A intimidade arduamente conquistada da noite pareceu ter evaporado com o orvalho e havia um considerável constrangimento entre nós pela manhã. Após um desjejum praticamente em silêncio feito em nosso próprio quarto, subimos a pequena colina atrás da estalagem, trocando gentilezas um pouco formais de vez em quando.
No topo da colina, sentei-me em um tronco de árvore para descansar, enquanto Jamie sentava-se no chão, as costas apoiadas em um pinheiro novo, a alguns passos de distância. Algum pássaro agitava-se num arbusto atrás de mim, um pintassilgo, creio, ou talvez um tordo. Fiquei ouvindo seus trinados indolentes, observando as nuvenzinhas fofas passarem flutuando e considerando a situação.
O silêncio estava se tornando realmente difícil de suportar, quando Jamie disse repentinamente:
- Espero... - Parou e ruborizou-se. Embora eu sentisse que eu é quem deveria ruborizar-se, fiquei contente de que pelo menos um de nós fosse capaz de fazê-lo.
- O quê? - perguntei, da forma mais encorajadora possível. Ele sacudiu a cabeça, ainda corado.
- Não foi nada.
- Fale. - Estendi a perna e cutuquei sua coxa com a ponta do pé. — Honestidade, lembra-se? - Era injusto, mas eu realmente não podia mais suportar olhares nervosos e pigarros na garganta.
Suas mãos entrelaçadas apertaram-se em volta dos joelhos e ele balançou-se um pouco, mas fixou o olhar diretamente em mim.
- Eu ia dizer - falou suavemente - que eu esperava que o homem que teve a honra de se deitar com você pela primeira vez tenha sido tão generoso quanto você foi comigo. — Sorriu, um pouco timidamente. — Mas, pensando melhor, não soava muito bem. O que eu queria dizer... bem,
Tudo que eu queria dizer era obrigado.
- Generosidade não teve nada a ver com isso! - retruquei, olhando Para baixo e limpando energicamente uma mancha inexistente do meu vestido. Uma bota grande intrometeu-se no meu reduzido campo de visão e cutucou meu tornozelo.
- Honestidade, hein? — repetiu e eu ergui os olhos, deparando-me com Par de sobrancelhas arqueadas com ironia, acima de um largo sorriso.
- Bem - eu disse, na defensiva —, não depois da primeira vez, de qualquer modo. - Ele riu e eu descobri para meu horror que eu mesma não estava imune ao rubor, afinal de contas.
Uma sombra fria caiu sobre meu rosto afogueado e um par de mãos fortes e grandes segurou as minhas com força e colocou-me de pé. Jamie tomou meu lugar no tronco e bateu no joelho, convidativamente.
- Sente-se - disse.
Obedeci relutantemente, mantendo o rosto desviado. Ele ajeitou-me confortavelmente contra seu peito e passou os braços em torno da minha cintura. Senti as batidas fortes e regulares de seu coração contra as minhas costas.
- Bem, vejamos - ele disse. — Se ainda não conseguimos conversar à vontade sem nos tocarmos, vamos nos tocar um pouco. Diga-me quando estiver acostumada comigo outra vez. - Inclinou-se para trás para que ficássemos na sombra de um carvalho e me apertou contra ele sem falar, apenas respirando devagar, de modo que eu sentia seu peito subir e descer e o seu hálito nos meus cabelos.
- Tudo bem - eu disse, após alguns instantes.
- Ótimo. - Afrouxou os braços e virou-se para olhar diretamente para mim. Assim de perto, eu podia ver os pêlos ruivos, curtos e eriçados, da barba por fazer, no rosto e no queixo. Deslizei os dedos por eles; eram como a pelúcia de um sofá antigo, rígidos e macios ao mesmo tempo.
- Desculpe-me - ele disse -, não pude me barbear hoje de manhã. Dougal me deu uma navalha antes do casamento ontem, mas pegou-a de volta. Com receio que eu cortasse a minha garganta depois da noite de núpcias, eu acho. - Riu para mim e eu sorri de volta.
A referência a Dougal me fez lembrar de nossa conversa na noite anterior.
- Eu estava pensando... ontem à noite, você disse que Dougal e seus homens foram ao seu encontro na costa quando você voltou da França. Por que você voltou com ele, ao invés de ir para sua própria casa ou para as terras dos Fraser? Quero dizer, da maneira como Dougal o tratou... -deixei a frase morrer, hesitante.
- Ah — ele disse, remexendo as pernas para acomodar meu peso mais uniformemente. Eu quase podia ouvi-lo pensando consigo mesmo. Decidiu-se com bastante rapidez.
- Bem, é algo que você deve saber, eu creio. - Franziu a testa consigo mesmo. - Eu lhe contei porque sou um fora-da-lei. Bem, durante tempo depois... depois que deixei o forte, não me importava muito... nada. Meu pai morreu nessa época e minha irmã... - Parou outra vez e senti que travava uma luta interna. Girei o corpo para olhar para ele. O rosto normalmente alegre estava sombrio por alguma emoção forte.
- Dougal me contou - disse devagar -, Dougal me contou que... que minha irmã ficou grávida. De Randall.
- Ah, meu Deus.
Olhou-me de viés, desviando o olhar em seguida. Seus olhos brilhavam como safiras e piscou apressadamente uma ou duas vezes.
- Eu... eu não consegui forças para voltar - disse, em voz baixa. — Vê-la outra vez, depois do que acontecera. Além disso - suspirou, apertando os lábios em seguida -, Dougal me disse que ela... que depois que a criança nasceu, ela... bem, é claro, ela não teve escolha; estava sozinha... droga, eu a deixei sozinha! Ele disse que ela estava morando com outro soldado inglês, alguém da guarnição, não sabia quem.
Engoliu com dificuldade, depois continuou com mais firmeza.
- Enviei para ela todo o dinheiro que pude, é claro, mas não pude... bem, não consegui escrever para ela. O que eu poderia dizer? — Encolheu os ombros, desamparadamente.
- Bem, de qualquer modo, após algum tempo cansei-me de viver como soldado na França. E fiquei sabendo por meio do meu tio Alex que ele ouvira falar de um desertor inglês, de nome Horrocks. O sujeito deixara o exército e fora trabalhar para Francis MacLean, de Dunweary. Estava bêbado um dia e deixou escapar que estava servindo na guarnição em Fort William quando eu fugi. E ele tinha visto o homem que atirou no sargento-mor naquele dia.
- Então, ele podia provar que não foi você! - Parecia ser uma boa notícia e eu disse isso a Jamie. Ele balançou a cabeça.
- Bem, sim. Embora a palavra de um desertor provavelmente não teria muito valor. Ainda assim, é um começo. Ao menos, eu mesmo saberia quem foi. E enquanto eu... bem, não vejo como eu possa voltar a Lallybroch; seria bom que eu pudesse andar pela Escócia sem o risco de ser enforcado.
- Sim, parece uma boa idéia — eu disse secamente. - Mas onde entram os MacKenzie nesta história?
Seguiu-se uma certa dose de complicada análise de relações familiares e alianças de clãs, mas quando a fumaça se dispersou, pareceu que Francis MacLean tinha alguma conexão com o lado dos MacKenzie e informara Colum a respeito de Horrocks, que então enviou Dougal para fazer contato com Jamie.
- Foi assim que aconteceu de ele estar por perto quando fui ferido -Jamie concluiu. Parou, apertando os olhos contra o sol. — Perguntei-me, depois, sabe, se talvez ele mesmo não tenha feito isso.
Golpeá-lo com um machado? Seu próprio tio? Por que, pelo amor de Deus, ele haveria de fazer isso!?
Ele franziu o cenho como se avaliasse quanto deveria me contar, dePois encolheu os ombros.
- Não sei o quanto você sabe sobre o clã MacKenzie - disse —, embora imagino que não possa ter cavalgado com o velho Ned Gowan durante dias sem ouvir alguma coisa. Ele não consegue fugir do assunto por muito tempo.
Balançou a cabeça diante do meu sorriso de confirmação.
- Bem, você viu Colum. Qualquer um pode ver que ele não vai viver até uma idade avançada. E o pequeno Hamish tem apenas oito anos; não poderá liderar um clã ainda por uns dez anos. Então, o que acontece se Colum morre antes de Hamish estar preparado? - Olhou para mim, aguardando a resposta.
- Bem, Dougal seria o chefe do clã, eu creio - respondi devagar —, ao menos até que Hamish atinja a idade certa.
- Sim, é verdade. - Jamie assentiu. - Mas Dougal não tem a capacidade de Colum e há aqueles no clã que não o seguiriam com satisfação, se houvesse uma alternativa.
- Compreendo - eu disse lentamente -, e você é essa alternativa. Analisei-o cuidadosamente e tive que admitir que havia uma certa possibilidade ali. Ele era neto do velho Jacob; um MacKenzie de sangue, ainda que pelo lado de sua mãe. Um rapaz forte, atraente, bem-educado, inteligente e com o jeito da família para lidar com pessoas. Lutara na França e provara sua capacidade de liderar homens numa batalha; uma consideração importante. Nem mesmo o prêmio por sua cabeça poderia ser um obstáculo intransponível, se ele fosse o chefe dos MacKenzie.
Os ingleses já tinham problemas suficientes nas Highlands, com pequenas e constantes rebeliões, incursões pelas fronteiras e clãs em guerra, para não se arriscar a provocar um levante de grandes proporções acusando o chefe de um grande clã de assassinato — que para os membros do clã não seria, de forma alguma, considerado assassinato.
Enforcar um membro sem importância do clã Fraser era uma coisa; invadir o Castelo Leoch e arrastar o senhor do clã MacKenzie para enfrentar a justiça inglesa era inteiramente diferente.
- Você pretende ser o chefe, se Colum morrer? - Afinal, seria uma maneira de sair de suas dificuldades, embora eu suspeitasse que seria um caminho repleto de seus próprios e consideráveis obstáculos.
Ele sorriu diante da idéia.
- Não. Ainda que me sentisse no direito, o que não sinto, isso dividiria o clã, os homens de Dougal contra aqueles que me seguissem. Não tenho o gosto do poder à custa do sangue de outros homens. Mas Dougal e Colum não poderiam saber disso, não é? Assim, devem ter achado mais fácil me matar do que correr o risco.
Minha testa estava franzida, tentando compreender todas as implicações.
- Mas sem dúvida você poderia dizer a Dougal e Colum que não pretende... ah. — Ergui os olhos para ele com considerável respeito. - Mas você fez isso. No juramento.
Eu já havia considerado como ele lidara bem com uma situação perigosa ali; agora eu via exatamente o quanto era perigosa. Os homens do clã sem dúvida queriam que ele fizesse o juramento; assim como Colum não queria. Fazer aquele juramento era declarar-se um membro do clã MacKenzie e, como tal, um candidato em potencial a chefe do clã. Ele arriscava-se à violência ou à morte por se recusar; corria o mesmo risco, mais particularmente, por concordar.
Vendo o perigo, tomara a prudente decisão de ficar longe da cerimônia. E quando eu, por minha estropiada tentativa de fuga, o levei de volta à beira do abismo, ele pisara com firmeza e segurança numa fina corda bamba e atravessara para o outro lado. Je suis prest, de fato.
Balançou a cabeça, vendo os pensamentos cruzarem meu rosto.
- Sim. Se eu tivesse feito o juramento naquela noite, provavelmente não chegaria a ver a luz do dia.
Senti-me um pouco abalada com a idéia, assim como o conhecimento de que eu, inadvertidamente, o expusera a tal perigo. A faca acima da cama de repente não pareceu nada além do que uma sensata precaução. Imaginei quantas noites ele teria dormido armado em Leoch, esperando a visita da morte.
- Sempre durmo armado, Sassenach - disse, embora eu não tivesse falado. - Exceto no monastério, ontem foi a primeira noite em meses que não dormi com minha adaga na mão. — Riu, obviamente lembrando-se do que estava em sua mão ao invés da arma.
- Como diabos você sabia o que eu estava pensando? — perguntei, ignorando o sorriso. Sacudiu a cabeça, bem-humorado.
- Você seria uma espiã muito ruim, Sassenach. Tudo que você pensa transparece no seu rosto, claro como o dia. Você olhou para minha adaga e ficou ruborizada. - Analisou-me, de forma avaliadora, a cabeleira brilhante de lado. - Ontem à noite, eu pedi honestidade, mas não era realmente necessário; você não sabe mentir.
- Muito bem, já que aparentemente sou tão ruim nisso - observei com certa aspereza -, devo presumir que ao menos você não ache que sou uma espiã?
Não respondeu. Olhava por cima do meu ombro em direção à estalagem, o corpo repentinamente tenso como a corda de um arco. Fiquei assustada por um instante, mas logo ouvi os sons que haviam atraído sua atenção. O baque surdo de cascos e o chocalhar estridente dos arreios; um grande grupo de homens a cavalo descia a estrada em direção à estalagem.
Movendo-se cautelosamente, Jamie agachou-se atrás de uma cortina de arbustos, em um ponto de onde avistava a estrada. Prendi minhas saias e arrastei-me atrás dele o mais silenciosamente possível.
A estrada fazia uma curva fechada depois de um afloramento de rochas e, em seguida, outra curva mais sinuosa em direção ao estreito vale onde ficava a estalagem. A brisa matinal trazia em nossa direção os sons do grupo que se aproximava, mas passou-se um ou dois minutos antes que o primeiro cavalo despontasse em nosso campo de visão.
Era um grupo de vinte a trinta homens, a maioria usando calças justas de couro e vestidos com seus tartãs, numa variedade de cores e padrões de xadrez. Todos, sem exceção, muito bem armados. Cada cavalo carregava ao menos um mosquete amarrado à sela e havia uma abundância de pistolas, adagas e espadas à vista, além de outros armamentos que podiam estar escondidos nos espaçosos alforjes dos quatro cavalos de carga. Seis dos homens ainda levavam montarias extras, sem carga e sem sela.
Apesar dos apetrechos de guerra, os homens pareciam relaxados; conversavam e riam em pequenos grupos enquanto cavalgavam, embora aqui e ali uma cabeça se erguesse, vigilante, examinando os arredores. Contive o impulso de agachar-me quando o olhar de um dos homens passou por cima do local onde estávamos escondidos; certamente aquele olhar perscrutador descobriria algum movimento aleatório ou o reflexo do sol nos cabelos de Jamie.
Erguendo os olhos, descobri que o mesmo pensamento ocorrera a Jamie; puxara seu xale sobre a cabeça e os ombros, de modo que o embotado padrão de caça o transformasse realmente em parte dos arbustos. Quando o último homem entrou no pátio da estalagem, Jamie tirou o xale da cabeça e começou a voltar para o caminho que subia a colina.
- Sabe quem são? — perguntei, ofegante, enquanto o seguia pelo meio das urzes.
- Ah, sim. - Jamie subia a trilha íngreme como um cabrito montês, sem perder o fôlego ou a serenidade. Olhando para trás, notou que eu avançava com dificuldade e parou, estendendo a mão para me ajudar.
- É a patrulha - disse, fazendo um sinal com a cabeça em direção à hospedaria. - Estamos seguros, mas acho que devíamos ficar um pouco mais longe.
Eu ouvira falar do famoso Black Watch, um regimento policial não-oficial que mantinha a ordem nas Highlands, e também ouvira falar que havia outras patrulhas, cada qual vigiando sua própria região, coletando a "contribuição" dos clientes para garantir a segurança de gado e propriedades. Clientes atrasados nos pagamentos podiam acordar um dia e descobrir que seus animais domésticos haviam desaparecido durante a noite, sem ninguém que lhes dissesse para onde - certamente não os homens da patrulha. Fui tomada por um pânico repentino e irracional.
- Não estão procurando por você, estão?
Surpreso, olhou para trás como se esperasse ver homens galgando a subida da colina em seu encalço, mas não havia ninguém. Ele olhou de novo para mim com um sorriso de alívio e passou o braço em torno de minha cintura para me ajudar a subir.
- Não, duvido. Dez libras não são suficientes para que um grupo como esse tente me caçar. E se soubessem que eu estava na estalagem, não viriam como vieram, arrastando os pés até a porta da estalagem em bloco. - Sacudiu a cabeça com convicção. - Não, se estivessem perseguindo alguém, enviariam homens para guardar os fundos e as janelas antes de entrarem pela porta da frente. Devem ter parado apenas para um descanso.
Continuamos a subir, para além do local onde a trilha rústica se acabava em moitas de urzes e tojo. Estávamos entre contrafortes ali e as rochas de granito erguiam-se acima da cabeça de Jamie, trazendo a desconfortável lembrança dos megálitos de Craigh na Dun.
Emergimos no topo de uma pequena elevação e as colinas ondeavam-se na distância, em um exuberante declive de rochas e verde por todos os lados. A maioria dos lugares nas Highlands dava-me uma sensação de estar cercada por árvores, rochas ou montanhas, mas ali estávamos expostos às correntes de ar frio do vento e aos raios do sol, que saíra como se comemorasse nosso casamento pouco ortodoxo.
Experimentei uma inebriante sensação de liberdade por estar fora da influência de Dougal e da companhia claustrofóbica de tantos homens. Fiquei tentada a dizer a Jamie que fugisse e me levasse com ele, mas o bom senso prevaleceu. Nenhum dos dois tinha dinheiro ou comida além do pequeno lanche que ele trazia na bolsa à cintura. Certamente, seríamos perseguidos se não voltássemos à estalagem até o pôr-do-sol. E embora Jamie pudesse escalar rochas o dia inteiro sem derramar uma gota de suor ou perder o fôlego, eu não estava tão preparada fisicamente. Notando meu rosto vermelho, conduziu-me a uma rocha e sentou-se ao meu lado, fitando com ar de satisfação as colinas ao longe, enquanto esperava que eu me recuperasse. Estávamos a salvo ali.
Pensando na patrulha, coloquei a mão impulsivamente no braço de Jamie.
- Estou muito contente por você não valer muito — eu disse. Olhou-me por um instante, esfregando o nariz, que estava começando a ficar vermelho.
- Bem, posso encarar isso de diversos modos, Sassenach, mas nas circunstâncias atuais, obrigado.
-- Eu é que tenho que lhe agradecer por se casar comigo. Devo dizer prefiro estar aqui do que em Fort William.
- Agradeço o elogio, senhora — disse, com uma leve mesura. - Eu também. E enquanto estamos ocupados agradecendo um ao outro - acrescentou —, eu também devo agradecer-lhe por ter se casado comigo.
- Hã, bem... — Fiquei ruborizada outra vez.
- Não só por isso, Sassenach — disse, o sorriso ampliando-se. - Embora, sem dúvida por isso também. Mas acho que também salvou a minha vida, ao menos até onde diga respeito aos MacKenzie.
- O que quer dizer?
- Ser metade MacKenzie é uma coisa — explicou. - Ser metade MacKenzie com uma mulher inglesa é outra bem diferente. Não há muita chance de uma Sassenach tornar-se senhora de Leoch, independente do que os membros do clã pensem de mim. Foi por isso que Dougal me escolheu para casar com você.
Ergueu uma das sobrancelhas, vermelho-dourada à luz do sol matinal.
- Espero que não teria preferido Rupert.
- Não, não teria — respondi enfaticamente.
Ele riu e levantou-se, limpando as agulhas de pinheiro de seu kilt.
- Bem, minha mãe me disse que eu seria o escolhido de uma bela moça um belo dia. — Estendeu a mão e me ajudou a levantar.
- Eu disse a ela - continuou - que achava que cabia ao homem escolher.
- E o que ela disse a isso? - perguntei.
- Ela revirou os olhos e disse: "Você vai ver, meu belo galinho, você vai ver." - Riu. - E foi o que aconteceu.
Olhou para cima, para onde o sol agora se filtrava pelo meio das agulhas dos pinheiros em fios cor de limão.
- E é um belo dia, aliás. Venha, Sassenach. Vou levá-la para pescar. Subimos ainda mais para o meio das colinas. Desta vez, Jamie virou-se para o norte, atravessou um terreno pedregoso e uma greta, até a cabeça de uma minúscula ravina, verdejante e cercada de paredes de pedra, repleta do gorgolejar da água do riacho que espirrava de uma dúzia de cascatas entre as rochas e mergulhava alegremente ao longo de todo o desfiladeiro em uma série de arroios e lagos abaixo.
Mergulhamos nossos pés na água, movendo-nos da sombra para o sol e de volta para a sombra quando ficávamos com muito calor, falando de uma coisa e outra sem maior importância, ambos conscientes do menor movimento um do outro, ambos contentes de esperar que o acaso nos levasse àquele momento em que um olhar se demoraria um pouco mais e um toque adquirisse um significado maior.
Acima de um lago salpicado de manchas escuras, Jamie mostrou-me como atrair uma truta. Um pouco agachado para evitar os galhos mais baixos acima de sua cabeça, avançou ao longo de um ressalto da rocha, os braços estendidos para os lados para se equilibrar. Na metade da saliência de pedra, virou-se cuidadosamente e estendeu a mão, instando-me a segui-lo.
Eu já havia prendido a barra das minhas saias, para caminhar pelo terreno acidentado, e consegui alcançá-lo facilmente. Deitamo-nos estendidos na pedra fria, cabeça com cabeça, olhando para a água embaixo, os galhos de salgueiro roçando em nossas costas.
- Basta - explicou - escolher um bom lugar e esperar. - Mergulhou uma das mãos abaixo da superfície da água, suavemente, sem agitar a água, e deixou-a descansar no fundo arenoso, logo depois da linha de sombra feita pelo ressalto rochoso. Os longos dedos curvaram-se delicadamente em direção à palma da mão, distorcidos pela água, de modo que pareciam ondear delicadamente de um lado para o outro, como as folhas de uma planta aquática, embora eu visse pelos músculos imóveis de seu antebraço que ele não estava de forma alguma movendo a mão. A coluna de seu braço curvava-se bruscamente na superfície, parecendo tão deslocado quanto estivera quando o encontrei pela primeira vez, há pouco mais de um mês - meu Deus, apenas um mês?
Conheceram-se em um mês, casaram-se no outro. Unidos por votos e pelo sangue. E por amizade também. Quando chegasse a hora de partir, esperava não feri-lo muito. Fiquei satisfeita de não ter que pensar nisso por enquanto; estávamos longe de Craigh na Dun e não havia nenhuma chance no mundo de fugir de Dougal no momento.
- Lá está ela. - A voz de Jamie era baixa, pouco mais do que um sussurro; ele havia me dito que as trutas têm ouvidos sensíveis.
Do meu ângulo de visão, a truta não passava de um movimento na areia salpicada de manchas. Ali na sombra da rocha não havia como identificar o brilho de escamas. Manchas moviam-se sobre manchas, deslocadas pelo abanar das barbatanas transparentes, invisíveis se não fosse por seu movimento. Os peixinhos que haviam se juntado para beliscar com curiosidade os cabelos nos pulsos de Jamie fugiram para a parte iluminada do pequeno lago.
Um dos dedos curvou-se devagar, tão devagar que era difícil notar o movimento. Eu sabia que havia se movido apenas pela mudança de posição, em relação aos outros dedos. Mais um dos dedos, curvado lentamente- E depois de um longo, longo momento, mais outro.
Eu mal ousava respirar e meu coração batia contra a rocha fria com um ritmo mais acelerado do que a respiração do peixe. Lentamente, os dedos começaram a voltar, um a um, ficando abertos, e a lenta onda hipnótica começou outra vez, um dedo, outro dedo, mais um dedo, apenas uma leve Ondulação, como o movimento da borda da barbatana de um peixe.
Como que atraído pelo aceno em câmara lenta, o nariz da truta pressionava-se para fora, uma arfada delicada da boca e das guelras, ocupadas no ritmo da respiração, o interior róseo à mostra, e ocultando-se, alternadamente, à medida que os opérculos pulsavam como um coração.
A boca, abrindo e fechando, tateava e mordia a água. A maior parte do corpo já saíra de baixo da rocha, pairando sem peso na água, ainda na sombra. Eu podia ver um dos olhos, indo e vindo, num olhar sem expressão e sem direção.
Mais alguns centímetros trariam as ondulantes capas das guelras diretamente para os traiçoeiros dedos que acenavam. Percebi que eu estava agarrando a rocha com as duas mãos, pressionando o rosto com força contra o granito, como se eu pudesse me tornar ainda mais imperceptível.
Houve uma repentina explosão de movimento. Tudo aconteceu tão rápido que não pude ver o que realmente havia ocorrido. A água agitou-se furiosamente e jorrou por cima da rocha, a dois centímetros do meu rosto. Ao mesmo tempo, houve um rebuliço de tecido xadrez quando Jamie atravessou a rocha, rolando por cima de mim, e um forte estalo quando o corpo do peixe voou pelo ar e bateu na margem forrada de folhas.
Jamie lançou-se do ressalto de pedra nas águas rasas da beira do lago, espadanando água para todos os lados, a fim de recuperar o prêmio antes que o assustado peixe conseguisse nadar de volta para o santuário das águas mais fundas. Agarrando a truta pela cauda, bateu-a com perícia contra uma rocha, matando-a instantaneamente. Em seguida, veio arrastando os pés nas águas rasas para mostrá-lo a mim.
- Um bom tamanho - disse orgulhosamente, estendendo um sólido exemplar de uns trinta e cinco centímetros. - Ótimo para o desjejum. -Abriu um largo sorriso para mim, molhado até as coxas, os cabelos caindo no rosto, a camisa manchada de água e folhas mortas. — Eu disse que não ia deixar você passar fome.
Envolveu a truta em camadas de folhas de bardana e lama fria. Em seguida, lavou os dedos na água fria do riacho e, subindo na rocha, entregou-me o pacote cuidadosamente enrolado.
- Pode ser um presente de casamento estranho - disse, balançando a cabeça em direção à truta -, mas não sem precedente, como diria Ned Gowan.
- Há precedentes em dar um peixe de presente à nova esposa? - perguntei, achando graça.
Ele tirou as meias compridas e estendeu-as sobre a rocha, ao sol, para secar. Seus longos dedos dos pés remexeram-se, alegres com o calor.
- É uma antiga canção de amor, das Ilhas. Quer ouvir?
- Sim, claro. Ah, em inglês, se possível - acrescentei.
- Ah, sim. Não tenho voz para música, mas vou dizer a letra. - E afastando os cabelos dos olhos, recitou:
Você, filha do rei de mansões feericamente iluminadas
Na noite de nosso casamento,
Se eu for um homem vivo em Duntulm,
Irei ao seu encontro com presentes.
Você receberá cem texugos, habitantes das margens,
Cem lontras marrons, nativas dos riachos,
Cem trutas prateadas, saltando de seus lagos...
E assim continuava por uma notável lista da flora e da fauna das Ilhas. Tive tempo, ouvindo-o declamar, de refletir na estranheza de estar sentada em uma rocha junto a um lago escocês ouvindo canções de amor gaélicas, com um grande peixe morto no colo. Mais estranho ainda era o fato de eu estar me divertindo muito.
Quando terminou, aplaudi, mantendo a truta presa entre meus joelhos.
- Ah, gostei dessa! Especialmente a parte que diz "Irei ao seu encontro com presentes". Ele parece um amante muito empolgado.
Com os olhos cerrados contra o sol, Jamie riu.
- Acho que eu poderia acrescentar um verso por minha conta: "Pularei dentro de lagos por você."
Nós dois rimos e depois ficamos em silêncio por algum tempo, refestelando-nos ao sol agradavelmente quente do começo do verão. Havia muita paz ali, sem nenhum som além do ímpeto da água corrente mais abaixo de nosso plácido lago. A respiração de Jamie acalmara-se. Eu tinha plena consciência do lento movimento de subida e descida de seu peito e da lenta pulsação em seu pescoço. Ele possuía uma pequena cicatriz triangular bem na base da garganta.
Eu podia sentir a timidez e o constrangimento começando a se infiltrar entre nós novamente. Estendi a mão e segurei a dele com força, na esperança de que o toque restabelecesse a intimidade entre nós como fizera antes. Ele passou o braço em volta dos meus ombros, mas isso apenas me fez notar os contornos rígidos de seu corpo sob a camisa fina. Afastei-me, sob o pretexto de colher um ramo das flores cor-de-rosa de gerânio que cresciam de uma fenda na rocha.
- Boas para dor de cabeça - expliquei, enfiando-as no meu cinto.
- Isso a incomoda — ele disse, inclinando a cabeça para me olhar intensamente. - Não, não quis dizer a dor de cabeça. Frank. Você está pensando nele e isso a incomoda quando toco em você, porque não pode levar nós dois na mente. Não é?
- Você é muito perceptivo - eu disse, surpresa. Ele sorriu, mas não fez nenhum movimento para me tocar outra vez.
- Não é muito difícil perceber isso, Sassenach. Eu sabia quando nos casamos que você o teria freqüentemente na lembrança, quisesse ou não.
Não queria, no momento, mas ele tinha razão; era independente da minha vontade.
- Sou muito parecido com ele? - perguntou repentinamente.
- Não.
De fato, seria difícil imaginar um contraste maior. Frank era esbelto, ágil e moreno, ao passo que Jamie era corpulento, vigoroso e claro como um raio de sol avermelhado. Embora ambos tivessem a graça compacta dos atletas, a constituição física de Frank era a de um jogador de tênis, o corpo de Jamie era o de um guerreiro, moldado - e surrado - pela abrasão da absoluta adversidade física. Frank ficava um pouco acima dos meus um metro e setenta. De frente para Jamie, meu nariz acomodava-se confortavelmente na pequena depressão no meio de seu peito e seu queixo podia descansar facilmente no topo da minha cabeça.
O físico não era a única dimensão em que os dois homens diferiam. Havia quase quinze anos de diferença entre eles, para começar, o que provavelmente explicava algumas diferenças entre a reserva urbana de Frank e a franqueza sincera de Jamie. Como amante, Frank era elegante, sofisticado, atencioso e hábil. Sem a mesma experiência ou pretensão, Jamie simplesmente se entregava a mim por inteiro, sem reservas. E a profundidade da minha resposta a isso me perturbava completamente.
Jamie observava minha luta, não sem simpatia.
- Bem, então, parece que eu tenho duas opções na questão — disse. -Posso deixar que fique cismando sobre o assunto ou...
Inclinou-se para baixo e docemente uniu seus lábios aos meus. Eu já havia beijado meu quinhão de homens, particularmente durante os anos de guerra, quando o flerte e o romance imediato eram os companheiros amenos da morte e da incerteza. Jamie, no entanto, era algo diferente. Sua extrema delicadeza não era de forma alguma insegura; ao invés disso, era uma promessa de uma força conhecida e contida sob rédeas; um desafio e uma provocação mais notável ainda pela ausência de reivindicação. Sou seu, dizia. E se você me quiser, então...
Eu queria - e minha boca abriu-se sob a dele, aceitando calorosamente tanto a promessa quanto o desafio sem me consultar. Após um longo instante, ele ergueu a cabeça e sorriu para mim.
- Ou posso tentar distraí-la de seus pensamentos - concluiu. Pressionou minha cabeça contra seu ombro, acariciando meus cabelos e alisando os cachos saltitantes atrás de minhas orelhas.
- Não sei se isso vai ajudar - disse, serenamente -, mas vou lhe dizer uma coisa: é uma dádiva e um encantamento para mim saber que eu posso dar-lhe prazer, que seu corpo pode reagir ao meu. Eu não havia pensado nisso... antes.
Respirei longamente antes de responder.
- Sim - eu disse. - Ajuda. Eu acho.
Ficamos em silêncio novamente pelo que me pareceu um longo tempo. Por fim, Jamie afastou-se e olhou para mim, sorrindo.
- Eu lhe disse que não tenho nem dinheiro nem propriedade, Sassenach?
Balancei a cabeça afirmativamente, imaginando onde ele pretendia chegar.
- Eu deveria tê-la avisado antes que acabaríamos dormindo em fardos de feno, sem nada além de cerveja de urzes e mingau de aveia para comer.
- Não me importo - eu disse.
Ele indicou com a cabeça uma abertura nas árvores, sem tirar os olhos de mim.
- Não tenho um monte de feno aqui comigo, mas há uma boa área de samambaias novas ali adiante. Se quiser praticar, só para ir sabendo como é...
Pouco tempo depois, acariciei suas costas, molhadas com o esforço e a seiva de samambaias esmagadas.
- Se disser "obrigado" mais uma vez, dou-lhe um tapa - eu disse. Ao invés disso, tive um ligeiro ronco em resposta. Uma samambaia pendurada acima de nós roçava seu rosto e uma formiga curiosa arrastava-se por sua mão, fazendo os longos dedos remexerem-se em seu sono.
Afastei-a e apoiei-me em um dos cotovelos, observando-o. Suas pestanas eram longas, vistas assim com seus olhos fechados, e espessas. No entanto, de uma cor estranha; castanho-avermelhadas e escuras nas pontas, eram muito claras, quase louras nas raízes.
A linha firme de sua boca relaxara-se no sono. Enquanto mantinha uma curva de sorriso no canto, seu lábio inferior agora relaxara em uma curva mais cheia que parecia tanto sensual quanto inocente.
- Droga — exclamei baixinho para mim mesma.
Vinha lutando contra aquilo. Antes mesmo deste ridículo casamento, eu estava mais do que consciente dessa atração. Já acontecera antes, como sem dúvida acontece a praticamente qualquer pessoa. Uma repentina sensibilidade à presença, ao aparecimento, de um determinado homem - ou Mulher, suponho. A necessidade de segui-lo com os olhos, de provocar Pequenos encontros "casuais", vê-lo inadvertidamente enquanto ele prosseguia com seu trabalho, uma sensibilidade refinada aos pequenos detalhes de seu corpo; as omoplatas sob o tecido da camisa, os ossos protuberantes de seus pulsos, o lugar macio sob seu maxilar, onde os primeiros pêlos de sua barba começam a nascer.
Paixão. Era comum, entre enfermeiras e médicos, enfermeiras e pacientes, entre qualquer grupo de pessoas lançadas por longos períodos de tempo na companhia umas das outras.
Algumas se entregavam a ela e romances intensos e breves eram freqüentes. Se tivessem sorte, o romance se extinguia em poucos meses, sem maiores conseqüências. Se não tivessem... bem. Gravidez, divórcio, um ou outro caso de doença venérea. Perigosa, a paixão.
Eu a senti, diversas vezes, mas tive o bom senso de resistir. E como sempre acontece, após algum tempo a atração diminuía e o homem perdia sua aura dourada e reassumia seu lugar de sempre em minha vida, sem nenhum dano a ele, a mim ou a Frank.
E agora. Agora eu tinha sido forçada a me entregar. E só Deus poderia saber que danos poderiam ser provocados por essa ação. Mas não havia como voltar atrás.
Ele permanecia deitado, à vontade, esparramado sobre o estômago. O sol se refletia em sua cabeleira ruiva e iluminava os pêlos curtos e macios que desciam por sua espinha dorsal até a penugem vermelho-dourada que polvilhava suas nádegas e coxas e se aprofundava em um matagal de cachos macios, castanho-avermelhados, que despontavam ligeiramente entre suas pernas abertas.
Sentei-me, admirando suas longas pernas, com a linha suave dos músculos que torneavam as coxas do quadril ao joelho e outra que se prolongava do joelho ao pé longo e elegante. As solas de seus pés eram lisas e rosadas, ligeiramente calejadas por andar descalço.
Meus dedos doíam, querendo percorrer o contorno de sua orelha pequena e bem-feita e o ângulo brusco de seu maxilar. Bem, pensei, a sorte fora lançada e não havia mais razão para me reprimir. Nada do que eu fizesse agora poderia piorar a situação, para nenhum de nós dois. Estendi a mão e toquei-o de leve.
Seu sono era muito leve. Com uma rapidez que me fez saltar, ele virou-se, apoiando-se nos cotovelos, como se fosse ficar de pé num salto. Ao me ver, relaxou, sorrindo.
- Madame, a senhora me tem em desvantagem.
Fez uma mesura bastante elegante para um homem estendido por extenso sobre faias, sem usar nada além de algumas manchas matizadas de luz solar, e eu ri. O sorriso permaneceu em seu rosto, mas mudou quando olhou para mim, nua sobre as samambaias. Sua voz ficou repentinamente rouca.
- Na verdade, madame, estou à sua mercê.
- É mesmo? - perguntei, baixinho.
Ele não se moveu, quando estendi minha mão outra vez e a deslizei lentamente pelo seu rosto e pescoço, sobre a curva brilhante do ombro e para baixo. Ele não se moveu, mas fechou os olhos.
- Meu Deus do Céu — disse. Prendeu a respiração com força.
- Não se preocupe - eu disse. - Não é preciso machucar.
- Obrigado a Deus pelas pequenas graças.
- Fique quieto.
Cravou os dedos com força na terra fofa, mas obedeceu.
- Por favor - disse, depois de algum tempo. Erguendo o rosto, vi que os olhos dele estavam abertos agora.
- Não - eu disse, divertindo-me. Fechou os olhos novamente.
- Vai pagar por isso — disse pouco tempo depois. Uma leve camada de suor brilhava na linha reta do seu nariz.
- É mesmo? - eu disse. - O que vai fazer?
Os tendões de seus antebraços saltaram quando pressionou as palmas das mãos contra o solo e ele falou com esforço, como se tivesse os dentes cerrados.
- Eu não sei, mas... por Cristo e Santa Inês... eu vou.... p-pensar em a-alguma coisa! Meu Deus! Por favor!
- Está bem - disse, soltando-o.
E dei um gritinho quando ele rolou no chão para cima de mim, prendendo-me contra as samambaias.
- Sua vez - disse, com grande satisfação.
Retornamos à hospedaria ao anoitecer, parando no topo da colina para nos certificarmos de que os cavalos da patrulha já não estavam mais amarrados no pátio.
A hospedaria parecia convidativa, a luz brilhando através das pequenas janelas e das frestas nas paredes. Os últimos raios do sol também brilhavam atrás de nós, fazendo com que tudo na encosta da colina lançasse uma sombra dupla. Uma brisa se elevava com o resfriamento do dia e as folhas agitadas das árvores faziam as múltiplas sombras dançarem na grama. Eu podia facilmente imaginar que havia fadas na colina, dançando com aquelas sombras, passando entre os troncos mais finos para se confundirem com as profundezas do bosque.
- Dougal também ainda não voltou - observei, quando descíamos a encosta. O grande capão preto que ele sempre montava não estava no pequeno cercado da estalagem. Diversos outros animais também não estavam ali; o de Ned Gowan, por exemplo.
- Não, ele não deve voltar antes de mais um dia, pelo menos. Talvez, dois. -Jamie ofereceu-me seu braço e descemos a colina devagar, com cuidado por causa das muitas pedras que se projetavam do capim curto.
- Aonde ele foi, afinal? - Na pressa dos acontecimentos recentes, não Pensara em questionar sua ausência - ou mesmo notá-la.
Jamie me ajudou a transpor a cerca aos fundos da estalagem.
— Tratar de negócios com os pequenos rendeiros das redondezas. Ele só tem um ou dois dias antes da data de entregá-la no forte. - Apertou meu braço, para me tranqüilizar. - O capitão Randall não vai ficar muito satisfeito quando Dougal lhe disser que ele não poderá ficar com você e, depois disso, Dougal não vai querer ficar se demorando nesta região.
— Bastante sensato da parte dele - observei. - Muita bondade dele também nos deixar aqui para, hã... nos conhecermos melhor.
Jamie exibiu um riso irônico.
— Não foi bondade. Foi uma das condições que estabeleci para me casar com você. Eu disse que casaria se fosse necessário, mas que jamais consumaria meu casamento embaixo de uma moita, com vinte homens do clã olhando e dando conselhos.
Parei, olhando-o fixamente. Então, esse fora o motivo de toda aquela discussão.
— Uma das condições? - perguntei, devagar. - E quais foram as outras? Estava ficando escuro demais para eu ver suas feições com clareza, mas achei que ele ficou constrangido.
— Só mais duas - disse, finalmente.
— E quais foram?
— Bem - ele disse, chutando um cascalho para fora do caminho. -Exigi que você se casasse comigo adequadamente, de kirk, diante de um padre. Não apenas no papel. Quanto à outra, ele deveria encontrar um traje adequado para você. - Desviou os olhos, evitando meu olhar, e sua voz era tão suave que eu mal podia ouvi-lo.
— Eu... eu sabia que você não queria se casar. Queria tornar isso... tão agradável quanto pudesse para você. Achei que se sentiria um pouco menos... bem, queria que você tivesse um vestido bonito, só isso.
Abri a boca para dizer alguma coisa, mas ele virou-se em direção à estalagem.
— Vamos, Sassenach — disse bruscamente. — Estou com fome.
O preço da comida era a companhia, como ficou evidente desde o instante em que surgimos à porta do salão principal da estalagem. Fomos recebidos com estrondosas saudações e apressadamente conduzidos a uma mesa, onde um farto jantar já estava em andamento.
Um pouco mais preparada desta vez, não me incomodei com as piadas e comentários grosseiros à nossa custa. Desta vez, fiquei satisfeita em poder permanecer reservada, encolhida no canto e deixando que Jamie lidasse com as brincadeiras indecentes e as especulações obscenas sobre o que andáramos fazendo o dia todo.
- Dormindo — disse Jamie, em resposta a uma pergunta desse tipo. -Não preguei o olho a noite passada. - As sonoras gargalhadas que ressoaram depois disso foram ultrapassadas por outras ainda mais estrondosas quando ele acrescentou em tom confidencial. — Ela ronca, sabe.
Eu dei um puxão em sua orelha e ele me agarrou e me beijou espalhafatosamente, para os aplausos gerais.
Depois do jantar, houve dança, ao som do violino do proprietário. Nunca fui uma grande dançarina, tendo a tendência a tropeçar nos próprios pés nos momentos de estresse. Não esperava me sair melhor, com aquelas saias longas e volumosas e calçados tão desajeitados. No entanto, depois de tirar os sapatos, fiquei surpreendida de ver que dançava sem a menor dificuldade e com grande prazer.
Com a falta de outras mulheres, a estalajadeira e eu prendemos nossas saias e nos entregamos a danças típicas escocesas sem parar, até eu ter que recostar-me no banco de espaldar alto, o rosto vermelho e ofegante.
Os homens eram absolutamente infatigáveis, girando como piões de xadrez, sozinhos ou uns com os outros. Por fim, recostaram-se contra a parede, observando, animando com exclamações e batendo palmas, enquanto Jamie segurava minhas duas mãos e me conduzia por algo rápido e frenético chamado "O galo do norte".
Terminando propositalmente ao pé da escada, giramos num abraço, com seu braço em volta da minha cintura. Paramos e ele fez um pequeno discurso, misto de gaélico e inglês, que foi recebido com mais aplausos, particularmente quando ele enfiou a mão na bolsa à cintura e atirou uma pequena bolsa de couro surrado para o proprietário, instruindo-o para servir uísque enquanto o dinheiro desse. Reconheci-a como sua parte das apostas na briga em Tunnaig. Provavelmente, todo o dinheiro que tinha no mundo; achei que não poderia ter sido gasto de forma melhor.
Conseguimos chegar à galeria em cima, seguidos por uma chuva de felicitações indelicadas, quando uma voz mais alta do que as outras chamou Jamie pelo nome.
Virando-se, vi o rosto largo de Rupert, mais vermelho do que de costume acima do emaranhado de barba preta, sorrindo para nós.
- Não adianta, Rupert -Jamie gritou. - Ela é minha.
- Desperdiçada com você, rapaz - Rupert retorquiu, enxugando o rosto na manga da camisa. - Ela vai deixá-lo no chão em uma hora. Não dão conta do recado, esses rapazinhos - disse, dirigindo-se a mim. - Se quiser um homem que não perde tempo dormindo, dona, me avise. Enquanto isso... - Atirou alguma coisa para cima.
Uma sacolinha cheia retiniu no chão aos meus pés. -- Um presente de casamento - disse. — Cortesia dos homens do Regimento Shimi Bogil.
- Hein? - Jamie inclinou-se para pegá-la.
- Alguns de nós não passamos o dia por aí à toa nas margens gramadas dos rios, rapaz - disse, com ar de reprovação, revirando os olhos libidinosamente em minha direção. - Esse dinheiro foi ganho com suor.
- Ah, sim - Jamie disse, rindo. - Dados ou cartas?
- Ambos. - Um riso maldoso cortou a barba negra. - Nós os depenamos, rapaz. Tiramos o couro deles!
Jamie abriu a boca, mas Rupert ergueu a mão avantajada e calosa.
- Não, rapaz, não precisa agradecer. Só dê uma boa por mim, hein? Coloquei os dedos nos lábios e joguei um beijo para ele. Batendo a mão no rosto como se tivesse sido atingido por alguma coisa, cambaleou para trás com uma exclamação e girou nos calcanhares em direção ao bar, oscilando como se estivesse bêbado, o que não estava.
Depois de toda a brincadeira lá embaixo, o quarto pareceu um paraíso de paz e sossego. Jamie, ainda rindo consigo mesmo, esparramou-se na cama para recuperar o fôlego.
Soltei meu corpete, que era desconfortavelmente apertado, e sentei-me para pentear meus cachos desalinhados e embaraçados com a dança.
- Você tem lindos cabelos — Jamie disse, observando-me.
- O quê? Estes? — Ergui uma das mãos para as minhas mechas que, como sempre, podiam ser educadamente descritas como emaranhadas.
Ele riu.
- Bem, gosto do outro também - disse, deliberadamente sério - mas, sim, estes mesmos.
- Mas é tão... encaracolado - eu disse, um pouco ruborizada.
- Sim, claro. - Pareceu surpreso. - Ouvi uma das meninas de Dougal dizer a uma amiga no castelo que ela levaria três horas com as pinças quentes para fazer os cabelos dela ficarem parecidos com os seus. Disse que gostaria de arrancar seus olhos por ter essa aparência e não precisar mover um dedo para isso. — Sentou-se e puxou suavemente um cacho, esticando-o de modo que, reto, chegasse quase ao meu seio. — O cabelo de minha irmã Jenny também é ondulado, mas não tanto quanto os seus.
- Os cabelos de sua irmã são ruivos como os seus? - perguntei, tentando visualizar a aparência da misteriosa Jenny. Ela parecia estar sempre presente na mente de Jamie.
Sacudiu a cabeça, ainda enrolando os cachos entre seus dedos.
- Não. Os cabelos de Jenny são negros. Negros como a noite. Sou ruivo como minha mãe e Jenny puxou ao meu pai. Brian Dhu, como o chamavam, ou "Black Brian", por causa do seu cabelo e da sua barba.
- Ouvi dizer que o capitão Randall é chamado de "Black Jack, arrisquei. Jamie riu sem humor.
- Ah, sim. Mas isso se refere à cor de sua alma, não de seus cabelos." Seus olhos aguçaram-se ao abaixar os olhos para mim.
- Você não está preocupada com ele, está, Sassenach? Não devia estar. - Suas mãos deixaram meus cabelos e seguraram meus ombros possessivamente.
- Falo sério, você sabe — disse meigamente. - Eu vou protegê-la. Dele de qualquer outra pessoa. Até a última gota do meu sangue, mo duinne.
- Muduinne? — perguntei, um pouco perturbada pela intensidade de suas palavras. Não queria ser responsável por qualquer derramamento de seu sangue, última ou primeira gota.
- Significa "minha morena". — Levou uma mecha dos meus cabelos aos lábios e sorriu, com uma expressão nos olhos que fez com que todas as gotas do meu próprio sangue começassem a perseguir umas às outras em minhas veias. - Mo duinne — repetiu docemente. - Há muito queria chamá-la assim.
- Uma cor um pouco sem vida, o castanho, sempre achei — eu disse, de maneira prática, tentando adiar um pouco os acontecimentos. Eu continuava com a sensação de estar sendo levada de roldão, com muito mais rapidez do que gostaria.
Jamie sacudiu a cabeça, ainda sorrindo.
- Não, eu não diria isso, Sassenach. Nem um pouco sem vida. -Levantou um punhado dos meus cabelos com as duas mãos e espalhou-o. -É como a água em um riacho, quando se encrespa sobre as rochas. Escura nos locais ondeados, com toques de prata na superfície, onde o sol bate.
Nervosa e um pouco ofegante, afastei-me para pegar o pente que deixara cair no chão. Ao levantar, deparei-me com Jamie, olhando-me fixamente.
- Eu disse que não lhe perguntaria nada que não quisesse me dizer — falou - e não o farei, mas tiro minhas próprias conclusões. Colum achou que você talvez fosse uma espiã inglesa, embora não conseguisse imaginar, nesse caso, por que não entende o gaélico. Dougal acha que é provável que você seja uma espiã francesa, talvez em busca de apoio ao rei Jaime. Mas nesse caso, ele não pode imaginar por que você estava sozinha.
- E você? - perguntei, puxando com força uma mecha teimosa. - O que acha que eu sou?
Inclinou a cabeça, avaliando, examinando-me com atenção. -- Na aparência, poderia ser francesa. Você possui aqueles belos ossos do rosto das mulheres de Angevin. No entanto, as mulheres francesas em geral têm uma cor de pele amarelada e sua pele parece opala. - Deslizou o dedo lentamente pela curva da minha clavícula e senti minha pele resplandecer sob seu toque.
O dedo moveu-se para meu rosto, desenhando o contorno da têmpora à face, alisando os cabelos para trás da orelha. Permaneci imóvel sob seu escrutínio, tentando não me mexer quando sua mão passou para trás do meu pescoço, o polegar acariciando delicadamente o lóbulo da minha orelha.
- Olhos dourados; vi um par de olhos assim uma vez... em um leopar-do. — Sacudiu a cabeça. — Não, Sassenach. Você poderia ser francesa, mas não é.
- Como sabe?
- Conversei muito com você; e também a ouvi falar. Dougal pensa que é francesa porque você fala francês bem, muito bem.
- Obrigada - eu disse, sarcasticamente. — E o fato de eu falar francês bem prova que não sou francesa?
Sorriu e apertou levemente o meu pescoço.
- Vous parlez três bien, mas não tão bem quanto eu — acrescentou, voltando ao inglês. Soltou-me de repente. - Passei um ano na França, quando deixei o castelo, e mais dois anos depois, com o exército. Conheço um francês de nascença quando ouço um. E o francês não é sua língua materna. - Sacudiu a cabeça devagar.
- Espanhola? Talvez, mas por quê? A Espanha não tem interesses nas Highlands. Alemã? Certamente, não. - Deu de ombros. - Quem quer que seja, os ingleses iriam querer descobrir. Não podem se dar ao luxo de terem desconhecidos soltos por aí, com os clãs agitados e o príncipe Carlos esperando para voltar da França. E seus métodos de averiguação não são nada agradáveis. Tenho motivos para saber.
- Então, como sabe que não sou uma espiã inglesa? Dougal achou que eu era, você mesmo disse.
- É possível, embora o inglês que você fala também seja mais do que um pouco estranho. Entretanto, se fosse uma espiã, por que iria preferir casar-se comigo a voltar para seu próprio povo? Essa foi mais uma razão para Dougal fazer você se casar comigo, para ver se iria fugir ontem à noite, quando chegasse a hora.
- E eu não fugi. Então, o que isso prova?
Ele riu e deitou-se de costas na cama, um braço sobre os olhos para protegê-los da luz do lampião.
- Não faço a mínima idéia, Sassenach. Não faço a mínima idéia. Não consigo imaginar nenhuma explicação razoável para você. Pelo que sei, deve ser alguém do Povo Pequeno. — Lançou-me um olhar de esguelha por baixo do braço. — Não, acho que não. Você é alta demais.
- Não tem medo que eu possa matá-lo durante o sono uma noite, se não souber quem eu sou?
Não respondeu, mas retirou o braço de cima dos olhos e seu sorriso ampliou-se. Seus olhos devem ser do lado dos Fraser, pensei. Não eram fundos como os olhos dos MacKenzie, possuíam um ângulo estranho, e as altas maçãs do rosto faziam-me parecer quase puxados.
Sem dificuldade para erguer a cabeça, abriu a frente de sua camisa e afastou o tecido, deixando o peito nu até a cintura. Tirou a adaga da bainha e jogou-a para mim. Caiu com um baque surdo aos meus pés.
Colocou o braço sobre os olhos de novo e esticou a cabeça para trás, mostrando o lugar onde a barba escura por fazer parava repentinamente, logo abaixo do maxilar.
- Direto para cima, logo embaixo do esterno - instruiu. - Rápido e limpo, embora seja necessário um pouco de força. Cortar a garganta é fácil, mas faz uma grande sujeira.
Inclinei-me para pegar a adaga.
- Seria bem-feito para você se eu o fizesse - observei. - Filho-da-mãe convencido.
O sorriso visível por baixo da curva do seu braço ampliou-se ainda mais.
- Sassenach?
Parei, a adaga ainda nas mãos.
- O quê?
- Eu morreria feliz.
Dormimos até bem tarde na manhã seguinte e o sol já estava alto quando deixamos a estalagem, desta vez rumando para o sul. A maioria dos cavalos já não estava no curral e nenhum dos homens de nosso grupo parecia estar por perto. Perguntei em voz alta onde teriam ido. Jamie riu.
— Não sei ao certo, mas posso imaginar. A patrulha foi naquela direção ontem - apontou para oeste -, portanto diria que Rupert e os demais foram naquela direção. — Apontou para leste.
— Gado — explicou, vendo que eu ainda não compreendia. — Os proprietários de terras e arrendatários pagam à patrulha para ficar de olho e recuperar seu gado se forem roubados numa dessas incursões na fronteira. Mas se a patrulha está indo para oeste, em direção a Lag Cruime, qualquer rebanho a leste está desamparado, ao menos um pouco. Adiante ficam as terras dos Grant e Rupert é um dos melhores ladrões de gado que já conheci. Os animais o seguem a qualquer lugar, sem sequer um mugido. E como não há mais diversão por aqui, provavelmente ficou impaciente.
O próprio Jamie parecia um pouco inquieto e andava a passos largos. Havia uma trilha de veado pelo meio das urzes e a caminhada era bastante fácil, de modo que eu conseguia acompanhá-lo sem dificuldade. Após algum tempo, saímos em uma faixa de charneca, onde podíamos caminhar lado a lado.
— E quanto a Horrocks? - perguntei repentinamente. Ouvindo-o mencionar a cidade de Lag Cruime, lembrei-me do desertor inglês e de suas possíveis informações. - Você deveria encontrá-lo em Lag Cruime, não é?
Assentiu.
— Sim. Mas não posso ir lá agora, tanto com Randall quanto com a patrulha indo naquela direção. Perigoso demais.
— Alguém não poderia ir por você? Ou não confia em ninguém o suficiente para isso?
Olhou para mim e sorriu.
— Bem, há você. Já que afinal de contas não me matou ontem à noite - acho que posso confiar em você. Mas receio que não possa ir a Lag Cruime sozinha. Não, se necessário, Murtagh irá por mim. Mas talvez eu consiga uma outra coisa... vamos ver.
- Confia em Murtagh? - perguntei, curiosa. Não nutria sentimentos muito amistosos em relação ao homenzinho desmazelado, já que ele era mais ou menos responsável pelas minhas presentes dificuldades, tendo me seqüestrado. No entanto, havia sem dúvida algum tipo de amizade entre ele e Jamie.
- Ah, sim. - Olhou para mim, surpreso. - Murtagh me conhece desde pequeno. É primo de segundo grau do meu pai, eu acho. Seu pai era
- É um Fraser, você quer dizer - interrompi apressadamente. - Pensei que ele fosse um dos MacKenzie. Ele estava com Dougal quando encontrei vocês.
Jamie balançou a cabeça.
- Sim. Quando resolvi voltar da França, mandei avisá-lo, pedindo-lhe para me encontrar na costa. - Sorriu ironicamente. - Eu não sabia se tinha sido Dougal quem mandara me matar antes. E não gostava da idéia de me encontrar com vários MacKenzie sozinho. Não queria acabar boiando na praia de Skye, se era isso que tinham em mente.
- Compreendo. Então, Dougal não é o único que acredita em testemunhas.
Concordou.
- Muito úteis, as testemunhas.
Do outro lado da charneca havia um trecho de rochas retorcidas, escavadas e talhadas pelo avanço e recuo de geleiras em outras eras. Água de chuva enchia os fossos mais profundos e cardos, tanásias e rainhas-dos-prados cresciam em volta desses pequenos lagos entre montanhas, as flores refletindo-se na água parada.
Estéreis e sem peixes, esses lagos pontilhavam a paisagem e formavam armadilhas para viajantes desavisados, que podiam facilmente tropeçar em um deles no escuro e ser forçado a passar uma noite molhada e desconfortável na charneca. Sentamo-nos ao lado de um desses pequenos lagos para fazer o nosso lanche matinal de pão e queijo.
O lago ao menos tinha pássaros; andorinhas mergulhavam na superfície da água para beber e tarambolas e maçaricos escarafunchavam a terra lamacenta das margens com seus bicos longos, à cata de insetos.
Atirei farelos de pão na lama para os pássaros. Um maçarico olhou desconfiado para um dos pedacinhos de pão, mas enquanto ainda estava tomando uma decisão, uma rápida andorinha passou zunindo sob seu bico e fugiu com a guloseima. O maçarico agitou as penas e voltou à sua laboriosa escavação.
Jamie chamou minha atenção para um maçarico, gritando e arrastando uma asa aparentemente quebrada perto de nós.
- Ela tem um ninho perto daqui - eu disse.
- Lá. — Ele teve que apontá-lo diversas vezes até que eu finalmente o identificasse; uma depressão rasa, completamente exposta, mas com os quatro ovos pintados tão semelhantes na aparência à margem salpicada de folhas que, quando pisquei os olhos, perdi o ninho de vista outra vez.
Pegando uma vara, Jamie cutucou o ninho devagar, deslocando um dos ovos do lugar. A maçarico-mãe, agitada, correu até quase diante dele. Ele sentou-se sobre os calcanhares, absolutamente imóvel, deixando o pássaro lançar-se de um lado para o outro, berrando. Viu-se o lampejo de um movimento e ele tinha o pássaro nas mãos, repentinamente silencioso.
Falou com o pássaro em gaélico, uma espécie de discurso sereno e sibilante, enquanto acariciava a plumagem macia e furta-cor com um dedo. O pássaro agachou-se em sua mão, completamente imóvel, até os reflexos paralisados em seus olhos negros e redondos.
Colocou o pássaro delicadamente no chão, mas o pássaro não se afastou até ele dizer mais algumas palavras e abanar a mão lentamente de um lado para o outro atrás dele. Deu um pequeno salto e precipitou-se para o mato. Observou-o partir e, inconscientemente, persignou-se.
- Por que fez isso? - perguntei, curiosa.
- O quê? - Ficou momentaneamente surpreso; acho que havia se esquecido de que eu estava ali.
- Você se benzeu quando o pássaro voou para longe; me perguntei por quê.
Encolheu os ombros, ligeiramente envergonhado.
- Ah, bem. É uma velha história, só isso. Porque os maçaricos gritam do jeito que fazem e correm lamentando-se perto de seus ninhos assim. -Apontou para o outro lado do pequeno lago, onde outro maçarico fazia exatamente o mesmo. Observou o pássaro por alguns instantes, distraído.
- Os maçaricos têm a alma das mães jovens que morreram de parto -disse. Olhou de soslaio para mim, timidamente. - Diz a lenda que gritam e correm em volta do ninho porque não conseguem acreditar que os ovos estão sendo chocados em segurança; estão sempre lamentando pelo filho perdido, ou procurando um filho que ficou para trás. - Agachou-se junto ao ninho e cutucou o ovo com a vara, virando aos poucos até que o lado pontudo ficasse voltado para ele, como os outros. Continuou agachado, mesmo depois de o ovo ter sido recolocado na posição inicial, balançando a vara entre as coxas, fitando as águas imóveis do pequeno lago.
- Acho que é apenas por hábito - disse. — Fiz isso pela primeira vez quando era pequeno e ouvi a história pela primeira vez. Não acreditava realmente que tivessem alma, é claro, mesmo naquela época, mas, sabe, apenas como um pouco de respeito... - Ergueu os olhos para mim e sorriu de repente. - Hoje faço isso tão constantemente, que nem notei. Há bem poucos maçaricos na Escócia. - Levantou-se e atirou fora a vara. -Vamos, venha. Há um lugar que quero lhe mostrar, perto do topo de uma colina lá adiante. - Segurou meu cotovelo para me ajudar a sair do declive e começamos a subir a encosta.
Eu ouvira o que ele havia dito ao maçarico que soltou. Embora soubesse apenas algumas palavras em gaélico, já escutara a antiga saudação o bastante para estar familiarizada com ela. "Vá com Deus, Mãe", ele dissera.
Uma jovem mãe, morta no parto. E uma criança deixada para trás. Toquei seu braço e ele olhou para mim.
- Quantos anos você tinha? - perguntei. Esboçou um sorriso.
- Oito - respondeu. — Desmamado, ao menos.
Não falou mais, apenas conduziu-me morro acima. Estávamos em contrafortes ondulantes, agora, cobertos de urzes. A frente, a paisagem do campo mudava bruscamente, com enormes aglomerados de granito erguendo-se da terra, cercados de moitas de sicômoro e larício. Atravessamos o topo da colina e deixamos para trás os maçaricos gritando junto aos pequenos lagos.
O sol estava ficando quente e depois de uma hora abrindo caminho pela folhagem densa - mesmo com Jamie indo à frente -, eu precisava de um descanso.
Encontramos um lugar sombreado ao pé de uma das formações rochosas. O local lembrava-me um pouco do local onde eu encontrara Murtagh pela primeira vez — e deixara a companhia do capitão Randall. Ainda assim, era agradável ali. Jamie disse-me que estávamos sozinhos, por causa do permanente cantarolar dos pássaros em toda a volta. Se alguém se aproximasse, a maioria dos pássaros pararia de cantar, embora os gaios e as gralhas se esgoelassem e berrassem alarmados.
- Sempre se esconda numa floresta, Sassenach - aconselhou-me. - Se você não se mover muito, os pássaros lhe dirão com tempo de sobra se alguém está se aproximando.
Voltando-se para mim, depois de apontar para uma gralha grasnando na árvore acima de nossas cabeças, seus olhos encontraram-se com os meus. E nos sentamos como se estivéssemos paralisados, ao alcance da mão um do outro, mas sem nos tocar, mal respirando. Após algum tempo, a gralha cansou-se de nós e foi embora. Foi Jamie quem desviou o olhar primeiro, com um estremecimento quase imperceptível, como se sentisse frio
Cogumelos de chapéus peludos despontavam suas cabeças brancas pelo musgo sob as samambaias. Jamie arrancou um de seu caule e passou o dedo sobre os raios do basídio enquanto reunia suas palavras seguintes. Quando falava cuidadosamente, como agora, perdia o leve sotaque escocês que em geral marcava seu discurso.
- Não quero... isto é... não pretendo insinuar... - Ergueu os olhos de repente e sorriu, com um gesto de desamparo. - Não quero insultá-la falando como se achasse que você tem uma vasta experiência com homens, só isso. Mas seria tolo fingir que você não saiba mais do que eu sobre essas questões. O que quero perguntar é... isso é comum? O que acontece entre nós, quando eu toco em você, quando você... se deita comigo? É sempre assim entre um homem e uma mulher?
Apesar de suas dificuldades, eu sabia exatamente o que ele queria dizer. Seu olhar era direto, fitando meus olhos enquanto aguardava uma resposta. Eu quis desviar os olhos, mas não pude.
- Freqüentemente, acontece algo parecido — eu disse e tive que parar e limpar a garganta. - Mas, não. Não, não é... comum. Não faço a menor idéia por quê, mas não é. Isso é... diferente.
Relaxou um pouco, como se eu tivesse confirmado algo sobre o qual ele se sentia um pouco ansioso.
- Achei que não. Nunca dormi com outra mulher antes, mas já... bem, já pus a mão em algumas. — Sorriu timidamente e sacudiu a cabeça. - Não era a mesma coisa. Quero dizer, já tive outras mulheres em meus braços antes, beijei-as e... - Agitou uma das mãos, descartando o resto da frase. -Era realmente muito agradável. Fazia meu coração bater com força e minha respiração faltar e tudo o mais. Mas não era nem de longe como é quando a tomo nos braços e a beijo. — Seus olhos, pensei, eram da cor de lagos e céus, e tão insondáveis quanto ambos.
Estendeu o braço e tocou meu lábio inferior.
- Começa do mesmo jeito, mas depois, após uns instantes - disse, falando docemente -, é como se eu tivesse uma chama viva nos braços. -Seu toque tornou-se mais firme, delineando meus lábios e acariciando o contorno do meu maxilar. - E eu só desejo me atirar nessa chama e ser consumido.
Pensei em dizer-lhe que seu próprio toque queimava minha pele e enchia minhas veias de fogo. Mas eu já estava acesa e brilhando como ferro em brasa. Fechei os olhos e senti o toque quente mover-se para minha face e para a têmpora, orelha e pescoço, e estremeci quando suas mãos desceram para a minha cintura e me puxaram para junto dele.
Jamie parecia ter uma idéia precisa de onde estávamos indo. Finalmente, parou ao pé de uma enorme rocha, com cerca de seis metros de altura, cheia de saliências e fendas pontiagudas. Tanásias e madressilvas silvestres cresciam nas fendas e oscilavam precariamente como bandeirolas amarelas contra a pedra. Tomou minha mão e balançou a cabeça indicando a rocha à nossa frente.
- Vê os degraus ali, Sassenach? Acha que consegue? - Havia, de fato, protuberâncias fracamente marcadas na pedra, inclinadas contra a face da rocha. Algumas eram proeminências autênticas e outras meramente um apoio para liquens. Eu não sabia dizer se eram naturais ou se tinham recebido alguma ajuda em sua formação, mas achei que era possível subir por elas, ainda que com saias compridas e um corpete apertado.
Com algumas escorregadelas e sustos, e com Jamie empurrando prestativamente por trás de vez em quando, consegui chegar ao topo da rocha e parei para olhar à minha volta. A vista era espetacular. O volume maciço e escuro de uma montanha erguia-se a leste, enquanto bem abaixo, ao sul, os contrafortes estendiam-se por uma vasta e deserta charneca. O alto da rocha inclinava-se para dentro em todos os lados, formando uma bacia rasa. No centro da bacia, via-se um círculo enegrecido, com a fuligem remanescente de madeira queimada. Não éramos os primeiros visitantes, portanto.
- Você conhecia este lugar?
Jamie afastou-se um pouco para um dos lados, observando-me, satisfeito com o meu deslumbramento. Encolheu os ombros.
- Ah, sim. Conheço quase tudo nesta parte das Highlands. Venha aqui, há um local onde pode se sentar e ver a estrada onde ela passa perto da colina. - A hospedaria também era visível dali, reduzida, em função da distância, de casa de boneca a casinha de blocos de madeira de criança. Havia alguns cavalos amarrados a árvores ao lado da estrada, pequenos pontos marrons e pretos dali de cima.
Nenhuma árvore crescia no topo da rocha e o sol queimava minhas costas. Sentamo-nos lado a lado, as pernas balançando na borda e, como camaradas, compartilhamos uma das garrafas de cerveja que Jamie providencialmente retirou do poço do pátio da estalagem quando partimos.
Não havia árvores, mas as plantas menores, as que podiam crescer nas precárias fendas e criar raízes num solo escasso, brotavam aqui e ali, erguendo o semblante corajosamente para o quente sol de primavera. Havia um pequeno grupo de margaridas abrigando-se sob uma saliência perto de mim e estendi a mão para colher uma.
Ouviu-se um ligeiro zumbido e a margarida saltou do seu cabo e aterrissou no meu colo. Fiquei olhando estupidamente, a mente incapaz de dar sentido àquele comportamento bizarro. Jamie, bem mais rápido em suas Percepções, atirara-se deitado na pedra.
-- Abaixe-se! — exclamou. A mão avantajada agarrou meu cotovelo e me fez deitar estatelada a seu lado. Quando deitei no musgo esponjoso, vi a aste da flecha ainda tremendo acima do meu rosto, onde se fincara numa fenda do afloramento de rocha.
Fiquei paralisada, com medo até de olhar para os lados, e tentei agarrar-me ainda mais ao solo. Jamie estava imóvel ao meu lado, tão quieto que ele mesmo poderia passar por uma pedra. Até os pássaros e insetos pareciam ter feito uma pausa em suas cantorias e o ar ficou parado, à espera. De repente, Jamie começou a rir.
Sentou-se e, agarrando a flecha pela haste, girou-a cuidadosamente, retirando-a da fenda onde se instalara. Vi que estava guarnecida de penas bifurcadas da cauda de um pica-pau, amarradas com um fio azul, enrolado em uma faixa de pouco mais de um centímetro de largura abaixo das penas.
Colocando a flecha de lado, Jamie posicionou as mãos em concha em torno da boca e fez uma imitação notavelmente boa do grito de um pica-pau. Abaixou as mãos e esperou. Em um instante, o chamado foi respondido do arvoredo lá embaixo e um largo sorriso espalhou-se em seu rosto.
- Um amigo seu? - arrisquei. Ele confirmou balançando a cabeça, os olhos atentos ao estreito caminho na superfície da parede da rocha.
- Hugh Munro, a menos que outra pessoa tenha passado a fazer flechas como as dele.
Esperamos mais alguns instantes, mas ninguém apareceu no caminho.
- Ah - Jamie exclamou baixinho, virando-se a tempo de deparar-se com uma cabeça, erguendo-se lentamente acima da borda da rocha, atrás de nós.
A cabeça abriu um sorriso semelhante ao daquelas lanternas feitas de abóbora recortada como um rosto humano, alegre e banguela, radiante de prazer por ter nos surpreendido. A própria cabeça era mais ou menos da forma de uma abóbora, a impressão reforçada pela pele encouraçada, morena e avermelhada, que recobria não só o rosto, mas o topo redondo e careca de sua cabeça também. Poucas abóboras, entretanto, poderiam se vangloriar de uma barba tão luxuriante e de um par de olhos azuis e brilhantes como aqueles. Mãos robustas, com unhas imundas, plantaram-se sob a barba e agilmente ergueram o resto da lanterna de abóbora à plena vista.
De certa forma, o corpo combinava com a cabeça, com uma aparência nítida de duende de Halloween. Os ombros eram muito largos, mas corcundas e inclinados, um bem mais alto do que o outro. Uma das pernas também parecia um pouco mais curta do que sua companheira, emprestando ao sujeito uma espécie de trejeito manco e saltitante.
Munro, se este realmente era o amigo de Jamie, estava vestido com o que pareciam ser múltiplas camadas de trapos, as cores desbotadas de tecido tingido com frutas silvestres aparecendo entre os rasgões de uma vestimenta disforme que um dia devia ter sido um guarda-pó feminino.
Não carregava a bolsa de pêlo que os escoceses levavam à frente da cintura, presa ao cinto, o qual era, de qualquer modo, não mais do que um pedaço de corda esfiapada, de onde pendiam duas carcaças peludas, a cabeça para baixo. Em vez disso, carregava uma gorda bolsa de couro atravessada no peito, de qualidade surpreendentemente boa, se considerarmos o resto do traje. Uma coleção de pequenos objetos de metal pendia da tira da bolsa: medalhas religiosas, condecorações militares, o que pareciam ser velhos botões de uniformes, moedas gastas, furadas e costuradas no couro, e três ou quatro pedacinhos retangulares de metal, cinzas e opacos, com marcas enigmáticas gravadas na superfície.
Jamie levantou-se enquanto a criatura avançava, saltando agilmente entre as protuberâncias da rocha. Os dois abraçaram-se efusivamente, batendo com força nas costas um do outro, à velha maneira dos homens se cumprimentarem.
- E então, como vão as coisas na casa dos Munro? – Jamie perguntou, afastando-se e examinando o velho companheiro.
Munro abaixou a cabeça e fez um estranho som devorador, sorrindo. Em seguida, erguendo as sobrancelhas, balançou a cabeça em minha direção e abanou as mãos curtas num gesto interrogativo estranhamente gracioso.
- Minha mulher - Jamie disse, ruborizando-se ligeiramente com um misto de timidez e orgulho na nova apresentação. - Casado há apenas dois dias.
Munro exibiu um sorriso ainda mais largo diante dessa informação e executou uma mesura notavelmente complexa e elegante, envolvendo o toque rápido na cabeça, no coração e nos lábios e terminando em uma posição quase horizontal no chão aos meus pés. Tendo realizado essa surpreendente manobra, colocou-se de pé num salto com a graça de um acrobata e bateu nas costas de Jamie outra vez, agora para felicitá-lo.
A seguir, Munro iniciou um extraordinário balé com as mãos, apontando para si mesmo, para a floresta lá embaixo, para mim e depois para ele outra vez, com tal variedade de gestos e acenos que eu mal conseguia seguir suas mãos esvoaçantes. Eu já vira conversas de surdos-mudos antes, mas não executada tão agilmente e com tanta graça.
- Então, é assim? -Jamie exclamou. Foi a sua vez de dar tapas de congratulações no outro homem. Não era de admirar que os homens se tornassem insensíveis à dor superficial, pensei. Vinha deste hábito de espancarem-se incessantemente.
-- Ele também se casou - Jamie explicou, virando-se para mim. - Há Seis meses, com uma viúva... ah, certo, com uma viúva gorda - acrescentou em resposta a um gesto enfático de Munro -, com seis filhos, na vila de Dubhlairn.
- Que bom — disse, educadamente. — Parece que pelo menos eles vão comer bem. - Indiquei os coelhos pendurados em seu cinto. Munro imediatamente soltou um dos animais mortos e entregou-o a mim, com tal expressão radiante de boa vontade que me senti obrigada a aceitá-lo, sorrindo e esperando secretamente que não abrigasse pulgas.
- Um presente de casamento - Jamie disse. - E muito bem-vindo Munro. Permita-nos retribuir a gentileza. - Com isso, extraiu uma das garrafas de cerveja de seu leito no musgo e passou-a a ele.
As cortesias assim resolvidas, sentamo-nos novamente, compartilhando com camaradagem uma terceira garrafa. Jamie e Munro lançaram-se em uma troca de notícias, mexericos e conversas que não pareciam menos desenvoltas pelo fato de que apenas um deles falava.
Quase não tomei parte na conversa, sendo incapaz de ler os sinais de Munro, embora Jamie fizesse o melhor possível para me incluir por meio de traduções e referências.
A certa altura, Jamie indicou os pedaços retangulares de chumbo que adornavam a tira da bolsa de Munro.
- Agora é oficial, hein? - perguntou. - Ou é somente para quando a caça está escassa?
Munro balançou a cabeça como o palhaço de uma caixa de surpresas.
- O que são? - perguntei, curiosa.
- Gaberlunzies.
- Ah, claro - disse. - Desculpe-me por perguntar.
- Um gaberlunzie é um mendigo andarilho, com licença para pedir esmolas, Sassenach - Jamie explicou. - A licença vale dentro dos limites de uma paróquia e somente no dia da semana em que é permitido pedir esmolas. Cada paróquia tem a sua, para que os pedintes de uma paróquia não possam se aproveitar muito da caridade da outra.
- Um sistema com uma certa dose de elasticidade, pelo que estou vendo - eu disse, observando o estoque de quatro selos de chumbo de Munro.
- Ah, bem, Munro é um caso especial, sabe. Foi capturado pelos turcos no mar. Passou muitos anos remando numa galé e mais alguns como escravo na Argélia. Foi onde ele perdeu a língua.
- Eles... a cortaram? - Senti uma ligeira tontura.
Jamie não pareceu perturbar-se com a idéia, ele aparentemente ja conhecia Munro há algum tempo.
- Ah, sim. E também quebraram sua perna. As costas também, Munro? Não - corrigiu-se, diante de uma série de sinais de Munro. - As costas foi num acidente, que aconteceu quando pulava um muro em Alexandria. Mas os pés, isso foi obra dos turcos.
Eu não queria realmente saber, mas tanto Munro quanto Jamie pareciam estar morrendo de vontade de me contar.
- Está bem - disse, resignada. - O que aconteceu com os pés dele?
Com algo que se aproximava do orgulho, Munro tirou os sapatos surrados e as meias, expondo pés largos, achatados, onde a pele era endurecida e áspera, com áreas brancas e brilhantes, alternadas com áreas vermelhas como se estivessem em carne viva.
- Óleo fervente - Jamie disse. - É como forçam os cristãos capturados a se converterem à religião muçulmana.
- Parece um meio de persuasão muito eficaz - eu disse. — Então é por isso que várias paróquias lhe dão licença para mendigar? Para compensá-lo por suas provações em nome da cristandade?
- Exatamente. - Jamie estava satisfeito com a minha rápida apreensão da situação. Munro também expressou sua admiração com outro profundo salamaleque, seguido de uma expressiva, embora indelicada seqüência de movimentos com as mãos que eu entendi como sendo elogios à minha aparência física também.
- Obrigado, Munro. Sim, ela vai me dar muito orgulho, eu acho. -Jamie, vendo minhas sobrancelhas arquearem-se, diplomaticamente virou Munro de modo que suas costas ficassem viradas para mim e os dedos esvoaçantes escondidos. — Agora, conte-me o que tem feito nas vilas.
Os dois homens aproximaram-se ainda mais, continuando sua conversa canhestra com mais intensidade ainda. Como a parte de Jamie parecia limitar-se principalmente a grunhidos e exclamações de interesse, eu pouco podia colher do conteúdo da conversa e, assim, passei a me ocupar com um exame das estranhas plantas que brotavam na superfície de nosso poleiro.
Eu havia colhido um punhado de eufrásias e ditanos quando acabaram de conversar e Munro levantou-se para ir embora. Com uma última mesura para mim e um tapa nas costas de Jamie, arrastou-se para a borda da rocha e desapareceu tão rapidamente quanto um dos coelhos que ele abateu deveria ter desaparecido em sua toca.
- Que amigos fascinantes você tem - eu disse.
- Ah, sim. Um bom sujeito, Hugh. Cacei com ele e outros no ano passado. Ele vive por conta própria, mas agora que é um mendigo oficial, seu trabalho o mantém indo e vindo entre as paróquias; ele sabe tudo que se passa entre as fronteiras de Ardagh e Chesthill.
- Inclusive o paradeiro de Horrocks? — perguntei. Jamie balançou a cabeça.
- Sim. E ele levará uma mensagem para mim, para mudar o local de encontro.
- O que vai deixar Dougal perplexo - observei. - Se estivesse pensando em encostá-lo na parede em relação a Horrocks.
Balançou a cabeça e um sorriso torceu o canto de sua boca.
- Sim, é verdade.
Era quase hora do jantar quando chegamos à hospedaria. Desta vez, no entanto, o grande cavalo preto de Dougal e seus cinco companheiros estavam Parados no pátio, mascando feno com satisfação.
O próprio Dougal estava lá dentro, limpando a poeira da estrada de sua garganta com cerveja. Cumprimentou-me com um aceno da cabeça e virou-se para cumprimentar o sobrinho. Em vez de falar, no entanto, ficou ali parado, a cabeça de lado, examinando Jamie com sarcasmo.
- Ah, é isso - disse, finalmente, no tom satisfeito de um homem que solucionou uma difícil charada. — Agora sei do que você me faz lembrar rapaz. - Virou-se para mim.
- Já viu um cervo perto do fim da estação do cio, dona? - disse, em tom confidencial. — Os pobres animais não comem nem dormem por várias semanas, porque não podem perder tempo, entre derrotar os outros cervos e atender às corças. No final da temporada, são só pele e osso. Os olhos estão fundos e a única parte deles que não treme com paralisia é seu...
O final da frase perdeu-se num coro de gargalhadas enquanto Jamie puxava-me escadas acima. Não descemos para o jantar.
Muito mais tarde, quando estávamos quase adormecendo, senti o braço de Jamie em volta da minha cintura e seu hálito morno no meu pescoço.
- Isso nunca pára? O desejo de ter você? - Sua mão acariciou meu seio. — Mesmo quando acabo de sair de você, eu a desejo tanto que sinto um aperto no peito e meus dedos doem querendo tocá-la outra vez.
Segurou meu rosto no escuro, com as duas mãos, os polegares acariciando os arcos das minhas sobrancelhas.
- Quando a seguro com as duas mãos e a sinto tremer assim, esperando que eu a possua... Meu Deus, quero lhe dar prazer até você gritar sob mim e abrir-se para mim. E quando tiro de você meu próprio prazer, sinto como se tivesse lhe dado minha alma junto com meu corpo.
Rolou para cima de mim e abri minhas pernas, contraindo-me ligeiramente quando ele me penetrou. Ele riu baixinho.
- Eu também estou um pouco dolorido. Quer que eu pare? — Envolvi seus quadris com minhas pernas em resposta e o puxei para mais junto de mim.
- Você gostaria de parar? - perguntei.
- Não. Não posso.
Rimos e nos balançamos juntos, devagar, os lábios e os dedos explorando no escuro.
- Entendo por que a Igreja diz que é um sacramento - Jamie disse sonhadoramente.
- Isto? — perguntei, espantada. - Por quê?
- Ou ao menos sagrado - ele disse. — Sinto-me como o próprio quando estou com você.
Ri com tanta força que ele quase saiu de mim. Parou e segurou meus ombros, prendendo-me na cama.
- O que é tão engraçado?
- É difícil imaginar Deus fazendo isso. Jamie retomou seus movimentos.
- Bem, se Deus fez o homem à Sua imagem, devo supor que Ele tenha um pênis. - Começou a rir também, perdendo o ritmo outra vez. -Embora você não me lembre muito a Virgem Maria, Sassenach.
Sacolejamo-nos nos braços um do outro, rindo até nos soltarmos e rolarmos cada qual para um lado.
Recompondo-se, Jamie deu um tapinha no meu quadril.
- Fique de joelhos, Sassenach.
- Por quê?
- Se não vai me deixar ser espiritual a respeito disso, vai ter que aturar meus instintos mais básicos. Vou ser um animal. — Mordeu meu pescoço. - Quer que eu seja um cavalo, um urso ou um cachorro?
- Um ouriço.
- Um ouriço? E como um ouriço faz amor? - perguntou. Não, pensei. Não farei isso. Não. Mas fiz.
- Com muito cuidado — respondi, não contendo um risinho silencioso. Então agora sabemos há quanto tempo esse aí existe, pensei.
Jamie deixou-se cair numa bola, rolando de rir. Finalmente, rolou para fora da cama e pôs-se de pé, tateando em busca da caixa de sílex sobre a mesa. Ele brilhou como âmbar vermelho contra a escuridão do quarto quando o pavio pegou fogo e a luz aumentou às suas costas.
Deixou-se cair ao pé da cama, rindo para mim, que ainda sacudia a cabeça sobre o travesseiro, com espasmos de riso. Passou as costas da mão pelo rosto e assumiu uma fingida expressão de seriedade.
- Está bem, mulher. Estou vendo que chegou a hora em que terei que exercer minha autoridade como marido.
- Ah, é mesmo?
- Sim. - Mergulhou para a frente, agarrando minhas coxas e abrindo-as. Soltei um gritinho enquanto me contorcia, tentando me libertar, arrastando-me para a cabeceira da cama.
- Não, não faça isso!
-- Por que não? - Deitou-se ao comprido entre minhas pernas, erguendo os olhos para mim. Continuou segurando minhas pernas com força, impedindo-me de fechá-las.
-- Diga-me, Sassenach. Por que não quer que eu faça isso? - Esfregou o rosto na parte interna de uma de minhas coxas, a barba espetada raspando a pele fina. — Seja honesta. Por que não? — Raspou a barba no outro lado, fazendo-me chutar e retorcer-me desesperadamente para me libertar, mas em vão.
Afundei o rosto no travesseiro, frio contra meu rosto afogueado.
- Bem, se quer saber - murmurei -, eu não acho... bem, receio que não... quero dizer, o cheiro... - Minha voz definhou em um silêncio embaraçoso. Houve um movimento repentino entre minhas pernas, quando Jamie ergueu o corpo repentinamente. Passou os braços em torno dos meus quadris, colou o rosto na minha coxa e riu até as lágrimas correrem pelas suas faces.
- Meu Deus, Sassenach - disse, finalmente, resfolegando com a risada - não sabe qual é a primeira coisa que se faz quando se está conhecendo um novo cavalo?
- Não — respondi, completamente perplexa.
Ergueu um dos braços, exibindo um tufo macio de cabelos cor de canela.
- Você esfrega o sovaco no focinho do animal algumas vezes, para lhe dar seu cheiro e fazê-lo acostumar-se com você, para que não fique nervoso com você. - Ergueu-se sobre os cotovelos, espreitando por cima da elevação da barriga e dos seios.
- É o que você devia ter feito comigo, Sassenach. Devia ter esfregado minha cara entre suas pernas logo da primeira vez. Assim, eu não ficaria arisco.
- Arisco!
Abaixou o rosto e esfregou-o deliberadamente para cima e para baixo, resfolegando e respirando forte, imitando um cavalo. Contorci-me e chutei-o nas costelas, com o mesmo efeito de quem chuta uma parede de tijolos. Finalmente, pressionou minhas coxas para baixo outra vez e ergueu os olhos para mim.
- Agora — disse, num tom que não admitia oposição -, fique deitada quieta.
Senti-me exposta, invadida, impotente — e como se estivesse prestes a me desintegrar. O hálito de Jamie era ao mesmo tempo quente e frio em minha pele.
- Por favor - disse, sem saber se estava querendo dizer "por favor, pare" ou "por favor, continue". Não importava; ele não pretendia parar.
A consciência fragmentou-se em inúmeras sensações distintas: a aspereza da fronha de linho, empelotada de flores bordadas; o odor rançoso do lampião, misturado ao cheiro mais fraco de rosbife e cerveja e aos vapores ainda mais fracos do perfume das flores murchando no copo de vidro; a madeira fria da parede contra meu pé esquerdo, as mãos firmes nos meus quadris. As sensações giravam em redemoinho e aglutinavam-se por trás de minhas pálpebras cerradas em um sol brilhante que crescia e diminuía e que finalmente explodiu com um estalido sem som que me deixou numa escuridão quente e pulsante.
Indistintamente, de muito, muito longe, ouvi Jamie sentar-se.
- Bem, assim está melhor - disse uma voz, ofegando entre as palavras. - É preciso um pouco de esforço para deixá-la submissa, não é? — A cama rangeu com uma mudança de peso e senti meus joelhos serem afastados.
- Espero que não esteja tão morta quanto parece, está? — disse a voz, aproximando-se. Arqueei o corpo para cima com um som incompreensível quando tecidos extremamente sensíveis foram firmemente apartados em nova investida.
- Meu Deus - exclamei. Ouvi um risinho junto ao meu ouvido.
- Eu só disse que me sentia como Deus, Sassenach - ele murmurou. -Nunca disse que eu era Deus.
Mais tarde, quando o sol nascente começou a obscurecer a chama do lampião, acordei de um sono inebriante com a voz de Jamie murmurando mais uma vez:
- Isso pára, Claire? O desejo? Minha cabeça recostou em seu ombro.
- Não sei, Jamie. Realmente, não sei.
O que o capitão Randall disse? - perguntei. Com Dougal de um lado e Jamie do outro, mal havia espaço para os três cavalos seguirem lado a lado pela estrada estreita. De vez em quando, um dos meus acompanhantes, ou os dois, tinha que se deixar ficar para trás ou adiantar-se, para não ficar emaranhado no mato que ameaçava reivindicar de volta o tosco caminho.
Dougal olhou para mim, depois de novo para a estrada, a fim de guiar seu cavalo em torno de uma enorme pedra. Um riso maldoso espalhou-se lentamente pelas suas feições.
- Não ficou muito satisfeito - disse, circunspecto. - Embora eu não tenha certeza se devo lhe contar o que ele realmente disse. Há limites até para a sua tolerância a palavrões, sra. Fraser.
Ignorei o uso sarcástico do meu novo título, bem como o insulto subjacente, embora tenha visto Jamie retesar-se na sela.
- Suponho, hã, que ele não pretenda tomar nenhuma medida a respeito? - perguntei. Apesar das garantias de Jamie, eu tinha visões de dragões de casacos vermelhos saindo tempestuosamente do mato, massacrando os escoceses e arrastando-me para o covil de Randall para interrogatório. Tinha a inquietante sensação de que as idéias de interrogatório de Randall deveriam ser criativas, para dizer o mínimo.
- Creio que não - Dougal respondeu despreocupadamente. — Tem mais com que se preocupar do que com uma Sassenach perdida, por mais bonita que seja. — Ergueu uma das sobrancelhas e fez uma pequena mesura em minha direção, como se o elogio fosse um pedido de desculpas. - Ele também tem mais juízo do que irritar Colum seqüestrando sua sobrinha - disse, de modo mais pragmático.
Sobrinha. Senti um ligeiro calafrio percorrer minha espinha, apesar do tempo quente. Sobrinha do chefe dos MacKenzie. Sem mencionar o comandante de guerra do clã MacKenzie, cavalgando tão despreocupadamente ao meu lado. E pelo outro ramo da família, eu provavelmente estava agora ligada a lorde Lovat, chefe do clã Fraser, com o abade de uma poderosa abadia francesa e quem saberia com quantos outros Fraser. Não, provavelmente John Randall acharia que não valia a pena perseguir-me. E esse, afinal, fora o motivo deste ridículo arranjo.
Olhei de soslaio para Jamie, agora cavalgando à frente. Suas costas eram eretas como um amieiro novo e seus cabelos brilhavam sob o sol como um capacete de metal polido.
Dougal seguiu meu olhar.
- Poderia ter sido pior, não? - disse, erguendo a sobrancelha com um ar irônico.
Duas noites depois, estávamos acampados numa faixa de charneca, perto de um daqueles estranhos afloramentos de pedra revelados pelas geleiras. Fora um longo dia de viagem, com apenas uma refeição apressada feita sobre a sela, e todos estavam satisfeitos por poderem parar para um jantar adequado. Eu já tentara anteriormente ajudar com a preparação das refeições, mas minha ajuda foi mais ou menos educadamente rejeitada por um taciturno membro do clã que aparentemente detinha essa função.
Um dos homens matara um veado de manhã e uma porção de carne recém-preparada, cozida com nabos, cebolas e o que mais o cozinheiro havia conseguido encontrar, compôs um delicioso jantar. Alimentados e satisfeitos, todos nós nos espalhamos em volta da fogueira, ouvindo histórias e canções. Para minha surpresa, o pequeno Murtagh, que raramente abria a boca para falar, tinha uma bela e limpa voz de tenor. Embora fosse difícil convencê-lo a cantar, os resultados eram recompensadores.
Aconcheguei-me mais perto de Jamie, tentando encontrar um lugar confortável para sentar no duro granito. Havíamos acampado perto do afloramento de pedra, onde uma prateleira larga de granito avermelhado nos fornecia um abrigo natural e a profusão majestosa de rochas atrás de nós formava um bom local para esconder os cavalos. Quando perguntei por que não dormíamos mais confortavelmente na grama flexível da charneca, Ned Gowan informou-me que estávamos próximos à fronteira sul das terras dos MacKenzie. E, assim, perto dos territórios dos Grant e dos Chisholm.
- Os batedores de Dougal afirmaram que não há sinal de ninguém nas vizinhanças - dissera, de pé sobre uma pedra grande para ele mesmo espreitar o horizonte em direção ao pôr-do-sol -, mas nunca se sabe. Melhor prevenir do que remediar.
Quando Murtagh deu por encerrada sua apresentação, Rupert começou a contar histórias. Embora não tivesse a elegância de Gwyllyn com as Palavras, possuía um repertório inesgotável de histórias, sobre fadas, fantasmas, os tannasg ou maus espíritos e outros habitantes das Highlands, como Os Monstros dos lagos. Esses seres, pelo que entendi, habitavam quase todas as reservas de água, sendo especialmente comuns em vaus e travessias, embora muitos vivessem nas profundezas dos lagos.
- Há um lugar no extremo leste do lago Garve... — disse, passando os olhos ao redor do grupo para se certificar de que todos estivessem prestando atenção - que nunca congela. Lá a água é sempre escura, mesmo quando o resto do lago está duro como uma pedra, porque ali é a chaminé do monstro do lago.
O monstro do lago Garve, como tantos iguais a ele, havia roubado uma jovem que fora ao lago pegar água, levando-a para viver no fundo do lago e ser sua mulher. Deus livre qualquer moça, e mesmo qualquer homem, de encontrar um belo cavalo à beira d'água e pensar em montá-lo, pois uma vez montado é impossível desmontar e o monstro entrará na água, se transformará em um peixe e nadará para seu esconderijo com o impotente cavaleiro ainda preso em seu dorso.
- Ora, um monstro sob as ondas possui apenas dentes de peixe - disse Rupert, meneando a mão como um peixe ondulante - e se alimenta de caramujos, plantas aquáticas e coisas úmidas e frias. Seu sangue é frio como a água e ele não precisa de fogo, mas uma mulher humana é um pouco mais quente do que isso. - Nesse ponto, piscou pra mim com uma malícia indecorosa, para deleite dos ouvintes.
- Assim, a mulher do monstro do lago sentia-se triste, com frio e com fome em sua nova casa sob as ondas, já que não gostava de caramujos e plantas aquáticas. Assim, sendo o monstro do lago um tipo bondoso, vai até a margem do lago, perto da casa de um homem conhecido como construtor. E quando o homem se aproxima da água e vê o belo cavalo dourado com seus freios de prata, brilhando ao sol, não consegue resistir a apoderar-se das rédeas e montar.
- Como era de se esperar, o monstro do lago carrega-o direto para as profundezas da água e para sua própria casa fria, própria para peixes. Ali, conta ao construtor que para se libertar terá que construir uma boa lareira, com chaminé, para que a mulher do monstro do lago possa ter um fogo para aquecer as mãos e fritar seu peixe.
Recostei a cabeça no ombro de Jamie, sentindo-me agradavelmente sonolenta e ansiosa para ir para a cama, ainda que essa fosse apenas um cobertor estendido sobre o granito. De repente, senti seu corpo retesar-se. Colocou a mão em meu pescoço, avisando-me para permanecer imóvel. Olhei em torno do acampamento e não vi nada estranho, mas percebi o ar de tensão passando de homem a homem numa comunicação sem fio.
Olhando na direção de Rupert, notei um movimento de cabeça quase imperceptível quando seus olhos encontraram-se com os de Dougal, embora continuasse a história sem se perturbar.
- Assim, o construtor, não tendo outra escolha, fez o que mandaram que fizesse. O monstro do lago cumpriu sua palavra e levou o homem de volta à margem do lago perto de sua casa. E a mulher do monstro do lago ficou feliz, aquecida e satisfeita com o peixe que frita para o jantar. E a água nunca se congela na extremidade leste do lago Garve porque o calor da chaminé do monstro do lago derrete o gelo.
Rupert estava sentado numa pedra, o lado direito voltado para mim. Enquanto falava, inclinou-se casualmente como se fosse coçar a perna. Sem o menor tropeço em seus movimentos, pegou a faca que estava no chão perto de seu pé e transferiu-a facilmente para o colo, onde ficou escondida nas dobras do seu kilt.
Apertei-me mais contra Jamie e puxei sua cabeça para baixo como um gesto amoroso.
— O que foi? — sussurrei em seu ouvido.
Ele prendeu o lóbulo de minha orelha entre os dentes e respondeu também num sussurro:
- Os cavalos estão irrequietos. Há alguém por perto.
Um dos homens levantou-se e caminhou para mais perto da rocha para urinar. Ao retornar, sentou-se em outro lugar, ao lado de um dos carroceiros. Outro homem se levantou e foi inspecionar a panela de comida, servindo-se de um pedaço de carne de veado. Por todo o acampamento, via-se uma sutil movimentação, enquanto Rupert continuava falando.
Observando atentamente, com o braço de Jamie envolvendo-me com força, finalmente compreendi que os homens estavam se aproximando de onde haviam deixado suas armas. Todos eles dormiam com suas adagas, mas em geral deixavam espadas, pistolas e os escudos redondos de couro em pilhas pequenas e bem arrumadas, perto da borda do acampamento. As próprias pistolas de Jamie estavam no chão, a poucos passos de distância.
Eu podia ver a luz da fogueira dançando na lâmina decorada em estilo damasceno. Embora as pistolas não fossem mais importantes do que as adagas comuns de cabo de chifre, usadas pela maioria dos homens, tanto a espada larga quanto a espada de dois gumes eram algo especial. Ele as mostrara orgulhosamente para mim em uma de nossas paradas, girando as lâminas reluzentes amorosamente nas mãos.
A espada de dois gumes estava guardada dentro do rolo de seu cobertor; eu podia ver o enorme punho em forma de T, o cabo áspero para a batalha, cuidadosamente lixado com areia. Eu a levantara e quase a deixara cair. Pesava cerca de sete quilos, Jamie me informara.
Se a espada de dois gumes era sombria e de aparência letal, a espada de lâmina larga era bela. Dois terços do peso da arma maior, era brilhante e Mortal, com arabescos islâmicos serpenteando pela lâmina de aço azulado até o guarda-mão espiralado do cabo, esmaltado em tons de vermelho e azul. Eu vira Jamie usá-la num exercício por diversão, primeiro com a mão direita com um dos soldados e depois com a mão esquerda, com Dougal. Era esplêndido vê-lo nessas condições, ágil e seguro, com uma graciosidade ainda mais impressionante se considerarmos seu tamanho. Mas minha boca ficou seca diante da idéia de ver essa habilidade usada a sério.
Inclinou-se para mim, plantando um beijo terno logo abaixo da linha do meu maxilar e aproveitando a oportunidade para virar-me ligeiramente, de modo que eu ficasse de frente para um dos amontoados de rochas.
— Daqui a pouco, eu acho... — murmurou, beijando-me diligentemente. - Vê a pequena abertura na rocha? — Eu via; um espaço com menos de um metro de altura, formado por duas lajes grandes tombadas uma ao lado da outra.
Segurou meu rosto e aproximou o seu, acariciando-me amorosamente.
— Quando eu disser para ir, entre e fique lá. Tem o punhal?
Ele havia insistido para que eu carregasse a adaga que atirara para mim naquela noite na hospedaria, apesar da minha própria insistência de que eu não possuía a habilidade nem a inclinação para usá-la. E quando era preciso insistir, Dougal tinha razão. Jamie era teimoso.
Conseqüentemente, a adaga estava em um dos bolsos fundos do meu vestido. Depois de um dia com a presença desconfortável de seu peso contra a minha coxa, quase me esquecera inteiramente dela. Deslizou a mão de forma brincalhona pela minha perna, certificando-se da presença da adaga.
A seguir, levantou a cabeça, como um felino farejando na brisa. Erguendo os olhos, pude vê-lo relancear um olhar para Murtagh e, em seguida, para mim. O homenzinho não externou nenhum sinal, mas levantou-se e espreguiçou-se com força. Quando se sentou outra vez, estava vários passos mais perto de mim.
Um cavalo relinchou nervosamente atrás de nós. Como se fosse um sinal, lançaram-se gritando por cima da rocha. Não ingleses, como eu temera, nem bandidos. Habitantes das Highlands, gritando como almas penadas. Do clã dos Grant, suponho. Ou dos Campbell.
Arrastando-me praticamente de joelhos, parti em direção às pedras. Bati a cabeça e ralei os joelhos, mas consegui me esgueirar para dentro da fenda. O coração disparado, tateei em busca da adaga em meu bolso, quase me cortando no processo. Não sabia o que fazer com o punhal longo e perigoso, mas me senti um pouco melhor por tê-lo comigo. Havia uma incrustação de pedra-da-lua no cabo e era reconfortante sentir o pequeno volume contra a palma da minha mão; ao menos, sabia que, mesmo no escuro, segurava-a corretamente.
A luta foi tão confusa que no começo eu não fazia nenhuma idéia do que estava acontecendo. A pequena clareira estava repleta de corpos gritando, empurrando-se, rolando no chão e correndo de um lado para o outro. Felizmente, meu santuário ficava afastado da zona de combate principal, de modo que não corria nenhum perigo no momento. Olhando ao meu redor, vi uma figura pequena, agachada, perto do meu esconderijo, pressionado contra as sombras da rocha. Segurei a adaga com mais força, mas percebi quase imediatamente que era Murtagh.
Então, essa fora a finalidade do olhar de Jamie. Murtagh fora instruído a me guardar. Não conseguia ver Jamie em lugar algum. A maior parte da luta estava ocorrendo nas rochas e nas sombras perto das carroças.
Claro, esse devia ser o objetivo do ataque; as carroças e os cavalos. Os atacantes eram um bando organizado, bem armado e nutrido, pelo pouco que pude ver à luz minguante da fogueira. Se eram os Grant, talvez estivessem procurando despojos ou vingança pelo gado que Rupert e amigos haviam surrupiado alguns dias atrás. Confrontado com os resultados do ataque improvisado, Dougal ficara ligeiramente aborrecido - não com o assalto propriamente, mas preocupado apenas com o fato de que o gado iria nos atrasar. No entanto, ele conseguira se desvencilhar dele quase imediatamente, em um pequeno mercado numa das vilas.
Logo ficou evidente que os atacantes não estavam muito preocupados em causar danos ao nosso grupo; apenas em pegar os cavalos e as carroças. Um ou dois conseguiram. Agachei-me rapidamente quando um cavalo sem arreios saltou a fogueira e desapareceu na escuridão da charneca, um homem gritando estridentemente agarrado à sua crina.
Mais dois ou três fugiram a pé, carregando sacas dos grãos de Colum, perseguidos por alguns MacKenzie furiosos gritando imprecações em gaélico. Pelos sons, o ataque estava chegando ao fim. Em seguida, um grande grupo de homens surgiu de surpresa na luz da fogueira e a ação intensificou-se outra vez.
Parecia ser uma luta séria, uma impressão nascida dos lampejos das lâminas e do fato de que os participantes grunhiam bastante, mas não berravam. Finalmente, consegui entender. Jamie e Dougal estavam no centro do combate, lutando de costas um para o outro. Cada qual brandia sua espada larga na mão esquerda, adaga na direita e ambos estavam fazendo bom uso delas, até onde eu podia ver.
Estavam cercados por quatro homens - ou cinco; perdi a conta nas sombras — armados com espadas curtas, embora um dos homens tivesse uma espada larga pendurada na cintura e pelo menos mais dois carregassem Pistolas que não haviam sacado.
Devia ser Dougal ou Jamie, ou ambos, que queriam. Vivos, de preferência. Para resgate, suponho. Por isso, o uso deliberado de espadas curtas, que poderiam apenas ferir, ao invés da espada larga ou das pistolas mais letais.
Dougal e Jamie não sofriam de tais escrúpulos e dedicavam-se à luta com terrível e considerável eficiência. De costas um para o outro, formavam um círculo completo de ameaça, cada homem cobrindo o lado mais fraco do outro. Quando Dougal levou a mão com a adaga para cima com força considerável, pensei que "fraco" podia não ser o termo exato.
Toda a confusão de imprecações, grunhidos e brados avançava en minha direção. Recuei o máximo que pude, mas a fenda não tinha mais do que sessenta centímetros de profundidade. Percebi um ligeiro movimento pelo canto do olho. Murtagh decidira tomar parte mais ativa nos acontecimentos.
Eu mal conseguia afastar meu olhar horrorizado de Jamie, mas vi o homenzinho sacar a pistola, até aqui não disparada, bem devagar. Verificou o mecanismo de disparo cuidadosamente, esfregou a arma na manga, firmou-a no antebraço e esperou.
E esperou. Eu tremia de medo por Jamie, que abandonara as maneiras elegantes e desfechava golpes ferozmente de um lado para o outro, fazendo recuar os dois homens que agora o enfrentavam com absoluta fúria. Por que diabos ele não atirava?, pensei furiosamente. Então, compreendi porque não. Tanto Jamie quanto Dougal estavam na linha de fogo. Lembrei-me que pistolas de sílex às vezes deixavam a desejar em termos de precisão.
Essa suposição foi confirmada no minuto seguinte, quando uma estocada inesperada de um dos adversários de Dougal pegou-o no pulso. A lâmina rasgou todo o comprimento de seu antebraço e ele caiu sobre um dos joelhos. Sentindo seu tio cair, Jamie retraiu sua própria lâmina e deu dois rápidos passos para trás. Isso colocou suas costas perto da superfície de uma rocha, Dougal agachado a seu lado, ao alcance da proteção de sua única lâmina.,Também trouxe os atacantes para perto do meu esconderijo e da pistola de Murtagh.
Assim de perto, o estampido da pistola era espantosamente alto. Pegou os atacantes de surpresa, particularmente o que foi atingido. O homem ficou imóvel por um instante, sacudiu a cabeça, atordoado, depois foi se sentando bem devagar, caiu frouxamente para trás e rolou por um ligeiro declive até as brasas quase extintas da fogueira.
Aproveitando-se da surpresa, Jamie derrubou a espada da mão de um dos atacantes. Dougal já estava de pé outra vez e Jamie deslocava-se para o lado, dando-lhe espaço para lutar. Um dos adversários abandonou o combate e correu pelo morro abaixo para arrastar seu companheiro ferido para fora das cinzas da fogueira. Isso ainda deixava três assaltantes e Dougal estava ferido. Eu podia ver manchas escuras espalhando-se na superfície da rocha conforme ele brandia a espada.
Estavam muito perto de mim agora e eu podia ver a expressão do rosto de Jamie, calma e concentrada, absorta na exultação da batalha. De repente, Dougal gritou alguma coisa para ele. Jamie tirou os olhos do rosto do adversário por uma fração de segundo e olhou para baixo. Erguendo os olhos exatamente a tempo de evitar uma estocada, desviou-se para o lado e atirou sua espada.
Seu adversário olhou bastante surpreso para a espada cravada em sua perna. Tocou a lâmina estupidificado, depois a agarrou e puxou. Com a facilidade com que saiu, presumi que o ferimento não tivesse sido profundo. O homem ainda parecia ligeiramente atordoado e ergueu o olhar como se perguntasse o propósito de um comportamento tão inusitado.
Emitiu um berro, deixou cair a espada e correu, mancando pesadamente. Surpresos com o barulho, os outros dois atacantes olharam para os lados, viraram-se e também fugiram, perseguidos por Jamie, que se movia como uma avalanche. Ele conseguira tirar a enorme espada de dois gumes do cobertor enrolado e a agitava com as duas mãos em um arco letal. Apoiando-o, surgiu Murtagh, gritando algo altamente injurioso em gaélico e brandindo tanto a espada quanto a pistola recarregada.
As coisas acalmaram-se rapidamente depois disso e uns quinze minutos mais tarde os MacKenzie reuniam-se e avaliavam os danos.
Foram poucos: dois cavalos foram levados e três sacas de grãos, mas os carroceiros, que dormiam com suas cargas, evitaram maiores depredações nas carroças, enquanto os soldados haviam conseguido repelir os pretensos ladrões de cavalo. A maior perda parecia ter sido um dos homens.
Pensei, assim que deram por falta dele, que deveria ter sido ferido ou morto no confronto, mas uma busca minuciosa na área não conseguiu encontrá-lo.
- Seqüestrado - disse Dougal, contrariado. — Droga, ele vai me custar a renda de um mês em resgate.
- Poderia ter sido pior, Dougal - Jamie disse, enxugando o rosto na manga da camisa. - Pense no que Colum diria se tivesse sido você!
- Se tivessem levado você, rapaz, eu o deixaria por lá e você poderia trocar seu nome para Grant - Dougal retorquiu, mas o estado de espírito do grupo ficou substancialmente aliviado.
Peguei a caixa de suprimentos médicos que havia trazido e alinhei os feridos em ordem de gravidade dos ferimentos. Nada realmente grave, constatei com satisfação. O ferimento no braço de Dougal era provavelmente o pior.
Ned Gowan tinha os olhos acesos e efervescia de vitalidade, aparentemente tão intoxicado com a adrenalina da luta que mal notava o dente arrancado pelo cabo de um punhal mal direcionado. No entanto, tivera a presença de espírito suficiente para guardá-lo cuidadosamente embaixo da língua.
-- Por via das dúvidas, sabe - explicou, cuspindo o dente na palma da mão. A raiz não fora quebrada e a cavidade ainda sangrava um pouco, de modo que corri o risco e pressionei o dente com firmeza no lugar. O advogado ficou bastante pálido, mas não emitiu nenhum som. Entretanto, deu graças a Deus quando lavou a boca com uísque para fins de desinfecção e rapidamente o engoliu.
Eu colocara uma atadura no ferimento de Dougal imediatamente, a fim de estancar o sangue, e constatei satisfeita que o sangramento havia praticamente parado quando a desenrolei. Era um corte limpo, mas profundo. Uma camada fina de gordura amarela despontava nas bordas do corte aberto, que penetrara mais de dois centímetros no músculo. Nenhum vaso sangüíneo importante fora cortado, graças a Deus, mas teria que ser costurado.
Verificou-se que a única agulha disponível era um objeto robusto como uma sovela fina, usada pelos carroceiros para remendar arreios. Examinei-o em dúvida, mas Dougal meramente estendeu o braço e virou o rosto.
- Não me incomodo com sangue de um modo geral - explicou -, mas tenho uma certa objeção a ver o meu próprio sangue. — Permaneceu sentado em uma pedra enquanto eu trabalhava, os dentes cerrados com tanta força a ponto de fazer os músculos de seus maxilares tremerem. A noite estava ficando fria, mas gotículas de suor porejavam de sua testa. Em determinado momento, pediu-me educadamente para parar por um instante, afastou-se e pôde-se notar que vomitava atrás de uma pedra, em seguida voltou e apoiou o braço no joelho outra vez.
Por sorte, o proprietário de uma taberna resolvera saldar o aluguel deste trimestre na forma de um pequeno barril de uísque, o que foi muito oportuno. Usei-o para desinfetar alguns ferimentos abertos e depois deixava meus pacientes se medicarem como achassem melhor. Eu mesma aceitei uma caneca, ao término dos meus serviços. Tomei uma caneca inteira com prazer e deixei-me afundar prazerosamente no cobertor. A lua descia no céu e eu tremia, em parte pela reação e em parte pelo frio. Foi uma sensação maravilhosa sentir Jamie deitar-se ao meu lado e me aconchegar com firmeza em seus braços, junto ao seu corpo grande e quente.
- Acha que voltarão? - perguntei, mas ele sacudiu a cabeça.
- Não, foi Malcom Grant e seus dois filhos. Foi o mais velho que eu feri na perna. Devem estar em casa em suas próprias camas a essa altura -retorquiu. Acariciou meus cabelos e disse, em voz mais suave: — Você fez um belo trabalho esta noite, Sassenach. Tive orgulho de você.
Rolei sobre meu corpo e passei os braços em volta de seu pescoço.
- Não tão orgulhosa quanto eu. Você foi maravilhoso, Jamie. Nunca vi nada parecido.
Resfolegou, tentando diminuir seu próprio mérito, mas achei que ficou satisfeito, mesmo assim.
- Foi apenas um assalto, Sassenach. Faço isso desde os quatorze anos. E só por diversão, sabe; é diferente quando você está lutando com alguém que realmente quer matá-lo.
- Diversão - eu disse, com voz fraca. - Sem dúvida.
Seus braços envolveram-me com mais força e uma das mãos que me acariciavam desceu, começando a puxar minha saia para cima. Obviamente, a emoção da luta estava se transformando em um tipo diferente de excitação.
- Jamie! Aqui não! — exclamei, tentando esgueirar-me do seu abraço e puxar minha saia para baixo outra vez.
- Está cansada, Sassenach? - perguntou, preocupado. - Não se preocupe, não vai demorar muito. — Agora, trabalhava com as duas mãos, puxando o tecido pesado na parte da frente.
- Não! — respondi, consciente demais da presença dos vinte homens, deitados a alguns metros de distância. - Não estou cansada, é que... Prendi a respiração quando sua mão, tateando às cegas, encontrou seu caminho entre minhas pernas.
- Meu Deus - ele disse baixinho. — Está escorregadio como limo.
- Jamie! Há vinte homens dormindo bem ao nosso lado! - sussurrei como se gritasse.
- Não vão dormir muito se você continuar falando. - Rolou o corpo para cima de mim, prendendo-me na pedra. Encaixou o joelho entre minhas coxas e começou a movimentar-se suavemente para frente e para trás. Involuntariamente, minhas pernas começaram a se afrouxar. Vinte e sete anos de bom comportamento de nada serviam diante de centenas de milhares de anos de instinto. Embora minha mente pudesse objetar a ser possuída numa rocha nua, ao lado de vários soldados dormindo, meu corpo claramente se considerava espólio de guerra e estava ansioso para completar as formalidades de redenção. Ele me beijou, longa e profundamente, a língua doce e irrequieta em minha boca.
- Jamie — disse, arfando. Ele afastou seu kilt do caminho e pressionou minha mão em seu corpo.
- Minha Nossa Senhora — eu disse, impressionada, a despeito de mim mesma. Minha noção de decência caiu mais um ponto.
- A luta dá um tesão enorme, depois. Você me deseja, não? — disse, afastando-se um pouco para olhar para mim. Não adiantava negar, com todas as evidências à mão. Ele estava duro como uma vara de metal contra a minha coxa nua.
-- Hã... sim... mas...
Agarrou-me com firmeza pelos ombros, com as duas mãos.
-- Fique quieta, Sassenach — disse com autoridade. — Não vai levar muito tempo.
Não levou. Comecei a atingir o clímax com a primeira investida forte, em espasmos longos, dilacerantes. Enfiei os dedos com força nas suas costas e permaneci assim, mordendo o tecido de sua camisa para abafar qualquer som. Em menos de doze estocadas, senti seus testículos contraírem-se com força contra seu corpo e o fluído quente de sua ejaculação. Deixou-se cair lentamente para o lado e ficou deitado, tremendo.
O sangue ainda latejava em meus ouvidos, fazendo eco à pulsação decrescente entre minhas pernas. A mão de Jamie repousava em meu seio, lânguida e pesada. Virando a cabeça, pude ver o vulto indistinto da sentinela, recostado contra uma rocha do outro lado da fogueira. Educadamente, virara as costas para nós. Fiquei meio chocada de ver que eu não estava nem sequer constrangida. Perguntei-me, um pouco indistintamente, se estaria pela manhã e, depois, não pensei em mais nada.
De manhã, todos se comportaram normalmente, ainda que se movendo com uma certa rigidez, em conseqüência do combate e de uma noite dormindo nas pedras. Todos estavam de excelente humor, até aqueles levemente feridos.
O humor geral melhorou ainda mais quando Dougal anunciou que viajaríamos somente até o bosque que podíamos ver da borda de nossa plataforma rochosa. Lá, os cavalos poderiam beber água e pastar e nós mesmos poderíamos descansar um pouco. Imaginei se essa mudança nos planos afetaria o encontro de Jamie com Horrocks, mas ele não pareceu perturbar-se com a declaração.
O dia estava nublado, mas sem garoa, e o ar estava quente. Tão logo o novo acampamento ficou pronto, os cavalos foram tratados e os feridos reexaminados, todos ficaram livres para fazer o que quisessem, dormir na grama, caçar ou pescar, ou simplesmente esticar as pernas depois de vários dias na sela.
Eu estava sentada embaixo de uma árvore conversando com Jamie e Ned Gowan, quando um dos homens aproximou-se e atirou um objeto no colo de Jamie. Era a adaga com o cabo de pedra-da-lua.
- É sua, rapaz? - perguntou. - Encontrei-a nas pedras hoje de manhã.
- Devo tê-la deixado cair, na confusão — eu disse. - Tudo bem; não sei mesmo o que fazer com isto. Provavelmente, teria ferido a mim mesma se tivesse tentado usá-la.
Ned olhou para Jamie com ar de reprovação por cima de seus pequenos óculos.
- Você lhe deu um punhal e não a ensinou a usá-lo?
- Não houve tempo, nas circunstâncias — Jamie defendeu-se. — Mas Ned tem razão, Sassenach. Devia aprender a lidar com armas. Nunca se sabe o que pode acontecer na estrada, como você viu à noite passada.
Assim, fui conduzida ao centro de uma clareira e as aulas começaram. Vendo o movimento, vários MacKenzie aproximaram-se para investigar e continuaram ali para dar palpites. Em pouco tempo, eu tinha mais de doze instrutores, todos discutindo os principais pontos da técnica. Após uma longa e amistosa discussão, chegaram à conclusão de que Rupert provavelmente era o melhor de todos com uma adaga e ele assumiu a aula.
Ele procurou um local razoavelmente plano, livre de pedras e pinhas, onde pudesse demonstrar a arte de lutar com adagas.
- Olhe, dona - disse. Manteve a adaga equilibrada no dedo médio, quase três centímetros abaixo do cabo. - O ponto de equilíbrio, é onde você deve mantê-la, de modo que se encaixe confortavelmente em sua mão. - Experimentei com minha adaga. - Quando a ajustei adequadamente, ele me mostrou a diferença em uma punhalada de cima para baixo, com a faca abaixo da mão, e uma estocada de baixo para cima, com a faca acima da mão.
- Geralmente, é preferível o golpe de baixo para cima; de cima para baixo é melhor apenas quando você está vindo de cima, caindo sobre alguém com bastante força. - Analisou-me especulativamente.
- Não, você é uma mulher alta, mas ainda que pudesse atingir o pescoço, não teria força para perfurá-lo, a menos que o alvo esteja sentado. É melhor vir de baixo para cima. - Ergueu a camisa, revelando uma barriga volumosa e peluda, já brilhando de suor.
- Agora, veja — disse, apontando para o centro, logo abaixo do esterno -, este é o ponto onde você deve mirar, se estiver frente a frente. Mire diretamente para cima e para dentro, com todas as forças que conseguir reunir. Irá direto ao coração e mata em um ou dois minutos. O único problema é evitar o osso do meio do peito; ele vai até mais embaixo do que se pensa e se o punhal ficar preso nessa ponta mais macia, quase não vai ferir a vítima, mas você vai perder a arma e ele a pegará. Murtagh! Você tem as costas magras; venha cá e mostraremos à moça como atacar por trás. -Fazendo um Murtagh relutante girar nos calcanhares, deu um puxão para cima na camisa encardida para mostrar uma espinha dorsal cheia de nós e costelas proeminentes. Enfiou um dedo rombudo sob a última costela da direita, fazendo Murtagh dar um guincho de surpresa.
- Este é o lugar nas costas, de qualquer um dos lados. Veja, com as costelas e tudo o mais, é difícil atingir alguma coisa de importância vital quando você apunhala nas costas. No entanto, se puder enfiar a faca entre as costelas, isso é diferente, porém é mais difícil do que imagina. Mas aqui, embaixo da última costela, você apunhala para cima e atinge o rim. Vá reto para cima e ele cairá morto como uma pedra.
Rupert, em seguida, me fez tentar apunhalar em diversas posições e posturas. Quando ficou cansado, todos os homens se revezaram para agir como vítimas, obviamente achando meus esforços hilariantes. Obedientemente, deitavam-se na grama e viravam-se de costas para que eu pudesse atacá-los "de surpresa", pulavam sobre mim pelas costas ou fingiam me estrangular para que eu pudesse apunhalá-los na barriga.
Os espectadores me animavam com gritos de encorajamento e Rupert instruiu-me com firmeza a não recuar no último instante.
- Vá com toda a força, dona - disse. — Não pode recuar se for para valer. E se algum desses molengas não conseguir sair da frente a tempo, vai ter o que merece.
No começo, eu estava tímida e extremamente desajeitada, mas Rupert era um bom professor, muito paciente e bom na demonstração de movimentos, inúmeras vezes. Revirou os olhos com pretensa libidinagem quando se posicionou atrás de mim e me envolveu pela cintura, mas foi muito sério e eficiente ao segurar meu pulso para me mostrar como rasgar um inimigo na altura dos olhos.
Dougal sentou-se sob uma árvore, cuidando de seu braço ferido e fazendo comentários sarcásticos durante o treinamento, conforme ele progredia. No entanto, foi ele quem sugeriu um boneco como alvo.
- Dê-lhe alguma coisa onde ela possa enfiar o punhal - disse, quando comecei a mostrar alguma facilidade nos golpes. - É um choque, a primeira vez.
- É verdade — Jamie concordou. - Descanse um pouco, Sassenach, enquanto eu arranjo alguma coisa.
Afastou-se em direção às carroças com dois soldados e pude vê-los reunidos, gesticulando e puxando uma ou outra coisa do chão da carroça. Totalmente exausta, deixei-me cair sob a árvore, ao lado de Dougal.
Ele balançou a cabeça, um leve sorriso no rosto. Como a maioria dos homens, não se dera ao trabalho de fazer a barba durante a viagem e uma barba cerrada, castanho-escura, emoldurava sua boca, acentuando o carnu-do lábio inferior.
- Como vão as coisas, então? — perguntou, não se referindo à minha habilidade com armas pequenas.
- Bastante bem - respondi cautelosamente, também não me referindo a adagas. Os olhos de Dougal relancearam em direção a Jamie, ocupado com alguma coisa perto das carroças.
- O casamento parece ter feito bem ao rapaz - observou.
- É saudável para ele, nas circunstâncias — concordei, um pouco friamente. Seus lábios contorceram-se diante da minha entonação de voz.
- E para você também, dona. Um bom arranjo para todos, ao que parece.
- Particularmente para você e seu irmão. E por falar nele, o que acha que Colum vai dizer quando souber?
O sorriso ampliou-se.
- Colum? Ah, bem. Creio que ele vai ter o maior prazer em receber uma sobrinha como você na família.
O boneco ficou pronto e eu voltei ao treinamento. O boneco era uma grande saca de lã, do tamanho do torso de um homem, com um pedaço de couro de búfalo curtido enrolado à sua volta e amarrado com corda. Serviria para eu praticar os golpes de adaga, primeiro amarrado a uma árvore na altura de um homem, depois atirado para cima de mim ou rolado no chão à minha frente.
O que Jamie não mencionara é que haviam inserido várias peças planas de madeira entre a saca de lã e o couro; para simular ossos, como explicou mais tarde.
As primeiras punhaladas foram tranqüilas, embora tivessem sido necessárias várias tentativas até conseguir perfurar o couro. Era mais duro do que parecia. Assim é a pele da barriga de um homem, informaram-me. Na tentativa seguinte, experimentei um golpe direto de cima para baixo e atingi uma das peças de madeira.
Por um momento, pensei que meu braço houvesse repentinamente caído no chão. O choque do impacto reverberou por todo o meu ombro e a adaga caiu dos meus dedos insensíveis. Tudo abaixo do cotovelo ficou dormente, mas um terrível formigamento avisou-me que não seria por muito tempo.
—Jesus Cristo — eu disse. Fiquei parada, segurando o cotovelo e ouvindo a risada geral. Finalmente, Jamie segurou-me pelo ombro e massageou meu braço até a sensibilidade retornar aos poucos, pressionando o tendão atrás do cotovelo e enfiando o polegar na depressão na base do meu pulso.
— Tudo bem — eu disse entre dentes, cuidadosamente flexionando minha formigante mão direita. - O que se faz quando se atinge um osso e se perde a faca? Há algum procedimento padrão para isso?
— Ah, sim — Rupert disse, rindo. — Saque a pistola com a mão esquerda e mate o filho-da-mãe com um tiro. - Isso provocou novas gargalhadas, que eu ignorei.
- Tudo bem - eu disse, mais ou menos calma. Estiquei a mão indicando a longa pistola que Jamie usava no quadril esquerdo. — E então? Vai me mostrar como carregar e disparar?
- Não, não vou. - Falou sério e com firmeza. Fiquei um pouco eriçada diante da resposta.
-- Por que não?
- Porque você é mulher, Sassenach.
Senti meu rosto ficar vermelho.
- Ah, é? - exclamei com ironia. - Acha que as mulheres não são capazes de entender como uma pistola funciona?
Olhou-me sem se alterar, a boca retorcendo-se um pouco enquanto considerava várias respostas.
-- Estou com vontade de deixar você experimentar - disse finalmente. Seria bem feito para você.
Rupert estalou a língua, aborrecido com nós dois.
- Não seja tolo, Jamie. Quanto a você, dona - disse, virando-se para mim -, não é que as mulheres sejam estúpidas, embora certamente algumas sejam; é que elas são pequenas.
- Hein? — Olhei para ele perplexa por um instante, sem compreender. Jamie soltou a respiração ruidosamente e tirou a pistola da presilha. Vista de perto, era enorme; uma arma prateada de quarenta e cinco centímetros da boca à coronha.
- Olhe — disse, segurando-a diante de mim. - Você a segura aqui, apoia a arma no braço e mira por aqui. E quando você puxa o gatilho, ela dá um coice como uma mula. Sou quase trinta centímetros mais alto do que você, peso uns quarenta quilos a mais do que você e sei o que estou fazendo. Ela causa em mim um machucado feio quando atiro; deve deixá-la estatelada no chão, de costas, se não pegá-la no rosto. - Girou a pistola e enfiou-a na presilha outra vez.
- Eu deixaria você ver por si mesma - disse, erguendo uma das sobrancelhas -, mas gosto mais de você com todos os seus dentes. Você tem um sorriso bonito, Sassenach, embora se irrite à toa.
O episódio serviu de lição e eu aceitei sem discutir a opinião dos homens de que mesmo a menor e mais leve das espadas era pesada demais para uma mulher usar com destreza. A pequena sgian dhu, a adaga que se carregava na meia, foi considerada aceitável e deram-me uma dessas, um objeto de ferro negro, pontiagudo e afiado, de aparência letal, com uns oito centímetros de comprimento e um cabo curto. Pratiquei inúmeras vezes retirá-la do seu esconderijo enquanto os homens observavam criticamente, até poder levantar a saia, agarrar a faca e já ficar na posição certa, tudo em um único e suave movimento, terminando com a faca abaixo da mão, pronta para degolar o adversário.
Finalmente, fui aprovada como uma lutadora novata e liberada para o jantar, entre congratulações generalizadas — com uma única exceção. Murtagh sacudiu a cabeça, em dúvida.
- Ainda acho que a única arma boa para mulheres é veneno.
- Talvez - retrucou Dougal -, mas tem suas deficiências num combate corpo-a-corpo.
Na noite seguinte, acampamos nas margens do lago Ness. Deu-me uma sensação estranha ver o local outra vez; tão pouco havia mudado. Ou mudaria, eu deveria dizer. Os larícios e amieiros ostentavam um verde mais escuro, porque estávamos em pleno verão, não no fim da primavera. As flores haviam mudado dos suaves tons de rosa e branco das violetas e flores-de-maio para os dourados e amarelos mais quentes dos tojos e giestas. O céu estava mais azul, mas a superfície do lago continuava a mesma; um obscuro azul enegrecido que espelhava as margens acima e mantinha as imagens refletidas encurraladas, em cores embotadas sob o espelho esfumaçado.
Viam-se até mesmo alguns barcos a vela mais acima no lago. Embora, quando um deles aproximou-se, tenha constatado que se tratava de uma embarcação de casco de couro curtido estendido sobre uma estrutura de vime, não o esbelto barco de madeira com que eu estava acostumada.
O mesmo cheiro pungente que impregna todos os cursos d'água estava lá; uma mistura penetrante de folhagens de cheiro forte e folhas apodrecidas, água doce, peixes mortos e lama quente. Acima de tudo, havia a mesma sensação estranha pairando no ar. Os homens, assim como os cavalos, pareciam senti-la e a atmosfera do acampamento era contida e reservada.
Tendo encontrado um lugar confortável para as minhas próprias cobertas de dormir e as de Jamie, caminhei até a beira do lago para lavar o rosto e as mãos antes do jantar.
A margem descia num barranco íngreme até quebrar-se num aglomerado de lajes de pedra que formavam uma espécie de cais irregular. Era muito sossegado ali na base da margem, fora da vista e dos barulhos do acampamento, e sentei-me sob uma árvore para apreciar um momento de privacidade. Desde o meu apressado casamento com Jamie, já não era seguida a todo instante; ao menos isso consegui.
Arrancava preguiçosamente as pencas de sementes aladas de um galho baixo e atirava-as no lago quando notei as ondulações da água contra as Pedras se intensificarem, como se empurradas por um vento que se aproximava.
Uma cabeça grande e chata emergiu na superfície a menos de três metros de distância. Pude ver a água escorrendo borbulhante das escamas que recobriam uma crista ao longo do pescoço sinuoso. A água estava agitada desde uma distância considerável e pude vislumbrar aqui e ali o movimento maciço e escuro sob a superfície do lago, embora a cabeça em si se mantivesse relativamente imóvel.
Eu mesma fiquei absolutamente imóvel. Estranhamente, não tive medo. Senti uma leve afinidade com a criatura de outra época, mais fora de seu próprio tempo do que eu, os olhos insípidos tão velhos quanto seus antigos mares e oceanos, olhos que se tornaram turvos nas profundezas sombrias de seu refúgio reduzido. Havia uma sensação de familiaridade misturada à de irrealismo. A pele luzidia era lisa, azul-escura, com um vívido talho verde brilhando com uma radiação iridescente sob a mandíbula. E os olhos estranhos, sem pupilas, eram de um âmbar profundo e cintilante. Muito, muito bonito.
E tão diferente da réplica menor, cor de lama, de que eu me lembrava, enfeitando o diorama do quinto andar do Museu Britânico. No entanto, o formato era inconfundível. As cores dos seres vivos começam a desbotar com o último suspiro e a pele macia, elástica, e os músculos flexíveis começam a se deteriorar em questão de semanas. Mas os ossos às vezes resistem, ecos fiéis da forma, último e débil testemunho da glória de outrora.
As narinas reguladas por válvulas abriram-se repentinamente com um assustador chiado da respiração; um instante de movimento suspenso e a criatura afundou outra vez, uma turva agitação de águas como única testemunha de sua aparição.
Eu havia me levantado quando a criatura surgiu. Inconscientemente, devo ter me aproximado a fim de observá-la melhor, pois me vi de pé em uma das lajes de pedra que se projetavam acima do espelho d'água, observando as ondas definhadas transformarem-se novamente na placidez do lago.
Fiquei ali parada por um instante, fitando a vastidão do lago insondável.
- Adeus - disse finalmente às águas vazias. Estremeci e virei-me para voltar à margem.
Um homem estava parado no topo do barranco. A princípio, fiquei assustada, depois o reconheci como um dos carroceiros de nosso grupo. Seu nome era Peter, lembrei-me, e o balde em sua mão indicava o motivo de sua presença. Estava prestes a perguntar-lhe se vira o monstro, mas a expressão de seu rosto quando me aproximei era uma resposta mais do que suficiente. Seu rosto estava mais branco do que as margaridas a seus pés e pequenas gotas de suor escorriam para dentro de sua barba. Via-se o branco de seus olhos ao redor de toda a íris, como os olhos de um cavalo assustado, e suas mãos tremiam tanto que o balde batia em sua perna.
— Tudo bem - eu disse, quando cheguei perto dele. —Já foi embora. Em vez de minha afirmação tranqüilizá-lo, pareceu motivo de mais alarme. Deixou cair o balde, caiu de joelhos diante de mim e fez o sinal-da-cruz.
- Te-tenha piedade, senhora - balbuciou. Para meu enorme constrangimento, lançou-se no chão e agarrou a barra da minha saia.
- Não seja ridículo - eu disse com certa aspereza. — Levante-se. -Cutuquei-o delicadamente com a ponta do pé, mas ele apenas tremeu e continuou preso ao chão como um cogumelo achatado. - Levante-se - repeti. - Seu tolo, é apenas um... - parei, tentando pensar. Dizer-lhe seu nome em latim provavelmente de nada iria adiantar.
- É apenas um pequeno monstro - disse finalmente e, agarrando-o pela mão, puxei-o para que se levantasse. Tive que encher o balde, já que ele (não sem razão) se recusava a se aproximar da água. Seguiu-me de volta ao acampamento, mantendo uma distância cautelosa, e fugiu às pressas imediatamente para cuidar de suas mulas, lançando olhares apreensivos por cima do ombro em minha direção enquanto se afastava.
Como não pareceu disposto a mencionar a criatura para mais ninguém, achei que talvez eu também devesse ficar calada. Embora Dougal, Jamie e Ned fossem homens educados, o resto era em grande parte analfabetos oriundos dos mais longínquos penhascos e ravinas das terras dos MacKenzie. Eram guerreiros destemidos e combatentes corajosos, mas também eram tão supersticiosos quanto quaisquer membros de tribos primitivas da África ou do Oriente Médio.
Assim, tomei minha sopa em silêncio e fui dormir, consciente o tempo todo do olhar penetrante do carroceiro Peter.
Dois dias após o assalto, voltamos novamente para o norte. Aproximávamo-nos do local de encontro com Horrocks e Jamie parecia distraído de vez em quando, talvez considerando a importância que as notícias do desertor inglês poderiam ter.
Eu não vi Hugh Munro outra vez, mas acordei no escuro da noite anterior e vi que Jamie não estava no cobertor ao meu lado. Tentei ficar acordada, esperando que retornasse, mas adormeci quando a lua começou a descer no horizonte. Pela manhã, ele dormia profundamente ao meu lado e sobre o meu cobertor havia um pequeno pacote, embrulhado em uma folha de papel fino, com uma pena da cauda de pica-pau enfiada no papel. Abrindo-o cuidadosamente, encontrei um grande pedaço de âmbar bruto. Uma das faces do bloco fora aplainado e polido e, nessa janela, podia-se ver a forma escura e delicada de uma pequena libélula, suspensa num vôo eterno.
Alisei o papel do embrulho. Havia uma mensagem gravada na superfície branca encardida, escrita numa letra pequena e surpreendentemente elegante.
- O que diz? - perguntei a Jamie, estreitando os olhos diante das letras e sinais estranhos. - Acho que está em gaélico.
Ele ergueu-se em um dos cotovelos, examinando o papel.
— Não é gaélico — disse. — É latim. Munro já foi professor, antes de os turcos o levarem. É um trecho de Catulo:
...da mi basia mille, diende centum, dein mille altera, dein secunda centum...
Um leve rubor tomou conta dos lóbulos de suas orelhas enquanto traduzia:
Permita, então, que beijos apaixonados permaneçam
Em nossos lábios, comece a contagem
Até mil e cem
E mais cem e mais mil.
- Bem, isso tem mais classe do que o conhecido biscoito da sorte -observei, achando graça.
- O quê? - Jamie perguntou, surpreso.
- Deixa pra lá — respondi apressadamente. - Munro encontrou Horrocks para você?
- Ah, sim. Já está combinado. Vou encontrar-me com ele em uma pequena localidade que conheço nas montanhas, dois ou três quilômetros acima de Lag Cruime. Dentro de quatro dias, se nada der errado nesse meio tempo.
A alusão à possibilidade de as coisas darem errado deixou-me um pouco nervosa.
- Acha que é seguro? Quero dizer, você confia em Horrocks?
Ele sentou-se, esfregando os olhos e piscando para afastar os resquícios de sono.
- Um desertor inglês? Deus do Céu, não. Imagino que ele me venderia a Randall num piscar de olhos, exceto que ele próprio não pode se aproximar dos ingleses. Eles enforcam desertores. Não, não confio nele. Foi por isso que vim com Dougal nesta viagem, ao invés de procurar Horrocks sozinho. Se o sujeito estiver tramando alguma coisa, ao menos terei companhia.
- Ah. - Eu não tinha certeza se a presença de Dougal era assim tão tranqüilizadora, considerando-se o aparente estado de coisas entre Jamie e seus dois tios conspiradores.
- Bem, se é o que você pensa - eu disse, em dúvida. - Ao menos, não creio que Dougal fosse aproveitar a oportunidade para dar um tiro em você.
- Na verdade, ele atirou em mim - Jamie disse alegremente, abotoando a camisa. — Você deveria saber, foi você quem tratou o ferimento.
Deixei cair o pente que estava usando.
- Dougal! Pensei que tinham sido os ingleses que haviam atirado em você!
- Bem, os ingleses realmente atiraram em mim, mas não foram eles que me acertaram — corrigiu. - E não deveria dizer que foi Dougal quem me acertou. Provavelmente foi Rupert, ele é o melhor atirador entre os homens de Dougal. Não, quando fugíamos dos ingleses, percebi que estávamos próximos aos limites das terras dos Fraser e pensei em arriscar uma fuga. Assim, esporeei o cavalo e desviei para a esquerda, contornando Dougal e o resto dos homens. Havia um intenso tiroteio, mas a bala que me atingiu veio de trás. Dougal, Rupert e Murtagh estavam às minhas costas naquele momento. E os ingleses estavam todos à minha frente. Na realidade, quando caí do cavalo, rolei pelo morro abaixo e acabei quase no colo deles. - Inclinou-se sobre o balde de água que eu trouxera, lavando o rosto com a água fria. Sacudiu a cabeça para afastar os cabelos dos olhos, piscou para mim, sorrindo, as gotículas brilhantes agarradas às espessas pestanas e sobrancelhas.
- Pensando bem, Dougal teve grande dificuldade em me resgatar de volta. Eu estava estirado no chão, quase inerte, e ele estava de pé acima de mim, puxando-me pelo cinto com uma das mãos para que eu me levantasse e segurando a espada com a outra, lutando corpo-a-corpo com um dragão que achava que tinha uma certa cura para meus males. Dougal matou o sujeito e me colocou em cima do seu cavalo. — Sacudiu a cabeça. - Tudo estava meio confuso para mim na ocasião; só conseguia pensar em como devia ser difícil para o cavalo, tentando subir uma colina como aquela carregando quase duzentos quilos nas costas.
Parei, um pouco abalada.
— Mas... se ele quisesse, Dougal poderia ter matado você naquele momento.
Jamie sacudiu a cabeça, pegando a navalha que pedira emprestado a Dougal. Puxou o balde um pouco, para que a superfície formasse um espelho improvisado e, fazendo a tortuosa careta que os homens fazem ao se barbearem, começou a deslizar a lâmina pelas faces.
- Não, não na frente dos homens. Além do mais, Dougal e Colum não queriam necessariamente me ver morto, especialmente não Dougal.
— Mas... — Minha cabeça estava começando a girar outra vez, como parecia acontecer sempre que me deparava com as complexidades da vida familiar na Escócia.
As palavras de Jamie ficaram um pouco abafadas, conforme ele esticava o queixo, inclinando a cabeça para atingir os pêlos ásperos embaixo do maxilar.
— É por causa de Lallybroch - explicou, deslizando a mão livre pelo rosto para sentir um ou outro pêlo desgarrado. - Além de ser um rico pedaço de terra, a propriedade fica na cabeça de um desfiladeiro nas montanhas, a única passagem boa para as Highlands em quinze quilômetros, em qualquer direção. Se acontecer um novo levante, seria um valioso pedaço de terra para se ter sob controle. E se eu morresse antes de me casar, provavelmente as terras voltariam para os Fraser.
Riu, acariciando o pescoço.
- Não, eu sou um grande problema para os irmãos MacKenzie. Por um lado, se sou uma ameaça para a liderança do pequeno Hamish, querem me ver bem morto. Por outro, se não for, querem a mim e à minha propriedade do lado deles, em caso de guerra, e não com os Fraser. É por isso que estão dispostos a me ajudarem com Horrocks, sabe. Não posso fazer muita coisa com Lallybroch enquanto for um fora-da-lei, embora as terras ainda sejam minhas.
Enrolei os cobertores, sacudindo a cabeça, atordoada com as circunstâncias complexas - e perigosas - pelas quais Jamie parecia se locomover com tanta facilidade. E me ocorreu repentinamente que agora não apenas Jamie estava envolvido. Ergui os olhos.
- Você disse que se morresse antes de se casar, as terras voltariam para os Fraser - eu disse. — Mas agora você está casado. Portanto, quem...
- Isso mesmo - disse, balançando a cabeça para mim com um sorriso enviesado. O sol da manhã iluminava seus cabelos com chamas de ouro e cobre. — Se eu for assassinado agora, Sassenach, Lallybroch é sua.
Era uma bela manhã ensolarada, depois que a neblina se dissipou. Os pássaros agitavam-se nas urzes e a estrada era larga naquele local, para variar, e com uma terra fina e macia sob os cascos dos cavalos.
Jamie cavalgava ao meu lado quando subíamos um pequeno monte. Fez um sinal com a cabeça indicando à direita.
- Está vendo aquela ravina lá embaixo?
- Sim. - Era uma pequena área verde de pinheiros, carvalhos e álamos, a certa distância da estrada.
- Há uma fonte com uma lagoa lá, sob as árvores, e uma relva macia. Um lugar muito agradável.
Olhei para ele interrogativamente.
- Um pouco cedo para almoçar, não é?
- Não era exatamente isso que eu tinha em mente. - Jamie, eu descobrira por acaso há alguns dias, nunca dominara a arte de piscar um único olho. Ao invés disso, piscava os dois solenemente, como uma grande coruja vermelha.
- E o que exatamente você tinha em mente? — perguntei. Meu olhar desconfiado deparou-se com olhos azuis, infantis e inocentes.
- Eu estava pensando se você gostaria... na grama... sob as árvores... junto à água... com as saias para cima até as orelhas.
- Hã... - balbuciei.
- Direi a Dougal que vamos buscar água. - Acelerou o cavalo, voltando logo depois com as garrafas de água dos outros cavalos. Ouvi Rupert gritar alguma coisa às nossas costas em gaélico, enquanto descíamos a colina, mas não consegui distinguir as palavras.
Cheguei à clareira primeiro. Descendo do cavalo, relaxei sobre a relva e fechei os olhos contra a claridade do sol. Jamie freou ao meu lado pouco depois e saltou da sela. Deu um tapa no cavalo, as rédeas soltas, mandando-o pastar com o meu, antes de cair de joelhos na relva. Estendi os braços e o puxei para mim.
Era um dia quente, impregnado do cheiro de grama e perfume de flores. O próprio Jamie cheirava a grama recém-aparada, doce e pungente.
- Teremos que ser rápidos - eu disse. — Estarão se perguntando por que estamos levando tanto tempo para pegar água.
- Não vão ficar se perguntando - disse, desatando meus cordões com a facilidade adquirida com a prática. — Eles sabem.
- O que quer dizer?
- Não ouviu o que Rupert disse quando partimos?
- Eu o ouvi, mas não consegui entender o que disse. — Meus conhecimentos de gaélico estavam melhorando a ponto de poder compreender as palavras mais comuns, mas ainda estava longe de entender uma conversa.
- Ótimo. Não era adequado aos seus ouvidos. - Tendo libertado meus seios, enterrou o rosto neles, sugando e mordendo delicadamente, até eu não agüentar mais e deslizar sob ele para levantar e tirar minhas saias do caminho. Sentindo-me absurdamente inibida depois daquele encontro selvagem e primitivo sobre a rocha, ficara acanhada de fazer amor perto do acampamento e os bosques eram densos demais para andarmos por eles com segurança um pouco mais longe do acampamento. Nós dois estávamos sentindo a leve e agradável tensão da abstinência e agora, longe de olhos e ouvidos curiosos, unimo-nos com um impacto que fez meus lábios e dedos formigarem com a precipitação do sangue.
Estávamos quase terminando quando Jamie ficou repentinamente paralisado. Abrindo os olhos, vi seu rosto escuro contra o sol, com uma expressão absolutamente indescritível. Havia um objeto negro pressionado contra sua cabeça. Meus olhos finalmente se ajustaram à claridade e vi que se tratava do cano de um mosquete.
- Levante-se, filho-da-mãe desgraçado. - O cano da arma moveu-se rispidamente, chocando-se contra a têmpora de Jamie. Bem devagar, ele levantou-se. Uma gota de sangue começou a formar-se no local onde o cano do mosquete arranhara a pele.
Eram dois soldados ingleses desertores, a julgar pelos restos esfarrapados dos uniformes. Ambos estavam armados com mosquetes e pistolas e pareciam muito satisfeitos com o que a sorte colocara em seus caminhos. Jamie ficou de pé com os braços erguidos, o cano de um mosquete pressionado contra o peito, o rosto cuidadosamente impenetrável.
- Devia tê-lo deixado terminar, Harry - disse um dos homens. Abriu um largo sorriso, com uma boa exibição de dentes estragados. - Parar assim no meio faz mal à saúde de um homem.
Seu comparsa espetou o mosquete no peito de Jamie.
- A saúde dele não é problema meu. E logo também não será mais problema para ele. Estou com vontade de aproveitar um pouco disso - fez um breve aceno da cabeça em minha direção - e não me importo de vir depois de outro homem, muito menos de um filho-da-puta escocês como este. O sujeito dos dentes estragados riu.
- Também não sou tão exigente. Mate-o, então, e ande logo com isso.
Harry, um sujeito baixo, atarracado e estrábico, pensou por um instante examinando-me especulativamente. Eu ainda estava sentada no chão, os joelhos puxados para junto do corpo e as saias firmemente pressionadas em volta dos tornozelos. Fizera um certo esforço para fechar meu corpete, mas ainda estava muito exposta. Finalmente, o homem baixo riu e fez um sinal chamando seu parceiro.
- Não, deixe que ele veja. Venha até aqui, Arnold, e mantenha seu mosquete nele. - Arnold obedeceu, ainda rindo. Harry colocou seu mosquete no chão e soltou o cinto com a pistola ao lado dele, preparando-se.
Pressionando minhas saias para baixo, percebi um objeto duro no bolso direito. A adaga que Jamie me dera. Conseguiria usá-la? Sim, decidi, olhando o rosto vesgo e cheio de espinhas de Harry, certamente eu conseguiria.
No entanto, eu teria que esperar até o último segundo possível e tinha minhas dúvidas se Jamie conseguiria se controlar por tanto tempo. Podia ver a ânsia de matar profundamente marcada em suas feições; logo a consideração das conseqüências não seria mais suficiente para contê-lo.
Não ousava deixar minhas intenções transparecerem muito em meu rosto, mas estreitei os olhos e fitei-o o mais duramente possível, querendo dizer-lhe para não se mexer. Os tendões saltavam em seu pescoço e o rosto estava roxo, tomado pelo sangue que subira, mas percebi um aceno ínfimo de sua cabeça, indicando que compreendera a minha mensagem.
Lutei enquanto Harry pressionava-me contra o chão e tentei levantar minha saia, mais para colocar a mão no cabo da adaga do que realmente para oferecer resistência. Esbofeteou-me com força, ordenando-me que ficasse quieta. Minha face ardeu e meus olhos lacrimejaram, mas a adaga agora estava em minha mão, oculta sob as pregas da saia.
Deitei-me de costas, respirando pesadamente. Concentrei-me em meu objetivo, tentando apagar tudo o mais da minha mente. Teria que ser nas costas; o desgraçado estava perto demais para eu tentar a garganta.
Os dedos imundos enfiavam-se em minhas coxas, afastando-as. entalmente, pude ver o dedo rombudo de Rupert golpeando na região as costelas de Murtagh e ouvir sua voz: "Aqui, dona, embaixo das últimas Costelas, perto da espinha dorsal. Golpeie com força para cima e diretamente no rim, e ele cairá como uma pedra."
Estava quase na hora; sentia o mau hálito quente e repugnante de Harry em meu rosto e ele apalpava minhas pernas nuas, concentrado em seu objetivo.
— Dê uma boa olhada, rapazinho, e veja como se faz — disse, ofegante. — Vou deixar sua vagabunda gemendo e pedindo mais.
Passei meu braço esquerdo em torno do seu pescoço para mantê-lo junto a mim; estendendo a mão com a faca no alto, mergulhei-a com todas as forças que pude arregimentar. O choque do impacto reverberou pelo meu braço e quase soltei a adaga. Harry ganiu e se contorceu, tentando escapar. Impedida de ver, eu mirara alto demais e a faca resvalara em uma costela.
Não podia desistir agora. Felizmente, minhas pernas libertaram-se do emaranhado das saias. Passei-as com toda força em volta dos quadris suados de Harry, prendendo-o durante os preciosos segundos de que eu precisava para outra tentativa. Apunhalei-o outra vez, com uma força desesperada, e desta vez atingi o lugar certo.
Rupert tinha razão. Harry arqueou-se numa hedionda paródia do ato sexual, depois desabou sem um som como um peso morto e flácido sobre mim, o sangue jorrando em esguichos cada vez mais fracos do ferimento em suas costas.
A atenção de Arnold fora distraída por um instante pelo espetáculo no chão e um instante era mais do que suficiente para o enlouquecido escocês que mantinha sob sua mira. Quando consegui me recuperar o suficiente para me esgueirar de baixo do defunto, Arnold se unira a seu comparsa na morte, a garganta cortada com precisão de orelha a orelha pelo sgian dhu que Jamie carregava na meia.
Jamie ajoelhou-se a meu lado, puxando-me de baixo do cadáver. Nós dois tremíamos de nervoso e do choque, e permanecemos agarrados um ao outro sem falar por vários minutos. Ainda sem falar, pegou-me no colo e levou-me para longe dos dois corpos, para uma faixa de terra gramada atrás de uma cortina de alámos.
Colocou-me no solo e sentou-se a meu lado desajeitadamente, desabando como se seus joelhos tivessem cedido repentinamente. Senti uma solidão gélida, como se o vento do inverno soprasse nos meus ossos, e estendi os braços para ele. Ele ergueu a cabeça dos joelhos, o rosto desfigurado, e fitou-me como se nunca tivesse me visto. Quando coloquei as mãos em seus ombros, puxou-me com força contra seu peito com um som entre um gemido e um soluço.
Possuímo-nos ali mesmo, num silêncio selvagem e angustiado, com movimentos ferozes e terminando em poucos instantes, levados por uma compulsão que eu não compreendia, mas sabia que devia acatar ou nos perderíamos um do outro para sempre. Não foi um ato de amor, mas de necessidade, como se soubéssemos que, se ficássemos sozinhos, nenhum de nós dois conseguiria suportar. Nossa única força residia na fusão, afogando lembranças de morte e de um quase-estupro na inundação dos sentidos.
Ficamos agarrados um ao outro na relva, desalinhados, sujos de sangue e tremendo sob o sol. Jamie murmurou alguma coisa, a voz tão baixa que apreendi somente a palavra "lamento".
- Não foi culpa sua - sussurrei, acariciando seus cabelos. — Está tudo bem, nós dois estamos bem. - Tinha a sensação de estar sonhando, como se nada fosse real à minha volta e reconheci vagamente os sintomas de choque retardado.
- Não é por isso - disse. - Não é por isso. Na verdade, foi culpa minha... Que tolice vir aqui sem tomar as devidas precauções. E deixar você ser... Mas não era isso a que eu estava me referindo. Queria dizer... que lamento muito por usá-la como fiz agora. Possuí-la agora, logo depois de.-- como um animal. Desculpe-me, Claire... Não sei o que... Não pude evitar, mas... Meu Deus, você está tão fria, mo duinne, suas mãos estão geladas. Vamos, deixe-me esquentá-la.
Choque, também, pensei confusamente. Era engraçado como o choque fazia algumas pessoas desatarem a falar. Outras apenas tremiam em silêncio. Como eu. Pressionei sua boca contra meu ombro para acalmá-lo.
- Está tudo bem - continuei repetindo. - Está tudo bem.
De repente, uma sombra recaiu sobre nós, sobressaltando-nos. Dougal estava parado ao nosso lado, radiante, os braços cruzados. Educadamente desviou o olhar enquanto eu atava meus cordões apressadamente, mas olhou para Jamie com o cenho franzido.
- Agora, ouça-me, rapaz, tudo bem que queira se dar ao prazer com sua mulher, mas deixar todos nós esperando por mais de uma hora e estarem tão absortos um com o outro que você nem me ouviu chegar... esse tipo de comportamento vai lhe causar problemas um dia desses, rapaz. Alguém podia vir por trás de vocês, encostar uma pistola em sua cabeça antes de você se dar conta e...
Parou no meio de sua advertência para me fitar com incredulidade, enquanto eu rolava pela grama rindo histericamente. Jamie, vermelho como uma beterraba, levou Dougal para o outro lado dos álamos, explicando-lhe o que se passara com uma voz baixa e controlada. Continuei a me sacudir incontrolavelmente, rindo baixinho, até enfiar um lenço na boca para abafar o som. A liberação repentina das emoções, associada às palavras de Dougal, evocara uma imagem do rosto de Jamie, pego em flagrante como acontecera, que achei totalmente hilariante em meu estado de atordoamento. Ri e gemi até minhas bochechas doerem. Finalmente, sentei-me, limpando os olhos no lenço, e me deparei com Jamie e Dougal de pé, parados acima de mim, exibindo expressões idênticas de desaprovação. Jamie me suspendeu e foi me conduzindo, ainda prendendo riso e resfolegando ocasionalmente, para onde o resto dos homens esperavam com os cavalos.
Afora uma tendência persistente de rir histericamente por nada, eu não parecia sofrer de nenhum efeito danoso de nosso encontro com os desertores, embora tenha me tornado muito cautelosa em me afastar do acampamento. Dougal assegurou-me que, na realidade, não era tão comum encontrar bandidos nas estradas das Highlands, simplesmente porque não havia muitos viajantes que valesse a pena roubar. Ainda assim, sobressaltava-me nervosamente com os sons da floresta e voltava apressadamente das tarefas rotineiras como buscar lenha e água, ansiosa para avistar e ouvir os MacKenzie. Também encontrei um novo alento no som de seus roncos perto de mim à noite e perdi qualquer constrangimento que pudesse sentir a respeito dos discretos gemidos que ocorriam sob nossos cobertores.
Eu ainda sentia medo de ficar sozinha quando, alguns dias mais tarde, chegou o momento do encontro com Horrocks.
— Ficar aqui? — exclamei sem acreditar. — Não! Eu vou com você.
— Não pode — Jamie repetiu pacientemente, mais uma vez. — A maioria dos homens continuará viagem para Lag Cruime com Ned, para coletar os aluguéis, como esperado. Dougal e alguns dos outros irão comigo ao encontro, para o caso de alguma traição de Horrocks. Mas você não pode ser vista abertamente em Lag Cruime; os homens de Randall podem estar por perto e ele seria bem capaz de levá-la à força. E quanto ao encontro com Horrocks, não faço a menor idéia do que pode acontecer. Não, há um pequeno bosque perto da curva da estrada, é fechado, forrado de grama e há água bem perto. Ficará bem ali, até eu voltar para pegá-la.
— Não - repeti teimosamente. — Eu vou com você. - Um certo sentimento de orgulho não me deixava dizer-lhe que tinha medo de ficar longe dele. Mas estava disposta a dizer-lhe que temia por ele.
— Você mesmo disse que não sabe o que acontecerá no encontro com Horrocks - argumentei. - Não quero ficar esperando aqui, imaginando o dia inteiro o que terá acontecido a você. Deixe-me ir com você — disse, tentando persuadi-lo. - Prometo ficar fora de vista durante o encontro. Mas não quero ficar aqui sozinha, preocupada o dia todo.
Suspirou com impaciência, mas não argumentou mais. Entretanto, quando chegamos ao bosque, inclinou-se e agarrou as rédeas do meu cavalo, forçando-me a sair da estrada e entrar no mato. Desceu do seu cavalo, atando as duas rédeas a um arbusto. Ignorando minhas veementes objeções, desapareceu no meio das árvores. Teimosamente, recusei-me a apear. Ele não podia obrigar-me a ficar, pensei.
Surgiu na estrada finalmente. Os outros tinham ido à frente, mas Jamie, lembrando-se de nossa última experiência em clareiras desertas, não quis partir enquanto não tivesse esquadrinhado cuidadosamente o local, examinando metodicamente os quatro cantos do bosque e abrindo caminho pelo capim alto com uma vara. Quando voltou, desamarrou os cavalos e montou novamente na sela.
- É seguro — disse. — Cavalgue até o meio do bosque, Claire, e esconda-se e o cavalo também. Virei buscá-la assim que terminar o que tenho que fazer. Não sei quanto tempo vai durar, mas no mais tardar até o pôr-do-sol.
- Não! Eu vou com você! - Não podia suportar a idéia de ficar presa em uma floresta, sem saber o que estava acontecendo. Preferia estar correndo um perigo real a ser deixada durante horas de ansiedade, esperando e imaginando. E sozinha.
Jamie não conseguiu conter mais sua impaciência. Estendeu os braços e agarrou-me pelos ombros.
- Você não prometeu me obedecer? - perguntou, sacudindo-me brandamente.
- Sim, mas... — Só porque fui obrigada, ia dizer, mas ele ja tocava meu cavalo em direção ao bosque.
- É muito perigoso e eu não quero você lá, Claire. Vou ficar ocupado e, se vier a acontecer, não vou poder lutar e protegê-la ao mesmo tempo. - Vendo meu olhar rebelde, levou a mão ao alforje e começou a vasculhar lá dentro.
- O que está procurando?
- Corda. Se não fizer o que estou dizendo, vou amarrá-la a uma árvore até eu voltar.
- Não faria isso!
- Ah, faço, sim! - Obviamente, falava a sério. Cedi de má vontade e relutantemente tomei as rédeas do meu cavalo. Jamie inclinou-se para me beijar rapidamente no rosto, já se virando para partir.
- Cuide-se, Sassenach. Tem sua adaga? Ótimo. Volto o mais rápido que puder. Ah, mais uma coisa.
- O que é? - perguntei, amuada.
- Se você deixar este bosque antes de eu vir buscá-la, vou esfolar seu traseiro com o cinto da minha espada. Não iria gostar de percorrer a pé todo o caminho até Bargrennan. Lembre-se - disse, beliscando delicadamente minha bochecha —, não faço promessas vazias.
Continuei lentamente em direção ao bosque, olhando para trás para vê-lo cavalgando a toda velocidade, inclinado sobre a sela, cavalo e cavaleiro formando um único ser, as pontas de seu xale xadrez esvoaçando às suas costas.
Estava fresco sob as árvores; tanto eu quanto o cavalo demos um suspiro de alívio quando entramos na sombra. Era um daqueles raros dias quentes na Escócia, quando o sol flameja de um céu de musselina azul desbotada e a névoa matinal é dissipada até as oito horas. O trinado de pássaros enchia o bosque; um bando de abelharucos ciscava no grupo de carvalhos à esquerda e podia ouvir o que achei ser um tordo a curta distância.
Sempre fui uma entusiasta ornitófila amadora. Se ia ficar abandonada ali até que conviesse ao meu autoritário, dominador, empacado e obstinado marido parar de arriscar o seu estúpido pescoço, aproveitaria o tempo para ver que pássaros conseguiria avistar.
Soltei o cavalo para que pastasse na grama exuberante na borda do bosque, sabendo que ele não iria longe. A grama terminava bruscamente a alguns metros das árvores, sufocada pelas urzes invasoras.
Era uma clareira de diversos tipos de coníferas e de carvalhos novos, perfeita para observação de pássaros. Caminhei por ela, ainda mentalmente furiosa com Jamie, mas aos poucos me sentindo mais calma, à medida que ouvia o pio característico de um papa-moscas e a garrulice áspera do tordo.
A clareira terminava bruscamente no outro extremo, à beira de um pequeno precipício. Abri caminho entre as árvores novas e o gorjeio dos pássaros foi afogado no barulho de água corrente. Parei à margem de um riacho, um desfiladeiro íngreme e pedregoso, com cascatas lançando-se pelas encostas entalhadas para se espatifarem nos lagos marrons e prateados lá embaixo. Sentei-me na beirada da margem e deixei os pés dependurados acima da água, desfrutando o sol em meu rosto.
Um corvo cruzou o céu acima da minha cabeça, seguido de perto por um par de rabos-ruivos. O volumoso corpo preto ziguezagueava pelo ar, tentando evitar os minúsculos perseguidores. Sorri, observando os furiosos e pequenos pássaros atormentando o corvo de um lado para o outro e me perguntei se os corvos, quando entregues aos seus próprios afazeres, realmente voavam em linha reta. Aquele, se mantivesse uma linha reta, voaria diretamente para...
Parei repentinamente.
Estivera tão concentrada em discutir com Jamie que até aquele minuto não me ocorrera que a situação que eu vinha perseguindo há dois meses finalmente se apresentara. Eu estava sozinha. E sabia onde estava.
Olhando para o outro lado do riacho, meus olhos eram ofuscados pelo sol da manhã ardendo entre os freixos vermelhos na margem distante. Portanto, aquele era o leste. Meu coração começou a bater com força. O leste ficava para aquele lado, Lag Cruime estava diretamente às minhas costas. Lag Cruime ficava a seis quilômetros ao norte de Fort William. E Fort WilKam ficava a pouco mais de quatro quilômetros a oeste da colina de Craigh na Dun.
Assim, pela primeira vez desde meu encontro com Murtagh, eu sabia aproximadamente onde estava — a cerca de dez quilômetros daquela maldita colina e seu desgraçado círculo de pedras. Dez quilômetros - talvez -de casa. De Frank.
Comecei a voltar para a clareira, mas mudei de idéia. Não ousava pegar estrada. Tão perto de Fort William e dos diversos vilarejos que o circundavam, havia um risco grande de me deparar com alguém. E não podia levar um cavalo pelo curso perigosamente íngreme do riacho. Na realidade tinha dúvidas se o percurso poderia ser feito a pé; as ribanceiras de pedra eram escarpadas em alguns pontos, mergulhando diretamente nas águas revoltas do riacho, sem nenhuma base segura para pôr o pé, a não ser os topos de algumas rochas espalhadas, projetando-se das corredeiras.
Mas era de longe o caminho mais direto na direção que eu queria. E eu não ousava fazer um trajeto com muitas voltas; poderia facilmente me perder no mato ou ser alcançada por Dougal e Jamie, em seu retorno.
Meu estômago deu um salto repentino quando pensei em Jamie. Deus, como poderia fazer isso? Deixá-lo sem uma palavra de explicação ou desculpas? Desaparecer sem deixar vestígios, depois de tudo que fizera por mim?
Com esse pensamento, finalmente decidi deixar o cavalo. Ao menos, pensaria que não o deixei por vontade própria; acreditaria que fui assassinada por animais selvagens - toquei a adaga no meu bolso - ou talvez seqüestrada por bandidos. E não encontrando nenhuma pista do meu paradeiro, finalmente me esqueceria e se casaria de novo. Talvez com a linda e jovem Laoghaire, quando voltasse a Leoch.
Apesar de absurdo, vi que a idéia de Jamie compartilhando a cama de Laoghaire me transtornava tanto quanto a idéia de deixá-lo. Amaldiçoei-me por tal idiotice, mas não conseguia deixar de pensar em seu rosto redondo e meigo, ruborizado de desejo ardente, e as mãos grandes de Jamie mergulhando naqueles cabelos platinados...
Descerrei os dentes e resolutamente limpei as lágrimas do rosto. Não tinha nem o tempo nem a energia para reflexões tolas. Tinha que ir, e agora, enquanto podia. Talvez fosse a melhor oportunidade que teria. Esperava que Jamie me esquecesse. Eu sabia que jamais o esqueceria. Mas, por enquanto, precisava afastá-lo da mente ou não conseguiria me concentrar no que pretendia fazer, o que já era bastante complicado.
Cautelosamente, fui escolhendo meu caminho pela margem escarpada até a beira d'água. O barulho da correnteza abafava o som dos pássaros no bosque acima. A descida era difícil, mas ao menos havia espaço para caminhar ali junto à água. A beirada do rio era lamacenta e semeada de pedras, mas transitável. Mais para baixo, vi que teria que entrar na água e seguir precariamente de pedra em pedra, equilibrando-me acima da correnteza, até a margem alargar-se o suficiente para eu voltar à orla outra vez.
Prossegui com extrema cautela, estimando quanto tempo eu teria. Jamie dissera apenas que voltariam antes do pôr-do-sol. Cinco a seis quilômetros até Lag Cruime, mas eu não tinha como saber em que condições estavam as estradas, nem quanto tempo levaria o assunto a tratar com Horrocks. Se ele estivesse lá. Mas estaria, argumentei comigo mesma Hugh Munro afirmara que estaria e, por mais estranha que fosse aquela figura, Jamie obviamente o considerava uma fonte confiável de informação.
Meu pé escorregou na primeira pedra no rio, mergulhando-me até os joelhos na água gelada e ensopando as minhas saias. Voltei para a margem prendi as saias o mais alto que pude e retirei os sapatos e as meias. Enfiei-os no bolso formado pelas saias presas e pisei na pedra outra vez.
Percebi que me agarrando com os dedos dos pés, podia pular de uma pedra para a outra sem escorregar. Entretanto, minhas saias emboladas dificultavam ver onde deveria pisar em seguida e mais de uma vez escorreguei para dentro da água. Minhas pernas estavam geladas e, conforme meus pés iam ficando dormentes, tornava-se mais difícil me equilibrar.
Felizmente, a margem alargou-se outra vez e pisei com satisfação na lama pegajosa e morna. Após curtos períodos de caminhada razoavelmente confortável, alternados com períodos muito mais longos saltitando precariamente de pedra em pedra pela correnteza gelada, descobri para meu alívio que estava ocupada demais para pensar muito em Jamie.
Após algum tempo, já estabelecera uma rotina. Pisar, firmar-se, parar, olhar em volta, localizar o próximo passo. Pisar, firmar-se, parar e assim por diante. Devo ter ficado confiante demais, ou talvez apenas cansada, porque me descuidei e errei o alvo. Meu pé escorregou irremediavelmente pela frente da pedra coberta de limo. Agitei os braços freneticamente tentando voltar para a pedra onde estava antes, mas já perdera o equilíbrio. Com saias, anáguas, adaga e tudo, mergulhei na água.
E continuei mergulhando. Embora o rio tivesse apenas cerca de meio metro de profundidade, havia poços fundos de vez em quando, nos locais onde a água revolta cavara depressões profundas no leito rochoso. A pedra onde eu perdera o equilíbrio ficava na borda de um desses poços e, quando atingi a água, afundei como uma verdadeira pedra.
Fiquei tão abalada com o choque da água gelada entrando pelo meu nariz e pela minha boca que nem gritei. Bolhas prateadas lançavam-se do corpete do meu vestido e passavam pelo meu rosto em direção à superfície. O tecido de algodão encharcou-se quase imediatamente e a sensação de congelamento provocada pela água paralisou minha respiração.
Comecei quase imediatamente a lutar para chegar à superfície, mas o peso das minhas roupas puxava-me para baixo. Tentei desamarrar os cordões do meu corpete, mas não havia a menor chance de conseguir desatá-los antes de me afogar. Proferi silenciosamente diversas observações depreciativas e mesquinhas sobre costureiras, moda feminina e a estupidez de saias longas, enquanto esperneava freneticamente para manter as pernas desembaraçadas das dobras dos tecidos.
A água era cristalina. Meus dedos tocaram a parede de pedra, deslizando pelas folhas longas, escuras e escorregadias de algas e lentilhas d'água. Escorregadia como limo, é o que Jamie dissera a respeito de minha...
O pensamento arrancou-me do pânico. De repente, compreendi que não deveria ficar me exaurindo tentando espernear para subir à superfície. Aquele poço não podia ter mais do que dois metros e meio a três metros de profundidade; o que eu tinha que fazer era relaxar, flutuar até o fundo, firmar os pés e ejetar-me para cima. Com sorte, isso me permitiria tirar a cabeça da água e respirar e, ainda que voltasse a afundar, podia continuar a saltar do fundo até conseguir me aproximar o suficiente da borda para me agarrar a uma pedra.
A descida foi agonizantemente lenta. Como já não lutava para subir, minhas saias encapelaram-se à minha volta, flutuando diante do meu rosto. Continuei batendo nelas para baixo, precisava manter o rosto livre. Meus pulmões pareciam que iam estourar e havia pontos escuros por trás dos meus olhos quando meus pés tocaram o chão liso do poço. Deixei meus joelhos inclinarem-se um pouco, pressionando as saias junto ao corpo, depois dei um impulso para cima com todas as minhas forças.
Funcionou, ainda que por pouco. Meu rosto irrompeu na superfície quando atingi o ápice do meu salto e tive apenas o tempo suficiente para a mais breve tragada de ar antes de a água fechar-se sobre mim outra vez. Pressionei os braços ao longo do corpo para minimizar a resistência da água e descer mais rapidamente. Mais uma vez, Beauchamp, pensei. Flexione os joelhos, prepare-se, salte!
Fui lançada para cima, os braços estendidos acima da cabeça. Vira um lampejo de vermelho quando irrompi da água na última vez; devia haver uma sorveira-brava projetando-se sobre a água. Talvez eu conseguisse agarrar um galho.
Quando meu rosto saiu fora da água, algo agarrou minha mão estendida. Algo duro, quente e reconfortantemente sólido. Uma outra mão.
Tossindo e cuspindo, tateei cegamente com a mão livre, contente demais com o resgate para lamentar a interrupção de minha tentativa de fuga. Contente ao menos até que, ao afastar os cabelos para trás, ergui os olhos para o rosto de Lancashire, carnudo e ansioso, do cabo Hawkins.
Delicadamente, removi um filamento de planta aquática ainda úmido da manga da minha blusa e coloquei-o no centro do mata-borrão. Depois, vendo o tinteiro à mão, peguei a folha e mergulhei-a na tinta, usando o resultado para pintar padrões interessantes no espesso papel absorvente do mata-borrão. Empolgando-me no espírito da ação, finalizei a obra-prima com um palavrão, salpiquei-a com areia e sequei-a cuidadosamente antes de pendurá-la na bancada de escaninhos.
Recuei um passo para admirar o efeito, em seguida olhei ao redor à cata de outras distrações que pudessem tirar minha mente da iminente chegada do capitão Randall.
Nada mau para o escritório particular de um capitão, pensei, examinando as pinturas na parede, os objetos de prata sobre a escrivaninha e o tapete grosso no assoalho. Comecei a andar pelo carpete, a fim de respingá-lo melhor. O percurso até Fort William secara minhas roupas externas bastante bem, mas as camadas inferiores de anáguas ainda gotejavam.
Abri um pequeno armário atrás da escrivaninha e descobri a peruca sobressalente do capitão, perfeitamente arranjada em um dos suportes de ferro batido do par ali existente. Cuidadosamente arrumado diante da peruca, via-se um conjunto de prata composto de espelho e escovas, bem como um pente de casco de tartaruga. Levando a peruca em seu suporte para a escrivaninha, delicadamente peneirei em cima dela o conteúdo de areia restante no recipiente antes de devolvê-la ao armário.
Estava sentada atrás da escrivaninha, o pente na mão, analisando meu reflexo no espelho, quando o capitão entrou. Lançou um olhar para minha aparência desalinhada, o armário assaltado e o mata-borrão desfigurado.
Sem piscar, puxou uma cadeira e sentou-se à minha frente, acomodando-se descontraidamente com um dos pés calçados de botas descansando no joelho oposto. Um chicote de montar pendia de uma das mãos elegantes e aristocráticas. Observei a ponta trançada, vermelha e preta, conforme ela balançava-se lentamente de um lado para o outro acima do tapete.
- A idéia tem seus atrativos - ele disse, observando meus olhos seguindo o balanço do chicote. - Mas provavelmente consigo pensar em algo melhor, se tiver alguns instantes para me concentrar.
- Diria que sim - retorqui, tirando uma grossa mecha de cabelos de cima dos meus olhos. — Mas não tem permissão de chicotear mulheres, não é?
- Somente em determinadas circunstâncias - respondeu educadamente. - Que não correspondem à sua situação... ainda. Mas isso é muito público, sabe. Achei que poderíamos nos conhecer melhor em particular primeiro. - Estendeu a mão para o aparador atrás dele e pegou uma garrafa de bebida.
Tomamos o clarete em silêncio, entreolhando-nos por cima de nossos copos de vinho.
- Havia me esquecido de lhe oferecer minhas felicitações por seu casamento - disse, repentinamente. — Desculpe minha falta de boas maneiras.
- Não se preocupe - eu disse, gentilmente. - Tenho certeza de que a família de meu marido ficará extremamente agradecida por me oferecer sua hospitalidade.
- Ah, duvido um pouco — disse, com um sorriso cativante. — De qualquer modo, não estava pensando em contar-lhes onde você está.
- E o que o faz pensar que não sabem? - perguntei, começando a me sentir um pouco derrotada, apesar da minha determinação anterior de desacatá-lo. Lancei um olhar rápido à janela, mas ficava do lado errado do edifício. O sol não era visível dali, mas a luz parecia amarela; talvez meio da tarde? Quanto tempo levaria até Jamie encontrar meu cavalo abandonado? E quanto tempo depois disso até seguir minha pista até o riacho e perdê-la imediatamente? Desaparecer sem deixar traços tinha suas desvantagens. Na realidade, a menos que Randall decidisse mandar um recado a Dougal sobre meu paradeiro, não havia nenhuma maneira no mundo de os escoceses saberem para onde eu tinha ido.
- Se soubessem — disse o capitão, arqueando uma sobrancelha bem delineada -, provavelmente já estariam aqui. Considerando os tipos de nomes que Dougal MacKenzie aplicou a mim por ocasião de nosso último encontro, não creio que me considere um acompanhante adequado para um parente dele. E o clã MacKenzie parece considerá-la de tal valor que preferem adotá-la como um dos seus a vê-la cair nas minhas mãos. Não posso imaginar que permitissem que ficasse aqui definhando numa vil prisão.
Examinou-me com desaprovação, captando cada detalhe dos meus trajes ensopados, cabelos desgrenhados e aparência geral desalinhada.
- Só não entendo por que a querem tanto - observou. - Ou, se você é tão valiosa para eles, por que diabos a deixariam vagando pelo campo sozinha. Eu pensava que até os bárbaros tomavam conta de suas mulheres Melhor do que isso. - Um brilho repentino iluminou seus olhos. - Ou será que você talvez tenha resolvido separar-se deles? - Recostou-se na cadeira, intrigado com essa nova possibilidade.
-- A noite de núpcias foi mais difícil do que você esperava? – perguntou. - Devo confessar que fiquei um pouco desconcertado quando soube que você preferiu ir para a cama com um daqueles selvagens cabeludos, seminus, do que ter novas conversas comigo. Isso demonstra um grande senso de dever, madame, e devo parabenizar quem quer que a tenha contratado pela capacidade que tem de motivá-la. Mas - inclinou-se ainda mais para trás em sua cadeira, equilibrando o copo de vinho sobre o joelho - receio que eu ainda tenha que insistir no nome de seu empregador. Se você realmente se separou dos MacKenzie, a suposição mais provável é que seja uma agente francesa. Mas de quem?
Fitou-me intensamente, como uma cobra tentando hipnotizar um pássaro. No entanto, a essa altura, eu já tomara clarete suficiente para recuperar uma parte da minha valentia e também o encarei sem desviar os olhos.
- Ah - disse, com exagerada cortesia -, então estou incluída nesta conversa? Achei que estava indo muito bem sozinho. Por favor, continue.
A linha graciosa de sua boca endureceu-se um pouco e a ruga profunda no canto aprofundou-se mais ainda, mas não disse nada. Colocando os óculos de lado, levantou-se e, retirando a peruca, dirigiu-se ao armário, onde a colocou no suporte vazio. Eu o vi fazer uma pequena pausa, ao ver os escuros grãos de areia adornando a outra peruca, mas sua expressão não mudou de forma perceptível.
Sem peruca, seus cabelos eram escuros, fartos, lustrosos e de textura fina. Também tinham uma aparência familiar que me perturbou, embora fossem longos até os ombros e amarrados para trás com uma fita de cetim azul. Retirou o laço de fita, pegou o pente na escrivaninha e ajeitou os cabelos amassados pela peruca, depois amarrou de novo a fita cuidadosamente. Prestativamente, segurei o espelho para que ele pudesse avaliar o resultado final. Tirou-o de mim com um gesto ostensivo e recolocou-o no seu lugar junto às perucas, quase batendo a porta do armário.
Eu não sabia se todos esses rodeios tinham o objetivo de me deixar nervosa - e se esse fosse o caso, estava dando certo - ou se ele simplesmente não sabia o que fazer em seguida.
A tensão foi um pouco aliviada pela entrada de um ordenança, trazendo uma bandeja de chá e acompanhamentos. Ainda em silêncio, Randall serviu uma xícara e estendeu-a a mim. Ficamos mais algum tempo em silêncio, tomando o chá.
- Não me diga — falei, finalmente. - Deixe-me adivinhar. É uma nova forma de persuasão que você inventou, tortura pela bexiga. Você me serve bastante líquido até eu prometer lhe contar qualquer coisa em troca de cinco minutos com um urinol.
Ele foi pego de surpresa de tal maneira que não pôde conter o riso. Isso transformou inteiramente sua expressão e pude compreender sem dificuldade por que havia tantos envelopes perfumados com caligrafia feminina no fundo da gaveta esquerda de sua escrivaninha. Tendo deixado a máscara cair, ele não prendeu o riso, mas deixou-o fluir. Quando terminou, fitou-me outra vez, com um esboço de sorriso ainda nos lábios.
- O que quer que você seja, madame, pelo menos é divertida - observou. Puxou a corda de um sino pendurada junto à porta e quando o ordenança reapareceu, instruiu-o a me conduzir às necessárias instalações.
- Mas cuidado para não perdê-la no caminho, Thompson - acrescentou, abrindo a porta para mim com uma mesura cínica.
Apoiei-me fracamente contra a porta do lavatório aonde fui conduzida. Estar longe de sua presença era um alívio, mas por pouco tempo. Eu já tivera ampla oportunidade de julgar o verdadeiro caráter de Randall, tanto pelas histórias que ouvira quanto por experiência própria. Mas havia aqueles malditos lampejos de Frank que de vez em quando transpareciam pelo exterior cruel e ostentoso. Fora um erro fazê-lo rir, pensei.
Sentei-me, ignorando o mau cheiro enquanto me concentrava no problema imediato. A fuga parecia improvável. Fora o vigilante Thompson, o escritório de Randall ficava em um prédio localizado perto do centro do complexo. E embora o forte em si mesmo não fosse mais do que uma área cercada por um muro de pedra, esses muros tinham três metros de altura e os portões duplos eram bem guardados.
Pensei em fingir que estava passando mal e permanecer no meu refúgio, mas descartei a idéia — e não só por causa do ambiente desagradável. A dura verdade é que pouco adiantava adiar a tática, a menos que eu tivesse alguma coisa em mente, o que eu não tinha. Ninguém sabia onde eu estava e Randall não pretendia dizer a ninguém. Eu era dele, enquanto ele estivesse disposto a se divertir comigo. Mais uma vez, arrependi-me de tê-lo feito rir. Um sádico com senso de humor era particularmente perigoso.
Buscando freneticamente alguma coisa útil que eu pudesse saber a respeito do capitão, cheguei a um nome. Entreouvido e descuidadamente gravado, eu esperava ter o nome certo. Era uma carta lamentavelmente pequena para jogar, mas a única que eu possuía. Respirei fundo, soltei o ar apressadamente e saí do meu santuário.
De volta ao escritório, acrescentei açúcar ao meu chá e mexi-o cuidadosamente. Em seguida, creme de leite. Tendo arrastado o cerimonial ao máximo, fui forçada a olhar para Randall. Estava recostado na cadeira, em sua pose favorita, a xícara elegantemente suspensa no ar, para poder me examinar melhor.
-- E então? - eu disse. — Não precisa se preocupar em estragar meu apetite, porque não tenho nenhum. O que pretende fazer comigo?
Sorriu e tomou um gole deliberadamente cuidadoso do chá escaldante antes de responder.
- Nada.
- É mesmo? - Ergui as sobrancelhas, surpresa. - Sua criatividade falhou?
- Eu não gostaria de pensar assim - disse, sempre bem-educado. Seus olhos percorreram meu corpo de cima a baixo, de um modo que nada lembrava as boas maneiras.
- Não - disse, o olhar demorando-se na borda do meu corpete, onde o lenço que eu ali enfiara deixava as elevações dos meus seios bem visíveis -, por mais que eu quisesse lhe dar uma lição muito necessária de boas maneiras, receio que o prazer tenha que ser adiado indefinidamente. Vou mandá-la para Edimburgo com a próxima remessa do malote. E não gostaria que chegasse lá com nenhum dano visível; meus superiores poderiam me considerar displicente.
- Edimburgo? - Não pude disfarçar minha surpresa.
- Sim. Já ouviu falar no Tolbooth, imagino.
Já. Uma das prisões mais notórias e repulsivas da época, era famosa por imundície, crimes, doenças e escuridão. A maioria dos prisioneiros mantidos ali morria antes de serem chamados a julgamento. Engoli com força, forçando para baixo a bílis amarga que subira à minha garganta, misturada ao gole de chá doce.
Randall bebericou seu próprio chá, satisfeito consigo mesmo.
- Deverá se sentir bem confortável lá. Afinal, parece gostar de se cercar de sujeira e umidade. - Lançou um olhar reprovador à barra encharcada de minhas anáguas, caindo abaixo da minha saia. - Vai se sentir em casa, depois do Castelo Leoch.
Duvidava que a cozinha de Tolbooth fosse tão boa quanto a de Colum. E fora as questões gerais de conforto, eu não podia - não podia deixar que me enviasse para Edimburgo. Uma vez presa entre os muros de Tolbooth, jamais conseguiria voltar ao círculo de pedras.
Chegara a hora da minha cartada. Agora ou nunca. Ergui minha própria xícara.
- Como quiser - disse calmamente. — O que acha que o duque de Sandringham terá a dizer a respeito?
Entornou o chá quente no colo de pele de veado e emitiu vários barulhos muito gratificantes.
Estalei a língua em sinal de reprovação.
Acalmou-se, olhando-me furiosamente. A xícara permanecia virada, seu conteúdo marrom ensopando o tapete verde-claro, mas ele não fez nenhum movimento em direção à corda da campainha. Um pequeno músculo saltava no lado de seu pescoço.
Eu já encontrara a pilha de lenços engomados na gaveta superior esquerda de sua escrivaninha, juntamente com a caixa de rape esmaltada. Peguei um lenço e entreguei a ele.
- Espero que não manche - disse gentilmente.
- Não - ele disse, ignorando o lenço. Olhou-me atentamente. - Não, não é possível.
- Por que não? - perguntei, fingindo valentia, imaginando o que não seria possível.
- Teriam me informado. E se você estivesse trabalhando para Sandringham, por que diabos agiria de maneira tão ridícula?
- Talvez o duque esteja testando sua lealdade - sugeri aleatoriamente, preparando-me para ficar de pé num salto se necessário. Seus punhos estavam cerrados ao lado do corpo e o chicote de montar que deixara de lado estava bem ao alcance de sua mão, em cima da escrivaninha.
Bufou em resposta a tal sugestão.
- Você é quem deve estar testando a minha credulidade. Ou minha tolerância à irritação. Ambas, madame, são extremamente infames. - Seus olhos estreitaram-se especulativamente e preparei-me para um salto rápido.
Lançou-se sobre mim e saltei para o lado. Agarrando o bule de chá, atirei-o em cima dele. Desviou-se e o bule atingiu a porta com grande estardalhaço. O ordenança, que devia estar de prontidão do lado de fora, enfiou a cabeça espantada pela porta.
Respirando ruidosamente, o capitão fez sinal impacientemente para que ele entrasse.
- Segure-a — ordenou bruscamente, atravessando o aposento em direção à escrivaninha. Comecei a respirar profundamente, tanto na esperança de me acalmar como na expectativa de não poder fazê-lo dentro de pouco tempo.
Entretanto, ao invés de me espancar, ele simplesmente abriu a gaveta mais baixa da direita, que eu não tivera tempo de investigar, e tirou um longo pedaço de corda fina.
- Que tipo de cavalheiro guarda corda nas gavetas da escrivaninha? -perguntei, indignada.
- Um cavalheiro prevenido, madame - murmurou, amarrando meus pulsos nas costas.
- Vá embora — disse impacientemente ao ordenança, sacudindo a cabeça em direção à porta. — E não volte, independente do que ouvir.
Aquilo me pareceu terrivelmente ameaçador e meus temores Mostraram-se mais do que justificáveis quando ele enfiou a mão na gaveta Mais uma vez.
Existe algo assustador em uma faca. Homens que são destemidos em combate corpo-a-corpo acovardam-se diante de uma lâmina nua. Eu mesma recuei, até que minhas mãos amarradas colidiram com a parede branca de cal. A temível ponta reluzente desceu e pressionou um ponto entre meus seios.
---- Agora - disse de forma confortável -, vai me contar tudo que sabe sobre o duque de Sandringham. - A lâmina pressionou com um pouco mais de força, afundando no tecido do meu vestido. - Leve quanto tempo quiser, minha querida. Não tenho a menor pressa. - Ouviu-se um pequeno pop! quando a ponta perfurou o tecido. Senti a lâmina, fria como o medo, um ponto minúsculo diretamente sobre o meu coração.
Randall lentamente deslizou a faca em semicírculo sob um dos meus seios. O tecido rústico soltou-se, caiu com um meneio da blusa branca e meu seio saltou para fora. Randall parecia estar prendendo a respiração. Exalou lentamente agora, os olhos fixos nos meus.
Afastei-me um pouco dele, mas quase não havia espaço para manobra. Acabei pressionada contra a escrivaninha, as mãos atadas segurando a borda. Se ele se aproximasse mais, pensei, talvez eu pudesse rolar para trás em cima das mãos e chutar a faca de sua mão. Duvidava que pretendesse me matar; certamente não até descobrir exatamente o que eu sabia sobre suas relações com o duque. Por alguma razão, essa conclusão trazia relativamente pouco conforto.
Ele sorriu, com aquela semelhança desalentadora com o sorriso de Frank; aquele sorriso adorável que eu vira encantar estudantes e amolecer o mais empedernido dirigente de universidade. Provavelmente, em outras circunstâncias, eu teria achado aquele homem atraente, mas no momento... não.
Moveu-se com rapidez, enfiando um joelho entre minhas coxas e empurrando meus ombros para trás. Não conseguindo manter o equilíbrio, caí pesadamente de costas sobre a escrivaninha, dando um grito quando aterrissei dolorosamente em cima dos pulsos amarrados. Pressionou o corpo entre minhas pernas, tateando com uma das mãos para erguer minhas saias enquanto a outra segurava meu seio nu, girando e beliscando. Comecei a espernear freneticamente, mas minhas saias me atrapalhavam. Agarrou meu pé e correu a mão pela minha perna, empurrando anáguas úmidas, saia e camisola de baixo para fora do caminho, levantando-as acima de minha cintura. Levou a mão às calças.
Semelhanças com Harry, o desertor, pensei furiosamente. O que em nome de Deus estava acontecendo com o exército britânico? Gloriosas tradições, pois sim.
No meio de uma guarnição inglesa, era provável que gritos não atraíssem nenhuma atenção útil, mas enchi os pulmões e tentei, mais como um protesto pro forma do que qualquer outra coisa. Esperei uma bofetada ou um safanão em resposta, para me calar. Ao invés disso, inesperadamente, ele pareceu gostar.
- Vamos, doçura, grite - murmurou, às voltas com a braguilha. - Vou gostar muito mais se você gritar.
Olhei-o diretamente nos olhos e retruquei, com clareza e absoluta falta de inabilidade.
- Vá se danar!
Uma mecha de cabelos negros soltou-se e caiu em sua testa num desarranjo devasso. Parecia-se tanto com seu descendente que fui tomada por um terrível impulso de abrir as pernas e responder a ele. Torceu meu seio de tal forma que o impulso desapareceu instantaneamente.
Eu estava furiosa, nauseada, humilhada e revoltada, mas curiosamente sem muito medo. Senti um movimento pesado, frouxo, contra a minha perna e repentinamente compreendi por quê. Ele não iria conseguir a menos que eu gritasse - e provavelmente nem mesmo assim.
- Ah, é assim, hein? — eu disse e fui recompensada com uma forte bofetada. Cerrei a boca com força e virei o rosto, para não me sentir tentada a fazer novos comentários imprudentes. Considerei que, com ou sem estupro, eu corria sério perigo com aquele homem de temperamento instável. Desviando os olhos de Randall, percebi um repentino lampejo de movimento na janela.
- Agradeço-lhe - disse uma voz fria e inalterada -, se tirar as mãos de cima de minha mulher. — Randall ficou paralisado com uma das mãos ainda em meu seio. Jamie estava agachado na moldura da janela, uma pistola de cabo de latão apoiada no antebraço.
Randall continuou paralisado por um instante, como se não pudesse acreditar no que estava ouvindo. Conforme voltava a cabeça lentamente em direção à janela, a mão direita, fora da vista de Jamie, deixou meu seio e deslizou sorrateiramente em direção à faca, que colocara sobre a escrivaninha junto à minha cabeça.
- O que foi que você disse? — perguntou, incrédulo. Quando agarrou a faca, virou-se o suficiente para ver quem tinha falado. Parou novamente por um instante, olhando fixamente, e em seguida começou a rir.
- Valha-nos Deus, é o jovem gato selvagem escocês! Pensei que tivesse acabado com você de uma vez por todas! Conseguiu se recuperar, hein? E esta é a sua mulher, você disse? Uma vagabunda bem gostosa, exatamente como sua irmã.
Ainda encoberto pelo corpo parcialmente virado, a mão de Randall que segurava a faca girou; a lâmina agora apontava para a minha garganta. Eu podia ver Jamie por cima de seu ombro, como um felino pronto para dar um salto da janela. O cano da pistola não vacilou, nem a expressão do seu rosto se alterou. A única pista para as suas emoções era o rubor escuro que subia por sua garganta; o colarinho estava aberto e a pequena cicatriz em seu pescoço flamejava, escarlate.
Quase descontraidamente, Randall lentamente levantou a faca para que Jamie a visse, a ponta quase tocando a minha garganta. Virou-se um Pouco mais em direção a Jamie.
- Talvez ache melhor jogar a pistola aqui, a menos que esteja cansado da vida de casado. Se preferir ser viúvo, naturalmente... - Os olhos fixos uns nos outros como o abraço de um amante, nenhum dos dois se moveu por um longo minuto. Finalmente, o corpo de Jamie relaxou a tensão do ataque. Soltou a respiração com um longo suspiro de resignação e atirou a arma na sala. Ela bateu no chão com um baque metálico e deslizou pelo assoalho até os pés de Randall.
Randall curvou-se e pegou a arma em um movimento sinuoso. Assim que a faca saiu do meu pescoço, tentei sentar-me, mas ele colocou a mão no meu peito e me empurrou, deixando-me novamente estatelada na escrivaninha. Mantinha-me na posição com uma das mãos, usando a outra para mirar a pistola em Jamie. A faca descartada estava em algum lugar no chão perto dos meus pés, pensei. Agora, se ao menos eu pudesse pegá-la com os dedos dos pés... A adaga no meu bolso estava tão fora do meu alcance como se estivesse em Marte.
O sorriso não desaparecera do rosto de Randall desde a aparição de Jamie. Agora ele se ampliou, o suficiente para mostrar os dentes caninos pontudos.
- Bem, assim está melhor. - A mão pesada deixou meu peito para retornar à braguilha de suas calças. - Eu estava ocupado quando você chegou, meu amigo. Vai me desculpar se eu continuar o que estava fazendo antes de cuidar de você.
A vermelhidão havia se espalhado completamente pelo rosto de Jamie, mas ele continuou imóvel, a arma apontada para o seu peito. Enquanto Randall terminava suas manobras, Jamie lançou-se contra a boca da pistola. Tentei gritar, para impedi-lo, mas minha boca estava seca de terror. Os nós dos dedos de Randall empalideceram quando ele apertou o gatilho.
O cano da arma de fogo bateu na câmara vazia e o punho de Jamie abateu-se sobre o estômago de Randall. Ouviu-se um estalido quando o outro punho quebrou o nariz do oficial e um fino jato de sangue manchou minha saia. Os olhos de Randall reviraram-se e ele caiu no chão como uma pedra.
Jamie estava atrás de mim, colocando-me de pé, cortando a corda em torno dos meus pulsos.
- Você abriu caminho até aqui blefando com uma arma descarregada? -grasnei histericamente.
- Se estivesse carregada, eu teria atirado nele logo que cheguei, não e? —Jamie disse entre dentes.
O ruído de pés aproximava-se pelo corredor em direção ao escritório. A corda soltou-se e Jamie arrastou-me com um safanão para a janela. Era uma queda de dois metros e meio até o chão, mas os passos estavam quase alcançando a porta. Pulamos juntos.
Aterrissei com um ruído áspero de ossos chocalhados e rolei numa confusão de saias e anáguas. Jamie levantou-me com um puxão e pressionou-me contra a parede do prédio. Passos apressados dobraram a quina do edifício; seis soldados surgiram no campo de visão, mas não olharam em nossa direção.
Assim que se afastaram, Jamie segurou minha mão e moveu-se em direção à outra esquina. Andamos rente à parede, parando perto da quina do edifício. Pude ver onde estávamos agora. A seis metros aproximadamente uma escada levava a uma espécie de passadiço que corria ao longo da parede interna das muralhas do forte. Ele fez um sinal com a cabeça indicando a escada; aquele era o nosso objetivo.
Aproximou a cabeça da minha e sussurrou:
- Quando ouvir uma explosão, corra e suba a escada. Estarei atrás de você.
Assenti, balançando a cabeça. Meu coração parecia um martelo mecânico; olhando para baixo, vi que um dos meus seios ainda estava exposto. Não havia muito a fazer a respeito no momento. Segurei as dobras das minhas saias, pronta para correr.
Ouviu-se um enorme estrondo do outro lado do prédio, como a explosão de um morteiro. Jamie deu-me um empurrão e eu disparei, correndo o mais rápido que podia. Dei um salto para a escada, agarrei-a e subi aos tropeções; senti a madeira sacudir e estremecer quando o peso de Jamie atingiu a escada abaixo de mim.
Virando-me no topo da escada, tive uma visão completa do forte. Rolos de fumaça negra projetavam-se de um pequeno prédio próximo à muralha dos fundos e de todas as partes corriam homens em sua direção.
Jamie surgiu ao meu lado.
- Por aqui.
Correu agachado ao longo do passadiço e eu o segui. Paramos junto ao mastro da bandeira, preso na muralha. O estandarte agitava-se com força acima de nós, a adriça batendo ritmadamente contra o mastro. Jamie espreitava por cima da muralha, à procura de alguma coisa. Olhei para o acampamento atrás. Os homens aglomeravam-se no pequeno prédio, correndo de um lado para o outro e gritando. Mais adiante, vi uma pequena plataforma de madeira, com cerca de um metro e meio de altura e uma escada. Um pesado poste de madeira erguia-se no centro, com uma viga atravessada em cruz e algemas de corda penduradas nos braços da cruz.
De repente, Jamie deu um assobio; olhando por cima da muralha, vi Rupert, montado e conduzindo o cavalo de Jamie. Olhou para cima ao ouvir o assobio e conduziu os cavalos até junto à muralha abaixo de nós.
Jamie cortava a adriça do mastro. As pesadas dobras vermelhas e azuis da bandeira sucumbiram e deslizaram para baixo, aterrissando com um baque sibilante ao meu lado. Enrolando rapidamente uma das pontas da corda em volta de uma das estacas, Jamie atirou o resto para baixo do lado Externo da muralha.
- Vamos! - disse. - Segure-se firme com as duas mãos, coloque os pés contra a parede! Vá! — Comecei a descer, escorando os pés na muralha e soltando a corda aos poucos; o cordame fino escorregava e queimava minhas mãos. Caí perto dos cavalos e apressei-me a montar. Jamie saltou sobre a sela atrás de mim no instante seguinte e partimos a galope.
Reduzimos um pouco a marcha a uns dois ou três quilômetros do acampamento, quando se tornou claro que havíamos nos livrado de nossos perseguidores. Após uma breve conferência, Dougal decidiu que seria melhor nos dirigirmos para a fronteira das terras dos MacKenzie, como o território mais seguro.
— Podemos chegar a Doonesbury à noite e lá provavelmente estaremos em segurança. Amanhã espalharão avisos sobre nós, mas já teremos atravessado a fronteira antes que a notícia chegue lá.
Estávamos no meio da tarde; partimos em marcha firme, nosso cavalo com carga dupla ficando um pouco para trás. Meu cavalo, eu imaginava, ainda estaria pastando alegremente no bosque, esperando ser conduzido para casa por quem tivesse a sorte de encontrá-lo.
- Como me encontrou? — perguntei. Eu estava começando a tremer em efeito retardado e cruzei os braços ao redor do corpo para acalmar o tremor. Minhas roupas haviam se secado completamente a essa altura, mas eu sentia um frio que atingia os ossos.
- Achei melhor não deixar você sozinha e enviei um homem de volta para ficar com você. Ele não a viu partir, mas viu os soldados ingleses atravessarem o rio a vau e você com eles. — A voz de Jamie era fria. Não podia culpá-lo. Meus dentes começavam a ranger.
- S-surpreende-me que não tivesse achado que eu era uma espiã inglesa e m-me deixado lá.
- Era o que Dougal queria fazer. Mas o homem que a viu com os soldados disse que você estava se debatendo. Eu tinha ao menos que ir verificar. — Olhou para mim, sem mudar a expressão.
- Tem sorte, Sassenach, que eu tenha visto o que vi naquela sala. Ao menos, Dougal tem que admitir que você não está mancomunada com os ingleses.
- D-dougal, hein? E quanto a você? O q-que você acha? — perguntei. Ele não respondeu, apenas bufou rapidamente. No entanto, finalmente teve pena de mim o suficiente para arrancar o xale e atirá-lo sobre meus ombros, mas não passou o braço ao meu redor nem me tocou além do estritamente necessário. Cavalgou num silêncio amargo, manejando as rédeas com gestos bruscos, muito diferentes de suas maneiras gentis habituais.
Eu mesma, transtornada e abalada, não estava com disposição para aturar mau humor.
- Bem, o que foi, então? Qual é o problema? — perguntei impacientemente. - Não fique emburrado, pelo amor de Deus! - Falei mais rispidamente do que pretendia e senti que ele se retesou ainda mais. De repente, ele virou a cabeça do cavalo para o lado e freou à beira da estrada. Antes que eu soubesse o que estava acontecendo, ele desmontara e me fizera descer da sela também. Aterrissei desajeitadamente, cambaleando para manter o equilíbrio quando meus pés atingiram o solo.
Dougal e os demais pararam quando nos viram desmontar. Jamie fez um gesto curto e contundente, mandando-os seguir em frente e Dougal abanou a mão, compreendendo.
- Não demore muito — gritou, e retomaram a viagem.
Jamie esperou até que estivessem fora do alcance de sua voz. Então, me puxou com um safanão para que o encarasse. Estava obviamente furioso, à beira da explosão. Senti minha própria ira crescer; que direito tinha de me tratar assim?
— Emburrado! — disse. — Emburrado, não é? Estou usando todo o autocontrole que possuo para não sacudi-la até seus dentes rangerem e você me diz para não ficar emburrado!
- Qual é o seu problema, pelo amor de Deus? - perguntei com raiva. Tentei livrar-me do aperto de suas mãos, mas seus dedos afundaram-se nos meus braços como as garras de uma armadilha.
- Qual é o meu problema? Vou lhe dizer qual é o meu problema, já que quer saber! — disse com os dentes cerrados. — Estou cansado de ter que ficar provando a toda hora que você não é uma espiã inglesa. Estou cansado de ter que vigiar você a todo instante, com medo da bobagem que fará em seguida. E estou muito cansado de ver as pessoas tentarem me fazer ficar olhando enquanto estupram você! Não gostei disso nem um pouco!
- E acha que eu gostei? - gritei. — Está tentando dizer que a culpa é minha? — Diante disso, ele realmente me sacudiu.
- É sua culpa! Se tivesse ficado onde mandei que ficasse hoje de manhã, isso nunca teria acontecido! Mas não, você não me ouve, não passo de seu marido, por que me escutar? Você age como bem entende e, quando vejo, está de costas com as saias para cima e um canalha entre suas pernas, a ponto de possuí-la diante dos meus olhos! — Seu sotaque escocês, geralmente leve, tornava-se mais forte a cada instante, um sinal seguro de que estava furioso, caso eu precisasse de mais indicação.
Nossos narizes já estavam quase se tocando, enquanto gritávamos um com o outro. Jamie estava vermelho de raiva e eu sentia o meu próprio sangue subir.
— É sua própria culpa, por me ignorar e suspeitar de mim o tempo inteiro! Eu lhe contei a verdade sobre quem eu sou! E eu lhe disse que não haveria perigo de eu ir com você, mas você quis me ouvir? Não! Sou apenas uma mulher, por que deveria prestar atenção ao que eu digo? As mulheres só devem fazer o que lhes mandam e seguir ordens e ficar sentadas docemente com as mãos cruzadas no colo esperando que os homens voltem e lhes digam o que fazer!
Sacudiu-me outra vez, incapaz de se conter.
- E se você tivesse feito isso, não estaríamos fugindo agora, com cem soldados ingleses no nosso encalço! Meu Deus, mulher, não sei se devo estrangulá-la ou jogá-la no chão e bater em você até deixá-la sem sentidos, mas por Deus, tenho vontade de fazer alguma coisa com você!
Diante disso, fiz um esforço determinado de chutá-lo nos testículos. Ele desviou-se e lançou o próprio joelho entre minhas pernas, evitando com eficácia quaisquer novas tentativas.
- Tente isso de novo e eu vou esbofeteá-la até seus ouvidos zumbirem - rosnou.
- Você é um brutamontes e um idiota - disse, arquejante, debatendo-me para escapar de suas mãos, agarradas aos meus ombros. - Acha que saí e fui capturada pelos ingleses de propósito?
- Acho mesmo que você fez isso de propósito, para se vingar de mim pelo que aconteceu na clareira!
Fiquei boquiaberta.
- Na clareira? Com os desertores ingleses?
- Sim! Você acha que eu deveria ter sido capaz de protegê-la e tem razão. Mas não consegui; você teve que fazer isso sozinha e agora está tentando me fazer pagar por isso deliberadamente colocando a si mesma, minha mulher, nas mãos de um homem que tirou meu sangue!
- Sua mulher! Sua mulher! Você não se importa comigo! Sou apenas sua propriedade; só é importante para você porque acha que eu lhe pertenço e não pode suportar que alguém tire alguma coisa que lhe pertence!
- Você me pertence mesmo — trovejou, enfiando os dedos nos meus ombros como pregos. - E você é minha mulher, goste ou não!
- Não gosto! Não gosto nem um pouco! Mas isso também não importa, não é? Desde que eu esteja presente para esquentar sua cama, não se importa com o que eu penso ou como me sinto! Isso é tudo que uma mulher representa para você, algo onde enfiar seu pau quando tem vontade!
Com isso, seu rosto ficou branco como cera e começou a me sacudir seriamente. Minha cabeça sacolejou violentamente e meus dentes chocalharam, fazendo-me morder a língua.
- Solte-me! - gritei. Solte-me, seu - deliberadamente, usei as palavras de Harry, o desertor, tentando feri-lo - filho-da-mãe no cio! - Ele me soltou e recuou um passo, os olhos flamejando.
- Sua cadela de boca suja! Não vai falar assim comigo!
- Falo do jeito que quiser! Não pode mandar em mim!
- Parece que não! Você faz o que bem entende, não importa quem você magoe com isso, não é? Sua egoísta, teimo...
- É o seu maldito orgulho que está ferido! — gritei. - Salvei nós dois daqueles desertores na clareira e você não pode aceitar isso, não é? Você só ficou lá parado! Se eu não tivesse a faca, nós dois estaríamos mortos agora!
Até colocar em palavras, eu não tinha idéia de que estava com raiva dele por não me proteger dos desertores ingleses. Em circunstâncias mais racionais, esse pensamento jamais teria atravessado minha mente. Não foi culpa dele, eu teria dito. Foi pura sorte que eu tivesse a adaga, eu teria dito. Mas agora eu compreendia que, justo ou não, racional ou não, eu realmente sentia de alguma forma que era responsabilidade dele me proteger e que ele falhara. Talvez porque ele tão obviamente se sentisse assim.
Ficou parado olhando-me fixamente arquejando de emoção. Quando voltou a falar, tinha a voz baixa e entrecortada de paixão.
- Viu aquele mastro no pátio do forte? Balancei ligeiramente a cabeça.
- Bem, eu fui amarrado àquele poste, amarrado como um animal e chicoteado até meu sangue escorrer! Carregarei as cicatrizes até a morte. Se eu não tivesse tido muita sorte esta tarde, isso seria o mínimo que me aconteceria. Provavelmente teriam me chicoteado e depois me enforcado. - Engoliu em seco e continuou.
- Eu sabia disso e não hesitei nem por um segundo em entrar naquele lugar para ir atrás de você, mesmo achando que talvez Dougal tivesse razão. Sabe onde consegui a arma que usei? - Sacudi a cabeça, entorpecida, minha própria raiva começando a esmaecer. - Matei um guarda junto à muralha. Ele atirou em mim; é por isso que estava descarregada. Ele errou e eu o matei com minha adaga; deixei-a cravada no seu peito quando a ouvi gritar. Eu teria matado uma dúzia de homens para resgatá-la, Claire. - Sua voz falhou.
- E quando você gritou, corri para você, armado apenas com uma pistola vazia e minhas duas mãos. — Jamie falava com mais calma agora, mas seus olhos ainda faiscavam de dor e raiva. Fiquei em silêncio. Perturbada com o horror do meu encontro com Randall eu não dera absolutamente nenhum valor à coragem desesperada que ele precisou ter para entrar no forte para me salvar.
Desviou-se bruscamente, os ombros arriados.
- Tem razão - ele disse serenamente. - Sim, tem toda razão. - De repente, a raiva desaparecera de sua voz, substituída por um tom que nunca ouvira nele, nem mesmo na dor física extrema.
- Meu orgulho está ferido. E meu orgulho é praticamente tudo que me resta. - Apoiou os braços em um pinheiro de casca áspera e enterrou a cabeça neles, exausto. Sua voz era tão baixa que eu mal podia ouvi-lo.
- Você está me dilacerando, Claire.
Eu estava sentindo algo bem semelhante. Devagar, aproximei-me por trás dele. Ele não se mexeu, mesmo quando passei os braços pela sua cintura.
Recostei o rosto em suas costas curvadas. Sua camisa estava molhada, suada com a intensidade de seus sentimentos, e ele tremia.
— Sinto muito — eu disse, simplesmente. - Por favor, perdoe-me. - Ele virou-se e abraçou-me com força. Senti o tremor de seu corpo ceder aos poucos.
- Está perdoada, moça - murmurou finalmente nos meus cabelos. Soltando-me, olhou para mim, sério e formal.
— Eu também sinto muito - disse. — Peço-lhe que me perdoe pelo que eu disse; estava ferido e disse mais do que pretendia. Você também me perdoa? - Depois de seu último discurso, eu não sentia que houvesse qualquer coisa para eu perdoar, mas balancei a cabeça e apertei suas mãos.
- Está perdoado.
Num silêncio mais aliviado, montamos outra vez. A estrada era reta e plana por uma longa extensão neste trecho e ao longe pude ver uma pequena nuvem de poeira que devia ser Dougal e seus homens.
Jamie estava comigo outra vez; segurava-me com um dos braços enquanto cavalgávamos e eu me sentia mais segura. Mas uma leve sensação de constrangimento e ofensa ainda perdurava; as coisas ainda não estavam sanadas entre nós. Havíamos perdoado um ao outro, mas nossas palavras ainda pairavam na lembrança, não podendo ser esquecidas.
Chegamos a Doonesbury bem depois do anoitecer. Era uma parada de carruagens de bom tamanho, com uma hospedaria adjacente, felizmente. Dougal fechou os olhos de desgosto ao pagar o estalajadeiro; seriam necessárias muitas moedas de pratas extras para garantir seu silêncio quanto à nossa presença.
O dinheiro, entretanto, também garantiu uma boa refeição, com bastante cerveja. Apesar da comida, o jantar foi sombrio, quase todo transcorrido em silêncio. Ali sentada em meus trajes arruinados, recatadamente coberta com a camisa extra de Jamie, eu obviamente caíra em desgraça. Exceto por Jamie, os homens comportavam-se como se eu fosse completamente invisível e até mesmo Jamie não fez mais do que empurrar o pão e a carne para mim de vez em quando. Foi um alívio finalmente subir para o nosso quarto, apesar de pequeno e confinado.
Afundei na cama com um suspiro, sem me preocupar com o estado das roupas de cama.
- Estou exausta. Foi um longo dia.
- Sim, é verdade. - Jamie abriu o colarinho e os punhos e desafivelou o cinto de sua espada, mas não continuou a se despir. Puxou a tira de couro da bainha da espada e dobrou-a, flexionando o couro e ponderando.
- Venha dormir, Jamie. O que está esperando?
Aproximou-se e ficou de pé ao lado da cama, balançando o cinto devagar de um lado para o outro.
- Bem, moça, receio que ainda tenhamos um assunto para acertar entre nós antes de dormir. - Senti uma repentina pontada de apreensão.
- O que é?
Não respondeu de imediato. Em vez de sentar-se na cama a meu lado, puxou um banco e sentou-se diante de mim.
- Você compreende, Claire, que todos nós quase fomos mortos esta tarde?
Abaixei os olhos para a colcha, envergonhada.
- Sim, eu sei. Minha culpa. Sinto muito.
-- Sim, então você compreende. Sabe que se um dos nossos homens tivesse agido assim, colocando todos os demais em perigo, provavelmente teria as orelhas cortadas, ou seria chicoteado, ou mesmo simplesmente morto?
Empalideci.
- Não, não sabia.
- Bem, sei que ainda não está familiarizada com nossos costumes e isso a desculpa um pouco. Ainda assim eu lhe disse para ficar escondida e, se você tivesse obedecido, nada disso teria acontecido. Agora os ingleses estarão em nosso encalço por toda a parte; agora, vamos ter que ficar escondidos durante o dia e viajar durante a noite.
Fez uma pausa.
- E quanto ao capitão Randall... sim, essa é uma outra história.
- Ele estará especialmente à sua procura, quer dizer, agora que sabe que está aqui? — Ele assentiu distraidamente, fitando o fogo na lareira.
- Sim. Ele... a questão com ele é pessoal, entende?
- Sinto muito, Jamie — eu disse. Jamie descartou meu pedido de desculpas com um gesto da mão.
- Ah, se fosse apenas a mim que você tivesse prejudicado com isso, eu não diria mais nada. Mas já que estamos conversando — lançou-me um olhar penetrante -, vou lhe dizer que quase me matou ver aquele animal com as mãos em você. - Desviou o olhar para o fogo, a expressão sombria, como se revivesse os acontecimentos da tarde.
Pensei em contar-lhe sobre as... dificuldades de Randall, mas temia que fosse piorar as coisas. Queria desesperadamente abraçar Jamie e suplicar-lhe que me perdoasse, mas não ousava tocá-lo. Após um longo momento de silêncio, ele suspirou e levantou-se, batendo o cinto de leve na perna.
- Muito bem - disse. - É melhor acabar logo com isso. Você causou danos consideráveis ao contradizer minhas ordens e vou castigá-la por isso, Claire. Lembra-se do que lhe disse quando a deixei pela manhã? - Eu me lembrava muito bem e rapidamente levantei-me na cama para que minhas costas ficassem contra a parede.
- O que quer dizer?
- Sabe muito bem o que quero dizer — respondeu com firmeza. -Ajoelhe-se junto à cama e levante suas saias, moça.
- Não vou fazer isso! - Agarrei com as duas mãos o pé do dossel da cama e fui me encolhendo mais para o canto.
Jamie observou-me por um instante com os olhos apertados, decidindo o próximo passo. Ocorreu-me que não havia nada que pudesse impedi-lo de fazer o que quisesse comigo; pesava mais uns quarenta quilos do que eu. Mas, por fim, ele resolveu conversar, em vez de agir, e cuidadosamente colocou o cinto de lado, antes de arrastar-se pelas cobertas e sentar-se ao meu lado.
- Veja bem, Claire... - começou.
- Eu já pedi desculpas! — explodi. - E sinto muito mesmo. Nunca mais farei isso!
- Bem, essa é a questão — disse devagar. — Talvez faça. E isso é porque você não leva as coisas tão a sério quanto elas são. Acho que você vem de um lugar onde tudo é mais fácil. De onde você vem, não é uma questão de vida ou morte desobedecer ordens ou tomar decisões por conta própria. Na pior das hipóteses, pode causar algum desconforto a alguém, ou ser um pouco inconveniente, mas provavelmente não vai matar ninguém. - Observei seus dedos alisarem as pregas do kilt de xadrez em tons de marrom, enquanto arrumava os pensamentos.
- A dura verdade é que um ato simples pode ter conseqüências muito sérias em lugares e tempos como estes, especialmente para um homem como eu. - Deu uns tapinhas no meu ombro, vendo que eu estava à beira das lágrimas.
- Sei que você jamais me colocaria em perigo ou a ninguém mais de propósito. Mas pode facilmente fazê-lo sem intenção, como fez hoje, porque você não acredita em mim quando lhe digo que algumas coisas são perigosas. Está acostumada a pensar por conta própria e eu sei - olhou-me de viés — que não está acostumada a que um homem lhe diga o que fazer. Mas tem que aprender a agir assim, pelo bem de todos nós.
- Está bem - eu disse devagar. - Eu compreendo. Tem razão, é claro. Tudo bem; seguirei suas ordens, mesmo que não concorde com elas.
- Ótimo. - Levantou-se e pegou o cinto. - Agora, saia da cama e acabaremos logo com isso.
Abri a boca, indignada.
- O quê?! Eu disse que seguiria suas ordens!
Suspirou, exasperado, em seguida sentou-se novamente no banco. Olhou-me sem piscar.
- Agora, ouça. Você diz que me compreende e eu acredito. Mas existe uma diferença entre entender com a mente e realmente saber, lá no fundo. - Assenti, com relutância.
- Muito bem. Agora, eu vou ter que puni-la e por duas razões: primeiro, para que você realmente saiba. - Sorriu, de repente. - Posso dizer-lhe pela minha própria experiência que uma boa surra faz você ver as coisas sob uma luz mais séria. — Agarrei a coluna de madeira com mais força.
- A outra razão — continuou - é por causa dos outros homens. Notou como se comportaram esta noite? Eu notei; o ambiente estava tão desagradável no jantar que foi um alívio vir para o quarto.
-- Existe uma coisa chamada justiça, Claire. Você agiu mal com todos eles e terá que sofrer por isso. - Respirou fundo. - Sou seu marido; é meu dever resolver isso e é o que pretendo fazer.
Eu tinha fortes objeções a essa proposição em diversos níveis, qualquer que fosse a justiça dessa situação - e eu tinha que admitir que em parte ele tinha razão - meu senso de amor-próprio ofendia-se profundamente diante da idéia de levar uma surra, por quem quer que fosse e por qualquer que fosse a razão.
Senti-me profundamente traída pelo fato de que o homem do qual eu dependia como amigo, protetor e amante pretendesse fazer tal coisa comigo. E minha noção de autopreservação estava aterrorizada diante da idéia de me submeter à compaixão de um homem que manejava uma espada de sete quilos como se fosse um mata-moscas.
- Não vou permitir que bata em mim - disse com firmeza, agarrando-me à coluna do dossel da cama.
- Ah, não? - Ergueu as sobrancelhas ruivas. - Bem, vou lhe dizer, menina, acho que não tem muita escolha. Você é minha mulher, quer goste ou não. Se quisesse quebrar seu braço, deixá-la a pão e água ou trancá-la num quartinho por vários dias - e não pense que não me sinto tentado -, eu poderia, quanto mais esquentar o seu traseiro.
- Vou gritar!
- É provável. Se não antes, certamente durante. Espero que a ouçam até a fazenda mais próxima; você tem bons pulmões. - Riu de forma abominável e atravessou a cama em meu encalço.
Soltou meus dedos com alguma dificuldade e puxou-me com firmeza, arrastando-me para a beirada da cama. Chutei sua canela, mas não causei nenhum dano, já que estava sem sapatos. Grunhindo levemente, conseguiu me colocar com o rosto para baixo na beira da cama, torcendo meu braço para trás para me manter na posição.
- Eu pretendo cumprir minha palavra, Claire! Agora, se cooperar comigo, consideraremos as contas acertadas com doze pancadas.
- E se eu não cooperar? - perguntei com a voz trêmula. Ele apanhou o cinto e bateu-o contra a perna com um desagradável som estalado.
- Então, terei que colocar um joelho em suas costas e espancá-la até meu braço doer e vou avisá-la, você vai se cansar muito antes de mim.
Virei-me rapidamente para encará-lo, os punhos cerrados.
- Seu bárbaro! Seu... seu sádico! - disse entre dentes, furiosa. - Está fazendo isso por seu próprio prazer! Nunca o perdoarei por isso! - Jamie parou, girando o cinto.
Retorquiu sem se alterar:
- Não sei o que é um sádico. E se eu a perdôo por esta tarde, imagino que vá me perdoar também, assim que puder sentar-se outra vez.
- Quanto a meu prazer... — Seu lábio contorceu-se. - Eu disse que teria que castigá-la. Eu não disse que não ia gostar. - Fez sinal com o dedo dobrado para mim.
- Venha cá.
Relutei em deixar o santuário do meu quarto na manhã seguinte e fiquei fazendo hora, amarrando e desamarrando fitas e escovando os cabelos. Não falara com Jamie desde a noite anterior, mas ele notou minha hesitação e instou-me a sair com ele para o desjejum.
- Não precisa temer enfrentar os outros, Claire. Eles vão zombar um pouco de você, é provável, mas não será nada demais. Levante o queixo. -Bateu de leve sob meu queixo e eu mordi sua mão, com força, mas não profundamente.
- Oooh! - Retirou os dedos depressa. - Cuidado, menina, não sabe onde eles andaram. — Deixou-me, dando uma risadinha, e foi comer.
Devia estar mesmo de bom humor, pensei amargamente. Se era vingança o que ele queria na noite anterior, ele a tivera.
Fora uma noite extremamente desagradável. Minha relutante aquiescência durara precisamente até o primeiro estalo abrasador do couro na pele. A isso seguiu-se uma luta curta e violenta, que deixou Jamie com o nariz sangrando, três belos arranhões em um dos lados do rosto e um pulso com uma mordida profunda. Como era de se esperar, isso me deixou esmagada contra as cobertas encardidas, com um joelho nas costas, surrada quase até a morte.
Jamie, que o diabo carregue sua maldita alma escocesa, provou ter razão. Os homens foram contidos em seus cumprimentos, mas mostraram-se bastante amigáveis; a hostilidade e o desprezo da noite anterior desapareceram.
Quando eu me servia de ovos no aparador, Dougal aproximou-se e passou um braço paternal pelos meus ombros. Sua barba espetou minha orelha quando sussurrou em tom confidencial:
- Espero que Jamie não tenha sido muito duro com você ontem à noite, dona. Parecia que estava sendo assassinada, para dizer o mínimo.
Meu rosto ficou vermelho e quente e eu me virei para que ele não notasse. Após os insolentes comentários de Jamie, decidira manter a boca fechada durante toda a provação. Entretanto, no calor do acontecimento, eu teria desafiado a própria Esfinge a ficar de boca fechada enquanto sentia a ponta do couro brandido por Jamie Fraser.
Dougal virou-se para falar com Jamie, sentado à mesa, comendo pão e queijo.
- Ora, Jamie, não precisava quase matar a moça. Um lembrete delicado teria sido o suficiente. - Deu uma palmada com firmeza no meu traseiro para ilustrar, fazendo-me encolher involuntariamente. Olhei-o furiosa.
- Um traseiro empolado nunca causou danos permanentes a ninguém - disse Murtagh, com a boca cheia de pão.
- Não, é verdade — disse Ned, rindo. - Venha sentar-se aqui, dona.
- Prefiro ficar de pé, obrigada - respondi com dignidade, fazendo todos desatarem em gargalhadas. Jamie evitou fitar-me nos olhos, cortando diligentemente um pedaço de queijo.
Houve mais algumas chacotas bem-humoradas durante o dia e cada um dos homens arranjou uma desculpa para dar uma palmada no meu traseiro em falsa solidariedade. No cômputo geral, entretanto, foi suportável e de má vontade comecei a considerar que Jamie talvez tivesse razão, embora eu ainda quisesse estrangulá-lo.
Já que sentar estava fora de questão, ocupei a manhã com pequenos afazeres como fazer bainhas e pregar botões, que podiam ser feitos no peitoril da janela, com a desculpa de precisar de luz para costurar. Após o almoço, que comi de pé, todos foram para os seus quartos descansar. Dougal decidira que esperaríamos até ficar completamente escuro antes de partir para Bargrennan, a próxima parada em nossa jornada. Jamie seguiu-me para nosso quarto, mas fechei a porta com firmeza na sua cara. Que dormisse no chão outra vez.
Ele fora bastante diplomático na noite anterior, colocando o cinto de volta na cintura e deixando o quarto sem falar nada assim que terminou. Voltara uma hora mais tarde, depois que apaguei a luz e fui para a cama, mas teve o bom senso de não tentar deitar-se na cama comigo. Após espreitar no escuro onde eu permanecia imóvel, suspirou fundo, enrolou-se no seu xale e foi dormir no chão perto da porta.
Furiosa, transtornada e fisicamente desconfortável demais para dormir, eu passara a maior parte da noite acordada, remoendo o que Jamie dissera e com vontade de me levantar e chutá-lo em algum ponto sensível.
Se eu fosse objetiva, o que não estava com a menor disposição de ser, eu teria admitido que ele tinha razão quando dizia que eu não levava as coisas com a devida seriedade. Mas ele estava errado quando dizia que era porque as coisas eram menos precárias no lugar de onde eu vinha - onde quer que fosse. Na realidade, pensei, o mais provável é que o contrário é que fosse verdadeiro.
Esta época ainda era, de muitas maneiras, irreal para mim; algo saído de uma peça teatral ou de um desfile de fantasias. Comparadas às visões de guerra mecanizada, em massa, de onde eu vinha, as pequenas batalhas que eu vira - alguns poucos homens armados de espadas e mosquetes -pareciam-me pitorescas em vez de assustadoras.
Eu estava tendo problemas de escala. Um homem morto por um mosquete estava tão morto quanto outro atingido por um morteiro. A questão é que o morteiro matava impessoalmente, destruindo dezenas de homens, enquanto o mosquete era disparado por um único homem que podia ver os olhos daquele a quem matava. Isso era homicídio, parecia-me, e não guerra. Quantos homens eram necessários para fazer uma guerra? O bastante, talvez, para que não tivessem que ver uns aos outros? E no entanto aquilo obviamente era guerra — ou ao menos uma questão séria - para Dougal, Jamie, Rupert e Ned. Até mesmo o pequeno Murtagh de cara de fuinha tinha razões para uma violência além de sua inclinação natural.
E quanto às razões? Um rei em vez de outro? Um Hanover em vez de um Stuart? Para mim, não passavam de nomes em um diagrama na parede da escola. O que eram, comparados a um mal inimaginável como o Reich de Hitler? Fazia diferença para os que viviam sob aquele reinado, suponho, embora as diferenças pudessem me parecer triviais. Ainda assim, quando o direito de uma pessoa viver como deseja foi considerado trivial? Uma luta para escolher o próprio destino valeria menos do que a necessidade de pôr fim a um grande mal? Revirei-me na cama, irritada, esfregando delicadamente meu traseiro dolorido. Olhei com raiva para Jamie, enrascado como uma bola junto à porta. Respirava regularmente, mas de leve; talvez ele também não conseguisse dormir. Esperava que não.
No começo, ficara inclinada a considerar toda essa notável desventura como um melodrama; coisas assim simplesmente não aconteciam na vida real. Já sofrera muitos choques desde que atravessara o círculo de pedra, mas o pior até o momento fora o desta tarde.
Jack Randall, tão parecido e tão terrivelmente diferente de Frank. O toque de sua mão em meus seios repentinamente formara um elo entre minha antiga vida e esta de agora, reunindo minhas realidades distintas com o estrondo de um trovão. E havia Jamie: seu rosto, paralisado de medo na janela da sala de Randall, tenso de raiva na beira da estrada, contorcido de dor diante de meus insultos.
Jamie. Jamie era real, é verdade, mais real do que qualquer coisa já fora para mim, até mesmo Frank e minha vida em 1945. Jamie, amante terno e pérfido patife.
Talvez esse fosse parte do problema. Jamie preenchia meus sentidos tão completamente que o ambiente em que vivia parecia quase irrelevante. Mas eu não podia mais me dar ao luxo de ignorá-lo. Minha imprudência quase o matara esta tarde e meu estômago revirou-se à idéia de perdê-lo. Sentei-me repentinamente, pretendendo ir acordá-lo e dizer-lhe para vir deitar-se na cama comigo. Mas quando meu peso recaiu por inteiro sobre os resultados de sua obra, depressa mudei de idéia e me virei com raiva sobre o estômago.
Uma noite passada assim, dilacerada entre acessos de raiva e filosofia, deixara-me exausta. Dormi a tarde toda e fui cambaleando, os olhos turvos, Para uma ceia leve quando Rupert me acordou pouco antes de escurecer.
Dougal, sem dúvida lamentando a despesa, adquiriu um outro cavalo Para mim. Um animal forte, embora deselegante, com um olhar bondoso e uma crina curta e espetada; imediatamente batizei-o de Cardo, o emblema heráldico da Escócia.
Não havia pensado nos efeitos de uma longa viagem a cavalo depois de uma surra grave. Olhei em dúvida para a sela dura do meu cavalo, compreendendo de repente o que me aguardava. Uma manta grossa caiu subitamente sobre a sela e o olho preto e brilhante como o de um rato de Murtagh piscou para mim do outro lado, com um ar de conspiração. Decidi que eu ao menos sofreria em silêncio digno e cerrei furiosamente os maxilares quando me ergui para a sela.
Parecia haver uma conspiração galante e não declarada entre os homens; revezavam-se parando a intervalos freqüentes para se aliviarem, permitindo que eu desmontasse por alguns minutos e sorrateiramente massageasse minhas doloridas nádegas. De vez em quando, alguém sugeria que parássemos para beber água, o que tornava necessário que eu parasse também, já que Cardo carregava as garrafas de água.
Prosseguimos assim sacolejando por algumas horas, mas a dor ficou cada vez pior, fazendo com que eu me remexesse na sela sem parar. Finalmente, resolvi mandar para o inferno o sofrimento digno, eu simplesmente tinha que desmontar por algum tempo.
- Ôoopa! - exclamei para o cavalo e desmontei. Fingi examinar sua pata dianteira esquerda, enquanto os outros cavalos paravam em círculo à nossa volta.
- Acho que entrou uma pedra no casco dele - menti. - Já tirei, mas acho melhor andar com ele um pouco; não quero que fique manco.
- Não, não podemos deixar que isso aconteça — disse Dougal. - Está bem, ande um pouco, mas alguém tem que ficar com você. É uma estrada bastante tranqüila, mas não posso deixá-la andando sozinha. - Jamie apeou imediatamente.
- Caminharei com ela - disse serenamente.
- Ótimo. Não se demorem muito. Temos que chegar em Bargrennan antes do raiar do dia. Vamos para o Javali Vermelho; o proprietário é amigo. - Com um aceno, reuniu os demais e partiram num trote ligeiro, deixando-nos no rastro de poeira.
Várias horas de tortura na sela não contribuíram para melhorar meu humor. Que caminhe comigo se quiser. Não iria falar com ele, aquele sádico brutamontes.
Não parecia particularmente um brutamontes à luz da lua crescente, mas depois de mais ou menos meia hora, comecei a caminhar com bem mais facilidade.
- Amanhã vai se sentir bem melhor - Jamie observou descontraída-mente. — Embora só vá poder se sentar facilmente depois de amanhã.
- E o que faz de você um especialista? - disse, lançando-lhe um olhar chispante. - Surra as pessoas freqüentemente?
- Bem, não - disse, sem se deixar perturbar pela minha atitude. — Foi a primeira vez que fiz isso. Mas tenho considerável experiência na outra ponta.
- Você? - perguntei, admirada. A idéia de alguém pegar um cinto para bater naquela montanha de músculos e tendões era inteiramente impensável.
Riu diante da minha expressão.
- Quando eu era um pouco menor, Sassenach. Já tive meu traseiro surrado mais vezes do que poderia contar, entre as idades de oito e treze anos. Foi quando fiquei mais alto do que meu pai e ele não pôde mais me fazer debruçar na cerca.
- Seu pai batia em você?
- Ah, muitas vezes. O professor também, é claro, e Dougal ou um dos outros tios de vez em quando, dependendo de onde eu estivesse e do que andara fazendo.
Comecei a ficar interessada, apesar da minha determinação de ignorá-lo.
- O que você fazia?
Riu outra vez, um som baixo mas contagiante no ar tranqüilo da noite.
- Bem, não me lembro de tudo. Diria que, de um modo geral, eu mereci. Ao menos, acho que meu pai nunca me bateu injustamente. — Caminhou sem falar por um minuto, pensando.
- Hum. Vejamos, houve uma vez por apedrejar as galinhas e outra por montar nas vacas e deixá-las agitadas demais para produzirem leite e depois por comer toda a geléia dos bolos, deixando os bolos para trás. Ah, e por deixar os cavalos saírem da estrebaria, eu não havia trancado o portão. Por atear fogo na palha do pombal, o que foi um acidente, não fiz de propósito. E por perder meus livros escolares, isso eu fiz de propósito, e... — Parou, encolhendo os ombros, enquanto eu ria mesmo contra minha vontade.
-- Esse tipo de coisas. Mas geralmente era por abrir a boca quando deveria mantê-la fechada.
Riu diante de uma lembrança.
- Uma vez minha irmã Jenny quebrou um jarro; eu a deixei irritada, caçoando dela, ela perdeu o espírito esportivo e atirou o jarro em cima de mim. Quando meu pai chegou e quis saber quem fizera aquilo, ela ficou com medo demais para confessar e simplesmente olhou para mim, com os olhos arregalados e assustados. Ela tem olhos azuis, como os meus, porém mais bonitos, com pestanas negras ao redor. - Jamie deu de ombros outra vez. -- De qualquer modo, eu disse a meu pai que tinha sido eu.
- Foi muito nobre de sua parte — eu disse, em tom sarcástico. — Sua rirmã deve ter ficado agradecida.
- Ah, sim, teria ficado. Só que meu pai estivera o tempo todo do outro lado da porta aberta e vira o que realmente acontecera. Assim, ela levou uma surra por perder a calma e quebrar o jarro e eu levei duas surras: uma por caçoar dela e outra por mentir.
- Isso não é justo! - exclamei, indignada.
- Meu pai nem sempre era amável, mas geralmente era justo - Jamie disse, imperturbável. — Disse que a verdade é a verdade e as pessoas deviam assumir responsabilidade pelos seus atos, o que está certo. — Lançou-me um olhar de esguelha.
- Mas disse também que fora um ato generoso de minha parte assumir a culpa, portanto, embora tivesse que me punir, eu podia escolher entre ser espancado ou ir para a cama sem jantar. - Riu melancolicamente, sacudindo a cabeça. - Meu pai me conhecia muito bem. Preferi a surra sem nenhuma dúvida.
- Você é um apetite ambulante, Jamie - eu disse.
- Sim — concordou sem rancor. - Sempre fui. Você também, glutão -disse à sua montaria. - Espere um pouco, até pararmos para descansar. -Sacudiu as rédeas, puxando o nariz fuçador do cavalo dos tentadores tufos de grama à margem da estrada.
- Sim, meu pai era justo - continuou - e também tinha consideração, embora eu certamente não desse o devido valor a isso na época. Ele não me deixava esperando por uma surra. Se eu fazia alguma coisa errada, era punido imediatamente, ou assim que ele descobrisse o que eu fizera. Ele sempre fazia questão que eu soubesse por que estava levando uma sova e se eu quisesse dar a minha versão, eu podia.
Ah, então é isso que você está pretendendo, pensei. Seu manipulador, procurando desarmar os ânimos. Duvidava que ele pudesse me fazer desistir de minha intenção decidida de estripá-lo na primeira oportunidade, mas ele podia tentar.
- Alguma vez venceu uma discussão? — perguntei.
- Não. Em geral, era um caso sem complicações, com o acusado condenado por sua própria boca. Mas às vezes conseguia reduzir um pouco a sentença. — Esfregou o nariz.
- Uma vez eu disse a ele que bater no filho era um método bem pouco civilizado de fazer valer sua vontade. Ele disse que eu tinha tanto bom senso quanto o poste a meu lado, se tanto. Disse que respeito pelos mais velhos era um dos pilares do comportamento civilizado e até eu aprender isso, era melhor me acostumar a olhar para os dedos dos pés quando um dos meus bárbaros mais velhos surrasse o meu traseiro.
Desta vez, ri com ele. A estrada era tranqüila, com aquela espécie de absoluto silêncio que ocorre quando estamos a quilômetros de qualquer outra pessoa. O tipo de tranqüilidade tão difícil de encontrar na minha própria época superpovoada, quando as máquinas haviam disseminado tanto a influência do homem, que uma única pessoa podia fazer o barulho de uma multidão. Os únicos sons ali eram o farfalhar das plantas, o pio ocasional de um pássaro noturno e as pancadas surdas das patas dos cavalos.
Eu caminhava com um pouco mais de facilidade agora, à medida que meus músculos contraídos começaram a relaxar com o exercício. Meus sentimentos irritadiços começaram a relaxar, também, ouvindo as histórias de Jamie, todas engraçadas e autodepreciativas.
- É claro que eu não gostava de apanhar, mas se tivesse escolha, preferia meu pai ao professor. Na maioria das vezes, na escola, o professor batia nas palmas de nossas mãos com uma correia com a ponta cortada em tiras, ao invés de bater nas nádegas. Meu pai dizia que se ele batesse na minha mão, eu não poderia fazer nenhum trabalho, ao passo que se me batesse no traseiro, ao menos não me sentiria tentado a ficar sentado, à toa.
- Normalmente, tínhamos um professor diferente a cada ano; não ficavam por muito tempo, em geral viravam fazendeiros ou se mudavam para paragens mais ricas. Os professores de escola recebem tão pouco, são sempre magros e famintos. Tive um gordo uma vez e nunca acreditei que fosse mesmo professor; parecia um disfarce. — Pensei no pequeno e gordo padre Bain e sorri, concordando.
- Lembro-me especialmente de um, porque ele nos fazia ficar de pé diante da turma com a mão estendida e começava a dar um longo sermão sobre seus erros antes de começar e depois entre um golpe e outro. Eu ficava lá parado, com a mão estendida, com uma dor lancinante, rezando para que ele parasse a lengalenga e prosseguisse logo, antes que eu perdesse a coragem e começasse a chorar.
- Imagino que isso é o que ele queria - disse, sentindo certa compaixão, a despeito de mim mesma.
- Ah, sim — disse com franqueza. — Mas levei algum tempo para perceber isso. E quando percebi, como sempre, não consegui ficar com a boca fechada. - Suspirou.
- O que aconteceu? - A essa altura, já havia esquecido completamente a minha raiva.
- Bem, um dia ele me mandou ficar lá de pé, o que sempre acontecia porque eu não conseguia escrever bem com a mão direita, sempre usava a esquerda. Ele me batia três vezes - levando quase cinco minutos para fazer isso, o filho-da-mãe - e continuava a me repreender por ser um grosseirão estupido, preguiçoso e teimoso, antes de me bater outra vez. Minha mão ardia insuportavelmente, porque era a segunda vez naquele dia, e eu morria de medo porque sabia que receberia uma terrível surra quando chegasse em casa. Essa era a regra; se apanhasse na escola, recebia outra surra assim que chegava em casa, porque meu pai achava que a educação era importante.
Seja como for, perdi a calma. — A mão esquerda fechou-se involuntariamente em torno das rédeas, como se protegesse a palma sensível. Parou e olhou para mim.
- Raramente perco a calma, Sassenach, e em geral me arrependo quando o faço. - E isso, pensei, era o mais próximo de um pedido de desculpas que eu iria conseguir.
- Arrependeu-se dessa vez?
- Bem, cerrei os punhos e fitei-o com raiva, - ele era um homem alto, esquelético, de uns vinte anos, eu acho, embora me parecesse bem mais velho. Então eu disse: "Não tenho medo de você e não vai conseguir me fazer chorar, por mais que me bata!" - Respirou fundo e soltou o ar lentamente. — Acho que foi um erro de decisão dizer-lhe isso enquanto ainda segurava a correia.
- Não me diga — comentei. - Ele tentou provar que você estava errado?
- Ah, sim, ele tentou. - Jamie balançou a cabeça, o rosto escuro contra o céu de nuvens claras. Sua voz soou com uma certa satisfação soturna na palavra "tentou".
- Então, ele não conseguiu?
Meneou os cabelos desgrenhados para a frente e para trás.
- Não. Pelo menos não conseguiu me fazer chorar. Mas certamente fez com que eu me arrependesse de não ter ficado com a boca fechada.
Parou por um instante, virando o rosto para mim. As nuvens haviam se apartado um pouco e o luar tocava os contornos de seu maxilar e de sua face, fazendo-o parecer dourado, como um dos arcanjos de Donatello.
- Quando Dougal estava descrevendo minha personalidade para você, antes de nos casarmos, por acaso ele mencionou que eu às vezes sou um pouco teimoso? - Os olhos puxados brilharam, muito mais como Lúcifer do que como Miguel.
Eu ri.
- Isso é dizer pouco. Pelo que me lembro, o que ele disse foi que todos os Fraser são teimosos como rochas e que você é o pior de todos. Na verdade - eu disse, um pouco secamente -, eu mesma já havia notado.
Sorriu, enquanto puxava o cavalo pelas rédeas contornando uma grande poça no meio da estrada e conduzindo o meu pela gamarra atrás dele.
- Mmmmhum, bem, não diria que Dougal está errado - disse, depois de passado o risco. — Mas se eu sou teimoso, também sou honesto. Meu pai também era assim e de vez em quando nos envolvíamos em discussões calorosas, das quais não podíamos sair sem o uso da força, terminando geralmente comigo debruçado sobre a cerca.
De repente, estendeu a mão para agarrar as rédeas do meu cavalo, enquanto o animal recuava e resfolegava.
- Ei, vamos! Quieto! Stad, mo dhu! — Seu próprio cavalo, menos assustado, somente puxava bruscamente e atirava a cabeça para trás, inquieto.
- O que foi? — Não via nada, apesar dos pontos iluminados pelo luar que salpicavam de manchas a estrada e o campo. Havia um bosque de pinheiros adiante e os cavalos não pareciam dispostos a se aproximar.
- Não sei. Fique aqui, em silêncio. Monte em seu cavalo e segure o meu. Se eu a chamar, solte a gamarra e corra para mim. - A voz de Jamie era baixa e descontraída, acalmando a mim e aos cavalos. Com um abafado "Seguir!" para o cavalo e um tapa no pescoço para fazê-lo ficar mais perto de mim, desapareceu no meio das urzes, a mão na adaga.
Agucei os olhos e os ouvidos para discernir o que ainda perturbava os cavalos; eles remexiam-se e batiam os cascos, as orelhas e as caudas agitando-se de um lado para o outro.
As nuvens agora haviam se esgarçado e se dispersado com o vento da noite, deixando apenas uns poucos rastros na frente de uma brilhante lua crescente. Apesar da claridade, eu não conseguia ver nada adiante na estrada ou no bosque ameaçador.
Parecia ser tarde da noite e uma estrada pouco convidativa para assaltantes, já bastante escassos em qualquer lugar das Highlands; havia tão poucos viajantes que não compensava preparar uma emboscada.
O bosque era escuro, mas não inerte. Os pinheiros rugiam baixinho para si mesmos, milhões de agulhas roçando o vento. Árvores muito antigas, os pinheiros, e misteriosas nas trevas. Gimnospermas, os pinheiros são árvores coníferas, espalhando suas sementes expostas, muito mais antigas e inflexíveis do que os carvalhos e álamos de folhas macias e galhos frágeis. Um lugar adequado para os fantasmas e espíritos malignos de Rupert.
Só você, disse zangada a mim mesma, conseguiria ficar com medo de um punhado de árvores. Mas onde estaria Jamie?
A mão que agarrou minha coxa me fez guinchar como um morcego assustado; uma conseqüência natural de tentar gritar com o coração na boca. Com a fúria irracional dos irracionalmente apavorados, reagi chutando-o no peito.
- Não se aproxime de mim assim sorrateiramente!
- Silêncio - ele disse -, venha comigo. Puxando-me da sela sem a menor cerimônia, colocou-me no chão e apressadamente amarrou os cavalos, que relincharam às nossas costas enquanto ele me conduzia para o "mato alto.
- O que é? - sussurrei, tropeçando cegamente em raízes e pedras.
- Silêncio. Não fale. Olhe para baixo e acompanhe meus pés. Pise onde eu pisar e pare quando eu tocá-la.
Devagar e mais ou menos em silêncio, aproximamo-nos no limite do bosque de pinheiros. Estava escuro sob as árvores, apenas migalhas de luz caíam na camada de agulhas no chão. Nem mesmo Jamie conseguia andar Silenciosamente sobre elas, mas o ruído de agulhas secas perdia-se no dos Verdes acima.
Havia uma brecha nesta forração de agulhas, uma enorme massa de granito erguendo-se do chão da floresta. Ali, Jamie colocou-me à sua frente, guiando minhas mãos e meus pés para escalar o inclinado monte de pedras. No topo, havia espaço suficiente para deitarmos de bruços, lado a lado. Jamie aproximou a boca do meu ouvido, mal respirando.
- Nove metros à frente, para a direita. Na clareira. Pode vê-los?
Quando os vi, pude ouvi-los também. Lobos, uma pequena matilha, oito ou dez animais, talvez. Nenhum uivo. A presa morta jazia na escuridão, um borrão negro com uma perna para cima, fina e vibrando sob o impacto de dentes dilacerando a carcaça. Ouvia-se apenas um ou outro rosnado ou latido baixo quando um filhote era violentamente afastado do pedaço de um lobo adulto, os sons alegres de quem se alimenta, mastigando, e o estalido de um osso quebrado.
Quando meus olhos ficaram mais acostumados à cena salpicada de luar, pude divisar várias formas peludas estendidas sob as árvores, saciadas e tranqüilas. Tufos de pêlos cinzas brilhavam aqui e ali, enquanto os que ainda estavam sobre a carcaça fuçavam e escavavam por pedaços mais tenros, negligenciados pelos comensais anteriores.
Uma cabeça larga, de olhos amarelos, surgiu de repente numa mancha de luz, as orelhas em pé. O lobo fez um barulho urgente, suave, algo entre um lamento e um rosnado, e fez-se um silêncio repentino sob as árvores abaixo.
Os olhos de açafrão pareciam fixos nos meus. Não havia nenhum medo na postura do animal, nem curiosidade, somente um alerta desconfiado. A mão de Jamie nas minhas costas alertou-me para não me mexer, embora eu não sentisse nenhuma vontade de correr. Eu poderia ter ficado presa aos olhos da loba — tinha certeza de que se tratava de uma fêmea, embora não soubesse por quê - durante horas, eu acho, mas ela agitou as orelhas uma vez, como se me descartasse, e inclinou-se novamente sobre sua caça.
Nós os observamos por alguns minutos, pacíficos à dispersa luz da lua. Finalmente, Jamie indicou com um toque no meu braço que era hora de partirmos.
Manteve a mão no meu braço para me apoiar enquanto fazíamos nosso caminho de volta pelo meio das árvores até a estrada. Era a primeira vez que eu voluntariamente deixava que ele me tocasse desde meu resgate em Fort William. Ainda encantados com a visão dos lobos, não falamos muito, mas começamos a nos sentir confortáveis um com o outro novamente.
Enquanto caminhávamos, considerando as histórias que ele me contara, não pude deixar de admirar o trabalho que fizera. Sem uma palavra de explicação ou desculpa direta, transmitira-me a mensagem que queria. Eu lhe dei justiça, dizia a mensagem, como fui ensinado. E lhe dei compaixão também, até onde pude. Embora não pudesse lhe poupar dor e humilhação, lhe ofereço minhas próprias dores e humilhações para que possa suportar melhor as suas.
- Você se importava muito? - perguntei repentinamente. - Quero dizer, de ser espancado. Você se recobrava rapidamente?
Apertou minha mão ligeiramente antes de soltá-la.
- Na maioria das vezes eu esquecia tudo tão logo terminava. Exceto da última vez. Esta levou algum tempo.
- Por quê?
- Ah, bem. Para começar, eu tinha dezesseis anos e já era um homem... eu achava. Depois, doeu muito.
- Não precisa me contar se não quiser - eu disse, notando sua hesitação. - É uma história dolorosa?
- Não tão dolorosa quanto o espancamento — disse, rindo. - Não, não me importo de contar-lhe. Mas é uma história longa.
- Ainda falta muito para chegarmos a Bargrennan.
- É verdade. Muito bem, então. Lembra-se que eu lhe disse que passei um ano no Castelo Leoch quando tinha dezesseis anos? Era um acordo entre Colum e meu pai, para eu conhecer o clã da minha mãe. Fui confiado a Dougal por dois anos e depois fui para o castelo por um ano, para aprender boas maneiras, latim e tudo o mais.
- Ah. Eu me perguntava por que você tinha morado lá.
- Sim, foi por isso. Eu era grande para a minha idade, ou alto pelo menos; já era um bom espadachim naquele tempo e montava melhor do que a maioria.
- E modesto, também.
- Não muito. Convencido como o diabo e até mais rápido com a língua do que agora.
- A mente afiada — eu disse, achando graça.
- Pode ser, Sassenach. Descobri que fazia as pessoas rirem com minhas observações e as tornei mais freqüentes, sem me importar muito com o que estava dizendo, ou a quem. Às vezes, eu era cruel com os outros rapazes, sem intenção, apenas por não conseguir resistir se atinasse com algo espirituoso para dizer.
Ergueu os olhos para o céu, para calcular a hora. Estava mais escuro, agora que a lua descera. Reconheci Orion flutuando perto do horizonte e senti-me estranhamente reconfortada com a visão familiar.
-- Então, um dia eu fui longe demais. Eu estava com dois outros rapazes descendo um corredor, quando vi a sra. FitzGibbons na outra extremidade. Ela carregava um cesto grande, quase tão grande quanto ela, que ia batendo para a frente e para trás conforme ela andava. Você sabe como ela é agora; era muito menor na época. - Esfregou o nariz, envergonhado.
- Bem, fiz uma série de comentários deselegantes com relação à sua aparência. Engraçados, mas muito grosseiros. Meus companheiros riram muito. Não percebi que ela também podia me ouvir.
Lembrei-me da rechonchuda senhora do Castelo Leoch. Embora eu nunca a tivesse visto de mau humor, não parecia ser o tipo de pessoa que pudesse ser insultada impunemente.
- O que ela fez?
- Nada... na hora. Eu não sabia que ela ouvira, até ela levantar-se no Conselho no dia seguinte e contar a Colum o que acontecera.
- Ah, meu Deus. - Eu sabia que Colum tinha a sra. Fitz em grande consideração e não achava que ele fosse aceitar facilmente qualquer irreverência dirigida a ela. — O que aconteceu?
- O mesmo que aconteceu a Laoghaire... ou quase. - Deu uma risadinha.
- Dei uma de valente e me levantei, dizendo que preferia receber minha surra com os punhos. Estava tentando me manter muito calmo e adulto a respeito de tudo aquilo, embora meu coração parecesse um martelo de ferreiro e eu tivesse me sentido um pouco tonto quando olhei as mãos de Angus; pareciam de pedra e eram enormes. Ouvi algumas risadas das pessoas reunidas no salão. Eu não era tão alto na ocasião quanto sou agora e pesava menos da metade. Angus poderia arrancar minha cabeça com um único soco.
- Bem, tanto Colum quanto Dougal franziram a testa para mim, embora eu ache que na verdade ficaram um pouco satisfeitos por eu ter tido a ousadia de pedir. Então, Colum disse não, se eu ia me comportar como criança, tinha que ser punido como tal. Fez um sinal com a cabeça e, antes que eu pudesse me mexer, Angus me colocou atravessado sobre seus joelhos, levantou a barra do meu kilt e me esfolou com seu cinto, diante de todo o Conselho.
- Ah, Jamie!
- Mmmmhum. Deve ter notado que Angus é muito profissional em seu trabalho, não? Ele me deu quinze chicotadas e até hoje eu posso me lembrar exatamente onde cada uma bateu. - Estremeceu com a lembrança. — Fiquei com as marcas por uma semana.
Estendeu o braço e arrancou um maço de agulhas de um pinheiro próximo, espalhando-as como um leque entre o polegar e os dedos. O cheiro de terebintina intensificou-se repentinamente.
- Bem, também não permitiram que eu simplesmente saísse discretamente para cuidar dos meus machucados. Quando Angus terminou comigo, Dougal pegou-me pelo cangote e me levou para o outro extremo do salão. Então, fez com que eu percorresse todo o caminho de volta de joelhos no assoalho de pedras. Tive que me ajoelhar diante da cadeira de Colum e pedir perdão à sra. Fitz, depois a Colum, depois pedir desculpas a todas as pessoas no salão por minha grosseria e, finalmente, tive que agradecer a Angus pelo castigo. Quase me engasguei nessa hora, mas ele foi muito benevolente; estendeu a mão e me fez levantar. Em seguida, me fizeram sentar em um banco perto de Colum e fui ordenado a permanecer ali até o final do Conselho.
Curvou os ombros como se quisesse se proteger.
- Foi a pior hora que já passei. Meu rosto pegava fogo, assim como meu traseiro, meus joelhos estavam esfolados e eu não podia olhar senão para os meus pés, mas o pior é que estava com uma vontade terrível de urinar. Quase morri; preferia explodir a me molhar todo diante da multidão, depois de tudo que já passara, mas foi por pouco. Minha camisa ficou molhada de suor.
Prendi a vontade de rir.
- Não podia dizer a Colum qual era o problema? - perguntei.
- Ele sabia perfeitamente bem qual era o problema; como todos os demais no salão, pelo jeito que eu me contorcia no banco. As pessoas faziam apostas se eu ia agüentar ou não. - Encolheu os ombros.
- Colum teria me deixado ir, se eu tivesse pedido. Mas, bem, eu era teimoso. - Riu um pouco timidamente, os dentes brancos no rosto escuro. - Preferia morrer a pedir e quase morri mesmo. Quando finalmente Colum disse que eu podia ir, consegui sair do salão, mas só até a porta mais próxima. Atirei-me atrás da parede e esguichei um verdadeiro rio; achei que nunca mais ia parar.
Ele espalmou as mãos num gesto de autodepreciação, deixando cair o maço de agulhas de pinheiro. — Agora você sabe qual foi a pior coisa que já me aconteceu.
Não pude me conter; ri até ter que me sentar na beira da estrada. Jamie esperou pacientemente por um minuto, em seguida deixou-se cair de joelhos.
- Por que está rindo? - perguntou. - Não foi nada engraçado. - Mas ele mesmo estava sorrindo.
Sacudi a cabeça, ainda rindo.
- Não, não foi. É uma história terrível. É que... posso vê-lo sentado lá, Mimoso como uma mula, com os maxilares cerrados e soltando fumaça Pelos ouvidos.
Jamie bufou, mas riu um pouco também.
- Sim. Não é fácil ter dezesseis anos, não é?
-- Então você ajudou aquela garota Laoghaire porque teve pena dela -eu disse, quando consegui me recobrar. - Você sabia como era. Ficou surpreso.
- Sim, foi o que eu disse. É muito mais fácil levar um soco na cara aos vinte e três do que levar uma surra de correia no traseiro, em público, aos dezesseis anos. O orgulho ferido dói mais do que qualquer outra coisa e nessa idade é fácil feri-lo.
- Eu me perguntava por quê. Nunca vira ninguém sorrir na expectativa de ser esmurrado na boca.
- Não poderia fazê-lo depois.
- Humm. - Concordei, balançando a cabeça. - Pensei... - disse, depois parei, envergonhada.
- Pensou o quê? Ah, sobre mim e Laoghaire, quer dizer - falou, adivinhando meu pensamento. - Você, Alec e todo mundo, inclusive Laoghaire. Teria feito o mesmo se ela fosse feia. — Cutucou-me nas costelas. - Embora não espere que acredite nisso.
- Bem, na verdade eu os vi juntos naquele dia na alcova - me defendi - e alguém realmente o ensinou a beijar.
Jamie remexeu os pés na terra, envergonhado. Abaixou a cabeça timidamente.
- Ora, bem, Sassenach, não sou melhor que a maioria dos homens. Às vezes, eu tento, mas nem sempre consigo. Sabe aquela passagem de São Paulo, onde ele diz que é melhor casar do que arder? Bem, eu estava ardendo muito.
Ri outra vez, sentindo-me alegre como se eu mesma fosse uma menina de dezesseis anos.
- Então, você se casou comigo - caçoei - para evitar a chance de pecar?
- Sim. É para isso que serve o casamento. Transforma em sacramento coisas que de outro modo você teria que confessar.
Desabei outra vez.
- Ah, Jamie, eu realmente o amo!
Agora foi a vez de ele rir. Dobrou-se às gargalhadas, em seguida sentou-se na beira da estrada, chiando de tanto rir. Aos poucos, deixou-se cair de costas e ficou deitado na grama, ofegante e quase engasgando.
- Qual é o seu problema, afinal? - perguntei, fitando-o. Finalmente, ele se sentou, limpando os olhos lacrimejantes. Sacudiu a cabeça, arfando.
- Murtagh tinha razão em relação às mulheres. Sassenach, arrisquei minha vida por você, cometi roubo, incêndio criminoso, assalto e assassinato por sua causa. Em troca, você me xingou, insultou minha masculinidade, chutou-me nos testículos e arranhou meu rosto. Depois, bati em você até quase matá-la e lhe conto todas as coisas mais humilhantes que ja me aconteceram e você diz que me ama. - Colocou a cabeça nos joelhos e riu ainda mais. Finalmente, levantou-se e estendeu-me a mão, limpando os olhos com a outra.
- Você não é muito sensata, Sassenach, mas gosto de você assim mesmo. Vamos embora.
Estava ficando tarde - ou cedo, dependendo do ponto de vista, e era necessário seguir a cavalo, se quiséssemos chegar a Bargrennan ao amanhecer. A essa altura, eu já estava bastante recuperada para agüentar sentar-me na sela, embora os efeitos ainda fossem sentidos.
Cavalgamos num silêncio amistoso por algum tempo. Entregue a meus próprios pensamentos, considerei pela primeira vez com calma o que aconteceria se e quando eu conseguisse encontrar o caminho de volta ao círculo de pedras. Coagida a casar-me com ele e dependente dele por necessidade, inegavelmente eu passara a gostar muito de Jamie.
Mais importantes, talvez, eram seus sentimentos em relação a mim. Ligados inicialmente pelas circunstâncias, depois por amizade e finalmente por uma paixão física profunda e surpreendente, ainda assim ele nunca me fizera nenhuma declaração, mesmo informal, sobre seus sentimentos. Até agora.
Ele arriscou a vida por mim. Isso podia ter sido feito em respeito a seus votos matrimoniais; disse que me protegeria até a última gota de seu sangue, e eu acreditava.
Emocionei-me mais com os acontecimentos das últimas vinte e quatro horas, quando repentinamente me confessara suas emoções e vida pessoal, com todos os seus defeitos. Se sentisse por mim o que eu achava que sentia, como se sentiria caso eu desaparecesse de repente? Os remanescentes do desconforto físico retrocederam conforme eu me debatia com esses pensamentos inquietantes.
Estávamos a uns cinco quilômetros de Bargrennan quando Jamie repentinamente quebrou o silêncio.
- Eu não lhe contei como meu pai morreu - disse, de repente.
- Dougal disse que ele teve um derrame cerebral, quero dizer, uma apoplexia - disse, surpresa. Imaginei que Jamie, também a sós com seus pensamentos, acabara pensando em seu pai, em conseqüência de nossa conversa anterior, mas não conseguia imaginar o que o levara a esse assunto em particular.
- Isso mesmo. Mas isso... ele... - Parou, considerando as palavras, depois encolheu os ombros, abandonando a precaução. Respirou fundo e exalou um suspiro. - Você deve ficar sabendo. Tem a ver... com muitas coisas - A estrada neste trecho era larga o suficiente para cavalgarmos confortavelmente lado a lado, desde que ficássemos atentos a pedras salientes; a desculpa que eu dera a Dougal sobre o meu cavalo não fora escolhida por acaso.
- Foi no forte - Jamie disse, escolhendo cuidadosamente seu caminho num trecho ruim da estrada. - Onde estivemos ontem. Onde Randall e seus homens me tiraram de Lallybroch. Onde me açoitaram. Dois dias depois da primeira vez, Randall me chamou a seu escritório. Dois soldados foram me buscar e me levaram da cela até sua sala, a mesma onde eu a encontrei; foi por isso que eu sabia aonde ir.
- Assim que saímos, encontrei meu pai no pátio. Ele descobrira para onde haviam me levado e fora ver se podia me libertar de alguma forma ou ao menos ver por si mesmo que eu estava bem.
Jamie cutucou levemente as costelas do cavalo com o salto da bota e estalou a língua, impelindo-o a andar mais depressa. Ainda não havia nenhum vestígio de luz do dia, mas o aspecto da noite mudara. O alvorecer não estava a mais de uma hora de distância.
- Eu não havia percebido até vê-lo o quanto eu me sentira solitário lá, ou apavorado. Os soldados não permitiram que ficássemos sozinhos, mas me deixaram falar com ele. - Engoliu em seco e continuou.
- Disse-lhe que sentia muito, sobre Jenny, quero dizer, e sobre toda a confusão. Mas ele me mandou calar e me abraçou com força. Perguntou se eu estava muito ferido, ele sabia que eu fora açoitado, e eu disse que ficaria bem. Os soldados disseram que tínhamos que ir e ele, então, apertou meus braços com força e disse-me para lembrar de rezar. Disse que iria me defender, independente do que acontecesse, e que eu devia manter a cabeça erguida e tentar não me preocupar. Beijou meu rosto e os soldados levaram-me. Foi a última vez que eu o vi.
Sua voz mantinha-se firme, mas um pouco rouca. Eu mesma sentia um nó na garganta e o teria tocado se pudesse, mas a estrada se estreitara numa ravina e fui forçada a ficar atrás dele por um instante. Quando ficamos lado a lado outra vez, ele havia se recobrado.
- Assim - disse, respirando fundo -, fui ver o capitão Randall. Ele mandou os soldados saírem, para que ficássemos sozinhos, e me ofereceu um banco. Disse que meu pai oferecera pagamento de fiança pela minha liberdade, mas que a acusação que pesava sobre mim era grave e eu não podia ser libertado sob fiança sem uma permissão por escrito do duque de Argyll, em cuja circunscrição nos encontrávamos. Imaginei que era para lá que meu pai estava indo, então, para falar com Argyll.
- Enquanto isso, Randall continuou, havia a questão do segundo açoite ao qual eu fora sentenciado. - Parou um minuto, como se não soubesse como continuar.
- Ele... estava estranho, pensei. Muito cordial, mas com alguma intenção subjacente que eu não compreendia. Continuava a me observar, como se esperasse que eu fizesse alguma coisa, embora eu continuasse sentado. imóvel.
- Praticamente se desculpou comigo, dizendo que lamentava muito que nosso relacionamento tivesse sido tão difícil até o momento e que desejava que as circunstâncias tivessem sido diferentes, e assim por diante. - Jamie sacudiu a cabeça. — Não conseguia imaginar sobre o que ele estava falando; dois dias antes, fizera o possível para me matar de chicotadas. Quando finalmente chegou ao ponto, foi bastante brusco.
- O que ele queria? - perguntei. Jamie olhou para mim, depois desviou o olhar. A escuridão escondia suas feições, mas achei que parecia constrangido.
- A mim - disse, sem rodeios.
Dei um salto tão violento de surpresa, que o cavalo arremessou a cabeça para trás e relinchou, em protesto. Jamie estremeceu outra vez.
- Foi muito claro a respeito. Se eu... ah, se eu me entregasse a ele, cancelaria o segundo açoite. Se não... então, eu desejaria nunca ter nascido, disse.
Senti-me enjoada.
- Eu já estava desejando algo assim - disse, com uma centelha de humor. - Minha barriga ardia como se eu tivesse engolido vidro moído e, se não estivesse sentado, meus joelhos teriam batido um no outro.
- Mas o que... - Minha voz soou rouca. Limpei a garganta e comecei outra vez. - Mas o que você fez?
Suspirou.
- Bem, não vou mentir para você, Sassenach. Eu considerei a proposta. Minhas costas ainda estavam tão em carne viva das primeiras chicotadas que eu mal conseguia agüentar uma camisa e sentia-me tonto, toda vez que me levantava. A idéia de passar por tudo aquilo outra vez, amarrado e impotente, esperando a próxima chicotada... - Estremeceu involuntariamente.
- Eu não fazia realmente nenhuma idéia - disse amargamente —, mas achei que ser molestado seria menos doloroso. Muitos homens morrem sob o açoite às vezes, Sassenach, e pela expressão no seu rosto, achei que eu seria um deles, se essa fosse a minha escolha. - Suspirou outra vez.
- Mas... bem, eu ainda podia sentir o beijo do meu pai no meu rosto e Pensei no que ele dissera e... bem, eu simplesmente não poderia fazer aquilo. Não parei para pensar o que a minha morte significaria para meu Pai - Soltou o ar num riso canhestro, como se achasse alguma coisa levemente divertida. - E depois, além disso, pensei, o sujeito já havia violentado minha irmã. Não permitiria que acontecesse comigo também.
Não achei graça. Podia ver Jack Randall outra vez, sob uma luz nova repugnante. Jamie esfregou a nuca, depois levou a mão ao arção.
- Assim, reuni o pouco de coragem que me restava e disse não. Também disse isso em alto e bom som, chamando-o de todos os nomes obscenos de que pude me lembrar, a plenos pulmões.
Seu rosto se contorceu num esgar.
- Tive medo de mudar de idéia se pensasse muito; quis ter certeza de não haver possibilidade de reconsideração. Embora eu suponha - acrescentou pensativamente — que não exista maneira diplomática de recusar uma proposta como essa.
- Não - concordei secamente. - Acho que não ficaria satisfeito, não importa como você falasse.
- Não ficou mesmo. Esbofeteou-me na boca, para me fazer calar. Caí no chão - ainda estava um pouco fraco — e ele ficou parado ao meu lado simplesmente olhando para baixo, fitando-me. Tive o bom senso de não tentar me levantar, de modo que fiquei simplesmente caído ali até ele chamar os guardas para me levarem de volta para a cela. — Sacudiu a cabeça. -Sua expressão permaneceu imutável; apenas disse quando eu saía: "Vejo você na sexta-feira", como se tivéssemos um encontro marcado para discutir negócios ou algo assim.
Os soldados não levaram Jamie de volta à cela que ele compartilhava com três outros prisioneiros. Ao invés disso, foi colocado numa solitária, para aguardar a sexta-feira sem nenhuma distração, a não ser a visita diária do médico da guarnição, que vinha fazer curativos em suas costas.
- Não era um bom médico —Jamie disse —, mas era um homem bondoso. No segundo dia que ele veio, juntamente com a gordura de ganso e o carvão, levou-me uma pequena Bíblia que pertencera a um prisioneiro que morrera. Disse que entendia que eu era papista e, quer eu achasse ou não algum conforto na palavra de Deus, ao menos poderia comparar minhas provações com as de Jó. - Riu.
- Por estranho que pareça, eu realmente encontrei certo conforto. O Senhor também teve que suportar o flagelo; e pude refletir que pelo menos eu não seria arrastado e crucificado depois. Por outro lado - disse sensatamente - Nosso Senhor também não foi forçado a ouvir propostas indecentes de Pôncio Pilatos.
Jamie guardara a pequena Bíblia. Vasculhou no seu alforje e estendeu-a a mim para que a examinasse. Era um volume surrado, de capa de couro, de cerca de doze centímetros de comprimento, impresso em papel tão delicado que as páginas eram transparentes. Na folha de rosto, estava escrito ALEXANDER WlLLIAM RODERICK MACGREGOR, 1733. A tinta estava desbotada e manchada e a capa entortada, como se o livro tivesse se molhado em mais de uma ocasião.
Revirei o pequeno livro na mão, curiosa. Apesar de pequeno, deve ter sido difícil para ele conservá-lo, pelas viagens e aventuras dos últimos quatro anos.
- Eu nunca o vi lendo-o. — Devolvi-lhe o livro.
- Não, não é por isso que o guardo - disse. Enfiou-o de novo no alforje alisando a borda da capa com o polegar ao fazê-lo. Deu uns tapinhas no alforje distraidamente.
- Tenho uma dívida com Alex MacGregor. Pretendo pagá-la um dia.
- De qualquer modo — continuou, voltando à história -, a sexta-feira finalmente chegou e eu não sei se fiquei triste ou contente. A espera e o medo eram quase tão piores do que eu imaginava que a dor seria. Mas, quando chegou a hora... — Fez aquele seu gesto habitual de encolher os ombros, soltando a camisa nas costas. - Bem, você viu as cicatrizes. Sabe como foi.
- Só porque Dougal me contou. Disse-me que estava lá. Jamie balançou a cabeça, confirmando.
- Sim, ele estava lá. E meu pai também, embora eu não soubesse disso na época. Não conseguia pensar em nada além do meu próprio problema.
- Ah - eu disse devagar -, e seu pai...
- Mmm. Foi quando aconteceu. Alguns dos homens lá me disseram depois que acharam que eu estava morto, ou quase, e acho que meu pai pensou o mesmo. - Hesitou e sua voz estava rouca quando continuou. -Quando caí, segundo Dougal me contou, meu pai emitiu um pequeno som e levou a mão à cabeça. Em seguida, caiu como uma pedra. E não se levantou mais.
Os pássaros agitavam-se nas urzes, trinando e chamando das folhas ainda escuras das árvores. A cabeça de Jamie estava baixa, o rosto ainda invisível.
- Eu não sabia que ele estava morto - disse em voz baixa. - Só me contaram um mês depois, quando acharam que eu já estava forte o suficiente para suportar a notícia. Assim, eu não o enterrei, como um filho deveria ter feito. E nunca vi seu túmulo, porque tenho medo de voltar para casa.
- Jamie — eu disse. - Ah, Jamie, querido.
Após o que pareceu um longo silêncio, eu disse:
- Mas você não pode, não deve, se sentir responsável. Jamie, não havia nada que você pudesse ter feito; ou feito de modo diferente.
- Não? — disse. — Não, talvez não; embora eu pense se isso teria acontecido se eu tivesse feito outra escolha. Mas isso não altera muito o modo como me sinto, e eu sinto como se o tivesse matado com minhas próprias mãos.
- Jamie — repeti, e parei, sentindo-me impotente. Ele continuou em Silêncio por alguns instantes, depois se empertigou e ergueu os ombros outra vez.
- Nunca contei isso a ninguém — disse subitamente. — Mas achei que agora você deveria saber, quero dizer, sobre Randall. Tem o direito de saber o que existe entre ele e mim.
O que existe entre ele e mim. A vida de um homem de bem, a honra de uma jovem e um desejo lascivo e imoral que encontrava seu escape no sangue e no medo. E pensei, com um aperto no estômago, que agora havia mais um item na balança. Eu. Pela primeira vez, comecei a compreender o que Jamie sentira, agachado na janela da sala de Randall, com uma arma descarregada nas mãos. E comecei a perdoá-lo pelo que me fizera.
Como se lesse meus pensamentos, disse, sem me olhar.
- Você sabe... quero dizer, pode entender, talvez, por que achei necessário bater em você?
Esperei um instante antes de responder. Eu compreendia, sim, mas isso não era tudo.
- Compreendo — disse. - E no que diz respeito a isso, eu o perdôo. O que eu não posso perdoar - disse, a voz erguendo-se levemente a despeito de mim mesma - é o fato de você ter se divertido!
Ele inclinou-se para a frente na sela, agarrando-se ao arção, e desatou a rir. Alegrou-se com a liberação da tensão antes de finalmente atirar a cabeça para trás e virar-se para mim. O céu estava bem mais claro agora e eu podia ver seu rosto, marcado pelo cansaço, pela tensão e pelo júbilo. Os arranhões em sua face estavam negros à luz turva.
- Me diverti! Sassenach — disse, ofegante —, você não sabe o quanto eu me diverti. Você estava tão... Meu Deus, você estava linda. Eu estava com tanta raiva e você lutou tão bravamente. Eu odiava machucá-la, mas ao mesmo tempo queria continuar... Meu Deus - disse, interrompendo-se e assoando o nariz. - Sim, eu me diverti.
- Embora, falando nisso - continuou —, você tenha que me dar crédito por ter exercitado a moderação do meu ímpeto.
Comecei a ficar com raiva de novo. Podia sentir meu rosto afogueado na brisa fresca do alvorecer.
- Exercitado a moderação do seu ímpeto, hein? Tive a impressão que o que você estava exercitando era o seu braço esquerdo bom. Você quase me aleijou, seu escocês arrogante, filho-da-mãe!
- Se eu quisesse aleijá-la, Sassenach, você saberia - retorquiu secamente. - Estou falando de depois. Eu dormi no chão, se você se lembra.
Fitei-o com os olhos apertados, bufando.
- Ah, então foi essa a moderação, não é?
- Bem, não achei direito copular com você naquele estado, por mais que desejasse. E eu desejava ardentemente - acrescentou, rindo outra vez-— Uma pressão terrível nos meus instintos naturais.
- Copular comigo? — repeti, distraída pela expressão.
- Não poderia chamar isso de "fazer amor" naquelas circunstâncias, não é?
- Seja como for que chame a isso - eu disse sem me alterar -, ainda bem que não tentou ou agora estaria sentindo falta de algumas partes valiosas de sua anatomia.
- Esse pensamento me ocorreu.
- E se acha que merece elogios por ter tão nobremente se contido de não cometer estupro em seguida a uma agressão...- engasguei-me de raiva.
Cavalgamos uns oitocentos metros em silêncio. Então, ele soltou um suspiro.
- Vejo que não devia ter começado esta conversa. O que eu estava tentando fazer era dar um jeito de lhe perguntar se me permitiria compartilhar sua cama outra vez, quando chegarmos a Bargrennan. - Parou, envergonhado. - É meio frio no chão.
Cavalguei por uns bons cinco minutos antes de responder. Quando resolvi o que iria dizer, puxei as rédeas do cavalo, atravessando-o na estrada, para forçar Jamie a parar também. Bargrennan estava à vista, os telhados das casas apenas visíveis na aurora.
Fiz meu cavalo ficar paralelo ao dele, de modo que eu não ficasse a mais de trinta centímetros de Jamie. Fitei-o diretamente nos olhos por um minuto antes de responder.
- Me dará a honra de compartilhar minha cama, Oh senhor e mestre? - perguntei formalmente.
Obviamente suspeitando de alguma coisa, meditou um instante, depois assentiu, igualmente formal:
- Sim. Obrigado.
Erguia as rédeas para partir, quando eu o detive.
- Só uma coisa, senhor - eu disse, ainda formalmente.
-Sim?
Tirei a mão num gesto rápido do bolso oculto de minha saia e a luz da alvorada lançou faíscas da lâmina da adaga pressionada contra o seu peito.
- Se - eu disse entre dentes cerrados - você algum dia erguer a mão para mim outra vez, James Fraser, vou arrancar seu coração e fritá-lo para o desjejum!
Fez-se um longo silêncio, quebrado apenas pelos movimentos e rangidos dos cavalos e dos arreios. Então, ele estendeu a mão, a palma para cima.
- Me dê isso. — Quando hesitei, ele disse impacientemente: - Não vou usá-la em você. Me dê isso!
Segurou a adaga pela lâmina, para cima, de modo que o sol nascente atingisse a pedra-da-lua no cabo e a fizesse brilhar. Segurando a adaga como um crucifixo, recitou alguma coisa em gaélico. Reconheci as palavras da cerimônia de juramento no salão de Colum, mas ele as seguiu com a tradução em inglês para meu proveito:
- Juro sobre a cruz de meu Senhor Jesus e pelo ferro sagrado que empunho, que lhe dou minha fidelidade e lhe juro lealdade. Se algum dia minha mão for erguida contra você, por raiva ou rebeldia, peço que este metal sagrado possa perfurar meu coração. - Beijou a adaga na junção entre o cabo e a lâmina e devolveu-a a mim.
— Não faço ameaças vãs, Sassenach — disse, erguendo uma das sobrancelhas. — E também não faço promessas fúteis. Agora, podemos ir para a cama?
Dougal nos aguardava sob o letreiro do Javali Vermelho, andando impacientemente de um lado para o outro do lado de fora.
- Conseguiu chegar, hein? - perguntou, observando com aprovação que eu desmontava sem ajuda, apenas cambaleando um pouco. - Rapariga corajosa! Quinze quilômetros sem um gemido. Vá para a sua cama, então; você merece. Jamie e eu vamos levar os cavalos para a estrebaria. - Deu um tapinha de leve no meu quadril, despachando-me. Fiquei feliz com sua sugestão e peguei no sono antes de minha cabeça tocar o travesseiro.
Não me mexi quando Jamie entrou na cama ao meu lado, mas acordei de repente no final da tarde, convencida de que havia algo importante que eu esquecera.
- Horrocks! - exclamei repentinamente, sentando-me ereta na cama com um salto.
- Hah? - Jamie, arrancado de um sono profundo, arremessou-se pelo lado da cama, terminando agachado no chão, a mão na adaga que havia deixado em cima das suas roupas empilhadas. — O quê? - perguntou, olhando assustado à sua volta. - O que foi?
Reprimi um risinho ao vê-lo, agachado e nu no chão, os cabelos rui-vos arrepiados.
- Você está parecendo um porco-espinho enfurecido - eu disse. Lançou-me um olhar maligno e levantou-se, recolocando a adaga no banco onde estavam suas roupas.
- Não podia esperar até eu acordar para me dizer isso? — indagou. — Achou que causaria mais impressão se me acordasse de um sono profundo gritando no meu ouvido?
- Não gritei - expliquei. — Eu disse "Horrocks". Lembrei-me de repente que havia me esquecido de lhe perguntar sobre ele. Você encontrou-se com ele?
Sentou-se na cama e enfiou a cabeça nas mãos. Esfregou o rosto vigorosamente, como se quisesse restabelecer a circulação.
-- Ah, sim - respondeu, com a voz abafada pelos dedos. - Sim, eu o encontrei.
Pude perceber pelo tom de voz que as informações do desertor não tinham sido boas.
- Ele não lhe contou nada, afinal? — perguntei, interessada. Essa sempre fora uma possibilidade, embora Jamie tivesse ido preparado para abrir mão não só de seu próprio dinheiro e de algum fornecido por Dougal e Colum, mas até mesmo do anel de seu pai, se necessário.
Jamie deitou-se na cama ao meu lado, fitando o teto.
- Não - disse. - Não, ele contou, sim. E a um preço razoável. Rolei na cama, ficando apoiada em um cotovelo, a fim de olhar seu rosto.
- Bem, e então? - perguntei. - Quem realmente atirou no sargento-mor?
Ergueu os olhos para mim e sorriu, um pouco amargamente.
- Randall - respondeu, fechando os olhos.
- Randall? - repeti, estupefata. — Mas por quê?
- Não sei - ele disse, os olhos ainda fechados. — Posso imaginar, eu acho, mas não importa muito. Não há a menor chance de prová-lo.
Eu tinha que concordar que isso era verdade. Deixei-me cair novamente na cama ao seu lado e fitei as escuras vigas de carvalho do teto baixo.
- O que pode fazer, então? — perguntei. — Ir para a França? Ou talvez... - uma idéia brilhante me ocorreu - para a América? Você poderia se sair bem no Novo Mundo.
- Atravessar o oceano? - Um estremecimento percorreu seu corpo. -Não. Não, eu não poderia fazer isso.
- Bem, então o quê? — perguntei, virando a cabeça para olhar para ele. Abriu um olho o suficiente para me lançar um olhar enviesado.
- Tinha pensado, para começar, que poderia dormir mais uma hora -disse -, mas tudo indica que não. - Resignado, ergueu-se na cama, recostando-se contra a parede. Estava cansada demais para tirar as roupas de cama antes de me deitar e havia uma mancha escura suspeita na colcha perto de seu joelho. Mantive um olhar desconfiado sobre ela enquanto ele falava.
- Você tem razão - ele concordou —, podíamos ir para a França. -Levei um susto, tendo momentaneamente me esquecido de que, qualquer que fosse a decisão que ele tomasse, eu agora estava incluída.
- Mas não há muita coisa para mim lá - ele disse, coçando a coxa distraidamente. — Somente servir no exército e essa vida não é para você. Ou para Roma, para me unir à corte do rei Jaime. Isso poderia ser conseguido; tenho alguns tios e primos Fraser com um pé naquele acampamento, que me ajudariam. Não gosto muito de política e menos ainda de príncipes, mas, sim, é uma possibilidade. No entanto, prefiro tentar limpar meu nome na Escócia primeiro. Se conseguir, posso, na pior das hipóteses, acabar como um pequeno rendeiro nas terras dos Fraser; na melhor das hipóteses, talvez possa voltar a Lallybroch. - Seu rosto se anuviou e percebi que estava pensando na irmã. - Se dependesse de mim, eu não iria, mas agora não posso mais pensar apenas em mim.
Olhou para mim e sorriu, a mão acariciando meus cabelos.
- Às vezes, me esqueço de que há você agora, Sassenach — disse.
Senti-me extremamente contrafeita. Na verdade, sentia-me uma traidora. Ali estava ele, fazendo planos que afetariam sua vida inteira, levando em consideração minha segurança e bem-estar, enquanto eu estivera fazendo todo o possível para abandoná-lo por completo, arrastando-o para uma situação de extremo perigo. Não tivera nenhuma dessas intenções, mas o fato permanecia. Mesmo agora, estava pensando que devia tentar convencê-lo a não ir para a França, já que isso me levaria para mais longe do meu próprio objetivo: o círculo de pedras.
- Mas há alguma maneira de permanecer na Escócia? - perguntei, desviando o olhar. Achei que a mancha escura na colcha havia se movido, mas não tinha certeza. Olhei para ela fixamente.
A mão de Jamie viajara pelos meus cabelos e agora começava a afagar meu pescoço suavemente.
- Sim - respondeu pensativamente. — Pode ser. É por isso que Dougal esperou por mim; ele tem novidades.
- É mesmo? De que tipo? — Virei a cabeça para olhar para ele outra vez; o movimento levou minha orelha ao alcance de seus dedos e ele começou a acariciá-la, dando-me vontade de arquear o pescoço e ronro-nar como uma gata. Mas reprimi o impulso, para descobrir o que ele pretendia fazer.
- Um mensageiro de Colum - disse. - Não pensava em nos encontrar aqui, mas cruzou com Dougal no caminho por acaso. Dougal deve voltar imediatamente a Leoch e deixar que Ned Gowan lide com o resto dos aluguéis. Dougal sugeriu que voltássemos com ele.
- Voltar para Leoch? - Não era a França, mas não era muito melhor. -Por quê?
- Estão à espera de uma visita em breve, um nobre inglês que já fez negócios com Colum antes. É um homem poderoso e talvez possa ser persuadido a fazer alguma coisa por mim. Não fui processado ou condenado por assassinato. Talvez consiga que essa acusação seja retirada ou consiga um perdão para mim. — Deu um sorriso enviesado. - Me aborrece ser perdoado por algo que não fiz, mas é melhor do que ser enforcado.
- Sim, é verdade. - A mancha estava se mexendo. Apertei os olhos, tentando focalizá-la. — Quem é o nobre inglês?
- O duque de Sandringham.
Dei um salto, sentando-me ereta na cama, com uma exclamação.
- O que foi, Sassenach? — Jamie perguntou, alarmado.
Apontei um dedo trêmulo para a mancha negra, que agora subia pela sua perna a um passo lento, mas determinado.
- O que é isso?! — perguntei.
Ele olhou para o ponto negro e despreocupadamente o arremessou longe com um piparote.
- Ah, isso? É apenas um percevejo, Sassenach. Nada para...
Foi interrompido pela minha abrupta saída. À palavra "percevejo", saí disparada de baixo das cobertas e fiquei de pé contra a parede,o mais distante possível do fervilhante ninho de insetos pestilentos que eu agora considerava a nossa cama.
Jamie olhou-me de modo apreciativo.
- Porco-espinho enfurecido, hein? — perguntou. Inclinou a cabeça, examinando-me de maneira inquisitiva. - Mmm - disse, passando a mão pela cabeça para alisar seus próprios cabelos. — Ao menos, enfurecido. Você também parece uma coisinha bem penugenta quando acorda. - Rolou na cama em minha direção, estendendo a mão para mim.
- Venha cá, meu algodãozinho-do-campo. Não vamos partir antes do pôr-do-sol. E se não vamos dormir...
Por fim, realmente dormimos um pouco mais, tranqüilamentte abraçados no assoalho, em cima de uma cama dura, mas sem insetos composta do meu manto de viagem e do kilt de Jamie.
Foi bom termos dormido enquanto podíamos. Ansioso para chegar ao Castelo Leoch antes do duque de Sandringham, Dougal manteve um passo apressado e uma programação extenuante. Viajando sem as carroças, fazíamos um tempo muito melhor, apesar das más condições das estradas. Entretanto, Dougal nos apressava, parando apenas para um mínino de descanso.
Quando atravessamos novamente os portões do Castelo Leoch, estávamos quase tão sujos quanto da primeira vez que chegáramos ali e sem dúvida igualmente cansados.
Apeei do meu cavalo no pátio, mas tive que me segurar no estribo para não cair. Jamie segurou-me pelo braço, depois percebendo qie eu não conseguia ficar em pé, pegou-me no colo. Atravessou a arcada comigo nos braços, deixando os cavalos aos cuidados dos cavalariços e dos cocheiros.
— Está com fome, Sassenach? — perguntou, parando no corredor. As cozinhas ficavam em uma direção, as escadas para os quartos de dormir na outra. Gemi, esforçando-me para manter os olhos abertos. Eu estava com fome, mas sabia que ia acabar de cara na sopa se tentasse comer antes de dormir.
Houve um burburinho em um dos lados e eu sonolentamente abri os olhos para ver a figura maciça da sra. FitzGibbons, assomando ao nosso lado, incrédula.
- O que houve com a pobre criança? - perguntou a Jamie. - Ela sofreu algum acidente?
- Não, apenas ela se casou comigo - ele disse -, embora possa chamar isso de acidente, se quiser. - Afastou-se para o lado, para abrir caminho em meio a uma crescente multidão de ajudantes das cozinhas, cavalariços, cozinheiros, jardineiros, soldados e diversos outros tipos de habitantes do castelo, todos curiosos, atraídos para a cena pelas exclamações em voz alta da sra. Fitz.
Tomando uma decisão, Jamie forçou o caminho para a direita, em direção às escadas, dando explicações desconexas à avalanche de perguntas que vinham de todos os lados. Piscando como uma coruja contra seu peito, eu não conseguia fazer nada mais do que balançar a cabeça para todas aquelas pessoas que nos acolhiam com boas-vindas, embora a maioria dos rostos parecesse tanto amistosa quanto curiosa.
Quando dobramos uma esquina do corredor, vi um rosto que me pareceu bem mais amistoso do que o resto. Era a jovem Laoghaire, o rosto brilhando e radiante ao ouvir a voz de Jamie. Entretanto, ao ver o que ele carregava, seus olhos se arregalaram e a boca rosada se abriu, pasma.
Mas não houve tempo para ela fazer perguntas, antes do rebuliço e da comoção à nossa volta estancar repentinamente. Jamie parou também. Erguendo a cabeça, vi Colum, cujo rosto espantado estava agora na altura do meu.
- O que... - ele começou.
- Eles se casaram - disse a sra. FitzGibbons, radiante. - Que lindo! Pode lhes dar sua bênção, senhor, enquanto eu apronto um quarto. -Virou-se e saiu apressada em direção às escadas, deixando uma lacuna substancial na multidão, através da qual pude ver o rosto agora branco como cera da jovem Laoghaire.
Colum e Jamie falavam ao mesmo tempo, perguntas e explicações colidindo no ar. Eu estava começando a acordar, embora fosse exagero afirmar que tivesse pleno domínio das minhas faculdades.
- Bem - Colum dizia, não de forma totalmente aprovadora -, se você se casou, está casado. Tenho que falar com Dougal e Ned Gowan. Há questões legais que precisam ser providenciadas. Você adquire alguns direitos ao se casar, pelos termos do contrato de dote da sua mãe.
Senti Jamie retesar-se um pouco.
-Já que mencionou isso - disse casualmente -, creio que seja verdade. E uma das coisas a que tenho direito é a uma parte dos aluguéis trimestrais das terras dos MacKenzie. Dougal trouxe o que coletamos até aqui; poderia dizer a ele para separar minha cota quando acertar as contas? Agora, se me der licença, tio, minha mulher está cansada. - E erguendo-me numa posição mais firme, virou-se em direção às escadas.
Cambaleei pelo quarto, ainda com as pernas trôpegas, e desabei com grande satisfação na enorme cama de dossel que nossa nova condição de recém-casados aparentemente nos dava direito. Era macia, convidativa e -graças à sempre vigilante sra. Fitz - limpa. Imaginei se valeria a pena o esforço de levantar-me e lavar o rosto antes de sucumbir à necessidade premente de dormir.
Já havia praticamente decidido que só deveria acordar ao som da Trombeta de Gabriel, quando vi que Jamie, que não só havia lavado o rosto e as mãos, como penteado os cabelos também, dirigia-se para a porta.
- Não vai dormir? - perguntei. Achei que estivesse ao menos tão cansado quanto eu, ainda que menos dolorido da sela.
- Daqui a pouco, Sassenach. Tenho algo a resolver primeiro. - Saiu, deixando-me olhando espantada para a porta de carvalho com uma sensação muito desagradável na boca do estômago. Lembrei-me do olhar de alegre expectativa no rosto de Laoghaire quando surgiu no corredor, ao ouvir a voz de Jamie, e o olhar de espanto e raiva que o substituiu quando me viu aninhada em seus braços. Lembrei-me da rigidez momentânea nas juntas dele ao vê-la e desejei fervorosamente poder ver a expressão do seu rosto naquele momento. Achei que era provável que ele tivesse saído agora, sem descansar, mas limpo e penteado, para ir ao encontro da jovem e contar-lhe sobre seu casamento. Se ao menos tivesse visto o rosto dele na ocasião, agora eu teria uma idéia do que ele pretendia dizer-lhe.
Absorta nos acontecimentos do último mês, eu me esquecera inteiramente da jovem - e do que ela poderia representar para Jamie, ou ele para ela. É verdade, eu pensara nela quando a questão de nosso súbito casamento foi levantada e Jamie não dera nenhuma demonstração de que ela constituísse um impedimento no que lhe dizia respeito.
Mas, é claro, se o pai dela não iria permitir que se casasse com um fora-da-lei - e se Jamie precisava de uma mulher, a fim de receber sua parte dos aluguéis dos MacKenzie... bem, nesse caso, qualquer mulher serviria e, sem dúvida, ele pegaria a que pudesse. Achava que conhecia Jamie o suficiente agora para saber que o pragmatismo era uma característica marcante do seu caráter - como era de se esperar em um homem que passara os últimos cinco anos de sua vida fugindo. Ele não deixaria suas decisões serem abaladas, pensei, por sentimentos ou pela atração de faces lisas como pétalas de rosa e cabelos como ouro líquido. Mas isso não significava que não existisse sentimento ou atração.
Houve, afinal, a pequena cena que eu presenciara na alcova, Jamie segurando a garota nos joelhos e beijando-a ardentemente. (Já tive outras mulheres em meus braços antes, sua voz veio-me à lembrança, e faziam meu coração bater com força e minha respiração faltar...) Vi que minhas mãos estavam cerradas, agarrando e enrugando a colcha verde e amarela. Soltei-a e limpei as mãos na saia, ao perceber o quanto estavam sujas, imundas com a sujeira de dois dias segurando as rédeas, sem nenhum descanso para lavá-las.
Levantei-me e me dirigi à bacia, esquecendo o cansaço. Descobri, um pouco para minha surpresa, que detestava a lembrança de Jamie beijando Laoghaire. Lembrava-me do que ele dissera a respeito disso também, "É melhor se casar do que ficar ardendo e eu estava ardendo muito". Eu mesma estava ardendo um pouco agora, o rosto vermelho e quente ao me lembrar dos efeitos dos beijos de Jamie nos meus próprios lábios. Ardendo, sem dúvida.
Joguei água no rosto, respingando tudo à minha volta, para tentar dissipar a sensação. Eu não tinha direitos sobre os sentimentos de Jamie, lembrei a mim mesma com firmeza. Eu me casara com ele por necessidade. E ele se casara comigo por suas próprias razões, uma delas o seu desejo francamente declarado de alterar sua condição de virgem.
Aparentemente, uma outra razão era o fato de que ele precisava de uma mulher a fim de receber sua renda e não podia induzir uma jovem do seu meio a se casar com ele. Uma razão bem menos lisonjeira do que a primeira, e igualmente arrogante.
Totalmente acordada, troquei devagar minhas roupas sujas da viagem por uma camisola limpa, providenciada, é claro, assim como a bacia e o jarro d'água, pelas ajudantes da sra. FitzGibbons. Como ela conseguira preparar acomodações para dois recém-casados no espaço de tempo entre a brusca declaração de Jamie a Colum e o momento em que subimos as escadas era um dos mistérios que atravessam os séculos. A sra. Fitz, pensei, teria se saído muito bem se fosse encarregada do Waldorf-Astoria ou do London Ritz.
Tais pensamentos deixaram-me repentinamente mais saudosa do meu próprio mundo do que já me sentira em muitos dias. O que estou fazendo aqui?, perguntei a mim mesma pela milionésima vez. Aqui, neste lugar estranho, a distâncias intransponíveis de tudo que me era familiar, da minha casa, do meu marido, dos meus amigos, perdida e sozinha entre gente que não passava de selvagens? Começara a me sentir segura e até mesmo feliz de vez em quando nas últimas semanas com Jamie. Mas agora percebia que a felicidade provavelmente era uma ilusão, ainda que a segurança não fosse.
Tinha certeza de que ele cumpriria o que julgava suas responsabilidades e continuaria a me proteger de qualquer ameaça. Mas aqui, de volta do Rolamento irreal dos dias passados entre colinas e estradas de terra, hospedarias imundas e fragrantes montes de feno, ele certamente deveria sentir a fração de seus antigos relacionamentos, como eu sentia dos meus. havíamos ficado muito próximos um do outro no mês de nosso casamento, mas eu sentira essa proximidade quebrar-se sob as tensões dos últimos dias e achava que agora poderia estilhaçar-se completamente, de volta às realidades práticas da vida no Castelo Leoch.
Recostei a cabeça na pedra do batente da janela, fitando o pátio. Alec MacMahon e dois dos seus auxiliares na estrebaria podiam ser vistos no extremo oposto, escovando os cavalos que usáramos. Os animais, depois de comer e beber adequadamente pela primeira vez em dois dias, irradiavam satisfação enquanto mãos cuidadosas esfregavam os flancos brilhantes e limpavam a poeira dos jarretes e machinhos com feixes de palha torcida e amarrada. Um cavalariço levou meu pequeno e gordo cavalo, que o seguiu feliz para o merecido descanso em sua estrebaria.
E com ele, pensei, foram minhas esperanças de qualquer fuga iminente e retorno ao meu próprio lugar. Ah, Frank. Fechei os olhos, deixando uma lágrima escorrer pelo canto do nariz. Mas arregalei os olhos para o pátio em seguida, pisquei e fechei-os com força, tentando freneticamente lembrar-me das feições de Frank. Apenas por um instante, quando fechei os olhos, não vi meu amado marido, mas seu ancestral, Jack Randall, os lábios cheios curvados em um sorriso sarcástico. E afastando-me mentalmente dessa imagem, minha mente no mesmo instante evocou um retrato de Jamie, o rosto paralisado pelo medo e pela raiva, como eu o vira na janela do escritório particular de Randall. Por mais que tentasse, não conseguia trazer de volta à lembrança a imagem clara de Frank.
Senti-me de repente enregelada de pânico e agarrei os cotovelos com as mãos. E se eu tivesse conseguido escapar e achado o caminho de volta para o círculo de pedras?, pensei. O que aconteceria? Jamie, eu esperava, logo encontraria consolo — com Laoghaire, talvez. Antes, eu me preocupara com sua reação ao descobrir que eu fora embora. Mas fora aquele rápido momento de arrependimento na beira do riacho, não me ocorrera até então considerar como eu me sentiria ao me separar dele.
Fiquei remexendo na fita que franzia a gola da minha camisola, amarrando-a e desamarrando-a. Se eu pretendia ir embora, como pretendia, não estava fazendo nenhum favor a nós dois ao permitir que a ligação entre nós se fortalecesse ainda mais. Não deveria permitir que ele se apaixonasse por mim.
Se ele tivesse essa intenção, pensei, lembrando-me mais uma vez de Laoghaire e da conversa com Colum. Se ele se casara comigo tão a sangue-frio como parecia, talvez suas emoções fossem mais seguras do que as minhas.
Entre fadiga, fome, decepção e incerteza, eu conseguira a esta altura reduzir-me a um estado de confuso sofrimento que nem conseguia dormir nem ficar quieta. Ao invés disso, fiquei andando pelo quarto sentindo-me infeliz, pegando objetos e colocando-os de volta aleatoriamente.
A corrente de vento da porta que se abriu arruinou o delicado equilíbrio do pente que eu estivera tentando manter em pé, anunciando a volta de Jamie. Estava ligeiramente ruborizado e estranhamente animado.
- Ah, está acordada - disse, obviamente surpreso e desconcertado de me encontrar assim.
- Sim. Esperava que eu estivesse dormindo para poder voltar para ela? Cerrou as sobrancelhas por um instante, depois as ergueu com um ar inquiridor:
- Ela? Para Laoghaire, você quer dizer?
Ouvindo seu nome pronunciado naquela descontraída cadência das Highlands - "Lheer" — de repente me deixou irracionalmente furiosa.
- Ah, então você esteve mesmo com ela! - esbravejei.
Jamie olhou-me intrigado e desconfiado, além de ligeiramente aborrecido.
- Sim — disse. — Encontrei-a perto da escada quando saí. Você está bem, Sassenach? Parece um pouco perturbada. - Fitou-me de forma avaliadora. Peguei o espelho e descobri que meus cabelos pareciam uma juba desgrenhada em torno da minha cabeça e havia olheiras escuras sob meus olhos. Coloquei-o de volta no lugar com um estampido.
- Não, estou perfeitamente bem - disse, fazendo esforço para me controlar. - E a Laoghaire, como vai? - perguntei, fingindo descontração.
- Ah, bem bonita — respondeu. Recostou-se na porta, os braços cruzados, olhando-me especulativamente. - Um pouco surpresa de saber que havíamos nos casado, eu acho.
- Bonita - repeti, respirando fundo. Ergui os olhos para vê-lo rindo para mim.
- Você não ficou preocupada por causa da garota, não é, Sassenach? — perguntou, astutamente. - Ela não significa nada para você. Ou para mim - acrescentou.
- Ah, não? Ela não quis, ou não pôde, se casar com você. Você precisava de alguém, assim ficou comigo quando a oportunidade surgiu. Não o culpo por isso, mas eu...
Ele atravessou o quarto em duas largas passadas e tomou minhas mãos, interrompendo-me. Colocou um dedo sob meu queixo, forçando-me a encará-lo.
- Claire - disse, sem se alterar -, eu lhe contarei no momento oportuno por que me casei com você, ou não. Eu lhe pedi honestidade e tenho lhe dado o mesmo. E é o que lhe dou agora. A garota não pode me pedir nada além de cortesia. — Apertou meu queixo de leve. — Mas isso ela pode exigir e eu lhe concederei isso. - Soltou meu queixo e deu umas pancadi-nhas de leve nele. - Você me ouviu, Sassenach?
- Ah, ouvi, sim! - Soltei-me com um safanão, esfregando o queixo com raiva. — E tenho certeza de que será muito gentil com ela. Mas da Próxima vez, fecha as cortinas da alcova. Eu não quero ver.
As sobrancelhas acobreadas ergueram-se subitamente e seu rosto ficou ligeiramente ruborizado.
- Está insinuando que eu a traí? - perguntou, incrédulo. - Chegamos de volta ao castelo há menos de uma hora, estou coberto com o suor e a poeira de dois dias na sela, tão cansado que meus joelhos tremem e, mesmo assim, você acha que saí daqui diretamente para seduzir uma menina de dezesseis anos? — Sacudiu a cabeça, estupefato. - Não sei se você está elogiando minha virilidade, Sassenach, ou insultando meus valores morais, mas não gosto de nenhuma das duas hipóteses. Murtagh me avisou que as mulheres eram insensatas, mas pelo amor de Deus! — Passou a mão grande pelos cabelos, fazendo as mechas curtas ficarem incrivelmente espetadas.
- É claro que não estou dizendo que acho que você andou seduzindo-a — eu disse, lutando para injetar um tom calmo na voz. - Tudo que quero dizer... - Ocorreu-me que Frank lidara com esse tipo de situação de uma forma muito mais elegante do que eu estava conseguindo e ainda assim eu também ficara furiosa na ocasião. Parecia não haver nenhuma maneira apropriada de sugerir tal possibilidade a um companheiro.
- Quero dizer simplesmente que... que sei que você se casou comigo por suas próprias razões e essas razões não são da minha conta e - acrescentei apressadamente - que eu não tenho nenhum direito sobre você. Você tem plena liberdade de agir da maneira como achar melhor. Se você... se sentir alguma outra atração... quero dizer... não vou ficar no seu caminho - terminei desajeitadamente. O sangue fervia no meu rosto e podia sentir minhas orelhas ardendo.
Erguendo os olhos, vi que as orelhas de Jamie ardiam também, visivelmente, assim como todo o resto do pescoço para cima. Até seus olhos, vermelhos pela falta de dormir, pareciam flamejar um pouco.
- Nenhum direito sobre mim! — exclamou. - E o que você acha que um voto de casamento significa? Apenas palavras numa igreja? - Seu punho cerrado desceu sobre a cômoda com um murro tão forte que sacudiu o jarro de porcelana. - Nenhum direito — murmurou, como se falasse consigo mesmo. - Liberdade para agir como achar melhor. E não vai ficar no meu caminho?!
Agachou-se para tirar as botas, em seguida agarrou-as e atirou-as, uma depois da outra, com toda a força contra a parede. Encolhi-me quando cada uma delas bateu na parede e caiu no chão. Arrancou o xale de xadrez e atirou-o para trás. Depois, veio em minha direção, com os olhos chispando.
- Então, você não tem nenhum direito sobre mim, Sassenach. Me deixa livre para ter prazer onde eu quiser, é assim? Bem, é assim? - perguntou.
- Hã, bem, sim - eu disse, dando um passo para trás a despeito de min mesma. - Foi o que quis dizer. - Ele agarrou-me pelos braços e descobri que a combustão espalhara-se para as suas mãos também. Suas palmas calejadas estavam tão quentes na minha pele que dei um salto involuntariamente.
- Bem, se não tem nenhum direito sobre mim, Sassenach, eu tenho um sobre você! Venha cá. - Tomou meu rosto entre as mãos e colou a boca na minha. Não havia nada de gentil ou pouco exigente naquele beijo e eu lutei contra ele, tentando me livrar.
Ele inclinou-se, pegou-me com um dos braços por baixo dos meus joelhos, ignorando meus esforços para descer. Eu não me dera conta do quanto ele realmente era forte.
- Solte-me! - eu disse. - O que acha que está fazendo?
- Bem, pensei que isso estivesse bem claro, Sassenach - disse, entre dentes. Abaixou a cabeça, seu olhar claro penetrando-me como ferro em brasa. - Mas se quiser que eu diga, pretendo levá-la para a cama. Agora. E mantê-la ali até aprender exatamente qual o direito que tenho sobre você. - E beijou-me de novo, com força, cortando meus protestos.
- Eu não quero dormir com você! - eu disse, quando finalmente libertou minha boca.
- Não pretendo dormir, Sassenach - retorquiu sem se alterar. - Ainda não. - Alcançou a cama e colocou-me cuidadosamente na colcha decorada com desenhos de rosas.
- Sabe muito bem o que quero dizer! - Rolei na cama, pretendendo escapar pelo outro lado, mas fui interrompida por um aperto firme no meu ombro que me virou de frente para ele. - Também não quero fazer amor com você!
Os olhos azuis lançavam faíscas à queima-roupa e minha respiração ficou presa na garganta.
- Não perguntei sua opinião no assunto, Sassenach - respondeu, a voz perigosamente baixa. - Você é minha mulher, como já lhe disse várias vezes. Se não queria se casar comigo, assim mesmo escolheu se casar. E se não notou na ocasião, sua parte do protocolo incluía a palavra "obedecer". Você é minha mulher e se eu a quiser, mulher, eu a possuirei e dane-se! -Sua voz foi se elevando enquanto falava, até estar quase gritando.
Ergui-me nos joelhos, os punhos cerrados junto aos lados do corpo e gritei em resposta. A angústia contida da última hora atingira o ponto de explosão e não me contive, sem maiores considerações.
- Eu é que quero que se dane se vou deixar que me tenha, seu porco nojento! Acha que pode me obrigar a ir para a cama com você? Me usar como uma prostituta quando tiver vontade? Bem, não pode, seu filho-da-mãe desgraçado! Foda-se! Faça isso e vai se igualar ao seu capitão Randall!
Fitou-me espantado por um instante, em seguida levantou-se bruscamente.
- Então deixe pra lá - disse, sacudindo a cabeça em direção à porta. -Se é o que pensa de mim, vá! Não vou impedi-la.
Hesitei por um instante, observando-o. Seus maxilares estavam cerrados de raiva e ele assomava acima de mim como o Colosso de Rodes. Sua raiva desta vez estava sob rédea curta, embora estivesse tão furioso quanto estivera à beira da estrada perto de Doonesbury. Mas falava a sério. Se eu quisesse ir embora, não iria me impedir.
Ergui o queixo, meus próprios maxilares tão cerrados quanto os dele.
- Não — eu disse. — Não. Eu não fujo das situações. E não tenho medo de você.
Seu olhar fixou-se na minha garganta, onde minhas veias pulsavam num ritmo frenético.
- Sim, estou vendo - ele disse. Fitou-me por um longo instante e seu rosto gradualmente relaxou numa expressão de contrariada aquiescência. Sentou-se na cama, mantendo uma boa distância entre nós, e eu recostei-me cautelosamente. Inspirou várias vezes antes de falar, o rosto perdendo um pouco o rubor e voltando ao seu bronze avermelhado natural.
- Eu também não fujo, Sassenach — disse, com a voz rouca. - Bem, então, o que "foda-se" quer dizer?
Minha surpresa deve ter ficado evidente na expressão do meu rosto, porque disse, irritado:
- Se vai ficar me xingando, isso é uma coisa. Mas não gosto de ser chamado de coisas a que não posso responder. Sei que é um palavrão, pela maneira como disse, mas o que significa?
Pega assim desprevenida, eu ri, um pouco trêmula.
- Significa... o que você estava prestes a fazer comigo.
Uma das sobrancelhas levantou-se e, a contragosto, pareceu achar graça.
- Ah, ter relações sexuais? Então eu estava certo; é um palavrão sujo. E o que é um sádico? Você me chamou disso no outro dia.
Reprimi a vontade de rir.
- É, hã, é uma pessoa que... que, hã, tem prazer sexual com o sofrimento de outra pessoa. — Meu rosto estava vermelho, mas não pude impedir que os cantos de minha boca esboçassem um sorriso.
Jamie resmungou um pouco.
- Bem, você não foi muito lisonjeira comigo, mas não posso culpá-la por suas observações. - Respirou fundo e recostou-se na cama, abrindo os punhos cerrados. Esticou os dedos, depois colocou as mãos espalmadas sobre os joelhos e olhou-me diretamente nos olhos.
- O que é, então? Por que está fazendo isso? A garota? Eu lhe contei a pura verdade neste caso. Mas não é uma questão de prova. É uma questão de você acreditar em mim ou não. Acredita em mim?
- Sim, acredito em você - admiti, a contragosto. — Mas não é isso. Ao menos, isso não é tudo — acrescentei, tentando ser honesta. — É... Acho que é ver que você se casou comigo pelo dinheiro que vai ganhar. -Abaixei os olhos, percorrendo os desenhos da colcha com o dedo. – Sei que não tenho nenhum direito de reclamar, eu também me casei com você por razões egoístas, mas... — Mordi o lábio e engoli em seco para estabilizar minha voz. - Mas tenho um pouco de orgulho também, sabe.
Lancei-lhe um rápido olhar de esguelha e o vi fitando-me com uma expressão de absoluta surpresa.
- Dinheiro? - perguntou, estupefato.
- Sim, dinheiro! - exclamei, exaltando-me outra vez, com raiva por ele fingir não saber do que se tratava. - Quando chegamos, você não perdeu tempo em dizer a Colum que estávamos casados e recolher sua parcela dos aluguéis dos MacKenzie!
Olhou-me fixamente por mais uns instantes, a boca abrindo-se gradualmente como se fosse dizer alguma coisa. Em vez disso, começou a sacudir a cabeça devagar para a frente e para trás, e depois começou a rir. Atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada, depois afundou a cabeça entre as mãos, ainda rindo histericamente. Deixei-me cair nos travesseiros, indignada.
-- Engraçado, hein?
Ainda sacudindo a cabeça e respirando com um chiado de vez em quando, levantou-se e colocou as mãos na fivela do cinto. Encolhi-me involuntariamente quando fez isso e ele percebeu.
O rosto ainda afogueado com um misto de raiva e riso, olhou para mim totalmente exasperado.
- Não - disse secamente —, não pretendo bater em você. Eu lhe dei minha palavra que jamais faria isso de novo, embora não achasse que fosse me arrepender tão depressa. - Colocou o cinto de lado, procurando alguma coisa dentro da bolsa presa a ele.
- Minha parte nos aluguéis dos MacKenzie não passa de cerca de vinte libras por trimestre, Sassenach — disse, vasculhando entre as miudezas dentro da bolsa de pele de texugo. - E em libras escocesas, não inglesas. Cerca de metade do preço de uma vaca.
- Só... só isso? - perguntei, envergonhada. — Mas...
- Só isso - confirmou. - E é tudo que eu conseguirei dos MacKenzie. Deve ter notado que Dougal é um homem econômico e Colum é duas vezes mais pão-duro com seu dinheiro. Mas, a meu ver, não vale a pena se casar nem mesmo pela soma principesca de vinte libras por trimestre -disse com ironia, fitando-me.
- Na verdade, eu não teria cobrado isso tão bruscamente - acrescentou, mostrando um pequeno embrulho de papel - se não fosse porque eu queria comprar uma coisa com ele. Foi isso que eu fui fazer. Encontrar Laoghaire foi um acaso.
- E o que você tanto queria comprar? - perguntei, desconfiada. Suspirou e hesitou por um instante, depois jogou o pequeno embrulho no meu colo.
— Uma aliança de casamento, Sassenach — disse. — Comprei-a de Ewen, o encarregado da manutenção das armas; ele faz objetos assim nas horas livres.
— Oh - exclamei, a voz quase sumida.
— Vamos - ele disse, pouco depois. — Abra. É sua.
Os contornos do pequeno embrulho enevoaram-se nos meus dedos. Pisquei e funguei, mas não fiz nenhum movimento para abri-lo.
— Sinto muito - eu disse.
— Bem, deve mesmo sentir, Sassenach — ele disse, mas sua voz não estava mais com raiva. Estendendo o braço, pegou o pacote do meu colo e rasgou o invólucro, revelando uma larga aliança de prata, decorada no estilo entrelaçado das Highlands, uma pequena flor de cardo jacobita gravada no centro de cada enlace.
Foi o que consegui ver, depois meus olhos se turvaram outra vez. Vi um lenço enfiado em minha mão e fiz o possível para estancar o fluxo de lágrimas com ele.
— É... lindo - eu disse, limpando a garganta e enxugando os olhos.
— Vai usá-lo, Claire? - Sua voz era suave agora e ao pronunciar meu nome, fato especialmente reservado para ocasiões formais ou ternas, quase irrompi em lágrimas outra vez.
— Não precisa — ele disse, olhando-me com seriedade, a aliança na palma da mão. - O contrato de casamento entre nós é válido, é legal. Você está protegida, a salvo de quase tudo, exceto de uma ordem de prisão, e até mesmo disso, desde que esteja no Castelo Leoch. Se quiser, podemos viver separados, se é isso que está querendo dizer com toda essa bobagem sobre Laoghaire. Não precisa ter quase nada a ver comigo, se essa for a sua escolha. - Sentou-se imóvel, aguardando, segurando o pequeno aro junto ao coração.
Portanto, ele estava me dando o direito de escolher, o mesmo que eu fizera com ele antes. Imposto a mim pelas circunstâncias, não iria mais se impor à força, se eu preferisse rejeitá-lo. E havia a alternativa, é claro: aceitar o anel e tudo que ele representava.
O sol estava se pondo. Os últimos raios de luz brilhavam através do garrafão de vidro azul sobre a mesa, lançando listras de um azul cintilante na parede. Senti-me tão frágil e tão brilhante quanto o vidro, como se fosse estilhaçar-me com um leve toque e cair em fragmentos reluzentes pelo chão. Se eu pretendia poupar os sentimentos de Jamie e os meus próprios, parecia que já era tarde demais.
Não conseguia falar, mas estendi minha mão direita para ele, os dedos trêmulos. O anel deslizou frio e brilhante pelo nó do meu dedo e ajustou-se comodamente na base — um ajuste perfeito. Jamie segurou minha mão por um instante, olhando-a, depois repentinamente pressionou meus dedos contra os lábios. Levantou a cabeça e vi seu rosto por um instante, forte e ansioso, antes de puxar-me bruscamente para seu colo.
Abraçou-me com força, sem falar, e pude sentir os batimentos do coração em sua garganta, martelando como o meu próprio. Suas mãos deslizaram para meus ombros nus e afastaram um pouco, de modo que eu erguesse os olhos para seu rosto. Suas mãos eram grandes e quentes, e eu me senti ligeiramente tonta.
- Eu a quero, Claire - disse, com a voz embargada. Parou por um instante, como se não soubesse o que dizer em seguida. - Eu a quero tanto que mal consigo respirar. Você... - Ele engoliu em seco, depois limpou a garganta. - Você me aceita?
Consegui finalmente encontrar minha voz. Chiou e vacilou, mas funcionou.
- Sim - respondi. - Eu o aceito.
- Acho... - Começou e parou. Soltou a fivela do seu kilt, mas em seguida ergueu os olhos para mim, prendendo as mãos nos lados do corpo. Falou com dificuldade, controlando algo tão poderoso que suas mãos tremiam com o esforço. — Eu não vou... Não posso... Claire, não vou conseguir ser delicado agora.
Só tive tempo para balançar a cabeça uma vez, compreendendo ou permitindo, antes de puxar-me contra si e de seu peso prender-me na cama.
Ele não parou para se despir mais. Pude sentir o cheiro da poeira da estrada em sua camisa e o gosto do sol e do suor da viagem em sua pele. Segurou-me, os braços estendidos, os pulsos presos. Minha mão roçou a parede e senti o leve ruído de uma aliança de casamento repicando contra a pedra. Uma aliança em cada mão, uma de ouro, uma de prata. E o metal fino repentinamente pesado como os laços do matrimônio, como se as alianças fossem minúsculas algemas, prendendo-me de braços abertos, para sempre estendida entre dois postes, mantida em correntes como Prometeu na sua rocha solitária, tendo o amor dividido como o abutre que dilacera meu coração.
Abriu minhas pernas com o joelho e penetrou-me com uma única estocada que me fez arquejar. Ele emitiu um som que era quase um gemido e agarrou-me com mais força ainda.
- Você é minha, mo duinne — sussurrou docemente, pressionando-se nas minhas entranhas. — Somente minha, agora e para sempre. Minha, quer queira ou não. - Arqueei meu corpo para ele e inspirei fundo com um débil "ah" quando ele pressionou ainda mais fundo.
-- Sim, quero usá-la, minha Sassenach — murmurou. — Quero ter você, possuí-la, corpo e alma. - Debati-me ligeiramente e ele pressionou meu corpo para baixo, golpeando-me, em pancadas inexoráveis, firmes, que atingiam meu útero a cada ataque. - Pretendo fazê-la me chamar de
"Senhor", Sassenach. — Sua voz suave era uma ameaça de vingança pelas agonias dos últimos minutos. - Pretendo fazê-la minha.
Eu tremia e gemia, minha carne contraindo-se em espasmos diante da presença invasora, demolidora. O movimento continuou, indiferente a tudo, por vários minutos, golpeando-me repetidamente com um impacto entre prazer e dor. Senti-me dissolver, como se eu existisse apenas à beira do ataque, sendo forçada ao limite de uma rendição total.
- Não! - exclamei, arquejante. — Pare, por favor, está me machucando! - Gotas de suor escorriam pelo seu rosto e pingavam no travesseiro e nos meus seios. Nossa carne colidia-se agora com o estalo de um golpe que rapidamente atravessava os limites para a dor. Minhas coxas machucavam-se com a repetição do impacto e meus pulsos pareciam estar prestes a quebrar, mas ele se manteve inexorável.
- Sim, peça clemência, Sassenach. Mas não vai ter, ainda não. - Sua respiração era rápida e quente, mas não mostrava nenhum sinal de cansaço. Meu corpo inteiro sacudia-se em espasmos, as pernas erguendo-se para envolvê-lo, tentando conter a sensação.
Eu podia sentir o tranco de cada estocada no fundo da minha barriga e encolhia-me, mesmo quando meus quadris se erguiam traiçoeiramente para recebê-lo com prazer. Ele sentia minha reação e redobrava o ataque, pressionando meus ombros para imobilizar-me sob seu corpo.
Não havia começo nem fim em minha reação, apenas um tremor convulsivo e contínuo que se elevava ao auge a cada golpe. A persistência dos golpes era uma pergunta, repetida inúmeras vezes em minha carne, exigindo minha resposta. Ele empurrou minhas pernas para baixo outra vez e levou-me além da dor, para a sensação pura, além dos limites da rendição.
— Sim! - gritei. - Ah, meu Deus, Jamie, sim! - Agarrou meus cabelos e forçou minha cabeça para trás para olhá-lo nos olhos, vibrando com o furioso triunfo.
— Sim, Sassenach — murmurou, respondendo aos meus movimentos e não às minhas palavras. - Vou cavalgá-la! - Suas mãos desceram para os meus seios, apertando-os e acariciando-os, depois deslizaram para os meus quadris. Todo o seu peso descansava sobre mim agora, quando me agarrou e me levantou para maior penetração. Eu gritei e ele tampou minha boca com a sua, não um beijo, mas outro ataque, forçando minha boca a se abrir, machucando meus lábios e raspando meu rosto com a barba espetada. Arremessava-se com mais força e mais rápido, como se quisesse forçar minha alma como forçava meu corpo. No corpo ou na alma, em algum lugar ele acendeu uma centelha e uma fúria de paixão e necessidade brotou em resposta das cinzas da rendição. Comecei a arquear meu corpo a cada golpe, ao encontro do seu. Mordi seu lábio e senti o gosto de sangue.
Senti seus dentes no meu pescoço e enfiei as unhas nas suas costas. Arranhei-o da nuca às nádegas, fazendo-o erguer-se e gritar por sua vez.
Atacamo-nos ferozmente numa ânsia desesperada, mordendo e arranhando, tentando arrancar sangue, um tentando puxar o outro para dentro de si, dilacerando a carne um do outro no desejo calcinante de ser um só. Meu grito misturou-se ao dele e nos perdemos finalmente um no outro naquele último instante de dissolução e conclusão.
Só voltei a mim mesma muito devagar, parcialmente deitada no peito de Jamie, os corpos suados ainda unidos, coxa com coxa. Ele respirava pesadamente, os olhos fechados. Podia ouvir seu coração sob meu ouvido, batendo com a lentidão sobrenatural e o ritmo vigoroso que se seguem ao clímax.
Ele sentiu que eu despertava e me puxou para mais perto, como se quisesse preservar por mais um instante a união que havíamos alcançado naqueles últimos segundos de nossa perigosa junção. Enrosquei-me junto a ele, passando os braços ao seu redor.
Ele abriu os olhos e suspirou, a boca curvando-se num ligeiro sorriso quando seu olhar encontrou-se com o meu. Ergui as sobrancelhas numa pergunta silenciosa.
- Ah, sim, Sassenach — respondeu, um pouco melancolicamente. - Eu sou seu senhor... e você é minha senhora. Parece que não posso possuir sua alma sem perder a minha. - Virou-me de lado e curvou o corpo em torno do meu. O quarto esfriava com a brisa da tarde que entrava pela janela e ele puxou a colcha sobre nós. Você é muito esperto, rapaz, pensei sonolen-tamente comigo mesma. Frank nunca descobriu como conseguir isso. Adormeci com seus braços trancados com força ao meu redor e sua respiração quente na minha orelha.
Estava manca e dolorida em todos os músculos quando acordei na manhã seguinte. Arrastei os pés até o banheiro particular, depois até a bacia de rosto. Minhas vísceras pareciam manteiga batida. Sentia como se tivesse sido surrada com um objeto rombudo, refleti, depois pensei que isso estava bem perto da verdade. O objeto rombudo em questão estava visível quando voltei para a cama, agora parecendo relativamente inofensivo. Seu proprietário acordou quando me sentei ao seu lado e me examinou com algo muito parecido a orgulho masculino.
-- Parece que foi uma cavalgada e tanto, Sassenach — disse, tocando de leve uma mancha roxa na parte interna da minha coxa. — Um pouco dolorida da sela, hein?
Estreitei os olhos e passei o dedo por uma profunda marca de dentes em seu ombro.
- Você também parece um pouco esfarrapado, meu caro.
- Ah, bem — ele disse com pesado sotaque escocês -, se você se deita com uma víbora, espera ser mordido. - Estendeu a mão e agarrou-me pela nuca, puxando-me para ele. - Venha pra cá, víbora. Me morda mais.
- Ah, não, não ouse - eu disse, recuando. - Eu não poderia, estou muito doída.
James Fraser não era homem de aceitar um não como resposta.
- Serei muito delicado - disse, tentando me persuadir e arrastando-me inexoravelmente para baixo da colcha. E ele foi gentil, como somente os homens grandes sabem ser, embalando-me como um ovo de codorna, cortejando-me com uma paciência humilde que reconheci como reparação - e uma delicada insistência que eu sabia ser uma continuação da lição tão brutalmente iniciada na noite anterior. Gentil ele seria, repelido não.
Sacudiu-se em meus braços quando ele mesmo terminou, estremecendo com o esforço para não se mover, para não me machucar com seus movimentos, deixando que o momento o dilacerasse.
Depois, ainda unidos, percorreu as marcas esmaecidas que seus dedos haviam deixado nos meus ombros junto à estrada há dois dias.
- Desculpe-me por isso, mo duinne — disse, beijando delicadamente cada uma delas. — Eu estava num raro momento de raiva quando fiz essas marcas, mas isso não é desculpa. É uma vergonha machucar uma mulher, furioso ou não. Não acontecerá de novo.
Ri um pouco ironicamente.
- Está pedindo desculpas por essas aí? E quanto ao resto? Sou uma massa de manchas roxas e de machucados, da cabeça aos pés!
- O quê? — Afastou-se para me olhar judiciosamente. - Bem, por essas eu me desculpei - disse, tocando meus ombros - essas - dando um tapinha no meu traseiro — você mereceu e eu não vou dizer que sinto muito por elas, porque não sinto.
- E quanto a estas - disse, tocando minhas coxas —, não vou pedir desculpas por elas, tampouco. Você já revidou o bastante. —Esfregou o ombro, com uma careta. - Você me tirou sangue em pelo menos dois lugares, Sassenach, e minhas costas estão ardendo como o inferno.
- Bem, deite-se com uma víbora... — eu disse, rindo. — Não vai conseguir um pedido de desculpas por isso. - Ele riu e me puxou para cima dele.
- Eu não disse que queria um pedido de desculpas, disse? Se me lembro bem, o que eu disse foi "Me morda de novo".
A comoção causada por nossa repentina chegada e anúncio de nosso casamento foi eclipsada quase imediatamente por um acontecimento de maior importância.
Estávamos jantando no grande salão no dia seguinte, aceitando os brindes e votos de felicidades oferecidos em nossa homenagem.
- Buidheachas, mo caraid. - Jamie fez uma elegante mesura ao último a nos brindar e sentou-se em meio aos aplausos cada vez mais esporádicos. O banco de madeira sacudiu-se sob seu peso e ele fechou os olhos por um instante.
- Um pouco demais para você? - sussurrei. Ele suportara o peso dos brindes, acompanhando cada copo esvaziado em nossa homenagem, enquanto eu até agora escapara com não mais do que alguns goles simbólicos, acompanhados por radiantes sorrisos aos incompreensíveis brindes em gaélico.
Ele abriu os olhos e olhou para mim, sorrindo.
- Está dizendo que estou bêbado? Não, eu poderia beber a noite toda.
- Praticamente é o que fez — eu disse, olhando para a fileira de garrafas de vinho vazias e jarros de cerâmica de cerveja dispostos na mesa à nossa frente. - Está ficando um pouco tarde. - As velas na mesa de Colum queimavam quase junto aos castiçais e a cera derretida brilhava como ouro, a luz marcando os irmãos MacKenzie com estranhas manchas de sombra e pele brilhando conforme conversavam em voz baixa, inclinados um para o outro. Podiam se juntar à companhia das cabeças de gnomos esculpidas que guarneciam a enorme lareira e me perguntei quantas daquelas figuras caricaturadas haviam na verdade sido copiadas das feições arrogantes dos antigos senhores MacKenzie - talvez por um escultor com senso de humor... ou com uma forte ligação familiar.
Jamie espreguiçou-se em seu assento, rindo com um certo desconforto.
- Por outro lado — disse -, minha bexiga vai explodir em mais um ou dois minutos. Volto já. — Colocou as mãos sobre o banco e pulou agelmente por cima, desaparecendo pela arcada mais baixa.
Virei minhas atenções para o outro lado, onde Geillis Duncan estava sentada, discretamente bebendo cerveja de uma caneca de prata. Seu marido, Arthur, estava sentado na mesa seguinte com Colum, como era apropriado ao procurador fiscal do distrito, mas Geilie insistira em sentar-se ao meu lado, dizendo que não tinha a menor vontade de se cansar com conversas masculinas durante todo o jantar.
Os olhos encovados de Arthur estavam semicerrados, fundos e com bolsas escuras por causa do vinho e do cansaço. Apoiava-se pesadamente nos braços, o rosto frouxo, ignorando a conversa dos MacKenzie a seu lado. Embora a luz ressaltasse as feições angulosas do chefe do clã e de seu irmão, ela fazia Arthur Duncan parecer gordo e doente.
- Seu marido não parece muito bem - observei. - Seu problema de estômago piorou? - Os sintomas eram um pouco intrigantes; nem exatamente como úlcera, pensei, nem como câncer - não com toda aquela carne ainda nos ossos. Talvez se tratasse apenas de uma gastrite crônica, como Geilie insistia em dizer.
Ela lançou um rápido olhar a seu marido antes de se voltar de novo para mim com um muxoxo.
- Ah, ele está bem - disse. - Pelo menos, não está pior. Mas e quanto ao seu marido?
- Hã, o que tem ele? - retruquei cautelosamente.
Cutucou-me com intimidade nas costelas com um cotovelo um pouco pontudo demais e percebi que também havia um bom número de garrafas do seu lado da mesa.
- Bem, o que acha? É tão bonito sem roupa quanto é com ela?
- Hum... — comecei, buscando uma resposta, enquanto ela esticava o pescoço em direção à entrada.
- E você alegando que não gostava dele! Espertinha. Metade das garotas do castelo gostaria de arrancar seus cabelos pela raiz. Eu teria cuidado com o que como, se eu fosse você.
- Com o que eu como? - Olhei desconcertada para o prato de madeira diante de mim, vazio a não ser por uns traços de gordura e uma cebola cozida desprezada.
- Veneno — sibilou dramaticamente no meu ouvido, deixando escapar um bafo considerável de vapores de conhaque.
- Bobagem - eu disse, um pouco friamente, afastando-me dela. -Ninguém iria querer me envenenar simplesmente porque eu... bem, porque... - Hesitei um pouco e ocorreu-me que eu devia ter tomado alguns goles a mais do que imaginara.
- Ora, francamente, Geilie. Este casamento... eu não o planejei, sabe. Eu não o queria! — Nenhuma mentira nessas palavras. — Foi apenas uma... espécie de... arranjo necessário - eu disse, esperando que a luz das velas escondesse meu rubor.
- Ah! - ela exclamou cinicamente. - Conheço uma mulher satisfeita na cama. - Olhou em direção à arcada por onde Jamie desaparecera. - E também duvido que essas mordidas no pescoço do jovem sejam de mosquito.
- Ergueu uma sobrancelha prateada para mim. - Se foi um acordo de negócios, diria que valeu o seu dinheiro.
Inclinou-se para junto de mim outra vez e cochichou.
- É verdade? A respeito dos polegares?
- Polegares? Geilie, em nome de Deus, do que você está falando?
Abaixou os olhos pelo nariz pequeno e reto em direção a mim, franzindo a testa em concentração. Os belos olhos cinzas estavam ligeiramente fora de foco e eu esperava que ela não caísse para a frente.
- Certamente você sabe do que estou falando, não? Todo mundo sabe! Os polegares de um homem revelam o tamanho do seu pau. Dedos dos pés grandes também, é claro – acrescentou judiciosamente —, mas esses geralmente são mais difíceis de julgar, com os sapatos e tudo o mais. Seu filhote de raposa - disse, indicando com a cabeça a entrada em arco, onde Jamie acabara de surgir - poderia segurar uma abóbora de bom tamanho naquelas mãos. Ou um traseiro de bom tamanho, hein? — acrescentou, cutu-cando-me outra vez.
- Geillis Duncan, poderia... por favor... calar...-se! — sibilei, o rosto queimando. - Alguém pode ouvi-la!
- Ah, ninguém que... — começou a dizer, mas parou, com o olhar fixo. Jamie passara direto pela nossa mesa, como se não nos tivesse visto. Seu rosto estava pálido e seus lábios cerrados com firmeza, como se resolvidos a cumprir uma missão desagradável.
- O que ele tem? — Geilie perguntou. — Parece o Arthur depois de comer nabo cru.
- Não sei. - Empurrei o banco para trás, hesitando. Ele dirigia-se à mesa de Colum. Deveria segui-lo? Obviamente, alguma coisa acontecera.
Geilie, olhando para trás, para o fundo do salão, de repente puxou a manga do meu vestido, apontando na direção de onde Jamie viera.
Um homem estava parado logo na entrada em arco, hesitante como eu. Suas roupas estavam sujas de lama e poeira; algum viajante. Um mensageiro. E qualquer que fosse a mensagem, a passara a Jamie, que neste momento estava inclinado para sussurrá-la no ouvido de Colum.
Não, não de Colum. De Dougal. A cabeça ruiva inclinou-se entre as duas cabeças negras, as feições belas e largas dos três rostos assumindo uma semelhança sobrenatural à luz das velas agonizantes. E enquanto eu observava, compreendi que a semelhança devia-se não tanto à herança física que compartilhavam, mas à expressão de choque e pesar que agora tinham em comum.
A mão de Geilie cravara-se na carne do meu braço.
- Más notícias — disse, desnecessariamente.
- Vinte e quatro anos — eu disse em voz baixa. — Parece um longo tempo para estar casado.
- Sim, é verdade - Jamie concordou. Um vento morno agitou os galhos da árvore acima de nós, levantando os cabelos dos meus ombros para fazerem cócegas no meu rosto. - Mais tempo do que tive de vida.
Olhei para ele, debruçado na cerca do curral, uma figura esbelta e graciosa, de ossos fortes. Eu costumava esquecer o quanto ele realmente era jovem; parecia tão capaz e seguro de si.
- Ainda assim - disse, atirando uma palha na lama remexida do cercado -, duvido que Dougal tenha passado mais de três anos desses vinte e quatro com ela. Ele geralmente ficava aqui no castelo, ou por aí, pelas terras, cuidando dos negócios de Colum.
A mulher de Dougal, Maura, morrera em Beannachd, a propriedade deles. Uma febre repentina. O próprio Dougal partira ao amanhecer, na companhia de Ned Gowan e do mensageiro que viera dar a notícia na noite anterior, para cuidar do funeral e dispor dos bens de sua mulher.
- Não era um casamento muito íntimo, hein? - perguntei com curiosidade.
Jamie deu de ombros.
- Tão íntimo quanto a maioria, imagino. Ela se ocupava dos filhos e da casa; duvido que sentisse muita falta dele, embora parecesse contente de vê-lo quando ele voltava para casa.
- Você morou com eles por algum tempo, não foi? — Fiquei quieta, pensando. Perguntava-me se essa seria a idéia que Jamie fazia de casamento; vidas separadas, unidas com pouca freqüência para gerar filhos. No entanto, pelo pouco que ele dissera, o próprio casamento de seus pais fora íntimo e amoroso.
Com aquele jeito estranho de ler meus pensamentos, ele disse:
- Era difícil com meus próprios pais, sabe. O casamento de Dougal foi arranjado, como o de Colum, e mais uma questão de terras e negócios do que do desejo de um pelo outro. Mas os meus pais... bem, eles se casaram por amor, contra a vontade das duas famílias, e assim nós fomos... não execrados, exatamente; porém, mais isolados em Lallybroch. Meus pais não iam visitar parentes ou fazer negócios fora com freqüência e, assim, acho que se voltaram mais um para o outro do que maridos e mulheres costumam fazer.
Colocou a mão na parte baixa das minhas costas e me puxou para ele. Inclinou a cabeça e roçou os lábios pela minha orelha.
- Conosco, foi um arranjo - disse meigamente. - Ainda assim, espero... talvez um dia... — Parou, constrangido, com um sorriso enviesado e um gesto de abandono.
Sem querer encorajá-lo nesta direção, devolvi o sorriso da forma mais neutra possível e virei-me na direção do curral. Podia senti-lo ali ao meu lado, sem realmente me tocar, as mãos grandes agarradas à barra mais alta da cerca. Eu mesma agarrei a barra, para não segurar a mão dele. Queria mais do que tudo me virar para ele, oferecer-lhe consolo, assegurar-lhe com o corpo e com palavras que o que havia entre nós era mais do que um acordo comercial.
O que existe entre nós, ele dissera. Quando me deito com você, quando você me toca. Não, não era absolutamente comum. Não era uma simples paixão tampouco, como eu pensara a princípio.
O fato é que eu estava ligada, por votos, por lealdade e pela lei, a outro homem. E também por amor.
Eu não podia, não podia dizer a Jamie o que sentia por ele. Fazer isso e depois ir embora, como devo fazer, seria o ápice da crueldade. Também não podia mentir para ele.
- Claire. - Ele se voltara para mim, olhava-me diretamente; podia senti-lo. Não falei, mas ergui meu rosto para ele enquanto ele se inclinava para me beijar. Também não podia mentir-lhe dessa forma; e não o fiz. Afinal, pensei vagamente, eu lhe prometera honestidade.
Fomos interrompidos por um alto "Ahã!" atrás da cerca do curral. Jamie, surpreso, girou na direção do som, instintivamente atirando-me para trás dele. Então, parou e riu, vendo o Velho Alec MacMahon ali parado em suas calças de xadrez, justas e imundas, olhando para nós sarcastica-mente com seu único olho, azul e brilhante.
O Velho Alec segurava um ameaçador par de tesouras de tosquiar, que ergueu numa saudação irônica.
- Ia usar isso aqui em Mahomet — observou. — Talvez tenha melhor aplicação aqui, hein? - Bateu as lâminas convidativamente. - Faria você manter a cabeça no trabalho e longe do seu pau, rapaz.
- Nem brinque com isso, amigo - disse Jamie, rindo. - Estava sentindo minha falta, hein?
Alec meneou uma das sobrancelhas como uma lagarta peluda.
- Não, o que o faz pensar assim? Achei que eu ia gostar de tentar castrar um puro-sangue de dois anos de idade sozinho, só pelo prazer. - Resfolegou com um chiado com seu próprio chiste, depois brandiu a tesoura em direção ao castelo.
- Fora daqui, dona. Pode ficar com ele na hora do jantar, ou o que restar dele até lá.
Aparentemente não confiando na natureza dessa última observação, Jamie estendeu o longo braço e agilmente agarrou a tesoura.
- Vou me sentir mais seguro se eu ficar com isso - disse, erguendo uma sobrancelha para o Velho Alec. — Vá, Sassenach. Quando eu terminar de fazer todo o trabalho de Alec para ele, irei ao seu encontro.
Inclinou-se para beijar meu rosto e sussurrou no meu ouvido: -- A estrebaria. Quando o sol estiver a pino.
A estrebaria do Castelo Leoch era mais bem construída do que muitas das cabanas que eu vira em nossa viagem com Dougal. Com piso e paredes de pedra, as únicas aberturas eram as janelas estreitas em uma das extremidades, a porta na outra e as fendas também estreitas sob o espesso telhado de colmo, projetadas para abrigar as corujas que não deixavam os ratos se proliferarem na palha. Deixavam passar bastante ar e luz suficiente para que a estrebaria ficasse agradavelmente na penumbra, e não sombria.
No palheiro logo abaixo do teto, a luz era ainda melhor, lançando listras amarelas no feno empilhado e iluminando as partículas esvoaçantes de poeira como chuva de ouro em pó. O ar penetrava pelas fissuras em rajadas mornas, denso com o cheiro de madeira cortada, cravinas e alho das hortas e jardins lá fora, além do agradável cheiro dos cavalos que subia do chão.
Jamie mexeu-se sob a minha mão e sentou-se, o movimento trazendo sua cabeça das sombras para o fulgor da luz solar como o acender de uma vela.
- O que foi? — perguntei sonolentamente, virando a cabeça na direção em que ele estava olhando.
- O pequeno Hamish - disse em voz baixa, espreitando por cima da beirada do palheiro para a estrebaria abaixo. — Quer seu pônei, eu acho.
Rolei desajeitadamente sobre a barriga, arrastando as dobras da minha camisola por cima de mim por recato; um pensamento tolo, já que ninguém lá embaixo poderia ver mais do que o topo da minha cabeça.
Hamish, o filho de Colum, caminhava devagar pelo corredor central da estrebaria, entre as baias. Parecia hesitar diante de algumas baias, embora ignorasse as cabeças castanha e ruiva que o espreitavam. Ele obviamente procurava alguma coisa e não era seu pônei gordo e marrom, placidamente mastigando palha na baia perto da porta da estrebaria.
- Deus do Céu, ele vai pegar Donas! —Jamie pegou seu kilt e enrolou-o apressadamente em volta do corpo, antes de dar uma guinada por cima da borda do palheiro. Sem se incomodar com a escada, pendurou-se nas mãos e saltou para o chão. Aterrissou facilmente nas pedras semicobertas de palha, mas com um baque suficientemente alto para fazer Hamish girar nos calcanhares com uma exclamação de surpresa.
O pequeno rosto sardento relaxou um pouco ao perceber quem era, mas os olhos azuis continuaram desconfiados.
- Precisa de ajuda, primo? - Jamie perguntou cordialmente. Aproximou-se das baias e recostou-se em uma das pilastras, conseguindo interpor-se entre Hamish e a baia para onde o garoto se dirigia.
Hamish hesitou, mas depois se empertigou, o pequeno queixo empinado.
- Vou montar Donas - disse, num tom que tentava ser resoluto, mas que não conseguia de todo.
Donas - cujo nome significava "demônio", o que de forma alguma pretendia ser um elogio - ficava sozinho num cubículo no outro extremo da cavalariça, por segurança separado dos cavalos mais próximos por uma baia vazia. Um garanhão cor de canela, enorme e de mau gênio, não se deixava cavalgar por ninguém e somente o Velho Alec e Jamie ousavam se aproximar dele. Ouviu-se um relincho irritado das sombras de sua baia e uma imensa cabeça acobreada surgiu repentinamente, grandes dentes amarelos rangendo quando ele fazia uma tentativa vã de morder o ombro nu tão tentadoramente exibido.
Jamie permaneceu imóvel, sabendo que o garanhão não poderia alcançá-lo. Hamish deu um salto para trás com um berro, claramente aterrorizado com o aparecimento súbito daquela cabeça monstruosa e brilhante, com seus olhos revirados e injetados e as narinas abertas.
- Acho que não — Jamie observou calmamente. Estendeu a mão e segurou o primo pelo ombro, afastando-o do cavalo, que começou a escoicear sua baia em protesto. Hamish estremecia juntamente com as tábuas enquanto os cascos letais golpeavam a madeira.
Jamie fez o menino virar-se de frente para ele e ficou olhando-o, as mãos nos quadris.
- Bem, vamos ver - disse com firmeza. - O que foi? O que você quer com Donas?
O maxilar de Hamish estava cerrado teimosamente, mas o rosto de Jamie era tanto encorajador quanto decidido. Deu um pequeno soco de leve no ombro do garoto, obtendo um esboço de sorriso em resposta.
- Vamos, duine — Jamie disse suavemente. — Você sabe que não vou contar a ninguém. Fez alguma bobagem?
Um ligeiro rubor aflorou à pele clara do garoto.
- Não. Bem, talvez um pouco.
Depois de um pouco mais de encorajamento, a história veio à tona, relutante no começo, depois num fluxo desordenado de confissão.
Ele saíra em seu pônei, cavalgando com alguns dos outros meninos no dia anterior. Vários garotos mais velhos começaram a competir, para ver quem conseguia fazer seu cavalo pular um obstáculo mais alto. Admirando-os com inveja, o bom senso de Hamish finalmente foi vencido Pela bravata e ele tentara forçar seu pequeno e gordo pônei por cima de Um muro de pedra. Não possuindo nem a habilidade nem o interesse, o Pônei empacara diante do obstáculo atirando o pequeno Hamish por cima de sua cabeça, por cima do muro e desonrosamente em cima de uma moita de uirtiga do outro lado. Atormentado tanto pela urtiga quanto pelas vaias dos colegas, Hamish estava decidido a sair hoje "num cavalo adequado", como ele disse.
- Não iriam rir se eu aparecesse no Donas - disse, visualizando a cena com implacável satisfação.
- Não, não iriam rir - Jamie concordou. - Estariam ocupados demais juntando os pedaços.
Examinou seu primo, sacudindo a cabeça devagar.
- Vou lhe dizer uma coisa, rapaz. É preciso coragem e bom senso para fazer um bom cavaleiro. Você tem a coragem, mas ainda falta um pouco de bom senso. — Passou um braço consolador em torno dos ombros de Hamish, conduzindo-o para o fundo da estrebaria.
- Venha, rapaz. Ajude-me a juntar o feno e você irá conhecer Cobhar. Tem razão, você deve ter um cavalo melhor se estiver pronto, mas não é necessário se matar para provar isso.
Olhando para cima ao passar pelo palheiro, ergueu as sobrancelhas e encolheu os ombros, desamparado. Sorri e acenei para ele, sinalizando para que fosse em frente, que estava tudo bem. Fiquei observando-os, enquanto Jamie pegava uma maçã do cesto de frutas caídas das árvores que ficava junto à porta. Pegando um forcado do canto, levou Hamish de volta a uma das baias centrais.
- Aqui, primo - disse, parando. Assobiou brandamente entre os dentes e um cavalo baio de testa larga colocou a cabeça para fora, resfolegan-do pelas narinas. Os olhos escuros eram grandes e meigos e as orelhas inclinavam-se ligeiramente para a frente, dando ao cavalo uma expressão de amistosa vivacidade.
- Vamos, Cobhar, ciamar a tha thwí -Jamie deu umas pancadinhas leves, mas firmes, no pescoço lustroso do cavalo e coçou as orelhas empinadas.
- Venha até aqui — disse, fazendo sinal para que seu primo se aproximasse. - Isso, perto de mim. Bastante perto para que ele possa sentir seu cheiro. Os cavalos gostam de sentir nosso cheiro.
- Eu sei. - A voz aguda de Hamish era desdenhosa. Ele mal alcançava o focinho do cavalo, mas estendeu a mão e afagou-o. Ficou firme quando a enorme cabeça do cavalo abaixou-se e ele fungou com interesse em torno de sua orelha, soprando seus cabelos de leve.
- Me dê uma maçã - disse a Jamie, que o atendeu. A boca macia e aveludada pegou a fruta delicadamente da mão de Hamish e atirou-a para trás entre os enormes molares, onde desapareceu com um ruído suculento. Jamie observava com aprovação.
- Sim. Vocês vão se dar bem. Vá em frente, faça amizade com ele, enquanto eu termino de alimentar os outros, depois pode levá-lo para montar.
- Sozinho? — Hamish perguntou ansiosamente. Cobhar, cujo nome significava "Espuma", era bem-humorado, mas ainda assim um fogoso cavalo castrado de um metro e meio de comprimento e muito diferente de seu pônei marrom.
- Duas voltas em torno do cercado e comigo olhando-o e, se não cair ou puxar sua boca de repente, pode levá-lo sozinho. Mas nada de fazê-lo saltar enquanto eu não disser. - As longas costas curvaram-se, brilhando na penumbra quente da cavalariça, quando Jamie pegou um feixe de feno com o forcado da pilha que havia em um canto e a levou para uma das baias.
Empertigou-se e sorriu para seu primo.
- Me dê uma daquelas, sim? - Encostou o forcado contra uma das baias e mordeu a fruta oferecida. Os dois ficaram comendo em camaradagem, recostados lado a lado na parede da estrebaria. Ao terminar, Jamie deu o miolo da maçã a um alazão quejfjnha esfregando o focinho nele e pegou o forcado outra vez. Hamish seguiu-o pelo corredor, mastigando devagar.
- Disseram que meu pai era um bom cavaleiro - Hamish começou a falar, após um instante de silêncio. - Antes... antes de não poder mais montar.
Jamie lançou um olhar rápido a seu primo, mas terminou de arremessar feno na baia do alazão antes de falar. Quando o fez, respondeu à idéia, mais do que às palavras.
- Eu nunca o vi montar, mas vou lhe dizer, garoto, espero nunca precisar ter tanta coragem quanto Colum tem.
Vi o olhar de Hamish pousar com curiosidade nas costas marcadas de Jamie, mas ele não disse nada. Depois de uma segunda maçã, seus pensamentos pareciam ter mudado para outro tópico.
- Rupert disse que você teve que se casar - observou, com a boca cheia de maçã.
- Eu quis me casar - Jamie disse com firmeza, recolocando o forcado junto à parede.
- Ah. Bem... ótimo - Hamish disse hesitante, como se tivesse ficado desconcertado com essa notícia desconhecida. - Só estava pensando... você se importa?
- Se importa com o quê? — Vendo que aquela conversa podia levar algum tempo, Jamie sentou-se num fardo de feno.
Os pés de Hamish não conseguiam alcançar o chão ou ele os teria arrastado. Ao invés disso, batia os calcanhares de leve contra o feno firmemente comprimido.
- Você se importa de ser casado? - perguntou, fitando seu primo. - Ir Para a cama toda noite com uma mulher, quero dizer.
- Não -Jamie respondeu. - Não, na verdade, é muito bom. Hamish parecia duvidar.
- Não acho que gostaria muito. Mas de qualquer modo todas as garotas que conheço são magricelas como varas de bambu e cheiram a água de cevada. A dona Claire, sua esposa, quero dizer... — acrescentou apressadamente, como se quisesse evitar confusão - ela é, hã, parece que seria melhor para se deitar. Mais macia, quero dizer. Jamie assentiu.
- Sim, isso é verdade. Tem um cheiro bom, também - acrescentou. Mesmo na luz turva, pude ver um pequeno músculo torcendo-se perto do canto de sua boca e soube que ele não ousava olhar na direção do palheiro.
Fez-se um longo silêncio.
- Como você sabe? — Hamish perguntou.
- Sabe o quê?
- Quem é a mulher certa para se casar — o rapaz disse com impaciência.
- Ah. -Jamie arrastou-se para trás e recostou-se na parede de pedra, as mãos atrás da cabeça. - Perguntei isso ao meu próprio pai uma vez. Ele disse que a gente simplesmente sabe. E se não souber, é porque ela não é a garota certa.
- Mmmmhum. — Não pareceu uma explicação satisfatória, a julgar pela expressão no pequeno rosto sardento. Hamish recostou-se, imitando conscientemente a postura de Jamie. Seus pés calçados com meias estendiam-se para fora do fardo de feno. Embora pequeno, sua estrutura robusta prometia um dia igualar-se à do seu primo. Os ombros largos e retos e a inclinação do crânio gracioso e maciço eram quase idênticos.
- Onde estão seus sapatos? — Jamie perguntou em tom acusador. -Você não os deixou no pasto outra vez, não é? Sua mãe vai lhe dar um tapa no ouvido se você os perdeu.
Hamish encolheu os ombros não dando importância à ameaça. Sem dúvida, havia algo mais importante em sua mente.
- John - começou, enrugando as sobrancelhas claras, absorto em pensamentos. —John disse...
- John o cavalariço, John o cozinheiro ou John Cameron? -Jamie perguntou.
- O cavalariço. — Hamish sacudiu a mão, afastando essa distração. - Ele disse, hã, que para casar...
- Mmm? -Jamie fez um ruído encorajador, mantendo o rosto discretamente desviado para o outro lado. Revirando os olhos para cima, seul olhar encontrou-se com o meu, enquanto eu espreitava por cima do palheiro. Abri um amplo sorriso para ele, fazendo com que mordesse o lábio para não rir em resposta.
Hamish inspirou fundo e soltou o ar de repente, lançando as palavras como uma explosão de chumbos de caça.
- Ele-disse-que-temos-que-servir-uma-mulher-como-um-garanhão-faz-com-uma-égua-e-eu-não-acreditei-mas-é-verdade?
Mordi o dedo com força para não rir alto. Não estando tão bem localizado, Jamie enfiou os dedos nos músculos da perna, ficando com o rosto tão vermelho quanto Hamish. Pareciam dois tomates, sentados lado a lado num fardo de feno para serem julgados num concurso de frutas e legumes do condado.
- Hã, sim... bem, de certa forma... - disse, com a voz estrangulada. Em seguida, recuperou o autocontrole.
- Sim - disse com firmeza. - É verdade.
Hamish lançou um olhar horrorizado para a baia mais próxima, onde o cavalo baio descansava, com mais ou menos uns trinta centímetros de seu aparelho reprodutor projetando-se de sua bainha. Olhou em seguida, incrédulo, para seu próprio colo e tive que enfiar um bolo do tecido da minha roupa na boca até onde foi possível.
- Há uma diferença, sabe — Jamie continuou. A vermelhidão começava a esmaecer em seu rosto, embora ainda houvesse um tremor sinistro em torno de seus lábios. - Para começar, é mais... delicado.
- Então, você não as morde no pescoço? - Hamish tinha a expressão séria e concentrada de alguém que tomava sérias anotações. - Para fazer com que fiquem quietas?
- Hã... não. Nem sempre, de qualquer forma. — Exercitando sua nada desprezível força de vontade, Jamie resolveu enfrentar corajosamente suas responsabilidades de esclarecimento.
- Há uma outra diferença também - disse, tendo o cuidado de não levantar os olhos. - Você pode fazer isso frente a frente, ao invés de por trás. Como a mulher preferir.
- A mulher? — Hamish pareceu em dúvida a respeito dessa nova informação. - Acho que eu iria preferir por trás. Não acho que iria querer alguém olhando para mim enquanto eu estivesse fazendo algo assim. E difícil... - perguntou - é difícil não dar risada?
Ainda estava pensando em Jamie e Hamish quando fui para a cama naquela noite. Puxei as colchas grossas, sorrindo para mim mesma. Senti uma corrente de ar frio vindo da janela e aguardava com ansiedade o momento de entrar embaixo das cobertas pesadas e aninhar-me no calor de Jamie. Imune ao frio, parecia carregar uma pequena fornalha dentro de si próprio e sua pele era sempre cálida; às vezes, quase quente, como se ele queimasse com mais intensidade em resposta ao meu próprio toque frio.
Eu ainda era uma estranha e uma forasteira, porém não mais uma hóspede no castelo. Enquanto as mulheres casadas pareciam mais amistosas, agora que eu era uma delas, as moças mais jovens pareciam se ressentir do fato de eu ter retirado de circulação um jovem solteiro e disponível. Na Verdade, observando o número de olhares glaciais e cochichos disfarçados, Perguntava-me quantas das solteiras do castelo haviam achado o caminho de uma alcova isolada com Jamie MacTavish durante seu curto período de residência.
Não mais MacTavish, é claro. A maioria dos habitantes do castelo sempre soube quem ele era e, quer eu fosse uma espiã inglesa ou não, eu agora também conhecia a necessidade do nome falso. Assim, ele se tornou Fraser publicamente e eu também. Era como a sra. Fraser que eu era recebida no aposento acima das cozinhas onde as mulheres casadas costuravam e embalavam seus bebês, trocando experiências e conhecimento, bem como avaliando acintosamente a minha própria cintura.
Por causa das minhas dificuldades anteriores em conceber, não considerara a possibilidade de gravidez quando concordei em me casar com Jamie e aguardei com certa apreensão até minha menstruação ocorrer na época. Meus sentimentos desta vez foram de total alívio, sem nada da tristeza que geralmente a acompanhava. Minha vida já estava mais do que complicada no momento, sem o acréscimo de um bebê. Pensei que Jamie talvez tivesse sentido uma pontinha de pesar, embora também ele tenha se declarado aliviado. A paternidade era um luxo que um homem em sua posição não podia desfrutar.
A porta se abriu e ele entrou, ainda esfregando a cabeça com uma toalha de linho, a água pingando de seus cabelos molhados e formando manchas escuras em sua camisa.
- Por onde andou? - perguntei, atônita. Por mais luxuoso que o Leoch pudesse ser em comparação com as residências da vila e do campo, não possuía instalações para banho além de uma tina de cobre que Colum usava para mergulhar as pernas doloridas e outra um pouco maior usada pelas mulheres que achavam que o trabalho de enchê-las valia pela privacidade que se obtinha. Qualquer outra limpeza pessoal era feita por partes, usando uma bacia e um jarro d'água, ou fora, no lago ou numa câmara pequena, de chão de pedra, que ficava perto do jardim, onde as jovens costumavam ficar nuas, deixando que suas amigas jogassem baldes de água sobre elas.
— No lago - respondeu, pendurando a toalha molhada cuidadosamente no parapeito da janela. — Alguém - disse com raiva — deixou a porta da baia aberta, assim como a porta da estrebaria também e Cobhar foi nadar no fim do dia.
— Ah, então foi por isso que você não apareceu para o jantar. Mas cavalos não gostam de nadar, gostam? — perguntei.
Ele sacudiu a cabeça, passando os dedos pelos cabelos para secá-los.
- Não, não gostam. Mas são como as pessoas, cada um é diferente do outro. E Cobhar gosta dos brotos das plantas aquáticas. Ele estava lá comendo na beira do lago quando um bando de cães da vila apareceu e correu atrás dele, fazendo com que entrasse no lago. Tive que afugentá-los e depois entrar no lago para tirá-lo de lá. Espere até eu colocar as mãos em Hamish — disse, ameaçadoramente. - Vou ensiná-lo a não deixar portões abertos.
- Vai contar a Colum? - perguntei, sentindo uma repentina compaixão pelo acusado.
Jamie sacudiu a cabeça, remexendo na bolsa em sua cintura. Retirou um pãozinho e um pedaço de queijo, aparentemente roubado da cozinha no caminho para o quarto.
- Não - disse. — Colum é muito severo com o garoto. Se soubesse que ele foi tão descuidado, não o deixaria montar por um mês. Não que pudesse mesmo, depois da surra que ia levar. Meu Deus, estou faminto. -Deu uma mordida feroz no pão, espalhando farelos.
- Não venha para a cama com isso - eu disse, eu mesma deslizando para baixo das cobertas. - O que pensa fazer com Hamish, então?
Engoliu o restante do pão e sorriu para mim.
- Não se preocupe. Vou arrastá-lo até o lago pouco antes do jantar amanhã e atirá-lo lá dentro. Quando ele conseguir chegar à margem e se secar, o jantar já terá acabado. — Terminou o queijo em três mordidas e lambeu os dedos sem nenhuma cerimônia. - Ele que vá para a cama molhado e com fome para ver como é - concluiu sombriamente.
Espreitou esperançosamente na gaveta da escrivaninha onde eu às vezes guardava maçãs ou outros pequenos pedaços de alimentos. Mas não havia nada ali esta noite e ele fechou a gaveta com um suspiro.
- Acho que consigo sobreviver até o desjejum amanhã cedo — disse filosoficamente. Tirou as roupas rapidamente e enfiou-se sob as cobertas, ao meu lado, tremendo. Embora as extremidades estivessem frias com seu mergulho no lago gelado, seu corpo ainda estava agradavelmente quente.
- Hum, é bom ficar aconchegado com você — murmurou, aninhando-se junto a mim. — Está com um cheiro diferente. Andou mexendo nas plantas hoje?
- Não — eu disse, surpresa. - Achei que fosse você... quero dizer, o cheiro. - Era um aroma pungente, de ervas, não era desagradável, mas não era familiar.
- Eu estou cheirando a peixe - ele observou, cheirando as costas da mão. - E a cavalo molhado. Não — aproximou-se ainda mais, cheirando. — Não, também não é você. Mas é aqui perto.
Saiu da cama e puxou as colchas, procurando. Nós o encontramos sob meu travesseiro.
- Que diabos...? - Peguei-o e imediatamente soltei-o. — Ai! Tem espinhos!
Era um pequeno maço de plantas, arrancadas grosseiramente pelas raízes e amarradas com um pedaço de fita negra. As plantas estavam murchas, mas um cheiro penetrante ainda era exalado pelas folhas caídas. Havia uma flor no buquê, uma prímula esmagada, cujo talo espinhoso havia picado meu dedo.
Suguei o sangue do dedo ferido, virando o maço com mais cuidado com a outra mão. Jamie permaneceu imóvel, fitando-o por um instante. De repente, pegou-o e, dirigindo-se à janela aberta, atirou-o na noite. Ao voltar para a cama, limpou vigorosamente a terra que se soltara das raízes das plantas, arrastando-a para a palma da mão, e atirou-a também pela janela, como fizera com o maço de plantas. Fechou a janela com uma pancada forte e voltou, limpando as mãos.
-Já se foi — disse, desnecessariamente. Entrou de novo sob as cobertas. - Volte para a cama, Sassenach.
- O que era aquilo? — perguntei, deitando-me ao seu lado.
- Uma brincadeira, eu acho - disse. - De mau gosto, mas apenas uma brincadeira. - Ergueu-se em um dos cotovelos e apagou a vela. - Venha cá, mo duinne — disse. - Estou com frio.
Apesar do desconcertante mau agouro, dormi bem, segura na proteção dupla da porta trancada e dos braços de Jamie. Quase ao amanhecer, sonhei com campinas cobertas de capim e cheias de borboletas. Amarelas, marrons, brancas e cor de laranja, giravam ao meu redor como folhas do outono, pousando na minha cabeça e nos ombros, deslizando pelo meu corpo como chuva, as patinhas minúsculas fazendo cócegas na minha pele e as asas aveludadas batendo como ecos fracos do meu próprio coração.
Flutuei suavemente para a superfície da realidade e descobri que as patas das borboletas no meu estômago eram as mechas flamejantes da cabeleira emaranhada, macia e ruiva de Jamie, e que a borboleta presa entre minhas coxas era sua língua.
- Hum - murmurei, algum tempo depois. — Bem, para mim está tudo bem, mas e quanto a você?
- Em menos de um minuto se você continuar desse jeito — disse, afastando minha mão com um sorriso. — Mas é melhor eu deixar para mais tarde. Sou um homem lento e cauteloso por natureza, sabe. Posso pedir o favor de sua companhia esta noite, senhora?
- Pode — respondi. Coloquei os braços atrás da cabeça e fitei-o com um olhar semicerrado e desafiador. — Se estiver querendo me dizer que está tão decrépito que já não consegue mais de uma vez por dia.
Olhou-me com os olhos estreitados de onde estava na borda da cama. Só vi um lampejo branco quando ele se lançou e me vi pressionada com força no colchão de penas.
- Sim, bem - ele disse nos cachos do meu cabelo —, não vai dizer que não a avisei.
Dois minutos e meio depois, ele gemeu e abriu os olhos. Esfregou o rosto e a cabeça vigorosamente com ambas as mãos, fazendo as mechas mais curtas ficarem espetadas como um porco-espinho. Em seguida, uma imprecação gaélica abafada, deslizou relutantemente para fora dos cobertores e começou a se vestir, tremendo no ar frio da manhã.
- Será que você não podia - perguntei esperançosamente - dizer ao Alec que está doente e voltar para a cama?
Ele riu e inclinou-se para beijar-me antes de tatear embaixo da cama, em busca de suas meias.
- Poder eu posso, Sassenach, mas duvido que qualquer coisa menos do que varíola, a peste ou um grave ferimento serviria como desculpa. Se eu não estivesse sangrando, Alec estaria aqui num instante, arrastando-me do meu leito de morte para ajudá-lo com os parasitas.
Olhei para suas pernas longas e elegantes enquanto ele puxava a meia para cima cuidadosamente e dobrava á beirada.
- Grave ferimento, hein? Eu poderia arranjar alguma coisa nesse sentido - eu disse, ameaçadoramente.
Gemeu ao agachar-se para pegar a outra meia.
- Bem, cuidado onde você lança suas flechas mágicas, Sassenach. — Tentou dar uma piscadela maliciosa, mas acabou apenas estreitando os olhos para mim. - Se mirar muito para cima não vou servir nem para você.
Arqueei uma das sobrancelhas e enfiei-me de novo sob as cobertas.
- Não se preocupe. Nada acima do joelho, prometo.
Deu uns tapinhas numa das saliências mais volumosas das cobertas e partiu para a estrebaria, cantando um pouco alto demais uma ária de "Lá em cima, entre as urzes". O refrão flutuou de volta pelo vão da escada.
Sentado com uma garota, seguranâo-a em meus joelhos— Quando uma abelha me picou, bem acima do joeeeelho-Lá em cima, entre as urzes, na cabeceira do Bendikee!
Ele tinha razão, pensei: ele realmente não tinha ouvido para música.
Relaxei temporariamente num estado de saciada sonolência, mas levantei logo depois para ir fazer o desjejum. A maioria dos habitantes do castelo já havia feito sua refeição matinal e partido para o trabalho; os que ainda estavam no salão saudaram-me com bastante cordialidade. Não houve nenhum olhar de esguelha, nenhuma expressão de hostilidade velada, de alguém imaginando como sua maldosa brincadeira havia funcionado. Mesmo assim, observei os rostos.
A manhã foi passada sozinha nos jardins e nos campos com minha cesta e minha pazinha. Meu estoque de algumas das ervas mais populares estava quase no fim. Em geral, o pessoal da vila recorria a Geillis Duncan quando precisava de ajuda, mas ultimamente vários pacientes da vila tinham aparecido no meu consultório e o tráfego de panacéias andava intenso, talvez a doença de seu marido estivesse mantendo-a ocupada demais para cuidar de seus clientes regulares.
Passei o final da tarde no meu consultório. Havia poucos pacientes; apenas um caso persistente de eczema, um polegar deslocado e um rapaz da cozinha que derramara uma panela de sopa quente em uma das pernas. Depois de aplicar uma pomada anestésica e lírio-azul, e de recolocar e en-faixar o polegar, dediquei-me à tarefa de moer algumas raízes duras como pedra em um pequeno almofariz do falecido Beaton.
Era um trabalho tedioso, mas adequado àquela espécie de tarde preguiçosa. O tempo estava bom e pude ver sombras azuis estendendo-se por baixo dos olmos a oeste quando subi na minha mesa para olhar para fora.
Do lado de dentro, os frascos de vidro brilhavam em fileiras bem ordenadas, pilhas bem arrumadas de bandagens e compressas nos armários ao lado. O armário do boticário fora completamente limpo e desinfetado e agora guardava estoques de folhas secas, raízes e cogumelos, cuidadosamente acondicionados em sacos de gaze de algodão. Respirei fundo os cheiros penetrantes e condimentados do meu santuário e expirei com um suspiro de satisfação.
Em seguida, parei de moer as ervas e coloquei o pilão de lado. Eu estava satisfeita, percebi com um choque. Apesar da miríade de incertezas da minha vida ali, apesar do aborrecimento do mau agouro, apesar da dor funda e constante da saudade de Frank, eu na realidade não estava infeliz. Muito pelo contrário.
Senti-me imediatamente envergonhada e desleal. Como eu podia estar feliz, quando Frank devia estar enlouquecido de preocupação? Presumindo que o tempo de fato continuava sem mim - e não via por que não o faria - eu devia estar desaparecida há mais de quatro meses. Eu o imaginava vasculhando a zona rural escocesa, chamando a polícia, aguardando algum sinal, alguma palavra minha. A essa altura, ele já devia ter praticamente perdido as esperanças e, em vez disso, devia estar aguardando a notícia de que meu corpo fora encontrado.
Coloquei o almofariz sobre a mesa e fiquei andando para cima e para baixo na minha sala estreita, esfregando as mãos no avental em um espasmo de culpa, tristeza e arrependimento. Eu devia ter fugido há mais tempo. Devia ter tentado regressar com mais afinco. Mas eu tentei, lembrei a mim mesma. Tentara diversas vezes. E veja o que aconteceu.
Sim, veja. Estava casada com um fora-da-lei escocês, nós dois caçados por um sádico capitão dos dragões e vivendo com um monte de bárbaros, que matariam Jamie com a mesma rapidez com que olham para ele, se o considerassem uma ameaça à preciosa sucessão do seu clã. E o pior de tudo era o fato de que eu estava feliz.
Sentei-me, fitando desamparadamente a fileira de frascos e jarros. Eu estava vivendo um dia após o outro desde nosso retorno a Leoch, deliberadamente eliminando as lembranças de minha vida anterior. No fundo, sabia que logo teria que tomar algum tipo de decisão, mas eu a estava adiando, protelando a necessidade de um dia para o outro, de uma hora para a outra, enterrando minhas incertezas nos prazeres da companhia de Jamie - e nos seus braços.
Ouviu-se uma súbita pancada e um palavrão no corredor e levantei-me apressadamente, dirigindo-me à porta, a tempo de ver o próprio Jamie entrar aos tropeções, apoiado pela figura curvada do Velho Alec MacMahon de um lado e dos esforços bem-intencionados, porém magros e espigados, de um dos cavalariços do outro. Deixou-se cair no meu banco e estendeu o pé esquerdo com uma careta desagradável. A careta parecia ser mais de aborrecimento do que de dor, de modo que me abaixei para examinar o apêndice dolorido com relativa preocupação.
- Um leve estiramento - eu disse, após uma inspeção rápida. - O que você fez?
- Caí - Jamie respondeu laconicamente.
- Da cerca? - perguntei, provocando-o. Ele ficou vermelho.
- Não. De Donas.
- Você estava montando aquele animal? — perguntei incrédula. — Nesse caso, tem sorte de se sair dessa com um tornozelo distendido. - Fui buscar uma atadura e comecei a envolver a junta.
- Bem, não foi tão mal assim — disse o Velho Alec sensatamente. - Na verdade, rapaz, você estava se saindo muito bem com ele por algum tempo.
- Eu sei que estava — retorquiu Jamie, rangendo os dentes quando eu apertava a bandagem. - Uma abelha picou-o.
As sobrancelhas cabeludas ergueram-se.
- Ah, foi isso? O animal agia como se tivesse sido atingido pelo dardo de um elfo — confidenciou-me Alec. — Deu um salto com as quatro patas no ar e desceu, depois ficou completamente louco, saltando por todo o cercado como uma abelha numa garrafa. O rapaz continuou agarrado -disse, balançando a cabeça em direção a Jamie, que inventou uma nova expressão desagradável em resposta -, até que o enorme demônio amarelo saltou por cima da cerca.
- Por cima da cerca? Onde ele está agora? - perguntei, levantando-me e limpando as mãos.
-- A caminho do inferno, espero —Jamie disse, colocando o pé no chão e experimentando cuidadosamente colocar seu peso sobre ele. — E é bom que fique por lá. - Contraindo-se, sentou-se novamente.
- Duvido que o diabo faça uso de um garanhão ainda selvagem - Alec observou -, sendo ele próprio capaz de se transformar num cavalo quando necessário.
- Talvez Donas seja o próprio demônio — sugeri, divertindo-me.
- Eu não duvidaria — disse Jamie, ainda sentindo dor, mas começando a recuperar seu habitual bom humor. - O diabo geralmente é um garanhão negro, não é?
- Ah, sim - disse Alec. - Um grande garanhão negro, que viaja rápido como o pensamento entre um homem e uma mulher.
Riu alegremente para Jamie e levantou-se para ir embora.
- E por falar nisso — disse, piscando o olho para mim -, não espero você na estrebaria amanhã. Fique na cama, rapaz, e, hã... descanse.
- Por que será — perguntei, olhando o velho e rabugento chefe da estrebaria — que todo mundo acha que não temos mais nada na cabeça além de irmos para a cama?
Jamie experimentou colocar o peso do corpo sobre o pé outra vez, apoiando-se na bancada.
- Para começar, estamos casados há menos de um mês — observou. -Além disso - ergueu os olhos e riu, sacudindo a cabeça -, já lhe disse antes, Sassenach. Tudo que você pensa fica estampado no seu rosto.
- Caramba! — esbravejei.
A exceção de uma passada rápida no consultório para ver se havia alguma emergência, a manhã seguinte passei atendendo às necessidades um pouco exigentes do meu paciente solitário.
- Você devia estar descansando - eu disse em tom reprovador.
- E estou. Bem, meu tornozelo está descansando, ao menos. Está vendo?
Uma tíbia longa, sem meia, projetou-se no ar e um pé esbelto, ossudo, sacudiu-se de um lado para o outro. Parou bruscamente no meio do movimento, com um "ai" abafado do seu proprietário. Abaixou-o e delicadamente massageou o tornozelo ainda inchado.
- Isso vai ensiná-lo — eu disse, girando minhas próprias pernas para fora dos cobertores. - Agora venha comigo. Já está criando mofo na cama há bastante tempo. Precisa de ar fresco.
Ele sentou-se, os cabelos caindo no rosto.
- Pensei que tivesse dito que eu precisava descansar.
- Pode descansar no ar fresco. Levante-se. Vou arrumar a cama. Entre queixumes sobre minha insensibilidade e falta de consideração por um homem gravemente machucado, ele se vestiu e ficou sentado o tempo suficiente para eu amarrar o tornozelo enfraquecido antes de sua exuberância natural dominar outra vez.
- Está chovendo — disse, olhando rapidamente pelo postigo da janela, onde o leve chuvisco preparava-se para dar lugar a um grande aguaceiro. - Vamos para o telhado.
- Para o telhado? Ah, sem dúvida. Não poderia pensar numa recomendação melhor para um tornozelo estirado do que subir seis lances de escada.
- Cinco. Além do mais, tenho uma bengala. - Apresentou a bengala em questão, uma clava antiga de pilriteiro, tirando-a de trás da porta com um floreio triunfante.
- Onde conseguiu isso? — perguntei, examinando-a. De perto, era ainda mais desgastada, uma vara de madeira de lei, de cerca de um metro, machucada em diversos lugares e endurecida pelo tempo como um diamante.
- Alec a emprestou para mim. Ele a usa nas mulas; bate entre os olhos do animal com ela para fazê-lo prestar atenção.
- Parece bem eficaz — eu disse, olhando a madeira gasta. - Talvez eu a experimente algum dia. Em você.
Emergimos finalmente em um pequeno local coberto, logo abaixo do ressalto do telhado de ardósia. Um parapeito baixo protegia a borda daquele pequeno mirante.
- Ah, é lindo! — Apesar do temporal, a vista do telhado era magnífica; Podíamos ver a curva larga e prateada do lago e os penhascos elevados mais além, arremessando-se no sólido céu cinzento como punhos negros e recortados.
Jamie apoiou-se no parapeito, tirando o peso de seu pé machucado.
- É, sim. Eu costumava vir aqui às vezes, na primeira temporada que passei aqui no castelo.
Apontou para o outro lado do lago, todo perfurado sob os pingos fortes da chuva.
- Vê aquela fenda lá, entre aqueles dois penhascos?
- Nas montanhas? Sim.
- Aquele é o caminho para Lallybroch. Quando ficava com saudade da minha casa, às vezes vinha até aqui e ficava olhando para lá. Imaginava-me voando como um corvo através daquele desfiladeiro, vendo as montanhas e os campos, descendo do outro lado da serra, a mansão no fim do vale.
Toquei seu braço com ternura. -- Você quer voltar, Jamie? Virou a cabeça e sorriu para mim.
- Bem, estive pensando nisso. Não sei exatamente se quero voltar, mas
acho que devemos. Não sei o que encontraremos lá, Sassenach. Mas... sim.
Estou casado agora. Você é a dona de Broch Tuarach. Fora-da-lei ou não,
Eu preciso voltar, ainda que apenas pelo tempo suficiente para ajeitar as coisas.
Senti uma emoção intensa, composta de alívio e apreensão, à idéia de deixar Leoch e suas variadas intrigas.
- Quando partiremos?
Ele franziu a testa, tamborilando os dedos no parapeito. A pedra estava escura e escorregadia com a chuva.
- Bem, acho que temos que esperar a chegada do duque. É possível que ele cuide de meu caso como um modo de fazer um favor a Colum. Se ele não conseguir me inocentar, talvez consiga um perdão. Então, haveria bem menos perigo de voltar a Lallybroch.
- Bem, sim, mas... - Olhou-me incisivamente quando hesitei.
- O que foi, Sassenach? -- Respirei fundo.
- Jamie... se eu lhe contar uma coisa, você promete não me perguntar como eu sei?
Segurou-me pelos dois braços, olhando-me no rosto. A chuva umedecia seus cabelos e fazia pequenas gotas deslizarem pelos lados de seu rosto. Sorriu para mim.
- Eu lhe disse que não pediria nada que você não quisesse me contar. Sim, prometo.
- Vamos nos sentar. Você não devia ficar de pé por tanto tempo. Voltamos para junto da parede onde o ressalto das ardósias do telhado protegia uma pequena área seca do calçamento e nos instalamos confortavelmente, as costas apoiadas na parede.
- Tudo bem, Sassenach. O que é? -Jamie perguntou.
- O duque de Sandringham — eu disse. Mordi o lábio. - Jamie, não confie nele. Eu não sei tudo sobre ele, mas sei... que existe alguma coisa a respeito dele. Alguma coisa errada.
- Você sabe disso? — Pareceu surpreso. Foi a minha vez de olhá-lo com espanto.
- Está dizendo que você já sabe sobre ele? Você o conhece? - Fiquei aliviada. Talvez as ligações misteriosas entre Sandringham e a causa jacobita fossem bem mais conhecidas do que Frank e o vigário imaginavam.
- Ah, sim. Ele esteve aqui, visitando, quando eu tinha dezesseis anos. Quando eu... fui embora.
- Por que você foi embora? - Estava curiosa, lembrando-me subitamente do que Geillis Duncan dissera quando a encontrei pela primeira vez no bosque. O estranho boato de que Jamie era o verdadeiro pai do filho de Colum, Hamish. Eu sabia que ele não era, não poderia ser — mas provavelmente eu era a única pessoa no castelo que realmente sabia. Uma suspeita desse tipo poderia facilmente ter levado Dougal a atentar contra a vida de Jamie - se de fato isso ocorrera no ataque em Carryarick.
- Não foi por causa de... Letitia, foi? - perguntei com certa hesitação-
- Letitia? — Seu espanto atemorizado era evidente e algo dentro de mim que eu não sabia que estava apertado de repente relaxou. Eu realmente não acreditava que houvesse alguma verdade na suposição de Geilie, mas ainda assim...
- O que, em nome de Deus, faz você mencionar Letitia? - Jamie perguntou com curiosidade. - Eu vivi no castelo por um ano e falei com ela uma única vez pelo que me lembro, quando me chamou ao seu quarto e me repreendeu por organizar um jogo de shinty no meio do seu jardim de rosas.
Contei-lhe o que Geilie dissera e ele riu, o hálito condensando-se no ar frio e chuvoso.
- Meu Deus - exclamou —, como se eu tivesse a coragem!
- Você não acha que Colum possa ter suspeitado de algo assim, acha? — perguntei.
Ele sacudiu a cabeça com determinação.
- Não, não acho, Sassenach. Se ele tivesse a menor suspeita de algo assim, eu não teria sobrevivido até os dezessete anos, quanto mais atingir a idade madura de vinte e três.
Isso mais ou menos confirmava minha própria impressão de Colum, mas fiquei aliviada mesmo assim. A expressão de Jamie tornara-se pensativa, os olhos azuis subitamente remotos.
- No entanto, pensando bem, não sei se Colum realmente sabe por que deixei o castelo tão repentinamente naquela ocasião. E se Geillis Duncan anda por aí espalhando tais boatos... Essa mulher é uma encrenqueira, Sassenach; uma mexeriqueira e uma megera, se não for a bruxa que as pessoas dizem que é. Nesse caso, é melhor eu fazer com que ele descubra.
Ergueu os olhos para o lençol de água que se despejava das calhas.
- Talvez seja melhor descermos, Sassenach. Está ficando úmido demais aqui fora.
Descemos por um caminho diferente, atravessando o telhado para uma escada externa que levava às hortas, onde eu quis arrancar um pouco de borragem, se o aguaceiro permitisse. Abrigamo-nos junto à parede do castelo onde o peitoril avançado de uma das janelas desviava a chuva.
- O que você faz com borragem, Sassenach? -Jamie perguntou, olhando com interesse para as videiras e plantas esparsas, arriadas pela chuva.
- Quando está verde, nada. Primeiro é preciso secá-la e depois...
Fui interrompida por uma terrível algazarra de gritos e latidos, vinda de fora do muro da horta. Corri pelo aguaceiro em direção ao muro, Seguida mais lentamente por Jamie, mancando.
O padre Bain, o sacerdote da vila, vinha correndo pelo caminho, as poças d'água explodindo sob seus pés, perseguido por um bando de cachorros uivando e latindo. Atrapalhado por sua batina volumosa, o padre tropeçou e caiu, espalhando água e lama para todo lado. Num instante, os cachorros estavam em cima dele, rosnando e mordendo.
Uma mancha axadrezada saltou por cima do muro ao meu lado e Jamie estava no meio deles, desfechando golpes com sua bengala e gritando em gaélico, acrescentando sua voz à algazarra geral. Se os gritos e imprecações surtiam pouco efeito, a bengala era mais eficaz. Ouviram-se ganidos agudos conforme a clava golpeava a carne peluda e aos poucos o bando recuou, finalmente virando-se e debandando em direção à vila.
Jamie afastou os cabelos de cima dos olhos, arquejando.
- Maus como lobos - disse. - Eu já havia avisado Colum sobre este bando; é o mesmo que perseguiu Cobhar até o lago há dois dias. É melhor mandar abatê-los a tiros antes que matem alguém. - Olhou para mim enquanto eu me ajoelhava junto ao padre caído no chão, examinando-o. A chuva escorria das pontas dos meus cabelos e eu podia sentir meu xale ensopando-se.
- Ainda não conseguiram - eu disse. - Fora algumas marcas de dentes, ele está bem.
A batina do padre Bain estava rasgada em um dos lados, deixando à mostra uma coxa branca e lisa com um corte feio e vários pontos de perfuração que começavam a sangrar. O padre, lívido com o choque, tentava ficar de pé; ele, era óbvio, não estava gravemente ferido.
- Venha até o consultório comigo, padre, e eu limparei esses cortes - ofereci, reprimindo um sorriso diante do espetáculo que o padre gordo e baixo apresentava, a batina esvoaçando e revelando as meias com desenhos de losangos.
Nos melhores momentos, o rosto do padre Bain parecia-se a um punho cerrado. Essa semelhança ficou ainda mais pronunciada no momento pelas marcas vermelhas que riscavam sua papada e enfatizavam as rugas verticais entre as bochechas e a boca. Fitou-me como se eu lhe tivesse sugerido que cometesse alguma indecência pública.
Aparentemente eu o fizera, porque suas palavras seguintes foram:
- O quê? Um servo de Deus expor suas partes pessoais às mãos de uma mulher? Bem, vou lhe dizer, madame, não sei que espécies de imoralidades são praticadas nos círculos a que está acostumada, mas lhe digo que isso não será tolerado aqui, enquanto eu for responsável pelas almas desta paróquia! - Com isso, virou-se e saiu batendo os pés, mancando fortemente e tentando, sem sucesso, segurar a parte rasgada de sua batina.
- Como quiser - gritei às suas costas. - Se não me deixar limpar esses cortes, eles vão inflamar! — O padre não respondeu, mas curvou os ombros rechonchudos e escalou a escada da horta, um degrau de cada vez, como um pingüim saltitando num bloco de gelo flutuante.
- Esse homem não gosta muito de mulheres, não é? - observei Jamie.
- Considerando-se sua ocupação, imagino que não - respondeu. -Vamos comer.
Após o almoço, mandei meu paciente de volta para a cama para descansar - sozinho, desta vez, apesar de seus protestos - e desci para o consultório. O aguaceiro parecia ter diminuído o movimento; as pessoas preferiam permanecer a salvo nos seus aposentos, em vez de andarem por aí com seus arados ou caírem de telhados.
Passei o tempo agradavelmente, atualizando os registros no livro de Davie Beaton. No entanto, assim que terminei, um visitante obscureceu minha porta.
Ele literalmente obscureceu-a, seu corpo volumoso preenchendo-a de um lado a outro. Estreitando os olhos na semi-escuridão, divisei o vulto de Alec MacMahon, envolvido em um conjunto extraordinário de casacos, xales e um ou outro pedaço de manta de cavalos.
Aproximou-se com uma lentidão que me fez lembrar da primeira visita de Colum ao consultório comigo e me deu uma pista de seu problema.
- Reumatismo, não é? - perguntei com compaixão, enquanto ele se deixava cair rigidamente na minha única cadeira com um gemido abafado.
- Sim. A umidade afeta meus ossos - disse. - O que se vai fazer? -Colocou as mãos enormes e nodosas sobre a mesa, deixando os dedos relaxarem. As mãos se abriram lentamente, como uma flor-da-noite, revelando as palmas calejadas. Peguei uma das mãos retorcidas e virei-a suavemente para a frente e para trás, estendendo os dedos e massageando a palma áspera. O velho rosto marcado de rugas acima da mão contorceu-se um pouco com o movimento, mas depois relaxou quando as primeiras pontadas de dor passaram.
- Como madeira - eu disse. - Uma boa dose de uísque e uma massagem profunda é o melhor que posso recomendar. Chá de tanásia também ajuda um pouco.
Ele riu, o xale deslizando de seus ombros.
- Uísque, hein? Eu tinha minhas dúvidas, dona, mas estou vendo que tem jeito de uma boa médica.
Do fundo do meu armário de remédios, retirei a garrafa marrom anônima que guardava meu suprimento de uísque da destilaria de Leoch. Coloquei-a na mesa diante dele, com um copo de chifre.
- Beba - eu disse —, depois tire as roupas até onde achar decente e deite-se na mesa. Vou atiçar o fogo para que fique bem quente aqui.
O olho azul inspecionou a garrafa com satisfação e a mão deformada dirigiu-se lentamente ao gargalo.
- É melhor tomar um gole também, dona — avisou. - Vai ser um grande trabalho.
Gemeu, com um misto de dor e satisfação, enquanto eu lançava todo o peso do meu corpo sobre seu ombro esquerdo para soltá-lo, depois o erguia por baixo e girava a região para trás.
— Minha mulher costumava massagear minhas costas para mim -comentou - por causa do lumbago. Mas isso é ainda melhor. Tem um par de mãos muito forte, dona. Daria uma boa cavalariça.
— Presumo que isso seja um elogio - eu disse secamente, despejando mais da mistura de óleo e sebo na palma da minha mão e espalhando-a sobre as costas largas e brancas. Havia uma linha de demarcação bem definida entre a pele queimada, castigada pelo tempo, de seus braços, onde as mangas arregaçadas de sua camisa paravam, e a pele branca como leite de seus ombros e costas.
— Bem, você foi um belo rapaz em sua época - observei. - A pele de suas costas é tão branca quanto a minha.
Uma risada profunda sacudiu a carne sob minhas mãos.
— Agora nem dá para imaginar, não é? Sim, Ellen MacKenzie uma vez me viu sem minha camisa, ajudando um potro a nascer, e disse-me que parecia que o bom Deus havia colocado a cabeça errada no meu corpo. Devia ter um saco de pudim de leite nos ombros, ao invés de um rosto do altar.
Imaginei que estivesse se referindo à cortina do crucifixo na capela, que retratava diversos demônios extremamente feios, ocupados em torturar os pecadores.
— Parece que Ellen MacKenzie era um tanto livre em suas opiniões -observei. Estava mais do que ligeiramente curiosa a respeito da mãe de Jamie. De pequenos comentários que ele fazia de vez em quando, eu formara uma idéia de seu pai Brian, mas ele nunca mencionara sua mãe e eu não sabia nada a seu respeito, além de que morrera jovem, de parto.
— Ah, ela era desbocada e tinha uma cabeça voluntariosa também. -Desamarrando as ligas de suas calças curtas, presas abaixo dos joelhos, enrolei-as para cima e comecei a trabalhar os músculos das panturrilhas. -Mas tinha tanta doçura que ninguém se importava muito, além de seus irmãos. E ela não era de dar muita atenção a Dougal ou Colum.
— Hum. Foi o que ouvi dizer. Fugiu com o namorado, não foi? -- Enfiei os polegares nos tendões atrás do joelho e ele emitiu um som que teria sido um grunhido em qualquer pessoa menos digna.
— Ah, sim. Ellen era a mais velha dos seis filhos MacKenzie, um ou dois anos mais velha do que Colum e a menina dos olhos do velho Jacob. Foi por isso que demorou tanto tempo para se casar; não quis saber de John Cameron ou Malcolm Grant ou nenhum dos outros com quem poderia ter se casado e seu pai não queria forçá-la a agir contra sua vontade.
Mas quando o velho Jacob morreu, Colum tinha menos paciência com as fraquezas de sua irmã. Lutando desesperadamente para consolidar seu abalado domínio do clã, buscou uma aliança com Munro ao norte ou Grant ao sul. Ambos os clãs tinham chefes jovens, que se transformariam em úteis cunhados. A jovem Jocasta, de apenas quinze anos, obedientemente aceitou o pedido de John Cameron e foi para o norte. Ellen, à beira de se tornar uma solteirona aos vinte e dois, mostrou-se bem menos dócil.
- Imagino que o pedido de Malcolm Grant tenha sido firmemente rejeitado, a julgar por seu comportamento há duas semanas - observei.
O Velho Alec riu, a risada transformando-se num gemido de prazer quando pressionei com mais força.
- Sim. Nunca soube exatamente o que ela disse para ele, mas acho que feriu fundo. Foi durante o Grande Encontro, que eles se conheceram. Foram lá para fora, para o jardim de rosas, à noite, e todos esperavam para ver se ela o aceitaria ou não. Ficou escuro e continuavam esperando. Mais escuro ainda, todos os lampiões acesos, a música foi iniciada e, ainda assim, nenhum sinal de Ellen ou de Malcolm Grant.
- Nossa Senhora. Deve ter sido uma conversa e tanto. - Despejei mais uma porção do linimento entre suas omoplatas e ele gemeu com a sensação quente e prazerosa.
- Assim parecia. Mas o tempo continuou a passar e eles não voltavam. Colum começou a temer que Grant tivesse fugido com ela; levado à força, sabe. E assim parecia, porque encontraram o jardim vazio. E quando ele me mandou chamar na estrebaria, eu lhe disse que os homens de Grant tinham ido buscar os cavalos e o grupo todo havia partido sem uma palavra de despedida.
Furioso, Dougal, então com dezoito anos, montou em seu cavalo imediatamente e partiu no encalço de Malcolm Grant, sem esperar por companhia nem por uma conversa com Colum.
- Quando Colum soube que Dougal havia partido no encalço de Grant, enviou a mim e outros homens atrás dele, já que Colum conhecia bem o temperamento de Dougal e não queria que seu novo cunhado fosse assassinado na estrada antes da proclama de casamento. Ele imaginou que Malcolm Grant, não tendo conseguido convencer Ellen a aceitar casar-se com ele, devia tê-la seqüestrado para forçá-la a se casar.
Alec fez uma pausa, pensativamente.
- Tudo que Dougal podia ver era o insulto, é claro. Mas não acho que estivesse tão aborrecido com o fato, para dizer a verdade, com ou Sem insulto. Teria resolvido seu problema - e Grant provavelmente iria ter que se casar com Ellen sem seu dote e ainda pagar uma compensação a Colum.
Alec respirou ruidosamente, com um ar cínico.
-- Colum não é homem de deixar passar uma oportunidade. Ele é rápido e cruel, assim é Colum. - O solitário olho de um azul glacial girou para trás para me olhar por cima de um ombro curvado. - Seria bom não se esquecer disso, dona.
- Não pretendo me esquecer - assegurei-lhe, com certa amargura. Lembrava-me da história de Jamie sobre o castigo que Colum ordenara e imaginei quanto disso fora por vingança contra a rebeldia de sua mãe.
No entanto, Colum não teve chance de aproveitar-se da oportunidade de casar sua irmã com o chefe do clã Grant. Quase ao raiar do dia, Dougal encontrou Malcolm Grant acampado junto à estrada principal com seus seguidores, dormindo sob um arbusto de tojo, enrolado em seu xale.
E quando Alec e os outros chegaram furiosos algum tempo depois, ficaram paralisados onde estavam pela visão de Dougal MacKenzie e Malcolm Grant, ambos despidos até a cintura e lanhados com as marcas de luta, cambaleando e oscilando de um lado para o outro na estrada, ainda trocando alguns golpes aleatórios sempre que ficavam ao alcance um do outro. Os seguidores de Grant estavam empoleirados ao longo da estrada como uma fileira de corujas, as cabeças virando-se de um lado para o outro, enquanto a briga próxima do fim serpenteava para cima e para baixo na aurora chuvosa.
- Ambos bufavam como cavalos e o vapor subia de seus corpos no ar frio. O nariz de Grant estava inchado, o dobro do tamanho, e Dougal mal conseguia ver com qualquer um dos olhos, ambos com o sangue pingando e secando em seu peito.
Com o aparecimento dos homens de Colum, os homens de Grant puseram-se de pé, as mãos na espada, e o encontro provavelmente teria resultado em um grave derramamento de sangue se um dos rapazes MacKenzie, de olho mais vivo, não tivesse observado o fato importante de que Ellen MacKenzie não estava entre os Grant.
- Bem, depois de despejarem água em Malcolm Grant para fazê-lo recuperar os sentidos, ele conseguiu contar-lhes o que Dougal não tinha parado para ouvir - que Ellen passara apenas um quarto de hora com ele no roseiral. Recusou-se a contar o que se passara entre os dois, mas o que quer que tenha sido, ele ficara tão ofendido que quis ir embora imediatamente, sem aparecer de novo no salão de Colum. E ele a deixara lá e não a vira mais, nem nunca mais queria ouvir o nome Ellen MacKenzie pronunciado em sua presença outra vez. Com isso, montou em seu cavalo -ainda um pouco vacilante — e foi embora. Desde então, nunca mais se tornou amigo de ninguém do clã MacKenzie.
Ouvi, fascinada.
- E onde estava Ellen todo esse tempo?
O Velho Alec riu, como o som de uma porta de estrebaria rangendo nas dobradiças.
- Do outro lado da montanha, bem longe. Mas eles não descobriram isso de imediato. Demos meia-volta e partimos para casa outra vez, encontrar Ellen ainda desaparecida e Colum de pé, lívido, no pátio, apoiando-se em Angus Mhor.
- Seguiu-se uma confusão ainda maior, porque com todos aqueles hóspedes, os quartos do castelo estavam lotados, assim como todos os sótãos e cubículos, cozinhas e quartinhos. Parecia impossível saber quem, de todas as pessoas no castelo, estaria desaparecido, mas Colum chamou todos os empregados e percorreu tenazmente a lista de todos os convidados, perguntando quem fora visto na noite anterior, e onde, e quando. Finalmente, descobriu uma criada da cozinha que se lembrou de ter visto um homem em uma passagem dos fundos, pouco antes de o jantar ser servido.
Ela só o notara porque era muito bonito; alto e forte, disse, com cabelos negros e lisos como uma silkie, e olhos de gato. Ela observou-o descer a passagem, admirando-o, e o viu encontrar-se com alguém na porta externa - uma mulher vestida de preto da cabeça aos pés e abrigada num manto com capuz.
- O que é uma silkie? — perguntei, surpresa.
Os olhos de Alec estreitaram-se para mim, enrugando-se nos cantos.
- São as focas. Durante muito tempo depois, mesmo após saberem a verdade, as pessoas na vila contavam a história de que Ellen MacKenzie havia sido levada para o mar, para viver entre as focas. Sabia que as silkies tiram sua pele quando vêm para terra firme e caminham como seres humanos? E se você encontrar a pele de uma silkie e a esconder, ele, ou ela - acrescentou com justiça -, não poderá entrar no mar outra vez, mas terá que permanecer com você em terra firme. Diz-se que é bom arranjar uma esposa-foca dessa forma, pois são ótimas cozinheiras e mães muito dedicadas.
- Ainda assim - disse criteriosamente -, Colum não estava inclinado a acreditar que sua irmã fugira com uma foca e deixou isso bem claro. Convocou os hóspedes, um por um, e perguntou a cada um deles quem conhecia um homem com aquela descrição. Finalmente, chegaram à conclusão de que seu nome era Brian, mas ninguém conhecia seu clã ou sobrenome; ele participara dos jogos, mas lá só o chamavam de Brian Dhu.
- A questão ficou suspensa por algum tempo, porque os homens não sabiam em que direção começar a procurar. Ainda assim, até o melhor dos caçadores tem que parar em uma cabana de vez em quando, pedir um punhado de sal ou uma caneca de leite. E finalmente a notícia do paradeiro do casal chegou a Leoch, pois Ellen MacKenzie não era uma jovem de aparência comum.
- Cabelos cor de fogo - disse Alec sonhadoramente, desfrutando o calor do óleo em suas costas. - E olhos como os de Colum: cinzas e debruados de pestanas negras. Muito bonitos, mas do tipo que o atravessam como um raio. Uma mulher alta; mais alta ainda do que você. E para dizer a verdade, os olhos doíam só de vê-la.
- Mais tarde, ouvi dizer que eles se conheceram durante o Grande Encontro, entreolharam-se e decidiram na mesma hora que não poderia haver mais ninguém para nenhum dos dois. Assim, fizeram os planos e fugiram, debaixo dos narizes de Colum MacKenzie e de trezentos hóspedes.
Riu repentinamente, lembrando-se.
- Dougal encontrou-os finalmente, vivendo na cabana de um camponês no limite das terras dos Fraser. Haviam decidido que a única maneira de conseguirem o que queriam seria esconderem-se até Ellen ficar grávida e barriguda o suficiente para não haver dúvida de quem era o pai. Então Colum teria que dar sua bênção ao casamento, gostasse ou não. E ele não gostou.
Alec riu.
- Enquanto estava na estrada, você por acaso viu uma cicatriz que Dougal tem atravessando seu peito?
Eu vira; uma fina linha branca que cortava seu coração e ia do ombro às costelas.
- Foi Brian quem fez aquilo? - perguntei.
- Não, Ellen - respondeu, rindo diante da expressão do meu rosto. -Para impedi-lo de cortar a garganta de Brian, o que ele estava prestes a fazer. Eu não mencionaria isso a Dougal, se fosse você.
- Não, acho que não o faria.
Felizmente, o plano funcionou e Ellen já estava com cinco meses de gravidez quando Dougal os encontrou.
- Houve uma grande confusão em torno do assunto e um monte de cartas muito desagradáveis entre Leoch e Beauly, mas no fim tudo se arranjou e Ellen e Brian foram morar em Lallybroch uma semana antes de a criança nascer. Casaram-se na frente da casa - acrescentou, como uma reflexão posterior - para que ele pudesse atravessar a soleira com ela nos braços pela primeira vez como marido e mulher. Ele disse depois que quase ficou rendido quando a pegou no colo.
- Você fala como se os conhecesse bem — eu disse. Terminando meu tratamento, limpei o óleo escorregadio de minhas mãos com uma toalha.
- Ah, um pouco - Alec disse, sonolento com o calor do corpo. A pálpebra caía sobre seu único olho e as rugas em seu rosto envelhecido haviam relaxado, perdendo a expressão de leve desconforto que normalmente o fazia parecer tão irritado.
- Eu conhecia bem Ellen, é claro. Brian eu conheci anos mais tarde» quando trouxe o rapaz para passar uma temporada aqui. Nós nos demos bem. Ele era bom com cavalos. - Sua voz definhou e a pálpebra se fechou-
Coloquei um cobertor sobre o corpo prostrado do velho tratador de cavalos e saí na ponta dos pés, deixando-o sonhando junto à lareira.
Deixando Alec adormecido, subi para nosso quarto, apenas para encontrar Jamie nas mesmas condições. Há um número limitado de atividades adequadas para diversão dentro de casa, em um dia escuro e chuvoso e presumindo-se que eu não queria nem acordar Jamie nem me unir a ele no mundo dos sonhos, sobravam apenas a leitura ou o bordado. Considerando-se as minhas mais do que medíocres habilidades nesta última, resolvi pegar um livro emprestado da biblioteca de Colum.
De acordo com os peculiares princípios arquitetônicos que governaram a construção de Leoch - baseados nus abominável fixação geral por linhas retas -, a escada que levava à suíte de Colum possuía duas mudanças de direção em ângulo reto, cada qual assinalada por um pequeno patamar. Em geral, um criado permanecia postado no segundo patamar, pronto para ir realizar uma pequena missão ou prestar assistência ao chefe do clã, mas não estava em seu posto hoje. Eu podia ouvir o rumor de vozes vindas de cima; talvez o criado estivesse com Colum. Parei do lado de fora da porta, sem saber se deveria interromper.
— Sempre soube que você era um tolo, Dougal, mas não pensei que fosse tão idiota. — Acostumado à companhia de professores desde a juventude e privado de aventurar-se pelo mundo lá fora como seu irmão fazia entre guerreiros e pessoas comuns, a voz de Colum geralmente não apresentava aquele escocês carregado que marcava a fala de Dougal. O sotaque culto havia falhado um pouco agora e as duas vozes eram quase indistinguíveis, ambas roucas de raiva. - Eu esperaria esse comportamento de sua parte se tivesse vinte e poucos anos, mas pelo amor de Deus, homem, você está com quarenta e cinco!
— Bem, não é uma questão sobre a qual você tenha muito a dizer, não é? - a voz de Dougal tinha um desagradável tom de escárnio.
— Não. - A resposta de Colum foi cortante. - E embora eu raramente tenha encontrado motivos para agradecer a Deus, talvez ele tenha feito mais por mim do que eu imaginava. Sempre ouvi falar que o cérebro de um homem pára de funcionar quando seu pau está em pé e agora acho que acredito nisso. — Houve um sonoro barulho de pernas de cadeira arrastadas Para trás no assoalho de pedras. — Se os irmãos MacKenzie só têm um pau e um cérebro para os dois, então fico feliz com a minha parte da barganha!
Concluí que um terceiro participante nessa conversa em particular certamente não seria bem-vindo e afastei-me silenciosamente da porta, preparando-me para descer as escadas.
O ruído de saias farfalhando no primeiro patamar me fez parar onde estava. Não queria que me descobrissem ouvindo por trás da porta dos aposentos do chefe do clã e virei-me novamente em direção à porta. O patamar era largo e uma tapeçaria cobria uma das paredes quase do teto ao chão. Meus pés ficariam à mostra, mas não havia nada que eu pudesse fazer Escondendo-me como um rato atrás do tapete de parede, ouvi os passos que vinham de baixo diminuírem ao se aproximarem da porta. Parara na ponta mais distante do patamar, quando o visitante que eu não podia ver percebeu, como eu havia percebido, a natureza particular da conversa entre os irmãos.
- Não — Colum dizia, agora mais calmo. - Não, claro que não. A mulher é uma bruxa ou algo parecido.
- Sim, mas...- A resposta de Dougal foi interrompida pelo tom impaciente do irmão.
-Já disse que vou cuidar disso, Dougal. Não se preocupe, irmãozinho; providenciarei para que ela seja tratada convenientemente. - Um tom de ressentido afeto insinuara-se na voz de Colum.
- Vou lhe dizer uma coisa, Dougal. Escrevi ao duque, já que ele talvez pretenda caçar nas terras acima de Erlick, ele gosta de matar veados por lá. Pretendo enviar Jamie com ele; talvez como ele ainda tem uma queda pelo rapaz....
Dougal interrompeu com alguma coisa em gaélico, evidentemente uma observação grosseira, porque Colum riu e disse:
- Não, acho que Jamie já é suficientemente grande para cuidar de si mesmo. Mas se o duque tiver a intenção de interceder por ele junto a Sua Majestade Real, é a melhor chance de o rapaz obter um perdão. Se quiser, direi a Sua Excelência que você também irá. Pode ajudar Jamie como quiser e estará fora do caminho enquanto eu acerto as coisas por aqui.
Ouviu-se uma pancada abafada na ponta mais distante do patamar e arrisquei uma olhadela. Era a jovem Laoghaire, pálida como a parede branca atrás dela. Segurava uma bandeja com uma jarra de vinho; uma caneca de metal caíra da bandeja no chão acarpetado, produzindo o som que eu ouvira.
- O que foi isso? — a voz de Colum, repentinamente aguda, ecoou de dentro do aposento. Laoghaire deixou a bandeja na mesa junto à porta, quase derrubando a jarra de vinho em sua pressa e, virando-se, fugiu precipitadamente.
Podia ouvir os passos de Dougal aproximando-se da porta e compreendi que jamais conseguiria descer as escadas sem ser descoberta. Mal tive tempo de esgueirar-me do meu esconderijo e pegar a caneca que caíra, antes de a porta abrir-se.
- Ah, é você. — Dougal pareceu ligeiramente surpreso. — É o que a sra. Fitz mandou para a garganta irritada de Colum?
- Sim — respondi com desembaraço. — Ela disse que estima sua rápida melhora.
- Obrigado. - Movendo-se mais devagar, Colum surgiu na porta aberta. Sorriu para mim. - Agradeça a sra. Fitz por mim. E obrigado a você também, minha querida, por trazê-lo. Quer se sentar por um instante enquanto eu o bebo?
A conversa que ouvira por acaso na verdade me fizera esquecer meu propósito original, mas agora me lembrava da minha intenção de pedir um livro emprestado. Dougal pediu licença e eu segui Colum lentamente para a biblioteca, onde ele me ofereceu todas as suas prateleiras.
Colum ainda estava avermelhado, a discussão com o irmão continuava fresca em sua mente, mas respondeu minhas perguntas sobre os livros com uma boa aproximação de seu equilíbrio habitual. Somente o brilho em seus olhos e uma certa tensão na postura traíam seus pensamentos.
Encontrei um ou dois livros sobre ervas que pareciam interessantes e separei-os enquanto folheava um romance.
Colum atravessou o aposento até a gaiola de pássaros, sem dúvida pretendendo acalmar-se por meio de seu costume de observar as belas criaturinhas absortas em si mesmas saltando de um galho ao outro, cada qual um mundo em si mesmo.
O barulho de gritos lá fora atraiu minha atenção. Desse local elevado, os campos de trás do castelo eram visíveis por toda a extensão até o lago. Um pequeno grupo de cavaleiros dobrava a curva na ponta do lago, gritando de entusiasmo, enquanto a chuva os açoitava.
Ao se aproximarem, pude ver que não eram homens afinal de contas, mas garotos, a maioria adolescentes, mas com um garoto menor aqui e ali montado num pônei, esforçando-se para acompanhar os mais velhos. Imaginei se Hamish estaria com eles e logo descobri o revelador ponto de cabelos reluzentes, brilhando loucamente no dorso de Cobhar no meio do grupo.
O bando vinha a toda velocidade na direção do castelo, visando um dos inúmeros muros baixos de pedra que separavam um campo do outro. Um, dois, três, quatro, os garotos mais velhos em suas montarias saltaram o muro com a descuidada facilidade nascida da experiência.
Sem dúvida foi minha imaginação que fez o cavalo baio parecer demorar-se um instante, pois Cobhar seguia os outros cavalos com aparente entusiasmo. Partiu em direção ao muro, preparou-se e saltou.
Pareceu fazê-lo exatamente como os outros haviam feito, mas alguma coisa aconteceu. Talvez uma hesitação do seu cavaleiro, um puxão muito forte nas rédeas ou uma sela não muito firme. Porque os cascos dianteiros bateram no muro por uma diferença de alguns centímetros e cavalo, cavaleiro e tudo deram uma cambalhota por cima do obstáculo na mais espetacular parábola da fatalidade que eu já vi.
- Ah!
Atraído por minha exclamação, Colum virou a cabeça para a janela a tempo de ver Cobhar cair pesadamente de lado, a pequena figura de Hamish presa embaixo dele. Apesar de sua dificuldade, Colum moveu-se depressa. Estava a meu lado, debruçado à janela, antes de o cavalo sequer começar a lutar para ficar em pé.
O vento e a chuva fustigavam pela janela, ensopando o veludo do casaco de Colum. Espreitando ansiosamente por cima de seu ombro, vi um grupo de garotos empurrando e afastando uns aos outros, na ânsia de ajudar. Pareceu que um longo tempo havia transcorrido até o grupo apartar-se e eu ver a pequena e robusta figura cambalear para fora do ajuntamento, segurando o estômago. Sacudiu a cabeça para as inúmeras ofertas de auxílio e saiu meio tonto, mas pisando com determinação até o muro, onde se debruçou e vomitou profusamente. Em seguida, deslizou pela parede e ficou sentado na grama molhada, as pernas abertas, o rosto virado para a chuva. Quando o vi esticar a língua para fora para pegar as gotas de chuva, coloquei a mão no ombro de Colum.
- Ele está bem - eu disse. - Só ficou sem ar por uns instantes. Colum cerrou os olhos e expirou ruidosamente, o corpo subitamente frouxo com a liberação da tensão. Olhei-o com simpatia.
- Importa-se com ele como se fosse seu próprio filho, não é? - perguntei.
Os olhos cinza flamejaram repentinamente, penetrando os meus com a mais extraordinária expressão de sobressalto. Por um instante, não se ouviu outro som no aposento que não o tique-taque do relógio de vidro na prateleira. Então, uma gota d'água rolou pelo nariz de Colum, parando na ponta, reluzente. Estendi a mão involuntariamente para enxugá-la com meu lenço e a tensão em seu rosto dissipou-se.
- Sim - respondeu simplesmente.
Por fim, contei a Jamie apenas sobre o plano de Colum de enviá-lo para caçar com o duque. Agora eu estava convencida de que seus sentimentos por Laoghaire eram apenas de uma amizade cavalheiresca, mas eu não sabia o que ele poderia fazer se soubesse que seu tio havia seduzido a garota e a engravidado. Aparentemente, Colum não pretendia solicitar os serviços de Geilie Duncan na emergência; imaginei se a jovem seria obrigada a se casar com Dougal ou se Colum encontraria um outro marido para ela antes que a gravidez começasse a aparecer. De qualquer forma, Jamie e Dougal iam ficar confinados numa hospedaria de caça durante um longo tempo, achei que seria melhor que a sombra de Laoghaire não fizesse parte do grupo.
- Hum - ele disse pensativamente. - Vale a pena tentar. Fica-se amigo quando se caça junto com alguém o dia todo e volta-se à noite para tomar um uísque junto à lareira. - Ele acabou de amarrar meu vestido nas costas e inclinou-se para me beijar de leve no ombro.
- Vou lamentar ter que deixá-la, Sassenach, mas pode ser o melhor a fazer.
- Não se preocupe comigo — eu disse. Eu não havia percebido antes que sua partida necessariamente me deixaria sozinha no castelo e a idéia deixou-me mais do que ligeiramente nervosa. Ainda assim, estava decidida a me arranjar, se isso era o melhor para ele.
- Está pronto para o jantar? — perguntei. Sua mão demorou-se na minha cintura e eu me virei para ele.
- Hum - ele disse um instante depois,. -- Não me importaria de ficar com fome.
- Bem, eu me importaria - retruquei. — O senhor vai ter que esperar.
Olhei ao longo da mesa de jantar e pelo salão. Agora eu já conhecia a maioria dos rostos, alguns intimamente. E que bando diversificado eles formavam, refleti. Frank teria ficado fascinado - tantos tipos faciais diferentes.
Pensar em Frank era como tocar em um dente dolorido; minha tendência era afastar o pensamento. Mas chegaria a hora em que não poderia mais adiar e forcei minha mente outra vez, desenhando-o cuidadosamente, delineando os arcos longos e bem arqueados de suas sobrancelhas com meus pensamentos como um dia eu os delineara com meus dedos. Não me importa que meus dedos formigassem repentinamente com a lembrança de sobrancelhas mais ásperas e grossas e do azul profundo dos olhos sob elas.
Apressadamente, me virei na direção do rosto mais próximo, como um antídoto para pensamentos tão perturbadores. Por acaso, era o de Murtagh. Bem, ao menos ele não se parecia com nenhum dos dois homens que assombravam meus pensamentos.
Baixo, franzino, mas vigoroso como um macaco, com braços longos que reforçavam a aparência simiesca, tinha sobrancelhas baixas e maxilar estreito que, por alguma razão, me faziam pensar em habitantes das cavernas e desenhos do Homem Primitivo, exibidos em alguns dos artigos de Frank. Mas não um Neanderthal. Um picto. Era isso. Havia algo de muito estável a respeito do pequeno escocês que me lembrava as pedras desenhadas, castigadas pelo tempo, antigas mesmo agora, que mantinham sua guarda implacável nas encruzilhadas e nos cemitérios.
Distraída com a idéia, examinei os outros comensais com um olho clínico para identificar tipos étnicos. Aquele homem perto da lareira, por exemplo, John Cameron, era seu nome, era um normando se eu já tivesse Visto um — não que tivesse — com maçãs do rosto altas e a testa alta e estreita, lábio superior longo e a pele escura de um gaulês.
Um ou outro saxão louro aqui e ali... ah, Laoghaire, o exemplar perfeito. Pele clara, olhos azuis e só um pouquinho rechonchuda... reprimi a observação maldosa. Ela evitava cuidadosamente olhar para mim ou para Jamie, conversando animadamente com as amigas em uma das mesas mais para o final do salão.
Olhei na direção oposta, para a mesa seguinte, onde Dougal MacKenzie estava sentado, desta vez separado de Colum. Um maldito viking, é o que ele era. Com sua altura imponente e aquelas maçãs do rosto planas e largas, eu podia facilmente imaginá-lo no comando de um navio de dragões, os olhos encovados brilhando de cobiça e ganância, enquanto espreitava através da neblina para uma vila litorânea numa encosta rochosa.
A mão grande, o pulso coberto de uma penugem cor de cobre, passou por mim para pegar um pãozinho de aveia da bandeja. Outro nórdico, Jamie. Ele me fazia lembrar das lendas da sra. Baird sobre a raça de gigantes que um dia vagou pela Escócia e fincou seus ossos longos nas terras do norte.
A conversa girava em torno de temas gerais, como sempre, pequenos grupos cochichando entre uma mordida e outra. Meus ouvidos, porém, captaram um nome familiar, pronunciado numa mesa próxima. Sandringham. Pensei que a voz fosse de Murtagh e me virei para ver. Ele estava sentado ao lado de Ned Gowan, mastigando laboriosamente.
- Sandringham? Ah, o velho Willie, o terror dos traseiros - disse Ned, pensativamente.
- O quê?! - exclamou um dos soldados mais jovens, engasgando com sua cerveja.
- Nosso reverenciado duque gosta de rapazes, ou assim ouvi dizer -explicou Ned.
- Mmm - concordou Rupert, a boca cheia. Engolindo, acrescentou: -Tinha uma queda pelo jovem Jamie, da última vez que visitou estas paragens, se me lembro bem. Quando foi, Dougal? Trinta e oito? Trinta e nove?
- Trinta e sete - Dougal respondeu da mesa seguinte. Estreitou os olhos para seu sobrinho. - Você era um rapaz muito bonito aos dezesseis anos, Jamie.
Jamie balançou a cabeça, mastigando.
- Sim. E rápido, também.
Quando as risadas acalmaram-se, Dougal começou a provocar Jamie.
- Não sabia que você era um favorito, Jamie. Diz-se por aí que o duque andou trocando um traseiro dolorido por terras e cargos.
- Deve ter percebido que não tenho nem um nem outro — Jamie respondeu com um sorriso, seguido de novas gargalhadas.
- O quê? Nem chegou perto? - disse Rupert, mastigando ruidosamente.
- Bem mais perto do que eu gostaria, verdade seja dita.
- Ah, mas até onde teria gostado que ele chegasse, hein, rapaz? - A voz estrondosa veio de um ponto mais distante da mesa, de um homem alto, de barba castanha, que eu não reconheci, e foi saudado com mais gargalhadas e comentários obscenos. Jamie sorriu tranqüilamente e pegou outro pão, sem se deixar perturbar com os gracejos.
- Foi por isso que deixou o castelo tão de repente e voltou para o seu pai? - Rupert perguntou.
- Foi.
- Ora, devia me ter dito que estava tendo problemas nessa área, Jamie - Dougal disse, fingindo-se preocupado. Jamie produziu um ruído escocês baixo, no fundo da garganta.
- E se eu tivesse lhe falado sobre isso, seu velho patife, você teria colocado um pouco de sumo de papoula na minha cerveja uma noite e me deixado na cama de Sua Excelência como um pequeno presente.
A mesa veio abaixo de risadas e Jamie esquivou-se quando Dougal atirou uma cebola nele.
Rupert estreitou os olhos para Jamie.
- Parece-me, rapaz, que eu o vi, pouco antes de partir, entrando nos aposentos do duque no começo da noite. Tem certeza de que não está escondendo alguma coisa da gente? - Jamie pegou outra cebola e atirou nele. Não o atingiu e ela saiu rolando pelo chão.
- Não —Jamie disse, rindo —, ainda sou virgem, ao menos dessa forma. Mas se precisa saber tudo sobre isso para poder dormir, Rupert, eu lhe conto, com prazer.
Entre gritos de "Conta! Conta!", ele deliberadamente encheu uma caneca de cerveja e recostou-se no banco, na pose clássica do contador de histórias. Pude ver Colum na mesa principal, a cabeça inclinada para a frente para ouvir, tão atento quanto os cavalariços e os soldados em nossa mesa.
- Bem - começou -, é bem verdade o que Ned diz. Sua Excelência tinha uma queda por mim, embora eu fosse um garoto inocente aos dezesseis... - Nesse ponto foi interrompido por uma série de comentários debochados e elevou a voz para continuar. — Sendo, como eu disse, inocente quanto a esses assuntos, não fazia a menor idéia do que ele pretendia, embora me parecesse um pouco estranho o modo como Sua Excelência estava sempre me dando tapinhas como num cachorrinho e estivesse tão interessado no que eu pudesse ter na minha bolsa na cintura. ("Ou abaixo dela!", gritou uma voz bêbada.)
- Achei mais estranho ainda quando ele me encontrou me lavando no rio e quis esfregar minhas costas para mim. Quando terminou minhas costas e continuou com o resto, comecei a ficar um pouco nervoso e quando colocou a mão embaixo do meu kilt, comecei a compreender o que ele queria. Eu podia ser inocente, mas não era idiota, sabe.
- Saí dessa situação em particular mergulhando na água, com kilt e tudo, e nadando para o outro lado. Sua Excelência não tinha a intenção de arriscar suas roupas caras na lama e na água. De qualquer modo, depois disso eu tomava muito cuidado para não ficar sozinho com ele. Ele me pegou uma ou duas vezes no jardim ou no pátio, mas tive chance de escapar sem maiores danos do que ele beijando minha orelha. O outro único momento difícil foi quando ele se deparou comigo sozinho na estrebaria.
- Na minha estrebaria? - O Velho Alec pareceu horrorizado. Levantou-se parcialmente e gritou para a mesa principal do outro lado do salão. — Colum, faça com que esse homem fique longe da minha estrebaria! Não vou querer que assuste meus cavalos, duque ou não! Nem que incomode os rapazes! - acrescentou, numa óbvia reflexão posterior.
Jamie continuou com sua história, sem se deixar perturbar pela interrupção. As duas filhas adolescentes de Dougal ouviam extasiadas, a boca ligeiramente aberta.
- Eu estava numa baia, sabe, e ali não havia muito espaço de manobra. Eu estava debruçado sobre (mais observações obscenas)... sobre a manjedoura, como dizia, retirando as cascas do fundo, quando ouvi um barulho atrás de mim e, antes que pudesse me endireitar, meu kilt foi jogado para cima, na minha cintura, e algo duro pressionava o meu traseiro.
Abanou a mão para acalmar o tumulto antes de continuar.
- Bem, não gostei da idéia de ser importunado em uma baia, mas também não via saída àquela altura. Já estava trincando os dentes e desejando que não doesse muito, quando o cavalo - aquele cavalo preto, grande, Ned, que você comprou em Brocklebury - sabe, aquele que Colum vendeu a Breadalbin - bem o cavalo não gostou do barulho que Sua Excelência estava fazendo. A maioria dos cavalos gosta que você converse com eles, e aquele também, mas ele tinha uma aversão peculiar a vozes muito agudas. Eu não podia levá-lo ao pátio quando havia crianças pequenas por perto, porque ele ficava nervoso com seus berros e começava a escarvar o chão e dar pinotes.
- Sua Excelência, como devem se recordar, tem uma voz bastante aguda e estava ainda mais aguda do que o normal nessa ocasião, já que ele estava um pouco excitado. Bem, como ia dizendo, o cavalo não gostou — nem eu, devo dizer - e começou a bater os cascos e resfolegar, girou o corpo e imprensou Sua Excelência contra a parede da baia. Assim que o duque me soltou, pulei dentro da manjedoura e passei para o outro lado do cavalo, deixando Sua Excelência para se livrar do cavalo como pudesse.
Jamie parou para tomar fôlego e um gole de cerveja. A essa altura, detinha a atenção de todos no salão, os rostos voltados para ele, brilhando à luz dos tocheiros. Aqui e ali, podia-se perceber um cenho franzido diante dessas revelações a respeito de um poderoso nobre da Coroa Inglesa, mas a reação geral era de um prazer irrestrito com o escândalo. Compreendi que o duque não era um personagem muito popular no Castelo Leoch.
- Tendo conseguido chegar tão perto, por assim dizer, Sua Excelência colocou na cabeça que iria me possuir de qualquer jeito. Assim, no dia seguinte, ele diz ao MacKenzie que seu criado pessoal adoeceu e pede-lhe que me empreste a ele para ajudá-lo a se banhar e vestir. - Colum cobriu o rosto fingindo-se horrorizado, para regozijo geral. Jamie balançou a cabeça para Rupert.
- Foi por isso que você me viu entrando no quarto de Sua Excelência à noite. Foram ordens, pode-se dizer.
- Podia ter-me dito, Jamie. Eu não o obrigaria a ir — Colum disse, com um olhar de reprovação.
Jamie encolheu os ombros e riu.
- Fui impedido pela minha timidez natural, tio. Além disso, eu sabia que você estava tentando negociar com o sujeito; achei que poderia atrapalhar as negociações se fosse forçado a dizer a Sua Excelência que mantivesse as mãos longe do traseiro de seu sobrinho.
- Muito atencioso de sua parte, Jamie — Colum disse, secamente. — Então, você se sacrificou pelos meus interesses, não foi?
Jamie ergueu a caneca de cerveja em um pretenso brinde.
- Seus interesses estão sempre em primeiro lugar em minha mente, tio - disse e achei que, apesar do tom zombeteiro, havia uma distinta verdade subjacente no que ele dizia, que Colum, assim como eu, também percebeu.
Esvaziou a caneca e colocou-a na mesa.
- Mas, não — disse, limpando a boca. — Neste caso, eu não achei que o dever de família exigisse tanto assim de mim. Fui aos aposentos do duque, porque você mandou que eu fosse, mas foi apenas isso.
- E você saiu de lá outra vez com o eu intacto? - Rupert parecia cético. Jamie riu.
- Sim, saí. Veja, assim que recebi a ordem, procurei a sra. Fitz e disse-lhe que eu precisava desesperadamente de uma dose de xarope de figos. Quando ela o deu para mim, vi onde ela guardou a garrafa e voltei silenciosamente um pouco mais tarde e tomei a garrafa toda.
O salão explodiu em gargalhadas, inclusive a sra. Fitz, que ficou tão ruborizada que pensei que fosse ter um ataque. Levantou-se cerimoniosamente de seu lugar, deu a volta à mesa com sua ginga e desfechou um peteleco bem-humorado na orelha de Jamie.
- Ah, então foi isso que aconteceu com o meu remédio, seu desgraçado! - Com as mãos nos quadris, sacudiu a cabeça, fazendo os brincos verdes adejarem como libélulas. - O melhor que eu já fiz!
- Ah, foi muito eficaz - ele assegurou-lhe, rindo da avantajada senhora
- Ah, imagino que sim! Quando penso o que aquela quantidade de remédio deve ter feito às suas entranhas, rapaz, espero que tenha valido a pena para você. Deve ter ficado imprestável dias seguidos.
Ele sacudiu a cabeça, ainda rindo.
- É verdade, mas também fiquei imprestável para o que Sua Excelência tinha em mente. Ele não pareceu se importar nem um pouco quando pedi licença para ir embora. Mas eu sabia que não poderia fazer isso duas vezes assim tão logo as dores de barriga melhoraram, peguei um cavalo da estrebaria e fui embora. Levei muito tempo para chegar em casa, já que tinha que parar a cada dez minutos, mas cheguei na hora do jantar no dia seguinte.
Dougal fez sinal para que trouxessem mais uma jarra de cerveja, que ele passou de mão em mão pela mesa para Jamie.
- Sim, seu pai mandou dizer que achava que talvez você já tivesse aprendido o suficiente da vida no castelo por enquanto - disse, sorrindo melancolicamente. — Achei que havia um tom em sua carta que eu não compreendi bem na época.
- Bem, espero que tenha preparado um novo lote de xarope de figo, sra. Fitz - Rupert interrompeu, cutucando-a com familiaridade nas costelas. - Sua Excelência deve chegar aqui em um ou dois dias. Ou está contando com sua mulher para protegê-lo desta vez, Jamie? - Lançou-me um olhar malicioso. - Pelo que ouvi dizer, você vai ter que proteger ela. Disseram que o criado do duque não compartilha as preferências de Sua Excelência, embora seja muito ativo.
Jamie empurrou o banco para trás e levantou-se da mesa, dando-me a mão para me ajudar. Passou o braço pelos meus ombros e sorriu de volta para Rupert.
- Bem, então suponho que nós dois vamos ter que enfrentá-los juntos, costa a costa.
Os olhos de Rupert arregalaram-se de assombro.
- Costa a costa?! — exclamou. — Sabia que havíamos esquecido de lhe dizer alguma coisa antes de seu casamento, rapaz! Não é de admirar que ainda não a tenha engravidado!
A mão de Jamie segurou meu ombro com força, virando-me em direção à arcada, e escapamos do salão, sob uma chuva de risadas e conselhos obscenos.
No corredor escuro do lado de fora do salão, Jamie apoiou-se nas pedras da parede e dobrou-se de rir. Sem conseguir ficar em pé, deixei-o cair no chão aos seus pés, incapaz de conter o riso.
- Você não contou a ele, contou? -Jamie disse, arquejante, por fim.
Sacudi a cabeça.
- Não, claro que não. — Ainda respirando com dificuldade, tateei em busca de sua mão e ele me ajudou a ficar de pé. Deixei-me cair sobre seu peito.
- Deixe-me ver se entendi agora. - Segurou meu rosto com as duas mãos e pressionou a testa contra a minha, o rosto tão perto que seus olhos transformaram-se numa grande órbita azul e seu hálito soprava quente no meu queixo.
- Frente a frente. É assim? - A efervescência de riso estava arrefecendo em meu sangue, substituída por outra coisa igualmente potente. Toquei seus lábios com minha língua, enquanto minhas mãos ocupavam-se mais embaixo.
- Os rostos não são as partes essenciais. Mas você está aprendendo.
No dia seguinte, eu estava no consultório, ouvindo pacientemente uma senhora idosa da vila, parente do cozinheiro de sopas, que detalhava um tanto loquazmente a crise de garganta inflamada de sua nora, que teoricamente tinha alguma coisa a ver com sua atual queixa de angina, embora no momento eu não conseguisse ver a ligação. Uma sombra atravessou a porta, interrompendo a lista de sintomas da velha senhora.
Ergui os olhos, surpresa, e vi Jamie entrar apressado, seguido do Velho Alec, os dois parecendo preocupados e ansiosos. Jamie removeu sem nenhuma cerimônia o depressor de língua improvisado que eu estava segurando e me colocou de pé, segurando minhas mãos entre as suas.
- O que... comecei a dizer, mas fui interrompida por Alec, espreitando por cima do ombro de Jamie para as minhas mãos, que ele lhe mostrava.
- Sim, as mãos servem, mas e os braços, homem? Ela tem braços para isso?
- Olhe. —Jamie agarrou uma das minhas mãos e estendeu meu braço para a frente, medindo-o contra um dos seus próprios braços.
- Bem - Alec disse, examinando-o em dúvida -, pode ser. Sim, acho que servem.
- Poderiam me dizer o que acham que estão fazendo? - perguntei, mas antes de poder terminar, já estava sendo arrastada pelas escadas entre os dois homens, deixando minha paciente idosa de boca aberta atrás de nós, perplexa.
Alguns instantes depois, eu olhava com desconfiança a parte traseira grande, marrom e brilhante de uma égua, a uns quinze centímetros do meu rosto. O problema fora esclarecido no caminho para a estrebaria, com Jamie explicando e o Velho Alec fazendo coro com observações, imprecações e interjeições.
Losgann, em geral, uma boa parideira, e um valioso animal da estrebaria de Colum, estava com dificuldades. Isso eu mesma podia constatar; a égua estava deitada de lado e periodicamente os flancos brilhantes elevavam-se e o corpo enorme parecia estremecer. De quatro atrás do cavalo eu podia ver os lábios da vagina abrirem-se ligeiramente a cada contração porém nada mais acontecia; nenhum sinal de um minúsculo casco ou de um delicado focinho úmido aparecia na abertura. O potro, um temporão estava evidentemente de lado ou completamente virado. Alec achava que estava de lado, Jamie achava que estava virado e eles pararam para argumentar sobre isso por um instante, até que eu impacientemente coloquei ordem na reunião perguntando o que esperavam que eu fizesse, qualquer que fosse o caso.
Jamie olhou-me como se eu fosse um pouco tola.
- Virar a cria, é claro - disse pacientemente. — Girar as patas da frente para ela poder sair.
- Ah, só isso? - Olhei para a égua. Losgann, cujo belo nome na verdade significava "Rã", tinha a ossatura delicada para um cavalo, mas ainda assim extremamente grande.
- Hã, quer dizer, enfiar a mão lá dentro? - Olhei minha mão disfarçadamente. Provavelmente daria — a abertura era bastante grande -, mas e depois?
As mãos de ambos os homens eram grandes demais para a tarefa. E Roderick, o cavalariço que geralmente era pressionado a cuidar de situações delicadas como esta, estava, é claro, imobilizado com uma tala e uma tipóia que eu lhe arranjara, no braço direito - quebrara o braço há dois dias. Willie, o outro rapaz da estrebaria, entretanto, fora buscar Roderick, para dar conselhos e apoio moral. Nesse ponto, ele chegou, vestido apenas com um par de calças esfarrapadas, o peito magro brilhando com sua alvura na penumbra da estrebaria.
- Vai ser difícil — disse, em dúvida, avisado da situação e da sugestão de que eu o substituísse. - É complicado. Há um jeito especial, mas é preciso um pouco de força também.
- Não se preocupe -Jamie disse com confiança. - Claire é muito mais forte do que você, seu imprestável. Basta lhe dizer o que procurar no tato e o que fazer, e ela vai virá-lo rapidamente.
Apreciei o voto de confiança, mas não tinha de modo algum tanto sangue-frio. Dizendo a mim mesma com firmeza que aquilo não era pior do que dar assistência a uma cirurgia abdominal, recolhi-me a uma baia para trocar meu vestido por calças e um guarda-pó rústico de aniagem. Lavei a mão e o braço até a altura do ombro com sabão de sebo.
- Bem, ao ataque — murmurei baixinho e deslizei minha mão para dentro.
Havia bem pouco espaço de manobra e, no começo, não sabia dizer o que eu estava tateando. Fechei os olhos para me concentrar melhor e ir buscando cautelosamente. Havia áreas lisas e lugares pontudos. As partes lisas seriam o corpo e as pontudas as patas ou a cabeça. Eram as patas que eu queria - as patas dianteiras, para ser específica. Gradualmente, aCostumei-me à sensação do tato e à necessidade de ficar imóvel quando vinha uma contração; os músculos surpreendentemente fortes do útero contraíam-se sobre minha mão e braço como uma braçadeira, esmagando meus próprios ossos muito dolorosamente até a contração começar a abrandar e eu poder retomar minha busca.
Finalmente, meus dedos, tateando desajeitadamente, encontraram algo que eu sabia o que era.
- Coloquei a mão no focinho dele! -gritei, triunfante. - Encontrei a cabeça! *
- Ótimo, menina, ótimo! Não solte! - Alec agachou-se ansiosamente ao meu lado, dando uns tapinhas reconfortantes na égua quando uma nova contração começou. Cerrei os dentes e apoiei a cabeça contra o traseiro brilhante enquanto meu pulso era esmigalhado pela força da contração. No entanto, ela cessou e eu não larguei o focinho do potro. Levando a mão cautelosamente para cima, encontrei a curva da órbita ocular e a testa, em seguida a pequena elevação da orelha dobrada. Esperando atravessar mais uma contração, segui a curva do pescoço para baixo, até a omoplata.
- Está com a cabeça virada sobre o ombro - relatei. - Pelo menos, a cabeça está voltada na direção certa.
- Ótimo. - Jamie, junto à cabeça da égua, deslizava a mão pelo pescoço castanho suado para acalmá-la. - É provável que as patas estejam dobradas embaixo do peito. Veja se consegue colocar a mão em um dos joelhos.
Assim, continuei, tateando, apalpando, com o braço enterrado até o ombro na escuridão morna do animal, sentindo a terrível força das contrações do parto e seu ansiado arrefecimento, lutando cegamente para alcançar meu objetivo. Senti-me como se eu mesma estivesse dando à luz e certamente era uma tarefa árdua.
Finalmente, minha mão segurou um casco; podia sentir a superfície arredondada e a borda aguçada da curva ainda não utilizada. Seguindo as mstruções ansiosas, em geral contraditórias, de meus guias da melhor forma possível, eu alternadamente puxava e empurrava, aos poucos girando o pesado volume da cria, trazendo uma pata para a frente, empurrando outra para trás, suando e gemendo com a égua.
E então, de repente, tudo funcionou. Uma contração amainou e subitamente tudo deslizou sem percalços para o lugar certo. Esperei, sem me mover, pela próxima contração. Ela veio e um pequeno focinho úmido surgiu repentinamente, empurrando minha mão para fora com ele. As Minúsculas narinas alargaram-se brevemente, como se estivessem interessadas nessa nova sensação, depois desapareceram novamente.
- A próxima vai resolver! - Alec estava quase dançando de contentamento, seu corpo deformado pela artrite saltando de um lado para o outro no feno. - Vamos, Losgann. Vamos, minha rãzinha!
Como se atendendo ao pedido, a égua emitiu um relinchar convulsivo Suas ancas flexionaram-se pronunciadamente e o potro deslizou suavemente para o feno limpo, numa enxurrada de patas ossudas e orelhas enormes.
Sentei-me no feno, rindo tolamente. Eu estava coberta de secreções e sangue, exausta e dolorida, e cheirando fortemente aos aspectos menos agradáveis de um cavalo. Eu estava eufórica.
Fiquei sentada observando enquanto Willy e Roderick, com apenas uma das mãos, cuidavam do recém-chegado, limpando-o com punhados de feno. E comemorei com o resto quando Losgann virou-se e lambeu-o, cutucando-o gentilmente e empurrando-o com o focinho para que ele ficasse de pé em suas patas enormes e trôpegas.
- Um belo trabalho, dona! Belíssimo! — Alec exultava, sacudindo minha mão gosmenta em congratulações. Percebendo repentinamente que eu estava oscilando no lugar onde estava empoleirada e num estado deplorável, voltou-se e gritou para um dos rapazes que trouxesse água. Em seguida, deu a volta para trás de mim e colocou as mãos velhas e calejadas nos meus ombros. Com uma surpreendente destreza e um toque suave, pressionou e massageou, desfazendo a tensão nos músculos dos meus ombros e relaxando os nós no meu pescoço.
- Pronto, dona - disse, finalmente. - Trabalho duro, hein? - Sorriu para mim, depois olhou radiante, com verdadeira adoração, para o potro.
- Belo rapaz - sussurrou. - Então, quem é o meu lindo rapazinho? Jamie ajudou-me a me lavar e trocar de roupa. Meus dedos estavam enrijecidos demais para conseguir fechar os botões do corpete e eu sabia que meu braço inteiro estaria coberto de manchas roxas pela manhã, mas sentia uma grande paz e satisfação.
A chuva parecia durar para sempre, de modo que, quando finalmente um dia amanheceu ensolarado e luminoso, estreitei os olhos na luz do dia como uma toupeira recém-saída de sua toca.
— Sua pele é tão fina que posso ver o sangue movendo-se sob ela " Jamie disse, traçando o caminho de um raio de sol pela minha barriga nua-— Posso seguir as veias de sua mão ao coração. — Deslizou o dedo suavemente do meu pulso para a curva do cotovelo, pelo lado interno da parte superior do meu braço e pela inclinação abaixo da minha clavícula.
- Esta é a veia subclavicular - observei, olhando para baixo do meu nariz para o caminho que seu dedo percorria.
- Ah, é? Ah, sim, porque está abaixo da clavícula. Conte-me mais. -O dedo deslizou mais para baixo. - Gosto de saber os nomes originados do latim; nunca pensei que seria tão agradável fazer amor com uma médica.
- Isso - eu disse, com precisão - é uma auréola, e você sabe, porque eu lhe disse na semana passada.
- É verdade - murmurou. — E olhe só, há uma outra. — A cabeça brilhante afundou para deixar que sua língua substituísse o dedo, depois viajou mais para baixo.
- Umbilicus — eu disse com a respiração entrecortada.
- Hum - murmurou, os lábios abafados abrindo-se num sorriso contra minha pele transparente. - E então, o que é isso?
- Diga-me você - respondi, agarrando sua cabeça com força. Mas ele não conseguiu responder.
Mais tarde, fiquei passando o tempo preguiçosamente na minha cadeira no consultório, deleitando-me sonhadoramente com as lembranças de acordar em uma cama de raios de sol, os lençóis desalinhados em ofuscantes bancos de areia branca, como as dunas de uma praia. Uma das minhas mãos descansava em meu seio e eu brinquei indolentemente com o mami-lo, apreciando a sensação de avolumar-se sob a palma da minha mão, sob o algodão fino do meu corpete.
- Divertindo-se?
A voz sarcástica vinda da porta me fez levantar tão rapidamente que bati com a cabeça em uma prateleira.
- Oh - exclamei, um pouco irritada. - Geilie. Quem mais? O que está fazendo aqui?
Ela deslizou para dentro do consultório, movendo-se como se andasse sobre rodas. Eu sabia que ela possuía pés; eu os vira. O que eu não conseguia imaginar é onde ela os colocava quando andava.
- Vim trazer um pouco de açafrão da Espanha para a sra. Fitz; ela estava precisando para a chegada do duque.
- Mais especiarias? - perguntei, começando a recuperar meu bom humor. - Se o sujeito comer metade do que ela está preparando para ele, vão ter que levá-lo rolando para casa.
-- Podiam fazer isso agora mesmo. Ouvi dizer que ele é roliço como uma bola. - Descartando o assunto do duque e seu físico, perguntou-me se eu gostaria de juntar-me a ela numa expedição pelos contrafortes mais Próximos.
-- Estou precisando de um pouco de musgo - explicou. Sacudiu graciosamente as mãos longas e desprovidas de ossos. - Dá uma excelente loção para as mãos, fervido em leite com um pouco de lã de carneiro.
Lancei um olhar à abertura da minha janela, onde as partículas de poeira pareciam enlouquecidas na luz dourada. Um leve cheiro de fruta madura e de feno recém-cortado flutuava na brisa.
- Por que não?
Esperando enquanto eu reunia meus cestos e garrafas, Geilie caminhou pelo meu consultório, mexendo nas peças e largando-as a esmo. Parou junto a uma mesinha e pegou o objeto que estava ali, franzindo a testa.
- O que é isto?
Parei o que estava fazendo e aproximei-me dela. Ela segurava um pequeno feixe de plantas secas, presas com três fios enrolados; preto, branco e vermelho.
—Jamie disse que é mau agouro.
- Ele tem razão. Onde você achou isso?
Contei-lhe que o pequeno maço de plantas estava sob o meu travesseiro.
- Fui procurá-lo e o encontrei embaixo da minha janela no dia seguinte, onde Jamie o atirara. Eu pretendia levá-lo até sua casa e perguntar-lhe se sabia alguma coisa a respeito, mas me esqueci.
Ela ficou tamborilando um dedo pensativamente contra os dentes da frente, sacudindo a cabeça.
- Não, não posso dizer que saiba. Mas pode haver um modo de descobrir quem o deixou para você.
- É mesmo?
- Sim. Venha à minha casa amanhã de manhã e eu lhe direi. Recusando-se a falar mais sobre o assunto, girou num floreio de manto verde, deixando-me para segui-la se quisesse.
Levou-me até bem alto nos contrafortes, galopando quando havia estrada para isso, caminhando quando não havia. Depois de uma hora de viagem da vila, ela parou perto de um riacho, coberto pelos galhos pendentes de salgueiros-chorões.
Ladeamos o riacho e seguimos a esmo pelos contrafortes, colhendo as plantas tardias de verão que ainda sobreviviam, frutas silvestres, em amadurecimento, do começo do outono, e os grossos e amarelos cogumelos que brotavam dos troncos das árvores nas pequenas e sombreadas ravinas.
A figura de Geilie desapareceu nas samambaias acima de mim, quando parei para raspar um pouco de casca de álamo no meu cesto. Os glóbulos de seiva seca na casca papirácea pareciam gotas congeladas de sangue, o vermelho-escuro resplandecente da luz do sol preso em seu interior.
Um barulho despertou-me do meu devaneio e olhei para cima da colina, na direção de onde parecia ter vindo.
Ouvi o mesmo som outra vez; um choro agudo, como um miado. Parecia vir de cima, de uma fenda na rocha, perto do cume do monte. Larguei o cesto no chão e comecei a correr para cima.
- Geilie! - gritei. - Venha até aqui! Alguém abandonou um bebê!
O barulho de alguém abrindo caminho apressadamente pelo mato e murmurando imprecações precedeu-a morro acima, conforme ela se debatia em meio aos arbustos emaranhados na encosta. Seu rosto claro estava afogueado e contrariado e tinha galhos e folhas pelos cabelos.
- O que em nome de Deus... - começou a dizer e, em seguida, veio correndo. — Pelo sangue de Cristo! Coloque-o no chão! — Apressadamente tirou o bebê dos meus braços, colocou-o no lugar onde eu o encontrara, numa pequena depressão na rocha. O buraco raso e liso, na forma de uma bacia, tinha menos de um metro de largura. Em um dos lados do buraco havia uma tigela rasa de madeira, cheia até a metade com leite fresco e, aos pés do bebê, via-se um pequeno buquê de flores silvestres, amarrado com um pedaço de cordão vermelho.
- Mas ele está doente! – protestei, inclinando-me para a criança outra vez. - Quem iria deixar uma criança doente aqui em cima sozinha?
A criança estava claramente muito doente; o rostinho contraído estava esverdeado, com profundas olheiras sob os olhos, e os pequenos punhos sacudiam-se fracamente sob o cobertor. A criança deixara-se cair frouxamente quando a peguei nos braços; admirava-me que tivesse tido forças para choramingar.
- Os pais dela - Geilie disse laconicamente, segurando-me pelo braço para me impedir de pegar a criança novamente. - Deixe-a. Vamos sair daqui.
- Os pais dela? — exclamei, indignada. - Mas...
- É uma troca - disse com impaciência. - Deixe-a e venha. Agora! Arrastando-me com ela, fugiu de volta pelo mato. Protestando, segui-a ladeira abaixo até chegarmos, afogueadas e arquejantes, no sopé da colina, onde a obriguei a parar.
- O que é isso? — indaguei. — Não podemos simplesmente abandonar uma criança doente assim a céu aberto. E o que quer dizer com uma troca?
- Uma troca - disse, irritada. - Certamente você deve saber o que é uma troca. Quando as fadas roubam uma criança humana, deixam uma das suas no lugar. Você sabe que é uma criança trocada porque ela chora e se queixa o tempo todo e não cresce nem se desenvolve.
- Claro que sei o que é - eu disse. - Mas você não acredita nessa bobagem, não é?
Lançou-me um olhar rápido e estranho, cheio de cautelosa suspeita. Em seguida, as linhas de seu rosto relaxaram-se para sua expressão normal e divertido cinismo.
- Não, não acredito - admitiu. - Mas as pessoas daqui acreditam. -Olhou nervosamente para o alto da encosta, mas não se ouviu mais nenhum barulho do buraco na pedra. - A família deve estar por perto. Vamos embora.
Relutantemente, deixei que me puxasse em direção à vila.
- Por que a colocaram lá em cima? — perguntei, sentada em uma pedra para retirar minhas meias antes de atravessar um pequeno córrego. - Será que esperam que o Povo Pequeno venha curá-la? - Ainda estava preocupada com a criança; parecia terrivelmente doente. Não sabia o que havia de errado com ela, mas talvez fosse possível ajudar.
Talvez eu pudesse deixar Geilie na vila, depois voltar para pegar a criança. Mas teria que ser logo; olhei para o céu a leste, onde nuvens cinzas e carregadas escureciam rapidamente o dia com um tom púrpura. Uma claridade rósea ainda podia ser vista a oeste, mas não devia restar mais do que meia hora de luz.
Geilie passou a alça de corda trançada de seu cesto pelo pescoço, arregaçou as saias e entrou no córrego, estremecendo com a água fria.
- Não - disse. - Ou melhor, sim. Essa é uma das colinas de fadas e é perigoso dormir ali. Se você deixar uma troca de um dia para o outro num lugar assim, o Povo virá resgatá-la e deixar a criança humana que roubaram no seu lugar.
- Mas não o farão, porque não é uma troca — eu disse, prendendo a respiração ao toque da água de neve derretida. — É apenas uma criança doente. Pode muito bem não sobreviver a uma noite a céu aberto!
- Não sobreviverá — ela disse secamente. - Estará morta pela manhã. E peço a Deus que ninguém nos tenha visto perto dela.
Parei bruscamente no meio do ato de calçar os sapatos.
- Morta! Geilie, vou voltar para buscá-la. Não posso deixar a criança lá. — Virei-me e comecei a atravessar o córrego outra vez.
Ela me pegou por trás e me fez espatifar de cara na água rasa. Debatendo-me e arquejando, consegui ficar de joelhos, espadanando água em todas as direções. Geilie estava parada no meio do córrego com água até a barriga da perna, as saias ensopadas, fitando-me com raiva.
- Sua maldita inglesa idiota! - gritou. — Não há nada que possa fazer! Está me ouvindo? Nada! Aquela criança já está praticamente morta! Não vou ficar parada aqui e deixar que você arrisque sua própria vida e a minha por alguma idéia maluca da sua cabeça! - Bufando e resmungando, abaixou-se, pegou-me por baixo dos braços com as duas mãos, fazendo-me ficar de pé.
- Claire - disse ansiosamente, sacudindo-me pelos braços. - Ouça-me. Se você se aproximar daquela criança e ela morrer, e ela vai morrer, acredite-me, eu já as vi assim, a família a culpará por isso. Não vê o perigo que isso representa? Não sabe o que dizem a seu respeito na vila?
Fiquei parada, tremendo, na brisa fria do pôr-do-sol, dividida entre seu óbvio pânico pela minha segurança e a idéia de uma criança desamparada, morrendo aos poucos sozinha no escuro, com flores silvestres aos seus pés.
- Não - respondi, sacudindo o cabelo molhado do rosto. — Geilie, não, não posso. Terei cuidado, prometo, mas tenho que ir. — Livrei-me de suas mãos e virei-me na direção da margem oposta, tropeçando e chafurdando nas sombras incertas do leito do rio.
Ouviu-se um grito abafado de exasperação atrás de mim, seguido de uma frenética agitação de águas na direção oposta. Bem, ao menos ela não me atrapalharia mais.
Escurecia rapidamente e abri caminho pelo mato emaranhado o mais rápido que pude. Não tinha certeza se conseguiria encontrar o monte certo se ficasse escuro antes de eu alcançá-lo; havia vários por perto, quase todos da mesma altura. E com fadas ou sem fadas, a idéia de ficar vagando por ali sozinha no escuro não me agradava nem um pouco. A questão de como eu faria o caminho de volta ao castelo com um bebê doente era algo que eu resolveria quando chegasse o momento.
Encontrei o monte, finalmente, ao avistar o grupo de lariços jovens que eu lembrava de ter visto no sopé. Já estava quase completamente escuro agora, uma noite sem luar, e eu tropeçava e caía com freqüência. Os lariços permaneciam juntos, conversando baixinho na brisa noturna, com estalidos e cliques e suspiros sussurrados.
O maldito lugar é assombrado, pensei, ouvindo a conversa das folhas acima da minha cabeça enquanto serpenteava no meu caminho pelo meio dos troncos esguios. Não me surpreenderia se encontrasse um fantasma atrás da árvore seguinte.
Mas fiquei surpresa. Na verdade, fiquei apavorada quando o vulto sombrio saiu de trás da árvore e me agarrou. Deixei escapar um grito agudo e comecei a golpeá-lo.
— Meu Deus - exclamei. - O que está fazendo aqui? - Encolhi-me por um instante contra o peito de Jamie, aliviada de vê-lo, apesar do susto que ele me dera.
Segurou-me pelo braço e virou-se para me levar para fora da floresta.
— Vim buscá-la — ele disse, a voz baixa. — Vim ao seu encontro porque já estava anoitecendo; encontrei Geillis Duncan perto do córrego de St. John e ela me disse onde você estava.
— Mas o bebê... — comecei, virando-me para o monte.
— A criança está morta - disse secamente, puxando-me de volta. - Eu fui lá primeiro, para ver.
Segui-o, então, sem objeção, perturbada com a morte da criança, mas aliviada pelo fato de que não teria, afinal, que enfrentar a subida até o pico das fadas ou o longo trajeto de volta sozinha. Oprimida pela escuridão e pelas árvores sussurrantes, não falei nada até atravessarmos o córrego outra vez. Ainda molhada da imersão prévia, não me dei ao trabalho de remover as meias, mas saí chafurdando para o outro lado de qualquer maneira. Jamie, ainda seco, continuou assim, saltando da margem para uma pedra no meio do córrego que se destacava acima da corrente, depois deu um pulo para o meu lado como um atleta de salto a distância.
— Você faz idéia de como é perigoso andar por aí sozinha à noite, Sassenach? — indagou. Não parecia com raiva, apenas curioso.
- Não... quero dizer, sim. Desculpe-me se o deixei preocupado. Mas eu não podia deixar uma criança lá, eu simplesmente não podia.
- Sim, eu sei. — Abraçou-me rapidamente. — Você tem um bom coração, Sassenach. Mas você não faz a menor idéia daquilo com que está lidando aqui.
- Fadas, hein? - Eu estava cansada e perturbada com o incidente, mas disfarçava com petulância. - Não tenho medo de superstições. - Um pensamento me ocorreu. - Você acredita em fadas, bebês trocados e tudo isso?
Ele hesitou por um instante antes de responder.
- Não. Não, não acredito em tais coisas, embora duvido que fosse passar a noite em uma colina de fadas, ainda assim. Mas eu sou um homem educado, Sassenach. Tive um professor particular alemão na casa de Dougal, muito bom, que me ensinou latim e grego e tudo o mais. Mais tarde, quando fui para a França aos dezoito anos, bem, estudei história e filosofia e vi que o mundo era muito mais do que charnecas e ravinas e monstros no lago. Mas essa gente... - Esticou um dos braços, abrangendo a escuridão atrás de nós.
- Nunca estiveram a mais de um dia de distância de onde nasceram, exceto por alguma coisa importante como um encontro do clã e isso talvez duas vezes na vida. Vivem entre os vales estreitos e os lagos e não sabem mais nada do mundo além do que o padre Bain lhes diz domingo na igreja. Isso e as histórias antigas.
Afastou um galho de amieiro e eu agachei-me para passar por baixo. Estávamos na trilha de veados que eu e Geilie seguíramos horas antes. Senti-me encorajada pela nova evidência de que ele sabia orientar-se, mesmo no escuro. Longe do monte das fadas, falou com a voz natural, apenas parando ocasionalmente para afastar algum mato do caminho.
- Essas histórias não passam de diversão nas mãos de Gwyllyn, quando ele se senta no salão bebendo vinho do Reno. - Seguiu à minha frente pelo caminho em descida e sua voz flutuava de volta para mim, suave e enfática no ar frio da noite.
- No entanto, aqui e mesmo na vila, é diferente. As pessoas vivem de acordo com essas histórias. Acredito que haja uma certa verdade por trás de algumas delas.
Pensei nos olhos cor de âmbar do monstro do lago e imaginei que outras seriam verdadeiras.
- E outras... bem... - Sua voz amainou-se e tive que me esforçar para ouvi-lo. - Para os pais daquela criança, talvez os console um pouco acreditar que foi a criança trocada que morreu e pensar em seu próprio filho, saudável e contente, vivendo para sempre com as fadas.
Chegamos aos cavalos e em meia hora as luzes do Castelo Leoch brilhavam na escuridão nos dando as boas-vindas. Nunca pensei que consideraria aquela construção inóspita um posto avançado da civilização, mas neste momento as luzes pareciam as de um farol de iluminação espiritual. Somente quando nos aproximamos é que percebi que a impressão de luz devia-se à fileira de lanternas acesas ao longo do parapeito da ponte.
— Alguma coisa aconteceu — eu disse, virando-me para Jamie. E vendo-o pela primeira vez na luz, percebi que não estava usando sua habitual camisa surrada e kilt encardido. Sua camisa de linho imaculadamente branca brilhava à luz das lanternas e seu melhor — seu único - casaco de velu-do estava dobrado sobre a sela.
- Sim - disse, balançando a cabeça. - Foi por isso que fui pegá-la. O duque finalmente chegou.
O duque foi uma surpresa para mim. Não sei exatamente o que eu esperava, mas não era o entusiasta de caça de rosto vermelho, cordial, expansivo, de olhos azuis claros que estavam sempre um pouco apertados, como se olhasse para o sol seguindo o vôo de um faisão.
Imaginei por um instante se toda aquela encenação anterior com relação ao duque não seria um pouco exagerada. No entanto, olhando em torno do salão, notei que todos os rapazes com menos de dezoito anos exibiam um ar ligeiramente preocupado, mantendo os olhos fixos no duque enquanto ele falava e ria animadamente com Colum e Dougal. Portanto, não era apenas encenação; eles estavam avisados.
Quando fui apresentada ao duque, tive alguma dificuldade em manter uma expressão imparcial. Ele era um homem grandalhão, rijo e em boa forma, do tipo que se costuma ver alardeando suas opiniões em pubs, derrotando os opositores com a força do estardalhaço e da repetição. Eu fora avisada, é claro, pela história de Jamie, mas a impressão física era tão esmagadora que quando o duque curvou-se sobre a minha mão e disse "Que encantador encontrar uma compatriota nesse lugar remoto, madame", numa voz de rato cansado, tive que morder a parte de dentro de minha bochecha para não cometer uma gafe em público.
Cansado da viagem, o duque e sua comitiva foram cedo para a cama. Na noite seguinte, no entanto, houve música e conversas depois do jantar e Jamie e eu nos unimos a Colum, Dougal e o duque. Sandringham ficou cada vez mais loquaz sob os efeitos do vinho de Colum e falava sem parar, discorrendo igualmente sobre os horrores de viajar nas Highlands e as belezas do campo. Ouvíamos educadamente e eu tentei não deixar que meus olhos encontrassem os de Jamie enquanto o duque discorria com sua voz aguda sobre a história de suas dificuldades.
— Um eixo de roda quebrou perto de Stirling e ficamos retidos durante três dias, debaixo de um aguaceiro, veja bem, até meu lacaio encontrar um ferreiro para vir consertar o maldito eixo. E menos de doze horas depois, caímos no maior buraco já visto e a droga do eixo quebrou de novo! Depois, um cavalo perdeu a ferradura e tivemos que descarregar a carruagem e caminhar ao lado dela, na lama, conduzindo o cavalo manco. E então... — Conforme a história continuava, de desgraça em desgraça, senti uma crescente necessidade de rir e tentei sufocá-la com mais vinho, provavelmente um erro de julgamento.
- Mas a caça, MacKenzie, que caça! - o duque exclamou a certa altura, revirando os olhos em êxtase. - Eu mal podia acreditar. Não é de admirar que você ofereça tal mesa. - Bateu delicadamente na barriga grande e sólida. —Juro que daria meus dentes caninos para pegar um veado como o que vimos há dois dias; um esplêndido animal, simplesmente esplêndido. Saltou dos arbustos bem na frente da carruagem, minha querida - confidenciou-me. - Assustou os cavalos, de modo que por pouco não saímos da estrada outra vez
Colum ergueu o belo recipiente de vinho em forma de sino, arquean-do interrogativamente uma das sobrancelhas. Quando serviu os copos que se apresentaram, disse:
- Bem, talvez possamos arranjar uma caça para Sua Excelência. O meu sobrinho é um ótimo caçador. - Olhou significativamente por baixo das sobrancelhas para Jamie; houve um aceno de cabeça quase imperceptível em resposta.
Colum recostou-se em sua cadeira, recolocando o recipiente na mesa, e disse descontraidamente:
- Sim, vamos providenciar isso. Talvez no começo da semana que vem. É muito cedo para faisão, mas a caça ao veado estará ótima. — Voltou-se para Dougal, recostado em uma poltrona acolchoada, um pouco afastado para um dos lados. — Meu irmão poderá acompanhá-los; caso pretenda seguir para o norte, ele pode lhe mostrar as terras que discutíamos anteriormente.
- Fantástico, fantástico! - O duque estava encantado. Deu um tapinha na perna de Jamie; vi os músculos enrijecerem-se, mas Jamie não se mexeu. Sorriu tranqüilamente e o duque deixou sua mão demorar-se apenas um instante a mais. Então, Sua Excelência percebeu que eu o estava olhando e sorriu jovialmente para mim, a expressão do rosto dizendo: "Vale a pena tentar, não é?" A despeito de mim mesma, correspondi ao sorriso. Para minha grande surpresa, gostei muito do sujeito.
Com a agitação da chegada do duque, eu me esquecera da oferta de Geilie de me ajudar a descobrir quem me enviara o mau agouro. E depois da cena desagradável com a criança trocada no monte das fadas, não estava certa se gostaria de tentar qualquer coisa que ela me sugerisse.
Ainda assim a curiosidade ultrapassou a desconfiança e quando Colum pediu a Jamie para acompanhar os Duncan ao castelo para o banquete do duque dois dias mais tarde, eu o acompanhei.
Foi assim que Jamie e eu nos encontrávamos na sala dos Duncan naquela quinta-feira, recebidos pelo fiscal com uma espécie de amizade constrangida, enquanto a mulher terminava de se aprontar no andar de cima. Bastante recuperado dos efeitos de sua última crise gástrica, Arthur ainda assim não parecia muito saudável. Como a maioria dos gordos que perde muito peso de repente, a gordura desaparecera do seu rosto, mas não de sua barriga. Sua pança ainda intumescia a seda verde em sua cintura, enquanto a pele do rosto caía flacidamente em grandes rugas.
- Talvez eu possa subir e ajudar Geilie com seu cabelo ou algo assim -sugeri. - Trouxe-lhe uma fita nova. — Antecipando a possível necessidade de uma desculpa para conversar com Geilie sozinha, trouxera um pequeno embrulho comigo. Apresentando-o como uma desculpa, atravessei a porta e subi as escadas antes que Arthur pudesse protestar.
Ela estava à minha espera.
- Entre - disse -, vamos até meu aposento particular para isto. Temos que nos apressar, mas não levará muito tempo.
Segui Geilie pela escada estreita, em caracol. Os degraus tinham alturas irregulares; alguns eram tão altos que eu tinha que levantar minhas saias para não tropeçar. Concluí que os carpinteiros do século XVII ou usavam métodos defeituosos de mensuração ou tinham muito senso de humor.
O santuário particular de Geilie ficava no topo da casa, num dos sótãos remotos acima das dependências dos criados. Era protegido por uma porta com tranca, aberta por uma chave realmente gigantesca, que Geilie retirou do bolso do seu avental; devia ter pelo menos quinze centímetros de comprimento, a argola decorada com arabescos em forma de flores e trepadeiras. A chave devia pesar cerca de meio quilo; segurada pela haste, daria uma boa arma. Tanto a fechadura quanto as dobradiças estavam bem azeitadas e a porta pesada abriu-se para dentro silenciosamente.
O sótão era pequeno, confinado pelas águas-furtadas providas de empenas que acompanhavam a frente da casa. Todo espaço de parede era coberto de prateleiras, abrigando jarros, garrafas, frascos, botijas e equeres. Inúmeros maços de ervas secando, amarrados cuidadosamente com fios de cores diversas, perfeitamente pendurados em fileiras dos cairos do telhado, roçando meus cabelos com uma poeira aromática confor-me passávamos por baixo.
No entanto, não se parecia nem um pouco ao herbanário claro e ordenado do andar inferior. Era apinhado, quase atravancado, e escuro, apesar das águas-furtadas.
Uma das prateleiras exibia livros, a maioria antigo e desfazendo-se, sem identificação nas lombadas. Passei o dedo curiosamente pela fileira dos livros encadernados em couro. A maior parte era de couro de boi, mas havia dois ou três de um material diferente; algo macio, mas desagradavel-mente gorduroso ao toque. E um que parecia encadernado com capa de pele de peixe. Retirei um dos livros e folheei-o cautelosamente. Era manuscrito, em uma mistura de francês arcaico e latim ainda mais obsoleto, mas pude decifrar o título. L’Grimoire d'le Comte St. Germain.
Fechei o livro e recoloquei-o na prateleira, sentindo um pequeno choque. A grimoire. Um livro de magia. Podia sentir o olhar de Geilie fixo em minhas costas e virei-me, deparando-me com um misto de malícia e cautelosa especulação. O que eu faria, agora que sabia?
- Então, não se trata apenas de boatos, hein? - eu disse, sorrindo. -Você realmente é uma bruxa. - Imaginava até onde iria tudo aquilo e se ela mesma acreditava, ou se não passava da aparência exterior de uma sofisticada simulação que ela usava para aliviar o tédio do casamento com Arthur. Também imaginava que tipo de magia ela praticava - ou achava que praticava.
- Ah, branca — disse, sorrindo. — Definitivamente, magia branca. Pensei com pesar que Jamie devia estar certo sobre meu rosto – todo mundo parecia ser capaz de dizer o que eu estava pensando.
- Bem, isso é bom - eu disse. - Eu mesma não tenho vocação para dançar em volta de fogueiras à meia-noite e cavalgar em vassouras, quanto mais beijar o traseiro do diabo.
Geilie atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada, encantada.
- Você não beija o de ninguém, isso eu posso ver - ela disse. - Nem eu. Embora se eu tivesse um doce e fogoso diabo como o seu na minha cama, não diga que não o fizesse com o tempo.
- Isso me faz lembrar... - comecei, mas ela já se voltara e iniciara seus preparativos, murmurando consigo mesma.
Verificando primeiro se a porta estava bem trancada atrás de nós, Geilie atravessou o aposento até a água-furtada e começou a remexer em um baú sob o banco da janela. Retirou uma panela grande e rasa e uma comprida vela branca enfiada em um castiçal de cerâmica. Uma nova busca me revelou uma colcha usada, que ela estendeu no assoalho como proteção contra farpas e poeira.
- O que exatamente está planejando fazer, Geilie? — perguntei, examinando os preparativos com desconfiança. De imediato, não via nenhuma intenção sinistra em uma panela, uma vela e uma colcha, mas eu era uma bruxa novata, para dizer o mínimo.
- Uma invocação - respondeu, puxando a colcha pelas pontas, de modo que os lados ficassem alinhados com as tábuas do assoalho.
- Para invocar quem? - perguntei. Ou o quê.
Ela levantou-se e ajeitou os cabelos para trás. Finos e lisos, soltavam-se de seus prendedores. Murmurando, arrancou os grampos dos cabelos e deixou-os cair numa cortina lisa e brilhante, quase dourada.
- Ah, fantasmas, espíritos, visões. Qualquer coisa de que possa precisar - disse. - Começa da mesma forma em qualquer caso, mas as ervas e as palavras são diferentes para cada um. O que queremos agora é uma visão. Para ver quem lhe deseja mal. Então, você poderá virar o mau agouro de volta para essa pessoa.
- Hã, bem... - Na verdade, eu não tinha nenhum desejo de vingança, mas estava curiosa, tanto para ver como era a invocação quanto para saber quem deixara o mau agouro para mim.
Colocando a panela no meio da colcha, despejou água de uma garrafa dentro do recipiente, explicando-me:
- Pode usar qualquer vasilha grande o suficiente para dar um bom reflexo, embora o livro de magia diga para usar uma bacia de prata. Até mesmo um lago ou uma poça d'água lá fora podem servir para alguns tipos de invocação, embora deva ser um local isolado. É preciso paz e silêncio para fazer isso.
Ela passou rapidamente de uma janela a outra, fechando as pesadas cortinas negras até praticamente toda luz do aposento se extinguir. Eu mal conseguia divisar a figura esbelta de Geilie movendo-se rapidamente pela penumbra, até ela acender a vela. A chama bruxuleante iluminou seu rosto enquanto ela a levava de volta para a colcha, lançando sombras angulosas sob o nariz empinado e o maxilar cinzelado.
Colocou a vela junto à panela de água, no lado oposto a mim. Encheu a panela cuidadosamente, tão cheia que a água abaulava-se ligeiramente acima da borda, só não transbordando pela ação da tensão superficial. Inclinando-me sobre ela, pude ver que a superfície da água fornecia um excelente reflexo, muito melhor do que qualquer outro obtido em qualquer dos espelhos do castelo. Como se lesse minha mente outra vez, Geilie explicou que além de servir para invocar espíritos, a panela refletora era um excelente acessório para pentear o cabelo.
- Não esbarre nela ou você vai ficar ensopada - avisara, franzindo a testa em concentração enquanto acendia a vela. Algo a respeito do tom prático da observação, tão prosaico em meio àqueles preparativos sobrenaturais, me fez lembrar de alguém. Erguendo os olhos para a figura pálida e esbelta, elegantemente inclinada sobre a panela, não conseguia adivinhar quem ela me fazia lembrar. Mas, é claro. Embora ninguém pudesse ser mais diferente da figura antiquada diante do bule de chá no gabinete do reverendo Wakefield, o tom de voz era exatamente o da sra. Graham.
Talvez compartilhassem uma atitude, um pragmatismo que considerava o oculto como uma simples coleção de fenômenos, como as condições do tempo. Algo a ser abordado com cauteloso respeito, é claro — do mesmo modo como se deve ter cuidado ao usar uma faca de cozinha —, mas certamente nada a evitar ou temer.
Ou talvez fosse o cheiro de loção de alfazema. As roupas soltas e esvoa-çantes de Geilie sempre cheiravam às essências que ela destilava: cravo-da-índia, camomila, louro, nardo, hortelã, manjerona. Hoje, entretanto, era alfazema que emanava das dobras de suas vestes brancas. O mesmo cheiro que permeava o algodão azul prático da sra. Graham e flutuava das rugas de seu peito ossudo.
Se o peito de Geilie também era escorado por baixo por tais suportes ósseos, não havia nenhum vestígio visível, apesar do decote baixo da vestimenta de Geilie. Era a primeira vez que eu via Geilie Duncan en déshabille; normalmente, ela usava as roupas severas e volumosas, abotoadas até o pescoço, que eram adequadas à mulher de um fiscal. A generosa opulência agora revelada era uma surpresa, uma abundância cremosa quase do mesmo tom da roupa que usava e me deu uma idéia do motivo pelo qual um homem como Arthur Duncan se casaria com uma jovem sem nenhum tostão, de uma família sem nenhuma distinção. Meus olhos dirigiram-se involuntariamente para a fileira de frascos cuidadosamente rotulados ao longo da parede, à procura de nitrato de potássio.
Geilie selecionou três frascos da prateleira, despejando uma pequena porção de cada um na tigela de um minúsculo fogareiro de metal. Acendeu a camada de carvão que havia embaixo com a chama da vela e assoprou a chama fraca para animá-la. Uma fumaça aromática começou a se desprender conforme as brasas se intensificaram.
O ar no sótão estava tão parado que a fumaça acinzentada ergueu-se diretamente para cima sem se difundir, formando uma coluna que reproduzia o formato da vela branca e alta. Geilie sentou-se entre as colunas como uma sacerdotisa em seu templo, as pernas graciosamente dobradas sob o corpo.
— Bem, acho que isso vai servir. — Limpando energicamente farelos de alecrim dos dedos, Geilie examinou a cena com satisfação. As cortinas negras, com seus símbolos místicos-, impediam a entrada de qualquer raio de sol intruso, deixando a vela como única fonte de iluminação direta. A chama refletia-se difusamente pela panela de água parada, que parecia brilhar como se ela, também, fosse uma fonte de luz, ao invés de um reflexo.
— E agora? — perguntei.
Os grandes olhos cinzas brilharam como a água, iluminados de expectativa. Meneou as mãos pela superfície da água, depois as entrelaçou entre as pernas.
— Fique sentada em silêncio por um instante - disse. - Ouça os batimentos do seu coração. Pode ouvi-lo? Respire com naturalidade, devagar e profundamente. — Apesar da vivacidade de sua expressão, sua voz era calma e lenta, em distinto contraste com sua conversa normalmente animada.
Segui obedientemente as instruções, sentindo minha pulsação diminuir conforme a respiração firmava-se num ritmo regular. Reconheci o cheiro de alecrim na fumaça, mas não tinha certeza sobre as outras duas ervas: dedaleira, talvez, ou cincoem-rama? Havia pensado que as flores roxas eram de dulçamara, mas isso não era possível. O que quer que fossem, a lentidão da minha respiração não poderia ser atribuída somente ao poder de sugestão de Geilie. Sentia como se um peso exercesse uma pressão no meu esterno, reduzindo a intensidade da minha respiração independente da minha vontade.
A própria Geilie permanecia sentada perfeitamente imóvel, obser-vando-me sem piscar. Balançou a cabeça uma vez e eu olhei para baixo obedientemente, para a superfície parada da água.
Ela começou a conversar, de uma forma regular, coloquial, que me fez lembrar novamente da sra. Graham falando para o sol no círculo de pedras.
As palavras não eram conhecidas, mas, ainda assim, tampouco nuas, eram desconhecidas. Era uma língua estranha, mas que eu achava que deveria conhecer, como se as palavras fossem pronunciadas logo abaixo do meu nível de audição.
Comecei a sentir minhas mãos entorpecidas e quis movê-las de sua posição, entrelaçadas no meu colo, mas recusavam-se a obedecer. Sua voz monótona continuou, suave e persuasiva. Agora eu sabia que compreendia o que estava sendo dito, mas ainda não conseguia trazer as palavras à superfície da minha mente.
Compreendi vagamente que ou eu estava sendo hipnotizada ou estaria sob a influência de alguma droga e minha mente agarrou-se com força à borda do pensamento consciente, resistindo à atração da fumaça aromática. Podia ver meu reflexo na água, as pupilas reduzidas a duas pontas de alfinete, os olhos arregalados como duas corujas cegas pelo sol. A palavra ópio atravessou meus pensamentos que gradualmente se desfaziam.
- Quem é você? — Não sabia qual de nós duas fizera a pergunta, mas senti minha própria garganta mover-se quando respondi:
- Claire.
- Quem a enviou aqui?
- Eu vim.
- Por que você veio?
- Não posso dizer.
- Por que não pode dizer?
- Porque ninguém acreditará em mim.
A voz em minha cabeça tornou-se ainda mais branda, amável, insinuante.
— Vou acreditar em você. Acredite em mim. Quem é você?
— Claire.
Uma voz alta e repentina quebrou o feitiço. Geilie sobressaltou-se e seu joelho esbarrou na bacia, desfazendo a superfície espelhada.
— Geillis? Querida? — Uma voz falou do outro lado da porta, hesitante, mas autoritária. - Temos que ir, querida. Os cavalos estão prontos e você ainda não se vestiu.
Murmurando baixinho algo grosseiro, Geilie se levantou e abriu a janela de par em par, de modo que o ar fresco soprasse em meu rosto, fazendo-me piscar e desanuviando um pouco a minha mente.
Ficou parada, olhando-me especulativamente, depois se inclinou para me ajudar a ficar de pé.
— Vamos - disse. - Sentiu-se um pouco estranha, não? Às vezes, as pessoas reagem assim. É melhor deitar-se um pouco em minha cama enquanto eu me visto.
Deitei-me sobre sua colcha no quarto embaixo, os olhos fechados, ouvindo o leve farfalhar que Geilie fazia em seu quarto de vestir particular, perguntando-me o que teria sido tudo aquilo. Nada a ver com o mau agouro ou quem o enviara, obviamente. Apenas com a minha identidade. Com as faculdades mentais retornando gradualmente à sua vivacidade, ocorreu-me se Geilie não seria talvez uma espiã de Colum. Na posição que ocupava, ela sabia dos negócios e dos segredos de toda a região. E quem mais, além de Colum, estaria tão interessado em minhas origens?
O que teria acontecido, imaginei, se Arthur não tivesse interrompido a invocação? Eu teria ouvido, em algum lugar na fumaça perfumada, a injunção padrão do hipnotizador "Quando você acordar, não se lembrará de nada?" Mas eu me lembrava e isso me fazia pensar.
Na ocasião, entretanto, não houve a menor chance de perguntar a Geilie. A porta do quarto foi aberta de par em par e Arthur Duncan entrou. Atravessando o quarto em direção à porta do quarto de vestir de Geilie, ele bateu uma vez, apressadamente, e entrou.
Ouviu-se um pequeno grito de surpresa lá de dentro e em seguida um silêncio sepulcral.
Arthur Duncan reapareceu à porta, os olhos arregalados e desfocados, o rosto tão lívido que eu achei que talvez ele estivesse sofrendo algum tipo de ataque. Pus-me de pé num salto e corri em sua direção, enquanto ele se apoiava no batente da porta.
Entretanto, antes que eu pudesse alcançá-lo, afastou-se bruscamente da porta e saiu do quarto, cambaleando ligeiramente, passando por mim como se não me visse.
Eu mesma bati na porta de Geilie.
— Geilie! Você está bem?
Houve um momento de silêncio, depois uma voz perfeitamente serena disse:
- Sim, claro. Já vou sair.
Quando por fim descemos as escadas, encontramos Arthur, aparentemente bastante recuperado, saboreando um conhaque com Jamie. Parecia um pouco distraído, como se estivesse com o pensamento distante, mas saudou sua mulher com um ligeiro cumprimento quando ela apareceu, antes de mandar o criado ir buscar os cavalos.
O banquete estava começando quando chegamos e o fiscal e sua mulher foram conduzidos aos seus lugares de honra na mesa principal. Jamie e eu, de condição um pouco inferior, ocupamos nossos lugares em uma mesa com Rupert e Ned Gowan.
A sra. Fitz conseguira se superar e irradiava satisfação com os elogios que se acumulavam sobre a comida, a bebida e os demais preparativos.
O jantar estava, de fato, delicioso. Eu nunca provara faisão assado e recheado com castanhas ao mel e já me servia da terceira fatia quando Ned Gowan, observando-me e achando certa graça no meu apetite, perguntou se eu já havia experimentado o leitão.
Minha resposta foi interrompida por uma agitação na outra ponta do salão. Colum erguera-se de sua mesa e caminhava em minha direção, acompanhado do Velho Alec MacMahon.
- Vejo que não há limites para os seus talentos, sra. Fraser - Colum observou, fazendo uma ligeira mesura. Um largo sorriso marcava as interessantes feições.
- De cuidar de ferimentos e curar doentes a ajudar potros a nascerem. Logo estaremos recorrendo à senhora para fazer levantar os mortos, eu suponho. — Houve uma risada furtiva geral, embora eu tenha notado um ou dois homens olhando nervosamente na direção do padre Bain, presente nesta noite, que metodicamente se empanturrava de carneiro assado num canto do salão.
- De qualquer modo — continuou Colum, enfiando a mão no bolso do casaco —, permita-me oferecer-lhe uma pequena recompensa como sinal de gratidão. — Entregou-me uma pequena caixa de madeira, com o brasão dos MacKenzie talhado na tampa. Eu não sabia o quanto um cavalo Losgann era valioso e mentalmente agradeci a quaisquer espiritos benignos que houvessem presidido tais acontecimentos por nada ter dado errado.
- Não há de quê - eu disse, tentando retribuir a gentileza. — Não fiz nada de extraordinário. Só tive sorte de ter mãos pequenas.
- Ainda assim. Se preferir, considere-o um pequeno presente de casamento, mas gostaria que aceitasse.
Com um aceno de Jamie, aceitei relutantemente a caixa e a abri. Continha um belo rosário de azeviche, cada conta intricadamente esculpida e o crucifixo incrustado de prata.
- É lindo - disse, sinceramente. E era, embora eu não tivesse a menor noção do que deveria ser feito com ele. Embora nominalmente católica, fora criada por tio Lamb, o mais completo agnóstico, e fazia apenas uma vaga idéia do significado de um rosário. Mesmo assim, agradeci a Colum efusivamente e entreguei-o a Jamie para guardá-lo para mim na bolsa do seu kilt.
Fiz uma reverência para Colum, feliz de ver que eu estava dominando a arte de fazer mesuras sem cair de cara no chão. Ele abriu a boca para pedir licença educadamente, mas foi interrompido pelo barulho de algo se quebrando atrás de mim. Virando-me, não consegui ver nada além de costas e cabeças, conforme as pessoas saltavam de seus bancos para se aglomerar em torno do que quer que tenha causado o tumulto. Colum deu a volta à mesa com alguma.dificuldade, afastando a multidão com um aceno impaciente da mão. A medida que as pessoas recuavam respeitosamente abrindo caminho para sua passagem, pude ver a figura redonda de Arthur Duncan no chão, as pernas e os braços debatendo-se convulsivamente, afastando as mãos prestimosas dos que queriam ajudar. Sua mulher abriu caminho pela multidão sussurrante, deixou-se cair no chão ao lado dele e fez uma tentativa vã de embalar a cabeça dele em seu colo. O doente fincou os calcanhares no chão e arqueou as costas, produzindo barulhos estrangulados, como se estivesse asfixiado.
Erguendo a cabeça, os olhos cinzas de Geilie vasculharam ansiosamente a multidão como se procurasse alguém. Presumindo que ela estivesse procurando por mim, fiz o caminho que oferecia a menor resistência, esquivando-me e engatinhando por baixo da mesa.
Conseguindo chegar ao lado de Geilie, agarrei o rosto de seu marido entre as minhas mãos e tentei abrir seus maxilares. Pensei, pelos sons que produzia, que talvez tivesse se engasgado com um pedaço de carne, que ainda podia estar alojado na traquéia.
No entanto, seus maxilares estavam cerrados e rígidos, os lábios azulados e salpicados de uma saliva espumante que não condizia com sufocação. Mas ele certamente estava sufocando; o peito gordo subia em vão, lutando por ar.
- Depressa, virem-no de lado — eu disse. Várias mãos se estenderam imediatamente para ajudar e o corpo pesado foi habilmente virado, as costas largas de sarja preta voltadas para mim. Enfiei a base da minha mão entre as omoplatas, batendo nele repetidamente com pancadas surdas, regulares. As costas volumosas estremeceram ligeiramente com os golpes, mas não houve nenhum movimento espasmódico em resposta como o de uma obstrução repentinamente liberada.
Agarrei um ombro carnudo e coloquei-o de costas outra vez. Geilie inclinou-se bem perto do rosto com o olhar fixo, chamando o nome dele, massageando a garganta mosqueada. Os olhos agora estavam revirados para trás e os calcanhares começaram a bater com menos força. As mãos, cerradas de agonia, repentinamente se arremessaram para os lados, atingindo no rosto um espectador ansiosamente agachado.
Os ruídos engrolados cessaram subitamente e o corpo robusto ficou flácido de repente, inerte como um saco de cevada nas lajotas de pedra. Busquei sua pulsação freneticamente em um dos pulsos frouxos, notando pelo canto do olho que Geilie fazia o mesmo, erguendo o queixo redondo e bem barbeado e pressionando as pontas dos dedos com força na carne sob o ângulo do maxilar, à cata da carótida.
Ambas as buscas foram inúteis. O coração de Arthur Duncan, já sobrecarregado pela necessidade de bombear sangue através daquele arcabouço maciço por tantos anos, desistira de lutar.
Experimentei todas as técnicas de ressuscitamento que conhecia, embora sabendo que seriam inúteis: flexão dos braços, massagem no peito, até mesmo respiração boca-a-boca, por mais desagradável que fosse, mas sem o resultado esperado. Arthur Duncan estava definitivamente morto.
Endireitei-me exausta e recuei, quando o padre Bain, com um olhar rancoroso para mim, caiu de joelhos ao lado do fiscal e começou a ministrar-lhe apressadamente a extrema-unção. Minhas costas e braços doíam e meu rosto estava estranhamente entorpecido. A algazarra ao meu redor pareceu peculiarmente distante, como se uma cortina me separasse do salão apinhado de gente. Fechei os olhos e esfreguei as mãos pelos meus lábios formigantes, tentando apagar o gosto de morte.
Apesar da morte do fiscal, e das subseqüentes formalidades de exéquias e sepultamento, a caça ao veado do duque foi adiada por apenas uma semana.
A constatação da iminente partida de Jamie me causava uma profunda depressão; de repente, compreendi o quanto eu ansiava para vê-lo à mesa do jantar depois de um dia de trabalho, como meu coração saltava quando eu o via inesperadamente em momentos ociosos durante o dia e do quanto eu dependia de sua companhia e de sua presença sólida e reconfortante em meio às complexidades da vida no castelo. E, para ser bastante honesta, como eu gostava do calor e da maciez de seu corpo em minha cama à noite e de acordar com seus beijos desgrenhados e sorridentes todas as manhãs. A perspectiva de sua ausência era melancólica.
Ele abraçou-me com força, minha cabeça aninhada sob seu queixo.
— Vou sentir sua falta, Jamie — eu disse, ternamente.
Ele me abraçou com mais força e deu uma risadinha pesarosa.
- Eu também, Sassenach. Eu não esperava por isso, para dizer a verdade, mas me dói muito deixá-la. - Acariciou minhas costas docemente, os dedos traçando as elevações das vértebras.
-Jamie... tome cuidado.
Pude sentir o ronco profundo do riso abafado em seu peito ao responder.
- Com o duque ou com o cavalo? - Ele estava, para minha grande apreensão, pretendendo montar Donas para a caçada ao veado. Eu tinha visões do imenso alazão mergulhando em um penhasco por pura teimosia ou esmagando Jamie sob aqueles cascos letais.
- Com ambos - respondi secamente. - Se o cavalo o jogar no chão e você quebrar uma perna, ficará à mercê do duque.
- É verdade. Mas Dougal estará lá. Ri com sarcasmo.
- Ele quebrará a outra perna.
Ele riu e inclinou-se para beijar-me.
- Terei cuidado, mo duinne. Me fará a mesma promessa?
- Sim - eu disse, com sinceridade. — Está se referindo a quem deixou o mau agouro?
Seu semblante ficou repentinamente sério.
- Talvez. Não creio que você esteja correndo algum perigo ou eu não a deixaria. Mas, ainda assim... ah, e fique longe de Geillis Duncan.
- O quê? Por quê? — Recuei um pouco para olhá-lo. Era uma noite escura e seu rosto estava invisível, mas seu tom de voz era sério.
- A mulher é considerada uma bruxa e as histórias que contam sobre ela... bem, pioraram muito depois que o marido morreu. Não quero você perto dela, Sassenach.
- Você acha sinceramente que ela seja uma bruxa? - perguntei. Suas mãos fortes seguraram meu traseiro e me puxaram para mais junto dele. Passei os braços em volta do seu pescoço, desfrutando a sensação de seu peito liso e sólido.
- Não - respondeu finalmente. - Mas não é o que eu acho que pode se transformar num perigo para você. Me promete?
- Prometo. - Na realidade, não relutei muito em prometer; desde os incidentes do bebê trocado e da invocação, não senti vontade de visitar Geilie. Coloquei a boca no mamilo de Jamie, tocando-o de leve com a língua. Emitiu um som rouco na garganta e puxou-me para mais perto.
- Abra as pernas - sussurrou. - Pretendo me assegurar de que vai se lembrar de mim quando eu tiver partido.
Algum tempo depois, acordei com frio. Tateando sonolentamente em busca da colcha, não consegui achá-la. De repente, ela recaiu sobre mim por conta própria. Surpresa, ergui-me em um dos cotovelos para olhar.
- Desculpe-me —Jamie disse. — Não pretendia acordá-la.
- O que está fazendo? Por que está acordado? - Estreitei os olhos por cima do ombro para vê-lo. Ainda estava escuro, mas meus olhos estavam tão acostumados que eu podia ver a expressão ligeiramente tímida de seu rosto. Ele estava completamente acordado, sentado em um banco junto à cama, seu xale jogado em volta do corpo para se aquecer.
- É que... bem, sonhei que você tinha se perdido e eu não conseguia encontrá-la. Isso me acordou e... eu quis ficar olhando para você, só isso. para gravá-la na mente, para me lembrar quando estiver longe. Eu virei a colcha; desculpe ter feito você sentir frio.
- Não tem importância. - A noite estava fria e muito silenciosa, como se fôssemos as únicas duas almas no mundo. - Venha para a cama. Deve estar com frio também.
Deslizou para o meu lado e aconchegou-se contra as minhas costas. Suas mãos acariciaram-me do pescoço ao ombro, da cintura ao quadril, percorrendo as linhas das minhas costas, as curvas do meu corpo.
- Mo duinne — disse, meigamente. - Mas agora eu deveria dizer mo air-geadach. Minha prateada. Seus cabelos têm um brilho prateado e sua pele é como veludo branco. Calman geal. Pomba branca.
Apertei meus quadris contra seu corpo, convidando-o, e encaixei-me contra ele com um suspiro quando seu membro firme preencheu-me. Segurou-me contra seu peito e movimentou-se comigo, devagar, profundamente. Arquejei um pouco e ele afrouxou o abraço.
- Desculpe-me - murmurou. - Não quis machucá-la. Mas eu realmente preciso estar dentro de você, ficar dentro de você, bem fundo. Quero deixar minha semente no fundo do seu corpo. Quero ficar abraçado a você assim e ficar com você até o amanhecer, deixá-la dormindo e partir, com as suas formas ainda quentes em minhas mãos.
Pressionei o corpo para trás, contra o dele.
- Você não vai me machucar.
Após a partida de Jamie, fiquei vagando, desanimada e triste, pelo castelo. Atendia pacientes no consultório, ocupava-me a maior parte do tempo possível nas hortas e jardins e tentava me distrair folheando os livros da biblioteca de Colum, mas ainda assim o tempo parecia não passar.
Já estava sozinha há quase duas semanas quando me deparei com a Jovem Laoghaire no corredor do lado de fora das cozinhas. Eu a observava dissimuladamente de vez em quando, desde o dia em que a vira no patamar da escada do lado de fora dos aposentos de Colum. Ela parecia bastante vivaz, mas havia um ar de tensão facilmente discernível à sua volta. Parecia alheia e melancólica - e não era de se admirar, pobre garota, pensei com compaixão.
Hoje, entretanto, ela parecia um pouco animada.
- Sra. Fraser! - ela chamou. - Tenho um recado para a senhora. – a viúva Duncan, segundo ela, mandara dizer que estava doente e pedia que eu fosse vê-la e cuidar dela.
Hesitei, lembrando-me das recomendações de Jamie, mas as forças conjuntas da compaixão e do tédio foram suficientes para me colocar na estrada para a vila em menos de uma hora, minha caixa de remédios amarrada atrás de mim, na sela do cavalo.
Quando cheguei, a casa dos Duncan tinha um ar de abandono e negligência, uma sensação de desordem que se estendia pela própria casa. Ninguém atendeu à batida na porta e quando a empurrei e entrei, vi que o vestíbulo e a sala estavam cheios de livros e copos sujos espalhados, tapetes desalinhados e uma grossa camada de poeira nos móveis. Minhas chamadas não fizeram nenhuma criada aparecer e a cozinha estava tão vazia e desordenada quanto o resto da casa.
Cada vez mais ansiosa, subi ao andar superior. O quarto de dormir em frente também estava vazio, mas ouvi um leve barulho arrastado vindo do depósito em frente ao patamar.
Empurrando a porta, vi Geilie, confortavelmente sentada numa cadeira, os pés apoiados no balcão. Ela andara bebendo; havia um copo e uma garrafa sobre o balcão e o aposento cheirava a conhaque.
Ficou espantada ao me ver, mas pôs-se de pé com dificuldade, sorrindo. Seus olhos estavam ligeiramente fora de foco, pensei, mas ela sem dúvida parecia estar bem.
- O que houve? - perguntei. - Não está doente? Arregalou os olhos para mim, surpresa.
- Doente? Eu? Não. Os empregados foram todos embora e não há comida na casa, mas há bastante conhaque. Quer um gole? - Voltou-se para a garrafa. Agarrei-a pela manga.
- Você não mandou me chamar?
- Não. - Olhou-me fixamente, os olhos arregalados.
- Então por que...— Minha pergunta foi interrompida por um barulho lá fora. Um barulho abafado, distante, retumbante. Eu já o ouvira antes, deste mesmo aposento, e as palmas da minha mão ficaram suadas na ocasião ao pensar em confrontar a turba que o produzia.
Limpei as mãos na saia do meu vestido. O barulho retumbante aproximou-se e não houve nem tempo nem necessidade de perguntas.
Os ombros vestidos de cinza afastaram-se de mim na escuridão. Meu cotovelo bateu na madeira com uma pancada de deixar os ossos dor-mentes quando fui violentamente empurrada para uma espécie de soleira e caí de cabeça em um lugar escuro e fétdo, vivo e se remexendo com formas invisíveis. Dei um grito agudo e me debati, tentando me livrar do emaranhado de incontáveis patinhas, minúsculas e alvoroçadas, e do ataque de algo maior, que guinchou e me atingiu com uma forte pancada na coxa.
Consegui me afastar rolando, mas apenas por uns sessenta centímetros, antes de atingir uma parede de barro que lançou uma cascata de poeira sobre minha cabeça. Encolhi-me o máximo que pude junto a ela, tentando sufocar minha própria respiração arquejante para poder ouvir o que quer que estivesse preso comigo naquele buraco pútrido. O que quer que fosse, era grande e respirava ruidosamente. Um porco, talvez?
- Quem está aí? — soou uma voz da escuridão lúgubre, parecendo assustada, mas desafiadoramente alta. - Claire, é você?
- Geilie! - Tateando e mal conseguindo respirar, aproximei-me dela, encontrando suas mãos que também me buscavam. Abraçamo-nos com força, balançando-nos ligeiramente para frente e para trás na escuridão.
- Tem mais alguma coisa aqui além de nós? - perguntei, olhando à minha volta cautelosamente. Mesmo com meus olhos agora acostumados a escuridão, havia bem pouco a ser visto. Havia alguns fracos feixes de luz provenientes de algum lugar acima, mas as tenebrosas sombras chegavam à altura dos ombros ali embaixo; eu mal podia divisar o semblante de Geilie, na altura do meu e a apenas alguns centímetros de distância.
Ela riu, um pouco trêmula.
- Vários ratos, eu acho, e outros animais daninhos. E um cheiro capaz de derrubar uma doninha.
- Senti o cheiro. Onde estamos, em nome de Deus? -- No buraco dos ladrões. Para trás!
Houve um rangido acima de nossas cabeças e um súbito raio de luz. Corri de encontro à parede, bem a tempo de evitar uma chuva de lama e lixo, lançados por uma pequena abertura no teto de nossa prisão. Um outro barulho frouxo seguiu-se ao dilúvio. Geilie inclinou-se e pegou a* coisa do chão. A abertura no teto permaneceu e pude ver que o que ela segurava era um pequeno pão, velho e lambuzado de toda sorte de sujeira. Limpou-o cuidadosamente com uma dobra da saia.
— Jantar — disse. — Está com fome?
O buraco no teto continuou aberto, e vazio, a não ser por uma ou outra imundície atirada por um transeunte. A chuva fina começou, seguida de um vento penetrante. Estava frio, úmido e completamente deprimente. Próprio, suponho, para os malfeitores que se destinavam a abrigar. Ladrões, vagabundos, blasfemos, adúlteros... e possíveis bruxas.
Geilie e eu aconchegamo-nos junto a uma parede para nos aquecer, sem falar muito. Havia pouco a dizer e menos ainda que pudéssemos fazer por nós mesmas, além de controlar nosso espírito com paciência.
O buraco acima de nós ficava cada vez mais escuro à medida que a noite caía, até diluir-se no breu que nos cercava.
- Por quanto tempo você acha que pretendem nos manter aqui? Geilie remexeu-se, esticando as pernas para que a luz da manhã que atravessava a pequena abertura incidisse sobre o linho listrado de sua saia. Originalmente rosa-claro e branco, tinha agora uma aparência imprópria para vestir.
- Não muito tempo - disse. - Eles vão esperar pelos investigadores eclesiásticos. Arthur recebeu cartas no mês passado, preparando a vinda deles. Era na segunda semana de outubro. Devem chegar a qualquer momento.
Esfregou as mãos para aquecê-las, depois as colocou sobre os joelhos, no pequeno quadrado de luz.
- Fale-me sobre os investigadores — eu disse. — O que acontecerá, exatamente?
- Não sei dizer com precisão. Nunca vi o julgamento de uma bruxa, embora já tenha ouvido falar, é claro. - Parou por um instante, considerando. - Não estarão esperando um julgamento de bruxa, já que vêm para resolver umas disputas de terras. Então, ao menos não terão um espetador de bruxas.
- Um o quê?
- As bruxas não podem sentir dor - Geilie explicou. - Nem sangram quando são espetadas. — O espetador de bruxa, equipado com uma grande variedade de alfinetes, bisturis e outros implementos pontiagudos, era encarregado de testar essa condição. Recordava-me de algo parecido de um dos livros de Frank, mas acreditava ser uma prática comum no século XVII, não neste. Por outro lado, pensei amargamente, Cranesmuir não era exatamente o berço da civilização.
- Neste caso, é uma pena que não tenham um — eu disse, embora me encolhendo um pouco diante da idéia de ser espetada repetidamente. - Poderíamos passar nesse teste sem nenhuma dificuldade. Ou ao menos eu poderia - acrescentei causticamente. - Imagino que obteriam água gelada, nenhum sangue, se experimentassem em você.
- Não teria tanta certeza - disse, pensativamente, ignorando o insulto. - Já ouvi falar de espetadores de bruxas com alfinetes especiais, feitos para desarmarem quando pressionados contra a pele, de modo a parecer que não conseguem penetrar.
- Mas por quê? Por que tentar provar à força que alguém é uma bruxa?
O sol inclinava-se agora, mas a luz da tarde era suficiente para difundir-se pela nossa ratoeira com uma claridade turva. O belo rosto oval de Geilie demonstrava apenas pena pela minha ingenuidade.
- Você ainda não compreende, não é? - disse. — Eles pretendem nos matar. E não importa muito qual seja a acusação ou o que as evidências provam. Vamos para a fogueira, de qualquer modo.
Na noite anterior, eu ficara em estado de choque com o ataque da multidão e com as terríveis condições de nosso ambiente para fazer mais do que me encolher contra Geilie e esperar o raiar do dia. Com a luz, no entanto, o que restava do meu espírito começava a acordar.
- Por quê, Geilie? - perguntei, sentindo-me um pouco asfixiada. -Você sabe? - A atmosfera no local estava densa com o mau cheiro de podridão, umidade e dejetos. Parecia que as impenetráveis paredes de barro estavam prestes a ceder e se fechar sobre mim, como os lados de uma sepultura mal escavada.
Eu senti, mais do que vi, que ela encolhia os ombros; o feixe de luz que vinha de cima deslocara-se com o sol e agora atingia a parede de nossa prisão, deixando-nos na fria escuridão abaixo.
- Se serve de consolo para você - disse secamente —, eu duvido que pretendessem prender você. É uma questão entre mim e Colum, você teve a má sorte de estar comigo quando o pessoal da vila veio me pegar. Se você estivesse com Colum, estaria completamente a salvo, Sassenach ou não.
O termo Sassenach, dito em seu tom normalmente depreciativo, deixou-me de repente com uma saudade desesperadora do homem que me chamava assim afetuosamente. Passei os braços em volta do meu corpo, abraçando-me para conter o pânico solitário que ameaçava apoderar-se de mim.
- Por que veio à minha casa? - Geilie perguntou com curiosidade.
- Pensei que tivesse mandado me chamar. Uma das garotas do castelo me deu um recado... seu.
- Ah - disse, pensativamente. - Laoghaire, não?
Sentei-me e apoiei as costas contra a parede de terra, apesar do nojo da Superfície fétida e enlameada. Percebendo meu movimento, Geilie moveu-se para mais perto. Amigas ou inimigas, éramos a única fonte de calor uma da outra naquele buraco; aconchegávamo-nos por força das circunstâncias.
- Como sabe que foi Laoghaire? — perguntei, tremendo.
- Foi ela quem deixou o mau agouro em sua cama - Geilie respondeu. - Eu lhe disse desde o começo que havia aquelas que não gostaram de você ter-lhes tirado o rapaz ruivo. Suponho que ela pensou que se você saísse do caminho, ela teria uma chance com ele outra vez.
Fiquei muda de espanto diante disso e foi preciso algum tempo para recuperar a voz.
- Mas ela não poderia!
A risada de Geilie soou rouca de frio e sede, mas ainda tinha aquela ironia cortante.
- Qualquer um que visse o modo como ele olha para você saberia disso. Mas não creio que ela conheça o suficiente do mundo para saber tais coisas. Deixe-a dormir com um homem uma ou duas vezes e ela saberá, mas não agora.
- Não foi isso que quis dizer! - exclamei. - Não é Jamie que ela quer. A garota está esperando um filho de Dougal MacKenzie.
- O quê?! — Ela ficou genuinamente chocada por um instante e seus dedos cravaram-se na carne do meu braço. — Por que tirou essa conclusão?
Contei-lhe ter visto Laoghaire na escada para os aposentos de Colum e as conclusões a que eu chegara. Geilie soltou o ar ruidosamente.
- Pah! Ela ouviu Colum e Dougal falando de mim; foi isso que a fez fugir com medo. Ela achou que Colum ficaria sabendo que ela viera me procurar para o mau agouro. Ele a teria mandado chicotear até sangrar; ele não permite nenhum envolvimento com bruxaria.
- Você deu o mau agouro para ela? - perguntei, perplexa. Geilie afastou-se bruscamente diante dessa acusação.
- Não, eu não o dei para ela. Eu o vendi para ela.
Fitei-a, tentando olhá-la nos olhos através da escuridão cada vez mais impenetrável.
- Há uma diferença?
- Claro que sim. — Falava com impaciência. — Foi um negócio, apenas isso. E eu não revelo os segredos dos meus clientes. Além disso, ela não disse a quem se destinava. E você deve se lembrar que eu tentei avisá-la-
- Obrigada - disse com algum sarcasmo. - Mas... — Meu cérebro fervilhava, tentando rearrumar as idéias à luz dessa nova informação. — Mas se ela colocou o mau agouro na minha cama, era Jamie quem ela queria. Isso explicaria o fato de ela ter me mandado à sua casa. Mas e quanto a Dougal-
Geilie hesitou por um instante, depois pareceu chegar a uma conclusão.
- A garota está tão grávida de Dougal MacKenzie quanto você.
— Como pode ter tanta certeza?
Tateou no escuro à procura da minha mão. Encontrando-a, puxou-a e colocou-a com a palma aberta sobre o ventre volumoso por baixo do vestido.
- Porque eu estou - disse simplesmente.
- Então, não era Laoghaire - eu disse. — Você.
- Eu. - Falou de maneira muito simples, sem nenhum sinal de sua costumeira afetação. - Como foi que Colum disse mesmo: "Providenciarei para que ela seja tratada convenientemente"? Bem, suponho que esta seja sua idéia de uma solução adequada para o problema.
Fiquei um longo tempo em silêncio, remoendo meus pensamentos.
- Geilie — disse finalmente -, esse problema de estômago do seu marido...
Ela suspirou.
- Arsênico branco — disse. - Achei que acabaria com ele antes de a criança começar a aparecer muito, mas ele resistiu mais tempo do que eu julgava possível.
Lembrei-me do olhar horrorizado de Arthur Duncan quando saiu abruptamente do quarto de vestir de sua mulher no seu último dia de vida.
- Compreendo — eu disse. — Ele não sabia que você estava grávida até vê-la semidespida, no dia do banquete do duque. E quando ele descobriu... Suponho que ele tivesse boas razões para saber que não era dele.
Ouviu-se uma risada fraca do outro canto.
- O nitrato de potássio custava caro, mas valia cada peido. Estremeci levemente, encolhida junto à parede.
- Mas foi por isso que você teve que correr o risco de matá-lo em público, no banquete. Ele a teria denunciado como adúltera... e envene-nadora. Você acha que ele sabia sobre o arsênico?
- Ah, Arthur sabia - ela disse. — Certamente, não admitiria, nem para si mesmo. Mas ele sabia. Sentávamo-nos um em frente ao outro à mesa de jantar e eu lhe perguntava: "Quer mais um pouco de sopa, querido?" ou um gole de cerveja, meu bem? Ele ficava me olhando com aqueles olhos parecendo ovos cozidos, e dizia que não, estava sem apetite no momento. Empurrava o prato e mais tarde eu o ouvia na cozinha, às escondidas, devorando sua comida de pé junto ao armário, achando-se seguro, porque ele não comia nenhuma comida que viesse das minhas mãos. Sua voz era leve e descontraída, como se contasse algum mexerico interessante. Estremeci novamente, afastando-me daquela que compartilhava a escuridão comigo.
- Ele não desconfiou que era no tônico que tomava. Ele não tomava nenhum remédio feito por mim; encomendava um tônico vendido em Londres. Custava caríssimo. - Sua voz demonstrava ressentimento com a extravagância. - O remédio já tinha arsênico em sua composição, para começar; ele não notava nenhuma diferença no sabor quando eu acrescentava mais um pouco.
Sempre ouvira dizer que a vaidade era o ponto fraco dos assassinos; parecia ser verdade, porque ela continuou, ignorando nossa situação no orgulho de recontar seus feitos.
- Era um pouco arriscado, matá-lo diante de todo mundo assim, mas eu tinha que pensar depressa em alguma coisa.
Também não foi arsênico, para matar daquele jeito. Lembrei-me dos lábios endurecidos e azuis do fiscal e a dormência dos meus próprios lábios onde o tocaram. Um veneno rápido e mortal.
E eu pensando que Dougal havia confessado um caso amoroso com Laoghaire. Mas nesse caso, embora Colum pudesse desaprovar, não teria havido nada que impedisse Dougal de se casar com a garota. Ele era viúvo, livre.
Mas um envolvimento adúltero, com a mulher do fiscal? Era um problema diferente para todos os envolvidos. Eu me lembrava que as punições para o adultério eram severas. Colum não poderia colocar panos quentes em um caso dessa magnitude, mas não conseguia vê-lo condenando o irmão ao açoite público ou ao exílio. E Geilie poderia muito bem considerar o assassinato como uma alternativa razoável a ser queimada no rosto com ferro em brasa e trancafiada por muitos anos em uma prisão, socando cânhamo doze horas por dia.
Assim, ela tomara suas precauções e Colum tomara as dele. E ali estava eu, pega no meio.
- Mas, e a criança? - perguntei. — Certamente... Ouviu-se uma risadinha assustadora na escuridão.
- Acidentes acontecem, minha amiga. Nas melhores famílias. E uma vez acontecido... — Eu senti que ela encolhia os ombros. — Eu pretendia me livrar dela, mas depois achei que podia ser uma maneira de fazê-lo casar comigo, depois que Arthur morresse.
Uma terrível suspeita acometeu-me.
- Mas a mulher de Dougal ainda estava viva. Geillis, você...?
Seu vestido farfalhou quando sacudiu a cabeça e percebi um leve reflexo dos seus cabelos.
- Eu pretendia - disse. - Mas Deus me poupou o trabalho. Achei até que isso fosse um sinal, sabe. E tudo poderia ter dado certo, se não fosse por Colum MacKenzie.
Abracei-me, agarrando os cotovelos para me proteger do frio. Eu continuava falando apenas para me distrair.
- Era Dougal que você queria ou apenas sua posição e dinheiro?
- Ah, eu tinha bastante dinheiro - ela disse, com um tom de satisfação. - Eu sabia onde Arthur guardava a chave para todos os seus documentos e anotações. E ele tinha uma bela caligrafia, devo reconhecer. Era bastante simples falsificar sua assinatura. Eu conseguira desviar perto de dez mil libras nos últimos dois anos.
- Mas para quê? - perguntei, completamente perplexa.
- Pela Escócia.
- O quê? - Por um instante, pensei ter ouvido errado. Então, concluí que uma de nós podia estar ligeiramente desequilibrada. E pelas evidências disponíveis, não era eu.
- O que quer dizer com Escócia? -- perguntei cautelosamente, afastando-me um pouco. Não sabia ao certo o quanto ela estava desequilibrada; talvez a gravidez a tivesse enlouquecido.
- Não precisa ter medo; não estou maluca. - O cínico tom de deboche em sua voz me fez ruborizar. Agradeci por estar escuro.
- Ah, não? — eu disse, provocada. — Segundo você mesma, você cometeu fraude, roubo e assassinato. Seria uma caridade considerá-la louca, porque se não for...
- Nem louca nem depravada - ela disse, com decisão. - Sou uma patriota.
Fez-se a luz. Deixei escapar um suspiro que estivera prendendo, na expectativa de um ataque de loucura.
- Uma jacobita - eu disse. — Santo Deus, você é uma maldita jacobita! E era. O que explicava muita coisa. Por que Dougal, geralmente o espelho das opiniões do irmão, envolvera-se na iniciativa de levantar fundos para a Casa dos Stuart. E por que Geillis Duncan, tão bem dotada para levar qualquer homem que quisesse ao altar, havia escolhido dois espécimes tão diferentes como Arthur Duncan e Dougal MacKenzie. Um pelo dinheiro e posição, o outro por seu poder de influência na opinião pública.
- Colum teria sido melhor - continuou. - Uma pena. Seu infortúnio é o meu também. Era a ele que eu deveria ter me unido. O único homem que conheci que estaria à minha altura. Juntos, poderíamos... bem, não adianta mais. O único homem que eu queria e o único que eu não podia conseguir com as armas de que dispunha.
- Então, você ficou com Dougal em vez disso.
- Ah, sim - ela disse, imersa em seus próprios pensamentos. - Um homem forte e com certo poder. Uma boa propriedade. Os ouvidos do povo. Mas, na verdade, ele não passa das pernas... e do pau — riu debilmente — de Colum MacKenzie. É Colum quem tem força. Quase tanto quanto eu.
Seu tom presunçoso aborrecia-me.
- Colum, pelo que sei, tem algumas coisas que você não tem. Tal como sentimento de compaixão.
- Ah, sim. "Entranhas de compaixão e caridade", hein? - disse com ironia. - Grande proveito isso vai lhe dar. A morte está pousada em seus ombros; basta olhar para ele. O sujeito não passa de uns dois anos depois do Hogmanay, não muito mais do que isso.
- E quanto mais tempo você vai viver? - perguntei.
A ironia retrocedeu, mas a voz de aço permaneceu firme.
- Um pouco menos do que isso, eu acho. Nada de grande importância. Consegui fazer muito no tempo que tive; dez mil libras desviadas para a França e a região que apoia o príncipe Carlos. Quando houver a Revolução, saberei que dei minha contribuição. Se eu viver até lá.
Ela parou quase embaixo do buraco no teto. Meus olhos estavam suficientemente acostumados à escuridão para vê-la como uma forma pálida nas trevas, um fantasma prematuro e inacabado. Voltou-se subitamente para mim.
- O que quer que aconteça com os investigadores, não tenho nenhum arrependimento, Claire.
- Lamento apenas ter só uma vida para dar pelo meu país? - perguntei ironicamente.
- Muito bem colocado — observou.
- E não é exatamente isso?
Ficamos em silêncio enquanto a escuridão se tornava ainda mais densa. O vão negro do buraco no teto parecia uma força tangível, pressionando meu peito, fria e pesada. Obstruindo meus pulmões com o cheiro da morte. Finalmente, encolhi-me o máximo que pude numa bola, apoiei a cabeça nos joelhos e desisti de lutar, resvalando em uma sonolência nervosa, à beira do frio e do pânico.
- Então, você ama o sujeito? — Geilie perguntou repentinamente. Ergui a cabeça dos joelhos, espantada. Não fazia a menor idéia das horas; uma estrela fraca brilhava acima de nossas cabeças, mas não lançava nenhuma luz no buraco.
- Quem, Jamie?
- Quem mais? - perguntou secamente. - É o nome dele que você chama quando está dormindo.
- Não sabia que eu fazia isso.
- Então, você o ama? — O frio encorajava uma espécie de torpor mortal, mas a voz instigante de Geilie arrastou-me um pouco mais para fora do meu entorpecimento.
Abracei os joelhos, balançando-me ligeiramente para frente e para trás. A luz do buraco no teto esmaecera para a leve penumbra do começo da noite. Os investigadores chegariam no dia seguinte ou depois. Estava ficando um pouco tarde demais para subterfúgios, para mim mesma ou qualquer outra pessoa. Embora eu ainda tivesse dificuldade em admitir que pudesse estar correndo um sério risco de vida, estava começando a compreender o instinto que fazia com que os prisioneiros condenados à morte buscassem a confissão e a absolvição na véspera do cumprimento da pena de morte.
- Amar de verdade, quero dizer - Geilie insistia. - Não apenas querer ir para a cama com ele; sei que deseja isso e ele também. Todos querem. Mas você o ama?
Eu o amaria? Além dos anseios da carne? Nossa cela possuía a anonimidade escura do confessionário e uma alma à beira da morte não tinha tempo para mentiras.
- Sim — respondi e deitei a cabeça nos joelhos outra vez.
Fiquei em silêncio por algum tempo e pairei mais uma vez à beira do sono, quando a ouvi falar outra vez, como se falasse consigo mesma.
- Então é possível — ela disse pensativamente.
Os investigadores chegaram um dia depois. Da umidade do buraco dos ladrões, podíamos ouvir a agitação de sua chegada; os gritos dos habitantes da vila e o tropel dos cavalos nas pedras da rua principal. O alvoroço enfraqueceu à medida que a procissão desceu a rua em direção à praça distante.
- Chegaram - Geilie disse, ouvindo a turbulência acima. Apertamos as mãos, num reflexo, os antagonismos submersos no medo.
- Bem - eu disse, fingindo-me corajosa —, imagino que ser queimada seja melhor do que morrer congelada.
No caso, continuamos a congelar. Somente à tarde do dia seguinte é que a porta de nossa prisão girou bruscamente para trás e fomos arrancadas do buraco para sermos levadas a julgamento.
Para poder acomodar a multidão de espectadores, a sessão foi realizada na praça, diante da casa dos Duncan. Vi Geilie erguer os olhos rapidamente para as janelas com vidros em losango de sua sala de estar, em seguida desviar o olhar, sem expressão.
Havia dois investigadores eclesiásticos, sentados em bancos com almofadas atrás de uma mesa erguida na praça. Um dos juizes era extraordinariamente alto e magro, o outro, baixo e robusto. Faziam-me lembrar irre-sistivelmente de uma revista em quadrinhos americana que eu vira uma vez; sem saber seus nomes, batizei o alto de Mutt e o outro de Jeff.
A maioria dos aldeões estava lá. Olhando ao redor, pude ver muitos dos meus antigos pacientes. Mas os habitantes do castelo estavam notoriamente ausentes.
Foi John MacRae, o policial, carcereiro e carrasco da vila de Cranesir, quem leu a indiciação, ou acusação, contra as pessoas de Geillis Duncan e Claire Fraser, ambas acusadas perante o tribunal da Igreja de crime de bruxaria.
- Diante das evidências comprova-se que a acusada realmente causou a morte de Arthur Duncan, por meio de bruxaria — MacRae leu, em voz firme e regular. - Também ocasionou a morte pré-natal do filho de Janet Robinson, fez afundar o barco de Thomas MacKenzie, lançou sobre a vila de Cranesmuir uma dizimadora doença dos intestinos...
Assim continuou por algum tempo. Colum fora minucioso em seus preparativos.
Após a leitura da indiciação, as testemunhas foram chamadas. A maioria era de aldeões que eu não conhecia; nenhum dos meus pacientes estava entre elas, um fato pelo qual senti-me grata.
Enquanto o testemunho de muitos dos acusadores foi simplesmente absurdo e alguns evidentemente haviam sido pagos por seus serviços, outros tinham um evidente toque de verdade em suas palavras. Janet Robinson, por exemplo, que foi arrastada para a frente do tribunal por seu pai, pálida e trêmula, com uma mancha roxa na face, para confessar que havia concebido um filho de um homem casado e procurou os serviços de Geillis Duncan para se livrar da criança.
- Ela me deu um preparado para beber e umas palavras mágicas para dizer três vezes, quando a lua surgisse - a jovem balbuciou, olhando temerosamente de Geillis para seu pai, sem saber quem constituía uma ameaça maior. - Ela disse que isso faria minha menstruação voltar.
- E voltou? — Jeff perguntou com interesse.
- Não no começo, Excelência - a jovem respondeu, sacudindo a cabeça nervosamente. - Mas tomei a bebida outra vez, na lua minguante, e então voltou.
- Voltou?! A menina quase se esvaiu em sangue até a morte! — Uma mulher idosa, obviamente a mãe da jovem, interrompeu. - Foi somente porque ela achou que ia morrer que me contou toda a verdade. - Mais do que desejosa de acrescentar detalhes sangrentos, a sra. Robinson foi silenciada com alguma dificuldade, a fim de dar lugar às testemunhas seguintes.
Parecia não haver ninguém para dizer alguma coisa contra mim, fora a vaga acusação de que desde que eu estava presente na morte de Arthur Duncan, e colocara as mãos nele antes de morrer, obviamente devo ter tido alguma coisa a ver com seu assassinato. Comecei a achar que Geilie tinha razão; não fora eu o alvo de Colum. Assim sendo, talvez eu conseguisse escapar. Ou ao menos assim pensei até a mulher da colina aparecer.
Quando se apresentou, uma mulher magra, curvada, com um xale amarelo, compreendi que estávamos em sérios apuros. Ela não era uma moradora da vila; jamais a vira antes. Tinha os pés descalços, encardidos da poeira da estrada por onde viera para chegar ali.
- Tem uma acusação a fazer contra uma dessas mulheres? - perguntou o juiz magro e alto.
A mulher estava com medo; não levantava os olhos para olhar para os juizes. Entretanto, balançou a cabeça levemente e a multidão fez silêncio para ouvi-la.
Sua voz era baixa e Mutt teve que lhe pedir para repetir.
Ela e o marido tinham um filho doente, que nasceu saudável, mas que ficou fraco e começou a definhar. Concluindo finalmente que a criança era uma troca das fadas, colocaram-na na colina das fadas Croich Gorm. Mantendo a vigilância para recuperarem seu próprio filho quando as fadas o devolvessem, viram as duas acusadas irem até a colina, pegarem a criança e declamarem estranhos feitiços sobre ela.
A mulher torcia as mãos magras, por baixo de seu avental.
- Nós ficamos de vigília até a noite, senhores. E logo depois que escureceu, surgiu um grande demônio, um enorme vulto negro que saiu das sombras sem nenhum ruído, e se inclinou sobre o local onde havíamos colocado o bebê.
Um murmúrio de assombro percorreu a multidão e senti os cabelos da minha nuca se arrepiarem ligeiramente, mesmo sabendo, como sabia, que o "grande demônio" era Jamie, que fora ver se a criança ainda estava viva. Preparei-me, sabendo o que vinha em seguida.
- E quando o sol nasceu, eu e meu marido fomos ver. E encontramos o bebê trocado, morto na colina, e nenhum sinal de nosso próprio bebezinho. - Com isso, ela irrompeu em prantos e atirou o avental sobre o rosto para esconder o choro.
Como se a mãe da criança encantada fosse uma espécie de sinal, a multidão apartou-se e a figura de Peter, o carroceiro, adiantou-se. Gemi por dentro quando o vi. Eu sentira as emoções da multidão voltarem-se contra mim quando a mulher falou; tudo que eu precisava agora era que esse homem contasse ao tribunal sobre o monstro do lago.
Desfrutando seu momento de glória, o carroceiro subiu no tablado e apontou dramaticamente para mim.
- É verdade que podem chamá-la de bruxa, meus senhores! Com meus próprios olhos eu vi esta mulher chamar um monstro das águas do Lago do Mal, para cumprir suas ordens! Uma criatura enorme e terrível, senhores, da altura de um pinheiro, com um pescoço igual ao de uma grande cobra azul e olhos do tamanho de maçãs, com um olhar capaz de roubar a alma de um homem.
Os juizes pareceram impressionados com seu testemunho e cochicharam entre si durante vários minutos, enquanto Peter fitava-me desafiador, com um olhar que dizia: "Agora você vai ver!"
Finalmente, o juiz gordo afastou-se da reunião e, com um gesto imperioso, chamou John MacRae, que se posicionara em um dos lados, atento a qualquer problema.
- Carcereiro! — disse. Virou-se e apontou para o carroceiro.
- Leve esse homem daqui e prenda-o no pelourinho por bebedeira em público. Este é um tribunal sério; não vamos desperdiçar o tempo dos inquisidores com acusações frívolas de um beberrão que vê monstros depois de tomar uísque demais!
Peter, o carroceiro, ficou tão perplexo que nem sequer resistiu quando o carcereiro caminhou a passos largos em sua direção e tomou-o pelo braço. De boca aberta, virou a cabeça para trás, lançando-me um olhar furioso, enquanto era levado dali. Não resisti e ergui meus dedos para dar-lhe um adeusinho.
No entanto, após essa ligeira quebra de tensão nos procedimentos legais, a situação deteriorou-se rapidamente. Houve uma procissão de jovens e mulheres para jurar que haviam comprado sortilégios e amuletos de Geillis Duncan, para fins como provocar doenças, livrar-se de uma gravidez indesejada ou lançar feitiços de amor em algum homem. Todas, sem exceção, juraram que os encantamentos haviam funcionado — um recorde invejável para um clínico geral, pensei com cinismo. Embora ninguém me atribuísse resultados assim, houve várias que afirmaram — com razão — terem me visto muitas vezes no herbanário da sra. Duncan, preparando remédios e triturando ervas.
Ainda assim, talvez isso não fosse fatal; havia um número igual de pessoas para alegar que eu as havia curado, usando nada além de remédios comuns, sem nenhuma menção a feitiços, encantamentos ou truques mágicos. Considerando-se a força da opinião pública, essas pessoas precisaram de uma certa dose de coragem para se apresentarem e testemunharem a meu favor, e fiquei-lhes agradecida.
Meus pés doíam de estar em pé por tanto tempo; enquanto os juizes ficavam sentados com relativo conforto, não havia bancos para os prisioneiros. No entanto, quando a próxima testemunha apareceu, esqueci completamente dos meus pés.
Com um instinto para o drama que se equiparava ao de Colum, padre Bain abriu de par em par a porta da igreja e surgiu na praça, mancando pesadamente com uma muleta de carvalho. Avançou lentamente até o centro da praça, inclinou a cabeça para os juizes, depois se virou e inspecionou a multidão, até que seu olhar fixo reduzisse o barulho a um murmúrio baixo e nervoso. Quando falou, sua voz fustigou como uma chicotada.
- Quem está em julgamento são vocês, povo de Cranesmuir! "Com ele veio a peste e carvões em brasa vieram com seus pés." Sim, vocês se deixaram seduzir e se afastar dos caminhos da retidão! Vocês semearam o vento e a tempestade está entre vocês agora!
Olhei-o espantada, um pouco desconcertada por aquele insuspeito dom da retórica. Ou talvez ele fosse capaz de tais vôos de oratória somente sob o estímulo de uma crise. A voz ostentosa continuou estrondando.
- A peste se abaterá sobre vocês e morrerão por seus pecados, a menos que sejam purificados! Aceitaram a meretriz da Babilônia em seu meio. — Essa era eu, imaginei, pelo olhar irado que me lançou. — Vocês venderam a alma ao inimigo, acolheram a víbora inglesa no seu seio e agora a vingança de Nosso Senhor Todo-poderoso cairá sobre vocês. "Livrem-se da mulher estrangeira, mesmo aquela que cumula com palavras. Porque sua casa se inclina para a morte e seus caminhos para os mortos!" Arrependa-se, povo de Cranesmuir, antes que seja tarde demais! Digo-lhes que caiam de joelhos e implorem perdão! Expulsem a meretriz inglesa e renunciem à sua barganha com a filha de Satanás! — Arrancou o rosário do cinto e brandiu o grande crucifixo de madeira na minha direção.
Por mais interessante que fosse tudo aquilo, pude notar que Mutt estava ficando um pouco inquieto. Inveja profissional, talvez.
- Hã, reverendo — disse o juiz, com uma ligeira mesura para o padre Bain -, o senhor tem provas a apresentar à acusação contra essas mulheres?
- Tenho, sim. - Passada a primeira explosão de oratória, o pequeno padre agora estava calmo. Apontou um dedo ameaçador em minha direção e tive que me controlar para não dar um passo para trás.
- Em uma terça-feira à tarde, há duas semanas, encontrei esta mulher nos jardins do Castelo Leoch. Usando poderes sobrenaturais, ela lançou um bando de cães de caça sobre mim, de tal forma que caí e fiquei sob grave risco de vida. Seriamente ferido na perna, levantei-me para sair de sua presença. A mulher tentou me seduzir com sua pecaminosidade, queria que eu a acompanhasse a um lugar privado e, quando resisti às suas manobras, lançou uma maldição sobre mim.
- Que grande besteira! - exclamei, indignada. — É o exagero mais ridículo que já ouvi!
Os olhos do padre Bain, escuros e cintilando como se estivessem febris, desprenderam-se dos inquisidores e fixaram-se em mim.
- Você nega, mulher, que me disse estas palavras? "Venha comigo agora, padre, ou seu ferimento putrefará"?
- Bem, reduza um pouco a veemência, mas algo parecido, talvez -admiti.
Com o maxilar cerrado em triunfo, o padre abriu bruscamente para o lado a saia de sua batina. Uma atadura manchada com sangue seco e úmida de pus amarelo envolvia sua coxa. A carne pálida da perna inchava-se acima e abaixo da atadura, com horríveis vergões vermelhos subindo do ferimento oculto.
— Meu Deus, homem! - exclamei, chocada com a visão do estado do ferimento. - Está com o sangue envenenado. Tem que cuidar disso, e imediatamente, ou vai morrer!
Ouviu-se um profundo murmúrio de choque da multidão. Até Mutt ejeff pareciam estupefatos.
O padre Bain sacudiu a cabeça lentamente.
— Ouviram? — perguntou. — A ousadia dessa mulher não conhece nenhum limite. Ela me amaldiçoa com a morte, um homem de Deus, diante do tribunal da própria Igreja!
O burburinho agitado da multidão tornou-se mais alto. O padre Bain falou outra vez, erguendo um pouco a voz, para ser ouvido acima do barulho.
— Deixo-os, senhores, com seu próprio julgamento e a injunção do Senhor: "Não permitirás que uma bruxa viva."
A prova dramática do padre Bain pôs fim aos testemunhos. Provavelmente, ninguém estava preparado para superar aquele desempenho. Os juizes determinaram um pequeno recesso e um lanche lhes foi trazido da hospedaria. Nenhuma dessas conveniências foi oferecida às acusadas.
Tentei puxar minhas amarras. O couro das tiras rangeu um pouco, mas não cederam nem um centímetro. Este, pensei cinicamente para aplacar o pânico, é o momento exato em que o arrojado herói deveria surgir cavalgando em meio à multidão, açoitando a população que se encolhia de medo e arrebatando a heroína quase desmaiada para a sua sela.
Mas o meu belo e destemido herói estava em algum lugar lá longe na floresta, tomando muita cerveja com um velho efeminado de sangue nobre e massacrando veados inocentes. Era pouco provável, pensei, rangendo os dentes, que Jamie voltasse a tempo sequer de juntar minhas cinzas para uma cerimônia fúnebre, antes de eu ser espalhada pelos quatro ventos.
Preocupada com meu medo crescente, no começo não ouvi o barulho dos cascos. Somente quando os fracos murmúrios e o girar de cabeças na multidão atraíram minha atenção foi que notei os golpes ritmados, ressoando nas pedras da rua principal.
Os murmúrios de surpresa intensificaram-se e as beiradas da multidão começaram a se afastar para admitir o cavaleiro, ainda fora do alcance da minha visão. Apesar do meu desespero anterior, comecei a sentir uma débil centelha de esperança irracional. E se Jamie tivesse voltado mais cedo? Talvez os avanços do duque tenham sido muito insistentes ou os veados muito escassos e esparsos. O que quer que fosse, fiquei na ponta dos pés para ver o rosto do cavaleiro que se aproximava.
As fileiras de pessoas afastaram-se relutantemente quando o cavalo, um baio vigoroso, enfiou o longo focinho entre os ombros de dois espectadores.
Diante dos olhos atônitos de todos - inclusive meus - a figura empertigada de Ned Gowan desmontou lepidamente.
JefF inspecionou o sujeito esbelto e bem-arrumado à sua frente com certo espanto.
- E o senhor, quem é? - Sem dúvida, seu tom de relutante cortesia era conseqüência das fivelas de prata dos sapatos e do casaco de veludo do visitante: ser empregado do senhor do clã MacKenzie tinha suas compensações.
- Meu nome é Edward Gowan, Excelência — disse com clareza. -Advogado.
Mutt arqueou os ombros e encolheu-se um pouco; o banco que lhe fora dado não tinha encosto e suas cosras estavam sem dúvida ressentindo-se do esforço. Fitei-o duramente, desejando-lhe uma hérnia de disco. Se estava prestes a ser queimada por mau-olhado, pensei, que servisse para alguma coisa.
- Advogado? - rosnou. - E o que o traz aqui?
A peruca cinza de Ned Gowan inclinou-se na mais perfeita reverência formal.
- Vim oferecer meus humildes serviços em defesa da sra. Fraser, Excelências - disse. — Uma dama muito respeitosa, que eu conheço pessoalmente como sendo tão bondosa e benéfica na administração das artes da cura como detentora de grande conhecimento em suas aplicações.
Muito bem, pensei com aprovação. Desta vez, uma aparição inesperada a nosso favor. Olhando para o outro lado da praça, pude ver a boca de Geilie torcer-se para cima em um meio-sorriso ao mesmo tempo desdenhoso e admirador. Embora Ned Gowan não fosse a escolha de Príncipe Encantado de todo mundo, eu não estava inclinada a ser exigente num momento como esse. Qualquer defensor seria bem-vindo.
Com uma reverência para os juizes e outra, não menos formal, para mim, o sr. Gowan empertigou-se ainda mais em sua postura normalmente ereta, prendeu os dois polegares na cintura de suas calças e preparou-se com todo o romantismo de seu coração envelhecido e galante para travar uma batalha, lutando com a arma preferida da lei - o tédio atroz.
Tedioso sem dúvida ele foi. Com a precisão mortal de uma trituradora automática, arrumou cada acusação do inquérito na lousa do seu escrutínio e picotou-a impiedosamente com a lâmina do estatuto e o cutelo do precedente.
Foi uma performance notável. Ele falou. E ele falou. E ele falou mais, parecendo parar respeitosamente de vez em quando para seguir as instruções dos juizes, mas na realidade apenas recuperando o fôlego para novo massacre de verbosidade.
Com a minha vida por um fio e meu futuro inteiramente na dependência da eloqüência daquele homenzinho franzino, eu devia ter me prendido atentamente a cada uma de suas palavras. No entanto, ao invés disso, vi-me bocejando de maneira espantosa, incapaz de cobrir minha boca aberta e alternando os meus pés doloridos para apoiar-me, desejando fervorosamente que me queimassem logo e terminassem aquela tortura.
A multidão parecia sentir-se da mesma forma e, depois que a alta comoção da manhã reduziu-se ao tédio, a voz fina e pausada do sr. Gowan continuou indefinidamente. As pessoas começaram a se dispersar, lembrando-se repentinamente de animais que precisavam ser ordenhados e assoalhos que precisavam ser varridos, certos de que nada de interesse poderia surgir enquanto aquela voz fatal continuasse em seu tom monótono.
Quando Ned Gowan finalmente terminou sua defesa inicial, a noite já caíra; e o juiz atarracado que eu apelidara de Jeff anunciou que o tribunal voltaria a se reunir pela manhã.
Após uma curta e sussurrada conferência entre Ned Gowan, Jeff e John MacRae o carrasco, fui conduzida à hospedaria entre dois cidadãos mus-culosos. Lançando um olhar por cima do ombro, vi Geilie sendo levada na direção oposta, as costas eretas, recusando-se a ser empurrada ou, na verdade, a atentar para o ambiente à sua volta.
No quarto escuro nos fundos da hospedaria, minhas amarras foram finalmente retiradas e uma vela foi trazida. Em seguida, Ned Gowan chegou, com uma garrafa de cerveja e um prato de carne e pão.
— Só disponho de alguns minutos com você, minha querida, assim mesmo conseguidos a muito custo, portanto ouça-me com atenção. - O homenzinho inclinou-se para mais perto, numa atitude conspiratória à luz bruxuleante da vela. Seus olhos brilhavam e, fora um ligeiro desarranjo em sua peruca, não dava nenhum sinal de esforço ou fadiga.
- Sr. Gowan, estou tão feliz de vê-lo - eu disse, sinceramente.
- Sim, sim, minha querida, mas não há tempo para isso agora. - Deu uns tapinhas na minha mão, de uma maneira afetuosa, mas perfunctória.
— Consegui fazer com que considerem seu caso separado da sra. Duncan e isso pode ser de grande ajuda. Parece que não havia nenhuma intenção original de prendê-la, mas que você foi levada por causa de sua associação com a sra. Duncan.
— Ainda assim - continuou apressadamente -, você corre perigo e eu não vou esconder isso de você. O clima das opiniões na vila não é nada favorável a você no momento. O que deu em você — perguntou, com num tom acalorado que não lhe era típico - para tocar naquela criança?
Abri a boca para responder, mas ele fez um aceno descartando a pergunta com impaciência.
- Ah, bem, isso não interessa agora. O que temos que fazer é jogar com o fato de você ser inglesa, e daí sua ignorância, sabe, não sua esquisitice, e prolongar a questão até onde pudermos. O tempo está a nosso favor, porque a maioria desses julgamentos ocorre em um clima de histeria, quando a veracidade das provas pode ser negligenciada para satisfazer a sede de sangue.
Sede de sangue. A expressão simbolizava perfeitamente o sentimento da emoção que eu vira emanar dos rostos do populacho. Aqui e ali, vi alguns traços de dúvida ou solidariedade, mas somente uma alma extraordinária se levantaria contra uma multidão, e Cranesmuir estava carente de pessoas dessa envergadura. Ou não, corrigi a mim mesma. Houve um -este ressequido e franzino advogado de Edimburgo, embora fosse tão feio.
- Quanto mais nos alongarmos - continuou o sr. Gowan de modo pragmático —, menos inclinados ficarão a tomar uma decisão apressada. Assim - disse, as mãos nos joelhos —, sua parte amanhã será apenas de manter-se em silêncio. Eu falarei em sua defesa e Deus queira que surta algum efeito.
- Parece um bom plano — eu disse, com um cansado esboço de sorriso. Olhei para a porta que dava para a frente da hospedaria, onde vozes se erguiam. Captando o meu olhar, o sr. Gowan balançou a cabeça.
- Sim, vou ter que deixá-la agora. Consegui que você passe a noite aqui. - Olhou à sua volta, em dúvida. Um pequeno barracão anexo à hospedaria e usado para guardar quinquilharias e suprimentos extras. Era frio e escuro, mas infinitamente melhor do que o buraco dos ladrões.
A porta do barracão abriu-se, desenhando em silhueta a figura da proprietária da hospedaria, espreitando na escuridão, por trás da chama pálida e bruxuleante de uma vela. O sr. Gowan levantou-se para sair, mas segurei-o pela manga. Havia algo que eu precisava saber.
- Sr. Gowan... foi Colum quem o mandou aqui para me ajudar? - Ele hesitou em sua resposta, mas dentro dos limites de sua profissão, era um homem de honestidade impecável.
- Não - respondeu sem rodeios. Um olhar quase de constrangimento passou por suas feições ressequidas e ele acrescentou: - Eu vim... por conta própria. - Colocou o chapéu na cabeça e virou-se para a porta, desejando-me um breve "boa-noite" antes de desaparecer na luz e na agitação da hospedaria.
Houve pouca preparação para me acomodar, mas uma pequena jarra de vinho e um pão - limpo desta vez - foram colocados sobre um dos barris. Havia ainda um velho cobertor dobrado no chão ao seu lado.
Enrolei-me no cobertor e sentei-me em um dos barris menores para jantar, meditando enquanto mastigava a refeição frugal.
Então, Colum não enviara o advogado. Ele saberia, ao menos, que o sr. Gowan pretendia vir? O mais provável é que Colum tenha proibido qualquer um de ir à vila, por medo de serem pegos na caça às bruxas. As ondas de medo e histeria que varriam a vila eram palpáveis; podia senti-las batendo contra as paredes do meu precário abrigo.
Uma explosão barulhenta da taverna ao lado distraiu meus pensamentos. Talvez fosse apenas a vigília na noite que antecede a execução do condenado, como um velório. Mas à beira da destruição, até mesmo uma hora a mais era motivo de agradecimento. Enrolei-me no cobertor, puxei-o sobre minha cabeça para abafar o barulho da hospedaria e tentei com todas as forças não sentir nada além de gratidão.
Após uma noite extremamente inquieta, fui acordada logo após o alvorecer e levada de volta à praça, embora os juizes só tenham chegado uma hora mais tarde.
Arrumados, gordos e saciados com o desjejum, debruçaram-se imediatamente sobre os trabalhos. Jeff virou-se para John MacRae, que voltara ao seu posto atrás das acusadas.
— Sentimo-nos incapazes de determinar a culpa com base unicamente nas evidências apresentadas. — Houve uma explosão de indignação da multidão novamente reunida, que fizera seu próprio julgamento. No entanto, o tumulto foi apaziguado por Mutt, que voltou um par de olhos penetrantes como brocas sobre os jovens trabalhadores na primeira fila, calando-os como cachorros que recebem um banho de água fria. Restaurada a ordem, voltou seu rosto anguloso novamente para o carrasco.
— Conduza as prisioneiras para a beira do lago, por favor. - Ouviu-se um murmúrio de satisfação e expectativa que levantou minhas piores suspeitas. John MacRae tomou-me por um braço e Geilie pelo outro, para nos conduzir, mas teve muita ajuda. Mãos cruéis rasgavam meu vestido, beliscavam e empurravam conforme eu era levada aos trambolhões. Algum idiota tinha um tambor e fazia alarde com uma esfarrapada marcha militar. A multidão cantava, destoada e sem ritmo, procurando seguir o toque do tambor. Não conseguia distinguir o que diziam entre os gritos e berros aleatórios. Acho que eu não queria saber o que estavam dizendo.
A procissão prosseguiu pela campina até a beira do lago, onde um pequeno cais de madeira projetava-se pela água. Fomos empurradas para a ponta do desembarcadouro, onde os dois juizes haviam tomado posição, cada um de um lado do cais. Jeff voltou-se para a multidão que aguardava na margem do lago.
— Tragam as cordas! — Houve um murmúrio geral e um olhar de expectativa entre eles, até alguém correr apressadamente com um pedaço de corda fina. MacRae pegou-a e aproximou-se de mim com certa hesitação. Mas lançou um olhar rápido aos inquisidores, o que reforçou sua determinação.
— Por favor, tenha a gentileza de tirar seus sapatos, madame - ordenou.
— O que diabo... para quê? — perguntei, cruzando os braços.
Ele piscou, obviamente despreparado para qualquer resistência, mas um dos juizes antecipou sua resposta.
- É o procedimento regular em julgamentos pela água. A suspeita de bruxaria deve ter o polegar direito amarrado com uma corda de cânhamo ao dedo grande do pé esquerdo. Da mesma forma, o polegar esquerdo deve ser amarrado ao dedo grande do pé direito. Depois... - Lançou um olhar eloqüente às águas do lago. Dois pescadores estavam parados, descalços, na lama da beira do lago, as calças enroladas até acima dos joelhos e amarradas com corda. Rindo de maneira insinuante para mim, um deles pegou uma pequena pedra e atirou-a na superfície metálica. Ela resvalou uma vez e afundou. -
- Ao entrar na água — o juiz baixo acrescentou —, uma bruxa culpada flutuará, quando a pureza da água rejeitar sua pessoa maculada. Uma mulher inocente afundará.
- Então, posso escolher ser condenada como uma bruxa ou ser inocentada, mas afogada, não é? - retorqui. - Não, obrigada! - Abracei meus cotovelos com mais força ainda, tentando acalmar o tremor que parecia ter se tornado parte integrante da minha carne.
O juiz baixo estufou-se como um sapo ameaçado.
- Não fale diante desta corte sem permissão, mulher! Ousa recusar um exame legal?
- Se eu me recuso a ser afogada? Pode ter certeza que sim! - Tarde demais, vi Geilie sacudindo a cabeça freneticamente, de modo que seus cabelos louros balançavam-se em torno de seu rosto.
O juiz voltou-se para MacRae.
- Dispa-a e aplique-lhe uma surra - disse laconicamente.
Através de uma névoa de descrença, ouvi uma inalação coletiva, provavelmente de choque e horror - na verdade, de prazer antecipado. E compreendi o que o ódio realmente significava. Não o deles, mas o meu.
Não se deram ao trabalho de me levar de volta à praça da vila. No que me dizia respeito agora, eu tinha pouco a perder e não facilitei o trabalho deles.
Mãos brutais empurraram-me em frente, dando puxões na minha blusa e no corpete.
- Soltem-me, malditos ignorantes! — gritei e dei um chute em um dos homens que me empurravam bem no lugar em que surtiria mais efeito. Ele dobrou-se com um gemido, mas sua figura encolhida sumiu rapidamente numa erupção efervescente de gritos, cusparadas, olhares fulminantes. Outras mãos agarravam meus braços e me faziam avançar aos tropeções, levantando-me por cima de corpos caídos na confusão, fazendo meu corpo passar por brechas impossíveis de atravessar.
Alguém me golpeou no estômago e eu perdi a respiração. Meu corpete estava literalmente em frangalhos a essa altura, de modo que foi sem grande dificuldade que o remanescente foi arrancado. Nunca sofri de extremo recato, mas ficar de pé semi-nua diante da zombaria daquela turba rancorosa, com a marca de mãos suadas em meus seios nus, encheu-me de um ódio e humilhação que eu nem conseguia imaginar.
John MacRae amarrou minhas mãos à frente, passando uma corda trançada pelos meus pulsos, deixando um pedaço de mais de um metro. Teve a bondade de parecer envergonhado ao fazê-lo, mas recusava-se a erguer seus olhos para os meus e era claro que eu não podia esperar nem ajuda nem complacência de sua parte; ele estava tão à mercê da multidão quanto eu.
Geilie estava lá, sem dúvida recebendo o mesmo tratamento; vi de relance seus cabelos platinados, voando em uma brisa repentina. Meus braços foram esticados bem acima de minha cabeça quando a corda foi atirada por cima do galho de um enorme carvalho e firmemente esticada. Rangi os dentes e apeguei-me à minha fúria. Era a única coisa que eu possuía para combater o medo. Havia um ar de tensa expectativa, pontuada pelos murmúrios e gritos excitados da multidão de espectadores.
- Vamos, John! - gritou um deles. - Ande logo com isso!
John MacRae, sensível às responsabilidades teatrais de sua profissão, parou, o chicote mantido à altura da cintura, e inspecionou a multidão. Deu um passo à frente e delicadamente ajeitou minha posição, de modo que eu ficasse de frente para o tronco da árvore, quase tocando a casca áspera. Em seguida, recuou dois passos, ergueu o açoite e deixou-o cair.
O choque da pancada foi pior do que a dor. Na realidade, foi somente após vários golpes que percebi que o carrasco estava fazendo o que podia para me poupar o máximo possível. Ainda assim, um ou dois golpes foram suficientemente fortes para rasgar a pele; senti a ardência aguda no rastro do impacto.
Eu mantinha os olhos fechados com força, a face pressionada contra o tronco, tentando com todas as forças me distanciar da situação. Mas, de repente, ouvi algo que me trouxe imediatamente de volta para o aqui e agora.
- Claire!
Houve um pequeno afrouxamento da corda que prendia meus pulsos; o suficiente para me permitir dar uma investida que me fez dar uma meia-volta, deixando-me de frente para a multidão. Minha repentina escapada desconcertou o carrasco, que vergastou seu chicote no ar vazio, perdeu o equilíbrio e tropeçou para a frente, batendo a cabeça contra a árvore. Isso teve um ótimo efeito sobre a multidão, que urrou insultos e começou a zombar dele.
Meus cabelos cobriam meus olhos, grudavam-se no meu rosto com o suor, lágrimas e a sujeira do confinamento na prisão. Sacudi a cabeça para soltá-los e consegui ao menos um olhar de esguelha que confirmou o que os meus ouvidos haviam escutado.
Jamie abria caminho pela multidão que bloqueava sua passagem, o rosto irado, aproveitando-se sem piedade do seu tamanho e de seus músculos.
Senti-me exatamente como o general MacAuliffe em Bastogne, ao ver o III Exército de Patton despontar no horizonte. Apesar do terrível perigo para Geilie, para mim e agora para o próprio Jamie, nunca fiquei tão feliz de ver alguém.
"O marido da bruxa!", "O maldito Fraser! O defensor da Coroa!" e epítetos similares começaram a ser ouvidos entre os insultos mais gerais destinados a mim e a Geilie. "Peguem ele também!", "Queimem todos eles!" A histeria da multidão, temporariamente dispersada pelo acidente do carrasco, elevava-se mais uma vez a um grau de febre coletiva.
Impedido de avançar pelas figuras grudadas umas às outras dos assistentes do carrasco, que tentavam detê-lo, Jamie ficara encurralado. Com um homem pendurado em cada braço, esforçava-se para levar a mão ao cinto. Achando que ele tentava pegar uma faca, um dos homens deu-lhe um forte soco na barriga.
Jamie dobrou-se ligeiramente, em seguida ergueu-se, batendo um cotovelo com toda a força no nariz do homem que o atacara. Com um dos braços temporariamente livre, ignorou as frenéticas e desajeitadas tentativas de agarrá-lo do homem que estava do outro lado. Enfiou a mão na bolsa na cintura, ergueu o braço e atirou. Seu grito atingiu-me quando o objeto saiu de sua mão.
- Claire! Fique parada!
Eu não tinha muito para onde ir, pensei desnorteada. Uma mancha escura veio direto na direção do meu rosto e comecei a encolher-me para trás, mas parei a tempo. A mancha chocou-se com estardalhaço contra meu rosto e as contas negras caíram sobre meus ombros quando o rosário de azeviche, lançado como uma boleadeira, acomodou-se perfeitamente em volta do meu pescoço. Ou talvez não tão perfeitamente; o fio de contas prendeu-se na minha orelha direita. Sacudi a cabeça, os olhos lacrimejando com a dor aguda causada pelo impacto do rosário no meu rosto, e a argola acomodou-se no lugar, o crucifixo balançando vistosamente entre meus seios nus.
Os rostos na primeira fila olhavam-no fixamente, numa espécie de bestificação horrorizada. Seu repentino silêncio afetou os que estavam mais Para trás e o ruído estrondoso da fervilhante turbulência arrefeceu. A voz de Jamie, normalmente baixa e suave, mesmo quando estava com raiva, retiniu no silêncio. Não havia nada de suave naquela voz agora.
- Cortem suas amarras!
Os que o perseguiam bateram em retirada e as ondas de populacho abriam-se diante dele à medida que avançava ameaçadoramente. O carrasco via-o se aproximar, paralisado e de boca aberta.
- Eu disse para tirá-la daí! Agora! - O carrasco, libertado do seu transe pela visão apocalíptica da morte ruiva abatendo-se sobre ele, remexeu-se e tateou apressadamente em busca de sua adaga. A corda, cortada com dificuldade, finalmente cedeu com um estalido trêmulo e meus braços caíram pesadamente, doendo com a tensão liberada. Cambaleei e teria caído, se a mão forte e familiar de Jamie não tivesse agarrado meu cotovelo e me erguido. Apoiei meu rosto no peito de Jamie e nada mais importava para mim.
Devo ter perdido a consciência por alguns instantes, ou devo ter me sentido tão dominada pelo alívio que assim me pareceu. O braço de Jamie segurava-me com força pela cintura, mantendo-me em pé, e seu xale fora jogado sobre os meus ombros, protegendo-me finalmente dos olhos dos aldeões. Havia um tumulto de vozes por toda parte, mas já não era a ânsia de sangue, ensandecida e jubilosa, da multidão.
A voz de Mutt — ou seria a de Jeff— despontou na confusão.
- Quem é você? Como ousa interferir nas investigações do tribunal?
Pude sentir, mais do que ver, a multidão acotovelando-se para a frente. Jamie era grande, e estava armado, mas era apenas um homem. Encolhi-me contra seu peito sob as dobras do xale. Seu braço direito apertou-me com mais força, mas a mão esquerda aproximou-se do porta-espada em seu quadril. A lâmina azul-prateada sibilou ameaçadoramente quando saiu parcialmente de sua bainha e os que estavam à frente da multidão pararam de repente.
Os juizes eram mais difíceis de intimidar. Espreitando do meu esconderijo, podia ver Jeff fitando Jamie furiosamente. Mutt parecia mais confuso do que contrariado com a repentina intrusão.
- Ousa puxar uma arma contra a justiça de Deus? — admoestou o juiz pequeno e troncudo.
Jamie retirou a espada por inteiro, com um lampejo de aço, em seguida atirou-a de ponta no chão, deixando o punho da espada tremendo com a força do golpe.
- Tiro a arma em defesa desta mulher e da verdade - disse. - Se alguém aqui for contra essas duas, responderão a mim e depois a Deus, nessa ordem.
O juiz piscou uma ou duas vezes, como se fosse incapaz de acreditar naquele comportamento, depois retomou o ataque.
- Você não tem lugar nos trabalhos deste tribunal, senhor! Exijo que entregue a prisioneira imediatamente. O seu próprio comportamento será tratado em breve!
Jamie examinou friamente os juizes. Podia sentir seu coração batendo com toda força sob meu rosto conforme me agarrava a ele, mas suas mãos estavam firmes como rochas, uma descansando no cabo da espada e a outra na adaga em seu cinto.
- Quanto a isso, senhor, fiz um juramento diante do altar de Deus de proteger esta mulher. Se o senhor está me dizendo que considera sua própria autoridade maior do que a de Deus Todo-poderoso, então devo informar-lhe que não compartilho dessa opinião.
O silêncio que se seguiu foi quebrado por risinhos contidos e nervosos, ecoando aqui e ali. Embora as simpatias do povo não tivessem mudado para o nosso lado, ainda assim a atmosfera que nos levava à desgraça fora quebrada.
Jamie me virou com a mão no meu ombro. Eu não podia suportar encarar a multidão, mas sabia que precisava. Mantive o queixo o mais alto possível e meus olhos focalizaram-se além daqueles rostos, em um pequeno barco no centro do lago. Fixei meus olhos nele até lacrimejarem.
Jamie virou o xale, segurando-o ao meu redor, mas deixando-o cair o suficiente para mostrar meu pescoço e meus ombros. Tocou o rosário negro e deixou-o balançando levemente de um lado para o outro.
- O azeviche queima a pele das bruxas, não é? - perguntou aos juizes. - Mais ainda, eu imaginaria, o crucifixo de Nosso Senhor. Mas, olhem. -Enfiou um dedo sob as contas e levantou o crucifixo. Minha pele por baixo era absolutamente branca, sem nenhuma marca, a não ser pelas manchas de sujeira do cativeiro. Ouviu-se uma arfada e um murmúrio da multidão.
Uma coragem brutal, uma presença de espírito glacial e aquele instinto para o espetáculo. Colum MacKenzie tinha razão em ficar apreensivo com as ambições de Jamie. E considerando seu medo de que eu pudesse revelar a paternidade de Hamish, ou o que ele achava que eu sabia a respeito, o que fizera comigo também era compreensível. Compreensível, não perdoável.
O humor da multidão ia de um lado ao outro, indeciso. A sede de sangue que os impulsionara antes se dissipava, mas ainda podia levantar-se como uma onda e nos esmagar. Mutt e Jeff entreolharam-se, sem saber o que fazer; desconcertados com os últimos desdobramentos, os juizes haviam perdido controle da situação momentaneamente.
Geillis Duncan deu um passo à frente na clareira que se formara. Não sei se havia esperança para ela naquele ponto ou não. De qualquer modo, ela atirou os cabelos louros desafiadoramente para trás de um dos ombros e jogou fora sua vida.
- Esta mulher não é nenhuma bruxa — disse simplesmente. — Mas eu sou.
O espetáculo encenado por Jamie, por melhor que tivesse sido, não se comparava a este. A comoção resultante abafou completamente as vozes dos juizes, que questionavam e exclamavam.
Não havia nenhuma pista quanto ao que ela pensava ou sentia, como nunca houve antes; sua fronte branca e alta estava límpida, os grandes olhos verdes brilhavam parecendo se divertir. Permaneceu ereta em seus trajes rasgados e imundos, fitando seus acusadores. Quando o tumulto amainou um pouco, ela começou a falar, sem se dignar a elevar a voz, mas obrigando-os a silenciarem para ouvi-la.
- Eu, Geillis Duncan, confesso que sou uma bruxa e amante de Satanás. — A declaração causou um novo clamor e ela esperou com absoluta paciência que se calassem.
- Em obediência ao meu Mestre, confesso que matei meu marido, Arthur Duncan, por meio de bruxaria. - Com isso, olhou para o lado, encontrando meus olhos, e um leve sorriso tocou seus lábios. Seus olhos se detiveram sobre a mulher de xale amarelo, mas não se enterneceram. - Por maldade, coloquei um feitiço na criança trocada, para que morresse, e que a criança humana que ela substituía permanecesse com as fadas. — Virou-se e fez um gesto em minha direção.
- Aproveitei-me da ignorância de Claire Fraser, usando-a para meus propósitos. Mas ela não tomou parte nem teve conhecimento dos meus atos, nem ela serve ao meu Mestre.
A multidão sussurrava outra vez, as pessoas acotovelando-se para ver melhor, empurrando-se para se aproximar. Ela estendeu os dois braços para eles, as palmas das mãos voltadas para fora.
- Para trás! - A voz límpida estalou como um chicote, com o mesmo efeito. Inclinou a cabeça para os céus e ficou imóvel, como se ouvisse.
- Ouçam! — disse. — Ouçam o vento de sua chegada! Cuidado, povo de Cranesmuir! Porque meu Mestre vem nas asas do vento! - Abaixou a cabeça e gritou, um som agudo e assustador de triunfo. Os grandes olhos verdes estavam fixos e arregalados, como se estivesse em transe.
O vento estava aumentando. Pude ver as nuvens de tempestade atravessando o outro extremo do lago. As pessoas começaram a olhar à volta com nervosismo. Algumas se afastaram da multidão.
Geilie começou a girar, rodopiando sem parar, os cabelos agitando-se ao vento, a mão graciosamente acima da cabeça como uma dançarina. Eu a observava numa incredulidade perplexa.
Enquanto girava, os cabelos ocultaram seu rosto. Na última volta, entretanto, sacudiu a cabeça para jogar a cabeleira loura para o lado e vi seu rosto com absoluta clareza, olhando para mim. A máscara de transe havia desaparecido momentaneamente e sua boca formou uma única palavra. Depois girou novamente e ficou de frente para a multidão recomeçando sua aterradora gritaria.
A palavra fôra "Fujam!"
Parou de rodopiar repentinamente e com um olhar de êxtase alucinado, agarrou os remanescentes de seu corpete com as duas mãos e rasgou-o na frente. Rasgou-o o suficiente para mostrar à multidão o segredo que eu descobrira, aconchegada a ela na imundície do buraco dos ladrões. O segredo que Arthur Duncan descobrira pouco antes de sua morte. O segredo pelo qual ele havia morrido. Os farrapos de sua camisola de baixo afastaram-se, revelando o volume de sua gravidez de seis meses.
Continuei imóvel como uma pedra, olhando-a sem desviar os olhos. Jamie não teve a mesma hesitação. Agarrando-me com uma das mãos e com a espada na outra, atirou-se na multidão, derrubando as pessoas em sua passagem com cotovelos, joelhos e o cabo da espada, abrindo caminho em direção à beira do lago. Soltou um assovio agudo pelo meio dos dentes.
Atentos ao espetáculo sob o carvalho, poucas pessoas perceberam inicialmente o que estava acontecendo. Em seguida, quando alguns indivíduos começaram a gritar e a tentar nos agarrar, ouviu-se o barulho de cascos a galope na terra batida acima da margem.
Donas continuava a não gostar muito de gente e estava mais do que disposto a demonstrá-lo. Mordeu a primeira mão que tentou segurar suas rédeas e um homem caiu para trás, gritando e sangrando. O cavalo empinava-se, relinchando e agitando as patas no ar, e os poucos ousados que ainda tentavam segurá-lo logo perderam o interesse.
Jamie jogou-me em cima da sela como uma saca de cereais e ele próprio montou com um único movimento ágil. Varrendo o caminho com violentos golpes de espada, conduziu Donas pela confusa massa formada pela multidão. Conforme as pessoas caíam sob o massacre de dentes, cascos e lâmina, ganhamos velocidade, deixando o lago, a vila e Leoch para trás. Sem conseguir respirar com o impacto, esforçava-me para falar, para gritar para Jamie.
Porque eu não havia ficado paralisada com a revelação da gravidez de Geilie. Foi outra coisa que eu vi que me enregelou até a medula dos ossos. Enquanto Geilie girava, os braços estendidos para cima, vi o que ela vira quando minhas próprias roupas foram arrancadas. Uma marca em um dos braços igual à que eu carregava. Ali, naquela época, a marca da feitiçaria, a marca de um mago. A cicatriz pequena e feia de uma vacina contra varíola.
A chuva açoitava a água, acalmando meu rosto inchado e os arranhões da corda nos meus pulsos. Enfiei as mãos em concha no córrego e bebi a água devagar, sentindo o líquido frio gotejar pela minha garganta com um sentimento de gratidão.
Jamie desapareceu por alguns minutos. Voltou com um punhado de folhas verde-escuras, achatadas nas pontas, mastigando alguma coisa. Cuspiu um bolo de folhas verdes maceradas na palma da mão, enfiou outro punhado de folhas na boca e virou-me de costas para ele. Esfregou as folhas mastigadas delicadamente em minhas costas e as aguilhoadas diminuíram consideravelmente.
- O que é isso? — perguntei, fazendo um esforço para me controlar. Ainda estava trêmula e chorosa, mas as lágrimas involuntárias começavam a recuar.
- Agrião - respondeu, a voz ligeiramente abafada pelas folhas na boca. Cuspiu-as e aplicou-as nas minhas costas. — Você não é a única que sabe um pouco de cura com ervas, Sassenach — ele disse, com mais clareza.
- Que... que gosto tem? — perguntei, engolindo os soluços.
- Bem ruim — respondeu laconicamente. Terminou sua aplicação e colocou o xale suavemente de volta nos meus ombros.
- Não vai... — começou, depois hesitou. - Quero dizer, os cortes não são profundos. Eu... eu acho que você não ficará... marcada. - Falava com a voz rouca, mas o toque de suas mãos era muito suave, reduzindo-me às lágrimas outra vez.
- Desculpe-me - balbuciei, enxugando o nariz numa ponta do xale. -Eu... eu não sei o que há de errado comigo. Não sei por que não consigo parar de chorar.
Ele encolheu os ombros.
- Suponho que ninguém tentou feri-la de propósito antes, Sassenach -ele disse. - Provavelmente é o choque disto, tanto quanto a dor. — Parou, pegando uma ponta do xale.
- Aconteceu o mesmo comigo, moça - disse com franqueza. -Vomitava e gritava enquanto limpavam os cortes. Depois, comecei a tremer. - Limpou meu rosto cuidadosamente com o xale, depois colocou a mão sob meu queixo e ergueu meu rosto para o dele.
- E quando parei de tremer, Sassenach - disse serenamente -, agradeci a Deus pela dor, porque significava que eu estava vivo. - Soltou-me, balançando a cabeça para mim. - Quando chegar a esse ponto, menina, diga-me; porque eu tenho uma ou duas coisas a lhe dizer.
Levantou-se e desceu para a beira do córrego, para lavar o lenço manchado de sangue na água fria.
- O que o trouxe de volta? - perguntei, quando ele retornou. Conseguira parar de chorar, mas ainda tremia e encolhi-me ainda mais nas dobras do xale.
- Alec MacMahon - ele disse, sorrindo. - Eu disse a ele para ficar de olho em você enquanto eu estivesse fora. Quando o pessoal da vila prendeu você e a sra. Duncan, ele cavalgou a noite inteira e todo o dia seguinte para me encontrar. E então eu cavalguei como o próprio diabo de volta. Meu Deus, este é um ótimo cavalo. - Olhou com aprovação para Donas em cima do barranco, amarrado a uma árvore na beira elevada da margem, seu pêlo molhado brilhando como cobre.
- Tenho que levá-lo para outro lugar - disse, pensativamente. -Duvido que alguém venha atrás de nós, mas não estamos muito longe de Cranesmuir. Já consegue andar?
Segui-o pelo barranco íngreme com alguma dificuldade, pequenos cascalhos rolando sob meus pés e samambaias e arbustos espinhosos agarrando-se às minhas saias. Perto do topo da encosta havia um bosque de amieiros novos, crescidos tão juntos que os galhos mais baixos entrelaçavam-se, formando um teto verde acima das samambaias no solo. Jamie afastou os galhos para cima o suficiente para que eu pudesse me arrastar para dentro do pequeno espaço, depois rearranjou cuidadosamente as samambaias quebradas na entrada. Deu um passo para trás e examinou o esconderijo com ar crítico, balançando a cabeça com satisfação.
- Sim, assim está bem. Ninguém a encontrará aí. — Virou-se para ir, depois voltou. — Tente dormir, se puder, e não se preocupe se eu não voltar logo. Vou caçar um pouco na volta; não temos nenhuma comida e não quero atrair atenção parando em uma fazenda. Puxe o xale por cima da cabeça e certifique-se de que ele cubra sua camisola; o branco chama atenção a uma grande distância.
Comida parecia irrelevante; sentia como se nunca mais fosse querer comer outra vez. Dormir era diferente. Minhas costas e braços ainda doíam, as esfoladuras da corda nos meus pulsos estavam em carne viva e sentia-me dolorida e machucada por todo o corpo; mas esgotada de medo, dor e simples exaustão, adormeci quase imediatamente, o cheiro penetrante das samambaias erguendo-se ao meu redor como incenso.
Acordei com alguma coisa agarrando meu pé. Assustada, sentei-me num salto, batendo com a cabeça nos galhos flexíveis acima. Folhas e pequenos galhos derramaram-se sobre mim e agitei os braços freneticamente, tentando desembaraçar meus cabelos dos galhinhos pontudos. Arranhada, descabelada e irritada, arrastei-me para fora do meu santuário para deparar-me com Jamie, agachado ali perto, divertindo-se com o meu surgimento. Estava quase anoitecendo, o sol já descera abaixo da faixa do córrego, deixando o pedregoso desfiladeiro às escuras. O cheiro de carne na brasa erguia-se de uma pequena fogueira ardendo entre as pedras perto do córrego, onde dois coelhos eram assados em um espeto improvisado, feito de varas verdes afiadas.
Jamie estendeu a mão para me ajudar a descer o barranco. Arrogantemente, declinei a oferta e deslizei sozinha para baixo, tropeçando apenas uma vez nas pontas esvoaçantes do xale. Minha náusea anterior desaparecera e devorei a carne avidamente.
- Vamos subir mais para dentro da floresta depois do jantar, Sassenach -- Jamie disse, arrancando uma perna da carcaça do coelho. - Não quero dormir perto do córrego; não posso ouvir ninguém se aproximando acima do barulho da água.
Não houve muita conversa enquanto comíamos. O horror da manhã e a idéia do que havíamos deixado para trás nos oprimiam. E para mim havia um profundo sentimento de luto. Eu havia perdido não só a chance de descobrir o porquê da minha presença ali, mas uma amiga também. Minha única amiga. Eu sempre tivera dúvidas sobre as intenções de Geilie, mas não tinha a menor dúvida de que ela salvara a minha vida hoje de manhã. Sabendo que estava fadada à condenação, fizera o melhor possível para me dar uma oportunidade de fugir. O fogo, quase invisível à luz do dia, ficava mais brilhante agora, conforme a escuridão tomava conta do córrego. Fitei as chamas, vendo a pele tostada e os ossos marrons dos coelhos em seus espetos. Uma gota de sangue de um osso quebrado caiu nas chamas, chiando e desaparecendo. De repente, a carne parou na minha garganta. Coloquei-a apressadamente junto ao fogo e me virei, com ânsias de vômito.
Ainda sem falar muito, afastamo-nos do riacho e encontramos um lugar confortável à margem de uma clareira na floresta. Colinas erguiam-se em montes ondulantes à nossa volta, mas Jamie escolhera um lugar elevado, com uma boa visão da estrada que vinha da vila. A penumbra realçou momentaneamente todas as cores do campo, iluminando a terra com jóias; uma brilhante esmeralda no vale, uma ametista adoravelmente matizada entre as moitas de urzes e rubis escarlates nos frutos vermelhos das sorveiras que coroavam as colinas. Frutos da sorveira, um remédio específico contra feitiçaria. Ao longe, os contornos do Castelo Leoch ainda eram visíveis ao sopé de Ben Aden. Desfizeram-se rapidamente enquanto a luz se extinguia.
Jamie fez uma fogueira em um local protegido e sentou-se ao lado. A chuva reduzira-se a uma garoa fina que deixava uma neblina no ar e decorava minhas pestanas com arco-íris quando olhava para as chamas.
Ficou sentado fitando o fogo por um longo tempo. Finalmente, ergueu os olhos para mim, as mãos unidas em volta dos joelhos.
- Eu disse antes que não lhe perguntaria nada que não quisesse me contar. E não lhe perguntaria agora, mas tenho que saber, para a sua segurança, assim como para a minha. — Parou, hesitante.
- Claire, se nunca foi honesta comigo, seja agora, porque tenho que saber a verdade. Claire, você é uma bruxa?
Fiquei boquiaberta.
- Uma bruxa? Você... você não pode realmente estar fazendo esta pergunta. - Achei que devia estar brincando. Não estava.
Segurou-me pelos ombros e agarrou-me com força, olhando dentro dos meus olhos como se quisesse me obrigar a responder.
- Eu tenho que perguntar, Claire! E você precisa me dizer!
- E se eu fosse? - perguntei entre os lábios secos. - Se achasse que eu fosse uma bruxa, ainda assim teria lutado por mim?
- Teria ido para a fogueira com você! — disse, com violência. - E até para o inferno, se necessário. Mas que Jesus Cristo tenha piedade da minha alma e da sua, diga-me a verdade!
A tensão de tudo aquilo me atingiu. Livrei-me de suas mãos e corri pela clareira. Não muito longe, somente até o limite das árvores; não podia expor-me em local aberto. Agarrei-me a uma árvore; envolvi-a com meus braços e finquei as unhas com força em seu tronco, pressionei o rosto contra ela e desatei numa tagarelice fina e histérica.
O rosto de Jamie, pálido e chocado, surgiu do outro lado da árvore. Com a vaga percepção de que o que eu estava fazendo devia soar como uma risada assustadora, fiz um incrível esforço e parei. Arquejando, fitei-o por um instante.
- Sim - eu disse, recuando, ainda arfando com acessos de riso incontido. - Sim, sou uma bruxa! Para você, devo ser. Nunca tive varíola, mas posso caminhar por um salão cheio de moribundos e não pegar a doença. Posso cuidar dos doentes e respirar o mesmo ar que eles e tocar em seus corpos e, ainda assim, a doença não pode me atingir. Também não pego cólera, ou tétano ou uma inflamação mórbida da garganta. E você deve achar que é um encantamento, porque nunca ouviu falar de vacinas e não existe nenhuma outra forma de você explicar isso.
- O que eu sei... - Parei de recuar e permaneci imóvel, respirando pesadamente, tentando me controlar. - Sei a respeito de John Randall porque me falaram dele. Sei quando ele nasceu e quando vai morrer, sei sobre o que ele fez e o que fará, sei a respeito de Sandringham porque... porque Frank me contou. Ele sabia a respeito de Randall porque ele... ele... ah, meu Deus! — Senti-me como se fosse desmaiar e cerrei os olhos para que as estrelas acima de minha cabeça parassem de girar.
- E Colum... ele acha que sou uma bruxa porque eu sei que Hamish não é seu filho. Eu sei... que ele não pode gerar filhos. Mas ele achou que eu sabia quem é o pai de Hamish... Achei que talvez fosse você, mas depois soube que não podia ser e... - Eu falava cada vez mais rápido, tentando controlar a vertigem com o som da minha própria voz.
- Tudo que já lhe disse a meu respeito é verdade - disse, balançando a cabeça loucamente como se quisesse me acalmar. — Tudo. Eu não tenho família, não tenho ninguém, não tenho nenhuma história, porque eu ainda não aconteci.
- Sabe quando eu nasci? — perguntei, erguendo os olhos. Sabia que meus cabelos estavam desgrenhados e meus olhos estatelados, mas não me importava. - No dia 20 de outubro, do ano da Graça de 1918. Você me ouviu? - perguntei, porque ele piscava para mim, paralisado, como se não prestasse atenção a nenhuma palavra do que eu dizia. - Eu disse mil novecentos e dezoito! Quase daqui a duzentos anos! Está me ouvindo? Eu gritava agora e ele balançou a cabeça devagar.
- Estou ouvindo - respondeu brandamente.
- Sim, você está ouvindo! — gritei, enfurecida. — E acha que estou completamente louca. Não é? Admita! É o que está pensando. Você tem que pensar assim, não existe nenhuma outra maneira de poder explicar quem sou para si mesmo. Você não pode acreditar em mim, não pode ousar acreditar em mim. Ah, Jamie... - Senti meu rosto se desmoronar. Todo esse tempo tentando esconder a verdade, compreendendo que jamais poderia contar a ninguém, e agora eu percebia que podia ter contado a Jamie, meu amado marido, o homem em quem eu confiava acima de todas as pessoas, e ele também não iria - não poderia acreditar em mim.
- Foram as pedras, na colina das fadas. No círculo de pedras. As pedras de Merlin. Foi por lá que passei. — Eu arquejava, entre soluços, cada vez mais incoerente. - Houve um tempo em que..., mas na verdade são duzentos anos. São sempre duzentos anos nas histórias... Mas nas histórias, as pessoas sempre voltam. Eu não pude voltar. - Virei-me, cambaleando, procurando onde me apoiar. Deixei-me cair sobre uma pedra, os ombros arqueados, e enterrei a cabeça nas mãos. Houve um longo silêncio na floresta. Continuou o suficiente para que as pequenas aves noturnas recobrassem a coragem e começassem seus ruídos outra vez, chamando umas às outras com um piado agudo e frágil, conforme caçavam os últimos insetos do verão.
Ergui os olhos finalmente, pensando que talvez ele simplesmente se levantara e fora embora, acabrunhado com minhas revelações. Mas ele continuava lá, ainda sentado, as mãos abraçando os joelhos, a cabeça baixa como se meditasse.
Os cabelos em seus braços brilhavam, rígidos como fios de cobre à luz do fogo e compreendi que estavam arrepiados, como os pêlos de um cachorro. Ele estava com medo de mim.
- Jamie - eu disse, sentindo meu coração sucumbir com uma solidão absoluta. - Ah, Jamie.
Sentei-me e encolhi-me numa bola, tentando envolver o núcleo da minha dor. Nada mais importava e solucei incontrolavelmente.
Suas mãos em meus ombros me levantaram, o suficiente para eu ver seu rosto. Através da névoa de lágrimas, vi o olhar que ele ostentava em combate, de luta que ultrapassara o ponto de tensão e se tornara uma tranqüila certeza.
- Eu acredito em você — disse com firmeza. — Não entendo nada, ainda não, mas acredito em você. Claire, eu acredito em você! Ouça-me.
Existe a verdade entre nós, você e eu, e o que quer que você me diga, eu acreditarei. - Deu-me uma leve sacudidela.
- Não importa o que seja. Você me contou. É o suficiente por enquanto. Fique calma, mo duinne. Deite-se e descanse. Você me contará o resto depois. E eu vou acreditar em você.
Eu ainda soluçava, incapaz de entender o que ele me dizia. Debati-me, tentando me desvencilhar, mas ele me ergueu e abraçou-me com força contra seu peito, pressionando minha cabeça nas dobras de seu xale e repetindo incessantemente:
- Eu acredito em você.
Finalmente, por pura exaustão, acalmei-me o suficiente para erguer os olhos e dizer:
- Mas você não pode acreditar em mim.
Sorriu para mim. Sua boca estremeceu ligeiramente, mas ele sorriu.
- Não me diga o que eu posso ou não posso fazer, Sassenach. — Parou por um instante. - Quantos anos você tem? - perguntou, curioso. - Nunca pensei em perguntar.
A pergunta parecia tão absurda que precisei de um instante para pensar.
- Tenho vinte e sete... ou talvez vinte e oito — acrescentei. Isso o abalou por um instante. Aos vinte e oito, as mulheres na época dele geralmente estavam às portas da meia-idade.
- Ah - exclamou. Respirou fundo. - Pensei que fosse mais ou menos da minha idade... ou mesmo mais nova.
Ele não se moveu por um segundo. Entretanto, em seguida, olhou para mim e esboçou um sorriso. - Feliz aniversário, Sassenach — disse.
Aquilo me pegou inteiramente de surpresa e apenas fitei-o apalermada por um instante.
- O quê? - consegui finalmente dizer.
- Eu disse "Feliz Aniversário". Hoje é dia 20 de outubro.
- É mesmo? - exclamei estupidamente. - Perdi a conta. - Tremia novamente, do frio, do choque e da força do meu discurso. Ele puxou-me novamente contra si e me abraçou, passando as mãos grandes pelos meus cabelos, aconchegando minha cabeça contra seu peito. Comecei a chorar outra vez, mas agora de alívio. No meu estado de perturbação, parecia lógico que se ele sabia a minha idade verdadeira e ainda me queria, tudo iria ficar bem.
Jamie pegou-me no colo e segurando-me cuidadosamente nos braços, carregou-me até a beira do fogo, onde colocara a sela do cavalo. Sentou-se, recostando-se contra a sela, e ficou segurando-me, de leve e bem junto ao seu corpo.
Muito tempo depois, falou.
- Muito bem. Agora, me conte.
Contei-lhe toda a história. Contei-lhe tudo, parando de vez em quando, mas de forma coerente. Sentia-me dormente de exaustão, mas contente, como um coelho que conseguiu fugir de uma raposa e encontra abrigo temporário debaixo de um tronco. Não é um santuário, mas ao menos é uma trégua. E contei-lhe a respeito de Frank.
- Frank — ele disse brandamente. — Então, ele não está morto, afinal.
- Ele ainda não nasceu. — Senti uma nova onda de histeria quebrar-se contra minhas costelas, mas consegui manter o controle. - Nem eu.
Ele me acariciou e alisou, até eu voltar à calma, murmurando docemente pequenas palavras em gaélico.
- Quando a resgatei das garras de Randall em Fort William — disse de repente — você estava tentando voltar. Voltar ao círculo de pedras. E... Frank. Foi por isso que abandonou o bosque.
- Sim.
- E eu a surrei por isso. - Sua voz era baixa de arrependimento.
- Você não tinha como saber. Eu não podia lhe contar. — Estava começando a me sentir muito sonolenta.
- Não, imagino que não. - Ajeitou o xale mais junto de mim, prendendo as pontas delicadamente em volta dos meus ombros. — Durma agora, mo duinne. Ninguém vai lhe causar mal, eu estou aqui.
Aconcheguei-me na curva cálida de seu ombro, deixando que minha mente exausta deslizasse pelas camadas do esquecimento. Forcei-me à superfície o tempo suficiente para perguntar:
- Você realmente acredita em mim, Jamie? Ele suspirou e sorriu melancolicamente.
- Sim, acredito em você, Sassenach. Mas teria sido muito mais fácil se você fosse apenas uma bruxa.
Dormi como um morto, acordando algum tempo depois do alvorecer com uma terrível dor de cabeça, com todos os músculos rígidos. Jamie tinha alguns punhados de aveia em um saquinho dentro da bolsa em sua cintura e me forçou a comer um mingau de aveia com água. Ficou preso em minha garganta, mas forcei-me a engolir.
Ele foi lento e delicado comigo, mas falou muito pouco. Depois do desjejum, rapidamente reuniu os apetrechos do pequeno acampamento e colocou a sela em Donas.
Entorpecida com o choque dos últimos acontecimentos, nem perguntei aonde estávamos indo. Montada atrás dele, estava satisfeita em encostar meu rosto em suas costas largas, sentindo o movimento do cavalo embalar-me a um estado de transe desmemoriado.
Descemos as escarpas próximas ao lago Madoch, avançando pela gélida névoa matinal até a borda da superfície cinza e imóvel. Patos selvagens começaram a se erguer dos juncos em bandos irregulares que voavam ao redor dos pântanos, grasnindo e chamando para acordar os dorminhocos embaixo. Em contraste, um bem disciplinado bando de gansos voando numa formação em cunha passou acima de nós, com gritos de desolação e tristeza.
A névoa cinza dispersou-se por volta de meio-dia no segundo dia e um sol fraco iluminou as campinas repletas de tojos amarelos e giestas. Alguns quilômetros depois do lago, saímos numa estrada estreita e viramos para noroeste. O caminho nos levou para o alto outra vez, a colinas baixas e suaves que gradualmente deram lugar a rochedos e picos de granito. Encontramos poucos viajantes na estrada e prudentemente entrávamos no mato toda vez que ouvíamos barulho de cascos de cavalos à frente.
A vegetação transformou-se em floresta de pinheiros. Respirei fundo, apreciando o ar límpido e resinoso, embora esfriasse ao anoitecer. Paramos para passar a noite em uma pequena clareira a certa distância do caminho. Ajuntamos um amontoado de agulhas de pinheiro, como um ninho, cobrimos com cobertores e nos aconchegamos para nos aquecer, cobertos pelo xale de Jamie e um cobertor.
Acordou-me durante a noite e fez amor comigo, devagar e ternamente, sem falar. Vi as estrelas cintilando através da trama de galhos negros acima de nossas cabeças e adormeci novamente com o peso reconfortante de seu corpo ainda quente sobre o meu.
Pela manhã, Jamie parecia mais alegre, ou ao menos mais tranqüilo, como se uma decisão difícil tivesse sido alcançada. Prometeu-me chá quente para o jantar, que era um pequeno conforto no ar gelado. Sonolentamente, segui-o de volta à trilha, limpando agulhas dos pinheiros e pequenas aranhas das minhas saias. O caminho estreito diminuiu durante a manhã, dando numa trilha indistinta entre ásperas touceiras de festuca, ziguezagueando em torno de rochas mais proeminentes.
Eu prestava pouca atenção às cercanias, pois sonhadoramente aproveitava o calor crescente do sol, mas de repente meus olhos depararam-se com uma formação rochosa familiar e acordei do meu torpor. Sabia onde estávamos. E por quê.
— Jamie!
Virou-se com a minha exclamação.
— Não sabia? — perguntou com curiosidade.
— Que estávamos vindo para cá? Não, claro que não. — Senti-me levemente nauseada. A colina de Craig na Dun estava a pouco mais de um quilômetro de distância; podia ver sua forma corcunda através dos últimos fragmentos da neblina da manhã.
Engoli em seco. Tentava há seis meses chegar a este lugar. Agora que finalmente estava ali, queria estar em qualquer outro lugar. As pedras eretas no topo da colina eram invisíveis de baixo, mas parecia emanar um terror sutil que me alcançava.
Bem abaixo do cume, o solo ficou acidentado demais para Donas. Desmontamos e o amarramos a um pinheiro pequeno, continuando a pé.
Eu arfava e suava quando alcançamos a saliência do rochedo; Jamie não demonstrava nenhum sinal de cansaço, a não ser um ligeiro rubor junto à gola de sua camisa. Estava silencioso ali acima dos pinheiros, mas com um vento regular zumbindo fracamente nas fendas da rocha. Andorinhas passaram zunindo, erguendo-se bruscamente nas correntes de ar à cata de insetos, mergulhando como bombardeiros, as asas delgadas estendidas.
Jamie segurou minha mão para me puxar para o último degrau da saliência larga e plana de granito na base da rocha. Não a soltou, mas puxou-me para junto dele, olhando-me cuidadosamente, como se quisesse memorizar minhas feições.
- Por que...? - comecei a dizer, tentando recuperar o fôlego.
- É o seu lugar - disse duramente. - Não é?
- Sim. - Eu olhava hipnotizada para o círculo de pedras. - Parece exatamente igual.
Jamie seguiu-me ao centro do círculo. Segurando-me pelo braço, caminhou com firmeza até a pedra dividida em duas.
- É esta aqui? - perguntou.
- Sim. - Tentei afastar-me. - Cuidado! Não se aproxime! — Olhou de mim para a pedra, obviamente cético. Talvez tivesse razão. De repente, senti-me em dúvida da veracidade de minha própria história.
- Eu... eu não sei nada sobre ela. Talvez a... o que quer que fosse... tenha se fechado atrás de mim. Talvez só funcione em determinadas épocas do ano. Estava próximo do Beltane quando a atravessei.
Jamie olhou para o sol por cima do ombro, um disco plano pendurado no meio do céu por trás de uma fina cortina de nuvens.
- Já é quase Samhain, o início do inverno - ele disse. - Ali Hallows. Parece adequado, não? - Estremeceu involuntariamente, apesar da piada. -Quando você... atravessou. O que fez?
Tentei me lembrar. Sentia-me congelada e prendi as mãos debaixo dos braços.
- Andei em volta do círculo, olhando tudo. Mas aleatoriamente, não havia nenhuma forma especial. Então, cheguei perto da pedra fendida e ouvi um zumbido, como o de abelhas.
Ainda era como abelhas. Recuei como se fosse o chocalho de uma cobra.
- Ainda está aqui! — Recuei em pânico, atirando os braços em volta de Jamie, mas ele me segurou firmemente longe dele, o rosto lívido, e virou-me outra vez em direção à pedra.
- E depois? - O vento uivante penetrava em meus ouvidos, mas sua voz era ainda mais contundente.
- Coloquei a mão sobre a rocha.
- Faça isto, então. - Empurrou-me para mais perto e quando eu não reagi, ele segurou meu pulso e plantou minha mão com firmeza contra a superfície listrada.
Fez-se o caos e ele apoderou-se de mim.
Finalmente, o sol parou de girar atrás dos meus olhos e os gritos agudos desapareceram dos meus ouvidos. Havia um outro barulho persistente, Jamie chamando meu nome.
Sentia-me fraca demais para me erguer ou abrir os olhos, mas sacudi a mão fracamente, para que ele soubesse que eu ainda estava viva.
- Estou bem - disse.
- Está mesmo? Ah, meu Deus, Claire! — Apertou-me contra o peito, abraçando-me com força. — Meu Deus, Claire. Pensei que estivesse morta. Você... você começou a... ir embora, de certa forma. Tinha a expressão mais terrível no rosto, como se estivesse apavorada. Eu... eu a puxei de volta da pedra. Eu a impedi. Não devia ter feito isso. Sinto muito, Sassenach.
Meus olhos estavam suficientemente abertos agora para ver seu rosto acima do meu, aturdido e assustado.
- Está tudo bem. — Ainda tinha dificuldade para falar e sentia-me pesada e desorientada, mas voltava gradativamente ao normal. Tentei sorrir, mas meus lábios apenas se contorceram.
- Ao menos... sabemos... que ainda funciona.
- Ah, meu Deus. Sim, funciona. — Lançou um olhar fulminante, de ódio e temor, à pedra.
Deixou-me pelo tempo de ir molhar um lenço em uma poça de água da chuva em uma depressão nas rochas. Umedeceu meu rosto, ainda murmurando palavras de conforto e desculpas. Por fim, senti-me bem o suficiente para me sentar.
- Você não acreditava em mim, não é mesmo? - Apesar de sentir-me tonta e vacilante, sentia-me de certa forma vingada. — Mas é verdade.
- Sim, é verdade. — Sentou-se ao meu lado, fitando a pedra por vários minutos. Esfreguei o lenço molhado no rosto, ainda fraca e zonza. De repente, pôs-se de pé num salto, caminhou até a rocha e espalmou a mão sobre ela.
Nada aconteceu e, após um minuto, seus ombros baixaram e ele voltou para mim.
- Talvez só funcione com mulheres - eu disse, confusa. - As lendas sempre falam de mulheres. Ou talvez seja apenas eu.
- Bem, não funciona comigo - disse. - Mas é melhor me certificar.
- Jamie! Cuidado! - gritei, em vão. Ele marchou para a pedra, colocou a mão espalmada sobre ela outra vez, atirou-se contra ela, passou pela fenda e voltou por ela outra vez, mas a pedra continuou sendo apenas um monólito maciço. Quanto a mim, estremeci diante da idéia de sequer me aproximar daquela porta para a loucura novamente.
Mesmo assim. Mesmo assim, quando comecei a passar para o reino do caos desta vez, eu estava pensando em Frank. E eu o senti, tinha certeza. Em algum lugar no vácuo havia um pontinho de luz e ele estava lá. Eu soube. Também soube que havia um outro ponto de luz, que ainda estava sentado ao meu lado, fitando a pedra, o rosto brilhando de suor, apesar do frio do dia.
Finalmente, ele voltou-se para mim e segurou minhas duas mãos. Levou-as aos lábios e beijou cada uma formalmente.
- Minha mulher - disse docemente. - Minha... Claire. Não adianta esperar. Tenho que deixá-la agora.
Meus lábios estavam rígidos demais para que eu pudesse falar, mas a expressão do meu rosto devia ser facilmente legível como sempre.
- Claire - disse, ansiosamente -, é a sua própria época do outro lado da... desta coisa. Você tem um lar, um lugar lá. Tudo com que está acostumada. E... Frank.
- Sim — eu disse. — Frank está lá.
Jamie segurou-me pelos ombros, colocando-me de pé e sacudindo-me delicadamente numa súplica.
- Não há nada para você deste lado, menina! Nada, a não ser violência e perigo. Vá! — Empurrou-me levemente, virando-me na direção do círculo de pedras. Virei-me para ele novamente, segurando suas mãos.
- Não há realmente nada para mim aqui, Jamie? - Fitei-o nos olhos, não permitindo que se desviasse de mim.
Ele livrou-se delicadamente de minhas mãos sem responder e ficou parado, de repente uma figura de outra época, vista em alto-relevo sobre um fundo de colinas nebulosas, a vida em seu rosto apenas um truque da rocha sombreada, como que aplainada sob camadas de tinta, a reminiscência de um pintor de lugares e paixões esquecidas que viraram pó.
Olhei dentro de seus olhos, cheios de dor e anseio, e ele se tornou de carne e osso outra vez, real e imediato, amante, marido, homem.
A angústia que eu sentia devia estar refletida em meu rosto, porque ele hesitou, depois se virou para leste e apontou para baixo do declive.
- Está vendo atrás do pequeno grupo de carvalhos lá embaixo? ou menos a meio caminho.
Vi o grupo de árvores e vi o que ele estava apontando, a cabana de lavrador, parcialmente em ruínas, abandonada na colina assombrada.
- Vou descer para aquela casa e ficar lá até o anoitecer. Para ter certeza... para ter certeza de que você está segura. - Olhou para mim, mas não fez nenhum gesto para me tocar. Cerrou os olhos, como se não suportasse mais olhar para mim.
- Adeus - disse, virando-se e partindo.
Fiquei observando-o, paralisada, e então me lembrei. Havia algo que eu precisava dizer-lhe. Chamei-o.
- Jamie!
Ele parou e ficou imóvel por um instante, lutando para controlar seu rosto. Estava lívido e extenuado e seus lábios estavam exangues quando se voltou de novo para mim.
-Sim?
- Há uma coisa... quero dizer, tenho que lhe dizer uma coisa antes... antes de partir.
Ele fechou os olhos por um instante e acho que oscilou, mas deve ter sido apenas o vento agitando seu kilt.
- Não é preciso — ele disse. — Não. Vá, menina. Não devia se demorar. Vá. - Fez menção de virar-se, mas segurei-o pela manga da camisa.
- Jamie, ouça-me! Você precisa me ouvir! - Ele sacudiu a cabeça, desarvorado, erguendo uma das mãos como se quisesse me afastar.
- Claire... não. Não posso. - O vento fazia seus olhos lacrimejarem.
- É a Conspiração Jacobita — eu disse, ansiosamente, sacudindo seu braço. -Jamie, ouça. O príncipe Carlos, seu exército. Colum está certo! Está me ouvindo, Jamie! Colum está certo, não Dougal.
- Hein? O que quer dizer? - Eu tinha sua atenção agora. Passou a manga da camisa pelo rosto e os olhos que se detiveram em mim estavam desanuviados e atentos. O vento uivava em meus ouvidos.
- Príncipe Carlos. Haverá uma rebelião, Dougal tem razão sobre isso, mas não será vitoriosa. O exército de Carlos Eduardo vai se sair bem por algum tempo, mas tudo terminará num grande massacre. Em Culloden, é lá que vai terminar. Os... os clãs... - Mentalmente, via as lápides dos clãs, as pedras cinzas que ficariam espalhadas pelo campo, cada uma ostentando apenas o nome do clã dos homens massacrados que jaziam sob ela. Respirei fundo e agarrei sua mão para me equilibrar. Estava fria como a de um cadáver. Estremeci e fechei os olhos para me concentrar no que estava dizendo.
- Os homens das Highlands, todos os clãs aliados de Carlos, serão destruídos. Centenas e centenas morrerão em Culloden; os que sobrarem serão perseguidos e assassinados. Os clãs serão massacrados... e não se levantarão mais. Não em sua época, nem na minha.
Abri os olhos e me deparei com ele fitando-me, sem expressão. -Jamie, fique fora disso! — supliquei-lhe. — Mantenha sua família fora disso se puder, mas pelo amor de Deus... Jamie, se você... — Parei de repente.
Eu ia dizer "Jamie, se você me ama". Mas não pude. Eu ia perdê-lo para sempre e se pude não falar de amor com ele antes, não podia fazê-lo agora.
- Não vá para a França - eu disse, em voz baixa. - Vá para América, para a Espanha, para a Itália. Mas pelo amor daqueles que o amam, Jamie, não ponha os pés em Culloden.
Ele continuava me fitando. Perguntava-me se estaria me ouvindo.
- Jamie? Você me ouviu? Você compreende?
Após um instante, ele balançou a cabeça, anestesiado.
- Sim - disse, serenamente, a voz tão baixa que mal pude ouvi-lo sob o gemido do vento. - Sim, ouvi. - Soltou a minha mão.
- Vá com Deus... mo duinne.
Saiu da saliência do rochedo e continuou sua descida pelo declive íngreme, firmando os pés em tufos de capim, segurando em galhos para manter o equilíbrio, sem olhar para trás. Fiquei observando-o até ele desaparecer no bosque de carvalhos, caminhando lentamente, como um homem ferido que sabe que tem que continuar andando, mas sente que sua vida se esvai lentamente entre os dedos que aperta contra o ferimento.
Meus joelhos tremiam. Devagar, abaixei-me e sentei com as pernas cruzadas, observando as andorinhas. Abaixo, eu podia apenas ver o telhado da cabana que agora abrigava meu passado. Às minhas costas assomava a pedra fendida. E meu futuro.
Fiquei sentada sem me mover durante toda a tarde. Tentei arrancar à força todas as emoções da minha mente e usar a razão. Jamie certamente tinha a lógica a seu favor quando argumentava que eu devia voltar; lar, segurança, Frank; até mesmo os pequenos confortos da vida de que eu tanto sentia falta de vez em quando, como banhos quentes e água encanada, para não falar de considerações maiores como tratamento médico adequado e condições de viagem adequadas.
Ainda assim, enquanto eu sem dúvida admitia as inconveniências e óbvios perigos daquele lugar, também tinha que admitir que apreciava muitos dos seus aspectos. Se viajar era incômodo, não havia enormes extensões de concreto cobrindo os campos, nem qualquer barulho, nem carros com seus escapamentos fedorentos - invenções com seus próprios perigos, lembrei a mim mesma. A vida era muito mais simples e as pessoas também. Não menos inteligentes, porém muito mais francas - com algumas autênticas exceções, como Colum ban Campbell MacKenzie, pensei implacavelmente.
Por causa do trabalho do tio Lamb, eu vivera em muitos lugares diferentes, alguns até mesmo mais inóspitos e com menos conveniências do que este. Eu me adaptava com bastante facilidade a condições adversas e não sentia realmente falta da "civilização" quando longe dela, embora me adaptasse com a mesma facilidade à presença de máquinas e do maior conforto que proporcionavam, como aquecedores de água e aparelhos eletrodomésticos. Estremeci no vento frio, abraçando-me com força enquanto fitava a rocha.
A racionalidade não parecia estar ajudando muito. Voltei-me para a emoção e comecei, encolhendo-me diante da tarefa, a reconstruir os detalhes das minhas vidas de casada — primeiro com Frank, depois com Jamie. O único resultado disso foi deixar-me arrasada e chorando, as lágrimas formando trilhas congeladas em meu rosto.
Bem, se nem a razão nem a emoção, que tal o dever? Eu fizera votos matrimoniais a Frank e o fiz de todo o coração. Fizera o mesmo a Jamie, e o traí logo que pude. E qual deles eu irei trair agora? Continuei sentada, enquanto o sol descia cada vez mais no horizonte e as andorinhas desapareciam para os seus ninhos.
Quando a estrela vespertina começou a brilhar entre os galhos dos pinheiros negros, concluí que nesta situação a razão tinha pouca utilidade. Iria ter que confiar em alguma outra coisa; exatamente o quê, eu não sabia. Voltei-me para a pedra fendida e dei um passo em sua direção, depois outro, depois outro. Parando, virei-me e tentei na direção oposta. Um passo, depois outro, depois outro e, antes que sequer soubesse o que havia decidido, já estava na metade da encosta, lutando desvairadamente com o mato, escorregando e caindo nas áreas de cascalho.
Quando cheguei à cabana, ofegante de medo de que ele já pudesse ter ido embora, tranqüilizei-me ao ver Donas amarrado ali perto, pastando. O cavalo ergueu a cabeça e olhou-me de forma pouco amistosa. Caminhando silenciosamente, empurrei a porta.
Ele estava no aposento da frente, dormindo em um estreito banco de carvalho. Dormia de costas, como sempre fazia, as mãos cruzadas sobre o estômago, a boca ligeiramente aberta. Os últimos raios de luz do dia que entravam pela janela às minhas costas recortavam seu rosto como uma máscara de metal; os caminhos prateados das lágrimas secas cintilavam na pele dourada e o acobreado da barba espetada brilhava foscamente.
Fiquei parada, observando-o por um instante, transbordante de uma ternura indescritível. Movendo-me o mais silenciosamente possível, deitei-me ao lado dele no banco estreito e aconcheguei-me ao seu corpo. Virou-se para mim no seu sono como sempre fazia, aninhando-me contra o seu peito e recostando o rosto nos meus cabelos. Semi-consciente, alisou meus cabelos para afastá-los do seu nariz; senti o violento solavanco quando ele acordou e percebeu que eu estava ali e, então, perdemos o equilíbrio e caímos no chão, Jamie sobre mim.
Eu não tinha a menor dúvida de que ele era de carne e osso. Empurrei o joelho de cima de mim, grunhindo.
- Saia! Não consigo respirar!
Ao invés disso, ele agravou minha falta de ar beijando-me apaixonadamente. Ignorei a falta de oxigênio temporariamente, a fim de me concentrar em coisas mais importantes.
Abraçamo-nos durante muito tempo sem falar. Finalmente, ele murmurou, a boca abafada em meus cabelos:
- Por quê?
Beijei seu rosto, úmido e salgado. Podia sentir seu coração batendo contra as minhas costelas e não desejava mais nada além de ficar ali para sempre, sem me mover, sem fazer amor, apenas respirando o mesmo ar.
- Tive que fazê-lo - respondi. Ri, um pouco trêmula. - Não sabe como estive por um fio. Os banhos quentes quase venceram. — Então, chorei, estremecendo, porque a escolha era tão recente e porque minha alegria pelo homem que tinha nos braços misturava-se a um dor dilacerante pelo homem que eu jamais veria novamente.
Jamie abraçou-me com força, pressionando-me com seu peso, como se quisesse me proteger, para impedir que eu fosse levada pela atração esmagadora do círculo de pedras. Por fim, minhas lágrimas cessaram e fiquei deitada, exausta, a cabeça apoiada em seu peito reconfortante. Já escurecera completamente, mas ele continuava a me abraçar, murmurando baixinho, como se eu fosse uma criança com medo do escuro. Presos um ao outro, não nos afastamos nem mesmo para acender um fogo ou uma vela.
Finalmente, Jamie levantou-se e, pegando-me no colo, carregou-me para o banco, onde se sentou, aconchegando-me em seu colo. A porta da cabana continuava aberta e podíamos ver as estrelas começando a cintilar sobre o vale lá fora.
- Sabe - eu disse, sonolentamente — que são precisos milhares e milhares de anos para a luz daquelas estrelas nos alcançar? Na verdade, algumas estrelas que vemos podem já estar mortas, mas nós não sabemos, porque ainda vemos a luz.
- É mesmo? - disse, acariciando minhas costas. - Não sabia.
Devo ter adormecido, a cabeça em seus ombros, mas acordei por um instante, quando ele me colocou delicadamente no chão, numa cama improvisada com os cobertores que carregava na sela. Deitou-se ao meu lado e puxou-me para junto de seu corpo outra vez.
- Descanse, Sassenach — sussurrou. — Amanhã vou levá-la para casa.
Acordamos pouco antes do amanhecer e estávamos no caminho de descida quando o sol se levantou, ansiosos para deixar Craig na Dun.
- Para onde vamos, Jamie? — perguntei, alegrando-me com a perspectiva de um futuro que o incluía, ainda que deixasse para trás a última chance de retornar para o homem que havia - que iria? - me amar um dia.
Jamie freou o cavalo, parando para olhar por cima do ombro por um instante. O círculo ameaçador de pedras verticais era invisível daquele ponto, mas a encosta rochosa parecia erguer-se intransponível às nossas costas, coberta de pedregulhos e moitas de tojo. De onde estávamos, a cabana em ruínas parecia mais uma rocha proeminente, como uma articulação óssea projetando-se do punho cerrado de granito da colina.
- Quisera ter lutado por você — ele disse repentinamente, olhando para mim novamente. Seus olhos azuis estavam escuros e ansiosos.
Sorri para ele, emocionada.
- Não era sua luta, era minha. Mas você venceu, de qualquer modo. -Estendi a mão e ele apertou-a.
- Sim, mas não foi isso que eu quis dizer. Se eu tivesse lutado com ele homem a homem por você e vencido, você não precisaria sentir nenhum arrependimento. - Hesitou. - Se um dia...
- Não há mais nenhum "se" — eu disse com firmeza. - Pensei em cada um deles ontem e ainda assim estou aqui.
- Graças a Deus — ele disse, sorrindo. — E que Deus a proteja. — Em seguida, acrescentou: — Embora eu jamais vá entender por quê.
Passei os braços em torno de sua cintura e abracei-o, conforme o cavalo resvalava pela última encosta íngreme.
- Porque — eu disse - eu certamente não consigo viver sem você, Jamie Fraser, e isso é tudo. Agora, para onde está me levando?
Jamie virou-se na sela, para olhar a subida da colina.
- Rezei durante todo o caminho ladeira acima ontem - ele disse baixinho. - Não para que você ficasse, não achava isso certo. Rezei para ser forte o suficiente para deixá-la ir embora. - Sacudiu a cabeça, ainda fitando a colina, uma expressão sonhadora nos olhos.
- Eu disse: "Senhor, se nunca tive coragem em minha vida antes, que eu a tenha agora. Permita que eu seja corajoso o suficiente para não cair de joelhos e implorar-lhe que fique." - Afastou os olhos da cabana e sorriu brevemente para mim.
- A coisa mais difícil que eu já fiz, Sassenach. — Virou-se na sela e direcionou o cavalo para o leste. Era uma rara manhã luminosa e o sol matutino fazia tudo reluzir, desenhando uma fina linha de fogo ao longo das rédeas, da curva do pescoço do cavalo e nas faces e nos ombros largos de Jamie.
Ele respirou fundo e balançou a cabeça em direção à charneca, indicando uma passagem estreita e distante, entre dois penhascos.
- Agora, acho que posso fazer a segunda coisa mais difícil. - Esporeou o cavalo delicadamente, estalando a língua. - Estamos indo para casa, Sassenach. Para Lallybroch.
No começo, estávamos tão felizes só de estarmos juntos e longe de Leoch que não falávamos muito. Para atravessar a superfície plana da charneca, Donas podia carregar nós dois sem grande esforço e cavalguei com os braços em torno da cintura de Jamie, regozijando-me na sensação dos músculos aquecidos pelo sol remexendo-se sob minha face. Quaisquer que fossem os problemas que pudéssemos enfrentar — e eu sabia que havia muitos - estávamos juntos. Para sempre. E isso era o suficiente.
Quando o primeiro impacto de felicidade amadureceu no esplendor do companheirismo, começamos a conversar outra vez. No começo, sobre a região que estávamos atravessando. Depois, cautelosamente, sobre mim e do lugar de onde eu viera. Ele ficava fascinado com as minhas descrições da vida moderna, embora eu pudesse ver que a maioria das minhas histórias parecia contos de fadas para ele. Adorava especialmente as descrições de automóveis, tanques e aviões e me fez descrevê-los inúmeras vezes, o mais detalhadamente possível. Por um acordo tácito, evitávamos qualquer menção a Frank.
Conforme a distância percorrida aumentava, nossa conversa voltou-se mais para o tempo presente: Colum, o castelo, depois a caça ao veado e o duque.
- Ele parece um bom sujeito — Jamie observou. Quando o caminho tornou-se mais difícil, ele desmontou e passou a caminhar ao lado, o que facilitava a conversa.
- Também achei - disse. - Mas...
- Ah, sim, não se pode confiar muito no que um homem parece ser atualmente - concordou. - Ainda assim, nos demos bem, ele e eu. Sentávamos juntos e passávamos a noite conversando em volta do fogo na cabana de caça. Aliás, ele é bem mais inteligente do que parece; ele sabe a impressão que aquela voz dele causa e acho que a usa para se fazer passar um pouco por tolo, enquanto o tempo todo sua astúcia está lá, trabalhando por trás do olhar.
- Mmm. É disso que eu tenho medo. Você... contou a ele? Encolheu os ombros.
- Um pouco. Ele sabia meu nome, é claro, daquela outra vez, no castelo.
Ri ao me lembrar do relato que ele fizera daquela época.
- Vocês, hã, ficaram recordando os velhos tempos?
Ele riu, as pontas dos cabelos flutuando pelo rosto na brisa de outono.
- Ah, só um pouco. Perguntou-me uma vez se eu ainda tinha problemas intestinais. Mantive o ar sério e respondi que normalmente não, mas que talvez estivesse começando a sentir um pouco de dor de barriga agora. Ele riu e disse que esperava que isso não incomodasse minha bela esposa.
Ri também. No momento, o que o duque fizesse ou deixasse de fazer não parecia de decisiva importância. Ainda assim, um dia ele...
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