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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ACHERON / Sherrilyn Kenyon
ACHERON / Sherrilyn Kenyon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ACHERON

Primeira Parte

 

Um deus nasceu há onze mil anos. Amaldiçoado num corpo humano, Acheron teve uma vida de sofrimento. A sua morte humana originou um horror indescritível que quase destruiu a Terra. Trazido de volta contra a sua vontade, tornou-se o único defensor da humanidade. Só que não foi assim tão simples... Durante séculos, lutou pela nossa sobrevivência e escondeu um passado que não desejava revelar. Agora, tanto a sua sobrevivência, como a nossa, dependem da única mulher que o ameaça. Os velhos inimigos estão a despertar e a unir-se para matá-los – aos dois...

 

 

09 de Maio, 9548 A.C.

     —Mate esse bebê!

     O furioso decreto de Archon fazia eco nos ouvidos de Apollymi quando voou através dos marmóreos corredores do Katoteros. Havia um raivoso vento que soprava descendo pelos corredores, esmagando seu vestido contra seu incomodado corpo e açoitando seu amontoado cabelo loiro esbranquiçado como brincos. Quatro de seus demônios corriam atrás dela, protegendo-a dos outros deuses que estavam mais que ansiosos para cumprir as ordens de Archon. Seus demônios Caronte e ela já tinham despedaçado a metade de seu panteão. E estava disposta a matar ao resto.

     Não pegariam o seu filho!

     A traição ardeu no mais profundo de seu coração. Desde o momento de sua união, sempre tinha acreditado em seu marido. Inclusive quando tinha descoberto que Archon a tinha enganado, ainda o amava e tinha dado a bem-vinda aos seus bastardos em seu lar.

     Agora ele queria a vida de seu filho nonato[1].

     Como podia lhe fazer isso? Durante séculos tinha estado tentando conceber o filho de Archon… Era tudo o que sempre tinha querido.

     Seu próprio bebê.

     Agora devido à profecia das três pequenas… ciumentas bastardas de Archon, seu filho ia ser sacrificado e assassinado. Por causa do quê? As palavras que essas pequenas nojentas tinham sussurrado?

     Nunca.

     Este era seu bebê. Seu! E mataria a qualquer deus atlante que existisse para lhe proteger.

     —Basi! —Gritou por sua sobrinha.

     Basi apareceu no corredor diante dela cambaleando até que se segurou contra a parede. Como a deusa dos excessos, freqüentemente estava bêbada… O qual casava perfeitamente com o plano de Apollymi.

     Basi soluçou e riu bobamente.

     —Necessita-me, Titia? Por certo, por que está todo mundo tão irritado? Perdi algo importante?

     Apollymi a agarrou pelo pulso e então se teletransportaram fora do Katoteros onde os deuses atlantes tinham seu lar para baixar ao infernal reino do Kalosis onde governava seu irmão.

     Ela tinha nascido ali nesse úmido, proibido lugar. Esse era o único reino que realmente assustava a Archon. Inclusive com todo seu poder, conhecia a escuridão com a qual Apollymi exercia sua supremacia. Aqui, com seus poderes reforçados, poderia lhe destruir.

     Como deusa da morte, destruição e da guerra, Apollymi tinha um cômodo no opulento palácio de ébano de seu irmão para lhe recordar sua posição.

     Ali foi aonde levou a Basi.

     Apollymi fechou as portas e as janelas de seu aposento antes de convocar a seus dois mais confiáveis demônios protetores.

     —Xiamara, Xedrix, necessito-lhes.

     Os dois demônios que residiam nela como marcadas tatuagens se elevaram de seu corpo e se manifestaram diante dela.

     Em sua atual reencarnação, o tom de pele sempre mutante de Xiamara era vermelho, salpicado com branco. O comprido cabelo negro emoldurava uma cara de duende onde uns enormes olhos vermelhos brilhavam com preocupação. Xedrix, o filho de Xiamara compartilhava seus traços, mas sua pele estava salpicada com vermelho e laranja, algo que acontecia freqüentemente quando estava nervoso.

     —O que necessitas, akra? —Perguntou Xiamara, dirigindo-se a ela com o termo atlante para Senhora e Ama.

     Apolymi não tinha idéia do porquê Xiamara insistia em chamá-la de akra quando elas eram mais irmãs que ama e serva.

     —Protejam este aposento de todo o mundo. Não me importa se o mesmíssimo Archon exija entrar, o matais. Entendido?

     —Seus desejos são ordens, akra. Ninguém te incomodará.

     —Seus chifres têm que fazer conjunto com suas asas? —Perguntou Basi girando ao redor do poste da cama enquanto olhava aos demônios—. Quer dizer, realmente achas que já que são tão coloridos, teriam mais variedade. Acredito que Xedrix pareceria melhor se fosse laranja.

     Apollymi a ignorou. Não tinha tempo para a estupidez de Basi. Não se queria salvar a vida de seu filho.

     Queria esse filho e faria qualquer coisa por ele.

     Qualquer coisa.

     Com o coração martelando, agarrou sua adaga Atlante da gaveta da penteadeira e a sustentou nas mãos. O punho de ouro estava frio contra sua pele. Rosas negras e ossos se entrelaçavam e sobrecarregavam ao longo da lâmina de aço que brilhava na tênue luz. Esta era uma adaga criada para acabar com a vida.

     Hoje se usaria para dá-la.

     Deu um pulo ante o pensamento do que estava por vir, mas não havia outra maneira de lhe salvar. Fechando os olhos e agarrando a fria adaga, tentou não chorar, mas uma solitária lágrima se deslizou do canto do olho.

     Basta! Rugiu a si mesma antes de enxugá-la zangada. Era o momento para as ações, não para as emoções. Seu filho a necessitava.

     Sua mão tremendo por causa da fúria e do temor, foi para a cama e se deitou. Puxou seu vestido para expor seu ventre. Passou uma mão sobre seu distendido estômago onde seu filho estava esperando, protegido e ainda em perigo. Jamais voltaria a estar assim perto dele. Jamais o sentiria chutar e revolver-se sem descanso enquanto ela sorria em suave paciência. Ia separá-los inclusive embora não fosse tempo sequer para que Apostolos nascesse.

     Mas não tinha escolha.

     —Seja forte por mim, meu filho —sussurrou ela antes de rachar o ventre para expô-lo.

     —Oh, que repugnante! —Choramingou Basi— Vou v…

     —Não te movas! —Rugiu Apollymi—. Deixe este quarto e te arrancarei o coração.

     Abrindo os olhos desmesuradamente, Basi se congelou.

     Como se soubesse o que estava acontecendo, Xiamara apareceu ao seu lado. A pele vermelha e branca do demônio era a mais bela e leal de todo o exército de Apollymi. Em silencioso entendimento, Xiamara extraiu o bebê dela e ajudou a Apollymi a fechar a ferida.

     A demônio tirou o cachecol vermelho sangre que rodeava seu pescoço e envolveu a Apostolos nele antes de estender-lhe a Apollymi e lhe fazer uma profunda reverência.

     Apollymi deixou a dor física a um lado e tomou seu filho entre seus braços e o segurou pela primeira vez. A alegria a atravessou ao dar-se conta de que ele estava completo e vivo. Era tão diminuto, tão frágil, perfeito e bonito.

     Mais que tudo, era seu e o amava com cada parte de si mesma.

     —Viva por mim, Apostolos —disse ela, suas lágrimas fluindo finalmente. Estas caíam como gelo descendo por suas frias bochechas, brilhando na escuridão.

     —Quando for o momento oportuno, voltará aqui e reclamará seu lugar por direito como rei dos deuses. Assegurarei-me disso —baixou os lábios sobre sua testa azul.

     Seus olhos se abriram então para olhá-la. Mercúrio e prata, iguais aos dela, tempestuosos. E continham uma sabedoria longe inclusive da sua. Seria por aqueles olhos que a humanidade reconheceria sua divindade e por causa disso o ameaçariam. Acariciou sua bochecha com um diminuto punho como se entendesse que o fazia por ele.

     Ela soluçou ante o contato. Deuses, não era justo! Era seu bebê. Tinha esperado toda uma vida por isso e agora…

     —Maldito seja, Archon, maldito seja! Nunca te perdoarei por isso.

     Abraçava a seu filho contra ela e não queria deixá-lo ir.

     Mas devia fazê-lo.

     —Basi? —Estalou ante sua sobrinha quem ainda dava voltas ao redor do poste da cama.

     —Mmm?

     —Pegue-o. Ponha no ventre de uma rainha grávida. Entendeste-o?

     Ela se deixou ir e se endireitou.

     —Um, posso fazê-lo. O que acontece ao menino da rainha?

     —Una a força vital de Apostolos com a do filho da rainha. Deixe que saiba pelos oráculos que se meu filho morrer, morrerá o seu. —Isso deveria lhe proteger mais que tudo.

     Mas havia uma coisa mais a fazer. Apollymi arrancou o esfora branco de seu pescoço e a sustentou sobre o peito de Apostolos. Se alguém suspeitava que era seu filho ou algum deus detectava sua presença no reino humano, matariam-no imediatamente.

     Seus poderes seriam vinculados e selados até que fora o bastante crescido e forte para voltar a lutar. Colocou o círculo sobre seu peito e observou como sua divindade se deslizava dele ao esfora. Seu diminuto corpo se voltou do azul à pálida pele da humanidade.

     Agora estaria a salvo. Nem sequer os deuses saberiam o que tinha feito.

     Agarrando o esfora fortemente em sua mão, beijou sua testa uma vez mais antes de estender-lhe a sua sobrinha.

     —Toma-o. E não me traias, Basi. Se o fizeres, Archon será o último de seus temores. Assim me ajude, ou não descansarei até me banhar em suas vísceras.

     Os olhos marrons de Basi se alargaram.

     —Bebê no ventre. Reino humano. Não dizer a ninguém e não desobedecer. Entendi —ela desapareceu instantaneamente.

     Apollymi se sentou ali, observando o vazio onde tinham estado. Seu coração gritava, querendo que voltasse seu bebê.

     Se tão somente…

     —Xiamara, siga-a e te assegures de que faz o que lhe há sido ordenado.

     A demônio fez uma reverência antes de desaparecer.

     Com o coração quebrado, Apollymi se estendeu em sua sangrenta cama. Queria soluçar e gritar, mas do que serviria? Isso não faria nenhum bem. Suas lágrimas e rogos não evitariam que Archon matasse a seu filho. Suas bastardas lhe tinham convencido de que Apostolos destruiria seu panteão e substituiria a Archon como rei dos deuses.

     Assim seria.

     Com o corpo dolorido, ergueu-se da cama.

     —Xedrix?

     O filho de Xiamara apareceu ante ela.

     —Sim, akra.

     —Me consiga uma pedra do fundo do mar, por favor.

     Ele pareceu confuso pela ordem, mas a cumpriu rapidamente.

     Quando retornou, ela envolveu a pedra em seus braços. Fraca pelo nascimento de seu filho e sua própria raiva e dor, inclinou-se contra Xedrix e ele a sustentou em seus braços.

     —Me leve até Archon.

     —Está segura, akra?

     Ela assentiu.

     O demônio a ajudou a voltar para o Katoteros. Apareceram no centro do hall onde Archon estava sentado com suas filhas Chara e Agapa… Ironicamente as deusas da alegria e do amor. As duas tinham nascido geneticamente por parte de pai a primeira vez que Archon tinha visto Apollymi. Juntas as deusas tinham brotado de seu peito. Seu amor por Apollymi tinha sido legendário. Até que o tinha destruído por lhe pedir a única coisa que jamais lhe daria.

     A vida de seu filho.

     As feições de Archon estavam perfeitamente formadas. Alto e musculoso, permanecia com seu cabelo loiro brilhando na tênue luz. Realmente, era o mais bonito de todos os deuses. Uma pena que a beleza só fora superficial.

     Seus olhos azuis se entrecerraram ante o vulto em seus braços.

     —Era hora de que entrasse em razão. Dê-me esse menino.

     Ela se separou de Xedrix e depositou a pedra nos braços de seu marido.

     Archon a fulminou com o olhar.

     —O que é isto?

     —Isso é o que mereces, bastardo, e é tudo o que obterás de mim.

     Pela luz em seus olhos, sabia que ele queria golpeá-la. Não se atrevia. Ambos sabiam quem era o deus mais forte e esse não era ele. Governava só porque ela se sentava ao seu lado. Elevar-se contra ela seria o último engano que teria cometido.

   Pela lei Chthonian, um deus tinha como proibido matar a outro. Fazê-lo desataria sua fúria sobre o estúpido deus que os tivesse irritado. O castigo por tais ações era rápido, brutal e irreversível.

     Agora mesmo, Apollymi estava abraçando seu racional pensamento sobre suas turbulentas emoções por uma escassa margem. Se Archon a golpeava a deixaria a beira disto e ele sabia. Isso a faria esquecer do temor aos Chthonians e então desataria toda sua fúria contra ele. Não lhe importava quem fosse castigado e quem morrera… sempre que não fosse ela mesma.

     Paciência para a aranha… Recordou-se da citação favorita de sua mãe.

     Esperaria o momento propício até que Apostolos crescesse. Quando ele governasse no palácio de Archon e mostrasse ao rei dos deuses o que significava ser o todo poderoso.

     Pela segurança de seu filho, não incomodaria aos caprichosos Chthonians que ficariam do lado de Archon e assassinariam a seu filho. Eram os únicos que podiam arrancar permanentemente seus poderes e destruir a Apostolos.

     Depois de tudo, às filhas bastardas de Archon e sua amante Themis lhes tinha sido concedido o poder do destino sobre todos e tudo. E além de sua estupidez e temor, as Destinos Gregas tinham amaldiçoado acidentalmente a seu filho.

     Isso só era suficiente para fazê-la querer matar a seu marido que permanecia diante dela com o cenho franzido.

     —Condenaria a tudo por um filho? —Perguntou Archon.

     —Condenaria a meu bebê por três bastardas meio gregas?

     Suas fossas nasais se dilataram.

     —Pela primeira vez seja razoável. As meninas não se deram conta de que o estavam condenando quando falaram. Ainda estão aprendendo seus poderes. Temiam que ele as suplantasse em meu afeto. É por isso que nós lhes sustentamos as mãos quando nos falam de seus medos. E por causa disso, sua palavra é lei e não pode ser desfeito. Se viver, nós morreremos.

     —Então morreremos, porque ele viverá. Assegurei-me disso.

     Archon bramou antes de lançar a envolvida pedra através da parede. Uniu-se a Agapa e Chara e começaram a cantar.

     Os olhos de Apollymi se voltaram vermelhos ante o que estavam fazendo. Estavam aprisionando uma alma.

     A sua.

     E por causa de seus poderes unidos, poderiam ser capazes de pôr a ela de joelhos.

     Inclusive assim, ela riu. Mas mais que tudo, tomou nota de cada deus que se uniu para ajudar a seu marido a atá-la.

     —Todos vós vos arrependereis do que haveis feito este dia. Quando Apostolos retornar, vos pagareis caro.

     Xedrix se colocou entre ela e os outros. Apollymi colocou uma mão sobre seu ombro para evitar que atacasse.

     —Não vão nos fazer dano, Xedrix. Não podem.

     —Não —disse com amargura Archon—, mas permanecerá encerrada no Kalosis até que nos reveles a localização de Apostolos ou ele morra. Só então retornarás ao Katoteros.

     Apollymi riu.

     —Meu filho, em sua maturidade, terá o poder de vir até mim. Quando me libertar, o mundo que conhece morrerá. E te derrotarei. A todos vós.

     Archon sacudiu a cabeça.

     —O encontraremos. O mataremos.

     —Fracassarás e eu dançarei sobre sua tumba.

 

O Diário de Ryssa.

Princesa de Didymos.

23 de Junho, 9548 a.C.

    Minha mãe, a Rainha Aara, jazia em sua cama dourada, seu corpo suado, seu rosto pálido enquanto uma assistente lhe afastava o loiro cabelo úmido de seus olhos azul claro. Inclusive, através da dor, nunca tinha visto que minha mãe parecesse mais cheia de alegria do que parecia nesse dia e me perguntei se tinha sido assim feliz ante meu próprio nascimento.

     O aposento estava lotado por funcionários da corte e meu pai, o rei, estava de pé ao lado da cama com seu Chefe de Estado. As longas janelas de vidro estavam abertas, deixando que o ar fresco brindasse alívio ao calor do dia do verão.

     —É outro formoso garoto —proclamou felizmente a parteira, envolvendo ao recém-nascido em uma manta.

     —Pela mão da doce Artemis, Aara, encheu-me de orgulho! —disse meu pai enquanto um forte grito alegre transpassava aos ocupantes do aposento—. Gêmeos para governar sobre nossas ilhas gêmeas!

     Com apenas sete anos de idade, saltei para cima e para baixo regozijada. Por fim, e depois de numerosos abortos de minha mãe e filhos nascidos mortos, eu não tinha um irmão, e sim dois.

     Rindo, minha mãe aconchegou ao segundo menino em seu pálido seio enquanto uma parteira secundária limpava ao primogênito.

     Movi-me sigilosamente por entre a multidão para olhar ao bebê primogênito que estava com a parteira. Diminuto e formoso, retorcia-se e lutava para respirar através de seus pulmões recém-nascidos. Finalmente tinha tomado uma profunda e limpa inalação, quando ouvi o grito de alarme da mulher que o sustentava.

     —Zeus tenha misericórdia, o mais velho está mal formado, Majestades!

     Minha mãe elevou a vista com sua testa enrugada pela preocupação.

     —Como?

     A parteira o levou.

     Eu estava aterrorizada de que algo estivesse errado. O bebê me pareceu perfeito.

     Esperei enquanto o bebê estirava suas mãos por volta do irmão que tinha compartilhado a matriz com ele durante esses passados meses. Era como se procurasse o consolo de seu gêmeo.

     Em troca, minha mãe afastou a seu irmão, de sua vista e alcance.

     —Não pode ser —soluçou minha mãe—. É cego.

     —Não é cego, Majestade —disse a sábia mais anciã, enquanto se adiantava entre o grupo de pessoas. Suas roupagens brancas estavam profusamente bordadas com fios de ouro e levava posta uma coroa de ouro ornamentada sobre seu esvaído cabelo cinza—. Foi enviado a ti pelos deuses.

     Meu pai, o rei, entreabriu seus olhos furiosamente para minha mãe.

     —Foi infiel? —acusou-a.

     —Não, nunca.

     —Então como é que ele saiu de seus quadris? Todos aqui somos testemunhas.

     Todos no aposento olharam à sábia que cravou seus olhos sem expressão no diminuto bebê indefeso que clamava para que alguém o sustentara e lhe oferecesse consolo. Calor.

   Mas ninguém o fez.

     —Ele será um destruidor, este menino —disse a sábia, sua anciã voz em alto e timbrada de modo que todos pudessem ouvir sua proclamação—. Seu toque trará a morte a muitos. Nem sequer os mesmos deuses estarão a salvo de sua ira.

   Ofeguei, sem entender realmente o significado de suas palavras.

     Como poderia um mero bebê fazer mal a alguém? Ele era diminuto. Indefeso.

     —Então o mate agora! —ordenou meu pai a um guarda para que tirasse sua espada e matasse ao menino.

    —Não! —disse a sábia, detendo o guarda antes que ele pudesse consumar a vontade do rei—. Mate a este menino e seu outro filho morrerá também. Suas forças de vida estão ligadas. Esta é a vontade dos deuses, deverás criá-lo até a idade viril.

     O gêmeo mais velho soluçou.

     Solucei eu também, não entendia seu ódio por um simples bebê.

     —Não criarei um monstro —grunhiu meu pai.

     —Não tens nenhuma opção. —A sábia tomou ao bebê da parteira e o ofereceu a minha mãe.

     Franzi o cenho ante a nota de satisfação que vi nos olhos da parteira antes que a formosa mulher loira abrisse passagem por entre as pessoas para desaparecer da estadia.

     —Ele nasceu de seu corpo, Majestade —disse a sábia, arrastando minha atenção de volta para ela e minha mãe—. É seu filho.

     O bebê berrou ainda mais alto, estirando-se outra vez para alcançar a minha mãe. Sua mãe. Ela se encolheu afastando-se dele, aferrando ainda mais que antes, estreitamente, ao segundo a nascer.

     —Não o amamentarei. Não o tocarei. Afasta-o de minha vista!

     A sábia conduziu ao menino até meu pai.

     —E o que acontece contigo, Majestade? Não o aceitará?

     —Nunca. Esse menino não é meu filho.

     A sábia respirou fundo e apresentou ao menino à câmara. Seu agarrar era frouxo sem amor ou compaixão evidente em seu toque.

     —Então será chamado Acheron pelo Rio da Tragédia. Como o rio do Inframundo, sua viagem será escura, comprida e duradoura. Será capaz de dar a vida e tomá-la. Caminhará pela vida, só e desamparado, sempre procurando a bondade e sempre achando a crueldade.

     A sábia olhou para baixo, ao menino em suas mãos e pronunciou a simples verdade que perseguiria o menino pelo resto de sua existência.

     —Que os deuses tenham piedade de ti, pequeno. Ninguém mais o fará.

        

30 de Agosto, 9541 a.C.

     —Por que me odeiam tanto, Ryssa?

     Fiz uma pausa em meu tear para elevar a vista ante a tímida aproximação de Acheron. À idade de sete anos, ele era um menino incrivelmente bonito. Seu cabelo de ouro brilhava no quarto como se tivesse sido tocado pelos deuses que pareciam havê-lo abandonado.

     —Ninguém te odeia, akribos.

     Mas em meu coração eu sabia a verdade.

     E ele também.

     Aproximou-se mais de mim e vi o vermelho e colérico rastro de uma mão em seu rosto. Não havia lágrimas em seus tempestuosos olhos de prata. Tinha crescido tão acostumado a ser golpeado que já não parecia incomodá-lo.

     Ao menos, em nenhuma parte, que em seu coração.

     —O que aconteceu? —perguntei.

     Ele afastou o olhar.

     Deixei meu tear e atravessei a curta distância até seu lado. Ajoelhei-me frente a ele e brandamente lhe tirei o cabelo loiro de sua bochecha inflamada.

     —Conte-me-o.

     —Ela abraçou Styxx.

     Eu sabia sem perguntar quem era ela. Ele tinha estado com nossa mãe. Eu nunca tinha entendido como ela podia amar tanto a Styxx e a mim e, ainda assim, ser tão cruel com o Acheron.

     —E?

     —Eu também queria um abraço.

     Então o vi. Os delatores sinais de um menino que não queria nada mais que o amor de sua mãe. O superficial tremor de seus lábios, o leve lacrimejo de seus olhos.

     —Por que me pareço tanto a Styxx e ainda assim sou anormal, enquanto que ele não o é? Não entendo por que sou um monstro. Não me sinto como um.

     Não podia explicar-lhe já que eu, diferentemente de outros, nunca tinha visto a diferença. Como lamentava que Acheron não conhecesse a mãe como eu o fazia.

     Mas todos eles o chamavam de monstro.

     Eu só via um menininho. Um pequeno menino que não queria nada mais que ser aceito por uma família que queria desapossá-lo. Por que não podiam meus pais olhá-lo e ver a alma amável e suave que ele era? Tranqüilo e respeitoso, procurava não machucar jamais a alguém ou algo. Jogávamos juntos e nos ríamos. Sobretudo, sustentava-o enquanto ele chorava.

     Tomei sua pequena mão na minha. Uma mão suave. A mão de um menino. Não havia malícia nela. Nenhum crime.

     Acheron sempre foi um menino sensível. Enquanto que Styxx procurava choramingar e queixar-se sobre cada mínima coisa, agarrava meus brinquedos e aquele de qualquer outra criança perto dele, Acheron só tinha procurado fazer a paz. Consolar àqueles ao seu redor.

     Ele parecia mais crescido que um menino de sete anos. Havia momentos em que parecia inclusive mais crescido que eu.

     Seus olhos eram estranhos. Seus redemoinhos de cor prateada, traía o direito de nascimento que o vinculava aos deuses. Mas com toda isto segurança deveria fazê-lo especial não horrendo.

     Ofereci-lhe um sorriso que esperava aliviasse um pouco sua dor.

     —Um dia, Acheron, o mundo saberá exatamente o menino tão especial que és. Chegará o dia em que ninguém te temerá. Já o verás.

     Movi-me para abraçá-lo, mas ele se retirou. Estava acostumado que as pessoas lhe fizessem mal e embora ele soubesse que eu não o faria, ainda estava pouco disposto a aceitar meu consolo.

     Quando me pus de pé, abriu-se a porta a minha sala de estar. Um grande número de guardas entrou nela.

     Assustada ante a visão, retrocedi sem saber o que queriam. Acheron aferrou seus pequenos punhos à saia de meu vestido azul enquanto se acocorava por trás de minha perna direita.

     Meu pai e meu tio caminharam entre os homens até que se plantaram diante de mim. Os dois eram praticamente idênticos em aspecto físico. Tinham os mesmos olhos azuis, o mesmo cabelo loiro ondulado e a pele branca. Embora meu tio fosse três anos mais jovem que meu pai, ninguém nunca adivinharia ao olhá-los. Poderiam passar facilmente como gêmeos.

     —Disse-te que estaria com ela —disse meu pai ao tio Estes—. Está corrompendo-a de novo.

     —Não te preocupes —disse Estes—. Encarregarei-me do assunto. Nunca mais terá que te preocupares com ele.

     —O que queres dizer? —perguntei, espantada por seu tom terrível. Acaso tinham a intenção de matar a Acheron?

     —Não te importa —me respondeu bruscamente meu pai. Nunca tinha ouvido um tom tão áspero vindo dele antes. Fez com que me gelasse o sangue.

     Ele agarrou a Acheron e o empurrou para meu tio.

     Acheron parecia apavorado. Estendeu sua mão para mim, mas meu tio o agarrou bruscamente pelo braço e o separou de um puxão.

     —Ryssa! —chamou-me Acheron.

     —Não! —gritei, tratando de lhe ajudar.

     Meu pai me retirou e segurou.

     —Ele vai a um lugar melhor.

     —Aonde?

     —À Atlântida.

     Vi com horror como levavam a Acheron gritando para que eu o salvasse.

     A Atlântida estava a um longo caminho daqui. Muito longe, e até a muito pouco tempo, tínhamos estado em guerra com eles. Eu só tinha ouvido coisas terríveis sobre aquele lugar e sobre todos o que ali viviam.

     Elevei a vista a meu pai, soluçando:

     —Ficará assustado.

     —Os de sua espécie nunca têm medo.

     Os gritos de Acheron e as súplicas negavam aquelas palavras.

     Meu pai poderia ser um rei poderoso, mas estava equivocado. Eu conhecia o medo dentro do coração de Acheron.

     E conhecia o medo no meu próprio.

     Voltaria a ver meu irmão algum dia?

 

3 de Novembro, 9532 a.C.

     Passaram nove anos desde a última vez que vi meu irmão, Acheron. Nove anos e não passou nem um só dia para mim sem que me perguntasse o que estava fazendo. Como estava sendo tratado.

     Cada vez que Estes nos visitava, sempre o levava a um lado e lhe perguntava por Acheron.

     —Está bem e são, Ryssa. Aprecio-o como se fora de minha casa. Ele tem tudo o que quer. Estarei encantado de lhe dizer que perguntaste por seu bem-estar.

     Ainda assim, algo em meu interior não se contentava o suficiente com essas palavras. Pedi a pai repetidamente que enviasse a Acheron. Que lhe trouxesse para casa ao menos pelas festas. Como príncipe, nunca deveria ter sido enviado longe. Contudo ali, ele permanecia em um país que estava em constante conflito conosco. Inclusive, embora Estes fosse um embaixador, isso não mudava o fato de que se iam à guerra, Acheron, como príncipe Grego, morreria.

     E papai se negava a cada pedido que eu fazia.

     Tinha estado escrevendo a Acheron durante anos e ele normalmente me escrevia religiosamente.

     Suas cartas sempre eram breves, com apenas um punhado de detalhes, mas inclusive assim, eu entesourava cada uma.

     Assim quando me chegou uma carta há algumas semanas, não pensei que houvesse algo incomum nisso.

     Não até que a li.

    

Minhas mais estimadas e exaltadas saudações Princesa Ryssa.

Perdoe-me por meu atrevimento. Perdoe-me por minha rabugice. Encontrei uma de suas cartas escritas a Acheron e hei, com grande perigo para mim mesma, decidido lhe escrever. Não posso lhe dizer que danos acontecem a ele, mas se realmente ama a seu irmão como diz fazê-lo, então lhe peço que venha e o veja.

    

     Eu não disse nada a respeito da carta. Esta não tinha sido sequer assinada. Por tudo o que eu sabia podia ser uma armadilha.

     Ainda assim, não podia tirar a sensação de que não o era, que Acheron necessitava de mim.

     Durante dias me debati a respeito de ir até que não pude me conter mais.

     Tomando a meu guarda pessoal Boraxis comigo para minha proteção, escapuli-me do palácio e disse a minhas donzelas que dissessem a meu pai que estava visitando minha tia em Atenas. Boraxis pensou que eu era uma enorme estúpida por viajar todo o caminho até a Atlântida por uma carta que o autor nem sequer tinha assinado, mas não me importava.

     Se Acheron precisava de mim, então iria ali.

     Entretanto, essa coragem vacilou dias depois quando encontrei a mim mesma aos subúrbios da casa de meu tio na cidade capital de Atlântida. A brilhante construção vermelha era inclusive mais intimidante que nosso palácio em Didymos. Era como se tivesse sido desenhado sem outro propósito que inspirar temor e admiração. É obvio, como nosso embaixador, isto beneficiava tanto a Estes como impressionava aos nossos inimigos.

     Muito mais avançada que minha Grécia natal, a ilha do reino de Atlântida brilhava e resplandecia. Havia mais atividade dessas pessoas ao meu redor da que jamais tinha visto antes. Era realmente uma buliçosa metrópole.

     Tragando o temor que sentia, olhei a Boraxis. Mais alto que a maioria dos homens, com o cabelo negro trançado descendo por suas costas, era enorme e corpulento. Letal. E me era exageradamente leal, inclusive, embora fora um servente. Tinha estado me protegendo desde que eu era uma menina e sabia que podia depender dele.

     Nunca permitiria que me fizessem mal.

     Me recordando disso, subi as escadas de mármore, até a entrada dourada. Um servente abriu a porta, inclusive antes que a alcançasse.

     —Minha senhora —disse diplomaticamente, —Posso ajudá-la?

     —Vim para ver Acheron.

     Ele inclinou a cabeça e me disse que o seguisse ao interior. Encontrei estranho que o servente não me perguntasse meu nome ou negócios com meu irmão. Em casa, a ninguém lhe estava permitido aproximar-se da família real sem uma completa investigação.

     Admitir alguém desconhecido em nossa residência privada era um crime castigado com a morte. Ainda assim, a este homem não importava nos conduzir através da casa de meu tio.

     Uma vez que alcançamos outro salão, o homem frente a mim se voltou para olhar a Boraxis.

     —Sua escolta se unirá a você durante seu tempo com Acheron?

     Franzi o cenho ante a estranha pergunta.

     —Suponho que não.

     Boraxis aspirou ar com força. Havia preocupação em seus profundos olhos marrons.

     —Princesa…

     Pus-lhe a mão sobre o braço.

     —Estarei bem. Espere-me aqui e retornarei em seguida.

     Ele não parecia nada contente com minha decisão e honestamente, eu tampouco o estava, mas certamente ninguém me machucaria na casa de meu tio. Assim que o deixei ali e continuei descendo pelo corredor.

     E enquanto caminhávamos, o que mais me surpreendeu a respeito da casa de meu tio era quão extremamente silenciosa estava. Nem sequer se podiam ouvir murmúrios. Nem risadas. A ninguém falando.

     Só nossas pegadas ressonando sob o longo e escuro corredor. O mármore negro se estendia tão longe como alcançava a vista, refletindo nossas imagens quando nos dirigíamos através da opulência de nuas estátuas e exóticas plantas e flores.

     O criado me conduziu a um aposento no lado mais afastado da casa e abriu uma porta.

     Eu passei ao interior e vacilei, quando me dava conta que este era o dormitório de Acheron. Quão estranho era para ele me admitir ali sem saber que eu era a irmã de Acheron. Então outra vez, possivelmente ele o fizesse. Isso explicaria muitas coisas.

     É obvio, devia ser isso. Ele devia haver-se dado conta de que eu tinha uma grande semelhança com meus irmãos. Exceto pelos divinos olhos chapeados de Acheron, nós éramos idênticos.

     Me relaxando, joguei uma olhada. Era um cômodo excepcionalmente grande, com uma enorme chaminé. Havia dois sofás ante uma lareira de pedra com uma estranha estrutura entre elas. Isto me recordava ao bloco de castigo, mas isso não tinha sentido. Possivelmente fora algo único em Atlântida. Toda minha vida tinha ouvido que essa gente tinha estranhos costumes.

     A cama em si mesma era bastante pequena para um cômodo deste tamanho, com quatro altas colunas esculpidos com o complexo desenho de um pássaro. Em cada coluna, a cabeça do pássaro estava girada para baixo de modo que pudessem sustentar os ganchos que sujeitavam as negras cortinas, ainda assim ali não havia cortinas de cama.

     Assim como o vestíbulo que levava ao quarto, as paredes eram de um brilhante mármore negro que devolvia minha imagem à perfeição. E enquanto jogava uma olhada, me dei conta que não havia nenhuma janela em todo o quarto. Nem sequer havia um balcão. A única luz provinha dos parapeitos dispersos na parede. Isto fazia o quarto muito escuro e sinistro.

     Quão estranho…

     Três serventes estavam fazendo a cama de Acheron e uma quarta mulher os fiscalizava. A supervisora era uma mulher de pequena estatura que parecia estar ao redor dos quarenta ou algo assim.

     —Não é o momento —disse ela ao homem que me tinha conduzido através da casa—. Ele ainda está se preparando.

     O homem curvou o lábio ante ela.

     —Dirás tu a Gerikos que tenho a uma cliente esperando enquanto Acheron se atrasa?

     —Mas ele nem sequer teve tempo de comer ainda —insistiu a mulher—. Esteve trabalhando toda a manhã sem um só descanso.

     —Traga-o.

     Franzi o cenho ante suas sussurrantes palavras e sua conduta. Aqui algo não ia de todo bem. Por que meu irmão, um príncipe, estaria trabalhando?

     A mulher se voltou para uma porta no lado mais afastado do dormitório.

     —Espera —lhe disse, detendo-a—. Eu irei até ele. Onde está?

     A mulher lhe dedicou um aterrado olhar ao homem.

     —É seu tempo com ele —disse com firmeza o homem—. Deixa à dama fazer o que desejar.

     A mulher mais velha se colocou a um lado e abriu a porta de um hall. Quando passei através dela, ouvi a ela e ao homem reunir aos serventes e partir.

     De novo, quão peculiar…

     Vacilando, entrei na sala esperando encontrar ao irmão gêmeo de meu irmão Styxx. Um arrogante jovem que sabia tudo do mundo. Um insultante, homenzinho arrogante que se perguntaria por que o incomodava com tão insensata busca.

     Não estava absolutamente preparada para o que encontrei.

     Acheron estava sentado em uma enorme tina de banho a sós. Tinha suas costas descobertas para mim e inclinava sua cabeça loira para frente como se estivesse muito cansado para erguer-se enquanto se banhava. O comprido cabelo lhe caía passando os ombros e estava úmido, mas não molhado.

     Com o coração acelerado, movi-me para frente e adverti uma forte essência de laranjas no ar. Uma pequena bandeja de pão e queijo estava depositada no chão ao seu lado, sem tocar.

     —Acheron? —sussurrei.

     Ele se congelou durante um momento, então clareou sua cara na água. Deixou a tina e se envolveu rapidamente em uma toalha secando-se como se lhe desse completamente igual a eu tivesse interrompido em seu banho.

     Havia um ar de poder que o rodeava enquanto se secava com curtas e rápidas passadas, então lançou a toalha para um pequeno montão delas.

     Por um instante, estive cativada por sua juvenil e masculina beleza. Pelo fato de que não fizesse nenhum movimento por vestir-se ou cobrir-se. Tudo o que o adornavam eram trilhas de ouro. Tinha uma fina ao redor do pescoço que sustentava um pequeno pendente de algum tipo. As bandas mais grossas rodeavam cada um de seus bíceps na parte superior de seus braços e até a união do cotovelo com outra banda ao redor de seus pulsos. Uma corrente de pequenos círculos conectava cada banda ao longo de seus braços. E uma pequena banda de ouro com uma pequena argola estavam conectadas a cada um de seus tornozelos.

     Quando ele se aproximou de mim, fiquei atônita pelo que vi. Ele era o gêmeo idêntico de Styxx na aparência e ainda assim via algumas semelhanças entre ambos.

     Styxx se movia mais rápido. Mercurialmente.

     Acheron se movia devagar. Metodicamente. Era igual a uma sensual sombra cujos movimentos eram uma poética sinfonia de músculo, nervo e graça.

     Era mais magro que Styxx. Muito magro, como se não tivesse suficiente comida que comer. Inclusive assim, seus músculos eram extremamente bem definidos e polidos à perfeição.

     Ele ainda tinha esses estranhos olhos chapeados, mas só brilharam brevemente antes que afastasse o olhar para o chão a seus pés.

     Também havia algo estranho nisso. Um ar de desesperada resignação o rodeava. Era o que havia visto incontáveis vezes nos camponeses e mendigos que deviam reunir esmolas às portas de palácio.

     —Me desculpe, minha senhora —disse brandamente, sua voz estranhamente sedutora e suave enquanto falava entre dentes—. Não sabia que virias.

     Suas correntes titilaram brandamente no silêncio, ele se moveu atrás de mim igual a um suave e sedutor espírito. Alcançou a rodear meu pescoço e me desabotoou a capa.

     Aturdida por suas ações, não pensei em protestar quando me tirou a peça e a atirou ao chão. Não foi até que me afastou o cabelo do pescoço e se moveu para beijar a nua pele descoberta por ele.

     —O que estás fazendo?

     Ele parecia tão estranhado como me sentia eu, mas ainda mantinha seu olhar fixo no chão ante mim.

     —Não me instruiu para o que haveis pagado, minha senhora —disse brandamente—. Supus por vosso olhar que me queria suavemente. Equivoco-me?

     Fiquei tão sacudida por suas palavras, como também pelo fato de que ele continuava apertando a mandíbula.

     —Por que falas dessa maneira? Pagar por que? Acheron, sou eu. Ryssa.

     Ele franziu o cenho como se não recordasse seu nome. Ele se estirou até mim outra vez.

     Eu me coloquei a um lado e agarrei minha capa do chão.

     —Sou sua irmã, Acheron. Não me conheces?

     Seus olhos brilharam de aborrecimento quando encontraram seu olhar durante um instante.

     —Eu não tenho irmã.

     Meus pensamentos giraram enquanto tentava encontrar sentido a isso. Este não era o menino que me tinha escrito cartas quase cada dia, o menino que me contava seus dias de ócio.

     —Como podes dizer isso depois de todos os presentes e cartas que te enviei?

     Seu rosto se relaxou como se finalmente entendesse.

     —Ah, isto é um jogo que desejas jogar comigo, minha senhora. Desejas que seja teu irmão.

     Eu o olhei com frustração.

     —Não, Acheron, não é um jogo. Você é meu irmão e te escrevi quase a cada dia e tu, de volta, me escrevias.

     Eu podia sentir que ele queria me olhar e ainda não o fazia.

     —Sou analfabeto, minha senhora. Não serei capaz de brincar convosco dessa maneira.

     A porta atrás de mim se abriu de repente. Um homem baixo e gordinho que levava uma larga bata Atlante irrompeu nela. Estava lendo um pergaminho e não nos prestava atenção.

     —Acheron, por que não estás em teu… —sua voz diminuiu quando levantou o olhar para ver-me.

     Seu olhar se entrecerrou perigosamente.

     —O que é isto? —grunhiu. Voltou uns furiosos olhos para Acheron que retrocedeu dois passos—. Estás tomando clientes sem me notificar?    

     Eu vi o temor no rosto de Acheron.

     —Não, despotis —disse Acheron usando o termo atlante para professor—. Nunca faria tal coisa.

     A fúria curvou os lábios do homem. Agarrou a Acheron pelo cabelo e o obrigou a ajoelhar-se sobre o duro chão de pedra.

   —O que está fazendo ela aqui então? Estás te entregando novamente grátis?

     —Não, despotis —disse Acheron, apertando os punhos como se tentasse não estirar-se e tocar ao homem que lhe estava puxando o cabelo—. Por favor. Juro que não tenho feito nada de errado.

     —Deixe-o ir! —Agarrei a mão do homem e tentei obrigá-lo a afastar-se de meu irmão—. Como te atreves a atacar um príncipe! Terei tua cabeça por isso!

     O homem riu em minha cara.

     —Ele não é um príncipe. Não é verdade, Acheron?

   —Não, despotis. Eu não sou nada.

     O homem chamou por seus guardas para me escoltar para fora.

     Eles entraram imediatamente na sala para me agarrar.

     —Não irei —disse. Girei aos guardas e lhes dediquei meu mais altivo olhar—. Sou a Princesa Ryssa da Casa de Arikles de Didymos. Exijo ver meu Tio Estes. Agora. Mesmo.

     Pela primeira vez, vi a reserva penetrar nos olhos do homem.

     —Me perdoe, Princesa —disse ele, seu tom menos que de desculpa—. A levarei a sala de recepção de seu tio.

     Ele assentiu aos guardas.

     Horrorizada por sua arrogância, voltei-me para partir. No mármore negro, vi-o sussurrar algo a Acheron.

     O rosto de Acheron empalideceu.

     —Idikos prometeu que não teria que lhe ver mais.

     O homem puxou o cabelo de Acheron.

     —Fará como te digo. Agora te levante e te prepare.

     Os guardas fecharam a porta e me obrigaram a sair do cômodo. Conduziram-me através da casa até que chegamos a uma pequena sala de recepção que estava vazia à exceção de três pequenos assentos.

     Não sabia ou entendia o que estava passando ali. Se alguém houvesse tocado a mim ou a Styxx da maneira em que esse homem havia tocado a Acheron, meu pai o teria feito matar imediatamente.

     Ninguém tinha permitido nos falar sem o devido respeito e reverência.

     —Onde está meu tio? —perguntei aos guardas quando começaram a partir.

     —Está na cidade, Alteza. Voltará em breve.

     —Enviem–me até ele. Agora.

     O guarda inclinou a cabeça ante mim, então fechou a porta.

     Só tinha passado um curto tempo quando uma porta secreta se abriu ao lado da chaminé. Era a supervisora que tinha estado no aposento de Acheron quando cheguei, a mulher mais velha que tinha estado preocupada com seu bem-estar.

     —Sua alteza? —perguntou vacilante—. Sois realmente vós?

     Foi então que me dava conta quem devia ser ela.

     —Tu és a que me escreveu me pedindo que os visitasse?

     Ela assentiu.

     Eu respirei aliviada. Finalmente alguém quem poderia dar uma explicação.

     —O que está acontecendo aqui?

     A mulher exalou um profundo e desigual fôlego, como se o que fosse dizer a ferisse profundamente.

     —Eles vendem a seu irmão, mi lady. Fazem-lhe coisas que ninguém deveria sofrer.

     Meu estômago deu um tombo ante suas palavras.

     —O que queres dizer?

     Ela retorceu suas mãos no avental de seu vestido.

     —Que idade tens, minha senhora?

     —Vinte e três.

     —És donzela?

    Ofendeu-me que se atrevesse a fazer uma pergunta tão íntima.

     —Isso não é de vossa incumbência.

     —Me perdoes, minha senhora. Não quis vos ofender. Simplesmente tentava ver se entenderias o que eles lhe fazem. Sabeis que é um tsoulus?

     —É obvio, eu… —O absoluto horror me consumiu. Esse era um termo atlante que não tinha uma autêntica tradução em grego, mas conhecia a palavra. Eram homens e mulheres jovens treinadas como escravos sexuais para os ricos e os nobres. Ao contrário das prostitutas e outros dessa estirpe, eles eram cuidadosamente treinados e isolados a idade muito nova.

     A mesma idade que tinha tido meu irmão quando o afastaram de casa.

     —Acheron é um tsoulus?

     Ela assentiu.

     A cabeça me deu um tombo. Isto não podia ser.

     —Mentes.

     Ela negou com a cabeça.

     —É pelo que vos disse que viésseis, minha senhora. Sabia que não acreditarias a menos que o vísseis vós mesma.

     E ainda assim não acreditava. Não era possível.

     —Meu tio nunca permitiria tal coisa.

     —Vosso tio é o único que o vende. O que achais que paga esta casa?

     Senti-me doente com as notícias e ainda parte de mim se negava a acreditar em algo que era verdadeiramente óbvio.

     —Não acredito em ti.

     —Então venha, se te atreves, e veja por ti mesma.

     Eu não queria e ainda assim a segui pelos escuros passadiços da casa. Caminhamos sem fim até que alcançamos o hall onde Acheron se esteve banhando.

     Ela elevou o dedo a seus lábios para me advertir que guardasse silêncio.

     Foi então que os ouvi. Possivelmente fora virgem, mas não era ingênua. Tinha ouvido a outros copulando nas festas que meu pai me proibida atender.

     Mas pior que os sons de prazer eram os gritos de dor que ouvi de meu irmão. O homem estava machucando a Acheron e ele estava tomando grande prazer da dor que lhe causava.

     Dirigi-me para a porta só para encontrar à mulher em meu caminho.

     Ela falou em um tom baixo, mortal.

     —Detenha-os, minha senhora, e seu irmão sofrerá de maneira que não podes imaginar.

     Suas sussurrantes palavras passaram através de mim. Minha alma gritou para que o detivera. Mas a mulher tinha muita razão em tudo. Ela conhecia meu irmão e meu tio incluso melhor do que eu o fazia.

     A última coisa que queria era ver ele inclusive mais ferido.

     Finalmente. Depois do que pareceu uma eternidade, houve silêncio.

     Ouvi os fortes passos cruzando o dormitório, então a porta abrir-se e fechar-se.

     Aturdida, não podia respirar. Não podia me mover.

     A donzela abriu a porta a seu aposento para mostrar Acheron encadeado à cama por aqueles círculos. Os de seus pulsos e tornozelos tinham sido encadeados às argolas que decoravam os bicos de pássaro das quatro colunas.

     E eu estupidamente pensei que eram para enganchar as cortinas da cama.

     “Não me instruiu para o que haveis pagado. Supus por vosso olhar que me querias suavemente”.

     Essas palavras me rasgaram quando observei à mulher lhe soltando.

     Não podia tirar meus olhos da vista dele ali estendido, nu. Ferido. Sangrando.

     Meu irmão.

     As lágrimas encheram meus olhos quando recordei a última vez que o tinha visto. Sua cheia carinha tinha sido ferida, mas não desta maneira. Agora seus lábios estavam partidos, seu olho esquerdo inchado, o nariz manchado de sangue. Havia marcas de mãos vermelhas e machucados formando-se sobre a maior parte de seu corpo.

     Ninguém merecia isso.

     Adiantei-me um passo ao mesmo tempo em que a porta mais afastada se abria. A supervisora me indicou que saísse do aposento.

     Aterrada, deslizei às sombras onde poderia ouvir sem ser vista.

     Soou uma maldição.

     —O que aconteceu aqui?

     Eu reconheci a voz de meu Tio Estes.

     —Estou bem, Idikos. —disse Acheron, sua voz débil e cheia de dor. Soava como se ele deixasse a cama e caísse.

     Eu esperava que meu tio ficasse furioso com o homem que tinha ferido a Acheron. Não o fez. Sua fúria era para meu irmão.

     —És um verme —gritou Estes—. Te olhes. Não vales um só assim.

     —Estou bem, Idikos —insistiu Acheron em uma voz tão sumida que me revolveu o estômago—. Posso limpar meus…

     —Traga o bloco e castiga-o —Disse Estes, lhe interrompendo.

     Ouvi Acheron protestar, mas em vez de palavras sua voz foi amortecida como se algo lhe impedisse de falar.

     Eu desejava a coragem para irromper na habitação e lhes dizer que se detivessem, mas nem sequer podia fazer com que meus pés me obedecessem. Estava muito horrorizada para me mover.

     Escutei como as correntes tilintavam e então ouvi o som de madeira golpeando a carne.

     Acheron gritou, um amortecido som de dor.

     A surra continuou uma e outra vez até que Acheron finalmente calou. Afundei-me no chão, soluçando por ele. Levei-me o punho à boca, silenciando minhas lágrimas enquanto tentava pensar no que devia fazer. Como poderia parar isto?

     Quem no mundo acreditaria em mim? Estes era o mais amado irmão de meu pai. Não havia maneira de que ele aceitasse minha palavra sobre a dele. Nunca.

     —Lhe ponha na caixa —disse Estes.

     —Por quanto tempo? —respondeu o outro homem.

     Ouvi o aborrecido suspiro de Estes.

     —Inclusive com sua habilidade para sarar rapidamente, levará ao menos um dia antes que esteja o bastante bem para entreter outra vez. Encontra a Ores e diga que nos pague por nossas perdas. Cancela os encontros de Acheron e lhe deixe ali até amanhã pela manhã.

     —O que há a respeito da comida? —perguntou a supervisora.

     Estes bufou.

     —Se não puder trabalhar, não pode comer. Não ganhou sua comida este dia.

     Ouvi uma porta abrindo-se e fechando-se.

     —Agora, onde está minha sobrinha?

     —Está na sala de recepção —disse a donzela.

     —Não estava ali quando entrei.

     —Disse que ia à cidade —a supervisora acrescentou rapidamente—. Estará de volta em breve, estou segura.

     —Faça-me saber ao instante em que volte —grunhiu Estes—,diga que Acheron está fora, visitando uns amigos.

     O homem deixou a sala.

     Sentei-me no chão, olhando fixamente ao tanque do banheiro. Olhando fixamente as paredes desse cômodo.

     Quantos clientes teria entretido meu irmão? Quantos dias tinha vivido com o que eu somente tinha vislumbrado?

     Tinham passado nove anos. Certamente nem sempre tinha sido assim para ele. Verdade?

     O mero pensamento me adoecia.

     A supervisora voltou. Vi o horror em seus olhos e me perguntei se eu teria o mesmo olhar nos meus.

     —Quanto tempo hão estado lhe fazendo isto? —perguntei.

     —Eu venho trabalhando aqui quase um ano, minha senhora. Foi desde antes que eu viesse.

     Tentei pensar no que devia fazer. Eu era uma mulher. Nada em um mundo de homens de poder. Meu tio não me escutaria. De fato, meu pai nem sequer me escutaria.

     Nunca acreditaria que seu irmão pudesse fazer tal coisa. Assim como eu não podia acreditar que o carinhoso tio ao qual sempre tinha amado e adorado pudesse fazer tal coisa.

     Ainda assim não havia negação nisto.

     Como podia Estes vir ao nosso palácio e estar comigo e Styxx, sabendo que enquanto ele estava em casa, ele estava vendendo um menino que era idêntico a Styxx em todas formas, exceto por seus olhos?

     Isto não tinha sentido.

     A única coisa que sabia era que não podia deixar Acheron aqui. Não assim.

     —Podes trazer para minha escolta a esta sala sem que o vejam? —perguntei-lhe.

     A donzela assentiu.

     Ela me deixou e esperei em meu canto muito assustada para me mover.

     Quando ela voltou com Boraxis, finalmente encontrei a coragem para me levantar.

     Boraxis franziu o cenho enquanto me ajudava a me pôr em pé.

     —Vai tudo bem, minha senhora?

     Assenti aturdida.

     —Onde está Acheron? —perguntei-lhe à donzela.

     Ela me conduziu aos seus aposentos.

     Outra vez vi a cama que estava ainda desordenada e manchada de sangue. Afastando o olhar, segui-a a uma porta.

     Quando a abriu, Acheron estava no interior, ajoelhado sobre uma dura almofadinha que tinha duros vultos que lhe mordiam os joelhos, lhe causando dor. O interior do quarto era minúsculo, por isso sabia tinha sido construído sem nenhum outro propósito que o de castigá-lo. Ele estava nu, seu corpo ferido e ensangüentado. Os braceletes de seus pulsos tinham sido unidos as suas costas, mas o que tinha capturado minha atenção era a planta de seus pés.

     Estavam enegrecidos pelos machucados.

     Agora entendia o som que tinha ouvido. Que melhor lugar para golpear a alguém quando não queria que machucasse seu corpo? Ninguém veria as plantas de seus pés.

     Tão brandamente como pudemos, a donzela e eu o tiramos do armário. Havia uma estranha correia grampeada ao redor de sua cabeça. Quando a donzela a retirou, me dei conta que esta continha uma enorme bola com espinhos sob sua língua. Havia sangre fresco gotejando pelos cantos de sua boca.

     Estremeci-me quando a tirou e ele vaiou de dor.

     —Volta a me pôr ela —disse entre dentes quando a donzela lhe libertou as mãos.

     —Não —lhe disse—. Vou te tirar fora daqui.

     Ainda assim ele manteve seus dentes firmemente apertados.

     —Tenho proibição de partir, minha senhora. Jamais. Por favor, deveis me devolver. É pior quando luto com eles.

     Meu coração se rompeu ante suas palavras. O que lhe tinham feito que estava tão apavorado para inclusive tentar partir?

     Ele tentou retornar a sua sala de tortura, mas o impedi e o obriguei a voltar.

     —Não deixarei que te façam mal nunca mais, Acheron. Juro-o. Levar-te-ei para casa.

     Ele me olhou como se as palavras fossem estranhas para ele.

     —Eu tenho que ficar aqui —insistiu ele—Não é seguro para eu sair.

     Ignorei-lhe e me voltei para a donzela.

     —Onde estão suas roupas?

     —Não tem nenhuma, minha senhora. Não as necessita para o que eles o usam.

     Dei um pulo ante suas palavras.

     —Que assim seja.

     Envolvi-o em minha capa e com ajuda de Boraxis, o tiramos da casa enquanto Acheron protestava a cada passado do caminho. Minhas pernas e mãos estavam tremendo por medo de que fôssemos descobertos em algum momento por Estes ou algum de seus serventes.

     Felizmente a donzela conhecia cada curva da casa e saímos à rua.

     De algum modo, o fizemos em custoso herio[2] fechado detrás da casa. Boraxis subiu à parte de cima com o condutor enquanto Acheron e eu montávamos dentro. Sozinhos. Juntos.

     Não respirei realmente outra vez até que a casa de Estes desapareceu e estivemos aos subúrbios dos muros da cidade, cruzando a ponte e no caminho que eventualmente nos levaria aos cais.

     Acheron se sentava em um canto, olhando para fora através da pequena janela e sem dizer nada.

     Seus olhos estavam mortos. Sem vida. Como se tivesse visto o horror muitas vezes.

     —Necessitas de um médico? —perguntei-lhe.

     Ele negou com a cabeça.

     Queria lhe abraçar e lhe confortar, mas não estava segura que alguma coisa sobre a terra poderia fazê-lo.

     Nós viajamos em completo silêncio até que chegamos a um pequeno povoado. O condutor trocou os cavalos enquanto nós entrávamos em uma pequena casa para esperar. Eu aluguei um quarto a uma anciã de modo que pudéssemos nos lavar e descansar em paz.

     Boraxis encontrou ou comprou de algum modo roupas para Acheron. Eram um pouco pequenas para ele e de tecido áspero, mas ele não se queixou. Simplesmente as olhou e se vestiu no quarto alugado.

     Adverti que Acheron coxeava quando saiu do quarto onde eu o esperava no estreito corredor. Meu coração doeu ao pensar nele, caminhando com os pés feridos, e ainda assim, ele ainda não emitia palavras de queixa.

     —Vamos, Acheron, devemos comer enquanto podemos.

     O pânico cintilou em seus olhos. Este foi instantaneamente seguido por um olhar de resignação.

     —O que ocorre? —perguntei.

     Ele não respondeu. Simplesmente puxou o capuz de sua capa sobre a cabeça como se defendesse a si mesmo do mundo. Com a cabeça baixa e seus braços ao redor de si mesmo, seguiu-me a pequena copa de baixo.

     Eu dirigi a uma mesa na parte de trás, perto do calor.

     —A quem tenho que pagar pela comida? —perguntou Acheron rapidamente, sua cara completamente defendida pelo capuz.

     Olhei-lhe com o cenho franzido.

     —Tens dinheiro?

     Ele pareceu tão atônito por minha pergunta como eu o estava pela sua.

     “Se não puder trabalhar, não pode comer. Hoje não há ganhado sua comida”

     Meu estômago se encolheu quando recordei o que havia dito Estes. As lágrimas me estrangularam.

     Ele pensava que eu queria que ele…

     —Eu pagarei nossa comida, Acheron, com meu dinheiro.

   O alívio em sua cara espremeu inclusive mais meu coração.

     Sentei-me. Acheron rodeou a mesa e se ajoelhou no chão a minha direita, justo atrás de mim.

     Olhei-o estranhamente por cima do ombro.

     —O que estás fazendo?

     —Me perdoe, minha senhora. Não pretendia te ofender. —ele escorreu sobre seus joelhos várias polegadas mais.

     Completamente pasma, voltei-me e fiquei lhe olhando.

     —Por que estás no chão?

     Ele pareceu imediatamente decepcionado.

     —Vos esperarei no quarto.

     Ele se moveu para partir.

     —Espera. —disse-lhe, tomando pelo braço—. Não estás faminto? Estava te dizendo que não hás comido.

     —Estou faminto —disse simplesmente entre seus apertados dentes.

     —Então te sente.

     Outra vez se ajoelhou no chão.

     O que estava fazendo?

     —Acheron, por que estás no chão e não sentado à mesa comigo?

     Seu olhar era vazio, humilde.

     —Os putos não se sintam à mesa com pessoas decentes.

     Sua voz era tão constante como se simplesmente estivesse repetindo algo que se havia dito tão freqüentemente que não tinha nenhum significado para ele.

     Mas as palavras cortaram através de mim.

     —Não és um puto, Acheron.

     Ele não discutiu verbalmente, mas podia ver a dúvida em seus pálidos, tempestuosos olhos.

     Estirei-me para lhe tocar o rosto. Ele ficou ligeiramente rígido.

     Deixei cair minha mão.

     —Vamos —disse brandamente—, sente-se à mesa comigo.

     Ele fez o que lhe disse, mas parecia terrivelmente incômodo, como se temesse que alguém lhe arrebatasse o capuz do cabelo a qualquer momento. Uma e outra vez puxava o capuz para proteger-se.

     Foi então quando me dava conta que a segunda maneira de castigar a alguém quando não queres que as marcas sejam visíveis. A cabeça. Quantas vezes lhe teriam puxado o cabelo?

     Um criado se aproximou para tomar nota.

     —O que você gostaria, Acheron?

     —Minha vontade é a tua, Idika.

     Idika. Uma palavra atlante que um escravo usava para seu proprietário.

     —Não tens preferência?

     Ele negou com a cabeça.

     Pedi nossa comida e o observei. Mantinha o olhar no chão, seus braços rodeando seu corpo.

     Quando ele se moveu para tossir, captei uma olhada de algo estranho em sua boca.

     —O que é isso? —perguntei-lhe.

     Ele me olhou, então baixou o olhar.

     —O que é que, Idika? —perguntou outra vez com a mandíbula apertada.

     —Sou sua irmã, Acheron, pode me chamar de Ryssa.

     Ele não respondeu.

     Suspirando, voltei para minha pergunta original.

     —O que há em tua boca? Deixe-me ver tua língua.

     Ele separou obedientemente os lábios. Toda a linha central de sua língua estava perfurada e cheia de pequenas bolas douradas que brilhavam à luz. Eu nunca tinha visto nada igual a isso em minha vida.

     —O que é isso? —perguntei franzindo o cenho.

     Acheron fechou a boca e pela maneira em que moveu seus lábios e mandíbula, poderia dizer que estava esfregando as bolas contra o paladar de sua boca.

     —Erotiki sfairi.

     —Não entendo esse termo.

     —Esferas sexuais, Idika. Fazem mais estimulantes minhas lambidas àqueles aos que sirvo.

     Não tinha podido estar mais surpreendida se ele a tivesse esbofeteado. Ele não era consciente a respeito de algo que era tabu no mundo que eu conhecia.

     —Machucam-te? —não podia acreditar que estivesse fazendo essa pergunta.

     Ele sacudiu a cabeça.

     —Só tenho que tomar cuidado de não deixar que golpeiem meus dentes por temor a que se rompam.

     Assim que isso é pelo que mantinha a mandíbula apertada quando falava.

     —Contudo é uma maravilha que possas falar.

     —Ninguém paga a um puto para usar sua língua para falar, Idika.

     —Tu não és um puto! —várias cabeças se voltaram, fazendo com que me desse conta que tinha falado mais alto do que tinha querido.

     Minhas bochechas arderam, mas não havia vergonha no rosto de Acheron. Ele simplesmente o aceitava como se ele não fora nada mais e não merecesse nada melhor.

     —Tu és um príncipe, Acheron. Um príncipe.

     —Então por que me deixastes?

     Sua pergunta me sobressaltou. Não só as palavras em si mesmas, mas também o sincero sentimento de dor em sua voz quando as disse.

     —O que queres dizer?

     —Idikos me disse que isso era o que diziam todos.

     Idikos. A forma masculina da palavra que um escravo usava para seu proprietário.

     —Quer dizer Estes?

     Ele assentiu.

     —Ele é seu tio, não seu idikos.

     —As pessoas não discutem com um látego ou uma surra, minha senhora. Ao menos não por muito tempo.

     Eu traguei ante suas palavras. Não, supunha que não.

     —O que te disse?

     —O rei me quer morto. Vivo só por que o filho ao que ama morrerá se eu morrer.

     —Isso não é verdade. Papai diz que te enviou longe porque temia que alguém tentasse te ferir. Tu és teu herdeiro.

     Acheron manteve o olhar no chão.

     —Idikos diz que eu sou uma vergonha para minha família. Indigno de estar com algum de vós. Isso é pelo que o rei me enviou longe e disse a todo mundo que eu estava morto. Eu só sou bom para uma coisa.

     Não necessitava que me dissesse qual era essa coisa.

     —Ele te mentiu —meu coração se rompeu com o peso da verdade—. Ele só nos esteve mentindo para mim e para Papai. Ele nos disse que tu estavas são e feliz. Bem educado.

     Ele riu com amargura ante isso.

     —Eu estou bem educado, Idika. Acredite-me, sou o melhor no que eles me treinaram para fazer.

     Como podia encontrar humor nisso?

     Afastei o olhar dele quando os serventes nos trouxeram a comida. Quando comecei a comer, adverti que Acheron não se moveu. Ele ficava olhando a comida diante dele com fome nos olhos.

     —Coma —lhe disse.

     —Não me destes minha porção, minha senhora.

     —O que queres dizer?

     —Vós comeis, e se eu vos agrado enquanto comeis, vós determinais quanta comida tenho que tomar.

     —Me agradar como… não espera. Não responda a isso. Não estou segura de que queira sabê-lo —Suspirei, então indiquei com um gesto seu prato e taça—. Tudo isso é para ti. Pode comer tanto ou tão pouco como queiras.

     Ele ficou olhando-o vacilante, então jogou uma olhada ao chão atrás de mim.

     Foi então que entendi por que se ajoelhou no chão.

     —Normalmente come no chão, verdade?

     Igual a um cão ou roedor.

     Ele assentiu.

     —Se for particularmente agradável —disse brandamente—, Idikos algumas vezes me alimenta de sua mão.

     O apetite me abandonou ante essas palavras.

     —Coma em paz, irmãozinho —lhe disse, minha voz quebrada pelas lágrimas não derramadas—. Coma tanto como queiras.

     Tomei o vinho, tentando assentar meu estômago e o olhei enquanto comia.

     Tinha maneiras perfeitas e de novo me surpreendeu o lentamente que comia. Quão meticulosamente se movia.

     Cada gesto era bonito. Preciso.

     E estava designado a seduzir.

     Movia-se igual a um puto.

     Fechei os olhos, queria gritar a injustiça disto. Era o primogênito. Era o único que devia ser herdeiro ao trono e ali estava…

     Como podiam lhe haver feito isso?

     E por que?

     Por que seus olhos eram diferentes? Por que esses olhos faziam que as pessoas se sentissem incômodas?

     Não havia nada ameaçador nesse menino. Ele não era igual a Styxx, a quem lhe conhecia por ter feito encarcerar e golpear as pessoas só por que lhe ofendiam. Um pobre camponês tinha sido golpeado por que tinha vindo ao palácio sem sapatos cobrindo seus pés. Sapatos dos quais não podia dispor.

     Acheron não jogava comigo a esse jogo de erro, ou ria de outros. Ele não tinha julgado a ninguém ou os tinha feito sentir-se insignificantes.

     Ao contrário, simplesmente se sentava ali comendo em silêncio.

     Uma família tinha entrado e se sentou na mesa ao lado deles. Acheron fez uma pausa ao advertir ao menino e à menina. O menino era alguns anos mais jovem que ele e a menina provavelmente de sua idade.

     Pelo olhar em sua cara, podia dizer que não tinha visto antes a uma família sentar-se juntos à mesa. Ele os estudou com curiosidade.

     —Posso falar, minha senhora?

     —É obvio.

     —Vós e Styxx se sentais e comeis com vossos pais dessa forma?

     —Eles também são teus pais.

     Ele voltou para sua comida sem fazer comentários.

     —Sim —disse—, algumas vezes jantamos com eles dessa maneira.

     Mas Acheron nunca o tinha feito. Inclusive quando tinha estado conosco em casa, tinha-lhe sido proibida a mesa familiar.

     Depois disso, ele não tinha falado. Nem sequer olhou à família. Simplesmente comeu com essas impecáveis maneiras suas.

     Belisquei a comida, mas encontrei que não tinha muita fome depois de tudo.

     Levei-nos de retorno aos nossos quartos para esperar que o condutor terminasse suas coisas e alimentasse aos cavalos. Estava quase entardecendo e não estava segura se continuaríamos viajando através da tarde ou não.

     Sentei-me na pequena cadeira e fechei os olhos para descansar. Tinha sido um dia muito comprido. Quase nem tinha chegado a Atlântida essa manhã e não tinha esperado retornar tão cedo. Sem mencionar o indevido estresse de roubar a meu irmão de meu tio. Nesse momento, tudo o que eu queria era dormir.

     Senti a Acheron frente a mim.

     Abrindo os olhos, vi-o nu outra vez à exceção de suas bandas.

     Eu franzi o cenho ante ele.

     —O que estás fazendo?

     —Devo a ti por minha comida e roupas, minha senhora —ele se ajoelhou aos meus pés e levantou a prega de meu vestido.

     Inclinei-me baixando-a e lhe agarrei as mãos.

     —Não se toca à família dessa maneira, Acheron. Está errado.

     A confusão cresceu em seu cenho.

     E então compreendi a mais horrível das verdades.

     —Estes há… tu há… —não podia assimilar ao dizer essas palavras.

     —Eu lhe pago cada noite por ser o bastante amável para me dar refugio.

     Jamais tinha desejado chorar tanto em minha vida e ainda assim descobri que meus olhos estavam extremamente secos… inclusive a raiva e o desgosto derrubavam sobre mim pelo que lhe tinham feito a meu irmão. Oh, se pudesse pôr as mãos sobre meu tio…

     —Vista-te, Acheron. Não necessito que me pagues por nada.

     Ele me deixou e fez o que lhe pedi.

     Durante o resto da tarde, observei-o enquanto se sentava em silêncio em um canto sem mover nem sequer um só músculo. Obviamente tinha sido treinado para fazer isso, também. Passei minha mente através dos horrores das revelações desses dias.

     Através do horror que devia ter sido sua vida.

     Meu pobre Acheron.

     Disse-lhe quando se alegraria papai de lhe dar a bem-vinda em casa. Quão feliz estaria mamãe de lhe ver outra vez.

     Ele escutava em silêncio enquanto seus olhos me diziam que não acreditava em nenhuma só palavra que eu dizia.

     Os putos não viviam em palácios.

     Podia ouvir seus pensamentos claramente.

     E honestamente, estava começando a duvidar dessas palavras eu mesma.

            

4 de Novembro, 9532 a.C.

     Acheron permaneceu tão silencioso o resto de nossa viagem para os cais que comecei a me preocupar. Não parecia bem. De fato, tendia a molhar-se em suor e tremer sem razão aparente. Sua pele se tingiu de um horrível tom cinzento.

     Sempre que lhe perguntava qual era o problema, ele só respondia que algumas vezes lhe acontecia.

     E quanto mais estávamos em contato com as pessoas, ele se voltava mais nervoso.

     —Estes não te encontrará —lhe disse, esperando aliviar seu medo.

     Não funcionou. Se acaso, ele se voltou mais apreensivo.

     Boraxis retornou com nossas moedas para a viagem através do Aegean[3] que nos levaria para casa em Didymos. Eu sabia que não deixaria de estar assustada até que o navio partisse.

     Estava temerosa de que a qualquer momento nos encontrasse meu tio e levasse a Acheron de volta.

     Foi justo depois de meio-dia que nos permitiram abordar o navio. Boraxis tomou a dianteira comigo no meio e Acheron nos seguindo.

     O primeiro oficial tomou as moedas de Boraxis e lhe deu indicações para nossos camarotes, deteve Acheron.

     —Abaixe seu capuz!

     Vi o pânico nos olhos de Acheron antes que o baixasse. Tão logo o tecido esteve abaixo, senti uma sensação estranha, como uma onda, deslizar-se através daqueles que estavam perto de nós. Todos os olhos se dirigiram para meu irmão.

     O primeiro oficial assentiu com a cabeça e me chamou.

     —Minha senhora, não permitimos aos escravos viajar na coberta principal.

     Lancei-lhe um olhar fulminante.

     —Ele não é um escravo.

     O primeiro oficial de fato riu ante isso. O alcançou a banda ao redor da garganta de Acheron e devorou seu pendente que tinha o símbolo de um abrasador sol.

     Acheron não se moveu ou falou. Só mantinha seu olhar abaixo.

     O primeiro oficial olhou de novo para mim.

     —Posso apreciar seu desejo por manter a seu tsoulus com você, minha senhora, mas ele deverá viajar sob coberta com os outros escravos.

     Não me tinha ocorrido fazer que removessem as bandas de Acheron. Na Grécia nossos escravos não tinham ouro, portanto não me tinha ocorrido que isso o delataria.

     —Nexos —chamou o primeiro oficial a outro marinheiro. —Escolta a este sob coberta.

     O aterrado olhar de Acheron alcançou o meu.

     —Por favor, Idika, não me mande até lá. Sozinho. Não podes.

     —Pagarei mais —lhe disse ao marinheiro.

     —Sinto muito, minha senhora. É política estrita. Os outros passageiros estariam extremamente molestos se rompermos as regras por você.

     Senti-me horrível por ele.

     —Está tudo bem, Acheron. Só são uns poucos dias e estaremos em casa.

     Minhas palavras só pareceram assustá-lo mais. Mas não disse nada mais enquanto Nexus se aproximou para levá-lo longe de mim.

     —Ele estará bem, sua Alteza —me assegurou Boraxis. —Seus camarotes não serão refinados, mas estarão limpos e servíveis.

   E Boraxis saberia. Ele uma vez foi escravo, antes que meu pai o libertasse.

     —Obrigado, Boraxis.

     Meu coração doía, me dirigi ao meu camarote me perguntando que faria Acheron pelos seguintes quatro dias.

              

8 de Novembro, 9532 a.C.

     Esperei coberta com o coração em um punho pela volta de Acheron. Nos passados quatro dias tinha tratado com tudo vê-lo, mas ninguém o permitiu. Aparentemente, os passageiros regulares não eram permitidos sob coberta, assim como aos escravos não eram permitidos acima.

     Quase todos tinham abandonado o navio, inclusive os marinheiros, enquanto Boraxis e eu esperávamos.

     Por fim, vi aparecer a Acheron. Assim como ao dia que o tinham levado abaixo, tinha seu capuz baixo, sua cabeça dobrada.

     Nenhuma só parte de seu corpo ou rosto podia vislumbrar-se debaixo dela.

     —Aí está! —Disse com regozijo ao vê-lo de novo.

     Não disse nada como resposta.

     Quando tratei de abraçá-lo, afastou-me. Quando tratei de encontrar seu olhar, ele se moveu e passou por mim.

     Suas ações me irritaram. Era esse o agradecimento que recebia por salvá-lo da loucura da casa de meu tio? Seguro que por mais nu que os camarotes para escravos houvessem estado, eram preferíveis a serem maltratados por outros.

     —Não seja tão petulante Acheron. Não tive alternativa.

     Ainda assim não disse nada.

     Queria sacudi-lo. Esta era a primeira vez que seu comportamento recordava a Styxx.

     —Qual é o problema? Me responda!

     —Quero ir para casa.

     Fiquei totalmente estupefata por seu pedido sussurrado que estava tingido com irritação.

     —Estás louco? Por que quereria alguma vez retornar a Atlântida?

     Ele não respondeu.

     Suspirando pela frustração, guiei-o a coberta. Uma vez que estivemos no cais, Boraxis foi procurar-nos uma carroça fechada para a viagem a casa.

     Acheron permanecia em silêncio. Não olhou ao redor ou mostrou interesse algum no fato de que estava a salvo das garras de Estes.

     —Estamos na Grécia agora. Não muito longe de casa.

     Quando ele não respondeu, suspirei e estive agradecida de ver uma carroça dirigindo-se perto de nós. Talvez isso acalmaria seu mal-estar.

     Enquanto se detinha ante nós, um nobre me chamou.

     —Meu senhor? —Perguntei enquanto se aproximava. Ele não era muito mais velho que eu. Suas roupas e porte me diziam que ele estava extremamente bem, apesar de que não o reconhecia como um aristocrata ou dignitário.

     Ele apenas me olhou. Era Acheron que chamava sua atenção. Acheron que retrocedia longe do homem.

     —É seu, minha senhora?

     Duvidei ao lhe responder.

     —Por que deseja sabê-lo?

     —Quero comprá-lo. Diga seu preço e o pagarei.

     A raiva me inundou.

     —Ele não está à venda!

     O homem finalmente me olhou. Juraria que vi a loucura em seus olhos azuis.

     —Pagarei o que desejes por ele.

     Boraxis nos alcançou e franziu o cenho em advertência para o homem.

     —Suba à carroça, Acheron.

     Acheron não falou enquanto rapidamente subia a ela.

     Quando tratei de me unir a ele, o homem me deteve.

     —Por favor, minha senhora. Tenho que tê-lo. Darei-lhe qualquer coisa que desejes.

     Boraxis obrigou ao homem a retirar-se.

     Subi-me dentro da carroça enquanto o homem tratava de me subornar.

     —Não posso acreditar nisto —murmurei. —Acontece sempre isto?

     —Sim.

     A resposta de Acheron foi apenas mais que um suspiro.

     Boraxis assegurou nossa porta.

     —Deverei montar com o condutor, minha senhora.

     Aproximou-me uma ânfora de vinho e o que se sentia como pão envolvido em tecido.

     —Se necessitar algo, me chame.

     —Obrigada, Boraxis.

     O assentiu, depois subiu ao assento fora.

     Tendo comido um grande café da manhã no navio, não estava faminta. Podia sentir o olhar fixo de Acheron, mas ele se mantinha coberto por seu capuz.

     —Queres um pouco?

     Perguntei aproximando a comida a Acheron.

     Enquanto a carroça começou a caminhar, ele descobriu a comida como um animal morto de fome. Foi até que se moveu para comer que finalmente vi um pouco de seu antebraço.

     Havia sangue incrustado ao redor da banda de ouro de seu pulso. Mas ele não parecia precaver-se disso enquanto absorvia migalhas de pão em sua boca.

     —Estás bem, Acheron?

     Ele só continuava comendo vorazmente.

     Quando acabou o pão, atacou a ânfora de vinho com o mesmo ardor. Foi até depois de muitos minutos que a baixou e deixou sair algo que soou como um suspiro de alívio.

     Alcancei seu braço machucado.

     Ele não se moveu enquanto me sentava perto e removia a banda para trás para descobrir uma feia ferida. Enquanto olhava seu sangrento pulso, precavi-me de mais machucados em seu antebraço.

     Então olhei seu rosto.

     Inalei bruscamente em alarme. Antes de pensar o que estava fazendo, puxei o capuz para baixo. Sua pele estava ainda pálida seu cabelo murcho e emaranhado.

     Mas era seu rosto o que me transfigurou. Escuros círculos púrpuras cresciam debaixo de ambos os olhos como se não tivesse dormido de todo. Seus lábios estavam gretados, em carne viva e sangrando. Em ambas as bochechas tinham hematomas como se alguém o tivesse esbofeteado repetidamente. Um olho estava vermelho pelos vasos sangüíneos arrebentados.

     Suas roupas estavam rasgadas e sujas.

     —O que te aconteceu?

     Olhou-me de uma maneira insolente que me atravessou.

     —Sou um tsoulus treinado, Idika, que deixou desprotegido por quatro dias. O que acredita que me fizeram?

     Horrorizada, chamei Boraxis enquanto Acheron recolocava seu capuz.

     A carroça se deteve imediatamente. Boraxis baixou e abriu a porta.

     —Sim. Alteza?

     —Me leve de volta ao navio.

     —Posso perguntar por que, Alteza?

     —Eles... eles...

     Não podia nem sequer dizê-lo.

     —Quero que todos os que tocaram a Acheron sejam postos em correntes!

     Boraxis franziu o cenho.

     Puxei de novo o capuz de Acheron para baixo e mostrei a Boraxis o golpeado rosto.

     —Olhe o que lhe fizeram!

     —Sua Alteza —disse Boraxis em um tom baixo e calmo. —Levar-lhe-ei de volta se o desejar, mas só o verdadeiro dono de Acheron pode demandar restituição do dano.

     Chiei meus dentes para ele.

     —Acheron não é um escravo.

     —Está marcado como escravo, Alteza. Isso é tudo o que importa.

     —Então isso lhes dá direito a abusar dele?

     —Novamente, Alteza, repito-lhe, só seu verdadeiro dono pode demandar restituição. Tudo o que a lei lhe dará será a compensação financeira por seu uso. Nenhum homem livre será castigado por usar um escravo.

     —Um escravo pode ser golpeado por feri-lo desta maneira! E isso é o que quero.

     —Alteza, um escravo não se atreveu a tocá-lo dessa maneira.

     Passei saliva.

     —O que estás dizendo?

     Boraxis olhou através de mim para Acheron.

     —Acheron? Quem te feriu?

     —Os marinheiros e uma vez que tiveram terminado, me venderam a um nobre que trouxeram sob a coberta.

     Boraxis retornou seu olhar ao meu.

     —Você é uma nobre e eu seu servente. Ninguém tomara em conta o que pensemos igual a ninguém se importará o que foi feito a um escravo.

     Então um horrível medo me atravessou.

     —Sabias que lhe fariam isto?

     —Não, Alteza. Assumi que seria deixado com os outros escravos, sozinho. Se tivesse tido qualquer pista de que o tinham prejudicado, teria-lhe advertido.

     Acreditei nele.

     Mesmo assim, nunca tinha estado tão zangada em minha vida. Se estivéssemos no reino de meu pai...

     Mas não estávamos. Boraxis tinha razão. Aqui, fora do reino de meu pai. Não tinha voz.

     Doente por este feito, assenti.

     —Nos encontre um lugar onde possamos fazer que removam suas bandas, Boraxis.

     —Não as pode remover. —Disse Acheron com pânico em sua voz. —É sentença de morte para qualquer tsoulus que alguém mais além de seu Idikos remova suas bandas.

     —Tu não és um escravo e não serás marcado como um!

     Ele encolheu-se longe de mim.

   Suspirando, olhei de volta para Boraxis.

     —Acheron necessita de mais comida e um lugar seguro para descansar e banhar-se. Também poderia usar roupa nova.

     —Perguntarei ao condutor por tal lugar. Alteza.

     Assenti para ele. Deixou-nos e subiu novamente. Uns segundos depois nos movíamos novamente.

     —Ninguém voltará a te machucar, Acheron.

     Lágrimas apareceram em seus olhos antes que colocasse novamente seu capuz para cima para cobrir seu rosto de mim.

     —Fala comigo, irmãozinho. Diga-me o que pensas.

     —Minha vontade é a tua, Idika.

     —Deixa de me chamar assim! Sou Ryssa. Não sou tua proprietária.

     Novamente, ele não respondeu a isso.

     Indignada, deixei-o consigo mesmo enquanto viajávamos a seguinte hora até que Boraxis nos encontrou uma hospedaria grande, onde poderíamos render um quarto a Acheron para que pudesse tomar um banho e descansar.

     Um pouco depois, Boraxis trouxe um ferreiro ao quarto.

     Toquei na porta de Acheron, então a abri para encontrá-lo recostado nu em sua cama. Fiz com que Boraxis e o ferreiro permanecessem no corredor enquanto entrava.

     —Acheron —disse brandamente, tratando de movê-lo para despertar.

     Detive-me enquanto via a grande quantidade de feridas e machucados que marcavam sua pele perfeita. Havia lugares onde se podiam observar as marcas de mãos completas de seu abuso. Deuses, o horror que deve ter passado sozinho no ventre do navio.

     Meu estômago se encolheu ante o sinal de minha falha ao protegê-lo. Como pude ter sido tão inútil? Coloquei um lençol sobre ele antes de agitá-lo muito brandamente e prometi mesma que ele não seria ferido desta maneira de novo.

     Ele despertou aterrorizado.

     —Tudo está bem —lhe assegurei.

     Olhou-me como se não estivesse seguro de que devesse acreditar em mim.

     —Boraxis? —chamei-lhe.

     Entrou com o ferreiro atrás dele. Logo que Acheron viu as ferramentas nas mãos do ferreiro, entrou em pânico e tratou de fugir.

     —Segure-o!

     Boraxis o fez, agarrou-o e o sustentou no chão enquanto o ferreiro trazia um grande par de pinças para romper as bandas.

     Acheron gritou e lutou como se lhe estivessem cortando as extremidades.

     —Por favor, pare! —rogou roucamente. —Por favor!

     Seus rogos me atravessaram, mas isso era algo que tinha que se fazer. Não queria que ninguém mais o confundisse com um escravo.

     —Está tudo bem, Acheron. És livre.

     Ainda assim, lutou até que a última banda tinha sido removida. Então permaneceu sem mover-se, com seus olhos fechados.

     —Conserve o ouro.

     Disse-lhe ao ferreiro, quem nesse momento me agradeceu e se foi.

     Olhei a Boraxis, estupefata pelas ações de Acheron.

     —Por que não querias que as removêssemos?

     —Tomou sua coberta de registro. Se um comerciante de escravos o encontra, ele não precisa ser devolvido ao seu dono. Qualquer um pode reclamá-lo.

     Grunhi ante as palavras que não queria escutar.

     —Ele não é um escravo.

     —Foi marcado como tal em sua mão, Princesa. Se alguém vir essa marca, eles saberão que não é um liberto.

     Franzi o cenho.

     —Que marca?

     Boraxis sustentou a mão direita de Acheron palma acima para me mostrar uma marca irregular em sua palma que parecia uma X através de uma pirâmide. Que estranho que não me tivesse precavido antes. Mas não fazia diferença para mim.

     —Ninguém saberá.

     —O ferreiro sabe, Alteza. Por essa razão, sugerir-lhe-ia que deixemos este lugar rápido que seja possível e cheguemos ao reino de seu pai antes que nos detenhamos novamente.

     Minha mandíbula se desencaixou.

     —Não está falando a sério?

     Por seu rosto, podia me precaver de que o estava fazendo.

     —Por favor, Alteza. Me escute nisto. A última coisa que quero é ver qualquer de vós ferido. Precisamos ir.

     —Por que não me disse da marca antes que o ferreiro removesse suas bandas?

     —Alteza, sou um escravo libertado. Não está em minha natureza questionar aos meus superiores. Vos amo e vos sirvo e segundo o decreto dos deuses, daria minha vida pela sua.

     Ele tinha razão. Tinha visto meu pai e Stixx golpear a muitos serventes por duvidar depois que lhe dessem uma ordem.

     Assentindo, foi a Acheron quem ainda não se moveu.

     —Venha, Acheron, devemos nos apressar.

     Olhou-me com seus olhos cheios de desespero.

     —Idikos me castigará duramente por isso. Tem idéia do que tem feito?

     —Estes não te machucará novamente. Sou sua irmã e vos dou minha palavra, estás a salvo.

     Ele sacudiu sua cabeça negando.

     —Ele me encontrará. Sempre o faz.

     —Quantas vezes escapaste?

     —As suficientes para saber que não vale a pena.

     —Desta vez o valerá.

     Pelo menos isso esperava. E por todos os deuses, pretendia fazê-lo. Ninguém merecia viver temeroso. Ninguém merecia ser golpeado e abusado. Especialmente não um menino que tinha nascido príncipe.

     Mas inclusive enquanto me prometia a mim mesma que o protegeria, uma parte de mim se perguntava se poderia.

     Assim como Acheron e Boraxis, eu também, era prisioneira a minha hierarquia. E inclusive contra minha vontade, minhas asas eram freqüentemente atadas.

  

15 de Novembro, 9532 a.C.

     Passou uma semana desde que deixamos a Atlântida. Uma semana que viajei com meu irmão que não sabia como rir ou sorrir. Ou inclusive, como formular uma opinião por sua conta. Cada vez que pergunto, sua resposta é sempre a mesma.

     —Tua vontade é a minha, Idika.

     Era suficiente para me fazer gritar.

     A última parte de nossa viagem foi novamente em navio, mas desta vez compramos um navio particular para que nos levasse a ilha onde nosso pai governa como rei. Não queria assumir mais riscos com Acheron ou sua segurança. Quanto mais tempo passava com ele, mais entendia. Era possuidor de um magnetismo sexual fora do normal.

     Qualquer um que o via desejava tocá-lo. Possuí-lo. Por essa razão se mantinha completamente coberto aonde fora que se aventurasse a sair em público. Por isso se encolhia quando alguém se aproximava. Nem sequer eu era totalmente imune ao profano desejo e me adoecia que pudesse senti-lo por meu próprio irmão. A pior parte era que podia jurar que quando conhecesse meus pensamentos, se esticaria como se ele se preparasse para meu ataque.

     Mas nunca o machucaria ou o tocaria dessa maneira. Ainda assim, não confiava em mim e honestamente não o podia culpar devido a sua experiência.

     Havia dito que Estes o protegia. Eu sabia a verdade. Não havia proteção no que nosso tio fazia, só controlava quanta gente atacava a Acheron de uma vez.

     Os Deuses deveriam castigar a Estes por isso.

     Como podia ter estado tão cega com esse monstro todos estes anos?

     Como inclusive meu pai podia permiti-lo? Preferiria pensar que não sabia nada a respeito. Era da única forma com a qual podia viver. E esperava com cada parte de meu ser não voltar a colocar os olhos sobre meu tio novamente.

     Era nosso quinto dia de viagem quando Boraxis finalmente me explicou porque Acheron estava tão pálido e lhe davam ataques de extrema sudorese e vômitos.

     Eram as drogas que Estes tinha usado para controlá-lo. A essência de laranja que tinha percebido era dos afrodisíacos que usavam para fazê-lo rogar por sexo e o outro era uma substância inalada para fazê-lo mais receptor e aceitar o que lhe faziam.

     Acheron estava tão fraco que me assustava. Precisávamos encontrar um médico que o pudesse ajudar. Boraxis insistia em que o melhor que podíamos fazer era comprar nossa própria provisão das drogas e mantê-lo drogado. Mas não podia fazer isso a meu próprio irmão. Precisava viver sua vida livre de tais coisas.

     Certamente, continuaria doente por elas. Tinham que sair de seu sistema eventualmente. Entretanto parecia debilitar-se cada dia mais.

     Agora, pelo menos, estávamos em casa.

     O palácio dominava sobre nós enquanto nos aproximávamos na carroça coberta. Não me atrevia a viajar com Acheron na carroça aberta onde qualquer vento que soprasse podia fazer cair seu capuz e expô-lo. As pessoas tendiam a voltar-se violenta ao vê-lo e já Boraxis se havia posto rude com alguns dos mais persistentes.

     Traguei saliva enquanto passávamos pelas portas do palácio e duvidei perto da entrada. Depois de minha coragem ao dizer a Acheron que tão bem-vindo seria em sua família, senti que minha coragem me abandonava.

     E se tinha razão? E se a Papai não lhe preocupava? Pelo que sabia, Papai estava consciente do que Estes lhe estava fazendo. Inclusive talvez o tinha aprovado. Só o pensamento me pôs doente, mas era algo para o qual tinha que me preparar. Era uma possibilidade.

     Acheron já estava muito ferido e temia machucá-lo ainda mais. A confiança era uma coisa frágil e apenas tinha começado a confiar em mim. Não queria que nada danificasse isso.

     Ou a ele.

     Então o levei pela entrada lateral e o dirigi para minhas câmaras, onde ninguém o incomodaria.

     —Vou até Papai. Espera aqui e voltarei rapidamente.

     Acheron não falou. Estava tremendo incontrolavelmente de novo. Em seu lugar, assentiu antes de dirigir-se para um canto e sentar-se no chão com as costas contra a parede. Estava tão bem coberto que parecia um saco de grão sobre o chão.

     Levantei uma vasilha de barro junto à chaminé e o coloquei junto a ele.

     —Se por acaso te adoeces.

     Novamente não respondeu de maneira nenhuma.

     Entristecida por isso, virei-me para Boraxis.

     —Permaneça com ele e te assegures de que ninguém o incomode.

     —Sim, sua Alteza.

     Esperando o melhor, deixei-o em minhas câmaras e fui falar com Papai a sós.

     Encontrei-o no pátio traseiro com Styxx. Ambos estavam reclinados em cadeiras acolchoadas enquanto comiam um leve sanduíche de mel e pão, enquanto Papai instruía a Styxx em assuntos de estado. Estavam rodeados de criados que atendiam todas suas necessidades. Que suntuosa visão eles formavam.

     O loiro cabelo de Styxx reluzia à luz do sol. Sua pele brilhava com vitalidade. Não tinha o tom cinzento de ter sido forçado a tomar drogas para que outros pudessem abusar dele. Inclusive desde minha posição, podia ver sua arrogância enquanto ordenava a todos ao seu redor.

     Pensei em Acheron e quis gritar ante a injustiça.

   —Olhe, é cabeça de novilho —disse Styxx ao momento de ver-me. O pequeno ogro sempre me tinha incomodado por meu loiro cabelo encaracolado—. Onde estiveste?

     —Fora —lhe disse. O trol não precisava saber sobre meus assuntos—. Papai poderei ter umas palavras a sós contigo?

     Dirigiu-lhe um irônico olhar para Styxx.

     —Tudo o que tenhas a me dizer pode ser dito frente a seu irmão. Um dia Styxx será teu rei e terás que responder ante ele.

     O pensamento fez com que o sangue se gelasse em minhas veias.

     —É certo —disse Styxx presunçosamente—. Isso significa que terás que me beijar os pés como todos.

     Papai riu.

     —És um patife.

     Mordi-me os lábios para me manter em silêncio. Como não podia ver que tão malcriado, odioso e troll era Styxx? Mas Papai sempre tinha estado cego para o comportamento malcriado de Styxx.

     —Então, por que estás aqui, gatinha? —Perguntou Papai—. Deseja uma nova bagatela ou roupas?

     O homem sempre tinha sido indulgente comigo. Pelo menos em algo que não envolvesse a Acheron.

     —Não. Quero trazer Acheron para casa.

     Papai se exaltou ante minha petição.

     —Agora vejamos. O que colocou em tua cabeça? Hei-te dito repetidamente como me sinto. Esse monstro não pertence aqui.

     Styxx curvou seus lábios.

     —Por que o quer aqui? É um perigo para todos nós.

     —Um perigo como?

     Este era um argumento tão familiar que podia responder com suas desculpas antes que eles o fizessem.

     Meu pai curvou seu lábio.

     —Não sabes o que um semideus pode fazer. Poderia matar a teu irmão enquanto dorme. Matar-me. Nos matar a todos.

     Como podia dizer isso? Acheron em nenhum momento tinha tentado me atacar. Nem sequer levantava a voz.

     —Por que não temes por Estes?

     —Estes o mantém sob controle.

     Com drogas. Então Papai sabia dessa parte. Era tudo o que podia fazer para manter minha indignação sob controle. E para me perguntar o que mais sabia sobre o trato que davam a Acheron.

     —Acheron pertence a este lugar, conosco.

     Papai ficou de pé.

     —Tu és uma mulher Ryssa, e uma mulher jovem. Tua mente estaria melhor ocupada com moda e decoração. Planejando teus vestidos para uma festa. Acheron não pertence a esta família. Nunca o fará. Agora, vá procurar tua mãe para fofocar. Styxx e eu temos assuntos importantes a discutir.

     Como que criada de serviço estará na cama de Styxx… Assuntos muito mais importantes que a vida de seu filho mais velho.

     Lancei-lhe um olhar

     —Assuntos mais importantes que teu próprio filho?

     —Ele não é meu filho.

     Sacudi a cabeça, incapaz de acreditar em sua negativa. Então Acheron tinha tido razão todo o tempo. Papai o tinha mandado longe intencionalmente e nunca lhe permitiria voltar. Por que não vi a verdade antes? Porque amava a meu pai. Para mim, sempre tinha sido atencioso e adorável.

     Pelo menos agora sabia a verdade.

     Agora o via pelo que realmente era. Desumano.

     Então toda a história que contou sobre proteger a Acheron não era verdade?

     —Do que estás falando?

     Inclusive não recordava suas próprias mentiras.

     —Me disseste que quando levaram a Acheron o faziam para protegê-lo. Disseste-me que os dois herdeiros não deviam crescer juntos porque seriam um alvo fácil para os inimigos. Disseste que traria Acheron para casa quando fora o suficientemente crescido. Alguma vez tiveste a intenção de ir atrás dele, verdade?

     —Nos deixe.

     Deixei-os. Sua visão e a de Styxx realmente me adoeciam nesse momento. E com cada passo que me afastava de meu pai, perdia o respeito que tinha pelo homem que uma vez adorei.

     Como podia havê-lo feito? Como era possível que não prestasse atenção? Como era possível que o mesmo homem que consentia para mim e a Styxx desse as costas a seu herdeiro?

     Retornei a minhas habitações para encontrar Acheron sentado no balcão. Tinha as pernas dobradas e o queixo sobre seus joelhos, os braços estavam cruzados ao seu redor.

     Estava suando novamente. Seus olhos estavam ocos e vazios. Parecia tão doente e frágil. Como podia meu pai temer a um menino que nem sequer cruzava o olhar com ninguém?

     Inclinei-me junto a ele e tratei de tocá-lo. Esticou-se como sempre o fazia.

     Acheron não gostava de ser tocado. Sem dúvida tinha sofrido suficientes toques para toda a vida.

     —Papai não está aqui

     Menti, inclusive enquanto me afogavam as palavras.

     Como poderia dizer a este menino a verdade? Tinha rogado por sua confiança, só para descobrir que era uma parva.

     Como podia lhe dizer que se fosse por seu pai, deveria ser enviado novamente a Estes para ser prostituído por qualquer um que estivesse disposto a pagar por ele?

     Não podia lhe dizer a verdade, assim como não poderia mandá-lo de volta a Atlântida.

     —Vou te levar ao palácio de verão para esperá-lo.

     Não me questionou, o qual permitiu que a culpa pousasse em meu coração. Mas o que importava? Levaria-o a um lugar onde estivesse a salvo. Seguro. Um lugar onde ninguém o machucaria ou o envergonharia.

     Levantei-me e o urgi a me seguir e o fez sem perguntas.

     Movemo-nos pelos salões traseiros da mesma maneira que entramos no palácio, como insignificantes e medrosos ladrões em lugar do herdeiro e princesa desta terra. Acheron não sabia que era um segredo ou que eu estava aterrorizada do que nos aconteceria se alguém nos visse.

     Por sorte não nos viram e em um curto período estávamos lá fora de novo. Mas em meu coração, continuava me perguntando quando tempo poderia estar longe antes que Papai arrastasse para casa.

     O que aconteceria então a Acheron?

    

18 de Novembro, 9532 a.C.

     O palácio de verão estava completamente vazio nesta época do ano. Só um pequeno punhado de serventes estavam na residência. Petra, nossa cozinheira, sua filha e seu marido que também era o jardineiro. A ama de chaves e o capataz finalizavam o pequeno número.

     Por sorte, todos me eram leais e nunca diriam ao meu pai que me alojava aqui com um convidado que se parecia com o herdeiro. Não expliquei a existência de Acheron e não perguntaram. Somente o aceitaram e acomodaram um aposento que estava somente a duas portas do meu.

     Acheron vacilava extremamente, enquanto entrava no quarto. Pela maneira com que olhava ao redor podia dizer que estava pensando no velho quarto no qual o tio o tinha vendido a outros.

     —Posso falar, Idika?

     Odiava quando me falava assim.

     —Hei-te dito repetidamente que não tens que me perguntar para falar Acheron. Diga o que seja que esteja em sua mente.

     Titio o tinha golpeado tão freqüentemente por falar que lhe era difícil romper o hábito.

     —Com quem compartilharei o quarto?

     Meu coração chorou ante sua sussurrada pergunta. Ainda lhe custava acreditar que não tinha que usar seu corpo para pagar por cada gentileza ou alimento.

     —É seu quarto Acheron. Não o compartilhará com ninguém.

     O alívio nesses olhos chapeados fez com que minha garganta se apertasse.

     —Obrigado, Idika.

     Não estava segura do que desprezava mais, sua insistência em me chamar de sua dona ou que me agradecesse por não vendê-lo.

     Suspirando, dei-lhe umas tapinhas gentis no braço.

     —Farei com que lhe tragam algumas roupas de Styxx para que uses.

     Ele virou-se antes de falar novamente.

     —Zangar-se-á quando souber que as hei tocado.

     —Não se zangará, Acheron. Acredite em mim.

     —Como o desejas. Idika.

     Mordi os lábios ante seu servilismo. Enquanto Styxx era detestávelmente dominante, freqüentemente fazendo com que as pessoas refizessem tarefas só por sentir o poder que tinha sobre eles, Acheron aceitava tudo o que faziam para ele sem queixar-se.

     Desejando que houvesse algo que pudesse fazer para que se sentisse a salvo e mais cômodo, deixei-o em seu quarto e fui descansar no meu. Só necessitava de um pequeno descanso do estresse de me preocupar com ele. Os serventes aqui eram em sua maioria velhos e a única coisa da qual me tinha precavido era que as pessoas mais velhas pareciam mais imunes a algo que tinha a Acheron possuído. Se não eram imunes, parecia que tinham menor motivação a atuar.

     Sem mencionar que o pessoal se precaveria que era da família e somente isso os manteria longe dele.

     Esperava.

     Cansada, fui para meu escritório e escrevi um bilhete rápido para Papai, fazendo de seu conhecimento que necessitava algum tempo longe de Didymos. Estava acostumado a minhas viagens, já que freqüentemente visitava minha tia viúva em Atenas ou vinha ao palácio de verão para simplesmente estar a sós. Como Acheron, valorizava minha solidão. Enquanto tivesse a Boraxis comigo e mantivera a meu pai informado de meu bem-estar e paradeiro, meu pai era indulgente com minhas viagens impulsivas.

     O único lugar que me tinha proibido visitar era Atlântida. Agora sabia porquê. E honestamente acreditava nele quando me dizia que estava muito longe e era uma viagem muito perigosa para uma mulher de minha idade sem uma escolta apropriada. Pouco tinha suspeitado que era para proteger a seu irmão e sua conduta licenciosa.

     Justo tinha finalizado de escrever a nota dizendo a meu pai que estava em Atenas, quando olhei para fora e me detive. Minha atenção foi cativada por um movimento fora da janela, no jardim. Ao princípio, não podia acreditar no que via.

     Era Acheron.

     Que estranho que fizesse algo sem permissão expressa. Quase nem se movia a menos que lhe mandasse que o fizesse. Tive que piscar duas vezes só para me assegurar que não estava sonhando. Mas não, era definitivamente ele...

     Inclusive, sendo um inverno suave, fazia suficiente frio para necessitar uma capa lá fora. Ainda assim permanecia, com os pés descalços, caminhando pelo pasto próximo à fonte. Tinha a cabeça dobrada para baixo e parecia estar enredando os dedos dos pés no pasto. Parecia como se estivesse desfrutando da sensação, mas como nunca sorria, era difícil de dizer.

     Que demônios estava fazendo?

     Agarrei a capa e me dirigi para o exterior para observá-lo.

     Logo que me viu me aproximar, encolheu-se até que esteve contra a longínqua parede de pedra. Sem nenhum outro lugar ao qual ir, atirou-se sobre seus joelhos e levantou seus braços como se fora a proteger a cabeça e o rosto.

     —Me perdoe Idika, por favor, eu não... não quis ofendê-la.

     Ajoelhei-me junto a ele e tomei seu rosto em minhas mãos para acalmá-lo. Esticou-se tanto ante meu contato que era uma maravilha que não se quebrasse.

     —Acheron, está tudo bem. Ninguém está aborrecido contigo. Não tens feito nada de errado. Shh...

     Ele tragou enquanto seu medo se transformava em confusão. Queridos Deuses, o que lhe tinham feito que tremia quando não tinha feito nada para merecê-lo?

     —Só tinha curiosidade do porque estavas aqui fora sem os sapatos postos. Faz frio e não quero que pegues uma febre.

     Minha preocupação o desconcertou tanto como seu medo me desconcertou...

     Gesticulou para seu quarto que tinha um pequeno terraço o qual, como o meu, abria-se até o jardim. A porta estava ainda entreaberta.

     —Não vi ninguém aqui e então pensei que estava a salvo. Só queria sentir o pasto. Não pensei fazer mal, Idika. Ia retornar ao meu quarto assim que terminasse. Juro-o.

     —Eu sei.

     Disse tomando seu rosto antes de soltá-lo. Relaxou-se um pouco agora que não o tocava.

     —Em realidade está tudo bem. Não estou zangada contigo. Mas não entendo porque quererias sentir o pasto estando tão frio. Está seco nesta época do ano.

     Passou sua mão sobre o pasto.

     —Nem sempre é assim?

     Franzi o cenho ante sua pergunta.

     —Nunca havias tocado o pasto antes?

     —Acredito que o fiz quando era pequeno. Mas não o recordo.

     Passou a mão sobre o pasto novamente em um gentil gesto que retorceu meu coração.

     —Só queria tocá-lo uma vez. Não deixarei meu quarto novamente, Idika. Deveria lhe haver pedido permissão antes. Perdoe-me.

     Baixou a cabeça.

     Queria alcançá-lo e tocá-lo de novo, mas sabia quanto odiava isso.

     —Não necessita de minha permissão Acheron. Podes vir aqui quando o desejes. És livre agora.

     Olhou para a palma marcada que continha a marca de escravo, então a fechou em um punho.

     —Idikos disse que o rei lhe fez prometer que nunca deixaria a casa.

     Fiquei com a boca aberta ante sua revelação.

     —Estiveste encerrado em seu quarto desde que chegou a Atlântida?

     —Nem sempre. Quando Idikos retorna de uma viagem, saúdo-o no saguão. Sou sempre ao primeiro que ele deseja ver. Então algumas vezes Idikos me tranca em seu escritório dos tornozelos ou a sua cama. E na noite vou ao salão de jantares e ao salão de baile quando temos festas.

     E cada noite dormia na cama de Estes. Já me havia dito tudo isso.

     —Mas nunca estiveste fora?

     Olhou-me, depois afastou o olhar. Isso era o que Estes tinha lhe ensinado a fazer desde que muita gente se desconcertava por seus tempestuosos olhos chapeados.

     —Tem-me permitido sentar no balcão entre clientes para que minha pele não seja pálida. Meara em ocasiões me permite comer fora.

     Tinha sabido por ele que Meara era a criada que me tinha escrito e quem lhe tinha ajudado a escapar. Tinha sido a mais gentil de seus guardiões e a única que se assegurou de que comesse e estivesse cômodo... quando não estivesse entretendo. A outra coisa que soube dele era que Estes utilizava a comida para controlá-lo.

     Acheron comia só quando havia agradado a outros. A quantidade que lhe estava permitida comer dependia de quantos clientes tinha visto esse dia e que tão felizes tinham ficado.

     O pensamento me adoeceu.

     —Amas a Meara, certo?

     —Sempre foi boa comigo. Inclusive quando sou mau, não me machuca.

     Mau. Definido por Estes, era quando qualquer cliente era rude com Acheron e que lhe deixava uma marca em seu corpo. Acheron devia lhes agradar de qualquer maneira que quisessem mesmo que quisessem ser rudes e ele o permitia, senão era castigado. Se não lhes permitia que o ferissem, não estavam de acordo e Estes o castigava o dobro de forte por não lhes haver dado o que tinham pago por ele. Acheron não podia ganhar essa batalha.

     Empunhei minhas mãos para evitar o impulso de levantá-las e tocá-lo. Só queria tomá-lo entre meus braços e abraçá-lo até que o pesadelo que tinha sido sua vida estivesse completamente apagado de sua memória.

     Mas como? Como poderia lhe fazer entender que estava a salvo agora? Que ninguém o tocaria novamente sem seu convite explícito? Que era livre de tomar suas próprias decisões e que ninguém o golpearia por expressar suas opiniões?

     Ou por caminhar fora para sentir o pasto em seus pés?

     Levaria tempo.

     —Retornarei ao meu quarto —apontei à porta que se abria para minha câmara—. Podes ficar aqui tanto como queiras. Quando tiveres fome, diga-o a Petra, a mulher alta e velha que conheceu quando chegamos e te preparará qualquer coisa que desejes. Se me necessitas, não duvides em vir ao meu quarto. O dia é teu, irmãozinho. Tudo o que te peço é que, por favor, ponhas os sapatos para que não caias doente.

     Ele assentiu e não se moveu até que pus suficiente distância entre nós para que estivesse seguro de que não poderia golpeá-lo. Queria chorar.

     Mas não havia nada a fazer exceto lhe mostrar que sentia o que dizia. Sua vida agora era sua.

     Retrocedendo, retornei ao meu quarto onde o observei enquanto colocava os sapatos que devia ter estado sustentando sob sua capa. Depois explorou o pequeno jardim durante horas. Deve ter tocado tudo o que havia, sentindo a textura e cheirando-o.

     Não foi até que o sol começou a se pôr que retornou ao seu quarto. Esperei uns poucos minutos antes de ir à cozinha e fiz com que Petra lhe levasse uma bandeja de comida.

     —Alteza? —Perguntou enquanto começava a me retirar—. Nosso convidado... está bem?

     —Está tudo bem. Só é tímido e calado.

     Assentiu antes de lhe fazer a bandeja e levar-lhe. Sua filha, cujo nome não podia recordar, sorriu-me do canto onde estava brincando perto do fogo.

     —Seu amigo parece perdido, Alteza. Como o cachorrinho que encontrei no verão passado. A princípio estava temeroso de deixar que alguém se aproximasse dele, mas continuei lhe falando e lhe deixando comida —apontou até o cão que estava dormido a trinta centímetros dela—. Agora é o melhor cão do mundo. Nunca deixa de estar ao meu lado.

     —Todos no mundo necessitam de gentileza, criança.

     Ela assentiu, antes de voltar a brincar.

     Olhei-a por um momento enquanto surgiam velhas lembranças. Acheron nunca tinha tido brinquedos incluso antes que Estes o levasse. Naquela época, compartilhava os meus com ele, mas isso era tudo o que tinha tido.

     A menina tinha razão. Meu irmão estava tristemente perdido. Só esperava que com o tempo estivesse tão cômodo aqui como o estava o cão. Que aprendesse a sentir-se bem-vindo em um mundo que tão obviamente o odiava.

 

Novembro 19, 9532 a.C.

     Hoje tinha dormido até tarde sem intenção. Era quase meio-dia antes que despertasse. E o que me tinha despertado era a coisa mais surpreendente de todas. Era o som da risada de um menino.

     Levantei-me e me pus uma capa de lã vermelha ao redor antes de caminhar para a janela para olhar para fora.

     Ali no jardim estava Acheron com a jovem filha do cozinheiro. Estavam sentados sobre um tecido com pão, carne, azeitonas e figos enquanto falavam e jogavam um jogo de jogo de dados. Não podia ouvir o que estavam dizendo, mas a pequena moça chiava rindo de vez em quando.

     Quando a moça decidiu levantar-se, estendeu a mão e tocou o ombro de Acheron. Não se encolheu absolutamente. Para meu assombro, realmente a elevou e a pôs de pé para que pudesse correr para dentro.

     Pela primeira vez desde que o encontrei, estava relaxado. Comia sem medo e seus traços não se enrugavam. Olhava abertamente e diretamente ao rosto da moça

     A menina voltou com seu pulso e o deu a Acheron. Ele tomou e pretendeu alimentá-la com uma azeitona. A moça chiou com deleite.

     Encantada pela brincadeira dirigi-me para fora para me unir a eles. Assim que Acheron me viu, a luz se foi de seus olhos. Vi como literalmente se retirou dentro de si mesmo e ficou temeroso imediatamente.

     —Deves ir, Maia —sussurrou à moça.

     —Mas eu gosto de jogar contigo, Acheron. Tu não te zangas comigo por ser tola ou fazer perguntas.

     —Podes ficar —adicionei rapidamente—. Não quis vos incomodar.

     Acheron manteve o olhar fixo no chão.

     Suspirei antes de observar à moça.

     —Maia, poderias me trazer uma taça de vinho da cozinha?

     —Sim, Alteza. Voltarei em seguida.

     Assim que saiu, voltei-me para Acheron, que estava retraído e temeroso de novo.

     —Estiveste ao redor de muitas crianças?

     Agitou sua cabeça.

     —Está proibido.

     —Mas parece tão a gosto com Maia. Por que?

     Envolveu sua capa mais firme ao redor de si antes de falar.

     —Não quer nada de mim mais que outro companheiro de jogos. Para ela, não sou diferente de qualquer outro adulto. Não lhe incomodam meus olhos e não é consciente de que não sou normal.

     —Não és diferente, Acheron.

     Olhava-me com esses misteriosos olhos.

     —Tu sentes atração por mim. Ainda não agiste, mas o sentes como todos os outros. Seu coração se acelera quando me vês me mover. Tua garganta seca enquanto teus olhos se dilatam. Conheço os sinais físicos. Vi-os muitas vezes.

     Era verdade e odiei o fato de que pudesse ver tão facilmente dentro de mim.

     —Nunca te tocaria dessa forma.

     Um tique começou em sua mandíbula antes que afastasse o olhar.

     —Gerikos e outros hão dito isso também. E quando já não podem resisti-lo, odeiam-me e me castigam como se tivesse controle sobre isto. Como se lhes fizesse me querer —nesse momento quando encontrou meu olhar, vi-o. A cólera que o queimava no mais profundo—. Cedo ou tarde todos os que estão ao redor me fodem, Idika. Todos.

     Sua cólera acendeu a minha.

     —E eu nunca te tocarei assim, Acheron.

     A dúvida nesses olhos queimava através de mim.  

     —O que acontece com Meara? —Perguntei, tentando lhe mostrar que nem todos éramos uns animais que tinham a intenção de montá-lo—. Ela nunca te tocou desse modo, agora, ou o fez?

     O olhar que me deu me disse a resposta. Meu estômago se encolheu.  

     —Era mais amável que a maioria.

     Não era de estranhar que não confiasse em mim. Como, em nome do Olimpo, alguma vez poderia convencê-lo de que eu não gostava desse modo quando todos os outros o tinham usado? Sim, sentia a atração antinatural da qual me falava. Mas não era um animal incapaz de controlar meus impulsos. Adoeceu-me que outros tivessem tão pouco controle e que o tivessem usado.

     —Me provarei ante ti, Acheron. Podes confiar em mim. Prometo-o.

     Antes que pudesse responder, Maia voltou com meu vinho. Ofereci-lhe um sorriso amável antes de tomá-lo.

     —Vós dois ides a jogar. Preciso ir me banhar e me vestir.

     Depois de me pôr de pé, dirigi-me para meu quarto. Na porta fiz uma pausa para olhá-los.

     Acheron estava rodando os dados enquanto Maia sustentava seu pulso. Tinha razão, tinha algo anormal que convocava a meu corpo. Inclusive quando tinha uma aparência doentia, era belo. Irresistível.

     Olhou-me e rapidamente afastou o olhar antes que entrasse em meu quarto.

     —És meu irmão, Acheron —sussurrei—. Não te ferirei —não só era uma promessa a ele, mas também a mim mesma.

  

15 de Dezembro, 9532 a.C.

     O aprazível inverno continuou. Alguns dias ainda eram bastante quentes para aventurar-se fora sem as capas.

     Mais de um mês havia passado desde que escapei com Acheron. As cartas enviadas a meu pai com falsas localizações ajudaram a nos manter seguros. Assim como os homens e mulheres que subornei para dar falsas pistas sobre nós em outras cidades. Só esperava que ele continuasse apoiando meu ardil até a primavera quando seria seguro viajar para nós.

     As drogas se foram do corpo de Acheron e quase nem reconhecia ao moço que tinha encontrado encadeado a uma cama.

     Seu dourado cabelo estava brilhante, tinha ganhado peso e agora poderia confundir-se com Styxx facilmente. Em tudo, exceto por aqueles turbulentos olhos chapeados, e sua personalidade tranqüila, introvertida. Não havia escandalosa jactância, nenhuma irritante presunção.

     Acheron era pensativo e respeitoso. Agradecido por qualquer bondade que lhe mostrasse. Podia sentar-se durante horas e não se mover ou falar. Sua atividade favorita parecia ser sentar-se no balcão e olhar até o mar, observando as ondas que chocavam na margem, olhando a saída e pôr-do-sol com uma fascinação que me assombrava.

     Ou jogando jogos de perseguição e dados com Maia. Ambos compartilhavam um vínculo que esquentava meu coração. Acheron nunca a feriu ou lhe levantou a voz. Inclusive a tocava muito raramente. E quando vinham suas incessantes perguntas, tinha mais paciência que qualquer um que tinha visto alguma vez. Inclusive Petra fez um comentário sobre ele e quão agradecida estava que Maia tivesse encontrado um desejoso companheiro de jogos.

     Hoje cedo, tínhamos estado fora na horta, tentando encontrar maçãs frescas embora já tinha passado a estação. Acheron tinha admitido finalmente uma preferência pela fruta, havia-me custado semanas antes que admitisse uma preferência por algo.

     —Achas que Papai virá logo? — ele perguntou.

     Consumi-me de medo. Não sei por que tinha mantido a mentira. Salvo que a verdade dos sentimentos de Papai era algo que não acreditava que precisasse saber. Era mais fácil lhe dizer que sua família o amava, que todos se sentiam para com ele como eu.

     —Possivelmente.

     —Eu gostaria de me encontrar com ele —disse enquanto cortava uma maçã com sua faca. Era a única que tínhamos encontrado e embora não estava o bastante fresca, a Acheron não parecia lhe importar—. Mas é a Styxx ao que mais queria encontrar. Só posso recordá-lo vagamente de antes.

     Era a única maneira em que se referiria ao tempo passado em Atlântida.

     Tinha deixado de falar de si mesmo como um puto, não havia dito nada a respeito de torturas ou abusos, nem sequer quando lhe pedia detalhes. Seus olhos se voltavam angustiados e baixava a cabeça. Assim aprendi a não perguntar, a não lhe recordar nada a respeito dos anos que passou com nosso tio.

     O único sinal revelador de seu tempo ali era a forma em que ainda se movia. Devagar, sedutoramente. Tinha sido treinado tão meticulosamente como um puto que ainda aqui, não podia livrar-se desses movimentos.

     O outro único aviso de seu passado eram as esferas em sua língua, que se negava a tirar, e a marca em sua palma.

     —Doeu muito quando me perfuraram —me havia dito quando lhe perguntei pelas esferas—. A língua estava tão torcida que não pude comer durante dias. Não quero ter que experimentá-lo de novo.

     —Mas não o farás, Acheron. Disse-te que não lhes permitirei te devolver para lá.

     Olhou-me com a mesma indulgência com a qual tinha olhado a Maia quando disse que os cavalos podiam voar, como um pai que não queria arruinar o engano do filho com a verdade.

     Assim que as esferas ficaram.

     Mas claro, Acheron também o fez.

 

20 de Janeiro, 9531 a.C.

     Hoje me sentei durante horas, olhando a Acheron. Despertou-se cedo como fazia freqüentemente e caminhava para a praia. Fazia tanto frio que temia que adoecesse, mas não quis transgredir sua liberdade. Tinha vivido tanto tempo com regras que ditavam seus movimentos e suas opiniões que não queria lhe impor nenhuma limitação.

     Às vezes a saúde da mente era ainda mais importante que a do corpo. E acreditava que necessitava de sua liberdade mais do que precisava ser protegido de uma pequena febre.

     Fiquei nas sombras, só querendo observá-lo. Caminhou durante quase uma hora no gelado fluxo das ondas. Não tinha nem idéia de como resistia à frieza, ainda parecia obter prazer da dor.

     Sempre que um dos animais marinhos era jogado à praia, colhia-o com grande cuidado para devolvê-lo à água para que seguisse seu caminho.

     Depois de um momento, escalou as pedras escarpadas onde se sentou com as pernas dobradas e o queixo descansando em seus joelhos. Olhou através do mar como se esperasse algo. O vento soprou seu belo cabelo e ao redor dele, sua roupa ondeava por sua força, enquanto a água pegava os suaves cachos dourados de suas pernas a sua pele.

     Ainda assim, não se moveu.

     Era quase meio-dia antes que voltasse. Reuniu-se comigo na sala de jantar para o almoço. Enquanto nos serviam, vi o irregular corte que tinha na mão esquerda.

     —Oh, Acheron! —ofeguei, preocupada com a profunda ferida. Tomei sua mão na minha para que pudesse examiná-lo—. O que aconteceu?

     —Caí-me contra as rochas.

     —Por que estavas sentado ali?

     Ele afastou-se, incômodo.

     O que só me preocupou mais.

     —Acheron? O que aconteceu?

     Tragou e deixou cair seu olhar ao chão.

     —Acreditarás que estou louco se lhe disser isso.

     —Não, não o farei. Nunca acreditaria tal coisa.

     Parecia ainda mais incômodo antes que falasse em um tom suave.

     —Às vezes ouço vozes, Ryssa. Quando estou perto do mar, são mais fortes.

     —Que vozes?

     Fechou seus olhos e tentou afastar-se.

     Tomei brandamente seu braço e o mantive em minha cadeira.

     —Acheron, me diga.

     Quando encontrou meu olhar, vi o medo e a angústia em seu interior. Era óbvio que era algo mais que tinha provocado que o golpeassem no passado.

     —São as vozes dos deuses Atlantes.

     Assustada pela resposta inesperada, olhei-o fixamente.

     —Chamam-me. Posso ouvi-los ainda agora como sussurros em minha cabeça.

     —O que é que dizem?

     —Dizem-me que retorne para casa, ao vestíbulo dos deuses para que possam me dar a bem-vinda. Todos menos um. A seu é mais forte que a dos outros e me diz que me afaste. Diz-me que os outros me querem morto e que não devo escutar suas mentiras. Que virá atrás de mim um dia e me levará para casa onde pertenço.

     Franzi o sobrecenho por suas palavras. Por seus olhos, todos sabíamos que Acheron era o filho de algum deus. Mas que eu soubesse, nenhum semideus tinha ouvido as vozes de outros deuses alguma vez. Pelo menos assim.

     —Mamãe diz que deves ser um filho de Zeus —lhe disse—. Disse que deve ter ido visitá-la uma noite, disfarçado como Papai, e que não sabia que tinha estado em sua cama até que tu nasceste. Assim por que ouviria as vozes dos deuses da Atlântida, quando nós somos gregos e seu pai é Zeus ou qualquer rei grego?

     —Não sei. Idikos me drogava sempre que as ouvia até que estava muito tonto e aturdido para notá-lo. Disse que é uma invenção de minha mente. Disse... —seu rosto se afligiu, afastou o olhar.

     —O que disse?

     —Que os deuses me amaldiçoaram. É sua vontade que sirva como o faço. É a razão pela qual nasci tão antinaturalmente e por que todos querem dormir comigo. Todos os deuses me odeiam e querem me castigar por meu nascimento.

     —Os deuses não te odeiam, Acheron. Como poderiam?

     Tirou seu braço de meu agarre e me lançou um olhar tão insolente que me assustei. Nunca tinha mostrado tal espírito.

     —Se não me odeiam, então por que sou assim? Por que meu pai me negou? Por que inclusive minha mãe nunca me olha? Por que fui mantido como um animal cujo único papel na vida é servir como meu amo me ofereça? Por que as pessoas não podem me olhar sem me atacar?

     Colhi seu rosto em minhas mãos, agradecida de que já não se esticasse quando o tocava.

     —Isso não tem nada a ver com os deuses. Só com a estupidez de outras pessoas. Alguma vez te ocorreu que os deuses me enviaram para que te liberasse porque não queriam ver-te sofrer mais?

     Seu olhar se baixou.

     —Não posso esperar isso, Ryssa.

     —Por que não?

     —Porque a esperança me assusta. O que acontece se isto é tudo o que sou? Um puto para ser trocado e vendido. Os deuses fazem aos reis e eles fazem às putas. É óbvio que papel escolheram para mim.

     Fiz uma careta de dor ante suas palavras. Honestamente, preferia as semanas quando se negava a mencionar que era um puto. Odiei as lembranças do que lhe tinha feito contra sua vontade, sobretudo essas desprezíveis esferas em sua língua, que se acendiam cada vez que falava.

     —Não estás maldito!

     —Então por que quando tentei me arrancar os olhos, não ficaram fora?

     Paralisada por essas palavras, não pude respirar durante vários segundos.

     —O que?

     —Tentei me arrancar os olhos três vezes, para que não pudessem ofender a outros, e cada vez que o fiz, voltaram para meu crânio por si mesmos. Se não estou maldito, por que fariam isso? —Elevou sua mão para me mostrar o corte que já tinha começado a sarar—. Lesões que para outros demoram semanas em sarar, curam em dias, se não horas, em mim.

     As lágrimas ardiam meus olhos pela dor em sua voz profunda. Não sabia o que dizer a isso.

     —Adoeceste. Vi-o.

     —Não por muito tempo. Não como uma pessoa normal e posso estar três semanas sem um só bocado de comida ou uma gota de água e não morro.

     O fato que soubesse quanto tempo podia estar sem alimento me disse que o tinham feito. Mas embora pudesse suportar tanto e não morrer, sofria a fome como o resto de nós. Sabia disso por estar tanto com ele.

     Fechei minha mão ao redor da sua.

     —Não sei qual é a vontade dos deuses, Acheron, ninguém sabe. Mas me nego a acreditar que é sua vontade te ferir desta maneira. És um presente precioso que foi desdenhado pelos que deveriam havê-lo apreciado. Essa é uma tragédia humana da qual não terá que culpar aos deuses. Os sacerdotes dizem freqüentemente que os presentes dos deuses às vezes são difíceis de aceitar ou identificar, mas sei em meu coração que tu és especial. Que és um presente à humanidade. Nunca duvides que lhe puseram aqui com algum propósito mais alto e esse propósito não é malvado ou para ser violado.

     Contive as lágrimas antes de beijar sua mão ferida.

     —Te amo, irmãozinho. E vejo em ti nada mais que bondade, inteligência, compaixão e simpatia. Espero que algum dia tu também o vejas.

     Ele pôs sua outra emano na minha.

     —Desejaria poder, Ryssa. Mas tudo o que vejo é a um puto que está cansada de ser usada.

 

15 de Fevereiro, 9531 a.C.

   O tempo tinha voado enquanto observava crescer a Acheron de um menino tímido e assustadiço, a um homem mais seguro de expressar suas próprias opiniões. Já não se abate nem mantém a cabeça baixa. Quando lhe falo, agora encontra meu olhar diretamente. Realmente, sua transformação foi a coisa mais formosa que alguma vez tenha visto.

     Não estou segura se há sido por minha influência, ou se há sido Maia quem finalmente o alcançou e tirou seu novo lado. Os dois são inseparáveis.

     Hoje estavam na cozinha enquanto Petra guisava. Estive de pé na entrada observando-os atentamente.

     —Tens que bater o pão assim —Maia o cortou em pedaços com suas diminutas mãos enquanto se ajoelhava sobre um tamborete alto para poder alcançar a mesa—. Faz de conta que é alguém que não te agrada —sussurrou forte como se compartilhasse um grande secreto.

     A expressão de Acheron brilhou com calidez.

     —Não acredito que haja alguém que não te agrade.

     —Bom, não, mas provavelmente há alguém que tu não gostas.

     Não perdi a tortura em seus olhos enquanto afastava o olhar. Perguntei-me quem encabeçava sua lista. Nosso pai ou nosso tio?

     —Necessitamos de mais leite.

     Acheron obedientemente o deu.

     Petra lhes jogou uma olhada, sorriu e sacudiu a cabeça ante eles enquanto Maia adicionava muito mais sal que o necessário.

     Maia limpou o nariz, que escorria, antes de pôr suas mãos de volta na massa. Encolhi-me, fazendo uma nota mental de não comer qualquer pão que tivessem cozinhado, mas Acheron não parecia ser tão receoso. Inclusive comeu um pedaço de bolo de lodo vários dias antes para fazer a Maia feliz.

     —Agora devemos lhes dar forma de pão. Vamos fazê-los pequeninos porque são meus favoritos.

     Acheron obedientemente o fez.

     Os cães começaram a ladrar.

     —Shh! —disse Maia enquanto separava um pedaço de massa e o aproximava de Acheron para que pudesse fazer um pão-doce—. Estamos trabalhando.

     O cão saltou e empurrou a Maia, quem perdeu o equilíbrio. Acheron a agarrou a mesmo tempo em que o cão saltava sobre sua perna, desequilibrando-o. Em um instante, estavam direitos, e no seguinte estavam no chão, com Acheron sobre suas costas e Maia em seu peito. O cão ladrou e dançou ao seu redor, chocando-se contra a mesa.

     A terrina de farinha que tinham estado usando caiu do borda e aterrissou sobre eles. Cobri minha boca enquanto os via, cheios de massa, farinha e leite. Só eram visíveis os amplos olhos assustados.

     Maia chiou de risada e para meu completo assombro, Acheron riu também.

     Seu som, combinado com um honesto sorriso, deixou-me atônita. Era absolutamente bonito quando sorria… inclusive quando estava coberto de farinha e massa.

     Seus olhos brilhavam enquanto limpava a farinha da cara e ajudava a Maia a tirar algo de suas bochechas.

     Petra deixou sair um som de desgosto enquanto tirava o cão da cozinha.

     —Parecem fantasmas preparados para me assustar até uma prematura morte. Que confusão!

     —Limparemos, Petra, prometo-o —disse Acheron enquanto punha a Maia de pé—. Não está machucada, ou sim?

     Maia sacudiu a cabeça.

     —Mas temo que nossos pães estão todos arruinados —seu tom era calamitoso de verdade.

     —Certo. Mas sempre podemos fazer mais.

     —Mas não serão tão bons.

     Contive uma risada. Sim, era verdade, o toque do nariz mucoso de Maia tinha sido a especiaria necessária para todo bom pão. Sem isso, estava segura de que a próxima fornada não estaria nem perto de ser tão boa. Entretanto, guardei esse comentário para mim mesma enquanto Acheron consolava à pequena menina.

     Acheron levou a Maia para fora para que assim pudessem sacudir a farinha de suas roupas e cabelos enquanto Petra ficava a limpar a cozinha. Depois de uns minutos, retornaram para ajudar.

     Observei com pavor que um príncipe pudesse ser tão considerado. Mas Acheron nunca se encolhia ao ajudar a Petra onde quer que ele e Maia estivessem na cozinha com ela. Era só sua natureza.

     E sempre adoraria a Maia como um paciente irmão mais velho.

     —Acheron? —Perguntou Maia enquanto colocava uma nova tigela para ela— Por que tens essas coisas chapeadas na língua?

     Olhou para outro lado.

     —Foram postas aí quando não era muito maior que tu.

     —Por que?

     Aparentou uma expressão ameaçadora.

     —Para poder assustar as meninas pequenas que me incomodassem.

     Ela soltou umas risadas enquanto ele fazia cócegas ligeiramente.

     —Não acredito que alguma vez possas assustar a alguém. És muito agradável para isso.

     Ele não fez nenhum comentário enquanto a ajudava a medir a farinha.

     Maia coçou a cabeça enquanto o observava com inocente curiosidade.

     —As esferas doem alguma vez?

     —Não.

     —Oh —elevou a cabeça para estudar seus lábios—. Alguma vez te tiraste elas?

     —Maia —disse Petra brandamente enquanto retornava para o cordeiro que estava temperando—. De verdade, não acredito que Acheron queira falar sobre elas.

     —Por que não? Acredito que são bonitas. Posso ter umas?

     —Não —disseram Acheron e Petra simultaneamente.

     Maia se zangou.

     —Bem, não vejo por que não. A princesa Ryssa tem umas pequenas bolas chapeadas em suas orelhas e as de Acheron são muito bonitas também.

     Acheron beliscou a ponta de seu nariz.

     —Doer-te-ão quando te puserem elas, akribos. É uma dor que não quererás conhecer nunca e é por isso que não me quero tirá-las. Não quero que ninguém me machuque assim outra vez.

     —Oh. É como a queimadura na mão da qual me contou?

     Petra se virou para eles.

     —Que queimadura na mão?

     —A que fez Acheron quando era pequeno. É muito bonita, também, como uma pirâmide. Disse que a obteve porque não escutou a sua mãe.

     Uma luz reveladora chegou aos olhos de Petra. Acheron não a passou por cima. Baixando sua cabeça submissamente, murmurou uma desculpa para Maia antes de ir-se.

     Segui-o.

     —Acheron?

     Deteve-se para voltar-se para mim.

     —Sim?

     —Não pretendeu dizer nada com suas perguntas.

     —Eu sei —respirou—. Mas não o faz menos doloroso, ou sim?

     Queria abraçá-lo tão desesperadamente. Se só me permitisse isso. Mas só Maia com sua inocência era capaz de alcançá-lo.

     —Podes tirar as bolas e podemos disfarçar sua mão. Ninguém saberá nunca.

     —Eu ainda saberei —riu azedamente—. Não podes desfazer o passado, Ryssa. Com marcas ou não em meu corpo, sempre está aí e sempre é brutal —seus olhos me queimaram e neles vi o angustiante menino não tão jovem que sempre conheci—. Porque da maneira em que saro, tens idéia de quantas vezes e quão profundo tiveram que queimar minha mão para marcá-la?

     As náuseas surgiram em meu interior. Era algo que nunca tinha considerado.

     —Seu passado terminou, Acheron. Tudo o que resta são as duas partes que não queres deixar ir.

     Sacudiu a cabeça negando antes que ondeasse a mão para o palácio.

     —Isto… tudo isto é um sonho e sabes. Um dia, muito em breve, vou despertar e terminará. Voltarei a ser o que era. Fazendo coisas que não quero. Andando a apalpar, sendo empurrado e golpeado. Não há necessidade de pretender o contrário.

     Como poderia fazê-lo sentir a salvo e seguro?

     —Por que não tomas minha palavra e acreditas em mim? O passado terminou. Agora tens um novo futuro. Boraxis vai de caminho a Sumer para entregar uma carta a minha melhor amiga. Uma vez que tenha sua palavra, teremos um lugar seguro aonde poderás ir e ninguém voltará a te machucar de novo.

     Sua expressão era desoladora e fria.

     —Não sei como confiar, Ryssa. Nem em ti nem em ninguém mais. As pessoas são imprevisíveis. Os deuses o são mais. As coisas que acontecem estão fora de nosso controle. Quero acreditar em ti, faço-o. Mas tudo o que ouço são as vozes dos deuses, e a tua. E logo vejo coisas… coisas que não quero ver.

     —Que tipo de coisas?

     Ele virou-se e se dirigiu ao seu quarto.

     Corri atrás dele e o agarrei para que se detivera.

     —Me diga. O que é que vês?

     —Vejo-me pedindo por uma misericórdia que nunca chega. Vejo-me abandonado nas ruas sem um lugar para descansar e ninguém ao meu lado disposto a me ajudar a não ser que seja em troca de algo que não quero dar.

     Deuses, como queria fazê-lo confiar em mim e no futuro que me ia assegurar que tivesse.

     —Isto não é um sonho, Acheron. É real e não vou te deixar retornar à Atlântida. Vamos te encontrar uma casa que seja segura.

     Olhou para outra parte, seus olhos tormentosos.

     —Por que não veio Papai? Se me ama como dizes, por que não veio em todos estes meses para ver-me? E por que está tratando de me encontrar outra casa?

     —Está ocupado —não podia suportar, inclusive agora, lhe dizer a dura verdade.

     —Segues dizendo isso e tentarei acreditar em ti. Mas sabes que lembro dele?

     Quase tinha medo de perguntar.

     —O que?

     —Vejo-o te mantendo longe de mim enquanto Idikos me tirava do quarto. Nunca esqueci o ódio que acendeu os olhos de Papai enquanto me olhava. Tive pesadelos durante anos por esse olhar. E agora dizes que o esqueceu? —Um músculo trabalhou em sua mandíbula—. Devo acreditar em ti realmente?

     Não, não deveria. Estava mentindo, mas não podia deixar que soubesse a verdade.

     —Um dia vais acreditar em mim, Acheron.

     —Isso espero, Ryssa. De verdade. Quero acreditar desesperadamente, mas não posso permitir que me decepcionem novamente. Estou cansado disso.

     Observei-o enquanto virava e me deixava parada aí. Era tão formoso. Alto. Orgulhoso. Apesar de tudo, ainda mantinha uma dignidade que não podia entender.

     —Te amo, Acheron —sussurrei, desejando que não fora a única em minha família que se sentisse dessa maneira para com ele.

     Por que não podiam ver o que eu via?

     E dentro estava a dor de saber quanta razão tinha Acheron. Cedo ou tarde, nosso pai viria. Quando esse dia chegasse, Papai nunca me perdoaria por tirar Acheron de Atlântida. Nunca me perdoaria pelas cartas embusteiras que lhe tinha escrito a respeito de onde estava ou das pessoas que Boraxis pagava em sua travessia para enganá-lo. Não tinha dúvida de que ambos, Papai e Estes, buscavam-nos enquanto Boraxis procurava um refúgio seguro para Acheron em outro país ou reino.

     Mas estava fazendo o que acreditava melhor para meu irmão. Tudo o que podia esperar era que pudesse garantir sua liberdade e felicidade, manter minhas promessas. Uma vez seguro longe daqui, retornaria a Didymos e enfrentaria a meu pai e sua ira.

     Por Acheron, faria qualquer coisa, inclusive pôr em perigo minha própria liberdade. Só esperava que Boraxis retornasse antes que meu pai pensasse em nos buscar aqui.

     Pode ser que os deuses tivessem misericórdia de nós no caso de que isso ocorresse.

   

18 de Março, 9531 a.C.

   O clima quente chegou milagrosamente como Perséfone deveria ter voltado para peito de sua mãe. Toda minha vida, hei preferido a primavera. O renascimento da terra e da beleza. Em particular, nossa ilha estava encantadora enquanto os trabalhadores vinham a plantar sementes e a cantar.

     Mas neste ano, senti pavor enquanto esperava notícias de Boraxis. Me havia enviado uma missiva só alguns dias antes, dizendo que poderia haver um lugar no reino de Kiza para Acheron. Tinham uma rainha que se rumorejava era anciã e amável. Seus próprios filhos estavam mortos, e possivelmente poderia dar a bem-vinda a um príncipe exilado.

     Esperava com todo meu coração que fora assim.

     E com cada dia que passa, temo que Papai estenda sua busca para nosso oásis. Mas cada vez tenho a esperança de que em troca pudesse me encontrar um marido, e então fora possível trazer Acheron a nossa casa para que assim pudesse protegê-lo. Então estaria por sempre mais além do toque de meu pai ou meu tio.

     Não quero pensar nisso por agora.

     A melhor parte de estar aqui foi que os serventes aceitaram de todo a Acheron e suas peculiaridades, e formamos uma particular família próxima. Em Acheron, encontrei o irmão que sempre quis. Enquanto Styxx é petulante, Acheron finalmente tinha aprendido a rir sem medo de atrair uma atenção indesejada.

     Hoje, encontrei-o com Maia lá fora no jardim. Ela tinha estado escrevendo letras na terra com uma vara e acostumando-as a Acheron.

     Foi então que recordei o que me havia dito em Atlântida a respeito de ser analfabeto, a vergonha que lhe tinha causado essa confissão.

     —Poderia ajudar? —Perguntei enquanto me aproximava deles.

     Maia se inclinou para Acheron e falou esse forte sussurro tão típico dela que era tão encantador como doce.

     —Será uma melhor professora que eu. Sabe todas as letras e como formar palavras com elas. Eu só sei umas quantas.

     Acheron me sorriu.

     —Poderias, por favor?

     Sua petição me impressionou até o coração. Nunca tinha pedido por nada antes.

     —Absolutamente —tomando a vara de Maia, comecei as lições para ambos para que assim pudessem ler.

     Acheron era um estudante esperto e absorvia tudo o que lhe ensinava com uma aptidão que era completamente milagrosa.

   —As letras Atlantes são diferentes das Gregas? —Perguntou enquanto observava o alfabeto.

     —Algumas são. Têm várias vocais ditongas das quais carecemos.

     Maia franziu o cenho.

     —Sua língua é como nosso grego?

     Sorri ante sua inocente pergunta.

     —Sua linguagem pode ser muito similar a nossa. Tanto que às vezes pode entendê-lo sem saber o significado das palavras. Mas é uma linguagem à parte. Pessoalmente, sei muito pouco, mas Acheron o fala correntemente.

     Seu rosto se iluminou enquanto o encarava.

     —Podes me ensinar isso.

     A reserva resplandeceu no profundo de seus olhos.

     —Se quiseres. Mas não é uma linguagem bonita.

     Não estive completamente de acordo. A diferença do grego, havia uma harmoniosa qualidade melódica na língua Atlante que os fazia parecer como se cantassem cada vez que falavam. Era um prazer escutar, mas claro, dada a experiência de Acheron em Atlântida, podia entender muito bem seu sentimento sobre a fealdade das pessoas e seu idioma.

     Acheron dirigiu sua atenção de novo para mim.

     —Os Atlantes e os gregos compartilham deuses também?

     Maia riu.

     —Não sabes a respeito dos deuses, Acheron?

     Sacudiu a cabeça.

     —Só sei o nome de Zeus porque muitos o usam para jurar e outros chamam Archon e Apollymi.

     Franzi o cenho ante os nomes do rei e a rainha do panteão Atlante.

     —Como sabes seus nomes?

     Não me respondeu, mas a aparência de seu rosto me fez suspeitar que deviam ser alguns dos que podia escutar em sua cabeça.

     —Bem —disse, tratando de aliviar o repentino mal-estar—, Zeus é o rei dos deuses Olímpicos e sua rainha é Hera.

     —Eu gosto de Artemisa —disse Maia mais alto—. É a deusa da caça e do parto. É uma das que salvou a vida de minha mãe quando nasci e estávamos doentes. A parteira jurou que ambas morreríamos, mas meu pai fez sacrifícios e oferendas a Artemisa e nos salvou.

     Acheron sorriu.

     —Certamente deve ser uma grande deusa e lhe devo muito porque te deixou nascer.

     Maia sorriu de orelha a orelha com feliz satisfação.

     No transcurso da tarde, repassei uma rápida lição dos deuses Gregos, mas a diferença da escritura, Acheron tinha tido um momento difícil compreendendo todos os nomes e seus títulos. Era como se eles fossem tão alheios a ele que não podia diferenciar um de outro. Constantemente os confundia.

     Passamos muitas horas aí até que Maia caiu adormecida sentada ao lado de Acheron.

     Suas feições se suavizaram enquanto a olhava e a embalava em seus braços.

     —Faz muito isto. Está falando um momento e depois cai profundamente adormecida no seguinte. Nunca tinha visto algo assim.

     Sorri ante a calidez que se filtrou em mim. Via-se tão fofo sustentando-a como um pai protetor. Dada a brutalidade de seu passado, sua habilidade para ainda sentir compaixão e mostrar ternura nunca deixava de me assombrar.

     —A amas, não?

     Sua expressão foi uma de horror puro e logo depois de descarada raiva.

     —Nunca a tocaria dessa forma.

     Seu rancor me desconcertou até que me dei conta do porquê estava tão zangado. Em seu mundo, o amor era um ato físico e não uma emoção. Só de pensá-lo fazia doer a meu coração.

     —O amor não tem que ser sexual, Acheron. Em sua forma mais pura não tem nada a ver com um ato físico.

     A confusão enrugou sua testa.

     —O que queres dizer?

     Gesticulei para a menina que sustentava tão protetoramente no refúgio de seus braços musculosos.

     —Quando miras a Maia, seu coração se suaviza, não?

     Ele assentiu.

     —A miras e tudo o que queres fazer é mantê-la a salvo do mal e cuidar dela.

     —Sim.

     Sorri-lhe.

     —Não queres nada dela exceto fazê-la feliz.

     Elevou sua cabeça curiosamente e estudou meu rosto.

     —Como sabes?

     —Porque é assim como me sinto contigo, irmãozinho. O amor que sentes por ela é o mesmo que sinto cada vez que penso em ti. Se alguma vez me necessitasses, não haveria penúria que não resistisse para estar ao teu lado logo que pudesse.

     Engoliu enquanto um olhar atormentado chegou a seus tempestuosos olhos prateados.

     —Me amas?

     —Com cada parte de meu coração. Faria qualquer coisa para te manter a salvo.

     Pela primeira vez desde que chegamos aqui senti como se finalmente o tivesse alcançado. E então a coisa mais milagrosa de todas aconteceu.

     Acheron tomou minha mão.

     —Então te amo, Ryssa.

     As lágrimas nublaram meus olhos enquanto as emoções me afogavam.

     —Eu também te amo, akribos. E não quero que o duvides nunca.

     —Não o farei —apertou minha mão—. Obrigado por ir me buscar.

     Nenhuma palavra tinha significado tanto para mim, nem tocado tão profundamente. Minha garganta estava tão apertada que nem sequer pude falar enquanto soltava minha mão para levantar-se com Maia em seus braços para poder dar-lhe a sua mãe. Observei-o partir e desejei com cada parte de minha alma que sempre se sentisse dessa maneira para comigo. Poderia suportar qualquer coisa exceto o ódio de meu irmão.

 

19 de Março de 9531 a.C.

     Hoje decidi ensinar a Acheron a ler com alguns dos pergaminhos que tenho em meu quarto. Apenas tínhamos começado quando notei algo diferente nele.

     As esferas em sua língua tinham desaparecido.

     —Tiraste-as. —tomei fôlego incapaz de acreditar no que estava vendo.

     Sua expressão era uma mescla entre a vergonha e o orgulho.

     —Decidi-me a acreditar em ti. Dizes que aqui estou a salvo e ninguém me levará outra vez. Quero acreditar nisso. Assim que me tirei elas e confio que os deuses me mantenham aqui contigo.

     Coloquei minhas mãos em seu rosto e eu gostei ainda mais que não ficasse rígido. Atraí-lhe aos meus braços e lhe abracei com força.

     —Aqui estás a salvo, irmãozinho. Juro-te.

     Pela primeira vez, me passou os braços em volta e me devolveu o abraço.

     Nada me comoveu mais em minha vida.

     Ouvi alguém clareando a garganta. Soltando-lhe vi a Petra na porta que nos trazia vinho e queijo.

     —Pensei que vos gostaria de um bocadinho.

     Assenti com a cabeça me afastando.

     —Seria estupendo. Obrigada.

     Ela assentiu com a cabeça e colocou a bandeja em uma mesinha auxiliar.

     Acheron ficou olhando-a até que nos deixou sozinhos e então disse:

     —Alguma vez pensaste em te casar, Ryssa?

     Duvidei e servi as taças.

     —Alguma vez e me pergunto por que Papai não me procurou um marido. A maioria das princesas está casada muito antes de chegar a minha idade. Mas Papai sempre diz que não encontra a ninguém que considere digno. —sorri—. A verdade é que não tenho pressa. Vi a tantas de minhas amigas casadas com ogros que se Papai quer levar mais tempo para me encontrar um marido agradável, certamente que posso esperar. Por que o pergunta?

     —Pensava em Petra e seu marido. Deste-te conta da forma em que riem quando estão juntos? E quando se separam estão tristes. Como se não pudessem suportar estar separados nem sequer uns minutos.

     Eu assenti.

     —Compartilham um grande amor um pelo outro. É uma pena que nem todos os casais casados sejam como eles.

     —Nossos pais eram assim?

     Desviei o olhar evocando imagens de como tinham sido meus pais antes do nascimento de Styxx e Acheron. Naqueles dias se amavam apaixonadamente. Quase nunca se separavam e meu pai idolatrava a minha mãe com um amor que parecia não ter fim.

     E então nasceram seus filhos. Desde aquele desafortunado dia meu pai não podia suportar estar perto de minha mãe. Culpava-a por Acheron.

     Foste a puta de um deus. Não o negues. Não pode ter saído de teu ventre de outra forma.

     Quanto mais proclamava minha mãe sua inocência, mais parecia odiá-la meu pai. Ao final disse que Zeus a tinha enganado e não tinha tido nem idéia de sua presença na cama.

     Em vez de aplacar a meu pai, sua confissão lhe enlouqueceu inclusive mais e proibiu qualquer contato com ela.

     —Não, Acheron. —disse em voz baixa enquanto lhe estendia uma taça—. Não se vêem quase nunca, salvo por questões de estado. Papai prefere a companhia de Styxx e seus senadores enquanto Mãe passa grande parte do tempo perdida em suas taças—. E eu o odeio. Tempos atrás minha mãe tinha sido maravilhosa. Agora era uma bêbada amargurada.

     Olhou-me tenso como se entendesse por que.

     —Pensa que alguma mulher me amará algum dia?

     —Pois claro que sim. Por que o duvidas?

     Tragou com força e me respondeu em voz tão baixa que quase não podia lhe ouvir.

     —Como poderia me amar alguém? Idikos diz que sou uma vergonha para as pessoas descentes. Que sou um bastardo sem pai e um puto desprezível. Certamente nenhuma mulher decente quererá nada comigo.

     —Isso é uma completa mentira. —disse com veemência—. Mereces o mundo inteiro e te asseguro que encontrarás uma mulher, além de mim, que aprecie quão maravilhoso és.

     Voltou a tragar com força.

     —Se alguma vez for tão afortunado te juro que ela nunca duvidará de meu amor.

     —Serás tão afortunado.

     Sorriu-me, mas era um sorriso vazio e havia em seus olhos suficiente dúvida para que os meus se enchessem de lágrimas.

     Clareando-me a garganta, tentei lhe distrair.

     —Vamos aprender as letras, que achas?

     Voltou-se por volta dos pergaminhos e durante quatro horas o vi esforçar-se com um ardor que não havia antes. E cada vez que lhe ouvia falar sem aquelas esferas na língua me elevava o coração. Era uma grande vitória e um dia próximo ganharia esta batalha e seu passado ficaria no esquecimento.

 

9 de Maio de 9531 a.C.

     Estava sozinha em meu quarto quando Maia abriu a porta.

     —Acheron está doente?

     Deixei a pluma e a olhei carrancuda.

     —Não lhe vi em todo o dia. Por que o perguntas?

     Ela coçou o nariz e me olhou completamente perplexa.

     —Fui lhe buscar para que amassássemos juntos, mas parecia que não se encontrava bem. Disse que lhe doía a cabeça e esteve pouco amável comigo. Acheron sempre é amável comigo. Quando voltei lhe levando um pouco de vinho, seu quarto estava vazio. Deveria me preocupar?

     —Não, akribos. —disse fingindo um sorriso que não sentia—. Corre à cozinha. Eu lhe buscarei.

     —Obrigada, Princesa. —Devolveu-me o sorriso antes de sair saltando.

     Preocupada eu mesma por ele, abri as portas que davam ao pátio. Acheron tinha passado muito tempo lá fora com a erva e as flores. Mas não estava ali.

     A seguinte parada foi à horta. Tampouco ali lhe encontrei.

     Depois de uma rápida busca por toda a casa, comecei a me preocupar de verdade. Nunca ia tão longe sozinho. E era muito estranho que fugira de Maia.

     Um pânico irracional me invadia quando saí de casa para procurar pelos arredores.

     Onde poderia estar?

     Se se tratasse de Styxx, seguramente que lhe encontrava flertando com alguma donzela na intimidade de seu quarto. Mas sabia que Acheron nunca faria algo assim.

     De repente me deu a luz.

     O mar…

    Não tinha estado no mar do inverno, mas não podia pensar em outro lugar onde procurar. Era o único lugar onde poderia estar. Sussurrando uma rápida prece aos deuses para que tivesse razão, baixei caminhando para a praia e as rochas onde ele estava acostumado a sentar-se.

     Tampouco estava ali.

     Mas enquanto subia, vi-lhe deitado de costas na areia com as ondas lhe passando por cima. Fiquei sem fôlego. Parecia que não se movia absolutamente.

     Molhado até os ossos, ele jazia na praia com os olhos fechados.

     Corri aterrorizada e me deixei cair ao seu lado. Pude ver quão pálida estava sua formosa cara antes de chegar até ele.

     —Acheron! —gritei com os olhos cheios de lágrimas de medo. Estava aterrorizada de que estivesse morto.

     Para meu imediato alívio, abriu os olhos e me olhou. Mas não se moveu.

     —O que fazes? —perguntei-lhe me fincando de joelhos ao seu lado. Meu vestido estava molhado e completamente estragado, mas não me importava. Minha vaidade não importava absolutamente. Só importava meu irmão.

     Apertou os olhos e disse em tom tão baixo que quase não podia ouvir com o ruído das ondas.

     —A dor não é tão forte se me deito aqui.

     —Que dor?

     Agarrou-me a mão. A sua tremia tanto que em resposta meu medo se multiplicou por dez.

     —As vozes de minha cabeça. Sempre são atrozes no dia de hoje, todos os anos.

     —Não o entendo.

     —Dizem-me uma e outra vez que é o aniversário de meu nascimento e que deveria ir até eles. Mas Apollymi me grita que me esconda e não lhes escute. Quanto mais alto grita ela, mais gritam os outros. É insuportável. Só quero que se vão. Estou me voltando louco, verdade?

     Apertei sua mão, retirei-lhe o cabelo úmido da testa e me dava conta de que não se barbeou. A barba de todo um dia escurecia suas bochechas e seu queixo, algo que nunca permitia. Acheron sempre estava impecavelmente asseado e vestido.

     —Hoje não é o aniversário de teu nascimento. Nasceste em junho.

     —Já sei, mas seguem gritando. Caí-me tentando chegar às rochas e descobri que no mar as vozes se atenuam.

     Nada disto tinha sentido.

     —Como é isso?

     —Não sei. Mas é assim.

     Uma onda rompeu na praia, lhe cobrindo totalmente. Não se moveu embora que a mim sacudiu de um lado a outro. Endireitei-me e lhe olhei enquanto cuspia água. Mesmo assim não fez intenção de sair do mar.

     —Vais sentir frio atirado aí.

     —Não me importa. Prefiro me pôr mal a lhes ouvir gritar tão forte.

     Desesperada por acalmar a ele, sentei-me por trás no chão com as pernas cruzadas e pus sua cabeça em meu regaço.

     —Melhor?

     Ele assentiu entrelaçando seus dedos com os meus e pôs minha mão sobre seu coração, me sujeitando ali. Pelo firme apertão, sabia que a cabeça seguia lhe doendo imisericordiosa.

     Não falamos durante horas, jazendo ali com minha mão em seu peito. Me adormeceram as pernas, mas não me importava. Estivemos tanto tempo fora, que Petra veio a ver como estava. Estava tão confusa como eu pela explicação de Acheron, mas, obediente, deixou-nos sozinhos e nos trouxe vinho e algo de comer.

     A Acheron doía tanto que não podia comer, embora pude fazer com que mordiscasse um pouco de pão.

     Ao anoitecer, as vozes se aquietaram o suficiente como para que pudesse levantar-se. Cambaleava-se.

     —Estás bem? —perguntei-lhe preocupada.

     —Um pouco enjoado pelas vozes. Mas agora não são tão fortes. —jogou-me um braço pelos ombros e juntos empreendemos o caminho de volta ao seu quarto.

     Fiz com que Petra lhe preparasse um banho quente e lhe cobri com uma toalha. Ainda estava pálido, seus traços tensos.

     Maia chegou correndo com dois copos de leite morno.

     —Me tinhas preocupada, Acheron. — arreganhou-lhe.

     —Sinto muito, pequena. Não queria te preocupa.

     —Encontra-te melhor?

     Ele assentiu.

     —Maia, —disse Petra da porta. —vem aqui e deixa que Acheron se banhe em paz.

     —Pus açúcar no leite —lhe confiou Maia antes de obedecer a sua mãe.

     —Espero que te sintas melhor logo.

     Encantada por seus cuidados, segui-a.

     —Ryssa.

     Parei-me na porta e olhei a Acheron que ainda estava envolvido na toalha.

     —Sim?

     —Obrigada por preocupar-se por mim e por ficar comigo. Vá te secar antes que resfries.

     —Sim, senhor. —disse sorrindo-lhe.

     Saí fechando a porta e me dirigi ao meu quarto. As portas estavam ainda abertas assim que as fechei. Ao fechá-las, passou algo do mais estranho.

     Ouvi um vago sussurro no vento.

     Apostolos.

     Carrancuda, olhei ao meu redor, mas não havia ninguém. De onde demônios vinha essa voz? E mais ainda, não conhecia ninguém que se chamasse Apostolos.

     Sacudi a cabeça para me clareá-la.

     —Agora ouço vozes, como Acheron.

     Era estranho para estar segura.

     Mas inclusive ao deixá-lo de lado, havia uma parte de mim que seguia perguntando-se. E, sobretudo, perguntava-me se isto não poderia ser uma nova ameaça para meu irmão.

     Só o tempo o diria.

 

23 de Junho, 9530 a.C.

     Ao final a resposta chegou. A Rainha de Kiza tinha aceitado acolher a Acheron. O mensageiro tinha chegado ontem com o aviso de Boraxis que estava a caminho daqui para escoltar a Acheron a salvo. Ele deveria chegar em outros três dias.

     Eufórica, planejava contar a Acheron essa noite durante a celebração surpresa do aniversário de seu nascimento.

     Meu irmão ia estar a salvo. Para sempre.

     Felizmente, nós tínhamos saído hoje à horta. Em realidade, passamos toda a manhã ali, rindo e provando a apreciada fruta do jardineiro. A horta estava bonita. Pacífica. As folhas eram de um impressionante verde, acentuado pelas vermelhas e douradas maçãs que explodiam em um doce e suculento sabor. Até os velhos muros de pedra estavam tranqüilos, cobertos por vinhas já florescidas.

     Não me estranha que Acheron o prefira a qualquer outro lugar do palácio. O ar primaveril era fresco e quente, poderia passar horas vendo a forma em que Acheron desfruta da coisa mais simples como o é a sensação do sol em sua pele. A grama sob seus pés descalços.

     Claro, sua vida não tinha tido muito daquelas duas coisas. Como desejaria ter podido lhe dar outra vida. Uma melhor. A vida que merecia, onde ninguém lhe tivesse feito mal por coisas que não podia evitar. Onde as pessoas pudessem vê-lo em toda essa beleza com que eu o vejo e soubesse a alma tão gentil que é. Não é esse monstro ao que lhe temem. Tão só é um rapaz que necessita de um bom lar e pais que o amem apesar de suas anormalidades.

     Enquanto o via inalar o cheiro de uma maçã antes de acrescentá-la ao montão que tinha escolhido, assombrei-me de quanto tinha mudado nos últimos meses. Pela primeira vez, recordou a um juvenil garoto de quatorze anos e não a um sem entusiasmo, desgastado ancião. Tinha aprendido finalmente a confiar em mim. Em confiar que aqui estava são e salvo. Que ninguém aqui lhe temia. Podia ser ele mesmo, sem ser servil ou temeroso de que o agarrassem e lhe fizessem mal. Ah, a dor que sinto quando penso na vida que levou em Atlântida. Como pôde nosso tio tratá-lo assim? Ainda posso ver Acheron encadeado. Ver esse vazio superficial em seus olhos quando pela primeira vez me olhou e não tinha idéia de quem era eu. De quem era ele.

     Posso haver falhado com ele antes, mas jurei que não falharia com ele de novo. Aqui conhece a paz e a felicidade. Aqui, farei o que mais possa para mantê-lo longe do mundo que não pode entendê-lo nem suportá-lo. Enquanto tomava as maçãs, recordou a um esquilo que salta de árvore em árvore recolhendo seu tesouro. Era um rapaz tão bonito. Em meu coração sei que ele e Styxx são gêmeos, e ainda enquanto o vejo, estremecem-me suas diferenças. Acheron se movia de maneira mais elegante. De maneira fluída. Era mais magro, seu cabelo um pouco mais dourado e seus músculos mais definidos. Sua pele mais suave. E esses olhos… Eram encantadores e aterradores.

     Depois de terminar, trouxe-me seu tesouro e o pôs em forma de círculo para que assim eu pudesse escolher que maçãs queria primeiro. Sempre foi assim considerado. Pensando nos outros antes que nele. Tinha existido como um animal do queal se abusava com o único fim de entreter os outros.

     —Pensas que Papai nos visitará logo? —perguntou enquanto ele deitava em seu flanco, me observando comer minha maçã.

     Podia sentir que ele estava me testando para ver se estava mentindo. Seus tempestuosos olhos chapeados eram absolutamente entristecedores cada vez que punha esse olhar tão penetrante. Não lhe surpreendia que Titio o batesse por olhar às pessoas. Era tão desconcertante e até aterrador estar sob tal escrutínio. Mas não merecia ser golpeado por algo que não podia evitar.

     —Estou pensando que tu e eu deveríamos fazer uma viagem em uns dias para visitar a rainha.

     Ele afastou o olhar, incômodo, enquanto brincava com sua própria maçã.

     Querendo apaziguá-lo e alentá-lo, estiquei-me para lhe afastar umas mechas de cabelo dourado dos olhos.

     —É esta a ternura do verdadeiro afeto do que me falaste? —perguntou em tom vacilante—, A única nas quais as pessoas que te amam, tocam-te sem pedir nada em troca?

     —Sim —respondi.

     Ele me sorriu, abertamente e honestamente igual a um menino.

     —Acredito que eu gosto.

     Então ouvi algo que fez que meu coração deixasse de pulsar.

     Havia passos aproximando-se. Sabia que não deveria haver tais sons em nosso paraíso temporário. Petra e Maia estava ocupadas na cozinha. O marido de Petra tinha ido ao povoado e o resto estava ocupado em seus afazeres.

     Só uma pessoa podia chegar dessa maneira.

     E soube que era nosso pai no instante em que Acheron se sentou, seu rosto extremamente encantado. Fechei os olhos e tremi de pânico na vez que fiz o esforço de me levantar e enfrentá-lo. Seu rosto zangado, Papai estava entre as velhas colunas de pedra que marcavam a entrada da horta com Styxx ao seu lado.

     O sangue se congelou em minhas veias.

     Queria dizer a Acheron que corresse e se ocultasse, mas era muito tarde. Já estavam muito perto.

     Só três dias mais e tínhamos estado a salvo longe dali. Quis chorar.

     —Papai —disse em voz baixa—. Por que estás aqui?

     —Onde estiveste? —exigiu enquanto avançava—. Te estive procurando e procurando até que me dei conta de vir aqui.

     —Disse-lhe isso, queria tempo…

     —Papai? —A voz entusiasmada de Acheron encheu meus ouvidos. Esta era a primeira vez que o jovem tinha visto seu pai desde que tinha sido enviado longe.

     Horrorizada, observei-o correr para abraçar a seu pai. Ao contrário de Acheron, eu sabia a recepção que receberia.

     Sem sequer me olhar, Papai o afastou sem piedade e fez uma careta de repugnância.

     Acheron franziu o cenho confuso de uma vez que me olhava pedindo uma explicação.

     Eu não podia falar. Como podia lhe dizer que lhe tinha mentido quando tudo o que tinha querido era fazer sua vida muito melhor?

     —Como te atreveste a tirá-lo de Atlântida? —grunhiu seu pai.

     Abri a boca para lhe explicar, mas me distraí com a maneira em que os gêmeos olhavam um ao outro.

     Fiquei apanhada por sua mútua curiosidade. Embora cada um sabia que o outro existia, jamais tinham estado juntos por mais de uma década. Nenhum dos dois recordava o que era ver-se e interagir um com o outro.

     A alegria cobria o rosto de Acheron. Podia notar que queria abraçar a Styxx, mas depois da bem-vinda de Papai estava vacilante.

     Styxx o olhava menos que entusiasmado. Olhava a Acheron como se fora um pesadelo feito realidade.

     —Guardas! —gritou papai.

     —O que estás fazendo?— Perguntei, incapaz de compreender por que papai chamaria os guardas para ir atrás de seu próprio filho.

     —Vou enviá-lo de volta aonde pertence.

     A mandíbula de Acheron se afrouxou e se voltou para mim com aterrorizados olhos.

     Meu coração pulsava grosseiramente com temor de que o voltassem a enviar a Atlântida.

     —Não podes fazer isso.

     Papai se voltou para mim com um olhar cheio de ódio.

     —Perdeste a cabeça, mulher? Por que mimaria a tal monstro?

     —Papai, por favor —suplicou Acheron, caindo de joelhos ante ele. Pôs seus braços ao redor das pernas de Papai na mais obsequiosa posição que lhe tinha visto desde que tínhamos deixado a Atlântida—. Por favor, não me envies de volta. Farei o que me peças. Juro-o. Serei bom. Não olharei a ninguém. Não farei mal a ninguém—. Acheron beijou os pés com reverência.

     —Não sou seu pai, verme, —disse-lhe Papai cruelmente da vez que chutava a Acheron para afastá-lo. Agora se dirigiu para mim com puro veneno—. Te disse isso, ele não pertence a esta família. Por que me desafias?

     —É seu filho —disse através de minhas lágrimas de ódio e frustração—. Como podes negá-lo? É teu rosto o que tem. O rosto de Styxx. Como podes amar a um e não ao outro?

     Papai se agachou e agarrou a mandíbula de Acheron fortemente com uma mão. Podia notar que seus dedos feriam as bochechas de Acheron ao mesmo tempo em que o levantava pondo-o em pé para que Acheron pudesse me olhar ao rosto.

     —Esses não são meus olhos. Não são os olhos de um humano!

     —Styxx, —disse, sabendo que se podia ganhá-lo para minha causa, poderia influenciar na opinião de Papai sobre Acheron—. É seu irmão. Olha-o.

     Styxx negou com a cabeça.

     —Eu não tenho irmão.

     Papai empurrou a Acheron que retrocedeu.

     Acheron ficou de pé sem dizer uma palavra alguma, seus olhos aturdidos ante a realidade do momento. Por seu rosto, podia saber que estava revivendo o pesadelo que tinha experimentado em Atlântida. Cada degradação.

     Vi como murchava diante de meus olhos.

     Foi-se o menino que finalmente, depois de meses de carinhosos cuidados, tinha aprendido a sorrir e a confiar, e em seu lugar estava o derrotado, o desesperançado que ela tinha encontrado.

     Seus olhos eram agora buracos vazios. Tinha-lhe mentido e ele sabia.

     Ele tinha acreditado em mim e agora esse frágil laço estava quebrado.

     Acheron deixou cair a cabeça e abraçou a si mesmo, como se com isso pudesse proteger-se da brutalidade de um mundo que não o queria nele.

     Quando os guardas entraram na horta e papai lhes disse que o levassem de volta a Atlântida, Acheron os seguiu sem uma palavra e sem lutar. Uma vez mais voltava a ser modesto e sem opinião. Era o que tinha sido.

     Com apenas umas bruscas palavras, Papai tinha refeito todos os meses de cuidadoso abrigo.

     Olhei a meu pai, odiando-o pelo que estava fazendo.

     —Estes abusa dele, Papai. Constantemente. Ele vende a Acheron para…

     Meu pai me esbofeteou por essas palavras.

     —É meu irmão de quem falas. Como te atreves!

     Ardia-me o rosto, mas não me importou. Não podia ficar calada e deixar que destruíssem a alma de um rapaz inocente que deveria ser mimado, não atirado a um lado como se não fora nada.

     —E esse é meu irmão ao qual desprezas. Como te atreves!

     Não esperei para ver o que dizia. Corri atrás de Acheron quem já tinha sido escoltado pelo guarda.

     Estava esperando que trouxessem os cavalos a entrada principal do palácio. Sua cabeça estava inclinada de forma tão baixa que recordava a uma tartaruga que tão somente queria meter-se em sua carapaça para que ninguém mais a visse. O apertão de seus braços era tão forte que seus nódulos eram brancos.

     Permanecia em pé igual a uma estátua.

     —Acheron?

     Negava-se a me olhar.

     —Acheron, por favor. Não sabia que viriam hoje. Pensei que estávamos a salvo.

     —Mentiste para mim —disse simplesmente, fixando o olhar no vazio chão—. Me disseste que papai me queria. Que ninguém deixaria que eu fosse embora daqui. Jurou-me isso.

     Envergonhada até a alma, tentei pensar em algo que lhe dizer. Mas não encontrava nada substancial.

     —Sinto-o muito —Aquela era uma vã desculpa incluso em meus ouvidos.

     Ele negou com a cabeça.

     —Nunca pus um pé fora de meus aposentos sem escolta. Nunca deixei a casa. Idikos me castigará por haver ido. Ele… —o horror encheu seus olhos enquanto abraçava a si mesmo inclusive com mais força.

     Não podia sequer começar a imaginar o que estava lhe esperando em Atlântida.

     Trouxeram os cavalos.

     Quando Acheron falou, suas palavras eram suaves, apenas um sussurro de seu atanazado coração.

     —Desejaria que me tivesses deixado como estava.

     Tinha razão, e no mais profundo de meu coração, o sabia. Tudo o que tinha feito em minha estupidez, era feri-lo ainda mais. Tinha-lhe mostrado uma vida melhor, uma onde era respeitado e onde podia escolher.

     Agora não teria nada a dizer sobre sua vida. Seria muito menos que nada em Atlântida.

     Solucei quando um guarda o agarrou e obrigou a entrar em um carro. Acheron nunca voltou a me olhar. Dava-me conta que ele realmente devia me odiar pelo que lhe tinha feito e não podia culpá-lo por isso.

     Com o coração doído, fiquei ali e os vi afastar-se.

     —Acheron! —gritou Maia quando saiu chorando pela porta.

     Só então ele se voltou. Sua cara estava estóica, mas vi lágrimas em seus olhos quando lhe disse adeus com a mão.

     Caindo de joelho, atraí Maia aos meus braços enquanto soluçava com o coração esmigalhado de tristeza que também me embargava.

     Acheron ia embora e não tinha esperança de libertá-lo outra vez. Papai se asseguraria disso.

     Então recordei as palavras que a velha sacerdotisa tinha proclamado no dia de seu nascimento.

     Que os deuses tenham piedade de ti, pequeno. Ninguém mais o fará.

     Agora sabia quanta razão tinha tido. Acheron tinha razão, os deuses o tinham amaldiçoado.

     De outra maneira teríamos tido nossos três dias…

      

Junho 23, 9530 a.C.

     Passou um ano desde a última vez que vi Acheron. Maia e eu nos sentamos na horta do palácio de verão durante horas esta tarde pensando nele. Nos perguntando o que estará fazendo. A forma em que estaria pagando. Disse a Maia que estava segura de que ele estava bem, mas em meu coração sabia a verdade. Estava tudo menos bem. Não havia como dizer o que lhe estariam fazendo, enquanto nós duas estávamos sentadas comendo azeitonas e queijo e jogando no quente sol.

     Enviei numerosas cartas a Acheron a Atlântida, mas tinham sido em vão. Ninguém me dizia nada dele. A donzela que originalmente se contatou comigo tinha morrido em suspeitas circunstâncias, ao menos isso escutei em uma conversação entre meu pai e meu tio não muito depois de que Acheron tinha voltado para Atlântida.

     Estes não me falava desde então.

     Tentei perguntar a meu tio em sua última visita a respeito de Acheron. Ele me empurrou para um lado com amargo desprezo. Ele sabe que eu sei o que está fazendo e já não me reconhece nem o mínimo.

     Estou morta para meu tio. Não é que realmente me importe neste momento. Ele morreu para mim no momento em que vi meu irmão amarrado a uma cama devido à avareza de Estes.

     Mas, perguntou-me como se sentirá Acheron a respeito de mim. Se inclusive pensava em mim. Odiaria-me pelo que tinha acontecido? Ou estava tão drogado agora que nem sequer recorda meu nome?

     Não podia sabê-lo.

     Não tinha esperança de salvá-lo de novo. Devido ao que tinha feito, Papai agora me mantém em situação de extremo cuidado em todo momento. Já não tenho a liberdade de viajar sem sua permissão. Boraxis foi redesignado a limpar os estábulos e substituído por outro guarda que se recusa a me falar.

     Inclusive Styxx quase nem reconhece minha presença.

     —Como podes deixar que teu próprio gêmeo sofra assim? —Perguntei-lhe apenas uma semana depois que Acheron tinha sido enviado a Atlântida.

     —Estes nunca faria uma coisa assim. Trata-se de outra de tuas mentiras destinadas a fazer libertar Acheron. Deverias estar agradecida que não sou rei ainda. Te teria açoitado por esse tipo de traição.

     Queria enforcá-lo por sua obstinação.

     Ainda mais perturbadores eram os rumores que tinha ouvido a respeito de problemas políticos entre a Grécia e Atlântida. Nossa trégua parecia estar ameaçada. O que aconteceria com Acheron se se reatava a guerra? Apesar de que Styxx e Papai o negavam, Acheron seguia sendo um príncipe grego. Ele poderia facilmente ser feito prisioneiro e executado...

     Perguntava-me se Papai tinha considerado o fato de que se Acheron era assassinado, perderia seu precioso Styxx no processo. O mais provável era que tinha esquecido essa parte da profecia.

     Mas eu a recordava e me entristecia pelo irmão que duvidava voltar a ver.

     Acheron estava perdido para mim agora.

     Se só pudesse vê-lo uma última vez...

 

21 de Setembro, 9529 a.C.

     Estes faleceu há dois dias enquanto se alojava conosco em Didymos. Styxx e meu pai estavam naturalmente com o coração partido. Mas eu não estava tão desolada. Embora uma parte de mim se entristecia por sua prematura morte, outra parte se regozijava. Embora Estes fosse bastante jovem para ter tido o ataque que acabou com sua vida, não pude evitar me perguntar se não tinha sido enviado pelos deuses para castigá-lo pelo que tinha feito a Acheron. Talvez era pouco caridoso de minha parte pensar isso. Ainda assim, não me poderia evitar perguntá-lo.

     Agora nos estamos dirigindo a Atlântida para recolher Acheron e levá-lo para casa de uma vez por todas.

     Para casa, onde pertence.

     Devido à iminente guerra com Atlântida, Papai tem a intenção de fechar a casa de Estes e vendê-la. Não podia estar mais emocionada pela notícia. E estava segura de que Acheron o estaria ainda mais. Não cabia dúvida de que ele não quereria mantê-la ainda menos que eu.

     Antes de deixar a casa, tinha sido preparada uma suíte para Acheron no palácio. Não podia esperar para vê-lo de novo. O que encontrava quase cômico era que, depois de me evitar durante tanto tempo, Papai e Styxx me permitiram acompanhá-los. É obvio que era só para que eu mantivera afastado a Acheron deles. Mas não me importava sempre e quando o visse de novo.

     Só uns dias mais e nos chegaríamos a Atlântida. Desta vez, quando recolhesse a Acheron, ele ficaria onde estaria a salvo.

    

26 de Setembro, 9529 a.C.

   Estava extremamente emocionada quando vi a casa de Estes de novo. Não muito tinha trocado desde minha última visita. Inclusive, o mesmo servente abriu a porta. Ele parecia surpreso ao nos ver os três, especialmente a meu pai.

     —Vim a recolher a Acheron —anunciou meu pai. —Me levem a ele.

     Sem uma palavra, o sombrio velho nos levou pelo mesmo corredor que eu tinha atravessado uma vez. Para o quarto que tinha açoitado meus pesadelos e pensamentos.

     Minha felicidade morreu enquanto chegamos a ela e a realidade se estrelou contra mim.

     Nada tinha mudado.

     Nada.

     Soube mesmo antes que o servente abrisse a porta.

     E quando abriu, meus piores temores foram confirmados com uma claridade cristalina.

     —O que é isto? —rugiu meu pai.

     Cobri-me a boca com as mãos quando vi Acheron em sua cama com um homem e uma mulher, todos eles estavam completamente nus e enredados entre os lençóis. Estava horrorizada pela visão do que estavam fazendo a Acheron. Pelo que ele lhes estava fazendo.

     Em toda minha vida, nunca tinha visto tanta depravação.

     O homem se retirou de Acheron com uma feroz maldição.

     —Que demônios é isto? —exigiu em um tom igualmente imperioso. Poderia dizer por seu tom que ele era um Atlante com riqueza e poder—. Como se atreve a nos interromper?

     Acheron deu um último e brincalhão empurrão e lambeu o corpo da mulher antes de deitar-se sobre suas costas. Ele jazia desavergonhadamente na cama, sorrindo.

     —Príncipe Ydorus —disse Acheron ao homem zangado, referindo-se a meu pai. —Apresento-lhe ao rei Xerxes de Didymos.

     Isso tirou algo da brabeza do príncipe, mas não muita.

     —Nos deixe —lhe exigiu meu pai.

     Ofendido, o príncipe recuperou suas roupas e a sua acompanhante e fez o que meu pai ordenou.

     Acheron limpou a boca com os lençóis. Sua pele, uma vez mais, tinha essa doente tonalidade cinza. Estava inclusive mais magro que da última vez que o tinha visto neste quarto, seus traços gastos. E uma vez mais estava adornado com as bandas de ouro em seu pescoço, braços, pulsos e tornozelos.

     O pior de tudo foi que tinha visto as esferas em sua língua enquanto falava. Já não apertava os dentes como se envergonhasse do que era. Agora era como se se orgulhasse disso.

     —Então, o que lhe traz por aqui, Majestade? —Perguntou Acheron, seu tom zombador e frio— Deseja passar tempo comigo, também?

     Foi então que me dava conta que o rapaz ferido que tinha salvado se foi. O homem na cama estava amargurado. Zangado. Desafiante.

     Este não era o rapaz que timidamente escapuliu de seus aposentos para poder sentir o pasto sob seus pés.

     Este era um homem que tinha sido utilizado muitas vezes. E queria que o mundo soubesse exatamente quanto o odiava ele e a todos os que formava parte dele.

     —Te levante —lhe grunhiu meu pai—. Te cubra.

     Um canto de sua boca se curvou em uma expressão zombadora.

     —Por que? As pessoas pagam quinhentas peças de ouro por hora para ver-me nu. Deverias estar honrado de poder me ver grátis.

     Papai se aproximou dele, agarrou-o rudemente por seu braço e o atirou à cama.

     Acheron cobriu a mão de Papai com a sua e lhe fez um som de reprovação com a língua.

     —São mil peças de ouro por hora se quereis me bater.

     Senti a bílis subir por minha garganta.

     Papai golpeou a Acheron tão forte que caiu ao chão sobre suas nuas costas.

     Rindo-se, Acheron lambeu o sangue que havia em seus lábios antes de limpar-se com a parte posterior de sua mão cheia de cicatrizes.

     —São quinze mil por me fazer sangrar.

     Meu pai franziu seus lábios.

     —És repugnante.

     Com um sorriso irônico, Acheron girou e elegantemente ficou de pé.

     —Cuidado, Papai, realmente poderias ferir meus sentimentos. —Caminhou ao redor de meu Pai como um orgulhoso e espreitador leão, olhando-o de cima a baixo—. Oh espera, me esquecia. Os putos não têm sentimentos. Não temos dignidade que possas ofender.

     —Eu não sou seu pai.

     —Sim claro, conheço bem a história. Impactou-me há anos. Tu não és meu pai e Estes não é meu tio. Salva sua reputação se todo mundo pensar que sou um pobre mendigo que encontrou na rua e deu proteção. Está certo vender a um mendigo sem lar, a um pobre bastardo. Mas a aristocracia olha mal aos que vendem a seus familiares.

     Papai o bateu de novo.

     Acheron ria, sem perturbar-se pelo fato de que agora seu nariz sangrava conjuntamente com seus lábios.

     —Se realmente querem me machucar, eu optaria pelos látegos. Mas se seguem me batendo o rosto fareis que Estes se zangue realmente. Não gosta que ninguém marque minha “beleza”.

     —Estes está morto —lhe grunhiu meu pai.

     Acheron se congelou em seu lugar, logo pestanejou como se não pudesse acreditar no que tinha escutado.

     —Estes está morto? —repetiu vagamente.

     Meu pai o olhou desdenhosamente.

     —Sim. Desejaria que fosses tu em seu lugar.

     Acheron tomou uma profunda pausa, o alívio em seus olhos era tangível.

     Quase podia ouvir seus pensamentos em minha cabeça.

     Acabou-se. Finalmente acabou.

     O óbvio alívio de Acheron pôs ao meu pai furioso.

     —Como te atreves a não ter lágrimas por ele? Te cuidou e protegeu.

     Acheron o olhou secamente.

     —Me acreditem, paguei-lhe muito bem por sua moradia e cuidado. Cada noite quando me levou a sua cama. Todos os dias quando vendeu a qualquer um que pagara seu preço.

     —Estás mentindo!

     —Sou um puto Papai, não um mentiroso.

     Papai o atacou então. Golpeou e chutou furiosamente a Acheron quem não se preocupou em lutar ou proteger-se. Não cabia dúvida de que tinha sido treinado para suportar isso também. Corri para Acheron, tratando de protegê-lo.

     Styxx balançou a Papai para trás.

     —Por favor, Papai —lhe disse— Te tranqüilize! A última coisa que precisas é machucar a seu coração. Não quero ver-te morrer como Estes o fez.

     Acheron jazia no chão uma vez mais. Seu rosto coberto de sangue e machucados, que já tinham começado a inchar-se.

     —Não —disse, me afastando dele. Cuspiu o sangue de sua boca ao piso, onde aterrissou em um vermelho atoleiro.

     —Fora —lhe grunhiu Papai—. Não quero ver-te nunca mais.

     Acheron riu e dirigiu um olhar a Styxx

     —Isso vai ser um pouco difícil, não achas?

     Papai começou a aproximar-se dele uma vez mais, mas Styxx se interpôs entre eles.

     —Guardas! —gritou Styxx.

     Apareceram imediatamente.

     Styxx assinalou a Acheron com um movimento de seu queixo.

     —Ponham a este lixo na rua onde pertence.

     Acheron ficou de pé.

     —Não necessito sua ajuda. Posso sair pela porta eu sozinho.

     —Necessitas de roupa e dinheiro —lhe disse.

     —Não merece nada —disse meu pai—. Nada além de nosso desprezo.

     A maltratada cara de Acheron estava completamente estóica.

     —Então sou rico por efeito da abundância do que vós me haveis demonstrado. —deteve-se na porta para sorrir insolentemente a nosso pai pela última vez—. Sabes, levou muito tempo me dar conta do por que me odeias tanto. —Seu olhar se dirigiu a Styxx—. Mas claro, não sou eu ao que realmente odeias, não é assim? O que realmente desprezas é o muito que queres foder a teu próprio filho.

     Meu pai gritou de ira.

     Com a cabeça bem alta, Acheron deixou o quarto.

     —Como pudeste? —Perguntei a Papai—. Disse há anos o que Estes estava fazendo com ele e tu o negaste. Como podes culpá-lo por isso?

     Meu pai me grunhiu.

   —Estes não fez isto, Acheron o fez ele mesmo. Estes me falou sobre a maneira em que se exibia. A forma em que tenta a todos. É um destruidor justo como disseram em seu nascimento. Não descansará até que arruíne a cada pessoa que o rodeia.

     Estava consternada. Como podia um homem conhecido por seu sentido prático, ser tão cego e estúpido?

     —É só um rapaz confuso, Papai. Necessita de uma família.

     Como sempre, Papai me ignorou.

     Desgostada com ele e Styxx, retire-me do aposento, seguindo a Acheron.

     Alcancei-o enquanto estava saindo da casa e o fiz deter-se. A tortura e dor que havia em seus olhos de prata me destruíram. Não havia volta para ele desta vez. Nem sequer me perguntava o porquê. Assim como todos os demais, ele simplesmente aceitava isto como culpa sua.

     —Aonde vais? —Perguntei-lhe.

     —Importa?

     Era importante para a mim. Mas sabia que não ia responder.

     Tirei-me o manto e o envolvi ao redor de seus ombros para que, ao menos, sua nudez ficasse coberta. Levantei o capuz para proteger sua cabeça e sua beleza, sabendo que seria uma modesta proteção do mundo que o rodeava.

     Ele pôs sua mão sobre a minha, e logo levantou minha mão direita para seus lábios ensangüentados e beijou meus nódulos.

     Sem outra palavra, virou-se e se foi.

     Fiquei na porta observando-o enquanto caminhava através da lotada rua e me dava conta de que estava equivocada, sim tinha dignidade. Caminhava pela rua com o orgulhoso porte de um rei.

 

17 de Maio, 9529 a.C.

   Estava hoje no mercado, comprando com minha criada Sera quando vi um homem excepcionalmente alto passar pelo meu lado. A princípio, pensei que era Styxx, sobretudo quando uma repentina rajada de vento retirou o capuz de sua cabeça e vi seu rosto incrivelmente bonito.

     Mas quando comecei a chamá-lo, dava-me conta de que usava o chitão escarlate de uma prostituta —estava proibido por lei que as prostitutas apareçam em público usando qualquer outra coisa e suas cabeças sempre deviam estar cobertas. Se uma prostituta era descoberta mesclando-se com as pessoas sem vestir desse modo para advertir às pessoas "decentes" do que eram, podiam ser executadas.

     Acheron rapidamente cobriu de novo a cabeça enquanto se movia através da multidão.

     Parecia muito melhor que da última vez que o tinha visto. Sua pele estava dourada e bronzeada, e já não era dolorosamente magro. Seu chitão cobria um ombro, deixando descoberto o outro. Um bracelete de ouro gravado rodeava seus bíceps esquerdo em um musculoso braço.

     Para mim, ele era sem dúvida o mais bonito dos homens —incluso sendo meu irmão. Teria que ser cega para não notá-lo.

     Deixando Sera procurando mais tecido, segui-o, agradecida de encontrá-lo vivo e bem.

     Entretanto, rompia meu coração que seguisse se vendendo.

     Reuniu-se com uma atraente mulher mais velha em uma das cabines, quem sustentava um anel frente a ele.

     —Serve-te? —perguntou-lhe.

     Ele entregou novamente a ela.

     —Não quero um anel, Catera. Mas te agradeço por havê-lo pensado.

     Ela devolveu o anel ao vendedor, logo percorreu de cima e para baixo seu braço nu em uma íntima carícia.

     Uma carícia de amantes.

     Ele não reagiu absolutamente.

     —Meu precioso Acheron —lhe disse com uma risada—. És tão diferente de meus outros empregados. Tomas só o que ganhas e dás gorjetas a todos os criados, por isso são tão amáveis contigo. Acredito que nunca vou entender-te. —Ela tomou sua mão e o levou através das cabines—. Umas sábias palavras para ti, akribos, precisas aprender a aceitar presentes.

     Ele se burlou de suas palavras.

     —Não há tal coisa como um presente. Se eu aceitaria isso de ti, cedo ou tarde me pedirá um favor em troca. Nada na vida é dado verdadeiramente sem esperar algo em troca.

     Catera lhe fez ruído com a língua

     —És muito jovem para ser tão cínico. Que lhe fizeram para que sejas tão desconfiado?

     Ele não disse nada.

     Mas em meu coração, eu sabia os horrores de seu passado. Sabia o que tinha roubado sua confiança. Não duvidava que eu era um dos fatores chaves que o tinham convertido neste amargo estranho que quase nem reconheço.

     À medida que caminhava, a mulher falava sem cessar, tratando de atrair sua atenção para outras bobagens e coisas assim. Ele só as olhava silenciosamente, e logo seguia caminhando.

     Fiquei atrás, me assegurando de que não me vissem. Não que fora difícil. Acheron mantinha o olhar encurvado como se não quisesse olhar a ninguém ao redor dele enquanto que Catera só via ele.

     Um homem se aproximou deles e puxou-a.

     Acheron avançou uns postos mais enquanto eles falavam. Doía-me vê-lo. Ver a forma em que os vendedores curvavam seus lábios ao olhá-lo. A forma em que as pessoas "decentes" evitavam olhá-lo ou olhavam depreciativamente a suas roupas.

     Mas ainda mais horrível que isso, era a forma em que suas expressões mudavam no momento em que viam seu rosto. A ardente e quente luxúria era inegável. A intensidade dela era aterradora.

     Pouco sabiam eles que se não fora por um defeito de nascimento e o infundado ódio de meu pai, Acheron teria sido seu futuro rei.

     Punha-me furiosa e, ao mesmo tempo, não havia nada podia fazer para ajudar.

     Como odiava ter nascido mulher em um mundo onde as mulheres eram pouco mais que sujeira.

     Catera retornou ao seu lado.

     Acheron olhou ao homem que ainda os estava vendo. Os olhos do homem eram famintos.

     Os de Acheron estavam vazios.

     —Queria me comprar. —era uma afirmação, como se estivesse mais que acostumado a isso.

     Ela riu ante isso.

     —Todos querem te comprar, akribos. Se alguma vez te quisera vender como escravo, sem dúvida seria mais rica que Midas.

     Uma sombra de dor escureceu seus olhos ante suas palavras.

     —Devo retornar e me preparar para…

     —Não —disse ela, interrompendo-o—. Este dia é teu para fazer com ele o que te agrade. Trabalhas muito duro. Não podes estar lá dentro todo o tempo.

     Sua mandíbula se esticou ante suas palavras.

     —Eu não gosto de estar rodeado de pessoas.

     —E, entretanto, não te importa ter sexo com elas. Não o entendo.

     Começou a afastar-se dela.

     —Acheron —disse, balançando-o para que se detivera—. Desculpe. Eu somente... —Ela fez uma pausa e esfregou sua mão—. Não podes seguir desta maneira. Ninguém vê clientes desde que acorda até que dorme, um dia atrás do outro sem parar. Não me interprete mal, eu gosto do dinheiro que fazes para mim, mas ao passo que vais, vais acabar morto antes que tenha vinte e um anos. E te disse que não deixaria que ninguém te fizesse mal em minha casa. Eu cuido de meu pessoal, especialmente aos que são tão populares como tu o és. —Ela pressionou uma pequena bolsa na mão dele—. Tome o resto do dia e desfrute-o. Vá a uma peça de teatro. Vá embebedar-te. Anda e desfruta de ser jovem enquanto possas, vejo-te esta noite.

     A mulher se afastou dele.

     Acheron apertou a bolsa em sua mão antes de colocá-la dentro de sua túnica, e logo se dirigiu em direção oposta.

     Em pedaços, fique ali, debatendo a quem seguir.

     Enviei a meu guarda-costas atrás da mulher. Sabia que não podia me reunir com ela abertamente, alguém poderia nos ver juntas e informar isso ao meu pai. Assim tive que convidá-la a uma pequena hospedaria.

     Paguei ao dono para que me deixasse em um pequeno aposento na parte traseira aonde pudesse falar com Catera sem ser vista.

     Minutos mais tarde, meu guarda-costas apareceu com Catera ao seu lado. Deixou-nos sozinhas e se dirigiu para cuidar da porta.

     —Minha senhora —disse Catera, incomodamente—. O que posso fazer por você?

     —Por favor, tome assento. —Indique-lhe a cadeira diante de mim.

     Evidentemente nervosa, ela tomou assento.

     Suavizei minha expressão, com a esperança de acalmar seus nervos.

     —Queria lhe perguntar sobre... —duvidei sobre dizer "meu irmão". Tal conhecimento poderia machucá-lo—. Acheron —terminei—. Onde o encontrou?

     Ela sorriu conocedoramente.

     —É bonito, não achas? Mas por desgraça, ele não está à venda. Se você, minha dama, está interessada em comprar seus serviços…

     —Não! —disse, emocionada por sua sugestão. Mas logo me dava conta que era lógico que ela pense isso—. Ele… recorda a alguém.

     Ela assentiu.

     —Sim, ele é quase idêntico em aspecto ao Príncipe Styxx. Muitos de meus clientes pensam o mesmo. Foi muito lucrativo para ele.

     Pouco sabia ela que essa era a parte mais destrutiva de meu irmão.

     —Onde o encontrou? —Repeti.

     —Por que quereis sabê-lo?

     Não me atrevia a lhe dizer a verdade.

     —Por favor —lhe disse tranqüilamente—. Posso-lhe pagar o que desejar, só necessito que responda umas quantas perguntas sobre ele. —Pressionei uma dúzia de moedas de oro em sua mão.

     Ela as guardou.

     —Eu não sei de onde é. Nega-se a falar disso. Entretanto, por seu acento, suponho que é de origem Atlante.

     —Ele veio a vós?

     Ela assentiu.

     —Apareceu em minha porta traseira há vários meses. Vestido com farrapos e descalço, luzia igual a qualquer outro mendigo, salvo que estava recém banhado e parecia que tinha tratado de manter limpa sua roupa. Estava pálido, tão magro e tão fraco pela fome que quase nem podia manter-se de pé.

     Estava horrorizada pelo que ela descrevia.

     —Disse que estava procurando trabalho e queria saber se eu tinha algo que ele pudesse fazer. Disse-lhe que não estava contratando, mas ele tinha ouvido em outro bordel que eu estava procurando um novo prostituto. Fiz tudo o que pude para não rir dele. Não podia imaginar a ninguém pagar por essa miserável criatura. Meu primeiro impulso foi despejá-lo.

     —Por que não o fez?

     —Não posso explicá-lo. Embora aparentemente estava prejudicado, havia algo inegável sobre ele. Algo sedutor que trouxe calor sobre mim. Fez-me querer tocá-lo apesar de que estava fraco e débil. Logo me disse a coisa mais incrível de tudo. Disse-me que se eu lhe desse cinco minutos, ele me daria três orgasmos.

     Eu fique boquiaberta ante suas palavras.

     Ela riu ante minha expressão.

     —Eu também estava surpreendida. Estive ao redor de um montão de homens fanfarrões em meu tempo que tal reclamação não era nova. Mas eu estava um pouco intrigada ao escutá-lo da boca de alguém tão jovem. A princípio pensei que era como muitos dos jovens que vêm a mim, a maioria deles com pouca ou nenhuma experiência, acreditam que a prostituição é uma forma fácil de fazer dinheiro. Não têm idéia de quão difícil é fisicamente. Quanto te custa espiritualmente. Imaginei que era de uma granja e tinha chegado à cidade para tratar de fazer-se rico.

     Traguei temerosamente antes de falar.

     —Fizestes te provar suas palavras?

     Ela riu.

     —Minha senhora, na minha idade, sou afortunada se tiver três orgasmos em um ano. Assim que lhe disse que se era tão bom como dizia então o contrataria. O que eu descobri foi que, inclusive meio morto pela fome, era melhor do que dizia. Estive com os melhores e suas habilidades não têm rivais.

   Meu estômago se apertou ante suas palavras. Eu sabia muito bem quanta prática tinha tido.

     —Assim que o aceitou.

     Ela assentiu.

     —É uma decisão que não lamentei. Não tinha nem idéia do bonito que se podia pôr com apenas umas quantas comidas e um pouco de descanso. Tampouco que ia ser tão surpreendentemente parecido ao Príncipe Styxx. Mantive-o comigo durante três semanas antes de deixá-lo trabalhar. Desde a primeira noite que tomou clientes, era tão popular que tivemos que começar uma lista de espera. Se estás interessada na compra de uma hora com ele, posso a pôr na lista, mas em realidade, serão ao menos dez semanas antes que haja um lugar.

     Sentei-me ali aturdida por suas palavras. Aturdida pelo que tinha resultado do pequeno menino eu estava acostumada a sustentar em meu joelho e balançá-lo, enquanto ria.

     O que lhe tinham feito? Como podia esta ser sua vida? Não era justo e me fazia querer chorar.

     —Há alguma forma na qual eu poderia falar com ele em particular?

     Catera a olhou cépticamente ante a sugestão.

     —Ele prefere não falar com seus clientes.

     —Não quero ser uma cliente, —disse-lhe severamente—. Eu o conheço pessoalmente.

     Ela arqueou uma sobrancelha ante isto.

     —Um amigo?

     —Algo parecido. —Disse-lhe, não querendo deixar a seu conhecimento a verdade de nossa relação. Eu tirei mais dinheiro e o entreguei—. Por favor. Pagarei-te o que seja se me dás uns quantos minutos a sós com ele.

     Ela o considerou durante vários pulsados antes de lhe responder.

     —Muito bem, se você pode vir a meu bordel esta noite…

     —Não posso ser vista por ninguém nesse lugar.

     —Entendo, mas duvido que ele saia para encontrar-se contigo. Nega-se a ver alguém fora dos locais. Hoje é o primeiro dia desde sua chegada que fui capaz de conseguir que saísse.

     —Mas —disse cuidadosamente—, se pode vir pela madrugada, rara vez há alguém nos arredores. Estamos limpando-o pela noite e todos nossos clientes se foram. Posso lhe deixar entrar para vê-lo então.

     Aliviada, sorri-lhe.

     —Obrigada. Verei-lhes ao amanhecer.

 

18 de Maio, 9529 a.C.

   A manhã era tão fria como temia que fora. Sozinha, escapuli-me do palácio e me deslizei silenciosamente através da cidade, seguindo as indicações de Catera até que encontrei sua localização.

     Como havia predito, não havia ninguém ao redor.

     Deixou-me entrar através da porta negra, então me dirigi rapidamente através da casa a um aposento mais afastado da parte de trás. Mantive a cabeça e o rosto bem cobertos e fiz todo o possível para não olhar às pobres almas que passavam.

     Abriu uma porta.

     Dava um passo vacilante ao interior, esperando ver Acheron. Não estava ali. Entretanto, ouvi a água chapinhando no quarto situado ao outro lado e soube que devia estar banhando-se.

     O mofado cheiro de sexo persistia no cômodo e tentei não olhar em volta da cama recém feita. Fechei os olhos quando pensei em Styxx e na maneira em que vivia sua vida com comodidade e paz enquanto Acheron era forçado a isto.

     Não podia imaginar a degradação que Acheron devia sofrer a cada dia. A dor.

     Entrou no quarto completamente nu, secando o cabelo com uma toalha. Ficou parado brevemente quando captou minha presença justo ao lado da soleira.

     —Me perdoe, Minha Senhora —disse com essa sensual e suave voz sua que continha um matiz de acento atlante. Estava agradecida de que ao menos as esferas não estivessem recobrindo sua língua—. Pensei que passaria a noite.

     Baixei o capuz.

     Reconhecendo-me instantaneamente, entrecerrou seu olhar.

     —Bom, se for minha irmã Ryssa. Diga-me, está aqui para me salvar ou para me foder? Oh espera, esqueci-o. Quando me salvaste, me fodeste, não é certo?

     As lágrimas picaram meus olhos ante seu hostil desdém. Mas, quem podia culpá-lo?

     —Não tens que ser tão cruel.

     —Me desculpe se minhas maneiras forem deficientes. Sendo um puto, não estou muito versado em como falar com pessoas decentes. O único momento em que conversam comigo é para me dar instruções sobre como fodê-las melhor —atirou a toalha sobre a cama e se moveu para uma cadeira junto à janela.

     Me ignorando, sentou-se e abriu uma caixa sobre a mesa. Observei em silêncio enquanto colocava várias ervas estranhas e flores em um frasco. Acendeu-as, então fechou a tampa. Agarrando um pequeno bol de argila, sustentou-o frente a seu rosto, cobrindo-a boca e o nariz, e inalou.

     —O que estás fazendo?

     Fez várias inspirações antes de afastar o bol de argila de sua boca.

     —Estou usando Xechnobia —ante meu cenho franzido, me explicou—. É isso uma droga, Ryssa.

     —Estás doente?

     Riu disso, então inalou mais.

     —É uma questão de opiniões —fez uma pequena pausa. Um tique começou em sua mandíbula quando a olhou de perto—. A uso de modo que possa esquecer quantos pares de mãos tive sobre mim em um só dia. Permite-me dormir em paz.

     Tinha ouvido tais coisas, mas em meu mundo não existiam. Não duvidei de que foi Estes que lhe tinha ensinado a droga. Queria chorar ante o que se converteu o Acheron que estava acostumado a assar pão e brincar com Maia.

     —Assim, por que estás aqui, Princesa? —perguntou.

     —Queria te ver.

     —Por que?

     —Por que estava preocupada contigo. Hoje te vi no mercado e queria ver como estavas indo.

     Acheron acrescentou mais ervas à panela, então soprou para dispersar as brasas ao redor.

     —Estou bem. Agora podes voltar para casa e dormir até tarde e com a consciência tranqüila —o sarcasmo que ridicularizava seu tom me aguilhoou profundamente na alma.

     Sacudi a cabeça quando as lágrimas se acumularam em meus olhos.

     —Como podes te fazer isto?

     Arqueou uma sobrancelha de modo zombador.

     —Sou um cão treinado, Ryssa. Só estou fazendo o que me treinaram para fazer.

     —É tão degradante. Como podes ter voltado para isso?

     Em seus tempestuosos olhos vi a raiva que me perfurava.

     —Voltar para isto? Por que, irmã mais velha, falas como se fosse algo ruim. Para mim é o paraíso. Só tenho que foder a dez ou doze pessoas em uma noite, geralmente só uma por vez. Por fim me permite comer em uma mesa, não no chão ou no colo de alguém. Ninguém me faz implorar por comida ou me castiga alguns dias ao ano quando estou doente e não posso trepar. Se alguém me fere ou me bate Catera os proíbe em seu bordel, Inclusive me paga por meu trabalho e tenho um dia livre uma vez na semana. O melhor de tudo, quando vou dormir, vou sozinho à cama. Nunca estive melhor.

     Queria gritar ante o horror que descrevia. O fato que soubesse que essa era a verdade só me feria mais.

     —E estás contente de viver dessa maneira?

     Deixou a panela de argila sobre a mesa e me perfurou com seu mercúrio olhar.

     —Honestamente, que pensas, Princesa?

     —Penso que vales mais que isso.

     —Bom, não és especial por ser capaz de me ver como algo mais que um puto? Deixa que te instrua sobre o que vê o resto do mundo. Deixei a Atlântida e estive doente durante semanas pelas drogas que Estes me tinha obrigado a engolir.

     Recordava bem quão doente tinha estado quando o tinha seqüestrado.

     —Não tinha nada exceto o himation que me deste. Nem dinheiro, nem roupa. Nada.

     —Assim voltou a te prostituir?

     —Que escolha tinha? Viajei por toda parte tentando encontrar trabalho fazendo outra coisa, mas ninguém me dava trabalho. Quando as pessoas me vêem, só querem uma coisa de mim e por casualidade sou muito bom nisso. Diga-me, Princesa, se Papai te atirasse amanhã, nua às ruas, o que farias? O que sabes fazer?

     Elevei o queixo.

     —Poderia encontrar algo.

     —Te desafio para que o tentes, Princesa. —indicou para a porta por trás dele—. Adiante. Nem sequer sei como varrer um chão. Tudo o que sei é como usar meu corpo para dar prazer aos outros. Estava doente e só sem nenhuma referência, amigos, família ou dinheiro. Estava tão fraco pela fome que inclusive um mendigo roubou teu himation enquanto estava deitado no chão, esperando a morte e incapaz de evitar que o roubasse. Assim não venhas aqui com seus desdenhosos olhos e me olhes como se estivesse por baixo de ti. Não necessito tua caridade e não necessito tua compaixão. Sei exatamente o que vês quando me olhas.

     —De verdade?

     Levantou-se e abriu os braços, me mostrando seu perfeito corpo nu.

     —Vejo-o claramente em seu rosto. O que vês é ao patético menino pequeno que beijava os pés de seu pai e lhe rogava que não lhe enviasse a prostituir-se. Vês o puto que dava prazer a um príncipe e então foi despejado de sua casa.

     Sacudi a cabeça negando-o.

     —Não, Acheron. O que vejo é um menino pequeno que estava acostumado a correr para mim e me perguntar por que seus pais não o amavam. O mesmo pequeno querubim de cabelo dourado que perseguia os raios de sol em meu quarto e ria quando caíam em sua palma. Tu és meu irmão e nunca verei nada mau em ti.

     A raiva em seu rosto se intensificou até o ponto que pensei que possivelmente me batesse.

     —Vá embora.

     Me cobrindo a cabeça, girei-me e parti.

     Esperei que me detivesse. Não o fez.

     E com cada passo que dava, chorava com mais intensidade pelo que tinha descoberto esta manhã. Meu precioso Acheron se foi e em seu lugar estava um homem que não queria ter nada a ver comigo.

    A pior parte era que não podia lhe culpar por isso. Era tudo tão injusto. Deveria estar em suas câmaras reais com serventes atentos a seu gesto e chamada.

     Em vez disso estava encerrado em um pesadelo do qual nenhum de nós poderia lhe libertar. Certamente esta não seria sua vida. Certamente Acheron significava mais que isso.

     Mais como podia negar o que tinha visto? Tinha razão. As pessoas só queriam uma coisa dele. E a menos que Papai estivesse disposto a protegê-lo, Catera era melhor que nada.

     Meu irmão mais novo era um puto. Era hora de que eu me desse conta da realidade.

 

23 de Agosto, 9529 a.C.

     O dia tinha amanhecido com a mais desprezível das reuniões. Tinha me informado que meu pai e seus senadores tinham decidido tentar aplacar ao deus Apolo com um sacrifício humano.

     Eu.

     Embora a Guerra tinha estalado entre a Grécia e Atlântida, os reis gregos tinham estado pensando em alguma maneira de evitá-la. Mas os Apolitas que governavam a Atlântida nos odiavam e estavam decididos a fazer da Grécia nada mais que outra província atlante.

     Temendo serem escravas da tecnologia superior dos Atlantes, as capitais gregas tinham lutado com cada coisa que tínhamos.

     Infelizmente, não pareceu ser o bastante. Apolo favorecia aos Atlantes e aos Apolitas que tinha criado e que compartilhavam a Atlântida com eles. Até o ponto de que sempre que lutassem à luz do dia, eram invencíveis.

     Os Reis gregos estavam acabados. Assim que as sacerdotisas e os oráculos se reuniram para ver, qualquer coisa, que pudesse devolver o favor de Apolo às pessoas que originalmente o tinham venerado.

     —O deus só pode ser distraído e tentado pela mais bela de todas as princesas —tinha proclamado ante todos o Oráculo de Delphi.

     Alguns lunáticos tinham me renomado então como a dita princesa.

     A esses homens, poderia matá-los.

     —Por favor, pai —lhe roguei, indo atrás dele e Styxx. Dirigiam-se para a sala do Senado e não tinham tempo para mim. Não é que isso fora incomum.

     —Basta, Ryssa —disse com severidade—. A decisão está tomada. Serás a oferenda para Apolo. Te necessitamos do nosso lado se formos ganhar esta guerra contra os Atlantes. Tanto como continue favorecendo-os e ajudando-os, nunca teremos uma oportunidade. Se fores sua amante, voltar-se-á mais amável para nossa gente e possivelmente se incline a nossa causa.

     Golpeou-me na cara o que fora a ser trocada e vendida sem mais como…

     Fiquei de pedra quando pensei em Acheron. Finalmente entendia como se sentia.

     Entendia que era não ter nem voz nem voto no que se fizesse com meu corpo.

     Era um sentimento terrivelmente doentio. Não me estranhava que me jogasse de seu quarto. Em minha inocência tinha agido de maneira bastante santarrã sobre algo que não entendia.

     Entretanto, não estava de acordo com eles. Decidida, segui a Papai e Styxx de volta pelo corredor.

     Quando nos aproximamos do vestíbulo principal, o som de um pequeno grupo de senadores conversando no átrio me deteve em seco.

     —É igual a Styxx.

     Meu pai e Styxx também se detiveram quando o ouviram.

     —O que dizes? —perguntou outra voz.

     —É certo —disse o primeiro senador—. Não poderiam parecer-se mais a não ser que tivessem nascido gêmeos. A única diferença é a cor de seus olhos.

     —Seus olhos são estranhos —interrompeu um terceiro senador—. Poderia dizer-se que é o filho de algum deus, mas não diz de qual.

     —E é tão hábil como dizes?

     —Sim —disse o segundo—. Te disse-o, Krontes, tens que lhe visitar. Imaginar-se que é Styxx me ajudou imensamente a tratar com o real idiota. Passa uma hora com Acheron de joelhos e da próxima vez que veja Styxx, terá uma perspectiva completamente nova.

     Eles riram.

     Senti o sangue drenando-se de meu rosto quando Papai e Styxx se voltaram com vermelha fúria.

     —Deverias ter estado ontem à noite em nosso banquete —disse o primeiro homem—. O vestimos com túnicas reais e o passeamos igual a uma rameira quente.

     Senti-me repentinamente doente.

     Papai se dirigiu direto para o grupo, chamando os guardas para que os prendessem por difamar a Styxx de tal maneira.

     Styxx difamado.

     Uma histérica risada surgiu de meu interior enquanto me dobrava de dor. Que Zeus proibisse que Styxx fora insultado. Não importava que fosse Acheron quem estava sendo degradado e obrigado a lhes servir.

     Acheron nunca importava.

     Ao menos não a ninguém exceto a mim.

 

23 de Junho, 9529 a.C.

     Amanhecia quando deixei, sozinha, o palácio. Era uma estúpida busca a qual me propunha, mas não podia me deter. Hoje Acheron completaria dezenove anos.

     Em meu coração sabia que ninguém lhe daria um presente pelo aniversário de seu nascimento. Perguntava-me se inclusive saberia o dia exato no qual tinha vindo a este mundo. E pensei na celebração que tinha planejado e que nosso pai tinha arruinado lhe devolvendo a Atlântida.

     Apertei seu presente sob meu himation enquanto caminhava através das abandonadas ruas para o local no qual já tinha estado antes.

     Chamei à escura porta e perguntei por Catera. Depois de uma breve espera, apareceu com o cenho franzido.

     —Minha senhora? Por que estais aqui?

     Sorri-lhe com amabilidade.

     —Quero ver de novo a Acheron. Só por uns minutos.

     A tristeza escureceu seus olhos.

     —Desejaria poder vos ajudar, minha senhora, mas já não está aqui.

     Um sorvete terror me rasgou o coração.

     —O que? Aonde foi?

     —Não sei aonde o levaram.

     —Levaram? —sussurrei a palavra cautelosamente, esperando que não queria dizer o que pensava.

     Infelizmente, o fazia.

     —Foi detido há vários meses. Os guardas do rei vieram ao entardecer. Irromperam pela porta exigindo que lhes mostrasse ao real impostor. Acheron foi tirado de sua cama enquanto estava dormindo e o encadearam, então o arrastaram fora daqui e não tornei a ouvir nada desde então.

     Meus dedos se intumesceram, senti cair meu presente ao chão enquanto ficava ali muito atônita para me mover.

     —Meu pai o seqüestrou?

     É obvio que o tinha feito. Deveria me haver dado conta disso eu mesma. Não duvidava que tivesse enviado a seus homens no mesmo dia que escutou o bate-papo dos senadores. Que tipo de parva era que não o comprovei?

   Mas claro, tinha estado muito ocupada pensando em meu iminente destino com Apolo. Envergonhava-me não ter posto a Acheron na frente. Não havia maneira de dizer o que lhe tinham feito.

     Meu único consolo era o conhecimento de que Papai não podia matá-lo. Não sem matar também a Styxx.

     Catera recolheu meu presente e o me envolveu devolvendo-o.  

     Agradeci-lhe por costume e me parti.

     Acheron tinha que estar em algum lugar do palácio. Não importava o que custasse, ia encontrar-lhe e tirá-lo dali.

 

23 de Junho, 9529 a.C.

     Era meio-dia antes que finalmente encontrasse o paradeiro de Acheron. Sabia bem que perguntar a meu pai por sua localização, só provocaria seu aborrecimento comigo, e não me inteiraria de nada que já não conhecesse, de maneira que recorri a subornar aos guardas do palácio.

     Inclusive isso foi mais fácil de dizer que fazer, já que a maioria deles não sabia nada absolutamente e aqueles que sabiam, tinham muito medo da ira de meu pai para falar disso.

     Mas por fim, tinha a resposta. Meu irmão tinha sido levado a parte mais baixa do palácio, sob os alicerces onde mantinham o pior tipo de criminosos: violentadores, assassinos, traidores…

     E um jovem príncipe cujo pai o odiava por nenhuma outra razão que ter nascido.

     Não queria baixar ali onde podia ouvir os lamentos e gemidos dos condenados, onde podia cheirar sua carne podre e torturada. Era só o conhecimento de que Acheron estava ali, o que me fez encontrar a coragem que necessitava para visitá-lo.  

     Estava absolutamente segura que se lhe tivessem dado uma opção, não teria estado ali tampouco.

     Baixei, pelos serpenteantes corredores, puxando minha capa incluso mais perto para me esquentar. Estava tão úmido e frio aqui. Escuro. Imperdoável. Nem ainda meu toque poderia desterrar a escuridão.  

     Quando passei as celas, aqueles que poderiam ver a luz gritaram por minha misericórdia. Entretanto, não era minha misericórdia o que eles necessitavam para serem livres. Era meu pai.  

     Desgraçadamente, ele não tinha nenhuma de sobra...

     O capitão dos guardas me levou a uma porta pequena no mesmo fim do corredor, mas se negou a abri-la. Podia ouvir o som de água que gotejava dentro, mas nada mais. Havia um cheiro fétido penetrando o ar e me asfixiando. Não tinha nenhuma idéia do que o causava. De verdade este era um lugar aterrador.  

     —Simplesmente me entregue a chave. Juro que ninguém nunca saberá.

     O rosto do guarda empalideceu.

     —Não posso, Sua Alteza. Sua Majestade deixou claro que qualquer um que abrisse esta porta seria sentenciado a morte. Tenho filhos a alimentar.

     Compreendi seu medo e não duvidei de que meu pai realmente o matasse por tal afronta. Os deuses sabiam, ele tinha matado homens por menos que isso. Assim que lhe agradeci e esperei que me deixasse sozinha antes de me ajoelhar sobre o frio e úmido chão e abrir a trampa que tinha sido desenhada para passar a comida do corredor à cela.

     —Acheron?— chamei—. Estás ali?

     Tombei-me sobre o asqueroso chão para tratar de ver através da pequena abertura no chão, mas não podia ver nada. Nem um só pedaço de pele ou vestimenta ou luz.  

     Finalmente, escutei um muito ligeiro sussurro.

     —Ryssa? —sua voz era débil e áspera, mas me encheu de alegria.

     Estava vivo.  

     Estirei a mão através da abertura como uma oferenda a ele.

     —Sou eu, akribos.

     Senti como sua mão tomava a minha. Estreitando-a muito brandamente. Seus dedos eram magros, esqueléticos, sua carícia gentil.

     —Não deverias estar aqui —disse nesse tom áspero—. Não permite a ninguém falar comigo.

     Fechei os olhos ante suas palavras e respirei entrecortadamente. Queria lhe perguntar se estava bem, mas eu sabia muito bem. Como podia estar bem vivendo em uma pequena cela como um animal?

     Apertei sua mão com mais força.

     —Quanto tempo levas aqui?

     —Não sei. Aqui não há modo de distinguir o dia da noite.

     —Não tens uma janela?

     Ele riu amargamente disso.

     —Não, Ryssa. Não tenho nenhuma janela.

     Quis chorar por ele.  

     Soltou minha mão.

     —Deveis ir, princesa. Não pertenceis a este lugar.

     —Tu tampouco. —Tentei alcançá-lo, mas não senti outra coisa mais que o sujo chão.

     —Acheron?

     Ele não respondeu.

     —Acheron, por favor. Só preciso escutar o som de sua voz. Preciso saber que estás bem.

     Respondeu-me o silêncio.

     Fiquei ali tombada por um longo momento com minha mão ainda em sua cela, esperando que a voltaria a tomar. Não o fez. Enquanto esperava, segui lhe falando embora ele negava a me responder. Não é que o culpasse.

     Tinha todo o direito para estar zangado e mal-humorado. Não poderia imaginar o horror deles arrastando-o través das ruas para encerrá-lo neste lugar.

     E por que?  

     Alguns imaginavam o desprezo que meu pai sentia? Alguns necessitavam que Styxx tivesse que aliviar sua dignidade? Me enfastiava.  

     Não parti até que um servente lhe trouxe o jantar. Uma tigela de aguada sopa e água fétida. Olhei-o fixamente, com horror.

     Esta noite Styxx jantaria seus pratos favoritos e comeria até que estivesse cheio e satisfeito, enquanto os nobres se reuniriam para lhe desejar bens e adorá-lo em cada desejo. Papai o encheria de presentes e derramaria amor e bons desejos.

     E aqui Acheron se sentariam em uma suja cela. Sozinho. Faminto. Em correntes.  

     Com meus olhos cheios de lágrimas, vi o servente fechar a porta e nos abandonar.

     —Feliz aniversário, Acheron. —sussurrei, sabendo que não podia me escutar.

  

22 de Outubro, 9529 a.C.

     Durante os últimos meses, tinha-me estado preparando para minha união com Apolo. Durante as horas da manhã antes que o palácio começasse a revolver-se com atividade, esmerei-me em visitar Acheron em sua cela. Ele raramente falava, mas de vez em quando lhe tirava uma ou duas palavras.

     Apreciava cada uma delas.

     Só desejava que participasse mais em nossas discussões. Entristece-me dizer que às vezes era bastante brusca com ele, inclusive me zangava. Eu fazia tal esforço, e me arriscava muito para vê-lo e lhe trazer as guloseimas de pão e doces. Ao menos poderia ser pouco cordial comigo.  

     Mas ao que parece, isso era pedir muito.  

     Era tarde e eu tinha estado reunida com Papai, Styxx e o Alto Sacerdote no estúdio de Papai para discutir o que teria que levar para a cerimônia que me ligaria a Apolo.  

     Originalmente o concílio tinha querido me oferecer ao deus completamente nua. Por sorte o sacerdote lhes tinha desalentado disto e agora havia muito debate sobre o vestido correto e a joalheria.  

     Enquanto o escriba tomava apontamentos, Styxx caiu repentinamente doente. Muito fraco para estar de pé, derrubou-se no chão onde se caiu como um menino pequeno, tremendo. Cada pulsado do coração parecia fazê-lo mais pálido. Mais débil.  

     Aterrada, olhei como Papai o recolhia em seus braços e o levava ao seu quarto. Segui-os, assustada do que o poderia havê-lo possuído. Embora brigávamos freqüentemente, eu de fato amava a meu irmão e a última coisa que queria era vê-lo ferido.  

     Papai o pôs na cama e chamou um médico. Adiantei-me, tentando ajudar, mas não havia realmente nada que eu pudesse fazer. Styxx não podia sequer falar. Respirava como se tivesse a garganta ressecada e seus pulmões estivessem danificados... Olhava-me fixamente, seus próprios olhos cheios de terror ao que estava lhe acontecendo.

     Orando por ele, tomei sua mão na minha e o sustentei da forma que freqüentemente tinha feito com Acheron. Era estranho que Styxx tolerasse meu toque, o que me dizia quão doente estava.  

     Quando os médicos chegaram, Styxx se tinha posto fantasmagoricamente pálido e gasto.  

     Eu parti para que pudessem examiná-lo e enquanto eles trabalhavam, olhei ansiosamente.

     —O que é? —perguntou Papai, sua voz carregada com preocupação.  

     Os médicos pareciam confundidos.

     —Nunca vi algo como isto, Senhor.

     —O que? —perguntei, minha voz quebrando-se.  

     O médico principal suspirou.

     —É como se ele estivesse a ponto de morrer de sede e fome embora saiba que ele nunca perde uma só comida. Por sua aparência duvido que passe de hoje. Não tem sentido. Como um príncipe poderia ter estes sintomas?

     Meu coração se deteve ante suas palavras e imediatamente soube a fonte da enfermidade de Styxx.

     —Acheron —disse a meu pai—. Ele está morrendo.  

     Meu pai não me ouviu. Ele estava muito ocupado gritando ao médico para que curasse a seu herdeiro.

     —Papai! —gritei, agitando seu braço para obter sua atenção—. Styxx está morrendo porque Acheron está morrendo. Não recorda o que disse a Sábia quando eles nasceram? Se Acheron morrer, também morrerá Styxx. Acheron é o que está morrendo de fome em sua cela da prisão. Se nós o curarmos, Styxx viverá.  

     Com seu rosto furioso, chamou a seus guardas e pediu que trouxessem Acheron ao Salão do trono.

     Eu corri atrás deles, enquanto percorreram o longo palácio e desceram às profundidades, à cela, para levá-lo de volta. Como sempre, estava úmido e pestilento. Odiava este lugar e me incomodou muito que Acheron tivesse sido confinado aqui todos estes meses.  

     Com o coração pulsando, fiquei atrás enquanto eles abriam a porta da cela. Finalmente o veria de novo.  

     Deram um passo para trás, me mostrando a Acheron.  

     Nunca em minha vida tinha amaldiçoado em voz alta, mas amaldiçoei vilmente quando vi como tinham encerrado a meu irmão.

     O quarto era tão pequeno que lhe tinham obrigado a que se sentasse dobrado. Era ainda menor que o que Estes tinha usado em Atlântida para castigá-lo. Acheron estava literalmente curvado como uma bola. Não havia nenhuma luz absolutamente no interior.  

     Meu irmão tinha vivido em total escuridão e sujeira durante quase um ano. Incapaz de mover-se ou estirar-se, ou para aliviar-se inclusive. Nem sequer os animais eram tratados tão insuficientemente. Por que Acheron nunca me havia dito o que jazia de seu lado da porta?  

     O guarda tentou tirá-lo. Muito fraco para protestar, Acheron se esparramou através do vestíbulo. Seu fedor e o do quarto era tão rançoso que fez com que meu estômago desse um tombo. Me obrigando a tampar o nariz para não vomitar.

     Acheron se estendeu sobre suas costas, sua respiração pouco profunda e débil. Estava tão magro que não parecia real deitado ali. Podia ver cada osso em seu corpo. Uma barba espessa cobria sua cara e seu cabelo pendurava ao seu redor como uma frágil teia de aranha. Parecia um homem velho, e não um rapaz de dezenove anos.  

     Ajoelhei-me ao seu lado e pus sua cabeça em meu regaço.

     —Acheron?  

     Ele não respondeu. Como Styxx, estava muito fraco para fazer algo mais que me olhar inexpressivamente.

     —Levem-no para cima, ao meu quarto —ordenei ao guarda.  

     Ele encurvou seu lábio em repugnância.

     —Minha senhora, ele está asqueroso.  

     —O levarás a minha cama ou farei com que lhe castiguem por tua insolência.

     A indecisão brincou por seu rosto durante vários minutos antes que obedecesse. Pedi que outro guarda tirasse comida e bebida enquanto eu os seguia.  

     Cada passo parecia levar muito tempo. Não poderia acreditar que a casca de um humano nos braços do guarda fora o mesmo rapaz bonito que perseguia Maia em nosso jardim. Como pôde meu pai lhe fazer isto?  

     Como pôde Acheron fazer-se isto?  

     Entrando em meu quarto, o guarda o pôs em minha cama, então saiu imediatamente. Enviei a minhas criadas atrás de água e panos para que assim pudéssemos lavar algo de sua sujeira.  

     Era tão horrível estar perto dele deste modo. Cheirava tão mal, parecia tão débil... Como poderia alguém sofrer tal tragédia? Senti-me completamente desesperada.  

     Usando a coberta, tentei limpar algo da sujeira de seu rosto.  

     Minhas criadas voltaram ao mesmo tempo em que traziam a comida.  

     Embalei a cabeça de Acheron enquanto o alimentava cuidadosamente com pequenos pedaços de pão. Mas não parecia querer mastigar. Eu não sabia se estava muito fraco ou muito vivo saber que era o pão em sua boca.

     —Minha senhora —disse Kassandra— vos danificareis a roupa tocando-o dessa forma.  

     —Não me importa —E não o fazia. Tudo o que me importava era salvar sua vida. Derramei lentamente o vinho em sua boca—. Coma, Acheron —sussurrei.

     Fracamente, ele afastou sua cabeça de mim.

     —Por favor —rogou, sua voz um tosco, rouco sussurro—. Deixe-me morrer.  

     As lágrimas me afogaram quando me dava conta que devia havê-lo feito de propósito. Sem dúvida tinha estado deixando de comer, rogando para que a morte viesse e o libertasse desse buraco onde tinha estado preso.  

     O mais amável que poderia fazer era deixá-lo ir.  

     Mas não podia. Não só perderia a ele, mas também perderia a Styxx e amava a meus dois irmãos.

     —Fica comigo, Acheron, —sussurrei.

     Mas ele não o fez por mim. Em troca, ele lutou pela morte e os dias passaram enquanto olhava aos médicos de meu pai que violentamente o forçavam a alimentar-se enquanto ele tentava cuspir a comida... eram implacáveis em sua atenção.  

     Mantiveram-no amarrado a minha cama e abriram seus lábios para que pudessem verter leite, vinho e mel por sua garganta. Ele tentava cuspir a comida e bebida só para lhe golpearem e lhe sustentarem sua boca e nariz até que tragasse.  

     Ele os amaldiçoou e me amaldiçoou.  

   Não podia culpá-lo.

     Todos os dias eram um pesadelo para ele enquanto Styxx se fazia mais forte no consolo, com todos esbanjando louvores sobre ele e lhe servindo cada uma de suas exigências. Enquanto isso os machucados danificavam a pele de Acheron, sobretudo sua mandíbula que constantemente sujeitavam. Os médicos exigiram que lhe “alimentasse” a cada duas horas pelo menos.

     Cada vez que os guardas e serventes apareciam com esses mantimentos, ele se esticava e me lançava o mais desaprovador de seus olhares.  

     Quando ficou mais forte, as lutas se voltaram mais fortes, até que finalmente deixou de lutar por completo. Os odiosos olhares de aborrecimento foram substituídos por uns de desesperada resignação que me feriram ainda mais. Ainda o deixaram amarrado e eu compreendi que em realidade não tinha mudado sua posição. Só sua localização era diferente.  

     A realidade de meu irmão era sempre a mesma.

  

1 de Novembro, 9529 a.C.

     Hoje Papai mudou a Acheron a um novo aposento no mesmo corredor que o meu. Uma vez mais, ele estava amarrado com os braços e pernas estendidas na cama, mas ao menos desta vez estava vestido. Os alimentos continuaram, mas agora só ocorriam cinco vezes ao dia.

     Eu me esmerei em ver Acheron em cada oportunidade que podia e cada vez que o via meu coração se rompia mais.

     Acheron nunca se moveu ou me falou durante minhas visitas. Jazia ali, olhando fixamente ao teto como se fora imune ao que estava passando ao seu redor.

     —Desejaria que me falasse, Acheron.  

     Ele atuava como que se não estivesse ali.  

     —Tens que saber que eu te amo. Não quero te ver desta maneira. Por favor, irmãozinho. Poderia me olhar pelo menos?  

     Ele nem sequer pestanejou.

     Sua falta de resposta me encolerizou e uma parte de mim queria atacá-lo verbalmente. Mas sustentei minha língua. Ele tinha sido desprezado o suficiente pelos insultos de meu pai e os guardas e serventes que o alimentaram.  

     Não havia nada mais que pudesse fazer. Doente por reconhecê-lo, deixei-o e continuei meus preparativos para Apolo.  

  

20 de Novembro, 9529 a.C.

     Acheron continuou deitado, imóvel, em sua cama. Olhava fixamente ao teto como sempre, me ignorando enquanto tentava falar com ele.  

     —Desejaria que me falasse, Acheron. Sinto falta da maneira em que conversávamos juntos. Eras meu melhor amigo. A única pessoa com quem eu poderia falar na vida, quem não diria cada palavra que disse a Papai.

     Outra vez, não houve resposta.  

     O que o faria me reconhecer? Certamente ele não poderia continuar jogado na cama assim. Então de novo, dado o fato que ele tinha estado sentando-se em um buraco diminuto estes passados meses, ele provavelmente havia mais que se acostumado a não se mover.

     Meu coração sofria por ele, comecei sair da cama quando notei algo estranho. Franzindo o sobrecenho, aproximei-me da coluna da cama onde seu tornozelo estava assegurado por um grilhão de metal. Levou um segundo para compreender o que estava olhando. Sangre fresco e seca cobria o metal.  

     Eu me encolhi quando vi sua pele em carne viva e sangrenta que estava principalmente oculta de minha vista pelas algemas. Assim Acheron não estava desse modo sempre inerte. Das feridas que marcavam cada braço e perna, podia dizer que tinha estado lutando furiosamente por sua liberdade sempre que ele estava sozinho.  

     Quando observei o sangue, minha própria visão ficou vermelha. Já tinha tido bastante deste abuso.

     Minha fúria ardendo lentamente, deixei seu quarto para encontrar a nosso pai.  

     Depois de uma busca rápida, inteirei-me que ele estava fora na área de treinamento olhando como Styxx praticava luta com a espada.  

     —Papai?  

     Ele me lançou um olhar agitado por ter ousado interromper seus estímulos a Styxx.          

     —Há algum problema?

     —Se o houver, de fato. Quero a Acheron libertado O exijo.  

     Ele sorriu com desprezo a meu pedido.

     —Por que? O que faria ele com isso?  

     Eu queria que ele entendesse o que estava fazendo a alguém que nunca lhe causou dano. Alguém que era sua própria carne e sangue.

     —Não podes lhe deixar amarrado como uma besta, Papai. É cruel. Ele não pode nem sequer assistir a suas necessidades básicas.

     —Nem ele pode nos envergonhar.

     —Nos envergonhar como?  

     —Mulheres — ele grunhiu—. Tu estás sempre cega. Não podes ver o que é ele?

     Eu sabia exatamente quem e o que meu irmão era.

     —É um rapaz, Papai.  

     —É um puto.

     Havia mais veneno nessas palavras que na cova da serpente onde meu pai jogava seus inimigos.  

     Isto fez minha ira ferver.

     —Era um escravo torturado que tu jogaste à rua. O que se supunha que ia fazer?

     Respondeu-me com um grunhido selvagem.  

     Mas me neguei a ceder.

     —Não permitirei isto, Papai. Não suportarei isto outro minuto mais. Assim me ajude, se não o liberas desses grilhões, tosquiar-me-ei o cabelo e me marcarei o rosto ao extremo de que já não servirei de utilidade nem a Apolo nem a ninguém.

     —Não te atreverias.

     Pela primeira vez em minha vida, olhei-o fixamente como a um igual. Não havia nenhuma dúvida dentro de mim que poderia levar a cabo a ameaça.

     —Pela vida de Acheron, eu o faria. Merece ser tratado melhor do que o é.

     —Não merece nada!

     —Então podes procurar a outra mulher para puta de Apolo.

     Seus olhos se escureceram de tal maneira que eu estava segura que me bateria por minha intrepidez.  

     Mas finalmente, eu ganhei esta batalha.  

     Essa mesma tarde Acheron foi libertado de sua cama. Ele permanecia ali quando as correntes se abriram e vi a suspeita em seus olhos. Estava esperando que algo pior acontecesse.  

     Uma vez que os grilhões se foram, ordenei aos guardas que deixassem o quarto. Acheron não se moveu até que estivemos sozinhos. Devagar, enojadamente, empurrou-se a me olhar. Estava inseguro, com seus músculos débeis pela falta de uso.

     Seu comprido cabelo loiro estava emaranhado e gordurento. Sua pele doentiamente pálida pela escuridão que tinha sido seu lar. Uma barba espessa cobria suas bochechas. Havia círculos profundos debaixo seus olhos, mas não estava tão gasto, a atroz alimentação lhe tinha agregado bastante peso pelo que ele parecia pelo menos humano.

     —Não podes deixar este quarto —lhe adverti—. Papai foi explícito em suas condições que lhe permitem estar livre só aqui sempre e quando te mantiveres escondido.

     Acheron gelou ante minhas palavras e me deu um agudo e frio olhar.

     —Pelo menos já não estás amarrado.

     Não me falou. Já não o fazia. Mas seus turbulentos olhos cor prata diziam muito. Falaram-me da dor e da agonia que constituía sua vida. Acusavam e se doíam.  

     —Meus aposentos estão duas portas abaixo.

     —Não posso sair —grunhiu—. Não é o que disseste?

     Abri a boca, então fiz uma pausa. Ele tinha razão. Tinha me esquecido disso.

     —Então eu virei a te visitar.  

     —Não te incomodes.

     —Acheron.

     Ele interrompeu minhas palavras com um cortante olhar enfurecido.

     —Recordas o me disseste em sua última visita a minha cela?  

     Esforcei-me em recordar. Tinha estado zangada com ele por não me falar, mas isso era tudo o que recordava.

     —Não.

     —Vá e morre, para o que me importa. Já não posso me preocupar mais por ti.

     Fiz uma careta de dor ante as palavras que nunca devia ter pronunciado. Cortaram-me a alma profundamente, que não era nada comparado a como deveriam fazê-lo sentir. Se só tivesse sabido a miséria em que se encontrava...

     —Estava zangada.  

     Ele torceu seus lábios.

     —E eu estava muito fraco para te responder. É difícil falar quando passa os dias com nada mais que a escuridão e ratos por companhia. Mas claro, tu não sabes como é ter ratos e pulgas te mordendo, não é verdade? O que é te sentar em sua própria merda.  

     —Acheron.

     Suas fossas nasais se dilataram.

     —Me deixe, Ryssa. Não necessito de tua caridade. Não necessito nada de ti.

     —Mas…

     Ele me tirou do quarto e me fechou a porta de repente na cara.  

     Olhei-a fixamente até que um movimento junto a mim capturou minha atenção. Os guardas de Acheron. Tinha dois deles para assegurar-se que não infringiria nenhum mandato de Papai.

     Assim que este era seu destino. Eu somente tinha mudado a localização de sua prisão. Ainda não era livre.  

     Minha alma sofria no mais profundo por ele. Ele estava vivo, mas com que propósito? Possivelmente teria sido mais amável permitir-lhe morrer depois de tudo. Mas como podia fazê-lo? Ele era meu irmão e eu o amava inclusive quando ele me odiava.  

     Doente, voltei-me e retornei aos meus aposentos, mas ali não encontrei nenhuma paz. Tinha sido pouco caridosa com Acheron. Dura. Irrefletida. Com razão ele não queria me falar.  

     Mas eu não poderia deixá-lo com isto. Daria-lhe tempo. Possivelmente ele retornasse no futuro.

     Pelo menos, esperava no mais profundo que o encontrasse por si mesmo e me perdoasse por ser como todos os outros. Por feri-lo quando eu devia haver lutando por ele.

 

1 de Dezembro, 9529 a.C.

     À medida que passavam os dias, eu aprendi mais coisas a respeito das ordens de meu pai para o trato de Acheron. Não estava permitido entrar ninguém no quarto de Acheron, à exceção de mim mesma, a quem ele se negava a ver, e tudo o que ele tocava era destroçado e queimado.

     Tudo.

     Seus pratos, seus lençóis. Inclusive suas roupas. Esta era a humilhação pública de Papai para com Acheron.

     Aquilo me adoecia.

     Até o dia em que fiz a descoberta mais assombrosa de todas.

     Tinha ido com várias amigas para ver uma representação ao meio-dia. Não era algo que estivesse acostumada a fazer normalmente, mas Zateria estava completamente desesperada por um dos atores e tinha insistido em que eu o julgasse por mim mesma.

     Estivemos rindo entre nós quando de repente reparei em alguém que estava sentado duas filas mais abaixo de nós na seção camponesa. Estava sentado somente com um peplo[4] que o protegia. Tinha o capuz posto sobre a cabeça de modo que não podia dizer nada a respeito de suas feições e ainda assim havia algo estranhamente familiar nele.

     Não foi até que acabou a representação e o homem se levantou que me dava conta de por que me era familiar.

     Era Acheron.

     Baixou o capuz, mas eu já tinha vislumbrado a beleza de seu rosto e sabia que Styxx nunca teria se rebaixado a vir a algo tão comum como um jogo de meio-dia. Inclusive se o fazia, ele nunca estaria nos assentos dessa seção.

     Desculpei-me com meus amigos para ir atrás dele.

     —Acheron?

     Ele vacilou um instante antes de baixar ainda mais o capuz e continuar seu caminho.

     Me apressando para lhe alcançar, puxei-o para que se detivera.

     Ele me olhou friamente.

     —Vais dizer a ele?

     —Não —ofeguei, sabendo que “ele” era nosso pai—, por que o faria?

     Ele começou a afastar-se, mas eu o detive outra vez.

     Sua expressão era exasperada.

     —Que é Ryssa?

     —Como vieste aqui? Os guardas…

     —Subornei-os —disse ele em um tom contido.

     —Com o que? Não tens dinheiro.

     O olhar que me dedicou respondeu essa resposta de forma contundente. Senti náuseas com o simples pensamento do que tinha usado para escapar do palácio.

     Ele entrecerrou os olhos sobre mim.

     —Não pareça tão horrorizada, Ryssa. Fui golpeado por muito menos que uma tarde de liberdade. Ao menos eles são amáveis comigo.

     As lágrimas aguilhoaram meus olhos.

     —Não podes continuar fazendo isso.

     —Por que não? É tudo o que querem de mim.

     —Isso não é verdade.

     —Não?

     Observei-o enquanto arrancava o capuz. Podia sentir a onda que atravessou a todo mundo ao redor de nós em como as pessoas fixavam o olhar nele.

     O repentino ensurdecedor silêncio. Era tão tangível e não havia engano na atenção que estava imediatamente enfocada sobre ele.

     Somente nele.

     As cabeças das mulheres se juntavam enquanto riam bobamente e tratavam de passar desapercebidas em seu ávido olhar. Os homens não eram tão sutis. Não havia dúvida no fato de que cada um deles o ficava olhando com desejo. Com desejo.

     Eu não era mais imune a sua nada natural atração do que eram eles, mas a minha estava temperada pelo fato de que fomos família.

     —Queres saber realmente por que me odeia teu pai?

     Eu sacudi a cabeça. Conhecia a resposta. Acheron o havia dito no dia em que Papai o tinha banido. Por que ele, também, sentia-se atraído por Acheron e desprezava ao menino por isso.

     Acheron me empurrou para passar, saindo do estádio. A cada passo que dava, assediavam-lhe com oferecimentos e convites. Inclusive uma vez que voltou a colocar o capuz, as pessoas não paravam de lhe chamar e lhe perseguir através da rua.

     Apressei-me atrás dele.

     —Não seja assim —disse um homem enquanto se arrastava atrás de Acheron—. Seria um mentor muito benéfico.

     —Não tenho necessidade de um mentor, —disse Acheron enquanto continuava caminhando.

     O homem o agarrou com rudeza.

     —O que queres?

     —Quero que me deixem sozinho.

     O homem baixou o capuz de Acheron.

     —Me diga seu preço. Pagarei qualquer coisa para te ter.

     Esse fundido e vazio olhar apareceu nos olhos de Acheron fazendo com que o homem se separasse dele.

     —O que é isto?

     Meu sangue se congelou quando reconheci a hostil e demandante voz de meu pai. Tinha estado tão concentrada em Acheron e no desconhecido que não me tinha dado conta de que Papai e seus próximos estavam passeando.

     Agora a atenção de pai caiu completamente em Acheron cuja cara se voltou de pedra.

     Papai arrebatou brutalmente a Acheron o capuz da cabeça e o empurrou para seus guardas a quem lhes ordenou tomassem em custódia. Acheron foi escoltado de volta ao palácio onde Papai o golpeou por sua desobediência.

     Tentei mitigar o castigo, mas Papai não escutava. Eles arrastaram a Acheron ao interior do pátio fora da sala do trono de meu pai que estava reservado para os castigos. Os guardas lhe rasgaram a roupa deixando-o nu e o deram sessenta e cinco chicotadas nas costas. Não podia olhar, mas ouvia cada assobio do látego quando viajava através do ar e cada chicotada que cortava através de sua pele.

     Acheron grunhia e várias vezes o ouvi cair, só para que meu pai ordenasse aos guardas que o pusessem de novo em pé. Nenhuma só vez gritou.

     Quando finalmente terminou, voltei-me para ver Acheron inclinado contra o poste, sangrando, suas mãos ainda firmemente atadas. Os guardas lhe lançaram uma tosca manta por cima antes que suas cordas fossem cortadas e fosse arrastado de retorno ao seu quarto e encerrado dentro.

     Tudo o que pude fazer foi sustentar depois a Acheron. Pela primeira vez, ele não se colocou a um lado. Permanecia deitado com a cabeça em meu regaço como estava acostumado a fazer quando éramos meninos. Quando me rogava que lhe dissesse por que nossos pais lhe odiavam.

    Esperei a que alguém viesse e atendesse suas destroçadas costas.

     Ninguém o fez.

     Só depois me dava conta de que Papai o tinha proibido. Assim que me sentei com o Acheron durante horas, sustentando sua cabeça enquanto ele chorava silenciosamente pela dor.

     Se chorava pelo furioso pulsado de suas costas ou a profunda dor em seu coração, isso não sabia. Deuses, como desejava lhe levar de volta ao dia na horta quando tínhamos estado sozinho os três jogando e rindo. Longe a algum lugar onde pudesse ser livre e apático, onde fosse um rapaz normal de dezenove anos como deveria havê-lo sido.

     Quando finalmente dormiu, continuei passando minha mão através de seu cabelo dourado, enquanto observava os horríveis vergões em suas costas. Não podia imaginar uma dor tão forte.

     —Te amo, Acheron —sussurrei, desejando que meu amor fora bastante para protegê-lo disto.

 

10 de Dezembro, 9529 a.C.

     Depois desse dia, nunca falei outra vez do fato de que sabia que Acheron continuava escapando do palácio para ir às apresentações. Muitos dias o segui só para me assegurar que ninguém o incomodava. Que ninguém sabia o que estava fazendo.

     Mantinha-se nas sombras, sua identidade cuidadosamente guardada. Sua cabeça sempre para baixo, seu olhar no chão quando passava através da confiada multidão.

     Acheron arriscava muito para ir. Ambos sabíamos. Uma vez lhe perguntei por que se atrevia a tanto e ele simplesmente me respondeu que isso era tudo o que o confortava.

     Gostava de ver os participantes nos jogos. Gostava de imaginar que ele era um deles. Como podia culpá-lo por isso quando tinha desfrutado tão pouco de sua vida?

     Com minha união com Apolo aproximando-se criticamente, passei mais e mais tempo nos aposentos de Acheron. Só ele não via o evento como algum mágico momento que eu deveria estar esperando com gozo e entusiasmo.

     Ele o via pelo horror que era.

     Eu também estava sendo prostituída. Só que meu pai via minha prostituição como nobre e maravilhosa.

     —Doerá muito quando ele me tomar? —perguntei a Acheron quando se sentou em seu balcão que olhava mais abaixo por volta do mar.

     Eu estava no chão enquanto Acheron se sentava no batente como fazia sempre. Ele se balançava precariamente sobre a borda deste qual gota que cai ao rugente mar.

     Aterravam-me as alturas, mas ele parecia ignorante ante o perigo.

     —Depende de Apolo e seu humor. Sempre depende de teus amantes e quanta força usarão. Quanto prazer tomem te causando dor.

     Isso não me aliviava desde que não podia controlar o humor de ninguém.

     —Foi dolorosa tua primeira vez?

     Ele assentiu sutilmente, seus olhos obscurecidos.

     —Ao menos não terá uma audiência quando te violar.

     —Tu sim?

     Ele não respondeu, mas tampouco é que fora a fazê-lo. Sua expressão me dizia que sim.

     Meu coração doeu por ele e pelo horror que devia ter passado, baixei o olhar para o cordão que estava enrolando em minhas mãos.

     —Achs que Apolo me machucará?

     —Não sei, Ryssa —seu tom mostrava sua impaciência. Ele sempre odiava falar sobre o coito. De fato, odiava falar, todo o tempo.

     Mas eu tinha que saber o que viria e não havia ninguém que falasse comigo de tais coisas. Encontrei seu tempestuoso olhar.

     —Quanta dor pode ser?

     Ele afastou o olhar, baixando-o até o mar.

     —Tenta não pensar nisso. Só fecha os olhos e imagina que é um pássaro. Imagina que vive acima entre as nuvens e que não há nada que possa te alcançar. És livre de voar aonde queiras ir.

     —É o que fazes?

     —Algumas vezes.

     —E nas outras?

    Ele não respondeu.

     Assim que nos sentamos ali em silêncio, escutando as ondas romper abaixo contra as rochas. Pela primeira vez, finalmente entendia algo de sua dor. Sua humilhação. Eu não queria formar parte de meu futuro e ainda assim não tinha escolha.

     Enquanto escutava as ondas, recordei o tempo que tínhamos passado a sós quando ele era um menino. Das horas que estava acostumado a passar sobre as rochas, escutando o mar e as vozes que o chamavam.

     —Ainda ouve as vozes dos deuses, Acheron?

     Ele assentiu.

     —Ouve-as agora?

     —Sim.

     Fazia anos, ele me tinha contado que eram os deuses chamando-o. Lhe dizendo que viesse para casa.

     —Pensas fazer o que lhe dizem?

     Ele sacudiu a cabeça.

     —Jamais quero retornar a Atlântida. Odeio estar ali.

     Isso podia entendê-lo e fazia que me perguntasse quanto mais deveria ele odiar estar aqui. A pena sempre o seguia e não era culpa sua. Quão doloroso não ser capaz de mostrar tua própria cara por temor a que as pessoas te assaltem. Fosse aonde fosse, todo mundo queria aproximar-se dele com um desespero que não tinha sentido para mim.

     Inclusive eu o desejava. Só estava agradecida de que ele não pudesse sentir esses impuros pensamentos que vinham a mim nos piores momentos possíveis.

     Mas ao contrário de outras pessoas em minha vida, eu nunca atuei sobre eles. Ele era meu irmão e eu só queria protegê-lo. Ao contrário que o resto de minha família, ele via meu eu real e me amava apesar de minhas falhas. Justamente assim como o amava eu apesar das suas.

     —Irá comigo amanhã ao templo? —perguntei em voz baixa.

     Ele ficou perplexo pela pergunta.

     —Por favor, Acheron. Estou tão assustada do que estão planejando. Não quero ser a querida de um deus. Nunca fui tocada por um homem. Nunca fui beijada. Não acredito ter a coragem para isto.

     —Não é difícil, Ryssa. Só minta e atue como se te gostasse.

     —E se eu não gosto?

     —Finge que você gosta. Ele estará tão concentrado em seu próprio prazer que nunca advertirá sequer se estiver sorrindo ou chorando. Só lhe diga quão hábil é e o bem que se sente. Isso é tudo o que importa.

     Levantei-me do meu lugar no chão e agarrei sua mão na minha. Fiquei olhando fixamente a força de seus curtidos tendões. Tinha passado por muito. Sinceramente, não tinha direito a me queixar ou me lamentar de meu destino. Ninguém tinha estado ali para lhe consolar através dos terrores de sua vida.

     Mas eu não era tão forte como Acheron. Não podia fazer isto sozinha. Queria… não, necessitava que alguém estivesse ali. Alguém em quem confiasse que me dissesse a verdade e visse o amanhã pelo horror que era.

     —Por favor, vem comigo.

     Ainda havia reserva em seus olhos. Não queria fazê-lo, mas assentiu de todas as maneiras.

     Agradecida, beijei-lhe a mão e a apertei na minha. Só ele entendia meus temores. Sabia o que era ser vendido contra sua vontade.

     Nisto éramos almas gêmeas.

 

11 de Dezembro, 9529 a.C.

     Tratei de dormir, mas só o fiz irregularmente. Este seria o pior dia de minha vida. Hoje, meu próprio pai, me ataria a um Deus...

     Quando foi hora de ir ao templo, encontrei a Acheron no corredor fora de meus aposentos usando o peplo de coloração insossa que utilizava para ir aos jogos. Como sempre, estava colocado sobre sua cabeça para protegê-lo dos outros.

     Era bom de sua parte vir comigo, inclusive quando eu sabia que ele não queria. Desejava sustentar sua mão para que me desse coragem, mas não me atrevia por medo de dirigir a atenção para ele. A última coisa que quereria seria que o ferissem por minha culpa.

     Sem uma palavra, seguiu atrás de mim e minhas criadas enquanto deixávamos o palácio. Pensei que Papai me esperaria lá fora, mas me disseram que ele já estava no templo.

     Duvidei, aí, na rua, enquanto me abandonava a coragem e me deixava com as pernas trementes.

     Me virando, encontrei o olhar de Acheron.

     —Deveria correr?

     —Eles sempre me traziam de volta quando tratava de fazê-lo e me faziam sofrer muito pelo intento.

     Meu estômago se encolheu, inclusive mais, enquanto recordava a vez que o tinha tirado de Atlântida. Ele me havia dito que seria castigado por minhas ações, mas nunca me havia dito como.

     —O que te fez Titio depois que te afastei de...

     O colocou sua mão sobre meus lábios e sacudiu a cabeça.

     —Nunca quererias sabê-lo.

     Olhei em seus olhos chapeados e vi a dor que estava lá e foi então quando entendi completamente porque ele não tinha deixado para trás a vida que nosso tio lhe tinha ensinado. Recordei o que me havia dito no bordel.

     Sem outra habilidade, não havia nada que qualquer um de nós pudesse fazer. Nenhuma maneira de nos manter a nós mesmos.

     “Tratei de encontrar um trabalho honrado”.

     Suas palavras me atormentavam agora.

     Acheron tinha razão. Encontrariam-me e me castigariam.

     Tomando uma profunda inalação para me encher de coragem, girei-me e me dirigi para o distrito dos templos.

     Havia uma multidão esperando por mim para celebrar o fato de que estava sendo vendida contra minha vontade a um Deus. Seis pequenas meninas permaneciam com cestas de pétalas de rosas vermelhas e brancas em suas mãos. Disseminaram-nas aos meus pés enquanto levavam para o templo de Apolo.

     Na porta, encontrei ao meu pai. Ele me sorriu até que seu olhar passou sobre meu ombro para ver meu alto “guarda”.

     Um grunhido curvou seus lábios.

     —O que está fazendo ele aqui?

     —Pedi-lhe que viesse.

     Papai empurrou a Acheron pelas costas.

     —Ele não pode estar aqui. É impuro.

     —Quero-o aqui.

     —Não!

     Olhei para trás para ver como Acheron levantava o queixo como se suas palavras não o ferissem, mas vi a dor em seu olhar.

     —Esperarei por ti lá fora, Ryssa.

     Papai fez um som de desgosto e soube que era só medo de fazer uma cena frente Apolo o que o impedia de fazer algo. Entretanto, depois haveria castigo para Acheron. Disso não tinha dúvida.

     Estendi a mão para meu irmão, mas Papai me empurrou para a porta. Lágrimas apareceram em meus olhos enquanto asfixiava. Tratei de lhe falar com Acheron, mas não podia fazer com que minha voz cooperasse.

     Acheron se afastou, para a multidão.

     Queria vê-lo. Necessitava de sua força, mas não havia nada que pudesse fazer.

     Contra minha vontade, arrastaram-me para o templo e para um destino do qual eu não queria ser parte.

 

9529 AC – 7382 AC

 

11 de Dezembro, 9529 a.C.

     Acheron se afastou do templo de Apolo. Uma cólera de impotência lhe carcomia as vísceras. Estava cansado de que lhe recordassem seu lugar neste mundo.

     Que lhe recordassem que ele não era nada.

     Sem dúvida, seu pai o castigaria depois por isso. Não, preocupava-lhe.

     Já não sentia a dor física como o resto do mundo. Muitos dias de ser usado e abusado lhe tinham deixado vazio e incapaz de sentir grande coisa exceto ódio e ira.

     Essas duas emoções lhe queimavam por dentro constantemente.

     Tinha sido um puto contra sua vontade e agora isso era usado contra ele, como se ele tivesse tido escolha sobre o assunto. Como se tivesse desfrutado ao ser manuseado e golpeado.

     Então assim será.

     Procurando alguma forma de vingança sobre aqueles que o tinham amaldiçoado a seu destino, encontrou-se a si mesmo cruzando a rua para dirigir-se ao templo de Apolo.

     Estava vazio. O mais provável era que os ocupantes e guardiões tivessem cruzado a rua para serem testemunhas do sacrifício de sua irmã.

     Porcos de merda.

     Não havia nada que às pessoas gostassem mais que ver alguém mais sendo humilhado, especialmente à nobreza. Dava-lhes um sentimento de poder. Um sentido de superioridade. Mas no profundo de suas mentes, todos sabiam a verdade. Só estavam agradecidos de não serem eles os degradados.

     O caminhou para a nave central que estava emoldurada por imensas colunas que se estreitavam para o céu. Colunas que se dirigiam para a estátua de uma mulher. Ele nunca tinha estado dentro de um templo antes. Os putos não eram bem-vindos, posto que os deuses as tinham abandonado e a raça humana as tinha condenado.

     Insolentemente, baixou seu capuz enquanto dirigia o olhar para cima à imagem esculpida da deusa. Feita de ouro sólido, ela era formosa. O peplo parecia balançar-se por um vento invisível e sustentava um arco em uma mão e uma aljava de flechas às costas. A mão esquerda descansava em um alto e garboso cervo que estava esfregando-se contra sua perna.

     Olhou fixamente a escritura da placa que havia a seus pés, mas não podia lê-la.

     Vagamente recordava a Ryssa tratando de lhe ensinar a ler a muitos anos, quando o tinha resgatado. Não tinha visto um pergaminho ou uma palavra desde então.

     Enquanto riscava a primeira letra do nome da deusa, acreditou reconhecê-la.

     Era um A. Ryssa lhe havia dito que seu próprio nome começava com essa letra.

     Ele percorreu mentalmente seu limitado conhecimento dos deuses e o que sabia deles, enquanto tentava recordar a um cujo nome soasse similar ao seu.

     —Tu deves ser Atenea —disse em voz alta.

     Tinha sentido, Atenas era a deusa da guerra e sustentava um arco em sua mão.

     —Desculpa? Atenea?

     Virou-se rapidamente para a voz zangada atrás dele. A mulher era incrivelmente voluptuosa com um comprido e encaracolado cabelo avermelhado e escuros olhos verdes. Sua beleza era natural e penetrante. Se fosse capaz de sentir-se sexualmente atraído por alguém, poderia inclusive desejá-la. Mas honestamente, havia fodido com tanta gente que poderia viver o resto de sua vida sem nenhum outro corpo por baixo, sobre ou perto dele.

     Vestida com um traje branco vaporoso, colocou as mãos sobre os quadris curvilíneos.

     —Estas cego? Ou só és estúpido?

     Ele grunhiu ante os insultos.

     —Nada disso.

     Aproximou-se dele com um olhar agudo antes de gesticular para a estátua atrás dele.

    —Então como é que não reconhece uma imagem de Artemisa quando a vês?

     Acheron pôs os olhos em branco ante a menção da irmã gêmea de Apolo. Deveria havê-lo sabido já que os templos estavam tão juntos.

     —É ela tão inútil como seu irmão?

     A boca da mulher caiu aberta. Parecia assombrada por sua pergunta.

     —Como?

     A cólera queimou dentro dele enquanto via os tributos colocados no altar ante a imperial deusa. Ele lançou o braço contra eles, fazendo-os voar. As jarras se partiram contra o chão enquanto pequenas flores, brinquedos e outras oferendas se disseminaram e rodaram sobre o mármore.

     —Por que se incomodam quando ninguém no Olimpo os escuta e se o fazem, é óbvio que não lhes importa?

     —Estás louco?

     —Sim, estou —disse entre dentes—. Louco por este mundo onde não somos nada para os Deuses. Louco pelos Destinos que nos puseram aqui sem outro propósito exceto o de brincar conosco para seu pequeno entretenimento. Desejaria que todos os deuses estivessem mortos e desaparecidos.

     A mulher grunhiu, dirigindo-se a ele. Acheron capturou sua mão antes que pudesse esbofeteá-lo.

     Ela gritou e algo o golpeou de dentro, lançando-o diretamente ao chão. A dor se estendeu através do corpo.

     Uma força invisível o levantou do chão e o jogou contra a parede. O fôlego o abandonou enquanto era fixado ao tabique, a uns bons três metros sobre o chão.

     A mulher o olhou.

     —Deveria te matar!

     —Por favor, faça-o.

     Artemisa reteve o último raio de energia que teria mandado a este humano direto ao Tártaro onde pertencia e o deixou cair ao chão. Nunca tinha conhecido a ninguém que não a reconhecesse ao vê-la. Nunca tinha conhecido a ninguém que pudesse sentir sua presença sobrenatural e seus poderes de deusa e, entretanto, este humano parecia imune a eles.

     Olhou como se levantava e permanecia de pé, insolentemente diante dela. Era um jovem muito bonito. Concedia-lhe isso. Seu rosto era perfeito em sua beleza, escuras pestanas loiras emolduravam uns tempestuosos olhos chapeados que queimavam com ódio. Ninguém a tinha desafiado com tal olhar.

     Seu comprido e ondulado cabelo loiro emoldurava suas formas à perfeição. Parecia ser suave e era como pouco, tentador.

     E seu corpo... era plano e musculoso. Bronzeado. Formoso. Havia algo nele que provocava que a boca enchesse de água por lhe provar. Nunca em sua vida havia sentido um desejo tão incrível por nenhum homem.

     Uma coisa mais. Era mais alto que ela, uma raridade mortal que apreciava.

     —Tens idéia de quem sou? —perguntou-lhe.

     —Julgando por teu aborrecimento e o que acabas de me fazer, assumirei que és Artemisa.

     Então não era tão estúpido depois de tudo.

     —Então te incline e te desculpe.

     Em lugar disso, ofereceu-a um intenso olhar que causou com que seu estômago se agitasse. Caminhou para ela com um elegante pavoneio que fez com que seu corpo inteiro se ondulasse como o de uma pantera. Uma estranha necessidade a atravessou. Não entendia o que estava sentindo, fora o que fosse, deixava-a sem fôlego e débil.

     Ele colocou uma cálida mão contra sua bochecha enquanto olhava fixamente seu rosto com esses cativantes olhos que pareciam hipnotizá-la.

     —Então és uma deusa —disse, com uma voz grossa enquanto a examinava audazmente. As pupilas se dilataram...

     O estômago dela se encolheu inclusive mais. Sua proximidade a abrasava. Seus olhos a fascinavam.

     Ela nunca havia sentido algo como isto.

     Antes que ela se desse conta de suas intenções, ele a colocou entre os braços e a beijou.

     Artemisa não podia respirar enquanto o saboreava. Uma parte dela estava ultrajada de que ele se atrevesse a isto, mas outra estranha parte estava encantada pela inesperada sensação de seus lábios sobre os seus. De sua língua explorando a boca.

     Os braços a rodearam enquanto a atraía mais perto dele.

     Dava-lhe voltas a cabeça quando ele a retirou ligeiramente e arrastou seus lábios da boca ao pescoço. Os calafrios a percorriam e ao mesmo tempo em que um incrível calor bulia por dentro. Tudo o que queria era colocá-lo mais perto…

     Sentir cada centímetro de seu corpo.

     Ele fez um ruído apreciativo contra a pele que lhe causou estragos.

     —Tens um gosto divinamente.

     Ele caiu de joelhos ante ela.

     —O que estás fazendo? —Perguntou enquanto ele levantava um dos pés em suas mãos. Não entendia que estava acontecendo. Parecia como se não tivesse controle de si mesma. Esta… criatura a forçava de uma maneira que era totalmente sobrenatural.

     Ante o olhar dele, sentiu como se seu estômago quisesse sair.

     —Beijando teus pés, deusa. Não é isso o que se supõe que devo fazer?

     Bom, sim, mas enquanto ele mordiscava o peito do pé ela não pôde suprimir um profundo gemido de prazer. Artemisa se apoiou contra a parede enquanto sua boca trabalhava magicamente sobre os sensíveis tendões do pé.

     Ela nunca tinha conhecido algo tão rico, um calor tão abrasador percorrendo seu sangue. E ele não se deteve no pé, deslizou seus lábios sobre a perna, para a parte de trás do joelho.

     Artemisa lutava por respirar.

     Então ele moveu sua boca mais acima.

     —O que estás fazendo?

     Suspirou enquanto seu quente fôlego caía sobre suas nádegas.

     —Estou te beijando o traseiro. Não se supõe que as pessoas têm que fazer isso?

     —Não dessa maneira.

     Ela grunhiu quando ele a mordiscou a parte alta das nádegas. Deveria detê-lo. Ele não tinha nenhum direito de tocá-la desta maneira e, entretanto, não queria que se detivera. Sentia-se tão bem.

     Ele a separou as pernas brandamente.

     Com uma mente própria, as pernas lhe obedeceram. Artemisa olhou para baixo e o viu com os olhos fechados enquanto a atormentava com prazer.

     Sentiu suas mãos sobre ela enquanto a tocava onde nenhum outro homem a havia tocado antes. Seus dedos percorreram a fenda, fazendo-a queimar-se inclusive mais antes de tomá-la com a boca.

     Baixando o braço, ela enterrou a mão entre seu cabelo enquanto a saboreava.

     Seus sentidos se voltaram loucos enquanto se entregava totalmente a ele e as lambidas que lhe dava a enviavam a uma altura inimaginável. Cada uma delas enviava um quente arrepiou através dela. A garganta secou um instante antes que seu corpo se calcinasse.

     Artemisa chorou enquanto experimentava seu primeiro orgasmo.

     Aterrorizada e envergonhada, desapareceu.

     Acheron se sentou no solo aturdido pela incredulidade. O gosto e o cheiro da Artemisa transpassaram seus sentidos. Seu corpo queimava com dolorosa necessidade.

     Ele nunca tinha experimentado o desejo antes. Seu corpo sempre tinha reagido ao ser estimulado por outros ou pelas drogas, mas realmente ele nunca quis tocar a ninguém.

     Até agora.

     Agora desejava a uma mulher... não, desejava a uma deusa e isso não tinha sentido para ele.

     Riu amargamente.

     —O mínimo que pudeste ter feito era me matar, Artemisa —gritou. Esse tinha sido seu único objetivo quando se aproximou dela pela primeira vez.

     Mas no momento que a havia tocado, tinha sentido desejo real.

     Incapaz de esquecer isso, limpou a boca e ficou de pé. Girando, olhou à estátua que de maneira nenhuma tinha semelhança com ela. Dirigiu-lhe uma sarcástica saudação.

     Seu corpo tinha uma fome estranha, abandonou o templo e fez a longa caminhada de volta ao palácio sozinho. E com cada passo que dava, sua raiva crescia inclusive mais do que tinha crescido antes.

     Havia um inquietante silêncio enquanto caminhava através dos corredores de mármore da casa de seu pai sem destino em mente. Todos tinham ido ver o sacrifício de Ryssa. Perguntava-se ociosamente se serviria de algo. Se o favor de Apolo para com os Atlantes poderia ser trocado para os Gregos.

     Não é que lhe importasse. Nem os Atlantes nem os Apolitas tinham sido mais gentis com ele do que tinham sido os gregos.

     Tudo o que eles queriam lhe fazer era fodê-lo.

     Suspirando, encontrou a si mesmo no grande e impressionante salão do trono de seu pai. Era a primeira vez que entrava caminhando, devido a que nas vezes anteriores tinha sido arrastado pela porta encadeado.

     Entreabriu o olhar sobre os dois tronos dourados colocados ao final. Tronos que deviam ter pertencido a sua mãe e a seu pai, mas como sua mãe tinha sido desterrada por seu nascimento, Styxx tinha ocupado seu lugar. Muito mau que a velha bruxa tivesse morrido em seu isolamento. A teria gostado de ver seu precioso Styxx coroado Rei.

     Styxx. Seu irmãozinho.

     Acheron amaldiçoou. Se não fora pelos olhos, ele teria sido quem estaria sentado à direita de seu pai.

     Ninguém se atreveria a incomodá-lo. Ninguém jamais o teria forçado a ajoelhar-se para...

     Grunhiu ante as lembranças.

     Era tão injusto.

     Não tinha pedido esta vida. Nunca tinha pedido para nascer. Nunca tinha pedido ser um semideus.

     Podia escutar a voz de Estes na cabeça “Olhem. Filho de um Olímpico. Quanto pagaria por uma provadinha a um deus Grego?”

     Acheron nem sequer sabia quem era seu pai. Sua mãe sempre se declarou inocente sobre as circunstâncias de seu nascimento e nenhum deus tinha dado um passo adiante para lhe reconhecer.

     Zangado por esse feito, cruzou a sala para sentar-se no trono de seu pai. O homem morreria se o visse apetrechado sobre ele e isso lhe deu um instantâneo momento de satisfação. Seu pai o faria queimar.

     Talvez deveria deixar que seu pai o encontrasse aqui. Ao rei lhe estaria bem empregado saber que um puto tinha profanado seu amado trono.

     Um puto... estremeceu-se com o mero pensamento.

     Por direito de nascimento, tudo isto deveria ter sido seu. Fechando os olhos, Acheron tratou de imaginar como teria sido o mundo se ele tivesse olhos azuis como Styxx.

     As pessoas o respeitariam.

     Respeito.

     A palavra pendurava como um fantasma em sua mente. Essa era a única coisa pela qual tinha rogado.

     —Não queres ser amado?

     Ele abriu os olhos para ver que Artemisa estava parada no centro do aposento, estudando-o.

     —Todo mundo afirma me amar —pelo menos enquanto o fodiam. Infelizmente, essa afirmação terminava no minuto que obtinham a satisfação—. Tive mais que suficiente do amor de outras pessoas. Prefiro não o ter por um momento.

     Ela franziu o cenho. Era uma expressão delicada que ele encontrou doce.

     —Tu és um ser humano estranho.

     Ele se burlou disso.

     —Sou um semideus. Não o podes ver?

     Seu cenho se pronunciou mais enquanto se aproximava dele.

     —De quem és?

     —Hão-me dito que de Zeus.

     Ela negou com a cabeça ao escutar isso.

     —Tu não és filho de um Olímpico. Eu saberia se fosses. Nós sempre podemos sentir aos nossos.

     Essas palavras penetraram no coração como uma faca.

     —Então de quem sou filho?

     Ela tomou seu queixo na cálida e suave mão para que ele elevasse a vista e poder olhar fixamente seus incomuns olhos. Olhos que ele tinha odiado toda sua vida. Olhos que o tinham traído.

     —Tu és humano.

     —Mas meus olhos...

     —São estranhos, mas os defeitos de nascimento são comuns entre sua espécie. Não há poderes de deus dentro de ti. Nada que te marque como divindade. És humano.

     Acheron fechou os olhos enquanto a dor o assediava. Então era o filho de seu pai depois de tudo.

     Era a última coisa que queria ouvir. Um defeito de nascimento. Um simples acidente de nascimento o tinha privado de tudo. Queria gritar de cólera.

     —Por que estás aqui? —Perguntou, abrindo os olhos para encontrar Artemisa lhe olhando fixamente.

     Ela ignorou a pergunta.

     —Por que não me temes?

     —Deveria?

     —Poderia te matar.

     —Pedi-te que o fizeras, mas não o fizeste.

     Ela inclinou a cabeça como se a tivesse surpreendido completamente.

     —Tu és muito bonito para ser humano.

     —Eu sei.

     Artemisa franziu o cenho ante suas palavras. Não tinham sido ditas arrogantemente. Ao contrário, as havia dito com ira, como se sua beleza lhe incomodasse. Era diferente a qualquer humano que ela tinha conhecido.

     Se não estivesse segura, ela teria acreditado em sua história de divindade. Havia algo sobrenatural sobre o desejo que ele a provocava.

     Mas os deuses e sua descendência tinham uma essência que era facilmente identificável. Tudo o que ela sentia dentro deste humano era ódio, desprezo. E isto a machucava e a machucava tanto que era quase doloroso estar perto dele.

     —Por que estás tão triste?

     —Tu nunca o entenderias.

     Provavelmente não. A tristeza não era algo que normalmente sentisse. Quanto ao desprezo...

     Era completamente estranho para ela.

     Em toda sua existência, ela jamais tinha desejado consolar a um humano. Hoje ela o fez e não sabia por que.

     —Alguma vez sorris? —Perguntou-lhe.

     Ele negou com a cabeça.

     —Nunca?

     —Não. Tudo o que provoca é que as pessoas se arrastem até mim. Os faz me desejar mais.

     —Mas pensei que todos os humanos rogavam por serem desejados.

     Novamente ele franziu o cenho.

     —Conhece o termo Atlante tsoulus?

     —Escravo sexual?

     Dedicou-a um olhar fixo em branco.

     Artemisa inalou enquanto captava seu significado.

     —Tu és um deles?

     —Era-o.

     Sua visão se obscureceu ante a informação.

     —E ousaste me tocar?

     —Então, me matarás agora?

     Isso fez com que sua cólera diminuíra sob outra onda de confusão. Quem era este homem que a desafiava como nenhum outro o tinha feito antes?

     —Se tanto desejas morrer por que não te matas tu mesmo?

     Seus lábios se curvaram enquanto seus olhos ondulavam com fúria.

     —Cada vez que o tentei, fui devolvido e castigado por isso. Parece ser que os deuses não me querem morto, então imaginei que se um dos seus me matava, então encontraria finalmente a paz.

     —Então não estás destinado para morrer.

     Ele ficou de pé com um grunhido tão feroz que Artemisa de fato retrocedeu um passo por medo.

     —Não te atrevas a dizer essa palavra diante de mim. Nego-me a acreditar que este era meu destino. Não estava destinado a ser isto. Nunca quis ser...

   A dor em seus olhos a perfurou.

     —Isto não pode ser para o qual nasci.

     —É o destino da raça humana sofrer. Por que tu deverias ser diferente?

     Acheron não podia respirar enquanto suas palavras penetravam profundamente nele. Uma e outra vez em sua mente via si mesmo e seu passado. Via os horrores e degradações que tinha sofrido.

     Mas os pensamentos mais terríveis eram aqueles do futuro. Para sempre sozinho, sem ninguém exceto o desdém e o abuso por companhia. Sendo forçado a comer contra sua vontade ou pior, vendido como um saco de aveia.

     Muito zangado para falar, saiu rapidamente do salão e se dirigiu a sua “prisão”. Reconhecia que era melhor que o vão no qual seu pai o tinha confinado inicialmente, mas ainda era uma prisão.

   Era tudo o que ele conheceria e se seu pai obtinha seu objetivo, séria confinado nesse lugar para o resto de sua vida.

     Ao menos hoje não havia guardas lá fora. Inclusive a eles tinha dado um dia de liberdade. Um dia para fazer o que quisessem.

   —Por que fugiste?

     Deteve-se em seco enquanto Artemisa aparecia ante ele.

     —Por que me segues?

     —Deixou-me curiosa.

     —Curiosa sobre o que?

     —Sobre ti.

     Ele riu amargamente ante isso. Inclusive uma deusa não era melhor que os humanos que o caçavam.

     —Queres-me nu para que possas me explorar?

     Suas bochechas se escureceram, mas ainda assim ele viu o quente olhar em seus olhos.

     Também se precaveu que ela não o contradisse. Então assim será.

     Artemisa olhava como seu recém descoberto humano lentamente soltava o broche de seu peplo. Deveria detê-lo, sabia, mas não podia obrigar a si mesma a dizer as palavras.

     Tremeu pela espera de como se veria nu. Não era assombroso que seu irmão passasse tanto tempo com as fêmeas humanas. Se elas eram a metade de provocadoras...

     Ele deixou cair seu peplo ao chão.

     Seus pensamentos se disseminaram, ela tragou quando viu sua nudez, era inclusive mais bonito do que suspeitava.

     Sua pele era leonada, tentadora e se estirava sobre um corpo que estava finamente posto a ponto e bem musculoso.

     Contra sua vontade, seu olhar desceu para a parte dele que era unicamente masculina. Estava bem dotado e enquanto o olhava, seu pênis cresceu, engrossando-se enquanto lentamente se levantava para curvar-se contra seu corpo. Seus testículos apertadas.

     Nunca tinha visto um homem como este. Cheio de desejo. Tão atrevido e sem inibição por medo a ela.

     Ele fechou a distância entre eles.

     —Não queres me tocar?

     Se o desejava, mas não podia mover-se. Não podia respirar. Ela sentia o calor de seu corpo o comovedor passo de seu fôlego contra o rosto.

     Sua proximidade era intoxicante.

     A tomou uma mão com a sua e a dirigiu para sua ereção. Seu puxão era firme enquanto ele deslizava sua palma contra a ponta do pênis. Estava tão suave e, entretanto tão duro.

     Ela tragou enquanto ele a dirigia lentamente ao longo de toda sua longitude até que a fez esfregar contra o suave saco. Ela mordeu o lábio enquanto ele esfregava a si mesmo acompanhando sua palma. Seu corpo era tão diferente ao seu. Tão incrível e sedutor.

     Ele libertou sua mão.

     Seu primeiro instinto foi retirar-se, mas não era tímida. Em vez disso, percorreu com a parte posterior dos dedos a parte baixa de seu saco, permitindo que seu testículo se curvassem ao seu redor. Ela sentia seu corpo tão estranho.

     Ela levantou a mão para uma sossegada exploração sobre seu estômago até seu peito.

     Ele não se moveu para tocá-la. Só permaneceu junto a ela em silêncio enquanto explorava cada centímetro de seu corpo. Seus inquietantes olhos chapeados eram incríveis. Ela nunca tinha visto outros iguais. Nunca havia sentido nada melhor que sua pele masculina sob sua mão.

     Oh, mas ele era delicioso.

     —Queres que te foda?

     Ela se estremeceu ante a pergunta que deveria havê-la ofendido até o mais profundo de seu ser. Ante o profundo acento de sua voz. Desejava-o com uma loucura que a consumia.

     Se só pudesse.

     —Não —disse ela em voz baixa. Olhou para ele. Seu olhar a abrasava—. Quero que me faças o que me fizeste antes. Me faça sentir isso de novo.

     Agarrou-a pela mão e a dirigiu para uma cama onde poderiam estar a sós. Sem serem incomodados.

     Ela não deveria estar fazendo isso. Era uma deusa virgem. Intocada por homem ou deus algum.

     Pelo menos até hoje.

     Ninguém a tinha beijado antes. Ninguém a havia possuído. Era conhecida por matar a homens só porque a haviam visto nua e, entretanto com este, ela estava mais que disposta a deixar-se seduzir.

     Não sabia por que assim como tampouco compreendia a compulsão dentro dela de estar com ele.

     Ele só a fazia sentir estranhamente feliz. Cálida. Decadente. Desejável.

     Acheron a colocou de costas contra o colchão. Ela estava nervosa; isso era algo ao qual ele estava acostumado em mulheres sem experiência. Ainda assim, ela era formosa. Seu cabelo avermelhado se esparramou sobre os travesseiros, fazendo com que ficasse ainda mais duro. E não era um sentimento ao qual estivesse acostumado.

     A essência de rosas se uniu a sua pele. Beijou-a brandamente sobre os lábios enquanto deslizava a mão para cima por sua perna, levantando a ponta do vestido. Ela se esticou um pouco, mas rapidamente relaxou. Era tímida.

     Não querendo envergonhá-la, ele deixou que seus lábios se arrastassem lentamente por seu corpo.

     Artemisa estava desconcertada enquanto o via desaparecer baixo as dobras de seu vestido branco. Mesmo assim ela podia senti-lo mover-se. Sentir suas costeletas roçando contra a panturrilha enquanto riscava uma quente linha de beijos para cima pela parte interna da coxa até alcançar a parte dela que doía por ele.

     Ela gemeu no instante que seus lábios e língua encontraram esse ponto. Mordendo a palma da mão se rendeu ao prazer que a dava. Era deslumbrante e excitante. Não havia dúvida porque os outros deuses e humanos arriscavam tanto por isso.

     Desta vez, quando culminou, ela compreendeu claramente o que estava passando a seu corpo. Pelo menos o fez até que ele a fez vir uma e outra vez.

     Acheron grunhiu ante o sabor de Artemisa. Ante o som dos gritos que enchiam seus ouvidos. Ele amava a forma em que ronronava. A sensação de sua mão no cabelo, puxando.

   Ela golpeou com a outra mão o colchão.

     —Tens que parar. Por favor. Não posso suportar mais.

     Ele lhe deu uma comprida lambida final antes de separar-se.

     —Estás segura?

     Ela assentiu.

     A contra gosto, fez o que lhe pediu e se moveu para estirar-se junto a ela apesar de que seu próprio corpo estava longe de ser satisfeito.

     Artemisa se colocou sobre seu peito, escutando sua respiração entrecortada. Ele ainda estava duro e rígido.

     —Não te dói permanecer assim? —Perguntou ela, deslizando a mão sobre seu pênis.

     Ele tomou uma aguda respiração como se sua carícia lhe doesse.

     —Sim.

     —Não podes dar prazer a ti mesmo?

     —Posso —estudou seu rosto—. Você gostaria de vê-lo?

     Antes que ela pudesse responder, a agarrou uma mão colocando sua palma contra ele.

     Acheron fechou os olhos ante o calor de sua mão contra o pênis. O sexo não significava nada para ele. Nunca o tinha feito, era só algo que se esperava dele.

    Masturbou-se ante multidões e com amantes muitas mais vezes das quais podia recordar. Por alguma razão parecia que as pessoas obtinham prazer ao vê-lo gozar. Apenas sentia a descarga momentânea de hormônios. Era um penetrante prazer, que rapidamente evaporava.

     Fazia muito tempo que aprendeu a desejar algo mais que isto.

     Mas não estava destinado a obtê-lo e de todas maneiras ele não sabia o que era que realmente queria. Artemisa estava aqui porque, assim como muitos outros antes que ela, tinha curiosidade a respeito de seu corpo. Ela poderia voltar a visitá-lo. Ou poderia não fazê-lo.

     No passado o golpeavam se um amante não retornava a ele.

     Em Atlântida, tudo o que tinha dependia de sua habilidade para fazer com que as pessoas o desejassem. Quanto lhe permitiam dormir. Quanta comida.

     Quanta dignidade.

     Se seus amantes não se sentiam satisfeitos depois de lhe deixar, era golpeado por isso.

     Agora seu pai o golpearia se se inteirava disto. O rei demandava celibato de um homem que nunca tinha conhecido. Mas de verdade, tinha desfrutado estar com a Artemisa. Seu toque era gentil. Sua pele suave e cremosa.

     Inalando, imaginou o que seria deslizar-se dentro de seu corpo. Não, melhor ainda, imaginou como seria que o sustentara perto de seu corpo como se lhe importasse. Só pensar em alguém preocupando-se com ele, realmente preocupando-se com ele foi suficiente para quase fazê-lo sorrir. Mas era consciente.

     O que tinha era um estúpido sonho que tinha sido alimentado por Ryssa e Maia tempos atrás, quando tinha sido crédulo. Essas ilusões tinham sido destroçadas há tempo.

     Artemisa era uma deusa. Tinha sorte de que ela não se indignasse por estar no mesmo aposento com ele. Agradaria-a porque era o que estava treinado a fazer.

     Não podia haver nenhum tipo de relação entre eles. Sem dúvida desapareceria logo como acabasse. E estaria sozinho de novo.

     Nada em sua vida tinha mudado realmente.

     Artemisa olhou o rosto de Acheron enquanto ele usava sua mão para acariciar-se. Era estranho tocar a um homem desta maneira e se perguntava que pensamentos rondavam por sua cabeça. Normalmente ela podia escutar os pensamentos dos mortais no momento que desejasse, mas pela primeira vez, não pôde.

     Que estranho...

     Ele se endureceu inclusive mais antes que sua quente semente fora disparada através de seus dedos. Em lugar de chorar, como ela o tinha feito, ele apenas suspirou entrecortadamente, depois a libertou.

     Ela percorreu com a mão sua cálida umidade, estudando-a.

     —Então, isto é o que faz que uma mulher fique grávida.

     —Na maioria dos casos.

     —Na maioria?

     Ele franziu o cenho.

     —O meu é o suficientemente inofensivo.

     —Como é isso?

     —Fui esterilizado na puberdade. Deusa. Minha classe sempre o é. Ninguém deseja ficar grávida de um puto.

     Artemisa arqueou suas sobrancelhas ante seu discurso.

     —Podem os humanos fazer isso?

     —Não, mas os Atlantes podem. Aprenderam o procedimento dos Apolitas.

     Ela estudou seu fluido de novo.

     —É uma lástima o que te fizeram —disse Artemisa em voz baixa—. És muito formoso para ser estéril. Queres que te arrume?

     —Não, não há razão para fazê-lo. Hei-te dito, ninguém daria a bem-vinda a uma criança concebida por mim.

     Foi a dor em seus chapeados olhos enquanto falava que provocou uma dor tão pouco familiar no peito.

     Seu pobre humano.

     Ele parecia espetacular descansando contra os lençóis brancos que faziam destacar a larga extensão de bronzeada pele masculina. Cada músculo de seu corpo era um exemplo de perfeição. Era tão tentador. Quente. E era completamente descarado a respeito de sua sexualidade nua. A respeito do que tinham feito. Não se pavoneava ou era arrogante por havê-la tocado.

     Tratava-a como se ela fora...

     Humana.

     A maioria de sua família não podia suportá-la. Os humanos a temiam, inclusive seus servas riam entre elas, mas ficavam em guarda no momento que ela se aproximava.

     Mas este homem...

     Era diferente. Não tinha medo de nada ou de ninguém. Como uma besta poderosa e agressiva, era desafiante e ousado. Implacável ante sua presença. Era dócil agora, mas o poder nele era inegável. Isso assustava inclusive a ela.

     —Tens amigos? —Perguntou ela.

     Ele negou com a cabeça.

     —Por que não?

     —Suponho que não valho.

     Artemisa franziu o cenho ante seu raciocínio.

     —Eu posso ser uma. Tampouco tenho nenhum e sou mais que valiosa. Talvez há um defeito em nós.

     Ela fez uma pausa enquanto pensava nisso.

     —Não, isso tampouco pode ser certo. Eu não tenho defeitos e, entretanto estou tão só como o estás tu.

     Nunca antes se precaveu Artemisa de que tão só estava realmente. Seu irmão gêmeo tinha amigos. Tinha amantes. Apolo era a coisa mais próxima a um amigo que tinha conhecido, mas inclusive ele era reservado ao seu redor. Apolo nunca a convidava a fazer coisas a menos que envolvessem destruição ou castigo. Não ria com ela ou a convidava a entreter-se ou jogar.

     Pela primeira vez em sua vida, precavia-se que quão só realmente estava.

     —Tu gostarias de ser meu amigo?

     Acheron ficou completamente atônito ante a inesperada pergunta.

     —Serias minha amiga?

     Ela inclinou a cabeça enquanto o olhava com um pequeno franzimento do divino cenho. Era brilhante e etérea, muito longe do alcance de alguém como ele.

     —Bom, sim. Quer dizer, não podemos deixar que os outros saibam, mas eu gostaria de ver o que podes me mostrar. Quero aprender mais deste mundo e de ti.

     Sorriu calidamente ante ele como se fora realmente sincera com sua oferta. Recordou-lhe que tão rara era a sinceridade para ele. E a amizade...

     Era um sonho elusivo que não permitia a si mesmo. As pessoas como ele não tinham amigos. Assim como não tinham amor ou gentileza. Mesmo assim, encontrou que uma parte desconhecida de si mesmo doía de desejo por isso.

     Doendo de desejo por ela.

     —Então somos amigos? Prometo-te que jamais te arrependerás.

     Tinha que ser o momento mais estranho de sua vida e dado o pouco comum de sua existência, isso era dizer muito. Como podia um puto ser amigo de uma Deusa?

     Acheron puxou o lençol da cama e limpou a si mesmo.

     —Acredito que te arrependerás de ser minha amiga.

     Ela deu de ombros.

     —Duvido-o. Tu és humano. Só estarás vivo… o que? Outros vinte e tantos anos? É tão pouco tempo a apenas se importar e duvido que continuemos sendo amigos uma vez que estejas velho e pouco atrativo. Além disso, arrependimento não é algo que um olímpico sinta.

     Ela sorriu enquanto acariciava seus lábios.

     —Me beije. Beije-me e me deixe saber que somos amigos.

     Era um pensamento ridículo e inclusive assim se encontrou fazendo exatamente o que lhe pedia.

     Amigos.

     Os dois. Ele queria rir ante o pensamento. Em lugar disso, fechou os olhos e a inalou. Suas mãos se sentiam sublimes no cabelo. E enquanto se beijavam, ele queria sua amizade com um desespero que doía. Sua única esperança era ser merecedor dela.

 

13 de Dezembro, 9529 a.C.

     —O que estás fazendo?

     Acheron abriu os olhos para encontrar a Artemisa parada no balcão a uns metros dele. Apesar de estar gelando, estava sentado no parapeito, apoiado contra uma coluna enquanto escutava ao turbulento mar debaixo dele.

     —Estava tomando um pouco de ar fresco. O que estás fazendo tu?

     —Estava aborrecida —disse com um bico nos lábios.

     Isso o divertiu.

     —Como pode um deus aborrecer-se?

     Ela deu de ombros.

     —Não há muito que possa fazer realmente. Meu irmão está fora com tua irmã. Zeus dirige um concílio e nunca me deixa participar. Hades está com Perséfone. Meus koris estão banhando-se e pulando umas com as outras e me ignorando. Estou aborrecida. Pensei que talvez tu terias alguma idéia de algo que pudéssemos fazer juntos.

     Acheron soltou um longo e cansado suspiro. Sabia aonde levava tudo isto e ainda assim se sentiu motivado a perguntar retoricamente.

     —Posso pelo menos ir para dentro onde se está mais quente antes de me tirar a roupa?

     Ela franziu o cenho.

     —É isso o que os humanos fazem quando estão aborrecidos?

     —É o que fazem comigo.

     —E desfrutas com isso?

     —Não realmente —respondeu com honestidade.

     —Oh —fez uma pausa de um segundo antes de continuar—. Bom, então, o que é que fazes para te divertir?

     —Vou ao teatro.

     Cruzando os braços, aproximou-se dele.

     —Isso são histórias inventadas onde as pessoas se fazem passar por outras pessoas, verdade?

     Ele assentiu.

     Por seu rosto podia dizer que ela não entendia por que ele encontrava isso entretido.

     —E te gosta isso mais que estar nu?

     Realmente nunca tinha pensado nisso, mas…

     —Sim. Por um momento me faz esquecer quem sou.

     Ela parecia até mais confusa.

     —Gostas de te esquecer de ti?

     —Sim.

     —Mas isso não te confunde?

     Nem a metade do que lhe confundia esta conversação.

     —Não.

     Artemisa lhe tocou o braço com os dedos.

     —Acredito que se não fora um deus tampouco eu gostaria de recordar quem sou. Posso entender porque as pessoas se sentem dessa maneira. Então, há alguma obra a qual possamos ir?

   —No povoado há uma a cada tarde.

     —Então devemos ir —ela disse firmemente.

     Acheron soprou, desejando que tudo fora tão fácil como ela parecia pensar.

     —Não posso ir.

     —Por que não?

     Ele olhou para as portas do dormitório fechadas a sete chaves com um golpe desde a última vez que lhe tinham arrojado aqui e abandonado para que apodrecera. Oh espera, isso tinha sido ontem.

     —Meus anteriores guardas foram decapitados por deixar que saísse. Os novos são mais cautelosos. Se tento lhes falar, tiram as espadas, empurram-me e fecham as portas.

     Ela deu de ombros.

     —Eles não são nenhum problema para mim. Posso te levar ao povoado.

     Com um balanço de pernas, Acheron desceu do parapeito enquanto a esperança crescia dentro dele. Odiava estar apanhado como um animal raivoso. Sempre o tinha feito. Tudo o que tinha feito durante os dois últimos dias era sonhar estando fora durante um breve momento. Mas só havia duas formas de sair de seu quarto, através das portas por trás da Artemisa ou saltando por cima do parapeito de pedra para cair trezentos metros sobre as rochas que havia abaixo.

     —De verdade?

     Ela assentiu.

     —Se desejas ir, claro.

     Sentiu como se algo dentro do peito se libertasse com suas palavras. Poderia beijá-la por isso.

     —Irei por minha capa.

     Artemisa seguiu seu novo amigo para o quarto e olhou como tirava uma capa que havia debaixo do colchão de palha.

     —Por que a guardas sob a cama?

     —Tenho que esconder minha capa ou as criadas a queimariam —respondeu enquanto a sacudia.

     —Por que?

     Dirigiu-a um olhar em branco.

     —Disse-te que supostamente não me posso ir daqui.

     Ela não entendia isso. Por que o manteriam encerrado dentro deste pequeno aposento?

     —Fez algo errado para que te mantenham prisioneiro?

     —Meu único crime foi ter nascido de pais que não querem saber nada de mim. Meu pai não quer que ninguém saiba que seu filho mais velho é deformado, assim, devo permanecer aqui até que morra de velho.

     Uma estranha dor flutuou no estômago de Artemisa enquanto se sentia triste por ele. Havia ocasiões nas quais também se sentia prisioneira, entretanto ninguém nunca a tinha feito sentir excluída de algum jeito.

     Baixou o olhar para as pernas musculosas.

     —É por isso que tens teus pés nus?

     Ele assentiu enquanto envolvia a capa ao redor de seu corpo e colocava o capuz sobre a cabeça.

     —Estou preparado.

     —E teus sapatos?

     Olhou-a perplexo por sua pergunta.

     —Não tenho. Já te disse. Não me permitem sair.

     Agora que o pensava, deu-se conta que ela tampouco levava sapatos em seu templo.

     —Não terás frio nos pés?

     —Estou acostumado.

     Ela encolheu os dedos do pé dentro de seus sapatos quando pensou como seria caminhar descalça sobre as frias pedras no inverno. Seria uma sensação miserável que nenhum humano deveria suportar. Sacudindo a cabeça, fez com que se manifestassem um par de sapatos de couro quente sobre os pés.

     —Assim, está muito melhor.

     Acheron olhou assombrado os sapatos de cor marrom escuro forrados de pele. Sentia-os estranhos contra a pele. Mas eram incrivelmente quentes e suaves.

     —Obrigado.

     Ela lhe sorriu como se os sapatos a agradassem tanto como a ele.

     —De nada.

     O seguinte que soube, é que se encontravam no centro do povoado. Acheron observou boquiaberto que estavam parados junto a um poço. Ninguém na ocupada multidão parecia precaver do fato de que eles tinham aparecido realmente de um nada. Imediatamente comprovou que o capuz cobria totalmente seu rosto para assegurar-se de manter-se oculto de todos aqueles que estavam ao seu redor.

     —O que fazes? —Perguntou Artemisa.

   —Não quero que ninguém me veja.

     —Oh, essa é uma boa idéia. —Um momento depois, levava uma capa luxuosamente tecida que colocou de idêntica maneira a de Acheron—. Como pareço?

     Antes que pudesse evitá-lo, um sorriso curvou os lábios de Acheron ante sua inocente pergunta. Rapidamente o tirou. Sabia melhor que ninguém o que um sorriso podia conduzir. Sempre o punha em problemas.

     —Estás bonita.

     —Por que me dizer isso te incomoda?

     Acheron apertou os dentes ante a simples verdade que o tinha açoitado toda sua vida.

     —As pessoas destroem a beleza quando a encontram.

     Ela inclinou a cabeça.

     —Como pode ser?

     —Por natureza as pessoas são mesquinhas e ciumentas. Invejam o que lhes falta e devido que não sabem como adquiri-la, tratam de destruir a qualquer um que a tem. A beleza é uma dessas coisas que mais odeiam em outros.

     —A sério achas isso?

     —Fui atacado muitas vezes por esse motivo. Qualquer coisa que eles não possam possuir, tratam de arruiná-lo.

     Artemisa estava estupefata ante seu cinismo. Tinha ouvido comentários similares de algum dos deuses. Seu pai, Zeus, sempre estava fazendo declarações parecidas. Mas para um humano tão jovem...

     Acheron era estranhamente astuto em ocasiões. Se não estivesse segura, quase poderia acreditar em sua declaração de divindade. Ele era um pouco mais perceptivo que a maioria dos humanos.

     —Aonde vamos? —Perguntou, trocando de tema.

     —A porta comum é para cá.

     Dirigiu-a para uma pequena porta onde um grupo de sujos e imundos humanos se reunia.

     Curvando os lábios com repugnância, parou-o de um puxão.

     —Devemos entrar através da porta comum com a gente comum?

     —Custa entrar através das outras.

     Como poderia ser um problema? Pensou ela.

     —Não tens dinheiro?

     —Não —a disse com o cenho franzido.

     Com um suspiro, ela fez aparecer uma pequena bolsa e o entregou a ele.

     —Aqui tens. Nos consiga assentos decentes. Sou uma deusa. Não me sinto com a gente comum.

     Vacilou antes de obedecê-la. Vacilou. Ninguém jamais o tinha feito. Ainda parecia esquecer o fato de que era uma divindade. Por um lado, que pudesse ser tão arrogante o sentia como um insultou, mas por outro a cativava. Gostou do sentimento de ser nada mais que uma mulher para um homem.

     Especialmente para um tão incrivelmente bonito.

     Mas ele precisava respeitar seu status de deusa. Era, depois de tudo, a filha de Zeus. Poderia matá-lo se quisesse.

     Então porque não o fizeste? Sua provocação ecoou na cabeça enquanto o recordava tão orgulhoso e desafiante em seu templo. Definitivamente era um humano estranho.

     E nesse preciso momento lhe gostou só por sua beleza.

     Artemisa permaneceu ao seu lado enquanto comprava entradas e a conduzia a uma área separada dos camponeses. Os assentos aqui estavam menos lotados e cheios com nobres e as famílias dos senadores. Acheron pagou mais dinheiro para comprar um almofada cheia que colocou sobre a pedra para sua comodidade.

     —Não compras uma para ti? —Perguntou-lhe enquanto tomava assento sobre a almofada.

     —Não necessito de uma.

     Devolveu-a o moedeiro.

     Enrugando o nariz, ela olhou fixamente a dura pedra onde ele se sentou fazendo caso omisso do frio.

     —Não estás incômodo?

     —Não. Estou acostumado.

     Estava acostumado a muitas coisas que não eram naturais. Um sentimento estranho a transpassou. De fato, incomodou-a que ele estivesse abusando de si mesmo. Ele não devia carecer de coisas e definitivamente não enquanto estivesse com ela. Estalando os dedos, ela materializou uma almofada debaixo dele.

     Olhou-a com uma expressão tão perplexa que era quase cômica.

     —Não deverias te sentar sobre a fria pedra, Acheron.

     Acheron tocou a almofada acolchoada de cor azul que tinha debaixo com incredulidade. Só Ryssa se preocupou alguma vez por sua comodidade. Bom e em ocasiões Catera. Mas o cuidado de Catera provinha do desejo de fazer mais dinheiro a custa dele. Artemisa não tinha razões para preocupar-se se estava golpeado ou tinha frio. Não era nada para ela e ainda assim tinha feito algo realmente amável por ele. Fez-lhe desejar sorrir, mas ainda não confiava plenamente nela. Tinha sido enganado muitas vezes pela aparente bondade das pessoas que tinham sido motivadas só por seu egoísmo.

     Seu peito se contraiu com as lembranças do tempo quando ficou sem lar depois que seu pai o tinha despejado da casa de Estes.

     —Dar-te-ei trabalho, rapaz...

     Apertou os olhos em um esforço para apagar o horror que tinha seguido a sua confiança cega. Realmente odiava às pessoas. Eram cruéis e usavam os outros.

     Todos foram cruéis com ele.

     —Vinho para meu senhor e senhora?

     Acheron levou um momento para perceber de que o velho vendedor estava falando com ele. Atônito pela mostra de respeito, não foi capaz de formular uma resposta.

     —Sim —disse Artemisa imperiosamente. Deu-lhe uma moeda em troca das duas taças de vinho.

     —Obrigado, minha senhora. Meu senhor, espero que desfrutem do espetáculo —disse o vendedor enquanto se inclinava ante eles.

     Acheron não podia falar enquanto tomava a taça da mão de Artemisa. Ninguém o tinha tratado com tanto respeito desde o tempo que tinha passado com Ryssa e Maia no palácio de verão. E nunca ninguém se inclinou ante ele.

     Ninguém.

     Sua garganta se apertou, com lentidão tomou o vinho.

     Artemisa se deteve para estudá-lo.

     —Há algum problema?

     Acheron negou com a cabeça, incapaz de acreditar que estava sentado junto a uma deusa. Em público. Usando roupa. Que voltas estranhas dava a vida.

     Artemisa agachou a cabeça, tratando de encontrar seu olhar.

     Por hábito, Acheron afastou os olhos.

     —Por que não me olhas? —Perguntou Artemisa.

     —Estou te olhando.

     —Não, não o faz, sempre baixas o olhar quando alguém se aproxima de ti.

     —Posso ver-te apesar disso. Faz muito tempo aprendi como ver sem olhar diretamente às coisas.

   —Não entendo.

     Acheron suspirou enquanto girava a taça nas mãos.

     —Meus olhos fazem com que as pessoas se incomodem, por isso os mantenho ocultos o melhor que posso. Assim evito que as pessoas se zanguem comigo.

     —As pessoas se zangam contigo por lhes olhar?

     Acheron assentiu.

     —Como se sente isso?

     O tragou ante as lembranças que o cortavam até a alma.

     —Dói.

     —Então deves lhes dizer que não o façam.

     Como se fora assim fácil.

     —Não sou um Deus, Artemisa. Ninguém me escuta quando falo.

     —Eu o faço.

     Assim parecia, e isso significava muito para ele.

     —És única.

     —Certo. Talvez deverias passar mais tempo ao redor dos Deuses.

     Ele soprou ante a idéia.

     —Odeio aos deuses, recordas?

     —Não me odeias, verdade?

     —Não.

     Artemisa sorriu. Suas palavras a aliviaram e não estava segura do porquê. Intrigada por ele, levantou-se para tocar suas costas. No momento em que o fez, ele inalou e exalou rapidamente entre dentes.

     —Qual é o problema?

     —Minhas costas ainda se ressentem.

     —Se ressentem do que?

     De algum jeito conseguiu transmiti-la um olhar zombeteiramente insolente sem olhá-la diretamente.

     —Disse-te que tinha sido proibido abandonar meu quarto. Minha viagem ao seu templo custou.

     —O que te custou?

     Ele suspirou enquanto o espetáculo começava.

     —Vamos ver a obra, por favor.

     Girando a atenção para os atores, ela escutou enquanto contavam uma história insípida que não a motivava nenhum interesse. O humano ao seu lado... esse era outra coisa. Cativava-a enormemente.

     No momento que ela se aproximava de um humano de qualquer tipo, ele ou ela se arrastavam e pediam sua aprovação. Inclusive a realeza. Ou eles a olhavam fixamente como se fora sublime, coisa que é obvio era. Mas este humano não fazia nada disso. Parecia esquecer o fato de que podia matá-lo com um olhar. Inclusive agora, ignorava-a totalmente.

     Que estranho.

     —Por que contínuas cantando esse grupo?

     —É o coro —sussurrou ele. Sua atenção estava centrada sobre os atores abaixo deles.

     —Estão mal afinados.

     Ele franziu o cenho.

     —Mal afinados?

     —Sua entonação... não é correta.

     —Desafinados —a corrigiu enquanto se virava de novo para o cenário—. Não, não o estão. Soam bem.

     Ela arqueou uma sobrancelha ante seu tom molesto.

     —Estás discutindo comigo?

     —Não estou tratando de discutir contigo, deusa. Estou tratando de escutar o que estão dizendo os atores. Shh.

     Não… não ele realmente não a tinha mandado calar! A coragem a invadiu.

     —Como? Acheron? Shh?

     Pela primeira vez, ele encontrou seu olhar e não houve confusão na agitação desses tempestuoso olhos chapeados.

     — Não é momento de falar, Artemisa —se virou de novo para o cenário.

     Ofendida, arrebatou-lhe o capuz da cabeça para conseguir sua completa atenção. Imediatamente se deu conta que tinha cometido um engano. Todas as pessoas ao redor ficaram fascinadas com Acheron cujo rosto tinha perdido toda a cor.

     Sem uma palavra para ela, cobriu-se de novo e se apressou para a saída. Várias das pessoas ao redor dela lhe seguiram depois.

     Curiosa, subiu a escada do estádio para encontrar a Acheron rodeado de gente. Ele parecia apavorado enquanto tentava se separar de seu caminho às pessoas que queriam dirigir-se a ele.

     Um dos homens o agarrou rudemente pelo braço.

     —Deixe-me ir —grunhiu, empurrando ao estranho.

     O homem apertou o puxão tanto que Acheron se estremeceu por isso.

     Enfurecida pelo abuso sobre seu amigo. Artemisa afundou as unhas na mão do homem que fez uma careta de dor. No momento que soltou a Acheron, ela o puxou pela mão e se teletransportaram de volta ao quarto.

     Ela esperava gratidão.

     Ele não lhe deu nada disso. Em seu lugar, virou-se para ela com fúria emanando de todo seu ser.

     —Como te atreves a me fazer isso!

     —Salvei-te.

     Seu intolerante olhar foi tão acusador como seu tom incluso enquanto se mantinha aos seus pés.

     —Me expuseste!

     Não entendia por que ele a culpava de algo do qual não era culpada.

     —Estavas me ignorando.

     —Estava tratando ver a obra. É por isso pelo que fomos, não?

     —Não. Fomos tratar de evitar que me aborrecesse. Recordas? Estava me aborrecendo de novo.

     Isso não o acalmou nem o mínimo. Se acaso. Parecia que o tinha feito zangar ainda mais.

     —Então podes seguir aborrecida em outro lugar.

     Artemisa estava horrorizada.

     —Me estás expulsando do quarto?

     —Sim.

     A raiva nublou sua visão. Ninguém jamais a tinha tratado desta maneira.

     —Quem achas que és?

     —Aquele a quem quase atacam porque és uma desconsiderada.

     —Não sou desconsiderada.

     Ele gesticulou para a porta atrás dela.

     —Saia. Eu não gosto de estar ao redor das pessoas. Prefiro estar sozinho.

     Ela lhe franziu o cenho.

     —Estás real e verdadeiramente zangado comigo, certo?

     Ele pôs os olhos em branco como se estivesse exasperado com ela.

     Atônita. Artemisa ofegou para ele.

     —Os seres humanos não se zangam comigo.

     —Este o faz. Agora, por favor, saia.

     Deveria fazê-lo e, entretanto, não era capaz. Este homem dava ordens a ela e deveria estar enfurecida e apesar de tudo não estava realmente zangada. Até uma parte dela estava tentada a lhe pedir perdão. Mas as deusas não faziam isso aos humanos.

     —Por que as pessoas te rodearam assim? —perguntou, querendo entender sua hostilidade injustificada para com ela.

     —És a deusa. Diga-me tu.

     —As pessoas normalmente não fazem isso a outras pessoas sem uma razão. Estás amaldiçoado?

     Ele riu amargamente.

     —Obviamente.

     —Que fizeste?

     —Nasci. Ao que parece isso é tudo o que necessitam os deuses para arruinar a alguém. —tirou os sapatos e os entregou a ela—. Tome teus sapatos antes de ir.

     —Te dei-os.

     —Não quero teu presente.

     —Por que não?

     Seu olhar estava no chão, mas não tinha perdido a fúria e o desprezo.

     —Porque me farás pagar por eles e estou cansado de pagar pelas coisas. —Deixou os sapatos no chão e se encaminhou a sacada.

     Ignorando os sapatos. Artemisa o seguiu.

     —Estávamos nos divertindo. Eu gostei até que me fizeste zangar.

     Ele deixou cair seu olhar para o piso ao mesmo tempo em que toda a irritação se evaporava de seu rosto.

     —Desculpe-me minha senhora. Não queria ofendê-la.

     Deixou-se cair sobre seus joelhos frente a ela.

     —O que fazes?

     —Tua vontade é a minha, akra.

     Artemisa deu um puxão a sua capa. Ele nem se alterou nem se moveu. Ele simplesmente ficou ali como um estúpido suplicante.

     —Por que te comportas assim?

     Ele manteve o olhar sobre o chão.

     —É o que queres, não? Um servente que a entretenha?

     Sim, mas não queria isso dele.

     —Tenho serventes. Pensei que éramos amigos.

     —Eu não sei como ser amigo. Só sei como ser um escravo ou um amante.

     Artemisa abriu a boca para falar, mas antes que pudesse, a porta do aposento se abriu com um golpe. Imediatamente se fez invisível escondendo-se nas sombras.

     Dois guardas entraram.

     Assim que Acheron os viu, ficou de pé e se manteve na bancada enquanto se dirigiam a ele. Sua cara era fria e estóica.

     Sem uma palavra, agarraram-no e o arrastaram para o corredor. Intrigada sobre os motivos, seguiu-os, assegurando-se de manter-se oculta.

     Acheron foi conduzido ao salão do trono onde ela tinha estado com ele há três dias. Os guardas lhe obrigaram a ajoelhar-se diante dos tronos que estavam ocupados por um humano mais velho e um jovem idêntico em beleza a Acheron. Só que não tinha os olhos chapeados de Acheron, e carecia dessa natureza irresistível. Era como qualquer outro humano e ela lhe tomou uma aversão imediata.

     —Como você ordenou, Senhor, ele não deixou o quarto —disse firmemente o guarda à esquerda de Acheron—. Nos asseguramos disso.

     Os olhos azuis do rei eram penetrantes.

     —Não estavas na praça há um momento, teritos?

     Os olhos de Artemisa se abriram ante a palavra que significava lesma.

     Acheron olhou desafiantemente ao rei.

     —Por que teria que estar na praça, Papai?

     O rei curvou seu lábio.

     —Trinta e seis chicotadas por sua insolência, depois encerrem-no em seus aposentos.

     Acheron fechou os olhos quando os guardas o agarraram pelo cabelo e o arrastaram para umas portas batentes que davam a um pequeno pátio.

     Com o cenho franzido Artemisa olhou como o despiam e logo o atavam a um poste. As perfeitamente formadas costas estavam cobertas de contusões escuras, fios vermelhos e cortes. Não era de se estranhar que tivesse retrocedido quando ela lhe tocou. Tinha que doer uma barbaridade.

     Incapaz de detectar sua presença, o guarda mais jovem caminhou ao seu lado e tirou um látego do cinto antes de dirigir-se a Acheron.

     Acheron se endureceu e se abraçou contra o poste como se soubesse o que passaria a seguir.

     O látego assobiou pelo ar, antes de contatar com as machucadas costas.

     Com um ofego, Acheron agarrou o poste com tanta força que seus braços e pernas se perfilaram e esticaram. Era como se estivesse tratando de fundir-se com o mastro.

     Hipnotizada pela visão, observou como chovia chicotada atrás de chicotada sobre as costas. Nenhuma só vez gritou ou implorou misericórdia, o máximo que fazia era respirar entrecortadamente e amaldiçoar a eles e a toda sua família.

     Quando terminaram, os guardas lhe soltaram. Com o rosto cinzento, Acheron recolheu sua roupa do chão onde os guardas a tinham deixado cair, mas não teve tempo para vestir-se antes que eles o arrastassem para seu quarto e o lançassem dentro.

     A porta tremeu quando os guardas a fecharam com uma portada que ecoou.

     Artemisa caminhou através da porta fechada para encontrar-se com Acheron deitado no chão, onde o tinham soltado. Seu sangrento cabelo loiro estava enredado e jogado para trás enquanto as feridas das costas seguiam sangrando. Ele não fez nenhum movimento para cobrir-se ou queixar-se. Simplesmente olhava fixamente ao vazio.

     —Acheron?

     Não a respondeu.

     Materializou-se diante dele, ajoelhando-se ao seu lado.

     —Por que te bateram?

     Ele deixou sair um suspiro entrecortado enquanto apertava o punho na roupa que sustentava em um montão.

     —Não me faças perguntas, não me sinto com vontades de responder.

     Seu coração se acelerou, tocou um dos vergões sangrentos de seu ombro direito. Ele vaiou ante seu tato. Retirando a mão, ela franziu o cenho. Seu sangue quente, pegajoso cobria as pontas dos dedos. Retrocedeu, olhando fixamente seu corpo nu. Pela primeira vez, ela sentiu uma onda de culpabilidade atravessando-a o peito.

     Tinham-lhe castigado por sua culpa. Se não lhe tivesse tirado do quarto, eles não lhe teriam feito isto. Uma parte dela estava zangada porque ele tinha sido ferido.

     —Eu não gosto do que te têm feito —lhe sussurrou.

     —Por favor, somente me deixe sozinho.

     Mas ela não podia. Queria fazer algo por ele, colocando a mão sobre seu ombro fechou os olhos antes de sará-lo.

     Acheron ofegou devido a terrível dor que percorria seu corpo. Um segundo mais tarde, toda essa dor se foi. Esticou-se, esperando que voltasse.

     Mas não o fez.

     —Estás melhor?

     Olhou-a fixamente com incredulidade.

     —O que fizeste?

     —Sou uma deusa da cura, então te curei.

     Girando sobre as costas, surpreendeu-se de que a dor não retornara. Durante os últimos três dias tinha sido golpeado em várias ocasiões porque tinha ousado acompanhar Ryssa ao templo. Francamente, tinha começado a temer que sua pele nunca se curaria completamente.

     Mas Artemisa lhe tinha ajudado.

     —Obrigado.

     A deusa sorriu enquanto lhe afastava o cabelo do rosto.

     —Não quis que eles te machucassem.

     Acheron cobriu sua mão com a sua antes de beijar sua palma que tinha sabor de rosas e mel. Para seu completo assombro, sentiu seu corpo excitar-se. Só por isso, esperava que Artemisa saltasse sobre ele.

     Em troca ela observava como seu pênis se endurecia.

     —Sempre faz isso?

     —Não. —Raramente ficava duro a menos que lhe obrigasse ou estivesse drogado.

     Sua testa se enrugou enquanto ela lhe tocou o peito. Estava acostumado que as pessoas sentissem curiosidade por ele. Desde que assumiam que era filho de um deus, todos queriam tocá-lo, explorar seu corpo.

     Entretanto, ela duvidava. Sua mão se movia contra seu abdômen ligeiramente, como se estivesse temerosa de tocar a parte dele que estava olhando fixamente.

     —Não te farei nada que não queiras —disse em voz baixa.

     Os olhos de Artemisa cintilaram.

     —Certamente que não. Mataria-te se o fizesse.

     Ninguém tinha sido tão direto antes, mas a ameaça sempre tinha pendurado sobre sua cabeça. Depois de sair de Atlântida muitos de seus clientes lhe ameaçaram por muitas razões. A maioria políticos ou possessivos. Tinham medo de que pudesse falar sobre o que queriam fazer a seu Príncipe Styxx ou não queriam lhe compartilhar com ninguém mais.

     Em três ocasiões quase o tinham matado.

     Não sabia por que as pessoas reagiam ante ele da forma em que o faziam. Jamais o entendeu. Artemisa, inclusive com sua divindade, não parecia diferente de qualquer outra pessoa.

     Exceto seu toque o incendiava.

     Acheron fechou os olhos quando sua mão roçou ligeiramente a ponta do pênis. A necessidade dentro dele foi inesperada e surpreendente. Deveria sentir-se zangado pelo que ela lhe tinha feito e, entretanto, não podia encontrar nenhuma ira dentro dele neste momento. Só um desejo por ela que não compreendia.

     Um ruído soou no corredor.

     Artemisa se retirou com um agudo suspiro.

     —Podem nos ver.

    O seguinte que soube foi que ele estava dentro de um brilhante aposento de mármore branco. Acheron girou sobre seus pés lentamente, tratando de entender onde se encontrava.

     Havia uma cama incrivelmente grande contra uma parede. Os lençóis e cortinas eram tão brancos como tudo o que havia ali. Ele única cor que destacava era o do ouro puro.

     —Onde estou?

     —No Monte Olimpo.

     Afrouxou-lhe a mandíbula.

     —Como?

     —Trouxe-te para meu templo. Não te preocupes. Ninguém entra em meus aposentos. São sagrados.

     Artemisa se aproximou dele com um sorriso no rosto. Esfregou a bochecha contra a sua e um instante depois uma roupagem vermelha apareceu sobre seu corpo.

     —Aqui ninguém nos incomodará.

     Acheron não podia formar um pensamento coerente enquanto olhava o esplendor que o rodeava. O teto sobre sua cabeça era de ouro sólido e esculpido com brilhantes cenas de paisagens florestais.

     Como podia ser isto? Como podia um puto estar no aposento de uma deusa conhecida por sua virgindade? O puro pensamento era risível.

     Mesmo assim aí se encontrava...

     Artemisa o puxou pela mão e lhe conduziu para a bancada que dava a um jardim repleto de resplandecentes flores. O desdobramento de cores era quase tão formoso como a deusa ao seu lado.

     —O que pensas? —perguntou Artemisa.

     —Que isto é maravilhoso.

     —Pensei que isto te gostaria —disse com um sorriso.

     Acheron a olhou com o cenho franzido.

     —Como podes te aborrecer aqui?

     Ela olhou à distância e engoliu. Uma profunda tristeza escureceu seus olhos verdes.

     —Aqui me sinto sozinha. São poucas as ocasiões em que alguém quer dirigir-se a mim. Às vezes caminho pelo bosque e um cervo se aproxima de mim, mas eles realmente não têm muito a dizer.

     Ele soltou um suspiro sobressaltado ante a incrível cena.

     —Poderia ser feliz perdido nestes bosques e sem falar com uma alma outra vez enquanto viva.

     —Mas só viverias uns poucos anos. Não tens nem idéia do que é a eternidade. O tempo não tem nenhum significado. Só se estende e se detém sempre no mesmo.

     —Não sei. Penso que eu gostaria sempre… se pudesse viver sob minhas próprias condições.

     Ela lhe sorriu.

     —Posso ver-te como és agora mil anos no futuro —seus olhos se acenderam—. Oh, espera, há algo que tenho que compartilhar contigo.

     Acheron inclinou a cabeça com curiosidade enquanto ela estalava os dedos e um peculiar pacote marrom aparecia na palma de sua mão. Para a seguir oferecer-lhe.

     —O que é isto?

     —Chocolate —respondeu com um ofego— Hershey’s. Deves prová-lo.

     Ele o agarrou e o sustentou diante do nariz. Cheirava doce, mas não estava seguro sobre o sabor. Quando ele tentou levar-lhe à boca, Artemisa o tirou da mão.

     —Tens que desembrulhá-lo primeiro bobinho. —Enquanto ria, rasgou o papel marrom e um estranho material de prata que o envolvia, cortou uma parte e o deu.

     Com cautela, Acheron lhe deu uma dentada. No instante que se derreteu sobre a língua, sentiu-se no céu.

   —Isto é delicioso.

     Ela lhe alcançou a barra de novo.

     —Eu sei. Vem do futuro, supõe-se que não podemos ir lá, mas não o posso remediar. Há algumas coisas pelas quais não posso esperar e o chocolate é uma delas.

     Ele lambeu os restos da ponta dos dedos.

     —Poderia me levar ao futuro?

     Ela negou rapidamente com a cabeça.

     —Meu pai me mataria se levasse a um mortal ali.

     —Um deus não pode matar a outro.

     —Sim, podem. Acredite em mim. Supõe-se que está proibido, mas isto nem sempre lhes detém.

     Acheron tomou outro bocado enquanto considerava suas palavras. Desejaria abandonar este tempo. Ir a um lugar onde ninguém conhecesse nem a ele nem a seu irmão. Onde não tivesse passado e pudesse levar uma vida normal, onde ninguém lhe tentasse possuir. Seria a perfeição. Mas tinha aprendido pelo caminho difícil que tal lugar não existia.

     Artemisa lhe tirou a barra e deu uma pequena dentada. Um pedacinho se desfez sobre seu queixo.

     Acheron estendeu a mão para tirar-lhe.

     —Como fazes isso? —perguntou ela.

     —O que?

     —Me tocar sem medo? Todos os humanos tremem ante os deuses, mas tu não. Por que?

     —Provavelmente porque não tenho medo de morrer —disse dando-se de ombros.

     —Não?

     —Não. Tenho medo de reviver meu passado. Pelo menos com a morte, ficaria para trás. Acredito que seria um alívio.

     —És um homem estranho, Acheron —disse ela sacudindo a cabeça—. Diferente a qualquer um dos que conheci.

     Caminhando para trás, puxou-o pela mão e o dirigiu para o dormitório.

     Acheron foi voluntariamente.

     Artemisa não pronunciou uma palavra enquanto se ajoelhava sobre a cama, e se virava para ele. Atraiu-lhe aos braços para lhe dar um beijo incrivelmente quente.

     Acheron fechou os olhos quando sentiu sua língua sobre a sua. Que estranho… quando estava com ela não se sentia como um puto. Ninguém lhe estava obrigando. Nenhum deles queria nada exceto acabar com a solidão.

     Sempre se tinha perguntado. O que se sentiria sendo normal?

     Artemisa se separou para olha-o fixamente.

     —Me prometas que nunca me trairás, Acheron.

     —Nunca farei nada para te machucar.

     Seu sorriso lhe cegou antes que lhe empurrasse sobre o colchão e caísse de costas. Ela se sentou escarranchada sobre os quadris enquanto lhe retirava o cabelo do pescoço.

     —És tão bonito —sussurrou.

     Acheron não fez nenhum comentário. Hipnotizou-o quando lhe olhou com esses olhos verdes e sua pele tão lisa e suave o atormentava. Ao menos até que ele viu um brilho de presas.

     Um instante depois uma dor cegadora lhe transpassou o pescoço. Tentou mover-se, mas não podia. Nem sequer um músculo.

     O coração esmurrava dolorosamente, mas cedeu ante um prazer inimaginável. Só quando o prazer substituiu à dor pôde mover-se. Colheu sua cabeça no pescoço enquanto ela seguia absorvendo e chupando até que seu corpo explodiu no orgasmo mais intenso que alguma vez tinha tido.

     Logo notou como as pálpebras se fechavam como se fossem de chumbo. Tratou de lutar contra a escuridão, mas não pôde.

     Artemisa se retirou e lambeu o sangue de seus lábios enquanto sentia que Acheron desmaiava, ela nunca tinha tomado sangue humano antes... era incrível. Não era estranhar que seu irmão o fizesse tão freqüentemente. Havia uma vitalidade da qual careciam os imortais. Era tão intoxicante que tomou toda sua força não a beber mais. Isso o mataria.

     Era a última coisa que ela desejava. Acheron a fascinava. Não se estremecia ou adulava. Apesar de que era um mortal, considerava-a como uma igual.

     Encantada com seu novo mascote, recostou-se de lado e se aconchegou contra ele.

     Este era definitivamente o começo de uma grande amizade...

 

14 de Dezembro, 9529 a.C.

     Acheron despertou com uma dor aguda na cabeça. Abrindo os olhos, encontrou-se nu sobre a cama. Não foi até que se moveu e não sentiu dor alguma que recordou tudo o que tinha passado no dia anterior.

     Tudo.

     Contendo o fôlego, tocou o pescoço para encontrar um pequeno rastro de sangue seco onde Artemisa o tinha mordido. Mas essa era a única marca em seu corpo. Todos os sinais da surra tinham desaparecido.

     O que era uma pequena mordida comparada com isso?

     Jogou uma olhada ao redor de seu aposento. Como retornei aqui? Não podia recordar essa parte. A última coisa em sua memória era Artemisa mordendo-o em sua cama e um sentido de cansaço que o ultrapassava.

     Alguém golpeou a porta antes de abri-la. Sabia quem era antes de ver a pequena mulher loira que era Ryssa. Ninguém mais anunciava sua chegada.

     Rapidamente limpou o sangue e cobriu o pescoço com o cabelo antes que se aproximasse o suficiente para notá-lo.

     Suas bochechas estavam ruborizadas e ia vestida com um conjunto arroxeado. Era a primeira vez que a via desde que Apolo a tinha reclamado.

     Antes que pudesse falar, ela se lançou aos seus braços e chorou.

     Acheron a abraçou enquanto a balançava.

     —O que aconteceu? Machucou-te?

     —Foi gentil —disse entre soluços—. Mas me assustou e me machucou em algumas ocasiões.

     Apertou seu abraço.

     —Como o suportas?

     Houve muitas vezes que ele havia feito a mesma pergunta a si mesmo.

     —Tudo se arrumará, Ryssa.

     —Arrumar-se-á?

     Ela se afastou para olhá-lo fixamente enquanto tratava de ver se deveria acreditar nele ou não.

     Acheron agarrou seu rosto entre as mãos.

     —Endurecer-te-ás e sobreviverás.

     Ryssa apertou os dentes ante as palavras das quais era consciente que Acheron conhecia tão bem.

     —Não quero regressar a ele. Senti-me tão nua e exposta apesar dele não ser particularmente mau ou pouco gentil. Mas tinhas razão. Não lhe importou o que eu pensava ou sentia. Tudo o que lhe importava era seu prazer. —Negou com a cabeça enquanto obtinha um novo entendimento sobre seu irmão que nunca tinha tido antes.

     Sua vergonha era só um exemplo. Acheron tinha muitos. Era horrível estar à mercê de alguém mais. Não poder dizer nada sobre o que faziam com seu corpo. Sentia-se tão usada...

     —Quero fugir disto.

     Ele tomou sua mão entre as suas.

     —Eu sei. Mas estarás bem. De verdade. Te acostumarás.

     Não se sentia dessa maneira. Estava terrivelmente dolorida e ainda sangrava pela invasão de Apolo em seu corpo. Ele tinha tomado cuidado com ela e, entretanto também tinha sido cruel. A última coisa que ela queria era estar a sua mercê novamente.

     —Ryssa!

     Ela saltou ante o grito de seu pai.

     Acheron se esticou.

     —Deves ir.

     Ela não queria, mas também tinha medo de colocar Acheron em problemas. Sorvendo as lágrimas, retirou-se e viu uma crua simpatia nos tempestuosos olhos chapeados.

     —Te amo, Acheron.

     Acheron apreciou essas palavras. Ryssa era a única pessoa que o tinha amado alguma vez. Em ocasiões ele odiava esse carinho porque lhe obrigava a fazer coisas que o feriam, mas a diferença dos outros, sabia que suas ações eram motivadas pela bondade.

     Ela se escapuliu da cama e atravessou correndo o aposento, para o corredor.

     Escutou a zangada maldição de seu pai através das paredes.

     —O que estavas fazendo ali?

     Acheron se estremeceu. Pelo menos Ryssa não tinha que temer ser golpeada. Não tinha conhecimento de que seu pai alguma vez a tivesse batido.

     —Agora és a amante de um deus. Não deves estar em companhia de gente como ele de novo. Entendes? O que pensaria Apolo? Repudiaria-te e cuspiria sobre ti.

     Não pôde escutar a suave resposta de Ryssa.

     Mas as palavras de seu pai o rasgaram. Assim não era o suficientemente digno para estar em companhia de Ryssa, mas podia seguir acompanhando a Artemisa. Perguntava-se como lutaria seu pai com esse conhecimento. Se isso faria com que seu pai o olhasse com algo mais que escárnio nos olhos.

     O mais provável era que não.

     Suas portas se abriram tão bruscamente que se escutou um estrondo. O rei cruzou a habitação a longas pernadas com fúria. Acheron olhou longe e se esforçou para que toda a emoção abandonasse seu rosto.

     Que se foda. Se seu pai queria odiá-lo, que o odiasse. Já estava cansado de esconder-se e encolher-se. Golpes e insultos os podia suportar.

     Com as asas do nariz abertas, Acheron encontrou o olhar zangado de seu pai sem estremecer-se.

     —Bom dia Papai.

     Esbofeteou-o tão forte, que Acheron provou o sangue enquanto a dor estalava dentro do crânio. Ofegou, sacudindo a cabeça para clareá-la. Então encontrou o furioso olhar fulminante do Rei.

     —Não sou teu pai.

     Acheron limpou o sangue com a parte posterior da mão.

     —Há algo no qual possa te ajudar?

     —Por favor, pai. —Rogou Ryssa cruzando o quarto. Puxou-o pelo braço antes que pudesse avançar sobre Acheron novamente.

     —Vim a ele a minha chegada. Acheron não fez nada de errado. É minha culpa não a sua.

     O rei elevou um dedo ossudo como gesto de condenação ante Acheron.

     —Permaneça longe de minha filha. Entendeste-me? Se te encontrar perto dela novamente, farei-te desejar não ter nascido.

     Acheron riu amargamente.

     —E como seria isso diferente de um dia normal?

     Ryssa pôs a si mesma frente a seu pai quando se pendurava sobre Acheron.

     —Pare pai. Por favor. Tinha perguntas sobre Apolo. Não deveríamos nos enfocar nisso?

     Ele lançou um olhar superior e condenatório ao Acheron.

     —Não mereces que te dedique meu tempo.

     Com isso, ele arrastou Ryssa fora do aposento.

     —Sela esta porta e a mantenha fechada. O dia de hoje ele pode passar sem comida.

     Acheron se apoiou contra a parede e negou com a cabeça. Se seu pai pretendia controlá-lo com a comida, deveria ter passado mais tempo com Estes. Esse bastardo tinha sabido como manter a comida sobre ele.

     Suas vísceras se apertaram ante a lembrança de seus rogos a Estes inclusive por uma gota de água para minguar sua sede.

     —Não ganhaste nada e nada é o que tens... Agora, te coloque de joelhos e me agrade, então veremos se vales o sal.

     Apertando os olhos para mantê-los fechados fez com que as imagens desaparecessem. Odiava rogar e ajoelhar-se. Mas a única coisa que podia fazê-las desaparecer completamente era a lembrança de uma deusa que o tinha reclamado.

     —Artemisa? —Sussurrou seu nome com medo de que alguém pudesse de fato lhe ouvir chamando-a. Honestamente esperava que o ignorasse como o faziam todos.

    Não o fez.

     Apareceu ante ele. A mandíbula de Acheron se abriu ligeiramente pela surpresa. Seu comprido cabelo vermelho parecia brilhar ante a tênue luz. Seus olhos estavam vibrantes e quentes com bem-vinda. Não havia nada em sua conduta que o condenasse ou burlasse dele.

     —Como te sentes? —Perguntou ela.

     —Melhor contigo ao meu lado.

     Um pequeno sorriso jogou com as bordas de seus lábios.

     —Sério?

     Ele assentiu.

     Seu sorriso se fez mais amplo enquanto se aproximava da cama e engatinhava sobre ele.

     Acheron fechou os olhos enquanto o doce cheiro de sua pele enchia sua cabeça. Queria enterrar o rosto em seu cabelo e só inalá-lo. Desenhando seus lábios, ela retirou seu cabelo do pescoço antes de tocar a pele que tinha mordido.

     —És bastante forte para ser humano.

     —Treinaram-me para ser resistente.

     Ignorando o comentário, ela franziu o cenho.

     —Segues sem me olhar.

     —Te olho Artemisa.

     E o fazia, via cada linha de seu rosto, cada curva de seu luxurioso corpo.

     Ela tomou seu rosto com as mãos e virou sua mandíbula para obrigá-lo a olhá-la de frente. Ainda assim Acheron manteve o olhar sobre os joelhos que apareciam por baixo do vestido.

     —Me olhe.

     Acheron queria correr. Tinha passado sua vida inteira sem olhar diretamente para ninguém exceto nas contadas ocasiões que queria mostrar seu desafio. E por esse momento de atrevimento, tinha sido cruelmente golpeado.

     —Acheron... O-lhe-me.

     Dando força a si mesmo esperando seu ataque, obedeceu-a. Seu coração se apertou assim como todo seu corpo se esticou, esperando ser ferido.

     Artemisa se sentou retirando-se até sua virilha com expressão contente.

     —Aí está. Não foi tão difícil ou sim?

     Mais difícil do que ela poderia imaginar alguma vez, mas a cada segundo que passava e ela não o golpeava por olhá-la, relaxava um pouco mais.

     Ela sorriu.

     —Eu gosto de seus olhos, são estranhos, mas formosos.

     Formosos? Seus olhos? Eram repugnantes. Todos, incluindo Ryssa, estavam temerosos deles.

     —Não te importa que te olhe?

     —Em absoluto. Pelo menos assim sei que estás prestando atenção em mim. Eu não gosto da forma em que seus olhos dançam através do quarto como se estiveras distraído.

     Isso era uma novidade para ele.

     —Como poderia me distrair algo enquanto estás comigo? Asseguro-te que quando estás perto, tudo o que vejo é a ti.

     Ela brilhou em satisfação.

     —Agora por que me chamou?

     —Não estou seguro. Honestamente, não pensei que virias. Só sussurrei teu nome, esperando que responderas.

     —És um humano parvo. Estás novamente encerrado?

     Ele assentiu.

     —Não podemos permiti-lo. Venha.

     As palavras apenas tinham abandonado seus lábios quando já estavam de volta no aposento dela.

     Acheron novamente estava vestido de vermelho, o que era estranho dado que todo o resto era brando ou dourado.

     —Por que sempre me vestes desta cor?

     Ela mordeu o lábio enquanto caminhava em volta dele. Deslizando o dedo por seu corpo.

     —Eu gosto da maneira em que te vês com ele. —parou diante dele para poder ficar nas pontas dos pés e beijá-lo.

     Acheron lhe deu o que queria. Tinha sido treinado para dar prazer a quem estivesse com ele. A não tomar nada para si mesmo. Suas necessidades não tinham importado. Era só uma ferramenta para ser usada e esquecida.

     Mas com a Artemisa não se sentia assim. Assim como Ryssa, ela lhe fazia sentir que era uma pessoa. Que podia ter seus próprios pensamentos e não era errado. Podia olhá-la e ela não o castigaria por isso.

     Artemisa suspirou enquanto Acheron a aproximava mais. Amava a forma em que a sustentava. A maneira em que seus músculos se esticavam contra seu corpo. Era tão bonito e tão forte. Tão sedutor. Tudo o que queria era estar a sós com ele desta maneira. Sentir seu coração pulsar contra os seios.

     Seu fôlego misturado com o seu. Ela podia sentir seus dentes crescendo como se sua fome por ele se incrementasse inclusive mais...

     Ela se retirou e encontrou seu olhar para que o pudesse vê-la tal qual era agora. Ele nem sequer piscou ante suas presas, em seu lugar inclinou a cabeça e a ofereceu o que mais queria. Ninguém nunca se ofereceu assim. Normalmente ela se alimentava de seu irmão ou de uma de suas criadas. Mas não se preocupavam por isso.

     O coração se acelerou, quando ela roçou o pescoço com sua mão enquanto afundava profundamente as presas.

     Acheron ofegou entre dentes quando a dor se estendeu através de seu corpo. Mas foi rapidamente substituído por um prazer tão profundo que fez com que seu pênis se endurecesse. Debilitado por isso ele cambaleou. Artemisa o seguiu, sujeitando-o inclusive mais forte.

     Sua cabeça se afundou enquanto tudo ao seu redor se voltava afiado e claro. Ele sentiu seu fôlego sobre a pele, escutou como o sangue bombeava através das veias. Cada parte dele parecia viva. Tão forte e por vez tão débil. Cambaleou-se novamente, caindo contra a parede atrás dele.

     —Acheron?

     Ele escutava sua voz, mas não podia respondê-la.

     Artemisa lambeu o sangue dos lábios enquanto via a tintura azulada em sua pele. Sua respiração era tão superficial que ela meio esperava que morresse.

     —Acheron?

     Seus olhos estavam meio abertos. Parecia que não havia reconhecimento em seu olhar fixo nela e não a escutava.

     Temerosa de havê-lo ferido, o transportou de volta a sua cama e o recostou gentilmente. Ela tomou sua mão entre as suas e as esfregou.

     —Acheron, por favor, diga algo.

     Ele sussurrou algo em Atlante, mas ela não pôde entendê-lo. Com uma última expulsão de fôlego, desmaiou. Artemisa saltou para trás quando seu corpo inteiro começou a mudar a um vibrante azul enquanto seus lábios, unhas e cabelo ficavam negros. Um instante depois, parecia normal.

     O que no Olimpo? Nunca tinha visto algo assim. Teria sido causado por sua alimentação?

     Tragando, engatinhou mais perto dele e o pressionou com um dedo. Estava completamente inconsciente.

     Fazendo aparecer uma cálida pele, cobriu-o e o observou enquanto respirava fracamente. Enquanto dormia ela riscou a forma de seus lábios, a longitude de seu nariz. Suas formas eram afiladas e perfeitas. Assim como seu corpo. Não entendia porque a atraía tanto. Temerosa de ser dominada tinha pedido ao seu pai quando era uma menina que a fizesse imune ao amor e a desse a virgindade eterna. Zeus a tinha concedido essa petição. Mesmo assim enquanto olhava a Acheron descansando, maravilhava-se ante as emoções que sentia por ele. Não eram parecidas com nada que houvesse sentido antes.

     Desfrutava da forma em que ele falava com ela. A forma em que a sustentava e a fazia gritar de prazer com seus toques e lambidas. Sobretudo, amava seu sabor quando se alimentava dele.

     É só um mascote.

     Sim, isso era. Não tinha nenhum sentimento real por ele. Parecia com os veados que viviam em seu bosque. Formosos para olhar e para tocar. Eles a lambiam e se esfregavam contra ela também. E como eles ela estava segura de que ele a aborreceria com o tempo. Tudo o fazia.

     Mas no momento tinha a intenção de desfrutar de seu mascote todo o tempo que pudesse.

     Acheron despertou com muito apetite. A dor da fome era tão feroz que a princípio pensou que estava de novo no escuro vão sob o palácio de seu pai. Mas enquanto abria os olhos e via o teto dourado sobre ele, recordou que estava com Artemisa.

     Sentou-se lentamente para encontrar a si mesmo só na cama. Ouvia vozes lá fora. Começou a levantar-se e dirigir-se para elas, mas pensou melhor. Artemisa o tinha deixado aí por uma razão. Nada bom viria se abrisse essas portas.

     Então se sentou sobre a cama, o estômago lhe doía enquanto escutava palavras entrecortadas e sem sentido. As vozes se atenuavam através do ouro e da pedra. Não tinha nem idéia da hora que era ou quanto tinha dormido.

     Parecia que tinha passado uma eternidade antes que Artemisa aparecesse por fim. Ela se aproximou e sorriu.

     —Estás acordado.

     Ele assentiu.

     —Não quis te incomodar. Soava ocupada.

     Ela fechou a distância entre eles para tomar sua bochecha.

     —Estás faminto?

     —Esfomeado.

     Ela moveu a mão e uma mesa coberta de comida apareceu junto à cama.

     Acheron ficou estupefato ante o banquete.

     —Se quiseres algo mais, peça-me isso.

     —Não, isto é maravilhoso —se levantou para ir atrás de uma fornada de pão. Os olhos se abriram ante seu sabor, quente e coberto com mel, era o melhor que tinha comido.

     Artemisa lhe aproximou uma taça de vinho.

     —Por Deus, estás faminto.

     Ele tomou a taça agradecido para tomar um profundo gole de seu rico sabor.

     —Obrigado, Artie.

     Ela arqueou uma sobrancelha ante seu inesperado apelido.

     —Artie?

     Acheron se estremeceu enquanto se dava conta de sua enfiada de pés pelas mãos.

     —Artemisa, quis dizer Artemisa.

     Ela o acariciou com o nariz.

     —Penso que eu gosto de Artie. Nunca ninguém me tinha chamado assim antes.

     Acheron baixou a cabeça para beijar sua mão.

     Artemisa não podia respirar enquanto que esse simples toque a eletrificava. O que havia neste homem que acendia seu ser inteiro? Desejava sustentá-lo e protegê-lo. Mais que isso, desejava devorar cada centímetro de seu exuberante corpo.

     Fechando os olhos, reclinou-se contra ele e inalou a essência intoxicante que era todo masculino e todo dele.

     —Coma, Acheron —sussurrou—. Não quero que estejas faminto.

     Ele se afastou e ela sentiu o repentino frio que deixava a ausência de seu calor como um golpe contra seu estômago. Olhou-o enquanto ele umedecia o pão em um pequeno prato de mel antes de dar uma dentada e sorrir, um sorriso tão formoso que fez com que seu coração se estremecesse.

     Voltou a molhar outro pedaço, então se virou para ela.

     —Queres um pouco?

     Ela assentiu, ele o sustentou ante ela para que desse uma dentada. Artemisa abriu a boca. Enquanto colocava o pão em sua língua, ela lambeu seus dedos que eram deliciosos. Doces e salgados, abriram-lhe o apetite por mais.

     Seus olhos se escureceram, causando que uma onda de desejo se iniciasse profundamente dentro dela. Ele afundou o dedo no mel, para desenhar seus lábios antes de aproximá-la e beijá-la. O sabor dele combinado com o mel era mais do que podia suportar.

     Guiando-o para a cama, recostou-se sobre o colchão e puxou sua mão até que ele esteve sobre ela.

     Acheron grunhiu ante a visão de Artemisa debaixo dele.

     —És incrivelmente bela.

     Artemisa não podia articular palavra. Estava completamente cativa pelo olhar de ternura em seu rosto. Ninguém nunca a tinha olhado dessa maneira. E quando colocou seus lábios contra a garganta, todo pensamento racional se perdeu no fogo dentro dela.

     Ela nunca tinha estado completamente nua com ninguém. Mas enquanto ele a despojava de seu traje não protestou. Com uma exasperante lentidão ele deslizou a roupa por seu corpo até que esteve nua ante ele. Ele não fez movimento algum para tirar sua própria roupa.

     Em lugar disso, ele levantou seu pé para mordiscar sua planta do pé. Mordendo o lábio ante a deliciosa tortura, observou-o enquanto subia lentamente por sua perna.

     Ele se deteve para lamber gentilmente a parte interna de sua panturrilha.

     —Queres que me detenha?

     Artemisa negou com a cabeça.

     —Eu gosto de como me tocas.

     Seu olhar a abrasou enquanto que com uma ligeira cotovelada separara um pouco mais suas coxas para tocar a parte dela que mais lhe necessitava. Ela afundou os dedos em seu cabelo e os fechou em punhos.

     Acheron se retirou com um sussurro como se o tivesse machucado.

     Ela franziu o cenho.

     —Há algo de errado?

     —Por favor, não tomes nem puxes meus cabelos. Odeio quando as pessoas fazem isso.

     —Por que?

     —Faz-me sentir como lixo.

     Não havia engano na profunda dor de sua voz.

   —Não o entendo.

     —As pessoas me agarravam pelo cabelo para me controlar ou para me manter aos seus pés. Eles me puxavam o cabelo enquanto me violentavam e me humilhavam. Eu não gosto disso.

     Artemisa acariciou sua bochecha, tratando de consolá-lo.

     —Desculpe Acheron. Não sabia. Há algo mais que tu não gostas?

     Acheron congelou ante a pergunta. Nenhum amante antes lhe tinha perguntado isso. Não podia acreditar ainda que a houvesse dito que não gostava que lhe tocassem o cabelo. Não era algo que normalmente fizesse, mas como ela tinha perguntado se sentia animado a informá-la.

     —Eu não gosto que ninguém respire na parte de trás de meu pescoço. Recorda-me ser um escravo sem vontade e faz com que minha pele se estremeça.

     —Então nunca te farei isso.

     Essas palavras o tocaram tão dentro que trouxeram lágrimas aos olhos. Tragou o vulto da garganta antes que o engasgasse. Não havia nada que ele não fizesse para agradar a sua deusa. Artemisa era toda amabilidade. Não podia imaginar porque ela quereria ser amiga de alguém tão baixo como um ex-escravo, mas estava agradecido de estar com ela.

     Desejando agradá-la, não porque tivesse que fazê-lo e sim só porque o desejava, tomou seu tempo para provocar seu corpo até que ela gritou seu nome. Fiel a sua palavra não lhe agarrou pelo cabelo enquanto gozava. Simplesmente afundou suas unhas nos ombros.

     Agradecido de que tivesse mantido sua palavra, ele engatinhou sobre seu corpo e a atraiu contra seus braços.

     Artemisa suspirou enquanto descansava contra ele. Acheron ainda estava totalmente vestido.

     —Por que não tomas nada para ti mesmo?

     —Realmente não encontro prazer no sexo.

     Ela franziu o cenho.

     —Como é possível que não o desfrutes?

     Não podia sequer começar a lhe explicar que nada sobre o sexo o fazia sentir bem. Gostava de tocá-la, mas não tinha a mesma reação ao seu toque que ela tinha com o seu. Os orgasmos eram prazenteiros, sem dúvida. Só que não lhe importavam se tinha ou não um.

     —Desfruto-o.

     Mentiu ele. Faria bem a ela escutar isso. Manteria a verdade dentro dele. Honestamente amava estar com ela. Quando estavam juntos se sentia como um homem sem passado. Via a si mesmo como seu amigo e se gostava a uma deusa, não poderia ser tão repugnante como seu irmão e seu pai lhe faziam acreditar.

     Ela se esfregou contra seu corpo.

     Acheron fechou os olhos e saboreou a sensação de seu quente corpo contra o seu.

     —Desejaria poder ficar aqui para sempre.

     —Se fosses mulher poderias, mas só meu irmão tem permissão de entrar em meu templo. Nenhum outro homem.

     —Mas estou aqui agora.

     —Eu sei, e é nosso segredo. Não podes dizer a ninguém.

     —Não o farei.

     Ela se elevou para lhe dirigir um olhar de advertência.

     —A sério Acheron. Nem sequer em seus sonhos poderás sussurrar uma palavra a respeito de mim.

     —Me acredite Artie, manter secretos é uma das coisas que aprendi rapidamente em minha vida. Sei quando manter minha boca fechada. Além disso, ninguém realmente me fala de todas as maneiras.

     —Bem, agora é tempo de que retornes a sua casa.

     Em um minuto estava em seu templo junto a ela, ao seguinte estava em sua cama nu de novo. Precaveu-se muito tarde que não tinha comido nada realmente. Demônios, estava escuro lá fora. Tinha perdido a maior parte do dia. Enquanto que seu pai não tivesse mandado guardas para golpeá-lo ninguém saberia de sua visita ao Olimpo.

     Suspirando Acheron colocou um braço sobre os olhos. Talvez pudesse dormir até que Artemisa viesse atrás dele de novo.

     Mas inclusive enquanto o pensamento aparecia em sua cabeça soube que não poderia durar. Um puto não poderia ser amigo de uma deusa. Era impossível. Cedo ou tarde Artemisa seria como qualquer outro.

     Mesmo assim profundamente em seu coração havia um pouco de esperança de que talvez, só talvez, Artemisa devido a seu status de deus fora diferente.

     —Venderia minha alma para te manter e te proteger Artie —sussurrou, perguntando-se se poderia escutá-lo. Se tão só o também tivesse nascido dos deuses.

     Ele negou com a cabeça ante a dura realidade que conhecia muito bem.

     —E se os desejos fossem cavalos, poderia ter fugido na infância.

     Não, isto era tudo o que poderia ter. Tudo o que podia fazer era assegurar-se de que ninguém soubesse a verdade. Que os deuses lhe ajudassem se alguém alguma vez o fazia.

 

12 de Janeiro, 9528 a.C.

     Acheron se sentou na sacada de seu parapeito, sentindo saudades de Artemisa. Estava fora atendendo um festival que se dava em sua honra e queria espiar as pessoas em pessoa. Era estranha e gostava de ver como o povo a adorava enquanto fingia ser uma mortal.

     Encontrava-o estranhamente encantador e tinha que admitir que estas últimas semanas tinham sido as melhores de sua vida.

     Artemisa era a única pessoa que lhe permitia ser ele mesmo. Se não gostava de algo, podia dizer-lhe e ela lhe prometia que não aconteceria de novo.

     Nunca tinha quebrado sua palavra. Isso mais que qualquer coisa era um sonho feito realidade. E como passavam tanto tempo juntos e Acheron não causava problemas ou escapava de seus guardas, seu pai o deixava tranqüilo. Não podia recordar um momento, exceto pelos meses com Ryssa, em que tivesse passado tanto tempo sem que o golpeassem ou abatessem.

     O indulto era divino.

     Repentinamente as portas de seu quarto se abriram.

     As vísceras dele se esticaram. Temeroso de que fora seu pai vindo atrás dele, agarrou a pedra que tinha debaixo.

     Não era ele. Ryssa avançou com passos largos dentro do quarto com o sorriso mais brilhante que tinha visto em seu rosto.

     —Bom dia, irmãozinho.

     —Bom dia —saudou vacilante, admirando-se por seu humor e do fato de que tivesse deixado as portas abertas—. Acontece algo errado?

     Talvez seu pai finalmente tinha morrido. Era o melhor que podia esperar. Detendo-se frente a ele, tirou uma pequena bolsa que trazia atrás de suas costas e o entregou.

     —És livre.

     Seu pai devia estar morto.

     Acheron balançou as pernas para baixo.

     —O que queres dizer?

     —Descobri um dos benefícios de dormir com Apolo. Papai agora me escuta. Seus guardas se foram e terá um estipêndio mensal para que o gastes como desejes —pôs a bolsa em suas mãos—. Também procurei te reservar um espaço no estádio para qualquer obra. Ninguém se não tu será permitido sentar-se ali. Jamais.

     Não podia acreditar no que estava escutando.

     —Quais são as condições?

     Seu sorriso desapareceu enquanto mostrava os dentes com irritação.

     —Típico comentário de Papai. Não te está permitido envergonhar a ele ou à família. Não sei explicá-lo, mas enquanto não te mistures com ninguém acredito que estarás bem.

     Acheron se mofou ante a idéia.

     —Não tenho intenções de me misturar com ninguém.

     Ao menos não publicamente. Cansou-se disso há muito tempo. Não gostava de ser um espetáculo.

     Ela se aproximou.

     —Te gostaria de ir a uma obra comigo?

     —O que acontece com Apolo?

     —Está fora com sua irmã. Tenho quase todo o dia para mim —lhe estendeu a mão—. O que dizes, irmãozinho? Celebramos tua liberdade?

     Acheron lhe ofereceu um sorriso real, algo que nunca fazia.

     —Obrigado, Ryssa. Não sabes o que isto significa para mim.

     —Acredito que tenho uma idéia.

     Acheron foi recolher seu manto debaixo do colchão… e os sapatos que Artemisa lhe tinha dado. Sustentou os sapatos por um momento, sentindo saudades da deusa ainda mais que antes.

     Como desejaria celebrá-lo com ela, mas teria que esperar.

     Depois de vestir-se rapidamente, seguiu Ryssa fora do quarto. No corredor, vacilou enquanto olhava ao redor das brilhantes paredes. Com exceção do dia do oferecimento de Ryssa a Apolo, jamais tinha deixado seu quarto saindo pelas portas sem ter tido que subornar aos guardas com sexo.

     O grau em que sua vida tinha mudado o golpeou com força. Já não era um escravo. Já não era um prisioneiro. Era livre agora.

     Acheron levantou a cabeça orgulhosamente com o conhecimento de que tinha dinheiro e não tinha tido que foder com ninguém para consegui-lo. Mais que isso, tinha uma amiga e amante que o tratava como se importasse.

     Pela primeira vez em sua vida, sentiu-se como um ser humano e não como uma posse ou um objeto. Era um sentimento condenadamente bom e não queria que acabasse.

     Ryssa tomou sua mão entre as suas e o levou através dos corredores para fora pela porta da frente, como se não estivesse envergonhada nem o mínimo de que a vissem em sua companhia. Mas à medida que se moviam entre as pessoas, Acheron se deu conta que uma coisa não tinha mudado.

     As reações das outras pessoas para com sua beleza. Atirou o capuz sobre o rosto e manteve os olhos no chão aos pés de Ryssa. Tinha passado tanto tempo com Artemisa ultimamente que se esqueceu deles e da grande repulsão que lhe causavam.

     Enquanto caminhavam cruzando a praça do povoado, fez uma pausa. Havia um grupo de meninos com um professor detidos em frente do templo. Um menino por volta dos sete anos estava lendo o texto que estava escrito aos pés do deus.

     —Em todas as coisas moderação. A chave do futuro é entender o passado.

     —Acheron?

     Pestanejou ante a voz de Ryssa e virou para olhá-la, observando-a com o cenho franzido.

     —Todos os meninos sabem ler?

     Jogou uma olhada aos estudantes.

     —Nem todos. São filhos de senadores. Vêm aqui para aprender sobre o panteão e ver como os sacerdotes servem aos deuses enquanto seus pais elaboram as leis que governam ao povo.

     Acheron se fixou nas palavras que não tinham nenhum significado para ele. Estava muito envergonhado de admitir ante a Ryssa que não recordava quase nada de suas lições com Maia.

     —Todos os nobres podem ler, não é verdade?

     Ela puxou sua mão sem lhe responder.

     —Vamos chegar tarde à obra.

     Acheron deu a volta e a seguiu.

     —Soubeste algo de Maia?

     Ryssa sorriu.

     —Casou-se o ano passado e está esperando a seu primeiro filho.

     As notícias o impactaram. Não gostava da idéia de um homem machucando a menina a qual tinha tido tanto carinho. Esperava que quem quer que se casou com ela a tratasse com o respeito que merecia.

     —Não é muito jovem para isso?

     —Não realmente. A grande maioria das meninas se casa a essa idade. Eu fui uma rara exceção, mas Papai rechaçou a todos os pretendentes que pediram minha mão.

     —Por que?

     —Honestamente, não sei. Nunca me explicaria isso. Suponho que devo estar agradecida com Apolo. Se não fora por ele, estou segura que estaria vivendo minha vida como uma solteirona.

     Poderia pensar em algumas coisas piores que essa. Mas sua irmã estava se permitindo suas ilusões supôs.

     —Faz-te Apolo feliz agora?

     —É gentil a maior parte do tempo.

     Havia uma tristeza em seus azuis olhos que desmentia suas palavras.

     —Mas?

     Tocou seu pescoço com um nervoso gesto que o fez franzir o cenho com indulgência.

     —Não me permitem falar do que fazemos quando estamos juntos.

     Assim Apolo se alimentava dela da mesma maneira em que Artemisa bebia dele. Fez-lhe se perguntar se todos os deuses faziam isso ou era algo único entre Artemisa e Apolo.

     —Mereces ser feliz, Ryssa. Mais que ninguém que conheço.

     Ela sorriu-lhe.

     —Não é verdade. És tu quem merece felicidade. Poderia estrangular a Papai por sua cegueira.

   —Já não me importa muito —disse honestamente—. Prefiro ser ignorado do que maltratado.

     Ela sacudiu a cabeça antes de evitar a multidão para lhe mostrar onde o proprietário tinha feito uma entrada especial para os assentos reais reservados para eles.

     Acheron vacilou. Estavam separados da multidão por um cordão e cada um dos dez assentos estava coberto com uma almofada. Mas o que não gostou era do fato de que a área se destacava e os outros seguiam lhes jogando uma olhada. Odiava que as pessoas enfocassem sua atenção nele.

     Mas não queria insultar o presente de Ryssa. Puxando seu manto, seguiu-a até os assentos.

     Nenhum falou enquanto os atores saíam a atuar. Acheron os observava e pensava nos meninos que tinha visto em seu caminho até aí. Queria ler da maneira em que eles o faziam. Artemisa merecia um consorte que fora educado.

     Talvez se pudesse ler, não teria que esconder sua amizade…

     Artemisa sentiu a presença de seu irmão como um toque físico. Como gêmeos, ambos compartilhavam um laço especial.

     E um ódio especial.

     Não sabia quando se converteram em inimigos amistosos, mas era um fato real. Embora não havia nada que não fizessem um pelo outro, apenas podiam suportar-se estando na mesma habitação.

     Deixando o ódio a um lado, não podia negar que Apolo era um dos deuses mais belos. Seu brilhante cabelo loiro era curto e as magras linhas de seu rosto faziam destacar sua pequena barba. Seus olhos azuis exalavam um inteligente poder e um rastro de crueldade.

     Arqueou-lhe uma sobrancelha.

     —Estou surpreso de ver-te por aqui.

     —Poderia dizer o mesmo de ti. Já era hora de que saísse da cama de sua mascote humana. Estava começando a pensar que era ela a que controlava a ti.

     Seu olhar se voltou ártico.

     —E o que é que manteve a ti ocupada? Papai disse que não estiveste nos salões Olímpicos há semanas.

     Ela deu de ombros.

     —É aborrecido.

     —Isso nunca te deteve antes.

     Pôs os olhos em branco a ele.

     —Importa-te? Estou tratando de ver como me adoram os humanos.

     Antes que pudesse afastar-se, Apolo a agarrou pelo braço e a aproximou dele para assim lhe sussurrar ao ouvido.

     —Não vieste a te alimentar a algum tempo. De quem estiveste tomando teu sustento?

     —O que te importa?

     Ele aferrou seu pescoço enquanto seus dentes caninos se alargavam.

     —É só por um tempo que podes te alimentar de um humano antes que sintas fome de algo um pouco mais substancial.

     Baixou a cabeça para seu pescoço.

   Artemisa se afastou dele.

     —Não estou interessada.

     Os olhos de Apolo flamejaram de vermelho.

     —Recorda o que aconteceu ao último homem com o qual te divertiste?

     Abateu-se ante o aviso. Orión. Artemisa tinha tido ao homem, mas antes que pudesse aproximar-se dele, Apolo a tinha enganado ciumentamente para que o matasse com uma de suas flechas. Depois seu irmão tinha posto sua imagem nas estrelas para que sempre recordasse que Apolo era o único homem do qual podia se alimentar.

     —Não me diverti com Orión.

     Forçou-a a enfrentá-lo.

     —Precisas te alimentar.

     Sim, mas não queria se alimentar de seu irmão. Queria a Acheron.

     Apolo a arrastou para as sombras do templo enquanto os humanos se reuniam fora para lhe render tributo. Não queria segui-lo. Mas se não o fazia, saberia que estava com alguém e que Zeus ajudasse a Acheron então. Seu irmão o destroçaria.

     Seu coração sofreu, tratou de não se abater enquanto seu irmão a atraía e lhe oferecia o pescoço. Ela tomou e em sua mente simulou que era Acheron. Ainda assim, pôde saborear a diferença entre os dois. O sangue de Apolo carecia de espírito. Não havia uma carreira desbocada dentro dela enquanto o provava. Nenhum fogo que a fizesse querer sustentá-lo.

     Isto era só sangue.

     Quando tomou o suficiente para aplacá-lo, retirou-se e lambeu os lábios.

     Então Apolo a atacou. Seus dentes rasgaram através dos tendões de seu pescoço, deixando-o palpitando. Queria esbofeteá-lo e muitas vezes no passado o tinha feito. Condenada Hera por sua maldição. A cadela ciumenta tinha querido assassinar a ambos durante seu nascimento e porque Artemisa tinha ajudado a sua mãe a dar a luz a Apolo, esse tinha sido seu castigo. Não havia nada pior que ter que alimentar a sua própria espécie. Era uma lição que ela e Apolo conheceriam pelo resto de suas vidas.

     Sua cabeça se aliviou, tratou de pensar claramente. Apolo estava tomando muito sangue. Era algo que sempre fazia quando estava zangado com ela.

     Apertando os dentes, deu-lhe uma joelhada na virilha. Apolo a soltou com uma maldição, lhe rasgando o pescoço. Sua maldição se uniu a dele enquanto cobria a profunda ferida com a mão.

     —És um bastardo!

     Ele aferrou seu antebraço, queimando-a com seu puxão.

     —Recorda o que te hei dito. Encontro-te com um homem mortal e o matarei.

     Artemisa lhe arrebatou seu braço.

     —Vá jogar com seus humanos e me deixe em paz.

     Com sua sorte estar pelo festival completamente machucada, transportou-se de volta ao seu templo. Mas estava tudo tão solitário. Seus koris se foram ao dia.

     Olhou para sua cama e imaginou a sombra de Acheron aí, seu sorriso esquentando-a enquanto a agradava com seus beijos e gentis carícias.

     Necessitando-o desesperadamente, transportou-se ao seu quarto. No instante em que o viu sentado com as pernas cruzadas no piso com suas costas para ela, seu coração se iluminou. Sem nenhum pensamento ou vacilação, correu para ele e o abraçou.

     Acheron se assustou quando Artemisa se atirou sobre suas costas e o envolveu com seus braços fortemente. Ainda assim, seu cheiro o encheu.

     —Senti saudades hoje —ele sussurrou em seu ouvido, lhe enviando calafrios por todo o corpo.

     —Também senti saudades.

     Seu abraço se apertou antes de soltá-lo e posar seu queixo em seu ombro.

     —O que estás fazendo?

     Acheron agarrou o pergaminho do piso e o dobrou para que não pudesse ver o que era.

     —Nada.

     —Estavas fazendo algo… — tomou o pergaminho antes que pudesse detê-la e o abriu. Franziu o cenho ante suas infantis marcas—. O que é isto?

     Sentiu o calor que fez arder seu rosto por ter sido apanhado.

     —Estava tratando de me ensinar a escrever.

     —Por que?

   —Porque não sei como e desejo aprender.

     Ela baixou o pergaminho e o olhou com incredulidade.

     —Não sabes ler?

     Acheron deixou cair a cabeça enquanto a vergonha o atravessava.

     —Não.

     Artemisa levantou seu queixo com uma gentil carícia para enlaçar seu olhar com a seu.

     —Agora já podes.

     Acheron ofegou quando uma dor insignificante o percorreu. Entregou-lhe o pergaminho.

     —Escreva seu nome.

     Assombrado pelo que acabava de lhe passar, Acheron tomou a pluma e soube como escrever as letras. Escreveu seu nome sem falhas.

     —Não entendo.

     —Sou uma deusa, Acheron. E não quero que baixes a cabeça com vergonha. Agrada-te?

     —Mais que tudo.

     Seu sorriso o deslumbrou.

     —Vem comigo. Estou de humor para caçar.

     —Não sei como caçar.

     —Saberás.

     Fiel a suas palavras, tão logo estiveram no bosque, entregou-lhe um arco e uma flecha e tal como com a escritura, soube exatamente o que fazer.

     Que maravilhoso ser capaz de fazer algo sem todos os anos de aprendizagem. Mas em realidade, havia algo que desejava mais que saber escrever ou caçar.

     —Podes me ensinar a brigar?

     Artemisa se voltou para ele com uma expressão atordoada.

     —O que?

     —Quero saber como lutar.

     Franziu o cenho, então perguntou o único que não falhava em pronunciar.

     —Por que?

     —Estou cansado de ser golpeado. Quero saber como me defender.

     Artemisa estava assombrada por seu pedido. Uma imagem de Apolo golpeando-o atravessou sua cabeça tão bruscamente que se estremeceu. Como a maioria dos homens, sabia que Apolo era um bastardo controlador. A última coisa que queria era mostrar-se vulnerável ante Acheron. Ensinar a um homem a brigar não podia conduzir a nada bom.

     —Não acredito. Não deixarei que ninguém te machuque, Acheron. Sou toda a proteção que necessitas.

     —Que tal se te aborreces de mim?

     Colheu sua bochecha em sua mão.

     —Como poderia alguma vez me aborrecer de ti?

     Acheron lhe ofereceu um sorriso que não chegou a seus olhos.

     —Realmente desejaria que me ensinaras.

     Sua insistência fez estalar seu temperamento.

     —Já te hei dito que não —lhe espetou.

     Acheron se deteve ante a hostilidade de seu tom. Conhecia a ira e de onde se derivava.

     —Quem te bateu?

     Artemisa levantou seu arco.

     —Acredito que há um veado por este caminho.

     —Artie… —a agarrou para detê-la—. Conheço o som em tua voz. Tive-o muito na minha para não reconhecer o que significa. Quem te machucou?

     Vacilou por tanto tempo que duvidou que lhe respondesse, mas quando o fez seu tom era tão baixo que quase nem pôde escutá-la.

     —Outros deuses.

     Impactou-lhe a confissão.

     —Por que?

     —Por que se bate em alguém? —Seus olhos estavam furiosos de novo—. Faz com que se sintam mais poderosos. Não deixarei que me golpeies. Jamais.

     —Nunca o faria —disse, com a voz cheia de convicção—. Não poderia fazer a outro mais do que me têm feito para cortar meu coração. Só desejo me proteger.

     —E já lhe disse isso. Te protegerei.

     Acariciou seu braço antes de deixar cair a mão e dar um passo atrás.

     —Então deverei confiar em ti, Artie. Mas quero que saibas que não confio facilmente. Por favor, não sejas como todos os demais e rompas tua palavra. Detesto que mintam para mim.

     Beijou-o brandamente na bochecha.

     —Vamos caçar.

     Acheron assentiu antes de tomar uma nova flecha e aplacar à única amiga real que tinha tido. Ela não o evitava e ele não tratava de ocultar-se. O que o atemorizava, entretanto, eram os sentimentos que o embargavam quando não estava perto.

     Estava apaixonado por uma deusa e sabia quão estúpido era. Deixando de lado de todas as coisas que podia ser, nunca tinha sido um parvo.

     Até agora.

     O fazia sentir completo. Feliz. E não queria que essa sensação se fora.

     Afastando longe esse pensamento, tomou ar ante a presa. Enquanto suspirava, ela correu para ele e lhe fez cócegas. A flecha voou fora de sua marca, cravando-se em uma árvore perturbando a um esquilo que de verdade lhe arrojou uma noz.

     Acheron riu antes de estreitar seu olhar nela. Arrojou seu arco a um lado e a espreitou.

     —Arruinaste meu tiro perfeito. Vais pagar por isso.

    Artemisa soltou seu arco antes de escapar.

     Correu atrás dela enquanto tratava de desaparecer entre as árvores. Sua risada o divertiu fazendo-o rir mais. Apanhou-a pela direita quando alcançava o riacho.

     Envolvendo-a com seus braços em sua cintura, balançou-a ao redor.

     Artemisa não pôde respirar quando o peso dele a impactou. A visão de seu sorriso, a luz nesses mágicos olhos…

     A fez querer gritar de êxtase.

     A fez girar enquanto os pássaros cantavam uma melodia especial para eles. Estava perdida nesse espaço e tempo com ele. Isto era o que sempre tinha querido. O que sempre tinha necessitado.

     A Acheron não importavam seus caprichos ou seu mau humor. Tampouco o estremecimento de que se alimentasse dele. A aceitava como era e o agüentava apesar de tudo.

     Quis perder-se nesse momento e com ele para toda a eternidade.

     —Faça amor comigo, Acheron.

     Acheron se congelou com suas palavras enquanto seu rosto empalidecia.

     —O que? —Deixou-a de novo no chão.

     Afastou o formoso cabelo de sua cara.

     —Quero te conhecer como uma mulher. Quero te sentir dentro de mim.

     Soltou-a e deu um passo para trás, sua expressão era reservada.

     —Não acredito.

     —Por que não?

     Tragou e viu o medo nesses chapeados olhos.

     —Não quero que nada mude entre nós. Eu gosto de ser teu amigo, Artie.

     —Mas já me há tocado em lugares como ninguém tem feito. Por que não querias estar dentro de mim?

     —És virgem.

     —Só um pequeno termo técnico. Por favor, Acheron. Quero me compartilhar contigo.

     Acheron olhou longe enquanto as emoções ardiam em seu interior. O que lhe oferecia era inimaginável. Entretanto, tinha tido numerosas princesas e nobres que tinham chegado a ele para que preparasse seus corpos com gentileza para a cópula com outros homens.

     Parthenopaeus… o que perfura a virgindade. Assim era como Estes e Catera tinham oferecido seus serviços a suas clientes femininas. A reputação de Acheron por sua suavidade tinha sido legendária. O feito de que estivesse extremamente bem dotado e ainda assim fora cuidadoso não o tinha prejudicado tampouco.

     Agora uma deusa se oferecia a ele. Qualquer outro homem saltaria diante da oportunidade. Para o que importava, qualquer outro homem já estaria nu.

     Mas diferente do resto, entendia as complexidades físicas da intimidade. Ainda quando tinham pedido e pago por isso, havia mulheres que choravam pela perda de sua inocência. Outras a amaldiçoavam e a elas mesmas. Algumas se tornavam violentas ante a perda. E um pequeno punhado se regozijava.

     O problema era que não sabia de quais era Artemisa.

     —Não quero te machucar.

     Caminhou até seus braços.

     —Por favor, Acheron. Quero te sentir dentro de mim quando me alimentar de ti.

     —Realmente não acredito que devas.

     Seus olhos caíram com fúria sobre ele.

     —Bem. Vai então. Fora de minha vista.

     —Artie…

     Era muito tarde. Estava de volta em seu quarto. Só.

     —Desculpe —sussurrou, com a esperança de que o escutasse.

     Se o ouviu, não lhe deu nenhuma pista disso.

     Devias ter te deitado com ela. Era realmente importante? Deitou-se com todos outros. Mas os outros tinham sido só corpos para que ele os agradasse. Artemisa era diferente.

     A amava.

     Não, não era tão simples como isso. O que sentia por ela... desafiava ao amor. Necessitava-a de uma forma que não acreditava possível e agora a tinha zangado.

     Com seu coração pesaroso, só esperava encontrar uma forma de reconquistá-la e fazer que o perdoasse.

 

26 de Janeiro, 9528 a.C.

     Tinham passado duas semanas desde a última vez que Acheron tinha visto a Artemisa e cada dia que passava, desanimava-se ainda mais. Ela se negava a responder suas chamadas.

     Nem sequer se incomodava em ir aos jogos. Nada podia aliviar a dor que havia em seu interior por querer estar com ela. Tudo o que queria era vê-la outra vez.

     Jogando a cabeça para trás, engoliu o último gole de vinho da garrafa da qual tinha estado bebendo. Furioso e ferido, lançou-a sobre o parapeito para deixar que se estrelasse contra as rochas debaixo. Alcançou uma nova garrafa e tentou tirar a cortiça. Estava muito bêbado para obtê-lo.

     —Acheron?

     Ficou imóvel ante o som da única voz que tinha estado rogando ouvir.

     —Artie? —Tentou ficar em pé, mas em vez disso caiu de traseiro ao chão. Elevando o olhar, viu-a nas sombras de seu aposento.

     Ela deu um passo adiante com a cara pálida e contraída. O olho esquerdo estava inchado e tinha uma tênue marca avermelhada com o rastro da mão de alguém.

     A raiva obscureceu seu olhar.

     —Quem te bateu?!

     Artemisa retrocedeu, temerosa do homem ante ela. Nunca tinha visto Acheron bêbado, mas cada vez que tinha visto Apolo nesse estado, ele se voltava violento.

     —Eu retornarei…

     —Não —ofegou ele, a voz era um rouco suspiro—, Por favor, não te vás.

     Ele lhe estendeu a mão.

     Seu primeiro instinto foi fugir, tragou saliva e se recordou a si mesma que era uma deusa. Ele era um humano e não podia feri-la de maneira nenhuma. As pernas a tremiam ligeiramente, estirou-se lentamente e tomou sua mão nas suas.

     Acheron a levou a bochecha e fechou os olhos como se estivesse contente de morrer agora, como se tocá-la fora o prazer maior que pudesse imaginar. Enterrou o rosto contra sua pele e inalou profundamente.

     —Senti tantas saudades de ti…

     Também tinha sentido saudades dele. Todos os dias jurava que não ia lhe ver, mas hoje…

     Depois do ataque de Apolo, necessitava que a abraçasse alguém que soubesse que não ia feri-la.

     —Tens um aspecto horrível —disse ela, franzindo o cenho ante a grossa e espessa barba que tinha crescido sobre o rosto—. E cheiras mal.

     Ele riu ante suas críticas.

     —É culpa tua que me veja assim.

     —E isso por que?

     —Pensei que te tinha perdido.

     Essas angustiosas palavras a tocaram tão profundamente que trouxeram lágrimas aos olhos. Caindo de joelhos, sacudiu a cabeça ante ele.

     Antes que pudesse falar, lhe sussurrou ao ouvido:

     —Te amo, Artie.

     A respiração ficou entupida na garganta.

     —O que hás dito?

     —Te amo. —inclinou-se contra ela e lhe passou o braço ao redor do pescoço antes de desabar e desmaiar.

     Artemisa se sentou ali, lhe sustentando enquanto suas palavras ressonavam até o fundo de sua alma. Acheron a amava…

     Baixou o olhar ao rosto que ainda era incrivelmente bonito apesar do estado desarrumado. Amava-a. Isso acabou por fazê-la chorar de uma maneira em que não tinha chorado desde que era uma menina. E odiou o fato de que ele pudesse fazê-la sentir assim. Odiou o fato de que aquelas palavras significassem tanto para ela quando não deveriam significar nada absolutamente.

     Mas a verdade era a verdade e não podia negá-la.

     —Eu também te amo —sussurrou sabendo que nunca poderia dizer-lhe se estava acordado. Isso daria a ele, um mortal, muito poder sobre ela.

     Mas nesse momento, podia lhe dizer a verdade que queria negar com cada parte de si mesma. Como podia uma deusa estar apaixonada por um homem? Especialmente ela? Supunha-se que era imune a isso. Mas alguma coisa neste mortal tinha entrado em sua alma.

     Se tão somente fora um deus…

     Não o era e não era possível que fosse. Era humano e não qualquer humano. Era um escravo. Um puto que tinha sido brutalmente usado por todos ao seu redor. Burlaram dele e burlariam dela por estar com ele. Contraiu o rosto diante da verdade. Tinha tido muitos problemas com sua credibilidade no que concernia aos outros deuses. Se se inteirassem disto, tirar-lhe-iam seus poderes e a desterrariam ao mundo humano.

     Não podia permiti-lo.

     Nem sequer por Acheron. Isto era mais do que podia dar. Mais do que podia suportar. Tinha visto quão cruéis eram os humanos uns com os outros. A última coisa que queria era estar desprotegida nesse mundo a mercê de pessoas que não tinham coração. Só tinha que ver o que tinham feito a Acheron. Ele nem sequer podia caminhar em público sem que alguém o ferisse.

   Imaginava o que a fariam se descobrissem que tinha sido uma deusa…

     Destroçariam-na.

     Soluçando, aproximou-o dela e o levou desse estúpido e mesquinho mundo.

     Em sua própria cama, passou a mão sobre ele e o asseou de modo que parecesse igual ao Acheron que ela amava. Seu cabelo estava suave e limpo, suas bochechas lisas e suaves enquanto jazia nu sobre o colchão de plumas. Cada músculo de seu corpo estava fortemente esculpido.

     As linhas de seu abdômen…

     Como podia alguma mulher não amar um rosto e um corpo tão perfeitos?

     Querendo estar tão perto dele como fosse possível, tirou a roupa e depois se estendeu na cama ao seu lado. Fez aparecer um lençol para cobri-los enquanto se aconchegava perto e escutava sua respiração.

     Enquanto ele dormia, ela passou a mão sobre os músculos que cobriam seu peito. Seu corpo era perfeito. Magro e adequadamente musculoso, parecia poderoso incluso estando inconsciente. O calor a percorreu enquanto lhe acariciava o mamilo. Este se enrugou em resposta ante o toque, fazendo-a sorrir.

     E se perguntou se saberia como... Acheron sempre a saboreava, mas ela nunca tinha feito a ele. Era tímida com respeito ao seu corpo. Mas com ele desta maneira, encorajou-se.

     Afundando a cabeça, levou a língua sobre a ponta tensa. Hmmm, ele saboreava realmente bem. Sua pele era salgada e cheirava completamente a Acheron. Doía-lhe o corpo, moveu-se devagar sobre seu peito, provando cada centímetro deste.

     Não foi até que alcançou o estômago que ela se retirou. Ele tinha todo o torso sem pêlo exceto por um pequeno lance de cabelo que ia desde seu umbigo para baixo até a zona mais espessa no centro de seu corpo. Ela sepultou a mão ali, permitindo que o pêlo áspero passasse através dos dedos. Diferente dos cabelos de sua cabeça, estes eram frisados e quando passou a mão por eles, seu pênis começou a endurecer-se.

     Artemisa o tocou com cautela. Estava fascinada com a parte dele que era tão diferente de seu próprio corpo. A princípio foi capaz de movê-lo a vontade, mas em pouco tempo esteve tão duro e rígido que tudo o que pôde fazer foi baixar a mão por sua longitude e fazer com que o pênis dançasse em resposta ao seu toque.

     Que estranho...

     Igualmente estranha era a umidade que gotejava da ponta. Jogou uma olhada para cima para assegurar-se de que ele ainda estava inconsciente. Confiante, mordeu o lábio, logo lentamente avançou aproximando-se mais. O coração a golpeava com temor e curiosidade, baixou a cabeça para prová-lo.

     Artemisa gemeu profundamente em sua garganta. Não havia nada atemorizante a respeito disto. Em realidade, nada atemorizante a respeito de Acheron nem o mínimo. Sorrindo, retirou-se para lhe colher na mão.

     Ele seguia dormido, inconsciente do fato de que o estava explorando.

     Ela se ergueu subindo por seu corpo para beijar aqueles lábios que a tinham açoitado estes últimos dias em seus sonhos. Não podia suportá-lo mais…

     —Acorda para mim, Acheron.

     Acheron estava aturdido enquanto tratava de enfocar seus pensamentos. Mas tudo o que ele podia ver era Artemisa. Estava inclinada sobre ele com seus verdes olhos lhe abrasando com seu calor.

     —Me roubas o fôlego —sussurrou ele.

     Ela sorriu muito docemente antes de lhe mordiscar o queixo com os dentes.

     Ele já estava duro e enfermo devido à exploração dela. Era isto um sonho? Tinha tal confusão mental que não o podia assegurar. Havia como uma neblina sobre tudo.

     —Me mostre teu amor —sussurrou ela em seu ouvido.

     Queria e com ela sobre ele dessa maneira não podia lembrar-se de suas objeções para fazê-lo. Girou o rosto para o seu e a beijou profundamente. Ele nunca tinha querido fazer amor com ninguém antes, mas agora mesmo queria estar dentro dela com uma loucura tão inesperada que o rasgou e o deixou sem forças.

     Com a cabeça lhe dando voltas, rodou sobre ela e baixou a cabeça para excitar seu seio direito.

     Artemisa ofegou ante a sensação da língua acariciando-a. O estômago se contraía bruscamente com cada deliciosa lambida. E para seu assombro, de fato gozou por isso.

     Ofegando, agarrou-lhe a cabeça e tremeu enquanto onda pós onda de prazer varriam por ela. Não tinha tido nem idéia de que ele pudesse fazer isto.

     Ele grunhiu inesperadamente, antes de começar a descer por seu corpo. Separou de uma cotovelada suas coxas para contemplá-la, com uma fome tão crua que a provocou um calafrio.

     —Me toque, Acheron. Mostre-me o que podes fazer.

     Ele a percorreu com um comprido dedo, fazendo-a estremecer-se em resposta. Um instante mais tarde enterrou a boca contra ela. Ela lançou um grito quando sua língua a atormentou. Era insuportavelmente prazeroso.

     E ela quis mais.

     Pela primeira vez, ele deslizou um dedo dentro dela enquanto a saboreava. A intrusão era surpreendente ao mesmo tempo incrivelmente prazerosa. Quando ele deslizou outro dedo dentro, ela se esticou.

     —O que fazes?

     Ele encontrou seu olhar antes de atirá-la outra deliciosa lambida.

     —Procuro que seu corpo esteja preparado para mim de modo que não te faça mal quando entre em ti. —retirou-se. —Mudaste que opinião?

     Ela sacudiu a cabeça.

     —Desejo-te, Acheron.

     Beijou-a a sua maneira, subindo devagar por seu corpo enquanto seguia excitando-a com a mão.

     Artemisa se aferrou a ele enquanto outro orgasmo se derramava por ela. No momento em que este começou, Acheron se deslizou profundamente dentro de seu corpo. Moveu-se tão rapidamente e com tanta suavidade que em vez de fazê-la dano, isto aumentou seu orgasmo a um nível cegante.

     Sua cabeça se esfregou daqui para lá no travesseiro enquanto tratava de encontrar sentido a isto. Mas não havia nenhum sentido nisso. E quando Acheron começou a empurrar devagar e profundamente contra ela, gemeu extasiada.

     Acheron se perdeu nos suspiros complacentes que Artemisa fazia, o que emparelhou seus golpes. Ela o sujeitava de um modo como ninguém jamais o tinha feito antes...

     Como se ele significasse algo para ela.

     As lágrimas ferroavam por trás dos olhos enquanto se impulsionava ainda mais profundo nela. Já não estava ébrio, estava em glória. Tudo o que podia ver era seu belo rosto.

     Os olhos dela se escureceram um instante antes que lhe afastasse o cabelo do pescoço e afundasse seus dentes nele. No momento em que o fez, ela gozou outra vez.

     A sensação dela bebendo dele enquanto seu corpo se aferrava ao seu o conduziu até a margem. Incapaz de suportá-lo, ele também gozou em uma onda cegante de êxtase.

     Desabou em cima dela enquanto esta se alimentava. Entre seu orgasmo e a perda de sangue, estava débil e satisfeito. Ela lhe fez rodar sobre suas costas para assim poder beber ainda mais.

     Neste momento Acheron lhe teria dado qualquer coisa que lhe pedisse. Inclusive sua vida.

     Artemisa se retirou quando com a perna tocou algo molhado na cama. Jogando uma olhada para baixo, viu seu sangue mesclado com o sêmen no colchão. A realidade do que acabava de fazer se precipitou sobre ela com uma força tão aguda que fez pedaços toda sua felicidade.

     Ela já não era virgem.

     Se Apolo ou os outros se inteiravam...

     Estaria arruinada. Ridicularizada. Humilhada.

     O que tinha feito?

     Foste profanada por um puto humana...

     Com as pálpebras meio caídas, Acheron estendeu uma mão para ela. Esta se retirou enquanto o coração se fechava de repente dentro de seu peito. Isto era terrível. Horrível. Aterrorizada pelo que lhe tinha permitido fazer, abandonou a cama, sentindo-se doente.

     Acheron a seguiu.

     —Artemisa?

     —Não me toques! —grunhiu quando ele tratou de sujeitá-la. Ela lhe deu um empurrão.

     —Te machuquei?

     A preocupação de sua voz deixou um buraco irregular no coração. Mas isto não era nada comparado com a vergonha e o medo que sentia.

     —Arruinaste-me.

     Naquele instante lhe odiou pelo que tinham feito. Como se atreveu ele a fazê-la desejá-lo desta maneira? Fazer com que se esquecesse de quem era e por que sua virgindade era tão importante.

     Deuses queridos, o que tinha feito?

     Queria matá-lo e ainda assim não poderia. Como podia odiá-lo com tanta vontade e ainda desejá-lo tão ardentemente?

     —Por que me tocaste?

     Ele pareceu assombrado pela pergunta.

     —Tu me pediste isso.

     —Não te pedi que me beijaras em meu templo —o acusou—. Eu nunca tinha conhecido um beijo antes. E então tu me tocaste... —esbofeteou-lhe com força pela afronta.

     Acheron cambaleou para trás ante o golpe enquanto sua bochecha ardia. Antes que ele pudesse recuperar-se, Artemisa o atacou, com bofetadas e murros. Quando isto não pareceu satisfazê-la, jogou-o contra a longínqua parede e ali o manteve com seus poderes de deusa.

     Eu te protegerei...

     As palavras dela soaram em seus ouvidos quando ele a olhou de cima, esperando que finalmente o matasse. Sinceramente preferia estar morto a sentir como o coração lhe estilhaçava pelo que ela estava fazendo.

     Ela tinha mentido.

     De repente, caiu de golpe no chão. Aquela mesma força invisível o derrubou e o sustentou contra o mármore enquanto Artemisa se aproximava dele com um olhar feroz.

     —Assim colaboras. Diga em toda tua vida uma palavra sobre isto a uma só alma e te verei aniquilado tão dolorosamente que teus gritos pedindo clemência ressonarão ao longo da eternidade.

     Aquelas palavras trouxeram lágrimas aos olhos ao lhe recordar a outros tantos que o tinham odiado porque ansiavam estar com ele. Quantos dignitários e nobres tinham vindo a ele e logo o tinham amaldiçoado ao momento seguinte de que lhes tivera satisfeito?

     Viviam com o medo de que um puto arruinasse suas apreciadas reputações. Tinham-lhe tirado a chutes da cama ou o tinham atirado ao chão, amaldiçoando-o por sua própria luxúria como se ele tivesse querido isto.

     Por que tinha chegado a pensar por um momento que Artemisa seria alguém diferente?

     Afinal, ele era o que era.

     Nada.

     —Me ouves? —grunhiu Artemisa em seu rosto.

     —Ouço-te.

     —Arrancar-te-ei a língua.

     Ele teve que se obrigar a não rir ante uma ameaça que experimentava pela primeira vez. Mas ele sabia a verdade. Sua língua tinha mais valor que qualquer outra coisa posto que esta lhes proporcionou a maior parte do prazer.

     —Tua vontade é minha vontade, akra.

     Ela o agarrou pelo cabelo e puxou sua cabeça para cima para obrigá-lo a olhá-la.

     —Sou a deusa Artemisa.

     E ele era Acheron Parthenopaeus. O puto maldito. Escravo desprezado. Incapaz de ser amado por alguém.

     Quão estúpido tinha sido ao engolir suas mentiras. Pensar que por um minuto algo como ele poderia ter tido alguma vez valor para uma deusa.

     Artemisa viu a dor em seus olhos e isto a rasgou o coração. Não queria lhe fazer isto, mas que opção tinha? Ele estaria morto em umas décadas, mas sua própria vergonha seria eterna se alguma vez a notícia disto chegava aos outros deuses.

     Os humanos não eram dignos de confiança. Jamais.

     —Recorda que minha ira será legião. —Lhe puxou o cabelo como advertência antes de enviá-lo de volta ao seu mundo.

     Transtornado, Acheron se sentou no chão de seu quarto. Intumescido pelo rechaço e o ataque, avançou lentamente até a bancada com vista ao mar e descansou a cabeça contra o parapeito de pedra. Ouviu as vozes dos Atlantes lhe chamando.

     Mais que nunca antes estava tentado a ir. Que importância teria se o matavam?

     Se pudesse estar seguro de que não abusariam mais dele, iria até eles. Mas no profundo do coração estava o medo de que eles só o convocassem para assim poder torturá-lo também. Inclinando a cabeça, chorou e à medida que caía cada lágrima odiou Artemisa por isso.

     Ninguém o tinha feito chorar desta maneira em anos. Não desde o dia em que Estes tinha vendido sua virgindade ao melhor apostador e logo tinha celebrado uma festa para que todo mundo observasse a brutal violação que lhe tinha causado dor e hemorragias durante dias depois. Inclusive agora a risada e as brincadeiras o perseguiam.

     Rompo ao puto para o resto de nós...

     Acheron golpeou o punho contra a pedra, querendo que a dor apagasse a vergonha dentro dele. Mas não houve nenhum alívio. Nenhuma piedade. Nada podia levar-lhe.

     O puto estava cansado agora. Por fim estava vencido. E não era pela mão de seu professor ou um cliente.

     Tinha sido pela mão da única pessoa a quem tinha amado alguma vez. Derrotado e perdido, Acheron se deitou no frio balcão e fechou os olhos, rezando para que a morte finalmente viesse e terminasse com este pesadelo que era sua vida.

 

28 de Janeiro, 9528 a.C.

    Ryssa estava na sala do trono de seu pai enquanto, Styxx, Apolo e ele riam juntos, ignorando-a. O qual era habitual. Mas o que ela odiava era o fato de que Apolo a quisesse para ele desde o primeiro momento de sua chegada. Ele a tratava como a uma posse cujo único objetivo era sorrir e adular sua presença. E isto a fez perguntar-se se assim foi como Acheron se havia sentido na casa de Estes.

     E o que se o deus era excepcionalmente belo? Aborrecia o modo em que ele a tratava, como se ela fora insignificante. A única coisa pior desse tratamento para ela, era a insistência de seu pai em que estava abençoada ao estar na presença do deus.

     Se isto era estar abençoada, odiaria ver-se maldita.

     Voltou a cabeça quando vislumbrou uma criada que vacilava na entrada. Bonita e tímida, a moça era um ano ou dois mais jovem que Styxx.

     —Acontece algo, Hestia? —perguntou à criada.

     Hestia olhou aos homens timidamente antes de dirigir-se ao lado de Ryssa a fim de poder lhe falar em um tom suave.

     —Sua Majestade queria que eu lhe informasse se... —o olhar da Hestia retornou ao rei antes de terminar a oração— o prisioneiro real deixava de comer.

     O prisioneiro real. Acheron. O coração de Ryssa palpitou atemorizado.

     —Está doente?

     Ela clareou garganta.

     —Não que eu saiba, Sua Alteza. Não o vi em dias. Eu deixo a comida e quando volto está sem tocar. E ninguém adormecido na cama.

     —O que? —o rugido de seu pai fez a ambas saltar—. Guardas! Me sigam. —Bramou da sala em sua direção.

     Atemorizada por seu irmão, Ryssa correu atrás dele.

     —O que acontece aqui? —perguntou Apolo a Styxx enquanto os dois seguiam seu rastro.

     Styxx fez um som de profundo desgosto na cavidade de sua garganta.

     —Isso é Acheron. É um escravo sem valor que estava acostumado a ser um tsoulus. Infelizmente sua vida está atada à minha, assim temos que mantê-lo são. Embora eu me sinto bem, assim estou seguro de que ele faz isto só para chamar a atenção. Que os deuses não nos permitam alguma vez nos deixar esquecer sua presença aqui por um só dia.

     Ryssa apertou os dentes. A &ua