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Como as ruas que levam do Strand ao Embankment são muito estreitas, é melhor não caminhar de braço dado. Se você insistir, empregados de escritórios de advocacia terão de saltar na lama; jovens datilógrafas terão de trotar nervosamente atrás de você. Nas ruas de Londres onde a beleza não é percebida, a excentricidade tem de pagar o pato, e é melhor não ser muito alto, usar um casaco azul comprido ou abanar o ar com a mão esquerda.
Certa tarde no começo de outubro, quando o tráfego se tornava agitado, um homem alto veio a passos largos pelabeira da calçada com uma dama pelo braço. Olhares irados batiam nas costas deles. As figuras pequenas, agitadas – pois em comparação com o casal a maioria das pessoas parecia pequena – adornadas com canetas-tinteiro,carregadas com pastas de documentos, tinham compromissos a cumprir e ganhavam salário semanal, de modo que havia alguma razão para o olhar pouco amistoso lançado sobre a altura de Mr. Ambrose e o casaco de Mrs. Ambrose. Mas algum encantamento colocara homem e mulher além do alcance da malícia e da impopularidade. No caso dele, podia se adivinhar pelos lábios que se moviam que era o pensamento; e no caso dela, pelos olhos empedernidos e fixosà sua frente num nível acima dos olhos da maioria, via-se que era tristeza. Só desprezando todos os que via ela conseguia conter as lágrimas, e o atrito de pessoas roçando nela, ao passar, era evidentemente penoso. Depois de observar o tráfego no Embankment por um minuto ou doiscom olhar estóico e fixo, ela puxou a manga do marido eatravessaram em meio a rápida passagem dos automóveis.Quando estavam a salvo do outro lado, ela docemente retirou o braço do dele ao mesmo tempo em que deixava suaprópria boca relaxar e tremer; então lágrimas rolaram e,apoiando os cotovelos na balaustrada, ela protegeu o rostodos curiosos. Mr. Ambrose tentou consolá-la; deu-lhe palmadinhas no ombro; mas ela não mostrava sinais de deixar aproximar-se e, sentindo ser inconveniente ficar parado junto de uma dor maior que a sua, ele cruzou os braços nascostas, e deu uma volta na calçada.
O Embankment sobressai em ângulos aqui e ali como púlpitos; entretanto, em vez de pregadores, menininhos os ocupam, balançando cordas, jogando pedras ou lançando
folhas de papel para um cruzeiro. Com um olho acurado para excentricidades, inclinavam-se a achar Mr.Ambrose pavoroso; mas um espertinho mais rápido gritou “Barba
Azul!” quando ele passou. Para o caso de passarem a aborrecer sua esposa, Mr. Ambrose brandiu sua bengala na direção deles, o que fez com que resolvessem que ele
era apenas grotesco, e quatro gritaram em coro,em vez de um só: “Barba Azul!”
Embora Mrs. Ambrose ficasse bastante quieta, muito mais tempo do que é natural, os menininhos a deixaram em paz. Sempre há alguém olhando o rio perto da Ponte de
Waterloo; um casal fica ali conversando meia hora numa bela tarde; a maior parte das pessoas, caminhando por prazer, fica olhando por três minutos; depois tendo
comparado a ocasião com outras ocasiões, ou tendo dito alguma frase, seguem adiante. Às vezes as casas, igrejas e hotéis de Westminster são como os contornos de
Constantinopla num nevoeiro; às vezes o rio é de um roxo opulento, às vezes cor de lama, às vezes de um azul cintilante como o mar. Sempre vale a pena olhar para
baixo e ver o que está acontecendo. Mas aquela senhora não olhava nem para cima nem para baixo: a única coisa que vira desde que estava ali parada era um pedaço
de pano circular iridescente que passava flutuando lentamente com uma palha no meio. A palha e o paninho seguiam seu nado sob o véu trêmulo de uma grande lágrima
que brotava, e a lágrima cresceu, caiu e tombou no rio. Então ela ouviu ali perto:
Lars Porsena de Clusium
Ele jurou pelos nove Deuses
e depois, mais débil, como se o falante tivesse passado por ela na sua caminhada:
Que a Grande Casa de Tarquínio
Não deverá sofrer mais reveses.
Sim, ela sabia que precisava voltar para tudo aquilo,mas no momento tinha de chorar. Protegendo o rosto ela soluçou mais do que antes, os ombros erguendo-se e caindo
com grande regularidade. Foi essa imagem que seu marido viu quando, tendo chegado à Esfinge polida, ten-do se enredado com um homem que vendia cartões-postais, ele
se virou; o poema interrompeu-se imediatamente.Ele foi até ela, pôs a mão em seu ombro e disse:
– Querida.
Sua voz era suplicante. Mas ela escondeu o rosto como se dissesse: “Você jamais poderia entender”.
Mas como ele não a deixasse, ela teve de enxugar os olhos e erguê-los ao nível das chaminés da fábrica na outra margem. Também viu os arcos da Ponte de Waterloo
e as carroças movendo-se através deles, como a fila de animais numa barraca de tiro ao alvo. Ela as via claramente, mas ver alguma coisa era naturalmente parar de
chorar e começar a andar.
– Eu preferia andar – disse ela, depois de o marido ter chamado um táxi já ocupado por dois homens da cidade.
A fixidez do estado de espírito dela foi rompida pela ação de caminhar. Os automóveis em disparada, mais parecidos com aranhas na lua do que com objetos terrestres,as
carroças trovejantes, os cabriolés balouçantes e os pequenos coches pretos fizeram-na lembrar-se do mundo em que vivia. Em algum ponto acima dos pináculos onde a
fumaça se erguia numa colina pontuda, seus filhos agora estavam chamando por ela e recebendo uma resposta tranqüilizadora. Quanto aos montes de ruas, praças e edifícios
públicos que os separavam, ela apenas sentia, naquele instante, como Londres fizera pouco para que ela a amasse, embora 30 de seus 40 anos tivessem se passado numa
rua daquelas. Ela sabia como interpretar as pessoas que passavam a seu lado; havia os ricos correndo ora das casas, ora para as casas uns dos outros a essa hora;
havia os funcionários obstinados dirigindo-se em linha reta para seus escritórios; havia os pobres que eram infelizes e justificadamente malignos. Embora ainda houvesse
sol naquela névoa, velhos e velhas maltrapilhos cochilavam nos bancos. Quando se desistia de ver a beleza que vestia as coisas, aquele era o esqueleto que ficava
por baixo.
Agora uma chuvinha fina a deixava ainda mais melancólica; furgões com os nomes esquisitos dos que se dedicam aindústrias bizarras – Sprules, Manufatura de Serragem;Grabb,
que não deixa escapar um pedacinho de papel desperdiçado – soavam como uma piada ruim; amantes ousados, ocultos atrás de um só casaco, lhe pareciam sórdidos nasua
paixão; as floristas, grupo alegre, cuja fala sempre vale apena escutar, eram velhas feias e estúpidas; as flores vermelhas, amarelas e azuis, comprimidas umas contra
as outras,não resplendiam. Além disso, seu marido, caminhando comum passo rápido e ritmado, eventualmente acenando comsua mão livre, não era nem um viquingue nem
um Nelsonferido; as gaivotas tinham mudado o jeito dele.
– Ridley, vamos de carro? Vamos de carro, Ridley? Mrs. Ambrose teve de falar alto; a essa altura ele estava distante dela.
O fiacre, trotando firme ao longo da mesma rua, em breve os afastou de West End, mergulhando-os em Londres. Parecia ser uma grande fábrica, onde as pessoasestivessem
engajadas em fazer coisas, como se West End,com seus lampiões elétricos, suas enormes janelas de vidrobrilhando amarelas, suas casas bem acabadas e minúsculas figuras
vivas trotando na calçada ou carregadas sobre rodas,fosse o produto acabado. A ela parecia um trabalho muitopequeno para ter sido feito por uma fábrica tão enorme.Por
alguma razão, pareceu-lhe como uma pequena borla deouro na ponta de um vasto sobretudo negro.
Observando que não passavam por outro fiacre, mas só furgões e carroças, e que nenhum daqueles milhares de homens e mulheres que ela via era cavalheiro ou dama,Mrs.
Ambrose entendeu que afinal a coisa comum é ser pobre, e que Londres é uma cidade de inumeráveis pobres. Espantada com essa descoberta e vendo-se caminhando em círculo
todos os dias de sua vida em torno de Piccadilly Circus, ela ficou imensamente aliviada ao passar por um edifício destinado pelo Conselho Municipal de Londres a
Escolas Noturnas.
– Meus Deus, como isso aqui é triste! – resmungou seu marido. – Pobre gente! Com a aflição por seus filhos, os pobres e a chuva, amente dela era como uma ferida
exposta para secar no ar.
Nesse momento o fiacre parou, pois estava na iminência de ser esmagado como uma casca de ovo. O amploEmbankment,que tivera espaço para esquadrões e canhões,agora
encolhera, tornando-se uma ruela calçada de pedras,fumegando com odores de malte e óleo e bloqueada porcarroças. Enquanto seu marido lia os cartazes colados notijolo
anunciando os horários em que certos navios partiriam para a Escócia, Mrs. Ambrose tentava encontrar informação. De um mundo ocupado exclusivamente em carregar carroças
com sacos, meio obliterado também numafina névoa amarela, eles não conseguiam nem ajuda nem atenção. Pareceu um milagre quando um velho se aproximou, adivinhou o
estado em que se achavam e propôs leválos para o navio no barquinho amarrado no fundo de um lance de degraus. Hesitando um pouco, confiaram-se a ele,ocuparam seus
lugares e em breve estavam ondulando sobre as águas, Londres reduzida a duas linhas de edifíciosdos dois lados deles, construções quadradas e construçõesretangulares
em filas como uma avenida de bloquinhos demadeira construída por uma criança.
O rio, numa turva luz amarela, corria com muita força; balsas enormes passavam rápidas, escoltadas por rebocadores; barcos da polícia passavam por todos em disparada;
ovento soprava na direção da torrente. O barco a remo, aberto, em que estavam sentados, pulava e balançava, cruzando a linha do tráfego. No meio do rio o velho pousou
as mãossobre os remos e comentou, enquanto a água passava velozmente, que outrora levava muitos passageiros, mas agorararamente havia algum. Parecia lembrar uma
época em queseu barco, ancorado entre juncos, carregava pés delicadospara o outro lado, para os relvados de Rotherhithe.
– Agora eles querem pontes – disse, apontando o contorno monstruoso da Ponte da Torre. Helen contemplou tristonha o homem que estava pondo água entre ela e seus
filhos. Tristonha, olhava o navio do qual estavam se aproximando; ancorado no meio da torrente, podiam ler obscuramente seu nome: Euphrosyne.
Na névoa que baixava podiam ver muito difusamente as linhas do cordame, os mastros e a bandeira escura que a brisa inflava para trás.
Quando o barquinho se alinhou com o vapor, o velho largou seus remos e comentou mais uma vez, apontando para cima, que navios do mundo todo usavamaquela bandeira
no dia de partir. Nas mentes de ambosos passageiros a bandeira azul pareceu um presságio sinistro, e aquele, um momento para pressentimentos, mas mesmo assim levantaram-se,
juntaram suas coisas esubiram ao convés.
Lá embaixo, no salão do navio de seu pai, Miss Rachel Vinrace, de 24 anos, estava esperando de pé, nervosa, seu tio e sua tia. Para começar, embora parentes próximos,
ela quase não se lembrava deles; ainda por cima eram idosos,e finalmente, como filha do seu pai, ela tinha de estar preparada para distraí-los de alguma forma. Esperava
por eles como gente civilizada em geral aguarda a primeira visão de gente civilizada, como se fosse da natureza deles a iminência de um desconforto físico – um sapato
apertado ou uma janela com corrente de ar. Estava numa animação pouco natural para recebê-los. Enquanto se ocupava colocando garfos esmeradamente ao lado de facas,ouviu
uma voz masculina dizer em tom sombrio:
– Numa noite escura pode-se cair de cabeça nesta escada.E uma voz feminina acrescentou: -E morrer. Ao pronunciar as últimas palavras ela apareceu na porta. Alta,
olhos grandes, enrolada num xale roxo, Mrs.Ambrose era romântica e bela; talvez não simpática, pois seus olhos fitavam diretamente e analisavam o que viam.Seu rosto
era muito mais cálido do que um rosto grego;por outro lado, era muito mais audacioso do que os rostos de mulheres inglesas bonitas costumavam ser.
Ah, Rachel, como vai? – disse ela, apertando a mão da outra.
Como vai, querida? – disse Mr. Ambrose, inclinando a cabeça para que a moça o beijasse. A sobrinha instintivamente gostou do corpo magro e anguloso dele, e da cabeça
grande com traços imperiosos, e dos olhos agudos e inocentes.
– Avise Mr. Pepper – pediu Rachel ao criado. Marido e mulher sentaram-se então a um lado da mesa com a sobrinha na frente.
– Meu pai me pediu que começasse – explicou-lhe ela.
– Está muito ocupado com os homens... Conhecem Mr.Pepper? Um homenzinho curvado, como algumas árvores se curvam com o vento que sopra de um lado, esgueirara-se para
a sala. Cumprimentando Mr. Ambrose com um ace-no de cabeça, apertou a mão de Helen.
– Correntes de ar – disse ele, levantando o colarinho do casaco.
– Ainda está com reumatismo? – perguntou Helen.Sua voz era baixa e sedutora, embora falasse com ar distraído, tendo em mente ainda a visão da cidade e do rio.
– Uma vez reumático, sempre reumático, eu receio – respondeu ele. – Até certo ponto depende do clima, embora não tanto quanto as pessoas pensam.
Seja como for, não se morre disso – disse Helen.
Geralmente não – respondeu Mr. Pepper.
Sopa, tio Ridley? – perguntou Rachel.
– Obrigado, querida – disse ele e, enquanto estendia o prato, deu um suspiro audível. – Ah! ela não é como a mãe.
– Helen bateu tarde demais o copo na mesa para que Rachelnão escutasse e não ficasse vermelha de constrangimento.
– Vejam só como os criados tratam as flores! – ela dis-se apressadamente. Puxou em sua direção um vaso verde com beirada rachada e começou a tirar os pequenos crisântemos,
que colocava sobre a toalha da mesa, arranjando-os minuciosamente lado a lado.
Houve um silêncio.
– Você conheceu Jenkinson, não conheceu, Ambrose? – perguntou Mr. Pepper do outro lado da mesa. – Jenkinson de Peterhouse?
Morreu – disse Mr. Pepper.
Meu Deus! Eu o conheci... faz séculos – disse Ridley.
– Foi o herói daquele acidente de chalana, lembra? Sujeito estranho. Casado com uma moça de uma tabacaria, e morava nos Fens... nunca mais soube dele.
– Bebida,drogas – disse Mr.Pepper com sinistra concisão.
– Deixou um ensaio. Disseram que é uma confusão total. – O homem realmente tinha grandes habilidades – disse Ridley.
– Sua introdução a Jellaby se mantém – prosseguiu Mr. Pepper –, o que é surpreendente, levando-se em conta como os livros-texto mudam. – Havia uma teoria sobre os
planetas, não havia? – perguntou Ridley.
– Sem dúvida ele tinha um parafuso frouxo – disse Mr.Pepper, balançando a cabeça.
A mesa tremeu e uma luz lá fora oscilou. Ao mesmo tempo, uma campainha elétrica começou a tocar, aguda,repetidas vezes.
– Estamos partindo – disse Ridley.
Uma onda leve mas perceptível pareceu rolar debaixo do assoalho; depois baixou; então outra veio, mais perceptível. Luzes deslizaram fora da janela sem cortinas.
O navio deu um uivo alto e melancólico.
– Partimos – disse Mr. Pepper. Outros navios, tão tristes quanto aquele, responderam lá fora, no rio. Podiam-se ouvir nitidamente os gorgolejos e assobios da água,
e o naviobalançava tanto que o camareiro trazendo os pratos teve deequilibrar-se quando puxou a cortina. Houve um silêncio.
– Jenkinson de Cats... você ainda tem contato com ele? – perguntou Ambrose.
– Tanto quanto é possível – disse Mr. Pepper. – Nós nos encontramos todo ano. Este ano ele teve a infelicidade de perder a esposa, o que naturalmente tornou esse
encontro penoso.
– Muito penoso – concordou Ridley.
– Há uma filha solteira que cuida da casa para ele, eu acho, mas nunca é a mesma coisa, não na idade dele.
Os dois cavalheiros ficaram balançando as cabeças sabiamente enquanto descascavam suas maçãs.
– Havia um livro, não havia? – indagou Ridley.
Havia um livro, mas jamais haverá um livro – disse Mr. Pepper com tal ferocidade que as duas damas ergueram os olhos para ele.
Nunca haverá um livro, porque outra pessoa o escreveu por ele – disse Mr. Pepper com bastante azedume. – É o que acontece quando se larga tudo para colecionar fósseis
e escavar arcos normandos em pocilgas.
– Confesso que simpatizo com isso – disse Ridley num suspiro melancólico. – Tenho um fraco por pessoas que não conseguem engrenar direito na vida.
–... O acervo de toda uma vida desperdiçado – prosseguiu Mr. Pepper. – Ele tinha coisas guardadas o bastante para encher um celeiro. – Isso é um vício do qual alguns
de nós escapam – disse Ridley. – Nosso amigo Miles tem outra obra publicada hoje.
Mr. Pepper deu um risinho azedo.
– Segundo meus cálculos – disse –, ele produziu dois volumes e meio por ano, o que, descontando o tempo passado no berço e assim por diante, mostra uma aplicação
louvável.
– Sim, o que o velho Master disse dele concretizou-se direitinho disse Ridley.
– Eles tinham lá seu jeito – disse Mr.Pepper.– Conhece a coleção Bruce? Não para ser publicada, claro. – Acho que não – disse Ridley, significativamente. – Para
um clérigo ele era... notavelmente liberado.
– O Pump em Neville’s Row por exemplo? – perguntou Mr. Pepper.
– Exatamente – disse Ambrose.
Cada uma das damas, segundo a moda do seu sexo,altamente treinada para promover a conversa masculina sem a escutar, podia pensar – sobre a educação de filhos ou
sobre o uso de sirenes de nevoeiro numa ópera – sem se trair. Helen apenas se espantou porque Rachel estava talvez um pouco calada demais para uma anfitriã e poderia
ter ocupado suas mãos com alguma coisa.
Talvez...? – disse ela depois, e ambas se levantaram e saíram, para vaga surpresa dos homens, que ou as julgavam atentas, ou tinham esquecido sua presença.
Ah, a gente podia contar histórias estranhas sobre os velhos tempos – ouviram Ridley dizer enquanto ele mergulhava de novo em sua cadeira. Olhando de relance para
trás, na porta, viram Mr. Pepper, como se tivesse de repente afrouxado suas roupas, tornando-se um velho macaco animado e malicioso.
Enrolando véus na cabeça, as mulheres caminhavam no convés. Agora moviam-se constantemente rio abaixo,passando pelos vultos escuros de navios ancorados, e Londres
era um enxame de luzes com um dossel amarelopálido pousado em cima. Havia as luzes dos grandes teatros, as luzes das ruas compridas, as luzes indicando enormes quadrados
de conforto doméstico, luzes penduradas no ar. Nenhuma escuridão jamais se instalaria sobre esses lampiões assim como nenhuma escuridão se instalara sobre eles em
centenas de anos. Parecia assustador que a cidade devesse arder assim no mesmo ponto, para sempre;assustador pelo menos para pessoas que partiam para uma aventura
no mar, encarando-a como uma colina circunscrita, eternamente acesa, eternamente manchada. Do convés do navio a grande cidade parecia uma figura agachada e covarde,
um avarento sedentário.
Inclinando-se sobre a balaustrada, lado a lado com Rachel, Helen disse:
– Você não vai sentir frio? Rachel respondeu:
Não... Que lindo! – acrescentou um momento depois. Via-se muito pouca coisa: alguns mastros, uma sombra de terra aqui, uma linha de janelas brilhantes ali.Tentaram
enfrentar o vento.
Está soprando... está soprando! – arquejou Rachel, as palavras socadas garganta abaixo. Lutando ao lado dela,Helen subitamente foi dominada pelo espírito de movimento
e avançou contra o vento, as saias enroscando-se em seus joelhos, os dois braços levantados para segurar o cabelo.Mas lentamente aquela embriaguez do movimento foi
cedendo, o vento ficou áspero e frio. Espiaram por uma fendana cortina e viram que longos charutos estavam sendo fumados na sala de jantar; viram Mr. Ambrose lançar-se
violentamente contra o encosto de sua cadeira, enquanto Mr.Pepper enrugava as bochechas como se tivessem sido cortadas em madeira. O fantasma de uma grande risada
veio atéelas e foi imediatamente engolido pelo vento. Na sala seca,de luz amarelada, Mr. Pepper e Mr. Ambrose não se davamconta de nenhum tumulto: estavam em Cambridge,
e provavelmente era pelo ano de 1875.
– São velhos amigos – disse Helen, sorrindo ao vê-los.
Há algum quarto onde a gente possa se sentar? Rachel abriu uma porta.
Antes um patamar do que um quarto – disse ela. Naverdade não tinha nada do caráter fechado e fixo de um aposento em terra. Uma mesa estava presa no centro, cadeiras
encravadas nos lados. Felizmente os sóis tropicaistinham desbotado as tapeçarias num verde-azul pálido, e o espelho com sua moldura de conchas, obra de amor do camareiro
quando o tempo estava pesado nos mares dosul, era antes bizarro do que feio. Conchas enroscadascom bordas vermelhas como chifres de unicórnio ornamentavam o parapeito
da lareira coberto de um veludoroxo do qual pendia um número de borlas. Duas janelasabriam para o convés, e a luz que vinha através delasquando o navio era calcinado
no Amazonas transformara as gravuras na parede oposta, deixando-as com umamarelo vago, de modo que “O Coliseu” pouco se distinguia da Rainha Alexandra brincando
com seus spaniels.Um par de cadeiras de balanço junto da lareira convidava a aquecer as mãos em uma grade de latão; um grandelampião balançava sobre a mesa, a espécie
de lampiãoque é a luz da civilização sobre campos escuros paraquem neles caminha.
– É estranho que todo mundo seja velho amigo de Mr.Pepper – disse Rachel nervosamente, pois a situação era difícil, o aposento frio, e Helen estava curiosamente
calada.
– Você o conhece bem, suponho? – disse a tia.
– É o jeito dele – disse Rachel, encontrando um peixe fossilizado numa tigela e ajeitando-o.
– Acho que você está sendo severa demais – comentou Helen. Rachel tentou imediatamente suavizar o que dissera contra sua convicção.
– Eu não o conheço de verdade – disse e refugiou-se nos fatos, acreditando que pessoas mais velhas gostassem mais deles do que das emoções. Relatou o que sabiasobre
William Pepper. Contou a Helen que ele sempre os visitava nos domingos quando estavam em casa; sabiamuitas coisas: matemática, história, grego, zoologia, economia
e as sagas da Islândia. Traduzira poesia persa em prosa inglesa, e prosa inglesa em iâmbicos gregos; erauma autoridade em moedas e em mais alguma coisa... ahsim,
ela achava que era tráfego de veículos.Ele estava ali para tirar coisas do mar ou escrever sobre o provável curso de Odisseu, pois afinal grego era seu hobby.
– Tenho todos os seus panfletos – disse ela. – Pequenos livrinhos amarelos. – Ela não parecia ter lido nenhum.
– Ele alguma vez se apaixonou? – perguntou Helen, que escolhera uma cadeira.Aquilo atingiu um alvo inesperado.
O coração dele é um sapato velho – declarou Rachel,largando o peixe. Mas quando interrogada, teve de reconhecer que jamais falara isso com ele.
Pois eu vou lhe perguntar – disse Helen. – Da última vez que a vi, você estava comprando um piano. Lembra, o piano, o quarto no sótão, as grandes plantas com espinhos?
Sim, e minhas tias disseram que o piano entraria pelo térreo, mas na idade delas a gente não se importa mais de ser assassinada de noite? – perguntou ela.
Faz pouco tempo tive notícias de tia Bessie – afirmou Helen. – Ela receia que você vá estragar seus braços se insistir em se exercitar tanto ao piano.
Os músculos do antebraço... e aí a gente não consegue arrumar marido?
Ela não pôs a questão dessa maneira – respondeu Mrs. Ambrose.
Ah, não. Claro, ela não faria isso – disse Rachel com um suspiro.
Helen contemplou-a.Seu rosto era antes fraco do que decidido, e só não era insípido por causa dos grandes olhos interrogativos; tendo-lhe sido negada a beleza, agora
que estava abrigada dentro de casa, pela falta de cor e contornos definidos. Mais que isso, uma hesitação ao falar, ou uma tendência a usar as palavras erradas,
faziam com que parecesse mais incompetente do que o normal para sua idade. Mrs. Ambrose, que andara falando coisas casuais, agora refletiu que certamente não esperava
com ansiedade pela intimidade de três ou quatro semanas a bordo do navio. Mulheres de sua idade habitualmente a entediavam, e ela supunha que uma mocinha seria ainda
pior. Lançou mais um olhar a Rachel. Sim! Como estava claro que ela seria vacilante, emotiva, e quando lhe dissessem alguma coisa não faria impressão mais duradoura
do que o golpe de um bastão na água. Não havia nada que se arraigasse em mocinhas – nada sólido, permanente, satisfatório. Willoughby disse três semanas ou quatro?
Ela tentou lembrar.
Mas a essa altura a porta abriu-se e um homem alto e robusto entrou no quarto, avançou e apertou a mão de Helen com uma espécie de cordialidade emocionada. O próprio
Willoughby, pai de Rachel, cunhado de Helen.Como teria sido necessária grande quantidade de carne para torná-lo um homem gordo, pois sua ossatura era muito grande,
não era gordo; seu rosto também era grande, parecendo, pelas feições estreitas e o brilho na face encovada, mais adequado para resistir aos ataques do cli-ma do
que para expressar sentimentos e emoções ou para reagir a emoções alheias.
– É um grande prazer você ter vindo – disse ele – para nós dois. Rachel murmurou alguma coisa obedecendo ao olhar do pai.
– Vamos fazer o que pudermos para que fique confortável. E Ridley também.
– Consideramos uma honra estarmos cuidando dele. Pepper terá alguém para contradizê-lo, coisa que não me atrevo a fazer. Você achou essa criança crescida, hein?
Uma jovem mulher, não?
Ainda segurando a mão de Helen ele passou o braço pelo ombro de Rachel, aproximando as duas desconfortavelmente, mas Helen não olhou.
– Você acha que podemos nos orgulhar dela? – perguntou ele.
– Ah, sim – disse Helen.
– Porque esperamos grandes coisas dela – continuou ele, apertando o braço da filha e soltando-a. – Mas falemos de você agora. – Sentaram-se lado a lado no sofazinho.
– Você deixou as crianças bem? Acho que estão na idade de ir à escola. São parecidas com você ou Ambrose? Tenho certeza de que têm boas cabeças.Helen imediatamente
iluminou-se mais e explicou que seu filho tinha seis anos e a filha dez.Todo mundo dizia que seu menino era parecido com ela, e a menina, com Ridley.Quanto à cabeça,
segundo ela, eram crianças atiladas, e modestamente contou uma pequena história sobre o filho de como, sozinho por um minuto ele pegou uma bolinha de manteiga entre
os dedos, correu pela sala e a jogou no fogo –apenas pela brincadeira, sentimento que ela podia entender.
– E você teve de mostrar ao molequezinho que essas coisas não se fazem, hein?
Uma criança de seis anos? Acho que não é importante.
Eu sou um pai antiquado.
Bobagem, Willoughby; Rachel sabe melhor disso.
Por mais que Willoughby certamente tivesse gostado de ser elogiado pela filha, ela não o fez; seus olhos nada espelhavam, como água, seus dedos ainda brincavam com
o peixe fossilizado, sua mente ausente. Os mais velhos continuaram falando sobre arranjos para maior conforto de Ridley – uma mesa posta onde ele não deixaria de
ver o mar, longe das caldeiras, e ao mesmo tempo protegida de gente passando. A não ser que transformasse isso em férias, com os livros todos em malas, ele jamais
teria férias; pois em Santa Marina, Helen sabia por experiência que ele trabalharia o dia todo; disse que as caixas dele estavam lotadas de livros.
Deixe isso comigo... deixe isso comigo! – disse Willoughby, obviamente pretendendo fazer bem mais do que ela lhe pedia. Mas escutaram Ridley e Mr. Pepper mexendo
na porta.
Como vai, Vinrace? – disse Ridley, estendendo uma mão sem energia ao entrar, como se o encontro fosse melancólico para os dois, porém mais para ele.
Willoughby preservou sua cordialidade, temperada por respeito. No momento não disseram nada.
– Espiamos e vimos vocês dois rindo – comentou Helen.
Mr. Pepper acaba de contar uma história excelente.
Psst. Nenhuma das histórias foi boa – disse o marido, mal-humorado.
– Ainda um juiz severo, Ridley? – perguntou Mr.Vinrace.– Nós as entediamos tanto que vocês foram embora –
disse Ridley, falando diretamente a sua esposa.Como era verdade, Helen não tentou negar, e comentou:
– Mas não melhoraram nada depois que saímos – um comentário desastrado, porque seu marido agora respondeu abaixando os ombros:
– Pioraram, se é que era possível.
Agora a situação era de grande desconforto para todos, o que se viu pelo longo intervalo de silêncio e constrangimento. Mr. Pepper na verdade criou uma distração
saltando em sua cadeira, os dois pés encolhidos debaixo do corpo,como uma solteirona vendo um camundongo, quando acorrente de ar atingiu seus tornozelos. Encolhido
ali em cima, pitando seu charuto, braços ao redor dos joelhos, eleparecia a imagem de Buda, e lá de cima começou um discurso endereçado a ninguém, pois ninguém o
pedira, a respeito das profundezas inexploradas do oceano. Declarouse surpreso ao saber que embora Mr. Vinrace possuísse dez navios, circulando regularmente entre
Londres e BuenosAires, nenhum deles se destinava a investigar os grandesmonstros brancos das águas mais profundas.
– Não, não – riu Willoughby –, bastam-me os mons
tros da terra! Ouviram um suspiro de Rachel:
– Pobres cabritinhas!
– Se não fossem as cabras não haveria música, querida;a música depende das cabras – disse o pai dela com certa aspereza, e Mr. Pepper passou a descrever os monstros
brancos, cegos e pelados, deitados encolhidos em bancos de areia no fundo do mar, que explodiriam trazidos à tona,os flancos estourando e espalhando entranhas no
vento quando aliviados da pressão, com considerável rigor e tal conhecimento que Ridley ficou repugnado e implorou que parasse.
Helen tirou conclusões de tudo isso, bastante lúgubres.Pepper era um chato; Rachel era uma mocinha rude, prolífica em confidências, e a primeira delas seria: “Sabe,
eu não me dou bem com meu pai”. Willoughby, como sempre, amava seu negócio e construía seu império, e entre todos eles ela se entediaria consideravelmente. Sendo
mulher de ação, porém, levantou-se e disse que iria para a cama. Na porta, olhou para trás instintivamente para Rachel, esperando que, sendo do mesmo sexo, saíssem
juntas da sala. Rachel levantou-se, olhou vagamente o rosto de Helen e comentou com seu leve gaguejar:
– Vou sair para t-t-triunfar no vento.
As piores suspeitas de Mrs. Ambrose se confirmaram;ela desceu pelo corredor balançando de um lado para outro e, apoiando-se na parede branca, ora com o braço direito,
ora com o esquerdo, a cada balanço exclamava enfaticamente:
-Droga!
2
Por mais desconfortável que a noite pudesse ter sido,com seu movimento balouçante e seus cheiros de maresia, e para um deles sem dúvida o foi porque Mr. Pepper tinha
pouca roupa sobre sua cama, o café da manhã seguinte teve uma espécie de beleza. A viagem começara, e começara feliz com um céu azul suave e um mar calmo. A sensação
de recursos ociosos de coisas não ditas tornou a hora importante, de modo que em anos futuros toda a jornada talvez fosse representada por essa única cena, com o
som de sirenes uivando no rio na noite anterior, de alguma forma misturado nela.
A mesa tinha aparência alegre com maçãs, pão e ovos.Helen passou a manteiga a Willoughby, e quando fezisso olhou-o e refletiu, “E ela se casou com você, e acho que
foi feliz”.
Prosseguiu numa cadeia de pensamentos familiares, levando a toda sorte de reflexões bem conhecidas, desde o antigo espanto, por que Theresa se casara com Willoughby?
“Naturalmente a gente vê isso”, pensou ela, referindose ao fato de que se via que ele era grande e robusto, com uma grande e sonora voz e um punho e uma vontade
própria: “mas ...” aqui ela entrou numa bela análise dele, que é bem representada com uma palavra, “sentimental”, no sentido de que ele nunca era simples e honesto
quanto aos seus sentimentos. Por exemplo, raramente falava na morta, mas comemorava os aniversários com singular pompa. Ela suspeitava de que ele fosse capaz de
inomináveis atrocidades com sua filha, como sempre suspeitara que ele enganasse a esposa. Naturalmente passou a comparar sua própria sorte com a sorte de sua amiga,
pois a esposa de Willoughby fora talvez a única mulher que Helen chamou de amiga, e essa comparação muitas vezes era o tema de seus diálogos. Ridley era um intelectual,
e Willoughby, um homem de negócios. Ridley estava editando o terceiro volume de Píndaro quando Willoughby lançava ao mar seu primeiro navio. Construíram uma nova
fábrica no mesmo ano em que o ensaio sobre Aristóteles – fora esse mesmo? – aparecia na Editora da Universidade. “E Rachel”, ela a encarou, querendo sem dúvida decidir
a discussão que de resto estava equilibrada demais, declarando que não se podia comparar Rachel com seus próprios filhos.
“Na verdade ela poderia ter seis anos de idade”foi tudo
o que disse, porém, referindo-se, nesse julgamento, ao contorno suave do rosto da moça, sem condená-la de outro modo, pois se Rachel fosse pensar, sentir, rir ou
expressar-se, em vez de derramar leite do alto para ver que tipo de gotas produzia, poderia ser interessante, embora nunca bela. Era como sua mãe, como a imagem
na piscina num calmo dia de verão é parecida com a vívida face corada que se inclina sobre ela.
Entretanto, a própria Helen estava sendo examinada,embora por nenhuma de suas vítimas. Mr. Pepper a analisava; e suas meditações, realizadas enquanto cortava sua
torrada em tiras e as cobria escrupulosamente de manteiga, levaram-no por um considerável trajeto de autobiografia. Um de seus olhares penetrantes assegurou-lhe
que estava certo na noite passada ao julgar que Helen era linda. Passou-lhe a geléia docemente. Ela falava bobagens,mas não mais do que as pessoas costumam falar
no café da manhã, a circulação do cérebro, como ele sabia por experiência própria, podia causar problemas nessa hora. Ele prosseguiu dizendo “não” para ela, por
princípio, pois jamais cedia a uma mulher apenas pelo seu sexo. E aqui,baixando os olhos para seu prato, ele se tornou autobiográfico. Não se casara, pelo motivo
suficiente de que jamais encontrara uma mulher que lhe suscitasse respeito.Condenado a passar os sensíveis anos da juventude numa estação ferroviária em Bombaim,
ele vira só mulheres de cor, esposas de militares, de funcionários do governo. E seu ideal era uma mulher que soubesse ler grego, senão persa, tivesse um rosto irrepreensivelmente
claro e fosse capaz de entender as pequenas coisas que ele soltasse ao despir-se. Ele contraíra hábitos dos quais não tinha a me-nor vergonha. Passava alguns estranhos
momentos todo dia decorando coisas: nunca pegava um bilhete sem anotar o número; devotava janeiro a Petrônio, fevereiro a Catulo,março talvez aos vasos etruscos;de
qualquer modo fizera um bom trabalho na Índia, e não havia do que se arrepender em sua vida, exceto dos defeitos fundamentais de que nenhum homem sábio se arrepende,
quando o presente ainda lhe pertence. Concluindo assim, ele de repente ergueu os olhos e sorriu. Rachel viu seu olhar.
“E agora,suponho,você mastigou algo 37 vezes?”pensou ela, mas disse alto, educadamente:
– Suas pernas continuam incomodando hoje,Mr.Pepper?
Meus ombros? – perguntou ele movendo-os doloridamente. – Que eu saiba a beleza não age sobre ácido úrico – ele suspirou contemplando a vidraça redonda em frente,
através da qual céu e mar se exibiam, azuis. Ao mesmo tempo, tirou do bolso um pequeno volume de pergaminho e colocou-o sobre a mesa. Como ficasse claro que esperava
comentário, Helen lhe perguntou o nome.Conseguiu-o; mas também conseguiu uma digressão sobre o método certo de construir estradas. Começando com os gregos, que disse
ele, tiveram muitas dificuldades,prosseguiu com os romanos, passou para a Inglaterra e o método certo, que rapidamente se tornara método errado e passou a denunciar
com tamanha fúria os construtores de estradas do presente em geral e os do Richmond Park em particular, onde Mr. Pepper tinha o hábito de andar de bicicleta toda
manhã antes do café, que as colheres literalmente tilintaram contra as xícaras de café, e os miolos de pelo menos quatro pãezinhos empilharam-se num montinho ao
lado do prato de Mr. Pepper.
Seixos – concluiu ele colocando viciosamente sobre o montinho outra bolinha de pão. – As estradas da Inglaterra são remendadas com seixos! Eu lhes disse: com a primeira
chuva forte sua estrada vai virar um charco! Minhas palavras foram comprovadas todas as vezes. Mas acha que eles me escutam quando lhes digo isso, quando aponto
as conseqüências para o bolso público, quando recomendo que leiam Corifeu? Nada. Eles têm outros interesses. Não, Mrs. Ambrose, a senhora não terá opinião justa
sobre a estupidez humana enquanto não se sentar num Conselho Borough! – O homenzinho fitou-a com um olhar de energia feroz.
– Eu tive empregadas – disse Mrs. Ambrose, concentrando seu olhar. – Agora mesmo tenho uma babá. É uma boa mulher, do jeito dela, mas está decidida a fazer minhas
crianças rezarem. Até aqui, devido a grande cuidado de minha parte, elas pensam em Deus como uma espécie de vaca marinha; mas agora que virei as costas... Ridley
– exigiu ela girando para enfrentar o marido –,o que vamos fazer se as encontrarmos rezando o Pai Nosso quando chegarmos outra vez em casa?
Ridley fez um som que se pode representar como “tch”.
Mas Willoughby, cujo desconforto enquanto escutava se manifestava por um leve movimento de embalo do corpo, disse desajeitadamente:
Ora, Helen, um pouco de religião certamente não faz mal a ninguém.
Eu preferia que meus filhos mentissem – respondeu elae, enquanto Willoughby refletia que sua cunhada era aindamais excêntrica do que ele tinha lembrado, empurrou
a cadeira para trás e subiu impetuosamente as escadas. Num segundo ouviram-na chamar: – Olhem, olhem! Estamos em alto mar!
Seguiram-na para o convés. Toda a fumaça e as casas tinham desaparecido, e o navio estava num vasto espaço de mar,muito fresco e claro,embora pálido na luz da manhã.
Tinham deixado Londres instalada na sua lama. Uma tênue linha de sombra estreitava-se no horizonte, mal tinha densidade suficiente para suportar a carga de Paris,
que mesmo assim pousava sobre ela. Estavam livres de estradas, livres da raça humana, e a mesma euforia de liberdade percorreu todos eles. O navio abria caminho
firmemente através de pequenas ondas que chapinhavam contra ele e depois chiavam como água efervescente, deixando uma pequena borda de bolhas e espuma nos dois lados.
O incolor céu de outubro tinha nuvens finas como a linha de fumaça de um incêndio de floresta, e o ar era maravilhosamente salgado e fresco. Na verdade estava frio
demais para ficarem quietos ali parados.Mrs.Ambrose enfiou o braço no do marido, e quando se afastavam podia-se ver pelo jeito como seu rosto se erguia para o dele
que ela tinha algo particular a comunicar. Andaram al-guns passos e Rachel viu que se beijavam.
Ela baixou os olhos para a profundeza do mar, que estava levemente perturbado na superfície pela passagem do Euphrosyne, mas por baixo era verde e penumbroso, e
ficava mais e mais penumbroso até que a areia no fundo parecesse só uma mancha pálida e difusa. Quase não se viam as balizas pretas dos navios naufragados,ou as
torres em espiral feitas pelas grandes enguias cavando suas tocas ou os monstros lisos de flancos verdes que passavam vi-rando-se rápidos para um lado e outro.
– E, Rachel, se alguém procurar por mim, estou ocupado até a uma – disse o pai dela, reforçando suas palavras como freqüentemente fazia quando falava com a filha,dando-lhe
um tapinha nos ombros.
– Até a uma – repetiu ele. – E você vai encontrar alguma ocupação, hein? Treinar escalas no piano, francês, um pouco de alemão, hein? Há Mr. Pepper que sabe mais
sobre verbos separáveis do que qualquer homem na Europa,hein? – e ele continuou rindo. Rachel também riu, como sempre ria sem achar graça, mas porque admirava o
pai.Mas quando estava se virando, talvez pensando encontrar alguma ocupação, foi interceptada por uma mulher tão grande e gorda que era inevitável ser interceptada
por ela. O discreto jeito hesitante com que se movia, com seu vestido preto sóbrio, mostrava que pertencia a uma classe mais baixa; mesmo assim, assumiu uma postura
de rocha,olhando em torno para ver se não havia gente fina perto dali antes de dar sua mensagem, que se referia ao estado dos lençóis e era da maior gravidade.
– Não sei realmente como vamos agüentar esta via-gem, Miss Rachel, realmente não sei – começou ela sacudindo a cabeça. – Só há lençóis suficientes para uma vez,e
o do patrão tem um lugar puído onde a gente poderia enfiar o dedo. E os cobertores, a senhora notou os cobertores? Pensei cá comigo mesma que uma pessoa pobre teria
vergonha deles. Aquele que dei a Mr. Pepper nem serviria para cobrir um cachorro... Não, Miss Rachel, eles não poderiam ser remendados; só servem para proteger os
móveis. Mesmo que a gente costurasse até os ossos dos dedos ficarem à mostra, na primeira vez que fossem lavados todo o trabalho seria desmanchado outra vez.
Sua voz estava tremendo de indignação como se estivesse à beira das lágrimas.
Não havia nada a fazer senão descer e inspecionar uma grande pilha de roupas de cama colocada sobre uma mesa.Mrs. Chailey lidava com os lençóis como se conhecesse
cada um deles por nome, caráter e constituição. Alguns tinham manchas amarelas, outros, lugares onde os fios estavam esgarçados; mas para o olho comum pareciam como
geralmente se parecem lençóis, muito frios, brancos e irrepreensivelmente limpos.
De repente, Mrs. Chailey, mudando do assunto dos lençóis e tirando-os totalmente do pensamento, fechou os punhos em cima deles e proclamou:
– E não se poderia pedir a nenhuma criatura viva que ficasse onde eu fico!
Queriam que Mrs. Chailey ficasse numa cabine suficientemente grande, mas perto demais das caldeiras, de modoque depois de cinco minutos podia ouvir seu coração “disparando”,
queixou-se, colocando as mãos em cima dele, compondo um estado de coisas que Mrs.Vinrace,mãe de Rachel,jamais teria sequer sonhado em causar – Mrs. Vinrace, queconhecia
cada lençol de sua casa e esperava de cada um omelhor que pudesse fazer, mas não mais que isso.
Era a coisa mais fácil do mundo conseguir outro aposento, e o problema dos lençóis resolvia-se por si ao mesmo tempo, miraculosamente, uma vez que manchas e puídos
podiam ser reparados, mas...
– Mentiras! Mentiras! Mentiras! – exclamou a criada indignada correndo para o convés. – De que adianta me dizer mentiras?
Com raiva porque uma mulher de 50 anos se portava como uma criança e chorando procurava uma mocinha porque queria ficar onde não tinha licença para ficar, ela não
pensou naquele caso particular e, pegando seu caderno de música, logo esqueceu tudo sobre a velha e seus lençóis.
Mrs. Chailey dobrava os lençóis, mas sua expressão denunciava seu abatimento interior.O mundo já não se importava com ela, e um navio não era um lar. Quando se acenderam
os lampiões ontem e os marinheiros despencaram sobresua cabeça, ela chorou; choraria esta noite também; choraria amanhã. Aquilo não era um lar. Enquanto isso ela
arranjavaos enfeites daquele quarto que conseguira facilmente demais.Eram estranhos enfeites para se trazer numa viagem marítima – cachorrinhos de porcelana, jogos
de chá em miniatura,xícaras ostensivamente estranhas com o brasão da cidade de Bristol, caixas de grampos de cabelo cobertas de trevos, cabeças de antílopes em gesso
colorido, além de uma infinidade de minúsculas fotografias, representando trabalhadorescom seus trajes de domingo e mulheres segurando bebêsbranquinhos. Mas havia
um retrato numa moldura dourada,para a qual se precisava de um prego, e antes de procurá-loMrs. Chailey botou seus óculos e leu o que estava escritonum bilhete no
verso.
“Este retrato de sua patroa foi dado a Emma Chailey por Willoughby Vinrace em gratidão por 30 anos de devotado serviço.”
Lágrimas obliteraram as palavras e a cabeça do prego.
– Desde que eu possa fazer alguma coisa pela sua família – dizia ela batendo o prego na moldura, quando uma voz chamou melodiosamente no corredor:
– Mrs. Chailey! Mrs. Chailey! Chailey imediatamente recompôs seu vestido, ajeitou o rosto e abriu a porta.
Estou em apuros – disse Mrs. Ambrose, corada e ofegante. – A senhora sabe como são os homens. As cadeiras altas demais... mesas baixas demais... a 15 centímetros
entre o chão e a porta. O que eu quero é um martelo,um acolchoado velho, e a senhora tem algo parecido com uma mesa de cozinha? Seja como for, entre nós – ela abriu
a porta do aposento de seu marido e revelou Ridley caminhando de um lado para outro, testa enrugada, colarinho do casaco erguido.
Parece que se empenharam em me atormentar! – gritou ele e parou abruptamente. – Será que vim a esta via-gem para pegar reumatismo ou pneumonia? Realmenteera de se
imaginar que Vinrace tivesse mais bom senso.Minha querida – Helen estava ajoelhada sob uma mesa –você está apenas estragando sua roupa, e seria muito melhor reconhecermos
que estamos condenados a seis semanas de indizível desgraça. Vir já foi uma loucura completa,mas agora que estamos aqui acho que posso enfrentartudo como homem.
Minhas enfermidades naturalmente vão piorar... já me sinto pior que ontem, mas devemos issoapenas a nós mesmos, e por sorte as crianças...
Saia! Saia! Saia! – gritou Helen enxotando-o de um canto para o outro com uma cadeira, como se ele fosse uma galinha extraviada. Saia do caminho, Ridley, e em meia
hora você vai encontrar tudo pronto.
Ela o botou para fora do quarto e ele foi pelo corredor gemendo e praguejando.
Atrevo-me a dizer que ele não é muito forte – disse Mrs. Chailey, olhando compassivamente para Mrs. Ambrose, enquanto a ajudava a empurrar e carregar.
São livros – suspirou Helen, erguendo uma braçada de volumes tristes do chão até a prateleira. – Grego da manhã à noite.Se Miss Rachel algum dia se casar,Chailey,reze
para que se case com um analfabeto.
Depois de superados, de alguma forma, os desconfortos e dificuldades preliminares que geralmente tornam os primeiros dias de uma viagem marítima tão sem alegria
e desgastantes, os dias seguintes foram razoavelmente agradáveis. Outubro já ia avançado, mas constantemente queimando com um calor que fazia os primeiros meses
de verão parecerem doces e suaves. Grandes parcelas de terra agora jaziam sob o sol de outono, e toda a Inglaterra, dos charcos nus aos penhascos da Cornualha, acendia-se
do amanhecer ao pôr-do-sol, mostrando faixas de amarelo,verde e roxo. Debaixo dessa luz, até os telhados das grandes cidades brilhavam. Em milhares de pequenos jardins,milhões
de flores vermelho-escuras floresciam até que as velhinhas que cuidavam tanto delas viessem com suas tesouras, cortassem seus caules suculentos, e as depositassem
em frias pedras na igreja da aldeia.Inumeráveis grupos de pessoas fazendo piquenique, voltando para casa ao anoitecer, gritavam:
– Já houve um dia como este?
É você – sussurravam os moços.
Ah, é você – respondiam as moças.
E todos os velhos e muitos enfermos eram levados, ainda que só um pouco, para o ar livre e prognosticavam coisas agradáveis sobre o curso do mundo. Quanto às confidências
e expressões de amor que se ouviam, não só nos milharais, mas em quartos iluminados onde as janelas se abriam para jardins e homens com charuto beijavam mulheres
de cabelos grisalhos, eram impossíveis de con-tar. Alguns diziam que o céu era um emblema da vida que tinham tido juntos; outros, que era a promessa da vida que
ainda teriam. Pássaros de caudas longas batiam bicos e gritavam e voavam de bosque em bosque, olhos dourados em sua plumagem.
Mas enquanto tudo isso acontecia em terra, muito poucas pessoas pensavam no mar. Achavam natural que o marestivesse calmo; e não havia necessidade, como acontece
em muitas casas quando a trepadeira bate nas janelas do quartode dormir, de que os casais desmanchassem antes de se beijar,“Pense nos navios esta noite”ou “Graças
a Deus,não sou o faroleiro!” Pois imaginavam que ao desaparecer no horizonte os navios se desmanchassem como neve na água. Avisão dos adultos na verdade não era
muito mais clara do quea das pequenas criaturas em calções de banho avançando naespuma ao longo das costas da Inglaterra, tirando água embaldes. Viam alvas velas
ou tufos de fumaça passarem pelohorizonte, e se dissessem que eram trombas d’água ou pétalas de brancas flores do mar, teriam concordado.
Mas as pessoas nos navios tinham uma visão igualmente singular da Inglaterra. Não apenas ela lhes parecia uma ilha, e muito pequena, mas uma ilha que encolhia, na
qual havia pessoas aprisionadas. Primeiro a gente as imaginava correndo por ali como formigas sem objetivo, qua-se empurrando umas às outras sobre a margem; e depois,quando
o navio se afastava, a gente as imaginava fazendo um alarido vão, que, por não ser ouvido, cessava ou se transformava numa gritaria. Finalmente, quando não se via
mais o navio da terra, ficava claro que as pessoas da Inglaterra eram totalmente mudas. A enfermidade atacava outras partes da Terra; a Europa encolhia, a Ásia encolhia,
a África encolhia, a Ámérica encolhia, até parecer duvidoso que um navio jamais voltasse a topar com qualquer uma dessas pequenas rochas enrugadas. Mas por outro
lado, uma imensa dignidade baixara sobre o navio: ele era habitante do grande mundo, que tem tão poucos moradores, viajando o dia todo pelo universo vazio, com véus
baixados adiante e atrás. Era mais solitário do que uma caravana atravessando o deserto; era infinitamente mais misterioso movendo-se por seu próprio poder e sustentado
por suas próprias fontes. O mar poderia lhe dar morte ou alguma alegria sem igual, e ninguém saberia de nada.O navio era uma noiva avançando para seu marido, uma
virgem desconhecida dos homens; no seu vigor e pureza podia ser comparado a todas as coisas belas, pois como navio tinha uma vida própria.
Na verdade se não tivessem sido abençoados pelo tempo, um dia azul seguido de outro, calmo, perfeito, imaculado, Mrs. Ambrose teria achado tudo muito desinteressante.
Mas mandara instalar seu bastidor no convés, com uma mesinha ao lado onde jazia aberto um livro preto de filosofia. Ela escolhia um fio do novelo de várias cores
que havia em seu colo e bordava vermelho na casca de uma árvore, ou amarelo na torrente de um rio. Estava num grande desenho de um rio tropical correndo através
de uma floresta tropical, onde veados malhados pastavam sobre montes de frutas, bananas, laranjas e romãs gigantescas, enquanto uma tropa de nativos nus lançavam
setas no ar. Entre os pontos ela olhava para o lado e lia uma frase sobre a Realidade da Matéria ou a Natureza de Deus. Ao seu redor, homens em malhas azuis ajoelhavamse
esfregando as tábuas, ou assobiavam debruçados na amurada, e perto dali Mr. Pepper cortava raízes com um canivete. Os demais estavam ocupados em outras partes do
navio: Ridley com seu grego – nunca encontrara alojamentos mais do seu agrado; Willoughby com seus documentos, pois usava as viagens para colocar em dia os seus
negócios; e Rachel – Helen, entre suas frases de filosofia,às vezes imaginava o que Rachel estaria fazendo. Pensava vagamente em ir ver. Mal tinham falado duas palavras
desde aquela primeira noite; eram educadas quando se encontravam, mas não houvera confidência de qualquer espécie. Rachel parecia dar-se muito bem com seu pai –
muito melhor, pensou Helen, do que deveria – e estava tão disposto a não incomodar Helen quanto Helen estava a não importuná-la.
Nesse momento Rachel estava sentada em seu quarto sem fazer absolutamente nada. Quando o navio estava cheio, aquele aposento recebia um título magnificente e era
o refúgio de senhoras idosas com enjôo de mar, que deixavam o convés para os jovens. Devido ao piano e a uma confusão de livros no chão, Rachel o considerava seu
quarto, e lá se sentava horas a fio tocando músicas muito difíceis, lendo um pouco de alemão ou um pouco de inglês quando tinha vontade, ou – como naquele momento
– não fazendo absolutamente nada.
A forma pela qual fora educada, aliada a uma refinada indolência natural, eram causa parcial disso, pois fora educada como a maioria das moças ricas na última parte
do século XIX. Doutores amáveis e velhos professores gentis ensinaram-lhe os rudimentos sobre cerca de dez diferentes ramos de conhecimento, mas logo a forçavam
a passar um trecho de trabalho enfadonho tão escrupulosamente como lhe teriam dito que suas mãos estavam sujas.Uma ou duas horas por semana passavam muito agradavelmente,
em parte devido às outras alunas, em parte porque a janela dava para os fundos de uma loja onde apareciam vultos diante das janelas vermelhas no inverno, em parte
devido aos acidentes que acontecem quando há mais de duas pessoas juntas no mesmo aposento. Mas não havia tema no mundo que ela conhecesse bem. Sua mente era como
a de um homem inteligente no começo do reinado da Rainha Elizabeth; ela acreditava praticamente em tudo que lhe contassem, inventava razões para qualquer coisa que
diziam. A forma da terra, a história do mundo, como funcionavam os trens ou como se investia dinheiro, que leis vigoravam, que pessoas queriam o quê,e por que o
queriam, a mais elementar idéia de um sistema de vida moderna – nada disso lhe fora imposto por nenhum de seus professores ou preceptoras. Mas esse sistema de educação
tinha uma grande vantagem. Não ensinava nada, mas não punha obstáculo a qualquer dos reais talentos que a aluna eventualmente tivesse. Rachel, sendo musical, só
podia aprender música; tornou-se fanática por música. Todas as energias que poderiam ter ido para as línguas, a ciência ou a literatura, que poderiam ter-lhe rendido
amigos ou ter-lhe mostrado o mundo, canalizavam-se na música. Julgando seus mestres inadequados,ela praticamente instruíra a si mesma. Na idade de 24 sabia tanto
sobre música quanto a maioria das pessoas aos 30, e podia tocar tão bem quanto a natureza lhe permitia, o que, como se tornava cada dia mais óbvio, era realmente
uma permissão generosa. Se esse talento inquestionável era rodeado de sonhos e idéias das mais extravagantes e tolas, isso ninguém sabia.
Sendo sua educação assim, normal, suas circunstâncias também não eram incomuns. Era filha única e nunca fora provocada ou zombada por irmãos ou irmãs.Tendo sua mãemorrido
quando ela tinha 11, duas tias, irmãs de seu pai, tinham-na criado, e por causa do ar puro viviam numa casaconfortável em Richmond. Ela naturalmente foi criada com
excessivo cuidado: quando criança, pela sua saúde; como moça e jovem mulher, por causa do que pareceria quasegrosseiro chamar de sua moral. Até recentemente ignoravatotalmente
que uma coisa dessas existia para mulheres.Procurava o conhecimento em velhos livros, e o encontrava em densos volumes repulsivos, mas por natureza não se importava
com livros, de modo que jamais seu coração se perturbou com a censura exercida primeiro por suas tias, maistarde por seu pai. Amigas poderiam ter-lhe contado coisas,mas
ela tinha poucos amigos de sua idade – era terrível chegar a Richmond – e a única mocinha que conhecia era umafanática religiosa, que no fervor da intimidade falava
em Deus e nas melhores maneiras de assumir a própria cruz,assunto só de vez em quando interessante para alguém cujamente atingisse outros estágios em outras épocas.
Mas, deitada em sua cadeira, uma das mãos atrás da cabeça, a outra pegando o braço da cadeira, concentrava -se em seus pensamentos. Sua educação lhe deixava muito
tempo para pensar. Seus olhos fixavam-se numa bola na amurada do navio, de tal modo que ela teria se sobressaltado e se aborrecido caso alguma coisa a ocultasse
por um segundo sequer. Começava sua meditação com uma risada alta, causada pela seguinte tradução do Tristão:
Tremulamente encolhendo
Sua vergonha parece esconder-se
Enquanto ele aproxima do rei
A noiva rígida como uma morta.
Parece tão obscuro o que estou dizendo?
Ela gritou que parecia e jogou o livro no chão. Depois pegou o Cartas de Cowper, clássico prescrito por seu pai e que a entediara, de modo que numa frase dizendo
algo sobre o cheiro de giestas no jardim, ela acabara vendo o pequeno saguão lotado de flores em Richmond no dia do enterro de sua mãe, com cheiro tão intenso que
agora qualquer aroma de flor trazia de volta aquela sensação nauseante e horrível; e assim, de uma cena ela, meio ouvindo,meio vendo,passou a outra.Viu sua tia Lucy
arranjando as flores na sala de estar:
– Tia Lucy – disse –, não gosto do cheiro de giestas,me lembra funerais.
– Bobagem, Rachel – respondeu tia Lucy –, não diga coisas tão bobas, querida. Eu acho que é uma flor particularmente alegre.Deitada no sol quente,seu pensamento
estava fixo na personalidade de suas tias, seus pontos de vista, a maneira como viviam. Na verdade esse tema perdurava em suas centenas depasseios matinais em torno
do Richmond Park, obliterandoas árvores, as pessoas e os veadinhos. Por que faziam as coisasque faziam, e o que sentiam, e do que se tratava tudo aquilo,afinal?
Ouviu novamente tia Lucy falar com tia Eleanor. Elatirara aquela manhã para cuidar do caráter de uma criada:
– E naturalmente, a gente espera que às dez e meia da manhã a criada esteja escovando a escada.
Que estranho! Que indizivelmente estranho! Mas não conseguiu explicar para si mesma por que de repente, enquanto sua tia falava, todo o sistema em que viviam tinha
parecido a seus olhos algo pouco familiar, inexplicável, e elas mesmas como cadeiras ou guarda-chuvas largados aqui e ali sem nenhum motivo. E só pôde dizer, com
uma leve gagueira:
V-v-você gosta da tia Eleanor, tia Lucy? E sua tia respondeu com aquela risadinha cacarejante:
Mas minha querida criança, que perguntas você faz!
Gosta muito? Quanto? – insistiu Rachel.
Acho que nunca pensei “quanto” – disse Miss Vinrace.
– Se a gente gosta, não pensa em “quanto”, Rachel – o que se destinava à sobrinha,que jamais se “aproximara”de suas tias tão cordialmente quanto elas desejavam.
– Mas você sabe que gosto de você, não sabe, querida,porque você é filha de sua mãe, se não por outros motivos,há muitos outros motivos – e abaixou-se e beijou Rachel
com alguma emoção, e a discussão se desfez no ambiente como um jarro de leite derramado.
Assim Rachel atingiu aquele estágio de pensamento,se é que se pode chamar isso de pensar, em que os olhosse concentram numa bola ou maçaneta, e os lábios jánão se
movem mais. Seus esforços para compreenderapenas tinham magoado sua tia, e a conclusão era queseria melhor não tentar. Sentir qualquer coisa intensamente era criar
um abismo entre si mesma e outros, quesentem intensa mas talvez diferentemente. Era bem melhor tocar piano e esquecer o resto. Sua conclusão foimuito bem-vinda.
Deixar aqueles homens e mulheresesquisitos – suas tias, os Hunt, Ridley, Helen, Mr. Peppere o resto – serem símbolos, informes mas dignos símbolos da idade, da juventude,
da maternidade, da erudição,e belos como muitas vezes são belas as pessoas num palco. Era como se ninguém jamais dissesse algo que realmente fosse sincero, ou jamais
falasse de uma emoçãoque sentia, mas para isso existia a música. Com a realidade residindo no que se via ou se sentia, mas não secomentava, era possível aceitar
um sistema em que ascoisas giravam e giravam de modo bastante satisfatóriopara outras pessoas, sem se perturbar em pensar sobreelas com freqüência, exceto como algo
superficialmenteestranho. Absorvida por sua música, ela aceitava seudestino com bastante complacência, indignando-se,quem sabe, uma vez a cada 15 dias, e depois
aquietandose como se aquietava agora. Inexplicavelmente imersanuma confusão onírica, sua mente parecia entrar em comunhão, que se expandia deliciosamente, com o
espírito dos quadros esbranquiçados no convés, com o espíritodo mar, com o espírito do Opus 111 de Beethoven, e atécom o espírito do pobre William Cowper lá em Olney.Como
uma bola de penugem de cardo, sua mente beijava o mar, erguia-se, beijava-o de novo, e assim, erguendo-se e beijando, finalmente perdia-se de vista. O subire descer
da bola de penugem era representado por umasúbita inclinação de sua própria cabeça para diante, equando se perdeu de vista ela adormeceu.
Dez minutos depois Mrs. Ambrose abriu a porta e encarou-a. Não a surpreendeu descobrir que assim Rachel passava suas manhãs. Olhou em torno do aposento, para
o piano, os livros, a confusão geral. Em primeiro lugar,analisou Rachel esteticamente; deitada ali, desprotegida,ela parecia uma vítima que caíra das garras de uma
ave de rapina, mas encarada como mulher, uma jovem de 24 anos, dava motivo a reflexões. Mrs. Ambrose ficou parada ali pensando pelo menos dois minutos. Então sorriu,
vi-rou-se sem fazer ruído e afastou-se para que a adormecida não despertasse e não houvesse entre as duas o constrangimento de um diálogo.
3
Cedo na manhã seguinte houve rumor de correntes arrastadas na parte de cima;o coração firme do Euphrosyne lentamente cessou de pulsar; e Helen, metendo o nariz sobre
o convés, viu um castelo imóvel sobre uma colina imóvel.Tinham lançado âncora na embocadura do Tejo e,em vez de se quebrarem sempre novas ondas, as mesmas ondas
ficavam voltando e lavando novamente os flancos do navio.
Assim que tomou o café da manhã, Willoughby desapareceu pela lateral do navio carregando uma maleta de couro castanho, gritando sobre o ombro que todo mundo devia
se controlar e se comportar porque ele iria ficar em Lisboa fazendo negócios até as cinco da tarde.
E por essa hora ele reapareceu carregando sua maleta,dizendo-se cansado,aborrecido,faminto,sedento,com frio e precisando do seu chá imediatamente. Esfregando asmãos,
ele lhes contou as aventuras do dia: como encontrara o pobre velho Jackson penteando o seu bigode diante doespelho no escritório, sem o aguardar, e fizera-o trabalharnaquela
manhã como raramente acontecia; depois o convidara para um almoço com champanhe e hortelãs; fizerauma visita a Mrs. Jackson, mais gorda que nunca a pobre mulher,
que ainda perguntara bondosamente por Rachel –e ah, meu Deus, o pequeno Jackson confessara que cometera uma fraqueza confusa – bom, bom, segundo ele nãohouve nenhum
prejuízo, mas de que adiantava dar ordensse eram imediatamente desobedecidas? Ele dissera claramente que não aceitaria passageiros nessa viagem. Aí começou a procurar
em seus bolsos e acabou descobrindo umcartão, que botou na mesa diante de Rachel. Ela leu: “Mr. e Mrs. Richard Dalloway, Browne Street 23, Mayfair”.
– Mr. Richard Dalloway – prosseguiu Vinrace – parece ser um cavalheiro que pensa que porque um dia foi membro do Parlamento e sua esposa é filha de um nobre,eles
podem ter tudo o que quiserem apenas pedindo. Seja como for, convenceram o pobre do Jackson. Disseram que tinham de ter passagens... apresentaram uma carta de Lord
Glenaway pedindo-me como favor pessoal... contrariaram todas as objeções de Jackson (não creio que ele tenha feito muitas) e assim não há nada a fazer senão aceitar,
eu suponho.
Mas era evidente que por uma razão ou outra Willoughby gostava de aceitar, embora fingisse mau humor.A verdade era que Mr. e Mrs. Dalloway viram-se largados em Lisboa.
Haviam viajado pelo continente por algumas semanas, principalmente para ampliar a visão de Mr. Dalloway. Incapaz, por um desses acidentes da vida política,de servir
ao seu país no Parlamento,Mr.Dalloway fazia o melhor que podia para servir fora do Parlamento.Para isso os países latinos eram ótimos, embora o Leste,naturalmente,
tivesse sido melhor.
– Espere notícias minhas de Petersburgo ou Teerã – dissera ele virando-se para acenar em despedida nos degraus do Travellers’. Mas irrompera uma enfermidade noOriente,
havia cólera na Rússia, e tiveram notícias dele, não tão romanticamente,de Lisboa.Tinham passado pelaFrança; ele parara em centros industriais onde, mostrando cartas
de apresentação, fora conduzido por fábricas e anotara fatos em uma caderneta. Na Espanha, ele e Mrs.Dalloway tinham montado em mulas, pois desejavamcompreender
como viviam os camponeses. Estarão maduros para uma rebelião, por exemplo? Mrs. Dallowayentão insistira em um dia ou dois em Madri com os retratos. Finalmente chegaram
a Lisboa e passaram seisdias que, num diário editado privadamente mais tarde,descreveram como de “interesse único”. Richard teve audiências com ministros e previu
uma crise em breve, “asfundações do governo estando incuravelmente corrompidas. Mas como censurar etc”; enquanto Clarissa inspecionava os estábulos reais e tirava
várias fotos de homens agora exilados e janelas agora quebradas. Entre outrascoisas, ela fotografou a tumba de Fielding e soltou umpassarinho que algum facínora
prendera “porque é odiosopensar em qualquer coisa engaiolada onde há ingleses enterrados”, afirmava o diário. A viagem deles estava totalmente fora das convenções,
e não seguia nenhum planopremeditado. Os correspondentes estrangeiros do Times decidiram a rota deles como tudo o mais. Mr. Dallowaydesejava olhar certas armas e
achava que a costa africanaera bem mais inquieta do que as pessoas em casa tendema acreditar. Por esses motivos queriam uma espécie de navio vagaroso, curioso e
confortável, pois eram maus marinheiros, mas não extravagantes, que parasse por um diaou dois num ou noutro porto, carregando carvão enquanto os Dalloway davam uma
olhada nas coisas. Enquantoisso, acabaram em Lisboa sem conseguirem o navio desejado. Ouviram falar do Euphrosyne, mas também ouviram dizer que era basicamente um
navio de carga, e sóaceitava passageiros por arranjo especial, uma vez que seunegócio era levar mercadorias para o Amazonas e trazerborracha de volta para casa.“Por
arranjo especial”,porém,eram palavras altamente encorajadoras para eles, pois vinham de uma classe em que quase tudo era arranjadoassim, ou podia ser quando necessário.
Nessa ocasião tudo o que Richard fez foi escrever um bilhete a Lord Glenaway,chefe da linhagem que traz seu título, visitar o pobre velho Jackson, contar-lhe que
Mrs. Dalloway era fulana etal, que ele fora isso ou aquilo, e o que queriam era tal etal coisa. Foi tudo acertado. Separaram-se com elogios deambas as partes, e
uma semana depois vinha o barco aremo até o navio no nevoeiro, com os Dalloway a bordo; em três minutos estavam juntos no convés do Euphrosyne.Sua chegada naturalmente
criou alguma agitação, e vários pares de olhos viram que Mrs. Dalloway era umamulher alta e magra, corpo enrolado em peles, cabeça em véus, enquanto Mr. Dalloway
era de estatura média e corpo troncudo, vestido como um esportista numa charnecano outono. Muitas bolsas de couro genuíno de um ricotom castanho os rodeavam, e Mr.
Dalloway carregavaainda uma pasta de documentos, e sua esposa um nécessaire que sugeria um colar de diamantes e frascos comtampas de prata.
– É tão parecido com Whistler! – exclamou ela, com um aceno em direção da praia enquanto apertava a mão de Rachel, que só teve tempo de olhar as colinas cinzentas
de um lado antes que Willoughby apresentasse Mrs.Chailey, que levou a dama para sua cabine.Momentânea como parecia, a interrupção mesmo assim causou irritação; todo
mundo ficou mais ou menos aborrecido, desde Mr. Grice, o camareiro, até o próprio Ridley. Poucos minutos depois Rachel passou pelo salão de fumar e encontrou Helen
movendo poltronas. Estava absorta em seus arranjos e vendo Rachel, comentou confidencialmente:
– Se se pode dar aos homens um quarto só deles, tudo é lucro. Poltronas são as coisas importantes... – ela começou a empurrá-las por ali. – Agora isso ainda parece
um bar numa estação ferroviária?
Ela arrancou uma toalha de veludo de cima de uma mesa. A aparência do local melhorou incrivelmente.
Mais uma vez, a chegada dos estranhos tornou evidente para Rachel, quando se aproximava a hora do jantar,que precisava trocar de vestido, e o toque do sino grande
a encontrou sentada à beira de sua cama numa posição em que o pequeno espelho sobre a pia refletia sua cabeça e seus ombros. No espelho ela tinha uma expressão de
melancolia tensa, pois chegara à conclusão deprimente,desde a chegada dos Dalloway, de que seu rosto não era o que queria, e muito provavelmente jamais seria.
Porém a pontualidade lhe fora bem ensinada e, não importava o rosto que possuísse, tinha de ir ao jantar.
Willoughby usara aqueles poucos minutos descrevendo para os Dalloway pessoas que iriam encontrar, e contando-as nos dedos.
– Há o meu cunhado, Ambrose, o intelectual (suponho que ouviram falar nele), sua esposa, meu velho amigo Pepper, um homem muito quieto, mas que sabe tudo, segundo
dizem. E é só. Somos um grupo muito pequeno.Vou deixá-los na costa.
Mrs. Dalloway, com a cabeça um pouco inclinada, fez
o possível para lembrar-se de Ambrose – isso era sobrenome? – mas não conseguiu. Ficara um pouco insegura com o que tinha ouvido. Sabia que intelectuais se casavam
com qualquer uma – moças que encontravam em fazendas em grupos de leitura, ou mulherezinhas suburbanas que diziam com jeito desagradável: “Claro que sei que é meu
marido que a senhora deseja; não a mim”.
Mas Helen entrou nesse momento e Mrs. Dallowayviu com alívio que embora de aparência levemente excêntrica ela não era relaxada, tinha boa postura e suavoz era contida,
o que julgava ser característica de umadama. Mr. Pepper não se dera ao trabalho de trocar seufeio terno.
“Mas afinal”, pensou Clarissa enquanto seguia Vinrace para o jantar, “todo mundo é interessante de verdade”.
À mesa, ela precisou reassegurar-se um pouco mais disso, especialmente por causa de Ridley, que veio tarde,decididamente desalinhado, e tomava sua sopa num ar profundamente
sombrio.
Um sinal imperceptível passou entre marido e mulher,significando que entendiam a situação e ficariam juntos comlealdade mútua. Quase sem intervalo, Mrs. Dalloway
virouse para Willoughby e começou:
– O que acho tão cansativo no mar é que não há flores.Imagine campos de malvas-rosa e de violetas no meio do oceano! Que divino!
– Mas um tanto perigoso para a navegação – trovejou Richard, grave, como o fagote para o floreado violino da esposa. – Ora, sargaços podem ser muito prejudiciais,
não podem, Vinrace? Recordo-me de uma travessia no Mauretania certa vez e de dizer ao capitão... Richards...você o conheceu...? “Agora me diga que perigos realmente
mais teme para o seu navio, capitão Richards?” esperando que ele dissesse icebergs, ou restos de naufrágios,ou nevoeiro, ou coisa assim. Nada disso. Sempre lembro
a resposta dele. Sedgius aquatici, disse ele, o que imagino que seja uma espécie de alga marinha.Mr. Pepper ergueu os olhos bruscamente, estava por fazer uma pergunta
quando Willoughby continuou:
– Eles passaram por maus bocados... esses capitães! Três mil almas a bordo!
– Sim,é verdade – disse Clarissa.Virou-se para Helencom ar de quem diz algo profundo – Estou convencidade que as pessoas estão erradas quando dizem que é otrabalho
que acaba com a gente; é a responsabilidade. É por isso que se paga mais à cozinheira do que à copeira,eu acho.
– Nesse sentido, deveria se pagar dobrado a uma babá;mas não se paga – disse Helen.
– Não, mas imagine que alegria lidar com bebês em vez de panelas! – disse Mrs. Dalloway, olhando com mais interesse para Helen, uma provável mãe.– Eu preferiria
ser cozinheira a babá – disse Helen. – Nada me faria cuidar de crianças.
– Mães sempre exageram – disse Ridley. – Uma criança bem criada não é responsabilidade. Viajei por toda a Europa com as minhas. Basta abrigá-las em roupas quentes
e botá-las no cercadinho. Helen riu disso. Mrs. Dalloway exclamou, olhando para Ridley:
– Isso é bem coisa de pai! O meu marido é a mesma coisa. E depois se fala de igualdade de sexos!
– Fala-se? – disse Mr. Pepper.
– Ah,algumas pessoas falam – gritou Clarissa.– Meu marido teve de agüentar uma senhora furiosa em todas as últimassessões da tarde que não falava de outra coisa,
imagino.– Ela sentava-se diante da casa; foi muito desagradável –disse Dalloway. – Finalmente criei coragem e lhe disse:“Minha boa mulher, você está apenas atrapalhando.
Está meatrapalhando. E não está fazendo nenhum bem a si mesma”.
– E então ela o agarrou pelo casaco e podia ter arrancado seus olhos – interrompeu Mrs. Dalloway.
– Isso é exagero – disse Richard. – Não, tenho pena delas, eu confesso. O desconforto de sentar-se naquelas escadas deve ser terrível.
– Bem feito para elas – disse Willoughby laconicamente.
– Ah,concordo inteiramente com você – disse Dalloway.
– Ninguém pode condenar mais a total futilidade e tolicedesse comportamento do que eu; e quanto a toda essa agitação, bem, espero estar na sepultura antes de uma
mulherter direito de votar na Inglaterra! É só o que digo.A solenidade da afirmação do marido deixou Clarissa séria.
– É impensável – disse ela. – Não me diga que é um sufragista? – virou-se para Ridley.
– Não me interesso nem por um lado nem por outro
– disse Ambrose. – Se qualquer criatura é tão iludida a ponto de pensar que votar lhe faz bem, seja homem ou mulher, pois que vote. Em breve vai aprender.
Vejo que não é político – ela sorriu.
Não, pelo amor de Deus – disse Ridley.
– Receio que seu marido não me aprove – disse Dalloway à parte para Mrs. Ambrose. De repente ela recordou que ele estivera no Parlamento.
– Não acha isso muito monótono? – perguntou ela, sem saber exatamente o que dizer.Richard espalmou as mãos a sua frente como se houvesse inscrições nelas.
– Se me perguntar se eu acho monótono – disse ele –,devo dizer sim; por outro lado, se me perguntar que carreira considero a mais agradável para um homem, analisando
tudo, o bom e o ruim, e a mais invejável, sem falar do seu lado mais sério, devo dizer que de todas elas a melhor é a de político.
– Advocacia ou política, concordo – disse Willoughby.
Ganha-se mais dinheiro.
Todas as nossas faculdades são empregadas – disse Richard. – Posso estar entrando em terreno perigoso, mas o que sinto acerca de poetas e artistas em geral é isso:
não se pode ser vencido na própria especialidade, é certo; mas fora disso... é preciso dar um desconto. Eu não gostaria de pensar que alguém tivesse de dar descontos
para mim.
– Não concordo, Richard – disse Mrs. Dalloway. – Pense em Shelley. Sinto que em Adonais há quase tudo que se possa desejar.
– Leia Adonais sem falta – concedeu Richard. – Mas sempre que ouço falar em Shelley repito as palavras de Matthew Arnold: “Que conjunto! Que conjunto!”Isso chamou
a atenção de Ridley.
– Matthew Arnold? Um pedante detestável! – disse ele asperamente.
– Um pedante,sim – disse Richard –,mas um homem do mundo. É aí que vem o que eu acho. Nós, políticos, semdúvida parecemos a vocês (ele entendeu de alguma formaque
Helen representava as artes ali) um conjunto de pessoasgrosseiras e vulgares. Mas nós vemos os dois lados; podemosser rudes, mas fazemos o melhor que podemos para
compreender as coisas. Mas os seus artistas acham coisas desordenadas, dão de ombros, viram-se para as suas visões... quepodem ser muito bonitas, devo concordar...
e deixam as coisas na desordem. Isso me parece ser fuga da responsabilidade. Além disso, não nascemos todos com talento artístico.
– É terrível – disse Mrs. Dalloway, que enquanto seu marido falava, estivera pensando. – Quando estou com artistas sinto tão intensamente as delícias de fechar-se
num pequenomundo só seu, com quadros e música e todas as coisas lindas,e então saio para a rua e a primeira criança que encontro, comseu pobre rostinho sujo, me
faz virar e dizer: “Não, eu não posso me isolar... não vou viver num mundo só meu. Gostaria de interromper toda a pintura e a música e a literatura até queesse tipo
de coisa não exista mais”. Você sente – ela virou-se,dirigindo-se a Helen – que a vida é um conflito permanente?
Helen pensou por um momento.
– Não – disse ela. – Acho que não.
Houve uma pausa decididamente incômoda. Mrs.Dalloway teve então um pequeno calafrio e perguntou se podia pedir que trouxessem sua capa de peles. Quando ajustou as
macias peles castanhas no pescoço, ocorreu-lhe um assunto novo.
– Confesso – disse ela – que nunca esquecerei a Antígona. Eu a vi em Cambridge anos atrás, e desde então me persegue. Não acha que é a coisa mais modernaque já viu?
– perguntou a Ridley. – Pareceu-lhe que conhecia umas 20 Clitaimnestras. A velha Lady Ditchlingera uma. Não sei uma palavra de grego, mas poderia escutá-lo para
sempre...
Mr. Pepper interveio:
Mrs. Dalloway olhou para ele com lábios apertados.
Eu daria dez anos de minha vida para saber grego – disse quando ele terminou.
Posso lhe ensinar o alfabeto em meia hora – disse Ridley – e a senhora poderia ler Homero em um mês.Seria uma honra ensinar-lhe.
Helen, ocupada com Mr. Dalloway e o hábito, agora começando a declinar, de se fazerem citações em grego na Câmara dos Comuns, anotou, no grande livro de atualidades
aberto ao nosso lado quando falamos, o fato de que todos os homens, mesmo como Ridley, realmente preferem que as mulheres estejam na moda.
Clarissa exclamou que não podia pensar em nada mais delicioso. Por um instante viu-se em sua sala de estar em Browne Street com um Platão aberto sobre os joelhos
– Platão em grego, no original. Acreditava que um verdadeiro intelectual, se especialmente interessado, poderia meter grego em sua cabeça com pouca dificuldade.
Ridley convidou-a a vir amanhã.
– Se ao menos o seu navio nos tratar com bondade! – exclamou ela, trazendo Willoughby para dentro do jogo.Por causa dos convidados, e aqueles eram distintos, ele
dispôs-se, com uma inclinação de cabeça, a garantir o bom comportamento até das ondas.
– Eu estou péssima; e meu marido não está muito bem suspirou Clarissa.
Eu nunca enjôo – explicou Richard. – Pelo menos, só estive enjoado de verdade uma vez – corrigiu-se. – Foi atravessando o Canal. Mas um mar encapelado, confesso,ou
pior ainda, um vagalhão, me deixa nitidamente incomodado. O importante é nunca deixar de fazer as refeições. Você olha a comida e diz “Não posso”, então come um
bocado, e Deus sabe como vai engolir; mas persevere,você resolve de vez um ataque de náusea. Minha esposa é uma covarde.
Estavam empurrando de volta as cadeiras. As damas estavam hesitantes na porta.
– É melhor eu mostrar o caminho – disse Helen, avançando.
Rachel seguiu. Não participara da conversa; ninguém lhe dirigira a palavra, mas ela escutara tudo o que fora dito. Olhara de Mrs. Dalloway para Mr. Dalloway, e de
novo de Mr. Dalloway para a esposa. Clarissa era realmente um espetáculo fascinante. Usava um vestido branco e um longo colar cintilante. Com suas roupas, seu rosto
travesso e delicado que mostrava um rosado muito bonito debaixo dos cabelos que começavam a ficar grisalhos, era espantosamente parecida com uma obra-prima do século
XVIII – um Reynolds ou um Romney. Ela fazia Helen e os outros parecerem toscos e desleixados. Sentada levemente ereta, parecia estar lidando com o mundo à sua própria
maneira; o enorme globo sólido girava para um lado e outro debaixo de seus dedos. E seu marido! Mr. Dalloway soltando aquela voz opulenta e cadenciada era mais impressionante
ainda. Parecia vir do centro oleoso e ruidoso da engrenagem onde hastes polidas giram, deslizam, e pistões batem; agarrava as coisas tão firme mas tão livremente;
fazia os outros parecerem solteironas barganhando restos. Rachel seguiu no cortejo de matronas,quase em transe; um curioso aroma de violetas vinha de Mrs. Dalloway,
misturando-se com o macio farfalhar de suas saias e o tilintar de suas correntes.
Seguindo atrás, Rachel pensou com suprema autohumilhação, lembrando todo o curso de sua vida e das vidas de todas as suas amigas: “Ela disse que vivemosnum mundo
nosso. É verdade. Somos perfeitamenteabsurdas”.
– Nós nos sentamos aqui – disse Helen abrindo a porta do salão.
– A senhora toca? – disse Mrs. Dalloway a Mrs. Ambrose, pegando a partitura de Tristão que estava sobre a mesa.
– Minha sobrinha toca – disse Helen botando a mão no ombro de Rachel.
– Ah, mas como a invejo! – Clarissa dirigia-se a Rachel pela primeira vez. – Lembra-se disso? Não é divino? – Ela tocou um compasso ou dois com dedos cheios de anéis
sobre a página.
– E depois Tristão vai assim, e Isolda... ah, é tudo emocionante demais! Você já esteve em Bayreuth?
Não, não estive – disse Rachel.
Então isso ainda vai acontecer. Nunca esquecerei o meu primeiro Parsifal... um dia quente de agosto,aquelas alemãs gordas nas suas roupas abafadas, e depois o teatro
escuro, a música começando, não se podiaevitar os soluços. Lembro-me de que um homem bondoso foi apanhar água para mim: eu só chorava noombro dele. Aquilo me tocava
aqui (ela tocou a garganta). Não há nada parecido no mundo! Mas ondeestá o seu piano?
– Em outro quarto – explicou Rachel.
– Mas vai tocar para nós? – suplicou Clarissa. – Não consigo imaginar nada melhor do que sentar ao luar lá fora e ouvir música... só que isso parece coisa de colegial!
– Sabe – disse ela virando-se para Helen –, acho que música não faz bem às pessoas... – receio que não.
– Tensão demais? – perguntou Helen.
– De alguma forma, acho emocional demais – disse Clarissa. – A gente nota imediatamente quando um rapaz ou uma mocinha assume a música como profissão. Sir William
Broadley me disse a mesma coisa. Você não odeia as atitudes que as pessoas assumem ouvindo Wagner... assim... – Ela levantou os olhos para o céu, juntou as mãos,
com um ar de intensidade. – Isso realmente não significa que o apreciam; na verdade sempre acho que é o contrário. As pessoas que realmente se importam com uma arte
são as menos afetadas. Conhece Henry Philips, o pintor? – perguntou ela.
– Já o encontrei – disse Helen.
– Pela aparência, a gente pensaria que ele é um corretor bem-sucedido da bolsa e não um dos maiores pintores de nosso tempo. É disso que eu gosto.
– Há muitos corretores bem-sucedidos da bolsa, se gosta de olhar para eles – disse Helen.Rachel desejou intensamente que sua tia não fosse tão perversa.
– Vendo um músico com cabelo comprido você não sabe instintivamente que ele é ruim? – perguntou Clarissa virando-se para Rachel. – Watts e Joachim... eles pareciam
exatamente como você e eu.
– E como pareceriam bem mais simpáticos com cabelo preso! – disse Helen. – A questão é: você aspira à beleza ou não?
– Limpeza! – disse Clarissa. – Quero que um homem tenha aparência limpa!
– Com limpeza você quer dizer roupas bem talhadas – disse Helen.
– Há algo que distingue um cavalheiro – disse Clarissa –, mas não se sabe dizer o que é.
– Pegue o meu marido, ele parece um cavalheiro?Clarissa achou a pergunta de um extraordinário mau gosto.
“É uma das coisas que não se pode dizer”, teria dito,mas não soube o que responder e deu uma risada.
– Bem, seja como for – disse virando-se para Rachel –,vou insistir em que toque para mim amanhã.
E foi assim que fez com que Rachel a amasse.
Mrs. Dalloway dissimulou um pequeno bocejo, um mero inflar das narinas.
– Sabe – disse –, estou com um sono incrível. O ar marinho. Acho que vou fugir.Uma voz masculina, que ela pensou ser de Mr. Pepper,estridente na discussão e vindo
em direção do salão, foi o sinal de alarme.
– Boa noite, boa noite! – disse. – Ah, eu sei o caminho... rezem para termos calmaria! Boa noite!
Seu bocejo deve ter sido a imagem de um bocejo. Em vez de deixar sua boca abrir-se, largando todas as suas roupas numa trouxa como se estivessem penduradas numa
corda, e esticando os membros até o máximo que lhe permitia seu beliche, ela apenas mudou de roupa, vestindo um robe com inumeráveis babados e, enrolando os pés
numa manta, instalou-se com um bloco de papel no joelho. Aquela cabine pequena e atulhada já se transformara no quarto de vestir de uma dama de classe. Havia frascos
com líquidos; havia bandejas, caixas, escovas, alfinetes.Evidentemente, nem um centímetro de sua pessoa era desprovido de seu instrumento próprio. O aroma que inebriara
Rachel invadia o ar.Assim instalada, Mrs.Dalloway começou a escrever. Uma caneta em suas mãos tornava-se um objeto para acariciar papel, e ela podia estar acariciando
e provocando um gatinho quando escreveu:
Imagine-nos, querida, embarcados no mais esquisito navio em que possa pensar. Não é tanto o navio, mas as pessoas. A gente encontra tipos bem esquisitos quando viaja.Devo
dizer que acho isso imensamente divertido. Há o diretor da linha, chamado Vinrace, um simpático inglês grandão, que fala pouco – você conhece o tipo. Quanto ao resto
poderiam estar saindo de um número antigo de Punch. São como pessoas jogando croqué nos anos 60.Não sei há quanto tempo estão trancados neste navio – eu diria anos
e anos–, mas a gente sente como se tivesse subido a bordo de ummundo separado, e como se eles nunca tivessem estado emterra, nem feito coisas comuns em suas vidas.
É o que sempre disse a respeito de literatos – são de longe as pessoasmais difíceis de se lidar. O pior é que essa gente – um homem e sua esposa e uma sobrinha –
poderiam ter sido, sente-se isso, como qualquer outra pessoa, se não tivessem sidoengolidos por Oxford ou Cambridge ou algum lugar desses, tornando-se maníacos.
O homem é realmente encantador (se cortasse as unhas) e a mulher tem um rosto bem agradável, apenas, naturalmente, veste-se num saco da batatas e usa o cabelo como
uma balconista da Liberty. Falam sobrearte e acham que somos uns malucos por nos vestirmos melhor para o jantar. Mas não posso evitar isso; prefiro morrera jantar
sem trocar de roupa – você não faria o mesmo? Issoé bem mais importante do que a sopa. É esquisito como ascoisas são tão mais importantes do que geralmente se pensa”.
Eu preferia ter a cabeça cortada a usar flanela sobre apele. Há ainda uma simpática mocinha tímida – coitada –,que queria que alguém a tirasse dali antes que fosse
tarde.Tem olhos e cabelos muito bonitos, só que, naturalmente,também vai ficar cômica. Devíamos fundar uma sociedade para ampliar as mentes dos jovens – muito mais
útil do quemissionários, Hester! Ah, esqueci, há uma criaturinha horrenda chamada Pepper. Ele é exatamente como o seu nome.Indescritivelmente insignificante e bastante
bizarro de temperamento, pobre coitado. É como sentar-se para jantarcom um fox-terrier maltratado, só que não se pode escoválo, nem jogar-lhe talco, como se faria
com um cachorro deestimação. Uma pena, às vezes, não podermos tratar pessoascomo cachorros! O grande conforto é que estamos longe dejornais, de modo que Richard
terá férias de verdade destavez. A Espanha não foi férias...
– Covarde! – disse Richard quase enchendo o quarto com sua figura atarracada.
Eu cumpri meu dever no jantar! – exclamou Clarissa.
Seja como for, interessou-se pelo alfabeto grego.
– Ah, meu caro! Quem é Ambrose?
Acho que foi professor em Cambridge; agora vive em Londres e publica clássicos.
Você já viu um grupo de doidos como esse? A mulher me perguntou se eu achava que o marido dela tinha ar de cavalheiro!
Certamente foi difícil manter a bola rolando no jantar – disse Richard. – Por que é que mulheres nessa classe são tão mais esquisitas do que os homens?
– Não são feias realmente... só que... são tão esquisitas!
Os dois riram pensando nas mesmas coisas de modo que não foi preciso comparar suas impressões.
– Vejo que vou ter muito a dizer a Vinrace – disse Richard. – Ele conhece Sutton e tudo aquilo. Pode me dizer uma porção de coisas sobre a construção de navios no
Norte.
– Ah, que bom. Os homens sempre são tão melhores que as mulheres.
– Sempre se tem o que dizer a um homem, sem dúvida
– disse Richard. – Mas tenho certeza de que você vai passar o tempo bem depressa falando sobre as crianças, Clarissa.
Ela tem filhos? Não parece.
Dois. Um menino e uma menina. Uma inveja aguda varou o coração de Mrs. Dalloway.
Dick, nós temos de ter um filho – disse ela.
– Santo Deus, que oportunidades existem hoje para um jovem! – disse Dalloway, pois a sua conversa o fizera pensar. – Acho que não há oportunidades tão boas desde
os dias de Pitt.
E é para você! – disse Clarissa.
Ser um líder de homens – monologou Richard. – É uma bela carreira. Meu Deus... que carreira! O peito inflou lentamente debaixo do seu colete.
– Você sabe, Dick, não posso deixar de pensar naInglaterra – disse sua esposa pensativamente encostando a cabeça no peito dele. Estar neste navio parece tornar tudo
tão mais intenso que realmente significa seringlês. Pensando em tudo que fizemos, em nossas armadas,e nas pessoas na Índia e na África,e em como avançamos século
após século, enviando nossos rapazes dealdeiazinhas do interior... e em homens como você, Dick, faz-nos sentir ser insuportável não ser inglês! Pense naluz acesa
sobre a Câmara, Dick! Quando estava no convés, há pouco, parecia que a via. É o que Londres significa para a gente.
– É a continuidade – disse Richard sentenciosamente. Uma visão da história inglesa, rei após rei, primeiro-ministro após primeiro-ministro, e lei após lei, tinham-lhe
ocorrido enquanto sua mulher falava. Ele percorreu com sua mente a linha da política conservadora, que seguia firme de Lord Salisbury a Alfred,e gradualmente abarcava
como se fosse um laço abrindo-se e apanhando coisas,enormes partes habitáveis do globo.
– Demorou muito tempo, mas quase já conseguimos
– disse ele; – resta agora consolidar tudo.
E essa gente não vê isso! – exclamou Clarissa.
É preciso todo tipo de gente para fazer um mundo
– disse seu marido. – Jamais haveria um governo se não houvesse uma oposição.
– Dick, você é melhor que eu – disse Clarissa. – Tem visão global, enquanto eu só vejo aqui. Ela pressionou um ponto nas costas da mão dele.
– Esse é o meu negócio, como tentei explicar no jantar.
– O que eu gosto em você, Dick – prosseguiu ela –, é que você é sempre o mesmo, e eu sou instável.
– Mas seja como for, você é uma linda criatura – disse ele, fitando-a com olhos mais profundos.
– Acha mesmo? Então me beije.
Ele a beijou apaixonadamente, de modo que a carta dela, inacabada, escorregou para o chão. Apanhando-a,ele leu sem pedir licença.
– Onde está sua caneta? – perguntou; e acrescentou na sua pequena letra masculina:
“R.D. loquitur: Clarissa não lhe contou que estava extraordinariamente bela no jantar e fez uma conquista, obrigando-se a aprender o alfabeto grego. Aproveito a
ocasiãopara acrescentar que estamos nos divertindo nessas terrasestrangeiras, e só desejaríamos a presença de nossos amigos(a saber você e John) para que a viagem
fosse tão perfeitamente agradável como promete ser instrutiva...”
Ouviram-se vozes no fim do corredor. Mrs. Ambrose estava falando em voz baixa; William Pepper comentava na sua voz clara e bastante azeda:
– Esse é o tipo de senhora com que realmente não simpatizo. Ela...
Mas nem Richard nem Clarissa souberam da sentença, pois como parecesse que iriam escutar, Richard fez ruído amassando uma folha de papel.
“Muitas vezes”, pensava Clarissa na cama, diante do pequeno volume branco de Pascal que ia com ela a toda parte, “fico imaginando se é realmente bom para uma mulher
viver com um homem moralmente superior a ela,como Richard é em relação a mim. Isso nos deixa tão dependentes. Acho que sinto por ele o que minha mãe e as mulheres
de sua geração sentiam por Cristo. Isso apenas mostra que não se pode passar sem alguma coisa”. Ela então adormeceu, o sono extremamente firme e reparador de sempre;
mas visitada por sonhos fantásticos com grandes letras gregas caminhando pelo aposento, acordou e riu de si mesma, lembrando onde estava e que as letras gregas eram
pessoas de verdade, adormecidas perto dali.Depois pensando no escuro lá fora, balouçando sob a lua,ela teve um calafrio e pensou no seu marido e nos outros companheiros
de viagem. Os sonhos não estavam confinados nela, mas iam de um cérebro a outro. Todos sonharam uns com os outros aquela noite, como era natural,levando em conta
como eram tênues as divisórias entre eles e como tinham sido estranhamente erguidos da terra para se sentarem perto uns dos outros no meio do oceano,vendo cada pormenor
dos rostos uns dos outros e escutando tudo que pudessem dizer.
4
Na manhã seguinte, Clarissa levantou-se antes de todos. Vestiu-se, saiu ao convés para respirar o ar fresco deuma manhã tranqüila e, fazendo pela segunda vez o circuito
no navio, topou com a figura magra de Mr. Grice, o camareiro. Ela desculpou-se e ao mesmo tempo pediu-lhe uma explicação: o que eram aqueles lustrosos suportes demetal,
com a parte superior de vidro? Ela estivera imaginando o que eram, mas não conseguiu descobrir. Quandoele explicou, ela exclamou com entusiasmo:
Eu realmente acho que ser marinheiro é a melhor coisa do mundo!
E o que é que a senhora sabe sobre isso? – disse Mr.Grice, reagindo de um modo estranho. – Perdão. O que sabe sobre o mar qualquer homem ou mulher criado na Inglaterra?
Eles fingem saber; mas não sabem.
A amargura com que ele falava predizia o que estava por vir. Ele a conduziu para seu alojamento e sentando-se à beira de uma mesa engastada em latão, parecendo singularmente
com uma gaivota, com o corpo branco afilado e o rosto magro e alerta, Mrs. Dalloway teve de escutar os arroubos de um fanático. Acaso ela percebia, para começar,
que parte tão pequena do mundo era a terra? Como era pacífico, belo e benigno o mar em comparação? As águas profundas sustentariam a Europa se todos os animais da
terra morressem de peste amanhã. Mr. Grice recordou visões terríveis que tivera na cidade mais rica do mundo – homens e mulheres fazendo fila hora após hora para
receberem um caneco de sopa gordurosa.
– E pensei na boa carne esperando, ali embaixo, pedindo para ser apanhada. Não sou exatamente um protestante, e não sou católico, mas quase poderia rezar pela volta
dos dias do papado... por causa dos jejuns.
Enquanto falava ele ficava abrindo gavetas e movendo pequenos frascos de vidro. Aqui estavam os tesouros que
o grande oceano lhe concedera – peixes lívidos em líquidos esverdeados, medusas gelatinosas com madeiras ondulantes, peixes com luzes nas cabeças porque viviam nas
profundezas.
– Eles nadaram entre ossos – suspirou Clarissa.
Está pensando em Shakespeare – disse Mr. Grice e,pegando um exemplar de uma prateleira com livros enfileirados, recitou numa enfática voz nasal:
Full fathom five thy fathers lies,
Um grande homem, Shakespeare – disse, recolocando o volume no lugar.Clarissa ficou muito contente ao ouvi-lo dizer isso.
Qual sua peça favorita? Será a mesma que eu prefiro?
Henrique V – disse Mr. Grice.
Maravilha! – exclamou Clarissa. – É essa!
Hamlet era o que se poderia chamar de introspectivo demais para Mr. Grice, os sonetos, apaixonados demais;Henrique V era para ele o modelo do cavalheiro inglês,mas
sua leitura favorita era Huxley, Herbert Spencer eHenry George; enquanto Emerson e Thomas Hardy elelia para relaxar. Estava dando a Mrs. Dalloway suas opiniões sobre
o atual estado da Inglaterra, quando a sinetado café da manhã soou tão imperiosamente que ela tevede sair apressada, prometendo voltar e olhar as algasmarinhas.
O grupo, que lhe parecera tão bizarro na noite anterior, jáse reunira em torno da mesa, ainda sob influência do sono, e por isso pouco comunicativo, mas a entrada
dela causou umapequena agitação, como um sopro de ar em todos eles.
– Tive a conversa mais interessante de minha vida! – exclamou ela, assentando-se ao lado de Willoughby. – Você sabe que um de seus homens é filósofo e poeta?
– Um homem muito interessante... é o que eu sempre digo – disse Willoughby, distinguindo Mr. Grice. – Embora Rachel o ache um chato.
– Ele é um chato quando fala sobre correntes oceânicas – disse Rachel. Seus olhos estavam cheios de sono, mas Mrs. Dalloway ainda lhe parecia maravilhosa.
– Eu ainda não encontrei um chato! – disse Clarissa.
– Pois eu diria que o mundo está cheio deles! – exclamou Helen. Mas sua beleza, radiante à luz da manhã, contrariava suas palavras.
– Concordo que é a pior coisa que se possa dizer de outra pessoa – disse Clarissa. É preferível ser um assassino a ser um chato! – acrescentou com seu habitual ar
de quem dizia algo profundo. – Pode-se imaginar gostar de um assassino. É a mesma coisa com cachorros. Alguns são incrivelmente chatos, coitados. Richard estava
sentado junto de Rachel. Ela estava curiosamente consciente de sua presença e aparência – suas roupas bem talhadas, seu peito de camisa engomado,os punhos com anéis
azuis em torno e os dedos de pontas quadradas, muito limpos, com a pedra vermelha no dedo mínimo da mão esquerda.
– Tínhamos um cachorro que era um chato e sabia disso – disse ele,dirigindo-se a Rachel em tom frio e calmo. – Era um skye terrier, um daqueles compridões com pezinhos
pequenos brotando do gelo como... como lagartas... não, eu diria como sofás. Bem, tínhamos outro cachorro ao mesmo tempo, um animal preto e esperto... um schipperke,
acho que é assim que o chamam. Não pode imaginar maior contraste. O skye tão lento e hesitante,erguendo os olhos para a gente como algum velho cavalheiro no clube,
como se quisesse dizer. “Você não está falando sério, está?” E o schipperke é rápido como um raio. Eu gostava mais do skye, confesso. Havia nele algo de patético.
A história parecia não ter clímax.
– E o que aconteceu a ele? – perguntou Rachel.
– É uma história muito triste – disse Richard baixando a voz e descascando uma maçã. – Ele seguiu minha esposano carro certo dia e foi atropelado por um ciclista
cruel.
Morreu? – perguntou Rachel.Mas Clarissa, em sua ponta da mesa, escutara.
Não fale nisso! – exclamou. – Não consigo pensar nisso até hoje.Haveria lágrimas em seus olhos?
– Essa é a coisa dolorosa com bichos de estimação – disse Mr. Dalloway –, eles morrem. A primeira tristeza que recordo ocorreu com a morte de um rato silvestre.Lamento
dizer que me sentei em cima dele. Mas isso não me deixou menos triste. Aqui jaz o pato em que Samuel Johnson sentou, hein? Eu era grande para minha idade.
Depois tivemos canários – prosseguiu ele –, um par de pombos, um lêmure e uma vez uma andorinha.
– O senhor vivia no campo? – perguntou Rachel.
Passávamos seis meses do ano no campo. Quando digo “nós” refiro-me a quatro irmãs, um irmão e eu próprio. Não há nada como vir de uma família grande. Principalmente
irmãs, são uma graça.
Dick, você foi terrivelmente mimado! – exclamou Clarissa sobre a mesa.
– Não, não, eu fui apreciado – disse Richard.
Rachel tinha outras perguntas na ponta da língua; ou antes, uma enorme pergunta, que não sabia como pôr em palavras. A conversa parecia animada demais para admiti-la.
“Por favor, conte-me... tudo”. Era isso que queria dizer.Ele abrira uma pequena fresta e mostrara tesouros espantosos. Parecia-lhe incrível que um homem como aquele
quissesse lhe dirigir a palavra. Ele tinha irmãs e animais deestimação e uma vez morara no campo. Ela mexia e remexia a colher em sua xícara de chá; as bolhas que
boiavam eagarravam-se à taça lhe pareciam a união de suas mentes.
Enquanto isso a conversa disparava ao lado dela e quandoRichard de repente afirmou num tom de voz jocoso:
– Tenho certeza de que Miss Vinrace agora tem inclinações secretas para o catolicismo – ela não tinha como responder, e Helen não pôde deixar de rir da tentativa
que ela fez.
Mas o café da manhã terminara, e Mrs. Dalloway estava se levantando.
– Sempre acho que religião é como colecionar insetos
– disse ela encerrando a discussão enquanto subia as escadas com Helen. – Uma pessoa tem paixão por besouros pretos; outra não tem; não adianta discutir sobre isso.Qual
é agora o seu besouro preto?
– Acho que são meus filhos – disse Helen.
– Ah... isso é diferente – Clarissa falou. – Conte-me. Você tem um menino, não tem? Não é detestável ter de deixá-los?
Foi como se uma sombra azul tivesse caído sobre uma piscina. Os olhos delas ficaram mais fundos, as vozes mais cordiais.
Em vez de juntar-se a elas quando começaram a caminhar pelo convés, Rachel estava indignada com aquelas prósperas senhoras, que a faziam sentir-se fora do seu mundo,
órfã, e virando-se, deixou-as abruptamente. Bateu a porta do quarto e retomou sua música. Era tudo música antiga – Bach e Beethoven, Mozart e Purcell – as páginas
amarelas, a impressão áspera ao toque. Em três minutos estava imersa numa fuga muito difícil, muito clássica, em lá, e em seu rosto apareceu uma expressão estranha,
remota, impessoal de absorção completa e ansiosa satisfação.Ora tropeçava, ora falhava e tinha de repetir o mesmo compasso; mas uma linha invisível parecia reunir
as notas num fio, do qual se erguia um contorno, uma construção.Ela estava tão absorta nesse trabalho, pois era realmente difícil descobrir como todos aqueles sons
deveriam se unir, e empregava todas as suas faculdades nisso, que não escutou uma batida na porta. Ela abriu-se impulsivamente e Mrs. Dalloway aparecia no quarto,
deixando a porta aberta de modo que uma faixa do convés branco e do mar azul apareceu na abertura. O contorno da fuga de Bach partira-se no chão.
– Não deixe que eu a interrompa – implorou Clarissa.
– Ouvi você tocar e não pude resistir. Adoro Bach!
Rachel corou e retorceu os dedos no colo. Pôs-se de pé desajeitadamente.
– É difícil demais – disse.
– Mas você estava tocando esplendidamente! Eu devia ter ficado do lado de fora.
– Não – disse Rachel.
Ela tirou da poltrona as Cartas de Cowper e O Morro dos ventos uivantes e Clarissa foi convidada a sentar-se.
– Mas que quartinho agradável! – disse ela olhando em torno. Ah, as Cartas de Cowper! Nunca as li. São boas?
– Bastante monótonas – disse Rachel.
– Ele escrevia terrivelmente bem, não é? – disse Clarissa; – para quem gosta desse tipo de coisa... terminava suas frases e tudo isso. O morro dos ventos uivantes!
Ah, isso é mais do meu gosto. Eu realmente não poderia viver sem as Brontës! Você não é apaixonada por elas? Mas de modo geral eu preferiria viver sem elas a viver
sem Jane Austen.
Embora falasse de jeito leve e casual, sua postura revelava um extraordinário grau de simpatia e desejo de fazer amizade.
– Jane Austen? Eu não gosto de Jane Austen – disse Rachel.
– Você é um monstro! – disse Clarissa. – Mal posso perdoá-la. Diga-me por quê? – Ela é tão... bem... tão como uma trança apertada – atrapalhou-se Rachel.
– Ah... entendo o que quer dizer. Mas não concordo. E você não vai concordar quando for mais velha. Na sua idade eu só gostava de Shelley. Lembro-me de ter-me emocionado
lendo Shelley no jardim.
He has outsoared the shadow of our night,
Envy and calumny and hate and pain...
“lembra?”
Can touch him not and torture not again
From the contagion of the world’s slow stain.
– Que divino!...e,no entanto,que absurdo! – Ela olhou em torno do quarto. – Eu sempre acho que é viver, e não morrer o que conta. Eu realmente respeito um velho
corretor da Bolsa rabugento que vai somar coluna atrás de coluna todos os dias e trotar de volta à sua villa em Brixton com algum cachorro velho de focinho chato
que ele adora e uma enfadonha mulherzinha sentada na ponta da mesa, que vai para Margate por 15 dias... asseguro-lhe que conheço um monte de gente assim... bem,
eles me parecem realmente mais nobres do que poetas, a quem todo mundo venera, só porque são gênios e morrem jovens. Mas não espero que você concorde comigo!
Ela apertou o ombro de Rachel.
– Um... m... m – e continuou citando:
Unrest which men miscall delight...
– Quando você tiver a minha idade verá que o mundo está lotado de coisas encantadoras. Acho que os jovens cometem um grande erro em relação a isso não sepermitindo
serem felizes. Às vezes penso que a felicidade é a única coisa que conta. Não a conheço suficientemente bem para dizer, mas creio que você pode ser umpouco inclinada
a... quando a gente é jovem e atraente...vou dizê-la, sim!... tudo está aos nossos pés. – Ela olhouem torno como se fosse dizer, “Não só alguns poucoslivros enfadonhos
e Bach”.
– Quero muito fazer perguntas – prosseguiu. – Você me interessa tanto. Se estou sendo impertinente, dê um puxão nas minhas orelhas.
– E eu... eu quero fazer perguntas – disse Rachel com tamanha gravidade que Mrs. Dalloway teve de conter seu sorriso.
– Importa-se de irmos caminhar? – disse ela. – O ar está tão delicioso. Ela inspirou como um cavalo de corrida quando fecharam a porta e pararam no convés.
– Não é bom estar viva? – exclamou e puxou o braço de Rachel para dentro do seu. – Olhe! Olhe! Que bonito!As praias de Portugal começavam a perder sua substância;
mas a terra ainda era a terra, apesar de muito distante. Podiam distinguir as cidadezinhas espalhadas nas dobras das colinas, e a fumaça erguendo-se, tênue. As cidades
pareciam muito pequenas em comparação com as grandes montanhas roxas ao fundo.
– Sinceramente,porém – disse Clarissa depois de olhar –, não gosto de paisagens. São desumanas demais. – Continuaram andando.
– Que coisa estranha! – continuou ela, impulsivamente. – A esta hora ontem nem nos conhecíamos. Eu estava arrumando coisas num quartinho abafado de hotel. Não sabíamos
absolutamente nada uma da outra, mesmo assim sinto como se tivesse conhecido você antes!
– A senhora tem filhos... seu marido esteve no Parlamento?
Você nunca foi à escola e mora...?
Com minhas tias, em Richmond.
Richmond?
– Sabe, minhas tias gostam do Parque. Gostam do sossego.
– E você não! Entendo! – Clarissa riu.
– Eu gosto de caminhar sozinha no Parque; mas não...com os cachorros – concluiu ela.
– Não; e algumas pessoas são cachorros, não são? – disse Clarissa, como se tivesse adivinhado um segredo. – Mas nem todo mundo... ah não, nem todo mundo.
– Nem todo mundo – Rachel disse isso e parou.
– Posso muito bem imaginar você andando sozinha – disse Clarissa – e pensando... num pequeno mundo só seu. Mas como vai desfrutá-lo... um dia!
– Vou gostar de caminhar com um homem... é isso que quer dizer? – disse Rachel fitando Mrs. Dalloway com seus grandes olhos inquiridores.
– Eu não estava pensando num homem em particular
– disse Clarissa. – Mas você vai.
– Não. Eu não vou me casar nunca – decidiu Rachel.
– Eu não teria tanta certeza disso – disse Clarissa. Seu olhar de viés dizia a Rachel que ela a achara atraente, embora fosse inexplicavelmente engraçada...
Por que as pessoas se casam? – perguntou Rachel.
É isso que você vai descobrir – Clarissa ainda ria.
Rachel seguiu seus olhos e viu que por um segundo tinham pousado na figura robusta de Richard Dalloway,ocupado acendendo um fósforo na sola da botina, enquanto Willoughby
expunha algo que parecia da maior importância para os dois.
– Não há nada igual – concluiu ela. – Conte-me sobre os Ambrose. Ou estou fazendo perguntas demais?
– É bom falar com a senhora – disse Rachel.
Mas o breve esboço dos Ambrose foi de alguma forma superficial e pouco disse além do fato de o Mr. Ambrose ser seu tio.
– Irmão de sua mãe?
Quando um nome cai em desuso, a mais leve menção a ele reaviva a memória. Mrs. Dalloway continuou:
– Você é parecida com sua mãe?
– Não; ela era diferente – disse Rachel e foi tomada de um intenso desejo de contar a Mrs. Dalloway coisas que nunca contara a ninguém... coisas que nem ela percebera
até aquele momento. – Eu me sinto sozinha. Eu quero...
– Ela não sabia o que queria, de modo que não pôde concluir a frase; seu lábio, porém, tremeu.Mrs. Dalloway, contudo, pareceu capaz de compreender sem palavras.
– Eu sei – disse, passando um braço pelo ombro de Rachel. – Quando eu tinha a sua idade também queria.Ninguém me compreendia até que encontrei Richard. Ele me deu
tudo o que eu queria. Ele é homem e mulher ao mesmo tempo. – Seus olhos pousaram em Mr. Dalloway,encostado na amurada, ainda falando. – Não pense que digoisso porque
sou esposa dele... vejo seus defeitos mais claramente do que os de qualquer outra pessoa. O que se quer napessoa com quem se vive é que ela nos mantenha em nossamelhor
forma. Muitas vezes fico pensando o que fiz para sertão feliz! – exclamou, e uma lágrima deslizou pela sua face.Ela a enxugou, apertou a mão de Rachel e exclamou:
– Como a vida é boa! – Nesse momento com aquela brisa fresca o sol sobre as ondas e a mão de Mrs. Dalloway sobre o braço, pareceu realmente que a vida, antes sem
nome, agora era infinitamente maravilhosa e boa demais para ser verdade.
Nisso, Helen passou por elas e vendo Rachel de braço dado com uma quase estranha, parecendo animada, divertiu-se, mas ao mesmo tempo ficou levemente irritada.Porém
Richard, com um humor bastante sociável, juntouse imediatamente a elas, depois de uma conversa muito interessante com Willoughby.
– Observem o meu panamá – disse, tocando a aba doseu chapéu. – Miss Vinrace, deu-se conta do quanto se pode fazer para induzir bom tempo usando o chapéu adequado?
Decidi que hoje é um dia quente de verão; previno-a de que nada que a senhorita possa dizer vai me abalar.Por isso vou me sentar. Aconselho-a a seguir meu exemplo.
– Três cadeiras em fila convidavam-nos a nos sentarmos. Recostando-se para trás, Richard observou as ondas.
– Um azul muito bonito – disse. – Mas há um pouco de azul em demasia. A variedade é essencial para uma paisagem. Assim, se há colinas deve haver um rio; se há um
rio, deve haver colinas. A melhor paisagem no mundo,na minha opinião, é aquela de Boars Hill num dia bonito... atenção, tem de ser um dia bonito... Uma manta? Ah,
obrigado, minha cara... Nesse caso você terá a vantagem das associações, o passado.
Dick, você quer falar ou quer que eu leia em voz alta?Clarissa pegara um livro com as mantas.
Persuasão – anunciou Richard examinando o volume.
– É para a Miss Vinrace – disse Clarissa. – Ela não suporta a nossa amada Jane.
– Isso... se me permite dizer... é porque a senhorita não a leu – disse Richard. – Ela é incomparavelmente a maior escritora que temos. É a maior e por um motivo:
não tenta escrever como homem.Todas as outras mulheres fazem isso: por isso não as leio.
– Diga suas objeções, Miss Vinrace – prosseguiu ele,juntando as pontas dos dedos. – Estou pronto para me converter.
E aguardou enquanto Rachel tentava em vão vingar seu sexo daquele desrespeito que ele lhe fazia.
– Receio que ele tenha razão – disse Clarissa. – Geralmente ele tem... esse infeliz! Eu trouxe Persuasão – prosseguiu ela – porque pensei que era um pouco menos
desinteressante que os outros... mas, Dick, não adianta fingir que conhece Jane de cor, pois ela sempre o faz pegar no sono!
Mereço dormir depois dos trabalhos de legislação – disse Richard.
Não pense naquelas armas – disse Clarissa, vendo que o olho dele, passando sobre as ondas ainda procurava a terra, pensativo – nem em navios, ou impérios, ou nada.
Dizendo isso, ela abriu o livro e começou a ler:
–“Sir.Walter ElIiott,de Kellynch Hall,em Somersetshire,era um homem que, para divertir-se, nunca apanhava um livro senão o Baronetage”... não conhece Sir Walter?...
“Lá ele encontrava ocupação nas horas ociosas e consolo nashoras de aborrecimento” – Ela escreve bem, não escreve? “Lá...” – ela continuou lendo numa voz levemente
jocosa.Decidira que Sir Walter afastaria a mente do marido dasarmas da Grã-Bretanha e o transportaria para um mundorefinado, exótico, jovial e um tanto ridículo.
Algum tempodepois pareceu que o sol se punha e os contornos se tornavam mais suaves. Rachel levantou os olhos para ver o quecausara aquela mudança.As pálpebras de
Richard estavamse fechando e abrindo, abrindo e fechando. Uma respiração nasal forte anunciou que ele já não mantinha as aparênciase dormia profundamente.
– Triunfo! – sussurrou Clarissa no fim de uma frase. De repente, ergueu as mãos em protesto. Um marinheiro aguardava; ela deu o livro a Rachel e deu uns passos leves
para pegar o recado: “Mr. Grice queria saber se era conveniente” etc. Ela o seguiu. Ridley, que vagara por ali, avançou, parou e com um gesto de desagrado afastou-se
para o seu estúdio. O político adormecido ficou aos cuidados de Rachel. Ela leu uma frase e deu uma olhada nele. Dormindo, ele parecia um casaco pendurado ao pé
de uma cama; lá estavam todas as rugas, as mangas e pernas de calças mantinham a forma, embora já não preenchidas por pernas e braços. É quando melhor se pode julgar
a idade e o estado do casaco. Ela o examinou todo até quando lhe pareceu que ele teria protestado.
Era um homem de talvez 40 anos; e havia linhas em torno de seus olhos, e curiosas fendas em suas faces. Parecia um pouco desgastado, mas persistente e no auge da
vida.
Irmãs, um ratinho e alguns canários – murmurou Rachel, sem tirar o olho dele. – Não sei, não sei. – Ela calou-se, queixo na mão, ainda olhando para ele. Um sino
tocou atrás deles, e Richard ergueu a cabeça. Depois abriuos olhos tendo por um segundo a expressão bizarra de ummíope cujos óculos se perderam. Levou um momento
parase recuperar da impropriedade de ter roncado, e talvez grunhido, diante de uma jovem. Acordar e ver-se sozinho com alguém também era um pouco desconcertante.
Parece que andei cochilando – disse ele. – O que aconteceu com todo mundo? E Clarissa?
– Mrs. Dalloway foi olhar os peixes de Mr. Grice – respondeu Rachel.
– Eu devia ter adivinhado – disse Richard. – Um fato comum. E como a senhorita usou essa hora luminosa? Converteu-se?
– Acho que não li uma só linha – respondeu Rachel.
– É o que eu sempre acho. Há coisas demais para se olhar. Acho a natureza muito estimulante. Minhas melhores idéias me vieram ao ar livre.
– Quando estava caminhando?
– Caminhando... cavalgando... andando de barco...acho que a conversa mais importante de minha vidaaconteceu enquanto eu perambulava no grande pátio emTrinity. Estive
nas duas universidades. Era um caprichodo meu pai. Ele achava que isso alargava a mente. Achoque concordo com ele. Posso lembrar... parece que fazum século!... que
eu estava decidindo a base de um futuro estado com o atual Secretário da Índia. Nós nos achávamos muito sábios. Não sei se não éramos. Éramos felizes, Miss Vinrace,
e éramos jovens... talentos que compensam a sabedoria.
– E fizeram o que disseram que iam fazer? – perguntou ela.
– Pergunta desconcertante! Respondo: sim e não. Se de um lado não realizei o que desejei realizar... e quem de nós realiza?... de outro lado posso honestamente dizer
isso: não diminuí meu ideal.
Ele contemplou com ar resoluto uma gaivota como se seu ideal voasse nas asas do pássaro.
– Mas – disse Rachel – qual é o seu ideal?
– Está perguntando demais, Miss Vinrace – disse Richard em tom de brincadeira. Ela apenas pôde dizer que queria saber, e Richard estava se divertindo o suficiente
para responder:
– Bem,como devo responder? Numa palavra...Unidade.Unidade de objetivo, de domínio, de progresso. A dispersãodas melhores idéias sobre a maior área possível.
– Dos ingleses?
– Garanto que os ingleses parecem de modo geral mais brancos do que a maioria dos homens, seus registros, mais limpos. Mas, meu Deus, não pense que não vejo as desvantagens...
horrores... coisas que nem se pode mencionar,feitas entre nossa própria gente! Não tenho ilusões.Poucas pessoas, suponho, têm menos ilusões do que eu. Já esteve
numa fábrica, Miss Vinrace? Não, acho que não... posso dizer que espero que não.Rachel mal caminhara numa rua pobre, e sempre acompanhada pelo pai, pela criada ou
pelas tias.
– Eu ia dizer que se já tivesse visto o tipo de coisa queacontece ao seu redor, compreenderia o que faz de homens,como eu, políticos. A senhorita me perguntou há
pouco seeu fiz o que pretendia fazer. Bem, quando penso em minhavida, há um fato do qual admito sentir orgulho; por minhacausa milhares de mocinhas em Lancashire...
e muitos milhares que virão depois delas... podem passar uma horatodo dia ao ar livre, enquanto suas mães tiveram de passá-ladiante de seus teares. Tenho mais orgulho
disso do que teria se escrevesse como Keats e Shelley!
Foi penoso para Rachel ser um dos que preferem Keats e Shelley.
Ela gostava de Richard Dalloway e tornava-se mais cálida na medida em que ele também o fazia. Ele parecia falar a sério.
– Eu não sei nada! – exclamou ela.
– É bem melhor não saber de nada – disse ele paternalmente –, e tenho certeza de que está enganada.Disseram-me que a senhorita toca piano muito bem, e sem dúvida
leu montes de livros eruditos. Brincadeiras dos mais velhos já não a incomodavam.
– O senhor fala de unidade – disse ela. – Devia tentar me fazer entender.
– Eu nunca permito que minha mulher fale de política
– disse ele, gravemente. – Por esta razão. É impossível para seres humanos, constituídos como são, ao mesmo tempo lutar e ter ideais. Se preservei os meus, e fico
grato por poder dizer que fiz isso em grande escala, é porque tenho voltado para casa, para minha esposa de noite, e ver que ela passou o dia fazendo visitas, tocando
música,brincando com as crianças e cumprindo seus deveres domésticos... o que você fará; as ilusões dela não foram destruídas. Ela me dá coragem para prosseguir.
A tensão da vida pública é enorme – acrescentou ele.Isso o fazia parecer um mártir abalado, todo dia desfazendo-se do mais puro ouro, a serviço da humanidade.
– Nem posso imaginar como alguém faz isso! – exclamou Rachel.
– Explique, Miss Vinrace – disse ele. – Esse é um assunto que quero esclarecer.
A amabilidade de Dalloway era sincera, e ela decidiu aceitar a chance que ele lhe dava, embora falar com um homem de tal importância e autoridade fizesse seu coração
disparar.
– Parece-me assim – começou ela, primeiro esforçando-se por lembrar e depois por expor suas amedrontadas visões particulares.
– Há uma velha viúva em um quarto, em algum lugar,digamos, nos subúrbios de Leeds.Richard inclinou a cabeça para mostrar que aceitara a viúva.
– Em Londres o senhor passa sua vida falando, escrevendo coisas, aprovando decretos, perdendo o que parece ser natural. O resultado de tudo isso é que ela vai ao
seu guarda-comida e acha um pouco mais de chá, alguns torrões de açúcar, ou um pouco menos de chá e um jornal.Viúvas por todo o país, admito, fazem isso. Mas há
a mente da viúva, os afetos; a esses o senhor não atinge.Mas desperdiça seus próprios.
– Se a viúva vai ao seu guarda-comida e o encontra vazio – respondeu Richard –, podemos admitir que sua perspectiva espiritual seja afetada. Se eu puder abrir buracos
na sua filosofia, Miss Vinrace, que tem seus méritos,direi que um ser humano não é um conjunto de compartimentos, mas um organismo. Imaginação, Miss Vinrace;use
sua imaginação; é aí que vocês, jovens liberais, falham.Conceba o mundo como um todo. Agora, quanto ao seu segundo tema: quando afirma que tentando arranjar a casa
para benefício da nova geração estou desperdiçando minhas maiores capacidades, discordo totalmente. Não posso conceber uma meta mais sublime... ser cidadão do Império.
Encare isso dessa maneira, Miss Vinrace; conceba o Estado como uma engrenagem complexa; nós cidadãos somos partes dessa engrenagem; alguns cumprem tarefas mais importantes;
outros (talvez eu seja um deles) servem apenas para conectar partes obscuras do mecanismo, escondidas do olho do público. Mas se o menor parafuso falha na sua tarefa,
o funcionamento adequado do todo fica comprometido.
Era impossível combinar a imagem de uma magraviúva de preto, olhando fixamente pela janela e ansiandoter alguém com quem falar, com a imagem de uma máquina imensa,
como se vê em South Kensington, pulsando, pulsando, pulsando. A tentativa de comunicaçãofora um fracasso.
– Parece que não nos entendemos – disse ela.
– Posso dizer alguma coisa que vai deixar a senhorita muito zangada? – perguntou ele.
– Não vou ficar – disse ela.
– Pois então muito bem; nenhuma mulher tem o que eu chamaria de instinto político. Vocês têm virtudes imensas; sou o primeiro, espero, a admitir isso; mas nunca
conheci uma mulher que sequer reconhecesse o que é ser estadista. Vou deixá-la mais irada ainda. Espero nunca conhecer essa mulher. Agora, Miss Vinrace, somos inimigos
para o resto da vida? Vaidade, irritação e um pungente desejo de ser compreendida impeliram-na a fazer ainda outra tentativa.
– Debaixo das ruas, nos esgotos, nos fios, nos telefones, há alguma coisa viva; é disso que o senhor está falando? Em coisas como carrocinhas de garis e homensconsertando
estradas? O senhor sente isso o tempo todo, quando caminha por Londres e quando abre uma torneira e sai água?
– Certamente – disse Richard. – Compreendo que a senhorita quer dizer que o todo de uma sociedade moderna se baseia no esforço de cooperação. Se ao menos mais pessoas
entendessem isso, Miss Vinrace, haveria menos das suas velhas viúvas solitárias e nostálgicas!
Rachel pensou por um momento.
– O senhor é liberal ou conservador? – indagou.
– Eu me chamo de conservador por causa da conveniência – disse Richard sorrindo.
– Mas há mais em comum entre os dois partidos do que geralmente as pessoas admitem.Houve uma pausa, que da parte de Rachel não se deviaà falta de coisas a dizer;
como de costume ela não as podiadizer, e ficava mais confusa ainda porque provavelmente havia pouco tempo para conversar. Era perseguida poridéias absurdamente obscuras
– como se se voltasse atrás o suficiente, talvez tudo ficasse inteligível; tudo era comum,pois os mamutes que tinham pastado nos campos da ruaprincipal de Richmond
tinham se transformado em pedrasde calçamento e caixas cheias de fitas, e em suas tias.
– O senhor disse que vivia no campo quando era criança? – perguntou ela.
Embora os modos dela lhe parecessem rudes, Richard ficou contente. Não podia haver dúvida de que o interesse dela era genuíno.
– Sim – ele sorriu.
– E o que foi que aconteceu? – perguntou ela. – Ou estou fazendo perguntas demais?
– Asseguro-lhe que fico contente. Mas... vamos ver... o que foi que aconteceu? Bem, cavalgar, aulas, irmãs. Havia um monte de entulho encantado, lembro-me disso,
onde acontecia toda sorte de coisas bizarras. Estranho, as coisas que impressionam as crianças! Lembro a aparência do lugar até hoje. É um engano pensar que as crianças
são felizes. Não são; são infelizes. Nunca sofri tanto quanto sofri quando criança.
– Por quê? – perguntou ela.
– Eu não me dava bem com meu pai – disse Richard,lacônico. – Ele era um homem muito capaz, mas duro.Bem... isso nos faz decidir não cometer o mesmo pecado.Crianças
nunca esquecem injustiças. Perdoam muitas coisas com que os adultos se importam; mas esse pecado é opecado imperdoável. Atrevo-me a dizer que eu era umacriança difícil
de se lidar; mas quando penso no que estavadisposto a dar! Não, pecaram mais contra mim do que eupequei. E depois fui para a escola, onde me dei bastantebem; depois,
como lhe disse, meu pai me mandou para asduas universidades... Sabe, Miss Vinrace, que a senhoritame fez pensar? Como afinal se pode dizer pouco a outrapessoa sobre
a nossa própria vida! Estou aqui sentado; asenhorita está aí sentada; não duvido de que ambos estejamos repletos das mais interessantes experiências, idéias,emoções;
mas como nos comunicarmos? Eu lhe disse o que praticamente qualquer um lhe diria.
– Acho que não – disse ela. – É o jeito de dizer as coisas, não é? E não as coisas em si.
– Verdade – disse Richard. – Absolutamente verdade.
– Ele fez uma pausa. – Quando olho para trás, para minha vida... tenho 42 anos... quais são os grandes fatos que se destacam? Quais foram as revelações, se posso
chamá-lasassim? A miséria dos pobres e... (ele hesitou e lançou)“o amor!”
Nessa palavra ele baixou a voz; era uma palavra que parecia desvendar os céus para Rachel.
– É uma coisa estranha para se dizer a uma jovem – prosseguiu ele. – Mas a senhorita tem idéia do que... o que quero dizer com isso? Não, é claro que não. Não uso
a palavra no sentido convencional. Uso-a como os rapazes a usam. As moças são mantidas na maior ignorância, não são? Talvez seja uma coisa sábia... talvez... A senhorita
não sabe?
Ele falava como se tivesse perdido a consciência do que dizia.
Não, não sei – disse ela, quase sussurrando.
Navios de guerra, Dick! Ali! Olhe!
Clarissa, liberada por Mr. Grice, tendo apreciado todas as suas algas marinhas, deslizava na direção deles,gesticulando.
Avistara dois sinistros navios cinzentos, bastante mergulhados na água e de aparência pobre, um seguindo o outro bem de perto, e que lembravam feras sem olhosprocurando
suas presas. Richard retomou a consciênciaimediatamente.
– Meu Deus! – exclamou, protegendo os olhos com a mão.
Nossos, Dick? – perguntou Clarissa.
A Frota do Mediterrâneo – respondeu ele.O Euphrosyne içava sua bandeira lentamente. Richard ergueu o chapéu. Clarissa apertava a mão deRachel convulsivamente.
– Não fica feliz de ser inglesa? – perguntou.
Os navios de guerra passaram lançando um curioso efeito de disciplina e tristeza sobre as águas, e só quando ficaram invisíveis de novo as pessoas voltaram a falar
com naturalidade. No almoço a conversa girou em torno de valores de morte, e as magníficas qualidades dos almirantes britânicos. Clarissa citou um poeta, Willoughby
citou outro. A vida de um combatente a bordo era esplêndida,concordaram, e os marujos eram particularmente simpáticos e simples.
Sendo assim, ninguém gostou quando Helen comentou que lhe parecia tão errado ter marinheiros quanto ter um zoológico, e que quanto a morrer no campo de batalha,
estava certamente na hora de pararmos de elogiar a coragem – “ou de escrever poesia ruim a respeito dela”,rosnou Pepper.
Mas Helen estava na verdade imaginando por queRachel, sentada em silêncio, parecia tão esquisita e corada.
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Mas ela não foi capaz de seguir com suas observações ou de chegar a alguma conclusão, pois, por um desses acidentes passíveis de acontecer no mar, todo o curso das
suas vidas foi perturbado.
Mesmo na hora do chá, o assoalho erguia-se debaixo dos seus pés e lançava-se abaixo, e no jantar o navio parecia gemer e contorcer-se como se uma chibata estivesse
descendo sobre ele. Esse navio, que fora um cavalo deflancos largos, em cujos quartos pierrôs poderiam terdançado, tornou-se um potro solto nos campos. Os pratos
deslizavam longe das facas, e o rosto de Miss Dalloway empalideceu por um segundo quando ela seservia e viu as batatas rolarem de um lado para outro.Willoughby naturalmente
exaltou as virtudes do seu navio e citou o que peritos e passageiros notáveis tinham dito sobre ele, pois amava seus bens. Mesmo assim ojantar foi desconfortável,
e assim que as damas ficaramsozinhas, Clarissa disse que ficaria melhor na cama e sefoi, sorrindo corajosamente.
Na manhã seguinte a tempestade baixou sobre eles, e nenhuma boa educação podia ignorar esse fato. Mrs.Dalloway ficou em seu quarto. Richard enfrentou trêsrefeições,
comendo valentemente em cada uma delas; mas na terceira, aspargos boiando em azeite finalmente o derrubaram.
– Isso liquidou comigo – disse ele, e retirou-se.
– Agora estamos mais uma vez sozinhos – disse William Pepper, olhando em torno da mesa; mas ninguém se dispunha a conversar, e a refeição terminou em silêncio.
No dia seguinte encontraram-se, mas como folhas soltas se encontram no ar. Não estavam nauseados; mas o vento os precipitava impetuosamente para os quartos e violentamente
escada abaixo. Passavam uns pelos outros no convés, arquejantes; gritavam para serem ouvidos do outro lado da mesa. Usavam casacos de pele; e Helen nunca era vista
sem um lenço na cabeça. Para maior conforto retiravam-se para suas cabines onde, com pés firmemente apoiados, deixavam o navio saltar e inclinar-se.Sentiam-se como
batatas num saco sobre um cavalo a galope. O mundo lá fora era um tumulto gris e violento. Por dois dias tiveram um perfeito descanso de suas velhas emoções. Rachel
tinha suficiente consciência apenas para imaginar-se um burrico no meio de um charco numa tempestade de granizo,mostrando os sulcos deixados pelo vento no seu pêlo;
depois tornou-se uma árvore enfeitiçada, perpetuamente empurrada para trás pelo vento salgado do Atlântico.
Helen, por sua vez, cambaleou até a porta de Mrs.Dalloway, bateu, não pôde ser ouvida por causa das portas que batiam e dos golpes do vento, e entrou.
Naturalmente havia bacias. Mrs. Dalloway repousava soerguida sobre travesseiros e não abriu os olhos. Depois murmurou:
– Oh, Dick, é você? Helen gritou – pois foi lançada contra a pia: – Como está você? Clarissa abriu um olho. Aquilo lhe deu uma aparência inacreditavelmente devassa.
– Horrível! – arquejou. Seus lábios estavam brancos por dentro.Plantando os pés bem separados no chão, Helen tentou despejar champanha numa caneca com uma escova
de dentes dentro. – Champanha – disse.
– Há uma escova de dentes aí dentro – murmurou Clarissa, e sorriu; podia ter sido também uma careta de choro. Ela bebeu.
– Nojento – sussurrou, apontando as bacias. Restos de bom humor ainda brincavam em sua face como o luar.
– Quer mais? – gritou Helen. Mais uma vez a fala ficavaalém do alcance de Clarissa. O vento deitava o navio de lado, tremendo. Pálidas agonias cruzaram o rosto de
Mrs. Dalloway,em ondas.Quando as cortinas balouçaram,luzes cinzentas sopraram sobre ela. Entre os espasmos da tempestade, Helenajeitou as cortinas, sacudiu os travesseiros,
esticou as roupas decama e acalmou as narinas quentes e a testa com perfume frio.
– Você é muito boa! – arquejou Clarissa. – Que confusão horrível!
Estava tentando desculpar-se pelas roupas de baixo brancas caídas e espalhadas no chão. Por um segundo abriu um olho e viu que o quarto estava arrumado.
– Muito simpático de sua parte – arquejou.
Helen deixou-a; bem distante ela sentia uma espécie de simpatia por Mrs. Dalloway. Não podia deixar de respeitar seu caráter e seu desejo, mesmo nas convulsões da
náusea, de um quarto de dormir bem arrumado. Mas suas anáguas vinham acima dos joelhos.
Subitamente a tempestade relaxou seu domínio. Aconteceu na hora do chá; o esperado paroxismo do vendaval cedeu exatamente quando atingiu o clímax e afastouse definhando,
e o navio, em vez de dar o mergulho usual,seguiu adiante, sólido. A monótona seqüência de mergulhar e subir, bramir e relaxar, mudou, e todos na mesa ergueram os
olhos e sentiram alguma coisa afrouxar-se internamente. A tensão aliviou-se, os sentimentos humanos começaram a agir novamente, como quando a luz do diaaparece no
fim de um túnel.
Tente uma volta comigo – Ridley chamou Rachel do outro lado da mesa.
Bobagem! – gritou Helen, mas subiram a escada aos tropeções.
Sufocados pelo vento, animaram-se num ímpeto, pois nas beiradas de todo aquele tumulto gris havia um nevoento ponto dourado. Instantaneamente o mundo voltou a tomar
forma; não eram mais átomos voando no vácuo, mas gente sobre um navio triunfante no dorso do mar.
Vento e espaço tinham sido banidos; o mundo flutuava como uma maçã numa bacia, e a mente humana, que também estivera desenraizada, mais uma vez se prendia às velhas
crenças.
Tendo andado em torno do navio duas vezes, recebendo muitos golpes fortes do vento, viram um rosto de marinheiro de brilho positivamente dourado. Olharam e contemplaram
um círculo amarelo de sol; no minuto seguinte, ele foi atravessado por faixas errantes de nuvens, e depois completamente obscurecido. No café da manhã seguinte,
porém, o céu estava varrido e limpo, as ondas,embora altas, eram azuis, e depois da visão do estranho submundo habitado por fantasmas, as pessoas começaram a viver
entre potes de chá e fatias de pão com mais entusiasmo do que nunca.
Mas Richard e Clarissa ainda estavam na fronteira.Ela não tentou soerguer-se; seu marido estava de pé, contemplou seu colete e suas calças, sacudiu a cabeça e depoisdeitou-se
de novo. O interior de seu cérebro ainda se erguiae baixava como o mar no palco. Às quatro horas ele acordou e viu a luz do sol formar um ângulo vívido sobre ascortinas
de veludo vermelho e as calças de tweed cinza. O mundo comum lá fora escorregou para dentro de sua mente, e quando se vestiu voltou a ser um cavalheiro inglês.
Sentou-se ao lado de sua esposa. Ela o puxou para junto de si pela lapela do casaco, beijou-o e segurou-o por um minuto.
– Vá pegar um pouco de ar, Dick – disse ela. – Parece muito abatido... Que bom o seu cheiro!... E seja educado com aquela mulher. Ela foi boa comigo.
Depois disso Mrs. Dalloway virou-se para o lado fresco do travesseiro, terrivelmente abatida mas ainda invencível. Richard encontrou Helen falando com o cunhado
diante de dois pratos de bolo amarelo, pão macio e manteiga.
– O senhor parece muito doente! – exclamou ela ao vê-lo. – Venha tomar um pouco de chá.Ele notou que as mãos que se moviam sobre as xícaras eram lindas.
– Ouvi dizer que a senhora foi muito boa com minha esposa – disse. – Ela passou momentos terríveis. A senhora entrou e lhe deu champanha. Esteve também entre os
que não sofreram?
– Eu? Ah, eu não enjôo há 20 anos... enjôo de mar,quero dizer.
– Há três fases de convalescença, eu sempre digo – interrompeu a voz forte de Willoughby. – A fase do leite, a fase do pão com manteiga e a fase do rosbife. Eu diria
que o senhor está na fase de pão com manteiga. – E passoulhe o prato. – Agora eu aconselharia um chá reforçado e uma boa caminhada no convés; e na hora do jantar
vai estar pedindo um bife, hein? – Ele afastou-se, rindo, desculpando-se por causa do trabalho.
– Que sujeito esplêndido esse! – exclamou Richard. – Sempre entusiasmado com alguma coisa.
– Sim – disse Helen –, ele sempre foi assim.
– Este é um grande empreendimento dele – continuouRichard. – É um negócio que não pára nos navios, eu diria.Nós ainda o veremos no Parlamento, ou estou muito enganado.
É o tipo de homem que queremos no Parlamento, ohomem que realizou coisas.
Mas Helen não estava muito interessada no cunhado. – Imagino que sua cabeça esteja doendo, não está? – perguntou ela servindo nova xícara de chá.
– Sim, está – disse Richard. – É humilhante ver que neste mundo se é tão escravo do corpo. Sabe, eu nunca consigo trabalhar sem uma chaleira sobre o aparador.Muitas
vezes nem bebo chá, mas tenho de saber que poderei tomar, se quiser.
– Isso é péssimo para o senhor – disse Helen.
– Encurta a vida; mas, receio, Mrs. Ambrose, que nós políticos tenhamos de nos decidir sobre isso no começo.Temos de queimar nossa vela nas duas pontas, ou...
– Você põe tudo a perder! – disse Helen, divertida.
– Não podemos fazer a senhora nos levar a sério, Mrs.Ambrose – protestou ele. – Posso lhe perguntar como passa seu tempo? Lendo... filosofia? – (Ele viu o livro
pre-to.) – Metafísica e pescaria! – exclamou. – Se eu tivesse de viver de novo, acho que me devotaria a uma coisa ou outra. – Começou a folhear as páginas.
– “O bem,então,é indefinível”– leu em voz alta. – Que alegria pensar que isso continua! “Até onde eu sei, há um só escritor ético, o professor Henry Sidgwick, que
reconheceu claramente e afirmou esse fato.” É exatamente o tipo de coisa de que costumávamos falar quando meninos. Lembro-me de discutir até as cinco da manhã com
Duffy, agora Secretário da Índia, caminhando naqueles claustros até decidirmos que era tarde demais para ir para a cama, e em vez disso íamos andar a cavalo. Se
chegamos a alguma conclusão... isso é outro assunto. Mas é a discussão que conta. São coisas assim que se destacam na vida.
Nada desde então foi tão vívido. São os filósofos, os intelectuais – continuou ele, – eles é que são as pessoas que passam adiante a tocha, que mantêm o fogo queimando
enquanto estamos vivos. Ser político não nos faz cegos necessariamente para isso, Mrs. Ambrose.
– Não. E por que faria? – disse Helen. – Mas o senhor consegue lembrar se sua esposa toma com açúcar? Ela levantou a bandeja e saiu para levá-la a Mrs.Dalloway.Richard
enrolou duas vezes um cachecol no pescoço e subiu com esforço até o convés. Seu corpo, que ficara branco e macio no quarto escuro, formigava no ar fresco.Sentia-se
realmente no auge da vida. O orgulho brilhava em seus olhos enquanto deixava o vento fustigá-lo e permanecia firme. Com a cabeça levemente baixada ele dobrou esquinas,
subiu ladeiras, enfrentou o vento. Houve uma colisão, por um segundo ele não pôde ver em que corpo batera.
– Perdão, perdão. – Foi Rachel quem pediu desculpas.Os dois riram, havia vento demais para poderem falar. Ela abriu a porta de seu quarto e entrou naquela calmaria.Para
falar com ela, Richard também teria de entrar. Estavam parados num redemoinho de vento; papéis começaram a voar em círculo, a porta fechou-se com estrondo, e eles
cambalearam, rindo, até suas cadeiras. Richard sentou-se em cima de Bach.
– Meu Deus! Que tempestade! – exclamou ele.
– Maravilha, não é? – disse Rachel. Certamente a luta e o vento tinham-lhe fornecido a determinação que lhe faltava; havia rubor em suas faces, e o cabelo estava
solto.
– Ah, que divertido! – gritou ele. – Estou sentado em quê? Este é seu quarto? Como é alegre!
– Ali... sente-se ali – comandou ela. Mais uma vez o Cowper escorregou.
– Que bom encontrarmo-nos de novo – disse Richard.
– Parece um século. Cartas de Cowper?... Bach?... Morro dos ventos uivantes?... É aqui que a senhorita medita sobre o mundo e depois sai e enfrenta pobres políticos
com perguntas? Nos intervalos de enjôo pensei muito na sua con-versa. Acredite, me fez pensar.
– Eu o fiz pensar! Mas por quê?
– Que solitários icebergs nós somos, Miss Vinrace! Como nos comunicamos pouco! Há muitas coisas que eu gostaria de lhe dizer... e sobre as quais quero ouvir sua
opinião. Alguma vez leu Burke?
– Burke? – repetiu ela. – Quem foi Burke?
– Não? Bem, então faço questão de lhe enviar um exemplar. O discurso sobre a Revolução Francesa – A rebelião americana? Fico pensando, o que seria? – Ele anotou
alguma coisa em sua agenda. – E depois a senhoritaterá de me escrever e dizer o que achou. Essa reticência... esse isolamento... é esse o problema na vida moderna!
Agora, fale-me de si. Quais seus interesses eocupações? Devo imaginar que é uma pessoa com interesses bem marcados. Claro que é! Santo Deus! Quandopenso na era em
que vivemos, com suas oportunidadese possibilidades, o monte de coisas a serem feitas eaproveitadas... por que não temos dez vidas em vez deuma? Mas, e a senhorita?
Como vê, eu sou uma mulher – disse Rachel.
Eu sei... eu sei – disse Richard, jogando a cabeça para trás e passando os dedos sobre os olhos. – Que estranho ser uma mulher! Uma mulher jovem e linda – continuou
ele, sentencioso – com o mundo todo a seus pés. É verdade, Miss Vinrace. Vocês têm um poder inestimável... para o bem ou para o mal. O que não poderiam fazer...
– ele interrompeu-se.
– O quê? – perguntou Rachel.
Vocês têm beleza – disse ele. O navio inclinou-se. Rachel caiu um pouco para a frente. Richard pegou-a nos braços e beijou-a. Abraçando-a fortemente, beijou-a com
paixão, de modo que ela sentiu a dureza do seu corpo e aspereza do seu rosto apertado contra o dela. Ela caiu para trás na cadeira, com o coração disparado, a cada
pulsação mandando ondas escuras sobre seus olhos. Ele agarrou a testa com as mãos.
Você me tenta – disse ele. O seu tom de voz era assustador. Parecia sufocado na luta. Ambos tremiam. Rachel levantou-se e saiu. Sua cabeça estava fria, os joelhos
tremendo, e a dor física da emoção era tanta que só conseguia mexer-se com grandes saltos do coração. Inclinou-se na amurada do navio e aos poucos deixou de sentir,pois
um frio gélido cobria seu corpo e mente.Bem longe entre as ondas flutuavam aves marinhas negras e brancas. Alteando-se e caindo com movimentos leves e graciosos
nas cavidades das ondas, pareciam singularmente desligadas e despreocupadas.
Vocês são tão pacíficas – disse ela, também apaziguada, ao mesmo tempo dominada por uma estranhaexaltação. A vida parecia conter infinitas possibilidades que ela
jamais adivinhara. Debruçou-se na amurada eolhou as águas cinzentas e turbulentas, onde o sol sefragmentava na crista das ondas, até ficar fria e inteiramente calma
mais uma vez. Mesmo assim, algo de maravilhoso acontecera.
Porém no jantar ela não se sentiu exaltada, apenas desconfortável, como se ela e Richard tivessem visto juntos algo que é escondido na vida comum, de modo que já
não quisessem fitar-se nos olhos. Richard deslizou os olhos sobre ela uma vez, inquieto, e não a fitou mais. Chavões formais foram fabricados com esforço, mas Willoughby
estava animado.
– Bife para Mr. Dalloway! – gritou. – Vamos... depois da caminhada, Dalloway, você chegou à fase da carne!
Seguiram-se maravilhosas histórias masculinas sobre Bright e Disraeli e governos de coalizão, histórias maravilhosas que faziam as pessoas à mesa de jantar parecerem
insignificantes, sem nada de especial. Depois do jantar,sentada sozinha com Rachel debaixo do grande lampião que balouçava, Helen ficou impressionada com a palidez
dela. Mais uma vez ocorreu-lhe que havia algo esquisito no comportamento daquela moça.
– Parece cansada. Está cansada? – perguntou.
– Cansada não – disse Rachel. – Ah, sim, acho que estou cansada.
Helen aconselhou-a a ir para a cama, e ela foi, sem voltar a ver Richard. Devia estar cansada, pois adormeceu logo, mas depois de uma hora ou duas de um sono sem
sonhos, sonhou. Sonhou que estava caminhando por um longo túnel, que se estreitava tanto que ela podia tocar os tijolos úmidos dos dois lados. Com o tempo o túnel
se abriu tornando-se uma abóbada; ela viu-se presa ali dentro, tijolos ao redor em todos os lados, sozinha com um homenzinho deformado e de unhas longas que se agachava
no chão falando coisas inarticuladas. Seu rosto era agudo como o focinho de um animal. A parede atrás dele exsudava umidade, que se cristalizava em gotas e escorria.Quieta
e fria como a morte ela se deitou ali sem atreverse a se mexer, até romper a agonia jogando-se atravessada na cama, e acordou gritando “Oh!”
A luz mostrou-lhe as coisas familiares: suas roupas caídas da cadeira, o jarro de água brilhando branco, mas o horror não se foi logo. Sentia-se perseguida, de modo
que se levantou e trancou a porta. Uma voz gemia chamando por ela; olhos a desejavam. Por toda a noite homens bárbaros assediavam o navio; desciam barulhentos pelos
corredores, paravam para fungar na sua porta. Ela não conseguiu mais dormir.
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Essa é a tragédia da vida, como sempre digo! – disse Mrs. Dalloway. – Começar coisas e ter de terminá-las. Mas não vou deixar isto terminar, se você concordar. –
Era de manhã, o mar estava calmo, e o navio, mais uma vez ancorado perto de outra praia.
Ela vestia seu longo manto de peles com os véus enrolados em torno da cabeça, e mais uma vez as ricas caixas estavam umas sobre as outras, de modo que parecia repetir-se
a cena de alguns dias atrás.
– Você acha que vamos nos encontrar em Londres? – disse Ridley irônico. – Você terá esquecido completamente de mim quando sair do barco.
Ele apontou a praia da pequena baía onde podiam agora ver as árvores e seus galhos se movendo.
– Como você é horrível! – ela riu. – Rachel vai me visitar... assim que você voltar – disse ela apertando o braço de Rachel. – Agora, você não tem desculpa!
Com um lápis de prata ela escreveu seu nome e endereço na folha de rosto de Persuasão e entregou o livro a Rachel.Marinheiros estavam botando a bagagem nos ombros,
e aspessoas começavam a reunir-se em grupo. Havia o capitãoCobbold, Mr. Grice, Willoughby, Helen, e um homem humilde e agradável numa camiseta de malha azul.
– Ah, está na hora – disse Clarissa. – Bem, adeus. Eu gosto mesmo de você – murmurou, e beijou Rachel.Pessoas interpondo-se entre eles pouparam Richard de apertar
a mão de Rachel; ele conseguiu encará-la sem convicção por um segundo antes de seguir sua esposa descendo pelo flanco do navio.O barco que se apartava do navio dirigiu-se
para a terra, e por alguns minutos Helen, Ridley e Rachel encostaram-se na amurada observando. Mrs. Dalloway virou-se e acenou; mas o bote ficava cada vez menor
e menor, até cessar de levantar-se e abaixar-se, e nada se poderia ver senão duas costas resolutas.
– Bem, acabou – disse Ridley depois de um longo silêncio. – A eles, nós nunca mais veremos – acrescentou virando-se para ir até seus livros. Uma sensação de vazio
e melancolia os dominava; sabiam em seus corações que aquilo tinha acabado e que se tinham separadopara sempre, e a consciência disso provocava neles umadepressão
bem maior do que se justificaria pelo tempo que se conheciam. Mesmo quando o bote se afastavapodiam sentir outras visitas e sons começando a tomar o lugar dos Dalloway,
e a sensação era tão desagradável que tentaram resistir. Pois assim também eles seriamesquecidos.
De um modo bastante parecido com Mrs.Chailey varrendo do toucador as pétalas de rosa murchas, Helen estava ansiosa por ajeitar as coisas depois de os visitantes
terem partido.A óbvia languidez e distração de Rachel a tornavam presa fácil, e Helen na verdade tramara uma espécie de armadilha.Agora sentia com bastante segurança
que algo acontecera; além disso, começara a pensar que já tinham sido estranhastempo suficiente e desejava saber como era aquela moça, em parte, é claro, porque
Rachel não mostrava disposição de serconhecida. Assim, quando se afastaram da amurada, ela disse:
– Venha conversar comigo em vez de exercitar-se ao piano – e mostrou o caminho para o lado abrigado onde se estendiam as cadeiras do convés, ao sol. Rachel seguiu-a,
indiferente. Sua mente estava absorvida por Richard, pela extrema estranheza do que acontecera e por mil sentimentos deque não tivera consciência anteriormente.
Ela quase nemtentava escutar o que Helen dizia, enquanto esta falava lugares-comuns. Enquanto Mrs. Ambrose arranjava seu bordado, chupava seu fio de seda e o enfiava
na agulha, Racheldeitava-se para trás fitando o horizonte.
– Você gostou daquela gente? – perguntou Helen em tom casual.
Sim – respondeu sem rodeios.
Você conversou com ele, não foi? Por um minuto ela nada disse.
Ele me beijou – disse depois, sem mudar a entonação.
Helen sobressaltou-se, olhou-a, mas não conseguiu descobrir o que ela sentia.
– Humm... sim – disse, depois de uma pausa. – Achei que ele era esse tipo de homem.
Que tipo de homem? – disse Rachel.
Pomposo e sentimental.
Eu gostava dele – disse Rachel.
Então não se importou?
Pela primeira vez desde que Helen conhecia Rachel,os olhos da moça se iluminaram.
Eu me importei – disse ela veemente. – Tive sonhos. Não consegui dormir.
Conte-me o que aconteceu – disse Helen, que tinha de cuidar para que seus lábios não se repuxassemenquanto escutava a história de Rachel, que foi despejada abruptamente,
com grande seriedade e nenhum senso de humor.
Estávamos falando sobre política. Ele me disse o que tinha feito pelos pobres em algum lugar. Eu lhe fiz toda sorte de perguntas. Ele me falou de sua vida. Anteontem,depois
da tempestade, ele veio me ver. E então aconteceu,bem de repente. Ele me beijou. Não sei por quê. – À medida que falava, Rachel enrubescia. – Fiquei muito excitada,
mas não me importei, a não ser depois, quando – ela fez uma pausa e viu novamente a figura daquele homenzinho inchado – fiquei aterrorizada.
Pela expressão de seus olhos via-se claramente que estava aterrorizada outra vez. Helen realmente não sabia o que dizer. Do pouco que conhecia da educação de Rachel,achou
que ela nada sabia sobre as relações entre homens e mulheres. Com a timidez que sentia com mulheres, e não com homens, ela não quis explicar simplesmente que relações
eram essas. Por isso, tomou o outro caminho e reduziu a importância de todo o caso.
Ora, bem – disse ela –, ele era um bobo, e se eu fosse você nem pensava mais nisso.
Não – disse Rachel, endireitando-se. – Não farei isso. Pensarei no assunto dia e noite até descobrir exatamente o que significa.
– Você nunca lê nada? – perguntou Helen, perquiridora.
– As Cartas de Cowper... coisas assim. Papai as traz para mim, ou minhas tias.
Helen quase não conseguiu evitar dizer o que pensava de um homem que educava sua filha de modo que, com 24 anos, ela mal soubesse que homens desejam mulheres e ainda
ficasse apavorada com um beijo. Teve boas razões de recear que Rachel houvesse feito um papel incrivelmente ridículo.
Você não conhece muitos homens? – perguntou.
Mr. Pepper – disse Rachel, com ironia.
Então, nenhum que quisesse se casar com você?
Não – respondeu ela, ingenuamente.
Helen refletiu que, já que Rachel – tendo em vista o que ela própria dissera – certamente pensaria em tais coisas, seria bom ajudá-la.
– Você não devia ter medo – disse ela. – É a coisa mais natural do mundo. Homens vão querer beijar você assim como vão querer se casar com você. Pena é ver essas
coisas de modo desproporcionado. É como notar os ruídos que as pessoas fazem quando comem, ou homens cuspindo;em suma, qualquer dessas coisinhas nos dá nos nervos.
Rachel parecia não prestar atenção.
– Diga-me – disse subitamente –, como são essas mulheres em Piccadilly?
– Piccadilly? – disse Helen. – São prostitutas.
– Isso é assustador... é repugnante – afirmou Rachel, como se incluísse Helen naquele ódio.
– É, sim – disse Helen. – Mas...
– Eu gostava dele – disse Rachel como se falasse para si mesma. – Eu queria falar com ele; queria saber o que ele tinha feito. As mulheres em Lancashire...
Enquanto recordava sua conversa, pareceu-lhe que ha-via algo adorável em Richard, algo de bom em sua tentativa de amizade, e estranhamente lamentável na maneira
como tinham se separado.
Helen notou que seu estado de ânimo se abrandava.
– Veja – disse ela –, você tem de aceitar as coisas como são; e se quiser amizade com homens, tem de correr riscos. Pessoalmente – continuou, abrindo um sorriso
– acho que vale a pena; não me importo de ser beijada; acho que tenho ciúmes porque Mr. Dalloway beijou você e não a mim, embora eu o achasse bastante chato.
Mas Rachel não devolveu o sorriso, nem pôs de lado todo o caso, como Helen desejara. Sua mente trabalhavamuito depressa, inconsistente e doloridamente. As palavras
de Helen cortavam grandes blocos de um lugaronde sempre estiveram, e a luz que agora entrava erafria. Depois de sentar-se algum tempo com olhos fixosela explodiu:
– Então é por isso que não me deixam passear sozinha!
Sob essa nova luz ela via sua vida pela primeira vez como uma coisa furtiva e encerrada cuidadosamente entre altos muros, aqui virada de lado, ali mergulhada em
trevas, embotada e mutilada para sempre – a sua vida, que era a sua única chance. Mil palavras e atos se tornavam evidentes agora.
– Porque os homens são brutos! Odeio homens! – exclamou.
– Achei que você tinha dito que gostava dele – disse Helen.
– Gostava dele e gostei de ser beijada – respondeu ela,como se isso só acrescentasse mais dificuldades ao problema. Helen ficou surpresa ao ver como eram genuínos
o choque e o problema, mas não conseguiu pensar em outro jeito de facilitar as coisas, senão continuar falando. Queria fazer sua sobrinha falar, e assim entender
porque esse político bastante sem graça, bondoso e bem-falante lhe causara uma impressão tão profunda, pois certamente aos 24 anos isso não era natural.
– E você também gostava de Mrs. Dalloway? – perguntou.Enquanto falava, viu Rachel ficar mais vermelha, pois lembrava as coisas bobas que dissera e também ocorreulhe
que tratara bastante mal aquela refinada mulher, pois Mrs. Dalloway dissera que amava o marido.
– Ela era bem simpática, mas uma criatura enganadora – continuou Helen. Nunca ouvi tantas bobagens!Conversa fiada... peixe e o alfabeto grego... nunca ouviauma palavra
do que os outros diziam... cheia de teoriasidiotas sobre o jeito de criar filhos... eu preferia falarcom ele. Era pomposo, mas pelo menos compreendia oque se dizia.
Imperceptivelmente, o encanto de Richard e Clarissa desbotou um pouco. Não tinham sido tão maravilhosos,afinal, aos olhos de uma pessoa madura.
– É muito difícil saber como são as pessoas – comentou Rachel, e Helen viu com prazer que ela falava com mais naturalidade. – Acho que me enganei.
Havia pouca dúvida sobre isso em Helen, mas ela se conteve e disse alto:
– A gente tem de fazer experiências.
– E eles eram simpáticos – disse Rachel. – Extraordinariamente interessantes. – Tentou lembrar a imagem domundo como a coisa viva que Richard lhe dera, com raloscomo
nervos, e casas ruins como marcas de pele. Lembrouas suas palavras-chave Unidade e Imaginação, e viu novamente as bolhas em sua xícara de chá enquanto ele falavade
irmãs e canários, da infância e de seu pai, o pequeno mundo de Rachel alargando-se maravilhosamente.
– Mas todas as pessoas não lhe parecem igualmente interressantes, parecem? – perguntou Mrs. Ambrose.Rachel explicou que a maioria das pessoas até ali haviam sido
símbolos; mas quando falavam, cessavam deser símbolos e tornavam-se... – Ah, eu poderia ouvi-lospara sempre! – exclamou ela. Depois deu um saltou, sumiu escada abaixo
por um minuto e voltou com umgrosso livro vermelho.
– Quem é quem – disse, colocando-o sobre o joelho de Helen e virando as páginas. – Dá resumo da vida das pessoas... por exemplo: “Sir Roland Beal; nascido em1852;
pais de Moffatt; educado em Rugby; passou comoprimeiro para os Royal Engineers (R.E.)”; casou em 1878 com a filha de T. Fishwick; serviu na ExpediçãoBechuanaland
1884 – 1885 (menção honrosa). Clubes:United Service, Naval e Militar. Hobby: entusiástico jogador de curling”.
Sentada no convés aos pés de Helen, ela ficou folheando as páginas e lendo biografias de banqueiros, escritores,clérigos, marinheiros, cirurgiões, juízes, professores
universitários, estadistas, editores, filantropos, comerciantes e atrizes; a que clubes pertenciam, onde moravam, que jogos praticavam e quantos acres de terra possuíam.
Estava absorta no livro.
Enquanto isso Helen trabalhava em seu bordado e pensava nas coisas que dissera. Sua conclusão foi quegostaria muito de mostrar à sua sobrinha, se possível,como viver
ou, como dizia, como ser uma pessoa sensata.Pensou que devia haver algo errado naquela confusãoentre política e beijar políticos, e que uma pessoa maisvelha poderia
ajudar.
– Concordo – disse – que pessoas são muito interessantes; apenas... – Rachel, botando o dedo entre as páginas, ergueu os olhos interrogativamente.
– Só acho que você tem de discriminar – concluiu. – É uma pena ser íntima de pessoas que são... bem, bastante secundárias, como os Dalloway, e descobrir isso depois.
– Mas como é que se sabe? – perguntou Rachel.
– Eu realmente não sei dizer – respondeu Helen com sinceridade, depois de pensar um momento. – Vai ter de descobrir sozinha. Mas tente e... por que não me chama
de Helen? – perguntou. – “Tia” é uma palavra horrenda.Nunca gostei de minhas tias.
– Eu vou gostar de chamá-la de Helen – respondeu Rachel.
– Você me acha pouco compreensiva?
Rachel reviu os pontos que Helen não compreendera e que surgiram principalmente da diferença de quase 20 anos na idade delas, o que fazia Mrs. Ambrose parecer irônica
e fria em assuntos graves.
– Não – disse ela. – Naturalmente, algumas coisas você não entende.
– Claro – concordou Helen. – Agora, seja uma pessoa independente.A visão de sua própria personalidade, de si mesma comouma coisa real e duradoura, diferente do resto,
inconfundível, como o mar ou o vento, brilhou na mente de Rachel, e ela ficou muito excitada com a idéia de estar viva.
– Posso ser eu m... m... mesma? – gaguejou. – Apesarde você, dos Dalloway, de Mr. Pepper, de meu pai e deminhas tias, apesar de tudo isso? – perguntou ela passandoa
mão sobre toda uma página de estadistas e soldados.
– De todos eles – disse Helen gravemente. Depois largousua agulha e explicou um plano que surgia em sua mente enquanto falavam.Em vez de vagar pelo Amazonas até
chegar aalgum sulfuroso porto tropical, onde era preciso ficar dentrode casa deitada o dia todo afastando insetos com um leque, acoisa sensata a fazer seria certamente
passar uma temporadacom eles na sua villa junto ao mar,onde entre outras vantagensa própria Mrs. Ambrose estaria por perto...
– Afinal, Rachel – interrompeu ela –, é bobagem fingir que porque há 20 anos de diferença entre nós, não podemos conversar como seres humanos.
– Não; porque gostamos uma da outra – disse Rachel.
– Sim – concordou Mrs. Ambrose.
Esse fato, com outros, ficara claro na sua conversa de 20 minutos, embora agora não pudesse dizer como tinham chegado a essa conclusão.
Isso foi sério o suficiente para fazer Mrs. Ambrose um ou dois dias depois procurar seu cunhado. Encontrou-osentado em sua sala trabalhando, aplicando um grosso
lápis azul imperiosamente em maços de papel fino. Papéisjaziam à sua esquerda e à sua direita, e havia grandes envelopes tão recheados de papéis que os cuspiam na
mesa.Acima dele pendia um retrato do rosto de uma mulher. Anecessidade de sentar-se totalmente quieta diante de umfotógrafo londrino conferira a seus lábios um pequenoricto
esquisito, e seus olhos pelo mesmo motivo pareciamdar a entender que achava toda aquela situação ridícula.Mesmo assim, era o rosto de uma mulher individual e interessante,
que sem dúvida teria se virado para rir paraWilloughby, se pudesse pegar seu olhar; mas quando eleergueu os olhos para ela, suspirou fundo. Na sua menteaquele trabalho,
as grandes fábricas em Hull, que pareciam montanhas à noite, os navios que cruzavam o oceano pontualmente, os esquemas para combinar isso e aquilo econstruir uma
sólida indústria, era tudo uma oferta paraela; ele depunha seu sucesso aos pés dela; e estava semprepensando em como educar sua filha, para que Theresa ficasse contente.
Era um homem muito ambicioso e, embora não tivesse sido especialmente bondoso com ela quando era viva, como Helen achava, agora acreditava que elao observava do
céu e inspirava o que havia de bom nele.
Mrs. Ambrose desculpou-se por interromper e perguntou se poderia falar com ele sobre um plano. Ele consentiria em deixar sua filha com eles quando atracassem,em
vez de levá-la ao Amazonas?
– Nós tomaríamos conta dela muito bem – acrescentou ela. – E realmente nos daria prazer.Willoughby assumiu um ar muito grave e pôs de lado os papéis cuidadosamente.
– Ela é uma boa moça – disse ele. – Há alguma semelhança? – acenou a cabeça para o retrato de Theresa e suspirou. Helen olhou Theresa torcendo os lábios diante daquele
fotógrafo londrino. Sugeria-a de uma maneira absurdamente humana, e sentiu uma vontade imensa de fazer alguma brincadeira.
– Ela é a única coisa que me resta – suspirou Willoughby.– A gente vive ano após ano sem falar nessas coisas... – Ele interrompeu-se. – Mas é melhor assim. Só que
a vida é muito dura.
Helen teve pena dele e bateu-lhe no ombro, mas sentiu-se pouco à vontade quando seu cunhado expressou seus sentimentos, e refugiou-se em elogios a Rachel, explicando
por que achava que seu plano poderia ser bom.
– Verdade – disse Willoughby quando ela terminou.
A situação social lá tenderá a ser primitiva. Eu vou estar fora muito tempo. Concordei porque ela desejava. E naturalmente tenho total confiança em você... Veja,
Helen prosseguiu ele, agora confidencial. – Quero criá-la como sua mãe teria desejado. Não concordo com as posições modernas... não mais do que você, hein? Ela é
uma moça quieta e simpática, devotada a sua música. Um pouco menos disso não faria mal. Mas é feliz, e levamos uma vida bastante calma em Richmond. Eu gostaria que
ela começasse a encontrar mais gente. Quero levá-la comigo para sair, quando voltar para casa. Estou quase decidido a alugar uma casa em Londres, deixando minhas
irmãs em Richmond, e levá-la para conhecer uma ou duas pessoas que seriam boas com ela por minha causa. Começo a perceber – continuou ele, esticando o corpo – que
tudo isso me levará ao Parlamento, Helen. É o único jeito de conseguir fazer as coisas como a gente deseja. Falei com Dalloway a respeito. Nesse caso, naturalmente,
eu devo querer que Rachel participe mais das coisas. Certa quantidade de diversão seria necessária: jantares, uma festa eventual. Nossos constituintes gostam de
ser alimentados,eu acho. Em todas essas coisas Rachel poderia me ajudar.Assim – concluiu ele –, eu gostaria muito se pudéssemos arranjar essa visita (que deve ser
por algum motivo de negócio) se você pudesse ajudar a minha menina, fazê-la desabrochar... ela é um pouco tímida ainda... transformála numa mulher, o tipo de mulher
que a mãe dela gostaria que fosse – concluiu virando a cabeça para o retrato.
O egoísmo de Willoughby, embora cheio de real afeto pela filha como Helen notava, fez com que ela decidisse fazer a moça ficar com ela, ainda que tivesse de prometer
um curso completo de graças femininas. Não conseguiu conter o riso pensando nisso: Rachel, uma anfitriã conservadora! E admirou-se enquanto o deixava com aquela
espantosa ignorância de pai.
Consultada, Rachel revelou menos entusiasmo do que Helen desejava. Num momento ficou ansiosa; no outro, cheia de dúvidas. Visões de um vasto rio, ora azul ora amarelo
ao sol tropical, cruzado por pássaros coloridos,ora branco ao luar, ora profundamente sombreado pelas árvores móveis e pelas canoas deslizando nas margens emaranhadas,
dominaram-na. Helen prometeu um rio.Além do mais, ela não queria deixar o pai. Esse sentimento também pareceu genuíno, mas no final Helen prevaleceu, embora ao vencer
tenha sido tomada por dúvidas, e mais de uma vez se arrependeu do impulso que a enredara com a sorte de outro ser humano.
7
A distância, o Euphrosyne parecia muito pequeno.Binóculos dirigiam-se para ele do convés de grandes navios, e julgaram-no um barco de carga, um barco sem carteira
regular ou um daqueles miseráveis vapores de passageiros onde as pessoas rolavam pelo convés no meio do gado.As figuras dos Dalloway,dos Ambrose e dos Vinrace, parecendo
insetos, também foram objeto de zombaria pela extrema pequenez de suas pessoas e pela dúvida, que só binóculos muito fortes conseguiriam desfazer, sobre serem realmente
criaturas vivas ou apenas montes de cordame enovelado. Mr. Pepper, com toda a sua cultura, fora tomado por um alcatraz, e depois, com igual injustiça,transformado
numa vaca. À noite, na verdade, quando as valsas giraram no salão, e passageiros talentosos recitavam, o naviozinho – reduzido a umas poucas luzes entre as ondas
escuras, e a uma bem no alto, no ar, no topo do mastro – parecia um tanto misterioso e impressionante para os casais acalorados descansando da dança. Tornouse um
navio passando na noite – emblema da solidão da vida humana, ocasião de confidências insólitas e súbitos pedidos de compreensão.
E lá se ia ele, dia e noite, seguindo sua trilha, até que certa manhã rompesse e mostrasse a terra. Perdendo sua aparência de sombra, ela tornou-se primeiro montanhosa
e cheia de fendas,depois cinzenta e roxa,em seguida manchada de blocos brancos que gradualmente se separavam unsdos outros, e então, quando o avanço do navio atuava
sobre apaisagem como um binóculo de poder crescente, tornou-se ruas com casas.Por volta das nove horas o Euphrosyne assumiu sua posição no meio de uma grande baía;
lançou âncora;imediatamente, como se fosse um gigante deitado pedindo para ser examinado, pequenos barcos vieram em grupos atéele. O navio ressoava de gritos; homens
saltavam sobre ele;seu convés era pisoteado. A ilhazinha solitária foi invadidade todos os lados ao mesmo tempo, e depois de quatro semanas de silêncio era estranho
escutar fala humana. Só Mrs. Ambrose não prestava atenção a nada dessa confusão.Estavalívida de tensão, enquanto o bote com malas de correspondência vinha na direção
deles. Absorvida em suas cartas, ela não notou que deixara o Euphrosyne e não sentiu tristezaquando o navio ergueu sua voz e mugiu três vezes como umavaca separada
do seu bezerrinho.
– As crianças estão bem! – exclamou.
Mr. Pepper, que se sentava diante dela com um grande monte de sacolas e uma manta sobre os joelhos, disse:
– Gratificante.
Rachel, para quem o fim da viagem significava uma mudança completa de perspectiva, estava atordoada demais com a aproximação da praia para entender que crianças
estavam bem, ou por que aquilo era gratificante.Helen continuou lendo.
Movendo-se muito lentamente e subindo incrivelmente alto a cada onda, o barquinho agora se aproximava de uma meia-lua branca de areia. Atrás, ficava um fundo vale
verde, com nítidas colinas de cada lado. Na encosta da colina, do lado direito, aninhavam-se casas brancas com telhados castanhos, como aves marinhas em seus ninhos,
e a intervalos a colina era cruzada por ciprestes como grades pretas. Montanhas com encostas coradas de vermelho, mas topos calvos, erguiam-se como um pináculo escondendo
outro pináculo atrás. Ainda era muito cedo,por isso toda a vista era singularmente leve e graciosa; os azuis e verdes do céu e das árvores eram intensos mas não
opressivos. Quando se aproximaram mais e puderam distinguir detalhes, o efeito da terra com seus diminutos objetos e cores e diferentes formas de vida foi arrebatador
depois de quatro semanas no mar, e os deixou calados.
– Trezentos anos estranhos – disse Mr. Pepper pensativo.
Como ninguém dissesse “O quê?” ele apenas pegou um frasquinho e engoliu uma pílula. O fragmento de informação que morrera dentro dele era de que 300 anos atrás cinco
embarcações elisabetanas tinham ancorado onde agora flutuava o Euphrosyne. Com os cascos repousados sobre a praia havia número igual de galeões espanhóis sem tripulação,
pois o país ainda era uma terra virgem por trás de um véu. Deslizando sobre a água, os marujos ingleses conquistaram barras de prata, fardos de linho, troncos de
cedro, crucifixos dourados com esmeraldas incrustadas. Quando os espanhóis vieram de onde estavam bebendo, houve uma luta, as duas partes revolvendo a areia, e cada
uma empurrando a outra para a rebentação. Os espanhóis, gordos com aquela boa vida, comendo os frutos daquela terra milagrosa, caíam aos montes; mas os ingleses
vigorosos, morenos da viagem no mar,cabeludos por falta de tesouras, com músculos como arame, mandíbulas loucas por carne e dedos coçando por ouro, despacharam os
feridos, jogaram os moribundos no mar e logo reduziram os nativos a um supersticioso espanto. Aqui se estabeleceu uma aldeia; importaram-se mulheres; cresceram crianças.
Tudo parecia favorecer a expansão do império britânico, e tivesse havido homens como Richard Dalloway na época de Carlos I, o mapa sem dúvida seria vermelho onde
agora é de um verde odioso. Mas deve-se supor que a mentalidade política daquela época não tinha imaginação, e meramente por al-guns milhares de quilos e alguns
milhares de homens,morreu a fagulha que deveria ter causado uma conflagração. Do interior vieram índios com venenos sutis, corpos nus e ídolos pintados; do mar vieram
espanhóis vingativos e portugueses ávidos; expostos a todos esses inimigos (embora o clima fosse maravilhosamente bondoso e a terra abundante), os ingleses retiraram-se
e quase desapareceram. Em algum momento, nos meados do século XVII,uma chalupa solitária aproveitou a ocasião e afastou-se de noite, levando consigo tudo o que restara
da grande colônia britânica, uns poucos homens, umas poucas mulheres e talvez uma dúzia de crianças tristonhas. A história inglesa nega ter qualquer conhecimento
do lugar. Devido a uma causa ou outra, a civilização deslocou seu centro para um local a 700 ou 800 quilômetros ao sul, e hoje em dia Santa Marina não é muito maior
do que foi há 300 anos.Sua população é uma mistura feliz, pois pais portugueses casaram-se com índias, e seus filhos se casaram com espanhóis. Embora obtenham seus
arados de Manchester, fazem seus casacos com lã de suas próprias ovelhas, seda de seus próprios vermes, e móveis de seus próprios cedros, de modo que em artes e
indústria o local ainda é em boa parte como nos dias elisabetanos.
Os motivos que atraíram os ingleses através do mar para fundarem uma pequena colônia nos últimos dez anos não são fáceis de escrever, e talvez nunca sejam registrados
em livros de história. Facilidade garantida de viajar,paz, bons negócios e assim por diante, havia além disso uma espécie de insatisfação entre os ingleses com os
países mais antigos e os enormes acúmulos de pedra esculpida, os vitrais e a rica pintura castanha que ofereciam aos turistas. O movimento em busca de algo novo
era muitíssimo pequeno, afetando apenas um punhado de pessoas ricas. Começou com alguns professores ganhando sua passagem para a América do Sul como comissários
de navios cargueiros sem rota fixa. Voltavam em tempo para
o período letivo de verão, quando suas histórias sobre os esplendores e durezas da vida no mar, os humores dos capitães, as maravilhas da noite e da aurora, e os
encantos do lugar deliciavam os outros, às vezes acabando impressos. O país exigia todos os seus talentos de descrição, pois diziam que era maior que a Itália e
realmente mais nobre do que a Grécia.Declaravam também que os nativos eram de uma estranha beleza, muito altos, escuros, passionais e rápidos na faca. O local parecia
novo e cheio de formas novas de beleza, e para provar isso mostravam lenços que mulheres usavam em torno das cabeças e esculturas primitivas coloridas de um verde
e azul muito vivos. De um jeito ou outro, como costuma acontecer, a moda se espalhou; um antigo mosteiro logo foi transformado em hotel,enquanto uma famosa linha
de vapores alterava sua rota para maior conveniência dos passageiros.
Estranhamente, o menos satisfatório dos irmãos de Helen Ambrose fora enviado anos antes para fazer sua fortuna, ou pelo menos para ficar longe das corridas de cavalos,
àquele mesmo lugar agora tão popular. Muitas vezes debruçado na coluna da varanda, ele observara navios ingleses com professores ingleses como comissários de bordo
entrando na baía. Tendo finalmente ganhado o bastante para poder tirar férias e estando cansado daquele lugar, ele colocou à disposição da irmã sua villa na encosta
da montanha. Ela também ficara um pouco agitada com aquela conversa sobre um novo mundo onde sempre havia sol e nunca nevoeiro, e quando estavam planejando passar
o inverno fora da Inglaterra, parecia boa demais para ser perdida. Por esse motivo ela decidiu aceitar as passagens grátis no navio de Willoughby, deixar as crianças
com seus avós e fazer tudo intensamente.
Assentando-se numa carruagem puxada por cavalos de caudas longas com penas de pavão entre as orelhas, os Ambrose, Mr. Pepper e Rachel saíram matraqueando do porto.
O dia ia ficando mais quente enquanto subiam a colina. A estrada passava pela cidadezinha, onde homens pareciam estar batendo metais e gritando “água”, onde a passagem
era bloqueada por mulas e desobstruída com chibatadas e imprecações, onde as mulheres andavam descalças, as cabeças equilibrando cestos, e os aleijados expunham
ansiosamente seus membros mutilados; a estrada seguia entre campos verdes e íngremes, mas não tão verdes pois a terra aparecia. Grandes árvores agora sombreavam
a estrada, deixando ao sol apenas a faixa central,e uma torrente de montanha, tão rasa e rápida que se trançava em faixas ao correr, disparava ao longo da estrada.
Subiram mais ainda até que Ridley e Rachel começaram a ficar para trás; depois passaram a um caminho calçado de pedra, onde Mr. Pepper ergueu a bengala e silenciosamente
apontou um arbusto que ostentava entre folhas esparsas um volumoso botão de flor roxa; e num trote manso cumpriram a última fase do caminho.
A villa era uma espaçosa casa branca que, como acontece com a maioria das casas do continente, parecia frágil,arruinada e absurdamente frívola ao olho inglês,mais
parecendo um quiosque num jardim do que um lugar para se dormir. O jardim pedia urgentemente serviços de um jardineiro. Arbustos balançavam seus ramos sobre as veredas,
e as folhas de grama, com intervalos de terra, podiam ser contadas. No terreno circular diante da varanda havia dois vasos rachados dos quais vendiam flores vermelhas,
com uma fonte de pedra no meio, agora desbotada ao sol. O jardim circular levava a um jardim comprido onde as tesouras do jardineiro pouco estiveram, a não ser vez
por outra quando cortava um ramo de flores para sua amada. Poucas árvores altas lhe davam sombra, e arbustos redondos com flores parecendo feitos de cera juntavam
suas copas numa fileira. Um jardim com solo macio de turfa, dividido por grossas sebes, canteiros de flores coloridas, como temos dentro de nossos muros na Inglaterra,teria
ficado deslocado na encosta daquela colina nua. Não havia nada de feio para encobrir, e a villa olhava direto,por sobre as rebarbas de uma encosta cheia de oliveiras,
para o mar.
A indecência do lugar chocou Mrs. Chailey. Não havia persianas para tapar o sol, nem móveis para serem protegidos do sol. Parada no saguão de pedra nua, contemplando
uma escadaria soberba, mas rachada e sem tapetes, ela adiante opinou também que havia ratos, grandes como cães terrier, e que se alguém pisasse no chão com força
ele afundaria. Quanto à água quente – nessa altura suas investigações a deixaram sem palavras.
Pobre criatura! – murmurou para a magra criada espanhola que apareceu com os porcos e galinhas para recebê-los. – Não admira que você quase nem pareça humana!
Maria aceitou o elogio com uma delicada graça espanhola. Na opinião de Chailey, teria sido melhor terem ficado a bordo de um navio inglês, mas ninguém melhor que
ela sabia que o dever a obrigava a ficar.
Quando já estavam instalados, começando a procurar ocupações diárias, houve alguma especulação sobre os motivos que faziam Mr. Pepper ficar ali, na casa dos Ambrose.
Alguns dias antes do desembarque tinham-se esforçado para que ele entendesse as vantagens do Amazonas.
– Aquela corrente enorme! – começava Helen de olhos fixos como se visse uma cascata visionária. – Eu penso bastante em ir, Willoughby, mas não posso. Pense nos crepúsculos
e no nascer da lua... acho que as cores são inimagináveis.
Há pavões silvestres – arriscava Rachel.
E criaturas maravilhosas nas águas – afirmava Helen.
– Alguém poderia descobrir um novo réptil – continuava Rachel.
– Disseram-me que com certeza vai haver uma revolução – insistia Helen.
O efeito desses subterfúgios foi um pouco reduzido por Ridley, que depois de encarar Pepper por algum tempo, suspirou alto, “Pobre sujeito!” e internamente especulava
sobre a crueldade das mulheres.
No entanto, ele ficou por seis dias, aparentemente contente, brincando com um microscópio e um caderno em uma das saletas esparsamente mobiliadas, masna noite do
sétimo dia, quando se sentaram para jantar, ele pareceu mais inquieto do que de costume. Amesa de jantar estava instalada entre duas janelas compridas, sem cortinas
por ordem de Helen. A escuridãobaixava como uma faca afiada naquele clima, e então acidade brotava em círculo e linhas de pontos luminosos abaixo deles. Construções
que jamais apareciam dedia apareciam de noite, e o mar fluía sobre a terra, ajulgar pelas luzes móveis dos navios. A paisagem cumpria o mesmo objetivo de uma orquestra
num restaurante londrino, criando ambiente para o silêncio. William Pepper observou-a por um tempo; colocou osóculos para ver a cena.
– Identifiquei o grande bloco à esquerda – comentou e apontou com o garfo para um quadrado formado por várias fileiras de luzes.
– Pode-se inferir que sabem cozinhar legumes – acrescentou ele.
Um hotel? – perguntou Helen.
Outrora um mosteiro – disse Mr. Pepper.
Nada mais se disse então, mas no dia seguinte Mr.Pepper voltou de um passeio ao meio-dia e parou calado diante de Helen, que lia na varanda.
Peguei um quarto lá – disse ele.
O senhor não vai embora! – exclamou ela.
Na verdade, vou – disse ele. – Nenhuma cozinheira de família sabe cozinhar legumes. Sabendo que ele nãogostava de perguntas, coisa de que ela até certo pontopartilhava,
Helen não perguntou mais nada. Mas umasuspeita desconfortável espreitava sua mente, a de queWilliam escondia uma ferida. Corou ao pensar que suaspalavras, ou as
do marido ou de Rachel o tivessem magoado. Quase teve vontade de gritar “Pare com isso, William, explique!” e teria voltado ao assunto no almoço se William não tivesse
se mostrado imperscrutável efrio,pegando fragmentos de salada com a ponta do garfo, com movimentos de um homem lidando com algasmarinhas, detectando areia e suspeitando
de germes.
Se todos vocês morrerem de tifo, eu não vou ser o responsável! – disse ele asperamente.
“Nem eu, se você morrer de tédio”, ecoou Helen no seu coração. Ela refletiu que nunca lhe perguntara se ele já seapaixonara.Tinham-se afastado cada vez mais desse
assunto em vez de se aproximarem dele, e ela não pôde deixar desentir alívio quando William Pepper com todo o seu conhecimento, seu microscópio e seus cadernos de
notas, suabondade genuína e bom-senso, mas com uma certa securade lima, partiu. Também não pôde deixar de achar tristeque amizades terminassem assim, embora nesse
caso ter oquarto vazio fosse um certo conforto, e tentou consolar-sedizendo a si mesma que nunca se sabe até que ponto aspessoas sentem o que se supõe que sintam.
8
Os poucos meses seguintes passaram, como muitos anos podem passar, sem acontecimentos definidos, mas,se subitamente perturbados, seria visível que esses meses e
anos tinham um caráter diferente de outros. Os três meses que passaram conduziram-nos ao começo de março.O clima mantivera sua promessa, e a mudança de estação do
inverno para primavera trouxera muito pouca diferença, de modo que Helen, sentada na sala de estar, caneta na mão, podia deixar as janelas abertas, embora uma grande
fogueira de taras queimasse a seu lado. Abaixo, o mar ainda estava azul, e os telhados castanhos e brancos, embora
o dia morresse rapidamente. Havia penumbra no aposento, que, grande e vazio em todas as épocas, agora parecia maior e mais vazio do que de costume. Sua própria figura,sentada
escrevendo com um bloco nos joelhos, partilhava do efeito geral da vastidão e ausência de pormenores, pois as chamas que corriam ao longo da galharia, subitamente
decorada por pequenos tufos verdes, queimavam intermitentemente e lançavam luzes irregulares sobre o seu rosto e as paredes de reboco. Não havia quadros nas paredes,mas,
aqui e ali, ramos carregados de flores de muitas pétalas espalhavam-se amplamente contra eles. Era impossível, naquela luz, traçar os contornos dos livros caídos
no assoalho nu e empilhados sobre a grande mesa.
Mrs. Ambrose escrevia uma carta muito comprida.Começando com “Querido Bernard”, descrevia o que andara acontecendo na Villa San Gervasio durante os últimos três
meses, como por exemplo, que o cônsul britânico viera para jantar, que haviam hospedado um guerreiro espanhol, e que viram muitas procissões e festas religiosas,tão
belas que Mrs. Ambrose não podia entender por que,se as pessoas têm de ter religião, não se tornavam todas católicas romanas. Tinham realizado muitas expedições,embora
nenhuma muito grande. Valia a pena ir até ali ainda que só pelas árvores em flor que cresciam silvestres bem perto da casa, e pelas espantosas cores de mar e terra.A
terra, em vez de marrom, era vermelha, roxa, verde. “Você não vai acreditar”,acrescentou ela,“não existem cores parecidas na Inglaterra”. Na verdade ela adotava
um tom condescendente em relação àquela pobre ilha, que agora produzia açafrões gélidos e violetas mergulhadas em esconderijos, em cantinhos aconchegantes, cuidadas
por brilhantes velhos jardineiros usando cachecóis, sempre tocando os chapéus e fazendo mesuras servis. Ela continuou ridicularizando os próprios ilhéus. Boatos
sobre Londres fervendo com as Eleições Gerais tinham chegado até eles, mesmo aqui tão longe. “Parece incrível”,continuou ela, “que as pessoas se interessem em saber
se Asquith entra ou Austen Chamberlain sai, e enquanto gritam até ficarem roucas falando de política, deixam morrer de fome ou ridicularizam as pessoas que tentam
fazer alguma coisa boa. Quando foi que vocês encorajaram um artista vivo? Ou compraram sua melhor obra? Por que são todos tão feios e tão servis? Aqui os criados
são seres humanos. Falam conosco como se fossem iguais.Até onde posso ver, não há aristocratas.”
Talvez fosse a menção de aristocratas que a fizesse pensar em Richard Dalloway e Rachel, pois continuou na mesma penada a descrever sua sobrinha.
“É um estranho destino esse que botou aos meus cuidados uma mocinha”, escreveu, “considerando que nunca me dei bem com mulheres, nem tive muito a ver com elas. Mas
preciso retratar-me de algumas coisas que disse a respeito delas. Se fossem adequadamente educadas, não vejo por que não poderiam ser como os homens – igualmente
satisfatórias, quero dizer; embora, naturalmente,muito diferentes. A questão é: como as educaríamos? O presente método me parece abominável. Essa mocinha,embora
com 24 anos, nunca ouvira dizer que homens desejam mulheres e até eu lhe explicar isso, não sabia como nascem as crianças. Sua ignorância sobre outros assuntos igualmente
importantes” (aqui a carta de Mrs. Ambrose não pode ser citada)... “era total. Parece-me não apenas tolo mas também criminoso educar pessoas desse jeito.Sem falar
no seu sofrimento, isso explica por que as mulheres são como são – admira-me é que não sejam piores.Assumi a tarefa de esclarecê-la, e agora, embora ainda bastante
preconceituosa e dada a exageros, ela se tornou um ser humano mais ou menos razoável. Mantê-las ignorantes naturalmente é contraproducente, e quando começam a entender
levam tudo a sério demais. Meu cunhado realmente mereceu uma catástrofe... que não vai sofrer.Agora rezo para que apareça um jovem e me ajude; quero dizer, alguém
que fale com ela abertamente e prove como são absurdas quase todas as suas idéias sobre a vida.Infelizmente tais homens parecem quase tão raros quantos as mulheres.
A colônia inglesa certamente não me dará nenhum; artistas, comerciantes, gente culta – são burros, convencionais, e flertadores...” Ela parou e, com a caneta na
mão, ficou sentada olhando o fogo transformar as toras de madeira em cavernas e montanhas, pois estava escuro demais para escrever. Mais que isso, a casa começava
a agitar-se, pois se aproximava a hora do jantar; ela podia ouvir os pratos tilintando na sala de jantar, ao lado,e Chailey instruindo a moça espanhola sobre onde
colocar as coisas, no seu inglês vigoroso. A sineta tocou; ela levantou-se, encontrou Ridley e Rachel lá fora, e todos foram jantar.
Três meses tinham feito pouca diferença na aparência de Ridley ou Rachel; mas um bom observadorpoderia ter achado a moça mais definida e autoconfiante. Sua pele
estava morena, os olhos certamentemais brilhantes, e acompanhava o que estava sendodito como se estivesse prestes a contradizer. A refeiçãocomeçou com o confortável
silêncio de pessoas que se sentem à vontade juntas. Depois Ridley, apoiado nocotovelo e olhando pela janela, comentou que estavauma noite adorável.
– Sim – disse Helen, e acrescentou olhando as luzes abaixo deles – Começou a temporada. – Ela perguntou a Maria em espanhol se o hotel não estava ficando lotado.Maria
informou com orgulho que viria um tempo em que seria difícil comprar ovos... os donos dos armazéns não se importavam com os preços pedidos; eles os comprariam dos
ingleses a qualquer preço.
– Há um vapor inglês na baía – disse Rachel olhando umtriângulo de luzes embaixo. – Chegou cedo esta manhã.
– Então teremos cartas e poderemos mandar as nossas – disse Helen. Por algum motivo,falar em cartas sempre abatia Ridley,e o resto da refeição passou-se numa discussão
áspera entre marido e mulher acerca de ele ser ou não totalmente ignorado pelo mundo civilizado.
– Considerando a última remessa de cartas – disse Helen –, você devia levar uma surra. Foi convidado a dar conferências, recebeu um título acadêmico e uma mulher
idiota não só elogiou seus livros mas sua beleza...disse que você é o que Shelley seria se tivesse chegadoaos 55 anos e deixado a barba crescer. Realmente, Ridley,você
é o homem mais vaidoso que conheço – concluiu ela, levantando-se da mesa –, e acredite, isso é muito.
Encontrando sua carta diante da lareira acrescentou-lhe umas poucas linhas e depois anunciou que estava levandoas cartas – Ridley devia dar-lhe as dele – e Rachel?
– Espero que tenha escrito para suas tias! Está na hora.
As mulheres botaram mantos e chapéus e, depois de convidarem Ridley para acompanhá-las, o que ele recusou enfaticamente exclamando que esperara que Rachel fosse
boba mas que Helen devia ser mais esperta, elas se viraram para sair. Ele ficou parado diante da lareira fitando as profundezas do espelho, e seu rosto comprimido
ali mais parecia o de um comandante contemplando um campo de batalha ou o de um mártir vendo as chamas lamberem os dedos de seus pés do que o de um professor no
ostracismo.
Helen agarrou a sua barba:
Eu sou boba, é? – disse ela.
Me deixe em paz, Helen.
Sou boba? – repetiu ela.
Mulher perversa! – exclamou ele, e beijou-a.
– Vou deixar você entregue às suas vaidades – disse ela quando saíam.
Estava uma bela noite, ainda suficientemente clara para se ver o longo caminho até a estrada lá embaixo, embora as estrelas estivessem parecendo. A caixa do correio
estava embutida num alto muro amarelo onde a trilha encontrava a estrada. Depois de jogar as cartas lá dentro,Helen se preparava para voltar.
– Não, não – disse Rachel pegando-lhe o pulso. – Vamos ver a vida. Você prometeu.
“Ver a vida”era uma frase que usavam para seu hábito de vagar pela cidade depois de escurecer. A vida social em Santa Marina acontecia quase inteiramente à luz de
lampiões, o que o calor das noites e os aromas das flores tornavam uma coisa bastante agradável. As moças, com os cabelos magnificamente arranjados em cachos, uma
flor vermelha atrás da orelha, sentavam-se nos degraus ou se debruçavam em sacadas, enquanto os rapazes caminhavam para cima e para baixo gritando vez ou outra uma
saudação e parando aqui e ali para um diálogo amoroso.Nas janelas abertas viam-se comerciantes fazendo o balanço do dia e mulheres idosas levando jarras de prateleira
em prateleira. As ruas estavam cheias de gente, a maioria homens, trocando idéias sobre o mundo enquanto andavam, ou reunindo-se em torno de mesas com vinho nas
esquinas, onde um velho aleijado tangia as cordas de sua guitarra enquanto uma moça pobre gritava sua canção apaixonada na sarjeta. As duas inglesas despertavam
curiosidade amigável, mas ninguém as molestava.
Helen avançava observando com satisfação as diferentes pessoas em suas roupas puídas, que pareciam tão despreocupadas e tão naturais.
– Imagine a Alameda esta noite! – exclamou afinal. – É15 de março.Talvez haja um julgamento no tribunal.– Elapensou na multidão esperando no ar frio da primavera
paraver as grandes carruagens passando. – Está muito frio, senão estiver chovendo – disse ela. Primeiro, os homens vendendo cartões-postais; depois as míseras vendedorazinhascom
caixas de chapéus redondas; depois os bancários de casaca; e depois... uma porção de costureiras. Pessoas deSouth Kensington chegam numa charrete alugada; funcionários
públicos têm um par de cavalos baios; condes, porsua vez, vêm seguidos de um criado; duques têm dois, duques reais... me disseram... três. Acho que o rei pode tertantos
quantos quiser. E o povo acredita nisso!
Ali, parecia-lhes que as pessoas na Inglaterra deviam ser como reis e rainhas, cavaleiros e peões do tabuleiro de xadrez, tão estranhas eram suas diferenças, tão
marcantes e tão implicitamente aceitas.
Tiveram de separar-se para evitar um grupo.
– Eles acreditam em Deus – disse Rachel quando sereencontraram. Quis dizer que as pessoas no grupoacreditavam Nele; pois lembrava das cruzes com figuras de gesso
sangrando, postadas nas encruzilhadas, e oinexplicável mistério de uma cerimônia numa igrejacatólica romana.
– Jamais vamos entender! – suspirou ela.
Tinham caminhado bastante, já era noite, mas podiam ver um grande portão de ferro um pouco adiante no caminho à sua esquerda.
– Você pretende subir direto ao hotel? – perguntouHelen.
Rachel empurrou o portão; ele abriu-se e, não vendo ninguém por ali, julgando que naquele país nada era privado, as duas avançaram. Uma avenida de árvores seguia
ao longo do caminho, que era totalmente reto. De repente acabaram-se as árvores; a estrada fez uma curva e elas defrontaram-se com um grande edifício quadrado.Estavam
num amplo terraço que rodeava o hotel, a apenas poucos passos das janelas. Uma fileira de janelas compridas abria-se quase na altura do chão. Nenhuma tinha cortinas,
e todas estavam bem iluminadas, de modo que puderam ver tudo lá dentro. Cada janela revelava um aspecto diferente da vida no hotel. Recuaram para uma das largas
colunas de sombra que separavam as janelas e olharam para dentro.Estavam bem na frente da sala de jantar.Estava sendo varrida; um garçom comia um cacho de uvas,
com a perna passada sobre a beira da mesa. Ao lado ficava a cozinha, onde estavam lavando louça; cozinheiras de branco mergulhavam os braços em caldeirões enquanto
os garçons comiam vorazmente refeições deixadas pela metade,pegando molho com pedaços de pão.Adiantandose mais, as duas se perderam nos arbustos, e de repente viram-se
diante da sala de visitas, onde damas e cavalheiros, tendo jantado bem, se recostavam em fundas poltronas, eventualmente folheando revistas ou conversando. Uma mulher
magra fazia floreios ao piano.
– O que é um dahabeeyah, Charles? – perguntou ao filho a voz nítida de uma viúva numa poltrona junto da janela.
Estavam no fim do aposento, e a resposta dele se perdeu no pigarreio e agitação gerais.
– Todos são velhos nesta sala – sussurrou Rachel.
Esgueirando-se mais adiante viram que a janela seguinte revelava dois homens em mangas de camisa jogando bilhar com duas jovens.
Ele beliscou meu braço! – gritou a jovem gordinha quando errou seu golpe.
Vocês dois aí... nada de bobagens – censurou-os o rapaz com rosto vermelho que estava marcando os pontos.
Cuidado ou vão nos ver – sussurrou Helen, puxando Rachel pelo braço. Sua cabeça aparecera por descuido no meio da janela.
Dobrando a esquina chegaram ao maior aposento do hotel, com quatro janelas, chamado sala de estar, embora na verdade fosse um saguão. Ornado de armaduras e bordados
nativos, com divãs e biombos que cobriam cantos aconchegantes, o aposento, menos formal do que os outros, era evidentemente o recanto dos jovens. Signor Rodriguez,
que sabiam ser o gerente do hotel, estava bem perto delas, no umbral da porta, olhando a cena: cavalheiros repousando em cadeiras, casais debruçando-se sobre xícaras
de café, o jogo de cartas no centro, sob uma profusa luz elétrica. Ele se parabenizava pelo empreendimento que transformara o refeitório, um frio aposento de pedra
com potes de plantas em cavaletes, no mais confortável salão da casa. O hotel estava lotado, e provava sua sabedoria ao decretar que nenhum hotel pode progredir
sem uma sala de estar.
As pessoas espalhavam-se por ali em grupos de dois ou quatro e, ou se conheciam bem, ou aquele aposento informal os deixava mais à vontade. Pela janela aberta vinha
um zumbido irregular, como o que vem de um rebanho de ovelhas num cercado ao crepúsculo. O grupo de carteado ocupava o centro do salão.
Helen e Rachel observaram-nos jogar alguns minutos,sem que distinguissem uma palavra. Helen olhara intensamente para um dos homens. Era magro, um tanto cadavérico,
da idade dela, perfil virado para elas, parceiro de uma moça muito enrubescida, obviamente inglesa.
De repente, na maneira estranha com que algumas palavras se destacam das demais, ouviram-no dizer nitidamente:
– Tudo o que a senhorita quer é prática, Miss Warrington; coragem e prática... uma coisa não presta sem a outra.
– Hughling Elliot! Claro! – exclamou Helen. Ela abaixou a cabeça imediatamente, pois ao ouvir seu nome ele levantou os olhos. O jogo continuou por alguns minutos
até ser interrompido pela aproximação de uma cadeira de rodas com uma volumosa anciã que parou junto da mesa e disse:
– Melhor sorte esta noite, Susan?
– Toda a sorte está do nosso lado – disse um rapaz que até ali estivera de costas para a janela. Parecia um tanto gordo, com o cabelo grosso.
– Sorte, Mr. Hewet? – disse a parceira dele, uma senhora de meia idade, de óculos. – Asseguro-lhe, Mrs.Paley, nosso sucesso se deve unicamente ao nosso brilhante
jogo.
– A não ser que eu vá para a cama cedo, praticamente não durmo – explicou Mrs. Paley, como se justificasse o fato de convocar Susan, que se levantou e começou a
empurrar a cadeira até a porta.
– Vão arranjar outra pessoa para jogar em meu lugar
– disse Susan, alegremente. Mas estava errada. Não tentaram encontrar outro parceiro e, depois que o rapaz construíra três andares de um castelo de cartas que desmoronou,
os jogadores se espalharam em várias direções.
Mr. Hewet virou seu rosto rechonchudo para a janela.Elas puderam ver que tinha olhos grandes obscurecidos poróculos; sua pele era rosada; seus lábios sem bigode;
e vistoentre gente comum, parecia ser um rosto interessante. Eleveio direto para elas, mas seus olhos não estavam fixados nasespiãs e sim num ponto onde a cortina
pendia em dobras.
– Com sono? – disse ele.
Helen e Rachel começaram a pensar que alguém estivera sentado perto delas o tempo todo, sem ser notado.Havia pernas na sombra. Uma voz melancólica veio de cima delas.
– Duas mulheres – disse.
Ouviu-se um rumor do cascalho. As mulheres tinham fugido. Não pararam de correr até estarem certas de que nenhum olho conseguiria penetrar a escuridão, e o hotel
fosse apenas uma sombra quadrada na distância, com buracos vermelhos recortados regularmente.
9
Passou-se uma hora, e os aposentos térreos do hotel ficaram escuros e quase desertos, enquanto os pequenos retângulos acima deles brilhavam radiantes. Cerca de 40
ou 50 pessoas estavam indo para a cama. Podia-se ouvir a batida surda de jarras colocadas no chão no andar de cima e o tilintar de porcelana, pois não havia uma
divisão grossa entre os quartos, não tanto quanto se poderia desejar,pensou Miss Allan, a dama idosa que estivera jogando bridge, dando uma rápida batida na parede
com os nós dos dedos. Era só tábua fina, determinou ela, colocada para transformar um aposento grande em dois pequenos.
Sua anágua cinzenta escorregou para o chão, e ela inclinou-se e dobrou suas roupas com dedos hábeis, se não amorosos, torceu o cabelo numa trança, deu corda no relógio
deouro do pai e abriu as obras completas de Wordsworth.
Estava lendo o “Prelúdio”, em parte porque sempre lia o“Prelúdio” quando no exterior, em parte porque escrevia umbreve Resumo da literatura inglesa – de Beöwulf
a Swinburne –, que teria um parágrafo sobre Wordsworth. Estava mergulhada no quinto volume, parando para fazer uma anotação alápis, quando um par de botas caiu no
chão, uma atrás daoutra, no chão acima dela. Ela ergueu os olhos e ficou especulando. De quem seriam as botas, imaginava. Então notouum som farfalhante na porta
ao lado – nitidamente uma mulher guardando o vestido –, que foi sucedido por um rumor de leves batidas, como o de alguém arrumando o cabelo.Era muito difícil fixar-se
no “Prelúdio”. Seria Susan Warrington fazendo aqueles movimentos? Mas ela se forçoua ler até o fim do livro, quando colocou o marcador entre aspáginas, suspirou
satisfeita, e depois apagou a luz.
Muito diferente era o quarto atrás da parede, embora em formato fosse uma caixa de ovos igual ao outro. Enquanto Miss Allan lia seu livro, Susan Warrington escovava
o cabelo. Séculos consagraram essa hora, e a mais majestosa das ações domésticas, mulheres falando de amor; mas Miss Warrington estava sozinha e não podia falar;
podia apenas olhar com extrema solicitude seu próprio rosto no espelho. Virou a cabeça de um lado para outro, jogando cachos pesados para cá e para lá. Depois recuou
um passo ou dois e analisou-se seriamente.
“Sou bem bonita”, decidiu. “Possivelmente... não linda.” Endireitou-se um pouco. “Sim... a maior parte das pessoas diria que tenho boa aparência.”
Ela realmente pensava no que Arthur Venning diria aseu respeito. Seu sentimento com relação a ele era decididamente suspeito. Não admitiria para si mesma que estavaapaixonada
por ele nem que queria se casar com ele, maspassava todos os minutos em que estava sozinha imaginando o que ele pensaria dela e comparando o que tinhamfeito hoje
com o que tinham feito no dia anterior.
“Ele não me pediu para jogar mas me acompanhou até
o saguão”, meditou, resumindo a noite. Tinha 30 anos de idade, e devido ao número de irmãs e à vida reclusa numa paróquia do interior, não tivera ainda proposta
de casamento. A hora das confidências muitas vezes era triste, e dizia-se que ela saltava na cama tratando mal seus cabelos, sentindo-se ignorada pela vida em comparação
com as outras. Era uma mulher graúda e bem feita, o rubor em suas faces em manchas demasiado definidas, mas sua ansiedade grave conferia-lhe uma certa beleza.
Estava por empurrar os lençóis quando exclamou: – Ah,estou esquecendo! – e foi até sua escrivaninha. Um volumemarrom jazia ali com o número do ano gravado. Ela começou
a escrever em uma letra quadrada e feia, de criançamadura, como escrevia diariamente ano após ano, mantendo os diários, embora raramente olhasse para eles.
“Manhã. Falei com Mrs. H. Elliot sobre vizinhos do campo. Ela conhece os Mann e também os Selby-Carroway. Como o mundo é pequeno! Gosto dela. Li um capítulo de As
aventuras de Miss Appleby para tia E. Tarde. Joguei tênis na quadra com Mr. Perrott e Evelyn M. Não gosto de Mr. P. Tenho a sensação de que ele não é ‘muito’, embora
seja esperto. Venci os dois. Dia esplêndido, vista maravilhosa. A gente se acostuma com a falta de árvores,embora no começo pareça tudo despido demais. Cartas depois
do jantar. Tia E. alegre, embora irritadiça, diz ela.Obs.: perguntar sobre lençóis úmidos.”
Ela ajoelhou-se para rezar, depois deitou-se na cama ajeitando as cobertas confortavelmente ao seu redor, e em poucos minutos sua respiração mostrava que estava
adormecida. Com suspiros e hesitações profundamente pacíficos, parecia a respiração de uma vaca equilibrada sobre os joelhos a noite toda em capim alto.
Um olhar no quarto ao lado mostraria pouco mais do que um nariz destacando-se dos lençóis. Acostumado à escuridão, pois as janelas estavam abertas e mostravam retângulos
cinzentos com cintilações de estrelas, podia-se distinguir um vulto magro, terrivelmente parecido com um cadáver, o corpo de William Pepper, também adormecido. Trinta
e seis, trinta e sete, trinta e oito e aqui ha-via três negociantes portugueses, adormecidos provavelmente, pois um ronco se ouvia com a regularidade de um grande
relógio. Trinta e nove era um quarto de canto, no fundo do corredor, mas embora fosse tarde – bateu “uma” levemente no térreo – uma faixa de luz debaixo da porta
indicava que havia alguém acordado.
Como está atrasado, Hugh! – disse numa voz irritadamas solícita uma mulher deitada na cama. Seu marido escovava os dentes e por alguns momentos não respondeu.
Você devia ter dormido – respondeu ele. – Eu estava conversando com Thornbury.
Mas sabe que não consigo dormir enquanto espero por você – disse ela.
Ele não respondeu, apenas comentou: – Bem então vamos apagar a luz. – Ficaram calados.
A pulsação débil mas penetrante de uma campainhaelétrica podia agora ser ouvida no corredor. A velha Mrs.Paley, tendo acordado faminta mas sem óculos, chamavasua
criada para que encontrasse a caixa de biscoitos.Terrivelmente respeitosa até nessa hora, embora enrolada numa jaqueta, a criada respondeu à campainha, e depois
disso o corredor ficou quieto. No andar térreo tudoestava escuro e vazio; mas no andar superior uma luzainda ardia no quarto onde as botas tinham caído pesadamente
sobre a cabeça de Miss Allan. Lá estava o cavalheiro que, poucas horas antes, na sombra da cortina,parecia consistir inteiramente em pernas. No fundo deuma poltrona,
ele lia o terceiro volume da História do declínio e queda do Império Romano, de Gibbon, à luz de uma vela. Lendo, vez por outra batia automaticamente acinza do cigarro
e virava a página, enquanto toda umaprocissão de esplêndidas frases penetrava em sua poderosa fronte e marchava ordenadamente cérebro adentro. Era provável que esse
processo continuasse por umahora ou mais, até que todo o regimento tivesse entrado em seus alojamentos, não tivesse a porta se abrido e ohomem com tendência a engordar
não tivesse entradocom seus grandes pés nus.
Oh, Hirst, o que esqueci de dizer foi...
Dois minutos – disse Hirst, erguendo o dedo.E marcou as últimas palavras do parágrafo.
O que foi que você esqueceu de dizer? – indagou.
– Você acha que admite suficientemente os sentimentos? – perguntou Mr. Hewet. Mais uma vez esquecera o que pretendia dizer.
Depois de contemplar intensamente o imaculado Gibbon, Mr. Hirst sorriu da pergunta do amigo. Largou
o livro e ficou pensando...
– Devo dizer que você tem uma mente singularmentedesorganizada – observou. – Sentimentos? Mas não são exatamente aquilo que admitimos? Colocamos o amor lá emcima
e o resto todo lá embaixo. – Com a mão esquerda eleapontou o topo de uma pirâmide, e com a direita, sua base.
– Mas você não saiu da cama para me dizer isso – acrescentou, severo.
– Saí da cama apenas para conversar, eu acho – disse Hewet vagamente.
– Enquanto isso vou me despir – disse Hirst. Quando despido de tudo menos a camisa, e inclinado sobre a pia,Mr. Hirst não impressionava mais com a majestade do seu
intelecto, mas com o patos de seu corpo jovem e feio,pois era encurvado e tão magro que havia linhas escuras entre os vários ossos do pescoço e dos ombros.
– Mulheres me interessam – disse Hewet, que, sentado na cama, queixo apoiado nos joelhos, não prestava atenção ao fato de Mr. Hirst estar despido.
– Elas são tão burras – disse Hirst. – Você está sentado sobre o meu pijama.
– Acha que elas são burras? – admirou-se Hewet.
– Acho que não pode haver duas opiniões quanto a isso – disse Hirst cruzando o quarto em saltos. – A não ser que você esteja apaixonado... aquela gorducha da Warrington?
– perguntou.
– Não é uma mulher gorda... todas as mulheres gordas – suspirou Hewet.
– As mulheres que eu vi esta noite não eram gordas – disse Hirst, que se aproveitava da companhia de Hewet para cortar as unhas dos dedos dos pés.
– Descreva-as – disse Hewet.
Você sabe que não sei descrever as coisas! – disse Hirst. – Elas se pareciam muito com as outras mulheres,acho. Sempre se parecem.
Não; é nisso que diferimos – disse Hewet. – Eu digo que tudo é diferente. Não há duas pessoas minimamente parecidas. Veja você e eu agora.
Um dia pensei assim também – disse Hirst. – Masagora existem pessoas de todos os tipos. Não vamos nostomar como exemplo... tomemos este hotel. Podiam-se desenhar
círculos em torno de todos, e nenhum ficaria de fora.
(Pode-se matar uma galinha assim) – murmurou Hewet.
Mr. Hughling Elliot, Mrs. Hughling Elliot, Miss Allan, Mr. e Mrs. Thornbury... um círculo – continuou Hirst – Miss Warrington, Mr. Arthur Venning, Mr.Perrott, Evelyn
M., outro círculo; depois, uma porção de nativos; finalmente, nós dois.
Estamos sozinhos em nosso círculo? – perguntouHewet.
Bem sozinhos – disse Hirst. – Você tenta sair mas não consegue. E tentando, só faz uma confusão.
Não sou uma galinha dentro de um círculo – disse Hewet. Sou um pombo no topo de uma árvore.
Será que é isso que chamam unha encravada? – disse Hirst, examinando o dedo grande do pé esquerdo.
Fico voando de galho em galho – continuou Hewet.
O mundo é muito agradável. – Ele deitou-se para trás na cama, apoiado nos braços.
Será mesmo bom ser tão vago quanto você é? – perguntou Hirst olhando para ele. – É a ausência de continuidade... é isso que é tão esranho em você – prosseguiu. –
Na idade de 27, o que são quase 30 anos, você parece não terchegado a nenhuma conclusão. Um grupo de velhotas ainda o excita tanto quanto se você tivesse três anos.
Hewet contemplou o jovem anguloso que em silêncio momentâneo jogava cuidadosamente as beiradas das unhas de seus pés na lareira.
– Eu respeito você, Hirst – comentou.
E eu o invejo... em algumas coisas – disse Hirst. – A sua capacidade de não pensar e o fato de as pessoas gostarem mais de você que de mim. Acho que as mulheres
gostam de você.
Não sei se isso é realmente o que mais importa – dis-se Hewet, agora deitado na cama, acenando a mão em círculos vagos no alto
Claro que é – disse Hirst. – Mas isso não é o problema. O problema é encontrar um objeto adequado, não é?
Não há galinhas no seu círculo? – perguntouHewet.
– Nem um fantasma de galinha – disse Hirst.
Embora se conhecessem há três anos, Hirst nunca escutara a verdadeira história dos amores de Hewet. Pelas conversas presumia-se que eram muitas, mas em particular
não se comentava o tema. O fato de ele ter dinheiro para não trabalhar, de ter deixado Cambridge depois de dois semestres por uma briga com as autoridades, e de
ter viajado e vagado a esmo, tornava sua vida estranha em muitos pontos em que as vidas de seus amigos eram muito coesas.
– Não vejo os seus círculos... não os enxergo – continuou Hewet. – Vejo uma coisa como um pião girando para dentro e para fora... batendo nas coisas... disparando
de um lado para outro... colecionando números mais e mais e mais, até o lugar todo ficar cheio deles. E giram e giram lá, por cima da beirada... fora da vista.
Seus dedos mostravam que os piões bailarinos haviam rodopiado para além da colcha, caindo da cama para o infinito.
– Você poderia suportar três semanas sozinho neste ho
tel? – perguntou Hirst depois de um momento de pausaHewet começou a pensar.
– A verdade é que nunca se está sozinho e nunca se está em companhia – concluiu.
– Significando? – disse Hirst.
– Significando? Ah, alguma coisa sobre bolhas... auras... como é que se chamam? Você não pode ver a minha bolha; eu não posso ver a sua; tudo o que vemos um do outro
é uma partícula, como a mecha no centro daquela chama. A chama anda conosco por toda parte; ela não é exatamente nós, mas o que sentimos; o mundo é breve, ou as
pessoas principalmente; toda sorte de pessoas.
– A sua deve ser uma bela bolha listrada! – disse Hirst.
– E supondo que minha bolha pudesse topar com a bolha de outro alguém...
– E as duas explodirem? – interveio Hirst.
– Então... então... então... – ponderou Hewet, como se falasse sozinho – seria um mundo enorme – disse, estendendo os braços em toda a sua extensão como se mesmo
assim mal pudessem agarrar o universo encapelado, pois quando estava com Hirst ele sempre se sentia esperançoso e vago.
– Não acho mais você tão bobo quanto achava, Hewet
– disse Hirst. – Você não sabe o que quer dizer, mas tenta dizê-lo.
– Mas não está se divertindo aqui? – perguntou Hewet.
– De modo geral... sim – disse Hirst. – Gosto de observar as pesoas. Gosto de olhar coisas. Este país é de uma beleza espantosa. Você tinha notado como o topo da
montanha ficou amarelo esta noite? Temos realmente de levar nosso almoço e passar o dia fora. Você está ficando repulsivamente gordo. – Ele apontou a barriga da
perna nua de Hewet.
– Vamos organizar uma excursão – disse Hewet energicamente. – Vamos convidar o hotel inteiro. Alugar burricos e...
– Santo Deus! –... disse Hirst. – Esqueça! Posso ver Miss Warrington, Miss Allan, Mrs. Elliot e os outros agachados nas pedras e grasnando “Mas que lindo!”
–Convidaremos Venning e Perrott e Miss Murgatroyd...todos que pudermos apanhar – prosseguia Hewet. – Qual o nome daquele gafanhotinho velho de óculos? Pepper? Pepper
vai nos guiar.
– Graças a Deus você jamais conseguirá os burricos – disse Hirst.
– Preciso tomar nota disso – disse Hewet lentamente baixando os pés sobre o assoalho. – Hirst acompanha Miss Warrington; Pepper avança sozinho sobre um asno branco;
provisões distribuídas igualmente... ou deveríamos alugar uma mula? As senhoras... Mrs. Paley, meu Deus!... dividirão uma carruagem.
– É aí que você erra – disse Hirst. – Botando virgens no meio de senhoras.
– Quanto tempo você acha que ia demorar uma expedição dessas, Hirst? – perguntou Hewet.
– Eu diria de 12 a 16 horas – respondeu Hirst. – O tempo habitualmente gasto num primeiro confinamento.
– Vai ser preciso uma organização considerável- disse Hewet, que andava brandamente pelo quarto e parou para mexer nos livros empilhados sobre a mesa, uns sobre
os outros.
– Também vamos querer alguns poetas – comentou ele. – Não Gibbon; não; por acaso você tem Amor moderno ou John Donne? Sabe, penso em pausas em que as pessoas se
cansam de olhar a paisagem, e então seria bom ler algo bastante difícil em voz alta.
– Mrs. Paley vai se divertir – disse Hirst.
– Mrs. Paley certamente vai gostar – disse Hewet. – Éuma das coisas mais tristes que conheço... o jeito como assenhoras idosas deixam de ler poesia. E como é adequado:
Falo como alguém que sonda
A difusa profundeza da vida,
Alguém que finalmente pode soar
Claras visões, e certas.
Mas – depois do amor, o que sobrevém?
Uma cena que ameaça,
Umas poucas tristes horas vazias,
E depois, a Cortina.
Atrevo-me a dizer que Mrs. Paley é a única de nós que pode entender isso de verdade.
– Vamos perguntar a ela – disse Hirst. – Por favor, Hewet, se você tiver de ir para a cama, feche minha cortina. Poucas coisas me aborrecem mais do que o luar.
Hewet retirou-se, apertando os poemas de Thomas Hardy debaixo do braço, e em breve os dois jovens dormiam profundamente em suas camas.
Entre o apagar da vela de Hewet e o levantar-se de um sombrio rapaz espanhol que foi o primeiro a divisar a desolação do hotel no começo da manhã, houve algumas
horasde silêncio. Quase se podiam ouvir cem pessoas respirandofundo, e por mais alerta e inquieto que se estivesse, teriasido difícil escapar do sono no meio de
tanto sono.Olhandopelas janelas, só se via escuridão. Por toda a sombreada metade do mundo as pessoas jaziam de bruços e poucas luzesbruxuleantes nas ruas vazias
marcavam os locais onde se erguiam suas cidades. Ônibus vermelhos e amarelos perseguiam-se em Piccadilly; mulheres suntuosas balouçavamse numa parada; mas aqui na
escuridão uma coruja esvoaçava de árvore em árvore, e quando a brisa ergueu os ramosa lua lampejou como se fosse uma tocha. Até todas as pessoas acordarem novamente
os animais sem casa estavam em toda parte, os tigres e os cervos, e os elefantes descendona escuridão para beber nas poças. O vento à noite soprando sobre as colinas
e florestas era mais puro e mais frescodo que o vento de dia, e a terra, despida de seus detalhes,mais misteriosa do que a terra colorida e dividida por estradas
e campos. Por seis horas existia essa beleza profunda,até quando o leste branqueava, o fundo emergia à superfície, as estradas revelavam-se, a fumaça se erguia,
as pessoasse moviam e o sol brilhava sobre as janelas do hotel emSanta Marina, esperando abrirem-se as cortinas e o ressoardo gongo pela casa toda anunciando o café
da manhã.
Assim que o café terminou, as damas como de costume ficaram circulando vagamente, apanhando jornais e largando-os de novo pelo saguão.
– E o que vai fazer hoje? – perguntou Mrs. Elliot, deslizando na direção de Miss Warrington.Mrs. Elliot, esposa de Hughlind, reitor de Oxford, era uma mulher baixinha
de expressão normalmente lamentosa. Seus olhos moviam-se de uma coisa a outra como se nunca encontrassem nada suficientemente agradável para pousar por mais tempo.
– Vou tentar levar tia Emma para a cidade – disse Susan. – Ela ainda não viu nada.
– Acho isso tão animado da parte dela – disse Mrs. Elliot –, vir tão longe de seu próprio lar.
– Sim, eu sempre lhe digo que ela vai morrer a bordo deum navio – respondeu Susan. – Ela nasceu num navio.
– Antigamente – disse Mrs. Elliot – muita gente nascia.Sempre tive tanta pena dessas pobres mulheres! Temos muitos motivos para nos queixar! – Ela balançou a cabeça.
Seus olhos vagaram sobre a mesa, e ela comentou sem nenhuma razão aparente: – Coitada da rainhazinha da Holanda! Repórteres de jornal, por assim dizer, praticamente
na porta de seu quarto de dormir!
– Estava falando na rainha da Holanda? – disse a voz agradável de Miss Allan, que procurava as grossas páginas do Times entre um monte de jornais estrangeiros.
– Sempre invejo quem vive num país tão excessivamente plano! – comentou ela.– Mas que coisa mais estranha! – disse Mrs. Elliot. – Eu acho um país plano tão deprimente.
– Então receio que não possa ser muito feliz aqui, Miss Allan – disse Susan.
– Ao contrário – disse a Miss Allan. – Eu adoro montanhas. Percebendo o Times a certa distância, ela se dirigiu até lá para pegá-lo. – Bem, preciso encontrar o meu
marido – disse Mrs. Elliot afastando-se inquieta.
– E eu preciso ver minha tia – disse Miss Warrington.E assumindo as tarefas do dia, afastaram-se todas. Talvez porque a fragilidade do papel estrangeiro e a aspereza
de seus tipos sejam uma prova de frivolidade e ignorância, não há dúvida de que ingleses dificilmente considerem o que lêem lá como notícias, assim como um programa
comprado de um homem na rua não inspira confiança no que diz. Um casal idoso muito respeitável,tendo inspecionado as longas mesas de jornais, não achou que valesse
a pena ler mais o que as manchetes.
– Só agora o debate do dia 15 deve ter nos alcançado –murmurou Mrs. Thornbury. Mr. Thornbury, que era maravilhosamente limpo e tinha traços rubros em sua face como
traços de tinta numa escultura de madeira gasta pelo tempo,olhoupor cima dos óculos e viu que Miss Allan tinha o Times.
Por isso o casal sentou-se nas poltronas e ficou esperando.
Ah,aí está Mr.Hewet – disse Mrs.Thornbury. – Mr. Hewet, venha sentar-se conosco. Eu estava dizendo ao meu marido o quanto o senhor me lembra uma velha querida amiga
minha, Mary Umpleby. Era uma mulher tão encantadora, acredite. Cultivava rosas. Antigamente costumávamos hospedar-nos com ela.
Nenhum rapaz gosta de que lhe digam que se parece com uma velha solteirona – disse Mr. Thornbury.
Ao contrário – disse Mr. Hewet. – Sempre considero um elogio lembrar conhecidos de outras pessoas. Mas Miss Umpleby... por que ela cultivava rosas?
Ah, coitadinha – disse Mrs. Tornbury – é uma longa história. Ela passara por sofrimentos terríveis. Numaocasião acho que teria perdido o juízo não fosse o seujardim.
O solo era muito hostil... uma benção disfarçada; ela tinha de levantar-se de madrugada... sair de casaem qualquer tempo. E depois há essas criaturas que comem as
rosas. Mas ela triunfou. Sempre triunfava. Erauma alma corajosa. – Ela suspirou fundo, mas ao mesmotempo resignada.
Eu não tinha percebido que estava monopolizando o jornal – disse Miss Allan, vindo em direção deles.
Estávamos tão ansiosos por ler sobre o debate – dis-se Mrs. Thornbury aceitando-o por causa do marido.
Não se entende como um debate pode ser interessante, até se ter filhos na marinha. Meus interesses estão igualmente divididos mesmo assim.Também tenho filhos no
exército, e um filho que faz discursos no sindicato... o meu bebê!
Acho que Hirst deve conhecê-lo – disse Hewet.
Mr. Hirst tem um rosto tão interessante – disse Mrs. Thornbury. – Mas sinto que é preciso ser muito inteligente para falar com ele. Então,William? – inquiriu ela,
pois Mr. Thornbury grunhiu.
Estão confundindo tudo – disse Mr. Thornbury, que chegara à segunda coluna da reportagem, uma espasmódica, pois os membros irlandeses estavam-se digladiando há três
meses sobre uma questão de eficiência naval.Depois de um ou dois parágrafos perturbados, a coluna impressa corria suavemente mais uma vez.
A senhorita leu? – perguntou Mrs.Thornbury a Miss Allan.
Não, lamento dizer que só li sobre as descobertas em Creta.
– Ah, mas seria tão bom conhecer o mundo antigo! – gritou Mrs. Thornbury. – Agora que nós, velhos, estamos sozinhos... estamos na nossa segunda lua-de-mel... estou
realmente voltando à escola. Afinal estamos fundados no passado, não estamos, Mr. Hewet? Meu filho soldado diz que ainda há muita coisa de Aníbal a ser aprendida.Devia-se
saber muito mais do que se sabe. De alguma forma, quando leio o jornal, começo primeiro com os debates, e antes de terminar a porta sempre se abre... somos um grupo
muito grande em casa... e assim nunca se pensa o bastante sobre os antigos e tudo o que fizeram por nós. Mas a senhorita começa do começo, Miss Allan.
– Quando penso nos gregos, imagino-os como negros nus – disse Miss Allan. – O que, estou certa, é bastante incorreto.
– E o senhor, Mr. Hirst? – disse Mrs. Thornbury, percebendo que o rapaz macilento estava perto. – Tenho certeza de que o senhor lê tudo.
– Eu me limito ao críquete e ao crime – disse Hirst. – O pior de vir das classes superiores é que nossos amigos nunca são mortos em acidentes ferroviários.
Mr. Thornbury jogou o jornal na mesa e deixou cair os óculos enfaticamente. As folhas caíram no meio do grupo e todos as contemplaram. – Não foi bem? – perguntousua
esposa, solícita.
Hewet pegou uma das folhas e a leu: – Uma dama caminhava ontem nas ruas de Westminster quando percebeu um gato na janela de uma casa deserta. O animal faminto...
Seja como for estou fora disso – interrompeu Mr. Thornbury, irritado.
As pessoas sempre esquecem um gato – comentou Miss Allan.
Lembre, William, o primeiro-ministro adiou sua resposta – disse Mrs. Thornbury.
Aos 80 anos, Mr. Joshua Harris, de Eeles Park, Brondesbury, teve um filho – disse Hirst.
–... o animal faminto, que fora notado por operários por alguns dias, foi resgatado mas... por Deus! mordeu a mão do homem, deixando-a em pedaços!
– Louco de fome, suponho – comentou Miss Allan.
– Estão todos esquecendo a principal vantagem de estar além-mar – disse Mr. Hughling Elliot, que se reunira ao grupo. – Podem ler suas notícias em francês, o que
equivale a não ler notícias.
Mr. Elliot tinha profundo conhecimento de copta, o que escondia o máximo possível, e citava frases francesas tão perfeitamente que era difícil acreditar que também
soubesse falar a língua comum. Ele tinha um respeito imenso pelos franceses.
Vamos? – perguntou aos dois jovens. – Devíamos partir antes de ficar realmente quente.
Suplico-lhe que não caminhe no calor, Hugh – implorou sua esposa, dando-lhe um pacote anguloso onde estavam embrulhados metade de um frango e passas.
Hewet será nosso barômetro – disse Mr. Elliot. – Vai derreter antes de mim.
Na verdade, se uma só gota derretesse nas suas magras costelas, os ossos ficariam expostos. As damas ficaram sozinhas, rodeando o Times que jazia no chão. Miss Allan
olhou o relógio do pai.
Dez para as onze – comentou.
Trabalho? – perguntou Mrs. Thornbury.
Trabalho – respondeu Miss Allan.
– Que bela criatura ela é! – murmurou Mrs.Thornbury enquanto a figura robusta se afastava no seu casaco de corte masculino.
– Estou certa de que ela tem uma vida dura – suspirou Mrs. Elliot.
– Ah, é uma vida dura – disse Mrs. Thornbury.Mulheres não casadas... ganhando sua própria vida... é a pior vida.
No entanto ela parece bem alegre – disse Mrs. Elliot.
Deve ser muito interessante – disse Mrs. Thornbury.
– Invejo o seu conhecimento.
Mas não é isso que as mulheres querem – disse Mrs.Elliot.
Receio que seja tudo o que a grande maioria das mulheres pode esperar ter – suspirou Mrs. Thornbury. – Acredito que haja mais de nós do que nunca antes. Sir Harley
Lethbridge me dizia ainda outro dia como é difícil encontrar rapazes para a marinha... em parte por causa dos seus dentes, é verdade. Ouvi dizer que as mulheres
falam bem abertamente de...
Horrível, horrível! – exclamou Mrs. Elliot. – O coroamento, pode-se dizer, da vida de uma mulher. Eu, que sei o que é não ter filho... – ela suspirou e calou-se.
– Mas não devemos ser duras – disse Mrs. Thornbury.
– As condições mudaram tanto desde quando eu era uma jovenzinha.
– Certamente a maternidade não muda – disse Mrs. Elliot.
– De algumas formas podemos aprender muito dos jovens – disse Mrs. Thornbury. – Eu aprendo muito com minhas filhas. – Eu acho que Hughling realmente nem se importa
– disse Mrs. Elliot. – Mas ele tem o seu trabalho.
– Mulheres sem filhos podem fazer tanta coisa pelos filhos dos outros – comentou Mrs.Thornbury polidamente.
– Eu desenho bastante – disse Mrs. Elliot – mas isso não é realmente uma ocupação. É tão desconcertante ver que mocinhas que apenas começam fazem as coisas melhor
do que a gente! E a natureza é difícil... muito difícil!
– Não há instituições... clubes... que a senhora pudesse ajudar? – perguntou Mrs. Thornbury.
– Eles são tão cansativos – disse Mrs. Elliot. – Eu pareço forte por causa da minha cor, mas não sou; a caçula de onze filhos nunca é.
– Se a mãe for cuidadosa antes – disse Mrs.Thornbury judiciosamente –, não há motivo para o tamanho da família fazer qualquer diferença. E não existe treinamento
como o treinamento que irmãos e irmãs dão uns aos outros. Meu menino mais velho, Ralph, por exemplo...Mas Mrs. Elliot não estava prestando atenção à experiência
da senhora mais velha, e seus olhos vagaram pelo saguão.
– Minha mãe sofreu dois abortos, eu sei – disse ela de repente. – O primeiro, porque viu um daqueles enormes ursos que dançam... não deviam permitir isso; o outro...foi
uma história horrenda... nossa cozinheira teve uma criança e havia um jantar festivo. Atribuo a isso a minha dispepsia.
– E um aborto é bem pior do que um parto – murmurouMrs. Thornbury distraída, ajeitando seus óculos e apanhando o Times. Mrs. Elliot levantou-se e saiu alvoroçada.
Depois de ouvir o que uma das milhares de vozes falando no jornal tinha a dizer e de notar que uma primasua se casara com um clérigo em Minehead – ignorandoas mulheres
bêbadas, os animais dourados de Creta, os movimentos de batalhões, os jantares, as reformas, os incêndios, os indignados, os eruditos e os benevolentes –,Mrs. Thornbury
subiu as escadas para escrever uma carta para o correio.
O jornal estava bem embaixo do relógio, os dois juntos parecendo representar a estabilidade num mundo em transformação. Mr. Perrott passou; Mr. Venning parou por
um instante junto a uma mesa. Mrs. Paley foi empurrada na sua cadeira de rodas.Susan seguiu-a.Mr.Venning foi andando atrás dela. Famílias de militares portugueses,com
roupas sugerindo que se tinham levantado tarde em quartos desarrumados, passaram seguidos de babás barulhentas carregando crianças barulhentas. À medida que o meio-dia
se aproximava e o sol incidia diretamente sobre
o telhado, um redemoinho de moscas graúdas zumbia em círculo; serviram-se bebidas geladas sob as palmeiras; as longas persianas foram baixadas soltando o seu guincho
característico, tornando toda a luz amarela. Agora o relógio tinha a sua disposição um saguão silencioso para tiquetaquear e uma platéia de quatro ou cinco comerciantes
sonolentos. Aos poucos, figuras alvas com chapéus sombreados entraram pela porta, deixando entrar uma fresta do dia quente de verão e fechando-o novamente lá fora.Depois
de repousar uns minutos na penumbra, subiram as escadas. Ao mesmo tempo o relógio resfolegou uma hora, soou o gongo, começando levemente, entrando num frenesi e
parando. Houve uma pausa. Depois, todos os que tinham subido as escadas desceram; chegaram os aleijados, plantando os dois pés no mesmo degrau para poderem escorregar;
chegaram menininhas segurando o dedo da babá; velhos gordos chegaram ainda abotoando seus coletes. O gongo soara no jardim, e aos poucos figuras reclinadas ergueram-se
e entraram lentamente para comer, pois chegara a hora de se alimentarem outra vez.Havia piscinas e faixas de sombra no jardim mesmo ao meio-dia, onde dois ou três
visitantes podiam se deitar trabalhando ou conversando à vontade.
Devido ao calor do dia, o almoço geralmente era umarefeição silenciosa, quando as pessoas observavam seus vizinhos e assimilavam rostos novos que pudesse haver,
adivinhando quem eram e o que faziam. Mrs. Paley, emborabem além dos 70 anos, de pernas incapacitadas, saboreava sua comida e as peculiaridades dos seus semelhantes.
Sentava-se junto a uma mesa pequena com Susan.
– Eu não gostaria de dizer o que ela é! – disse ela numa risadinha contemplando uma mulher alta vestida toda de branco, com pintura nas faces encovadas, que sempre
chegava tarde e sempre era servida por uma mulher de aspecto pobre. Susan corou diante desse comentário, imaginando por que sua tia dizia coisas desse tipo.
O almoço prosseguiu metodicamente até que cada umdos sete pratos ficou apenas nas sobras e as frutas eram nãomais que um brinquedo a ser descascado e cortado, comouma
criança destruindo uma margarida, pétala a pétala. Acomida servia como o extintor de qualquer tênue chama doespírito humano que pudesse sobreviver ao calor do meiodia,
mas Susan sentava-se em seu quarto remoendo o agradável fato de que Mr. Venning a procurara no jardim e sesentara ali aproximadamente meia hora enquanto ela liaem
voz alta para a tia. Homens e mulheres procuravamcantos diferentes onde podiam ficar sem serem observados;das duas às quatro podia-se dizer sem exagero que o hotelera
habitado por corpos sem alma. Teria sido desastroso seum incêndio ou uma morte de repente tivesse exigido danatureza humana algo de heróico, mas as tragédias sempre
acontecem em horas de fome. Perto das quatro horas o espírito humano começava novamente a tocar o corpo como uma chama toca um promontório negro de carvão. Mrs.Paley
achou que não ficava bem abrir tão amplamente suamandíbula embora não houvesse ninguém por perto, e Mrs. Elliot examinou ansiosamente seu rosto redondo e corado
no espelho.
Meia hora depois, tendo removido os sinais de sono,encontraram-se no saguão, e Mrs. Paley comentou que ia tomar o seu chá.
– A senhora também gosta do seu chá, não gosta? – disse e convidou Mrs. Elliot, cujo marido ainda estava fora, para reunir-se com ela numa mesa especial que mandara
colocar debaixo de uma árvore.
Neste país, um pouco de prata viaja muito – disse ela rindo. Mandou Susan apanhar outra xícara.
Eles têm uns biscoitos excelentes por aqui – comentou mirando uma travessa. – Não biscoitos doces, de que não gosto... biscoitos secos... andou desenhando?
Fiz dois ou três pequenos rabiscos – disse Mrs.Elliot,falando mais alto do que o habitual. – Mas é tão difícil depois de Oxfordshire, onde há tantas árvores. A luz
aqui é tão intensa. Algumas pessoas a admiram, sei disso, mas eu a acho muito cansativa.
Eu realmente não preciso ficar aqui cozinhando,Susan – disse Mrs. Paley quando sua sobrinha voltou. – Vou ter de importuná-la para que me leve daqui.
Tudo teve de ser levado para outro local. Finalmente colocaram a velha senhora de modo que a luz ondulava sobre ela como se fosse um peixe numa rede. Susan servia
o chá e comentava que em Wiltshire também fazia calor,quando Mr. Venning perguntou se podia juntar-se a elas.
– É tão bom encontrar um jovem que não despreza o chá – disse Mrs. Paley, recuperando seu bom humor. – Um de meus sobrinhos outro dia pediu um copo de xerez... às
cinco da tarde! Eu lhe disse que podia tomá-lo no café dobrando a esquina, mas não na minha saleta.
– Prefiro ficar sem almoço a ficar sem chá – disse Mr. Venning. – Não é bem verdade. Gosto dos dois.Mr. Venning era um rapaz moreno, de cerca de 32 anos, muito relaxado
e confiante em seus modos, embora naquele momento, obviamente, estivesse um pouco excitado. Seu amigo, Mr. Perrott, era advogado e, como se recusasse a ir a qualquer
parte sem Mr. Venning, quando vinha a Santa Marina para cuidar de assuntos de uma empresa, o amigo tinha de vir também. Mr. Venning também era advogado, mas odiava
aprofissão que o mantinha dentro de casa, em cima doslivros, e assim que sua mãe viúva morresse, confidenciou a Susan, ele se dedicaria seriamente a voar e seria
sócio num grande empreendimento de construção deaeroplanos. A conversa prosseguia divagando.Naturalmente, tratava das belezas e singularidades dolugar, das ruas,
das pessoas e da quantidade de cachorros amarelos sem dono.
– Não acham terrivelmente cruel o jeito como tratam os cachorros neste país? – perguntou Mrs. Paley.
– Eu mandaria matar todos – disse Mr. Venning.
– Ah, mas uns cachorrinhos tão bonitos – disse Susan.
– Uns sujeitinhos tão divertidos – disse Mr.Venning.
– Olhe, a senhorita não tem nada para comer. – Uma grande fatia de bolo foi passada a Susan na ponta deuma faca trêmula. A mão dela também tremia quando a pegou.
– Eu tenho um cachorro em casa de que gosto muito
– disse Mrs. Elliot.
– Meu papagaio não suporta cachorros – disse Mrs. Paley com ar de quem faz uma confidência. – Sempre suspeitei de que ele (ou ela) fosse provocado por um cachorro
quando eu estava em viagem no exterior.
– A senhorita não foi longe esta manhã, Miss Warrington. – disse Mr. Venning.
– Estava quente – respondeu ela. O diálogo dos dois tornou-se privado, devido à surdez de Mrs. Paley e à longa história triste que Mrs. Elliot passara a contar sobre
um terrier pêlo-de-arame branco com uma única mancha preta, de um tio dela, que se suicidara.
– Animais se suicidam, sim – suspirou ela como se tivesse afirmando um fato doloroso.
– Não podíamos explorar a cidade esta noite? – sugeriu Mr. Venning.
– Minha tia... – começou Susan.
– A senhorita merece umas férias – disse ele. – Está sempre fazendo coisas para os outros.
– Mas essa é a minha vida – disse ela disfarçando ao encher novamente o bule de chá.
– Essa não é vida para ninguém – retorquiu ele –, de nenhuma pessoa jovem. A senhorita vem?
Eu gostaria – murmurou ela.Nesse momento Mrs. Elliot ergueu os olhos e exclamou:
Oh, Hugh! Ele está trazendo alguém – acrescentou.
– Ele vai gostar de chá – disse Mrs. Paley. – Susan, corra e traga xícaras... lá estão os dois rapazes.
– Estamosloucos por um chá – disse Mr.Elliot.– Conhece Mr. Ambrose, Hilda? Nós nos encontramos no morro.
– Ele me arrastou até aqui – disse Ridley –, eu estou constrangido. Estou empoeirado, com sede, e com má aparência. – Ele apontou as botas brancas de poeira, enquanto
uma flor murcha na lapela, como um animal exausto pendurado sobre um portão, aumentava o efeito de desmazelo e altura. Ele foi apresentado aos outros. Mr.Hewet e
Mr. Hirst trouxeram cadeiras, e o chá recomeçou, com Susan despejando cascatas de água do bule,sempre alegre e com a habilidade da longa experiência.
– A esposa de meu irmão – explicou Ridley a Hilda, de quem não se lembrava – tem uma casa aqui, que ele nos emprestou. Eu estava sentado numa pedra sem pensar em
nadaquando Elliot apareceu como uma fada numa pantomima.
– Nosso frango estava salgado demais – disse Hewet melancolicamente a Susan –, e não é verdade que bananas tenham líquido além de substância.Hirst já estava bebendo.
– Estávamos amaldiçoando você – disse Ridley, respondendo às perguntas de Mrs. Elliot sobre a esposa dele.
– Vocês turistas devoram todos os ovos, disse-me Helen. Aquilo também é uma monstruosidade – ele balançou a cabeça em direção do hotel. – Chamo isso de luxo repugnante.
Nós vivemos como porcos na sala de estar.
– A comida aqui não é o que deveria ser – disse Mrs.Paley, séria – levando em conta o preço. Mas se não se ficar num hotel, onde é que se irá ficar?
– Em casa – disse Ridley. – Muitas vezes desejo ter ficado em casa! Todo mundo deveria ficar em casa, mas, naturalmente, não ficam.
Mrs. Paley sentiu certa irritação contra Ridley, que parecia estar criticando seus hábitos depois de se conhecerem por cinco minutos.
– Eu própria acredito em viagens para o exterior – afirmou ela – se se conhece seu país natal, o que posso honestamente dizer que acontece comigo. Eu não admitiria
que ninguém viajasse antes de ter visitado Kent e Dorsetshire... Kent pelos lúpulos e Dorsetshire por seus antigos cottages de pedra. Não há nada aqui que se compare
a isso.
– Sim... eu sempre acho que algumas pessoas gostam das terras planas e outras dos vales – disse Mrs. Elliot com jeito bastante vago.Hirst, que estivera comendo e
bebendo sem interrupção, acendeu um cigarro e comentou:
– Ah, mas a esta altura todos concordamos em que a natureza é um erro. Ou é muito feia, espantosamente desconfortável, ou absolutamente aterradora. Não sei o que
me deixa mais alarmado: uma vaca ou uma árvore. Uma vez encontrei uma vaca no campo à noite. A criatura me olhava. Acreditem, fiquei de cabelo branco. É uma desgraça
permitirem animais assim à solta.
– E o que foi que a vaca pensou dele? – murmurou Venning para Susan, que imediatamente achou que Mr.Hirst era um rapaz medonho e que embora tivesse aquele ar de
inteligente provavelmente não era tão inteligente quanto Arthur, não do jeito que realmente importava.
– Não foi Wilde quem descobriu que a natureza não admite os ossos ilíacos? – indagou Hughling Elliot.Àquela altura sabia exatamente que estudos e distinções Hirst
tinha, e formara uma excelente opinião sobre sua capacidade.
Mas Hirst apenas apertou os lábios e não respondeu.
Ridley ficou imaginando se agora poderia se retirar. A educação exigia que agradecesse Mrs. Elliot pelo chá e acrescentasse, acenando com a mão:
Precisam vir nos visitar. A onda incluía Hirst e Hewet, que respondeu:
Eu gostaria imensamente.
O grupo desfez-se e Susan, que nunca na vida se sentira feliz, estava por iniciar sua caminhada pela cidade com Arthur, quando Mrs. Paley a chamou de volta. Não
podia compreender, pelo livro, como se joga a paciência do Double Demoll; e sugeriu que se sentassem e trabalhassem naquilo juntas, seria uma boa maneira de ocupar
o tempo antes do jantar.
10
Entre as promessas que Mrs. Ambrose fizera a suasobrinha caso ela ficasse, havia um aposento afastadodo resto da casa, grande, privado – um aposento ondeela podia
tocar, ler, pensar, desafiar o mundo; uma fortaleza e um santuário. Sabia que aos 24 anos aposentoseram mundos antes de quartos. Estava certa, e quando fechou a
porta Rachel entrou num lugar encantado,onde os poetas cantavam e as coisas assumiam sua verdadeira proporção. Alguns dias depois da visão do hotel à noite, ela
estava sentada sozinha, mergulhadanuma poltrona, lendo um volume vermelho de capacolorida, tendo na lombada Obras de Henrik Ibsen. Havia partituras abertas no piano
e livros de músicaempilhados em dois montes no chão; mas no momento ela abandonara a música.
Longe de parecer entediada ou distraída, seus olhos concentravam-se quase severamente na página; pela sua respiração lenta mas contida, podia-se ver que todo o seu
corpo estava tenso pelo trabalho mental. Finalmente ela fechou o livro num gesto brusco, deitou-se para trás, respirou fundo, expressando o assombro que sempre marca
a transição do mundo imaginário para o mundo real.
– O que eu quero saber – disse ela em voz alta – é isso:qual é a verdade? Qual a verdade de tudo? – Falava sempreem parte como ela mesma, e em parte como a heroína
dapeça que acabava de ler. A paisagem lá fora, já que ela nadavira senão letra impressa pelo espaço de duas horas, agoraparecia surpreendentemente sólida e clara,
mas, emborahouvesse homens no morro lavando troncos de oliveiras com um líquido branco, por um instante ela pensou que eraela própria a coisa mais viva na paisagem
– uma heróica estátua no primeiro plano dominando a vista. As peças deIbsen sempre a deixavam nesse estado. Ela as encenava diasa fio por vezes, para grande divertimento
de Helen: depoisseria a vez de Meredith, e ela se tornava Diana das Encruzilhadas. Mas Helen dava-se conta de que nem tudoera encenação e que algum tipo de mudança
estava acontecendo no ser humano. Quando Rachel se cansava da rigidez de sua pose no encosto da cadeira, virava-se, deslizavaconfortavelmente até o fundo dela e
olhava acima dos móveis pela janela oposta que se abria para o jardim. (Suamente vagava afastando-se de Nora, mas continuava pensando em coisas que o livro sugeria:
as mulheres e a vida.)
Durante os três meses em que estava ali ela se recompensara grandemente, como Helen achava que devia ser, das intermináveis caminhadas ao redor de jardins fechados
e dos mexericos domésticos de suas tias. Mas Mrs. Ambrose teria sido a primeira a rejeitar qualquer influência, ou crença, de fato, que influenciar fosse coisa que
estivesse em seu poder. Via Rachel menos tímida, menos grave, o que era bom, e as ausências e confusões intermináveis que tinham levado àquele resultado em geral
não eram nem notadas. Ela confiava em que o remédio seria falar sem se proteger, e ser tão franca quanto o hábito de falar com homens a fazia ser. Não encorajava
aqueles hábitos de altruísmo e bondade fundados em insinceridade tão valorizados em lares onde vivem homens e mulheres. Queria que Rachel pensasse, por isso oferecia
livros e desencorajava uma dependência excessiva de Bach, Beethoven e Wagner. Mas quando Mrs. Ambrose sugeria Defoe, Maupassant ou alguma ampla crônica de vida familiar,
Rachel escolhia livros modernos, livros de capa amarela lustrosa, livros com muito dourado na lombada, que eram aos olhos de sua tia símbolos de ásperas discussões
e disputas sobre fatos que não tinham tanta importância quanto os modernos afirmavam. Mas não interferia. Rachel lia o que desejava, com a curiosa literalidade de
alguém para quem frases escritas são pouco familiares,lidando com palavras como se fossem feitas de madeira,de grande importância isoladamente, possuindo formas,como
mesas ou cadeiras. Assim ela tirava conclusões que tinham de ser remodeladas dependendo das aventuras do dia, e na verdade eram remodeladas com toda a liberalidade
que se pudesse desejar, deixando sempre atrás de si um grãozinho de crença.
Ibsen foi seguido de um romance do tipo que Mrs.Ambrose detestava, cujo objetivo era distribuir a culpa da ruína de uma mulher sobre os ombros certos: objetivo que
era alcançado, se é que o desconforto do leitor é prova de alguma coisa. Ela jogou o livro no chão, olhou pela janela,virou-se para o outro lado e desabou numa poltrona.
A manhã estava quente, e o exercício de ler deixara sua mente contraindo-se e expandindo-se como a mola principal de um relógio. Os sons do jardim lá fora uniram-se
aos relógios e aos pequenos rumores do meio-dia, que não se podem atribuir a nenhuma causa definida, todos num ritmo regular. Era tudo muito real, muito grande,muito
impessoal, e depois de um ou dois momentos ela começou a erguer o dedo indicador e deixá-lo cair sobre o braço da cadeira como se trouxesse de volta alguma consciência
de sua própria existência. Em seguida foi tomada pela estranheza indizível com relação ao fato de estar sentada numa poltrona,de manhã,no meio do mundo.Quem eram
as pessoas movendo-se na casa... movendo coisas de um lugar a outro? E a vida, o que era aquilo? Era apenas uma luz passando na superfície e desaparecendo, como
ela mesma com o tempo desapareceria, embora os móveis do quarto fossem ficar? Sua dissolução tornou-se tão completa que não conseguia mais erguer o dedo, e sentou-se
totalmente quieta, olhando sempre o mesmo ponto. Tudo se tornava cada vez mais e mais estranho. Foi assaltada pelo assombro de que as coisas talvez nem existissem...
Esqueceu-se de que tinha dedos para erguer... As coisas que existiam eram tão imensas e tão desoladas...Continuou consciente dessas vastas massas de substância por
um longo tempo, o relógio ainda tiquetaqueando no meio do silêncio universal.
– Entre – disse mecanicamente, pois um fio em seu cérebro pareceu puxado por uma batida persistente na porta.Com muita lentidão a porta abriu-se e um ser humano
altoveio na direção dela, estendendo o braço e dizendo:
– O que devo dizer disso?
O completo absurdo de uma mulher entrando num quarto com um pedaço de papel na mão deixou Rachel atônita.
– Não sei o que responder,nem quem é Terence Hewet
– continuou Helen, na voz inexpressiva de um fantasma.Ela colocou diante de Rachel o papel onde estavam escritas as incríveis palavras:
“CARA MRS. AMBROSE – Estou organizando umpiquenique para a próxima sexta-feira, que propomos começar às onze e meia se o tempo for bom, e subir o Monte Rosa. Isso
vai levar algum tempo, mas a vista deve ser magnífica. Eu teria grande prazer se a senhora e Miss Vinrace consentissem em fazer parte do grupo.
Cordialmente, TERENCE HEWET”.
Rachel leu as palavras em voz alta para acreditar nelas.Pelo mesmo motivo botou a mão no ombro de Helen.
– Livros... livros... livros... – disse Helen na sua maneira distraída. – Mais livros novos... fico imaginando o que é que você encontra neles...
Rachel leu a carta pela segunda vez, mas para si mesma.Agora, em vez de parecer vaga como um fantasma, cada palavra era espantosamente destacada; emergiam comotopos
de montanhas emergem num nevoeiro. Sexta-feira... onze e meia... Miss Vinrace. O sangue começou a correr emsuas veias; ela sentiu seus olhos brilhando.
– Temos de ir – disse, surpreendendo Helen com sua determinação. – Certamente temos de ir – tal era o alívio de ver que coisas ainda aconteciam e na verdade pareciam
mais brilhantes por causa da névoa que as rodeava.
– Monte Rosa... é à montanha ali, não é? – disse Helen.
– Mas Hewet... quem é ele? Um dos rapazes que Ridley conheceu, suponho. Então, devo dizer sim? Pode ser terrivelmente monótono.
Ela pegou a carta e saiu, pois o mensageiro aguardava resposta.
O grupo que fora sugerido algumas noites atrás no quarto de Mr. Hirst tomara forma, e era motivo de grande satisfação para Mr. Hewet, que raramente usava suas habilidades
práticas e ficava contente de ver que estavam à altura da exigência. Seus convites tinham sido universalmente aceitos, o que era mais encorajador, pois tinham sido
feitos, contra o conselho de Hirst, a pessoas muito sem graça, totalmente inadequadas umas às outras, e que certamente não viriam.
– Sem dúvida – disse enrolando e desenrolando um bilhete assinado “Helen Ambrose” –, os talentos necessários para fazer um grande líder foram superestimados.Cerca
de metade do esforço intelectual necessário para revisar um livro de poesia moderna me fez reunir sete ou oito pessoas de sexos opostos no mesmo local à mesma hora
no mesmo dia. O que mais é o generalato senão isso, Hirst? O que mais fez Wellington no campo de Waterloo? É como contar os cascalhos de um caminho tedioso, mas
não difícil.
Hewet estava sentado em seu quarto, uma perna sobre o braço da cadeira, e Hirst escrevia uma carta diante dele. Hirst apontou rapidamente todas as dificuldades que
ainda restavam.
Por exemplo, aqui há duas mulheres que você nunca viu. Imagine que uma delas tenha medo de alturas, como minha irmã, e a outra...
Ah, as mulheres ficam com você – interrompeu Hewet. – Eu as convidei só por sua causa. O que você quer, Hirst, você sabe, é companhia de jovens da sua idade. Não
sabe como lidar com mulheres, o que é um grande defeito, levando em conta que metade do mundo consiste em mulheres.
Hirst murmurou que estava bem consciente disso...
Mas a complacência de Hewet esfriou um poucoquando ele caminhou com Hirst para o local onde tinham combinado uma reunião geral. Ficou imaginando por que na verdade
convidara essas pessoas e o que realmente se esperava daquele agrupamento de gente.
– Vacas – refletiu ele – reunidas num campo; navios numa calmaria; e nós somos exatamente a mesma coisa quando não temos nada mais a fazer. Mas por que fazemos?...
para evitar enxergarmos o fundo das coisas – eleparou junto de um regato e começou a remexer nelecom sua bengala, sujando a água com lama –, fazendocidades e montanhas
e universos inteiros do nada, ou realmente amamos uns aos outros, ou de outro modo, vivemos num estado de perpétua incerteza, não sabendo nada, saltando de momento
em momento como de mundo em mundo?... o que é, de modo geral, a opiniãopara a qual eu me inclino.
Ele saltou sobre o riacho; Hirst rodeou-o e juntou-se a ele, comentando que há muito cessara de procurar a razão de qualquer ação humana.
Quase um quilômetro adiante, chegaram a um grupo de plátanos e à casa de fazenda cor de salmão junto da torrente que fora escolhida como local de encontro. Era um
lugar sombreado, localizado convenientemente, onde o morro emergia da planura. Entre os esguios troncos dos plátanos os rapazes podiam ver pequenos grupos de burricos
pastando e uma mulher alta esfregando o focinho de um deles enquanto outra se ajoelhava junto da torrente,bebendo água das mãos em concha.
Quando eles entraram naquela sombra, Helen ergueu os olhos e estendeu a mão.
Tenho de me apresentar. Sou Mrs. Ambrose.Depois de se darem as mãos, ela disse:
E esta é minha sobrinha.
Rachel aproximou-se, desajeitada. Estendeu a mão,mas retirou-a.
– Está toda molhada – disse.
Mal tinham trocado algumas palavras, apareceu a primeira carruagem. Os burricos foram postos rapidamente em posição, e chegou a segunda carruagem. Aos poucos o bosquezinho
encheu-se de gente – os Elliot,os Thornbury,Mr. Venning e Susan, Miss Allan, Evelyn Murgatroyd e Mr. Perrott. Mr. Hirst fez o papel de cão pastor com voz enérgica
e rouca. Com algumas palavras em latim cáustico comandou os animais e inclinando um ombro anguloso, ajudou as damas a subir.
– O que Hewet não conseguiu entender – comentou – é que temos de começar a subida antes do meio-dia. – Ele estava ajudando uma jovem dama chamada Evelyn Murgatroyd
enquanto falava. Ela se alçou até seu assento,leve como uma bolha. Com uma pluma balouçando de um chapéu de abas largas, vestida de branco da cabeça aos pés, parecia
uma galante dama do tempo de Carlos I liderando tropas reais para ação.
– Cavalguem comigo – comandou ela; e assim que Hirst saltou no lombo de uma mula os dois partiram, liderando a cavalgada.
– Não me chame de Miss Murgatroyd. Odeio isso.Meu nome é Evelyn. Qual é o seu?
– St. John – disse ele.
– Gosto dele – disse Evelyn. – E qual o nome do seu amigo?
– Suas iniciais são R.S.T., por isso nós o chamamos de Monge – disse Hirst.
– Ah, vocês são espertíssimos – disse ela. – Para que lado?Apanhe um galho para mim. Vamos num galope leve.
Ela deu um golpe breve em seu burrico com um raminho e avançou. A carreira plena e romântica de Evelyn Murgatroyd é melhor descrita em suas próprias palavras:“Chame-me
de Evelyn e eu chamarei você de St. John”.Ela dissera aquilo com uma leve provocação – seu sobrenome bastava -; mas, embora muitos rapazes já lhe tivessem respondido
com bastante humor, ela continuou dizendo aquilo sem escolher nenhum. Mas seu burrico começou a trotar mais forte e ela teve de avançar sozinha, pois a trilha, quando
começou a subir uma das cristas do morro, tornava-se estreita e cheia de pedras. A cavalgada avançava em espiral como uma lagarta cheia dos tufos dos guarda-sóis
brancos das senhoras e dos chapéus-panamá dos cavalheiros. A certa altura onde o solo se erguia bem íngreme, Evelyn M. saltou do seu animal, jogou as rédeas para
o rapazinho nativo e disse a St. John Hirst que também desmontasse. Seu exemplo foi seguido por aqueles que sentiam necessidade de esticar as pernas.
– Não vejo nenhuma necessidade de descer – disse Miss Allan à Mrs. Elliot logo atrás dela -levando em conta a dificuldade que tive de subir.
– Esses burricos agüentam qualquer coisa, n’ est-ce pas?
– disse Mrs. Elliot ao guia, que inclinou a cabeça obsequiosamente.
– Flores – disse Helen parando para apanhar as lindas florezinhas coloridas que cresciam isoladamente, aqui e ali.
– É só beliscar as folhas e elas começam a soltar seu perfume – disse ela depositando uma no joelho de Miss Allan.
– Já não nos encontramos antes? – perguntou a Miss Allan, olhando para ela.
– Eu achava que sim – Helen riu, pois na confusão do encontro não tinham sido apresentadas.
– Que coisa boa! – gorjeou Mrs. Elliot. – É o que todos sempre gostariam de fazer... só que infelizmente não é possível.
– Não épossível?– disse Helen.–Tudo épossível.Quem sabe o que pode acontecer antes que a noite caia? – continuou ela zombando da timidez da pobre senhora que dependia
tão implicitamente das coisas certinhas, que o mero vislumbre de um mundo onde por acaso se pudesse omitir o jantar ou remover a mesa uma polegada do seu lugar costumeiro,
enchia-a de receio por sua própria estabilidade.
Subiram mais e mais alto, e ficaram separados do mundo. O mundo, quando se viraram para olhar para trás,achatava-se e se estendia, marcado por retângulos de um verde
e cinza tênues.
As cidades são muito pequenas – comentou Rachel tapando Santa Marina e seus subúrbios com uma das mãos. O mar enchia suavemente todos os ângulos da costa, quebrando-se
num rufo branco, e aqui e ali navios estavam firmemente instalados naquele azul. O mar era manchado de púrpura e verde, e havia uma linha cintilante na beirada onde
ele encontrava o céu. O ar era muito claro e silencioso, exceto pelo ruído agudo dos gafanhotos e o zumbido das abelhas, que soava alto no ouvido quando disparavam
perto das pessoas e sumiam. O grupo parou e sentou-se por algum tempo numa grande pedra na encosta do morro.
Espantosamente claro – exclamou St. John identificando um local após o outro na paisagem.
Evelyn M. sentava-se a seu lado, apoiando o queixo na mão. Observava a paisagem com certo ar de triunfo.
– Não acha que Garibaldi pode ter estado aqui em cima?
– perguntou a Mr. Hirst. Ah, se ela tivesse sido a noiva dele!Se, em vez de um grupo fazendo um piquenique, aquele fosse um grupo de patriotas, e ela, de camisa
vermelha como o resto, estivesse entre homens ferozes deitada sobre a selva apontando sua arma para os torreões brancos abaixo, estreitando os olhos para espreitar
através da fumaça! Pensandoassim, seu pé remexia-se inquieto, e ela exclamou:
Não chamo isso de vida, você chama?
O que chama de vida? – perguntou St. John.
– Luta... revolução – disse ela ainda contemplando a cidade condenada. – Sei que você só se interessa por livros.
– Está bem enganada – disse St. John.
– Explique – insistiu ela, pois não havia armas para seremapontadas a corpos, e ela se voltava para outro tipo de guerra.
– Que coisas me interessam? – disse ele. – Gente.
– Bem, estou surpresa! – exclamou ela. – Você parece tão terrivelmente sério. Vamos ser amigos e contar um ao outro como somos. Odeio ser cautelosa, e você? Mas
St. John era decididamente cauteloso, como ela podia ver pela súbita constrição dos seus lábios, e não pretendia revelar sua alma a uma moça.
– O asno está comendo o meu chapéu – comentou ele e estendeu a mão para apanhá-lo em vez de lhe responder.Evelyn corou um pouco e depois virou-se com certo ímpeto
para Mr. Perrott; quando montaram de novo foi ele quem a ajudou a subir à sela.
– Quem botou os ovos que coma a omelete – disse Hughling Elliot, em francês, perfeito ensinamento aos outros, de que estava na hora de cavalgarem novamente.
O sol do meio-dia, que Hirst predissera, começava acair escaldante sobre eles. Quanto mais subiam, mais o céu se abria, até que a montanha não era mais que uma pequena
tenda de terra diante de um enorme fundo azul. Os ingleses ficaram calados; os nativos que caminhavam ao lado dos burricos irromperam em estranhas canções ondulantese
trocavam piadas entre si. O caminho ficava muito íngreme, e cada cavaleiro mantinha os olhos fixos na forma encurvada do cavaleiro e do burrico logo a sua frente.
Seuscorpos estavam sendo submetidos a mais tensão do que élegítimo num passeio de prazer, e Hewet escutou um oudois comentários um tanto mal-humorados.
– Talvez não seja muito sábio fazer excursões com este
calor – murmurou Mrs. Elliot para Miss Allan.Mas Miss Allan respondeu:
– Eu sempre gosto de chegar ao topo – e era verdade,embora fosse uma mulher grande de juntas rígidas e não acostumada a montar em burricos, mas como suas férias
eram poucas, aproveitava-as ao máximo.A animada figura branca cavalgava bem na frente; de alguma forma conseguira apossar-se de um galho folhudo e enrolara-o no
chapéu como uma grinalda. Prosseguiram em silêncio por alguns minutos.
– A vista vai ser maravilhosa – assegurou-lhes Hewet, vi-rando-se na sela e sorrindo encorajadoramente. Rachel encontrou seu olhar e sorriu também. Persistiram por
mais al-gum tempo, e nada se escutava senão o tropel dos cascos naspedras soltas. Então viram que Evelyn desmontara do seuanimal e que Mr. Perrott estava parado
na atitude de um estadista na Parliament Square, estendendo um braço de pedrapara a paisagem. Um pouco à esquerda deles havia um murobaixo em ruínas, restos de uma
torre de vigia elisabetana.
– Eu não teria agüentado muito mais tempo – confidenciou Mrs. Elliot a Mrs. Thornbury, mas a excitação deestar no topo dentro de um instante vendo a paisagem impediu
os demais de responderem. Um depois do outro, saíram todos para o espaço plano no topo e pararam ali, tomados de admiração. Contemplavam um espaço imensodiante deles
– areias cinzentas transformando-se em floresta, floresta fundindo-se em montanhas e montanhas lavadas pelo ar – as infinitas distâncias da América do Sul.Um rio
cruzava a campina, plano como a terra e parecendoparado. O efeito de tanto espaço era bastante assustador nocomeço. Sentiram-se muito pequenos, e por algum temponinguém
disse nada. Evelyn então exclamou:
Esplêndido! – E pegou a mão de quem estava mais próximo; por acaso, era a mão de Miss Allan.
Norte... Sul...Leste... Oeste... – disse Miss Allan entortando a cabeça de leve na direção dos pontos cardeais.
Hewet, que fora um pouco à frente, ergueu os olhos para seus convidados como para se justificar por tê-los trazido. Observou como as pessoas paradas em fila com
o corpo levemente inclinado para diante e suas roupas amassadas pelo vento revelando o contorno de seus corpos pareciam, estranhamente, estátuas nuas. No seu pedestal
de terra, pareciam pouco familiares e nobres, mas em outro momento já haviam rompido aquela ordem e ele teve de cuidar da comida. Hirst veio em seu auxílio, e passaram
de um para outro pacotes de frango e pão.
Quando St. John deu a Helen o seu embrulho, ela o fitou direto nos olhos e disse:
O senhor recorda... duas mulheres?
Lembro.
– Então são vocês as duas mulheres! – exclamou Hewet, olhando de Helen para Rachel.
– As suas luzes nos tentaram – disse Helen. – Observamos enquanto jogavam cartas, mas não sabíamos que estávamos sendo observadas.
– Era como um jogo – acrescentou Rachel.
– E Hirst não conseguiu descrevê-las – disse Hewet.Era certamente estranho ter visto Helen e não ter nada a dizer a respeito dela.Hughling Elliot botou seu monóculo
e entendeu asituação.
– Não sei de nada mais terrível- disse, puxando uma coxa de galinha – do que ser visto quando não se tem consciência disso. Sente-se que se foi apanhado fazendo
alguma coisa ridícula... por exemplo, olhando a própria língua num cabriolé.Os outros cessaram de contemplar a paisagem e, reunindo-se, sentaram-se em círculo em
torno das cestas.
– Mas aqueles espelhinhos nos cabriolés têm umafascinação própria – disse Mrs.Thornbury.– Nossos traços parecem tão diferentes quando só se pode ver umpedaço deles.
– E em breve vão restar poucos cabriolés – disse Mrs.Elliot. – E carruagens de quatro rodas... até em Oxford,acreditem, é quase impossível conseguir uma.
Fico pensando no que será dos cavalos – disse Susan.
Pastelão de vitela – disse Arthur.
– Está mais do que na hora de se acabar com os cavalos – disse Hirst. – São terrivelmente feios, além de se-rem malvados.
Mas Susan, que fora educada acreditando que cavalos são as mais nobres criaturas de Deus, não pôde concordar e Venning achou Hirst um verdadeiro imbecil, mas era
educado demais para interromper a conversa.
Quando nos virem caindo dos aeroplanos, espero que retomem alguns dos cavalos – disse ele.
O senhor voa? – disse o velho Mr.Thornbury,botando os óculos para vê-lo.
– Espero voar, um dia-disse Arthur.
Então discutiram longamente sobre aviões, e Mrs. Thornbury deu uma opinião que foi quase um discurso sobre o fato de que em tempo de guerra eles seriam necessários,
e na Inglaterra estávamos terrivelmente atrasados.
– Se eu fosse um rapaz – concluiu ela – eu certamente me prepararia. – Era esquisito ver aquela dama baixinha,idosa, em seu casaco e saia cinzentos, com um sanduíche
na mão, olhos iluminados de entusiasmo imaginando-se um rapaz num avião. Mas por algum motivo depois disso a conversa não fluía com facilidade, só se falava sobre
a bebida, o sal e a paisagem. De repente Miss Allan, sentada de costas contra o muro em ruínas, largou seu sanduíche, tirou algo do pescoço e comentou:
– Estou coberta de uns bichinhos.
Era verdade, e a descoberta foi bem-vinda. As formigas despejavam uma mantinha de terra solta entre as pedras daruína, grandes formigas castanhas com corpos lustrosos.Ela
colocou uma nas costas da sua mão para Helen olhar.
– Será que picam? – disse Helen.
– Não picam mas podem infestar a comida – disse MissAllan. E medidas foram tomadas para afastar as formigas doseu curso. Por sugestão de Hewet, decidiram adotar
os métodos de guerra moderna contra um exército invasor. A toalha da mesa representava o país invadido, e ao redor delaconstruíram barricadas de cestas, ajeitaram
as garrafas de vinho como uma muralha, fizeram fortificações de pão e cava-ram fossos de sal. Quando uma formiga passava por ali, eraexposta a fogo cerrado de migalhas
de pão, até que Susandeclarou que aquilo era cruel e premiou aqueles espíritos corajosos com despojos em forma de língua. Nesse jogo perderam seu formalismo até
se tornarem inusitadamente ousados, pois Mr. Perrott, que era muito tímido, disse “com licença” e retirou uma formiga do pescoço de Evelyn.
– Não seria para risadas, realmente – disse Mrs. Elliot confidencialmente para Mrs. Thornbury – se uma formiga conseguisse meter-se entre a camiseta e a pele.
O alarido de repente ficou mais forte porque descobriram que uma longa fileira de formigas subira na toalha de mesa por uma entrada nos fundos, e se o sucesso pudesse
ser medido por ruído, Hewet tinha todos os motivos para julgar sua expedição um sucesso. Mesmo assim, sem nenhum motivo, ficou profundamente deprimido.
“Não são satisfatórios; são ignóbeis”, pensou, analisandoos convidados de certa distância, onde estava juntando ospratos. Lançou uma olhada em todos eles, inclinando-se
ebalançando, gesticulando em torno da toalha de mesa. Amáveis e modestos, respeitáveis em muitas maneiras, amáveis mesmo na sua satisfação e desejo de serem bondosos,como
eram medíocres todos eles, capazes de insípidas maldades uns contra os outros! Havia Mrs.Thornbury,doce masbanal no seu egoísmo maternal; Mrs. Elliot, eternamentequeixando-se
de sua sorte; seu marido um zero à esquerda; eSusan, que não tinha personalidade e não contava; Venning era tão honesto e brutal quanto um menino de colégio; pobre
velho Thornbury, apenas trotava em círculos como um asno num moinho; e quanto menos se investigasse o caráterde Evelyn melhor, suspeitava ele. Mas eram pessoas com
dinheiro, e a eles mais que a outros se entregava o governo do mundo. Ponha-se entre eles alguém mais vital, que se interessasse pela vida e pela beleza, e que agonia,
que perda lhe causariam se tentasse dividir isso com eles e não os criticar!
“Aqui está Hirst”, concluiu ele, chegando à figura doamigo; com sua habitual ruga de concentração na testa, eledescascava uma banana. “E é feio como o pecado”. Poisjulgava
a feiúra de St. John Hirst e as limitações que elatrazia de certa forma responsáveis pelo resto. Era culpa delas que tivesse de viver sozinho. Então chegou a Helen,atraído
pelo som do seu riso. Ela ria com Miss Allan.
– Usa combinação nesse calor? – disse ela num tom de voz que pretendia ser particular.
Ele gostava imensamente da sua aparência, não tanto da sua beleza, mas do seu tamanho e simplicidade, que a destacavam do resto como uma grande mulher de pedra,e
tornou-se mais gentil. Seu olho caiu sobre Rachel.Estava deitada um tanto atrás dos outros, repousando num cotovelo; podia estar pensando exatamente os mesmos pensamentos
de Hewet. Seus olhos fixavam-se tristes, mas não sérios, na fila de pessoas à sua frente. Hewet foi até ela de joelhos, com um pedaço de pão na mão.
– O que está olhando? – perguntou ele.
Ela ficou um pouco espantada, mas respondeu com franqueza:
– Seres humanos.
11
Um, um, todos ergueram-se e esticaram-se; em poucos minutos dividiram-se em dois grupos mais ou menos separados. Um deles era dominado por Hughling Elliot e Mrs.Thornbury,que,tendo
lido os mesmos livros e analisado as mesmas questões, agora estavam ansiosos por dar
o nome aos lugares ali embaixo e pendurar neles montes de informações sobre armadas e exércitos, partidos políticos, nativos e produtos minerais – tudo junto, diziam,
para provar que a América do Sul era o território do futuro.
Evelyn M. escutava, com seus brilhantes olhos azuis fixos naqueles sábios.
– Como isso me faz desejar ser homem! – exclamou.
Mr. Perrott respondeu, contemplando a planície, que uma terra com futuro era uma bela coisa.
– Se eu fosse você – disse Evelyn voltando-se para ele e puxando a luva pelos dedos com veemência – eu reuniria uma tropa, conquistaria algum grande território e
o tornaria esplêndido. Precisariam de mulheres para isso.Eu adoraria iniciar uma vida bem do começo, como deveria ser... nada medíocre... com grandes salões e jardins
e homens e mulheres esplêndidos. Mas vocês... vocês só gostam de Tribunais de Justiça!
E a senhorita realmente se contentaria sem belas saias, sem doces e todas as coisas de que as jovens damas gostam? – perguntou Mr. Perrott, escondendo certa dor
sob o jeito irônico.
Eu não sou uma jovem dama – respondeu Evelyn bruscamente e mordeu o lábio inferior. – O senhor ri de mim só porque gosto de coisas esplêndidas. Porque não existem
hoje em dia homens como Garibaldi?
Olhe aqui – disse Mr. Perrott –, a senhorita não me dá uma chance. Acha que devíamos recomeçar tudo do início.Tudo bem.Mas não vejo bem...conquistar um território?
Já foram todos conquistados, não foram?
– Não se trata de nenhum território em particular – explicou Evelyn. – É a idéia, não está vendo? Levamos umas vidas tão monótonas. E tenho certeza de que o senhor
tem coisas esplêndidas dentro de si.
Hewet viu as cicatrizes e covas no rosto astuto de Mr. Perrott relaxarem pateticamente. Podia imaginar os cálculos que ele fazia sobre dever ou não pedir uma mulher
em casamento, levando em conta que não ganhava mais do que 500 libras ao ano no Tribunal, não tinha bens pessoais e sustentava uma irmã inválida. Mr. Perrott soube
mais uma vez que não era “muito”, como Susan afirmou em seu diário; não muito cavalheiro, queria dizer ela, pois era filho de um dono de mercearia em Leeds, começara
a vida com um cesto nas costas, e agora, embora praticamente não se distinguisse de cavalheiros natos, mostrava sua origem para olhos penetrantes através do impecável
asseio da roupa, as maneiras inibidas, a extrema limpeza pessoal e certa indescritível precisão e timidez com garfo e faca, que podiam ser resquícios de dias em
que carne era coisa rara, e o jeito de lidar com ela nada escrupuloso.
Os dois grupos que passeavam por ali e perdiam sua unidade reuniram-se e ficaram olhando longamente as manchas amarelas e verdes da paisagem escaldante lá embaixo.
O ar quente dançava sobre ela, impedindo-os de verem nitidamente os telhados de uma aldeia na planície.Até no topo da montanha onde a brisa soprava leve estava muito
quente; o calor, a comida, o espaço imenso e talvez alguma causa menos definida produziam uma confortável sonolência e uma sensação de relaxamento feliz. Não diziam
muita coisa, mas também não sentiam constrangimento no silêncio.
– Que tal irmos ver o que pode ser visto lá de cima? – disse Arthur a Susan, e o par saiu andando junto, sua partida certamente dando aos outros um frêmito de emoção.
Turma esquisita, não é? – disse Arthur. – Achei que jamais conseguiríamos trazer todos até o topo. Mas estou contente por termos vindo, meu Deus! Eu não teria per-dido
isso por nada no mundo.
Eu não gosto de Mr. Hirst – disse Susan, inconseqüente. – Acho que é muito inteligente, mas por que pessoas inteligentes são tão... na verdade, imagino que ele seja
incrivelmente simpático – acrescentou, abrandando instintivamente o que poderia ter sido um comentário pouco bondoso.
– Hirst? Ah, ele é um desse caras cultos – disse Arthur com indiferença. – Não parece estar se divertindo nada.Devia ouvi-lo falar com Elliot. É o máximo que posso
fazer para seguir suas conversas... Nunca fui muito bom comos livros. Com essas frases e pausas, chegaram a um pequeno outeiro sobre o qual cresciam várias árvores
esguias.
– Não se importa de nos sentarmos aqui? – disse Arthur, olhando em torno. – É gostoso na sombra... e a vista...– Sentaram-se e olharam para a frente,quietos por
algum tempo.– Mas às vezes eu invejo esses sujeitos inteligentes – comentou Arthur. – Não creio que já... – ele não concluiu a frase.
– Não vejo por que os invejaria – disse Susan com grande sinceridade.
– Acontecem coisas esquisitas com a gente – disse Arthur. – A gente vai andando muito bem, uma coisadepois da outra, tudo muito bom e calmo, pensando quesabe de
tudo, e de repente não se sabe mais o que acontece, tudo parece diferente do que costumava ser. Hojemesmo, subindo aquela trilha, cavalgando atrás da senhorita,
pareceu que eu via tudo como se... – ele fez umapausa e arrancou pela raiz um punhado de capim. Tirouos torrõezinhos de terra presos nas raízes como se issotivesse
algum tipo de significado. A senhorita fez a diferença para mim – explodiu ele. – Não vejo por que eu não deveria lhe dizer. Senti isso desde que a conheci... Éporque
eu amo você.
Mesmo enquanto diziam banalidades, Susan estiveraconsciente da excitação da intimidade, que parecia não apenas estar dentro dela, mas nas árvores, no céu, e o rumoda
fala dele, que parecia inevitável, era positivamente doloroso para ela, pois nenhum ser humano se aproximara tan-to dela até então.
Susan ficou subitamente paralisada enquanto ele continuava falando, e seu coração deu grandes saltos isolados nas últimas palavras dele. Sentava-se com dedos enroscados
em torno de uma pedra, olhando em frente, montanha abaixo, para a planície. Então realmente acontecera,estava sendo pedida em casamento.
Arthur olhou para ela; seu rosto estava estranhamente retorcido. Ela respirava com tanta dificuldade que quase não conseguiu responder.
– Você podia ter sabido. – Ele a pegou nos braços; abraçaram-se várias vezes murmurando coisas inarticuladas.
– Bem – suspirou Arthur sentando-se novamente –,essa é a coisa mais maravilhosa que já me aconteceu. – Parecia estar tentando colocar coisas vistas num sonho junto
de coisas reais.Houve um demorado silêncio.
– É a coisa mais perfeita do mundo – afirmou Susan,muito docemente e com grande convicção. Não era mais apenas uma proposta de casamento, mas casamento com Arthur,
por quem estava apaixonada.
No silêncio que se seguiu,segurando a mão dele com firmeza, ela rezou para que Deus a fizesse uma boa esposa para ele.
– E o que vai dizer Mr. Perrott? – perguntou ela no fim.
– Bom velho – disse Arthur que, passado o primeiro choque, relaxava numa enorme sensação de prazer e satisfação. – Temos de ser muito bons com ele, Susan. Ele lhe
contou como fora a vida de Perrott e como era absurdamente devotado ao próprio Arthur. Passou a falar-lhe sobre sua mãe, uma viúva de caráter forte. Susan em contrapartida
esboçou os retratos de sua própria família – Edith em especial, sua irmã mais moça, a quem amava mais do que a qualquer outra pessoa.
– Exceto você, Arthur... – prosseguiu. – Arthur, qual a primeira coisa de que você gostou em mim?
– Uma fivela que usou uma noite no mar – disse Arthur depois de pensar devidamente. – Lembro-me de ter nota-do... é uma coisa absurda de se notar!... que você não
comeu ervilhas porque eu também não as comi.
A partir dali passaram a comparar seus gostos mais sérios,ou antes Susan quis saber do que Arthur gostava,e dizia gostarimensamente da mesma coisa. Viveriam em Londres,
talvez tivessem um cottage no campo perto da família de Susan,poisachariam estranho sem ela no começo. Sua mente, a princípioparalisada,agora voava para as várias
mudanças que seu noivado traria – como seria delicioso partilhar das fileiras das mulheres casadas – não ter mais de andar com mocinhas muito mais novas que ela
– escapar da longa solidão de uma vida desolteirona.Vez por outra ficava dominada pela sua boa sorte e virava-se para Arthur com uma exclamação de amor.
Deitaram-se um nos braços do outro e não tiveram noção de estarem sendo observados. Mas de repente apareceram duas figuras entre as árvores acima deles.
– Aqui há sombra – começou Hewet, quando Rachel de repente parou, imobilizada. Viram um homem e uma mulher deitados no chão abaixo deles, rolando de leve de um lado
para o outro à medida que o braço se apertava ou relaxava. O homem então sentou-se e a mulher, que agora parecia ser Susan Warrington, deitava-se de costas no solo,
olhos fechados e um ar absorto no rosto, como se não estivesse inteiramente consciente. Nem se podia ver,pela sua expressão, se estava feliz ou se sofrera alguma
coisa. Quando Arthur se virou para ela outra vez, dando cabeçadinhas nela como um cordeirinho numa ovelha, Hewet e Rachel recuaram sem dizer nada. Hewet sentiase
desconfortavelmente tímido.
Não gosto disso – disse Rachel um instante depois.
Também não lembro de gostar disso – disse Hewet.
– Recordo... – mas mudou de idéia e continuou num tom de voz comum: – Bem, acho que podemos acreditar que estão noivos. Acha que ele vai embora ou que ela vai pôr
um fim nisso? Mas Rachel ainda estava agitada; não conseguia desviar-se do que acabara de ver. Em vez de responder a Hewet, ela persistia:
– O amor é uma coisa esquisita, não é, faz o coração da gente disparar.
– É tão imensamente importante, você sabe – respondeu Hewet. – Agora as vidas deles mudaram para sempre.
– E a gente também fica com pena deles – continuou Rachel, como se estivesse seguindo o curso de suas emoções. – Não conheço nenhum deles, mas estou quase chorando.
Coisa boba, não é?
– Só porque estão apaixonados – disse Hewet. Sim – acrescentou depois de refletir um momento –, há alguma coisa terrivelmente patética nisso tudo, concordo.
E agora, quando tinham caminhado um trajeto do bosquezinho chegando a uma concavidade arredondada e convidativa, sentaram-se, e a visão dos namorados foi perdendo
sua intensidade, embora continuassem enxergando tudo de maneira muito forte, talvez ainda resultado do que tinham visto. Como um dia no qual se reprimiu muita emoção
é diferente de outros dias, aquele dia agora era diferente, apenas porque tinham visto outras pessoas numa crise de suas vidas.
– Podiam ser um grande acampamento de tendas – disse Hewet, olhando em frente, para as montanhas. – Também é como numa aquarela... sabe como a aquarela seca em riachinhos
por todo o papel... andei pensando em como seriam.
Seus olhos ficaram sonhadores, como se estivessem comparando coisas, e sua cor recordou a Rachel a carneverde de uma lesma. Ela sentava-se ao lado dele, olhando
as montanhas também. Quando se tornou doloroso continuar olhando, a grande vastidão da paisagem parecendo aumentar os olhos dela além do limite natural, ela fitou
o chão; gostava de perscrutar cada polegadado solo da América do Sul, tão minuciosamente quenotava cada grão de terra e o transformava num mundo no qual ela tinha
o poder supremo. Dobrou umafolha de capim, empurrou um inseto até a sua extremidade, ficou imaginando se o inseto entendia sua estranha aventura e pensou como era
estranho ter dobrado essa folha de capim em vez de qualquer outra dos milhões de folhas que existiam.
– Você não me disse seu nome – disse Hewet de repente. – Miss Alguém Vinrace... Gosto de saber os nomes das pessoas.
– Rachel – respondeu ela.
– Rachel. Tenho uma tia Rachel que pôs em verso a vida do padre Damião. Ela é uma fanática religiosa... resultado do modo como foi criada em Northamptonshire,sem
jamais ver ninguém. Você tem tias?
Eu moro com elas – disse Rachel.
O que estarão fazendo agora? – perguntou Hewet.
– Provavelmente comprando lã – deteminou Rachel, e tentou descrevê-las. – São mulheres pequenas, bastante pálidas, muito limpas. Moramos em Richmond. Elas também
têm um cachorro velho que come só tutano de ossos... Estão sempre indo à igreja. E arrumam um bocado suas gavetas – mas nisso ela foi dominada pela dificuldade de
descrever pessoas.
– É impossível acreditar que tudo isso ainda continue!
– exclamou ela. O sol estava atrás deles e duas longas sombras de repente jaziam na terra à frente deles, uma agitada porque era formada por uma saia, a outra quieta
porque lançada por um par de pernas em calças.
– Vocês parecem estar muito confortáveis aí! – disse a voz de Helen acima deles.
– Hirst – disse Hewet apontando a sombra em forma de tesoura; então aproximou-se e ergueu os olhos para eles. – Aqui há lugar para todos nós.
Quando Hirst estava sentado confortavelmente, perguntou:
– Vocês parabenizaram o jovem casal?
Parecia que, vindos do mesmo lugar poucos minutos depois de Hewet e Rachel, Helen e Hirst tinham visto exatamente a mesma coisa.
– Não,não os parabenizamos – disse Hewet.– Pareciam muito felizes.
– Bem – disse Hirst torcendo os lábios –, desde que eu não precise me casar com nenhum deles...
– Ficamos muito comovidos – disse Hewet.
– Imaginei que ficariam – disse Hirst. – Qual foi, Monge? A idéia das paixões imortais ou a idéia de machos recém-nascidos para manterem afastados os católicos romanos?
Acredite – disse ele a Helen –, ele é capaz de comover-se com qualquer uma das duas coisas.Rachel ficou bastante chocada com a troça dele, que sentiu estar dirigida
igualmente aos dois, mas não conseguiu pensar em nenhuma resposta.
– Nada comove Hirst – riu Hewet; não parecia aborrecido. – A não ser que fosse um número transfinito apaixonando-se por um finito... acho que essas coisas acontecem,
mesmo na matemática.
– Ao contrário – disse Hirst com um toque de desgosto –, eu me considero uma pessoa de paixões muito intensas. – Estava claro, pelo seu jeito de falar, que falava
sério;naturalmente por causa das damas.
– Por falar nisso, Hirst – disse Hewet depois de umapausa –, tenho de fazer uma terrível confissão. Seu livro, os poemas de Wordsworth, que peguei em sua mesa quando
estávamos partindo e certamente boteino meu bolso...
– Perdeu-se – concluiu Hirst em lugar dele.
– Acho que ainda há uma chance – disse Hewet batendo no próprio corpo à direita e à esquerda – de que afinal eu nem o tenha pegado.
– Não – disse Hirst – está aqui. – Apontou para o peito.
– Graças a Deus – exclamou Hewet. – Não me sinto mais como se tivesse assassinado uma criança!
– Imagino que viva perdendo suas coisas – comentou Helen fitando-o pensativamente.
– Eu não perco as coisas – disse Hewet. – Eu as coloco fora do lugar. Por isso Hirst se recusou a partilhar a minha cabine na viagem.
– Vocês vieram juntos? – indagou Helen.
– Proponho que cada membro deste grupo agora dê um breve esboço autobiográfico de si mesmo ou de si mesma – disse Hirst, sentando-se ereto. – Miss Vinrace, a senhorita
primeiro; comece.Rachel disse que tinha 24 anos, era filha de um dono de navios, nunca recebera instruções adequadas; tocava piano, não tinha irmãos nem irmãs e
vivia em Richmond com tias, pois sua mãe morrera.
– Seguinte – disse Hirst depois de ouvir esses fatos;apontou para Hewet.
– Eu sou filho de um cavalheiro inglês.Tenho 27 anos
– começou Hewet. – Meu pai era um nobre rural que caçava raposas.Morreu quando eu tinha dez anos.Lembro de trazerem seu corpo para casa, acho que numa maca,exatamente
quando eu estava descendo para o chá, e de notar que havia geléia para o chá e de imaginar se me permitiriam...
– Sim; mas queremos os fatos – interrompeu Hirst.
– Fui educado em Winchester e Cambridge, que tive de abandonar depois de algum tempo. Desde então fiz muitas coisas...
Profissão?
Nenhuma. Pelo menos...
Gostos?
Literário. Estou escrevendo um romance.
Irmãos e irmãs?
Três irmãs, nenhum irmão, e a mãe.
– É só isso que vamos saber a seu respeito? – disse Helen. Ela revelou que era muito velha, fez 40 em outubro passado, e que seu pai fora advogado na cidade, mas
falira, por isso ela nunca recebera muita instrução... viviam num lugar, depois noutro... mas seu irmão mais velho costumava emprestar-lhe livros.
– Se eu fosse lhes contar tudo... – ela parou e sorriu. – Levaria tempo demais – concluiu. Casei-me com 30 anos e tenho dois filhos. Meu marido é um intelectual.
E agora... é sua vez – ela acenou com a cabeça para Hirst.
– A senhora deixou muita coisa de fora – censurou ele.
– Meu nome é St. John Alaric Hirst – começou num tom de voz animado. Tenho 24 anos, sou filho do Reverendo Sidney Hirst, vigário do Great Wappyng em Norfolk.Ah,
recebi bolsas de estudo por toda parte, Westminster,King’s. Agora sou bolsista na King’s. Não sou terrível? Ambos os pais vivos (que pena). Dois irmãos e uma irmã.Sou
um jovem muito distinto – acrescentou.
– Um dos três, ou serão cinco, homens mais distintos da Inglaterra – comentou Hewet.
– Correto – disse Hirst.
– Tudo isso é muito interessante – disse Helen depois de uma pausa. – Mas naturalmente deixamos de fora as únicas questões importantes. Por exemplo, somos cristãos?
Eu não sou – responderam os dois rapazes.
Eu sou – declarou Rachel.
– E acredita num Deus pessoal? – perguntou Hirst, virando-se e fitando-a com seus óculos.
– Eu acredito... eu acredito... – gaguejou Rachel. – Acredito que há coisas que não sabemos e que o mundo poderia mudar num minuto e aparecer alguma coisa.
Helen riu sinceramente disso.
– Bobagem – disse ela. – Você não é cristã. Nunca pen-sou no que é. E há muitas outras perguntas, embora talvez não se possa fazê-las ainda. – Embora tivessem falado
tão livremente, todos estavam desconfortavelmente conscientes de que realmente nada sabiam uns dos outros.
– As questões importantes – ponderou Hewet –, as realmente interessantes. Duvido de que a gente jamais as faça.Rachel, que aceitava lentamente o fato de que só muito
poucas coisas podem ser ditas mesmo por pessoas que se conhecem bem, insistiu em saber o que ele queria dizer com aquilo...
– Se estamos apaixonados? – perguntou ela. – É esse o tipo de pergunta a que se refere?
Helen riu dela novamente, jogando-lhe brandamente punhados daquele capim de talos longos, por ser tão corajosa e tão tola.
– Ah, Rachel – gritou ela, ter você conosco é como ter um cachorrinho na casa... um cachorrinho que traz as nossas roupas de baixo para a sala.Mas novamente a terra
ensolarada diante deles foi varada de fantásticas figuras ondulantes, sombras de homens e mulheres.
– Aí estão eles! – exclamou Mrs. Elliot. Havia um toque de mau humor na sua voz. – E procuramos tanto por vocês. Sabem que horas são?
Mrs.Elliot e Mr.e Mrs.Thornbury enfrentaram-nos.Mrs. Elliot estendia seu relógio e tamborilava com os dedos jocosamente o mostrador. Hewet lembrou que era responsável
por aquele passeio e imediatamente os conduziu de volta à torre de vigia, onde tomariam chá antes de voltarem para casa. Um lenço vermelho brilhante flutuava no
topo do muro; Mr. Perrott e Evelyn o estavam amarrando numa pedra quando os outros apareceram. O calor mudara a ponto de se sentarem ao sol em vez de se fixarem
à sombra, e ainda estava quente o suficiente para pintar seus rostos de vermelho e amarelo, e colorir grandes fatias de terra lá embaixo.
– Não há nada tão bom quanto uma xícara de chá! – disse Mrs. Thornbury, pegando sua taça.
– Nada – disse Helen. – Recorda-se de quando criançater mastigado feno – ela falava bem mais depressa do que decostume e mantinha os olhos fixos em Mrs. Thornbury
–,fingindo que era chá, e ter sido censurada pelas babás? Nãoposso imaginar por quê, exceto que babás são brutas, nãopermitem pimenta em vez de sal embora não haja
o menormal nisso. Suas babás não eram exatamente a mesma coisa?
Durante esse discurso Susan chegou ao grupo e sentou-se junto de Helen. Poucos minutos depois Mr.Venning veio andando do lado oposto. Estava um pouco corado, disposto
a responder jocosamente a qualquer coisa que lhe dissessem.
– O que andou fazendo na tumba daquele velho? – perguntou, apontando a bandeira vermelha que flutuava no topo das pedras.
– Tentando fazê-lo esquecer seu infortúnio de ter morrido há 300 anos – disse Mr. Perrott.
– Seria terrível... estar morta! – exclamou Evelyn M.
– Morta! – disse Hewet. – Não acho que seria horrível.É bastante fácil de imaginar. Quando for para a cama à noite cruze as mãos assim... respire devagar... e mais
devagar... – ele deitou-se para trás com as mãos cruzadas no peito, olhos cerrados. – Agora, eu nunca, nunca, nunca mais vou me mexer – seu corpo, estendido no meio
deles,por um instante pareceu morto.
– Mas que espetáculo horrível, Mr. Hewet! – gritou Mrs. Thornbury.
– Queremos mais bolo! – disse Arthur.
– Asseguro-lhe que não há nada de horrível- disse Hewet, soerguendo-se e pegando o bolo. – É tão natural.As pessoas deveriam fazer esse exercício com os filhos todas
as noites... Não que eu deseje morrer.
– E quando fala em sepultura – disse Mr. Thornbury,que falava praticamente pela primeira vez – tem algumaautoridade para chamar essa ruína de sepultura? Estou doseu
lado, negando-me a aceitar a interpretação comum quedeclara que são restos de uma torre de vigia elisabetana... assim como não acredito que os montinhos ou outeiros
que encontramos no topo de nossos planaltos tenham sido acampamentos. Os antiquários chamam tudo de acampamento. Estou sempre lhes perguntando. Bem, então ondeacham
que nossos antepassados guardavam o gado? Metadedos acampamentos na Inglaterra são apenas um antigo curral ou cercado, como chamamos na minha parte do mundo. O argumento
de que ninguém guardaria seu gadoem locais tão expostos e inacessíveis não tem nenhum valor, se pensarmos que naqueles dias o gado de um homem era o seu capital,
seu mercado de capitais, o dote de sua filha. Sem gado ele era um servo, homem de outro homem...
– Seus olhos perderam lentamente a intensidade e ele murmurou algumas palavras de conclusão, a meia-voz, parecendo estranhamente velho e desamparado.Hughling Elliot,
de quem talvez se esperasse entrar em discussão com o velho cavalheiro, estava ausente no momento. Agora aproximava-se, segurando no alto um grande quadrado de algodão,
sobre o qual se imprimia em agradáveis cores fortes um belo desenho, que fazia sua mão parecer muito branca.
– Uma pechincha – anunciou, largando no chão o tecido. Comprei daquele homem grande com brincos. Bonito, não? Naturalmente não vai combinar com ninguém, mas é exatamente
a coisa... não é, Hilda?... que combina com Mrs. Raymond Parry.
– Mrs. Raymond Parry! – gritaram Helen e Mrs. Thornbury ao mesmo tempo.
Encararam-se como se um nevoeiro que até então obscurecia seus rostos de repente se tivesse desfeito.
– Ah... vocês também iam àquelas maravilhosas festas?
– perguntou Mrs. Elliot interessada.
A sala de estar de Mrs. Parry, embora a milhares de quilômetros de distância, atrás de uma vastidão de água,sobre um minúsculo pedaço de terra, apareceu diante de
seus olhos. Eles, que não haviam tido solidez nem âncora,pareceram de algum modo ligados a ela, e de repente haviam-se tornado mais substanciais. Talvez tenham estado
naquela sala ao mesmo tempo: talvez tenham passado uns pelos outros nas escadas; fosse como fosse, conheciam algumas das mesmas pessoas. Examinaram-se mutuamente
com novo interesse. Mas não podiam mais do que encarar-se, pois não havia tempo para saborear os frutos daquela descoberta. Os burricos estavam chegando, e era aconselhável
começar a descida imediatamente, pois a noite caía tão depressa que estaria escuro antes de estarem novamente em casa.
Montando ordenadamente, desceram pela encosta do morro. Fragmentos de conversas chegavam flutuando de uns aos outros. Havia piadas e risos; alguns caminharam parte
do trajeto apanhando flores e jogando pedras que ricocheteavam a sua frente.
– Quem escreve os melhores versos em latim na sua universidade, Hirst? retomou Elliot de um jeito incongruente, e Mr. Hirst respondeu que não fazia idéia.
O nevoeiro caiu tão subitamente quanto haviam prevenido os nativos, as gargantas das montanhas dos dois lados encheram-se de escuridão e a trilha tornava-se tão
sombria que era surpreendente escutar os cascos dos burricos ainda batendo na rocha dura. O silêncio caiu sobre um deles, depois sobre outros, finalmente todos estavam
calados, e o pensamento girando no profundo ar azul. O caminho parecia mais curto na escuridão do que de dia;em breve as luzes da cidade apareceram na planície distante
abaixo deles.
De repente alguém gritou:
– Ah!
Por um momento a vagarosa gota amarela apareceu novamente na planície embaixo; ergueu-se, parou, abriuse como uma flor e caiu numa chuva de gotas.
– Fogos de artifício – gritaram.
Outro subiu mais depressa; depois outro; quase podiam ouvi-los girando e bramindo.
– Deve ser festa de algum santo – disse uma voz.
A disparada e o enlace dos foguetes enquanto se erguiam no ar pareciam amantes fogosos erguendo-se para se unir, deixando a multidão lá embaixo olhando para cima
com tensos rostos brancos. Mas Susan e Arthur, cavalgando morro abaixo, não trocaram uma palavra, man-tendo-se cuidadosamente afastados.
Depois os fogos de artifício ficaram irregulares e logo desapareceram totalmente; o resto da jornada foi feito qua-se na escuridão, a montanha como uma grande sombraatrás
deles, arbustos e árvores como sombras pequenas lançando treva sobre a estrada. Entre os plátanos separaramse, enfiando-se em carruagens e partindo sem dizer boanoite,
ou dizendo apenas de um jeito meio abafado.
Era tão tarde que não havia tempo para conversas normais entre a chegada no hotel e a ida para a cama. Mas Hirstentrou no quarto de Hewet com um colarinho na mão.
– Bem, Hewet – comentou, no meio de um bocejo gigantesco –, acho que foi um grande sucesso. – Ele bocejou. – Mas cuidado para não se meter com aquela moça...Não
gosto de moças...
Hewet estava inebriado demais pelas horas ao ar livre para dar qualquer resposta. Na verdade todos os membros da excursão dormiam profundamente depois de dez minutos,
exceto Susan Warrington. Ela ficou durante um tempo considerável olhando sem ver a parede em frente,mãos crispadas sobre o coração, a lâmpada da cabeceira acesa
ao lado. Todo o pensamento articulado há muito a abandonara; seu coração parecia do tamanho do sol, iluminando seu corpo inteiro, espalhando, como o sol, uma torrente
constante de calor.
– Eu estou feliz, estou feliz, estou feliz – repetia ela. – Amo todo mundo. Estou feliz.
12
Quando o noivado de Susan foi aprovado em casa e participado a todos os que se interessassem por isso no hotel – a essa altura a sociedade do hotel estava dividida
a ponto de se darem notas em giz invisível como descrevera Mr. Hirst – a notícia justificava uma comemoração – uma excursão? Já tinham feito uma. Então um baile.
A vantagem do baile era que abolia uma daquelas noites compridas que facilmente se tornavam tediosas e faziam todo mundo dormir absurdamente cedo, apesar do bridge.
Duas ou três pessoas paradas debaixo do rígido leopardo empalhado no saguão logo decidiram a questão. Evelyndeslizou um passo ou dois para lá e para cá e disse que
ochão estava excelente. Signor Rodriguez informou que umvelho espanhol tocava violino em casamentos – tocava deum modo que faria até uma tartaruga valsar. E sua
filha, de olhos negros como carvões, tinha o mesmo dom ao piano.Se houvesse alguém doente ou rabugento o bastante parapreferir ocupações sedentárias na noite em
questão em vezde girar com os outros, teria à sua disposição a sala de estare o salão de bilhar. Hewet tratou de integrar o mais possível os que estavam de fora.
Não ligou para a teoria de Hirsta respeito das notas a giz invisível. Recebeu uma reprimenda ou duas, mas em compensação alguns obscuroscavalheiros solitários ficaram
com essa oportunidade defalar com seus pares, e a dama de caráter duvidoso mostrou todos os sintomas de que num futuro próximo deviaconfiar a ele seu caso. Na verdade,
ficou claro que as duasou três horas entre o jantar e a cama trazia boa porção de infelicidade, o que era realmente lamentável, pois tantagente não conseguira fazer
amizades.
Acertaram que o baile seria na sexta-feira, uma semana depois do noivado, e no jantar Hewet se declarou satisfeito.
Virão todos! – disse a Hirst. – Pepper! – chamou, vendo William Pepper esgueirar-se por ele, esperando a sopa, com um panfleto debaixo do braço. – Estamos contando
com você para abrir o baile.
Você certamente não permitirá que alguém diga que vai dormir – retrucou Pepper.
Você deve abrir o baile com Miss Allan – continuou Hewet, consultando uma folha de papel com notas a lápis.
Pepper parou e começou um discurso sobre danças em ciranda, danças rurais, danças folclóricas e quadrilhas, todas absolutamente superiores à bastarda valsa e à polca
espúria que as sobrepujaram injustamente na popularidade contemporânea, quando os garçons gentilmente o conduziram para sua mesa no canto.
Nesse momento a sala de jantar tinha certa semelhança fantástica com um pátio de granja coberto de cereais sobre o qual baixavam coloridos pombos. Quase todas as
damas usavam vestidos que não tinham exibido ainda e seus cabelos erguiam-se em ondas e cachos parecendo madeira esculpida nas igrejas góticas. O jantar foi mais
breve e menos formal do que de costume; até os garçons pareciam afetados pela excitação geral. Dez minutos antes de o relógio bater nove horas, o comitê fez uma
turnê pelo salão de baile. O saguão, removidos os móveis, brilhantemente iluminado, tinha uma maravilhosa aparência de alegria etérea.
É como um céu estrelado numa noite totalmente limpa – murmurou Hewet olhando em torno no aposento vazio e gracioso.
De qualquer modo, um assoalho celestial – acrescentou Evelyn, dando uma corridinha e escorregandonum trecho.
E que tal essas cortinas? – perguntou Hirst. As cortinas vermelhas estavam abaixadas nas altas janelas. – Lá fora está uma noite perfeita.
Sim, mas cortinas inspiram confiança – decidiu Miss Allan. Quando o baile estiver no auge, sempre haverá tempo de abri-las. Até podermos abrir um pouco as janelas...
se fizermos isso agora, pessoas de mais idade vão imaginar que há corrente de ar.
Sua sabedoria foi reconhecida e respeitada. Enquanto ficavam parados conversando, os músicos desembrulhavam seus instrumentos e o violino repetia e repetia uma nota
tocada no piano. Tudo estava pronto para começar.
Depois de alguns poucos minutos de pausa, o pai, a filha, e o genro que tocava trompete tocaram um acorde florido. Como ratos seguindo o flautista, imediatamente
apareceram cabeças no umbral. Houve outro floreio, depois otrio iniciou espontaneamente o triunfante ímpeto da valsa.Foi como se o aposento tivesse sido instantaneamenteinundado
de água. Depois de um momento de hesitação,primeiro um casal depois outro saltaram no meio da torrente e giraram e giraram em redemoinhos. O zunido rítmico dos bailarinos
soava como um torvelinho de água.Aos poucos o salão foi ficando mais quente. O cheiro de luvas de pelica misturavam-se com o forte aroma de flores.Os redemoinhos
pareciam girar mais e mais depressa, atéque a música se encaminhou para um estrondo, cessou, e oscírculos se desfizeram em pedacinhos separados. Os parespartiram
em diferentes direções, deixando uma tênue fileira de pessoas mais idosas junto das paredes, e aqui e ali umenfeite, um lenço ou uma flor jazia no chão. Houve umintervalo,
então a música recomeçou, os redemoinhos giraram, os casais circulavam dentro deles até haver estrondo, e os círculos se rompiam em fragmentos.
Quando isso acontecera umas cinco vezes, Hirst, que se encostava num parapeito de janela como uma estranha gárgula, notou que Helen Ambrose e Rachel estavam paradasno
umbral. A multidão estava tão apinhada que não se podiam mexer,mas ele as reconheceu por um pedaço do ombro de Helen e um vislumbre da cabeça de Rachel virando-se.
Abriu caminho até elas, que o saudaram com alívio.
– Estamos sofrendo as torturas dos condenados – dis-se Helen.
– Essa é a minha idéia do inferno – disse Rachel.
Os olhos dela estavam iluminados e parecia aturdida.Hewet e Miss Allan, que valsavam com algum esforço,pararam e saudaram os recém-chegados.
– Isso é muito agradável- disse Hewet. – Mas onde está Mr. Ambrose?
– Píndaro – disse Helen. – Uma mulher casada que completou 40 anos em outubro pode dançar? Eu nem consigo ficar parada. – Ela pareceu diluir-se em Hewet, e os dois
se dissolveram na multidão.
– Temos de ir atrás – disse Hirst a Rachel, pegando-a resolutamente pelo cotovelo. Rachel, sem ser perita, dançava bem, por ter bom ouvido para ritmo, mas Hirst
não tinha gosto por música, e umas poucas lições de dança em Cambridge só o tinham posto a par da anatomia da valsa,sem lhe transmitirem nada do seu espírito. Uma
só volta provou-lhes que seus métodos eram incompatíveis; em vez de combinarem uns com os outros, seus ossos pareciam saltar em ângulos, impossibilitando volteios
suaves e, mais que isso, impedindo o avanço circular dos outros bailarinos.
– Vamos parar? – disse Hirst. Rachel percebeu pela sua expressão que ele estava aborrecido.Cambalearam até as cadeiras no canto, de onde tinham vista do salão, que
ainda estava tumultuado, ondas de azul e amarelo com listras dos trajes pretos de noite dos cavalheiros.
– Espetáculo espantoso – comentou Hirst. – A senhorita dança muito em Londres? – Os dois respiravam depressa, ambos um pouco excitados, embora cada um estivesse
determinado a não mostrar excitação alguma.
Quase nunca. E o senhor?
Meu pessoal realiza um baile todos os Natais.
Esse assoalho não é nada mau – disse Rachel. Hirst não tentou responder à sua banalidade. Ficou sentado,bastante quieto, olhando os bailarinos. Depois de três minutos,
o silêncio tornou-se tão insuportável para Rachel que ela foi impelida a arriscar outro comentário sobre a beleza da noite. Hirst interrompeu-a rudemente.
O que foi toda aquela bobagem que a senhorita dis-se outro dia sobre ser cristã e não ter instrução? – perguntou ele.
Era praticamente verdade – respondeu ela. – Mas eu toco bem piano, melhor do que qualquer outra pessoa nesta sala, espero. O senhor é o homem mais distinto da Inglaterra,
não é? – perguntou timidamente.
– Um dos três mais – corrigiu ele.
Nisso, Helen, que passava rodopiando, jogou um leque no colo de Rachel.
– Ela é muito bonita – comentou Hirst.
Ficaram calados de novo. Rachel imaginava se ele também a acharia bonita; St. John ponderava sobre a imensa dificuldade de falar com mocinhas que não tinham experiência
da vida. Obviamente Rachel jamais pensara nem sentira nem vira nada. Mas a mente dele ainda remoía o insulto de Hewet – “Você não sabe lidar com mulheres”, e estava
determinado a aproveitar essa oportunidade. O traje de festa dela conferia-lhe um toque de irrealidade e distinção, o que tornava romântico falar com ela e despertava
o desejo de conversar, o que o irritava porque não sabia como começar. Lançou-lhe um olhar,e ela lhe pareceu muito distante, inexplicável, muito jovem e casta. Ele
suspirou e começou:
Então, a respeito de livros. O que foi que a senhorita leu? Só Shakespeare e a Bíblia?
Não li muitos clássicos – declarou Rachel. Estava levemente aborrecida com o jeito desembaraçado e pouco natural dele, enquanto as suas aptidões masculinas a induziam
a uma visão muito modesta de seu próprio poder.
Quer dizer que realmente chegou aos 24 anos sem ler Gibbon? – perguntou ele imperiosamente.
– Sim...
– Mon Dieu! – exclamou Hirst levantando as mãos. – Precisa começar amanhã mesmo. Vou lhe mandar meu exemplar. O que quero saber é – ele a encarou criticamente –,
sabe, o problema é: pode-se realmente conversar com a senhorita? Tem uma mente, ou é como o resto do seu sexo? A mim, parece absurdamente jovem comparada com os
homens de sua idade.
Rachel encarou-o mas não disse nada.
– Quanto a Gibbon – continuou ele –, pensa que será capaz de apreciá-lo? Naturalmente ele é o teste. É terrivelmente difícil falar de mulheres... Quero dizer, o
quanto se deve à falta de treinamento e o quanto à incapacidade inata. Não vejo por que a senhorita não entenderia... apenas acho que até aqui levou uma vida absurda...
acho que acaba de topar com um crocodilo e com seu cabelo caindo pelas costas.
A música começava outra vez. O olho de Hirst vagou pela sala procurando Mrs. Ambrose. Mesmo com a melhor boa vontade do mundo, estava consciente de que não progrediam
muito bem.
– Eu gostaria muitíssimo de lhe emprestar livros – dis-se ele abotoando as luvas e levantando-se de sua cadeira.
– Vamos nos encontrar de novo. Agora vou deixá-la.Ele levantou-se e se afastou. Rachel olhou em torno. Sentia-se rodeada, como uma criança numa festa, pelos rostos
de estranhos, todos hostis, com narizes levantados e olhos indiferentes e arrogantes. Estava junto de uma janela. Abriu-a com um gesto brusco e saiu para o jardim.
Seus olhos estavam inundados de lágrimas de indignação.
– Aquela droga de homem! – exclamou, tendo aprendido algumas das palavras de Helen. – Droga de insolência! Ficou parada no meio do pálido retângulo de luz lançadona
relva pela janela que abrira. As grandes árvores negras erguiam-se maciças na frente dela. Ficou quieta, olhando-as,tremendo levemente de raiva e excitação. Ouvia
os passos dosdançarinos que rodopiavam atrás de si, e o ritmo da valsa.
– Aí estão as árvores – disse em voz alta. Elas a compensariam de St. John Hirst? Ela seria uma princesa persa longe da civilização, cavalgando seu cavalo nas montanhas,
sozinha, fazendo suas aias cantarem ao anoitecer, longe de tudo aquilo, longe da hostilidade e de homens e mulheres... então um vulto saiu da sombra; uma luzinha
vermelha acendeu-se na treva.
– Miss Vinrace? – disse Hewet encarando-a. – Estava dançando com Hirst?
– Ele me deixou furiosa! – exclamou ela, veemente. – Ninguém tem o direito de ser insolente!
Insolente? – Hewet repetiu a palavra tirando o charuto da boca, surpreso. – Hirst... insolente?
Ele é tão insolente... – Rachel disse e parou. Não sabia bem por que ficara tão furiosa. Recompôs-se com grande esforço.
Bem – disse, tendo diante dos olhos a visão de Helen e de sua zombaria –, acho que sou uma boba. – Fez menção de voltar para a sala de baile, mas Hewet a deteve.
Por favor, explique-me – disse ele. – Tenho certeza de que Hirst não quis ofendê-la.
Quando tentou explicar, Rachel achou muito difícil.Não podia dizer que achava especialmente injusta e horrível a visão de si mesma topando com um crocodilo com o
cabelo solto nas costas; nem podia explicar por que Hirst presumir que sua natureza e experiência eram superiores lhe tinha parecido não apenas ofensivo mas terrível,como
se alguém tivesse batido uma porta na sua cara.Caminhando pelo terraço ao lado de Hewet ela disse,amargurada:
– Não adianta; devemos viver separados; não podemos nos entender; apenas provocamos o que há de pior em nós.
Hewet rejeitou sua generalização quanto à natureza dos dois sexos, pois essas generalizações o aborreciam e pareciam-lhe normalmente falsas. Mas, conhecendo Hirst,
sabia bem o que tinha acontecido, e embora secretamente se divertisse muito, não queria que Rachel guardasse aquele incidente na sua memória, mudando sua visão da
vida.
– Agora a senhorita vai odiá-lo – disse ele –, o queestá errado. Pobre do velho Hirst... ele não conseguemudar seu método. Realmente, Miss Vinrace, ele estava fazendo
o melhor que podia; estava lhe dando um elogio... estava tentando... tentando... – não pôde concluir,pois caiu na risada.
De repente Rachel girou nos calcanhares e também começou a rir. Viu que havia algo de ridículo em Hirst, e talvez em si mesma.
– Acho que é o jeito dele de fazer amigos – riu ela. – Bem...vou fazer a minha parte.Vou começar...“Feio de corpo e repulsivo de mente como o senhor é, Mr. Hirst...”
– Isso, isso! – exclamou Hewet. – É assim que tem detratá-lo. Sabe, Miss Vinrace, tem de ter certa complacênciacom Hirst. Ele passou toda a sua vida na frente de
um espelho, por assim dizer, num magnífico aposento com lambris,cheio de pinturas japonesas e lindas cadeiras e mesas antigas,apenas um toque de cor no lugar certo,
sabe... entre as janelas, acho... e lá ele fica sentado horas e horas com os dedos dos pés sobre o guarda-fogo da lareira, falando sobre filosofia,e Deus,e o seu
próprio fígado,e seu coração,e os coraçõesde seus amigos. São todos falidos. Não pode esperar que eleseja ótimo num salão de baile. Ele quer um lugar aconchegante,enfumaçado,mascul
ino,onde possa esticar as pernas esó falar quando tiver alguma coisa a dizer. De minha parte,acho isso bastante sem graça. Mas respeito. Eles levam issotão a sério.
Levam muito a sério as coisas sérias.
A descrição do modo de vida de Hirst interessou Rachel tanto que ela quase esqueceu sua mágoa pessoal contra ele, e seu respeito reacendeu-se.
Então eles são realmente todos muito inteligentes? perguntou.
Claro que são. No que diz respeito a cérebros, acho que é verdade o que ele disse outro dia: são as pessoas mais inteligentes da Inglaterra. Mas... a senhorita deveria
observá-lo um pouco – acrescentou. – Há muito mais dentro dele do que alguém jamais imaginou. Ele quer alguém que ria dele... Hirst dizendo-lhe que a senhorita não
teve experiências! Pobre velho Hirst!
Caminhavam pelo terraço enquanto falavam; então uma a uma as janelas escuras foram desveladas por uma mão invisível, e facetas de luz caíram regularmente sobre a
relva, em intervalos iguais. Pararam de falar diante da sala de estar e perceberam Mr. Pepper escrevendo sozinho numa mesa.
– Lá está Pepper escrevendo para sua tia – disse Hewet.
– Deve ser uma senhora idosa muito notável, 83 anos, ele disse, que ele leva para caminhadas na New Forest...Pepper! – ele chamou batendo na janela. – Vá cumprir
o seu dever. Miss Allan o está aguardando.Quando chegaram às janelas do salão de baile, o ritmo dos bailarinos e a cadência da música foram irresistíveis.
– Vamos? – disse Hewet, e deram-se as mãos e saíram deslizando magnificamente para dentro do grande redemoinho. Era apenas a segunda vez que se encontravam,tendo
sido a primeira quando avistaram um homem e umamulher beijando-se, e na segunda vez Mr. Hewet achavaque uma jovem zangada se parecia muito com uma criança.Assim
quando se deram as mãos na dança, sentiram-se mais à vontade do que as pessoas de costume se sentem.
Era meia-noite e o baile estava agora no auge. Criados espiavam as janelas; o jardim estava respingando de vultos alvos de casais sentados lá fora. Mrs. Thornbury
e Mrs.Elliot sentavam-se lado a lado debaixo de uma palmeira,segurando leques, lenços e broches depositados em seus regaços por mocinhas coradas. De vez em quando
trocavam comentários.
– Miss Warrington parece feliz de verdade – disse Mrs.Elliot; as duas sorriram; as duas suspiraram.
– Ele tem muito caráter – disse Mrs. Thornbuty, aludindo a Arthur.
– E caráter é o que se quer – disse Mrs. Elliot. – Agora,aquele rapaz é bastante inteligente – acrescentou, fazendo um sinal de cabeça na direção de Hirst, que passava
conduzindo Miss Allan.
– Espero que estejam se divertindo! – disse Hewet para as damas.
– Esta é uma posição muito familiar para mim! – sorriuMrs. Thornbury. – Criei cinco filhas... e todas adoravam dançar! A senhorita também gosta, Miss Vinrace? –
perguntou, olhando para Rachel com olhos maternais. – Eu adorava, quando tinha a sua idade. Como suplicava à minha mãe que me deixasse ficar... e agora simpatizo
com aspobres mães... mas também simpatizo com as filhas.Ela deu um sorriso compreensivo, ao mesmo tempo encarando Rachel de um jeito bastante penetrante.
– Parece que têm muito a conversar – disse Mrs. Elliot,olhando significativamente as costas do par quando se afastaram. – Notou isso no piquenique? Ele foi a única
pessoa que conseguiu fazê-la falar.
– O pai dela é um homem muito interessante – disse Mrs. Thornbury. – Tem uma das maiores companhias de navegação em Hull. Na última eleição, lembra, ele deu uma
resposta bastante hábil a Mr. Asquith. É tão interessante ver que um homem da experiência dele é um protecionista convicto. Ela teria gostado de discutir política,
o que a interessava mais do que pessoas, mas Mrs. Elliot só queria falar do Império numa forma menos abstrata.
– Ouvi dizer que há histórias horríveis da Inglaterra quanto aos ratos – disse ela. – Uma cunhada minha que mora em Norwich me disse que não é muito seguro pedir
aves. A peste... sabe. Ela ataca os ratos, e através deles outras criaturas...
– E as autoridades locais não estão tomando medidas adequadas? – perguntou Mrs. Thornbury.
– Isso ela não contou. Mas diz que a atitude das pessoas cultas que deviam estar bem mais orientadas é muito rude.Naturalmente minha cunhada é uma dessas mulheres
modernas ativas que sempre critica as coisas, sabe... o tipo demulher que admiramos embora não sintamos, pelos menoseu não sinto... mas ela tem uma constituição
de ferro.
Nisso, trazendo o tema de volta por delicadeza, Mrs.Elliot suspirou. – Um rosto muito animado – disse Mrs.Thornbury, olhando para Evelyn M., que parara perto delas
para prender melhor uma flor vermelha no peito. Ela não queria ficar presa, e com um engraçado gesto de impaciência Evelyn a enfiou na lapela do seu parceiro. Era
um rapaz alto e melancólico, que recebeu o presente como um cavalheiro antigo receberia a prenda de sua dama.
– Muito tentador para os olhos – disse então Mrs.Elliot,depois de observar por alguns minutos o redemoinho amarelo em que tão poucos dos que rodopiavam tinham nomeou
personalidade para ela. Emergindo da multidão, Helenaproximou-se delas e pegou uma cadeira vazia.
– Posso me sentar com vocês? – disse, sorrindo e arfando. – Acho que devia estar envergonhada – continuou,sentando-se –, na minha idade. Agora que estava corada
e animada, sua beleza era mais aparente do que de costume, e as duas senhoras sentiram o mesmo desejo de tocá-la.
– Euestou me divertindo – arquejou ela.– Movimentarse... não é uma coisa incrível?
– Sempre ouvi dizer que dançar é a melhor coisa do mundo, para quem sabe – disse Mrs. Thornbury olhando-a com um sorriso.
Helen balançava o corpo de leve como se estivesse sentada sobre arames.
– Eu podia ficar dançando para sempre! – disse. – Deviam soltar-se mais! Deviam saltar e balançar-se. Olhem! Como são afetados!
– A senhora viu aqueles maravilhosos bailarinos russos?
– começou Mrs. Elliot. Mas Helen viu seu parceiro aproximar-se e ergueu-se como se ergue a lua. Antes de tirarem osolhos dela, já fizera quase meia volta na sala,
e não podiamdeixar de admirá-la embora achassem um pouquinho esquisito que uma mulher da idade dela gostasse tanto de dançar.
No instante em que ficou sozinha, Helen teve a companhia de St. John Hirst, que estivera esperando uma oportunidade.
– A senhora se importaria de sentar-se lá fora comigo? – perguntou ele. – Eu não sei dançar. – Ele a conduziu até um canto onde havia duas poltronas e assim saborearam
a vantagem de uma meia privacidade. Sentaram-se, por al-guns minutos Helen estava ainda demasiado influenciada pela dança para poder falar.
– É espantoso! – exclamou ela por fim. – Como é que elapensa que é seu corpo? – Esse comentário fora provocadopor uma dama que passava por eles, antes bamboleando
doque caminhando,apoiada no braço de um senhor gordo com olhos verdes redondos num rosto branco e gordo. Era preciso algum apoio, porque ela era muito gorda e tão
compridaque a parte superior do seu corpo avançava consideravelmente à frente dos pés, que só podiam dar miúdos passinhosdevido à estreiteza da saia sobre os tornozelos.
O vestido consistia em um pedaço de cetim amarelo lustroso,adornadoaqui e ali, indiscriminadamente com círculos de contas azuise verdes para imitar o desenho de
um peito de pavão. Notopo de um castelo de cabelo,uma pluma roxa erguia-se reta,enquanto o pescoço curto era rodeado de uma fita de veludopreto com pedras; braceletes
de ouro estavam metidos à força na carne de seus gordos braços enluvados. Ela tinha orosto de um porquinho impertinente mas cômico,com manchinhas vermelhas debaixo
da grossa camada de pó.St. John não pôde partilhar do riso de Helen.
– Fico doente com isso – declarou. – Tudo isso me deixa doente... Pense nas mentes dessas pessoas... seus sentimentos. Não concorda?
– Sempre juro nunca mais ir a nenhuma festa desse mundo – respondeu Helen –, e sempre quebro o juramento.
Ela reclinou-se para trás na cadeira e contemplou o rapaz, risonha. Podia ver que estava realmente aborrecido embora ao mesmo tempo um pouco animado.
– Mas – disse ele retomando seu tom de censura – acho que é preciso entender uma coisa.
-Qual?
– Nunca haverá no mundo mais do que cinco pessoas com quem valha a pena falar.Lentamente a cor e o brilho no rosto de Helen foram sumindo, e ela pareceu tão quieta
e atenta como de costume.
– Cinco pessoas? – comentou. – Eu diria que há mais do que cinco.
– Então a senhora tem muita sorte – disse Hirst. – Ou talvez eu tenha azar. – E calou-se.
– A senhora diria que sou uma pessoa difícil de lidar?
– perguntou-lhe bruscamente.
– A maior parte das pessoas inteligentes o são quando jovens – respondeu Helen.
– E naturalmente eu sou... imensamente inteligente –disse Hirst. – Sou infinitamente mais inteligente do queHewet. É bem possível – continuou, naquele seu jeitocuriosamente
impessoal – que eu venha a ser uma das pessoas que realmente importam. Isso é totalmente diferente de ser inteligente, embora não se possa esperar que nossaprópria
família entenda isso – acrescentou, amargurado.
Helen achou que tinha direito de perguntar:
– O senhor acha sua família difícil de lidar?
– Insuportável... Eles querem que eu seja um grande vassalo do reino e um membro do conselho privado. Vim até aqui em parte para dar um jeito nesse assunto. Vai
ser tudo resolvido. Ou me torno advogado, ou fico em Cambridge. Naturalmente as duas coisas têm óbvias desvantagens, mas certamente para mim os argumentos são favoráveis
a Cambridge. É esse tipo de coisa! – ele acenou a mão para o salão de baile apinhado.– Repulsivo.Também tenho consciência do grande poder do afeto.Naturalmente não
sou suscetível a isso como Hewet é. Gosto muito de umas poucas pessoas. Por exemplo, acho que se deve dizer alguma coisa sobre minha mãe, embora em tantas coisas
ela seja tão deplorável... Em Cambridge, por exemplo, eu inevitavelmente devo tornar-me o homem mais importante do lugar, mas há outros motivos pelos quais tenho
horror a Cambridge... – aí ele se calou.
– Está me achando terrivelmente chato? – continuou depois. Curiosamente mudara de um amigo confidenciando a uma amiga para um rapaz convencionalnuma festa.
– Nem de longe – disse Helen. – Estou gostando muito.
– A senhora não pode imaginar – exclamou ele, falando quase com emoção – que diferença faz encontrar alguémcom quem falar! Eu vi imediatamente que a senhora podiame
compreender. Gosto muito de Hewet, mas ele não tema mais remota idéia de como eu sou. A senhora é a única mulher que já encontrei que parece ter uma vaguíssimaidéia
do que quero dizer quando falo alguma coisa.
Começava a dança seguinte;era a Barcarolle de Hoffmann, que fez Helen acompanhar o ritmo com a ponta do pé; massentiu que depois de tal elogio era impossível levantar-se
e irembora; além de estar se divertindo, ela se sentia realmente lisonjeada,e a sinceridade da vaidade dele a atraía.Suspeitava que ele não era feliz, e era suficientemente
feminina paradesejar ouvir confidências.
Eu sou muito velha – suspirou.
O mais esquisito de tudo é que não a considero velha – respondeu ele. – Sinto como se tivéssemos exatamente a mesma idade. Mais ainda... – aqui ele hesitou, mas
um olhar para o rosto dela lhe deu coragem – sinto que poderia falar com bastante franqueza com a senhora,como um homem... sobre as relações entre os sexos, sobre...
e...
Apesar de sua certeza, um leve rubor lhe subiu ao rosto, ao dizer as duas últimas palavras.Ela o tranqüilizou imediatamente com o riso em que exclamou:
– Bem, eu espero que sim!
Ele a fitou com verdadeira cordialidade e as linhas em tor-no de seu nariz e lábios abrandaram-se pela primeira vez.
– Graças a Deus! – exclamou ele. – Agora podemos agir como seres humanos civilizados.
Certamente acabava de cair uma barreira que habitualmente existe, e era possível falar sobre assuntos que geralmente são apenas comentados entre homens e mulheres
quando há médicos presentes, ou a sombra da morte.Em cinco minutos ele estava contando-lhe a história de sua vida. Era longa, repleta de incidentes extremamente
elaborados, que levaram a uma discussão dos princípios sobre os quais repousa a moral, e assim a vários assuntos muito interessantes, que mesmo naquele salão de
baile tinham de ser discutidos em sussurros, para que nenhuma daquelas amuadas damas ou daqueles resplandecentes comerciantes os escutassem e mandassem expulsá-los
do local. Quando acabaram, ou, para falar mais acuradamente, quando Helen dera a entender com um leve relaxamento de sua atenção que estavam sentados ali tempo suficiente,
Hirst levantou-se, exclamando:
– Então não há o menor motivo para todo esse mistério!
Nenhum, exceto que somos ingleses – respondeu ela,pegando braço dele e atravessando o salão de baile, abrindo caminho com dificuldade entre os casais que giravam
e que agora estavam perceptivelmente desalinhados, certamente não muito belos aos olhos de alguém mais crítico. A excitação de iniciar uma amizade e sua longa con-versa
deram-lhes fome, e foram procurar comida na sala de jantar, que agora estava cheia de gente comendo em mesinhas separadas. No umbral encontraram Rachel, que ia dançar
outra vez com Arthur Venning. Estava corada e parecia muito feliz; Helen ficou surpresa ao ver que nesse estado de espírito ela era com certeza mais atraente do
que a maioria das moças. Nunca notara isso tão claramente antes.
Divertindo-se? – perguntou, quando pararam por um segundo.
Miss Vinrace acaba de fazer uma confissão – respondeu Arthur no lugar dela: – que não tinha idéia de que um baile pudesse ser tão delicioso.
Sim! – exclamou Rachel. – Mudei completamente minha visão sobre a vida!
Não me diga! – zombou Helen, enquanto seguiam adiante.
É bem típico de Rachel – disse ela. – Muda sua visão da vida todos os dias. Sabe, acho que o senhor é exatamente a pessoa que eu quero – disse quando se sentaram
– parame ajudar a completar a instrução dela. Foi criada praticamente num convento. O pai dela é absurdo. Tenho feito oque posso... mas sou velha demais, e sou mulher.
Por que osenhor... não poderia falar com ela... explicar-lhe coisas...falar com ela, quero dizer, como fala comigo?
– Já fiz uma tentativa esta tarde – disse St. John. – Não creio que tenha sido muito bem-sucedida. Ela meparece tão jovem e inexperiente. Prometi que lhe emprestaria
Gibbon.
– Não é exatamente Gibbon – considerou Helen. – Acho que são as verdades da vida... sabe o que quero dizer? O que realmente acontece, o que as pessoas sentem,embora
geralmente tentem esconder isso. Não há nada para se ter medo. É tão mais belo do que os fingimentos...sempre mais interessante... sempre melhor, eu acho, do que
aquele tipo de coisa.
Ela indicou com sua cabeça uma mesa próxima onde duas mocinhas e dois rapazes estavam brincando uns com os outros, num diálogo insinuante antiqüíssimo, repassado
de carinhos, provavelmente a respeito de um par de meias ou de pernas. Uma das moças manejava um leque,fingindo estar chocada, e a visão era muito desagradável,pois
era óbvio que secretamente as moças hostilizavam-se entre si.
– Mas, na minha idade avançada – suspirou Helen – começo a pensar que a longo prazo não importa muito o que fazemos; as pessoas sempre fazem o que querem...nada
jamais influenciará ninguém. – Ela indicou com a cabeça o grupo que ceava.
Mas St. John não concordou. Pensava que os pontos de vista de cada um podiam realmente fazer grande diferença, os livros, e assim por diante, e acrescentou umas
poucas coisas que no momento importavam mais do que esclarecer mulheres. Às vezes pensava que quase tudo dependia da instrução.
Enquanto isso, no salão de baile, os dançarinos formavam filas para a dança dos lanceiros.Arthur e Rachel,Susane Hewet, Miss Allan e Hughling Elliot estavam juntos.
Miss Allan olhou o relógio.
Uma e meia – disse. – E amanhã preciso despachar Alexander Pope.
Pope! – ironizou Mr. Elliot. – Eu gostaria de saber quem lê Pope! Ler a respeito dele... Não, não, Miss Allan;acredite, dançar vai lhe dar mais vantagens do que
literatura. – Era uma das simulações de Mr. Elliot, que nada no mundo se comparava aos encantos da dança, nada no mundo era tão tedioso quanto literatura. Assim
ele procurava pateticamente agradar aos jovens e provar-lhes que, sem dúvida, embora casado com uma esposa idiota, e mesmo sendo pálido, encurvado e consumido pela
sua instrução, era tão animado quanto os mais jovens.
É uma questão de gosto – respondeu Miss Allan.Mas parece que estão esperando por mim. – Ela assumiu o seu lugar e esticou uma ponta de pé preta e quadrada.
– Mr. Hewet, o senhor faz mesura para mim. – Ficouevidente de imediato que Miss Allan era a única pessoa entreeles com sólido conhecimento dos movimentos da dança.
Depois dos lanceiros houve uma valsa; depois da valsa uma polca; e depois aconteceu uma coisa terrível: a música que estivera tocando com pausas regulares decinco
minutos parou inesperadamente. A dama de grandes olhos negros começou a enrolar seu violino em seda, o cavalheiro colocou seu trompete cuidadosamente noestojo. Foram
rodeados por casais que lhes imploravam em inglês, francês e espanhol que tocassem mais umadança, uma só; ainda era cedo. Mas o velho no piano só exibia seu relógio
e sacudia a cabeça. Levantou o colarinho do casaco e pegou uma manta de seda vermelha,que desfez completamente sua aparência festiva. Por estranho que parecesse,
os músicos eram pálidos e de pálpebras pesadas; pareciam prosaicos e entediados comose o máximo de seus desejos fosse carne fria e cerveja,seguidos imediatamente
de cama.
Rachel era uma das pessoas que lhes suplicaram que continuassem. Quando se recusaram, ela começou a virar as folhas da música de dança sobre o piano. Em geral as
peças eram cobertas de capas coloridas, com figuras de cenas românticas – gondoleiros sobre o crescente da lua,freiras espreitando através de grades de uma janela
de convento ou jovens com cabelo solto, apontando uma arma para as estrelas. Ela lembrou que o tom geral da música que tinham dançado tão alegremente era de arrependimento
apaixonado pelo amor perdido e pelos inocentes anos de juventude; tristezas horríveis que sempre tinham separado os dançarinos de sua felicidade passada.
– Não admira que enjoem de tocar uns troços desses
– comentou ela lendo um compasso ou dois. – São realmente hinos, tocados bem depressa, com pedaços de Wagner e Beethoven.
A senhorita toca? Tocaria para nós? Qualquer coisa,desde que possamos dançar! – De todos os lados insistiam no seu talento para o piano, e ela teve de consentir.Assim
que tocara as únicas peças de música de dança que lembrava, passou a uma ária de uma sonata de Mozart.
Mas isso não é dança – disse alguém parado junto ao piano.
É sim – respondeu ela,balançando a cabeça.– Inventem os passos. – Certa de sua melodia, ela marcava rudemente o ritmo, para simplificar. Helen entendeu a idéia;
pegou MissAllan pelo braço e girou pela sala, ora fazendo mesuras, oragirando, ora dando corridinhas para um lado e outro como uma criança correndo por um campo.
Essa é a dança para gente que não sabe dançar! – gritou ela. – A melodia agora era um minueto; St. John saltitava com incrível agilidade, ora sobre a perna esquerda,
orasobre a direita; a melodia fluía; Hewet, acenando os braços e segurando as pontas da cauda de seu casaco, flutuava peloaposento, imitando a voluptuosa dança sonhadora
de umadonzela indiana dançando diante do seu rajá. A melodiaera de marcha; Miss Allan avançou de saias infladas e fez uma profunda mesura para o casal de noivos.
Uma vez queseus pés caíam no ritmo, eles exibiam uma total falta de pudor. De Mozart, Rachel passou sem parar a velhas canções de caça inglesas, cantos natalinos
e hinos religiosos,pois, como observara, qualquer boa melodia com um poucode arranjo podia ser dançada. Aos poucos todos no salãoestavam dando passinhos e girando
aos pares ou sozinhos.Mr. Pepper executava um engenhoso passo derivado de manobras de patinação, pelas quais outrora recebera algum prêmio, enquanto Mrs. Thornbury
tentava lembrar umavelha dança rural que vira os empregados de seu pai dançarem em Dorsetshire, nos velhos tempos. Quanto a Mr. e Mrs. Elliot, galopavam ao redor
da sala com tamanha impetuosidade que os outros dançarinos remiam quando se aproximavam. Algumas pessoas criticaram essa performance como uma travessura; outras
acharam tudo aquilo aparte mais divertida da noite.
– Agora,a grande roda! – gritou Hewet.Imediatamente formou-se um círculo gigantesco, os dançarinos de mãos dadas gritando: “Você conhece John Peel” enquanto giravam
mais e mais depressa, até que a tensão ficou forte demais, um elo da cadeia – Mrs. Thornbury – cedeu, e o resto voou pela sala em todas as direções, acabando no
chão ou sobre as cadeiras, ou uns nos braços dos outros, conforme parecesse mais conveniente.Erguendo-se dessas posições, arquejantes e descabelados, pareceu-lhes
pela primeira vez que as lâmpadas elétricas estivessem muito pálidas, e instintivamente muitos olhos voltaram-se para as janelas. Sim... estava amanhecendo. A noite
passara enquanto dançavam, e chegara a madrugada. Lá fora, as montanhas apareciam muito remotas e puras; o orvalho cintilava na relva, o céu estava pintado de azul,
exceto pelo pálido amarelo e rosa no leste. Os dançarinos apinharam-se nas janelas, abriram-nas,e aqui e ali arriscaram um passo na grama.
– Como parecem bobas as pobres lâmpadas! – disse Evelyn M. num tom de voz curiosamente abafado. – E nós mesmos; não fica bem. – Era verdade; o cabelo desgrenhado
e as pedras preciosas verdes e amarelas que pareciam tão festivas meia hora atrás, agora pareciam baratas e vulgares.A pele das senhoras mais idosas sofrera terrivelmente
e,como se tivessem consciência de um olho frio fixado nelas, começavam a dizer boa-noite e ir para a cama.
Rachel, embora privada de sua platéia, continuara tocando para si mesma.De John Peel passou a Bach,que era então objeto de grande entusiasmo seu, e um a um alguns
dos jovens dançarinos voltaram do jardim e sentaram-se nas cadeiras douradas abandonadas em torno do piano; a sala agora estava tão clara que as luzes foram apagadas.
Sentaram-see ficaram à escuta,e seus nervos foram-se aquietando; o calore irritação de seus lábios, resultado de incessante riso e fala, desapareceram. Sentavam-se
muito quietos como se vissemum edifício com espaços e colunas sucedendo-se no vazio.Depois começaram a ver a si próprios e as suas vidas, e todaa vida humana avançando
muito nobremente sob orientação da música. Sentiram-se enobrecidos, e quando Rachel paroude tocar só queriam dormir.
Susan levantou-se.
– Acho que esta foi a noite mais feliz de minha vida!
– exclamou. – Eu realmente adoro música – disse, quando agradeceu a Rachel. – Parece dizer todas as coisas que nós mesmos não conseguimos dizer. Deu uma risadinha
nervosa e olhou cada um com grande benignidade, como se quisesse dizer alguma coisa mas não encontrasse palavras.Todo têm sido tão bondosos... tão bondosos – disse,
e também foi para a cama.
Depois de a festa terminar daquele modo bem abrupto em que as festas terminam, Helen e Rachel pararam juntoda porta com seus mantos, procurando uma carruagem.
– Acho que as senhoras peceberam que não há mais carruagens? – disse St. John, que saíra para olhar. – Terão de dormir aqui.
– Ah, não – disse Helen. – Vamos andar.
– Podemos ir também? – perguntou Hewet. – Não podemos ir para a cama. Imagine deitar-se entre travesseiros olhando para o lavatório numa manhã como esta... É ali
que moram?
Tinham começado a descer a avenida, quando Hewet virou-se e apontou a villa verde e branca na encosta do morro, que parecia estar de olhos fechados.
– Aquilo não é uma luz acesa, é?- perguntou Helen ansiosa.
É o sol – disse St. John. As janelas de cima tinham manchas de ouro.
Tive receio de que fosse meu marido, ainda lendo grego – disse ela. – Todo esse tempo ele está editando Píndaro.
Passaram pela cidadezinha e subiram por um caminho íngreme, perfeitamente claro, embora ainda beirado de sombras. Em parte por estarem cansados, em parte porque
a luz da manhã os vencia, quase não falavam, mas respiravam o delicioso ar fresco, que parecia pertencer a uma vida diferente do ar do meio-dia. Quando chegaram
ao alto muro amarelo onde a trilha se desviava da estrada, Helen quis despachar os dois rapazes.
– Já vieram longe o bastante – disse ela. – Voltem e vão
para a cama.Mas eles pareciam não querer ir.
– Vamos nos sentar por um momento – disse Hewet.Ele estendeu seu casaco no chão. – Vamos nos sentar e pensar. – Sentaram-se e olharam a baía; estava muito quieta,
o mar vagamente enrugado, linhas de verde e azul começavam a cruzá-lo. Não havia ainda barcos à vela, mas um vapor estava ancorado na baía, fantasmagórico no nevoeiro;
ele soltou um grito desumano, e depois tudo ficou silencioso.
Rachel ocupava-se pegando uma pedra cinzenta atrás da outra e construindo um pequeno marco; fazia isso muito calma e cuidadosamente.
– Então você mudou sua visão da vida, Rachel? – disse
Helen. Rachel acrescentou outra pedrinha e bocejou.
Não me lembro – disse. – Sinto-me como um peixe no fundo do mar. – Bocejou de novo. Nenhuma daquelas pessoas tinham qualquer poder de assustá-la ali fora ao amanhecer,
e ela sentia uma perfeita familiaridade até com Mr. Hirst.
Meu cérebro, ao contrário – disse Hirst – está numa atividade anormal. – Sentava-se na sua posição favorita com os braços prendendo as pernas e o queixo pousado
nos joelhos. – Vejo através de tudo... absolutamente tudo.A vida não tem mais mistérios para mim. – Falava com convicção, mas não parecia querer resposta. Embora
se sentassem próximos e se sentissem familiarizados, pareciam meras sombras uns para os outros.
E toda aquela gente ali embaixo vai dormir – Hewet começou a devanear – pensando coisas tão diferentes...Miss Warrington, eu acho, agora está ajoelhada; os Elliot
estão um pouco espantados, não é sempre que se agitam e só querem dormir depressa; há aquele pobre moço magro que dançou a noite toda com Evelyn; está pondo a sua
flor na água e perguntando-se: “Isso será amor?”... e o pobre velho Mr. Perrott, atrevo-me a dizer que não consegue dormir e está lendo seu livro grego favorito
para consolar-se... e os outros... não, Hirst – rematou ele –, eu não acho isso nada simples.
– Eu tenho a chave – disse Hirst enigmaticamente.Seu queixo ainda estava sobre os joelhos, os olhos fixos em frente. Seguiu-se um silêncio. Então Helen levantou-se
e deu-lhes boa noite.
– Mas – disse ela –, lembrem-se de que têm de vir nos visitar. Acenaram dando boa-noite e separaram-se, mas os dois rapazes não voltaram ao hotel, foram dar uma
caminhada durante a qual pouco falaram e não mencionaram os nomes das duas mulheres que, em grande parte,eram objetos de seus pensamentos. Não queriam partilhar
suas impressões. Voltaram ao hotel a tempo de tomarem o café da manhã.
13
Havia muitos aposentados, na villa mas um possuía um caráter próprio porque a porta estava sempre fechada, nenhum som de música ou riso jamais saía dele.Todo mundona
casa sabia vagamente que algo acontecia atrás da portae, sem saber do que se tratava, seus próprios pensamentoseram influenciados por saberem que, se passarem por
ela,aquela porta estaria fechada e, se fizessem ruído, Mr. Ambrose lá dentro seria perturbado. Por isso certos atostinham mérito e outros eram ruins, assim a vida
se tornava mais harmoniosa e menos desconectada do que teria sido se Mr. Ambrose tivesse desistido de editar o Píndaro e assumido uma existência nômade, entrando
e saindo de todas as peças da casa. Na verdade todo mundo estava consciente de que observando certas regras como pontualidadee silêncio, cozinhando bem, realizando
outras pequenas tarefas, uma ode após a outra seria satisfatoriamente devolvida ao mundo, e assim partilhavam da continuidade da vidado erudito. Infelizmente, assim
como a idade ergue umabarreira entre seres humanos, e a instrução outra, e o sexo uma terceira, Mr. Ambrose em seu estúdio ficava algunsmilhares de quilômetros de
distância do seu mais próximoser humano, que nessa casa era inevitavelmente uma mulher. Ele sentava-se agora após horas entre livros de folhasbrancas, sozinho como
um ídolo numa igreja vazia, quieto exceto pela passagem de sua mão de um lado para outro dafolha, silencioso pelo eventual risinho contido que o levavaa estender
o cachimbo no ar por um momento. Enquantoseguia trabalhando e penetrando mais e mais no coraçãodo poeta, sua cadeira ficava rodeada por uma parede cadavez mais alta
de livros abertos no chão, que só podia serultrapassada com um cuidadoso processo de passos, tão delicado que seus visitantes em geral paravam e lhe falavam de fora
dela.
Na manhã seguinte ao baile, entretanto, Rachel entrou no aposento do tio e o chamou duas vezes, “Tio Ridley”,antes que ele lhe desse atenção.
Finalmente ele olhou por cima dos óculos. – Sim? – perguntou.
– Eu quero um livro – respondeu ela. – A História do Império Romano de Gibbon. Posso? Ela observou as linhas no rosto do tio reorganizaremse gradualmente diante
de sua pergunta. Antes de ela ter falado, o rosto era liso como uma máscara.
– Por favor, diga isso de novo – disse seu tio, ou porque não ouvira, ou porque não entendera.
Ela repetiu as mesmas palavras e corou levemente.
– Gibbon! Mas por que você haveria de querer esse livro? – indagou ele.
– Alguém me aconselhou a ler – gaguejou Rachel.
– Mas eu não viajo por aí com uma coleção variada de historiadores do século XVIII! – exclamou seu tio. – Gibbon! Pelo menos dez grandes volumes.
Rachel disse que sentia muito ter interrompido e se virou para sair. – Pare! – gritou seu tio. Ele largou o cachimbo, pôs de lado o livro, ergueu-se e a levou lentamente
pelo aposento, segurando-a pelo braço. – Platão! – dis-se, colocando um dedo no primeiro de uma fila de livrinhos pretos – e Jorrocks ao lado, o que está errado.
Sófocles, Swift. Acho que você não se interessa por comentaristas alemães. Então, franceses. Você lê francês? Devia ler Balzac. Depois chegamos a Wordsworth e Coleridge.
Pope, Johnson, Addison, Wordsworth, Shelley,Keats. Uma coisa leva a outra. Porque Marlowe está aqui? Mrs. Chailey, imagino. Mas de que adianta a leitura se você
não lê grego? Afinal, se lesse grego, jamais precisaria ler nada além disso, pura perda de tempo... pura perda de tempo – e assim falava quase num monólogo, movimentando
as mãos rapidamente; voltaram ao círculo de livros no chão, e isso interrompeu seu avanço.
– Bem – disse ele –, qual será?
Balzac – disse Rachel, ou tem o Discurso sobre a revolução americana, tio Ridley?
O Discurso sobre a revolução americana? – perguntou ele. Encarou-a novamente de forma muito penetrante. – Outro rapaz no baile?
– Não, foi Mr. Dalloway – confessou ela.
– Santo Deus! – ele jogou a cabeça para trás, lembrando-se de Mr. Dalloway.
Ela escolheu por si mesma um volume ao acaso, apresentou-o ao tio, que, vendo que se tratava de La cousine Bette, mandou que o jogasse fora se o achasse horrível
demais; ela já ia deixá-lo quando ele indagou se gostara do seu baile.
Depois quis saber o que as pessoas faziam em bailes,pois só fora a um baile há 35 anos, quando nada lhe parecera mais sem sentido e mais idiota. Gostavam de girar
e girar enquanto o violino arranhava? Falavam, diziam coisas bonitas, e se faziam isso, por que não o faziam em situação mais sensata?
Quanto a ele próprio – suspirou e apontou os sinais de trabalho espalhados ao seu redor, o que, apesar do suspiro, encheu seu rosto de um súbito contentamento, a
ponto de suasobrinha achar melhor sair. Depois de um beijo ela teve permissão de ir, mas não antes de ter prometido aprender o alfabeto grego e devolver seu romance
francês quando terminasse,depois do que encontrariam algo mais adequado para ela.
Como os aposentos em que as pessoas vivem podem provocar em parte o mesmo choque que seus rostos vistos pela primeira vez, Rachel desceu as escadas muito devagar,
perdida em pensamentos sobre seu tio, seus livros, o fato de ele nunca ir a bailes e sua visão esquisita da vida,totalmente inexplicável mas aparentemente satisfatória,quando
seu olho foi atraído por um bilhete com seu nome no saguão. O endereço estava escrito numa letra pequena e forte, desconhecida, e o bilhete, sem começo, dizia:
“Estou enviando o primeiro volume de Gibbon como prometi.Pessoalmente tenho pouco a dizer sobre os modernos, mas vou lhe mandar Wedekind quando o tiver concluído.
Donne? A senhorita leu Webster e todo aquele grupo?Invejo-a porque vai lê-los pela primeira vez.Completamenteexausto depois da noite passada. E a senhorita?”
O floreio de iniciais, que ela imaginou serem St.J.A.H., encerrava a carta. Ficou muito lisonjeada pelofato de Mr. Hirst ter se lembrado dela e cumprir suapromessa
tão rapidamente.
Ainda faltava uma hora para o almoço, e com Gibbonem uma mão e Balzac na outra ela saiu pelo portão e desceua trilhazinha de barro batido entre oliveiras na encosta
do morro. Estava quente demais para subir os morros, mas novale havia árvores e uma vereda de relva ao longo do leito do rio. Naquele país onde a população se centralizava
nas cidades era possível afastar-se da civilização em pouco tempo,passando só por eventuais granjas onde as mulheres lidavamcom raízes vermelhas no pátio, ou por
um menininho deitado sobre os cotovelos na encosta rodeado por um rebanhode cabras de cheiro forte. Exceto por um fio de água nofundo, o rio era meramente um fundo
canal de pedras amarelas secas. Na margem cresciam aquelas árvores que Helendissera valerem toda a viagem. Abril fizera desabrocharemseus botões e grandes flores
ostentavam entre suas lustrosasfolhas verdes, com pétalas de uma grossa substância parecida com cera em belas cores: creme, rosa ou vermelho profundo. Mas cheia
de uma daquelas exaltações irracionaisque geralmente começam sem causa conhecida e arrebatam em seu braço países e céus inteiros, ela caminhava sem nadaver. A noite
ultrapassava os limites do dia. Seus ouvidos pulsavam com as melodias que tocara na noite anterior; elacantou, e cantar fazia-a caminhar mais e mais depressa. Nãovia
distintamente o lugar aonde estava indo, as árvores e apaisagem aparecendo apenas como montes de verde e azul,com eventual esboço de céu de várias cores. Rostos
de pessoas que vira na noite anterior apareceram à sua frente; ouviu suas vozes; parou de cantar e começou a repetir coisas oudizê-las de jeito diferente, ou inventar
coisas que poderiamter sido ditas. O constrangimento de estar entre estranhosnum vestido de seda comprido tornava inusitadamente excitante caminhar assim sozinha.Hewet,Hirst,Mr.Ven
ning,Miss Allan, a música, a luz, as árvores escuras no jardim, oamanhecer – enquanto ela andava continuavam girandodentro de sua cabeça, um fundo tumultuado do
qual o presente momento, com sua oportunidade de fazer exatamente o que queria, destacava-se maravilhosamente, mais vivo doque na noite anterior.
Assim ela podia ter caminhado até perder toda a noção do seu caminho não fosse uma árvore que, embora não crescesse no meio da trilha, impediu-a, como se os galhoslhe
tivessem batido no rosto. Era uma árvore comum, mas pareceu-lhe tão estranha como se fosse a única árvore domundo. O tronco era escuro no meio, e os ramos saltavam
aqui e ali deixando intervalos recortados de luz, tão nítidos como se tivessem brotado do chão naquele momento.Depois de uma visão que ficara com ela a vida toda,
e elapreservaria aquele momento, a árvore mergulhou mais umavez na fileira comum de árvores, e ela foi capaz de sentar-se à sua sombra apanhando as flores vermelhas
com finas folhas verdes que cresciam debaixo dela. Colocou-as lado alado, flor com flor e caule com caule, acariciando-as porque,caminhando sozinha,flores eatépedrinhas
na terra tinham sua própria vida e disposição, evocando as sensações deuma criança para quem tinham servido de companheiras.Erguendo os olhos, sua visão foi atraída
pela linha dasmontanhas lançada energicamente através do céu como olaço de uma chibata retorcida. Ela fitou o distante céu pálido e os locais altos e nus sobre os
topos das montanhasexpostos ao sol. Quando se sentou, largou os livros na terraa seus pés e baixou os olhos para eles, ali deitados, tão quadrados sobre a relva,
um talo alto inclinando-se e acariciando a macia capa marrom de Gibbon, enquanto o Balzac deum azul salpicado jazia despido ao sol. Sentindo que abrire ler seria
certamente uma experiência surpreendente, elavirou a página do historiador e leu que:
“Seus generais, na primeira parte de seu reinado, tentaram reduzir a Etiópia e a Arábia Felix. Marcharam quase1500 quilômetros ao sul do trópico; mas o calor do
climaem breve repeliu os invasores e protegeu os pacíficos nativos daquelas regiões seqüestradas... Os países do norte daEuropa dificilmente mereceriam os custos
e os trabalhosda conquista. As florestas e pantanais da Germânia eram povoados por uma raça intrépida de bárbaros, que desprezavam a vida quando privada da liberdade.”
Nunca palavras lhe tinham parecido tão vivas e belas – Arábia Felix... Etiópia. Mas não eram mais nobres do que as outras, bárbaros intrépidos, florestas e pantanais.Pareciam
abrir estradas até os primórdios do mundo em cujos lados os povos de todos os tempos e países se postavam em avenidas; passando por elas todo o conhecimentoseria
dela; e o livro do mundo voltaria atrás, até a primeirade todas as páginas. Estava tão excitada com as possibilidades de conhecimento que agora se abriam diante
dela, quedeixou de ler; e uma brisa virando a página fez a capa doGibbon farfalhar docemente, fechando-se. Então ela se levantou de novo e continuou andando. Devagar
sua cabeçaficou menos confusa e procurou as origens de sua exaltação,que eram duas e podiam ser limitadas com algum esforçoàs pessoas de Mr. Hirst e de Mr. Hewet.
Qualquer análise clara deles era impossível, devido à aura de assombro naqual estavam envolvidos. Ela não podia raciocinar sobreeles como sobre pessoas cujas emoções
seguiam as mesmasregras que as dela, e sua mente detinha-se sobre eles comuma espécie de prazer físico, como o que é causado pelacontemplação de coisas brilhantes
penduradas ao sol. Delasparecia irradiar-se toda a vida; as palavras dos livros estavam envoltas em brilho. Assim ela começou a ser perseguida por uma suspeita de
que ela estava tão relutante em enfrentar que gostou de ter tropeçado sobre o capim, poisassim sua atenção se dispersava, mas num segundo concentrara-se outra vez.
Inconscientemente ela caminhara mais e mais depressa, seu corpo tentando correr mais que a mente;mas agora estava no topo de um pequeno outeiro que seerguia acima
do rio e expunha o vale. Não conseguia maisjogar com várias idéias, mas precisava lidar com a mais persistente, e uma espécie de melancolia substituiu sua excitação.
Sentou-se na terra, agarrando os dois joelhos juntos, eolhou em frente sem ver. Por algum tempo observou umagrande borboleta amarela que abria e fechava suas asasmuito
lentamente sobre uma pedra chata.
– O que é estar apaixonada? – perguntou depois de longo silêncio; cada palavra ao surgir lançava-se num mar desconhecido. Hipnotizada pelas asas da borboleta, e
aterrorizada pela descoberta de uma terrível possibilidade na vida, ela ficou sentada mais algum tempo. Quando a borboleta voou, afastando-se, ela se ergueu, e com
seus dois livros debaixo do braço voltou para casa novamente,como um soldado preparado para uma batalha.
14
O sol daquele mesmo dia baixando, a penumbra foi saudada, com sempre no hotel, com um instantâneo brilho de lâmpadas elétricas. As horas entre o jantar e a cama
eram sempre difíceis de passar, e na noite seguinte ao baile continuavam disfarçadas pela impaciência da dissipação. Certamente, na opinião de Hirst e Hewet, que
se deitavam em longas poltronas no meio do saguão com xícaras de café ao lado e cigarros nas mãos, a noite era inusitadamente enfadonha, as mulheres estavam inusitadamente
mal-vestidas, os homens inusitadamente enfatuados. Mais que isso, quando fora distribuída a correspondência meia hora atrás, não houvera cartas para nenhum dos dois
jovens. Como praticamente todo mundo recebera duas ou três gordas cartas da Inglaterra, que agora estavam lendo, aquilo pareceu duro de suportar, e levou Hirst a
fazer o comentário cáustico de que os animais tinham sido alimentados. Disse que o silêncio deles lhe recordava o silêncio da jaula dos leões quando cada fera segura
um naco de carne crua entre as patas. Estimulado por essa comparação ele prosseguiu, comparando alguns a hipopótamos, outros a canários, outros a porcos, alguns
a papagaios e alguns a repulsivos répteis enroscados em torno de corpos semi-apodrecidos de ovelhas. Os sons intermitentes – ora uma tosse, ora um horrível pigarro,
ora um fragmento de diálogo – são exatamente o que se escuta ao se parar junto da jaula dos leões quando estão mastigando os ossos, disse ele. Mas essas comparações
não instigaram Hewet, que depois de um olhar desinteressado pelo aposento, fixou os olhos num feixe de lanças nativas tão habilmente arranjado que apontava para
a gente não importando por que lado alguém se aproximasse. Era claro que ele se esquecera do ambiente; e Hirst, percebendo que a mente de Hewet estava totalmente vazia, fixou melhor sua atenção sobre as outras criaturas na sala. Estava longe demais delas para escutar o que diziam, porém divertiu-se construindo pequenas teorias a respeito das mesmas, extraídas de seus gestos e aparência.
Mrs. Thornbury recebera muitas cartas. Estava totalmente concentrada nelas. Quando terminava uma página,passava-a ao marido, ou lhe dava o sentido do que estava lendo, numa série de breves citações unidas por um som no fundo da garganta.
– Evie escreve que George foi a Glasgow. “Ele acha Mr. Chadbourne uma pessoa muito simpática para se trabalhar, e esperamos passar o Natal juntos, mas eu não gostaria de levar Betty e Alfred para muito longe (não, é certo),embora seja difícil imaginar tempo frio neste calor, ... Eleanor e Roger vieram na sua nova carruagem...Eleanor parecia mais ela mesma do que quando a vi no inverno. Ela agora passou Baby para três mamadeiras, o que, tenho certeza, é uma coisa sábia. (Eu também tenho certeza),
e assim consegue noites melhores... Meu cabelo ainda está caindo. Encontro cabelo no travesseiro! Mas fico contente com notícias de Tottie Hall Green... Muriel está
em Torquay divertindo-se enormemente em bailes.Afinal ela vai mostrar o seu pug preto”... Uma linha de Herbert – tão ocupado, coitado! Ah, Margaret diz: “A pobre
Mrs. Fairbanks morreu no dia oito, de repente, na estufa, só uma criada na casa, que não teve presença de espírito para levantá-la, o que as pessoas pensam que poderia
tê-la salvo, mas o médico diz que a morte poderia ter vindo a qualquer momento, e apenas se pode agradecer por ter sido na sua casa e não na rua (eu também acho!).Os
pombos aumentaram terrivelmente, exatamente como os coelhos há cinco anos... – Enquanto ela lia seu marido ficava balançando a cabeça bem de leve, mas regularmente,
em sinal de aprovação.
Perto dali, Miss Allan estava também lendo suas cartas. Não eram todas agradáveis, como se podia ver pela vaga rigidez que cobrira seu grande e bonito rosto quando
terminou de ler e as recolocou cuidadosamente nos envelopes. Linhas de preocupação e responsabilidade faziamna parecer antes um homem idoso do que uma mulher.As
cartas lhe traziam notícias do fracasso da colheita de frutas do ano passado na Nova Zelândia, o que era um assunto sério, pois Hubert, seu único irmão, vivia de
uma granja de frutas, e se fracassasse de novo, naturalmente ele jogaria tudo para o alto e voltaria para a Inglaterra, e o que fariam com ele desta vez? A viagem
até ali, que significava a perda de um semestre de trabalho, tornava-se uma extravagância, e não as justas e maravilhosas férias que lhe eram devidas depois de 15
anos dando aulas e corrigindo trabalhos sobre literatura inglesa. Emily, sua irmã, que também era professora, escrevera: “Devíamos estar preparadas, embora eu não
tenha dúvida de que desta vez Hubert vai ser mais razoável”. Depois continuava no seu jeito sensato a dizer que estava tendo um período muito alegre nos Lagos. “Estão
extraordinariamente bonitos agora. Raramente vi as árvores tão adiantadas nesta época do ano. Almoçamos fora vários dias. A velha Alice está tão jovem quanto antes,
pergunta afetuosamente por todo mundo. Os dias passam muito depressa, e em breve recomeçarão as aulas. As perspectivas políticas não são boas, eu acho, mas não gosto
de abafar o entusiasmo de Ellen. Lloyd George defendeu o projeto de lei, mas tantos fizeram isso antes dele, e vejam onde estamos; espero estar enganada. Seja como
for, temos nosso trabalho planejado... Certamente Meredith não tem o toque humano que a gente aprecia em W.W.” concluía ela e passava a discutir algumas questões
de literatura inglesa que Miss Allan propusera em sua última carta.
A pouca distância de Miss Allan, numa cadeira sombreada e semi-oculta por um grosso tufo de palmeiras,Arthur e Susan estavam lendo as cartas um do outro. Os grandes
manuscritos floreados de jovens jogadoras de hóquei em Wiltshire estavam sobre os joelhos de Arthur, enquanto Susan decifrava pequenas letras apertadas, que raramente
enchiam mais que uma página, sempre dando amesma impressão de uma benevolência animada e jocosa.
– Espero realmente que Mr. Hutchinson goste de mim, Arthur – disse ela erguendo os olhos.
– Quem é a sua afetuosa Flo? – perguntou Arthur.
– Flo Graves... a moça de quem lhe falei, que estava noiva daquele medonho Mr. Vincent – disse Susan. – Mr.Hutchinson é casado? – perguntou.
Sua mente já se ocupava com planos benevolentes para suas amigas, ou melhor, um plano magnífico que também era simples – todas iriam se casar de uma vez assim que
ela voltasse. Casamento, casamento, era a coisa certa a se fazer, a única coisa, a solução exigida para todos os que ela conhecia, e grande parte de suas meditações
dedicava-se a lembrar as circunstâncias de desconforto, solidão, doença, ambição não satisfeita, inquietação, excentricidade,pegando coisas e largando-as de novo,
falar em público,atividade filantrópica da parte de homens, e especialmente de mulheres, porque queriam se casar, estavam tentando se casar e não conseguiam casar-se.
Se, como ela tendia a acreditar, esses sintomas às vezes persistem depois do casamento, ela só podia atribuí-los a uma lei infeliz da natureza que decretava que
havia só um Arthur Venning e só uma Susan para se casar com ele. Naturalmente sua teoria tinha o mérito de ser plenamente apoiada por seu próprio caso. Ela estivera
vagamente desconfortável em casa por um ou dois anos, e uma viagem como aquela com sua velha tia egoísta que pagava sua passagem mas a tratava como criada e companheira
era um exemplo do tipo de coisa que as pessoas esperavam dela. Assim que ficou noiva, Mrs. Paley se portou com instintivo respeito, protestou até quando Susan se
ajoelhou como sempre para amarrar seus sapatos, parecia realmente grata por uma hora da companhia de Susan, quando estivera habituada a exigir duas ou três como
um direito seu. Por isso ela previa uma vida de muito mais conforto do que aquela a que estava acostumada, e a mudança tornava muito mais cálidos seus sentimentos
para com outras pessoas.
Fazia agora quase 20 anos que Mrs. Paley não conseguia amarrar seus sapatos, nem ao menos enxergá-los,tendo o desaparecimento de seus pés coincidido mais ou menos
com a morte de seu marido, homem de negócios.Pouco depois de sua morte Mrs. Paley começou a engordar. Era uma velha egoísta, independente, tinha ganhos consideráveis,
que gastava cuidando de uma casa que precisava de sete criadas e uma faxineira em Lancaster Gate, e outra casa com jardim e cavalos de carruagem em Surrey.O noivado
de Susan aliviava-a da grande inquietação de sua vida – que seu filho Christopher se ‘enrolasse’ com a prima. Agora que essa fonte familiar de interesse fora removida,
ela se sentia um pouco deprimida, e inclinava-se a ver em Susan mais do que costumara ver. Decidira darlhe um belo presente de casamento, um cheque de 200,250, ou possivelmente, provavelmente – dependia da conta do ajudante de jardineiro e de Huth pela reforma da sala de estar –, até 300 libras esterlinas.