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Constantin Virgil Gheorghiu nasceu na Romênia em 15 de setembro de 1916. Fez estudos de filosofia e teologia nas Universidades de Bucareste e Heidelberg. Durante alguns anos, foi secretário de ligação para as relações culturais no Ministério dos Negócios Estrangeiros da Romênia. Nessa época, escreveu vários livros, um dos quais, Caligrafia na Neve, recebeu em 1940 o Prêmio Real de Poesia em seu país.
No entanto, é com a publicação de A 25.* Hora que se afirmará como um dos maiores escritores da nossa época. É essa obra um dos testemunhos mais vivos e pungentes da última guerra. Poderíamos chamá-lo ”documentário”, pois por seu ritmo cinemático é ficção literária e filme, mas é também história de amor e guerra, é autobiografia impressionista. É, acima de tudo, estranho documento humano.
A história de Iohann Moritz, que será sucessivamente judeu quando é ariano, e dtpois ariano puro, da raça superior, que será tratado pelos Aliados como amigo e depois como inimigo, que se arrastou por trinta e oito campos de concentração das mais diversas nações, é a história de loucos narrada com a precisão escrupulosa de um memoralista consciencioso, é a expressão literal do que o homem tende a devir num mundo que o nega. Um mundo em que os ”cidadãos” tendem a tomar o lugar dos homens. Mas esses ”cidadãos” não vivem nos matos nem na selva, vivem nos escritórios; são mais cruéis que os animais ferozes; são o produto do cruzamento dos homens com as máquinas. Uma espécie bastarda, porém a mais poderosa na face da Terra.
O escritor Traian Koruga e sua esposa Nora, embora tenham sido sempre favoráveis aos Aliados, sendo ela mesma judia e salva da perseguição alemã, andaram centenas de quilômetros, a pé, para alcançar a zona americana que lhes parecia um lugar de refúgio. Estão em Weimar. Mas o espírito que anima o governador americano da cidade não é certamente o de Goethe. Traian e sua mulher são portadores de passaportes romenos; ora, a Romênia íaz parte da lista das potências inimigas; logo, devem ser tratados como inimigos.
Mas por que A 25* Hora? É aquela que vem depois da última hora: aquela em que mesmo o advento de um Messias de nada adiantaria, porque uma sociedade tecnocratizada não pode criar o espírito e por conseguinte está lançada aos monstros.
- Não acredito que te vás! - disse Susana a lohann Moritz, chegando-se muito a ele.
Pôs as mãos na cabeça do homem; alisou-lhe o cabelo, todo preto. Ele deu um passo atrás.
- Por que não acreditas? - respondeu-lhe com dureza. - Depois de amanhã, de madrugada, abalo.
- Bem sei! - murmurou.
Ficaram de pé à cancela. Estava frio. Era passante meia-noite. lohann pegou-lhe nas mãos, deixou-as cair e disse:
- E agora, adeus!
- Espera um bocado! - disse Susana, ansiosa.
- Para quê? - A voz era firme, decidida. - Está-se a fazer tarde. Tenho que trabalhar amanhã.
Ela não respondeu, mas encostou-se-lhe mais. Abrindo-lhe a camisa encostou a cara ao peito e ergueu os olhos:
- Que lindas estrelas! - exclamou.
lohann esperava não sei quê de importante; ela demorara-o certamente para isso. Contudo falava-lhe nas estrelas. Arredou-se dela; quis-se ir. Mas lembrou-se que partia, que estaria ausente uns três anos, pelo menos. E então também se pôs a olhar para as estrelas, como quem quer ser amável.
- Será verdade que cada qual tem sua estrela no céu? E que, quando um homem morre, cai a estrela?
- Sei lá! - disse ele. Agora estava decidido a partir.
- Adeus!
- A gente também terá lá em cima a sua estrela? - perguntou ela.
- Como toda a gente - respondeu Moritz. - Lá em cima ou cá dentro.
Estreitou-lhe a cabeça contra o peito e afastou-a. Depois foi-se. Ela acompanhou-o e fitou-o.
- Espero por ti amanhã à noite - disse-lhe.
- Se não chover.
Susana ainda queria ir com ele, pedir-lhe que viesse, mesmo que chovesse. Mas lohann já lá ia longe, a passo largo. Desapareceu na volta da estrada, por trás da horta. Susana ainda se demorou um pouco, siderada. Limpou o vestido nos quadris, para deixar cair os gravetos pegados. Antes de se meter no pátio, reparou na erva arrepiada debaixo da nogueira, no sítio onde tinham estado estendidos ao pé um do outro. Ainda sentia nas ventas o cheiro do corpo de Moritz - um cheiro a erva calcada, a tabaco e a caroço de cereja.
lohann Moritz atravessou o campo e enfiou para casa, a assobiar. Vestia calças pretas de soldado, uma camisa branca esgoleirada. Estava descalço. Várias vezes parou para assobiar e abriu a boca. Depois pensou na mulher que acabara de deixar. Pensou em Susana. Apetecia-lhe sorrir. ”Estas histórias de estrelas... Sempre as mulheres são crianças. Fazem cada pergunta!” disse de si para consigo. Depois pensou na viagem para dali a dois dias. Pôs-se a cismar na América. Depois, nada mais. Assobiou. Tinha sono. Queria mas era já ter chegado a casa e dormir. Tinha que se levantar muito cedo. Era o último dia de trabalho. E a madrugada a romper. Dali a poucas horas era já dia claro, lohann Moritz apertou o passo.
Ao amanhecer, lohann Moritz parou diante do chafariz da aldeia e, esbragalando a camisa, encheu um punhado de água e esfregou a cara e o pescoço. Chegou-se ao meio do caminho e enxugou as mãos esfregando-as no cabelo. Compôs o cós da camisa sem o abotoar e olhou para a aldeia. Um nevoeiro leitoso deslizava. Era a aldeia de Fântâna, na Romênia. lohann Moritz ali tinha nascido vinte e cinco anos atrás. E agora, enquanto olhava para a aldeia com suas casas pequenas e os três coruchéus das três igrejas - a ortodoxa, a católica e a protestante - lembrou-se que Susana lhe perguntara na véspera se ele não iria morrer por não mais lá morar. Rira achando piada à pergunta; respondeu que era um homem. As mulheres é que morriam assim por coisa tão pouca. Agora porém sentia um vago desgosto penetrá-lo. Pôs-se outra vez a assobiar e arredou dali a vista.
A casa do Pé. Alexandre Koruga ficava na borda do caminho, não longe da igreja ortodoxa. A porta estava fechada, lohann debruçou-se e pegou na chave escondida debaixo da soleta para ele entrar de manhã, de volta do trabalho. Abriu aquela pesada porta de castanho, sem pressa, e entrou no pátio. Os cães correram-lhe ao encontro, saltando um de roda dele. Conheciam-no bem, que lohann Moritz trabalhava em casa do Pé. Alexandre Koruga havia já seis anos; dia a dia, havia seis anos. Estava ali como em casa. Mas hoje é o seu último dia de trabalho. A apanhar maçãs, todo o dia. Depois cobraria a jorna e despedir-se-ia do padre. O padre de nada sabia.
lohann Moritz entrou na quinta e pegou nos cestos, que pôs no carro. O padre veio à varanda. Estava só de calças e camisa de estôpa branca. Acabava de se levantar. Moritz deu-lhe a salvação, risonho. Pôs o cesto no chão, esfregou as mãos, subiu à varanda e tirou das mãos do velho o jarro cheio de água:
- Espere, que eu deito-lha.
lohann Moritz despejou água nas mãos do padre. Reparava-lhe nos dedos, compridos e afuselados - dedos de mulher, de pele branca. Via de gosto o velho ensaboar a barba, o pescoço, a testa. À força de reparar, ia-se esquecendo de verter. O padre esperava, de mãos estendidas e musgosas. Moritz sentia-se apanhado e corava.
O Pé. Koruga era o pope da aldeia. Tinha só cinqüenta anos, mas a barba e o cabelo branco de prata. O corpo comprido, magro, descarnado, parecia o dos santos que se vêem nas imagens das igrejas ortodoxas. O verdadeiro corpo de um velho. Mas ao ver-se-lhe o olhar, ao ouvi-lo falar, via-se que era novo. Quando acabou de se lavar, o padre limpou a cara e o pescoço a uma toalha de estôpa. Moritz estava de pé diante dele, com o jarro na mão.
- Eu gostava de lhe falar, Sr. Prior - disse ele.
- Deixa-me vestir - respondeu o padre. Entrou em casa, tirando o jarro da mão de lohann Moritz. Na soleira da porta, voltou-se:
- Também eu tenho que te falar - disse ele, sorrindo; - vou-te dar uma boa nova. Mas vai metendo os cestos no carro e engata.
Toda a manhã, lohann Moritz e o Pé. Koruga apanharam maçãs e encheram os cestos. Estavam calados. Quando o sol lhes deu pelas costas, o padre parou. Estendeu o braço, cansado.
- Vamos descansar um bocado!
- Vamos descansar - disse Moritz.
Foram para o pé dos sacos cheios de maçãs e sentaram-se em cima. Estavam calados. O padre procurou nos bolsos o maço de cigarros que trazia sempre para Moritz e estendeu-lho:
- Querias-me falar? - disse o padre.
- Queria, sim senhor.
Moritz acendeu o cigarro. Atirou o fósforo para cima da erva e viu-o apagar-se. Custava-lhe dizer ao padre que partia. Não lho queria dizer já.
- Vou dar-te a minha novidade primeiro - disse o padre. Moritz ficou contente por não ser o primeiro a falar.
- O quartinho ao pé da cozinha está vago - disse o padre; - podes- para lá ir. Minha mulher caiou-o, e pôs-lhe cortinas nas janelas e roupa lavada. Em tua casa não há, para que digamos, muito espaço. Teu pai, tua mãe e tu tendes um quarto apenas. Amanhã quando vieres para o trabalho traz as tuas coisas.
- Já não venho amanhã.
- Então depois de amanhã - tornou o padre. - O quarto é teu, daqui avante...
- Nunca mais cá venho - disse Moritz. - Amanhã vou para a América.
- Amanhã? - O padre esbugalhou os olhos.
- Amanhã de madrugada.
A voz de Moritz era firme. Mas velada de mágoa.
- Tive carta; o barco está em Constantza e só lá fica três dias.
O padre bem sabia que Moritz queria ir para a América. Iam bastantes aldeãos novos para a América, e dois, três anos depois voltavam com dinheiro e compravam as melhores casas da aldeia, e terras. O padre gostava que Moritz se fosse. Dali a poucos anos também teria um bom pedaço de terra. Mas admirava-se de tão rápida partida. Moritz nunca lhe falara nisso, e tinham trabalhado sempre, ombro com ombro.
- Só ontem é que recebi a carta - disse Moritz.
- Vais sozinho?
- Vou com o Ghitza lon. Arrolamo-nos a bordo como moços. Vamos trabalhar nas caldeiras; assim só temos de pagar 500 lei por cabeça. O Ghitza tem um amigo em Constantza que trabalha no porto e arranjou tudo.
O padre desejou-lhe boa sorte. Tinha pena de ele se ir embora. lohann Moritz era novo, trabalhava bem. Tinha bom coração, era honesto, mas pobre. Não tinha um palmo de terra de seu. Todo o dia os dois homens trabalharam. O velho falava da América. Moritz ouvia. De vez em quando, suspirava. Agora quase que se arrependia daquela sua decisão.
À noite, recebido o salário, Moritz ficou de olhos no chão diante do padre. Assim se quedou um momento. Não tinha forças para se ir. O velho bateu-lhe no ombro:
- Escreve-me assim que chegares - disse ele. - Amanhã de manhã vem buscar o pacote que te prometi. É o teu de-comer para o caminho. - Ainda lhe deu cinco notas de 100 lei e disse-lhe: - Vem de madrugada. Bata na vidraça devagarinho. É melhor que minha mulher te não oiça; as mulheres não valem nada. Vou preparar tudo esta noite. Quando é que te vais?
- Logo ao romper do dia tenho que me encontrar com o Ghitza lon ao sainte da aldeia.
- Ainda tens tempo de passar lá por casa. Se não fosse isso dizia-te que viesses esta noite.
- Antes quero amanhã - disse lohann Moritz. Pensou que nessa noite Susana o viria esperar. Depois largou-se.
O Pé. Koruga pôs o saco do farnel debaixo da janela, encostado à parede. Apagou o candeeiro e foi-se deitar. Antes de adormecer pensou em lohann Moritz e na sua viagem para a América. Ao preparar o saco tinha a esquisita impressão de que era ele que partia. Trinta anos antes também ele tinha preparado as suas bagagens. Acabara mesmo de receber o seu diploma de teologia, e fora contratado como missionário para a colônia ortodoxa do Michigan. Uma semana antes de partir telegrafara renunciando ao seu posto. Entretanto, conhecera a mulher e casara. Desde então era o pope da aldeia. A aldeia era pequena, a vida dura. Muitas vezes se arrependera de ter desistido do embarque. Mas era tarde demais. A América ficara-lhe como um sonho. Sempre que um aldeão partia, dava-lhe cigarros, comida, dinheiro, e pedia-lhe que escrevesse, mal chegasse. Fazia tudo isso sem a mulher saber. Não que ela tivesse que censurá-lo por isso, mas o velho, sempre que pensava na América, tinha a impressão de cometer uma infidelidade. Por causa dela renunciara à partida. O conflito ficara latente no seu coração. A abalada de lohann Moritz não era porém como a dos outros. Moritz era o seu homem de confiança. E, com lohann Moritz, era um pouco de si mesmo que abalava para o Novo Mundo.
No céu, a lua cheia. Pé. Koruga não podia adormecer. Levantou-se. Acendeu a luz. Foi à biblioteca, cujas estantes cobriam três paredes do quarto. Pegou num livro. Antes de o abrir deu uma vista de olhos às prateleiras atochadas. Havia livros em inglês, em alemão, em francês e em italiano. Na outra parede, clássicos gregos e latinos. Todos velhos amigos. Às vezes perguntava a si próprio porque não quisera entrar para a Universidade. Amigos de lasi e Bucareste tinham-lhe proposto isso. Mas recusara duas vezes a cadeira de História da Igreja. Não tinha pena nenhuma. Em Fântâna celebrava missa aos domingos e dias de festa, e o resto do tempo ocupava-se da sua feijoca, das suas abelhas, do seu pomar. À noite lia. O destino preparava-lhe o futuro. Ele aceitava-o. Só uma vez tentara forçar o destino: quando fizera tenção de ir para a América. Preparara tudo para partir. E, apesar disso, não partira; metera-se não sei quê de imprevisto. Aí estava. Desde então desistira de ter planos.
”Querem ver, disse o padre consigo, que não estou arrependido de não me ter ido há trinta anos? Mas, então, se não estou arrependido, que frenesim é este que hoje sinto, ao partir lohann Moritz?” E, aconchegando o cobertor, pensou: ”Não é desgosto de ter ficado. É a nostalgia do que julgávamos verdade em nossa ilusão, uma coisa que nunca possuiremos. E se lhe tocássemos, depressa perceberíamos que não era isso o que sonhávamos. Talvez a América não fosse o que eu em verdade buscava. Talvez não passasse de um pretexto para a minha inquietação. A América é uma invenção da nossa nostalgia. Não a ter conhecido bem pode ser menos triste que tê-la tocado de fato”.
E, contudo, Pé. Koruga não era capaz de dormir. Estava comovido. Inquieto, esperava que rompesse o dia, como se fosse ele que devesse ir ter com Ghitza à entrada da aldeia e ir a Constantza, onde os aguardava o barco ”que não demorava mais que três dias no porto”.
Quando acordou, ainda era escuro. Mas o cantar dos galos, já anunciava o sol. A estrada estava deserta, a aldeia coberta de uma bruma alvacenta. O padre abriu o saco e meteu-lhe o maço de cigarros que estava em cima da mesa. ”Se lohann se vai, já não tenho ninguém a quem oferecer cigarros; comprei-os para ele”, murmurou. Pela janela já via romper o dia: ”Tem de se despachar para não chegar atrasado.” Ouviu passos na estrada, mas já iam para lá da casa e foram-se perdendo ao longe. O padre foi à varanda e lavou-se em água fria. Mas Moritz não estava ali para lha verter.
O sol nasceu. lohann Moritz não tinha chegado ainda. O padre esperou-o até desjejuar. Depois pensou que Moritz teria acordado tarde, sem tempo de passar por lá para levar o saco. ”É pena, disse; levava de-comer para três semanas, pelo menos. E dava-lhe até para os primeiros dias na América.”
- Não vens comer, Alexandre? - perguntou a mulher. Assomou ao traço da porta.
- Vou já - respondeu o padre. Escondeu o saco debaixo da cama, de coração apertado, com medo de ter de renunciar a uma coisa, e renunciar para sempre. A última probabilidade de ir à América, ainda que só fosse by proxy, estava perdida de todo. Trinta anos antes tivera o mesmo gesto. Foi para a mesa.
Se lohann Moritz tivesse levado o saco que lhe arranjei, parecia-me que era eu que me ia. Qui facit per alium iacti per se. Que pena que não viesse!”, disse o padre.
Ao sair de casa do padre, lohann Moritz parou diante do chafariz da borda do caminho. Fez uma alagariça a lavar-se; depois enfiou para o outro lado da vila, onde morava Nicolau Porfírio. Nicolau Porfírio tinha uma leira na mata. Queria vendê-la. Moritz entrou no pátio.
- Vou para a América amanhã - disse ele. - Quando voltar hei de ter dinheiro que chegue para comprar este palmo de terra. Mas antes de me ir quero-te dar sinal, para a não cederes a ninguém.
- Quanto tempo te demoras? - perguntou o lavrador.
- Até fazer a conta... Dois ou três anos.
- Sim, três anos chegam. Ninguém está mais de três anos. Não custa a ganhar dinheiro na América.
- Quanto queres tu? - perguntou Moritz.
- Eu não preciso de dinheiro. Se voltares daqui a três anos com 50.000 lei, a leira é tua. Não a cedo a ninguém. Fico à espera de ti.
Mas Moritz tirou da algibeira das calças um maço de notas e contou-as na testeira da casa.
- Aí estão 3.000 lei! disse ele. - É melhor dar-te um sinal.
lohann Moritz apertou a mão de Nícolau Porfírio; estava fechado o negócio. E foi-se. Ainda não era escuro. Queria ir ver o terreno. Já o tinha visto muitas vezes. Conhecia-o bem, mas agora o caso era diferente. Agora a leira era dele; só lhe faltava chegar-se com o dinheiro.
lohann Moritz atravessou os cerrados. Andava a passo largo. Levava a camisa colada à pele com o suor. Não tinha pachorra de ir de seu vagar. Diante da mata de carvalhos, parou. A terra ia do sítio onde ele estava até à orla da mata. Tinha milho semeado, que lhe dava pelo ombro. O terreno não era grande, mas chegava para uma casa, um pátio e um pomarinho. lohann mediu-o a olho, em comprimento e em largura. Via o teto da casa acima da rama do milho, a picota do poço esbalançada, o portão de castanho, o estábulo. Vira já muitas vezes diante de si tudo isto: nunca com tal nitidez. Tudo parecia verdade, conforme ao seu desejo. lohann Moritz sorriu. O vento vergava os talos verdes do milho, que se mexiam como vagas. Ele bem ouvia o frufru. Debruçou-se e apanhou uma mancheia de terra. Na sua mão, a terra quente era um ser vivo. Aquele calor parecia exatamente o de um corpo. O calor de um pardal nos dedos, lohann Moritz debruçou-se outra vez e, com a mão direita, tirou mais terra. Apertou o pulso com força; depois abriu a mão e deixou escorregar um pouco de terra entre os dedos. Avançou entremeio do milho em direção à mata. Mas a meio da leira debruçou-se outra vez para apanhar mais terra. ”Esta também é quente”, pensou. E esfregou a cara com a terra. O cheiro trespassou-o. Fungou várias vezes, a fundo, para encher os pulmões dos perfumes do chão. E pensou: ”Susana há de estar à minha espera”; e pôs-se a assobiar.
A casa de lorgu lordan, pai de Susana, ficava na ponta da aldeia. Uma casa grande, coberta de telhas vermelhas. lohann Moritz caminhou para lá atravessando as hortas, no endireito do pátio. Depois parou e espreitou por uma nesga da sebe. lorgulordan veio à varanda. Tinha um andar pesadão. Puxou as portadas, correu os ferrolhos, deu volta à chave. Moritz seguia-lhe todos os movimentos. Trancadas as portas e as janelas, lorgu lordan olhou em roda desconfiado. Desceu os degraus de madeira, que estalavam ao peso do seu corpanzil de gigante. Trajava, como sempre, uma andaina esverdeada, botas de cano curto e calção de montar. Atravessou o jardim diante da casa e encaminhou-se para a porta. Correu o ferrolho à turdesca e deu duas voltas à chave. Depois virou-se para trás, gingando. Deu uma volta à casa, com os olhos de través, como se procurasse alguém escondido na sombra. Entrou pela porta de trás. Ouviu-se uma chave girar duas vezes na fechadura. Depois fêz-se silêncio. lorgu lordan entrou no seu quarto de dormir, de paredes cobertas de panóplias de caça, cabeças de veados empalhadas, de lobos e de ursos. No meio da parede, entre as águias estofadas e os galhos do veado, havia espingardas de caça, pistolas e cartucheiras. À beira da cama imensa, duas peles negras, lorgu lordan calcou com as botifarras as peles de urso e pegou na espingarda, que encostou ao pé da cama. Tirou um revólver da gaveta, uma vela e uma caixa de fósforos, que pôs na mesinha de cabeceira. Sentou-se à borda da cama, com a respiração ofegante, sacou as botas e pô-las uma ao lado da outra. Todas as noites as punha no mesmo lugar, para dar com elas no escuro só com estender a mão. Depois despiu-se e deitou-se, enterrando-se nas almofadas alvas como um urso à neve. lohann Moritz viu apagar-se a luz. A luz afrouxou, tremeu, sumiu-se logo. A janela tornou-se negra como uma boca sombria. O quarto de lolanda, a mulher de lorgu, estava iluminado, mas a luz saía velada, frouxa. Antes de sair pela janela, a luz passava através de um abajur de seda. Diziam que lolanda era infeliz. Tinha chegado à aldeia vinte e cinco anos antes com lorgu lordan; vinham a cavalo e fizeram alto na estalagem. Ninguém sabia de onde vinham. Mas devia ser de muito longe. Ela era romena; ele não. Mais tarde soube-se que vinham da Hungria. Ambos traziam pelicas forradas e compridas. Depois de terem engolido torradas e vinho, deitaram-se na cama do estalajadeiro. Ele tinha comido como um bruto; ela mal tocara nos pratos, como um pardal. Três dias depois sabia-se que não deixavam a aldeia, e algumas semanas mais tarde tinham comprado a estalagem. Quando lorgu lordan chegou não sabia palavra de romeno, Agora falava muito bem. Mas não arranjaram um único amigo na aldeia. Tinham mesmo evitado mandar a filha, Susana, à escola do lugar, para que não se desse com as filhas dos outros aldeãos; Susana estudara na cidade. Os vizinhos não viam lolanda senão na igreja ortodoxa ou quando ia à cidade, de carro, à ilharga de lorgu lordan, pequenina e encolhida. O gigante dava dois tantos dela. lolanda tinha o cabelo loiro como seda fiada, e olhos azuis. Susana parecia-se exatamente com ela. E era tudo o que se sabia na aldeia acerca de lorgu lordan. Uma vez, no inverno, matou um homem que lhe quis entrar em casa. Matou-o com a espingarda de caça, com um tiro no meio da caveira. Bem podia matar alguém que lhe entrasse de noite em casa para roubar dinheiro. Os vizinhos não eram de opinião dos guardas. Um crime é sempre um crime. Mas a história acabara por esquecer. Tudo isto se passara havia muito tempo. Pelo buraco da sebe, lohann Moritz vira a luz afrouxar, tremer um instante, apagar-se em seguida. Levou as mãos em porta-voz à boca e chamou: - Ih! Ih!
O grito de Moritz varou a noite. O eco repetiu-o; depois fêz-se silêncio. Um instante apenas. Abriram-se as portadas, Susana saltou pela janela. Atravessou o jardim, correndo nas pontas dos pés. Depois saiu do pátio pelo buraco da sebe, junto da qual a esperava lohann Moritz.
- Por que é que escolheste esse assobio de senha? Para que esse aulido? Diz! - insistiu Susana. Assomara do outro lado da sebe; Moritz quis beijá-la. Ela furtou-se. - Já te disse que não gritasse assim. - O coração batia-lhe apressado. Estava cheia de medo.
- Como é que tu querias que eu gritasse? - perguntou lohann Moritz.
- Pois faz como quiseres. O pio da coruja é agoireiro. Adivinha morte.
- Histórias de velhas - disse ele. - Não há outra ave que cante noite e dia, com mau tempo, tanto de verão como de inverno. Só a coruja. Conheces outra? O rouxinol só canta no verão. Se me ponho a imitar o canto do rouxinol, teu pai percebe que é um homem. Queres que esse gigante perceba que sou eu que te chamo?
- Não, não quero - disse ela; - mas a coruja é agoireira!
- A culpa não é minha - disse Moritz - Por que é que não há outra ave que cante em todas as estações e a todas as horas sem adivinhar morte? E para quê, peguilhar? Chamei-te aqui esta noite pela última vez. Daqui por diante já nos não precisamos esconder. Amanhã de manhã vou para a América. Quando vier, és minha mulher. Depois já não preciso esconder-me detrás da sebe e pôr-me a piar como a coruja.
Apertou-a contra si. Ela passou-lhe o braço à roda do pescoço. Estava debaixo da nogueira, onde se tinham encontrado na outra noite, e todas as noites, desde que se conheciam, haveria quatro meses. A rapariga fêz-se-lhe mais pesada nos braços. Ele segurou-a, estendeu-a na erva e deitou-se ao comprido ao pé dela. Os corpos fundiram-se pegados como serpentes ou que nem enrediças. As mãos procuravam-se na sombra. lohann deu com os lábios da rapariga e esmagou-os contra os seus. Tinham fechado os olhos. Ao longe, no Jardim de lorgu lordan, os grilos cantavam. Ficaram ali enlaçados, sem dizer coisa alguma. O vestido de Susana punha uma nódoa azul na erva. Tinha-o tirado, para que a mãe o não visse amarrotado e com nódoas. As nuvens de tinta que cobriam a lua afastaram-se e os ombros nus da rapariga puseram-se a brilhar no escuro. Moritz tinha tirado a camisa para a pôr debaixo de Susana. Ao lado dos ombros alvos da moça, o peito de Moritz era negro como uma casca de árvore.
- lani! - disse ela; - não te vás.
- Por que me dizes isso? - replicou ele, sombrio. - Bem sabes que se eu não for para a América não tenho dinheiro para comprar a leira. Sem terra não nos podemos casar. Para onde queres tu que a gente vá, se não temos casa nem terra? Daqui a três anos estou de volta, cheio de dinheiro, e casamos. Não queres casar comigo?
- Quero - disse ela. - Mas não quero que te vás embora.
- E como hei de eu comprar a terra? - lohann Moritz sorriu. - Sabes que já dei sinal a Nicolau Porfírio, pela terra? Quando vier dou-lhe o resto.
lohann Moritz contou como tinha dado dinheiro ao Porfírio e visto o terreno, e como ia construir a casa, o estábulo, tudo.
- lani, se te vais embora, não me achas viva quando vieres - disse Susana, sem prestar atenção à história.
- Que tens tu, mulher? - Moritz estava aborrecido.
- Nada. Não sei que é que mo diz. Se não queres acreditar, não acredites. Mas já não sou viva, quando voltares.
- Então não hás de ser viva! - disse Moritz. - Hás de estar em casa de teu pai e de tua mãe, como agora. Eu cá não me ralo. Sozinha não ficas, deixa. Não vives em casa de estranhos; estás com teus pais.
Ela pôs-se a chorar devagarinho.
- Que é que tu tens? - disse ele. Deu-lhe um beijo. Os lábios da rapariga estavam frios e molhados de lágrimas salgadas. - O que foi, mulher?
- Tu hás de dizer que são tolices. Coisas de mulher. Antes me eu cale.
- Não... Coisas de mulher, não.
- Parece que meu pai me quer matar - disse ela.
- Quem te meteu isso na cabeça, mulher? - A voz de Moritz era dura. - Como é que teu pai te há de matar?
- Eu bem dizia que tu não me acreditavas. Mas eu cá tremo de medo. Sei que ele me vai matar. Já descobriu qualquer coisa. Não sei como foi. Mas vai me matar.
- Teu pai descobriu o quê?
- O nosso amor.
lohann Moritz afastou-se. O corpo de Susana estava alvo como mármore nas ervas.
- Falou-te nisso? - perguntou lohann.
- Não.
- Brigou contigo?
- Não.
- Então como é que sabes que ele deu por isso?
- O coração mo diz. - Ela chorava, chorava. - Mas não é só o coração. Hoje ao almoço, quando pus a mesa, meu pai olhou para mim de uma maneira! Com uns olhos de raiva. Depois gritou: ”Vira-te para a parede!” Virei-me. Senti os olhos dele a passear-me os quadris. Depois disse-me: ”Vira-te para a janela!” Ainda olhou para mim um grande bocado. De lado. Reparou-me no ventre. Nos quadris. Revistou-me como a um cavalo. E gritou-me, furioso: ”Sai daqui, porca!” Não quis comer. Eu saí. Nessa altura percebi que ele sabia. Já sabe tudo. Meu pai já brigava comigo em pequena; batia-me. Dava-me até^ fazer sangue. Mas nunca me chamou ”porca”. Hoje ao meio-dia gritou-me: ”Sai daqui, porca!
- Como é que ele soube? - perguntou Moritz. - Nunca nos viu juntos.
- Nunca nos viu, mas já sabe.
- Mas como é que ele soube?
- Bastou olhar para mim.
lohann Moritz pôs-se a rir, e beijou-a na testa:
- Podia olhar para ti com um par de binóculos que não via nada. Pensas que é coisa que se veja, lá porque a gente brincou?... Isso são histórias.
- Eu sei que isso nem sempre se vê, mas com meu pai o caso é outro. Está acostumado com as éguas... Basta olhar para elas, diz logo se estão para ter poldros. E os amigos concordam.
- Mas então tu estás grávida?
- Não, não estou.
- Então não há perigo - disse ele. - Daqui a dois ou três anos estou eu de volta, com massa. Compramos terra, o Pé. Koruga casa-nos. Fazemos uma casa linda e havemos de ser felizes. Não é, Susana?
Ela encostou-se muito a ele. Nem que tivesse medo. Estava toda a tremer.
- Se tu estivesses cá, eu não tinha receio - disse ela. - Mas se te vais embora, morro com medo. Mesmo que meu pai me não mate com espingarda, tu não me encontras viva. Morro de medo longe de ti. Todas as noites fecho a porta a chave e corro o fecho. Quando oiço os passos de meu pai, enterro a cabeça na almofada. Tenho medo.
lohann Moritz passou-lhe a mão pelos ombros. Puxou-a contra si. Apertou-a nos braços. Não se tornaram a falar. Ela sentia-se feliz ao pé dele. Ele, contente por a não ver chorar. Ao cantar do galo levantaram-se. Susana pôs o casaco, que estava frio e orvalhado. Moritz enfiou a camisa, pegou na mão de Susana e acompanhou-a até à sebe. Depois viu-a desaparecer pela porteira. Do lado de lá, Susana deu um gritinho. lohann Moritz debruçou-se, a ver o que era, mas a rapariga já não estava no pátio. Apertava-o muito contra o seio. Ele nem a vira voltar. Ela tremia como uma vara verde. Com o corpo arrepiado, escaldava. lohann Moritz espreitou pela porteira do pátio. A janela do quarto de Susana estava iluminada e aberta de par em par. lorgu lordan, em camisa de dormir, passeava de cá para lá, com um lampião na mão, como se procurasse qualquer coisa. Moritz fez umas festas no cabelo da rapariga, apertando-a contra si para ela não ver o pai. Mas tinha visto tudo. Por isso se chegava assim tanto para ele. Nem podia chorar, com a força do medo. Ouviram a voz de lorgu lordan. Ele praguejava. Moritz olhou para o corpanzil do gigante. Na sombra dele surgiu a frágil silhueta de lolanda. Ela ficou assim diante de lorgu lordan um instante, um instante só. O gigante virou as costas para a janela. Moritz já não via a mulher. Desaparecera detrás do corpo maciço do marido. Depois ouviu os gritos de lolanda, gritos agudos,- que rasgavam a pele como tenazes e se nos entranhavam nos poros. A chama apagou-se. A janela continuou aberta, mas escura. Os gritos de lolanda varavam a noite, cada vez mais desesperados. Suavemente esvaíam-se. Chegaram num nada ainda até eles, abafados. Moritz e Susana tremiam. Os gritos deixaram de se ouvir. A mulher caíra no chão. lorgu lordan, dentro do quarto sem luz, dava-lhe pontapés.
- Ai, a minha mãezinha! - disse Susana. - Ai, que ele mata a mãezinha!
Susana safou-se dos braços de Moritz. Queria largar-se para o pátio. Mas Moritz, carinhosamente, segurava-a. Depois largou-a; também queria acudir àquela mulher espancada. Moritz percebia que dali a pouco seria tarde. Tinha os músculos todos tensos. Mas não foi em socorro de lolanda. Não estava armado. O gigante, sim, esse tinha espingardas; duro como uma rocha. O instinto de Moritz furtava-o à refrega. Era inútil.
lohann Moritz pegou em Susana ao colo. Susana escabujava-lhe nos braços. Mas ele agarrara-a bem. Moritz largou-se pelo campo fora, a toda a pressa. Nem lhe parecia senão que o gigante largara à cata de Susana com uma espingarda na mão. Queria escondê-la, levá-la para longe, o mais longe possível da casa de telhas encarnadas. Largara a correr, com os olhos fechados. Parecia-lhe ouvir atrás os passos do gigante, apostado em matar a mulher que ele tinha nos braços.
lohann Moritz largou a corta-mato, para evitar a estrada.
Tropeçou várias vezes nas tocas, equilibrando-se a custo. Sentia-se cansado, pouco a pouco. Já devia andar há muito, porque estava esgotado, com os braços inertes. O suor escorria-lhe dos olhos, cegando-o. Parou mesmo a meio de um cerrado de milho e estendeu o fardo no chão. Já não podia mais. Acomodou Susana em cima do chão molhado, cobriu-lhe os joelhos com o próprio vestido dela e pôs-lhe as mãos no peito. Arrancou grandes folhas de milho ali de roda e fez uma almofada para deitar a cabeça de Susana. Depois ainda apanhou mais folhas; fez um colchão mole de verdura e estendeu a moça em cima. Ela não tugia. Moritz fazia-lhe festinhas nas fontes, na cara, no cabelo. Depois pôs-se em pé. A dor atenazava-lhe o corpo; sentia fortes picadas nos ombros, nos braços, nos músculos.
”Com certeza corri um bom pedaço”, disse ele de si para si. Levantou a cabeça; o céu já estava completamente azul. Reparou que estava apenas a algumas passadas de distância da mata de carvalhos. A princípio não queria crer no que os seus olhos viam. Era decerto um sonho. Mas pouco a pouco compenetrou-se e começou a tremer como uma vara verde. Não não estava a sonhar: Susana e ele achavam-se nas terras de Nicolau Porfírio. Lá os tinha levado a carreira vertiginosa. As folhas de milho que acabara de arrancar para fazer a cama a Susana, aquelas folhas em que ela repousava agora, eram folhas de milho da terra em troca da qual, na véspera, ele tinha dado o sinal.
Pela cara abaixo de lohann Moritz as lágrimas misturavam-se de suor. E chorou devagarinho aquela terra que agora, bem o sabia, nunca mais seria sua. Já não ia para a América.
Do lugar onde estava, lohann Moritz podia ver toda a aldeia. Olhou para as casas brancas, fitou-as uma por uma de uma ponta a outra do povo. Depois reparou na mulher que tinha estendida aos pés em cima das folhas de milho. Interrogando cada casa com o olhar, Moritz perguntava onde poderia abrigá-la; tinha que lhe achar um refúgio. Quanto a si, renunciara à partida. Renunciara à terra, porque a mulher amada necessitava dele. Não podia abandoná-la. Mas isso não bastava. Ainda era preciso desencantar-lhe um abrigo. Só podia bater a duas portas: em casa do pai e da mãe ou do Pé. Koruga; todas as mais se lhe fechavam. Os aldeãos temiam lorgu lordan; todos o receavam. Os pais só tinham um quarto e não tinham lugar para Susana. E ele não podia levar para casa do Pé. Koruga uma mulher com quem não estava casado. Não queria comprometer o padre. Se o Pé. Koruga desse asilo a Susana, lorgu lordan vinha com certeza, de espingarda na mão, pedir-lhe contas; Moritz bem o sabia, e isso não podia ser. Mas Susana não podia ficar assim, no meio do campo. Depois de um momento de reflexão, lohann Moritz tornou a pegar em Susana ao colo e largou no endireito da aldeia. A moça estava pálida. ”É capaz de estar doente de susto”, disse ele.
Ouvia-lhe bater o coração. O ritmo, lento. Moritz apertou o passo; queria chegar à aldeia o mais depressa possível.
O sol já era nado quando Moritz chegou defronte da porta. Pôs Susana na soleta, contra a parede. Olhou para leste. Naquele momento, na outra estrema da aldeia, Ghitza lon devia estar à espera dele. Rilhou os dentes para tomar coragem, voltou as costas e entrou em casa. Queria pedir ao pai e à mãe que recebessem Susana. Eles estavam a dormir. Aristitza, a mãe de lohann Moritz, era uma mulher danada. Moritz gostaria de a evitar, falar ao pai diretamente. Mas, mal ele entrou a porta, Aristitza levantou a cabeça da cova da almofada.
- Vens buscar a tua saca? - perguntou ela. - Está aí contra a porta.
Moritz não respondeu.
- Que diabo estás tu para aí plantado como um espeque? - perguntou ela. - Dá um beijo a tua mãe, diz adeus a teu pai e despacha-te. Não gastes por lá o dinheiro todo; vê mas é se trazes algum.
- Eu já não vou para a América - disse lohann.
- Já não vais!
A velha ergueu-se de um salto.
- Não.
- E Ghitza também não?
- Sim; o Ghitza vai - respondeu Moritz.
Aristitza sentiu que havia qualquer coisa naquilo. Enfiou o vestido:
- Por quê? Brigaste com o Ghitza?
- Não.
- Mas que é que tu tens?
Aristitza plantara-se no meio do quarto. Furiosa, avançava para o filho.
- Não aconteceu nada - disse ele. - Quero me casar. Por isso já não vou.
A voz tremia-lhe. Não sabia como começar, com explicar-lhes. Aristitza cravou as unhas nos ombros de Moritz e começou a sacudi-lo.
- Quero falar com o pai - disse Moritz. - Eu não discuto consigo.
- Ah! Mas é comigo que tens de te entender! - gritou ela. - Não foi da barriga de teu pai, foi da minha, que tu saíste!
- Sossega, mulher! - disse o pai, pondo a cabeça fora do cobertor. Queria acalmá-la. Aristitza nem sequer o ouvia. E dava palmadas nos quadris.
- Foram as minhas entranhas que tu arrancaste! - disse ela. - Foi o meu leite que tu bebeste, malvado! E, agora, não me queres falar!
- Também falo a vossemecê - disse Moritz. A mãe soluçava. Ele queria-a aplacar.
A velha sentou-se à borda da cama, com a cabeça nas mãos. Sentia-se ferida. Mas a dor não a fazia calar. Era incapaz de se calar.
- Com quem te queres tu casar? - gritou ela.
- Vou já dizer com quem - respondeu Moritz; - mas primeiro sossegue.
- Quero saber com quem casas. Sou tua mãe, tenho o direito de saber com quem casas.
- Diz-lhe lá, lon! - insistiu o velho. - Diz-lho, para ela se calar.
Ele bem via que Aristitza se largava a gritar outra vez. lohann Moritz sabia que o nome de Susana não acalmava a mãe, antes pelo contrário.
- Caso com a filha de lorgu lordan - disse ele; - com Susana.
Aristitza correu para ele. Não para o fazer em bocados: para o beijar.
- Já sei porque é que não te vais - disse ela. Beijou-o muito nos olhos, na testa, na cara. - Tu não és tolo, que fosses para a América, trabalhar como um negro e voltar daqui a uns anos, sem forças, doente e com alguns milhares de lei na algibeira. Seguiste o meu conselho, casas com uma rapariga rica. - O olhar brilhava-lhe de alegria. - Hei de ser rica - disse ela. - Hei de ter vestidos de veludo e um carro. Vou para casa de lorgu lordan. Estou no meu direito. No meu rico direito ou não seja eu Aristitza. Fui eu que te fiz inteligente e bonito para poderes seduzir e casar com a rapariga mais rica da aldeia, uma moça que tem uma casa de pedra e cal, uma adega, boa terra, carro e cavalos.
- Sossega, mulher! - disse o velho.
Mas a sua voz tremia; estava também comovido. A idéia de tantas riquezas transtornara-o. Pôs-se a enrolar um cigarro, sem se levantar.
- Hei de me instalar em casa de lorgu lordan, do teu sógro - disse Aristitza. - Tu ficas aqui - tornou ela para o velho. - Eu preciso ficar ao pé do meu rapaz; quem melhor do que eu lhe pode aconselhar a mulher? ,
- Eu ainda não expliquei tudo, mãe - tornou Moritz.
- Diz tudo o que quiseres, querido filho. A tua mãe está a ouvir.
- Prometes-me que me vais ouvir sossegada - insistiu Moritz.
- Prometo-te tudo o que quiseres.
Aristitza fez-lhe uma festa na cara.
- ó mãe - continuou Moritz - eu vou casar com Susana sem licença de lorgu lordan.
- O importante é que cases com ela - disse Aristitza. - Vou ser a sogra da filha de lorgu lordan, do ricaço. Tanto se me dá que ele queira como não.
- Hás de ser sogra dela, mas não vais ser rica!
- E quem vai ficar com o dinheiro? - pergunta Aristitza. - lorgu lordan tem só uma filha. Nem ele vai casá-la sem dote. Todos sabem que ele enterrou na loja panelas cheias de libras. Não te preocupes com o dote. Eu cá trato do caso; não percebes nada disso.
- Ó mãe, eu caso mas é com a Susana, não é com o seu dinheiro! - disse lohann.
- Tu não me vais agora convencer que preferes a moça ao dinheiro...
- Prefiro, mãe.
- Idiota! Afinal de contas, entendo-te. Deixa-me cá manobrar. A mim ninguém me come assim sem mais nem menos...
Aristitza via-se já a discutir com lorgu lordan, resolvida a não largar da mão um único escudo. lohann Moritz contava a história da véspera. Aristitza estremeceu e perguntou:
- Como? Ela não quer tornar para casa do pai?
- Não - respondeu lohann Moritz; - o pai mata-a, se ela torna.
- Mata-a - disse o velho; - que aquele não brinca. A filha tem razão, o pai é uma besta quadrada. Quando se exalta, pega na espingarda e atira. Até os cavalos dele penam, quando está furioso, e apesar disso Deus sabe como ele gosta dos cavalos; mais que dos olhos da cara. Era capaz de matar a filha, se ela tornasse; sobretudo agora, que lhe fugiu de casa.
- Ainda bem que compreendes - disse Moritz.
- Se as coisas chegaram a esse ponto - repetiu o velho - o difícil era não o compreender. Eu conheço-o bem; oh, se conheço... !
- Mas daqui a dias podemos mandá-la para casa - disse Aristitza. - Vou eu com ela.
- Susana não torna para casa - disse lohann Moritz. -
- Não quero que ela torne!
- Mas, se ela não tem dinheiro, que fazes tu? - perguntou a velha. - Queres rebentar de fome mais ela? Mulheres é o menos que falta. Não há um único homem, para amostra, que a leve sem dote. Tu não vais fazer semelhante tolice, espero eu...
- Caso com ela sem dote! - disse ele.
- Tu estás tolo! Perder tudo por causa de uma mulher? Deixar de ir para a América por causa de uma mulher? Por via dela? Tudo isto por uma mijada daquelas?
- Tua mãe tem razão - disse o velho. - Não faças asneiras. Vai para a América. Quando voltares compras uns alqueires de terra, fazes uma casa e podes-te casar. O menos que falta são mulheres, crê!
- Não vou! - disse Moritz.
- Achas que já é tarde? - disse o velho. - O Ghitza ainda deve estar à espera ao cabo da aldeia; o sol rompeu agora. Se te despachares apanha-lo.
- Vós quereis que eu abandone a moça e vá para a América? Vossemecê, meu pai, tinha coragem para isso?
- Onde está a rapariga? - perguntou Aristitza.
- Está ali à porta! - disse Moritz.
Os velhos estremeceram. Ficaram com cara de palmo. Aristitza olhou para a janela. Moritz pôs-se contra a porta, para a não deixar sair.
- Mãe, quero-te pedir uma coisa. Aceita a Susana e conserva-a aqui uns dias, até eu ter onde a meta. Agora é vossa filha.
- Tu queres que ela viva aqui? - A mãe estava furiosa. - Queres que lorgu lordan dê cabo da gente, de mim e de teu pai?
- Bem sabes que aqui mal há lugar para nós - disse o velho.
- Onde queres tu deitá-la? Não, lon, isso não pode ser.
- Se calhar também queres que se lhe dê de comer? - perguntou Aristitza; - que tiremos da boca para lho dar a ela.
lohann Moritz baixou os olhos. Esperava ter de fazer frente à mãe, mas supunha que o pai nada diria.
- Então Susana fica aqui só esta noite - disse ele. - Não tenho para onde a levar. Esta noite, vamos para a cidade e eu procuro trabalho. Ela está doente. Precisa descansar um bocado para poder ir a pé até à cidade. O medo que teve a noite passada fez-lhe mal.
- Hoje não temos nada para comer - disse a velha. - Se queres que ela estoire de fome podes deixá-la.
- Eu trago-lhe de-comer - disse Moritz. - Mas ela precisa dormir; não se agüenta em pé.
- Teu pai está doente e tem de ficar de cama - disse Aristitza. - Onde queres tu deitá-la? Na cama de teu pai?
- Se não há lugar em casa, dorme fora, na palha, onde eu durmo também.
- Isso está bem - disse Aristitza. - Mas não lhe dou nada para comer. Não tenho nada que lhe dar.
lohann Moritz fez menção de sair. Parou à entrada da porta e virou-se para o pai:
- Pelo pouco tempo que ela cá estiver, seja bom para ela. Coitada... Já é bem infeliz.
- Atreves-te a ensinar-nos como nos havemos de portar, malvado? - disse Aristitza. - Já viste um ovo ensinar a galinha a pôr? Em vez de ires para a América, ganhar dinheiro, pões-nos a cachopa às costas e queres que lhe demos de-comer, ainda por cima. E, agora, ainda vens para cá com conselhos!
Aristitza curvou-se para apanhar um bocado de pau e zupá-lo. lohann estava acostumado à descompostura e à pancada. Toda a sua infância não passara de uma data de pancadas e de insultos.
- Vossemecês vão ser bons para ela? - disse ele sorrindo. - Eu já venho. Vou buscar qualquer coisa para ela comer.
E saiu do quarto. Susana não se mexera. Lá estava, imóvel, em frente da casa. Moritz fez-lhe festas no cabelo.
- Vou à aldeia; não tardo - disse ele. - Queres dormir um bocado? Quando acordares comes qualquer coisa e vamos para a cidade.
- Não ficamos aqui? - perguntou ela, temendo ter de marchar ainda.
- Não - disse ele; - anda cá!
Levantou-a segurando-a por debaixo dos braços e levou-a para trás da casa, para a granja, estendendo-a em cima da palha.
- Agora dorme! - disse ele; - senão, não podes ir a pé à cidade. Ainda são uns bons vinte quilômetros.
Susana sorriu-lhe agradecida. Ele era bom para ela, que a deixava dormir e ficar só. Estava a arder em febre. Os ouvidos zumbiam-lhe. Mal o ouvia.
- Se minha mãe te vier inquietar, deixa-a lá falar; não lhe dês troco - disse lohann Moritz. - Está danada.
lohann foi-se. Ao chegar à estrada, voltou a cabeça e fitou-a. Sorriu-lhe. Ela, porém, já tinha fechado os olhos.
Aristitza saiu do quarto logo que o filho se foi. Parou e pôs-se de mãos à cinta, a ver o corpo da moça estendida na palha. Susana abriu os olhos. Viu Aristitza, o seu nariz agudo como um bico de águia, as faces chupadas, cor de azeitonas; depois desviou os olhos. Tinha medo.
- Sou a mãe de lon - disse a velha.
Susana fez com a cabeça um vago gesto de salvação e de resposta. Depois puxou o vestido azul para os joelhos. A velha olhava-lhe para os joelhos e para as vazias como se a visse nua.
- Queres-te casar, então? - disse a velha, escarninha.
- Quero - respondeu Susana.
- Acredito que queiras - disse Aristitza. - Estás prenha como uma égua!
Susana escondeu a cara na palha. Aristitza chegou-se ao pé dela e gritou-lhe ao ouvido:
- Ainda não achaste o parvo que há de casar contigo, minha prenda! Ninguém te quer sem dote. Se dormistes com meu filho, isso é lá contigo. Mas ele não casa contigo, não...
Susana levantou-se sobre os cotovelos. Queria ir-se dali. Mas Aristitza estava curvada sobre ela.
- lani foi-se embora? - perguntou Susana, a medo. Queria falar de outra coisa.
- Qual lani? - disse a velha, danada. - Não conheço cá ninguém que se chame lani.
Susana encarou a velha com espanto. Não sabia o que havia de dizer.
- De que lani falas tu? - perguntou Aristitza outra vez. - Não estás boa da bola? Onde pensas tu que estás?
- lani, o seu filho - murmurou Susana a meia voz, hesitante.
- O meu filho chama-se lon - respondeu Aristitza com dureza. - Foi assim que eu, que sou a mãe dele, o batizei, e ninguém tem o direito de lhe mudar o nome. Entendeste?
Susana viu levantar-se o punho de Aristitza, ameaçador.
- Entendi - disse ela. Lembrara-se que lohann Moritz lhe tinha recomendado que fosse comedida, e acrescentou: - lon ou lani, é o mesmo nome. Pelo menos, assim o julgava.
A sua desculpa ainda irritou mais a velha.
- Tu é que me vens ensinar o nome do meu filho? - disse ela. - Racho-te a cabeça. Atreves-te? Puta!
- Eu não queria inquietá-la - disse Susana.
A velha deitou-lhe a fateixa aos ombros. Sacudiu-a. Susana gritava. O velho apareceu por trás da casa. Vinha em camisa de dormir. Saltara da cama alarmado pelos berros. Trazia uma beata na boca. Aristitza largou-a da mão e virou-se para o seu homem, amarela de raiva:
- Já viste semelhante desaforo? Esta porca pensa que eu que não sei o nome do meu filho. Eu cá perco a cabeça! - Aristitza baixou-se e rapou de um pedra. - Abro-lhe a pinha! Esmigalho-a como uma serpente!
O velho deitou-lhe a mão.
- Sossega, mulher - disse ele, empurrando Aristitza para a porta. Depois chegou-se a Susana, pegou-lhe na mão e teve pena. - Não chores! - disse ele. - Isto não tem jeito.
- Onde está o lani? - perguntou Susana.
- Não tarda aí, sossega.
Susana sentia-se protegida. O velho tinha a mão grande. A pele encarquilhada.
- Ó pequena, vou-te dar um conselho, e era bom que o seguisses - disse o velho - Volta para casa de teu pai. - Susana estava a chorar. - Não podes ficar aqui; Aristitza afoga-te ou racha-te a cabeça. Vais ver. Tenho a certeza. E era uma desgraça que corresse sangue. Se o lon vê, mata a mãe, e era um grande pecado. É preciso evitar uma desgraça. Entendes?
- Entendo! - A boca de Susana mal mexia.
- Cá por mim, aconselho-te que te ergas e que te vás quanto antes. Vai-te antes que lon venha. Atalhas aí ao milharal.
Vai para casa de teu pai e de tua mãe. Quando o lon vier, eu digo-lhe que vais a caminho. E ele já não te apanha. Vocês esquecem-se um do outro; sois mui novos, e a mocidade num instante esquece. Vá! Ergue-te e anda.
Susana não se mexia, de cabeça virada. Tinha tapado os ouvidos com as mãos, e nem sequer ouvira o que lhe dissera o velho.
- Não te queres então ir? - perguntou ele. Quis-lhe pegar pelos braços e levá-la para casa. Mas pensou que lon lhe não perdoaria. Pôs-se em pé. - A culpa é tua, se acontecer alguma desgraça! Eu fiz o meu dever. Bem te avisei.
Susana ficou sozinha. O velho metera-se em casa. lohann Moritz voltou da aldeia com um púcaro de leite na mão e pô-lo a ferver.
- À gente nunca nos trouxeste leite! - gritou Aristitza. - Mas a esta velhaca trazes! Mais valia que te torcesse o pescoço quando tu eras pequeno, em vez de te embalar nos meus braços e de te dar de mamar!
lohann Moritz pusera-se de cócoras diante da lareira a ver as chamas dançar. Fazia de contas que não estava a ouvir a mãe. Aristitza chegou-se a pé dele:
- Sai já desta casa para fora; leva essa porca, essa puta! Ela que se ponha já no olho da rua, senão mato-a. Se não me tiras da minha vista para fora, esgano-a. Estrangulo-a assim) de gadanho! Vês? Vês?...
- Quando ela acabar de beber o leite, vamo-nos embora - respondeu Moritz. Moritz nem olhara sequer para as mãos da mãe, para aqueles gadanhos que ’’iam esganar Susana”. - Vamos para a cidade e nunca mais nos pões a vista em cima.
- A condessa não se pode ir embora antes de beber o seu leitinho? - perguntou Aristitza. - Tua mãe não precisa de leite de manhã, mas ela precisa...
Moritz tirou o púcaro do lume. O leite ainda não tinha fervido. Mas estava quente. Moritz saiu sem encarar com os velhos. Susana estremecera ao ouvir passos.
- Sou eu - disse Moritz. - Trago-te leite quente. Estendeu-lhe o púcaro.
- Eu não quero leite! - balbuciou ela.
- Bebe um bocadinho.
Susana tirou o púcaro das mãos de Moritz. lohann Moritz entrou em casa para pegar no seu saco. O saco preparado para ir para a América. O saco que ele devia ter vindrf buscar há bocado, se sempre se fosse.
- Vais-te embora mais ela? - perguntou Aristitza.
- Vou - respondeu ele.
- Está bem! - Aristitza rilhou os dentes.
Enquanto Moritz tirava os seus atafais de baixo da cama, Aristitza veio ao pátio; Susana viu-a aproximar-se dela. Ficou petrificada, de púcaro na mão.
- Levanta-te, enquanto puderes! - disse Aristitza. - Vou-te dar uma sova, porca, desavergonhada! Espera aí! Vais ver!-
E, antes de ter acabado a frase, puxou pelo cabelo de Susana e começou a zupá-la. Susana soltou um gemido. lohann Moritz julgava ouvir os gritos de lolanda. Correu logo..
- Minha mãe, que está a fazer? - gritou.
A velha deitou-lhe uns olhos, num relâmpago de raiva. Bateu ainda em Susana e safou-se entremeio do milho.
Susana tinha a cara cheia de sangue e a boca e os olhos inchados. O púcaro escacara-se-lhe nas mãos e abrira-lhe compridos golpes nos pulsos. As gotas de sangue misturavam-se ao leite em grandes nódoas no seu vestido azul. lohann Moritz tomou-a por um braço e partiu. Porou diante da porta e pegou no saco. Depois saiu do pátio, de saco as costas e com a rapariga nos braços. Os dois fardos eram pesados, pesados demais para marchar de cabeça levantada. E lohann Moritz seguia a passo pesado, com a cabeça entre os ombros.
Ao romper do dia, lorgu lordan deu de beber aos cavalos e arraçoou-os de aveia. Fazia-lhes festas no pescoço. Tinha oito cavalos. Quatro eram só para montar, e nunca os engatava. Eram bonitos demais para isso. Cavalos pretos, árabes, de puro sangue, jarretes finos e nervosos. Eram os seus amigos, lorgu contou-lhes o que acontecera a Susana. Disse-lhes tudo o que lhe pesava no peito. Os homens não lhe inspiravam confiança. Os cavalos miravam-no com aqueles grandes olhos claros, brilhantes como espelhos.
- E, agora, a mulher está a escorrer sangue, quebrei-lhe os ossos, está caída no chão. - Os cavalos não tugiram. lorgu tomou aquele silêncio por uma repreensão e disse: - Vou levá-la ao hospital, se vocês querem.
Meia hora depois atravessava a aldeia de carro, direito à cidade. lolanda ia embrulhada numa capa. Estava estendida no meio das almofadas, de olhos pregados ao longe. Chegaram cedo demais ao hospital. Esperaram no carro diante da porta até às oito. Nem um único médico lá estava. Enquanto esperava, lorgu lordam ia falando aos cavalos sem nunca dirigir a palavra à mulher, sem lhe deitar um olhar, um que fosse. Às oito horas, pegou-lhe como um embrulho, com a manta e as almofadas, e levou-a à consulta externa. Foram os primeiros atendidos. Enquanto a enfermeira levantava a manta à mulher, o médico viu-lhe a cabeça inchada, o corpo cheio de sangue. lolanda ficou estendida. Só tinha a camisa de dormir colada à pele. Era uma pasta de sangue. A doente não dizia palavra.
- Quem foi que lhe bateu?
- O senhor não tem nada com isso - replicou lorgu lordan.
- Sangre-a e deixe o resto. É para isso que o senhor é médico e para isso que eu a trouxe ao hospital. - lorgu lordan não quis dar outra explicação qualquer. O médico examinou lolanda e fê-la transportar à sala de operações para uma intervenção urgente. - Eu volto para casa e o senhor fica a ver as modas em que param - disse lorgu lordan. Pôs o chapéu na cabeça e meteu direito à porta. - Pago o que for preciso. Posso mesmo pagar adiantado se o senhor tiver tempo de me dar a conta antes de a operar, ou então posso deixar-lhe alguma coisa por conta.
Meteu a mão na algibeira para tirar a bolsa.
- O senhor ainda não se pode ir embora - disse o médico.
- Espere um bocado.
- Esperar para quê?
Não gostava que o detivessem. A sua vontade era largar do hospital o mais depressa possível. O cheiro dos remédios subia-lhe à cabeça. E sentia-se repêso. Tinha pena de ter moído a mulher com pancadas. ”Não basta que eu a tenha pisado e moído; ainda por cima estes carniceiros vão retalhá-la”, pensou. Custava-lhe aquilo. Mas não queria que se percebesse. Não queria. Só lhe apetecia sair, respirar. Encher os pulmões de ar. Passado um quarto de hora, chegou o delegado, acompanhado de um guarda. Mandou chamar lorgu lordan à secretaria do hospital e submeteu-o a um interrogatório. Fez-lhe uma data de perguntas. Se na verdade era ele de nome lorgu lordan, onde morava, que idade tinha, e se fora ele, com efeito, que tinha batido na mulher. lorgu lordan respondeu-lhe resmungando. Tinha os olhos vidrados. O delegado declarou-lhe que se considerasse preso por vias de fato na pessoa de sua mulher. lorgu lordan não fugiu nem mugiu. Mas quando o guarda lhe pôs a manápula no ombro para o levar, lorgu lordan fez-se pálido.
- Você leva-me preso? - perguntou.
- Vai preso, sim senhor!
- E os meus cavalos? Os meus cavalos, que estão no carro, à porta, que destino lhes dá?
O delegado olhou para o guarda.
- Você não tem ninguém que trate deles?
- Ninguém - respondeu lorgu lordan.
- Entregam-se aos bombeiros - disse o guarda. - Os bombeiros têm lá cavalos; tomam conta de mais esses. Na prisão não há lugar para os ter.
O delegado agradeceu com um sorriso ao guarda o tê-lo livrado de apuros. De contrário, não sabia que fazer aos cavalos. O delegado chegara uns dias antes. Chamava-se Jorge Damian, e era a sua primeira querela.
Cerca do meio-dia, quando se preparava para ir almoçar, foi avisado de que lorgu tentara suicidar-se, atirando^se de cabeça para o chão de cimento da célula. O relatório do diretor da prisão dizia: ”O preso declarou no hospital que tentara pôr termo aos seus dias por não poder com a idéia de que os seus quatro cavalos árabes puros morressem de fome e de sede. Segundo parece, o preso é um apaixonado amador de cavalos. é grave o seu estado de saúde”.
Outra nota, chegada no mesmo instante, anunciava a morte de lolanda. O delegado Jorge Damian sentia na boca como que um gosto a cinza. No restaurante, antes de se sentar à mesa, lavou muito tempo as mãos com água fria e sabão. ”A lei punirá lorgu lordan por maus tratos mortais infligidos à sua mulher. Essas pancadas, e, a circunstância de querer mais aos próprios cavalos que aos seres humanos, não são as suas maiores culpas, mas simples efeitos de certa mentalidade. A barbaria, eis o único pecado de lorgu lordan. Como todo o bárbaro, lorgu menospreza o homem até reduzi-lo a nada. Por esse crime, de que derivam todos os outros, nunca o castigará lei alguma. A barbaria não é uma atitude ilegal senão em certos casos bem especificados.”
Susana andou alguns quilômetros, depois sentou-se no chão, à beira da estrada. Estava cansada e a arder em febre.
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- Não posso mais, lani! - disse ela.
E estendeu-se na erva. Estavam a meio caminho entre Fântâna e a cidade. Moritz deixou-a dormir, à espera de alguma carroça que passasse por ali e os levasse. Mas não passavam na estrada senão peões e cavaleiros. Cerca das cinco da tarde começou a chover. Moritz ergueu os olhos. A chuva fria molhava-lhe as faces. Pensava: ”Se tivesse chovido ontem à noite, não ia ver a Susana. Ela ainda estava em casa. E eu no vapor, em Constantza. Se tivesse chovido ontem à noite.. Tanto pior”.
A noite caía já e a chuva não parará. Moritz disse lá consigo que devia tomar uma resolução qualquer.
-Vou à aldeia em cata de carroça - disse ele, lançando um olhar de compaixão a Susana.
Ela estava acocorada debaixo de um abrigo de ramas. O vestido e o cabelo molhados. Tremia toda; batia o queixo. Tinha frio.
- Como quiseres, lani!
- Não tens medo, assim sozinha? - perguntou ele.
- Se voltares, não tenho medo!
Ele beijou-a e largou. Ao chegar a Fântâna era escuro como breu. Estavam todos deitados. Bateu a todas as portas. Mas não achou ninguém que o ajudasse. Os vizinhos queriam saber o nome da mulher. Mal sabiam que se tratava da filha de lorgu lordan, desculpavam-se. Não tinham onde metê-la. Tinham todos medo de lorgu lordan. Perto da meia-noite, Moritz entrou no pátio de Pé. Koruga. Havia luz no escritório. Diante da porta, debaixo da chuva, um grande automóvel preto brilhava que nem um espelho. Saíam da casa murmúrios de vozes. ”O padre tem visitas com certeza”, pensou Moritz. Antes ir-se. ”Não devo incomodá-lo.” Chovia a potes, e a água gorgolava do telhado. Moritz ouviu-a um momento, em silêncio. Depois, lembrou-se que Susana o esperava sozinha à borda da estrada e bateu devagar à vidraça.
- Chegaste mesmo a tempo! Queria te ver - disse o Pé. Koruga a seu filho Traian. Estava a ajudar o filho a tirar as malas do automóvel e a levá-las para dentro. O carro estava parado em frente da varanda, meio enterrado na hera e nas roseiras bravas. Continuava a chover desabaladamente.
- Não vens sozinho? - perguntou o padre.
Um homem novo acabava de descer do automóvel.
- Apresento-te Jorge Damian, um colega meu da Faculdade e um excelente amigo - disse Traian. - Acabo de o encontrar na cidade esta tarde. É o novo agente do Ministério Público no julgado de paz da área.
O padre pediu desculpa do trajo. Não esperava visitas. Acompanhou os rapazes à sala e retirou-se um momento. O delegado examinou de seu vagar o cuco do relógio, os tapetes orientais que cobriam as paredes e as estantes cheias de livros.
- Adivinho o que estás a pensar - disse Traian, a rir. - Admiras-te que o romancista mais moderno da terra, que canta nos seus livros o automóvel, o avião, o bar e a luz elétrica, tenha nascido e passado a infância numa casa em que o tempo parece ter parado, em que tudo cheira ao passado, onde parece que nada se mexeu há séculos. Não é verdade?
O delegado fêz-se muito vermelho.
- Pois foi... Foi o que eu pensei!
O Pé. Koruga entrou no quarto. Com as mãos de dedos afusados e secos acendeu o candeeiro a petróleo e pô-lo solenemente no meio da mesa. Traian abriu a mala de coiro e tirou de dentro alguns pacotes cuidadosamente embrulhados. Pô-los em cima da mesa. Depois desrolhou uma garrafa de vinho e mandou chamar a mãe. Quando ela chegou, Traian encheu os copos e tirou de uma pasta dourada dois livros encadernados em inteira de pele.
- É o meu último romance - disse ele. - O oitavo. Estes dois exemplares são os primeiros da tiragem e, como de costume, são seus. E nós vamos regá-lo com vinho de ”Capsa”, o mesmo que bebemos ao saírem os sete romances anteriores. Ainda se lembra da minha alegria quando o primeiro apareceu?
O Pé. Koruga recebeu o livro das mãos do filho com o mesmo gesto com que pegava nos livros santos no altar. A mãe tocou-lhe com a ponta dos dedos; depois pô-los em cima da mesa.
- Tenho as mãos todas sujas de banha - disse ela. - Não quero sujar o livro de Traian.
- O terceiro exemplar é para ti, Jorge!
O Pé. Koruga colou os lábios na testa de Traian. O delegado apertou-lhe a mão. A mãe beijou-o no rosto e disse-lhe ao ouvido, bastante alto, contudo, para os outros ouvirem também:
- Ainda não li os outros! Perdoa-me. Teu pai contou-mos todos. Mas esse, quero lê-lo com os meus próprios olhos. Não quero morrer sem ter lido um livro escrito pelo meu filho.
Traian estava comovido. Bebeu com todos. A mãe pediu desculpa. Tinha de ir à cozinha.
- Fica mais um instante, mãe! - disse Traian. - Vim cá ver-vos também por uma coisa, uma coisa importante também.
- Traian Koruga tirou da algibeira um envelope e passou-o ao pai. - Aqui estão os meus direitos de autor pela primeira edição. Quero comprar terra em Fântâna para fazer uma casa. Se for possível, ao pé de si. Quero fazer a casa e lá ficar até ao fim da minha vida.
O padre pegou no envelope e pô-lo em cima da mesa, sorrindo. Sua mulher enxugou os olhos com a ponta do avental e disse:
- Bem sei que dizes isso só para nos contentar. Nunca pudeste demorar-te cá mais de três dias. Todas as vezes prometes ficar um mês, e dois ou três dias depois, lá te vais. Passam-se meses e meses sem te tornarmos a ver.
- Pois sim; mas agora quero fazer a casa - replicou Traian.
Traian lançou um olhar ao pai, e depois ao delegado. Percebeu que também eles consideravam uma extravagância o seu projeto.
- Ninguém acredita que eu seja capaz disso - disse Traian.
- Mas, dentro de dois anos certos, se tiver vida e saúde, hei de vos convidar para a minha casa de Fântâna. Então é que vocês me hão de talvez acreditar. Eu só vos digo isto.
Depois do jantar, o padre perguntou a Traian quais eram os seus novos projetos literários. Traian hesitou antes de responder. Depois disse:
- O meu primeiro romance será um livro verdadeiro. Literária, só a técnica. As minhas personagens serão da vida real. Hão de poder vê-las e cumprimentá-las na rua todos os que lerem o livro. Às vezes, mesmo, hei de dar os endereços e os números do telefone.
- E a que personagens queres tu dar semelhante publicidade? - perguntou o delegado, sorrindo.
- As personagens são homens que existem por toda a superfície do globo! - disse Traian. - Mas como o próprio Homero não poderia escrever uma história com milhares de personagens, só escolherei um certo número, provavelmente dez. Não preciso de mais. Contudo hão de viver os mesmos acontecimentos que todas as outras.
- As tuas personagens serão, portanto, escolhidas com critério científico, para representarem a humanidade na sua própria essência? - perguntou o delegado.
- Não - respondeu Traian. - As personagens do meu romance serão escolhidas puramente ao acaso. Não há necessidade nenhuma de empregar critérios científicos. O que lhes acontecer pode acontecer a quem quer que seja, com uma pequena diferença. São acontecimentos a que nenhum ser humano poderia escapar. Não tenho necessidade de personagens heróicas. Tomo-as ao acaso. Escolherei portanto, entre os dois biliões de seres, os que conheço melhor. Uma família inteira: a minha própria família. Meu pai, minha mãe, eu, tu, os criados de meu pai, alguns amigos e vizinhos.
O Pé. Koruga sorriu e encheu os copos.
- Vou anotar tudo o que acontecer a essas personagens durante os próximos anos - continuou Traian. - Parece-me que vão passar coisas extraordinárias. O futuro mais próximo reserva a todos nós coisas extraordinárias. Coisas como nunca se viram na história.
- Se o futuro se anuncia tão dramático como pensas, espero que o não seja senão no teu romance - disse o delegado.
- Os acontecimentos dramáticos hão de se passar primeiro na vida e depois no meu romance - replicou Traian.
- Então também eu viverei momentos dramáticos? - perguntou o delegado. - Tu sabes que levo uma vida burguesa que não pode interessar o público. Sou precisamente o contrário de um aventureiro.
- Meu velho Jorge, a maior parte dos homens, neste mundo, não são aventureiros. E contudo todos se verão obrigados a viver aventuras tais que nenhum escritor de romances sensacionais as poderia imaginar.
- E então o que é que vai acontecer de tão sensacional? - perguntou o delegado sorrindo.
- Tréguas à ironia, Jorge! - disse Traian. - Sinto que acaba de se dar à volta de nós um grave acontecimento. Não sei onde rebentou, nem quando começou, nem quanto vai durar. Mas sinto que existe. Estamos envolvidos na tormenta, e a tormenta vai-nos rasgar a carne, quebrar os ossos um a um. Pressinto esse acontecimento como só os ratos são capazes quando abandonam precipitadamente um navio que vai ao fundo; com a simples diferença de que, por mim, não tenho para onde fugir. Não haverá refúgio para nós em parte alguma do mundo.
- De que acontecimento falas?
- Podes chamar-lhe revolução, se quiseres - disse Traian. - Uma revolução de proporções inauditas. E todos os seres humanos serão vítimas dela.
- E quando é que ela rebenta? - perguntou o delegado que nem sempre tomava a sério os ditos de Traian.
- Mas a revolução já rebentou, meu velho. A revolução rebentou, apesar do teu cepticismo e da tua ironia. Meu pai, minha mãe, tu, eu próprio e os outros tomaremos pouco a pouco consciência do perigo e tentaremos fugir, esconder-nos. Alguns já se começaram a esconder, como animais ferozes quando se aproxima a trovoada. Eu cá, quero ir para o campo. Os membros do Partido Comunista pretendem que os fascistas são responsáveis e que o perigo só pode ser evitado liquidando-os. Os nazis querem salvar a pele matando os judeus. Mas isso não são mais oue sintomas do medo que sente todo o ser humano diante do perigo. O perigo, contudo, é o mesmo em toda a parte. Só as reações dos homens em face do perigo são diferentes.
- E qual é esse grande perigo que nos ameaça a todos? - perguntou o delegado.
- O escravo técnico! - continuou Traian Koruga. - Tu também o conheces, Jorge. O escravo técnico é o servo que todos os dias nos presta mil serviços, sem os quais já não poderíamos passar. Ele empurra-nos o automóvel, dá-nos a luz, água para nos lavarmos, dá-nos massagens, conta-nos histórias para nos divertir quando abrimos o botão do rádio, abre estradas, desloca montanhas.
- Eu estava convencido que era uma metáfora poética!
- Não é uma metáfora - respondeu Traian. - O escravo técnico é uma realidade. Não se lhe pode negar a existência.
- Eu não lhe nego a existência! - replicou o delegado. - Mas por que chamar-lhe escravo técnico? Trata-se simplesmente de uma força mecânica!
- Os escravos humanos, os camaradas dos escravos técnicos e a sociedade contemporânea foram também considerados pelos gregos e pelos romanos como uma força cega, coisas inanimadas. E podiam ser vendidos, comprados, dados de presente, mortos. Eram avaliados simplesmente pela força dos músculos e pela capacidade de trabalho. Exatamente o mesmo critério que empregamos hoje para o escravo técnico.
- Entretanto, que grandes diferenças! - replicou Jorge.
Nós não podemos substituir o escravo humano pelo escravo técnico.
- Isso é que podemos! O escravo técnico mostrou-se mais apto e menos caro que o escravo humano. Portanto, começou a substituir rapidamente o seu predecessor. Os nossos navios tomaram o lugar das galeras. E agora os navios já não marcham com o esforço dos escravos das galeras, mas dos escravos técnicos. E, quando anoitecer, o rico que pode dar-se ao luxo de ter escravos já não bate palmas para os ver chegar de archote na mão, como fazia o seu antepassado em Roma ou em Atenas: dá a volta a um botão e os escravos técnicos iluminam-lhe o quarto. O escravo técnico acende o lume que aquece o aposento ou a água do banho; abre as janelas; produz correntes de ar. Tem a imensa vantagem sobre o seu camarada humano de ser mais destro, de nada ouvir e nada ver. O escravo técnico só aparece quando o chamam. Leva-te a carta de amor num instante, e faz ouvir a distância a própria voz da bem-amada. Os escravos técnicos são servidores perfeitos. Labutam. Conduzem as guerras, a polícia, a administração. Aprenderam todas as atividades humanas e executam-nas maravilhosamente. Fazem os cálculos nos escritórios, pintam cantam, dançam, voam pelos ares, mergulham na água. O escravo técnico tornou-se inclusivamente carrasco e executa os condenados à morte. Cura os doentes nos hospitais ao lado dos médicos, assiste o padre quando celebra.
Traian Koruga suspendeu-se um momento e levou o copo aos lábios. Lá fora a chuva caía cadenciadamente.
- Vou já acabar com a digressão - disse ele. - Por mim, confesso que me sinto sempre em sociedade, mesmo se estou aparentemente só. Vejo moverem-se à volta de mim estes escravos técnicos, sempre dispostos a ajudar-me. Acendem-me os cigarros, dizem-me o que se passa no universo, iluminam-me a estrada à noite. Sinto-me até capaz de sacrifícios por eles. Por isso não posso ficar muito tempo em Fântâna, como minha mãe acaba de dizer. Os meus escravos técnicos esperam-me em Bucareste. Nós somos muito mais ricos do que os nossos colegas de há dois mil anos, que não tinham senão algumas dúzias de escravos. Nós temos centenas, milhares. E agora vou te pôr um problema: quanto calculas que seja o número dos escravos técnicos, hoje em dia em plena atividade à superfície do globo? Há pelo menos algumas dezenas de biliões. E quantos homens?
- Dois biliões de homens! - respondeu o delegado.
- Exato. A superioridade numérica dos escravos técnicos que povoam hoje a técnica é esmagadora. Levando em conta o fato de que os escravos técnicos têm na mão os pontos cardeais da organização social contemporânea, o perigo é evidente. Em termos militares, os escravos técnicos têm na mão os nós estratégicos da nossa sociedade: o exército, as vias de comunicação, o abastecimento e a indústria, para só citar os mais importantes. Os escravos técnicos formam um proletariado, se entendermos por isso um grupo, numa sociedade, em dado momento histórico, grupo não integrado na referida sociedade. O seu destino está nas mãos dos homens. Não vou escrever um romance fantástico, e, contudo, não descreverei a maneira como esses escravos técnicos se hão de revoltar um belo dia, aprisionar a humanidade nos campos de concentração, fazê-la desaparecer no cadafalso ou na cadeira elétrica. Tais revoluções são a empresa dos escravos humanos. Só descreverei realidade. E na verdade esse proletariado técnico fará a sua revolução sem se servir de barricadas como as seus camaradas humanos. Os escravos técnicos representam uma maioria numérica esmagadora na sociedade contemporânea. É um fato concreto. No quadro desta sociedade agem segundo leis próprias, diferentes das dos humanos. Dessas leis específicas dos escravos técnicos só citarei o automatismo, a uniformidade e a anonimato.
”Uma sociedade em que há algumas dezenas de biliões de escravos técnicos e apenas dois biliões de homens (mesmo que estes a governem), terá todos os caracteres de uma maioria proletária. No tempo dos romanos, os escravos falavam, oravam e viviam conforme os costumes importados da Grécia, da Trácia ou de outros países ocupados. Os escravos técnicos da nossa sociedade conservam também o seu caráter específico e vivem segundo as leis da sua nação. Tal natureza, ou, se preferes, essa realidade existe no quadro da nossa sociedade. Cada vez mais se faz sentir a sua influência. Os homens, para poderem tê-los ao seu serviço, são forçados a conhecer e imitar os seus hábitos e leis. Todo patrão é obrigado a saber um pouco da língua e dos costumes dos seus empregados para poder mandar neles. Ouase sempre, logo que o ocupante se encontra em estado de inferioridade numérica, adota a língua e os costumes do povo ocupado, por comodidade ou interesse prático. Faz isso, embora seja ele o ocupante e o todo-poderoso.
”O mesmo processo prossegue o seu desenvolvimento no quadro da nossa sociedade, quer se queira reconhecê-lo, quer não. Aprendemos as leis e as maneiras de falar dos escravos para melhor os dirigirmos. E assim, pouco a pouco, sem mesmo darmos por isso, renunciamos às nossas qualidades humanas, às nossas leis próprias. Desumanizamo-nos, adotamos o estilo de vida dos nossos escravos técnicos. O primeiro sintoma dessa desumanização é o desprezo do ser humano. O homem moderno sabe que os seus semelhantes, e ele próprio, aliás, são elementos que se podem substituir. A sociedade contemporânea que conta um homem por duas ou três dúzias de escravos deve ser organizada e funcionar segundo leis técnicas. É uma sociedade criada segundo necessidades mecânicas, e não humanas. E é aí que começa o drama.
”Os seres humanos são obrigados a viver e comportar-se segundo leis técnicas, estranhas às leis humanas. Os que não respeitam as leis da máquina, promovidas à craveira de leis sociais, são castigados. O ser humano que vive em minoria torna-se, com a ajuda do tempo, uma minoria proletária. É excluído da sociedade a que pertence, mas na qual não pode de ora avante integrar-se sem renunciar à sua condição humana. Vem-lhe daí um sentimento de inferioridade, o desejo de imitar a máquina e de abandonar os caracteres especificamente humanos que o mantém afastado dos centros de atividade social.
”E esta lenta desintegração transforma o ser humano fazendo-o renunciar aos seus sentimentos, às suas relações sociais, até reduzi-las a qualquer coisa de categórico, preciso e automático, as mesmas relações que ligam uma peça da máquina a outra. O ritmo e a linguagem do escravo técnico são limitados nas relações sociais, na administração, na pintura, na literatura, na dança. Os seres humanos tornam-se papagaios dos escravos técnicos. Mas isto é só o começo do drama. É o momento em que começa o meu romance, isto é, a vida de meu pai, de minha mãe, a tua, Jorge, a minha e a das outras personagens.
- O que quer dizer que nos transformamos em ’’homens-máquinas”? - perguntou o delegado. Tinha o mesmo tom trocista. - é precisamente aí que estala o drama. Nós não nos podemos transformar em máquinas. O choque entre as duas realidades, técnica e humana, deu-se. Os escravos técnicos ganharão a guerra. Vão emancipar-se e tornar-se os cidadãos técnicos da nossa sociedade. E nós, os seres humanos, vamo-nos tornar os proletários de uma sociedade organizada segundo as necessidades e a cultura da maioria dos cidadãos, isto é, dos ”cidadãos técnicos”.
- E, praticamente, como se dará esse choque? - perguntou o delegado.
- Eu próprio tenho curiosidade de o ver. Mas, ao mesmo tempo, tenho medo. Mais valia morrer que assistir à minha crucifixão e à dos meus semelhantes.
- Pensas em fatos precisos?
- Todos os acontecimentos que se desenrolam, a esta hora, à superfície da terra, e todos os que se hão de desenrolar nos anos a seguir, não são mais que sintomas e fases dessa mesma revolução, a revolução dos ”escravos técnicos”. Por fim, os homens já não poderão viver em sociedade conservando os seus caracteres humanos. Serão considerados iguais, uniformes e tratados segundo as mesmas leis aplicáveis aos escravos técnicos, sem concessão possível à sua natureza humana. Haverá prisões automáticas, condenações automáticas, distrações automáticas, execuções automáticas. O indivíduo não mais terá direito à existência, será tratado como um pistão ou uma má peça de máquina, e tornar-se-á o riso de toda a gente se quiser levar uma existência individual. Já viste um pistão levar uma vida individual? Esta revolução efetuar-se-á em toda a superfície do globo. Não nos poderemos esconder nas florestas nem nas ilhas. Em nenhures. Nação alguma se poderá defender. Todos os exércitos do mundo serão compostos de mercenários que lutarão para consolidar a sociedade técnica, de onde o indivíduo é excluído. Até agora os exércitos combatiam para conquistar novos territórios e riquezas novas, por orgulho nacional, pelos interesses privados dos reis ou dos imperadores, tendo por fim a pilhagem ou a grandeza. Eram. esses os fins humanos. Agora esses exércitos combatem pelo interesse de uma sociedade à margem da qual mal têm o direito de viver como proletários. É talvez a época mais sombria de toda a história da humanidade. Jamais o homem foi assim desprezado. Nas sociedades bárbaras, por exemplo, um homem era menos apreciado que um cavalo. Isso pode acontecer ainda hoje em certos povos ou com certos indivíduos. Contavas-me ainda há pouco a história de um campônio que acabara de matar a mulher e não se lamentava, mas que se tentara suicidar ao pensar que ninguém daria a ração e a água aos seus cavalos enquanto ele estivesse na prisão. Tal é a maneira de subestimar o indivíduo das sociedade primitivas. O sacrifício humano é uma coisa corrente. Na sociedade contemporânea o sacrifício humano nem já mesmo merece mencionar-se. É banal. A vida humana só tem valor como fonte de energia. Os critérios são puramente científicos. É a lei da nossa sinistra barbaria técnica. Lá chegaremos depois da vitória total dos escravos técnicos.
- E quando se produzirá a revolução de que te fazes o profeta? - perguntou o delegado.
- Mas já começou! - respondeu Traian. - Vamos participar no seu desenvolvimento. A maior parte de nós não sobreviveremos. Tenho um medo terrível de não chegar a acabar este livro, pois hei de desaparecer também.
- O teu pessimismo é demais - disse o delegado.
- Eu sou poeta, Jorge - disse Traian. - Possuo um sentido que os outros não têm e que me permite entrever o futuro. O poeta é um profeta. Sou o primeiro a lamentar o ter de predizer coisas assim tão tristes. Mas a isso me obriga a minha missão de poeta. Tenho que o gritar aos quatro ventos, mesmo que o grito não agrade.
- Acreditas a sério no que dizes?
- Desgraçadamente, estou convencido.
- Eu julgava que fazias simplesmente literatura.
- Não é literatura - disse Traian. - Todas as noites espero que me aconteça qualquer coisa.
- Que te poderá acontecer? - perguntou o delegado.
- Não importa quê. Desde o momento que o homem foi reduzido à única dimensão de valor técnico-social, pode-lhe acontecer não importa o quê. Pode ser preso e mandado para os trabalhos forçados, exterminado, obrigado a fazer Deus sabe que tarefas: para um plano qüinqüenal, para o melhoramento da raça ou outros fins necessários à sociedade técnica, sem respeito nenhum pela sua própria pessoa. A sociedade técnica trabalha exclusivamente segundo leis técnicas, manejando apenas abstrações, planos, e com uma única moral, a produção.
- Será possível que nos prendam?
O delegado deixara o tom irônico. Estava um pouco medroso e dirigia-se a Traian como uma quiromante a quem perguntamos pelo futuro, sem acreditar, em princípio.
- Não haverá homem livre à superfície do globo - disse Traian.
- Definharemos então, sem culpa, nas prisões? - perguntou o delegado.
- Não - respondeu Traian. - O homem ver-se-á acorrentado pela sociedade técnica durante longos anos. Mas não perecerá nos grilhões. A sociedade técnica pode criar conforto, mas não pode criar o Espírito. E sem Espírito não há gênio. Uma sociedade desprovida de homens de gênio está condenada a desaparecer. A sociedade técnica que toma o lugar da ocidental e que vai conquistar toda a superfície da terra perecerá também. ”O insigne Alberto Einstein afirma que bastaria uma solução de continuidade de duas gerações apenas, na linhagem dos cérebros de primeira ordem especialmente dotados para a ciência física, para que se desmoronassem todas as construções fundadas nessa ciência 1. Esse desabar da sociedade técnica será seguido pelo renascimento dos valores humanos e espirituais. A grande luz virá sem dúvida do Oriente. Da Ásia. Mas não da Rússia. Os russos prosternam-se diante da luz elétrica do Ocidente e não lhe sobrevivem. O homem do Oriente conquistará a sociedade técnica e utilizará a luz elétrica para iluminar as ruas e as casas. Mas nunca se tornará seu escravo nem lhe erguerá altares, como o faz hoje em sua barbaria a sociedade técnica ocidental. Não iluminará à luz do neon as vias do espírito e as vias do coração. O homem do Oriente tornar-se-á senhor das máquinas e da sociedade técnica pelo espírito, como um chefe de orquestra, graças ao gênio da harmonia musical. Mas não nos será dado a nós conhecer essa época. Vivemos um tempo em que o homem se prosterna diante do sol elétrico como um bárbaro.
- Morreremos então agrilhoados? - disse o delegado.
- Pessoalmente, pereceremos nos grilhões dos escravos técnicos. O meu romance será o livro desse epílogo.
- Que título tem?
- A Vigésima Quinta Hora - disse Traian. - O momento em que toda a tentativa dos Socorros a Náufragos é vã. Mesmo o advento de um Messias não resolveria nada. Não é a última hora: é uma hora depois da última hora. O preciso tempo da Sociedade Ocidental. É a hora atual. A hora certa.
O padre conservava-se em silêncio, de cabeça enterrada nas mãos.
- Diga-me Vossa Paternidade - disse o delegado - se, no caso de as profecias de Traian se realizarem e se o Homem está
(1) Hermann von Keyserling.
destinado a ser tratado como escravo, a Igreja poderá fazer alguma coisa pela sociedade contemporânea. Se a Igreja não pode salvar o ser humano nestas horas graves, que missão ainda poderá ser a sua?
O Pé. Alexandre Koruga refletiu um momento; depois disse:
- A Igreja não pode salvar as sociedades, mas pode assegurar a salvação dos indivíduos que as compõem.
- E acredita que as profecias de Traian possam realizar-se?
- Eu tenho por costume acreditar nos poetas - respondeu o padre. - E, a meu ver, Traian é um grande poeta.
- Obrigado, meu pai - disse Traian.
Gorara de prazer, como um menino. Houve um momento de silêncio.
- Parece-me que passou agora alguém na varanda - disse Traian.
Os três homens aplicaram o ouvido. Mas, lá fora, só o ruído da chuva respondeu à expectativa.
- Se estivesse alguém no pátio, os cães tinham ladrado. Só lohann Moritz, o meu homem de confiança, pode entrar no jardim sem que os cães ladrem. Mas a esta hora deve estar a dormir tranqüilamente no barco que o leva para a América.
- Mas eu tenho a certeza de ter ouvido alguém subir os degraus da escada - disse Traian. - Tenho o ouvido apurado, oiço o mínimo ruído.
- Talvez um escravo técnico que acaba de fugir do teu carro... - disse, sorrindo, o delegado. - Talvez já tenha rebentado a revolução lá deles e vêm-nos prender esta noite... Quantos escravos técnicos garantem o serviço do teu carro, Traian?
- Faz-lhe a conta: 55 H.P. e cada H.P. igual a 7 homens.
- Em suma, o efetivo de algumas companhias - disse o delegado. - E não somos mais de três. Se nos atacarem seremos obrigados a capitular sem condições.
- Sem a cumplicidade de um homem, os escravos técnicos não podem atacar os seres humanos. Tendo por cúmplice um cidadão (que não é um ser humano), os escravos técnicos tornam-se bestas do Apocalipse.
- Que entendes tu por cidadão? - perguntou o delegado. - Todos nós somos cidadãos.
- O cidadão é o ser humano que só vive a dimensão social da vida. Como o pistão de uma máquina, faz só um único movimento e repete-o ao infinito. Mas, ao contrário do pistão, o cidadão tem a pretensão de erigir a sua atividade em símbolo, de a dar como exemplo ao universo inteiro, de fazer-se imitar por toda a gente. O cidadão é o animal mais perigoso que apareceu à superfície do globo, desde o cruzamento do homem com o escravo técnico. Tem a crueldade do homem e a do animal e a fria indiferença das máquinas. Os russos criaram o tipo mais perfeito da espécie inteira: o comissário.
Duas leves pancadas soaram nos vidros da janela.
- Eu bem vos disse que tinha ouvido passos! - disse Traian.
- Os sentidos de um poeta nunca o atraiçoam.
O padre assomou à varanda, deixando a porta aberta. Voltou acompanhado de um rapaz. O recém-chegado só tinha uma camisa e umas calças. Vinha descarapuçado e molhado até aos ossos.
- É o lohann Moritz - disse o padre.
Deu um copo de vinho a lohann Moritz e convidou-o a sentar-se. O rapaz recusou e ficou em pé contra a porta. Não queria molhar o tapete e a cadeira. A água escorria-lhe do cabelo como se fosse de um beiral. Era evidente que tivera de andar debaixo de chuva muito tempo.
- Queres-me falar de parte? - perguntou o padre.
- Posso falar-lhe aqui - respondeu Moritz.
- Tive pena que não tivesses passado por cá esta manhã, para vires buscar a tua trouxa - disse o padre.
- Já não vou para a América - explicou Moritz. Olhou para os outros dois, depois virou-se para o padre e acrescentou: - Vossa Paternidade, ontem, tinha-me dado licença de dormir no quarto pegado à cozinha.
O padre percebia agora por que é que Moritz lhe batera à porta, alta noite.
- O quarto é teu - exclamou. - Podes-te servir dele quando te apetecer.
- E se for outra pessoa, pode dormir lá esta noite? - perguntou Moritz.
- Pois com certeza - disse o padre. - Se é alguém que tem necessidade e que queres ajudar, até te fica bem.
- É a Susana, a filha de lorgu lordan. Fugiu de casa. O pai quer dar cabo dela.
Moritz lembrou-se que todos os aldeãos diante de quem pronunciara o nome da rapariga lhe tinham recusado abrigo. Olhou para o padre cara a cara.
- Se estiver frio no quarto, acende a lareira - disse o velho. - Sabes a lenha onde está.
lohann Moritz continuava de pé à porta. Não se queria ir embora antes de contar ao padre, como se fosse em confissão, tudo o que se passara. Quando chegou ao fim da história e disse que a rapariga estava sozinha no campo, a meio caminho entre Fântâna e a vila, Traian Koruga pôs-se em pé, enfiou o capote. E, saltando para o carro, largou com lohann Moritz. Meia hora depois estavam de volta.
O automóvel parou no mesmo lugar, diante da varanda. Moritz pegou de braçado em Susana. O delegado assistia à cena, do alto da varanda. A mulher do padre marchava ao pé de Moritz, à esquerda. O padre à direita. A rapariga jazia nos braços de Moritz como uma criança adormecida. O delegado reparou no vestido encharcado, que molhava as ancas. Traian entrou na sala. O delegado seguiu-o.
Traian corou e olhou para os sapatos cheios de lama. Depois para o fato a pingar no soalho. Tinha-se molhado sem necessidade alguma. Moritz levantara sozinho a rapariga e deitara-a no carro. Traian não precisava nada ajudá-lo, e contudo lá tinha ficado sempre ao pé dele, à chuva. Analisando o seu gesto, disse de si para consigo que, de ora avante, numa situação semelhante, havia de fazer o mesmo: ”era a necessidade de partilhar a dor do homem que estava a meu lado ainda que a minha ajuda não tenha valor prático algum; mesmo que seja gratuita”.
O padre entrou no quarto. Também ele estava molhado, e a água escorria-lhe da testa, da cara, da barba. Tinha acompanhado lohann Moritz debaixo de chuva. Como o filho. Sem precisão nenhuma.
”Deus também fez os mesmos gestos inúteis quando criou o universo”, pensou Traian. ”Deus criou coisas sem utilidade prática. Mas são as mais belas. A vida do homem é uma criação inútil. Tão inútil e absurda como o meu gesto ou o de meu pai. Mas este fervor é magnífico. Apesar da sua inutilidade, é inigualável.
- Não deves apanhar frio, Traian! - disse o padre.
- Eu não apanho frio! - replicou Traian. - Como vai a doente?
- Está com febre - disse o padre. - Tua mãe fez-lhe chá e está a tratar dela. Hás de ter a recompensa, Traian, de a trazeres de automóvel. Os pobres precisam de ajuda.
O cuco do relógio cantou a meia-noite.
lohann Moritz bateu à porta. Não podia esperar até ao dia seguinte para agradecer ao padre e a Traian. De todas as desgraças que tinham caído sobre ele nas últimas vinte e quatro horas, só se lembrava do gesto de bondade do Pé. Koruga e estava-lhe grato. Sentia-se contente por Susana ter um abrigo. Podia ter sido pior. Traian Koruga encarou Moritz, de olhos esbugalhados. Interrompeu-se brusco e disse:
- Pai, quando eu voltar a Fântâna fico ainda em tua casa. Dá ao Moritz o dinheiro que eu te tinha entregado, e ele que faça uma casa em Fântâna. Precisa mais do que eu.
O padre pegou no envelope e estendeu-o a lohann Moritz com um gesto simples como todos os grandes gestos. Não lhe deu nenhum conselho: estendeu-lhe simplesmente o envelope, lohann Moritz abriu-o. Não tinha a certeza de ter entendido bem. Quando viu o maço de notas franziu os olhos, que se lhe fizeram grandes, muito grandes, como os olhos dos homens que assistem a milagres. Queria dizer qualquer coisa. Mas no seu coração não havia lugar para palavra alguma. Apertou o envelope nas mãos e calou-se.
- Diz obrigado a Traian - disse o padre, depois de um momento de silêncio. - E vai-te deitar. Dá o dinheiro à Susana. As mulheres guardam-no melhor.
- Talvez que Moritz queira beber um copo, agora que é proprietário em Fântâna - disse o delegado.
A mulher do padre entrou no quarto. Moritz pôs o copo em cima da mesa e olhou-a siderado. Susana estava melhor, disse ela. Depois puxou o padre para um canto e cochichou-lhe uma coisa qualquer ao ouvido. O velho franziu as sobrancelhas. Depois sorriu. Moritz seguia-lhe todos os movimentos.
- Descansa, que não é má notícia. Minha mulher acaba de me dizer que vais ser pai. É preciso casar-vos antes.
lohann Moritz apertou a mão de Traian Koruga e a do delegado; depois saiu. Chovia sempre. Antes de descer os degraus, escondeu o dinheiro na camisa para não o molhar. O envelope estava morno e macio ao tocar. Apertando-o contra si, Moritz via erguer-se diante dos olhos a casa, a cancela, o poço, o jardim. Como sempre sonhara. Ao entrar no quarto, Susana dormia ainda. Pôs o dinheiro debaixo da almofada e foi-se deitar na palha.
Quando passava, a assobiar, debaixo das janelas da biblioteca, o padre dizia a Traian:
- Tinha sido melhor que lhe não falasse em casamento. A mãe de Susana morreu. Está na casa dos mortos do hospital e o pai na cadeia, Não era realmente a ocasião.
- Mas eles não sabem de nada - disse Traian. - Estão cheios de projetos para o futuro. Têm por si o amor e o dinheiro sonhado. São felizes.
- Sim, são felizes; mas no fundo deviam chorar.
- É verdade! - replicou o delegado. - Para nós, que sabemos a verdade, a alegria deles parece uma profanação.
- Bem analisada e em relação ao conjunto, toda alegria humana é um ato de profanação.
O cuco do relógio deu a uma hora. Os três homens que estavam no escritório do Pé. Koruga essa noite ouviam as horas e a chuva.
Dois anos depois lorgu lordan foi posto em liberdade. Regressava ao seu país, de onde havia sete anos viera. Antes de partir, passou uma última vez em Fântâna. Queria vender a casa. Atravessando a viela da aldeia, o chefe do posto da guarda viu que as janelas da casa do teto de telhas vermelhas, cujas portadas estavam habitualmente fechadas, nesse dia se achavam abertas de par em par. E entrou a saber o que havia. lorgu lordan estava atrás da casa, a emalar.
- Bem se vê que é rico, Sr. lordan! - disse o guarda. - Deve-lhe ter cheirado a alho, sair da cadeia tão cedo.
O gigante ergueu os olhos e deitou-lhe uma olhadela.
- Não compreendo. A voz saía-lhe dura.
- Pergunto se o senhor pagou muito dinheiro para sair da prisão! - disse o guarda. - Tinha para mais de dois anos.
lorgu largou o martelo que tinha na mão. Tirou um bilhete da algibeira do seu casaco verde e arremessou-o ao guarda. Depois continuou a martelar. E, acentuando bem cada palavra, disse:
- Dou-te isso para que saibas com quem estás a falar. Dentro de poucos dias envergo o uniforme de sargento S. S. Sou cidadão alemão; vou pagar o meu tributo de sangue à pátria. E agora já sabes por que é que me soltaram da cadeia. Não era o que tu pensavas.
O guarda pegou no mandato de mobilização de lorgu lordan e leu-o. Ele bem sabia que tinham sido anistiados todos os alemães presos, com a condição de voltarem ao seu país e de se alistarem no exército. Dobrou o papel e estendeu-o ao gigante, sorrindo.
- Lê também isso - disse lorgu lordan.
Tirou outro papel. Era uma carta a agradecer. O gigante tinha doado ao exército alemão toda a sua fortuna para que os alemães pudessem comprar mais um Panzer. O embaixador do Grande Reich Alemão em Bucareste mandara-lhe uma missiva de agradecimento à cadeia. O guarda desdcbrou o papel, que não conseguiu ler, por vir em alemão. Mas admirou o cabeçalho com águia e cruz gamada, e os selos brancos.
- O senhor vende a casa ou conserva-a? - perguntou.
- O Panzer comprado com o meu dinheiro já teve o batismo de fogo - disse lorgu lordan sem responder à pergunta. - Qualquer dia vou atrás dele. Já não sou novo, mas o Grande Reich Alemão aceita-me tal como sou!
lorgu lordan dobrou os papéis e arrecadou-os no bolso. Depois pegou no martelo e continuou a pregar os caixotes para a viagem. Já não olhava para o guarda. Quando este lhe disse adeus, lorgu lordan, sem levantar os olhos, apenas resmungou umas tantas palavras na sua própria língua.
Ao sair de casa de lorgu lordan, o chefe do posto da guarda endireitou à taberna. Era em maio. O guarda caminhava mesmo pelo meio da rua, a ver se livrava as botas da poeira. Gostava de ter as botas como espelhos. Também era dado às mulheres. E à aguardente. Quanto à aguardente, o judeu da taberna ia-lhe dando de graça. ”Se não se fizesse de tempos a tempos algum decreto novo os guardas morriam de fome”, pensava. O Estado,aliás, encarregava-se disso muito bem. Em janeiro recebera ele ordem de expedir todos os judeus da aldeia para campos de trabalho. Em Fântâna só havia um judeu: o taberneiro Goldenberg. O guarda mostrara-lhe a ordem que tinha recebido. A ordem era secreta e logo se lastimou porque lha tinha mostrado. Depois, pensando melhor, disse de si para si que tinha feito bem. Daí por diante, de três em três meses, mandava um certificado médico que dizia que o judeu Goldenberg estava doente e não podia ser compelido ao trabalho; mediante o quê recebia 3.000 lei do judeu cada mês, duplicando o pré deste modo. Agora sim, podia viver limpamente. Tinha além disso a impressão de praticar uma boa ação. O velho Goldenberg continuava em sua casa em vez de padecer num campo de trabalho.
Depois de beber um cálice de aguardente, o guarda afastou o reposteiro e, através da vidraça, relanceou o olhar ao quarto do judeu. Queria ver Rosa, a filha do taberneiro; dar-lhe bom-dia, como era seu costume. Rosa tinha a pele branca e fina. Quando lhe beliscava o braço, o guarda tinha a impressão de tocar em veludo. A pele de Rosa não era como a das outras aldeãs. Em regra ela ficava encostada à janela, a ler romances. Mas naquele dia tinha um rapaz à perna, que falava com ela.
- Quem é este homem? - perguntou o guarda em tom áspero.
O velho Goldenberg hesitou. Não sabia se devia dizer-lhe a verdade. Depois resolveu-se.
- É o meu filho, o Marcou. Acaba de chegar de Paris.
- Apresenta-mo! - disse o guarda.
Nunca conhecera um rapaz que viesse de Paris. Sempre se aprendia qualquer coisa com pessoas chegadas de Paris. Mas Marcou Goldenberg era um perfeito salamurdo. Era preciso arrancar-lhe as palavras a saca-rolhas. O guarda supunha os rapazes que tinham estudado em Paris pessoas de outra laia. E teve uma decepção. O outro nem mesmo quisera beber o cálice de aguardente que lhe oferecia o guarda. Um rapaz antipático. Mas, antes de partir, o guarda disse a Marcou:
- Vem esta tarde ao posto. Podemos jogar às cartas! Ao sair da taberna pensou que o velho Goldenberg atirara o
dinheiro pela janela fora mandando o filho a Paris.
Ao passar em frente da casa de lohann Moritz o guarda parou. No pátio, Susana amassava barro para fazer adobes. Há dois anos que lohann Moritz tinha construído a casa. Ele e a mulher trabalhavam noite e dia. A casa era bem bonita; tinha uma varanda.
- Por que é que ainda fazes adobes? A casa está pronta. Gostaria de entrar no pátio, mas a porta estava fechada a
chave.
- Estamos a fazer uma arribana para as vacas - respondeu a mulher.
Continuou a amassar o barro com os pés. O guarda espreitava-lhe as coxas nuas e brancas.
- O teu homem não está aí? - perguntou-lhe.
- lani foi ao moinho - respondeu ela, a rir.
Ao fundo do pátio os dois petizes de lohann Moritz estavam-se torrando ao sol. O primeiro no berço, o segundo a galgar na poeira. Susana espiava-os de vez em quando, deitava água no barro e continuava a amassar. Tinha um vestido apertado que lhe fazia sobressair o roliço das ancas. O .guarda experimentou forçar mais uma vez a porta.
- Não me queres abrir? - perguntou.
- Estás muito bem onde estás.
- Nunca te topo sozinha. E, agora que teu marido não está, nem sequer me abres a porta!
- Pois é assim mesmo! - disse ela. - E já te demoras aí. Segue lá o teu caminho e deixa-me em paz!
- Abre um bocadinho! Não sejas má!
- lani está a chegar. E, se te encontra aqui, abre-te a cabeça.
- E tinhas pena? - perguntou o guarda.
- Não tens outra coisa menos tola que me perguntar? - disse Susana. - Mais valia calares-te e seguires o teu caminho, lani não tarda aí.
- Quero te perguntar só mais uma coisa, e vou-me!
- Pergunte lá.
Susana parou de amassar e pôs as mãos nos quadris.
- Se não estivesses à espera do teu marido abrias-me a porta?
- Acho que queres saber demais - disse Susana. Começou outra vez a amassar barro. Nunca tinha pensado o que faria se Moritz partisse um dia para longe e o guarda viesse vê-la.
- És uma mulher casada - disse ele. - O que é que te mete medo?
- Deixa-me em paz e vai-te - tornou ela zangada.
- Responde-me, que eu vou-me embora - replicou o guarda.
- Não sei nada - disse ela secamente.
- Diz que sim ou que não - teimou o guarda. - Se me não respondes, fico!
Encostou-se à porta e esperou.
- Por que é que queres saber? - perguntou ela. - lani está sempre em casa.
- Mas se ele se fosse?
- Experimenta e verás! - disse ela. - Mas lani não se vai. Temos que fazer a arribana. Depois, abrir o poço. Por que é que se havia de ir quando temos tanto que fazer?
Os olhos do guarda brilharam. Afastou-se da porta dizendo:
- Eu bem sabia que eras uma mulher de coragem.
E foi-se. Susana ouviu-o afastar-se, assobiando. Parou de trabalhar. Estava cheia de medo. Tirou os pés do barro e largou-se a correr para o pé das crianças. Pegou no mais velho ao colo e apertou-o muito a si. Tinha a impressão de ter cometido um pecado, de ter feito qualquer coisa de grave, de mau agoiro para Moritz e para os filhos. ”Mas afinal, que mal fiz?” - perguntou. - ”Estou com um medo tolo...”
Desapertou a cinta e pôs a criança no chão. Depois, começou outra vez a amassar barro arregaçando o vestido.
Uma semana depois, um guarda bateu à porta de lohann Moritz. Moritz estava à mesa. Espreitou pela janela e disse, vendo o quepe do guarda:
- Vou ver o que me quer.
Saiu para o pátio. Quando voltou para casa trazia um papel na mão. Uma vez à mesa, começou outra vez a comer e p”ergunta-lhe Susana:
- Que papel é esse?
lohann Moritz engoliu o bocado que tinha na boca e respondeu :
- É uma requisição. Depois do almoço se verá o que é que o Governo ainda nos quer.
Parecia muito calmo. Sabia muito bem que todos os aldeãos recebiam requisições parecidas, de cavalos, carroças e gado. Por si não tinha cavalos nem carroça. Agora não tinha pena de não ter comprado disso. O Governo ficaria com tudo e ele continuaria a pé. ’’Mas talvez que o Governo me queira obrigar a dar um saco de milho ou de trigo”, pensou. O trigo também era requisitado, bem sabia.
Depois de ter comido, lohann Moritz limpou as mãos para não sujar o papel trazido pelo guarda; depois desdobrou-o e pôs-se a ler. Susana seguia com os olhos a expressão do seu rosto, que estava cada vez mais corado, depois pálido e enfim lívido.
- Que dizem eles? - perguntou Susana.
Os pequenos estavam calados e olhavam para o pai. Moritz estendeu-se na cama, levando as mãos à nuca. - Não me quererás dizer o que é que aí está escrito? - perguntou Susana.
O silêncio de Moritz não era de bom agoiro.
- Mesmo que te dissesse, não entendias nada. Eu também não entendo.
- É uma má nova, lani?
- O furriel enganou-se, com certeza. Os furriéis do regimento, quando escrevem, estão sempre a pensar noutra coisa! - Estendeu o papel a Susana. - Que dizes a isso? É uma requisição. Já recebemos duas. Uma vez para o trigo, e outra vez quando nos requesitaram os sacos comprados ao Porfírio. Mas agora a ordem não é para trigo, nem para sacos: é para mim. Mas como é que eles podem requisitar um homem? Entendes isto? Entendes? - Susana lia a requisição com dificuldade. Moritz perdeu a paciência. Tirou-lhe o papel da mão e leu em voz alta. Depois disse:
- Como é que eles me podem requisitar, a mim? Eu sou um homem. Eles podem requisitar cavalos, casas, vacas, sacos, mas não homens. E, vê lá, está aí escrito o meu nome. O sargento é maluco de todo!
- E que vais tu fazer agora? - perguntou Susana.
- Amanhã de manhã, às sete horas, tenho que me apresentar no quartel da Guarda - disse ele.
- Tens razão, com certeza! - disse Susana. - Os furriéis enganaram-se.
- Pois claro que se enganaram - respondeu Moritz.
Mas sentia uma dúvida crescer. E se os furriéis se não tivessem enganado? Preparou-se para a viagem como se fosse mobilizado. Se não fosse engano a convocação, então talvez o conservassem lá um mês ou dois.
Toda a tarde Moritz peguilhou com Susana. E Susana não se agastou; bem via que ele estava furioso por causa da convocação. Para a tarde, Moritz pegou no papel, protegeu-o com uma folha de jornal para não o encardir e meteu-o na algibeira.
- Vou mostrar a requisição ao padre - disse ele. E saiu do pátio.
No terreiro do padre estava só a mulher. O Pé. Alexandre Koruga passava o dia na cidade. Moritz esteve quase a contar tudo à mulher do padre. Mas arrependeu-se. Beijou-lhe a mão e saiu.
Os cães ladravam na rua. A noite caía suavemente. Moritz tropeçou numa pedra e praguejou. Apressou o passo e entrou em casa.
Foi uma noite atormentada. Mal se deitou, lohann Moritz sentiu-se assaltado por pensamentos sombrios. Susana chegou-se para ele e passou-lhe os braços ao pescoço. Queria fazê-lo esquecer tal desgosto. Mas ele desatou-lhe os braços, arredou-a e virou-lhe as costas. Não lucrou muito com isso. Passava-lhe tudo pela cabeça. Há tanto que fazer numa casa! Mesmo quan do nos metemos de cara ao trabalho nunca se chega ao fim. Mas quando se abala de repente sem se saber por quanto tempo e se tem de deixar tudo, fica-se a tremer de medo. Moritz estava desesperado. Era como se morresse. Há tanta coisa a tratar antes de uma abalada! lohann Moritz estava atormentado por semelhantes pensamentos. Acabara de comprar uma carrada de madeira. Tinha-a pago, serrado, tinha-a emedado no mato. Só faltava trazê-la para casa. E, eis senão quando, abandonava tudo. Era pau de carvalho, e caro. Madeira de construção. Estava inquieto por vê-la acomodada no pátio. Pensara até no sítio onde a havia de meter, encostada à cancela, que as vigas eram grossas. E agora tinha que se ir. lohann Moritz virou-se para Susana. Não podia deixar a madeira na mata. Susana não estava ao fato; não sabia onde estava a madeira. Custava a dar com ela. Susana dormia. Moritz tocou-lhe num ombro.
”Tenho que lhe dizer que a madeira está detrás da portela, a uns centos de metros da ribeira. Mas há lá mais madeira de outros donos. Se lhe não explico bem, Susana não dá com ela”, disse consigo Moritz.
Susana sentia a mão de Moritz pousada no seu ombro e, mesmo a dormir, sorria. A lua era cheia e o quarto claro como de dia. lohann Moritz bem sabia que Susana nunca podia trazer toda a madeira sozinha. Não era trabalho para mulher.
”O Artemie vai com ela, e dá com a madeira. Mas ela há de saber que a comprei. Tenho que lho dizer.”
Moritz apertou mais o ombro da mulher. Ela sorriu outra vez. Moritz via-lhe a cara iluminada pela lua. Susana sorria e passou a língua pelos beiços. Moritz teve pena e não se atreveu a acordá-la. A mulher dormia a sono solto, como um bebê. Moritz ia-se levantar cedo e dizer-lhe onde estava a madeira. Tirou o braço e ficou de costas na cama. Em regra, dormia depressa, estendendo-se assim. Mas naquela noite não tinha posição descansada. Lembrou-se da convocação. Ao pensar na mata, esquecera-a. De repente ficou furioso. lohann Moritz fizera o serviço militar como guarda na fronteira. Aí aprendera o sérvio. Conhecia os regulamentos militares, que não iam mudar de um dia para o outro. Os homens não podiam ser requisitados como carroças, bois, charruas ou caminhões.
lohann Moritz esfregou as fontes e resolveu não pensar mais nisso; amanhã saberia o que é que acontecera. Quem sabe se os furriéis se tinham enganado e se a sua arrelia era inútil? Talvez até que um dos furriéis da companhia lhe tivesse querido pregar uma partida tola e lhe mandassem uma requisição em vez de uma ordem de mobilização,
Mal se acalmara um pouco, esperando enfim dormir, quando de repente se lembrou de que Antim Balta lhe devia 500 lei. Não sabia quanto tempo iria estar longe, e Susana podia ter precisão de dinheiro. Voltou para ela. Susana dormia sobre o lado esquerdo, de almofada apertada nos braços.
”Quem sabe o que ela sonha! pensou Moritz; e mais uma vez se não atreveu a acordá-la. Dizia-lhe aquilo amanhã.
Moritz pensou, além disso, que, chegadas as chuvas, o muro do poço vinha abaixo se ele o não acabasse. ”Mas talvez eu esteja de volta antes do tempo das chuvas”, disse de si para si; e não pensou mais no poço. Então lembrou-se que os adobes para a arribana ainda não estavam cozidos. Tinha feito oitocentos, que empilhara uns sobre outros perto da casa, a secar. Era preciso cozê-los. Se os deixassem secar muito desfaziam-se em migalhas e era trabalho perdido. Tudo isto o atormentava, e Moritz não parava de se revirar na cama. Olhou outra vez para Susana. Queria pedir-lhe conselho. Ela desmanchara-se a dormir, de cara enterrada na almofada. Moritz concluiu que Susana não adiantava nada. Ia acordá-la em vão. Era um trabalho de homem. Lembrava-se de amigos que tinha no povo do lugar e não achava nenhum que pudesse encarregar-se da cozedura dos adobes. Todos tinham casa e trabalho. Se fosse de dia, Moritz tentaria falar a este e àquele. Mas agora, alta noite, todos estariam a dormir. Não ia agora acordá-los para lhes falar dos adobes. ”Vou cobrir os adobes com palha e folha de milho. Secarão mais devagar, e assim poderão durar mais algumas semanas”, disse consigo Moritz. ”Nessa altura estarei de volta talvez”. Levantou-se. A porta da varanda ficara aberta, e saiu. Estava nu. Queria voltar ao quarto, enfiar a camisa e as calças, mas tinha medo de acordar a mulher e os meninos.
Pegou num adobe e mirou-o à luz da lua. Devia ir para o forno dali a dois ou três dias, o mais tardar. Voltou para o lado do poço. Depois revistou todo o pátio. Tinha-se esquecido completamente que ia nu. Olhou para as paredes da casa, para o teto. Podia muito bem vê-los, que o céu estava claro e límpido como de dia.
Há muito tempo que a lua não saía assim brilhante. Moritz esquecera-se de que tinha que partir. Fazia planos acerca da construção da arribana. Compraria carroça e cavalos; depois uma vaca. Chegara ao fundo do pátio, ao pé da meda de palha. Tirou um braçado e cobriu os adobes com ele. Susana podia fazer aquilo no dia seguinte, mas, visto que estava ali, ao pé da meda de palha, mais valia poupar-lhe o trabalho. Depois acarretou a folha de milho. Agora sentia calor. Cobriu os adobes. Tinha trabalhado à pressa. Ao cantar do galo, Moritz estremeceu. Esquecera-se de tudo, e eis que de repente, se lembrava que tinha de partir. Tinha vergonha de estar assim em coiro no pátio. Entrou em casa e parou a meio do quarto. A mulher dormia, nua, atravessada na cama. Moritz estendeu-se a seu lado, sem a acordar. Ela nem o sentira chegar. Esticou uma perna por cima da de Moritz. Ele amadorrou-se depressa. Estremeceu pouco após e acordou outra vez. Olhou em volta. Susana dormia sempre. A lua dependurava-se no peitoril da janela como a cabeça de um guarda. lohann Moritz encarou-a e não pôde pregar olho até ao alvorecer.
No dia seguinte de manhã lohann Moritz compareceu no posto. Pelo caminho, ia encontrando trabalhadores que se dirigiam ao moinho, aos pastos, à mata. Moritz virava a cara para os não ver. Também ele tinha que ir ao moinho e à mata. Mas precisava largar tudo aquilo, e partir. Estava requisitado. Passou-lhe pela cabeça a idéia de fugir. Se se escondesse na mata, os guardas não dariam com ele nem era requisitado. Mas entesou-se e não tornou a mexer-se à porta do posto de guarda. Tinha mulher, casa, filhos. Não podia fugir. Moritz entrou no pátio do posto. O chefe do posto estava a fazer a barba no quarto de escrituração. Moritz esperava que ele acabasse aquilo para lhe perguntar se não havia engano quanto à convocação. No pátio cheirava a leito esturrado. Alguém pôs a mão no ombro de Moritz. Voltou-se. Era um soldado. Não era o que lhe tinha levado a convocação: era outro. À direita do soldado estava Marcou Goldenberg, o filho do judeu de Fântâna. Moritz não os vira aproximar-se dele. Mas lá estavam, como surgidos da terra, os olhares carregados. O soldado agarrou Moritz pelo cós da camisa e levantou-o como a um saco. Moritz engoliu aquilo... Julgou que fosse uma brincadeira de soldado. Mas imediatamente reparou que Marcou Goldenberg tinha os pulsos algemados.
- Um ao pé do outro! - comandou o soldado.
”Se Marcou tem as mãos ligadas é porque não é brinquedo”, pensou Moritz. Chegou o seu cotovelo ao do judeu. Tremia. Sempre que via homens com algemas ficava apavorado. Por detrás dele, a sentinela carregou a arma. Sem vê-la, Moritz sentia-a. Também fora soldado. O guarda armou baioneta. lohann Moritz compreendeu o que se estava passando e fechou os olhos. Ao sair do pátio, ainda lançou um olhar à janela do quarto do comando. O chefe do posto encostava o espelho à vidraça e continuava a barbear-se. Os aldeãos paravam no meio da rua e viam-nos passar. As mulheres saíam à testada para os ver.
Diante da casa de Nicolau Porfírio, um grupo de mulheres que voltavam da fonte puseram os cântaros mesmo no meio da estrada e benzeram-se ao vê-los passar. Moritz fechou os olhos. Um não sei quê acabava de quebrar-se-lhe no peito. Bem sabia que as mulheres se benziam quando viam os homens manietados, levados à ponta de baioneta. Ouvia atrás de si os passos do soldado. Tudo para ele se calara. Além do passo cadenciado, tudo se fizera silêncio. Moritz conservou a cadência de Marcou Goldenberg. As pernas já não lhe pertenciam. Marchavam sozinhas. E a carne do seu corpo já não era a sua carne. Era-lhe estranha. O corpo também. E os próprios pensamentos. Tudo isso agora era de outro. Já nada tinha de seu.
O chefe do posto acabou de se barbear e saiu do pátio assobiando. Estava uma linda manhã. Um soldado deitou-lhe água na bacia e ele lavou-se. O soldado tinha-o visto barbear-se meticulosamente, com duas passagens na cara.
- Alguma novidade, meu sargento? - perguntou o soldado.
O outro riu. O soldado bem via que o sargento se ia avistar com uma mulher. O sargento piscou o olho, mas não respondeu. Depois de enxugar a cara vestiu o fardamento novo e sentou-se à banca. Pegou na pasta, no duplicado do relatório que acabara de enviar essa manhã ao quartel a acompanhar os dois presos, e leu:
”Tenho a honra de remeter a V. Exa., sob escolta, um indivíduo de nome Marcou Goldenberg, doutor em direito, de trinta anos de idade, e outro de nome de lon Moritz, trabalhador do campo, de vinte e sete anos, os quais estão sob a alçada da lei, conforme anteriores determinações de V. Exa. referentes à requisição e envio de todos os judeus e indivíduos suspeitos da nossa área para campos de trabalho. - O Comandante do Posto da Guarda da Fântâna, (a) Nicolae Dobresco, 2° sargento.”
O sargento guardou o relatório na pasta. Estava satisfeito. Alisou o bigode e deitou uma olhadela ao espelhinho de algibeira. Depois endireitou-se, pôs a espingarda em bandoleira e dirigiu-se à casa de lohann Moritz. Agora, Susana estava sozinha. Há dois anos que ele esperava. E começou a assobiar.
Uma hora depois, o comandante do posto estava de regresso. Ao partir tinha dito que estaria ausente todo o dia, e ei-lo outra vez à secretária. Furioso. Não sabia que havia de fazer para se acalmar. Descobriu a pasta da correspondência, abriu-a e leu o relatório enviado ao quartel, nessa própria manhã, a acompanhar os dois presos. E ainda ficou mais furioso. A sua vontade era fazê-lo em mil niscas, pois não servira de nada. Embora sozinha, Susana não quisera recebê-lo. E como ele tentasse arrombar a porta, ela pegou num machado e ameaçou abrir-lhe a cabeça. E não era a brincar! O sargento bem sabia que com mulheres não se brinca. Se entrasse no pátio, ela abria-lhe a pinha. Então desistiu e abalou. Mas estava furioso. Todas as suas manobras para prender Moritz e apanhar-lhe a mulher não tinham servido de nada. Trabalhara toda a noite na minuta do relatório.
”Gastei tinta e papel e fiquei a fazer cruzes!” pensou. Tornou a lembrar-se de Moritz e desatou a dizer todos os nomes bonitos que sabia.
Na parada do quartel a coluna dos presos estava pronta a partir. Moritz olhava para os homens, para os seus lindos fatos, as suas malhas de coiro. Sentia-se cansado. Doíam-lhe os pés. Goldenberg não tinha soltado uma palavra durante todo o caminho. Também ele estava moído de cansaço. Apetecia-lhe sentar-se. A porta ficara aberta atrás deles. A coluna dos presos largara. Os homens saíam da parada. Um oficial que passava, com um maço de papéis na mão, lançou um olhar ao rosto pálido de Goldenberg. Depois reparou em Moritz e perguntou ao guarda:
- Youpins? Não é?
Arrancou o envelope amarello das mãos do soldado, sem esperar a resposta, e apontou a Moritz com o dedo a coluna que saía pela porta. Gritou:
- A quatro, formar!
lohann Moritz encarou com o oficial. Não percebera nada. O tenente agarrou-o pelo ombro, fê-lo dar meia volta como um pião, e empurrou-o para a forma a pontapé. lohann Moritz acertou o passo e saiu com os outros presos da parada. Voltando a cabeça viu Marcou Goldenberg, que o seguia.
Marcharam até à noite. Quando fizeram um alto já estavam à beira da cidade. Marcou Goldenberg aproximou-se de Moritz.
- Desamarra-me as mãos - disse ele.
E virou-se de costas. As mãos de Goldenberg eram brancas e finas. Os pulsos tinham um sinal vermelho como sangue. Depois de Moritz lhe ter desligado as mãos, Goldenberg disse:
- Obrigado.
Não sorriu nem olhou para Moritz. Assentou-se na erva fixando o horizonte com o olhar fino de vidro. lohann Moritz sentou-se a seu lado. Queria conversa e estendeu-lhe a guita que acabara de deslaçar.
- Ainda precisas da guita? - disse Moritz. - Dás-ma?
- Guarda-a - respondeu Goldenberg.
A voz perdera o tom áspero. lohann Moritz enrolou a guita e guardou-a cuidadosamente na algibeira das calças.
- É bom ter um bocado de guita na algibeira - disse ele. - Nunca se sabe para o que pode servir.
Marcou Goldenberg sorriu. Era a primeira vez que Moritz o via sorrir.
Nessa noite, a coluna de presos judeus chegou às margens da ribeira de Topolitza. O leito estava seco. A ribeira margeada de salgueiros e de moitas de arbustos enfezados. Era aí que os judeus deviam abrir um canal. Viam-se as casas ao longe. Não havia aldeia nos arredores. Só dois estábulos abandonados faziam guarda àquela terra deserta. Tinham sido feitos para os cavalos da coudelaria quando a terra pertencia a um mosteiro. Os estábulos ficavam à beira da floresta. Um caminhão militar carregado de enxadas, de pás, de picaretas e de um caldeirão para a cozinha parou diante deles. Os presos olhavam para o caminhão. Não tinham mais nada que ver.
Nessa noite deitaram-se nos estábulos, Moritz estendeu-se na erva, cá fora. A cama era mole e ele adormeceu logo. Acordou várias vezes de noite. A lua era linda como dia. Moritz cuidaria estar em casa se não tivesse visto os corpos embrulhados nos capotes, uma porção de corpos estendidos a seu lado. Ao vê-los, bem via que estava longe de Fântâna. Então fechou os olhos.
No dia seguinte de manhã os judeus formaram em duas fileiras e foram contados um por um. lohann Moritz e Marcou Goldenberg achavam-se de novo ao lado um do outro. Quando lohann Moritz deu bom-dia ao judeu, este respondeu logo. Moritz viu-o sorrir. Um sargento postou-se à testa da coluna e distribuiu picaretas e pás aos presos. Cada um teve a sua. Dez homens descarregaram o caldeirão do caminhão e armaram-no diante dos estábulos, debaixo de uma nogueira. Depois o sargento, que tinha dentes de ouro e bigode preto, fez-lhes uma arenga. Disse que os judeus deviam abrir o canal para bem e defesa da pátria. Também lhes disse que ele, sargento, era o Deus dos judeus e que, fosse o que fosse que dissesse, o próprio Moisés, lá no alto, aprovaria. O sargento disse-lhes ainda que se chamava Apóstol Constantin e que tinha dois filhos, um advogado, outro oficial.
Os judeus ouviam-no com atenção. Alguns sorriam. Mas todos estavam com medo.
- Hoje não há nada para comer - disse o sargento. - A cozinha ainda não está instalada. De amanhã em diante vocês têm chá e sopa de feijão duas vezes por dia. E mais meio pão.
Depois o trabalho começou. Cada homem devia cavar cada dia uma certa porção de terreno. Quando chegasse ao fim, ficava livre até à noite. Se não acabasse a tarefa era acusado de sabotagem, manietado e entregue ao Tribunal Marcial como inimigo da pátria. O sargento assim o dissera e os presos acreditaram.
lohann Moritz saiu da forma e disse ao sargento que não era judeu. O sargento respondeu que não atenderia reclamação alguma antes de instalar a secretaria. lohann Moritz tornou para o seu lugar ao lado de Marcou Goldenberg e esperou. Bem sabia que a gente, na tropa, precisa acostumar-se a esperar.
A secretaria só ficou instalada dez dias depois. Era uma barraca de madeira, com mesas, cadeiras e camas para os guardas.
Assim que lohann Moritz se apresentou à porta da secretaria o sargento disse-lhe que voltasse dali a uma semana. Ainda não tinha tempo para atender reclamações.
Enquanto escavava o canal e cravava a enxada na terra, lohann Moritz perguntou o nome ao vizinho da direita. Moritz gostava muito de conversar com quem estava ao pé dele. Os homens que não falam uns com os outros não malucam em coisa boa.
- Tens vergonha de falar iídiche? - perguntou-lhe o vizinho.
- Não sei iídiche! - respondeu Moritz.
- Que vergonha!
O judeu cuspiu no chão e olhou ostensivamente para outro sítio.
Moritz voltou-se para o vizinho da esquerda.
- Fala-me iídiche - respondeu-lhe o vizinho da esquerda.
- Pois é justamente o que eu te quero dizer. Não sei iídiche.
Os judeus olharam para ele com ódio. Moritz interrompeu o trabalho e tentou explicar-lhes. Mas ninguém ouvia.
Combinaram-se todos para falar só iídiche. é lá com eles... São judeus; estão no seu direito de falar a sua língua. Mas eu, por que é que hei de falar iídiche?”
- Quem sabe se falas hebreu, já que esqueceste o iídiche? - perguntou um.
Moritz ergueu a cabeça e preparou-se para responder. Todos tinham também interrompido o trabalho e fitavam-no. Depois desataram a rir. lohann Moritz estava furioso e vermelho de cólera. Não se podia conter.
- Se se trata de línguas estrangeiras, eu é que me posso rir, não são vocês. Sei quatro na ponta da língua. Quantas sabes tu? - disse ele ao vizinho da direita, que lhe respondeu imediatamente:
- Eu cá sei o iídiche!
Moritz bateu com a enxada no chão. Bem via que os judeus queriam fazer pouco dele. Todos sabiam romeno. Mas não o queriam falar.
Quando acabou o trabalho, o velho Isaac Lengyel, o chefe da coluna, chamou-o de parte e disse-lhe:
- A gente, os judeus, atravessamos atualmente uma época difícil, e, visto que estamos juntos e sós uns com os outros, devemos falar iídiche!
- Mas eu não sou judeu! - disse Moritz.
- Para que te serve esconderes-te, tu, que vieste aqui ter? - disse Isaac Lengyel. - Antes de seres preso, podias-te ter escondido. Tinhas feito bem. Mas agora isso não tem jeito nenhum. Se porfias em mentir, cara a cara conosco, és um renegado.
- Mas, Sr. Lengyel, eu não sou judeu... - A voz de Moritz tremia.
- Isso é lá contigo! - disse o velho. - Se antes queres ser um renegado...
lohann Moritz ficara sozinho. Ninguém queria acreditar que ele não fosse judeu. Todos teimavam que mentia, que não era romeno, que fazia aquelas trapaças só para sair do campo. No registro do campo, em mão do velho Lengyel, ele estava inscrito com o nome de Jacob Moritz.
- Não há nenhum judeu que se chame lohann! - Afirmara Lengyel. - O nome judeu é Jacob. Assim é que tu te chamas, lon também não é o teu nome. Isso é a tradução romena de Jacob.
Os camaradas do campo chamavam-no lankel. Moritz não se opôs. Mas custava-lhe a acostumar-se.
- Vocês tanto me podem chamar Jacob como lankel - dissera ele. - Só me custa que não me acreditem!
lohann Moritz soube que todos os judeus com quem estava tinham sido trazidos para o campo com requisições em forma. Agora estava convencido que o Estado requisitava os judeus como quem requisita cavalos, carroças e sacos de trigo. Mas ele não era judeu. Era isto que ele queria dizer ao sargento. Não havia mais ninguém a quem pudesse dizer. Mas o sargento nunca tinha tempo livre. Um dia, enfim, conseguiu falar-lhe. O sargento estava furioso.
- Há quatro meses que estás cá e não fazes senão ralar-me. Estou a ver que és um elemento de desordem. Logo que abro a porta da secretaria vejo-te aí, pregado ao chão. Todos os dias tens uma reclamação a fazer. Não comes bastante? Não queres viver sem tua mulher?
lohann Moritz preparara um discurso que todos os dias repetia a si próprio. Queria contar ao sargento a sua história toda.
- Sê breve! - disse o sargento.
- Quero me ir embora - disse lohann Moritz. - Eu não sou judeu.
- Não és judeu? - O sargento fixou ironicamente Moritz. Pegou no registro dos presos, que estava em cima da mesa, abriu-o na letra M e leu: ”MORITZ, Jacob, de vinte e oito anos, casado, com dois filhos, domiciliado na freguesia de Fântâna. Nome da mulher: Susana”. És tu ou não?
- Sou - respondeu Moritz.
- Então por que é que me vens dizer que não és judeu?
- Sou eu, sim senhor - disse Moritz. - Mas não sou judeu.
- É muito grave o que dizes. Não vês que é? - disse o sargento. - Uma mentira que digas, e apanhas a tua conta. Asseguras que tudo o que aqui está escrito (e são coisas militares) é falso. Sabes o que é que te espera e ainda te atreves a dizer que não és judeu?
- Não sou, não senhor! - replicou Moritz.
- Mas então que estás tu aqui a fazer?
- Eu cá não sei nada!
- Por que é que só me dizes isso agora? - perguntou o sargento. - Eu escrevi em todos os papéis oficiais que os duzentos e cinqüenta homens que trabalham no canal debaixo do meu comando são todos judeus. Escrevi e assinei. E vens-me dizer agora que não és judeu. Portanto o que eu assinei é falso. Tenho que ser preso! - O sargento estava vermelho de raiva. - Merecias que te desce um par de boíetadas que te rizessem cniar as orelhas cinco dias. Mas eu vou tomar nota da tua reclamação. O que dizes para aí é grave. E por isso hás de escrever esta declaração com a tua mão, e assinar. Quem te mandou para aqui vai preso se não fores judeu. Mas se fores judeu, então sais do campo para o cagarrão. Percebestes?
Moritz continuava de pé à porta. O sargento redigiu a declaração e obrigou-o a assinar. Estava lá inscrito que Moritz não era judeu e que por conseqüência pedia que o pusessem em liberdade.
- E agora podes-te ir embora - disse o sargento. - Amanhã de manhã mando para cima o papel que acabaste de assinar. E ficamos à espera da resposta.
lohann Moritz sorria. Ao sair da secretaria parecia-lhe que ia para casa. Strul, o guarda, correu atrás dele e chamou-o. O sargento ainda tinha uma coisa a dizer-lhe.
- Ouve, Moritz - disse o sargento. - Tenho vinte e cinco anos de serviço. Sou um pai de família. Não quero perder a minha carreira por causa da tua declaração. O teu caso não é tão simples como parece. Tu chamas-te Moritz. Por que é que te chamas Moritz se não és judeu? Primeiro: falas iídiche. Segundo: já viste algum romeno falar iídiche? Por acaso eu falo iídiche, eu que aqui estou?
- Aprendi no campo! - respondeu Moritz. - Quem sabe alemão e ouve todo o dia falar iídiche acaba por aprender. Não é difícil.
- Ouve - disse o sargento. - Em primeiro lugar, tu tens um nome judeu. Em segundo lugar, falas iídiche. Terceiro, estás inscrito nestes papéis como judeu. E queres me convencer de que és romeno?
O sargento tinha na mão a declaração assinada por Moritz. Pô-lo em cima da mesa como se a tivesse atirado ao cesto dos papéis velhos. lohann não despegou da sala. A indignação abafava-lhe a voz:
- Juro por quanto há mais sagrado que não sou judeu, meu sargento!
- Havemos de ver isso depois - respondeu o outro. - Entretanto, tomei nota da tua declaração e vou fazer um relatório do que apurei. Eu cá sou justo, graças a Deus. Toda a minha vida o fui. Além da tua declaração, também tomei nota do fato de teres um nome judeu de que não sabes a origem, e de que falas iídiche, mas declaras tê-lo aprendido no campo e que tens testemunhas que o podem confirmar. Quando vieste aqui não as tinhas, não é verdade?
- Não - respondeu Moritz.
- Passe a outra coisa - disse o sargento. - Que religião é a tua?
- Ortodoxo.
O sargento olhou para ele desconfiado.
- Sabes como é que são batizados os judeus?
- Sei, sim, meu sargento.
- E declaras que não és como eles?
- Não sou, não senhor.
- Tens a certeza?
- Tenho, meu sargento.
- Põe-te aí à janela, contra a luz, e mostra-me que não és batizado como os judeus! - ordenou o sargento.
lohann Moritz aproximou-se da janela. Desabotoou as calças e deixou-as cair. Ficou em coiro, a olhar para o sargento.
- Não vale a pena corares como uma mulher - disse o sargento. - Não tens de que ter vergonha. Põe-te aí contra a luz e deixa ver. Quero ver com os meus olhos o que devo escrever no relatório.
O sargento afastou-se da secretaria. Ajoelhou-se diante de Moritz e pôs-se a estudar atentamente o lugar em questão. Comparava o que via com o que já tinha visto ou de que tinha ouvido falar. Mas não sabia lá muito bem o que devia pensar, e precisava ser exato no relatório. Pôs-se em pé, acendeu um eigarro. Estava vermelho como um tomate.
- Tu vens-me para aqui chatear, Moritz - disse ele. - Pensas que a pátria me mandou aqui para te ver a... Olha que eu sou tropa, meu velho; isso não é o meu ofício. Se faço isto, é para ser justo. Se calhar tu não és realmente judeu, e nesse caso não vale a pena que eu te conserve aqui. - Ó sargento abriu a porta do quarto ao lado e chamou o guarda Strul. - Examina-me aí o Moritz - mandou ele e diz-me se lha cortaram como a ti.
Strul ajoelhou-se diante de Moritz. Era empregado num banco. Fazia tudo com uma precisão matemática e com muita atenção. Como com os algarismos. Pegou-lhe e examinou atentamente. Depois pôs-se de pé e em sentido, e concluiu:
- Se foi circuncisado, foi uma coisa à toa..
- O que é que tu queres dizer com isso de ”à toa”? - disse o sargento. - Responde-me direito. Foi circuncisado ou não foi?
- Não posso precisar - replicou Strul. - Parece-me que ele tem um pequeno talho, mas não posso afirmar se foi feito por um rabino ou se tem outra causa.
- Bem vês, Moritz, que o teu caso é muito complicado. Mas apesar disso vou fazer seguir os papéis. E agora podes-te ir embora. Tu, Strul, fica aí e ajuda-me a fazer o relatório!
Moritz saiu da secretaria abotoando pensativamente as calças.
Depois da prisão de lohann Moritz, o Pé. Koruga, que tinha voltado da cidade, foi ao quartel da Guarda. Seriam nove horas da manhã. O sargento acabara de chegar da aldeia. Estava furioso.
- Recebi uma ordem de requisição e não fiz mais do que cumpri-la! - disse ele. - Não lhe posso dar outras informações. Não sei mais que o senhor. Informe-se no quartel da cidade.
- Moritz está no quartel da cidade? - perguntou o padre.
- Também não sei - disse o sargento. - E mesmo que soubesse não o podia dizer. São segredos militares. Os homens são requisitados para trabalhar nas fortificações e é proibido revelar o lugar em que se encontram.
O padre levantou-se e agradeceu as informações colhidas. Nessa mesma tarde foi à cidade, ao quartel. Mas lohann Moritz não estava. Ninguém tinha ouvido falar nele.
- É judeu? - perguntou um oficial novo.
- É cristão ortodoxo. É meu paroquiano - replica o padre.
- Então não o mandaram para aqui! - disse o oficial. - Vá Vossa Paternidade ter com o sargento da aldeia e peça-lhe que nos comunique o número com que o rapaz foi expedido. Ontem e hoje só recebemos levas de judeus. Mas uma vez que Vossa Paternidade diz que o homem por quem se interessa não é judeu, é porque não veio na leva.
- O rapaz não é judeu - afirmou o padre.
No dia seguinte o padre voltou ao quartel com o número da nota. O oficial de véspera procurou num registro e disse:
- Lamentamos não poder fornecer a Vossa Paternidade indicação alguma. É um registro secreto. Só com autorização do Ministério da Guerra.
- Eu só desejo saber se lon Moritz está preso e onde se encontra - disse o padre. - Isso não pode ser secreto.
- Está preso - respondeu o oficial. - Mas não podemos dizer o lugar onde está. Mesmo porque não sabemos. Foi entregue ao Estado-Maior, e o Estado-Maior do Exército não nos diz o lugar para onde manda os homens que recebe de cá, nem o que faz deles.
A voz do oficial era áspera. Depois de ter encontrado o nome de lohann Moritz no registo, fitara o padre com desprezo.
O Pé. Alexandre Koruga partiu. O oficial disse em voz alta, nas costas dele:
- É um pope, mas mente como um tira-dentes. Diz que o indivíduo em questão é ortodoxo e encontro-o no registro como judeu. Se se atreve a tornar cá, ponham-no fora!
O Pé. Koruga escreveu a Traian pondo-o ao corrente da prisão de lohann Moritz. Pediu-lhe que intercedesse por ele no Ministério da Guerra e no Estado-Maior. Recebeu resposta de Traian, que o recomendara por toda a parte onde lhe fora possível e recebera a promessa de soltarem Moritz.
Recebida a carta, passaram-se duas, três, quatro semanas. Depois dois meses. Aproximava-se o fim do verão. E chegou o outono. lohann Moritz ainda não estava de volta. O Pé. Alexandre Koruga foi falar ao Governador Civil do distrito. A caminho da cidade encontrou o velho Goldenberg, o pai de Marcou, e convidou-o a subir para o carro. O judeu emagrecera.
- Não tenho notícias de Marcou desde o dia em que foi preso! - disse o comerciante. Depois suspirou: - Gastei um dinheirão para ele freqüentar a escola e as Universidades de Bucareste e de Paris. E, agora que é doutor e voltou para casa, prendem-no e mandam-no cavar trincheiras, como se fosse para cavar trincheiras que se formou em Direito!
O padre tirou um pão quente da maleta, cortou-o ao meio e estendeu metade a Goldenberg. Ambos comiam em silêncio. O caminho era a subir. O cavalo ia a passo. Ao chegar ao alto da colina, o judeu falou:
- Tiraram-me a casa. Está requisitada. Tenho que me mudar dentro de poucos dias; senão, os guardas põem-me na rua. A casa que eu fiz com o suor do meu rosto! Primeiro, foi Marcou que foi requisitado. E agora a casa. Que crime cometi, Sr. Padre?
O judeu calara-se. O cavalo parou.
- Acabo por me enforcar. Já não posso mais - disse o judeu.
O cavalo começou outra vez a andar. À entrada da cidade, Goldenberg desceu do carro. O padre viu-o desaparecer nas estreitas ruelas do gueto.
Depois de se ter separado de Goldenberg, o Pé. Koruga foi ao Governo Civil. Deixou o cavalo ir a passo. O padre olhava para as casas, uma data de casas sobrepostas de andares que nunca mais acabavam de subir, cada vez mais para cima.
Diante do Governo Civil o cavalo parou por si. O padre ia ali, ao menos uma vez por semana, para ver se sabia o que era feito de Moritz. O cavalo bem sabia aonde se dirigia o padre quando ia à cidade. E parou por sua conta e risco diante do edifício. O Governador nunca estava no gabinete. E, mesmo quando lá se encontrava, estava sempre ocupado. O Pé. Alexandre Koruga nunca chegara a falar-lhe. Os secretários e os contínuos conheciam-no e sorriam para ele com compaixão. Mas naquele dia o secretário desenhou-lhe um sorriso que se não parecia com os outros.
- O Sr. Governador recebe-o - disse ele. - Daqui a meia hora tem vez.
Uma hora depois, o Pé. Alexandre Koruga encontrava-se enfim diante do Governador.
- Um rapaz da minha freguesia foi preso há seis meses - disse o padre. - Eu queria saber em que lugar se encontra e o motivo da prisão. Ouvi dizer que estava num campo de judeus. Mas ele é romeno e cristão. Fui eu quem o batizei. Peço que o ponham em liberdade.
- Em princípio - respondeu o Governador - recuso-me a qualquer intervenção.
- Mas o homem de quem vim falar a V. Exa. não é culpado de nada.
- Porém o homem de quem o senhor vem falar-me encontra-se num campo de judeus - replicou o Governador. - É o senhor que acaba de mo dizer.
- Mas não é judeu.
- Dá na mesma. Desde o momento que está num campo de judeus cai sob a alçada de leis e disposições especiais com que não tenho nada. Aqui tem, quanto à primeira questão. Quanto à segunda, que considero principal e para a qual lhe concedi esta audiência, vou já dizer-lha: Não gosto que os padres do meu distrito, em vez de tratarem da sua paróquia, intervenham continuamente junto das autoridades com toda a casta de pedidos. Encontramo-nos em estado de guerra e cada qual deve ficar no seu posto. Considere a minha advertência com caráter oficial. Não gostaria de me ver na obrigação de lhe aplicar sanções.
- Trabalhar para o bem do Homem e pela Justiça humana é trabalhar pela Igreja e por Deus! - respondeu o padre.
- Intervindo por lohann Moritz intervenho pela Igreja e por Deus. É essa a minha missão de padre. O que acaba de acontecer a lohann Moritz é injusto.
- A injustiça só existe na sua imaginação! - E a voz do Governador era ríspida. - Estamos em estado de guerra. Lutamos pela Pátria e pela Igreja contra o Anticristo. O senhor sustenta que é injusto que um indivíduo qualquer tenha ido trabalhar nas fortificações, e é assim que serve a nossa causa sagrada?
- Esse indivíduo é um ser humano - respondeu o padre. - Esse ser humano foi preso e mandado para trabalhos forçados sem culpa e sem mesmo ser julgado.
- Tudo isso são histórias, Sr. Padre! Se tivéssemos de nos ocupar de cada indivíduo que parte, a onda bolchevista submergia-nos num instante e não tardaríamos a baloiçar na ponta de uma corda, e o senhor em primeiro lugar. Nós temos a certeza de combater pela Cruz!
- Aquele que não liga importância a um homem não pode pretender que luta pela Cruz - respondeu o padre.
- Ninguém pode ser ao mesmo tempo defensor da Cruz e seu inimigo.
- O senhor queria talvez que soltássemos lá o seu Moritz e que deixássemos os bolchevistas entrar no país, lançar fogo às nossas igrejas, violar as nossas mulheres e pôr-nos todos a ferros. É assim que o senhor entende lutar pela Igreja?
- Mesmo o mais nobre ideal, nacional, social ou religioso, não pode desculpar a injustiça feita a um só homem. Accusatio ordinatur ad bonum commune quod intenditur per cognitione criminis: nullus autem debet nocere alicui injuste, ut bonum commune promoveat C1). Transformar os homens em escravos em nome de Cristo é um crime contra Cristo.
- O senhor tem a certeza de que esse indivíduo não é judeu? - perguntou o Governador.
- A certeza absoluta.
- Mas então cometeu-se uma infâmia terrível! - disse o Governador. - O culpado deve ser punido. Quem foi que deu a ordem de requisição?
- Não sei - respondeu o padre. - Há seis meses que não faço senão pedir a todas as autoridades: à Polícia, à Guarda, ao Exército. Por toda a parte. Ninguém mo quer dizer. Respondem-me sempre que é secreto.
- é normal - disse o Governador. - Essas operações são estritamente secretas. Eu também não lhe posso dizer nada É preciso que o senhor vá primeiro ao Estado-Maior. Depois de ter recebido autorização, volte cá, que havemos de consultar os registos e veremos quem assinou a ordem de requisição. E se se trata de um abuso, tenha a certeza de que quem o cometeu será exemplarmente punido. Mas antes de ter na mão um papel oficial que o autorize a ocupar-se do caso não lhe podemos fornecer nenhuma informação.
O Governador levantou-se. A audiência acabara. O Pé. Koruga não se mexeu da cadeira.
(1) Tomás de Aquino.
- Será possível, Sr. Governador, que o homem tenha chegado a um tal grau de insensibilidade que, como uma máquina, fique surdo ao apelo do próximo? Não quero acreditar que V. Exa. não tenha compreendido o meu pedido. V. Exa. é um homem. O homem tem sentidos. E uma alma. O homem não é uma máquina. E, na verdade, V. Exa. não está vendo a injustiça cometida para com lon Moritz?
- Sr. Padre - disse o Governador; - para ser absolutamente sincero, devo confessar-lhe que lamento muito não estar em condições de o servir. Creio que tem razão. Digo-lhe tudo isto porque também sou filho de padre. Mas em princípio não me ocupo de judeus nem de mações, nem da Guarda de Ferro. São assuntos muito perigosos e que nos podem dar em rosto ao tocar-lhe. Sou funcionário e não quero estragar a minha carreira, em caso algum. Não me meto nisso; e é tudo.
O Pé. Koruga levantou-se. Vendo-o partir, o Governador apertou-lhe a mão e disse-lhe:
- Lamento não poder fazer nada pelo seu protegido... Como se chama ele? Moritz, creio eu. Noutras circunstâncias procure-me e estou inteiramente à sua disposição.
À saída da cidade havia uma igreja. O padre parou aí. Pensou no guarda de Fântâna, no Governador Civil, no moço oficial da Guarda, em todos os policiais e funcionários que o tinham deixado esperar às portas e que conservavam preso lohann Moritz. Tirou o seu chapéu e disse esta oração de W. H. Auden:
”E agora rezemos por intenção dos que têm qualquer desgraçada parcela de autoridade; rezemos por todos aqueles através de quem devemos suportar a tirania impessoal do Estado; por todos os que devassam e contradevassam; por todos os que concedem autorizações e decretam proibições; rezemos para que não venham a considerar a letra e o algarismo como mais reais e mais vivos do que a carne e o sangue... E fazei, Senhor! fazei que nós, os simples cidadãos desta terra, não cheguemos a confundir o homem com a função que ocupa. Fazei com que tenhamos sempre presente ao espirito que é da nossa impaciência e da nossa preguiça, do nosso abuso ou do nosso medo da liberdade, das nossas próprias injustiças, enfim, que nasceu este Estado que temos que sofrer, para salvação e remissão do nossos pecados.”
O padre cobriu os seus cabelos brancos com o chapéu e continuou seu caminho em direção de Fântâna. Na encruzilhada, tornou a encontrar o velho Goldenberg, que vinha também da cidade. Ao chegar em frente do judeu, o cavalo parou. O cavalo conhecia o negociante judeu e sabia que o padre o fazia sempre subir para o carro.
O comandante do posto da Guarda de Fântâna recebeu ordem para fazer o inventário de todos os bens imóveis pertencentes aos judeus da aldeia. Fez o inventário de tudo o que o velho Goldenberg possuía. Mas não o mandou. Sabia que Moritz se encontrava também num campo de judeus. Ao mandar Moritz ao quartel da Guarda da cidade com a ordem de requisição, o guarda não o fizera passar por judeu. Não o poderia tazer sem cometer uma fraude, pois Moritz era romeno. As disposições de requisição de mão-de-obra previam que só seriam requisitados os judeus e os indesejáveis. O guarda tinha requisitado Moritz como indesejável. Isso era legal. Qualquer pessoa podia ser considerada por um guarda como indesejável. Não havia disposições precisas a tal respeito. Mas, no quartel da Guarda da cidade, Moritz fora inscrito no registo dos judeus. Era culpa da Guarda, ou antes, culpa de Moritz, pois tinha um nome judeu. O comandante do posto começava a lastimar que toda esta história houvesse acontecido. Primeiro, pensara que Moritz ficaria preso apenas umas semanas. Seis meses porém eram passados. E eis que agora recebia ordem de requisitar os bens dos judeus. Com inteira justiça, a casa de Moritz não deveria ser requisitada. Mas nos registos da Guarda estava escrito que havia dois judeus em Fântâna: Goldenberg e Moritz.
O guarda coçava na cabeça para achar uma solução. Se declarasse para cima que Moritz não era judeu e que não podia inscrever a casa dele na lista de requisição, ordenavam com certeza um inquérito a fim de estabelecerem as causas da prisão de lohann Moritz. E o comandante do posto não queria o inquérito. Preferia dispensá-lo: Susana podia depor contra ele. Era preciso achar outro meio. O comandante do posto pediu conselho a Goldenberg.
- Se Susana se divorcia, tem direito a ficar com a casa. Não está escrito em parte alguma que ela seja judia. Pelo menos, na cidade, todos os judeus que tinham casado com cristãs assim haviam feito.
O guarda disse que Susana nunca se divorciaria. Ela bem sabia que Moritz não era judeu e tudo aquilo acabaria por fazer rebentar um escândalo. Sobretudo se lhe passasse pela cabeça falar a um advogado. Ordenariam um inquérito imediatamente.
- O divórcio consegue-se facilmente - disse o velho Goldenberg. - Basta que a mulher declare por escrito querer deixar o marido por ”motivos de ordem étnica”. Depois que o pedido é presente, o divórcio está concedido. Nem sequer há audiência. Tudo se resolve por via administrativa. São as novas leis.
O próprio guarda redigiu o pedido de divórcio, como se viesse de Susana; depois foi à casa dela para lho fazer assinar.
- Teu marido está num campo de judeus - disse o guarda. - E agora recebi ordem para requisitar a tua casa. Consta dos autos que teu marido é judeu. Eu bem sei que não é. Mas o nome que ele tem dá-lhe má sorte. Por que diabo se chama Moritz?
Susana ouvia-o, de queixo apoiado à porta. Olhava-o fixamente e, de repente, começaram lágrimas a correr dos seus olhos esbugalhados.
- Tu tiraste-me o meu homem - disse ela. - E agora queres tirar-me a casa. Antes te quero matar, ainda que sejas guarda! Mas não hás de ficar com a minha casa!
Susana baixou-se, pegou numa grande pedra e atirou-a pela porta fora. O guarda fugiu, de lado.
- Não te quero tirar a casa - disse ele. - Trouxe-te justamente este papel para assinares, para que possas conservar a tua casa.
E estendeu a Susana o pedido de divórcio e a caneta. Susana pegou no papel mas não o pôde ler. Tinha os olhos ainda todos cheios de lágrimas.
- O que está aqui escrito?
- É um pedido de divórcio - disse o guarda. - Uma simples formalidade, para que possas ficar com a tua casa.
- Tu queres obrigar-me a divorciar-me - disse ela.
Como a fêmea de um tigre, apeteceu-lhe fazê-lo em bocados. O guarda pegou-lhe numa mão por cima da porta e tentou acalmá-la.
- É uma simples formalidade - disse ele. - Não é um divórcio verdadeiro. Se não assinas, daqui a alguns dias tenho que te pôr fora. E para onde irás tu, às portas do inverno, com as crianças nos braços?
Susana não queria ouvir nada:
- lani é meu marido. Antes morrer que separar-me dele.
O guarda ficou diante da porta coisa de uma hora. Susana sentia-se esgotada. Tinha chorado muito. Entrou em casa. Depois voltou para a porta. Ainda lhe atirou com pedras. Pegou num machado e ameaçou-o. Depois disse lá consigo que mais valia assinar um papel que ser posta fora de casa. Quando voltasse, Moritz havia de compreender e perdoar-lhe por ter assinado. Bem via que ela lhe tinha ficado fiel, que tinha trabalhado, conservado a casa, tratado dos filhos. Que sempre fora a sua mulher, só dele. E assinou. O guarda meteu o pedido de divórcio de Susana na algibeira interior da farda e partiu. Agora podia dormir tranqüilo: já não haveria inquérito!
Se o capitão viesse fazer um inquérito, ele podia ser preso durante dois ou três dias. Mas já não havia perigo. Sorriu e largou a assobiar.
Os prisioneiros do campo de Moritz podiam ter-se evadido. Só cinco soldados os guardavam. Mas bem sabiam que seriam presos mais dia menos dia, e nem um só tentou fugir. Marcou Goldenberg fugira. Mas, depois de ter fugido, encontrara o sargento na estrada. E agora lá estava novamente no campo.
O sargento reuniu os prisioneiros antes da hora do trabalho e disse-lhes:
- Que devo eu fazer? Pôr Goldenberg a ferros e mandá-lo a conselho de guerra, ou deixá-lo aqui? Vocês encarregam-se de o guardar para que não torne a fazer semelhante tolice?
Os prisioneiros tomaram a responsabilidade de guardar Marcou Goldenberg. Até ali nunca trabalhara no canal. Estava sempre doente e fora nomeado amanuense na secretaria. Mas agora o velho Lengyel deu-lhe uma enxada, e marcou-lhe a porção de canal que devia cavar.
Marcou Goldenberg recusou-se. Preferia que lhe cortassem as mãos a cavar uma braça de terra.
- Este trabalho é contra as minhas convicções políticas! - disse ele.
Os prisioneiros fizeram um círculo à volta dele. Ninguém abria o canal por convicção política. E por isso todos tinham uma grande curiosidade de ouvir o que ele ia dizer.
- O canal é aberto para suster o avanço do Exército Vermelho - disse Marcou Goldenberg. - Eu sou comunista. Não quero em caso algum pôr obstáculos no caminho dos meus camaradas!
Os prisioneiros apreciaram a atitude corajosa de Marcou. Estavam todos de acordo. Mas quando souberam que o pedaço de terreno de Goldenberg deveria ser cavado por eles, no caso que o não fizesse, o entusiasmo caiu logo. O velho Lengyel deu o sinal de abalada para o trabalho e prometeu arranjar as coisas.
Logo que os outros começaram a trabalhar, Lengyel veio pôr-se o lado de Marcou, que continuava à borda do canal, de mãos nas algibeiras.
- Nós, os judeus, temos uma qualidade que nenhum outro povo do Ocidente pode igualar. Sabemos fazer transações. O nosso povo é bastante prudente para apreciar os compromissos e desprezar as atitudes extremas. É uma virtude que herdamos do Oriente. Bem me entendes. Quem sabe estar bem com Deus e com o Diabo é que é discreto. Desprezaste essa prudência e tomaste posição, esquecendo que semelhante atitude é própria dos povos bárbaros, dos povos de soldados. As nações requintadas e cultas podem dar-se ao luxo de terem várias atitudes ao mesmo tempo e de escolherem entre todas a que se adapte melhor à situação presente. Se não queres fazer caso dessa prudência, é contigo. Nós percebemos que não queres cavar o canal.
- Nem que me matem! - disse Marcou.
-Mas a tua parte no desatêrro tem que ser feito todos os dias por alguém, durante todo o tempo que te conservares aqui. Até agora estiveste no hospital. A partir de hoje...
- Bem sei - disse Goldenberg. - Mas não cavo!
- Se não trabalhas, devemos fazê-lo em teu lugar. Já o fizemos hoje - disse Lengyel. - Mas não é possível que fiques aí sem fazer nada, de mãos nas algibeiras, e que nós trabalhemos por ti!
- Não vos pedi que o fizésseis! - disse Marcou Goldenberg, com desprezo. - Se o quereis fazer, é convosco. Se tendes gosto nisso...
- Não temos gosto nenhum nisso, e bem o sabes. Mas não podemos pôr o sargento ao fato da tua atitude e fazer-te comparecer a um conselho de guerra com as mãos amarradas.
- Digam-lhe que eu sou sabotador! Por que lho não ides dizer já?
- Ouve, Marcou! - disse Lengyel. - Tu és formado em Direito, deves compreender a situação. Nós não podemos pedir a tua prisão e ver-te sair do campo no meio de baionetas. Não o podemos fazer. Hoje, através de toda a Europa, os fascistas dão caça aos judeus como a animais ferozes. Mas os fascitas são nossos inimigos Goldenberg. Nós, os judeus, não podemos pedir que um judeu seja preso e enviado a um conselho de guerra. Mas também não podemos cavar e trabalhar em teu lugar. Mal conseguimos cavar a nossa porção de terreno.
- Para que serve esse sermão? Pensas que me levas falando-me ao sentimento? - disse Marcou, sarcástico. - Se julgas que me podes convencer, perdes o teu tempo.
- Não tenho tal veleidade - disse Lengyel. - És um fanático. E todo o fanático é um animal raivoso de que a gente não deve aproximar-se muito. Mas tens um pai e uma mãe. Oh! eu bem sei que tu nunca pensas nisso. Mas pensamos nós em teu lugar. És nosso irmão. Corre nas nossas veias o mesmo sangue. Mas, se o esqueceste, assim seja... E por isso procuramos uma solução de compromisso para conciliar o teu fanatismo, os interesses da nossa comunidade e o nosso sentimentalismo, que tu levas para a troça.
Os outros presos faziam círculo à roda deles e ouviam.
- Tu não queres trabalhar no canal porque ele representa um obstáculo para os teus camaradas do Exército Soviético - disse Lengyel. - Não te podemos obrigar. Mas deves fazer outro trabalho que não tenha significação política ou militar. Preferes, por exemplo, limpar as sentinas? Estamos de faxina às sentinas, por escala. Se queres limpá-las todos os dias, o que devia estar de faxina nesse dia podia cavar no canal em tua substituição. Mas previno-te que é um trabalho duro e repelente.
O velho Lengyel estava certo de que Goldenberg, uma vez obrigado a escolher, preferiria trabalhar na canal. Bem sabia que ninguém podia resistir a semelhante castigo mais de dois dias, sobretudo tratando-se de um intelectual.
- Pensa bem; podes pensar no caso até à noite.
- Não vale a pena esperar. Já fiz a minha escolha - disse Marcou.
- E então?
- Escolho as sentinas - respondeu Goldenberg. - É uma atividade construtiva. O trabalho no canal é criminoso, reacionário a fascista. Prefiro ficar de faxina às sentinas todos os dias a contribuir para levantar obstáculos aos meus camaradas do Exército Vermelho.
O velho Lengyel fêz-se pálido. O seu plano falhara.
- Era melhor que refletisses ainda, antes de tomar tal resolução - disse o velho.
- Deus me livre! - disse Goldenberg; e virou-lhe as costas.
Nenhum dos presos teve coragem de se aproximar de Marcou e de lhe falar. Só loham Moritz se atreveu a fazê-lo.
- Tu estás doido, Marcou! - disse Moritz. - Como podes preferir ficar todos os dias de faxina às cagadeiras? É pior que trabalhos forçados.
- Larga-me da mão - gritou Goldenberg. - Sei muito bem o que hei de fazer.
- Ninguém tal diria - replicou lohann Moritz.
Naquele instante Moritz percebeu que o olhar de Marcou Goldenberg parecia exatamente o de lorgu lordan. E afastou-se.
No dia seguinte o velho Lengyel sentiu remorsos. Tinha a consciência de ter procedido mal. O velho era muito sensível. Nessa mesma noite foi procurar Marcou para o fazer voltar atrás. Queria dissuadi-lo a todo o custo. Tinha a impressão de haver sido ele que o condenara a tais penas.
Marcou ainda não acabara a sua tarefa. Todo o dia acartara baldes enjoosos da fossa que servia de sentina até aos limites do campo. Aí, esvaziava-os ao ar livre. Chovera sempre e, sem cessar, a fossa enchia-se de água. O trabalho era duplo. Marcou não podia mais. Estava magro e tinha os pulmões fracos.
- Parece-me que tens de desistir - disse Lengyel. - Não é trabalho para ti.
Marcou desceu à fossa e encheu o balde. Depois subiu e apanhou as sujidades à pá.
- Eu, no teu lugar, não podia continuar todo o dia no meio desta porcaria e deste fartum.
Marcou não replicou. Mal se podia ter de pé. Mas continuava. Pegou nos dois baldes a pulso e passou diante do velho. Quando voltou, Lengyel disse-lhe ainda:
- Daqui em diante terás sempre este cheiro no fato e na pele. Não podes dormir esta noite por causa do fartum.
O velho preparava-se para lhe dizer que, a partir do dia seguinte, Marcou podia trabalhar outra vez como amanuense na secretaria. Mas Marcou não podia esperar mais. Tinha chegado ao extremo das suas forças. Estava com uma pá na mão. Levantou-a no ar, fechou os olhos e vibrou-a. O gume da pá atingiu Lengyel em cheio na cabeça. Lengyel cambaleou. Marcou já nem o via. Tinha as mãos crispadas no cabo da pá. E bateu ainda uma vez; depois, outra. As pancadas agora eram dadas em vão. O velho estatelara-se. Marcou não se mexera, de pá na mão. Abriu os olhos e viu o velho Lengyel, que jazia a seus pés, com a cabeça aberta. Marcou não queria matá-lo. Agira por desespero. Mas não o lamentava.
Quatro meses eram passados sobre esse dia. lohann Moritz ainda via a cabeça do velho, aberta de meio a meio à pancada da pá, e Marcou saindo do campo entre baionetas; mas tudo isso lhe parecia bem longe, enterrado no passado. A si próprio perguntava se aquelas histórias não tinham acontecido anos e anos antes. Os mortos passam depressa. Marcou não estava morto, mas os que estão no degredo esquecem tão rápido como os mortos.
Naquele dia nevou. O sargento anunciou-lhes a inspeção de um general.
- Esperamos também a visita do Rei - disse o sargento. - O Rei vem ver o canal que nós abrimos. Foi o próprio Rei que desenhou os projetos. E por isso o quer ver.
Moritz pensou em Marcou, que devia estar algures no fundo de uma mina. Depois pensou no Rei, que traçara pessoalmente o plano do canal. Via-o à banca de trabalho, de lápis na mão, desenhando. Como nas gravuras. O canal era muito comprido. Tinha mais de cem quilômetros, segundo se dizia. Mas cada preso só conhecia o pequeno troço que ele próprio cavava. Não podia enxergar muito mais. O canal tinha três metros de profundidade e os bordos escarpados. Ia ser enchido de água. Moritz tentava imaginar a água a correr ali, onde ele estava a cavar naquele instante. Tinha ouvido dizer que, no canal, depois da guerra, passariam mesmo navios. Por enquanto serviria para deter o avanço russo. Só o Rei e alguns generais o sabiam. O sargento dissera-lhe isto a eles. Moritz vira muitas vezes em sonho o Rei e esses tais generais falando ao ouvido uns dos outros. Discutiam acerca do canal em que ele trabalhava, ele, Moritz. Bem percebera a razão por que os presos não tinham licença de escrever para casa, a suas mulheres ou a seus filhos; era preciso guardar segredo, que os russos ignorassem o trabalho. O sargento dissera-lhes que os russos tinham espiões por toda a parte, que queriam fotografar o canal em que ele trabalhava, ele, Moritz. Mas a polícia apanhava-os invariavelmente. Os presos não podiam ser dispensados, pois de volta a casa podiam divulgar o segredo do canal.
lohann Moritz queria muito voltar um dia por ali, quando a guerra acabasse, para mostrar a Susana, sua mulher, e aos filhos, o canal em que tinha trabalhado. O canal estaria então cheio de água. Mas ele, Moritz, tinha bem fixo na memória o sítio em que trabalhara, para se recordar. Os pequenos ficariam maravilhados. Nunca acreditariam que naquele mesmo lugar tivesse havido antigamente um campo em que o gado pastava e iriam contar às outras crianças da escola o que seu pai tinha feito. Ficariam vaidosos com tal pai. As outras crianças não teriam um pai com tais façanhas. Moritz estava todo vaidoso. A princípio andava atormentado com a lembrança de casa. Talvez que no pátio os adobes houvessem secado demais. Talvez Susana não tivesse podido acarretar a lenha do mato. Talvez não pudesse ter colhido o milho todo. Moritz, de noite, não dormia. Mas isso era muito ao princípio. Acabara por pensar cada vez menos no caso. Susana com certeza teria arranjado tudo. E o que ela não tivesse podido fazer com as suas fracas forças de mulher, ele próprio o faria de volta. Desde o dia em que o sargento o examinara, lhe mandara tirar as calças e, percebera que ele não era judeu, lohann Moritz esperava constantemente que o mandariam embora. Ele pensava que a ordem chegara já há muito, mas que o não podiam mandar embora enquanto o canal não estivesse acabado. Depois haviam de o deixar voltar para casa. Moritz não queria mal ao Estado por o ter retido ali. A princípio, estava furioso com o soldado que o escoltara de Fântâna à cidade. Depois contra o comandante do posto. Julgava que era ele que o tinha requisitado. E ainda hoje assim pensava. Mas o seu furor passara. Quando voltar para a aldeia, se encontrar o guarda Dobresco na rua, há de cumprimentá-lo tirando o chapéu, como fazia antigamente. Se o tivessem soltado seis ou sete meses antes, tinha-lhe voltado as costas. Talvez até o tivesse insultado, pois o guarda caçoara dele com aquele mandado de requisição. Mas agora a cólera passara-lhe. Tudo passa com o tempo. Sabia que dali a pouco estaria de volta a casa. Tinha saudades da aldeia e da mulher. Os filhos deviam ter crescido. Pétru viria ao encontro dele, à porta de casa. Moritz deixava-se embalar pelos seus sonhos. Via-se já entrando em casa, pegando em Pétru ao colo, apertando Nicolae, contra si. Era como se o tivesse já nos braços. Depois contaria a Susana como é que tinha trabalhado e onde tinha estado. Mas não diria nada das pancadas que apanhara. E também lhe esconderia que passara fome de rabo. Para que inquietá-la? Dir-lhe-ia simplesmente que tinha aprendido o iídiche e que ninguém naquele campo, nem sequer os judeus, quisera acreditar que era romeno. Só tinham acreditado quando o sargento lhe mandara arriar as calças para ver se... Susana havia de rir a partir, sobretudo quando soubesse que o sargento ordenara a Strul, ao furriel, que o examinasse também. Diria a Susana que o sargento e o furriel Strul ficaram de boca aberta e lhe tinham dito:
- Temos que te despedir do campo, pois tu não és judeu e o Rei mandou que só os judeus trabalhem no canal.
Susana ia ficar contente por aquela trapaça se acabar e por vê-lo em casa outra vez. Viria ao seu encontro, estreitando-o com amor e dizendo-lhe:
- Tu és o meu marido, e gosto mais de ti do que do Sol que luz no céu!
Eis no que sonhava Moritz à espera de visita do general. Mas nesse mesmo dia avisaram que o general só viria amanhã. Os prisioneiros que o tinham esperado, de enxadas na mão, alinhados em três fileiras, dispersaram.
Moritz foi chamado à secretaria.
- O brigadas quer te falar - disse Strul.
Moritz sentiu bater o coração com força. Pensava que a ordem de o porem em liberdade chegara. Era por isso que o brigadas o chamava à secretaria. Mas não perguntou nada a Strul, Custava-lhe a esconder a alegria. Ele bem suspeitava que o poriam em liberdade quando o canal estivesse pronto. Mas o canal ainda não estava pronto e a boa nova caía-lhe do céu. O brigadas envergava um uniforme novo. O soalho estava lavado de fresco para a inspeção do general. A mesa da secretaria coberta de papel azul sem nódoa, os mapas e registos muito direitos em montinhos. Moritz parou à porta e fez a continência. Estava inquieto para receber a boa nova. Mas fazia de contas que não. sabia de nada. Não queria mostrar que estava alegre como um menino. Noutra cadeira ao pé do brigadas, o Dr. Samuel Abramovici. Era um prisioneiro também mas travara amizade com o brigadas e passava o tempo todo com ele na secretaria. Strul encostou-se a um canto diante da mesinha também com papel azul. Todos o fitavam de olhos esbugalhados. Enfim, o brigadas decidiu-se a falar:
- Moritz, meu velho, tua mulher divorciou-se! Já não é tua mulher. - E continuou, cofiando o bigodinho: - Mandaram-nos a declaração de divórcio, que tens de assinar, para se provar que tomaste conhecimento.
O brigadas pôs um papel no canto da mesa, depois estendeu a Moritz uma caneta. Mas Moritz não se mexeu da porta.
- O divórcio foi pedido por razões de ordem étnica. Ela não quer continuar a ser a mulher de um judeu. - O brigadas acrescentou, em tom de censura: - Contaste-me uma data de aldrabices para me provares que eras romeno e cristão. Querias-me vigarizar, hem? Mal sabias que estavas a tratar com uma velha raposa como eu! Não dei andamento ao teu pedido, e fiz bem. Tua mulher acaba de se divorciar porque tu és judeu. E ela deve saber as linhas com que se cose melhor do que ninguém, hem? - O brigadas sorriu. Mas assim que olhou para Moritz e o viu descomposto e pálido, o sorriso desapareceu. - Todas as mulheres são assim! - disse ele. - Desde que vieste, ela deve ter arranjado outro homem. Todas as mulheres são cabras. Eh! Não te apoquentes, homem!
Moritz apetecia-lhe fazê-lo em bocados. Não podia ouvir dizer que a sua mulher era uma cabra. Os dentes rangiam-Ihe. Espumava de raiva. Bem queria dominar-se, mas a garganta apertava-se-lhe. Estava quase a rebentar.
Cerrou os pulsos para não bater no brigadas, chegar àqueles todos que ali estavam.
- Minha mulher não é nenhuma cabra! - disse ele.
- Dizes bem - replicou o brigadas. - Tu és um homem que tem uma mulher que não é cabra. Tiveste uma, tiveste, até... - O brigadas puxou para si o papel que estava no canto da mesa e leu a data do cabeçalho: - Até 30 de janeiro - continuou. - Foi nesta data que se pronunciou o divórcio e que voltaste a ser solteiro!
O brigadas tornou a sorrir. O Dr. Abramovici sorriu também, um sorriso ao canto da boca.
- Minha mulher não pediu o divórcio! - disse Moritz. - Eu conheço Susana.
- Se não queres acreditar, isso é contigo - disse o brigadas. - Mas tens de assinar aqui que tomaste conhecimento do divórcio e que estás outra vez solteiro!
- Eu não sou solteiro - disse Moritz.
- Bom; não és solteiro, mas tens de assinar na mesma, que tomaste conhecimento do fato!
Moritz fixou a caneta que o brigadas lhe estendia e gritou:
- Eu não assino coisa nenhuma!
O brigadas enfureceu-se. As faces coraram-lhe. Lembrou-se de que era militar e que a resposta de Moritz constituía um ato de indisciplina.
- Assina - ordenou ele. - Não sabes onde estás? Tu perdeste a cabeça?
lohann Moritz pegou na caneta e assinou. Agora era uma ordem; devia obedecer.
Depois de ter escrito o seu nome na folha de papel, embaixo, no canto direito, no mesmo sítio em que o brigadas pusera o dedo, pôs a caneta em cima da mesa e quis abandonar a sala. Tinha os olhos cheios de lágrimas e a cabeça andava-lhe à roda.
- Lê! - disse o brigadas. - Tens que saber o que assinaste.
- Eu não preciso de ler! - respondeu Moritz. - Eu sei que não é verdade.
Quis abrir a porta. Mas a mão tateava como se fosse no escuro e não dava com o pica-porta.
- Fica e fuma um cigarro - disse o Dr. Abramovici; e estendeu-lhe a cigarreira.
Moritz voltou atrás. Pegou num cigarro e começou a fumar. Mas não se lembrava quando é que o Dr. Abramovici lhe tinha avançado o isqueiro para o acender. Fez um esforço para se lembrar. Era outro, porém, o que falava nele. Depois saiu da secretaria sem saber ao certo como. E ficou todo e dia à beira do canal, na terra gelada. Não tinha frio. Passavam-lhe ali mil coisas pela cabeça. De tempos a tempos vinha-lhe à memória o papel que acabava de assinar e a cólera invadia-o.
No dia seguinte de manhã foi outra vez ao brigadas. Pediu o papel e leu. Até àquele momento não tinha acreditado. Agora sim, sabia que era verdade. Susana tinha-se divorciado porque também acreditara - ela! - que Moritz era judeu, e porque tinha arranjado outro homem.
Já não se zangou quando o brigadas lhe disse que ele era outra vez solteiro. O coração apertava-se-lhe; mas não se zangou mais; sabia que era verdade. Tinha-o lido com os olhos que a terra havia de comer.
No dia seguinte o brigadas apareceu envergando o seu lindo uniforme novo. Os prisioneiros esperaram até ao meio-dia, alinhados ao longo do canal. Mas o general não veio. No terceiro dia, o brigadas pôs outra vez a farda de serviço. Disse que o general se irritara e que já não vinha ver o canal. Durante uma semana deixaram de trabalhar. Depois o campo de lohann Moritz deslocou-se para o Norte. Até ali tinham fossado no barro amarelo e mole. Agora o canal tinha de ser aberto na pedra.
O brigadas largou-se num caminhão à procura de outra ferramenta, pois a antiga só servia para cavar no barro. Andou três dias ausente. Depois voltou com dois caminhões cheios de ferramenta própria para furar e quebrar blocos de pedra. Moritz todo o inverno ustiu. A comida era má. Os homens caíam como tordos. Moritz não adoeceu. Só esteve mal da garganta coisa de uma semana. Mas o trabalho avançava com grande lentidão. Em abril estavam no sítio em que se achavam pelo Natal. Não tinham conseguido romper além de umas dezenas de metros. Dizia-se que quinze mil homens tinham escavado o canal nesse inverno. O trabalho ia durar ainda o verão todo e só acabaria lá para o outono seguinte. Em outubro fariam lá chegar a água. Mas alguns meses depois receberam ordem para parar com o trabalho. O brigadas comunicou-lhes que o Estado-Maior desistira daquele canal. O Rei Car los II fora destronado e fugira. E, ao mesmo tempo que ele, tinham fugido ou sido destituídos todos os generais que haviam ajudado a traçar o projeto do canal. Agora chegavam ao Paço outros generais, que pretendiam que o plano do canal desenhado pelo Rei não prestava. Tinham dado ordem para se parar com o trabalho. Os judeus foram embarcados em comboios e transportados para a fronteira oeste da Romênia, para aí levantarem fortificações contra os húngaros.
Ao deixar o seu cantão, lohann Moritz tinha pena de que o Rei tivesse desenhado mal o projeto. Todo aquele trabalhão fora afinal inútil.
O novo campo era uma floresta da fronteira da Romênia com a Hungria. Tinham andado três noites e três dias de comboio. Ao partirem levaram as ferramentas com que se tinham cavado o canal. O brigadas levantou o seu aquartelamento, uma barraca de madeira, e enfiou-a num vagão. Strul levava os registos. Os prisioneiros tinham inclusivamente levado os seus piolhos consigo, e cada um era senhor de algumas dúzias deles. Mas no novo campo as ferramentas do canal já lhes não serviam de nada. Agora tinham que derrubar mas era árvores para as fortificações. lohann Moritz nunca vira fortificações nenhumas. Nem sabia sequer como elas se faziam. Contudo deitavam árvores abaixo em florestas inteiras e levavam-nas para a fronteira. Havia milhares e milhares de homens que não faziam outra coisa senão deitar árvores abaixo e transportá-las para o vale.
lohann Moritz tentava ver as fortificações, mas não conseguia. Em sua opinião, deviam erguer um muro gigantesco entre húngaros e romenos com tanta madeira cortada. Talvez que afinal fosse essa a idéia do Estado-Maior; ele, lá por si, que sabia? Mas esperava com impaciência ver levantar-se o muro que havia de separar os dois países. Logo que o muro estiver pronto, Moritz poderá vê-lo bem, do alto da floresta. Ouvira dizer que os húngaros faziam fortificações iguais na terra deles, do lado da fronteira. lohann Moritz estava com curiosidade de ver quais eram as mais altas. Ficou contente de ouvir o brigadas dizer-lhe que as fortificações dos húngaros não valiam um pataco e que os romenos poderiam passar por cima, só numa noite, se quisessem. Mas os romenos não queriam, lohann Moritz imaginava muitas vezes os soldados romenos atravessando para a Hungria. Gostaria de os ver. Se calhasse estar ainda ali, na altura do combate, via-os do alto da floresta. O brigadas dizia-lhes que as fortificações romenas eram tão altas que nem um pássaro lhes podia voar por cima. E por isso Moritz supunha que deviam ser muito, muito altas. Havia pássaros que voavam tão alto no céu que mal se viam. E se os pássaros não podiam passar por cima das fortificações romenas - o brigadas dera a certeza - isso queria dizer que cá em baixo não se podia ver o alto das fortificações, que se perdiam no céu, entre as nuvens. lohann Moritz perguntava a si próprio onde iriam ficar os troncos de árvores que tinham deitado abaixo com a sua própria mão. Gostaria de marcá-los com um sinal e, quando as fortificações estivessem prontas, podê-los reconhecer. Talvez que os seus troncos, os dele, ficassem lá no alto, bem no cimo. E todos os dias, cortando madeira na floresta, lohann Moritz pensava nestas coisas. O tempo passava mais depressa. Talvez fossem asneiras. Se alguém pudesse ver os seus pensamentos esfregava-se a rir no chão. Mas ele, não; gostava deles. Não queria pensar mais na sua casa, na aldeia. O sangue subia-lhe à cabeça.
Um belo dia, Strul veio ter com ele à floresta e chamou-o à secretaria. Desde que assinara o papel do divórcio, Moritz não tornara a pôr os pés na secretaria. Sempre que lá entrava e via a mesa do bngadas lembrava-se do canto em que estava o papel naquele dia e a maneira como fincara os cotovelos para assinar. Aqui está por que não queria lá tornar. Não queria ver a secretaria, nem de longe. Mas, agora que era chamado, tinha de ir. O brigadas não estava. Só se viam na sala o Dr. Abramovici, Strul e o cozinheiro do campo, o Hurtig. Moritz cumprimentou; corresponderam-lhe com bom modo. Depois puxaram-lhe uma cadeira.
Moritz estava à espera de ver chegar o brigadas. Se o tinham mandado chamar à floresta é porque o brigadas tinha alguma coisa importante a comunicar-lhe.
- O brigadas não está cá. Podemos conversar à vontade - disse o Dr. Abramovici.
Ofereceu um cigarro a Moritz. O Dr. Abramovici tinha sempre cigarros. E dos bons, dos caros.
- lankel! - disse o Dr. Abramovici. - Tua mulher deixou-te.
Moritz mudou de cor. Estava pálido.
- Isso não é de sua conta - disse ele. - São cá negócios meus; os outros não têm nada com isso.
- Eu só queria dizer que ninguém te espera em casa se abandonares o campo - disse o Dr. Abramovici. - Pessoalmente, aliás, não acredito que alguém saia daqui antes do fim da guerra. E a guerra ainda pode durar dez anos. - lohann Moritz suspirou. Se ficasse mais dez anos no campo, tinha o cabelo todo branco. - Gostavas de ir para outro país? - perguntou o Dr. Abramovici.
Moritz lembrou-se que quisera ir para a América com Ghitza lon. ”Se tivesse chovido nesse dia, eu hoje estava na América. Se eu não tivesse encontrado Susana essa noite...”, disse de si para consigo. Se não tivesse encontrado Susana essa noite, estaria hoje muito longe. Não estava no campo, com certeza.
- Eu cá quero ir - disse Moritz contentíssimo. - Já quis ir para a América, mas não pôde ser...
- Desta vez pode - tornou o Dr. Abramovici. - Se queres partir, em poucos meses estás na América.
Moritz olhou para Abrareovici, Strul e Hurtig. Eles encararam-no também. Via-se bem que não estavam a fazer pouco dele. Se fosse caçoada, não o teriam mandado chamar à floresta.
- Tomara eu! - disse Moritz.
- Nesse caso, não tens mais que ir conosco - disse o doutor. - Com nós três. Queremos ir para a Hungria. Tens medo de fugir?
- Eu cá não tenho medo - disse Moritz.
- Na Hungria não há leis anti-semitas - disse o doutor. - Tenho uma irmã casada em Budapeste; mora lá. Está à minha espera. O Sr. Hurtig também tem parentes na Hungria. Mas precisamos de alguém que nos dê uma ajuda à bagagem. Eu tenho muita bagagem: tenho seis malas. Levo tudo o que tem algum valor. A seguir à fronteira, em território húngaro, temos de andar a pé uns dez quilômetros. Além disso nenhum de nós fala húngaro. E pensamos em ti.
- Como é que a gente pode sair daqui? - perguntou Moritz.
- O brigadas leva-nos de caminhão até à fronteira - disse o doutor. - Não podíamos sair de outra maneira. As patrulhas estão de guarda a todos os caminhos. Mas vamos num caminhão militar.
- O brigadas, então, sabe que nós fugimos?
- Pois claro! - disse Hurtig. - Tem família numerosa e necessidade de dinheiro. Não fazias como ele, se estivesses no seu lugar?
Moritz não respondeu.
-Toma lá mais um cigarro e vai preparar as tuas coisas! - disse o Dr. Abramovici. - Faz a diligência para que os outros prisioneiros não dêem conta de nada.
- É preciso ir já, já? - perguntou Moritz.
- O mais depressa possível! - disse o doutor. - O brigadas espera-nos às nove horas diante da porta, com o caminhão. Vai buscar a tua trouxa e volta imediatamente à secretaria. Esperamos aqui por ti. Não tragas muita bagagem. Tens que levar as minhas malas!
lohann Moritz abalou. Voltou logo depois com uma pasta onde metera uma camisa, umas calças e metade de um pão. Às nove horas saíram do campo. O brigadas esperava-os. Meteu-os no caminhão e conduziu-os à fronteira.
Às três da manhã, lohann Moritz transportava as malas do Dr. Abramovici em território húngaro. De madrugada estavam diante de uma gare. O Dr. Abramovici deu dinheiro a Moritz para comprar quatro bilhetes de segunda para Budapeste.
Numa recepção da Legação da Finlândia em Bucareste, Traian Koruga travou conhecimento com o General Tautou, o Ministro da Guerra romeno. Alguns dias depois, foi vê-lo ao Ministério e expôs-lhe o caso de lohann Moritz. O general ouviu-o com interesse. Tomou nota do nome, da profissão, da data do nascimento e da prisão de lohann Moritz, e disse:
- Daqui a uma semana, o mais tardar, o nosso homem estará de volta a casa. Vou dar ordem para que o caso seja ime diatamente examinado e para que se preparem os papéis de soltura. Estamos a... - O general olhou para o calendário. - 21 de agosto. Pode voltar por aqui a 28 e entrego-lhe os papéis de soltura do nosso homem. - E perguntou: - Esse Moritz é o criado de seu pai?
- É o seu homem de confiança - respondeu Traian. - Não é bem um criado.
- No campo há crise de mão-de-obra - tornou o general sem ouvir até ao fim. - Compreendo que se incomode tanto por esse pobre-diabo. Um homem a mais é importante para as ceifas. Sobretudo porque estamos em plena colheita agora.
A conversa continuou neste tom. Traian tentou explicar ao general que, se intercedia por Moritz, não era por o rapaz ser o criado do pai e fazer falta no campo, mas muito simplesmente porque fora preso sem razão.
- A minha intervenção é um simples ato de humanidade, um ato desinteressado.
- Mas comigo dá-se o mesmo - disse o general. - Vou muitas vezes ao campo a batizados e a casamentos de gente do povo. Hoje em dia é preciso utilizar todos os métodos possíveis para os fazer trabalhar. É preciso dar-lhes a ilusão de que somos amigos e chegar até a sentarmo-nos à mesma mesa que eles. Compreendo muito bem o que quer dizer. Seu pai está na mesma situação em que eu estou. - O general abriu uma gaveta da secretária, tirou de dentro o último romance de Traian e pô-lo em cima da mesa. Era um exemplar novo; as folhas nem estavam cortadas. - Mandei o meu ajudante de campo à livraria comprá-lo - disse o general. - Quer ter a bondade de escrever aqui uma dedicatória à minha fiilha? Chama-se Elisabete, tem dezoito anos e devora romances. O meu amigo é um dos autores preferidos. Ao almoço, quando eu lhe contar que me veio aqui ver, vai-me logo fazer uma porção de perguntas, sobre o seu fato, que gravata trazia, que cigarros fumava. Que quer?... A mocidade é assim.
Traian desceu a escada do Ministério da Guerra, certo de que, enfim, desta vez obteria a libertação de lohann Moritz. Passou pela florista a buscar o ramo de rosas brancas que nessa manhã encomendara; depois entrou no correio e mandou um telegrama ao pai: ”29 agosto estarei Fontana com minha noiva e ordem libertação lohann Moritz”.
- A 29 de agosto estaremos em Fântâna em casa do teu pai? - perguntou Eleonora West. Estava radiante. - é com certeza daqui a uma semana? Quem me dera já lá estar!
Tirou as rosas brancas da mão de Traian Koruga e dispô-las numa jarra. Traian olhou fixamente para os caracóis ruivos que lhe caíam nos ombros, no vestido de seda preta. Mirou-lhe a silhueta esguia, as pernas delicadas.
- Nora! Tu sabes o que é que eu pergunto a mim mesmo quando olho para ti? - Ela voltou a cabeça para ele, sorridente.
- Pergunto a mesma coisa que o poeta Tudor Arghezi: Tua mãe é uma -fada, uma corça ou uma caninha? Que semente foi essa que lhe amadureceu nas entranhas? Sem dúvida a de algum espirito, ou então de um voêvode, pois ttu não és da raça dos mortais, com certeza...”. És linda demais! Há com certeza cabritos monteses na tua árvore genealógica. Os teus olhos têm o olhar espantado dos esquilos. É deles que te vem a ligeireza. Também deves ter algas entre os antepassados. O teu corpo tem a harmonia das plantas de água. És caprichosa como a carícia de um gato angora.
Eleonora West continuava de costas voltadas, com a cara mergulhada no ramo de rosas.
- Magoei-te? - perguntou Traian.
- Não - respondeu ela.
- Ficaste triste. Mesmo sem te ver os olhos adivinho a tua melancolia. Foi pelo que eu disse?
- Não! - respondeu ela, esboçando um sorriso. - Não estou triste. Pensei simplesmente na minha árvore genealógica, onde seria difícil ver corças, príncipes, fadas, algas, esquilos...
Sentaram-se à mesa. Estavam sozinhos na imensa sala de jantar de móveis de castanho. A casa de Eleonora West era uma das mais célebres de Bucareste. Ela mesma fizera o projeto. Os móveis, os tapetes, tudo executado sobre desenhos seus. Eleonora tinha vinte e nove anos e era a diretora do maior jornal romeno, Ocidente. Passara pelas mais célebres Universidades da Europa. Escrevia os artigos de fundo do jornal, dirigia uma casa editora, uma revista literária e artística, fazia vida política, cultural e mundana. Traian conhecia-a havia alguns anos. O amor deles era como ao princípio. Talvez até fosse mais fundo. Mas não tinham casado. Sempre que Traian falava nisso, Eleonora West respondia:
”Nunca hei de ser boa companheira. Gosto muito da minha profissão; não posso renunciar a ela sem a impressão de ter estragado uma coisa preciosíssima na minha vida; ter dado cabo de tudo”.
- Parece-me que lohann Moritz vai ser solto - disse Traian.
- O Ministro da Guerra prometeu-me pô-lo em liberdade até 29 de agosto. Telegrafei a meu pai dizendo-lhe que chegava a Fântâna com a noiva e a ordem de libertação de lohann Moritz. São duas alegrias...
- Tu queres apresentar-me por força a teus pais como noiva? - perguntou Nora.
- Quero. Tenho o maior empenho nisso - disse ele. - Mas se não queres, desisto. Meu pai ficará desgostoso, mas sabe perdoar tão bem!
- Por que é que lhe hás de apresentar a tua noiva em vez da tua mulher? - perguntou Nora. - Se casarmos depois de amanhã, de manhã, em chegando a Fântâna já seremos marido e mulher.
Traian Koruga julgou que Nora estava a brincar. Havia dois anos que tentava em vão convencê-la. Ela gostava dele, mas não queria ser sua mulher. Não queria ser a mulher de ninguém. E agora de repente propunha-lhe que casassem.
- Falas sério? - Levantou-se e beijou-lhe a mão. - O que foi que se passou? Esta manhã, ao telefone, não me disseste nada. Como te decidiste?
- Não se passou absolutamente nada! - respondeu ela. - A 29 de agosto, quando formos a Fântâna, já estaremos casados. Pediste-mo muitas vezes. Terias mudado de opinião? Bem mo podias ter dito...
Traian Koruga percebia muito bem que devia ter-se dado um acontecimento importante. Um acontecimento que obrigava Nora a ser sua mulher. Mas que seria? Não podia adivinhar.
- Por agora, casamo-nos civilmente - disse ela. - O casamento religioso ficará para mais tarde, em Fântâna. Sempre sonhaste com umas bodas na igreja de teu pai. Vias-me de vestido branco, rodeada dos garotos da aldeia, direita ao altar... Hei de arranjar a dispensa para o casamento civil. Telefono ao Procurador-Geral.
- Nora, diz-me o que se passa? - perguntou Traian. - Aconteceu com certeza alguma coisa de grave.
- Não aconteceu nada! - disse ela. - Absolutamente nada. Ou por outra: aconteceu que me resolvi a ser tua mulher. Tomei espontaneamente esta decisão e quero cumpri-la o mais depressa possível, para que ninguém se atravesse ou intervenha. A felicidade que busco é tão importante para mim que queria já tocar-lhe, tê-la apertada nas mãos. Tenho medo de perdê-la esperando tempo de mais. E é tudo. Não me acreditas?
Depois do almoço, Train Koruga e Eleonora West ficaram no escritório vendo os livros e os quadros. Traian estava convencido de que Nora lhe dissera a verdade. Mas não falaram mais do casamento. Precisavam ambos fugir a pensamentos negros. Pararam um pouco diante de um quadro de Picasso. Eleonora West olhava para o quadro, que representava uma mulher a tal ponto desfigurada pelo sofrimento, que o rosto já não tinha nada de humano. Era uma visão de carne dilacerada, um retrato de mulher que a dor desmontara como a uma máquina. Restavam apenas os elementos essenciais: os olhos, o nariz, a boca, as orelhas. Cada coisa vivia isoladamente, de uma vida individual. Haviam-se repelido à força de tanto sofrimento. O corpo humano renunciara à unidade.
Traian Koruga voltou-se para Nora e teve por instantes a impressão de que Nora lembrava aquele retrato. Nenhum aparelho fotográfico teria podido fixar a sua expressão no momento. A dor era funda demais. O rosto de Eleonora West estava tão escalavrado como o rosto de mulher de Picasso. Parecia atravessado por estas correntes de alta freqüência que não chegam a electrocutar, precisamente devido a um potencial excessivo.
- Nora, em que pensas? - perguntou.
- Em nada - respondeu ela. - Vamos tomar café, queres?
E, sem esperar resposta, voltou-lhe as costas, como fizera quando ele se pusera a falar do parentesco dela com corças e algas marinhas.
O casamento civil foi na Câmara. Traian Koruga e Eleonora West iam em trajo de passeio. Dois amigos de Train serviam de testemunhas. Depois do casamento almoçaram num restaurante de Baneasa.
- Para o casamento religioso faremos uma grande festa - disse Traian. E pôs-se a contar-lhe os vestuários de umas bodas romenas, no campo. - A boda há de levar à frente homens do campo a cavalo, a caminho da igreja; e cinqüenta rapazes, à romena, montados em cavalos todos brancos. Segue-se um carro puxado e duas juntas de bois. Os usos mandaram que se exponham no carro as ofertas à noiva e o dote. Mas o nosso carro há de ir só cheinho de flores. Levamos doze padrinhos. Em plena cerimónia religiosa, quando os noivos e os padrinhos dançam de roda, de mãos dadas, cai do alto da igreja chuva de bombons, que as crianças são capazes de apanhar entre as pernas dos recém-casados. Faremos chover sacos inteiros de bombons, para que a pequenada de Fântâna coma a mais não poder. Quando eu era garoto também ajuntava bombons em todas as bodas; mas nunca apanhava os que queria; nunca ia além de quatro Quero que no nosso casamento todas as crianças encham as algibeiras de bombons. Falaremos a doze orquestras de ciganos com violinos e viola. O vinho correrá de pipo aberto; toda a aldeia se há de embebedar. A nossa boda será num terreiro e havemos de convidar uns milhares de pessoas. As bodas durarão uma semana.
Nora olhou para o relógio. Dali a um quarto de hora tinha encontro marcado com o advogado Leopoldo Stein.
- Vamo-nos - disse ela. - Tenho negócios urgentes à espera no escritório.
Traian pôs ponto à descrição das bodas em Fântâna. Ambos se ergueram e partiram.
Traian Koruga acompanhou Nora à redação. O palácio do jornal Ocidente era um prédio ultramoderno, de fachada de mármore branco. Fora construído por Eleonora West no sítio de uma antiga imprensa. Traian olhou para os seis andares, que brilhavam à luz do sol: ”É a obra de Nora”, pensou.
- Espero no carro - disse ele.
Bem sabia que Nora costumava guiar o automóvel sozinha ao voltar do escritório, mas supunha que faria uma exceção naquele dia. Era o dia do casamento.
- Volto para casa sozinha, assim que acabar aquilo que tenho a fazer - disse ela.
Depois esperou que ele partisse, subiu os degraus de mármore e sumiu-se no prédio pelo portão de ferro forjado que o porteiro de galões de oiro lhe abrira de par em par.
49
Eleonora West entrou no seu gabinete com passos de régia indiferença. Fez que não dera pela presença do velho vestido de preto que se erguera à sua chegada. Pôs o saco de mão e as luvas na secretária, depois, com um gesto, convidou o velho a sentar-se. Tirou um cigarro e tentou acendê-lo, reprimindo o tremor dos dedos. Depois instalou-se e encarou com o velho.
- Faz favor de dizer, Sr. Stein - disse ela.
O velho abriu a pasta que tinha sobre os joelhos e tirou uma rima de papéis que pôs na borda da mesa. Nora seguia-lhe todos os movimentos com uma atenção contida.
- O negócio está feito, Sra. Da. Eleonora - disse ele. - Aqui estão os documentos. - E tirou do dossier dois papéis que lhe passou.
São os únicos documentos que existem nos arquivos de Ploesti? - respondeu Nora.
- Os únicos que havia nos arquivos até esta manhã - respondeu o velho. - Agora os documentos estão na sua secretária. Nos arquivos não há mais nada. - Eleonora West lançou um olhar de desprezo aos papéis. Dobrou-os e meteu-os na gaveta.
- Seria mais prudente destruí-los já - disse o velho.
Nora olhou para o velho, para os seus óculos de aro de oiro, o seu colarinho gomado, o fato de talhe antigo.
- Desde que os documentos estão na minha secretária não há nada a temer, Sr. Stein - disse ela.
- Pelo que me diz respeito, nada temo. Mas, por si, antes queimá-los já.
- Quanto lhe custou esta pequena operação? - perguntou Nora.
Não queria mudar o rumo da conversa. Percebera que o velho tinha medo. Queimaria os documentos. Mas, antes, queria vê-los.
- Precisamente 100.000 lei - disse Leopoldo Stein.
- E a sua comissão?
- Tudo junto.
Eleonora West tirou da secretária dois maços de notas e estendeu-os ao velho. Ele meteu-os na pasta, renunciando ao gesto que chegara a esboçar, conforme um velho costume: contar primeiro.
- É tudo o que tinha a pedir-lhe - disse Nora. Queria ficar sozinha para ler os documentos. Mas o velho não se mexeu. - Há mais alguma coisa? - perguntou ela.
- Não; não há mais nada - respondeu Leopoldo Stein. - O negócio está feito como me foi possível.
- Tudo em regra?
- Pois... - disse ele. - Mas o caso só pode ser temporariamente sanado pela destruição dos papéis. Era isso o que queria dizer-lhe. Permito-me chamar-lhe a atenção para este ponto, pois fui amigo e colaborador de seu pai e peguei-lhe ao colo quando a menina era pequena. Preciso pois dizer-lhe que o caso só se resolve em parte com a desaparição dos documentos.
- Explique-se - disse Eleonora West.
- É claríssimo, Sra. Da. Eleonora. A senhora quis reaver os documentos que provam a origem judaica de seus pais. Bem sabe... Tirei-os dos arquivos.
- Portanto, é caso arrumado.
- A senhora pode fazer desaparecer os documentos, mas não os próprios fatos - disse Leopoldo Stein. - Apesar de tudo, continua a ser judia; e se alguém quiser prová-lo...
- Se alguém quiser prová-lo não o poderá fazer.
- Mas hão de pedir-lhe os papéis.
- Cá os hei de arranjar - disse ela. - Com dinheiro, posso ter os papéis que quiser.
- é certo - respondeu o advogado. - Mas nesse caso ficaremos a contas com o Código Penal. E é tão imprudente brincar com o Código como com o fogo.
- Não acaba o senhor de roubar, esta manhã, os papéis dos arquivos de Ploesti? - perguntou Nora ironicamente. - Com que direito, então, me dá lições de moral?
- Não são lições de moral - disse o velho. - Previno-a apenas de que o jogo é perigoso e de que não poderá jogar indefinidamente nisto.
- Bem sabes que é a única solução - disse Nora, acendendo outro cigarro. - Não posso fazer outra coisa. Desde que a sociedade me proíbe que faça a minha vida, que tenha uma casa, uma profissão, um marido, estou pronta a lutar com desespero, servindo-me de todas as armas à minha disposição. Luto como um animal ferido. Todos os meus instintos de conservação entram em jogo.
- O principal, Sra. Da. Eleonora, não é combater: é ganhar o combate.
- Hei de ganhar! - disse ela. E esmagou o cigarro no cinzeiro.
- A senhora acredita realmente que poderá ficar ainda por muito tempo proprietária e diretora do jornal? Até agora recusou-se a declarar a sua origem judaica. Isso foi apenas um ato de coragem, de mocidade. Mas teve sorte. Por medo ou por cobardia ninguém se atreveu a desencadear um inquérito. Houve denúncias que pediam a requisição da imprensa e do jornal, segundo as novas leis étnicas. A senhora pôde comprar as pessoas encarregadas do inquérito. E ganhou novamente. Agora acaba de destruir os documentos que Aprovam a origem judaica de seus pais. E ganhou tempo outra vez. Mas as leis étnicas são aplicadas cada vez com mais severidade. Nenhum judeu lhes poderá escapar. E ainda agora a procissão vai na rua... Aqui está por que a senhora inda pode dirigir um jornal, embora seja judia e a lei lhe tenha tirado inclusivamente o direito de publicar um artigo que seja, para amostra. Mas devia pensar no futuro.
- Mesmo de futuro serei eu a diretora e proprietária do jornal Ocidente - replicou Nora.
Leopoldo Stein conhecia a lógica irrepreensível da mulher que tinha em frente. Mas naquele dia a resposta dela revelava fanatismo, os fanáticos carecem de lógica. Não ousou contradizê-la. Quando um ser humano renuncia à lucidez não devemos contrariá-lo. Toda a tentativa de lhe mostrar a verdade está condenada a falir.
- Hoje ao meio-dia casei com um cristão - disse Eleonora West. - Ó jornal passará para o seu nome e, assim, ninguém poderá requisitar o Ocidente, mesmo que a Romênia se fizesse mais anti-semita que a Alemanha.
- A senhora casou realmente? Leopoldo Stein não queria acreditar.
- A partir de hoje chamo-me Madame Eleonora West-Koruga - disse ela. - Meu marido é o romancista Traian Koruga, e será daqui a alguns dias o diretor e proprietário do jornal. E ele próprio também me pertence.
Nora West ria, satisfeita. Leopoldo Stein rebuscava nas algibeiras, procurando não sabia ao certo o quê, para se conter, para não ter que falar ou enfrentar o olhar de Eleonora. Precisava de mais alguns minutos para refazer e crer na veracidade de semelhante história.
- Por outras palavras - disse ele, tossindo no lenço - a senhora cede o jornal, renuncia à direção.
- Não só não cedo o jornal, como ainda por cima o reorganizo criando outros quadros. Contratei um novo diretor.
- A idéia é genial! - disse Leopoldo Stein. - É maravilhosa! E ele aceitou todas as condições?
- Não compreendo! - respondeu Nora secamente.
- O Sr. Traian Koruga, seu marido, aceitou essa solução? Para um homem, parece-me que deve ser uma coisa desagradável. Equivale a ser comprado por uma mulher para um destino evidente,
- Mas eu não comprei ninguém! - disse Nora West nervosamente. - Casei com ele por amor.
Leopoldo Stein levantou-se. Deu-lhe os parabéns. Nora, porém, não lhe estendeu a mão. Folheava as certidões de idade de seus pais. Brilhavam-lhe as lágrimas nos olhos.
- Os homens não têm o direito de receber parabéns senão à hora da morte! - disse ela. - Com um esforço de objetividade, o senhor me dará razão. Porém, uma vez mortos, os homens já não podem receber parabéns. É pena... Perdem a única ocasião de os merecer deveras.
O velho tornou a sentar-se na poltrona.
- Eu julgava que a senhora casara por amor! - disse ele.
- Não me julga amorosa? - perguntou ela. - Inteligente como é, não chegará a compreender?
- Então por que sofre a esse ponto? - perguntou ele. - Parece-me vê-la chorar.
- Tenho a impressão de que o Sr. Stein está muito fatigado - disse ela. - Não sei que tem. O senhor não compreende absolutamente nada. Ninguém diria que é judeu. Gosto de Traian Koruga. Foi mesmo o primeiro homem que amei. Há vários anos que o amo. Estou terrivelmente apaixonada por ele. Mas o amor, para mim, não basta para o casamento. Casei por causa das leis étnicas. Para salvar o jornal. Para salvar a minha vida. Compreende-me agora?
Leopoldo Stein não tinha cara de haver compreendido. Beijou a mão de Eleonora West e dirigiu-se para a porta. Nora chamou-o.
- No fim da semana vou para o campo, para casa de meus sogros. O pai de Traian é um padre ortodoxo. Fico lá alguns dias. Quando voltar quero ter papéis de doação de todos os meus bens móveis e imóveis, inclusive o jornal, em nome de Traian Koruga. Se o senhor acha uma dificuldade qualquer para a doação, faça uma escritura de venda. Enfim, procure a melhor solução e juridicamente a mais válida. A operação tem de ser feita rapidamente.
- A senhora é muito fina - disse o velho.
- Não sou inteligente - respondeu ela. - Sou uma mulher que luta com todas as suas forças, todos os seus instintos e toda a sua lucidez, para bem defender o seu direito à vida. Até à vista, Sr. Stein.
Depois de o velho sair, Eleonora instalou-se à secretária, de cabeça nas mãos, e chorou. Chorou como as mulheres sabem chorar. Não pelos olhos só, mas com todo o seu ser. Depois levantou o auscultador e ligou para Traian.
- Se queres ser amável, vem-me buscar à redação.
- Aconteceu alguma coisa?
- Não aconteceu nada; mas vem-me buscar. Juro-te que não houve nada. Absolutamente nada. Mas vem depressa.
Traian Koruga levantou-se para partir. Mas ao sair do escritório olhou de novo para a mulher do quadro de Picasso. Metade de um olho ria e a outra metade chorava. Por isso aquele olho fora cortado em dois, para que ela pudesse rir e chorar com ele ao mesmo tempo e com intensidade igual.
À espera de Traian Koruga, Eleonora West levantou o auscultador e ligou para Leopoldo Stein. Stein morava perto do jornal e já teria tido tempo de ter chegado a casa.
- Sr. Stein - disse ela; - diga-me com toda a franqueza: acha que casei por amor ou por interesse? Peço-lhe por tudo quanto há que me não poupe. Dê-me a sua sincera opinião.
- Que pensa disso a senhora?
- Não sei - respondeu ela. - Ainda que me cortassem a cabeça seria incapaz de responder de uma maneira precisa. Há momentos em que tenho a impressão de ter agido apenas por amor. Às vezes digo de mim para mim que casei pelas duas coisas. Mas nenhuma das explicações me parece válida afinal. Só de uma coisa estou certa: que não podia esperar mais e que isto se tinha de fazer. Mas também queria saber a verdadeira razão.
- Nem uma nem outra.
- Não me casei pois por interesse, como uma mulher...
- Não, Sra. Da. Eleonora. A senhora é muito altiva para casar com alguém por interesse, mesmo que a sua fortuna e o seu jornal corressem perigo.
- Tem a certeza?
- Tenho!
- Casei então por amor?
- Para amar verdadeiramente é preciso crer no futuro. É preciso crer na felicidade, e (o que é mais absurdo) é preciso sobretudo crer que a felicidade é eterna e que nos pode vir oferecida pelo ser bem-amado. A senhora é muito fina para acreditar em tal. E aqui está por que é (e desculpe-me que lho diga) que se não casou por amor.
- Então? - perguntou Nora.
- Nem por amor, nem por interesse - respondeu Leopoldo Stein. - Casou por medo. O seu gesto teve a espantosa rapidez do desespero.
- E o amor? Não contou para nada? - perguntou Eleonora West.
- Lá teve a sua parte. Mas o seu amor parece-se com o que deviam sentir as mulheres no tempo em que viviam nas florestas, ameaçadas a cada instante, dia e noite, de serem devoradas pelos animais ferozes. Só então as mulheres se agarravam desesperadamente aos joelhos dos homens, reclamando proteção, amor, vida, e desejando todas estas coisas com uma intensidade e uma paixão iguais. As mulheres não podem sentir tal amor senão em casos de tremor de terra, de dilúvio, de grandes cataclismos: todas as vezes que o mundo parece que está para afundar-se.
- Por que é que me não disse tudo isso quando estava diante de mim?
- Não queria fazê-la duvidar da sua força e do seu poder. Eu bem via que a senhora tremia de medo; bem via que atuava por medo. E tinha pena de si. Quando era garota sentei-a muita vez nos meus joelhos; não se esqueça disso.
Traian Koruga entrou no gabinete. Nora pousou o auscultador e foi ao seu encontro. Encostou-se muito a ele, a rir. Traian beijou-a.
- Estou contente de te ver bem disposta - disse ele. - Ao telefone parecia-me ouvir-te chorar.
A 28 de agosto, na véspera da sua partida para Fântâna, Traian foi ao Ministério da Guerra buscar a ordem de libertação de Moritz. Estava contente como se já tivesse o documento na mão. Subiu a escada a correr. O ajudante de campo, que conhecia as boas relações que o Ministro tinha com Traian Koruga, introduziu-o imediatamente. Traian Koruga entrou no gabinete do general. Tinha consigo um exemplar de luxo, ilustrado, do seu primeiro romance. Escrevera uma dedicatória amável. O general não veio ao seu encontro. Nem sequer se levantou como fizera na primeira entrevista. Fingia que estava a ler.
- Incomodo-o, Sr. Ministro?... - disse Traian.
- Não senhor, não me incomoda - respondeu o general friamente. - Sente-se, se faz favor. - O general não lhe estendeu a mão. Traian reparou nisso. - Lamento ter de lhe dar uma má nova. O indivíduo por quem o senhor interveio a semana passada, e por causa do qual cá vem provavelmente hoje, ainda não pode ser libertado. Pelo menos, não pode ser libertado agora. Temos primeiro que promover um inquérito e ver se a afirmação que o senhor fez sobre a origem étnica dele se justifica. - Traian Koruga quis abandonar a sala imediatamente. Mas lembrou-se de Moritz e não se mexeu. - Aqui está... Pois bem, Sr. Koruga; só lhe resta aguardar o resultado da comissão de inquérito.
Esta frase terminava a entrevista e o general convidava-o claramente a sair do gabinete. Traian tinha entendido, mas ainda desta vez não saiu. No dia seguinte devia partir para Fântâna. Seu pai esperava a ordem de libertação de Moritz.
- Sr. Ministro - disse Traian; - há precisamente uma semana que V. Exa. me prometeu entregar a tal ordem. V. Exa. disse-me textualmente que a minha simples afirmação representava para si uma garantia suficiente, e que não era necessário inquérito.
- É que há uma semana a situação era outra.
- Não vejo em que é que a situação tenha podido mudar - tornou Traian. - lohann Moritz está encerrado num campo de judeus, embora seja romeno.
- É o que a comissão de inquérito apurará.
- Mas os trabalhos da comissão podem ainda durar meses e meses - disse Traian. - O pobre homem está preso vai fazer em breve ano e meio.
- Bem sei - disse o general. - Os trabalhos da comissão podem durar ainda um ano. E mesmo dois. Hoje em dia não temos tempo a perder com inquéritos, como em tempo de paz. Atualmente estamos em guerra.
- Mas, meu general, a minha declaração não representa uma garantia suficiente para libertar lohann Moritz primeiro, e fazer-se o inquérito depois?
- Não! - disse o general.
- Lamento ver V. Exa. mudar de opinião de uma semana para a outra - disse Traian levantando-se.
- Eu lamento também, mas a culpa não é minha!
- É uma insinuação pessoal, Sr. Ministro?
- Não é uma insinuação. Refiro-me a fatos concretos.
- Desta vez é a mim que cabe pedir explicações a V. Exa. - disse Traian, muito pálido.
- Explicações, Sr. Koruga? Na hora em que todos os judeus do mundo lutam do lado dos bolchevistas contra o nosso país e querem escravizar a nossa pátria, o senhor, um romeno e um dos maiores escritores deste país, casa com uma judia! - O general estava rubro de cólera. - Como militar - continuou o general - considero o seu gesto como uma traição. Está-me a ouvir? Uma traição. Depois do que acaba de fazer, como me posso eu fiar na sua palavra? A sua intervenção faz-me inclusivamente crer que Moritz é judeu. E não ficaria surpreendido se visse a minha suspeita confirmada. Poderei ainda acreditar na sua palavra de honra?
- É claro que não - disse Traian. E partiu.
Ao descer a escada sentiu o livro debaixo do braço. Abriu-o, rasgou a página da dedicatória e trepou para o automóvel.
”Eleonora é judia!”, disse Traian de si para si. E nem me falou no caso!”
Sentia-se escarnecido, enganado no seu amor... À saída da cidade parou o automóvel. Abriu a portinhola e pôs-se a olhar para os campos. ”Nunca me disse nada. É verdade que eu, também, nunca lhe perguntei nada. Seria ridículo perguntar uma coisa daquelas. Não há nenhum homem que pergunte à mulher de quem goste a sua origem étnica.”
Traian lembrou-se de lhe ter falado muitas vezes da árvore genealógica dela, do seu parentesco com os cabritos, as algas, os esquilos e os voèvodes. E de todas as vezes Eleonora West ficara sisuda. Só agora Traian compreendia e se sentia culpado.
”Ela julgou talvez que eu me queria referir à sua origem judaica. Sofreu com certeza atrozmente!”
Fechou a portinhola e retomou a estrada da cidade. Pensava na mulher do quadro de Picasso. ”Agora lastimo não ter sabido isto mais cedo. Se tivesse sabido ter-lhe-ia poupado bastantes desgostos. Pobre Nora!
Traian parou o automóvel diante da primeira florista e comprou um ramo de rosas brancas para levar a Nora. A vendedeira embrulhou-lhe as rosas, sorrindo.
- Diz o que estás a escrever! - disse Nora.
Traian Koruga começara a trabalhar no seu novo romance. Eleonora sentia-o saltar da cama às quatro da manhã, enfiar o roupão e sair do quarto. E não saía do escritório antes do pequeno almoço, que tomavam juntos. Tinham decorrido dois meses depois do casamento. Havia flores na mesa, numa jarra.
- Não me queres contar? - disse Nora. Estava impaciente. Traian evitara sempre falar-lhe no romance. Mudava sempre de conversa. Mas agora não se podia negar.
- Já fiz um cruzeiro num submarino - disse ele. - Estive mil horas debaixo de água. Há nos submarinos um aparelho especial para indicar o instante preciso em que deve renovar-se o ar. Mas antigamente não havia aparelhos, e os marinheiros tinham coelhos brancos a bordo. Quando a atmosfera se tornava tóxica, os coelhos morriam e os marinheiros sabiam que não podiam viver mais do que cinco ou seis horas. Nessa altura, o comandante tinha que tomar uma decisão suprema: ou fazia um esforço desesperado para subir à superfície, ou não abandonava o fundo e morria com toda a tripulação. Em geral, para se não verem morrer, abatiam-se uns aos outros a tiros de revólver.
”No submarino em que me encontrava não havia coelhos brancos, mas aparelhos. O comandante reparou que eu acompanhava toda a diminuição da quantidade de oxigênio. Troçou da minha sensibilidade, mas, por fim, deixou de utilizar os aparelhos. Bastava olhar para mim. Eu indicava-lhe, com uma precisão invariavelmente confirmada pelos aparelhos, se havia ou não bastante ar. É um dom que nós temos (os coelhos brancos e eu) de sentir seis horas antes que o resto dos humanos o momento em que a atmosfera se torna irrespirável. Há um certo tempo para cá que experimento essa mesma sensação que tinha a bordo do submarino: a atmosfera tornou-se sufocante.
- Qual atmosfera? - perguntou Nora.
- A atmosfera em que vive a sociedade contemporânea. O ser humano já não a pode suportar. A burocracia, o exército, o governo, a organização do Estado, a administração, tudo contribui para sufocar o homem. A sociedade atual serve as máquinas e os escravos técnicos. Está criada para eles. Mas os homens estão condenados à asfixia. Eles não dão conta disso. Persistem em crer que tudo é normal, como outrora. Os homens do meu submarino resistiam também na atmosfera infectada. Depois da morte dos coelhinhos ainda viviam seis horas. Mas, cá por mim, sei que tudo acabou.
- É esse o assunto do teu romance?
- No meu romance descrevo a maneira como morrem, em espantosos tormentos, asfixiados por uma atmosfera que não consente a existência, os homens desta terra. E uma vez que não pude tomar toda a humanidade- como exemplo, tomei apenas dez seres que conheço melhor.
- E todas as tuas personagens morrem?
- Após a morte dos coelhos brancos, os homens não podem viver mais de seis horas, o máximo. O meu romance descreve as últimas seis horas de vida dos meus melhores amigos.
- E que escreveste tu até agora?
- O primeiro capítulo - disse Traian. - Uma das personagens foi arrancada de entre nós e...
- O que é que lhe acontece?
- Por enquanto tiraram-lhe a liberdade, a mulher, os filhos, a casa... Passou fome; bateram-lhe. Começaram-lhe já a arrancar todos os dentes. Mais tarde hão de lhe arrancar os olhos e a carne colada aos ossos. E hão de lhos quebrar. Os últimos tormentos ser-lhe-ão provavelmente aplicados de uma maneira automática e elétrica.
- Tudo isso se passou, na verdade? - perguntou Nora.
- É tudo verdade - disse Traian. - No meu romance escrevi o nome da rua, da cidade e do país em que habitam as minhas personagens. Divulguei, inclusivamente, os seus números de telefone. Aliás tu própria conheces a minha primeira personagem. Podes verificar a autenticidade dos fatos relatados.
- Quem é a tua primeira personagem?
- lohann Moritz.
O rosto de Nora ensombrou-se. Tudo o que Traian acabava de contar sobre lohann Moritz era verdade.
- Tenho uma pena negra dele! - disse ela. - é ele então o herói do teu primeiro capítulo. E quem será o herói do segundo?
- Não sei nada por enquanto - disse Traian. - Talvez meu pai e minha mãe. Talvez eu, talvez tu. De qualquer maneira, será um de entre nós.
- E todos os capítulos se parecerão com o de lohann Moritz? - perguntou Nora. - Não há no teu romance um único destino bonito, um só happy-end?
- Não; nem um único - respondeu Traian. - Depois da morte dos coelhos brancos já não há happy-end possível. Há apenas algumas horas, antes que tudo acabe.
lohann Moritz estava na Hungria há mais de duas horas e os três judeus tinham esperado primeiro em frente da gare. Tiveram medo de entrar na sala de espera. Depois chegou o comboio.
O Dr. Abramovici, Strul e Hurtig subiram para um vagão de segunda classe. lohann Moritz ficou no cais e passou-lhes as malas de mão pela portinhola. No último minuto saltou para o estribo. Hurtig segurou-o pelo braço, puxou-o para dentro e fechou a portinhola. Moritz estava pálido. Tinha medo de pensar que podia ter ficado sozinho na gare. O que lhe teria acontecido na Hungria, sem o Dr. Abramovici e os outros? Agradeceu a Deus o ter saltado a tempo.
O Dr. Abramovici e Hurtig encontraram logo lugares. Strul e lohann Moritz olharam para dentro de todos os compartimentos. As luzes estavam apagadas e todos os passageiros dormiam; não havia lugar vago. Poupo depois uma mulher desceu e Strul sentou-se no lugar dela, num compartimento. Moritz ficou sozinho no corredor. O Dr. Abramovici abriu a porta do compartimento e disse-lhe:
- Não adormeças; podem roubar as malas.
- Não adormeço - respondeu Moritz. Mas assim que o doutor fechou a porta do compartimento adormeceu. Estava a cair de sono. Fechou os olhos e não tornou a abrir senão em Budapeste.
Quando desceu do comboio já era dia. Moritz tinha sede, mas Hurtig não lhe deu licença para entrar num restaurante e beber uma limonada. A polícia podia encontrá-lo, descobrir que tinha fugido da Romênia e prendê-los a todos quatro.
- Minha irmã dá-te um copo de água grande - disse o Dr. Abramovici.
E foram-se dali. Na gare tiveram que esperar um bocado diante da fila de automóveis e de carros.
- É mais prudente ir a pé - disse Hurtig; - o cocheiro podia denunciar-nos. Era uma estupidez deixar-mo-nos prender, agora que estamos em Budapeste!
E partiram a pé. Mor|itz levou as maletas aos ombros e na mão. Pesavam muito. Mas mesmo assim tinha agora menos dificuldade em levá-las do que na noite anterior, quando tinham passado a fronteira.
- Talvez que estas malas me pareçam menos pesadas agora porque vou sobre o asfalto - pensou ele, apoiando com muita força a planta dos pés descalços no asfalto frio. Os elétricos ainda não circulavam. Era muito cedo. Moritz viu as luzes elétricas apagarem-se e perguntou a Hurtig quem as apagava.
- Não fales romeno, pedaço de asno! - disse Hurtig danado. - Se nos ouvem falar romeno arriscamo-nos todos a ir parar à cadeia.
- Então não se pode falar romeno?
- Não é proibido - disse Hurtig. - Mas, aqui, todos os romenos são mandados para campos de concentração. A Hungria é inimiga da Romênia. Percebes?
- Então como é que havemos de falar?
- lídiche - respondeu Abramovici. - Na Hungria os judeus não são perseguidos como na Romênia. Até agora, pelo menos, não há leis anti-semitas.
lohann Moritz não tornou a dizer mais palavra em romeno. Mas também não falou iídiche. Estava cansado. Quando chegaram à casa da irmã do doutor, na Rua Petofi, Moritz vinha a cair de cansaço com o peso das malas. Pousou-as diante do portão. A criada veio ajudá-lo a levá-las. Moritz acompanhou-a à cozinha. Tinha um vestido azul. Moritz tinha a impressão de ter visto já algures aquele vestido. Depois lembrou-se que Susana tinha um parecido.
A irmã do Dr. Abramovici era gorda. Usava um roupão de ramagens vermelhas. Falava depressa e muito. Mandou chamar Moritz ao quarto onde estava o doutor, Hurtig, Strul e Isaac Nagy, o cunhado de Abramovici, e deu aguardente a todos. Moritz ficou de pé. Não havia cadeiras para todos. A irmão do doutor trouxe um bule e pô-lo no meio da mesa. Olhou para Moritz e disse-lhe:
- Não tens aqui lugar. Vai beber o teu chá na cozinha.
- Com efeito, é melhor assim - disse Nagy em húngaro; - temos muito que falar de coisas sérias.
Moritz percebeu que aqueles senhores não gostavam de se sentar à mesa com ele. Mas não se escandalizou, Julisca estava bem contente de o ver na cozinha. Deu-lhe três xícaras de chá com limão e muito açúcar. Depois cortou-lhe três grossas fatias de pão com presunto e manteiga. Moritz comeu depressa. Tinha uma fome de cão. Quis se lavar em seguida, mas Julisca disse:
- Vamos primeiro ao mercado! Depois te lavas, quando voltarmos.
lohann Moritz pegou no cesto e foi com Julisca às compras. A partir desse dia, todas as manhãs a acompanhava ao mercado.
Quando voltaram do mercado, Moritz rachou lenha e levou-a para a cozinha. Depois do almoço, ajudou Julisca a lavar a loiça. Julisca tinha um feitio alegre e brincava por tudo e por nada. lohann Moritz gostava de estar naquela casa.
Entregue ao trabalho da cozinha e às brincadeiras de Julisca, Moritz não deu conta de que o dia passara sem que ele tivesse tornado a ver o Dr. Abramovici e os outros. A irmã do Dr. Abramovici disse-lhe que estavam a dormir. Então ocupou-se das suas coisas e não pensou mais neles. À noite, ao deitar-se, Moritz pensou que não lhes falara em todo o dia. Mas tinham comido todos em casa. Moritz tinha a certeza disso; lavara os pratos do almoço. E às cinco horas ainda estavam todos. Moritz bem o sabia, pelas cinco xícaras que lavara. Mas não se lembrava dos pratos do jantar. Julisca trouxera uma pilha de pratos e lohann Moritz não os contara antes de os lavar. E não podia adormecer, de atormentado que estava. Tinha a impressão de que havia menos pratos depois do jantar.
”Talvez Hurtig tenha ido para casa dos pais”, disse de si para si. Tinha pena que Hurtig se tivesse ido embora sem se despedir dele. No fim de contas talvez tivessem jantado em casa, e Moritz imaginasse que havia menos pratos. Mas, na manhã seguinte, Moritz verificou que acertara. Hurtig partira na véspera. Nessa noite já não jantara em casa de Isaac Nagy. O Dr. Abramovici e Strul ainda estavam. Pelas dez horas Julisca trouxe os sapatos deles e engraxaram-nos com todo o cuidado. Depois Moritz quis levá-los para dentro. Mas Julisca fê-lo parar à porta. Pegou nos sapatos e levou-os ela. Quando voltou, disse a Moritz:
- A senhora proibiu-me de te deixar entrar. Ela é assim, que se há de fazer? Tem medo que a roubem.
À tarde o Dr. Abramovici chamou Moritz à casa de jantar.
- Leva estas malas e vem comigo - ordenou ele. Moritz ficou contente. Já sabia que se o doutor o chamava é porque se não esquecera dele.
- Por que é que vais descalço? - perguntou o doutor, zangado, quando vieram para a rua. Moritz teve vergonha. Mas não tinha sapatos. Olhou à sua volta e não viu ninguém descalço. Fez o resto do percurso de cabeça baixa. Olhava com atenção para os pés das pessoas que passavam ao pé dele. Todos estavam calçados, todos usavam sapatos ou botas. Moritz sentia-se envergonhado. Queria que a terra se abrisse para o engolir. Procurou pedir desculpa ao doutor, mas o doutor caminhou diante dele, com as mãos nas algibeiras como se o não conhecesse.
Pararam diante da porta duma casa velha, com um jardinzito florido em fruto. O doutor pegou nas malas e entrou sozinho. Moritz ficou à porta e leu a placa fixada na parede. Estava lá escrito: CONSULADO. Pôs-se então a olhar para as pessoas que passavam na rua.
O Dr. Abramovici não demorou muito. Voltou sem as malas. Descia os degraus e sorria. Mas quando viu Moritz, que o esperava encostado à parede, o sorriso morreu-lhe nos lábios. Parou de repente, meteu as mãos nas algibeiras e pareceu refletir por uns momentos, franzindo a testa. À volta, o doutor não disse uma palavra. lohann Moritz vinha atrás dele a uma grande distância, para que as pessoas não pudessem pensar que o Sr. Doutor vinha acompanhado por um homem de pé descalço.
Moritz por nada deste mundo queria ser o causador de semelhante vexame para o Dr. Abramovici.
Diante da porta de Isaac Nagy o doutor parou. Esperou que Moritz se aproximasse dele e disse-lhe:
- lankel, o teu caso é muito complicado. A comunidade hebraica de Budapeste, que trata dos papéis de ida para a América, não pode tratar dos teus. Já lhes disse que vieste conosco; supliquei-lhes, até, que te ajudassem; mas não consegui nada. Responderam-me que não se podiam ocupar de cristão. Por isso é que aquilo se chama ”Comitê Israelita”. E tu não és judeu. Não é verdade?
- Não sou, não, Sr. Doutor.
- Eles têm razão - continou o doutor. - Mas tenho pena. Gostava de te levar comigo para a América. Mas não sou homem para te abandonar.
O Dr. Samuel Abramovici abriu a carteira e pôs-se a contar as notas. lohann Moritz olhava para as notas húngaras. Admirava-se que fossem tão pequenas.
- Aqui tens vinte pengois - disse o Dr. Abramovici - para recompensar o teu trabalho. É muito dinheiro. Aqui na Hungria tem de se trabalhar uma semana inteira para se ganhar vinte pengois. Tu ganhaste-os só por transportar as malas durante umas horas.
lohann Moritz nunca pensou em pedir dinheiro pelo transporte das malas. Não o fizera por dinheiro. Mas o doutor continuou com a mão estendida. Moritz pegou nas notas e meteu-as na algibeira.
- O mais importante foi fazer-te sair do campo de concentração e ter-te trazido para aqui - continuou o Dr. Abramovici. - Se não te tivéssemos ajudado a fugir, a estas horas ainda estavas a apodrecer por lá. Não sou homem para pedir seja o que for pelos serviços prestados a outros.
lohann Moritz estava há uma semana na Hungria. E fazia hoje ainda o mesmo que no primeiro dia. À noite arrumava a cozinha e esfregava os sobrados das escadas.
Um domingo de manhã, Isaac Nagy encontrou lohann Moritz no corredor e disse-lhe com voz áspera:
- Ainda não procuraste trabalho? Há mais de uma semana que estás aqui em casa. Não penses que te vou fazer esta esmola toda a vida. - E Isaac Nagy foi-se, sem mais uma palavra, lohann Moritz tinha pena de não ter procurado trabalho. Não tinha pensado nisso! Julgava-se contratado como criado em casa de Isaac Nagy.
”Por que fui tão parvo que não procurei trabalho”, perguntava a si próprio. ”Esta gente tem razão: não me pode sustentar toda a vida.
Nessa noite lohann Moritz falou a Julisca, que lhe prometeu arranjar qualquer coisa. Conhecia uma pessoa que trabalhava numa fábrica de chocolates.
- Talvez que me tragas chocolates depois - disse ela. - A não ser que os dês a outra...
- Como é que eu os podia dar a outra? - disse Moritz, pesaroso por Julisca ter pensado tal coisa. - Hei de trazer-te todos os chocolates que me derem; não provo nenhum.
Naquela noite lohann Moritz teve um sonho. Sonhou que já estava a trabalhar na fábrica de chocolates. Na manhã seguinte o Dr. Abramovici disse adeus a sua irmã e a seu cunhado e partiu.
Moritz levou as malas à estação e pô-las na carruagem-cama.
- Vai para muito longe? - perguntou ele.
- Vou para a Suíça - disse o doutor. - Vou descansar umas semanas antes da minha ida para os Estados Unidos.
À partida, o Dr. Abramovici estendeu-lhe a mão. lohann Moritz fêz-se vermelho. Na gare todos aqueles senhores tinham visto o Dr. Abramovici apertar-lhe a mão, a ele, um homem que nem tinha sapato nos pés. Quando o comboio se pôs em marcha, Abramovici gritou-lhe da janela:
- Adeus, lankel! Não me esqueço de ti. Havemos de ver o que se pode fazer por ti.
- Adeus! - disse Moritz.
Quando o comboio desapareceu, lohann Moritz chorou. Sentia-se só e abandonado no mundo. Hurtig e Strul tinham abalado sem se despedirem dele. E agora o doutor também se fora. Moritz ainda ficou na gare por muito tempo. Nunca se sentira tão só. Depois lembrou-se da fábrica de chocolates. E o desgosto começou a desvanecer-se. Foi para casa. Quando subia a Rua Petofi, pensava:
”Com o primeiro dinheiro que ganhar na fábrica hei de comprar à Julisca um colar de contas de vidro.”
lohann Moritz e Julisca foram ao mercado mais cedo que de costume. Compraram apressadamente a carne, a hortaliça e tudo quanto era preciso; depois meteram por uma rua de casas baixas.
Moritz trazia o cesto na mão direita e enfiava o braço esquerdo no braço de Julisca. Iam depressa.
- A fábrica de chocolates fica na outra ponta da cidade - disse Julisca; - é preciso despacharmo-nos.
Suavam os dois. Mas se se demorassem, Julisca não teria tempo para fazer o almoço. Falara com um rapaz da sua terra que trabalhava na fábrica. O rapaz dissera-lhe que levasse Moritz uma manhã, para falar com o patrão.
- Se ele vier já, contratam-no com certeza porque há muita falta de operários.
- Talvez eles me aceitem já! - disse lohann Moritz, abrindo caminho por entre um magote de gente junto da encruzilhada. - Se eles me aceitarem já, tenho a minna primeira soldada segunda-feira que vem. E talvez também chocolates para ti. - Apertou-lhe o braço com força. Olharam um para o outro e desataram a rir. - Depois procuro quarto - continuou. - Não posso ficar toda a vida às costas dos teus patrões. Hei de procurar um quarto ao pé da fábrica.
- E eu posso ir visitar-te? - perguntou Julisca.
Mas ele não a ouvia. Os seus olhos fixavam agora na multidão. Por que havia tanta gente, centenas de pessoas que se atropelavam? Julisca parou e procurou perceber também o que se passava. De repente lembrou-se que não se podia arredar mais.
- Vamos por outra rua - disse ela. - Senão, já não tenho tempo de fazer o almoço.
Voltaram para trás, e quase que corriam para reaver o tempo perdido. Mas a entrada da rua estava fechada por um cordão de polícia. Julisca olhava de revés para os polícias e apressou o passo.
- Os polícias e os soldados são os homens mais ordinários do mundo! Nunca me caso com um polícia.
Julisca voltou-se, para ver se Moritz tinha ouvido. Mas Moritz já não ia atrás dela. Julisca procurava-o com os olhos no meio da multidão. Lá estava ele ao pé dos polícias. Acenou-lhe com a mão. Julisca atravessou para o sítio onde ele estava. Compreendia agora o que se estava passando. Estavam metidos numa rusga. Os polícias tinham feito uma barreira e examinavam os papéis de todos antes de os deixarem seguir. Julisca lembrou-se que Moritz não tinha consigo documento nenhum, e teve medo. Atravessou o cordão dos polícias. Um deles quis-lhe beliscar um braço, mas Julisca furtou-se e aproximou-se mais de lohann Moritz que estava agora num grupo que um polícia de baioneta calada levava para um caminhão. Moritz levantava o cesto das compras ao ar, para que ela o pudesse ver e viesse buscá-lo. Julisca via muito bem o cesto mas não podia aproximar-se. Os polícias não a deixavam ir mais longe, apesar de ela lhes explicar que queria ir buscar o cesto das compras. Mas não a ouviam, ou então não a entendiam. Ela praguejou, zangou-se, mas de nada serviu.
lohann Moritz subira para o caminhão e deixou o cesto pendurado do lado de fora do caminhão na esperança de que Julisca o viesse buscar.
O caminhão pôs-se em marcha. Colocou então o cesto entre as pernas. ”A Sra. Nagy vai-lhe bater, se ela não leva o cesto das compras para casa.” Estava capaz de saltar do caminhão para lho levar. Mas já era tarde. Dois polícias de baioneta calada estavam ali postados, cada um numa ponta do banco. Quando olhou para eles, lohann Moritz esqueceu-se do cesto das compras e percebeu que estava preso.
Tinham passado já quatro semanas daquele dia. Moritz não sabia do que tivesse acontecido fora das grades da cela. Nem tornara a ver o sol! A janela da cela deitava para um pátio interior e os muros cinzentos e altos escondiam todo e qualquer horizonte ou pedaço de céu. Havia quatro semanas que não respirava ar puro. Os outros presos saíam uma hora por dia ao pátio. Ouvia-os entrar e sair das celas. Moritz sabia que iam apanhar. Pressentia-o pelos passos.
O corredor estava agora em sossego. Não amanhecera ainda. Moritz abriu os olhos. Custou-lhe a abrir as pálpebras. Passou a mão pelos olhos; tocou nas pálpebras. Estavam inchadas. O sangue coagulara. Como o teriam trazido para a cela? Já não se lembrava. ”Talvez me tenham trazido em braços.” Muitas vezes nem via onde punha os pés quando o traziam para a cela. Outras vezes não se podia mexer durante muitas horas. Traziam-no em braços. Lembrava-se sempre do instante em que o acabavam de espancar: em que os guardas o traziam para a cela e o estendiam na enxerga. Mas desta vez não se lembrava de nada. Absolutamente de nada. Acontecia-lhe isto pela primeira vez. ”Devem-me ter chegado a valer”, pensou consigo. Falava de si como de um estranho. Levou a mão à cara. Tinha a barba espessa e rija; o bigode, os cabelos e as sobrancelhas colados com sangue. O sangue coalhado desfazia-se-lhe debaixo dos dedos, rugosos que nem terra seca. lohann Moritz passou a língua pelos beiços. Estavam inchados e doíam-lhe com abscessos prestes a rebentar. Os dentes também lhe doíam. Até à data já tinha perdido quatro. Um dia escarrara-os com sangue, como se fossem caroços, depois de ter apanhado alguns socos nos queixos. Naquele dia também lhe doíam os queixos. ”Fizeram-me outra vez saltar os dentes, pensou; não posso comer pão, com certeza.” Mas não se deu ao cuidado de mexer a ponta da língua, a ver se faltava mais. O mais pequeno movimento o fazia sofrer. Tornou a fechar os olhos. O tempo passava. Ouviu passos no corredor, passos que se aproximavam, mas não apurou o ouvido como costumava fazer para saber de quem eram, donde vinham, para onde iam. Tinha o corpo todo pisado e os pensamentos tolhidos. Quando o vieram buscar para o interrogatório e se pôs de pé Moritz teve vontade de gritar. As plantas dos pés estavam inchadas como se fossem pão quente. Não se lembrava, porém, de lhe terem batido nas plantas dos pés. O guarida empurrou-o brutalmente. Moritz passou as ombreiras da cela. Doíam-lhe muito as costas, muito, justamente no sítio onde o guarda lhe batia agora. Depois a dor passou e os pés voltaram a doer-lhe. Cada passo que dava era como se alguém lhe fosse arrancando um bocado de carne.
Estava a cem passos do gabinete do Inspetor Varga, que orientava o inquérito. Tinha que andar mais uns cem passos ainda. E só de pensar nisso sentiu que todas as forças lhe faltavam e deixou-se cair no chão. O guarda passou-lhe o braço por debaixo dos sovacos e ergueu-o. Os ossos e a pele, era tudo quanto ainda pesava alguma coisa. Quanto à carne e gordura, nem falar nisso era bom. lohann Moritz não pesava mais que uma criança.
Ao levarem-no preso, lohanu Moritz prestara declarações. Contara exatamente como viera para a Hungria. Os polícias não acreditaram. E tinham-lhe batido, para que lhes dissesse a verdade. Mas depois de torturado, Moritz repetira a sua história exatamente da mesma maneira. E bateram-lhe outra vez.
Agora estava na prisão do Serviço Secreto húngaro. E todos os dias era interrogado, e depois espancado.
- Por que é que tu fôste mandado para a Hungria? - perguntava o inspetor.
- Ninguém me mandou para a Hungria - respondia Moritz.
- Mas tu declaraste que tinhas sido conduzido até à fronteira por um sargento num caminhão militar.
- E é verdade. O sargento chamava-se Apóstol Constantin. Era o comandante do campo - respondeu Moritz - um amigo do Dr. Abramovici. Acompanhou-nos, para as patrulhas não nos prenderem.
- Era o comandante lon Tanase, dos serviços de espionagem romeno - disse o inspetor. - Sabemos que ele trabalha nesse setor. Manda-nos agentes todos os meses. Foi ele que te mandou. Mas nós queremos saber para que é que ele te quis mandar. Qual é a tua missão? - Moritz baixou os olhos. - Eu, cá, disse a verdade! - respondeu Moritz.
Sabia muito bem que, dentro de alguns momentos, o mandariam para a câmara de tortura, na cave. A carne já lhe começava a doer.
- Tu não vês que toda essa comédia não serve de nada? - disse o inspetor. - É uma estupidez resistir mais tempo. Declaraste que tinhas estado prisioneiro num campo de judeus na Romênia, durante dezoito meses.
- E estive - disse Moritz.
- Nunca lá puseste os pés. Tu és romeno.
- Sou romeno - disse Moritz.
- Na Hungria quiseste-te fazer passar por judeu - disse o inspetor. - E para nos obrigares a acreditar-te, declaraste terem-te mandado para a Romênia para um campo de concentração de judeus. Depois, ainda declaraste que tinhas passado a fronteira com três judeus.
- E isso também é verdade - disse Moritz.
- Não é verdade, não. Vieste sozinho. E não estiveste em casa de Isaac Nagy. Ninguém habitou em casa de Nagy há mais de seis meses. Imaginavas que te acreditávamos só pela tua palavra e que não íamos inquirir. Nesta pasta tenho as declarações escritas da Sra. e do Sr. Nagy. Nunca ouviram falar de ti. A Sra. Da. Rosa Nagy não tem nenhum irmão doutor.
- Eles disseram que não me conheciam? - perguntou Moritz. - A senhora não pode dizer uma coisa dessas. Trabalhei em casa dela, fazia as compras com Julisca, lavava a loiça...
lohann Moritz pôs-se a chorar. O inspetor gritou:
- E isso também é mentira. A Sra. Nagy não tem criada nenhuma chamada Julisca. Se querias mentir precisavas ao menos ter sabido o nome da criada! - O inspetor ria. - Interroguei também a criada da Sra. Nagy. Está a servir na casa há mais de oito anos. Julisca, fôste tu que a inventaste. Pensavas que nos enganavas, hem? Foi o comandante Tanase que te meteu em cabeça a história de Julisca, para que no-la viesses contar?
lohann Moritz fechou os olhos. Esperava que mandassem chamar o guarda. Esperava que o levassem para a câmara da cave. Não queria pensar em nada. Estava porém torturado pela idéia de que a Sra. Nagy tivesse podido declarar que o não conhecia. Não podia crer tal coisa.
lohann Moijitz ouviu abrir-se a porta. Depois passos que se aproximavam. Não eram os passos da sentinela que o havia de levar à câmara da cave. Abriu os olhos. Isaac Nagy estava na sua frente. Trajava um fato novo, acastanhado, e nem sequer para ele olhava.
- Conhece este indivíduo? - perguntou o inspetor.
- Estou a vê-lo aqui pela primeira vez - respondeu Isaac Nagy, fixando Moritz.
- Três judeus refugiados na Romênia estiveram na vossa casa? - perguntou o inspetor.
- A não ser minha mulher, eu próprio e a minha criada, ninguém mais viveu em nossa casa há muitos anos.
- Muito obrigado! - disse o inspetor.
Isaac Nagy saiu do gabinete. Sua mulher entrou no gabinete, a seguir. E declarou também que não conhecia Moritz e que nunca o vira até então.
- A Senhora tem um irmão médico na Romênia? - perguntou o inspetor.
- Sou filha única - declarou Rosa Nagy.
O inspetor deitou um olhar severo a lohann Moritz e perguntou a Rosa Nagy:
- Teve alguma vez ao seu serviço uma mulher chamada Julisca?
- Nunca! - respondeu ela. - Há mais de oito anos que vivo em Budapeste e não tive senão uma criada, chamada Josefina.
A Sra. Nagy saiu do gabinete a sorrir. Depois entrou uma velhota que disse chamar-se Josefina e estar ao serviço dos Nagy há mais de oito anos, sem interrupção. O inspetor estava outra vez sozinho com lohann Moritz.
- Agora, pelo menos, reconheces que mentiste? - perguntou ele. - Diz a verdade! Por que é que eles te mandaram à Hungria?
lohann Moritz começou a chorar...
Do gabinete do Inspetor Varga, lohann Moritz foi levado diretamente à câmara de tortura, como de costume. Mas nunca tivera tanto medo como hoje. Quando entrou na câmara da cave, a luz feriu-lhe a vista. Na câmara havia sempre uma luz branca como gêsso.
As lâmpadas eram grandes e fortíssimas.
lohann Moritz fechou os olhos. Mas a luz queimava-lhe as fontes como lume.
- Despe-te! - mandou o guarda, a rir. Era um dos dois homens gordos, de bigodes, que ele encontrava sempre a jogar às cartas. Moritz abriu o colarinho da camisa. Se não se despisse rapidamente, um dos guardas viria enchê-lo de chibatadas na cara. Ele bem o sabia. Mas tinha os dedos inchados e não conseguia desabotoar os minúsculos botões da camisa.
Moritz tinha um medo terrível de fazer esperar os dois homens. Nunca temera tanto a chibata. Olhou para os dois homens, que continuavam a jogar às cartas. Estavam de tal maneira embebidos no jogo que nem reparavam na lentidão dos seus gestos. Moritz conseguiu por fim tirar a camisa. Não tinha que tirar as calças. Tinha que ficar de pé. Na frente estava uma prateleira com varetas de ferro alinhadas, como as que se usam nos regimentos para limpar os canos das espingardas. Estavam alinhadas segundo as espessuras. Do lado esquerdo da prateleira, as da grossura de um polegar. Seguiam-se as outras de espessura mais fina, sempre mais fina. Havia vinte varetas de espessuras diferentes, duas a duas. Moritz contava-as hoje pela primeira vez. A mais fina de todas estava na ponta da prateleira, à direita. Fina como uma palha. Moritz sabia exatamente o grau de sofrimento que cada varetinha daquelas deixava na pele.
- Vamos a isto, rapaz! - ordenou um dos guardas, pondo-se de pé. Em cima da mesa as cartas estavam espalhadas.
- Quem não trabalha, não come - disse ele.
Moritz viu-o espreguiçar-se. Vestia uma camisola de malha azul que moldava um busto entroncado. Parecia estar com sono. O outro guarda apagou o cigarro e deitou um olhar a Moritz.
- E então? Ainda não será hoje que nos dizes por que é que eles te mandaram para cá?
A voz do guarda era tão pausada como se estivesse a pedir lume para acender um cigarro.
Depois de ter falado espreguiçou-se e abriu a boca, exatamente como o primeiro.
- Pois se lhes digo que ninguém me mandou para aqui!
Os dois guardas voltaram a cabeça com vivacidade. Estremeceram, como queimados con um ferro em brasa. Os olhos brilharam-lhes de cólera. lohann Moritz tremia como varas verdes. Um dos guardas dirigiu-se para ele e deu-lhe um soco em cheio, na cara, por baixo do queixo. Deu um. Deu dois. Moritz já não sentia o queixo.
O segundo agarrou-o e estendeu-o no banco ao pé da prateleira. Escanchou-se-lhe depois nas costas. Sempre que o guarda, todos os dias, montava daquela maneira em cima dele, Moritz pensava que ia morrer asfixiado. Mas hoje, Moritz queria morrer mesmo. Sentia o vazio do peito esmagar-se contra o banco. E, com os pulmões (comprimidos pelo peso do guarda como por mós de moinho, nem podia respirar.
- O que é que tu dizes? - perguntou-lhe o guarda que o tinha socado na cara. Moritz nem respondeu, mas sentiu a primeira varetada na sola dos pés. Apertou convulsivamente as pernas. O guarda que estava em cima dele segurou-as com ambas as mãos e colou-as ao banco. E a segunda varetada seguiu-se. Devia ser provavelmente uma vareta das mais grossas. As plantas dos pés não lhe doíam. Só o cérebro sofria. Quando as varetadas começavam a chover, também ele já não as sentia. Tinha o corpo têso. Mas isto não durou muito. Agora parecia-lhe que lhe davam facadas nas plantas dos pés, de tal maneira lhe ardiam. Deviam ser varetas finas. As pancadas repercutiam-se pelos joelhos e atingiam-no nos rins. Deixou de segurar a bexiga e o ventre. A comida começou a sair pela boca. As calças, urinadas, tinham-se colado à pele. A água e o pão que engolira recusavam-se ao estômago.
lohann Moritz sentia-se tragado por aquela luz amarela que o rodeava. A boca, cheia de suco amargo e esverdeado. Os líquidos saíam-lhe do corpo pelo nariz, pela boca, por todos os orifícios, misturados com uma espuma verde como baba de sapo. lohann Moritz sentia a vida fugir-lhe pelo corpo todo. Só o espírito estava ainda acordado. O guarda batia-lhe agora com as varetas mais finas, mas Moritz já não sentia nada. O sangue, que também não podia suportar os golpes, procurava evadir-se do envelope de carne torturada, rasgada. Rebentava por todas as partes que encontrava abertas. O sangue fugia do corpo de lohann Moritz, pelo nariz, pelos ouvidos, e misturava-se à urina. O sangue abandonava-o, mesmo pelos poros: não queria saber mais daquele corpo desmembrado e desfeito pelo sofrimento; tinha que fugir, por qualquer preço. De todas as partes do corpo.
Quando voltou a si, lohann Moritz lembrou-se da acareação da véspera, com Isaac e Rosa Nagy. - ”Se eles tivessem dito a verdade, o inspetor tinha-me soltado, e eu não seria torturado ontem.”
Nunca lhe tinham batido tanto como na véspera. Tinha o corpo numa chaga. Dos pés à cabeça, uma grande chaga sangrenta. - ”Isaac Nagy disse que não me conhecia, e a mulher também.” - Moritz via-se a engraxar todas as manhãs os sapatos de Isaac Nagy, rachando lenha - por ordem de Rosa Nagy -, esfregando o sobrado da cozinha. - ”Como puderam eles dizer uma coisa destas? Afirmaram, até, que nunca viram Julisca; que nunca tinham tido uma criada com esse nome!”
lohann Moritz estava sem forças. Ele bem sabia que o corpo e o espírito estavam fracos, muito fracos, e que ontem e anteontem o tinham trazido para a cela, sem se lembrar como e quando. Devia ser das pancadas. Mas tinha a certeza de ter estado em casa de Isaac Nagy. Tinha a certeza de que a criada deles se chamava Julisca. Mas Isaac Nagy tinha dito: Não. A mulher tinha dito: Não. Morátz ouvira com os seus ouvidos dizer: Não. lohann Moritz fechou os olhos.
Algum tempo depois vieram buscá-lo de novo. Moritz começou a tremer. Estava, pela primeira vez, decidido a matar-se. Não podia suportar mais tamanho sofrimento. O guarda deixou a porta aberta e parou à entrada. Através das pestanas, Moritz viu-o a rir.
- Vamos, levanta-te! - disse o guarda.
Moritz tornou a ver em pensamento o Inspetor Varga. Ouviu a voz. Depois viu a câmara de tortura, as varetas de todos os tamanhos, sentiu o peso do guarda a carregar-lhe nas costas. E a boca suplicou:
- Não... hoje não. Amanhã. E depois de amanhã e todos os dias da minha vida. Todos os dias. E o interrogatório e a tortura. Mas hoje não.
- Hoje vamos pôr-te em liberdade - disse o guarda.
lohann Moritz não queria acreditar. Não conseguia acreditar. Mas soltaram-no naquele dia. Não o deixaram, porém, em liberdade. Era cidadão romeno. Foi mandado para um campo de trabalho.
Antes de sair da prisão, lohann Moritz recebeu uma carta de Julisca. Foi o guarda do gabinete do Inspetor Varga que lha trouxe. Entrou na cela no momento em que Moritz ia sair. Moritz abriu-a e reconheceu a letra de Julisca.
”Querido lanos: Há quatro dias que deixei de estar em casa do Sr. Nagy. E escrevo-te para que fiques sabendo e que não me venhas procurar à Rua Petofi quando te soltarem. Vou para a província, para casa de minha mãe, no concelho de Balatan, no distrito de Tisa, onde te espero cheia de amor. Podes ir para lá assim que saíres da prisão. - Julisca.”
E embaixo, no canto direito: ’’Fui ontem buscar as minhas coisas à casa do Sr. Nagy e a sua senhora pediu-me para te dizer que não ficasses zangado com eles por terem dito à polícia que não te conheciam. Na cidade, prenderam muitos judeus. E eles tiveram medo de dizer que tinham recebido estrangeiros em casa. Mandam-te cumprimentos. O Sr. Isaac deume um fato quase novo para ti. Fica guardado à tua espera para quando fores ter comigo a casa. Ele é boa pessoa e a senhora também. Tiveram medo de serem presos e foi por isso que disseram que não te conheciam.
”Os tempos vão maus. O medo fazia-nos matar pai e mãe. Beija-te - Julisca.”
Os membros do governo húngaro estavam reunidos há mais de três horas em conselho secreto no Palácio da Regência.
A conferência acabara. No entanto, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, de pé, tomou de novo a palavra:
- O problema dos cinqüenta mil operários ainda não está resolvido - disse ele. - E é o mais importante.
- A questão foi tratada - disse o chefe do governo. A sua voz era dura. - A decisão acaba de ser tomada por unanimidade. - Os ministros estavam prestes a partir, com as pastas na mão. O Ministro dos Negócios Estrangeiros fingia não dar por isso. Continuou:
- É preciso encontrar alguma coisa que dar - disse. - O equilíbrio das nossas relações com o III Reich tem que manter-se. Não são relações em pé de igualdade, e temos que reconhecê-lo, ainda que nos custe. A situação da Hungria perante a Alemanha é a dum subalterno, e não dum aliado. Mas essa situação não pode ser trocada senão pela dos países ocupados militarmente, o que seria pior. Ao princípio, pediram-nos para fornecer trezentos mil operários. A cifra foi reduzida a cinqüenta mil homens. Estes, pelo menos, temos que os dar.
- O meu governo não cederá aos alemães nem um cidadão húngaro como escravo! - disse o Presidente do Conselho, vermelho de cólera. - O assunto está pois liquidado.
- A Alemanha faz força e impõe-se - replicou o Ministro dos Negócios Estrangeiros. - Este pedido foi feito como um ultimatum. A indústria alemã tem necessidade de mão-de-obra. Se não lhes cedemos os nossos cinqüenta mil homens, a recusa pode ser-nos fatal. Estou informado de que, no caso de o pedido não ser satisfeito, a ocupação da Hungria será considerada iminente. é do meu dever avisá-los. V. Exas. assumirão, nesse caso, a responsabilidade duma recusa.
- Não se poderia obter uma plataforma? - sugeriu um ministro.
- Se mandamos um único húngaro que seja, como escravo, para a Alemanha, a situação será grave na mesma e a história nunca nos perdoará tal gesto - disse o Presidente do Conselho. - Por conseqüência, a nossa resposta não pode ser senão uma recusa categórica. Neste ponto não há compromisso possível!
- E se mandássemos para a Alemanha cinqüenta mil trabalhadores, e esses cinqüenta mil trabalhadores não fossem cidadãos húngaros? - disse o Ministro do Interior. - Temos nos campos de concentração mais de trezentos mil estrangeiros. Por que não os cederíamos à Alemanha?
- Oponho-me a essa solução - replicou o Ministro dos Negócios Estrangeiros. - Era complicar a situação. Além de ser contrária às leis internacionais sobre prisioneiros e refugiados políticos. Temos necessidade da simpatia dos países estrangeiros. Se aceitássemos tal solução, a honra da Coroa de Sto. Estêvão seria gravemente atingida. O único resultado seria criar novos inimigos.
Ao cabo de meia hora, encontraram finalmente um compromisso. Os ministros decidiram mandar para a Alemanha cinqüenta mil operários não húngaros, escolhidos entre aqueles cuja nacionalidade não estivesse bem provada. O Ministro do Interior comprometeu-se a escolher de tal maneira os trabalhadores, que nenhum pudesse levar prova certa de pertencer a outra nacionalidade.
- E salvamos assim o sangue húngaro - disse o Ministro do Interior. - A história nunca nos poderá acusar de termos mandado húngaros para o cativeiro. A nossa intenção é tão nobre que a história esquecerá os meios empregados.
O conde Bartholy, chefe da imprensa húngara, entrou no gabinete e chamou a sua secretária. Queria ditar-lhe o comunicado oficial que contém as decisões tomadas pelo Governo na sua sessão secreta.
”Um homem a quem se não respeita honra e dignidade é um escravo!” - disse o Conde Bartholy. - ”Hoje em dia quem quer viver dignamente condena-se ao suicídio. A sociedade moderna interdiz a dignidade e a honra pessoal. Quer dizer: toda a vida do homem livre. Só permite uma vida de escravo. Mas isto não pode durar. Uma sociedade em que todos os homens, do ministro ao criado, são escravos, tem de desaparecer. E quanto mais depressa, melhor.”
- O que disse o Sr. Ministro? - perguntou a secretária, entrando no escritório.
- Nada - disse ele. - Escreva se faz favor.
”COMUNICADO OFICIAL: O Conselho de Ministros, em sessão secreta, decidiu a obtenção de vistos e condições de viagem aos operários húngaros que desejem partir para a Alemanha, a fim de se especializarem nos diferentes ramos da indústria técnica. O número de operários a quem o Governo facilitará as condições de viagem foi provisoriamente limitado a cinqüenta mil.
- é tudo quanto há a dizer. Comunique imediatamente aos jornais - ordenou o Conde Bartholy - e que seja publicado na primeira página.
O Conde Bartholy, naquela mesma noite, jantou no restaurante com o filho, que era também chefe do seu gabinete. No café, o Conde pergunta ao filho:
- Qual é a tua opinião sobre esta questão dos operários mandados para a Alemanha?
- Um verdadeiro K. O. no ringue político! - respondeu Luciano. - A maneira de proceder foi magistral. Em vez de operários húngaros, mandamos aos alemães estrangeiros respigados nos campos de concentração. A arrogância alemã bem merece tal lição. Foi uma idéia genial!
- Sabes que em troca recebemos diversas vantagens dos alemães? - perguntou o Conde. - Ou, para melhor me explicar: sabes que nos pagam para lhes entregarmos esses cinqüenta mil homens?
- Pois com certeza - disse Luciano. - Não vamos dar de mão beijada aos alemães mão-de-obra, sem nada em troca.
- E tu não te sentes ofendido por teu pai ter tomado parte na venda de seres humanos? Este gênero de comércio é o último degrau da escada da decadência moral.
- Que esquisito que é o pai! - disse Luciano. - Aqui está por que estás tão sorumbático esta noite...
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- Não tentes esquivar-te! - replicou o Conde. - Reconheces, ou não, que tomei parte num tráfico de escravos?
- Se tu continuas a pôr o problema assim, então sim, tomaste parte num tráfico de escravos - disse Luciano, sorrindo.
- E isso não te impressiona?
- Seria um absurdo - disse Luciano. - Em todo o caso parece-me que o motivo do teu mau humor deve ser outro. Isso não podia ser fonte de inquietação, nem sequer passageira. Fomos obrigados a mandar operários para a Alemanha. Se não encontrássemos essa plataforma, teríamos sido forçados a mandar húngaros. E era gravíssimo!
- Sim; do ponto de vista húngaro tinha sido muito grave! - disse o Conde. - Mas do ponto de vista humano é a mesma coisa. Acabamos de vender aos alemães seres humanos.
- Mas são as necessidade dos tempos que nos obrigam a isso... Não as podemos evitar.
- A Europa abandonou o tráfico de escravos há algumas centenas de anos. Os últimos seres humanos que se venderam foram os negros na América. Agora toda a escravatura é proibida à superfície da Terra. A abolição da escravatura é uma das mais importantes conquistas da nossa civilização. E voltamos agora para trás; voltamos ao tempo em que se comerciou com escravos. Do século XX voltamos bruscamente à era pré-cristã. Saltamos a pés juntos a Renascença e a Idade Média.
- Mas, pai, as coisas não se devem ver assim, sob um ângulo tão trágico - disse Luciano. - Feitas as contas, os operários que vão para a Alemanha não são acorrentados. Vão para lá como trabalhadores.
- Não são acorrentados porque estão impossibilitados de fugir. A sociedade contemporânea tem os seus métodos para vigiar escravos, métodos que os gregos não possuíam. Não falo só das metralhadoras nem das barreiras de arame farpado atravessadas por correntes elétricas, mas de todos os métodos e de toda a técnica burocrática, que deve vigiar o ser humano: as cartas de racionamento, a autorização da polícia para poder ter cama num hotel, subir para o comboio, passear na rua ou mudar de residência. Os gregos e os egípcios não teriam acorrentado nunca os seus escravos se tivessem possuído meio de controle como na sociedade moderna. Mas a escravatura é a mesma.
- O melhor é não pensar mais nisso - disse Luciano. - Não podemos mudar nada. - E não temos por onde escolher. Não somos o único país que tenha vendido escravos à Alemanha. A Croácia, a Romênia, a França, a Itália, a Noruega, quase todos os países fizeram o mesmo. Que podemos nós fazer, a não ser retirar-nos do governo e lutar contra a Alemanha, porque ela compra escravos e outros países os vendem? Viria outro governo para o poder, que acabaria por mandar os operários para a Alemanha. E, mesmo que o Reich alemão viesse a ser destruído, o problema não se resolvia. Os russos substituiriam os alemães, e os russos são os maiores traficantes de escravos do mundo. Na Rússia soviética todos os homens são propriedade do Estado...
- E este estado de coisas não te assusta? _ - Não.
- Isso é que é o mais grave - disse o Conde. - Sim, porque isso quer dizer que não tens respeito nenhum pelo ser humano. E tu também és um ser humano. Não tens portanto respeito algum por ti mesmo.
- Eu respeito cada homem segundo o seu valor - disse Luciano. - Não creio que tenhas motivo de queixa contra mim nesse sentido.
- Respeitas o homem como respeitas o teu automóvel, porque representa um certo valor.
- E que tem isso?
- Mas tu respeitas o homem pelo seu valor intrínseco, pelo seu valor humano?
- Pois claro! Eu nunca poderia fazer sofrer qualquer ser humano sem piedade e sem remorsos!
- Nem a um cão eras capaz de fazer mal sem sentires piedade, pois sabes que se lhe chegares com uma chibata o fazes sofrer. Tens piedade do homem como de qualquer ser vivo. Gostava de saber se respeitas o ser humano como ser humano e valor insubstituível, único, ou se, mesmo sem valor social, te não inspira piedade e ternura como se fosse um animal?
- Nunca tinha pensado nisso - disse Luciano. - Só sei que respeito o homem pelo seu valor social e no que tem de ser vivo. Toda a gente, parece-me, sente e pensa como eu...
- Tens a certeza, Luciano, de que as gerações atuais pensam e sentem como tu? - perguntou o Conde.
- A certeza absoluta! - disse Luciano. - O mais rigoroso e lógico raciocínio nos faz pensar assim. O homem é um valor social. Quanto ao resto, hipóteses tudo.
- Isso é muito grave!
- Que achas nisso de grave?
- A nossa cultura desapareceu, Luciano! Nela, existiam três qualidades: respeitava e amava o Belo, hábito que lhe ficara dos gregos; amava e respeitava o Direito, que lhe vinha dos romanos; amava e respeitava o Homem, coisa que aprendeu muito tarde, e com grande dificuldade, com os cristãos. E não foi senão por respeito destes três símbolos, o Homem, o Belo e o Direito, que a nossa cultura ocidental pôde ser o que foi. E agora acaba de perder a herança mais preciosa: o amor e o respeito pelo Homem Sem este amor e este respeito, a cultura ocidental não pode existir. Está morta.
- O homem já conheceu através da história épocas mais difíceis que a nossa. Foi queimado na praça pública, queimado nos altares, esmigalhado na roda, vendido e tratado como coisa... Talvez não seja justo produzir testemunhos tão severos acerca da nossa época.
- É uma grande verdade - disse o Conde. - Nesses momentos muito sombrios desconhecia-se o homem, e o sacrifício humano praticava-se por barbaria. Mas tínhamos vencido a barbaria e começava-se a dar apreço ao ser humano. Estávamos apenas no começo e temos que continuar a aprender. Com o aparecimento da Sociedade Técnica, porém, destruiu-se tudo o que havíamos ganho. O homem está reduzido hoje em dia à sua dimensão social... Devem ser horas de nos irmos. Será muito tarde?
Luciano olhou para o relógio de pulso.
- O meu relógio parou - disse. - Podes-me dizer que horas são ao certo, pai?
- É a vigésima quinta hora!
- Não percebo - disse Luciano.
- Não me custa a crer que não percebas. Ninguém quer perceber. É a vigésima quinta hora. A hora da civilização européia.
- É o que te digo, meu caro Moritz; venderam-te aos alemães. Eu dava alguma coisa para saber quanto empocharam os húngaros pela tua pele. Não vales grande coisa! O máximo, um caixote de cartuchos, pois constou-me que os alemães não pagaram em dinheiro. Deram armas e munições em troca. Não acredito que os alemães dessem mais de um caixote de cartuchos por ti. Um caixote de cartuchos por tudo: pele e ossos!
O chefe de equipe ria e batia-lhe no ombro:
- E é um rico preço! Os russos não teriam dado tanto. Lá para eles os homens ainda são mais baratos...
lohann Moritz não gostou da brincadeira. Mas calou-se. O chefe de equipe era um estudante de Bucareste. Também fora internado pelos húngaros havia mais de oito meses e trabalhavam juntos nas fortificações. lohann Moritz bem sabia que o estudante gostava de larachar. Mas não tinha mau coração.
- Então tu não queres crer que eles te venderam? - perguntou o estudante.
- Não, não acredito! - respondeu Moritz. - Podem fechar os homens nos campos, nas prisões, fazê-los trabalhar, torturálos, matá-los até, mas nunca vendê-los!
- Pois sim; mas venderam-te, meu caro Moritz - disse o estudante. - Posso jurar por tudo quanto há mais sagrado que te venderam. Tu, eu, todos os romenos, todos os sérvios e rutenos que trabalhamos e estamos aqui neste campo de trabalho, fomos vendidos aos alemães. Passaram-se mesmo títulos de compra e venda para cinqüenta mil cabeças.
O estudante foi-se embora. lohann Moritz pensou no que ele acabava de ouvir.
”Ele quis fazer pouco de mim. Aquilo não pode ser verdade.” Mas durante todo o dia as palavras do estudante não lhe saíram dos ouvidos. Não podia deixar de pensar que os alemães o tinham comprado por um caixote de cartuchos. Pensando melhor, lohann Moritz bem via que era estúpido acreditar em tal coisa.
O campo onde trabalhavam ficava na fronteira romeno-húngara. Abriam trincheiras. O trabalho estava quase no fim. Ântimo, o estudante, pretendia mesmo que os húngaros ainda tinham trabalho para mais de dez meses, antes de verem as trincheiras acabadas. Para apressarem o trabalho mandavam vir continuamente mais internados. Até havia condenados a pena maior marcados com ferro em brasa. Não tinham homens que chegassem. Certo dia, deram ordem de marcha. Todos os romenos e sérvios do campo onde estava Moritz foram embarcados num comboio. Moritz ouvia dizer que os húngaros não estavam contentes da maneira como os romenos e sérvios trabalhavam, e queriam substituí-los por outros que fizessem o trabalho mais depressa.
Antimo teimava que os levavam para a Alemanha porque os tinham vendido. Havia outros romenos que diziam o mesmo.
Mas a maior parte não acreditava em nada. Moritz não acreditava mais que os outros.
Uma manhã, Moritz apeou-se do comboio para satisfazer as suas necessidades. No comboio não havia retretes e todos tinham que esperar que o comboio parasse. Então espalharam-se pelos taludes e aliviavam ali, guardados pelas sentinelas.
Nesse dia o comboio parará no meio dos campos. Estava tudo cinzento e chovia. Moritz demorou-se mais de que o costume. Quando se aproximou do vagão viu em cada compartimento coisas escritas a giz. lohann Moritz aproximou-se e leu em alemão: ”Os operários húngaros saúdam os seus camaradas do Grande Reich Alemão”. E no segundo vagão: ”Os operários trabalham pela vitória do Eixo.” lohann Moritz chamou Ântimo e mostrou-lhe os rabiscos.
- Agora acreditas que os húngaros nos venderam aos alemães?
- Não acredito! - disse Moritz. - Não se pode acreditar em semelhante coisa!
- Espera e verás! Moritz esperou.
O comboio ficou no meio dos campos até à noite. Ao pôr do sol, as sentinelas dispersaram-se pelos campos e puseram-se a apanhar flores. Moritz nunca vira soldados, de baioneta calada, a apanhar flores comandados por um oficial. O oficial também apanhava flores. Depois voltaram todos de ramos na mão e enfeitaram os vagões com folhas verdes, ervas, grinaldas e galhos de árvore, como para um casamento. Escurecera. O comboio pôs-se em marcha. Moritz gostava de ficar acordado para ver o que se ia passar, mas adormeceu. Quando acordou e se levantou, já era dia claro. As portas dos vagões estavam fechadas. Lá fora havia barulho. O comboio parará numa gare. Até ali o comboio só parava em pleno campo, ou, quando muito, à entrada das aldeias ou vilas. Pelas janelas entravam vozes e apitos das locomotivas. Moritz apurou o ouvido e escutou alguém que passava rente ao vagão e que falava alto. - ’’Fala alemão” - disse Moritz; - e percebeu então que o estudante Antimo não mentira. Tinham-no vendido aos alemães. ”Talvez que os alemães, com efeito, tenham dado aos húngaros um caixote de cartuchos, pelos meus ossos, pela minha carne, pela minha pele, por mim todo.”
- Fomos todos vendidos como escravos, para toda a vida! - disse o estudante Antimo.
Acabara de saber que estavam em território alemão. Antimo pô-se de pé e fez um discurso. Todos o ouviram atentamente, lohann Moritz não ouvia. O seu pensamento ficara preso à frase: ”Escravos para toda a vida”. lohann Moritz via-se já por toda a vida nos campos de concentração, abrindo canais e trincheiras, esfomeado, espancado, devorado pelos piolhos.
Via-se depois a morrer num campo de concentração. Só de pensar que podia morrer num campo, os olhos enchiam-se-lhe de lágrimas. Tantos prisioneiros que tinha visto morrer! Até tinham cavado sepulturas. Depois de mortos tiravam-lhes as roupas e enterravam-nos mesmo nus. ”Como cães’, pensou Moritz. ”Aos cães tiram-lhes a pele antes de os enterrar, para luvas. Aos prisioneiros tiram-lhes as roupas. Talvez que na altura de eu morrer já seja moda esfolar os homens também.” Moritz pôs-se de pé bruscamente. ”Podem-me fechar para toda a vida nos campos”, disse consigo. ”Mas antes de morrer gostava que me soltassem. Ao menos uma hora antes de entregar a alma ao Criador, gostava que me pusessem em liberdade, para não morrer fechado. É um grande pecado, morrer fechado. Mas venderam-me aos alemães; nunca mais me soltam; nem sequer uma hora antes da minha morte!”
- Dentro de dez dias, o mais tardar, tenho que partir - disse Eleonora West. - Se não saio daqui quanto antes, o mandado de captura vem ao meu encontro. Dez dias é o máximo que posso aqui ficar. E talvez seja muito.
Eleonora West olhou para Leopoldo Stein, que estava em frente dela, sentado na cadeira de braços de costume, e, para provar a si própria que não exagerava nada, recapitulou em pensamento a sua situação.
O termo fixado aos cidadãos de origem israelita para se inscreverem no gabinete do Ministério do Interior expirava. Os que tinham querido escapar ao decreto haviam sido condenados a dez anos de prisão por um novo decreto-lei. Eleonora não se apresentara. Na esquadra receberam uma denúncia e procedera-se a um inquérito. Na pasta do delegado havia documentos de que ela ignorava a existência e que provavam a sua origem étnica. A pasta não podia desaparecer. Tinham falhado todas as tentativas feitas para comprar, como das outras vezes, os que conduziam o inquérito.
- Desta vez fomos vencidos, Sr. Stein - disse Eleonora West. - Tenho que abandonar a arena e fugir. é a única coisa que ainda está na minha mão fazer. Durante dois anos e meio agüentei-me contra todos, todos os ataques. Não foi fácil tarefa, mas cumpri-a. O destino, porém, não ajuda até ao infinito os que não têm medo.
- A batalha não está ainda perdida - disse Leopoldo Stein. - Mas é um espaço de tempo muito curto. Podemos vender a tipografia, o jornal e a casa por alto preço. Até as mobílias, os quadros e a biblioteca. São negócios que se podem tentar. A quantia apurada pode depositar-se num banco na Suíça. Mas, em dez dias, é impossível obter a nomeação do Sr. Koruga e os passaportes.
- Atualmente não podem sair da Roménia senão os que partem em missões oficiais - disse Nora. - Meu marido tem que ser forçosamente nomeado diretor do Instituto Romeno de Cultura de Ragusa. Em face desta nomeação, recebo, como mulher dele, o passaporte e os vistos. Mas temos que nos despachar. O delegado informou-me de que a única coisa que se pode tentar por mim é abrandar a continuação do inquérito durante coisa de dez dias. Para além desse prazo, o delegado declina toda e qualquer responsabilidade e será forçado a executar o mandado de captura.
Leopoldo Stein viu por instantes, diante dos olhos, a imagem de Eleonora West na prisão. Afastou-a com horror.
- Ainda não disse nada a seu marido? É um cálculo errado, sabe! Ele acabará por saber. E, sabendo-o, talvez nos possa ajudar a sair de embaraços. Que dirá ele quando vir uma nomeação e passaportes que nunca pediu?
- Não lhe posso dizer nada - disse Eleonora West. - Não tenho razão nenhuma para esconder um fato que daqui a duas semanas será do domínio público. Traian tem tempo de saber que sou judia. Mas ainda não chegou a altura de lho dizer. Estou muito cansada. Não posso com emoções. E para lhe confessar o único segredo que tive que lhe esconder durante dois anos, preciso duma coragem que, com franqueza, já não tenho. Estou na última. A minha vontade resistiu o que pôde. Estou exausta, exausta, exausta...
Eleonora West escondeu a cabeça nas mãos. Encostou-se à secretária. Leopoldo Stein olhava-a atentamente. Tinha realmente um ar fatigado. Leopoldo Stein comoveu-se. Mas não lhe podia valer. Abriu a pasta, para não ter de olhar para ela, para não ter que a ver assim com a cabeça caída entre as mãos. Dentro da pasta, no meio das escrituras de venda da casa, do terreno, da tipografia, do jornal e dos quadros de Eleonora West, estava também uma carteira com um monograma de Traian Koruga, em ouro. Leopoldo Stein pô-la sobre a secretária, em frente de Eleonora West. Ela viu-a e pegou-lhe.
- Faz amanhã dois anos que casaram - disse o velho. - Sei bem que tem andado tão preocupada que nem tempo teve para escolher nada para oferecer a seu marido. Aqui está esta carteira, para lha oferecer. Há de gostar, com certeza. É bem bonita!
- Amanhã? anos do meu casamento? - disse Eleonora. - Não me lembrava, de todo! Agradeço-lhe muito, Sr. Stein, que não se tenha esquecido. Traian fica encantado. - Olhava para a carteira, passando-lhe a mão por cima como se lhe fizesse uma carícia. - Não sei por que teimo tanto em guardar este segredo. Talvez por gostar muito dele... Se Traian soubesse a verdade, tudo faria para me ajudar. Tenho a certeza. Más não lhe digo nada. Tenho muito medo de o perder. Bem sei que o meu medo é absurdo! Sempre que me decidia a contar-lhe a verdade, o medo vinha bruscamente e eu continuava calada, com este segredo horrível. Traian é a única pessoa que ainda me prende à vida. Se o perdesse, perdia-me também.
Eleonora West pousou a carteira e disse bruscamente:
- Sabe o que é que me disse o Procurador-Geral? Teimava que eu não era casada. - A voz de Eleonora tremia. - E tem razão! Casei-me depois de ter entrado em vigor a lei que proibia aos romenos casar com judias. A lei foi promulgada em abril e casei dois meses mais tarde. Oficialmente, o meu casamento é nulo. Todos os casamentos feitos depois dessa data, com ou sem conhecimento de causa, são automaticamente nulos.
Eleonora West calou-se. A voz do Procurador-Geral ainda lhe soava aos ouvidos:
”Seja em que altura for, o Sr. Traian Koruga pode casar com qualquer outra mulher, sem o consideraram bígamo. Se tiver um filho, é um filho natural, e teria que usar o apelido de West, e não o de Koruga. A senhora, também, sempre que assina Eleonora Koruga assina um nome falso.”
- Pague o que for preciso, Sr. Stein - disse Eleonora West. - Temos que ter dentro de certo prazo os passaportes e os vistos. Os passaportes com o nome do Sr. Koruga e sua mulher...
Cinco dias depois, Leopoldo Stein voltou com a nomeação de Traian Koruga como diretor do Instituto Romeno de Ragusa e os passaportes diplomáticos empastados em coiro azul.
- Ganhamos, Mme. Koruga! - disse ele, todo contente. - Reservei lugares na carruagem-cama até Viena. Tem de partir segunda-feira que vem. Ainda bem que podem partir, Mme Koruga!
Leopoldo Stein limpou as lunetas. Eleonora West, que examinava ainda os passaportes, olhou para o velho. Viu que tinha emagrecido muito. Queria perguntar-lhe se ele não partia também; mas Leopoldo Stein disse-lhe:
- Não sei se nos tornaremos a ver algum dia. Esta noite, uma leva de judeus vai para Transdnistria. Estou contente deveras, porque agora tenho a certeza de vossa partida. Se um dia voltarem, não encontram um único judeu em Bucareste. A mim também não. Um homem com a minha idade não vai largar os ossos nos campos de concentração, para lá do Boug...
Traian Koruga estava no seu escritório. Nora nunca ali ia enquanto ele trabalhava. Mas naquele dia, entrou, com os passaportes na mão. Traian Koruga estava à secretária, com a cabeça entre as mãos.
- Tenho um presente para o nosso aniversário de casamento! Fiz com que fosses nomeado diretor do Instituto de Cultura Romena em Ragusa. - E, estendendo-lhe o decreto de nomeação: - A Dalmácia tem as mais lindas paisagens do mundo. Podes continuar a escrever ali o teu romance com todo o sossego!...
- Como conseguiste fazer isso tudo sozinha? - perguntou Traian. - E como pudeste guardar esse terrível segredo?
- Traian beijou-a. - Nora, és genial! - Depois acrescentou: - Estou encantado, acredita! Tinha absoluta necessidade de mudar de clima para continuar o romance. Nem podia escrever o capítulo seguinte. Tinha o pressentimento de que devia ser escrito noutra terra. Sim, um pressentimento... Talvez venha a ser o capítulo mais forte do livro...
Eleonora West aproximou-se e beijou-o na boca, para impedir que ele contasse ”o capítulo seguinte”. Tinha muito medo de ouvir...
- Recomendaram-nos que te déssemos um trabalho fácil - disse o funcionário da fábrica. - Ainda estás doente. Além de que não nos mandam senão doentes.
Olhou para Moritz com ódio. Depois deitou os olhos para o cesto que Moritz trazia na mão e mirou-o novamente desconfiado. Há mais de dois anos que lohann Moritz estava na Alemanha, e olhavam-no sempre daquela maneira. Suspeitavam-no sempre de crimes que não cometera, mas de que não estava seguro de não cometer um dia.
- Húngaro! - resmungou o funcionário. - Já cá tive húngaros e não gostei. Talvez contigo não seja o mesmo! - Esboçou um sorriso amarelo e começou a ler alto: - ”Moritz, lanos, húngaro, trinta e dois anos, operário não especializado, chegado à Alemanha em 21 de junho de 1941”.
lohann Moritz que sabia que se tornara húngaro há mais de dois anos por vir assim nos papéis, seguia os gestos do funcionário, que lia agora as listas das fábricas, das oficinas e dos campos de trabalho do Grande Reich Alemão, onde ele lohann Moritz, trabalhara até aquele dia. A lista era longa. Todos os géneros de indústria figuravam ali. lohann Moritz sentia-se orgulhoso por ter passado por tais lugares. Num relance, teve diante de si a visão das dezenas de campos cercados de arame farpado, dezenas de campos onde trabalhara, as fábricas, as cidades, os sofrimentos que suportara. Moritz estava maravilhado com a coragem com que tinha enfrentado e aturado tantas provações antes de chegar ali, diante dele. Mas o funcionário lançou um olhar indiferente por todos os lugares onde Moritz sofrera e parou no último parágrafo: ”Saído do hospital para operários estrangeiros n.º 707, no dia 8-3-1943”.
Moritz estava admirado de ver um homem percorrer assim a lista dos seus sofrimentos sem se comover. Mas o funcionário não se comoveu. Pegou no lápis e escreveu, ao fundo da página, num cantinho ainda limpo: ”Apresentou-se no trabalho da fábrica de botões Knopf & Filho no dia 10-3-1943”. Depois meteu o bilhete numa gaveta onde já havia outros iguais e olhou para Moritz:
- ’’Disciplina, obediência, trabalho, ordem!” É a nossa divisa para os operários estrangeiros. Nesta fábrica há também operários alemães. Chamo a tua atenção para um fator muito importante: Todo e qualquer contato com uma mulher alemã é punido pelo menos com cinco anos de prisão. O nosso diretor é intratável nesse capítulo. Todas as mulheres alemãs trazem colado à pele um bilhete que te rende cinco anos de prisão. Se alguma vez tocares no que não deves tocar, já sabes o que te espera. E não contes com mais nada dela. O húngaro que veio antes de ti está na prisão. Preveni-o quando ele chegou, como te previno hoje a ti; mas ele não fez caso das minhas recomendações. Pensou talvez, lá por fazer escuro e estar escondido debaixo da manta com a mulher, que ninguém dava com ele. Mas no nosso Grande Reich Alemão não podes fazer um único movimento sem que logo se saiba. Mesmo debaixo de manta. Não podes fazer um único gesto sem que a gente fique ao par. Adivinhamos tudo o que te passa pela cabeça. Os teus pensamentos. Todos os teus pensamentos. Fotografamos dez vezes por dia todos os teus pensamentos! Passemos ao segundo ponto: A nossa fábrica trabalha para a guerra. Tudo o que vires, tudo o que ouvires é segredo militar. O operário estrangeiro não deve saber o que produz a fábrica, como e quanto produz. Se tentares saber, arriscas a cabeça. Em janeiro, um italiano foi fuzilado. E agora um checo vai ser julgado por ter tentado descobrir os segredos da fábrica Knopf & Filho.
O funcionário pôs-se de pé e dirigiu-se para a porta, seguido de lohann Moritz.
- Não gostei dos húngaros que vieram cá parar até hoje - disse o funcionário. - Estão todos presos. Um deles foi condenado a vinte anos de trabalhos forçados por sabotagem. Esperemos que sejas uma exceção, se bem que eu não creia em exceções.
O funcionário parou em frente duma máquina que trazia caixotes sobre um railhe. Na ponta do railhe um operário pegava numa caixa e pousava-a numa carreta ao pé dele. No momento em que o funcionário se aproximou do operário, a carreta deslizou no railhe carregado de caixotes. Já outra carreta vazia, parada em frente do operário. Esse último não parecia ter reparado na mudança que se dera e continuava a pegar nos caixotes, uns atrás de outros, trazidos pela correia, e pousava-os na carreta vazia, como fizera à antecedente. Via-se que os caixotes deviam ser pesados.
- Vai ser o teu trabalho a partir de amanhã - disse o funcionário. - É simples. Tens que pegar nos caixotes cheios que saem da oficina e pô-los na carreta vazia, que os levará ao entreposto. A ordem tem que ser rigorosa. É a lei mais importante. Já trabalhaste na fábrica?
lohann Moritz olhava para o operário, que se inclinava mecanicamente, retesava o braço na carreta sem pensar no que estava a fazer, mas também sem pensar noutra coisa. Também não pensava sequer nos que estavam junto dele. Talvez que nem os tivesse visto sequer.
- As máquinas não toleram a desordem - disse o funcionário. - As máquinas não toleram a anarquia, nem a preguiça nem a indolência humana! - lohann Moritz deitou um olhar ao funcionário. - Repara que não tens licença para pensar noutra coisa. As máquinas castigam-te logo. Toda a tua atenção tem que estar posta no robotot e no teu camarada, o operário técnico que te traz o caixote e to estende. Tu só precisas curvar-te, pegar-lhe e depô-lo na carreta.
O funcionário sorria. lohann Moritz tentou procurar os braços do seu camarada técnico, mas não os viu em parte alguma. Olhou outra vez para o funcionário. O funcionário ainda sorria.
- O roboto não se pode adaptar ao homem. És tu que tens que te adaptar a ele e coordenar os teus movimentos com os seus. E é normal! - disse o funcionário. - Porque ele é que é o operário perfeito, e tu não és. Não há homem que seja operário perfeito. Só as máquinas o sabem ser. E nós temos que olhar para elas para aprender a trabalhar. Percebeste? Elas vão te ensinar a disciplina, a ordem, a perfeição. Imitando-as tornas-te um operário de primeira classe. És húngaro; e, nas oficinas, os húngaros olham para as mulheres, e não para as máquinas.
lohann Moritz queria ter dito que era romeno e não húngaro. Queria recomeçar a contar a sua história, e falar das
(1) Neologismo formado com o francês robot sobre o checo robota: trabalho, trabalho forçado, segundo o escritor checo Tchapek, na peça de teatro HUR (Os Robotos Universais de Rossum); 1921. (Dauzat, Dict. Etym 7.” «d.) - N. do T.
prisões onde estivera, das pauladas que apanhara em Budapeste; mas o funcionário olhava com admiração para as máquinas que trazia os caixotes brancos, silenciosamente com intervalos pendulares. Das máquinas desviou os olhos para lohann Moritz, e o seu olhar tornou-se desprezivo. Moritz sentiu aquele desprezo em cheio, e absteve-se de contar a sua história das prisões de Budapeste e do Inspetor Varga.
- O homem é um trabalhador inferior! - disse o funcionário. - Sobretudo o homem do Oriente. Vocês, os orientais, são inferiores às máquinas. Como se já não bastasse seres homem, ainda por cima és oriental, e húngaro, e saíste do hospital! Um doente, é o que tu és!
lohann Moritz via bem que o funcionário sofria. Queria ter-lhe assegurado que se ia entregar com todo o ardor deste mundo ao trabalho.
- Como poderias tu ser comparado com uma máquina? Era preciso que tu pudesses olhar para ti! - O funcionário mediu-o de alto a baixo: - É uma falta de piedade, uma ofensa para as máquinas, atreveres-te sequer a comparar-te com elas. Elas são perfeitas. E tu... nem sequer lhes deviam dar tais serventes. E agora segue-me. Vou te dar a tua roupa de trabalho. Não podes entrar na fábrica senão com o uniforme de operário. O uniforme do operário é como o dum padre. Mas isto, não o podes compreender. Vocês húngaros, não olham senão para as mulheres. São todos uns bárbaros.
No dia seguinte, às quatro da madrugada, lohann Moritz entrou sozinho na grande sala acimentada e aproximou-se da carreta que lhe tinham distribuído na véspera. Faltavam ainda cinco minutos para começar o trabalho. Moritz estava comovido. Usava uma farpela azul que lhe cobria o corpo todo, e os tamancos que trazia nos pés martelavam o chão de cimento. Experimentara primeiro andar nas pontas dos pés. Não gostava de fazer tanto barulho sozinho. Mas os tamancos faziam uma barulheira infernal. Quando se viu no meio da sala ouviu chamar por ele. Não ouvira o seu nome, mas lohann Moritz sabia bem que chamavam por si. Tinha a certeza disso. Voltou a cabeça. Nesse momento, chamaram-no segunda vez. Ouviu distintamente:
- Salve, Sclave!
Uma massa de cabelos negros, um rosto de olhos rasgados, com bigode e dentes brancos de porcelana, aparecia por trás duma pequena janela de varões de ferro. O homem era novo, magro como um esqueleto, e fixava em Moritz uns grandes olhos ardentes. Não se lhe via o corpo. No momento preciso em que cruzavam o olhar, disse-lhe, como se há muito o conhecesse:
- Salve, Sclave!
- Chamo-me lanos Moritz - disse lohann Moritz, certo de que o rapaz o confundia com alguém que se chamava Salve Sclave. A sereia da fábrica apitou. As máquinas puseram-se em andamento. Moritz estava no seu posto na balaustrada. O rapaz de cabelo preto ficou ainda um segundo à janela e sorria-lhe com simpatia. Bem ouvira a resposta de Moritz; mas, antes de desaparecer, disse ainda, olhando para ele fixamente:
- Salve, Sclave!
lohann Moritz apanhou os primeiros caixotes que apareceram no railhe e pousou-os na carreta vazia.
Se os caixotes não fossem tão pesados, até uma criança de sete anos poderia fazer aquele trabalho. Moritz sabia que os caixotes continham botões. Gostaria de os ver. Mas os caixotes estavam todos fechados. Mesmo que os caixotes estivessem abertos, não teria coragem de levantar a tampa e de olhar para os botões. ”Em janeiro, executaram um italiano. Hoje vai ser julgado um checo.”
Moritz lembrou-se de que este quisera desvendar os segredos da fábrica Knopf & Filho. Pensava no checo, que a essa hora estava diante dos juizes e que pedia perdão. Por ter conhecido os segredos da fábrica de botões, sem dúvida. Depois pensou no italiano a quem tinham cortado a cabeça. Já tinha visto muitos italianos; eram todos muito alegres. E por isso imaginava que o que fora executado devia também ter sido muito alegre. Via a cabeça do italiano, de bigode preto e sedoso, rolar, sorrindo, aos pés do carrasco.
lohann Moritz jurou a si próprio nunca olhar para os botões, ainda que alguma caixa se viesse a abrir por acaso. Não valia a pena cortar a cabeça só por ter visto os botões. Depois, pensou que aqueles botões se destinavam ao exército. Segurando o caixote nos braços, ao colocá-lo na carreta vazia, porque a que estava carregada partira sem ele dar por isso, perguntava a si próprio que qualidade de botões seria. Havia botões para a Marinha, para a Infantaria, para a Aviação. Moritz gostaria que o caixote que tinha nos braços tivesse botões doirados. Eram os mais bonitos. Pareciam moedas de oiro. Era desses que os marinheiros usavam. ”Quem sabe até se este caixote não tem botões para marinheiros...”
lohann Moritz lembrou-se de repente das palavras do funcionário: ”Sabemos tudo o que te passa pela cabeça. Fotografamos-te os pensamentos”.
Esforçou-se por não tornar a pensar nos botões doirados do caixote. Era um segredo, e Moritz não queria saber dos segredos da fábrica.
Depois de um certo tempo verificou que estava quase a perguntar que poderia o exército alemão fazer daquela data de botões. Todos os soldados e oficiais alemães que ele vira já tinham bastantes botões nas fardas e nos capotes. Os botões que se fabricavam agora destinavam-se decerto aos uniformes novos.
lohann Moritz olhava para a data de caixotes que se escoam uns atrás dos outros como um rio tranqüilo, e disse lá consigo: ’’Devem ter milhões de botões. Têm com que enfeitar todos os uniformes do exército alemão. Talvez que os alemães tenham ordenado que todos os soldados tenham uniformes novos. Talvez por isso fabricam tantos botões”.
lohann Moritz perguntava a si mesmo se esses uniformes novos não seriam destinados aos que desfilariam no fim da guerra, na rua principal da cidade, de bandeiras à frente, ao som duma banda militar. Todos os soldados teriam botões doirados, brilhantes como o sol.
lohann Moritz sorriu. Via-se já no meio da multidão assistindo à parada, todo orgulhoso por saber que os botões dos oficiais todos, de todos os soldados, mesmo os botões dos generais, tinham passado pelas mãos dele. ”Os que tenho agora entre as mãos hão de vir a ser cosidos no uniforme de um general. E todos os botões de todos os uniformes e de todos os capotes do general serão enfeitados de botões tirados expressamente deste caixote. Talvez seja preciso um caixote inteiro para o general.”
lohann Moritz deixara-se levar pelos seus pensamentos e esquecera-se de levantar o caixote que tinha em frente. O caixote saiu do railhe e caiu no chão com ruído. Moritz precipitou-se a apanhá-lo. Nisto, outros caixotes chegaram ao lugar do anterior. O segundo foi também atirado para fora do railhe e ainda fez mais barulho que o primeiro. Caiu no cimento. Moritz tentou levantá-lo. Conseguiu segurar o primeiro caixote debaixo do braço. Apanhou com o terceiro caixote no lombo. Deixou cair os outros dois. Tomou-se de um pânico súbito, um medo como nunca experimentara. Um quarto caixote caíra. Depois, um quinto.
Moritz retomou o seu lugar no estrado. Deixou os caixotes que tinham caído e começou a colocar na carreta os que continuavam a chegar. Olhou um momento para a máquina como se lhe quisesse pedir misericórdia, convencer a corrente a parar até ele apanhar os outros caixotes. Mas os caixotes chegavam pendularmente, em fila. Moritz deitou um olhar apavorado em volta. Tinha medo que o castigassem. Mas ninguém lhe veio dizer nada.
Ao meio-dia a máquina parou. Até aquele instante tremera sempre com medo de ser apanhado em flagrante. Desceu do estrado, levantou os caixotes e pousou-os na carreta. Estava contente, porque agora ninguém saberia nada do erro que tinha cometido.
Mas a carreta, que partia automaticamente, imobilizara-se também, ao mesmo tempo que todo o resto da instalação, e permanecia imóvel no railhe, com a carga dos cinco caixotes.
lohann Moritz pensou empurrá-la com a mão, mas a carreta estava bloqueada. Não largava senão automaticamente.
Moritz quis levar os caixotes a braço, transportá-los para o entreposto. Mas não podia passar pela porta do muro feita para o tamanho da carreta. Estacou com os dois caixotes debaixo do braço, sem saber o que fazer. Uma voz ressoou por trás dele. Moritz, cheio de medo, pousou os caixotes dentro da carreta e voltou-se.
- Salve, Sclave!
Moritz esqueceu-se imediatamente dos caixotes e do engano e disse sorrindo:
- Não é assim que eu me chamo! Chamo-me lohann Moritz. Estás-me a tomar por outro qualquer.
Os lábios do rapaz abriram-se levemente, deixando à amostra os dentes brancos. Ria de dentro. Depois desapareceu da janela gritando uma última vez:
- Salve, Sclave!
Moritz foi almoçar, pensando que a parecença entre si e esse outro Salve Sclave devia ser perfeita, pois que o rapaz dos olhos pretos assim o chamara, mesmo depois de ele lhe haver dito o seu verdadeiro nome.
Com o andar do tempo, soube que o rapaz da janela chamava assim todos os camaradas estrangeiros que trabalhavam na fábrica: Salve Sclave. Era um francês. Pretendia chamar-se também Salve Sclave. Mas Moritz soube depois que o seu nome verdadeiro era Joseph.
lohann Moritz trabalhava já há cinco meses na fábrica de botões e nunca mais deixara cair um caixote. Assim que eles lhe chegavam, pensava na carreta. Pegava-lhes sem os ver, sem pensar nos botões que poderiam conter, nem nos que os usariam, nem nos soldados que, na parada do fim da guerra, desfilariam na praça com os uniformes novinhos do trinco e com os botões luzidios dos caixotes que lhe passavam pelas mãos.
lohann Moritz já não pensava. Já não sonhava. Nem sequer na cabeça do italiano que rolara aos pés do carrasco e sorria. A certa altura quisera saber o que acontecera ao checo que comparecera diante dos juizes no dia em que entrara na fábrica, se fora condenado ou se lhe teriam perdoado.
Isso era o princípio. Agora Moritz já não tinha curiosidade por nada. Quando chegava à sala das máquinas o francês aparecia sempre à janela da fundição e gritava:
- Salve, Sclave!
Moritz respondia-lhe: ”Salve, Sclave!” sem pensar no que dizia. Sorria-lhe sem mesmo pensar que sorria. Depois tomava o seu lugar no estrado e esperava pelos caixotes carregados de botões. Uma única vez tentara simplificar o trabalho e pegou em dois de cada vez para os colocar na carreta. Mas o railhe não consentira. A corrente raspava a borda de um caixote, rangendo, como se quisesse morder. Todas as fibras de Moritz tinham estremecido, como se lhe arrancassem algum dente. Desde então nunca mais tentou segurar dois caixotes ao mesmo tempo. A máquina não queria. E ele tinha que fazer a vontade à máquina. Mesmo que tivesse podido segurar cinco caixotes ao mesmo tempo, não o faria. Estava absorvido pela cadência e não a podia arredar. O trabalho não era fácil nem difícil. De antes, quando chegava duro ao trabalho, suava, fatigava-se e praguejava. Não tinha a impressão de trabalhar nem de estar ocioso. Antigamente, quando trabalhava, Moritz pensava num ror de coisas e o tempo passava mais depressa. Agora já não pensava em nada. Enquanto levantava os caixotes e os punha na carreta, teria todo o vagar para pensar em mil coisas. Mas tinha a cabeça oca: já não tinha imagens lá dentro. Pensamentos e sonhos tinham-no deixado só. E nem no trabalho pensava. Sabia muito bem que não fazia o trabalho apenas com os braços, mas com o cérebro também. Se fosse de outra maneira, o coração e o cérebro estariam noutro lugar. Mas estavam ali, junto da máquina e dos caixotes.
lohann Morítz sentia que o seu ser se mirrava como uma planta sem água. À noite, quando se deitava na cama, tinha a impressão de se baixar para levantar um caixote. De manhã, quando se levantava da cama, tinha a impressão de se endireitar depois de ter pousado um caixote e de ter as mãos vazias durante um segundo mais. Os seus sonos eram vazios de qualquer sonho. Tinha os olhos e a testa ensombrados. Haviam tomado a cor das máquinas, e não a cor da terra. Nos últimos tempos, lohann Moritz acabara até por esquecer que os caixotes que carregava encerravam botões, e quando acontecia lembrar-se (o que não sucedia muitas vezes), sorria. E o seu sorriso era seco como a terra depois da seca.
Os médicos pretendiam que ele estava doente, e lohann Moritz recolheu à enfermaria do campo.
lohann Moritz estava agora na barraca de madeira que servia de enfermaria. As janelas eram guarnecidas de arame farpado. Já estava ali havia mais de uma semana. Tinha os pulmões tocados. O corpo todo ardia-lhe como uma chama e sentia-se derreter. Não pensava senão na fábrica de botões e apetecia-lhe voltar para lá. Ficava assim de olhos fechados todo o dia. Hoje havia barulho em volta dele. ”Devem ser os doutores que vêm fazer a visita”, disse Moritz consigo.
Sentiu de repente um perfume de pele lavada de fresco, como há muito não tinha respirado, mas que conhecia bem, e abriu os olhos sorrindo. Uma mulher de uniforme militar estava ao pé da cama dele. Era nova e loira. O seu corpo cheirava a sabão e a ar fresco. Olhava para ele com dureza, mas sorria sempre. Dois polícias e os médicos da enfermaria rodeavam-na. Um dos doutores perguntou, enquanto ela o mirava:
- É ele?
A mulher leu a papeleta da cama de Moritz enquanto lhe lançava um olhar desconfiado. Toda a gente na Alemanha tinha a mesma desconfiança nos olhos.
- Húngaro? - perguntou ela. - Os húngaros e os italianos são os mais perigosos. - As mãos da mulher apanharam as partes da colcha e, levantando-a, descobriu-lhe o peito. Disse então:
- Não é ele! O outro tinha o peito cabeludo!
Afastou-se, parou diante das outras camas, olhando para todas as caras e descobrindo alguns doentes. Não encontrou aquele que procurava. Os polícias seguiam-na.
Aquele cheiro, que não se compunha só de água, de sabão e de perfume, persistiu na sala. Depois de ela ter saído, Moritz lembrou-se de que o perfume da pele de Susana e de Julisca era o mesmo. Um médico disse:
- Um dos teus camaradas dormiu com uma alemã a noite passada. A mulher que esteve aqui surpreendeu-os. A outra foi presa. Mas o homem conseguiu fugir. Era um homem moreno, de peito cabeludo. A rapariga não quis dizer o nome dele. Mas há de aparecer e apanha cinco anos de prisão, o desgraçado!
O doutor era holandês. Olhou para a janela:
- Olha! Apanharam-no! - disse ele.
Moritz levantou-se no traseiro. Debaixo da janela passava um sérvio algemado. Era um bonito homem de cabelo preto. Caminhava entre os dois polícias. Moritz conhecia-o. Trabalhara na fábrica de cordas e era um rapaz muito alegre. A senhora de uniforme seguia-o.
- Eu bem disse que o havia de encontrar! - disse ela.
Quando Moritz estava ao pé de Joseph não tinha medo nenhum. Era a única pessoa ao lado de quem não tinha medo. Nos últimos tempos, tinha medo de tudo. Na fábrica, ficava estarrecido com a idéia de deixar o caixote ou de o levantar do railhe já fora de tempo. Tinha medo de olhar para as alemãs. Tinha medo de tomar conhecimento, por acaso, de algum segredo que dissesse respeito aos botões. E tinha medo de todos os alemães. Mas não só dos alemães, senão também, e principalmente, dos homens alemães, da terra alemã, das palavras alemãs, do ar que respirava e que também era alemão. Na Romênia, lohann Moritz estivera preso, esfomeado, espancado. Mas não tivera medo. Não tivera, até, medo dos húngaros que lhe haviam lacerado a pele aos bocados. Eram seres humanos, lorgu lordan também era um ser humano, e Moritz não tivera medo dele.
Moritz não tremia nunca diante dos homens porque sabia que eram bons e maus ao mesmo tempo. Alguns eram quase bons, outros quase maus. Mas todos eram uma coisa e outra ao mesmo tempo.
Na Romênia o sargento-ajudante tinha-lhe dado um cigarro depois de lhe aplicar um murro que lhe levara dois dentes. Na Hungria, os policiais tinham-lhe dado água e tabaco depois de lhe queimarem a planta dos pés com um ferro em brasa.
Na Alemanha, ninguém lhe batera. Todos os dias recebia um quarto de pão, café quente e sopa. Aqui o trabalho era mais fácil do que no canal da Romênia ou nas fortificações, na Hungria. Mas não podia viver na Alemanha. Moritz tinha a certeza que os alemães lhe cortariam a cabeça. Percebia muito bem que era uma parvoíce pensar nisso. Mas ele bem sabia que iria um dia, de algemas nas mãos, mesmo sem culpa de nada Mandá-lo-iam para a prisão, mesmo que não entrasse no segredo dos botões. Os homens daquela terra eram maus como as máquinas. E, afinal de contas, quem sabe se as máquinas eram más. Talvez que os alemães não fossem maus.
Mas Moritz não podia viver ao pé das máquinas. Mirrava. E tinha medo delas. Tinha medo de todas as máquinas e de todos os homens que se pareciam com elas. Sentia-se abandonado no meio deles e das máquinas. Tinha vontade de gritar, tão sozinho se via. Por isso se apegava tanto ao francês.
Joseph veio ter com ele:
- Salve, Sclave!
- Salve, Sclave! - disse Moritz.
Joseph gostou que lhe respondessem à sua saudação com esta fórmula.
- Somos todos escravos - disse Joseph. - E é bom que o lembremos uns aos outros, mil vezes por dia, para o não esquecermos, um instante sequer. Se nos esquecemos, se perdemos de vista que somos escravos, está tudo perdido. A consciência vigia.
Era um domingo à tarde. lohann Moritz e Joseph estavam estendidos na relva, à sombra duma barraca. Joseph confessara a Moritz que gostava duma mulher. E Moritz sabia que se chamava Beatriz, que vivia em Paris, tinha olhos pretos e grandes e que todas as noites chorava Joseph prisioneiro. O francês tinha-lhe contado isso tantas e tantas vezes que Moritz tinha a certeza de reconhecer Beatriz, no meio de mil mulheres, se algum dia viesse a encontrá-la. Moritz, em certos momentos, parecia ouvi-la falar. A sua voz parecia uma canção. Moritz sentia a presença dela pairar entre si e Joseph. E era por isso que, quando estava com ele, tinha a impressão de que os três vinham à fala. Admirava-se até de que Beatriz não metesse conversa; que não respondesse.
- Todos para as barracas! - ordenou o comandante do campo através do alto-falante.
- Temos outra busca! - disse Moritz, pondo-se de pé.
Joseph seguiu-o e disse:
- O que é que nos querem ainda?
O francês não estava contente. Não gostava de ficar nas barracas aos domingos, de tarde.
Os operários deixaram o pátio, em pequenos grupos. Estava um dia soalheiro; fazia calor. Moritz e Joseph puseram-se à janela a ver o que se passava no pátio, pela rede de arame farpado.
- Sempre era verdade! - disse Moritz.
Tinham entrado no pátio três caminhões militares, parados às janelas deles.
Nos últimos dias correra o boato de que vinham mulheres para o campo. Noutros campos já isso acontecera. Os prisioneiros, porém, não queriam acreditar. Mas as mulheres lá estavam. Mulheres para eles. Os três caminhões vinham carregados de mulheres. Morenas, loiras, ruivas.
- Vês como era verdade! - disse lohann Moritz.
Ainda não queria crer, mesmo que as visse com os seus olhos. Mas as mulheres ali estavam. Moritz olhava para elas. Estavam pintadas, empoadas; traziam vestidos leves. Olhavam para as janelas onde os prisioneiros se amontoavam. E riam. Depois começaram a descer dos caminhões. Quando desciam dos caminhões o vento levantava-lhes as saias. Moritz via-lhes as combinações, as calças de todas as cores, finas como mortalhas de cigarros, bem como o grosso das coxas. Atrás das costas de Moritz os prisioneiros riam-se. Nem acreditava no que via; nem sequer podia rir.
- As mulheres não devem sair dos caminhões! - ordenou o comandante do campo. - Ninguém deu ordem para descerem!
A voz do alto-falante saía áspera e autoritária. Ninguém podia ver o comandante do campo. Falava da secretária. As mulheres voltavam para trás. Subiram para os caminhões mais pressurosas que à descida, encaixando-se umas nas outras. Temiam ser castigadas por terem descido antes da ordem.
Quando subiram para os caminhões os prisioneiros tornaram a ver-lhe os joelhos, as combinações e as calças de cores finas. Elas riam ainda. Mas desta vez riam baixo e na garganta.
- Dez mulheres para cada barraca! - ordenou o comandante do campo. - Ficam aí até às nove horas da noite. Os chefes das barracas receberam instruções especiais para o desenrolar do programa e são considerados responsáveis pela ordem e pela disciplina.
O alto-falante calou-se. As mulheres deixaram-se ficar sossegadamente nos caminhões. Esperavam novas ordens.
- Merda! - disse o francês; e rangeram-lhe os dentes.
Moritz pensou que o francês falava com ele e voltou-se. Joseph estava furioso e nem olhou para ele.
- As mulheres devem descer dos caminhões em ordem e por grupos! - ordenou a voz do alto-falante.
Era o que elas esperavam. Começaram a saltar dos caminhões e devidiam-se em cinco grupos. Cinco homens, os chefes das cinco barracas, vinham buscá-las e faziam-lhes sinal para os seguirem. As mulheres riam sempre, seguindo os cinco homens.
Moritz não calculava ’’como se cumpriria o programa”. Estava com curiosidade. Sabia bem que as mulheres iriam para a cama com os prisioneiros. Os alemães pretendiam que o rendimento do trabalho não era suficiente com prisioneiros sem mulheres. Os alemães queriam que o trabalho fosse bem feito. E por isso tinham mandado vir as mulheres, para que os operários trabalhassem melhor na fábrica dos botões, na fábrica das cordas e na fundição da cidade.
lohann Moritz não percebia por que é que os homens trabalhavam melhor quando tinham mulheres. E não percebia de maneira nenhuma como é que os prisioneiros se poderiam deitar com as mulheres nas barracas. Os dormitórios eram grandes e tinham muitas camas. Os homens eram muitos e havia poucas mulheres. Era impossível que cada prisioneiro se deitasse com uma mulher na cama. ”Talvez que passem de cama em cama!” pensou Moritz. Mas julgava que talvez as mulheres tivessem vergonha de passar de uns para os outros. Nunca pensara ver uma mulher na barraca, dado que as janelas estavam cheias de arame farpado. E contudo ali estavam elas, à porta.
O chefe da barraca falazava, provavelmente para lhes dar instruções sobre a maneira de proceder. Elas riam alto.
- Vamos embora, queres? - perguntou Joseph. - Vamos para onde estávamos há bocado.
Moritz saiu da barraca com o francês. Outros homens saíam também.
No limiar da porta, roçaram-se pelas mulheres. Cheiravam a perfume e a pó de arroz. Olharam para Joseph e para lohann Moritz, que saíam, e puseram-se a rir. Faziam pouco deles porque saíam da barraca.
lohann Moritz sentiu uma mão de mulher a fazer-lhe festas na cara. Baixou os olhos. A mão era perfumada é úmida.
- Salvete Sclavi! - disse Joseph quando passou por elas.
Recebeu como resposta algumas gargalhadas.
Joseph, esse não ria. Tinha a testa enrugada. Quando chegou ao pátio estendeu-se na relva e olhou para o céu. Moritz estendeu-se ao lado dele e começou a pensar nas mulheres. Joseph também devia pensar no mesmo, mas Moritz ignorava as suas reflexões.
- Podes ir, se quiseres - disse o francês.
- Não, não vou - respondeu Moritz.
E não disseram palavra. Era a primeira vez que o francês estava a seu lado sem falar de Beatriz.
- São polacas dos campos de concentração - disse Joseph. - Se as presas dos campos de concentração consentem em andar no ofício durante seis meses são postas em liberdade imediatamente. Mas em seis meses ficam completamente arrasadas. Deixam os campos de concentração para entrarem nos hospitais, no asilo ou no necrotério.
- Pensei que eram da vida - disse lohann Moritz. - Agora tinha pena. Não sabia que eram prisioneiras.
- Não são profissionais, Jean. - O francês chamava-lhe sempre Jean. - Estas mulheres são escravas e fazem um esforço danado para reconquistar a liberdade. São escravas que procuram quebrar as correntes sem ferramenta nenhuma, só com as suas pobres mãos vazias. É heróico. Infelizmente não conseguem quebrar as correntes. Rasgam a sua carne. As correntes da escravidão são mais fortes que a carne humana.
Às nove horas da noite as mulheres deixaram o campo. Quando subiram para os caminhões já não riam. Fumavam.
Joseph gritou-lhes, ao partirem, numa voz fraca e camarada:
- Salvete Sclavi!
Naquela noite, o francês fugiu do campo.
- Os oficiais têm necessidade dum intérprete para línguas balcânicas - disse o funcionário da fábrica, conduzindo lohann Moritz ao escritório. - São oficiais da O. K. W.!
lohann Moritz esperou à porta pelo menos uma hora. Introduziram-no finalmente. O fumo dos cigarros e o cheiro do vinho sufocaram-no. Em cima da mesa, copos e garrafas vazias.
Quando lohann Moritz entrou, ninguém se voltou para olhar, lohann Moritz ficou à porta. O fumo sufocava-o. Queria ter a coragem de dizer que não era um bom intérprete e voltar para os seus caixotes de botões. Pelo menos, lá havia silêncio; o fumo dos cigarros não o abafava. Admirava a lista das calças dos oficiais. Moritz contou-os: eram sete. Um deles aproximou-se e pôs-lhe a mão na cabeça. Depois fê-lo andar à roda como se fosse uma bola de brincar. Contemplou-lhe o perfil pelo lado direito. Depois o perfil pelo lado esquerdo.
- Volta-te! - disse. - Observava-lhe agora a cabeça. Depois apalpou-lhe os ombros e segurou-lhe o queixo com a mão. Disse-lhe que abrisse a boca e examinou-lhe os dentes. Em seguida ordenou: - Despe-te!
lohann Moritz despiu a sua farpela e pousou-a no chão contra a parede. O oficial olhava-o fixamente.
Enquanto lohann Moritz se despia, o oficial media-lhe todos os gestos. Os outros continuavam a falar e nem se interessavam por ele.
- Meus senhores - disse o oficial que tinha mandado despir Moritz, e que era um coronel S. S.; - meus senhores, quero fazer uma exibição aqui na vossa presença!
Todos se calaram e fecharam um círculo em volta de lohann Moritz, que continuava nu e perplexo diante deles. Tinham-no chamado para servir de intérprete e não percebia nada do que dizia o coronel. Passou em revista, em pensamento, as exibições do circo. Enquanto duravam as ”demonstrações”, chamavam um espectador ao tablado e o prestidigitador tirava-lhe do bolso gatos vivos, coelhos e pássaros. Para Moritz, isso é que eram exibições. Não conhecia outras. E agora ali estava o coronel, que queria fazer uma exibição com ele.
Talvez uma exibição como aquelas que tinha visto no circo quando era soldado. lohann Moritz estava intrigado. Sorria. Não tinha medo das exibições. Bem sabia que os homens que o prestidigitador escolhia na sala para exibir os seus truques não davam por nada. Ficavam simplesmente maravilhados. E ele também ficaria com certeza maravilhado, quando o coronel lhe tirasse, de baixo dos braços e dos pulsos, coelhos, gatos e pássaros. Moritz continuava a sorrir afàvelmente para o coronel. Moritz gostava muito de prestidigitadores. ”Nem que eu praticasse mil anos, nunca seria capaz de fazer como eles fazem!”, dizia lá consigo. Admirava o coronel, que sabia fazer habilidades, lohann Moritz lembrou-se das palavras de sua mãe. Costumava dizer que os homens de habilidades eram servos do diabo. Sentia-se vagamente inquieto. Já não sorria. O diabo metera-lhe sempre medo.
- Meus senhores - disse o coronel; - este homem entrou aqui há dez minutos no gabinete. Nunca o tinha visto antes. Nem sei mesmo por que é que o trouxeram aqui.
- É o intérprete que foi pedido por V. Exa. para húngaros balcânicos - disse o funcionário da fábrica.
- Tinha-me esquecido completamente que pedira um intérprete - disse o coronel. - Quando o vi entrar a sua figura impressionou-me.
O coronel pôs a mão na cabeça de lohann Moritz. Sorria. Moritz esperava com impaciência que o coronel lhe tirasse coelhos debaixo dos braços. O coronel estava sério. Mas lohann Moritz sabia bem que, no circo, todos os prestidigitadores eram homens sérios. Mesmo quando o público ria às bandeiras despregadas, o prestidigitador estava sério. Moritz esperava as gargalhadas. Estava-se preparando para rir ele também. Há muito tempo que não ria.
- Vi-o pela primeira vez ao mesmo tempo que os senhores, ainda não há dez minutos; não trocamos uma palavra, e no entanto posso contar-lhes com pormenores, tomando como ponto de partida de constatações científicas, a biografia deste homem e a história da sua família, há trezentos anos para cá.
lohann Moritz lembrava-se também de ter visto no circo números destes, quando era soldado.
O prestidigitador chamava um qualquer do público e dizia-lhe o seu nome, a idade que tinha, se era casado, uma data de coisas deste gênero. Toda a gente se espantava de que o prestidigitador soubesse tais segredos. Mas lohann Moritz não gostava daquelas habilidades. Não gostava senão dos truques dos gatos e dos coelhos. Tinha pena que o coronel não soubesse dos tais truques. Pelava-se por ver sair da sua algibeira um gato. No circo, comparecera também, diante do prestidigitador. Mas eram tantos que o homem das habilidades escolhia sempre outros.
- A ciência das raças fez tão consideráveis progressos no regime nacional-socialista - disse o Coronel Müller - que se acha portanto na dianteira dos outros países, pelo menos cem anos. Olhando para um indivíduo nu, posso dizer-vos quais foram os seus antepassados, os casamentos que fizeram e os costumes de sua família. Os senhores poderão constatar imediatamente as minhas alegações fazendo perguntas diretas sobre o assunto.
- Inacreditável! - disseram os oficiais. Tinham apertado o círculo à volta de Moritz.
- Pela conformação do crânio e o modelo da ossatura frontal, nasal e facial, pela estrutura do esqueleto e especialmente da caixa torácica e a posição das clavículas, o indivíduo pertence a um grupo germânico que vive hoje em dia em pequeno número no vale do Reno, no Luxemburgo, na Transilvânia e na Austrália. Ainda há talvez umas dezoito famílias na China e nos Estados Unidos, mas essas foram registradas nas estatísticas, porque a sua existência foi descoberta apenas alguns meses antes da declaração de guerra. Nas nossas estatísticas, que serão publicadas em numero especial, forneceremos os dados precisos, e pela primeira vez completos, sobre esse grupo germânico que tem o nome de ”Família Heróica”. Essa família compreende oitocentos membros, o máximo. Os seus antepassados emigraram por séries do Sudoeste da Alemanha aí pelos anos de 1500-1600. São alemães de espécie pura e conseguiram guardar até hoje o seu sangue puro de toda a mistura, contra todas as pressões fortemente exercidas sobre eles no decorrer da história. A raça, meus senhores, tem um instinto de conservação que transpõe muito mais vezes o do indivíduo propriamente dito. A ”Família Heróica”, da qual faz parte o rapaz que ali está na vossa frente, demonstrou suficientemente a tenacidade do instinto de conservação da nossa raça. Que causa pôde determinar, durante trezentos ou quatrocentos anos, os antepassados deste rapaz a desposarem unicamente mulheres da sua raça, quando à volta deles deviam existir outras mulheres muito mais atraentes? É o instinto de conservação da raça, a voz do sangue, que fez evitar aos membros desta família o pecado mortal do cruzamento das raças. Em toda a história desta família não há um único caso de casamento com mulher doutra raça. Aí está a única explicação do fato de, hoje em dia, quatro séculos depois, o rapaz que aqui está na vossa frente se parecer exatamente com os seus antepassados. Olhem-lhe para o cabelo forte mas sedoso. Exatamente o cabelo da ”Família Heróica”, tal como há quatro séculos, tal como ainda se encontra nas relíquias que chegaram até às nossas mãos. Não se confunde com outro cabelo; os especialistas classificam-no imediatamente. É levemente mais sedoso do que o cabelo dos principais grupos germânicos, mas é evidente que a raiz é a mesma. O nariz, a testa, os olhos, o queixo deste rapaz estão desenhados nas nossas estampas de há quatrocentos anos. Neste espaço de tempo não ocorreu mudança alguma!
Os oficiais tocaram na cabeça de Moritz e apalparam-lhe o cabelo. Olhavam para ele cheios de admiração. Moritz sentia-se o alvo de muitos olhos. Nunca fora contemplado de semelhante maneira. Era um herói, mas tinha medo de descobrir, de descontentar os oficiais. Custava-lhe não ter feito nada que merecesse os seus elogios - elogios que só eram (bem o sabia ele) para quem tinha a Cruz de Ferro com brilhantes e folhas de carvalho.
Os dedos do Coronel Müller apalparam de novo os ombros de lohann Moritz com admiração e devoção, como se tocasse nas relíquias de Santa Paroschiva, a santa milagrosa da igreja dos Três Hierarcas.
lohann Moritz baixou os olhos, envergonhado por não ter combatido na frente de Este e de não ter cometido algum feito de bravura.
- Este grupo a que nós chamamos a ’’Família Heróica” - continuou o coronel - oferece o maior exemplo de heroísmo social. O dia de hoje é um dia de festa, porque me foi enfim dado descobrir semelhante exemplar. Dir-vos-ei de passagem que um dos meus antepassados desposou uma jovem da ”Família Heróica”. Infelizmente não tiveram descendência, porque ele morreu na guerra três meses depois do casamento. Mas isso é um episódio secundário. Queria que a fotografia deste rapaz, acompanhada de dados antropométricos e históricos, figurasse na obra que estou preparando e em que já trabalho há mais de dez anos sob os diretivos do Dr. Rosenberg, Führer do Reich. E será esta a coroa de glória do meu trabalho.
- Queira V. Exa. aceitar os nossos parabéns! - disseram os oficiais, pondo-se em posição de sentido.
O coronel estava vermelho de comoção. Levantou o braço direito para saudar e apertar a mão a cada um dos oficiais. Moritz, imóvel, olhava para ele.
- Tu és da Renânia, do Luxemburgo ou da Transilvânia? - perguntou o coronel.
- Da Transilvânia - respondeu Moritz.
Os oficiais soltaram gritos de admiração. O Coronel Müller resplandecia.
- Vou localizar o domicílio exato do rapaz - disse o Coronel Müller; e, voltando-se para Moritz: - Nasceste em Timishuara, em Bracov, ou na região de Szeklers?
- Na região dos Szeklers - respondeu Moritz.
- Admirável! - disse o coronel. Esfregava as mãos de contente. - Não me podia enganar! Quando ainda agora abri a porta tive a impressão de ver surgir diante de nós uma personagem da galeria de retratos da Família Heróica. Conheço de cor os retratos dessa família. Todos os poderão admirar no meu livro. Em gravuras coloridas. Repito meus senhores: este rapaz é um perfeito exemplar da Família Heróica. Confirma toda a minha teoria. - O coronel pediu ao funcionário que trouxesse a ficha de Moritz: - Miseráveis! - exclamou o coronel, furioso, lendo a ficha. - Um membro da Família Heróica não pode nunca usar o nome de lanos. Este nome é um sacrilégio. - O coronel voltou-se para Moritz. Tinha a testa franzida. - Foi teu pai que te chamou lanos? - perguntou.
- Não, meu coronel. Não me chamo lanos - disse lohann Moritz. Queria dizer-lhe que se chamava lon.
- Seria a primeira vez que um membro da Família Heróica batizasse os filhos com nomes que não fossem os do calendário alemão! Nunca aconteceu tal coisa há quatrocentos anos para cá! Era impossível que este rapaz se chamasse lanos. Quem te deu este nome de lanos?
- Não sei - disse Moritz. - Quando cheguei à Alemanha há dois anos inscreveram-no nos meus papéis.
- Ele não se chama lanos! A Família Heróica teve que sofrer vexames semelhantes muitos milhares de vezes! Os povos, no meio dos quais tiveram que viver, mudaram-lhes os nomes sem jamais conseguirem alterar-lhes o sangue. O sangue da Família Heróica continuou puro como uma lágrima de cristal. - O coronel dirigiu-se ao funcionário da fábrica e disse-lhe: - Este rapaz, a partir de hoje, está a disposição do Instituto Nacional de Estudos da Raça. Temos necessidade de tão puro exemplar.
- Não volta a trabalhar na fábrica?
- Não! - respondeu o coronel secamente. - Mandarei depois ordens especiais para o caso.
O coronel olhou para lohann Moritz e pensou: ”A ciência faz progressos extraordinários. Mas estamos bem longe ainda da perfeição. Este exemplar de escol, este representante dum grupo étnico extremamente interessante devia ser conservado num Jardim Antropológico, que abrigaria todos os tipos raros e preciosos da raça humana. Mas esse jardim não está ainda fundado, infelizmente. Na Europa temos parques de seleção e conservação das diferentes raças de animais e de pássaros. Mas os preconceitos impedem-nos de fundar parques antropológicos. É uma grande perda para a ciência. Neste capítulo, os americanos passaram-nos à frente. Têm parques onde guardam interessantes exemplares de índios. Mas nós também os havemos de fundar na Europa. Antes de mais, é preciso que venha a Vitória. Numa das próximas conferências proporei a fundação do primeiro parque antropológico. A ciência terá assim à sua disposição exemplares raros, que poderá estudar à vontade. Este membro da Família Heróica será um dos primeiros elementos de ornamentação do nosso parque, e sou eu que faço a dádiva’.
O Coronel Müller olhou para Moritz e sorriu. Via-o já no Parque Antropológico, no Pavilhão da Raça Alemã, com a mulher e os filhos.
- Este sonho será realidade um dia... - disse o Coronel Müller. - Por agora temos que dar a este rapaz uma ocupação digna da sua origem. O que mais o encantava seria a carreira de soldado. Conheço a Família Heróica. É o grupo mais guerreiro da raça germânica. Dêem-lhe, pois, ensanchas de ser soldado.
Os oficiais felicitaram de novo o Coronel Müller. A sua proposta agradara-lhes. O coronel corou de orgulho novamente. Pediu a sua pasta ao ajudante e escreveu no topo dum papel timbrado das iniciais O. K. W. uma recomendação para o alistamento de lohann Moritz como soldado da S. S. Em seguida estendeu a folha de papel ao funcionário da fábrica.
- Cumpra todas as formalidades necessárias! - ordenou ele. - Sem demora! - O Coronel Müller voltou-se, sorrindo, para lohann Moritz: - Por todo o mês que vem quero receber uma fotografia tua com o uniforme de soldado. Vai ser preciosíssima para os meus estudos sobre a Família Heróica, à qual pertence. Hei de mandar uma ao Dr. Goebbels. E poderás ver-te nos jornais e nas revistas ilustradas.
- Este homem é inapto para o serviço militar - disse o capitão médico da comissão de recrutamento, depois de ter examinado lohann Moritz. - Tem manchas no pulmão direito. Os soldados devem ter os pulmões sólidos.
Já tinham passado três semanas depois da entrevista de Moritz com o Coronel Müller. lohann Moritz pensara primeiro que os soldados recebiam quase meio pão por dia, botas grossas que não deixavam passar a água, e que comiam bem e tinham cigarros para fumar. Sabia que mais valia ser soldado que prisioneiro. Apesar de tudo ficou contente quando lhe disseram que o não aceitavam.
Este moço é recomendado pelo Coronel Müller, do Grande Quartel-General e do Instituto Nacional de Estudos da Raça
- disse o doutor, folheando o dossier. - Não o podemos reformar. Os três doutores olharam para Moritz: - Sabes fazer serviço de secretaria? - perguntou o capitão. - Que profissão tinhas tu como paisano? Lavrador - respondeu Moritz.
Os doutores consultaram-se, dizendo a Moritz que esperasse lá fora o resultado da conferência. Quando o tornaram a chamar comunicaram-lhe que o consideravam apto para todo o serviço e deram-lhe a guia com que devia apresentar-se na unidade.
- Estás apurado para o serviço auxiliar - disse o capitão.
- Como não podes fazer serviço de secretaria porque não sabes, serás matriculado numa companhia de guarda.
O comandante disciplinar apitou para dar sinal de almoço. O soldado lohann Moritz tremia à espera do sinal. Esquecera-se de todo que estava de guarda na guarita e pusera-se febrilmente à cata da marmita. Fêz-se vermelho de raiva. ”Que pateta que eu sou!” - disse ele, apertando a espingarda nas mãos. ”Esquecia-me outra vez de que estou de sentinela e que não sou prisioneiro.
Há três dias que estava naquele posto e tinha o mesmo impulso a cada chamada de apito. Não lhe cabia na cabeça que já fosse um soldado. Vendo o arame farpado que contornava o campo e a fila dos prisioneiros, esquecera-se completamente onde se achava e supunha-se ainda encurralado. Tantos anos passados nos campos de concentração tinham acabado por lhe meter no sangue e na pele a idéia de que era um prisioneiro perpétuo. Não podia pensar outra coisa. Quando alguém o vinha render, Moritz tremia todo, julgando que o soldado o que vinha fazer era prendê-lo. Naquele próprio momento, vendo os prisioneiros em bicha diante das marmitas de sopa, Moritz esqueceu-se de que estava na guarita e perguntava por que é que tardava tanto a sua vez de sopa. Via-se com os prisioneiros na forma.
Moritz procurara com a vista, desde o primeiro dia, pessoas conhecidas no meio dos prisioneiros. Não encontrava nenhuma, e pasmava. Na Alemanha passara por dezenas de campos e devia ter tido como camarada ao menos um dos prisioneiros de Straflager. Gostaria de tornar a ver alguns dos seus conhecidos. Não tinha licença de falar com prisioneiro nenhum. Mas gostaria de descobrir, mesmo que fosse de longe, alguma cara amiga.
lohann Moritz esqueceu-se de novo de que era soldado e sentinela e largou-se a gritar:
- Joseph! Joseph!
Os prisioneiros juntos no pátio olharam-no. Joseph olhou para ele também e começou a comer. O francês não o reconhecera. Moritz ainda o chamou outra vez. Joseph ficou de marmita na mão e afirmou-se. Depois afastou-se mais.
- Não me conheces? - gritou Moritz. - Sou o lanos Moritz!
- Salve, Sclave! - disse, rindo, o francês. Agora sim, tinha-o reconhecido. Pôs a marmita no chão e aproximou-se da barreira de arame farpado. - Como é que vieste aqui ter, Jean? - perguntou Joseph.
lohann Moritz contou-lhe em poucas palavras como passara a soldado. Joseph agora entendia melhor o alemão. Mas separava-os uma grande distância e mal se compreendiam.
- E tu, como é que chegaste aqui?
-• Apanharam-me, cinco dias depois de eu fugir - respondeu Joseph. - Queres-te encarregar de mandar uma carta a Beatriz? Não temos licença de escrever e não tenho notícias dela vai já em quatro meses.
lohann Moritz perguntou-lhe o endereço. O francês escreveu-o num bocado de papel. Enquanto Joseph escrevia, o soldado lohann Moritz tirou da algibeira o maço de cigarros que recebera na Companhia, na véspera, e atirou-o por cima do arame farpado, para o pátio do campo, aos pés do francês.
- Amanhã trago-te mais cigarros e pão - disse Moritz. - Ainda esta noite mando a carta.
Joseph dobrou-se, pegou um maço de cigarros e atirou o papel de Beatriz metendo-lhe uma pedra dentro. Mas o papel foi cair no meio do arame farpado. Joseph queria escrever outra vez a direção.
- Deixa, que eu vou buscá-la - disse Moritz. - A mim não me fuzilam eles se me chegar à barreira.
Quando lohann Moritz descia os degraus da escada da torre da guarda viu vir ao longe, em direção a si, o cabo que o devia render, subiu, precipitadamente as escadas e gritou a Joseph:
- O cabo vem aí e eu já não posso apanhar o endereço. Amanhã às nove horas estou no meu posto e vou buscar o papel. Espera por mim. E agora adeus!
- Salve, Sclave! - respondeu Joseph.
Afastou-se acendendo um cigarro. Vestia o mesmo fato cinzento, um pouco mais esfarrapado que de antes, e estava magríssimo. No campo comia-se muito mal.
Enquanto o cabo o rendia, lohann Moritz olhou para Joseph pelo canto do olho e disse para consigo: ”Amanhã trago-te um pão inteiro.”
Nessa noite lohann Moritz teve febre. No dia seguinte foi transportado numa ambulância ao hospital. Sabia que Joseph devia esperar por ele junto ao muro, à procura do pão e do maço de cigarros prometido. E ainda tinha que apanhar o papelinho com o endereço de Beatriz. Custava-lhe que o francês o esperasse em vão e ficasse descoroçoado. ”Pobre Joseph!”, pensou lohann Moritz. ”Se calhar esperou com impaciência que amanhecesse e que eu lhe desse o pão às nove horas!”
lohann Moritz consolou-se ao pensar que, dali a dias, estaria restabelecido e lhe poderia levar todos os dias pão e cartas de Beatriz. Mas lohann Moritz tinha uma pneumonia dupla. Permaneceu dois meses no hospital militar.
No 1.” de fevereiro disse-lhe o doutor:
- Esta semana podes sair do hospital. Tens trinta dias de convalescença.
lohann Moritz pensou que, se tinha aquela licença, não podia ir ver Joseph. O francês esperava, sem dúvida, que lohann Moritz apanhasse o endereço de Beatriz e lhe escrevesse. Ele estava à espera do pão e dos cigarros prometidos.
lohann Moritz decidiu-se a renunciar à convalescença e apresentar-se na Companhia.
- Tens que te restabelecer, rapaz - disse o doutor. - Precisas comer e repousar. Senão estás pronto. Onde queres tu gozar a tua convalescença?
lohann Moritz já não teve coragem de lhe dizer que renunciava à licença. Mas corou.
- Compreendo - disse o doutor. - Não tens para onde ir. Eu podia mandar-te para um sanatório de convalescentes, mas parece-me que não é disso que tu precisas. Precisas de uma atmosfera quente, familiar...
lohann Moritz enterneceu-se. O doutor adivinhara-lhe os pensamentos. Ele não queria dinheiro, nem sanatório, nem boa comida. Queria mas era um lugar onde pudesse estar como em sua própria casa.
- Precisas de uma mulher que te trate e te ajude - disse o doutor. - De contrário, nunca mais te curas. Nos sanatórios para convalescentes encontras mulheres quantas quiseres. Mas estão lá só para as necessidades sexuais. Um doente no teu estado físico e psíquico não é desse artigo que precisa. Tu, meu rapaz, o que precisas é ternura, não é excitação.
O doutor lançou um breve olhar em volta. Estava seguro do diagnóstico. Sabia o que convinha ao seu doente. A sua consciência profissional mandava-lhe que prescrevesse a ternura, a atmosfera familiar, a confiança, a dedicação de uma mulher. Mas não podia oferecer ao doente semelhantes medicamentos. Contudo o doente não podia curar-se sem isso. O olhar do doutor fixou-se numa enfermeira que tinha ao lado, com fichas na mão.
- Schwester Hilda! - disse o doutor. - A menina mora na cidade com sua mãe?
- A dois passos do hospital - respondeu ela - Moro com minha mãe.
Hilda olhou para o doutor, olhos nos olhos, com a confiança de um soldado que espera, disciplinado, as ordens do seu oficial. O doutor sorriu. Tinha a impressão de haver achado o artigo necessário.
- Confio-lhe lohann Moritz, e vai tratá-lo tal e qual como se fosse seu marido. Dentro de um mês vai trazer-mo completamente restabelecido. Quero vê-lo antes de o mandar regressar à sua unidade. Ele precisa de uma mulher que seja ao mesmo tempo amante, irmã e mãe!
- Comprendo, doutor!
Era uma rapariga de cara rosada e bochechuda. Hilda tinha vinte anos. Era pequena de corpo e gorducha. O doutor examinou-a, satisfeito. Julgava ver nela a ternura precisa a lohann Moritz. Olhando-lhe para o cabelo, disse de si para si: ”É melhor que seja loira. Uma morena não estava nas condições do doente. As loiras acalmam pela sua simples presença”.
- A menina vai ter uma licença de catorze dias para isso - disse o doutor. - Durante esse tempo ocupa-se exclusivamente dele. Só precisa requisitar comida todos os dias na cozinha do hospital. Mas é preciso que também faça a sua cozinha em casa. Ele precisa de pratos preparados com carinho e não de refeições tiradas da marmita do rancho.
- Compreendo, doutor! - disse Hilda. Sentia-se ufana com a missão. Sabia que todas as colegas ficariam com ciúmes dela.
- A menina tem quarto independente?
- Claro que tenho! - disse Hilda corando.
- Parece-me que o rapaz lhe agrada... - disse o doutor. Sem esperar mais resposta, ordenou: - Prepare-lhe a alta dele, as licenças para ambos, e um vale de alimentação para trinta dias, duas pessoas, e suplementos, categoria A.
- Jawohl - disse Hilda; e abriu a porta.
O doutor parou na soleta, olhou para lohann Moritz e disse-lhe a correr.
- Até breve, rapaz! E vem depressa, curado!
85
lohann Moritz deitou uma vista de olhos ao pátio do hospital. Caía neve. Via ao fundo a barreira de arame farpado. Ficou muito tempo à janela. De repente duas mãos frias tocaram-lhe nos olhos. Moritz voltou-se. Era Hilda. Tinha-se esquecido completamente dela. E as palavras do doutor, também as tinha esquecido.
Veste o fardamento e vem à caixa receber o teu pré - disse Hilda: - Tenho a alta do hospital e a licença. A minha também já aqui está assinada.
Hilda falava depressa. Ajudou-o a vestir a farda. Pôs-lhe a mão no pulôver para lho consertar. lohann Moritz sentiu a mão de Hilda no peito e teve a sensação de que era uma mão familiar, uma mão conhecida há muito tempo. Ela vestia-o como se ele fosse há muito o seu verdadeiro menino, ou o seu marido.
Até àquele dia, Hilda tinha sido distante e fria com ele. Trazia-lhe os remédios, tomava-lhe a temperatura e ia-se logo embora. Mas agora tornara-se bruscamente meiga e íntima. Mais Intima, até, que Susana e Julisca.
Moritz sentia que Hilda se apaixonara por ele. Apaixonara-se bruscamente: por ordem do doutor. Amava-o. Cumpria afinal a promessa feita ao doutor. A mão que tinha tocado a pele de Moritz no peito, que arranjara o pulôver e abotoara os botões do capote era a mão de uma mulher verdadeiramente amorosa. Como o doutor mandara.
- O doutor deu-nos licença de levar uma cama do hospital - disse Hilda. - Uma cama grande e branca, da secção de cirurgia. Com dois cobertores de lã. A minha era muito pequena para duas pessoas. - Hilda pensava na cama. - O doutor disse que não te devo excitar muito - disse ela. - E é perfeitamente natural. Estiveste gravemente doente. Mas depois de uma semana de dieta, boa comida e descanso, tudo há de mudar.
- O que é que há de mudar? - perguntou Moritz. Hilda precipitou-se e beijou-o sofregamente nos lábios:
- Verás!
lohann Moritz recebeu o pré. Não se sentia feliz. Tinha cumprido uma ordem. Não era a ordem para trabalhar nas fortificações ou na fábrica de botões, ou de fazer guarda ao campo. Tinham-no mandado ir com Hilda, ter relações com ela durante um mês, para se curar, psíquica e fisicamente. Era uma linda ordem! Mas era uma ordem. E ordem alguma deste mundo o podia fazer feliz.
- Sabes - disse Hilda, depois de uma semana de vida comum com lohann Moritz; - se nos casarmos tenho catorze dias de licença. - Fitou-a com tristeza. - Disseste ontem que nos íamos casar - continou ela.
- É verdade - disse Moritz. E lembrou-se de que na véspera bebera com Hilda e sua mãe cinco garrafas de vinho.
- E por que não havíamos de casar? - disse Hilda. - Se nos despacharmos, arranjo uma licença complementar. E tu também tens a tua. Dão-nos uma parte de casa, com que mobiliá-la e um prêmio de dois mil marcos. Não dormes no quartel senão quando estiveres de serviço. Já falei à minha mãe e creio que a melhor coisa a fazer era casarmos já. - Moritz estava calado. Hilda julgou que ele não queria passar a licença em andadas - Não é preciso incomodares-te - disse. - Ficas em casa como agora, a descansar em sossego. Eu trato de tudo o que é preciso no Standesamt, no Wohmingsamt, no Ernaehrungsamt, no Arbeitsamt, no Poüzeiamt (1) enfim, seja onde for. O principal é que tu não te canses.
lohann Moritz concordava. Os argumentos de Hilda eram lógicos. Casando, só tinham vantagens. E casaram. Ficaram com uma parte de casa com três quartos, casa de banho e cozinha. Deram-lhe também os dois mil marcos, bem como os tickets para a colchoaria, a roupa, os móveis, a loiça, a lenha, o carvão, o vinho e a carne para a boda, um rádio e muitas coisas mais.
- Éramos parvos se não nos casássemos, já que temos tanto interesse em fazê-lo - disse Hilda, ajudando lohann Moritz a vestir-se para ir ao quartel.
- Não dormes melhor em casa que no quartel?
- Pois claro! - respondeu ele.
- E os pratos que te faço à noite, não são melhores que o que comes na Companhia? - Hilda estava encantada. - Dentro de dois meses declaro que estou grávida, tiro outra licença, de maneira que podes almoçar em casa na mesma. Venceremos mais alimentos. As grávidas têm direito a três cartas de alimentação. Podes comer a desbancar. Gostava tanto de te ver engordar!
lohann Moritz sorriu e disse-lhe:
- Hilda! És uma santa rapariga!
O posto da Guarda de Fântâna recebeu uma dupla circular para pôr no placar. Nicolae Dobresco leu-a: ”O judeu Moritz, lon, que também dá pelo nome de lohann, dito lacob, dito lankel, é procurado por todos os postos de polícia do país. Evadiu-se de um campo de trabalho. Todos aqueles que o albergarem ou saibam do seu paradeiro e que o não denunciem às autoridades serão presos”.
(1) Repartição do Registro; Rep. do Alojamento; Rep. do Racionamento; Rep. do Trabalho; Polícia.
No canto direito da circular havia a fotografia de lohann Moritz, de face e de perfil. O comandante do posto olhou para ela e disse: ”Este indivíduo é realmente judeu!” Mandou chamar um guarda:
- Pega na espingarda e traz-me já a mãe e o pai do judeu
- ordenou. - Cola a circular lá fora, na parede. Cola-a bem colada para não voar ao primeiro pé de vento.
Caía neve em Fântâna. O comandante do posto olhou para a janela. Na estrada defronte da Guarda passava nesse momento o Pé. Koruga. Tinha os ombros derreados e uma pasta debaixo do braço. Pouco tempo depois o guarda voltou.
- Trouxe só a mulher - disse o guarda. - O pai está doente. - O comandante do posto enfureceu-se. Queria interrogar os pais do judeu ao mesmo tempo. - Se o meu sargento quer, trago-o à força - disse o guarda. - Mas ele não se pode ter nas pernas. Puxei o cobertor e vi. Tem o corpo inchado como um odre.
O comandante do posto refletiu um momento. Depois desistiu de interrogar o pai de lohann Moritz. Mandou que o soldado introduzisse a mulher, que esperava diante da porta. Aristitza entrou na secretaria, pálida de raiva.
- Então atreves-te a mandar o guarda procurar-me com uma espingarda às costas, como uma criminosa? - exclamou.
- Não tens bastantes ladrões e criminosos para trazeres ao posto e começas a prender gente de bem em seu lugar? Ou fui por acaso eu que cometi um crime?
Aristitza perdera a cabeça. Quando o soldado entrou em casa para a levar, Aristitza decidiu arrancar os olhos ao comandante do posto.
- Não és uma criminosa - disse o sargento. - O teu filho é que é procurado pela polícia.
Aristitza olhou para a circular que o comandante do posto lhe estendeu e, vendo o retrato do seu rapaz, desatou a chorar. ”Como ele emagreceu!”, pensou. Se lohann emagrecera, é por que o tinham maltratado, e nada mais a interessava.
- Lê! - bradou o guarda.
- Para quê? - disse ela, enxugando os olhos. - Estou a ver o retrato e sei que ele morre de fome, que vai ser comido pelos piolhos, que lhe batem e está aferrolhado. Que queres tu que eu leia? Basta-me isto!
O guarda leu a circular em voz alta. Aristitza cortou-lhe a palavra logo à primeira frase: - Lê outra vez, guarda! - disse ela. - Quem sabe se não entendi bem. Tu disseste: ”O judeu lon Moritz”, não foi? Se leste bem, então não se trata do meu filho! Eu não tenho nenhum filho judeu!
O comandante do posto estendeu-lhe a circular. Aristitza enterneceu-se outra vez, ao ver até que ponto emagrecera o seu filho.
- É ele ou não é? - perguntou o guarda.
- É o pobrezinho, é! - respondeu Aristitza. - Deus nunca perdoe os pecados aos que o aferrolharam!
- Reconheceste-o? - disse o guarda. - Então por que é que ainda teimas que ele não é judeu? Não temos tempo a perder. Era melhor que ouvisses bem o que te estou a ler. Tudo o que possas dizer não tem valor nenhum. És um particular. Eu só acredito no que dizem os oficiais. Este papel é um ato que emana da autoridade. Portanto é sagrado. E diz aqui que o teu filho é judeu.
- Se te atreves a dizer mais uma vez que o meu filho é judeu, tiro-te os olhos. Queres-me desesperar? Pobre criança! Quando se foi era bonito e desempenado como um pinheiro, e agora não tem senão a pele e osso!
- Não insultes a autoridade! - disse o guarda. - Senão, levanto-te um auto por ofensas a um agente da força pública!
- Eu fiz o meu lon com o meu homem, não foi com a autoridade! - disse Aristitza. - Fui eu que o trouxe na barriga e Lhe dei o meu leite, não foi a autoridade. E sei que ele não é judeu!
- O Ministério do Interior afirma textualmente, nesta circular, que lon Moritz é judeu.
- Que o Ministério do Interior mo venha dizer aqui, se é capaz! Escarro-lhe nas ventas, se julga que conhece melhor do que eu o filho que eu trouxe na barriga!
- Se és romena, talvez que teu marido seja judeu. Um de vocês é com certeza. Isto que aqui está é um documento oficial. Talvez que nem vocês saibam que o são.
- Estarás bêbado? - perguntou Aristitza. - Como é que eu não havia de saber diante de que imagem ajoelho e qual é o meu Deus?
- Não se trata de santos - disse o guarda. - Pode-se ser judeu cristão. Trata-se mas é do sangue.
- O meu rico sangue e o do meu homem é sangue de cristão. Mas os que levaram o meu filho e o fazem sofrer nas prisões são pagãos.
- Tens a certeza de que teu marido é cristão? - perguntou o guarda, insinuando. - Durante todos estes anos de vida juntos podias ter talvez dado por alguma coisa. Para os homens a prova é mais fácil do que para as mulheres. Ou quem sabe se o não conheces por miúdo?
- Atreves-te a dizer que não conheço o homem com quem dormi durante trinta e cinco anos? - berrou Aristitza. - Até uma mulher da vida repara no homem que se mete com ela na cama, e atreves-te a dizer-me que dormi trinta e cinco anos ao lado do meu homem sem o conhecer? A autoridade talvez saiba melhor do que eu como é o rapaz que a gente ambos fizemos? A autoridade e tu, guarda, vêm-me pedir, a mim, contas do que eu trouxe na barriga e a quem dei de mamar?
Os olhos de Aristitza estavam pregados no tinteiro que tinha diante de si. Aristitza via tudo vermelho. O tinteiro que ela queria apanhar para o atirar à cabeça do guarda era vermelho. As paredes eram vermelhas. E o guarda, vermelho também.
O guarda percebeu a direção do olhar e puxou prudentemente o tinteiro para si. Os dedos de Aristitza agarravam-se à saia com fúria, como se tivesse o pescoço da autoridade nas mãos. Quando o tinteiro lhe desapareceu de diante da vista, sentiu que lhe tinham confiscado a última arma.
Aristitza rangia os dentes. Depois pegou na roda da saia com as mãos ambas e deitou-a pela cabeça. A saia larga e pregueada de Aristitza voou, como que sacudida por uma tempestade. A camisa também se lhe tinha desprendido. O seu corpo de pele encarquilhada e olivácea estava nu. Os seios pendiam-lhe como dois sacos vazios e escuros. O guarda viu assim, durante alguns instantes, toda a nudez de Aristitza, de frente, de costas e de perfil. E fechou os olhos. A porta da secretaria bateu furiosamente. As paredes tremeram. Do teto caíram bocados brancos de gesso.
Aristitza saíra. A sua voz ainda ressoava como um cláxon rouco aos ouvidos do guarda:
- Aqui está a minha resposta! Lambam-nos vocês, tu e a tua autoridade, um atrás do outro!
Ao chegar a casa, Aristitza desvencilhou-se do xale que lhe cobria os ombros e acocorou-se diante da porta. Pôs umas achas no lume e viu as chamas, compridas e vermelhas, dançarem-lhe diante dos olhos. As lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo. ”Não digo nada ao meu homem!” pensou. ”O pobre está doente e não o quero atormentar.”
Aristitza virou a cabeça. O velho dormia de costas. Através das lágrimas, olhou para ele e pensou em lon, que a autoridade e os guardas torturavam havia cinco anos em todas as prisões, tomando-o por um judeu. ”E o pobre, coitadinho, não é. Se fosse judeu não estaria aferrolhado. Mas lon é um simplório que acredita em tudo o que lhe dizem. Se lhe baterem para confessar que é judeu, confessa-o! E a autoridade acredita!”
Aristitza assim esteve, de cabeça entre as mãos, a chorar. Não se podia conter. Tinha que dizer ao marido que o retrato do filho estava impresso nos cartazes verdes como os das eleições e que os tinham colado à porta do posto da Guarda. ”Mas não lhe digo que lon está magro como um cão. Ia ter um grande desgosto. Mas hei de lhe contar como é que o guarda me garantia que lon era judeu.”
- lançou! - gritou Aristitza. - Acorda! Se dormes todo o dia, de noite não descansas!
O velho não respondeu. Quando o acordavam, não respondia nunca. Mas agora não estava a dormir. Tinha os olhos muito abertos e ouvia com certeza tudo o que lhe dizia. Mas era muito preguiçoso para responder.
- lançou! - disse ela. - O guarda disse-me que tu eras judeu. Que topete, hem? Mas respondi-lhe à letra.
A Aristitza pareceu-lhe que o seu homem sorria. Tinham ralhado muito durante os seus trinta e cinco anos de casados. Mas ela tivera-lhe sempre muito apego. Ralhava-lhe porque ele era bom, para os demais. Todos o levavam no embrulho. Mas gostava muito dele. Aristitza gostava do seu homem com toda a força da alma.
- lançou! Se tu não melhoras daqui até amanhã de manhã, vou à cidade chamar o doutor - disse ela. - Vendo um porco e pago ao doutor. Se melhorares compramos outro. Mas tens que melhorar, tens! - O velho não respondia nada. - Abre os olhos, lançou! Quero-te dar um cigarro - disse ela. - Tenho ali um escondido para ti. - Levantou-se e tirou da trave um cigarro que pusera de parte para o seu homem. - Tens fósforos ao pé de ti? - perguntou ela, aproximando-se da cama com o cigarro na mão. Ela é que queria meter o cigarro na boca do marido, como fazia às vezes, de manhã, nos primeiros tempos de casados. Aristitza
sabia que ele não abriria os olhos, mas que arrepanhava os beiços assim que sentisse o cigarro.
Hoje, porém, os beiços inchados do velho não mexiam. E mesmo quando Aristitza lhe chegou o cigarro permaneceram imóveis.
- Que tens, lançou? - disse a mulher.
Pegou-lhe por um ombro e sacudiu-o. Ao tocar-lhe com a mão, Aristitza sentiu, através da camisa, a pele fria do homem. Apalpou-lhe a testa. A testa estava gelada. O velho estava morto.
Aristitza largou-se a gritar. Depois quis fugir para o seu quarto. Mas arrepiou caminho e tornou para o pé do morto. Com o fósforo com que lhe queria acender o cigarro acendeu uma vela e pô-la à cabeceira da cama. Chorava em altos brados, pois bem sabia que já ninguém ali estava para a poder ouvir...
Aristitza chorou até mais não poder. Estava estafada. Carpia-se a meia voz. Chorava assim baixinho ao pé do morto, sem palavras, sem bulha, quase que em pensamentos. Mas a sua dor nem por isso era menor.
Depois, o pensamento também se lhe cansou. Os seus prantos cessaram. Então, Aristiza viu-se só consigo própria. Enquanto chorava, era como se alguém estivesse ao lado dela. Queria recomeçar, mas não podia mais. Pôs-se em pé e atiçou as brasas. Pôs água ao lume para o jantar. Como todos os dias. Puxou as cortinas das janelas. Quando acabou tudo isso, sentiu-se ainda mais só. Estava tonta, exausta. Olhou para a cara do morto. Aristitza não tinha medo dos mortos. Naquela noite ia dormir sozinha com o morto no quarto. E as três noites seguintes, até que o enterrassem ficaria ali em casa, sozinha diante da morte.
Aristitza lembrou-se das palavras do guarda: ”Talvez teu marido seja judeu!” Estava especada a meio do quarto, de braços encruzados no peito, e não sabia que fazer. A água fervia mas ela não tinha fome. A cama estava aberta, e podia estender-se ali. Mas não tinha sono. Devia mexer-se, porém, fazer uma coisa qualquer, custasse o que custasse. Tinha o cérebro e o corpo sacudidos, transtornados pela dor. Não se podiam aquietar. Era preciso mexer-se. Depois, ainda havia a solidão. Puxou uma vez mais as cortinas. Então chegou-se ao morto. Parecia-lhe que o guarda estava a seu lado e lhe dizia: ”Talvez teu marido seja judeu!”
Aristitza olhou para o morto. Depois afastou o cobertor. O morto estava inchado. Aristitza lançou um olhar à camisa e às calças de burel que tantas vezes lavara e passara com suas próprias mãos. Desapertou o cós das calças e puxou-lhas até aos joelhos. A pele do morto estava roxa.
- Por que é que hás de ter vergonha? - disse Aristitza em voz alta. - É o meu homem!
Lembrava-se do tempo em que eram ambos novos e o via nu ao pé dela. Agora o corpo do seu homem estava roxinho de todo. ”Teu marido talvez seja judeu!” A frase soou uma vez mais ao ouvido de Aristitza. A mão dela procurava ao nível do baixo-ventre as partes do marido. Estavam roxas também, como as pálpebras, o nariz, os lábios. Roxas e frias. Aristitza tirou as mãos. Estremecera. Puxou rapidamente as calças do morto e tornou-o a cobrir. Depois pôs-se em pé e persignou-se. Tremia toda.
- Meu Deus! Graças Vos sejam dadas porque parei a tempo. - Persignou-se outra vez. - Se tenho ali posto os olhos ardia no meio do Inferno! Era um grande pecado! Mas não olhei, não vi nada. E não quero ver nem saber se ele era judeu ou não. Não quero! - Aristitza olhou para o morto. - Perdoa-me, lançou - disse ela a chorar. - Juro-te que não vi nada e que não queria ver nada. Tu bem sabes, lançou, que nisso nunca peguei. Conheces-me bem; bem o sabes! O guarda e a autoridade meteram-me o pecado na cabeça. Que estoirem no meio do Inferno, ambos os dois!
O soldado lohann Moritz percorreu as ruas da cidade, escoltando cinco prisioneiros. Eram sete horas da manhã. Passando diante de casa, Hilda veio à janela e fez-lhe sinal com a mão. Tinha Franz nos braços, o filhinho. Moritz ouviu a voz de Hilda: ”É o teu pai, sabes? Olha! Tem um capacete e uma espingarda!”
Franz só tinha três meses. Não podia ver Moritz com uma espingarda escoltando prisioneiros através da cidade. Mas Hilda mostrava-lhe todas as manhãs o mesmo quadro, para que ele ficasse todo desvanecido com o papá. Desvanecido como ela, Hilda, estava.
lohann Moritz pensou durante todo o caminho em Hilda e na criança. Logo que saíram da cidade, os prisioneiros atravessaram uns pastos. Moritz seguia-os silencioso, de arma ao ombro. Depois meteram-se por abaixo de uma ponte. Era o seu cantão de trabalho. Moritz seguia-os. Ao chegarem à margem, os prisioneiros voltaram-se para Moritz a rir à gargalhada. Ali, ninguém os podia ver.
- Salve, Sclave! Dormiste bem? - perguntou um dos prisioneiros apertando camaradamente a mão de Moritz. Era Joseph.
- Salve, Sclave! - respondeu Moritz. Apertou a mão aos outros prisioneiros e, encostando a espingarda a uma pedra, entreabriu o capote e tirou um pedaço de pão e cinco maços de cigarros.
- Ainda te devo quinze marcos - disse Moritz estendendo os cigarros a Joseph. - Não pude comprar sabão. Vou trazer-to amanhã. Tirou um pão do bornal e deu-o a Joseph. Os prisioneiros sentaram-se e acenderam cigarros. Moritz fumava também. Todas as manhãs, desde que trabalhavam naquela ponte, repousavam e riam assim, coisa de meia hora, debaixo da ponte, com Moritz. Depois atiravam-se ao trabalho até ao meio-dia. Era a melhor hora do dia, tanto para os prisioneiros como para Moritz. Ele dava-lhes as cartas que recebia de França para eles, com o seu endereço, os cigarros, o pão e tudo o que comprava na cidade para eles. Depois começavam a trabalhar. A maior parte das vezes, Moritz dava-lhes uma ajuda. Fazia-o discretamente, para não ser surpreendido. Mas fazia-o com prazer. Os prisioneiros não queriam. Mas ele tinha pena deles. Os cinco prisioneiros eram todos intelectuais e não sabiam lá muito bem como desenrascar-se. Moritz pegava na enxada e exemplificava. Estava acostumado àquela qualidade de trabalho.
- Ó Jean, olha que hoje temos de falar de uma coisa - disse Joseph.
Os outros prisioneiros puseram-se de pé e começaram a trabalhar. Ouviam-se as pás e as enxadas bater na pedra, com pancadas regulares.
- Vamo-nos evadir - disse Joseph, logo que se apanhou sozinho com Moritz. - Não é hoje; mas um destes dias vamo-nos evadir todos cinco.
Moritz olhou para o francês. Julgava que Joseph estava a brincar. Mas Joseph não brincava.
- Que mal te fiz eu, a ti e aos outros, para vocês fugirem? - perguntou Moritz. - Vocês querem que eu vá apodrecer na prisão o resto da minha vida? - Moritz estava pálido de cólera. - Bem sabes que nunca teria coragem de fazer fogo sobre vocês, no caso de fugirem - disse Moritz. - Eu não vos posso matar. E, se não faço fogo sobre vocês, sou preso. Mas parece-me que estás a caçoar.
- Não, não estou a caçoar - disse Joseph. - Vamo-nos evadir. Mas tu não és preso.
Moritz não o queria ouvir.
- Vou pedir na Companhia que me mudem de posto - disse ele. - A partir de amanhã de manhã, não voltarei mais à ponte com vocês. E tudo isto porque vocês querem fugir. Eu, cá, não quero, nem matar, nem ser preso. Nunca dei um tiro em ninguém. E já estou farto de prisões. De amanhã em diante não volto com vocês. Quando eu cá não estiver, podeis fugir. Isso é lá convosco.
- Por que é que não me deixas contar-te cá um plano? - perguntou Joseph. - Tu tens de fugir conosco.
- Não tenho razões para fugir! - replicou Moritz. - Tenho uma mulher e um filho. Não estou preso. Se estivesse preso, então talvez fugisse.
- Não estás preso mas estás encurralado, amigo Jean - disse Joseph. - Tu és simplesmente um escravo de espingarda às costas; nós somos escravos sem espingarda. Mas, quanto ao mais, somos da mesma espécie. Tens que fugir conosco.
- De amanhã em diante não volto mais com vocês - disse Moritz acendendo um cigarro. Estava vermelho de raiva.
- Mas a gente só quer o teu bem, meu velho - disse Joseph.
- Bem sabes que a guerra vai acabar depressa. Os Aliados avançam. Não vês que, se eles te apanham com o uniforme das S. S., estás pronto? Tens de cumprir dez ou vinte anos de prisão.
- Não digas asneiras - tornou Moritz. Se os Aliados chegarem, não me prendem. Não fiz mal a ninguém. Na rádio dizem que os Aliados são justos.
- Mas tu és inimigo deles, Jean. És o inimigo da França, da minha pátria e de todas as nações aliadas.
- Eu, inimigo da França? - perguntou Moritz, furioso.
- Por eu ser inimigo da França é que vos compro pão, cigarros e tudo o que vocês querem? - Moritz deitou o cigarro fora. - Não sabia que vocês me consideravam inimigo. Julgava que era um amigo...
- És amigo mas é dos alemães e lutas por eles - disse Joseph. - És um soldado de Hitler. Não te deves esquecer disso.
- Quando tenho uma garrafa de cerveja, é com os alemães ou com vocês que a bebo? é no quartel que a bebo, ou com vocês, aqui na ponte? - perguntou Moritz furioso. - Responde lá, Joseph! Com quem é que eu fumo o tabaco que tenho? Com quem é que eu fico a conversar para dizer tudo o que sinto no coração? É com vocês, ou com eles? Nunca digo nada aos alemães no quartel. É só a vocês que o digo, porque sou vosso amigo. Mas vocês teimam que sou vosso inimigo. Acabaste de me dizer que sou amigo dos alemães. Alguma vez me viste a conversar com eles como se fosse com amigos? Eu sempre fui amigo de vocês, e só de vocês! - As mãos de Moritz tremiam levando o cigarro à boca. - Tu dizes que os Aliados me dão vinte anos de prisão. E, se calhar, são franceses, não é?
- É - disse Joseph. - Se o exército francês vem aí, metem-te na prisão.
- Pois bem; se assim é, desapareceu a justiça da terra. E então, ainda que eles me fuzilem, não tenho pena nenhuma. Para que serve viver, se não há justiça; se tu e outros pretendem que fui vosso inimigo? De amanhã em diante não volto com vocês à ponte. Se quereis fugir, é convosco. Eu não me meto nisso. Não serei eu que vos quite. Se puder fazer um jeito, sem arriscar a pele, faço de boa vontade. É uma boa ação, ajudar um prisioneiro que quer fugir, e eu ajudo. Mas não fujo convosco e não estou disposto a ir para a penitenciária o resto da minha vida por causa de vocês.
- O caso não é esse - disse Joseph. - Também te queremos salvar. Isso é que é a amizade. Vais com a gente para a França.
- Tenho a mulher e o filho aqui - disse Moritz. - Não vou com vocês.
- Daqui a poucos meses, os Aliados estão cá. Nessa altura mandamos buscar-te a mulher e o filho para a França. Tenho uma fazendita nos arredores de Paris. Ficas lá. És lavrador. Encarregas-te dela e hás de ganhar dinheiro. Depois compras terra e uma casa. A França é bonita. Os homens são bons. Que queres tu fazer na Alemanha, quando acabar a guerra? Fugimos juntos.
- Eu cá não fujo - disse Moritz.
- Deixamos cá dinheiro à tua mulher para que ela possa viver até virmos buscá-la e levá-la para França - disse Joseph. - Pusemos cá uns dinheiros de parte para ela, cinco mil marcos. Dentro de uns meses estamos de volta e podemos levá-la. A França fica-te reconhecida se salvares cinco prisioneiros franceses. Que dizes tu a isto?
lohann Moritz não disse nada. Não fizera outra coisa senão pensar na fazenda que havia de ter em França. Fazia a diligência de imaginar a terra que lá ia comprar, a casa que havia de fazer e a vida que ia levar com Hilda e Franz. ”Ainda hei de ter mais filhos”, disse de si para si. ”Gostava de ter uma pequena que se chamasse Aristitza como minha mãe.” Moritz surpreendeu-se sorrindo ao futuro. Depois ficou um pouco sombrio e disse:
- Eu cá não quero fugir.
Hilda veio esperar lohann Moritz à entrada da porta. Estava vestida para sair. Queria ir ao cinema. Moritz esquecera-se do filme a que fora. Tinha o pensamento distante. Só se lembrava das atualidades U. F. A. em que vira os últimos combates da frente: tanques destroçados, casas queimadas, homens mortos. Além disso, exibiram um mapa. A frente aproximara-se das fronteiras do Reich. Ao sair do cinema, Moritz não tinha vontade de falar. Antes de se ir deitar olhou para o menino no berço. Depois meteu-se na cama. Não podia dormir.
- Hilda, se a Alemanha for vencida, o que há de ser de nós? - perguntou.
- A Alemanha nunca é vencida! - respondeu Hilda.
Moritz pensou nos combates travados em todas as frentes, que vira no cinema; pensou no mapa, em Joseph, na criança deitada no berço. Depois disse:
- Hilda, eu sei que a Alemanha vai perder a guerra. E depois que faremos? A mim, fazem-me prisioneiro. De que hão de vocês viver, tu e o pequeno?
- Havemos de vencer, ou morrer até ao último - disse Hilda. - Alemão algum aceitará viver numa Alemanha ocupada.
- E se não morrermos? - perguntou Moritz.
- Morremos em combate! - disse Hilda. - Ao que não morrer em combate, quando tudo estiver perdido, só resta suicidar-se.
- Isso é os homens - disse Moritz. - Mas as mulheres, que hão de fazer?
- As mulheres farão o mesmo - disse Hilda. - Eu hei de ser a primeira a suicidar-me com o meu filho, se perdermos a guerra. A Alemanha nunca há de ser vencida! - disse ela. - Como podes tu pensar nisso um instante sequer? E, agora, boa noite.
Hilda puxou o cobertor para a cabeça. lohann Moritz pensou em Hilda e em Franz. Via-os a morrer. Toda a noite sonhou que os Aliados tinham penetrado na Alemanha e estavam em frente da casa com os tanques. Sonhou que Hilda pegara na espingarda, dava um tiro em Franz deitado no bercinho e se matava a si logo a seguir. Moritz acordou coberto de suores, a gritar e sonhando. A janela estava iluminada. Fora, já era dia. Hilda dormia ainda. Moritz saiu devagarinho da cama para a não acordar. Vestiu-se e foi para o quartel. Não pediu que lhe dessem outro posto, como pensara na véspera. Os franceses não disseram nada quando o viram chegar, mas ficaram muito contentes. Estavam cheios de medo de que Moritz não voltasse mais com eles ao trabalho.
Quando chegaram à ponte, Joseph disse, como de costume:
- Salve, Sclave! Dormiste bem?
lohann Moritz lembrou-se dos sonhos da véspera, do sonho com a criança morta e em que Hilda se suicidava.
- Joseph! - disse Moritz. - Juras-me que me levas a mulher e o pequeno para a França se os alemães forem vencidos?
- Logo que as tropas aliadas aqui cheguem, levamo-los para Paris. Juro-te!
lohann Moritz pôs a arma ao lado e contou aos franceses a discussão que tivera com Hilda ao voltar do cinema.
- E se vocês chegarem tarde demais, quando ela já tiver matado a criança e se tiver matado a si?
Os franceses prometeram-lhe que estariam com a primeira coluna aliada. Os olhos de Moritz estavam cheios de lágrimas.
- Se vocês me prometem isso, então vou convosco - disse ele. - E então, quando é que nos evadimos?
- Amanhã de manhã - disse Joseph. - Vimos como de costume para o trabalho, mas não tornamos para o campo. É uma grande façanha que tu fazes pela França - disse Joseph. - A França fica-te reconhecida.
- Eu não faço nada pela França! - respondeu Moritz. - Conheço a Hilda. Ela tem uma só palavra. Se não chegamos a tempo, mata-se com o filho nos braços. A ambos. Tem um coração de pedra - disse Moritz. - Como podes tu crer que eu fujo pela França? Tu aprendeste e leste muito, lá sabes... Eu, sei lá o que é a França! Que tenho eu que ver com a França, não me dirás? Eu, cá, sei que tenho uma mulher e um filho e que ambos estão em perigo. é por causa deles que eu fujo com vocês!
Carta de Traian Koruga a seu pai:
”Pai: escrevo-te pelo correio diplomático, e peço-te que me respondas sem perda de um minuto. Receio que tenha acontecido alguma coisa. Ri à vontade do meu medo. Podes dizer que sou histérico. Mas, pelo amor de Deus, responde imediatamente. Quero saber se estás vivo.
”O meu romance caminha. Cheguei ao capítulo IV, a terceira hora após a morte dos coelhos brancos. Os escravos técnicos destroem tudo no seu caminho e as luzes apagam-se umas atrás das outras. Os homens vagueiam numa escuridão vizinha da morte.
”Beijos para ti e para a mãe. - Traian.
”Ragusa, Dalmácia, 20 de agosto de 1944.”
O Pé. Koruga respondeu imediatamente a Traian. Mandava-lhe dizer que tanto ele como a mulher estavam de perfeita saúde e que em Fântâna corria tudo na mesma. Só lohann Moritz não voltava e ninguém sabia o que era feito dele.
O Dr. Jorge Damian entrou no pátio na altura em que o velho estava a reler a carta. Viera passar dois dias ao campo com o padre. Costumava ali vir quase todas as semanas, aliás. Os dois homens foram pôr a carta no correio.
- Traian está aflitíssimo pelo que nos diz respeito - disse o padre mostrando ao delegado a carta acabada de receber.
O delegado leu-a, sorrindo:
- Traian é poeta; exagera sempre,- disse ele. - E acho que anda exausto, ainda por cima.
No largo da Câmara havia muita gente. A carriola do carteiro ainda não tinha abalado. O padre quis dar-lhe a carta. O carteiro recusou-se a recebê-la:
- Já não aceitamos mais cartas para o estrangeiro - disse. - Hoje às seis horas da tarde a Roménia capitulou. O país vai ser ocupado pelos russos. O Rei falou à rádio!
O Pé. Koruga meteu o envelope na algibeira.
Nessa noite os homens da freguesia reuniram-se no pátio da casa do Pé. Koruga. Vinham pedir conselho. Os russos já tinham entrado perto, na cidade. Os da cidade deitavam a fugir para o campo. Contavam-se horrores. Tinham violado e enforcado mulheres. Os homens eram fuzilados nas ruas.
O Pé. Alexandre Koruga apareceu à varanda. Os homens estavam carrancudos e aflitos.
- São outros homens que mandam no país - disse ele. - São ainda piores que os antigos, pois são estrangeiros. Mas os verdadeiros cristãos sabem que todos os mandos deste mundo são duros de levar. O verdadeiro reino é o do Céu.
- Devemo-nos refugiar nas florestas e continuar a luta contra o invasor? - perguntou um rapaz novo. - O que é que o Sr. Padre nos aconselha?
- A Igreja não pode arrastar os cristãos ao combate para a conquista de nenhum poder terrestre.
- Então a Igreja aconselha-nos a estender as mãos para que no-las amarrem? - perguntou o rapaz. - A Igreja quer que fiquemos de braços cruzados enquanto nos violam as mulheres e nos queimam as casas? A Igreja não nos pode pedir isso. E se a Igreja pedir, deixamos de estar com ela!
Os rapazes da aldeia apoiaram. Pé. Koruga estava perfeitamente calmo.
- Jesus Cristo ensinou os cristãos a sujeitarem-se a todo o domínio terrestre. Vocês dir-me-ão que o domínio atual na Romênia é estrangeiro, cruel e pagão. Bem sei! Mas os que governavam o país onde nasceu Jesus Cristo, esses também eram estrangeiros, cruéis e pagãos. Pensem vocês nos milhares de crianças degoladas na Judéia à ordem do rei Herodes depois do nascimento de Cristo. Era bem cruel tal domínio! Talvez tão cruel como o domínio comunista. Mas Jesus não se revoltou nem levou ninguém à revolta. Disse: ”Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
- E o Sr. Padre vai rezar por Stalin, na igreja? - perguntou o tal. - Se reza por Stalin é o mesmo que rezar pelo Anticristo. E a gente não torna a pôr os pés na igreja!
- Se os que mandam no país dão ordem para que eu reze por Stalin, como até agora fiz pelo Rei, submeto-me. Eu sei que Stalin é ateu e pagão. Mas os pagãos também são homens. E se as almas estão carregadas de pecados é porque se extraviaram dos caminhos de Cristo. Um padre deve rezar por todos os homens, e sobretudo pelas almas carregadas de pecados.
- O Sr. Padre pode rezar por Stalin, mas a gente não torna a pôr os pés na igreja - disse o rapaz. E perguntou, em tom hostil: - E se nos retirarmos para as florestas para lutar contra os bolchevistas, pela nossa liberdade, o Sr. Padre também reza por nós ao domingo, na igreja?
- O padre rezará igualmente pelos que lutam nas florestas e nas montanhas, e não só ao domingo, mas duas vezes por dia, que a vida dos que lutam está constantemente em perigo e eles precisam da prece do padre e da caridade da Virgem.
Fez-se silêncio na malta.
- Se o Sr. Padre se atrever a rezar pela gente, é fuzilado! - disse Apóstol Vasile.
- Isso não é motivo para que eu deixe de rezar por vocês. A morte nunca meteu medo a um cristão.
- Nós, cá, vamos para os matos - disse Apóstol. - Antes de partirmos peço-lhe que nos abençoe e dê a comunhão a todos. Não se sabe o que é que nos vai acontecer e se tornaremos sequer. Vamos lutar pela Cruz e pela Igreja!
- Se quiserdes lutar pela Cruz e pela Igreja com a espada, entrareis no caminho do pecado - disse o padre - e era muito melhor que ficásseis em casa. A igreja e a fé cristã não se defendem de armas na mão.
- Vamos lutar pela Romênia, que é um país cristão - disse Apóstol Vasile.
E dividiu os homens em pequenos grupos. A maior parte deles tinham decidido retirar-se para a floresta. Eram os melhores de toda a aldeia. Entre esses havia também mulheres e rapazes ainda de escola. Ajoelharam na erva do pátio. O Pé. Koruga leu-lhes uma oração. Depois abençoou-os um por um.
- Peço-vos que me deis também a vossa bênção! - disse o delegado, Jorge Damian. Ajoelhou diante do padre. - Quero-me retirar com eles para os matos e combater pela liberdade dos homens e pela da humanidade.
- A Igreja oferece a sua bênção a todos que a procuram - disse o padre.
- A Igreja abençoa também os que vão cometer uma má ação? - perguntou o delegado. - Ou está o Sr. Padre convencido da justiça da nossa causa?
- Ama e faz o que quiseres - disse o padre. - Se a sua ação, Sr. Dr. Delegado, nasce de um impulso sincero, não tenha medo do pecado. Está no reto caminho.
O Delegado beijou a mão do Pé. Alexandre Koruga, como tinham acabado de fazer os homens da freguesia, e saiu do pátio com os grupos que partiam para a floresta.
Em casa, a mulher do padre chorava.
Duas horas eram passadas desde a partida dos homens. O padre tentou ler um pouco para dissipar a inquietação. Mas dois homens que não eram da aldeia entraram na biblioteca sem mesmo baterem à porta. Traziam braçadeiras tricolores e revólveres. O padre fingiu que não tinha visto as armas e recebeu-os sorrindo.
- Parece que me chamam à Administração - disse o padre em voz alta, para ter a certeza de ser ouvido por sua mulher, que estava no quarto ao lado. O que acima de tudo não queria ter era medo.
- Recebemos ordem para conduzir o senhor ao Tribunal do Povo! - disse um dos homens, em voz alta.
O Padre lançou um olhar para o quarto onde devia estar a mulher. ”Talvez não tivesse ouvido nada” pensou. Depois pôs o livro em cima da poltrona e saiu. Antes de sair do pátio, lançou um olhar para trás, um olhar de adeus. Os dois homens escoltavam-no e marchavam à ilharga dele. O padre passou o umbral, de cabeça levantada. Não marchava como um prisioneiro. Parecia que tocava no céu com a cabeça. E assim foi, pela quelha fora, de casa à Administração...
O Tribunal do Povo era presidido por Marcou Goldenberg, sentado no cadeirão de Presidente na sala nobre da Câmara. Marcou Goldenberg tinha a cabeça rapada como os presidiários. Os russos tinham-no libertado dias antes, da prisão onde expiava a pena pelo assassínio de Lengyel. Na mesa do presidente, à sua direita, amesendara-se a Aristitza, a mãe de lohann Moritz. Marcou Goldenberg escolhera-a como juiz porque ela era a mais pobre ”cidadã” de Fântâna. À esquerda, lon Calugaru, que matara um guarda à machadada alguns anos atrás. Fora esse o motivo da escolha.
O Pé. Koruga saudou-os. Marcou Goldenberg olhou-o fixamente mas não respondeu à salvação. Aristitza e lon Calugaru baixaram os olhos. Fingiram que não o viam. Já tinham julgado outros, antes da chegada do padre. Naquele momento o salão da Câmara estava sem ninguém. Só lá estavam os juizes e os dois da braçadeira tricolor. Marcou Goldenberg perguntou ao padre o nome, a idade e a profissão.
- Ser padre não é profissão! - disse Goldenberg. - O sapateiro faz botas, o alfaiate faz fatos. Todos os trabalhadores produzem alguma coisa. Podes-me tu dizer o que produz um padre? - Aristitza e lon Calugaru tinham os olhos sempre baixos. Os dois da braçadeira riam nas costas do padre. - Não tens ofício nenhum! - disse Goldenberg. - É um crime não teres aprendido um ofício. Viveste como um parasita à custa dos trabalhadores! - Marcou Goldenberg tinha a cara amarela como um limão. Os beiços finos roxos. O padre lembrava-se que o velho Goldenberg, o pai de Marcou, tinha os beiços iguais, finos também. Mas os desse sorriam. Os de Marcou mantinham-se crispados. - Sabes por que fôste chamado ao Tribunal do Povo? - perguntou Goldenberg.
- Não - respondeu o padre.
- Resposta típica de reacionário! - gritou Marcou. - O reacionário declara sempre desconhecer o motivo por que é julgado. Reconheces que organizaste bandos fascistas que se esconderam nos matos?
- Não organizei bando nenhum. Reconheço ter rezado, no pátio da minha casa, pelos rapazes da aldeia que me tinham pedido que o fizesse por eles.
- E não eram bandos fascistas? - perguntou Goldenberg. - Por que é que rezaste por eles, se não és confessor desses bandidos?
- Sei que os rapazes por quem rezei se achavam num momento difícil - disse o padre. - Pedi à Virgem que os ajudasse e lhes mostrasse o caminho da Verdade e da Justiça.
- O Tribunal do Povo condena-te à morte na forca! - disse Marcou Goldenberg. - És declarado culpado de teres organizado a rebelião contra a ordem pública.
Aristitza e lon Calugaru ergueram os olhos, espantados. E fitaram Marcou. Goldenberg escrevia e nem os encarava. Aristitza e lon Calugaru voltaram os olhos para o padre. O Pé. Koruga sorria-lhes com doçura.
- A execução far-se-á amanhã de madrugada, na presença do povo! - disse Marcou. - O Tribunal declara levantada a sessão.
O Pé. Koruga foi agarrado pelos dois aldeãos da braçadeira tricolor e fechado no curral do concelho, onde estavam também Jorge Damian, preso ainda antes de chegar à floresta, o comandante do posto da Guarda de Fântâna, Apóstol Vasile e oito camponeses, os mais ricos da aldeia. Estavam todos condenados à morte na forca, e deviam ser executados no dia seguinte ao alvorecer. O Tribunal do Povo assim o decidira.
Durante a noite os presos foram um a um tirados do curral e fuzilados ao pé da estrumeira. Marcou Goldenberg recebera ordem para não fazer execuções públicas, a fim de não provocar uma revolta das massas contra o Exército Vermelho. Deu cabo de cada preso, com a sua própria mão com uma bala na nuca.
Depois da meia-noite, Aristitza ouviu bater uma pancada na vidraça. Era Susana, a mulher de lohann Moritz. Ouvindo-lhe os queixumes, Aristitza pensou que os russos haviam entrado na aldeia e que a tivessem violado. Levantou-se danada. Sabia que devia chegar uma patrulha soviética e que os russos violavam as mulheres, mas não tolerava que a sua nora fosse a primeira a passar, a nora dela, a cidadã juiz do Tribunal do Povo!
- Que foi que te aconteceu? - perguntou Aristitiza abrindo a porta.
- O Pé. Koruga foi fuzilado! - disse Susana. - Foram uns homens que viram quando ele foi fuzilado e mo disseram.
Aristitza não queria crer. Não voltou para o quarto. Foi com Susana à Câmara. Só tinha em cima de si a camisinha de dormir. A noite estava clara. As duas mulheres seguiam pelo meio da estrada, sem falarem. Susana chorava baixinho. De vez em quando, enxugava os olhos à ponta da saia. Aristitza estava furiosa. Custava-lhe a respirar. Voltou-se várias vezes para a nora e gritou-lhe:
- Vais a dormir e a andar? Que é que tu tens nas veias? Sangue ou leitinho?
Susana picava o passo pensando que não servia de nada apressar-se. O padre estava morto. Já ninguém poderia fazer nada por ele. Na Câmara, as luzes estavam acesas, mas não havia ninguém.
- Vamos ao curral! - disse Aristitza. - Eu sou juiz e tenho direito de perguntar e de saber tudo o que se passou.
No curral estava escuro. A porta estava fechada, mas sem trinco. Ao entrar, Aristitza ficou transida.
- Não tens fósforos? - perguntou ela a Susana.
- Não, mãe.
- Nunca tens nada! - disse Aristitza, brava. - Nem quando te casaste tinhas nada! Foi preciso que achasses um banabóia como o meu filho para te pegar assim.
Susana não se zangava. Sabia que a raiva de Aristitza não era com ela. Aristitza temia que a morte do padre se confirmasse e por isso resmungava.
- Está aí alguém? - gritou Aristitza. E ficou especada a meio do curral.
- Não há ninguém, mãe - disse Susana. - Marcou levou todos os que estavam no curral e fuzilou-os fora, ao pé da esterqueira.
- Estás a delirar, ou quê? Como é que ele os podia fuzilar sem nos avisar a nós, que somos juizes?
Susana calou-se. As duas mulheres saíram para o pátio e procuraram com os olhos, no escuro, os corpos fuzilados.
- Não há nada no pátio - disse Aristitza. - Bem disse eu que deliravas! Talvez os fechassem nutro sítio e os reacionários da aldeia não esperaram por mais para espalharem o boato de que Marcou os fuzilou.
Susana afastou-se de Aristitza e pôs-se a procurar atentamente no pátio, em volta da estrumeira. Estava certa de que tinham fuzilado o padre. Os camponeses que tinham visto a cena espalhavam por toda a aldeia que Marcou Goldenberg fizera sair um por um todos os que estavam no curral, que os presos tinham as mãos amarradas e que ele lhes atirara pelas costas.
- Vamos em cata de Goldenberg - disse Aristitza. Susana soltou um grito e caiu em redondo na erva. Aristitza
tornou-lhe, danada:
- Que diabo foi isso, estafermo? ! Viste a tua sombra e chapaste-te?
Mas as palavras ficaram-lhe trancadas na garganta. Ao pé de Susana, à borda da estrumeira, estendiam-se corpos na erva. Aristitza viu primeiro o cadáver de um homem de camisa branca que estava aos pés de Susana. Outro, todo negro, estendido apenas a alguns passos. E depois outros, mais ainda. Aristitza benzeu-se para tomar coragem.
- Levanta-te, que preciso de ti! - bradou ela. Aristitza não tinha medo de mortos, mas naquele instante
não queria sentir-se sozinha. Susana ergueu-se. Tremia. Aristitza pegou-lhe na mão. As duas mulheres procuravam os mortos debruçando-se sobre cada um deles de per si. Olhavam atentamente para todas as caras para as reconhecerem. Havia nove mortos nas bordas da estrumeira e três dentro. Aristitza examinava com cuidado um dos cadáveres.
- É o Nicolae Ciuboratu, o antigo regedor - disse ela. Ajoelhou-se e colou o ouvido ao peito de Ciuboratu, a ver se o coração ainda lhe batia. Depois levantou-se e disse: - Está morto!
E passou adiante, inclinada outra vez. Encostou o ouvido ao peito de outro cadáver. - O corpo ainda está quente, mas o coração parou. Este é o Constantino Solomon, Deus lhe fale na alma! - disse Aristitza. - Pediu-me em casamento, era eu rapariga. - E para que a dor se não apossasse dela, gritou brava a Susana: - Anda ver tu também se por acaso ainda há vivos! Para que estás tu para aí a choramingar como uma parva?
- Não posso, mãe! - disse Susana. - Tenho medo...
- Tens medo por quê? - disse Aristitza. - Põe o ouvido a esses peitos! Trava o fôlego e ouve se o coração ainda bate. Se não bate, pede a Deus que recolha a sua alma e benze-te. Se bate então sempre temos mais alguma coisa a fazer do que o sinal-da-cruz. Ouviste?
- Ouvi, mas tenho medo! - disse Susana.
- Não prestas para nada! - gritou Aristitza, sempre levada da breca. - Como é que o meu filho pôde casar contigo! - Aristitza debruçara-se sobre um outro cadáver. - Esse deve ser o delegado novo que vinha todas as semanas a casa do Pé. Koruga - disse ela. - Era amigo do Sr. Traian. Um rapaz às direitas! - Aristitza arredou o casaco e escutou. Levantou-se e disse: - Deus o tenha em sua guarda! Este também está pronto. O pobre de Cristo talvez tenha mulher e filhos em casa à espera dele...
Aristitza quase se tinha esquecido de que Susana ali estava. Tinha encontrado o corpo do Pé. Koruga e inclinara-se sobre ele com devoção e respeito. Arredara-lhe a batina e aplicara-lhe o ouvido. Disse em voz baixa:
- O padre não está morto, minha filha. - Susana começou a chorar ainda com mais força ao ouvir que o padre não estava morto. - Estás doida? - disse Aristitza. - Em vez de ficares contente, pões-te a chorar! Vem cá ouvir como o seu coração está ali a pulsar que é um regalo!
Susana ajoelhou diante do padre mas não se debruçou para ouvir bater o coração. Aristitza pegou na mão do padre e disse:
- Ainda está quente, filha! Olha como ele está quente! Os ouvidos, os olhos e as mãos de Aristitza queriam palpitar, com certeza ainda, a vida que pulsava no corpo estendido do padre. Mas, do calor da mão e da cara e das pulsações do coração, os sentidos de Aristitza não conseguiam apanhar a vida daquele homem que se encontrava ao pé dela.
- A vida é assim: uns baques de coração e um pouco de calor que se desprende da carne. - Aristitza achava pouco. - Se não é mais do que isto a vida dos homens, é realmente pouca coisa - disse ela. Tudo era calma em volta. - Cheira bem, a manjarico e a incenso - disse Aristitza. - O corpo do padre parece uma igreja, de bem que cheira. Tal e qual uma igreja...
Exceto o padre, estavam todos mortos. Alguns ainda estavam quentes; esses não tinham morrido logo. Deviam ter sofrido ainda muito tempo. Via-se, pelos cadáveres, que se deviam ter rolado na erva antes do último suspiro. Os outros estavam gelados. Esses tinham morrido, mal a bala lhes entrara no corpo. Aristitza limpou as mãos à saia. Era a quinta ou sexta vez que fazia aquele gesto e não sabia bem sequer por que o fazia. Agora também tinha os joelhos molhados.
- Deve ser sangue deles - disse Aristitza. - Com o escuro que está, meti os pés e as mãos no sangue que escorre deles. É um grande pecado calcar aos pés sangue de homem. Mas Deus há de perdoar. Foi por via do escuro.
Enquanto Aristitza descia à estrumeira e examinava os outros corpos, Susana esfregava a testa do padre.
- Onde está a ferida? - perguntou Aristitza, saindo da estrumeira e limpando as mãos outra vez à saia.
- Não sei, mãe.
- Nunca sabes nada - disse Aristitza. - Devemos pôr já qualquer coisa na chaga. Se não pomos, escorre-lhe o sangue todo e vão-se-lhe os espíritos também. - Aristitza deu com um ponto mais molhado de sangue. O padre estava ferido nas costas, ao alto do ombro direito. - Dá-me depressa uns trapos para pôr na chaga - disse Aristitza.
Susana perguntava a si mesma onde iria achar trapos. Aristitza perdeu a paciência. Levantou a saia para rasgar um bocado da camisa. As mãos procuravam, crispadas entre a pele e o vestido, mas não encontravam a camisa. Arregaçou a saia até ao peito.
Onde diabo se meteu a camisa? - disse Aristitza. Depois lembrou-se que, nessa manhã, ao despachar-se para ir ao Tribunal do Povo, se esquecera de enfiar a camisa. Só tenho o vestido; estou sem camisa!- disse ela. Aristitza tomou o padre nos braços e desapertou-lhe a batina, descobrindo-lhe o ombro ferido. - Passa-me a tua camisa, Susana! - disse ela. Com as mãos, enxugou o sangue da ferida. - Como ele cheira bem, a manjarico e a incenso! O seu corpo cheira como uma igreja - disse ela. Aristitza voltou-se para Susana, que acabava de tirar o vestido e despia agora a camisa. Susana estava completamente nua. - Tu estás doida, mulher? - gritou Aristitza. - Não tens vergonha de te pores em coiro diante do padre e dos mortos?
- Como é que vossemecê quer que eu lhe dê a camisa sem tirar o vestido? - perguntou Susana.
- Grandessíssima porca! - disse Aristitza sem a ouvir. - Mostras-te em coiro diante do padre e dos mortos! - E Aristitza escarrou no chão.
Aristitza e Susana pararam à beira de uma leira de milho e depuseram o corpo do padre na erva. Tinham-no transportado do estábulo até ali embrulhado na batina como numa mortalha. Ao princípio, cada uma pegava numa das pontas da batina e tinham-no levado assim, como se fosse de padiola. Mas o padre era muito pesado. Aristitza e Susana suavam pela cara abaixo. Quando paravam, Aristitza debruçava-se, a ver se o coração do padre ainda batia. Depois largavam outra vez. Agora já não zorreavam o padre como numa padiola: arrastavam-no pelo chão, embrulhado na batina.
-Deus queira que ele não morra pelo caminho! - disse Aristitza. - Vamos a despachar! Temos tempo para descansar, amanhã e depois, e os mais dias que aí vem.
Aristitza receara levar o padre para casa. Os comunistas podiam-no descobrir. ”E se da primeira vez pôde ser salvo, não escapa da segunda”, pensou. ”Mais vale levá-lo aos que fugiram para o mato. Hão de tratá-lo e curá-lo. Os comunistas não vão dar com ele nesses matos.
- O médico está lá com eles - disse Susana. - Se ao menos o pudéssemos encontrar! Levou uma caixa de remédios e ligaduras.
- Havemos de o encontrar - disse Aristitza.
Mas à medida que se aproximavam do mato, o entusiasmo arrefecia-lhes. O mato era grande. Achar lá o médico era impossível. Era o mesmo que procurar agulha em palheiro.
- Se não encontrarmos os rapazes - disse Aristitza - escondemo-lo longe dos comunistas. Já é alguma coisa ... Depois se verá. Ficas com ele no mato e eu vou à aldeia. Antes da madrugada estarei de volta com comida, água e talvez alguma mezinheira.
Susana desatou a chorar. Tinha medo de ficar sozinha no mato, noite fechada. Pediu a Deus, em silêncio, que lhes deparasse os rapazes.
A floresta tinha uma estrada à beira. Antes de a atravessar, Aristitza apurou o ouvido, a ver se alguém passava. Uma coluna motorizada avançava lentamente na estrada, de faróis apagados. O barulho abafado dos motores chegavam até eles com um zumbido de zangãos. A coluna aproximava-se, subindo uma rampa. As duas mulheres puseram o fardo na erva e esconderam-se nos milhos, à beira da estrada.
- É uma coluna russa - disse Aristitza. - Mas não faz mal. Vamos esperar que eles passem. Eles não nos podem ver.
Os motorizados avançavam. Quando chegaram ao sítio onde elas estavam, a coluna parou. Cessou o zumbido dos motores. Ouviam-se os grilos. Alguns soldados desceram dos carros. Falavam em voz baixa.
- São alemães! - disse Susana.
Aristitza aplicou o ouvido. Depois aproximaram-se da coluna, arrastando-se no chão ao comprido da leira de milho. E puseram-se à escuta.
- São alemães - disse Aristitza. - E se lhe pedíssemos que socorressem o padre? Devem trazer algum enfermeiro ou médico. - As duas mulheres saíram da leira de milho. - Não sabes uma palavra de alemão? Uma que seja? Se não lhe falamos, julgam que somos inimigos e fuzilam-nos.
- Não sei palavra de alemão - respondeu Susana.
As duas mulheres deram ainda alguns passos em direção à coluna. Depois pararam. Ficaram no meio da rua, muito chegadas uma à outra, sem tugir. A mão de Aristitza apertou o pulso de Susana.
- Tu és mais nova - disse ela. - Vê se te lembras de uma palavra em alemão. Deves ter ouvido alemães alguma vez na vida. Teu pai falava alemão. Quando somos novos, a encaixadeira é boa...
- Não me lembro de nada - disse Susana. - Vamos dizer qualquer coisa em romeno!
- Que queres tu que a gente lhes diga em romeno? - disse Aristitza, brava. - Não vão entender nada e julgam-nos comunistas.
- Grita-lhes ”Cristo!”, mãe. Todos os alemães são cristãos. Se nos ouvirem dizer ”Cristo!” vêem logo que não somos comunistas. ”Cristo” quer dizer coisas boas e honestas.
- Anda, experimenta! - disse Aristitza. - Se os alemães te entenderem, é porque não és tão tola como pareces!
- Não tenho coragem sozinha... - disse Susana - Vamos gritar ambas.
As duas mulheres estreitaram-se ainda mais uma à outra e largaram a gritar, primeiro devagar e depois com mais força:
- Cristo! Cristo!
- Quem vem lá? - perguntou uma voz autoritária.
As mulheres não compreenderam o que perguntava o alemão e responderam em coro:
- Cristo!
Dois soldados dirigiram-se a elas. Aristitza tremia de medo. Tremia mais que Susana. Os alemães não percebiam o que elas queriam. Elas foram buscar o Pé. Koruga à leira de milho e vieram pô-lo mesmo no meio da estrada, diante da coluna.
Os alemães acenderam furta-fogos e olharam para a cara do padre.
- É um padre? - perguntou um oficial.
- Cristo! - respondeu Aristitza.
- Os bolchevistas fuzilaram-no? - perguntou o oficial. Aristitza pensou que o oficial perguntava se o ferido era
bolchevista. E repetiu, convicta:
- Cristo!
A coluna alemã batia em retirada. O oficial que falara às mulheres deu voz de marcha. Fez sinal a Aristitza que afastasse o ferido, para os carros passarem. Aristitza pegou na mão suplicando-lhe que lhe desse um médico ou um enfermeiro para tratar do padre. Ouvindo os carros deslocarem-se de novo, Aristitza encheu-se de medo. Não queria deixar partir os alemães antes de cuidarem do padre. Ajoelhou diante do oficial e beijou-lhe a mão. Sabia que não tornaria a encontrar outro médico.
- Que quer esta mulher? - perguntou o comandante da coluna.
- Que lhe levem um ferido à cidade. É um padre ortodoxo.
- E por que não? - disse o comandante. - Somos um povo civilizado, mesmo na derrota! Metam o ferido na ambulância. Depressa, que nos vamos!
Aristitza e Susana viram os soldados porem o padre numa maca e embrulharem-no num cobertor. Depois os carros largaram. Aristitza quis trepar também, ao lado do padre. Os soldados riram-se dela e atiraram com a porta da ambulância.
A coluna pôs-se em marcha. Susana viu-a desaparecer na noite e pôs-se a chorar como se pedisse socorro.
- Que diabo tens tu? - perguntou Aristitza agarrando-a pelos ombros e sacudindo-a. - Queres que os russos te oiçam gritar?
- Deus vai-nos castigar por este pecado que fizemos! - disse Susana. - Não o devíamos ter entregado aos alemães! Quem sabe o que vão fazer-lhe!
- Vão-no levar para o hospital - disse Aristitza. - E mais vale ir para o hospital do que ficar na mata.
Mas, momentos depois, também desatou a chorar. Estava arrependida daquilo.
- Não o devíamos ter entregado aos alemães! - choramingou. - Foi um grande pecado e Deus vai castigar-nos! Ardemos no meio do Inferno. Tu é que tiveste a culpa de a gente ter dado o padre aos alemães!
Apeteceu-lhes correr atrás da coluna e pedir outra vez o padre. Mas a estrada estava deserta. Regressaram à aldeia.
No dia seguinte de manhã Aristitza foi presa. Na administração do concelho bateram-lhe com uma corda molhada. Confessou que tinha tirado o padre da fossa e o entregara aos alemães. Às nove horas fuzilaram-na ao pé da estrumeira. Susana fugiu para a aldeia com os seus dois meninos. Quando os homens de Marcou Goldenberg vieram prendê-la encontraram a casa de lohann Moritz deserta. - é o dia mais feliz da minha vida! - disse Joseph ao meter-se na cama.
Os prisioneiros franceses evadidos, graças a lohann Moritz, acabavam de passar as linhas americanas algumas horas antes, lohann Moritz e Joseph achavam-se num belo quarto de um hotel da U. N. R. A. Tinham comido uma data de coisas boas, bebido bom vinho e fumado cigarros caríssimos. Tinham-lhes dado pacotes de comida, vestuário e muitas coisas mais. lohann Moritz olhava para os pacotes um atrás de outro no tapete, ao pé da parede. Sentia-se honrado como nunca até ali. Os americanos tinham-lhe dado camisas, fatos novos, uma máquina de barbear, sapatos, sabonetes e cigarros. Tinham-lhe dado tudo aquilo a ele, lohann Moritz, logo que o tinham visto. Moritz estava ufano. Pela primeira vez acreditava, ele próprio, ter feito uma grande façanha pela vitória dos Aliados.
- Se eu não tivesse cometido um grande feito, os americanos não me tinham dado tanta coisa.
Moritz lembrou-se de que os americanos nem sequer lhe tinham perguntado pelo nome, e pensava que tinham sido avisados da evasão antes da sua própria chegada. Todos os americanos lhe sorriam, como para lhe mostrarem que estavam ao fato de tudo o que ele sofrera e da coragem que mostrara.
lohann Moritz estava cansado, mas não se queria deitar. Olhava à sua roda e não chegava a crer que tivessem reservado aquele quarto especialmente para si. Todos os objetos pousados nas cadeiras, na mesa ou no tapete eram dele. Os americanos tinham-lhos dado porque ele tivera a coragem de salvar cinco prisioneiros franceses do campo de concentração.
- A nossa evasão foi uma evasão perfeita - disse Joseph. lohann Moritz lembrou-se como saíra essa manhã do pátio
do campo com os cinco prisioneiros. Tinham atravessado as ruas da cidade. Hilda estava sempre à janela com o menino, e dizia-lhe: ”Olha, aquele da espingarda e de capacete é o teu pai”. Moritz sorrira com o seu sorriso de sempre. Mas não parará na ponte. Os prisioneiros tinham-no ultrapassado. Marchara atrás deles, de espingarda ao ombro, até ao talude da mata. Toda a gente que iam topando na estrada julgava ver simplesmente um soldado escoltar os cinco prisioneiros. Mas eram já evadidos. Moritz julgou que uma mulher olhara para ele mais do que o natural, e o coração bateu-lhe. Tinha medo. Outros, ainda, o tinham olhado desconfiado. Mas lohann Moritz fingia não reparar.
Quando chegou à mata, envergou um fato à paisana que os franceses lhe haviam trazido, Joseph partira a espingarda nas pedras. Ao apanhar com as estilhas, lohann Moritz sentira que alguma coisa se quebrara em seu coração. Mas não se deu por achado. Depois os franceses largaram-lhe fogo ao uniforme. Ao ver arder a farda, lohann Moritz teve vontade de chorar. Mas conteve-se, para não irritar os franceses que desembestavam contra Hitler. lohann Moritz não percebia o que eles diziam.
Depois tinham marchado uma semana inteira na mata. Um belo dia, saindo do meio das árvores, viram carros americanos na estrada. Os franceses começaram a cantar. Estavam todos exaustos, mas cantavam como doidos na mata. Puseram fitas tricolores nas lapelas e ao peito de lohann Moritz. Depois, surgiram à frente dos carros. Os americanos deram-lhes cigarros e levaram-nos à U. N. R. A., onde estavam as camas preparadas e o almoço servido. Dir-se-ia que os esperavam.
Desde a chegada até àquele dia os americanos não cessavam de lhes dar pacotes e comida. lohann Moritz tinha a impressão de viver num conto de fadas. Olhando para os pacotes e para Joseph compreendeu que tudo aquilo era realmente assim. Tudo aquilo lhe acontecera a ele, lohann Moritz, porque fizera uma grande e bonita façanha pela vitória dos Aliados.
Joseph pegara no sono. lohann Moritz pensava que dali partiriam para França. Pôs-se a pensar na cara que iria fazer para Hilda e Franz. ”Quando a guerra, acabar, mando vir meu pai e minha mãe para França”, pensou. Depois adormeceu também, ainda vestido, atravessado na cama, sonhando com a sua felicidade futura, e não tugiu nem mugiu até à manhã seguinte.
Havia já duas semanas que lohann Moritz estava na U. N. R. A. Contara aos americanos como se tinha evadido com os cinco franceses. Os americanos felicitaram-no. Depois pediram-lhe que escrevesse o relato da evasão. Queriam publicar nos jornais a evasão de lohann Moritz. Todo o mundo o ia honrar e falar dele.
De dia para dia lohann Moritz estava cada vez mais convencido de ter ajudado as nações aliadas a ganhar a guerra. Sentia-se contente e orgulhoso por ter feito qualquer coisa pelas nações aliadas e por ver que as nações aliadas estavam contentes com ele. Um belo dia o diretor chamou lohann Moritz ao seu gabinete. Já o tinha chamado várias vezes para o fazer contar a evasão. lohann Moritz entrou desvanecido no gabinete. O diretor convidou-o a sentar-se numa poltrona. Estendera-lhe a cigarreira e sorrira. lohann Moritz estava maravilhado com tal honra. Era recebido sempre da mesma maneira, mas nunca se podia habituar.
- Você já não tem direito a pernoitar e a comer na U. N. R. A. - disse o diretor acendendo com o seu isqueiro o cigarro de lohann Moritz. - A partir de amanhã já não pode vir à mesa e tem de deixar o quarto que tinha no hotel.
lohann Moritz fez-se muito pálido. Perguntava a si mesmo o que poderia ter feito para irritar a tal ponto os americanos. ”Devo ter grandes culpas no cartório para me porem assim no meio da rua”, pensou. Até àquele dia recebera uma data de presentes dos americanos. Tinha cinco pacotes de objetos para si e para Hilda. Os americanos tinham-lhe dado inclusivamente brinquedos e roupa para Franz quando souberam que ele tinha um filho. Pediram o retrato de Franz e todos o tinham mirado. ”E agora, de repente, são estes mesmos homens que me põem na rua. Devo ter feito grossa asneira”, pensou Moritz.
- A U.N.R.A. só protege os cidadãos das nações aliadas
- disse o diretor. - E você é inimigo das nações aliadas.
lohann Moritz pensou nos presentes recebidos a título de haver cumprido. Todos lhe tinham dito que, fizera qualquer coisa de capital para os Aliados. E agora esses mesmos homens pretendiam que ele, lohann Moritz, era inimigo das nações aliadas.
- Você é um inimigo das nações aliadas - repetiu o diretor.
- Mas eu não fiz nada contra as nações aliadas! - disse lohann Moritz. - Juro-lhe, Sr. Diretor, que a minha consciência me não acusa de nada contra as nações aliadas!
- Você não é romeno? - perguntou o diretor severamente.
- Os romenos são inimigos dos Aliados. Você é romeno, portanto, automaticamente é nosso inimigo. A U.N.R.A. não ia agora albergar e sustentar indivíduos dos países inimigos. Tem que largar o quarto.
lohann Moritz saiu da sala, de cabeça baixa. Apetecia-lhe voltar para a sua Companhia. Lembrou-se que quebrara a espingarda na mata e que os franceses lhe tinham largado fogo ao uniforme. Não podia tornar para a Companhia sem arma. ”E agora para onde irei?”, perguntou a si próprio lohann Moritz.
Logo depois de Moritz ter desertado, Hilda foi presa. Na Polícia declarou que de nada sabia. A mãe de Hilda foi presa também dali a dois dias. Primeiro foram interrogadas; depois bateram-lhes. Mas os inspetores não puderam arrancar nada de ambas. Durante a busca foram dar com as cartas que o Coronel Müller escrevera.
- É o amigo de lohann! - disse Hilda. - Mandava-nos duzentos marcos por mês. Pela Páscoa, pelo Natal e quando fazíamos anos mandava-nos gêneros e cigarros.
A polícia militar avisou o Coronel Müller da evasão de Tohann Moritz, esperando receber informações complementares. Dois dias depois receberam do Quartel-General um telegrama de página. O coronel dizia à polícia:
Há quatro séculos que se não registra um só caso de deserção entre os membros da ”Família Heróica”, de que lohann Moritz faz parte. Stop. Absolutamente excluído que lohann Moritz desertasse. Stop. Estou convencido de que o seu desaparecimento foi provocado por rapto ou assassinato. Stop. Desaparição de lohann Moritz constituiria perda irreparável na história da ”Família Heróica”. Stop. Procurem-no custe o que custar. Stop, Não sujem como suspeito de deserção uma das mais corajosas e honradas famílias de sangue germânico. Stop. A mulher e o filho de lohann Moritz são considerados oficialmente protegidos pelo Instituto de Estudos e Investigações Alemães. Stop. Até que lohann Moritz seja encontrado sua mulher e filho receberão uma pensão alimentar do Instituto. Stop. A Polícia local é convidada a proteger a mulher e a criança. Stop. Mantenham-me ao corrente das investigações. Stop. Toda e qualquer nova informação concernente a lohann Moritz deve ser-me comunicada telegràficamente para este Quartel-General. Stop. - (a) Coronel Müller, O.K.W.”
- Se o coronel sabe que prendemos a mulher de Moritz somos transferidos para a frente por medida disciplinar. É melhor pedir à mulher que não diga ao coronel que foi presa.
- E que faremos ao dossiê? - perguntou o tenente que estava à testa da polícia judiciária.
- Arquive imediatamente! Não se deve brincar com o O.K.W.! - disse o capitão.
- Não seria asneira relatar que se trata de um desertor - disse o capitão. - Os homens superiores fazem às vezes mais tolices do que o comum dos mortais. O Coronel Müller é um sábio. Tenho lido em revistas vários artigos dele. Mas é muito exclusivista. Como pode ele pensar que Moritz não desertou?
Hilda foi posta em casa no carro do capitão.
- Quando precisar do automóvel, basta telefonar-me - disse-lhe o chefe da polícia. - O meu Mercedes está às suas ordens, noite e dia. Qualquer coisa que precise, basta dizer. Agradeço-lhe muito que não mande dizer ao Coronel Müller que esteve presa. Foi só para dar o exemplo. Simples formalidade.
- Meu marido, então, não desertou? - perguntou Hilda. - Foi em missão especial?
- Não lhe podemos responder - disse o chefe da polícia. - Mas seu marido não desertou. O resto é secreto.
Hilda corou de alegria. A partir desse dia a sua vida foi um conto das Mil e uma Noites. Estava certa de que o marido fora enviado em missão especial pelo O. K. W. ”Se assim não fosse, por que teriam eles posto o carro à minha disposição?
Ficava horas e horas diante da janela imaginando lohann Moritz em todas as situações possíveis de mistério, como nos filmes de aventuras. ”Não me quis dizer nada”, pensava. ”Considera-me inferior. Hei de fazer os possíveis para ser digna dele.” Hilda beijou o filhinho e disse-lhe:
- Nunca tive um momento tão feliz na minha vida. Só a mulher de um lohann Moritz pode ter tal felicidade, a felicidade de ser a mulher de um herói!
- Não posso acreditar que a guerra esteja perdida! - disse Hilda. - Toda a cidade fugiu para as florestas e para o campo. Dizem que os russos estão a dez quilômetros daqui. Todos os vizinhos partiram. Mas eu não acredito. É a propaganda inimiga, para provocar o pânico. Eu, cá, fico no meu posto. A Alemanha não pode perder a guerra.
- Traz-me uma bacia de água para me lavar - ordenou o oficial com quem ela falava.
O oficial despiu o capote de coiro e pendurou-o no cabide. Pusera a mala em cima da cadeira. Tirou a farda e pô-la nas costas da cadeira. Podia assim ficar, durante horas, a vê-lo tirar o seu capote de coiro, pendurá-lo no cabide, desabotoar o dólmã.
- Traz-me água quente para eu me barbear - disse o oficial.
Depois virou-lhe as costas e abriu a mala. Hilda saiu do quarto deixando a porta aberta. Pela janela da cozinha podia ver o carro militar que tinha parado à porta. O oficial viera nele. Hilda olhou para o relógio da cozinha. Não havia um quarto de hora que o oficial chegara. ”Mas eu tenho a impressão de que o conheço há muito tempo”, disse de si para consigo.
O oficial batera à porta. Ela abrira. Ele disse que se queria lavar e mudar de roupa. Tudo isto com o tom autoritário com que comandaria os soldados. E, sem esperar mais respostas, entrara pela casa dentro. Passara junto de Hilda, especada à porta, e roçara por ela. Hilda sentira o relento do capote de coiro misturado ao cheiro a vento, a poeira e a guerra. E seguira-o como que embriagada.
O recém-chegado era enorme, um verdadeiro gigante. Abrira a porta da sala de jantar com gesto familiar. Dir-se-ia que estava em sua casa. Entrara. Depois começara a despir-se. A porta ficava aberta. Hilda esperara à soleta que ele lhe desse uma ordem. Mas o gigante despia-se sem a encarar sequer.
Assim que o oficial tirou o capacete, Hilda reparou no seu cabelo prateado. Depois tirara o capote. Hilda viu-lhe as estrelas de tenente.
- É um oficial miliciano - pensou.
O gigante encarara com ela várias vezes. Mas os seus olhares tinham-na atravessado apenas, sem a ver. Hilda começara a falar. Tinha-lhe dito tudo o que lhe viera à cabeça. O gigante a nada retorquia e nem sequer a encarava.
Depois de tirar a farda, mandara-lhe simplesmente que trouxesse água na bacia. Hilda gostaria que ele se lavasse na sala de banho. A casa tinha um belo banheiro. Mas, visto ele ter pedido uma bacia, não se atrevia a contradizê-lo. Enchendo o jarro de água, Hilda olhou uma vez mais para o carro que estava diante da porta.]O automóvel estava cheio de poeira, exatamente como o capote de coiro do gigante. Quando ela entrou no quarto com a bacia, o gigante estava em mangas de camisa.
- Dá-me um espelho - disse ele.
Parecia absorvido nos seus pensamentos e cansado. Hilda pensou que talvez quisesse dormir. Far-lhe-ia a cama no quarto de dormir e deixá-lo-ia repousar.
Naqueles últimos dias tinham atravessado a cidade muitas colunas de tropa. Haviam batido à porta soldados e oficiais pedindo pousada por uma noite, água para se lavarem e para aquecerem as conservas. Hilda fizera tudo para os servir. Pensava no marido. Sabia que lohann Moritz andava em missão oficial e queria mostrar-se digna dele e servir, por seu turno, a pátria. Hilda fizera dormir soldados e oficiais na sua sala de jantar. Mas convidaria o gigante a dormir no seu quarto de cama. Ela é que dormiria no canapé da sala de jantar.
Hilda pensou que o gigante talvez não escolhesse a cama de lohann, mas a dela. Semelhante pensamento fê-la tremer até aos ossos. Pegou no espelho com que lohann costumava fazer a barba e levou-o ao gigante que passeava ao longo do quarto, de colarinho aberto. O gigante tirou-lhe o espelho da mão, procurou sítio para o prender e não achou aonde. Era muito alto, e se pusesse o espelho em cima da mesa tinha que se abaixar para fazer a barba. Sem dizer palavra, pôs o espelho nas mãos de Hilda e começou a ensaboar a cara.
- Mais alto! - ordenou.
Tinha a cara curtida do sol e do vento. Uma barba ruça cobria-lhe as façolas. Hilda agüentava o espelho à altura da boca. Subiu-o mais, até à altura da testa. Quando o gigante se aproximou do espelho, Hilda sentiu-lhe a respiração. As mãos tremiam-lhe. Mas crispava os dedos no espelho e fazia por tê-lo direito.
- Um pouco mais alto! - repetiu ele com voz dura. Hilda levantou o espelho mais alto que a sua testa. Sentia
um formigueiro nos braços. Queria dizer qualquer coisa, mas o ruído regular da máquina que cortava o pêlo ruço da barba coberta de sabão obrigava-a a calar-se. Hilda fechou os olhos e ouviu o barulho da lâmina. As suas narinas dilatadas aspiravam o cheiro do sabão. Não era apenas cheiro de sabão, mas cheiro a homem, a guerra e a estradas sem fim. Era o cheiro do capote de coiro. O gigante não tinha reparado que Hilda cambaleava. Barbeava-se com cuidado, para se não cortar. Quando acabou, ensaboou as mãos na bacia branca.
- Arregaça-me as mangas da camisa! - disse ele.
Hilda arremangou-lhe a camisa. Tinha medo de tocar na pele do gigante. A mão do gigante roçou na dela, e Hilda estremeceu.
O cheiro a floresta e a vento que o gigante trouxera consigo enchera a casa toda. Hilda sentia o perfume impregnar móveis, tapetes, paredes, e sabia que aquilo não se desentranhava mais. O perfume entrara-lhe no vestido, na pele, no cabelo, na camisa, e não sairia mais, ainda que ela passasse o resto da vida a lavar-se.
- Agora quero ficar sozinho!
Quando Hilda se voltou para fechar a porta, viu-o nu até à cinta. Estava a tirar a camisa. Tinha a testa tapada. Hilda só lhe via o peito. Como enfermeira, vira milhares de homens nus. Mas peito assim nunca vira.
Foi à cozinha e viu pela janela o automóvel. A criança dormia. Hilda perguntava se o gigante se iria já, ou se descansaria primeiro. Queria preparar-lhe o jantar. Mas agora estava atenta e preparada para acudir ao mais pequeno apelo.
- Os russos estão a três quilómetros! - disse um vizinho que passava debaixo da janela. - Ficas ainda aqui?
- Fico! - respondeu Hilda.
Depois pensou porque seria que o gigante a não tornava a chamar. Não tinha paciência para esperar. Bateu à porta. Depois entrou. O gigante envergara o seu uniforme de parada. O peito estava coberto de condecorações. Hilda parou no limiar, maravilhada. O gigante sorriu-lhe. Era a primeira vez que sorria. No quarto, em vez do cheiro a vento, a guerra e a coiro, pairava agora um aroma de flores.
- Quero saber se tu és uma verdadeira alemã! - disse o gigante. - Quero de ti um serviço que só uma mulher alemã pode prestar.
- Sim, alemã sou! - disse ela. - E não sou só uma verdadeira alemã, mas meu marido foi mandado pelo Grande...
Hilda queria contar ao gigante o segredo da partida do marido. Mas interrompeu-se bruscamente. Estavam em cima da mesa os retratos encaixilhados de duas lindas mulheres. Hilda olhou para elas e não teve coragem para contar o segredo que nunca contara a ninguém, mas que teria revelado de boa vontade ao gigante. Agora, porém, tinha os retratos diante, arrependia-se da intenção de lhe contar o que sabia.
- É a minha mulher e a minha filha - disse o gigante. - Morreram ambas. Gostava muito delas. Mas traíram o amor que eu lhes tinha. A mulher e a filha enganaram-me. Minha mulher enterrou-se. Minha filha está algures, nem sei onde. Casou com um valdevinos. Desde então, foi como se morresse para mim.
Hilda olhou para os retratos daquelas duas mulheres. ”Eu nunca o teria enganado, se ele gostasse de mim!”, pensou.
Ao lado dos dois retratos de mulher via-se, emoldurado em coiro, o retrato do Fiihrer.
- E, ainda por cima, o Fiihrer morreu também! A Alemanha já não existe. Eu só vivi para eles. Quando era novo, gostava também de cavalos. Mas era um amor de mocidade. Já lá vai tudo aquilo que me fazia viver. Estão todos mortos: minha mulher, minha filha, o meu Fiihrer, a Pátria. Agora é a minha vez. Em meia hora, os russos estão aí. Antes de eles chegarem queria cumprir o último dever da minha vida.
Hilda tinha lágrimas nos olhos. Julgava que o gigante dormisse no seu quarto de cama. Pensava que ele tinha fome e que lhe daria de comer. Depois vira-o envergar o seu grande uniforme de parada.
- Faço o que me mandar - disse ela. - Quer ir para algum sítio?
Olhou para o uniforme.
- Para parte nenhuma - respondeu o gigante. - é a última viagem da minha vida no mundo. - Riu: - Julgavas que me ia embora porque me barbeei, me lavei e pus a farda de gala? - Agarrara-lhe um ombro. Hilda estava humilhada. A seu lado sentia-se pequena, tão pequenina como quando soubera que lohann partira em missão especial. - Presta atenção ao que te vou pedir - disse o gigante. - Aliás é muito simples. Mas só uma mulher alemã o poderá fazer! A minha não era capaz. Tu, sim, tu podes! Ela era muito weib. Muito fraca. Eu nem sequer lho pedia. Contigo é diferente.
Hilda sentia-se vaidosa por ter-lhe o gigante pedido o que não pediria à sua própria mulher.
- Depois da minha morte - disse o gigante - arrasta o meu corpo para o pátio e queima-o. Hás de me achar morto aqui, neste pano de tenda. - O gigante estendera no chão um pano de tenda militar. Estava como novo e cobria todo o soalho. - Basta pegares nas duas pontas do pano e arrastares-me para o pátio - disse ele. - O gigante tirou de baixo da mesa dois bidões militares. - Aqui está gasolina. É de avião. Depois de me teres arrastado para o pátio, cobre-me com este pano de tenda e despeja-lhe em cima a gasolina. Depois, acende o isqueiro. - O gigante sorria sempre. Tirou do bolso um isqueiro de oiro e passou-o a Hilda. - Aqui está o isqueiro para acenderes - disse ele. - Se o primeiro clarão se apagar, despeja a gasolina do segundo bidão e inflama. E dessa vez, creio que nada escapará. Os russos não encontram senão cinzas. Um soldado digno de tal nome não deve deixar o seu corpo nas mãos do inimigo. Assim têm procedido todos os soldados alemães ao comprido da nossa história. Quando tudo estava perdido, matavam-se. E faziam destruir os seus corpos. O inimigo não achava senão cinzas denegridas. - O gigante esfregou as mãos. Hilda estava calada. Olhava para os retratos. - Se quiseres queimar os retratos, basta deitá-los no pano de tenda e depois largar-lhes fogo. Assim arderão comigo. Se os quiseres guardar, guarda. Mas não vejo para quê. Eu não sou daqui. Sou da Roménia.
Hilda ficou imóvel. Pensava já no gigante estendido no pano de tenda. Não chegava a julgar que isso fosse possível. Parecia-lhe que o gigante não era feito para a morte, que era eterno.
- Terás tu medo? Uma alemã nunca tem medo. Sobretudo quando faz alguma coisa pela Pátria, pois creio que estás convencida de que serves a Pátria cumprindo a última vontade de um soldado.
- Bem sei! - disse Hilda. - E não tenho medo. Mas eu não posso crer que isto seja verdade. Não creio que os russos cá cheguem. Não acredito que a Alemanha seja vencida!
- Acabou-se tudo! - disse o gigante. - Está tudo irremediavelmente perdido. Não te esqueças de meter o revólver na bainha de coiro e de lhe largar fogo para que arda comigo. Um soldado deve ser enterrado ou incinerado com a sua arma. - Houve um momento de silêncio. O gigante olhava para algures, ao longe, perdido nos seus próprios pensamentos como numa água sem fundo. - Agora, pronto! - disse ele.
Hilda ergueu os olhos. Julgava que o gigante queria matar-se diante dela e não podia suportar aquilo. Mas ele não estava com cara de querer suicidar-se ainda. Hilda via-lhe o braço tenso. Imóvel como uma estátua, o gigante voltou-se, ergueu o braço e saudou-a.
- Adeus, amiga, e obrigado! - disse ele. - Sou o tenente lorgu lordan. Mas escusas dizê-lo. Deves sentir orgulho naquilo que vais fazer; é uma honra para uma alemã cumprir a derradeira vontade de um soldado! - O gigante apertou a mão de Hilda. Apertou-a com força, como quem vai separar-se. - Agora quero ficar sozinho! - ordenou. - Vem logo que ouvires o tiro. Adeus!
Os primeiros caminhões russos surgiram ao cimo da rua. Hilda ouviu primeiro o barulho dos motores; depois viu-os pela janela da cozinha. Precipitou-se para o quarto onde estava o gigante. Ele dissera-lhe que não entrasse antes de o tiro soar. Hilda nada ouvira e não ousava infringir aquela ordem. Os caminhões russos que passavam na rua faziam estremecer as paredes. Já não podia esperar. Tinha medo. Bateu à porta e entrou. O gigante jazia a meio do quarto, de costas, estendido no pano de tenda.
”Como é que eu não ouvi o tiro?”, perguntou Hilda a si mesma. O corpo do gigante estava hirto como se tivesse morrido em sentido saudando o retrato do Führer. De quepe na cabeça. A cara estava roxa e como que coberta de uma poeira cinzenta. A face direita, a boca e o nariz estavam manchados de sangue. Não era sangueira nenhuma. Só uns fios delgados.
Hilda pegou no revólver caído junto da boca do gigante e pô-lo na bainha de coiro. Depois deu volta ao fecho. Perguntava a si própria como pudera ele matar-se sem que ela ouvisse o tiro. Pegou nos panos de tenda e pô-los em cima do morto. Antes de lhe cobrir o rosto, olhou uma última vez para o gigante. ”Nem parece que estou ao lado de um morto!” - pensou. - ”Não me mete medo a morte. Nem ao pé dela a vejo. Talvez porque vi tantos homens morrer no hospital...”
Hilda cobriu o rosto do gigante sem lhe tocar. Agora, ele parecia-se com todos os homens que vira. Em vivo, não era como os outros. Mas Hilda mal se lembrava do gigante ainda com vida, ali a fazer a barba e a vestir o uniforme. Então, tremia-lhe a carne toda quando se aproximava dele. Mas tudo isso devia ter-se passado umas dezenas de anos antes. Quase o tinha esquecido.
Fora, ouviu-se o barulho dos caminhões e tanques russos. Hilda, de repente, teve medo. Queria pegar na criança e fugir para o mato pela portinha do jardim. Lembrou-se da promessa que fizera ao gigante. ”Estou arrependida de lhe ter prometido que o queimava”, disse de si para consigo. Não podia levar o cadáver para o jardim, que se arriscava a ser vista pelos soldados russos dos caminhões e dos tanques que passavam diante da porta. ”Tenho que esperar pela noite”, pensou. ”Levo-o para o pátio e, aí largo-lhe fogo, assim que escurecer. Fujo depois com o menino.”
Hilda ficara ao pé do morto sem pensar coisa alguma. Depois considerou que, se encontrassem o morto em casa, arriscava-se a ir presa. Foi buscar a criança que estava no quarto ao lado, pegou-lhe e sentou-se com ela numa cadeira, ao pé do morto. ”Não quero faltar a uma promessa feita a um soldado à hora da morte”, disse de si para si. Fechou a porta e deu a volta ao trinco, decidida a esperar que se fizesse noite. Em duas ou três horas seria noite fechada. Hilda não tinha relógio. Lembrou-se que o gigante trazia um no pulso. Arredou o pano de tenda e olhou para o relógio do gigante para saber quanto tempo teria que esperar ainda. Nisto, batem à porta. Hilda apertou o menino nos braços e não respondeu. Ouviu que falavam russo atrás da porta. E pancadas na porta, outra vez. Hilda abriu a janela que dava para o jardim. ”Não posso fugir daqui sem cumprir a promessa. lohann, meu marido, é um herói; eu não posso ser cobarde.
Hilda desrolhou um dos bidões de gasolina e verteu-o no pano de tenda. As coronhadas na porta iam metê-la dentro. Hilda desrolhou também o segundo bidão e despejou-lhe metade. Tinha medo que os russos fizessem a porta em pedaços, e despachava-se. Pegou na criança e foi à janela. ”Depois de saltar pela janela, atiro o isqueiro aceso para dentro e ele arde. Assim cumpro a palavra”, pensou.
A atmosfera do quarto estava empestada de gasolina. A criança começou a tossir. Hilda apressou-se. Quando alçava a perna ao peitoril da janela para saltar para o pátio, os russos já tinham começado a meter a porta dentro a ombro. Do peitoril da janela aos canteiros do jardim a altura não era grande. Saltar era fácil. Mas, nesse istante, três quepes russos surgiram à janela. Havia mais soldados no jardim. Hilda deitou um olhar à porta. A criança, sufocada pelo cheiro da gasolina, berrava. Decidiu contudo saltar e abrir caminho entre os soldados russos. Nesse mesmo instante, alguém estendeu a mão pela janela para a agarrar e tocou-lhe no pé. Hilda soltou um grito. Queria-se defender. Só tinha o isqueiro na mão Sem refletir, apertou a mola como quem carrega no gatilho de um revólver quando se sente atacado. No espaço de um segundo fez-se uma grande labareda. Depois a escuridão, uma escuridão mais negra e mais profunda que a noite. A luz não voltaria.
As mesmas chamas que queimavam o corpo do gigante lorgu lordan envolveram por igual a mulher de lohann Moritz e o filhinho. E o mesmo fogo destruiu a casa desde a cave à mansarda e tudo o que lá estava, e os retratos trazidos pelo gigante e postos por ele na mesa, o retrato da mãe de Susana e o de Susana, a primeira mulher de Moritz.
A gasolina trazida pelo gigante ardia ainda, erguendo as sua chamas ao céu.
Traian Koruga e Eleonora West estavam um ao pé do outro diante do Major Brown, governador americano da cidade de Weimar.
- E é tudo, Sr. Governador - disse Traian Koruga. - A 23 de agosto, quando a Roménia pediu o armistício, minha mulher e eu fomos internados pelos croatas juntamente com outros membros da Legação da Roménia. Fomos internados, segundo os regulamentos diplomáticos, num hotel, ao mesmo tempo que os representantes de todos os países inimigos. Depois a Croácia foi ocupada pelos partidários de Tito. Fomos transferidos para a Áustria, depois para a Alemanha e, por fim, para a Tchecoslováquia. Quando a Alemanha capitulou, já não havia ninguém para nos internar e partimos para oeste. Deixamos tudo para partir para oeste. Eleonora tornou a ver os duzentos quilômetros a pé. Tinha as pernas inchadas e as plantas dos pés cheias de calos. Deixamos tudo e fugimos ao longo de florestas e de campos para chegar, ou a território ocupado pelos americanos, ou pelos ingleses, ou pelos franceses - continuou Eleonora West. - Não queríamos cair vivos nas mãos dos russos ou dos partidários. Preferíamos matar-nos a sermos presos por eles.
- Por que é que os senhores tinham medo dos russos e dos partidários? - perguntou o Governador. - Os fascistas é que têm medo. Os russos e os partidários são nossos aliados. Combateram pela vitória das Nações Unidas.
- O senhor tampouco é fascista, Sr. Governador; mas não creio que tolerasse que sua mulher permanecesse em território ocupado pelos bolchevistas, ainda que fosse por vinte e quatro horas - disse Traian. - Não por motivos políticos, mas simplesmente pela crueldade deles e pelo terror que inspiram. E creio que mesmo o senhor não teria a coragem de penetrar na zona soviética, a não ser de uniforme e com uma boa escolta. Será justo que nos pergunte a nós, dois seres sem defesa, por que fugimos diante dos bandos bárbaros, armados de espingardas automáticas, do último modelo americano?
- E agora que desejam? - perguntou o Governador. - Não podem sair da Alemanha. Aqui, serão tratados como cidadãos inimigos e ficarão sujeitos às mesmas obrigações da população alemã. Terão os mesmos direitos que eles, e nada mais.
- Isto é, direito algum - disse Koruga. - Os alemães de Weimar são obrigados a limpar as latrinas do campo de Buchenwald e a lavar a roupa dos detidos libertados, ao menos uma vez por semana. Querem obrigar minha mulher a fazer as mesmas tarefas?
- Nós não somos inimigos da América e das nações aliadas - disse Eleonora West. - Fomos internados durante cerca de um ano pelos ”inimigos” das nações aliadas. E hoje viemos pedir autorização ao Sr. Governador para morarmos num quarto qualquer, nesta região, ou que nos dê a possibilidade de partir se não formos autorizados a residir aí. Estamos ambos na rua. Não sabemos onde dormir, onde comer; não nos podemos lavar; proíbem-nos sair daqui.
- Os senhores são cidadãos inimigos - disse o Governador. - A sua presença não me interessa. Têm passaportes romenos, não é verdade? Nesse caso são nossos inimigos.
- Mas a Roménia luta há já dez meses ao lado dos Aliados contra a Alemanha - disse Eleonora West - e o senhor sabe-o tão bem como eu. Já caíram por terra oitenta mil romenos pela causa aliada. Os que lutam ao vosso lado serão inimigos para os senhores?
- A Roménia é um Estado inimigo - repetiu o Major Brown. Tirou um papel da gaveta e leu em voz alta: - ”Países inimigos: Roménia, Hungria, Finlândia, Alemanha, Japão, Itália”. É bem claro, não é? Os senhores são inimigos dos Estados Unidos.
Traian Koruga pôs-se de pé. Eleonora West implorou com o olhar o Governador.
- V. Exa. nunca leu nos jornais que a Roménia combate ao lado dos Aliados, há um ano?
- perguntou. - E os nossos papéis, que dizem que fomos internados pelos alemães, não bastam? Nós não somos inimigos.
- Mesmo que assim fosse, não me interessa - disse o Governador. - As ordens recebidas por mim estipulam que os romenos são inimigos dos Estados Unidos. Já perdi tempo demais a discutir convosco. A senhora, que aí está, é minha inimiga. Minha inimiga, ouviu?! E se eu lhe tivesse caído nas mãos, tinha-me fuzilado e não ficava aqui a discutir comigo, como eu. O que acabo de fazer é ilegal. Mas não torno a cair. Não se discute com inimigos!
O Major Brown, o governador militar da cidade de Weimar, estava branco de raiva. Nem sequer correspondeu à saudação de Traian Koruga e de Eleonora.
- Aqui está o que é o Ocidente - disse Traian descendo os degraus da escada. - Eles não se interessam, nem pelos fatos, nem pelo homem. Generalizaram tudo e não se curvam senão diante do regulamento.
- Não posso andar - disse Nora.
Traian pegou-lhe pelo braço, para a amparar. Nora encostou-se-lhe ao ombro e começou a chorar.
- Percorremos duzentos quilômetros quase a correr para chegarmos ao pé deles. Fugimos do terror russo. Foi bom que lhe escapássemos. Mas os homens, atualmente, não podem sentir-se bem seja em que sítio for. A terra deixou de pertencer aos homens.
Quatro dias depois, Traian Koruga e Eleonora West voltaram ao Governador. Precisavam de uma autorização que lhes permitisse demorarem-se ainda uma semana em Weimar. Nora tinha os pés inchados e não podia seguir adiante. Pusera o seu melhor vestido, chapéu e saltos altos. Depois de ter dito ao soldado de serviço que queriam falar com o Governador, Traian disse a Eleonora:
- Vestiste-te como se fosse para uma recepção oficial. Nora sorriu. Pusera aquele vestido pela primeira vez três
anos antes, por ocasião de uma visita matinal feita ao Ministro da Finlândia.
- O Sr. Governador pede-lhes o favor de esperarem mais um instante - disse amavelmente a sentinela.
Passaram-se alguns minutos. Nora estava contente. Um soldado dirigiu-se a eles:
- Os senhores são os diplomatas romenos que desejam falar ao Governador? - perguntou. - Queiram esperar um pouco - e desapareceu.
Eleonora West pensou que o Major Brown era, no fundo, um homem delicado, que sabia tratar com as pessoas. Já se desculpara duas vezes por fazê-los esperar cinco minutos.
A sede do governo estava instalada num grande edifício. O hall era imenso. Nora viu-se ao espelho. Emagrecera, e as pregas do vestido caiam-lhe melhor que da última vez, na Legação da Finlândia.
- Sigam-me - disse o segundo soldado, dirigindo-se a eles.
Eleonora West afastou-se do espelho sorrindo. Traian levava-a pelo braço. Seguiram o soldado, que não subia as escadas como da última vez, mas se dirigia à saída. Depois convidou-os a instalarem-se no jipe que esperava diante da porta.
- Aonde vamos? - perguntou Traian.
O soldado que conduzia o carro encolheu os ombros. Estava vento. O auto atravessava as ruas da cidade numa corrida louca. Traian chegou-se ao ouvido do segundo soldado.
- Aonde vamos?
O segundo soldado encolheu os ombros, tal como o camarada. Traian voltou-se para Nora, que segurava a aba do chapéu com as mãos ambas. E ria. Sempre gostara das grandes velocidades. Na outra ponta da cidade o jipe parou diante de um muro de pedra. Um porteiro de quepe abriu o portão. Mas o auto não entrou no pátio. Um dos soldados entregou um envelope ao porteiro. Depois fez sinal a Eleonora West e a Traian para descerem.
- Onde estamos? - perguntou Nora. Os americanos esperavam que ela descesse. Não responderam. - Onde estamos? - Nora repetiu a pergunta em alemão ao porteiro.
- Na prisão da cidade - respondeu ele.
Depois pegou num braço de Nora. Nora quisera dizer qualquer coisa aos soldados. Mas era tarde de mais. O jipe desaparecera depressa como viera.
Nora voltou-se para Traian. Estava lívido. Os portões de ferro fecharam-se-lhes nas costas. Estavam no pátio da prisão.
Traian Koruga ficou fechado na cela n.” 5, no rés-do-chão, e Nora na cela n.º 2, no terceiro andar.
- Eles talvez se enganassem - disse Traian, ao ver-se só.
Tentou adivinhar o que teria acontecido. Mas lembrou-se de que Nora estava encarcerada, naquele mesmo momento, numa cela parecida com a sua, e então perdeu a calma.
Antes de a deixar, Traian quisera abraçá-la e dizer-lhe uma frase, uma palavra de amor. Mas o guarda pegara-lhe por um ombro e separara-os brutalmente. Nora voltara-se, suplicante, para o beleguim, que a empurrara violentamente para o outro extremo do corredor. Foi assim que se apartaram no corredor da prisão.
- Creio que me devem confundir, sabe Deus com que criminoso que usa o meu nome ou se parece comigo. Mas por que é que prendem Nora?
Traian Koruga pôs-se aos socos na porta para que o guarda viesse. ”Eu esperava que os russos me prendessem”, pensou. Com os russos, umas mãos bem tratadas bastam para nos prenderem. E mesmo se me tivessem prendido sem me repararem para as mãos, tinham-me prendido sem motivo, e não me admirava. Dos russos esperava tudo. Fiz duzentos quilómetros a pé para fugir de uma sociedade em que a ”falta de motivos constitui motivo de prisão, assassinato ou deportação”.
Doíam-lhe os pulsos. Mas Traian continuava a bater à porta da cela. Já não batia para que o guarda viesse, mas para se castigar a si próprio por ter percorrido duzentos quilómetros, e percorrido em vão, arrastando Nora consigo - aquela mulher de pés inchados e sangrentos. ”Os alemães poderiam ter prendido Nora”, murmurou. ”Os alemães eram nazis e anti-semitas.”
- Que é que quer? - perguntou um guarda que acabava de aparecer no traço da porta.
- Quero falar imediatamente com o diretor da prisão - disse Traian. - Minha mulher e eu fomos presos por engano.
- Não duvido - respondeu sarcàsticamente o guarda. - Todos os que aqui chegam declaram que foram presos por engano.
- Não lhe consinto caçoadas! - disse Traian. - Quero falar imediatamente ao diretor da prisão.
- Não há diretor nenhum. Vocês estão presos pelos americanos. Nós só tratamos da administração. Somos também a modo prisioneiros...
- Então, quero falar com os americanos!
- O sargento só vem uma vez por semana! - disse o guarda. - Às segundas.
Traian lembrou-se que era segunda-feira.
- O senhor quer dizer que tenho que esperar aqui até segunda-feira que vem, se quiser ver alguém? - perguntou Traian. - Julga que minha mulher pode ficar uma semana inteira na prisão?
- Não posso fazer nada - disse o guarda. - Você pode-me contar tudo o que quiser. E pode bater horas e horas à porta. Não serve de nada. Eu nada posso fazer. O sargento só volta segunda-feira que vem. - E fechou a porta.
- Quer você diga isto a alguém, quer não diga, até que eu possa falar ao diretor da prisão para saber por que fui preso, não tocarei em água nem em comida. é o único meio que tenho de protestar. E emprego-o.
- Vai fazer a greve da fome? - perguntou o guarda.
- E a greve da sede!
O guarda ficou um momento na soleira da porta, de chaves na mão. Olhou para Traian com piedade. Depois fechou a porta.
- É pena! O senhor ainda é muito novo! E deu duas voltas à chave.
Nora West atirou-se de punhos fechados contra a porta durante uma meia hora. Um guarda veio escutar, sem abrir. Olhou para dentro da cela pelo ralo da porta.
- Se continua a bater assim dessa maneira, é castigada - disse ele. - Os prisioneiros não têm licença de bater na porta da cela.
O guarda afastou-se. Nora West estendeu-se na enxerga. Um minuto depois levantou-se precipitadamente. ”Deve haver piolhos”, pensou ela. Teve medo. Queria bater ”à porta e pedir uma manta, perguntar ao menos se havia piolhos ou não. Mas agora já sabia que não tinha direito de bater à porta. Continuou pois a passear a todo o comprimento da cela.
No íntimo, Eleonora West sentia-se culpada. Sabia que, no fundo, a sua prisão era justa. Depois de ter falsificado os papéis que provavam a sua origem étnica e de ter pago para que os seus documentos civis fossem subtraídos dos arquivos, sentia-se apavorada, dia e noite, com a idéia da prisão. A todas as horas esperava ver chegar a polícia. Sabia que ia ser descoberta e presa. Durante toda a viagem pela Alemanha tremera quando via um polícia: os papéis de identificação eram falsos!
Aqueles últimos anos não tinham sido mais de que uma longa espera: a da hora de ser presa. ”E essa hora chegou, disse ela. Agora, descobriram que sou judia e não posso fugir.” Tremia toda. O corpo tremia-lhe de medo.
”Sou parva pensando que os americanos me prenderam porque escondi a minha origem étnica e falsifiquei os papéis na Romênia. Mas sinto que é este o verdadeiro motivo da minha prisão. O único. Sei que não é lógico. Mas é assim mesmo. Sou culpada. E agora vou receber o castigo. Um castigo exemplar. Um castigo duro. Mas bem merecido.
Eleonora West tinha frio. A sua roupa espumosa e leve como bolas de sabão, o seu vestido vaporoso como um véu, não a podiam abrigar contra o frio úmido dos muros da prisão.
O frio penetrava-lhe na pele e pela pele chagava-lhe aos ossos. Sentia aquela umidade nas profundidades do corpo. Até aquele dia não sentira frio nos rins. Não sabia bem onde ficavam exatamente os rins, nem que forma tinham. Mas agora tinha frio nos rins, sentia-os gelados.
E não só os rins. Os intestinos estavam também gelados.
Eleonora West cobriu os joelhos com o vestido. Mas não serviu de nada. Tinha medo de se sentar em cima da cama. Começou a tremer. Batia os dentes.
Lá fora - calor. Mas isso não tinha importância nenhuma, visto que Eleonora West tremia de frio e batia os dentes como se estivesse no pino do inverno. Para aquecer, Eleonora West acocorou-se no meio da cela. Nesse instante percebeu que precisava ir à retrete. Tinha que ir já. Centenas de picadas de agulhas atravessavam-lhe a bexiga e não podia mais forçar os músculos a obedecerem-lhe.
Eleonora West lembrou-se dos romances que lera: nas celas das prisões uma bacia substituía os W.C. Mas naquela cela não via senão uma cama, uma mesa pequena e uma janela de grades. Nora dirigiu-se para a porta e levantou a mão para bater. ”Eles hão de dar licença que eu vá à retrete!” - disse ela. No mesmo momento lembrou-se das palavras severas do guarda alemão: ”Se bater à porta é castigada!” Deixou cair a mão. Tinha medo de bater.
”Sou culpada porque bati à porta quando o não devia ter feito”, disse consigo. E recomeçou a andar para trás e para diante a todo o comprimento da cela.
Parou de novo diante da porta, com a mão no ar. Mas não teve coragem de bater: ”Se bater à porta, é castigada!”
Enquanto estas palavras lhe ressoavam aos ouvidos todo o seu corpo pareceu atravessado por uma corrente elétrica: um sinal de alarme. Nora sentiu que perdera o controle de seus músculos; que as suas finas calças de seda estavam quase a molhar-se. As suspensões das ligas molhavam-se também. Qualquer coisa de úmido e de cálido escorria-lhe ao comprido das coxas, das meias, até aos sapatos. Eleonora West fez ainda um esforço para reter. Mas os músculos, a carne, o corpo todo não lhe pertenciam já. Acocorou-se mais. À medida que as calças se molhavam e se tornavam mais quentes, uma sensação de bem-estar, de libertação, que desconhecera até ali, invadiu-a completamente. Cada músculo, cada poro, cada fibra do seu corpo distendia-se. Essa sensação era mais forte do que todo o prazer: uma verdadeira volúpia. Era quase mais que uma volúpia: um êxtase. Nora desprendia-se, graças a uma volúpia tal, de tudo o que era terrestre. Planava. Achava-se fora do tempo: todo o seu corpo se liberava.
Nora West tinha a impressão de estar a urinar há horas e horas, sem parar. Mas, quando viu o cimento todo molhado em volta, ficou apavorada. Pôs-se em pé e refugiou-se num canto da cela, como para ocultar-se. Era a hora mais dramática da sua vida. O cimento da cela estava molhado. O jorro de urina escorria, debaixo da cama, debaixo da mesa, até aos pés dela.
Eleonora West sabia bem que acabava de fazer uma coisa proibida. Eleonora West sabia que ia ser descoberta e severa mente punida. A voz do guarda ressoava-lhe ameaçadora aos ouvidos: ”Olhe que é castigada!” Eleonora West queria rasgar o vestido para limpar o chão, mas era inútil: havia líquido de mais para ser absorvido pelo seu vestido de seda e pela pouca roupa que tinha em cima de si. E aquela voz perto dela, que sem cessar ouvia: ”Olhe que é castigada! Olhe que é castigada!”
Percebendo que se não podia esconder, que seria descoberta e que toda a tentativa de escapar ao castigo era inútil, Eleonora West cobriu os olhos com os seus pulsozinhos, de que não tinha tirado ainda as luvas de renda, transparentes, como uma teia de aranha, e pôs-se a chorar de desespero...
- Tudo o que acaba de lhe acontecer é profundamente lamentável - disse o Sargento Goldsmith, o comandante da prisão. - Apresento-lhe as minhas desculpas. Lamento não ter sido posto ao corrente do seu caso mais cedo.
Uma semana passara sobre a prisão de Traian Koruga e de Eleonora West. Traian continuava estendido na cama. Não se podia mexer. Há sete dias que não tocava no pão, nem na água. O Sargento Goldsmith levara-lhe as bagagens para o carro. Ajudou Nora a acomodá-las. Ofereceu-lhes cigarros. Estava vexadíssimo.
- Amanhã de manhã os senhores serão postos em liberdade - disse-lhes ele. - Vou eu mesmo procurar-lhes alojamento e levo-os lá no meu carro. Lamento sinceramente tudo o que se passou. - Eleonora West e Traian Koruga não diziam palavra. - O Sr. Koruga e sua esposa não estão presos - disse o Sargento Goldsmith ao chefe dos guardas. - Foram aqui metidos por engano. Ficam ainda até amanhã, porque não têm alojamento. Vão dormir ambos neste quarto. Dê-lhes lençóis limpos e cobertores. São nossos hóspedes; simplesmente nossos hóspedes.
O sargento partiu. Voltou meia hora depois com um pacote. Trazia comida, e, para Traian, laranjas e toranjas. Antes de os deixar, desculpou-se outra vez, apertou a mão de Traian e foi-se. O chefe dos guardas assistia a esta cena arregalando os olhos como diante de um milagre.
- Sempre pensei que os americanos viriam apresentar-nos desculpas - disse Nora. - Os Estados Unidos são um país de gente civilizada.
Traian tinha febre. Adormeceu imediatamente. De noite sonhou que se achava a bordo de um submarino e que os coelhos brancos estavam todos mortos, todos, até ao último. Acordou a suar, com o pijama todo molhado, e dizendo: ”Depois da morte dos coelhos brancos não resta esperança alguma”. Durante o sonho gritara com todas as suas forças, mas os marinheiros não o queriam acreditar...
No dia seguinte o Sargento Goldsmith não voltou. Nora esperou-o todo o dia.
- Quem sabe se teve algum transtorno - disse ela. - Mas vem amanhã com certeza.
O chefe dos guardas era da mesma opinião. Contudo o Sargento Goldsmith não veio, nem no dia seguinte, nem ao terceiro dia. Uma semana depois, veio outro sargento em seu lugar.
- Não estou ao corrente do vosso caso - disse o novo Sachbearbeifer. - O Sargento Goldsmith voltou para os Estados Unidos. Não me deixou a vosso respeito nota alguma. Mas vou-me informar, e segunda-feira que vem comunico-lhe o resultado.
E partiu. Era um moço de cabelo ruivo e cara cheia de sardas. Não quis dizer o nome, nem mesmo ao chefe dos guardas. Tinha uma assinatura ilegível e estava sempre nervoso. Uma semana depois, voltou à prisão, mas esteve na secretaria uns instantes apenas. Quando os Korugas vieram vê-lo, já ele tinha partido. Foi preciso esperar outra semana ainda. Dessa vez o sargento estava de mau humor.
- Já pedi instruções a vosso respeito - disse ele. - Os senhores estão presos, tal e qual como os outros. Não há disposição alguma que nos permita tê-los em regime especial. - O sargento virou-lhes as costas. - Têm que ir para celas separadas - ordenou ao chefe dos guardas. - Vão ter o mesmo regime dos outros detidos. Não tolero exceção alguma na prisão.
O guarda esbugalhou os olhos. Queria ter a certeza de que ouvira tudo bem. Depois disse:
- Já compreendi. Celas separadas. Regime ordinário. Não há exceções.
A voz do guarda tremia.
- Eles vêm-nos separar! - disse Nora ouvindo os passos do guarda no corredor. Pendurou-se ao pescoço de Traian e pôs-se a soluçar: - Prefiro morrer, a ser outra vez fechada numa cela!
O chefe dos guardas parou no limiar da porta. As chaves tiniam-lhe. Nora não se voltou para ele. Mas bem sabia que ele ali estava; e Traian também. Olhava para ele fixamente. Queria-lhe pedir pelo amor de Deus que os deixasse ali juntos, ao menos cinco minutos. Mas não disse nada. Viu bem que era inútil.
- Este verão sou reformado - disse o guarda. - Estou muito velho. Na minha idade, já não posso aprender o jôgo das escondidas. Nem quero! - O guarda fez uma pausa. Juntava as forças todas, como se quisesse levantar um grande peso. Depois disse: - Ficam juntos, como de antes. Juntos e com a porta aberta.
- O sargento arrependeu-se da ordem que deu? - perguntou Nora.
- O sargento não se arrependeu - disse o guarda. E partiu sacudindo as chaves. A porta da cela ficou escancarada.
- Mas o que é que os americanos poderão ter contra nós?
- perguntou Nora, com desespero. - Por que é que nos conservam presos há seis semanas?
- Os americanos não nos querem mal - respondeu Traian
- Nem sequer têm consciência da nossa existência.
- E que tempo será preciso para que saibam que nos prenderam e nos mantêm a ferros? - perguntou Nora. - Eu cá já não posso!
- Nunca hão de chegar a saber que existimos - disse Traian. - A civilização ocidental, na sua última fase de progresso, não tem consciência do indivíduo. E nada nos permite esperar que a venha a ter jamais. Esta sociedade só conhece algumas dimensões do indivíduo. O homem integral, individualmente tomado, já não existe para ela. Tu, Eleonora West, que estás na prisão, embora sem culpa; eu, e outros ainda, não existimos para eles. Não somos, pura e simplesmente. Existimos apenas como frações infinitesimais de uma categoria. Tu, por exemplo, não passas de uma cidadã inimiga, presa em território alemão. É o máximo de notas características que a Sociedade Técnica Ocidental pode assimilar. Eis tudo o que te pode representar a seus olhos. Só te reconhece, graças a esses traços distintivos, e trata-te em conseqüência, com todo o grupo a que pertences, segundo as regras da multiplicação, da divisão ou da subtração. Não passas de uma parte da Romênia. Essa fração está presa. A culpa - ou o crime - a causa da tua prisão, pertencem à categoria.
- E contudo os americanos tiveram um motivo para nos prenderem - disse Nora. - Querem-nos mal. A não ser assim, tinham-nos soltado. Eu sofro porque não conheço o motivo da prisão. Pois deve haver um motivo!
- Com efeito, há um motivo - respondeu Traian. - Mas esse motivo é absurdo do ponto de vista humano e perfeitamente justificado do ponto de vista da máquina. O Ocidente encara o homem com os olhos da técnica. O homem de carne e osso, capaz de alegria e sofrimento, é inexistente. E aqui está por que o fato de nos terem prendido, de nos conservarem na prisão e de nos executarem talvez amanhã não pode ser considerado como criminoso. Seria criminoso se se referisse a homens de carne e osso. Mas a Sociedade Ocidental é incapaz de registar a presença do homem vivo. Quando prende ou mata alguém, essa Sociedade não prende nem mata qualquer coisa de vivo, mas sim uma noção. Em boa lógica, esse crime não lhe pode ser imputado, pois máquina alguma pode ser acusada de crime. E ninguém poderia pedir a uma máquina que tratasse os homens segundo as suas características individuais.
- E qual será o motivo justo e perfeito do ponto de vista técnico que levou os americanos a prenderem-nos? - perguntou Nora.
- Ignoro-o - respondeu Traian. - Tudo o que sei é que o fato de submeter homens às leis e aos critérios técnicos, critérios excelentes no que respeita às máquinas, equivale a um assassinato. Um homem obrigado a viver nas condições e no meio de um peixe, morre em poucos minutos, e vice-versa. O Ocidente criou uma Sociedade semelhante à máquina. Obriga os homens a viverem no seio dessa Sociedade e a adaptarem-se às leis da máquina. E às vezes o Ocidente tem a impressão de ter triunfado. Mas matam-se os homens submetendo-os às mesmas leis que regem os caminhões e os cronômetros.
People are not alik ... Nations are not alike.
Everybody is not the same or as dever or strong as everybody else.
Só as máquinas podem ser perfeitamente iguais entre si. Só as máquinas podem ser substituídas, desmontadas e reduzidas aos seus elementos essenciais ou a alguns movimentos principais. Quando os homens se parecerem com elas a ponto de com elas se identificarem, então não haverá mais homens na terra. - Nora suspirou. - Tu não existes como pessoa humana - continuou Traian; - ou, se preferes, existes, mas vista e deformada pelos olhos da máquina. Mas, na sociedade técnica, tal como nas sociedades bárbaras, o homem não tem valor algum. Ou mesmo, se algum tem, é ínfimo. No fundo, tu nem mesmo presa estás.
- Não estamos presos?
- Nem sequer isso - disse Traian. - Nós, isto é, tu e eu, não estamos presos, embora estejamos já há seis semanas na prisão. As nossas pessoas individuais nem sequer existem para a Sociedade Técnica Ocidental. Por conseqüência, não podem ser presas, nem o são.
- Isso não me consola - disse Nora. - Não estamos presos, e contudo estamos na prisão.
- Mas é, é uma consolação. É mesmo a única possível para esta hora tardia da história.
- Agora acabou-se - disse o chefe dos guardas entrando na cela de Koruga. - Leia o comunicado. A Turíngia e a cidade de Weimar foram cedidas aos russos. As tropas soviéticas já entraram na cidade. Chegaram durante a noite caminhões carregados de soldados. Os americanos retiraram. Só conservam o prédio do Governo, a prisão e algumas casas. Ninguém tem licença de partir. A cidade está cercada pela polícia militar.
Nora leu o comunicado no jornal e olhou sucessivamente para Traian e para o guarda encostado à porta.
- E quando a prisão for entregue - perguntou ela - somos com certeza também entregues aos russos, ao mesmo tempo que a prisão?
- Receio isso - disse o guarda. - Os russos tomam posse da prisão esta manhã, esta tarde ou esta noite, o mais tardar. Não se sabe a hora exata.
Traian Koruga pôs a cabeça nas mãos. Refletiu um momento e recapitulou: ”A fuga. Duzentos quilômetros. A Rússia. O terror. As violações. A Sibéria. Os pés de Nora, inchados e cobertos de chagas. Os comissários políticos entregues ao mesmo tempo que a cela e a prisão como escravos agrilhoados”.
- Ocupai-vos só do essencial, que os tempos chegaram - disse Traian. - Já não é preciso ter segredos. O chefe dos guardas pode ouvir. Eu sei que os americanos nos vão entregar aos russos, fechados nas nossas celas. É criminoso. Mas, do ponto de vista deles, estão inocentes. Eles são tão cândidos como as locomotivas, que parecem sorrir quando esmagam um homem na via férrea. Os Ocidentais reduziram o próprio pecado a uma única dimensão. Minimizaram-no em extremo. Posso mesmo dizer que o não conhecem já. Não são culpados. A sua civilização é que é culpada. Mas nada disso tem importância agora. Lembrei isto simplesmente para que não tenhamos mais ilusões. Dentro de alguns momentos, seremos entregues aos russos, isto é, aos homens mais cruéis que jamais atuaram, graças a um aparelho de Estado, em toda a superfície da terra. E se ainda posso tolerar o homem-máquina reduzido à sua função de roboto, nunca poderei defrontar ”o animal selvagem motorizado”. Não posso. Antes de ser cedido aos russos, farei o possível para me evadir e, se o não conseguir, mato-me. - Traian voltou-se para o guarda. - Ajudas-nos a fugir? - perguntou.
- Faço tudo o que me for possível - disse o guarda. - Quero sair daqui. Sou austríaco. Vou para minha casa, para Viena. Mas vou mais tarde.
- E eu, que faço eu de mim? - perguntou Nora. - Eu não quero fugir! Tenho medo. Era melhor matares-me. Traian!
- Matamo-nos juntos! - disse Traian.
- Mas valia experimentarem primeiro a fugir - disse o guarda. - Não é impossível. A parede está destruída pelos bombardeamentos. A questão é chegar ao pátio. Dai em diante, é uma brincadeira de crianças.
- Não tenho coragem de descer por uma corda do terceiro andar - disse Nora. - Tu, tu és homem. Podes fazer isso. Mas eu, tenho medo.
Traian Koruga atava lençóis e cobertores para fazer uma corda.
- É preciso não ter medo - disse ele. - Não tens nada que fazer. Amarro-te e faço-te descer pela janela. Uma vez no pátio, escapas-te ao longo da parede e esperas-me ao fundo, ao pé da árvore que te mostrei.
Nora segurava a corda por uma ponta enquanto Traian a atava. Deixou-a cair.
- Eu não posso fugir. Quando me arriares na corda fico logo a pensar que me podem atirar um tiro. E bastaria essa idéia para eu desmaiar. Achas que eles não podem atirar-me enquanto eu descer?
- é possível - disse Traian. - Mas devemos experimentar. Talvez eles não atirem. Em todo o caso, procedendo assim, temos mais probabilidades de ser salvos do que matando-nos diretamente.
- E se ficamos com os russos? - perguntou Nora. - Talvez que o diabo não seja tão feio como o pintam. No regime comunista, ainda assim, sempre há homens. Uma vez que eles chegam a viver, talvez que nós o consigamos também.
- Tens razão - disse Traian. - No Estado comunista também há homens. Talvez, até, a vida deles não seja mais difícil do que a dos homens do Ocidente. Não há ponto de vista subjetivo segundo o qual se possa julgar. Não há verdade objetiva. Tudo é subjetivo.
Quanto a mim, nunca hei de aceitar viver no Paraíso soviético. A minha teimosia pode parecer absurda; mas, do meu ponto de vista, é justificada. E para um ser humano não há coisas justas senão do seu ponto de vista pessoal. Pessoalmente, não quero cair nas mãos dos brutos motorizados do Volga. Talvez seja um louco. A spirit with any honour is not willing to live except in its own way; a spirit -with any wisdom is not over-eager to live at ali. Não tenho grande apego à vida. Posso renunciar a ela quando quiser. Mas, se não renuncio, quero vivê-la nas condições que me parecem as mais favoráveis. Podem-me demonstrar à vontade que a minha maneira de conceber a vida não presta. Aceito todo e qualquer argumento. Mas não aceito que outros, a não ser eu, me indiquem a maneira como devo viver - e que julgam melhor - e me obriguem a conformar-me com ela. A minha vida é minha. A minha vida não pertence nem ao kolkhose, nem à comunidade, nem ao comissário político. Portanto, tenho o direito de a viver do modo que eu próprio houver escolhido. Se me apetecer, até posso imitar a vida de um comissário. Mas acontece que não me apetece nada. Se eu o fizesse, ninguém teria o direito de me acusar e de pretender que eu agia bem ou mal. Disponho da minha vida a meu modo. E recuso-me a viver esta vida à moda soviética. Aqui está por que me mato.
Nora pôs-se a chorar. Traian continuava a atar a corda. Nora segurava com firmeza a outra ponta.
- Vê se os americanos saíram do posto de observação do pátio - disse Traian. - A melhor ocasião para nos evadirmos há de ser quando as sentinelas russas renderem as americanas. Depois, já será tarde.
Continuaram a atar a corda. Trabalharam naquilo toda a manhã. Experimentaram-na, a ver se era bastante comprida e resistente. E, de cinco em cinco minutos, um deles saía para olhar para as torres da prisão e voltava dizendo:
- Ainda lá estão os americanos!
Ambos folgavam com isso. Tinham a ilusão de que, desde que os americanos continuavam de guarda às torres da prisão, nem tudo ainda estava perdido.
Às seis horas da tarde mandaram sair Traian Koruga e Nora West da sua cela e meteram-nos num caminhão americano com outros detidos. Traian estava pálido. Nora chorava.
- Escolheram outro lugar para nos entregarem aos russos
- disse Traian. - O nosso caminhão dirige-se para leste. - As ruas da cidade de Weimar estavam repletas de soldados e de carros russos. - Saltamos do caminhão? - perguntou Traian.
- Olha que eles levam-nos com certeza para uma prisão russa.
- Tinham saído da cidade. Nora olhou para a verdura dos campos. Depois olhou para o sol. Bem via que iam para leste.
- Dentro em pouco, vamos atravessar uma floresta - disse Traian. - Tens que ser a primeira a saltar. Depois escondes-te numa moita e esperas por mim. Eu salto atrás de ti. - Nora chorava. - Prepara-te - disse Traian.
- Logo - respondeu ela. - Agora não posso. Tenho muito medo.
- Não tornamos a ter tão boa ocasião - disse Traian. - Olha essas moitas à borda da estrada; nada mais fácil do que escondermo-nos ali. Não queres saltar? Olha o caminhão a atrasar-se!
Pegou no braço de Nora. Ela agarrou-se com as duas mãos ao banco e crispou os dedos. - Não - disse Nora. - Tu podes fugir, se quiseres. Juro-te que não te quero mal se me deixares aqui e se fugires sozinho.
Traian Koruga sentou-se ao lado dela e fechou os olhos para não tornar a ver a floresta de moitas espessas onde teriam podido esconder-se. Não tornariam a achar ocasião como aquela. Quando tornou a abrir os olhos, o sol dava-lhe de rosto, cegando-o. O sol já não lhe ficava para trás das costas, como de antes. Agora dirigiam-se para oeste.
- Os americanos, ainda assim, são generosos - disse Traian pegando no braço de Nora. A cara brilhava-lhe de alegria. - Não nos entregam aos russos! - disse ele.
- E para onde nos levam? - perguntou Nora. Traian fez-se outra vez sombrio.
- Para uma prisão americana - disse ele. Tinha vergonha do seu primeiro entusiasmo. - Perdoa-me, Nora, a minha tola alegria. É preciso estar doido para se ficar contente porque nos fecham numa prisão de preferência a uma outra. Mas é a última fase atingida pelo homem na Europa. Só resta escolher entre duas prisões.
- Você é que é lohann Moritz? - perguntou o oficial americano. Sorriu, bem disposto e continuou: - O comandante da cidade quer ouvir da sua própria boca como se deu a evasão. Foi com certeza você, não é verdade, que salvou cinco prisioneiros do campo de concentração?
lohann Moritz corou de prazer. Nunca lhe passaria pela cabeça que os oficiais americanos pudessem vir buscá-lo de automóvel para o fazerem contar todas as suas proezas. ”Até o comandante da cidade ouviu falar de mim”, pensou lohann Moritz. E disse o seu nome com uma alegria que nunca experimentara.
- Sim senhor, sou lohann Moritz, o próprio.
- Vamos! - disse o oficial. - Tenho aqui o carro, lohann Moritz queria vestir o casaco. Só tinha camisa e
calças. Queria também calçar as meias, pois tinha os pés nus nos sapatos. Mas o oficial tinha pressa.
- O comandante está à espera - disse ele. - Venha tal qual como está. Em coisa de meia hora, você está de volta. Trago-o no automóvel.
Subiram ambos para o jipe. Moritz pensou que ia contar a sua história ao comandante, sem nada acrescentar. Já escolhia as palavras. Estava radiante. Imaginava que cara o comandante teria. Via-se já sentado à sua frente e desfiando a evasão. Entretanto, o automóvel parará diante de uma grande casa de pedra. O oficial voltou-se para Moritz.
- Você fica aqui - disse ele.
lohann Moritz desceu do automóvel. Tinha pena de que o oficial o não acompanhasse. Teria mais coragem para contar a sua história. Mas o automóvel abalara. A sentinela da porta introduziu Moritz no pátio. Dois policiais alemães vieram buscá-lo. Moritz olhava para a direita e para a esquerda. Não queria acreditar que o comandante da cidade pudesse morar numa casa tão feia. Mas não se atreveu a perguntar coisa alguma. Ao entrar, reparou que todas as janelas eram gradeadas, como nas prisões. lohann Moritz perguntou:
- Aqui é que mora o comandante da cidade?
Os policiais largaram a rir às gargalhadas. Não paravam de rir. Fecharam Moritz na cave, numa cela sem luz. Dando duas vezes volta à chave, ainda riam da pergunta feita pelo prisioneiro.
Corina Koruga, a mulher do Pé. Koruga, foi chamada à Administração. Era meia-noite quando dois aldeãos de braçadeira tricolor bateram à vidraça e a mandaram segui-los. Cá fora, a lua cheia. Corina Koruga fechou cuidadosamente a porta e guardou a chave na mão. Na Administração havia uma dezena de soldados russos que petiscavam com os campônios. A mulher do padre foi à presença deles. Ofereceram-lhe um copo de vinho e examinaram-na dos pés à cabeça. A mulher do padre baixou os olhos e, em pensamento, rezou a S. Nicolau. Os soldados forçaram-na a beber. Mas ela continuou a rezar a S. Nicolau, sem olhar para ninguém nem levar o copo aos lábios. Um soldado entornou-lhe vinho no corpête. Outro levantou-lhe as saias e regou-a de vinho por baixo. Mas ela não ouvia nada, nem via. Tinha os olhos fechados e continuava a rezar ao santo, que se parecia com o Pé. Alexandre Koruga, seu marido. Os russos e os campônios entornaram-lhe mais copos de vinho na cabeça, na camisa e debaixo das saias. Tinha o vestido e a camisa molhados. Depois estenderam-na brutalmente no soalho. A mulher do padre sentia que o vestido e o corpo estavam tão molhados como se tivesse caído à água. Depois teve a sensação de se afundar e afogar. S. Nicolau tinha ficado na margem e pedia por ela.
No dia seguinte, depois do que se passara na Administração do concelho, Corina, a mulher do Pé. Koruga, enforcou-se na capoeira.
Nora West. Primeira noite no campo de concentração de Ohrdruf.
”Eles com certeza não podem ter-nos prendido sem causa”, disse Nora consigo. Estava estendida. Não tinha colchão. Nem cobertor. Só uma tarimba. As ancas, os cotovelos, os ossos, tudo lhe doía. Quando chegou, algumas horas antes, ao campo de concentração, era já noite. Tinham-nos separado logo que desceram do caminhão que os transportara de Weimar, e a Traian mandaram-no para outro sítio. Quanto a ela, tinham-na mandado para ali.
O campo de concentração para mulheres era de barracas de madeira. No quarto em que Nora ficou, ainda havia talvez umas trinta mulheres. Nora não pudera ver as caras ao entrar na barraca, porque fazia escuro. Mas pareciam ser todas muito novas. Nora estendera-se numa tarimba e começara a chorar. Depois adormeceu. ”Já deve ser meia-noite”, disse de si para si. ”Que mulheres serão estas que aqui estão?
Um riso abafado saiu do outro canto do quarto. Nora teve a impressão de que era um riso de homem. Mas num campo de mulheres não podia haver homens. Aplicou o ouvido. Era com certeza um homem. Já não ria, mas percebia-se bem o que estava a fazer. Sentiram-se claramente os movimentos de um par. O homem largou outra vez a rir. Mas agora o riso vinha de outro canto do quarto. Nora ficou transida.
Por que é que hei de ter medo do que estes homens fazem? pensou. Mas não conseguia acalmar-se. Tapou os ouvidos. Já não ouvia nada. Continuava a vê-los, mesmo de olhos fechados. A tábua da cama estremeceu. Nora tornou a abrir os olhos. A porta estava aberta de par em par. Tinham entrado ainda outros homens na sala. Ficavam de pé, no meio da casa, a falar uns com os outros. Nora não pôde agüentar-se e começou a gritar. Fechou os olhos e berrou com toda a força que pôde.
Nem ela própria sabia por que se largara a gritar. Mas agora gritava ainda porque tinha medo das mulheres e dos homens que estavam naquele quarto. Iam-na matar com pancadas porque tinha gritado e os não deixava à vontade. ”É uma tolice, pensou. Eu não devia ter gritado. Agora, caem-me em cima e batem-me até me matarem. -E matam-me com razão porque eu, afinal, gritei.”
Os homens abandonaram precipitadamente a sala. Largavam a fugir. Eram muitos. Outros estavam também estirados no chão do quarto e Nora nem os ouvira. Um estava deitado com uma mulher numa cama ao pé da de Nora. Também nem esse ouvira.
Agora, os homens abandonavam o quarto. Pareciam sombras. Eleonora West supôs que eram enormes e negros. Mais negros do que a noite. Algumas mulheres saíram também com os homens. Mas voltaram logo nas pontas dos pés e deitaram-se. Estava já tudo em sossêgo. As mulheres nas suas camas, cada uma em seu lugar. Só duas no meio da sala. Permaneciam de pé no escuro. Usavam camisinhas curtas. Adivinhavam-se na escuridão as suas grossas silhuetas. Não falavam e mantinham-se estreitadas uma à outra. Nora ouvia-as comer. Mascavam chocolate.
Esperou que as duas mulheres juntas a meio da sala se fossem enfim deitar. Receava que lhe batessem ou mesmo que a matassem a dormir. Mas as mulheres continuaram tranqüilamente ali. Ainda mascavam chocolate e não diziam nada.
- Quem é que gritou? - perguntou uma delas em voz baixa. - Não foi a estrangeira, a ruça, que veio esta tarde?
- Não sei - respondeu a outra. - Mas não me importo que ela tenha gritado. Eu tinha mesmo acabado de me divertir cá com o meu e não me apetecia nada começar outra vez...
Continuaram a comer chocolate e não se tornaram a falar. Nora seguia-lhes os movimentos. Separaram-se enfim e dirigiram-se para dois cantos diferentes da sala. Meteram-se na cama. As tábuas rangeram. Depois fez-se silêncio. Nora abafava. Não conseguia dormir. Agora não havia mais homem nenhum na sala. As mulheres dormiam. Mas a atmosfera estava empestada pelo cheiro do vinho, do suor e dos homens excitados. As janelas, abertas de par em par. Porém, o cheiro não chegava a sair. Nora já não podia mais.
”Há de haver um motivo qualquer por que estou presa, pensou. Senão, não me tinham fechado aqui.” Teve vontade de tossir. Mas pôs a mão na boca e conteve-se: as mulheres podiam bater-lhe...
Primeira manhã no’ campo de concentração de Ohrdruf. Ao abrir os olhos, Traian Koruga viu lohann Moritz.
- Dormimos toda a noite ao lado um do outro! - disse Traian apertando a mão de lohann Moritz. - Como é que apareceste aqui?
lohann Moritz contou a sua história, a começar pelo fim. Falou do oficial que o levara, a fim de contar a fuga ao comandante.
- E em vez de me levarem ao comandante da cidade meteram-me na prisão! - exclamou lohann Moritz. - Lá fiquei oito semanas, numa cela sem fresta, sem um único raio de luz. Fiquei sempre à espera de que o comandante me chamasse. Trouxeram-me aqui. E pronto. - lohann Moritz parou de falar e voltou-se para Traian: - E o senhor, como é que veio aqui ter?
Traian encolheu os ombros. Os prisioneiros que tinham dormido estendidos por terra acordavam um por um. O campo de concentração de Ohrdruf era um simples campo rodeado de arame farpado. Estavam ali fechados quinze mil prisioneiros. Era só céu, terra e homens. Aos quatro cantos da barreira de arame farpado, soldados de espingarda-metralhadora em punho, junto dos tanques, vigiavam.
- O senhor não tem notícias de Fântâna? - perguntou lohann Moritz. Encarou com Traian e disse: - Custa-me a crer que o senhor esteja aqui! Como é possível que a gente se encontre aqui, ao pé um do outro? Toda a noite dormimos perto. Não posso acreditar...
O comandante do campo de Ohrdruf era judeu. Eleonora West ficou contente com isso. ”Um judeu há de compreender melhor os meus sofrimentos. Vai-me ajudar, como se eu fosse sua parenta. Vai-me fazer sair daqui”, pensou.
Estava decidida a contar-lhe tudo, a implorar, pedir-lhe que a socorresse, falar-lhe como a um irmão. As paredes do gabinete do comandante estavam cheias de fotografias tiradas nos campos de concentração alemães. Nora West reparou. As fotografias eram do tamanho da parede. Representavam homens mortos, enforcados, esfomeados; prisioneiros vestidos de pijamas às riscas; montes de cadáveres; instrumento do suplício; caminhões cheios de mulheres mortas.
Nora esquecera-se completamente do sítio em que se achava. Julgava estar, também, num campo de extermínio de judeus da Alemanha nazi. Olhava para o tenente de cabeleira ruça que estava no gabinete. Implorava-o com o olhar, suplicava-lhe que a livrasse do extermínio, da fome, das câmaras de gás, da tortura. ”Sou tua irmã, pensou Nora West. Peço-te pelo amor de Deus que me ajudes!” Nunca se sentira tão judia como naquele momento.
- Sr. Tenente! - disse Nora.
A sua voz tremia. Sentia a garganta apertada. As lágrimas, estranguladas, não a deixavam tugir.
- Não tens direito de falar antes de interrogada - disse secamente o oficial. Nora West mordeu os lábios; calou-se. Ia ouvindo as perguntas. O oficial lia, sem olhar para ela. - Chamas-te Eleonora West Koruga? - perguntou carrancudo.
- És tu, com certeza? Teu marido também foi preso, não é verdade? - O oficial tratava-a por tu. Mas o tom não era precisamente o de um irmão. - Teu marido foi funcionário do ditador Antonesco?
- Meu marido foi funcionário do Reino da Romênia - respondeu Nora West.
- Na Romênia houve pogroms terríveis, não é verdade?
- perguntou ele. Nora não teve tempo de responder. - Na Romênia houve campos de concentração para os judeus? - continuou o oficial. - Houve campos em que os judeus eram exterminados, passados pela câmara de gás, enforcados, degolados, fuzilados...
O tenente levantou-se. Nora estava decidida a dizer-lhe que também era judia; que tivera de arranjar papéis falsos; que sofrerá também; que fora obrigada a fugir; que tremera de medo todas as noites.
- Responde ás minhas perguntas! - berrou o oficial.
Aproximou-se dela, de punho cerrado. Nora tinha a certeza de que ele lhe ia desfechar um muro em plena cara. Fechou os olhos. Estava á espera dos socos. O corpo tremia-lhe todo. Já não tinha coragem para uma só palavra.
- Responde, criminosa! - berrou o oficial. - Quantas judias mataste com a tua própria mão? Responde! Se continuas calada, faço-te em postas! Quantas judias mataste com as tuas próprias mãos? - Nora emudecera. - Não queres dizer? - berrou ele. - Agora tremes de medo. Fazes xixi pelas pernas abaixo com medo. Mas quando as matavas, não, não tinhas medo!
- Eu também sou... - balbuciou Nora West.
- Desavergonhada! Nazi! Já, fora daqui! - gritou - Rua!
O punho erguera-se-lhe, minaz, diante dos olhos de Nora. Eleonora West, então, saiu do gabinete.
Traian Koruga escrevia. lohann Moritz permanecia ao pé dele e reparava na maneira como ele segurava o lápis, os dedos apertados, e como traçava as letras minuciosamente, como se enfiasse pérolas. lohann Moritz não tinha paciência para escrever. E mesmo não gostava de escrever. Mas seria capaz de ficar ali a ver Traian Koruga escrever horas e horas, sem se enfadar. ”Quando o Sr. Koruga escreve é como se rezasse aos santos”, pensou lohann Moritz. ”Quando vemos o Sr. Koruga, esquecemo-nos que ele é um prisioneiro. Não se repara que está descalço, que não tem a barba feita e que tem buracos nas calças. Quando escreve, Traian Koruga é um senhor. Apetece tirar o chapéu e falar em voz baixa.”
- Tens ouvido falar dos domadores de serpentes? - perguntou Traian interrompendo-se.
- Tenho - disse Moritz.
- S. Daniel ficou na caverna dos leões e eles não o devoraram - disse Traian. - Domesticou-os. Os homens podem encantar as serpentes e domar os leões. Mussolini tinha dois tigres no seu gabinete. Estavam ensinados. Os homens podem domar todos os animais ferozes. Mas, há tempos para cá, apareceu uma nova espécie de animal à superfície do globo. Essa espécie tem nome: são os Cidadãos. Não vivem nas florestas, nem na selva, mas nos escritórios. Contudo são mais cruéis do que os animais ferozes da selva. Nasceram do cruzamento do homem com as máquinas. É uma espécie bastarda, a raça atualmente mais poderosa em toda a superfície da terra. A cara lembra a dos homens, e arriscamo-nos muitas vezes a confundi-los com eles. Mas imediatamente percebemos que não se comportam como homens, senão como máquinas. Em vez de corações têm cronômetros. O seu cérebro é uma espécie de máquina. Não são máquinas nem homens. Os seus desejos são de animais ferozes. Mas não são animais ferozes. São Cidadãos ... Estranho cruzamento. Invadiram a terra inteira.
lohann Moritz procurava uma imagem dos Cidadãos. Mas não conseguia. Por instantes pensou em Marcou Goldenberg. Mas Traian recomeçou a falar e afugentou a imagem de Marcou.
Eu sou escritor - disse Traian. - Para mim, um escritor é um domador. Quando se mostra aos seres humanos o Belo, isto é, a Verdade, eles amansam. Por mim, vou domar os Cidadãos. Comecei a escrever um livro. Estava no quinto capítulo. Depois os Cidadãos levaram-me ao cativeiro e não pude escrever mais. O quinto capítulo nem sequer ficou começado. Agora, já não há razão para o escrever. Não torno a publicar livros. Em vez do quinto capítulo, quero escrever qualquer coisa para domar os cidadãos. E, se o conseguir, morro com a alma em paz. Vou-te ler também o que escrevo. Não é um romance, nem uma peça de teatro. Os Cidadãos não gostam de literatura. Para os poder domesticar, escreverei no único género que admitem. Escreverei Petições. Os Cidadãos não têm tempo a perder com romances, dramas e peças. Só lêem Petições.
PETIÇÃO N.º 1. - Assunto económico. (Matérias gordas)
Vou mandar-vos várias petições. Começo por um assunto econômico. Sei que a Civilização técnica está construída em bases materialistas. A Economia é o vosso Evangelho. Pessoalmente, sou escritor, e cada escritor é antes de tudo uma testemunha. A primeira qualidade requerida para ser testemunha é a imparcialidade. Portanto, as minhas Petições serão testemunhos de Verdade.
O problema que vou expor-vos parece-me particularmente importante: trata-se das matérias gordas. Estais naturalmente ao corrente da penúria de matérias gordas que o Universo atualmente conhece. } Quando cheguei a este campo, os prisioneiros estavam espalhados no chão, uns ao lado dos outros. Eu saíra da prisão e estava muito cansado. A campina que rodeava o campo pareceu-me enorme. Não compreendia por que havíeis restringido a tal ponto o cercado do campo.
As quinze mil pessoas que aí estavam continuam coladas umas às outras. Quando se mantêm de pé, ainda há uma certa folga. Mas quando se deitam, o espaço é tão curto que se amontoam em cima uns dos outros. Por mim, não pude estender as pernas durante toda a noite. Os que estavam em volta de mim punham-me os pés na cabeça. Os pés estavam quentes e, como os estenderam por cima do meu corpo toda a noite, não tive frio.
Julgo saber agora por que estreitastes tanto o espaço do campo: porque os prisioneiros calcavam a erva aos pés e quereis economizar toda a erva dos campos. A erva é cara. Era uma pena calçá-la assim inutilmente. Mas vale que seja uma vaca que a tose, pois a vaca dá leite; os prisioneiros, esses não dão nada. Por outro lado, se tivésseis feito o cercado mais largo, precisaríeis de muito mais arame farpado. O arame farpado é caro, e claro que não valia a pena gastar tanto arame, só para que os prisioneiros tivessem mais espaço e pudessem dormir ao comprido. Tanto mais que, quando houver frio e chegar o tempo das chuvas, a maior parte dos prisioneiros morrem. Outros, até, morrerão antes, e os que ficarem com vida terão todo o espaço necessário para estenderem os pés. Creio que pesastes este fato quando construístes o campo. Só me cumpre inclinar-me ante o rigor científico das vossas previsões.
Antes de adormecer ouvi uma conferência. O conferencista, que se dizia professor da Universidade de Berlim, falou-nos das matérias gordas. E é do assunto da conferência que me vou ocupar na presente petição. O professor contou todos os dias os grãos de feijão da sopa que comemos no campo. Contou, durante trinta dias, ao meio-dia e à noite, todos os grãos da sua gamela. Depois somou tudo e tirou uma média. Afirma, feito o cálculo, que um prisioneiro recebe dez grãos de feijão por dia, às duas sopas. Os seus assistentes contaram também os grãos de feijão das respectivas gamelas e confirmaram que o cálculo estava certo. Depois o professor contou as cascas de batata e calculou a quantidade de farinha contida na sopa. Este último cálculo foi naturalmente aproximativo, uma vez que o professor não podia entrar na cozinha.
Sabeis tão bem como eu que os alemães são muito fortes em questões de medida. Permitem-nos pois supor que os grãos de feijão foram exatamente contados. Os alemães são pacientes e escrupulosos. Trinta dias passados sobre este género de trabalho, o professor concluiu o seu estudo e fez uma conferência a que o auditório deu o seu justo valor. Os alemães gostam de ouvir conferências sobre os mais variados assuntos. Este costume, entre eles, data da Idade Média. Depois de ter explicado como conseguira contar os grãos, passando todos os dias a sopa no passador, o professor referiu o número de calorias contidas em cada grão. Já não me lembra exatamente a cifra respectiva. Depois calculou o número de calorias contidas em dez grãos de feijão, juntou-lhes a número de calorias das batatas e da farinha, que os prisioneiros nunca chegam a descobrir na sopa mas cuja existência o professor não podia pôr em dúvida. E concluiu declarando que cada prisioneiro do campo recebe em média quinhentas calorias por dia. Às vezes recebe muito menos. Acontece mesmo que o próprio professor não acha um só grão na sopa - e, nesses dias, nada tem para contar. Mas, noutros, chegou a contar até quinze, e algumas vezes mesmo de/oito grãos de feijão. A média é pois exata.
Os prisioneiros do campo não dormem todo o dia; contudo o professor estabeleceu os seus cálculos como se os prisioneiros consumissem em estado de vigília um número de calorias igual àquele de que teriam necessidade se passassem todo o dia a dormir. Mil calorias, o mínimo.
Os prisioneiros recebem quinhentas calorias em grãos de feijão. As quinhentas calorias que consomem a mais devem tirá-las das próprias reservas de gordura, isto é, do capital acumulado em seus corpos. E porque ingerem cada dia quinhentas calorias sobre a reserva com que tinham chegado ao campo, os prisioneiros emagrecem coisa de seis libras por mês.
Tudo isto é naturalmente uma média. O próprio professor pesou os prisioneiros com balanças e pesos improvisados. Parece, contudo, que os instrumentos eram rigorosos. Adicionando as seis libras, isto é, os três quilos de gordura que cada prisioneiro perde transformando-os em calorias, resulta que, só neste campo de Ohrdruf, da vossa competente direção, há todos os meses quarenta e cinco mil quilos de matérias gordas que se perdem. Todos os meses, vão-se do campo cinco vagões cheios de matérias gordas. A gordura, é um ar que lhe dá. Os quinze mil prisioneiros abandonam ao ar circunjacente esta importante porção de matérias gordas. Calcule-se a perda emergente! Pessoalmente, não sou economista. Não sei sugerir a mínima solução. Contudo, estou convencido de que, graças aos meios técnicos de que dispondes podeis utilizar em vosso proveito toda esta graxa viva. Por que a deixais perder?
Tal o objeto da minha petição. Estou certo que compreendeis. Vindes do ramo mais dianteiro da Civilização técnica. Talvez possais enviar, a tal respeito, um relatório às Academias de Ciências do vosso país. é bárbaro deixar perder assim quarenta mil quilos de gordura todos os meses. Tendes também outros campos. Julgo saber que só na Alemanha há algumas centenas. Podíeis ter montanhas de gordura fresca todos os dias.
Desde que ouvi a conferência do professor de Berlim farejo os ares e descubro que cheiram a gordura de homem. O vosso campo é uma prensa gigantesca que extrai a gordura aos prisioneiros. Fungo-a nos ares. Não vos acontece sentirdes esse cheiro de gordura quando estais no gabinete, com a janela aberta? Até o vosso vestuário deve conservar o fartume. Tende a bondade de perguntar, à Senhora ou à bem-amada ao lado de quem dormis, se o cabelo e a pele vos não cheiram a gordura de homens quando vos estendeis a seu lado. As mulheres têm o olfato mais fino do que o nosso. Confirmam-no, com certeza.
Quanto a mim, sinto o coração transtornado, só de pensar em tal. Faz-me náuseas. Recebei os meus cumprimentos e a promessa de encontrardes sempre em mim um grande admirador da civilização que representais. Estou certo de que graças aos recursos e aos meios de que dispondes, podereis utilizar toda essa gordura. (Não vos esqueçais de que eu próprio vos ofereço três quilos por mês, tirados do meu próprio corpo.)
PETIÇÃO N.º 2. - Assunto estético. (O ideal de beleza humana na Sociedade Técnica Ocidental)
Uma noite atrás discuti Estética com um professor alemão. E pegamo-nos. Os alemães, como os outros europeus, ficaram pelo classicismo. E eis por que a sociedade deles desabou. Uma sociedade sã e evolvida como a vossa tem a sua arte moderna.
O professor alemão mostrou-me os prisioneiros que passeavam no pátio do campo, e que já não têm - como vós bem sabeis - senão a pele e o osso. O professor disse-me que eram feios. Ainda ficou no ideal de beleza grega. Quanto a mim, acho que os homens reduzidos ao esqueleto e à pele são soberbos e constituem verdadeiras obras de arte vivas.
Experimentei convencer o alemão de que a vossa Sociedade aprecia o Belo a um ponto jamais atingido por sociedade alguma até aos nossos dias - e que praticais a extração da gordura dos corpos humanos para fins puramente estéticos, para embelezar o Universo. Não compreendeu. Os alemães compreendem dificilmente. Por isso se diz que têm a cabeça quadrada. Farei amanhã uma conferência sobre o ideal de beleza humana no Ocidente moderno.
Há um escultor suíço, Alberto Giacometti, que realizou no domínio da escultura os mesmos princípios e o mesmo ideal de beleza masculina e feminina que os senhores realizaram na prática fazendo desaparecer a gordura e a carne do corpo humano! Trabalhando nas suas estátuas, esforçou-se por eliminar a gordura do corpo humano e do espaço. O corpo humano, assim reduzido a uma só dimensão, toma formas alongadas e secas da grossura de um fio de ferro. Fazeis a mesma coisa no campo. Sei desde sempre que toda a vossa civilização se baseia em princípios estéticos. E quando amanhã toda a superfície do globo for povoado por homens de corpos harmonizados segundo os novos cânones estéticos da arte de Giacometti - e da vossa - o Universo resplandecerá de beleza!
- Meu velho Moritz - disse Traian Koruga - acabo de escrever pelo menos quarenta petições em que lhes quis mostrar a verdade e convencê-los a não torturar mais os homens. Estou certo da razão que me assiste. Enderecei devidamente cada uma das minhas petições. Mas em vão. Usei o estilo jurídico, o estilo diplomático, o estilo telegráfico, o estilo receita de cozinha, o estilo publicitário; fui alternadamente sentimental, grosseiro, suplicante; pedi justiça por todos os meios que o desespero punha à minha disposição. Não recebi resposta alguma.
Disse-lhes as verdades mais desagradáveis, mas não se zangaram. Pus-me de joelhos para lhes escrever, mas não se compadeceram. Insultei-os grosseiramente, mas não se sentiram ofendidos. Quis obrigá-los a rir ou excitar-lhes a curiosidade: baldadamente porém. Não consegui sequer acordar-lhes os apetites vulgares. Não provoquei reação alguma neles. Antes falar a pedras. Eles não têm sentimentos. Não sabem odiar. Não sabem vingar-se. São estranhos à piedade. Trabalham automaticamente e ignoram tudo o que não está escrito no seu programa. Podia rasgar um pedaço de carne e escrever nele uma petição com o meu sangue ainda quente: apesar disso não a liam. Atiravam-na para o cesto dos papéis, como fizeram às outras. Nem mesmo reparavam que era um pedaço de carne, de carne humana ainda quente. É-lhes indiferente o homem. é a indiferença do Cidadão em face do homem, indiferença que acabou por ultrapassar a das máquinas.
- Meu pobre Sr. Traian! - disse lohann Moritz confrangido. - Que pensa o senhor fazer? Cá por mim, acho que não vale a pena tornar a escrever-lhes.
- Continuarei - disse Traian. - Só paro quando morrer. Os homens conseguiram domar todos os animais ferozes. Por que é que não havíamos de domar os Cidadãos?
- Talvez fosse melhor tentar a coisa de outra maneira - disse lohann Moritz. - A escrever, acho que não consegue nada.
- Todas as vitórias do homem desde que apareceu à superfície do globo até hoje são vitórias do Espírito. Graças ao Espírito acabaremos por domar os Cidadãos nos seus escritórios. Se não conseguirmos domá-los, hão de fazer-nos em bocados, a todos, enquanto existirmos. Temos que ensiná-los a não tornarem a fazer o homem em bocados quando o encontrem. Enquanto lhes não ensinarmos isso, não poderemos habitar a terra, as mesmas cidades, as mesmas casas que eles. Vai ser mais duro do que encantar serpentes ou domar tigres. Mas nunca fui tão otimista como hoje. É sem dúvida o otimismo do homem antes da morte. O espasmo da minha agonia é o capítulo das petições da vigésima quinta hora. Mas hei de, hei de escrever!
PETIÇÃO N.º 3. - Assunto: económico. (Prisioneiros só com metade ou um terço do corpo)
Durante quatro dias, um dos meus amigos e eu próprio conseguimos contar os prisioneiros deste campo que não têm mais de metade, o terço ou o quinto do corpo. O meu amigo ainda não acabou as suas estatísticas. É muito forte em cálculo. Mas eu apresso-me a escrever-vos porque o problema parece-me urgente do ponto de vista econômico. Podeis economizar todos os dias pelo menos alguns milhões de marcos.
Eis do que se trata. Entre os quinze mil prisioneiros que estão fechados comigo, três mil pelo menos não possuem integralmente o seu corpo. Duzentos deles não têm perna alguma. Arrastam-se como répteis através do campo. Mil e duzentos prisioneiros têm apenas uma perna. Alguns, só um braço. Alguns são mesmo completamente manetas. Isto pelo que respeita ao exterior. Mas grande número deles perderam certos órgãos interiores, um pulmão, um rim, fragmentos de ossos etc. Quarenta prisioneiros não têm olhos.
Todos esses indivíduos foram presos automaticamente ao mesmo tempo que eu. A princípio, tive pena deles. O meu amigo lohann Moritz fecha os olhos quando vê os estropiados e os grandes mutilados do campo. Mas lohann Moritz é um primitivo. Não compreende que a prisão é automática, e que desde o momento em que se faz parte de uma categoria que deve ser aferrolhada, ninguém se pode esquivar pelo simples fato de ter pernas, olhos, nariz e pulmões a menos. A prisão automática não prevê exceções para aqueles que têm um corpo em estado de não-funcionamento. É justo que assim seja. A justiça deve funcionar sem exceção para todos.
Há neste campo um professor que já não tem braços, porque os perdeu na guerra. Quando destes ordem para prender todos os professores, não era justo poupar o meu amigo porque não tinha braços. Que haverá de comum entre a prisão e os braços? Nada. Ele é professor, portanto devia ser preso ao mesmo tempo que todos os da categoria a que pertence. Foi o que fizeste. Nunca vos enganais! E aqui está por que eu vos admiro tanto. Era capaz de dar a minha vida, fosse em que altura fosse, em prol da vossa grande, magnífica Civilização. Vós sois a Justiça e a Precisão em pessoa.
Mas voltemos ao nosso assunto. Estas frações de homens que só têm pedaços de carne recebem a mesma qualidade de alimento que os prisioneiros na posse perfeita do seu corpo. É uma grande injustiça. Proponho que esses prisioneiros recebam rações alimentares proporcionais à quantidade de corpo que ainda possuem. O vosso governo faz grandes sacrifícios para assegurar as rações alimentares dos prisioneiros. Mas por prisioneiro entende-se um homem integral. Se juntásseis os três mil mutilados e lhes contásseis as mãos, os pés, os olhos e os pulmões, veríeis que na realidade não tendes senão dois mil prisioneiros, o máximo. Podeis pois economizar pelo menos’ mil rações alimentares por dia. Por que é que havíeis de gastar dinheiro a alimentar órgãos que os prisioneiros já não têm? Semelhante generosidade é perfeitamente deslocada.
Creio que as Autoridades superiores ficarão muito satisfeitas quando lhes falardes do caso. Quem sabe até se não sereis condecorado? Fareis, assim, com que o Estado realize uma grande economia. E todos sabem que o dinheiro é a única coisa importante. É nessa convicção que me permito concluir.
PETIÇÃO N.º 4. - Assunto: militar. (Mudança de sexo)
Devido à fome, os prisioneiros do campo estão sujeitos a certas transformações que podem apresentar um alto interesse militar para vós. Eis, em poucas palavras, o caso de que se trata. Os prisioneiros presos há muito tempo e que viveram com quinhentas calorias por dia já não precisam barbear-se. Homens que, em tempo normal, faziam a barba uma ou duas vezes por dia, instalados no campo começaram a barbear-se apenas uma vez de dois em dois dias, depois uma vez por semana, depois duas vezes por mês, e enfim, vez nenhuma. A barba tornava-se-lhe cada vez mais rala, até parecer uma penugem, a qual acabou mesmo por desaparecer de todo. A cara tornou-se-lhes tão macia e lisa como rosto de mulher. Mas isto não é tudo. A sua própria voz adamou-se. Os seios desenvolveram-se-lhe até atingirem em certos prisioneiros o volume dos de uma rapariguinha de treze anos. A pele deles é suave e sedosa como a pele das mulheres. Os próprios hábitos tornaram-se-lhes femininos. Não sei ao certo o que lhes acontece aos órgãos sexuais, mas creio que nesse regime (e sobretudo se tentardes reduzir ainda mais as rações alimentares), o falo e os órgãos anexos acabarão por cair, o que consumará a sua transformação em mulheres. Os médicos pretendem que é por causa da fome e que ”a privação de alimento tem como efeito reduzir e quase parar as secreções hormonais de dupla função: andrógina (hormônios machos) e estrógina (hormônios fêmeos).
Além disso, o fígado enfraquecido já não pode exercer a sua função de regulador hormonal: ainda é capaz de destruir os hormônios andróginos em excesso, mas continua a deixar passar os hormônios estróginos. Interrompido o equilíbrio hormonal, o organismo revela e acusa o seu aspecto feminino 1). Esta constatação poderia ser, para a vossa Civilização, de uma alta importância militar. Pensai na calma que revestiria o universo se metêsseis todos os vossos bárbaros inimigos em campos de concentração - como começastes, de resto, a fazer - e lhes désseis apenas algumas centenas de calorias por dia, até que se tornassem todos fêmeas. A nação vossa inimiga ficaria sem machos. Já ninguém poderia declarar-vos a guerra. Creio que o vosso Grande Estado-Maior utilizará tal descoberta. Levando em conta o espírito prático e particularmente inventivo da vossa Civilização, creio que faríeis também a operação inversa: a superalimentação das mulheres da vossa pátria que queiram inscrever-se como voluntárias e a sua transformação em machos. A mão-de-obra ficaria assim acrescentada.
Proponho pois que as rações de quinhentas calorias concedidas aos prisioneiros do campo que dirigis sejam ainda diminuídas. Os prisioneiros transformar-se-ão talvez assim, ainda mais depressa, em fêmeas verdadeiras.
Preparativos de partida. Os quinze mil prisioneiros deviam ser transferidos para outro campo. Eram duas horas da manhã. Concentravam tanques e caminhões à volta do campo. Todos os faróis, incluso os dos tanques, estavam acessos e brilhavam como se dia fosse. Os canos de todas as armas automáticas estavam apontados sobre a multidão de prisioneiros que se escoava pela porta como um rio. Traian Koruga e lohann Moritz avançavam lado a lado. Moritz rangia os dentes.
À porta havia duas equipes de soldados armados de bastões. Contavam os prisioneiros que saíam pela porta e repartiam-nos em grupos.
(1) Tenente-coronel Dr. S. Jacobs.
- Querem meter-nos aos sessenta e seis num caminhão que normalmente só pode levar dez ou doze homens - disse Traian. - Como se vão eles arranjar? Já ouviste falar alguma vez da lei de impossibilidade de interpenetração dos corpos humanos?
Moritz não respondeu. Tremia. Traian via atentamente os soldados carregarem o primeiro caminhão. A princípio fizeram entrar vinte homens. Dir-se-ia que não haveria mais lugar para ninguém. Os soldados largaram à vergalhada nos que já estavam no caminhão. Os homens apertavam-se uns contra os outros. Os soldados fizeram então subir uma dezena de homens. Depois os vergalhos entraram outra vez em ação. Os recém-chegados imprensaram-se contra os que já lá estavam. Já havia lugar. Os soldados fizeram subir ainda dez homens. Agora ia jurar que não havia mais espaço mesmo para uma criança. Os soldados voltaram as armas e desataram à coronhada. E puderam trepar para o caminhão mais dez homens ainda. Do grupo de setenta homens não ficou um só embaixo. Estavam já todos no caminhão. As pancadas cessaram. O caminhão esperava o sinal de partida.
Traian Koruga trepou para o caminhão, com lohann Moritz pela mão. Não se queriam perder.
- Não há leis absolutas, meu velho Moritz - disse Traian.
- A própria física não tem leis invariáveis. A física pretende que dois corpos não podem ocupar, no mesmo instante, o mesmo lugar no espaço. E, no caso presente, sete homens ocupam o lugar de um só. Podemo-nos fiar por acaso na física? Tens ouvido falar de Picasso?
- Não, Sr. Traian.
A voz de lohann Moritz era abafada. Tinha a cabeça esmagada contra peitos alheios, e os pulmões tão comprimidos que não podiam conter a mínima bafagem.
- Eu morro asfixiado! - disse Moritz. Ficou cheio de medo e com vontade de chorar. Não se podia mexer. Procurava o ar com as narinas, um nada de ar que fosse; e não achava. - Morro abafado, Sr. Traian! Sinto que vou morrer!
- gemeu ele.
- Responde, homem! Já ouviste falar de Picasso?
- Não, nunca ouvi falar - disse Moritz. - Não sei nada. Mas abafo. É o fim da minha vida, não há dúvida!
Traian queria levantar a cabeça de Moritz. Mas não podia mexer com o braço. Não podia bulir com músculo nenhum.
Tinha o corpo esmagado, prensado, reduzido ao mínimo de volume. Mas a cabeça emergia-lhe ao de cima das outras.
- Esse Picasso é o maior pintor da Sociedade Ocidental - disse Traian.
- Não oiço nada - disse Moritz. - Ao menos, se eu pusesse o nariz de fora... Mesmo que fosse só uma venta... Pelo amor de Deus, Sr. Traian, ajude-me! Eu morro!
Traian experimentou fazer-lhe um pouco de lugar. Moritz tinha a cabeça encostada ao peito dele.
- Picasso fez o teu retrato, tal como estás agora no caminhão, meu velho Moritz!
- o meu retrato? - perguntou Moritz. - Não oiço. Tenho os ouvidos tapados.
- O teu retrato - repetiu Traian. - Parecidíssimo, exato como uma foto. E o retrato do nosso caminhão. Sete homens que ocupam o mesmo lugar no espaço, no mesmo momento. Um tem cinco pernas, o outro três cabeças, mas sem pulmões. Tu, tu tens voz, mas não tens boca, e eu não tenho senão cabeça: falta-me o corpo. Uma cabeça que avança no espaço, ao de cima de um caminhão... Quando vi pela primeira vez este quadro (a coisa passava-se em Paris) gostei muito, mas não compreendi o que ele queria representar. E só agora começo a perceber: era o quadro do nosso caminhão. Exatissimamente pintado. Não lhe escapou um pormenor. E também pintou o nosso campo. Pinta como se fotografasse. Só coisas reais. É um pintor de génio.
O caminhão largou. Traian olhava para os homens que o rodeavam. Já não eram seres humanos. Já não havia ser vivo no caminhão que atravessava as quelhas da aldeia mergulhadas na escuridão. Oscilavam entre a vida e a morte. No espaço de um momento estavam vivos e, um segundo depois, reentravam na morte. Em certos momentos, estavam vivos e mortos ao mesmo tempo. No setor que ocupavam não havia espaço. O espaço fora eliminado. O espaço estava morto. No setor deles não havia senão espasmo. A carne, o sangue, o ar, o tempo, o pensamento, tudo era espasmo. Os homens já não tinham formas, nem espírito: eram espasmo puro.
- Ainda podes respirar? - Perguntou Traian.
- Não sei. Tenho a impressão que sim. Mas só com uma venta e de tempos a tempos - disse lohann Moritz. - Aqui, no seu peito, pelas suas costelas.
- Uma venta deve bastar - disse Traian. - Ouve cá; tenho a comunicar-te uma coisa de capital importância...
- Eu não posso ouvir nada. Tenha a bondade de perdoar. .. - disse Moritz.
- Faz um esforço - tornou Traian. - É muito importante :
Tinha definição cada horror,
Cada desgosto seu fim:
Não há tempo na vida para grandes desgostos.
Isto, porém, só fora de vida e tempo,
Constante eternidade de malefício e injúria.
Sujos de porcaria que não podemos limpar,
Unida à vérmina sobrenatural,
Não somos só nós, a casa,
A cidade - os imundos:
Mas todo o mundo sujo!
- Fale mais alto! Não oiço bóia! - disse Moritz. Traian continuou, o mais alto que pôde:
Limpai o ar! limpai o céu! lavai o vento! Tirai da pedra a pedra, a pele dos braços, Tirai do osso o músculo e lavai-o! Lavai a pedra, o osso, o cérebro, Lavai a alma, Lavai-os, esfregai-os! (1)
- Eu não entendo nada - disse lohann Moritz. - Que felizardo é o Sr. Traian, que pode respirar! O senhor ao menos não atabafa!
No campo, os homens que eram pequenos passavam menos fome que os grandes. Mas naquele caminhão de setenta
(1) Every horror had its definition, Every sorrow had a kind of end: In life there is not time to grieve long. But this, this is out of life, this is out of time, An instant eternity of evil and wrong. We are soiled by filth that we cannot clean, United to supernatural vermin.
It is not we alone, it is not the house, it is not The city that is defiled. But the world that wholly foul! Clear the air! clear the sky! wash the wind! take the stone from the stone, take the skin from the arms, take the muscle from the boné, and wash them! Wash the atone, wash the boné, wash the brain, wash the soul, wash them, wash them!
pessoas, naquele caminhão que, como um fantasma, percorria as ruas da aldeia de Ohrdruf, os prisioneiros baixos parece que iam morrer, de falta de ar.
- Sr. Traian, não diga mais nada, que eu nem sequer o oiço - murmurou lohann Moritz.
- Se não ouves, pagas com a vida...
- Ouvir o quê?
- O professor alemão enganou-se! - disse Traian. - Cometeu um pecado grave e morrerá pelo seu crime.
- Que alemão foi esse que pecou gravemente?
- O professor que pesou a nossa banha e a nossa carne viva - disse Traian. - Pesou-a ainda quente de vida para nos medir o sofrimento. Mas o sofrimento do homem não se pode medir, nem em quilos, nem em toneladas!... A vida não se pode pesar. E todo aquele que tenta fazê-lo comete um pecado mortal.
- Não entendo! - disse lohann Moritz.
- Isso não tem importância - respondeu Traian. - A gente vai-se abaixo mesmo sem entender. O chofer do nosso caminhão, as sentinelas, os soldados armados de cacetes e de metralhadoras que esperam impacientemente o momento de nos matarem, também não entendem nada. E contudo desmoronam-se ao mesmo tempo que nós, da mesma maneira que nós, e conosco! Não os vês desabar?
- Tenho os olhos tapados - disse Moritz. - Não vejo nada.
- E sentir, não sentes nada?
- Nada - respondeu Moritz. - Só sinto que atabafo!
- Bem vês que, ainda assim, sentes o essencial - disse Traian tristemente. - Então por que é que dizes que não sentes nada? Toda a gente sente o mesmo que tu, mas não o quer confessar...
Os prisioneiros foram metidos em vagões de gado. Cada vagão, feito para vinte e quatro cavalos, recebeu uma carga de cento e quarenta homens. Fecharam as portas de todos os vagões. Nos últimos fecharam uma três mil mulheres.
O comboio era muito comprido. Traian disse de si para consigo que gostava de o ver ao longe.
- O nosso comboio parece o cortejo que subia a colina do Gólgota. Mas o nosso é motorizado. Subimos o Gólgota com meios técnicos. Jesus subiu-o a pé entre dois bandoleiros autênticos. Sabes por que é que Jesus foi crucificado entre dois facínoras?
- Não senhor, não sei... - respondeu Moritz.
- Para punir um inocente os juizes costumam enquadrá-lo entre dois culpados. O truque é clássico. Os judeus não se atreveram a crucificar Jesus sozinho, e ladearam-no de dois meliantes de fama bastante pública expressamente para distrair a atenção da multidão durante as execuções. Eu, tu, minha mulher e outros ainda, cada um de nós tem à esquerda e à direita um culpado. É o mesmo truque do Gólgota. Só as proporções mudaram. Então, um único inocente está ladeado de dois culpados. Mas isto é só uma pequena diferença. O sistema continua o mesmo. Além disso, subimos para a cruz de uma maneira automática, com meios técnicos. Mas o truque é pueril. Quando a execução acabar, a multidão não fala mais nos dois criminosos que foram crucificados ao mesmo tempo que Jesus. A multidão não se lembra senão de Jesus, apenas de Jesus. É o que sucede em todos os tempos. E é o que sucederá hoje ainda. Mesmo se a crucifixão se fizer automaticamente; mesmo se subirmos o Gólgota de locomotiva.
Traian Koruga aproximou-se da janela gradeada do vagão. O comboio parara.
- O senhor vê alguma coisa? - perguntou lohann Moritz. Moritz não chegava à altura da janela.
- O comboio parou numa gare - disse Traian. - Há um comboio ao comprido do nosso.
- Também com prisioneiros? - perguntou lohann Moritz. Era muito curioso.
- Um comboio de ex-prisioneiros. São escravos estrangeiros da Alemanha de ontem, postos em liberdade - disse Traian, olhando para a malta de homens e de mulheres que se mexiam à volta do comboio ao lado. - Estão todos a fumar - disse Traian. lohann Moritz engoliu a saliva. - Lá desce uma mulher do vagão. Está a comer chouriço e pão alvo - disse Traian. E também engoliu saliva.
- Também os queria ver - disse lohann Moritz. - Talvez eu conheça algum. De que nacionalidade são?
- Há-os de todas as nacionalidades - disse Traian, olhando para as bandeiras desenhadas nos vagões e para as bandeirinhas das lapelas. - A mulher que masca pão com manteiga e chouriço e que tem umas coxas tão brancas como o pão é dinamarquesa. Por trás dela há uma francesa. É bonita. De olhos pretos.
- Haverá outros franceses ainda? - perguntou Moritz.
- Um grupo inteiro, perto do nosso vagão - respondeu Traian. - Também há belgas e italianos.
- Quero ver os franceses! - disse lohann Moritz impaciente. A sua velha paixão pelos franceses acordara. Traian Koruga levantou-o para ele poder ver. - São franceses! - disse Moritz, contente. - Aquele que ali está, perto do italiano, parece-se com Joseph como duas metades de laranjas. O senhor não o vê?
- Qual Joseph?
- O meu amigo Joseph - respondeu lohann Moritz. - Não lhe falei nele? Aquele que ajudei a fugir. Se eu não tivesse a certeza de que Joseph está em França a esta hora, ia apostar que era ele. É tão parecido! O senhor não lhe quer dizer alguma coisa?
- Que queres tu que eu lhe diga? - perguntou Traian.
- Uma coisa qualquer - respondeu Moritz. - É tão parecido com Joseph! Eu cá não falo francês. Mas queria-lhe dizer qualquer coisa. Diga-lhe ”bom dia” e ”boa viagem para França!” - lohann Moritz não podia cruzar-se com um francês sem lhe dizer uma palavra, ou, pelo menos, sorrir-lhe com amizade. - Olhe, ele está aqui mesmo ao pé da gente - disse Moritz. - Diga-lhe qualquer coisa, se faz favor! - Traian Koruga, calado. Mas lohann Moritz não se pôde conter e gritou em alemão: - Boa viagem para França!
Falara com doçura. A cara brilhava-lhe de alegria por ter podido dirigir-se a alguém que era francês e que, portanto, estimava. No grupo, de repente, todos deixaram de falar e ergueram os olhos para a janela onde lohann Moritz estava. Traian Koruga viu o homem parecido com Joseph perguntar em francês:
- Que nos quererá o porco do nazi?
As mulheres e os homens que estavam no cais encararam com lohann Moritz, que lhes sorria amistosamente por trás das grades.
- O porco do nazi, se calhar, quer um cigarro!
O homem parecido com Joseph meteu a mão na algibeira, mas o gesto parou-lhe bruscamente. Alguém, perto dele, debruçou-se, pegou uma pedra e atirou-a em cheio à janela onde lohann Moritz continuava a sorrir. A pedra passou através das grades e caiu no meio da carruagem, batendo num dos prisioneiros.
- Toma lá o cigarro! - Há três anos que estou na Alemanha por tua causa!
A segunda pedra foi bater na parede da carruagem. Depois a terceira. Desatou a cair na carruagem uma chuva de pedras. Os prisioneiros estenderam-se no chão, afastando-se da janela o mais possível. As pedras caíam como saraiva e os gritos ecoavam como se a carruagem tivesse sido tomada de assalto. Eram vozes de mulheres, de homens, de crianças, de revoltados. Gritos em francês, em italiano, em russo, em dinamarquês, em flamengo, em norueguês. Em todas as línguas do mundo. Todas estas pragas corriam, exprimiam o mesmo ódio desencadeado, e a palavra que acompanhava o percurso das pedras para atingirem Moritz era a mesma em todas as línguas: porco de nazi, nazi criminoso, nazi assassino, nazi, nazi, nazi...
Toda a gente que se achava no comboio de ”pessoas deslocadas” descera e tinham-se juntado uns aos outros para atirarem pedras ao comboio dos prisioneiros. As sentinelas e a polícia militar tentaram restabelecer a ordem. Mas o ataque era muito duro para poder acalmar. Aumentava de proporções, tornava-se cada vez mais grave. A polícia desatou a atirar tiros para o ar. Um longo grito de revolta, unânime, saiu de todos aqueles peitos de escravos libertos, contra a polícia que protegia de linchamento os nazis.
lohann Moritz continuara à janela, mesmo depois de a primeira pedra lhe ter assobiado aos ouvidos. Não se mexera nem deixara de sorrir, mesmo nos momentos mais violentos do ataque. Não percebia nada do que se estava a passar. E ainda que compreendesse, nunca chegaria a crer que o francês parecido com Joseph lhe pudesse atirar pedras e lhe quisesse partir a cabeça. Enquanto lohann Moritz via, de olhos muito abertos, a multidão lapidá-lo, os prisioneiros da carruagem pegaram-lhe pelas pernas e arrancaram-no da janela, deitando-o no meio do chão. Todos lhe queriam bater. Todas as mãos o procuravam, se agarravam a ele para lhe rasgar a carne, para o fazer em bocados. lohann Moritz foi calcado por centenas de pés, pés que espezinhavam com ódio, com desespero, com bestialidade, enquanto a saraivada de pedras continuava a cair por cima deles. Os prisioneiros não lhe perdoavam ter desencadeado o ódio e o ataque dos escravos libertos que se encontravam no cais. Queriam fazê-lo em pedaços.
Moritz não estava rodeado de seres humanos, mas de uma massa de homens, a besta do Apocalipse de mil patas que lhe esmagava o corpo, a cálida carne de ser vivo. E, lá fora, sempre a massa, a mesma besta do Apocalipse de mil patas, que lhe atirava pedras. O sangue de lohann Moritz começou a correr-lhe pelo nariz e pela boca. lohann Moritz teve a impressão de que ia morrer. Logo que semelhante idéia se lhe tornou familiar, não tornou a sentir as botas que o esmagavam, nem os punhos que lhe batiam. Não sentiu mais dor alguma. O fim dos seus sofrimentos aproximava-se. Pensou no Pé. Koruga, na igreja de Fântâna e na imagem da Virgem, a paz reinava no corpo e na alma. Ouvia as pancadas que tentavam arrombar as paredes da carruagem e sabia que todas elas lhe eram destinadas: a ele, a ele só. Todos o queriam esmagar. Todos desejavam a morte de lohann Moritz. Agora, bem o sabia. Sentia que o mundo deixaria de existir e que não mais haveria progresso neste mundo enquanto lhe durasse a vida. Era responsável por todo o mal à superfície da terra. Era ele, lohann Moritz, o único culpado. E aqui está por que toda aquela gente o queria matar. Aqui está por que ele era calcado aos pés pelos prisioneiros. Aqui está por que os ex-prisioneiros lhe batiam. Aqui está por que ele fora preso pelos soldados. A multidão não se acalmaria enquanto ele estivesse ainda vivo. A polícia militar não podia aplacar as D. Ps. antes que ele fosse morto, ele, lohann Moritz. Os prisioneiros da carruagem não se acalmariam antes de o verem morto. Os soldados munidos de metralhadoras ligeiras e de tanques não poderiam voltar para os seus lares, do outro lado do Oceano, antes que ele, lohann Moritz, fosse feito em pedaços.
Tinha que morrer. Era o Homem. Não podia ser perdoado. ”Que culpa tive eu, meu Deus?” - perguntava a si mesmo. Depois pensou: Gosto dos franceses e gostava de lhes dizer uma palavra de amizade. E é por isso que eles me matam. Jesus também foi morto porque amava os Homens”.
Moritz lembrou-se das palavras de Traian Koruga: ”Estamos a subir o Gólgota em locomotiva. Subimos um Gólgota mecânico e motorizado”. lohann Moritz teve a impressão de estar numa cruz, e sentia cair a noite. Fazia escuro, escuro, escuro.
lohann Moritz acordou tarde, de cabeça e peito ligados. Tinha a cabeça descaída no ombro de Traian Koruga. Moritz sentia na cara o contato de outra pele. Era o ombro nu de Traian, que já não tinha camisa. Queria perguntar a Traian por que tirara a camisa, mas não tinha forças para isso.
- Tenho sede! - disse lohann Moritz. Traian Koruga fingiu não ter percebido. - Tenho sede! - repetiu lohann Moritz, que estava naquele estado há horas, desmaiado nos braços de Traian.
Entretanto, Traian fizera-lhe os pensos, rasgando a camisa; depois achara um lugar e estendera-o no chão. lohann Moritz calara-se. Traian tinha a mão encostada ao peito de Moritz para lhe sentir bater o coração, muito fraco. Por vezes Traian retirava a mão e punha o ouvido à escuta, por cima do penso. Outras vezes, o coração de Moritz batia tão devagar que não era possível perceber as pulsações com a mão. Mesmo aplicando o ouvido, Traian mal as contava.
E, agora, Moritz falava. Traian Koruga sentia-se feliz como se fosse ele mesmo que tivesse voltado de longe. Mas lohann Moritz queria beber. Como Cristo na cruz, tinha sede. Mas não havia água no vagão. Há duas horas que os prisioneiros ali estavam fechados, sem nada para beber ou comer e sem licença de sair para satisfazerem as suas necessidades. O interior do vagão fedia e os excrementos empestavam: a atmosfera tornara-se acre e espessa. O soalho do vagão estava embebido de urina. Ele tinha urinado também no sobrado, sem dar por isso. Mas não sentia nada. Até àquele momento nem sequer abrira os olhos. Tinha entreaberto os lábios, simplesmente.
- Tenho sede! - disse lohann Moritz.
- Tem paciência! Mas não há água. Não há nada para beber - disse Traian.
Que podia Traian ali dar a Moritz para molhar os lábios? Não havia nada para beber. Lembrou-se de ter lido algures que os soldados de Gêngis Cã, quando atravessavam as estepes e não encontravam nada para beber e comer, desciam das selas, abriam uma veia do cavalo à navalha - uma veia do casco - e sugavam o sangue. Depois faziam-lhe um penso e largavam. E durante dias e semanas os soldados de Gêngis Cã não comiam nem bebiam senão umas gotas de sangue quente.
Esta imagem perseguia Traian. Gostaria de dar a Moritz algumas gotas do seu sangue para lhe matar a sede. O sangue fazia-lhe bem.
- Tenho sede! - disse lohann Moritz, com voz súplice.
- Não há nada para beber, meu velho Moritz - disse Traian. - O único líquido de que te posso oferecer com muito gosto umas gotas é o meu próprio sangue. Mas não deves beber sangue. O homem que bebe sangue é um vampiro. Tem figura de homem, mas não é homem. É uma máquina; é o diabo; é a multidão. Tem tudo o que tem um homem, menos a alma.
- Tenho sede! - murmurou Moritz.
- Acredito! - disse Traian. - Mas, apesar de tudo, não deves beber sangue. E não tenho outra coisa a oferecer-te. Tu és o único Homem dos que me rodeiam que ainda não bebeu sangue humano. Ouves? Todos os outros beberam sangue e agora são vampiros. Já não são homens. De todos estes prisioneiros, de todas estas sentinelas, de todos estes ex-prisioneiros que te atiraram pedras, nenhum é um homem. Só tu ficaste um homem, porque ainda amas os homens.
- Tenho sede!
- Acredito! Acredito que tens sede e que talvez morras se não beberes - disse Traian. - Mas mais vale morrer que viver como eles. Não deves beber sangue humano. Compreendes tu bem o que te digo?
- Tenho sede! - murmurou lohann Moritz uma vez mais.
Petição de lohann Moritz:
Eu abaixo assinado, lohann Moritz, da aldeia de Fântâna, na Romênia, envio esta petição aos dirigentes do país em que me encontro, para lhes perguntar por que me retêm prisioneiro e me torturam como só Cristo foi torturado na cruz. Se vos não fiz esta pergunta mais cedo - como devia ter feito - é que tenho um feitio paciente. Sou lavrador. E os lavradores sabem esperar. Esperei portanto durante a primavera toda. Só tenho pele e osso. A minha alma está negra de desgosto e de dor. Negra como tinta e carvão. Agora, já não posso esperar mais. E por isso pergunto: por que me conservam aqui prisioneiro? Não roubei, não matei, não enganei ninguém, não fiz nada proibido pela Lei e pela Igreja. Não sou criminoso, nem ladrão, nem malfeitor; por que me tendes fechado? Fechais-me e torturais-me até eu não ser mais que uma sombra no chão.
Estive fechado em catorze campos. Creio que chegou o momento de vos perguntar que queixas tendes de mim. Para mim o mais difícil é decidir-me. Mas agora estou decidido. Envio esta petição pelo correio aos dirigentes deste país. Envio-a também pela sentinela que me guarda a porta da prisão. Lá chegará aos governantes, mesmo que, para isso, tenha de dar a volta ao mundo. Os dirigentes devem ouvir-me o pedido, ainda que tenham os ouvidos rolhados. Vou colar a minha petição a todas as portas da prisão. Atiro-a com uma pedra à rua. Apanharei as aves que voam por cima do campo e prendo-lhes a minha petição às patas, para que através da terra a levem. A partir deste instante não cessarei de gritar que me seja feita justiça. Encerrais-me talvez na cave da prisão para que me não possam ouvir. Mas, onde quer que esteja, não cessarei de gritar. Se não tiver lápis e papel escreverei com as unhas na parede da prisão. Quando tiver as unhas gastas e a minha carne viva hei de esperar que me cresçam e escreverei de novo.
Se me fuzilardes, não irei para o Inferno, nem para o Paraíso, nem para o Purgatório. A minha alma ficará na terra e perseguir-vos-á sem cessar. Perseguir-vos-á como uma sombra. Hei de perturbar o vosso sono mil vezes e o sono das vossas amantes, para vos gritar que quem tem razão sou eu. E não poderei fechar os olhos. Até aos vossos últimos momentos não mais podereis ouvir a música e as palavras de amor - não ouvireis mais nada; - os vossos ouvidos hão de ressoar às minhas palavras, de mim, lohann Moritz. Eu sou um homenm, e, se não fiz mal algum, ninguém tem o direito de me conservar fechado e de me torturar. A minha vida e a minha sombra pertencem-me, e, quem quer que sejais, sejam quais forem os tanques, as metralhadoras, os aviões, os campos e o dinheiro que tenhais, não tendes o direito de tocar na minha vida e minha sombra.
Sempre desejei pouca coisa: poder trabalhar, ter onde me abrigar com a mulher e os filhos, e ter de comer. Foi por isso que me prenderam? Os romenos mandaram um guarda requisitar-me - como se requisitam as coisas e os animais. Deixei-me requisitar. As minhas mãos estavam vazias e eu não podia lutar, nem contra o Rei, nem contra o guarda, que tinha espingardas e pistolas. Pretendiam que eu me chamava lacob, e não lon, como minha mãe me batizara. Encerraram-me com judeus num campo rodeado de arame farpado - como ao gado - e obrigaram-me a trabalhos forçados. Tivemos que nos deitar como gado com o rebanho todo; tivemos que comer com todo o rebanho, beber chá com todo o rebanho, e eu estava à espera de ser levado ao matadoiro com todo o rebanho. Os outros tiveram de ir. Mas eu fugi. Foi por isto que me prendestes? Por que fugi antes de me levarem para o matadoiro?
Os húngaros pretendiam que me não chamava lacob, mas lon, e prenderam-me porque eu era romeno. Torturaram-me e fizeram-me sofrer. Depois venderam-me aos alemães. Os alemães pretenderam que eu me não chamava lon, nem lacob, mas lanos, e torturaram-me outra vez, porque eu era húngaro. Depois veio um coronel que me disse que eu me não chamava lacob, nem lankel - mas lohann - e fêz-me soldado. Primeiro mediu-me a cabeça, contou-me os dentes e pôs o meu sangue em tubos de vidro. Tudo isto para demonstrar que tenho outro nome sem ser aquele com que me batizou minha mãe. Seria por causa disto que me mandastes prender?
como soldado, ajudei prisioneiros franceses a saírem da prisão. Foi por isso que me prendestes? Quando a guerra acabou e julguei que também teria direito à paz, os americanos vieram e deram-me, como a um senhor fino, chocolates e comida deles. Depois, sem uma palavra, meteram-me na prisão. Mandaram-me para catorze campos. Como os mais temíveis bandidos jamais conhecidos na terra.
E agora também quero saber: por quê? Dar-se-ia o caso de não gostardes também do meu nome: lanos ou lon, ou lohann ou lacob ou lankel? Querereis também mudar-mo? Vá! Agora sei que os homens já não têm direito a usarem o nome que lhes deram no batismo. Mas quero que fiqueis prevenidos: agora, não posso esperar mais. Quero saber a razão por que sou preso e torturado. Espero a vossa resposta e saúdo-vos com respeito. - MORITZ (lon, lohann-Iacob-Iankel-Ionos). lavrador e pai de família.
- Por que choras, Moritz? acabar de ler a petição.
- Eu não choro.
- Vejo-te as lágrimas nos olhos. Por que é que tu choras?
- É que já não sou bem eu mesmo.
- Tens medo de mandar a petição? - perguntou Traian Koruga. - O que eu escrevi não é verdade?
- Não tenho medo - respondeu Moritz. - Tudo o que o senhor escreveu é verdade.
- Então por que choras tu?
- É por isso que eu choro - disse Moritz. - Porque é toda a verdade.
Três dias depois de mandar a petição, lohann Moritz foi chamado a interrogatório. Traian Koruga emprestou-lhe a camisa e as calças.
- Vencemos - disse Traian. - A nossa petição deu resultado.
Os olhos de lohann Moritz brilharam. Via-se já livre.
- Vencemos! E é ao senhor que o devo - disse Moritz. - Tudo o que o senhor escreveu na petição era tão verdadeiro!
- Não tenhas medo - disse Traian. - Eles é que devem ter medo, pois são eles os culpados.
Moritz foi a sorrir para o interrogatório. Ao meio-dia estava de volta. Traian esperava-o à porta.
- Como foi isso? Prometeram que te soltavam? Moritz conservava os olhos baixos. Tomava sempre um ar
misterioso quando alguém lhe fazia uma pergunta.
- Hei de lhe contar depois. Agora não posso.
- Acaso endoideceste? Há horas que aqui estou à tua espera, e vens-me dizer que me contas tudo mais logo?
lohann Moritz apanhara umas pontas de cigarro na secretaria. Tirou-as da algibeira, desfê-las lentamente e fez com aquele tabaco dois montinhos iguais, um para si e o outro para Traian. Depois pôs-se a enrolar um cigarro em papel de jornal.
- É melhor que lhe diga tudo mais tarde, Sr. Traian.
- Disseram-te que te não soltavam?
- Não; não me disseram isso.
- Insultaram-te?
Moritz continuava a enrolar o cigarro.
- Não me insultaram.
- Bateram-te?
- Não.
- Então por que não falas? - perguntou Traian. - Vejo que te fizeram mal.
- Não; nada - disse lohann Moritz acendendo o cigarro.
- Não te chegou a vez? - perguntou Traian. - Não é desgraça nenhuma. Chamam-te amanhã.
- Chegou a minha vez.
- Interrogaram-te?
- Sim, senhor
A língua de lohann Moritz parecia paralisada. Era preciso tirar-lhe palavra a palavra da boca. Traian perdeu a paciência.
- Conta-me absolutamente tudo. Começa pelo princípio.
- Fui o primeiro - disse lohann Moritz. - Quando entrei na secretaria, ele disse-me que me sentasse. Havia uma cadeira mesmo defronte da mesa.
- Mas então a coisa começou muito bem - disse Traian. - Se te convidaram a sentar é bom sinal. Provavelmente tinham visto a tua folha e verificaram que estavas inocente. Não creio que convidam toda a gente a sentar-se. Continua!
- Foi um sargento que me interrogou.
- Era delicado?
- Sim, senhor.
- Qual foi a primeira pergunta?
- Primeiro, olhou para os papéis. Depois perguntou-me: ”Você é com certeza o lohann Moritz?” Eu respondi: ”Sim, senhor”. Ele olhou para mim. Depois olhou outra vez para os papéis. E perguntou-me: ”Como é que você escreve ”Moritz”? Com ”t” ou com ”tz”? Respondi-lhe que escrevia das duas maneiras. Na Romênia escrevia com ”ti” e na Alemanha com ”tz”.
lohann Moritz parou. Olhava para Traian Koruga com desespero.
- Continua! - disse Traian com impaciência. - Por que é que paraste?
- Depois o sargento disse: ”Obrigado. Pode-se ir embora”.
- É tudo?
- Sim, senhor; é tudo - disse lohann Moritz.
- E tu não tentaste dizer-lhe outra coisa? - perguntou Traian. - Por que lhe não disseste tudo o que eu te tinha ensinado?
- Ainda tentei - disse lohann Moritz. - Mas o sargento não me quis ouvir. Disse, sem olhar para mim: ”O seguinte!”
- E tu? Que disseste tu?
Nada.
- É absurdo! - disse Traian metendo a cabeça nas mãos. - Completamente absurdo! E vieste-te embora?
- Sim, senhor. Vim-me embora.
- E foi esse o interrogatório por que esperamos um ano na prisão? - disse Traian. - Não se passou mais nada? Quem sabe se te esqueceu qualquer coisa? Talvez te esquecesse...
- Não; não houve mais nada - disse lohann Moritz. - Eu saí. Ao fechar a porta, a mão tremia-me. Depois chamaram o seguinte. Era Tomás Mann.
- E que lhe perguntaram eles?
- Também perguntaram se ”Mann” se escrevia só com um ”n” ou com dois.
- Mais nada?
As lágrimas corriam a lohann Moritz pela cara abaixo. Lágrimas gordas como pérolas.
- Tens que te resignar, meu velho Moritz - disse Traian batendo-lhe no ombro. - Depois da morte dos coelhos brancos a única solução é resignarmo-nos.
PETIÇÃO N.º 5 - Assunto: Justiça (Mecanização dos interrogatórios)
Sei que recebestes instruções especiais para interrogar in dividualmente cada preso deste campo. É, naturalmente, uma ordem estúpida. Desde o momento que todos estes homens foram presos em massa, automaticamente, é absurdo que sejam individualmente interrogados. Compreendo, contudo, por que vos foi dada essa ordem. A vossa Civilização sabe ter alguns gestos de cortesia com os costumes indígenas. É uma concessão de pura forma, uma simples delicadeza. Um dos vossos oficiais é obrigado a interrogar quinhentos prisioneiros durante toda a manhã e outros quinhentos prisioneiros de tarde. Reparei que fazeis a mesma pergunta a todos e que não escutais as respostas. Era estúpido, com efeito, ouvir tudo o que vos quer dizer cada indivíduo. Que se pode ouvir de interessante da boca de um prisioneiro? Nada.
Mas eu penso em toda a energia que despendeis com as perguntas. É um esforço imenso, fazer as mesmas perguntas umas mil vezes por dia. Parece-me que os oficiais escalados nesse serviço devem, à noite, sentir os queixos e os beiços a doer. Proponho-vos, por conseqüência, o registro de discos de perguntas. O funcionamento era este: O oficial designado para o interrogatório estaria na secretaria. Deve lá estar porque o processo dos interrogatórios individuais assim o exige. Põe o pick-up a andar. Quando o primeiro prisioneiro entra na sala, o disco diz: ”Sente-se!” O prisioneiro senta-se. O disco continua a girar. Ouve-se a primeira, a segunda e a terceira pergunta. Depois o disco diz: ”Obrigado. Pode retirar-se”. O prisioneiro pôe-se de pé e dirige-se para a porta. Ao chegar diante da porta, o disco chegou à frase final: ”O seguinte!” E aqui está como se liquida o interrogatório. Depois entra outro prisioneiro. E o disco retoma a ladainha. Com um único disco podeis interrogar, assim, quatrocentos ou quinhentos prisioneiros.
Entretanto, o oficial que interroga ficaria na sua secretária a ler um romance policial. Ao meio-dia, quando fosse almoçar, poderia comer normalmente, sem sentir dor alguma nos queixos, devida ao esforço despendido.
É preciso reparar que estes interrogatórios são ordenados para fazer perguntas e não para ouvir respostas. A máquina pode pois encarregar-se do trabalho. A lógica é perfeita. Deve-se respeitar uma formalidade, mas é inútil fatigar os que conduzem o inquérito. A justiça só tem a ganhar com este procedimento. A Justiça de uma Sociedade civilizada deve ser administrada automaticamente. Já não é preciso proceder como no tempo em que a eletricidade ainda não estava deso> berta. Para que tantas invenções técnicas se a Justiça não emprega o pick-up?
Darmstadt: décimo quinto campo de concentração. Semelhante a todos os que o precederam. A mais, porém, há uma igreja ortodoxa. Uma igrejinha improvisada. Traian Koruga e lohann Moritz tiraram os seus carapuços e entraram na igreja. Estava instalada numa tenda. Ao fundo havia um altar. As imagens eram desenhadas em cartão, a carvão e giz de cor. No interior nem sequer havia soalho. Só terra. Chovera uma noite antes. A água entrara na tenda e transformara a terra em lama. A meio da igreja havia um crucifixo do tamanho de um homem. Traian ajoelhara-lhe aos pés. Jesus era de cartão. Os espinhos da coroa provinham de caixas de conservas cortadas em fitas delgadas. Traian Koruga ergueu os braços para as feridas feitas pelos cravos nas mãos e costelas de Cristo. O pintor não tinha tido vermelho para figurar o sangue. Onde deviam ser as feridas colara papel encarnado dos maços de cigarros Lucky-Strike. As letras pretas não tinham sido apagadas; ainda estavam legíveis.
- Nunca te vi tão dolorosamente crucificado, Jesus! - disse Traian. - Eu vinha rezar pelas minhas feridas. Mas já não sou capaz. Perdoa-me, Jesus, se rezo primeiro pelas tuas feridas em Lucky-Strike, que te cobrem de sangue os pés e as palmas das mãos. Elas são mais dolorosas do que as minhas feridas de sangue e de carne. Permiti que reze primeiro pelos espinhos de lata de conserva da coroa que te puseram na cabeça.
Os olhos de Traian, vagueando pelo corpo de Cristo, descobriram no peito do Salvador a letra Aí, escrita a tinta de imprimir. Era o M das caixas de Menu Unit, no cartão das quais fora recortado o corpo crucificado. Traian pôs-se de pé e beijou os pés do Cristo.
- Agora sinto que comuniquei com o teu corpo, Jesus, meu Senhor. Nosso ”Menu” eterno de esperanças, Senhor, Tu, meu Menu Unit, nunca compreendera tão bem que o teu corpo é o nosso alimento. Como é que o pintor prisioneiro se pôde lembrar de talhar a Tua imagem no cartão das caixas de Menu Unit? Agora simbolizas toda a minha sede de divindade, de pão e de liberdade.
Traian estava em transe de êxtase. Já não via ninguém à sua roda. lohann Moritz examinava os anjos feitos com papel lustroso das caixas de cigarros, as imagens da Virgem com colares arranjados com as capas das latas douradas de pudding. Moritz persignou-se diante da imagem de S. Nicolau, que parecia o Pé. Koruga. Depois veio ajoelhar-se ao pé de Traian e olhou para as chagas vermelhas do Cristo.
- Senhor! - disse Traian; - não Te peço que tires este cálice dos meus lábios. Sei que isso não é possível. Mas imploro-Te que me ajudes a beber este cálice. Há um ano que o conservo perto dos lábios. Há um ano que estou perto das fronteiras da vida e da morte. Há um ano que vivo nos limites da vida e do sonho. Saí do tempo, e contudo continuo a viver. A vida retirou-se do meu corpo por todos os poros, e contudo ainda estou com vida, e apesar disso respiro e arrasto-me e introduzo ainda pão e água no meu corpo, embora já os não deseje. E todos estes sofrimentos vêm de que não tenho a certeza se sou prisioneiro ou livre. Vejo que estou fechado, mas não chego a crer que estou fechado. Vejo que não estou livre, e contudo diz-me o meu Espírito que não há razão alguma para que não esteja livre. A tortura que esta incompreensão produz é infinitamente mais dura que a escravidão. Os homens que me encerraram não me odeiam, não me querem punir nem desejam a minha morte. Querem simplesmente salvar o mundo! E contudo torturam-me e matam-me aos poucos... Torturam e matam toda a humanidade pouco a pouco. Não sou o único a sofrer. Bem sei. Os que dirigem o mundo desataram a construir hospitais gigantes para curarem as chagas dos homens. Mas debaixo das suas truelles não são hospitais, mas prisões que se levantam. Tudo se passa como se lhes tivessem lançado um olhado. O meu entendimento não entende. E aqui está por que eu queria morrer. Ajuda-me, Senhor, a morrer. As minhas forças já não podem suportar tal tormento. A hora em que me integro já não pertence à vida; sou incapaz de passar com o meu peso de carne e de sangue através dela. É a vigésima quinta hora, a hora em que é tarde demais para ser salvo, tarde demais para morrer, tarde demais para viver. É tarde demais para tudo. Transforma-me num bloco de pedra, Senhor, mas não me abandones à vida! Se Tu me abandonas nem mesmo poderei morrer. Vê a minha carne e o meu espírito; ambos aspiram por igual à morte, mas eu ainda estou com vida. O mundo morreu e vive ainda. Não sou, nem um fantasma, nem um ser vivo.
Traian Koruga tomou a cabeça nas mãos. lohann Moritz tocou timidamente no ombro de Traian, como para o acarinhar. Mas Traian já nada sentia.
Um padre entrou na igreja. Envergava um fardamento americano, em que estavam inscritas as iniciais P. W., e, naquilo, parecido com todos os prisioneiros. lohann Moritz adiantou-se-lhe e beijou-lhe a mão. Traian Koruga continuava de joelhos. O padre perguntou a Moritz de onde vinham e que nacionalidade tinham. Ao saber que a mulher de Traian também estava presa, cruzou os braços no peito e rezou por ela. Deu a bênção a Traian que continuava em frente da cruz sem dar pela presença dele.
- Todos os dias, às seis horas, celebro - disse o padre. - Eu sou o Metropolita Paládio de Varsóvia. O concílio dos meus padres também está prisioneiro no campo. Fomos todos presos. As cerimônias religiosas são muito belas. Vinde! Também há um padre romeno que diz missa. Agora está no hospital.
lohann Moritz olhou fixamente para o Metropolita.
- Vou mandar-lhe um recado ao hospital - disse o Metropolita Paládio de Varsóvia. - Quando ele souber que há romenos no campo virá dar-vos a bênção...
Cerca das seis horas, um grupo de padres começou a missa. Tinham revestido as estolas por cima dos seus uniformes de prisioneiros. Traian Koruga e lohann Moritz estavam um ao lado do outro. O Metropolita vinha de casula e de mitra na cabeça. Naturalmente, as pedras preciosas que costumavam orná-la faltavam. A voz do Metropolita era suave como o som de um violoncelo. Traian aproximou-se do altar. Mas ao chegar diante do crucifixo, caiu. Moritz julgou que Traian tivesse escorregado e caído. Correu a erguê-lo. Mas o corpo de Traian estava mole como se todos os ossos se tivessem volatizado. Tinha as faces amarelas como cera.
Na tenda da igreja não havia ninguém, a não ser os padres, lohann Moritz ergueu os olhos para lhes pedir auxílio. Mas, nesse mesmo instante, percebeu por que Traian tinha caído. ”Padre Koruga!” - foi tudo o que Moritz pôde balbuciar. Depois caiu de joelhos diante do padre. Dir-se-ia que lhe queria beijar os joelhos. Mas o Pé. Koruga já não tinha pernas. Aproximou-se deles apoiando-se nas muletas.
Traian Koruga e lohann Moritz permaneciam imóveis. Os cabelos do Pé. Koruga tinham embranquecido mais. Sorria com uma impressão de bondade intensa, uma expressão de felicidade. Através do seu sorriso e dos seus olhos podia-se entrever o céu...
- Traian, meu querido filho! - disse o Pé. Koruga.
Ao querer inclinar-se, caiu uma muleta. O padre não baqueou. Ficou de pé, encostado a uma única muleta. Depois deixou-a cair também. Ficou de pé, junto de Traian, direto como uma flecha sobre o que lhe restava de pernas. Deixara cair as muletas para ter as mãos livres e poder abraçar o filho com os dois braços. lohann Moritz apanhara as duas muletas e segurava-as na mão, junto do Pé. Koruga e do filho.
lohann Moritz, o Pé. Koruga e Traian viviam agora todos três na mesma tenda do campo de Darmstadt. Permitira-se enfim aos prisioneiros, depois de um ano de espera, receberem correio. lohann Moritz foi o primeiro a receber uma carta. Era a mãe de Hilda que lhe escrevia:
”Querido Hans,
”No dia 9 de maio de 1945 a tua casa ardeu. Sei que ainda não pudeste ter conhecimento disso. Pegou-lhe o fogo, na tarde do dia em que as tropas russas entraram na nossa cidade. Hilda e Franz, o teu filho, estavam dentro de casa. Nas primeiras semanas eu não soube que tinham sido queimados vivos. Mas um dia que me pus a esgaravatar nos escombros para ver se por acaso escapara alguma coisa ao fogo, encontrei os corpos deles carbonizados. Hilda morreu segurando o filhinho nos braços. Não sei por que é que não fugiu quando pegou fogo na casa. Naturalmente dormia. Apesar disso custa-me a crer que Hilda pudesse dormir àquela hora, e sobretudo no próprio dia em que os russos entravam na cidade. Toda a gente tinha fugido e sobretudo as mulheres. Hilda nunca dormia de tarde, bem sabes. Quando chegava do hospital, ao meio-dia, punha-se logo a trabalhar, i
”Juntei os ossos queimados de Hilda e do teu filho no mesmo caixão. Enterrei-os no nosso cemitério. Não pude fazer dois caixões porque são muito caros e ninguém os quer fazer. Agora as pessoas daqui enterram os seus mortos sem caixões. Não há tábuas e os pregos estão muito caros. Tive que arrancar pregos das paredes e dos quadros e dei-os ao marceneiro para fazer o caixão de Hilda. E, mesmo assim, ele não queria fazê-lo. Dizia que os pregos eram muito finos e curtos para um caixão. Dei-lhe um dos teus chapéus para o convencer. Peço-te que te não zangues se o fiz sem te pedir licença. Mas sem o chapéu, o marceneiro não queria fazer o caixão, e era indispensável enterrar aqueles ossos. Estavam já há uma semana em casa. Mandei fazer uma cruz de madeira. Quando voltares, encomendas uma de pédra. Na nossa família temos todos lindas cruzes de pedra no cemitério.
”Encontrou-se também nas ruínas o corpo de um oficial completamente carbonizado. Devia ser oficial que tivesse pedido hospitalidade ou quisesse despir a farda e vestir-se à paisana. Foi o que fizeram todos os militares, à chegada dos russos. Mas a sua pasta de coiro não estava completamente queimada e encontrei os seus papéis. Chamava-se lorgu lordan e é da Roménia como tu. Escrevo-te tudo isto porque pensei que talvez fosse um amigo ou um parente que te tivesse vindo ver.’
- Talvez mais valha que assim seja - disse o Pé. Alexandre Koruga. Pusera a mão no ombro de lohann Moritz e tentava consolá-lo. - Imagina que Hilda estava ainda viva; que eles te soltam um dia. Para casa de qual das tuas mulheres voltarias tu agora? Ninguém podia escolher!
- Então, Susana não se divorciou! - disse lohann Moritz. Só agora sabia que Susana lhe ficara fiel. - E ela espera-me em casa?
- Susana espera-te e esperará até ao fim dos seus dias - respondeu o padre. - Ela é sempre a tua mulher. Assinou o papel do divórcio só para poder conservar a casa e não ser posta na rua com as crianças. Procedeu assim desesperada. Mas nunca se considerou separada de ti.
- Esse divórcio era portanto mentira! - disse lohann Moritz. - E eu acreditei, como um pateta que sou, que Susana casara com outro. Foi por isso que casei com Hilda. Eu estava certo que Susana me tinha abandonado. Como é que o não havia de crer, quando, com os meus próprios olhos, li o papel do divórcio? Mas eu pequei! E Deus nunca me há de perdoar!
- Esse pecado há de te ser perdoado! - disse o Pé. Koruga. - O que aconteceu é muito grave, Moritz. Mas nem tu, nem Susana sois culpados. O Estado e as suas leis são os únicos responsáveis. E ao Estado nada será perdoado! O Estado será punido como Sodoma e Gomorra. O raio não cairá só sobre o nosso Estado, mas sobre toda a nossa Sociedade de hoje, que comete estes pecados que Deus não pode ver sem sofrer amargamente.
Traian Koruga compareceu ao seu primeiro interrogatório.
- O senhor pretende não saber por que está preso e encerrado há mais de um ano? Entre os vinte e cinco mil prisioneiros, não há um único que confesse saber por que é que foi preso. Todos vocês pretendem que invadimos a Europa e prendemos as pessoas para nos divertirmos. Mas enganam-se. Cada prisão foi feita em conformidade com um decreto.
Traian Koruga sorriu. O oficial surpreendeu-lhe o sorriso.
- O senhor quer dizer que as nossas leis não são conformes aos princípios eternos do Direito? Não há dia em que eu não oiça essa censura. Vós todos, que invocais a falta de valor eterno ou de universalidade das leis com base nas quais se efetuou a vossa prisão, sois perfeitamente ridículos! Em primeiro lugar, cada país tem o direito de ter as leis que quer e de se regular por elas. As leis que estão em vigor em nossa casa, no nosso país, é cá conosco. Em segundo lugar, não há princípios eternos de Direito. A Justiça é feita pelos homens. E nada do que é humano pode ser eterno. Em conjunto, qualquer lei vale uma lei. Todas são ao mesmo tempo efêmeras e eternas. O que afirma o contrário não faz mais que enganar-se.
”Segundo as leis em vigor atualmente na zona de ocupação americana, o senhor está preso como funcionário de um Estado inimigo. A lei assim o quer. Sua mulher está presa em virtude da mesma lei que prevê que as mulheres dos altos funcionários inimigos podem ser presas automaticamente. Seu pai, também, foi preso automaticamente como funcionário de um Estado inimigo. Convenho em que isso possa parecer-lhe duro. Mas é a lei. Sempre, ao longo da história, foram duas as leis. O senhor não pode pretender que lhe fossem pedir conselhos quando promulgamos tais leis!
Traian Koruga pôs-se de pé. Queria partir. Estava certo, desde que começara a escrever o seu romance, que estava perto o momento em que as leis proibiriam os homens de viver a sua própria vida. Sentia desde a sua prisão que essas leis já tinham entrado em vigor, mas conservava como que uma vaga esperança de se ter enganado. E agora era-lhe anunciado oficialmente que essas leis eram rigorosamente aplicadas e respeitadas. Não havia erro possível. Seres humanos sem culpa podiam ser, e eram legalmente, presos, torturados, esfomeados, despojados e exterminados.
- Estou convencido de que o senhor, o senhor pessoalmente, não é culpado - continuou o oficial. - Já é pela quarta vez que peço que seja posto em liberdade, bem como sua mulher e seu pai, embora nos seja expressamente defeso pedir a libertação individual dos prisioneiros presos automaticamente. Não recebi resposta. As ordens de libertação não podem ser individualmente dadas. A libertação só é efetuada por categorias de indivíduos.
- O fato de que o indivíduo seja culpado ou inocente não tem pois nada que ver para o nosso caso? - perguntou Traian. - Isso devia interessá-lo, quando por mais não fosse, por curiosidade.
- Isso não nos interessa - respondeu o oficial. - Mesmo se isso fere a sua suscetibilidade de homem educado segundo as concepções individualistas, e todas as vossas idéias teológicas, estéticas e humanitárias, não sou eu que posso alterar seja o que for. O nosso sistema pode parecer seco, técnico, matemático, mas é justo. O Universo inteiro move-se numa espécie de mathematical way e ninguém teria a idéia de lhe mudar o curso ou a orientação.
- O interrogatório a que acaba de me submeter não lhe interessa pois bem podia mesmo não ter tido lugar? - disse Traian. - De tudo o que diz respeito ao indivíduo nada lhe pode interessar?
- Nada - respondeu o oficial. - Tudo o que queremos saber acerca de um indivíduo são os seus dados pessoais, isto é, o seu nome exato, o lugar e a data do seu nascimento, a sua profissão etc.: dados que serão postos em fichas, a fim de serem registados nas nossas estatísticas. Aliás, estes interrogatórios só são estabelecidos para verificar certos dados, ou repartir os prisioneiros em categorias. O nosso trabalho consiste em repartir cada qual pela categoria a que pertence. É um trabalho matemático, preciso.
- E não acha que é inumano anular o homem e tratá-lo como fração de uma categoria?
- Não; não acho que seja inumano - disse o oficial. - Este sistema é prático, rápido, e acima de tudo justo. A justiça só tem a ganhar com este procedimento. A justiça procede segundo os métodos das ciências matemáticas e da física: isto é, segundo os métodos mais exatos. Só os poetas e os místicos denunciam estes procedimentos. Mas a Sociedade moderna liquidou o misticismo e a poesia. Encontramo-nos em pleno período de ciência exata e matemática e não podemos voltar atrás por motivos de ordem sentimental. Aliás, os sentimentos não passam de uma criação dos poetas e dos metafísicos. - O oficial fez sinal de que o interrogatório acabara. - Take ii easy! - disse ele.
Traian Koruga abriu a porta e ouviu atrás de si a voz do oficial que acabava de o interrogar, dizer friamente:
- Quem se segue...
lohann Moritz queria fugir. Depois de ter ouvido que Susana não pedira o divórcio e que o esperava fielmente, com as crianças, lohann Moritz não se segurava mais.
- Nem vale a pena experimentar - disse Traian. - Mal te aproximes do arame farpado, os polacos atiram-te logo.
Moritz olhou para as sentinelas polacas vestidas de uniformes americanos azuis. Os polacos, imóveis, olhavam-no atentamente, como se tivessem adivinhado o seu pensamento, e tinham as armas na mão, prontas a fazer fogo.
- E se por acaso os polacos falham a pontaria - continuou Traian - serás morto pelas patrulhas americanas ou alemãs. Antes de chegares à Romênia, encontras no teu caminho patrulhas austríacas, checas, francesas, húngaras, e finalmente nunca mais chegas a casa. Apanham-te pelo caminho. Se puderes escapar às balas de uma nação, a imediata fuzila-te, pela certa. Entre ti e a tua casa, tu e tua família, meu velho Moritz, há todas as nações do mundo, nações armadas que te querem matar... Entre cada homem e a sua vida privada há esse exército internacional. Não é permitido ao homem viver a sua vida. Se tenta fazê-lo, é fuzilado. É para o que servem os tanques, as metralhadoras, os projetores, o arame farpado...
- Hei de fugir, vai ver! - disse lohann Moritz.
A sentinela polaca fitou-o ainda mais atentamente. Nesse momento, dois oficiais americanos entraram no pátio do campo e dirigiram-se para a enfermaria. lohann Moritz seguiu-os com o olhar. E, de repente, deixou Traian sem dizer uma palavra, largou a correr na direção deles e plantou-se-lhes diante. Os oficiais pararam igualmente. Olharam para lohann Moritz e lohann Moritz olhou para eles. Isto durou um minuto. Depois, um dos oficiais (que era sobre o gordo e de uma certa idade) lançou os braços a lohann Moritz e abraçou-o fraternalmente. Os prisioneiros rodearam-nos muito intrigados. Nunca tinham visto um oficial americano abraçar um prisioneiro.
lohann Moritz dirigiu-se para a enfermaria com o oficial americano, que continuava de braço por cima dos ombros dele. Depois, entraram juntos na enfermaria. Traian Koruga aproximou-se da enfermaria e ficou diante da porta. Esperava, curioso de saber o que se teria passado. Moritz voltava e contava-lhe tudo. Mas Moritz tardava a vir.
Dali a pouco, Traian Koruga ouviu a voz de lohann Moritz. Pusera a cabeça à janela da secretaria da enfermaria. Os seus olhos pretos brilhavam como brasas.
- O oficial americano é o meu amigo Dr. Abramovici! - disse lohann Moritz. - Reconheci-o imediatamente. Foi com ele que me evadi da Romênia. Agora, com certeza que vou ser posto em liberdade!
lohann Moritz fechou a janela. O seu amigo chamara-o para lhe falar.
lohann Moritz não tinha falado com o Dr. Abramovici no campo da Romênia e na Hungria senão em iídiche. E, agora, ainda falavam iídiche. O Tenente Dr. Abramovici regozijava-se sinceramente por ter encontrado lohann Moritz e ouvia atentamente todas as suas palavras. Moritz contou-lhe tudo o que lhe acontecera desde a separação até aquele próprio dia. O Dr. Abramovici abanava a cabeça em sinal de compaixão, sobretudo quando Moritz lhe contou tudo o que sofrera nos quinze campos onde fora encerrado nestes últimos anos.
- Tenho que me ir - disse o Dr. Abramovici. Viu que horas eram no seu relógio de pulso. - Precisas de auxílio, meu caro lankel. Eu sei. É perfeitamente normal. Diz-me o que precisas e eu vou-te ajudar. Não me esqueço de que atravessamos momentos difíceis juntos. - O doutor deu-lhe pancadinhas no ombro. - Atualmente estou bem colocado - disse ele - e tu passas bem maus bocados. Que precisas tu? Cigarros, comida, vestuário? Diz-me o que queres.
- Quero-me ir embora - disse lohann Moritz. - Quero voltar para casa, ver a mulher e os filhos.
- Não peças impossíveis, meu caro lankel - disse o doutor, contrariado. - Pede-me coisa que esteja em meu poder fazer-te. A libertação só se pode fazer automaticamente. Nem deves pensar nisso. O que é preciso é ter paciência.
- Mas eu estou inocente - disse lohann Moritz. - Para que me têm aqui fechado?
- A culpabilidade e a libertação não têm nada que ver uma com a outra - disse o doutor. Já estava nervoso. - Alguém pretendeu que eras culpado, tu, lankel? A tua libertação é uma questão de paciência.
- Estou farto de esperar!
- Isso é a tua opinião - disse o doutor. - Ainda és muito labreguito, muito rústico. Pensas que um prisioneiro pode ser solto por um oficial qualquer, só porque não era culpado? Se assim fosse, os campos esvaziavam-se de um dia para o outro. Todos os nazis poderiam apresentar provas de inocência. A libertação só se efetua por ordem do Quartel-General de Francforte. De lá, os papéis são enviados para Washington e a decisão é transmitida a Wiesbaden. Uma comissão especial toma conta dela em Esslingen e envia-a a Berlim. A ordem de libertação é dada em Berlim e enviada a Heidelberg. Quando a ordem chega a Heidelberg, a ficha é retirada do fichário em centenas de secretarias. E só então podes ser posto em liberdade. Mas todo este processo é muito complicado. É uma máquina que trabalha automaticamente: cada prisioneiro tem a sua ficha. Os americanos têm fichários enormes, tamanhos como a caserna aí defronte. Quando a ordem de libertação foi mandada a Heildelberg retira-se automaticamente a ficha dos fichários de Washington, Stuttgart, Ludwigsburgo, Munique, Kornwestheim. Paris, Berlim, Francforte. O teu nome está registado em todo o Universo, em toda a parte, na Repartição Federal de Informações na América, no Comando Supremo Interaliado em Paris, na Comissão de Controle de Berlim, em todos os campos, em todas as prisões, em todas as secretarias de C.I.C., C.I.D., M.P., S.P., S.O.S. Por toda a parte, enfim. Todos os teus movimentos, mesmo os mais pequenos (o fato de seres transferido de um campo para outro) provocam a mudança da tua ficha em todos os fichários. Sabias isto?
lohann Moritz via o seu nome escrito em todas as cidades do mundo, o seu nome repetido por grandes máquinas elétricas, iluminando-se e apagando-se como os projetores que se encontravam acima do arame farpado do campo. Sabia agora que cada movimento seu era fotografado, registado e iluminado.
- Não, senhor; não sabia!
- Se soubesses, não me tinhas pedido que te fizesse soltar. E aqui está por que é que te não quero mal por tu mo teres pedido. Julgavas que eu, sozinho, te podia arrancar a esta máquina gigantesca? - O Dr. Abramovici largou-se a rir às gargalhadas. - O próprio Presidente dos Estados Unidos não o poderia fazer - disse ele. - Deves esperar tranqüilamente a tua vez.
- Mas, visto que estou inocente, por que é que continuo na prisão? - perguntou Moritz. - Por que é que a máquina me quer mal, se lhe não faço mal? A máquina de que o Sr. Doutor fala é provavelmente feita para os ladrões, os criminosos e os malfeitores.
- Aprende a não discorrer como um laparoto atrasado, meu caro lankel - disse o doutor. - Reduzes todos os problemas a questões pessoais. Os países civilizados não tratam de casos individuais. A questão de seres culpado ou inocente é uma questão pessoal. Pode interessar tua mulher, os teus vizinhos ou os outros campônios lá da aldeia. São esses os únicos que se preocupam com questões pessoais. Os países civilizados vêem as coisas em grande. Não curam de casos individuais.
- Mas por que é que eles me prenderam?
- Procedemos por prisões preventivas e por categorias. Se precisamos de um culpado, de um criminoso de guerra, por exemplo, temo-lo debaixo de mão e escusamos de largar à procura dele, de o perseguir por todas as aldeias e florestas. Perdia-se muito tempo. Assim, é só carregar num botão com a inicial respectiva e, antes mesmo de termos contado até três, eis a ficha do indivíduo, com foto e todas as indicações que lhe respeitam: estatura, peso, cor do cabelo, data e lugar do nascimento, número de dentes e tudo o que nos pode interessar. é só levantar o receptor e anunciar pela rádio o campo ou a prisão onde esse indivíduo está encurralado, e, algumas horas depois, ei-lo em carne e osso em face do Tribunal Internacional de Nuremberg. É maravilhoso. É o resultado da técnica. Tudo é automático. Tudo elétrico. Como querias tu que te pudessem soltar? Era uma loucura. Tu és como um fio introduzido num tear. Uma vez que lá entra, já não se pode tirar. Tem que se esperar que ele saia por si mesmo - tecido com os outros - até que chegue a sua hora. Não pode ser de outro modo. As máquinas são precisas. É preciso paciência com elas. E tu, tu estás em cheio na máquina. Podes mexer, espernear, que não consegues sair. A máquina é surda. Não espera nem vê: trabalha. Trabalha admiravelmente, chega a uma perfeição que o homem nunca poderá atingir. Espera-se, e há a certeza de que a sua vez chegará. A máquina não esquece, como o ser humano. É exata. Entendeste?
Moritz encolheu os ombros.
- Então o Sr. Doutor não pode fazer nada para que eles me soltem?
- Não te expliquei que estás engrenado na máquina e que não há nada a fazer senão esperar?
- Mas, se o Sr. Doutor quiser pedir por mim, talvez as coisas se possam tentear - disse lohann Moritz. - Os comandantes devem ser homens como o Sr. Doutor e como eu e hão de se entender. Talvez me soltem, se lhes explicar que tenho mulher e filhos e que padeço aqui nos campos há anos e anos sem nunca ter feito mal.
- é como falar a uma parede!... - disse o doutor, que já estava nervoso. - Tu transformas logo tudo em questões pessoais e privadas. Não sabes abstrair de ti próprio. Assim faz o primitivo. Diz-me mas é se queres alguma coisa. Tenho que me ir. Queres cigarros, comida, roupa?
- Queria que me fizessem justiça - disse lohann Moritz.
- Mas vejo que a justiça do homem morreu à superfície da terra. Não quero mais nada.
- Sempre podes ficar com um cigarro - disse o Dr. Abramovici estendendo a Moritz o seu maço de Lucky-Stricke. Sorria.
- Fomos companheiros de desgraça, meu caro lankel!
lohann Moritz estendeu a mão para pegar um cigarro. O maço estava vazio. O doutor procurou nas algibeiras, a ver se tinha outro, mas não tinha.
- Dou-te um cigarro a primeira vez que tornar por aqui, meu caro lankel - disse ele. E largou.
- O Pé. Koruga continuava - de muletas nos joelhos em frente do oficial que o interrogava.
- Se o senhor não fosse nazi ou colaboracionista, que vinha fazer à Alemanha? - perguntou o oficial. - A história que me conta, e segundo a qual teria acordado num hospital militar alemão sem saber como lá fora, é boa para crianças. Essas coisas só podem acontecer lá nos contos fantásticos dos Balcãs, nunca porém na vida. Para um oficial americano, a história está feita com costuras. É muito maerchenhaft, muito conto de fadas... Por que é que os alemães o teriam conservado no hospital, se o senhor não era amigo nem colaborador deles?
Por que é que o haviam de ter tratado durante seis meses e amputado as duas pernas? Porque o senhor era um inimigo? Por simples sentimentos humanitários? Desde quando se tornariam os alemães humanitários. Os alemães encurralaram e mandaram para as câmaras de gás todos os seus inimigos. O senhor era um colaborador. E por isso o trataram. Deve estar muito triste por Hitler não ter ganhado a guerra.
O Pé. Koruga continuava silencioso. Estava pálido. Caíam-lhe gotas de suor das sobrancelhas. Mal se tinha na cadeira. Desde que tinha as pernas cortadas só podia estar estendido. E além disso tinha febre. Gostaria que aquele interrogatório acabasse o mais breve possível e que o deixassem sair da cadeira.
- O senhor ficava contentíssimo se Hitler ganhasse a guerra, não é? - tornou o oficial. - Hitler nomeava-o Metropolita da Romênia se tivesse ganhado a guerra. Ficava contente, hem?
- Não; não ficava contente - respondeu o padre. Então, está contente porque os Aliados ganharam?
- Tampouco... - respondeu o padre. O tenente franziu o sobrolho. Alexandre Koruga sorriu e disse: - Nenhuma vitória pelas armas me regozijaria.
Ao passo que falava, o Pé. Koruga via nas paredes as fotografias tiradas nos campos de concentração alemães. E pensava nos cadáveres do Delegado Jorge Damian, no de Apóstol Vasile e dos outros campônios de Fântâna abatidos com ele por Marcou Goldenberg e atirados à estrumeira, por trás do curral do concelho. Pensava nos cadáveres das crianças de Dresde, de Francforte, de Berlim. Pensava nos cadáveres de Dunquerque e de Stalingrado. E não podia regozijar-se pensando em todos esses cadáveres, graças aos quais fora conseguida a vitória.
Para chegar à vitória, a terra fora coberta de cadáveres de homens inocentes.
Nem na Vitória há Beleza,
E aquele que a chama bela
É dos que bendizem o massacre,
E o que bendiz o massacre
Não realiza a ambição de governar o mundo.
Gritos de luto acompanhem as multidões degoladas
E sejam troféus da Vitória os ritos fúnebres! (1)
- Esse poema é muito bonito - disse o oficial. - Foi o senhor que o fez?
(1) Lao Tsé.
- Foi escrito por um chinês que viveu há dois mil anos.
- Escreva-mo - disse o oficial. - Quero mandá-lo à minha família para a América.
O oficial sorria. Pensava talvez na família. Mas fez-se outra vez carrancudo e olhou para o padre com um olhar perspicaz.
- Tem a certeza de que os versos que acaba de recitar foram escritos por um chinês?
- A certeza absoluta. Mas se os versos lhe agradaram que importa que sejam dele ou de outro? São belos. É tudo. O resto não tem grande importância.
- Sim, sim... Tem importância - replicou o oficial. - Agrada-me que o autor seja um chinês. A China é uma nação aliada dos Estados Unidos. A minha família vai ficar encantada com esses versos. Se tivessem sido compostos por um poeta inimigo, não lhos podia mandar. Copie-mos para amanhã de amanhã. Dou-lhe papel e lápis. O senhor aprendeu outras coisas, sem ser teologia?
- Aprendi tudo o que a vida me deu tempo para aprender, e tudo o que me apeteceu aprender.
- Sabe chinês?
- Não.
- É pena - disse o oficial. - Se soubesse, pedia-lhe que me escrevesse esse poema em caracteres chineses. Era uma grande surpresa para a minha família, que não esperava com certeza receber de mim correspondência em chinês. Mas não tem mal. Se não conhece o chinês, escreva em inglês. O chinês que fez esses versos tinha piada. E depois sempre é um aliado dos Estados Unidos.
Ao voltar para o campo, o padre estava morto de cansaço, lohann Moritz estendeu-o na cama e pôs-lhe pachos frios nas fontes.
- O oficial falou a Vossa Paternidade na sua libertação?
- Não - disse o velho.
- Mas então, que lhe perguntou ele?
- Pediu-me que lhe copiasse um poema de Lao Tsé. Queria-o em chinês e teve muita pena de que eu não soubesse ler nem escrever chinês.
- E foi por isso que lhe fez o interrogatório? O padre fez que ”sim” com a cabeça.
Traian Koruga recebeu uma carta de Nora.
- Eu bem sabia que Nora foi presa - disse Traian apertando nas mãos o envelope marcado: Prisoner of war. - Mas tinha a esperança de que fosse solta entretanto. Agora, não restam ilusões. Está fechada como nós, num campo como o nosso, e sofre como nós. Está sujeita ao mesmo tratamento que nós. Levam-na de um campo para o outro, como nós. Guardam-na polacos armados de metralhadoras, tal qual como a nós, por trás de arame farpado. Todo o meu ser se recusa a sofrer mais.
Nora não conhecia o endereço de Traian quando lhe escreveu. Escrevera num envelope o nome de Traian e os números de todos os campos da zona americana. Para chegar às mãos de Traian, a carta tivera que andar de campo em campo.
- Eles não lhe disseram onde eu estava - disse Traian. - E recusaram-se a dizer-me o nome do seu campo.
O padre tentou consolá-lo. Estava estendido na cama com as compressas na testa. lohan Moritz permanecia ao pé dele. Traian continuava surdo a toda a consolação.
- Todo o sofrimento tem limites - disse Traian, pondo-se de pé. - Creio que cheguei ao máximo. Nenhum ser humano poderia ultrapassar este limite ainda com vida.
Traian Koruga saiu da tenda.
- O Sr. Traian vai-se matar - disse Moritz aterrado.
O padre conserva os olhos fechados. Não ouvia as palavras de Moritz. Rezava. Não rezava somente por Traian e por Nora. Rezava também por Moritz e por todos os homens que esta Sociedade Técnica Ocidental empurrara a um limite que ser algum poderia franquear continuando com vida.
- O Sr. Traian vai-se matar se o deixo sozinho - disse Moritz.
O padre abriu os olhos. Tocou na mão de lohann Moritz e deixou-o partir.
- Peço-te que me dês a tua mão - disse o Pé. Koruga.
Continuava estendido, de olhos entreabertos. A testa estava pálida. O sangue fugira-lhe do rosto. O velho pegou na mão de Traian e conservou-a entre as suas, sem palavra. O calor das duas mãos confundira-se. O sangue parecia passar de uma à outra. Sentiam-se perto, como só um filho e um pai podem estar. As pulsações dos seus corações respondiam-se. Mas as do padre estavam cada vez mais fracas. lohann Moritz quis mudar a compressa. O doente fez-lhe sinal de que não era preciso. E sorriu. Moritz sentou-se à beira da cama.
- Nesse momento não tenho a impressão de aquecer as mãos ao calor de um homem, mas ao próprio fogo da minha vida - disse o padre. - Escaldas como só a vida escalda.
Traian apertou as mãos de seu pai. Estavam frias, mas o padre sorria.
- Tive dois grandes sonhos neste mundo - disse o padre;
- ser padre na América, e depois da minha morte, ser enterrado no cemitério de Fântâna. Conhece-o, Traian? É um cemitério sem paredes, sem barreiras, coberto de flores e ervas bravas. O cemitério parece um prado. Era lá que eu queria estar, para ver bem a minha viagem a caminho da eternidade. Esses dois desejos foram realizados, mas de uma maneira estranha. Nunca fui à América, mas a América veio até mim. Vou morrer nesta prisão em que flutua a bandeira estrelada dos Estados Unidos. Tampouco serei enterrado no cemitério de Fântâna. Mas o cemitério de Fântâna tornou-se maior que Fântâna: invadiu toda a Europa. Fântâna, e a Romênia, e toda a Europa não são hoje mais que uma grande mancha negra no mapa do mundo. Como uma mancha de tinta. Todo o continente está silencioso e perdeu a alegria. As alegrias deixaram-na como ao cemitério de Fântâna. E em breve a terra se cobrirá de flores e de ervas bravas, como o nosso cemitério. Que importa o lugar do nosso continente onde me enterrem? Em qualquer parte me sentirei como no cemitério sem barreiras da nossa aldeola.
- Por que é que me diz tudo isso? - perguntou Traian.
- Antes o pai descansasse.
- Tens razão - disse o Pé. Koruga. - Mas ainda te queria dizer uma coisa. Fica sabendo, Traian, que ”a vida nunca tem um objetivo, a não ser que assim se chame à morte: todo o fim real e verdadeiro é subjetivo”. A Sociedade Técnica Ocidental quer oferecer à vida um fim objetivo. É a melhor maneira de a aniquilar. Reduziram a vida a uma estatística. Mas: ”Toda a estatística deixa escapar o caso único no seu gênero, e quanto mais a humanidade evolui, tanto mais será a unicidade de cada indivíduo e de cada caso particular que contará”. A Sociedade técnica progride exatamente no sentido inverso; generaliza tudo. ”Foi à força de generalizar e de investigar, ou de colocar todos os valores no que é geral, que a humanidade ocidental perdeu todo o sentido dos valores do único, e, por conseqüência, da existência individual. Daí o imenso perigo do coletivismo, quer seja compreendido à russa ou à americana
”E é por isso mesmo que podemos ter a certeza de que esta Sociedade ruirá. Tu próprio, aliás, falavas disso uma noite em Fântâna. A Sociedade da civilização técnica tornou-se incompatível com a vida do indivíduo. Abafa o homem. E os homens morrem da mesma morte dos coelhos brancos do teu romance. Morremos todos asfixiados pela atmosfera tóxica desta Sociedade, onde só podem mover-se os Escravos técnicos, as Máquinas e os Cidadãos, exatamente como o querias contar no teu livro. Os homens, assim, pecam gravemente e são culpados perante Deus. Com todas as forças que temos, agindo contra o nosso próprio bem, e sobretudo contra Deus. É o último grau da decadência jamais atingida por uma Sociedade Humana. E essa Sociedade perecerá como pereceram até agora tantas Sociedades no decurso da história, e antes, até, que a história começasse.
”Os homens tentam salvar esta Sociedade por meio de uma ordem lógica, quando é essa mesma ordem que a mata. Eis o crime da Sociedade Técnica Ocidental. Ela mata o homem vivo, sacrificando-o à teoria, à abstração, ao plano. É essa a moderna forma do sacrifício humano. A fogueira e os autos-de-fé foram substituídos pelo bureau e pela estatística, os dois mitos sociais atuais, em cujas chamas é consumado o sacrifício humano. A democracia, por exemplo, é uma forma de organização social nitidamente superior ao totalitarismo, mas só representa a dimensão social da vida humana. Chegar a confundir a democracia com o próprio sentido da vida é matar a vida do homem e reduzi-lo a uma única dimensão. Eis o grande erro, comum aos nazis e aos comunistas.
”A vida humana só tem sentido quando tomada e vivida no seu todo. E para penetrar o sentido último da vida é preciso empregar os mesmos utensílios de que nos servimos para compreender a arte e a religião: os utensílios da criação artística, os de toda a criação. Na descoberta deste sentido último da vida a razão tem apenas um papel secundário. As matemáticas, a estatística e a lógica têm o mesmo efeito, para a compreensão e a organização da vida humana, que para a de um
(1) Conde H. de Keyserling.
concerto de Beethoven ou de Mozart. Mas a Sociedade Técnica Ocidental teima em chegar à compreensão de Beethoven e de Rafael por cálculos matemáticos. Teima em compreender e melhorar a vida humana e a melhorá-la pelas estatísticas.
”Essa tentativa é igualmente absurda e dramática. Com esse sistema, o homem pode atingir, no melhor dos casos, o apogeu da perfeição social. Mas isso não vale de nada. A própria vida do homem cessará de existir quando ele for reduzido ao social, ao automático, às leis da máquina. Essas leis jamais poderão dar um sentido à vida humana. E se tirarmos à vida o seu sentido - o único sentido que ela possui e que é totalmente gratuito e excede a lógica - então a própria vida acaba por desaparecer. O sentido da vida é absolutamente individual e íntimo.
”A Sociedade contemporânea rejeitou há já muito tempo estas verdades e dirige-se com uma velocidade vertiginosa, com a força do desespero para outros caminhos. E eis por que as águas do Reno, do Danúbio e do Volga rolam neste momento lágrimas de escravos. Essas mesmas lágrimas encherão o leito de todos os rios da Europa e de todos os rios da terra, até que os mares e os oceanos transbordem toda a amargura dos homens escravos da Técnica, do Estado, da Burocracia, do Capital. No fim, Deus terá piedade do homem - como já teve muitas vezes, Depois, tal como a Arca de Noé sobre as ondas, os poucos homens que permaneceram verdadeiramente homens flutuarão nos redemoinhos desse grande desastre coletivo. E é graças a eles que a raça humana será salva, como já o foi várias vezes no curso da história. Mas a salvação só virá pelos homens que sejam verdadeiramente homens, isto é, indivíduos. Dessa vez, não hão de ser as categorias que serão salvas.
”Nenhuma Igreja, nenhuma nação, nenhum Estado e nenhum continente poderá salvar os seus membros em massa ou por categorias. Só os homens tomados individualmente, sem consideração pela religião que professem, da raça ou das categorias sociais ou políticas a que pertençam, poderão ser salvos. E aqui está por que o homem nunca deve ser julgado segundo a categoria a que pertence. A categoria é a aberração mais bárbara e diabólica que jamais engenhou o cérebro do homem. Não devemos esquecer que o nosso inimigo é, ele próprio também um homem, e não uma categoria.
Traian Koruga aproveitou a circunstância de o padre ter feito uma pausa, para pedir com voz tímida:
- Pai! por que é que agora me está a explicar isso tudo? Talvez fosse melhor descansar...
- É o que vou fazer. Vou repousar. Mas, antes do repouso, devo dizer estas coisas. Conhece-las e sente-las como eu. Todo o homem as sente e conhece. Sente-as também lohann Moritz. Mas fêz-me bem repeti-las. Não podia descansar se as não tivesse dito.
- A sua mão está fria, pai.
- Bem sei, Traian. É talvez por um estranho estado de inquietação que não chego a vencer. Uma inquietação mais forte que a carne.
- Não compreendo, pai - disse Traian. - Que quer o pai dizer? Sente-se mal?
- Não - disse o padre.
Os lábios do Pé. Koruga crisparam-se num ricto de dor, como se todo o seu corpo acabasse de ser atravessado por um relâmpago. Traian debruçou-se sobre ele. O rosto do padre iluminou-se de repente de um sorriso quente, cheio de amor. Acabava de acender-se um projetar algures por trás da testa dele. Traian compreendeu que era o fim e ajoelhou-se ao pé da cama. Depois começou a soluçar.
lohann Moritz levantou-se e perguntou:
- Chamo o médico?
Traian não respondeu. Continuava a apertar as mãos do pai nas suas e chorava com um desespero que não conhecera nunca. lohann Moritz compreendeu também. Descobriu-se, ajoelhou ao pé de Traian e benzeu-se. Alguns instantes depois, Moritz pôs-se de pé. Os prisioneiros tinham-se juntado em roda. Vinham das tendas vizinhas. De todas as tendas.
lohann Moritz abriu caminho através da multidão de prisioneiros que se tinham descoberto e permaneciam de pé, silenciosos. Voltou logo depois e pôs à cabeceira do morto uma vela feita com a parafina apanhada do papelão das caixas de chocolate. Acendeu a vela e pô-la à cabeceira do Pé. Koruga, numa lata de conserva vazia, como se fosse um castiçal.
O P. W. médico do campo, seguido de dois enfermeiros munidos de maca, entrou na tenda em que o Pé. Koruga acabava de morrer.
- Que quer o senhor? - perguntou Traian.
- Levar o cadáver. Não podemos deixar cadáveres debaixo das tendas - respondeu o doutor.
- Para onde o querem levar?
- Para fora do campo - disse o doutor. - Mas não sabemos para onde. Temos que avisar as autoridades superiores, para que os americanos o venham buscar num carro.
- Eu sempre tenho o direito de saber onde é que os senhores vão pôr o corpo de meu pai.
- Há muitas coisas que gostávamos de saber e não podemos - replicou o doutor asperamente.
Os dois enfermeiros aproximaram-se do leito e quiseram meter o corpo do padre na maca. O doutor, com um gesto, afastou-os.
- Primeiro tenho que verificar o óbito - disse ele. - Talvez ainda esteja vivo. - Pegou na mão do padre e conservou-a um instante entre as suas. Depois debruçou-se e aplicou o ouvido ao peito do velho. - Podem levá-lo - ordenou aos dois enfermeiros.
- Não! - gritou Traian.
- Para que serve opor-se? - disse o doutor. - Nós não passamos de simples prisioneiros como o senhor e não temos senão que obedecer.
- Quero saber primeiro para onde levam o corpo de meu pai. É o menos que eu posso pedir, já que não tenho direito de assistir a seu enterro. Quero ter a certeza de que será enterrado cristãmente. Mesmo como prisioneiro, tenho o direito de o saber. Desde que morreu, meu pai deixou de ser prisioneiro, e tem direito ao respeito devido aos mortos, a todos os mortos, sejam eles quais forem!
- Quem lhe disse que os mortos não eram respeitados? - replicou o doutor.
- Eu não afirmei isso - disse Traian. - Mas meu pai é padre ortodoxo e quero que seja enterrado com o cerimonial da igreja a que pertence.
- Peça-o primeiro por escrito ao comandante americano.
- Pode-me garantir que amanhã já não é tarde demais?
- Eu não garanto nada - disse o doutor. - Eu sou prisioneiro também, como o senhor.
- Então o corpo de meu pai fica aqui. Antes de me separar dele, quero ter a certeza de que será enterrado com o ritual da Igreja ortodoxa.
- O senhor opõe-se em vão - disse o doutor.
- Talvez. Mas apesar de tudo, oponho-me.
- Temos que levar o cadáver. Recebemos ordem para não deixar cadáveres no campo.
- Podem levá-lo à força - disse Traian; - mas hão de arrepender-se.
Os enfermeiros agarraram Traian pelo braço e arredaram-no do leito brutalmente. O corpo do padre foi transportado para a maça. Traian debatia-se às mãos dos que o tinham imobilizado. Quando a maça passou perto dele, não pôde ver senão a testa do pai, aquela testa alta, nítida e clara como a lua. lohann Moritz marchava atrás dos enfermeiros, de cabeça descoberta, segurando nas mãos a lata de folha em que ainda ardia a vela.
- É um pecado que haveis de pagar caro. Há coisas que não se perdoam. Não se esqueça, doutor, de que me proibiu que acompanhasse o corpo do meu pai até à porta do campo.
- Não sou eu que proíbo, é o regulamento.
- Sossega - disse o chefe do campo, pondo-se ao lado de Traian. - Se eles te ouvem gritar, metem-te num bunker.
- Nada me poderá acalmar de ora avante - disse Traian. - Não há cela ou prisão que me possa abafar os gritos. A partir de hoje vou jejuar até morrer. Vou jejuar no meio dos vinte mil homens deste campo. Vou-me apagar pouco a pouco, de hora a hora, em sinal de protesto. A minha morte será um grito de revolta que entrará pelos ouvidos, pelos olhos e pela carne dos que estão à volta de mim, dos que estão encurralados ao mesmo tempo que eu e dos que me guardam à vista. Esse grito será ouvido em todos os pontos cardeais. E ninguém lhe poderá escapar. Ninguém. Nunca. Nem mesmo depois da morte...
- Mas quer mesmo morrer? - perguntou lohann Moritz. - Morrer de fome e sede?
Quatro dias eram passados desde que Traian decidira fazer a greve da fome. Estava muito calor. Traian estendera-se de costas à sombra da tenda. Andar fatigava-o; falar fatigava-o. Estar de pé e ouvir outro falar, olhar para o céu, tudo o fatigava.
Tinham tocado para a refeição do meio-dia. Moritz tentou ainda uma vez convencê-lo. - Quer que lhe traga o almoço? - perguntou. Segurava a marmita de Traian. - Eles é que vão campar, se o senhor morre - disse Moritz ainda. - Mas é mau, querer morrer.
- Se queres, fica com a minha ração - disse Traian. - Eu não preciso.
Moritz partiu e voltou pouco depois, com a marmita cheia de sopa. Pô-la no chão a seu lado e tirou da algibeira uma colher, que limpou com a mão. Pôs a marmita em cima dos joelhos. A sopa fumegava. De ventas dilatadas, Moritz aspirava-lhe o bafor.
- Por que é que não ficaste também com a minha ração? - perguntou Traian. - O que comes não te chega. Nem isso pode mesmo chegar para ninguém.
- Eu nunca podia comer a sua ração- disse Moritz. - Deus castigava-me se o fizesse. Enquanto o Sr. Traian está para aí a sofrer, como podia eu comer o que lhe toca a si? Era uma coisa mal feita. Não posso fazer isso.
Depois de ter posto a marmita em cima dos joelhos, Moritz levantou os olhos para o céu cinzento e pesado e ficou por instantes assim, a olhar para as nuvens, de lábios entreabertos. Depois benzeu-se. Traian seguia-lhe todos os movimentos. Moritz mergulhou a colher na sopa com o vagar de um homem que está celebrando um rito. Encheu só metade e levou-a aos lábios com um gesto largo, sacerdotal. Um gesto de comunhão. Depois de ter engolido, fez uma curta pausa. Segurava a colher imóvel entre os dedos, como se ainda estivesse cheia. Os seus grandes olhos pretos olhavam com intensidade, ao longe, qualquer coisa que só ele via, um lugar situado para lá dos limites da terra e do céu. Moritz encheu outra vez a colher. Não a enchia até a borda. Nunca engolia mais de meia colher de sopa, nem menos também. Levou-a aos lábios com o mesmo vagar e a mesma seriedade. lohann Moritz comia como quem diz missa, com volúpia igual e comedida. Para ele, comer era um ato sagrado - o ato de nutrição - restituído à sua majestade primitiva. E, como todo o ato essencial, aquele excluía pressas e desenrolava-se com atenção e gravidade. Não lhe ficava nos beiços uma só gota de caldo, nem pingava, nem esquecia. Aqueles gestos quase sagrados que lohann Moritz fazia para comer paralisavam todo o ceticismo e impunham silêncio. Não havia nada de teatral naquilo. Nada de gratuito. À hora do almoço, lohann Moritz integrava-se no grande ritmo da natureza. Alimentava-se como se alimentam as árvores, que tiram a seiva do mais profundo da Terra. Todo o seu ser se empenhava no ato que cumpria - e, sem ouvir mais nada do que podia passar-se à sua volta - naquele momento tornava-se completamente ele próprio, tornando a encontrar a natureza e unindo-se-lhe Intimamente.
Depois de ter acabado de comer e de recolher com a colher as últimas gotas de caldo do fundo da sua marmita, ficou por instantes imóvel, contemplando o espetáculo que se desenrolava a seus olhos, e que ele era o único a ver. Depois, com os dedos unidos, persignou-se outra vez. Voltando-se para Traian, disse-lhe, como se voltasse à terra depois de um longo sonho:
- É um grande pecado comer a comida de outro.
Depois pôs-se de pé e foi lavar a marmita. Traian ficou onde estava, os olhos longe dali. Mas não via horizonte. Tinha ainda diante dos olhos a imagem de lohann Moritz celebrando o culto da nutrição, a que ele renunciara.
- Recuso que me prestem qualquer assistência médica - disse Traian Koruga.
Era a tarde do seu quarto dia de jejum. O comandante do campo, o Tenente Jacobson, fora avisado de que um grupo de jornalistas americanos em visita aos campos e aos prisioneiros da Alemanha acabava de chegar a Stuttgart. Ordenou ao burgomestre Schmidt e ao médico-chefe que se arranjassem de maneira que Traian Koruga fosse instalado fora do campo durante algum tempo. A imprensa não devia ser posta ao corrente do seu caso, demasiado espetacular. Com efeito, Traian Koruga não era nazi. Seu pai, morto havia pouco, era padre e tivera as pernas amputadas. A mulher de Traian era judia. Quantos outros elementos de escândalo para um repórter. Jacobson não tinha vontade nenhuma de provocar o escândalo. Se os jornais desencadeassem uma campanha de imprensa a tal respeito, seria imediatamente chamado à América, e isso no momento preciso em que estava quase a completar uma importante coleção de porcelanas alemãs. Comprara tudo aquilo por alguns maços de cigarros e já colocara caixas na zona inglesa de ocupação, numa cave. Só lhe restava fazê-las chegar aos E. U. A.. Se algum dia chegasse a comprar toda a coleção dispersa em diversas cidades, aldeias e caves da Alemanha, ficava logo com que viver tranqüilo, sem fazer nada, o resto da sua vida. Mas para isso era absolutamente preciso que continuasse ali até ter tudo comprado.
Se os jornalistas não estivessem em Stuttgart, o Tenente não recearia o escândalo. O caso Koruga passaria em silêncio. Nem sequer o teria mencionado nos relatórios. Nos campos, os prisioneiros morriam de fome todos os dias, e o fato de que a maior parte morressem por não terem bastante que comer e que um deles morresse porque não queria comer, não tinha nenhuma espécie de importância. Mas, nas circunstâncias atuais, o escândalo ia escangalhar-lhe os projetos. E ele queria evitá-lo a todo o preço. Estavam milhões em jogo.
O burgomestre Schmidt - antigo coronel S. S. e chefe da Polícia de Weimar - prometera ao Tenente Jacobson arranjar o caso no mais curto prazo possível e com a maior discrição.
- Todo o médico é obrigado a tratar de um doente, mesmo que este não queira - disse o burgomestre. - O senhor tem febre. Nós vamos transportá-lo à enfermaria do campo.
Eram dez horas da noite. lohann Moritz estava junto da cama de Traian. Cada vez que ouvia falar o burgomestre Schmidt, estremecia. Tinha a impressão de ouvir a voz de lorgu lordan. Era quase a mesma.
- Recuso-me a mexer-me daqui - disse Traian. - Não é porque esteja doente, mas porque os senhores têm medo do escândalo que a minha presença pode provocar aqui, que me querem fazer sair desta tenda. Mas não me podem atabafar. Têm com certeza a impressão de que vou morrer depressa? Os vinte mil cadáveres que povoam o campo não os incomodam. Os outros prisioneiros morrem mais suavementte. E quando se morre suavemente não se provoca o escândalo. Eles não provocam escândalo com aquela morte lenta, mas segura. Por que é que os não transportam também, àqueles, para o hospital?
- O meu dever de médico manda-me que o transporte ao hospital - disse o Dr. Dorf, o médico dos prisioneiros. - O seu estado é dos mais alarmantes, Sr. Koruga. Nós não o podemos deixar nem mais uma noite nesta tenda.
Dois enfermeiros levantaram Traian Koruga e puseram-no como a um objeto em cima da maça. Moritz cerrou os punhos e rangeu os dentes. Queria defender Traian, mas o combate estava de antemão perdido.
- É grande crime, fazer uma coisa justa em nome de uma causa injusta - disse Traian.
O médico fez que não ouvia.
- Vamos lá - disse ele.
Os enfermeiros levaram a maça para fora da tenda. Os prisioneiros afastaram-se para lhe dar passagem. Mas ninguém saberia dizer exatamente a quê.
Era uma noite de lua cheia. lohann Moritz marchava atrás da maça, de cabeça baixa como se fosse atrás de um enterro. Levava na mão as roupas, as calças, os óculos e o cachimbo de Traian. As lágrimas subiram-lhe aos olhos. Depois, de repente, percebeu que o homem estendido na maca, o seu amigo, ainda vivia.
Ao chegar à porta da enfermaria, lohann Moritz viu que lhe era vedada a entrada.
- Não tens licença para nos acompanhares lá dentro - disse o burgomestre. - A ordem é terminante. Ninguém tem licença de falar a Traian Koruga. E ele não tem licença de falar com ninguém. Eu é que lhe hei de trazer a roupa e os sapatos.
Nessa noite, lohann Moritz passeou sozinho ao comprido do arame farpado que rodeava a enfermaria. Não podia resignar-se a abandonar Traian.
Traian Koruga ficou fechado num quarto da enfermaria - um quarto de seis camas, sem nenhuma ocupada. Tinham feito sair toda a gente para que ele ficasse sozinho. Dois moços enfermeiros receberam ordem para o guarda. Traian estendeu-se na cama, voltando-se contra a parede. Tinha os beiços secos como cinza. Passavam-lhe sonhos pelo espírito como num filme colorido.
Conservava os olhos fechados, mas, apesar disso, sentia-se ofuscado por uma luz intensa como a que só podem dar os tubos de néon. Essa luz vinha-lhe do interior; era uma luz quente que lhe queimava as pálpebras. Todos os seus pensamentos estavam coloridos e iluminados por ela. E todo o seu corpo parecia feito de luz, ligeira e ardente como os seus sonhos. Traian parecia planar. ”Só agora começo a compreender por que é que os ascetas e os místicos jejuam”, pensou Traian. ”Quando se tem fome, é muito mais fácil desprendermo-nos da terra. Deus está pertíssimo de nós. Temos a impressão de tocar o céu com a fronte.”
Traian Koruga permaneceu muito tempo neste êxtase. De repente percebeu que lhe tinham trazido de-comer. Um dos enfermeiros pusera uma bandeja bem servida em cima da cadeira ao pé da cama de Traian. Traian virava-lhe as costas. Nem a vira sequer. Mas sabia tudo o que ela tinha, ao certo. O nariz adivinhou-lhe primeiro o cheiro a batatas fritas em manteiga. Depois o cheiro a café. Sentia a presença dos pratos na bandeja como se já os tivesse visto e saboreado. O olfato aguçara-se-lhe. Nunca, até àquele dia, pudera distinguir com semelhante precisão um cheiro de outro cheiro. Havia, ainda, na bandeja, um jarro de leite quente. O cheiro do leite fumegante era tão forte como o do café. O cheiro a carne, igualmente insistente. Traian sentia-lhe a estridência, como uma cor demasiado violenta que se distingue das outras num quadro. O cheiro a manteiga e a carne grelhada aumentava o efeito provocante dos outros pratos. Impregnavam-lhe o cobertor, a camisa, o cabelo, as paredes.
Traian sentia que o cheiro a carne um pouco queimada, a manteiga, a leite e a café se colava a ele como uma pomada. Sentia-o penetrar nos pulmões a cada inspiração, e até no estômago. Tinha a sensação de estar a comer - de já não jejuar com toda a austeridade requerida. Fez um esforço para eliminar o cheiro dos alimentos do ar que respirava. Mas não era possível. E aquele cheiro de comida tornava-se de minuto a minuto mais penetrante. Traian Koruga pôs-se a analisar, lucidamente, como quem decompõe a luz através de um prisma. ”É um meio como qualquer outro de verificar as minhas possibilidades olfativas”, pensou, deixando-se levar por aquela operação que lhe dava a ilusão de se dominar, de conseguir tratar a comida como um objeto de estudo. Uma das primeiras descobertas que fez foi que a carne não era de porco nem de vaca. Embora fosse carne de conserva, e portanto misturada a vários ingredientes. Traian chegou a assentar que se achava em presença de carne de ave, talvez peru. Apetecia-lhe verificar, mas conteve-se e continuou de cara para a parede. O leite estava um pouco queimado. Tinha sido feito com leite em pó e, como estava muito concentrado, devia ter fervido muito depressa. Na bandeja havia também compota. Era o cheiro mais atenuado. As narinas de Traian mal o percebiam, como a uma cor muito pálida. Mas ter descoberto o cheiro da compota encheu-o de uma intensa satisfação intelectual, como se tivesse batido um recorde ou feito uma importante descoberta de laboratório. A única coisa que não chegava a saber era se, na bandeja, havia ou não havia pão. Se havia, então era pão alvo, feito com farinha americana, apurada a ponto de não ter senão amido, e devia estar tostado. - Você o que devia era comer já - disse o enfermeiro aproximando-se-lhe da cama. - Se os pratos esfriam, já não têm o mesmo gosto.
Traian não respondeu. Quisera continuar a operação e analisar o conteúdo da bandeja sem olhar para ela, mas já não era capaz. Já não podia concentrar-se, nem tornar a achar a calma necessária. Agora todos os cheiros se tinham misturado e confundido num só - como as sete cores do espectro se confundem todas na luz branca. As palavras do enfermeiro tinham misturado os cheiros, como uma pedra atirada a um tanque quebra as ondulações harmoniosas da água.
Traian Koruga ficou triste por não poder mais analisar os cheiros e saboreá-los completamente. Depois adormeceu. No dia seguinte de manhã, a bandeja lá estava ainda. Traian Koruga nem sequer para ela olhou. O cheiro dos pratos desvanecera-se. A comida já não tinha vida. Estava gelada ou, antes, morta.
Traian Koruga sentia-se exausto. Nem se voltou na cama, nem sequer abriu os olhos. Umedeceu várias vezes os lábios com saliva e ficou triste ao verificar que tinham um gosto amargo e áspero. O enfermeiro trouxe outra bandeja e pô-la ao pé da cama, depois de levantar a da véspera. Desta vez, a bandeja trazia ovos. O cheiro a ovos dava a sensação violenta e berrante das cores de um cartaz. Ao lado dos ovos havia doce de laranja, leite, café e manteiga. Mas todos estes cheiros vinham ferir Iraian Koruga como setas que lhe entrassem na carne. Traian Koruga cerrou as pálpebras, tal era o seu sofrimento.
”Senhor! Ajudai-me a acabar mais depressa”, murmurou ele, suplicante. ”é muito duro resistir constantemente à tentação quando se está encerrado num pobre corpo humano.” Consolou-se enfim com o pensamento de que o corpo cederia ao fim de dois ou três dias. ”Daqui a dois ou três dias estarei morto”, disse, de si para si; e tornou a adormecer.
Traian Koruga levantou-se nas coxas e olhou pela janela. Era meio-dia. No pátio, os prisioneiros alinhavam em três filas.
Estavam nus. Todo o pátio do campo estava cheio de homens nus. Mesmo debaixo da janela da enfermaria, havia um jipe rodeado por um grupo de soldados armados de metralhadoras. Os soldados mascavam chewing-gum. Os prisioneiros vinham pôr-se diante dos soldados um a um. Tinham um passo pouco firme. Os homens, completamente nus, avançavam sempre a medo. Traian conhecia essa sensação. Fazia o mesmo em idêntica circunstâncias.
”Outra busca?” disse ele consigo. ”Que esperam eles encontrar desta vez?”
As buscas faziam-se várias vezes por mês. Acabava de chegar um velho à frente dos soldados. ”É o Metropolita Paládio de Varsóvia”, disse Traian. O Metropolita era alto, embora um pouco curvado e muito magro. Podiam-se-lhe contar as costelas ao longe: um esqueleto com pele. A barba do Metropolita era branca - a única coisa branca em todo o pátio. Os olhos dos circunstantes ficavam iluminados ao vê-lo. Era de uma alvura suave, heráldica. Os soldados desataram a rir vendo-o chegar. Mas o Metropolita parecia que os não via. Olhava para o céu por cima dos quepes. E nesse dia o céu estava azul como cúpula de igreja bizantina. Os soldados examinaram os dedos do Metropolita.
- Abre os dedos - ordenou o intérprete.
O velho afastou os dedos. Os soldados examinaram-nos atentamente. O prisioneiro não tinha anel.
- Levanta o braços - ordenou de novo o intérprete.
O velho levantou os braços. Primeiro por diante do peito, como para um gesto de bênção; depois, pelo alto da cabeça. Não olhava para o intérprete, nem para os soldados; mas o intérprete e os soldados examinavam-no atentamente para ver se teria jóias escondidas nos sovacos. Depois esquadrinharam-lhe o cabelo na nuca. O Metropolita tinha um cabelo branco comprido. Poderia ter escondido jóias ali. Os soldados separaram-lhe mecha após mecha, primeiro com a ponta do cacete, depois com as mãos. Esquadrinharam-lhe os cabelos brancos ao alto da cabeça e na nuca. Depois apalparam-lhe a barba para verem se ele não teria escondido lá jóias.
- Volta-te - disse o intérprete. O velho voltou as costas ao soldado. - Debruça-te - disse o intérprete. O Metropolita debruçou-se e curvou-se como para rezar diante de ícones. Mas ainda não bastava aquilo. - Afasta as pernas - disse o intérprete. O Metropolita afastou as pernas. Eram delgadas e brancas. O intérprete e o soldado debruçaram-se, para verem se o Metropolita não tinha anéis ou outro objeto de ouro ocultos entre as pernas. Um dos soldados disse qualquer coisa ao camarada. O velho continuava debruçado, de pernas abertas e de costas voltadas. - Podes-te ir - disse o intérprete.
Os soldados revistaram o seguinte. O Metropolita afastou-se com o mesmo passo hesitante. O vento fazia-lhe flutuar a barba e o cabelo como uma bandeira sedosa e branca. Traian teve a impressão de que o Metropolita não estava nu como os outros.
Traian Koruga seguiu-o com o olhar até ele entrar na coluna de homens nus. Agora era como os outros sem contudo estar misturado com a malta. Alguma coisa lhe flutuava ao redor da cabeça. Alguma coisa que forçava a vista. Talvez fosse a alvura do cabelo, ou da barba. Talvez também o porte da cabeça. Qualquer coisa que obrigava a olhar para ele como se olha as imagens.
- Agora sei o que vejo - disse Traian estremecendo. Os enfermeiros voltaram-se para ele. Mas Traian olhava pela janela e ignorava-os. - A cabeça do Metropolita está cercada de luz, de um auréola. Por detrás daquela fronte há uma luz intensa, mais intensa que o néon ou que a eletricidade, que espalha raios em volta da cabeça. Uma luz dourada.
Depois de ter reentrado nas fileiras da coluna, o velho ergueu os olhos para a janelas da enfermaria. Os raios que lhe cercavam a testa brilharam mais forte ainda. ”A auréola não é uma invenção dos pintores de ícones”, pensou Traian. Examinou os outros prisioneiros também. Havia ainda outras cabeças com auréolas. Ele não os conhecia todos. Mas o Reitor da Universidade de Viena tinha uma. Um ministro grego, o Embaixador da Romênia em Berlim tinham-na também. E ainda outros. Suas frontes projetavam raios, como um fogo fortíssimo ou um refletor elétrico. Mas esses raios eram mais belos que todos os que podem produzir o fogo e a luz elétrica. Os raios que surgiam de tais frontes poderiam iluminar o Universo inteiro. E nunca mais a noite oprimiria a Terra...
- Por que é que você não quer comer? - perguntou o Tenente Jacobson. Entrara no quarto de Traian. Tinha mandado sair o médico e o burgomestre para ficar só com ele. - Que deseja? - perguntou o Tenente. - Não vale a pena tratar este campo como se fosse uma feira!
- Não como porque já não tenho fome - disse Traian. - O apetite desapareceu-me de repente. Tenho náuseas. Náuseas terríveis. Estou com os intestinos do avesso. E o Sr. Tenente? Não tem náuseas?
Jacobson calava-se. Já lastimava ter ficado só com Koruga. O prisioneiro devia ser louco. Os olhos brilhavam-lhe. ”Pode saltar-me ao pescoço e estrangular-me”, pensou o oficial. Lançou um olhar à porta. Depois sorriu.
- Acalme-se, Sr. Koruga - disse ele. - O senhor está excitado, e isso compreende-se. Há seis dias que não toma nada, nem de beber nem de comer.
- Não se vá, Tenente; eu não sou louco! - disse Traian. - Não tenha medo. A minha pergunta a respeito das náuseas foi estúpida. É claro, o senhor não pode ter náuseas. Se, desde o princípio, se toma o partido de fechar os olhos e de tapar o nariz, não se arrisca mais nada. O ser humano habitua-se a tudo, mesmo à náusea. É só uma questão de vontade. E eis sem dúvida por que comecei a ter náuseas. Há operários que tomam o pequeno almoço, o almoço e o jantar aos pés das manilhas de esgoto e nas latrinas. Isso já lhes não faz mossa. Vi-os com os meus próprios olhos comer chouriço e pão com manteiga a dois passos dos buracos da necessária. E lambiam os beiços. Estavam contentíssimos e laracheavam uns com os outros. Mesmo com um cheiro muito fino, acabamos por nos habituar. Os alemães queimavam os cadáveres dos prisioneiros dos campos de concentração e, logo que fechavam a porta do forno crematório, iam almoçar alegremente, sem o menor sinal de enjôo. Há aqui homens que fabricaram colchões com o cabelo das mulheres mortas nos campos de concentração, e esses mesmos homens serviram-se desses colchões para dormirem com as amantes e terem relações com elas. Foi nesses colchões que eles fizeram os filhos às mulheres, nesses colchões cheios dos cabelos de mulheres assassinadas e queimadas. E isso não os engulhou. Isso não os indignou. Levaram tudo a bem, e até ficaram contentes. Estive na mesma prisão com uma mulher que tivera no seu quarto de cama e no seu toucador abajures de pele humana. Filtravam uma luz amarela e lasciva. E foi a essa luz dos abajures de pele humana que essa mulher amou, comeu, bebeu, se entregou nos braços de um homem que se debruçou sobre ela e a estreitou. Sentiu-se feliz. Os seres humanos acostumam-se à náusea. É uma questão de hábito e de vontade. Os russos violaram mulheres de oitenta anos. Uma data de mulheres de oitenta anos. Serviram-se delas em fila. Dez para cada mulher.
Mesmo depois de terem relações com mulheres de oitenta anos não sentiram engulho. Beberam vodca. O senhor nunca faria tal coisa. Eu sei. O senhor não viola mulheres. Oferece-lhes chocolates e usa preservativos quando dorme com elas. Nem tampouco procede como os alemães, o senhor. Cada povo tem seus costumes. Mas tampouco o senhor tem medo de se nausear, faça lá o que fizer. Estou certo de que não correrá perigo algum, porque (acredite) a náusea é um grande mal. O meu estômago revirou-se todo à força de náusea. E eu tenho piedade dos seres humanos. Uma piedade terrível. Como queria o senhor que eu pudesse comer em semelhantes condições? Como quer o senhor que eu ainda tenha apetite? Compreenderá que me não apeteça comer de ora avante?
O Tenente Jacobson aproximara-se da porta. Arrependia-se de ter vindo. O burgometre e o médico não o tinham prevenido de que Traian Koruga era doido. Tinham-lhe dito que o doente conservava a sua perfeita lucidez. Mas o que ele acabava de ouvir demonstrava o contrário. Tinham ambos mentido. O prisioneiro era doido.
- O Sr. Koruga tem razão - disse o comandante. - Nessas condições, era impossível ter vontade de comer.
- Não se vá embora - disse Traian. - Levanto-me com muita dificuldade. Olhe para a janela e diga-me se a busca acabou.
- Ainda não - respondeu o Tenente Jacobson.
Traian Koruga maravilhou-se outra vez. ”Como é que um homem, depois de ter visto a busca que se fizera no pátio, ainda podia sentar-se direito à mesa, como Jacobson ia fazer?” Era meio-dia.
- A busca ainda não acabou - disse Traian. - Não acabará tão depressa. Mal começou. Primeiro, os senhores procuraram ouro nas malas, nas casas, nas trouxas, nas algibeiras, no calçado, nos forros, nas cuecas. Agora procuram-no nas bocas dos homens, debaixo dos sovacos e nos traseiros. Por toda a parte. Os homens têm que se pôr nus. Mas isto é só o começo da coisa. Amanhã arrancareis a pele para procurardes o ouro que está debaixo. Depois arrancareis os músculos dos ossos para procurardes ouro. Depois quebrareis os ossos para verdes se não terão moedas de ouro escondidas. Haveis de chegar a espremer os cérebros dos homens. E sacolejar-lhes as tripas. Haveis de os fazer em bocados. Tudo isso para procurardes ouro. Moedas de ouro, anéis de ouro, alianças de ouro. O ouro! O ouro! O ouro! Hoje estamos no começo: ainda não passastes da pele. Mas a pele será arrancada. A busca continuará.
O Tenente Jacobson já não estava no quarto. Traian Koruga voltou-se para a parede.
PETIÇÃO N.º 6. - Assunto: econômico (Valores encontrados aos prisioneiros)
No decurso das buscas efetuadas aos prisioneiros confiscaram-se anéis, alianças, pulseiras, relógios, canetas, dinheiro e todos os objetos de valor. Embora as buscas sejam feitas com cuidado até à epiderme, são contudo perfeitas. Pude hoje observar que alguns prisioneiros tinham à volta da cabeça uma coroa parecida com as auréolas dos santos, como as que se pintam nas imagens. Os santos, bem sei, têm coroas de ouro. As dos prisioneiros não são de ouro nem de outro metal precioso. Se assim fosse, essas coroas - ou, se preferis, essas auréolas - já teriam sido confiscadas. Embora não sendo de metais preciosos, o seu valor não é para desprezar.
Pessoalmente, não sou um homem de ciência, mas creio que essas coroas devem ter grande valor. Só se podem formar, mercê de radiações que emanam do Espírito de certos prisioneiros. É interessante reparar que na Sociedade Técnica Ocidental se não produzem mais fenômenos. São, ao que parece, apanágio das sociedades não civilizadas. Desde o momento que essas coroas representam um certo valor, não devem continuar na posse dos prisioneiros: É expressamente proibido aos prisioneiros possuir objetos de preço. Se bem me lembro, mesmo ao longo da história, esse gênero de coroas - ou auréolas - foi objeto de confiscações. Os conquistadores bárbaros, do gênero de Gêngis Cã, apreciavam devidamente esses ornamentos em certos prisioneiros, e arrancavam-lhos. Nessa época da história não se dispunha dos atuais meios de transporte. Para não estragar a forma e a luminosidade das auréolas, Gêngis Cã, que as queria ter na sua corte, deu ordem para que a cabeça fosse transportada ao mesmo tempo que a auréola. As cabeças aureoladas dos prisioneiros da China e da Arábia foram enfiadas numa guita e atadas às selas dos cavalos, depois levadas para a Mongólia. Mas pelo caminho, provavelmente por causa das condições atmosféricas e das bruscas mudanças de temperatura, a auréola desapareceu, e todas essas cabeças cortadas, já sem ornamentos, tiveram que ser deitadas fora. Já tinham, aliás, começado a decompor-se.
Para evitar semelhante perda era melhor não cortardes a cabeça aos prisioneiros, como fazia Gêngis Cã. Os prisioneiros que tivessem essa coroa preciosa poderiam ser conservados em estufas de ar condicionado e temperatura constante e remetidos para a vossa terra. A nossa sociedade tem a felicidade sem igual de dispor dos meios técnicos necessários para assim poupar as perdas sofridas pelos conquistadores bárbaros. A crônica refere que meio milhão de auréolas ficaram, assim, perdidas.
Aceitai, como de costume, a expressão da minha admiração ilimitada. - Keep smüing!
- Dentro de cinco minutos o senhor será transportado ao hospital - disse o burgomestre. Passeava para cá e para lá no quarto de Traian, de mãos atrás das costas. - Lá, tem de ser alimentado à força. Lastimo. Experimentei tudo o que estava ao meu alcance. O Tenente Jacobson também. Mas o senhor não nos quis compreender. Queríamos fazer tudo pelo bem, e o senhor virou-nos as costas. - Traian estava estendido na cama, voltado para a parede. - A sua maneira de proceder mostra uma completa falta de camaradagem - disse o burgomestre, zangado. - O senhor faz perder o tempo aos médicos e ao Tenente Jacobson com as suas histórias pessoais. Tratamos de vinte mil homens e não temos tempo a perder só com um. O senhor é só um, e eles são vinte mil. As questões individuais devem ser postas de lado. Cada um de nós tem família, filhos e cuidados. Que seria do campo, se cada um de nós o imitasse? Mas o senhor nunca pensa na coletividade. É um egoísta. Pessoalmente, segui os conselhos do Tenente Jacobson, que é um romântico e ainda crê na democracia, como todos os americanos, e perdi pelo menos cinco horas, nestes últimos dias, a ocupar-me de um único indivíduo deste campo em detrimento dos outros vinte mil. É uma pura loucura.
- O senhor não se ocupa de nenhum prisioneiro do campo. Ocupa-se de uma máquina administrativa, isto é, de uma coisa impessoal. Os homens deste campo não devem ser confundidos com esta máquina, que significa: registos, máquinas de escrever e cifras. É disso que o senhor se ocupa. O senhor burgomestre nunca se ocupou dos vinte mil homens do campo, que são feitos de carne, sangue e espírito. São feitos de sofrimento, de fé, de desejos, de fome, de desespero e de ilusões. E o senhor não se ocupa da sua carne nem do seu sangue, elementos individuais, nem das suas esperanças ou dos seus desesperos, que ainda são mais individuais. Ocupa-se de cifras e papelada. Não conhece um único prisioneiro. Como pode pretender que se ocupa de vinte mil prisioneiros, quando nem de um único trata. É redículo! São as noções, as abstrações que nos interessam, a si e a Jacobson, e não os homens. Eu mesmo, neste momento, não é como homem que lhes interesso. Para os senhores não passo de uma fração desses vinte mil homens. E aqui está por que o senhor se zanga, com a idéia de perder o seu tempo. O senhor nem chegou a olhar para mim como um indivíduo. E à sua mulher também; o senhor não a deve ter olhado como a um ser humano isoladamente tomado. Deve tê-la considerado como mulher, como mãe de seus filhos e dona de casa, mas nunca a deve ter visto em conjunto. E contudo ela não existe senão no seu conjunto. O senhor, mesmo, que aí está, não se conhece melhor a si mesmo. O senhor não conheceu ser algum à superfície da Terra. Pois, se tivesse conhecido, um só que fosse, nunca teria a impressão de gastar o seu tempo ocupando-se de um deles. O senhor não conheceu senão seres humanos reduzidos a uma única dimensão; mas esses já não são seres humanos, como os cubos reduzidos a um único lado já não são cubos.
O enfermeiro veio anunciar que a ambulância estava no pátio.
- Eu queria dizer adeus ao meu amigo lohann Moritz - disse Traian.
- O senhor está proibido de dirigir a palavra a outro prisioneiro qualquer.
Traian Koruga voltou as costas ao burgomestre. Os enfermeiros enrolaram-no num cobertor e levaram-no como um pacote para a ambulância. A janela da ambulância tinha uma cortina a fechá-la. Mas Traian Koruga tinha a certeza de que lohann Moritz se devia encontrar à porta da enfermaria para ver a ambulância largar. Traian Koruga sorriu em pensamento a lohann Moritz e disse-lhe: ”Adeus!”
- Dois americanos trouxeram-nos um prisioneiro louco. O médico-chefe do hospital-prisão de Karlsruhe saltou da cama, deu volta ao comutador e olhou para o relógio. Era uma hora da manhã. O enfermeiro que viera preveni-lo ajudou-o a vestir-se. O médico saiu do quarto. Estava de mau humor. Os prisioneiros só eram mandados para o hospital por grupos. No campo, esperava-se que o número dos doentes atingisse a cifra de cem para os transportarem ao hospital. Mesmo os que estavam gravemente doentes eram obrigados a esperar no campo, três ou quatro semanas, até que o numero estivesse completo e que todo o transporte pudesse então largar. No espaço de um ano só houvera duas exceções. Esta era a terceira.
- Que género de louco será este, para que mo mandem sozinho e a semelhante hora da noite? - perguntou o médico entrando no consultório.
- Um caso muito grave, sem dúvida - disse o enfermeiro. - Mas ainda não o vi. Ele vinha a dormir na ambulância. Se dois americanos se deram ao trabalho de o trazer a tais horas, é um caso sério, com certeza.
Lá fora estava frio. O médico acabava de sair da cama muito quente. Ainda tiritava ao assinar a papeleta de entrada do prisioneiro. Os dois americanos subiram para a ambulância e partiram. O médico foi-se deitar e renunciou a ver o prisioneiro imediatamente. Deu as suas instruções para que fosse transportado para a seção respectiva.
Traian Koruga não sabia onde estava. Ignorava que a ambulância tivera uma panne pelo caminho, uma panne que os atrasara até à meia-noite. Nem mesmo sabia que horas eram. Só abrira os olhos quando o tinham feito atravessar o pátio do hospital, estendido na maca. Nesse instante vira o céu azul cheio de estrelas.
”A Via Láctea” disse ele, e sorriu à grande estrada branca, alta no céu. Depois lembrou-se das palavras do burgomestre: ”Vamos mandá-lo para um hospital onde tem de ser alimentado à força”. Traian estava decidido a recusar qualquer assistência médica. ”Enquanto estiver lúcido, recuso-me a comer e a beber.”
Os enfermeiros que o tinham ouvido dizer ”a Via Láctea” riam. Puseram a maca no chão. Um deles aproximou-se de Traian e disse-lhe ironicamente:
- Chegamos à Via Láctea.
Traian Koruga não gostou da graça. Depois sentiu que lhe pegavam pelos braços e que o deitavam numa cama.
Traian Koruga olhava para o quarto em que se achava. No teto, a lâmpada estava rodeada por uma rede metálica. A janela, solidamente gradeada. Havia quatro camas no quarto. Dois doentes estavam um ao pé do outro e conversavam. Trajavam uniformes alemães.
Quando Traian entrara no quarto, na véspera, nem tinham voltado a cabeça e continuaram a falar. Ambos pareciam novos. O terceiro doente estava na sua cama, de cobertor puxado à cabeça. Traian via-lhe os grossos sapatos emergindo do cobertor. Traian perguntava como é que o doente de sapatos grossos ainda podia dormir àquela hora.
Perto da porta, havia um enfermeiro de blusa branca. Estava sentado. A sua cabeça era parecida com a do burgomestre Schmidt. Uma cabeça quadrada e maciça. Uma cabeça de pau. Todos os músculos da face estavam imóveis, mortos. Os olhares também estavam mortos e vidrados. O enfermeiro não tinha cabeça de homem morto, mas a de um homem que nunca tivesse sido vivo. O enfermeiro aproximou-se de Traian.
- Não nos queres contar uma história? - perguntou. Apertou-lhe o queixo como a um menino a quem se ralha. Traian Koruga desprendeu-se e não respondeu. - Então não nos queres contar nada! - disse o enfermeiro. - És dos que se calam. - Fez-lhe uma festinha na cara. - Se te apetece, podes continuar a divertir-te sozinho com a minhoca que tens na cachimônia.
Depois foi-se sentar outra vez na cadeira ao pé da porta.
- Meteram-me numa casa de doidos porque fiz a greve da fone. - Traian mordeu os lábios. A fadiga desaparecera-lhe. Apoderara-se dele uma vontade louca de lutar. - Estou numa casa de doidos! - murmurou. - O plano não é mal concebido. Eu nunca o tinha visto. Nem nos romances que descrevem as torturas das prisões russas. Todos os prisioneiros médicos e professores universitários do campo assinaram um certificado provando que eu estava louco. Querem provar que a minha declaração de greve é um ato de loucura. Mas há certas coisas na vida que não se determinam assim tão depressa, e sobretudo de um modo tão simples. Continuarei a lutar. - Traian Koruga cerrou os punhos... - Agora devo provar-lhes que estou lúcido - disse de si para si. Aproximou-se do enfermeiro. Cambaleava e encostava-se à parede.
- Vens para cá contar-me a tua historieta? - perguntou o enfermeiro. - Eu bem sabia que tu ma vinhas contar. - E ria. - Todos os que aqui vêm têm uma historieta a contar. Mas agora não tenho tempo para te ouvir, meu filho. Contas amanhã, ou depois de amanhã, daqui a um mês ou talvez daqui a um ano. Tens muito tempo para me contares a tua história. - O enfermeiro tinha um jornal na mão. Queria continuar a ler. - A tua cama é lá ao fundo - disse ele. - Vai para lá e fica quieto. Não te vás tu meter noutra cama. Entendeste?
- Eu queria-lhe pedir uma coisa.
- Bem sei que me queres pedir qualquer coisa - disse o enfermeiro aborrecido. - Mas agora não tenho tempo. Vai-te meter na cama. Deves ser um rapaz de juízo. Senão, apanhas uma vergalhadazinha com um vergalho que já te vou mostrar.
Tirou da gaveta da mesa um vergalho de cavalaria e mostrou-lho. Depois pô-lo outra vez no seu lugar. Traian Koruga percebeu que qualquer palavra era inútil. Tudo o que pudesse dizer nem seria escutado, e passava por fala de doido. Voltou para a cama, e estendeu-se.
”Não bastava a prisão. Agora eis-me num hospital de doidos.” Traian fechou os olhos. Quisera organizar o seu plano de ação para o dia seguinte. Mas não se sentia capaz. Adormeceu de punhos cerrados.
- Levanta-te!
Traian tremia. Mal acabara de amadorrar. Encontrava-se diante dele o enfermeiro que o trouxera na véspera, na maca, e lhe dissera que estavam chegados à Via Láctea. Trian reconhecera-lhe a voz.
- Dá-me tudo o que tens nas algibeiras.
Traian levantou-se. Meteu as mãos nas algibeiras. A mão tremia-lhe. Tirou o lenço e estendeu-o ao guarda. Depois tirou de outra algibeira o cachimbo e deu-lho igualmente. Na algibeira de cima tinha uma pequena imagem. A imagem de Santo Antão. Olhou para ela e deu-a ao guarda...
- Não tens mais nada nas algibeiras?
- Não - respondeu Traian. - É tudo o que tenho.
- Levanta os braços! - ordenou o enfermeiro.
Traian levantou os braços até à altura do peito. Tinha os olhos cobertos de um ligeiro véu e não podia levantar mais os braços.
- Mais alto! - ordenou o guarda.
- Não posso - respondeu Traian. - Sinto-me muito mal. Vou desmaiar.
O enfermeiro pegou-lhe nos braços e pôs-lhos em cima da cabeça. Traian sentia as suas próprias mãos pesadas como pedras no cocuruto do crânio. Não imaginara nunca que as suas próprias mãos pudessem parecer-lhe tão pesadas. Nem as podia deslocar.
O enfermeiro revistou-lhe as algibeiras. Traian sentia aquelas mãos estranhas passearem, não nas suas algibeiras, mas por baixo da sua pele, da própria carne.
- Podes baixar as mãos. - O enfermeiro pegou-lhe nas mãos e fê-las cair ao longo do corpo. - Tira os atacadores.
- Deixa-o em paz - disse o enfermeiro que estava de vela no quarto. - Repara: está amarelo como cera.
Traian Koruga foi estendido na cama. Os enfermeiros desapertaram-lhe os sapatos e ficaram-lhe com os atacadores. Depois despiram-lhe as calças, tiraram o nastro das ceroulas e ficaram com ele também. Depois, tiraram-lhe os óculos.
- Não me fiquem com os óculos! - disse Traian Koruga com uma voz suplicante.
Era muito míope.
- Naturalmente queres cortar as veias com os vidros?
- Não vejo nada sem óculos.
- Não tens aqui nada que ver.
O enfermeiro fez um embrulho com os óculos, o lenço, o cachimbo e a estampa de Traian Koruga. Era tudo o que ele ainda possuía neste mundo. O enfermeiro pegou naquilo e foi-se.
- Levanta-te e come!
Era a primeira manhã que passava no manicômio. Traian olhou para a marmita cheia de sopa que lhe estendia o guarda.
- É inútil... Não como.
- Se julgas que podes fazer o que te passa pela cabeça, perdes o teu tempo - disse o guarda. E pôs a marmita no chão, perto da cama, e dirigiu-se à cama do lado.
- Faço a greve da fome há seis dias - disse Traian.
- Aqui, toda a gente faz a greve da fome, meu loiro! Olha que não és o único.
O enfermeiro aproximou-se do doente que dormia, de cabeça metida nos cobertores e grandes sapatos forrados. Descobriuo. Era um velho de barba branca. Olhou amedrontado para o guarda e escondeu o rosto na almofada.
- Que me quereis? - perguntou. Depois tornou a esconder a cabeça na almofada.
- Levanta-te, tiozinho! - ordenou o enfermeiro. - Temos que te dar de comer.
Os dois doidos mais novos aproximaram-se também do velho. Estavam estreitados um ao outro como se não se pudessem separar. O enfermeiro chamava-lhes ”os Buldogues”.
- Vocês, os Buldogues, ala arriba! - gritou o guarda. Parecia falar a cães. Um dos Buldogues pegou no velho por
detrás, pelos sovacos. O outro levantou-lhe a cabeça e assentou-o sobre o traseiro.
- Devagarinho! Devagarinho! Não lhe quebrem os ossos! - disse o guarda, à galhofa.
O velho chorava. Fincara o queixo no peito e olhava obstinadamente para o sobrado.
- Abre a boca, tiozinho! - disse o enfermeiro. - A tua ama traz-te o biberão! - O velho fincara o queixo no peito e rilhava os dentes com toda a força que tinha.
- Abram-lhe o focinho, mas abram-lho devagar!
Os Buldogues puseram-se de joelhos sobre a cama, meteram os dedos na boca do velho e descerraram-lhe os queixos. Um dos enfermeiros pegou-lhe com uma mão no nariz, apertando-lhe as ventas, e com a outra meteu-lhe sopa pela boca abaixo. O doente cuspiu a sopa no peito dos Buldogues, que desataram a rir. O enfermeiro meteu a segunda colherada de sopa pela boca do velho abaixo. Dessa vez, o doente não conseguiu cuspi-la. A comida atravessava-se-lhe na goela, e tinha que engoli-la por força, a não ser que asfixiasse. Não podia respirar pelo nariz, pois as ventas estavam-lhe tapadas pelos dedos do enfermeiro.
- Ai, que eu afogo-me! - gritou ele.
A tarefa continuou. O velho gritava-lhes de vez em quando que se afogava, e esperneava nos braços dos Buldogues, que o seguravam com toda a força que tinham.
- Bem vês que assim vai bem, tiozinho! - disse o enfermeiro. O velho estava amarelo como cera. Traian Koruga tapou os olhos para não continuar a ver semelhante espetáculo. - Tens medo? - perguntou o enfermeiro. - Daqui a alguns minutos é a tua vez.
- Nós também lhe damos de comer a ele? - perguntaram os Buldogues, à uma.
- Se ele não tiver juízo também lhe metemos a comida pela boca abaixo.
Os Buldogues deixaram de olhar para o velho. Fixavam os queixos e o pescoço de Traian. Traian Koruga inclinou-se, pegou na marmita da sopa e pôs-se a comer muito depressa, sem mastigar. Quando acabou, disse:
- Aquele que se recusa a comer depois de ter sido internado num hospital de doidos, é doido. Os doidos não podem fazer a greve da fome, pois são irresponsáveis. Mas eu não sou doido. E por isso comi. O que não quer dizer que tenha deixado de combater.
”É absolutamente indispensável que lhes prove que estou em meu juízo”, pensou Traian. Estava com dores de cabeça. A comida que acabava de engolir pesava-lhe como chumbo no estômago. Mas esforçava-se por se agüentar nas pernas. Fazia a diligência para sorrir. Aproximou-se do enfermeiro.
- Eu queria falar com o médico que dirige este serviço - disse ele.
- Espera pela visita - respondeu o enfermeiro. - Então podes falar com o Sr. Doutor.
- Antes da visita, não?
- Os doentes deste serviço não têm licença de chamar o Sr. Doutor, fora das horas da visita.
- Compreendo - disse Traian. - O médico não se vai incomodar por causa de um doido. Mas juro-te que não estou doido.
- Para que te haviam de mandar para aqui, se tu não fosses doido?
- Para que eu deixe de fazer a greve da fome - disse Traian. - Já te disse. Agora comi. Não há portanto razão nenhuma para que vocês me considerem doido. Se eu me tivesse recusado a comer, podiam tomar o meu gesto por um ato de loucura e não como um simples protesto. Mas agora tudo é claro.
Traian percebeu que o enfermeiro lia o jornal sem o ouvir. Não lhe tinha prestado a mínima atenção.
- Continuas a tomar-me por um doido, mesmo depois de me teres visto comer?
A voz tremia-lhe.
- Vai-te mas é deitar, e deixa-me ler o jornal! - vociferou o enfermeiro.
- Mas se te digo que não sou doido!
- Claro... Pois claro... - disse o enfermeiro. - Agora deita-te e fica aí quietinho. Aqui é preciso ter juízo. Os meninos que não andam com juízo apanham chibatadas.
O médico não veio fazer a costumada visita durante toda a manhã. Perto do meio-dia, um dos Buldogues veio, trazido por um enfermeiro. Levaram-no meia hora depois, estendido numa maca, e depuseram-no a meio do quarto. As ventas rolhadas de algodão em rama arfavam-lhe. Tinha a testa pálida. Uma espuma esverdeada corria-lhe da boca, como nos cães raivosos. Os beiços tremiam-lhe.
- O que é que lhe fizeram?
O outro Buldogue dava gargalhadas ao ver sacudido de espasmos o corpo têso do seu amigo. O peito alteava-se-lhe como um fole de forja. Os músculos das mãos e das pernas tremiam-lhe sozinhos, como que separados do resto do corpo. A pele tomara outra cor. Já não era a pele de um homem vivo. A espinha dorsal estava hirta, com a rigidez das coisas mortas. Os próprios espasmos que a sacudiam já não pertenciam à vida. Eram espasmos automáticos de boneca mecânica. A única coisa que tinha de vivo era aquela escuma esverdeada que lhe corria da boca e se lhe espalhava no peito, e daí na lona da maça.
- Que fizeram ao Buldogue? - perguntou Traian outra vez.
- Nada - respondeu o enfermeiro. - Injeções.
- Que gênero de injeções? Por que é que esperneia assim?
- Não sejas curioso, meu rapaz! - disse o enfermeiro. - Também tas havemos de dar. E não será além de amanhã
- Amanhã? - Traian Koruga olhou para o corpo que se debatia na maça.
- Admiras-te? - disse o enfermeiro. - Não acreditas? Aqui toda a gente tem que levar injeções. - Mudou o algodão do nariz do Buldogue e deu-lhe um beliscãozinho na cara. O Buldogue não reagiu. - Mesmo que o cortasse aos bocados com uma navalha, ele não sentia nada. Enquanto tem a crise, não sente nada. Vocês precisam todos de injeções. Fazem mexer os nervos. Olha a linda ginástica que eles fazem...
Traian ergueu-se na cama, com a cara entre as mãos. A porta abriu-se. Traian estremeceu. Mas não era o médico. Era um enfermeiro que vinha buscar o segundo Buldogue. Pegou-lhe pelos braços e saiu do quarto com ele. Pouco tempo depois, levaram o outro Buldogue para o quarto e depuseram-no no meio da casa, na maça, ao lado do amigo. Tinha o mesmo rolho de algodão no nariz e a mesma escuma branca e verde na boca, a tal escuma de cão raivoso. O corpo debatia-se-lhe aos sacões. O velho também foi levado, e trazido alguns instantes depois na maça. Traian olhava para os três corpos que se debatiam com o mesmo ritmo, embora estranhos uns aos outros.
- Que qualidade de injeções são essas?
- Cardiazol - disse o enfermeiro. - Choques nos nervos. Isto sacode o cérebro a vocês e espalha o nevoeiro do sótão.
O enfermeiro desatou a rir. Traian olhou de novo para os três corpos estendidos a seus pés. Os estremeções pareciam mecânicos. Como movimentos de robotos. As ventas dilatavam-se e estremeciam com os mesmos intervalos, ao mesmo ritmo e intensidade. Os peitos erguiam-se e baixavam-se como os pistões de uma máquina. Toda a vida que ainda permanecia em tais corpos ficara reduzida aos movimentos automáticos dos músculos. A vontade, os instintos, o espírito, tudo estava morto. Já não havia senão puro reflexo mecânico. O reflexo fora simplificado e transformado em espasmo. Traian Koruga teve a visão da vida humana na sociedade técnica contemporânea.
O quarto em que se encontravam crescera desmedidamente até conter toda a Europa, todo o Ocidente, toda a Terra. No quarto já não estavam só aqueles três homens reduzidos aos seus puros reflexos até se identificarem com os robotos, mas todos os homens da Terra. Era uma visão estúpida, exagerada. Mas obcecava Traian. Parecia-lhe ver o burgomestre Schmidt do campo de Kornwestheim dançar com o mesmo ritmo diabólico. E com ele o Tenente Jacobson, e o governador Brown, e Samuel Abramovici, e todos os outros dançavam ao mesmo ritmo de Jazz, de máquina, de choque provocado pelas injeções de cardiazol. Uma sociedade inteira debatia-se nos mesmos espasmos. Traian tapou os olhos e gritou: ”Não quero! Não quero!”
- Na sua ficha individual não consta nada sobre a sua pretensa greve da fome. - O médico fitava-o, suspicaz. - Se você tivesse feito a greve da fome, havia de constar da ficha. Em vez disso, leio. ”Perturbações mentais, obsessão do suicídio, mania da perseguição”. E é tudo. Absolutamente nada, pelo que toca à greve. A greve é um ato lúcido e consciente. Mas não está aqui consignada. O seu diagnóstico foi assinado por dois professores universitários. Duas sumidades da medicina alemã. Em quem quer você que eu acredite? Em si, ou nos dois professores? - O médico estava convencido de que Traian inventara do princípio ao fim a sua história. - Você tem a certeza de que sua mulher foi detida também? - perguntou. - Por mim, seria levado a crer que você nem sequer é casado. Onde tem a aliança?
- Confiscaram-ma nas buscas no campo.
- É possível - disse o médico. - Mas não tenho prova alguma. Devo cingir-me ao que diz a sua ficha médica. Não se zangue, mas até prova em contrário sou obrigado a partir das seguintes premissas: sua mulher não está presa, você talvez nem sequer seja casado, seu pai não morreu no campo de concentração e você não foi preso sem motivo. Sou obrigado a abstrair de tudo o que me possa contar.
Traian Koruga pensava: ”Como se pode provar a alguém que não está bom da cabeça? Cada movimento, cada palavra que considerássemos até este instante como perfeitamente normal, torna-se, desde que o sujeitemos à análise, típico gesto de louco. As mesmas palavras, as mesmas frases, as mesmas opiniões que na vida corrente parecem normais, e mesmo inteligentes, tornam-se, num manicômio, sintomas de loucura. As fronteiras entre o estado normal e a loucura não podem precisar-se. Mas eu devo provar, custe o que custar, que não sou louco!”
- Doutor, peço-lhe, por tudo quanto há, que me ajude!
- Que posso eu fazer?
- Acreditar em mim!
- Isso adianta-lhe pouco - disse o médico.
- Eu não lhe peço que me diga que me acredita, mas peço-lhe que realmente me creia - disse Traian. - E pedia-lhe também que me submetesse a um exame médico rigoroso.
- Esse seu último pedido é perfeitamente inútil. O exame médico é obrigatório - disse o doutor. - Quanto à primeira, não. Eu sou homem de ciência. Só acredito naquilo que verifico. Não posso acreditar sem provas.
- Creia-me como homem!
- Sou homem de ciência - repetiu o doutor, acentuando cada palavra. - A minha consciência profissional proíbe-me de crer em alguém debaixo de palavra, sem provas à vista.
Traian foi sujeito a um exame médico. Fizeram-lhe uma colheita de sangue nas veias dos dois braços. Depois, segunda colheita de sangue, desta vez nas cabeças dos dedos. Depois outra ainda, de novo no braço; e essa, mais importante. Traian dava o seu sangue com resignação. O homem deve dar sangue sempre. Sempre. Em toda parte. Mas aquilo não fora suficiente, deram-lhe uma picada atrás da cabeça na nuca, para lhe extraírem algumas gotas do líquido cefalorraquídio. Traian suportara a dor. Doera-lhe muito. A operação repetira-se. Traian estava resignado. Sabia bem que o Homem deve pagar também com o cérebro, e não com o sangue apenas. Senão, contestam-lhe o direito de viver.
Tinham-lhe excitado as glândulas. Haviam-lhe extraído as mais íntimas secreções, postas em placas de vidro e analisadas à luz de lâmpadas. A urina, a saliva, os sucos das diversas glândulas do intestino, tudo fora examinado ao microscópio, metido em provetas, pesado e destilado no laboratório da prisão. Os médicos tinham-lhe radiografado os pulmões. Depois, a cabeça. Todo o esqueleto, osso por osso e articulação por articulação passara no Raio X. Os médicos procuravam a ferida que havia provocado o grito do Homem em busca de justiça. A ferida ocultava-se alhures, mas os médicos teimavam em procurá-la no corpo de Traian, nos pulmões, nos ossos, no cérebro, no sangue, na medula. Traian deixava-os andar. Depois, tinham-lhe examinado um a um os músculos e todos os nervos, para verem as reações. Os joelhos, as mãos, o estômago, tudo foi revistado. Tinham-lhe palpitado o coração. Tentaram surpreender o menor movimento anormal dos pulmões. O ouvido do médico auscultara-lhe todos os movimentos secretos do sangue.
O corpo de Traian fora pesado. Depois tinham-lhe medido a estatura, o perímetro do peito, os ossos, os braços, as pernas. Mandaram-lhe abrir a boca, viram-lhe os dentes, contaram e percutiram. O sangue fora examinado como um prato de comida que não está lá muito fresco... Todo o corpo de Traian fora examinado como um objeto sobre que paira a sombra de uma dúvida. Pode-se utilizar isto ou não?
Depois teve de sujeitar-se ao interrogatório psiquiátrico. O médico discutira com ele de manhã, ao meio-dia, à tarde e, algumas vezes mesmo, à noite. As suas respostas às questões mais anódinas haviam sido cuidadosamente anotadas. Os médicos procuravam nelas os sinais da loucura com os detetives os indícios do assassinato na residência da vítima. Haviam incitado Traian a falar da sua infância, de sua mãe, de suas irmãs, de seu pai e das mulheres que conhecera. Traian Koruga, que conhecia os caminhos submersos na noite do subconsciente, as vias ocultas e sombrias que os médicos procuravam, ajudara-o o melhor que pudera. A alma de Traian fora completamente dissecada, desnudada, aberta com um armário cheio de fatos velhos e de roupa encardida. Os médicos tinham lá metido o nariz, sem náusea, à força de verem e cheirarem todas as pregas dessa vida oculta, íntima. Enfim, o exame acabara.
- O senhor está são como um pêro! - dissera o médico. - Nada, a não ser complexos inevitáveis, subalimentação, avitaminose e peso abaixo do normal. A não ser isso, tudo em ordem. Um pouco de anemia. As suas articulações estão inchadas por falta de alimentação. Os dentes sofrem pelas mesmas razões. O pulso está irregular devido ao enfraquecimento do organismo; algumas manchas inofensivas nos pulmões e um pouco de reumatismo. Mas isso são males vulgares e sem importância.
- O Sr. Doutor está portanto convencido de que não sou louco? - perguntou Traian. Sentia-se fatigado. Tão cansado como Jesus no Monte das Oliveiras. - Peço-lhe que me mande dar alta do manicômio quanto antes.
- O senhor vai ser internado na seção médica - disse o doutor. - Está muitíssimo fraco.
- Quero voltar para o campo! - disse Traian.
- O que pede não é razoável.
- Quero que me mandem o mais depressa possível para o campo!
Uma semana mais tarde, Traian Koruga achava-se de novo no campo. Voltara munido de todos os papéis que certificavam que não estava nem estivera louco. Os olhos brilhavam-lhe de alegria e de vitória. Mas todo o corpo lhe estremecia como uma sombra feita de sofrimento e de lassidão...
- A detenção automática é um método, mas não pode constituir motivo de detenção - disse Traian Koruga. - Para meter um homem na prisão, para o tratar como um criminoso e matá-lo por meios mais ou menos lentos, é preciso ter um motivo qualquer. É preciso que esse homem seja reconhecido culpado. E em que sou eu culpado? Em que é que minha mulher é culpada? Que crime cometeu meu pai? Que fez lohann Moritz? No mesmo instante em que vos fiz esta pergunta, com um desespero absolutamente normal, depois de ter estado na prisão quinze meses, os senhores consideraram o meu grito como uma crise de loucura. A partir do momento em que a sede do Homem pela Justiça e pela Liberdade é tachada de loucura, o homem já não existe. Pode ter a civilização mais envolvida da história mas essa própria civilização já lhe não serve de nada.
O Tenente Jacobson acendeu um cigarro. Tinham mandado chamar Traian Koruga à secretaria logo que ele voltou do manicômio. Agora lamentava-o.
- Vocês, os europeus, tomam tudo ao trágico - disse o Tenente Jacobson. - Parece até que não sabem fazer outra coisa.
- Pode ser que o Sr. Tenente tenha razão - disse Traian, - É um defeito, sem dúvida. Mas assistir de sorriso nos lábios à tragédia, às convulsões do Homem, isso é infinitamente mais grave, incomparavelmente mais grave... É muito mais que um simples defeito ou que uma simples falta.
- Tentei fazer alguma coisa por si - disse o Tenente Jacobson. - Mas não me foi possível. Pedi que o senhor fosse posto em liberdade...
- Estou convencido de que o Sr. Tenente fez o melhor que pôde, mas isso não serve para nada - disse Traian. - O senhor não pode, não poderá conseguir nunca nada. Nenhum homem poderá de ora avante conseguir libertar outro, ou libertar-se a si próprio. O Homem, daqui por diante, está em minoria, e de pulsos ligados. Já não pode fazer nada por si nem pelos seus semelhantes. O Homem tem grilhões mecânicos. O senhor também os tem. Os grilhões da burocracia técnica pendem-vos das mãos e das pernas. É tudo o que a civilização ocidental comtemporânea ainda nos pode oferecer, a nós homens: grilhões!
- Vá até ao campo - disse o Tenente Jacobson. - Repouse. Take it easy! E sobretudo não faça asneiras.
- Não me resta senão fazer o que a sociedade técnica ainda permite ao Homem.
- Lá está o senhor a cair outra vez na sua neura! - disse o Tenente Jacobson. - Não gosto de lhe ver esse ar. Quer um cigarro?
- Com muito gosto. - Traian tirou um cigarro. Depois perguntou: - O senhor não tem a impressão, Tenente Jacobson, de que somos todos espectadores que teimamos em ficar na mesma sala, mesmo depois de o espetáculo acabado? Semelhante teimosia não serve para nada. Havemos de ser todos postos na rua. Todos os que cá estamos, todos, até ao último. A sala tem que ser arejada. É preciso levantar as cadeiras. Os Continentes têm de ser arejados. Dentro de poucos instantes, vai começar outro espetáculo. A história continuará o ciclo das suas representações. Ontem eram ”as Petições” que estavam afixadas; as Petições, isto é, os gritos súplices do homem pedindo aos cidadãos das repartições que o deixem viver. Mas a Petição pela qual o Homem condenado à morte pedia para ser indultado foi rejeitada. Nem foi lida sequer. O espetáculo não teve êxito algum. Não tinha happy end. Amanhã, ensaio geral de uma peça cujo título é: O Baile Mecânico. É um espetáculo sem homens. A cena não terá senão Robotos, Máquinas e Cidadãos sem caras. Mas já não estarei cá para ver a peça. O espetáculo começa tarde demais para eu poder assistir. O senhor, sim, que há de ter camarote reservado. Mas só para as primeiras representações. Vá, vá lá... E divirta-se! Não se esqueça de que o camarote ficou reservado para si só pelo começo da época...
Traian Koruga deixou o cigarro aceso no cinzeiro que estava em cima da mesa da secretária do Tenente, e abandonou a sala.
Traian Koruga encontrou lohann Moritz à entrada do campo, perto da porta. Moritz estava muito triste. Mal descobriu Traian, desatou a chorar.
- O quê?! Mas será mesmo o senhor?! Pensei que nunca mais o tornaria a ver.
- E tinhas pena?
- Até à morte - disse lohann Moritz estreitando-lhe as mãos. - Nem sequer lhe pude dizer adeus quando o senhor se foi. eles não me deixaram entrar na enfermaria. Fiz tudo para lá ir. Onde é que eles o meteram?
- Com os doidos - disse Traian.
lohann Moritz tapou a boca com a mão, fixando Traian.
- Não é possível! Num hospital de doidos?!
- De doidos, sim. Trouxe de lá tabaco para fumar.
Traian desatou os nós do lenço, que ainda tinha umas prumas de tabaco.
- Fecharam-no lá? Pobre senhor Traian! Sentaram-se ambos na terra ardente, perto da porta do campo, e fizeram cigarros. Moritz ainda não estava em si de tamanha surpresa.
- Sempre gostaste muito do meu cachimbo - disse Traian. - Não é verdade?
- Quando temos um cachimbo, ao menos há sempre a certeza de ter alguma coisa para fumar - respondeu Moritz. - Pode-se lá meter todo o cotão e todas as nisquinhas de tabaco com que se não enrola um cigarro. Por isso eu tenho pena de não ter um cachimbo. No campo não há cachimbos; é duro de roer...
- Dou-te o meu - disse Traian Koruga estendendo a lohann Moritz o cachimbo que trazia há mais de um ano consigo e que tinha sempre na boca, embora a maior parte do tempo não tivesse nada para lhe meter.
- Não é possível - disse Moritz. - No campo, um cachimbo é um tesouro. E com que é que o senhor há de agora fumar?
- Não fumo mais. É o meu último cigarro.
- O médico proibiu-o de fumar?
- Não, não proibiu. Sou eu que não quero fumar mais. lohann Moritz pegou no cachimbo e pôs-se a carregá-lo.
- Obrigadinho! - disse ele. - Mas se um dia o senhor tornar a fumar, torno-lhe a dar o cachimbo. Pode contar com ele. Só o aceito se o senhor não fumar mais.
- Não; com certeza não fumo. Moritz sorriu.
-Também eu disse de mim para mim muitas vezes que não tornava a fumar. Mas não me pude agüentar. Não é fácil deixar o tabaco.
- Bem sei - disse Traian. - Mas agora é de vez.
Traian Koruga acendeu o cigarro e lohann Moritz o cachimbo. Fumavam ambos em silêncio. Traian tirou os óculos e olhou-os atentamente, afetuosamente. Eram óculos de tartaruga. Olhava para eles como se se fossem separar brevemente. De todos os objetos pessoais que trazia habitualmente consigo, só lhe restavam os óculos. A bolsa de tabaco, a aliança, o porta-moedas, a caneta e o lápis tinham-lhe sido sucessivamente confiscados. Só tinha os seus óculos. A cruzinha que usara até há pouco ao pescoço pusera-a ao peito do pai, à hora da morte, para que ele fosse enterrado com ela. Os padres ortodoxos deviam ser enterrados com casula revestida e uma relíquia ao peito. Seu pai não pudera ser paramentado de casula antes do enterro. Ao expirar, ainda usava uma blusa americana com as iniciais P. W. inscritas nas costas e nas mangas. Nem sequer tinha camisa, pois a camisa acabara de ser lavada e ainda não estava enxuta. lohann Moritz lavara-a durante a manhã, e, mal acabara de morrer, o padre fora levado tão depressa da tenda, que Traian não tivera tempo de ir buscar a camisa e de lha vestir. Mas escondera-lhe entre a blusa a cruzinha que trazia ao pescoço. Seu pai fora enterrado com aquela cruzinha. Talvez tivesse sido queimado com ela no forno crematório.
E, agora, Traian só tinha os seus óculos. Era a última coisa que ainda possuía, além da sua própria pessoa: o seu corpo e os seus óculos. Eram os únicos objetos materiais que conseguira salvar e guardar, da sua vida anterior. E agora olhava para os óculos e examinava-os com uma sombra de pena e de melancolia. Depois, estendeu-os a Moritz.
- Queres ficar com os meus óculos?
- O senhor, agora, já pode ver sem óculos? - perguntou Moritz, que sempre pensara que era um duro castigo e uma carga pesada para alguém ter de usar toda a vida um par de óculos. Moritz folgava sinceramente de que Traian não precisasse mais de óculos.
- Não! não vejo sem óculos - disse Traian. - Mas descansa-me mais. Eu nunca mais os uso.
- Sempre me admirei de lhos ver no nariz todo o dia. O senhor só à noite tirava. Nunca o tinha visto sem óculos.
- Se chegares a ser solto antes de mim, peço-te que leves estes óculos a minha mulher - disse Traian. - Talvez não a possas encontrar logo, logo. Mas guardas-mos sempre contigo. Não podes saber quando a tornarás a encontrar, nem aonde. Talvez vocês se vejam mais tarde, na Romênia. Cautela, não mos partas!
lohann Moritz pegou nos óculos e olhou para eles. Tinha a impressão de que Traian lhe escondia qualquer coisa. O fato de lhe ter dado o cachimbo e os óculos era significativo.
- Não tenhas medo, Moritz - disse Traian. - Quero simplesmente que me guardes os óculos. Eu, por mim, não os tornarei a usar, mas não quero que caiam em mãos de estranhos. Foi por eles que vi tanta coisa na vida! Compreendes agora por que estimo tanto os meus óculos? Foi com esses óculos que vi pela primeira vez minha mulher. Foi com eles que vi milhares e milhares de cachopas. Com eles apreciei quadros, estátuas, museus, vi cidades... Foi com eles que olhei para o céu, para o mar, para as montanhas, que li, noites e noites, centenas e centenas de livros. Foi com esses óculos que vi meu pai morrer. Foi com eles que vos vi, a ti e aos mais amigos. Foi com esses óculos que vi a Europa desabar, os homens morrerem de fome, serem feitos prisioneiros, definharem nos campos de concentração. Foi com esses óculos que vi santos homens e loucos. Com eles vi morrer um continente com todo o seu peso de homens, de leis, de crenças e de esperanças; morrer sem saber que morria - fechado nos campos e nas leis técnicas de uma sociedade regressada à rigidez barbárica. Esses óculos, meu caro Moritz, são como que os meus olhos. Às vezes até chego a confundi-los. São inseparáveis. Foi com eles que vi tudo o que havia para ver até chegada esta hora. De hoje em diante, não quero ver mais nada. Estou cansado. O espetáculo durou demais. Se eu o conservasse ainda, não poderia ver mais senão ruínas, homens em ruína, países em ruína, igrejas em ruína e esperanças em ruína. É com eles que vejo a minha própria ruína. As ruínas das ruínas. Não sou um sádico. Não as posso encarar. Não posso suportar não ter para ver senão ruínas, ruínas por toda a parte.
”Por cima das ruínas, os novos pioneiros puseram-se em marcha. São os Cidadãos deste novo mundo que surgiu agora na história. Constróem a um ritmo louco. Para edificarem a sua civilização, começaram pelas prisões. No fim de contas, é lá com eles. Pessoalmente, não me sinto capaz de construir em sua companhia. Devia continuar toda a vida a ser um espectador. Mas viver como simples espectador, isto é, como Testemunha, é o mesmo que não viver. A Sociedade Técnica Ocidental não oferece aos homens senão lugares de espectadores. ”Amarga ironia! A única coisa que ainda me não confiscaram nas buscas foram os meus óculos, o que indica claramente a única atitude que ainda me é permitida. Em certas ocasiões, pareceu-me que os soldados eram generosos deixando-me ter os óculos. Mas não era generosidade. Era sadismo. Porque eles não me limitaram apenas ao meu papel de espectador: indicaram-me também o que eu tinha para ver: os Campos. Não tenho licença para ver outra coisa, a não ser campos, soldados, quilômetros e quilômetros de arame farpado. E aqui está por que é que renuncio aos óculos. Renuncio à única coisa que ainda me era permitida na terra. Os óculos, como os olhos, são uma das coisas mais maravilhosas, inigualáveis da terra. Mas com a condição de ser em vida. Quando já não há vida, ou quando nos não restam mais que umas gotas de vida, ou um acesso temporário e limitado à vida, os óculos tornam-se uma sinistra brincadeira. Algum dia viste um morto usar óculos?
- Mas o Sr. Traian não está morto!
- É a única esperança que conservamos ainda, a de não estarmos mortos de todo. Mas a esperança não pode substituir a vida. A esperança é uma erva que até brota entre os túmulos.
- Mas nós ainda temos vida. Sr. Traian! - disse Moritz.
- Acreditamos e esperamos estar ainda na vida.
lohann Moritz olhou demoradamente para Traian. Lembrou-se de que ele acabava de sair de uma casa de doidos. Ele mesmo lho dissera.
- Não tenhas medo, meu velho Moritz! - disse Traian. - Eu não estou doido. Era pena se também me tivesses por doido. Pretendes que estou ainda com vida porque quando eu já não tivesse vida me havias de ver morto. Vias-me as pálpebras fecharam-se, o coração deixar de bater e todo o meu corpo esfriar. Vias o meu cadáver. Mas, meu velho Moritz, há certos mortos que não deixam cadáver atrás deles. Os Continentes morrem e não deixam cadáveres. As Civilizações morrem e não deixam cadáveres. Nem as Religiões nem as Pátrias. Os homens, também, morrem às vezes antes de terem podido provar a própria morte pelos seus cadáveres. Compreendes-me?
lohann Moritz desatou a chorar.
- Por que choras, meu velho Moritz?
- O Sr. Traian está doente...
- Queres dizer que divago e estou doido?
- Não, não quero dizer isto, Sr. Traian! Como é que eu podia dizer tal coisa?
- Tu achas que eu estou doido - disse Traian. - Aqui está por que choras. Mas tu choras em vão. Não estou doido, meu querido Moritz. Estou mais lúcido que nunca.
- Será verdade, Sr. Traian?
- Absolutamente verdade, Moritz; eu estou lúcido.
- Eu não acreditei que o senhor estivesse doido, mas disse cá comigo que estava mal da cabeça - disse lohann Moritz. - O senhor esteve tantos dias sem beber nem comer... E lá onde o senhor esteve, quem sabe se o torturaram... Está tão pálido... Nunca pensei que o senhor estivesse...
lohann Moritz evitou pronuciar a palavra ”doido”.
Traian Koruga enrolou outro cigarro e pensou que os homens que sofriam do desmoronamento da cultura ocidental se desmoronavam e desapareciam ao mesmo tempo que ela. Os que assistiam a esse desmoronamento ficavam estranhos ao drama. Ou pertenciam a uma civilização mecânica, como Jacobson. por exemplo, ou eram seres primitivos como lohann Moritz, que ainda estão na fase dos instintos e das superstições, e o tomavam igualmente por doido. Os homens não tinham nada que ver com a Europa. lohann Moritz, como Jacobson, tomava o homem chegado aos limites dos sofrimentos espirituais como um louco.
A única que poderia inteirar-se de que ali não se tratava de loucura mas de um sofrimento que atingira os seus últimos limites, era sem dúvida Nora, sua mulher. Só ela estava segura de sobreviver àquele drama, porque tinha o treino hereditário de milhares de anos de escravidão e de humilhações. A sua raça habituara-se à escravidão do sofrimento no Egito, quando construíra as Pirâmides; sofrerá as perseguições religiosas na Espanha, os pogroms na Rússia, os campos de concentração na Alemanha. A raça de Eleonora West ia resistir inclusivamente à nova civilização técnica, e Traian Koruga congratulava-se, por causa de Nora. Sorriu e disse:
- Acende o teu cachimbo, Moritz, e vai guardar os óculos na tenda. Bem sabes que quando os deres a minha mulher não lhos deves dar partidos.
- Vou já, Sr. Traian.
E lohann Moritz partiu com o seu passo vagaroso, os ombros um pouco arqueados, puxando pelo cachimbo.
Traian Koruga tinha a impressão de ver lohann Moritz atravessar, não o pátio do campo, mas os séculos da história, com o mesmo passo abstrato, estranho a tudo o que o rodeava, com suas raízes profundas fincadas na terra e os olhos fitos no milagre incessantemente renovado do céu azul - sem nunca perguntar por que é que o céu era assim tão azul.
- lohann Moritz e Nora West hão de sobreviver à Europa - pensou Traian. - Chegarão mesmo a viver na Sociedade Técnica Ocidental. Mas não poderão lá viver muito tempo. Talvez assistam ainda às primeiras representações. E depois da desaparição dos últimos homens, dos mais fortes, os robotos de leste, de oeste, do norte e do sul hão de povoar a terra...
lohann Moritz desapareceu entre as tendas. Traian Koruga pôs-se de pé, atirou com o cigarro e dirigiu-se para a porta central do campo. Os prisioneiros não tinham licença de entrar no pátio que dava para a entrada principal. Traian Koruga bem o sabia mas continuava a marchar até mais longe, com o mesmo passo firme - nem muito vagaroso, nem muito apressado. Era o passo com que se entra em casa à noite, ao cabo de um dia de trabalho, quando nos podemos permitir o luxo de não ter pressa, mas ao mesmo tempo decidido a não tardar de mais.
Os prisioneiros do pátio - e havia sempre três ou quatro mil - perceberam que um detido entrara na área proibida. Aproximaram-se do arame farpado para verem melhor. Julgavam tratar-se de algum amanuense do comando ou de algum médico. Só esses tinham licença para ultrapassar a barreira. Os prisioneiros queriam a todo o custo ver o que se ia passar. No campo, nada acontecia que não fosse observado e visto avidamente por alguns milhares de olhos. Os olhos obrigados a ver todos os dias as mesmas coisas procuravam febrilmente toda a circunstância imprevista, por mais pequena que fosse, contanto que saísse do vulgar. É uma necessidade primordial do espírito humano escapar ao automatismo e encontrar o elemento inédito e pessoal, o elemento característico e singular da vida. Um prisioneiro que passa pela álea proibida, eis um fato digno de ser atentamente olhado. Era um acontecimento. Mesmo que o prisioneiro tivesse direito a tanto, na qualidade de furriel ou de médico, o espetáculo ainda assim valia a pena ser visto, e os prisioneiros conferiam-lhe todo o interesse que merece um ator em cena, pelo fato de cumprir um ato vedado à massa do público.
Traian Koruga sabia-se seguido por milhares de olhos. Sabia mesmo que as sentinelas polacas que estavam nas torres de vigia e dominavam a barreira de arame farpado o deviam olhar espantadas, perguntando aonde diabo ele iria. Traian Koruga não olhou, nem para os prisioneiros que o seguiam com os olhos, nem para as sentinelas polacas diante dele, lá em cima acaçapadas nas torres. Marchava direito em frente. Não ia apenas com o passo firme e bem ritmado do homem que está furioso, decidido a passar através de todos os obstáculos. O seu passo era ao mesmo tempo firme e elástico, como quando marchamos por gosto.
Traian Koruga não tinha prazer algum em marchar, mas sabia bem que aquilo que estava a fazer tinha um sentido: que o seu passo não era duro nem monótono como os movimentos das máquinas ou dos homens lançados numa corrida cega pela força das suas paixões. O passo de Traian Koruga não era o de um fanático.
Traian marchava com os olhos bem abertos: via muito mal sem óculos. Mas os olhos do coração e do espírito tinha-os esbugalhados e via o seu caminho, o sentido do caminho, a alegria e o drama do caminho. Quem soubesse ver, lia ainda nos passos de Traian, naqueles passos dados na areia, em direção ao arame farpado e às sentinelas, uma tristeza profunda, porém discreta e oculta. Era a tristeza dos seres que partem de si e se afastam de suas casas. A tristeza dos marinheiros quando o navio se faz ao largo. Quem soubesse ver, poderia ler tudo isso nos passos de Traian. Tudo isso estava escrito na traça que os passos deixavam na areia. Mas os olhos que poderiam ler isso não estavam ali. Os olhos das sentinelas polacas e os dos prisioneiros viam simplesmente Traian Koruga aproximar-se cada vez mais do arame farpado.
Contudo, era isso que Traian Koruga fazia. Os prisioneiros puseram as mãos em pala sobre os olhos para observarem melhor todos os movimentos de Traian. Alguns chegaram o punho à boca, ansiosos por verem o que se iria passar, na atitude que tomariam assistindo a um match palpitante, a um filme sensacional, ou lendo um romance policial.
O polaco da torre de vigia não acreditava no que via. Talvez que também levasse a mão à boca, mas a mão agarrava uma espingarda. Quando levantou o braço, a coronha acompanhou o movimento. Lembrou-se então de que, quando um prisioneiro se aproxima do arame farpado, o dever da sentinela é atirar. E encostou o dedo ao gatilho. O tiro partiu. O polaco apercebeu-se de que cometera uma falta: atirara sem apontar. E quando se faz fogo com uma espingarda a primeira coisa é fazer pontaria. É do regulamento, e ele bem o sabia. O seu subconsciente contava com isso também. E aqui está por que automaticamente, reparou a falta cometida, e antes de atirar segundo tiro, pôs a arma à cara e alvejou aquele homem.
Traian ouviu o primeiro tiro soar. E, logo a seguir, o segundo. Viu um clarão ziguezaguear-lhe diante dos olhos e sentiu-se invadido por uma fadiga que o aquecia todo, a mesma fadiga que nos toma de inverno, num quarto aquecido, depois de havermos bebido um bom grogue a ferver. Sentia correr-lhe nas mãos qualquer coisa de quente. Depois o corpo cambaleou e caiu na terra ardente, ao pé do arame farpado. Caiu sem bulha, como um sobretudo que se desprende do cabide e cai em monte no chão. Traian sentiu uma piedade imensa por aquele corpo que dava flàcidamente em terra. Aquele corpo era o seu melhor amigo. Só agora via bem quanto o amava. Depois pensou em Nora e em seu pai, os amigos que tinha pelas mesmas razões que o corpo. A imagem de Nora, a imagem de sua mãe, a de lohann Moritz, a do Delegado Damian e algumas outras com elas, depois de haverem ocupado ainda um momento o seu espírito, caíram como quadros que se desprendem da parede quando se tiram os pregos de que estavam dependurados. Os quadros que representavam as imagens para ele mais queridas caíram por terra ao mesmo tempo que o corpo de Traian Koruga e amontoaram-se uns sobre outros. O espírito já os não podia reter frente aos olhos. Estava já sem forças. A última coisa que ficou ainda direita um instante, a última que se recusava a cair, era a sua cabeça. A cabeça ainda estava erguida do chão. Mas, alguns instantes depois, a fronte de Traian Koruga fez-se pesada também. Encostou a face à terra quente e tentou agarrar-se ainda a qualquer coisa. Mas a sua memória, como uma bandeira, cobria com as pregas os quadros de outrora e o corpo, flácido agora, que o sangue abandonava.
Traian Koruga sabia o que tinha a dizer, mas não o disse. Era uma prece. Uma prece de que gostava. Mas a oração estava destinada também, como tantas coisas na vida, a quedar sem expressão. Não era muito longa, contudo. Se tivesse vivido alguns instantes ainda, apenas mais uns instantes, talvez pudesse dizê-la:
Erde, du Liebe, ich will...
Namenlos, bin ich zu dir entschlossen - von weit her (1).
A face e os lábios de Traian colaram-se à terra quente num gesto de ternura, um gesto de amizade, de total abandono, de amor. Tudo era solene, perfeito, pois tudo se desenrolava simplesmente, com a majestosa lentidão de um fogo que se extingue. No pátio do campo, lohann Moritz, que quisera gritar, levou a mão à boca e conteve-se. Não era preciso gritar. Baixou os olhos e fez o sinal-da-cruz.
Quatro dias depois da morte de Traian Koruga, lohann Moritz recebeu uma carta de Susana.
Carta de Susana a lohann Moritz:
”Querido lani,
”Pensavas talvez que eu tivesse morrido. Há nove anos que não temos notícias um do outro. Muitas vezes pensei que tu tinhas morrido. Quis mandar rezar responsos na igreja por ti, como se faz pelos mortos. Mas sempre, à última hora, evitava fazê-lo. O coração dizia-me que tu não estavas morto. Agora estou contente por não ter mandado dizer missas por tua alma, pois é de mau agoiro mandar dizer missas por alma de quem não está ainda morto.
(1) ó Terra, ó bem amada,
Entrego-me a ti sem regresso,
Eu, o desconhecido, que de muito longe aqui vim.
O Sr. Perusset, da Cruz Vermelha Suíça, deu-me a tua direção. Disse-me que estavas concentrado há quatro anos. Depois de ter dado graças a Deus por te ter conservado a vida, rezei-lhe para que fosse servido abrir os olhos dos que te conservam na prisão sem teres feito mal nenhum, pois bem sei que não és ladrão, nem criminoso, e que te aferrolharam sem razão. ”Tenho muitas coisas para te dizer. Durante estes nove anos passaram-se muitas coisas. Mas não há espaço numa carta para te poder contar tudo. Vais ficar zangado quando souberes que estou agora na Alemanha, que deixei a casa, a terra e tudo o que tínhamos lá, e que estou criando os pequenos entre-meio de estranhos. Por isso te hei de contar como se passou tudo.
”Tu fôste-te no segundo dia de Pentecostes. Os vizinhos da aldeia disseram-me que tinham visto os guardas levarem-te, de espingarda às costas. Eu não lhes dei ouvidos porque sabia que não eras culpado de nada e que não havia razão nenhuma para que te fechassem e te levassem como um criminoso, de baioneta apontada aos rins. Quatro semanas depois da tua partida cozi pão quente e esperei-te. Sabia que ias voltar cheio de fome e de sede. Quando o pão ficou duro dei-o às crianças e cozi mais, para que tivesses pão fresco ao voltar, pois, não sei por quê, o coração dizia-me que havias de voltar. Todos os dias te esperava. Pensava que vinhas à noite e deixava a porta aberta para que não esperasses até que eu te fosse abrir. Bem sabia que virias cansado, com os pés a doer, e por isso te não queria fazer esperar à porta. mas tu, querido lani, não voltaste. Não cozi mais pão para ti; não tinha mais farinha; mas continuei a esperar-te todos os dias.
”Um belo dia, pelo Espírito Santo, o guarda veio-me dizer que tu eras judeu e que tinha de tomar posse da nossa casa. E, para eu poder lá continuar com os pequenos, deu-me um papel a assinar. Um papel de divórcio. Assinei. Mas não me divorciei e esperei-te como de antes. Quando os russos vieram, fuzilaram o Pé. Koruga e os melhores cá da aldeia. Eu e tua mãe, Aristitza, nessa mesma noite, pegamos no padre, que ainda não estava morto, tiramo-lo da fossa do concelho e quisemo-lo esconder na floresta. Pelo caminho encontramos uma coluna alemã e demos-lhe o padre para que o levasse ao hospital. Não sei se fizemos bem. Mas não podíamos deixá-lo morrer. Aristitza foi fuzilada no dia seguinte por Marcou Goldenberg, porque tinha feito aquilo. Também me queria fuzilar. Mas eu peguei nos pequenos e fugi da aldeia. Trabalhei e sofri em muitos lugares. Tinha medo que os russos me apanhassem e me fuzilassem também a mim, como fizeram a tua mãe. Fugi para o mais longe que pude. Mas os russos acabaram por me apanhar na Alemanha, perto do fim da guerra. Não me fuzilaram. Foram muito bons para mim. Deram pão, bombons e roupa aos teus filhos, porque não eram filhos de alemães. A mim também me deram comida e vestuário. Agora arrependia-me de ter fugido de Fântâna por causa dos russos.
”Isto durou quatro dias. Eu esperava curar-me, pois tinha estado doente, para tornar para a terra. Um dia, alguém bateu à vidraça. Eram soldados russos. Arrombaram a porta e entraram em casa. Procuraram por toda a parte, a ver se havia outras mulheres, e levaram a filha da dona da casa, que tinha catorze anos. Deram-nos de beber. Puxaram das pistolas e disseram-nos que nos iam fuzilar se não bebêssemos. Depois mandaram-nos pôr nuas. As crianças também estavam no quarto. Eu cá disse que me podiam matar, mas que me não punha nua diante deles. Os soldados arrancaram-me o vestido e a camisa e fizeram-nos em bocados. Depois abusaram da gente. Até ao luzir do dia, todos eles abusaram. Entornaram-me aguardente na boca porque eu não queria beber; depois entornaram-me também nas orelhas e acometeram-me outra vez. Perdoa-me, lani querido, que te conte tudo isto, mas nada te quero esconder. Quando acordei, os russos já não estavam lá e as crianças choravam à roda de mim como ao pé de uma morta.
”Na segunda noite, os russos voltaram. Eram os mesmos levaram outra vez a filha da dona da casa e abusaram da gente outra vez. Mas eu escondi-me com os pequenos na cave para que os russos me não pudessem achar. Porém, na terceira noite, foram dar comigo à cave. E tudo se passou exatamente como nas outras noites, mas não sei mais nada, porque desmaiei antes que eles me acometessem.
”Isto durou duas semanas, uma noite atrás de outra. Escondi-me no jardim, em casa dos vizinhos, na água-furtada. Mas os russos encontravam-me sempre. Nem uma noite lhes pude escapar. Estava resolvida a matar-me. Mas quando via as crianças não tinha coragem para as deixar sem mãe. Bem bastava que o pai não estivesse ali. Que podiam eles fazer, coitadinhos, sozinhos, sem ninguém, em terra alheia? Foi por causa deles que me não matei, acredita. Quanto a mim, desde essa data que sou como uma morta. Para escapar aos russos fugi para oeste. Cheguei às linhas dos ingleses, e depois às dos americanos, onde me encontro agora. Mas pelo caminho, os russos apanharam-me várias vezes, e, quando me deitavam a mão, abusavam de mim como aliás faziam a todas as mulheres, mesmo na cara das crianças. Antes de passar aos ingleses, os russos conservaram-me três dias na fronteira e violaram-me dia e noite. Quando me violaram pela última vez fiquei grávida. Há já bons cinco meses que trago no ventre um filho deles.
”Pergunto-te o que devo fazer. Escreve-me se, depois de tudo o que se passou, me consideras ainda como tua mulher e se tornas para o pé de mim. Espero a tua resposta com impaciência e lavada em lágrimas, para saber que hei de fazer.
Susana.”
Depois de ter lido a carta, lohann Moritz conservou ainda as folhas entre os dedos crispados. Ouviu vagamente tocar para o rancho, como num sonho. Mas não se mexeu. Continuava estendido, de costas.
O seu olhar, o seu corpo, a própria maneira como estava estendido tinham mudado. Já não era o lohann Moritz de há pouco, o lohann Moritz de sempre. Era outro. O corpo e a alma de lohann Moritz estavam como um cabo atravessado por uma corrente muito forte, a que ele não podia resistir. Não restavam senão cinzas daquilo que tinha sido. Mas ele, lohann Moritz, já não existia. Se alguém o tivesse picado com uma agulha, lohann Moritz não teria sentido nada. Era um lohann Moritz, que não tinha fome, nem sede, um lohann Moritz que não estava alegre nem triste. Podia chorar e rir ao mesmo tempo, pois já não participava de nada, já se não sentia viver.
lohann Moritz levantou-se da cama e saiu da tenda. Começou a marchar sem saber para onde ia. Parou diante do arame farpado, por hábito, sem dar conta disso. Se tivesse passado a linha proibida e se fosse morto como Traian Koruga, tudo dava na mesma. Mas não queria passar para o outro lado. E não queria também não passar. Não queria nem desejava absolutamente nada.
Pouco tempo depois, dois soldados americanos, de máquinas em punho, aproximaram-se dele para o fotografar. Moritz não se mexeu, nem para eles olhou. Estremeceu apenas ao ver aproximar-se o terceiro soldado. Chamou-o mansamente:
- Strul, como é que vieste aqui ter?...
O soldado americano parou, com a máquina na mão, e olhou para lohann Moritz. Era Strul, o ex-furriel do campo de judeus na Romênia; Strul, que tinha fugido com ele, Moritz, e com o Dr. Abramovici para Budapeste. Olharam um para o outro e reconheceram-se. Quando Moritz o chamou outra vez pelo seu nome, Strul pôs a máquina fotográfica à cara, tapando os olhos, e fingiu fotografar Moritz. Depois afastou-se depressa, sem responder, lohann Moritz ficou atrás do arame farpado e viu Strul e os outros dois soldados subirem para um jipe e partirem.
Quando o jipe largou, Strul deitou ainda um olhar na direção de lohann Moritz; mas, enfiado, voltou os olhos depressa. Moritz não se agastou. Noutra ocasião, talvez ficasse furioso ao ver que Strul, em tempos seu companheiro de desgraça, fingia que o não reconhecia. Mas, hoje, tudo lhe era indiferente.
lohann Moritz ficou muito tempo perto do arame farpado. Alguém lhe tocou no ombro. Moritz não voltou a cabeça.
- Moritz, prepara-te para partir!
lohann Moritz voltou-se. Julgava que o seu mandado de soltura chegara. Atravessou-lhe os olhos um clarão de alegria.
- Eles soltam-me? - perguntou ao chefe de tenda, que lhe tocara no ombro.
- Infelizmente não, meu velho Moritz!
- Então vou para outro campo?
- Nuremberg!
lohann Moritz abanou a cabeça com indiferença. Sabia há muito tempo que fora declarado automaticamente criminoso de guerra no mesmo tempo que todos os S. S. Era pois natural que comparecesse em Nuremberg, onde se encontravam também os outros criminosos de guerra, o Marechal Goering, Rudolf Hess, Rosenberg, Von Papen... Era possível até que o condenassem à morte. Podiam-no enforcar. Agora tudo lhe era indiferente. E eis por que continuava a olhar para longe, através do arame farpado.
O chefe de tenda bateu-lhe num ombro e disse:
- Dentro de meia hora, tens que ir. - Moritz não se mexeu. - Vai preparar a bagagem! - disse o chefe de tenda. Mal tens tempo para isso. Toca a formar às treze horas.
- Não tenho bagagens - disse Moritz.
- Não tens nada que leves?
- Nada.
- Nem mesmo o teu cobertor?
- Nem isso.
O chefe de tenda pensou um momento que, se lohann Moritz não levava o cobertor, isso lhe daria a ele a possibilidade de ter dois, e portanto de dormir melhor. Mas expulsou tal idéia e disse:
- Deves levar o teu cobertor. A prisão do Tribunal Internacional de Nuremberg é fria e úmida. Vais precisar da manta.
- Eu já não preciso de nada.
- Não te atrases - disse o chefe de tenda, antes de se afastar - A partida está marcada para as treze horas.
Moritz deixou-se ficar. Tinha a biqueira da bota na linha branca que marcava o ponto até onde os prisioneiros tinham licença de ir. A ponta do pé direito de Moritz avançou e cobriu metade da linha. Moritz olhou para o polaco que estava na torre de vigia. A sentinela pusera a arma à cara, prestes a fazer fogo. Mas lohann Moritz não passou além da linha branca. Ficou ali, imóvel tocando-lhe apenas com as biqueiras das botas.
Meia hora depois, partia para Nuremberg com os outros criminosos de guerra do campo. A carta de Susana ficara também debaixo da tenda com todos os pertences de lohann. Os seus camaradas quiseram-na ler mas tiveram que desistir, por estar escrita em romeno e não entenderam nada. O papel da carta era muito fino. Os prisioneiros rasgaram-no em pedaços e fizeram mortalhas de cigarro, que dividiram entre si. Depois começaram a fumar.
PETIÇÃO N.º 7. - Assunto: Justiça.
Punição do criminoso de guerra lohann Moritz.
(Petição recebida na secretaria depois da morte
da TESTEMUNHA).
O Tribunal Internacional de Nuremberg decidiu, em nome de cinqüenta e duas nações, que o meu amigo lohann Moritz era um criminoso de guerra. É uma bela coisa. Desde a publicação da sentença condenatória não passearei mais com ele no pátio do campo. É pouco agradável e, ainda por cima, muito mal visto, passear em companhia de criminosos. Mas lohann Moritz parece bastante indiferente a respeito da decisão do Tribunal Internacional de Nuremberg, e da gravidade do seu crime. É esse o objeto da minha petição.
Moritz pretende não ter matado nunca, em toda a sua vida, nem sequer uma mosca, e que portanto não é criminoso. O que deve ser falso, desde o momento que cinqüenta e duas nações assentaram, num Tribunal Internacional, que lohann Moritz é um criminoso. Moritz pretende também não conhecer as cinqüenta e duas nações e portanto não ter podido cometer crimes contra estas últimas. O seu raciocínio é ingénuo, sem dúvida. Li-lhe pois os nomes das cinqüenta e duas nações que o acusam. Alguns ouviu-os ele pela primeira vez na vida. Ele nem sequer sabia que tais nações existissem à superfície da terra. Mas isso não é uma desculpa.
lohann Moritz agastou-se quando viu que entre as cinqüenta e duas nações que o acusavam figuravam a França e a Grécia. Ficou lívido de cólera. E recusou-se a acreditar o que afirmavam. Pretende ter conhecido em tempos cinco franceses que salvou da prisão. Só conheceu um grego que estava fechado com ele num campo e a quem ele cedeu metade do seu pão. À parte isso, Moritz nunca teve outras relações com a Grécia. Mas isso são questões estritamente pessoais e individuais.
lohann Moritz é igualmente considerado criminoso por estas duas nações. A decisão é clara e categórica. A fim de o convencer da sua culpabilidade para com nações aliadas, proponho que lohann Moritz purgue a sua pena à razão de um ano de prisão em cada um desses países. Assim poderá convencer-se de que é efetivamente criminoso de guerra e a sua indiferença acabará por desaparecer. Contudo, como é pouco provável que lohann Moritz tenha ainda cinqüenta anos para viver, dado o seu estado de enfraquecimento geral - estado comum a todos os criminosos - e dado igualmente que pela sua morte antes de tempo algumas das cinqüenta e duas nações vítimas poderiam achar-se lesadas pelo fato de o não terem preso também, proponho que a duração dos trabalhos forçados a que será obrigado seja reduzido a seis meses para cada país. Isso dará ao todo vinte e seis anos de prisão.
Se ao cabo de vinte e seis anos ainda não estiver morto (e seria verdadeiramente lamentável se morresse sem ter expiado a sua pena em cada um dos cinqüenta e dois países aliados) proponho que seja acorrentado e levado a fazer uma tournée de um mês através das prisões de cada uma das cinqüenta nações,
Acabado o ciclo, é recomeçá-lo. Assim todas as nações terão a sua parte e nenhuma será lesada. É preciso que a Justiça seja feita. A Justiça é a base sobre que repousa a Sociedade Técnica Ocidental.
Contudo, como certos países (por exemplo, a Rússia, a Polónia e a Iugoslávia) não mantêm os seus prisioneiros em perfeito estado de funcionamento e que sucede por vezes esquecerem-nos nas prisões, proponho que antes de cada tourneé lohann Moritz seja pesado com todo o rigor e acompanhado do inventário escrupuloso de todos os órgãos de que esteja de posse. Cada nação deverá tomar Moritz à sua responsabilidade no Tribunal Internacional de Nuremberg e restituí-lo ao dito Tribunal no mesmo estado em que o recebeu - pesando o mesmo peso em libras e tendo ainda em seu poder os membros constantes do inventário. E assim lohann Moritz poderá ser mantido em perfeito estado de funcionamento e utilizado por cada uma das cinqüenta e duas nações. A Sociedade Técnica tem por princípio nada lesar nem deteriorar. É nosso dever pedir às nações menos civilizadas que as nossas que não se comportem como bárbaros para com objetos que lhes são confiados. A nossa missão é civilizar a terra inteira! É esse o nosso papel. E orgulhamo-nos disso.
lohann Moritz acabou por sair do campo. Estivera treze anos ausente. Entretanto, passara por centenas de campos. Agora tornou a encontrar a mulher mais os filhos. Petre, o mais velho, tinha quinze anos. Moritz olhava para ele. Esfregava os olhos para se persuadir que não sonhava. E não podia chegar a acreditar que aquele era o seu rapaz, o filho dele, lohann Moritz.
Petre usava uma ”canadiana” americana, tingida de azul, fumava e tinha os mesmos olhos do pai. Também Petre não chegava a crer que aquele homem magro, de cabelo branco nas fontes, aquele homem que estava ali diante dele e que nunca vira antes, fosse em verdade seu pai. Mas agora que iam morar no mesmo quarto, procurava fazer-se familiar.
- Hei de falar ao chefe, e talvez ele te arranje trabalho lá na fábrica - disse Petre. lohann sorriu. - Se for eu que te recomendar, o chefe aceita-te com certeza - continuou Petre. - Ele nunca admite operários que não sejam qualificados, e tu não és qualificado. Mas ele abre uma exceção quando eu lhe disser que és meu pai.
lohann Moritz reparou no seu segundo filho, Nicolae, que se parecia com Susana. Era loiro como ela e tinha o mesmo olhar macio como veludo. lohann Moritz olhou também para o terceiro filho, que tinha quatro anos. Aquele não era seu filho. Susana tivera-o dos russos. Mas lohann Moritz perdoara-lhe. Ela não tinha culpa.
lohann Moritz acendeu outro cigarro. Petre, para lhe dar as boas-vindas, oferecera-lhe um maço de cigarros.
lohann Moritz estava cansado, mas não lhe apetecia deitar-se. Só havia camas no quarto. Susana e o garoto dormiriam na mais pequena. lohann Moritz ia dormir sozinho na outra e os rapazes deitavam-se numa manta no chão.
- Por enquanto, a coisa vai - disse Petre. - Depois arranja-se um quarto ou uma cama a mais.
Os rapazes estenderam as suas mantas no chão e começaram a despir-se. lohann estava ainda à mesa, com a cabeça entre as mãos. Via Petre e Nicolae despirem-se e deitarem-se. Deram-lhe a boa-noite em alemão. lohann Moritz teria gostado que lha dessem em romeno. Susana meteu o garoto na cama. ”O filho dos russos”, pensou Moritz. A criança era muito bonita. De caracóis loiros. Moritz não gostava de a ver. No campo, ao escrever a Susana, dissera-lhe que havia de considerar aquela criança como sua. Mas Susana também não gostava de ver Moritz olhar para a criança dos caracóis loiros. Despia-a e metia-a na cama como para a esconder.
Susana ficou ainda um instante de pé no meio da casa, sem saber que fazer. Depois sentou-se à mesa, em frente do marido. Bem sabia que Moritz estava cansado. Mas não se atrevia a dizer-lhe que fosse dormir. Sentia-se culpada de tudo o que lhe acontecera. E de ele ter sido preso, e dos anos que passara nos campos. Era estúpido... Mas era mais forte do que ela. Não o podia evitar... E de os russos a terem violado. Também era culpa dela. Não podia suportar o olhar de lohann Moritz. E aqui está por que não se atrevia a dizer-lhe que fosse dormir.
Susana soubera que Moritz estava a chegar. Preparara-lhe de-comer. Fizera-lhe a cama. Moritz chegara com uma fome de lobo e devorara tudo o que havia em cima da mesa. E já tinha acabado de fumar metade do maço de cigarros oferecidos por Petre. Agora, que as crianças tinham adormecido, Susana levantou os olhos para o marido. Os olhares de ambos cruzaram-se e ficaram como que presos durante um momento. Não se podiam separar.
- É o vestido que tinhas nessa noite, não é verdade? Moritz olhava para o vestido azul decotado que Susana trazia na noite em que lorgu lordan matara sua mãe. Susana pusera aquele vestido quando ele a levara para casa dos pais, para casa de Aristitza, que os não quisera açoitar; para casa do Pé. Koruga, no quartinho ao pé da cozinha. A princípio, Susana só tinha aquele vestido. Mais nada. Nem sequer tinha camisa. E durante algumas semanas não usara senão aquele vestido azul. Só o tirava à noite para dormir, completamente nua. Depois sempre pôde fazer outros vestidos. Mas era aquele que ela considerava o mais lindo. E era daquele vestido que o marido gostava mais. Quando Susana o vestira haviam eles gozado as mais belas semanas de amor.
- Não o pus mais, desde que te fôste de Fântâna - disse Susana. - No dia em que eles te prenderam jurei que o não punha mais até que te visse entrar por aquela porta dentro. Durante treze anos levei-o para toda a parte comigo, e durante treze anos sempre te esperei. Mas não o tornei a pôr senão hoje.
Susana baixou os olhos - toda envergonhada. Depois levantou a cabeça e o seu olhar encontrou-se com o de lohann. Apeteceu a lohann Moritz sentá-la nos joelhos. Queria simplesmente dizer-lhe; ”Eu morria de saudades de ti”. Mas não lhe disse nada. Acendeu outro cigarro e olhou para as crianças adormecidas. Depois olhou outra vez para Susana. Não tinha mudado nada. A cara, um pouco enrugada. A pele perdera um pouco de frescura. Tinha o cabelo baço, cor de cânhamo. Os seios descaídos. A não ser isso, estava na mesma, como outrora. lohann Moritz nunca esperava encontrar a mesma, a sua Susana de Fântâna. Treze anos! O tempo de um arrendamento...
- Eu gostava de dar uma volta - disse lohann Moritz. Mas não se levantou. Esperava que Susana fosse a primeira a erguer-se.
- Posso ir contigo? - perguntou ela.
Moritz não respondeu. Mas esperou que Susana se vestisse. Depois saíram do quarto na ponta dos pés, para os pequenos não darem por isso. Estavam um pouco envergonhados. Ao descerem a escada, os ombros de ambos tocaram-se por duas vezes. Durante um bom pedaço de tempo não trocaram palavra. O céu pusera-se escuro. Moritz quis ir ver a rua principal. Susana levou-o até lá. Diante de uma vitrina iluminada, pegou-lhe na mão para lhe mostrar um par de sapatos que gostava de comprar para ele. E seguiram em frente. Mas continuaram de mãos dadas. Pararam a outras vitrinas. Não falavam do campo, nem da casa em Fântâna, nem do passado. Queriam uma noite só para eles. Uma noite sem idéias tristes. - Quero descansar dois dias, e depois procurar trabalho - disse lohann Moritz. - Talvez que o Petre consiga que eu entre lá para a oficina.
- Primeiro descansa umas semanas - disse Susana. - Depois procuras trabalho. Por enquanto ainda estás muito fraco. Eu e o Petre ganhamos o bastante para vivermos. Lavo para fora. Tenho bons fregueses.
Apertou-lhe a mão ainda com mais força. Moritz gostou da maneira que Susana encontrara para lhe dizer que ele precisava de repouso. Tinham chegado às portas da cidade. À direita e à esquerda do caminho havia uns prados. Escurecera.
- Parece que estamos em Fântâna - disse lohann Moritz.
- É verdade - respondeu Susana. Continuaram o passeio. Pensavam nas noites de Fântâna. No pio da coruja. Ambos magicavam no mesmo.
- Doem-me os pés - disse Moritz. - Sentamo-nos aqui um bocado? - Entraram num jardim e estenderam-se na relva.
- É como em Fântâna - disse ele, estirando-se de costas na erva, com a cabeça nas mãos. Depois voltou-se e encostou o rosto ao arrelvado. - Cheira esta erva, Susana! É o cheiro da erva de trás do jardim da tua casa. Lembras-te... O jardim onde nos encontrávamos à noite...
Susana debruçou-se e cheirou. O coração batia-lhe apressado. Não lhe podia responder. A voz estava quase a tremer-lhe, lohann Moritz pôs a mão no ombro de Susana, ainda deitada para a frente. Ficaram assim um bocado, sem se mexerem. Estavam longe um do outro. Só a mão de lohann Moritz tocava no ombro de Susana. Não se atreviam a aproximar-se mais.
- Sabes, Susana? No campo, eu morria de saudades de ti...
- disse lohann Moritz. Aqui e além, cintilava no céu alguma estrela. Susana olhou para o alto e inclinou-se mais para Moritz, sem que ele desse por tal. Tinha vergonha dele. - Perdoa-me, Susana, mas, no campo, muitas vezes sonhava que tu estavas ali, nua em frente de mim. Quando estamos presos acontece isso muitas vezes. Quero-te dizer a verdade - disse Moritz desculpando-se. - Sonhava contigo, minha tal qual como estavas na erva de trás de casa de teu pai... Esse verão foi o mais lindo da nossa vida.
Susana aproximou-se dele ainda mais e pousou-lhe a cabeça na espádua. Moritz fez-lhe uma festa no ombro. Depois nas costas. Enfim aflorou-lhe os seios.
- Vais amarrotar esse lindo vestido que fizeste durar treze anos - disse Moritz. Susana ia dizer-lhe que o vestido se não amachucava. - Antes tu o tirasses e te pusesses em cima da erva, como era costume em Fântâna.
Susana despiu o vestido. Fez aquilo depressa, como se se escondesse para que ele a não espiasse. Estava nua em pêlo. A erva era verde e o corpo de Susana em cima dela como se fosse mármore. Susana ainda estava longe dele. Moritz enlaçou-a e disse espantado:
- És a mesma de outros tempos. Não mudaste nada. Estás como quando fomos ao jardim. O que é que tu fizeste para não mudares assim?
- Isso não é verdade - disse ela. - Envelheci. Tu é que estás o mesmo.
Moritz puxou-a para si. Susana arredou-se.
- Arredas-te, como naquele tempo - disse ele. - Como se estes treze anos não se tivessem passado.
Susana pensava o mesmo que ele. Moritz passara-lhe o braço à roda do corpo, como de antes fazia. Puxara-a contra si e tapara-lhe a boca, até quase a asfixiar. Susana sentiu-lhe o peito esmagá-la como se fosse uma couraça. Tudo na mesma.
- O teu corpo cheira como a erva de Fântâna - disse ela.
- O teu corpo sempre teve este cheiro a erva e a feno. Eu também não fiz outra coisa senão pensar em ti. Juro-te! Pensava em ti sempre, noite e dia. Com todos os meus pensamentos. Juro-te! Fôste o meu sol, o meu marido, o meu céu. Só tu!
lohann Moritz sabia que ela não mentia. Susana só a ele pertencera, a ele só. Moritz sentia-o através daquele seu corpo ardente, através das pulsações daquele coração, pelas palavras que a ela lhe queimavam o ouvido. lohann Moritz sabia que era o sol de Susana, o seu céu, e que ela não fizera senão pensar e esperar por ele. lohann Moritz sentia que tudo o que se passara nesses treze anos acabara de apagar-se de repente. Estavam outra vez juntos. Eles ambos, e, diante deles, a vida. lohann Moritz já não tinha medo à vida.
Pouco antes da madrugada, levantaram-se. Estavam envergonhados.
- Agora já não somos novos, como há treze anos - disse ela.
- Devíamos ter voltado mais cedo para casa.
Moritz riu. Tinham resolvido tornar ao mesmo lugar na noite seguinte.
- E depois, todas as noites - disse ele. - Havemo-nos de encontrar aqui. Só aqui. Aqui é como em Fântâna. Tenho a impressão de que estamos lá mesmo. E que nada do que entretanto se passou se tenha passado realmente.
Riam, de volta a casa. Agora já não eram estranhos um ao outro. E já não tinham vergonha. Moritz enlaçou-a várias vezes e Susana deixou.
- Sabes? - disse ele. Não me sinto já nada cansado. Amanhã de manhã vou com o Petre procurar trabalho. Esperar mais, para quê? Podemos alugar dois quartos. Vou ganhar dinheiro, E havemos de ser felizes. - Ela queria que ele descansasse primeiro. Mas Moritz estava decidido. - Amanhã de manhã vou com o Petre - disse ele. - Estou costumado a trabalhar. Durante treze anos, trabalhei de manhã à noite, sem nunca descansar. E tudo trabalhos pesados. - Pararam diante de um armazém. A vitrina estava iluminada. - Com o meu primeiro salário compro-te um colar de contas de vidro - disse ele. - Aquelas, as encarnadas; gostas?
Susana reparou no preço e depois encarou com lohann. Não sabia que responder. Todos os sonhos em que lani lhe aparecia e comprava um colar de contas de vidro tinham-se realizado.
- Nunca mais nos separamos - disse ela.
- Se eu começar a trabalhar amanhã, compro-te as contas sábado.
Ao chegarem à rua da casa era quase de dia. Moritz apertou Susana nos braços e beijou-a.
- Não te posso beijar em casa, que os pequenos podiam rir-se da gente - disse ele. - Julgam que somos velhos. Mas lá velhos não somos. Não é verdade, Susana, que ainda não somos velhos?
Diante da porta estava um caminhão com os faróis acesos. O coração de Moritz começou a bater com mais força. Apalpou a algibeira em que metera os papéis. Estavam em regra. Contudo sentia-se inquieto. O caminhão lembrava o do campo. E os faróis davam a mesma luz crua. Moritz bem sabia que todos os seus papéis estavam em regra, que os tinha ali consigo e que todos os faróis do mundo davam a mesma luz.
- Por que estás tu a tremer? - perguntou Susana. Moritz não respondeu. Mas apressou-se a entrar.
Ao subir a escada, encontraram dois guardas que vinham de casa deles. Tinham acordado os filhos de lohann Moritz e dito a Petre que as sete da manhã deviam estar todos defronte da porta, com cinqüenta quilos de bagagem por cabeça. Mas, encontrando lohann Moritz na escada, aproveitaram a ocasião para lho dizerem a ele também.
- Às sete da manhã vocês têm que estar aqui diante da porta.
- Para onde nos levam? - perguntou Susana.
- Todos os estrangeiros do leste da Europa vão ser internados - respondeu o guarda. - é uma medida política. Os vossos países estão em guerra com os Aliados do Ocidente. Mas não se sobressaltem; vive-se muito bem nos campos. Vocês vão comer como comem os americanos. Isto é uma simples medida de segurança. Não se assustem; vocês não estão presos.
Nessa noite, lohann Moritz quis fugir. Já fora convidado uma vez a contar ao comandante da cidade como tinha salvado os franceses. Acreditara. E por isso estivera tantos anos fechados. Mas agora lohann Moritz não acreditava em nada. Pegou no saco com que tinha chegado dezoito horas antes, do campo de Dachau, e acordou as crianças para lhes dizer adeus. Petre desatou a rir quando viu o pai assim preparado para a fuga. Petre falava correntemente inglês e era um amigo apaixonado dos americanos.
- Para onde é que o pai quer ir? - perguntou. - Não seja criança! Eu conheço os americanos. Tenho uma data de amigos americanos. Saímos todas as noites juntos. Quando os americanos dizem que não é caso de prisão, podemos acreditar. Se é uma simples medida política, isso quer dizer que vamos ter alimentação americana, bom café, cigarros e chocolate. E nem sequer seremos obrigados a trabalhar. Era uma tolice fugires. Não conheces os americanos.
lohann Moritz pensou em tudo quanto sabia. Em tudo o que tinha sofrido. Em tudo o que tinha visto. Depois olhou para Petre. Não queria tirar-lhe ilusões contando-lhe o que sabia, lohann Moritz arriou o saco e pô-lo em cima da mesa. Pensou que nem sabia sequer para onde fugir. Se fugisse aos americanos, ia parar aos russos. E os russos, era pior. Isso não queria dizer que acreditasse em tudo o que lhe contava Petre. Já sabia o que o esperava. Mas estava cansado. Não tinha já forças para fugir. Não tinha outra coisa a fazer senão ficar ali - ficar, para ser outra vez preso.
- Tens razão - disse lohann Moritz a Petre. - Era tolice fugir.
Petre bateu-lhe camaradamente no ombro.
-Alistamo-nos como voluntários no exército americano - disse Petre. - Quando batermos os russos voltaremos para a Roménia. É a guerra da Civilização contra a Barbaria. Tens que ser voluntário também.
lohann Moritz já não o ouvia. Pensava no arame farpado de Dachau, de Heilbronn, de Kornwestheim, de Durmstadt, Ohrdruf, Ziegelheim, no arame farpado dos trinta e oito campos em que fora encerrado durante os últimos anos, dos campos onde o Pé. Koruga e Traian tinham expirado, dos campos onde estivera quase a morrer de fome. Sentia todo aquele arame farpado entrar-lhe no coração.
”Afinal só estive dezoito horas em liberdade”, pensou. ”Agora entro de novo num campo. Mas desta vez não sou preso como judeu, romeno, alemão, húngaro ou S. S., mas como súdito de um país do hemisfério oriental.” Vieram-lhe as lágrimas aos olhos.
- Não fazes as malas, pai? - perguntou Petre. Estava entusiasmado com a idéia de partir.
- Estou quase a largar - disse lohann Moritz. - Há treze anos que não faço senão mudar-me de um campo para outro. Vais-te acostumar também. Eles não verão daqui por diante senão campos, arame farpado e comboios. Passei por cento e cinco campos. Este é o centésimo sexto. É pena que só estivesse dezoito horas em liberdade; quem sabe se ainda vou ter uma hora, que seja, de liberdade antes da minha morte... - lohann Moritz olhou para Susana e disse-lhe: - Mas foi lindo, é verdade... Agora posso morrer. Não me atrevia a crer que tivesse ainda horas tão belas para viver. Foi tal qual como em Fântâna. Não foi, Susana?
- Senhora Da. Elenora! Desejava falar-lhe de uma questão pessoal!
Eleonora West pôs em cima da mesa o dossiê que tinha na mão e olhou para o Tenente Lewis. Estava sentado à secretária, de pernas cruzadas, recostado à cadeira, e fumava. Lewis era o chefe do distrito de recrutamento dos voluntários estrangeiros. Nora West - funcionária e intérprete na mesma repartição. Trabalhava há seis meses ao lado do Tenente Lewis. ”Por que será que ele não usa ligas?”, disse Eleonora West de si para si, enquanto olhava para as peúgas de Lewis enroladas em saca-rolhas à volta dos tornozelos. ”Por que será que ele se senta como se andasse a cavalo na cadeira? Como os marinheiros num porto! E, no entanto, Lewis era um rapaz de boas famílias e andara na Universidade. Qualquer que seja o grau de emancipação de uma sociedade, não devia ser permitido, numa secretaria, mostrar assim as pernas a uma mulher com quem se está.”
Nora West sentia-se como que esbofeteada, sempre que Lewis lhe estendia a mão conservando o cigarro na boca, ou quando lhe atirava para cima da mesa um dossiê, como quem atira um osso a um cão. O Tenente Lewis não suspeitava o que Nora estava pensando. Pelo contrário, convencia-se de que ela o admirava. Mas os seus olhares eram sempre medrosos.
- Sou toda ouvidos - disse ela.
- Eleonora, quer ser minha mulher?
O Tenente Lewis recostou-se mais na cadeira e começou a balançar-se. A cadeira só se agüentava em dois pés.
- Não quero ser sua mulher, Sr. Lewis.
- Tem outros projetos de futuro?
- Não, não tenho outros projetos de futuro - disse ela. - Mas a minha resposta é: Não.
Nora West abriu o dossiê. Mas não podia trabalhar mais. Os olhos fitavam o dossiê, mas o pensamento ia longe. Ficara dois anos no campo, depois tinha sido automaticamente solta, tal como fora presa. Quando saiu do campo não tinha dinheiro, nem vestidos, nem jóias. Nem sequer a sua aliança. Tudo confiscado. Os seus depósitos de dinheiro no estrangeiro tinham sido também confiscados. Estava pobre como Jó. Tinham-lhe comunicado que Traian falecera. Suicidara-se. Mais nada. Não pudera saber nada mais. Não podia voltar para os russos. Não podia largar para mais longe. Ficara na Alemanha. Trabalhara num jornal como tradutora. Depois viera a ordem de internamento de todos os cidadãos originários do hemisfério oriental. Fora declarada a guerra. E tinham-na internado de novo. Automaticamente. Mas já não era como da primeira vez. Agora era amanuense no distrito de recrutamento dos voluntários estrangeiros. Morava no campo. Paga e alimentada. Escrevia nas horas livres. Continuava o romance A Vigésima Quinta Hora, que Traian não pudera acabar. Conseguira salvar numa mala os quatro primeiros capítulos que considerava essenciais.
Já não pensava no futuro. O seu único projeto era acabar o livro. Aquilo não era, a bem dizer, um projeto de futuro, mas uma maneira de evitar que fizesse projetos de futuro. Entregava-se completamente a esse projeto querido. Esforçava-se por reencontrar o estilo de Traian e por terminar o romance como o faria ele próprio. Assim, a cada página que escrevia, sentia-se perto dele. Estava a seu lado e tinha a pura impressão de que escreviam juntos. Traian contara-lhe por miúdos o plano do romance. Nora fazia a diligência por segui-lo o mais fielmente possível.
- O. K.! - disse o Sr. Lewis depois de uma pequena pausa. - Poderei saber as razões de semelhante recusa?
- Se tem muito empenho: por causa da diferença de idade.
- É um contra-senso! - O Tenente Lewis ria de gosto: - Sou mais velho um ano que a senhora - disse ele. - Eu vi os seus papéis. Onde é que foi buscar essa diferença de idade? É justamente o contrário.
- Engana-se - disse Nora.
- Está a brincar - disse o Sr. Lewis. - Que idade tem?
- Falemos de outra coisa, quer? - disse Nora.
- Mas não antes de me dizer a sua idade.
- Não é bonito perguntar a uma mulher que idade tem. E sobretudo insistir tanto. Mas posso-lha dizer – respondeu Nora. - Tenho novecentos e sessenta e nove anos. E não esqueça que em matéria de idade as mulheres confessam sempre menos do que na realidade têm. Afinal de contas, eu sou mais velha do que isso.
- O. K., Sr. Matusalém - disse o Sr. Lewis, divertidíssimo
Mas Nora West não sorriu. Lewis julgara que Nora lhe ia aceitar a proposta. Nora, porém, repetiu-lhe que o não era categórico.
- Não se zangue, Sr. Lewis; mas eu não era capaz de morar vinte e quatro horas na mesma casa com o senhor.
- Por quê?
- Já lhe disse: diferença de idade - respondeu Nora West. - O senhor é um rapaz simpático, egoísta e gentil: como todos os rapazes, aliás. Mas eu sou mulher de outro mundo.
- Não compreendo.
- Aqui está por que me recusei a dar-lhe explicações - disse Nora. - É natural que o senhor não compreenda. Tenho atrás de mim mil anos de experiências, de tormentos: mil anos que fizeram de mim o que hoje sou. O senhor tem o presente e o futuro. Talvez o futuro. Acrescento ”talvez” não porque tenha dúvidas, mas porque nunca pode haver certezas do futuro.
- Too sophisticated! - exclamou Lewis, nervoso.
- Oiça, Sr. Lewis! - disse Nora. - Depois de ter ouvido as declarações de amor de Petrarca, Goethe, Lorde Byron, Puchkin; depois de ter ouvido Traian Koruga falar-me de amor; depois de ter ouvido as canções dos trovadores e de os ter visto de joelhos diante de mim como de uma rainha; depois de ter visto matarem-se por minha causa reis e cavaleiros; depois de ter falado de amor com Valéry, Rilke, D’Annunzio, Eliot: como poderia eu tomar a sério essa proposta de casamento que o senhor me atira à cara ao mesmo tempo que o fumo do seu cigarro?
- Para pedir uma mulher em casamento será preciso ser Goethe, Lorde Byron ou Petrarca?
- Não, Sr. Lewis - disse Nora West. - Nem sequer é preciso ser Rilke ou Puchkin para pedir uma mulher em casamento. É preciso porém amar essa mulher.
- Mas estamos absolutamente de acordo - disse o Sr. Lewis. - Quem lhe disse que eu a não amava?
Eleonora West sorriu.
- O amor é uma paixão, Sr. Lewis - disse ela. - Já deve ter ouvido dizer isso, ou pelo menos, leu-o em qualquer parte.
- Mas estamos outra vez de acordo - disse ele. - O amor é uma paixão.
- Mas o senhor é absolutamente incapaz de experimentar uma paixão - disse Nora. - E não só o senhor. Nenhum homem da sua civilização é capaz de uma paixão. O amor, a suprema paixão, só pode existir numa sociedade que ache que cada ser humano é insubstituível e único. A sociedade a que o senhor pertence crê, pelo contrário, que cada homem é perfeitamente substituível. O senhor não vê no ser humano, e por conseqüência na mulher a quem pretende amar, um exemplar único criado por Deus e pela natureza, numa única edição. Para os senhores, todos os homens são criados em série. A seus olhos, uma mulher vale uma outra qualquer. Com semelhante concepção, o senhor não pode amar. Os amantes da minha sociedade sabem que, se não conseguissem conquistar o coração da bem-amada, não poderiam substituí-la por nenhuma outra no mundo. E aqui está por que muitas vezes se matam por essa bem-amada. O seu amor recusado não pode ser substituído por outro algum. Um homem que verdadeiramente me amasse dava-me a impressão de que sou a única mulher que o posso tornar feliz. Eu só. Mostrava-me que sou o exemplar único, sem igual em toda a superfície da terra. E, assim, eu ficaria convencida. Um homem que me não dá a impressão de eu ser a única e inigualável, não me ama. E uma mulher que não recebe essa confirmação do ser a quem ama não é amada. E se não sou amada por um homem não caso com ele. É capaz, Sr. Lewis, de me dar essa certeza? Achará na verdade, que, procurando bem, não poderia substituir-me? Não; o senhor tem a certeza de que, se recuso, pode encontrar mulher que venha a ser sua esposa. E, se essa também lhe diz que não, achará uma terceira. Não é verdade?
- Sim, é verdade - disse ele. - Mas eu tinha muita pena se a senhora me recusasse. Palavra que tinha pena ..
- Era melhor continuarmos no trabalho sagrado da nossa repartição, Sr. Lewis. - Nora abriu o dossiê e disse: - No campo, toda a gente pediu para se alistar. Todos, e mesmo as crianças, as mulheres, os velhos. Todos pedem para ser admitidos como voluntários. Todos querem combater ao vosso lado.
Nora West sorriu. Pensava nos milhares de cidadãos estrangeiros que se encontravam no Ocidente. Tinham todos fugido ao terror russo. Todos haviam encontrado refúgio junto dos americanos, dos ingleses ou dos franceses. Nem sequer tinham pensado no lugar para onde se dirigiam. Fugiam simplesmente dos russos. Fugiam da barbaria. Do terror. Da morte. Da tortura. Dirigiam-se para lugar onde não houvesse mais russos. Tinham corrido para aí de olhos fechados. Sabiam apenas que não deviam voltar para trás. Atrás deles, havia a noite e o sangue. Atrás deles, só o terror e o crime. Tinham beijado a terra onde não havia russos. Haviam-na beijado de joelhos e chamado: a terra de todas as promessas e de todas as esperanças. Tinham-na beijado sem para ela olharem. Sem mesmo perguntarem o que ela podia ser. Era uma terra sem russos; tanto bastava. Era-lhes indiferente que fosse ocupada por esta ou por aquela nação. Não queriam ver mais russos. Os americanos haviam prendido os fugitivos. Mas estes não se tinham zangado. Estavam em terra prometida. Não tinham pedido à vida senão para escapar aos russos. E tinham-lhe escapado. Tudo o que pudesse acontecer-lhes depois lhes era indiferente. Assim, não se zangaram por os americanos os prenderem. Mesmo se os houvessem matado, não teriam protestado. E, agora, a guerra acabava de ser declarada. A terceira guerra. Os refugiados estavam fatigados, esfomeados, encurralados. Queriam comida, repouso, trabalho e liberdade. Não se haviam revoltado por não terem essas coisas. Conseguiam fugir dos russos, e isso era o essencial. Os americanos haviam prometido mandar em liberdade os que se alistassem como voluntários nas brigadas ocidentais. E todos os homens tinham pedido para ser voluntários. Não para lutarem, mas para não ficarem mais tempo fechados. Para não rebentarem de fome.
- É um entusiasmo colossal! - disse o Sr. Lewis. - A causa pela qual o Ocidente luta contra a barbaria do Oriente foi abraçada por todo o mundo. Todos os homens têm a consciência de que chegou para eles a hora de morrer ou vencer. Esta guerra vai dar brado. É única na História. O Ocidente civilizado contra o Oriente bárbaro. Uma guerra verdadeiramente mundial. A primeira guerra mundial da História. - O Sr. Lewis esfregou as mãos. - Participar desta guerra é uma felicidade e uma honra. A vitória já nos pertence. Toda a terra será civilizada. Nunca mais haverá guerra. Só progresso, prosperidade, conforto. - Eleonora West sorriu. - A senhora não parece entusiasmada - disse o Sr. Lewis. - Vejo que não é uma apaixonada pela causa do Ocidente. Quem sabe se é filobolchevista? A senhora é a única a pôr reservas. A única que se não entusiasma.
- Isto não entusiasma ninguém - disse Eleonora West. - Antibolchevistas, e é tudo. O que quer dizer que desejam viver em liberdade, não sentir mais a atmosfera de terror, não haver mais mortos, esfomeados, deportados, torturados. A atitude desses não é política. é a atitude tomada pelo homem em face do crime, do terror e da escravidão.
- Que quer mais? - perguntou o Sr. Lewis. - Isso quer dizer que estão inteiramente desligados da causa do Ocidente, pois nós combatemos para lhes oferecer a liberdade, a segurança, a proteção, a democracia!
- Não se deixe embriagar pelas palavras, Sr. Lewis - disse Eleonora West. - Esta guerra a que os senhores chamam a terceira guerra mundial não é uma guerra do Ocidente contra o Oriente. Nem sequer é uma guerra, a bem dizer, embora a linha de batalha vá de um pólo a outro pólo e cubra toda a terra. Esta guerra não passa de uma revolução interior no quadro da sociedade técnica ocidental; uma simples revolução interior, exclusivamente ocidental.
- Mas nós lutamos contra o Oriente, contra a Europa de Leste! - disse o Sr. Lewis.
- É falso! - disse Eleonora West. - Os senhores, o Ocidente, lutam contra um ramo da sua civilização.
- Lutamos contra a Rússia.
- A Rússia, depois da revolução comunista, tornou-se o ramo mais avançado da civilização técnica ocidental. A Rússia recebeu todas as suas teorias do Ocidente e pô-las simplesmente em prática. Reduziu o homem a zero, como aprendera com o Ocidente. Transformou toda a sociedade numa imensa máquina, como aprendeu com o Ocidente. A Rússia imitou o Ocidente como só um bárbaro e um selvagem o podem fazer. As únicas coisas verdadeiramente russas que trouxe à sociedade comunista foram o fanatismo e a barbaria. Um único ponto, mais nada. Na U.R.S.S., à parte a sede de sangue e o fanatismo, tudo vem do Ocidente. E o senhor combate esse aspecto da civilização ocidental: o ramo comunista da sociedade técnica ocidental. Por isso esta terceira guerra mundial não é, nem pode ser mais do que uma revolução interior que rebentou e segue o seu curso no próprio seio da sociedade técnica ocidental. Os ramos atlântico e europeu da sociedade ocidental lutam contra o grupo comunista ocidental. É uma luta interior que prossegue entre duas categorias, entre duas classes da mesma sociedade; é, se quiser, uma revolução de classe, exatamente como a revolução burguesa de 1848. O Oriente não participa desta revolução interna ocidental. Fora da sociedade ocidental, ninguém participa de semelhante revolução. E desde o momento que esta revolução é tipicamente ocidental, Sr. Lewis, não é feita a favor dos homens. A sociedade ocidental não tem homens.
- Não compreendo.
- É muito simples - disse Nora West. - Os interesses da sociedade ocidental não são os dos homens. Muito pelo contrário. Na sociedade técnica ocidental os homens vivem, exatamente como os primeiros cristãos, nas catacumbas, nas prisões, nos guetos, à margem da vida. Vivem escondidos. Não têm licença de comparecer em público. Não têm licença de exercer funções públicas. Em nenhures, e sobretudo nos escritórios, pois a vossa civilização substituiu os altares pelos escritórios. Os homens que ainda são homens são obrigados a esconder-se. De contrário, obrigam-nos a agir segundo as leis técnicas, as leis da máquina. O homem foi reduzido a uma única das suas dimensões: à dimensão social. Foi transformado em cidadão, que já não é sinônimo da dimensão de homem. A sociedade técnica ignora o homem. Não o conhece senão sob a sua forma abstrata de cidadão. E desde o momento que o não conhece, como fazer uma revolução em seu proveito? A revolução atual, dado o seu caráter especificamente ocidental, permanece estranha a todos os interesses dos seres humanos como indivíduos. O homem tornou-se há muito uma minoria proletária da nossa sociedade. A luta atual é um choque entre duas categorias de robotos que arrastam atrás de si escravos vivos, escravos de carne e osso. Os homens não podem ser considerados como participantes no presente combate, tal como os escravos das galeras romanas não podiam ser considerados como participantes das guerras do Império Romano. Limitam-se a arrastar as correntes da guerra. E não se pode participar de uma guerra quando se usam grilhões.
- Os prisioneiros cá do campo não se vêm alistar por sua livre vontade? - perguntou o Sr. Lewis. - O que a senhora diz é bastante arriscado. Eu não a ameaço, mas contradigo-a energicamente. Todos os voluntários vêm espontaneamente aqui. A senhora, por acaso, é capaz de provar que tenhamos obrigado um só deles a fazê-lo? É testemunha das cenas de desespero a que assistimos quando somos obrigados a recusar alguns. Ameaçam-nos de que se matam se nos negamos a inscrevê-los. Ora, isto não será um ato voluntário? Isto não se chama entusiasmo? Até são mais fanáticos do que nós. Quando lhes indeferimos os pedidos, consideram-se gravemente castigados. É verdade ou não é?
- Os homens não têm outro caminho de salvação - disse Eleonora West. - Vêem-se na cela de uma prisão rodeados de chamas e só podem sair por uma única porta. Essa porta é o pedido de alistamento como voluntário. Essa porta são as Petições que todos os dias recebemos aqui na secretaria. Cada petição dessas é um grito de desespero à única porta que ainda existe. Todos entregam petições. E não só os europeus que fugiram de Leste. É a Europa toda.
- É falso - disse o Sr. Lewis. - Essa petição não é a única porta por que possam escapar às chamas. Podiam passar-se para os russos. Por que é que o não fazem, e vêm cá ter conosco?
- Não - respondeu Nora. - Mostrar aos homens o caminho que os leve aos russos equivale a mostrar-lhes o muro devorado pelas chamas, por cima do qual se podem precipitar no próprio quarto onde começou o incêndio. Por cima desse muro eles só podem saltar sobre as chamas’e>a morte. E nem um só homem quereria saltar para o ’fogo, pelo menos enquanto ainda houver uma porta. E essa porta somos nós. Eles pedem para escapar, mas não tratam de ver para onde é que a porta dá. Isso não os interessa. Têm que sair porque abafam. E no fim de contas uma porta é sempre melhor que um muro devorado pelas chamas. E mesmo que os homens soubessem que, passado o limiar dessa porta, havia sempre fogo, escolhiam ainda a porta. Ao menos durante um instante têm a certeza de não verem o fogo. Conservam ainda uma esperança, uma ilusão. E isso é melhor do que nada. É muito importante conservar sempre uma ilusão, por mais absurda que seja.
- A senhora vê tudo debaixo de um ângulo trágico - disse o Sr. Lewis. - Os voluntários não pensam como a senhora. Quando lhes aceitamos os pedidos, ficam entusiasmados. Lutam de vida e de morte pela nossa causa, que também é a deles. São os nossos melhores soldados. Abra a porta e veja-os como esperam diante da secretaria. São centenas. Milhares. Todos se querem alistar como voluntários. Todos querem combater pela grande causa da Civilização. Todos querem dar a sua vida pela grande vitória de amanhã. Essa vitória há de trazer aos homens a felicidade, a civilização, o pão, a liberdade, a paz, a democracia. Não me acredita?
- Não - disse Eleonora West. - Os homens não crêem nesta guerra. Talvez não pensem exatamente como eu. Sofreram demais para pensarem por enquanto. Não pensam em nada.
Mas sentem como eu. Sofrem como eu. São desesperados como eu. Toda a Europa sente como eu.
- Deixemos falar os fatos, Sra. Da. Eleonora West! Hei de provar-lhe o entusiasmo que anima estes homens que se alistam como voluntários. Vou tomar um só exemplo e escolhê-lo ao acaso. - O Tenente Lewis levantou-se. Abriu a porta de par em par. - Olhe - disse ele. - Hoje há outra vez mais de quinhentos homens à espera. - Mostrou a longa fita de gente diante da porta e disse: - Seja o primeiro.
O Sr. Lewis introduziu na secretaria o primeiro homem que esperava diante da porta. O homem não estava sozinho. Estava com a mulher e três filhos. Era um homem de cabelo preto e entradas ruças. A cara um pouco repuxada. Com uns grandes olhos negros, tristes e belos. Nora olhou-lhe para os olhos. ”Tem uma melancolia que fala na grandeza do espírito”, pensou. O homem que estava em frente dela era um operário. Mas o espírito brilhava-lhe no olhar. E o Espírito significa grandeza. A sua tristeza não era uma simples tristeza da carne, mas principalmente uma tristeza de espírito.
A mulher que estava a seu lado tinha um vestido azul, largo demais. O seu cabelo loiro estava semeado de brancas. Mas era muito bonita. Não era só o corpo que era bonito. A sua feminilidade estuava e brilhava à roda dela por todos os poros da pele. Nora West quisera sorrir-lhe como a uma irmã. Mas a mulher conservava os olhos baixos. Estava triste e amedrontada. Um dos pequenos tinha os olhos pretos. Os olhos do pai. Mas o seu olhar não era triste. Os seus olhos ardentes e audaciosos examinavam Nora cheios de curiosidade. O outro pequeno tinha os olhos baixos. Era loiro. Parecia ausente. Pensava noutra coisa. O mais pequeno tinha quatro anos, o cabelo anelado e olhos azuis. Nora não percebia se era rapariga ou rapaz. Mas lindo como um anjo.
- Aí está uma família inteira que se quer alistar - disse o Tenente Lewis. - Pergunte-lhes se pensam como a senhora. Vai ver que não vêm ter conosco desesperados. Vêm para o nosso lado porque têm sede de liberdade e de justiça. Pedem para se alistar porque querem lutar pela Paz e pela Civilização. São perfeitamente conscientes. Pergunte-lhes tudo o que quiser, e verá!
- Não é preciso - disse Nora. - Eu não trato de saber o que é que estas pessoas têm no coração. Basta-me a minha dor. Não me obrigue a acordar o desespero dos outros. Faça o Sr. Tenente o seu interrogatório, como costuma. Não tenho empenho nisso.
- Peço-lhe que pergunte tudo o que quiser. Estou certo de que até a senhora muda de opinião.
- Seja - disse Eleonora West.
A última frase de Lewis equivalia a uma ordem. Nora levantou os olhos para o homem parado diante da porta, de chapéu na mão. Os olhares dos dois cruzaram-se.
- O seu nome?
- lohann Moritz - respondeu o homem. - Quero-me alistar como voluntário com toda a minha família. Pedimos aos senhores que nos recebam todos. Preciso de dispensa de idade. Passei o limite de idade indicado nos editais. Mas sinto-me ainda novo. Os pequenos são ainda muito novos. Ainda não têm a idade marcada nos editais. Mas são rapazes honestos e trabalhadores. Somos antibolchevistas, como pedem nos editais. Cremos na vitória da Civilização, como está escrito nos editais do campo. Mas não temos a idade prevista nos editais. E aqui está por que pedimos que nos dêem a dispensa. Se os senhores nos não recebem, estamos perdidos. Não podemos sofrer mais.
O rapaz dos olhos pretos fez sinal ao pai com o cotovelo. Queria dar-lhe a entender que tinha falado demais. lohann Moritz calou-se. Fez-se muito vermelho. Compreeendeu que não devia ter dito as últimas palavras. Cometera uma gafe. E talvez que os não aceitassem até, por causa disso.
- Peço-lhes por tudo quanto há que nos aceitem! - disse ele. - Somos todos trabalhadores honestos e de bom coração.
Petre recomendara-lhe que dissesse muitas outras coisas ainda. Mas Moritz não queria. Não tinha coragem de dizer que acreditava na Civilização, no Ocidente e no resto. A boca recusava-se-lhe a isso. O pequeno ia-se zangar e dizê-las bonitas quando saíssem dali. Moritz lançava olhares suplicantes à mulher de cabelo ruivo que trabalhava na secretaria. Ela fitava-o também. Houve um silêncio. A mulher da secretaria tinha um olhar amigo, caloroso e brilhante. A mulher de lohann Moritz ergueu também os olhos para aquela senhora que estava ali, na secretaria. Os pequenos também. Nora continuava a fitá-los calada.
O Tenente Lewis saiu da secretaria. Eleonora West continuou em silêncio e olhava para o homem que estava diante dela.
- Conheceu Traian Koruga? lohann Moritz estremeceu.
- Estivemos juntos - disse ele. Moritz não queria falar do campo. Petre bem o tinha avisado, em casa. - Estivemos juntos até aos últimos momentos. Com ele e com o Sr. Pé. Koruga. Estive à beira do Sr. Traian até que aconteceu aquela desgraça... - Moritz parou. Depois continuou: - Era a melhor pessoa que tenho conhecido. Aquilo não era um homem, era um santo. A senhora, também, conheceu o Sr. Traian?
- Sou a mulher dele.
lohann Moritz agarrou-se à porta. Estava lívido. Quis tirar o lenço do bolso. Mas não tinha lenço. Tocou com os dedos em qualquer coisa de vidro. Eram os óculos de Traian Koruga. Moritz guardara-os nessa própria manhã para lhes fazer uma caixinha de coiro. Tinha medo de os partir se os metesse na mala. Tirou os óculos, conservou-os um instante na mão e pensou que já não era preciso fazer um estojo para eles. Já os não tornaria a meter dentro da mala. lohann Moritz pôs os óculos diante de Nora West, em cima da secretária. - São os óculos do Sr. Traian. - Tossiu. Tinha a voz arroucada. - Deu-mos antes da morte para que eu os trouxesse à senhora. Deu-mos justamente um pouco antes de... - A voz de lohann Moritz tremia-lhe. Não podia falar mais. Procurou o lenço outra vez. Só achou o bocado de coiro com que queria fazer a caixa para os óculos. E tirou-o da algibeira. Não sabia o que havia de fazer daquilo. E, para em todo o caso fazer qualquer coisa, pôs o retalho de coiro em cima da mesa, ao pé dos óculos.
- Quis-lhe fazer uma caixinha de coiro - disse ele. - Para se não quebrarem. Tenho muito tempo de meu, no campo, para trabalhar. A senhora guarda-os no estojo. É melhor. Não se partem.
- Está enfim convencida de que eram verdadeiros voluntários e que vinham alistar-se com entusiasmo?
- perguntou c Sr. Lewis, entrando na secretaria.
Nora West tossiu. Sentia a garganta apertada. Disse com voz decidida:
- Sim; agora estou absolutamente convencida. O senhor tem toda a razão. Toda esta gentinha me pede pelo amor de Deus que lhe dê dispensa de idade. Todos se querem alistar. Uma família inteira.
O Sr. Lewis teve um breve sorriso satisfeito.
- Conceda-lhes a dispensa - disse ele. - Arranje-lhes os papéis necessários. Vou fazer uma foto para mandar aos jornais, com a família toda. - O Tenente Lewis aproximou-se do mais pequenino de todos e fez-lhe uma festa no cabelo. Depois perguntou a Susana. - Este também é contra os russos, não é verdade?
Susana baixou os olhos. Depois pensou que tinha de responder qualquer coisa.
- Sim, senhor, esse também é contra os russos - disse ela. Susana tinha receio de que lohann Moritz a ouvisse. Mas
ouvira. Susana mordeu o beiço. Eleonora West completava os formulários.
- Esta noite venham ter comigo! - disse ela. - Eu também moro no campo. Bebemos uma xícara de chá e podemos falar com descanso. Você há de me contar tudo o que sabe de Traian. - O olhar de Nora nublou-se. - Agora, responda-me às perguntas, para que eu possa completar aqui o questionário. Onde esteve desde 1938 até hoje? Diga-me tudo. Não tenho medo. O seu pedido vai ser aprovado.
O rapaz mais velho sorriu. Tinha ganho a partida. Sentia-se feliz. O mais pequeno estava contente também. Comia os bombons oferecidos pelo Sr. Lewis e ria, mostrando os seus dentes brancos. Susana tinha os olhos baixos. O Sr. Lewis preparava o aparelho. Queria fotografar toda a família, precisamente no momento em que lohann Moritz acabasse de responder ao questionário. Tinha que ser tudo autêntico.
- Em 1938 eu estava num campo de judeus na Roménia. Em 1940 num campo ide romenos na Hungria. Em 1941 na Alemanha, num campo de húngaros. Em 1945 num campo americano. Anteontem, fui solto em Dachau. Tenho treze anos de campos. Estive em liberdade durante dezoito horas. Depois eles trouxeram-me para aqui...
- Keep smiling! (1) - disse o Sr. Lewis.
A objetiva do seu aparelho fotográfico estava apontada para lohann Moritz e para toda a família. Moritz olhava para Nora West e pensava nas centenas de quilómetros de arame farpado que vira. Sentia que todo aquele arame se desenrolava ao comprido do seu corpo. Não ergueu os olhos quando o Sr. Lewis lhe falou. Não entendia o inglês.
(1) ”Rla-se lá!” ”Esteja à vontade!”. ”De cara alegre!”. (Aviso de fotógrafo antes de disparar.) - (N. do T.).
- Aqui está o que se passou desde 1938 até hoje - disse Moritz. - Campos. Campos. Campos. Durante treze anos, só campos.
- Keep smiling! - disse o Tenente Lewis.
lohann Moritz compreendeu que aquelas palavras eram com ele e perguntou a Nora:
- Que é que o americano diz?
- Diz que te ponhas a sorrir.
Moritz olhou para os óculos de Traian em cima da mesa. Tinha a impressão de ver Traian cair junto ao arame farpado e morrer. Pensou nos quilômetros de arame farpado que rodeavam os campos. Lembrou-se das pernas cortadas do Pé. Koruga. Lembrou-se de tudo o que se tinha passado durante aqueles treze anos.
Moritz olhou para Susana. Olhou para o pequenino. E ficou outra vez sombrio. Vinham-lhe as lágrimas aos olhos. Agora, que lhe tinham mandado rir, já não podia mais. Sentia que ia romper em soluços como se fosse uma mulher. Com desespero. Era o fim. Já não podia ir mais longe. Não havia homem que pudesse ir mais longe.
- Keep smiling! - ordenou o oficial, com os olhos em lohann Moritz. - Smiling! Smiling! Keep smiting!
Constantin Virgil Gheorghiu
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HÁ só dois clientes no terraço do hotel "Afrika Palast”. Passa da meia-noite. Está-se a meio de Dezembro. Esses dois clientes, que estão no terraço, são turistas. Estão sentados à mesma mesa. Um é negro, o outro é branco. O negro está instalado no hotel. Chegou de barco à capital do Trópico, no fim da semana anterior. O turista branco apareceu na cidade quase ao mesmo tempo. Não se sabe donde vem. Não vive no "Afrika Palast”.
Esperando a hora de fechar, os criados observam os dois clientes. Sabem que o negro parte, nessa mesma noite, para o interior. Aqui, na capital do Trópico, logo que um turista parte para o interior, toda a gente o sabe. Uma excursão ao interior - para a qual, na Europa, só se necessita de um bilhete de caminho de ferro - torna-se aqui, em África, uma verdadeira expedição. Assim, quando um turista do "Afrika Palast” sai numa excursão, toda a gente fica sabendo.
- A camioneta do negro está carregada de dezenas de aparelhos - diz um dos criados -, máquinas fotográficas, máquinas de filmar, máquinas de gravar. Trouxe-as da América. Veio a África para filmar as feras.
Os criados observam estes últimos clientes no terraço, o branco e o negro americano. Admiram-se de que dois indivíduos tão diferentes possam estar juntos.
São, talvez, amigos de infância. O branco e o negro separam-se bastante tarde. Quando se levantam, o negro fica no hotel para se deitar e o branco parte, sozinho. Ninguém sabe onde mora.
Algumas horas depois da sua chegada ao hotel, o negro teve uma crise de fígado. Uma crise terrível. Acordou todo o hotel. Devido a esta crise de fígado, os clientes e o pessoal do "Afrika Palast” conhecem, agora, perfeitamente, o turista negro. Chama-se Max Embilint. Está sentado a uma mesa, no terraço, as pernas cruzadas e olhando para o espaço. De tempos a tempos, bebe um gole de rum, do frasco que traz suspenso ao pescoço, num belo estojo de coiro, como se usam as máquinas fotográficas ou os binóculos.
O branco chama-se Stanislas Krizza. Tem à sua frente um copo e uma garrafa de água mineral. Lê. Ao contrário, o negro nunca lê. Max Embilint é um gigante, um colosso negro. Usa, exclusivamente, roupa de seda e fatos de boas fazendas, que muda todos os dias. No entanto apresenta um ar descuidado.
Stanislas Krizza é baixo e veste todos os dias o mesmo fato de fazenda cinzenta, como os pequenos funcionários do Trópico. Usa sapatos de lona e um chapéu de palha. Usa sempre luvas. Mesmo neste momento, à mesa, segura o livro nas mãos calçadas com luvas cinzentas, de algodão. As luvas, de má qualidade, conservam-se sempre abotoadas. O negro, esse, nunca usa luvas.
Max Embilint só fala americano. Stanislas Krizza responde, correctamente, na língua em que é interrogado. Diz-se que fala todas as línguas importantes. Pelo menos, uma dúzia de idiomas.
- Tu não estavas de serviço na noite em que o negro chegou? - pergunta o primeiro criado. - Eu acompanhei o médico ao seu quarto. Nunca esquecerei o que vi. O negro estava nu, somente com um pequeno slip branco. Com o corpo coberto de suor, estava deitado sobre os lençóis brancos. Stanislas Krizza estava em pé, junto do leito, com ar triste. Tinha os olhos cheios de lágrimas porque o negro estava doente. E, apesar disso, o outro estava irritado com ele. Atirava-lhe à cabeça a almofada, o copo, a toalha molhada, tudo o que apanhava à mão. Apesar disto, o branco não se arredou durante a noite. Foi então que compreendi o que é a verdadeira amizade.
- Todos nós tivemos pena do negro - continuou o primeiro criado. Acrescenta: - Aliás é frequente ter crises de fígado, quando se bebe um litro de rum por dia. O negro bebe mais que um litro. O barman confirmou-mo: todos os dias, um litro de rum branco.
Este criado do terraço, assim como todo o pessoal do "Afrika Palast” nunca esquecerão Max Embilint. Unicamente por causa da sua crise de fígado.
Uma camioneta cheia de bagagem pára diante do hotel. É uma camioneta descoberta. No fundo, dois negros estão sentados sobre as cantinas de lata. Os criados admiram-se que Max Embilint parta para o interior, somente acompanhado por dois criados negros. Isto não é habitual...
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