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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ÁGUAS CALMAS / Tami Hoag
ÁGUAS CALMAS / Tami Hoag

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

- A vida é madrasta e depois morremos.

Assim que estas palavras saíram da boca de Elizabeth Stuart, o salto fino como um estilete das suas sandálias italianas fez resvalar uma pedra particularmente grande. Ela vacilou, praguejou com a fluência de quem foi criado num rancho do Texas e continuou a andar com o seu passo apressado, a coxear. Já passara muito na vida para deixar que uma coisa insignificante como esta a fizesse desfalecer, fisicamente ou de outro modo qualquer - dois casamentos falhados, inúmeros corações destroçados, sonhos destruidos que jaziam espalhados nos momentos de vigília como os destroços de um avião caído. Comparativamente, isto não era nada.

Mesmo assim, não pôde impedir que as lágrimas lhe brilhassem nos olhos. Eram os pequenos insultos da vida, uns atrás dos outros, que mais a atingiam. A maior e mais estranha catástrofe, como ser enxovalhada e arrastada na lama pelo homem que ela se comprometera a amar até à morte? Ora, com isso podia ela bem. Era um carro de assalto. Era uma lutadora. Pôr o seu calhambeque de dezasseis anos, que devorava gasolina e que estava parado na berma de uma estrada no meio do campo, a caminho do casebre em ruínas a que chamava casa? Isso era demasiado simples.

 

 

 

 

Fungou e limpou o nariz com a mão, cerrando os dentes Para não chorar. Que Deus tivesse piedade dela! Se começasse a chorar por isto, se deixasse que a barragem rebentasse e as lágrimas começassem a correr, era mais que certo que morreria afogada. E estragaria o seu rímel Elizabeth Arden,
que estava quase a acabar e que ela não podia dar-se ao luxo de substituir. A vida continua, disse ela com os seus botões, afastando as lágrimas com as pestanas. A vida continuaria, para o melhor ou para o pior, quer Brock Stuart se divorciasse dela, o seu Eldorado estivesse destruido ou o patife do destino atirasse alegremente para o seu caminho outra porcaria qualquer. o que ela tinha a fazer era continuar e seguir em frente. o que a fizesse tropeçar no caminho não tinha importância. Ou continuava a andar ou se enrolava numa grande bola de infelicidade e morria.

 

O Eldorado encontrava-se uns bons oitocentos metros atrás dela, caído na berma da estrada como um cowboy embriagado a escorregar do cavalo. Elizabeth olhou de novo para trás, a resmungar, e depois voltou a concentrar-se no que tinha à frente. Se conseguisse ignorar a sua fúria, verificaria que a vista era sublime. Os campos ondulantes do Sudeste de Minnesota eram magníficos. Não que fossem espectaculares ou de fazer perder o fôlego. Nem selvagens e desolados como no Texas, mas suaves e tranquilos. Como Vermont sem as montanhas. As colinas rugosas encontravam-se submersas numa paleta de verdes primaveris - o milho e a aveia, a luzerna e as ervas daninhas, tudo agitado pela brisa crepuscular. Aqui e ali, ilhas de árvores quebravam a monotonia das searas. Bordos, choupos e carvalhos. As suas folhas viravam-se para dentro, e a parte inferior projectava reflexos de prata quando o vento as abanava.

 

A sul, as pastagens desciam em declive até Still Creek, o ribeiro sinuoso que dera o nome à localidade mais próxima. As margens eram íngremes, e o ribeiro propriamente dito pouco profundo e lodoso, com uns seis metros de largura. As libélulas deslizavam à superficie e os chorões debruçavam-se sobre a água, com os seus ramos esguios e pendulares a adejarem como fitas. Na zona do Texas em que Elizabeth nascera, Still Creck seria considerado um rio e teria sido cobiçado por todos aqueles que viviam perto dele e ciosamente guardado pelos rancheiros que possuíam terras ao longo das suas margens. Aqui, onde a água abundava, Still Creek era insignificante, apenas mais uma faceta da agradável paisagem.

 

Acima da beleza pastoril de Still Creek e dos arredores, erguia-se o céu como uma cortina de chumbo, ameaçando com um aguaceiro ao entardecer. Elizabeth soltou uma praga em surdina e tentou andar um pouco mais depressa. Estava pelo menos a mil e quinhentos metros de casa. A quinta mais próxima pertencia a uma das famílias amish que davam fama à região. Duvidava que conseguisse grande ajuda naquele sítio. Eles não tinham um telefone para chamar um reboque, nem um tractor para retirar o carro da vala. Nem sequer tinham uma cerveja fresca para a consolar. Em suma, seriam quase tão bons para ela como um grupo de cómicos numa orgia.

 

- Vê as coisas pela positiva, querida - proferiu ela, ajeitando a alça da mala Gucei no ombro. - Se estivesses no Texas e te perdesses no meio do deserto, levarias quase uma semana a chegar a casa.

 

Céus, como Brock gostaria de a ver reduzida àquilo, pensou ela, deitando outro olhar desconfiado às nuvens cada vez mais inchadas. A coxear pela estrada fora, vinda de um lugarejo recôndito para uma casa que, na opinião dele, nem para cães servia, debaixo de chuva, a estragar a sua blusa Armani preferida. Elizabeth imaginava-o, perfeito e esplendoroso, suficientemente elegante para que Mel Gibson parecesse um simplório ao seu lado, a rir-se dela com aquele seu ar perverso e superior, como uma criança rica e mimada que tivesse pegado em todos os seus brinquedos e posto na rua a vizinha pobre.

 

Para um homem tão rico, era um autêntico patife. Mas não estava em questão voltar a esse assunto. Elízabeth afastou com a mão uma madeixa de cabelo preto despenteado pelo vento e enfiou-a atrás da orelha, enquanto sopesava a sua pasta de vinilo Kmart. Continuou a andar, com o cascalho a magoar-lhe a planta dos pés através das solas finas das sandálias.

 

Havia uma mensagem implícita naquilo, reconheceu ela. As pessoas que tinham de lutar pela vida usavam sapatos robustos com espessas solas de borracha e meias grossas de algodão branco. Os ricos calçavam sandálias Ferragamo vermelhas com saltos da largura de um lápis e tinham motoristas que os levavam aonde era preciso. Os ricos não precisavam de sapatos resistentes nem de gabardinas. Elizabeth já não era uma pessoa rica.

 

o que em si mesmo não era tão devastador como se tivesse sido rica toda a vida. Fora rica apenas durante alguns anos, os cinco em que estivera casada com Brock, que recebera uma modesta herança de família e fizera uma fortuna nojenta graças aos negócios no sector da informação. A sua habilidade para transformar jornais, televisões e estações de rádio na decadência em empresas de primeira categoria colocava-o ao nível de pessoas como Ted Turner na esfera financeira. Brock Stuart tinha mais dinheiro do que a maioria dos países do Terceiro Mundo.

 

Elizabeth reconheceu que fora fácil habituar-se a esse estilo de vida, tirando um fio da gola da blusa de seda vermelha. Gostava de champanhe e de roupa interior francesa. Fora exímia a escolher jóias na Tiffany e vestidos de noite de grandes estilistas. Mas ainda sabia vestir calças de ganga desbotadas. Ainda sabia dançar two-step e emborcar cerveja Lone Star. Ainda sabia calçar botas. Infelizmente, as suas encontravam-se ao fundo da estrada, no alpendre das traseiras, junto de um monte de ténis gastos.

 

Mesmo à frente, do lado norte da estrada, ficava a quinta impecável dos Amish, em quem Elizabeth já não pensava para lhe prestarem ajuda. o quintal estava vazio. A casa encontrava-se às escuras e as janelas de vidros múltiplos e sem cortinas davam-lhe um ar de abandono. No alpendre da frente viam-se bancos de madeira compridos e lisos, empilhados como se fossem lenha. o único sinal de vida era um gato ruivo e gordo, sentado no banco de cima, a lamber uma pata.

 

Do lado sul da estrada, um caminho de cascalho arranjado há pouco tempo atravessava os campos e ia dar ao estaleiro do que diziam ir ser o melhor complexo turístico a sul de Twin Citics. o paradoxo não se resumia a Elizabeth. Os turistas que fossem ver os Amish e o seu estilo de vida simples e rústico ficariam hospedados do outro lado da estrada, num ambiente esplendoroso digno do século xx. Além do hotel propriamente dito, haveria campos de ténis e um campo de golfe. Dizia-se até que Still Creek seria represado e transformado num pequeno lago artificial cheio de peixe e de barcos a remos.

 

Dada a fase de construção em que se encontrava, o complexo não passava de um esqueleto feio e grande, mas Elizabeth vira a planta do produto acabado nas últimas páginas do Clarion. Podia afirmar com segurança que o complexo de Still Waters seria tão grande e vulgar como o homem que estava a construí-lo: Jarrold Jarvis. Elizabeth chamava àquele estilo «antigo bordel francês», um misto incongruente de rústico francês, Tudor inglês e monstruosidade mourisca. Parecia tão deslocado naquele sítio como um casino de Las Vegas.

 

Elizabeth gemeu ao avistar o Lincoln Town amarelo de Jarvís estacionado junto do atrelado branco e ferrugento que fazia as vezes de escritório do estaleiro. Em arrogância, Jarrold Jarvis batia o recorde em Still Creck. Fizera dinheiro na construção de auto-estradas, subindo a pulso desde o nível mais baixo da pirâmide até atingir uma posição em que podia dar-se ao luxo de se envolver na actividade turística com uma pequena margem de risco, como em Still Waters. o percurso desde a pobreza até à prosperidade legara-lhe uma mentalidade baseada na sobrevivência dos mais aptos que, na sua opinião, lhe permitia mandar em todos os que ele considerasse inferiores, em termos genéticos ou financeiros, o que implicava quase toda a gente de Still Creek.

 

Elizabeth conhecia muitos homens na cidade que haviam chegado à conclusão errada de que ela era um objecto sexual fácil porque tinha tido a infelicidade de ser casada duas vezes. Jarrold Jarvis era o único que tivera a desfaçatez de lho dizer na cara. Insultara-a com o seu hálito rançoso e a seguir fizera-lhe uma proposta. Ele era o último homem excePto Brock - por quem ela desejaria ser salva. Mas quando os trovões começaram a ribombar à distância e a barriga das nuvens cor de ardósia descaiu mais um pouco, Elizabeth virou para a rampa e desceu-a com determinação. Não sabia quando poderia voltar a comprar outra blusa de seda Armani.

 

No estaleiro reinava um silêncio misterioso, Há muito que os operários tinham saído. Não se ouviam os martelos nem as serras. A própria natureza parecia conter a respiraÇão perante a ferida moderna que estava a ser-lhe infligida. Uma boa parte do prado perfeito fora destruída, escavada Para dar lugar a quartos aprazíveis. A erva verde e macia fora arrancada e deixara à mostra uma fértil terra negra que estava agora sulcada pelas marcas dos pneus e conspurcada com as provas da invasão humana - embalagens de comida vazias, latas de soda amolgadas, facturas amarelas amarrotadas e uma luva de couro abandonada.

 

Ninguém respondeu quando Elizabeth bateu à porta do escritório.

 

- Mister Jarvis? - gritou ela, descendo com cuidado os degraus de metal já gastos. Não sabia ao certo o que receava mais, se o silêncio ou a resposta dele. - Mister Jarvis?

 

A voz dela ecoou pelo prado e dissipou-se, sem obter resposta.

 

Suspirando, Elizabeth aproximou-se do lincoln ,pelo lado do condutor, com os saltos das sandálias a enterrarem-se no cascalho grosso e áspero. Examinou mais uma vez o estaleiro à luz do crepúsculo. Talvez o homem tivesse saído com o empreiteiro ou com o capataz. Ou talvez tivesse ido dar um passeio a pé pela floresta circundante para urinar, ou qualquer outra coisa.

 

Agora, havia uma situação desagradável em perspectiva: apanhar Jarrold Jarvis com as calças para baixo. Elizabeth parou junto do automóvel, fazendo uma careta ao pensar nisso. Jarvis era um homem corpulento, com uma constituição física que denunciava uma vida sedentária e uma predilecção por gorduras e colesterol. Talvez tivesse sido atraente no passado, mas os anos e as calorias haviam-no transformado num pote de banha a bambolear-se, uma espécie de Orson Welles depois de ter desistido de si próprio. Se havia alguma coisa interessante dentro dos seus calções, estava completamente escondida pela barriga.

 

Quase convencida de que preferia ficar ensopada pela chuva e ser fulminada por um raio do que pedir-lhe uma boleia para casa, Elizabeth começou a afastar-se do carro. Sobressaltou-se ao ver um homem sentado no banco da frente.

 

- Meu Deus! - exclamou ela, sem fôlego, levando a mão ao peito, recuando um passo e desequilibrando-se. Seu filho da... - Agarrou no puxador da porta e tentou abri-la, estimulada pela adrenalina e pelo medo. A raiva tornava-a desajeitada. - Logo me havia de acontecer isto! Eu aqui, a gritar como uma louca, e você aí sentado como um imbecil a olhar para o meu rabo! Meu Deus, Jarrold Jarvis, se estas não fossem as minhas sandálias Ferragamo preferidas...

 

O resto da frase perdeu-se, bloqueada algures na garganta de Elizabeth pelo sabor amargo do terror, quando a porta do Lincoln se abriu e Jarrold Jarvis caiu no cascalho branco aos pés dela, com o pescoço gordo rasgado de orelha a orelha.

 

Hum... Sim... Bem sabes como é bom aí... Hum... Dane...

 

Dane Jantzen fez deslizar a boca aberta pelo ventre da companheira até chegar ao seio direito. Com a língua de fora, lambeu-lhe o mamilo, deixando-lhe um rasto húmido na pele. A humidade brilhou à luz suave do candeeiro cromado que se encontrava ao canto do quarto. Dane soprou ao de leve no sítio humedecido e depois puxou lentamente o mamilo distendído para a sua boca e sugou-o.

 

Agradava-lhe o sabor de Ann Markham. Não concordava com a política dela, e a sua ambição ostensivamente avara deixava-lhe um gosto amargo na boca. Em termos profissionais, não gostavam de facto um do outro. Mas era exactamente por isso que eram parceiros ideais na cama. Nenhum deles buscava um compromisso. Nenhum deles queria nada do outro a não ser uma boa queca e discrição total.

 

Desde o princípio que haviam sido honestos quanto a isso. Ann almejava o cargo de procuradora-geral em St. Paul. Dane apostara no celibato eterno. Estavam ambos envolvidos em carreiras nas quais a sua vida privada tinha de enfrentar a avaliação pública. Não podiam dar-se ao luxo de provocar mexericos nem de criar laços. Na opinião de Dane, tinham encontrado a relação perfeita.

 

Em tempos, ele estivera ligado a uma mulher que valorizava o estatuto acima de tudo. Isso bastara. Apesar de gostar da vida doméstica, não a apreciara ao ponto de se arriscar de novo a passar pelo tipo de sofrimento que Tricia lhe 16
infligira quando resolvera trocá-lo por um homem mais ambicioso. Pela dor da traição e da rejeição que, ao fim de tantos anos, ainda o dilacerava em momentos de descuido.

 

Dane entregara-lhe o seu coração quando era jovem e inexperiente, demasiado jovem para saber que ela não o amaria para sempre. Demasiado jovem para acreditar que não passaria o resto da vida a jogar futebol, a fruir a glória da adoração do público e a dedicação eterna da sua bela mulher. Depois, o joelho cedera, e a carreira com ele. E Tricia devolvera-lhe o coração sem um pedido de desculpa nem um sinal de arrependimento. E Dane fora para Still Creek, depois de aprender uma lição amarga: o caminho do verdadeiro amor era traiçoeiro, cheio das carcaças daqueles que haviam sido postos de parte ao longo do tempo. Dane não tencionava voltar a passar por essa estrada.

 

Convenceu-se de que era apenas porque odiava perder. Quer o jogo fosse futebol, trabalho ou mulheres, ele não suportava perder. A perda espetava-se-lhe na garganta como um osso de frango. Além disso, era mais fácil ser solteiro. Não esperava nada a não ser de si próprio, e o conceito de sucesso, de fracasso, de riqueza ou de mérito era apenas o seu. Estava satisfeito com o seu cargo de xerife de Tyler County ,onde não acontecia verdadeiramente nada e ele era livre de tirar um dia de folga de vez em quando para ir à pesca. Estava satisfeito com a sua vida calma e ordenada e com a sua pequena quinta à saída de Still Creek. Estava satisfeito com a sua relação com Ann.

 

Tinham-se conhecido há dois anos, num seminário para o Grupo de Trabalho contra a Droga do Sudeste do Minnesota, quando ela acabara de ingressar no gabinete do procurador de Olinsted County em Rochester e ele acabara de vencer Boyd Ellstrom na corrida para o lugar de xerife de Tyler County .A atracção física fora imediata, forte e mútua. Durante o jantar dessa noite, haviam manifestado os seus desejos e definido as regras básicas que deveriam nortear a sua relação - nada de amarras, nada de exigências, nada de ameaças de casamento. Tinham ido para a casa de

Ann, escondida na região de Rochester Weatherhill, e passaram uma noite de sexo escaldante.

 

A relação funcionava bem para ambos. A casa de Ann ficava longe dos olhares atentos dos eleitores conservadores de Dane. Nunca se metiam em sarilhos um com o outro no sistema judicial. Nunca se importunavam um ao outro com conversas superficiais nem com sentimentos falsos. Proporcionavam um ao outro sexo de boa qualidade, honesto, mutuamente satisfatório e sem o embaraço provocado pela habitual bagagem emocional.

 

- Oh, Dane, por favor - sussurrou ela, com a voz ofegante de quem desejava muito uma coisa.

 

- Estás com pressa esta noite? - murmurou ele secamente.

 

- Estou apenas com fome - disse ela, humedecendo os lábios. - o caso Baylor começa amanhã.

 

Um sorriso lento desenhou-se na boca de Dane. Ann era sempre melhor na cama na véspera do início de um caso importante. Ele sabia que a adrenalina era dirigida ao trabalho dela, ao entusiasmo da luta, e não a ele. Mas mesmo assim beneficiava da situação.

 

- Como é que queres? - segredou ele com a boca colada à de Ann, descontraindo-se um pouco dentro dela.

- Com força e depressa - respondeu ela, com os olhos brilhantes de excitação ao fitá-lo. - Com muita força. Dane gemeu quando voltou a colar a sua boca à dela. Estava preparado para um serão dos diabos.

 

Ann era tão ardente e desinibida na cama como fria e reservada no seu ambiente profissional. o contraste traduzia -se sempre num estímulo suplementar para Dane, quando estava dentro dela. Quando não estava, isso só contribuía para o tornar ainda mais consciente de que ela era uma actriz consumada e uma hipócrita, disposta a desempenhar qualquer papel para conseguir o que queria. Era uma mulher típica. Mas, de momento, ele não se importava. Depois de um último movimento impetuoso contra o corpo dela, Dane veio-se numa onda quente de prazer.

 

O prazer era sempre de curta duração. Sempre fora. Havia aquele impulso, aquele instante em que o seu corpo atingia o clímax, que era doce e bom, mas sempre curto em relação ao que a outra parte do seu ser desejava. Ficava fisicamente saciado. Ann nunca o decepcionava a esse nível. o seu próprio corpo também não. E Dane dizia a si próprio que só desejava isso, a libertação física. Porém, quando descansava sobre o corpo dela, não podia deixar de sentir um ligeiro vazio nas entranhas. Naquele momento único e incauto em que um homem estava mais debilitado, ele não podia negar essa necessidade. Não sabia dar-lhe nome, não fazia nada por isso, nem via nela mais do que uma fraqueza, mas não podia negar que ela existia.

 

-Fodes bem para um homem do campo.

 

A voz de Ann, ainda sem fôlego depois da emoção passada, interrompeu o momento de introspecção de Dane como um golpe de navalha.

 

Dane contemplou-a com um sorriso breve e frio. -Ora, ora, minha senhora, é da experiência que ganhamos com as ovelhas quando somos pequenos - retorquiu ele com uma voz arrastada e sarcástica.

 

Ann soltou uma gargalhada gutural. Gostava de o arreliar com o facto de ele ser um campónio. Sabia que isso o irritava. Ele reparara mais de uma vez no brilho selvagem de satisfação nos olhos dela quando o espicaçava. Desconfiava que se tratava de um método de defesa calculado, de um modo de manter uma barreira emocional entre ambos. Dane apreciava a barreira, mas o método irritava-o.

 

- És um mauzão - disse ela, rindo-se baixinho.

- Prefiro as ovelhas às putas da cidade.

 

Ela levantou a mão e acariciou-lhe a cabeça como se afagasse um cão.

 

-Vá, não sejas desagradável, querido. - Ann riu-se outra vez. Os seus dedos impecavelmente tratados percorreram as costas de Dane até chegarem às nádegas. Deu-lhe um beliscão no rabo e arqueou o corpo debaixo dele, contraindo-o à volta do seu sexo, estimulando-o de novo. Está bem, xerife Jantzen - murmurou Ann, semicerrando os olhos e deliciando-se ao senti-lo inchar dentro de si. Então, voltemos ao assunto.

 

Dane encostou-se mais a ela, quase de olhos fechados e COM um sorriso. Não, não gostava muito de Ann Markham, mas gostava do que ela fazia por ele. Mantinha-o sexualmente satisfeito e emocionalmente de sobreaviso, e isso era só o que ele pretendia de qualquer mulher.

 

Na mesa-de-cabeceira de aço cromado e vidro, tocou um pager.

 

- Raios!

- Merda!

 

- É o teu ou o meu? - perguntou Ann, pondo fim ao assunto num abrir e fechar de olhos.

 

Dane afastou-se, e ela saiu de baixo dele, ajoelhou-se, afastando as madeixas dos olhos, e estendeu o braço na direcção da mesa.

 

- É o meu - resmungou Dane. Alçou as pernas compridas sobre a parte lateral da cama e pegou no telefone. Espero que seja pelo menos um homicídio.

 

Ann riu-se.

 

- Assassínio em Tyler County. Seria a notícia do dia. Lá em baixo, as pessoas morrem de aborrecimento e não de actos violentos.

 

Dane respondeu com um grunhido que tanto podia ser de concordância como de rejeição, mas que era desagradável fosse qual fosse o caso.

 

- Lorraine, esta é a minha noite de folga - disse ele, cerrando os dentes junto do bocal e denunciando o seu aborrecimento.

 

A mulher do outro lado da linha ignorou totalmente o seu tom de voz e a ameaça implícita e passou à notícia com ansiedade, tão ofegante como se tivesse percorrido mil e quinhentos metros a correr para telefonar.

 

- Dane, nem vai acreditar nisto. Mataram o Jarrold Jarvis. Encontraram-no em Still Waters.

 

- Morto? - perguntou Dane em voz baixa. o seu aborrecimento deu lugar a um nó no estômago. Endireitou as costas, distendeu os ombros largos e inconscientemente apurou o ouvido. Passou a mão pelos cabelos, afastando-os da testa. - Você quer dizer que ele morreu. Teve um ataque cardíaco, ou coisa do género.

 

- oh, não. Quem me dera que fosse isso, mas o Mark foi muito claro. Disse que ele tinha sido morto.

 

Morto. Assassinado. Céus! Há décadas que não havia um assassínio em Tyler County .A ideia atordoou-o, como se tivesse levado um murro entre os olhos. Fez um esforço para abrir uma estreita nesga na confusão que reinava no seu cérebro e obrigou a sua mente a funcionar com profissionalismo.

 

- Como?

 

A funcionária denunciava ansiedade. Dane imaginava Lorraine Worth franzindo as sobrancelhas desenhadas a lápis sobre as armações dos óculos com incrustações de marcassite.

 

Quando ela conseguiu falar, a sua voz não passava daquele murmúrio que as pessoas da sua geração reservavam para as tragédias e os escândalos.

 

- Ele tinha o pescoço cortado. o Mark disse que lhe tinham cortado o pescoço... De orelha a orelha.

 

Dane virou a sua camioneta preta e branca no caminho que ia dar ao complexo de Still Waters e acelerou. Já se juntara uma multidão, e ele teve de entrar na terra sulcada e endurecida para conseguir estacionar no meio dos automóveis e das carrinhas das estações de televisão. Praguejou ao sair da camioneta e percorreu a passos largos o solo irregular do estaleiro. A dor que lhe mordia o joelho esquerdo a cada passo indicava-lhe, melhor do que qualquer meteorologista, que se aproximava uma tempestade. Dane ignorou-a e lançou um olhar furibundo às pessoas que tinham vindo espreitar a morte.

 

Alguém matara Jarrold Jairvís. Por muito que repetisse a mensagem mentalmente, a situação ainda não lhe parecia real. Não gostava parti cularm ente do homem - ninguém gostava - mas não lhe desejava a morte, nem se lembrava de ninguém que a desejasse, pelo menos com a sinceridade suficiente para a concretizar. Jarvis era, - fora - um fanfarrão e um brigão, um homem que gostava de ostentar o seu peso considerável e de se exibir na ribalta como uma morsa na praia, ao sol, mas isso não era suficiente para o matarem.

 

Mas o certo é que não só alguém o quisera matar como dera os passos necessários para transformar esse desejo em realidade.

 

No local do crime criara-se já uma atmosfera doentia, de circo. Todos os simplórios da região com um intercomunicador da polícia tinham vindo espreitar. Três carros-patrulha pretos e brancos de Tyler County encontravam-se estacionados de qualquer maneira à volta do Lincoln de Jarvis, como carruagens cobertas à volta dos pioneiros para os proteger dos ataques dos índios, mas o pior ataque já se registara. E causara uma morte. A tarefa deles consistia agora em proteger o cadáver dos abutres. Os agentes montavam guarda à volta do local, impedindo com nervosismo que os mirones se aproximassem demasiado. Os faróis dos automóveis juntavam-se às luzes penduradas no esqueleto nu do edifício do hotel, inundando o cenário -de uma luz branca constante e agressiva que era pontuada pelos clarões azuis e vermelhos dos faróis intermitentes dos carros-patrulha. Por cima de tudo aquilo, a Mãe Natureza ajudava ao espectáculo com uns relâmpagos.

 

À primeira vista, Dane calculou que estivessem cerca de cinquenta pessoas à espera e que mais ou menos metade se encaminhasse na sua direcção com olhos brilhantes, vozes alteradas e câmaras. Repórteres. Céus! Enquanto formas de vida, classificava-os um pouco acima de pedófilos. Fariam perguntas estúpidas e óbvias e ficariam a espera de respostas que ele não poderia dar. Andariam atrás dele como rafeiros furiosos, despudoradamente sujeitos a qualquer osso que ele lhes atirasse. Um dos motivos que o levara a sair de Los Angeles depois de se retirar do futebol fora a possibilidade de se afastar da maldita imprensa que entrara à força na sua vida privada e do circo de três arenas que rodeara o seu divórcio. Agora também estavam ali, a invadir a sua zona, a farejar sangue e lama. Dane olhou para o chão quando as lanternas manuais ameaçaram cegá-lo.

 

- Xerife Jantzen, isto é um choque?

- Xerife, ele tinha inimigos?

 

- Tem alguns suspeitos?

- Há testemunhas?

 

Dane ignorou as perguntas que lhe gritavam de todos os lados, sabendo que, se parasse, se dissesse alguma coisa em Jeito de resposta, se lhes desse uma oportunidade, eles saltariam sobre ele. o subchefe Mark Kaufman afastou dois rePórteres com o ombro e foi o primeiro a chegar junto dele.

KaufMan era um homem de trinta e cinco anos, baixo e atarracado, com entradas no cabelo castanho cor de café, e um ar sempre preocupado. Tinha a farda de caqui manchada de suor e estrias de pó nas calças pretas. Fez estalar os nós dos dedos quando se aproximou de Dane.

 

- Céus, julgámos que você nunca mais cá chegava.

- Quem é que o encontrou? - perguntou Dane em voz baixa.

 

A Elízabeth Stuart. É aquela tipa que comprou o Ciarion. Que se mudou para a velha casa dos Drewes. - o homem abanou a cabeça como se estivesse ofuscado. - Ela é uma brasa, deixe-me que lhe diga.

 

Dane perdeu a força nas pernas ao ouvir o ruído das hélices de um helicóptero a cortarem o ar. Ao olhar para cima, um holofote iluminou-as. Pestanejando, conseguiu ler o nome de uma estação de televisão de Twin Cities na parte lateral do aparelho. Este pairava sobre eles, como se fosse mais um abutre desejoso de partilhar a vítima.

 

Raios os partam! - vociferou ele. - Não lhes chegam os crimes que têm na terra deles?

 

Não esperou pela resposta do subchefe e abriu caminho entre meia dúzia de pessoas, todas aos gritos, solicitando a sua atenção. Kenny Spencer, o jovem agente que tentava manter a sua parte da multidão à distância, ficou claramente aliviado ao vê-lo e recuou para o deixar entrar no círculo de calma que se formara à volta da cena do crime. o centro da tempestade.

 

- Boa noite, xerife - dísse ele, com um aceno de cabeça e engolindo em seco com nervosismo, A maçã-de-adão dançava-lhe na garganta, enquanto o seu olhar alternava entre Dane e os repórteres. o seu rosto alongado e esguio estava branco como a cal e raiado de suor.

 

-Mas que raio de serão este, hem Kenyy?

 

Kenny não conseguiu esboçar um sorriso. Com vinte e três anos, raramente fora confrontado com a morte. o acidente de automóvel que vitimara Milo Thornson no último Inverno, Edith Baines depois do ataque cardíaco no baile dos Filhos da Noruega. Mas esta situação era completamente diferente. Esta morte fora deliberada e malévola. Alguém roubara literalmente a vida a Jarrold Jarvis, cortara-lhe o pescoço e deixara-o a esvair-se em sangue. Kenny estremeceu ao pensar nisso, ao mesmo tempo que o jantar ameaçava sair-lhe do estômago. Engoliu com força e ficou ainda mais pálido.

 

Dane deu uma palmada no ombro do agente e obrigou-o a dar mais um passo em direcção ao Lincoln. Não culpava o miúdo por estar impressionado. Ele próprio não estava propriamente ansioso por enfrentar a cena. A morte nunca era bonita nem agradável. Fora agente durante sete anos e era xerife há dois, mas nunca acreditara verdadeiramente que seria obrigado a enfrentar a morte na sua forma mais brutal. E muito menos ali.

 

O assassínio não fizera história em Still Creck. Era um facto da vida que se tornara quase corriqueiro durante os anos passados em OakIand e Los Angeles. Os títulos eram tão vulgares nos jornais que Dane nem se dava ao trabalho de fazer muito mais do que analisar as notícias quando procurava as páginas de banda desenhada. Mas o assassínio não tinha nada a ver com aquela terra. As pessoas de Still Creek nem trancavam a porta de casa. Quando saíam do automóvel, deixavam a chave lá dentro. Nunca hesitavam em parar para ajudar um desconhecido. o assassínio era algo que nunca acontecia em Tyler County .Era algo que se lia nos jornais da cidade. Era algo que, de vez em quando, chocava toda a gente em Rochester, a «grande» cidade mais próxima, de sessenta mil habitantes, Era um acontecimento no noticiário da noite que levava toda a gente a franzir o sobrolho e a Preocupar-se da forma mais abstracta, algo que acontecia no grande mundo, onde tudo caminhava para o caos. Mas não afectava directamente a vida dos habitantes de Tyler COuntY. Até então.

 

Os ombros largos de Dane subiram e desceram quando ele pôs as mãos na cintura e suspirou. Tentou encarar a cena COM Os olhos de um polícia - objectivos e observadores. Mas não conseguiu evitar o choque inicial ao ver u homem morto, sabendo que fora outro ser humano a provocar-lhe a morte. o tremor atingiu os alicerces rochosos da sua vida. Contudo, o seu rosto manteve-se impassível quando ele se acocorou junto do corpo.

 

Jarvis jazia de barriga para baixo no cascalho, como Uma foca morta, com os braços ao lado do corpo. Os pés estaVam ainda dentro do carro. Com uma mão, Dane ergueu cuidadosamente o ombro direito do homem e espreitou.

A ferida era óbvia e feia, um corte profundo no pescoço, mais revelador do interior do corpo humano do que Dane estava disposto a ver. As finas camadas de pele nas extremidades do golpe estavam ligeiramente encaracoladas, dando a impressão de um sorriso macabro numa boca terrivelmente distorcida, com os lábios tintos de sangue seco castanho-escuro.

 

o homem morrera depressa, demasiado depressa para se ter reconciliado com o seu destino, pensou Dane, desviando o olhar da ferida e registando a expressão estupidificada nos olhos escuros do morto, a boca aberta com o choque, como se ele tivesse começado a gritar mas já fosse demasiado tarde.

 

Jarvis, não fora um homem bonito em vida. Com cerca de cinquenta anos, tinha uma cara bochechuda e estúpida e lábios grossos que formavam um esgar permanente em forma de ferradura. Usava o cabelo cor de cenoura penteado para trás com Vitalis, num penteado alto que parecia tão incongruente na sua cabeça grande como teria parecido um boné. A morte não o beneficiara. A pele começara a perder a palidez da morte recente para dar lugar a um tom rosado que contrastava terrivelmente com o sangue, o qual principiara a secar no peitilho da camisa amarela solta, endurecendo o tecido ensopado como uma dose excessiva de goma.

 

Durante uma fracção de segundo, Dane pensou no que devia ter acontecido no instante em que a lâmina cortara o pescoço do homem. Sentiu um aperto no estômago perante o mar de sangue que inundava a sua imaginação.

 

-Céus! - disse ele em voz baixa, largando o ombro de Jarvis.

 

o rígor mortis ainda não se instalara e o corpo inerte cedeu, cento e trinta quilos de carne sem vida e de gordura. Dane sentou-se nos calcanhares e passou as mãos pelo cabelo.

 

-Aposto que o Jarrold já não engana mais ninguém ao pôquer.

 

Boyd Ellstrom encostou-se à porta traseira do Lincoln de braços cruzados. o que começava a ser uma grande barriga forçava os botões da camisa da farda e o cós das calças pretas. Com quarenta e dois anos, vira-se finalmente livre da cara de bebé que o perseguira durante quase toda a vida.

 

Agora tinha apenas um ar petulante e a boca sempre retorcída nun, esgar de amuo que de repente fez Dane pensar em Jarvis.

 

- Bom trabalho, Ellstrom - disse ele num tom sardónico, ao levantar-se. - Limpaste o carro com o rabo e eliminaste as impressões digitais. Os rapazes do GIC vão adorar. O agente ficou desolado e afastou-se do Lincoln.

 

-Você chamou o GIC? Este caso é nosso, Dane. Não precisamos deles.

 

-Pois não. Aliás, eu estou a ver o profissionalismo com que o tratas - respondeu Dane secamente.

 

- Bem, garanto-lhe que eu não teria chamado gente de fora.

 

- A decisão não foi tua, pois não?

- Desta vez não.

 

Dane cerrou os dentes, refreando-se. Não lhe convinha armar uma discussão com um dos seus agentes na presença da imprensa. Limitou-se a olhar fixamente para Ellstrom. Um lampejo de inquietação atravessou o rosto carnudo do homem, que deu meia volta e se afastou a cambalear, com os polegares enfiados no cinto.

 

. Acalmando-se, Dane afastou-se do carro. Ostensivamente à procura de pistas, perguntou a si próprio por que motivo é que Boyd Ellstrom ficara em Tyler Coutity depois de ter Perdido a corrida para o lugar de xerife. o homem tinha quinze anos de experiência; podia ter ido para outro sítio qualquer no mesmo estado e arranjado un emprego melhor do que tinha ali.

 

O Boyc[ diz que você chamou o GIC.

 

-Eles é que são os especialistas na matéria - resPOndeu Dane, em voz baixa e alquebrada. Virou-se para o subchefe e apontou os motivos, um por um, servindo-se dos dedos das mãos. - Não temos laboratório, não temos patologistas, não temos ninguém que tenha visto um assassínio excePto na televisão. Não creio que alguém daqui tenha aPrendido a fazer isto só de ver o Columbo.

 

O Gabinete de Investigação Criminal, um organismo do Estado, fora criado precisamente para circunstâncias como estas. Constituído por especialistas que dispunham no seu laboratório central da tecnologia mais avançada para análise de provas, o gabinete estava à disposição de todos os centros destinados a fazer cumprir as leis do estado. Competia ao xerife decidir se havia ou não de recorrer a ele. Na opinião de Dane, só se um polícia de província tivesse serradura na cabeça em vez de miolos é que prescindia do GIC na investigação de um crime.

 

-Nunca investigámos um assassínio. Não quero que isto saia mal.

 

Kaufman encolheu os ombros e procurou mostrar-se inocente, levantando as mãos em sinal de rendição.

 

-Nem eu. Terei muito gosto em recebê-los.

 

Dane empinou o queixo e semicerrou os olhos ao observar Ellstrom, que ladrava aos repórteres como um cão de guarda inútil.

 

- Parece que nem todos estamos de acordo nesse ponto.

- Sim... Bem... - Kaufman fez estalar os nós dos dedos e arrastou os pés. - Você conhece o Boyd.

 

-Pois, eu conheço o Boyd. Não seria capaz de descobrir esterco de vaca num curral, mas julga que consegue resolver um caso de homicídio sozinho.

 

Nervoso, Kaufman pigarreou e afastou-se um pouco para o lado, impedindo com diplomacia que Dane visse Boyd Ellstrom.

 

- O que fazemos até que os rapazes do GIC cheguem? -Reze para que não chova - disse Dane, quando os trovões ribombaram por cima deles e a dor lhe atacou o joelho. - Não toquem em nada. Não deixem ninguem tocar em nada. Eles encarregam-se das fotografias, da recolha de impressões digitais, das provas materiais. Temos de sair do caminho e fazer o que eles pedirem. o Yeager chega dentro de uma hora. E os tipos do laboratório também.

 

- Certo.

 

-Onde está a tal Stuart?

 

Kaufman apontou para o grupo de repórteres e de basbaques que se acotovelavam no local,

 

- É uma mulher de armas. Obrigou-me a levá-la ao carro para ir buscar a máquina fotográfica.

 

Dane resmungou.

 

- Tem bom coração, hem? Traga-a cá.

 

Enquanto o subchefe se encaminhava para a multidão, Dane recordou o que sabia acerca de Elizabeth Stuart, a nova editora do Clarion de Still Creck.

 

Como quase toda a gente da região, Dane ouvira falar do divórcio de Elizabeth e do magnata da comunicação sociál de Atlanta, Brock Stuart. Fora impossível ignorar a notícia. Os títulos tinham surgido em todos os tablóides sensacionalístas, a história fora contada e recontada pela gente da rádio e da televisão e descrita em pormenor nos grandes jornais.

 

- Que mundo! Todos os dias havia gente que perdia a vida emmortes horríveis, e a sociedade rebentava pelas costuras devido à droga, à sida e à poluição do planeta. Travavam-se guerras que se saldavam pela perda de milhares de vidas. E o divórcio de Elizabeth Stuart enchera títulos. Durante algumas semanas, a sua vida de caçadora de fortunas sobrepusera-se aos acontecimentos mundiais.

 

Dane absorvera as informações com o fascínio mórbido de um homem que construíra a sua própria versão da guerra dos sexos. A mulher já se casara pelo menos uma vez antes de apanhar Brock Stuart. Este tolerara os hábitos perdulários da mulher como qualquer multimilionário, mas acabara por se opor às infidelidades dela e por lhe pedir explicações. Naturalmente, ela tentara lançar as culpas sobre ele. Dirigira-lhe toda a espécie de acusações, sobretudo a de que ele não Podia ver uma burra de saias. Mas não conseguira provar nada. Pintara um retrato inocente de si própria e, ao mesmo tempo, tentara aboletar-se com uma parte substancial da fortuna dele mas, por uma vez, a justiça prevalecera. Dane concluíra que Stuart devia ser um santo por dar dinheirO à mulher depois da maneira como ela o tratara. Pelo que vira, ela só levantara problemas.

 

E agora ali estava ela, em Still Creck, Minnesota, envolvida no primeiro homicídio que eles tinham no espaço de trinta anos. Céus!

 

- O Xerife Kaufman pigarreou com nervosismo, emPurrando o cotovelo de Elízabeth. - Esta é Miss... MIStress... Bem...

 

Elízabeth teve pena do subchefe. Quando ele fora buscá-la a casa, não conseguira articular palavra ao vê-la- Agora fitava-a com um sorriso tímido e enlevado, de olhinhos brilhantes como um cocker spaniel. Homens, pensou ela, resistindo à tentação de rolar os olhos nas órbitas. Estendeu a mão, ao xerife.

 

Elizabeth Stuart, xerife Jantzen. Eu diria que é um prazer conhecê-lo, mas as circunstâncias não são exactamente as ideais, pois não?

 

A voz dela era carregada e provocante, quente e um pouco rouca, pensou Dane. Fumo e calor. Cetim e sexo. Fitou-o com uns olhos cinzentos bordejados por pestanas pretas e grossas. o holofote atrás dela iluminava-lhe a cabeleira negra como se fosse o resplendor de um santo e conferia uma tal palidez à sua pele que a boca parecia uma cereja na neve. Uma pequena cicatriz virada para baixo nascia-lhe no canto esquerdo da boca, desafiando um homem a acompanhá-la com a ponta do dedo ou da língua.

 

Raios, pensou ele, não admirava que Brock Stuart se tivesse apaixonado por ela. o seu olhar percorreu o resto do corpo de Elízabeth Stuart com uma insolência insultuosa.

 

A jovem trazia ao pescoço uma máquina fotográfica Nikon suspensa de uma grossa alça de couro, e o peso desta colava-lhe a T-shirt azul-turquesa, enorme, aos seios firmes. As jeans eram justas e debotadas. A cintura fina era acen tuada por um cinto de cabedal trabalhado com uma grande fivela prateada que representava um homem a empurrar um barril. Das ancas ligeiramente salientes nasciam umas pernas muito compridas. As calças de ganga estavam enfiadas num par de botas pretas de cowboy um pouco gastas e obviamente caras que lhe chegavam quase aos joelhos.

 

Está satisfeito, xerife? - perguntou Elizabeth com sarcasmo.

 

Fora muito admirada ao longo dos seus trinta e quatrO anos, mas esse facto nunca a enervara tanto como agora. Cingiu-se as circunstâncias e ignorou obstinadamente o facto de o xerife Jantzen ser um exemplar acabado de macho.

Tinha aquilo a que se chamava um «aspecto seco e faminto - um porte atlético, um certo magnetismo de predador que lhe vinha das zonas planas do rosto e das linhas angulosas do corpo, e uma presença imponente. As calças largas e o pólo cinzento fugiam um pouco à norma, mas o ar autoritário não enganava. Fardado ou não, era ele que mandava, que dominava.

 

Dane encarou-a e deitou-lhe um olhar prolongado e deMolidor que lhe deu a entender que nada do que ela dissesse o deixaria embaraçado nem o obrigaria a fazer o contrário do que queria. Os olhos dele lembravam os do lobo-do-ártico, de um tom azul frio e muito observadores. Estavam bem implantados debaixo de umas sobrancelhas que só realçavam o seu ar de predador. Elizabeth teve a sensação desconcertante de que ele conseguia ver para além do seu ar de desafio, atingir a sua alma, se quisesse. o que o tornava um homem perigoso.

 

-A que horas é que encontrou o corpo? - perguntou êle, suficientemente alto para ela o ouvir distintamente, mas de modo a que as suas palavras não chegassem aos ouvidos dos agentes.

 

- N... não sei - gaguejou ela. - Eu não levava relógio.

 

Ela podia ter acrescentado que o seu Rolex se encontrava a descansar numa casa de penhores de Atlanta, mas duvidava que o seu ínterlocutor se importasse com isso. Não lhe parecia do género compadecido. o seu rosto poderia ter sido esculpido em pedra, tal era a emoção que denunciava.

 

- Calculamos que tenha sido por volta das oito e meia atalhou o agente Kaufman, recuperando do mutísmo que EliZabeth lhe inspirara.

 

- Isso foi há mais de duas horas - observou Dane com rudeza.

 

Kaufman correu em defesa da dama.

 

- Ela teve de ir pedir aos Hauer que a levassem a casa Para poder telefonar. Bem sabe que o Aaron Hauer não gosta de se envolver com desconhecidos. Não o imagino a apressar-se, sejam quais forem as circunstâncias. E depois estivemos à sua espera...

 

A explicação do agente desvaneceu-se pateticamente quando o chefe lhe deitou um olhar frio como o aço, Dane lançou o mesmo olhar a Elizabeth.

 

- Você viu quem é que o matou?

 

-Não. Não vi ninguém, a não ser...

 

A voz dela esmoreceu ao olhar para Jarvis. Tapou a boca com a mão.

 

-Ele estava assim quando você o encontrou

 

- Não. Estava dentro do carro. Eu abri a porta para lhe falar e ele...

 

Elizabeth cerrou os lábios e engoliu o medo e a repulsa que lhe obstruíam a garganta. Não conseguiu evitar o tremor que lhe percorreu o corpo nem a imagem que lhe veio à mente - Jarvis a cair, morto, aos seus pés. Em cima dos seus pés, para ser mais precisa. A cabeça dele aterrara mesmo em cima dos seus dedos. o sangue da ferida tingira-lhe os pés ao ponto de ela não conseguir distinguir a pele das tiras das sandálias vermelhas. A bílis subiu-lhe à garganta e Elizabeth estremeceu de novo.

 

- Então ele estava exactamente assim quando você saiu daqui? - perguntou Jantzen, todo profissional e sem um laivo de compaixão.

 

Ela fez um esforço para olhar de novo para o homem morto, esperando ver os olhos vítreos a fitá-la na sua incredulidade e estupefacção, mas deparou apenas com um capacete de cabelo vermelho e oleoso.

 

-Não, não era assim que ele estava. Dane virou-se para o agente.

 

- Quem é que mexeu no corpo? - perguntou ele num tom que não favorecia confissões.

 

Kaufman arrastou os pés no cascalho e fez estalar os nós dos dedos.

 

- Céus, Dane, você não o viu - gaguejou ele. - Não o podíamos deixar assim; não era decente.

 

- Decente? - perguntou Dane, impassível. o agente engoliu em seco.

 

-Nós só o virámos ao contrário, mais nada. Bem, foi como se o assassino o tivesse deixado ali mesmo.

 

Dane ergueu o sobrolho, prestes a explodir. Falou ainda mais baixo:

 

-E agora? Como é que vamos saber, Mark? Kaufman fechou os olhos, pestanejando. A explicação morreu-lhe na garganta.

 

Dane virou-lhe as costas e começou a encaminhar-se para o Lincoln.

 

Elizabeth ficou de boca aberta ao ouvir as palavras de jantzen. Furiosa, foi atrás dele.

 

O que quer você dizer com isso? - perguntou ela, agarrando-lhe no braço ao aproximar-se dele.

 

Ele fitou-a com desdém e o seu olhar demorou-se na Mão dela, impecavelmente tratada e de uma palidez que contrastava com o tom bronzeado da sua própria pele. Elizabeth estremeceu quando se apercebeu do seu gesto. Com a maior naturalidade de que foi capaz, retirou a mão e recuou. A palavra «perigoso» atravessou-lhe de novo a mente. Empinou o queixo e enfrentou-o com um olhar igualmente altivo,

 

-Você está a insinuar que eu tive alguma coisa a ver com a morte do Jarvis?

 

-Estou a insinuar que você pode não estar a dizer-nos a verdade - respondeu. - Só teremos a certeza quando a interrogarmos.

 

Elizabeth deitou-lhe um olhar furioso e respirou fundo, obviamente disposta a dizer-lhe exactamente o que pensava dele e da sua teoria. Dane virou-lhe as costas com naturalidade e fez sinal a Kenny Spencer para que se aproximasse. Esboçou um sorriso desagradável ao ouvir a mulher a dominar-se atrás dele. Duvidava que ela estivesse habituada a que os homens lhe virassem as costas. Sentiu-se tremendamente satisfeito ao pensar que podia ter sido o primeiro.

 

- KennY, leve Miss Stuart para a esquadra e espere por mim no meu gabinete.

 

- Sim, senhor. - o jovem agente virou-se para Elizabeth com um ar expectante, - Minha senhora?

 

Elizabeth ignorou-o. Foi atrás de Dane e agarrou-lhe de novo no braço quando ele ia a afastar-se.

 

- Está a prender-me, xerife?

- Por enquanto, não.

 

- Nesse caso, eu poderia ir lá ter mais tarde - disse ela.Ouvi dizer que mandou chamar os homens do Gabinete de Investigação Criminal. E gostava de ficar a vê-los em acção. Tenho um trabalho a fazer aqui, como sabe,

 

Estou-me nas tintas para o seu trabalho. o senhor não tem o direito...

 

- Tenho todos os direitos, Mistress Stuart. - Dane inclinou-se para ela, tentando intimidá-la com o seu peso e o seu sorriso escarninho. - A senhora é uma testemunha de um crime.

 

-Também sou uma representante da imprensa, -Farei o possível por não usar isso contra si.

 

A pensar na sua nova empresa, Elízabeth apontou para a pequena multidão que aguardava no perímetro da zona que fora isolada pelos agentes.

 

- Tenho tanto direito a ficar aqui como qualquer deles. Não lhe agradava a ideia de fazer dinheiro com a morte de um homem, mas essa era a notícia. Nada neste mundo iria devolver a vida a Jarrold Jarvis, mas Jarvis ainda poderia ajudá-la a pagar as contas e a dar de comer a ela e ao filho. Elízabeth não permitiria que Dane Jantzen a fizesse perder essa oportunidade sem dar luta.

 

Dane lançou uma olhadela aos repórteres e aos fotógrafos, que esperavam como hienas junto da presa de um leão, Aguardavam a oportunidade de romper o cerco dos agentes e de conseguir um petisco suculento para os seus jornais ou noticiários. Estavam atentos a todas as informações que conseguiam apanhar. Dane era capaz de identificar os que tinham vindo de Minneapolis e de St. Paul. Possuíam um aspecto especial - faminto, agressivo, inteligente. Os seus olhos brilhavam com o mesmo tipo de entusiasmo que era visível em Ann Markham ante a perspectiva do sexo rápido e brutal. Os outros, das estações e dos jornais mais pequenos de Rochester, Austin e Winona, eram menos afirmativos, mas não menos persistentes na sua busca de pormenores sórdidos. Era a lei do mais forte na imprensa. Na opinião de Dane, nenhum deles tinha o direito de estar ali, Um homem fora assassinado. Era uma tragédia e não uma oportunidade para tirar fotografias.

 

Sem olhar para Elizabeth, Dane apontou com um gesto de cabeça para o carro-patrulha mais próximo.

 

- Vá, Kenny.

 

-Não! - segredou Elizabeth, furiosa, não mais desejosa de ser ouvida pelos colegas do que Dane. Inclinou-se para ele até ficarem ambos com os narizes quase colados. Fui eu que o encontrei...

 

- E a protecção de testemunhas? - rosnou Dane com uma expressão escarninha.
Céus, ela era uma cabra de sangue-frio, desejosa de fazer dinheiro à custa de um homem como pudesse. Aparentemente, nem sequer lhe interessava se ele estava vivo ou morto.

 

Dane pensou nos homens que ela amara e abandonara, no modo como tentara sugar dinheiro a Brock Stuart. Lembrou-se de Tricia a trocá-lo por um homem mais novo e ambicioso e dos elementos da imprensa de Los Angeles a lamberem a história como gatos famintos diante de um prato de leite. o mau humor fugiu um pouco mais ao seu controlo.

 

-Julga que merece tratamento exclusivo, Mistress Stuart? - Aboca de Dane retorceu-se num sorriso terrível, - Muito bem.

 

Elizabeth perdeu o fôlego quando a mão dele se fechou à volta do seu braço. Aproximou-se de novo do cadáver, puxando-a como se ela fosse um brinquedo. Parou, ajoelhou-se júntto de Jarvis e obrigou-a a baixar-se com tal violência que Elizabeth foi obrigada a largar a máquina fotográfica e a agarrar-se à porta aberta do carro para não cair em cima de Jarvís. A máquina caiu-lhe do peito e o cascalho do caminhO enterrou-se-lhe nos joelhos quando ela aterrou com um grunhido ao lado do corpo.

 

- Quer um exclusivo, Mistress Stuart?

 

Dane fez rolar o cadáver sem olhar para ele e de olhos Pregados em Elizabeth.

 

-Aqui está um momento Kodak para si, Liz. Tire umas fotografias para o velho álbum enquanto pode. Não deixe de Captar aquele sorriso encantador, por baixo do segundo queixo dele.

 

As lágrimas saltaram dos olhos de Elizabeth, que reviveu o horror da sua descoberta duas horas antes. Engoliu-as com esforço e deitou um olhar furioso a Dane Jantzen. Nesse momento, odiou-o tanto como tudo o resto.

 

-Céus, você é um patife - disparou ela,

 

NãO se esqueça disso, querida. - Dane levantou-se, Puxando-a ao mesmo tempo, e virou-se para a entregar a Spenser, mas Kenny deitara um olhar inadvertido a Jarvis e vOMitava por cima das botas, encostado ao porta-bagagens do lincoln. - Ellstrom! - gritou Dane ao agente, que olhava para o cadáver com um ar inexpressivo. - Leva Mistress Stuart para a esquadra e trata bem dela. Prestará declarações mais tarde.

 

Ellstrom desviou o olhar de Jarvis. Uma ruga de preocupação formou-se-lhe entre as sobrancelhas.

 

-Mas os tipos da investigação criminal...

 

-Vão ficar atrapalhados sem a tua supervisão - concluiu Dane secamente, segurando no cotovelo de Elizabeth e encaminhando-a para Ellstrom.

 

-Eu vou prestar declarações, xerife.

 

Elizabeth libertou o braço das mãos pegajosas de Ellstrom e deu um passo na direcção de Jantzen. Veio-lhe à mente uma sugestão particularmente insultuosa e grosseira, mas não conseguiu articular as palavras ao olhar para ele. A expressão do homem era demasiado trocista e divertida. Ele rir-se-ia se ela se descontrolasse e troçaria se ela soçobrasse. Era uma situação perdida. o que mais lhe apetecia fazer era dar-lhe um pontapé, mas não era preciso acrescentar uma agressão a um agente a tudo o resto que lhe correra mal nesse dia.

 

- Faltam-lhe as palavras, Mistress Stuart? - perguntou ele, erguendo uma sobrancelha.

 

-Não - rosnou ela entre dentes. - Só não encontro uma suficientemente desagradável para lhe chamar.

 

- Tenho uma enciclopédia em cima da secretária. Pode servir-se dela, se quiser.

 

- Não me tente - ameaçou ela, recuando em direcção ao agente. - o que eu gostaria de fazer com ela talvez estragasse a encadernação.

 

Dane soltou uma risadinha, apesar de não gostar da mulher. Era muito insolente... E tinha um traseiro que fazia suar as palmas das mãos a um homem, reparou ele quando ela se afastou na companhia de Ellstrom. Os seus movimentos tinham algo de pecaminoso. E o modo como enchia um par de calças de ganga dava vida a um morto.

 

Era uma pena que ela só arranjasse sarilhos.

 

Boyd Ellstrom desceu a rampa ao volante do carro-patrulha, deixando para trás o complexo e o enxame de repórteres que tentara vir atrás do automóvel. Aquele filho da mãe do Jantzen tentaria enaltecer-se o mais que pudesse junto da imprensa, mas era Boyd que escoltava a testemunha principal à saída do local do crime. Várias câmaras haviam registado esse momento em filme e em vídeo. Boyd não se esqueceria de arranjar todas as cópias das fotografias que pudesse. Dariam jeito nas eleições seguintes.

 

Sim, senhor, a morte do velho Jarrold só trouxera vantagens, na opinião de Boyd. Morrer fora talvez a única coisa que o velho patife fizera para beneficiar mais os outros do que ele próprio. Jarrold teria apenas a hipótese de apodrecer debaixo da terra. Por outro lado, Boyd encarava um futuro mais risonho, desde que encontrasse uma certa declaração de dívida antes de mais alguém tropeçar nela.

 

A ideia de que aquele maldito papel andasse por ali a esvoaçar revolveu-lhe as entranhas como uma cobra nos espasmos da morte. Sentia a falta de uma bebida.

 

Jarvis sempre guardara para si os nomes das pessoas que lhe deviam dinheiro e favores. Tanto gostava de se gabar disso publicamente como da sensação de fazer as vezes de Deus, manipulando com mãos invisíveis, dando e tirando consoante lhe apetecia. Escondera todas as provas algures, COMO um mago pérfido quando queria exercer uma certa Pressão, como fizera com Boyd nesse mesmo dia.

 

o monte de banha passara o dia inteiro a percorrer a cidade com aquele maldito bilhete na algibeira das calças.

 

Us: $18000. Boyd Ellstrom :Tirara-o e pusera-o em cima da mesa do Coffee Cup precisamente nessa manhã, enquanto fingia procurar trocos para dar de gorjeta. Boyd ia morrendo ao ver aquilo. Durante os noventa segundos que aquele pedaço de papel estivera em cima da mesa, à vista de metade das pessoas da cidade, Boyd imaginara toda a sua vida a ir pelo cano abaixo. Se alguém de Still Creek sonhasse que ele devia dinheiro a Jarvis - ou, o que era mais importante, por que motivo é que ele devia dinheiro a Jarvis - bem poderia dizer adeus à sua carreira política. Jarvis limitara-se a sorrir-lhe por cima da chávena, o porco.

 

Bem, também morrera como um porco, não era verdade?, pensou Boyd. Como um porco no matadouro. Justiça poética, mais nada.

 

Elizabeth examinou o agente pelo canto do olho, e não lhe agradou o que viu na cara do homem à luz do painel de instrumentos. A cabeça grande e quadrada e os ombros descaídos faziam lembrar Fred Flintstone. Tinha um ar animalesco e parecia ser o tipo de homem que procurava cargos de autoridade para que estes lhe dessem uma sensação de poder em relação às outras pessoas.

 

Aprendera cedo a ser rápida e arguta na avaliação dos demais, o que se revelara essencial para a sua sobrevivência em Bardette, uma localidade poeirenta e condenada em que o cabaré e o bordel eram os únicos negócios rentáveis e a maioria dos homens pior do que as cascavéis que se enrolavam atrás das pedras. Aprendera a avaliar um homem à primeira vista. o agente Ellstrom pertencia à mesma categoria de Jarrold Jarvis.

 

A imagem de Dane Jantzen inundou-lhe a mente em tecnicolor - esbelto, predatório e grosseiro. Em que categoria se inseria ele? Numa muito própria, pensou ela, fazendo o possível por ignorar a sua perturbante confusão de sentimentos - desejo e inquietação, prudência e raiva. A última coisa de que precisava agora era de perder a cabeça por um homem como Dane Jantzen.

 

Viera para Still Creek a fim de recomeçar a vida, para construir uma empresa e cuidar da sua auto-estima e da sua relação com o filho. Tinham chegado há três semanas, e ela já estava envolvida na investigação de um crime e sem as boas graças do xerife. Que maravilha!

 

- Você conhecia-o? - perguntou ela abruptamente, com necessidade de quebrar o silêncio e de interromper o fluxo dos seus pensamentos.

 

Ellstrom sacudiu a cabeça na sua direcção, como se se tivesse esquecido de que ela estava ali.

 

- o Jarrold? Claro que o conhecia. Toda a gente o conhecia.

 

Pronunciou estas palavras quase em ar de desafio, levando-a a questionar o facto de o morto ser muito conhecido e até estimado.

 

-Creio que isto não foi exactamente uma surpresa disse ela, intrigada.

 

Ele mexeu-se no banco e resmungou qualquer coisa em voz baixa enquanto ajustava o volume do rádio. o zumbido da electricidade estática aumentou como o ruído de um daqueles aparelhos que reproduziam o som das ondas do mar, anunciados na contracapa das revistas baratas para adormecer as pessoas. Elizabeth cerrou os dentes. Encolheu-se ao ouvir o zumbido dissonante, mas acalmou-se automaticamente quando anunciaram a chegada iminente do laboratório móvel do GIC.

 

Ellstrom praguejou em surdina e cerrou os dentes, agarrado ao volante.

 

-Presumo que você não aprova isto - comentou Elizabeth, virando-se de lado no banco para ouvir melhor as respostas do homem.

 

-Podíamos ser nós a tratar do caso - respondeu ele, ainda na defensiva. - o Jantzen mandou chamar esses tipos da cidade e nós faremos de criados deles. Não precisamos de um grupo de doutores a farejar por aqui.

 

Um sorriso malicioso formou-se ao canto da boca de Elizabeth. Divisões nas fileiras. Ela percebeu sem fazer perguntas que Jantzen as detestaria. Tinha um ar de líder absoluto.

 

- Posso citar essas suas palavras, subchefe? - perguntou ela, num tom subitamente meloso e arrastado.

 

Não estava acima do uso prudente das artimanhas femininas, desde que não se comprometesse. Uma mulher tinha de recorrer às armas de que dispunha. Se o facto de pestanejar uma ou duas vezes fizesse soltar a língua de um homem, o problema era dele e não dela.

 

Um sorriso ainda mais desagradável formou-se aos cantos da boca de Ellstrom, que ponderou as consequências de ser citado no Clarion por Elizabeth Stuart. Jantzen ficaria furioso. Só isso já valia a pena.

 

Deitou-lhe um olhar de esguelha, reparando nos grandes olhos cinzentos e na boca apetitosa. Já a vira na cidade. Tinha um corpo que dava a volta à cabeça de um homem. Não sabia ao certo o que agarraria primeiro se tivesse oportunidade, as mamas ou o rabo. De qualquer modo, era garantido que um homem passaria uns bons momentos com ela. Não lhe custava nada fazer-lhe um ou dois favores, pensou, mexendo-se no banco quando a braguilha das calças se empinou, fazendo-o esquecer por momentos os problemas intestinais. Dizia-se que ela estava disposta a retribuir um favor a um homem... Em cima dela. Este pensamento fez estremecer o sexo de Ellstrom.

 

- Sim, evidentemente. Porque não? - Ellstrom endireitou-se atrás do volante, enchendo o peito de ar, todo ufano. - Como eu disse, o Jantzen está a dar cabo desta investigação ao chamar gente de fora. Nós sabemos tratar dos nossos problemas em Tyler County.

 

-Livra, você parece mesmo a voz da autoridade murmurou Elizabeth, satisfeita com o facto de a penumbra não permitir que ele a visse a rolar os olhos nas órbitas.

 

Ellstrom fungou e fez um sinal de assentimento.

 

- Sim, bem, eu podia ter vencido o Jantzen nas últimas eleições, sabe?

 

- Isso é verdade?

 

- Ele só venceu porque foi futebolista profissional. É um grande negócio.

 

No mesmo instante, Elizabeth imaginou Jantzen vestido de futebolista a rigor - chumaços a acentuarem-lhe os ombros e calções elásticos a aconchegarem-lhe o traseiro. Amaldiçoou-se por ter um fraquinho por homens grandes e de porte atlético. A sua vida teria sido muito mais calma se se sentisse atraída pelo tipo anémico, calvo e intelectual.

 

Os faróis do carro-patrulha iluminaram o seu Eldorado, que se destacava do lado sul da estrada, abandonado como uma baleia que tivesse dado à costa. Elizabeth suspirou.
Maldito carro! Se o seu Caddy não tivesse um chassis mais baixo que a barriga de uma porca, ela teria passado por Still Creek e estaria agora em casa, ignorando alegremente o assassínio de Jarrold Jarvis e a existência de Dane Jantzen.

 

Ellstrom reduziu a velocidade e deitou um olhar desconfiado ao carro, denunciando os seus miraculosos instintos de polícia.,

 

- É seu?

- É.

 

Elizabeth sentiu um aperto no coração quando passaram pelo carro. Não conseguiu zangar-se com ele. Era um modelo de 76, um calhambeque cor de cereja, concebido antes da era da economia de combustível e da aerodinâmica. o Eldorado, o último descapotável da General Motors da sua época, possuía a dúbia distinção de ser o maior automóvel do mundo no ano em que fora lançado. Consumia litros e litros de gasolina e gastava óleo com o à-vontade de um xeque saudita, mas Elizabeth adorava-o. Fazia-lhe lembrar o Texas e dinheiro, coisas que ela deixara para trás.

 

O que aconteceu? - perguntou Ellstrom, com um laivo suplementar de arrogância masculina na voz. - Ficou sem gasolina?

 

-Não. É uma coisa... que acontece de vez em quando respondeu Elizabeth, defendendo-se. Nessa noite, passava bem sem a presunção e a estupidez masculina. Já lhe bastava o dia seguinte, quando fosse à procura de alguém para rebocar o carro para a estrada. Seria um homem, que lhe faria uma festa na cabeça e se riria dela às escondidas. Na opinião de Elizabeth, Deus devia ter criado igual número de mulheres condutoras de reboques. Mas, afinal, Ele era um homem. - Faz ideia de quem o possa ter assassinado? perguntou ela, retomando o fio da conversa.

 

-E você? - Os olhos de Ellstrom viraram-se rapidamente para ela. - Você é que é a testemunha.

 

- Eu? Meu caro, eu pouco mais vi do que o chocolate que vomitei. O local podia estar repleto de assassinos. Garanto-lhe que nem me voltei para ver. E também não me alongo em teorias. Não conheço ninguém aqui suficientemente bem para dizer se seria ou não capaz de matar alguém. E você? Se pouco lhe faltou para ganhar as eleições, deve saber quem é que queria ver o Jarrold morto e pelas costas.

 

Ellstrom fez um ar carrancudo. Ignorando-a, pegou no microfone do rádio e informou alguém chamado Lorraine que levava uma testemunha importante e que era melhor ela ter tudo pronto. Elizabeth recostou-se no banco. Aparentemente, a loquacidade do agente Ellstrom não ia além de dizer mal do chefe. o que fazia sentido. Se ele começasse a desfiar teorias acerca de suspeitos, era provável que fosse obrigado a justificá-las com algo mais do que fanfarronices.

 

O dia chegava ao fim e Still Creck encerrara. Os falsos candeeiros a gás que bordejavam Main Street projectavam uma luz rosada e nebulosa nas montras dos estabelecimentos que se encostavam uns aos outros dos dois lados da grande rua principal. As fachadas trabalhadas dos prédios construidos nos primeiros anos do século xix erguiam-se como sentinelas emudecidas, e as janelas escuras olhavam sem expressão quando o carro-patrulha passou.

 

Still Creek, uma cidadezinha ordenada, estava impecavelmente tratada à boa maneira do Midwest, em benefício dos turistas que eram atraídos pelo bucolismo da paisagem e pelas muitas quintas amish que existiam na região. Não havia lixo nas sarjetas e as fachadas dos estabelecimentos não precisavam de pintura. Viam-se vasos de gerânios à beira dos passeios, em intervalos regulares. o banco de Jardím vermelho, um exemplar isolado e elegante encostado a um prédio, oferecia repouso a quem estivesse cansado de andar a saltar entre as várias lojas de recordações. As montras estavam decoradas com austeros objectos amish, mantas que eram verdadeiras obras de arte ou flores escandinavas garridas, pintadas nas vidraças em arabescos coloridos que lembravam enfeites de um bolo. Uma bandeira desfraldada por cima de Maine Street anunciava a festa anual dos Tempos do Cavalo e da Carroça, que começaria dentro de uma semana.

 

O carro-patrulha passou lentamente pelo velho edifício que albergava o Clarion de Still Creek. Tal como os que o ladeavam quer a norte quer a sul, era revestido de tijolo escuro, tinha dois pisos, e as comijas e os dentículos fantasiosos ao longo da fachada realçavam o facto de se tratar apenas de um velho e simples edifício comercial de caves húmidas e soalhos ressequidos. As letras douradas que se encavalitavam na janela ampla do primeiro andar estavam ali há noventa e dois anos, proclamando a toda a gente que o Clarion dizia a verdade.

 

Elizabeth pensou nas horas que passaria no dia seguinte a trabalhar na história dos acontecimentos dessa noite. A verdade. Olhando para a cidade adormecida à sua volta, percebeu instintivamente que a verdade estava muito para além da morte de Jarrold Jarvis e que Still Creek nunca mais seria a mesma. Mas a verdade era o que ela iria publicar. A verdade sem atavios nem adulterações.

 

O tribunal parecia um enorme cogumelo achatado no centro da cidade, rodeado em três frentes pelo Parque Keillor. Construido em 1882, no ano em que os caminhos-de-ferro tinham chegado e em que Still Creek conquistara o título de sede de Tyler County, era constituído por grandes blocos de calcário empilhados um por um por imigrantes alemães e noruegueses cujos descendentes ainda lá viviam. A praça vetusta obrigara Main Street a contorná-la e, apesar do seu traçado pitoresco, não favorecia a circulação do trânsito, o que explicava que a auto-estrada se tivesse desviado para oeste, evitando totalmente o centro de Still Creck.

 

Ellstrom virou para o parque de estacionamento e parou num espaço encostado à parte lateral do edifício em que se lia XERIFE JANTZEN. Elizabeth teve vontade de rir, mas disfarÇou. Fosse qual fosse o antagonismo existente entre o xerife e o agente, a situação não era agradável. o brilho nos olhos de Ellstrom era demasiado malicioso para ser menosprezado.

 

O homem entrou no edifício por uma porta lateral em que se lia ESQUADRA DE TYLER COUNTY, desceu uns degraus de mármore e percorreu um corredor branco e frio, inundado de luz fluorescente vinda dos candeeiros do tecto. Elizabeth seguiu atrás dele e virou à direita. Os saltos das suas botas de cowboy produziam um ruído monótono no chão liso e duro. Não sabia o que iria seguir-se nem quanto tempo iria demorar. Trace chegava a casa por volta das onze horas. o grande relógio redondo por cima da recepção marcava já Onze e dez.

 

- Lorraine, esta é Mistress Stuart - anunciou Ellstrom num tom de voz que denunciava uma falsa autoridade. Foi ela que encontrou o Jarrold. o Dane quer que ela espere no gabinete dele. Tenho de voltar para ajudar a manter a segurança no local do crime.

 

O homem puxou as calças para cima e encheu o peito de ar. Viril e duro, no comando das operações.

 

De trás da sua secretária em U a imitar madeira de bétu, Lorraine Worth deitou-lhe o olhar frio e implacável de uma mulher que não se deixava enganar por muita coisa e decerto não por ele. A secretária-recepcionista estava sentada no seu posto, em pose de mestre-escola e com a boca crispada, vestida como June Cleaver andaria por casa e com um colar de pérolas ao pescoço. o cabelo atingia uma altura impressionante, graças a um penteado rígido cor de metal. As sobrancelhas desenhadas a lápis eram linhas grossas e escuras que lhe davam um ar austero e minimizavam o seu olhar maternal. A mulher fitou Ellstrom através de uns óculos com incrustações de marcassite que brilhavam nos cantos exteriores como olhos de gato, e de certo modo conseguiu ultrapassar o nariz comprido e aquilino, apesar de o homem se encontrar num plano superior.

 

- O pessoal do laboratório de investigação criminal está a chegar - anunciou ela com um ar imperioso. - o melhor é desapareceres daqui, caso contrário ainda acabas a recolher as chávenas do café.

 

Ellstrom semicerrou os olhos e fez um ar carrancudo, o que não surtiu qualquer efeito visível. Em seguida, deu meia volta e afastou-se, enquanto Lorraime atendia o telefone, puxando o auscultador para a sua direita.

 

Gabinete do xerife de Tyler County ...Não, o xerife não tem declarações a fazer.. Que eu saiba, ainda não foram efectuadas detenções - declarou ela, lançando um olhar penetrante a Elizabeth, apercebendo-se instantaneamente do seu aspecto e fazendo um esgar de reprovação. - Eu não sei nada acerca da mulher nem alimento mexericos, seja em que circunstâncias for. Agora, peço-lhe que desligue. Esta linha tem de estar disponível para emergências.

 

Ela própria pôs termo à conversa, pousando o auscultador no descanso com toda a força.

 

- Deixe-me que lhe diga que este caso me desagrada profundamente - afirmou ela com um ar decidido, continuando a trespassar Elizabeth com o olhar como se estivesse mais do que pronta a acusá-la. - Há trinta e três anos que não há um assassínio em Tyler County .Desde que o Olie Grinisrud matou o Weridel Svenson, o leiteiro, por ter abusado da Leda Grinisrud atrás do tanque grande, na leitaria deles. Isto não me agrada nada.

 

-Não me incomoda assim tanto - disse Elizabeth quando o telefone tocou outra vez junto do cotovelo de Lorraine.

 

Não lhe agradava que a mulher tivesse insinuado que o extraordinário fluxo de lei e de ordem fora interrompido por culpa dela, mas detectara um lampejo de medo no olhar de Lorraine Worth. Suspirou. Durante muito tempo, Still Creek fora um refúgio seguro para os seus habitantes. Agora, surgira a realidade hedionda de um mundo brutal. A mulher tinha o direito de estar furiosa.

 

A própria Elizabeth sentia os nervos em franja. Não estava habituada a encontrar cadáveres perto da sua casa. Estremeceu ao lembrar-se de que estivera a dois passos do sucedido. Pensou em Trace a caminhar ao longo da estrada, talvez a tentar apanhar boleia, e o seu estômago transformou-se num bloco de gelo.

 

- Ouça, há por aqui algum telefone público donde eu possa falar? Preciso de telefonar ao meu filho.

 

A recepcionista deitou-lhe um olhar prolongado que, na Opinião de Elizabeth, se destinava a transmitir os sentimentos da mulher em relação a mães divorciadas e a mulheres que tropeçavam em cadáveres, ou ambas as coisas. Em seguida, inclinou fortemente o penteado para a esquerda. Agradecendo em voz baixa, Elizabeth encaminhou-se para o telefone público que estava pendurado na parede oposta, enquanto Lorraine levantava o auscultador e chamuscava o ouvido de outro curioso qualquer.

 

Elizabeth ouviu cinco toques do outro lado da linha, antes de o gravador de chamadas ser accionado. Praguejou em surdina. Não era raro Trace chegar tarde. Por sinal, era mais a regra do que a excepção, uma das suas maneiras subtis de lhe dizer que não gostava da nova casa de ambos, do novo estilo de vida, dos novos códigos de conduta. o psicólogo de Atlanta recomendara a Elizabeth que desse «estrutura» ao filho; mas não explicara como havia ela de obrigar Trace a aceitá-la.

 

Elizabeth deixou a sua mensagem e desligou, suspirando. o seu menino dera lugar a um jovem solene de olhar perturbado e ombros largos e crispados, a um adolescente provocador e belicoso. Mas seria preferível falar com um adolescente provocador e belicoso do que não saber onde ele se encontrava na noite em que se registara o primeiro assassínio de Tyler County ao fim de trinta e três anos.

 

Elizabeth tirou outra moeda de vinte e cinco cêntimos da mala, introduziu-a no telefone e ligou de novo, encostando o ombro à parede e olhando para Lorraine Worth, no outro lado da sala. Assustadoramente eficiente, a mulher estava sentada no seu posto, atenta como um doberman de guarda. Ao sexto toque, atendeu uma voz abafada.

 

- Sim, o quê? Quem? Hum?

 

- Jolynn, sou eu - disse Elizabeth, baixando a voz e falando num tom conspiratório. - Acordei-te?

 

- Que pergunta tão estúpida. Quem é você? Uma repórter?

 

- Acorda e ouve com atenção. Houve um assassínio.

- Um quê?

 

- Um assassínio. Alguém matou alguém. Deves ter visto isso uma ou duas vezes na televisão.

 

Elizabeth apanhou Lorraine Worth a olhar para ela, com a cabeça inclinada como uma antena de satélite em recepção máxima. Fez um ar carrancudo e virou as costas à mulher para poder falar com a sua editora com privacidade.

 

Fora Jolynn que a convencera a ir para Still Creck depois do divórcio, fora Jolynn que a convencera a comprar o Clarion, Jolynn que era a sua única empregada e quase a sua única amiga. A amizade de ambas remontava a El Paso e à Universidade do Texas, um período sobre o qual parecia já ter passado um século, tal era o que acontecera entretanto. Elizabeth agradecia a Deus por ela ter sobrevivido aos anos de separação. Depois do divórcio, sentira-se como um daqueles astronautas que caminhavam no espaço com rédea curta, exactamente como em 2001: Odisseia no Espaço andara à deriva, à procura de um sítio e de algo a que se agarrar. Depois aparecera Jolynn, que lhe falara em ir para Minnesota, onde a vida era calma e as pessoas simpáticas.

 

Do outro lado da linha ouviram-se vários estalidos e sons arrastados, e Elizabeth imaginou Jolynn a tentar sentar-se na sua cama em segunda mão, com as velhas molas a gemer e a queixar-se quando ela se encostava à cabeceira. Jo não tinha mais de um metro e cinquenta e quatro de altura, mas era de «proporções generosas», como ela costumava dizer, e o seu velho colchão desistira há muito de qualquer pretensão a suportar fosse quem fosse.

 

- Oh, meu Deus! - exclamou ela em voz baixa. Estás a brincar?

 

Elizabeth suspirou.

 

- Quem me dera, querida, mas não estou. o homem está morto e bem morto, e eu tenho de saber, porque fui eu que o encontrei.

 

-Céus! - murmurou Jo num tom reverencial. - Eu estava com dores de cabeça. Desliguei o sensor e fui para a cama às nove horas. o que aconteceu?

 

-Alguém matou o Jarrold Jarvis em Still Waters. Podes sair imediatamente?

 

-Sim, claro. Onde estás?

 

-Na esquadra. o mais provável é que me demore por aqui. Éuma longa história.

 

-Não duvido. Céus, o Jarrold Jarvis! Finalmente, alguém teve tomates para fazer uma coisa dessas.

 

-A grande questão é saber quem foi - prosseguiu Elizabeth, enrolando o fio do telefone à volta do dedo. - Podes sair já? o GIC acabou de chegar ao local do crime. Eles e mais nove mil repórteres.

 

- Nove mil e um, patroa.

 

Jolynn voltou a pousar o auscultador no descanso e passou a mão pela esfregona de caracóis castanhos que lhe chegavam ao queixo e lhe caíam sobre os olhos, tentando digerir a informação que Elizabeth lhe dera, tentando fazê-la Parecer real. Um assassínio. Puxou o lençol até ao pescoço, enrOlando o tecido no punho, como se ele pudesse protegê-la da fealdade do mundo.

 

Uma luz ténue cor de âmbar atravessava o quebra-luz do candeeiro da mesa-de-cabeceira. De repente, a iluminação pareceu-lhe insuficiente. Os cantos escuros do quarto modesto e desarrumado mostravam-se ameaçadores, e Jolynn sentiu-se transportada de novo para a infância, quando todas as sombras nocturnas encerravam uma ameaça.

 

- Não vais sair, pois não, querida?

 

Jolynn estremeceu como se se tivesse esquecido do homem que estava deitado a seu lado. Este virou-se para ela com um movimento indolente, pegou na ponta do lençol e afastou-o para o lado, deixando à mostra um selo roliço.

 

Jolynn afastou-se do ex-marido, pondo as pernas fora da cama. Largou o lençol e pegou no monte de roupa amarrotada que estava em cima da velha carpete bege.

 

- Sim, vou sair. Desculpa, Richard. o dever chama-me. Atrás dela, Rich Cantion ajoelhou-se no colchão deformado. Quando Jo vestia as cuecas, ele agarrou-lhe a cintura por trás e puxou-a para si.

 

-Vá lá, Jolynn. o meu coiso está pronto para brincar outra vez.

 

Jolynn sentiu-lhe o pénis erecto, a confirmar as suas palavras como um ponto de exclamação físico.

 

- Richard - disse ela gemendo, descontente com ele e consigo própria.

 

Sentia-se sempre suja e reles depois de um daqueles encontrozinhos a dois. E sucumbia sempre aos encantos de Richard quando ele voltava a aparecer. Era um dos pequenos ciclos vitais de que ela não conseguia sair. Detestava-o tanto como ao seu período, mas sentia-se sempre aliviada quando ele chegava. Era mais ou menos o que sentia em relação a Richard.

 

Ele aparecera-lhe à porta das traseiras às oito e meia, sem se fazer anunciar, inesperadamente, com urgência. E ela levara-o para a cama, sem mais nem menos.

 

Jolynn agarrou-lhe os pulsos no momento em que os dedos dele escorregavam para os recantos escuros no meio das suas coxas. Richard tinha umas mãos largas, com dedos curtos e grossos e unhas invulgarmente bem tratadas. Não se dera ao trabalho de tirar a aliança que Susie Jarvis lhe enfiara no dedo nem o relógio de pulso que Jolynn lhe oferecera no quinto aniversário do casamento de ambos.

 

-Agora não pode ser - insistiu ela, tentando afastar-lhe as mãos do corpo.

 

-Não digas isso - resmungou ele, fazendo beicinho. Nunca me digas isso quando a Susie não está na cidade.

- Receio que a tua mulher tenha escolhido o dia errado para ir às compras - comentou ela, venenosa.

 

Não podia deixar de guardar rancor a Susie Jarvis Carmon. Susie tinha dinheiro. Tinha uma bela casa, um carro novo e operacional. E tinha o marido de Jolynn. Não era que ele fosse grande coisa fora da cama. Era o princípio que irritava Jolynn. Susie tinha tudo.

 

Céus, ela iria ficar com tudo, agora que o pai estava morto. o facto de Jarrold Jarvis ser o pai de Susie atingiu Jolynn como uma surpresa desagradável. Devia ter sentido uma certa compaixão pela rapariga, mas não sentiu. Duvidava que Susie sofresse muito, agora que se encontrava em vias de tomar posse da herança.

 

Afastando-se da cama e de Rich, Jolynn tirou uma blusa azul amarrotada da pista de bowling de Cedar Lanes e enfiou os braços nas mangas. Desistindo, Rich voltou a encostar-se à cabeceira de metal a imitar nogueira. Esta deu um estalido oco quando o peso dele a abaulou. Rich acendeu um cigarro, vendo Jolynn a vestir-se, demorando o olhar em todas as curvas do corpo dela, com uma expressão perturbantemente distante.

 

JolYnn disse com os seus botões que já conhecia aquela frieza. Que estava habituada a ela, que a esperava e que ela não a afectava. Só fazia sexo com ele porque era fácil e vulgar; não era como se ainda estivesse apaixonada por ele.

 

Vestiu as calças de ganga e susteve a respiração para Conseguir abotoá-las e puxar o fecho. Possuía o tipo de silhueta que infelizmente, tal como as saias rodadas, passara de moda - seios roliços e ancas bem torneadas que haviam arredondado um pouco mais nos cinco anos posteriores ao divórcio. Jolynn tinha trinta e três anos e o seu metabolismo abrandava na proporção directa do aumento da preferência Por comida de má qualidade. o excesso de peso conferia um certo volume à sua face rectangular, o que tinha a vantagem de a fazer parecer mais nova do que era. Era preciso olhar de perto para reparar nas pequenas rugas de stress que haviam começado a formar-se junto dos olhos e à volta da sua boca de boneca.

 

- Então o que se passa? - perguntou Rich, resignando-se finalmente a não ser o centro das atenções naquele momento.

 

Passando uma escova pelo cabelo, Jolynn olhou para a imagem dele reflectida no espelho por cima da cómoda. Com trinta e nove anos, natural de Still Creck, Richard era esbelto e irradiava ainda a arrogância que cultivara quando andava no liceu e era jóquei - o ponto alto da sua vida até à data. Recostou-se na cama como se ela lhe pertencesse, com os cabelos cor de palha desgrenhados, o cigarro pendurado por baixo do bigode e uma mão a coçar distraidamente o tufo de pêlos dourados do peito. Elizabeth dizia que ele se parecia um pouco com Robert RedfÓrd no papel de Sundance Kid, mas um pouco mais velho e debochado. Era uma descrição perfeita. Havia um traço de vileza no seu olhar e de fraqueza na linha da boca, que só era perceptível depois de se ter dissipado o fascínio inicial provocado pelo seu bom aspecto e pela sua aura dourada. Rich comunicara a Jolynn que iria concorrer ao lugar de representante do estado no Outono. Jolynn perguntou a si própria quantas pessoas se aperceberiam de quem ele era antes de irem votar.

 

Sentiu-se inundada pelo ódio, como sempre acontecia quando olhava para Rich e o via tal como ele era - o patife que a trocara por um casamento mais vantajoso e que depois tivera a desfaçatez de a procurar, esperando que ela se rejasse aos seus pés... o que ela fazia, repetidamente.

 

- Alguém matou o teu querido sogro esta noite anunciou ela abruptamente, pegando num vaporizador de Charlie que estava em cima da cómoda atravancada. Serviu-se generosamente, esperando disfarçar o cheiro a sexo. Não tirou os olhos do espelho.

 

- Não! - disse Rich em voz baixa, mostrando-se chocado, mas sem uma ponta de desgosto. Pousou o cigarro no cinzeiro a abarrotar que se encontrava em cima da mesa-de-cabeceira, mas não se levantou da cama. - Mataram-no Hum. Vou passar a ser um filho da mãe.

 

- Sim, já és. Eu ficava a consolar-te, mas tenho que fazer - retorquiu Jo secamente, pegando na carteira que estava em cima da cómoda.

 

-Aposto que a tua nova patroa não quer perder esta oportunidade - disse ele. - Ela é a grande colunável de Atlanta, não é verdade? Aposto que gostaria de lá estar para ficar com a glória só para ela.

 

Jo deitou-lhe o mesmo olhar que deitaria a um naco de carne retardada.

 

- Esse raciocínio não abona a teu favor, Rich. Não quero magoar-te, mas, se pensares melhor, chegarás à conclusão de que ninguém que trabalha no Clarion irá retirar qualquer glória disto, e o mais provável é sermos comidos pela carrinha de uma estação de Minneapolis.

 

- Então, porque vais? - perguntou ele, pegando no cigarro com o indicador e o polegar e inalando com força. Por instantes, o fumo libertado envolveu-lhe a cabeça numa aura acinzentada; depois elevou-se no ar e formou mais uma camada de sujidade no tecto,

 

Jolynn. olhou para ele com aversão, abanando a cabeça, admirada com a sua estupidez por continuar ligada àquele homem.

 

- Tu não percebes, pois não, Rich? Há quem tenha mulheres ricas e viva à custa delas. E há quem se orgulhe de trabalhar. Acontece que eu sou boa no que faço.

 

-Pois. É uma pena que ninguém dê importância a isso- respondeu ele com um sorriso trocista.

 

Jo estremeceu como se ele a tivesse agredido. Rich semPre soubera onde havia de dar a alfinetada para doer mais; uma das poucas coisas em que era verdadeiramente bom. Jo sentiu-se atingida. Semicerrou os olhos cor de avelã e declarou:

 

-És um pulha.

 

Pegou na primeira coisa que encontrou e atirou-lha com força. Ele afastou-se da caixa plástica de pó-de-arroz Cover Girl, que caiu a seu lado e libertou um cogumelo de poeira fina no ar.

 

- Céús, Jolynn!

 

Levantou-se da cama, nu, engasgado com a mistura de funo e de pó, quase a tropeçar quando o lençol se lhe enroscou nas pernas. Jo virou-lhe as costas e correu para a casa de banho, mas foi apanhada quando ia a pegar no puxador da porta. Um braço forte agarrou-a pelo meio do corpo, e ela foi arrastada para a concavidade do corpo de Rich, que se inclinou sobre ela. Tentou libertar-se, de Richard, de si própria, do seu quartinho sujo, da sua casinha suja.

 

- Vá lá, Jolymn - disse ele num tom bajulador. o bigode dele roçou-lhe na concha da orelha, tosco e macio como a ponta de um velho pincel de barba. Rich debitou banalidades com a facilidade de quem tinha uma longa experiência e era pouco sincero. - Desculpa. Eu não quis ofender-te. Só não quero que saias, querida.

 

-Vai à merda. Vou sair - disparou ela, afastando as lágrimas.

 

Podia não ter orgulho quando se tratava de dormir com ele, mas não havia de chorar na sua presença. Afastou-o e deu mais um passo em direcção à porta.

 

- Estarei aqui quando voltares - prometeu ele em voz baixa.

 

Ela hesitou, com a mão no puxador de latão da porta, procurando reunir a coragem que aparentemente nunca tinha quando ele lhe aparecia em casa.

 

-Não te incomodes.

 

-É melhor esperar no gabinete do xerife.

 

Lorraine Worth agarrou no cotovelo de Elizabeth com firmeza e obrigou-a a atravessar o labirinto de secretárias de metal cinzento até chegar à porta do covil de Dane Jantzen. Atrás delas e além do tocar constante do telefone, Elizabeth ouviu um alarido no corredor exterior e calculou que alguns representantes da imprensa tivessem resolvido cercar o edifício da esquadra e do tribunal e ficar à espera do xerife. Lorraine parecia extremamente irritada com a perspectiva de os enfrentar. Os seus lábios finos ficaram reduzidos a uma austera linha esbranquiçada e as sobrancelhas pintadas abateram-se sobre os óculos felinos como raios escuros. Sem dizer mais nada, a recepcionista empurrou Elizabeth para o interior do gabinete, depositou-lhe uma chávena de café na mão e voltou, disparada, para o seu posto, fechando a porta atrás de si.

 

Elizabeth pôs o café de lado e tirou um cigarro da mala. Numa placa de latão em cima da secretária, que a luz fluorescente fazia sobressair, leu as palavras a negro: AGRADEÇO QUE NÃO FUME. Virou-a ao contrário e acendeu o cigarro. Jantzen que agradecesse a outra pessoa qualquer. Depois do que ela passara, bem merecia fumar um cigarro, pelo menos.

 

O isqueiro tinha a largura de uma bolacha, era de ouro de vinte e quatro quilates, e na superficie plana estavam gravadas as seguintes palavras: «Para o B da E com amor.» Era uma das pequenas recompensas que ela conseguira trazer quando Brock lhe dissera para sair do apartamento no últiMo andar da Torre Stuart. A Nikon que repousava agora na cadeira das visitas, com a sua lente Hasselblad terrivelmente cara virada para o tecto, era outra. Pequenas vitórias.

 

Não que ela aprovasse o roubo. Não aprovava. Sob uma aparência de cinismo pragmático, era basicamente uma moralista. Mas acreditava na justiça. No entanto, às vezes uma pessoa tinha de fazer pela vida. Brock destruíra os seus sonhos com o divórcio. Ela saíra do casamento esgotada e emocionalmente ferida. Um isqueiro e uma máquina fotográfica não eram uma grande compensação mas ajudavam um pouco.

 

Tentando não pensar nisso, vagueou pelo gabinete de Dane Jantzen, com um Virginia Slim a arder na mão direita. Parou o tempo suficiente para o levar à boca e puxar uma fumaça intensa e relaxante. Venderia a alma por um copo do uísque de malte de quarenta e dois anos que Brock mandava vir especialmente da Escócia - do qual ela tinha uma caixa no armário da cozinha - mas o melhor que a recepcionista conseguira arranjar fora um café. Talvez Lorraine Worth não aprovasse as bebidas fortes; tinha o ar austero e crispado que era próprio dos Baptistas.

 

Elizabeth olhou para a chávena de café empoleirada ao canto da pesada secretária de carvalho e franziu o sobrolho. A cafeína era a última coisa de que precisava. Só queria tomar um grande banho quente, o conforto da sua cama e algumas horas de abençoado esquecimento. Mas os seus desejos afastaram-se para um horizonte distante, tremeluzindo como uma miragem. Aquela que já começara a ser uma noite interminável iria prolongar-se. E quando acabasse, e ela fosse autorizada a ir para casa, seria pouco o conforto. Não tinha banheira; existia apenas um compartimento metálico para o duche, estreito e desagradável como um caixão. Talvez tivesse água quente, mas esta saía com uma cor alaranjada dos canos velhos e ferrugentos. Possuía a sua cama, a sua grande cama de bordel, como Brock costumava chamar-lhe, mas não tencionava dormir. Duvidava que conseguisse fechar os olhos sem ver Jarrold Jarvis a saltar do carro como se fosse um boneco de uma caixinha de surpresas.

 

Para se distrair das imagens que a perturbavam, continuou o seu passeio pelo gabinete de Jantzen, a pensar, a procurar pistas acerca do homem. Não era que ele lhe interessasse a um nível pessoal. Pelo que vira, Dane Jantzen era um verdadeiro patife. Mas era de bom senso conhecer o adversário, mais nada. Ela aprendera esta lição a custo. Além disso, queria conhecer todos os pormenores que pudesse para construir a sua notícia. Agora era jornalista, ainda que num modesto bissemanário de uma terriola perdida algures no Minnesota, mas mesmo assim era jornalista, e estava decidida a executar bem o seu trabalho.

 

O gabinete era incaracterístico. Paredes nuas pintadas de branco. Uma janela grande que proporcionaria uma vista panorâmica do espaço exterior se as persianas não estivessem corridas. Uma fila de arquivadores pretos. A parafernália habitual num escritório, incluindo um computador pessoal. Diplomas e louvores pendurados numa parede com simples molduras pretas. Não havia ali nada pessoal de Dane Jantzen, nem cabeças de veado embalsamadas, nem troféus de bowling, nem recordações do tempo em que ele jogava futebol.

 

O homem era organizado. o que não era um bom sinal. Os homens organizados gostavam de controlar tudo e todos à sua volta. Brock era cansativo ao nível do fanatismo e queria controlar o mundo inteiro. Na secretária de Dane Jantzen, a arrumação chegava a ser agressiva. o mata-borrão não tinha uma mancha. As canetas estavam todas no seu suporte de cerâmica, com as pontas viradas para baixo, dispostas da esquerda para a direita por cores, sem dúvida.

 

Ao lado do telefone encontrava-se o único objecto pessoal do gabinete: uma pequena moldura de madeira. Com o cigarro pendurado na boca, Elizabeth pegou na moldura e virou-a. A fotografia era de uma menina, talvez com dez ou onze anos, que começava a dar sinais de vir a ser uma jovem desengonçada. o cabelo castanho estava apanhado em dois totós que lhe chegavam aos ombros. A criança sorria timidamente, encolhendo o nariz, o que lhe realçava as sardas da face. Vestia uns calções largos e uma T-shirt laranja-forte e estava algures num relvado, com um dístico em que se lia AmO-TE PAPÁ, escrito com marcadores de várias cores.

 

Elizabeth estremeceu de admiração e de mais alguma coisa. Papá.

 

-Deus seja louvado! - disse ela entre dentes. - Alguém casou com este filho da mãe.

 

- Ela já viu o erro que cometeu, garanto-lhe. Elizabeth virou-se para o sítio donde viera aquela voz sardônica, conseguindo simultaneamente fazer um ar comprometido e deixar cair o café ao chão.

 

- Merda! Desculpe.

 

Dane enfiou a cabeça no corredor e pediu calmamente a Lorraime que trouxesse uma toalha.

 

- Eu estava à procura de um cinzeiro - mentiu Elizabeth, sem conseguir enfrentar o olhar firme do homem quando este se virou para ela.

 

Inclinou-se e pegou na chávena, esfregando inutilmente a mancha da carpete com um lenço de papel amarrotado que descobrira no bolso das calças.

 

-Eu não fumo - disse ele. Puxou as calças e agachou-se em frente dela, fazendo um esgar cínico e divertido. Isso não lhe faz bem.

 

Elizabeth soltou uma gargalhada estranha, apagando a ponta do cigarro no café que ficara na chávena.

 

- O que existe hoje em dia, além de cereais e de abstinência?

 

- Dizer a verdade, para começar - retorquiu ele tranquilamente.

 

Elizabeth levantou a cabeça e respirou fundo, assustada com a proximidade dele. Dane não fez menção de lhe tocar, mas ela sentiu-o da mesma maneira, como se ele a tivesse acariciado.

 

Instintivamente, inclinou-se para trás, mas bateu com o rabo na parte da frente da secretária e percebeu que ele a encurralara. Não foi uma sensação agradável.

 

- Dizer a verdade é a minha profissão, xerife - declarou ela, tentando mostrar-se firme e calma.

 

- A sério? Julguei que você era repórter. -A sua toalha, xerife.

 

Ao ouvir a voz austera e reprovadora de Lorraine, Dane levantou-se e pegou na toalha que a recepcionista lhe atirou.

- Obrigado, Lorraine.

 

-Eu disse àquela gente que o senhor não tinha mais nada a declarar, mas eles não se vão embora. Parece que estão à espera dela - disse Lorraine, apunhalando Elizabeth com o olhar.

 

Elizabeth levantou-se com as pernas a tremer e afastou-se da chávena. Abriu a boca para falar, mas Dane respondeu por ela.

 

-Ela não tem nada a dizer-lhes.

 

Com um ar contrafeito, Elizabeth pôs a mão na anca. -Eu posso falar por mim, muito obrigada.

 

-Não, à imprensa não pode.

 

O senhor não é juiz, não pode impor a lei da rolha. Ele esboçou um sorriso cruel.

 

- Pois não, mas se você me obrigar, posso sentir-me tentado a servir-me de uma destas toalhas para fazer o mesmo. - o xerife virou-se para Lorraine. Toda a sua sensualidade espalhafatosa se reduziu a um ar autoritário que ninguém de bom senso teria questionado. - o Ellstrom que os ponha daqui para fora. Darei uma conferência de imprensa de manhã.

 

Com um forte gesto de cabeça, a secretária saiu para cumprir as ordens do chefe. Dane deixou cair a toalha no chão, em cima da mancha, e pisou-a com a ponta do sapato.

 

- Para sua informação, não tenciono falar com eles esta noite - comunicou Elizabeth na defensiva.

 

Encostou o braço esquerdo ao estômago e esfregou o lábio inferior com o polegar, num gesto nervoso. Isso não estava em causa. Dane não percebia o que a levava a estar tão nervosa. o que vira ela? o que fizera? Seria da electricidade que se criava entre ambos sempre que ele se aproximava um pouco mais? Não, Dane duvidava que fosse esta última hipótese. Ela era demasiado experiente em atrair homens à sua volta para se sentir envergonhada na presença dele. A menos que fosse o cargo dele que a assustasse.

 

- A sua recusa em falar com eles é apenas uma descortesia profissional, ou está mais preocupada com a sua própria incriminação?

 

-Porque havia eu de estar preocupada com isso? respondeu ela em ar de desafio. - Você não me acusou de nada. Ou é essa a maneira agradável de me comunicar que concluiu que fui eu que matei o Jarvis e que depois fui obrigada a telefonar para o cento e doze? - Elizabeth cruzou os braços. - Por favor, xerife, espero não parecer assim tão estúpida.

 

- Não... Estúpida é que não me parece ser, Mistress Stuart observou ele com uma voz arrastada, deixando-se escorregar para a cadeira estofada atrás da secretária.

 

Sabendo que isso a deixaria agitada, mirou-a da cabeça até à mancha húmida que ela tinha no joelho das calças de ganga, onde o café a atingira ao caír. Estava a ser um idiota e tinha consciência disso, mas não conseguia conter-se. Elizabeth Stuart era o tipo de mulher que despertava os seus maus instintos - bela, ambiciosa, gananciosa, disposta a servir-se de si própria para conseguir o que queria e a usar toda a gente que conhecia. o olhar de Dane subiu e demorou-se nas protuberâncias dos seios.

 

-Você já devia ter isso tudo metido na cabeça, não é verdade? - disparou Elizabeth, pondo as mãos nas ancas. Dane não pediu desculpa pela sua indelicadeza.

 

Elizabeth duvidava que ele se desculpasse fosse do que fosse. Com um gesto de cabeça, ele apontou para a cadeira, ordenando-lhe que se sentasse. Ele sentou-se atrás da secretária com um misto de graciosidade e de indiferença, com os cotovelos colados aos braços da cadeira, os dedos enganchados uns nos outros e um olhar pensativo cravado nela.

- Sente-se, Mistress Stuart.

 

- Miss - corrigiu ela, tirando a máquina fotográfica da cadeira e pondo-a em cima de um monte de dossiers que estavam na secretária.

 

Instalou-se e puxou a mala para o regaço para procurar outro cigarro.

 

- Você largou o mistress mas mantém o último apelido. Isso é correcto?

 

- Não quero saber disso para nada.

 

- Suponho que, neste momento, você já não sabe ao certo qual o apelido que há-de ir buscar.

 

o que não era verdade, mas Elizabeth não o disse a Dane Jantzen. As suas raízes remontavam a um cowboy chamado J. C. Sheldon e a uma mãe que morrera antes que Elizabeth pudesse acumular recordações dela. Victoria Collins Sheldon, um belo rosto numa fotografia cor de sépia que J. C. levava consigo quando saltavam de rancho para rancho. Uma fotografia que ele tinha à cabeceira, fosse qual fosse a sua cama, e que contemplava com uma saudade dilacerante, quando Elizabeth passava no corredor e o espreitava, sem perceber por que motivo é que ele não lhe dedicava tanto amor como àquela fotografia. Uma fotografia que o fazia chorar quando bebia de mais. Uma fotografia que Elizabeth examinara durante horas e horas, quando era uma rapariguinha magricela e solitária, perguntando a si própria por que razão é que a mãe se fora embora e morrera se era um anjo.

 

Mas estes pormenores eram demasiado pessoais para ela os revelar àquele homem. Por baixo da capa de cinismo que se formara nela ao longo dos anos, havia uma torrente de vulnerabilidade. Elizabeth raramente o admitia, mas sabia que ela estava lá. Só se fosse parva é que o diria a Jantzen, e já há algum tempo que deixara de ser parva. Por isso, ele que pensasse o que lhe apetecesse, que o sarcasmo dele não a atingia.

 

- Vejo que, como você não conseguiu extorquir-lhe nada no processo de divórcio, tenta fazer algum dinheiro com o apelido dele - disse Dane com atrevimento. - Para si, trata-se de um negócio como outro qualquer, não é verdade?

 

- Eu conservei o apelido para que o meu filho não fosse obrigado a mudar mais nada na sua vida - ripostou ela, cuja frieza se partia como um galho seco ante o peso do sarcasmo dele, troçando das banalidades com que se acalmara instantes antes. Inclinou-se para a frente na cadeira, em posição de luta, agarrando no cigarro como se este fosse um pau. - Ele não precisava que lhe recordassem outra vez que o Brock Stuart não o queria.

 

E eu também não.

 

As palavras ficaram a pairar entre eles, por dizer, mas aumentaram a tensão emocional que saturava o ar como se fosse humidade. Dane recostou-se, um pouco envergonhado de si mesmo e nada satisfeito com o facto de a sua agressividade ter afastado uma parte da couraça e lhe ter permitido vislumbrar a mulher que se encontrava por trás dela. Não estava nada satisfeito com aquele tipo de rejeição que os unia. Ele não queria uniões. A verdade é que ele não queria que Elizabeth Stuart fosse diferente daquilo que ele imaginara, - fria, calculista, uma caça-fortunas manipuladora, a sua ex-mulher sem tirar nem pôr. Não queria saber que ela tinha um filho com quem se preocupava, não queria saber que ela podia ficar ofendida.

 

Elizabeth fez um esforço para encostar os ombros tensos ao espaldar da cadeira, um pouco abalada, com muito medo de ter exposto uma das suas fraquezas. o que acontecera à sua reserva? A tensão dessa noite sobrecarregava-a, deixando grandes manchas naquela pele endurecida a pulso. Para disfarçar o seu erro, virou o cigarro que tinha na mão, enfiou-o na boca e acendeu-o à pressa para que Jantzen não visse como lhe tremiam as mãos.

 

- Preferia que não fumasse - disse ele.

 

-E eu preferia que você não fosse um idiota.

 

Puxou deliberadamente uma baforada e presenteou-o com o seu perfil, libertando uma nuvem de fumo e olhando-o de soslaio com um ar cortante.

 

- Parece que nenhum de nós vai conseguir o que quer. Ele abriu uma gaveta, tirou um cinzeiro de plástico, uma recordação de Mount Rushmore, e atirou-o para o outro lado da secretária, na direcção de Elizabeth.

 

Elizabeth olhou para o cinzeiro.

- Mas que cavalheiro!

 

A boca dele retorceu-se num pequeno esgar.

 

- É para que saiba como me ensinaram a ser encantador na escola.

 

- Encantador? - troçou ela, despejando a cinza na cabeça de Teddy Roosevelt. - Aposto um dólar em como você nem sabe escrever essa palavra.

 

Um ponto para a Stuart, reconheceu Dane, cerrando os dentes.

 

- Conte-me o que aconteceu esta noite - pediu ele em voz baixa, acolhendo de bom grado o aguilhão da raiva. A raiva era uma emoção que ele conseguia dominar e manejar como uma espada. Era segura, desde que conseguisse controlá-la.

 

Tirou um gravador de cassetes de bolso da primeira gaveta do lado direito da secretária e ligou-o.

 

- Para a gravação - explicou ele com um sorriso frio, inclinando a cabeça com uma deferência trocista. - Este é o depoimento da Elizabeth Stuart sobre o assassínio do Jarvis.

 

Pousou o gravador em cima da secretária, no meio dos dois. Elizabeth olhou para o aparelho com um ar desconfiado. Deixou o cigarro a arder no cinzeiro, a libertar tiras de fumo que se encaracolavam no ar.

 

-Trabalhei até tarde no escritório do jornal. Estive a ver a contabilidade - disse ela, sem mais preâmbulos. Está numa autêntica confusão. Aposto que o velho Larison não verificava aqueles livros desde que Jesus Cristo andava pelo mundo. Quando saí, faltava um quarto para as oito. Isso sei eu porque há um relógio no escritório. Vivo para lá de Still Waters, mais ou menos a mil e quinhentos metros para leste.

 

-Na casa dos Drewes.

 

Elizabeth encolheu os ombros angulosos sem cerimónia. -Foi o que me disseram.

 

Não comprara a casa a nenhum dos Drewes. Nenhum deles lá vivia há cinquenta anos ou mais, mas o nome ficara, transformando todos aqueles que ali tinham vivido depois deles numa espécie de transgressores.

 

Elizabeth lançou um olhar perscrutador ao xerife e concluiu que era preferível contar a história exactamente como ela se passara. Uma coisa era pregar uma mentirola a Ellstrom; este homem era completamente diferente.

 

- Vi uns veados no meio das árvores ao longo do troço norte da estrada e parei para tirar umas fotografias. Afastei-me muito da berma e o meu carro resvalou. - Elizabeth calou-se, à espera de um comentário sarcástico, mas não ouviu nenhum e continuou a falar, grata por estes pequenos favores. - Eu não tinha qualquer alternativa senão continuar a pé.

 

De sandálias italianas com saltos finos como um lápis. Iria andar com bolhas nos pés durante uma semana.

 

- Porque virou em Still Waters? A casa dos Hauer fica perto da estrada.

 

- Parecia não estar ninguém em casa. Além disso, entre uma boleia num lincoln e uma boleia numa carroça amish... chame-me maluca, se quiser... escolho sempre o carro.

 

-Já conhecia o Jarvis?

 

Ela pegou no cigarro e soltou uma baforada de fumo.

- Sim, conhecia-o - respondeu ela com um laivo de resignação, o que indicava que não se tratara de uma experiência muito agradável.

 

- Ele meteu-se consigo?

 

Elizabeth deitou-lhe um olhar furibundo.

 

- Isso não é da sua conta - respondeu ela, batendo no cigarro com um movimento brusco do indicador.

 

Ele fez um sorriso desagradável e pousou os braços na secretária.

 

- Peço desculpa mas tenho uma opinião diferente. Ele meteu-se consigo?

 

- Meteu - respondeu ela, exasperada. - Duas vezes. Não é que isso tenha importância.

 

- Talvez tenha muita.

 

-Só se eu o matasse, o que eu não fiz.

 

Dane encolheu os ombros. Elizabeth franziu o sobrolho e apagou o cigarro.

 

O que fez você quando ele se meteu consigo?

- Disse-lhe que fosse comer terra e uivar à lua.

- Com tantas palavras?

 

-Não, não foi com tantas palavras. Tenho mais classe do que isso - retorquiu ela.

 

- Classe? - Dane reclinou-se e ergueu uma sobrancelha. - Aposto um dólar em como não consegue encontrar essa palavra no dicionário.

 

Elizabeth franziu a testa.

 

- Você é muito especial, xerife. Como é que conseguiu ser eleito? Ameaçando os eleitores com tarraxas e mangueiras de borracha?

 

Ele mostrou os dentes num arremedo de sorriso. -Com o meu aspecto e o meu excelente carácter.

- Excelente? - Elizabeth deu um ronco pouco feminino e mexeu-se na cadeira. - Não me parece.

 

-E você que tem um olho especial para os homens... o que lhe parecia o Jarvis? Ouro?

 

- Parecia o traseiro de um cão - respondeu ela abruptamente. - Não me interessa que o dinheiro lhe saísse pelas orelhas. Eu não estava interessada e fui muito clara para com ele.

 

- Então você foi ao estaleiro pedir uma boleia para casa. E o Jarrold propôs-lhe uma boleia de outro género.

 

- A única boleia que podia ter proposto era para a morgue. Estava morto quando eu lá cheguei - insistiu ela, tentando afastar o fio da conversa da impressão exacerbada que ele tinha da sua vida sexual, que não existia na realidade mas que era muito ventilada na imprensa. - Procurei-o, gritei com quantas forças tinha e depois reparei que ele estava sentado no lincoln .Fiquei furiosa porque julguei que o patife estivera ali a olhar para o meu traseiro. Então, abri a porta para lhe dizer o que pensava dele.

 

Elizabeth calou-se e estremeceu, como se a recordação se abatesse sobre ela como uma bigorna. A imagem surgiu momentaneamente à sua frente - Jarvis a cair do carro, a cabeça dele a bater-lhe nos pés com um baque surdo e mórbido, os olhos negros do homem a fitarem-na com um misto de surpresa e de inflexibilidade, o sangue dele a salpicar-lhe a pele. Encolheu-se e tentou engolir a repulsa que lhe atravancava a garganta, ao mesmo tempo que se sentiu inundada de suores frios que a deixaram atordoada e fraca.

 

Com uma mão trémula, afastou o cabelo para trás, prendendo a espessa massa na nuca e inclinando-se para a frente, de cabeça para baixo.

 

- Oh, meu Deus!

 

Dane viu-a a lutar com as emoções que, de súbito, ameaçavam apoderar-se dela. Toda a insolência a abandonara, deixando ambos numa situação perigosa. Ele não estava habituado a assediar mulheres perturbadas. Aliás, não estava habituado a assediar mulheres, ponto final. Reclinando-se na cadeira, fez o possível por não ver aquela mulher corajosa a soçobrar. Ela era uma víbora que deixara um rasto de homens destruidos no seu caminho, recordou ele. Podia muito bem estar ligada à morte de Jarvis. Dane pensava nisso, mas não conseguia acreditar. o tremor era muito natural, e o misto de terror, negação e repulsa na sua expressão parecia demasiado espontâneo para ser fingido. Dane duvidava que Elizabeth Stuart fosse tão boa actriz.

 

- Desculpe - disse ela em voz baixa, com a respiração a chiar na garganta. Largou os cabelos e pôs as mãos como uma pecadora penitente. - Desculpe.

 

Dane reparou que ela tinha os olhos marejados de lágrimas. Sentiu uma espécie de compaixão e afastou-a, convencendo-se de que estava a fazer um favor a ambos.

 

-Não faz mal - retorquiu ele. - Mas talvez pudesse evitar também os jogos de água. Eu não me deixo comover com a cena da dama aflita.

 

Elizabeth levantou a cabeça e olhou para ele, estupefacta com a sua frieza, com a sua falta de consideração. Afastou-se da cadeira e encostou-se à secretária, retraindo-se quando tocou com os nós dos dedos na superficie lisa da madeira.

 

- Isto não é uma cena, xerife Jantzen. Desculpe, mas não é todos os dias que me cai uma cabeça cortada aos pés. Não tenho um repertório de coisas espirituosas para contar quando encontro cadáveres de pessoas assassinadas.

 

- E a imprensa a dizer que você tinha uma resposta para tudo... - exclamou ele com uma falsa surpresa. Elizabeth sabia que ele estava a referir-se à campanha nojenta instigada contra ela por Brock durante o divórcio. o poder que o ex-marido tinha sobre a imprensa era assustador e terrível. A sua influência estendera-se a todo o país aparentemente até Still Creek, no Minnesota - e deixara-a com uma reputação mais negra que o chá do Texas. Brock e os seus advogados mágicos haviam pegado na verdade e haviam-na torcido como uma boneca de borracha. Mas Elizabeth não iria rebater as mentiras de Brock Stuart nessa noite. Estava demasiado cansada para se preocupar com o que Dane Jantzen pensava dela.

 

- Não acredite em tudo o que lê - proferiu ela em voz baixa, afastando-se dele.

 

A sobrancelha trocista ergueu-se outra vez, e Elizabeth teve de dominar-se para não se atirar a ele e o arranhar.

- É um conselho interessante vindo de uma repórter - comentou ele, cuja calma denunciava que ela acertara em cheio.

 

Não acredite em tudo o que lê. Ele não sabia? Céus, a imprensa tivera um período em cheio com o divórcio dele, tanto da profissão como da mulher. E como atleta profissional, Dane aprendera há muito que as diferenças entre a realidade e o jornalismo eram enormes. Tinha obrigação de não acreditar em tudo o que lia à primeira, mas ao mesmo tempo tinha obrigação de não acreditar numa mulher ambiciosa. o desportivismo puxava-o para um lado e o instinto de autopreservação puxava-o para outro.

 

Viu-a afastar-se para a ponta da secretária, concentrada nos documentos emoldurados que estavam pendurados na parede. Ela engolira as lágrimas e libertara-se do pânico que a fizera tremer na cadeira. Dane era obrigado a admirar a sua coragem, mesmo que fosse só isso.

 

O olhar do xerife pousou na ganga desbotada que lhe cobria as nádegas e concluiu que havia mais coisas dignas de admiração do que a força interior. Inquieta, ela desviou o peso do corpo de uma bota para outra e levantou as duas mãos para afastar os cabelos para trás. A T-shirt moldava-lhe os seios.

 

- Se eu acreditasse apenas em metade do que li a seu respeito, continuaria a não gostar de si - grunhiu ele, levantando-se na cadeira.

 

O que não me rala nada.

 

Dane aproximou-se mais, tanto que o ombro dela lhe tocou no esternmo e a face abaulada ficou apenas a uns milímetros da boca dele.

 

- O melhor é ter cuidado, querida, porque se eu descubro que você está metida neste assassinio, por pouco que seja, agarro-a por esse belo cu.

 

- Isso é quase assédio, xerife Jantzen - disse Elizabeth em surdina.

 

Queria afastar-se dele, mas não lhe daria essa satisfação. - É a verdade - insistiu ele em voz baixa, com um sorriso gélido. - Ninguém mata ninguém na minha zona e sai impune.

 

- Está a acusar-me de alguma coisa? Se está, tenho de chamar um advogado, ou não os há por aqui no Grande Norte Branco?

 

- Oh, temo-los, sim. Não conseguimos livrar-nos deles, nem dos que enganam a Segurança Social, nem dos forasteiros.

 

Apercebendo-se de que estava a tremer, Elizabeth virou-se muito devagar, com grande determinação, e passou por ele a saracotear-se.

 

- Oh, belos tempos aqueles em que o xerife podia ver-se livre dos indesejáveis e expulsá-los da cidade!

 

- Nem mais - resmungou Dane, embora se divertisse a imaginar que ela era uma indesejável. Voltou para a sua cadeira. Tirou um lápis vermelho do porta-canetas de cerâmica e, distraído, bateu com a ponta de borracha no mata-borrão. - o que aconteceu depois de você encontrar o corpo?

 

- Vomitei - admitiu Elizabeth com candura. - Calculo que um dos seus colegas do laboratório esteja agora a raspar o que resta da minha tablete de chocolate e a guardá-la num saco de plástico para ser analisada ao milímetro ou submetida ao teste do carbono, ou seja lá o que for que eles fazem com isso.

 

Deixou-se cair de novo na cadeira, exausta e tensa por tentar armar-se em forte. A verdade é que teria chorado no ombro de alguém, mas há muito que ninguém lhe oferecia nenhum e ela não sabia ao certo se ainda se lembrava do que havia de fazer com ele. Talvez afastá-lo, por hábito e desconfiança, concluiu tristemente.

 

Inclinou-se para a frente e pegou na ponta do assento com as duas mãos, balouçando-se de um lado para o outro, devagar, para aliviar um pouco o nervosismo, enquanto a sua memória continuava a trabalhar.

 

Ficara a olhar para Jarvis e de repente lembrara-se de que quem o matara podia ainda estar ali, escondido no bosque que rodeava o estaleiro, a espreitá-la. E quando os choupos e os carvalhos começaram a pressioná-la e o ar ficou mais pesado com o cheiro do sangue e do mal, ela cedera ao pânico e desatara a correr, tropeçando e caindo por causa dos saltos. Estendera-se ao comprido, e o cascalho arrancara-lhe a pele dos nós dos dedos e rasgara-lhe nos joelhos as calças que comprara em Cannes. A histeria apoderara-se dela, gelando-lhe o peito e deixando-lhe na boca um travo amargo. Com as lágrimas a correr pela face, conseguira levantar-se e continuara a correr, sobrecarregando os pulmões que tantos Virginia Slims tinham inalado nos últimos anos. - corri para casa dos Hauer - disse ela simplesmente, condensando a experiência em frases curtas e desprovidas

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de emoção. - o Aaron Hauer estava cá fora, no celeiro. Deu-me uma boleia para casa.

 

-Ele disse se vira alguma coisa? - perguntou Dane, sem irritação na voz.

 

Percebeu que as forças dela começavam a esmorecer. Talvez devesse continuar a persegui-la mas não podia dar-se ao luxo de o fazer. Um resquício de cavalheirismo obrigou-o a recuar.

 

- Ele não falou muito. Fiquei com a impressão de que não estava muito satisfeito por se ver envolvido na situação. Começou a pregar-me um sermão sobre as vantagens de nos separarmos do mundo. Eu expliquei-lhe que era difícil separarmo-nos quando um tipo morto nos caía aos pés. - Dane tentou imaginar Aaron Hauer a falar com Elizabeth Stuart e por pouco não se riu. Não podia haver duas pessoas mais diferentes. Aaron, tão firme na antiga fé, tão reservado, a ser confrontado com Elizabeth, o modelo da mulher «inglesa» decadente, vistosa e extrovertida, de uma sensualidade ostensiva. - Levou-me a casa, eu chamei o cento e doze, mudei de roupa e aqui estamos nós no final de uma tarde maravilhosa - rematou ela, conseguindo esboçar um falso sorriso.

 

O lápis vermelho bateu no mata-borrão. Dane franziu o sobrolho,

 

- Mudou de roupa? Porquê?

 

- Porquê? - repetiu ela, incrédula. - Porque cheirava mal e tinha sangue nos pés! Porque um tipo morto me tocou. Porque encontrei um homem assassinado com aquela roupa e não podia suportar a ideia de a conservar em cima de mim nem mais um minuto. Despi tudo o que tinha no corpo e atirei-o para o lixo. E deixe-me que lhe diga que isso me custou muito, porque aquela blusa de seda Armani era a minha preferida.

 

- Eram provas - rosnou Dane. - Você destruiu provas.

- Também lavei os pés - disse ela com insolência. Isso também é um crime? Se você quiser ver sangue, há muito em cima do Jarrold.

 

A voz dele desceu para aquele tom suave como seda que eriçou os cabelos na nuca de Elizabeth.

 

- Também devia haver muito na sua roupa.

 

Elizabeth engoliu meia dúzia de palavras que as senhoras não deviam saber, recalcando a sua frustração e tapando-a com uma fina camada de compostura.

 

-Então voltamos à mesma. Juro que você é pior do que um cão com um rato na boca. Pela última vez, eu não o matei. Lamento que isto lhe dificulte a vida, porque você não pode lançar este libelo à ilustre desconhecida da cidade, mas tenha paciência.

 

- Eu quero essas roupas - declarou ele, obstinado. Todas.

 

Ela agitou as mãos com um gesto de rendição, reclinando-se na cadeira.

 

- Muito bem, mas deixe que lhe diga que não me parece que você vista um trinta e seis e, se os outros agentes o apanham de cuecas de renda vermelha, está condenado a passar um mau bocado. - Dane cerrou os dentes para reprimir uma onda de pura lascívia. Ela acabara de pintar uma imagem bastante erótica de si própria. Elizabeth ignorou o desejo carnal que viu no olhar dele. - E agora? - perguntou ela em voz baixa.

 

Uma pergunta embaraçosa. A libido de Dane tinha algumas sugestões que tentaram substituir-se ao bom senso. o xerife censurou-se por deixar que o sexo afastasse os seus pensamentos do trabalho, mas percebeu que se tratava em parte de um mecanismo de defesa. Não queria ser obrigado a lidar com o que se seguiria. Crescera em Still Creek e conhecia a maioria dos seus três mil habitantes de vista e até de nome. Não queria que o assassínio fizesse parte da vida da cidade.

 

- Agora, vai para casa, Miss Lizzie - disse ele, levantando-se.

 

Elizabeth deitou-lhe um olhar desconfiado. -Assim sem mais nem menos?

 

- Não tire umas grandes férias.

 

Ela arregalou os olhos ao ouvir o lugar-comum, levantou-se e pegou nas suas coisas.

 

Ouviu-se uma pancada surda na porta e Lorraine enfiou a cabeça no gabinete.

 

-Dane, a Amy acabou de telefonar do aeroporto de Rochester.

 

Dane ficou desolado.

 

- A Amy. Merda! Esqueci-me completamente dela. Respirou fundo e empurrrou o cabelo para trás com os dedos. o remorso atingiu-o fugazmente, mas não havia nada a fazer.

 

Lorraime cerrou os lábios descorados em sinal de reprovação e retirou-se.

 

- Está apaixonado, xerife? - perguntou Elizabeth, pendurando ao ombro as alças da mala e da máquina fotográfica. - Meu Deus! o que vão pensar os contribuintes? Dane olhou para ela.

 

-A Amy é a minha filha.

 

A menina dos totós. Por qualquer motivo, Elizabeth não queria pensar nele como pai. Fazia-o parecer demasiado... humano. Não queria pensar nele como pai divorciado porque ambos teriam qualquer coisa em comum, o que parecia ser mais perigoso do que bom.

 

-Até breve, cowboy. - Elizabeth parou, com a mão no puxador da porta, e lançou-lhe um sorriso trocista. Antes de eu sair, tem alguma declaração a fazer à imprensa local?

 

-Nenhuma que você pudesse publicar no jornal. -Faz ideia de quem o matou?

 

- Oh, eu tenho as minhas ideias, Miss Stuart. - Bateu na têmpora com dois dedos. - Acho que vou deixá-las aqui por agora.

 

-Cuidado, não se vão elas perder.

 

Dane viu-a sair do gabinete a bambolear-se, sem se importar com o facto de ter sido dela a última palavra. Tinha a sensação de que ainda não acabara de falar com Miss Elizabeth Stuart. De maneira nenhuma.

 

Elizabeth acendeu todos os interruptores por onde passou. Precisava de inundar a casa de luz e de expulsar todas as sombras sinistras que se escondiam aos cantos. A luz do alpendre das traseiras mostrou um velho frigorífico com caixas empilhadas ao acaso lá dentro e outras espalhadas no soalho de madeira empenada à volta, quase todas cheias de coisas inúteis que ela ainda não desembalara desde a mudança. A luz da cozinha - dois anéis fluorescentes instalados numa época em que o gosto não abundava, há vinte ou trinta anos - iluminava uma divisão ampla cujas paredes estavam forradas de papel a descascar, cor de laranja e amarelo, com um motivo de frutos. Os armários da cozinha tinham sido pintados de castanho cor de diarreia, Metade deles não tinha portas e as que existiam estavam penduradas só de uma dobradiça.

 

A cozinha era uma zona de catástrofe. Em cima da mesa com tampo de fórmica lascada via-se meia dúzia de caixas de cereais abertas. Trace esquecera-se de arrumar o leite. Depois de aberta durante umas boas doze horas num espaço quente, a embalagem exalava um cheiro adocicado e azedo. Pratos sujos acumulavam-se no lava-louça de aço inoxidável que um qualquer génio desmiolado instalara mesmo ao canto, sem uma bancada adjacente. o velho oleado preto e cor de laranja tinha grandes falhas. o soalho à volta da mesa estava repleto de uma família desencontrada de ténis grandes.

- Céus! Vou ter de despedir esta empregada.

 

Elizabeth olhou de esguelha para o agente Kaufman, que a levara a casa, e apanhou-o a ver-se ao espelho numa velha torradeira cromada. o homem endireitou-se à pressa e corou. Soltou uma gargalhada nervosa, como se ela tivesse acabado de contar uma anedota numa língua que ele não entendia. Era transparente como um adolescente com a sua grande primeira paixão. Elizabeth suspirou.

 

- Obrigada por me trazer a casa, senhor guarda. Imagino que também queira ir para casa, já que é tão tarde. A sua mulher deve estar preocupada.

 

- Oh, eu não sou casado - apressou-se ele a esclarecer, com a esperança a brilhar-lhe nos olhos.

 

Elizabeth tirou uma pega da mesa e encostou-a à face, com um ar pensativo.

 

- Não? - Calculou que a surpresa na sua voz parecesse verdadeira aos ouvidos de um homem. - Não posso acreditar que ainda não tenha sido apanhado por uma coisinha fofa. - o cumprimento deixou Kaufman radiante.

 

Se eu não tivesse jurado ver-me livre dos homens... Elizabeth deixou cair a frase, abanando a cabeça, pesarosa. o optimismo do agente abandonou-o num instante. Parecia encolher-se um pouco diante dela, como um balão a esvaziar-se lentamente.

 

Resignado de novo ao seu papel de protector e servidor, Kaufman deu uma olhadela à cozinha, arregalando os olhos como se tivesse saído de um transe de repente e reparasse na confusão pela primeira vez. Recuperou de uma forma admirável.

 

- Hum, quer que eu dê uma volta pela casa? Não pude deixar de reparar que você não tinha a porta fechada à chaVe.

- Filho, nesta espelunca, já tenho muita sorte em ter portas, ponto final.

 

o pouco dinheiro com que ficara depois de os advogados terem concluído o acordo de divórcio fora para comprar o Clarion e para pôr algum de lado para quando Trace fosse para a universidade. A casa dos Drewes fora a melhor que ela encontrara dentro das suas possibilidades, e que triste verificação esta era, pensou ela olhando para o tecto, cujas rachas lembravam uma gigantesca teia de aranha. Estava a milhas da casa no último piso da Torre Stuart, em que todos os pormenores, inclusivamente o papel higiénico, tinham sido escolhidos por uma equipa de decoradores. Levara semanas a convencer-se de que não devia sentar-se nas cadeiras nem nos sofás. Não, a casa dos Drewes parecia-se mais com o pequeno ninho de baratas que ela partilhara com o pai de Trace há muito, muito tempo, em que o estuque caía das paredes como crostas gigantescas e em que alguém roubara todos os puxadores das portas para os vender como ferro-velho. Pelo menos, Elizabeth não encontrara cascavéis naquela casa, por enquanto.

 

- Ora, precisa apenas de uns arranjos - disse o agente, por caridade.

 

-Isso foi o que o vendedor imobiliário me disse. A boca de Elizabeth torceu-se num esgar quando o conduziu a uma casa de jantar que cheirava a eau de rato morto. Começo a perceber que vocês têm uma verdadeira tendência para subestimar as coisas.

 

Atravessou atrás dele os dois pisos principais e não quis descer à cave. Qualquer inimigo que quisesse esconder-se lá em baixo ficava com ela à sua mercê. A busca não teve resultados práticos e provou apenas que ela não prestava como dona de casa. Não havia ninguém escondido no roupeiro nem noutro sítio qualquer. A casa estava vazia. Não havia sinais de assassino. Não havia sinais de Trace.

 

Kaufman corou até à calva que tinha no cimo da cabeça quando pegou naquilo que Jantzen queria como prova, tirando a provocante roupa interior vermelha do cesto da roupa suja com pinças de cozinha. Depositou tudo num saco de papel castanho e levou-o para a porta das traseiras.

 

- Tem a certeza de que fica aqui bem sozinha? - perguntou ele, arqueando as sobrancelhas sobre os seus olhos de cachorro. - Estou certo de que conseguiria convencer a minha cunhada a vir para cá fazer-lhe companhia. Ela esteve no exército.

 

Elizabeth sorriu-lhe.

 

-Não, obrigada. o meu filho deve estar a chegar. Eu fico bem.

 

Kaufman mostrou-se um pouco preocupado e arrastou os sapatos pesados.

 

-Passaremos por aqui de vez em quando, por isso, quando ouvir um carro, não se assuste. Eu gostava de pôr aqui alguém de sentinela durante toda a noite, mas o pessoal não é muito...

 

-Eu compreendo. A sério, eu fico bem.

 

o homem mostrou-se um pouco deprimido com o facto de ela não lhe pedir que ficasse para a proteger. Baixou a cabeça com delicadeza e corou de novo, à luz fraca do alpendre.

 

- Foi um prazer conhecê-la.

 

Elizabeth mordeu o interior da bochecha, Que Deus tivesse piedade dela! Viera mesmo parar ao fim do mundo. Trocar cortesias com um agente da polícia depois de uma noite de assassínio e de violência. Nada podia ser mais estranho. Pelo menos era o que ela esperava.

 

Dirigiu-se à janela da cozinha e viu-o afastar-se. Um tipo simpático. E tão terno. Ao contrário de um certo chefe dele, pensou ela amargamente, quando os faróis do carro desapareceram ao longe. Não ouvira Dane Jantzen mostrar preocupação com o seu bem-estar. Ele não fizera qualquer esforço para ir ali ver se ela estava segura e calma. Que tipo arrogante!

 

o silêncio abateu-se sobre ela abruptamente, como uma porta a bater. Estava sozinha numa casa que nem isso parecia. Sozinha. A palavra atormentava-a. Nunca se importara muito de estar sozinha, e pareceu-lhe que era assim que passara a maior parte da sua vida. Sozinha, se não fisicamente, pelo menos emocionalmente. A testemunhá-lo estava o facto de tudo o que ela mais desejava parecer estar sempre fora do seu alcance. Tanto quanto se lembrava, o que mais desejava era ser importante para alguém, ser amada, ser necessária, mas isso parecia não estar escrito no seu destino.

 

Perdera o pai devido à falta que este sentia da mãe morta, ignorando a filha e buscando consolação numa garrafa de uísque. Para J. C., Elizabeth não fora mais do que uma peça da bagagem que ele arrastava de rancho para rancho, à procura de um emprego que conseguisse manter até à grande farra seguinte. Aos dezassete anos, ficara embeiçada por Bobby Lee Breland, o terceiro melhor laçador de gado nos rodeos da zona ocidental do Texas. Um patife de olhos verdes, sorriso demoníaco e mais encanto do que devia ser permitido num homem. E ela fora a luz da vida dele... Durante seis meses. o casamento de ambos só sobrevivera aos casos com a Miss Corrida de Barris do Texas e com a Rainha do Gado porque Elizabeth estava decidida a que Trace tivesse um pai. Mas pusera termo à situação quando ficara em segundo lugar no Cortejo das Cascavéis e continuara a sua vida, sozinha, com dezanove anos, com um bebé nos braços, sem amigos e sem planos.

 

Parecia que a história se repetia, pensou ela, obrigando-se a voltar ao presente e olhando para a confusão deprimente que reinava na cozinha. Brock enganara-a, ela fora obrigada a ir-se embora, e ali estava agora, numa terra em que não conhecia ninguém, sozinha com um filho que se tornara um estranho para ela e com um futuro que, na melhor das hipóteses, era periclitante.

 

As lágrimas ameaçaram surgir no momento em que Elizabeth olhou à sua volta e se concentrou no relógio de parede. Uma da manhã. Trace devia ter chegado a casa há duas horas. Raios, pelo menos nessa noite podia ter vindo a horas. Haviam cortado o pescoço a um homem a pouco mais de dois quilómetros dali. o seu instinto maternal sufocou-a, assustada com a hipótese de ter acontecido alguma coisa ao filho.

 

O assassino devia ainda andar perto quando ela encontrara o corpo. Elizabeth tinha a certeza que sentira alguém a observá-la, que sentira o mal no ar. Ele podia estar ali, na floresta, à espera de outra vítima. E Trace ia na estrada, de bicicleta, sozinho, às escuras.

 

Elizabeth virou-se e olhou lá para fora pela janela da cozinha, tentando ver na escuridão mas sem distinguir nada a não ser o seu próprio reflexo no vidro. E sentiu de novo o mesmo, a sensação de estar a ser observada, de que algo de maléfico pairava no ar, entrava pela janela e lhe passava uns dedos ossudos pela nuca, provocando-lhe arrepios. A oeste, os relâmpagos espalhavam-se pelo céu como rachas num pára-brisas. Os trovões ribombavam como tiros de canhão.

 

Havia qualquer coisa no ar. Qualquer coisa pesada e violenta.

 

Os pêlos eriçaram-se-lhe na nuca e ela encolheu-se, para se proteger de uma súbita sensação de vulnerabilidade.

 

o som da porta de rede a bater na estrutura trespassou-a como um tiro de espingarda. Elizabeth virou-se e encostou-se à bancada, desejando ardentemente ter consigo a pistola que roubara à colecção de Brock. Instintivamente procurou qualquer coisa para se proteger. Os seus dedos trémulos agarraram no cabo de uma faca de cozinha que ficara ali a endurecer com uma crosta de molho. Pôs a faca à sua frente no momento em que a porta se abriu e Trace entrou.

 

- Merda! - exclamou ele com uma voz arrastada, de olhos postos na faca. - Eu imaginava que pudesses fechar-me em casa de castigo, mas apunhalares-me parece-me um pouco exagerado. Só me atrasei duas horas.

 

Elizabeth perdeu o fôlego e, com ele, a maior parte das forças. A adrenalina que a levara a defender-se abandonou-a, deixando-a tão fraca que ela receou cair de joelhos. o coração saltou-lhe no peito, com um misto de alívio e de terror.

 

- Pregaste-me um grande susto! - ralhou ela, acusando Trace. - Esta noite foi morto um homem nesta mesma estrada.

 

Trace olhou para ela com indiferença. Nunca fora pessoa para dar a entender o que sentia. Desde criança que tinha uma expressão grave e sorumbática. Era mais parecido com ela do que com o pai - o cabelo escuro, que ele usava curto, com risco à direita, a face rectangular, o queixo forte e obstinado e o nariz pequeno e direito. Até a boca era da mãe. Os lábios eram bem delineados e sensuais, cada vez mais, à medida que crescia. o contraste entre aquela boca lúbrica e a face lisa que agora via uma lâmina várias vezes na semana era demasiado sensual aos olhos de uma mãe. Elizabeth agradecia regularmente a Deus o facto de Trace não ter herdado o desejo do pai por jovens núbeis e com seios grandes, porque não via motivos para uma mulher lhe resistir.

 

Trace fitou-a, com os olhos verde-acinzentados por trás de uns óculos estilo Buddy Holly.

 

- Bem, eu não o matei - disse ele com brandura. o seu olhar fixou-se na mão da mãe. - E tu?

 

Elizabeth pousou a faca na bancada e esfregou os nós dos dedos que estavam lívidos. o medo que sentira antes de o filho abrir a porta transformara-se em embaraço, como tantas vezes acontecia. Desviou esse sentimento, afastando a mente de pensamentos de assassínio e tornando-se mais maternal.

 

- Devias estar em casa às onze horas. o que andaste a fazer?

 

- Nada - respondeu ele entre dentes, evitando olhar para a mãe. Encolheu os ombros largos num gesto de defesa e meteu as mãos nos bolsos das calças de ganga desbotadas. Já estava mais alto do que Elizabeth e atravessava um período de transição entre a elegância e a corpulência. Elizabeth duvidava que ainda lhe servisse alguma camisa no Outono; a T-shirt branca que ele vestia estava acanhada. Trace desviou o peso do corpo para o outro pé, enquanto ela esperava uma resposta melhor. - Andei por aí, mais nada - repetiu ele por fim.

 

- Por onde? -Pela cidade. -Com quem?

 

- Com ninguém! - respondeu, agastado. Lançou-lhe um olhar furioso e ressentido, com a boca crispada. o que é isto... ? Um interrogatório policial? Queres ver-me debaixo de um projector e bater-me com um cassetete? Eu não estive a fazer nada!

 

Elizabeth mordeu a língua e cruzou os braços, evitando dirigir-se a ele e abaná-lo. Ele estava a mentir. Ao contrário do pai, Trace nunca fora bom nisso. Nem em criança quando costumava ir à caixa das bolachas antes do jantar, nem em adolescente, quando se metera em apuros muito maiores do que a perda de apetite. Elizabeth nunca conseguia apurar se se tratava de uma incapacidade natural ou de uma opção; porém, fosse como fosse, as mentiras ficavam tão mal a Trace como um fato barato. Nesse momento, ele mexia os ombros, sem saber o que fazer.

 

Ela não devia repreendê-lo. Fora o que o psicólogo de Atlanta dissera. Eles nunca construiriam uma relação se esta não fosse alicerçada na confiança. Elizabeth perguntara a si própria mais do que uma vez se o homem alguma vez tivera um filho que se metera nas drogas e fora preso por conduzir um automóvel que não lhe pertencia. Duvidava. Malcohn Browne, com o seu aspecto anémico e lacinhos às riscas, sempre lhe parecera estranho como uma nota de três dólares. Mas com aquilo que cobrara a Brock pelas sessões, devia ser bom, ou pelo menos esperto, na opinião de Elizabeth. Metade das pessoas ilustres de Atlanta enviava-lhe os filhos para ele os endireitar. Era uma pena que Brock os tivesse expulsado antes de o psicólogo ter conseguido tirar as rugas a Trace. Era uma pena que ela estivesse tão ocupada a tentar integrar-se na sociedade de Atlanta que não conseguira evitar que ele se transformasse naquele jovem carrancudo e irritado, pensou ela, aguilhoada pelo remorso.

 

- Aqui não podes fazer nada com ninguém - disse ela tranquilamente.

 

- Ah, sim, estes aposentos são tão luxuosos! - Trace fez um sorriso escarninho. - Adoro estar deitado aqui. A ver o estuque a cair. A absorver o cheiro dos ratos mortos debaixo do chão. É de partir a rir.

 

Elizabeth suspirou e deu um passo em direcção ao filho, estendendo uma mão.

 

- Eu sei que estás aborrecido, querido...

- Tu não sabes nada!

 

De repente, ele explodiu com toda a fúria de uma bomba, com ondas de raiva. Parecia subitamente maior, mais viril, sobrepondo-se a ela, com os ombros crispados e os músculos dos braços muito salientes quando cerrou as mãos ao nível da cintura. Atrás dos óculos, os olhos ardiam de frustração.

 

Por instantes, Elizabeth julgou que ele ia agredi-la e esse pensamento provocou-lhe uma onda de náusea. Trace nunca lhe levantara a mão. Em criança, era raro levantar a voz. Mas o seu feitio tornara-se imprevisível com o fluxo das hormonas. E com o consumo de cocaína. Elizabeth estava convencida de que ele já não consumia droga. Não dava sinais disso e não tinha dinheiro, o que era talvez a melhor vantagem de estar falido. o filho não podia dar-se ao luxo de se meter em sarilhos como acontecera em Atlanta.

 

Trace conseguiu refrear-se e afastou-se dela abruptamente, batendo com a porta de um armário que voltou a abrir-se como que por troça. Empurrou-a mais duas vezes, de cada uma com mais força, e o resultado foi o mesmo. Por fim, praguejou e deu-lhe um pontapé!

 

- Detesto esta casa!

 

Apoiou as mãos na bancada, de costas viradas para a mãe, cabisbaixo, distendendo os ombros e sem fôlego. A frustração e o desespero atingiram Elizabeth como uma vaga. Não era isto o que ela desejava para ambos. Mesmo quando percebera que Brock não lhe daria a mais pequena coisa depois do divórcio, ela imaginara que o recomeço seria melhor.

 

Parecera-lhe uma solução tão boa... Uma pequena cidade no Minnesota, uma empresa dela, em que trabalharia com Jolynn, a sua antiga colega. Uma casa de campo para ela e para Trace, um sítio onde poderiam passar serões agradáveis e conhecer-se um ao outro. Sentados no alpendre a ver o pôr do Sol. A realidade provava que os choques iriam suceder-se.

 

As poucas forças que lhe restavam abandonaram-na e ela cedeu à necessidade de tocar no filho. Ele era quase um homem, mas ela continuava a vê-lo como se ele tivesse cinco anos, com uns grandes olhos tristes que a observavam através de uns óculos que pareciam demasiado grandes para o seu pequeno rosto. Céus, como era possível que ele já tivesse dezasseis anos?, perguntou ela a si mesma, quando lhe pousou a mão nas costas. Não sentiu a carne rechonchuda de um bebé por baixo do tecido fino da T-shirt; só músculos, que se retesaram ao seu toque.

 

-Querido, eu sei que as coisas não estão bem neste momento - proferiu ela em voz baixa, descrevendo pequenos círculos com a mão para o acalmar. Ele soltou uma gargalhada rouca e sem humor e abanou a cabeça. A situação há-de melhorar - prometeu Elizabeth, sem saber ao certo se tentava convencer-se a si própria ou ao filho. - Vais ver. Temos de esperar um bocadinho, mais nada.

 

-Pois, está bem. - Trace afastou-se da mão dela, o que feriu Elizabeth mais do que qualquer coisa que ele pudesse ter dito. A boca abriu-se-lhe num arremedo de sorriso e ele pestanejou furiosamente para afastar as lágrimas. Quando as galinhas tiverem dentes. Vou para a cama.

 

Atravessou a porta de rede antes que Elizabeth conseguisse recuperar o fôlego e dar-lhe as boas-noites. A porta voltou ao seu lugar, trazendo consigo o cheiro a ratos mortos da casa de jantar, e ela ficou ali, de novo sozinha, a pensar na noite em que participara a Bobby Lee que o ia deixar.

 

Estava na cozinha, à luz de uma lâmpada fluorescente. o cheiro a banha de porco e a Aqua Velva fez-lhe nascer um nó na garganta e os nervos deram-lhe volta ao estômago. Trace estava ao colo dela, a mastigar uma bolacha com o feitio de um animal, com os seus olhos grandes húmidos e assustados - um reflexo da expressão da mãe, sem dúvida. Ela vestira a sua roupa mais provocante, julgando que impressionaria Bobby Lee, imaginando o que ele faria sem ela

- umas calças de ganga mais coladas ao corpo do que a pele de uma salsicha e uma blusa cor de dente-de-leão, às bolas pretas e com gola e punhos de fantasia, a sua fivela de Miss Corrida de Barris num cinto três vezes maior (para realçar a cintura de vespa), as suas botas Tony Lama, engraxadas há pouco tempo e com uma camada de verniz Amway. Sabia que o seu aspecto faria perder a cabeça a um homem, mas isso não alterava o facto de ela ter apenas dezanove anos e estar muito assustada.

 

Ficara ali no meio da cozinha e dissera a Bobby Lee Breland que estava farta das suas asneiras, que ia levar o filho e partir nesse mesmo instante se ele não tomasse uma atitude drástica.

 

o frigorífico zumbia enquanto Bobby Lee se mantinha na soleira da porta, com uma garrafa de Lone Star a balouçar na mão, a camisa vermelha aberta e a fralda a tocar-lhe nas partes musculosas enfiadas nas novas Wrangler azuis. Elizabeth nunca se esqueceria do aspecto dele - como um anúncio para os rapazolas do rodeo, com os cabelos cor de areia caídos sobre a testa, uns olhos verdes, duros como esmeraldas, a trespassá-la, o peito nu e o estômago bronzeado, musculoso e encharcado em suor. Nunca se esqueceria do que ele dissera quando se afastara da ombreira da porta e passara por ela, agarrando na Stetson preta e poeirenta que estava em cima da mesa e saindo.

 

- Podes sair por volta das nove? Tenho um encontro marcado com a Cee Cee Beaudine.

 

E saíra pela porta das traseiras, deixando-a ali sozinha, como se não houvesse mais ninguém no mundo.

 

Era exactamente como Elizabeth se sentia agora.

 

o quarto dele não era melhor do que o resto da casa. Ficava no segundo andar e dava para um terreno alagadiço cheio de vacas a pastar. A janela só se mantinha aberta com uma cunha de madeira porque a velha corda do sistema de roldanas partira-se e os mosquitos entravam por uma fenda na persiana e iam acumular-se na lâmpada pendurada no tecto. As paredes rachadas eram de estuque cor de melão. Um idiota qualquer condenado a viver naquela espelunca passara horas a escrever obscenidades e outras mensagens vitais no soalho de madeira com um arame. LEI DA SELVA. A. J. + G. L. o JOE COME RATAS. FODE A TINA ODEGARD. A viDA É UMA TRAMPA.

 

Trace ligou a aparelhagem estereofónica e deitou-se de barriga para baixo na cama por fazer, de olhos pregados numa frase sábia, enquanto Axi Rose falava de amor e de sofrimento através dos microfones. A VIDA É UMA TrampA. E era verdade.

 

Detestava Still Creek. Detestava a paisagem. Detestava o cheiro. Detestava tudo naquela terra. Detestava os Amish com os seus estúpidos chapéus e as suas estúpidas roupas, com os seus estúpidos cavalos em toda a parte. Detestava as lojas e os seus proprietários. Um punhado de noruegueses estúpidos e merdosos, mais nada. Olhavam para ele como se tivesse caído da Lua, e riam-se nas suas costas do seu modo de andar.

 

Ele sabia o que eles pensavam. Porcos de brancos, sulistas rústicos, era o que eles pensavam. Rústicos com R grande. Ouvira-os cochichar acerca da mãe. Todos a consideravam uma galdéria. Só porque era bonita. Só porque aquele filho da mãe do Brock Stuart se divorciara dela.

 

Em Atlanta ninguém se rira deles. Viviam no último piso da Torre Stuart. Trace possuía um roupeiro maior do que aquele quarto. Tinha uma parede forrada de livros e uma grande secretária com um computador só para ele. o apelido Stuart era sinónimo de dinheiro e de iinfluência em Atlanta.
Em Still Creek, significava apenas que eles eram desconhecidos.

 

A raiva consumia-o. Virou-se de costas, sem saber como escapar a ela. Ultimamente, cada vez o atormentava mais, destruindo-o e queimando-lhe as entranhas. Às vezes, queria apenas explodir com ela, gritar e lutar. Mas dominava-se e recalcava-a, como sempre fizera aos seus sentimentos. Não compensava deixar que os outros vissem o que ele sentia. Ainda se viravam mais contra ele. Era preferível não mostrar nada.

 

Como quando aquele porco do Jarvis lhe negara um emprego em Still Waters, pensou Trace, esticando-se sobre a mesa-de-cabeceira e tirando um maço de Marrboro roubado da gaveta. Puxou de um cigarro e deitou-se de lado para o acender. Em seguida, virou-se outra vez de costas e ficou a olhar para o rolo de fumo que empurrou para o tecto. Jarvis rira-se dele, como se ele fosse um bebé, e dissera-lhe que fosse arranjar um diploma. Nesse momento, a raiva fervera dentro dele, como vapor. Só lhe apetecera esmurrar as trombas àquele buldogue, até ficar apenas uma pasta de sangue. Mas não o mostrara. Mantivera-se de cabeça levantada. Enfrentara a risota dos operários que estavam encostados a uma velha camioneta Chevrolet com canecas de café na mão. Afastara-se como um homem.

 

Não te enfureças, mantém-te impassível. Era o que carney dizia. carney Fox era quase a única pessoa que não o tratara mal desde que ele chegara àquela maldita cidade. Não te enfureças, mantém-te impassível. Este era o seu novo lema. Disse-o em voz alta, testando o seu som e depois puxou de novo uma fumaça, enviando mais uma nuvem de fumo para o tecto repleto de manchas de moscas.

 

Não conseguia deixar de se irritar, mas estava a trabalhar nisso. Às vezes, assustava-o o modo como se sentia, tão furioso e enraivecido com as injustiças que só lhe tinham arruinado a vida. Mas quase sempre se controlava, como um homem devia fazer. Não o mostrava, e isso é que,era importante. Às vezes, desejava do fundo do coração uma boa dose de cocaína para o ajudar, mas acabara com isso. A droga enfraquecia uma pessoa, e se havia uma coisa que ele nunca mais voltaria a ser era fraco.

 

Setecentos e cinquenta metros mais a norte, Dane saboreava uma cerveja e observava a antiga residência dos Drewes do alpendre principal da sua casa. Estava exausto e o joelho doente doía-lhe como se o apertassem com um parafuso. Estava a formar-se uma nova tempestade a oeste, lançando ameaças mas não as concretizando, tal como a anterior que prometera fazer desaparecer todas as provas materiais no local do crime, mas que depois se desviara para Wisconsin, limitando-se a humedecer a poeira.

 

Dane pegou na garrafa de Miller e deixou que o líquido fresco lhe escorregasse pela garganta, rouca de dar ordens aos agentes e à imprensa. Nessa noite, a trovoada justificava-se. Criava um ambiente maléfico.

 

Tinham ficado a trabalhar em Still Waters até depois da uma hora. o agente regional do GIC, Yeager, ainda lá permanecia a farejar como um perdigueiro velho e indolente, e a lamentar o facto de o complexo turístico de Still Waters ir ser a ruína de uma coutada de caça aos perus de primeira categoria. Dane fora ao encontro de Amy e de Mrs. Regina Cranston, a mulher que iria cozinhar, fazer as limpezas e assegurar uma presença maternal em sua casa durante as três semanas em que a filha estava de visita. o corpo de Jarvis fora levado para a Agência Funerária Davidson. o seu Lincoln fora rebocado para o cemitério de automóveis de Bill Waterman, que servia toda a zona de Tyler. o laboratório móvel partira e levara todas as provas que encontrara para o laboratório central em St. Paul.

 

A actividade cessara no local do crime, mas o verdadeiro trabalho estava apenas a começar. Dane resolvera ir dormir durante uma hora e voltar depois ao gabinete para começar a tentar encontrar um assassino com as informações de que dispunha. Por pouco não soltou uma gargalhada com semelhante disparate. Céus, o que sabia ele de homicídios? Nada mais do que lera nos manuais. A pior coisa que lhe acontecera na sua carreira de xerife fora a sova que Tillman Amstutz dera à mulher depois de se ter metido na aguardente de hortelã-pimenta na reunião dos Veteranos de Guerra. E Vera conseguira retribuir a TilI, atingindo-o na cabeça com um chouriço congelado e provocando-lhe um traumatismo.

 

Eram confrontados com assaltos ocasionais em Tyler County e com uma ou outra rixa de bêbedos no Bar Red Rooster. Havia uma espécie de escumalha que se degladiava. Mas, de um modo geral, a lei e a ordem estavam entranhadas nas gentes do Upper Midwest. Agora este bastião de honradez e de respeitabilidade fora quebrado, e era ele que tinha de responder por isso.

 

Dane Jantzen, herói local. Capitão da equipa de futebol de Cougar. Estrela da equipa de basquetebol de Cougar. o único natural de Still Creek que aparecera na televisão nacional. Tricia acusara-o de ter querido voltar à sua terra porque continuava a ser um herói em Still Creck; aqui, não precisava de talento nem de ambição. Podia passar o resto da vida a contar histórias das suas glórias passadas, dos tempos em que tinha firmeza nas mãos e rapidez nos pés.

 

o que não era verdade. Dane só voltara porque esta era a sua terra, porque ele precisava de um sítio reconfortante e familiar depois de a sua carreira, a sua identidade, lhe terem sido arrancadas. Em Los Angeles, fora Dane Jantzen, a coroa de glória dos Raiders. Depois viera a lesão no joelho e, num abrir e fechar de olhos, ele já não era ninguém. Os projectores tinham desaparecido depressa ao ponto de o deixarem quase cego e ele ficara a tactear na escuridão, à procura de qualquer coisa, de alguém, de uma pista qualquer, agora que a camisola número 88 fora entregue a outro homem com mãos grandes e ilusões de imortalidade.

 

Tricia ficara mais desiludida com a perda do estatuto que o facto de ser mulher de um jogador representava do que com a perda de mobilidade do joelho do marido. Consolara-se com a ideia de que ele seria locutor e acabaria por ser uma estrela maior no estúdio de televisão do que no relvado. Quando ele lhe comunicou que tencionava regressar ao Minnesota, ela riu-se-lhe na cara. Ele fora o seu bilhete de saída de Still Creek, e ela não tencionava voltar. Esclareceu que casara com a camisola do futebolista, e não com o homem que estava lá dentro.

 

E fora assim que ele regressara sozinho, um herói derrotado, e começara lentamente a construir uma nova carreira, uma nova vida, tendo o cuidado de separar as várias componentes para que, se perdesse uma, não viesse a ficar sem todas, tendo o cuidado de se afastar do processo para não se perder nele. E estava satisfeito com o resultado.

 

Era um bom xerife. Fossem quais fossem os motivos das pessoas para votarem nele, não se tinham arrependido até então. Dane mantinha o pulso firme, reduzindo o crime ao mínimo. Até essa noite. Agora iria ser posto à prova. Agora teria de provar que não conseguira aquele lugar à custa da sua capacidade para dar uma boa corrida sem tirar os olhos da bola.

 

E havia de conseguir, jurou ele a si próprio, afastando as dúvidas. Havia de apanhar o assassino. Havia de vencer, porque vencer era a unica coisa que ele sempre fizera bem. Não suportava perder. Nem ele nem a boa gente de Still Creck.

 

Fizera o seu dever ao recorrer ao GIC. Os tipos do laboratório tinham surgido em força no local do crime como formigas num piquenique, vasculhando tudo à procura de impressões digitais, recolhendo imagens em vídeo e em fotografia, fazendo moldes de gesso das marcas dos pneus, medindo manchas de sangue e retirando amostras para sacos de plástico. Tinham aspirado o LincoM de Jarvis e procurado vestígios no lixo que pudessem conduzir à resolução do caso. A sua eficiência era impressionante e digna de ser retida, concluiu Dane, bebendo mais um gole de cerveja. Só desejava que tal não tivesse acontecido na sua zona.

 

No dia seguinte, o corpo seria levado para a morgue de Hennepin County ,em Minneapolís, onde uma equipa de patologistas deterininaria a causa da morte. Não era que houvesse muitas dúvidas quanto a isso. o médico legista de Tyler County ,o Dr. Truman, era um clínico geral que ainda ia a casa dos doentes no seu Buick Roadmaster de 57. Não tinha equipamento nem inclinação para fazer uma autópsia com o pormenor que a investigação de um assassinio exigia. Por uma questão de delicadeza, de noção do dever e de princípio, iria no carro funerário da Agência Davídson e acompanharia o processo, mas confidenciara a Dane que estava muito satisfeito por ter sido relegado para o papel de testemunha.

 

Testemunha. A palavra trouxe-lhe à mente uma imagem nítida de Elizabeth Stuart sentada no seu gabinete, pálida, trémula, com os olhos cinzentos marejados de lágrimas ao reviver o horror da descoberta do corpo. Dane praguejou entre dentes. Apetecera-lhe abraçá-la, oferecer-se para a consolar. Deitou fora o resto da cerveja e pousou a garrafa vazia no corrimão do alpendre, olhando para as pastagens e para o bosque que separavam a sua casa da antiga residência dos Drewes. Não havia dúvidas: a vulnerabilidade dela era mais perigosa para ele do que a sua sensualidade. Com o sexo entendia-se ele bem. o sexo mantinha-o à distância. A vulnerabilidade era outra coisa. E a necessidade. Dane não gostava de pensar na necessidade. Preferia mil vezes a sua outra impressão que tinha de Elizabeth Stuart: a vadia e a oportunista. Consolo era a última coisa que ele queria oferecer-lhe.

 

- Papá?

 

Dane virou-se maquinalmente, como se estivesse habituado a este tratamento, quando a verdade é que só o ouvia pelo telefone, excepto as poucas e preciosas vezes em que Amy vinha passar uns dias com ele. A filha encontrava-se à porta principal, com os longos cabelos castanhos desalinhados à volta dos ombros e uma camisola dos Raiders de L. A. que lhe chegava aos joelhos. Olhou para ele com um ar sonolento, atravessou o alpendre e aconchegou-se ao pai tão naturalmente como se fizesse o mesmo todas as noites. Dane abraçou-a e encostou a face ao cimo da cabeça dela, aspirando o aroma a água-de-colónia Loves Baby Soft e a champô de morango.

 

O que estás a fazer levantada? - perguntou ele em voz baixa. - Já devias estar a dormir, querida.

 

Ela sorriu, como se o considerasse simpático mas à beira da senilidade.

 

-Papá, eu tenho quinze anos, sabes?

 

-Nem pensar nisso - disse ele, gracejando. - Não tens mais de dez. Ainda há uma semana entornaste a loção para bebé por cima de mim.

 

- Que nojo! - A jovem fingiu-se ofendida, mas soltou uma risadinha divertida. - Ainda estou acostumada à hora da Califórnia, sabes? - recordou-lhe ela.

 

Hum... Dane também não gostava de pensar nisso, que a filha vivia do outro lado do continente, com a mãe e o homem que ocupara o seu lugar.

 

Seis meses depois do divórcio, Tricia assinara um acordo pré-nupcial com um tipo que tinha dois bons joelhos e o desejo de vir a ser o próximo John Madden. Dane pensou que não lamentava ter perdido Tricia; lamentava ter perdido, ponto final. Nem sequer se importava que ela o tivesse deixado nas lonas depois do divórcio. Mas nunca lhe perdoaria o facto de ter afastado a filha dele.

 

Nesse momento olhou para Amy e entrou em pânico ao aperceber-se novamente de que ela já não era uma criança. Pareceu-lhe que crescera quinze centímetros desde a última vez que a vira. A suavidade das formas própria da infância estava a desaparecer e a dar lugar à estrutura óssea angulosa de uma modelo. Todavia, a filha ainda não era uma mulher; encontrava-se numa fase intermédia, e a transição era óbvia no rosto, que começava a esvaziar-se, embora as sardas da infância ainda lhe salpicassem a cana do nariz arrebitado.

 

Perdera tanto tempo com ela! Os anos tinham passado por ele, deixando-lhe apenas um punhado de recordações feitas de totós e de sorrisos desdentados, de uma pequena fada que levava um coelho de peluche para todo o lado. Passara tão pouco tempo no seu papel de pai que não sabia o que havia de fazer com uma adolescente.

 

Um esgar trocista franziu-lhe os cantos da boca, e Dane ergueu o sobrolho com um ar sobranceiro.

 

- A tua mãe deixa-te ficar levantada depois da meia-noite?

 

- E eu também depilo as pernas - retorquiu ela com um olhar delicioso e maroto que lhe fez lembrar Tricia. E saio com rapazes.

 

Dane estremeceu, horrorizado, e abanou a cabeça.

- Ora essa! Vou mandar-te para um convento. -Nós não somos católicos.

 

- Isso não interessa. Eles são exímios a converter as pessoas.

 

Namorar. Deus fosse louvado, ele não estava preparado para isso. A filha ainda não tinha idade para namorar, pois não? Ele ainda não tinha idade para ter uma filha que já namorava, pois não? Não se sentia assim tão velho, até agora. Nesse momento, ali na escuridão, de madrugada, sentiu-se de repente muito velho e mortal.

 

- Foi alguém assassinado esta noite?

 

A voz de Amy interrompeu o silêncio, baixinho, com laivos de medo.

 

- Sim - respondeu Dane em voz baixa.

 

Ela estremeceu um pouco e agarrou-se a ele pela cintura, apertando a face contra o seu peito.

 

-Nunca julguei que uma coisa dessas acontecesse aqui. Por cima da cabeça dela, Dane olhou para a imensidão dos campos a sul, para a velha casa dos Drewes e para Still Waters, e sentiu o peso do mal no ar. A trovoada aproximara-se mais. Os relâmpagos lembravam dedos ossudos a atravessar o céu.

 

-Nem eu, querida - segredou ele.

- Sabes quem foi?

 

- Não, mas hei-de descobrir. - Dane levantou-lhe o queixo com o indicador. - Está na minha lista das coisas a fazer antes de te meter na ordem.

 

Amy arregalou os olhos.

 

- Papá, já sou muito crescida para ser metida na ordem.

 

-Ai sim? - Dane pôs as mãos nas ancas e deitou-lhe um ar de desafio quando ela se afastou. - Isso quer dizer que me achas muito velho para te levar para cima ao colo?

 

- oh, não - respondeu ela rindo-se e levantando as mãos para o afastar, recuando para a porta. - Não, não, não faças isso.

 

Era um ritual que ambos cumpriam desde que ela fizera dez anos, quando concluíra que já era demasiado crescida para ir às cavalitas. Era um hábito. o tipo de ritual que a maioria dos pais cumpria com as filhas todas as noites, calculou Dane. Um dia, Amy deixaria mesmo de ter idade para isso, mas não seria nessa noite. De repente, muitos outros aspectos da sua vida lhe pareceram ameaçados pela mudança; a filha não iria contribuir para isso nessa noite.

 

Dane impediu-lhe o caminho para a porta, sempre de olhos nela, inclinado, com as mãos levantadas, pronto a pegar-lhe ao colo ou a bloquear-lhe a passagem. Os velhos instintos da fase anterior da sua vida regressaram e, por instantes, Dane sentiu-se tão rápido e forte como nos tempos em que Kenny Stabler lhe atirava bombas.

 

- Papá, estou a falar a sério - insistiu Amy, tentando mostrar-se firme, - Eu cresci. Vais aleijar-te.

 

-Ora esta! - resmungou Dane.

 

Fingiu que ia para a esquerda, depois para a direita, e apanhou-a quando ela tentou passar por ele. Amy soltou um guincho de protesto quando o pai lhe pegou ao colo, esperneando e agitando os cabelos compridos enquanto ele a apertava contra o peito. Estavam ambos a rir-se quando Mrs. Cranston apareceu à porta, a correr, equipada com um taco de basebol e com a cabeça cheia de rolos cor-de-rosa e a cara reluzente graças a uma aplicação generosa de Oil of Olay. Era uma mulher baixa de sessenta anos, forte como um tanque de guerra e com uns olhinhos ardentes.

 

- Xerife, pelo amor de Deus!

 

A mulher puxou o robe azul de felpa até ao pescoço com a mão e   abriu a porta de rede com o taco.

 

-Não há problema, Mistress Cranston - disse Dane, enquanto Amy escondia o rosto no seu ombro, humilhada. Isto é um hábito de família. Desculpe se a acordámos.

 

Entrou pela porta de lado e atravessou a sala de estar, em que se destacava uma carpete bege e móveis pesados e masculinos. Mrs. Cranston, arrastando os pés atrás dele com um par de chinelos esfiapados, proferiu:

 

-Julguei que fosse o assassino.

 

-E é - disse Amy entre dentes. - Vou morrer de vergonha.

 

Dane ignorou o comentário e deu uma olhadela à arma da governanta.

 

- Bem, é bom saber que está pronta a proteger-nos, Mistress Cranston.

 

A mulher abriu a porta do quarto de hóspedes e apoiou o taco nos seios maciços.

 

- Pertenci à equipa feminina de suplentes durante a Segunda Guerra Mundial.

- Admirada e perigosa. - Dane mudou a filha de posição no colo e começou a subir as escadas, dizendo por cima do ombro: - Lembre-me de a nomear para delegada.

 

A governamta riu-se e depois espirrou.

- oh, atchim!

 

Dane concentrou-se em chegar ao segundo andar. A meio das escadas, lembrou-se da realidade cruel: Kenny Stabler não lhe atirava a bola há mais de dez anos. Sentiu uma dor no que restava da cartilagem do joelho esquerdo e tentou reprimir um esgar, mas sem grande êxito.

 

Amy percebeu e franziu o sobrolho, entrelaçando os dedos à volta da nuca do pai.

 

-Eu avisei-te.

 

-Tu não podes avisar-me de coisa nenhuma - resmungou ele. - Eu sou o teu velho. - Soltou um gemido quando chegaram ao patamar e uma velha lesão fez sentir a sua presença. - Sublinho o velho.

 

- Estás a ver? - disse Amy quando ele a pousou no soalho de madeira lisa. Puxou a camisola para baixo e prendeu uma madeixa   de cabelo atrás da orelha. - Estamos os dois muito velhos para isto.

 

Dane suspirou e coçou o pescoço no sítio da mordedura de um mosquito.

 

- Anima-me,   está bem? Não brinco muitas vezes aos papás.

 

Amy mordeu o lábio e mostrou-se totalmente compreensiva e simpática, demasiado sensata para uma criança.

 

- Quem me dera que não estivesses tão só, papá - declarou ela em voz baixa.

 

O sentimento atingiu Dane como um guarda-redes vindo não se sabe donde, desequilibrando-o mentalmente. Com um movimento automático, agarrou-se ao corrimão polido das escadas, para não cair. Céus, nessa noite, todo o mundo parecia tremer debaixo dos seus pés. Esse aspecto da sua vida pessoal estava totalmente separado da sua relação com a filha. Honestamente, nunca lhe passara pela cabeça que os dois se juntassem em qualquer contexto.

 

Dane disfarçou e fez um sorriso forçado. -Quem é que me aturava?

 

Ela encolheu os ombros e aproximou-se mais dele, abraçando-o pela cintura com uma expressão grave e sombria, encostando o queixo ao peito do pai e olhando para ele. -Eu, e se eu pudesse...

 

- Tu não contas. És da família, e portanto és obrigada a aturar-me. - Dane deu-lhe um beijo na testa, afastou-a com brandura e mudou de assunto. - Vai para a cama. É tarde.

 

Amy recuou até à porta do quarto, com um ar frustrado, como se tivesse muito mais coisas a dizer mas soubesse que não era o momento apropriado.

 

- Boa noite, papá - disse ela com um suspiro de resignação.

 

- Boa noite, fofinha.

 

Dane ficou no corredor até ver desaparecer o feixe de luz por baixo da porta do quarto da filha. Depois, virou-se lentamente e desceu as escadas, acompanhando com o olhar as fotografias de Amy dispostas na parede por ordem cronológica - um bebé de olhar brilhante, aos dezoito meses, com um arranhão no queixo, o resultado da sua determinação em descer o passeio quando as pernas ainda não tinham apanhado o jeito do andar, e quando andava no terceiro ano. Parou antes de chegar às mais recentes e voltou à última fotografia tirada antes de Tricia ter separado a família.

 

Amy com seis anos. Um sorriso que mostrava um misto incongruente de dentes de leite e de dentes definitivos. Totós enrolados e uma franja a cair sobre os olhos. Pouco depois de essa fotografia ter sido tirada, Tricia interrompera a relação de ambos com a mesma brutalidade com que lhe teria apontado uma faca.

 

Faca. A sua mente agarrou-se avidamente a esta palavra, desejosa de se afastar da sua vida pessoal. Dane tinha um caso de homicídio para resolver e o momento era tão bom como qualquer outro para começar. Desceu as escadas e saiu de casa sem fazer barulho, fechando a porta à chave atrás de si.

 

A manhã estava tão fresca e bonita que Elizabeth quase nem conseguia acreditar nos acontecimentos da noite anterior. Quase. o canto dos pássaros entrou pela janela aberta, arrastado por uma brisa lavada pela chuva e pelos raios de sol rosados. o peso da maldade que pairava no ar quando ela se debruçara sobre o cadáver de Jarrold Jarvis passara com a tempestade durante a noite.

 

Se ela tivesse dormido, talvez conseguisse convencer-se de que a descoberta da vítima de um assassínio brutal não passara de um pesadelo. Mas Elizabeth não pregara olho. Fora para cima depois de gastar até à última gota toda a água quente do reservatório para afastar de si o cheiro da morte de Jarvis, desligara a aparelhagem de Trace e tapara o filho com um cobertor depois de ele ter adormecido com a roupa que trazia no corpo. Pensara em despejar o cinzeiro que ele enfiara debaixo da cama, mas desistira da ideia. Comparada com outras formas de revolta que ele tentara, esta era menor.

 

Durante algum tempo, ficou à porta do quarto a vê-lo dormir, com necessidade de estar ao pé do filho mesmo que ele não a quisesse ali. Desejosa de se manter mais perto dele enquanto o fosso entre as gerações se abria entre eles. Só o tinha a ele, Trace era a sua única família, sem contar com J. C., que acabava os seus dias num lar de veteranos em Amarillo, com a mente tão afectada pelos anos de bebida que nem se lembrava que tinha uma filha.

 

Trace era dela, o bebé que ela dera à luz quando não passava de uma criança, o menino cujos arranhões ela tratara, cujas lágrimas ela secara. Tinham-se afastado nos últimos anos. o turbilhão da vida na estratosfera social de Atlanta distanciara-os. Mas haviam descido à terra com um trambolhão, e agora estavam os dois sozinhos outra vez, e Elizabeth queria agarrar-se a ele, abraçá-lo e consolá-lo. Mas não sabia como se aproximar dele.

 

Ficou à porta a olhar para o filho, do outro lado do quarto, sentindo um nó de medo no estômago ao pensar que, em termos emocionais, ele poderia manter-se sempre afastado, com uma faixa de terreno estéril entre ambos. Em seguida, dirigiu-se ao seu quarto, a pensar no assassínio e numa garrafa de uísque importado de quarenta e dois anos, que fora de Brock. Era como se alguém lhe tivesse enchido a cabeça de areia. Sentiu-a a abanar em cima dos ombros quando deixou cair as pernas sobre a beira da cama e conseguiu sentar-se.

 

- Oh, meu Deus! - gemeu ela, sentindo o quarto a girar à sua volta. Fez um esforço para fechar os olhos e passou a língua pelos dentes, fazendo um esgar, como se tivesse peúgas velhas e suadas na boca. - Devia pedir perdão e prometer nunca mais voltar a fazer o mesmo, mas ambos sabemos que eu estaria a violar um mandamento.

 

Começou a ouvir uma batida algures, o que a levou a admitir a possibilidade de se enfiar na cama e ficar lá durante os cinco anos seguintes. Mas tinha um dia à sua frente, e era provável que fosse dos especiais. Nesse dia os sarilhos iriam abundar. A notícia da morte inoportuna de Jarvis espalhar-se-ia por Still Creck como donuts por um café. As linhas telefónicas estariam sobrecarregadas. As pessoas iriam exigir pormenores e respostas. E como lhe competia esmiuçar esses pormenores e publicar essas respostas, ela teria de se levantar da cama e atirar-se ao trabalho.

 

Com cuidado, levou os dedos às têmporas, endireitando a cabeça ao levantar-se, a cambalear. A batida tornou-se mais forte, mais real, mais parecida com o som dos nós dos dedos na madeira. Elizabeth fez uma careta ao enfiar o pé numa poça de água e lembrou-se, já tarde, que deixara a janela aberta durante a tempestade, tal era o seu desejo de que a chuva batida pelo vento afastasse o cheiro saturado a morte que parecia queimar-lhe as narinas.
Pestanejando à luz maravilhosa e clara da manhã, apoiou-se no peitoril e espreitou para o quintal. Um cavalo alazão escanzelado estava atado ao poste da electricidade, a dormitar, com os arreios pendurados no corpo esquelético e uma das pernas traseiras levantada. Atrás dele via-se uma carroça amish preta, de linhas planas, que mais parecia uma velha carreta funerária para ir de encontro aos pensamentos de Elizabeth. A batida voltou, e dessa vez obrigou-a a olhar para a porta que estava mesmo por baixo dela.

 

No alpendre das traseiras encontrava-se um amish. o homem devia ter sentido a presença dela, porque deu um passo atrás e olhou para cima, tirando o chapéu de palha de aba larga e deixando à mostra o cabelo louro e sedoso. Era Aaron Hauer. Fora ele que, na noite anterior, contrafeito, a levara a casa na sua carroça para ela telefonar à esquadra a participar o assassínio.

 

Parecia estar mais perto dos quarenta que dos trinta anos, era alto e ossudo, e o seu rosto era do tipo «gótico americano», austero e sem alegria. As suíças estreitas e louras chegavam-lhe ao queixo. Olhou para ela, contemplando-a com uma espécie de desprezo subtil através dos velhos óculos sem armação.

 

-Mister Hauer - gritou ela, retraindo-se um pouco com o som roufenho da sua voz e o zumbido que ele lhe provocou na cabeça. Contemplou-o com um arremedo de sorriso e aconchegou o decote da camisa de noite ao pescoço, esperando que ele não tivesse visto a carne clara e sedosa que ofenderia a sua sensibilidade cristã. - o que está aqui a fazer a esta hora?

 

- o Sol já nasceu - respondeu ele, como se isso fosse uma desculpa para obrigar as outras pessoas a levantarem-se da cama.

 

Elizabeth olhou para leste, respirando fundo por entre os dentes, enquanto os raios de sol se lhe espetavam nas órbitas como agulhas.

 

-Já amanheceu. Bolas, é verdade. o engraçado é que eu não dei por isso.

 

o seu sarcasmo perdeu-se em Hauer. o homem ficou a olhar para ela, à espera.

 

Vim ver a sua cozinha, Elizabeth Stuart.

 

- A minha... ?

 

o simples esforço de tentar dar sentido a este episódio provocou-lhe uma vertigem. Elizabeth encostou a cabeça à esquadria da janela e respirou fundo, tentando acalmar o ardor no estômago. Não se lembrava de lhe ter pedido para voltar, mas não tencionava discutir por causa disso.

 

- Dê-me um segundo, filho - gritou ela, sem se arriscar a olhar de novo para ele. - Vou já descer.

 

Descer e cair no chão, vomitando o que ainda tinha no estômago, pensou ela, desolada, afastando-se da janela. Atravessou o quarto, voltou a enfiar o pé na poça de água e cerrou os dentes para não gemer. Gemer era um luxo para o qual ela não tinha tempo. Tinha de falar com Aaron Hauer e depois telefonar a Jolynn, a pedir-lhe que viesse buscá-la. Tencionava acampar à porta do xerife Jantzen até que ele lhe desse qualquer coisa para ela publicar no Clarion.

 

Sustendo o fôlego para afastar as vertigens, inclinou-se e meteu a mão no roupeiro. Tirou umas calças de ganga e uma T-shirt cinzenta, tão velha e desbotada que o emblema da Universidade do Texas que tinha à frente era pouco mais do que uma sombra, uma pálida recordação do tempo em que ela palmilhava os abençoados corredores da Universidade do Texas em El Paso. o conjunto estava muito fora de moda, mas servia para a ocasião. Depois de despachar Mr. Hauer, iria procurar qualquer coisa para vestir que lembrasse os Quinhentos Mais da Fortune. Algo mais consentânio com uma empresária. Algo que obrigasse Dane Jantzen a endireitar-se na cadeira e a limpar o suor da cara.

 

Aaron Hauer ainda estava pacientemente à porta das traseiras quando ela chegou, dez minutos depois. Elizabeth pensou que, quem chegasse antes de a chaleira apitar, bem podia ficar a arrefecer lá fora até que ela urinasse e passasse uma escova pelo cabelo.

 

Encostou-se à ombreira da porta, para se recompor. -Em que lhe posso ser útil, Mister Hauer?

 

- Aaron Hauer - corrigiu ele, aumentando e reduzindo o tom de voz, com o forte sotaque do dialecto alemão que os Amish falavam entre si. Tinha um olhar sombrio e firme, por trás dos óculos. - o meu povo, nós, não acreditamos em títulos. Os títulos são hochmut, orgulhosos. E o orgulho é um pecado.

 

- A sério? Bem, acho que tenho de acrescentar esse à minha lista.

 

o homem suspirou, sem dúvida aterrado com a lista dos pecados dela, pensou Elizabeth. Estava a milhas de distância das mulheres amish que vira na cidade, de vestido comprido e touca, olhos postos no chão e vozes ciciadas.

 

-Venho ver a sua cozinha, Elizabeth Stuart. -Já me disse.

 

Elizabeth meteu a mão no cabelo e coçou o couro cabeludo, tentando lembrar-se se o convidara para sua casa. Mas não deu resultado.

 

Aaron pegou no puxador que caíra quando ele batera à porta. Empinou um canto da boca e fez um sorriso oblíquo que lhe transformou o rosto e corroborou a minúscula chispa de humor que se escondia no seu olhar.

 

- Estou a pensar que você precisa de um carpinteiro. A gargalhada de Elizabeth Stuart foi espontânea. Nem sequer tentou reprimi-la, embora lhe deixasse o coração a bater como um tambor. Com que então, os Amish sabiam ser oportunistas como todas as outras pessoas! Por insistência dela, Aaron Hauer acompanhara-a a casa na noite anterior e não arredara pé enquanto ela não telefonara para a esquadra. Obviamente, reparara que a cozinha estava desconjuntada e começara a deitar contas aos dólares.

 

- Filho, do que eu preciso aqui é de um pau de dinamite e de uma boa apólice de seguro, mas não tenho dinheiro nem para um nem para a outra.

 

Elizabeth acalmou-se e deitou-lhe um olhar de desculpas.

- Lamento, mas também não posso pagar a um carpinteiro.

 

o homem franziu um pouco o sobrolho, inclinando a cabeça para o lado e semicerrando os olhos.

 

- Eu sei disso. Ainda não lhe disse qual é o meu preço.

- Se é mais do que um café, não posso pagar-lhe.

- Veremos. - o homem pegou na sua caixa de ferramentas e abriu a porta de rede, entrando sem ser convidado. - o meu preço pela consulta é uma chávena de café. Pode pagar isso, creio eu.

 

Passou por ela e entrou na cozinha, como se lhe assistisse o direito de estar ali. Elizabeth foi atrás dele, boquiaberta, dividida entre o divertimento e a irritação.

 

- Você tem um futuro brilhante à sua espera como um Fuller Brush, filho.

 

Aaron ignorou-a. Pousou a caixa de ferramentas em cima da mesa, no meio de várias embalagens de cereais, e inspeccionou a cozinha com um ar crítico. o local era um destroço. Parecia ainda pior à luz do dia do que na noite anterior, à luz artificial. A única coisa que se aproveitava era o aroma a café acabado de fazer exalado pela cafeteira eléctrica que estava em cima da bancada. Aaron era contra a electricidade, mas o café era outra coisa.

 

- Você não consegue cozinhar neste sítio - declarou ele.

 

Elizabeth aproximou-se de um armário cuja porta estava presa só por uma dobradiça e tirou duas chávenas de café desirmanadas.

 

- Tenho de dizer-lhe uma coisa, Aaron. Eu não consigo cozinhar nem na cozinha do Wolfgang Puck.

 

Aaron olhou para ela, unindo as sobrancelhas com um ar desconfiado.

 

-Quem é esse Wolfgang?

 

- Ninguém que você conheça. É apenas um cozinheiro famoso em todo o mundo.

 

o homem encolheu os ombros, indiferente a quem vivesse num raio superior a quinze quilómetros da sua comunidade. Tinha notícias dos Amish graças a The Budget, mas não se interessava pelos Ingleses. Podiam guardar as suas modas e as suas guerras para si próprios. Além disso, não era pessoa de restaurantes. As sobrinhas e os sobrinhos gostavam de ir ao Dairy Queen de Still Creek, comer batatas fritas e gelados de cone uma ou duas vezes no Verão, mas ele nunca gostara de os levar lá. Havia demasiados turistas a olhar, a tirar fotografias, como se julgassem que os Amish eram pouco mais do que animais num jardim zoológico.

 

Pegou na chávena de café que Elizabeth lhe ofereceu com um «Danki» em surdina e levou-a à boca com uma certa trepidação. A avaliar pelos dotes de dona de casa de Elizabeth, esperava uma surpresa desagradável. Mas o café estava suave e saboroso, e ele bebeu-o, com a admiração estampada no rosto.

 

Elizabeth fungou, ofendida.

 

-Não é preciso ficar tão admirado. Sei fritar batatas com os melhores ingredientes.

 

- Também faz um bom café - disse ele, com um gesto de cabeça decisivo.

 

Elizabeth abanou a cabeça e riu-se sozinha.

 

- Obrigada. Talvez eu devesse ter feito café ao Brock disse ela em voz baixa, com um ar pensativo, procurando um cigarro e uma carteira de fósforos na confusão da bancada. - Talvez ele tivesse concluído que eu prestava para alguma coisa.

 

- Brock?

 

- o meu marido... Antigamente. -Você é viúva?

 

Os olhos cinzentos de Elizabeth semicerraram-se com uma alegria maliciosa quando levantou a cabeça no meio de uma nuvem de fumo.

 

- Quem me dera! - disse ela, maravilhada. Aaron fitou-a com um misto de rigidez e de atrapalhação, encolhendo o queixo e percebendo instintivamente que devia ignorar a atitude dela, apesar de não perceber do que ela estava a falar. - Sou divorciada - explicou Elizabeth, deitando a cinza num tabuleiro de ir ao forno que ainda tinha vestígios de lasanha queimada.

 

Aaron soltou um grunhido de reprovação, pôs a chávena de lado e disse entre dentes:

 

- Ingleses!

 

Segundo a lei de Deus, o casamento era para toda a vida. Um homem e uma mulher unidos para trabalharem e para gerarem filhos, para se acompanharem até à morte. Aaron não compreendia as pessoas que tomavam a palavra do Senhor tão de ânimo leve e se dispunham a casar com a mesma facilidade com que trocavam de automóvel.

 

- E você? - perguntou Elizabeth, com uma curiosidade natural acerca daquele estranho homem que lhe invadira a cozinha.

 

Vivia em Still Creck há pouco tempo e ainda não tivera oportunidade de contactar pessoalmente com nenhum dos amish que lá viviam... Até à noite da véspera, em que as conversas de circunstância não tinham cabimento.

 

Ele estava em frente dela, com as mãos enfiadas nos grandes bolsos das calças pretas de fabrico caseiro. Como todos os homens amish que Elizabeth vira, vestia uma camisa de algodão azul-forte, abotoada até ao pescoço, e suspensórios pretos. Pela primeira vez, apercebeu-se de que ele era atraente, apesar do seu aspecto rude. Fazia lembrar o Nick Nolte em o Cabo do Medo - tenso, macambúzio, mas não destituído de encanto. Tinha um rosto comprido e malares salientes, um nariz aquilino e uma boca crispada. Na sua expressão havia o mesmo laivo de inquietação que era vulgar encontrar no QG. Sem barba e de cabelo cortado, pareceria um yuppie respeitável. Mesmo que conservasse os óculos antiquados como adorno. Elizabeth ia a rir-se da ironia, mas duvidava que Aaron achasse graça. o sentido de humor não era a maior das suas qualidades.

 

Ele fazia-lhe lembrar um professor de Inglês que ela tivera na faculdade. Philip Barton. Indomável, firme, louro e com uns olhos castanho-claros que brilhavam com a intensidade do laser. Elízabeth tinha um fraquinho por ele. Barton tinha um ar distante. Levara-a para a cama e dera-lhe um suficiente menos no teste sobre D. H. Lawrence. Um homem de grandes princípios.

 

- A minha mulher morreu - respondeu Aaron Hauer sucintamente, virando-lhe as costas.

 

As palavras atingiram Elizabeth com a força de um cano de chumbo, tirando-lhe o fôlego.

 

- Desculpe - disse ela em voz baixa.

 

Se ele a ouviu, ignorou a sua automática declaração de simpatia. Começou a verificar os armários, com os ombros rígidos, o queixo crispado e um olhar tão absorto na madeira que ElIzabeth perguntou a si própria se ele estaria a vê-la ou a atravessá-la com o olhar em busca de uma recordação distante. Sentiu que o sofrimento irradiava dele como uma aura e invejou-o um pouco. Devia ter amado a mulher que perdera, uma coisa que ela não podia dizer acerca do seu ex-marido. Brock nunca a amara. Gostara de a possuir, mas nunca a amara, e ela sabia que ele não chorava o facto de ela ter saído da sua vida.

 

- Ya, eu posso consertar-lhe isto - declarou Aaron, distraído. Os seus dedos compridos afagaram a estrutura de um armário aberto como se acariciassem os cabelos de uma mulher, devagarinho, com afecto. - o melhor é fazer uns novos. Neste caso a habilidade não serve de nada.

 

- Nem sequer tenho dinheiro para os mandar consertar, quanto mais para os substituir - disse Elizabeth. Deixou-se cair numa cadeira de pernas cromadas, que tinha sem dúvida a idade dela. o assento de vinil vermelho estava roto, e há muito que os ratos tinham comido o estofo, mas Elizabeth sentiu um alívio nos pés doridos e inchados e o soalho deixou de ranger como o convés de um barco inclinado.

 

-Não estou a tentar explorá-lo, Aaron. o facto é que estou completamente arruinada.

 

-Tal como os seus armários.

 

- A casa foi vandalizada duas vezes antes de eu a comprar - disse ela, para que ele não julgasse que toda aquela destruição se devia aos seus fracos dotes domésticos.

 

- Os jovens da cidade vinham para aqui fazer festas e beber - lembrou Aaron, procurando a chave de parafusos adequada na sua caixa de ferramentas meticulosamente arrumada. - o sítio é bom para isso. - A boca dele crispou-se, defendendo-se da amargura. - Escondido. Fora da cidade. Sem ninguém que os incomode, a não ser os Amish.

 

Sentia-se a sua irritação por trás das palavras, embora falasse como se pensasse que destruir propriedades fazia parte da adolescência. Na sua opinião, o modo como os Ingleses educavam os filhos tinha muito de bárbaro. Não possuíam princípios, nem escrúpulos, nem respeito por nada nem por ninguém, nem temor a Deus ou ao castigo. Destruíam a vida de outras pessoas e não sofriam as consequências. Mas quando Aaron aproximou a chave de parafusos da porta do armário, acalmou-se e tentou ver a situação pela positiva. Se ninguém tivesse destruido os armários de Elizabeth, ele não teria o trabalho de os consertar.

 

-Há outras maneiras de pagar além do dinheiro, Elizabeth Stuart - disse ele, voltando a concentrar-se no trabalho que tinha entre mãos.

 

Elizabeth estremeceu como se tivesse sofrido um choque eléctrico e endireitou-se na cadeira. Os Amish não só eram oportunistas como sabiam ser lúbricos e lascivos. Trocar trabalho por favores sexuais! Isto conferia um novo significado à ideia de ter um homem habilidoso à mão.

 

Fitou-o, na expectativa, sem perceber o que havia nela que despertava tais sentimentos nos homens. Ela não o provocara, a menos que os homens amish partissem do princípio de que todas as mulheres «inglesas» eram fáceis. Na realidade, desde que ele chegara que ela tentara mandá-lo para casa. Mas ali estava ele, com uma calma impressionante, a sugerir.

 

-Você tem um moinho que não utiliza - prosseguiu ele, concentrando-se em arrancar um parafuso da madeira e meia dúzia de camadas de tinta.

 

Elizabeth pestanejou.

- Tenho?

 

- Ya. - Aaron arrancou o parafuso, examinou-o rapidamente, enfiou-o na algibeira das calças e dedicou-se a outro. - Por acaso, o Silas Hostetler precisa de um moinho novo. E tem um cavalo novo, preto, que eu podia usar para substituir o meu velho alazão.

 

- Ah...

 

Então não era o corpo dela que ele pretendia. Elizabeth não sabia se havia de se sentir ofendida ou aliviada.

 

- Estamos combinados, então?

 

Aaron arrancou outro parafuso e guardou-o na algibeira, antes de olhar para ela por cima do ombro.

 

Elizabeth estava sentada com uma perna levantada, as mãos agarradas ao tornozelo, os braços a emoldurarem-lhe os seios, empinando-os debaixo da camisa de homem que vestia. Tinha um ar selvagem e pecaminoso aos olhos dele, com os cabelos negros à volta dos ombros, soltos e descobertos. Pecadora, pensou ele. Os cabelos de uma mulher eram a sua glória e só o marido é que devia vê-los.

 

Mas Elizabeth Stuart não tinha marido.

 

E ele não tinha mulher. Por muito que se considerasse casado, a sua Siri estava junto de Deus e ele estava sozinho neste mundo.

 

Desviou o olhar dela, virando-se para o armário. Não tencionava envolver-se com uma mulher inglesa. Por muito que ela precisasse de um homem para tomar conta dela, ou que os seus olhos fossem da cor do céu antes do amanhecer. Ele fora a casa dela por outros motivos, por motivos práticos.

- Acho que estamos combinados.

 

Elizabeth levantou-se da cadeira, um pouco confusa por lhe ter acontecido uma coisa boa com tanta facilidade. A sua vida era a «Lei de Murphy» na prática. Parecia-lhe bom de mais para ser verdade que lhe consertassem a cozinha em troca de um moinho velho e inútil. Mas um moinho tinha valor para um amish.

 

«A cavalo dado não se olha o dente, filha, mesmo que ele esteja atrelado à carroça de um amish.»

 

-No sítio donde eu venho, é costume apertarmos as mãos depois de fazermos um acordo, Aaron Hauer - disse ela, estendendo-lhe a mão.

 

Aaron olhou para ela como se desconfiasse que tinha uma campainha de brincar escondida na palma. Pousou a chave de parafusos com relutância e aceitou a sugestão, como se fosse penoso tocar-lhe. Elizabeth fez um sorriso malicioso. Não duvidava de que ele nunca apertara a mão a uma mulher, e muito menos a uma «inglesa». Sentiu-se triunfante por ser a primeira.

 

A mão dele estava quente e seca e era calosa e áspera. Tinha uma força tremenda, mas era potencialmente suave e até artística. Elizabeth pensou no modo como ele passara os dedos pelo armário e imaginou que, com sorte, uma jovem amish não tardaria a arranjar um bom marido quando ele terminasse o luto pela esposa que morrera.

 

- Obrigada, Aaron Hauer - proferiu ela em voz baixa. Por instantes, os olhares de ambos cruzaram-se e algo quase imperceptível perpassou entre eles. Não foi exactamente atracção, nem necessidade, nem sequer compreensão. Elizabeth só conseguiu chamar-lhe consciência, e até esta palavra lhe pareceu demasiado forte. Estranho, isso é que era. Em seguida, ele retirou a mão e desviou o olhar, e tudo se dissipou.

 

- Tenho de mudar de roupa para ir trabalhar - anunciou ela, recuando até à porta da casa de jantar. - A cidade está em pulgas para saber notícias do assassínio.

 

Aaron franziu o sobrolho ao ouvir a linguagem dela e voltou ao trabalho sem fazer comentários.

 

- Você não parece muito preocupado por terem matado um homem a dois passos da sua casa.

 

Ele fez uma careta ao torcer mais um parafuso teimoso.

- o que se passa no mundo dos Ingleses não me diz respeito.

 

Balbuciou qualquer coisa em alemão, enquanto tentava soltar o parafuso. A madeira desistiu da sua teimosia e Aaron conseguiu arrancar o parafuso com alguns estalidos do pulso.

 

Elizabeth continuou a observá-lo, espantada com a calma dele. o homem falava como se os dois mundos de ambos existissem em planos paralelos que não se podiam tocar, que não se podiam intersectar mesmo quando eles próprios refutavam essa teoria. Aparentemente, nunca passara pela cabeça de Aaron Hauer que um assassino poderia não estabelecer qualquer diferença entre um amish e um inglês, como ele próprio fazia. Elizabeth duvidava que o pescoço dos Amish fosse mais resistente a uma lâmina que o de Jarrold Jarvis, mas invejava a couraça que a fé formava à volta de Aaron Hauer. Teria sido agradável citar um versículo da Bíblia e considerar-se absolvida de qualquer envolvimento no que acontecera. Mas não podia fazer tal coisa. Mesmo que não tivesse descoberto o corpo, continuava a ser uma repórter.

 

- Vai ter de se apresentar ao Trace - disse ela, mudando de comprimento de onda ao dirigir-se para o telefone pendurado na parede da cozinha. Pediria uma boleia a Jolynn e depois telefonaria ao tipo de que o agente Kaufman lhe falara, para lhe tirar o carro da valeta. Como se chamava ele? Jurgen qualquer coisa. - o Trace é o meu filho esclareceu ela. - É contra a religião dele levantar-se antes do meio-dia.

 

«Bom, coma o que encontrar e que não lhe pareça uma experiência científica. Cheetos é talvez o melhor que conseguirá encontrar. Espero que não tenha nada contra corantes e conservantes, porque vivemos à custa disso tudo. Eu preparava-lhe uma torrada, mas tenho de fazer dois telefonemas, e depois vou à procura da verdade e da justiça.

 

- E o que fará quando as encontrar? - perguntou uma voz suave e masculina, num tom divertido e sardónico.

 

Elizabeth virou-se para a porta das traseiras, com um nó na garganta. Dane Jantzen encontrava-se encostado ao seu frigorífico, como se reservasse as suas energias para coisas muito mais importantes do que uma boa posição. Estava fardado, ou quase. Calças pretas bem vincadas, camisa de caqui, gravata, distintivo e uma placa com o seu nome ao peito.

 

- Direi ao mundo - respondeu ela, aborrecida consigo mesma por perder tempo a olhar para ele.

 

- E fará dinheiro com isso - comentou ele com brandura.

 

Elizabeth conteve-se, empinou o queixo e cruzou os braços, na defensiva.

 

- Exactamente, xerife. Chama-se a isso livre iniciativa. Ele soltou um pequeno ronco, afastou-se do frigorífico e começou a deambular pela cozinha, perscrutando a bancada atravancada.

 

-Isso é o que você diz. - Elizabeth ia a responder-lhe, mas conteve a língua antes de as palavras lhe saírem da boca. Não lhe daria a satisfação de morder o isco. Ele gostava muito disso, o patife arrogante. Ficou a observá-lo durante um minuto, enquanto ele examinava o conteúdo de um armário sem porta, como se a marca dos legumes enlatados que ela comprara fosse uma pista vital para ele. - Sopa de letras - proferiu ele com um sorriso desagradável, passando a mão pela lata Campbells. - Anda a aperfeiçoar a sua ortografia?

 

-Você tem um mandado? - disparou ela, inclinando-se para ele.

 

- Tenho motivos para precisar de algum? - perguntou ele tranquilamente.

 

Elizabeth cerrou os dentes.

 

- Do que você precisa é de um transplante de personalidade.

 

Dane riu-se.

 

-Tem algum doador em mente?

 

- Átila, o Huno, já seria uma vantagem, mas eu não sou esquisita.

 

-Foi o que me disseram.

 

As palavras foram cortantes. Dane amaldiçoou-se por se preocupar com isso, mas não pôde evitá-lo. Gostava de discutir com Elizabeth Stuart. Ela era insolente e arguta. Mas Dane não gostou de ver o seu ar subitamente ofendido e não se orgulhou de ser a causa dele. Raios, esperava que ela lhe espetasse outra farpa e não que se retraísse. Com tudo o que os jornais tinham dito a seu respeito durante o divórcio, julgava-a mais resistente.

 

Não acredite em tudo o que lê,.filho. As palavras dela voltaram a ter eco nele, embora Dane não se importasse de as ouvir nem a verdade que encerravam. Elizabeth afastou-se dele, com uma expressão cuidadosamente fechada, destinada a não revelar nenhuma das emoções que o seu rosto denunciara automaticamente uns segundos antes. A necessidade de pedir desculpa cresceu dentro dele, mas as palavras ficaram-lhe presas na garganta e Dane não conseguiu pronunciá-las. Pedir desculpa não era uma coisa que ele fizesse bem nem com frequência.

 

- Wie gehts, Dane Jantzen?

 

A atenção de Dane dirigiu-se pela primeira vez para Aaron Hauer. Apercebera-se da presença do amish, vira o cavalo e a carroça no quintal, vira o próprio Aaron a trabalhar na porta de um armário, mas concentrara-se em Elizabeth, afinando os sentidos para ela, intensamente consciente e cauteloso.

 

- Bom dia, Aaron. - Dane apontou para os armários, enfiou as mãos nos bolsos e encostou a anca à bancada. Eu diria que este trabalho é mesmo talhado para si.

 

Aaron retirou uma porta, examinando cuidadosamente as extremidades. Estava demasiado lascada para aplainar. Teria de a substituir.

 

Ya - disse ele pouco depois. - Há muitas coisas boas a fazer aqui.

 

A censura na sua voz foi tão subtil que Dane quase a deixou passar como se fosse um reflexo do seu complexo de culpa. Aaron observou-o com um olhar sombrio e firme, antes de retomar o trabalho. Dane encolheu os ombros, ignorando a sensação de estar a ser acusado, e voltou ao papel em que se sentia à vontade, que condizia com o distintivo que usava.

 

- Houve muitas coisas más que se passaram aqui ontem à noite - afirmou ele. - Por acaso, você não viu nada, pois não?

 

o amish tirou um alicate da caixa de ferramentas com a meticulosidade de um dentista que escolhesse o instrumento adequado à extracção de um dente. Virou-se para o armário e começou a retirar o fecho partido.

 

- Não.

 

Dane respirou fundo e devagar, esforçando-se por ter paciência. Os Amish aderiam a uma política que se caracterizava por não ver, não ouvir e não falar no mal, e que podia enfurecer um agente da lei. Só prestavam contas a Deus. Mesmo quando a violência lhes era dirigida, limitavam-se a oferecer a outra face e continuavam a viver como se nada tivesse acontecido. Aaron era um exemplo perfeito.

 

- Foi morto um homem. Assassinado - frisou Dane, tentando transmitir-lhe a gravidade da situação e sabendo que talvez isso não alterasse as coisas. Aaron continuou a trabalhar como se não tivesse compreendido uma palavra.

- Isto é um assunto sério, Aaron. Esta noite cortaram o pescoço ao Jarrold Jarvis. Se você viu alguma coisa... um homem, um automóvel, qualquer coisa... eu tenho de saber.

 

Aaron estremeceu um pouco, ou porque a imagem de um homem a ser assassinado o impressionou ou pelo facto de o fecho se ter partido no meio do alicate. Dane não percebeu.

 

- Não posso ajudá-lo, Dane Jantzen - redarguiu ele, franzindo o sobrolho ao ver o fecho partido e atirando-o para o prato de plástico que fazia as vezes de cinzeiro.

 

-Não pode ou não quer?

 

o homem suspirou, com um ar cansado, e endireitou os óculos no nariz.

 

-Não havia automóvel nenhum - disse ele, olhando para a porta do armário. - Não havia homem nenhum. Dane apurou o olhar.

 

-E uma mulher?

 

Elizabeth perdeu a paciência.

 

- oh, pelo amor de Deus, está bem, eu confesso afirmou ela. - Esfaqueei um homem com cento e trinta quilos, degolei-o e, sem qualquer motivo, fi-lo com a minha uma das unhas. o que vocês não sabem - prosseguiu, tirando outro cigarro e atirando o maço para cima da mesa é que eu tenho andado a tratar-me com esteróides e que isso me dá cabo dos miolos. Tenciono invocar insanidade provocada por hormonas para me defender.

 

- Tenha cuidado, Miss Stuart - avisou Dane com um sorriso. - Tudo o que disser pode e será usado contra si. Elizabeth atirou a cabeça para trás, lançando uma baforada de fumo para a cara dele.

 

-Diga-me qualquer coisa que eu ainda não saiba.

- Está bem - disse ele. - Você vem comigo. Elizabeth deu um passo atrás e a sua bravata desvaneceu-se ao mesmo ritmo a que a sua imaginação galopava. Era uma estranha ali, uma mulher com uma reputação, uma mulher sem um álibi. Estivera na cena do crime, tivera o sangue da vítima nos seus sapatos, e Dane Jantzen era um xerife de província numa região em que dois vagabundos a urinar na rua constituía uma onda de crimes. Vieram-lhe à mente imagens de filmes de mulheres na prisão. Céus, a vida ia de mal a pior.

 

Dane abanou a cabeça, insatisfeito. Sempre que julgava que aquela mulher era firme como rocha, a sua couraça estalava. Elizabeth olhava-o como se ele tivesse acabado de lhe dizer que sacrificaria criancinhas todos os dias. Tirou o tabuleiro de forno da bancada e pô-lo debaixo do cigarro a arder, antes que a cinza caísse.

 

-Você precisa de uma boleia para a cidade - recordou-lhe ele, exasperado. - Conseguiu atirar para a valeta de uma estrada a direito aquele vaso de guerra a que chama automóvel e, a menos que os esteróides que anda a tomar lhe dêem uma força hercúlea e você o tenha puxado com as suas próprias mãos, ele ainda lá está,

 

- Julguei que tinha passado por aqui só para satisfazer a sua necessidade diária de perseguir pessoas. Não sabia que tinha uma tão grande capacidade para ser delicado.

 

- Ando a verificar os estragos - disse Dane, corrigindo-a. - A conferência de imprensa começa às nove. Quero saber onde é que está a sua boca.

 

Elizabeth semicerrou os olhos.

 

- Bem, não estará a beijar-lhe o eu. Eu posso pedir boleia sozinha, obrigada.

 

Elizabeth virou-se com um gesto violento da cabeça dorida, decidida a sair em grande mesmo que isso a matasse, mas uma mão agarrou-lhe o cotovelo e obrigou-a a dar meia volta. Ficou a poucos centímetros do peito dele, com os olhos quase ao nível da placa de latão em que se lia XERIFE JANTZEN em grandes letras pretas. Devagar, em ar de desafio, levantou a cabeça e olhou para ele, e o mundo inclinou-se um pouco no seu eixo.

 

Pensou que se tratava de um misto da sua ressaca e da altura dele, com botas de cowboy, mas a voz da verdade dentro dela prendeu-lhe a língua. o facto é que ele estava demasiado perto e era demasiado viril. o efeito foi tremendamente desestabilizador. Elizabeth desejou de todo o coração estar noutro sítio qualquer com outra pessoa qualquer.

 

-Não era uma oferta - proferiu ele com uma voz de veludo. - Era uma ordem. Você vem comigo. Agora.

-Deus Todo-Poderoso, você monopolizou o mercado do encanto, não é verdade?

 

Elizabeth deitou-lhe o seu olhar mais sarcástico, enquanto a camioneta Bronco descia a estrada de cascalho. Desconfiava que não surtiria qualquer efeito, escondida como estava atrás das lentes dos seus Ray-Ban, mas a intenção permanecia lá, a arder no ar que os separava.

 

Dane mostrou os dentes.

 

-Encanto é o meu primeiro apelido.

 

- A sério? Eu julgava que era qualquer coisa começada por A.

 

- Admirável?

 

- Arrogante. Aborrecido. Ama...

 

- Caluda, Miss Stuart - cacarejou ele, trocista. - Essa linguagem é indigna de uma senhora com o seu nível. Elizabeth rosnou:

 

- Você nem daria pelo nível mesmo que lho atirassem à cara. - Enfiou a mão na mala, o único objecto que conseguira agarrar quando Dane a arrastara de casa, e tirou a base e um bâton Passion Poppy. Ao abrir o espelho, viu o seu reflexo a subir e a descer e tentou dar uma certa cor aos lábios. - Podia ter-me dado dez minutos para eu mudar de roupa e me maquilhar um pouco...

 

-Nunca conheci nenhuma mulher que conseguisse tomar uma decisão em dez minutos, e muito menos maquilhar o rosto...

 

- Pois não... Tem de se armar em machista e arrastar-me 108
ao nascer do dia para uma conferência de imprensa que já devia ter começado há horas. Você teria sido um sucesso na Alemanha nazi. Bem podia ter sido o rapaz do cartaz da SS.

 

- Céus! - exclamou ele. - Não me parece que o facto de eu não lhe ter dado tempo para você se maquilhar seja um castigo cruel e invulgar.

 

- Não, essa parte vem agora - retorquiu Elizabeth secamente. - Ter de suportar a sua deliciosa companhia até à cidade nesta carroça, enquanto besunto o nariz de bâton Estée Lauder. - Dane travou a fundo e a camioneta Bronco parou. Elizabeth soltou um gritinho de surpresa quando a mala voou e o seu corpo embateu no tablier. Estendeu a mão para se proteger, partiu uma unha e bateu à mesma com a cabeça no pára-brisas. - Raios! Gastei dez dólares para arranjar estas unhas!

 

Empurrou os óculos escuros para cima da cabeça e examinou a unha partida, passando o polegar pela ponta farpada. As unhas eram a única extravagância que ela mantinha.

 

Sempre considerara que uma boa manicura era a marca de uma verdadeira senhora e agarrara-se a este símbolo, agora que não tinha dinheiro para se entregar a quaisquer outros luxos. Não almoçara três vezes na semana anterior para que Ingrid Syverson do Salão de Beleza Fashion-Aire lhe pusesse três camadas de Vivacious Red. Agora, todo o efeito estava arruinado.

 

-Eu disse-lhe que pusesse o cinto - rosnou Dane. E ela recusara-se a dar-lhe ouvidos.

 

- Você é um louco, mais nada - resmungou ela, aplicando a sua base dourada e vendo-se ao espelho antes de a arrumar na mala, com uma série de tralha que voara para o chão. Isqueiro, tampões, coupões de piza congelada do Piggly WiggIy, cinco rebuçados soltos e oitenta e três cêntimos.

 

- Não - corrigiu Dane, crispando os músculos do queixo que o obrigaram a cerrar os dentes. - o que eu estou é muito cansado. Esta noite dormi uma hora. Tive de ficar em casa durante algum tempo para evitar que um lunático com uma faca não acrescentasse a minha filha à sua lista de afazeres, e depois passei o resto da noite na esquadra a ser perseguido por repórteres e a pensar quem teria querido decapitar o Jarrold Jarvis. - Dane virou-se para Elizabeth com um olhar que inconscientemente a obrigou a agarrar-se à porta. - Sou um homem cuja paciencia começa seriamente a resvalar para a zona vermelha, e não preciso que uma beldade sulista me chateie com lamúrias por causa das suas malditas unhas.

 

Elizabeth endireitou os óculos escuros e voltou a instalar-se impecavelmente no banco, alisando a sua velha T-shirt da universidade de El Paso como se fosse a sua melhor blusa de marca. Prendeu uma madeixa de cabelo atrás da orelha, recuperando a sua compostura enquanto o silêncio assentava como poeira na cabina da camioneta.

 

-Eu não faço lamúrias - afirmou ela com firmeza, presenteando-o com o seu perfil. - Eu amuo.

 

- Em geral, o amuo é uma tentativa silenciosa - observou Dane. Meteu a primeira e a camioneta recomeçou a andar. - Talvez você já não saiba como é.

 

Elizabeth não lhe daria o prazer de ter a última palavra. Porque não mandara ele o agente Kaufman buscá-la? Aquele homenzinho delicioso, com olhos de cachorro, tê-la-ia deixado mudar de roupa. Bolas, talvez ela tivesse conseguido lavar a cabeça e depilar as pernas, a propósito. E ele teria perguntado como é que ela se sentia em vez de a atacar, como um lobo mal-humorado.

 

Espreitou Dane pelo canto do olho. Estava mesmo com um ar cansado. Tinha uma expressão abatida e a pele esticada sobre os ossos. Barbeara-se, mas não havia grande coisa a fazer quanto às rugas de tensão cavadas à volta da boca e dos olhos. Elizabeth teve uma certa pena do homem. Calculava que ele tivesse motivos para ser grosseiro. o peso do que acontecera caía totalmente nos seus ombros e, apesar de estes parecerem ter força para tal, a situação não era fácil.

- A sua filha chegou bem?

 

Elizabeth não queria fazer aquela pergunta, mas as palavras saíram-lhe da boca sem pedir autorização. Convencera-se de que não queria saber nada acerca da vida pessoal dele, nem estabelecer paralelismos entre as vidas de ambos, mas agora já não havia remédio.

 

Ele deitou-lhe um olhar desconfiado, como um cão selvagem receoso de receber comida de um desconhecido.

- Sim, chegou.

 

- Calculo que ela não viva neste estado. -Vive em Los Angeles.

 

-Isso é muito longe. Deve ser duro - observou ela em voz baixa.

 

A distância nunca fora um problema para Bobby Lee, pensou ela com amargura. Nunca fizera qualquer tentativa para ver Trace depois de ela ter saído de casa. Mas também duvidava que Bobby Lee tivesse uma fotografia do filho em cima da secretária. Aquele pequeno sinal de ternura paternal colocava Dane Jantzen a um nível totalmente diferente. Talvez o considerasse um grande patife em todos os outros domínios, mas não podia deixar de admirar um homem que se preocupava com a filha.

 

- é,admitiu Dane com relutância. - É duro. Eu não passo muito tempo com ela. E agora tenho este assassínio... Calou-se de repente. A última coisa de que precisava era confiar naquela mulher. Céus, em que estava ele a pensar? Que ela poderia compreendê-lo porque também era uma mãe sozinha? Era pouco provável que ela estivesse do seu lado. Era mãe, e não pai. Tinha a custódia do filho, e não o direito de visita. Se houvesse comparações a fazer entre a sua situação e a dela, com certeza que ela teria mais pontos em comum com Tricia do que com ele.

 

-Já tem algum suspeito? - perguntou ela. Ele ficou satisfeito com a mudança de assunto. -Está a tentar arranjar um furo para o Clarion? -Estou a tentar fazer conversa.

 

-Julguei que ia amuar. Por sinal, preferia que você amuasse.

 

Elizabeth inclinou a cabeça para o lado.

 

- Não somos bons a ir ao encontro das preferências um do outro, você e eu, pois não?

 

Dane resfolegou. -Até agora não.

 

Ela examinou-o tranquilamente por instantes, pensando, com uma certa admiração, no antagonismo que se criara de repente entre eles. Em geral, dava-se bem com os homens, desde que não fosse casada com eles. Um sorriso, um pestanejar, uma palavra atrevida, e todos os homens lhe iam comer à mão. No caso deste, a tendência era para lhe dar uma dentada. Elizabeth agarrou-se ao cabedal macio da sua mala Gueci, para se proteger.

 

- Não estou a perguntar-lhe nada que você não diga na conferência de imprensa - salientou ela. - E com certeza que eu não posso desatar a fugir e publicar a notícia algures neste preciso momento, pois não? - Deitou úma olhadela ao interior da camioneta, que estava equipada com todos os aparelhos próprios de um carro-patrulha, incluindo a barreira de rede entre os bancos da frente e os de trás. - Sou aquilo a que se poderia chamar uma audiência cativa.

 

Dane esfregou o queixo com a mão, afastando um bocejo. Que mal teria prestar-lhe a mesma declaração oficial que tencionava prestar ao resto da imprensa? Podia considerar que se tratava de uma prática normal. De olhos postos na estrada, ligou o pisca-pisca e virou para a auto-estrada.

 

-Calculamos que tenha sido alguém que passou por ali - afirmou ele, impassível. - Que matou para roubar. Ao fim de umas horas, apanhou o Jarvis sozinho e matou-o. Você apareceu antes de ele ter oportunidade de roubar o carro.

 

A ideia fez estremecer Elizabeth. Se ela tivesse chegado um pouco mais cedo, poderia ter sido uma testemunha, ou mais uma vítima. Lembrou-se outra vez da sensação de estar a ser vigiada quando se encontrava a olhar para o corpo, e ficou arrepiada, ao mesmo tempo que sentiu uma onda fria de alfinetadas. o medo apoderou-se-lhe da garganta, o que quase a obrigou a cuspir as palavras.

 

- A carteira dele desapareceu?

 

- Estava vazia. E o porta-luvas estava arrombado.

- Talvez o Jarrold andasse sem dinheiro.

 

Dane abanou a cabeça.

 

- o Jarrold nunca andava sem dinheiro. Certos homens medem a masculinidade pelo comprimento do seu pénis; o Jarrold media-a pelos maços de notas que trazia na algibeira. Eu vi-o ontem no Coffee Cup. A Phyllis teve vontade de lhe atirar uma frigideira. Ele pagou uma conta de um dólar e noventa e oito cêntimos com uma nota de cem e deixou-a sem trocos. Ela teve de mandar a Renita ao banco e ficar a servir à mesa quando estavam a transmitir All My Children. o que é motivo suficiente para a Phyllis se suicidar. Fica furiosa quando não vê as suas telenovelas.

 

Elizabeth roeu a unha farpada e ficou a pensar nas várias hipóteses que se levantavam.

 

- E o que andava esse forasteiro a fazer em Still Waters? Isto não fica a caminho de nada. Teria de ser um atrasado qualquer para andar à procura de uma vítima no campo.

 

-Não se trata de um assaltante profissional. É um homem que viu uma oportunidade e que a aproveitou. No Verão, passam por aqui uns vadios. A procura de trabalho nas quintas e de ocupações estranhas. Há um tipo que anda pela cidade desde Abril, mais ou menos. Veio de Iron Range. Disse que andava à procura de trabalho, mas o que parece é que anda à procura de sarilhos. Está a dois passos de ir parar à prisão desde que chegou aqui.

 

-Esse homem tem um nome?

- Tem.

 

- Quer-me dizer qual é?

- Não.

 

- Está preso? - perguntou ela, cujo interesse profissional era ultrapassado pelos seus medos pessoais. Não conseguia afastar a sensação de que o assassino a vira, de que estava ali, a observá-la, de que estivera ali de noite enquanto ela esperava que Trace chegasse a casa. Elizabeth sentira-o, sentira o peso no ar, a tensão eléctrica de algo escuro e ameaçador.

 

- Por enquanto não - respondeu Dane. - Pus todos os agentes da zona a bater as florestas à procura dele. Se andar por aqui, havemos de encontrá-lo. - E o caso seria encerrado e toda a gente de Still Creek voltaria à sua actividade habitual. Dane tiraria uns dias de folga para colher o seu primeiro feno e para acompanhar a filha. - Havemos de apanhá-lo.

 

-Como é que ele conhecia o Jarvis?

 

- Tentou ser contratado em Still Waters mas foi rejeitado.

 

-Acha que isso é um motivo para matar alguém?

 

-Depende da pessoa. Em Nova Iorque e Chicago, há miúdos, com dezasseis, dezassete anos, que estão prontos a cortar-lhe o pescoço se gostarem do seu casaco. Este tipo teve oportunidade de ver o Jarrold a exibir o dinheiro dele por aqui. o dinheiro leva as pessoas a fazerem muitas coisas.

 

- Isso é verdade - comentou Elizabeth em voz baixa. Veio-lhe à mente a imagem de Brock. o homem tinha mais dinheiro do que Deus e ainda queria mais. Elizabeth duvidava que ele deixasse que alguma coisa o impedisse de casar com aquela princesa europeia acéfala, Marissa Mount-Zaverzee. «Maria-Monta-me-a-Mim.» Havia rios de dinheiro envolvidos nessa união. Diziam que o pai dela comprara os títulos e que o sangue deles era tão azul como o de um camponês, mas isso não tornava o dinheiro deles menos verde.

 

- Você percebe um pouco disso, não é verdade? Dane abrandou ao chegarem aos limites da cidade e deitou-lhe um olhar duro.

 

Elizabeth ia a ripostar, mas detectou qualquer coisa no olhar dele, um cinismo que era antigo e congénito, uma amargura que só podia ser anterior à sua vinda ao mundo. Semicerrou os olhos e ficou a especular.

 

- Ela lixou-o no divórcio, não foi? - Ele estremeceu, como se ela o tivesse beliscado com força. A sombra de um sorriso repuxou o canto da boca de Elizabeth. Não era de alegria nem de boa disposição, mas apenas de cansaço e daquele tipo de sabedoria sem o qual ela teria passado bem. - E a minha sorte - respondeu ela, suspirando, desejosa de fumar um cigarro.

 

Estava farta de fazer pela vida. Não precisava da sobrecarga que um homem representava. Já se sentia como se estivesse no meio de uma fuga precipitada, tentando manter os pés no chão. Depois surgira Dane Jantzen, vergado ao peso de uma antiga bagagem emocional, a agredi-la por despeito.

 

Abriu o vidro e deixou que a brisa fresca da manhã a purificasse e acalmasse. Esta teria sido uma boa oportunidade de deixar correr as coisas, pensou ela, mas estava farta de ser penalizada por pecados alheios. Além disso, nunca fora o seu forte calar-se quando tinha alguma coisa a dizer.

 

-Eu não sou a sua ex-mulher, xerife.

- Graças a Deus.

 

Elizabeth fez um ar carrancudo enquanto a sua disposição aquecia um pouco mais e as chamas da justa indignação saltavam dentro dela.

 

- Também acho porque, vistas bem as coisas, devia ser um inferno viver consigo - observou ela. - Mas eu não tenho de sofrer as consequências só porque Mistress Dane Jantzen arranjou um bom advogado e lhe limpou as algibeiras. A culpa é sua, filho, não é minha.

 

-Pois é - anuiu Dane com uma voz arrastada. Acho que você já tem bastantes problemas. Não precisa dos meus.

 

Elizabeth fungou e abanou a cabeça, no momento em que saíram de Main Street e seguiram para oeste, na direcção de Itasca, contornando uma carroça amish que se arrastava na direcção do Piggly WiggIy. Um rapaz bochechudo que não tinha mais de cinco anos espreitou da escuridão lá de dentro, com um olhar ávido, de coruja. Disse-lhes adeus com uma mão gorducha e a mãe franziu o sobrolho e respingou qualquer coisa em alemão.

 

- Parece que você se enganou no caminho, quando remoía no seu passado triste e amargo - disse Elizabeth com sarcasmo. - Não estamos a aproximar-nos da esquadra.

 

- Nós não vamos para a esquadra. Primeiro, tenho de passar por casa do Jarvis. A Helen Jarvis telefonou-me a dizer que alguém lhes destruiu a caixa do correio esta noite.

 

- A sério? - Elizabeth acalmou-se e pôs-se de lado no banco. - o assassino juntou o insulto ao ataque?

 

- Parece-me um acto muito infantil.

 

- Não creio que o nosso sistema prisional esteja a abarrotar de homens psicologicamente maduros.

 

Dane ligou o pisca-pisca outra vez e virou à esquerda. Parou a camioneta em frente de uma famosa vivenda que fora contemplada com uma fila de falsas colunas dóricas ao longo da fachada. Parecia uma Tara de segunda, em que não faltava um pequeno poste de amarração junto das escadas, como se Astiley Wilkes pudesse desmontar ali, prender o cavalo a ele e ficar a conversar acerca da guerra. Viam-se flamingos de plástico cor-de-rosa escondidos nos arbustos, com longos pescoços inclinados em ângulos muito pouco naturais. Mesmo ao centro do jardim, entre tufos de petúnias cor-de-rosa, erguia-se uma fonte de pedra esculpida que ficaria melhor em Versalhes.

 

Ao fundo da rampa curva, via-se a caixa do correio, inserida numa imitação de filigrana de ferro forjado pintado de branco, em mau estado. Estava amachucada dos dois lados, como uma criança esquelética que tivesse sido atacada pelo matulão da aula. A estrutura estava torcida e faltavam bocados de tinta, como se alguém tivesse tentado destruí-la com uma barra de ferro.

 

A casa de Jarrold Jarvis ostentava um aspecto estranho, incongruente e surreal, que provocou um arrepio de desagrado em Elizabeth. Se o rei e a rainha dos maltrapilhos precisassem de um palácio, seria assim.

 

- Cristo de minissaia! - exclamou ela entre dentes, inclinando-se para a frente. - Aposto consigo que eles têm um quadro de veludo negro do Elvis pendurado sobre o falso canapé Luís XIV.

 

- Perdeu. - Dane tirou as chaves da ignição e lançou-lhe um sorriso cruel. - É um toureiro. Espere aqui.

 

- Espere aqui! - choramingou Elizabeth.

 

Dane atirou com a porta, ignorando o seu protesto indignado e encaminhou-se para a casa. Elizabeth saiu da camioneta, pôs os óculos no nariz e a mala ao ombro. Se ele julgava que ela ia ficar dentro do carro como uma criança birrenta e deixar de conhecer a desolada Mrs. Jarvis, bem podia mudar de ideias. Em primeiro lugar, tinha de ser educada e apresentar-lhe as condolências. Em segundo, queria ver que tipo de mulher é que casara com um porco como o Jarrold. Depois, havia a questão do seu trabalho.

 

Deu um passo na direcção da casa e Dane lançou-lhe um olhar que teria gelado lava em ebulição. Obrigou-a a parar e, por uma vez, a discrição levou a melhor ao impulso. Ela encolheu os ombros e fez um grande sorriso forçado.

 

- Ando apenas a esticar as pernas - afirmou ela, com humildade.

 

Dane rosnou qualquer coisa entre dentes, recuando em direcção à casa até se certificar de que ela não o seguia. Não havia nada de mais desagradável do que enfrentar uma viúva recente com um repórter atrás. Só Deus sabia o que poderia sair da desconcertante Miss Stuart. Lamento a sua perda, Mistress Jarvis. A propósito, o seu marido dormiu em casa? É só para que conste. o público tem o direito de saber

 

Helen Toller Jarvis recebeu-o à porta principal com uma travessa de gelatina de cereja na mão. Baixa e com cara de lua cheia, parecia rondar os cinquenta anos e estava mais endurecida do que bem conservada, como se a camada de gordura debaixo da pele tivesse solidificado. A pele da cara estava artificialmente esticada, por ter sido a unica pessoa de Still Creek a submeter-se a um face-lift.

 

Tinha os olhos enxutos e estava pálida, com a pele engraxada devido a uma pródiga camada de maquilhagem. Por cima dos olhos, duas manchas de sombra azul formavam um arco-íris monocromático que lhe chegava à linha das sobrancelhas. o rouge salpicava-lhe a face em manchas de vermelho-vivo. o cabelo, pintado num tom de pêssego que fazia lembrar fibra de vidro isolante, erguia-se num penteado cónico cheio de laca que parecia imune a qualquer desastre, natural ou provocado pelo homem. A tragédia podia obrigar Helen a ajoelhar-se, mas a sua colmeia sobreviveria.

 

Em casa, ouvia-se um zunzum de actividade. A notícia da morte de Jarrold espalhara-se e as mulheres de Still Creek tinham começado a chegar com comida, para oferecer conforto moral e afogar as mágoas em pudim de atum e bolo de maçã.

 

- Dane - disse ela, esboçando automaticamente um sorriso. - Julguei que era mais uma mulher da igreja. Já temos gelatina que chegue para o ano inteiro. A Mavis Grinisrud trouxe esta. - Ergueu a massa vermelha e bamboleante para ele ver melhor. Tinha a forma de um peixe, com uns grandes olhos feitos de cerejas em calda e vísceras de vários frutos que se viam à transparência. Dane fechou a boca e cerrou os dentes, evitando fazer uma careta. - Não sei porque é que as pessoas julgam que precisamos de gelatina quando alguém morre - prosseguiu Helen, cuja voz aflautada se situava algures entre a tagarelice e o grito estridente.

 

Olhou para ele, com um ar um pouco vidrado da reacção provocada pelos tranquilizantes e as sobrancelhas excessivamente depiladas unidas uma à outra, como dois pequenos pontos de interrogação. - Na sua opinião, porque é que isto acontece, Dane?

 

- Eu... Bem...

 

Dane encolheu os ombros, sem saber o que havia de dizer. Esperava que ela tivesse perguntas a fazer acerca de Jarrold, do caso, do absurdo do crime. A gelatina estava fora dos seus domínios.

 

- Suponho que toda a gente tem uma embalagem no armário - comentou ela com um ar pensativo e distante. Equilibrou o prato num dos braços e tirou um olho de cereja com uma grande unha cor de coral. - Com aquele truque dos cubos de gelo, fica pronta num instante. Agora, um prato quente, isso é outra coisa. A Ametta McBaine trouxe um feito pela Tater Tots. Uma vez, ela disse-me que tem sempre um pudim no frigorífico para as emergências.

 

Dane respirou fundo, tentando não perder a paciência.

- Helen, como está? Precisa de alguma coisa?

 

Ela emergiu do seu nevoeiro com um sorriso de embaraço.

- Estou bem - respondeu, com a voz trémula, como Glinda XO Feiticeiro de Oz. Os lábios encostaram-se com força aos dentes e os olhos piscaram, distantes. - o Jarrold é que não está muito bem. E a minha caixa do correio. A minha pobre caixa do correio não está nada bem.

 

- Eu sei. A Lorraine disse-me que você tinha telefonado. E resolvi vir eu próprio...

 

- Desculpe, Mistress Jarvis. Só quero apresentar as minhas condolências.

 

Dane virou-se com um movimento brusco e um brilho intenso no olhar. Elizabeth passou por ele e estendeu a mão à viúva de Jarvis.

 

As sobrancelhas insignificantes de Helen ergueram-se outra vez.

 

- Desculpe. Eu conheço-a?

 

-Não, e eu lamento que nos conheçamos nestas circunstâncias. Sou Elizabeth Stuart.

 

- Elizabeth... ? - Por instantes, Helen Jarvis ficou imóvel, enquanto as engrenagens do seu cérebro começavam a funcionar. A calma antes da tempestade. Elizabeth apercebeu-se do súbito lampejo de reconhecimento, e depois da fúria nos olhinhos da mulher, do acentuar da cor natural de baixo do rouge das bochechas de palhaço. A mulher retirou a mão e refez-se. - Você é aquela mulher - proferiu Helen, com uma voz de súbito tão baixa e rouca que parecia o diabo a falar através de Linda Blair em o Exorcista. Elizabeth recuou um passo à cautela, com os pêlos da nuca eriçados. - Você é aquela mulher sulista. - Sibilou a palavra como se ela fosse uma das mais obscenas do seu vocabulário.

 

- Eu sou do Texas, por sinal - disse Elizabeth, a medo. Helen avançou para o primeiro degrau, emitindo um som selvagem como um cão-d’água a rosnar. Com o corpo rígido, estremeceu visivelmente, vermelha de raiva. Se um ser humano pudesse imitar um vulcão prestes a explodir, devia ser assim, pensou Elizabeth, desde os pés até ao cone ígneo de cabelo que lhe nascia no cimo da cabeça. Era um espectáculo assustador, e ela apenas conseguiu ficar ali a olhar, como um veado ofuscado pelos faróis de um automóvel, demasiado perplexa para pensar noutra coisa qualquer.

 

- Sua cabra! - gritou Helen, explodindo em ondas de fúria. - Como se atreve a vir a esta casa? Como se atreve? Antes que Elizabeth pudesse tomar fôlego para responder, a gelatina voou na sua direcção. o prato caiu no caminho, como o propulsor de um foguetão, e estilhaçou-se no cimento do terraço. A gelatina propriamente dita continuou a sua rota. Atingiu-a em cheio no peito e rebentou como um melão maduro, espalhando a fruta e os pedaços de gelo em todas as direcções. Elizabeth caiu para trás, estupefacta, de braços abertos como se lhe tivessem dado um tiro.

 

Dane praguejou entre dentes quando várias bolas de gelatina vermelha lhe salpicaram a camisa lavada. Agarrou Helen pelos ombros rígidos e encaminhou-a para casa.

 

De súbito, a soleira da porta encheu-se de gente. Senhoras da Igreja Luterana do Nosso Salvador espalharam-se pelo terraço, com expressões de horror ou de excitação, consoante as suas inclinações pessoais. Mavis Grin---isrud, que se parecia muito com Ma Kettle, soltou um grito ao olhar para Elizabeth, embora fosse difícil afirmar se o fizera por estar preocupada com ela ou com o desmembramento da sua obra-prima.

 

- o prato da avó Schummacher! - choramingou ela ao olhar para o chão do terraço. Levantou o vestido de algodão de trazer por casa até aos joelhos com uma mão carnuda, agachou-se e começou a apanhar os cacos.

 

Dane pôs ordem na cena à volta de Helen, escolhendo Kathleen Gunderson com o olhar.

 

- Kathleen, leve a Helen para dentro e veja se consegue que ela se deite.

 

-- Deitar-me... - resmungou Helen, subindo os degraus um por um na direcção do vestíbulo. - Fale antes com essa prostituta em deitar-se.

 

Kathleen, uma mulher elegante, da idade de Helen, pegou no braço da amiga com firmeza e arrastou-a para dentro de casa, com ar de reprovação.

 

- Francamente, Helen, não há necessidade de lavares essa roupa suja agora.

 

- Roupa suja! Eu atirei-lhe com a roupa suja à cara! o gritinho estridente de Helen terminou num guincho e, rindo-se descontroladamente, a mulher desapareceu nas profundezas da casa na companhia de Kathleen.

 

- Judas - disse Dane entre dentes.

 

Virou-se e trespassou Edith Truman com o olhar. Ela levantou a mão, sem precisar de ordens.

 

- Eu vou chamar o médico.

 

As outras mulheres espalharam-se junto da porta, de olhos postos em Elizabeth. Ninguém acorreu a consolá-la ou a ajudá-la a limpar a roupa. Nenhuma voz se ergueu para perguntar como é que ela estava, para lhe manifestar a sua solidariedade ou para lhe dar uma explicação. Ficaram do lado da casa de Jarvis, como se guardassem a porta de uma invasão estrangeira, com olhares que oscilavam entre o cautelosamente vago, o circunspecto e o acusador.

 

Elizabeth ficou no terraço, a olhar para elas, a ler as suas expressões. Os rostos eram novos, mas o sentimento estampado neles não era diferente do que ela vira nos rostos das senhoras da Atlanta Junior League no dia em que a notícia do seu divórcio fora conhecida. Ela vinha de fora. Não era bem-vinda ali. A separação estendia-se como um fosso invisível entre elas, cada vez maior, sem que ninguém estivesse disposto a transpô-lo para chegar até ela. Estava só.

 

o sentimento não era nada de novo, mas conseguiu atingi-la com uma certa e inesperada dose de mágoa. o facto de ter sido desprezada pela nata de Atlanta quando a campanha de propaganda de Brock contra ela atingira o auge não a destruíra. Mas estar ali no meio do relvado de Jarrold Jarvis, a escorrer gelatina e com as veneráveis matronas da Igreja Luterana do Nosso Salvador a olharem para ela por cima da burra, deu-lhe vontade de chorar.

 

- Porque não vão para dentro fazer café, minhas senhoras? - sugeriu Dane.

 

Pegou no cotovelo de Mavis quando ela se levantou, pisando os restos do prato da avó Schummacher com os sapatos ortopédicos. óptimo, pensou ele, como se a cidade não fervilhasse já com a notícia do assassínio; agora haveria esta história para contar e recontar. Como «aquela mulher sulista» fizera perder a cabeça à pobre Helen Jarvis.

 

Quando a última senhora da igreja entrou em casa e a porta se fechou atrás delas, Dane deu meia volta. -Com os diabos, eu disse-lhe que esperasse...

 

o resto da diatribe obstruiu-lhe a garganta. Elizabeth estava ali, com as calças de ganga desbotadas e a T-shirt da faculdade, a tirar a gelatina do corpo e com os olhos marejados de lágrimas. Lágrimas. Merda! Ele conseguia aturar as suas fúrias e tiradas. A língua mordaz de Elizabeth mantinha-a exactamente onde ele a queria... Ao alcance da mão. Mas lágrimas... Não estava à espera de lágrimas, nunca soubera o que fazer com elas. Algo suspeito como a ternura nasceu inesperadamente dentro dele, e Dane estremeceu como se se tratasse de um espinho.

 

- Bem, tudo isto só porque quis apresentar os meus pêsames - balbuciou ela, ofegante, tentando um dos seus sorrisos convencidos.

 

Uma lágrima gorda e cristalina caiu-lhe na face. Enxugou-a, furiosa, deixando um rasto bulboso de gelatina na pele. Dane praguejou em voz baixa. Saiu do terraço e tirou um lenço de uma brancura imaculada do bolso de trás das calças.

 

Você desperta o melhor que há nas pessoas - resmungou ele, limpando-lhe a cara e concentrando-se na tarefa e não no desejo quase avassalador de a abraçar.

 

Devagar. Com a idade que tinha, devia seguir devagar. Por pouco Elizabeth não soltou uma gargalhada. Ele quisera fazer aquilo por graça, evidentemente. Não lhe passara pela cabeça que estava a ser simpático para ela por uma vez na sua malfadada vida, disso tinha Elizabeth a certeza. Mas estava. Havia compreensão no seu olhar, por trás do aborrecimento, e ele colocara-se entre ela e a casa, protegendo-a do olhar de alguém que pudesse estar a espreitá-la.

 

- Não se importa de esfregar com mais força? - pediu ela, quando ele lhe empurrou a parte lateral do nariz com a bochecha. - Eu nunca fiz questão de ter pele nesse sítio e creio que você acabou de a arrancar. - Dane fez um ar carrancudo mas moderou os movimentos. - Obrigada - disse ela em voz baixa, tirando-lhe o lenço da mão. - Eu faço o resto, se não se importa.

 

o resto era no peito. A ideia de permitir que a mão dele lhe tocasse nos seios passou-lhe pela cabeça ao olhar para ele, quando os dedos de ambos se cruzaram na sua cara. Apenas um traço rápido de fantasia involuntária, uma imagem fugaz daqueles dedos longos e elegantes a acariciarem-na.

 

Dane olhou para os glóbulos de gelatina que estavam agarrados à parte de cima dos seios dela. Imaginou como seria se ela estivesse nua e ele tirasse devagarinho todos aqueles pedacinhos doces, frios e brilhantes da pele dela e depois se inclinasse e deixasse que a sua boca acompanhasse o rasto... Sentiu uma onda de desejo no corpo, que se concentrou como um punho fechado no fundo da barriga.

 

Levantou a cabeça e o seu olhar cruzou-se com o dela. Elizabeth pestanejou, como se acabasse de sair de um transe, e passou a ponta da língua pelo lábio inferior.

 

Apeteceu-lhe beijá-la. Por instantes, não viu qualquer motivo para não se inclinar e saborear aquela boca. Era uma simples questão de lascívia incontrolável, pensou. Um homem que desejava uma mulher. Nada complicado, nada emocional. Ela excitava-o, e o corpo dele queria ter uma oportunidade de fazer qualquer coisa por isso.

 

Agarrou-lhe o rosto, pondo-lhe o polegar debaixo do queixo e inclinou-o para conseguir um ângulo melhor.

 

- Dane!

 

A voz de Edith Truman interrompeu a confusão emocional. Dane afastou a magia daquele momento e virou-se. Edith estava à porta com um pano da louça enrolado nas mãos, como se fosse a avó dele que o tivesse ido chamar para comer uma tarte. Casada com o Dr. Truman há quase sessenta anos, vira mais do que a sua dose de traumas humanos e felizmente era uma mulher que prosperara em momentos de crise. Tinha os olhos brilhantes quando apareceu à porta.

 

- o Mark telefonou a saber se o senhor ainda aí estava. Prepararam as coisas para a conferência de imprensa e parece que há desacordo quanto a quem deve sentar-se na mesa principal.

 

Dane levantou a mão num gesto que era um misto de agradecimento e de resignação.

 

- Vou a caminho. - Olhou para Elizabeth por cima do ombro. - Venha daí, sarilho - disse ele, dirigindo-se para a camioneta. - Chegou a hora do espectáculo.

 

-Não se importa de me deixar em casa da Jolynn? perguntou Elizabeth, indo atrás dele. - Posso atrair indevidamente as atenções se aparecer neste estado na sua soirée. Dane pensou que ela atrairia as atenções se aparecesse vestida de freira, mas guardou esse comentário para si e disse que sim entre dentes. - Você é um príncipe - afirmou Elizabeth, subindo para a cabina da Bronco.

 

Disfarçou um sorriso ao ver o olhar que ele lhe deitou. Ele queria que ela pensasse nele apenas como pistoleiro duro e irascível, com um distintivo ao peito. Não lhe agradava a ideia de ela ter detectado nele um lampejo de simpatia.

 

- Não espalhe isto - resmungou ele, sentando-se ao volante. - Também não sou motorista de táxi, portanto não conte que eu ande por aí e fique à sua espera enquanto você resolve qual é a última moda para uma conferência de imprensa.

 

- Não, senhor - proferiu com veemência, o que lhe custou ouvir mais uns grunhidos. Em seguida, descontraiu-se e examinou-o durante um minuto enquanto ele ligava o motor da camioneta e se dirigia de novo para sul. - Por muito que me custe ser delicada para si, agradeço-lhe disse ela tranquilamente.

 

-Por que razão?

 

Ela brincou com o cinto de segurança, atrapalhada, sem saber ao certo por onde ia. Podia fazer-lhe frente e discutir com ele. Aquela situação era muito mais arriscada. Falava a ternura por ele, o que lhe parecia imprudente.

 

-Por ser decente - disse ela por fim.

 

-Eu sou do Midwest. Isto está enraizado em mim. Não estava enraizado em nenhuma daquelas mulheres no jardim.

 

-Você é nova aqui - afirmou Dane, sentindo-se um pouco envergonhado por ter de desculpar as pessoas da sua terra. - Elas não sabem nada a seu respeito, a não ser que...

 

-Anão ser que eu sou uma divorciada famosa e inconstante do Sul - concluiu Elizabeth, fazendo um esgar ao pensar na injustiça de que fora alvo. - Elas sabem o que leram e que eu não sou uma das suas. Eu sei como é, xerife. Já passei por várias versões desta situação. Deixe-me que lhe diga, filho, que estas velhas não ficam a dever nada às senhoras de Atlanta. Só que eu já não me aguento tão bem como nesse tempo, mais nada.

 

Dane olhou para ela, movido pela curiosidade ao lembrar-se do sofrimento no seu olhar. Por instantes, esqueceu-se de que não queria conhecer a mulher que se encontrava por trás daquela lenda infame e caluniosa.

 

- Não consigo imaginar que você não se tenha adaptado a Atlanta.

 

Ela ergueu uma sobrancelha.

 

- Porquê? Porque eu tenho a fala arrastada? Bem, é a fala errada, e tenho a ascendência errada e nasci na cidade errada. A única coisa que fiz bem foi casar por dinheiro, o que obrigou todas aquelas pequenas beldades de sangue azul a suportarem-me e a sorrirem quando estavam para aí voltadas. Mas, e esta é uma das características da beldade sulista, ela é capaz de o cortar até ao osso e, ao mesmo tempo, fingir que não quebra um prato. Sou eu que lho digo, filho.

 

Deus não criou um ser mais pérfido do que uma mulher da junior League de Atlanta. Enquanto lá vivi, sempre tive a sensação de que elas não imaginavam que eu sabia o suficiente para não usar sapatos brancos depois do Dia do Trabalho.

 

Dane encostou a Bronco ao passeio em frente da casa de Jolynn Nielsen e desligou o motor.

 

- Porque é que não se pode usar sapatos brancos depois do Dia do Trabalho?

 

Elizabeth deu uma gargalhada, dissipando a tensão. -Filho, você nunca poderia pertencer à Junior Leage. Dane sentia-se mal. o quadro que Elizabeth pintara era o de um enclave de bruxas, de garras afiadas, prontas a saltar sobre a primeira pessoa que prevaricasse. Arregalou os olhos.

 

- Estou esmagado.

 

- E eu estou agradecida. - Elizabeth sorriu-lhe com doçura e devolveu-lhe o lenço de assoar. - Obrigada. Vejo-o na conferência de imprensa, cowboy.

 

Dane atirou o lenço para o cesto do lixo pendurado no puxador da porta e deitou um último olhar a Elizabeth. -Por favor, não se meta em mais sarilhos.

 

Ela pestanejou com um ar inocente, pôs a mala ao ombro e saiu da camioneta.

 

- Sarilhos? Quem? Eu?

 

Deus Todo-Poderoso, ela veio direita a mim - disse Elizabeth, despindo a T-shirt pela cabeça. - Veio direita a mim como a Tanuny Faye Balcer num frenesim, desvairada e de olhos muito abertos, com aquele grande cone de cabelo e de maquilhagem, como se tivesse sido apanhada numa explosão do balcão de cosmética do Woolworths. Nunca me aconteceu nada assim em toda a minha vida. - Com um esgar de desagrado, Jolynn tirou a T-shirt da cama, pegando-lhe com o polegar e o indicador, e deixou-a cair no chão.

- Agora calculo como não se deve ter sentido a rainha do Rodeo da Frigideira quando eu a apanhei na cama com o Bobby Lee e fui atrás dele com a espingarda com que costumávamos matar ratazanas. - Elizabeth estremeceu, recordando o olhar desvairado de Helen Jarvis ao atirar-lhe o prato. - Foi terrível.

 

Dirigiu-se ao roupeiro da amiga e ficou ali, de calças de ganga e soutien, a examinar a colecção de blusas, à procura de qualquer coisa adequada a uma conferência de imprensa. Era visível que o guarda-roupa de Jolynn sofrera com os anos após o divórcio. Não havia nenhum fato nem nenhuma blusa de linho. Jo gostava de camisas de flanela de homem para o Inverno e de camisas de trabalho de homem para o Verão. Simples e sem adornos, as roupas pareciam adaptar-se ao aspecto dela e era como se tivessem sido pisadas. Elizabeth prometeu a si própria arrastá-la de casa para ir às compras assim que a situação estabilizasse e elas fizessem algum dinheiro. Procurou na parte de trás do roupeiro e tirou uma blusa enorme de imitação de lamé dourado. Era um pouco exagerada para a ocasião, mas preferível ao refugo do pessoal simpático da Texaco de Harley.

 

-Isto serve.

 

Jolynn franziu o sobrolho.

 

-Essa é a minha blusa boa para vestir no Natal! -Eu terei cuidado.

 

-Faz-lhe um buraco com o cigarro e não será preciso esperar que morras de cancro do pulmão... Serei eu mesma a matar-te.

 

- Se conseguirmos vender jornais suficientes daqui até ao Natal, ofereço-te duas das verdadeiras como bónus disse Elizabeth, vestindo a blusa e começando a abotoar os botões de marcassite falsa. - Se nenhuma maluca der cabo de mim entretanto - acrescentou ela, estremecendo outra vez. Com os dedos imobilizados no terceiro botão, olhou para Jolynn com um ar confuso e um pouco magoado. Nem posso pensar, Jo. Eu só encontrei o corpo, não o matei. o que fiz eu à Helen Jarvis para ela me atirar com um prato de gelatina?

 

Jolynn sentou-se na cama e entreteve-se a fazer um desenho no pó que cobria a mesa-de-cabeceira. Conhecia Elizabeth desde os tempos da universidade em El Paso, quando se libertara da rédea curta do pai pela primeira vez na sua vida e Elizabeth era uma jovem mãe sozinha, lutadora, que frequentava as aulas e tinha dois empregos. Haviam criado uma relação de amizade que sobrevivera a bons e a maus momentos, às mudanças do destino e do estado civil. Na sua opinião, conhecia Elizabeth melhor do que outra pessoa qualquer e sabia quando aquilo que ela tinha a dizer ia doer. Apesar da sua maneira de ser despreocupada, Elizabeth tinha um coração mais terno do que a maioria das pessoas e um ego que sofrera muitas agressões nos últimos tempos.

 

- Não foi o que tu fizeste à Helen - explicou ela, hesitando. - Foi o que a Helen julga que tu e o Jarvis fizeram. - Elizabeth pestanejou, confusa, e Jo continuou a falar, torcendo um pouco a boca ao saborear as palavras. o que corre por aí esta manhã é que tu e o Jarrold costumavam encontrar-se em Still Waters para dançarem na horizontal.

 

Elizabeth ficou boquiaberta.

 

- Eu mal conhecia o homem! - protestou ela, recuando um passo como se Jolynn a tivesse agredido fisicamente.

 

E o que eu conhecia dele era nojento e desprezível! Jolynn desenhou um rosto triste no pó da mesa.

 

Pois, bem... Isto é o que corre. Não duvido que a Helen esteja mais perturbada com os boatos do que com o facto de o Jarrold estar gelado e estendido no caixão na agência funerária. Tu estás a distrair as atenções da sua situação de viúva inconsolável.

 

-Livra! Onde é que ouviste dizer isso tudo? Elizabeth estremeceu. Só de pensar em manter relações sexuais com Jarrold Jarvis ficava com pele de galinha.

 

- No Coffee Cup. Passei por lá, na esperança de encontrar aquele tipo do GIC a tomar o pequeno-almoço.

 

- E encontraste?

 

- Não, mas a Phyllis pôs-me a par deste último petisco. Toda a gente sabe que tu encontraste o corpo.

 

- E toda a gente sabe que eu dispo as cuecas por qualquer coisa que tenha testosterona - acrescentou Elizabeth com amargura. Abanou a cabeça e suspirou. - Não interessa o aspecto do sujeito, como é que ele se comporta, se cheira bem ou mal. Se tiver uma terceira perna e andar a direito, lá estou eu, de certeza absoluta.

 

Uma nuvem de tempestade e um raio foram juntar-se ao rosto triste em cima da mesa-de-cabeceira. Jo sentiu um pequeno aperto no coração.

 

- A Phyllis meteu algumas pessoas na ordem.

 

Não era que elas lhe dessem ouvidos ou se importassem com isso. Jolynn sabia por experiência própria que as pessoas preferiam acreditar no pior do que na realidade. Numa cidade com a dimensão de Still Creek, os mexericos eram servidos e devorados como uma parte essencial da dieta diária.

 

- Bem, que Deus abençoe a Phyllis, de qualquer modo. Elizabeth deixou-se cair na cama, ao lado da amiga, e ficou a olhar para a sua imagem reflectida no espelho da cómoda. Tinha os olhos injectados de sangue e teria beneficiado muito de uma aplicação generosa da sua maquilhagem Elizabeth Arden. Com a blusa dourada de botões brilhantes, parecia uma refugiada patética saída de uma festa medíocre de Ano Novo. Sentia-se desesperada, vazia e magoada. Passou a mão pelos cabelos e suspirou outra vez.

 

- Eu queria mesmo que as coisas aqui fossem diferentes - disse ela tranquilamente, deixando sair um pouco do desespero na esperança de aliviar a pressão. - Eu queria que este sítio fosse uma espécie de reino mágico em que ninguém ouvisse falar de Brock Stuart e as pessoas não se atirassem umas às outras como gato a bofe. - Conseguiu soltar uma pequena gargalhada. - Sinto-me na toca do coelho, e não em Oz. Cadáveres, mulheres que me atiram comida, Sua Excelência, o xerife, atrás de mim como se eu fosse uma fugitiva... Deus seja louvado, eu devia ter ido para a Mongólia.

 

Jolynn tocou-lhe afectuosamente com o ombro.

 

- Não ias gostar. Lá não consegues encontrar bons chocolates. Eles fazem tudo com leite rançoso de iaque. Elizabeth esboçou um sorriso ténue. Tinha uma única amiga. Isso possuía o seu valor. É verdade?

 

Podes crer. - Jolynn abriu a gaveta da mesa-de-cabeceira e vasculhou lá dentro. - Snickers ou Baby Ruth?

- Snickers. - Tirou uma tablete para Elizabeth e outra para ela. Durante algum tempo, ficaram ambas mergulhadas num silêncio solidário, consolando-se com o chocolate. Como correram as coisas no local do crime? - perguntou Elizabeth.

 

Jo afastou um pouco mais o invólucro da tablete e pigarreou.

 

- Era como se estivéssemos numa festa, só que um pouco mais macabra. Reinava aquela estranha atmosfera festiva, com um formigueiro de repórteres a conversar e a tomar café. Os tipos do laboratório eram muito divertidos.

- Apuraste alguma coisa?

 

- Além de duas anedotas verdadeiramenrte insípidas acerca de cabeças cortadas? Nem por isso. - Jolynn deu outra dentada no Baby Ruth e acrescentou: - Achei que isto era interessante: ele não foi morto no carro. Havia sangue espalhado a sul e a oeste do estaleiro.

 

Elizabeth mastigou um amendoim enquanto o seu cérebro digeria a informação.

 

- Então porque voltaram a pô-lo no carro? o Jantzen afirma estar convencido de que foi um forasteiro que o matou para o roubar. Porque se daria o tipo ao trabalho de voltar a pôr o corpo dentro do carro? Sobretudo se tencionava roubar também o LincoM?

 

- Talvez ele quisesse companhia na viagem para Des Moines.

 

- Jolynn!

 

- Não, a sério - insistiu Jolynn, mudando de posição na cama como uma criança a acomodar-se para ouvir uma boa história de fantasmas. Os seus olhinhos cor de avelã brilharam de entusiasmo como belindres de vidro. - Porque não havia ele de levar o corpo? De levar o velho Jarrold e o carro e atirar tudo para outra jurisdição? Deixava o cadáver num sítio, o carro noutro e a arma do crime noutro. É o tipo de actuação que lixa os polícias ao máximo. É o que fazem os grandes assassinos em série.

 

Elizabeth olhou para ela.

 

- Tens andado a ler sobre esses assuntos, não é verdade? Jolynn encolheu os ombros, despreocupada, e deu outra dentada na tablete.

 

- É um assunto fascinante, se tiveres estômago para isso.

 

-Eu não tenho. Alguém sabe quem foi?

 

Jolynn abanou a cabeça, o que lhe valeu uma chuva de caracóis sobre os olhos. Empurrou-os para trás com a mão livre.

 

-Ninguém disse uma palavra. Consegui falar à pressa com o Yeager depois de o burburinho ter acalmado. Ele é o responsável regional do GIC. Um tipo giro. - Os cantos da sua boca de boneca viraram-se para cima, e Jolynn olhou para o regaço, concentrando-se muito em apanhar um pedacinho de chocolate que meteu na boca. Talvez Yeager nem sequer tivesse reparado que ela era uma mulher. De nada servia agir como uma adolescente apaixonada. - Só me disse que era uma vergonha que tivessem destruido aquela floresta para construir Still Waters. Parece que era um local privilegiado para a caça ao peru.

 

-Não foi isso que caçaram ontem à noite. - Dominando-se, Jo brincou com as pontas rasgadas do invólucro da tablete. - Pois não.

 

o silêncio abateu-se sobre ambas outra vez. Um momento de calma em memória do morto. Quase toda a gente mostraria respeito por Jarrold Jarvis na morte, pensou Elizabeth, ainda que não o respeitassem em vida. As pessoas eram assim - perversas e hipócritas. Era quase o suficiente para ela se fechar num convento. Quase. Se não fosse pelo facto de as freiras não beberem, não fumarem nem pintarem as unhas com Vivacious Red... E depois havia aquilo do celibato. Apesar de ter jurado afastar-se dos homens por enquanto, isso não significava que quisesse dormir sozinha para sempre.

 

- Então qual é a história acerca do Jantzen? - perguntou ela, arrependendo-se no mesmo instante de não ter dobrado a língua. Não devia querer saber mais nada a respeito dele.

 

Jolynn ergueu o sobrolho. O grande Dane?

 

Elizabeth fez um ar carrancudo e tentou retirar uma mancha grande e antiga de tinta branca da perna das jeans.

- Não vejo nada nele que seja assim tão grande - resmungou ela, fingindo-se desinteressada.

 

A amiga soltou uma gargalhada sonora, atirou-se para trás na cama e deu uma palmada na anca.

 

-Ora, vá lá. o homem fazia um figurão em Hollywood, e tu bem sabes.

 

- Se ele é tão fabuloso, porque não andas atrás dele? perguntou ela, irritadiça.

 

Jolynn nem pestanejou.

 

- Não interessa quem é que anda atrás dele - disse ela. - Ele não está para aí voltado.

 

- Ora, ora - troçou Elizabeth, dando-lhe uma palmada. - Não me digas que ele é maricas. Se é maricas, eu sou a rainha de Inglaterra.

 

Ele não é maricas. Mas não se interessa pelas jovens da terra - explicou Jolynn, rasgando metodicamente os pedaços da embalagem. - Casou com a namorada na terra natal. Jogou futebol nos Raiders durante alguns anos. Depois, sofreu uma lesão no joelho, ficou com a carreira destruída e a mulher deu-lhe com os pés. Dizem que ele anda com alguém que não é da cidade, mas ele consegue separar a vida privada da pública, o que não é para desprezar numa cidade deste tamanho. Porquê? - perguntou ela olhando para Elizabeth enquanto mordiscava um amendoim. - Estás interessada?

 

Nem por isso - fungou Elizabeth. - Jurei afastar-me dos homens. Ele tem andado atrás de mim, mais nada. Por causa do assassínio e de tudo isso.

 

Examinou o quarto para evitar a imagem mental de Dane Jantzen debruçado sobre ela com o lenço na mão, a protegê-la dos olhares implacáveis das senhoras da Igreja Luterana, a limpar a gelatina com um olhar enfadado e condoído.

 

Jolynn não tinha mais talentos domésticos do que Elizabeth. A cama encontrava-se por fazer. o cesto ao lado da cómoda estava a abarrotar, como se a roupa tentasse fugir antes de ser submetida à tortura da máquina de lavar. Em cima da mesa-de-cabeceira, atrás do telefone, do despertador e de um cinzeiro sujo, via-se um monte de bilhetes, livros e embalagens de comida de plástico.

 

A mesa-de-cabeceira atraiu de novo o seu olhar. -Como está a tua dor de cabeça? - perguntou ela com inocência.

 

- A minha quê?

 

Jo trincou um pedaço de nogado, mas imobilizou-se ao seguir o olhar esclarecedor de Elizabeth na direcção do cinzeiro. Fechou os olhos por alguns momentos, chamando mentalmente uma dúzia dos seus nomes preferidos a Rich Carmon. Ele nem sequer se dera ao trabalho de limpar o que sujara, o preguiçoso. Entrara, pegara no que queria e saíra, deixando meia dúzia de pontas de cigarro no cinzeiro e a tampa da sanita aberta.

 

- Não digas nada - proferiu ela entre dentes, com a auto-estima a escorregar-lhe até aos pés.

 

Elizabeth ignorou o pedido. Que Rich Carmon pensasse que podia entrar e servir-se de Jo, irritava-a sobremaneira. Que Jolynn o deixasse servir-se, irritava-a ainda mais.

 

- Tu mereces melhor, Jolynn.

 

Sem apetite, Jo pôs de lado a tablete e levantou-se, limpando as mãos às calças de ganga.

 

- Pois. Todos merecemos, não é? - disse ela, olhando para os Reebok estafados.

 

- Ele estava cá quando eu telefonei ontem à noite, não é? - perguntou Elizabeth. Estivera demasiado distraída para reparar que havia qualquer coisa estranha na voz de Jolynn, durante o telefonema. Embrenhada como estava no seu pesadelo e sem pensar com clareza, não se apercebera de que aquela que era quase a sua única amiga lhe mentira. Jolynn não respondeu, o que era ilucidativo. - Como é que ele recebeu a notícia da morte do sogro?

 

Jo encolheu os ombros com indiferença.

 

-Com um grunhido e um ronco. A sua habitual demonstração de sensibilidade.

 

Não era difícil imaginar a situação. Pelo que Elizabeth vira, Rich Carmon não se preocupava com nada nem com ninguém que não o afectasse directamente. Não dava sinais de se preocupar com Jolynn. Ela era conveniente para ele, que se aproveitava dela sem escrúpulos nem remorsos.

 

-Ele está a usar-te, Jolynn.

- Que grande novidade. - Jolynn pegou na maldita prova e foi deitá-la no cesto dos papéis, cinzeiro e tudo, levantando uma pequena nuvem de cinza. - Bem, eu também estou a usá-lo, sabes? - recordou ela, espreguiçando-se. - Já pensaste nisso” o homem anda pendurado como tudo. Às vezes, é preciso uma certa degradação pessoal para entrar numa cavalgada.

 

Elizabeth absteve-se de comentar. Jolynn tinha um ar desesperado, como se lhe tivesse ocorrido apenas este argumento. Não estava na maneira de ser de Elizabeth repreendê-la. De qualquer modo, nem havia tempo.

 

- Anda daí, filha - disse ela com um ar fatigado, deixando metade da tablete em cima da mesa-de-cabeceira. Temos de ir para o circo.

 

Na sala de audiências só havia lugares em pé. Lorraine Worth montava guarda à porta, ao lado de Kenny Spencer, verificando as credenciais da imprensa com olho de águia e afastando os civis curiosos. o corredor estava ladeado por residentes de Still Creek, ansiosos por notícias ou por um suspeito. Formavam grupos de três e quatro pessoas, que deitavam olhares ávidos e expectantes a todos os desconhecidos que passavam.

 

Pelos cálculos de Elizabeth, a sala devia ter mudado pouco desde o século xix. De um friso de belos painéis de nogueira nascia uma zona de estuque azul-claro, e pequenos riscos e fendas na parede denunciavam a idade, como as rugas de uma matrona. Homens firmes de outros tempos contemplavam a multidão do alto de molduras pesadas, guarnecidas e douradas. Velhas lâmpadas pendiam de um tecto em que algumas velhas ventoinhas faziam uma tentativa modesta para agitar o ar saturado. A sala de audiências de Tyler County não parecia mais preparada para a invasão do mundo moderno do que a própria cidade de Still Creek, com a sua singular arquitectura vitoriana e as carroças dos Amish aarrastarem-se pelas ruas.

 

Ao fundo da sala, mesmo em frente da mesa do juiz, fora instalado um estrado repleto de microfones. A mesa do promotor público fora puxada para a frente de modo a ficar ao lado da outra, criando espaço para três pessoas, cujos nomes tinham sido escritos à mão em cartazes feitos de cartão dobrado - XERIFE JANTZEN, AGENTE YEAGER E SUBCHEFE KAUFMAN. Só a cadeira da ponta é que estava ocupada. Mark Kaufman sentava-se do outro lado da mesa e fazia estalar os nós dos dedos. Parecia um homem com medo de falar em público que estivesse à espera de tomar a palavra na assembleia das Nações Unidas. Avistou Elizabeth, disse-lhe adeus e dirigiu-lhe um sorriso nervoso.

 

As luzes e as câmaras aglomeravam-se ao fundo da sala, numa verdadeira floresta de alta tecnologia. Reinava a excitação entre os repórteres, ansiosos por fazerem qualquer coisa, apertados uns contra os outros enquanto esperavam que a festa começasse. Elizabeth e Jolynn sentaram-se ao fundo da sala no preciso momento em que Dane entrou pela frente.

 

o nível de ruído aumentou como uma onda a aproximar-se da costa quando os repórteres o viram sair do gabinete do juiz. Foram-lhe dirigidas perguntas na mira de lhe extorquirem algo mais do que a declaração oficial. Ele ignorou-as.

 

Os VIPs da cidade estavam instalados na zona do júri e Charlie Wilder, o presidente da Câmara, e Bidy Masters, o presidente da Assembleia Municipal, levantaram-se da cadeira quando Dane se aproximou deles. o xerife parou e virou-se para os dois homens com relutância.

 

Charlie era gordo e jovial, o tipo de homem no qual as pessoas gostavam de votar. Era dono dos Armazéns Hank’s e fazia saldos uns a seguir aos outros, o que ajudava a torná-lo benquisto pelas pessoas e evitava que se afundasse. Muitas vezes, os artigos saldados eram de fraca utilidade, como aparelhos de depilação para senhoras, mas, desde que qualquer coisa estivesse em saldo, as pessoas sentiam-se mais inclinadas a fazer compras na cidade do que a meterem-se no carro para ir a Rochester, na mira de preços mais baixos nas grandes lojas de desconto.

 

Ninguém gostava de votar em Bidy, um homem magro e carrancudo, de ombros descarnados, que, associados ao seu rosto comprido e soturno, lhe davam um aspecto de abutre. Mas quase ninguém queria concorrer à Assembleia Municipal, e muito menos à presidência, e Bidy era consciencioso e empreendedor, apesar de não ser simpático. Os Tempos do Cavalo e da Carroça tinham sido uma ideia dele, não como uma festa que daria às pessoas da terra uma oportunidade de se divertirem e descontraírem, mas como atracção turística que canalizaria dinheiro vindo do exterior. Bidy tinha uma queda especial para a actividade turística, e era mais que certo que não via no assassínio um impulso a longo prazo para a economia.

 

- Dane, podemos conversar? - perguntou Charlie, encostando a barriga ao corrimão do compartimento do júri. Bidy aproximou-se também, e os seus olhos redondos e brilhantes fixaram-se no rosto de Dane.

 

- Gostávamos de saber daqui a quanto tempo é que você terá isto resolvido.

 

- A conferência de imprensa? Não deve demorar mais de meia hora.

 

- Não, não - disse Charlie. - Este assunto do homicídio. Ouvimos dizer que há um suspeito à solta. Já o prendeu?

 

- Não.

 

- Bem, pode dar-nos uma previsão temporal, Dane? o presidente da Câmara soltou uma das suas risadinhas que lhe faziam estremecer a barriga e que se destinavam a limar arestas independentemente do tema da conversa. Se ele anunciasse a toda a cidade que era um neonazi fervoroso, talvez todos achassem bem, desde que Charlie risse e sorrisse.

 

- Estamos a falar de um dia? Dois?

 

Dane fez um esforço para não perder a paciência, mas não conseguiu disfarçar o sarcasmo.

 

- Se perguntam se o prenderemos antes de o cortejo da Miss Tempos do Cavalo e da Carroça começar, a resposta é: vamos fazer o possível.

 

Charlie teve a dignidade de corar. Bidy franziu o sobrolho e fechou a boca como um velho desdentado a chupar as gengivas.

 

- Isto do Jarrold é lamentável - declarou Charlie, introduzindo uma nota de sentimento para tentar parecer menos mercenário.

 

Dane inclinou a cabeça e afastou-se dos dois homens, contornando um projector e atravessando a cancela que dava acesso à zona do público, onde se encontravam os estimados membros da imprensa aos gritos, de mãos no ar como licitantes frenéticos na bolsa. Céus, Dane detestava repórteres.

 

Elizabeth viu-o dirigir-se a ela. o que transpirara desde que ele a deixara em casa da Jolynn não o pusera mais bem-disposto. A boca, fechada, estava reduzida a uma linha, e o olhar era feroz debaixo de um sobrolho terrivelmente carregado. Encaminhou-se para a fila em que ela se encontrava, passando pelo meio das pessoas. Inclinou-se e pegou-lhe no braço, com a cara a poucos centímetros da dela.

 

- Quero-a mais perto de mim - disse ele em voz baixa. Um arrepio instintivo atravessou Elizabeth, que reagiu e esboçou um sorriso convencido.

 

- Francamente, filho, não acha que devia tratar primeiro desta conferência de imprensa? o que dirão as pessoas?

 

Nada que não dissessem já, pensou Dane, crispando o queixo e engolindo as palavras. Ouvira o falatório das secretárias junto do bebedouro, quando ia a entrar, e por pouco não decapitara Tina Odegard por alimentar mexericos durante as horas pagas pelos contribuintes, Não precisava que o seu pessoal andasse a espalhar boatos, mas havia outra coisa que contribuíra para o seu mau humor e que ele não se dera ao trabalho de examinar muito de perto, algo vagamente ostensivo, que nascera da insinuação de que Elizabeth estivera sexualmente envolvida com Jarrold Jarvis.

 

- Tenho a certeza de que você conseguirá fazer estalar um motim - afirmou ele, sardônico. - Quero que esteja num sítio em que eu a possa tirar daqui para fora se a situação se descontrolar.

 

Qualquer comentário que ela pudesse fazer perdeu-se no momento em que ele a puxou da cadeira e a empurrou para a frente da sala. Elizabeth corou ao ouvir o seu nome sussurrado no meio da multidão. Pararam ambos na primeira fila e Dane deitou um olhar de aço a um repórter do Post-Bulletin de Rochester.

 

- Esse lugar está reservado - rosnou ele.

 

o homem começou a protestar, vasculhando os seus apontamentos ao mesmo tempo, mas quando levantou a cabeça engoliu imediatamente as palavras. Desculpando-se em voz baixa, esgueirou-se da cadeira e fez sinal a Elizabeth para que se sentasse. Ela esboçou um sorriso e deitou um olhar furibundo a Dane.

 

- Muito obrigada por me ter obrigado a dar espectáculo- murmurou ela.

 

Dane mostrou os dentes.

 

-Ora, não posso cobrar os dividendos disso - retorquiu ele em voz baixa. - Agradeça a quem a vestiu. Ela apontou para um botão de marcassite.

 

-Na minha opinião, é sua a culpa de eu ter vestido a melhor blusa da Jolynn.

 

- Sim, pois, eu teria muito gosto em ajudá-la a despi-la se você me pedisse com jeito.

 

Elizabeth franziu o sobrolho, sem gostar do calor que a inundava nem do homem que o provocava.

 

- Hei-de pedir-lhe que vá pentear macacos.

- Desculpe, mas não tenho tempo.

 

Dane examinou a multidão, pestanejando quando as máquinas fotográficas começaram a disparar à sua volta e colando-se finalmente a Bret Yeager quando o agente do GIC saiu por uma porta lateral com o seu habitual ar distraído e um monte de papéis na mão.

 

- Divirta-se, Miss Stuart - disse ele, contemplando-a com um derradeiro sorriso de troça. - Eu diria que conseguiu o melhor lugar da sala, mas não gostaria que isso lhe subisse à cabeça.

 

- Patife - resmungou Elizabeth quando ele se afastou. Sentou-se no lugar indicado e tirou o bloco de apontamentos da carteira quando Dane subiu ao estrado e se dirigiu à multidão.

 

Leu a sua declaração com eloquência e autoridade, e Elizabeth deu consigo a pensar no comentário que Jolynn fizera. Havia muitos atletas profissionais que se pavoneavam em frente das câmaras, ou pelo menos nos ecrãs de televisão. Perguntou a si própria por que motivo ele não o fizera. Deus sabia que ele tinha presença e voz para isso.

 

- Talvez não dê com a direcção - murnurou ela para os seus botões, desenhando pequenas bolas de futebol no bloco.

 

Yeager pegou no microfone quando Dane acabou de falar. o agente trazia um molho de papéis misturados, que pousou na estante e que passou a ignorar. Tinha um metro e oitenta de altura e era bem constituído, mas parecia uma cama por fazer. A gravata estava torta e via-se uma pequena madeixa de cabelo louro espetada no alto da cabeça. Dissertou sobre os métodos utilizados durante alguns minutos, falou das técnicas laboratoriais e depois abriu o caminho para as perguntas, mas Elizabeth não o ouvia. Estava demasiado ocupada a pensar na mulher que rejeitara Dane depois de a carreira deste ter terminado. Ele saíra de Los Angeles por causa dela ou contra a vontade dela?

 

-... Mistress Stuart?

 

Ao ouvir pronunciar o seu nome, voltou ao assunto que tinha em mãos. Olhou à sua volta, sobressaltada, como uma estudante que tivesse sido chamada na aula quando estava a devanear. Era como se os olhos de todos os que se encontravam ali estivessem postos nela, à espera, à espreita, a analisá-la sem dó nem piedade. Mexeu-se na cadeira e virou-se para o homem que estava ao seu lado.

 

- Desculpe, alguém pronunciou o meu nome? - perguntou ela em voz baixa.

 

o silêncio foi interrompido abruptamente quando outra voz perguntou:

 

- É verdade, Mistress Stuart, que a senhora não só encontrou o corpo como tinha uma relação pessoal com o falecido?

 

Elizabeth virou-se, confusa, procurando o rosto que estava por trás daquela voz. Um homem rude, de barbas, levantou-se da última cadeira da fila e pôs-lhe um gravador à frente, repetindo a pergunta com um vozeirão. Depois, levantou-se outro homem e disparou a máquina fotográfica na cara dela. Elizabeth encolheu-se, estendendo a mão atrás de si para se apoiar, mas sentiu que alguém lhe agarrava no cotovelo. Virou-se outra vez e surgiram várias caras indistintas, todas com um ar desvairado, a mexer a boca, e cujas vozes produziam uma lengalenga.

 

No mesmo instante, viu-se de novo em Atlanta, no tribunal de Fulton County, com os repórteres a pressionarem-na, a gritarem.

 

- É verdade que dormia com o melhor amigo do seu filho?

 

- É verdade que seduziu os sócios de Mister Stuart?

- Pode apresentar provas que evidenciem a conspiração que invoca?

 

-E quanto às fotografias?

- E quanto aos vídeos.- Mistress Stuart...

- Mistress Stuart...

 

o som martelava-lhe os ouvidos e a multidão começou a fechar-se à volta dela. Elizabeth sentiu o pânico a subir na garganta e levantou-se. Procurou desesperadamente fugir, para qualquer lado, de qualquer maneira. Deixou cair o bloco de apontamentos e baixou a cabeça, tentando abrir caminho entre os fotógrafos, empurrando-os em direcções opostas, afastando-lhes as máquinas fotográficas com as mãos.

 

Depois, concentrou-se num rosto incluído naquela mancha, o de Dane. Estava furioso quando gritou com as pessoas que a rodeavam. Elizabeth não ouviu uma palavra do que ele disse. Pegou na mão que ele lhe estendeu e deixou que a levasse dali para fora. Tropeçou nos degraus do banco das testemunhas e entrou no gabinete do juiz. A porta fechou-se com estrondo atrás dela. Elizabeth deu meia volta, de olhos arregalados e boca aberta, tentando respirar.

 

-Fique aqui - ordenou ele. - Eu já volto.

 

Dane entrou na sala de audiências antes que o ar aterrado de Elizabeth o convencesse a fazer outra coisa. Estava furioso quando encarou a multidão. Os agentes foram obrigados a repor uma certa ordem, incitando as pessoas a voltar para os seus lugares, mas a excitação continuava no ar. o cheiro da morte, pensou Dane amargamente. Malditos repórteres! Malditos repórteres!

 

o nível de ruído desceu abruptamente quando ele se agarrou ao estrado com as duas mãos e ordenou silêncio aos microfones. A sua voz provocou uma série de ecos estridentes nos amplificadores. Um louco intrépido levantou a mão para fazer uma pergunta, mas o braço caiu-lhe como uma planta murcha quando Dane se concentrou totalmente no homem.

 

Miss Stuart não tem declarações a prestar aos órgãos de comunicação social - declarou ele tranquilamente, com uma voz que era pouco mais do que um sussurro nos altifalantes. Mesmo assim, atingiu todos os cantos da sala, chegou aos ouvidos de todos e eriçou os pêlos de todas as nucas. - Compreendido, senhoras e senhores da estimada imprensa?

 

Seguiram-se alguns instantes de silêncio antes que um repórter do Tribune falasse.

 

- E a liberdade de imprensa, xerife? Impassível, Dane enfrentou o olhar do homem.

 

- A primeira emenda não lhe dá o direito de assediar as testemunhas nem de as obrigar a prestar declarações. Se Miss Stuart tiver alguma coisa a dizer, di-lo-á a mim e a mais ninguém. Ela faz parte da investigação de um assassínio que está em curso. Quem a incomodar terá de responder perante mim. Fiz-me entender?

 

Olhou à sua volta e verificou que a maioria dos olhos estava posta nos blocos de apontamentos ou no equipamento electrónico. Na mesa a seu lado, Kaufman fazia estalar os nós dos dedos e suava como um cavalo. Yeager recostou-se na cadeira, com os olhos negros a brilhar e levou a mão à boca para disfarçar um sorriso deleitado.

 

- Esta conferência de imprensa terminou - anunciou Dane em voz baixa.

 

Fez-se silêncio quando ele se dirigiu para o gabinete do juiz. Elizabeth retirara-se para um canto, junto de uma estante que chegava ao tecto e que estava repleta de livros de jurisprudência com encadernações de cabedal cobertas de pó. Encontrava-se de costas para a parede, com um braço atravessado no peito e a outra mão encostada à boca.

 

Dane atravessou a sala às escuras, de cabeça baixa e olhos na mulher que estava à sua frente. Ela não passava de um monte de sarilhos, mas nesse momento ele não conseguiu orientar a sua fúria para ela.

 

- Eu... Eu sei que você não gosta de mim - gaguejou ela. - Mas dou-lhe um dólar se esquecer isso por um minuto e me abraçar.

 

Ele reprimiu um gemido quando a compaixão destruiu a necessidade de se manter longe dela. Fosse o que fosse que ela tivesse feito ou com quem, ele não podia esquecer que ela estava emocionalmente desfeita pelos tipos da comunicação social. Abraçou-a com cuidado, dando-lhe palmadinhas nas costas e ignorou o desejo que o invadia. A proximidade, era o que era. A proximidade e a ternura humana elementar.

 

-Não é nada pessoal - garantiu-lhe Elizabeth quando o aroma viril de Dane a inebriou.

 

Ele era tão forte e sólido! Elizabeth pensou em duplicar a oferta, conseguir um pouco mais de tempo, mas afastou a ideia. Não se podia deixar ir abaixo, não podia contar com ninguém para a animar, e muito menos com Dane Jantzen, o misógino Jantzen, solitário como um lobo, com a sua irascibilidade e a sua aversão a divórcios.

 

- Peço-lhe desculpa por ter provocado esta agitação disse ela, com a voz rouca pela emoção reprimida, quando se afastou dele.

 

Dane sentou-se ao canto da secretária de nogueira maciça do juiz Clauson e lançou-lhe um sorriso oblíquo, abanando a cabeça, admirado.

 

- Minha senhora, duvido que conseguisse entrar numa sala de monges cegos sem provocar agitação.

 

Elizabeth conseguiu soltar uma risadinha apesar do nó na garganta. Fungou com força e limpou as lágrimas com as costas da mão, satisfeita por não ter tido tempo de pôr rímel nos olhos. Nesse momento pareceria o Rocky Raccoon.

 

- Vou aceitar essas palavras como um cumprimento disse ela. - Independentemente da sua intenção. - Dane não disse nada, mas também não a contrariou, o que era melhor do que nada. Sentindo-se mais calma, Elizabeth fungou outra vez e presenteou-o com um sorriso de desculpas. Desculpe eu ter exagerado lá fora. É que aquelas vozes e máquinas fotográficas todas... fizeram-me lembrar... - Respirou fundo e prescindiu do que ia dizer. Não tinha forças e duvidava que Dane a quisesse ouvir. - Não suporto ser atacada mais do que uma vez por dia, caso contrário, fico nervosa. Obrigada por me ter salvo... Outra vez.

 

Dane encolheu os ombros com um ar indolente. -Nós protegemos e servimos as pessoas. Sente-se bem agora?

 

- Oh, sim.     Elizabeth sorriu, atirando o cabelo para trás dos ombros.     Estou bem. Eu já devia estar mais habituada a este tipo de coisas, creio.

 

-Ninguém se deve habituar a elas. Eu nunca me habituei - admitiu ele com candura. Um estranho sorriso levantou-lhe um dos cantos da boca, quando ele recordou os seus próprios confrontos com a imprensa.

 

- Eu vi esse olhar uma vez - disse Elizabeth, instalando-se na cadeira giratória de espaldar alto atrás da secretária. Cruzou as pernas e empurrou a cadeira para o lado da outra com a ponta do sapato. - Estava no focinho de um gato sentado junto de um aquário vazio. o que faria você? Apanhava um pobre camarão do LA Times e dava-o a comer ao seu tigre de estimação?

 

- Não exactamente. Eu criei fama de ter um feitio violento e irascível. Não havia muita gente que quisesse recorrer a mim nesse tempo.

 

Nem agora, apostava Elizabeth. Dane era um homem que parecia manter o autodomínio a todo o custo, mas com uma faceta oculta selvagem e violenta. Algo perigoso e empolgante.

 

«Pensamentos perigosos, Elizabeth.»

 

- Bem - disse ela, saltando da cadeira e começando a andar de um lado para o outro ao longo das estantes. - Não creio que alguém consiga tirar-me esse hábito, a menos que eu pegue numa arma. Acho que vou confiar na simpatia da polícia local.

 

- É para isso que você paga impostos. - Dane aproximou-se de uma porta em frente daquela por onde tinham entrado e abriu-a. - Venha comigo, Miss Stuart. o agente Yeager tem umas perguntas a fazer-lhe.

 

Elizabeth mordeu o lábio inferior e pôs a mala ao ombro. Por instantes, chegara a pensar que iam ser amigos. Tinha-lhe vindo uma dúzia de perguntas à mente, nomeadamente acerca da sua vida de atleta na ribalta e do divórcio, sem saber se o corte de uma vedeta do futebol com a mulher gerava o mesmo tipo de espalhafato que o de um magnata da imprensa. Mas num abrir e fechar de olhos ele voltara ao trabalho e ela era de novo uma testemunha. Ao passar por ele à porta e ao descer um lanço de escadas de serviço, Elizabeth não conseguiu concluir se isso a deixava triste ou contente.

 

- A coisa correu relativamente bem, excepto aquele pequeno charivari no fim. - Bret Yeager espreguiçou-se na cadeira das visitas com o seu Top-Siders em cima da secretária de Dane. - Você entrou ali a matar, não é verdade? Havia um tom divertido na sua voz, e Dane lançou-lhe um olhar destinado a pô-lo à distância. Mas não surtiu efeito. Yeager limitou-se a sorrir. Era a imagem da descontracção: as calças de algodão amarrotadas de tanto uso e de tão poucas lavagens e a camisa de xadrez que parecia ter saído do cesto da roupa lavada sem ter visto um ferro de engomar. o cabelo castanho tisnado pelo sol não via um pente há um certo tempo. - Eu avisei-o, rapaz - disse ele, sem pensar que Dane, com trinta e oito anos, tinha mais três do que ele. - Dê-lhes um osso. Dê-lhes um suspeito. Eles atiram-se a ele e deixam-no em paz durante uns tempos.

 

Tinha sotaque de Oklahoma, embora não vivesse lá há vários anos. Bret considerava-se um vagabundo, viajando pela América em busca da justiça. Uma espécie de paladino ou de Kung Fu. Dado o seu pendor para filosofar e a sua aversão pela violência, considerava que o segundo ponto de comparação era mais adequado.

 

A carreira levara-o de Oklahoma City para St. Louis e pelo Mississipi até Minneapolis, com uma breve e abençoada paragem no inferno que era a zona sul de Chicago. Perdera o gosto pelo crime violento mais ou menos quando perdera a conta aos cadáveres que vira e às famílias e amigos a quem tinha de dirigir estas palavras terríveis: Lamentamos informá-los que... A posição do agente do GIC naquele belo cantinho do mundo parecera-lhe a ideal. Tyler County era o paraíso de um desportista, com ribeiros de trutas que atravessavam hectares de florestas e de terrenos cultivados em que abundavam os veados e as aves. As pessoas eram honestas e trabalhadoras. o ritmo era lento. Há trinta e três anos que não havia um assassínio em Tyler County .Até agora.

 

Com este pensamento lúgubre, tirou os pés de cima da secretária. Sentou-se e passou a mão pelo cabelo, vendo Dane a andar de um lado para o outro na sala como um tigre enjaulado.

 

- Descontraia-se um pouco. Estou a ficar cansado de o ver. - o grande cão amarelo que estava enroscado debaixo da cadeira espreguiçou-se, levantou a cabeça e ganiu em sinal de concordância. - Ouviu? Você também está a cansar o meu cão.

 

Dane olhou para o imponente lavrador, que rosnou, apoiou a cabeça nas patas e adormeceu instantaneamente. -Não é isso que me parece, pelo que eu vi. Ele presta para alguma coisa além de mijar nos pneus?

 

- o velho Boozer? - Yeager endireitou-se na cadeira, pronto a defender o seu companheiro de longa data. - Parece uma flecha na época da caça aos patos. Havia de o ver. Nada mil e quinhentos metros e tem uma boca macia como manteiga. Neste momento, está apenas a poupar as energias, mais nada.

 

Dane ergueu o sobrolho quando o cão se deitou de lado e arrotou.

 

- Não me parece que ninguém se sinta satisfeito com um suspeito à solta - observou ele, concentrando-se de novo no assunto que tinha entre mãos. - Sei que ficarei muito mais contente quando prendermos o Carney Fox e encerrarmos o caso.

 

- Sim, você e a imprensa. Vai ver o que acontece. Eles vão gastar rolos e rolos de fotografias como um grupo de turistas na Disneylândia quando nós deitarmos a mão ao Carney. Depois vão para casa e nós nunca mais lhes pomos a vista em cima.

 

- Por mim, não me importo - disse Dane. - Quanto menos repórteres eu vir, melhor.

 

Ignorou a imagem de Elizabeth que lhe atravessou a mente e plantou-se em frente do calendário improvisado, colado à parede com fita gomada. Obrigara LeRoy Johnson a abrir o Piggly Wiggly às duas horas da manhã para encomendar um rolo de papel de talho para o efeito. Uma tira de papel branco encerado estendia-se agora ao longo da parede, com apontamentos escritos pelo seu próprio punho a relatar tudo o que acontecera na noite anterior, assim como declarações recolhidas acerca do período anterior à morte de Jarrold Jarvis. Dane parou em frente da sua declaração preferida, prestada por Eugene Harrison, que estivera sentado no Red Rooster a gastar o cheque do subsídio de desemprego em Old Milwaukee: 420 - Carney Fox compra um maço de cigarros. Fala em ir a Still Waters «em serviço».

 

Isto limitava-se a colocar Fox na cena do crime. Só precisavam de uma impressão digital, de uma madeixa de cabelo, de uma faca com o nome gravado, e teriam o caso encerrado. Fox era um desordeiro. Sempre fora, desde o dia em que chegara à cidade no seu Chevrolet de 81 com o cabelo cheio de brilhantina e um sorriso arrogante. Dane não podia dizer que o entristecesse meter Fox na prisão para o resto da vida. Então Still Creck voltaria à normalidade e o cortejo de Miss Tempos do Cavalo e da Carroça poderia realizar-se sem receio de ser perturbado por um acontecimento tão desagradável como um crime de morte.

 

Alguém bateu à porta com força. Lorraine enfiou a cabeça no gabinete e deitou a Yeager um olhar perscrutador, como que a passar-lhe a roupa a ferro. Ele fez um sorriso indolente, passou a mão pela camisa amarrotada e coçou a barriga.

 

- Essa tal Stuart pergunta se estão prontos para a receber.

 

Dane suspirou, controlando-se. Precisava de um momento de repouso depois do pequeno encontro de ambos a sós no gabinete e deixara Elizabeth à espera junto da secretária de Lorraine. Ao que parecia, esse momento terminara.

 

- Mande-a entrar, Lorraine. - Lorraine hesitou, fechando a boca enquanto pensava se havia de dizer o que lhe ia na cabeça. Semicerrou os olhos por trás dos óculos de aspecto felino. - Sim, Lorraine - insistiu Dane.

 

- Não me compete criticar ninguém, mas aquela mulher é descarada como tudo - disse ela, corando. - Trata os agentes por «filho» e «doçura». Que miséria!

 

Yeager sorriu-lhe.

 

- Ela é do Sul. É a maneira de ser dela, querida - salientou ele, com uma voz exageradamente arrastada. Piscou o olho a Dane quando Lorraine empinou o penteado e fungou imperiosamente.

 

-Creio que ela está apaixonada por mim - disse ele rindo-se, assim que a porta se fechou com força.

 

Dane deu uma gargalhada. -Não está.

 

- Ainda bem que vocês se divertem enquanto alguns de nós perdem o dia à vossa espera.

 

Elizabeth entrou no gabinete, cruzou os braços e encostou-se à parede.

 

Yeager endireitou-se, levantou-se da cadeira, e o seu sorriso desapareceu. Pigarreou e disse delicadamente, estendendo a mão:

 

- Agente Yeager, minha senhora. Desculpe por a termos feito esperar. Espero que isso não a tenha prejudicado. Elizabeth apertou-lhe a mão, reagindo automaticamente

 

ao encanto sulista de Yeager. Olhou para Dane de esguelha e respondeu:

 

-Bem, é agradável ver que algumas pessoas têm maneiras. Muito prazer em conhecê-lo, agente Yeager.

 

O prazer é meu, minha senhora. Dane arregalou os olhos.

 

-Antes que você comece a dizer-lhe que ela é bonita como uma vitela pelada, podemos ir direitos ao assunto? Yeager sorriu.

 

-Não se importa de se sentar, Miss Stuart? Elizabeth olhou para a cadeira que o agente lhe indicou e para o grande cão amarelo que estava debaixo dela e abanou a cabeça.

 

- Não, obrigado. Quero ir andando. Estamos a preparar uma edição especial do jornal.

 

- Nesse caso, serei breve. - Yeager debruçou-se na secretária e franziu o sobrolho ao ler um documento acabado de dactilografar. - A senhora afirma aqui que eram cerca das sete e meia quando saiu do seu gabinete e da cidade. Tem a certeza de que não viu ninguém por aí? Não necessariamente em Still Waters, mas talvez na estrada ou uma nuvem de pó ao longe... Um carro a seguir na outra direcção... Elizabeth inclinou a cabeça.

 

- Tenho muita pena. Quem o fez ou se foi embora antes de eu lá chegar ou depois de eu ir pedir socorro. o único automóvel que vi foi o Lincoln.

 

- No passado, antes do assassínio, alguma vez ouviu Mister Jarvis afirmar que estava de relações cortadas com alguém? Alguém que trabalhasse para ele, ou que ele tivesse despedido ou a quem tivesse recusado um emprego?

 

- Eu não conhecia Mister Jarvis - respondeu Elizabeth com frieza, endireitando as costas. - Ele apalpou-me o rabo uma vez no escritório do jornal e eu dei-lhe um murro por causa disso. Não sei como são vocês no Minnesota, mas na minha terra este tipo de coisas não tem nada a ver com amizade.

 

- Eu não quis dizer isso, minha senhora - garantiu-lhe Yeager, levantando uma mão na defensiva. - Eu não quis dizer isso. É que esta é uma cidade pequena. As pessoas ouvem conversas, apanham um mexerico aqui e ali. Julguei que talvez a senhora, como é repórter e tudo...

 

-Não - retorquiu ela em voz baixa, deitando outro olhar ao cão adormecido.

 

Só podia ser de Yeager, pensou ela, distraída. Jantzen nunca teria um cão assim, um cão gordo, simpático e dorminhoco. Teria um animal grande e mau... Um pastor-alemão, um lobo. Um lobo de olhos azuis, e ambos comunicariam por telepatia.

 

-Não, eu não ouvi dizer nada - acrescentou ela. Levantou a cabeça e deparou com o ar curioso de Yeager, sem sequer tentar esconder o cansaço que demonstrava. E quem me dera não ter visto nada. Agora, se não tem mais nada a perguntar-me, eu tenho que fazer.

 

Yeager escreveu qualquer coisa na declaração dela com uma esferográfica e disse com um gesto de cabeça:

 

- Pode ir, minha senhora.

 

- E eu posso fazer umas perguntas?

- Claro.

 

Elizabeth virou-se para Dane. Não conhecia o protocolo da Polícia. Talvez o homem do GIC fosse mais importante em termos hierárquicos, mas era de Jantzen que ela queria respostas. Esta era a cidade dele, a zona dele. Ele era o responsável, protocolarmente ou não.

 

- Você está agarrado a essa teoria do forasteiro. Ele é o seu único suspeito?

 

Dane levantou um canto da boca com uma expressão trocista.

 

-Além de si? É.

 

- Porquê? - perguntou ela, ignorando o escárnio. Por aquilo que me disseram, o Jarvis não era um homem popular. Deve haver mais alguém que o quisesse ver morto.

 

- Você também não é muito popular - contrapôs Dane. - Mas apesar do episódio da Helen Jarvis e da gelatína, não creio que alguém de Still Creek tencione matá-la.

 

o olhar desvairado da viúva Jarvis brilhou na mente de Elizabeth, que estremeceu. Aquele prato podia ter sido uma faca. Ela não duvidava de que Helen Jarvis lha teria atirado com o mesmo zelo.

 

-Julga que os conhece todos assim tão bem? - perguntou ela.

 

- Passei aqui quase toda a minha vida - respondeu Dane. - As únicas pessoas de Still Creek por quem não posso responder são os estranhos.

 

Elizabeth enfrentou o desafio no olhar do xerife. -Às vezes, as pessoas que julgamos conhecer melhor são estranhos por dentro.

 

- Uma frase dramática - comentou ele com brandura. - Talvez devesse escrever ficção. - Afastou-se da secretária e espreguiçou-se, pondo termo às perguntas de Elizabeth. Passou por ela sem uma palavra de desculpas e abriu a porta. - Agora, se nos dá licença, Miss Stuart, temos de ir prender um suspeito.

 

o negócio florescia no Coffee Cup de Elaine. Embora detestasse pensar em assassínios, mesmo no de Jarrold Jarvis, Phyllis Jaffrey tinha de admitir que eram bons para o negócio. o restaurante estivera cheio durante todo o dia. Repórteres a entrar e a sair à pressa, a beber cafés uns atrás dos outros e a comer tudo o que viam. As pessoas da cidade juntavam-se para os apoiarem e especularem enquanto comiam tarte de morango. Phyllis vira-se obrigada a pedir a clientes habituais que se levantassem e saíssem para ela poder sentar o grupo de matronas de Edina que viera almoçar. Graças ao turismo e ao assassínio, estava a fazer dinheiro suficiente para tirar umas férias no Inverno e ir visitar a sua antecessora, Elame, a Phoenix.

 

Elame partira para o Sul, com o lumbago e os seus cães-d’água, no dia seguinte à sua festa de despedida em 1972. Deixara o restaurante para trás, mas este conservava o seu nome e era provável que sempre assim acontecesse. Nos meios pequenos, as pessoas não gostavam de mudanças, incluindo Phyllis. Mantivera os mesmos velhos compartimentos e mandava estofá-los do mesmo vinil castanho e funcional quando era preciso. o balcão era o mesmo que fora instalado no fim do século passado, quando o Coffee Cup era a primeira geladaria a sul de Rochester.

 

Quando o oleado dera o que tinha a dar em 1983, Phyllis pensara em substituí-lo por qualquer coisa muito semelhante mas, como era esperta para o negócio e via que o turismo seria o grande furo naquela região, dissera a Bob Griege que o arrancasse e repusesse o antigo soalho de tábuas estreitas de carvalho. Ninguém levantara objecções. Se as coisas tinham de mudar em Still Creek, era preferível que voltassem atrás e não que avançassem.

 

Phyllis ouviu a música da caixa registadora a receber mais uns dólares e suspirou, extasiada. Havia agitação no ar, a par do cheiro a batatas fritas e a café. Um ambiente revigorante. Phyllis nem se importava que os seus pés parecessem duas grandes raquetas de neve a latejar nem de não ter visto as suas telenovelas. Com tudo o que tinha para fazer, All My Children até lhe parecia monótono.

 

Depois da conferência de imprensa, os repórteres tinham saído a correr para ir escrever os seus artigos. o tilintar dos talheres e o ruído da louça acentuavam o murmúrio constante das conversas. Depois, a porta principal abriu-se e, durante um segundo longo e tenso, todos os sons se dissiparam, como se o local tivesse engolido uma golfada de ar e sustivesse o fôlego.

 

Elizabeth Stuart entrou e a tensão subiu de nível como o mercúrio de um termómetro depois de mergulhado em água a ferver. Todos os olhares se viraram na sua direcção. Os homens teriam olhado de qualquer maneira, pensou Phyllis. Os homens viravam-se sempre para olhar para Elizabeth, qualquer que fosse a sua idade e fossem ou não casados. Era uma espécie de instinto primário. Mas as mulheres também olhavam. Aquela que mais preenchia as suas conversas tivera o descaramento de mostrar a cara no local mais concorrido da cidade.

 

Desde que Elizabeth chegara a Still Creek que fora objecto de rancor. A notícia de que uma mulher divorciada comprara o Clarion varrera a cidade como fogo. o facto de ela ser bela, usar calças de ganga coladas ao corpo e guiar um Cadillac vermelho e descapotável agravavam a situação. E o facto de ela ter um passado célebre e um sotaque tornavam o incêndio incontrolável.

 

Sendo contrária a isso, Phyllis estava decidida a gostar de Elizabeth. Aliviada, descobrira que tinha muitos motivos Para gostar dela. Observava agora a sua jovem amiga à porta, a absorver ondas de hostilidade, e sentiu-se solidária com ela. Saiu do seu posto à porta da cozinha e abriu caminho no labirinto de mesas com a graciosidade de quem tivesse servido à mesa toda a vida, com os sapatos de sola de crepe a murmurarem no soalho polido e as fitas do avental com folhos de musselina a adejarem à sua volta.

 

Elizabeth avistou Phyllis a dirigir-se para ela, com a boca fechada num nó cor de ameixa, um brilho deterrninado nos olhos e o cabelo espetado como um esfregão. Phyllis não media mais de um metro e meio de altura, mesmo com os seus sapatos de sola grossa, mas projectava a aura de uma pessoa muito maior. Devia rondar os sessenta anos, mas a idade, que lhe reduzira o corpo a tendões e cartilagens, nada fizera para diminuir a força da sua personalidade. Era irascível e desbocada e tinha um rosto que lembrava o focinho de um pequinês - redondo e achatado, com um nariz pequeno e uns olhos grandes e líquidos. Elizabeth nunca se sentira tão feliz por ver alguém conhecido.

 

A Jolynn está num compartimento lá atrás - anunciou Phyllis com uma voz áspera como cascalho. Agarrando em Elizabeth pelo braço, empurrou-a para o fundo do restaurante.

 

De queixo empinado, Elizabeth passou pelas mesas da gente da terra, fingindo ignorar os seus olhares hostis. Independentemente do que eles pensavam, ela não fizera nada de mal. Não ia fingir que fizera. As conversas foram retomadas depois de ela passar, como o mar Verrnelho a fechar-se atrás de Moisés e dos Israelitas.

 

- Eu sou a pessoa de quem se fala - disse ela entre dentes.

 

- Idiotas. Eu já disse a não sei quantas pessoas: «Se ela quisesse ter um caso com um homem casado e rico, não acham que teria arranjado alguém mais bem-parecido do que o Jarrold?»

 

- Não me parece que elas me considerem assim tão selectiva.

 

- oh, coitadinhas - resmungou Phyllis. - Elas julgam que, lá porque a Rosemary Toller Shafer teve uma relação com ele antes de partir, outra mulher bonita podia fazer o mesmo, mas a situação não é igual. A Rosemary só fez isso para irritar a Helen e o Garth.

 

Elizabeth virou-se e olhou para ela, boquiaberta. Phyllis deu um beliscão no braço de Renita Henning quando passaram ambas pela mesa do presidente da Câmara. A empregada loura e roliça ia entornando o descafeinado no colo de Charlie Wilder, ao dar um grito e um salto.

 

-Estou a descansar um pouco - rosnou Phyllis. Vai buscar a Christine à despensa e diz-lhe que deixe de se queixar dos calos. Eu tenho calos tão grandes que davam para alimentar um rebanho. Não quero ouvi-la falar mais nos malditos calos dela.

 

- A senhora deu-me um beliscão! - gemeu a rapariga, esfregando o braço.

 

Phyllis deitou-lhe um olhar arrasador.

 

-Ora, pelo amor de Deus, eu estava só a chamar-te a atenção. Quando eu te beliscar a sério, tu darás por isso. Agora traz-nos três Coca-Colas Diet e não percas tempo no balcão a conversar com a Alice Wilson acerca de permanentes caseiras. o teu cabelo está bem como está. - Phyllis fungou e deu meia volta, empurrando Elizabeth como um cão a empurrar o rebanho para o redil. - Não sei o que se passa com estas miúdas hoje em dia - resmungou ela. Só se sabem queixar. Moles, é o que elas são. Vêem televisão a mais.

 

Enfiaram-se no compartimento de trás, Jolynn e Elizabeth de um lado e Phyllis do outro. Os compartimentos eram antiquados, com espaldares que obstruíam a visão, como se engolissem os ocupantes e os impedissem de ver quem estava na sala. Felizmente, pensou Elizabeth, enterrando-se no estofo macio. Já tinha a sua dose de celebridade nesse dia.

 

Renita serviu-lhes as Coca-Colas em copos altos com gelo e pousou-as em cima da mesa de tampo de fórmica, tendo o cuidado de não entornar nem uma gota. Em seguida, tirou um pano húmido do bolso do avental de fôlhos, o que lhe valeu um olhar de aprovação da patroa. Depois de ter Posto em fila três palhinhas embrulhadas em papel, deu meia volta e encaminhou-se para o fundo da sala, talvez para ir ao encontro da pobre Christine atormentada pelos calos. Elizabeth viu desaparecer a rapariga e virou-se para Phyllis,

 

-Está a dizer-me que o Jarrold Jarvis teve um caso amoroso com alguém? - perguntou ela em voz baixa, debruçando-se sobre a mesa.

 

Phyllis rasgou uma ponta do invólucro da palhinha e atirou o papel para o outro lado da mesa.

 

-Um caso amoroso? - repetiu ela com um pequeno ronco.

 

-Com essa tal Rosemary.

 

- Ah, isso. - Agitou a mão, enfiou a palhinha no copo e bebeu um bom gole de Coca-Cola. - Isso foi quase há vinte anos. Toda a gente da cidade conhece essa história.

 

- Excepto eu - disse Elizabeth ao ver Jolynn a abanar a cabeça com um ar sábio.

 

- Isso foi quando o Jarrold ainda tinha sociedade com o Garth Shafer na empresa de construção de estradas - explicou Phyllis. - As mulheres do Jarrold e do Garth são irmãs. As irmãs Toller. Foram sempre diferentes como o dia da noite. A Helen foi Miss isto e aquilo no liceu, mas era uma galdéria como havia poucas. Era capaz de tudo. Phyllis agitou de novo a mão e bebeu mais um gole. - De qualquer modo, isso foi há um ror de tempo. A Helen casou com o Jarrold e a Rosemary com o Garth, e eram boas amigas. Depois, a Helen começou a aparecer com anéis de diamantes que pareciam ovos de galinha e a dar-se uns grandes ares porque o Jarrold a levara num daqueles cruzeiros a Cuba e comprara móveis novos para a sala de estar e não sei mais o quê. Pareciam estar a nadar em dinheiro, ao passo que o Garth nem sequer deixava que a Rosemary comprasse um chapéu decente para a Páscoa. o que veio a saber-se é que a Rosemary e o Jarrold se encontravam no escritório dele a desoras. E isso é verdade. o filho mais novo dos Shafer é a cara chapada do Jarrold, pobre miúdo.

 

Phyllis recostou-se, descalçando os sapatos debaixo da mesa e esticando o peito dos pés. A sua face enrugada descontraiu-se, dando lugar a uma expressão de prazer puro e simples.

 

Elizabeth olhou para ela, estupefacta.

 

-Mas isso dá motivos a várias pessoas para matar o Jarvis. A Helen, a Rosemary, o antigo sócio...

 

Phyllis rolou os olhos nas órbitas.

 

- Isto foi há vinte anos. Lá no Sul, talvez as pessoas sejam assim tão vagarosas, mas nós aqui em cima somos mais rápidos a tratar das coisas.

 

O que aconteceu?

 

- Nada de especial. o Jarrold comprou a quota do Garth e ficou rico como o Roosevelt. o Garth meteu-se no negócio da Ford. Desde então, a Helen e a Rosemary não se falam.

 

- Mais nada? - perguntou Elizabeth, incrédula. Não houve uma discussão, nem ameaças de divórcio, nem nada?

 

- Estamos no Minnesota - recordou Phyllis. - Não entramos em grandes dramatismos. Isso é demasiado vergonhoso. Guardamos o que sentimos para nós próprios. E o divórcio... - Phyllis franziu o sobrolho. - Aqui ainda é um escândalo alguém divorciar-se. Nesse tempo, nem se ouvia falar nisso.

 

Elizabeth encostou-se para trás e bebeu um gole do seu copo. Na sua terra, haveria uma cena de pancada por muito menos e uma troca de tiros não seria uma surpresa. Em Bardette, as pessoas diziam o que pensavam e explodiam. Deixavam sair o vapor e, de um modo geral, não eram de reservas. Elizabeth tentou imaginar o que poderia acontecer se toda aquela gente recalcasse esse tipo de sentimentos ódio, humilhação e ressentimento. o que poderia acontecer depois de vinte anos de amargura a fermentar dentro de uma pessoa?

 

- A Phyllis tem razão - disse Jolynn. - Isso já é velho. o Jarrold foi para a cama com centenas de outras mulheres depois disso. Toda a gente sabe que ele enganava a Helen, incluindo a própria Helen.

 

- Talvez a Helen se fartasse - sugeriu Elizabeth.

 

- E matasse o ganso gordo que punha os ovos de ouro? Jo abanou a cabeça.

 

-Os gansos gordos têm apólices de seguro gordas.

- É verdade - reconheceu Jolynn. - Mas não vejo a Helen a fazer uma coisa dessas.

 

- Eu vejo - rosnou Elizabeth, a tremer. Jo abanou a cabeça outra vez.

 

- Ela é muito baixa.

 

-Não é preciso ser alto para se ser um assassino. -Como o Carney Fox?

 

Jo encostou-se ao canto do compartimento, cruzou os braços à frente da blusa e disse qualquer coisa em voz baixa quando o seu cérebro começou a trabalhar. o nome de Fox não tinha sido citado por ninguém ligado ao departamento do xerife, mas não fora preciso muito tempo para se saber quem era o «forasteiro sem nome» procurado pela Polícia para ser interrogado. Carney Fox era a escolha óbvia. Aparecera na cidade em Abril e desde então só armara sarilhos. A sua fama, associada ao facto de ninguém o ter visto desde a tarde de quarta-feira, fazia dele o principal suspeito.

 

- Eu não acredito - disse Phyllis entre dentes. Bebeu o resto da sua Coca-Cola e limpou o círculo molhado que o copo deixara em cima da mesa. - A Helen beneficiou muito do facto de ser casada com o Jarrold. Ela tinha de ser sempre o centro das atenções, fosse bom ou mau o que se passava à sua volta. Se me perguntarem, acho que o Carney Fox o fez por pura maldade. - Debruçou-se sobre a mesa e inclinou a cabeça com uma expressão conspiratória. - Ele é da «Cordilheira de Ferro», sabe? Eles são muito estranhos. Elizabeth ergueu o sobrolho.

 

O que é a Cordilheira de Ferro?

 

- o Norte - explicou Jolynn. - o Norte do Minnesota, onde era costume fazer-se bom dinheiro nas minas de taconite, minério de ferro de baixo teor.

 

- Lá em cima, pouco mais há do que lobos e índios disse Phyllis. - E pessoas a viverem de esmolas.

 

- Grandes problemas de desemprego - interpôs Jo. A taconite já não vale muito com o negócio do aço americano no estado em que se encontra.

 

O Jantzen disse-me que esse tipo veio para aqui à procura de trabalho.

 

Distraída, Elizabeth bebeu mais um gole, passando o dedo pelo copo cheio de vapor de água.

 

-Acho que ele o encontrou. Se considerarmos que cortar o pescoço a outras pessoas e roubar-lhes o dinheiro é uma profissão.

 

-Eu acho que é muito fácil acusar uma pessoa que é desconhecida na cidade. Havia com certeza outras pessoas que odiavam o Jarvis.

 

- Oh, não duvide - observou Phyllis rindo-se. - Todas aquelas cujo nome ele trazia naquela agendazinha preta.

 

Mas não vejo ninguém a dar-se ao trabalho de o matar. Ninguém de Still Creek. Não é essa a nossa maneira de agir. Ficamos furiosos e não dizemos nada. E como...

 

Jo e Elizabeth inclinaram-se para a frente ao mesmo tempo, como dois perdigueiros que tivessem acabado de avistar uma codorniz, de olhos a brilhar.

 

-Uma agenda preta?

 

Phyllis fez um sorriso maroto, acentuando as rugas finas da cara. Os outros nem sempre se apercebiam disso, mas ela estava numa posição que lhe permitia saber quase tudo acerca de quase toda a gente da cidade, porque o Coffee Cup era o local de conversa por excelência e Phyllis não tinha qualquer escrúpulo em ouvir o que os outros diziam.

 

- o Jarrold emprestava dinheiro às pessoas. Pessoas em quem o banco não confiava ou que não confiavam no banco, pessoas que precisavam de dinheiro para coisas que não queriam que ninguém soubesse, E assentava os nomes numa pequena agenda preta. - Phyllis apontou para o compartimento do outro lado do corredor, o único que estava vazio nesse momento. - Era ali que o Jarrold fazia quase todos os seus negócios - acrescentou ela, orgulhosa.

 

Elizabeth virou-se para Jolynn.

 

- o Jantzen disse que o porta-luvas do lincoln do Jarvis tinha sido revistado. Eles calculam que o assassino andasse à procura de dinheiro.

 

-E se não andasse? - perguntou Jo em voz baixa. Durante muito tempo, ficaram a olhar umas para as outras, entusiasmadas com as hipóteses e os motivos que lhes passavam pela cabeça.

 

Jolynn olhou para o relógio.

 

- Merda, não temos tempo para trabalhar nisto. Se vamos acabar a edição especial e mandá-la para Grafton, temos de nos despachar, patroa.

 

o tempo em que os jornais locais eram impressos na sua própria máquina de linotipia já passara. Estava-se na era do computador pessoal, mesmo em cidades remotas como Still Creck. Uma par-te do investimento inicial de Elizabeth no Clarion fora aplicada em dois novos computadores pessoais IBM para ela e para Jolynn. Faziam a sua própria fotocomPosição, mas a impressão do jornal era realizada numa grande tipografia de Grafton. o chefe prometera inserir a edição especial entre meia dúzia de outros jornais locais. Nas tipografias, o tempo era cuidadosamente distribuído. Elizabeth tivera de suplicar e adular para conseguir que eles aceitassem o trabalho.

 

Jolynn tinha razão. Eram obrigadas a pôr de lado para posterior consideração as informações suculentas que Phyllis lhes prestara. Talvez Dane Jantzen se contentasse em atribuir a culpa daquele assassínio a um forasteiro para encerrar o caso, mas ela queria a verdade. o Clarion podia não atingir milhões nem caracterizar-se pela efervescência política dos jornais de Brock Stuart, mas havia de publicar a verdade, e não o que era mais fácil, menos ofensivo, mais sensacionalista ou mais consentâneo com as ideias de Brock. A verdade. E se ela fosse obrigada a chafurdar na lama de Still Creck para lá chegar, era o que faria.

 

Morto de cansaço, Dane deixou-se cair na sua cadeira. Não se lembrava de se sentir tão cansado desde o seu último período de treino com os Raiders, quando a idade e os ferimentos faziam com que a morte parecesse preferível. As suas pálpebras cerraram-se como cortinas opacas, e ele deixou descair a cabeça para trás e soltou um gemido. Passara a maior parte da tarde a subir e a descer as encostas íngremes da floresta de Hudson, literalmente a bater os arbustos em busca de qualquer sinal de Carney Fox. Eram agora 6 e 45 e, dos seus esforços, resultara apenas um rasgão na perna das calças de ganga, uma dor dilacerante no joelho e um humor mais negro do que um tição.

 

Tinham palmilhado quase toda a região desde o assassínio sem encontrarem sinais da sua presa. Que grande chatice! Talvez o homem fosse a caminho do Canadá nesse momento, rastejando ao longo dos canos de esgoto como uma ratazana. Se restasse alguma dúvida na mente de Dane que fora Carney a cometer o assassínio, esta circunstância tê-la-ia dissipado. Ninguém se escondia, a menos que tivesse razão para isso.

 

Dane apostava que, quando chegassem as informações acerca das impressões digitais do laboratório de St. Paul, haveria uma bela e gorda impressão digital de Carney entre as dezenas deixadas por acaso no Lincoln de Jarvis. Haviam de encostar o patife do Carney à parede. Se o encontrassem.

 

Dane passou as mãos pela cara e empurrou o cabelo para trás, abriu os olhos inflamados e observou a confusão que reinava no seu gabinete habitualmente imaculado. Viam-se chávenas descartáveis em todos os tampos disponíveis. Uma delas entornara-se em cima de um monte de papéis e enchera um relatório de manchas castanhas. Aqui e ali viam-se restos de sanduíches abandonadas, invólucros de chocolate atirados para cima de dúzias de declarações e migalhas de bolo espalhadas como pó pelas fotografias a preto e branco da cena do crime. o odor do suor masculino pairava no ar, disfarçando um pouco um insidioso cheiro a cão.

 

Yeager e o seu maldito perdigueiro. o agente levara o cão para a floresta de Hudson. o animal enchera de pêlo todo o banco de trás da Bronco, e a única coisa que o inútil cachorro fizera fora entreter-se a assinalar as árvores.

 

- Céus, como ficarei satisfeito quando isto tudo acabar disse Dane, suspirando e olhando para o tecto.

 

Queria a sua vida de volta, a sua vida agradável, organizada e pacífica. Mas não seria nessa noite. Ainda tinha todos os homens disponíveis à procura do suspeito. Yeager já terminara o trabalho de campo nesse dia. Dane reservara cinco minutos para engolir uma sanduíche e telefonar a Amy. Depois, seguiria para Minneapolis para assistir à autópsia. A meio da tarde, recebera uma chamada do gabinete do médico legista de Hennepin County a avisá-lo de que iriam autopsiar Jarvis depois do jantar.

 

o único homem que Dane conseguira reservar para o trabalho fora Ellstrom e, apesar de a causa da morte parecer mais do que óbvia, ele não garantia que Ellstrom não falhasse nalgum pormenor essencial. Além disso, sentia uma certa obrigação. Esta era a sua zona. Fora assassinado um homem que se encontrava sob a sua protecção. o mínimo que podia fazer era assistir pessoalmente à operação.

 

Olhou para o seu mata-borrão e para a sanduíche de fiambre impecavelmente embrulhada que Lorraine lhe levara e sorriu.

 

A porta abriu-se no momento em que ele ia a pegar no telefone, e Elizabeth Stuart entrou. Trocara a blusa de lamé dourado de Jo Nielsen por uma T-shirt de algodão branco liso, que ela usava enfiada nas calças de ganga.

 

Dane distinguia apenas o contorno em forma de concha do soutien dela. Estivera presente quando Kaufman catalogara as peças de vestuário que ela despira depois de encontrar o corpo. A senhora tinha um certo gosto para a roupa interior. Era sensual, provocante e cara.

 

Cara. A palavra arrefeceu-lhe o ardor e fez-lhe lembrar, com um calafrio, quem era Elizabeth Stuart e que espécie de mulher - cara, ambiciosa e do tipo que se agarrava a homens que tinham dinheiro para lhe comprar calcinhas de renda importadas.

 

-Na sua terra não batem à porta antes de entrar? perguntou ele, irritado.

 

Elizabeth deslocou-se lentamente ao longo do calendário que estava colado à parede, fotografando mentalmente pormenores pelo canto do olho.

 

-Eu não queria provocar o regresso da formidável Miss Worth à sua secretária. Tenho a sensação de que ela não gosta muito de mim.

 

- Ela já saiu. Você está a salvo.

 

Dane levantou-se da cadeira e bloqueou-lhe o caminho. Elizabeth parou quando ia mesmo a chocar com ele. Que disparate, pensou ela. Ele não estava disposto a ceder um milímetro. Tudo o que ela fizera ao desafiá-lo fora aproximar-se demasiado dele.

 

- Julguei que você tinha um prazo muito apertado a cumprir.

 

-Já acabámos.

 

Elizabeth recuou e deixou-se cair na cadeira das visitas, franzindo o sobrolho quando ele optou por sentar-se na beira da secretária, mesmo em frente dela, e não do outro lado. Dane despira a roupa que levara à conferência de imprensa e trocara-a por uma camisa de linho, calças de ganga desbotadas e botas de couro já gastas.

 

- Vim por causa de uma informação que pode ser-lhe útil - disse ela.

 

-Que tipo de informação?

 

- o tipo de informação que dá motivos a muitas outras pessoas para matar o Jarrold Jarvis. Parece que ele também era um usurário - disse ela. - Emprestava dinheiro às pessoas e tomava nota dos nomes delas num livrinho preto. A tensão desapareceu dos ombros de Dane.

 

- Ah, isso.

 

Levantou-se e afastou-se da secretária, tentando disfarçar uma caimbra no ombro que deslocara duas vezes durante a época de 79.

 

Elizabeth fitou-o, incrédula.

 

O que quer você dizer com Ah, isso»? Já sabia?

- Claro que sabia, Esta cidade é pequena. o Jarrold era uma fonte de dinheiro quando alguém precisava dele. Isso não é nada.

 

-Nada! - Elizabeth levantou-se de um salto e deu um passo na direcção dele. - Como é que você pode dizer que não é nada? E se um desses cidadãos honestos se cansasse de lhe pagar? E se o velho Jarrold andasse a pressionar alguém que não pudesse vomitar o dinheiro e o tivessem eliminado?

 

- Eliminado? - Dane olhou para ela. - Onde é que você foi buscar esse vocabulário? A televisão?

 

- A questão é que qualquer dessas pessoas pode tê-lo morto - insistiu ela.

 

-Nós sabemos quem é que o matou.

 

- Vocês sabem quem é que queriam que o tivesse morto. Irritado, Dane franziu o sobrolho.

 

O que quer isso dizer?

 

- Quer dizer que vocês preferem crucificar um pobre louco vindo da cintura do aço do que olhar para o vosso próprio quintal...

 

- Cordilheira de Ferro - corrigiu ele, impaciente. E eu não tenho medo de olhar para o meu próprio quintal. -Não tem medo do que pudesse encontrar?

 

- Não - declarou ele, aproximando-se meio passo dela, com as mãos enfiadas no cós das calças de ganga. - Sei exactamente o que encontraria. É por isso que não preciso de olhar para lá. Tenho um suspeito que possui motivos e oportunidade e também não duvido que dispusesse dos meios para isso. Porque hei-de ir à procura de outra coisa? Julga que eu não tenho mais que fazer do que ficar aqui sentado a sonhar com assassínios misteriosos?

 

-Mesmo que o Fox o tivesse morto, isso não quer dizer que ele não fosse apenas o agressor..

 

- o Fox? - perguntou Dane.- Quem diabo é que lhe deu esse nome?

 

Elizabeth rolou os olhos nas órbitas.

 

Toda a gente da cidade descobriu em dois segundos. Dane passou a mão pela cara e empurrou o cabelo para trás, fechando os olhos como se tivesse sofrido um espasmo muscular.

 

- Merda!

 

Elizabeth insistiu na sua teoria.

- Alguém lhe podia ter pago... Dane soltou uma gargalhada.

 

- Céus, quem é você? Uma maníaca das conspirações? Acha que o Lee Harvey Oswald foi um testa-de-ferro? Acha que o homem que foi à Lua foi um embuste? Acha que o Reagan sabia dos «contras» do Irão?

 

- Acho - disse ela com um gesto de cabeça decisivo. Eu nunca gostei desse homem, nem sequer em Death ValleY Days.

 

Dane levantou os olhos ao céu e rangeu os dentes. Céus, porque havia de ser cavalgado por um assassínio e por Elizabeth Stuart ao mesmo tempo? Não estava preparado para isso, nem tinha paciência. Refreando-se, respirou fundo. Ele percebia que ela estava apenas a tentar ajudar. Não era só por culpa dela que a sua tensão arterial estava a entrar na zona vermelha.

 

-A maioria dos crimes é simples - afirmou ele no mesmo tom de falsa serenidade com que se dirigiria a uma criança de dois anos. - A maioria dos criminosos é estúpida. o Carney Fox matou o Jarrold Jarvis pelo dinheiro deste, para se divertir, e pisgou-se. Fim da história.

 

Elizabeth olhou para ele, incrédula, dominando-se a custo para não o agarrar e abanar.

 

Sentia-se cheia de verdade, a abarrotar de motivos e de segredos, entusiasmada por participar na justiça, mas o responsável por esta não queria ouvir o que tinha a dizer.

 

Você não vai fazer nada com a minha informação? Não vai procurar essa agenda nem interrogar ninguém ou...

- Não.

 

-Incrível! - exclamou ela entre dentes, abanando a cabeça como se estivesse atordoada. - Você não se importa que um dos seus concidadãos mais proeminentes fosse um usurário...

 

-Ele não era um usurário...

 

-Você não se importa que uma dúzia de outras pessoas tivessem razões para o querer ver morto. Dane ganhou fôlego para protestar de novo, mas Elizabeth não quis ouvi-lo. - Você não se importa com a descoberta da verdade - prosseguiu ela, apanhada entre o cinismo e a incredulidade. - Só quer é acabar com isto num tempo mínimo e com um mínimo de espalhafato.

 

- Não estou interessado em lixar-me com uma teoria mal alinhavada.

 

-Você quer acusar um forasteiro e encerrar o caso. Manter a sua cidadezinha turística impecável, seja qual for o pó que esteja debaixo do tapete. - Elizabeth semicerrou os olhos e fitou-o com repugnância. - Você é preguiçoso, isso é que é.

 

- Ah sim? - rosnou Dane, irritado quando a acusação dela atingiu um ponto sensível há muito adormecido.

 

Ela encontrava-se a pouca distância dele, com os seios a subir e a descer com a respiração. Corou e arregalou os olhos, e as pupilas dilataram-se ao olhar para ele.

 

Ele tentou recuar, mas não conseguiu. Não lhe apeteceu. Algo mais poderoso do que o senso comum impeliu-o para ela, aqueceu-lhe o sangue, desviou o seu olhar para a boca dela. Para aquela boca lúbrica. Para aquela pequena e irresistível cicatriz curva ao canto do lábio. Apetecia-lhe saboreá-la desde a primeira vez que a vira e agora não se lembrava de um único motivo para não o fazer.

 

Os lábios dela afastaram-se ligeiramente e Dane encarou isto como um convite silencioso, colando a sua boca à dela antes que Elizabeth lhe pudesse dizer algo em contrário.

 

Macia, doce. Exactamente como ele imaginara. Mais do que ele esperava. Uma campainha de alarme soou algures na sua mente, mas o desejo era avassalador como uma torrente e alagou o alarme, deixando apenas aquele ardor incrível no seu rasto. Dane enfiou a mão nos cabelos dela e inclinou-lhe a cabeça para trás, para a pôr mais a jeito, num ângulo melhor.

 

Elizabeth ofegou um pouco quando os dois corpos se tocaram, surpreendida quando a boca dele tocou na sua e ele se aproveitou disso, enfiando lentamente a língua na caverna quente e húmida da boca dela. Beijou-a devagar, profundamente, tomando-a, possuindo-a, fazendo valer os seus direitos. Passou-lhe a mão pelas costas e deixou-a escorregar até às nádegas, agarrando-a, puxando-a para ele.

 

Elizabeth estremeceu e gemeu, quase sem se aperceber disso. Já não se lembrava da última vez em que um homem lhe tocara assim, a excitara assim. Essa sensação empolgou-a e assustou-a, fazendo-a corar de vergonha.

 

Jurara afastar-se dos homens, jurara afastar-se daquele homem em particular. o perigo que ele representava não tinha nada a ver com as leis dos homens e dizia respeito apenas às leis da natureza. Ele pensava que ela era como Brock e a imprensa a tinham pintado - uma presa fácil, uma prostituta de luxo.

 

Abriu as mãos que lhe enfiara na camisa e encostou-as ao peito dele, afastando a boca da dele.

 

- E eu que julgava que não estávamos de acordo em coisa nenhuma - murmurou Dane.

 

Elizabeth estremeceu, magoada. Nesse momento, odiou-o com todas as suas forças. Odiou-o por pensar o que todos pensavam. Odiou-o por lhe despertar desejo. Odiou-o por a fazer odiar-se a si própria.

 

- Não estamos - disse ela em voz baixa, com amargura. Ele levantou a mão e, com um gesto suave, afastou-lhe uma madeixa de cabelo da curva da face.

 

- Mentirosa.

 

Lentamente, com um gesto sedutor, passou-lhe a ponta do polegar pelo rosto e tocou-lhe na cicatriz que lhe nascia ao canto da boca. o desejo atingiu-lhe as pontas dos dedos. Seguiu-se a fúria. o olhar de Elizabeth colou-se ao dele. Ela inclinou a cabeça e mordeu-o.

 

Dane sibilou e afastou a mão. Elizabeth começou a recuar, mas a mão dele continuava pousada na curva da sua anca. Aumentou a pressão dos dedos, mantendo-a no mesmo sítio.

 

O doutor Truman telefonou.

 

o anúncio soou forte como um trovão no gabinete. Elizabeth assustou-se, cambaleando em direcção à porta e à figura gigantesca do agente Ellstrom, que a bloqueava.

 

Ellstrom desviou o olhar do rosto comprometido de Elizabeth e fitou o patrão. Jantzen encostou-se à beira da secretária, libertando raiva e arrogância como vapor. Enfiou as mãos nos bolsos das calças de ganga, mas a posição não lhe permitia disfarçar muito a crispação do corpo.

 

«Este patife consegue tudo», pensou Boyd amargamente, com o estômago às voltas. Poder, posição, mulheres. As pessoas da cidade continuavam a curvar-se a sua passagem porque ele conseguia apanhar uma bola de futebol. Bem, isso não duraria muito tempo. Boyd tinha o seu plano. Havia de chegar ao topo... Se conseguisse encontrar aquele maldito bilhete. Os nervos torceram-lhe as entranhas como mãos ossudas a torcer uma rodilha.

 

- Ellstrom! - o olhar de Dane fixou-se no agente. Possui as capacidades motoras e a inteligência básica necessárias para levantar a mão e bater a uma porta antes de a abrir?

 

Ellstrom conteve-se para não responder. Não lhe servia de nada ser desbocado nesse momento. Pensara em aproveitar-se um pouco de Elizabeth, conseguindo que ela o citasse no jornal, etc., etc., mas era óbvio de que lado ela estava. Jantzen fora o primeiro e estava pronto. Pouco faltava para que o filho da mãe conseguisse os seus intentos, o felizardo.

 

- o doutor Truman telefonou - disse ele outra vez. Humilhada, Elizabeth fez um esforço para não desatar a fugir. Ellstrom recuou um pouco para se afastar da porta, criando um espaço que não era suficientemente amplo para ela passar sem se virar de lado. Elizabeth sentia o olhar do homem e sabia que, se se desse ao trabalho de o encarar, veria aquele maldito desprezo complacente, aquele desdém masculino que a irritava ao ponto de se engasgar. Talvez Jantzen e ele se rissem a bom rir com a situação depois de ela sair. Não importava que se odiassem um ao outro. Os homens uniam-se infalivelmente quando se tratava de desPortos e de mulheres.

 

- Desculpe, senhor guarda - rosnou ela - A sua barriga está no caminho.

 

Ofendido, Ellstrom resmungou entre dentes e recuou mais um passo, franzindo o sobrolho, o que lhe acentuou as rugas na cara carnuda. Elizabeth passou por ele e encaminhou-se para a porta, mas a voz de Jantzen obrigou-a a parar.

 

- Esta conversa ainda não acabou, Miss Stuart.

 

Falou com naturalidade, mas havia um fio de aço sob a displicência enganadora do seu tom. Uma promessa, uma ameaça.

 

Elizabeth lançou-lhe um olhar malévolo por cima do ombro.

 

- Por mim, já acabou. Você pode fazer alguma coisa com a informação que eu lhe dei ou ficar aí sentado com o dedo enfiado no eu. Eu vou procurar a verdade, quer você queira quer não.

 

Aaron ainda estava em casa quando Elizabeth chegou, Levantou a cabeça quando ela entrou na cozinha, mirando-a por cima dos óculos enquanto limpava cuidadosamente as ferramentas e voltava a guardá-las na caixa.

 

- Já passa das sete - disse ela, pendurando a mala nas costas da cadeira. Demasiado cansada para se preocupar com o decoro, escarranchou-se na cadeira e sentou-se no assento estalado, encostando o queixo às mãos pousadas no espaldar. - Julguei que você já se tinha ido embora.

 

Aaron tirou uma mancha de tinta castanha da ponta de uma chave de parafusos e limpou a ferramenta com um pedaço de flanela que trazia para o efeito, com um ar concentrado. Um homem conservava as suas ferramentas tal como conservava a sua vida: limpas e em ordem. Arrumou a chave de parafusos no seu devido lugar dentro da caixa.

 

- Um bom dia de trabalho por um bom salário diário disse ele.

 

Elizabeth soltou uma espécie de gargalhada.

 

-Você não pertence a nenhum sindicato, pois não? Ele não percebeu a piada, mas sorriu à mesma. Parecia-lhe o mais acertado.

 

- Eu pertenço à Igreja, ao Gemei - disse ele, pegando num alicate e reiniciando o processo de inspecção e limpeza.

 

Espreitou Elizabeth pelo canto do olho. Ela parecia prestes a adormecer ali mesmo, escarranchada na cadeira da cozinha como um homem e com os cabelos pretos caídos à sua volta numa desordem decadente.

 

-Você é que se atrasou, Elizabeth Stuart. Aposto que também não pertence a nenhum sindicato,

 

Ela inclinou a cabeça para trás e sorriu-lhe.

 

-Você bem sabe o que dizem, filho. Não há descanso para os iníquos. Ninguém se apressa quando anda a investigar um assassínio.

 

Elizabeth endireitou as costas e suspirou, levantando-se lentamente da cadeira. Iníquos. A palavra atravessou a mente de Aaron, cujo olhar se concentrou no movimento sinuoso do corpo dela. Devia ter pensado nela como iníqua, como uma Windfliegel inglesa, um demónio, mas não pensou. Ela parecia não ter consciência do modo como se mexia, do modo como os seus seios balouçavam por baixo da blusa, do modo como os cabelos se agitavam à volta do seu corpo. Não estava a tentar seduzi-lo. A tentação estava dentro dele próprio.

 

Há muito tempo que não tinha mulher.

 

-E claro que, se o Jantzen levar a água ao seu moinho, isto será tudo resolvido enquanto o diabo esfrega um olho continuou Elizabeth, tirando do armário uma garrafa do uísque roubado.

 

Espreitou para uma série de copos que tinham ficado em cima da bancada, escolheu o que lhe parecia mais limpo e serviu-se generosamente de um Highlalld,,,;. o primeiro gole escorregou-lhe na garganta com a suavidade do ouro líquido a que se assemelhava, espalhando um calor agradável no estÔmago e acalmando-lhe os nervos.

 

- Ele quer tudo resolvido com Pouco trabalho - observou ela em voz baixa, virando-se de novo para a mesa. EnCOstou-se à bancada e cruzou os braços, embalando o copo de uísque no peito de tal modo que o aroma de malte lhe chegou ao nariz como um perfume caro. - Não interessa que se faça ou não justiça.

 

- «A justiça é minha, disse o Senhor» - citou Aaron, arrumando o alicate à sua maneira.

 

- Era isso que o seu povo faria? Deixar que fosse Deus a castigar o assassino?

 

-«Não julgues o teu companheiro.»

 

o homem dobrou impecavelmente o pedaço de flanela e guardou-o no compartimento próprio da caixa de ferramentas. Depois virou-se para ela e enfiou as mãos compridas nos bolsos fundos das calças. Fitou-a com um ar sombrio, com um misto de tristeza e de cansaço.

 

- Não podemos devolver a vida aos mortos. Eles foram para junto de Deus. o que quer que façamos não altera a situação.

 

Ele pensava na mulher morta, calculou Elizabeth. A ideia comoveu-a. Mas não era bem a mesma coisa.

 

- Altera, se um homem inocente for parar à prisão disse ela.

 

Ele fez um gesto de cabeça.

 

- Deixemos que Deus decida o que vai acontecer. Es vi aar Gotters Wille. Era o desejo de Deus. o desígnio de Deus - proferiu ele em voz baixa, quase como se falasse sozinho e olhasse para dentro. - o desígnio de Deus.

 

Agarrou na pega de madeira lisa da caixa de ferramentas e virou-se para a porta.

 

-Volto amanhã, Elizabeth Stuart. Há muito trabalho a fazer aqui.

 

-Você já fez muito - afirmou Elizabeth.

 

As portas dos armários tinham desaparecido todas. A torneira deixara de pingar. Alguém levantara a mesa e lavara a louça. Elizabeth não tinha ilusões e sabia que não fora Trace.

 

- Sinto que devia pelo menos convidá-lo para jantar. Quer ficar?

 

Aaron deitou um olhar dúbio a Elizabeth, que estava em frente do fogão. Os dois não lhe pareciam compatíveis.

- Danki, não.

 

- Você é um homem inteligente, Aaron - comentou ela, com um olhar pesaroso. - Eu nunca tive jeito para cozinhar. Vou comer uns Chee-tos e uma sanduíche de atum. Se o atum não se tiver estragado.

 

Estragou-se - murmurou ele, virando-se de novo para a porta.

 

Elizabeth acompanhou-o, agarrada ao copo de uísque como uma criança a um biberão.

 

- Mais uma vez,, obrigada pelo trabalho, Aaron. É agradável ter um bom vizinho por aqui.

 

Aaron parou ao fundo da escada e olhou para ela. Ergueu um dos cantos da boca como se tivesse considerado que as palavras dela eram irónicas e bem-humoradas, mas não disse nada. Ela viu-o encaminhar-se para a carroça e arrumar a caixa debaixo do banco. Um minuto depois, o alazão ossudo descia a estrada a trote, para oeste, com a carroça preta a chocalhar atrás. o Sol descia no céu, inundando os campos ondulantes de âmbar. Um melro-de-asas-vermelhas empoleirado no poste dos telefones entoou a sua canção e depois calou-se. A brisa do crepúsculo transportava o aroma do feno acabado de apanhar algures. o mundo parecia calmo, como se nada tivesse acontecido durante o dia.

 

Aaron Hauer iria para casa e dormiria tranquilamente, separado do tumulto que engolira a vida de Elizabeth. Era assim que os amish viviam, deixando que o mundo seguisse o seu rumo, ignorando-o. Mas, na opinião de Elizabeth, as pessoas de Still Creck não eram muito diferentes. Também eram separatistas, à sua maneira. Queriam atirar as culpas para os forasteiros e continuar a viver como se nada se tivesse passado.

 

Sentando-se no degrau de cima, Elizabeth bebeu um gole e encostou a cabeça à esquadria verde da porta de rede. Talvez Dane tivesse razão. Talvez Carney Fox fosse o culpado. Talvez fosse um desconhecido que tivesse levado sarilhos para aquela terra. Mas também lhe parecia provável que estivesse outra pessoa qualquer por trás do crime.

 

Ideias preconceituosas. Era o que era. Dane resolvera que Fox era um desordeiro, que ninguém que ele conhecesse podia ser um assassino. Passara ali a maior parte da sua vida e criara a sua própria opinião acerca das pessoas da cidade desde a infância. Eram amigos, conhecidos, parentes. Ele não conseguiria olhar para eles sem as cores do passado.

 

Tal como não conseguia olhar para ela sem que o seu Pretenso passado lhe turvasse a vista, pensou Elizabeth. Todo o seu corpo estremeceu ao lembrar-se do modo como ele a beijara. A mão tremia-lhe quando levou o copo à boca e bebeu outro gole de uísque para afastar o sabor de Dane.

 

A verdade. Elizabeth viera para aquela cidade sem querer mais nada do que publicar a verdade, para fazer jus à divisa do Clarion. Para viver sem a sombra da mentira a envolvê-la. Mas, ao sentar-se no alpendre das traseiras a ver o dia a resvalar para a noite, não era a verdade do crime que ela defrontava. Era a verdade no seu íntimo. A verdade proclamada aos seus ouvidos quando Dane Jantzen a agarrara, quando ele lhe retirara a gelatina do rosto nesse dia de manhã, quando ele a olhara nos olhos depois do fiasco da conferência de imprensa e lhe perguntara se se sentia bem. Ela desejava-o.

 

De certo modo, isso assustava-a mais do que a ideia de procurar um assassino.

 

Dane acordou sobressaltado quando o despertador tocou em cima da mesa-de-cabeceira. Carregou no botão com o punho cerrado, silenciando o aparelho, e depois levantou a cabeça da almofada e espreitou pelo canto do olho. Cinco da manhã. Os zeros vermelhos brilharam como um par de olhos demoníacos. Três horas de sono. Três horas de sono inquieto, assolado por sonhos eróticos com Elizabeth. Dane resmungou e afastou o relógio.

 

Levantou-se devagar. Todas as velhas feridas de guerra acordaram e se apoderaram dele. Dane fez um esgar e gemeu quando o ombro começou a latejar e os ossos lhe esporearam o fundo das costas. Veio-lhe à memória o nome de todos os defesas que conhecera, e ele amaldiçoou-os, condenando-os ao suplício eterno.

 

A pouco e pouco, passou as pernas sobre o lado da cama, afastando o lençol enrolado, e levantou-se, endireitando-se um pouco mais à medida que avançava na carpete verde cor de relva. Quando se dirigia para a cómoda do outro lado do quarto, imaginou que o seu aspecto era o daquelas fotografias em que se via a evolução do homem ao longo do tempo, desde os seus antepassados simiescos. Quando lá chegou, estava na vertical mas, ao olhar para o espelho, verificou que não tinha um ar civilizado. Afastou o cabelo dos olhos e viu as olheiras escuras por baixo e a sombra da barba na cara. Mais parecia um assassino do que o xerife que ia no encalço dele.

 

Depois de tomar um duche rápido e de se barbear, vestiu umas calças de ganga e uma camisa e desceu o corredor em palmilhas de meias, direito ao quarto de Amy. Abriu a porta e espreitou lá para dentro, com um nó na garganta ao vê-la a dormir. à luz difusa que entrava através da persiana, o rosto dela tinha um ar suave, angélico e jovem. Sentiu um misto de remorso e de pânico. Mal passara uma hora com a filha desde que ela chegara, e, com a passagem do tempo, aproximava-se cada vez mais o dia em que ela apanharia o avião para regressar a Los Angeles.

 

Sem fazer barulho, entrou no quarto que a deixara decorar da primeira vez que viera passar uma temporada com o pai. As paredes estavam forradas de papel com ramos de violetas. A carpete era cor de Púrpura. Os acabamentos, os cortinados e a colcha da cama brancos e vaporosos, símbolos de uma feminilidade ainda em formação. Dane sentiu-se um gigante entre uma pequena cadeira de ferro de linhas curvas e os pés da cama de dossel.

 

Baixou-se junto do colchão e estendeu a mão para afastar uma madeixa de longos cabelos castanhos do rosto da filha. Esta protestou sem acordar, esfregou o nariz e virou-se de lado. Depois, como se sentisse a presença dele, abriu os olhos, agitando as pestanas, que eram compridas e ligeiramente curvas.

 

- Olá, fofinha - disse Dane em voz baixa, sorrindo. - Eu não queria acordar-te.

 

Amy olhou para ele, apercebendo-se das rugas de tensão no rosto do pai, apesar do sono.

 

-Que horas são? - perguntou ela, sentando-se e deixando-se escorregar para os braços dele, demasiado sonolenta para contrariar o impulso infantil.

 

- É cedo -- respondeu Dane, passando-lhe a mão pelos cabelos, como fazia quando ela tinha cinco anos. - Tenho de ir trabalhar. Só quis vir dar-te um beijo antes de sair.

 

Ela mostrou-se pesarosa e encostou-se a uma montanha de almofadas de renda.

 

-Andas a trabalhar de mais.

 

o remorso aguilhoou-o novamente. Desculpa, querida. Não tenho alternativa.

 

Eu sei -- anuiu ela, baixando a cabeça e endireitando o número da sua camisola dos Raíders. - Quem me dera que tivesses.

 

- Também eu. Gostava de tirar as próximas três semanas de férias e passá-las todas contigo, mas tenho de tratar deste caso primeiro.

 

- Falta muito? Mistress Cranston diz que tu sabes quem foi, mas que ainda não o prendeste.

 

- Vamos apanhá-lo. Talvez hoje. Depois, venho para casa cedo e jogaremos com a velha bola de futebol. o que te parece? - perguntou ele, sorrindo ante a perspectiva.

 

Era outra das tradições de ambos, que Amy iniciara aos seis anos, durante a sua fase de traquinice, quando fora mexer na caixa dos troféus e tirara a bola da vitória de 1980 sobre os Giarits que selara a posição decisiva dos Raiders. Amy levara-a para o quintal para impressionar os rapazes da vizinhança, o que custara um vidro partido na garagem e a fúria de Tricia. A mãe mandara as crianças para casa, deixando Amy na escada das traseiras, arrependida do seu erro.

 

Dane ainda se lembrava do olhar de infelicidade no rostozinho de Amy, quando ele chegara a casa. A bola de futebol jazia aos pés dela, gasta e suja. Amy olhara para ele, com o queixo apoiado nas mãos e os olhos marejados de lágrimas. Usava o cabelo apanhado em totós, encaracolados, e faltava-lhe uma das fitas. Tinha uma mancha de terra no nariz do tamanho de um botão.

 

Amy levantara a cabeça, com o lábio inferior a tremer, e dissera:

 

- Papá, quem me dera ser rapaz para tu brincares comigo.

 

Nesse dia, brincaram até ao pôr do Sol, e Amy fora para a cama com aquela bola de futebol velha e suja em vez do seu coelho de peluche preferido. Assim se iniciara a iradição.

 

Amy viu a expectativa no rosto do pai e sentiu-se terrivelmente mal. Depois, apercebeu-se de que a alegria o abandonava e sentiu-se ainda pior.

 

- Desculpa, papá. Não posso. - disse ela, levantando as mãos, com os dedos afastados para mostrar as unhas imPecavelmente tratadas. - Não posso estragar as unhas. Quando eu for para casa, vou acampar com as minhas colegas de elaque. Se eu fosse com as unhas partidas, morreria, ficaria muito envergonhada. E este ano quero ser a chefe da elaque do colégio. Mas se não tiver um aspecto decente...

 

Amy calou-se e deixou cair as mãos no regaço, cada vez mais desolada ao ver a expressão do pai. Ele não percebia. Ela ferira os sentimentos dele, e isso era a última coisa que queria fazer. Ele era tão terno, mas ela começava a perder a esperança de que ele se apercebesse alguma vez de que já não tinha dez anos.

 

- Desculpa, papá - repetiu ela, mordendo o lábio inferior.

 

- Não, não tem importância.

 

Dane saiu do seu estado de choque, envergonhado com o ar compreensivo da filha. Fez um esgar e despenteou-a para disfarçar o embaraço. No seu íntimo, vacilou, atordoado com a dor provocada pelo facto de aquele estúpido ritual lhe ter sido roubado.

 

-As unhas - gracejou ele.

 

Agarrou-a com o braço esquerdo e fez-lhe cócegas nas costelas com a mão livre, o que provocou uma onda de gritinhos e de risos em Amy, enquanto ele tentava dissipar a sensação desagradável com a indiferença. Não tinha importância. Era apenas uma brincadeira. Não estava ele farto de jogar futebol?

 

-Eu sabia que devia ter-te trocado por um rapaz no hospital - disse ele.

 

- Ai sim? - Amy desenvencilhou-se dele em cima da cama. Ajoelhou-se e pôs uma almofada em frente dela para fazer de escudo. - Eu sou um milhão de vezes melhor do que um estúpido rapaz.

 

- És? - perguntou Dane, um pouco mais reconfortado. Também isto era um ritual.- Quem é que disse?

 

O meu velho.

 

Amy atirou-lhe a almofada. Dane apanhou-a, deixou-a cair em cima da cama e levantou-se, acalmando-se. Suspirou e afastou o cabelo para trás com os dedos.

 

-Tenho de ir.

 

Amy pôs-se de pé em cima da cama e beijou o pai na face.

 

- Prende-o hoje, papá. Amanhã, podemos ir andar a cavalo.

 

Dane beijou-lhe as costas e saiu do quarto, a pensar no que os seus eleitores pensariam se ele lhes dissesse que aquilo constituía um incentivo tão forte para ele como o facto de ver que se fizera justiça.

 

-Bom dia.

 

Elizabeth desviou o olhar da montanha de papéis que tinha em cima da secretária, surpreendida por alguém entrar às sete e meia da manhã. Chegara ao escritório às sete para aproveitar o sossego e verificar a contabilidade, enquanto esperava que Jo voltasse de Grafton. Alguns problemas com a tipografia tinham provocado atrasos e a edição especial só saíra depois da meia-noite. Jo telefonara a dizer que passaria a noite em Grafton e que voltaria de manhã cedo.

 

Rich Carmon encontrava-se do outro lado do balcão de madeira, tentando parecer-se com um candidato a político enquanto esperava por ela. De camisa branca e engomada. Gravata cor de sangue, com um nó impecável. Uma escolha interessante, pensou Elizabeth, erguendo uma sobrancelha. Ele aguardava, expectante, todo aprumado, de bigode aparado, e sorriso postiço. Apesar do verniz, Elizabeth duvidava que ele fosse muito longe na política. Parecia-se demasiado com o que era - um antigo atleta de liceu que estava a envelhecer e que tentava subir na vida à custa de louros que há muito tinham murchado e sido levados pelo vento.

 

Durante muito tempo, deixou-se ficar sentada, em silêncio, a olhar para ele através da semiobscuridade da velha sala, com uma expressão impassível, à espera que ele deixasse cair a máscara.

 

A boca dele crispou-se um pouco e as pontas do bigode estremeceram.

 

-A Jolynn está?

 

- Não. - Elizabeth ergueu-se lentamente da velha cadeira a ranger e anulou a distância que os separava com um passo insultuosamente lacónico, batendo com os saltos das suas sandálias italianas no estafado soalho de madeira como se participasse numa lenta parada militar, enquanto a saia Plissada cor de azeitona, que lhe dava pelos tornozelos, se agitava graciosamente de um lado para o outro. Rich não era uma pessoa paciente. Elizabeth reparou na crispação dos músculos do queixo enquanto esperava, e sorriu intimamente, um sorriso um pouco desagradável. - Ela está a chegar de Grafton com a edição especial do jornal - respondeu ela, apoiando os braços no balcão ao lado da fúcsia em flor que trouxera para alegrar o ambiente. - Caso você tenha andado atarefado a olhar para o espelho, a cortar esse espanador que traz debaixo do nariz, o papá da sua mulher teve um fim abrupto ontem à noite.

 

- Sim, eu sei disso - respondeu ele num tom sardóníco.

 

Elizabeth pestanejou, fingindo-se surpreendida. -Calculo que isso o deixe na posse dos negócios do papá, não é verdade?

 

- Eu fico a tomar conta da empresa de construção até arranjarmos alguém que se encarregue disso - respondeu Rick. Aperfeiçoara e polira aquela frase para a imprensa, de modo a parecer devidamente grave, mas formal e controlada. A morte de Jarrold dera-lhe uma boa oportunidade para definir a sua imagem pública. - Não posso arcar com tanto trabalho, agora que a minha campanha está a começar.

 

- Mesmo sem isso, pelo que tenho ouvido - contrapôs Elizabeth, contemplando-o com um sorriso que nada tinha de amigável. o sorriso de Rich desvaneceu-se por completo. Ela riu-se. - Ora, está bem, filho. A capacidade de evitar o trabalho a sério é um dos principais requisitos da política. Basta que você se apresente bem.

 

Rich respirou fundo, como se a camisa lhe estivesse um pouco apertada Do peito.

 

-A Jo demora-se?

 

- Porquê? Tencionava dar uma queca esta manhã?

 

A paciência dele quebrou-se como uma fina camada de gelo. Corou e olhou automaticamente à sua volta para ver se entrara alguém na sala a tempo de ouvir as palavras dela. Semicerrou os olhos, mostrando uma dureza que não gostaria que o público em geral visse. Debruçou-se sobre o balcão e ergueu um dedo curto e grosso em sinal de aviso.

 

- Ouça - rosnou ele, deitando a perder todo o esforço que fizera para se dominar. - Talvez esse seja o tipo de coisa que as pessoas fazem na Jórgia, ou lá donde você veio...

 

-Não - disparou ela, afastando-lhe a mão do nariz.

 

o seu mau humor veio à superficie, sempre pronto a bater-se por uma causa justa e a ignorar as consequências. Jolynn não gostaria da interferência, mas Jolynn não estava ali para a mandar calar. - Ouça, Richie. - Elizabeth inclinou-se para ele, com chispas nos olhos. - Não sei porque é que a Jolynm não lhe cortou as asas. Mas garanto-lhe que o farei por ela se você aparecer aqui a farejar, à espera...

 

- Eu só quero falar com ela - insistiu ele, exasperado, erguendo as duas mãos enormes e quadradas num gesto de rendição. - Não sei o que ela lhe disse a meu respeito, mas...

 

Elizabeth resfolegou.

 

-Não foi preciso ela contar-me nada, fanfarrão. Eu reconheço os da sua laia a um quilómetro de distância. Rich recuou um passo, enfurecendo-se de novo e tentando aparentar frieza. Não gostava de Elizabeth Stuart. Era uma cabra e tinha a língua afiada como uma navalha de aço. Ele tê-la-ia mandado à merda se não fosse o facto de ela ser a proprietária do único jornal da cidade.

 

- Ouça - retornou ele, felicitando-se intimamente pelo seu rasgo de diplomacia. - Eu e a Jolynn temos um pequeno acordo.

 

-Eu sei o que você e a Jolynn têm. -Pois bem, isso não é da sua conta. Elizabeth ergueu o sobrolho.

 

- Ai não? Parece-me que as pessoas de cá são demasiado puritanas para votar num homem que vai para a cama com a ex-mulher sempre que tem oportunidade.

 

o rubor de Rich intensificou-se e ele franziu ainda mais o sobrolho.

 

- Não me ameace - avisou ele. - A Jolynn não vai levantar cabelo comigo. Somos demasiado importantes um para o outro,

 

Elizabeth soltou uma gargalhada sonora antes que conseguisse conter-se. Não era que tivesse feito qualquer esforço Para isso. Se o homem estava convencido de que podia enganá-la com aquelas fanfarronices, era ainda mais estúpido do que ela pensava. Elizabeth riu-se até às lágrimas ao ver o olhar furioso de Rich.

 

- Oh, essa é a pior anedota que ouvi nos últimos tempos, filho - declarou ela, com a voz ainda rouca de tanto se rir. - o melhor é você preparar-se melhor antes de entrar na campanha.

 

Rich dominou-se e recuou em direcção à porta.

- Diga-lhe que me telefone quando chegar.

 

Anda a construir o seu álibi para a noite em que o velho Jarrold bateu a bota? - Elizabeth levou o indicador à têmpora e fez um aceno de cabeça. - Bem pensado.

 

Ele ficou impassível, semicerrando os olhos.

 

- Você está a dizer que me considera um suspeito?

- Não, mas agora que você fala nisso, tinha muito a ganhar. A pequena Susie recebe uma grossa fatia desse bolo, imagino,

 

Já temos dinheiro suficiente.

 

Elizabeth riu-se outra vez, batendo com a mão no balcão.

 

- Deus seja louvado! Ninguém tem dinheiro suficiente. Mais uma vez, talvez você quisesse ficar com a empresa só para si. Ou talvez o Jarrold tivesse qualquer coisa contra si naquele livrinho preto.

 

Um músculo contraiu-se no queixo de Rich e o seu rubor aumentou, como se a gravata estivesse a estrangulá-lo. Ficou hirto, com os punhos cerrados ao lado do corpo, escondendo-os em seguida nos bolsos das calças cor de carvão.

 

- Ando a candidatar-me a um cargo público, Miss Stuart disse ele, tenso. - Não seria muito inteligente da minha parte matar o homem que me apoiava.

 

Um sorriso perverso levantou um canto da boca de Elizabeth.

 

Quem é que disse que você era inteligente?

 

Ele roncou e avançou para ela com um ar agressivo, mas o esforço que fez para se controlar sufocou-o.

 

- Você tem um problema de atitude, sabe? - afirmou ele, tirando a mão da algibeira e voltando a apontar-lhe um dedo grosso e curto. Tremia de raiva, apesar da voz imperturbável. - As pessoas de cá não gostam de estranhos a meterem-se no seu caminho, a proferirem afirmações irresponsáveis. Você não vai fazer muitos amigos.

 

-Eu não queria tê-lo como amigo.

 

No olhar dele, e na postura da boca, só havia agora maldade e petulância. Encarou-a e fitou-a o tempo suficiente para ela sentir um tremor na nuca.

 

-Não me queira também como inimigo - ameaçou ele com um ar sombrio.

 

A porta abriu-se, deixando entrar uma lufada de ar matinal e atravessando a tensão forte e estagnada que se criara entre eles como um muro, Dane entrou e Elizabeth deu consigo a suspirar de alívio. Céus, nunca pensara que ficaria satisfeita ao vê-lo.

 

- Bom dia, xerife - saudou ela, deitando-lhe um sorriso demasiado exuberante.

 

- Miss Stuart.

 

Dane olhou para ela e depois para Carmon, que parecia um touro enraivecido. o homem estava rubro e tinha os olhos brilhantes, como nos seus tempos de basquetebol do liceu, quando lhe marcavam falta, fosse ele culpado ou não. Só que desta vez, a causa não era um árbitro, mas sim Elizabeth. Não havia dúvida de que ela irritava as pessoas.

- Dane.

 

Rich empinou o queixo com um ar arrogante, mais em ar de desafio que de reconhecimento.

 

Há vinte anos, Rich considerara-o um rival e nunca conseguira afastar essa mentalidade de aluno liceal. Quando Dane regressara a casa no fim da sua carreira como jogador de futebol profissional, Rich retomara exactamente a mesma atitude - sempre a tentar provar qualquer coisa, a ultrapassá-lo, a mostrar que,era mais rico, mais importante, mais popular. Nascera idiota e morreria idiota.

 

- Rich, preciso que passes hoje pela esquadra para termos uma pequena conversa acerca do Jarrold.

 

Carnon soltou um ronco, incrédulo.

 

- Céus, Dane. Eu não sou suspeito, pois não? Dane encolheu os ombros.

 

- É apenas uma questão de rotina. Estamos a reconstituir tudo o que ele fez no dia em que foi assassinado. Aonde foi, com quem falou. E precisamos de impressões digitais de todas as pessoas que possam ter entrado no lincoln há pouco tempo, para podermos eliminar os amigos e a família e concentrarmo-nos no assassino.

 

- Julguei que toda a gente sabia que o assassino era o Carney Fox.

 

- Questões técnicas - disse Dane, sorrindo.

 

Uma das vantagens de ser polícia numa cidade pequena era o facto de toda a gente saber o que se passava. Mas isso constituía igualmente uma desvantagem.

 

- Sim, claro, eu passo por lá - prometeu Rich, fazendo mais um dos seus sorrisos petulantes. - Só para que conste, eu tenho um álibi. Eu estava com a Jolynn. - Deitou um olhar implacável a Elizabeth, refreando o ódio que sentia. - A discutir ideias para a publicidade da minha campanha.

 

- Pois - disse Dane, impassível, sabendo exactamente o que Rich estivera a fazer. Torceu o nariz e disfarçou um bocejo. - Até logo, Rich. - Carmon saiu do escritório, com o ar satisfeito de um miúdo que tivesse sido libertado depois de pregar uma redonda mentira ao director do colégio. Dane abanou a cabeça e encostou-se ao balcão. - Não sei quem é que ele julga que anda a enganar. Toda a gente da cidade sabe que ele vai para a cama com a Jolynn às escondidas.

 

- Calculo que, na sua opinião, isso o transforme numa espécie de garanhão - observou Elizabeth na defensiva, mais do que pronta a bater-se de novo pela amiga. Não aprovava a situação, mas não permitiria que mais ninguém destruísse Jolynn.

 

Dane olhou-a por cima do ombro.

 

- Na minha opinião, isso transforma-o num duplo filho da mãe.

 

-Muito bem. É bom verificar que você tem alguns princípios - disse ela, com um ar rabugento.

 

Dane ignorou a farpa. Virou-se para ela, pousando os braços no balcão e mirando-a de alto a baixo. Elizabeth tinha um ar quase afectado com a saia comprida, a blusa de renda e o cabelo apanhado aos lados com duas travessas de tartaruga.

 

- Oh, eu tenho princípios, Miss Stuart. E você conhece alguns dos mais interessantes.

 

Ela preenchia todos os requisitos sexuais, e ele concluíra que isso estava certo desde que não pensasse nela doutra maneira.

 

-Sinto-me tão lisonjeada - retorquiu ela com uma voz arrastada. - Mas se você julga que a lisonja o leva a algum lado, é melhor pensar outra vez, cowboy. Não estou interessada.

 

Elizabeth começou a afastar-se do balcão. Devia ter conseguido fazer uma retirada limpa, mas ele agarrou-a pelo pulso antes que ela pudesse fazer algo mais do que desviar o peso do corpo para trás.

 

- Mas estava interessada ontem à noite - murmurou ele em voz baixa, acariciando-a no sítio em que o sangue lhe saltava nas veias.

 

- Acho que você me confundiu com as suas hormonas, filho - comentou ela, cuja respiração ofegante diluiu a bravata.

 

Ele inclinou-se um pouco mais e puxou-a mais para si, exercendo uma pressão mínima no pulso dela.

 

- Se há coisas que raramente se confundem nesta vida são as hormonas - declarou ele. - Acredite, Liz, que as nossas falam a mesma linguagem.

 

Raios, ele tinha razão! Elizabeth amaldiçoou o seu próprio corpo por não ter vergonha, nem orgulho, nem inteligência quando se tratava de escolher homens. Mas ela não tencionava ceder, e muito menos com um homem que a tinha em tão fraco conceito.

 

-Bem, e quanto ao resto de si? - perguntou ela. Os seus ouvidos compreendem um simples não americano, ou eu preciso de arranjar um intérprete? Não estou interessada.

 

Ele largou-a e concedeu-lhe alguns centímetros para ela respirar, endireitando os ombros.

 

-Veremos - disse ele em voz baixa, observando-a, com um brilho especulativo no olhar.

 

- Veremos quando as galinhas tiverem dentes - disparou Elizabeth, agora mais insolente por ele não estar a tocar-lhe.

 

Dane soltou uma gargalhada, e o seu humor genuíno aliViou-lhe as rugas da cara.

 

- Céus, você é especial. As mulheres do Texas são todas como você? Corpos destinados ao pecado e bocas que disparam como espingardas?

 

Elizabeth não pôde deixar de sorrir. A ameaça de intimidade desaparecera, substituída pela ameaça de gostar dele. Havia em Dane um certo encanto quando não se comportava como um idiota.

 

-Não - respondeu ela. - É claro que todas as boas texanas são criadas para serem rainhas de beleza. Por sorte, herdei a lábia do meu pai. Fez de mim a escória dos cortejos. -Aposto que sim.

 

Dane sorriu ao imaginar Elizabeth a levar a melhor a um velho juiz que gostasse de a ver em fato de banho. Por muito que ela o irritasse com a sua conversa impetuosa, ele tinha de admitir que era refrescante. A senhora dizia o que pensava, o que era infinitamente preferível ao jogo tímido de Dane. Havia muita coisa nela que ele estava resolvido a não apreciar, mas a impertinência não se encontrava na lista.

 

- Aqui, onde me vê, fui talhada para ser uma rainha de rodeo - disse ela.

 

- Isso é verdade?

 

-É. Fui Miss Corrida de Barris de Bardette durante dois anos seguidos, o que é mais difícil do que ser rainha de beleza de um cortejo qualquer, porque uma rapariga tem de se apresentar bem, montar bem e dançar o cotton-eyed Joe, sem deixar de afastar cowboys à esquerda e à direita. Gostava de ver a Miss Prissy America a fazer isso.

 

- Não consigo imaginá-la a fazer tal coisa - observou ele com honestidade.

 

O quê? A montar cavalos de madeira?

- A afastar cowboys.

 

Elizabeth lançou-lhe um olhar de censura, sem admitir que não afastara Bobby Lee Breland e que tinha um filho que era a prova disso.

 

-Veio cá por algum motivo especial, xerife Jantzen? Anão ser para me insultar e para me mirar?

 

Ele entrara porque espreitara pela janela e avistara fogo nos olhos dela ao discutir com Rich Carmon, mas não via motivos para lhe explicar tal coisa. Reagiu no mesmo instante, instintivamente, à ideia de Carmon andar de roda dela, e nem se deu ao trabalho de examinar esse motivo de perto nem de permitir que Elizabeth o examinasse. Queria que a situação entre ambos se mantivesse simples e se resumisse à química e ao sexo.

 

-Eu estava a pensar se tudo correu bem ontem à noite - disse ele, com doçura.

 

Tirou um pesa-papéis redondo, de vidro, do balcão e começou a passá-lo, com indolência, de uma mão para a outra, desencadeando um falso nevão no interior da bola decorativa.

 

- Como por exemplo? - perguntou Elizabeth, desconfiada.

 

- Não houve telefonemas estranhos? Não houve visitas tardias?

 

Elizabeth sentiu um calafrio na espinha e depois acalmou-se.

 

- Acha que o assassino poderia estar a espreitar-me?

- É do conhecimento geral que foi você a primeira pessoa a chegar ao local do crime, e ainda não apurámos exactamente se você viu qualquer coisa que incriminasse ou não alguém.

 

-Você está a dizer-me que eu sou um alvo fácil? perguntou ela, com a raiva a subir-lhe à garganta e a misturar-se amargamente com o sabor do medo.

 

- Não. Estou a dizer-lhe que tenha cuidado - respondeu Dane. - Estou a dizer-lhe que não ande por aí a fazer «investigações» por conta própria. - Dane pousou o pesa-Papéis, deixando que a tempestade de neve em miniatura amainasse, estendeu o braço e passou o indicador pela curva do nariz de Elizabeth. - Meta esse seu lindo narizinho na toca errada e pode ficar sem ele. Enquanto você anda por aí a tentar descobrir maquinações, o verdadeiro assassino permanece à solta,

 

- Alguém tem de investigar - disse Elizabeth, irritada. - Não o vejo a fazer nada.

 

- Você não tem de me ver a fazer nada, minha querida.

- Ora, não tente convencer-me de que está a cumprir a sua obrigação - contrapôs ela, desafiando-o e cruzando os braços. - Todos sabemos a dedicação com que você chafurda na lama desta cidade. Um empresário proeminente que é um usurário. Metade da população masculina de calças na mão, a foder todas as mulheres que vê. Você faz de conta que não percebe e deixa passar, seu fanfarrão.

 

-Não tente dizer-me que não estou a cumprir a minha obrigação - declarou Dane com firmeza. o mau humor fugiu ao seu controlo e a tolerância cedeu a três horas de sono. - Passei metade da noite a ver um patologista a retalhar o Jarrold Jarvis, cheguei a casa a tempo de dar as boas-noites à minha filha e depois passei mais umas horas a cavalo, a cumprir a minha obrigação.

 

Não lhe deu a satisfação de dizer que fora por causa dela que passara metade da noite na garupa de um cavalo. Tomara a seu cargo vigiá-la, não fosse Fox resolver ir visitá-la. Montara no seu cavalo e atravessara o campo que separava o seu terreno do dela. Estacionara na floresta que ficava mesmo atrás da casa dela, escondido, em silêncio, e passara a noite a recriminar-se por se preocupar com a hipótese de lhe cortarem o pescoço.

 

O Jarvis não era um usurário - disse ele. - E o adultério não é ilegal. Vocês, todos, deviam saber isso.

 

o tiro atingiu o alvo. Dane viu-a estremecer e ficou satisfeito. Afinal, era preferível que estivessem irritados um com o outro. Inclinou a cabeça com uma falsa deferência e abriu a porta.

 

-Tenha cuidado consigo, Miss Stuart.

 

- Causa da morte: perda maciça de sangue. Arma provável: uma lâmina fina e afiada. Mas que surpresa! - exclamou Yeager com sarcasmo.

 

Encontrava-se sentado com as suas velhas botas apoiadas na beira da secretária de Dane, a ler os apontamentos que este tomara durante a autópsia. Estava de gravata porque havia entrevistas a dar e o seu uso era obrigatório para os agentes, mas a faixa de tecido era demasiado curta e ele tinha a sensação de que uma parte do colarinho estava debaixo dela no sítio da nuca. Não se importava com isso. Nunca voltava as costas a ninguém quando dava uma entrevista.

 

- Há aqui alguma coisa de interesse, ou posso poupar-me a este trabalho? - perguntou ele, folheando o blocO amarelo.

 

- Nada que você não tenha visto - respondeu Dane, passando por cima do corpo estendido de Boozer, o cão prodigioso». o lavrador rosnou e virou-se de costas, com as patas voltadas para ele.

 

Dane resmungou, enojado, ao sentar-se na cadeira. Esfregou os olhos e tentou afastar o sabor a café requentado. Passara metade da manhã ao telefone e estava ansioso por retomar a busca de Carney Fox, só para apanhar ar. Mas o monte de esterco fora finalmente visto a rondar um bar de ciclistas em Loring, uma povoação pequena e insignificante enfiada entre dois montes na fronteira de lowa. Kaufman e Spencer iam a caminho para o prender.

 

-Eu falei com os tipos do laboratório - disse ele. o Jarvis andava a tomar um anticoagulante. Segundo o médico dele em Rochester, o homem tinha problemas de flebite.

 

Yeager endireitou-se, satisfeito por ter alguma coisa com que brincar.

 

- Ah, sim, para tornar o sangue menos espesso. Isso podia resolver os nossos problemas quanto à hora da morte.

Dane fez um gesto de assentimento.

 

Sim, podia ter sido mais cedo, mas é difícil dizer. Contudo não podemos colocar o Fox na cena do crime, isso não interessa nesta fase.

 

Franziu o sobrolho ao olhar para o cão de Yeager.

 

-Não faz sentido. Se ele estava lá, digamos, às seis, Seis e meia, e fez aquilo, porquê a retirada à pressa? Porque se deu ao trabalho de pôr o corpo no carro e de o deixar assim? Não percebo.

 

- Você não tem de perceber, rapaz - disse Yeager, sorrindo, pondo os pés no chão e inclinando-se para a frente na cadeira.

 

. A ponta da gravata roçou num bolo que ele deixara em cima de uma pilha de depoimentos, arrastando um bocado de creme de limão. Yeager limpou-o e lambeu o dedo, com Os olhos escuros a dançar.

 

-Você tem apenas de provar para além de uma dúvida razoável. Alguma coisa sobre provas materiais?

 

- Nada de especial. o essencial está no carro: terra, Partículas de comida e serradura. Ele tinha fibras de algodão azul nas costas da camisa. Talvez de uma camisa de trabalho. - Dane ergueu o sobrolho. - Não há muitas numa obra, pois não? E não nos faltam impressões digitais, nítidas ou não. o Jarvis usava aquele lincoln como um escritório ambulante. Todos os dias entravam e saíam pessoas lá de dentro, a toda a hora.

 

- Precisamos de comparar apenas um conjunto de impressões digitais - recordou-lhe Yeager.

 

Dane concordou, com um gesto de cabeça. Só precisavam das impressões digitais de Fox, de mais uma ou duas provas materiais, de um pouco de sorte e poderiam pôr termo àquela confusão. Seria um processo simples e limpo, como eles gostavam.

 

Dane ignorou a imagem acusadora de Elizabeth que lhe veio à mente e atribuiu um ligeiro mal-estar no estômago ao excesso de café.

 

Carney Fox era a imagem da insolência e do desinteresse, ignorando os agentes que vagueavam pela sala, à espera do chefe. Estava sentado à mesa comprida e tirava distraidamente uma crosta do cotovelo. Espojado na cadeira, parecia poder escorregar a qualquer momento e cair no chão, debaixo da mesa, num monte inerte de apatia. Pequeno e rijo, faltava-lhe a estatura para ser fisicamente imponente. o desleixo era a sua melhor alternativa, e ele excedia-se nela.

 

- Quer chamar um advogado?

 

Ele nem levantou a cabeça, mas desviou o olhar da crosta e passou-o para o agente de rabo gordo que estava sentado do outro lado da mesa. Ellstrom. Tinham-se cruzado uma ou duas vezes desde que ele chegara à cidade. Carney tinha pouco respeito pelos agentes da lei em geral e ainda menos por Boyd Ellstrom. o seu rosto de feições vincadas torceu-se num sorriso malicioso que era natural nele desde nascença, e o homem deu uma gargalhada que mais parecia um ladrido.

 

- Porque havia de querer?

 

Ellstrom levantou a cabeça do bloco amarelo em que tomava apontamentos e resmungou:

 

- Porque o teu coiso está feito num oito, merdoso, Carney passou a mão pelo cabelo ruivo-escuro e gorduroso com um ar arrogante e despreocupado, sem tirar os olhos negros e divertidos do rosto bochechudo de Ellstrom.

 

-Não me parece. - Não, tal como Carney via a situação, ele estava bem sentado. Riu-se sozinho quando Ellstrom pousou a caneta, se levantou em peso da cadeira e se afastou. - Porra! - Carney engasgou-se e agitou a mão em frente da cara. - Céus, Ellstrom! Tens qualquer coisa morta dentro de ti?

 

Ellstrom deitou-lhe um olhar furibundo.

- Cala-te, idiota.

 

A porta da sala de interrogatórios abriu-se e Carney levantou a cabeça no momento em que Jantzen entrou, pronto a dar um pontapé no rabo de alguém. Era o único agente da lei naquela cidade rural do qual Carney fazia questão de se afastar. Atrás dele vinha o homem do Gabinete de Investigação Criminal, de aspecto desleixado e olhos ramelosos, que usava o cabelo levantado na nuca. Jantzen ordenou a um dos agentes que trouxera Carney - Spencer - que saísse da sala. Kaufman e Ellstrom ficaram. Ellstrom encostou-se à parede que ficava mesmo em frente do detido, com um ar carrancudo que lhe desenhava uma ferradura no duplo queixo e um olhar perverso e sombrio quando Carney se riu para ele.

 

- Quer um advogado? - perguntou Jantzen tranquilamente, sentando-se na cadeira à cabeceira da mesa, mesmo à direita de Carney.

 

Carney mexeu-se um pouco na cadeira. Havia qualquer coisa no modo como Jantzen olhava para as pessoas que lhe causava repulsa. Não era que ele tivesse grandes motivos Para se preocupar. Na sua opinião, estava na posse de todas as cartas. Fungou e inclinou a cabeça.

 

- Está a acusar-me de alguma coisa? Yeager sorriu-lhe.

 

-Não, isto é aquilo a que chamamos uma entrevista informal, Carney. Só queremos fazer-lhe umas perguntas, mais nada. Veja se pode ajudar-nos.

 

Ellstrom resfolegou com um ar zombeteiro. Carney encolheu os ombros ossudos e sorriu ao agente do GIC, mostrando uma panóplia alarmante de dentes tortos.

 

-Pergunte o que quiser - disse ele, magnânimo. -Assim é que é! - exclamou Yeager, rindo-se. Dane ficou impassível. Macacos lhe mordessem se daria confiança àquele vagabundo. Aos vinte e dois anos, Fox tinha um cadastro recheado de pequenos crimes e com uma ou duas acusações graves pelas quais nunca fora preso, que incluíam assalto e posse de uma substância proibida com intenção de a distribuir. Só Deus sabia o que se acumulara na sua infância. Sem dúvida que o xerife de St. Louis County ficara radiante ao vê-lo pelas costas.

 

Durante algum tempo, Dane ficou a olhar para ele, catalogando todos os pormenores do seu aspecto - os olhos escuros e fugidios, o rosto esguio e ossudo, a camisa de xadrez castanho-escura, de manga curta, mostrando uns braços que se resumiam a ossos e a nódulos de tendão. carney Fox era o tipo de roedor viscoso que levava uma vida furtiva, sempre pronto a envolver-se em sarilhos, sempre a escapar-se no último instante. Na opinião de Dane, far-se-ia justiça se ele fosse considerado culpado. Olhou para o pequeno verme e desejou que fosse culpado.

 

- Ouvi dizer que você foi a Still Waters na quarta-feira - disse ele por fim.

 

carney empinou o queixo pontiagudo, com um brilho truculento no olhar.

 

-Quem é que disse?

 

-Você saiu do Red Rooster às quatro e vinte. Dizem que você foi a Still Waters em serviço.

 

-Alguém me viu lá?

 

A pergunta era um desafio. Carney cruzou os braços sobre o peito e observou o rosto turvo de Jantzen. Isso respondeu à sua grande pergunta: se Elizabeth Stuart vira alguma coisa além do corpanzil de Jarvis.

 

-Você esteve lá?

 

Carney fez uma careta e encolheu os ombros.

 

Dane apoiou as mãos no tampo da mesa, com as palmas para baixo e os dedos afastados. A sua voz abrandou até atingir um volume mortífero.

 

- Sabe alguma coisa do assassínio do Jarvis?

 

o olhar de Carney percorreu o rosto das outras pessoas que se encontravam na sala - Yeager, Kaufman e Ellstrom. Deixou que a expectativa aumentasse.
- Você não gostava do Jarvis, pois não, Carney? - perguntou Yeager.

 

Yeager era a única pessoa na sala que conservava um aspecto frio e simpático. Kaufman estava a um canto, a fazer estalar os nós dos dedos. Ellstrom encontrava-se encostado à porta, com um ar carrancudo, e corava ao mesmo tempo que esfregava a barriga com a mão. E Jantzen estava ali sentado, imóvel como uma estátua, a fitá-lo com aqueles olhos azuis assombrados, como se fosse uma espécie de lobo. Carney sentiu um calafrio na espinha. Encolheu as costas, na defensiva

 

-Ele era um malandro.

 

-À parte o facto de terem isso em comum, você não gostava dele - disse Dane secamente. - Há dois meses, ele não o contratou. Você fez uma grande cena por causa disso. - Dane fez um sorriso desagradável. - Há muitas testemunhas.

 

- E depois? - perguntou carney com ar de desafio. Não consegui o emprego, pronto. A coisa falhou! Arranjei outras perspectivas.

 

- Exactamente. Como passar o resto da sua vida inútil a apodrecer na prisão.

 

Carney fungou.

 

-Você não tem nada contra mim, Jantzen.

 

Dane inclinou-se para o suspeito, sem pestanejar, até ficar apenas a uns escassos vinte centímetros do hálito rançoSO de Carney.

 

-Bem, eu não gosto de si, Carney - disse ele, melífluo. - Portanto, a coisa começa mal.

 

Carney engoliu em seco, refreando um pouco a sua atitude de desafio. Malditos olhos assombrados. Ficou imóvel enquanto pôde, mas depois arrastou a cadeira para trás e leVantou-se.

 

- Vá-se lixar, Jantzen - exclamou ele com um sorriso trocista, tirando um cigarro do maço de Marboro que trazia no bolso da camisa.

 

- Porque havia eu de fazer tal coisa se você está a facilitar-me tanto a vida? - retorquiu Dane, levantando-se lentamente da cadeira. Deu um passo na direcção de Fox, com um ar descontraído, indolente. Carney ficou no mesmo sítio, de olhar desconfiado, como um cavalo nervoso. Num abrir e fechar de olhos, Dane estendeu a mão. Tirou o cigarro da boca de Carney e atirou-o para o lado. Depois avançou para ele, obrigando-o a recuar tão depressa que carney tropeçou e bateu com a parte de trás da cabeça na parede. - Eu quero uma resposta directa, meu monte de trampa - rosnou Dane, olhando-o de cima, como se estivesse pronto a degolá-lo. - Estás a ouvir, Carney? À terceira, nem sabes de que terra és. Nem duvides, Carney. Estiveste lá?

 

Encostado ao estuque duro e frio da parede, e com a coragem a bater em retirada, carney tartamudeou a frase que lhe salvara a pele mais do que uma vez.

 

-Eu tenho um álibi! Estava com um amigo.

 

Dane semicerrou os olhos e sentiu a raiva a borbulhar na garganta como ácido a ferver. Um álibi! óptimo! Agora teria de desencantar outro patife qualquer e recomeçar tudo de novo.

 

- Não é que eu acredite que tenhas algum, mas esse amigo tem nome? - rosnou ele.

 

- Stuart. Trace Stuart.

 

Dane saiu da esquadra e pestanejou ao olhar para o sol-poente. Estava um belo dia. Vistas bem as coisas, preferia estar no seu campo de feno a apanhar luzema ou à beira do regato a mergulhar uma cana na água. Mas nenhuma destas coisas estava escrita no seu destino. Assim que pôs os óculos escuros espelhados, três repórteres correram para ele, de caneta em punho.

 

- Xerife, é verdade que um suspeito foi interrogado e solto?

 

- Não foram efectuadas detenções - respondeu ele, lacónico, continuando a andar.

 

Os três homens preparavam-se para ir atrás dele, mas Dane virou-se devagar e levantou os óculos, dizendo em voz baixa:

 

-Não tenho mais nada a dizer.

 

Na opinião de Dane, uma das coisas boas dos repórteres era que aprendiam depressa. Dois dias depois do assassínio, rapidamente perceberam quando haviam de pô-lo à prova ou de se retirar. Retiraram-se.

 

Dane tomou o caminho que atravessava Keillor Park em diagonal, tentando afastar uma parte da tensão que sentia Com passos longos e decididos. Havia vários membros do Lions Club a trabalhar no coreto, a colocar bandeiras vermelhas, azuis e brancas e a mexer em equipamento de som e fios eléctricos, preparando-se para o cortejo da Miss TemPOs do Cavalo e da Carroça.

 

Duas crianças amish observavam a cena de uma carroça que estava atada ao poste de amarração existente no extremo do parque de estacionamento do Piggly WiggIy, com a cabeça de fora, olhos brilhantes de curiosidade e bocas besuntadas do vermelho revelador dos chupa-chupas de cereja. Pareciam estupefactas com os preparativos para uma festa destinada a celebrar a sua presença em Tyler County .Uma festa que traria dinheiro a Still Creek e apenas mais problemas aos Amish.

 

Havia membros da seita que beneficiavam com o turismo. Os que vendiam produtos feitos à mão nos estabelecimentos da cidade, os jovens carpinteiros que tinham sido contratados para trabalhar no complexo de Still Waters para dar um toque de «autenticidade», os mais liberais do grupo que autorizavam visitas às suas casas e quintas. Mas para a maior parte, o turismo só lhes criara dificuldades.

 

Fazia parte da política de Dane manter os canais abertos entre o seu gabinete e a comunidade amish. Apesar de quase nunca recorrerem a ele, os Amish encontravam-se sob a sua alçada como todas as pessoas de Tyler County .Também eram seus vizinhos e alguns eram amigos. Dane sabia muito bem os problemas que o turismo lhes trouxera. A interferência na sua vida privada de forasteiros que os consideravam como curiosidades, que os fotografavam, olhavam e troçavam, como se eles fossem destituídos de inteligência ou de sentimentos só porque tinham optado por uma vida mais simples. Depois, havia as tensões no seio da comunidade quando os jovens abandonavam a Ordnung, os antigos padrões religiosos, e se afastavam de Unserem Weg, o modo de vida amish, atraídos por automóveis reluzentes e pela promessa de dinheiro e de tempo de lazer.

 

Para os Amish, os Tempos do Cavalo e da Carroça eram uma piada de mau gosto, uma ironia. Mas, na opinião de Dane, isso fazia parte do sistema de dever e haver que permitia que as duas culturas vivessem em harmonia. Os Amish vinham do Offio e tinham chegado a Still Creek ein meados dos anos setenta, quando o preço da terra era elevado e o dos produtos agrícolas baixo. Os agricultores estavam a ficar falidos. Com dinheiro em abundância, os Amish tinham comprado quintas em toda a parte, prosperando no seu isolacionismo, enquanto as comunidades rurais à sua volta morriam lentamente devido ao desgaste da economia provocado pela crise da agricultura. Depois, homens como jarrold Jarvis e Bidy Masters tinham agarrado na ideia do turismo e os pratos da balança tinham-se equilibrado. -Dane! Dane Jantzen!

 

Dane virou-se e retraiu-se quando Charlie Wilder e Bidy Masters se dirigiram a ele, com um ar carrancudo e de jornais na mão.

 

-Já viu isto? - perguntou Bidy, agitando o jornal à frente dele como se fosse um chocalho. - Isto é uma desgraça! Isto é um desaforo!

 

Charlie desdobrou o jornal e estendeu-o a Dane para este o ver. Em título lia-se, a todo o comprimento da página: Empreiteiro Local Assassinado: Still Waters ao Rubro. Anotícia não constituía nenhuma surpresa. Dane desconfiava que a fonte é que agitara os bastidores da Assembleia Municipal. Era a edição especial do Clarion.

 

- Já é mau ler isto nos outros jornais - queixou-se Bidy, em cujo rosto de abutre se acentuaram rugas de extremo desagrado geralmente associadas a um estômago ácido. Mas termos de o aguentar na nossa própria terra?

 

Dane tirou os óculos escuros e beliscou a cana do nariz. Precisava tanto daquilo como de levar um pontapé nos tomates.

 

O assassínio é notícia, Bidy. o Clarion é um jornal.

- o nosso jornal - referiu Bidy com amargura. Agora temos cá uma estrangeira que publica coisas como estas.

 

Charlie soltou uma das suas gargalhadinhas para cortar o gelo, mas o seu sorriso foi tão forçado que por pouco não lhe fazia estalar a cara redonda.

 

-Isto dá má fama a Still Creck, Dane. A Câmara de Comércio envia este jornal pelo correio, incluído no pacote turístico. Graças a Deus que lemos a coisa antes de a Ida Mãe avançar e os enviar. Imagine o efeito que isto poderia ter nos Tempos do Cavalo e da Carroça! Já recebemos alguns telefonemas de pessoas a manifestar a sua preocupação.

 

- Devem apresentar as vossas reclamações à editora disse Dane, suspirando. - A liberdade de imprensa é garantida pela Constituição. Desde que ela publique a verdade, a coisa não está nas minhas mãos.

 

Podia não estar nas suas mãos, mas andava na boca de quase toda a gente que se encontrava no Coffee Cup. Dane detectou laivos de crítica e de reclamação quando abriu Caminho entre as pessoas que estavam a jantar, à procura de Amy. Uma sensação de traição coloria os comentários. Uma coisa era os grandes jornais darem más notícias; outra era o seu querido e desinteressante Clarion escarrapachar assassínios e actos de violência na primeira página. o Clarion devia falar de todas as coisas boas e provincianas - clubes locais que se preparavam para a feira da região, a Assembleia Municipal que cedia um espaço para a nova biblioteca, a semana da prevenção de incêndios e os Tempos do Cavalo e da Carroça.

 

Dane afastou o assunto da sua mente e sentou-se num compartimento em frente da filha. Deus bem sabia que ele já tinha a cabeça suficientemente cheia para se preocupar com o Clarion, e estava disposto a esquecer tudo e a reservar alguns minutos para si próprio.

 

Amy lançou-lhe um sorriso que rivalizava com o brilho do sol e um pouco do cansaço que o abatia dissipou-se. Escolhera um compartimento ao fundo do restaurante e estava sentada de costas para a parede, com os sapatos de lona apoiados no banco e o último exemplar da Glamour em cima dos joelhos. Puxara os cabelos compridos sobre um dos ombros, apanhara-os num rabo-de-cavalo solto, como se usava, e atara-os com uma fita de renda de cor crua a condizer com a camisola de algodão decotada. o sol já expulsara as sardas do seu nariz arrebitado, pensou Dane, lembrando-se em seguida que ela vivia na Califórnia e raramente não apanhava sol.

 

- Olá, desconhecido. Como vai isso? - perguntou ela, apontando-lhe o dedo.

 

- Olá, fofinha. - Dane estendeu o braço e apertou-lhe a mão, franzindo um pouco o sobrolho ao reparar no verniz laranja-vivo com que ela pintara as unhas. - As coisas não vão nada bem quando tu tens de fazer uma marcação para veres o teu velho, não é verdade?

 

- Eu sei que andas ocupado - disse ela, com a compreensão no rosto e na voz. - Não faz mal.

 

Dane franziu ainda mais o sobrolho.

 

-Ai isso é que faz.

 

Dispunha de pouco tempo para estar com a filha. Amy passaria três semanas com ele antes de regressar a Los Angeles para a companhia de Tricia e do padrasto. Três míseras semanas. A ideia punha-o fora de si. Ela era a sua filha, a sua menina, fazia tanto parte dele como de Tricia, mas o

tempo que lhe cabia fora repartido em vários bocados miseráveis porque a mãe dela era ambiciosa e queria algo «melhor» do que ele podia proporcionar. Três semanas. Com os diabos, a avaliar pelo modo como A aquele caso estava a correr, talvez ele não dormisse durante

três semanas, já para não falar de passar algum tempo com a filha. Agora observava-a, como se tentasse memorizar as -feições dela, e semicerrou os olhos.

 

-Estás a ficar com o cabelo ruivo?

 

Amy sorriu e afagou o cabelo com as pontas dos dedos cor de laranja.

 

Bolas, pai, julguei que não reparavas! A mamã deixou-me fazer nuances para o dia dos meus anos. mão gostas?

 

Dane ia a dizer que não mas refreou-se, adoptando uma atitude mais diplomática.

 

-Não és ainda muito nova para pintar o cabelo? Papá...

 

Amy deitou-lhe aquele olhar que o deixava desesperadaMente intranquilo. Teriam de abordar o assunto da idade daí a pouco tempo, mas ela não podia desencadear a discussão agora. o pai parecia demasiado cansado e frustrado, o que despertava não só a sua compaixão como a sua preocupaÇão. Talvez os fusíveis dele estivessem prestes a rebentar.

 

Phyllis Jaffrey entrou de repente no compartimento com Os seus sapatos silenciosos e pôs um prato debaixo do nariz de Dane.

 

- o que é isto? - perguntou ele, olhando para o cheeseburger com um ar desconfiado.

 

Phyllis ignorou-o e pousou um copo alto em frente de AMY.

 

-Aqui está a tua Coca-Cola, querida - disse ela com um sorriso e uma voz arrastada. Deu uma palmada no

ombro de Amy com a mãozinha ossuda. - É verdade. Tu és muito nova e magra para andares a beber essa coisa de dieta. - Deitou um olhar de esguelha a Dane. - E um cheeseburger com bacon, Sherlock. Você bem precisa de uma boa dose de gordura e de colesterol. É oferta da casa.

 

Dane conseguiu sorrir à mulher que lhe servia cheeseburgers desde que ele era capitão da equipa de futebol de juniores.

 

-Os polícias que aceitam favores e presentes estão a infringir a lei, Phyllis.

 

Phyllis fungou, encostando o tabuleiro vazio ao peito.

- Eu não dou presentes, xerife. Eu faço cheeseburgers.

- Ámen.

 

Dane soltou um gemido de satisfação e enterrou os dentes no cheeseburger. Não era um dos embustes próprios da fast-jbod, mas uns bons cem gramas de carne de vaca magra, caseira, dentro de um pãozinho feito nessa manhã. o estômago de Dane rosnou de impaciência enquanto ele mastigava. o seu pequeno-almoço resumira-se a cinco cafés e a meio frasco de Tylenol. Ainda não tivera tempo nem vontade de almoçar. As conversas com Carney Fox e Trace Stuart tinham-lhe ocupado a maior parte da tarde e deixado um gosto amargo na boca.

 

o pior era que Carney e Trace tinham estado juntos durante todo o serão de quarta-feira. Havia outras testemunhas para corroborar a história a partir das nove horas, mas ninguém os vira antes. o filho de Elizabeth Stuart estava a mentir. Dane seria capaz de apostar a sua própria quinta, mas não podia provar a sua convicção e não conseguira entrar na história do rapaz.

 

Trace Stuart. Céus, estava farto dos Stuart. Perguntou a si próprio se Elizabeth saberia que o filho andava na companhia de um merdoso como Carney Fox, enquanto ela tropeçava em cadáveres e chafurdava na lama dos respeitáveis cidadãos de Still Creek. o miúdo estava condenado a ter sarilhos se mantivesse aquele tipo de companhias. Aparentemente, os sarilhos faziam parte da família.

 

o rapaz tinha dezasseis anos. Dane não conseguia conciliar a imagem que tinha de Elizabeth como uma mulher sensual e atraente com a da mãe de um filho de dezasseis anos. Ela devia ser pouco mais do que uma menina quando o dera à luz. Dane começou a pensar na história, mas conteve-se e interrompeu essa linha de pensamento. Agora encontrava-se na companhia da filha. Ela era uma parte especial da sua vida.

 

-Então como é que chegaste à cidade? - perguntou ele, levantando a cabeça quando Amy lhe tirou uma batata frita do prato.

 

-A associação a que pertence Mistress Cranston tem de limpar a igreja para o funeral do Jarvis. Pedi-lhe boleia. Amy acabou de comer a batata e lambeu delicadamente o sal na ponta dos dedos.

 

-Fizeste bem - resmungou Dane. - Não quero que fiques sozinha na quinta.

 

Amy arregalou os olhos.

- Papá...

 

- Acabou-se a conversa - declarou ele com um tom e uma expressão que não admitiam réplica. - Eu sei que já te julgas muito crescida. o Jarrold Jarvis também era crescido e está morto.

 

-Andas à procura de um assassino em série? - perguntou ela em voz baixa, com um misto de terror e de entusiasmo.

 

Atirou a revista para o lado e virou-se para o pai, inclinando-se para a frente com um ar ávido, os olhos muito abertos e os cotovelos em cima da mesa.

 

-Não, mas não corro riscos. Tu és a minha única filha. Ela fez-lhe um dos seus sorrisos irresistíveis.

 

-Não seria se tu voltasses a casar.

 

Dane fechou os olhos com força e gemeu. Quando voltou a abri-los, ela ainda estava a observá-lo, cheia de expectativa. Ele tirou um guardanapo do suporte e recostou-se no espaldar estofado do compartimento, tendo o cuidado de limpar um fio de ketchup que tinha no indicador.

 

-Isso não é provável, querida - disse ele em voz baixa.

 

- Bem, ajudava se tu tivesses uma namorada - insistiu Amy, divertida, com o queixo apoiado na mão e um ar pensativo. - Mistress Cranston diz que tu nunca namoraste com ninguém de cá. Ela diz que consta que te encontras COM alguém em Rochester, mas que ninguém considera o caso sério porque tu nunca a trouxeste cá.

 

- Mistress Cranston devia meter-se na vida dela - resmungou Dane.

 

- Creio que é apenas uma questão de sexo - especulou ela com o tom mais natural. Bebeu um gole de Coca-Cola e Dane corou como um pimentão. - Isso é tão antiquado, papá. As pessoas precisam de se relacionar, de se preocupar com alguém. Eu acho que o sexo é formidável, mas...

 

Dane levantou a mão para a interromper. Pelo canto do olho, reparou que os comentários despropositados da filha tinham atraído a atenção de outros clientes. As orelhas arrebitaram-se e ergueram-se como antenas para captar outros conhecimentos sábios que Amy pudesse ter trazido da Califórnia.

 

-Eu não quero falar de sexo - declarou ele, tenso. Nem sequer queria que ela soubesse o que isso era. Amy piscou-lhe o olho.

 

- oh, está bem.- Encolheu os ombros e voltou ao cerne da questão. Os seus grandes olhos azuis escureceram e comoveram-se com uma emoção sincera. - Não gosto de pensar que estás sozinho - disse ela em voz baixa. - Quero que sejas feliz.

 

Durante algum tempo, Dane não conseguiu articular palavra. Tal como acontecera da primeira vez que ela abordara o assunto, este atingiu-o em cheio, fazendo-o perder o equilíbrio. Perante a sinceridade das palavras da filha, sentiu o chão a fugir-lhe debaixo dos pés. Ao olhar para ela, sentiu um nó de emoção no peito, que o pânico agravou. Amy estava a crescer muito depressa, a escapar-lhe, oferecendo-lhe conforto e cuidado quando ele ainda queria ler-lhe histórias ao deitar.

 

Ela passou-lhe as mãos pelos nós dos dedos. A sua linda boca abriu-se num sorriso terno e repleto de compreensão. -Eu sou feliz - proferiu ele em voz baixa, num tom tão insípido que nem sequer o convenceu.

 

Ele era feliz, insistiu, tão feliz quanto podia esperar. Tinha a sua vida organizada, exactamente como ele queria o seu emprego, a quinta, sexo como divertimento com Anie Markham, paz e sossego e nada de complicações. Estava tudo no seu lugar até ao assassínio de Jarvis... E ao aparecimento de Elizabeth.

 

-Tu não és assim tão velho - comentou Amy com veemência. - Podias voltar a casar e ter uma segunda família.

 

«E passar por tudo isto outra vez?», pensou ele. o sofrimento de ter uma filha que lhe fora tirada pelas circunstâncias e pelos anos? A terrível sensação de estar sentado diante dela e de não saber ao certo quem ela era nem como se tinha tornado a pessoa que era, sabendo que o tempo necessário para o descobrir lhe fugia por entre os dedos como areia? «Isso não.»

 

Amy recostou-se e esticou os braços ao lado do corpo, abandonando o ar grave. Pela expressão do pai, percebeu que não chegaria a lado nenhum. Ele mantinha fechada a porta da sua vida privada. Ela queria que ele fosse mais aberto, que a tratasse mais como uma amiga e menos como uma criança, como fazia o padrasto, mas não disse nada. Mudou de assunto com aquilo que parecia ser a inconstância da juventude.

 

- Hoje conheci uma pessoa quando estava à espera à porta do teu gabinete - anunciou ela, pestanejando. - Ele era tão giro.

 

As sobrancelhas de Dane uniram-se em sinal de irritação.

 

- Um dos meus agentes?

 

Se ele apanhasse um dos agentes a namoriscar com a sua menina, havia de o fazer arrepender-se.

 

-Não me parece. Não consegui saber o nome dele. De qualquer modo, lembrei-me que tinha visto um cartaz a anunciar um baile que se realiza durante aquela festa dos Amish, e pensei que, se eu voltar a encontrá-lo e se gostarmos um do outro, talvez eu lhe pudesse pedir..

 

- Não.

 

A palavra saiu automaticamente, surpreendendo tanto Dane como a filha.

 

Uma parte da animação de Amy esmoreceu. Ela esperava falar-lhe naquilo com entusiasmo, mas ele cortara-lhe as vazas. A discussão espreitava. Amy sentia-a aproximar-se, sentia o medo a crescer-lhe no peito. Agarrou-se à ponta da mesa.

 

-Mas papá...

 

Eu já disse que não.

 

Dane sabia que estava a agir totalmente por instinto e com medo de que a filha crescesse. Talvez não estivesse a ser razoável e sem dúvida parecia antiquado, mas não se ralava com isso. Aparentemente, não controlava muito do que se passava à sua volta, mas podia controlar aquilo.

 

Não quero saber do que a tua mãe te deixa fazer. Acho que és muito nova para namorar e não vais namorar enquanto estiveres aqui comigo. Estamos entendidos?

 

Ela olhou para o pai, magoada e furiosa. Os seus olhos marejaram-se de lágrimas.

 

- Sim, estamos entendidos, senhor - proferiu Amy em tom baixo, com a voz trémula de raiva e de mágoa.

 

Pelo canto do olho, viu algumas pessoas a observarem-nos e sentiu-se morrer de vergonha. Não havia discussões quanto a este ponto, pensou ela amargamente. Deus falara. E ela era apenas uma rapariguinha de totós que ficaria fechada em casa para o resto da vida se voltasse a falar em público.

 

- Sabes, papá, um destes dias vais perceber que eu não tenho onze anos e que nós não vivemos na Idade da Pedra declarou ela, tensa, pegando na mala e na revista de moda e saindo do compartimento.

 

Dane recostou-se, censurando-se mentalmente. A última coisa que queria era que houvesse ressentimentos entre eles.

- Amy...

 

-Agora tenho de ir ter com Mistress Cranston - disse ela, fazendo um esforço para não chorar.

 

Saiu à pressa, cabisbaixa, com o livro e a carteira agarrados ao peito.

 

- Amy...

 

Dane virou-se no banco e viu-a sair. o cheeseburger transformou-se numa pedra no seu estômago. Só desejava manter a filha junto dele e conseguira afastá-la.

 

Pensou em ir atrás dela, mas resolveu não o fazer. Sabia que aquele último olhar que ela lhe deitara fora herdado dele. Amy estava zangada e queria ficar sozinha para lamber as feridas. As feridas que ele lhe infligira. Dane pegou numa batata frita, deixou-a cair de novo e afastou o prato.

 

- Merda!

 

Elizabeth bateu com a porta do Cadillac e saiu do barracão que usava como garagem. Encaminhou-se para casa, com o vento a enrolar-lhe a saia à volta das pernas e a despenteá-la. Estava a formar-se outra tempestade - quer na atmosfera quer no seu íntimo - e era óbvio que atacaria com mais fúria. Não se sentia tão zangada desde que apanhara Brock no jacuzzi com duas assistentes administrativas. Nem se lembrava há quanto tempo não se sentia tão assustada. Nem o facto de ter encontrado Jarrold Jarvis a assustara tanto como isto.

 

Aaron estava sentado nos degraus das traseiras, com um jornal na mão, e deitou-lhe um olhar sombrio quando ela se aproximou. Levantou-se devagar ao vê-la abeirar-se e Elizabeth procurou lembrar-se de algo delicado para dizer. Preferia que ele se tivesse ido embora. Não queria testemunhas da luta que estava prestes a desencadear-se.

 

- Você parece furiosa - observou ele com brandura.

- Furiosa é um termo fraco, filho. - Elizabeth parou ao fundo da escada, tentando controlar as emoções para não desatar aos gritos com um ataque de histeria. Tremia por dentro e por fora e cruzou os braços também para dominar essa parte do corpo. - o meu filho tem um jeito especial para aumentar a minha tensão arterial. Receio que vamos ter aqui uma cena dos diabos, Aaron. Talvez seja melhor pegar na sua caixa de ferramentas e zarpar, se não quiser fugir ao evocar o nome de Deus em vão.

 

- Ele não está cá - disse Aaron tranquilamente.

- Deus?

 

O seu filho.

- oh, óptimo!

 

Elizabeth descreveu um círculo completo, deixando cair os braços ao lado do corpo numa tentativa de consumir uma Parte da agitação que a varria. Vinha pronta para uma briga, passara a tarde a ferver e, no caminho para casa, ensaiara o que tinha a dizer. Mas por muito que desejasse um confronto, a simples necessidade de ver Trace, de lhe tocar, de olhar Para a sua cara e de ouvir a sua voz era igualmente forte. Mas ele saíra. Ela tentou não ver o simbolismo da sua ausência. Se se sentisse mais angustiada ou deprimida, vomitava.

 

Depois de passar um minuto a andar de um lado para o outro, encontrou um sítio ao lado da escada e encostou-se à parede da casa, voltando a cruzar os braços. Olhou para além do pátio da quinta, sem ver os anexos, cinzentos e trémulos como cartão molhado, nem o cesto de basquetebol cor de laranja que Trace pregara na esquina do barracão. Ignorou tudo isto e concentrou-se na floresta sombria que assinalava o extremo norte da sua propriedade;   não reparou, porém, no nabo selvagem que crescia junto         da nogueira mais próxima, nem no casal de esquilos que corriam um atrás do outro no tronco de um bordo. Viu apenas escuridão, uma barreira, um deserto, e sentiu tudo isso dentro de si ao pensar em Trace.

 

O que vou eu fazer àquele rapaz? - murmurou ela, sem se aperceber de que falara em voz alta.

 

- As crianças precisam de orientação e de disciplina disse Aaron, pensando que Trace não tinha nem uma nem outra.

 

Elizabeth soltou uma gargalhada áspera e limpou uma lágrima.

 

- Sim? Bem, diga-me como é que se disciplina alguém com dezasseis anos, cheio de testosterona e com mais vinte quilos do que eu.

 

Aaron não tinha uma resposta para aquilo. Não podia dizer-lhe que recuasse no tempo, que desse à luz e que recomeçasse tudo com o filho, a única resposta que se lhe afigurava razoável. Os Ingleses não percebiam nada da educação de crianças. Elas cresciam selvagens como as ervas, sem orientação nem um sentido da ordem da vida. As crianças amish eram ensinadas desde o berço a amar a Deus, a obedecer aos pais, a rejubilar com o trabalho e a preservar o seu modo de vida.

 

- Vocês não têm disto? - perguntou Elizabeth, sinceramente admirada, virando-se e olhando para ele, encostada ao corrimão ferrugento da escada - As crianças aniish não se revoltam?

 

Ele ergueu ligeiramente os ombros.

 

- Ya, têm os seus períodos de rchpringe, de vadiagem, antes de aderirem à Igreja. Alguns rapazes enfeitam as suas carroças com espelhos e coisas do género, chegam tarde a casa e escapam-se para ir ao cinema na cidade.

 

Alguns rapazes. Não era o caso dele, pensou Elizabeth. Ele nunca podia ter sido senão um devoto, com o seu rosto alongado de mártir e os seus olhos sombrios.

 

- Isso não me parece grande coisa, por comparação. o medo assolou-a de novo, despontando através da calma que ela conseguira reunir, como a água das inundações a infiltrar-se nos pontos fracos de um dique feito de sacos de areia. Elizabeth levou a mão à boca para impedir o som do desespero, tirando o que restava do bâton. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

 

O meu filho anda por aí com o indivíduo que eles julgam ter morto o Jarrold Jarvis - admitiu ela com a voz estrangulada. - o Trace forneceu-lhe um álibi.

 

Cristo de minissaia! A vida dela estava a transformar-se num longo e vivo pesadelo. Começavam a acontecer à sua volta coisas horríveis e excessivas, e ela sentia-se impotente

 

para as deter. Conseguia apenas assistir a elas e noticiá-las, no jornal. Agora teria de publicar que o filho acompanhava o único suspeito do xerife no único assassínio ocorrido em Tyler County em trinta anos.

 

- Eles apanharam o homem que cometeu esse terrível pecado? - perguntou Aaron com indiferença, sentando-se no degrau de cima.

 

O Jantzen julga que sim.

 

- Óptimo. Então está tudo acabado.

 

Elizabeth por pouco não se riu e abanou a cabeça. Tirouas travessas do cabelo e deixou-o cair à volta dos ombros. Nem por isso - disse ela. - Aaron ficou à espera de mais qualquer coisa, mas ela deixou cair o assunto. Subiu as escadas, morta de cansaço, e sentou-se ao lado dele com um longo suspiro vindo das profundezas da alma. A bainha da saia roçava-lhe o peito dos pés. Por uma vez, parecia quase modesta e decerto muito mais feminina do que antes. Sentou-se sem fazer barulho, a olhar para as suas construções lapidadas. o vento brincava com a porta de um celeiro, empurrando-a contra a parede. Pás! Pás, pás, pás, pás! Pás, pás... - o que é que você anda a ler, Aaron? – perguntou ela por fim, com um sorriso oblíquo que lhe levantava o canto da boca. - Não é o Clarion?

 

Aaron mostrou o cabeçalho do jornal que tinha na mão. -É The Budget.

 

Elizabeth olhou para a primeira página. Em cima lia-se: Ao Serviço da Região de Sugarereek e das Comunidades Amish e Menonista das Américas. Sugarcreck, Tuscarawas County, Ohio. Não havia fotografias, apenas colunas do que parecia serem cartas noticiosas vindas de todo o país.

 

- Aí fala-se de assassínios?

 

Ele deitou-lhe um olhar severo, e as suas sobrancelhas uniram-se sobre a armação dos óculos.

 

- Não.

 

-De que trata?

 

- Do tempo, das colheitas, dos visitantes, de quem nasceu e de quem morreu.

 

Não era muito diferente do Clarion que ela encontrara à chegada, pensou Elizabeth. Exactamente aquilo que, na opinião de algumas pessoas, o Clarion devia continuar a ser. Lembrou-se imediatamente de Charlie Wilder. Nessa tarde, entrara esbaforido no Clarion, para saber por que motivo a edição especial só falava do assassínio.

 

- Não há aqui uma palavra acerca da equipa de Lady Cougar que se prepara para o espectáculo dos Tempos do Cavalo e da Carroça! - vociferou ele.

 

Elizabeth não estava com paciência para aceitar as suas reclamações insignificantes. Por uma vez, devia ter dobrado a língua, mas as palavras saíram-lhe da boca antes que pudesse evitá-las.

 

- Eles mataram alguém recentemente?

 

o pobre Charlie corou como um rabanete. -Evidentemente que não!

 

-Bem, então desande, filho! Quando eles matarem alguém, também terão uma edição especial.

 

É claro que Charlie defendera que o Clarion não era o espaço indicado para as más notícias. Elizabeth fez uma careta ao olhar para o jornal amish de Aaron Hauer.

 

Qual é a pior notícia que vem aí?

 

o primo do David Treyer, que vive em Kalona, lowa, comprou um tractor.

 

Elizabeth teve um ataque de tosse, tentando conter-se. Aaron parecia não considerar o assunto divertido. A sua expressão grave indicou a Elizabeth que a compra do tractor constituíra uma grande ofensa na opinião dele, e ela estava resolvida a não o ofender rindo-se dos costumes do seu povo. Sabia bem o que era ser olhada com zombaria e escárnio.

 

- Isso é mau? - conseguiu ela perguntar, limpando os olhos com uma mão e enfiando a outra na mala, à procura de um cigarro.

 

-Os tractores não são naturais - respondeu Aaron com firmeza.

 

Elizabeth acendeu o cigarro e aspirou fortemente o fumo, que deveria acalmá-la mas que lhe queimou a garganta. Desviou o olhar do amish que estava a seu lado e virou-se para oeste, onde o Sol descia no horizonte. Passou uma carroça na estrada, com os arreios a chocalhar e as rodas a trepidar no cascalho. Do ponto em que se encontrava, Elizabeth avistou a estrutura de Still Waters ao longe. o estaleiro estava deserto e assim se manteria até se realizar o funeral do seu mentor; depois a construção prosseguiria e o complexo ficaria concluído, com grandes vantagens para Helen Jarvis c Rich e Susie Carmon.

 

-E o que me diz daquilo? - Elizabeth apontou para Still Waters com o cigarro, ao mesmo tempo que exalava uma nuvem de fumo para a atmosfera do fim de tarde. Aquilo não está de acordo com os princípios de ninguém, e muito menos com os dos Amish. o que pensam vocês acerca daquilo?

 

Elizabeth examinou o rosto do homem, que não a encarOu. Havia tensão nas rugas junto dos olhos e nos sulcos cavados na sua cara magra dos dois lados da boca, como parênteses. Mas ele não esclareceu nada com a sua resposta. -Os Ingleses fazem o que querem.

 

-Eu sou inglesa e não tenho a certeza de que quero aquilo ali - retorquiu Elizabeth com candura. - Não é a mesma coisa que uma estalagem ou que aquele grande celeiro que foi transformado em Fillmore County em restaurante. Aquilo vai ser maior, mais barulhento. Fala-se até de UM lago artificial. Há qualquer coisa naquela obra que não me parece bem.

 

- E não é.

 

Aaron mastigou as palavras. Still Waters era uma invasão, um insulto. Desde o princípio que ele tinha essa opimão mas nunca esperara   encontrar uma aliada na mulher que estava sentada a seu   lado.

 

Olhou para ela, para a honestidade nos seus olhos cinzento-claros, e algo bateu no seu peito com a mesma força da porta do velho celeiro. Compreensão, empatia, amizade. Eram parecidos em certas coisas, ele e aquela mulher inglesa com o seu sotaque e os seus estranhos hábitos que não encaixavam naquela terra. Um pensamento estranho, aquele, que ele tivesse algo em comum com aquela mulher decadente. Mas a ligação parecia-lhe real agora, e Aaron sentiu um desejo forte de lhe tocar.

 

Essa necessidade ia contra tudo o que era amish nele. Tocar nela seria um pecado. Desejá-la seria igualmente reprovável. A sua luta interior irritou-o. o desejo não devia sequer estar em questão. Ele devia ter sido mais firme perante a Ordnung, mais forte, inabalável, incorruptível.

 

Afastou-se dela abruptamente, interrompendo o contacto visual e quebrando o encantamento. Com uma firmeza notável nas mãos, dobrou o jornal em várias partes e enfiou-o na caixa de ferramentas que tinha aos pés.

 

-Agora tenho de ir.

 

Antes que Elizabeth pudesse fazer qualquer comentário, ele levantou-se e atravessou metade do quintal. Ela viu-o partir, um pouco surpreendida mas pouco inclinada a pensar muito no assunto. Já tinha problemas que chegassem para compreender as pessoas de Minnesota. Bem podia ignorar o que se passava na mente dos Amish.

 

De qualquer modo, nem tinha tempo para se debruçar sobre isso, pensou, apagando o cigarro no degrau de cimento. Levantou-se e alisou a saia com as mãos no momento ein que a Bronco de Dane Jantzen entrou no quintal.

 

o xerife saiu da camioneta como se estivesse pronto a matar alguém, com um ar carrancudo, os olhos a lançarem chispas azuis e um queixo de granito. Atravessou o quintal como se levasse uma arma de arremesso na mão e fizesse pontaria a Elizabeth. Esta encostou o ombro à porta de rede, demasiado cansada para dramatismos, e esperou que ele chegasse ao fundo da escada para falar.

 

-Está de mau humor, filho?

 

Dane cerrou os dentes ao olhar para ela. Elizabeth deiXou-se ficar encostada à porta, com a calma e a naturalidade de Scarlett na escadaria de Tara, como se não fosse o veneno da sua existência, como se o filho não andasse colado ao pior monte de esterco dos seis municípios em redor, a receber lições de comportamento e a mentir às autoridades.

 

- Sim, estou de mau humor, filha - rosnou ele, subindo a escada.

 

Elizabeth deixou-se ficar onde estava e ele forçou a sorte, permitindo que a precipitação viesse à superficie e se sobrepusesse à fadiga, à frustração e a tudo o resto que ele sentia. Ficou a três centímetros dela, encurralando-a entre o seu corpo e a porta, e o desejo incendiou o estreito espaço que os separava, atiçando o fogo do seu mau humor. Odiava desejá-la, odiava esse sentimento que se metia no caminho da sua profissão.

 

O seu filho está? - perguntou ele.

 

-Não. Não está - respondeu ela em voz baixa.

 

A insolência desapareceu à sua frente. De repente, ela pareceu-lhe mais pequena, mais frágil. Frágil. Essa palavra antecedia as outras. Destacava-se e atingia uma corda sensível dentro dele, obrigando-o a afastar o seu peso dela, cauteloso, sem saber ao certo como proceder. Raios, ele preferia mil vezes que ela lhe cuspisse na cara. Com essa Elizabeth podia ele bem. Podia empurrá-la, discutir com ela e nunca se esquecer de manter a distância em termos emocionais. Era o que ele queria nessa noite, uma briga que lhe desviasse o pensamento de Amy e das coisas que lhe fizera. Mas aquela Elizabeth era um jogo de bola completamente diferente, e Dane não sabia ao certo se conhecia as regras.

 

-Quem me dera que ele aqui estivesse - disse ela, melancólica, com a voz mais rouca do que era habitual. Tentou esboçar um sorriso, que se limitou a um tremor nos lábios. Desviou-se de Dane e entrou em casa.

 

Dane seguiu-a à distância. A cozinha fora parcialmente desmantelada. Não era que parecesse mais desarrumada do que antes de os armários de cima terem sido arrancados da Parede. Elizabeth movia-se no meio do entulho, indiferente a ele. Deixou cair a mala em cima de um pedaço de contraplacado assente em dois cavaletes que formavam uma mesa improvisada e dirigiu-se para a bancada, onde se viam meia dúzia de garrafas de uísque. Escolheu uma que estava meio cheia e deitou dois dedos de líquido num copo com uma estampa do Speedy Gonzalez. Não se virou para Dane senão depois de beber metade.

 

- Escócia para sempre! - exclamou ela, levantando o copo como se fizesse um brinde. - o melhor uísque de malte que o dinheiro pode comprar. Destilado nas Higlilands e decantado pelo Stuart. Custa o mesmo que ressuscitar o Bormie Prince Charlie. É claro que eu o roubei, segundo a tradição das Higlilands - admitiu ela com audácia. Quer?

 

Não. Não bebe em serviço? Que pena! - Esvaziou o copo e, durante algum tempo, ficou a olhar para o macho sorridente que tinha ao lado. - Eu não sabia que ele andava com o Carney Fox - disse ela por fim.

 

-Ele já esteve em apuros alguma vez? o olhar de Elizabeth cravou-se nele.

 

- Ele está em apuros neste momento?

 

- Pouco falta. Estou convencido de que o Fox matou o Jarvis. o Trace afirma que ele e o carney estiveram juntos aqui, a lançar bolas ao cesto. Creio que ele está a mentir. Elizabeth soltou uma gargalhada triste.

 

-Ele não é muito bom nisso, pois não? o pai dele é que era. Bolas, o Bobby Lee podia barrar a torrada de merda e dizer-lhe que era mel, e você comia e ainda lhe agradecia por cima. Não é o caso do Trace. Não consegue pregar uma peta sem se denunciar. - Elizabeth pôs o copo de lado e esfregou o braço como se estivesse gelada. Abandonou a sua expressão pensativa e acrescentou com veemência: - Ele não é um miúdo mau. A sério que não é. Mas tem problemas.

 

-Tais como?

 

-Tais como um pai que ele não vê desde pequeno e um padrasto que julgou que adoptá-lo seria politicamente correcto e bom em termos de publicidade, mas que depois descobriu que criar um rapaz dava mais trabalho do que ele estava disposto a ter.

 

- Até parece que você não teve nada a ver com isso.

 

o sarcasmo era uma defesa. Dane não queria ter pena dela nem criar empatia com ela como pai. o seu encontro com Amy ainda estava muito fresco, e depois disso passara muito tempo a pensar em Tricia. - Onde estava você enquanto ele era lixado pelos homens? Tinha ido sair com algum?

 

Elizabeth estremeceu como se ele lhe tivesse feito um golpe.

 

-Patife! - exclamou ela em voz baixa. A fúria infiltrou-se nela como o sangue de uma ferida. Já fora suficientemente mau permitir que ele a atingisse assim quando ela estava pronta para isso. Fora um golpe baixo, que a apanhara desprevenida, no momento em que lhe dava a conhecer algo de si própria. Cerrou os punhos ao lado do corpo e avançou para ele. - Seu filho da mãe.

 

Dane ergueu o sobrolho. -A verdade dói, Liz?

 

- A verdade! - Ela riu-se da palavra. - Você não saberia a verdade mesmo que ela lhe desse um murro nos dentes. Não sabe nada a meu respeito. Como se atreve a julgar-me? Você não estava lá.

 

-Não - respondeu ele, impassível. - Estava nas linhas laterais como o resto da América, a ver os lances nos noticiários.

 

Elizabeth fulmiinou-o com o olhar. Estavam a um passo um do outro. o corpo dela mostrava-se rígido e trémulo de indignação, Ele estava ali, mais calmo do que nunca, a olhá-la com desprezo, como se julgasse que era muito melhor do que ela, puro de espírito e de coração.

 

- E você engoliu as palavras todas, não foi? - exclaMou ela, furiosa, ao lembrar-se da conversa que tinham tido na véspera, no gabinete do juiz. - Você absorveu isso tudo, a perseguição, as meias verdades, as redondas mentiras. Mas acreditou em tudo o que disseram a meu respeito, não foi?

 

Ele não disse nada, mas a resposta estava estampada no Seu rosto.

 

Elizabeth abanou a cabeça, enojada.

- Hipócrita!

 

«Bem, não me interessa o que você ouviu - disse ela com desprezo. - Não me interessa o que a imprensa disse. Quer saber a verdade? Bem, aqui vai ela: eu nunca, nunca enganei o Brock Stuart. Nem uma só vez. Nem sequer quando ele se pavoneava com as namoradas à minha frente. Nem sequer quando ele me disse que me fosse embora. Fui tão estúpida que pensei que pelo menos um de nós devia viver de acordo com os votos que ambos tínhamos feito. Fui tão estúpida que pensei que acabaria por me ser feita justiça no fim, mesmo que fosse só isso.

 

Elizabeth continuou com o seu testemunho, embora a sua voz parecesse prestes a falhar, aguda e rouca, apanhada pela emoção que lhe obstruía a garganta e lhe endurecia no peito como cimento.

 

- Dei a esse homem tudo o que eu tinha, tudo o que eu era. Entreguei-me a ele. Dei-lhe o meu filho. E só lhe pedi que me amasse. Compreende? - prosseguiu ela, tão confusa e magoada como no momento em que se apercebera da realidade. - Foi o único grande pecado que cometi. Fui ingénua ao ponto de pensar que um homem como o Brock Stuart podia gostar de mim. Mas tal não era possível. o Brock Stuart não gosta de ninguém a não ser de si próprio, e que Deus ajude a idiota que pensar de outro modo.

 

«Ele casou comigo porque isso seria bom para a sua imagem. o patrão casa com a empregada pobre mas bela. Uma história da Gata Borralheira para a imprensa. Ele escolheu-me e rojou-se aos meus pés com uma determinação que parecia implacável, mas... pobre de mim!... eu estava demasiado apaixonada para pensar nisso. Julguei que, pelo menos uma vez na minha vida miserável, um homem podia gostar de mim e ser decente para comigo.

 

«Tenho a certeza de que ele considerou a situação hilariante, que julgou que conseguia cegar-me com um pouco de ternura e ofuscar-me com diamantes. Eu engoli tudo, o anzol, a linha e o chumbo. Jantares em Paris, fins-de-semana em Monte Carlo, jóias da Cartier. Isto dá a volta à cabeça de uma jovem, percebe? Sobretudo quando o melhor presente que ela recebera de um homem fora um divórcio.

 

«Pois foi - prosseguiu ela, com um sorriso amargo. Fez-me acreditar em contos de fadas, mas depois encontrou uma verdadeira princesa e deixou de pensar na Gata Borralheira. Mas isso não era bom para a sua imagem... pôr na rua uma mulher com um filho... Assim, alterou a história como melhor lhe convinha. Atribuiu-me uma reputação, comprou-me alguns amantes que eu nem sequer tive a satisfação de conhecer, e muito menos de foder. Foi uma verdadeira campanha multimédia, deixe que lhe diga. Fotografias tiradas às escondidas, vídeos granulosos de uma mulher parecida comigo a fazer piruetas com que eu nunca sonhei.

 

Elizabeth fez uma pausa e tentou defender-se do ataque violento de recordações desagradáveis, mas estas fustigavam-na, a par dos rostos da nata de Atlanta, que a olhavam como se ela fosse uma coisa com que os criados lhes raspavam as solas dos sapatos, chamando-lhe nomes em surdina. Desavergonhada. Prostituta. Nós sabíamos que ela não prestava para nada. Pobre Brock. Pobre Brock.

 

Elizabeth encostou as mãos às têmporas e respirou fundo, apesar do nó na garganta.

 

O Brock Stuart pegou na verdade, manipulou-a, torceu-a e entregou-a à imprensa como Moisés na malfadada montanha - disse ela, deitando um olhar furioso a Dane. E eles beijaram-lhe o eu e disseram que ele cheirava a rosas porque ele é dono deles. Esta é que é a verdade, xerife Jantzen - concluiu ela amargamente, enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto. - Acredite ou não. Estou-me nas tintas.

 

Mas não estava. Preocupava-se com o que ele pensava e isso enfurecia-a de tal maneira que mal via a direito. Com um choro atormentado, agrediu-o, batendo-lhe no peito com Os punhos cerrados. Empurrou-o, sem conseguir deslocá-lo um centímetro, o que a irritou ainda mais.

 

- Saia! - gritou ela, deitando chispas pelos olhos e fazendo um esgar. - Raios, saia!

 

Dane ficou boquiaberto quando ela lhe virou abruptamente as costas e se aproximou de novo da bancada. Ficou ali, de ombros rígidos, cabisbaixa, agarrada ao rebordo. Dane sentiu o peito dorido no sítio em que ela lhe batera. Merecia mais.

 

Céus, ela estava a dizer a verdade. Ele vira-a nos olhos dela, ouvira-a na voz dela. o seu som pairava na atmosfera da pequena cozinha desconjuntada,

 

Ele devia ter saído. Devia ter obedecido à ordem dela e saído. o cínico que havia nele disse-lhe que era o que faria um homem inteligente: ir-se embora. Afastar-se de Elizabeth Stuart e de todos os sentimentos perigosos que ela despertava nele. Mas a sua consciência não o permitira.

 

Atravessou a cozinha devagar, como se fosse para o cadafalso, e parou mesmo atrás dela. Elizabeth não se virou, não se apercebeu da presença dele. Ficou ali, a olhar pela janela, enquanto o dia dava lugar ao crepúsculo nas pastagens ondulantes.

 

- Elizabeth.

 

Dane pronunciou o nome dela em voz baixa, apercebendo-se com alguma surpresa de que era a primeira vez que o fazia. Tratara-a quase sempre por Miss Stuart, e por Liz quando se mostrava particularmente sarcástico. Nunca por Elizabeth, nunca por um nome tão suave e feminino. Assentava-lhe bem. Por baixo daquele acto de sobrevivência, existia um coração terno, esperanças femininas, sonhos delicados, para serem amados, para serem acalentados e não usados e ridicularizados.

 

Ela tinha razão. Ele era um hipócrita, e pelo mais egoísta dos motivos: para se proteger. o seu sentido de honra considerou-o desprezível. Gostava de pensar que era melhor do que isso, mas a prova da verdade estava diante dele nesse momento, a tremer, enquanto ela tentava arcar com o fardo.

 

- Elizabeth - repetiu ele em voz baixa, aproximando-se, apercebendo-se do perfume dela, indefinível, doce, triste. - Desculpe.

 

- Ah, sim? - murmurou ela, com um ar trocista. Quem é que se importa com isso?

 

- Eu.

 

Incrédula, Elizabeth estendeu o braço para pegar na garrafa de uísque. Dane agarrou-a antes que os dedos dela chegassem ao gargalo. Estes fecharam-se e ela tentou afastar-se dele, mas Dane foi mais forte.

 

Elizabeth lançou-lhe um olhar furibundo Por cima do ombro. Não queria a sua complacência nem a sua compreensão. Não queria que ele afirmasse que se importava com ela. Ele não era o tipo de homem que se entregasse a uma mulher senão no sentido físico, e, por muito que o corpo dela o desejasse, o seu coração não suportaria tal coisa.

 

-Não preciso da sua compaixão - disse ela, empinando o queixo. - Não quero nada de si.

 

Céus, ela era bela! Dane nunca o negara, mas também nunca se apercebera da sua beleza daquela maneira. Elizabeth olhou para ele, provocadora, obstinada e orgulhosa. Algo mexeu dentro dele quando a fitou e, de repente, desejou ser aquele que a protegia e não o que a atacava.

 

Um pensamento perigoso. Culpada ou inocente, ela não era a mulher indicada para ele. Exigiria de mais - demasiada energia, demasiado esforço. Quereria coisas que ele não lhe podia dar. Depois de uma mulher se ter habituado ao champanhe, não se contentaria com cerveja durante muito tempo. Culpada ou inocente, continuava a ser cara e ambiciosa.

 

Culpada ou inocente, ele continuava a desejá-la. Não,, aproximar-se tanto dela sem a desejar. Não lhe tocar sem a desejar.

 

-Eu não o desejo - proferiu ela em voz baixa. Não havia convicção na sua voz. Conversa fiada para lhe alimentar o orgulho, nada mais,

 

-Mentirosa. - A palavra saiu-lhe da boca, em surdina, quando ele se aproximou mais. - Você não quer deseJar-me.

 

-É a mesma coisa.

 

O diabo é que é. Acredite em mim. Eu sei.

 

Por instantes, tudo ficou suspenso - as palavras, o fôlego e os olhares - quando a verdade pairou na atmosfera carregada entre ambos. o silêncio retiniu aos ouvidos de Elizabeth. Depois, o velho Frigidaire deu um estalo e um gemido e, lá fora, o vento voltou a empurrar a porta do celeiro contra a parede - pás, pás, pás, pás... Um som que em nada contribuiu para quebrar a tensão que reinava na cozinha.

 

A pouco e pouco, Dane estendeu a mão livre e enfiou-a nos cabelos dela, obrigando-a a virar o rosto e baixando o seu. Elizabeth estremeceu quando a boca dele exigiu a dela e toda a pretensa resistência se desvaneceu. Ela desejava-o, Estava cansada de mais para negar a necessidade de ser abraçada e tocada. Estava sozinha há muito tempo.

 

- Desculpe - disse ele outra vez. Cada sílaba era uma carícia nos lábios dela.

 

Elizabeth olhou para ele. Não sabia ao certo por que motivo é que ele se desculpava. Por ser um patife, por a obrigar a desejá-lo ou por ele próprio ceder a essa necessidade? Não lhe perguntou. Para alguém tão rigoroso no apuramento da verdade, ela inclinava-se agora para a ignorância. Não era provável que essa verdade fosse algo que ela quisesse ouvir. Nem que fosse importante. Não iria alterar o que estava prestes a acontecer entre eles.

 

Elizabeth esticou-se na direcção dele e Dane colou a sua boca à dela. Elizabeth acolheu-o, acolheu a névoa sensual que envolveu a sua mente.

 

A mão esquerda dela continuava enlaçada na mão direita dele, e os braços de ambos estavam encurralados no meio dos seus corpos. Ele pegou-lhe na mão e encostou-a a ele, colando-lhe os dedos ao seu sexo erecto. Em seguida, virou-lhe a mão e encostou-a ao corpo dela, arrancando-lhe um suspiro. A sensação de que estava a fazer algo proibido só aumentou a chama que ardia dentro dela.

 

- Deseje-me - segredou Dane. - Diga que me deseja. Elizabeth arquejou. Os seus pulmões absorviam ar que depois saía por entre os seus lábios inchados, abertos.

 

- Eu... Desejo-o...

 

A energia apoderou-se dele. E a paixão. E algo mais a que ele não soube dar nome. o resto do mundo deixou de existir, ficando apenas os dois e o desejo. Ela era a única mulher no mundo, e ia pertencer-lhe.

 

Dane largou-lhe a mão e pegou-lhe na saia, amachucando o tecido ao levantar a bainha. Elizabeth arqueou-se quando ele lhe tocou, incapaz de fazer fosse o que fosse a não ser arquejar. o rebordo da bancada magoava-lhe as costas, mas ela mal se apercebeu do desconforto. Estava concentrada na fome que ameaçava devorar ambos.

 

Entregou-se completamente. E quando o fim chegou, uma explosão de sensações e de desespero, ela desatou a soluçar, assustada com tal intensidade,

 

A ideia aterrava-a. Ele não podia significar assim tanto para ela. Não podia significar nada, porque ela tinha a certeza de que nada significava para ele.

 

Desviou-se do olhar dele, para que Dane não visse a desolação que detectaria no seu. Escondia-se dele. Concentrou-se em coisas triviais - no modo como os últimos raios de sol entravam na janela formando uma coluna de poeira dourada, cujo colorido quase se aproximava do uísque roubado que estava em cima da bancada. Deus Todo-Poderoso, eles estavam na cozinha! Elizabeth sentiu-se estúpida ao aperceber-se disto. Nem sequer reparara onde estava. De tal modo fora apanhada na sua necessidade que se esquecera do sítio onde se encontrava. Nem uma só vez se lembrara que estavam a fazer amor na cozinha.

 

«Não. Não estavas a fazer amor, Elizabeth. Estavas a fazer sexo.» o amor não teria lugar nesta parceria. Ela não se iludiria pensando de outro modo. Dane Jantzen não a amava. Mas ela não sabia por que motivo é que esse facto a levava a sentir-se tão vazia e magoada por dentro. Já devia estar habituada a ser usada.

 

Dane afastou-se dela. Detestava deixar o calor do seu corpo e detestava ainda mais quebrar a ligação mais profunda que se criara entre eles, a única que não teria admitido sentir nem perante si próprio. Arranjou-se e puxou o fecho das calças automaticamente, confuso com o que ambos haviam acabado de fazer. Com o que ele tinha acabado de fazer.

 

Céus, possuíra-a na maldita cozinha! De pé. Nem sequer lhe concedera a delicadeza do conforto. Nem sequer a despira. Era um patife. Acusara-a de ser uma prostituta e depois POssuíra-a quando a verdade da inocência dela ainda pairava no ar que os rodeava como o aroma de um aguaceiro primaveril.

 

o cínico que havia nele tentou lembrar-lhe que ela o autorizara a tal. Mas ela não parecia satisfeita com o que se passara. Parecia envergonhada.

 

Dane levantou a mão para lhe tocar e Elizabeth deu um passo atrás, fora do alcance dele.

 

- Elizabeth...

 

-Talvez seja melhor sair agora - disse ela em voz baixa. - Como eu já lhe tinha pedido.

 

Dane passou as mãos pelo cabelo e suspirou. Não precisava de mais complicações na sua vida. Não precisava de uma mulher como Elizabeth. Mas tinha a certeza de que a possuíra e não podia ir-se embora sem mais nem menos.

 

- Isto não correu exactamente como eu pensava - disse ele com ternura.

 

Elizabeth arregalou os olhos, furiosa.

 

-Você quer dizer que veio cá à espera de... ?

 

-Não. Estou a dizer que tenho pensado nisto desde a primeira vez que a vi - admitiu Dane com candura. Afastou o cabelo para trás, deixou cair a mão e, com todo o cuidado, tocou-lhe com o Polegar na cicatriz que Elizabeth tinha ao canto da boca, perguntando a si próprio quanto tempo faltaria para ela lhe contar como a fizera.

 

- Isso não é mesmo masculino? - lamentou-se ela.

- Eu quis - disse ele bruscamente. - Você quis. Quando ela ia a protestar, ele encostou-lhe um dedo aos lábios e acrescentou: - Não diga que não quis, Elizabeth. As suas cuequinhas têm uma história diferente para contar.

 

Ela semicerrou os olhos e suspirou, e Dane pensou na desolação que vira nela um minuto antes.

 

- Acho que isto não devia ter acontecido.

 

- Chiu - disse ele em voz baixa, inclinando a cabeça para a beijar na face. - Não diga isso.

 

Pensou que não queria que ela se arrependesse daquela intimidade, pois não queria conhecer apenas essa sua faceta. Essa era a verdade. Parte dela.

 

- Não há motivo para que não sejamos amantes - disse ele.

 

As palavras foram uma surpresa para ele, mas não a lógica que as sustentava. Se estabelecesse as regras agora, se ambos soubessem no que se metiam, poderiam ambos afastar-se, incólumes, no fim. Era simples e claro, como ele gostava.

 

- Bem, para começar, eu odeio-o - disse Elizabeth com toda a naturalidade.

 

Dane sorriu.

 

- Há-de ultrapassar isso.

 

Ela abanou a cabeça, a pensar na questão mais importante.

- Não creio. Não preciso de mais problemas. Além disso, jurei que me afastaria dos homens. - Recuou um passo e encolheu os ombros num gesto de desculpa. - Lamento.

 

Dane deu também um passo atrás, de rosto fechado. Elizabeth concluiu que ele não estava habituado a mulheres que lhe dissessem «não» e que talvez não tivesse gostado, mas era assim mesmo. Ele ficou ali por alguns momentos, com um brilho especulativo nos olhos. Mas extinguiu-o e deu mais um passo em direcção à porta, e Elizabeth desejou que ele fizesse mais um esforço para mudar de ideias.

 

-Você sabe onde me encontra - disse ele, como se não lhe interessasse muito o desfecho.

 

Ela congratulou-se com a sua própria decisão ao vê-lo meter-se no carro, dirigir-se para a estrada e desaparecer numa nuvem de pó e no meio do clarão dos faróis traseiros. Mas ali mesmo, resoluta, sentiu um vazio no peito.

 

o telefone interrompeu-lhe a melancolia, começando a tocar tão de repente e tão alto como a campainha do portão de Churchill Downs. Elizabeth correu a atendê-lo, julgando esperando - que fosse Trace. Passara-lhe o mau humor, mas não a necessidade de o ver, de falar com ele e de tentar chegar até ele. Pegou no auscultador de parede da cozinha, sorrindo, com uma prematura sensação de alívio.

 

-Olá, querido, eu...

- Cabra!

 

A palavra deixou-a gelada. Elizabeth ficou ali, atordoada, tentando reagir. o silêncio na linha tornou-se de tal modo absoluto que ela quase se convenceu de que a voz fora UM produto da sua imaginação. Depois, ouviu-a outra vez, COMO um cão a rosnar, baixa e ameaçadora, misteriosa e perversa.

 

- Cabra!

 

Elizabeth abriu a boca e voltou a fechá-la como um peixe a arquejar. Não saiu qualquer som e não entrou ar. A sensação de violação foi súbita e doentia. Alguém estava a invadir a sua casa. Olhou à sua volta, desesperada, como se esperasse ver a pessoa que telefonara à porta da cozinha.

 

Não havia ninguém. A casa estava às escuras e em silêncio. Ela encontrava-se sozinha. A palavra provocou-lhe uma sensação opressiva de terror e de vulnerabilidade. Sozinha.

- Puta! - rosnou a voz.

 

Abalada e trémula, Elizabeth virou-se e pôs o auscultador no descanso, depois voltou a levantá-lo e deixou-o cair ao chão.

 

Puta! Horrorizada, Elizabeth viu o auscultador a balouçar ao longo das tábuas do soalho, demasiado assustada para perceber que a comunicação não fora interrompida. Em seguida, pôs as duas mãos no descanso e deu um pontapé no auscultador, para se certificar de que ele estava morto desta vez. Passou-lhe pela cabeça uma dúzia de pensamentos irracionais - era Helen Jarvis a fazer a sua voz de     exorcista, era Brock a atormentá-la, alguém que a vira com Dane pela janela da cozinha, o assassino que continuava     à solta...

 

o assassino continuava à solta. E a posição dela era quase tão má como a de uma testemunha.

 

Não esclarecemos exactamente se você viu algo incriminatório ou não...

 

Do outro lado da porta das traseiras ouviu-se um grande estrondo, que obrigou Elizabeth a agir. Afastou-se do telefone, a cambalear, e correu para as escadas que iam dar ao seu quarto, batendo na ombreira da porta ao correr para a mesa-de-cabeceira. Ajoelhou-se e abriu a gaveta. Procurou no meio de um emaranhado de lenços de pescoço e de lenços de assoar debruados a renda e perfumados. Por fim, sentiu o aço duro e frio.

 

A arma era de Brock. Pertencia à sua colecção. Era uma Magnum israeli Desert Eagle, de calibre.., automática, de aço inoxidável e coronha de madrepérola. Elizabeth agarrou-a com as duas mãos e tirou-a da gaveta. A arma era de manuseamento difícil e pesava uma tonelada, mas Elizabeth sentia-se mais segura com ela na mão do que sem ela. Deixou-se cair na carpete, de costas para a cama, e agarrou-se à pistola, com a parte plana encostada ao peito e o cano apontado à parede. Ficou ali sentada, e esperou que o dia se diluísse na noite, só com o medo e o silêncio por companheiros.

 

Já passava bastante da meia-noite quando Trace entrou com a sua lustrosa bicicleta de corrida no velho barracão desconjuntado que fazia as vezes de garagem. Encostou a bicicleta a um monte de pneus carecas, saiu e atravessou o relvado cheio de ervas daninhas, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças de ganga.

 

Não lhe agradava voltar para aquela casa. Sobretudo, não gostava de vir para casa sabendo que o mais provável era que a mãe o grelhasse como uma sanduíche de queijo. Onde estiveste, Trace? Com quem? A fazer o quê? Gostaria de acalentar uma certa esperança de que ela não soubesse que o xerife andava a puxar por ele e que fornecera um álibi a Carney, mas isso era quase tão improvável como uma tempestade de neve no Inferno. Além de ser jornalista, ela era mãe, e as mães farejavam coisas como essas mais depressa do que um cão.

 

Determinado a adiar o inevitável, Trace sentou-se na escada das traseiras, tirou um cigarro da algibeira da T-shirt e procurou uma carteira de fósforos do Red Rooster no bolso das calças. Acendeu-o e inalou fortemente, combatendo o impulso de expelir o fumo. Não se preocupava com o facto de fumar, estava convencido de que o hábito não duraria muito, mas por enquanto mantinha-o porque isso o fazia sentir-se mais duro, mais homem. Sabia que não lhe fazia bem, mas, como nada na sua vida actual lhe parecia bom, não se ralava.

 

Inalou de novo o fumo e concentrou-se no som de uma porta a bater na parede do celeiro enquanto os seus pulmões ardiam. Estava a formar-se outra tempestade. Os relâmpagos iluminavam o céu nocturno como um estroboscópio, e os trovões ribombavam ao longe, num reflexo do que ele próprio sentia - agitação, raiva, desconforto, como se qualquer coisa estivesse para acontecer e ele não soubesse o quê nem como libertar-se de tais sentimentos. Inquieto, esborrachou o cigarro no cimento e atirou-o para o quintal, fingindo que era uma bola de basquetebol e que ele era o avançado dos Blue Devils de Duke a fazer um lance para vencer o torneio do NCAA.

 

Evidentemente que não era. Estava a uma grande, grande distância disso, e a consciência desse facto pesava nele COMO uma pedra. Não iria para Duke para ser um Blue Devil ou outra coisa qualquer. Estava amarrado ali, no Minnesota, numa porcaria de uma casa, sem outros amigos além de Carney Fox. Céus, havia vida pior do que esta?

 

- Bem, se não for o Desconhecido Solitário...

 

Trace estremeceu ao ouvir a voz da mãe. A vida podia de facto ser pior. Sentiu um aperto no estômago ao pensar no que iria acontecer. Acabariam a discutir, como sempre. Ela tentaria obrigá-lo a falar, e ele afastá-la-ia. Parecia que não conseguiam fazer mais nada. Era como se tivessem sido apanhados na roda contínua do tempo, como em o Caminho das Estrelas, em que se revivia sempre a mesma conversa.

 

Trace olhou para a mãe por cima do ombro e ficou espantado ao ver a arma que ela trazia encostada ao ombro esquerdo quando apareceu à porta, de braços cruzados.

 

A pistola parecia de prata quando um raio de luz vindo do quintal se reflectiu nela, viva e perigosa como um relânpago. Assustado, Trace virou-se.

 

- Céus, mamã, o que estás a fazer com essa coisa? Elizabeth olhou para a Desert Eagle como se já estivesse tão habituada ao seu peso na mão que se esquecera dela. Não sabia se havia de falar ou não a Trace no telefonema, que lhe parecia menos ameaçador, agora que o filho estava ali com ela. Fora apenas um telefonema. Uma voz ao telefone. Sentiu um arrepio nos braços ao lembrar-se daquela voz, que lhe fazia pele de galinha.

 

-Eu estava um pouco alterada - disse ela. Abriu a porta de rede com a anca e saiu, olhando automaticamente para o céu. o vento aumentara de intensidade e abanava as árvores como se fossem pompons, fazendo chocalhar as folhas. A porta do celeiro bateu com estrondo. - Eles têm um suspeito do assassínio do Jarvis - disse ela, observando o filho. - Mas já deves ter ouvido falar nisso, não é verdade?

 

Trace desviou o olhar, crispando os músculos do queixo. Enfiou as mãos no cós das calças e suspirou como um adolescente oprimido.

 

- Porque não continuas e fazes o que estás a pensar? -Faço o quê?

 

- Descarregas em cima de mim e acabas com isso. Elizabeth cerrou os lábios e dominou-se. Não queria discutir com ele, sinceramente que não queria. Além da vontade de o atacar, de o abanar e de lhe gritar toda a sua frustração, o que ela queria verdadeiramente era abraçá-lo e deixar que ambos recuassem no tempo até um ponto do passado, antes de tudo ter começado a correr mal entre eles. Antes de Atlanta, antes de Brock e de todo o seu dinheiro, até aos tempos de San Antonio, em que eram íntimos e tinham uma vida normal. Elizabeth desejava regressar a uma época em que ele ainda era terno e confiante e ela sentia que controlava, que sabia tudo, que era uma mãe todo-poderosa, capaz de sarar feridas e enxugar lágrimas. Parecia que os anos haviam retirado o poder que ela tinha sobre Trace ou que este imaginara que ela tinha. o filho estava agora com dezasseis anos, quase metade da idade dela, e era perfeitamente capaz de ver que ela não passava de um ser mortal e que não podia resolver as coisas com um beijo.

 

- Trace, custou-me muito saber que arranjaste um álibi para o Carney Fox e que não estás preocupado com isso disse ela. - Ele é suspeito na investigação de um crime. -Sim, bem, não foi ele.

 

-Tens a certeza?

 

Ele desviou o olhar, esquivando-se à pergunta, esquivando-se ao olhar dela. Os relâmpagos pareciam holofotes no seu rosto, iluminando o que ele não queria que ela visse a expressão comprometida, os segredos. Elizabeth sentiu-se desfalecer e apoderou-se dela um pânico maternal que lhe Provocou um aperto na garganta. Desceu a escada e correu para o filho, levada por uma necessidade que ameaçava apoderar-se dela. Trace ia a virar-se, mas ela agarrou-o com o braço esquerdo, enterrando-lhe os dedos nos músculos jovens e firmes.

 

-Responde-me, raios! - disparou ela, levantando a Voz para se fazer ouvir em plena trovoada. - Sabes se ele não matou o Jarrold Jarvis? Onde estavas?

 

Trace afastou-se, soltou o braço e esfregou-o, com um ar carrancudo.

 

-Não foi ele. Nós estávamos a jogar basquetebol. Era o mesmo que ele dissera a Dane, e Elizabeth imaginou o xerife a ouvir a mesma frouxidão, a mesma nota de

falsidade que ela estava a ouvir. Ele estava a mentir. Deus do céu, ele estava a mentir acerca de um possível assassino, o seu filho, o seu bebé, a criança que ela trouxera ao colo e para a qual sonhara tanta coisa. Os trovões ribombaram sobre as cabeças de ambos e um novo relâmpago fundiu tudo num relevo acentuado e misterioso, como numa cena de um velho filme de Hitchcock, transformando esses sonhos num pesadelo. A criança crescera e transformara-se em alguém que ela não conhecia, a que não conseguia chegar; o bebé era um rosto na sua memória, uma vozinha que a chamava do fundo de um túnel longo e escuro.

 

- Raios, Trace! Diz-me a verdade - soluçou ela, quando a chuva começou a cair.

 

Mas Trace limitou-se a olhar para ela, em silêncio, refugiando-se em si próprio, vestindo a sua capa de isolacionismo adolescente que o envolvia como um campo magnético. A chuva escorreu pelas lentes dos seus óculos e fez grandes manchas transparentes na sua T-shirt.

 

Vou para a cama - disse ele, afastando-se, com uma voz cuja suavidade contrastava com os ruídos do céu. Elizabeth ficou agarrada ao chão, com a chuva a cair sobre ela, a ensopá-la, a fustigar-lhe a pele como mil e um dedos de uma mão. Viu o filho desaparecer na escuridão da casa, com o pânico a rasgar-lhe as entranhas, tentando sair. Apeteceu-lhe correr atrás dele, agarrá-lo, gritar, mas isso não serviria de nada. Não conseguia chegar até ele, emocionalmente, como ela queria, como ela precisava, e não suportava a ideia de tentar e falhar. Naquela noite, não tinha forças para isso.

 

Portanto, ficou à chuva, a chorar, com a água a fustigar-lhe a face como pedras, com o peso dela a puxar-lhe a saia. Ficou ali até perder a força nas pernas. Depois, deixou-se cair no chão e ficou sentada, com os cabelos pendurados em cordas molhadas à volta da cara, com a Desert Eagle colada ao corpo, e cruzou os braços, e embalou-se, e desejou de todo o coração que aquilo fosse apenas um pesadelo e não a sua vida.

 

 

                                                              CONTINUA

 

 

O cheiro a bolos de caramelo aquecia a atmosfera da cozinha, tornando-a amanteigada e doce. Dane abriu a porta com o ombro e entrou, de olhar turvo e com a fralda do pólo preto por fora das calças de ganga. Passava das sete. Dormira de mais e estava irritado consigo próprio por causa disso. Era irracional pensar que seria capaz de funcionar na perfeição com pouco ou nenhum descanso quando o fardo da investigação de um crime pesava sobre ele, mas mesmo assim dava consigo a pensar nisso.

o grande Dane, o herói deus do futebol, possuidor de uma força e de um carácter sobre-humanos. Soltou uma gargalhada amarga e serviu-se de uma chávena do café forte de Mrs. Cranston.

Mrs. Cranston afastou-se do forno e endireitou-se, corada do calor e do esforço de dobrar ao meio a sua figura corPUlenta. As suas mãozinhas estavam enfiadas em duas enormes luvas azuis e seguravam um tabuleiro repleto de bolos doces e fumegantes.

 

 

 

 

- Vou arrefecê-los e estão prontos daqui a nada, xerife disse ela, dirigindo-se para a mesa no meio da cozinha clara e arejada.

 

Dane encostou-se à bancada e ficou a vê-la trabalhar, a colocar os bolos em tabuleiros de rede para arrefecerem. Parecia talhada para aquilo: gorda e maternal, com um sorriso radioso numa cozinha amarela e radiosa, e música country em fundo.

A porta da cozinha abriu-se e Amy entrou, hesitando ao ver o pai.

 

- Bom dia, fofinha - disse ele, esperando que o mau humor da filha tivesse arrefecido durante a noite.

 

Quando ela acolheu a sua saudação com um olhar duro como uma pedra, Dane percebeu que não conseguiria o que queria.

Amy cumprimentou Mrs. Cranston com um entusiasmo visível, sentou-se à mesa, tirou um dos bolos já frios e começou a comê-lo.

 

- A Heather pediu-me que passasse a noite com ela disse Amy sem preâmbulos, com os olhos cravados em Dane. - Eu disse-lhe que tinha de pedir autorização ao meu pai, visto que não passo de uma criança... 

 

 

 

 

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