anos depois da famosa carta de Londres, a última, e aquela mesma emoção, a Imperatriz em público, vê-la, ser ela ou não, aquela mentira...

Iria, com Anna, e desta vez contava-lhe tudo para purgar o coração. Apontar-lhe-ia o cabriole preto com as armas imperiais, mostrar-lhe-ia a mulher desdenhosa de sorriso tenso, e suspiraria, como quem não quer nada: “Estás a ver a nossa Imperatriz, pois bem, amou-me durante uma noite inteira...”

Não. Apontaria a carruagem, e murmuraria misteriosamente: “Vai ali uma mulher com quem valsei durante uma noite inteira.” Já estava melhor.

- Quem? - espantar-se-ia Anna. - Não foi a Imperatriz, pois não?

- Pois foi justamente ela.

E a partir dali tudo se complicava. Porque é que até ali ele não dissera nada? Podia arranjar um subterfúgio - esqueci-me, era coisa sem importância, lembrei-me só agora ao vê-la - mas Anna tinha demasiada intuição, sentir-se-ia magoada, decididamente não, não era a melhor maneira.

Mas também que ideia, a de mentir. Transformar três horas numa noite inteira, três valsas em amor louco, e algumas cartas em paixão.

Decidiu levar a esposa à parada, e depois lá, improvisar. Mas, pelo menos, falar no assunto.

Chegado o dia, foi a família, Anna com um chapéu de veludo verde, o mais elegante que tinha, e a pequena Emmy de vestido branco bordado, uma maravilha. Os três no meio de uma imensa multidão que ali estava para aplaudir o casal imperial. O Imperador, no seu célebre baio castanho, de sobrancelhas caídas sobre o olhar austero, e ela, a Imperatriz, direita como um fuso, num traje de amazona de veludo preto, impassível na sua montada.

- Ninguém diria que já é avó! - murmurou uma velha senhora num tom vagamente chocado.

- Nem que casou o filho no ano passado! - acrescentou a vizinha. - Se calhar era melhor deixar de aparecer em público a cavalo! - Parece que se chama Niilista... - cochichou um jovem excitado.

- Quem? - indignou-se um burguês corpulento. - De quem é que está a falar, rapaz?

- Do animal, de quem é que havia de ser? A Imperatriz... Calculou tudo: a égua, preta, o fato, preto, e o nome, Niilista... Repare!

Só a gravata era branca, e o rosto. De longe, Franz não lhe via as feições, apenas uma mancha clara e fluída por cima do cavalo, e a massa do cabelo castanho, que de vez em quando escorregava um pouco. Uma dupla imagem perfeitamente imóvel, o animal perfeitamente adestrado, a mulher perfeita cavaleira; nem um só movimento. Quando a parada terminou, a menina estava cansada, o pai pegou-lhe às cavalitas, o Imperador baixou o braço que saudava as tropas, e ela, a Imperatriz, fez recuar a égua com passos laterais, como no circo. Ouviram-se alguns aplausos.

- Porque é que estão a bater palmas, papá? - perguntou a menina.

O animal trotava sem sair do lugar, e depois, uma pata após a outra, começou a dançar. E ela, sempre muito direita, baixava os olhos para as pernas de Niilista, com uma atenção carinhosa.

“Bravo!” gritou Franz sem poder conter-se.

A Imperatriz procurou na multidão de onde viera o grito, percorreu com o olhar as cabeças concentradas diante dela, e avistou ao longe a de um gigante de bigode, que ultrapassava as outras. Franz içou a menina acima da cabeça: “Cumprimenta a nossa Imperatriz!” A criança acenou com a mão timidamente, já ela tinha dado meia volta, e o animal trotava tranquilamente.

- Então, ela viu-te? - perguntou o pai pondo Emmy no chão.

- O cavalo foi-se embora - gemeu a criança.

Franz deu o braço à esposa, e partiram a pé como tinham vindo. “Sabes”, começou...

Depois reconsiderou. Quando a filha estivesse deitada. Mais tarde. Chegada a noite, Emmy teve febre. Anna, preocupada, apalpava-lhe a testa sem descanso, e Franz renunciou à sua ideia.

Não voltou a pensar no assunto até ao Inverno seguinte. A primeira neve chegou, espessa, silenciosa, uma verdadeira neve vienense iluminada por um Sol pálido. Franz decidiu ir à caça.

- Não é para matar os bichos - disse ele a Anna que não gostava de espingardas - sou muito mau atirador. Só pelo passeio...

Adorava caminhar pelas planícies brancas, quando o som dos passos soava abafado, quando os pés se enterravam o suficiente para sentir a mordedura do frio na pele, principalmente quando se andava solitário, sozinho na claridade resplandecente tendo por companheiras as árvores escuras.

Foi no meio do primeiro campo que ele a avistou em contraluz. Uma silhueta nobre, erguida, perfeitamente imóvel. Uma grande lebre de poderosas coxas, com enormes orelhas direitas.

O animal estava ao alcance da espingarda. Franz pôs a arma à cara, apontou para a lebre que baixou uma orelha, virou o focinho, farejou o vento, estremeceu, pulou. Em três magníficos saltos desapareceu no mato.

Franz teria podido puxar o gatilho, dar o golpe de misericórdia, tinha tido tempo... Mas tremia tanto como a lebre assustada, tinha o mesmo medo que ela, o ruído do tiro, que horror...

Ela também tinha um coração de lebre. Também não conseguia deixar de ter medo. Solitária num campo de neve, queria respirar o ar frio, ser livre, estar ali, serena e sombria, aspirar os perfumes do Inverno, e os homens apontavam-lhe sem cessar as espingardas. Então, como a lebre, ela levantava a orelha, desdobrava as pernas musculosas e fugia a toda a pressa para o mato.

Franz baixou a espingarda e decidiu não voltar a caçar, nem sequer o melro que lhe debicava as cerejas do jardim.

Por sua vez, em Gõdõllõ, a Rainha caçava. Desde Inglaterra tomara o gosto das montarias, e nesse dia, enquanto Franz apontava à lebre, ela preparava-se para correr um javali. O grupo de caçadores com os cães reunira-se no local combinado, perto do Velho Charco, pois os javalis procuravam a água.

Os batedores tinham vindo fornecer as informações. O primeiro sabia de uma velha fêmea cansada, no Pulo do Lobo. A Rainha torcera o nariz; o segundo, três ou quatro bichos ruços, que pouco lhe interessavam. Restava o terceiro, que se adiantou orgulhosamente, seguro do que estava a fazer. Era o mais antigo dos batedores, o que melhor conhecia o código da caça e a sua linguagem.

- Andei lá para os lados da Fonte das Fadas, e acho que enxerguei um velho macho, a rondar os sete anos, que se meteu na toca. Reconheci-o pelo tamanho do rasto. É o Grande, Majestade.

O Grande escapara a três montarias sucessivas, era matreiro, espertalhão, e não se deixaria apanhar facilmente. Pelo menos, em terreno nevado, não se corria o risco de não dar por ele. O terceiro batedor tinha colocado correctamente os ramos partidos a marcar o sítio, delimitara o recinto, não faltava nada.

O grupo dos monteiros preparou-se para o ataque; pouca gente, os Esterhazy, os Baltazzi, nem um único austríaco de boa cepa. Calma, montando Miss Freney, um belo alazão nervoso, uma égua irlandesa que comprara especialmente para a caça, a Rainha da Hungria mantinha-se afastada. Os cães puxavam as trelas que os moços seguravam firmemente; Haltan, Sema e Black, os três bávaros da Rainha, admiráveis cães de raça, eram objecto de atenções particulares. Todos estavam prontos; a matilha ofegava, estava-se à espera de um gesto dela. Na sua qualidade de monteiro-mor, cabia à Rainha dar o sinal. “Ataquemos por ali, por onde o bicho entrou”, disse ela como que a contragosto.

Como era de esperar, o Grande desaparecera do covil; a perseguição seria longa e perigosa. Mas era trabalho para os cães, que ladravam sob o céu abafado.

A Rainha procurava os caminhos mais difíceis; quando se podia contornar uma moita, incitava a Miss, para satisfazer a sua paixão pelos saltos. O resto do grupo podia ocupar-se do bicho; mas a Rainha, como era sabido, caçava distrai-damente. Os cães corriam para a planície, que não era coisa que lhe interessasse. Bruscamente os latidos cessaram; perdidos, os cães estavam em falta; o javali escapara.

Os convidados estacaram, perplexos. Era o momento. Avistou uma sebe um pouco alta, deixou a montaria, e dirigiu-se para o obstáculo a galope. Por detrás da sebe começava um pequeno bosque que os cães tinham evitado, um paraíso de ramadas cobertas de gelo cintilante. Na outra ponta do campo, os monteiros não notaram a sua ausência.

Miss Freney saltou a sebe; o animal, de patas enterradas na neve profunda, dava sinais de cansaço, era preciso parar um bocado. A jovem senhora tirou o chapéu, sacudiu as tranças, e desatou a gravata; o que preferia nas caçadas, eram os momentos roubados assim, uma solidão de clareira, rapidamente perdida. Uma lufada de vento açoitou-a com violência; ao mesmo tempo chegava-lhe um fedor bravio, um ruído de ramos a serem quebrados, uns roncos... De orelhas espetadas, Miss Freney empinou-se.

Foi só então que, voltando-se para a mata, ela viu o Grande, alerta, na orla das primeiras faias, a dez metros. A imagem do susto e da força. O grande javali tremia de surpresa. De cabeça erguida, focinheira ao vento, batia os dentes, babava-se, espumava; majestoso, ameaçador, fitava-a com os olhinhos injectados de sangue. Ia carregar...

Primeiro era preciso acalmar a Miss custasse o que custasse, segurando firmemente as rédeas.

Dominar o próprio medo, sem tirar os olhos do bicho. Dar-lhes a entender a ambos, ao javali e à égua, a claridade do céu cinzento, a sua leveza, calma, calma, ninguém mata ninguém, não há mortes... Quis abafar o bater do coração; parou de respirar. A silhueta do Grande Javali Negro diluiu-se numa espécie de bruma, quase desmaiou, a vertigem era uma ameaça, a Miss continuava a tremer... Fechou os olhos, depois, decidida, abriu-os e afrontou a vista do monstro.

Teve tempo de distinguir o negrume das cerdas hirsutas, o branco-amarelado das defesas, as pestanas cor de feno que não mexiam. A fascinação prolongou-se; o Grande Javali e a Rainha de olhos nos olhos. “Não vou matar-te - pensou ela intensamente - compreende-me, gosta de mim...”

De súbito o ladrar dos cães recomeçou, ao longe, trazido pelo vento; o Grande Javali pôs-se em marcha fazendo muito barulho, e foi-se embora a trote.

Foi ter com os outros sem dizer nada, com medo de faltar à promessa tácita, feita em silêncio a um velho solitário. As regras autorizavam que se poupassem os animais, desde que fossem velhos e valorosos. Quem comandava a caça era ela.

O Grande Javali não foi encontrado nesse dia.

Muito mais tarde, a meio da noite, acordou toda transpirada, com a testa gelada e o ventre torturado por cólicas surdas. O terror chegara finalmente, o mesmo que lera nos olhinhos vivos do Grande Javali.

Não conseguiu adormecer; de madrugada, sentou-se maquinalmente à secretária, antes dos arranjos matinais. Sem reflectir, começou a escrever um poema; não escrevera nenhum desde a adolescência. As palavras corriam sem esforço, brotando de uma fonte secreta, viva, inesgotável. O poema não evocava o javali; uma gaivota sonhava planando sobre o mar, era tudo. Pouco se espantou; sem bem saber porquê, a poesia regressara à sua vida após um longo deserto, presente de um velho macho ameaçador na neve de um pequeno bosque.

 

                 AS SUBSTITUTAS E ALGUNS ASNOS

Um jumentinho choramingava Titània, faz-me festas! - suplicava E metia tanto dó o choro anónimo Era tão queixoso o lamento Que ela acordou, e finalmente ouviu.

Elisabeth

Desde que vira aquela lebre na neve, Franz já não suportava as críticas dos Vienenses à Imperatriz. Já não se tratava apenas de graçolas anódinas, como as que Willibald proferia pelo menos uma vez por dia, não, era mais grave. Se quisessem desesperar a Imperatriz para sempre não procederiam de outro modo; aliás, as farpas dos jornais vinham sempre do clã dos pró-alemães. Toda a gente estava tão habituada à beleza dela que já ninguém se espantava; em contrapartida exigiam vê-la, não para a admirarem, mas para lhe vigiarem as rugas, e a idade que avançava. De repente, começaram a dizer que não tinha coração, que era dura que nem pedra. Willy tornara-se radical; e se lhe acontecia, por puro hábito, troçar da Imperatriz por causa do modo como se vestia, deixara de lhe inventar amantes. Não, o que os Vienenses lhe censuravam, dizia ele, rezingão, era o facto de não ser como as outras mulheres. E quando por acaso o húngaro se eclipsava, Willy dizia gravemente que a Imperatriz não regulava lá muito bem. Os Vienenses andavam preocupados.

- Não quero melindrar Attila, mas decididamente não sou o único a achar que ela é esquisita - murmurava o gordo Willibald com ar entendido.

- Pois - gritava Franz. - Vocês querem que ela seja gorda como as vossas mulheres e as vossas mães, não é? Tenham paciência! Ela é magra!

- Acalma-te - suspirou Willy. - Pensamos apenas que é estranha. Que mulher é que se esconde e não come nada? Uma aluada que passa o tempo na caça, e que só gosta dos cavalos? Que nos dêem uma soberana que saiba saborear os bolos da nossa terra, que diabo! Aquilo não tem carne, nem sangue, não é humana!

- Sabes, por ventura, que ela visita os hospitais e os asilos de alienados? E que vai ver os pobres às escondidas? Lembras-te que tratou dos feridos que vieram de Solferino? Ah! Não é pessoa de se mostrar em bailes de caridade coberta de diamantes!

- Pois - rosnou Willy - e vai visitar os malucos com quem tem medo de se parecer... Vais ver.

Nesse dia, quase andaram à bofetada, como outrora com o húngaro. No dia seguinte aparecia um artigo intitulado Uma mulher estranha, onde se misturavam uns pozinhos de xenofobia que jogavam com o que era diferente, o estranho e o estrangeiro. Franz suspeitou de Willy e decidiu vingar Gabriela. Ia escrever um artigo, a publicar no JQriJqfá, o único jornal onde se podia impunemente juntar a sátira à emoção; de resto era o que mais se lia nos cafés, pois era o mais malicioso, o mais vienense. Mas quando se instalou calmamente à sua mesa de trabalho, Franz não achou nenhum dito espirituoso, nada de engraçado. Sentada na sua poltrona, Anna lia.

O humor não era o seu forte; as piadas não lhe vinham à caneta. Invejou o temível talento de Willy, e quando a esposa subiu para se deitar, deixou-se levar pela imaginação, como se lhe escrevesse mais uma carta. Saiu-lhe um poema, que intitulou A estranha mulher, e que foi meter no correio sem assinar.

 

É de facto estranha, essa mulher

Que sem medo do perigo

E porque ama o próximo

Consola a casa da desgraça

Estranha, porque longe da beleza

Não hesita e fala ao leproso

Precipita-se, de lágrimas nos olhos À cabeceira do moribundo, do abandonado.

Damas protectoras, vejam antes como

Se exerce a verdadeira, modesta caridade

Sem a música dejohann Strauss

Mas no silêncio do hospital

Vejam a Imperatriz, um exemplo

De humanidade e de grandeza.

 

Não estava muito contente com o resultado. Mas para grande surpresa sua, o OQriíqfá publicou-o logo; Willy espumava.

- Olha-me para estes versos de pé quebrado! A Imperatriz e o leproso, que achado! E os ataques às damas protectoras! Bem gostaria de saber quem é o animal...

- Vês que eu tinha razão - comentou Franz. - Ah! Não é como a princesa Metternich, que faz caridade com grande pompa, arranja bailes e quadros vivos, e se pavoneia no Corso do primeiro de Maio... A Metternich recusa-se a dar se não for vista... Enquanto que a Imperatriz é diferente. Ela não vai aos saraus. Humana, caridosa, generosa... É assim que nós a vemos.

- Nós quem? - perguntou o outro, furioso.

- Nós, os pequenos - respondeu Franz. - Os ricos não gostam dela.

- E nós, os povos do Império - acrescentou o húngaro. - Podes fazer o que quiseres, Willibald; salvo em Viena, a Imperatriz é a mãe do povo.

- Então ela não é a mãe dos Alemães - retorquiu o gordo.

Franz e Attila olharam-no, consternados. Havia já algum tempo que Willibald Strummacher se tinha afeiçoado aos partidários da Prússia, os “Borussos”, como se dizia em Viena por escárnio. E se poupava o Imperador, os seus ataques à Imperatriz estavam a tornar-se francamente políticos.

- Uma família impossível, os Wittelsbach - continuou Willy num tom desprendido. - Reparem! O velho Rei Luís e a sua Lola Montes, o outro Rei Luís, o último, com o seu Richard Wagner, e o pai da nossa Imperatriz, o duque Max com a sua cítara e os seus cavalos de circo, ela e a cavaleira! Uns tarados, uns insignificantes! O filho dela não é melhor, esse grande defensor dos direitos das nações, esse fedelho que, se lhe espremessem o nariz, ainda deitava leite. Ou pus, vá-se lá saber.

O gordo exagerava.

No princípio, o casamento do Príncipe parecia ser um êxito. Até o Correio de Berlim afirmava que a Princesa adquirira uma certa influência sobre o esposo, “cujo temperamento está mais calmo e mais assente”.

Rodolfo parecia um pombinho. A esposa chamava-lhe Coco, longínqua alcunha que as irmãs lhe haviam posto na infância; o Príncipe chamava à mulher “Coquinha”. Diziam “Querido anjo”, “fiel Coco”, “Coco que te ama profundamente”. Encantada, a jovem Estefânia, que ganhava à-vontade e estava a ficar mais elegante, comparava o Príncipe Herdeiro a Papageno, e ela própria a Papagena.

Decidiu pois dar-lhe um “empurrão”. Mas não sabia em que direcção. O Imperador era de uma implacável robustez, e o filho terrivelmente rebelde à autoridade imperial, “velharias medievais” dizia ele. O Imperador não morreria tão cedo e no poder que exercia, o filho não tinha lugar. Ele queixava-se disso todos os dias.

Estefânia deixava andar e procurava uma ideia. Mas não teve tempo. Alguns meses após o casamento, no Outono, a Imperatriz sua sogra mandou-a chamar. A jovem curvou-se numa vénia, beijou a mão imperial e esperou. A Imperatriz andava de um lado para o outro. Por fim, num esvoaçar de sedas, imobilizou-se.

- Minha querida filha, tenho um pedido a fazer-lhe - sussurrou sem descerrar os dentes. - A partir de hoje, vai substituir-me nas cerimónias oficiais. Conquistou todos os corações - não proteste e desempenhará condignamente as tarefas que lhe incumbirão um dia. Não, não me agradeça. Começa amanhã.

Foi tudo. A linda mão estendia-se já para o beijo protocolar.

Estefânia retomou pois todas as funções que cabiam à esposa do Imperador, fosse na Hungria, fosse onde fosse, de acordo com o que era costume. A Princesa Herdeira tinha encontrado algo que a satisfazia e não pedia mais nada. Já não lhe interessava dar um “empurrão” ao marido; pelo contrário.

Primeiro, Rodolfo ficou encantado por ter a mulher ao lado. Depois cansou-se dos seus caracóis e dos seus trejeitos. Na Primavera, associou-a aos seus prazeres, e meteu-se-lhe na cabeça dar-lhe a conhecer o povo. O Príncipe Herdeiro tinha gostos muito simples.

- Disfarçamo-nos! - disse-lhe. - Vista-se de burguesa, um vestidinho preto singelo, uma gola branca, um camafeu, é o bastante...

E arrastou-a até um botequim nas colinas. O ar estava delicioso; sentaram-se a um canto, sem cerimónia. Rodolfo pediu Gespritzt, que foi servido em canecas de vidro. Estefânia passou um dedo duvidoso pela madeira engordurada.

- Está tudo sujo - disse ela com repugnância.

- Mas olhe à sua volta! As pessoas divertem-se! - replicou o marido com uma certa irritação.

Lá divertir-se, as pessoas divertiam-se. As raparigas vestidas de cores berrantes cantavam a plenos pulmões; os cocheiros de fiacre começaram a assobiar valsas, o Príncipe, radiante, acompanhava-os batendo palmas. Uma rapariga saltou para cima de uma mesa e começou a girar sobre si própria, lançando ao Príncipe uns olhares insistentes. Estefânia tossiu até ficar sem fôlego.

- O que é? - indagou Rodolfo. - Não tem nada de mal!

E levantou-se para dançar um pouco com a rapariga que o reconhecera. Um violinista veio até à mesa deles e tocou langorosamente as preciosas melopeias de Viena, e Rodolfo tinha lágrimas nos olhos. Estefânia estava amuada.

- Está com uma cara... - disse-lhe ele quando o violinista se foi embora.

- Acho este lugar horrível - cochichou ela. - Este cheiro a comida requentada... Como é que pode suportar este fedor a alho e a tabaco? Não se consegue respirar!

- Deveras? - atirou ele com um ar pouco amistoso. - Pois bem! É disso tudo que eu gosto.

Seis meses mais tarde, o Príncipe declarava que a velha Europa já dera o que tinha a dar, e que caminhava para o declínio. No ano seguinte, a Princesa descobriu um papel no qual ele escrevera: “Enquanto observador silencioso, tenho curiosidade de ver quanto tempo será necessário a um edifício tão velho e tenaz como a Áustria para se desconjuntar inteiramente e se aniquilar.”

Estefânia queria absolutamente vir um dia a ser Imperatriz; insurgiu-se. Discutiram. Rodolfo desistiu dos arrulhos, não voltou a chamar-lhe “Coquinha”, mas sim “Prezada Estefânia”. Em cima da secretária do Príncipe Herdeiro apareceu uma caveira, cujo sorriso descarnado afugentava a Princesa; ele ria às gargalhadas, e acariciava os ossos amarelados. A lua-de-mel terminara.

E Estefânia deu-se conta de que esperava um filho.

Dez anos haviam passado desde o Grande Baile de Máscaras.

A casa dos Taschnik estava mergulhada numa tranquila quietação. Era um domingo como os outros, de fim de Primavera, depois do almoço. Nenhuma novidade perturbava a paz vienense; acabara de se saber, na Burg, do nascimento no lar do Príncipe Herdeiro. Nesse dia, os amigos só viriam à noite. Na cozinha, Anna preparava a massa para os pastéis. As crianças tinham ido passear. Anna contratara, havia algum tempo, uma criada, uma rapariguita que, de vez em quando, deitava o olho a Willy.

Era um progresso; pois na altura em que lhes nascera o filho, Franz não conseguira impor a ama morávia com que sonhara. Anna opusera-se: os criados em Viena eram escravos, indignava-se, as pessoas tinham o direito de lhes bater, tratavam-nos como animais, e ela tinha as suas ideias, sempre as mesmas. Cada vez mais libertária, a Anna. Mas ela própria escolhera a criada, que tratava de Toni, e que Anna dirigia.

Noutros tempos, Franz teria sentido a falta das melodias vindas da casa vizinha. O maestro não voltara a Hietzing; morava em Iglgasse, no coração de Viena, com a terceira esposa. Depois da morte de Jetty, Strauss casara com uma rapariga demasiado nova para ele, e o casamento não durou. Quando o músico quis divorciar-se, teve de ir a Budapeste onde era mais fácil. Aí conhecera Adélia, uma jovem viúva, que contratara como advogada; fora graças a ela que se divorciara. Depois, enamorou-se da húngara Adélia, e Adélia era judia, o que encantava os Taschnik, e reavivava o afecto de Franz por Johann Strauss. Anna pensava que era bem possível que o novo casal voltasse para Hietzing, e que pela casa ecoassem em breve os esboços de valsas ao piano.

Tanto mais que Strauss convidava muitas vezes o seu mais fervoroso defensor, o grande Johannes Brahms, um maravilhoso pianista. De Verão, bastaria sentarem-se no jardim, apurar o ouvido, e seria o paraíso sob as cerejeiras. Se assim fosse, Anna jurara a si mesma estabelecer relações com a casa vizinha. Assim ela fosse reocupada. Por isso Franz Taschnik não sentia muito a falta das melodias da juventude: elas iam voltar. Entretanto, ia passar um pouco pelas brasas.

Nunca mais tivera notícias da desconhecida do Grande Baile. Da Imperatriz também não se sabia grande coisa, aliás. Sem razão aparente, renunciara a caçar a cavalo, e até a toda a equitação; segundo Willy, o mestre inglês tinha-se simplesmente casado e ela, com o desgosto, deixara de montar. Dizia-se que começara a praticar esgrima; mas era um boato como tantos outros, ao qual Franz não atribuía importância. Quando tinha tempo para meditar, quando as crianças não estavam e Anna trabalhava na cozinha, Franz pensava na lebre que lhe estivera ao alcance da espingarda, e no seu próprio medo. Sabe-se lá se uma aventura semelhante não acontecera a Gabriela? Não seria isso suficiente para ela renunciar a todas as formas de caça?

Quanto à equitação, as coisas eram mais complicadas. Presentemente, Franz montava bem; tinha uma égua, a quem, como recordação, pusera o nome de Máscara. Tomara-se de amizade pelo animal de pêlo malhado, e não via por que razão a Imperatriz teria subitamente abandonado os cavalos. A menos que a idade... Mas não! Ela era eterna, como nas fotografias.

Estendido no canapé, com a cabeça numa almofada bordada, Franz acabara de adormecer quando, na névoa do primeiro sono, ouviu um tilintar longínquo. Enroscado no veludo, o gato ressonava discretamente, só um pouco mais depressa que o dono. Franz entreabriu as pálpebras, o olhar ensonado percorreu os cortinados das janelas, as palmas saindo do vaso de porcelana da China, e o raio de luz sobre o piano. Nada podia perturbar a quente harmonia daquela tarde soalheira. Nada, excepto aquele tilintar obstinado.

A campainha tocava e ninguém respondia. Bocejando, Franz atirou à porta um olhar aborrecido. Lá fora, tocavam cada vez com mais insistência. Estendeu as pernas, procurou a criada, que também estava a dormir, na cozinha, de cotovelos em cima da mesa.

- Vai abrir! - gritou. - E se for um desses vendedores de canções, não o deixes entrar!

A pequena tirou o avental azul e precipitou-se para a porta. Franz deitou-se outra vez e apurou o ouvido: pareceu-lhe ouvir um bichanar feminino e suspirou.

- Nem ao domingo se pode estar sossegado. Mulheres a fazer um peditório qualquer, com certeza. Oxalá ela consiga resistir...

A criada apareceu, com um ar amedrontado.

- São umas senhoras muito bem vestidas que querem falar com o senhor... - começou ela. - Parece que...

- Não estou - atalhou ele baixinho. - Vai buscar dinheiro ao porta-moedas e dá-lhes, para que nos deixem em paz.

- Já pensei nisso... Elas não querem. Dizem que é pessoal - respondeu ela estendendo um cartão. - Mas não tem nenhum nome gravado.

Não era um cartão de visita, era um bilhete no qual alguém escrevera à mão: “Grande Baile de Máscaras, Carnaval de 1874”.

- Ora esta! Justamente dez anos mais tarde! - exclamou ele pondo-se de pé num salto. - Diz-lhes que esperem um momento! E fecha essa porta! Onde é que andam as minhas pantufas?

Puxou o colete para baixo, pegou no casaco de trazer por casa, pôs os óculos, e tentou, em vão, alisar o cabelo encaracolado.

- Paciência - resmungou. - Não se vem assim de surpresa a casa das pessoas à hora da sesta. Dez anos! Ela tem agora quarenta e seis... E eu - murmurou ele deitando uma olhadela para o espelho dourado - tenho a idade que ela tinha no baile... E estou de pantufas!

O espelho devolveu-lhe a imagem de um homem despenteado, que arranjava à pressa a gravata branca. Aproximou-se do reflexo com um ar contrariado, molhou os dedos com cuspo e achatou o cabelo rebelde, que puxou para a frente, para o sítio onde o crânio começava a ficar desguarnecido.

A criadita assomou à porta entreaberta.

- Manda entrar - disse ele dando um jeito à corrente do relógio. - E vai dizer à Senhora que não me venha interromper; estou ocupado.

Entraram duas mulheres baixas, a atirar para o gorducho, completamente vestidas de preto e de rosto encoberto por um meio véu espesso. Franz carregou o cenho: nenhuma delas tinha a estatura do seu dominó amarelo.

- Gabriela não veio convosco! - exclamou ele irreflectidamente.

- Ah! - indignou-se a primeira - O senhor permita-nos ao menos...

- Perdão - atalhou Franz correndo para ela - que falta de civilidade a minha. Minha senhora...

E inçlinou-se para um beija-mão bastante hirto. A dama descontraiu-se ligeiramente e sentou-se. A outra mulher, imóvel, examinava Franz com curiosidade.

- O senhor não conhece a minha amiga. Maria, este é o senhor Taschnik.

- Um funcionário muito dedicado ao Império, nós sabemos - cortou a segunda dama com alguma secura.

Depois de outro beija-mão ainda mais hirto, Franz apontou uma cadeira à senhora de rosto velado.

- Meu caro senhor - começou a primeira - vimo-nos na necessidade desesperada de vir importuná-lo na sua intimidade, e sem sequer prevenir. Apenas a importância de uma diligência...

- Na verdade, minhas senhoras - interrompeu Franz, incomodado - não quis fazé-las esperar, vejam como estou... Peço a vossa indulgência no sentido de desculparem este meu trajar pouco conforme às convenções.

- De modo algum, de modo algum - respondeu ela com um risinho contrafeito. - Apenas razões...

- Parece-me que lhe reconheço a voz, minha senhora. No decurso de um certo baile de máscaras, encontrei um certo dominó vermelho que tinha semelhanças consigo.

- De facto. Deve lembrar-se que eu respondia ao nome de Ida.

- É então a senhora - murmurou ele angustiado. - E o dominó amarelo?

- Precisamente - interveio de súbito a voz grave da segunda dama. - Foi a esse propósito que viemos visitá-lo.

- Ah! Não me digam que morreu! - bradou ele num soluço.

As duas mulheres entreolharam-se espantadas, e a primeira tossiu ligeiramente, embaraçada.

- De maneira nenhuma - disse ela.

- Ainda bem - suspirou ele. - O silêncio prolongado e as vossas roupas pretas... Por um instante pensei... Fico muito contente.

- Ela apreciaria o seu cuidado - murmurou a segunda dama. - Trata-se de outra coisa. O senhor recebeu cartas.

- É exacto - respondeu Franz de pé atrás. - Será, por acaso, preciso devolvê-las?

- É isso mesmo - disse a primeira, aliviada. - Ela deseja recuperá-las. Com a sua permissão.

- E quem me prova que é verdade?

- Mas meu caro senhor! - exclamou a segunda dama. - Como pode... Ida, para a fazer calar-se, apertou a mão da companheira.

- Os seus escrúpulos honram-no - murmurou ela precipitadamente. - Mas nessa famosa noite, o senhor vai recordar-se, tenho a certeza, estávamos juntas, ela e eu, numa grande intimidade... Sou amiga dela! Confie em mim.

Franz sentou-se por fim, e contemplou as mãos com perplexidade.

- Passaram dez anos - murmurou. - Quem me diz que não a quer atraiçoar?

- Oh! Meu caro senhor - exclamou Ida - nada me é mais impossível! Atraiçoá-la, a ela!

- Ela, quem? - atirou Franz erguendo a cabeça. - Nem sequer sei como se chama. E a senhora parecia muito assustada na noite do baile.

- Uma mulher casada - suplicou Ida. - Compreende? Seja compassivo.

- Casada, sim - resmoneou Franz. - Precisamente. Estou disposto a entregar-lhe as cartas se ela vier pessoalmente. Ponham-se no meu lugar: seriam capazes de as dar a duas desconhecidas, depois de todo este tempo? Sou um cavalheiro!

- Disso ninguém duvida! - disse a segunda dama com emoção.

- Muito obrigado - disse Franz virando-se para ela. - Ainda se tivessem uma carta, uma palavra...

As duas mulheres calaram-se.

- Vejo que não - observou. - Nesse caso... E levantou-se, cortês.

- O senhor não cede - suspirou Ida.

- Não - bradou, enfurecido. - E se porventura vêm realmente da parte dela, digam-lhe que fiquei muito descontente com o procedimento. Abusar da minha casa, do meu domingo, sem avisar, sem nenhuma explicação! Não merecia.

- É verdade - respondeu a segunda dama muito depressa. - Só a amizade que temos por ela pode desculpar a nossa incivilidade. Pode ter a certeza de que ela não teria aprovado...

- Então ela não sabe! - exclamou Franz com espanto.

- Cale-se, Maria - murmurou Ida.

- Ela não sabe... - repetiu Franz. - Fico bem contente. Pois bem! minha prezada Ida, não conseguiu o que pretendia. Calculo que o marido ignora tudo o que diz respeito à aventura?

Ida baixou a cabeça.

- Ela continua a viajar muito? - acrescentou Franz com ironia.

- Não direi nada.

- E os cavalos? Ainda tem a égua baia? - prosseguiu ele. - E as estrelas espetadas nas tranças?

- Essa estupidez de novo! Gabriela não é... não é...

- Elisabeth - concluiu Franz inclinando-se. - A senhora já mo tinha dito, naquela noite. E eu continuo sem saber.

- Nós vamos embora - disse a segunda dama apanhando as saias. - Já ouvi o suficiente; venha, minha cara.

- E como da primeira vez, tratam-me como um lacaio! - bradou Franz. - Invadem a minha casa, querem coagir-me, e não me dizem nada!

- Um dia talvez o senhor compreenda o seu erro - disse gravemente a segunda dama. - E fará justiça àquela a quem chama Gabriela.

- E cujo nome não é esse. Decididamente o meu dominó amarelo gosta do mistério. Que importam os sentimentos de um homem cruelmente ultrajado...

- Cruelmente? - exclamou ela rindo. - Isso não o impede de dormir, e o senhor não parece um ser torturado! Esta casa não é a de um homem solteiro, pois não? O senhor é casado, não é?

- Isso não é da sua conta! - gritou Franz.

- O senhor tem razão - volveu ela secamente virando costas. - Mas está exaltado.

- Eu? De modo nenhum! Se estivesse exaltado, levantaria esses meios-véus, e saberia finalmente com quem estou a falar! - berrou ele. - As senhoras conhecem o meu nome, a minha morada e eu lido com sombras negras, Maria e Ida, Ida e Maria... O Carnaval acabou, estamos no Verão, minhas senhoras!

Ida levantara-se, e olhava-o inquieta. Franz, vermelho de cólera, andava de um lado para o outro na sala, chocando com os móveis sem se controlar.

- Acalme-se, senhor Franz - murmurou, com a voz alterada. - Eu não queria ofendê-lo.

- Oh! a senhora! - disse ele erguendo a mão. - Eu sei o que me retém...

- Vou-me embora - disse ela a toda a pressa. - Nós queríamos... Enfim teríamos gostado de... Compreenda... É para proteger Gabriela.

- E a minha honra, que faz a senhora da minha honra?

- O senhor era tão jovem... - balbuciou ela. - Teria podido... Eu conheço-o tão pouco.

- Mas ela conhece-me! - atirou Franz.

- Então não a atraiçoará? Ele encolheu os ombros.

- Bom... Adeus - disse Ida numa voz sumida.

Ele acalmou-se, e esboçou um gesto para as acompanhar ao limiar da sala. A mulher de voz grave saiu rapidamente sem uma palavra; Ida ajeitou o véu.

- Como passa o senhor Willibald ? - indagou ela de súbito à saída da porta.

- Sensibilizado pelo seu cuidado, minha senhora. Vai muito bem.

- O senhor não mudou muito - disse ela mirando-o com a luneta. - Reconheci-o ao primeiro olhar.

- Oh! - murmurou ele embaraçado - apesar de tudo estou mais velho.

- Continua a ter o mesmo bonito cabelo encaracolado - disse ela afa-velmente.

- Mas preciso de óculos. Não lhe diga...

- Quanto a isso não há perigo - murmurou Ida num suspiro.

- Ela continua linda? Diga - implorou ele pegando-lhe na mão.

- Deixe-me. Continua sim.

- Guardei o leque, sabe. Foi uma noite maravilhosa. E beijou-lhe a mão que comprimiu contra os lábios.

- Diga-lhe que não esqueci nada - segredou. - E que esperarei por ela até ao fim dos meus dias.

- Sempre a sua precipitação! - exclamou Ida assim que saíram. - Não podia ter tido tento nessa maldita língua? O Taschnik percebeu que não fôramos mandatadas para reaver as cartas!

- Mas isso não altera nada - respondeu friamente a condessa Maria.

- Ele não estava disposto a devolvê-las. Aliás eu tinha-a prevenido: este passo era de uma imprudência louca.

- E pensa que a existência das cartas não é pior?

- Mas avance - disse a condessa. - Ele ainda pode ouvir. Espere até estarmos na sege.

As duas mulheres calaram-se. A condessa Maria detestava humilhações; ser convidada a sair por um funcionariozeco, sem categoria, não poder metê-lo na ordem, tudo aquilo era insuportável.

- E aí está o resultado dos seus estúpidos alarmes! - bradou assim que se sentaram na carruagem. - Em vez de deixar tranquilamente as cartas no fundo de uma gaveta onde aquele senhor certamente as arrumou, a senhora vem reavivar uma antiga aventura de há dez anos!

- Bem se vê que a senhora não estava lá na noite daquele maldito baile - murmurou Ida numa voz alterada. - Se os tivesse visto... Estavam tão absortos um no outro! Valsavam tão bem juntos! Nunca vi a nossa Imperatriz naquele estado...

- Mas a Imperatriz já deixou de falar disso há muito tempo!

- Já lhe disse que ela me falou no caso no mês passado - suspirou Ida.

- Pois! - explodiu a condessa. - “Que pena não poder reaver as cartas que escrevemos!” E a senhora acha que é suficiente? Quando penso que acreditei em si...

- Pense o que quiser, Maria. Não leu as cartas, não avalia o perigo. Fracassámos, mas eu estava certa ao querer reavê-las.

- Não sei se a Imperatriz ainda pensa nessas cartas de amor, mas de uma coisa tenho a certeza: é que a senhora, minha cara, vive obcecada por elas...

- disse a condessa com ironia.

- Uma mancha assim na vida da nossa Elisabeth - sussurrou a companheira. - Uma nódoa na plumagem imaculada de um cisne, Maria! Pense no futuro! Na memória dela!

- Não há motivo para preocupações - atalhou a condessa num tom glacial. - Esse Taschnik morrerá em paz sem conhecer o nome do seu amor de uma noite, e os filhos queimarão as cartas. Ninguém virá nunca a saber nada.

A Imperatriz, por seu lado, permanecia suficientemente bela para que ninguém pudesse pensar que estava a envelhecer. Não renunciara à ideia peregrina que lhe viera à cabeça durante a missa de aniversário das bodas de prata; mas não encontrara candidata a seu gosto para ocupar a função delicada de amante efectiva do Imperador. Inclinou-se, por vezes, para mulheres apresentáveis, mas eram aristocratas, o que ela não queria de modo nenhum. Conservara marcas das humilhações da Corte, que teimava em espalhar boatos desagradáveis sobre a sua família - pessoas insignificantes, pequena nobreza, pobretanas, dizia-se após o casamento.

Nobre não. Mas então, como encontrar? Uma criada também não servia. Foi então que, em 1885, o Imperador passou a ir com muita frequência ao Teatro da Corte e ela teve uma inspiração. Uma actriz subsidiada, era disso que precisava.

De olhos fitos numa fotografia emoldurada, ela franzia o sobrolho; tempestade à vista, pensou Ida. Que lhe importava aquele retrato de uma actriz, que tinha ela com aquela beleza vulgar que triunfava em papéis de ingénua nos palcos de Viena?

- Diga lá isso outra vez, condessa. Quanto tempo é que ele esteve a falar com ela no Baile dos Industriais? -perguntou ela, pensativa.

- Oh! Alguns minutos, não mais, minha senhora - respondeu Ida hesitante. - Nada de escandaloso.

- Mas mesmo assim, ele vai muitas vezes vê-la ao teatro, não vai?

- O Burgtheater custa bastante caro ao tesouro imperial! - exclamou a húngara. - E o Imperador faz bem em aproveitar. Não?

- Não é feia - disse fazendo beicinho. - Um pouco gorda, mas tem os olhos bonitos. Enfim, vulgar, evidentemente. Serve. Ponha-a na lista dos convidados para a ceia. Depois da festa em honra do Tzar.

- Para a ceia? Com o Tzar? - gemeu Ida. - Que invenção é essa agora?

- Quero conhecer essa rapariga, como é que dizes que ela se chama? Ah! já sei. Schratt. Katharina Schratt. E quero-a nessa ceia, pronto!

- Vai provocar um escândalo, tenho a certeza...

Ligeira, pôs-se em pé de um salto e abraçou a dama de companhia.

- Preciso dela, Ida, vais perceber. Necessito de uma mulher suficientemente vulgar, submissa e fiel, um pouco estúpida, e que dependa inteiramente do nosso querer. Não será ela a ideal?

- Que quer a senhora fazer com ela, Deus do céu - suspirou a húngara.

- A minha substituta, Ida - disse ela rindo às gargalhadas.

A ceia realizou-se com a presença de Suas Majestades Imperiais e Reais, às quais se juntara o Príncipe Herdeiro. O seu olhar inquieto ia da mãe à actriz, a rival, por quem o pai estava certamente apaixonado. Mas ela, soberana, tratava-a como amiga, e parecia empregar, para a seduzir, os encantos que só reservava aos Húngaros. Uma actriz acanhada, e que morria de timidez!

O Imperador seu pai também as contemplava, erguia para a imperial esposa uns olhos de cão espancado, e pestanejava ao cruzar o olhar da Schratt, que baixava a cabeça corando. Rodolfo estava à espera de um escândalo que não rebentou. No fim da ceia, quando a actriz se inclinava numa reverência impecável, a Imperatriz fê-la levantar-se e beijou-a na testa, com um afecto que parecia sincero.

Tinha o ar estranhamente dividido de uma mãe que casa um filho. Ora o filho cuja união ela abençoava, era o Imperador em pessoa.

Num dia de Primavera, Attila apareceu a cantarolar nos gabinetes. Estava de tão bom humor que até beijou Willy que redigia um ofício importante.

- Meus filhos, estou apaixonado! Finalmente! - exclamou.

- Ainda bem - suspirou Franz. - A Ruça não era coisa que se apresentasse. Então quando é que te casas?

- Vai perguntar isso a outro - respondeu o húngaro. - Ela já é casada, acho eu. Não, estou simplesmente apaixonado, como um estudante. Ao aceitar as minhas violetas, olhou-me com tanta ternura... E temos um encontro, amanhã; enfim, tenho quase a certeza.

- Tanto melhor, mas cala-te - resmungou Willy - tenho de trabalhar. Já nos falas dos teus amores daqui a bocado, no café.

- Ele tem é inveja - segredou o húngaro instalando-se - coitado do Willy!

- Conta - sussurrou Franz interessado.

- Uma actriz da Burg, a mais bela!

- A Wessely?

- Eu não disse a mais célebre...

- Mas então quem?

- Ah! É segredo.

- Quando é que vocês acabam com isso? - gritou Willy. - É insuportável! Eu estou a tratar dos assuntos da Sublime Porta!

- Chiu! - murmurou Franz - ele tem-se na conta de pessoa importante, falemos mais baixo - Não insistas, não posso dizer nada - Vá lá, estás mortinho por falar - Não pode ser - Eu não conto a ninguém, diz-me ao ouvido - Está bem - disse Attila inclinando-se para o amigo.

- A Schratt! - gritou Franz sem pensar. - Mas ela é sublime! Willy bateu na mesa, e levantou-se de um salto.

- A Schratt?

Parecia tão perturbado que Attila também se pôs de pé.

- Dizem que é a amante do ... Enfim, vocês bem sabem - gaguejou Willy.

- Do... De alguém cujo nome não temos o direito de pronunciar...

- Basta! - replicou Franz com determinação. - És mesmo mau. E depois ele tem tantas aventuras.

- Mas desta vez é diferente! Mostra-se com ela, vê-a todos os dias! A Imperatriz tem sofrido imenso! E oficial, por assim dizer! Não, garanto-te Attila, desiste. É perigoso de mais.

O pobre húngaro abateu-se sobre a mesa, gemendo. “Mas porquê este meu azar, desta vez estava mesmo animado, e quem é o meu rival? Precisamente o único que...”

- Não digas - atalhou Franz muito depressa. - Também quando é que te decides a ter juízo?

- E então eu - rosnou Willy. - Ele, ao menos, tem as Ruças de reserva. Eu cá não tenho ninguém.

- Tu é que tens sorte, Franzi - bradou Attila.

- Lá isso é verdade - apoiou Willy. - Uma verdadeira família, dois filhos, e para sonhar, a tua Gabriela!

- Oh! Há muito tempo que ela deixou de me escrever - murmurou Franz.

- Nunca saberei quem era a desconhecida do Baile.

- Quem sabe? - murmurou Willibald pensativo. - Supõe, é só uma ideia, mas se era realmente a Imperatriz, talvez ela volte, agora que foi oficialmente desprezada...

Os planos da Imperatriz resultaram às mil maravilhas. O Imperador sucumbira aos encantos da bela actriz, que visitava frequentemente, com a regularidade de um esposo; era perfeito. Não se passava um dia sem que ela desse graças aos céus por ter imaginado aquele extravagante plano. Será que ele desconfiava? Não tinha importância. Ele não contrariara os seus desígnios; tivera o bom senso de se apaixonar. A Imperatriz tivera o cuidado de proteger a Schratt, oficialmente denominada “amiga do casal imperial”, e portanto também sua amiga.

Mas quando, delicadamente, perguntava por ela ao marido, limitava-se a chamar-lhe “amiga”. Ele percebia. À pergunta agora ritual: “Como vai a amiga?”, ele respondia que ia bem, ou que andava um pouco cansada. Por seu lado, a Schratt perseguia a Imperatriz com amigáveis e devotadas assiduidades, a pobrezinha; o preço a pagar pelo subterfúgio, era ter de a suportar de vez em quando. Uma boa pequena, de resto, e que a venerava. Pronta a aceitar tudo para conservar o título de amiga da Imperatriz.

No fundo, o que a encantava, era o subterfúgio em si mesmo. Ela preferia o anonimato, toda a gente sabia isso; mas sobretudo, era doida por estratagemas. O mais perfeito, o mais belo, continuava a ser o do Grande Baile de Máscaras, apesar de não ter durado muito tempo; mas podia-se a qualquer momento soprar as brasas apagadas e reacender aquele fogo, só para ver o que dava.

Pensava nisso às vezes, durante uns minutos; onze anos eram passados desde o encontro, que seria dele? Estaria instalado na vida como ela previra, ter-se-ia casado? Esse pensamento fugidio prendia-se a ela como uma fina teia de aranha de fim de Primavera; depois, rapidamente, afastava-o. Ela também envelhecera. Não, decididamente era mil vezes preferível não procurar vê-lo e conservar a recordação de uma semente de amor que não germinou. Três valsas arrebatadas, uma conversa deliciosa, um momento de felicidade partilhada, um esboçar do prazer, a fruição de um frente-a-frente adorável, um beijo... Era isso que devia embalsamar na memória. Isso e um disfarce encantador.

Fizera algo do mesmo género um dia quando, em Londres, conseguira escapar ao seu séquito, e até, excepcionalmente, à prezada Ida. O mestre de equitação inglês, a Raposa Vermelha, também contribuíra; ao subir para um comboio escapuliram-se para outra carruagem, desceram, e foram passear para o centro da cidade, de braço dado, como bons amigos. Levou mesmo a travessura mais longe e foi esperar Ida à volta do passeio, à estação, com Middleton. Em contrapartida, em Paris, não fora possível reeditar no baile Mabille o ardil do dominó amarelo; Ida indignara-se com tanta veemência que tivera de ceder. Mas a Imperatriz obrigara-a a ir e a fazer-lhe um relato completo.

- As danças são de uma obscenidade, Majestade! - dizia Ida ainda toda corada de vergonha.

- Explica! - insistia. - Descreve!

- Bem, as raparigas começam todas ao mesmo tempo a levantar as saias, levantam uma perna enfiada numa meia bem preta e fazem-na girar, não sei como dizer, enfim, é indecente!

Torturando-a, acabou por compreender que a última figura consistia em mostrar o traseiro. Tapado por uma calcinha, apesar de tudo. A Imperatriz fartou-se de rir.

- É pena - disse quando recuperou o fôlego. - Um traseiro rechonchudo envolto em bordado inglês, teria adorado - acrescentou para irritar Ida.

Foi mais ou menos por essa altura que ela inventou uma coisa que corria bem. Fanny, a cabeleireira, era quase tão alta como ela; quando não se tratava de cerimónias importantes, vestia Fanny com as suas próprias mãos, e disfarçava-a. Fanny representava bem Imperatrizes, principalmente na varanda, de longe, quando acenava com a mão. Atrás da cabeleireira, a verdadeira soberana divertia-se imenso. Mas era uma partida sem grandes consequências, enquanto que esta última, a da substituta, era muito melhor.

Era um golpe de mestre, cuidadosamente calculado para afastar o marido, com uma generosidade tanto mais magistral que ela própria, a esposa, abençoava a amante; era um negócio limpo. Uma mascarada completa: os esponsais que já não o eram e o adultério que não era adultério. Mas não conseguia evitar um insidioso ciúme que por vezes a irritava, vindo de parte nenhuma, sem razão, e que transformava em poemas.

Decididamente os homens eram todos uns asnos. Não necessariamente maus, até eram afectuosos, felpudos, macios ao tacto, mas asnos. Teve a ideia de uma série de poemas sobre os seus burricos preferidos, quer dizer, todos os homens que conhecera, à excepção de dois.

Seu primo Luís, Rei da Baviera, e o jovem do Grande Baile. Rei das Rosas e das noites loucas, senhor da música e dos castelos, Luís nada tinha em comum com a humanidade; planava por cima do mundo, como um arcanjo. Quanto ao jovem, reparara nisso com frequência, não era como os outros; aliás eles tinham em comum aquelas pestanas de menina, negras e espessas em olhos claros. Eles não eram, não seriam nunca asnos.

O grão-senhor dos Jericos era o Imperador seu esposo, um asno teimoso, tinhoso, um animal estúpido; ou então, conforme os dias, um encantador burrinho de pêlo acinzentado, o melhor de todos os animais domésticos. Em virtude dos seus privilégios, teve direito a numerosos poemas.

Para os outros, era diferente; um único bastaria. A um jovem oficial que se apaixonara por ela na Madeira, e que por ela suspirara em vão enquanto lhe tocava guitarra, dedicou um poema no qual ele comia granadas na palma da mão dela.

Para Andrassy, pôs ela um cuidado especial; o homem valia bem o esforço. Quando era apenas a noivinha da Baviera, o seu perceptor húngaro falara-lhe daquele magnífico insurrecto que tão bem se batera em 1848 e que fora condenado à morte. Fugira para Paris e fora enforcado em efígie. E como ele tinha um ar muito simpático, as senhoras haviam-no baptizado “O Belo Enforcado”. O Belo Enforcado! Até fazia sonhar.

A Imperatriz veio a conhecer o Belo Enforcado mais tarde; indultado, voltara para a Corte, e olhava-a sempre com um brilho nos olhos, desde que ela recebera uma delegação húngara vestida com traje magiar, de corpete, avental e touca florida na cabeça. Andrassy passava por ter sido seu amante; ela bem sabia e isso dava-lhe vontade de rir. Mas fora graças a ela que o Belo Enforcado viera a ser ministro de Sua Majestade Imperial e Real; sim, Andrassy merecia um tratamento especial. Contudo amara-a demasiado para não entrar na longa fila dos asnos. Ofereceu-lhe em segredo versos que louvavam a sua bravura de asno, a sua tenacidade, a sua coragem.

E se, porventura, se cruzava com um homem que não lhe agradava, ele tinha direito ao poema e a um retrato de asno. Com duas excepções, a regra era simples: quem se apaixonasse por ela era um asno; quem não lhe agradasse, também era.

Foi por volta dessa época que mandou pintar, numa casa que lhe oferecera o esposo, perto de Viena, um fresco representando Titânia, rainha das fadas. A personagem do Sonho de uma noite de Verão abraçava o artesão Bottom, metamorfoseado em asno pelo esposo enganado, Oberon. Oberon não estava representado, e Bottom tinha as feições do Imperador. Os cartões tinham sido desenhados pelo pobre Makart, que após o esforço das bodas de prata morrera de repente; e fora um discípulo desconhecido, um certo Gustav Klimt, que executara a obra póstuma.

Por vezes, entre Bottom e Oberon ela ficava confusa. Oberon era o Imperador, mas Bottom também; Oberon era o jovem tenente-coronel de Bad Ischl, mas Bottom era o amante da Schratt. Decididamente, era bem cómodo o facto de ter feito Oberon desaperecer do fresco. Mas também a Schratt não fora poupada: se o Imperador era um asno e ela a rainha das fadas, nos seus poemas, a Imperatriz oferecia ao animal um cardo grosseiro, uma ração de farsa que ele adorava, e pronto. A Schratt era a ração.

A brincadeira dos asnos divertiu-a por muito tempo. Um dia, quis continuar a série, e não encontrou nenhum modelo. Foi então que pensou nas duas excepções: Luís e o jovem do baile.

 

 

                                                                                     CONTINUA

 

 

                             UM BICHO IMUNDO NUM MONTE DE ESTERCO

 

         Vejo-te grave e triste em cima do cavalo

         Calcar a neve profunda. Na noite de Inverno

         Sopra um vento sinistro e gelado.

          Ah! Como tenho o coração dorido!

         A Oriente, uma lívida aurora

         Afasta as confusas trevas

         E de coração magoado por um pesado fardo

         Tu voltas, com o teu queixume amargo.

 

Elisabeth quanto ao jovem, ele já tivera um poema. Ela via-o como um cavaleiro triste no Prater, de noite. Os versos não estavam mal; é certo que no poema ele estava um pouco romântico de mais, e nada restava da sua ingénua alegria; mas quando ela o redigira, estava de humor melancólico. E ele é que pagara. De resto, não se lembrava de o ter visto a cavalo no Prater. Era uma pena, havia de ficar bem.

Não lhe escrevia há... Há quanto tempo, é verdade? Foi no próprio ano em que se conheceram. Quando fora avó pela primeira vez, aos trinta e seis anos. Muito simples: nenhuma carta havia onze anos.

 

 

 

 

Tanto tempo! Já nem sequer sabia onde arrumara as cartas; em Viena ou em Buda? Em Gõdõllô, provavelmente... Enfim, era história antiga. Ida, que tanto se preocupara, já não falava no assunto. Quanto a ele, desaparecera. Casado, com certeza; com filhos, evidentemente. Ainda assim, fora uma estupidez ter deixado morrer uma história tão poética; decidiu escrever uma última carta. Era um pouco arriscado, mas não ao ponto de provocar novo escândalo. E oxalá ele não tivesse mudado de residência...

Era isso que era excitante: encontrá-lo-ia? Bastava tentar. A carta foi breve, com palavras precisas, um pouco secas, e uma fórmula um pouco terna no fim, “Não me esqueço de si, meu querido filho”. E para maior segurança, aproveitaria um amigo que, de partida para o Brasil, a enviaria do Rio. Fosse como fosse, nem o mais pequeno encontro. A Imperatriz ia a caminho dos cinquenta anos; havia de ser bonito ele conseguir vê-la naquela idade!

Encantada com o que fizera, colou o envelope com uma lambidela um pouco comovida.

O essencial da carta brasileira consistia em pedir-lhe uma fotografia, para ela ver como estava ele onze anos após o baile... 

                      

 

                      

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