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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ALEXIOS / J. Marquesi
ALEXIOS / J. Marquesi

                                                                                                 

 

 

 

 

Com um passado nebuloso, marcado por traumas, rejeições e violência, há anos Alexios Karamanlis busca entender a si mesmo e, para isso, começa uma caçada sem fim pelo destino de sua mãe biológica, junto a sua melhor amiga, Samara Schneider.
Amigos desde tenra idade, Alexios sempre tentou não a notar como mulher por temer perder sua amizade e apoio, e Samara sempre sonhou com o dia em que o garoto problemático e rebelde se apaixonaria por ela.
Juntos em busca de respostas sobre a verdadeira história do nascimento de Alexios, os dois mergulharão no sujo passado do pai dele, Nikkós Karamanlis, revelarão segredos muito bem guardados e, por fim, descobrirão que não há como reprimir mais a paixão e o desejo que sentem um pelo outro.

 

 

 

 

 

 

O país todo está enlouquecido!, penso ao passar por mais uma blitz policial sem nenhum problema, acelerando a moto ao máximo, capacete preto espelhado impossibilitando qualquer um de ver que quem pilota essa máquina é um garoto, não um homem.

Eu não sou um homem! Não sou! Se fosse, não estaria aqui neste momento, mas sim na delegacia, gritando por aí, fazendo qualquer coisa que não apenas dar uma de burguesinho filho da puta endinheirado, acelerando uma moto que custa o mesmo que um apartamento popular, mesmo sem ter habilitação para isso, apenas para esquecer os problemas.

Eu sou um merda! E sou isso por causa “dele”!

Caralho! A Paulista está fechada por conta das comemorações do pentacampeonato. É, o Brasil conseguiu mais uma estrela no futebol, o país está eufórico como se não houvesse crianças na rua, assassinos à solta, a corrupção impedindo todo o sistema público de funcionar. Foda-se, somos penta!

Faço uma manobra rápida com a moto, deixando marcas dos grossos pneus no asfalto e sigo para outra direção, à procura de mais uma avenida extensa e reta para que eu possa extravasar todo o ódio dentro de mim indo ao limite da velocidade.

Paro a moto de repente e quase sou arremessado para frente. Meus músculos começam a tremer, meus olhos se enchem de lágrimas, sinto frio, meus dentes batem um no outro. Engulo em seco. Não vou chorar! Não choro mais, não há muitos anos.

Cada soco, cada pontapé, cada xingamento e mentira secaram minhas lágrimas. Elas até se instalam em meus olhos, porém não caem. Sufocam-me, quebram meu coração, desequilibram-me.

Caio no chão em um baque só, gemo de dor por causa do peso da moto sobre minha perna esquerda, mas não choro. Respiro fundo para controlar a dor, parar de tremer, diminuir os batimentos do meu coração. Estou acostumado a essa rotina de tentar não sentir dor, de tentar não sentir mais nada.

Levanto-me calmamente, sinto calafrios, manco, mas volto a subir na moto, acelerando-a, fazendo o motor girar e um ruído alto e potente se misturar aos sons das comemorações pelas ruas da cidade. Respiro fundo várias vezes e, quando não sinto mais nada, tiro o pé do chão e deixo a máquina me levar.

Eu queria poder fugir para o mais longe possível desta cidade, mas não dá, infelizmente não posso ir a lugar algum, estou preso, revivendo o mesmo inferno todos os dias, aceitando meu destino com resignação até poder livrar a mim e a Kyra do demônio que nos formou.

Eu poderia pedir ajuda ao Tim, mas sei que ele tem a própria merda para lidar e que conseguiu sair há pouco do inferno. Sei que precisava ir. Meu irmão estava por um fio, assim como eu, e, se ficasse lá conosco, seria para morrer ou matar, e, como não é da sua natureza matar, iria perecer aos poucos, como Nikkós gostaria que acontecesse.

Então ele foi, e eu fiquei incumbido de uma missão que nós aceitamos sem nem mesmo combinar nada, apenas porque sabíamos do que nosso pai era capaz e decidimos que não o deixaríamos chegar a ela.

Soluço na moto.

Eu falhei!

Eu falhei!

Eu falhei?!

Eu não sei! Simplesmente não sei o que aconteceu ontem! Acelero a moto, pegando uma rodovia, ainda tentando processar todos os acontecimentos e os flashes de memória que tenho.

Cometi um erro na noite passada, fui imprudente e agora preciso lidar com tudo o que aconteceu, mesmo sem entender direito o que houve. Enquanto piloto a moto, tento repassar cada momento de ontem, mesmo sabendo que já fiz isso várias e várias vezes sem nenhum êxito.

Nikkós finalmente viajou a trabalho – ou o que quer que ele tenha ido fazer –, e eu consegui relaxar um pouco. Mantenho constante vigilância sobre minha irmã, uma adolescente de 14 anos de idade, e evito ao máximo deixá-la sozinha com nosso pai. Não há muito que eu possa fazer para protegê-la das loucuras dele, mas o que está ao meu alcance, faço.

Por conta disso, desde que ingressei na universidade – no começo desse ano –, desdobro-me ao máximo para curtir com meus amigos e proteger a Kyra. A babá anterior era a mesma desde quando minha irmã e eu nascemos, totalmente devota ao nosso pai, então, assim que Konstantinos tomou posse de sua herança, demos um jeito de nos livrar dela, e, assim que outra foi contratada, meu irmão se encarregou de pagar uns extras para ela manter os olhos em Kyra.

Nikkós sempre foi um filho da puta covarde, ele nunca iria deixar um serviçal ver o que ele é capaz de fazer aos filhos, por isso tinha seus próprios lugares para executar suas torturas em Kostas e em mim.

Noite passada, uma galera mais velha da universidade fechou uma boate e me convidou para festejar com eles. Estávamos entrando de férias e queríamos muito desopilar o fígado, relaxar, curtir e esquecer todas as pressões dos estudos.

Como Nikkós não estava em casa, e a babá estava por lá com Kyra, por que não ir? Foi esse meu erro!, penso ao relembrar.

 

— O grande Alexios Karamanlis! — Alberto Bragança me saúda assim que entro na boate. — Achei que você não vinha mais, mano!

Ele me entrega uma caneca de 500ml de chope e um cartão para o restante do consumo, e logo vejo os outros caras em uma mesa no fundo do salão. A música alta, tocando um “batestaca” qualquer, não chama minha atenção. Sigo, então, na direção do pessoal e, mal chego lá, peço mais uma rodada de chope para todos.

Meu pai é um grande filho da puta, torturador desgraçado, mas, para manter as aparências, deixa-nos usar cartão sem limites e nos entrega uma mesada gorda. Bebo, sentindo o gosto do chope se tornar mais amargo que o normal, consciente de que essa porra toda é dele, comprada com o seu maldito dinheiro.

— Jefinho está na área! — alguém grita comemorando. — Vamos começar a diversão! Quem vai?

Sou um dos primeiros a me levantar, viro o resto da bebida e sigo com mais cinco amigos para o banheiro, atrás do traficante oficial da turma. Vejo cada um pegando “no bufê do Jeff” sua viagem preferida e pego um pino de “coca” para começar bem a noite.

“Foda-se, Nikkós Karamanlis!”

Cheiro.

“Foda-se, Sabrina Karamanlis!”

Aspiro mais um pouco.

“Foda-se, Theo Karamanlis!”

Faço outra carreira com o restante do pó.

“Foda-se, Geórgios Karamanlis!”

Seguro a narina fechada, mantendo tudo dentro de mim, sentindo já meu corpo girar, o cérebro acelerar e todas as sensações de abandono e dor se esvaírem como num passe de mágica. Só existe prazer, nenhuma dor, tudo é maravilhoso!

Compro mais três pinos de cocaína e alguns comprimidos de êxtase. Essa noite não quero dormir, quero aproveitar, dançar, zoar, pegar umas universitárias e esquecer quem sou.

Começo a rir de mim mesmo, da piada que acabei de pensar. Esquecer quem sou só seria possível se eu soubesse quem sou.

“Eu não sou ninguém!”

Meu Nokia vibra com a chegada de uma mensagem, confiro ser de Samara, minha única e melhor amiga, e volto a colocá-lo no bolso ao perceber a aproximação de uma gostosa do quarto ano.

— Eu não acredito que você é menor de idade, Alex! — A garota, com luzes nos cabelos e vestido com apenas uma alça, passa a mão no meu peito. — Você não parece ser um garoto, mesmo com esse rostinho angelical.

Respiro fundo para não perder a paciência, pois, se há algo que me irrita muito, é quando dizem que eu pareço um anjo. Aproximo-me dela e a puxo pela cintura.

— Posso provar que não sou um anjo! — Pego sua mão e a levo até a frente da minha calça. A garota arregala os olhos. — Os demônios com cara de anjo são os piores, gata!

— Uau! — Ela lambe meu pescoço. — O que você tomou?

— Coca, mas tenho “bala” no meu bolso. — Ela ronrona, e eu me animo. — Vem comigo!

Levo-a para uma área nos fundos da boate, uma espécie de depósito que se encontra aberto, uma vez que a casa está funcionando apenas para um bando de playboys endinheirados que preferem não se misturar com a ralé e, assim, fazer suas merdas longe dos olhos curiosos da plebe.

Claro! Afinal de contas, aqui estão reunidos os filhos dos maiores empresários, advogados, médicos, juízes e a porra toda elitizada desta cidade decadente. Bando de fodidos! A maioria desconta, como eu, a falta de afeto e atenção em casa gastando dinheiro, promovendo rachas pelas ruas, consumindo todo tipo de droga tentando preencher o buraco negro instalado nas nossas almas.

“Foda-se!”

Seguro a garota contra a parede fria do depósito e, sem nem mesmo perguntar seu nome, ataco sua boca com fúria, mordendo seus lábios e sugando sua língua. Ela mexe em minha calça, abre-a e retira meu pau para um tratamento especial em suas mãos macias.

— Novinho e pauzudo... — ela geme. — Cadê a balinha para deixar tudo mais divertido?

Sorrio e nego.

— Tem que merecer.

Ela sorri e, sem que eu precise sequer lhe indicar o que quero, ajoelha-se no chão grosso e toma meu pau em sua boca quente e esfomeada. Gemo, gostando da carícia, seguro-a pelos cabelos e a forço a engolir o máximo que consegue.

Tenho quase 17 anos, mas aposto com quem quer que seja que nenhum desses caras daqui tem a metade da experiência sexual que eu. E não, não “tiro onda” com isso, afinal, quem é filho de Nikkós Karamanlis não tem muita escolha sobre quando vai começar a trepar, ele simplesmente impõe, e comigo isso aconteceu quando eu tinha 11 anos de idade.

Afasto o pensamento pestilento sobre meu pai e curto a chupada gostosa que a garota ajoelhada me dá. Ela lambe, chupa, suga com força, arranha com os dentes – coisa que me excita “pra caralho” – e segura minhas bolas com vontade. Percebo que ela quer fazer o serviço completo com a boca, mas definitivamente ela não me conhece.

Ergo-a de uma vez só e a ponho de cara contra a parede. Procuro a camisinha no bolso da calça – uma coisa que se aprende quando se começa a vida sexual trepando com putas é que preservativos nunca podem faltar –, plastifico meu pau e levanto o vestido dela.

Bunda gostosa, magra, mas gostosa “pra cacete” com uma calcinha de cor forte – não sei se vermelha ou rosa; não divago muito sobre a cor, mesmo porque é irrelevante –, afasto a peça e esfrego os dedos em sua boceta depilada.

Ela ofega, rebola gostoso na minha mão. Vou penetrando-a devagar com os dedos, recolhendo um pouco da umidade de dentro de sua vagina para usá-la exatamente no ponto onde quero. Massageio seu clitóris até que ela se contraia em gozo e volto a molhar seu rabo com a lubrificação que solta.

Ela fica tensa quando encaixo a cabeça do meu pau em seu ânus apertado.

— Alex...

— Psiu... — falo devagarzinho em seu ouvido, lambendo sua orelha enquanto vou me afundando no canal estreito, sentindo meu corpo todo reagir à pressão de um local nunca ou pouco explorado. — Eu disse a você. — Ela arfa quando me encaixo por completo em seu rabo. — Os demônios com cara de anjo são os piores!

Meto com força e continuo estimulando seu clitóris, beijando e mordendo seu pescoço, até que ela explode em um orgasmo foda, e eu me deixo ir na camisinha, ainda sentindo as contrações do seu corpo. Quando ela se vira para me beijar, estico minha língua com sua recompensa na ponta. A garota sorri e chupa a drágea com vontade, enquanto eu engulo a outra.

A noite só começou!

 

Paro a moto em frente ao prédio onde Konstantinos mora. Fico parado olhando para o alto, invejando a liberdade de meu irmão, a coragem que teve ao se libertar assim que pôde do nosso pai. Ele estuda no Largo de São Francisco, vai ser um advogado e, mesmo que tenha tentado disfarçar, ficou contente quando contei que havia passado em todos os vestibulares para os quais havia prestado.

— Vai para algum lugar longe da cidade? — Kostas não escondeu sua preocupação.

— Não, vou ficar aqui — respondi com sinceridade, mesmo que minha vontade fosse ir para o mais longe possível deste inferno de lugar. — Vou continuar no apartamento de Nikkós, pelo menos até a Kyra fazer 18 anos.

Ele respirou fundo, e nossa conversa por telefone acabou aí. Nós não precisávamos externar nossa preocupação um para o outro, sabíamos do que nosso pai era capaz e do perigo que Kyra corria estando sob o mesmo teto que ele. Kostas saiu de casa, pois nunca soube lidar com Nikkós, ao contrário de mim.

O grego maluco tentou fazer comigo o mesmo que fazia com o meu irmão, porém nunca pensou que não me afetaria, então mudou de tática. O desgraçado tentava me acertar no único ponto que realmente me doía, mas ainda assim eu resistia em demonstrar alguma dor, então ele me fazia sentir na carne.

Esfrego a mão no ombro esquerdo, quebrado há dois anos no que todos acreditaram ser um acidente enquanto eu andava de skate, sem saber que quase tive o braço arrancado pelo homem louco, bêbado e drogado a quem todos respeitavam como um exemplo de pai, criando seus filhos sozinho depois de ter sido abandonado pela mulher.

Farsante dissimulado! Nunca amou ninguém, nunca se preocupou ou se dedicou a ninguém, nem a si mesmo. Eu só não entendo o motivo pelo qual ele não deixou que a puta que me gerou abortasse ou mesmo por que não me deixou com ela.

Eu sou um covarde! Rio, ligando a moto de novo.

Meu maior sonho é vê-lo morto, desejei e planejei isso tantas vezes, de tantas maneiras diferentes, que sei todos os passos de cor. No entanto, nunca tive coragem... Respiro fundo.

Pelo menos até essa madrugada!

Não faço ideia de como cheguei a casa, estava doidão, alto demais, cheirava a cerveja, maconha, sexo e perfumes variados. Não sei nem com quantas garotas trepei à noite, sei que algumas só mamaram meu pau, mas, com outras, a coisa foi mais louca.

Não consigo me lembrar de muita coisa. Só tenho sensações ruins de quando cheguei ao apartamento e percebi que Nikkós havia voltado. Nas memórias, há gritos, choro, mas nenhuma imagem. Tudo o que tenho nítido na cabeça foi o que aconteceu depois que acordei.

Estava deitado na sala principal do apartamento, minhas roupas sujas de sangue, rasgadas, um hematoma no olho e um corte no canto da boca já me incomodando. Não sabia nem onde estava, só sentia dor, confusão, e vomitei ali mesmo, no tapete da sala.

Ao meu lado vi uma faca suja de sangue. Gelei, sem saber o que tinha feito e de quem era o líquido viscoso e vermelho que cobria toda a lâmina. Foi nesse momento que saí do torpor em que me encontrava, peguei o objeto e comecei a correr pela enorme cobertura, entrando em todos os cômodos.

— Kyra! — gritava, mesmo com a cabeça explodindo. — Kyra!

Minha irmã não estava em lugar algum, nem mesmo a Nívea, a senhora que cuidava dela, eu pude encontrar. Meu desespero só aumentou. Liguei para o telefone dela, mas estava dando na caixa de mensagens.

Comecei a soluçar, mesmo não derramando uma só lágrima, e entrei no local proibido da casa, o santuário satânico de Nikkós Karamanlis: seu quarto.

Estanquei quando vi seu corpo enorme e nu jogado sobre a cama king size. Notei os cortes em seus braços, bem como o movimento de respiração, seguido dos roncos altos. O filho da puta não estava morto! Apertei a faca em minha mão com mais força, pensando que esse seria o momento certo para livrar a todos de sua existência.

Andei até ele devagar, os nós dos dedos brancos de tão firme que segurava a faca. Medi suas costas, imaginando que seria muito fácil perfurar seu pulmão com uma só estocada no lugar certo e que ele morreria afogado em seu próprio sangue lentamente, em uma morte digna dele.

Ergui a faca, fechei os olhos, parei de tremer e me lembrei de todos os anos de abuso e de tortura, do que ele fazia ao Kostas, do que fazia comigo e do que poderia fazer a Kyra.

Respirei fundo, concentrei a força e desci a faca, mas parei a milímetros de sua pele quando ouvi soar a campainha. Joguei a arma para longe e saí correndo daquele cômodo pestilento, descendo as escadas disparado para atender a porta, torcendo para que fossem Nívea e Kyra.

— Alexios? — a voz de Samara me fez prender o fôlego. — Alexios, você está aí?

Abri a porta sem pensar duas vezes e desmontei ao ver minha irmã ao lado da minha melhor amiga. Kyra, minha pequena princesa, linda como uma pintura, seus olhos enormes e verdes cheios de lágrimas e os lábios trêmulos.

— Ainda bem! — exclamei aliviado, puxando-a para meus braços. — Ainda bem!

— Alexios, você precisa de ajuda? — Samara questionou, olhando tudo em volta. — Ontem à noite a senhora Nívea pediu que Kyra ficasse comigo e...

Segurei o rosto de minha irmã, desgostoso por saber que ela mal fala por conta do monstro que temos em casa, sequei as lágrimas que escorriam por seu rosto miúdo e assustado e perguntei:

— O que houve?

Ela deu de ombros.

— Ele voltou mais cedo, estava bêbado, mandou Nívea embora. — Sinto um arrepio de frio percorrer minha coluna. — Os dois discutiram. — Ela soluçou. — Ele bateu nela, ela desmaiou...

— E você, onde estava?

Kyra desviou os olhos, e eu senti como se um soco acertasse a boca do meu estômago. Olhei para Samara em busca de uma resposta, mas minha amiga apenas deu de ombros, indicando que minha irmã também não falou com ela.

— Quando ela acordou, me levou para o apartamento da Malinha, e aí eu fiquei lá. — Kyra olhou em direção ao corredor. — Ele ainda está...

Assenti.

— Vá para o seu quarto, tranque a porta, tome um banho; daqui a pouco vou me encontrar com você. — Ela tentou sorrir em agradecimento para Samara, mas depois desistiu, seguindo diretamente para seu quarto. — Samara...

— Vocês precisam denunciar isso! — Ela tocou meu rosto. — Você é só um garoto, Alexios, não pode proteger vocês dois.

— Posso! — afirmei cheio de raiva. — Você sabe muito bem que, se uma denúncia for feita, ela será tirada de nós. Eu ficarei um ano em algum abrigo, mas e ela?

— O Tim não pode...

Neguei.

— Não acho que o deixariam cuidando de dois adolescentes, ele só tem 20 anos! — Fechei os olhos, cansado, com medo, sem saída e senti quando ela me abraçou apertado.

— Onde você esteve ontem à noite?

— Fui me divertir...

— Não. — Seus olhos lindíssimos encararam os meus. — Você não se diverte, Alexios, você tenta se matar. — Passou a mão pelo meu rosto. — Quanto usou?

Dei de ombros, não querendo discutir isso com ela. Nunca termina bem!

— Isso não ajuda ninguém. Nem a você, muito menos à sua irmã. — Tentou sorrir para disfarçar o sermão, seus dentes cheios de plaquinhas do aparelho ortodôntico, o rosto redondo de menina fazendo covinhas, coisa que ela sempre teve e sempre achei lindo. — Eu sei que só tenho 15 anos, mas...

— Eu agradeço que você tenha feito companhia a Kyra, mas agora preciso resolver tudo aqui. — Apontei para a sala. — Ficou tudo bem com seus pais?

— Sim, não acharam nada estranho que Kyra dormisse lá em casa, afinal, somos amigas.

Ri amargamente.

— Essa amizade é aceitável para os Schneiders, não é? — Samara ficou vermelha. — Kyra é uma boa menina, não um porra-louca como eu, filho de uma puta e...

Samara pôs a mão sobre minha boca.

— Você é meu melhor amigo, apenas isso deveria te bastar para calar qualquer outra coisa que meus pais possam pensar de você.

Abracei-a forte, a consciência pesada por falar mal de sua família, pois sei quanto ela os ama, depois me despedi e tratei de limpar a sala, jogar a roupa que usava fora e fiquei até há pouco com minha irmã, ambos trancados no seu quarto.

Só saí para espairecer, para processar tudo o que aconteceu na madrugada passada, pois mais uma vez Samara agiu como um anjo e convidou minha irmã para assistir à final da Copa do Mundo com ela e depois terem uma noite de meninas, com direito a festa do pijama.

Entro na garagem do prédio, mando uma mensagem para Samara informando-a de que cheguei e que estou indo buscar minha irmã. Sinceramente eu não sei como vou fazer até encontrar outra pessoa de confiança para deixar com Kyra quando eu não estiver em casa, pois Nívea disse que nunca mais colocará os pés no nosso apartamento, depois de ter recebido uma boa quantia para que não denunciasse o que se passa dentro de nossa casa, pois entendeu que prejudicaria Kyra.

Não importa! Kyra precisa de mim, e, nem se eu precisar mudar toda minha rotina por causa dela, a terei protegida.


São Paulo, tempo atuais.


Acordo com uma dor de cabeça filha da puta, ressacado, tão zonzo que tropeço ao sair da cama, e a primeira coisa que me vem à cabeça nesta manhã (ou será nesta tarde?) é que hoje é véspera de Natal. Foda-se! Sou ateu, esses feriados religiosos não significam nada para mim.

Sigo pelo corredor em direção à cozinha, com muita sede, louco para tomar um analgésico para exterminar a dor de cabeça. Não vou tomar! Não tomo remédios para dor há anos, aprendi a conviver com as pontadas, com as ardências. A dor me tornou mais forte, resiliente, aprendi há muito que nada é capaz de me ferir mais do que eu mesmo.

A maioria dos meus ossos trazem lembranças de como superei, as marcas no meu corpo também, porém, nenhuma dessas cicatrizes é mais forte do que o vazio dentro de mim.

Encho um copo d’água até transbordar e o bebo em um só gole. A cabeça martela ainda mais por conta da bebida gelada, mas ignoro-a por completo. Não há remédio para o que sinto, não há cura para toda a raiva que carrego dentro de mim, então posso, sim, conviver com umas horas de pontadas no cérebro.

Olho para a porta fechada na área de serviço. Os cômodos dali eram a tal dependência de empregados, mas, como eu nunca tive nenhum, aproveitei-os para outros fins. Inspiro, os cheiros tão familiares chegando às minhas narinas. A raiva natural com que acordo todos os dias se aplaca; não some, apenas se recolhe, dando lugar às sensações de prazer.

Confiro as horas e xingo ao perceber que já estamos no meio da tarde. Sinceramente, não sei por que Kyra inventou essa ceia de Natal, não depois de todos esses anos. Não entendo minha irmã, sinceramente. Há muito convivo com seu gênio forte, sua determinação, mas ainda não sei quem é ela. A garota divertida da infância se tornou uma adolescente quieta e taciturna, uma jovem inteligente e ajuizada e, por fim, uma adulta completamente misteriosa. Eu a acompanhei em todas as fases de sua vida, mas ainda assim não sei quem é a verdadeira Kyra Karamanlis.

Assim que ela completou 18 anos, abandonamos a luxuosa cobertura de Nikkós e fomos morar em um cafofo velho e caindo aos pedaços. Eu estudava como um louco no meu último ano de faculdade, e, como ela passou para uma universidade pública também, tínhamos que morar próximo de uma das duas universidades. Preferi ficar próximo da dela e me fodia andando de bicicleta até a minha todos os dias.

Nessa época eu estagiava na Novak Engenharia e, com a bolsa do estágio, eu mal conseguia pagar o aluguel do quarto e sala que aluguei. Ela nunca soube, mas quem bancava nossa alimentação, transporte e outras despesas era o Kostas. Meu irmão e eu nem éramos amigos, na verdade mal nos falávamos, mas todo mês o dinheiro aparecia na minha conta, e eu sabia que vinha dele.

Formei-me e já fui efetivado na Novak. Trabalhei com o Nicholas, com quem aprendi demais e construí uma amizade forte, assim como com seu irmão Bernardo. Os tempos de bagunça, baladas, drogas e bebidas acabaram quando nos libertamos da prisão daquele apartamento e da convivência maligna de Nikkós.

Kyra estudava muito, era extremamente aplicada em tudo o que fazia, e, irritada por não conseguir conciliar seu horário de estudos com um emprego, começou a fazer doces e salgados dentro do nosso pequeno apartamento e vendê-los na faculdade.

Rio ao pensar que foi assim que nasceu a promoter de eventos, em uma cozinha de seis metros quadrados, com um forno capenga, um fogão com só duas bocas funcionando e uma geladeira que parecia um monomotor, de tanto barulho que fazia. Em pouco tempo ela estava fornecendo encomendas para festas e pequenos eventos, depois começou a fazer projetos de decoração, então, quando se formou, foi trabalhar em um grande e caríssimo bufê da cidade, auxiliando a cerimonialista com os projetos.

Hoje ela é a dona de uma empresa especializada em produções de eventos diversos, bem-sucedida, com um negócio em progressão geométrica de crescimento. Tenho muito orgulho dela, principalmente por ser a única que não ficou agarrada ao cordão umbilical familiar dentro da Karamanlis.

Agora qual a necessidade da porra de uma ceia de Natal para comemorar a expansão de seu negócio? Vou ter que ficar com um maldito sorriso no rosto, carinha de anjo, lidando com o caralho da minha gastrite me corroendo ao pensar na hipocrisia do mundo.

Respiro fundo e decido combater a ressaca e a dor de cabeça com mais bebida. Pego uma cerveja na geladeira, abro-a na beirada da pia e entro no outro ambiente, a sala, integrada ao outro cômodo, separados apenas por uma enorme bancada.

Eu mesmo projetei esse prédio, há alguns anos, ainda trabalhando na Novak. Bernardo Novak é meu vizinho de porta, e Nicholas foi o primeiro dono da cobertura duplex que toma todo o último andar, hoje habitada por um casal e uma menininha. Comprei o apartamento pensando em vir morar com minha irmã, mas qual não foi minha surpresa quando ela anunciou que só sairia do cafofo para seu próprio lugar?

Pois é, vim sozinho, ocupo apenas a suíte principal, e os outros dois quartos estão praticamente vazios. A sala foi decorada – pela própria Kyra –, bem como a cozinha, mas nunca mandei fazer os móveis da sala de jantar, pois não vejo nenhuma função para eles. Eu como sozinho no balcão da cozinha, assistindo a TV ou ouvindo música.

Resgato meu celular, seleciono uma das minhas muitas playlists, e a caixa de som já liga automaticamente, deixando o som pesado do Matanza ecoar pelos ambientes. Sorrio ao ouvir “Bom é quando faz mal”, as recordações das loucuras da faculdade, de toda a merda que eu fazia. Não tenho vontade alguma de fazer de novo, mas também não posso dizer que me arrependo. Era o meu jeito de extravasar, tresloucado, admito, mas ainda assim muito mais normal do que o que eu vivia dentro de casa.

Preparo qualquer coisa para comer, balançando a cabeça e cantando as músicas de várias bandas de rock, algumas famosas, outras nem tanto, mas que marcaram minha vida de alguma forma.

O telefone toca, e a chamada atrapalha minha diversão musical. Bufo, jogo o pano de prato sobre a pia e pego o aparelho.

— Oi, Millos — atendo meu primo.

— Boa tarde, Alexios. Animado com a reunião de hoje à noite?

— Ô, tão quanto eu estaria para fazer um exame de próstata. — Millos gargalha. — Ela convidou você também?

— E o Kostas. — Isso me surpreende, pois, até onde eu sei, não temos nenhuma convivência com ele. — Bom, liguei para dizer que irei viajar na virada do ano, por isso preciso que você não deixe de ir ao baile dos Villazzas.

Gemo ao pensar em vestir um smoking.

— Porra, Millos, não fode! Aposto que Theodoros vai, afinal Frank e ele são quase um casal! — Millos ri do meu deboche acerca da amizade entre meu irmão mais velho e o CEO da rede Villazza de hotéis. — Não tenho a mínima...

— Konstantinos confirmou presença também.

Puta que pariu!

Preciso me sentar depois dessa informação, pasmo só em imaginar Kostas com alguma puta, sentado na mesma mesa de Theodoros. Vai dar merda!

— Eu não tenho companhia — tento me justificar. — E você poderia adiar a sua viagem só por uns...

— Não, não posso, já fiz todos os arranjos, reservas em hotéis, o cronograma da viagem! Você tem que ir para evitar que os dois prejudiquem a imagem da empresa.

Reviro os olhos ao pensar na imagem da empresa. Millos é doido ao pensar que temos uma imagem a zelar. Todos nesta maldita cidade, neste meio asqueroso no qual vivemos, sabem que somos todos fodidos e que nosso pai cagou em nosso nome com a sucessão de merdas que fez.

E olha que a maioria não o conheceu de verdade, não soube o monstro que ele era, escondido por detrás de uma fachada bonita e um sorriso de conquistador barato! Um lobo em pele de cordeiro, um demônio com a face de um anjo... assim como eu.

Bufo de raiva.

— Cadê aquela sua amiga? — Franzo a testa, sem acreditar que ele está se referindo à Samara. — Vocês viviam para cima e para baixo juntos, ela te acompanhou em um dos primeiros eventos dos Villazzas e...

— A Samara mora em Madri há mais de três anos, Millos. — Decido não entrar em detalhes e contar a ele que nos afastamos por algum motivo idiota que eu não consigo lembrar. — Vou ter que ligar para alguma...

— Isso, ligue — ele me corta. — Mulher nunca foi seu problema, aposto que você tem um caderninho cheio de telefones.

— E daí? — afronto-o. — Gosto de sexo, nunca escondi isso, diferente de você, que nunca foi visto com nenhuma mulher além daquela sua amiga motoqueira. — Decido provocá-lo: — Millos, acho que está na hora de sair do armário, porra!

O filho da puta ri alto.

— Eu não teria problema algum em sair se fosse o caso. Ainda mais agora, que Dimitrios saiu, e o pappoús continuou vivo e... — Millos para.

É sempre assim quando algum assunto referente à família na Grécia vem à tona. Eu não conheço ninguém, nunca fui à Grécia, nem tenho a mínima vontade de ir. Não conheço o tal pappoús, nem primo algum além de Millos, que só conheci quando veio morar no Brasil.

Sou o Karamanlis renegado, indigno do sobrenome.

— Vou ligar para alguém e convidar a ir comigo — encerro o assunto constrangedor. — Mas não garanto atuar de mediador como você.

— Você, mediador? — Millos se surpreende. — Alexios, se eu não tivesse interferido, você teria criado uma situação com Theodoros na festa de final de ano da Karamanlis. Eu só quero que você vá com alguém e iniba um pouco aqueles dois.

Bufo e concordo.

— Eu vou.

— Obrigado. — Estou prestes a desligar, quando ele me chama de novo: — Ah, Alexios, não encha a cara, senão você vai falar merda para o Theo, e o Kostas vai se aproveitar disso.

— Vai se foder, Millos! Eu já vou, porra, não diga o que tenho que fazer.

Desligo irritado, perco a fome e a vontade de terminar o que estava preparando.

Mesmo puto, preciso admitir, Millos tem razão sobre eu perder a cabeça com Theodoros, principalmente quando bebo. Eu não odeio meu irmão mais velho como sei que Kostas o faz, apenas ele não significa mais nada para mim.

Convivo bem com ele, pelo menos no sentido profissional, mas não quero nenhum tipo de ligação mais pessoal. Ele perdeu o timing quando, depois de toda a merda que ajudou a fazer, nunca mais quis saber de nós. Era como se nem existíssemos! Ele excluiu Nikkós de sua vida, mas acabou nos descartando junto. Nunca se preocupou em saber de nenhum de seus irmãos, muito menos de sua adorada Kyra, a mais vulnerável de todos nós.

Então, sim, eu perco a cabeça com ele, principalmente com seu jeito esnobe, intocável, como se somente ele importasse e mais ninguém. E foi por isso que nos estranhamos na festa de final de ano da Karamanlis, porque, simplesmente, este ano a festa não foi Theocrática1.

Millos e eu nos reunimos com alguns gerentes e coordenadores para entender o que os funcionários da Karamanlis gostariam de ter em uma festa de encerramento do ano. Depois, contratamos todos os serviços – sem ser da Kyra, pois neste ano ela se livrou de nós na cara dura – e fizemos a festa focada nos funcionários.

Aparentemente, isso chocou e desagradou ao CEO com síndrome de deus, e sua cara fechada e seu olhar de desprezo não ficaram nada disfarçados.

— Ei, irmãozinho! — Eu o parei, enquanto andava como um deus do Olimpo visitando terráqueos. — Aproveitando a festa?

— Espero que não tenha vindo de moto! — o filho da puta tentou me repreender como se estivesse preocupado com minha segurança, e isso, juntamente a toda cerveja que eu já tinha tomado, irritou-me.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já muito bêbado para me conter. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos2!

Theodoros franziu o cenho com meu deboche, comparando seu nome à palavra deus em grego. Estava prestes a dizer algo, mas se conteve quando de repente fui abraçado pelos ombros. Nem precisei olhar para saber que nosso interventor havia chegado.

— Alex, que festança, não? — Millos comentou. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — Theodoros pareceu perplexo. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Gargalhei ao confirmar que ele era mesmo um grande egocêntrico, incapaz de perceber a diferença da festa deste ano à do ano passado por estar focado nos detalhes e não no que realmente importava: as pessoas.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — respondi como se estivesse sóbrio, mesmo não estando. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos me cortou.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — Theodoros perguntou ao Millos, apontando o dedo em minha direção como o grande babaca que sempre foi.

— Fui! — respondi. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Tentei demonstrar com gestos o que dizia, abri os braços de repente, e meu punho bateu no peito do Millos, que chegou para trás. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — olho para um grupo dançando e vários outros conversando, comendo e se divertindo — você está vendo alguém ir?

Ele ficou um tempo olhando em volta como se notasse, pela primeira vez desde que chegou, que realmente os funcionários estavam adorando a descontração deste ano.

Eu só não esperava que ele tentasse ser condescendente comigo:

— Bom trabalho! O pessoal parece realmente estar gostando!

Só faltou dar umas batidinhas em minha cabeça como se eu fosse a porra do seu cãozinho de estimação. Meu sangue ferveu, travei os punhos e não me contive:

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos interrompeu-me e me abraçou novamente pelos ombros. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Mal acabou de falar, seguiu para o outro lado, levando-me consigo.

— Porra, moleque, não tem como ser menos reativo não? A festa está um sucesso graças ao seu feeling, ao modo como você conhece e percebe as pessoas, para que estragar isso batendo boca ou — ele me encarou —, como percebi que queria fazer, enchendo a cara do Theo de porrada? Sai dessa!

Concordei com meu primo e respirei fundo. Depois disso tomei quase um litro de café amargo, ele me pôs em um Uber, e eu vim para casa, onde continuei a beber, desmaiei no sofá e, no outro dia, fui correr ainda um tanto trôpego, sendo desclassificado no teste do bafômetro.

Perdi minha última corrida do ano, grande fracassado que sou!

Volto a ligar minha playlist, e a música que toca é exatamente a que eu preciso para sair da fossa dessas lembranças todas:

— Eu não tenho nada pra dizer. Também não tenho mais o que fazer. Só para garantir esse refrão, eu vou enfiar um palavrão: cu!3


Entro no showroom da A??p?4 – a empresa de eventos de Kyra – e já admiro o trabalho dela com a decoração do local. A enorme mesa com vários lugares ocupa o centro do enorme salão, com castiçais, flores, louças e talheres milimetricamente colocados, junto a taças de cristal e guardanapos de linho.

No restante do salão, há mesas altas para apoiar drinques, sofás e poltronas brancas, com almofadas e outras coisas de decoração seguindo a paleta de cores da festa: verde, vermelho e dourado.

Clichê! Mas é Natal, tem como não ser?

Dou de ombros e vejo Kyra de costas, junto à belíssima morena que trabalha com ela desde que abriu a empresa e as duas chefes de cozinha que conheceu ainda quando trabalhava no outro bufê e as roubou na cara dura quando resolveu estabelecer seu próprio negócio. Uma delas, acho que é a doceira – Mari, como todos a chamam – me vê e logo cutuca minha irmã.

— Ah, Alex! — Kyra abre um enorme sorriso, entrega para a morena – como é mesmo o nome dela? – os penduricalhos de Natal com os quais enfeitava o enorme pinheiro e vem até mim. — Que bom que chegou, tenho uma coisa para você!

Ah, puta que pariu! Ela me comprou um presente? Fico imediatamente sem jeito, pois não comprei absolutamente nada para ela. Eu nem imaginava que iríamos trocar lembranças, nunca fizemos isso!

Alívio toma conta de mim quando ela vem com uma caixinha pequena e claramente de doces.

— Quando experimentei, lembrei logo de você. — Ela tira um doce dourado de dentro da caixa. — Prove!

Franzo o cenho e abro a boca. Mastigo devagar, emitindo sons de prazer, adorando o contraste de texturas e o sabor doce e... picante. Abro um sorriso.

— Chocolate com pimenta! — Termino de comer. — Perfeição!

— Bombom Helênico. — Faço careta para o nome, não combina em nada. — Eu sei, é péssimo, mas as meninas quiseram fazer uma homenagem para a Helena, então... — Dá de ombros.

Helena!, minha mente grita ao lembrar o nome da morena gostosa, mas que nunca sorri e mal fala comigo quando apareço aqui.

— Hum... gostosa! — Começo a rir quando noto que falei alto. Kyra me olha séria. — O quê?

— Nem pense, ela está comprometida!

Ergo as mãos em minha defesa.

— Não falei nada!

— Não precisa! Sua fama de embusteiro conquistador te precede! — Faço careta, e ela ri. — Estive com saudades de você.

— Então por que não foi me ver ou me ligou? — pergunto sem enrolação.

— Não sei.

Respiro fundo. Ela se fecha, é sempre assim e não só comigo. Ela se empolga, vibra, deixa as pessoas se aproximarem, mas nunca demais. Quando chega a seu limite, simplesmente retrocede com a mesma rapidez e naturalidade com que atraiu alguém. É por isso que suas amizades ou mesmo seus relacionamentos amorosos nunca duraram muito.

Porém o que faço eu aqui, julgando-a?

— Alexios Karamanlis! — Viro-me ao ouvir a voz de Millos.

Meu primo – filho de uma égua! – carrega uma enorme caixa de presente toda embrulhada e com laços. Kyra abre um enorme sorriso e vai saltitante até ele, abraça-o pelo pescoço – coisa que não faz nem comigo – e agradece o regalo.

— É para decorar sua sala de empresária fodona — ele brinca com ela, e Kyra gargalha ao tirar uma estátua toda colorida de um unicórnio. — Eu me lembrei daquela sua fantasia no dia das bruxas...

Kyra para de boca aberta.

— Millos, eu tinha quatro anos! — ela recorda e, de repente, parece lembrar também que, naquela época, tudo parecia realmente possível, mágico e feliz.

Meu primo a abraça forte e fala algo em seu ouvido, baixinho. Kyra assente, e eu fico paralisado vendo a troca de carinho entre eles. Parece normal, não é? Mas, creiam-me, não é. Millos evita qualquer contato físico com outras pessoas. Ao cumprimentá-las, ele prefere baixar a cabeça do que dar um aperto de mãos; o máximo que o vi fazer até hoje foi tocar no ombro de alguém, mas somente quando julga necessário. Até comigo, o máximo que ele fez até hoje foi me abraçar para evitar um embate entre mim e Theo. Então assistir aos dois se abraçando é realmente algo inédito.

— Feliz Natal, pesménos ángelos5.

Mostro o dedo do meio para ele.

— Ah, pesquisou! — Ri debochado, mas logo para ao aceitar o chope que Kyra nos oferece. — É um absurdo você não saber nada da nossa língua.

— Não tenho interesse algum por nada que venha de lá — justifico e bebo. — Kyra também não sabe!

— Quem disse? — Ela começa a rir. — Anóito6.

— Quando foi que você se interessou por essa porra? — questiono-lhe surpreso.

— Você leu o nome da empresa dela na fachada? — é Millos quem retorna minha pergunta. — Está em grego!

Millos e Kyra engatam uma conversa, enquanto eu ainda estou paralisado com essa nova informação. Não é exagero, mas eu pensei que ela, assim como eu, desprezasse qualquer coisa que tenha relação com Nikkós. No entanto, ao contrário de mim, ela sempre foi aceita por todos os Karamanlis como parte da família, então é natural que tenha algum apreço por eles.

— Ah, mais convidados estão chegando!

Kyra deixa-nos a sós e vai até um grupo que não conheço.

— Ela parece feliz — comento com Millos.

Meu primo dá de ombros.

— Há pessoas com o dom de demonstrar apenas o que querem que vejam. — Bebe o resto de seu chope e me encara. — Já resolveu o assunto do baile dos Villazzas?

— Ah, Millos, não fode mais a minha noite! — Vejo duas lindas mulheres adentrarem ao salão e abro um sorriso. — Pode ser que ela esteja começando a melhorar.

Millos ergue uma de suas sobrancelhas, e eu o deixo sozinho, caminhando em direção ao meu mais novo alvo da noite, que, neste exato momento, cumprimenta minha irmã.

— Kyra, eu gostaria de... — finjo interromper-me quando as desconhecidas me olham. — Desculpem-me. — Kyra rola os olhos, mas suas convidadas não desviam o olhar do meu rosto. — Millos estava falando do chope, e nós fizemos uma pequena aposta, mas posso ver isso depois, atenda seus convidados. — Abro novamente meu melhor sorriso na direção delas.

— Valéria e Priscila, esse é meu irmão, Alexios Karamanlis — Kyra faz nossa apresentação, e eu sei que depois irá jogar na minha cara que eu estou lhe devendo por isso.

— Um prazer, Valéria! — Aproximo-me para cumprimentá-la e logo depois saúdo a outra: — Prazer, Priscila.

— O prazer é meu, Alexios — Priscila responde, sorrindo, e vejo a mão de Valéria tocar suas costas num gesto um tanto territorialista. Perfeito! Trocamos beijos no rosto em cumprimento. — Eu já te vi em algumas revistas especializadas em engenharia e arquitetura, principalmente quando o conselho dessas classes era o mesmo.

— Arquiteta? — tento adivinhar, mas ela nega e aponta para sua amiga.

— Valéria é, eu sou designer industrial. — Faço cara de surpresa, mesmo sem achar nada de mais. — É, eu sei, a maioria das pessoas que me conhece acha que sou modelo ou estilista, mas você quase acertou. — Seu sorriso é claramente de quem se sente lisonjeada. — Trabalho conceitos para grandes marcas.

— Incrível! — Olho-a de cima a baixo, e Kyra bufa. — Você também parece incrível, Valéria. — Sorrio, e ela relaxa.

— Alexios, chegaram outros convidados, você poderia fazer companhia a elas? — Ela pega na mão das amigas. — Vocês não se importam, não é?

— Claro que não, você é a anfitriã da noite! — Valéria diz, e sinto seu olhar brilhar em minha direção. — Nós ficaremos em boa companhia com seu irmão, afinal, é o anjo rebelde dos Karamanlis.

Puta que pariu!

 

CONTINUA

Com um passado nebuloso, marcado por traumas, rejeições e violência, há anos Alexios Karamanlis busca entender a si mesmo e, para isso, começa uma caçada sem fim pelo destino de sua mãe biológica, junto a sua melhor amiga, Samara Schneider.
Amigos desde tenra idade, Alexios sempre tentou não a notar como mulher por temer perder sua amizade e apoio, e Samara sempre sonhou com o dia em que o garoto problemático e rebelde se apaixonaria por ela.
Juntos em busca de respostas sobre a verdadeira história do nascimento de Alexios, os dois mergulharão no sujo passado do pai dele, Nikkós Karamanlis, revelarão segredos muito bem guardados e, por fim, descobrirão que não há como reprimir mais a paixão e o desejo que sentem um pelo outro.

 

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O país todo está enlouquecido!, penso ao passar por mais uma blitz policial sem nenhum problema, acelerando a moto ao máximo, capacete preto espelhado impossibilitando qualquer um de ver que quem pilota essa máquina é um garoto, não um homem.

Eu não sou um homem! Não sou! Se fosse, não estaria aqui neste momento, mas sim na delegacia, gritando por aí, fazendo qualquer coisa que não apenas dar uma de burguesinho filho da puta endinheirado, acelerando uma moto que custa o mesmo que um apartamento popular, mesmo sem ter habilitação para isso, apenas para esquecer os problemas.

Eu sou um merda! E sou isso por causa “dele”!

Caralho! A Paulista está fechada por conta das comemorações do pentacampeonato. É, o Brasil conseguiu mais uma estrela no futebol, o país está eufórico como se não houvesse crianças na rua, assassinos à solta, a corrupção impedindo todo o sistema público de funcionar. Foda-se, somos penta!

Faço uma manobra rápida com a moto, deixando marcas dos grossos pneus no asfalto e sigo para outra direção, à procura de mais uma avenida extensa e reta para que eu possa extravasar todo o ódio dentro de mim indo ao limite da velocidade.

Paro a moto de repente e quase sou arremessado para frente. Meus músculos começam a tremer, meus olhos se enchem de lágrimas, sinto frio, meus dentes batem um no outro. Engulo em seco. Não vou chorar! Não choro mais, não há muitos anos.

Cada soco, cada pontapé, cada xingamento e mentira secaram minhas lágrimas. Elas até se instalam em meus olhos, porém não caem. Sufocam-me, quebram meu coração, desequilibram-me.

Caio no chão em um baque só, gemo de dor por causa do peso da moto sobre minha perna esquerda, mas não choro. Respiro fundo para controlar a dor, parar de tremer, diminuir os batimentos do meu coração. Estou acostumado a essa rotina de tentar não sentir dor, de tentar não sentir mais nada.

Levanto-me calmamente, sinto calafrios, manco, mas volto a subir na moto, acelerando-a, fazendo o motor girar e um ruído alto e potente se misturar aos sons das comemorações pelas ruas da cidade. Respiro fundo várias vezes e, quando não sinto mais nada, tiro o pé do chão e deixo a máquina me levar.

Eu queria poder fugir para o mais longe possível desta cidade, mas não dá, infelizmente não posso ir a lugar algum, estou preso, revivendo o mesmo inferno todos os dias, aceitando meu destino com resignação até poder livrar a mim e a Kyra do demônio que nos formou.

Eu poderia pedir ajuda ao Tim, mas sei que ele tem a própria merda para lidar e que conseguiu sair há pouco do inferno. Sei que precisava ir. Meu irmão estava por um fio, assim como eu, e, se ficasse lá conosco, seria para morrer ou matar, e, como não é da sua natureza matar, iria perecer aos poucos, como Nikkós gostaria que acontecesse.

Então ele foi, e eu fiquei incumbido de uma missão que nós aceitamos sem nem mesmo combinar nada, apenas porque sabíamos do que nosso pai era capaz e decidimos que não o deixaríamos chegar a ela.

Soluço na moto.

Eu falhei!

Eu falhei!

Eu falhei?!

Eu não sei! Simplesmente não sei o que aconteceu ontem! Acelero a moto, pegando uma rodovia, ainda tentando processar todos os acontecimentos e os flashes de memória que tenho.

Cometi um erro na noite passada, fui imprudente e agora preciso lidar com tudo o que aconteceu, mesmo sem entender direito o que houve. Enquanto piloto a moto, tento repassar cada momento de ontem, mesmo sabendo que já fiz isso várias e várias vezes sem nenhum êxito.

Nikkós finalmente viajou a trabalho – ou o que quer que ele tenha ido fazer –, e eu consegui relaxar um pouco. Mantenho constante vigilância sobre minha irmã, uma adolescente de 14 anos de idade, e evito ao máximo deixá-la sozinha com nosso pai. Não há muito que eu possa fazer para protegê-la das loucuras dele, mas o que está ao meu alcance, faço.

Por conta disso, desde que ingressei na universidade – no começo desse ano –, desdobro-me ao máximo para curtir com meus amigos e proteger a Kyra. A babá anterior era a mesma desde quando minha irmã e eu nascemos, totalmente devota ao nosso pai, então, assim que Konstantinos tomou posse de sua herança, demos um jeito de nos livrar dela, e, assim que outra foi contratada, meu irmão se encarregou de pagar uns extras para ela manter os olhos em Kyra.

Nikkós sempre foi um filho da puta covarde, ele nunca iria deixar um serviçal ver o que ele é capaz de fazer aos filhos, por isso tinha seus próprios lugares para executar suas torturas em Kostas e em mim.

Noite passada, uma galera mais velha da universidade fechou uma boate e me convidou para festejar com eles. Estávamos entrando de férias e queríamos muito desopilar o fígado, relaxar, curtir e esquecer todas as pressões dos estudos.

Como Nikkós não estava em casa, e a babá estava por lá com Kyra, por que não ir? Foi esse meu erro!, penso ao relembrar.

 

— O grande Alexios Karamanlis! — Alberto Bragança me saúda assim que entro na boate. — Achei que você não vinha mais, mano!

Ele me entrega uma caneca de 500ml de chope e um cartão para o restante do consumo, e logo vejo os outros caras em uma mesa no fundo do salão. A música alta, tocando um “batestaca” qualquer, não chama minha atenção. Sigo, então, na direção do pessoal e, mal chego lá, peço mais uma rodada de chope para todos.

Meu pai é um grande filho da puta, torturador desgraçado, mas, para manter as aparências, deixa-nos usar cartão sem limites e nos entrega uma mesada gorda. Bebo, sentindo o gosto do chope se tornar mais amargo que o normal, consciente de que essa porra toda é dele, comprada com o seu maldito dinheiro.

— Jefinho está na área! — alguém grita comemorando. — Vamos começar a diversão! Quem vai?

Sou um dos primeiros a me levantar, viro o resto da bebida e sigo com mais cinco amigos para o banheiro, atrás do traficante oficial da turma. Vejo cada um pegando “no bufê do Jeff” sua viagem preferida e pego um pino de “coca” para começar bem a noite.

“Foda-se, Nikkós Karamanlis!”

Cheiro.

“Foda-se, Sabrina Karamanlis!”

Aspiro mais um pouco.

“Foda-se, Theo Karamanlis!”

Faço outra carreira com o restante do pó.

“Foda-se, Geórgios Karamanlis!”

Seguro a narina fechada, mantendo tudo dentro de mim, sentindo já meu corpo girar, o cérebro acelerar e todas as sensações de abandono e dor se esvaírem como num passe de mágica. Só existe prazer, nenhuma dor, tudo é maravilhoso!

Compro mais três pinos de cocaína e alguns comprimidos de êxtase. Essa noite não quero dormir, quero aproveitar, dançar, zoar, pegar umas universitárias e esquecer quem sou.

Começo a rir de mim mesmo, da piada que acabei de pensar. Esquecer quem sou só seria possível se eu soubesse quem sou.

“Eu não sou ninguém!”

Meu Nokia vibra com a chegada de uma mensagem, confiro ser de Samara, minha única e melhor amiga, e volto a colocá-lo no bolso ao perceber a aproximação de uma gostosa do quarto ano.

— Eu não acredito que você é menor de idade, Alex! — A garota, com luzes nos cabelos e vestido com apenas uma alça, passa a mão no meu peito. — Você não parece ser um garoto, mesmo com esse rostinho angelical.

Respiro fundo para não perder a paciência, pois, se há algo que me irrita muito, é quando dizem que eu pareço um anjo. Aproximo-me dela e a puxo pela cintura.

— Posso provar que não sou um anjo! — Pego sua mão e a levo até a frente da minha calça. A garota arregala os olhos. — Os demônios com cara de anjo são os piores, gata!

— Uau! — Ela lambe meu pescoço. — O que você tomou?

— Coca, mas tenho “bala” no meu bolso. — Ela ronrona, e eu me animo. — Vem comigo!

Levo-a para uma área nos fundos da boate, uma espécie de depósito que se encontra aberto, uma vez que a casa está funcionando apenas para um bando de playboys endinheirados que preferem não se misturar com a ralé e, assim, fazer suas merdas longe dos olhos curiosos da plebe.

Claro! Afinal de contas, aqui estão reunidos os filhos dos maiores empresários, advogados, médicos, juízes e a porra toda elitizada desta cidade decadente. Bando de fodidos! A maioria desconta, como eu, a falta de afeto e atenção em casa gastando dinheiro, promovendo rachas pelas ruas, consumindo todo tipo de droga tentando preencher o buraco negro instalado nas nossas almas.

“Foda-se!”

Seguro a garota contra a parede fria do depósito e, sem nem mesmo perguntar seu nome, ataco sua boca com fúria, mordendo seus lábios e sugando sua língua. Ela mexe em minha calça, abre-a e retira meu pau para um tratamento especial em suas mãos macias.

— Novinho e pauzudo... — ela geme. — Cadê a balinha para deixar tudo mais divertido?

Sorrio e nego.

— Tem que merecer.

Ela sorri e, sem que eu precise sequer lhe indicar o que quero, ajoelha-se no chão grosso e toma meu pau em sua boca quente e esfomeada. Gemo, gostando da carícia, seguro-a pelos cabelos e a forço a engolir o máximo que consegue.

Tenho quase 17 anos, mas aposto com quem quer que seja que nenhum desses caras daqui tem a metade da experiência sexual que eu. E não, não “tiro onda” com isso, afinal, quem é filho de Nikkós Karamanlis não tem muita escolha sobre quando vai começar a trepar, ele simplesmente impõe, e comigo isso aconteceu quando eu tinha 11 anos de idade.

Afasto o pensamento pestilento sobre meu pai e curto a chupada gostosa que a garota ajoelhada me dá. Ela lambe, chupa, suga com força, arranha com os dentes – coisa que me excita “pra caralho” – e segura minhas bolas com vontade. Percebo que ela quer fazer o serviço completo com a boca, mas definitivamente ela não me conhece.

Ergo-a de uma vez só e a ponho de cara contra a parede. Procuro a camisinha no bolso da calça – uma coisa que se aprende quando se começa a vida sexual trepando com putas é que preservativos nunca podem faltar –, plastifico meu pau e levanto o vestido dela.

Bunda gostosa, magra, mas gostosa “pra cacete” com uma calcinha de cor forte – não sei se vermelha ou rosa; não divago muito sobre a cor, mesmo porque é irrelevante –, afasto a peça e esfrego os dedos em sua boceta depilada.

Ela ofega, rebola gostoso na minha mão. Vou penetrando-a devagar com os dedos, recolhendo um pouco da umidade de dentro de sua vagina para usá-la exatamente no ponto onde quero. Massageio seu clitóris até que ela se contraia em gozo e volto a molhar seu rabo com a lubrificação que solta.

Ela fica tensa quando encaixo a cabeça do meu pau em seu ânus apertado.

— Alex...

— Psiu... — falo devagarzinho em seu ouvido, lambendo sua orelha enquanto vou me afundando no canal estreito, sentindo meu corpo todo reagir à pressão de um local nunca ou pouco explorado. — Eu disse a você. — Ela arfa quando me encaixo por completo em seu rabo. — Os demônios com cara de anjo são os piores!

Meto com força e continuo estimulando seu clitóris, beijando e mordendo seu pescoço, até que ela explode em um orgasmo foda, e eu me deixo ir na camisinha, ainda sentindo as contrações do seu corpo. Quando ela se vira para me beijar, estico minha língua com sua recompensa na ponta. A garota sorri e chupa a drágea com vontade, enquanto eu engulo a outra.

A noite só começou!

 

Paro a moto em frente ao prédio onde Konstantinos mora. Fico parado olhando para o alto, invejando a liberdade de meu irmão, a coragem que teve ao se libertar assim que pôde do nosso pai. Ele estuda no Largo de São Francisco, vai ser um advogado e, mesmo que tenha tentado disfarçar, ficou contente quando contei que havia passado em todos os vestibulares para os quais havia prestado.

— Vai para algum lugar longe da cidade? — Kostas não escondeu sua preocupação.

— Não, vou ficar aqui — respondi com sinceridade, mesmo que minha vontade fosse ir para o mais longe possível deste inferno de lugar. — Vou continuar no apartamento de Nikkós, pelo menos até a Kyra fazer 18 anos.

Ele respirou fundo, e nossa conversa por telefone acabou aí. Nós não precisávamos externar nossa preocupação um para o outro, sabíamos do que nosso pai era capaz e do perigo que Kyra corria estando sob o mesmo teto que ele. Kostas saiu de casa, pois nunca soube lidar com Nikkós, ao contrário de mim.

O grego maluco tentou fazer comigo o mesmo que fazia com o meu irmão, porém nunca pensou que não me afetaria, então mudou de tática. O desgraçado tentava me acertar no único ponto que realmente me doía, mas ainda assim eu resistia em demonstrar alguma dor, então ele me fazia sentir na carne.

Esfrego a mão no ombro esquerdo, quebrado há dois anos no que todos acreditaram ser um acidente enquanto eu andava de skate, sem saber que quase tive o braço arrancado pelo homem louco, bêbado e drogado a quem todos respeitavam como um exemplo de pai, criando seus filhos sozinho depois de ter sido abandonado pela mulher.

Farsante dissimulado! Nunca amou ninguém, nunca se preocupou ou se dedicou a ninguém, nem a si mesmo. Eu só não entendo o motivo pelo qual ele não deixou que a puta que me gerou abortasse ou mesmo por que não me deixou com ela.

Eu sou um covarde! Rio, ligando a moto de novo.

Meu maior sonho é vê-lo morto, desejei e planejei isso tantas vezes, de tantas maneiras diferentes, que sei todos os passos de cor. No entanto, nunca tive coragem... Respiro fundo.

Pelo menos até essa madrugada!

Não faço ideia de como cheguei a casa, estava doidão, alto demais, cheirava a cerveja, maconha, sexo e perfumes variados. Não sei nem com quantas garotas trepei à noite, sei que algumas só mamaram meu pau, mas, com outras, a coisa foi mais louca.

Não consigo me lembrar de muita coisa. Só tenho sensações ruins de quando cheguei ao apartamento e percebi que Nikkós havia voltado. Nas memórias, há gritos, choro, mas nenhuma imagem. Tudo o que tenho nítido na cabeça foi o que aconteceu depois que acordei.

Estava deitado na sala principal do apartamento, minhas roupas sujas de sangue, rasgadas, um hematoma no olho e um corte no canto da boca já me incomodando. Não sabia nem onde estava, só sentia dor, confusão, e vomitei ali mesmo, no tapete da sala.

Ao meu lado vi uma faca suja de sangue. Gelei, sem saber o que tinha feito e de quem era o líquido viscoso e vermelho que cobria toda a lâmina. Foi nesse momento que saí do torpor em que me encontrava, peguei o objeto e comecei a correr pela enorme cobertura, entrando em todos os cômodos.

— Kyra! — gritava, mesmo com a cabeça explodindo. — Kyra!

Minha irmã não estava em lugar algum, nem mesmo a Nívea, a senhora que cuidava dela, eu pude encontrar. Meu desespero só aumentou. Liguei para o telefone dela, mas estava dando na caixa de mensagens.

Comecei a soluçar, mesmo não derramando uma só lágrima, e entrei no local proibido da casa, o santuário satânico de Nikkós Karamanlis: seu quarto.

Estanquei quando vi seu corpo enorme e nu jogado sobre a cama king size. Notei os cortes em seus braços, bem como o movimento de respiração, seguido dos roncos altos. O filho da puta não estava morto! Apertei a faca em minha mão com mais força, pensando que esse seria o momento certo para livrar a todos de sua existência.

Andei até ele devagar, os nós dos dedos brancos de tão firme que segurava a faca. Medi suas costas, imaginando que seria muito fácil perfurar seu pulmão com uma só estocada no lugar certo e que ele morreria afogado em seu próprio sangue lentamente, em uma morte digna dele.

Ergui a faca, fechei os olhos, parei de tremer e me lembrei de todos os anos de abuso e de tortura, do que ele fazia ao Kostas, do que fazia comigo e do que poderia fazer a Kyra.

Respirei fundo, concentrei a força e desci a faca, mas parei a milímetros de sua pele quando ouvi soar a campainha. Joguei a arma para longe e saí correndo daquele cômodo pestilento, descendo as escadas disparado para atender a porta, torcendo para que fossem Nívea e Kyra.

— Alexios? — a voz de Samara me fez prender o fôlego. — Alexios, você está aí?

Abri a porta sem pensar duas vezes e desmontei ao ver minha irmã ao lado da minha melhor amiga. Kyra, minha pequena princesa, linda como uma pintura, seus olhos enormes e verdes cheios de lágrimas e os lábios trêmulos.

— Ainda bem! — exclamei aliviado, puxando-a para meus braços. — Ainda bem!

— Alexios, você precisa de ajuda? — Samara questionou, olhando tudo em volta. — Ontem à noite a senhora Nívea pediu que Kyra ficasse comigo e...

Segurei o rosto de minha irmã, desgostoso por saber que ela mal fala por conta do monstro que temos em casa, sequei as lágrimas que escorriam por seu rosto miúdo e assustado e perguntei:

— O que houve?

Ela deu de ombros.

— Ele voltou mais cedo, estava bêbado, mandou Nívea embora. — Sinto um arrepio de frio percorrer minha coluna. — Os dois discutiram. — Ela soluçou. — Ele bateu nela, ela desmaiou...

— E você, onde estava?

Kyra desviou os olhos, e eu senti como se um soco acertasse a boca do meu estômago. Olhei para Samara em busca de uma resposta, mas minha amiga apenas deu de ombros, indicando que minha irmã também não falou com ela.

— Quando ela acordou, me levou para o apartamento da Malinha, e aí eu fiquei lá. — Kyra olhou em direção ao corredor. — Ele ainda está...

Assenti.

— Vá para o seu quarto, tranque a porta, tome um banho; daqui a pouco vou me encontrar com você. — Ela tentou sorrir em agradecimento para Samara, mas depois desistiu, seguindo diretamente para seu quarto. — Samara...

— Vocês precisam denunciar isso! — Ela tocou meu rosto. — Você é só um garoto, Alexios, não pode proteger vocês dois.

— Posso! — afirmei cheio de raiva. — Você sabe muito bem que, se uma denúncia for feita, ela será tirada de nós. Eu ficarei um ano em algum abrigo, mas e ela?

— O Tim não pode...

Neguei.

— Não acho que o deixariam cuidando de dois adolescentes, ele só tem 20 anos! — Fechei os olhos, cansado, com medo, sem saída e senti quando ela me abraçou apertado.

— Onde você esteve ontem à noite?

— Fui me divertir...

— Não. — Seus olhos lindíssimos encararam os meus. — Você não se diverte, Alexios, você tenta se matar. — Passou a mão pelo meu rosto. — Quanto usou?

Dei de ombros, não querendo discutir isso com ela. Nunca termina bem!

— Isso não ajuda ninguém. Nem a você, muito menos à sua irmã. — Tentou sorrir para disfarçar o sermão, seus dentes cheios de plaquinhas do aparelho ortodôntico, o rosto redondo de menina fazendo covinhas, coisa que ela sempre teve e sempre achei lindo. — Eu sei que só tenho 15 anos, mas...

— Eu agradeço que você tenha feito companhia a Kyra, mas agora preciso resolver tudo aqui. — Apontei para a sala. — Ficou tudo bem com seus pais?

— Sim, não acharam nada estranho que Kyra dormisse lá em casa, afinal, somos amigas.

Ri amargamente.

— Essa amizade é aceitável para os Schneiders, não é? — Samara ficou vermelha. — Kyra é uma boa menina, não um porra-louca como eu, filho de uma puta e...

Samara pôs a mão sobre minha boca.

— Você é meu melhor amigo, apenas isso deveria te bastar para calar qualquer outra coisa que meus pais possam pensar de você.

Abracei-a forte, a consciência pesada por falar mal de sua família, pois sei quanto ela os ama, depois me despedi e tratei de limpar a sala, jogar a roupa que usava fora e fiquei até há pouco com minha irmã, ambos trancados no seu quarto.

Só saí para espairecer, para processar tudo o que aconteceu na madrugada passada, pois mais uma vez Samara agiu como um anjo e convidou minha irmã para assistir à final da Copa do Mundo com ela e depois terem uma noite de meninas, com direito a festa do pijama.

Entro na garagem do prédio, mando uma mensagem para Samara informando-a de que cheguei e que estou indo buscar minha irmã. Sinceramente eu não sei como vou fazer até encontrar outra pessoa de confiança para deixar com Kyra quando eu não estiver em casa, pois Nívea disse que nunca mais colocará os pés no nosso apartamento, depois de ter recebido uma boa quantia para que não denunciasse o que se passa dentro de nossa casa, pois entendeu que prejudicaria Kyra.

Não importa! Kyra precisa de mim, e, nem se eu precisar mudar toda minha rotina por causa dela, a terei protegida.


São Paulo, tempo atuais.


Acordo com uma dor de cabeça filha da puta, ressacado, tão zonzo que tropeço ao sair da cama, e a primeira coisa que me vem à cabeça nesta manhã (ou será nesta tarde?) é que hoje é véspera de Natal. Foda-se! Sou ateu, esses feriados religiosos não significam nada para mim.

Sigo pelo corredor em direção à cozinha, com muita sede, louco para tomar um analgésico para exterminar a dor de cabeça. Não vou tomar! Não tomo remédios para dor há anos, aprendi a conviver com as pontadas, com as ardências. A dor me tornou mais forte, resiliente, aprendi há muito que nada é capaz de me ferir mais do que eu mesmo.

A maioria dos meus ossos trazem lembranças de como superei, as marcas no meu corpo também, porém, nenhuma dessas cicatrizes é mais forte do que o vazio dentro de mim.

Encho um copo d’água até transbordar e o bebo em um só gole. A cabeça martela ainda mais por conta da bebida gelada, mas ignoro-a por completo. Não há remédio para o que sinto, não há cura para toda a raiva que carrego dentro de mim, então posso, sim, conviver com umas horas de pontadas no cérebro.

Olho para a porta fechada na área de serviço. Os cômodos dali eram a tal dependência de empregados, mas, como eu nunca tive nenhum, aproveitei-os para outros fins. Inspiro, os cheiros tão familiares chegando às minhas narinas. A raiva natural com que acordo todos os dias se aplaca; não some, apenas se recolhe, dando lugar às sensações de prazer.

Confiro as horas e xingo ao perceber que já estamos no meio da tarde. Sinceramente, não sei por que Kyra inventou essa ceia de Natal, não depois de todos esses anos. Não entendo minha irmã, sinceramente. Há muito convivo com seu gênio forte, sua determinação, mas ainda não sei quem é ela. A garota divertida da infância se tornou uma adolescente quieta e taciturna, uma jovem inteligente e ajuizada e, por fim, uma adulta completamente misteriosa. Eu a acompanhei em todas as fases de sua vida, mas ainda assim não sei quem é a verdadeira Kyra Karamanlis.

Assim que ela completou 18 anos, abandonamos a luxuosa cobertura de Nikkós e fomos morar em um cafofo velho e caindo aos pedaços. Eu estudava como um louco no meu último ano de faculdade, e, como ela passou para uma universidade pública também, tínhamos que morar próximo de uma das duas universidades. Preferi ficar próximo da dela e me fodia andando de bicicleta até a minha todos os dias.

Nessa época eu estagiava na Novak Engenharia e, com a bolsa do estágio, eu mal conseguia pagar o aluguel do quarto e sala que aluguei. Ela nunca soube, mas quem bancava nossa alimentação, transporte e outras despesas era o Kostas. Meu irmão e eu nem éramos amigos, na verdade mal nos falávamos, mas todo mês o dinheiro aparecia na minha conta, e eu sabia que vinha dele.

Formei-me e já fui efetivado na Novak. Trabalhei com o Nicholas, com quem aprendi demais e construí uma amizade forte, assim como com seu irmão Bernardo. Os tempos de bagunça, baladas, drogas e bebidas acabaram quando nos libertamos da prisão daquele apartamento e da convivência maligna de Nikkós.

Kyra estudava muito, era extremamente aplicada em tudo o que fazia, e, irritada por não conseguir conciliar seu horário de estudos com um emprego, começou a fazer doces e salgados dentro do nosso pequeno apartamento e vendê-los na faculdade.

Rio ao pensar que foi assim que nasceu a promoter de eventos, em uma cozinha de seis metros quadrados, com um forno capenga, um fogão com só duas bocas funcionando e uma geladeira que parecia um monomotor, de tanto barulho que fazia. Em pouco tempo ela estava fornecendo encomendas para festas e pequenos eventos, depois começou a fazer projetos de decoração, então, quando se formou, foi trabalhar em um grande e caríssimo bufê da cidade, auxiliando a cerimonialista com os projetos.

Hoje ela é a dona de uma empresa especializada em produções de eventos diversos, bem-sucedida, com um negócio em progressão geométrica de crescimento. Tenho muito orgulho dela, principalmente por ser a única que não ficou agarrada ao cordão umbilical familiar dentro da Karamanlis.

Agora qual a necessidade da porra de uma ceia de Natal para comemorar a expansão de seu negócio? Vou ter que ficar com um maldito sorriso no rosto, carinha de anjo, lidando com o caralho da minha gastrite me corroendo ao pensar na hipocrisia do mundo.

Respiro fundo e decido combater a ressaca e a dor de cabeça com mais bebida. Pego uma cerveja na geladeira, abro-a na beirada da pia e entro no outro ambiente, a sala, integrada ao outro cômodo, separados apenas por uma enorme bancada.

Eu mesmo projetei esse prédio, há alguns anos, ainda trabalhando na Novak. Bernardo Novak é meu vizinho de porta, e Nicholas foi o primeiro dono da cobertura duplex que toma todo o último andar, hoje habitada por um casal e uma menininha. Comprei o apartamento pensando em vir morar com minha irmã, mas qual não foi minha surpresa quando ela anunciou que só sairia do cafofo para seu próprio lugar?

Pois é, vim sozinho, ocupo apenas a suíte principal, e os outros dois quartos estão praticamente vazios. A sala foi decorada – pela própria Kyra –, bem como a cozinha, mas nunca mandei fazer os móveis da sala de jantar, pois não vejo nenhuma função para eles. Eu como sozinho no balcão da cozinha, assistindo a TV ou ouvindo música.

Resgato meu celular, seleciono uma das minhas muitas playlists, e a caixa de som já liga automaticamente, deixando o som pesado do Matanza ecoar pelos ambientes. Sorrio ao ouvir “Bom é quando faz mal”, as recordações das loucuras da faculdade, de toda a merda que eu fazia. Não tenho vontade alguma de fazer de novo, mas também não posso dizer que me arrependo. Era o meu jeito de extravasar, tresloucado, admito, mas ainda assim muito mais normal do que o que eu vivia dentro de casa.

Preparo qualquer coisa para comer, balançando a cabeça e cantando as músicas de várias bandas de rock, algumas famosas, outras nem tanto, mas que marcaram minha vida de alguma forma.

O telefone toca, e a chamada atrapalha minha diversão musical. Bufo, jogo o pano de prato sobre a pia e pego o aparelho.

— Oi, Millos — atendo meu primo.

— Boa tarde, Alexios. Animado com a reunião de hoje à noite?

— Ô, tão quanto eu estaria para fazer um exame de próstata. — Millos gargalha. — Ela convidou você também?

— E o Kostas. — Isso me surpreende, pois, até onde eu sei, não temos nenhuma convivência com ele. — Bom, liguei para dizer que irei viajar na virada do ano, por isso preciso que você não deixe de ir ao baile dos Villazzas.

Gemo ao pensar em vestir um smoking.

— Porra, Millos, não fode! Aposto que Theodoros vai, afinal Frank e ele são quase um casal! — Millos ri do meu deboche acerca da amizade entre meu irmão mais velho e o CEO da rede Villazza de hotéis. — Não tenho a mínima...

— Konstantinos confirmou presença também.

Puta que pariu!

Preciso me sentar depois dessa informação, pasmo só em imaginar Kostas com alguma puta, sentado na mesma mesa de Theodoros. Vai dar merda!

— Eu não tenho companhia — tento me justificar. — E você poderia adiar a sua viagem só por uns...

— Não, não posso, já fiz todos os arranjos, reservas em hotéis, o cronograma da viagem! Você tem que ir para evitar que os dois prejudiquem a imagem da empresa.

Reviro os olhos ao pensar na imagem da empresa. Millos é doido ao pensar que temos uma imagem a zelar. Todos nesta maldita cidade, neste meio asqueroso no qual vivemos, sabem que somos todos fodidos e que nosso pai cagou em nosso nome com a sucessão de merdas que fez.

E olha que a maioria não o conheceu de verdade, não soube o monstro que ele era, escondido por detrás de uma fachada bonita e um sorriso de conquistador barato! Um lobo em pele de cordeiro, um demônio com a face de um anjo... assim como eu.

Bufo de raiva.

— Cadê aquela sua amiga? — Franzo a testa, sem acreditar que ele está se referindo à Samara. — Vocês viviam para cima e para baixo juntos, ela te acompanhou em um dos primeiros eventos dos Villazzas e...

— A Samara mora em Madri há mais de três anos, Millos. — Decido não entrar em detalhes e contar a ele que nos afastamos por algum motivo idiota que eu não consigo lembrar. — Vou ter que ligar para alguma...

— Isso, ligue — ele me corta. — Mulher nunca foi seu problema, aposto que você tem um caderninho cheio de telefones.

— E daí? — afronto-o. — Gosto de sexo, nunca escondi isso, diferente de você, que nunca foi visto com nenhuma mulher além daquela sua amiga motoqueira. — Decido provocá-lo: — Millos, acho que está na hora de sair do armário, porra!

O filho da puta ri alto.

— Eu não teria problema algum em sair se fosse o caso. Ainda mais agora, que Dimitrios saiu, e o pappoús continuou vivo e... — Millos para.

É sempre assim quando algum assunto referente à família na Grécia vem à tona. Eu não conheço ninguém, nunca fui à Grécia, nem tenho a mínima vontade de ir. Não conheço o tal pappoús, nem primo algum além de Millos, que só conheci quando veio morar no Brasil.

Sou o Karamanlis renegado, indigno do sobrenome.

— Vou ligar para alguém e convidar a ir comigo — encerro o assunto constrangedor. — Mas não garanto atuar de mediador como você.

— Você, mediador? — Millos se surpreende. — Alexios, se eu não tivesse interferido, você teria criado uma situação com Theodoros na festa de final de ano da Karamanlis. Eu só quero que você vá com alguém e iniba um pouco aqueles dois.

Bufo e concordo.

— Eu vou.

— Obrigado. — Estou prestes a desligar, quando ele me chama de novo: — Ah, Alexios, não encha a cara, senão você vai falar merda para o Theo, e o Kostas vai se aproveitar disso.

— Vai se foder, Millos! Eu já vou, porra, não diga o que tenho que fazer.

Desligo irritado, perco a fome e a vontade de terminar o que estava preparando.

Mesmo puto, preciso admitir, Millos tem razão sobre eu perder a cabeça com Theodoros, principalmente quando bebo. Eu não odeio meu irmão mais velho como sei que Kostas o faz, apenas ele não significa mais nada para mim.

Convivo bem com ele, pelo menos no sentido profissional, mas não quero nenhum tipo de ligação mais pessoal. Ele perdeu o timing quando, depois de toda a merda que ajudou a fazer, nunca mais quis saber de nós. Era como se nem existíssemos! Ele excluiu Nikkós de sua vida, mas acabou nos descartando junto. Nunca se preocupou em saber de nenhum de seus irmãos, muito menos de sua adorada Kyra, a mais vulnerável de todos nós.

Então, sim, eu perco a cabeça com ele, principalmente com seu jeito esnobe, intocável, como se somente ele importasse e mais ninguém. E foi por isso que nos estranhamos na festa de final de ano da Karamanlis, porque, simplesmente, este ano a festa não foi Theocrática1.

Millos e eu nos reunimos com alguns gerentes e coordenadores para entender o que os funcionários da Karamanlis gostariam de ter em uma festa de encerramento do ano. Depois, contratamos todos os serviços – sem ser da Kyra, pois neste ano ela se livrou de nós na cara dura – e fizemos a festa focada nos funcionários.

Aparentemente, isso chocou e desagradou ao CEO com síndrome de deus, e sua cara fechada e seu olhar de desprezo não ficaram nada disfarçados.

— Ei, irmãozinho! — Eu o parei, enquanto andava como um deus do Olimpo visitando terráqueos. — Aproveitando a festa?

— Espero que não tenha vindo de moto! — o filho da puta tentou me repreender como se estivesse preocupado com minha segurança, e isso, juntamente a toda cerveja que eu já tinha tomado, irritou-me.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já muito bêbado para me conter. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos2!

Theodoros franziu o cenho com meu deboche, comparando seu nome à palavra deus em grego. Estava prestes a dizer algo, mas se conteve quando de repente fui abraçado pelos ombros. Nem precisei olhar para saber que nosso interventor havia chegado.

— Alex, que festança, não? — Millos comentou. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — Theodoros pareceu perplexo. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Gargalhei ao confirmar que ele era mesmo um grande egocêntrico, incapaz de perceber a diferença da festa deste ano à do ano passado por estar focado nos detalhes e não no que realmente importava: as pessoas.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — respondi como se estivesse sóbrio, mesmo não estando. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos me cortou.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — Theodoros perguntou ao Millos, apontando o dedo em minha direção como o grande babaca que sempre foi.

— Fui! — respondi. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Tentei demonstrar com gestos o que dizia, abri os braços de repente, e meu punho bateu no peito do Millos, que chegou para trás. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — olho para um grupo dançando e vários outros conversando, comendo e se divertindo — você está vendo alguém ir?

Ele ficou um tempo olhando em volta como se notasse, pela primeira vez desde que chegou, que realmente os funcionários estavam adorando a descontração deste ano.

Eu só não esperava que ele tentasse ser condescendente comigo:

— Bom trabalho! O pessoal parece realmente estar gostando!

Só faltou dar umas batidinhas em minha cabeça como se eu fosse a porra do seu cãozinho de estimação. Meu sangue ferveu, travei os punhos e não me contive:

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos interrompeu-me e me abraçou novamente pelos ombros. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Mal acabou de falar, seguiu para o outro lado, levando-me consigo.

— Porra, moleque, não tem como ser menos reativo não? A festa está um sucesso graças ao seu feeling, ao modo como você conhece e percebe as pessoas, para que estragar isso batendo boca ou — ele me encarou —, como percebi que queria fazer, enchendo a cara do Theo de porrada? Sai dessa!

Concordei com meu primo e respirei fundo. Depois disso tomei quase um litro de café amargo, ele me pôs em um Uber, e eu vim para casa, onde continuei a beber, desmaiei no sofá e, no outro dia, fui correr ainda um tanto trôpego, sendo desclassificado no teste do bafômetro.

Perdi minha última corrida do ano, grande fracassado que sou!

Volto a ligar minha playlist, e a música que toca é exatamente a que eu preciso para sair da fossa dessas lembranças todas:

— Eu não tenho nada pra dizer. Também não tenho mais o que fazer. Só para garantir esse refrão, eu vou enfiar um palavrão: cu!3


Entro no showroom da A??p?4 – a empresa de eventos de Kyra – e já admiro o trabalho dela com a decoração do local. A enorme mesa com vários lugares ocupa o centro do enorme salão, com castiçais, flores, louças e talheres milimetricamente colocados, junto a taças de cristal e guardanapos de linho.

No restante do salão, há mesas altas para apoiar drinques, sofás e poltronas brancas, com almofadas e outras coisas de decoração seguindo a paleta de cores da festa: verde, vermelho e dourado.

Clichê! Mas é Natal, tem como não ser?

Dou de ombros e vejo Kyra de costas, junto à belíssima morena que trabalha com ela desde que abriu a empresa e as duas chefes de cozinha que conheceu ainda quando trabalhava no outro bufê e as roubou na cara dura quando resolveu estabelecer seu próprio negócio. Uma delas, acho que é a doceira – Mari, como todos a chamam – me vê e logo cutuca minha irmã.

— Ah, Alex! — Kyra abre um enorme sorriso, entrega para a morena – como é mesmo o nome dela? – os penduricalhos de Natal com os quais enfeitava o enorme pinheiro e vem até mim. — Que bom que chegou, tenho uma coisa para você!

Ah, puta que pariu! Ela me comprou um presente? Fico imediatamente sem jeito, pois não comprei absolutamente nada para ela. Eu nem imaginava que iríamos trocar lembranças, nunca fizemos isso!

Alívio toma conta de mim quando ela vem com uma caixinha pequena e claramente de doces.

— Quando experimentei, lembrei logo de você. — Ela tira um doce dourado de dentro da caixa. — Prove!

Franzo o cenho e abro a boca. Mastigo devagar, emitindo sons de prazer, adorando o contraste de texturas e o sabor doce e... picante. Abro um sorriso.

— Chocolate com pimenta! — Termino de comer. — Perfeição!

— Bombom Helênico. — Faço careta para o nome, não combina em nada. — Eu sei, é péssimo, mas as meninas quiseram fazer uma homenagem para a Helena, então... — Dá de ombros.

Helena!, minha mente grita ao lembrar o nome da morena gostosa, mas que nunca sorri e mal fala comigo quando apareço aqui.

— Hum... gostosa! — Começo a rir quando noto que falei alto. Kyra me olha séria. — O quê?

— Nem pense, ela está comprometida!

Ergo as mãos em minha defesa.

— Não falei nada!

— Não precisa! Sua fama de embusteiro conquistador te precede! — Faço careta, e ela ri. — Estive com saudades de você.

— Então por que não foi me ver ou me ligou? — pergunto sem enrolação.

— Não sei.

Respiro fundo. Ela se fecha, é sempre assim e não só comigo. Ela se empolga, vibra, deixa as pessoas se aproximarem, mas nunca demais. Quando chega a seu limite, simplesmente retrocede com a mesma rapidez e naturalidade com que atraiu alguém. É por isso que suas amizades ou mesmo seus relacionamentos amorosos nunca duraram muito.

Porém o que faço eu aqui, julgando-a?

— Alexios Karamanlis! — Viro-me ao ouvir a voz de Millos.

Meu primo – filho de uma égua! – carrega uma enorme caixa de presente toda embrulhada e com laços. Kyra abre um enorme sorriso e vai saltitante até ele, abraça-o pelo pescoço – coisa que não faz nem comigo – e agradece o regalo.

— É para decorar sua sala de empresária fodona — ele brinca com ela, e Kyra gargalha ao tirar uma estátua toda colorida de um unicórnio. — Eu me lembrei daquela sua fantasia no dia das bruxas...

Kyra para de boca aberta.

— Millos, eu tinha quatro anos! — ela recorda e, de repente, parece lembrar também que, naquela época, tudo parecia realmente possível, mágico e feliz.

Meu primo a abraça forte e fala algo em seu ouvido, baixinho. Kyra assente, e eu fico paralisado vendo a troca de carinho entre eles. Parece normal, não é? Mas, creiam-me, não é. Millos evita qualquer contato físico com outras pessoas. Ao cumprimentá-las, ele prefere baixar a cabeça do que dar um aperto de mãos; o máximo que o vi fazer até hoje foi tocar no ombro de alguém, mas somente quando julga necessário. Até comigo, o máximo que ele fez até hoje foi me abraçar para evitar um embate entre mim e Theo. Então assistir aos dois se abraçando é realmente algo inédito.

— Feliz Natal, pesménos ángelos5.

Mostro o dedo do meio para ele.

— Ah, pesquisou! — Ri debochado, mas logo para ao aceitar o chope que Kyra nos oferece. — É um absurdo você não saber nada da nossa língua.

— Não tenho interesse algum por nada que venha de lá — justifico e bebo. — Kyra também não sabe!

— Quem disse? — Ela começa a rir. — Anóito6.

— Quando foi que você se interessou por essa porra? — questiono-lhe surpreso.

— Você leu o nome da empresa dela na fachada? — é Millos quem retorna minha pergunta. — Está em grego!

Millos e Kyra engatam uma conversa, enquanto eu ainda estou paralisado com essa nova informação. Não é exagero, mas eu pensei que ela, assim como eu, desprezasse qualquer coisa que tenha relação com Nikkós. No entanto, ao contrário de mim, ela sempre foi aceita por todos os Karamanlis como parte da família, então é natural que tenha algum apreço por eles.

— Ah, mais convidados estão chegando!

Kyra deixa-nos a sós e vai até um grupo que não conheço.

— Ela parece feliz — comento com Millos.

Meu primo dá de ombros.

— Há pessoas com o dom de demonstrar apenas o que querem que vejam. — Bebe o resto de seu chope e me encara. — Já resolveu o assunto do baile dos Villazzas?

— Ah, Millos, não fode mais a minha noite! — Vejo duas lindas mulheres adentrarem ao salão e abro um sorriso. — Pode ser que ela esteja começando a melhorar.

Millos ergue uma de suas sobrancelhas, e eu o deixo sozinho, caminhando em direção ao meu mais novo alvo da noite, que, neste exato momento, cumprimenta minha irmã.

— Kyra, eu gostaria de... — finjo interromper-me quando as desconhecidas me olham. — Desculpem-me. — Kyra rola os olhos, mas suas convidadas não desviam o olhar do meu rosto. — Millos estava falando do chope, e nós fizemos uma pequena aposta, mas posso ver isso depois, atenda seus convidados. — Abro novamente meu melhor sorriso na direção delas.

— Valéria e Priscila, esse é meu irmão, Alexios Karamanlis — Kyra faz nossa apresentação, e eu sei que depois irá jogar na minha cara que eu estou lhe devendo por isso.

— Um prazer, Valéria! — Aproximo-me para cumprimentá-la e logo depois saúdo a outra: — Prazer, Priscila.

— O prazer é meu, Alexios — Priscila responde, sorrindo, e vejo a mão de Valéria tocar suas costas num gesto um tanto territorialista. Perfeito! Trocamos beijos no rosto em cumprimento. — Eu já te vi em algumas revistas especializadas em engenharia e arquitetura, principalmente quando o conselho dessas classes era o mesmo.

— Arquiteta? — tento adivinhar, mas ela nega e aponta para sua amiga.

— Valéria é, eu sou designer industrial. — Faço cara de surpresa, mesmo sem achar nada de mais. — É, eu sei, a maioria das pessoas que me conhece acha que sou modelo ou estilista, mas você quase acertou. — Seu sorriso é claramente de quem se sente lisonjeada. — Trabalho conceitos para grandes marcas.

— Incrível! — Olho-a de cima a baixo, e Kyra bufa. — Você também parece incrível, Valéria. — Sorrio, e ela relaxa.

— Alexios, chegaram outros convidados, você poderia fazer companhia a elas? — Ela pega na mão das amigas. — Vocês não se importam, não é?

— Claro que não, você é a anfitriã da noite! — Valéria diz, e sinto seu olhar brilhar em minha direção. — Nós ficaremos em boa companhia com seu irmão, afinal, é o anjo rebelde dos Karamanlis.

Puta que pariu!

 

CONTINUA

Com um passado nebuloso, marcado por traumas, rejeições e violência, há anos Alexios Karamanlis busca entender a si mesmo e, para isso, começa uma caçada sem fim pelo destino de sua mãe biológica, junto a sua melhor amiga, Samara Schneider.
Amigos desde tenra idade, Alexios sempre tentou não a notar como mulher por temer perder sua amizade e apoio, e Samara sempre sonhou com o dia em que o garoto problemático e rebelde se apaixonaria por ela.
Juntos em busca de respostas sobre a verdadeira história do nascimento de Alexios, os dois mergulharão no sujo passado do pai dele, Nikkós Karamanlis, revelarão segredos muito bem guardados e, por fim, descobrirão que não há como reprimir mais a paixão e o desejo que sentem um pelo outro.

 

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O país todo está enlouquecido!, penso ao passar por mais uma blitz policial sem nenhum problema, acelerando a moto ao máximo, capacete preto espelhado impossibilitando qualquer um de ver que quem pilota essa máquina é um garoto, não um homem.

Eu não sou um homem! Não sou! Se fosse, não estaria aqui neste momento, mas sim na delegacia, gritando por aí, fazendo qualquer coisa que não apenas dar uma de burguesinho filho da puta endinheirado, acelerando uma moto que custa o mesmo que um apartamento popular, mesmo sem ter habilitação para isso, apenas para esquecer os problemas.

Eu sou um merda! E sou isso por causa “dele”!

Caralho! A Paulista está fechada por conta das comemorações do pentacampeonato. É, o Brasil conseguiu mais uma estrela no futebol, o país está eufórico como se não houvesse crianças na rua, assassinos à solta, a corrupção impedindo todo o sistema público de funcionar. Foda-se, somos penta!

Faço uma manobra rápida com a moto, deixando marcas dos grossos pneus no asfalto e sigo para outra direção, à procura de mais uma avenida extensa e reta para que eu possa extravasar todo o ódio dentro de mim indo ao limite da velocidade.

Paro a moto de repente e quase sou arremessado para frente. Meus músculos começam a tremer, meus olhos se enchem de lágrimas, sinto frio, meus dentes batem um no outro. Engulo em seco. Não vou chorar! Não choro mais, não há muitos anos.

Cada soco, cada pontapé, cada xingamento e mentira secaram minhas lágrimas. Elas até se instalam em meus olhos, porém não caem. Sufocam-me, quebram meu coração, desequilibram-me.

Caio no chão em um baque só, gemo de dor por causa do peso da moto sobre minha perna esquerda, mas não choro. Respiro fundo para controlar a dor, parar de tremer, diminuir os batimentos do meu coração. Estou acostumado a essa rotina de tentar não sentir dor, de tentar não sentir mais nada.

Levanto-me calmamente, sinto calafrios, manco, mas volto a subir na moto, acelerando-a, fazendo o motor girar e um ruído alto e potente se misturar aos sons das comemorações pelas ruas da cidade. Respiro fundo várias vezes e, quando não sinto mais nada, tiro o pé do chão e deixo a máquina me levar.

Eu queria poder fugir para o mais longe possível desta cidade, mas não dá, infelizmente não posso ir a lugar algum, estou preso, revivendo o mesmo inferno todos os dias, aceitando meu destino com resignação até poder livrar a mim e a Kyra do demônio que nos formou.

Eu poderia pedir ajuda ao Tim, mas sei que ele tem a própria merda para lidar e que conseguiu sair há pouco do inferno. Sei que precisava ir. Meu irmão estava por um fio, assim como eu, e, se ficasse lá conosco, seria para morrer ou matar, e, como não é da sua natureza matar, iria perecer aos poucos, como Nikkós gostaria que acontecesse.

Então ele foi, e eu fiquei incumbido de uma missão que nós aceitamos sem nem mesmo combinar nada, apenas porque sabíamos do que nosso pai era capaz e decidimos que não o deixaríamos chegar a ela.

Soluço na moto.

Eu falhei!

Eu falhei!

Eu falhei?!

Eu não sei! Simplesmente não sei o que aconteceu ontem! Acelero a moto, pegando uma rodovia, ainda tentando processar todos os acontecimentos e os flashes de memória que tenho.

Cometi um erro na noite passada, fui imprudente e agora preciso lidar com tudo o que aconteceu, mesmo sem entender direito o que houve. Enquanto piloto a moto, tento repassar cada momento de ontem, mesmo sabendo que já fiz isso várias e várias vezes sem nenhum êxito.

Nikkós finalmente viajou a trabalho – ou o que quer que ele tenha ido fazer –, e eu consegui relaxar um pouco. Mantenho constante vigilância sobre minha irmã, uma adolescente de 14 anos de idade, e evito ao máximo deixá-la sozinha com nosso pai. Não há muito que eu possa fazer para protegê-la das loucuras dele, mas o que está ao meu alcance, faço.

Por conta disso, desde que ingressei na universidade – no começo desse ano –, desdobro-me ao máximo para curtir com meus amigos e proteger a Kyra. A babá anterior era a mesma desde quando minha irmã e eu nascemos, totalmente devota ao nosso pai, então, assim que Konstantinos tomou posse de sua herança, demos um jeito de nos livrar dela, e, assim que outra foi contratada, meu irmão se encarregou de pagar uns extras para ela manter os olhos em Kyra.

Nikkós sempre foi um filho da puta covarde, ele nunca iria deixar um serviçal ver o que ele é capaz de fazer aos filhos, por isso tinha seus próprios lugares para executar suas torturas em Kostas e em mim.

Noite passada, uma galera mais velha da universidade fechou uma boate e me convidou para festejar com eles. Estávamos entrando de férias e queríamos muito desopilar o fígado, relaxar, curtir e esquecer todas as pressões dos estudos.

Como Nikkós não estava em casa, e a babá estava por lá com Kyra, por que não ir? Foi esse meu erro!, penso ao relembrar.

 

— O grande Alexios Karamanlis! — Alberto Bragança me saúda assim que entro na boate. — Achei que você não vinha mais, mano!

Ele me entrega uma caneca de 500ml de chope e um cartão para o restante do consumo, e logo vejo os outros caras em uma mesa no fundo do salão. A música alta, tocando um “batestaca” qualquer, não chama minha atenção. Sigo, então, na direção do pessoal e, mal chego lá, peço mais uma rodada de chope para todos.

Meu pai é um grande filho da puta, torturador desgraçado, mas, para manter as aparências, deixa-nos usar cartão sem limites e nos entrega uma mesada gorda. Bebo, sentindo o gosto do chope se tornar mais amargo que o normal, consciente de que essa porra toda é dele, comprada com o seu maldito dinheiro.

— Jefinho está na área! — alguém grita comemorando. — Vamos começar a diversão! Quem vai?

Sou um dos primeiros a me levantar, viro o resto da bebida e sigo com mais cinco amigos para o banheiro, atrás do traficante oficial da turma. Vejo cada um pegando “no bufê do Jeff” sua viagem preferida e pego um pino de “coca” para começar bem a noite.

“Foda-se, Nikkós Karamanlis!”

Cheiro.

“Foda-se, Sabrina Karamanlis!”

Aspiro mais um pouco.

“Foda-se, Theo Karamanlis!”

Faço outra carreira com o restante do pó.

“Foda-se, Geórgios Karamanlis!”

Seguro a narina fechada, mantendo tudo dentro de mim, sentindo já meu corpo girar, o cérebro acelerar e todas as sensações de abandono e dor se esvaírem como num passe de mágica. Só existe prazer, nenhuma dor, tudo é maravilhoso!

Compro mais três pinos de cocaína e alguns comprimidos de êxtase. Essa noite não quero dormir, quero aproveitar, dançar, zoar, pegar umas universitárias e esquecer quem sou.

Começo a rir de mim mesmo, da piada que acabei de pensar. Esquecer quem sou só seria possível se eu soubesse quem sou.

“Eu não sou ninguém!”

Meu Nokia vibra com a chegada de uma mensagem, confiro ser de Samara, minha única e melhor amiga, e volto a colocá-lo no bolso ao perceber a aproximação de uma gostosa do quarto ano.

— Eu não acredito que você é menor de idade, Alex! — A garota, com luzes nos cabelos e vestido com apenas uma alça, passa a mão no meu peito. — Você não parece ser um garoto, mesmo com esse rostinho angelical.

Respiro fundo para não perder a paciência, pois, se há algo que me irrita muito, é quando dizem que eu pareço um anjo. Aproximo-me dela e a puxo pela cintura.

— Posso provar que não sou um anjo! — Pego sua mão e a levo até a frente da minha calça. A garota arregala os olhos. — Os demônios com cara de anjo são os piores, gata!

— Uau! — Ela lambe meu pescoço. — O que você tomou?

— Coca, mas tenho “bala” no meu bolso. — Ela ronrona, e eu me animo. — Vem comigo!

Levo-a para uma área nos fundos da boate, uma espécie de depósito que se encontra aberto, uma vez que a casa está funcionando apenas para um bando de playboys endinheirados que preferem não se misturar com a ralé e, assim, fazer suas merdas longe dos olhos curiosos da plebe.

Claro! Afinal de contas, aqui estão reunidos os filhos dos maiores empresários, advogados, médicos, juízes e a porra toda elitizada desta cidade decadente. Bando de fodidos! A maioria desconta, como eu, a falta de afeto e atenção em casa gastando dinheiro, promovendo rachas pelas ruas, consumindo todo tipo de droga tentando preencher o buraco negro instalado nas nossas almas.

“Foda-se!”

Seguro a garota contra a parede fria do depósito e, sem nem mesmo perguntar seu nome, ataco sua boca com fúria, mordendo seus lábios e sugando sua língua. Ela mexe em minha calça, abre-a e retira meu pau para um tratamento especial em suas mãos macias.

— Novinho e pauzudo... — ela geme. — Cadê a balinha para deixar tudo mais divertido?

Sorrio e nego.

— Tem que merecer.

Ela sorri e, sem que eu precise sequer lhe indicar o que quero, ajoelha-se no chão grosso e toma meu pau em sua boca quente e esfomeada. Gemo, gostando da carícia, seguro-a pelos cabelos e a forço a engolir o máximo que consegue.

Tenho quase 17 anos, mas aposto com quem quer que seja que nenhum desses caras daqui tem a metade da experiência sexual que eu. E não, não “tiro onda” com isso, afinal, quem é filho de Nikkós Karamanlis não tem muita escolha sobre quando vai começar a trepar, ele simplesmente impõe, e comigo isso aconteceu quando eu tinha 11 anos de idade.

Afasto o pensamento pestilento sobre meu pai e curto a chupada gostosa que a garota ajoelhada me dá. Ela lambe, chupa, suga com força, arranha com os dentes – coisa que me excita “pra caralho” – e segura minhas bolas com vontade. Percebo que ela quer fazer o serviço completo com a boca, mas definitivamente ela não me conhece.

Ergo-a de uma vez só e a ponho de cara contra a parede. Procuro a camisinha no bolso da calça – uma coisa que se aprende quando se começa a vida sexual trepando com putas é que preservativos nunca podem faltar –, plastifico meu pau e levanto o vestido dela.

Bunda gostosa, magra, mas gostosa “pra cacete” com uma calcinha de cor forte – não sei se vermelha ou rosa; não divago muito sobre a cor, mesmo porque é irrelevante –, afasto a peça e esfrego os dedos em sua boceta depilada.

Ela ofega, rebola gostoso na minha mão. Vou penetrando-a devagar com os dedos, recolhendo um pouco da umidade de dentro de sua vagina para usá-la exatamente no ponto onde quero. Massageio seu clitóris até que ela se contraia em gozo e volto a molhar seu rabo com a lubrificação que solta.

Ela fica tensa quando encaixo a cabeça do meu pau em seu ânus apertado.

— Alex...

— Psiu... — falo devagarzinho em seu ouvido, lambendo sua orelha enquanto vou me afundando no canal estreito, sentindo meu corpo todo reagir à pressão de um local nunca ou pouco explorado. — Eu disse a você. — Ela arfa quando me encaixo por completo em seu rabo. — Os demônios com cara de anjo são os piores!

Meto com força e continuo estimulando seu clitóris, beijando e mordendo seu pescoço, até que ela explode em um orgasmo foda, e eu me deixo ir na camisinha, ainda sentindo as contrações do seu corpo. Quando ela se vira para me beijar, estico minha língua com sua recompensa na ponta. A garota sorri e chupa a drágea com vontade, enquanto eu engulo a outra.

A noite só começou!

 

Paro a moto em frente ao prédio onde Konstantinos mora. Fico parado olhando para o alto, invejando a liberdade de meu irmão, a coragem que teve ao se libertar assim que pôde do nosso pai. Ele estuda no Largo de São Francisco, vai ser um advogado e, mesmo que tenha tentado disfarçar, ficou contente quando contei que havia passado em todos os vestibulares para os quais havia prestado.

— Vai para algum lugar longe da cidade? — Kostas não escondeu sua preocupação.

— Não, vou ficar aqui — respondi com sinceridade, mesmo que minha vontade fosse ir para o mais longe possível deste inferno de lugar. — Vou continuar no apartamento de Nikkós, pelo menos até a Kyra fazer 18 anos.

Ele respirou fundo, e nossa conversa por telefone acabou aí. Nós não precisávamos externar nossa preocupação um para o outro, sabíamos do que nosso pai era capaz e do perigo que Kyra corria estando sob o mesmo teto que ele. Kostas saiu de casa, pois nunca soube lidar com Nikkós, ao contrário de mim.

O grego maluco tentou fazer comigo o mesmo que fazia com o meu irmão, porém nunca pensou que não me afetaria, então mudou de tática. O desgraçado tentava me acertar no único ponto que realmente me doía, mas ainda assim eu resistia em demonstrar alguma dor, então ele me fazia sentir na carne.

Esfrego a mão no ombro esquerdo, quebrado há dois anos no que todos acreditaram ser um acidente enquanto eu andava de skate, sem saber que quase tive o braço arrancado pelo homem louco, bêbado e drogado a quem todos respeitavam como um exemplo de pai, criando seus filhos sozinho depois de ter sido abandonado pela mulher.

Farsante dissimulado! Nunca amou ninguém, nunca se preocupou ou se dedicou a ninguém, nem a si mesmo. Eu só não entendo o motivo pelo qual ele não deixou que a puta que me gerou abortasse ou mesmo por que não me deixou com ela.

Eu sou um covarde! Rio, ligando a moto de novo.

Meu maior sonho é vê-lo morto, desejei e planejei isso tantas vezes, de tantas maneiras diferentes, que sei todos os passos de cor. No entanto, nunca tive coragem... Respiro fundo.

Pelo menos até essa madrugada!

Não faço ideia de como cheguei a casa, estava doidão, alto demais, cheirava a cerveja, maconha, sexo e perfumes variados. Não sei nem com quantas garotas trepei à noite, sei que algumas só mamaram meu pau, mas, com outras, a coisa foi mais louca.

Não consigo me lembrar de muita coisa. Só tenho sensações ruins de quando cheguei ao apartamento e percebi que Nikkós havia voltado. Nas memórias, há gritos, choro, mas nenhuma imagem. Tudo o que tenho nítido na cabeça foi o que aconteceu depois que acordei.

Estava deitado na sala principal do apartamento, minhas roupas sujas de sangue, rasgadas, um hematoma no olho e um corte no canto da boca já me incomodando. Não sabia nem onde estava, só sentia dor, confusão, e vomitei ali mesmo, no tapete da sala.

Ao meu lado vi uma faca suja de sangue. Gelei, sem saber o que tinha feito e de quem era o líquido viscoso e vermelho que cobria toda a lâmina. Foi nesse momento que saí do torpor em que me encontrava, peguei o objeto e comecei a correr pela enorme cobertura, entrando em todos os cômodos.

— Kyra! — gritava, mesmo com a cabeça explodindo. — Kyra!

Minha irmã não estava em lugar algum, nem mesmo a Nívea, a senhora que cuidava dela, eu pude encontrar. Meu desespero só aumentou. Liguei para o telefone dela, mas estava dando na caixa de mensagens.

Comecei a soluçar, mesmo não derramando uma só lágrima, e entrei no local proibido da casa, o santuário satânico de Nikkós Karamanlis: seu quarto.

Estanquei quando vi seu corpo enorme e nu jogado sobre a cama king size. Notei os cortes em seus braços, bem como o movimento de respiração, seguido dos roncos altos. O filho da puta não estava morto! Apertei a faca em minha mão com mais força, pensando que esse seria o momento certo para livrar a todos de sua existência.

Andei até ele devagar, os nós dos dedos brancos de tão firme que segurava a faca. Medi suas costas, imaginando que seria muito fácil perfurar seu pulmão com uma só estocada no lugar certo e que ele morreria afogado em seu próprio sangue lentamente, em uma morte digna dele.

Ergui a faca, fechei os olhos, parei de tremer e me lembrei de todos os anos de abuso e de tortura, do que ele fazia ao Kostas, do que fazia comigo e do que poderia fazer a Kyra.

Respirei fundo, concentrei a força e desci a faca, mas parei a milímetros de sua pele quando ouvi soar a campainha. Joguei a arma para longe e saí correndo daquele cômodo pestilento, descendo as escadas disparado para atender a porta, torcendo para que fossem Nívea e Kyra.

— Alexios? — a voz de Samara me fez prender o fôlego. — Alexios, você está aí?

Abri a porta sem pensar duas vezes e desmontei ao ver minha irmã ao lado da minha melhor amiga. Kyra, minha pequena princesa, linda como uma pintura, seus olhos enormes e verdes cheios de lágrimas e os lábios trêmulos.

— Ainda bem! — exclamei aliviado, puxando-a para meus braços. — Ainda bem!

— Alexios, você precisa de ajuda? — Samara questionou, olhando tudo em volta. — Ontem à noite a senhora Nívea pediu que Kyra ficasse comigo e...

Segurei o rosto de minha irmã, desgostoso por saber que ela mal fala por conta do monstro que temos em casa, sequei as lágrimas que escorriam por seu rosto miúdo e assustado e perguntei:

— O que houve?

Ela deu de ombros.

— Ele voltou mais cedo, estava bêbado, mandou Nívea embora. — Sinto um arrepio de frio percorrer minha coluna. — Os dois discutiram. — Ela soluçou. — Ele bateu nela, ela desmaiou...

— E você, onde estava?

Kyra desviou os olhos, e eu senti como se um soco acertasse a boca do meu estômago. Olhei para Samara em busca de uma resposta, mas minha amiga apenas deu de ombros, indicando que minha irmã também não falou com ela.

— Quando ela acordou, me levou para o apartamento da Malinha, e aí eu fiquei lá. — Kyra olhou em direção ao corredor. — Ele ainda está...

Assenti.

— Vá para o seu quarto, tranque a porta, tome um banho; daqui a pouco vou me encontrar com você. — Ela tentou sorrir em agradecimento para Samara, mas depois desistiu, seguindo diretamente para seu quarto. — Samara...

— Vocês precisam denunciar isso! — Ela tocou meu rosto. — Você é só um garoto, Alexios, não pode proteger vocês dois.

— Posso! — afirmei cheio de raiva. — Você sabe muito bem que, se uma denúncia for feita, ela será tirada de nós. Eu ficarei um ano em algum abrigo, mas e ela?

— O Tim não pode...

Neguei.

— Não acho que o deixariam cuidando de dois adolescentes, ele só tem 20 anos! — Fechei os olhos, cansado, com medo, sem saída e senti quando ela me abraçou apertado.

— Onde você esteve ontem à noite?

— Fui me divertir...

— Não. — Seus olhos lindíssimos encararam os meus. — Você não se diverte, Alexios, você tenta se matar. — Passou a mão pelo meu rosto. — Quanto usou?

Dei de ombros, não querendo discutir isso com ela. Nunca termina bem!

— Isso não ajuda ninguém. Nem a você, muito menos à sua irmã. — Tentou sorrir para disfarçar o sermão, seus dentes cheios de plaquinhas do aparelho ortodôntico, o rosto redondo de menina fazendo covinhas, coisa que ela sempre teve e sempre achei lindo. — Eu sei que só tenho 15 anos, mas...

— Eu agradeço que você tenha feito companhia a Kyra, mas agora preciso resolver tudo aqui. — Apontei para a sala. — Ficou tudo bem com seus pais?

— Sim, não acharam nada estranho que Kyra dormisse lá em casa, afinal, somos amigas.

Ri amargamente.

— Essa amizade é aceitável para os Schneiders, não é? — Samara ficou vermelha. — Kyra é uma boa menina, não um porra-louca como eu, filho de uma puta e...

Samara pôs a mão sobre minha boca.

— Você é meu melhor amigo, apenas isso deveria te bastar para calar qualquer outra coisa que meus pais possam pensar de você.

Abracei-a forte, a consciência pesada por falar mal de sua família, pois sei quanto ela os ama, depois me despedi e tratei de limpar a sala, jogar a roupa que usava fora e fiquei até há pouco com minha irmã, ambos trancados no seu quarto.

Só saí para espairecer, para processar tudo o que aconteceu na madrugada passada, pois mais uma vez Samara agiu como um anjo e convidou minha irmã para assistir à final da Copa do Mundo com ela e depois terem uma noite de meninas, com direito a festa do pijama.

Entro na garagem do prédio, mando uma mensagem para Samara informando-a de que cheguei e que estou indo buscar minha irmã. Sinceramente eu não sei como vou fazer até encontrar outra pessoa de confiança para deixar com Kyra quando eu não estiver em casa, pois Nívea disse que nunca mais colocará os pés no nosso apartamento, depois de ter recebido uma boa quantia para que não denunciasse o que se passa dentro de nossa casa, pois entendeu que prejudicaria Kyra.

Não importa! Kyra precisa de mim, e, nem se eu precisar mudar toda minha rotina por causa dela, a terei protegida.


São Paulo, tempo atuais.


Acordo com uma dor de cabeça filha da puta, ressacado, tão zonzo que tropeço ao sair da cama, e a primeira coisa que me vem à cabeça nesta manhã (ou será nesta tarde?) é que hoje é véspera de Natal. Foda-se! Sou ateu, esses feriados religiosos não significam nada para mim.

Sigo pelo corredor em direção à cozinha, com muita sede, louco para tomar um analgésico para exterminar a dor de cabeça. Não vou tomar! Não tomo remédios para dor há anos, aprendi a conviver com as pontadas, com as ardências. A dor me tornou mais forte, resiliente, aprendi há muito que nada é capaz de me ferir mais do que eu mesmo.

A maioria dos meus ossos trazem lembranças de como superei, as marcas no meu corpo também, porém, nenhuma dessas cicatrizes é mais forte do que o vazio dentro de mim.

Encho um copo d’água até transbordar e o bebo em um só gole. A cabeça martela ainda mais por conta da bebida gelada, mas ignoro-a por completo. Não há remédio para o que sinto, não há cura para toda a raiva que carrego dentro de mim, então posso, sim, conviver com umas horas de pontadas no cérebro.

Olho para a porta fechada na área de serviço. Os cômodos dali eram a tal dependência de empregados, mas, como eu nunca tive nenhum, aproveitei-os para outros fins. Inspiro, os cheiros tão familiares chegando às minhas narinas. A raiva natural com que acordo todos os dias se aplaca; não some, apenas se recolhe, dando lugar às sensações de prazer.

Confiro as horas e xingo ao perceber que já estamos no meio da tarde. Sinceramente, não sei por que Kyra inventou essa ceia de Natal, não depois de todos esses anos. Não entendo minha irmã, sinceramente. Há muito convivo com seu gênio forte, sua determinação, mas ainda não sei quem é ela. A garota divertida da infância se tornou uma adolescente quieta e taciturna, uma jovem inteligente e ajuizada e, por fim, uma adulta completamente misteriosa. Eu a acompanhei em todas as fases de sua vida, mas ainda assim não sei quem é a verdadeira Kyra Karamanlis.

Assim que ela completou 18 anos, abandonamos a luxuosa cobertura de Nikkós e fomos morar em um cafofo velho e caindo aos pedaços. Eu estudava como um louco no meu último ano de faculdade, e, como ela passou para uma universidade pública também, tínhamos que morar próximo de uma das duas universidades. Preferi ficar próximo da dela e me fodia andando de bicicleta até a minha todos os dias.

Nessa época eu estagiava na Novak Engenharia e, com a bolsa do estágio, eu mal conseguia pagar o aluguel do quarto e sala que aluguei. Ela nunca soube, mas quem bancava nossa alimentação, transporte e outras despesas era o Kostas. Meu irmão e eu nem éramos amigos, na verdade mal nos falávamos, mas todo mês o dinheiro aparecia na minha conta, e eu sabia que vinha dele.

Formei-me e já fui efetivado na Novak. Trabalhei com o Nicholas, com quem aprendi demais e construí uma amizade forte, assim como com seu irmão Bernardo. Os tempos de bagunça, baladas, drogas e bebidas acabaram quando nos libertamos da prisão daquele apartamento e da convivência maligna de Nikkós.

Kyra estudava muito, era extremamente aplicada em tudo o que fazia, e, irritada por não conseguir conciliar seu horário de estudos com um emprego, começou a fazer doces e salgados dentro do nosso pequeno apartamento e vendê-los na faculdade.

Rio ao pensar que foi assim que nasceu a promoter de eventos, em uma cozinha de seis metros quadrados, com um forno capenga, um fogão com só duas bocas funcionando e uma geladeira que parecia um monomotor, de tanto barulho que fazia. Em pouco tempo ela estava fornecendo encomendas para festas e pequenos eventos, depois começou a fazer projetos de decoração, então, quando se formou, foi trabalhar em um grande e caríssimo bufê da cidade, auxiliando a cerimonialista com os projetos.

Hoje ela é a dona de uma empresa especializada em produções de eventos diversos, bem-sucedida, com um negócio em progressão geométrica de crescimento. Tenho muito orgulho dela, principalmente por ser a única que não ficou agarrada ao cordão umbilical familiar dentro da Karamanlis.

Agora qual a necessidade da porra de uma ceia de Natal para comemorar a expansão de seu negócio? Vou ter que ficar com um maldito sorriso no rosto, carinha de anjo, lidando com o caralho da minha gastrite me corroendo ao pensar na hipocrisia do mundo.

Respiro fundo e decido combater a ressaca e a dor de cabeça com mais bebida. Pego uma cerveja na geladeira, abro-a na beirada da pia e entro no outro ambiente, a sala, integrada ao outro cômodo, separados apenas por uma enorme bancada.

Eu mesmo projetei esse prédio, há alguns anos, ainda trabalhando na Novak. Bernardo Novak é meu vizinho de porta, e Nicholas foi o primeiro dono da cobertura duplex que toma todo o último andar, hoje habitada por um casal e uma menininha. Comprei o apartamento pensando em vir morar com minha irmã, mas qual não foi minha surpresa quando ela anunciou que só sairia do cafofo para seu próprio lugar?

Pois é, vim sozinho, ocupo apenas a suíte principal, e os outros dois quartos estão praticamente vazios. A sala foi decorada – pela própria Kyra –, bem como a cozinha, mas nunca mandei fazer os móveis da sala de jantar, pois não vejo nenhuma função para eles. Eu como sozinho no balcão da cozinha, assistindo a TV ou ouvindo música.

Resgato meu celular, seleciono uma das minhas muitas playlists, e a caixa de som já liga automaticamente, deixando o som pesado do Matanza ecoar pelos ambientes. Sorrio ao ouvir “Bom é quando faz mal”, as recordações das loucuras da faculdade, de toda a merda que eu fazia. Não tenho vontade alguma de fazer de novo, mas também não posso dizer que me arrependo. Era o meu jeito de extravasar, tresloucado, admito, mas ainda assim muito mais normal do que o que eu vivia dentro de casa.

Preparo qualquer coisa para comer, balançando a cabeça e cantando as músicas de várias bandas de rock, algumas famosas, outras nem tanto, mas que marcaram minha vida de alguma forma.

O telefone toca, e a chamada atrapalha minha diversão musical. Bufo, jogo o pano de prato sobre a pia e pego o aparelho.

— Oi, Millos — atendo meu primo.

— Boa tarde, Alexios. Animado com a reunião de hoje à noite?

— Ô, tão quanto eu estaria para fazer um exame de próstata. — Millos gargalha. — Ela convidou você também?

— E o Kostas. — Isso me surpreende, pois, até onde eu sei, não temos nenhuma convivência com ele. — Bom, liguei para dizer que irei viajar na virada do ano, por isso preciso que você não deixe de ir ao baile dos Villazzas.

Gemo ao pensar em vestir um smoking.

— Porra, Millos, não fode! Aposto que Theodoros vai, afinal Frank e ele são quase um casal! — Millos ri do meu deboche acerca da amizade entre meu irmão mais velho e o CEO da rede Villazza de hotéis. — Não tenho a mínima...

— Konstantinos confirmou presença também.

Puta que pariu!

Preciso me sentar depois dessa informação, pasmo só em imaginar Kostas com alguma puta, sentado na mesma mesa de Theodoros. Vai dar merda!

— Eu não tenho companhia — tento me justificar. — E você poderia adiar a sua viagem só por uns...

— Não, não posso, já fiz todos os arranjos, reservas em hotéis, o cronograma da viagem! Você tem que ir para evitar que os dois prejudiquem a imagem da empresa.

Reviro os olhos ao pensar na imagem da empresa. Millos é doido ao pensar que temos uma imagem a zelar. Todos nesta maldita cidade, neste meio asqueroso no qual vivemos, sabem que somos todos fodidos e que nosso pai cagou em nosso nome com a sucessão de merdas que fez.

E olha que a maioria não o conheceu de verdade, não soube o monstro que ele era, escondido por detrás de uma fachada bonita e um sorriso de conquistador barato! Um lobo em pele de cordeiro, um demônio com a face de um anjo... assim como eu.

Bufo de raiva.

— Cadê aquela sua amiga? — Franzo a testa, sem acreditar que ele está se referindo à Samara. — Vocês viviam para cima e para baixo juntos, ela te acompanhou em um dos primeiros eventos dos Villazzas e...

— A Samara mora em Madri há mais de três anos, Millos. — Decido não entrar em detalhes e contar a ele que nos afastamos por algum motivo idiota que eu não consigo lembrar. — Vou ter que ligar para alguma...

— Isso, ligue — ele me corta. — Mulher nunca foi seu problema, aposto que você tem um caderninho cheio de telefones.

— E daí? — afronto-o. — Gosto de sexo, nunca escondi isso, diferente de você, que nunca foi visto com nenhuma mulher além daquela sua amiga motoqueira. — Decido provocá-lo: — Millos, acho que está na hora de sair do armário, porra!

O filho da puta ri alto.

— Eu não teria problema algum em sair se fosse o caso. Ainda mais agora, que Dimitrios saiu, e o pappoús continuou vivo e... — Millos para.

É sempre assim quando algum assunto referente à família na Grécia vem à tona. Eu não conheço ninguém, nunca fui à Grécia, nem tenho a mínima vontade de ir. Não conheço o tal pappoús, nem primo algum além de Millos, que só conheci quando veio morar no Brasil.

Sou o Karamanlis renegado, indigno do sobrenome.

— Vou ligar para alguém e convidar a ir comigo — encerro o assunto constrangedor. — Mas não garanto atuar de mediador como você.

— Você, mediador? — Millos se surpreende. — Alexios, se eu não tivesse interferido, você teria criado uma situação com Theodoros na festa de final de ano da Karamanlis. Eu só quero que você vá com alguém e iniba um pouco aqueles dois.

Bufo e concordo.

— Eu vou.

— Obrigado. — Estou prestes a desligar, quando ele me chama de novo: — Ah, Alexios, não encha a cara, senão você vai falar merda para o Theo, e o Kostas vai se aproveitar disso.

— Vai se foder, Millos! Eu já vou, porra, não diga o que tenho que fazer.

Desligo irritado, perco a fome e a vontade de terminar o que estava preparando.

Mesmo puto, preciso admitir, Millos tem razão sobre eu perder a cabeça com Theodoros, principalmente quando bebo. Eu não odeio meu irmão mais velho como sei que Kostas o faz, apenas ele não significa mais nada para mim.

Convivo bem com ele, pelo menos no sentido profissional, mas não quero nenhum tipo de ligação mais pessoal. Ele perdeu o timing quando, depois de toda a merda que ajudou a fazer, nunca mais quis saber de nós. Era como se nem existíssemos! Ele excluiu Nikkós de sua vida, mas acabou nos descartando junto. Nunca se preocupou em saber de nenhum de seus irmãos, muito menos de sua adorada Kyra, a mais vulnerável de todos nós.

Então, sim, eu perco a cabeça com ele, principalmente com seu jeito esnobe, intocável, como se somente ele importasse e mais ninguém. E foi por isso que nos estranhamos na festa de final de ano da Karamanlis, porque, simplesmente, este ano a festa não foi Theocrática1.

Millos e eu nos reunimos com alguns gerentes e coordenadores para entender o que os funcionários da Karamanlis gostariam de ter em uma festa de encerramento do ano. Depois, contratamos todos os serviços – sem ser da Kyra, pois neste ano ela se livrou de nós na cara dura – e fizemos a festa focada nos funcionários.

Aparentemente, isso chocou e desagradou ao CEO com síndrome de deus, e sua cara fechada e seu olhar de desprezo não ficaram nada disfarçados.

— Ei, irmãozinho! — Eu o parei, enquanto andava como um deus do Olimpo visitando terráqueos. — Aproveitando a festa?

— Espero que não tenha vindo de moto! — o filho da puta tentou me repreender como se estivesse preocupado com minha segurança, e isso, juntamente a toda cerveja que eu já tinha tomado, irritou-me.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já muito bêbado para me conter. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos2!

Theodoros franziu o cenho com meu deboche, comparando seu nome à palavra deus em grego. Estava prestes a dizer algo, mas se conteve quando de repente fui abraçado pelos ombros. Nem precisei olhar para saber que nosso interventor havia chegado.

— Alex, que festança, não? — Millos comentou. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — Theodoros pareceu perplexo. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Gargalhei ao confirmar que ele era mesmo um grande egocêntrico, incapaz de perceber a diferença da festa deste ano à do ano passado por estar focado nos detalhes e não no que realmente importava: as pessoas.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — respondi como se estivesse sóbrio, mesmo não estando. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos me cortou.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — Theodoros perguntou ao Millos, apontando o dedo em minha direção como o grande babaca que sempre foi.

— Fui! — respondi. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Tentei demonstrar com gestos o que dizia, abri os braços de repente, e meu punho bateu no peito do Millos, que chegou para trás. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — olho para um grupo dançando e vários outros conversando, comendo e se divertindo — você está vendo alguém ir?

Ele ficou um tempo olhando em volta como se notasse, pela primeira vez desde que chegou, que realmente os funcionários estavam adorando a descontração deste ano.

Eu só não esperava que ele tentasse ser condescendente comigo:

— Bom trabalho! O pessoal parece realmente estar gostando!

Só faltou dar umas batidinhas em minha cabeça como se eu fosse a porra do seu cãozinho de estimação. Meu sangue ferveu, travei os punhos e não me contive:

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos interrompeu-me e me abraçou novamente pelos ombros. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Mal acabou de falar, seguiu para o outro lado, levando-me consigo.

— Porra, moleque, não tem como ser menos reativo não? A festa está um sucesso graças ao seu feeling, ao modo como você conhece e percebe as pessoas, para que estragar isso batendo boca ou — ele me encarou —, como percebi que queria fazer, enchendo a cara do Theo de porrada? Sai dessa!

Concordei com meu primo e respirei fundo. Depois disso tomei quase um litro de café amargo, ele me pôs em um Uber, e eu vim para casa, onde continuei a beber, desmaiei no sofá e, no outro dia, fui correr ainda um tanto trôpego, sendo desclassificado no teste do bafômetro.

Perdi minha última corrida do ano, grande fracassado que sou!

Volto a ligar minha playlist, e a música que toca é exatamente a que eu preciso para sair da fossa dessas lembranças todas:

— Eu não tenho nada pra dizer. Também não tenho mais o que fazer. Só para garantir esse refrão, eu vou enfiar um palavrão: cu!3


Entro no showroom da A??p?4 – a empresa de eventos de Kyra – e já admiro o trabalho dela com a decoração do local. A enorme mesa com vários lugares ocupa o centro do enorme salão, com castiçais, flores, louças e talheres milimetricamente colocados, junto a taças de cristal e guardanapos de linho.

No restante do salão, há mesas altas para apoiar drinques, sofás e poltronas brancas, com almofadas e outras coisas de decoração seguindo a paleta de cores da festa: verde, vermelho e dourado.

Clichê! Mas é Natal, tem como não ser?

Dou de ombros e vejo Kyra de costas, junto à belíssima morena que trabalha com ela desde que abriu a empresa e as duas chefes de cozinha que conheceu ainda quando trabalhava no outro bufê e as roubou na cara dura quando resolveu estabelecer seu próprio negócio. Uma delas, acho que é a doceira – Mari, como todos a chamam – me vê e logo cutuca minha irmã.

— Ah, Alex! — Kyra abre um enorme sorriso, entrega para a morena – como é mesmo o nome dela? – os penduricalhos de Natal com os quais enfeitava o enorme pinheiro e vem até mim. — Que bom que chegou, tenho uma coisa para você!

Ah, puta que pariu! Ela me comprou um presente? Fico imediatamente sem jeito, pois não comprei absolutamente nada para ela. Eu nem imaginava que iríamos trocar lembranças, nunca fizemos isso!

Alívio toma conta de mim quando ela vem com uma caixinha pequena e claramente de doces.

— Quando experimentei, lembrei logo de você. — Ela tira um doce dourado de dentro da caixa. — Prove!

Franzo o cenho e abro a boca. Mastigo devagar, emitindo sons de prazer, adorando o contraste de texturas e o sabor doce e... picante. Abro um sorriso.

— Chocolate com pimenta! — Termino de comer. — Perfeição!

— Bombom Helênico. — Faço careta para o nome, não combina em nada. — Eu sei, é péssimo, mas as meninas quiseram fazer uma homenagem para a Helena, então... — Dá de ombros.

Helena!, minha mente grita ao lembrar o nome da morena gostosa, mas que nunca sorri e mal fala comigo quando apareço aqui.

— Hum... gostosa! — Começo a rir quando noto que falei alto. Kyra me olha séria. — O quê?

— Nem pense, ela está comprometida!

Ergo as mãos em minha defesa.

— Não falei nada!

— Não precisa! Sua fama de embusteiro conquistador te precede! — Faço careta, e ela ri. — Estive com saudades de você.

— Então por que não foi me ver ou me ligou? — pergunto sem enrolação.

— Não sei.

Respiro fundo. Ela se fecha, é sempre assim e não só comigo. Ela se empolga, vibra, deixa as pessoas se aproximarem, mas nunca demais. Quando chega a seu limite, simplesmente retrocede com a mesma rapidez e naturalidade com que atraiu alguém. É por isso que suas amizades ou mesmo seus relacionamentos amorosos nunca duraram muito.

Porém o que faço eu aqui, julgando-a?

— Alexios Karamanlis! — Viro-me ao ouvir a voz de Millos.

Meu primo – filho de uma égua! – carrega uma enorme caixa de presente toda embrulhada e com laços. Kyra abre um enorme sorriso e vai saltitante até ele, abraça-o pelo pescoço – coisa que não faz nem comigo – e agradece o regalo.

— É para decorar sua sala de empresária fodona — ele brinca com ela, e Kyra gargalha ao tirar uma estátua toda colorida de um unicórnio. — Eu me lembrei daquela sua fantasia no dia das bruxas...

Kyra para de boca aberta.

— Millos, eu tinha quatro anos! — ela recorda e, de repente, parece lembrar também que, naquela época, tudo parecia realmente possível, mágico e feliz.

Meu primo a abraça forte e fala algo em seu ouvido, baixinho. Kyra assente, e eu fico paralisado vendo a troca de carinho entre eles. Parece normal, não é? Mas, creiam-me, não é. Millos evita qualquer contato físico com outras pessoas. Ao cumprimentá-las, ele prefere baixar a cabeça do que dar um aperto de mãos; o máximo que o vi fazer até hoje foi tocar no ombro de alguém, mas somente quando julga necessário. Até comigo, o máximo que ele fez até hoje foi me abraçar para evitar um embate entre mim e Theo. Então assistir aos dois se abraçando é realmente algo inédito.

— Feliz Natal, pesménos ángelos5.

Mostro o dedo do meio para ele.

— Ah, pesquisou! — Ri debochado, mas logo para ao aceitar o chope que Kyra nos oferece. — É um absurdo você não saber nada da nossa língua.

— Não tenho interesse algum por nada que venha de lá — justifico e bebo. — Kyra também não sabe!

— Quem disse? — Ela começa a rir. — Anóito6.

— Quando foi que você se interessou por essa porra? — questiono-lhe surpreso.

— Você leu o nome da empresa dela na fachada? — é Millos quem retorna minha pergunta. — Está em grego!

Millos e Kyra engatam uma conversa, enquanto eu ainda estou paralisado com essa nova informação. Não é exagero, mas eu pensei que ela, assim como eu, desprezasse qualquer coisa que tenha relação com Nikkós. No entanto, ao contrário de mim, ela sempre foi aceita por todos os Karamanlis como parte da família, então é natural que tenha algum apreço por eles.

— Ah, mais convidados estão chegando!

Kyra deixa-nos a sós e vai até um grupo que não conheço.

— Ela parece feliz — comento com Millos.

Meu primo dá de ombros.

— Há pessoas com o dom de demonstrar apenas o que querem que vejam. — Bebe o resto de seu chope e me encara. — Já resolveu o assunto do baile dos Villazzas?

— Ah, Millos, não fode mais a minha noite! — Vejo duas lindas mulheres adentrarem ao salão e abro um sorriso. — Pode ser que ela esteja começando a melhorar.

Millos ergue uma de suas sobrancelhas, e eu o deixo sozinho, caminhando em direção ao meu mais novo alvo da noite, que, neste exato momento, cumprimenta minha irmã.

— Kyra, eu gostaria de... — finjo interromper-me quando as desconhecidas me olham. — Desculpem-me. — Kyra rola os olhos, mas suas convidadas não desviam o olhar do meu rosto. — Millos estava falando do chope, e nós fizemos uma pequena aposta, mas posso ver isso depois, atenda seus convidados. — Abro novamente meu melhor sorriso na direção delas.

— Valéria e Priscila, esse é meu irmão, Alexios Karamanlis — Kyra faz nossa apresentação, e eu sei que depois irá jogar na minha cara que eu estou lhe devendo por isso.

— Um prazer, Valéria! — Aproximo-me para cumprimentá-la e logo depois saúdo a outra: — Prazer, Priscila.

— O prazer é meu, Alexios — Priscila responde, sorrindo, e vejo a mão de Valéria tocar suas costas num gesto um tanto territorialista. Perfeito! Trocamos beijos no rosto em cumprimento. — Eu já te vi em algumas revistas especializadas em engenharia e arquitetura, principalmente quando o conselho dessas classes era o mesmo.

— Arquiteta? — tento adivinhar, mas ela nega e aponta para sua amiga.

— Valéria é, eu sou designer industrial. — Faço cara de surpresa, mesmo sem achar nada de mais. — É, eu sei, a maioria das pessoas que me conhece acha que sou modelo ou estilista, mas você quase acertou. — Seu sorriso é claramente de quem se sente lisonjeada. — Trabalho conceitos para grandes marcas.

— Incrível! — Olho-a de cima a baixo, e Kyra bufa. — Você também parece incrível, Valéria. — Sorrio, e ela relaxa.

— Alexios, chegaram outros convidados, você poderia fazer companhia a elas? — Ela pega na mão das amigas. — Vocês não se importam, não é?

— Claro que não, você é a anfitriã da noite! — Valéria diz, e sinto seu olhar brilhar em minha direção. — Nós ficaremos em boa companhia com seu irmão, afinal, é o anjo rebelde dos Karamanlis.

Puta que pariu!

 

CONTINUA

Com um passado nebuloso, marcado por traumas, rejeições e violência, há anos Alexios Karamanlis busca entender a si mesmo e, para isso, começa uma caçada sem fim pelo destino de sua mãe biológica, junto a sua melhor amiga, Samara Schneider.
Amigos desde tenra idade, Alexios sempre tentou não a notar como mulher por temer perder sua amizade e apoio, e Samara sempre sonhou com o dia em que o garoto problemático e rebelde se apaixonaria por ela.
Juntos em busca de respostas sobre a verdadeira história do nascimento de Alexios, os dois mergulharão no sujo passado do pai dele, Nikkós Karamanlis, revelarão segredos muito bem guardados e, por fim, descobrirão que não há como reprimir mais a paixão e o desejo que sentem um pelo outro.

 

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O país todo está enlouquecido!, penso ao passar por mais uma blitz policial sem nenhum problema, acelerando a moto ao máximo, capacete preto espelhado impossibilitando qualquer um de ver que quem pilota essa máquina é um garoto, não um homem.

Eu não sou um homem! Não sou! Se fosse, não estaria aqui neste momento, mas sim na delegacia, gritando por aí, fazendo qualquer coisa que não apenas dar uma de burguesinho filho da puta endinheirado, acelerando uma moto que custa o mesmo que um apartamento popular, mesmo sem ter habilitação para isso, apenas para esquecer os problemas.

Eu sou um merda! E sou isso por causa “dele”!

Caralho! A Paulista está fechada por conta das comemorações do pentacampeonato. É, o Brasil conseguiu mais uma estrela no futebol, o país está eufórico como se não houvesse crianças na rua, assassinos à solta, a corrupção impedindo todo o sistema público de funcionar. Foda-se, somos penta!

Faço uma manobra rápida com a moto, deixando marcas dos grossos pneus no asfalto e sigo para outra direção, à procura de mais uma avenida extensa e reta para que eu possa extravasar todo o ódio dentro de mim indo ao limite da velocidade.

Paro a moto de repente e quase sou arremessado para frente. Meus músculos começam a tremer, meus olhos se enchem de lágrimas, sinto frio, meus dentes batem um no outro. Engulo em seco. Não vou chorar! Não choro mais, não há muitos anos.

Cada soco, cada pontapé, cada xingamento e mentira secaram minhas lágrimas. Elas até se instalam em meus olhos, porém não caem. Sufocam-me, quebram meu coração, desequilibram-me.

Caio no chão em um baque só, gemo de dor por causa do peso da moto sobre minha perna esquerda, mas não choro. Respiro fundo para controlar a dor, parar de tremer, diminuir os batimentos do meu coração. Estou acostumado a essa rotina de tentar não sentir dor, de tentar não sentir mais nada.

Levanto-me calmamente, sinto calafrios, manco, mas volto a subir na moto, acelerando-a, fazendo o motor girar e um ruído alto e potente se misturar aos sons das comemorações pelas ruas da cidade. Respiro fundo várias vezes e, quando não sinto mais nada, tiro o pé do chão e deixo a máquina me levar.

Eu queria poder fugir para o mais longe possível desta cidade, mas não dá, infelizmente não posso ir a lugar algum, estou preso, revivendo o mesmo inferno todos os dias, aceitando meu destino com resignação até poder livrar a mim e a Kyra do demônio que nos formou.

Eu poderia pedir ajuda ao Tim, mas sei que ele tem a própria merda para lidar e que conseguiu sair há pouco do inferno. Sei que precisava ir. Meu irmão estava por um fio, assim como eu, e, se ficasse lá conosco, seria para morrer ou matar, e, como não é da sua natureza matar, iria perecer aos poucos, como Nikkós gostaria que acontecesse.

Então ele foi, e eu fiquei incumbido de uma missão que nós aceitamos sem nem mesmo combinar nada, apenas porque sabíamos do que nosso pai era capaz e decidimos que não o deixaríamos chegar a ela.

Soluço na moto.

Eu falhei!

Eu falhei!

Eu falhei?!

Eu não sei! Simplesmente não sei o que aconteceu ontem! Acelero a moto, pegando uma rodovia, ainda tentando processar todos os acontecimentos e os flashes de memória que tenho.

Cometi um erro na noite passada, fui imprudente e agora preciso lidar com tudo o que aconteceu, mesmo sem entender direito o que houve. Enquanto piloto a moto, tento repassar cada momento de ontem, mesmo sabendo que já fiz isso várias e várias vezes sem nenhum êxito.

Nikkós finalmente viajou a trabalho – ou o que quer que ele tenha ido fazer –, e eu consegui relaxar um pouco. Mantenho constante vigilância sobre minha irmã, uma adolescente de 14 anos de idade, e evito ao máximo deixá-la sozinha com nosso pai. Não há muito que eu possa fazer para protegê-la das loucuras dele, mas o que está ao meu alcance, faço.

Por conta disso, desde que ingressei na universidade – no começo desse ano –, desdobro-me ao máximo para curtir com meus amigos e proteger a Kyra. A babá anterior era a mesma desde quando minha irmã e eu nascemos, totalmente devota ao nosso pai, então, assim que Konstantinos tomou posse de sua herança, demos um jeito de nos livrar dela, e, assim que outra foi contratada, meu irmão se encarregou de pagar uns extras para ela manter os olhos em Kyra.

Nikkós sempre foi um filho da puta covarde, ele nunca iria deixar um serviçal ver o que ele é capaz de fazer aos filhos, por isso tinha seus próprios lugares para executar suas torturas em Kostas e em mim.

Noite passada, uma galera mais velha da universidade fechou uma boate e me convidou para festejar com eles. Estávamos entrando de férias e queríamos muito desopilar o fígado, relaxar, curtir e esquecer todas as pressões dos estudos.

Como Nikkós não estava em casa, e a babá estava por lá com Kyra, por que não ir? Foi esse meu erro!, penso ao relembrar.

 

— O grande Alexios Karamanlis! — Alberto Bragança me saúda assim que entro na boate. — Achei que você não vinha mais, mano!

Ele me entrega uma caneca de 500ml de chope e um cartão para o restante do consumo, e logo vejo os outros caras em uma mesa no fundo do salão. A música alta, tocando um “batestaca” qualquer, não chama minha atenção. Sigo, então, na direção do pessoal e, mal chego lá, peço mais uma rodada de chope para todos.

Meu pai é um grande filho da puta, torturador desgraçado, mas, para manter as aparências, deixa-nos usar cartão sem limites e nos entrega uma mesada gorda. Bebo, sentindo o gosto do chope se tornar mais amargo que o normal, consciente de que essa porra toda é dele, comprada com o seu maldito dinheiro.

— Jefinho está na área! — alguém grita comemorando. — Vamos começar a diversão! Quem vai?

Sou um dos primeiros a me levantar, viro o resto da bebida e sigo com mais cinco amigos para o banheiro, atrás do traficante oficial da turma. Vejo cada um pegando “no bufê do Jeff” sua viagem preferida e pego um pino de “coca” para começar bem a noite.

“Foda-se, Nikkós Karamanlis!”

Cheiro.

“Foda-se, Sabrina Karamanlis!”

Aspiro mais um pouco.

“Foda-se, Theo Karamanlis!”

Faço outra carreira com o restante do pó.

“Foda-se, Geórgios Karamanlis!”

Seguro a narina fechada, mantendo tudo dentro de mim, sentindo já meu corpo girar, o cérebro acelerar e todas as sensações de abandono e dor se esvaírem como num passe de mágica. Só existe prazer, nenhuma dor, tudo é maravilhoso!

Compro mais três pinos de cocaína e alguns comprimidos de êxtase. Essa noite não quero dormir, quero aproveitar, dançar, zoar, pegar umas universitárias e esquecer quem sou.

Começo a rir de mim mesmo, da piada que acabei de pensar. Esquecer quem sou só seria possível se eu soubesse quem sou.

“Eu não sou ninguém!”

Meu Nokia vibra com a chegada de uma mensagem, confiro ser de Samara, minha única e melhor amiga, e volto a colocá-lo no bolso ao perceber a aproximação de uma gostosa do quarto ano.

— Eu não acredito que você é menor de idade, Alex! — A garota, com luzes nos cabelos e vestido com apenas uma alça, passa a mão no meu peito. — Você não parece ser um garoto, mesmo com esse rostinho angelical.

Respiro fundo para não perder a paciência, pois, se há algo que me irrita muito, é quando dizem que eu pareço um anjo. Aproximo-me dela e a puxo pela cintura.

— Posso provar que não sou um anjo! — Pego sua mão e a levo até a frente da minha calça. A garota arregala os olhos. — Os demônios com cara de anjo são os piores, gata!

— Uau! — Ela lambe meu pescoço. — O que você tomou?

— Coca, mas tenho “bala” no meu bolso. — Ela ronrona, e eu me animo. — Vem comigo!

Levo-a para uma área nos fundos da boate, uma espécie de depósito que se encontra aberto, uma vez que a casa está funcionando apenas para um bando de playboys endinheirados que preferem não se misturar com a ralé e, assim, fazer suas merdas longe dos olhos curiosos da plebe.

Claro! Afinal de contas, aqui estão reunidos os filhos dos maiores empresários, advogados, médicos, juízes e a porra toda elitizada desta cidade decadente. Bando de fodidos! A maioria desconta, como eu, a falta de afeto e atenção em casa gastando dinheiro, promovendo rachas pelas ruas, consumindo todo tipo de droga tentando preencher o buraco negro instalado nas nossas almas.

“Foda-se!”

Seguro a garota contra a parede fria do depósito e, sem nem mesmo perguntar seu nome, ataco sua boca com fúria, mordendo seus lábios e sugando sua língua. Ela mexe em minha calça, abre-a e retira meu pau para um tratamento especial em suas mãos macias.

— Novinho e pauzudo... — ela geme. — Cadê a balinha para deixar tudo mais divertido?

Sorrio e nego.

— Tem que merecer.

Ela sorri e, sem que eu precise sequer lhe indicar o que quero, ajoelha-se no chão grosso e toma meu pau em sua boca quente e esfomeada. Gemo, gostando da carícia, seguro-a pelos cabelos e a forço a engolir o máximo que consegue.

Tenho quase 17 anos, mas aposto com quem quer que seja que nenhum desses caras daqui tem a metade da experiência sexual que eu. E não, não “tiro onda” com isso, afinal, quem é filho de Nikkós Karamanlis não tem muita escolha sobre quando vai começar a trepar, ele simplesmente impõe, e comigo isso aconteceu quando eu tinha 11 anos de idade.

Afasto o pensamento pestilento sobre meu pai e curto a chupada gostosa que a garota ajoelhada me dá. Ela lambe, chupa, suga com força, arranha com os dentes – coisa que me excita “pra caralho” – e segura minhas bolas com vontade. Percebo que ela quer fazer o serviço completo com a boca, mas definitivamente ela não me conhece.

Ergo-a de uma vez só e a ponho de cara contra a parede. Procuro a camisinha no bolso da calça – uma coisa que se aprende quando se começa a vida sexual trepando com putas é que preservativos nunca podem faltar –, plastifico meu pau e levanto o vestido dela.

Bunda gostosa, magra, mas gostosa “pra cacete” com uma calcinha de cor forte – não sei se vermelha ou rosa; não divago muito sobre a cor, mesmo porque é irrelevante –, afasto a peça e esfrego os dedos em sua boceta depilada.

Ela ofega, rebola gostoso na minha mão. Vou penetrando-a devagar com os dedos, recolhendo um pouco da umidade de dentro de sua vagina para usá-la exatamente no ponto onde quero. Massageio seu clitóris até que ela se contraia em gozo e volto a molhar seu rabo com a lubrificação que solta.

Ela fica tensa quando encaixo a cabeça do meu pau em seu ânus apertado.

— Alex...

— Psiu... — falo devagarzinho em seu ouvido, lambendo sua orelha enquanto vou me afundando no canal estreito, sentindo meu corpo todo reagir à pressão de um local nunca ou pouco explorado. — Eu disse a você. — Ela arfa quando me encaixo por completo em seu rabo. — Os demônios com cara de anjo são os piores!

Meto com força e continuo estimulando seu clitóris, beijando e mordendo seu pescoço, até que ela explode em um orgasmo foda, e eu me deixo ir na camisinha, ainda sentindo as contrações do seu corpo. Quando ela se vira para me beijar, estico minha língua com sua recompensa na ponta. A garota sorri e chupa a drágea com vontade, enquanto eu engulo a outra.

A noite só começou!

 

Paro a moto em frente ao prédio onde Konstantinos mora. Fico parado olhando para o alto, invejando a liberdade de meu irmão, a coragem que teve ao se libertar assim que pôde do nosso pai. Ele estuda no Largo de São Francisco, vai ser um advogado e, mesmo que tenha tentado disfarçar, ficou contente quando contei que havia passado em todos os vestibulares para os quais havia prestado.

— Vai para algum lugar longe da cidade? — Kostas não escondeu sua preocupação.

— Não, vou ficar aqui — respondi com sinceridade, mesmo que minha vontade fosse ir para o mais longe possível deste inferno de lugar. — Vou continuar no apartamento de Nikkós, pelo menos até a Kyra fazer 18 anos.

Ele respirou fundo, e nossa conversa por telefone acabou aí. Nós não precisávamos externar nossa preocupação um para o outro, sabíamos do que nosso pai era capaz e do perigo que Kyra corria estando sob o mesmo teto que ele. Kostas saiu de casa, pois nunca soube lidar com Nikkós, ao contrário de mim.

O grego maluco tentou fazer comigo o mesmo que fazia com o meu irmão, porém nunca pensou que não me afetaria, então mudou de tática. O desgraçado tentava me acertar no único ponto que realmente me doía, mas ainda assim eu resistia em demonstrar alguma dor, então ele me fazia sentir na carne.

Esfrego a mão no ombro esquerdo, quebrado há dois anos no que todos acreditaram ser um acidente enquanto eu andava de skate, sem saber que quase tive o braço arrancado pelo homem louco, bêbado e drogado a quem todos respeitavam como um exemplo de pai, criando seus filhos sozinho depois de ter sido abandonado pela mulher.

Farsante dissimulado! Nunca amou ninguém, nunca se preocupou ou se dedicou a ninguém, nem a si mesmo. Eu só não entendo o motivo pelo qual ele não deixou que a puta que me gerou abortasse ou mesmo por que não me deixou com ela.

Eu sou um covarde! Rio, ligando a moto de novo.

Meu maior sonho é vê-lo morto, desejei e planejei isso tantas vezes, de tantas maneiras diferentes, que sei todos os passos de cor. No entanto, nunca tive coragem... Respiro fundo.

Pelo menos até essa madrugada!

Não faço ideia de como cheguei a casa, estava doidão, alto demais, cheirava a cerveja, maconha, sexo e perfumes variados. Não sei nem com quantas garotas trepei à noite, sei que algumas só mamaram meu pau, mas, com outras, a coisa foi mais louca.

Não consigo me lembrar de muita coisa. Só tenho sensações ruins de quando cheguei ao apartamento e percebi que Nikkós havia voltado. Nas memórias, há gritos, choro, mas nenhuma imagem. Tudo o que tenho nítido na cabeça foi o que aconteceu depois que acordei.

Estava deitado na sala principal do apartamento, minhas roupas sujas de sangue, rasgadas, um hematoma no olho e um corte no canto da boca já me incomodando. Não sabia nem onde estava, só sentia dor, confusão, e vomitei ali mesmo, no tapete da sala.

Ao meu lado vi uma faca suja de sangue. Gelei, sem saber o que tinha feito e de quem era o líquido viscoso e vermelho que cobria toda a lâmina. Foi nesse momento que saí do torpor em que me encontrava, peguei o objeto e comecei a correr pela enorme cobertura, entrando em todos os cômodos.

— Kyra! — gritava, mesmo com a cabeça explodindo. — Kyra!

Minha irmã não estava em lugar algum, nem mesmo a Nívea, a senhora que cuidava dela, eu pude encontrar. Meu desespero só aumentou. Liguei para o telefone dela, mas estava dando na caixa de mensagens.

Comecei a soluçar, mesmo não derramando uma só lágrima, e entrei no local proibido da casa, o santuário satânico de Nikkós Karamanlis: seu quarto.

Estanquei quando vi seu corpo enorme e nu jogado sobre a cama king size. Notei os cortes em seus braços, bem como o movimento de respiração, seguido dos roncos altos. O filho da puta não estava morto! Apertei a faca em minha mão com mais força, pensando que esse seria o momento certo para livrar a todos de sua existência.

Andei até ele devagar, os nós dos dedos brancos de tão firme que segurava a faca. Medi suas costas, imaginando que seria muito fácil perfurar seu pulmão com uma só estocada no lugar certo e que ele morreria afogado em seu próprio sangue lentamente, em uma morte digna dele.

Ergui a faca, fechei os olhos, parei de tremer e me lembrei de todos os anos de abuso e de tortura, do que ele fazia ao Kostas, do que fazia comigo e do que poderia fazer a Kyra.

Respirei fundo, concentrei a força e desci a faca, mas parei a milímetros de sua pele quando ouvi soar a campainha. Joguei a arma para longe e saí correndo daquele cômodo pestilento, descendo as escadas disparado para atender a porta, torcendo para que fossem Nívea e Kyra.

— Alexios? — a voz de Samara me fez prender o fôlego. — Alexios, você está aí?

Abri a porta sem pensar duas vezes e desmontei ao ver minha irmã ao lado da minha melhor amiga. Kyra, minha pequena princesa, linda como uma pintura, seus olhos enormes e verdes cheios de lágrimas e os lábios trêmulos.

— Ainda bem! — exclamei aliviado, puxando-a para meus braços. — Ainda bem!

— Alexios, você precisa de ajuda? — Samara questionou, olhando tudo em volta. — Ontem à noite a senhora Nívea pediu que Kyra ficasse comigo e...

Segurei o rosto de minha irmã, desgostoso por saber que ela mal fala por conta do monstro que temos em casa, sequei as lágrimas que escorriam por seu rosto miúdo e assustado e perguntei:

— O que houve?

Ela deu de ombros.

— Ele voltou mais cedo, estava bêbado, mandou Nívea embora. — Sinto um arrepio de frio percorrer minha coluna. — Os dois discutiram. — Ela soluçou. — Ele bateu nela, ela desmaiou...

— E você, onde estava?

Kyra desviou os olhos, e eu senti como se um soco acertasse a boca do meu estômago. Olhei para Samara em busca de uma resposta, mas minha amiga apenas deu de ombros, indicando que minha irmã também não falou com ela.

— Quando ela acordou, me levou para o apartamento da Malinha, e aí eu fiquei lá. — Kyra olhou em direção ao corredor. — Ele ainda está...

Assenti.

— Vá para o seu quarto, tranque a porta, tome um banho; daqui a pouco vou me encontrar com você. — Ela tentou sorrir em agradecimento para Samara, mas depois desistiu, seguindo diretamente para seu quarto. — Samara...

— Vocês precisam denunciar isso! — Ela tocou meu rosto. — Você é só um garoto, Alexios, não pode proteger vocês dois.

— Posso! — afirmei cheio de raiva. — Você sabe muito bem que, se uma denúncia for feita, ela será tirada de nós. Eu ficarei um ano em algum abrigo, mas e ela?

— O Tim não pode...

Neguei.

— Não acho que o deixariam cuidando de dois adolescentes, ele só tem 20 anos! — Fechei os olhos, cansado, com medo, sem saída e senti quando ela me abraçou apertado.

— Onde você esteve ontem à noite?

— Fui me divertir...

— Não. — Seus olhos lindíssimos encararam os meus. — Você não se diverte, Alexios, você tenta se matar. — Passou a mão pelo meu rosto. — Quanto usou?

Dei de ombros, não querendo discutir isso com ela. Nunca termina bem!

— Isso não ajuda ninguém. Nem a você, muito menos à sua irmã. — Tentou sorrir para disfarçar o sermão, seus dentes cheios de plaquinhas do aparelho ortodôntico, o rosto redondo de menina fazendo covinhas, coisa que ela sempre teve e sempre achei lindo. — Eu sei que só tenho 15 anos, mas...

— Eu agradeço que você tenha feito companhia a Kyra, mas agora preciso resolver tudo aqui. — Apontei para a sala. — Ficou tudo bem com seus pais?

— Sim, não acharam nada estranho que Kyra dormisse lá em casa, afinal, somos amigas.

Ri amargamente.

— Essa amizade é aceitável para os Schneiders, não é? — Samara ficou vermelha. — Kyra é uma boa menina, não um porra-louca como eu, filho de uma puta e...

Samara pôs a mão sobre minha boca.

— Você é meu melhor amigo, apenas isso deveria te bastar para calar qualquer outra coisa que meus pais possam pensar de você.

Abracei-a forte, a consciência pesada por falar mal de sua família, pois sei quanto ela os ama, depois me despedi e tratei de limpar a sala, jogar a roupa que usava fora e fiquei até há pouco com minha irmã, ambos trancados no seu quarto.

Só saí para espairecer, para processar tudo o que aconteceu na madrugada passada, pois mais uma vez Samara agiu como um anjo e convidou minha irmã para assistir à final da Copa do Mundo com ela e depois terem uma noite de meninas, com direito a festa do pijama.

Entro na garagem do prédio, mando uma mensagem para Samara informando-a de que cheguei e que estou indo buscar minha irmã. Sinceramente eu não sei como vou fazer até encontrar outra pessoa de confiança para deixar com Kyra quando eu não estiver em casa, pois Nívea disse que nunca mais colocará os pés no nosso apartamento, depois de ter recebido uma boa quantia para que não denunciasse o que se passa dentro de nossa casa, pois entendeu que prejudicaria Kyra.

Não importa! Kyra precisa de mim, e, nem se eu precisar mudar toda minha rotina por causa dela, a terei protegida.


São Paulo, tempo atuais.


Acordo com uma dor de cabeça filha da puta, ressacado, tão zonzo que tropeço ao sair da cama, e a primeira coisa que me vem à cabeça nesta manhã (ou será nesta tarde?) é que hoje é véspera de Natal. Foda-se! Sou ateu, esses feriados religiosos não significam nada para mim.

Sigo pelo corredor em direção à cozinha, com muita sede, louco para tomar um analgésico para exterminar a dor de cabeça. Não vou tomar! Não tomo remédios para dor há anos, aprendi a conviver com as pontadas, com as ardências. A dor me tornou mais forte, resiliente, aprendi há muito que nada é capaz de me ferir mais do que eu mesmo.

A maioria dos meus ossos trazem lembranças de como superei, as marcas no meu corpo também, porém, nenhuma dessas cicatrizes é mais forte do que o vazio dentro de mim.

Encho um copo d’água até transbordar e o bebo em um só gole. A cabeça martela ainda mais por conta da bebida gelada, mas ignoro-a por completo. Não há remédio para o que sinto, não há cura para toda a raiva que carrego dentro de mim, então posso, sim, conviver com umas horas de pontadas no cérebro.

Olho para a porta fechada na área de serviço. Os cômodos dali eram a tal dependência de empregados, mas, como eu nunca tive nenhum, aproveitei-os para outros fins. Inspiro, os cheiros tão familiares chegando às minhas narinas. A raiva natural com que acordo todos os dias se aplaca; não some, apenas se recolhe, dando lugar às sensações de prazer.

Confiro as horas e xingo ao perceber que já estamos no meio da tarde. Sinceramente, não sei por que Kyra inventou essa ceia de Natal, não depois de todos esses anos. Não entendo minha irmã, sinceramente. Há muito convivo com seu gênio forte, sua determinação, mas ainda não sei quem é ela. A garota divertida da infância se tornou uma adolescente quieta e taciturna, uma jovem inteligente e ajuizada e, por fim, uma adulta completamente misteriosa. Eu a acompanhei em todas as fases de sua vida, mas ainda assim não sei quem é a verdadeira Kyra Karamanlis.

Assim que ela completou 18 anos, abandonamos a luxuosa cobertura de Nikkós e fomos morar em um cafofo velho e caindo aos pedaços. Eu estudava como um louco no meu último ano de faculdade, e, como ela passou para uma universidade pública também, tínhamos que morar próximo de uma das duas universidades. Preferi ficar próximo da dela e me fodia andando de bicicleta até a minha todos os dias.

Nessa época eu estagiava na Novak Engenharia e, com a bolsa do estágio, eu mal conseguia pagar o aluguel do quarto e sala que aluguei. Ela nunca soube, mas quem bancava nossa alimentação, transporte e outras despesas era o Kostas. Meu irmão e eu nem éramos amigos, na verdade mal nos falávamos, mas todo mês o dinheiro aparecia na minha conta, e eu sabia que vinha dele.

Formei-me e já fui efetivado na Novak. Trabalhei com o Nicholas, com quem aprendi demais e construí uma amizade forte, assim como com seu irmão Bernardo. Os tempos de bagunça, baladas, drogas e bebidas acabaram quando nos libertamos da prisão daquele apartamento e da convivência maligna de Nikkós.

Kyra estudava muito, era extremamente aplicada em tudo o que fazia, e, irritada por não conseguir conciliar seu horário de estudos com um emprego, começou a fazer doces e salgados dentro do nosso pequeno apartamento e vendê-los na faculdade.

Rio ao pensar que foi assim que nasceu a promoter de eventos, em uma cozinha de seis metros quadrados, com um forno capenga, um fogão com só duas bocas funcionando e uma geladeira que parecia um monomotor, de tanto barulho que fazia. Em pouco tempo ela estava fornecendo encomendas para festas e pequenos eventos, depois começou a fazer projetos de decoração, então, quando se formou, foi trabalhar em um grande e caríssimo bufê da cidade, auxiliando a cerimonialista com os projetos.

Hoje ela é a dona de uma empresa especializada em produções de eventos diversos, bem-sucedida, com um negócio em progressão geométrica de crescimento. Tenho muito orgulho dela, principalmente por ser a única que não ficou agarrada ao cordão umbilical familiar dentro da Karamanlis.

Agora qual a necessidade da porra de uma ceia de Natal para comemorar a expansão de seu negócio? Vou ter que ficar com um maldito sorriso no rosto, carinha de anjo, lidando com o caralho da minha gastrite me corroendo ao pensar na hipocrisia do mundo.

Respiro fundo e decido combater a ressaca e a dor de cabeça com mais bebida. Pego uma cerveja na geladeira, abro-a na beirada da pia e entro no outro ambiente, a sala, integrada ao outro cômodo, separados apenas por uma enorme bancada.

Eu mesmo projetei esse prédio, há alguns anos, ainda trabalhando na Novak. Bernardo Novak é meu vizinho de porta, e Nicholas foi o primeiro dono da cobertura duplex que toma todo o último andar, hoje habitada por um casal e uma menininha. Comprei o apartamento pensando em vir morar com minha irmã, mas qual não foi minha surpresa quando ela anunciou que só sairia do cafofo para seu próprio lugar?

Pois é, vim sozinho, ocupo apenas a suíte principal, e os outros dois quartos estão praticamente vazios. A sala foi decorada – pela própria Kyra –, bem como a cozinha, mas nunca mandei fazer os móveis da sala de jantar, pois não vejo nenhuma função para eles. Eu como sozinho no balcão da cozinha, assistindo a TV ou ouvindo música.

Resgato meu celular, seleciono uma das minhas muitas playlists, e a caixa de som já liga automaticamente, deixando o som pesado do Matanza ecoar pelos ambientes. Sorrio ao ouvir “Bom é quando faz mal”, as recordações das loucuras da faculdade, de toda a merda que eu fazia. Não tenho vontade alguma de fazer de novo, mas também não posso dizer que me arrependo. Era o meu jeito de extravasar, tresloucado, admito, mas ainda assim muito mais normal do que o que eu vivia dentro de casa.

Preparo qualquer coisa para comer, balançando a cabeça e cantando as músicas de várias bandas de rock, algumas famosas, outras nem tanto, mas que marcaram minha vida de alguma forma.

O telefone toca, e a chamada atrapalha minha diversão musical. Bufo, jogo o pano de prato sobre a pia e pego o aparelho.

— Oi, Millos — atendo meu primo.

— Boa tarde, Alexios. Animado com a reunião de hoje à noite?

— Ô, tão quanto eu estaria para fazer um exame de próstata. — Millos gargalha. — Ela convidou você também?

— E o Kostas. — Isso me surpreende, pois, até onde eu sei, não temos nenhuma convivência com ele. — Bom, liguei para dizer que irei viajar na virada do ano, por isso preciso que você não deixe de ir ao baile dos Villazzas.

Gemo ao pensar em vestir um smoking.

— Porra, Millos, não fode! Aposto que Theodoros vai, afinal Frank e ele são quase um casal! — Millos ri do meu deboche acerca da amizade entre meu irmão mais velho e o CEO da rede Villazza de hotéis. — Não tenho a mínima...

— Konstantinos confirmou presença também.

Puta que pariu!

Preciso me sentar depois dessa informação, pasmo só em imaginar Kostas com alguma puta, sentado na mesma mesa de Theodoros. Vai dar merda!

— Eu não tenho companhia — tento me justificar. — E você poderia adiar a sua viagem só por uns...

— Não, não posso, já fiz todos os arranjos, reservas em hotéis, o cronograma da viagem! Você tem que ir para evitar que os dois prejudiquem a imagem da empresa.

Reviro os olhos ao pensar na imagem da empresa. Millos é doido ao pensar que temos uma imagem a zelar. Todos nesta maldita cidade, neste meio asqueroso no qual vivemos, sabem que somos todos fodidos e que nosso pai cagou em nosso nome com a sucessão de merdas que fez.

E olha que a maioria não o conheceu de verdade, não soube o monstro que ele era, escondido por detrás de uma fachada bonita e um sorriso de conquistador barato! Um lobo em pele de cordeiro, um demônio com a face de um anjo... assim como eu.

Bufo de raiva.

— Cadê aquela sua amiga? — Franzo a testa, sem acreditar que ele está se referindo à Samara. — Vocês viviam para cima e para baixo juntos, ela te acompanhou em um dos primeiros eventos dos Villazzas e...

— A Samara mora em Madri há mais de três anos, Millos. — Decido não entrar em detalhes e contar a ele que nos afastamos por algum motivo idiota que eu não consigo lembrar. — Vou ter que ligar para alguma...

— Isso, ligue — ele me corta. — Mulher nunca foi seu problema, aposto que você tem um caderninho cheio de telefones.

— E daí? — afronto-o. — Gosto de sexo, nunca escondi isso, diferente de você, que nunca foi visto com nenhuma mulher além daquela sua amiga motoqueira. — Decido provocá-lo: — Millos, acho que está na hora de sair do armário, porra!

O filho da puta ri alto.

— Eu não teria problema algum em sair se fosse o caso. Ainda mais agora, que Dimitrios saiu, e o pappoús continuou vivo e... — Millos para.

É sempre assim quando algum assunto referente à família na Grécia vem à tona. Eu não conheço ninguém, nunca fui à Grécia, nem tenho a mínima vontade de ir. Não conheço o tal pappoús, nem primo algum além de Millos, que só conheci quando veio morar no Brasil.

Sou o Karamanlis renegado, indigno do sobrenome.

— Vou ligar para alguém e convidar a ir comigo — encerro o assunto constrangedor. — Mas não garanto atuar de mediador como você.

— Você, mediador? — Millos se surpreende. — Alexios, se eu não tivesse interferido, você teria criado uma situação com Theodoros na festa de final de ano da Karamanlis. Eu só quero que você vá com alguém e iniba um pouco aqueles dois.

Bufo e concordo.

— Eu vou.

— Obrigado. — Estou prestes a desligar, quando ele me chama de novo: — Ah, Alexios, não encha a cara, senão você vai falar merda para o Theo, e o Kostas vai se aproveitar disso.

— Vai se foder, Millos! Eu já vou, porra, não diga o que tenho que fazer.

Desligo irritado, perco a fome e a vontade de terminar o que estava preparando.

Mesmo puto, preciso admitir, Millos tem razão sobre eu perder a cabeça com Theodoros, principalmente quando bebo. Eu não odeio meu irmão mais velho como sei que Kostas o faz, apenas ele não significa mais nada para mim.

Convivo bem com ele, pelo menos no sentido profissional, mas não quero nenhum tipo de ligação mais pessoal. Ele perdeu o timing quando, depois de toda a merda que ajudou a fazer, nunca mais quis saber de nós. Era como se nem existíssemos! Ele excluiu Nikkós de sua vida, mas acabou nos descartando junto. Nunca se preocupou em saber de nenhum de seus irmãos, muito menos de sua adorada Kyra, a mais vulnerável de todos nós.

Então, sim, eu perco a cabeça com ele, principalmente com seu jeito esnobe, intocável, como se somente ele importasse e mais ninguém. E foi por isso que nos estranhamos na festa de final de ano da Karamanlis, porque, simplesmente, este ano a festa não foi Theocrática1.

Millos e eu nos reunimos com alguns gerentes e coordenadores para entender o que os funcionários da Karamanlis gostariam de ter em uma festa de encerramento do ano. Depois, contratamos todos os serviços – sem ser da Kyra, pois neste ano ela se livrou de nós na cara dura – e fizemos a festa focada nos funcionários.

Aparentemente, isso chocou e desagradou ao CEO com síndrome de deus, e sua cara fechada e seu olhar de desprezo não ficaram nada disfarçados.

— Ei, irmãozinho! — Eu o parei, enquanto andava como um deus do Olimpo visitando terráqueos. — Aproveitando a festa?

— Espero que não tenha vindo de moto! — o filho da puta tentou me repreender como se estivesse preocupado com minha segurança, e isso, juntamente a toda cerveja que eu já tinha tomado, irritou-me.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já muito bêbado para me conter. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos2!

Theodoros franziu o cenho com meu deboche, comparando seu nome à palavra deus em grego. Estava prestes a dizer algo, mas se conteve quando de repente fui abraçado pelos ombros. Nem precisei olhar para saber que nosso interventor havia chegado.

— Alex, que festança, não? — Millos comentou. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — Theodoros pareceu perplexo. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Gargalhei ao confirmar que ele era mesmo um grande egocêntrico, incapaz de perceber a diferença da festa deste ano à do ano passado por estar focado nos detalhes e não no que realmente importava: as pessoas.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — respondi como se estivesse sóbrio, mesmo não estando. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos me cortou.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — Theodoros perguntou ao Millos, apontando o dedo em minha direção como o grande babaca que sempre foi.

— Fui! — respondi. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Tentei demonstrar com gestos o que dizia, abri os braços de repente, e meu punho bateu no peito do Millos, que chegou para trás. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — olho para um grupo dançando e vários outros conversando, comendo e se divertindo — você está vendo alguém ir?

Ele ficou um tempo olhando em volta como se notasse, pela primeira vez desde que chegou, que realmente os funcionários estavam adorando a descontração deste ano.

Eu só não esperava que ele tentasse ser condescendente comigo:

— Bom trabalho! O pessoal parece realmente estar gostando!

Só faltou dar umas batidinhas em minha cabeça como se eu fosse a porra do seu cãozinho de estimação. Meu sangue ferveu, travei os punhos e não me contive:

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos interrompeu-me e me abraçou novamente pelos ombros. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Mal acabou de falar, seguiu para o outro lado, levando-me consigo.

— Porra, moleque, não tem como ser menos reativo não? A festa está um sucesso graças ao seu feeling, ao modo como você conhece e percebe as pessoas, para que estragar isso batendo boca ou — ele me encarou —, como percebi que queria fazer, enchendo a cara do Theo de porrada? Sai dessa!

Concordei com meu primo e respirei fundo. Depois disso tomei quase um litro de café amargo, ele me pôs em um Uber, e eu vim para casa, onde continuei a beber, desmaiei no sofá e, no outro dia, fui correr ainda um tanto trôpego, sendo desclassificado no teste do bafômetro.

Perdi minha última corrida do ano, grande fracassado que sou!

Volto a ligar minha playlist, e a música que toca é exatamente a que eu preciso para sair da fossa dessas lembranças todas:

— Eu não tenho nada pra dizer. Também não tenho mais o que fazer. Só para garantir esse refrão, eu vou enfiar um palavrão: cu!3


Entro no showroom da A??p?4 – a empresa de eventos de Kyra – e já admiro o trabalho dela com a decoração do local. A enorme mesa com vários lugares ocupa o centro do enorme salão, com castiçais, flores, louças e talheres milimetricamente colocados, junto a taças de cristal e guardanapos de linho.

No restante do salão, há mesas altas para apoiar drinques, sofás e poltronas brancas, com almofadas e outras coisas de decoração seguindo a paleta de cores da festa: verde, vermelho e dourado.

Clichê! Mas é Natal, tem como não ser?

Dou de ombros e vejo Kyra de costas, junto à belíssima morena que trabalha com ela desde que abriu a empresa e as duas chefes de cozinha que conheceu ainda quando trabalhava no outro bufê e as roubou na cara dura quando resolveu estabelecer seu próprio negócio. Uma delas, acho que é a doceira – Mari, como todos a chamam – me vê e logo cutuca minha irmã.

— Ah, Alex! — Kyra abre um enorme sorriso, entrega para a morena – como é mesmo o nome dela? – os penduricalhos de Natal com os quais enfeitava o enorme pinheiro e vem até mim. — Que bom que chegou, tenho uma coisa para você!

Ah, puta que pariu! Ela me comprou um presente? Fico imediatamente sem jeito, pois não comprei absolutamente nada para ela. Eu nem imaginava que iríamos trocar lembranças, nunca fizemos isso!

Alívio toma conta de mim quando ela vem com uma caixinha pequena e claramente de doces.

— Quando experimentei, lembrei logo de você. — Ela tira um doce dourado de dentro da caixa. — Prove!

Franzo o cenho e abro a boca. Mastigo devagar, emitindo sons de prazer, adorando o contraste de texturas e o sabor doce e... picante. Abro um sorriso.

— Chocolate com pimenta! — Termino de comer. — Perfeição!

— Bombom Helênico. — Faço careta para o nome, não combina em nada. — Eu sei, é péssimo, mas as meninas quiseram fazer uma homenagem para a Helena, então... — Dá de ombros.

Helena!, minha mente grita ao lembrar o nome da morena gostosa, mas que nunca sorri e mal fala comigo quando apareço aqui.

— Hum... gostosa! — Começo a rir quando noto que falei alto. Kyra me olha séria. — O quê?

— Nem pense, ela está comprometida!

Ergo as mãos em minha defesa.

— Não falei nada!

— Não precisa! Sua fama de embusteiro conquistador te precede! — Faço careta, e ela ri. — Estive com saudades de você.

— Então por que não foi me ver ou me ligou? — pergunto sem enrolação.

— Não sei.

Respiro fundo. Ela se fecha, é sempre assim e não só comigo. Ela se empolga, vibra, deixa as pessoas se aproximarem, mas nunca demais. Quando chega a seu limite, simplesmente retrocede com a mesma rapidez e naturalidade com que atraiu alguém. É por isso que suas amizades ou mesmo seus relacionamentos amorosos nunca duraram muito.

Porém o que faço eu aqui, julgando-a?

— Alexios Karamanlis! — Viro-me ao ouvir a voz de Millos.

Meu primo – filho de uma égua! – carrega uma enorme caixa de presente toda embrulhada e com laços. Kyra abre um enorme sorriso e vai saltitante até ele, abraça-o pelo pescoço – coisa que não faz nem comigo – e agradece o regalo.

— É para decorar sua sala de empresária fodona — ele brinca com ela, e Kyra gargalha ao tirar uma estátua toda colorida de um unicórnio. — Eu me lembrei daquela sua fantasia no dia das bruxas...

Kyra para de boca aberta.

— Millos, eu tinha quatro anos! — ela recorda e, de repente, parece lembrar também que, naquela época, tudo parecia realmente possível, mágico e feliz.

Meu primo a abraça forte e fala algo em seu ouvido, baixinho. Kyra assente, e eu fico paralisado vendo a troca de carinho entre eles. Parece normal, não é? Mas, creiam-me, não é. Millos evita qualquer contato físico com outras pessoas. Ao cumprimentá-las, ele prefere baixar a cabeça do que dar um aperto de mãos; o máximo que o vi fazer até hoje foi tocar no ombro de alguém, mas somente quando julga necessário. Até comigo, o máximo que ele fez até hoje foi me abraçar para evitar um embate entre mim e Theo. Então assistir aos dois se abraçando é realmente algo inédito.

— Feliz Natal, pesménos ángelos5.

Mostro o dedo do meio para ele.

— Ah, pesquisou! — Ri debochado, mas logo para ao aceitar o chope que Kyra nos oferece. — É um absurdo você não saber nada da nossa língua.

— Não tenho interesse algum por nada que venha de lá — justifico e bebo. — Kyra também não sabe!

— Quem disse? — Ela começa a rir. — Anóito6.

— Quando foi que você se interessou por essa porra? — questiono-lhe surpreso.

— Você leu o nome da empresa dela na fachada? — é Millos quem retorna minha pergunta. — Está em grego!

Millos e Kyra engatam uma conversa, enquanto eu ainda estou paralisado com essa nova informação. Não é exagero, mas eu pensei que ela, assim como eu, desprezasse qualquer coisa que tenha relação com Nikkós. No entanto, ao contrário de mim, ela sempre foi aceita por todos os Karamanlis como parte da família, então é natural que tenha algum apreço por eles.

— Ah, mais convidados estão chegando!

Kyra deixa-nos a sós e vai até um grupo que não conheço.

— Ela parece feliz — comento com Millos.

Meu primo dá de ombros.

— Há pessoas com o dom de demonstrar apenas o que querem que vejam. — Bebe o resto de seu chope e me encara. — Já resolveu o assunto do baile dos Villazzas?

— Ah, Millos, não fode mais a minha noite! — Vejo duas lindas mulheres adentrarem ao salão e abro um sorriso. — Pode ser que ela esteja começando a melhorar.

Millos ergue uma de suas sobrancelhas, e eu o deixo sozinho, caminhando em direção ao meu mais novo alvo da noite, que, neste exato momento, cumprimenta minha irmã.

— Kyra, eu gostaria de... — finjo interromper-me quando as desconhecidas me olham. — Desculpem-me. — Kyra rola os olhos, mas suas convidadas não desviam o olhar do meu rosto. — Millos estava falando do chope, e nós fizemos uma pequena aposta, mas posso ver isso depois, atenda seus convidados. — Abro novamente meu melhor sorriso na direção delas.

— Valéria e Priscila, esse é meu irmão, Alexios Karamanlis — Kyra faz nossa apresentação, e eu sei que depois irá jogar na minha cara que eu estou lhe devendo por isso.

— Um prazer, Valéria! — Aproximo-me para cumprimentá-la e logo depois saúdo a outra: — Prazer, Priscila.

— O prazer é meu, Alexios — Priscila responde, sorrindo, e vejo a mão de Valéria tocar suas costas num gesto um tanto territorialista. Perfeito! Trocamos beijos no rosto em cumprimento. — Eu já te vi em algumas revistas especializadas em engenharia e arquitetura, principalmente quando o conselho dessas classes era o mesmo.

— Arquiteta? — tento adivinhar, mas ela nega e aponta para sua amiga.

— Valéria é, eu sou designer industrial. — Faço cara de surpresa, mesmo sem achar nada de mais. — É, eu sei, a maioria das pessoas que me conhece acha que sou modelo ou estilista, mas você quase acertou. — Seu sorriso é claramente de quem se sente lisonjeada. — Trabalho conceitos para grandes marcas.

— Incrível! — Olho-a de cima a baixo, e Kyra bufa. — Você também parece incrível, Valéria. — Sorrio, e ela relaxa.

— Alexios, chegaram outros convidados, você poderia fazer companhia a elas? — Ela pega na mão das amigas. — Vocês não se importam, não é?

— Claro que não, você é a anfitriã da noite! — Valéria diz, e sinto seu olhar brilhar em minha direção. — Nós ficaremos em boa companhia com seu irmão, afinal, é o anjo rebelde dos Karamanlis.

Puta que pariu!

 

CONTINUA

Com um passado nebuloso, marcado por traumas, rejeições e violência, há anos Alexios Karamanlis busca entender a si mesmo e, para isso, começa uma caçada sem fim pelo destino de sua mãe biológica, junto a sua melhor amiga, Samara Schneider.
Amigos desde tenra idade, Alexios sempre tentou não a notar como mulher por temer perder sua amizade e apoio, e Samara sempre sonhou com o dia em que o garoto problemático e rebelde se apaixonaria por ela.
Juntos em busca de respostas sobre a verdadeira história do nascimento de Alexios, os dois mergulharão no sujo passado do pai dele, Nikkós Karamanlis, revelarão segredos muito bem guardados e, por fim, descobrirão que não há como reprimir mais a paixão e o desejo que sentem um pelo outro.

 

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O país todo está enlouquecido!, penso ao passar por mais uma blitz policial sem nenhum problema, acelerando a moto ao máximo, capacete preto espelhado impossibilitando qualquer um de ver que quem pilota essa máquina é um garoto, não um homem.

Eu não sou um homem! Não sou! Se fosse, não estaria aqui neste momento, mas sim na delegacia, gritando por aí, fazendo qualquer coisa que não apenas dar uma de burguesinho filho da puta endinheirado, acelerando uma moto que custa o mesmo que um apartamento popular, mesmo sem ter habilitação para isso, apenas para esquecer os problemas.

Eu sou um merda! E sou isso por causa “dele”!

Caralho! A Paulista está fechada por conta das comemorações do pentacampeonato. É, o Brasil conseguiu mais uma estrela no futebol, o país está eufórico como se não houvesse crianças na rua, assassinos à solta, a corrupção impedindo todo o sistema público de funcionar. Foda-se, somos penta!

Faço uma manobra rápida com a moto, deixando marcas dos grossos pneus no asfalto e sigo para outra direção, à procura de mais uma avenida extensa e reta para que eu possa extravasar todo o ódio dentro de mim indo ao limite da velocidade.

Paro a moto de repente e quase sou arremessado para frente. Meus músculos começam a tremer, meus olhos se enchem de lágrimas, sinto frio, meus dentes batem um no outro. Engulo em seco. Não vou chorar! Não choro mais, não há muitos anos.

Cada soco, cada pontapé, cada xingamento e mentira secaram minhas lágrimas. Elas até se instalam em meus olhos, porém não caem. Sufocam-me, quebram meu coração, desequilibram-me.

Caio no chão em um baque só, gemo de dor por causa do peso da moto sobre minha perna esquerda, mas não choro. Respiro fundo para controlar a dor, parar de tremer, diminuir os batimentos do meu coração. Estou acostumado a essa rotina de tentar não sentir dor, de tentar não sentir mais nada.

Levanto-me calmamente, sinto calafrios, manco, mas volto a subir na moto, acelerando-a, fazendo o motor girar e um ruído alto e potente se misturar aos sons das comemorações pelas ruas da cidade. Respiro fundo várias vezes e, quando não sinto mais nada, tiro o pé do chão e deixo a máquina me levar.

Eu queria poder fugir para o mais longe possível desta cidade, mas não dá, infelizmente não posso ir a lugar algum, estou preso, revivendo o mesmo inferno todos os dias, aceitando meu destino com resignação até poder livrar a mim e a Kyra do demônio que nos formou.

Eu poderia pedir ajuda ao Tim, mas sei que ele tem a própria merda para lidar e que conseguiu sair há pouco do inferno. Sei que precisava ir. Meu irmão estava por um fio, assim como eu, e, se ficasse lá conosco, seria para morrer ou matar, e, como não é da sua natureza matar, iria perecer aos poucos, como Nikkós gostaria que acontecesse.

Então ele foi, e eu fiquei incumbido de uma missão que nós aceitamos sem nem mesmo combinar nada, apenas porque sabíamos do que nosso pai era capaz e decidimos que não o deixaríamos chegar a ela.

Soluço na moto.

Eu falhei!

Eu falhei!

Eu falhei?!

Eu não sei! Simplesmente não sei o que aconteceu ontem! Acelero a moto, pegando uma rodovia, ainda tentando processar todos os acontecimentos e os flashes de memória que tenho.

Cometi um erro na noite passada, fui imprudente e agora preciso lidar com tudo o que aconteceu, mesmo sem entender direito o que houve. Enquanto piloto a moto, tento repassar cada momento de ontem, mesmo sabendo que já fiz isso várias e várias vezes sem nenhum êxito.

Nikkós finalmente viajou a trabalho – ou o que quer que ele tenha ido fazer –, e eu consegui relaxar um pouco. Mantenho constante vigilância sobre minha irmã, uma adolescente de 14 anos de idade, e evito ao máximo deixá-la sozinha com nosso pai. Não há muito que eu possa fazer para protegê-la das loucuras dele, mas o que está ao meu alcance, faço.

Por conta disso, desde que ingressei na universidade – no começo desse ano –, desdobro-me ao máximo para curtir com meus amigos e proteger a Kyra. A babá anterior era a mesma desde quando minha irmã e eu nascemos, totalmente devota ao nosso pai, então, assim que Konstantinos tomou posse de sua herança, demos um jeito de nos livrar dela, e, assim que outra foi contratada, meu irmão se encarregou de pagar uns extras para ela manter os olhos em Kyra.

Nikkós sempre foi um filho da puta covarde, ele nunca iria deixar um serviçal ver o que ele é capaz de fazer aos filhos, por isso tinha seus próprios lugares para executar suas torturas em Kostas e em mim.

Noite passada, uma galera mais velha da universidade fechou uma boate e me convidou para festejar com eles. Estávamos entrando de férias e queríamos muito desopilar o fígado, relaxar, curtir e esquecer todas as pressões dos estudos.

Como Nikkós não estava em casa, e a babá estava por lá com Kyra, por que não ir? Foi esse meu erro!, penso ao relembrar.

 

— O grande Alexios Karamanlis! — Alberto Bragança me saúda assim que entro na boate. — Achei que você não vinha mais, mano!

Ele me entrega uma caneca de 500ml de chope e um cartão para o restante do consumo, e logo vejo os outros caras em uma mesa no fundo do salão. A música alta, tocando um “batestaca” qualquer, não chama minha atenção. Sigo, então, na direção do pessoal e, mal chego lá, peço mais uma rodada de chope para todos.

Meu pai é um grande filho da puta, torturador desgraçado, mas, para manter as aparências, deixa-nos usar cartão sem limites e nos entrega uma mesada gorda. Bebo, sentindo o gosto do chope se tornar mais amargo que o normal, consciente de que essa porra toda é dele, comprada com o seu maldito dinheiro.

— Jefinho está na área! — alguém grita comemorando. — Vamos começar a diversão! Quem vai?

Sou um dos primeiros a me levantar, viro o resto da bebida e sigo com mais cinco amigos para o banheiro, atrás do traficante oficial da turma. Vejo cada um pegando “no bufê do Jeff” sua viagem preferida e pego um pino de “coca” para começar bem a noite.

“Foda-se, Nikkós Karamanlis!”

Cheiro.

“Foda-se, Sabrina Karamanlis!”

Aspiro mais um pouco.

“Foda-se, Theo Karamanlis!”

Faço outra carreira com o restante do pó.

“Foda-se, Geórgios Karamanlis!”

Seguro a narina fechada, mantendo tudo dentro de mim, sentindo já meu corpo girar, o cérebro acelerar e todas as sensações de abandono e dor se esvaírem como num passe de mágica. Só existe prazer, nenhuma dor, tudo é maravilhoso!

Compro mais três pinos de cocaína e alguns comprimidos de êxtase. Essa noite não quero dormir, quero aproveitar, dançar, zoar, pegar umas universitárias e esquecer quem sou.

Começo a rir de mim mesmo, da piada que acabei de pensar. Esquecer quem sou só seria possível se eu soubesse quem sou.

“Eu não sou ninguém!”

Meu Nokia vibra com a chegada de uma mensagem, confiro ser de Samara, minha única e melhor amiga, e volto a colocá-lo no bolso ao perceber a aproximação de uma gostosa do quarto ano.

— Eu não acredito que você é menor de idade, Alex! — A garota, com luzes nos cabelos e vestido com apenas uma alça, passa a mão no meu peito. — Você não parece ser um garoto, mesmo com esse rostinho angelical.

Respiro fundo para não perder a paciência, pois, se há algo que me irrita muito, é quando dizem que eu pareço um anjo. Aproximo-me dela e a puxo pela cintura.

— Posso provar que não sou um anjo! — Pego sua mão e a levo até a frente da minha calça. A garota arregala os olhos. — Os demônios com cara de anjo são os piores, gata!

— Uau! — Ela lambe meu pescoço. — O que você tomou?

— Coca, mas tenho “bala” no meu bolso. — Ela ronrona, e eu me animo. — Vem comigo!

Levo-a para uma área nos fundos da boate, uma espécie de depósito que se encontra aberto, uma vez que a casa está funcionando apenas para um bando de playboys endinheirados que preferem não se misturar com a ralé e, assim, fazer suas merdas longe dos olhos curiosos da plebe.

Claro! Afinal de contas, aqui estão reunidos os filhos dos maiores empresários, advogados, médicos, juízes e a porra toda elitizada desta cidade decadente. Bando de fodidos! A maioria desconta, como eu, a falta de afeto e atenção em casa gastando dinheiro, promovendo rachas pelas ruas, consumindo todo tipo de droga tentando preencher o buraco negro instalado nas nossas almas.

“Foda-se!”

Seguro a garota contra a parede fria do depósito e, sem nem mesmo perguntar seu nome, ataco sua boca com fúria, mordendo seus lábios e sugando sua língua. Ela mexe em minha calça, abre-a e retira meu pau para um tratamento especial em suas mãos macias.

— Novinho e pauzudo... — ela geme. — Cadê a balinha para deixar tudo mais divertido?

Sorrio e nego.

— Tem que merecer.

Ela sorri e, sem que eu precise sequer lhe indicar o que quero, ajoelha-se no chão grosso e toma meu pau em sua boca quente e esfomeada. Gemo, gostando da carícia, seguro-a pelos cabelos e a forço a engolir o máximo que consegue.

Tenho quase 17 anos, mas aposto com quem quer que seja que nenhum desses caras daqui tem a metade da experiência sexual que eu. E não, não “tiro onda” com isso, afinal, quem é filho de Nikkós Karamanlis não tem muita escolha sobre quando vai começar a trepar, ele simplesmente impõe, e comigo isso aconteceu quando eu tinha 11 anos de idade.

Afasto o pensamento pestilento sobre meu pai e curto a chupada gostosa que a garota ajoelhada me dá. Ela lambe, chupa, suga com força, arranha com os dentes – coisa que me excita “pra caralho” – e segura minhas bolas com vontade. Percebo que ela quer fazer o serviço completo com a boca, mas definitivamente ela não me conhece.

Ergo-a de uma vez só e a ponho de cara contra a parede. Procuro a camisinha no bolso da calça – uma coisa que se aprende quando se começa a vida sexual trepando com putas é que preservativos nunca podem faltar –, plastifico meu pau e levanto o vestido dela.

Bunda gostosa, magra, mas gostosa “pra cacete” com uma calcinha de cor forte – não sei se vermelha ou rosa; não divago muito sobre a cor, mesmo porque é irrelevante –, afasto a peça e esfrego os dedos em sua boceta depilada.

Ela ofega, rebola gostoso na minha mão. Vou penetrando-a devagar com os dedos, recolhendo um pouco da umidade de dentro de sua vagina para usá-la exatamente no ponto onde quero. Massageio seu clitóris até que ela se contraia em gozo e volto a molhar seu rabo com a lubrificação que solta.

Ela fica tensa quando encaixo a cabeça do meu pau em seu ânus apertado.

— Alex...

— Psiu... — falo devagarzinho em seu ouvido, lambendo sua orelha enquanto vou me afundando no canal estreito, sentindo meu corpo todo reagir à pressão de um local nunca ou pouco explorado. — Eu disse a você. — Ela arfa quando me encaixo por completo em seu rabo. — Os demônios com cara de anjo são os piores!

Meto com força e continuo estimulando seu clitóris, beijando e mordendo seu pescoço, até que ela explode em um orgasmo foda, e eu me deixo ir na camisinha, ainda sentindo as contrações do seu corpo. Quando ela se vira para me beijar, estico minha língua com sua recompensa na ponta. A garota sorri e chupa a drágea com vontade, enquanto eu engulo a outra.

A noite só começou!

 

Paro a moto em frente ao prédio onde Konstantinos mora. Fico parado olhando para o alto, invejando a liberdade de meu irmão, a coragem que teve ao se libertar assim que pôde do nosso pai. Ele estuda no Largo de São Francisco, vai ser um advogado e, mesmo que tenha tentado disfarçar, ficou contente quando contei que havia passado em todos os vestibulares para os quais havia prestado.

— Vai para algum lugar longe da cidade? — Kostas não escondeu sua preocupação.

— Não, vou ficar aqui — respondi com sinceridade, mesmo que minha vontade fosse ir para o mais longe possível deste inferno de lugar. — Vou continuar no apartamento de Nikkós, pelo menos até a Kyra fazer 18 anos.

Ele respirou fundo, e nossa conversa por telefone acabou aí. Nós não precisávamos externar nossa preocupação um para o outro, sabíamos do que nosso pai era capaz e do perigo que Kyra corria estando sob o mesmo teto que ele. Kostas saiu de casa, pois nunca soube lidar com Nikkós, ao contrário de mim.

O grego maluco tentou fazer comigo o mesmo que fazia com o meu irmão, porém nunca pensou que não me afetaria, então mudou de tática. O desgraçado tentava me acertar no único ponto que realmente me doía, mas ainda assim eu resistia em demonstrar alguma dor, então ele me fazia sentir na carne.

Esfrego a mão no ombro esquerdo, quebrado há dois anos no que todos acreditaram ser um acidente enquanto eu andava de skate, sem saber que quase tive o braço arrancado pelo homem louco, bêbado e drogado a quem todos respeitavam como um exemplo de pai, criando seus filhos sozinho depois de ter sido abandonado pela mulher.

Farsante dissimulado! Nunca amou ninguém, nunca se preocupou ou se dedicou a ninguém, nem a si mesmo. Eu só não entendo o motivo pelo qual ele não deixou que a puta que me gerou abortasse ou mesmo por que não me deixou com ela.

Eu sou um covarde! Rio, ligando a moto de novo.

Meu maior sonho é vê-lo morto, desejei e planejei isso tantas vezes, de tantas maneiras diferentes, que sei todos os passos de cor. No entanto, nunca tive coragem... Respiro fundo.

Pelo menos até essa madrugada!

Não faço ideia de como cheguei a casa, estava doidão, alto demais, cheirava a cerveja, maconha, sexo e perfumes variados. Não sei nem com quantas garotas trepei à noite, sei que algumas só mamaram meu pau, mas, com outras, a coisa foi mais louca.

Não consigo me lembrar de muita coisa. Só tenho sensações ruins de quando cheguei ao apartamento e percebi que Nikkós havia voltado. Nas memórias, há gritos, choro, mas nenhuma imagem. Tudo o que tenho nítido na cabeça foi o que aconteceu depois que acordei.

Estava deitado na sala principal do apartamento, minhas roupas sujas de sangue, rasgadas, um hematoma no olho e um corte no canto da boca já me incomodando. Não sabia nem onde estava, só sentia dor, confusão, e vomitei ali mesmo, no tapete da sala.

Ao meu lado vi uma faca suja de sangue. Gelei, sem saber o que tinha feito e de quem era o líquido viscoso e vermelho que cobria toda a lâmina. Foi nesse momento que saí do torpor em que me encontrava, peguei o objeto e comecei a correr pela enorme cobertura, entrando em todos os cômodos.

— Kyra! — gritava, mesmo com a cabeça explodindo. — Kyra!

Minha irmã não estava em lugar algum, nem mesmo a Nívea, a senhora que cuidava dela, eu pude encontrar. Meu desespero só aumentou. Liguei para o telefone dela, mas estava dando na caixa de mensagens.

Comecei a soluçar, mesmo não derramando uma só lágrima, e entrei no local proibido da casa, o santuário satânico de Nikkós Karamanlis: seu quarto.

Estanquei quando vi seu corpo enorme e nu jogado sobre a cama king size. Notei os cortes em seus braços, bem como o movimento de respiração, seguido dos roncos altos. O filho da puta não estava morto! Apertei a faca em minha mão com mais força, pensando que esse seria o momento certo para livrar a todos de sua existência.

Andei até ele devagar, os nós dos dedos brancos de tão firme que segurava a faca. Medi suas costas, imaginando que seria muito fácil perfurar seu pulmão com uma só estocada no lugar certo e que ele morreria afogado em seu próprio sangue lentamente, em uma morte digna dele.

Ergui a faca, fechei os olhos, parei de tremer e me lembrei de todos os anos de abuso e de tortura, do que ele fazia ao Kostas, do que fazia comigo e do que poderia fazer a Kyra.

Respirei fundo, concentrei a força e desci a faca, mas parei a milímetros de sua pele quando ouvi soar a campainha. Joguei a arma para longe e saí correndo daquele cômodo pestilento, descendo as escadas disparado para atender a porta, torcendo para que fossem Nívea e Kyra.

— Alexios? — a voz de Samara me fez prender o fôlego. — Alexios, você está aí?

Abri a porta sem pensar duas vezes e desmontei ao ver minha irmã ao lado da minha melhor amiga. Kyra, minha pequena princesa, linda como uma pintura, seus olhos enormes e verdes cheios de lágrimas e os lábios trêmulos.

— Ainda bem! — exclamei aliviado, puxando-a para meus braços. — Ainda bem!

— Alexios, você precisa de ajuda? — Samara questionou, olhando tudo em volta. — Ontem à noite a senhora Nívea pediu que Kyra ficasse comigo e...

Segurei o rosto de minha irmã, desgostoso por saber que ela mal fala por conta do monstro que temos em casa, sequei as lágrimas que escorriam por seu rosto miúdo e assustado e perguntei:

— O que houve?

Ela deu de ombros.

— Ele voltou mais cedo, estava bêbado, mandou Nívea embora. — Sinto um arrepio de frio percorrer minha coluna. — Os dois discutiram. — Ela soluçou. — Ele bateu nela, ela desmaiou...

— E você, onde estava?

Kyra desviou os olhos, e eu senti como se um soco acertasse a boca do meu estômago. Olhei para Samara em busca de uma resposta, mas minha amiga apenas deu de ombros, indicando que minha irmã também não falou com ela.

— Quando ela acordou, me levou para o apartamento da Malinha, e aí eu fiquei lá. — Kyra olhou em direção ao corredor. — Ele ainda está...

Assenti.

— Vá para o seu quarto, tranque a porta, tome um banho; daqui a pouco vou me encontrar com você. — Ela tentou sorrir em agradecimento para Samara, mas depois desistiu, seguindo diretamente para seu quarto. — Samara...

— Vocês precisam denunciar isso! — Ela tocou meu rosto. — Você é só um garoto, Alexios, não pode proteger vocês dois.

— Posso! — afirmei cheio de raiva. — Você sabe muito bem que, se uma denúncia for feita, ela será tirada de nós. Eu ficarei um ano em algum abrigo, mas e ela?

— O Tim não pode...

Neguei.

— Não acho que o deixariam cuidando de dois adolescentes, ele só tem 20 anos! — Fechei os olhos, cansado, com medo, sem saída e senti quando ela me abraçou apertado.

— Onde você esteve ontem à noite?

— Fui me divertir...

— Não. — Seus olhos lindíssimos encararam os meus. — Você não se diverte, Alexios, você tenta se matar. — Passou a mão pelo meu rosto. — Quanto usou?

Dei de ombros, não querendo discutir isso com ela. Nunca termina bem!

— Isso não ajuda ninguém. Nem a você, muito menos à sua irmã. — Tentou sorrir para disfarçar o sermão, seus dentes cheios de plaquinhas do aparelho ortodôntico, o rosto redondo de menina fazendo covinhas, coisa que ela sempre teve e sempre achei lindo. — Eu sei que só tenho 15 anos, mas...

— Eu agradeço que você tenha feito companhia a Kyra, mas agora preciso resolver tudo aqui. — Apontei para a sala. — Ficou tudo bem com seus pais?

— Sim, não acharam nada estranho que Kyra dormisse lá em casa, afinal, somos amigas.

Ri amargamente.

— Essa amizade é aceitável para os Schneiders, não é? — Samara ficou vermelha. — Kyra é uma boa menina, não um porra-louca como eu, filho de uma puta e...

Samara pôs a mão sobre minha boca.

— Você é meu melhor amigo, apenas isso deveria te bastar para calar qualquer outra coisa que meus pais possam pensar de você.

Abracei-a forte, a consciência pesada por falar mal de sua família, pois sei quanto ela os ama, depois me despedi e tratei de limpar a sala, jogar a roupa que usava fora e fiquei até há pouco com minha irmã, ambos trancados no seu quarto.

Só saí para espairecer, para processar tudo o que aconteceu na madrugada passada, pois mais uma vez Samara agiu como um anjo e convidou minha irmã para assistir à final da Copa do Mundo com ela e depois terem uma noite de meninas, com direito a festa do pijama.

Entro na garagem do prédio, mando uma mensagem para Samara informando-a de que cheguei e que estou indo buscar minha irmã. Sinceramente eu não sei como vou fazer até encontrar outra pessoa de confiança para deixar com Kyra quando eu não estiver em casa, pois Nívea disse que nunca mais colocará os pés no nosso apartamento, depois de ter recebido uma boa quantia para que não denunciasse o que se passa dentro de nossa casa, pois entendeu que prejudicaria Kyra.

Não importa! Kyra precisa de mim, e, nem se eu precisar mudar toda minha rotina por causa dela, a terei protegida.


São Paulo, tempo atuais.


Acordo com uma dor de cabeça filha da puta, ressacado, tão zonzo que tropeço ao sair da cama, e a primeira coisa que me vem à cabeça nesta manhã (ou será nesta tarde?) é que hoje é véspera de Natal. Foda-se! Sou ateu, esses feriados religiosos não significam nada para mim.

Sigo pelo corredor em direção à cozinha, com muita sede, louco para tomar um analgésico para exterminar a dor de cabeça. Não vou tomar! Não tomo remédios para dor há anos, aprendi a conviver com as pontadas, com as ardências. A dor me tornou mais forte, resiliente, aprendi há muito que nada é capaz de me ferir mais do que eu mesmo.

A maioria dos meus ossos trazem lembranças de como superei, as marcas no meu corpo também, porém, nenhuma dessas cicatrizes é mais forte do que o vazio dentro de mim.

Encho um copo d’água até transbordar e o bebo em um só gole. A cabeça martela ainda mais por conta da bebida gelada, mas ignoro-a por completo. Não há remédio para o que sinto, não há cura para toda a raiva que carrego dentro de mim, então posso, sim, conviver com umas horas de pontadas no cérebro.

Olho para a porta fechada na área de serviço. Os cômodos dali eram a tal dependência de empregados, mas, como eu nunca tive nenhum, aproveitei-os para outros fins. Inspiro, os cheiros tão familiares chegando às minhas narinas. A raiva natural com que acordo todos os dias se aplaca; não some, apenas se recolhe, dando lugar às sensações de prazer.

Confiro as horas e xingo ao perceber que já estamos no meio da tarde. Sinceramente, não sei por que Kyra inventou essa ceia de Natal, não depois de todos esses anos. Não entendo minha irmã, sinceramente. Há muito convivo com seu gênio forte, sua determinação, mas ainda não sei quem é ela. A garota divertida da infância se tornou uma adolescente quieta e taciturna, uma jovem inteligente e ajuizada e, por fim, uma adulta completamente misteriosa. Eu a acompanhei em todas as fases de sua vida, mas ainda assim não sei quem é a verdadeira Kyra Karamanlis.

Assim que ela completou 18 anos, abandonamos a luxuosa cobertura de Nikkós e fomos morar em um cafofo velho e caindo aos pedaços. Eu estudava como um louco no meu último ano de faculdade, e, como ela passou para uma universidade pública também, tínhamos que morar próximo de uma das duas universidades. Preferi ficar próximo da dela e me fodia andando de bicicleta até a minha todos os dias.

Nessa época eu estagiava na Novak Engenharia e, com a bolsa do estágio, eu mal conseguia pagar o aluguel do quarto e sala que aluguei. Ela nunca soube, mas quem bancava nossa alimentação, transporte e outras despesas era o Kostas. Meu irmão e eu nem éramos amigos, na verdade mal nos falávamos, mas todo mês o dinheiro aparecia na minha conta, e eu sabia que vinha dele.

Formei-me e já fui efetivado na Novak. Trabalhei com o Nicholas, com quem aprendi demais e construí uma amizade forte, assim como com seu irmão Bernardo. Os tempos de bagunça, baladas, drogas e bebidas acabaram quando nos libertamos da prisão daquele apartamento e da convivência maligna de Nikkós.

Kyra estudava muito, era extremamente aplicada em tudo o que fazia, e, irritada por não conseguir conciliar seu horário de estudos com um emprego, começou a fazer doces e salgados dentro do nosso pequeno apartamento e vendê-los na faculdade.

Rio ao pensar que foi assim que nasceu a promoter de eventos, em uma cozinha de seis metros quadrados, com um forno capenga, um fogão com só duas bocas funcionando e uma geladeira que parecia um monomotor, de tanto barulho que fazia. Em pouco tempo ela estava fornecendo encomendas para festas e pequenos eventos, depois começou a fazer projetos de decoração, então, quando se formou, foi trabalhar em um grande e caríssimo bufê da cidade, auxiliando a cerimonialista com os projetos.

Hoje ela é a dona de uma empresa especializada em produções de eventos diversos, bem-sucedida, com um negócio em progressão geométrica de crescimento. Tenho muito orgulho dela, principalmente por ser a única que não ficou agarrada ao cordão umbilical familiar dentro da Karamanlis.

Agora qual a necessidade da porra de uma ceia de Natal para comemorar a expansão de seu negócio? Vou ter que ficar com um maldito sorriso no rosto, carinha de anjo, lidando com o caralho da minha gastrite me corroendo ao pensar na hipocrisia do mundo.

Respiro fundo e decido combater a ressaca e a dor de cabeça com mais bebida. Pego uma cerveja na geladeira, abro-a na beirada da pia e entro no outro ambiente, a sala, integrada ao outro cômodo, separados apenas por uma enorme bancada.

Eu mesmo projetei esse prédio, há alguns anos, ainda trabalhando na Novak. Bernardo Novak é meu vizinho de porta, e Nicholas foi o primeiro dono da cobertura duplex que toma todo o último andar, hoje habitada por um casal e uma menininha. Comprei o apartamento pensando em vir morar com minha irmã, mas qual não foi minha surpresa quando ela anunciou que só sairia do cafofo para seu próprio lugar?

Pois é, vim sozinho, ocupo apenas a suíte principal, e os outros dois quartos estão praticamente vazios. A sala foi decorada – pela própria Kyra –, bem como a cozinha, mas nunca mandei fazer os móveis da sala de jantar, pois não vejo nenhuma função para eles. Eu como sozinho no balcão da cozinha, assistindo a TV ou ouvindo música.

Resgato meu celular, seleciono uma das minhas muitas playlists, e a caixa de som já liga automaticamente, deixando o som pesado do Matanza ecoar pelos ambientes. Sorrio ao ouvir “Bom é quando faz mal”, as recordações das loucuras da faculdade, de toda a merda que eu fazia. Não tenho vontade alguma de fazer de novo, mas também não posso dizer que me arrependo. Era o meu jeito de extravasar, tresloucado, admito, mas ainda assim muito mais normal do que o que eu vivia dentro de casa.

Preparo qualquer coisa para comer, balançando a cabeça e cantando as músicas de várias bandas de rock, algumas famosas, outras nem tanto, mas que marcaram minha vida de alguma forma.

O telefone toca, e a chamada atrapalha minha diversão musical. Bufo, jogo o pano de prato sobre a pia e pego o aparelho.

— Oi, Millos — atendo meu primo.

— Boa tarde, Alexios. Animado com a reunião de hoje à noite?

— Ô, tão quanto eu estaria para fazer um exame de próstata. — Millos gargalha. — Ela convidou você também?

— E o Kostas. — Isso me surpreende, pois, até onde eu sei, não temos nenhuma convivência com ele. — Bom, liguei para dizer que irei viajar na virada do ano, por isso preciso que você não deixe de ir ao baile dos Villazzas.

Gemo ao pensar em vestir um smoking.

— Porra, Millos, não fode! Aposto que Theodoros vai, afinal Frank e ele são quase um casal! — Millos ri do meu deboche acerca da amizade entre meu irmão mais velho e o CEO da rede Villazza de hotéis. — Não tenho a mínima...

— Konstantinos confirmou presença também.

Puta que pariu!

Preciso me sentar depois dessa informação, pasmo só em imaginar Kostas com alguma puta, sentado na mesma mesa de Theodoros. Vai dar merda!

— Eu não tenho companhia — tento me justificar. — E você poderia adiar a sua viagem só por uns...

— Não, não posso, já fiz todos os arranjos, reservas em hotéis, o cronograma da viagem! Você tem que ir para evitar que os dois prejudiquem a imagem da empresa.

Reviro os olhos ao pensar na imagem da empresa. Millos é doido ao pensar que temos uma imagem a zelar. Todos nesta maldita cidade, neste meio asqueroso no qual vivemos, sabem que somos todos fodidos e que nosso pai cagou em nosso nome com a sucessão de merdas que fez.

E olha que a maioria não o conheceu de verdade, não soube o monstro que ele era, escondido por detrás de uma fachada bonita e um sorriso de conquistador barato! Um lobo em pele de cordeiro, um demônio com a face de um anjo... assim como eu.

Bufo de raiva.

— Cadê aquela sua amiga? — Franzo a testa, sem acreditar que ele está se referindo à Samara. — Vocês viviam para cima e para baixo juntos, ela te acompanhou em um dos primeiros eventos dos Villazzas e...

— A Samara mora em Madri há mais de três anos, Millos. — Decido não entrar em detalhes e contar a ele que nos afastamos por algum motivo idiota que eu não consigo lembrar. — Vou ter que ligar para alguma...

— Isso, ligue — ele me corta. — Mulher nunca foi seu problema, aposto que você tem um caderninho cheio de telefones.

— E daí? — afronto-o. — Gosto de sexo, nunca escondi isso, diferente de você, que nunca foi visto com nenhuma mulher além daquela sua amiga motoqueira. — Decido provocá-lo: — Millos, acho que está na hora de sair do armário, porra!

O filho da puta ri alto.

— Eu não teria problema algum em sair se fosse o caso. Ainda mais agora, que Dimitrios saiu, e o pappoús continuou vivo e... — Millos para.

É sempre assim quando algum assunto referente à família na Grécia vem à tona. Eu não conheço ninguém, nunca fui à Grécia, nem tenho a mínima vontade de ir. Não conheço o tal pappoús, nem primo algum além de Millos, que só conheci quando veio morar no Brasil.

Sou o Karamanlis renegado, indigno do sobrenome.

— Vou ligar para alguém e convidar a ir comigo — encerro o assunto constrangedor. — Mas não garanto atuar de mediador como você.

— Você, mediador? — Millos se surpreende. — Alexios, se eu não tivesse interferido, você teria criado uma situação com Theodoros na festa de final de ano da Karamanlis. Eu só quero que você vá com alguém e iniba um pouco aqueles dois.

Bufo e concordo.

— Eu vou.

— Obrigado. — Estou prestes a desligar, quando ele me chama de novo: — Ah, Alexios, não encha a cara, senão você vai falar merda para o Theo, e o Kostas vai se aproveitar disso.

— Vai se foder, Millos! Eu já vou, porra, não diga o que tenho que fazer.

Desligo irritado, perco a fome e a vontade de terminar o que estava preparando.

Mesmo puto, preciso admitir, Millos tem razão sobre eu perder a cabeça com Theodoros, principalmente quando bebo. Eu não odeio meu irmão mais velho como sei que Kostas o faz, apenas ele não significa mais nada para mim.

Convivo bem com ele, pelo menos no sentido profissional, mas não quero nenhum tipo de ligação mais pessoal. Ele perdeu o timing quando, depois de toda a merda que ajudou a fazer, nunca mais quis saber de nós. Era como se nem existíssemos! Ele excluiu Nikkós de sua vida, mas acabou nos descartando junto. Nunca se preocupou em saber de nenhum de seus irmãos, muito menos de sua adorada Kyra, a mais vulnerável de todos nós.

Então, sim, eu perco a cabeça com ele, principalmente com seu jeito esnobe, intocável, como se somente ele importasse e mais ninguém. E foi por isso que nos estranhamos na festa de final de ano da Karamanlis, porque, simplesmente, este ano a festa não foi Theocrática1.

Millos e eu nos reunimos com alguns gerentes e coordenadores para entender o que os funcionários da Karamanlis gostariam de ter em uma festa de encerramento do ano. Depois, contratamos todos os serviços – sem ser da Kyra, pois neste ano ela se livrou de nós na cara dura – e fizemos a festa focada nos funcionários.

Aparentemente, isso chocou e desagradou ao CEO com síndrome de deus, e sua cara fechada e seu olhar de desprezo não ficaram nada disfarçados.

— Ei, irmãozinho! — Eu o parei, enquanto andava como um deus do Olimpo visitando terráqueos. — Aproveitando a festa?

— Espero que não tenha vindo de moto! — o filho da puta tentou me repreender como se estivesse preocupado com minha segurança, e isso, juntamente a toda cerveja que eu já tinha tomado, irritou-me.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já muito bêbado para me conter. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos2!

Theodoros franziu o cenho com meu deboche, comparando seu nome à palavra deus em grego. Estava prestes a dizer algo, mas se conteve quando de repente fui abraçado pelos ombros. Nem precisei olhar para saber que nosso interventor havia chegado.

— Alex, que festança, não? — Millos comentou. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — Theodoros pareceu perplexo. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Gargalhei ao confirmar que ele era mesmo um grande egocêntrico, incapaz de perceber a diferença da festa deste ano à do ano passado por estar focado nos detalhes e não no que realmente importava: as pessoas.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — respondi como se estivesse sóbrio, mesmo não estando. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos me cortou.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — Theodoros perguntou ao Millos, apontando o dedo em minha direção como o grande babaca que sempre foi.

— Fui! — respondi. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Tentei demonstrar com gestos o que dizia, abri os braços de repente, e meu punho bateu no peito do Millos, que chegou para trás. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — olho para um grupo dançando e vários outros conversando, comendo e se divertindo — você está vendo alguém ir?

Ele ficou um tempo olhando em volta como se notasse, pela primeira vez desde que chegou, que realmente os funcionários estavam adorando a descontração deste ano.

Eu só não esperava que ele tentasse ser condescendente comigo:

— Bom trabalho! O pessoal parece realmente estar gostando!

Só faltou dar umas batidinhas em minha cabeça como se eu fosse a porra do seu cãozinho de estimação. Meu sangue ferveu, travei os punhos e não me contive:

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos interrompeu-me e me abraçou novamente pelos ombros. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Mal acabou de falar, seguiu para o outro lado, levando-me consigo.

— Porra, moleque, não tem como ser menos reativo não? A festa está um sucesso graças ao seu feeling, ao modo como você conhece e percebe as pessoas, para que estragar isso batendo boca ou — ele me encarou —, como percebi que queria fazer, enchendo a cara do Theo de porrada? Sai dessa!

Concordei com meu primo e respirei fundo. Depois disso tomei quase um litro de café amargo, ele me pôs em um Uber, e eu vim para casa, onde continuei a beber, desmaiei no sofá e, no outro dia, fui correr ainda um tanto trôpego, sendo desclassificado no teste do bafômetro.

Perdi minha última corrida do ano, grande fracassado que sou!

Volto a ligar minha playlist, e a música que toca é exatamente a que eu preciso para sair da fossa dessas lembranças todas:

— Eu não tenho nada pra dizer. Também não tenho mais o que fazer. Só para garantir esse refrão, eu vou enfiar um palavrão: cu!3


Entro no showroom da A??p?4 – a empresa de eventos de Kyra – e já admiro o trabalho dela com a decoração do local. A enorme mesa com vários lugares ocupa o centro do enorme salão, com castiçais, flores, louças e talheres milimetricamente colocados, junto a taças de cristal e guardanapos de linho.

No restante do salão, há mesas altas para apoiar drinques, sofás e poltronas brancas, com almofadas e outras coisas de decoração seguindo a paleta de cores da festa: verde, vermelho e dourado.

Clichê! Mas é Natal, tem como não ser?

Dou de ombros e vejo Kyra de costas, junto à belíssima morena que trabalha com ela desde que abriu a empresa e as duas chefes de cozinha que conheceu ainda quando trabalhava no outro bufê e as roubou na cara dura quando resolveu estabelecer seu próprio negócio. Uma delas, acho que é a doceira – Mari, como todos a chamam – me vê e logo cutuca minha irmã.

— Ah, Alex! — Kyra abre um enorme sorriso, entrega para a morena – como é mesmo o nome dela? – os penduricalhos de Natal com os quais enfeitava o enorme pinheiro e vem até mim. — Que bom que chegou, tenho uma coisa para você!

Ah, puta que pariu! Ela me comprou um presente? Fico imediatamente sem jeito, pois não comprei absolutamente nada para ela. Eu nem imaginava que iríamos trocar lembranças, nunca fizemos isso!

Alívio toma conta de mim quando ela vem com uma caixinha pequena e claramente de doces.

— Quando experimentei, lembrei logo de você. — Ela tira um doce dourado de dentro da caixa. — Prove!

Franzo o cenho e abro a boca. Mastigo devagar, emitindo sons de prazer, adorando o contraste de texturas e o sabor doce e... picante. Abro um sorriso.

— Chocolate com pimenta! — Termino de comer. — Perfeição!

— Bombom Helênico. — Faço careta para o nome, não combina em nada. — Eu sei, é péssimo, mas as meninas quiseram fazer uma homenagem para a Helena, então... — Dá de ombros.

Helena!, minha mente grita ao lembrar o nome da morena gostosa, mas que nunca sorri e mal fala comigo quando apareço aqui.

— Hum... gostosa! — Começo a rir quando noto que falei alto. Kyra me olha séria. — O quê?

— Nem pense, ela está comprometida!

Ergo as mãos em minha defesa.

— Não falei nada!

— Não precisa! Sua fama de embusteiro conquistador te precede! — Faço careta, e ela ri. — Estive com saudades de você.

— Então por que não foi me ver ou me ligou? — pergunto sem enrolação.

— Não sei.

Respiro fundo. Ela se fecha, é sempre assim e não só comigo. Ela se empolga, vibra, deixa as pessoas se aproximarem, mas nunca demais. Quando chega a seu limite, simplesmente retrocede com a mesma rapidez e naturalidade com que atraiu alguém. É por isso que suas amizades ou mesmo seus relacionamentos amorosos nunca duraram muito.

Porém o que faço eu aqui, julgando-a?

— Alexios Karamanlis! — Viro-me ao ouvir a voz de Millos.

Meu primo – filho de uma égua! – carrega uma enorme caixa de presente toda embrulhada e com laços. Kyra abre um enorme sorriso e vai saltitante até ele, abraça-o pelo pescoço – coisa que não faz nem comigo – e agradece o regalo.

— É para decorar sua sala de empresária fodona — ele brinca com ela, e Kyra gargalha ao tirar uma estátua toda colorida de um unicórnio. — Eu me lembrei daquela sua fantasia no dia das bruxas...

Kyra para de boca aberta.

— Millos, eu tinha quatro anos! — ela recorda e, de repente, parece lembrar também que, naquela época, tudo parecia realmente possível, mágico e feliz.

Meu primo a abraça forte e fala algo em seu ouvido, baixinho. Kyra assente, e eu fico paralisado vendo a troca de carinho entre eles. Parece normal, não é? Mas, creiam-me, não é. Millos evita qualquer contato físico com outras pessoas. Ao cumprimentá-las, ele prefere baixar a cabeça do que dar um aperto de mãos; o máximo que o vi fazer até hoje foi tocar no ombro de alguém, mas somente quando julga necessário. Até comigo, o máximo que ele fez até hoje foi me abraçar para evitar um embate entre mim e Theo. Então assistir aos dois se abraçando é realmente algo inédito.

— Feliz Natal, pesménos ángelos5.

Mostro o dedo do meio para ele.

— Ah, pesquisou! — Ri debochado, mas logo para ao aceitar o chope que Kyra nos oferece. — É um absurdo você não saber nada da nossa língua.

— Não tenho interesse algum por nada que venha de lá — justifico e bebo. — Kyra também não sabe!

— Quem disse? — Ela começa a rir. — Anóito6.

— Quando foi que você se interessou por essa porra? — questiono-lhe surpreso.

— Você leu o nome da empresa dela na fachada? — é Millos quem retorna minha pergunta. — Está em grego!

Millos e Kyra engatam uma conversa, enquanto eu ainda estou paralisado com essa nova informação. Não é exagero, mas eu pensei que ela, assim como eu, desprezasse qualquer coisa que tenha relação com Nikkós. No entanto, ao contrário de mim, ela sempre foi aceita por todos os Karamanlis como parte da família, então é natural que tenha algum apreço por eles.

— Ah, mais convidados estão chegando!

Kyra deixa-nos a sós e vai até um grupo que não conheço.

— Ela parece feliz — comento com Millos.

Meu primo dá de ombros.

— Há pessoas com o dom de demonstrar apenas o que querem que vejam. — Bebe o resto de seu chope e me encara. — Já resolveu o assunto do baile dos Villazzas?

— Ah, Millos, não fode mais a minha noite! — Vejo duas lindas mulheres adentrarem ao salão e abro um sorriso. — Pode ser que ela esteja começando a melhorar.

Millos ergue uma de suas sobrancelhas, e eu o deixo sozinho, caminhando em direção ao meu mais novo alvo da noite, que, neste exato momento, cumprimenta minha irmã.

— Kyra, eu gostaria de... — finjo interromper-me quando as desconhecidas me olham. — Desculpem-me. — Kyra rola os olhos, mas suas convidadas não desviam o olhar do meu rosto. — Millos estava falando do chope, e nós fizemos uma pequena aposta, mas posso ver isso depois, atenda seus convidados. — Abro novamente meu melhor sorriso na direção delas.

— Valéria e Priscila, esse é meu irmão, Alexios Karamanlis — Kyra faz nossa apresentação, e eu sei que depois irá jogar na minha cara que eu estou lhe devendo por isso.

— Um prazer, Valéria! — Aproximo-me para cumprimentá-la e logo depois saúdo a outra: — Prazer, Priscila.

— O prazer é meu, Alexios — Priscila responde, sorrindo, e vejo a mão de Valéria tocar suas costas num gesto um tanto territorialista. Perfeito! Trocamos beijos no rosto em cumprimento. — Eu já te vi em algumas revistas especializadas em engenharia e arquitetura, principalmente quando o conselho dessas classes era o mesmo.

— Arquiteta? — tento adivinhar, mas ela nega e aponta para sua amiga.

— Valéria é, eu sou designer industrial. — Faço cara de surpresa, mesmo sem achar nada de mais. — É, eu sei, a maioria das pessoas que me conhece acha que sou modelo ou estilista, mas você quase acertou. — Seu sorriso é claramente de quem se sente lisonjeada. — Trabalho conceitos para grandes marcas.

— Incrível! — Olho-a de cima a baixo, e Kyra bufa. — Você também parece incrível, Valéria. — Sorrio, e ela relaxa.

— Alexios, chegaram outros convidados, você poderia fazer companhia a elas? — Ela pega na mão das amigas. — Vocês não se importam, não é?

— Claro que não, você é a anfitriã da noite! — Valéria diz, e sinto seu olhar brilhar em minha direção. — Nós ficaremos em boa companhia com seu irmão, afinal, é o anjo rebelde dos Karamanlis.

Puta que pariu!

 

CONTINUA

Com um passado nebuloso, marcado por traumas, rejeições e violência, há anos Alexios Karamanlis busca entender a si mesmo e, para isso, começa uma caçada sem fim pelo destino de sua mãe biológica, junto a sua melhor amiga, Samara Schneider.
Amigos desde tenra idade, Alexios sempre tentou não a notar como mulher por temer perder sua amizade e apoio, e Samara sempre sonhou com o dia em que o garoto problemático e rebelde se apaixonaria por ela.
Juntos em busca de respostas sobre a verdadeira história do nascimento de Alexios, os dois mergulharão no sujo passado do pai dele, Nikkós Karamanlis, revelarão segredos muito bem guardados e, por fim, descobrirão que não há como reprimir mais a paixão e o desejo que sentem um pelo outro.

 

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O país todo está enlouquecido!, penso ao passar por mais uma blitz policial sem nenhum problema, acelerando a moto ao máximo, capacete preto espelhado impossibilitando qualquer um de ver que quem pilota essa máquina é um garoto, não um homem.

Eu não sou um homem! Não sou! Se fosse, não estaria aqui neste momento, mas sim na delegacia, gritando por aí, fazendo qualquer coisa que não apenas dar uma de burguesinho filho da puta endinheirado, acelerando uma moto que custa o mesmo que um apartamento popular, mesmo sem ter habilitação para isso, apenas para esquecer os problemas.

Eu sou um merda! E sou isso por causa “dele”!

Caralho! A Paulista está fechada por conta das comemorações do pentacampeonato. É, o Brasil conseguiu mais uma estrela no futebol, o país está eufórico como se não houvesse crianças na rua, assassinos à solta, a corrupção impedindo todo o sistema público de funcionar. Foda-se, somos penta!

Faço uma manobra rápida com a moto, deixando marcas dos grossos pneus no asfalto e sigo para outra direção, à procura de mais uma avenida extensa e reta para que eu possa extravasar todo o ódio dentro de mim indo ao limite da velocidade.

Paro a moto de repente e quase sou arremessado para frente. Meus músculos começam a tremer, meus olhos se enchem de lágrimas, sinto frio, meus dentes batem um no outro. Engulo em seco. Não vou chorar! Não choro mais, não há muitos anos.

Cada soco, cada pontapé, cada xingamento e mentira secaram minhas lágrimas. Elas até se instalam em meus olhos, porém não caem. Sufocam-me, quebram meu coração, desequilibram-me.

Caio no chão em um baque só, gemo de dor por causa do peso da moto sobre minha perna esquerda, mas não choro. Respiro fundo para controlar a dor, parar de tremer, diminuir os batimentos do meu coração. Estou acostumado a essa rotina de tentar não sentir dor, de tentar não sentir mais nada.

Levanto-me calmamente, sinto calafrios, manco, mas volto a subir na moto, acelerando-a, fazendo o motor girar e um ruído alto e potente se misturar aos sons das comemorações pelas ruas da cidade. Respiro fundo várias vezes e, quando não sinto mais nada, tiro o pé do chão e deixo a máquina me levar.

Eu queria poder fugir para o mais longe possível desta cidade, mas não dá, infelizmente não posso ir a lugar algum, estou preso, revivendo o mesmo inferno todos os dias, aceitando meu destino com resignação até poder livrar a mim e a Kyra do demônio que nos formou.

Eu poderia pedir ajuda ao Tim, mas sei que ele tem a própria merda para lidar e que conseguiu sair há pouco do inferno. Sei que precisava ir. Meu irmão estava por um fio, assim como eu, e, se ficasse lá conosco, seria para morrer ou matar, e, como não é da sua natureza matar, iria perecer aos poucos, como Nikkós gostaria que acontecesse.

Então ele foi, e eu fiquei incumbido de uma missão que nós aceitamos sem nem mesmo combinar nada, apenas porque sabíamos do que nosso pai era capaz e decidimos que não o deixaríamos chegar a ela.

Soluço na moto.

Eu falhei!

Eu falhei!

Eu falhei?!

Eu não sei! Simplesmente não sei o que aconteceu ontem! Acelero a moto, pegando uma rodovia, ainda tentando processar todos os acontecimentos e os flashes de memória que tenho.

Cometi um erro na noite passada, fui imprudente e agora preciso lidar com tudo o que aconteceu, mesmo sem entender direito o que houve. Enquanto piloto a moto, tento repassar cada momento de ontem, mesmo sabendo que já fiz isso várias e várias vezes sem nenhum êxito.

Nikkós finalmente viajou a trabalho – ou o que quer que ele tenha ido fazer –, e eu consegui relaxar um pouco. Mantenho constante vigilância sobre minha irmã, uma adolescente de 14 anos de idade, e evito ao máximo deixá-la sozinha com nosso pai. Não há muito que eu possa fazer para protegê-la das loucuras dele, mas o que está ao meu alcance, faço.

Por conta disso, desde que ingressei na universidade – no começo desse ano –, desdobro-me ao máximo para curtir com meus amigos e proteger a Kyra. A babá anterior era a mesma desde quando minha irmã e eu nascemos, totalmente devota ao nosso pai, então, assim que Konstantinos tomou posse de sua herança, demos um jeito de nos livrar dela, e, assim que outra foi contratada, meu irmão se encarregou de pagar uns extras para ela manter os olhos em Kyra.

Nikkós sempre foi um filho da puta covarde, ele nunca iria deixar um serviçal ver o que ele é capaz de fazer aos filhos, por isso tinha seus próprios lugares para executar suas torturas em Kostas e em mim.

Noite passada, uma galera mais velha da universidade fechou uma boate e me convidou para festejar com eles. Estávamos entrando de férias e queríamos muito desopilar o fígado, relaxar, curtir e esquecer todas as pressões dos estudos.

Como Nikkós não estava em casa, e a babá estava por lá com Kyra, por que não ir? Foi esse meu erro!, penso ao relembrar.

 

— O grande Alexios Karamanlis! — Alberto Bragança me saúda assim que entro na boate. — Achei que você não vinha mais, mano!

Ele me entrega uma caneca de 500ml de chope e um cartão para o restante do consumo, e logo vejo os outros caras em uma mesa no fundo do salão. A música alta, tocando um “batestaca” qualquer, não chama minha atenção. Sigo, então, na direção do pessoal e, mal chego lá, peço mais uma rodada de chope para todos.

Meu pai é um grande filho da puta, torturador desgraçado, mas, para manter as aparências, deixa-nos usar cartão sem limites e nos entrega uma mesada gorda. Bebo, sentindo o gosto do chope se tornar mais amargo que o normal, consciente de que essa porra toda é dele, comprada com o seu maldito dinheiro.

— Jefinho está na área! — alguém grita comemorando. — Vamos começar a diversão! Quem vai?

Sou um dos primeiros a me levantar, viro o resto da bebida e sigo com mais cinco amigos para o banheiro, atrás do traficante oficial da turma. Vejo cada um pegando “no bufê do Jeff” sua viagem preferida e pego um pino de “coca” para começar bem a noite.

“Foda-se, Nikkós Karamanlis!”

Cheiro.

“Foda-se, Sabrina Karamanlis!”

Aspiro mais um pouco.

“Foda-se, Theo Karamanlis!”

Faço outra carreira com o restante do pó.

“Foda-se, Geórgios Karamanlis!”

Seguro a narina fechada, mantendo tudo dentro de mim, sentindo já meu corpo girar, o cérebro acelerar e todas as sensações de abandono e dor se esvaírem como num passe de mágica. Só existe prazer, nenhuma dor, tudo é maravilhoso!

Compro mais três pinos de cocaína e alguns comprimidos de êxtase. Essa noite não quero dormir, quero aproveitar, dançar, zoar, pegar umas universitárias e esquecer quem sou.

Começo a rir de mim mesmo, da piada que acabei de pensar. Esquecer quem sou só seria possível se eu soubesse quem sou.

“Eu não sou ninguém!”

Meu Nokia vibra com a chegada de uma mensagem, confiro ser de Samara, minha única e melhor amiga, e volto a colocá-lo no bolso ao perceber a aproximação de uma gostosa do quarto ano.

— Eu não acredito que você é menor de idade, Alex! — A garota, com luzes nos cabelos e vestido com apenas uma alça, passa a mão no meu peito. — Você não parece ser um garoto, mesmo com esse rostinho angelical.

Respiro fundo para não perder a paciência, pois, se há algo que me irrita muito, é quando dizem que eu pareço um anjo. Aproximo-me dela e a puxo pela cintura.

— Posso provar que não sou um anjo! — Pego sua mão e a levo até a frente da minha calça. A garota arregala os olhos. — Os demônios com cara de anjo são os piores, gata!

— Uau! — Ela lambe meu pescoço. — O que você tomou?

— Coca, mas tenho “bala” no meu bolso. — Ela ronrona, e eu me animo. — Vem comigo!

Levo-a para uma área nos fundos da boate, uma espécie de depósito que se encontra aberto, uma vez que a casa está funcionando apenas para um bando de playboys endinheirados que preferem não se misturar com a ralé e, assim, fazer suas merdas longe dos olhos curiosos da plebe.

Claro! Afinal de contas, aqui estão reunidos os filhos dos maiores empresários, advogados, médicos, juízes e a porra toda elitizada desta cidade decadente. Bando de fodidos! A maioria desconta, como eu, a falta de afeto e atenção em casa gastando dinheiro, promovendo rachas pelas ruas, consumindo todo tipo de droga tentando preencher o buraco negro instalado nas nossas almas.

“Foda-se!”

Seguro a garota contra a parede fria do depósito e, sem nem mesmo perguntar seu nome, ataco sua boca com fúria, mordendo seus lábios e sugando sua língua. Ela mexe em minha calça, abre-a e retira meu pau para um tratamento especial em suas mãos macias.

— Novinho e pauzudo... — ela geme. — Cadê a balinha para deixar tudo mais divertido?

Sorrio e nego.

— Tem que merecer.

Ela sorri e, sem que eu precise sequer lhe indicar o que quero, ajoelha-se no chão grosso e toma meu pau em sua boca quente e esfomeada. Gemo, gostando da carícia, seguro-a pelos cabelos e a forço a engolir o máximo que consegue.

Tenho quase 17 anos, mas aposto com quem quer que seja que nenhum desses caras daqui tem a metade da experiência sexual que eu. E não, não “tiro onda” com isso, afinal, quem é filho de Nikkós Karamanlis não tem muita escolha sobre quando vai começar a trepar, ele simplesmente impõe, e comigo isso aconteceu quando eu tinha 11 anos de idade.

Afasto o pensamento pestilento sobre meu pai e curto a chupada gostosa que a garota ajoelhada me dá. Ela lambe, chupa, suga com força, arranha com os dentes – coisa que me excita “pra caralho” – e segura minhas bolas com vontade. Percebo que ela quer fazer o serviço completo com a boca, mas definitivamente ela não me conhece.

Ergo-a de uma vez só e a ponho de cara contra a parede. Procuro a camisinha no bolso da calça – uma coisa que se aprende quando se começa a vida sexual trepando com putas é que preservativos nunca podem faltar –, plastifico meu pau e levanto o vestido dela.

Bunda gostosa, magra, mas gostosa “pra cacete” com uma calcinha de cor forte – não sei se vermelha ou rosa; não divago muito sobre a cor, mesmo porque é irrelevante –, afasto a peça e esfrego os dedos em sua boceta depilada.

Ela ofega, rebola gostoso na minha mão. Vou penetrando-a devagar com os dedos, recolhendo um pouco da umidade de dentro de sua vagina para usá-la exatamente no ponto onde quero. Massageio seu clitóris até que ela se contraia em gozo e volto a molhar seu rabo com a lubrificação que solta.

Ela fica tensa quando encaixo a cabeça do meu pau em seu ânus apertado.

— Alex...

— Psiu... — falo devagarzinho em seu ouvido, lambendo sua orelha enquanto vou me afundando no canal estreito, sentindo meu corpo todo reagir à pressão de um local nunca ou pouco explorado. — Eu disse a você. — Ela arfa quando me encaixo por completo em seu rabo. — Os demônios com cara de anjo são os piores!

Meto com força e continuo estimulando seu clitóris, beijando e mordendo seu pescoço, até que ela explode em um orgasmo foda, e eu me deixo ir na camisinha, ainda sentindo as contrações do seu corpo. Quando ela se vira para me beijar, estico minha língua com sua recompensa na ponta. A garota sorri e chupa a drágea com vontade, enquanto eu engulo a outra.

A noite só começou!

 

Paro a moto em frente ao prédio onde Konstantinos mora. Fico parado olhando para o alto, invejando a liberdade de meu irmão, a coragem que teve ao se libertar assim que pôde do nosso pai. Ele estuda no Largo de São Francisco, vai ser um advogado e, mesmo que tenha tentado disfarçar, ficou contente quando contei que havia passado em todos os vestibulares para os quais havia prestado.

— Vai para algum lugar longe da cidade? — Kostas não escondeu sua preocupação.

— Não, vou ficar aqui — respondi com sinceridade, mesmo que minha vontade fosse ir para o mais longe possível deste inferno de lugar. — Vou continuar no apartamento de Nikkós, pelo menos até a Kyra fazer 18 anos.

Ele respirou fundo, e nossa conversa por telefone acabou aí. Nós não precisávamos externar nossa preocupação um para o outro, sabíamos do que nosso pai era capaz e do perigo que Kyra corria estando sob o mesmo teto que ele. Kostas saiu de casa, pois nunca soube lidar com Nikkós, ao contrário de mim.

O grego maluco tentou fazer comigo o mesmo que fazia com o meu irmão, porém nunca pensou que não me afetaria, então mudou de tática. O desgraçado tentava me acertar no único ponto que realmente me doía, mas ainda assim eu resistia em demonstrar alguma dor, então ele me fazia sentir na carne.

Esfrego a mão no ombro esquerdo, quebrado há dois anos no que todos acreditaram ser um acidente enquanto eu andava de skate, sem saber que quase tive o braço arrancado pelo homem louco, bêbado e drogado a quem todos respeitavam como um exemplo de pai, criando seus filhos sozinho depois de ter sido abandonado pela mulher.

Farsante dissimulado! Nunca amou ninguém, nunca se preocupou ou se dedicou a ninguém, nem a si mesmo. Eu só não entendo o motivo pelo qual ele não deixou que a puta que me gerou abortasse ou mesmo por que não me deixou com ela.

Eu sou um covarde! Rio, ligando a moto de novo.

Meu maior sonho é vê-lo morto, desejei e planejei isso tantas vezes, de tantas maneiras diferentes, que sei todos os passos de cor. No entanto, nunca tive coragem... Respiro fundo.

Pelo menos até essa madrugada!

Não faço ideia de como cheguei a casa, estava doidão, alto demais, cheirava a cerveja, maconha, sexo e perfumes variados. Não sei nem com quantas garotas trepei à noite, sei que algumas só mamaram meu pau, mas, com outras, a coisa foi mais louca.

Não consigo me lembrar de muita coisa. Só tenho sensações ruins de quando cheguei ao apartamento e percebi que Nikkós havia voltado. Nas memórias, há gritos, choro, mas nenhuma imagem. Tudo o que tenho nítido na cabeça foi o que aconteceu depois que acordei.

Estava deitado na sala principal do apartamento, minhas roupas sujas de sangue, rasgadas, um hematoma no olho e um corte no canto da boca já me incomodando. Não sabia nem onde estava, só sentia dor, confusão, e vomitei ali mesmo, no tapete da sala.

Ao meu lado vi uma faca suja de sangue. Gelei, sem saber o que tinha feito e de quem era o líquido viscoso e vermelho que cobria toda a lâmina. Foi nesse momento que saí do torpor em que me encontrava, peguei o objeto e comecei a correr pela enorme cobertura, entrando em todos os cômodos.

— Kyra! — gritava, mesmo com a cabeça explodindo. — Kyra!

Minha irmã não estava em lugar algum, nem mesmo a Nívea, a senhora que cuidava dela, eu pude encontrar. Meu desespero só aumentou. Liguei para o telefone dela, mas estava dando na caixa de mensagens.

Comecei a soluçar, mesmo não derramando uma só lágrima, e entrei no local proibido da casa, o santuário satânico de Nikkós Karamanlis: seu quarto.

Estanquei quando vi seu corpo enorme e nu jogado sobre a cama king size. Notei os cortes em seus braços, bem como o movimento de respiração, seguido dos roncos altos. O filho da puta não estava morto! Apertei a faca em minha mão com mais força, pensando que esse seria o momento certo para livrar a todos de sua existência.

Andei até ele devagar, os nós dos dedos brancos de tão firme que segurava a faca. Medi suas costas, imaginando que seria muito fácil perfurar seu pulmão com uma só estocada no lugar certo e que ele morreria afogado em seu próprio sangue lentamente, em uma morte digna dele.

Ergui a faca, fechei os olhos, parei de tremer e me lembrei de todos os anos de abuso e de tortura, do que ele fazia ao Kostas, do que fazia comigo e do que poderia fazer a Kyra.

Respirei fundo, concentrei a força e desci a faca, mas parei a milímetros de sua pele quando ouvi soar a campainha. Joguei a arma para longe e saí correndo daquele cômodo pestilento, descendo as escadas disparado para atender a porta, torcendo para que fossem Nívea e Kyra.

— Alexios? — a voz de Samara me fez prender o fôlego. — Alexios, você está aí?

Abri a porta sem pensar duas vezes e desmontei ao ver minha irmã ao lado da minha melhor amiga. Kyra, minha pequena princesa, linda como uma pintura, seus olhos enormes e verdes cheios de lágrimas e os lábios trêmulos.

— Ainda bem! — exclamei aliviado, puxando-a para meus braços. — Ainda bem!

— Alexios, você precisa de ajuda? — Samara questionou, olhando tudo em volta. — Ontem à noite a senhora Nívea pediu que Kyra ficasse comigo e...

Segurei o rosto de minha irmã, desgostoso por saber que ela mal fala por conta do monstro que temos em casa, sequei as lágrimas que escorriam por seu rosto miúdo e assustado e perguntei:

— O que houve?

Ela deu de ombros.

— Ele voltou mais cedo, estava bêbado, mandou Nívea embora. — Sinto um arrepio de frio percorrer minha coluna. — Os dois discutiram. — Ela soluçou. — Ele bateu nela, ela desmaiou...

— E você, onde estava?

Kyra desviou os olhos, e eu senti como se um soco acertasse a boca do meu estômago. Olhei para Samara em busca de uma resposta, mas minha amiga apenas deu de ombros, indicando que minha irmã também não falou com ela.

— Quando ela acordou, me levou para o apartamento da Malinha, e aí eu fiquei lá. — Kyra olhou em direção ao corredor. — Ele ainda está...

Assenti.

— Vá para o seu quarto, tranque a porta, tome um banho; daqui a pouco vou me encontrar com você. — Ela tentou sorrir em agradecimento para Samara, mas depois desistiu, seguindo diretamente para seu quarto. — Samara...

— Vocês precisam denunciar isso! — Ela tocou meu rosto. — Você é só um garoto, Alexios, não pode proteger vocês dois.

— Posso! — afirmei cheio de raiva. — Você sabe muito bem que, se uma denúncia for feita, ela será tirada de nós. Eu ficarei um ano em algum abrigo, mas e ela?

— O Tim não pode...

Neguei.

— Não acho que o deixariam cuidando de dois adolescentes, ele só tem 20 anos! — Fechei os olhos, cansado, com medo, sem saída e senti quando ela me abraçou apertado.

— Onde você esteve ontem à noite?

— Fui me divertir...

— Não. — Seus olhos lindíssimos encararam os meus. — Você não se diverte, Alexios, você tenta se matar. — Passou a mão pelo meu rosto. — Quanto usou?

Dei de ombros, não querendo discutir isso com ela. Nunca termina bem!

— Isso não ajuda ninguém. Nem a você, muito menos à sua irmã. — Tentou sorrir para disfarçar o sermão, seus dentes cheios de plaquinhas do aparelho ortodôntico, o rosto redondo de menina fazendo covinhas, coisa que ela sempre teve e sempre achei lindo. — Eu sei que só tenho 15 anos, mas...

— Eu agradeço que você tenha feito companhia a Kyra, mas agora preciso resolver tudo aqui. — Apontei para a sala. — Ficou tudo bem com seus pais?

— Sim, não acharam nada estranho que Kyra dormisse lá em casa, afinal, somos amigas.

Ri amargamente.

— Essa amizade é aceitável para os Schneiders, não é? — Samara ficou vermelha. — Kyra é uma boa menina, não um porra-louca como eu, filho de uma puta e...

Samara pôs a mão sobre minha boca.

— Você é meu melhor amigo, apenas isso deveria te bastar para calar qualquer outra coisa que meus pais possam pensar de você.

Abracei-a forte, a consciência pesada por falar mal de sua família, pois sei quanto ela os ama, depois me despedi e tratei de limpar a sala, jogar a roupa que usava fora e fiquei até há pouco com minha irmã, ambos trancados no seu quarto.

Só saí para espairecer, para processar tudo o que aconteceu na madrugada passada, pois mais uma vez Samara agiu como um anjo e convidou minha irmã para assistir à final da Copa do Mundo com ela e depois terem uma noite de meninas, com direito a festa do pijama.

Entro na garagem do prédio, mando uma mensagem para Samara informando-a de que cheguei e que estou indo buscar minha irmã. Sinceramente eu não sei como vou fazer até encontrar outra pessoa de confiança para deixar com Kyra quando eu não estiver em casa, pois Nívea disse que nunca mais colocará os pés no nosso apartamento, depois de ter recebido uma boa quantia para que não denunciasse o que se passa dentro de nossa casa, pois entendeu que prejudicaria Kyra.

Não importa! Kyra precisa de mim, e, nem se eu precisar mudar toda minha rotina por causa dela, a terei protegida.


São Paulo, tempo atuais.


Acordo com uma dor de cabeça filha da puta, ressacado, tão zonzo que tropeço ao sair da cama, e a primeira coisa que me vem à cabeça nesta manhã (ou será nesta tarde?) é que hoje é véspera de Natal. Foda-se! Sou ateu, esses feriados religiosos não significam nada para mim.

Sigo pelo corredor em direção à cozinha, com muita sede, louco para tomar um analgésico para exterminar a dor de cabeça. Não vou tomar! Não tomo remédios para dor há anos, aprendi a conviver com as pontadas, com as ardências. A dor me tornou mais forte, resiliente, aprendi há muito que nada é capaz de me ferir mais do que eu mesmo.

A maioria dos meus ossos trazem lembranças de como superei, as marcas no meu corpo também, porém, nenhuma dessas cicatrizes é mais forte do que o vazio dentro de mim.

Encho um copo d’água até transbordar e o bebo em um só gole. A cabeça martela ainda mais por conta da bebida gelada, mas ignoro-a por completo. Não há remédio para o que sinto, não há cura para toda a raiva que carrego dentro de mim, então posso, sim, conviver com umas horas de pontadas no cérebro.

Olho para a porta fechada na área de serviço. Os cômodos dali eram a tal dependência de empregados, mas, como eu nunca tive nenhum, aproveitei-os para outros fins. Inspiro, os cheiros tão familiares chegando às minhas narinas. A raiva natural com que acordo todos os dias se aplaca; não some, apenas se recolhe, dando lugar às sensações de prazer.

Confiro as horas e xingo ao perceber que já estamos no meio da tarde. Sinceramente, não sei por que Kyra inventou essa ceia de Natal, não depois de todos esses anos. Não entendo minha irmã, sinceramente. Há muito convivo com seu gênio forte, sua determinação, mas ainda não sei quem é ela. A garota divertida da infância se tornou uma adolescente quieta e taciturna, uma jovem inteligente e ajuizada e, por fim, uma adulta completamente misteriosa. Eu a acompanhei em todas as fases de sua vida, mas ainda assim não sei quem é a verdadeira Kyra Karamanlis.

Assim que ela completou 18 anos, abandonamos a luxuosa cobertura de Nikkós e fomos morar em um cafofo velho e caindo aos pedaços. Eu estudava como um louco no meu último ano de faculdade, e, como ela passou para uma universidade pública também, tínhamos que morar próximo de uma das duas universidades. Preferi ficar próximo da dela e me fodia andando de bicicleta até a minha todos os dias.

Nessa época eu estagiava na Novak Engenharia e, com a bolsa do estágio, eu mal conseguia pagar o aluguel do quarto e sala que aluguei. Ela nunca soube, mas quem bancava nossa alimentação, transporte e outras despesas era o Kostas. Meu irmão e eu nem éramos amigos, na verdade mal nos falávamos, mas todo mês o dinheiro aparecia na minha conta, e eu sabia que vinha dele.

Formei-me e já fui efetivado na Novak. Trabalhei com o Nicholas, com quem aprendi demais e construí uma amizade forte, assim como com seu irmão Bernardo. Os tempos de bagunça, baladas, drogas e bebidas acabaram quando nos libertamos da prisão daquele apartamento e da convivência maligna de Nikkós.

Kyra estudava muito, era extremamente aplicada em tudo o que fazia, e, irritada por não conseguir conciliar seu horário de estudos com um emprego, começou a fazer doces e salgados dentro do nosso pequeno apartamento e vendê-los na faculdade.

Rio ao pensar que foi assim que nasceu a promoter de eventos, em uma cozinha de seis metros quadrados, com um forno capenga, um fogão com só duas bocas funcionando e uma geladeira que parecia um monomotor, de tanto barulho que fazia. Em pouco tempo ela estava fornecendo encomendas para festas e pequenos eventos, depois começou a fazer projetos de decoração, então, quando se formou, foi trabalhar em um grande e caríssimo bufê da cidade, auxiliando a cerimonialista com os projetos.

Hoje ela é a dona de uma empresa especializada em produções de eventos diversos, bem-sucedida, com um negócio em progressão geométrica de crescimento. Tenho muito orgulho dela, principalmente por ser a única que não ficou agarrada ao cordão umbilical familiar dentro da Karamanlis.

Agora qual a necessidade da porra de uma ceia de Natal para comemorar a expansão de seu negócio? Vou ter que ficar com um maldito sorriso no rosto, carinha de anjo, lidando com o caralho da minha gastrite me corroendo ao pensar na hipocrisia do mundo.

Respiro fundo e decido combater a ressaca e a dor de cabeça com mais bebida. Pego uma cerveja na geladeira, abro-a na beirada da pia e entro no outro ambiente, a sala, integrada ao outro cômodo, separados apenas por uma enorme bancada.

Eu mesmo projetei esse prédio, há alguns anos, ainda trabalhando na Novak. Bernardo Novak é meu vizinho de porta, e Nicholas foi o primeiro dono da cobertura duplex que toma todo o último andar, hoje habitada por um casal e uma menininha. Comprei o apartamento pensando em vir morar com minha irmã, mas qual não foi minha surpresa quando ela anunciou que só sairia do cafofo para seu próprio lugar?

Pois é, vim sozinho, ocupo apenas a suíte principal, e os outros dois quartos estão praticamente vazios. A sala foi decorada – pela própria Kyra –, bem como a cozinha, mas nunca mandei fazer os móveis da sala de jantar, pois não vejo nenhuma função para eles. Eu como sozinho no balcão da cozinha, assistindo a TV ou ouvindo música.

Resgato meu celular, seleciono uma das minhas muitas playlists, e a caixa de som já liga automaticamente, deixando o som pesado do Matanza ecoar pelos ambientes. Sorrio ao ouvir “Bom é quando faz mal”, as recordações das loucuras da faculdade, de toda a merda que eu fazia. Não tenho vontade alguma de fazer de novo, mas também não posso dizer que me arrependo. Era o meu jeito de extravasar, tresloucado, admito, mas ainda assim muito mais normal do que o que eu vivia dentro de casa.

Preparo qualquer coisa para comer, balançando a cabeça e cantando as músicas de várias bandas de rock, algumas famosas, outras nem tanto, mas que marcaram minha vida de alguma forma.

O telefone toca, e a chamada atrapalha minha diversão musical. Bufo, jogo o pano de prato sobre a pia e pego o aparelho.

— Oi, Millos — atendo meu primo.

— Boa tarde, Alexios. Animado com a reunião de hoje à noite?

— Ô, tão quanto eu estaria para fazer um exame de próstata. — Millos gargalha. — Ela convidou você também?

— E o Kostas. — Isso me surpreende, pois, até onde eu sei, não temos nenhuma convivência com ele. — Bom, liguei para dizer que irei viajar na virada do ano, por isso preciso que você não deixe de ir ao baile dos Villazzas.

Gemo ao pensar em vestir um smoking.

— Porra, Millos, não fode! Aposto que Theodoros vai, afinal Frank e ele são quase um casal! — Millos ri do meu deboche acerca da amizade entre meu irmão mais velho e o CEO da rede Villazza de hotéis. — Não tenho a mínima...

— Konstantinos confirmou presença também.

Puta que pariu!

Preciso me sentar depois dessa informação, pasmo só em imaginar Kostas com alguma puta, sentado na mesma mesa de Theodoros. Vai dar merda!

— Eu não tenho companhia — tento me justificar. — E você poderia adiar a sua viagem só por uns...

— Não, não posso, já fiz todos os arranjos, reservas em hotéis, o cronograma da viagem! Você tem que ir para evitar que os dois prejudiquem a imagem da empresa.

Reviro os olhos ao pensar na imagem da empresa. Millos é doido ao pensar que temos uma imagem a zelar. Todos nesta maldita cidade, neste meio asqueroso no qual vivemos, sabem que somos todos fodidos e que nosso pai cagou em nosso nome com a sucessão de merdas que fez.

E olha que a maioria não o conheceu de verdade, não soube o monstro que ele era, escondido por detrás de uma fachada bonita e um sorriso de conquistador barato! Um lobo em pele de cordeiro, um demônio com a face de um anjo... assim como eu.

Bufo de raiva.

— Cadê aquela sua amiga? — Franzo a testa, sem acreditar que ele está se referindo à Samara. — Vocês viviam para cima e para baixo juntos, ela te acompanhou em um dos primeiros eventos dos Villazzas e...

— A Samara mora em Madri há mais de três anos, Millos. — Decido não entrar em detalhes e contar a ele que nos afastamos por algum motivo idiota que eu não consigo lembrar. — Vou ter que ligar para alguma...

— Isso, ligue — ele me corta. — Mulher nunca foi seu problema, aposto que você tem um caderninho cheio de telefones.

— E daí? — afronto-o. — Gosto de sexo, nunca escondi isso, diferente de você, que nunca foi visto com nenhuma mulher além daquela sua amiga motoqueira. — Decido provocá-lo: — Millos, acho que está na hora de sair do armário, porra!

O filho da puta ri alto.

— Eu não teria problema algum em sair se fosse o caso. Ainda mais agora, que Dimitrios saiu, e o pappoús continuou vivo e... — Millos para.

É sempre assim quando algum assunto referente à família na Grécia vem à tona. Eu não conheço ninguém, nunca fui à Grécia, nem tenho a mínima vontade de ir. Não conheço o tal pappoús, nem primo algum além de Millos, que só conheci quando veio morar no Brasil.

Sou o Karamanlis renegado, indigno do sobrenome.

— Vou ligar para alguém e convidar a ir comigo — encerro o assunto constrangedor. — Mas não garanto atuar de mediador como você.

— Você, mediador? — Millos se surpreende. — Alexios, se eu não tivesse interferido, você teria criado uma situação com Theodoros na festa de final de ano da Karamanlis. Eu só quero que você vá com alguém e iniba um pouco aqueles dois.

Bufo e concordo.

— Eu vou.

— Obrigado. — Estou prestes a desligar, quando ele me chama de novo: — Ah, Alexios, não encha a cara, senão você vai falar merda para o Theo, e o Kostas vai se aproveitar disso.

— Vai se foder, Millos! Eu já vou, porra, não diga o que tenho que fazer.

Desligo irritado, perco a fome e a vontade de terminar o que estava preparando.

Mesmo puto, preciso admitir, Millos tem razão sobre eu perder a cabeça com Theodoros, principalmente quando bebo. Eu não odeio meu irmão mais velho como sei que Kostas o faz, apenas ele não significa mais nada para mim.

Convivo bem com ele, pelo menos no sentido profissional, mas não quero nenhum tipo de ligação mais pessoal. Ele perdeu o timing quando, depois de toda a merda que ajudou a fazer, nunca mais quis saber de nós. Era como se nem existíssemos! Ele excluiu Nikkós de sua vida, mas acabou nos descartando junto. Nunca se preocupou em saber de nenhum de seus irmãos, muito menos de sua adorada Kyra, a mais vulnerável de todos nós.

Então, sim, eu perco a cabeça com ele, principalmente com seu jeito esnobe, intocável, como se somente ele importasse e mais ninguém. E foi por isso que nos estranhamos na festa de final de ano da Karamanlis, porque, simplesmente, este ano a festa não foi Theocrática1.

Millos e eu nos reunimos com alguns gerentes e coordenadores para entender o que os funcionários da Karamanlis gostariam de ter em uma festa de encerramento do ano. Depois, contratamos todos os serviços – sem ser da Kyra, pois neste ano ela se livrou de nós na cara dura – e fizemos a festa focada nos funcionários.

Aparentemente, isso chocou e desagradou ao CEO com síndrome de deus, e sua cara fechada e seu olhar de desprezo não ficaram nada disfarçados.

— Ei, irmãozinho! — Eu o parei, enquanto andava como um deus do Olimpo visitando terráqueos. — Aproveitando a festa?

— Espero que não tenha vindo de moto! — o filho da puta tentou me repreender como se estivesse preocupado com minha segurança, e isso, juntamente a toda cerveja que eu já tinha tomado, irritou-me.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já muito bêbado para me conter. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos2!

Theodoros franziu o cenho com meu deboche, comparando seu nome à palavra deus em grego. Estava prestes a dizer algo, mas se conteve quando de repente fui abraçado pelos ombros. Nem precisei olhar para saber que nosso interventor havia chegado.

— Alex, que festança, não? — Millos comentou. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — Theodoros pareceu perplexo. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Gargalhei ao confirmar que ele era mesmo um grande egocêntrico, incapaz de perceber a diferença da festa deste ano à do ano passado por estar focado nos detalhes e não no que realmente importava: as pessoas.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — respondi como se estivesse sóbrio, mesmo não estando. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos me cortou.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — Theodoros perguntou ao Millos, apontando o dedo em minha direção como o grande babaca que sempre foi.

— Fui! — respondi. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Tentei demonstrar com gestos o que dizia, abri os braços de repente, e meu punho bateu no peito do Millos, que chegou para trás. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — olho para um grupo dançando e vários outros conversando, comendo e se divertindo — você está vendo alguém ir?

Ele ficou um tempo olhando em volta como se notasse, pela primeira vez desde que chegou, que realmente os funcionários estavam adorando a descontração deste ano.

Eu só não esperava que ele tentasse ser condescendente comigo:

— Bom trabalho! O pessoal parece realmente estar gostando!

Só faltou dar umas batidinhas em minha cabeça como se eu fosse a porra do seu cãozinho de estimação. Meu sangue ferveu, travei os punhos e não me contive:

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos interrompeu-me e me abraçou novamente pelos ombros. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Mal acabou de falar, seguiu para o outro lado, levando-me consigo.

— Porra, moleque, não tem como ser menos reativo não? A festa está um sucesso graças ao seu feeling, ao modo como você conhece e percebe as pessoas, para que estragar isso batendo boca ou — ele me encarou —, como percebi que queria fazer, enchendo a cara do Theo de porrada? Sai dessa!

Concordei com meu primo e respirei fundo. Depois disso tomei quase um litro de café amargo, ele me pôs em um Uber, e eu vim para casa, onde continuei a beber, desmaiei no sofá e, no outro dia, fui correr ainda um tanto trôpego, sendo desclassificado no teste do bafômetro.

Perdi minha última corrida do ano, grande fracassado que sou!

Volto a ligar minha playlist, e a música que toca é exatamente a que eu preciso para sair da fossa dessas lembranças todas:

— Eu não tenho nada pra dizer. Também não tenho mais o que fazer. Só para garantir esse refrão, eu vou enfiar um palavrão: cu!3


Entro no showroom da A??p?4 – a empresa de eventos de Kyra – e já admiro o trabalho dela com a decoração do local. A enorme mesa com vários lugares ocupa o centro do enorme salão, com castiçais, flores, louças e talheres milimetricamente colocados, junto a taças de cristal e guardanapos de linho.

No restante do salão, há mesas altas para apoiar drinques, sofás e poltronas brancas, com almofadas e outras coisas de decoração seguindo a paleta de cores da festa: verde, vermelho e dourado.

Clichê! Mas é Natal, tem como não ser?

Dou de ombros e vejo Kyra de costas, junto à belíssima morena que trabalha com ela desde que abriu a empresa e as duas chefes de cozinha que conheceu ainda quando trabalhava no outro bufê e as roubou na cara dura quando resolveu estabelecer seu próprio negócio. Uma delas, acho que é a doceira – Mari, como todos a chamam – me vê e logo cutuca minha irmã.

— Ah, Alex! — Kyra abre um enorme sorriso, entrega para a morena – como é mesmo o nome dela? – os penduricalhos de Natal com os quais enfeitava o enorme pinheiro e vem até mim. — Que bom que chegou, tenho uma coisa para você!

Ah, puta que pariu! Ela me comprou um presente? Fico imediatamente sem jeito, pois não comprei absolutamente nada para ela. Eu nem imaginava que iríamos trocar lembranças, nunca fizemos isso!

Alívio toma conta de mim quando ela vem com uma caixinha pequena e claramente de doces.

— Quando experimentei, lembrei logo de você. — Ela tira um doce dourado de dentro da caixa. — Prove!

Franzo o cenho e abro a boca. Mastigo devagar, emitindo sons de prazer, adorando o contraste de texturas e o sabor doce e... picante. Abro um sorriso.

— Chocolate com pimenta! — Termino de comer. — Perfeição!

— Bombom Helênico. — Faço careta para o nome, não combina em nada. — Eu sei, é péssimo, mas as meninas quiseram fazer uma homenagem para a Helena, então... — Dá de ombros.

Helena!, minha mente grita ao lembrar o nome da morena gostosa, mas que nunca sorri e mal fala comigo quando apareço aqui.

— Hum... gostosa! — Começo a rir quando noto que falei alto. Kyra me olha séria. — O quê?

— Nem pense, ela está comprometida!

Ergo as mãos em minha defesa.

— Não falei nada!

— Não precisa! Sua fama de embusteiro conquistador te precede! — Faço careta, e ela ri. — Estive com saudades de você.

— Então por que não foi me ver ou me ligou? — pergunto sem enrolação.

— Não sei.

Respiro fundo. Ela se fecha, é sempre assim e não só comigo. Ela se empolga, vibra, deixa as pessoas se aproximarem, mas nunca demais. Quando chega a seu limite, simplesmente retrocede com a mesma rapidez e naturalidade com que atraiu alguém. É por isso que suas amizades ou mesmo seus relacionamentos amorosos nunca duraram muito.

Porém o que faço eu aqui, julgando-a?

— Alexios Karamanlis! — Viro-me ao ouvir a voz de Millos.

Meu primo – filho de uma égua! – carrega uma enorme caixa de presente toda embrulhada e com laços. Kyra abre um enorme sorriso e vai saltitante até ele, abraça-o pelo pescoço – coisa que não faz nem comigo – e agradece o regalo.

— É para decorar sua sala de empresária fodona — ele brinca com ela, e Kyra gargalha ao tirar uma estátua toda colorida de um unicórnio. — Eu me lembrei daquela sua fantasia no dia das bruxas...

Kyra para de boca aberta.

— Millos, eu tinha quatro anos! — ela recorda e, de repente, parece lembrar também que, naquela época, tudo parecia realmente possível, mágico e feliz.

Meu primo a abraça forte e fala algo em seu ouvido, baixinho. Kyra assente, e eu fico paralisado vendo a troca de carinho entre eles. Parece normal, não é? Mas, creiam-me, não é. Millos evita qualquer contato físico com outras pessoas. Ao cumprimentá-las, ele prefere baixar a cabeça do que dar um aperto de mãos; o máximo que o vi fazer até hoje foi tocar no ombro de alguém, mas somente quando julga necessário. Até comigo, o máximo que ele fez até hoje foi me abraçar para evitar um embate entre mim e Theo. Então assistir aos dois se abraçando é realmente algo inédito.

— Feliz Natal, pesménos ángelos5.

Mostro o dedo do meio para ele.

— Ah, pesquisou! — Ri debochado, mas logo para ao aceitar o chope que Kyra nos oferece. — É um absurdo você não saber nada da nossa língua.

— Não tenho interesse algum por nada que venha de lá — justifico e bebo. — Kyra também não sabe!

— Quem disse? — Ela começa a rir. — Anóito6.

— Quando foi que você se interessou por essa porra? — questiono-lhe surpreso.

— Você leu o nome da empresa dela na fachada? — é Millos quem retorna minha pergunta. — Está em grego!

Millos e Kyra engatam uma conversa, enquanto eu ainda estou paralisado com essa nova informação. Não é exagero, mas eu pensei que ela, assim como eu, desprezasse qualquer coisa que tenha relação com Nikkós. No entanto, ao contrário de mim, ela sempre foi aceita por todos os Karamanlis como parte da família, então é natural que tenha algum apreço por eles.

— Ah, mais convidados estão chegando!

Kyra deixa-nos a sós e vai até um grupo que não conheço.

— Ela parece feliz — comento com Millos.

Meu primo dá de ombros.

— Há pessoas com o dom de demonstrar apenas o que querem que vejam. — Bebe o resto de seu chope e me encara. — Já resolveu o assunto do baile dos Villazzas?

— Ah, Millos, não fode mais a minha noite! — Vejo duas lindas mulheres adentrarem ao salão e abro um sorriso. — Pode ser que ela esteja começando a melhorar.

Millos ergue uma de suas sobrancelhas, e eu o deixo sozinho, caminhando em direção ao meu mais novo alvo da noite, que, neste exato momento, cumprimenta minha irmã.

— Kyra, eu gostaria de... — finjo interromper-me quando as desconhecidas me olham. — Desculpem-me. — Kyra rola os olhos, mas suas convidadas não desviam o olhar do meu rosto. — Millos estava falando do chope, e nós fizemos uma pequena aposta, mas posso ver isso depois, atenda seus convidados. — Abro novamente meu melhor sorriso na direção delas.

— Valéria e Priscila, esse é meu irmão, Alexios Karamanlis — Kyra faz nossa apresentação, e eu sei que depois irá jogar na minha cara que eu estou lhe devendo por isso.

— Um prazer, Valéria! — Aproximo-me para cumprimentá-la e logo depois saúdo a outra: — Prazer, Priscila.

— O prazer é meu, Alexios — Priscila responde, sorrindo, e vejo a mão de Valéria tocar suas costas num gesto um tanto territorialista. Perfeito! Trocamos beijos no rosto em cumprimento. — Eu já te vi em algumas revistas especializadas em engenharia e arquitetura, principalmente quando o conselho dessas classes era o mesmo.

— Arquiteta? — tento adivinhar, mas ela nega e aponta para sua amiga.

— Valéria é, eu sou designer industrial. — Faço cara de surpresa, mesmo sem achar nada de mais. — É, eu sei, a maioria das pessoas que me conhece acha que sou modelo ou estilista, mas você quase acertou. — Seu sorriso é claramente de quem se sente lisonjeada. — Trabalho conceitos para grandes marcas.

— Incrível! — Olho-a de cima a baixo, e Kyra bufa. — Você também parece incrível, Valéria. — Sorrio, e ela relaxa.

— Alexios, chegaram outros convidados, você poderia fazer companhia a elas? — Ela pega na mão das amigas. — Vocês não se importam, não é?

— Claro que não, você é a anfitriã da noite! — Valéria diz, e sinto seu olhar brilhar em minha direção. — Nós ficaremos em boa companhia com seu irmão, afinal, é o anjo rebelde dos Karamanlis.

Puta que pariu!

 

CONTINUA

Com um passado nebuloso, marcado por traumas, rejeições e violência, há anos Alexios Karamanlis busca entender a si mesmo e, para isso, começa uma caçada sem fim pelo destino de sua mãe biológica, junto a sua melhor amiga, Samara Schneider.
Amigos desde tenra idade, Alexios sempre tentou não a notar como mulher por temer perder sua amizade e apoio, e Samara sempre sonhou com o dia em que o garoto problemático e rebelde se apaixonaria por ela.
Juntos em busca de respostas sobre a verdadeira história do nascimento de Alexios, os dois mergulharão no sujo passado do pai dele, Nikkós Karamanlis, revelarão segredos muito bem guardados e, por fim, descobrirão que não há como reprimir mais a paixão e o desejo que sentem um pelo outro.

 

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O país todo está enlouquecido!, penso ao passar por mais uma blitz policial sem nenhum problema, acelerando a moto ao máximo, capacete preto espelhado impossibilitando qualquer um de ver que quem pilota essa máquina é um garoto, não um homem.

Eu não sou um homem! Não sou! Se fosse, não estaria aqui neste momento, mas sim na delegacia, gritando por aí, fazendo qualquer coisa que não apenas dar uma de burguesinho filho da puta endinheirado, acelerando uma moto que custa o mesmo que um apartamento popular, mesmo sem ter habilitação para isso, apenas para esquecer os problemas.

Eu sou um merda! E sou isso por causa “dele”!

Caralho! A Paulista está fechada por conta das comemorações do pentacampeonato. É, o Brasil conseguiu mais uma estrela no futebol, o país está eufórico como se não houvesse crianças na rua, assassinos à solta, a corrupção impedindo todo o sistema público de funcionar. Foda-se, somos penta!

Faço uma manobra rápida com a moto, deixando marcas dos grossos pneus no asfalto e sigo para outra direção, à procura de mais uma avenida extensa e reta para que eu possa extravasar todo o ódio dentro de mim indo ao limite da velocidade.

Paro a moto de repente e quase sou arremessado para frente. Meus músculos começam a tremer, meus olhos se enchem de lágrimas, sinto frio, meus dentes batem um no outro. Engulo em seco. Não vou chorar! Não choro mais, não há muitos anos.

Cada soco, cada pontapé, cada xingamento e mentira secaram minhas lágrimas. Elas até se instalam em meus olhos, porém não caem. Sufocam-me, quebram meu coração, desequilibram-me.

Caio no chão em um baque só, gemo de dor por causa do peso da moto sobre minha perna esquerda, mas não choro. Respiro fundo para controlar a dor, parar de tremer, diminuir os batimentos do meu coração. Estou acostumado a essa rotina de tentar não sentir dor, de tentar não sentir mais nada.

Levanto-me calmamente, sinto calafrios, manco, mas volto a subir na moto, acelerando-a, fazendo o motor girar e um ruído alto e potente se misturar aos sons das comemorações pelas ruas da cidade. Respiro fundo várias vezes e, quando não sinto mais nada, tiro o pé do chão e deixo a máquina me levar.

Eu queria poder fugir para o mais longe possível desta cidade, mas não dá, infelizmente não posso ir a lugar algum, estou preso, revivendo o mesmo inferno todos os dias, aceitando meu destino com resignação até poder livrar a mim e a Kyra do demônio que nos formou.

Eu poderia pedir ajuda ao Tim, mas sei que ele tem a própria merda para lidar e que conseguiu sair há pouco do inferno. Sei que precisava ir. Meu irmão estava por um fio, assim como eu, e, se ficasse lá conosco, seria para morrer ou matar, e, como não é da sua natureza matar, iria perecer aos poucos, como Nikkós gostaria que acontecesse.

Então ele foi, e eu fiquei incumbido de uma missão que nós aceitamos sem nem mesmo combinar nada, apenas porque sabíamos do que nosso pai era capaz e decidimos que não o deixaríamos chegar a ela.

Soluço na moto.

Eu falhei!

Eu falhei!

Eu falhei?!

Eu não sei! Simplesmente não sei o que aconteceu ontem! Acelero a moto, pegando uma rodovia, ainda tentando processar todos os acontecimentos e os flashes de memória que tenho.

Cometi um erro na noite passada, fui imprudente e agora preciso lidar com tudo o que aconteceu, mesmo sem entender direito o que houve. Enquanto piloto a moto, tento repassar cada momento de ontem, mesmo sabendo que já fiz isso várias e várias vezes sem nenhum êxito.

Nikkós finalmente viajou a trabalho – ou o que quer que ele tenha ido fazer –, e eu consegui relaxar um pouco. Mantenho constante vigilância sobre minha irmã, uma adolescente de 14 anos de idade, e evito ao máximo deixá-la sozinha com nosso pai. Não há muito que eu possa fazer para protegê-la das loucuras dele, mas o que está ao meu alcance, faço.

Por conta disso, desde que ingressei na universidade – no começo desse ano –, desdobro-me ao máximo para curtir com meus amigos e proteger a Kyra. A babá anterior era a mesma desde quando minha irmã e eu nascemos, totalmente devota ao nosso pai, então, assim que Konstantinos tomou posse de sua herança, demos um jeito de nos livrar dela, e, assim que outra foi contratada, meu irmão se encarregou de pagar uns extras para ela manter os olhos em Kyra.

Nikkós sempre foi um filho da puta covarde, ele nunca iria deixar um serviçal ver o que ele é capaz de fazer aos filhos, por isso tinha seus próprios lugares para executar suas torturas em Kostas e em mim.

Noite passada, uma galera mais velha da universidade fechou uma boate e me convidou para festejar com eles. Estávamos entrando de férias e queríamos muito desopilar o fígado, relaxar, curtir e esquecer todas as pressões dos estudos.

Como Nikkós não estava em casa, e a babá estava por lá com Kyra, por que não ir? Foi esse meu erro!, penso ao relembrar.

 

— O grande Alexios Karamanlis! — Alberto Bragança me saúda assim que entro na boate. — Achei que você não vinha mais, mano!

Ele me entrega uma caneca de 500ml de chope e um cartão para o restante do consumo, e logo vejo os outros caras em uma mesa no fundo do salão. A música alta, tocando um “batestaca” qualquer, não chama minha atenção. Sigo, então, na direção do pessoal e, mal chego lá, peço mais uma rodada de chope para todos.

Meu pai é um grande filho da puta, torturador desgraçado, mas, para manter as aparências, deixa-nos usar cartão sem limites e nos entrega uma mesada gorda. Bebo, sentindo o gosto do chope se tornar mais amargo que o normal, consciente de que essa porra toda é dele, comprada com o seu maldito dinheiro.

— Jefinho está na área! — alguém grita comemorando. — Vamos começar a diversão! Quem vai?

Sou um dos primeiros a me levantar, viro o resto da bebida e sigo com mais cinco amigos para o banheiro, atrás do traficante oficial da turma. Vejo cada um pegando “no bufê do Jeff” sua viagem preferida e pego um pino de “coca” para começar bem a noite.

“Foda-se, Nikkós Karamanlis!”

Cheiro.

“Foda-se, Sabrina Karamanlis!”

Aspiro mais um pouco.

“Foda-se, Theo Karamanlis!”

Faço outra carreira com o restante do pó.

“Foda-se, Geórgios Karamanlis!”

Seguro a narina fechada, mantendo tudo dentro de mim, sentindo já meu corpo girar, o cérebro acelerar e todas as sensações de abandono e dor se esvaírem como num passe de mágica. Só existe prazer, nenhuma dor, tudo é maravilhoso!

Compro mais três pinos de cocaína e alguns comprimidos de êxtase. Essa noite não quero dormir, quero aproveitar, dançar, zoar, pegar umas universitárias e esquecer quem sou.

Começo a rir de mim mesmo, da piada que acabei de pensar. Esquecer quem sou só seria possível se eu soubesse quem sou.

“Eu não sou ninguém!”

Meu Nokia vibra com a chegada de uma mensagem, confiro ser de Samara, minha única e melhor amiga, e volto a colocá-lo no bolso ao perceber a aproximação de uma gostosa do quarto ano.

— Eu não acredito que você é menor de idade, Alex! — A garota, com luzes nos cabelos e vestido com apenas uma alça, passa a mão no meu peito. — Você não parece ser um garoto, mesmo com esse rostinho angelical.

Respiro fundo para não perder a paciência, pois, se há algo que me irrita muito, é quando dizem que eu pareço um anjo. Aproximo-me dela e a puxo pela cintura.

— Posso provar que não sou um anjo! — Pego sua mão e a levo até a frente da minha calça. A garota arregala os olhos. — Os demônios com cara de anjo são os piores, gata!

— Uau! — Ela lambe meu pescoço. — O que você tomou?

— Coca, mas tenho “bala” no meu bolso. — Ela ronrona, e eu me animo. — Vem comigo!

Levo-a para uma área nos fundos da boate, uma espécie de depósito que se encontra aberto, uma vez que a casa está funcionando apenas para um bando de playboys endinheirados que preferem não se misturar com a ralé e, assim, fazer suas merdas longe dos olhos curiosos da plebe.

Claro! Afinal de contas, aqui estão reunidos os filhos dos maiores empresários, advogados, médicos, juízes e a porra toda elitizada desta cidade decadente. Bando de fodidos! A maioria desconta, como eu, a falta de afeto e atenção em casa gastando dinheiro, promovendo rachas pelas ruas, consumindo todo tipo de droga tentando preencher o buraco negro instalado nas nossas almas.

“Foda-se!”

Seguro a garota contra a parede fria do depósito e, sem nem mesmo perguntar seu nome, ataco sua boca com fúria, mordendo seus lábios e sugando sua língua. Ela mexe em minha calça, abre-a e retira meu pau para um tratamento especial em suas mãos macias.

— Novinho e pauzudo... — ela geme. — Cadê a balinha para deixar tudo mais divertido?

Sorrio e nego.

— Tem que merecer.

Ela sorri e, sem que eu precise sequer lhe indicar o que quero, ajoelha-se no chão grosso e toma meu pau em sua boca quente e esfomeada. Gemo, gostando da carícia, seguro-a pelos cabelos e a forço a engolir o máximo que consegue.

Tenho quase 17 anos, mas aposto com quem quer que seja que nenhum desses caras daqui tem a metade da experiência sexual que eu. E não, não “tiro onda” com isso, afinal, quem é filho de Nikkós Karamanlis não tem muita escolha sobre quando vai começar a trepar, ele simplesmente impõe, e comigo isso aconteceu quando eu tinha 11 anos de idade.

Afasto o pensamento pestilento sobre meu pai e curto a chupada gostosa que a garota ajoelhada me dá. Ela lambe, chupa, suga com força, arranha com os dentes – coisa que me excita “pra caralho” – e segura minhas bolas com vontade. Percebo que ela quer fazer o serviço completo com a boca, mas definitivamente ela não me conhece.

Ergo-a de uma vez só e a ponho de cara contra a parede. Procuro a camisinha no bolso da calça – uma coisa que se aprende quando se começa a vida sexual trepando com putas é que preservativos nunca podem faltar –, plastifico meu pau e levanto o vestido dela.

Bunda gostosa, magra, mas gostosa “pra cacete” com uma calcinha de cor forte – não sei se vermelha ou rosa; não divago muito sobre a cor, mesmo porque é irrelevante –, afasto a peça e esfrego os dedos em sua boceta depilada.

Ela ofega, rebola gostoso na minha mão. Vou penetrando-a devagar com os dedos, recolhendo um pouco da umidade de dentro de sua vagina para usá-la exatamente no ponto onde quero. Massageio seu clitóris até que ela se contraia em gozo e volto a molhar seu rabo com a lubrificação que solta.

Ela fica tensa quando encaixo a cabeça do meu pau em seu ânus apertado.

— Alex...

— Psiu... — falo devagarzinho em seu ouvido, lambendo sua orelha enquanto vou me afundando no canal estreito, sentindo meu corpo todo reagir à pressão de um local nunca ou pouco explorado. — Eu disse a você. — Ela arfa quando me encaixo por completo em seu rabo. — Os demônios com cara de anjo são os piores!

Meto com força e continuo estimulando seu clitóris, beijando e mordendo seu pescoço, até que ela explode em um orgasmo foda, e eu me deixo ir na camisinha, ainda sentindo as contrações do seu corpo. Quando ela se vira para me beijar, estico minha língua com sua recompensa na ponta. A garota sorri e chupa a drágea com vontade, enquanto eu engulo a outra.

A noite só começou!

 

Paro a moto em frente ao prédio onde Konstantinos mora. Fico parado olhando para o alto, invejando a liberdade de meu irmão, a coragem que teve ao se libertar assim que pôde do nosso pai. Ele estuda no Largo de São Francisco, vai ser um advogado e, mesmo que tenha tentado disfarçar, ficou contente quando contei que havia passado em todos os vestibulares para os quais havia prestado.

— Vai para algum lugar longe da cidade? — Kostas não escondeu sua preocupação.

— Não, vou ficar aqui — respondi com sinceridade, mesmo que minha vontade fosse ir para o mais longe possível deste inferno de lugar. — Vou continuar no apartamento de Nikkós, pelo menos até a Kyra fazer 18 anos.

Ele respirou fundo, e nossa conversa por telefone acabou aí. Nós não precisávamos externar nossa preocupação um para o outro, sabíamos do que nosso pai era capaz e do perigo que Kyra corria estando sob o mesmo teto que ele. Kostas saiu de casa, pois nunca soube lidar com Nikkós, ao contrário de mim.

O grego maluco tentou fazer comigo o mesmo que fazia com o meu irmão, porém nunca pensou que não me afetaria, então mudou de tática. O desgraçado tentava me acertar no único ponto que realmente me doía, mas ainda assim eu resistia em demonstrar alguma dor, então ele me fazia sentir na carne.

Esfrego a mão no ombro esquerdo, quebrado há dois anos no que todos acreditaram ser um acidente enquanto eu andava de skate, sem saber que quase tive o braço arrancado pelo homem louco, bêbado e drogado a quem todos respeitavam como um exemplo de pai, criando seus filhos sozinho depois de ter sido abandonado pela mulher.

Farsante dissimulado! Nunca amou ninguém, nunca se preocupou ou se dedicou a ninguém, nem a si mesmo. Eu só não entendo o motivo pelo qual ele não deixou que a puta que me gerou abortasse ou mesmo por que não me deixou com ela.

Eu sou um covarde! Rio, ligando a moto de novo.

Meu maior sonho é vê-lo morto, desejei e planejei isso tantas vezes, de tantas maneiras diferentes, que sei todos os passos de cor. No entanto, nunca tive coragem... Respiro fundo.

Pelo menos até essa madrugada!

Não faço ideia de como cheguei a casa, estava doidão, alto demais, cheirava a cerveja, maconha, sexo e perfumes variados. Não sei nem com quantas garotas trepei à noite, sei que algumas só mamaram meu pau, mas, com outras, a coisa foi mais louca.

Não consigo me lembrar de muita coisa. Só tenho sensações ruins de quando cheguei ao apartamento e percebi que Nikkós havia voltado. Nas memórias, há gritos, choro, mas nenhuma imagem. Tudo o que tenho nítido na cabeça foi o que aconteceu depois que acordei.

Estava deitado na sala principal do apartamento, minhas roupas sujas de sangue, rasgadas, um hematoma no olho e um corte no canto da boca já me incomodando. Não sabia nem onde estava, só sentia dor, confusão, e vomitei ali mesmo, no tapete da sala.

Ao meu lado vi uma faca suja de sangue. Gelei, sem saber o que tinha feito e de quem era o líquido viscoso e vermelho que cobria toda a lâmina. Foi nesse momento que saí do torpor em que me encontrava, peguei o objeto e comecei a correr pela enorme cobertura, entrando em todos os cômodos.

— Kyra! — gritava, mesmo com a cabeça explodindo. — Kyra!

Minha irmã não estava em lugar algum, nem mesmo a Nívea, a senhora que cuidava dela, eu pude encontrar. Meu desespero só aumentou. Liguei para o telefone dela, mas estava dando na caixa de mensagens.

Comecei a soluçar, mesmo não derramando uma só lágrima, e entrei no local proibido da casa, o santuário satânico de Nikkós Karamanlis: seu quarto.

Estanquei quando vi seu corpo enorme e nu jogado sobre a cama king size. Notei os cortes em seus braços, bem como o movimento de respiração, seguido dos roncos altos. O filho da puta não estava morto! Apertei a faca em minha mão com mais força, pensando que esse seria o momento certo para livrar a todos de sua existência.

Andei até ele devagar, os nós dos dedos brancos de tão firme que segurava a faca. Medi suas costas, imaginando que seria muito fácil perfurar seu pulmão com uma só estocada no lugar certo e que ele morreria afogado em seu próprio sangue lentamente, em uma morte digna dele.

Ergui a faca, fechei os olhos, parei de tremer e me lembrei de todos os anos de abuso e de tortura, do que ele fazia ao Kostas, do que fazia comigo e do que poderia fazer a Kyra.

Respirei fundo, concentrei a força e desci a faca, mas parei a milímetros de sua pele quando ouvi soar a campainha. Joguei a arma para longe e saí correndo daquele cômodo pestilento, descendo as escadas disparado para atender a porta, torcendo para que fossem Nívea e Kyra.

— Alexios? — a voz de Samara me fez prender o fôlego. — Alexios, você está aí?

Abri a porta sem pensar duas vezes e desmontei ao ver minha irmã ao lado da minha melhor amiga. Kyra, minha pequena princesa, linda como uma pintura, seus olhos enormes e verdes cheios de lágrimas e os lábios trêmulos.

— Ainda bem! — exclamei aliviado, puxando-a para meus braços. — Ainda bem!

— Alexios, você precisa de ajuda? — Samara questionou, olhando tudo em volta. — Ontem à noite a senhora Nívea pediu que Kyra ficasse comigo e...

Segurei o rosto de minha irmã, desgostoso por saber que ela mal fala por conta do monstro que temos em casa, sequei as lágrimas que escorriam por seu rosto miúdo e assustado e perguntei:

— O que houve?

Ela deu de ombros.

— Ele voltou mais cedo, estava bêbado, mandou Nívea embora. — Sinto um arrepio de frio percorrer minha coluna. — Os dois discutiram. — Ela soluçou. — Ele bateu nela, ela desmaiou...

— E você, onde estava?

Kyra desviou os olhos, e eu senti como se um soco acertasse a boca do meu estômago. Olhei para Samara em busca de uma resposta, mas minha amiga apenas deu de ombros, indicando que minha irmã também não falou com ela.

— Quando ela acordou, me levou para o apartamento da Malinha, e aí eu fiquei lá. — Kyra olhou em direção ao corredor. — Ele ainda está...

Assenti.

— Vá para o seu quarto, tranque a porta, tome um banho; daqui a pouco vou me encontrar com você. — Ela tentou sorrir em agradecimento para Samara, mas depois desistiu, seguindo diretamente para seu quarto. — Samara...

— Vocês precisam denunciar isso! — Ela tocou meu rosto. — Você é só um garoto, Alexios, não pode proteger vocês dois.

— Posso! — afirmei cheio de raiva. — Você sabe muito bem que, se uma denúncia for feita, ela será tirada de nós. Eu ficarei um ano em algum abrigo, mas e ela?

— O Tim não pode...

Neguei.

— Não acho que o deixariam cuidando de dois adolescentes, ele só tem 20 anos! — Fechei os olhos, cansado, com medo, sem saída e senti quando ela me abraçou apertado.

— Onde você esteve ontem à noite?

— Fui me divertir...

— Não. — Seus olhos lindíssimos encararam os meus. — Você não se diverte, Alexios, você tenta se matar. — Passou a mão pelo meu rosto. — Quanto usou?

Dei de ombros, não querendo discutir isso com ela. Nunca termina bem!

— Isso não ajuda ninguém. Nem a você, muito menos à sua irmã. — Tentou sorrir para disfarçar o sermão, seus dentes cheios de plaquinhas do aparelho ortodôntico, o rosto redondo de menina fazendo covinhas, coisa que ela sempre teve e sempre achei lindo. — Eu sei que só tenho 15 anos, mas...

— Eu agradeço que você tenha feito companhia a Kyra, mas agora preciso resolver tudo aqui. — Apontei para a sala. — Ficou tudo bem com seus pais?

— Sim, não acharam nada estranho que Kyra dormisse lá em casa, afinal, somos amigas.

Ri amargamente.

— Essa amizade é aceitável para os Schneiders, não é? — Samara ficou vermelha. — Kyra é uma boa menina, não um porra-louca como eu, filho de uma puta e...

Samara pôs a mão sobre minha boca.

— Você é meu melhor amigo, apenas isso deveria te bastar para calar qualquer outra coisa que meus pais possam pensar de você.

Abracei-a forte, a consciência pesada por falar mal de sua família, pois sei quanto ela os ama, depois me despedi e tratei de limpar a sala, jogar a roupa que usava fora e fiquei até há pouco com minha irmã, ambos trancados no seu quarto.

Só saí para espairecer, para processar tudo o que aconteceu na madrugada passada, pois mais uma vez Samara agiu como um anjo e convidou minha irmã para assistir à final da Copa do Mundo com ela e depois terem uma noite de meninas, com direito a festa do pijama.

Entro na garagem do prédio, mando uma mensagem para Samara informando-a de que cheguei e que estou indo buscar minha irmã. Sinceramente eu não sei como vou fazer até encontrar outra pessoa de confiança para deixar com Kyra quando eu não estiver em casa, pois Nívea disse que nunca mais colocará os pés no nosso apartamento, depois de ter recebido uma boa quantia para que não denunciasse o que se passa dentro de nossa casa, pois entendeu que prejudicaria Kyra.

Não importa! Kyra precisa de mim, e, nem se eu precisar mudar toda minha rotina por causa dela, a terei protegida.


São Paulo, tempo atuais.


Acordo com uma dor de cabeça filha da puta, ressacado, tão zonzo que tropeço ao sair da cama, e a primeira coisa que me vem à cabeça nesta manhã (ou será nesta tarde?) é que hoje é véspera de Natal. Foda-se! Sou ateu, esses feriados religiosos não significam nada para mim.

Sigo pelo corredor em direção à cozinha, com muita sede, louco para tomar um analgésico para exterminar a dor de cabeça. Não vou tomar! Não tomo remédios para dor há anos, aprendi a conviver com as pontadas, com as ardências. A dor me tornou mais forte, resiliente, aprendi há muito que nada é capaz de me ferir mais do que eu mesmo.

A maioria dos meus ossos trazem lembranças de como superei, as marcas no meu corpo também, porém, nenhuma dessas cicatrizes é mais forte do que o vazio dentro de mim.

Encho um copo d’água até transbordar e o bebo em um só gole. A cabeça martela ainda mais por conta da bebida gelada, mas ignoro-a por completo. Não há remédio para o que sinto, não há cura para toda a raiva que carrego dentro de mim, então posso, sim, conviver com umas horas de pontadas no cérebro.

Olho para a porta fechada na área de serviço. Os cômodos dali eram a tal dependência de empregados, mas, como eu nunca tive nenhum, aproveitei-os para outros fins. Inspiro, os cheiros tão familiares chegando às minhas narinas. A raiva natural com que acordo todos os dias se aplaca; não some, apenas se recolhe, dando lugar às sensações de prazer.

Confiro as horas e xingo ao perceber que já estamos no meio da tarde. Sinceramente, não sei por que Kyra inventou essa ceia de Natal, não depois de todos esses anos. Não entendo minha irmã, sinceramente. Há muito convivo com seu gênio forte, sua determinação, mas ainda não sei quem é ela. A garota divertida da infância se tornou uma adolescente quieta e taciturna, uma jovem inteligente e ajuizada e, por fim, uma adulta completamente misteriosa. Eu a acompanhei em todas as fases de sua vida, mas ainda assim não sei quem é a verdadeira Kyra Karamanlis.

Assim que ela completou 18 anos, abandonamos a luxuosa cobertura de Nikkós e fomos morar em um cafofo velho e caindo aos pedaços. Eu estudava como um louco no meu último ano de faculdade, e, como ela passou para uma universidade pública também, tínhamos que morar próximo de uma das duas universidades. Preferi ficar próximo da dela e me fodia andando de bicicleta até a minha todos os dias.

Nessa época eu estagiava na Novak Engenharia e, com a bolsa do estágio, eu mal conseguia pagar o aluguel do quarto e sala que aluguei. Ela nunca soube, mas quem bancava nossa alimentação, transporte e outras despesas era o Kostas. Meu irmão e eu nem éramos amigos, na verdade mal nos falávamos, mas todo mês o dinheiro aparecia na minha conta, e eu sabia que vinha dele.

Formei-me e já fui efetivado na Novak. Trabalhei com o Nicholas, com quem aprendi demais e construí uma amizade forte, assim como com seu irmão Bernardo. Os tempos de bagunça, baladas, drogas e bebidas acabaram quando nos libertamos da prisão daquele apartamento e da convivência maligna de Nikkós.

Kyra estudava muito, era extremamente aplicada em tudo o que fazia, e, irritada por não conseguir conciliar seu horário de estudos com um emprego, começou a fazer doces e salgados dentro do nosso pequeno apartamento e vendê-los na faculdade.

Rio ao pensar que foi assim que nasceu a promoter de eventos, em uma cozinha de seis metros quadrados, com um forno capenga, um fogão com só duas bocas funcionando e uma geladeira que parecia um monomotor, de tanto barulho que fazia. Em pouco tempo ela estava fornecendo encomendas para festas e pequenos eventos, depois começou a fazer projetos de decoração, então, quando se formou, foi trabalhar em um grande e caríssimo bufê da cidade, auxiliando a cerimonialista com os projetos.

Hoje ela é a dona de uma empresa especializada em produções de eventos diversos, bem-sucedida, com um negócio em progressão geométrica de crescimento. Tenho muito orgulho dela, principalmente por ser a única que não ficou agarrada ao cordão umbilical familiar dentro da Karamanlis.

Agora qual a necessidade da porra de uma ceia de Natal para comemorar a expansão de seu negócio? Vou ter que ficar com um maldito sorriso no rosto, carinha de anjo, lidando com o caralho da minha gastrite me corroendo ao pensar na hipocrisia do mundo.

Respiro fundo e decido combater a ressaca e a dor de cabeça com mais bebida. Pego uma cerveja na geladeira, abro-a na beirada da pia e entro no outro ambiente, a sala, integrada ao outro cômodo, separados apenas por uma enorme bancada.

Eu mesmo projetei esse prédio, há alguns anos, ainda trabalhando na Novak. Bernardo Novak é meu vizinho de porta, e Nicholas foi o primeiro dono da cobertura duplex que toma todo o último andar, hoje habitada por um casal e uma menininha. Comprei o apartamento pensando em vir morar com minha irmã, mas qual não foi minha surpresa quando ela anunciou que só sairia do cafofo para seu próprio lugar?

Pois é, vim sozinho, ocupo apenas a suíte principal, e os outros dois quartos estão praticamente vazios. A sala foi decorada – pela própria Kyra –, bem como a cozinha, mas nunca mandei fazer os móveis da sala de jantar, pois não vejo nenhuma função para eles. Eu como sozinho no balcão da cozinha, assistindo a TV ou ouvindo música.

Resgato meu celular, seleciono uma das minhas muitas playlists, e a caixa de som já liga automaticamente, deixando o som pesado do Matanza ecoar pelos ambientes. Sorrio ao ouvir “Bom é quando faz mal”, as recordações das loucuras da faculdade, de toda a merda que eu fazia. Não tenho vontade alguma de fazer de novo, mas também não posso dizer que me arrependo. Era o meu jeito de extravasar, tresloucado, admito, mas ainda assim muito mais normal do que o que eu vivia dentro de casa.

Preparo qualquer coisa para comer, balançando a cabeça e cantando as músicas de várias bandas de rock, algumas famosas, outras nem tanto, mas que marcaram minha vida de alguma forma.

O telefone toca, e a chamada atrapalha minha diversão musical. Bufo, jogo o pano de prato sobre a pia e pego o aparelho.

— Oi, Millos — atendo meu primo.

— Boa tarde, Alexios. Animado com a reunião de hoje à noite?

— Ô, tão quanto eu estaria para fazer um exame de próstata. — Millos gargalha. — Ela convidou você também?

— E o Kostas. — Isso me surpreende, pois, até onde eu sei, não temos nenhuma convivência com ele. — Bom, liguei para dizer que irei viajar na virada do ano, por isso preciso que você não deixe de ir ao baile dos Villazzas.

Gemo ao pensar em vestir um smoking.

— Porra, Millos, não fode! Aposto que Theodoros vai, afinal Frank e ele são quase um casal! — Millos ri do meu deboche acerca da amizade entre meu irmão mais velho e o CEO da rede Villazza de hotéis. — Não tenho a mínima...

— Konstantinos confirmou presença também.

Puta que pariu!

Preciso me sentar depois dessa informação, pasmo só em imaginar Kostas com alguma puta, sentado na mesma mesa de Theodoros. Vai dar merda!

— Eu não tenho companhia — tento me justificar. — E você poderia adiar a sua viagem só por uns...

— Não, não posso, já fiz todos os arranjos, reservas em hotéis, o cronograma da viagem! Você tem que ir para evitar que os dois prejudiquem a imagem da empresa.

Reviro os olhos ao pensar na imagem da empresa. Millos é doido ao pensar que temos uma imagem a zelar. Todos nesta maldita cidade, neste meio asqueroso no qual vivemos, sabem que somos todos fodidos e que nosso pai cagou em nosso nome com a sucessão de merdas que fez.

E olha que a maioria não o conheceu de verdade, não soube o monstro que ele era, escondido por detrás de uma fachada bonita e um sorriso de conquistador barato! Um lobo em pele de cordeiro, um demônio com a face de um anjo... assim como eu.

Bufo de raiva.

— Cadê aquela sua amiga? — Franzo a testa, sem acreditar que ele está se referindo à Samara. — Vocês viviam para cima e para baixo juntos, ela te acompanhou em um dos primeiros eventos dos Villazzas e...

— A Samara mora em Madri há mais de três anos, Millos. — Decido não entrar em detalhes e contar a ele que nos afastamos por algum motivo idiota que eu não consigo lembrar. — Vou ter que ligar para alguma...

— Isso, ligue — ele me corta. — Mulher nunca foi seu problema, aposto que você tem um caderninho cheio de telefones.

— E daí? — afronto-o. — Gosto de sexo, nunca escondi isso, diferente de você, que nunca foi visto com nenhuma mulher além daquela sua amiga motoqueira. — Decido provocá-lo: — Millos, acho que está na hora de sair do armário, porra!

O filho da puta ri alto.

— Eu não teria problema algum em sair se fosse o caso. Ainda mais agora, que Dimitrios saiu, e o pappoús continuou vivo e... — Millos para.

É sempre assim quando algum assunto referente à família na Grécia vem à tona. Eu não conheço ninguém, nunca fui à Grécia, nem tenho a mínima vontade de ir. Não conheço o tal pappoús, nem primo algum além de Millos, que só conheci quando veio morar no Brasil.

Sou o Karamanlis renegado, indigno do sobrenome.

— Vou ligar para alguém e convidar a ir comigo — encerro o assunto constrangedor. — Mas não garanto atuar de mediador como você.

— Você, mediador? — Millos se surpreende. — Alexios, se eu não tivesse interferido, você teria criado uma situação com Theodoros na festa de final de ano da Karamanlis. Eu só quero que você vá com alguém e iniba um pouco aqueles dois.

Bufo e concordo.

— Eu vou.

— Obrigado. — Estou prestes a desligar, quando ele me chama de novo: — Ah, Alexios, não encha a cara, senão você vai falar merda para o Theo, e o Kostas vai se aproveitar disso.

— Vai se foder, Millos! Eu já vou, porra, não diga o que tenho que fazer.

Desligo irritado, perco a fome e a vontade de terminar o que estava preparando.

Mesmo puto, preciso admitir, Millos tem razão sobre eu perder a cabeça com Theodoros, principalmente quando bebo. Eu não odeio meu irmão mais velho como sei que Kostas o faz, apenas ele não significa mais nada para mim.

Convivo bem com ele, pelo menos no sentido profissional, mas não quero nenhum tipo de ligação mais pessoal. Ele perdeu o timing quando, depois de toda a merda que ajudou a fazer, nunca mais quis saber de nós. Era como se nem existíssemos! Ele excluiu Nikkós de sua vida, mas acabou nos descartando junto. Nunca se preocupou em saber de nenhum de seus irmãos, muito menos de sua adorada Kyra, a mais vulnerável de todos nós.

Então, sim, eu perco a cabeça com ele, principalmente com seu jeito esnobe, intocável, como se somente ele importasse e mais ninguém. E foi por isso que nos estranhamos na festa de final de ano da Karamanlis, porque, simplesmente, este ano a festa não foi Theocrática1.

Millos e eu nos reunimos com alguns gerentes e coordenadores para entender o que os funcionários da Karamanlis gostariam de ter em uma festa de encerramento do ano. Depois, contratamos todos os serviços – sem ser da Kyra, pois neste ano ela se livrou de nós na cara dura – e fizemos a festa focada nos funcionários.

Aparentemente, isso chocou e desagradou ao CEO com síndrome de deus, e sua cara fechada e seu olhar de desprezo não ficaram nada disfarçados.

— Ei, irmãozinho! — Eu o parei, enquanto andava como um deus do Olimpo visitando terráqueos. — Aproveitando a festa?

— Espero que não tenha vindo de moto! — o filho da puta tentou me repreender como se estivesse preocupado com minha segurança, e isso, juntamente a toda cerveja que eu já tinha tomado, irritou-me.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já muito bêbado para me conter. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos2!

Theodoros franziu o cenho com meu deboche, comparando seu nome à palavra deus em grego. Estava prestes a dizer algo, mas se conteve quando de repente fui abraçado pelos ombros. Nem precisei olhar para saber que nosso interventor havia chegado.

— Alex, que festança, não? — Millos comentou. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — Theodoros pareceu perplexo. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Gargalhei ao confirmar que ele era mesmo um grande egocêntrico, incapaz de perceber a diferença da festa deste ano à do ano passado por estar focado nos detalhes e não no que realmente importava: as pessoas.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — respondi como se estivesse sóbrio, mesmo não estando. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos me cortou.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — Theodoros perguntou ao Millos, apontando o dedo em minha direção como o grande babaca que sempre foi.

— Fui! — respondi. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Tentei demonstrar com gestos o que dizia, abri os braços de repente, e meu punho bateu no peito do Millos, que chegou para trás. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — olho para um grupo dançando e vários outros conversando, comendo e se divertindo — você está vendo alguém ir?

Ele ficou um tempo olhando em volta como se notasse, pela primeira vez desde que chegou, que realmente os funcionários estavam adorando a descontração deste ano.

Eu só não esperava que ele tentasse ser condescendente comigo:

— Bom trabalho! O pessoal parece realmente estar gostando!

Só faltou dar umas batidinhas em minha cabeça como se eu fosse a porra do seu cãozinho de estimação. Meu sangue ferveu, travei os punhos e não me contive:

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos interrompeu-me e me abraçou novamente pelos ombros. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Mal acabou de falar, seguiu para o outro lado, levando-me consigo.

— Porra, moleque, não tem como ser menos reativo não? A festa está um sucesso graças ao seu feeling, ao modo como você conhece e percebe as pessoas, para que estragar isso batendo boca ou — ele me encarou —, como percebi que queria fazer, enchendo a cara do Theo de porrada? Sai dessa!

Concordei com meu primo e respirei fundo. Depois disso tomei quase um litro de café amargo, ele me pôs em um Uber, e eu vim para casa, onde continuei a beber, desmaiei no sofá e, no outro dia, fui correr ainda um tanto trôpego, sendo desclassificado no teste do bafômetro.

Perdi minha última corrida do ano, grande fracassado que sou!

Volto a ligar minha playlist, e a música que toca é exatamente a que eu preciso para sair da fossa dessas lembranças todas:

— Eu não tenho nada pra dizer. Também não tenho mais o que fazer. Só para garantir esse refrão, eu vou enfiar um palavrão: cu!3


Entro no showroom da A??p?4 – a empresa de eventos de Kyra – e já admiro o trabalho dela com a decoração do local. A enorme mesa com vários lugares ocupa o centro do enorme salão, com castiçais, flores, louças e talheres milimetricamente colocados, junto a taças de cristal e guardanapos de linho.

No restante do salão, há mesas altas para apoiar drinques, sofás e poltronas brancas, com almofadas e outras coisas de decoração seguindo a paleta de cores da festa: verde, vermelho e dourado.

Clichê! Mas é Natal, tem como não ser?

Dou de ombros e vejo Kyra de costas, junto à belíssima morena que trabalha com ela desde que abriu a empresa e as duas chefes de cozinha que conheceu ainda quando trabalhava no outro bufê e as roubou na cara dura quando resolveu estabelecer seu próprio negócio. Uma delas, acho que é a doceira – Mari, como todos a chamam – me vê e logo cutuca minha irmã.

— Ah, Alex! — Kyra abre um enorme sorriso, entrega para a morena – como é mesmo o nome dela? – os penduricalhos de Natal com os quais enfeitava o enorme pinheiro e vem até mim. — Que bom que chegou, tenho uma coisa para você!

Ah, puta que pariu! Ela me comprou um presente? Fico imediatamente sem jeito, pois não comprei absolutamente nada para ela. Eu nem imaginava que iríamos trocar lembranças, nunca fizemos isso!

Alívio toma conta de mim quando ela vem com uma caixinha pequena e claramente de doces.

— Quando experimentei, lembrei logo de você. — Ela tira um doce dourado de dentro da caixa. — Prove!

Franzo o cenho e abro a boca. Mastigo devagar, emitindo sons de prazer, adorando o contraste de texturas e o sabor doce e... picante. Abro um sorriso.

— Chocolate com pimenta! — Termino de comer. — Perfeição!

— Bombom Helênico. — Faço careta para o nome, não combina em nada. — Eu sei, é péssimo, mas as meninas quiseram fazer uma homenagem para a Helena, então... — Dá de ombros.

Helena!, minha mente grita ao lembrar o nome da morena gostosa, mas que nunca sorri e mal fala comigo quando apareço aqui.

— Hum... gostosa! — Começo a rir quando noto que falei alto. Kyra me olha séria. — O quê?

— Nem pense, ela está comprometida!

Ergo as mãos em minha defesa.

— Não falei nada!

— Não precisa! Sua fama de embusteiro conquistador te precede! — Faço careta, e ela ri. — Estive com saudades de você.

— Então por que não foi me ver ou me ligou? — pergunto sem enrolação.

— Não sei.

Respiro fundo. Ela se fecha, é sempre assim e não só comigo. Ela se empolga, vibra, deixa as pessoas se aproximarem, mas nunca demais. Quando chega a seu limite, simplesmente retrocede com a mesma rapidez e naturalidade com que atraiu alguém. É por isso que suas amizades ou mesmo seus relacionamentos amorosos nunca duraram muito.

Porém o que faço eu aqui, julgando-a?

— Alexios Karamanlis! — Viro-me ao ouvir a voz de Millos.

Meu primo – filho de uma égua! – carrega uma enorme caixa de presente toda embrulhada e com laços. Kyra abre um enorme sorriso e vai saltitante até ele, abraça-o pelo pescoço – coisa que não faz nem comigo – e agradece o regalo.

— É para decorar sua sala de empresária fodona — ele brinca com ela, e Kyra gargalha ao tirar uma estátua toda colorida de um unicórnio. — Eu me lembrei daquela sua fantasia no dia das bruxas...

Kyra para de boca aberta.

— Millos, eu tinha quatro anos! — ela recorda e, de repente, parece lembrar também que, naquela época, tudo parecia realmente possível, mágico e feliz.

Meu primo a abraça forte e fala algo em seu ouvido, baixinho. Kyra assente, e eu fico paralisado vendo a troca de carinho entre eles. Parece normal, não é? Mas, creiam-me, não é. Millos evita qualquer contato físico com outras pessoas. Ao cumprimentá-las, ele prefere baixar a cabeça do que dar um aperto de mãos; o máximo que o vi fazer até hoje foi tocar no ombro de alguém, mas somente quando julga necessário. Até comigo, o máximo que ele fez até hoje foi me abraçar para evitar um embate entre mim e Theo. Então assistir aos dois se abraçando é realmente algo inédito.

— Feliz Natal, pesménos ángelos5.

Mostro o dedo do meio para ele.

— Ah, pesquisou! — Ri debochado, mas logo para ao aceitar o chope que Kyra nos oferece. — É um absurdo você não saber nada da nossa língua.

— Não tenho interesse algum por nada que venha de lá — justifico e bebo. — Kyra também não sabe!

— Quem disse? — Ela começa a rir. — Anóito6.

— Quando foi que você se interessou por essa porra? — questiono-lhe surpreso.

— Você leu o nome da empresa dela na fachada? — é Millos quem retorna minha pergunta. — Está em grego!

Millos e Kyra engatam uma conversa, enquanto eu ainda estou paralisado com essa nova informação. Não é exagero, mas eu pensei que ela, assim como eu, desprezasse qualquer coisa que tenha relação com Nikkós. No entanto, ao contrário de mim, ela sempre foi aceita por todos os Karamanlis como parte da família, então é natural que tenha algum apreço por eles.

— Ah, mais convidados estão chegando!

Kyra deixa-nos a sós e vai até um grupo que não conheço.

— Ela parece feliz — comento com Millos.

Meu primo dá de ombros.

— Há pessoas com o dom de demonstrar apenas o que querem que vejam. — Bebe o resto de seu chope e me encara. — Já resolveu o assunto do baile dos Villazzas?

— Ah, Millos, não fode mais a minha noite! — Vejo duas lindas mulheres adentrarem ao salão e abro um sorriso. — Pode ser que ela esteja começando a melhorar.

Millos ergue uma de suas sobrancelhas, e eu o deixo sozinho, caminhando em direção ao meu mais novo alvo da noite, que, neste exato momento, cumprimenta minha irmã.

— Kyra, eu gostaria de... — finjo interromper-me quando as desconhecidas me olham. — Desculpem-me. — Kyra rola os olhos, mas suas convidadas não desviam o olhar do meu rosto. — Millos estava falando do chope, e nós fizemos uma pequena aposta, mas posso ver isso depois, atenda seus convidados. — Abro novamente meu melhor sorriso na direção delas.

— Valéria e Priscila, esse é meu irmão, Alexios Karamanlis — Kyra faz nossa apresentação, e eu sei que depois irá jogar na minha cara que eu estou lhe devendo por isso.

— Um prazer, Valéria! — Aproximo-me para cumprimentá-la e logo depois saúdo a outra: — Prazer, Priscila.

— O prazer é meu, Alexios — Priscila responde, sorrindo, e vejo a mão de Valéria tocar suas costas num gesto um tanto territorialista. Perfeito! Trocamos beijos no rosto em cumprimento. — Eu já te vi em algumas revistas especializadas em engenharia e arquitetura, principalmente quando o conselho dessas classes era o mesmo.

— Arquiteta? — tento adivinhar, mas ela nega e aponta para sua amiga.

— Valéria é, eu sou designer industrial. — Faço cara de surpresa, mesmo sem achar nada de mais. — É, eu sei, a maioria das pessoas que me conhece acha que sou modelo ou estilista, mas você quase acertou. — Seu sorriso é claramente de quem se sente lisonjeada. — Trabalho conceitos para grandes marcas.

— Incrível! — Olho-a de cima a baixo, e Kyra bufa. — Você também parece incrível, Valéria. — Sorrio, e ela relaxa.

— Alexios, chegaram outros convidados, você poderia fazer companhia a elas? — Ela pega na mão das amigas. — Vocês não se importam, não é?

— Claro que não, você é a anfitriã da noite! — Valéria diz, e sinto seu olhar brilhar em minha direção. — Nós ficaremos em boa companhia com seu irmão, afinal, é o anjo rebelde dos Karamanlis.

Puta que pariu!

 

CONTINUA

Com um passado nebuloso, marcado por traumas, rejeições e violência, há anos Alexios Karamanlis busca entender a si mesmo e, para isso, começa uma caçada sem fim pelo destino de sua mãe biológica, junto a sua melhor amiga, Samara Schneider.
Amigos desde tenra idade, Alexios sempre tentou não a notar como mulher por temer perder sua amizade e apoio, e Samara sempre sonhou com o dia em que o garoto problemático e rebelde se apaixonaria por ela.
Juntos em busca de respostas sobre a verdadeira história do nascimento de Alexios, os dois mergulharão no sujo passado do pai dele, Nikkós Karamanlis, revelarão segredos muito bem guardados e, por fim, descobrirão que não há como reprimir mais a paixão e o desejo que sentem um pelo outro.

 

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O país todo está enlouquecido!, penso ao passar por mais uma blitz policial sem nenhum problema, acelerando a moto ao máximo, capacete preto espelhado impossibilitando qualquer um de ver que quem pilota essa máquina é um garoto, não um homem.

Eu não sou um homem! Não sou! Se fosse, não estaria aqui neste momento, mas sim na delegacia, gritando por aí, fazendo qualquer coisa que não apenas dar uma de burguesinho filho da puta endinheirado, acelerando uma moto que custa o mesmo que um apartamento popular, mesmo sem ter habilitação para isso, apenas para esquecer os problemas.

Eu sou um merda! E sou isso por causa “dele”!

Caralho! A Paulista está fechada por conta das comemorações do pentacampeonato. É, o Brasil conseguiu mais uma estrela no futebol, o país está eufórico como se não houvesse crianças na rua, assassinos à solta, a corrupção impedindo todo o sistema público de funcionar. Foda-se, somos penta!

Faço uma manobra rápida com a moto, deixando marcas dos grossos pneus no asfalto e sigo para outra direção, à procura de mais uma avenida extensa e reta para que eu possa extravasar todo o ódio dentro de mim indo ao limite da velocidade.

Paro a moto de repente e quase sou arremessado para frente. Meus músculos começam a tremer, meus olhos se enchem de lágrimas, sinto frio, meus dentes batem um no outro. Engulo em seco. Não vou chorar! Não choro mais, não há muitos anos.

Cada soco, cada pontapé, cada xingamento e mentira secaram minhas lágrimas. Elas até se instalam em meus olhos, porém não caem. Sufocam-me, quebram meu coração, desequilibram-me.

Caio no chão em um baque só, gemo de dor por causa do peso da moto sobre minha perna esquerda, mas não choro. Respiro fundo para controlar a dor, parar de tremer, diminuir os batimentos do meu coração. Estou acostumado a essa rotina de tentar não sentir dor, de tentar não sentir mais nada.

Levanto-me calmamente, sinto calafrios, manco, mas volto a subir na moto, acelerando-a, fazendo o motor girar e um ruído alto e potente se misturar aos sons das comemorações pelas ruas da cidade. Respiro fundo várias vezes e, quando não sinto mais nada, tiro o pé do chão e deixo a máquina me levar.

Eu queria poder fugir para o mais longe possível desta cidade, mas não dá, infelizmente não posso ir a lugar algum, estou preso, revivendo o mesmo inferno todos os dias, aceitando meu destino com resignação até poder livrar a mim e a Kyra do demônio que nos formou.

Eu poderia pedir ajuda ao Tim, mas sei que ele tem a própria merda para lidar e que conseguiu sair há pouco do inferno. Sei que precisava ir. Meu irmão estava por um fio, assim como eu, e, se ficasse lá conosco, seria para morrer ou matar, e, como não é da sua natureza matar, iria perecer aos poucos, como Nikkós gostaria que acontecesse.

Então ele foi, e eu fiquei incumbido de uma missão que nós aceitamos sem nem mesmo combinar nada, apenas porque sabíamos do que nosso pai era capaz e decidimos que não o deixaríamos chegar a ela.

Soluço na moto.

Eu falhei!

Eu falhei!

Eu falhei?!

Eu não sei! Simplesmente não sei o que aconteceu ontem! Acelero a moto, pegando uma rodovia, ainda tentando processar todos os acontecimentos e os flashes de memória que tenho.

Cometi um erro na noite passada, fui imprudente e agora preciso lidar com tudo o que aconteceu, mesmo sem entender direito o que houve. Enquanto piloto a moto, tento repassar cada momento de ontem, mesmo sabendo que já fiz isso várias e várias vezes sem nenhum êxito.

Nikkós finalmente viajou a trabalho – ou o que quer que ele tenha ido fazer –, e eu consegui relaxar um pouco. Mantenho constante vigilância sobre minha irmã, uma adolescente de 14 anos de idade, e evito ao máximo deixá-la sozinha com nosso pai. Não há muito que eu possa fazer para protegê-la das loucuras dele, mas o que está ao meu alcance, faço.

Por conta disso, desde que ingressei na universidade – no começo desse ano –, desdobro-me ao máximo para curtir com meus amigos e proteger a Kyra. A babá anterior era a mesma desde quando minha irmã e eu nascemos, totalmente devota ao nosso pai, então, assim que Konstantinos tomou posse de sua herança, demos um jeito de nos livrar dela, e, assim que outra foi contratada, meu irmão se encarregou de pagar uns extras para ela manter os olhos em Kyra.

Nikkós sempre foi um filho da puta covarde, ele nunca iria deixar um serviçal ver o que ele é capaz de fazer aos filhos, por isso tinha seus próprios lugares para executar suas torturas em Kostas e em mim.

Noite passada, uma galera mais velha da universidade fechou uma boate e me convidou para festejar com eles. Estávamos entrando de férias e queríamos muito desopilar o fígado, relaxar, curtir e esquecer todas as pressões dos estudos.

Como Nikkós não estava em casa, e a babá estava por lá com Kyra, por que não ir? Foi esse meu erro!, penso ao relembrar.

 

— O grande Alexios Karamanlis! — Alberto Bragança me saúda assim que entro na boate. — Achei que você não vinha mais, mano!

Ele me entrega uma caneca de 500ml de chope e um cartão para o restante do consumo, e logo vejo os outros caras em uma mesa no fundo do salão. A música alta, tocando um “batestaca” qualquer, não chama minha atenção. Sigo, então, na direção do pessoal e, mal chego lá, peço mais uma rodada de chope para todos.

Meu pai é um grande filho da puta, torturador desgraçado, mas, para manter as aparências, deixa-nos usar cartão sem limites e nos entrega uma mesada gorda. Bebo, sentindo o gosto do chope se tornar mais amargo que o normal, consciente de que essa porra toda é dele, comprada com o seu maldito dinheiro.

— Jefinho está na área! — alguém grita comemorando. — Vamos começar a diversão! Quem vai?

Sou um dos primeiros a me levantar, viro o resto da bebida e sigo com mais cinco amigos para o banheiro, atrás do traficante oficial da turma. Vejo cada um pegando “no bufê do Jeff” sua viagem preferida e pego um pino de “coca” para começar bem a noite.

“Foda-se, Nikkós Karamanlis!”

Cheiro.

“Foda-se, Sabrina Karamanlis!”

Aspiro mais um pouco.

“Foda-se, Theo Karamanlis!”

Faço outra carreira com o restante do pó.

“Foda-se, Geórgios Karamanlis!”

Seguro a narina fechada, mantendo tudo dentro de mim, sentindo já meu corpo girar, o cérebro acelerar e todas as sensações de abandono e dor se esvaírem como num passe de mágica. Só existe prazer, nenhuma dor, tudo é maravilhoso!

Compro mais três pinos de cocaína e alguns comprimidos de êxtase. Essa noite não quero dormir, quero aproveitar, dançar, zoar, pegar umas universitárias e esquecer quem sou.

Começo a rir de mim mesmo, da piada que acabei de pensar. Esquecer quem sou só seria possível se eu soubesse quem sou.

“Eu não sou ninguém!”

Meu Nokia vibra com a chegada de uma mensagem, confiro ser de Samara, minha única e melhor amiga, e volto a colocá-lo no bolso ao perceber a aproximação de uma gostosa do quarto ano.

— Eu não acredito que você é menor de idade, Alex! — A garota, com luzes nos cabelos e vestido com apenas uma alça, passa a mão no meu peito. — Você não parece ser um garoto, mesmo com esse rostinho angelical.

Respiro fundo para não perder a paciência, pois, se há algo que me irrita muito, é quando dizem que eu pareço um anjo. Aproximo-me dela e a puxo pela cintura.

— Posso provar que não sou um anjo! — Pego sua mão e a levo até a frente da minha calça. A garota arregala os olhos. — Os demônios com cara de anjo são os piores, gata!

— Uau! — Ela lambe meu pescoço. — O que você tomou?

— Coca, mas tenho “bala” no meu bolso. — Ela ronrona, e eu me animo. — Vem comigo!

Levo-a para uma área nos fundos da boate, uma espécie de depósito que se encontra aberto, uma vez que a casa está funcionando apenas para um bando de playboys endinheirados que preferem não se misturar com a ralé e, assim, fazer suas merdas longe dos olhos curiosos da plebe.

Claro! Afinal de contas, aqui estão reunidos os filhos dos maiores empresários, advogados, médicos, juízes e a porra toda elitizada desta cidade decadente. Bando de fodidos! A maioria desconta, como eu, a falta de afeto e atenção em casa gastando dinheiro, promovendo rachas pelas ruas, consumindo todo tipo de droga tentando preencher o buraco negro instalado nas nossas almas.

“Foda-se!”

Seguro a garota contra a parede fria do depósito e, sem nem mesmo perguntar seu nome, ataco sua boca com fúria, mordendo seus lábios e sugando sua língua. Ela mexe em minha calça, abre-a e retira meu pau para um tratamento especial em suas mãos macias.

— Novinho e pauzudo... — ela geme. — Cadê a balinha para deixar tudo mais divertido?

Sorrio e nego.

— Tem que merecer.

Ela sorri e, sem que eu precise sequer lhe indicar o que quero, ajoelha-se no chão grosso e toma meu pau em sua boca quente e esfomeada. Gemo, gostando da carícia, seguro-a pelos cabelos e a forço a engolir o máximo que consegue.

Tenho quase 17 anos, mas aposto com quem quer que seja que nenhum desses caras daqui tem a metade da experiência sexual que eu. E não, não “tiro onda” com isso, afinal, quem é filho de Nikkós Karamanlis não tem muita escolha sobre quando vai começar a trepar, ele simplesmente impõe, e comigo isso aconteceu quando eu tinha 11 anos de idade.

Afasto o pensamento pestilento sobre meu pai e curto a chupada gostosa que a garota ajoelhada me dá. Ela lambe, chupa, suga com força, arranha com os dentes – coisa que me excita “pra caralho” – e segura minhas bolas com vontade. Percebo que ela quer fazer o serviço completo com a boca, mas definitivamente ela não me conhece.

Ergo-a de uma vez só e a ponho de cara contra a parede. Procuro a camisinha no bolso da calça – uma coisa que se aprende quando se começa a vida sexual trepando com putas é que preservativos nunca podem faltar –, plastifico meu pau e levanto o vestido dela.

Bunda gostosa, magra, mas gostosa “pra cacete” com uma calcinha de cor forte – não sei se vermelha ou rosa; não divago muito sobre a cor, mesmo porque é irrelevante –, afasto a peça e esfrego os dedos em sua boceta depilada.

Ela ofega, rebola gostoso na minha mão. Vou penetrando-a devagar com os dedos, recolhendo um pouco da umidade de dentro de sua vagina para usá-la exatamente no ponto onde quero. Massageio seu clitóris até que ela se contraia em gozo e volto a molhar seu rabo com a lubrificação que solta.

Ela fica tensa quando encaixo a cabeça do meu pau em seu ânus apertado.

— Alex...

— Psiu... — falo devagarzinho em seu ouvido, lambendo sua orelha enquanto vou me afundando no canal estreito, sentindo meu corpo todo reagir à pressão de um local nunca ou pouco explorado. — Eu disse a você. — Ela arfa quando me encaixo por completo em seu rabo. — Os demônios com cara de anjo são os piores!

Meto com força e continuo estimulando seu clitóris, beijando e mordendo seu pescoço, até que ela explode em um orgasmo foda, e eu me deixo ir na camisinha, ainda sentindo as contrações do seu corpo. Quando ela se vira para me beijar, estico minha língua com sua recompensa na ponta. A garota sorri e chupa a drágea com vontade, enquanto eu engulo a outra.

A noite só começou!

 

Paro a moto em frente ao prédio onde Konstantinos mora. Fico parado olhando para o alto, invejando a liberdade de meu irmão, a coragem que teve ao se libertar assim que pôde do nosso pai. Ele estuda no Largo de São Francisco, vai ser um advogado e, mesmo que tenha tentado disfarçar, ficou contente quando contei que havia passado em todos os vestibulares para os quais havia prestado.

— Vai para algum lugar longe da cidade? — Kostas não escondeu sua preocupação.

— Não, vou ficar aqui — respondi com sinceridade, mesmo que minha vontade fosse ir para o mais longe possível deste inferno de lugar. — Vou continuar no apartamento de Nikkós, pelo menos até a Kyra fazer 18 anos.

Ele respirou fundo, e nossa conversa por telefone acabou aí. Nós não precisávamos externar nossa preocupação um para o outro, sabíamos do que nosso pai era capaz e do perigo que Kyra corria estando sob o mesmo teto que ele. Kostas saiu de casa, pois nunca soube lidar com Nikkós, ao contrário de mim.

O grego maluco tentou fazer comigo o mesmo que fazia com o meu irmão, porém nunca pensou que não me afetaria, então mudou de tática. O desgraçado tentava me acertar no único ponto que realmente me doía, mas ainda assim eu resistia em demonstrar alguma dor, então ele me fazia sentir na carne.

Esfrego a mão no ombro esquerdo, quebrado há dois anos no que todos acreditaram ser um acidente enquanto eu andava de skate, sem saber que quase tive o braço arrancado pelo homem louco, bêbado e drogado a quem todos respeitavam como um exemplo de pai, criando seus filhos sozinho depois de ter sido abandonado pela mulher.

Farsante dissimulado! Nunca amou ninguém, nunca se preocupou ou se dedicou a ninguém, nem a si mesmo. Eu só não entendo o motivo pelo qual ele não deixou que a puta que me gerou abortasse ou mesmo por que não me deixou com ela.

Eu sou um covarde! Rio, ligando a moto de novo.

Meu maior sonho é vê-lo morto, desejei e planejei isso tantas vezes, de tantas maneiras diferentes, que sei todos os passos de cor. No entanto, nunca tive coragem... Respiro fundo.

Pelo menos até essa madrugada!

Não faço ideia de como cheguei a casa, estava doidão, alto demais, cheirava a cerveja, maconha, sexo e perfumes variados. Não sei nem com quantas garotas trepei à noite, sei que algumas só mamaram meu pau, mas, com outras, a coisa foi mais louca.

Não consigo me lembrar de muita coisa. Só tenho sensações ruins de quando cheguei ao apartamento e percebi que Nikkós havia voltado. Nas memórias, há gritos, choro, mas nenhuma imagem. Tudo o que tenho nítido na cabeça foi o que aconteceu depois que acordei.

Estava deitado na sala principal do apartamento, minhas roupas sujas de sangue, rasgadas, um hematoma no olho e um corte no canto da boca já me incomodando. Não sabia nem onde estava, só sentia dor, confusão, e vomitei ali mesmo, no tapete da sala.

Ao meu lado vi uma faca suja de sangue. Gelei, sem saber o que tinha feito e de quem era o líquido viscoso e vermelho que cobria toda a lâmina. Foi nesse momento que saí do torpor em que me encontrava, peguei o objeto e comecei a correr pela enorme cobertura, entrando em todos os cômodos.

— Kyra! — gritava, mesmo com a cabeça explodindo. — Kyra!

Minha irmã não estava em lugar algum, nem mesmo a Nívea, a senhora que cuidava dela, eu pude encontrar. Meu desespero só aumentou. Liguei para o telefone dela, mas estava dando na caixa de mensagens.

Comecei a soluçar, mesmo não derramando uma só lágrima, e entrei no local proibido da casa, o santuário satânico de Nikkós Karamanlis: seu quarto.

Estanquei quando vi seu corpo enorme e nu jogado sobre a cama king size. Notei os cortes em seus braços, bem como o movimento de respiração, seguido dos roncos altos. O filho da puta não estava morto! Apertei a faca em minha mão com mais força, pensando que esse seria o momento certo para livrar a todos de sua existência.

Andei até ele devagar, os nós dos dedos brancos de tão firme que segurava a faca. Medi suas costas, imaginando que seria muito fácil perfurar seu pulmão com uma só estocada no lugar certo e que ele morreria afogado em seu próprio sangue lentamente, em uma morte digna dele.

Ergui a faca, fechei os olhos, parei de tremer e me lembrei de todos os anos de abuso e de tortura, do que ele fazia ao Kostas, do que fazia comigo e do que poderia fazer a Kyra.

Respirei fundo, concentrei a força e desci a faca, mas parei a milímetros de sua pele quando ouvi soar a campainha. Joguei a arma para longe e saí correndo daquele cômodo pestilento, descendo as escadas disparado para atender a porta, torcendo para que fossem Nívea e Kyra.

— Alexios? — a voz de Samara me fez prender o fôlego. — Alexios, você está aí?

Abri a porta sem pensar duas vezes e desmontei ao ver minha irmã ao lado da minha melhor amiga. Kyra, minha pequena princesa, linda como uma pintura, seus olhos enormes e verdes cheios de lágrimas e os lábios trêmulos.

— Ainda bem! — exclamei aliviado, puxando-a para meus braços. — Ainda bem!

— Alexios, você precisa de ajuda? — Samara questionou, olhando tudo em volta. — Ontem à noite a senhora Nívea pediu que Kyra ficasse comigo e...

Segurei o rosto de minha irmã, desgostoso por saber que ela mal fala por conta do monstro que temos em casa, sequei as lágrimas que escorriam por seu rosto miúdo e assustado e perguntei:

— O que houve?

Ela deu de ombros.

— Ele voltou mais cedo, estava bêbado, mandou Nívea embora. — Sinto um arrepio de frio percorrer minha coluna. — Os dois discutiram. — Ela soluçou. — Ele bateu nela, ela desmaiou...

— E você, onde estava?

Kyra desviou os olhos, e eu senti como se um soco acertasse a boca do meu estômago. Olhei para Samara em busca de uma resposta, mas minha amiga apenas deu de ombros, indicando que minha irmã também não falou com ela.

— Quando ela acordou, me levou para o apartamento da Malinha, e aí eu fiquei lá. — Kyra olhou em direção ao corredor. — Ele ainda está...

Assenti.

— Vá para o seu quarto, tranque a porta, tome um banho; daqui a pouco vou me encontrar com você. — Ela tentou sorrir em agradecimento para Samara, mas depois desistiu, seguindo diretamente para seu quarto. — Samara...

— Vocês precisam denunciar isso! — Ela tocou meu rosto. — Você é só um garoto, Alexios, não pode proteger vocês dois.

— Posso! — afirmei cheio de raiva. — Você sabe muito bem que, se uma denúncia for feita, ela será tirada de nós. Eu ficarei um ano em algum abrigo, mas e ela?

— O Tim não pode...

Neguei.

— Não acho que o deixariam cuidando de dois adolescentes, ele só tem 20 anos! — Fechei os olhos, cansado, com medo, sem saída e senti quando ela me abraçou apertado.

— Onde você esteve ontem à noite?

— Fui me divertir...

— Não. — Seus olhos lindíssimos encararam os meus. — Você não se diverte, Alexios, você tenta se matar. — Passou a mão pelo meu rosto. — Quanto usou?

Dei de ombros, não querendo discutir isso com ela. Nunca termina bem!

— Isso não ajuda ninguém. Nem a você, muito menos à sua irmã. — Tentou sorrir para disfarçar o sermão, seus dentes cheios de plaquinhas do aparelho ortodôntico, o rosto redondo de menina fazendo covinhas, coisa que ela sempre teve e sempre achei lindo. — Eu sei que só tenho 15 anos, mas...

— Eu agradeço que você tenha feito companhia a Kyra, mas agora preciso resolver tudo aqui. — Apontei para a sala. — Ficou tudo bem com seus pais?

— Sim, não acharam nada estranho que Kyra dormisse lá em casa, afinal, somos amigas.

Ri amargamente.

— Essa amizade é aceitável para os Schneiders, não é? — Samara ficou vermelha. — Kyra é uma boa menina, não um porra-louca como eu, filho de uma puta e...

Samara pôs a mão sobre minha boca.

— Você é meu melhor amigo, apenas isso deveria te bastar para calar qualquer outra coisa que meus pais possam pensar de você.

Abracei-a forte, a consciência pesada por falar mal de sua família, pois sei quanto ela os ama, depois me despedi e tratei de limpar a sala, jogar a roupa que usava fora e fiquei até há pouco com minha irmã, ambos trancados no seu quarto.

Só saí para espairecer, para processar tudo o que aconteceu na madrugada passada, pois mais uma vez Samara agiu como um anjo e convidou minha irmã para assistir à final da Copa do Mundo com ela e depois terem uma noite de meninas, com direito a festa do pijama.

Entro na garagem do prédio, mando uma mensagem para Samara informando-a de que cheguei e que estou indo buscar minha irmã. Sinceramente eu não sei como vou fazer até encontrar outra pessoa de confiança para deixar com Kyra quando eu não estiver em casa, pois Nívea disse que nunca mais colocará os pés no nosso apartamento, depois de ter recebido uma boa quantia para que não denunciasse o que se passa dentro de nossa casa, pois entendeu que prejudicaria Kyra.

Não importa! Kyra precisa de mim, e, nem se eu precisar mudar toda minha rotina por causa dela, a terei protegida.


São Paulo, tempo atuais.


Acordo com uma dor de cabeça filha da puta, ressacado, tão zonzo que tropeço ao sair da cama, e a primeira coisa que me vem à cabeça nesta manhã (ou será nesta tarde?) é que hoje é véspera de Natal. Foda-se! Sou ateu, esses feriados religiosos não significam nada para mim.

Sigo pelo corredor em direção à cozinha, com muita sede, louco para tomar um analgésico para exterminar a dor de cabeça. Não vou tomar! Não tomo remédios para dor há anos, aprendi a conviver com as pontadas, com as ardências. A dor me tornou mais forte, resiliente, aprendi há muito que nada é capaz de me ferir mais do que eu mesmo.

A maioria dos meus ossos trazem lembranças de como superei, as marcas no meu corpo também, porém, nenhuma dessas cicatrizes é mais forte do que o vazio dentro de mim.

Encho um copo d’água até transbordar e o bebo em um só gole. A cabeça martela ainda mais por conta da bebida gelada, mas ignoro-a por completo. Não há remédio para o que sinto, não há cura para toda a raiva que carrego dentro de mim, então posso, sim, conviver com umas horas de pontadas no cérebro.

Olho para a porta fechada na área de serviço. Os cômodos dali eram a tal dependência de empregados, mas, como eu nunca tive nenhum, aproveitei-os para outros fins. Inspiro, os cheiros tão familiares chegando às minhas narinas. A raiva natural com que acordo todos os dias se aplaca; não some, apenas se recolhe, dando lugar às sensações de prazer.

Confiro as horas e xingo ao perceber que já estamos no meio da tarde. Sinceramente, não sei por que Kyra inventou essa ceia de Natal, não depois de todos esses anos. Não entendo minha irmã, sinceramente. Há muito convivo com seu gênio forte, sua determinação, mas ainda não sei quem é ela. A garota divertida da infância se tornou uma adolescente quieta e taciturna, uma jovem inteligente e ajuizada e, por fim, uma adulta completamente misteriosa. Eu a acompanhei em todas as fases de sua vida, mas ainda assim não sei quem é a verdadeira Kyra Karamanlis.

Assim que ela completou 18 anos, abandonamos a luxuosa cobertura de Nikkós e fomos morar em um cafofo velho e caindo aos pedaços. Eu estudava como um louco no meu último ano de faculdade, e, como ela passou para uma universidade pública também, tínhamos que morar próximo de uma das duas universidades. Preferi ficar próximo da dela e me fodia andando de bicicleta até a minha todos os dias.

Nessa época eu estagiava na Novak Engenharia e, com a bolsa do estágio, eu mal conseguia pagar o aluguel do quarto e sala que aluguei. Ela nunca soube, mas quem bancava nossa alimentação, transporte e outras despesas era o Kostas. Meu irmão e eu nem éramos amigos, na verdade mal nos falávamos, mas todo mês o dinheiro aparecia na minha conta, e eu sabia que vinha dele.

Formei-me e já fui efetivado na Novak. Trabalhei com o Nicholas, com quem aprendi demais e construí uma amizade forte, assim como com seu irmão Bernardo. Os tempos de bagunça, baladas, drogas e bebidas acabaram quando nos libertamos da prisão daquele apartamento e da convivência maligna de Nikkós.

Kyra estudava muito, era extremamente aplicada em tudo o que fazia, e, irritada por não conseguir conciliar seu horário de estudos com um emprego, começou a fazer doces e salgados dentro do nosso pequeno apartamento e vendê-los na faculdade.

Rio ao pensar que foi assim que nasceu a promoter de eventos, em uma cozinha de seis metros quadrados, com um forno capenga, um fogão com só duas bocas funcionando e uma geladeira que parecia um monomotor, de tanto barulho que fazia. Em pouco tempo ela estava fornecendo encomendas para festas e pequenos eventos, depois começou a fazer projetos de decoração, então, quando se formou, foi trabalhar em um grande e caríssimo bufê da cidade, auxiliando a cerimonialista com os projetos.

Hoje ela é a dona de uma empresa especializada em produções de eventos diversos, bem-sucedida, com um negócio em progressão geométrica de crescimento. Tenho muito orgulho dela, principalmente por ser a única que não ficou agarrada ao cordão umbilical familiar dentro da Karamanlis.

Agora qual a necessidade da porra de uma ceia de Natal para comemorar a expansão de seu negócio? Vou ter que ficar com um maldito sorriso no rosto, carinha de anjo, lidando com o caralho da minha gastrite me corroendo ao pensar na hipocrisia do mundo.

Respiro fundo e decido combater a ressaca e a dor de cabeça com mais bebida. Pego uma cerveja na geladeira, abro-a na beirada da pia e entro no outro ambiente, a sala, integrada ao outro cômodo, separados apenas por uma enorme bancada.

Eu mesmo projetei esse prédio, há alguns anos, ainda trabalhando na Novak. Bernardo Novak é meu vizinho de porta, e Nicholas foi o primeiro dono da cobertura duplex que toma todo o último andar, hoje habitada por um casal e uma menininha. Comprei o apartamento pensando em vir morar com minha irmã, mas qual não foi minha surpresa quando ela anunciou que só sairia do cafofo para seu próprio lugar?

Pois é, vim sozinho, ocupo apenas a suíte principal, e os outros dois quartos estão praticamente vazios. A sala foi decorada – pela própria Kyra –, bem como a cozinha, mas nunca mandei fazer os móveis da sala de jantar, pois não vejo nenhuma função para eles. Eu como sozinho no balcão da cozinha, assistindo a TV ou ouvindo música.

Resgato meu celular, seleciono uma das minhas muitas playlists, e a caixa de som já liga automaticamente, deixando o som pesado do Matanza ecoar pelos ambientes. Sorrio ao ouvir “Bom é quando faz mal”, as recordações das loucuras da faculdade, de toda a merda que eu fazia. Não tenho vontade alguma de fazer de novo, mas também não posso dizer que me arrependo. Era o meu jeito de extravasar, tresloucado, admito, mas ainda assim muito mais normal do que o que eu vivia dentro de casa.

Preparo qualquer coisa para comer, balançando a cabeça e cantando as músicas de várias bandas de rock, algumas famosas, outras nem tanto, mas que marcaram minha vida de alguma forma.

O telefone toca, e a chamada atrapalha minha diversão musical. Bufo, jogo o pano de prato sobre a pia e pego o aparelho.

— Oi, Millos — atendo meu primo.

— Boa tarde, Alexios. Animado com a reunião de hoje à noite?

— Ô, tão quanto eu estaria para fazer um exame de próstata. — Millos gargalha. — Ela convidou você também?

— E o Kostas. — Isso me surpreende, pois, até onde eu sei, não temos nenhuma convivência com ele. — Bom, liguei para dizer que irei viajar na virada do ano, por isso preciso que você não deixe de ir ao baile dos Villazzas.

Gemo ao pensar em vestir um smoking.

— Porra, Millos, não fode! Aposto que Theodoros vai, afinal Frank e ele são quase um casal! — Millos ri do meu deboche acerca da amizade entre meu irmão mais velho e o CEO da rede Villazza de hotéis. — Não tenho a mínima...

— Konstantinos confirmou presença também.

Puta que pariu!

Preciso me sentar depois dessa informação, pasmo só em imaginar Kostas com alguma puta, sentado na mesma mesa de Theodoros. Vai dar merda!

— Eu não tenho companhia — tento me justificar. — E você poderia adiar a sua viagem só por uns...

— Não, não posso, já fiz todos os arranjos, reservas em hotéis, o cronograma da viagem! Você tem que ir para evitar que os dois prejudiquem a imagem da empresa.

Reviro os olhos ao pensar na imagem da empresa. Millos é doido ao pensar que temos uma imagem a zelar. Todos nesta maldita cidade, neste meio asqueroso no qual vivemos, sabem que somos todos fodidos e que nosso pai cagou em nosso nome com a sucessão de merdas que fez.

E olha que a maioria não o conheceu de verdade, não soube o monstro que ele era, escondido por detrás de uma fachada bonita e um sorriso de conquistador barato! Um lobo em pele de cordeiro, um demônio com a face de um anjo... assim como eu.

Bufo de raiva.

— Cadê aquela sua amiga? — Franzo a testa, sem acreditar que ele está se referindo à Samara. — Vocês viviam para cima e para baixo juntos, ela te acompanhou em um dos primeiros eventos dos Villazzas e...

— A Samara mora em Madri há mais de três anos, Millos. — Decido não entrar em detalhes e contar a ele que nos afastamos por algum motivo idiota que eu não consigo lembrar. — Vou ter que ligar para alguma...

— Isso, ligue — ele me corta. — Mulher nunca foi seu problema, aposto que você tem um caderninho cheio de telefones.

— E daí? — afronto-o. — Gosto de sexo, nunca escondi isso, diferente de você, que nunca foi visto com nenhuma mulher além daquela sua amiga motoqueira. — Decido provocá-lo: — Millos, acho que está na hora de sair do armário, porra!

O filho da puta ri alto.

— Eu não teria problema algum em sair se fosse o caso. Ainda mais agora, que Dimitrios saiu, e o pappoús continuou vivo e... — Millos para.

É sempre assim quando algum assunto referente à família na Grécia vem à tona. Eu não conheço ninguém, nunca fui à Grécia, nem tenho a mínima vontade de ir. Não conheço o tal pappoús, nem primo algum além de Millos, que só conheci quando veio morar no Brasil.

Sou o Karamanlis renegado, indigno do sobrenome.

— Vou ligar para alguém e convidar a ir comigo — encerro o assunto constrangedor. — Mas não garanto atuar de mediador como você.

— Você, mediador? — Millos se surpreende. — Alexios, se eu não tivesse interferido, você teria criado uma situação com Theodoros na festa de final de ano da Karamanlis. Eu só quero que você vá com alguém e iniba um pouco aqueles dois.

Bufo e concordo.

— Eu vou.

— Obrigado. — Estou prestes a desligar, quando ele me chama de novo: — Ah, Alexios, não encha a cara, senão você vai falar merda para o Theo, e o Kostas vai se aproveitar disso.

— Vai se foder, Millos! Eu já vou, porra, não diga o que tenho que fazer.

Desligo irritado, perco a fome e a vontade de terminar o que estava preparando.

Mesmo puto, preciso admitir, Millos tem razão sobre eu perder a cabeça com Theodoros, principalmente quando bebo. Eu não odeio meu irmão mais velho como sei que Kostas o faz, apenas ele não significa mais nada para mim.

Convivo bem com ele, pelo menos no sentido profissional, mas não quero nenhum tipo de ligação mais pessoal. Ele perdeu o timing quando, depois de toda a merda que ajudou a fazer, nunca mais quis saber de nós. Era como se nem existíssemos! Ele excluiu Nikkós de sua vida, mas acabou nos descartando junto. Nunca se preocupou em saber de nenhum de seus irmãos, muito menos de sua adorada Kyra, a mais vulnerável de todos nós.

Então, sim, eu perco a cabeça com ele, principalmente com seu jeito esnobe, intocável, como se somente ele importasse e mais ninguém. E foi por isso que nos estranhamos na festa de final de ano da Karamanlis, porque, simplesmente, este ano a festa não foi Theocrática1.

Millos e eu nos reunimos com alguns gerentes e coordenadores para entender o que os funcionários da Karamanlis gostariam de ter em uma festa de encerramento do ano. Depois, contratamos todos os serviços – sem ser da Kyra, pois neste ano ela se livrou de nós na cara dura – e fizemos a festa focada nos funcionários.

Aparentemente, isso chocou e desagradou ao CEO com síndrome de deus, e sua cara fechada e seu olhar de desprezo não ficaram nada disfarçados.

— Ei, irmãozinho! — Eu o parei, enquanto andava como um deus do Olimpo visitando terráqueos. — Aproveitando a festa?

— Espero que não tenha vindo de moto! — o filho da puta tentou me repreender como se estivesse preocupado com minha segurança, e isso, juntamente a toda cerveja que eu já tinha tomado, irritou-me.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já muito bêbado para me conter. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos2!

Theodoros franziu o cenho com meu deboche, comparando seu nome à palavra deus em grego. Estava prestes a dizer algo, mas se conteve quando de repente fui abraçado pelos ombros. Nem precisei olhar para saber que nosso interventor havia chegado.

— Alex, que festança, não? — Millos comentou. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — Theodoros pareceu perplexo. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Gargalhei ao confirmar que ele era mesmo um grande egocêntrico, incapaz de perceber a diferença da festa deste ano à do ano passado por estar focado nos detalhes e não no que realmente importava: as pessoas.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — respondi como se estivesse sóbrio, mesmo não estando. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos me cortou.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — Theodoros perguntou ao Millos, apontando o dedo em minha direção como o grande babaca que sempre foi.

— Fui! — respondi. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Tentei demonstrar com gestos o que dizia, abri os braços de repente, e meu punho bateu no peito do Millos, que chegou para trás. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — olho para um grupo dançando e vários outros conversando, comendo e se divertindo — você está vendo alguém ir?

Ele ficou um tempo olhando em volta como se notasse, pela primeira vez desde que chegou, que realmente os funcionários estavam adorando a descontração deste ano.

Eu só não esperava que ele tentasse ser condescendente comigo:

— Bom trabalho! O pessoal parece realmente estar gostando!

Só faltou dar umas batidinhas em minha cabeça como se eu fosse a porra do seu cãozinho de estimação. Meu sangue ferveu, travei os punhos e não me contive:

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos interrompeu-me e me abraçou novamente pelos ombros. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Mal acabou de falar, seguiu para o outro lado, levando-me consigo.

— Porra, moleque, não tem como ser menos reativo não? A festa está um sucesso graças ao seu feeling, ao modo como você conhece e percebe as pessoas, para que estragar isso batendo boca ou — ele me encarou —, como percebi que queria fazer, enchendo a cara do Theo de porrada? Sai dessa!

Concordei com meu primo e respirei fundo. Depois disso tomei quase um litro de café amargo, ele me pôs em um Uber, e eu vim para casa, onde continuei a beber, desmaiei no sofá e, no outro dia, fui correr ainda um tanto trôpego, sendo desclassificado no teste do bafômetro.

Perdi minha última corrida do ano, grande fracassado que sou!

Volto a ligar minha playlist, e a música que toca é exatamente a que eu preciso para sair da fossa dessas lembranças todas:

— Eu não tenho nada pra dizer. Também não tenho mais o que fazer. Só para garantir esse refrão, eu vou enfiar um palavrão: cu!3


Entro no showroom da A??p?4 – a empresa de eventos de Kyra – e já admiro o trabalho dela com a decoração do local. A enorme mesa com vários lugares ocupa o centro do enorme salão, com castiçais, flores, louças e talheres milimetricamente colocados, junto a taças de cristal e guardanapos de linho.

No restante do salão, há mesas altas para apoiar drinques, sofás e poltronas brancas, com almofadas e outras coisas de decoração seguindo a paleta de cores da festa: verde, vermelho e dourado.

Clichê! Mas é Natal, tem como não ser?

Dou de ombros e vejo Kyra de costas, junto à belíssima morena que trabalha com ela desde que abriu a empresa e as duas chefes de cozinha que conheceu ainda quando trabalhava no outro bufê e as roubou na cara dura quando resolveu estabelecer seu próprio negócio. Uma delas, acho que é a doceira – Mari, como todos a chamam – me vê e logo cutuca minha irmã.

— Ah, Alex! — Kyra abre um enorme sorriso, entrega para a morena – como é mesmo o nome dela? – os penduricalhos de Natal com os quais enfeitava o enorme pinheiro e vem até mim. — Que bom que chegou, tenho uma coisa para você!

Ah, puta que pariu! Ela me comprou um presente? Fico imediatamente sem jeito, pois não comprei absolutamente nada para ela. Eu nem imaginava que iríamos trocar lembranças, nunca fizemos isso!

Alívio toma conta de mim quando ela vem com uma caixinha pequena e claramente de doces.

— Quando experimentei, lembrei logo de você. — Ela tira um doce dourado de dentro da caixa. — Prove!

Franzo o cenho e abro a boca. Mastigo devagar, emitindo sons de prazer, adorando o contraste de texturas e o sabor doce e... picante. Abro um sorriso.

— Chocolate com pimenta! — Termino de comer. — Perfeição!

— Bombom Helênico. — Faço careta para o nome, não combina em nada. — Eu sei, é péssimo, mas as meninas quiseram fazer uma homenagem para a Helena, então... — Dá de ombros.

Helena!, minha mente grita ao lembrar o nome da morena gostosa, mas que nunca sorri e mal fala comigo quando apareço aqui.

— Hum... gostosa! — Começo a rir quando noto que falei alto. Kyra me olha séria. — O quê?

— Nem pense, ela está comprometida!

Ergo as mãos em minha defesa.

— Não falei nada!

— Não precisa! Sua fama de embusteiro conquistador te precede! — Faço careta, e ela ri. — Estive com saudades de você.

— Então por que não foi me ver ou me ligou? — pergunto sem enrolação.

— Não sei.

Respiro fundo. Ela se fecha, é sempre assim e não só comigo. Ela se empolga, vibra, deixa as pessoas se aproximarem, mas nunca demais. Quando chega a seu limite, simplesmente retrocede com a mesma rapidez e naturalidade com que atraiu alguém. É por isso que suas amizades ou mesmo seus relacionamentos amorosos nunca duraram muito.

Porém o que faço eu aqui, julgando-a?

— Alexios Karamanlis! — Viro-me ao ouvir a voz de Millos.

Meu primo – filho de uma égua! – carrega uma enorme caixa de presente toda embrulhada e com laços. Kyra abre um enorme sorriso e vai saltitante até ele, abraça-o pelo pescoço – coisa que não faz nem comigo – e agradece o regalo.

— É para decorar sua sala de empresária fodona — ele brinca com ela, e Kyra gargalha ao tirar uma estátua toda colorida de um unicórnio. — Eu me lembrei daquela sua fantasia no dia das bruxas...

Kyra para de boca aberta.

— Millos, eu tinha quatro anos! — ela recorda e, de repente, parece lembrar também que, naquela época, tudo parecia realmente possível, mágico e feliz.

Meu primo a abraça forte e fala algo em seu ouvido, baixinho. Kyra assente, e eu fico paralisado vendo a troca de carinho entre eles. Parece normal, não é? Mas, creiam-me, não é. Millos evita qualquer contato físico com outras pessoas. Ao cumprimentá-las, ele prefere baixar a cabeça do que dar um aperto de mãos; o máximo que o vi fazer até hoje foi tocar no ombro de alguém, mas somente quando julga necessário. Até comigo, o máximo que ele fez até hoje foi me abraçar para evitar um embate entre mim e Theo. Então assistir aos dois se abraçando é realmente algo inédito.

— Feliz Natal, pesménos ángelos5.

Mostro o dedo do meio para ele.

— Ah, pesquisou! — Ri debochado, mas logo para ao aceitar o chope que Kyra nos oferece. — É um absurdo você não saber nada da nossa língua.

— Não tenho interesse algum por nada que venha de lá — justifico e bebo. — Kyra também não sabe!

— Quem disse? — Ela começa a rir. — Anóito6.

— Quando foi que você se interessou por essa porra? — questiono-lhe surpreso.

— Você leu o nome da empresa dela na fachada? — é Millos quem retorna minha pergunta. — Está em grego!

Millos e Kyra engatam uma conversa, enquanto eu ainda estou paralisado com essa nova informação. Não é exagero, mas eu pensei que ela, assim como eu, desprezasse qualquer coisa que tenha relação com Nikkós. No entanto, ao contrário de mim, ela sempre foi aceita por todos os Karamanlis como parte da família, então é natural que tenha algum apreço por eles.

— Ah, mais convidados estão chegando!

Kyra deixa-nos a sós e vai até um grupo que não conheço.

— Ela parece feliz — comento com Millos.

Meu primo dá de ombros.

— Há pessoas com o dom de demonstrar apenas o que querem que vejam. — Bebe o resto de seu chope e me encara. — Já resolveu o assunto do baile dos Villazzas?

— Ah, Millos, não fode mais a minha noite! — Vejo duas lindas mulheres adentrarem ao salão e abro um sorriso. — Pode ser que ela esteja começando a melhorar.

Millos ergue uma de suas sobrancelhas, e eu o deixo sozinho, caminhando em direção ao meu mais novo alvo da noite, que, neste exato momento, cumprimenta minha irmã.

— Kyra, eu gostaria de... — finjo interromper-me quando as desconhecidas me olham. — Desculpem-me. — Kyra rola os olhos, mas suas convidadas não desviam o olhar do meu rosto. — Millos estava falando do chope, e nós fizemos uma pequena aposta, mas posso ver isso depois, atenda seus convidados. — Abro novamente meu melhor sorriso na direção delas.

— Valéria e Priscila, esse é meu irmão, Alexios Karamanlis — Kyra faz nossa apresentação, e eu sei que depois irá jogar na minha cara que eu estou lhe devendo por isso.

— Um prazer, Valéria! — Aproximo-me para cumprimentá-la e logo depois saúdo a outra: — Prazer, Priscila.

— O prazer é meu, Alexios — Priscila responde, sorrindo, e vejo a mão de Valéria tocar suas costas num gesto um tanto territorialista. Perfeito! Trocamos beijos no rosto em cumprimento. — Eu já te vi em algumas revistas especializadas em engenharia e arquitetura, principalmente quando o conselho dessas classes era o mesmo.

— Arquiteta? — tento adivinhar, mas ela nega e aponta para sua amiga.

— Valéria é, eu sou designer industrial. — Faço cara de surpresa, mesmo sem achar nada de mais. — É, eu sei, a maioria das pessoas que me conhece acha que sou modelo ou estilista, mas você quase acertou. — Seu sorriso é claramente de quem se sente lisonjeada. — Trabalho conceitos para grandes marcas.

— Incrível! — Olho-a de cima a baixo, e Kyra bufa. — Você também parece incrível, Valéria. — Sorrio, e ela relaxa.

— Alexios, chegaram outros convidados, você poderia fazer companhia a elas? — Ela pega na mão das amigas. — Vocês não se importam, não é?

— Claro que não, você é a anfitriã da noite! — Valéria diz, e sinto seu olhar brilhar em minha direção. — Nós ficaremos em boa companhia com seu irmão, afinal, é o anjo rebelde dos Karamanlis.

Puta que pariu!

 

CONTINUA

Com um passado nebuloso, marcado por traumas, rejeições e violência, há anos Alexios Karamanlis busca entender a si mesmo e, para isso, começa uma caçada sem fim pelo destino de sua mãe biológica, junto a sua melhor amiga, Samara Schneider.
Amigos desde tenra idade, Alexios sempre tentou não a notar como mulher por temer perder sua amizade e apoio, e Samara sempre sonhou com o dia em que o garoto problemático e rebelde se apaixonaria por ela.
Juntos em busca de respostas sobre a verdadeira história do nascimento de Alexios, os dois mergulharão no sujo passado do pai dele, Nikkós Karamanlis, revelarão segredos muito bem guardados e, por fim, descobrirão que não há como reprimir mais a paixão e o desejo que sentem um pelo outro.

 

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O país todo está enlouquecido!, penso ao passar por mais uma blitz policial sem nenhum problema, acelerando a moto ao máximo, capacete preto espelhado impossibilitando qualquer um de ver que quem pilota essa máquina é um garoto, não um homem.

Eu não sou um homem! Não sou! Se fosse, não estaria aqui neste momento, mas sim na delegacia, gritando por aí, fazendo qualquer coisa que não apenas dar uma de burguesinho filho da puta endinheirado, acelerando uma moto que custa o mesmo que um apartamento popular, mesmo sem ter habilitação para isso, apenas para esquecer os problemas.

Eu sou um merda! E sou isso por causa “dele”!

Caralho! A Paulista está fechada por conta das comemorações do pentacampeonato. É, o Brasil conseguiu mais uma estrela no futebol, o país está eufórico como se não houvesse crianças na rua, assassinos à solta, a corrupção impedindo todo o sistema público de funcionar. Foda-se, somos penta!

Faço uma manobra rápida com a moto, deixando marcas dos grossos pneus no asfalto e sigo para outra direção, à procura de mais uma avenida extensa e reta para que eu possa extravasar todo o ódio dentro de mim indo ao limite da velocidade.

Paro a moto de repente e quase sou arremessado para frente. Meus músculos começam a tremer, meus olhos se enchem de lágrimas, sinto frio, meus dentes batem um no outro. Engulo em seco. Não vou chorar! Não choro mais, não há muitos anos.

Cada soco, cada pontapé, cada xingamento e mentira secaram minhas lágrimas. Elas até se instalam em meus olhos, porém não caem. Sufocam-me, quebram meu coração, desequilibram-me.

Caio no chão em um baque só, gemo de dor por causa do peso da moto sobre minha perna esquerda, mas não choro. Respiro fundo para controlar a dor, parar de tremer, diminuir os batimentos do meu coração. Estou acostumado a essa rotina de tentar não sentir dor, de tentar não sentir mais nada.

Levanto-me calmamente, sinto calafrios, manco, mas volto a subir na moto, acelerando-a, fazendo o motor girar e um ruído alto e potente se misturar aos sons das comemorações pelas ruas da cidade. Respiro fundo várias vezes e, quando não sinto mais nada, tiro o pé do chão e deixo a máquina me levar.

Eu queria poder fugir para o mais longe possível desta cidade, mas não dá, infelizmente não posso ir a lugar algum, estou preso, revivendo o mesmo inferno todos os dias, aceitando meu destino com resignação até poder livrar a mim e a Kyra do demônio que nos formou.

Eu poderia pedir ajuda ao Tim, mas sei que ele tem a própria merda para lidar e que conseguiu sair há pouco do inferno. Sei que precisava ir. Meu irmão estava por um fio, assim como eu, e, se ficasse lá conosco, seria para morrer ou matar, e, como não é da sua natureza matar, iria perecer aos poucos, como Nikkós gostaria que acontecesse.

Então ele foi, e eu fiquei incumbido de uma missão que nós aceitamos sem nem mesmo combinar nada, apenas porque sabíamos do que nosso pai era capaz e decidimos que não o deixaríamos chegar a ela.

Soluço na moto.

Eu falhei!

Eu falhei!

Eu falhei?!

Eu não sei! Simplesmente não sei o que aconteceu ontem! Acelero a moto, pegando uma rodovia, ainda tentando processar todos os acontecimentos e os flashes de memória que tenho.

Cometi um erro na noite passada, fui imprudente e agora preciso lidar com tudo o que aconteceu, mesmo sem entender direito o que houve. Enquanto piloto a moto, tento repassar cada momento de ontem, mesmo sabendo que já fiz isso várias e várias vezes sem nenhum êxito.

Nikkós finalmente viajou a trabalho – ou o que quer que ele tenha ido fazer –, e eu consegui relaxar um pouco. Mantenho constante vigilância sobre minha irmã, uma adolescente de 14 anos de idade, e evito ao máximo deixá-la sozinha com nosso pai. Não há muito que eu possa fazer para protegê-la das loucuras dele, mas o que está ao meu alcance, faço.

Por conta disso, desde que ingressei na universidade – no começo desse ano –, desdobro-me ao máximo para curtir com meus amigos e proteger a Kyra. A babá anterior era a mesma desde quando minha irmã e eu nascemos, totalmente devota ao nosso pai, então, assim que Konstantinos tomou posse de sua herança, demos um jeito de nos livrar dela, e, assim que outra foi contratada, meu irmão se encarregou de pagar uns extras para ela manter os olhos em Kyra.

Nikkós sempre foi um filho da puta covarde, ele nunca iria deixar um serviçal ver o que ele é capaz de fazer aos filhos, por isso tinha seus próprios lugares para executar suas torturas em Kostas e em mim.

Noite passada, uma galera mais velha da universidade fechou uma boate e me convidou para festejar com eles. Estávamos entrando de férias e queríamos muito desopilar o fígado, relaxar, curtir e esquecer todas as pressões dos estudos.

Como Nikkós não estava em casa, e a babá estava por lá com Kyra, por que não ir? Foi esse meu erro!, penso ao relembrar.

 

— O grande Alexios Karamanlis! — Alberto Bragança me saúda assim que entro na boate. — Achei que você não vinha mais, mano!

Ele me entrega uma caneca de 500ml de chope e um cartão para o restante do consumo, e logo vejo os outros caras em uma mesa no fundo do salão. A música alta, tocando um “batestaca” qualquer, não chama minha atenção. Sigo, então, na direção do pessoal e, mal chego lá, peço mais uma rodada de chope para todos.

Meu pai é um grande filho da puta, torturador desgraçado, mas, para manter as aparências, deixa-nos usar cartão sem limites e nos entrega uma mesada gorda. Bebo, sentindo o gosto do chope se tornar mais amargo que o normal, consciente de que essa porra toda é dele, comprada com o seu maldito dinheiro.

— Jefinho está na área! — alguém grita comemorando. — Vamos começar a diversão! Quem vai?

Sou um dos primeiros a me levantar, viro o resto da bebida e sigo com mais cinco amigos para o banheiro, atrás do traficante oficial da turma. Vejo cada um pegando “no bufê do Jeff” sua viagem preferida e pego um pino de “coca” para começar bem a noite.

“Foda-se, Nikkós Karamanlis!”

Cheiro.

“Foda-se, Sabrina Karamanlis!”

Aspiro mais um pouco.

“Foda-se, Theo Karamanlis!”

Faço outra carreira com o restante do pó.

“Foda-se, Geórgios Karamanlis!”

Seguro a narina fechada, mantendo tudo dentro de mim, sentindo já meu corpo girar, o cérebro acelerar e todas as sensações de abandono e dor se esvaírem como num passe de mágica. Só existe prazer, nenhuma dor, tudo é maravilhoso!

Compro mais três pinos de cocaína e alguns comprimidos de êxtase. Essa noite não quero dormir, quero aproveitar, dançar, zoar, pegar umas universitárias e esquecer quem sou.

Começo a rir de mim mesmo, da piada que acabei de pensar. Esquecer quem sou só seria possível se eu soubesse quem sou.

“Eu não sou ninguém!”

Meu Nokia vibra com a chegada de uma mensagem, confiro ser de Samara, minha única e melhor amiga, e volto a colocá-lo no bolso ao perceber a aproximação de uma gostosa do quarto ano.

— Eu não acredito que você é menor de idade, Alex! — A garota, com luzes nos cabelos e vestido com apenas uma alça, passa a mão no meu peito. — Você não parece ser um garoto, mesmo com esse rostinho angelical.

Respiro fundo para não perder a paciência, pois, se há algo que me irrita muito, é quando dizem que eu pareço um anjo. Aproximo-me dela e a puxo pela cintura.

— Posso provar que não sou um anjo! — Pego sua mão e a levo até a frente da minha calça. A garota arregala os olhos. — Os demônios com cara de anjo são os piores, gata!

— Uau! — Ela lambe meu pescoço. — O que você tomou?

— Coca, mas tenho “bala” no meu bolso. — Ela ronrona, e eu me animo. — Vem comigo!

Levo-a para uma área nos fundos da boate, uma espécie de depósito que se encontra aberto, uma vez que a casa está funcionando apenas para um bando de playboys endinheirados que preferem não se misturar com a ralé e, assim, fazer suas merdas longe dos olhos curiosos da plebe.

Claro! Afinal de contas, aqui estão reunidos os filhos dos maiores empresários, advogados, médicos, juízes e a porra toda elitizada desta cidade decadente. Bando de fodidos! A maioria desconta, como eu, a falta de afeto e atenção em casa gastando dinheiro, promovendo rachas pelas ruas, consumindo todo tipo de droga tentando preencher o buraco negro instalado nas nossas almas.

“Foda-se!”

Seguro a garota contra a parede fria do depósito e, sem nem mesmo perguntar seu nome, ataco sua boca com fúria, mordendo seus lábios e sugando sua língua. Ela mexe em minha calça, abre-a e retira meu pau para um tratamento especial em suas mãos macias.

— Novinho e pauzudo... — ela geme. — Cadê a balinha para deixar tudo mais divertido?

Sorrio e nego.

— Tem que merecer.

Ela sorri e, sem que eu precise sequer lhe indicar o que quero, ajoelha-se no chão grosso e toma meu pau em sua boca quente e esfomeada. Gemo, gostando da carícia, seguro-a pelos cabelos e a forço a engolir o máximo que consegue.

Tenho quase 17 anos, mas aposto com quem quer que seja que nenhum desses caras daqui tem a metade da experiência sexual que eu. E não, não “tiro onda” com isso, afinal, quem é filho de Nikkós Karamanlis não tem muita escolha sobre quando vai começar a trepar, ele simplesmente impõe, e comigo isso aconteceu quando eu tinha 11 anos de idade.

Afasto o pensamento pestilento sobre meu pai e curto a chupada gostosa que a garota ajoelhada me dá. Ela lambe, chupa, suga com força, arranha com os dentes – coisa que me excita “pra caralho” – e segura minhas bolas com vontade. Percebo que ela quer fazer o serviço completo com a boca, mas definitivamente ela não me conhece.

Ergo-a de uma vez só e a ponho de cara contra a parede. Procuro a camisinha no bolso da calça – uma coisa que se aprende quando se começa a vida sexual trepando com putas é que preservativos nunca podem faltar –, plastifico meu pau e levanto o vestido dela.

Bunda gostosa, magra, mas gostosa “pra cacete” com uma calcinha de cor forte – não sei se vermelha ou rosa; não divago muito sobre a cor, mesmo porque é irrelevante –, afasto a peça e esfrego os dedos em sua boceta depilada.

Ela ofega, rebola gostoso na minha mão. Vou penetrando-a devagar com os dedos, recolhendo um pouco da umidade de dentro de sua vagina para usá-la exatamente no ponto onde quero. Massageio seu clitóris até que ela se contraia em gozo e volto a molhar seu rabo com a lubrificação que solta.

Ela fica tensa quando encaixo a cabeça do meu pau em seu ânus apertado.

— Alex...

— Psiu... — falo devagarzinho em seu ouvido, lambendo sua orelha enquanto vou me afundando no canal estreito, sentindo meu corpo todo reagir à pressão de um local nunca ou pouco explorado. — Eu disse a você. — Ela arfa quando me encaixo por completo em seu rabo. — Os demônios com cara de anjo são os piores!

Meto com força e continuo estimulando seu clitóris, beijando e mordendo seu pescoço, até que ela explode em um orgasmo foda, e eu me deixo ir na camisinha, ainda sentindo as contrações do seu corpo. Quando ela se vira para me beijar, estico minha língua com sua recompensa na ponta. A garota sorri e chupa a drágea com vontade, enquanto eu engulo a outra.

A noite só começou!

 

Paro a moto em frente ao prédio onde Konstantinos mora. Fico parado olhando para o alto, invejando a liberdade de meu irmão, a coragem que teve ao se libertar assim que pôde do nosso pai. Ele estuda no Largo de São Francisco, vai ser um advogado e, mesmo que tenha tentado disfarçar, ficou contente quando contei que havia passado em todos os vestibulares para os quais havia prestado.

— Vai para algum lugar longe da cidade? — Kostas não escondeu sua preocupação.

— Não, vou ficar aqui — respondi com sinceridade, mesmo que minha vontade fosse ir para o mais longe possível deste inferno de lugar. — Vou continuar no apartamento de Nikkós, pelo menos até a Kyra fazer 18 anos.

Ele respirou fundo, e nossa conversa por telefone acabou aí. Nós não precisávamos externar nossa preocupação um para o outro, sabíamos do que nosso pai era capaz e do perigo que Kyra corria estando sob o mesmo teto que ele. Kostas saiu de casa, pois nunca soube lidar com Nikkós, ao contrário de mim.

O grego maluco tentou fazer comigo o mesmo que fazia com o meu irmão, porém nunca pensou que não me afetaria, então mudou de tática. O desgraçado tentava me acertar no único ponto que realmente me doía, mas ainda assim eu resistia em demonstrar alguma dor, então ele me fazia sentir na carne.

Esfrego a mão no ombro esquerdo, quebrado há dois anos no que todos acreditaram ser um acidente enquanto eu andava de skate, sem saber que quase tive o braço arrancado pelo homem louco, bêbado e drogado a quem todos respeitavam como um exemplo de pai, criando seus filhos sozinho depois de ter sido abandonado pela mulher.

Farsante dissimulado! Nunca amou ninguém, nunca se preocupou ou se dedicou a ninguém, nem a si mesmo. Eu só não entendo o motivo pelo qual ele não deixou que a puta que me gerou abortasse ou mesmo por que não me deixou com ela.

Eu sou um covarde! Rio, ligando a moto de novo.

Meu maior sonho é vê-lo morto, desejei e planejei isso tantas vezes, de tantas maneiras diferentes, que sei todos os passos de cor. No entanto, nunca tive coragem... Respiro fundo.

Pelo menos até essa madrugada!

Não faço ideia de como cheguei a casa, estava doidão, alto demais, cheirava a cerveja, maconha, sexo e perfumes variados. Não sei nem com quantas garotas trepei à noite, sei que algumas só mamaram meu pau, mas, com outras, a coisa foi mais louca.

Não consigo me lembrar de muita coisa. Só tenho sensações ruins de quando cheguei ao apartamento e percebi que Nikkós havia voltado. Nas memórias, há gritos, choro, mas nenhuma imagem. Tudo o que tenho nítido na cabeça foi o que aconteceu depois que acordei.

Estava deitado na sala principal do apartamento, minhas roupas sujas de sangue, rasgadas, um hematoma no olho e um corte no canto da boca já me incomodando. Não sabia nem onde estava, só sentia dor, confusão, e vomitei ali mesmo, no tapete da sala.

Ao meu lado vi uma faca suja de sangue. Gelei, sem saber o que tinha feito e de quem era o líquido viscoso e vermelho que cobria toda a lâmina. Foi nesse momento que saí do torpor em que me encontrava, peguei o objeto e comecei a correr pela enorme cobertura, entrando em todos os cômodos.

— Kyra! — gritava, mesmo com a cabeça explodindo. — Kyra!

Minha irmã não estava em lugar algum, nem mesmo a Nívea, a senhora que cuidava dela, eu pude encontrar. Meu desespero só aumentou. Liguei para o telefone dela, mas estava dando na caixa de mensagens.

Comecei a soluçar, mesmo não derramando uma só lágrima, e entrei no local proibido da casa, o santuário satânico de Nikkós Karamanlis: seu quarto.

Estanquei quando vi seu corpo enorme e nu jogado sobre a cama king size. Notei os cortes em seus braços, bem como o movimento de respiração, seguido dos roncos altos. O filho da puta não estava morto! Apertei a faca em minha mão com mais força, pensando que esse seria o momento certo para livrar a todos de sua existência.

Andei até ele devagar, os nós dos dedos brancos de tão firme que segurava a faca. Medi suas costas, imaginando que seria muito fácil perfurar seu pulmão com uma só estocada no lugar certo e que ele morreria afogado em seu próprio sangue lentamente, em uma morte digna dele.

Ergui a faca, fechei os olhos, parei de tremer e me lembrei de todos os anos de abuso e de tortura, do que ele fazia ao Kostas, do que fazia comigo e do que poderia fazer a Kyra.

Respirei fundo, concentrei a força e desci a faca, mas parei a milímetros de sua pele quando ouvi soar a campainha. Joguei a arma para longe e saí correndo daquele cômodo pestilento, descendo as escadas disparado para atender a porta, torcendo para que fossem Nívea e Kyra.

— Alexios? — a voz de Samara me fez prender o fôlego. — Alexios, você está aí?

Abri a porta sem pensar duas vezes e desmontei ao ver minha irmã ao lado da minha melhor amiga. Kyra, minha pequena princesa, linda como uma pintura, seus olhos enormes e verdes cheios de lágrimas e os lábios trêmulos.

— Ainda bem! — exclamei aliviado, puxando-a para meus braços. — Ainda bem!

— Alexios, você precisa de ajuda? — Samara questionou, olhando tudo em volta. — Ontem à noite a senhora Nívea pediu que Kyra ficasse comigo e...

Segurei o rosto de minha irmã, desgostoso por saber que ela mal fala por conta do monstro que temos em casa, sequei as lágrimas que escorriam por seu rosto miúdo e assustado e perguntei:

— O que houve?

Ela deu de ombros.

— Ele voltou mais cedo, estava bêbado, mandou Nívea embora. — Sinto um arrepio de frio percorrer minha coluna. — Os dois discutiram. — Ela soluçou. — Ele bateu nela, ela desmaiou...

— E você, onde estava?

Kyra desviou os olhos, e eu senti como se um soco acertasse a boca do meu estômago. Olhei para Samara em busca de uma resposta, mas minha amiga apenas deu de ombros, indicando que minha irmã também não falou com ela.

— Quando ela acordou, me levou para o apartamento da Malinha, e aí eu fiquei lá. — Kyra olhou em direção ao corredor. — Ele ainda está...

Assenti.

— Vá para o seu quarto, tranque a porta, tome um banho; daqui a pouco vou me encontrar com você. — Ela tentou sorrir em agradecimento para Samara, mas depois desistiu, seguindo diretamente para seu quarto. — Samara...

— Vocês precisam denunciar isso! — Ela tocou meu rosto. — Você é só um garoto, Alexios, não pode proteger vocês dois.

— Posso! — afirmei cheio de raiva. — Você sabe muito bem que, se uma denúncia for feita, ela será tirada de nós. Eu ficarei um ano em algum abrigo, mas e ela?

— O Tim não pode...

Neguei.

— Não acho que o deixariam cuidando de dois adolescentes, ele só tem 20 anos! — Fechei os olhos, cansado, com medo, sem saída e senti quando ela me abraçou apertado.

— Onde você esteve ontem à noite?

— Fui me divertir...

— Não. — Seus olhos lindíssimos encararam os meus. — Você não se diverte, Alexios, você tenta se matar. — Passou a mão pelo meu rosto. — Quanto usou?

Dei de ombros, não querendo discutir isso com ela. Nunca termina bem!

— Isso não ajuda ninguém. Nem a você, muito menos à sua irmã. — Tentou sorrir para disfarçar o sermão, seus dentes cheios de plaquinhas do aparelho ortodôntico, o rosto redondo de menina fazendo covinhas, coisa que ela sempre teve e sempre achei lindo. — Eu sei que só tenho 15 anos, mas...

— Eu agradeço que você tenha feito companhia a Kyra, mas agora preciso resolver tudo aqui. — Apontei para a sala. — Ficou tudo bem com seus pais?

— Sim, não acharam nada estranho que Kyra dormisse lá em casa, afinal, somos amigas.

Ri amargamente.

— Essa amizade é aceitável para os Schneiders, não é? — Samara ficou vermelha. — Kyra é uma boa menina, não um porra-louca como eu, filho de uma puta e...

Samara pôs a mão sobre minha boca.

— Você é meu melhor amigo, apenas isso deveria te bastar para calar qualquer outra coisa que meus pais possam pensar de você.

Abracei-a forte, a consciência pesada por falar mal de sua família, pois sei quanto ela os ama, depois me despedi e tratei de limpar a sala, jogar a roupa que usava fora e fiquei até há pouco com minha irmã, ambos trancados no seu quarto.

Só saí para espairecer, para processar tudo o que aconteceu na madrugada passada, pois mais uma vez Samara agiu como um anjo e convidou minha irmã para assistir à final da Copa do Mundo com ela e depois terem uma noite de meninas, com direito a festa do pijama.

Entro na garagem do prédio, mando uma mensagem para Samara informando-a de que cheguei e que estou indo buscar minha irmã. Sinceramente eu não sei como vou fazer até encontrar outra pessoa de confiança para deixar com Kyra quando eu não estiver em casa, pois Nívea disse que nunca mais colocará os pés no nosso apartamento, depois de ter recebido uma boa quantia para que não denunciasse o que se passa dentro de nossa casa, pois entendeu que prejudicaria Kyra.

Não importa! Kyra precisa de mim, e, nem se eu precisar mudar toda minha rotina por causa dela, a terei protegida.


São Paulo, tempo atuais.


Acordo com uma dor de cabeça filha da puta, ressacado, tão zonzo que tropeço ao sair da cama, e a primeira coisa que me vem à cabeça nesta manhã (ou será nesta tarde?) é que hoje é véspera de Natal. Foda-se! Sou ateu, esses feriados religiosos não significam nada para mim.

Sigo pelo corredor em direção à cozinha, com muita sede, louco para tomar um analgésico para exterminar a dor de cabeça. Não vou tomar! Não tomo remédios para dor há anos, aprendi a conviver com as pontadas, com as ardências. A dor me tornou mais forte, resiliente, aprendi há muito que nada é capaz de me ferir mais do que eu mesmo.

A maioria dos meus ossos trazem lembranças de como superei, as marcas no meu corpo também, porém, nenhuma dessas cicatrizes é mais forte do que o vazio dentro de mim.

Encho um copo d’água até transbordar e o bebo em um só gole. A cabeça martela ainda mais por conta da bebida gelada, mas ignoro-a por completo. Não há remédio para o que sinto, não há cura para toda a raiva que carrego dentro de mim, então posso, sim, conviver com umas horas de pontadas no cérebro.

Olho para a porta fechada na área de serviço. Os cômodos dali eram a tal dependência de empregados, mas, como eu nunca tive nenhum, aproveitei-os para outros fins. Inspiro, os cheiros tão familiares chegando às minhas narinas. A raiva natural com que acordo todos os dias se aplaca; não some, apenas se recolhe, dando lugar às sensações de prazer.

Confiro as horas e xingo ao perceber que já estamos no meio da tarde. Sinceramente, não sei por que Kyra inventou essa ceia de Natal, não depois de todos esses anos. Não entendo minha irmã, sinceramente. Há muito convivo com seu gênio forte, sua determinação, mas ainda não sei quem é ela. A garota divertida da infância se tornou uma adolescente quieta e taciturna, uma jovem inteligente e ajuizada e, por fim, uma adulta completamente misteriosa. Eu a acompanhei em todas as fases de sua vida, mas ainda assim não sei quem é a verdadeira Kyra Karamanlis.

Assim que ela completou 18 anos, abandonamos a luxuosa cobertura de Nikkós e fomos morar em um cafofo velho e caindo aos pedaços. Eu estudava como um louco no meu último ano de faculdade, e, como ela passou para uma universidade pública também, tínhamos que morar próximo de uma das duas universidades. Preferi ficar próximo da dela e me fodia andando de bicicleta até a minha todos os dias.

Nessa época eu estagiava na Novak Engenharia e, com a bolsa do estágio, eu mal conseguia pagar o aluguel do quarto e sala que aluguei. Ela nunca soube, mas quem bancava nossa alimentação, transporte e outras despesas era o Kostas. Meu irmão e eu nem éramos amigos, na verdade mal nos falávamos, mas todo mês o dinheiro aparecia na minha conta, e eu sabia que vinha dele.

Formei-me e já fui efetivado na Novak. Trabalhei com o Nicholas, com quem aprendi demais e construí uma amizade forte, assim como com seu irmão Bernardo. Os tempos de bagunça, baladas, drogas e bebidas acabaram quando nos libertamos da prisão daquele apartamento e da convivência maligna de Nikkós.

Kyra estudava muito, era extremamente aplicada em tudo o que fazia, e, irritada por não conseguir conciliar seu horário de estudos com um emprego, começou a fazer doces e salgados dentro do nosso pequeno apartamento e vendê-los na faculdade.

Rio ao pensar que foi assim que nasceu a promoter de eventos, em uma cozinha de seis metros quadrados, com um forno capenga, um fogão com só duas bocas funcionando e uma geladeira que parecia um monomotor, de tanto barulho que fazia. Em pouco tempo ela estava fornecendo encomendas para festas e pequenos eventos, depois começou a fazer projetos de decoração, então, quando se formou, foi trabalhar em um grande e caríssimo bufê da cidade, auxiliando a cerimonialista com os projetos.

Hoje ela é a dona de uma empresa especializada em produções de eventos diversos, bem-sucedida, com um negócio em progressão geométrica de crescimento. Tenho muito orgulho dela, principalmente por ser a única que não ficou agarrada ao cordão umbilical familiar dentro da Karamanlis.

Agora qual a necessidade da porra de uma ceia de Natal para comemorar a expansão de seu negócio? Vou ter que ficar com um maldito sorriso no rosto, carinha de anjo, lidando com o caralho da minha gastrite me corroendo ao pensar na hipocrisia do mundo.

Respiro fundo e decido combater a ressaca e a dor de cabeça com mais bebida. Pego uma cerveja na geladeira, abro-a na beirada da pia e entro no outro ambiente, a sala, integrada ao outro cômodo, separados apenas por uma enorme bancada.

Eu mesmo projetei esse prédio, há alguns anos, ainda trabalhando na Novak. Bernardo Novak é meu vizinho de porta, e Nicholas foi o primeiro dono da cobertura duplex que toma todo o último andar, hoje habitada por um casal e uma menininha. Comprei o apartamento pensando em vir morar com minha irmã, mas qual não foi minha surpresa quando ela anunciou que só sairia do cafofo para seu próprio lugar?

Pois é, vim sozinho, ocupo apenas a suíte principal, e os outros dois quartos estão praticamente vazios. A sala foi decorada – pela própria Kyra –, bem como a cozinha, mas nunca mandei fazer os móveis da sala de jantar, pois não vejo nenhuma função para eles. Eu como sozinho no balcão da cozinha, assistindo a TV ou ouvindo música.

Resgato meu celular, seleciono uma das minhas muitas playlists, e a caixa de som já liga automaticamente, deixando o som pesado do Matanza ecoar pelos ambientes. Sorrio ao ouvir “Bom é quando faz mal”, as recordações das loucuras da faculdade, de toda a merda que eu fazia. Não tenho vontade alguma de fazer de novo, mas também não posso dizer que me arrependo. Era o meu jeito de extravasar, tresloucado, admito, mas ainda assim muito mais normal do que o que eu vivia dentro de casa.

Preparo qualquer coisa para comer, balançando a cabeça e cantando as músicas de várias bandas de rock, algumas famosas, outras nem tanto, mas que marcaram minha vida de alguma forma.

O telefone toca, e a chamada atrapalha minha diversão musical. Bufo, jogo o pano de prato sobre a pia e pego o aparelho.

— Oi, Millos — atendo meu primo.

— Boa tarde, Alexios. Animado com a reunião de hoje à noite?

— Ô, tão quanto eu estaria para fazer um exame de próstata. — Millos gargalha. — Ela convidou você também?

— E o Kostas. — Isso me surpreende, pois, até onde eu sei, não temos nenhuma convivência com ele. — Bom, liguei para dizer que irei viajar na virada do ano, por isso preciso que você não deixe de ir ao baile dos Villazzas.

Gemo ao pensar em vestir um smoking.

— Porra, Millos, não fode! Aposto que Theodoros vai, afinal Frank e ele são quase um casal! — Millos ri do meu deboche acerca da amizade entre meu irmão mais velho e o CEO da rede Villazza de hotéis. — Não tenho a mínima...

— Konstantinos confirmou presença também.

Puta que pariu!

Preciso me sentar depois dessa informação, pasmo só em imaginar Kostas com alguma puta, sentado na mesma mesa de Theodoros. Vai dar merda!

— Eu não tenho companhia — tento me justificar. — E você poderia adiar a sua viagem só por uns...

— Não, não posso, já fiz todos os arranjos, reservas em hotéis, o cronograma da viagem! Você tem que ir para evitar que os dois prejudiquem a imagem da empresa.

Reviro os olhos ao pensar na imagem da empresa. Millos é doido ao pensar que temos uma imagem a zelar. Todos nesta maldita cidade, neste meio asqueroso no qual vivemos, sabem que somos todos fodidos e que nosso pai cagou em nosso nome com a sucessão de merdas que fez.

E olha que a maioria não o conheceu de verdade, não soube o monstro que ele era, escondido por detrás de uma fachada bonita e um sorriso de conquistador barato! Um lobo em pele de cordeiro, um demônio com a face de um anjo... assim como eu.

Bufo de raiva.

— Cadê aquela sua amiga? — Franzo a testa, sem acreditar que ele está se referindo à Samara. — Vocês viviam para cima e para baixo juntos, ela te acompanhou em um dos primeiros eventos dos Villazzas e...

— A Samara mora em Madri há mais de três anos, Millos. — Decido não entrar em detalhes e contar a ele que nos afastamos por algum motivo idiota que eu não consigo lembrar. — Vou ter que ligar para alguma...

— Isso, ligue — ele me corta. — Mulher nunca foi seu problema, aposto que você tem um caderninho cheio de telefones.

— E daí? — afronto-o. — Gosto de sexo, nunca escondi isso, diferente de você, que nunca foi visto com nenhuma mulher além daquela sua amiga motoqueira. — Decido provocá-lo: — Millos, acho que está na hora de sair do armário, porra!

O filho da puta ri alto.

— Eu não teria problema algum em sair se fosse o caso. Ainda mais agora, que Dimitrios saiu, e o pappoús continuou vivo e... — Millos para.

É sempre assim quando algum assunto referente à família na Grécia vem à tona. Eu não conheço ninguém, nunca fui à Grécia, nem tenho a mínima vontade de ir. Não conheço o tal pappoús, nem primo algum além de Millos, que só conheci quando veio morar no Brasil.

Sou o Karamanlis renegado, indigno do sobrenome.

— Vou ligar para alguém e convidar a ir comigo — encerro o assunto constrangedor. — Mas não garanto atuar de mediador como você.

— Você, mediador? — Millos se surpreende. — Alexios, se eu não tivesse interferido, você teria criado uma situação com Theodoros na festa de final de ano da Karamanlis. Eu só quero que você vá com alguém e iniba um pouco aqueles dois.

Bufo e concordo.

— Eu vou.

— Obrigado. — Estou prestes a desligar, quando ele me chama de novo: — Ah, Alexios, não encha a cara, senão você vai falar merda para o Theo, e o Kostas vai se aproveitar disso.

— Vai se foder, Millos! Eu já vou, porra, não diga o que tenho que fazer.

Desligo irritado, perco a fome e a vontade de terminar o que estava preparando.

Mesmo puto, preciso admitir, Millos tem razão sobre eu perder a cabeça com Theodoros, principalmente quando bebo. Eu não odeio meu irmão mais velho como sei que Kostas o faz, apenas ele não significa mais nada para mim.

Convivo bem com ele, pelo menos no sentido profissional, mas não quero nenhum tipo de ligação mais pessoal. Ele perdeu o timing quando, depois de toda a merda que ajudou a fazer, nunca mais quis saber de nós. Era como se nem existíssemos! Ele excluiu Nikkós de sua vida, mas acabou nos descartando junto. Nunca se preocupou em saber de nenhum de seus irmãos, muito menos de sua adorada Kyra, a mais vulnerável de todos nós.

Então, sim, eu perco a cabeça com ele, principalmente com seu jeito esnobe, intocável, como se somente ele importasse e mais ninguém. E foi por isso que nos estranhamos na festa de final de ano da Karamanlis, porque, simplesmente, este ano a festa não foi Theocrática1.

Millos e eu nos reunimos com alguns gerentes e coordenadores para entender o que os funcionários da Karamanlis gostariam de ter em uma festa de encerramento do ano. Depois, contratamos todos os serviços – sem ser da Kyra, pois neste ano ela se livrou de nós na cara dura – e fizemos a festa focada nos funcionários.

Aparentemente, isso chocou e desagradou ao CEO com síndrome de deus, e sua cara fechada e seu olhar de desprezo não ficaram nada disfarçados.

— Ei, irmãozinho! — Eu o parei, enquanto andava como um deus do Olimpo visitando terráqueos. — Aproveitando a festa?

— Espero que não tenha vindo de moto! — o filho da puta tentou me repreender como se estivesse preocupado com minha segurança, e isso, juntamente a toda cerveja que eu já tinha tomado, irritou-me.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já muito bêbado para me conter. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos2!

Theodoros franziu o cenho com meu deboche, comparando seu nome à palavra deus em grego. Estava prestes a dizer algo, mas se conteve quando de repente fui abraçado pelos ombros. Nem precisei olhar para saber que nosso interventor havia chegado.

— Alex, que festança, não? — Millos comentou. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — Theodoros pareceu perplexo. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Gargalhei ao confirmar que ele era mesmo um grande egocêntrico, incapaz de perceber a diferença da festa deste ano à do ano passado por estar focado nos detalhes e não no que realmente importava: as pessoas.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — respondi como se estivesse sóbrio, mesmo não estando. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos me cortou.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — Theodoros perguntou ao Millos, apontando o dedo em minha direção como o grande babaca que sempre foi.

— Fui! — respondi. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Tentei demonstrar com gestos o que dizia, abri os braços de repente, e meu punho bateu no peito do Millos, que chegou para trás. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — olho para um grupo dançando e vários outros conversando, comendo e se divertindo — você está vendo alguém ir?

Ele ficou um tempo olhando em volta como se notasse, pela primeira vez desde que chegou, que realmente os funcionários estavam adorando a descontração deste ano.

Eu só não esperava que ele tentasse ser condescendente comigo:

— Bom trabalho! O pessoal parece realmente estar gostando!

Só faltou dar umas batidinhas em minha cabeça como se eu fosse a porra do seu cãozinho de estimação. Meu sangue ferveu, travei os punhos e não me contive:

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos interrompeu-me e me abraçou novamente pelos ombros. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Mal acabou de falar, seguiu para o outro lado, levando-me consigo.

— Porra, moleque, não tem como ser menos reativo não? A festa está um sucesso graças ao seu feeling, ao modo como você conhece e percebe as pessoas, para que estragar isso batendo boca ou — ele me encarou —, como percebi que queria fazer, enchendo a cara do Theo de porrada? Sai dessa!

Concordei com meu primo e respirei fundo. Depois disso tomei quase um litro de café amargo, ele me pôs em um Uber, e eu vim para casa, onde continuei a beber, desmaiei no sofá e, no outro dia, fui correr ainda um tanto trôpego, sendo desclassificado no teste do bafômetro.

Perdi minha última corrida do ano, grande fracassado que sou!

Volto a ligar minha playlist, e a música que toca é exatamente a que eu preciso para sair da fossa dessas lembranças todas:

— Eu não tenho nada pra dizer. Também não tenho mais o que fazer. Só para garantir esse refrão, eu vou enfiar um palavrão: cu!3


Entro no showroom da A??p?4 – a empresa de eventos de Kyra – e já admiro o trabalho dela com a decoração do local. A enorme mesa com vários lugares ocupa o centro do enorme salão, com castiçais, flores, louças e talheres milimetricamente colocados, junto a taças de cristal e guardanapos de linho.

No restante do salão, há mesas altas para apoiar drinques, sofás e poltronas brancas, com almofadas e outras coisas de decoração seguindo a paleta de cores da festa: verde, vermelho e dourado.

Clichê! Mas é Natal, tem como não ser?

Dou de ombros e vejo Kyra de costas, junto à belíssima morena que trabalha com ela desde que abriu a empresa e as duas chefes de cozinha que conheceu ainda quando trabalhava no outro bufê e as roubou na cara dura quando resolveu estabelecer seu próprio negócio. Uma delas, acho que é a doceira – Mari, como todos a chamam – me vê e logo cutuca minha irmã.

— Ah, Alex! — Kyra abre um enorme sorriso, entrega para a morena – como é mesmo o nome dela? – os penduricalhos de Natal com os quais enfeitava o enorme pinheiro e vem até mim. — Que bom que chegou, tenho uma coisa para você!

Ah, puta que pariu! Ela me comprou um presente? Fico imediatamente sem jeito, pois não comprei absolutamente nada para ela. Eu nem imaginava que iríamos trocar lembranças, nunca fizemos isso!

Alívio toma conta de mim quando ela vem com uma caixinha pequena e claramente de doces.

— Quando experimentei, lembrei logo de você. — Ela tira um doce dourado de dentro da caixa. — Prove!

Franzo o cenho e abro a boca. Mastigo devagar, emitindo sons de prazer, adorando o contraste de texturas e o sabor doce e... picante. Abro um sorriso.

— Chocolate com pimenta! — Termino de comer. — Perfeição!

— Bombom Helênico. — Faço careta para o nome, não combina em nada. — Eu sei, é péssimo, mas as meninas quiseram fazer uma homenagem para a Helena, então... — Dá de ombros.

Helena!, minha mente grita ao lembrar o nome da morena gostosa, mas que nunca sorri e mal fala comigo quando apareço aqui.

— Hum... gostosa! — Começo a rir quando noto que falei alto. Kyra me olha séria. — O quê?

— Nem pense, ela está comprometida!

Ergo as mãos em minha defesa.

— Não falei nada!

— Não precisa! Sua fama de embusteiro conquistador te precede! — Faço careta, e ela ri. — Estive com saudades de você.

— Então por que não foi me ver ou me ligou? — pergunto sem enrolação.

— Não sei.

Respiro fundo. Ela se fecha, é sempre assim e não só comigo. Ela se empolga, vibra, deixa as pessoas se aproximarem, mas nunca demais. Quando chega a seu limite, simplesmente retrocede com a mesma rapidez e naturalidade com que atraiu alguém. É por isso que suas amizades ou mesmo seus relacionamentos amorosos nunca duraram muito.

Porém o que faço eu aqui, julgando-a?

— Alexios Karamanlis! — Viro-me ao ouvir a voz de Millos.

Meu primo – filho de uma égua! – carrega uma enorme caixa de presente toda embrulhada e com laços. Kyra abre um enorme sorriso e vai saltitante até ele, abraça-o pelo pescoço – coisa que não faz nem comigo – e agradece o regalo.

— É para decorar sua sala de empresária fodona — ele brinca com ela, e Kyra gargalha ao tirar uma estátua toda colorida de um unicórnio. — Eu me lembrei daquela sua fantasia no dia das bruxas...

Kyra para de boca aberta.

— Millos, eu tinha quatro anos! — ela recorda e, de repente, parece lembrar também que, naquela época, tudo parecia realmente possível, mágico e feliz.

Meu primo a abraça forte e fala algo em seu ouvido, baixinho. Kyra assente, e eu fico paralisado vendo a troca de carinho entre eles. Parece normal, não é? Mas, creiam-me, não é. Millos evita qualquer contato físico com outras pessoas. Ao cumprimentá-las, ele prefere baixar a cabeça do que dar um aperto de mãos; o máximo que o vi fazer até hoje foi tocar no ombro de alguém, mas somente quando julga necessário. Até comigo, o máximo que ele fez até hoje foi me abraçar para evitar um embate entre mim e Theo. Então assistir aos dois se abraçando é realmente algo inédito.

— Feliz Natal, pesménos ángelos5.

Mostro o dedo do meio para ele.

— Ah, pesquisou! — Ri debochado, mas logo para ao aceitar o chope que Kyra nos oferece. — É um absurdo você não saber nada da nossa língua.

— Não tenho interesse algum por nada que venha de lá — justifico e bebo. — Kyra também não sabe!

— Quem disse? — Ela começa a rir. — Anóito6.

— Quando foi que você se interessou por essa porra? — questiono-lhe surpreso.

— Você leu o nome da empresa dela na fachada? — é Millos quem retorna minha pergunta. — Está em grego!

Millos e Kyra engatam uma conversa, enquanto eu ainda estou paralisado com essa nova informação. Não é exagero, mas eu pensei que ela, assim como eu, desprezasse qualquer coisa que tenha relação com Nikkós. No entanto, ao contrário de mim, ela sempre foi aceita por todos os Karamanlis como parte da família, então é natural que tenha algum apreço por eles.

— Ah, mais convidados estão chegando!

Kyra deixa-nos a sós e vai até um grupo que não conheço.

— Ela parece feliz — comento com Millos.

Meu primo dá de ombros.

— Há pessoas com o dom de demonstrar apenas o que querem que vejam. — Bebe o resto de seu chope e me encara. — Já resolveu o assunto do baile dos Villazzas?

— Ah, Millos, não fode mais a minha noite! — Vejo duas lindas mulheres adentrarem ao salão e abro um sorriso. — Pode ser que ela esteja começando a melhorar.

Millos ergue uma de suas sobrancelhas, e eu o deixo sozinho, caminhando em direção ao meu mais novo alvo da noite, que, neste exato momento, cumprimenta minha irmã.

— Kyra, eu gostaria de... — finjo interromper-me quando as desconhecidas me olham. — Desculpem-me. — Kyra rola os olhos, mas suas convidadas não desviam o olhar do meu rosto. — Millos estava falando do chope, e nós fizemos uma pequena aposta, mas posso ver isso depois, atenda seus convidados. — Abro novamente meu melhor sorriso na direção delas.

— Valéria e Priscila, esse é meu irmão, Alexios Karamanlis — Kyra faz nossa apresentação, e eu sei que depois irá jogar na minha cara que eu estou lhe devendo por isso.

— Um prazer, Valéria! — Aproximo-me para cumprimentá-la e logo depois saúdo a outra: — Prazer, Priscila.

— O prazer é meu, Alexios — Priscila responde, sorrindo, e vejo a mão de Valéria tocar suas costas num gesto um tanto territorialista. Perfeito! Trocamos beijos no rosto em cumprimento. — Eu já te vi em algumas revistas especializadas em engenharia e arquitetura, principalmente quando o conselho dessas classes era o mesmo.

— Arquiteta? — tento adivinhar, mas ela nega e aponta para sua amiga.

— Valéria é, eu sou designer industrial. — Faço cara de surpresa, mesmo sem achar nada de mais. — É, eu sei, a maioria das pessoas que me conhece acha que sou modelo ou estilista, mas você quase acertou. — Seu sorriso é claramente de quem se sente lisonjeada. — Trabalho conceitos para grandes marcas.

— Incrível! — Olho-a de cima a baixo, e Kyra bufa. — Você também parece incrível, Valéria. — Sorrio, e ela relaxa.

— Alexios, chegaram outros convidados, você poderia fazer companhia a elas? — Ela pega na mão das amigas. — Vocês não se importam, não é?

— Claro que não, você é a anfitriã da noite! — Valéria diz, e sinto seu olhar brilhar em minha direção. — Nós ficaremos em boa companhia com seu irmão, afinal, é o anjo rebelde dos Karamanlis.

Puta que pariu!

 

CONTINUA

Com um passado nebuloso, marcado por traumas, rejeições e violência, há anos Alexios Karamanlis busca entender a si mesmo e, para isso, começa uma caçada sem fim pelo destino de sua mãe biológica, junto a sua melhor amiga, Samara Schneider.
Amigos desde tenra idade, Alexios sempre tentou não a notar como mulher por temer perder sua amizade e apoio, e Samara sempre sonhou com o dia em que o garoto problemático e rebelde se apaixonaria por ela.
Juntos em busca de respostas sobre a verdadeira história do nascimento de Alexios, os dois mergulharão no sujo passado do pai dele, Nikkós Karamanlis, revelarão segredos muito bem guardados e, por fim, descobrirão que não há como reprimir mais a paixão e o desejo que sentem um pelo outro.

 

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O país todo está enlouquecido!, penso ao passar por mais uma blitz policial sem nenhum problema, acelerando a moto ao máximo, capacete preto espelhado impossibilitando qualquer um de ver que quem pilota essa máquina é um garoto, não um homem.

Eu não sou um homem! Não sou! Se fosse, não estaria aqui neste momento, mas sim na delegacia, gritando por aí, fazendo qualquer coisa que não apenas dar uma de burguesinho filho da puta endinheirado, acelerando uma moto que custa o mesmo que um apartamento popular, mesmo sem ter habilitação para isso, apenas para esquecer os problemas.

Eu sou um merda! E sou isso por causa “dele”!

Caralho! A Paulista está fechada por conta das comemorações do pentacampeonato. É, o Brasil conseguiu mais uma estrela no futebol, o país está eufórico como se não houvesse crianças na rua, assassinos à solta, a corrupção impedindo todo o sistema público de funcionar. Foda-se, somos penta!

Faço uma manobra rápida com a moto, deixando marcas dos grossos pneus no asfalto e sigo para outra direção, à procura de mais uma avenida extensa e reta para que eu possa extravasar todo o ódio dentro de mim indo ao limite da velocidade.

Paro a moto de repente e quase sou arremessado para frente. Meus músculos começam a tremer, meus olhos se enchem de lágrimas, sinto frio, meus dentes batem um no outro. Engulo em seco. Não vou chorar! Não choro mais, não há muitos anos.

Cada soco, cada pontapé, cada xingamento e mentira secaram minhas lágrimas. Elas até se instalam em meus olhos, porém não caem. Sufocam-me, quebram meu coração, desequilibram-me.

Caio no chão em um baque só, gemo de dor por causa do peso da moto sobre minha perna esquerda, mas não choro. Respiro fundo para controlar a dor, parar de tremer, diminuir os batimentos do meu coração. Estou acostumado a essa rotina de tentar não sentir dor, de tentar não sentir mais nada.

Levanto-me calmamente, sinto calafrios, manco, mas volto a subir na moto, acelerando-a, fazendo o motor girar e um ruído alto e potente se misturar aos sons das comemorações pelas ruas da cidade. Respiro fundo várias vezes e, quando não sinto mais nada, tiro o pé do chão e deixo a máquina me levar.

Eu queria poder fugir para o mais longe possível desta cidade, mas não dá, infelizmente não posso ir a lugar algum, estou preso, revivendo o mesmo inferno todos os dias, aceitando meu destino com resignação até poder livrar a mim e a Kyra do demônio que nos formou.

Eu poderia pedir ajuda ao Tim, mas sei que ele tem a própria merda para lidar e que conseguiu sair há pouco do inferno. Sei que precisava ir. Meu irmão estava por um fio, assim como eu, e, se ficasse lá conosco, seria para morrer ou matar, e, como não é da sua natureza matar, iria perecer aos poucos, como Nikkós gostaria que acontecesse.

Então ele foi, e eu fiquei incumbido de uma missão que nós aceitamos sem nem mesmo combinar nada, apenas porque sabíamos do que nosso pai era capaz e decidimos que não o deixaríamos chegar a ela.

Soluço na moto.

Eu falhei!

Eu falhei!

Eu falhei?!

Eu não sei! Simplesmente não sei o que aconteceu ontem! Acelero a moto, pegando uma rodovia, ainda tentando processar todos os acontecimentos e os flashes de memória que tenho.

Cometi um erro na noite passada, fui imprudente e agora preciso lidar com tudo o que aconteceu, mesmo sem entender direito o que houve. Enquanto piloto a moto, tento repassar cada momento de ontem, mesmo sabendo que já fiz isso várias e várias vezes sem nenhum êxito.

Nikkós finalmente viajou a trabalho – ou o que quer que ele tenha ido fazer –, e eu consegui relaxar um pouco. Mantenho constante vigilância sobre minha irmã, uma adolescente de 14 anos de idade, e evito ao máximo deixá-la sozinha com nosso pai. Não há muito que eu possa fazer para protegê-la das loucuras dele, mas o que está ao meu alcance, faço.

Por conta disso, desde que ingressei na universidade – no começo desse ano –, desdobro-me ao máximo para curtir com meus amigos e proteger a Kyra. A babá anterior era a mesma desde quando minha irmã e eu nascemos, totalmente devota ao nosso pai, então, assim que Konstantinos tomou posse de sua herança, demos um jeito de nos livrar dela, e, assim que outra foi contratada, meu irmão se encarregou de pagar uns extras para ela manter os olhos em Kyra.

Nikkós sempre foi um filho da puta covarde, ele nunca iria deixar um serviçal ver o que ele é capaz de fazer aos filhos, por isso tinha seus próprios lugares para executar suas torturas em Kostas e em mim.

Noite passada, uma galera mais velha da universidade fechou uma boate e me convidou para festejar com eles. Estávamos entrando de férias e queríamos muito desopilar o fígado, relaxar, curtir e esquecer todas as pressões dos estudos.

Como Nikkós não estava em casa, e a babá estava por lá com Kyra, por que não ir? Foi esse meu erro!, penso ao relembrar.

 

— O grande Alexios Karamanlis! — Alberto Bragança me saúda assim que entro na boate. — Achei que você não vinha mais, mano!

Ele me entrega uma caneca de 500ml de chope e um cartão para o restante do consumo, e logo vejo os outros caras em uma mesa no fundo do salão. A música alta, tocando um “batestaca” qualquer, não chama minha atenção. Sigo, então, na direção do pessoal e, mal chego lá, peço mais uma rodada de chope para todos.

Meu pai é um grande filho da puta, torturador desgraçado, mas, para manter as aparências, deixa-nos usar cartão sem limites e nos entrega uma mesada gorda. Bebo, sentindo o gosto do chope se tornar mais amargo que o normal, consciente de que essa porra toda é dele, comprada com o seu maldito dinheiro.

— Jefinho está na área! — alguém grita comemorando. — Vamos começar a diversão! Quem vai?

Sou um dos primeiros a me levantar, viro o resto da bebida e sigo com mais cinco amigos para o banheiro, atrás do traficante oficial da turma. Vejo cada um pegando “no bufê do Jeff” sua viagem preferida e pego um pino de “coca” para começar bem a noite.

“Foda-se, Nikkós Karamanlis!”

Cheiro.

“Foda-se, Sabrina Karamanlis!”

Aspiro mais um pouco.

“Foda-se, Theo Karamanlis!”

Faço outra carreira com o restante do pó.

“Foda-se, Geórgios Karamanlis!”

Seguro a narina fechada, mantendo tudo dentro de mim, sentindo já meu corpo girar, o cérebro acelerar e todas as sensações de abandono e dor se esvaírem como num passe de mágica. Só existe prazer, nenhuma dor, tudo é maravilhoso!

Compro mais três pinos de cocaína e alguns comprimidos de êxtase. Essa noite não quero dormir, quero aproveitar, dançar, zoar, pegar umas universitárias e esquecer quem sou.

Começo a rir de mim mesmo, da piada que acabei de pensar. Esquecer quem sou só seria possível se eu soubesse quem sou.

“Eu não sou ninguém!”

Meu Nokia vibra com a chegada de uma mensagem, confiro ser de Samara, minha única e melhor amiga, e volto a colocá-lo no bolso ao perceber a aproximação de uma gostosa do quarto ano.

— Eu não acredito que você é menor de idade, Alex! — A garota, com luzes nos cabelos e vestido com apenas uma alça, passa a mão no meu peito. — Você não parece ser um garoto, mesmo com esse rostinho angelical.

Respiro fundo para não perder a paciência, pois, se há algo que me irrita muito, é quando dizem que eu pareço um anjo. Aproximo-me dela e a puxo pela cintura.

— Posso provar que não sou um anjo! — Pego sua mão e a levo até a frente da minha calça. A garota arregala os olhos. — Os demônios com cara de anjo são os piores, gata!

— Uau! — Ela lambe meu pescoço. — O que você tomou?

— Coca, mas tenho “bala” no meu bolso. — Ela ronrona, e eu me animo. — Vem comigo!

Levo-a para uma área nos fundos da boate, uma espécie de depósito que se encontra aberto, uma vez que a casa está funcionando apenas para um bando de playboys endinheirados que preferem não se misturar com a ralé e, assim, fazer suas merdas longe dos olhos curiosos da plebe.

Claro! Afinal de contas, aqui estão reunidos os filhos dos maiores empresários, advogados, médicos, juízes e a porra toda elitizada desta cidade decadente. Bando de fodidos! A maioria desconta, como eu, a falta de afeto e atenção em casa gastando dinheiro, promovendo rachas pelas ruas, consumindo todo tipo de droga tentando preencher o buraco negro instalado nas nossas almas.

“Foda-se!”

Seguro a garota contra a parede fria do depósito e, sem nem mesmo perguntar seu nome, ataco sua boca com fúria, mordendo seus lábios e sugando sua língua. Ela mexe em minha calça, abre-a e retira meu pau para um tratamento especial em suas mãos macias.

— Novinho e pauzudo... — ela geme. — Cadê a balinha para deixar tudo mais divertido?

Sorrio e nego.

— Tem que merecer.

Ela sorri e, sem que eu precise sequer lhe indicar o que quero, ajoelha-se no chão grosso e toma meu pau em sua boca quente e esfomeada. Gemo, gostando da carícia, seguro-a pelos cabelos e a forço a engolir o máximo que consegue.

Tenho quase 17 anos, mas aposto com quem quer que seja que nenhum desses caras daqui tem a metade da experiência sexual que eu. E não, não “tiro onda” com isso, afinal, quem é filho de Nikkós Karamanlis não tem muita escolha sobre quando vai começar a trepar, ele simplesmente impõe, e comigo isso aconteceu quando eu tinha 11 anos de idade.

Afasto o pensamento pestilento sobre meu pai e curto a chupada gostosa que a garota ajoelhada me dá. Ela lambe, chupa, suga com força, arranha com os dentes – coisa que me excita “pra caralho” – e segura minhas bolas com vontade. Percebo que ela quer fazer o serviço completo com a boca, mas definitivamente ela não me conhece.

Ergo-a de uma vez só e a ponho de cara contra a parede. Procuro a camisinha no bolso da calça – uma coisa que se aprende quando se começa a vida sexual trepando com putas é que preservativos nunca podem faltar –, plastifico meu pau e levanto o vestido dela.

Bunda gostosa, magra, mas gostosa “pra cacete” com uma calcinha de cor forte – não sei se vermelha ou rosa; não divago muito sobre a cor, mesmo porque é irrelevante –, afasto a peça e esfrego os dedos em sua boceta depilada.

Ela ofega, rebola gostoso na minha mão. Vou penetrando-a devagar com os dedos, recolhendo um pouco da umidade de dentro de sua vagina para usá-la exatamente no ponto onde quero. Massageio seu clitóris até que ela se contraia em gozo e volto a molhar seu rabo com a lubrificação que solta.

Ela fica tensa quando encaixo a cabeça do meu pau em seu ânus apertado.

— Alex...

— Psiu... — falo devagarzinho em seu ouvido, lambendo sua orelha enquanto vou me afundando no canal estreito, sentindo meu corpo todo reagir à pressão de um local nunca ou pouco explorado. — Eu disse a você. — Ela arfa quando me encaixo por completo em seu rabo. — Os demônios com cara de anjo são os piores!

Meto com força e continuo estimulando seu clitóris, beijando e mordendo seu pescoço, até que ela explode em um orgasmo foda, e eu me deixo ir na camisinha, ainda sentindo as contrações do seu corpo. Quando ela se vira para me beijar, estico minha língua com sua recompensa na ponta. A garota sorri e chupa a drágea com vontade, enquanto eu engulo a outra.

A noite só começou!

 

Paro a moto em frente ao prédio onde Konstantinos mora. Fico parado olhando para o alto, invejando a liberdade de meu irmão, a coragem que teve ao se libertar assim que pôde do nosso pai. Ele estuda no Largo de São Francisco, vai ser um advogado e, mesmo que tenha tentado disfarçar, ficou contente quando contei que havia passado em todos os vestibulares para os quais havia prestado.

— Vai para algum lugar longe da cidade? — Kostas não escondeu sua preocupação.

— Não, vou ficar aqui — respondi com sinceridade, mesmo que minha vontade fosse ir para o mais longe possível deste inferno de lugar. — Vou continuar no apartamento de Nikkós, pelo menos até a Kyra fazer 18 anos.

Ele respirou fundo, e nossa conversa por telefone acabou aí. Nós não precisávamos externar nossa preocupação um para o outro, sabíamos do que nosso pai era capaz e do perigo que Kyra corria estando sob o mesmo teto que ele. Kostas saiu de casa, pois nunca soube lidar com Nikkós, ao contrário de mim.

O grego maluco tentou fazer comigo o mesmo que fazia com o meu irmão, porém nunca pensou que não me afetaria, então mudou de tática. O desgraçado tentava me acertar no único ponto que realmente me doía, mas ainda assim eu resistia em demonstrar alguma dor, então ele me fazia sentir na carne.

Esfrego a mão no ombro esquerdo, quebrado há dois anos no que todos acreditaram ser um acidente enquanto eu andava de skate, sem saber que quase tive o braço arrancado pelo homem louco, bêbado e drogado a quem todos respeitavam como um exemplo de pai, criando seus filhos sozinho depois de ter sido abandonado pela mulher.

Farsante dissimulado! Nunca amou ninguém, nunca se preocupou ou se dedicou a ninguém, nem a si mesmo. Eu só não entendo o motivo pelo qual ele não deixou que a puta que me gerou abortasse ou mesmo por que não me deixou com ela.

Eu sou um covarde! Rio, ligando a moto de novo.

Meu maior sonho é vê-lo morto, desejei e planejei isso tantas vezes, de tantas maneiras diferentes, que sei todos os passos de cor. No entanto, nunca tive coragem... Respiro fundo.

Pelo menos até essa madrugada!

Não faço ideia de como cheguei a casa, estava doidão, alto demais, cheirava a cerveja, maconha, sexo e perfumes variados. Não sei nem com quantas garotas trepei à noite, sei que algumas só mamaram meu pau, mas, com outras, a coisa foi mais louca.

Não consigo me lembrar de muita coisa. Só tenho sensações ruins de quando cheguei ao apartamento e percebi que Nikkós havia voltado. Nas memórias, há gritos, choro, mas nenhuma imagem. Tudo o que tenho nítido na cabeça foi o que aconteceu depois que acordei.

Estava deitado na sala principal do apartamento, minhas roupas sujas de sangue, rasgadas, um hematoma no olho e um corte no canto da boca já me incomodando. Não sabia nem onde estava, só sentia dor, confusão, e vomitei ali mesmo, no tapete da sala.

Ao meu lado vi uma faca suja de sangue. Gelei, sem saber o que tinha feito e de quem era o líquido viscoso e vermelho que cobria toda a lâmina. Foi nesse momento que saí do torpor em que me encontrava, peguei o objeto e comecei a correr pela enorme cobertura, entrando em todos os cômodos.

— Kyra! — gritava, mesmo com a cabeça explodindo. — Kyra!

Minha irmã não estava em lugar algum, nem mesmo a Nívea, a senhora que cuidava dela, eu pude encontrar. Meu desespero só aumentou. Liguei para o telefone dela, mas estava dando na caixa de mensagens.

Comecei a soluçar, mesmo não derramando uma só lágrima, e entrei no local proibido da casa, o santuário satânico de Nikkós Karamanlis: seu quarto.

Estanquei quando vi seu corpo enorme e nu jogado sobre a cama king size. Notei os cortes em seus braços, bem como o movimento de respiração, seguido dos roncos altos. O filho da puta não estava morto! Apertei a faca em minha mão com mais força, pensando que esse seria o momento certo para livrar a todos de sua existência.

Andei até ele devagar, os nós dos dedos brancos de tão firme que segurava a faca. Medi suas costas, imaginando que seria muito fácil perfurar seu pulmão com uma só estocada no lugar certo e que ele morreria afogado em seu próprio sangue lentamente, em uma morte digna dele.

Ergui a faca, fechei os olhos, parei de tremer e me lembrei de todos os anos de abuso e de tortura, do que ele fazia ao Kostas, do que fazia comigo e do que poderia fazer a Kyra.

Respirei fundo, concentrei a força e desci a faca, mas parei a milímetros de sua pele quando ouvi soar a campainha. Joguei a arma para longe e saí correndo daquele cômodo pestilento, descendo as escadas disparado para atender a porta, torcendo para que fossem Nívea e Kyra.

— Alexios? — a voz de Samara me fez prender o fôlego. — Alexios, você está aí?

Abri a porta sem pensar duas vezes e desmontei ao ver minha irmã ao lado da minha melhor amiga. Kyra, minha pequena princesa, linda como uma pintura, seus olhos enormes e verdes cheios de lágrimas e os lábios trêmulos.

— Ainda bem! — exclamei aliviado, puxando-a para meus braços. — Ainda bem!

— Alexios, você precisa de ajuda? — Samara questionou, olhando tudo em volta. — Ontem à noite a senhora Nívea pediu que Kyra ficasse comigo e...

Segurei o rosto de minha irmã, desgostoso por saber que ela mal fala por conta do monstro que temos em casa, sequei as lágrimas que escorriam por seu rosto miúdo e assustado e perguntei:

— O que houve?

Ela deu de ombros.

— Ele voltou mais cedo, estava bêbado, mandou Nívea embora. — Sinto um arrepio de frio percorrer minha coluna. — Os dois discutiram. — Ela soluçou. — Ele bateu nela, ela desmaiou...

— E você, onde estava?

Kyra desviou os olhos, e eu senti como se um soco acertasse a boca do meu estômago. Olhei para Samara em busca de uma resposta, mas minha amiga apenas deu de ombros, indicando que minha irmã também não falou com ela.

— Quando ela acordou, me levou para o apartamento da Malinha, e aí eu fiquei lá. — Kyra olhou em direção ao corredor. — Ele ainda está...

Assenti.

— Vá para o seu quarto, tranque a porta, tome um banho; daqui a pouco vou me encontrar com você. — Ela tentou sorrir em agradecimento para Samara, mas depois desistiu, seguindo diretamente para seu quarto. — Samara...

— Vocês precisam denunciar isso! — Ela tocou meu rosto. — Você é só um garoto, Alexios, não pode proteger vocês dois.

— Posso! — afirmei cheio de raiva. — Você sabe muito bem que, se uma denúncia for feita, ela será tirada de nós. Eu ficarei um ano em algum abrigo, mas e ela?

— O Tim não pode...

Neguei.

— Não acho que o deixariam cuidando de dois adolescentes, ele só tem 20 anos! — Fechei os olhos, cansado, com medo, sem saída e senti quando ela me abraçou apertado.

— Onde você esteve ontem à noite?

— Fui me divertir...

— Não. — Seus olhos lindíssimos encararam os meus. — Você não se diverte, Alexios, você tenta se matar. — Passou a mão pelo meu rosto. — Quanto usou?

Dei de ombros, não querendo discutir isso com ela. Nunca termina bem!

— Isso não ajuda ninguém. Nem a você, muito menos à sua irmã. — Tentou sorrir para disfarçar o sermão, seus dentes cheios de plaquinhas do aparelho ortodôntico, o rosto redondo de menina fazendo covinhas, coisa que ela sempre teve e sempre achei lindo. — Eu sei que só tenho 15 anos, mas...

— Eu agradeço que você tenha feito companhia a Kyra, mas agora preciso resolver tudo aqui. — Apontei para a sala. — Ficou tudo bem com seus pais?

— Sim, não acharam nada estranho que Kyra dormisse lá em casa, afinal, somos amigas.

Ri amargamente.

— Essa amizade é aceitável para os Schneiders, não é? — Samara ficou vermelha. — Kyra é uma boa menina, não um porra-louca como eu, filho de uma puta e...

Samara pôs a mão sobre minha boca.

— Você é meu melhor amigo, apenas isso deveria te bastar para calar qualquer outra coisa que meus pais possam pensar de você.

Abracei-a forte, a consciência pesada por falar mal de sua família, pois sei quanto ela os ama, depois me despedi e tratei de limpar a sala, jogar a roupa que usava fora e fiquei até há pouco com minha irmã, ambos trancados no seu quarto.

Só saí para espairecer, para processar tudo o que aconteceu na madrugada passada, pois mais uma vez Samara agiu como um anjo e convidou minha irmã para assistir à final da Copa do Mundo com ela e depois terem uma noite de meninas, com direito a festa do pijama.

Entro na garagem do prédio, mando uma mensagem para Samara informando-a de que cheguei e que estou indo buscar minha irmã. Sinceramente eu não sei como vou fazer até encontrar outra pessoa de confiança para deixar com Kyra quando eu não estiver em casa, pois Nívea disse que nunca mais colocará os pés no nosso apartamento, depois de ter recebido uma boa quantia para que não denunciasse o que se passa dentro de nossa casa, pois entendeu que prejudicaria Kyra.

Não importa! Kyra precisa de mim, e, nem se eu precisar mudar toda minha rotina por causa dela, a terei protegida.


São Paulo, tempo atuais.


Acordo com uma dor de cabeça filha da puta, ressacado, tão zonzo que tropeço ao sair da cama, e a primeira coisa que me vem à cabeça nesta manhã (ou será nesta tarde?) é que hoje é véspera de Natal. Foda-se! Sou ateu, esses feriados religiosos não significam nada para mim.

Sigo pelo corredor em direção à cozinha, com muita sede, louco para tomar um analgésico para exterminar a dor de cabeça. Não vou tomar! Não tomo remédios para dor há anos, aprendi a conviver com as pontadas, com as ardências. A dor me tornou mais forte, resiliente, aprendi há muito que nada é capaz de me ferir mais do que eu mesmo.

A maioria dos meus ossos trazem lembranças de como superei, as marcas no meu corpo também, porém, nenhuma dessas cicatrizes é mais forte do que o vazio dentro de mim.

Encho um copo d’água até transbordar e o bebo em um só gole. A cabeça martela ainda mais por conta da bebida gelada, mas ignoro-a por completo. Não há remédio para o que sinto, não há cura para toda a raiva que carrego dentro de mim, então posso, sim, conviver com umas horas de pontadas no cérebro.

Olho para a porta fechada na área de serviço. Os cômodos dali eram a tal dependência de empregados, mas, como eu nunca tive nenhum, aproveitei-os para outros fins. Inspiro, os cheiros tão familiares chegando às minhas narinas. A raiva natural com que acordo todos os dias se aplaca; não some, apenas se recolhe, dando lugar às sensações de prazer.

Confiro as horas e xingo ao perceber que já estamos no meio da tarde. Sinceramente, não sei por que Kyra inventou essa ceia de Natal, não depois de todos esses anos. Não entendo minha irmã, sinceramente. Há muito convivo com seu gênio forte, sua determinação, mas ainda não sei quem é ela. A garota divertida da infância se tornou uma adolescente quieta e taciturna, uma jovem inteligente e ajuizada e, por fim, uma adulta completamente misteriosa. Eu a acompanhei em todas as fases de sua vida, mas ainda assim não sei quem é a verdadeira Kyra Karamanlis.

Assim que ela completou 18 anos, abandonamos a luxuosa cobertura de Nikkós e fomos morar em um cafofo velho e caindo aos pedaços. Eu estudava como um louco no meu último ano de faculdade, e, como ela passou para uma universidade pública também, tínhamos que morar próximo de uma das duas universidades. Preferi ficar próximo da dela e me fodia andando de bicicleta até a minha todos os dias.

Nessa época eu estagiava na Novak Engenharia e, com a bolsa do estágio, eu mal conseguia pagar o aluguel do quarto e sala que aluguei. Ela nunca soube, mas quem bancava nossa alimentação, transporte e outras despesas era o Kostas. Meu irmão e eu nem éramos amigos, na verdade mal nos falávamos, mas todo mês o dinheiro aparecia na minha conta, e eu sabia que vinha dele.

Formei-me e já fui efetivado na Novak. Trabalhei com o Nicholas, com quem aprendi demais e construí uma amizade forte, assim como com seu irmão Bernardo. Os tempos de bagunça, baladas, drogas e bebidas acabaram quando nos libertamos da prisão daquele apartamento e da convivência maligna de Nikkós.

Kyra estudava muito, era extremamente aplicada em tudo o que fazia, e, irritada por não conseguir conciliar seu horário de estudos com um emprego, começou a fazer doces e salgados dentro do nosso pequeno apartamento e vendê-los na faculdade.

Rio ao pensar que foi assim que nasceu a promoter de eventos, em uma cozinha de seis metros quadrados, com um forno capenga, um fogão com só duas bocas funcionando e uma geladeira que parecia um monomotor, de tanto barulho que fazia. Em pouco tempo ela estava fornecendo encomendas para festas e pequenos eventos, depois começou a fazer projetos de decoração, então, quando se formou, foi trabalhar em um grande e caríssimo bufê da cidade, auxiliando a cerimonialista com os projetos.

Hoje ela é a dona de uma empresa especializada em produções de eventos diversos, bem-sucedida, com um negócio em progressão geométrica de crescimento. Tenho muito orgulho dela, principalmente por ser a única que não ficou agarrada ao cordão umbilical familiar dentro da Karamanlis.

Agora qual a necessidade da porra de uma ceia de Natal para comemorar a expansão de seu negócio? Vou ter que ficar com um maldito sorriso no rosto, carinha de anjo, lidando com o caralho da minha gastrite me corroendo ao pensar na hipocrisia do mundo.

Respiro fundo e decido combater a ressaca e a dor de cabeça com mais bebida. Pego uma cerveja na geladeira, abro-a na beirada da pia e entro no outro ambiente, a sala, integrada ao outro cômodo, separados apenas por uma enorme bancada.

Eu mesmo projetei esse prédio, há alguns anos, ainda trabalhando na Novak. Bernardo Novak é meu vizinho de porta, e Nicholas foi o primeiro dono da cobertura duplex que toma todo o último andar, hoje habitada por um casal e uma menininha. Comprei o apartamento pensando em vir morar com minha irmã, mas qual não foi minha surpresa quando ela anunciou que só sairia do cafofo para seu próprio lugar?

Pois é, vim sozinho, ocupo apenas a suíte principal, e os outros dois quartos estão praticamente vazios. A sala foi decorada – pela própria Kyra –, bem como a cozinha, mas nunca mandei fazer os móveis da sala de jantar, pois não vejo nenhuma função para eles. Eu como sozinho no balcão da cozinha, assistindo a TV ou ouvindo música.

Resgato meu celular, seleciono uma das minhas muitas playlists, e a caixa de som já liga automaticamente, deixando o som pesado do Matanza ecoar pelos ambientes. Sorrio ao ouvir “Bom é quando faz mal”, as recordações das loucuras da faculdade, de toda a merda que eu fazia. Não tenho vontade alguma de fazer de novo, mas também não posso dizer que me arrependo. Era o meu jeito de extravasar, tresloucado, admito, mas ainda assim muito mais normal do que o que eu vivia dentro de casa.

Preparo qualquer coisa para comer, balançando a cabeça e cantando as músicas de várias bandas de rock, algumas famosas, outras nem tanto, mas que marcaram minha vida de alguma forma.

O telefone toca, e a chamada atrapalha minha diversão musical. Bufo, jogo o pano de prato sobre a pia e pego o aparelho.

— Oi, Millos — atendo meu primo.

— Boa tarde, Alexios. Animado com a reunião de hoje à noite?

— Ô, tão quanto eu estaria para fazer um exame de próstata. — Millos gargalha. — Ela convidou você também?

— E o Kostas. — Isso me surpreende, pois, até onde eu sei, não temos nenhuma convivência com ele. — Bom, liguei para dizer que irei viajar na virada do ano, por isso preciso que você não deixe de ir ao baile dos Villazzas.

Gemo ao pensar em vestir um smoking.

— Porra, Millos, não fode! Aposto que Theodoros vai, afinal Frank e ele são quase um casal! — Millos ri do meu deboche acerca da amizade entre meu irmão mais velho e o CEO da rede Villazza de hotéis. — Não tenho a mínima...

— Konstantinos confirmou presença também.

Puta que pariu!

Preciso me sentar depois dessa informação, pasmo só em imaginar Kostas com alguma puta, sentado na mesma mesa de Theodoros. Vai dar merda!

— Eu não tenho companhia — tento me justificar. — E você poderia adiar a sua viagem só por uns...

— Não, não posso, já fiz todos os arranjos, reservas em hotéis, o cronograma da viagem! Você tem que ir para evitar que os dois prejudiquem a imagem da empresa.

Reviro os olhos ao pensar na imagem da empresa. Millos é doido ao pensar que temos uma imagem a zelar. Todos nesta maldita cidade, neste meio asqueroso no qual vivemos, sabem que somos todos fodidos e que nosso pai cagou em nosso nome com a sucessão de merdas que fez.

E olha que a maioria não o conheceu de verdade, não soube o monstro que ele era, escondido por detrás de uma fachada bonita e um sorriso de conquistador barato! Um lobo em pele de cordeiro, um demônio com a face de um anjo... assim como eu.

Bufo de raiva.

— Cadê aquela sua amiga? — Franzo a testa, sem acreditar que ele está se referindo à Samara. — Vocês viviam para cima e para baixo juntos, ela te acompanhou em um dos primeiros eventos dos Villazzas e...

— A Samara mora em Madri há mais de três anos, Millos. — Decido não entrar em detalhes e contar a ele que nos afastamos por algum motivo idiota que eu não consigo lembrar. — Vou ter que ligar para alguma...

— Isso, ligue — ele me corta. — Mulher nunca foi seu problema, aposto que você tem um caderninho cheio de telefones.

— E daí? — afronto-o. — Gosto de sexo, nunca escondi isso, diferente de você, que nunca foi visto com nenhuma mulher além daquela sua amiga motoqueira. — Decido provocá-lo: — Millos, acho que está na hora de sair do armário, porra!

O filho da puta ri alto.

— Eu não teria problema algum em sair se fosse o caso. Ainda mais agora, que Dimitrios saiu, e o pappoús continuou vivo e... — Millos para.

É sempre assim quando algum assunto referente à família na Grécia vem à tona. Eu não conheço ninguém, nunca fui à Grécia, nem tenho a mínima vontade de ir. Não conheço o tal pappoús, nem primo algum além de Millos, que só conheci quando veio morar no Brasil.

Sou o Karamanlis renegado, indigno do sobrenome.

— Vou ligar para alguém e convidar a ir comigo — encerro o assunto constrangedor. — Mas não garanto atuar de mediador como você.

— Você, mediador? — Millos se surpreende. — Alexios, se eu não tivesse interferido, você teria criado uma situação com Theodoros na festa de final de ano da Karamanlis. Eu só quero que você vá com alguém e iniba um pouco aqueles dois.

Bufo e concordo.

— Eu vou.

— Obrigado. — Estou prestes a desligar, quando ele me chama de novo: — Ah, Alexios, não encha a cara, senão você vai falar merda para o Theo, e o Kostas vai se aproveitar disso.

— Vai se foder, Millos! Eu já vou, porra, não diga o que tenho que fazer.

Desligo irritado, perco a fome e a vontade de terminar o que estava preparando.

Mesmo puto, preciso admitir, Millos tem razão sobre eu perder a cabeça com Theodoros, principalmente quando bebo. Eu não odeio meu irmão mais velho como sei que Kostas o faz, apenas ele não significa mais nada para mim.

Convivo bem com ele, pelo menos no sentido profissional, mas não quero nenhum tipo de ligação mais pessoal. Ele perdeu o timing quando, depois de toda a merda que ajudou a fazer, nunca mais quis saber de nós. Era como se nem existíssemos! Ele excluiu Nikkós de sua vida, mas acabou nos descartando junto. Nunca se preocupou em saber de nenhum de seus irmãos, muito menos de sua adorada Kyra, a mais vulnerável de todos nós.

Então, sim, eu perco a cabeça com ele, principalmente com seu jeito esnobe, intocável, como se somente ele importasse e mais ninguém. E foi por isso que nos estranhamos na festa de final de ano da Karamanlis, porque, simplesmente, este ano a festa não foi Theocrática1.

Millos e eu nos reunimos com alguns gerentes e coordenadores para entender o que os funcionários da Karamanlis gostariam de ter em uma festa de encerramento do ano. Depois, contratamos todos os serviços – sem ser da Kyra, pois neste ano ela se livrou de nós na cara dura – e fizemos a festa focada nos funcionários.

Aparentemente, isso chocou e desagradou ao CEO com síndrome de deus, e sua cara fechada e seu olhar de desprezo não ficaram nada disfarçados.

— Ei, irmãozinho! — Eu o parei, enquanto andava como um deus do Olimpo visitando terráqueos. — Aproveitando a festa?

— Espero que não tenha vindo de moto! — o filho da puta tentou me repreender como se estivesse preocupado com minha segurança, e isso, juntamente a toda cerveja que eu já tinha tomado, irritou-me.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já muito bêbado para me conter. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos2!

Theodoros franziu o cenho com meu deboche, comparando seu nome à palavra deus em grego. Estava prestes a dizer algo, mas se conteve quando de repente fui abraçado pelos ombros. Nem precisei olhar para saber que nosso interventor havia chegado.

— Alex, que festança, não? — Millos comentou. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — Theodoros pareceu perplexo. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Gargalhei ao confirmar que ele era mesmo um grande egocêntrico, incapaz de perceber a diferença da festa deste ano à do ano passado por estar focado nos detalhes e não no que realmente importava: as pessoas.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — respondi como se estivesse sóbrio, mesmo não estando. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos me cortou.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — Theodoros perguntou ao Millos, apontando o dedo em minha direção como o grande babaca que sempre foi.

— Fui! — respondi. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Tentei demonstrar com gestos o que dizia, abri os braços de repente, e meu punho bateu no peito do Millos, que chegou para trás. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — olho para um grupo dançando e vários outros conversando, comendo e se divertindo — você está vendo alguém ir?

Ele ficou um tempo olhando em volta como se notasse, pela primeira vez desde que chegou, que realmente os funcionários estavam adorando a descontração deste ano.

Eu só não esperava que ele tentasse ser condescendente comigo:

— Bom trabalho! O pessoal parece realmente estar gostando!

Só faltou dar umas batidinhas em minha cabeça como se eu fosse a porra do seu cãozinho de estimação. Meu sangue ferveu, travei os punhos e não me contive:

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos interrompeu-me e me abraçou novamente pelos ombros. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Mal acabou de falar, seguiu para o outro lado, levando-me consigo.

— Porra, moleque, não tem como ser menos reativo não? A festa está um sucesso graças ao seu feeling, ao modo como você conhece e percebe as pessoas, para que estragar isso batendo boca ou — ele me encarou —, como percebi que queria fazer, enchendo a cara do Theo de porrada? Sai dessa!

Concordei com meu primo e respirei fundo. Depois disso tomei quase um litro de café amargo, ele me pôs em um Uber, e eu vim para casa, onde continuei a beber, desmaiei no sofá e, no outro dia, fui correr ainda um tanto trôpego, sendo desclassificado no teste do bafômetro.

Perdi minha última corrida do ano, grande fracassado que sou!

Volto a ligar minha playlist, e a música que toca é exatamente a que eu preciso para sair da fossa dessas lembranças todas:

— Eu não tenho nada pra dizer. Também não tenho mais o que fazer. Só para garantir esse refrão, eu vou enfiar um palavrão: cu!3


Entro no showroom da A??p?4 – a empresa de eventos de Kyra – e já admiro o trabalho dela com a decoração do local. A enorme mesa com vários lugares ocupa o centro do enorme salão, com castiçais, flores, louças e talheres milimetricamente colocados, junto a taças de cristal e guardanapos de linho.

No restante do salão, há mesas altas para apoiar drinques, sofás e poltronas brancas, com almofadas e outras coisas de decoração seguindo a paleta de cores da festa: verde, vermelho e dourado.

Clichê! Mas é Natal, tem como não ser?

Dou de ombros e vejo Kyra de costas, junto à belíssima morena que trabalha com ela desde que abriu a empresa e as duas chefes de cozinha que conheceu ainda quando trabalhava no outro bufê e as roubou na cara dura quando resolveu estabelecer seu próprio negócio. Uma delas, acho que é a doceira – Mari, como todos a chamam – me vê e logo cutuca minha irmã.

— Ah, Alex! — Kyra abre um enorme sorriso, entrega para a morena – como é mesmo o nome dela? – os penduricalhos de Natal com os quais enfeitava o enorme pinheiro e vem até mim. — Que bom que chegou, tenho uma coisa para você!

Ah, puta que pariu! Ela me comprou um presente? Fico imediatamente sem jeito, pois não comprei absolutamente nada para ela. Eu nem imaginava que iríamos trocar lembranças, nunca fizemos isso!

Alívio toma conta de mim quando ela vem com uma caixinha pequena e claramente de doces.

— Quando experimentei, lembrei logo de você. — Ela tira um doce dourado de dentro da caixa. — Prove!

Franzo o cenho e abro a boca. Mastigo devagar, emitindo sons de prazer, adorando o contraste de texturas e o sabor doce e... picante. Abro um sorriso.

— Chocolate com pimenta! — Termino de comer. — Perfeição!

— Bombom Helênico. — Faço careta para o nome, não combina em nada. — Eu sei, é péssimo, mas as meninas quiseram fazer uma homenagem para a Helena, então... — Dá de ombros.

Helena!, minha mente grita ao lembrar o nome da morena gostosa, mas que nunca sorri e mal fala comigo quando apareço aqui.

— Hum... gostosa! — Começo a rir quando noto que falei alto. Kyra me olha séria. — O quê?

— Nem pense, ela está comprometida!

Ergo as mãos em minha defesa.

— Não falei nada!

— Não precisa! Sua fama de embusteiro conquistador te precede! — Faço careta, e ela ri. — Estive com saudades de você.

— Então por que não foi me ver ou me ligou? — pergunto sem enrolação.

— Não sei.

Respiro fundo. Ela se fecha, é sempre assim e não só comigo. Ela se empolga, vibra, deixa as pessoas se aproximarem, mas nunca demais. Quando chega a seu limite, simplesmente retrocede com a mesma rapidez e naturalidade com que atraiu alguém. É por isso que suas amizades ou mesmo seus relacionamentos amorosos nunca duraram muito.

Porém o que faço eu aqui, julgando-a?

— Alexios Karamanlis! — Viro-me ao ouvir a voz de Millos.

Meu primo – filho de uma égua! – carrega uma enorme caixa de presente toda embrulhada e com laços. Kyra abre um enorme sorriso e vai saltitante até ele, abraça-o pelo pescoço – coisa que não faz nem comigo – e agradece o regalo.

— É para decorar sua sala de empresária fodona — ele brinca com ela, e Kyra gargalha ao tirar uma estátua toda colorida de um unicórnio. — Eu me lembrei daquela sua fantasia no dia das bruxas...

Kyra para de boca aberta.

— Millos, eu tinha quatro anos! — ela recorda e, de repente, parece lembrar também que, naquela época, tudo parecia realmente possível, mágico e feliz.

Meu primo a abraça forte e fala algo em seu ouvido, baixinho. Kyra assente, e eu fico paralisado vendo a troca de carinho entre eles. Parece normal, não é? Mas, creiam-me, não é. Millos evita qualquer contato físico com outras pessoas. Ao cumprimentá-las, ele prefere baixar a cabeça do que dar um aperto de mãos; o máximo que o vi fazer até hoje foi tocar no ombro de alguém, mas somente quando julga necessário. Até comigo, o máximo que ele fez até hoje foi me abraçar para evitar um embate entre mim e Theo. Então assistir aos dois se abraçando é realmente algo inédito.

— Feliz Natal, pesménos ángelos5.

Mostro o dedo do meio para ele.

— Ah, pesquisou! — Ri debochado, mas logo para ao aceitar o chope que Kyra nos oferece. — É um absurdo você não saber nada da nossa língua.

— Não tenho interesse algum por nada que venha de lá — justifico e bebo. — Kyra também não sabe!

— Quem disse? — Ela começa a rir. — Anóito6.

— Quando foi que você se interessou por essa porra? — questiono-lhe surpreso.

— Você leu o nome da empresa dela na fachada? — é Millos quem retorna minha pergunta. — Está em grego!

Millos e Kyra engatam uma conversa, enquanto eu ainda estou paralisado com essa nova informação. Não é exagero, mas eu pensei que ela, assim como eu, desprezasse qualquer coisa que tenha relação com Nikkós. No entanto, ao contrário de mim, ela sempre foi aceita por todos os Karamanlis como parte da família, então é natural que tenha algum apreço por eles.

— Ah, mais convidados estão chegando!

Kyra deixa-nos a sós e vai até um grupo que não conheço.

— Ela parece feliz — comento com Millos.

Meu primo dá de ombros.

— Há pessoas com o dom de demonstrar apenas o que querem que vejam. — Bebe o resto de seu chope e me encara. — Já resolveu o assunto do baile dos Villazzas?

— Ah, Millos, não fode mais a minha noite! — Vejo duas lindas mulheres adentrarem ao salão e abro um sorriso. — Pode ser que ela esteja começando a melhorar.

Millos ergue uma de suas sobrancelhas, e eu o deixo sozinho, caminhando em direção ao meu mais novo alvo da noite, que, neste exato momento, cumprimenta minha irmã.

— Kyra, eu gostaria de... — finjo interromper-me quando as desconhecidas me olham. — Desculpem-me. — Kyra rola os olhos, mas suas convidadas não desviam o olhar do meu rosto. — Millos estava falando do chope, e nós fizemos uma pequena aposta, mas posso ver isso depois, atenda seus convidados. — Abro novamente meu melhor sorriso na direção delas.

— Valéria e Priscila, esse é meu irmão, Alexios Karamanlis — Kyra faz nossa apresentação, e eu sei que depois irá jogar na minha cara que eu estou lhe devendo por isso.

— Um prazer, Valéria! — Aproximo-me para cumprimentá-la e logo depois saúdo a outra: — Prazer, Priscila.

— O prazer é meu, Alexios — Priscila responde, sorrindo, e vejo a mão de Valéria tocar suas costas num gesto um tanto territorialista. Perfeito! Trocamos beijos no rosto em cumprimento. — Eu já te vi em algumas revistas especializadas em engenharia e arquitetura, principalmente quando o conselho dessas classes era o mesmo.

— Arquiteta? — tento adivinhar, mas ela nega e aponta para sua amiga.

— Valéria é, eu sou designer industrial. — Faço cara de surpresa, mesmo sem achar nada de mais. — É, eu sei, a maioria das pessoas que me conhece acha que sou modelo ou estilista, mas você quase acertou. — Seu sorriso é claramente de quem se sente lisonjeada. — Trabalho conceitos para grandes marcas.

— Incrível! — Olho-a de cima a baixo, e Kyra bufa. — Você também parece incrível, Valéria. — Sorrio, e ela relaxa.

— Alexios, chegaram outros convidados, você poderia fazer companhia a elas? — Ela pega na mão das amigas. — Vocês não se importam, não é?

— Claro que não, você é a anfitriã da noite! — Valéria diz, e sinto seu olhar brilhar em minha direção. — Nós ficaremos em boa companhia com seu irmão, afinal, é o anjo rebelde dos Karamanlis.

Puta que pariu!

 

CONTINUA

Com um passado nebuloso, marcado por traumas, rejeições e violência, há anos Alexios Karamanlis busca entender a si mesmo e, para isso, começa uma caçada sem fim pelo destino de sua mãe biológica, junto a sua melhor amiga, Samara Schneider.
Amigos desde tenra idade, Alexios sempre tentou não a notar como mulher por temer perder sua amizade e apoio, e Samara sempre sonhou com o dia em que o garoto problemático e rebelde se apaixonaria por ela.
Juntos em busca de respostas sobre a verdadeira história do nascimento de Alexios, os dois mergulharão no sujo passado do pai dele, Nikkós Karamanlis, revelarão segredos muito bem guardados e, por fim, descobrirão que não há como reprimir mais a paixão e o desejo que sentem um pelo outro.

 

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O país todo está enlouquecido!, penso ao passar por mais uma blitz policial sem nenhum problema, acelerando a moto ao máximo, capacete preto espelhado impossibilitando qualquer um de ver que quem pilota essa máquina é um garoto, não um homem.

Eu não sou um homem! Não sou! Se fosse, não estaria aqui neste momento, mas sim na delegacia, gritando por aí, fazendo qualquer coisa que não apenas dar uma de burguesinho filho da puta endinheirado, acelerando uma moto que custa o mesmo que um apartamento popular, mesmo sem ter habilitação para isso, apenas para esquecer os problemas.

Eu sou um merda! E sou isso por causa “dele”!

Caralho! A Paulista está fechada por conta das comemorações do pentacampeonato. É, o Brasil conseguiu mais uma estrela no futebol, o país está eufórico como se não houvesse crianças na rua, assassinos à solta, a corrupção impedindo todo o sistema público de funcionar. Foda-se, somos penta!

Faço uma manobra rápida com a moto, deixando marcas dos grossos pneus no asfalto e sigo para outra direção, à procura de mais uma avenida extensa e reta para que eu possa extravasar todo o ódio dentro de mim indo ao limite da velocidade.

Paro a moto de repente e quase sou arremessado para frente. Meus músculos começam a tremer, meus olhos se enchem de lágrimas, sinto frio, meus dentes batem um no outro. Engulo em seco. Não vou chorar! Não choro mais, não há muitos anos.

Cada soco, cada pontapé, cada xingamento e mentira secaram minhas lágrimas. Elas até se instalam em meus olhos, porém não caem. Sufocam-me, quebram meu coração, desequilibram-me.

Caio no chão em um baque só, gemo de dor por causa do peso da moto sobre minha perna esquerda, mas não choro. Respiro fundo para controlar a dor, parar de tremer, diminuir os batimentos do meu coração. Estou acostumado a essa rotina de tentar não sentir dor, de tentar não sentir mais nada.

Levanto-me calmamente, sinto calafrios, manco, mas volto a subir na moto, acelerando-a, fazendo o motor girar e um ruído alto e potente se misturar aos sons das comemorações pelas ruas da cidade. Respiro fundo várias vezes e, quando não sinto mais nada, tiro o pé do chão e deixo a máquina me levar.

Eu queria poder fugir para o mais longe possível desta cidade, mas não dá, infelizmente não posso ir a lugar algum, estou preso, revivendo o mesmo inferno todos os dias, aceitando meu destino com resignação até poder livrar a mim e a Kyra do demônio que nos formou.

Eu poderia pedir ajuda ao Tim, mas sei que ele tem a própria merda para lidar e que conseguiu sair há pouco do inferno. Sei que precisava ir. Meu irmão estava por um fio, assim como eu, e, se ficasse lá conosco, seria para morrer ou matar, e, como não é da sua natureza matar, iria perecer aos poucos, como Nikkós gostaria que acontecesse.

Então ele foi, e eu fiquei incumbido de uma missão que nós aceitamos sem nem mesmo combinar nada, apenas porque sabíamos do que nosso pai era capaz e decidimos que não o deixaríamos chegar a ela.

Soluço na moto.

Eu falhei!

Eu falhei!

Eu falhei?!

Eu não sei! Simplesmente não sei o que aconteceu ontem! Acelero a moto, pegando uma rodovia, ainda tentando processar todos os acontecimentos e os flashes de memória que tenho.

Cometi um erro na noite passada, fui imprudente e agora preciso lidar com tudo o que aconteceu, mesmo sem entender direito o que houve. Enquanto piloto a moto, tento repassar cada momento de ontem, mesmo sabendo que já fiz isso várias e várias vezes sem nenhum êxito.

Nikkós finalmente viajou a trabalho – ou o que quer que ele tenha ido fazer –, e eu consegui relaxar um pouco. Mantenho constante vigilância sobre minha irmã, uma adolescente de 14 anos de idade, e evito ao máximo deixá-la sozinha com nosso pai. Não há muito que eu possa fazer para protegê-la das loucuras dele, mas o que está ao meu alcance, faço.

Por conta disso, desde que ingressei na universidade – no começo desse ano –, desdobro-me ao máximo para curtir com meus amigos e proteger a Kyra. A babá anterior era a mesma desde quando minha irmã e eu nascemos, totalmente devota ao nosso pai, então, assim que Konstantinos tomou posse de sua herança, demos um jeito de nos livrar dela, e, assim que outra foi contratada, meu irmão se encarregou de pagar uns extras para ela manter os olhos em Kyra.

Nikkós sempre foi um filho da puta covarde, ele nunca iria deixar um serviçal ver o que ele é capaz de fazer aos filhos, por isso tinha seus próprios lugares para executar suas torturas em Kostas e em mim.

Noite passada, uma galera mais velha da universidade fechou uma boate e me convidou para festejar com eles. Estávamos entrando de férias e queríamos muito desopilar o fígado, relaxar, curtir e esquecer todas as pressões dos estudos.

Como Nikkós não estava em casa, e a babá estava por lá com Kyra, por que não ir? Foi esse meu erro!, penso ao relembrar.

 

— O grande Alexios Karamanlis! — Alberto Bragança me saúda assim que entro na boate. — Achei que você não vinha mais, mano!

Ele me entrega uma caneca de 500ml de chope e um cartão para o restante do consumo, e logo vejo os outros caras em uma mesa no fundo do salão. A música alta, tocando um “batestaca” qualquer, não chama minha atenção. Sigo, então, na direção do pessoal e, mal chego lá, peço mais uma rodada de chope para todos.

Meu pai é um grande filho da puta, torturador desgraçado, mas, para manter as aparências, deixa-nos usar cartão sem limites e nos entrega uma mesada gorda. Bebo, sentindo o gosto do chope se tornar mais amargo que o normal, consciente de que essa porra toda é dele, comprada com o seu maldito dinheiro.

— Jefinho está na área! — alguém grita comemorando. — Vamos começar a diversão! Quem vai?

Sou um dos primeiros a me levantar, viro o resto da bebida e sigo com mais cinco amigos para o banheiro, atrás do traficante oficial da turma. Vejo cada um pegando “no bufê do Jeff” sua viagem preferida e pego um pino de “coca” para começar bem a noite.

“Foda-se, Nikkós Karamanlis!”

Cheiro.

“Foda-se, Sabrina Karamanlis!”

Aspiro mais um pouco.

“Foda-se, Theo Karamanlis!”

Faço outra carreira com o restante do pó.

“Foda-se, Geórgios Karamanlis!”

Seguro a narina fechada, mantendo tudo dentro de mim, sentindo já meu corpo girar, o cérebro acelerar e todas as sensações de abandono e dor se esvaírem como num passe de mágica. Só existe prazer, nenhuma dor, tudo é maravilhoso!

Compro mais três pinos de cocaína e alguns comprimidos de êxtase. Essa noite não quero dormir, quero aproveitar, dançar, zoar, pegar umas universitárias e esquecer quem sou.

Começo a rir de mim mesmo, da piada que acabei de pensar. Esquecer quem sou só seria possível se eu soubesse quem sou.

“Eu não sou ninguém!”

Meu Nokia vibra com a chegada de uma mensagem, confiro ser de Samara, minha única e melhor amiga, e volto a colocá-lo no bolso ao perceber a aproximação de uma gostosa do quarto ano.

— Eu não acredito que você é menor de idade, Alex! — A garota, com luzes nos cabelos e vestido com apenas uma alça, passa a mão no meu peito. — Você não parece ser um garoto, mesmo com esse rostinho angelical.

Respiro fundo para não perder a paciência, pois, se há algo que me irrita muito, é quando dizem que eu pareço um anjo. Aproximo-me dela e a puxo pela cintura.

— Posso provar que não sou um anjo! — Pego sua mão e a levo até a frente da minha calça. A garota arregala os olhos. — Os demônios com cara de anjo são os piores, gata!

— Uau! — Ela lambe meu pescoço. — O que você tomou?

— Coca, mas tenho “bala” no meu bolso. — Ela ronrona, e eu me animo. — Vem comigo!

Levo-a para uma área nos fundos da boate, uma espécie de depósito que se encontra aberto, uma vez que a casa está funcionando apenas para um bando de playboys endinheirados que preferem não se misturar com a ralé e, assim, fazer suas merdas longe dos olhos curiosos da plebe.

Claro! Afinal de contas, aqui estão reunidos os filhos dos maiores empresários, advogados, médicos, juízes e a porra toda elitizada desta cidade decadente. Bando de fodidos! A maioria desconta, como eu, a falta de afeto e atenção em casa gastando dinheiro, promovendo rachas pelas ruas, consumindo todo tipo de droga tentando preencher o buraco negro instalado nas nossas almas.

“Foda-se!”

Seguro a garota contra a parede fria do depósito e, sem nem mesmo perguntar seu nome, ataco sua boca com fúria, mordendo seus lábios e sugando sua língua. Ela mexe em minha calça, abre-a e retira meu pau para um tratamento especial em suas mãos macias.

— Novinho e pauzudo... — ela geme. — Cadê a balinha para deixar tudo mais divertido?

Sorrio e nego.

— Tem que merecer.

Ela sorri e, sem que eu precise sequer lhe indicar o que quero, ajoelha-se no chão grosso e toma meu pau em sua boca quente e esfomeada. Gemo, gostando da carícia, seguro-a pelos cabelos e a forço a engolir o máximo que consegue.

Tenho quase 17 anos, mas aposto com quem quer que seja que nenhum desses caras daqui tem a metade da experiência sexual que eu. E não, não “tiro onda” com isso, afinal, quem é filho de Nikkós Karamanlis não tem muita escolha sobre quando vai começar a trepar, ele simplesmente impõe, e comigo isso aconteceu quando eu tinha 11 anos de idade.

Afasto o pensamento pestilento sobre meu pai e curto a chupada gostosa que a garota ajoelhada me dá. Ela lambe, chupa, suga com força, arranha com os dentes – coisa que me excita “pra caralho” – e segura minhas bolas com vontade. Percebo que ela quer fazer o serviço completo com a boca, mas definitivamente ela não me conhece.

Ergo-a de uma vez só e a ponho de cara contra a parede. Procuro a camisinha no bolso da calça – uma coisa que se aprende quando se começa a vida sexual trepando com putas é que preservativos nunca podem faltar –, plastifico meu pau e levanto o vestido dela.

Bunda gostosa, magra, mas gostosa “pra cacete” com uma calcinha de cor forte – não sei se vermelha ou rosa; não divago muito sobre a cor, mesmo porque é irrelevante –, afasto a peça e esfrego os dedos em sua boceta depilada.

Ela ofega, rebola gostoso na minha mão. Vou penetrando-a devagar com os dedos, recolhendo um pouco da umidade de dentro de sua vagina para usá-la exatamente no ponto onde quero. Massageio seu clitóris até que ela se contraia em gozo e volto a molhar seu rabo com a lubrificação que solta.

Ela fica tensa quando encaixo a cabeça do meu pau em seu ânus apertado.

— Alex...

— Psiu... — falo devagarzinho em seu ouvido, lambendo sua orelha enquanto vou me afundando no canal estreito, sentindo meu corpo todo reagir à pressão de um local nunca ou pouco explorado. — Eu disse a você. — Ela arfa quando me encaixo por completo em seu rabo. — Os demônios com cara de anjo são os piores!

Meto com força e continuo estimulando seu clitóris, beijando e mordendo seu pescoço, até que ela explode em um orgasmo foda, e eu me deixo ir na camisinha, ainda sentindo as contrações do seu corpo. Quando ela se vira para me beijar, estico minha língua com sua recompensa na ponta. A garota sorri e chupa a drágea com vontade, enquanto eu engulo a outra.

A noite só começou!

 

Paro a moto em frente ao prédio onde Konstantinos mora. Fico parado olhando para o alto, invejando a liberdade de meu irmão, a coragem que teve ao se libertar assim que pôde do nosso pai. Ele estuda no Largo de São Francisco, vai ser um advogado e, mesmo que tenha tentado disfarçar, ficou contente quando contei que havia passado em todos os vestibulares para os quais havia prestado.

— Vai para algum lugar longe da cidade? — Kostas não escondeu sua preocupação.

— Não, vou ficar aqui — respondi com sinceridade, mesmo que minha vontade fosse ir para o mais longe possível deste inferno de lugar. — Vou continuar no apartamento de Nikkós, pelo menos até a Kyra fazer 18 anos.

Ele respirou fundo, e nossa conversa por telefone acabou aí. Nós não precisávamos externar nossa preocupação um para o outro, sabíamos do que nosso pai era capaz e do perigo que Kyra corria estando sob o mesmo teto que ele. Kostas saiu de casa, pois nunca soube lidar com Nikkós, ao contrário de mim.

O grego maluco tentou fazer comigo o mesmo que fazia com o meu irmão, porém nunca pensou que não me afetaria, então mudou de tática. O desgraçado tentava me acertar no único ponto que realmente me doía, mas ainda assim eu resistia em demonstrar alguma dor, então ele me fazia sentir na carne.

Esfrego a mão no ombro esquerdo, quebrado há dois anos no que todos acreditaram ser um acidente enquanto eu andava de skate, sem saber que quase tive o braço arrancado pelo homem louco, bêbado e drogado a quem todos respeitavam como um exemplo de pai, criando seus filhos sozinho depois de ter sido abandonado pela mulher.

Farsante dissimulado! Nunca amou ninguém, nunca se preocupou ou se dedicou a ninguém, nem a si mesmo. Eu só não entendo o motivo pelo qual ele não deixou que a puta que me gerou abortasse ou mesmo por que não me deixou com ela.

Eu sou um covarde! Rio, ligando a moto de novo.

Meu maior sonho é vê-lo morto, desejei e planejei isso tantas vezes, de tantas maneiras diferentes, que sei todos os passos de cor. No entanto, nunca tive coragem... Respiro fundo.

Pelo menos até essa madrugada!

Não faço ideia de como cheguei a casa, estava doidão, alto demais, cheirava a cerveja, maconha, sexo e perfumes variados. Não sei nem com quantas garotas trepei à noite, sei que algumas só mamaram meu pau, mas, com outras, a coisa foi mais louca.

Não consigo me lembrar de muita coisa. Só tenho sensações ruins de quando cheguei ao apartamento e percebi que Nikkós havia voltado. Nas memórias, há gritos, choro, mas nenhuma imagem. Tudo o que tenho nítido na cabeça foi o que aconteceu depois que acordei.

Estava deitado na sala principal do apartamento, minhas roupas sujas de sangue, rasgadas, um hematoma no olho e um corte no canto da boca já me incomodando. Não sabia nem onde estava, só sentia dor, confusão, e vomitei ali mesmo, no tapete da sala.

Ao meu lado vi uma faca suja de sangue. Gelei, sem saber o que tinha feito e de quem era o líquido viscoso e vermelho que cobria toda a lâmina. Foi nesse momento que saí do torpor em que me encontrava, peguei o objeto e comecei a correr pela enorme cobertura, entrando em todos os cômodos.

— Kyra! — gritava, mesmo com a cabeça explodindo. — Kyra!

Minha irmã não estava em lugar algum, nem mesmo a Nívea, a senhora que cuidava dela, eu pude encontrar. Meu desespero só aumentou. Liguei para o telefone dela, mas estava dando na caixa de mensagens.

Comecei a soluçar, mesmo não derramando uma só lágrima, e entrei no local proibido da casa, o santuário satânico de Nikkós Karamanlis: seu quarto.

Estanquei quando vi seu corpo enorme e nu jogado sobre a cama king size. Notei os cortes em seus braços, bem como o movimento de respiração, seguido dos roncos altos. O filho da puta não estava morto! Apertei a faca em minha mão com mais força, pensando que esse seria o momento certo para livrar a todos de sua existência.

Andei até ele devagar, os nós dos dedos brancos de tão firme que segurava a faca. Medi suas costas, imaginando que seria muito fácil perfurar seu pulmão com uma só estocada no lugar certo e que ele morreria afogado em seu próprio sangue lentamente, em uma morte digna dele.

Ergui a faca, fechei os olhos, parei de tremer e me lembrei de todos os anos de abuso e de tortura, do que ele fazia ao Kostas, do que fazia comigo e do que poderia fazer a Kyra.

Respirei fundo, concentrei a força e desci a faca, mas parei a milímetros de sua pele quando ouvi soar a campainha. Joguei a arma para longe e saí correndo daquele cômodo pestilento, descendo as escadas disparado para atender a porta, torcendo para que fossem Nívea e Kyra.

— Alexios? — a voz de Samara me fez prender o fôlego. — Alexios, você está aí?

Abri a porta sem pensar duas vezes e desmontei ao ver minha irmã ao lado da minha melhor amiga. Kyra, minha pequena princesa, linda como uma pintura, seus olhos enormes e verdes cheios de lágrimas e os lábios trêmulos.

— Ainda bem! — exclamei aliviado, puxando-a para meus braços. — Ainda bem!

— Alexios, você precisa de ajuda? — Samara questionou, olhando tudo em volta. — Ontem à noite a senhora Nívea pediu que Kyra ficasse comigo e...

Segurei o rosto de minha irmã, desgostoso por saber que ela mal fala por conta do monstro que temos em casa, sequei as lágrimas que escorriam por seu rosto miúdo e assustado e perguntei:

— O que houve?

Ela deu de ombros.

— Ele voltou mais cedo, estava bêbado, mandou Nívea embora. — Sinto um arrepio de frio percorrer minha coluna. — Os dois discutiram. — Ela soluçou. — Ele bateu nela, ela desmaiou...

— E você, onde estava?

Kyra desviou os olhos, e eu senti como se um soco acertasse a boca do meu estômago. Olhei para Samara em busca de uma resposta, mas minha amiga apenas deu de ombros, indicando que minha irmã também não falou com ela.

— Quando ela acordou, me levou para o apartamento da Malinha, e aí eu fiquei lá. — Kyra olhou em direção ao corredor. — Ele ainda está...

Assenti.

— Vá para o seu quarto, tranque a porta, tome um banho; daqui a pouco vou me encontrar com você. — Ela tentou sorrir em agradecimento para Samara, mas depois desistiu, seguindo diretamente para seu quarto. — Samara...

— Vocês precisam denunciar isso! — Ela tocou meu rosto. — Você é só um garoto, Alexios, não pode proteger vocês dois.

— Posso! — afirmei cheio de raiva. — Você sabe muito bem que, se uma denúncia for feita, ela será tirada de nós. Eu ficarei um ano em algum abrigo, mas e ela?

— O Tim não pode...

Neguei.

— Não acho que o deixariam cuidando de dois adolescentes, ele só tem 20 anos! — Fechei os olhos, cansado, com medo, sem saída e senti quando ela me abraçou apertado.

— Onde você esteve ontem à noite?

— Fui me divertir...

— Não. — Seus olhos lindíssimos encararam os meus. — Você não se diverte, Alexios, você tenta se matar. — Passou a mão pelo meu rosto. — Quanto usou?

Dei de ombros, não querendo discutir isso com ela. Nunca termina bem!

— Isso não ajuda ninguém. Nem a você, muito menos à sua irmã. — Tentou sorrir para disfarçar o sermão, seus dentes cheios de plaquinhas do aparelho ortodôntico, o rosto redondo de menina fazendo covinhas, coisa que ela sempre teve e sempre achei lindo. — Eu sei que só tenho 15 anos, mas...

— Eu agradeço que você tenha feito companhia a Kyra, mas agora preciso resolver tudo aqui. — Apontei para a sala. — Ficou tudo bem com seus pais?

— Sim, não acharam nada estranho que Kyra dormisse lá em casa, afinal, somos amigas.

Ri amargamente.

— Essa amizade é aceitável para os Schneiders, não é? — Samara ficou vermelha. — Kyra é uma boa menina, não um porra-louca como eu, filho de uma puta e...

Samara pôs a mão sobre minha boca.

— Você é meu melhor amigo, apenas isso deveria te bastar para calar qualquer outra coisa que meus pais possam pensar de você.

Abracei-a forte, a consciência pesada por falar mal de sua família, pois sei quanto ela os ama, depois me despedi e tratei de limpar a sala, jogar a roupa que usava fora e fiquei até há pouco com minha irmã, ambos trancados no seu quarto.

Só saí para espairecer, para processar tudo o que aconteceu na madrugada passada, pois mais uma vez Samara agiu como um anjo e convidou minha irmã para assistir à final da Copa do Mundo com ela e depois terem uma noite de meninas, com direito a festa do pijama.

Entro na garagem do prédio, mando uma mensagem para Samara informando-a de que cheguei e que estou indo buscar minha irmã. Sinceramente eu não sei como vou fazer até encontrar outra pessoa de confiança para deixar com Kyra quando eu não estiver em casa, pois Nívea disse que nunca mais colocará os pés no nosso apartamento, depois de ter recebido uma boa quantia para que não denunciasse o que se passa dentro de nossa casa, pois entendeu que prejudicaria Kyra.

Não importa! Kyra precisa de mim, e, nem se eu precisar mudar toda minha rotina por causa dela, a terei protegida.


São Paulo, tempo atuais.


Acordo com uma dor de cabeça filha da puta, ressacado, tão zonzo que tropeço ao sair da cama, e a primeira coisa que me vem à cabeça nesta manhã (ou será nesta tarde?) é que hoje é véspera de Natal. Foda-se! Sou ateu, esses feriados religiosos não significam nada para mim.

Sigo pelo corredor em direção à cozinha, com muita sede, louco para tomar um analgésico para exterminar a dor de cabeça. Não vou tomar! Não tomo remédios para dor há anos, aprendi a conviver com as pontadas, com as ardências. A dor me tornou mais forte, resiliente, aprendi há muito que nada é capaz de me ferir mais do que eu mesmo.

A maioria dos meus ossos trazem lembranças de como superei, as marcas no meu corpo também, porém, nenhuma dessas cicatrizes é mais forte do que o vazio dentro de mim.

Encho um copo d’água até transbordar e o bebo em um só gole. A cabeça martela ainda mais por conta da bebida gelada, mas ignoro-a por completo. Não há remédio para o que sinto, não há cura para toda a raiva que carrego dentro de mim, então posso, sim, conviver com umas horas de pontadas no cérebro.

Olho para a porta fechada na área de serviço. Os cômodos dali eram a tal dependência de empregados, mas, como eu nunca tive nenhum, aproveitei-os para outros fins. Inspiro, os cheiros tão familiares chegando às minhas narinas. A raiva natural com que acordo todos os dias se aplaca; não some, apenas se recolhe, dando lugar às sensações de prazer.

Confiro as horas e xingo ao perceber que já estamos no meio da tarde. Sinceramente, não sei por que Kyra inventou essa ceia de Natal, não depois de todos esses anos. Não entendo minha irmã, sinceramente. Há muito convivo com seu gênio forte, sua determinação, mas ainda não sei quem é ela. A garota divertida da infância se tornou uma adolescente quieta e taciturna, uma jovem inteligente e ajuizada e, por fim, uma adulta completamente misteriosa. Eu a acompanhei em todas as fases de sua vida, mas ainda assim não sei quem é a verdadeira Kyra Karamanlis.

Assim que ela completou 18 anos, abandonamos a luxuosa cobertura de Nikkós e fomos morar em um cafofo velho e caindo aos pedaços. Eu estudava como um louco no meu último ano de faculdade, e, como ela passou para uma universidade pública também, tínhamos que morar próximo de uma das duas universidades. Preferi ficar próximo da dela e me fodia andando de bicicleta até a minha todos os dias.

Nessa época eu estagiava na Novak Engenharia e, com a bolsa do estágio, eu mal conseguia pagar o aluguel do quarto e sala que aluguei. Ela nunca soube, mas quem bancava nossa alimentação, transporte e outras despesas era o Kostas. Meu irmão e eu nem éramos amigos, na verdade mal nos falávamos, mas todo mês o dinheiro aparecia na minha conta, e eu sabia que vinha dele.

Formei-me e já fui efetivado na Novak. Trabalhei com o Nicholas, com quem aprendi demais e construí uma amizade forte, assim como com seu irmão Bernardo. Os tempos de bagunça, baladas, drogas e bebidas acabaram quando nos libertamos da prisão daquele apartamento e da convivência maligna de Nikkós.

Kyra estudava muito, era extremamente aplicada em tudo o que fazia, e, irritada por não conseguir conciliar seu horário de estudos com um emprego, começou a fazer doces e salgados dentro do nosso pequeno apartamento e vendê-los na faculdade.

Rio ao pensar que foi assim que nasceu a promoter de eventos, em uma cozinha de seis metros quadrados, com um forno capenga, um fogão com só duas bocas funcionando e uma geladeira que parecia um monomotor, de tanto barulho que fazia. Em pouco tempo ela estava fornecendo encomendas para festas e pequenos eventos, depois começou a fazer projetos de decoração, então, quando se formou, foi trabalhar em um grande e caríssimo bufê da cidade, auxiliando a cerimonialista com os projetos.

Hoje ela é a dona de uma empresa especializada em produções de eventos diversos, bem-sucedida, com um negócio em progressão geométrica de crescimento. Tenho muito orgulho dela, principalmente por ser a única que não ficou agarrada ao cordão umbilical familiar dentro da Karamanlis.

Agora qual a necessidade da porra de uma ceia de Natal para comemorar a expansão de seu negócio? Vou ter que ficar com um maldito sorriso no rosto, carinha de anjo, lidando com o caralho da minha gastrite me corroendo ao pensar na hipocrisia do mundo.

Respiro fundo e decido combater a ressaca e a dor de cabeça com mais bebida. Pego uma cerveja na geladeira, abro-a na beirada da pia e entro no outro ambiente, a sala, integrada ao outro cômodo, separados apenas por uma enorme bancada.

Eu mesmo projetei esse prédio, há alguns anos, ainda trabalhando na Novak. Bernardo Novak é meu vizinho de porta, e Nicholas foi o primeiro dono da cobertura duplex que toma todo o último andar, hoje habitada por um casal e uma menininha. Comprei o apartamento pensando em vir morar com minha irmã, mas qual não foi minha surpresa quando ela anunciou que só sairia do cafofo para seu próprio lugar?

Pois é, vim sozinho, ocupo apenas a suíte principal, e os outros dois quartos estão praticamente vazios. A sala foi decorada – pela própria Kyra –, bem como a cozinha, mas nunca mandei fazer os móveis da sala de jantar, pois não vejo nenhuma função para eles. Eu como sozinho no balcão da cozinha, assistindo a TV ou ouvindo música.

Resgato meu celular, seleciono uma das minhas muitas playlists, e a caixa de som já liga automaticamente, deixando o som pesado do Matanza ecoar pelos ambientes. Sorrio ao ouvir “Bom é quando faz mal”, as recordações das loucuras da faculdade, de toda a merda que eu fazia. Não tenho vontade alguma de fazer de novo, mas também não posso dizer que me arrependo. Era o meu jeito de extravasar, tresloucado, admito, mas ainda assim muito mais normal do que o que eu vivia dentro de casa.

Preparo qualquer coisa para comer, balançando a cabeça e cantando as músicas de várias bandas de rock, algumas famosas, outras nem tanto, mas que marcaram minha vida de alguma forma.

O telefone toca, e a chamada atrapalha minha diversão musical. Bufo, jogo o pano de prato sobre a pia e pego o aparelho.

— Oi, Millos — atendo meu primo.

— Boa tarde, Alexios. Animado com a reunião de hoje à noite?

— Ô, tão quanto eu estaria para fazer um exame de próstata. — Millos gargalha. — Ela convidou você também?

— E o Kostas. — Isso me surpreende, pois, até onde eu sei, não temos nenhuma convivência com ele. — Bom, liguei para dizer que irei viajar na virada do ano, por isso preciso que você não deixe de ir ao baile dos Villazzas.

Gemo ao pensar em vestir um smoking.

— Porra, Millos, não fode! Aposto que Theodoros vai, afinal Frank e ele são quase um casal! — Millos ri do meu deboche acerca da amizade entre meu irmão mais velho e o CEO da rede Villazza de hotéis. — Não tenho a mínima...

— Konstantinos confirmou presença também.

Puta que pariu!

Preciso me sentar depois dessa informação, pasmo só em imaginar Kostas com alguma puta, sentado na mesma mesa de Theodoros. Vai dar merda!

— Eu não tenho companhia — tento me justificar. — E você poderia adiar a sua viagem só por uns...

— Não, não posso, já fiz todos os arranjos, reservas em hotéis, o cronograma da viagem! Você tem que ir para evitar que os dois prejudiquem a imagem da empresa.

Reviro os olhos ao pensar na imagem da empresa. Millos é doido ao pensar que temos uma imagem a zelar. Todos nesta maldita cidade, neste meio asqueroso no qual vivemos, sabem que somos todos fodidos e que nosso pai cagou em nosso nome com a sucessão de merdas que fez.

E olha que a maioria não o conheceu de verdade, não soube o monstro que ele era, escondido por detrás de uma fachada bonita e um sorriso de conquistador barato! Um lobo em pele de cordeiro, um demônio com a face de um anjo... assim como eu.

Bufo de raiva.

— Cadê aquela sua amiga? — Franzo a testa, sem acreditar que ele está se referindo à Samara. — Vocês viviam para cima e para baixo juntos, ela te acompanhou em um dos primeiros eventos dos Villazzas e...

— A Samara mora em Madri há mais de três anos, Millos. — Decido não entrar em detalhes e contar a ele que nos afastamos por algum motivo idiota que eu não consigo lembrar. — Vou ter que ligar para alguma...

— Isso, ligue — ele me corta. — Mulher nunca foi seu problema, aposto que você tem um caderninho cheio de telefones.

— E daí? — afronto-o. — Gosto de sexo, nunca escondi isso, diferente de você, que nunca foi visto com nenhuma mulher além daquela sua amiga motoqueira. — Decido provocá-lo: — Millos, acho que está na hora de sair do armário, porra!

O filho da puta ri alto.

— Eu não teria problema algum em sair se fosse o caso. Ainda mais agora, que Dimitrios saiu, e o pappoús continuou vivo e... — Millos para.

É sempre assim quando algum assunto referente à família na Grécia vem à tona. Eu não conheço ninguém, nunca fui à Grécia, nem tenho a mínima vontade de ir. Não conheço o tal pappoús, nem primo algum além de Millos, que só conheci quando veio morar no Brasil.

Sou o Karamanlis renegado, indigno do sobrenome.

— Vou ligar para alguém e convidar a ir comigo — encerro o assunto constrangedor. — Mas não garanto atuar de mediador como você.

— Você, mediador? — Millos se surpreende. — Alexios, se eu não tivesse interferido, você teria criado uma situação com Theodoros na festa de final de ano da Karamanlis. Eu só quero que você vá com alguém e iniba um pouco aqueles dois.

Bufo e concordo.

— Eu vou.

— Obrigado. — Estou prestes a desligar, quando ele me chama de novo: — Ah, Alexios, não encha a cara, senão você vai falar merda para o Theo, e o Kostas vai se aproveitar disso.

— Vai se foder, Millos! Eu já vou, porra, não diga o que tenho que fazer.

Desligo irritado, perco a fome e a vontade de terminar o que estava preparando.

Mesmo puto, preciso admitir, Millos tem razão sobre eu perder a cabeça com Theodoros, principalmente quando bebo. Eu não odeio meu irmão mais velho como sei que Kostas o faz, apenas ele não significa mais nada para mim.

Convivo bem com ele, pelo menos no sentido profissional, mas não quero nenhum tipo de ligação mais pessoal. Ele perdeu o timing quando, depois de toda a merda que ajudou a fazer, nunca mais quis saber de nós. Era como se nem existíssemos! Ele excluiu Nikkós de sua vida, mas acabou nos descartando junto. Nunca se preocupou em saber de nenhum de seus irmãos, muito menos de sua adorada Kyra, a mais vulnerável de todos nós.

Então, sim, eu perco a cabeça com ele, principalmente com seu jeito esnobe, intocável, como se somente ele importasse e mais ninguém. E foi por isso que nos estranhamos na festa de final de ano da Karamanlis, porque, simplesmente, este ano a festa não foi Theocrática1.

Millos e eu nos reunimos com alguns gerentes e coordenadores para entender o que os funcionários da Karamanlis gostariam de ter em uma festa de encerramento do ano. Depois, contratamos todos os serviços – sem ser da Kyra, pois neste ano ela se livrou de nós na cara dura – e fizemos a festa focada nos funcionários.

Aparentemente, isso chocou e desagradou ao CEO com síndrome de deus, e sua cara fechada e seu olhar de desprezo não ficaram nada disfarçados.

— Ei, irmãozinho! — Eu o parei, enquanto andava como um deus do Olimpo visitando terráqueos. — Aproveitando a festa?

— Espero que não tenha vindo de moto! — o filho da puta tentou me repreender como se estivesse preocupado com minha segurança, e isso, juntamente a toda cerveja que eu já tinha tomado, irritou-me.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já muito bêbado para me conter. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos2!

Theodoros franziu o cenho com meu deboche, comparando seu nome à palavra deus em grego. Estava prestes a dizer algo, mas se conteve quando de repente fui abraçado pelos ombros. Nem precisei olhar para saber que nosso interventor havia chegado.

— Alex, que festança, não? — Millos comentou. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — Theodoros pareceu perplexo. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Gargalhei ao confirmar que ele era mesmo um grande egocêntrico, incapaz de perceber a diferença da festa deste ano à do ano passado por estar focado nos detalhes e não no que realmente importava: as pessoas.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — respondi como se estivesse sóbrio, mesmo não estando. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos me cortou.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — Theodoros perguntou ao Millos, apontando o dedo em minha direção como o grande babaca que sempre foi.

— Fui! — respondi. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Tentei demonstrar com gestos o que dizia, abri os braços de repente, e meu punho bateu no peito do Millos, que chegou para trás. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — olho para um grupo dançando e vários outros conversando, comendo e se divertindo — você está vendo alguém ir?

Ele ficou um tempo olhando em volta como se notasse, pela primeira vez desde que chegou, que realmente os funcionários estavam adorando a descontração deste ano.

Eu só não esperava que ele tentasse ser condescendente comigo:

— Bom trabalho! O pessoal parece realmente estar gostando!

Só faltou dar umas batidinhas em minha cabeça como se eu fosse a porra do seu cãozinho de estimação. Meu sangue ferveu, travei os punhos e não me contive:

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos interrompeu-me e me abraçou novamente pelos ombros. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Mal acabou de falar, seguiu para o outro lado, levando-me consigo.

— Porra, moleque, não tem como ser menos reativo não? A festa está um sucesso graças ao seu feeling, ao modo como você conhece e percebe as pessoas, para que estragar isso batendo boca ou — ele me encarou —, como percebi que queria fazer, enchendo a cara do Theo de porrada? Sai dessa!

Concordei com meu primo e respirei fundo. Depois disso tomei quase um litro de café amargo, ele me pôs em um Uber, e eu vim para casa, onde continuei a beber, desmaiei no sofá e, no outro dia, fui correr ainda um tanto trôpego, sendo desclassificado no teste do bafômetro.

Perdi minha última corrida do ano, grande fracassado que sou!

Volto a ligar minha playlist, e a música que toca é exatamente a que eu preciso para sair da fossa dessas lembranças todas:

— Eu não tenho nada pra dizer. Também não tenho mais o que fazer. Só para garantir esse refrão, eu vou enfiar um palavrão: cu!3


Entro no showroom da A??p?4 – a empresa de eventos de Kyra – e já admiro o trabalho dela com a decoração do local. A enorme mesa com vários lugares ocupa o centro do enorme salão, com castiçais, flores, louças e talheres milimetricamente colocados, junto a taças de cristal e guardanapos de linho.

No restante do salão, há mesas altas para apoiar drinques, sofás e poltronas brancas, com almofadas e outras coisas de decoração seguindo a paleta de cores da festa: verde, vermelho e dourado.

Clichê! Mas é Natal, tem como não ser?

Dou de ombros e vejo Kyra de costas, junto à belíssima morena que trabalha com ela desde que abriu a empresa e as duas chefes de cozinha que conheceu ainda quando trabalhava no outro bufê e as roubou na cara dura quando resolveu estabelecer seu próprio negócio. Uma delas, acho que é a doceira – Mari, como todos a chamam – me vê e logo cutuca minha irmã.

— Ah, Alex! — Kyra abre um enorme sorriso, entrega para a morena – como é mesmo o nome dela? – os penduricalhos de Natal com os quais enfeitava o enorme pinheiro e vem até mim. — Que bom que chegou, tenho uma coisa para você!

Ah, puta que pariu! Ela me comprou um presente? Fico imediatamente sem jeito, pois não comprei absolutamente nada para ela. Eu nem imaginava que iríamos trocar lembranças, nunca fizemos isso!

Alívio toma conta de mim quando ela vem com uma caixinha pequena e claramente de doces.

— Quando experimentei, lembrei logo de você. — Ela tira um doce dourado de dentro da caixa. — Prove!

Franzo o cenho e abro a boca. Mastigo devagar, emitindo sons de prazer, adorando o contraste de texturas e o sabor doce e... picante. Abro um sorriso.

— Chocolate com pimenta! — Termino de comer. — Perfeição!

— Bombom Helênico. — Faço careta para o nome, não combina em nada. — Eu sei, é péssimo, mas as meninas quiseram fazer uma homenagem para a Helena, então... — Dá de ombros.

Helena!, minha mente grita ao lembrar o nome da morena gostosa, mas que nunca sorri e mal fala comigo quando apareço aqui.

— Hum... gostosa! — Começo a rir quando noto que falei alto. Kyra me olha séria. — O quê?

— Nem pense, ela está comprometida!

Ergo as mãos em minha defesa.

— Não falei nada!

— Não precisa! Sua fama de embusteiro conquistador te precede! — Faço careta, e ela ri. — Estive com saudades de você.

— Então por que não foi me ver ou me ligou? — pergunto sem enrolação.

— Não sei.

Respiro fundo. Ela se fecha, é sempre assim e não só comigo. Ela se empolga, vibra, deixa as pessoas se aproximarem, mas nunca demais. Quando chega a seu limite, simplesmente retrocede com a mesma rapidez e naturalidade com que atraiu alguém. É por isso que suas amizades ou mesmo seus relacionamentos amorosos nunca duraram muito.

Porém o que faço eu aqui, julgando-a?

— Alexios Karamanlis! — Viro-me ao ouvir a voz de Millos.

Meu primo – filho de uma égua! – carrega uma enorme caixa de presente toda embrulhada e com laços. Kyra abre um enorme sorriso e vai saltitante até ele, abraça-o pelo pescoço – coisa que não faz nem comigo – e agradece o regalo.

— É para decorar sua sala de empresária fodona — ele brinca com ela, e Kyra gargalha ao tirar uma estátua toda colorida de um unicórnio. — Eu me lembrei daquela sua fantasia no dia das bruxas...

Kyra para de boca aberta.

— Millos, eu tinha quatro anos! — ela recorda e, de repente, parece lembrar também que, naquela época, tudo parecia realmente possível, mágico e feliz.

Meu primo a abraça forte e fala algo em seu ouvido, baixinho. Kyra assente, e eu fico paralisado vendo a troca de carinho entre eles. Parece normal, não é? Mas, creiam-me, não é. Millos evita qualquer contato físico com outras pessoas. Ao cumprimentá-las, ele prefere baixar a cabeça do que dar um aperto de mãos; o máximo que o vi fazer até hoje foi tocar no ombro de alguém, mas somente quando julga necessário. Até comigo, o máximo que ele fez até hoje foi me abraçar para evitar um embate entre mim e Theo. Então assistir aos dois se abraçando é realmente algo inédito.

— Feliz Natal, pesménos ángelos5.

Mostro o dedo do meio para ele.

— Ah, pesquisou! — Ri debochado, mas logo para ao aceitar o chope que Kyra nos oferece. — É um absurdo você não saber nada da nossa língua.

— Não tenho interesse algum por nada que venha de lá — justifico e bebo. — Kyra também não sabe!

— Quem disse? — Ela começa a rir. — Anóito6.

— Quando foi que você se interessou por essa porra? — questiono-lhe surpreso.

— Você leu o nome da empresa dela na fachada? — é Millos quem retorna minha pergunta. — Está em grego!

Millos e Kyra engatam uma conversa, enquanto eu ainda estou paralisado com essa nova informação. Não é exagero, mas eu pensei que ela, assim como eu, desprezasse qualquer coisa que tenha relação com Nikkós. No entanto, ao contrário de mim, ela sempre foi aceita por todos os Karamanlis como parte da família, então é natural que tenha algum apreço por eles.

— Ah, mais convidados estão chegando!

Kyra deixa-nos a sós e vai até um grupo que não conheço.

— Ela parece feliz — comento com Millos.

Meu primo dá de ombros.

— Há pessoas com o dom de demonstrar apenas o que querem que vejam. — Bebe o resto de seu chope e me encara. — Já resolveu o assunto do baile dos Villazzas?

— Ah, Millos, não fode mais a minha noite! — Vejo duas lindas mulheres adentrarem ao salão e abro um sorriso. — Pode ser que ela esteja começando a melhorar.

Millos ergue uma de suas sobrancelhas, e eu o deixo sozinho, caminhando em direção ao meu mais novo alvo da noite, que, neste exato momento, cumprimenta minha irmã.

— Kyra, eu gostaria de... — finjo interromper-me quando as desconhecidas me olham. — Desculpem-me. — Kyra rola os olhos, mas suas convidadas não desviam o olhar do meu rosto. — Millos estava falando do chope, e nós fizemos uma pequena aposta, mas posso ver isso depois, atenda seus convidados. — Abro novamente meu melhor sorriso na direção delas.

— Valéria e Priscila, esse é meu irmão, Alexios Karamanlis — Kyra faz nossa apresentação, e eu sei que depois irá jogar na minha cara que eu estou lhe devendo por isso.

— Um prazer, Valéria! — Aproximo-me para cumprimentá-la e logo depois saúdo a outra: — Prazer, Priscila.

— O prazer é meu, Alexios — Priscila responde, sorrindo, e vejo a mão de Valéria tocar suas costas num gesto um tanto territorialista. Perfeito! Trocamos beijos no rosto em cumprimento. — Eu já te vi em algumas revistas especializadas em engenharia e arquitetura, principalmente quando o conselho dessas classes era o mesmo.

— Arquiteta? — tento adivinhar, mas ela nega e aponta para sua amiga.

— Valéria é, eu sou designer industrial. — Faço cara de surpresa, mesmo sem achar nada de mais. — É, eu sei, a maioria das pessoas que me conhece acha que sou modelo ou estilista, mas você quase acertou. — Seu sorriso é claramente de quem se sente lisonjeada. — Trabalho conceitos para grandes marcas.

— Incrível! — Olho-a de cima a baixo, e Kyra bufa. — Você também parece incrível, Valéria. — Sorrio, e ela relaxa.

— Alexios, chegaram outros convidados, você poderia fazer companhia a elas? — Ela pega na mão das amigas. — Vocês não se importam, não é?

— Claro que não, você é a anfitriã da noite! — Valéria diz, e sinto seu olhar brilhar em minha direção. — Nós ficaremos em boa companhia com seu irmão, afinal, é o anjo rebelde dos Karamanlis.

Puta que pariu!

 

CONTINUA

Com um passado nebuloso, marcado por traumas, rejeições e violência, há anos Alexios Karamanlis busca entender a si mesmo e, para isso, começa uma caçada sem fim pelo destino de sua mãe biológica, junto a sua melhor amiga, Samara Schneider.
Amigos desde tenra idade, Alexios sempre tentou não a notar como mulher por temer perder sua amizade e apoio, e Samara sempre sonhou com o dia em que o garoto problemático e rebelde se apaixonaria por ela.
Juntos em busca de respostas sobre a verdadeira história do nascimento de Alexios, os dois mergulharão no sujo passado do pai dele, Nikkós Karamanlis, revelarão segredos muito bem guardados e, por fim, descobrirão que não há como reprimir mais a paixão e o desejo que sentem um pelo outro.

 

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O país todo está enlouquecido!, penso ao passar por mais uma blitz policial sem nenhum problema, acelerando a moto ao máximo, capacete preto espelhado impossibilitando qualquer um de ver que quem pilota essa máquina é um garoto, não um homem.

Eu não sou um homem! Não sou! Se fosse, não estaria aqui neste momento, mas sim na delegacia, gritando por aí, fazendo qualquer coisa que não apenas dar uma de burguesinho filho da puta endinheirado, acelerando uma moto que custa o mesmo que um apartamento popular, mesmo sem ter habilitação para isso, apenas para esquecer os problemas.

Eu sou um merda! E sou isso por causa “dele”!

Caralho! A Paulista está fechada por conta das comemorações do pentacampeonato. É, o Brasil conseguiu mais uma estrela no futebol, o país está eufórico como se não houvesse crianças na rua, assassinos à solta, a corrupção impedindo todo o sistema público de funcionar. Foda-se, somos penta!

Faço uma manobra rápida com a moto, deixando marcas dos grossos pneus no asfalto e sigo para outra direção, à procura de mais uma avenida extensa e reta para que eu possa extravasar todo o ódio dentro de mim indo ao limite da velocidade.

Paro a moto de repente e quase sou arremessado para frente. Meus músculos começam a tremer, meus olhos se enchem de lágrimas, sinto frio, meus dentes batem um no outro. Engulo em seco. Não vou chorar! Não choro mais, não há muitos anos.

Cada soco, cada pontapé, cada xingamento e mentira secaram minhas lágrimas. Elas até se instalam em meus olhos, porém não caem. Sufocam-me, quebram meu coração, desequilibram-me.

Caio no chão em um baque só, gemo de dor por causa do peso da moto sobre minha perna esquerda, mas não choro. Respiro fundo para controlar a dor, parar de tremer, diminuir os batimentos do meu coração. Estou acostumado a essa rotina de tentar não sentir dor, de tentar não sentir mais nada.

Levanto-me calmamente, sinto calafrios, manco, mas volto a subir na moto, acelerando-a, fazendo o motor girar e um ruído alto e potente se misturar aos sons das comemorações pelas ruas da cidade. Respiro fundo várias vezes e, quando não sinto mais nada, tiro o pé do chão e deixo a máquina me levar.

Eu queria poder fugir para o mais longe possível desta cidade, mas não dá, infelizmente não posso ir a lugar algum, estou preso, revivendo o mesmo inferno todos os dias, aceitando meu destino com resignação até poder livrar a mim e a Kyra do demônio que nos formou.

Eu poderia pedir ajuda ao Tim, mas sei que ele tem a própria merda para lidar e que conseguiu sair há pouco do inferno. Sei que precisava ir. Meu irmão estava por um fio, assim como eu, e, se ficasse lá conosco, seria para morrer ou matar, e, como não é da sua natureza matar, iria perecer aos poucos, como Nikkós gostaria que acontecesse.

Então ele foi, e eu fiquei incumbido de uma missão que nós aceitamos sem nem mesmo combinar nada, apenas porque sabíamos do que nosso pai era capaz e decidimos que não o deixaríamos chegar a ela.

Soluço na moto.

Eu falhei!

Eu falhei!

Eu falhei?!

Eu não sei! Simplesmente não sei o que aconteceu ontem! Acelero a moto, pegando uma rodovia, ainda tentando processar todos os acontecimentos e os flashes de memória que tenho.

Cometi um erro na noite passada, fui imprudente e agora preciso lidar com tudo o que aconteceu, mesmo sem entender direito o que houve. Enquanto piloto a moto, tento repassar cada momento de ontem, mesmo sabendo que já fiz isso várias e várias vezes sem nenhum êxito.

Nikkós finalmente viajou a trabalho – ou o que quer que ele tenha ido fazer –, e eu consegui relaxar um pouco. Mantenho constante vigilância sobre minha irmã, uma adolescente de 14 anos de idade, e evito ao máximo deixá-la sozinha com nosso pai. Não há muito que eu possa fazer para protegê-la das loucuras dele, mas o que está ao meu alcance, faço.

Por conta disso, desde que ingressei na universidade – no começo desse ano –, desdobro-me ao máximo para curtir com meus amigos e proteger a Kyra. A babá anterior era a mesma desde quando minha irmã e eu nascemos, totalmente devota ao nosso pai, então, assim que Konstantinos tomou posse de sua herança, demos um jeito de nos livrar dela, e, assim que outra foi contratada, meu irmão se encarregou de pagar uns extras para ela manter os olhos em Kyra.

Nikkós sempre foi um filho da puta covarde, ele nunca iria deixar um serviçal ver o que ele é capaz de fazer aos filhos, por isso tinha seus próprios lugares para executar suas torturas em Kostas e em mim.

Noite passada, uma galera mais velha da universidade fechou uma boate e me convidou para festejar com eles. Estávamos entrando de férias e queríamos muito desopilar o fígado, relaxar, curtir e esquecer todas as pressões dos estudos.

Como Nikkós não estava em casa, e a babá estava por lá com Kyra, por que não ir? Foi esse meu erro!, penso ao relembrar.

 

— O grande Alexios Karamanlis! — Alberto Bragança me saúda assim que entro na boate. — Achei que você não vinha mais, mano!

Ele me entrega uma caneca de 500ml de chope e um cartão para o restante do consumo, e logo vejo os outros caras em uma mesa no fundo do salão. A música alta, tocando um “batestaca” qualquer, não chama minha atenção. Sigo, então, na direção do pessoal e, mal chego lá, peço mais uma rodada de chope para todos.

Meu pai é um grande filho da puta, torturador desgraçado, mas, para manter as aparências, deixa-nos usar cartão sem limites e nos entrega uma mesada gorda. Bebo, sentindo o gosto do chope se tornar mais amargo que o normal, consciente de que essa porra toda é dele, comprada com o seu maldito dinheiro.

— Jefinho está na área! — alguém grita comemorando. — Vamos começar a diversão! Quem vai?

Sou um dos primeiros a me levantar, viro o resto da bebida e sigo com mais cinco amigos para o banheiro, atrás do traficante oficial da turma. Vejo cada um pegando “no bufê do Jeff” sua viagem preferida e pego um pino de “coca” para começar bem a noite.

“Foda-se, Nikkós Karamanlis!”

Cheiro.

“Foda-se, Sabrina Karamanlis!”

Aspiro mais um pouco.

“Foda-se, Theo Karamanlis!”

Faço outra carreira com o restante do pó.

“Foda-se, Geórgios Karamanlis!”

Seguro a narina fechada, mantendo tudo dentro de mim, sentindo já meu corpo girar, o cérebro acelerar e todas as sensações de abandono e dor se esvaírem como num passe de mágica. Só existe prazer, nenhuma dor, tudo é maravilhoso!

Compro mais três pinos de cocaína e alguns comprimidos de êxtase. Essa noite não quero dormir, quero aproveitar, dançar, zoar, pegar umas universitárias e esquecer quem sou.

Começo a rir de mim mesmo, da piada que acabei de pensar. Esquecer quem sou só seria possível se eu soubesse quem sou.

“Eu não sou ninguém!”

Meu Nokia vibra com a chegada de uma mensagem, confiro ser de Samara, minha única e melhor amiga, e volto a colocá-lo no bolso ao perceber a aproximação de uma gostosa do quarto ano.

— Eu não acredito que você é menor de idade, Alex! — A garota, com luzes nos cabelos e vestido com apenas uma alça, passa a mão no meu peito. — Você não parece ser um garoto, mesmo com esse rostinho angelical.

Respiro fundo para não perder a paciência, pois, se há algo que me irrita muito, é quando dizem que eu pareço um anjo. Aproximo-me dela e a puxo pela cintura.

— Posso provar que não sou um anjo! — Pego sua mão e a levo até a frente da minha calça. A garota arregala os olhos. — Os demônios com cara de anjo são os piores, gata!

— Uau! — Ela lambe meu pescoço. — O que você tomou?

— Coca, mas tenho “bala” no meu bolso. — Ela ronrona, e eu me animo. — Vem comigo!

Levo-a para uma área nos fundos da boate, uma espécie de depósito que se encontra aberto, uma vez que a casa está funcionando apenas para um bando de playboys endinheirados que preferem não se misturar com a ralé e, assim, fazer suas merdas longe dos olhos curiosos da plebe.

Claro! Afinal de contas, aqui estão reunidos os filhos dos maiores empresários, advogados, médicos, juízes e a porra toda elitizada desta cidade decadente. Bando de fodidos! A maioria desconta, como eu, a falta de afeto e atenção em casa gastando dinheiro, promovendo rachas pelas ruas, consumindo todo tipo de droga tentando preencher o buraco negro instalado nas nossas almas.

“Foda-se!”

Seguro a garota contra a parede fria do depósito e, sem nem mesmo perguntar seu nome, ataco sua boca com fúria, mordendo seus lábios e sugando sua língua. Ela mexe em minha calça, abre-a e retira meu pau para um tratamento especial em suas mãos macias.

— Novinho e pauzudo... — ela geme. — Cadê a balinha para deixar tudo mais divertido?

Sorrio e nego.

— Tem que merecer.

Ela sorri e, sem que eu precise sequer lhe indicar o que quero, ajoelha-se no chão grosso e toma meu pau em sua boca quente e esfomeada. Gemo, gostando da carícia, seguro-a pelos cabelos e a forço a engolir o máximo que consegue.

Tenho quase 17 anos, mas aposto com quem quer que seja que nenhum desses caras daqui tem a metade da experiência sexual que eu. E não, não “tiro onda” com isso, afinal, quem é filho de Nikkós Karamanlis não tem muita escolha sobre quando vai começar a trepar, ele simplesmente impõe, e comigo isso aconteceu quando eu tinha 11 anos de idade.

Afasto o pensamento pestilento sobre meu pai e curto a chupada gostosa que a garota ajoelhada me dá. Ela lambe, chupa, suga com força, arranha com os dentes – coisa que me excita “pra caralho” – e segura minhas bolas com vontade. Percebo que ela quer fazer o serviço completo com a boca, mas definitivamente ela não me conhece.

Ergo-a de uma vez só e a ponho de cara contra a parede. Procuro a camisinha no bolso da calça – uma coisa que se aprende quando se começa a vida sexual trepando com putas é que preservativos nunca podem faltar –, plastifico meu pau e levanto o vestido dela.

Bunda gostosa, magra, mas gostosa “pra cacete” com uma calcinha de cor forte – não sei se vermelha ou rosa; não divago muito sobre a cor, mesmo porque é irrelevante –, afasto a peça e esfrego os dedos em sua boceta depilada.

Ela ofega, rebola gostoso na minha mão. Vou penetrando-a devagar com os dedos, recolhendo um pouco da umidade de dentro de sua vagina para usá-la exatamente no ponto onde quero. Massageio seu clitóris até que ela se contraia em gozo e volto a molhar seu rabo com a lubrificação que solta.

Ela fica tensa quando encaixo a cabeça do meu pau em seu ânus apertado.

— Alex...

— Psiu... — falo devagarzinho em seu ouvido, lambendo sua orelha enquanto vou me afundando no canal estreito, sentindo meu corpo todo reagir à pressão de um local nunca ou pouco explorado. — Eu disse a você. — Ela arfa quando me encaixo por completo em seu rabo. — Os demônios com cara de anjo são os piores!

Meto com força e continuo estimulando seu clitóris, beijando e mordendo seu pescoço, até que ela explode em um orgasmo foda, e eu me deixo ir na camisinha, ainda sentindo as contrações do seu corpo. Quando ela se vira para me beijar, estico minha língua com sua recompensa na ponta. A garota sorri e chupa a drágea com vontade, enquanto eu engulo a outra.

A noite só começou!

 

Paro a moto em frente ao prédio onde Konstantinos mora. Fico parado olhando para o alto, invejando a liberdade de meu irmão, a coragem que teve ao se libertar assim que pôde do nosso pai. Ele estuda no Largo de São Francisco, vai ser um advogado e, mesmo que tenha tentado disfarçar, ficou contente quando contei que havia passado em todos os vestibulares para os quais havia prestado.

— Vai para algum lugar longe da cidade? — Kostas não escondeu sua preocupação.

— Não, vou ficar aqui — respondi com sinceridade, mesmo que minha vontade fosse ir para o mais longe possível deste inferno de lugar. — Vou continuar no apartamento de Nikkós, pelo menos até a Kyra fazer 18 anos.

Ele respirou fundo, e nossa conversa por telefone acabou aí. Nós não precisávamos externar nossa preocupação um para o outro, sabíamos do que nosso pai era capaz e do perigo que Kyra corria estando sob o mesmo teto que ele. Kostas saiu de casa, pois nunca soube lidar com Nikkós, ao contrário de mim.

O grego maluco tentou fazer comigo o mesmo que fazia com o meu irmão, porém nunca pensou que não me afetaria, então mudou de tática. O desgraçado tentava me acertar no único ponto que realmente me doía, mas ainda assim eu resistia em demonstrar alguma dor, então ele me fazia sentir na carne.

Esfrego a mão no ombro esquerdo, quebrado há dois anos no que todos acreditaram ser um acidente enquanto eu andava de skate, sem saber que quase tive o braço arrancado pelo homem louco, bêbado e drogado a quem todos respeitavam como um exemplo de pai, criando seus filhos sozinho depois de ter sido abandonado pela mulher.

Farsante dissimulado! Nunca amou ninguém, nunca se preocupou ou se dedicou a ninguém, nem a si mesmo. Eu só não entendo o motivo pelo qual ele não deixou que a puta que me gerou abortasse ou mesmo por que não me deixou com ela.

Eu sou um covarde! Rio, ligando a moto de novo.

Meu maior sonho é vê-lo morto, desejei e planejei isso tantas vezes, de tantas maneiras diferentes, que sei todos os passos de cor. No entanto, nunca tive coragem... Respiro fundo.

Pelo menos até essa madrugada!

Não faço ideia de como cheguei a casa, estava doidão, alto demais, cheirava a cerveja, maconha, sexo e perfumes variados. Não sei nem com quantas garotas trepei à noite, sei que algumas só mamaram meu pau, mas, com outras, a coisa foi mais louca.

Não consigo me lembrar de muita coisa. Só tenho sensações ruins de quando cheguei ao apartamento e percebi que Nikkós havia voltado. Nas memórias, há gritos, choro, mas nenhuma imagem. Tudo o que tenho nítido na cabeça foi o que aconteceu depois que acordei.

Estava deitado na sala principal do apartamento, minhas roupas sujas de sangue, rasgadas, um hematoma no olho e um corte no canto da boca já me incomodando. Não sabia nem onde estava, só sentia dor, confusão, e vomitei ali mesmo, no tapete da sala.

Ao meu lado vi uma faca suja de sangue. Gelei, sem saber o que tinha feito e de quem era o líquido viscoso e vermelho que cobria toda a lâmina. Foi nesse momento que saí do torpor em que me encontrava, peguei o objeto e comecei a correr pela enorme cobertura, entrando em todos os cômodos.

— Kyra! — gritava, mesmo com a cabeça explodindo. — Kyra!

Minha irmã não estava em lugar algum, nem mesmo a Nívea, a senhora que cuidava dela, eu pude encontrar. Meu desespero só aumentou. Liguei para o telefone dela, mas estava dando na caixa de mensagens.

Comecei a soluçar, mesmo não derramando uma só lágrima, e entrei no local proibido da casa, o santuário satânico de Nikkós Karamanlis: seu quarto.

Estanquei quando vi seu corpo enorme e nu jogado sobre a cama king size. Notei os cortes em seus braços, bem como o movimento de respiração, seguido dos roncos altos. O filho da puta não estava morto! Apertei a faca em minha mão com mais força, pensando que esse seria o momento certo para livrar a todos de sua existência.

Andei até ele devagar, os nós dos dedos brancos de tão firme que segurava a faca. Medi suas costas, imaginando que seria muito fácil perfurar seu pulmão com uma só estocada no lugar certo e que ele morreria afogado em seu próprio sangue lentamente, em uma morte digna dele.

Ergui a faca, fechei os olhos, parei de tremer e me lembrei de todos os anos de abuso e de tortura, do que ele fazia ao Kostas, do que fazia comigo e do que poderia fazer a Kyra.

Respirei fundo, concentrei a força e desci a faca, mas parei a milímetros de sua pele quando ouvi soar a campainha. Joguei a arma para longe e saí correndo daquele cômodo pestilento, descendo as escadas disparado para atender a porta, torcendo para que fossem Nívea e Kyra.

— Alexios? — a voz de Samara me fez prender o fôlego. — Alexios, você está aí?

Abri a porta sem pensar duas vezes e desmontei ao ver minha irmã ao lado da minha melhor amiga. Kyra, minha pequena princesa, linda como uma pintura, seus olhos enormes e verdes cheios de lágrimas e os lábios trêmulos.

— Ainda bem! — exclamei aliviado, puxando-a para meus braços. — Ainda bem!

— Alexios, você precisa de ajuda? — Samara questionou, olhando tudo em volta. — Ontem à noite a senhora Nívea pediu que Kyra ficasse comigo e...

Segurei o rosto de minha irmã, desgostoso por saber que ela mal fala por conta do monstro que temos em casa, sequei as lágrimas que escorriam por seu rosto miúdo e assustado e perguntei:

— O que houve?

Ela deu de ombros.

— Ele voltou mais cedo, estava bêbado, mandou Nívea embora. — Sinto um arrepio de frio percorrer minha coluna. — Os dois discutiram. — Ela soluçou. — Ele bateu nela, ela desmaiou...

— E você, onde estava?

Kyra desviou os olhos, e eu senti como se um soco acertasse a boca do meu estômago. Olhei para Samara em busca de uma resposta, mas minha amiga apenas deu de ombros, indicando que minha irmã também não falou com ela.

— Quando ela acordou, me levou para o apartamento da Malinha, e aí eu fiquei lá. — Kyra olhou em direção ao corredor. — Ele ainda está...

Assenti.

— Vá para o seu quarto, tranque a porta, tome um banho; daqui a pouco vou me encontrar com você. — Ela tentou sorrir em agradecimento para Samara, mas depois desistiu, seguindo diretamente para seu quarto. — Samara...

— Vocês precisam denunciar isso! — Ela tocou meu rosto. — Você é só um garoto, Alexios, não pode proteger vocês dois.

— Posso! — afirmei cheio de raiva. — Você sabe muito bem que, se uma denúncia for feita, ela será tirada de nós. Eu ficarei um ano em algum abrigo, mas e ela?

— O Tim não pode...

Neguei.

— Não acho que o deixariam cuidando de dois adolescentes, ele só tem 20 anos! — Fechei os olhos, cansado, com medo, sem saída e senti quando ela me abraçou apertado.

— Onde você esteve ontem à noite?

— Fui me divertir...

— Não. — Seus olhos lindíssimos encararam os meus. — Você não se diverte, Alexios, você tenta se matar. — Passou a mão pelo meu rosto. — Quanto usou?

Dei de ombros, não querendo discutir isso com ela. Nunca termina bem!

— Isso não ajuda ninguém. Nem a você, muito menos à sua irmã. — Tentou sorrir para disfarçar o sermão, seus dentes cheios de plaquinhas do aparelho ortodôntico, o rosto redondo de menina fazendo covinhas, coisa que ela sempre teve e sempre achei lindo. — Eu sei que só tenho 15 anos, mas...

— Eu agradeço que você tenha feito companhia a Kyra, mas agora preciso resolver tudo aqui. — Apontei para a sala. — Ficou tudo bem com seus pais?

— Sim, não acharam nada estranho que Kyra dormisse lá em casa, afinal, somos amigas.

Ri amargamente.

— Essa amizade é aceitável para os Schneiders, não é? — Samara ficou vermelha. — Kyra é uma boa menina, não um porra-louca como eu, filho de uma puta e...

Samara pôs a mão sobre minha boca.

— Você é meu melhor amigo, apenas isso deveria te bastar para calar qualquer outra coisa que meus pais possam pensar de você.

Abracei-a forte, a consciência pesada por falar mal de sua família, pois sei quanto ela os ama, depois me despedi e tratei de limpar a sala, jogar a roupa que usava fora e fiquei até há pouco com minha irmã, ambos trancados no seu quarto.

Só saí para espairecer, para processar tudo o que aconteceu na madrugada passada, pois mais uma vez Samara agiu como um anjo e convidou minha irmã para assistir à final da Copa do Mundo com ela e depois terem uma noite de meninas, com direito a festa do pijama.

Entro na garagem do prédio, mando uma mensagem para Samara informando-a de que cheguei e que estou indo buscar minha irmã. Sinceramente eu não sei como vou fazer até encontrar outra pessoa de confiança para deixar com Kyra quando eu não estiver em casa, pois Nívea disse que nunca mais colocará os pés no nosso apartamento, depois de ter recebido uma boa quantia para que não denunciasse o que se passa dentro de nossa casa, pois entendeu que prejudicaria Kyra.

Não importa! Kyra precisa de mim, e, nem se eu precisar mudar toda minha rotina por causa dela, a terei protegida.


São Paulo, tempo atuais.


Acordo com uma dor de cabeça filha da puta, ressacado, tão zonzo que tropeço ao sair da cama, e a primeira coisa que me vem à cabeça nesta manhã (ou será nesta tarde?) é que hoje é véspera de Natal. Foda-se! Sou ateu, esses feriados religiosos não significam nada para mim.

Sigo pelo corredor em direção à cozinha, com muita sede, louco para tomar um analgésico para exterminar a dor de cabeça. Não vou tomar! Não tomo remédios para dor há anos, aprendi a conviver com as pontadas, com as ardências. A dor me tornou mais forte, resiliente, aprendi há muito que nada é capaz de me ferir mais do que eu mesmo.

A maioria dos meus ossos trazem lembranças de como superei, as marcas no meu corpo também, porém, nenhuma dessas cicatrizes é mais forte do que o vazio dentro de mim.

Encho um copo d’água até transbordar e o bebo em um só gole. A cabeça martela ainda mais por conta da bebida gelada, mas ignoro-a por completo. Não há remédio para o que sinto, não há cura para toda a raiva que carrego dentro de mim, então posso, sim, conviver com umas horas de pontadas no cérebro.

Olho para a porta fechada na área de serviço. Os cômodos dali eram a tal dependência de empregados, mas, como eu nunca tive nenhum, aproveitei-os para outros fins. Inspiro, os cheiros tão familiares chegando às minhas narinas. A raiva natural com que acordo todos os dias se aplaca; não some, apenas se recolhe, dando lugar às sensações de prazer.

Confiro as horas e xingo ao perceber que já estamos no meio da tarde. Sinceramente, não sei por que Kyra inventou essa ceia de Natal, não depois de todos esses anos. Não entendo minha irmã, sinceramente. Há muito convivo com seu gênio forte, sua determinação, mas ainda não sei quem é ela. A garota divertida da infância se tornou uma adolescente quieta e taciturna, uma jovem inteligente e ajuizada e, por fim, uma adulta completamente misteriosa. Eu a acompanhei em todas as fases de sua vida, mas ainda assim não sei quem é a verdadeira Kyra Karamanlis.

Assim que ela completou 18 anos, abandonamos a luxuosa cobertura de Nikkós e fomos morar em um cafofo velho e caindo aos pedaços. Eu estudava como um louco no meu último ano de faculdade, e, como ela passou para uma universidade pública também, tínhamos que morar próximo de uma das duas universidades. Preferi ficar próximo da dela e me fodia andando de bicicleta até a minha todos os dias.

Nessa época eu estagiava na Novak Engenharia e, com a bolsa do estágio, eu mal conseguia pagar o aluguel do quarto e sala que aluguei. Ela nunca soube, mas quem bancava nossa alimentação, transporte e outras despesas era o Kostas. Meu irmão e eu nem éramos amigos, na verdade mal nos falávamos, mas todo mês o dinheiro aparecia na minha conta, e eu sabia que vinha dele.

Formei-me e já fui efetivado na Novak. Trabalhei com o Nicholas, com quem aprendi demais e construí uma amizade forte, assim como com seu irmão Bernardo. Os tempos de bagunça, baladas, drogas e bebidas acabaram quando nos libertamos da prisão daquele apartamento e da convivência maligna de Nikkós.

Kyra estudava muito, era extremamente aplicada em tudo o que fazia, e, irritada por não conseguir conciliar seu horário de estudos com um emprego, começou a fazer doces e salgados dentro do nosso pequeno apartamento e vendê-los na faculdade.

Rio ao pensar que foi assim que nasceu a promoter de eventos, em uma cozinha de seis metros quadrados, com um forno capenga, um fogão com só duas bocas funcionando e uma geladeira que parecia um monomotor, de tanto barulho que fazia. Em pouco tempo ela estava fornecendo encomendas para festas e pequenos eventos, depois começou a fazer projetos de decoração, então, quando se formou, foi trabalhar em um grande e caríssimo bufê da cidade, auxiliando a cerimonialista com os projetos.

Hoje ela é a dona de uma empresa especializada em produções de eventos diversos, bem-sucedida, com um negócio em progressão geométrica de crescimento. Tenho muito orgulho dela, principalmente por ser a única que não ficou agarrada ao cordão umbilical familiar dentro da Karamanlis.

Agora qual a necessidade da porra de uma ceia de Natal para comemorar a expansão de seu negócio? Vou ter que ficar com um maldito sorriso no rosto, carinha de anjo, lidando com o caralho da minha gastrite me corroendo ao pensar na hipocrisia do mundo.

Respiro fundo e decido combater a ressaca e a dor de cabeça com mais bebida. Pego uma cerveja na geladeira, abro-a na beirada da pia e entro no outro ambiente, a sala, integrada ao outro cômodo, separados apenas por uma enorme bancada.

Eu mesmo projetei esse prédio, há alguns anos, ainda trabalhando na Novak. Bernardo Novak é meu vizinho de porta, e Nicholas foi o primeiro dono da cobertura duplex que toma todo o último andar, hoje habitada por um casal e uma menininha. Comprei o apartamento pensando em vir morar com minha irmã, mas qual não foi minha surpresa quando ela anunciou que só sairia do cafofo para seu próprio lugar?

Pois é, vim sozinho, ocupo apenas a suíte principal, e os outros dois quartos estão praticamente vazios. A sala foi decorada – pela própria Kyra –, bem como a cozinha, mas nunca mandei fazer os móveis da sala de jantar, pois não vejo nenhuma função para eles. Eu como sozinho no balcão da cozinha, assistindo a TV ou ouvindo música.

Resgato meu celular, seleciono uma das minhas muitas playlists, e a caixa de som já liga automaticamente, deixando o som pesado do Matanza ecoar pelos ambientes. Sorrio ao ouvir “Bom é quando faz mal”, as recordações das loucuras da faculdade, de toda a merda que eu fazia. Não tenho vontade alguma de fazer de novo, mas também não posso dizer que me arrependo. Era o meu jeito de extravasar, tresloucado, admito, mas ainda assim muito mais normal do que o que eu vivia dentro de casa.

Preparo qualquer coisa para comer, balançando a cabeça e cantando as músicas de várias bandas de rock, algumas famosas, outras nem tanto, mas que marcaram minha vida de alguma forma.

O telefone toca, e a chamada atrapalha minha diversão musical. Bufo, jogo o pano de prato sobre a pia e pego o aparelho.

— Oi, Millos — atendo meu primo.

— Boa tarde, Alexios. Animado com a reunião de hoje à noite?

— Ô, tão quanto eu estaria para fazer um exame de próstata. — Millos gargalha. — Ela convidou você também?

— E o Kostas. — Isso me surpreende, pois, até onde eu sei, não temos nenhuma convivência com ele. — Bom, liguei para dizer que irei viajar na virada do ano, por isso preciso que você não deixe de ir ao baile dos Villazzas.

Gemo ao pensar em vestir um smoking.

— Porra, Millos, não fode! Aposto que Theodoros vai, afinal Frank e ele são quase um casal! — Millos ri do meu deboche acerca da amizade entre meu irmão mais velho e o CEO da rede Villazza de hotéis. — Não tenho a mínima...

— Konstantinos confirmou presença também.

Puta que pariu!

Preciso me sentar depois dessa informação, pasmo só em imaginar Kostas com alguma puta, sentado na mesma mesa de Theodoros. Vai dar merda!

— Eu não tenho companhia — tento me justificar. — E você poderia adiar a sua viagem só por uns...

— Não, não posso, já fiz todos os arranjos, reservas em hotéis, o cronograma da viagem! Você tem que ir para evitar que os dois prejudiquem a imagem da empresa.

Reviro os olhos ao pensar na imagem da empresa. Millos é doido ao pensar que temos uma imagem a zelar. Todos nesta maldita cidade, neste meio asqueroso no qual vivemos, sabem que somos todos fodidos e que nosso pai cagou em nosso nome com a sucessão de merdas que fez.

E olha que a maioria não o conheceu de verdade, não soube o monstro que ele era, escondido por detrás de uma fachada bonita e um sorriso de conquistador barato! Um lobo em pele de cordeiro, um demônio com a face de um anjo... assim como eu.

Bufo de raiva.

— Cadê aquela sua amiga? — Franzo a testa, sem acreditar que ele está se referindo à Samara. — Vocês viviam para cima e para baixo juntos, ela te acompanhou em um dos primeiros eventos dos Villazzas e...

— A Samara mora em Madri há mais de três anos, Millos. — Decido não entrar em detalhes e contar a ele que nos afastamos por algum motivo idiota que eu não consigo lembrar. — Vou ter que ligar para alguma...

— Isso, ligue — ele me corta. — Mulher nunca foi seu problema, aposto que você tem um caderninho cheio de telefones.

— E daí? — afronto-o. — Gosto de sexo, nunca escondi isso, diferente de você, que nunca foi visto com nenhuma mulher além daquela sua amiga motoqueira. — Decido provocá-lo: — Millos, acho que está na hora de sair do armário, porra!

O filho da puta ri alto.

— Eu não teria problema algum em sair se fosse o caso. Ainda mais agora, que Dimitrios saiu, e o pappoús continuou vivo e... — Millos para.

É sempre assim quando algum assunto referente à família na Grécia vem à tona. Eu não conheço ninguém, nunca fui à Grécia, nem tenho a mínima vontade de ir. Não conheço o tal pappoús, nem primo algum além de Millos, que só conheci quando veio morar no Brasil.

Sou o Karamanlis renegado, indigno do sobrenome.

— Vou ligar para alguém e convidar a ir comigo — encerro o assunto constrangedor. — Mas não garanto atuar de mediador como você.

— Você, mediador? — Millos se surpreende. — Alexios, se eu não tivesse interferido, você teria criado uma situação com Theodoros na festa de final de ano da Karamanlis. Eu só quero que você vá com alguém e iniba um pouco aqueles dois.

Bufo e concordo.

— Eu vou.

— Obrigado. — Estou prestes a desligar, quando ele me chama de novo: — Ah, Alexios, não encha a cara, senão você vai falar merda para o Theo, e o Kostas vai se aproveitar disso.

— Vai se foder, Millos! Eu já vou, porra, não diga o que tenho que fazer.

Desligo irritado, perco a fome e a vontade de terminar o que estava preparando.

Mesmo puto, preciso admitir, Millos tem razão sobre eu perder a cabeça com Theodoros, principalmente quando bebo. Eu não odeio meu irmão mais velho como sei que Kostas o faz, apenas ele não significa mais nada para mim.

Convivo bem com ele, pelo menos no sentido profissional, mas não quero nenhum tipo de ligação mais pessoal. Ele perdeu o timing quando, depois de toda a merda que ajudou a fazer, nunca mais quis saber de nós. Era como se nem existíssemos! Ele excluiu Nikkós de sua vida, mas acabou nos descartando junto. Nunca se preocupou em saber de nenhum de seus irmãos, muito menos de sua adorada Kyra, a mais vulnerável de todos nós.

Então, sim, eu perco a cabeça com ele, principalmente com seu jeito esnobe, intocável, como se somente ele importasse e mais ninguém. E foi por isso que nos estranhamos na festa de final de ano da Karamanlis, porque, simplesmente, este ano a festa não foi Theocrática1.

Millos e eu nos reunimos com alguns gerentes e coordenadores para entender o que os funcionários da Karamanlis gostariam de ter em uma festa de encerramento do ano. Depois, contratamos todos os serviços – sem ser da Kyra, pois neste ano ela se livrou de nós na cara dura – e fizemos a festa focada nos funcionários.

Aparentemente, isso chocou e desagradou ao CEO com síndrome de deus, e sua cara fechada e seu olhar de desprezo não ficaram nada disfarçados.

— Ei, irmãozinho! — Eu o parei, enquanto andava como um deus do Olimpo visitando terráqueos. — Aproveitando a festa?

— Espero que não tenha vindo de moto! — o filho da puta tentou me repreender como se estivesse preocupado com minha segurança, e isso, juntamente a toda cerveja que eu já tinha tomado, irritou-me.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já muito bêbado para me conter. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos2!

Theodoros franziu o cenho com meu deboche, comparando seu nome à palavra deus em grego. Estava prestes a dizer algo, mas se conteve quando de repente fui abraçado pelos ombros. Nem precisei olhar para saber que nosso interventor havia chegado.

— Alex, que festança, não? — Millos comentou. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — Theodoros pareceu perplexo. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Gargalhei ao confirmar que ele era mesmo um grande egocêntrico, incapaz de perceber a diferença da festa deste ano à do ano passado por estar focado nos detalhes e não no que realmente importava: as pessoas.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — respondi como se estivesse sóbrio, mesmo não estando. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos me cortou.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — Theodoros perguntou ao Millos, apontando o dedo em minha direção como o grande babaca que sempre foi.

— Fui! — respondi. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Tentei demonstrar com gestos o que dizia, abri os braços de repente, e meu punho bateu no peito do Millos, que chegou para trás. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — olho para um grupo dançando e vários outros conversando, comendo e se divertindo — você está vendo alguém ir?

Ele ficou um tempo olhando em volta como se notasse, pela primeira vez desde que chegou, que realmente os funcionários estavam adorando a descontração deste ano.

Eu só não esperava que ele tentasse ser condescendente comigo:

— Bom trabalho! O pessoal parece realmente estar gostando!

Só faltou dar umas batidinhas em minha cabeça como se eu fosse a porra do seu cãozinho de estimação. Meu sangue ferveu, travei os punhos e não me contive:

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos interrompeu-me e me abraçou novamente pelos ombros. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Mal acabou de falar, seguiu para o outro lado, levando-me consigo.

— Porra, moleque, não tem como ser menos reativo não? A festa está um sucesso graças ao seu feeling, ao modo como você conhece e percebe as pessoas, para que estragar isso batendo boca ou — ele me encarou —, como percebi que queria fazer, enchendo a cara do Theo de porrada? Sai dessa!

Concordei com meu primo e respirei fundo. Depois disso tomei quase um litro de café amargo, ele me pôs em um Uber, e eu vim para casa, onde continuei a beber, desmaiei no sofá e, no outro dia, fui correr ainda um tanto trôpego, sendo desclassificado no teste do bafômetro.

Perdi minha última corrida do ano, grande fracassado que sou!

Volto a ligar minha playlist, e a música que toca é exatamente a que eu preciso para sair da fossa dessas lembranças todas:

— Eu não tenho nada pra dizer. Também não tenho mais o que fazer. Só para garantir esse refrão, eu vou enfiar um palavrão: cu!3


Entro no showroom da A??p?4 – a empresa de eventos de Kyra – e já admiro o trabalho dela com a decoração do local. A enorme mesa com vários lugares ocupa o centro do enorme salão, com castiçais, flores, louças e talheres milimetricamente colocados, junto a taças de cristal e guardanapos de linho.

No restante do salão, há mesas altas para apoiar drinques, sofás e poltronas brancas, com almofadas e outras coisas de decoração seguindo a paleta de cores da festa: verde, vermelho e dourado.

Clichê! Mas é Natal, tem como não ser?

Dou de ombros e vejo Kyra de costas, junto à belíssima morena que trabalha com ela desde que abriu a empresa e as duas chefes de cozinha que conheceu ainda quando trabalhava no outro bufê e as roubou na cara dura quando resolveu estabelecer seu próprio negócio. Uma delas, acho que é a doceira – Mari, como todos a chamam – me vê e logo cutuca minha irmã.

— Ah, Alex! — Kyra abre um enorme sorriso, entrega para a morena – como é mesmo o nome dela? – os penduricalhos de Natal com os quais enfeitava o enorme pinheiro e vem até mim. — Que bom que chegou, tenho uma coisa para você!

Ah, puta que pariu! Ela me comprou um presente? Fico imediatamente sem jeito, pois não comprei absolutamente nada para ela. Eu nem imaginava que iríamos trocar lembranças, nunca fizemos isso!

Alívio toma conta de mim quando ela vem com uma caixinha pequena e claramente de doces.

— Quando experimentei, lembrei logo de você. — Ela tira um doce dourado de dentro da caixa. — Prove!

Franzo o cenho e abro a boca. Mastigo devagar, emitindo sons de prazer, adorando o contraste de texturas e o sabor doce e... picante. Abro um sorriso.

— Chocolate com pimenta! — Termino de comer. — Perfeição!

— Bombom Helênico. — Faço careta para o nome, não combina em nada. — Eu sei, é péssimo, mas as meninas quiseram fazer uma homenagem para a Helena, então... — Dá de ombros.

Helena!, minha mente grita ao lembrar o nome da morena gostosa, mas que nunca sorri e mal fala comigo quando apareço aqui.

— Hum... gostosa! — Começo a rir quando noto que falei alto. Kyra me olha séria. — O quê?

— Nem pense, ela está comprometida!

Ergo as mãos em minha defesa.

— Não falei nada!

— Não precisa! Sua fama de embusteiro conquistador te precede! — Faço careta, e ela ri. — Estive com saudades de você.

— Então por que não foi me ver ou me ligou? — pergunto sem enrolação.

— Não sei.

Respiro fundo. Ela se fecha, é sempre assim e não só comigo. Ela se empolga, vibra, deixa as pessoas se aproximarem, mas nunca demais. Quando chega a seu limite, simplesmente retrocede com a mesma rapidez e naturalidade com que atraiu alguém. É por isso que suas amizades ou mesmo seus relacionamentos amorosos nunca duraram muito.

Porém o que faço eu aqui, julgando-a?

— Alexios Karamanlis! — Viro-me ao ouvir a voz de Millos.

Meu primo – filho de uma égua! – carrega uma enorme caixa de presente toda embrulhada e com laços. Kyra abre um enorme sorriso e vai saltitante até ele, abraça-o pelo pescoço – coisa que não faz nem comigo – e agradece o regalo.

— É para decorar sua sala de empresária fodona — ele brinca com ela, e Kyra gargalha ao tirar uma estátua toda colorida de um unicórnio. — Eu me lembrei daquela sua fantasia no dia das bruxas...

Kyra para de boca aberta.

— Millos, eu tinha quatro anos! — ela recorda e, de repente, parece lembrar também que, naquela época, tudo parecia realmente possível, mágico e feliz.

Meu primo a abraça forte e fala algo em seu ouvido, baixinho. Kyra assente, e eu fico paralisado vendo a troca de carinho entre eles. Parece normal, não é? Mas, creiam-me, não é. Millos evita qualquer contato físico com outras pessoas. Ao cumprimentá-las, ele prefere baixar a cabeça do que dar um aperto de mãos; o máximo que o vi fazer até hoje foi tocar no ombro de alguém, mas somente quando julga necessário. Até comigo, o máximo que ele fez até hoje foi me abraçar para evitar um embate entre mim e Theo. Então assistir aos dois se abraçando é realmente algo inédito.

— Feliz Natal, pesménos ángelos5.

Mostro o dedo do meio para ele.

— Ah, pesquisou! — Ri debochado, mas logo para ao aceitar o chope que Kyra nos oferece. — É um absurdo você não saber nada da nossa língua.

— Não tenho interesse algum por nada que venha de lá — justifico e bebo. — Kyra também não sabe!

— Quem disse? — Ela começa a rir. — Anóito6.

— Quando foi que você se interessou por essa porra? — questiono-lhe surpreso.

— Você leu o nome da empresa dela na fachada? — é Millos quem retorna minha pergunta. — Está em grego!

Millos e Kyra engatam uma conversa, enquanto eu ainda estou paralisado com essa nova informação. Não é exagero, mas eu pensei que ela, assim como eu, desprezasse qualquer coisa que tenha relação com Nikkós. No entanto, ao contrário de mim, ela sempre foi aceita por todos os Karamanlis como parte da família, então é natural que tenha algum apreço por eles.

— Ah, mais convidados estão chegando!

Kyra deixa-nos a sós e vai até um grupo que não conheço.

— Ela parece feliz — comento com Millos.

Meu primo dá de ombros.

— Há pessoas com o dom de demonstrar apenas o que querem que vejam. — Bebe o resto de seu chope e me encara. — Já resolveu o assunto do baile dos Villazzas?

— Ah, Millos, não fode mais a minha noite! — Vejo duas lindas mulheres adentrarem ao salão e abro um sorriso. — Pode ser que ela esteja começando a melhorar.

Millos ergue uma de suas sobrancelhas, e eu o deixo sozinho, caminhando em direção ao meu mais novo alvo da noite, que, neste exato momento, cumprimenta minha irmã.

— Kyra, eu gostaria de... — finjo interromper-me quando as desconhecidas me olham. — Desculpem-me. — Kyra rola os olhos, mas suas convidadas não desviam o olhar do meu rosto. — Millos estava falando do chope, e nós fizemos uma pequena aposta, mas posso ver isso depois, atenda seus convidados. — Abro novamente meu melhor sorriso na direção delas.

— Valéria e Priscila, esse é meu irmão, Alexios Karamanlis — Kyra faz nossa apresentação, e eu sei que depois irá jogar na minha cara que eu estou lhe devendo por isso.

— Um prazer, Valéria! — Aproximo-me para cumprimentá-la e logo depois saúdo a outra: — Prazer, Priscila.

— O prazer é meu, Alexios — Priscila responde, sorrindo, e vejo a mão de Valéria tocar suas costas num gesto um tanto territorialista. Perfeito! Trocamos beijos no rosto em cumprimento. — Eu já te vi em algumas revistas especializadas em engenharia e arquitetura, principalmente quando o conselho dessas classes era o mesmo.

— Arquiteta? — tento adivinhar, mas ela nega e aponta para sua amiga.

— Valéria é, eu sou designer industrial. — Faço cara de surpresa, mesmo sem achar nada de mais. — É, eu sei, a maioria das pessoas que me conhece acha que sou modelo ou estilista, mas você quase acertou. — Seu sorriso é claramente de quem se sente lisonjeada. — Trabalho conceitos para grandes marcas.

— Incrível! — Olho-a de cima a baixo, e Kyra bufa. — Você também parece incrível, Valéria. — Sorrio, e ela relaxa.

— Alexios, chegaram outros convidados, você poderia fazer companhia a elas? — Ela pega na mão das amigas. — Vocês não se importam, não é?

— Claro que não, você é a anfitriã da noite! — Valéria diz, e sinto seu olhar brilhar em minha direção. — Nós ficaremos em boa companhia com seu irmão, afinal, é o anjo rebelde dos Karamanlis.

Puta que pariu!

 

CONTINUA

Com um passado nebuloso, marcado por traumas, rejeições e violência, há anos Alexios Karamanlis busca entender a si mesmo e, para isso, começa uma caçada sem fim pelo destino de sua mãe biológica, junto a sua melhor amiga, Samara Schneider.
Amigos desde tenra idade, Alexios sempre tentou não a notar como mulher por temer perder sua amizade e apoio, e Samara sempre sonhou com o dia em que o garoto problemático e rebelde se apaixonaria por ela.
Juntos em busca de respostas sobre a verdadeira história do nascimento de Alexios, os dois mergulharão no sujo passado do pai dele, Nikkós Karamanlis, revelarão segredos muito bem guardados e, por fim, descobrirão que não há como reprimir mais a paixão e o desejo que sentem um pelo outro.

 

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O país todo está enlouquecido!, penso ao passar por mais uma blitz policial sem nenhum problema, acelerando a moto ao máximo, capacete preto espelhado impossibilitando qualquer um de ver que quem pilota essa máquina é um garoto, não um homem.

Eu não sou um homem! Não sou! Se fosse, não estaria aqui neste momento, mas sim na delegacia, gritando por aí, fazendo qualquer coisa que não apenas dar uma de burguesinho filho da puta endinheirado, acelerando uma moto que custa o mesmo que um apartamento popular, mesmo sem ter habilitação para isso, apenas para esquecer os problemas.

Eu sou um merda! E sou isso por causa “dele”!

Caralho! A Paulista está fechada por conta das comemorações do pentacampeonato. É, o Brasil conseguiu mais uma estrela no futebol, o país está eufórico como se não houvesse crianças na rua, assassinos à solta, a corrupção impedindo todo o sistema público de funcionar. Foda-se, somos penta!

Faço uma manobra rápida com a moto, deixando marcas dos grossos pneus no asfalto e sigo para outra direção, à procura de mais uma avenida extensa e reta para que eu possa extravasar todo o ódio dentro de mim indo ao limite da velocidade.

Paro a moto de repente e quase sou arremessado para frente. Meus músculos começam a tremer, meus olhos se enchem de lágrimas, sinto frio, meus dentes batem um no outro. Engulo em seco. Não vou chorar! Não choro mais, não há muitos anos.

Cada soco, cada pontapé, cada xingamento e mentira secaram minhas lágrimas. Elas até se instalam em meus olhos, porém não caem. Sufocam-me, quebram meu coração, desequilibram-me.

Caio no chão em um baque só, gemo de dor por causa do peso da moto sobre minha perna esquerda, mas não choro. Respiro fundo para controlar a dor, parar de tremer, diminuir os batimentos do meu coração. Estou acostumado a essa rotina de tentar não sentir dor, de tentar não sentir mais nada.

Levanto-me calmamente, sinto calafrios, manco, mas volto a subir na moto, acelerando-a, fazendo o motor girar e um ruído alto e potente se misturar aos sons das comemorações pelas ruas da cidade. Respiro fundo várias vezes e, quando não sinto mais nada, tiro o pé do chão e deixo a máquina me levar.

Eu queria poder fugir para o mais longe possível desta cidade, mas não dá, infelizmente não posso ir a lugar algum, estou preso, revivendo o mesmo inferno todos os dias, aceitando meu destino com resignação até poder livrar a mim e a Kyra do demônio que nos formou.

Eu poderia pedir ajuda ao Tim, mas sei que ele tem a própria merda para lidar e que conseguiu sair há pouco do inferno. Sei que precisava ir. Meu irmão estava por um fio, assim como eu, e, se ficasse lá conosco, seria para morrer ou matar, e, como não é da sua natureza matar, iria perecer aos poucos, como Nikkós gostaria que acontecesse.

Então ele foi, e eu fiquei incumbido de uma missão que nós aceitamos sem nem mesmo combinar nada, apenas porque sabíamos do que nosso pai era capaz e decidimos que não o deixaríamos chegar a ela.

Soluço na moto.

Eu falhei!

Eu falhei!

Eu falhei?!

Eu não sei! Simplesmente não sei o que aconteceu ontem! Acelero a moto, pegando uma rodovia, ainda tentando processar todos os acontecimentos e os flashes de memória que tenho.

Cometi um erro na noite passada, fui imprudente e agora preciso lidar com tudo o que aconteceu, mesmo sem entender direito o que houve. Enquanto piloto a moto, tento repassar cada momento de ontem, mesmo sabendo que já fiz isso várias e várias vezes sem nenhum êxito.

Nikkós finalmente viajou a trabalho – ou o que quer que ele tenha ido fazer –, e eu consegui relaxar um pouco. Mantenho constante vigilância sobre minha irmã, uma adolescente de 14 anos de idade, e evito ao máximo deixá-la sozinha com nosso pai. Não há muito que eu possa fazer para protegê-la das loucuras dele, mas o que está ao meu alcance, faço.

Por conta disso, desde que ingressei na universidade – no começo desse ano –, desdobro-me ao máximo para curtir com meus amigos e proteger a Kyra. A babá anterior era a mesma desde quando minha irmã e eu nascemos, totalmente devota ao nosso pai, então, assim que Konstantinos tomou posse de sua herança, demos um jeito de nos livrar dela, e, assim que outra foi contratada, meu irmão se encarregou de pagar uns extras para ela manter os olhos em Kyra.

Nikkós sempre foi um filho da puta covarde, ele nunca iria deixar um serviçal ver o que ele é capaz de fazer aos filhos, por isso tinha seus próprios lugares para executar suas torturas em Kostas e em mim.

Noite passada, uma galera mais velha da universidade fechou uma boate e me convidou para festejar com eles. Estávamos entrando de férias e queríamos muito desopilar o fígado, relaxar, curtir e esquecer todas as pressões dos estudos.

Como Nikkós não estava em casa, e a babá estava por lá com Kyra, por que não ir? Foi esse meu erro!, penso ao relembrar.

 

— O grande Alexios Karamanlis! — Alberto Bragança me saúda assim que entro na boate. — Achei que você não vinha mais, mano!

Ele me entrega uma caneca de 500ml de chope e um cartão para o restante do consumo, e logo vejo os outros caras em uma mesa no fundo do salão. A música alta, tocando um “batestaca” qualquer, não chama minha atenção. Sigo, então, na direção do pessoal e, mal chego lá, peço mais uma rodada de chope para todos.

Meu pai é um grande filho da puta, torturador desgraçado, mas, para manter as aparências, deixa-nos usar cartão sem limites e nos entrega uma mesada gorda. Bebo, sentindo o gosto do chope se tornar mais amargo que o normal, consciente de que essa porra toda é dele, comprada com o seu maldito dinheiro.

— Jefinho está na área! — alguém grita comemorando. — Vamos começar a diversão! Quem vai?

Sou um dos primeiros a me levantar, viro o resto da bebida e sigo com mais cinco amigos para o banheiro, atrás do traficante oficial da turma. Vejo cada um pegando “no bufê do Jeff” sua viagem preferida e pego um pino de “coca” para começar bem a noite.

“Foda-se, Nikkós Karamanlis!”

Cheiro.

“Foda-se, Sabrina Karamanlis!”

Aspiro mais um pouco.

“Foda-se, Theo Karamanlis!”

Faço outra carreira com o restante do pó.

“Foda-se, Geórgios Karamanlis!”

Seguro a narina fechada, mantendo tudo dentro de mim, sentindo já meu corpo girar, o cérebro acelerar e todas as sensações de abandono e dor se esvaírem como num passe de mágica. Só existe prazer, nenhuma dor, tudo é maravilhoso!

Compro mais três pinos de cocaína e alguns comprimidos de êxtase. Essa noite não quero dormir, quero aproveitar, dançar, zoar, pegar umas universitárias e esquecer quem sou.

Começo a rir de mim mesmo, da piada que acabei de pensar. Esquecer quem sou só seria possível se eu soubesse quem sou.

“Eu não sou ninguém!”

Meu Nokia vibra com a chegada de uma mensagem, confiro ser de Samara, minha única e melhor amiga, e volto a colocá-lo no bolso ao perceber a aproximação de uma gostosa do quarto ano.

— Eu não acredito que você é menor de idade, Alex! — A garota, com luzes nos cabelos e vestido com apenas uma alça, passa a mão no meu peito. — Você não parece ser um garoto, mesmo com esse rostinho angelical.

Respiro fundo para não perder a paciência, pois, se há algo que me irrita muito, é quando dizem que eu pareço um anjo. Aproximo-me dela e a puxo pela cintura.

— Posso provar que não sou um anjo! — Pego sua mão e a levo até a frente da minha calça. A garota arregala os olhos. — Os demônios com cara de anjo são os piores, gata!

— Uau! — Ela lambe meu pescoço. — O que você tomou?

— Coca, mas tenho “bala” no meu bolso. — Ela ronrona, e eu me animo. — Vem comigo!

Levo-a para uma área nos fundos da boate, uma espécie de depósito que se encontra aberto, uma vez que a casa está funcionando apenas para um bando de playboys endinheirados que preferem não se misturar com a ralé e, assim, fazer suas merdas longe dos olhos curiosos da plebe.

Claro! Afinal de contas, aqui estão reunidos os filhos dos maiores empresários, advogados, médicos, juízes e a porra toda elitizada desta cidade decadente. Bando de fodidos! A maioria desconta, como eu, a falta de afeto e atenção em casa gastando dinheiro, promovendo rachas pelas ruas, consumindo todo tipo de droga tentando preencher o buraco negro instalado nas nossas almas.

“Foda-se!”

Seguro a garota contra a parede fria do depósito e, sem nem mesmo perguntar seu nome, ataco sua boca com fúria, mordendo seus lábios e sugando sua língua. Ela mexe em minha calça, abre-a e retira meu pau para um tratamento especial em suas mãos macias.

— Novinho e pauzudo... — ela geme. — Cadê a balinha para deixar tudo mais divertido?

Sorrio e nego.

— Tem que merecer.

Ela sorri e, sem que eu precise sequer lhe indicar o que quero, ajoelha-se no chão grosso e toma meu pau em sua boca quente e esfomeada. Gemo, gostando da carícia, seguro-a pelos cabelos e a forço a engolir o máximo que consegue.

Tenho quase 17 anos, mas aposto com quem quer que seja que nenhum desses caras daqui tem a metade da experiência sexual que eu. E não, não “tiro onda” com isso, afinal, quem é filho de Nikkós Karamanlis não tem muita escolha sobre quando vai começar a trepar, ele simplesmente impõe, e comigo isso aconteceu quando eu tinha 11 anos de idade.

Afasto o pensamento pestilento sobre meu pai e curto a chupada gostosa que a garota ajoelhada me dá. Ela lambe, chupa, suga com força, arranha com os dentes – coisa que me excita “pra caralho” – e segura minhas bolas com vontade. Percebo que ela quer fazer o serviço completo com a boca, mas definitivamente ela não me conhece.

Ergo-a de uma vez só e a ponho de cara contra a parede. Procuro a camisinha no bolso da calça – uma coisa que se aprende quando se começa a vida sexual trepando com putas é que preservativos nunca podem faltar –, plastifico meu pau e levanto o vestido dela.

Bunda gostosa, magra, mas gostosa “pra cacete” com uma calcinha de cor forte – não sei se vermelha ou rosa; não divago muito sobre a cor, mesmo porque é irrelevante –, afasto a peça e esfrego os dedos em sua boceta depilada.

Ela ofega, rebola gostoso na minha mão. Vou penetrando-a devagar com os dedos, recolhendo um pouco da umidade de dentro de sua vagina para usá-la exatamente no ponto onde quero. Massageio seu clitóris até que ela se contraia em gozo e volto a molhar seu rabo com a lubrificação que solta.

Ela fica tensa quando encaixo a cabeça do meu pau em seu ânus apertado.

— Alex...

— Psiu... — falo devagarzinho em seu ouvido, lambendo sua orelha enquanto vou me afundando no canal estreito, sentindo meu corpo todo reagir à pressão de um local nunca ou pouco explorado. — Eu disse a você. — Ela arfa quando me encaixo por completo em seu rabo. — Os demônios com cara de anjo são os piores!

Meto com força e continuo estimulando seu clitóris, beijando e mordendo seu pescoço, até que ela explode em um orgasmo foda, e eu me deixo ir na camisinha, ainda sentindo as contrações do seu corpo. Quando ela se vira para me beijar, estico minha língua com sua recompensa na ponta. A garota sorri e chupa a drágea com vontade, enquanto eu engulo a outra.

A noite só começou!

 

Paro a moto em frente ao prédio onde Konstantinos mora. Fico parado olhando para o alto, invejando a liberdade de meu irmão, a coragem que teve ao se libertar assim que pôde do nosso pai. Ele estuda no Largo de São Francisco, vai ser um advogado e, mesmo que tenha tentado disfarçar, ficou contente quando contei que havia passado em todos os vestibulares para os quais havia prestado.

— Vai para algum lugar longe da cidade? — Kostas não escondeu sua preocupação.

— Não, vou ficar aqui — respondi com sinceridade, mesmo que minha vontade fosse ir para o mais longe possível deste inferno de lugar. — Vou continuar no apartamento de Nikkós, pelo menos até a Kyra fazer 18 anos.

Ele respirou fundo, e nossa conversa por telefone acabou aí. Nós não precisávamos externar nossa preocupação um para o outro, sabíamos do que nosso pai era capaz e do perigo que Kyra corria estando sob o mesmo teto que ele. Kostas saiu de casa, pois nunca soube lidar com Nikkós, ao contrário de mim.

O grego maluco tentou fazer comigo o mesmo que fazia com o meu irmão, porém nunca pensou que não me afetaria, então mudou de tática. O desgraçado tentava me acertar no único ponto que realmente me doía, mas ainda assim eu resistia em demonstrar alguma dor, então ele me fazia sentir na carne.

Esfrego a mão no ombro esquerdo, quebrado há dois anos no que todos acreditaram ser um acidente enquanto eu andava de skate, sem saber que quase tive o braço arrancado pelo homem louco, bêbado e drogado a quem todos respeitavam como um exemplo de pai, criando seus filhos sozinho depois de ter sido abandonado pela mulher.

Farsante dissimulado! Nunca amou ninguém, nunca se preocupou ou se dedicou a ninguém, nem a si mesmo. Eu só não entendo o motivo pelo qual ele não deixou que a puta que me gerou abortasse ou mesmo por que não me deixou com ela.

Eu sou um covarde! Rio, ligando a moto de novo.

Meu maior sonho é vê-lo morto, desejei e planejei isso tantas vezes, de tantas maneiras diferentes, que sei todos os passos de cor. No entanto, nunca tive coragem... Respiro fundo.

Pelo menos até essa madrugada!

Não faço ideia de como cheguei a casa, estava doidão, alto demais, cheirava a cerveja, maconha, sexo e perfumes variados. Não sei nem com quantas garotas trepei à noite, sei que algumas só mamaram meu pau, mas, com outras, a coisa foi mais louca.

Não consigo me lembrar de muita coisa. Só tenho sensações ruins de quando cheguei ao apartamento e percebi que Nikkós havia voltado. Nas memórias, há gritos, choro, mas nenhuma imagem. Tudo o que tenho nítido na cabeça foi o que aconteceu depois que acordei.

Estava deitado na sala principal do apartamento, minhas roupas sujas de sangue, rasgadas, um hematoma no olho e um corte no canto da boca já me incomodando. Não sabia nem onde estava, só sentia dor, confusão, e vomitei ali mesmo, no tapete da sala.

Ao meu lado vi uma faca suja de sangue. Gelei, sem saber o que tinha feito e de quem era o líquido viscoso e vermelho que cobria toda a lâmina. Foi nesse momento que saí do torpor em que me encontrava, peguei o objeto e comecei a correr pela enorme cobertura, entrando em todos os cômodos.

— Kyra! — gritava, mesmo com a cabeça explodindo. — Kyra!

Minha irmã não estava em lugar algum, nem mesmo a Nívea, a senhora que cuidava dela, eu pude encontrar. Meu desespero só aumentou. Liguei para o telefone dela, mas estava dando na caixa de mensagens.

Comecei a soluçar, mesmo não derramando uma só lágrima, e entrei no local proibido da casa, o santuário satânico de Nikkós Karamanlis: seu quarto.

Estanquei quando vi seu corpo enorme e nu jogado sobre a cama king size. Notei os cortes em seus braços, bem como o movimento de respiração, seguido dos roncos altos. O filho da puta não estava morto! Apertei a faca em minha mão com mais força, pensando que esse seria o momento certo para livrar a todos de sua existência.

Andei até ele devagar, os nós dos dedos brancos de tão firme que segurava a faca. Medi suas costas, imaginando que seria muito fácil perfurar seu pulmão com uma só estocada no lugar certo e que ele morreria afogado em seu próprio sangue lentamente, em uma morte digna dele.

Ergui a faca, fechei os olhos, parei de tremer e me lembrei de todos os anos de abuso e de tortura, do que ele fazia ao Kostas, do que fazia comigo e do que poderia fazer a Kyra.

Respirei fundo, concentrei a força e desci a faca, mas parei a milímetros de sua pele quando ouvi soar a campainha. Joguei a arma para longe e saí correndo daquele cômodo pestilento, descendo as escadas disparado para atender a porta, torcendo para que fossem Nívea e Kyra.

— Alexios? — a voz de Samara me fez prender o fôlego. — Alexios, você está aí?

Abri a porta sem pensar duas vezes e desmontei ao ver minha irmã ao lado da minha melhor amiga. Kyra, minha pequena princesa, linda como uma pintura, seus olhos enormes e verdes cheios de lágrimas e os lábios trêmulos.

— Ainda bem! — exclamei aliviado, puxando-a para meus braços. — Ainda bem!

— Alexios, você precisa de ajuda? — Samara questionou, olhando tudo em volta. — Ontem à noite a senhora Nívea pediu que Kyra ficasse comigo e...

Segurei o rosto de minha irmã, desgostoso por saber que ela mal fala por conta do monstro que temos em casa, sequei as lágrimas que escorriam por seu rosto miúdo e assustado e perguntei:

— O que houve?

Ela deu de ombros.

— Ele voltou mais cedo, estava bêbado, mandou Nívea embora. — Sinto um arrepio de frio percorrer minha coluna. — Os dois discutiram. — Ela soluçou. — Ele bateu nela, ela desmaiou...

— E você, onde estava?

Kyra desviou os olhos, e eu senti como se um soco acertasse a boca do meu estômago. Olhei para Samara em busca de uma resposta, mas minha amiga apenas deu de ombros, indicando que minha irmã também não falou com ela.

— Quando ela acordou, me levou para o apartamento da Malinha, e aí eu fiquei lá. — Kyra olhou em direção ao corredor. — Ele ainda está...

Assenti.

— Vá para o seu quarto, tranque a porta, tome um banho; daqui a pouco vou me encontrar com você. — Ela tentou sorrir em agradecimento para Samara, mas depois desistiu, seguindo diretamente para seu quarto. — Samara...

— Vocês precisam denunciar isso! — Ela tocou meu rosto. — Você é só um garoto, Alexios, não pode proteger vocês dois.

— Posso! — afirmei cheio de raiva. — Você sabe muito bem que, se uma denúncia for feita, ela será tirada de nós. Eu ficarei um ano em algum abrigo, mas e ela?

— O Tim não pode...

Neguei.

— Não acho que o deixariam cuidando de dois adolescentes, ele só tem 20 anos! — Fechei os olhos, cansado, com medo, sem saída e senti quando ela me abraçou apertado.

— Onde você esteve ontem à noite?

— Fui me divertir...

— Não. — Seus olhos lindíssimos encararam os meus. — Você não se diverte, Alexios, você tenta se matar. — Passou a mão pelo meu rosto. — Quanto usou?

Dei de ombros, não querendo discutir isso com ela. Nunca termina bem!

— Isso não ajuda ninguém. Nem a você, muito menos à sua irmã. — Tentou sorrir para disfarçar o sermão, seus dentes cheios de plaquinhas do aparelho ortodôntico, o rosto redondo de menina fazendo covinhas, coisa que ela sempre teve e sempre achei lindo. — Eu sei que só tenho 15 anos, mas...

— Eu agradeço que você tenha feito companhia a Kyra, mas agora preciso resolver tudo aqui. — Apontei para a sala. — Ficou tudo bem com seus pais?

— Sim, não acharam nada estranho que Kyra dormisse lá em casa, afinal, somos amigas.

Ri amargamente.

— Essa amizade é aceitável para os Schneiders, não é? — Samara ficou vermelha. — Kyra é uma boa menina, não um porra-louca como eu, filho de uma puta e...

Samara pôs a mão sobre minha boca.

— Você é meu melhor amigo, apenas isso deveria te bastar para calar qualquer outra coisa que meus pais possam pensar de você.

Abracei-a forte, a consciência pesada por falar mal de sua família, pois sei quanto ela os ama, depois me despedi e tratei de limpar a sala, jogar a roupa que usava fora e fiquei até há pouco com minha irmã, ambos trancados no seu quarto.

Só saí para espairecer, para processar tudo o que aconteceu na madrugada passada, pois mais uma vez Samara agiu como um anjo e convidou minha irmã para assistir à final da Copa do Mundo com ela e depois terem uma noite de meninas, com direito a festa do pijama.

Entro na garagem do prédio, mando uma mensagem para Samara informando-a de que cheguei e que estou indo buscar minha irmã. Sinceramente eu não sei como vou fazer até encontrar outra pessoa de confiança para deixar com Kyra quando eu não estiver em casa, pois Nívea disse que nunca mais colocará os pés no nosso apartamento, depois de ter recebido uma boa quantia para que não denunciasse o que se passa dentro de nossa casa, pois entendeu que prejudicaria Kyra.

Não importa! Kyra precisa de mim, e, nem se eu precisar mudar toda minha rotina por causa dela, a terei protegida.


São Paulo, tempo atuais.


Acordo com uma dor de cabeça filha da puta, ressacado, tão zonzo que tropeço ao sair da cama, e a primeira coisa que me vem à cabeça nesta manhã (ou será nesta tarde?) é que hoje é véspera de Natal. Foda-se! Sou ateu, esses feriados religiosos não significam nada para mim.

Sigo pelo corredor em direção à cozinha, com muita sede, louco para tomar um analgésico para exterminar a dor de cabeça. Não vou tomar! Não tomo remédios para dor há anos, aprendi a conviver com as pontadas, com as ardências. A dor me tornou mais forte, resiliente, aprendi há muito que nada é capaz de me ferir mais do que eu mesmo.

A maioria dos meus ossos trazem lembranças de como superei, as marcas no meu corpo também, porém, nenhuma dessas cicatrizes é mais forte do que o vazio dentro de mim.

Encho um copo d’água até transbordar e o bebo em um só gole. A cabeça martela ainda mais por conta da bebida gelada, mas ignoro-a por completo. Não há remédio para o que sinto, não há cura para toda a raiva que carrego dentro de mim, então posso, sim, conviver com umas horas de pontadas no cérebro.

Olho para a porta fechada na área de serviço. Os cômodos dali eram a tal dependência de empregados, mas, como eu nunca tive nenhum, aproveitei-os para outros fins. Inspiro, os cheiros tão familiares chegando às minhas narinas. A raiva natural com que acordo todos os dias se aplaca; não some, apenas se recolhe, dando lugar às sensações de prazer.

Confiro as horas e xingo ao perceber que já estamos no meio da tarde. Sinceramente, não sei por que Kyra inventou essa ceia de Natal, não depois de todos esses anos. Não entendo minha irmã, sinceramente. Há muito convivo com seu gênio forte, sua determinação, mas ainda não sei quem é ela. A garota divertida da infância se tornou uma adolescente quieta e taciturna, uma jovem inteligente e ajuizada e, por fim, uma adulta completamente misteriosa. Eu a acompanhei em todas as fases de sua vida, mas ainda assim não sei quem é a verdadeira Kyra Karamanlis.

Assim que ela completou 18 anos, abandonamos a luxuosa cobertura de Nikkós e fomos morar em um cafofo velho e caindo aos pedaços. Eu estudava como um louco no meu último ano de faculdade, e, como ela passou para uma universidade pública também, tínhamos que morar próximo de uma das duas universidades. Preferi ficar próximo da dela e me fodia andando de bicicleta até a minha todos os dias.

Nessa época eu estagiava na Novak Engenharia e, com a bolsa do estágio, eu mal conseguia pagar o aluguel do quarto e sala que aluguei. Ela nunca soube, mas quem bancava nossa alimentação, transporte e outras despesas era o Kostas. Meu irmão e eu nem éramos amigos, na verdade mal nos falávamos, mas todo mês o dinheiro aparecia na minha conta, e eu sabia que vinha dele.

Formei-me e já fui efetivado na Novak. Trabalhei com o Nicholas, com quem aprendi demais e construí uma amizade forte, assim como com seu irmão Bernardo. Os tempos de bagunça, baladas, drogas e bebidas acabaram quando nos libertamos da prisão daquele apartamento e da convivência maligna de Nikkós.

Kyra estudava muito, era extremamente aplicada em tudo o que fazia, e, irritada por não conseguir conciliar seu horário de estudos com um emprego, começou a fazer doces e salgados dentro do nosso pequeno apartamento e vendê-los na faculdade.

Rio ao pensar que foi assim que nasceu a promoter de eventos, em uma cozinha de seis metros quadrados, com um forno capenga, um fogão com só duas bocas funcionando e uma geladeira que parecia um monomotor, de tanto barulho que fazia. Em pouco tempo ela estava fornecendo encomendas para festas e pequenos eventos, depois começou a fazer projetos de decoração, então, quando se formou, foi trabalhar em um grande e caríssimo bufê da cidade, auxiliando a cerimonialista com os projetos.

Hoje ela é a dona de uma empresa especializada em produções de eventos diversos, bem-sucedida, com um negócio em progressão geométrica de crescimento. Tenho muito orgulho dela, principalmente por ser a única que não ficou agarrada ao cordão umbilical familiar dentro da Karamanlis.

Agora qual a necessidade da porra de uma ceia de Natal para comemorar a expansão de seu negócio? Vou ter que ficar com um maldito sorriso no rosto, carinha de anjo, lidando com o caralho da minha gastrite me corroendo ao pensar na hipocrisia do mundo.

Respiro fundo e decido combater a ressaca e a dor de cabeça com mais bebida. Pego uma cerveja na geladeira, abro-a na beirada da pia e entro no outro ambiente, a sala, integrada ao outro cômodo, separados apenas por uma enorme bancada.

Eu mesmo projetei esse prédio, há alguns anos, ainda trabalhando na Novak. Bernardo Novak é meu vizinho de porta, e Nicholas foi o primeiro dono da cobertura duplex que toma todo o último andar, hoje habitada por um casal e uma menininha. Comprei o apartamento pensando em vir morar com minha irmã, mas qual não foi minha surpresa quando ela anunciou que só sairia do cafofo para seu próprio lugar?

Pois é, vim sozinho, ocupo apenas a suíte principal, e os outros dois quartos estão praticamente vazios. A sala foi decorada – pela própria Kyra –, bem como a cozinha, mas nunca mandei fazer os móveis da sala de jantar, pois não vejo nenhuma função para eles. Eu como sozinho no balcão da cozinha, assistindo a TV ou ouvindo música.

Resgato meu celular, seleciono uma das minhas muitas playlists, e a caixa de som já liga automaticamente, deixando o som pesado do Matanza ecoar pelos ambientes. Sorrio ao ouvir “Bom é quando faz mal”, as recordações das loucuras da faculdade, de toda a merda que eu fazia. Não tenho vontade alguma de fazer de novo, mas também não posso dizer que me arrependo. Era o meu jeito de extravasar, tresloucado, admito, mas ainda assim muito mais normal do que o que eu vivia dentro de casa.

Preparo qualquer coisa para comer, balançando a cabeça e cantando as músicas de várias bandas de rock, algumas famosas, outras nem tanto, mas que marcaram minha vida de alguma forma.

O telefone toca, e a chamada atrapalha minha diversão musical. Bufo, jogo o pano de prato sobre a pia e pego o aparelho.

— Oi, Millos — atendo meu primo.

— Boa tarde, Alexios. Animado com a reunião de hoje à noite?

— Ô, tão quanto eu estaria para fazer um exame de próstata. — Millos gargalha. — Ela convidou você também?

— E o Kostas. — Isso me surpreende, pois, até onde eu sei, não temos nenhuma convivência com ele. — Bom, liguei para dizer que irei viajar na virada do ano, por isso preciso que você não deixe de ir ao baile dos Villazzas.

Gemo ao pensar em vestir um smoking.

— Porra, Millos, não fode! Aposto que Theodoros vai, afinal Frank e ele são quase um casal! — Millos ri do meu deboche acerca da amizade entre meu irmão mais velho e o CEO da rede Villazza de hotéis. — Não tenho a mínima...

— Konstantinos confirmou presença também.

Puta que pariu!

Preciso me sentar depois dessa informação, pasmo só em imaginar Kostas com alguma puta, sentado na mesma mesa de Theodoros. Vai dar merda!

— Eu não tenho companhia — tento me justificar. — E você poderia adiar a sua viagem só por uns...

— Não, não posso, já fiz todos os arranjos, reservas em hotéis, o cronograma da viagem! Você tem que ir para evitar que os dois prejudiquem a imagem da empresa.

Reviro os olhos ao pensar na imagem da empresa. Millos é doido ao pensar que temos uma imagem a zelar. Todos nesta maldita cidade, neste meio asqueroso no qual vivemos, sabem que somos todos fodidos e que nosso pai cagou em nosso nome com a sucessão de merdas que fez.

E olha que a maioria não o conheceu de verdade, não soube o monstro que ele era, escondido por detrás de uma fachada bonita e um sorriso de conquistador barato! Um lobo em pele de cordeiro, um demônio com a face de um anjo... assim como eu.

Bufo de raiva.

— Cadê aquela sua amiga? — Franzo a testa, sem acreditar que ele está se referindo à Samara. — Vocês viviam para cima e para baixo juntos, ela te acompanhou em um dos primeiros eventos dos Villazzas e...

— A Samara mora em Madri há mais de três anos, Millos. — Decido não entrar em detalhes e contar a ele que nos afastamos por algum motivo idiota que eu não consigo lembrar. — Vou ter que ligar para alguma...

— Isso, ligue — ele me corta. — Mulher nunca foi seu problema, aposto que você tem um caderninho cheio de telefones.

— E daí? — afronto-o. — Gosto de sexo, nunca escondi isso, diferente de você, que nunca foi visto com nenhuma mulher além daquela sua amiga motoqueira. — Decido provocá-lo: — Millos, acho que está na hora de sair do armário, porra!

O filho da puta ri alto.

— Eu não teria problema algum em sair se fosse o caso. Ainda mais agora, que Dimitrios saiu, e o pappoús continuou vivo e... — Millos para.

É sempre assim quando algum assunto referente à família na Grécia vem à tona. Eu não conheço ninguém, nunca fui à Grécia, nem tenho a mínima vontade de ir. Não conheço o tal pappoús, nem primo algum além de Millos, que só conheci quando veio morar no Brasil.

Sou o Karamanlis renegado, indigno do sobrenome.

— Vou ligar para alguém e convidar a ir comigo — encerro o assunto constrangedor. — Mas não garanto atuar de mediador como você.

— Você, mediador? — Millos se surpreende. — Alexios, se eu não tivesse interferido, você teria criado uma situação com Theodoros na festa de final de ano da Karamanlis. Eu só quero que você vá com alguém e iniba um pouco aqueles dois.

Bufo e concordo.

— Eu vou.

— Obrigado. — Estou prestes a desligar, quando ele me chama de novo: — Ah, Alexios, não encha a cara, senão você vai falar merda para o Theo, e o Kostas vai se aproveitar disso.

— Vai se foder, Millos! Eu já vou, porra, não diga o que tenho que fazer.

Desligo irritado, perco a fome e a vontade de terminar o que estava preparando.

Mesmo puto, preciso admitir, Millos tem razão sobre eu perder a cabeça com Theodoros, principalmente quando bebo. Eu não odeio meu irmão mais velho como sei que Kostas o faz, apenas ele não significa mais nada para mim.

Convivo bem com ele, pelo menos no sentido profissional, mas não quero nenhum tipo de ligação mais pessoal. Ele perdeu o timing quando, depois de toda a merda que ajudou a fazer, nunca mais quis saber de nós. Era como se nem existíssemos! Ele excluiu Nikkós de sua vida, mas acabou nos descartando junto. Nunca se preocupou em saber de nenhum de seus irmãos, muito menos de sua adorada Kyra, a mais vulnerável de todos nós.

Então, sim, eu perco a cabeça com ele, principalmente com seu jeito esnobe, intocável, como se somente ele importasse e mais ninguém. E foi por isso que nos estranhamos na festa de final de ano da Karamanlis, porque, simplesmente, este ano a festa não foi Theocrática1.

Millos e eu nos reunimos com alguns gerentes e coordenadores para entender o que os funcionários da Karamanlis gostariam de ter em uma festa de encerramento do ano. Depois, contratamos todos os serviços – sem ser da Kyra, pois neste ano ela se livrou de nós na cara dura – e fizemos a festa focada nos funcionários.

Aparentemente, isso chocou e desagradou ao CEO com síndrome de deus, e sua cara fechada e seu olhar de desprezo não ficaram nada disfarçados.

— Ei, irmãozinho! — Eu o parei, enquanto andava como um deus do Olimpo visitando terráqueos. — Aproveitando a festa?

— Espero que não tenha vindo de moto! — o filho da puta tentou me repreender como se estivesse preocupado com minha segurança, e isso, juntamente a toda cerveja que eu já tinha tomado, irritou-me.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já muito bêbado para me conter. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos2!

Theodoros franziu o cenho com meu deboche, comparando seu nome à palavra deus em grego. Estava prestes a dizer algo, mas se conteve quando de repente fui abraçado pelos ombros. Nem precisei olhar para saber que nosso interventor havia chegado.

— Alex, que festança, não? — Millos comentou. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — Theodoros pareceu perplexo. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Gargalhei ao confirmar que ele era mesmo um grande egocêntrico, incapaz de perceber a diferença da festa deste ano à do ano passado por estar focado nos detalhes e não no que realmente importava: as pessoas.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — respondi como se estivesse sóbrio, mesmo não estando. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos me cortou.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — Theodoros perguntou ao Millos, apontando o dedo em minha direção como o grande babaca que sempre foi.

— Fui! — respondi. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Tentei demonstrar com gestos o que dizia, abri os braços de repente, e meu punho bateu no peito do Millos, que chegou para trás. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — olho para um grupo dançando e vários outros conversando, comendo e se divertindo — você está vendo alguém ir?

Ele ficou um tempo olhando em volta como se notasse, pela primeira vez desde que chegou, que realmente os funcionários estavam adorando a descontração deste ano.

Eu só não esperava que ele tentasse ser condescendente comigo:

— Bom trabalho! O pessoal parece realmente estar gostando!

Só faltou dar umas batidinhas em minha cabeça como se eu fosse a porra do seu cãozinho de estimação. Meu sangue ferveu, travei os punhos e não me contive:

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos interrompeu-me e me abraçou novamente pelos ombros. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Mal acabou de falar, seguiu para o outro lado, levando-me consigo.

— Porra, moleque, não tem como ser menos reativo não? A festa está um sucesso graças ao seu feeling, ao modo como você conhece e percebe as pessoas, para que estragar isso batendo boca ou — ele me encarou —, como percebi que queria fazer, enchendo a cara do Theo de porrada? Sai dessa!

Concordei com meu primo e respirei fundo. Depois disso tomei quase um litro de café amargo, ele me pôs em um Uber, e eu vim para casa, onde continuei a beber, desmaiei no sofá e, no outro dia, fui correr ainda um tanto trôpego, sendo desclassificado no teste do bafômetro.

Perdi minha última corrida do ano, grande fracassado que sou!

Volto a ligar minha playlist, e a música que toca é exatamente a que eu preciso para sair da fossa dessas lembranças todas:

— Eu não tenho nada pra dizer. Também não tenho mais o que fazer. Só para garantir esse refrão, eu vou enfiar um palavrão: cu!3


Entro no showroom da A??p?4 – a empresa de eventos de Kyra – e já admiro o trabalho dela com a decoração do local. A enorme mesa com vários lugares ocupa o centro do enorme salão, com castiçais, flores, louças e talheres milimetricamente colocados, junto a taças de cristal e guardanapos de linho.

No restante do salão, há mesas altas para apoiar drinques, sofás e poltronas brancas, com almofadas e outras coisas de decoração seguindo a paleta de cores da festa: verde, vermelho e dourado.

Clichê! Mas é Natal, tem como não ser?

Dou de ombros e vejo Kyra de costas, junto à belíssima morena que trabalha com ela desde que abriu a empresa e as duas chefes de cozinha que conheceu ainda quando trabalhava no outro bufê e as roubou na cara dura quando resolveu estabelecer seu próprio negócio. Uma delas, acho que é a doceira – Mari, como todos a chamam – me vê e logo cutuca minha irmã.

— Ah, Alex! — Kyra abre um enorme sorriso, entrega para a morena – como é mesmo o nome dela? – os penduricalhos de Natal com os quais enfeitava o enorme pinheiro e vem até mim. — Que bom que chegou, tenho uma coisa para você!

Ah, puta que pariu! Ela me comprou um presente? Fico imediatamente sem jeito, pois não comprei absolutamente nada para ela. Eu nem imaginava que iríamos trocar lembranças, nunca fizemos isso!

Alívio toma conta de mim quando ela vem com uma caixinha pequena e claramente de doces.

— Quando experimentei, lembrei logo de você. — Ela tira um doce dourado de dentro da caixa. — Prove!

Franzo o cenho e abro a boca. Mastigo devagar, emitindo sons de prazer, adorando o contraste de texturas e o sabor doce e... picante. Abro um sorriso.

— Chocolate com pimenta! — Termino de comer. — Perfeição!

— Bombom Helênico. — Faço careta para o nome, não combina em nada. — Eu sei, é péssimo, mas as meninas quiseram fazer uma homenagem para a Helena, então... — Dá de ombros.

Helena!, minha mente grita ao lembrar o nome da morena gostosa, mas que nunca sorri e mal fala comigo quando apareço aqui.

— Hum... gostosa! — Começo a rir quando noto que falei alto. Kyra me olha séria. — O quê?

— Nem pense, ela está comprometida!

Ergo as mãos em minha defesa.

— Não falei nada!

— Não precisa! Sua fama de embusteiro conquistador te precede! — Faço careta, e ela ri. — Estive com saudades de você.

— Então por que não foi me ver ou me ligou? — pergunto sem enrolação.

— Não sei.

Respiro fundo. Ela se fecha, é sempre assim e não só comigo. Ela se empolga, vibra, deixa as pessoas se aproximarem, mas nunca demais. Quando chega a seu limite, simplesmente retrocede com a mesma rapidez e naturalidade com que atraiu alguém. É por isso que suas amizades ou mesmo seus relacionamentos amorosos nunca duraram muito.

Porém o que faço eu aqui, julgando-a?

— Alexios Karamanlis! — Viro-me ao ouvir a voz de Millos.

Meu primo – filho de uma égua! – carrega uma enorme caixa de presente toda embrulhada e com laços. Kyra abre um enorme sorriso e vai saltitante até ele, abraça-o pelo pescoço – coisa que não faz nem comigo – e agradece o regalo.

— É para decorar sua sala de empresária fodona — ele brinca com ela, e Kyra gargalha ao tirar uma estátua toda colorida de um unicórnio. — Eu me lembrei daquela sua fantasia no dia das bruxas...

Kyra para de boca aberta.

— Millos, eu tinha quatro anos! — ela recorda e, de repente, parece lembrar também que, naquela época, tudo parecia realmente possível, mágico e feliz.

Meu primo a abraça forte e fala algo em seu ouvido, baixinho. Kyra assente, e eu fico paralisado vendo a troca de carinho entre eles. Parece normal, não é? Mas, creiam-me, não é. Millos evita qualquer contato físico com outras pessoas. Ao cumprimentá-las, ele prefere baixar a cabeça do que dar um aperto de mãos; o máximo que o vi fazer até hoje foi tocar no ombro de alguém, mas somente quando julga necessário. Até comigo, o máximo que ele fez até hoje foi me abraçar para evitar um embate entre mim e Theo. Então assistir aos dois se abraçando é realmente algo inédito.

— Feliz Natal, pesménos ángelos5.

Mostro o dedo do meio para ele.

— Ah, pesquisou! — Ri debochado, mas logo para ao aceitar o chope que Kyra nos oferece. — É um absurdo você não saber nada da nossa língua.

— Não tenho interesse algum por nada que venha de lá — justifico e bebo. — Kyra também não sabe!

— Quem disse? — Ela começa a rir. — Anóito6.

— Quando foi que você se interessou por essa porra? — questiono-lhe surpreso.

— Você leu o nome da empresa dela na fachada? — é Millos quem retorna minha pergunta. — Está em grego!

Millos e Kyra engatam uma conversa, enquanto eu ainda estou paralisado com essa nova informação. Não é exagero, mas eu pensei que ela, assim como eu, desprezasse qualquer coisa que tenha relação com Nikkós. No entanto, ao contrário de mim, ela sempre foi aceita por todos os Karamanlis como parte da família, então é natural que tenha algum apreço por eles.

— Ah, mais convidados estão chegando!

Kyra deixa-nos a sós e vai até um grupo que não conheço.

— Ela parece feliz — comento com Millos.

Meu primo dá de ombros.

— Há pessoas com o dom de demonstrar apenas o que querem que vejam. — Bebe o resto de seu chope e me encara. — Já resolveu o assunto do baile dos Villazzas?

— Ah, Millos, não fode mais a minha noite! — Vejo duas lindas mulheres adentrarem ao salão e abro um sorriso. — Pode ser que ela esteja começando a melhorar.

Millos ergue uma de suas sobrancelhas, e eu o deixo sozinho, caminhando em direção ao meu mais novo alvo da noite, que, neste exato momento, cumprimenta minha irmã.

— Kyra, eu gostaria de... — finjo interromper-me quando as desconhecidas me olham. — Desculpem-me. — Kyra rola os olhos, mas suas convidadas não desviam o olhar do meu rosto. — Millos estava falando do chope, e nós fizemos uma pequena aposta, mas posso ver isso depois, atenda seus convidados. — Abro novamente meu melhor sorriso na direção delas.

— Valéria e Priscila, esse é meu irmão, Alexios Karamanlis — Kyra faz nossa apresentação, e eu sei que depois irá jogar na minha cara que eu estou lhe devendo por isso.

— Um prazer, Valéria! — Aproximo-me para cumprimentá-la e logo depois saúdo a outra: — Prazer, Priscila.

— O prazer é meu, Alexios — Priscila responde, sorrindo, e vejo a mão de Valéria tocar suas costas num gesto um tanto territorialista. Perfeito! Trocamos beijos no rosto em cumprimento. — Eu já te vi em algumas revistas especializadas em engenharia e arquitetura, principalmente quando o conselho dessas classes era o mesmo.

— Arquiteta? — tento adivinhar, mas ela nega e aponta para sua amiga.

— Valéria é, eu sou designer industrial. — Faço cara de surpresa, mesmo sem achar nada de mais. — É, eu sei, a maioria das pessoas que me conhece acha que sou modelo ou estilista, mas você quase acertou. — Seu sorriso é claramente de quem se sente lisonjeada. — Trabalho conceitos para grandes marcas.

— Incrível! — Olho-a de cima a baixo, e Kyra bufa. — Você também parece incrível, Valéria. — Sorrio, e ela relaxa.

— Alexios, chegaram outros convidados, você poderia fazer companhia a elas? — Ela pega na mão das amigas. — Vocês não se importam, não é?

— Claro que não, você é a anfitriã da noite! — Valéria diz, e sinto seu olhar brilhar em minha direção. — Nós ficaremos em boa companhia com seu irmão, afinal, é o anjo rebelde dos Karamanlis.

Puta que pariu!

 

CONTINUA

Com um passado nebuloso, marcado por traumas, rejeições e violência, há anos Alexios Karamanlis busca entender a si mesmo e, para isso, começa uma caçada sem fim pelo destino de sua mãe biológica, junto a sua melhor amiga, Samara Schneider.
Amigos desde tenra idade, Alexios sempre tentou não a notar como mulher por temer perder sua amizade e apoio, e Samara sempre sonhou com o dia em que o garoto problemático e rebelde se apaixonaria por ela.
Juntos em busca de respostas sobre a verdadeira história do nascimento de Alexios, os dois mergulharão no sujo passado do pai dele, Nikkós Karamanlis, revelarão segredos muito bem guardados e, por fim, descobrirão que não há como reprimir mais a paixão e o desejo que sentem um pelo outro.

 

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O país todo está enlouquecido!, penso ao passar por mais uma blitz policial sem nenhum problema, acelerando a moto ao máximo, capacete preto espelhado impossibilitando qualquer um de ver que quem pilota essa máquina é um garoto, não um homem.

Eu não sou um homem! Não sou! Se fosse, não estaria aqui neste momento, mas sim na delegacia, gritando por aí, fazendo qualquer coisa que não apenas dar uma de burguesinho filho da puta endinheirado, acelerando uma moto que custa o mesmo que um apartamento popular, mesmo sem ter habilitação para isso, apenas para esquecer os problemas.

Eu sou um merda! E sou isso por causa “dele”!

Caralho! A Paulista está fechada por conta das comemorações do pentacampeonato. É, o Brasil conseguiu mais uma estrela no futebol, o país está eufórico como se não houvesse crianças na rua, assassinos à solta, a corrupção impedindo todo o sistema público de funcionar. Foda-se, somos penta!

Faço uma manobra rápida com a moto, deixando marcas dos grossos pneus no asfalto e sigo para outra direção, à procura de mais uma avenida extensa e reta para que eu possa extravasar todo o ódio dentro de mim indo ao limite da velocidade.

Paro a moto de repente e quase sou arremessado para frente. Meus músculos começam a tremer, meus olhos se enchem de lágrimas, sinto frio, meus dentes batem um no outro. Engulo em seco. Não vou chorar! Não choro mais, não há muitos anos.

Cada soco, cada pontapé, cada xingamento e mentira secaram minhas lágrimas. Elas até se instalam em meus olhos, porém não caem. Sufocam-me, quebram meu coração, desequilibram-me.

Caio no chão em um baque só, gemo de dor por causa do peso da moto sobre minha perna esquerda, mas não choro. Respiro fundo para controlar a dor, parar de tremer, diminuir os batimentos do meu coração. Estou acostumado a essa rotina de tentar não sentir dor, de tentar não sentir mais nada.

Levanto-me calmamente, sinto calafrios, manco, mas volto a subir na moto, acelerando-a, fazendo o motor girar e um ruído alto e potente se misturar aos sons das comemorações pelas ruas da cidade. Respiro fundo várias vezes e, quando não sinto mais nada, tiro o pé do chão e deixo a máquina me levar.

Eu queria poder fugir para o mais longe possível desta cidade, mas não dá, infelizmente não posso ir a lugar algum, estou preso, revivendo o mesmo inferno todos os dias, aceitando meu destino com resignação até poder livrar a mim e a Kyra do demônio que nos formou.

Eu poderia pedir ajuda ao Tim, mas sei que ele tem a própria merda para lidar e que conseguiu sair há pouco do inferno. Sei que precisava ir. Meu irmão estava por um fio, assim como eu, e, se ficasse lá conosco, seria para morrer ou matar, e, como não é da sua natureza matar, iria perecer aos poucos, como Nikkós gostaria que acontecesse.

Então ele foi, e eu fiquei incumbido de uma missão que nós aceitamos sem nem mesmo combinar nada, apenas porque sabíamos do que nosso pai era capaz e decidimos que não o deixaríamos chegar a ela.

Soluço na moto.

Eu falhei!

Eu falhei!

Eu falhei?!

Eu não sei! Simplesmente não sei o que aconteceu ontem! Acelero a moto, pegando uma rodovia, ainda tentando processar todos os acontecimentos e os flashes de memória que tenho.

Cometi um erro na noite passada, fui imprudente e agora preciso lidar com tudo o que aconteceu, mesmo sem entender direito o que houve. Enquanto piloto a moto, tento repassar cada momento de ontem, mesmo sabendo que já fiz isso várias e várias vezes sem nenhum êxito.

Nikkós finalmente viajou a trabalho – ou o que quer que ele tenha ido fazer –, e eu consegui relaxar um pouco. Mantenho constante vigilância sobre minha irmã, uma adolescente de 14 anos de idade, e evito ao máximo deixá-la sozinha com nosso pai. Não há muito que eu possa fazer para protegê-la das loucuras dele, mas o que está ao meu alcance, faço.

Por conta disso, desde que ingressei na universidade – no começo desse ano –, desdobro-me ao máximo para curtir com meus amigos e proteger a Kyra. A babá anterior era a mesma desde quando minha irmã e eu nascemos, totalmente devota ao nosso pai, então, assim que Konstantinos tomou posse de sua herança, demos um jeito de nos livrar dela, e, assim que outra foi contratada, meu irmão se encarregou de pagar uns extras para ela manter os olhos em Kyra.

Nikkós sempre foi um filho da puta covarde, ele nunca iria deixar um serviçal ver o que ele é capaz de fazer aos filhos, por isso tinha seus próprios lugares para executar suas torturas em Kostas e em mim.

Noite passada, uma galera mais velha da universidade fechou uma boate e me convidou para festejar com eles. Estávamos entrando de férias e queríamos muito desopilar o fígado, relaxar, curtir e esquecer todas as pressões dos estudos.

Como Nikkós não estava em casa, e a babá estava por lá com Kyra, por que não ir? Foi esse meu erro!, penso ao relembrar.

 

— O grande Alexios Karamanlis! — Alberto Bragança me saúda assim que entro na boate. — Achei que você não vinha mais, mano!

Ele me entrega uma caneca de 500ml de chope e um cartão para o restante do consumo, e logo vejo os outros caras em uma mesa no fundo do salão. A música alta, tocando um “batestaca” qualquer, não chama minha atenção. Sigo, então, na direção do pessoal e, mal chego lá, peço mais uma rodada de chope para todos.

Meu pai é um grande filho da puta, torturador desgraçado, mas, para manter as aparências, deixa-nos usar cartão sem limites e nos entrega uma mesada gorda. Bebo, sentindo o gosto do chope se tornar mais amargo que o normal, consciente de que essa porra toda é dele, comprada com o seu maldito dinheiro.

— Jefinho está na área! — alguém grita comemorando. — Vamos começar a diversão! Quem vai?

Sou um dos primeiros a me levantar, viro o resto da bebida e sigo com mais cinco amigos para o banheiro, atrás do traficante oficial da turma. Vejo cada um pegando “no bufê do Jeff” sua viagem preferida e pego um pino de “coca” para começar bem a noite.

“Foda-se, Nikkós Karamanlis!”

Cheiro.

“Foda-se, Sabrina Karamanlis!”

Aspiro mais um pouco.

“Foda-se, Theo Karamanlis!”

Faço outra carreira com o restante do pó.

“Foda-se, Geórgios Karamanlis!”

Seguro a narina fechada, mantendo tudo dentro de mim, sentindo já meu corpo girar, o cérebro acelerar e todas as sensações de abandono e dor se esvaírem como num passe de mágica. Só existe prazer, nenhuma dor, tudo é maravilhoso!

Compro mais três pinos de cocaína e alguns comprimidos de êxtase. Essa noite não quero dormir, quero aproveitar, dançar, zoar, pegar umas universitárias e esquecer quem sou.

Começo a rir de mim mesmo, da piada que acabei de pensar. Esquecer quem sou só seria possível se eu soubesse quem sou.

“Eu não sou ninguém!”

Meu Nokia vibra com a chegada de uma mensagem, confiro ser de Samara, minha única e melhor amiga, e volto a colocá-lo no bolso ao perceber a aproximação de uma gostosa do quarto ano.

— Eu não acredito que você é menor de idade, Alex! — A garota, com luzes nos cabelos e vestido com apenas uma alça, passa a mão no meu peito. — Você não parece ser um garoto, mesmo com esse rostinho angelical.

Respiro fundo para não perder a paciência, pois, se há algo que me irrita muito, é quando dizem que eu pareço um anjo. Aproximo-me dela e a puxo pela cintura.

— Posso provar que não sou um anjo! — Pego sua mão e a levo até a frente da minha calça. A garota arregala os olhos. — Os demônios com cara de anjo são os piores, gata!

— Uau! — Ela lambe meu pescoço. — O que você tomou?

— Coca, mas tenho “bala” no meu bolso. — Ela ronrona, e eu me animo. — Vem comigo!

Levo-a para uma área nos fundos da boate, uma espécie de depósito que se encontra aberto, uma vez que a casa está funcionando apenas para um bando de playboys endinheirados que preferem não se misturar com a ralé e, assim, fazer suas merdas longe dos olhos curiosos da plebe.

Claro! Afinal de contas, aqui estão reunidos os filhos dos maiores empresários, advogados, médicos, juízes e a porra toda elitizada desta cidade decadente. Bando de fodidos! A maioria desconta, como eu, a falta de afeto e atenção em casa gastando dinheiro, promovendo rachas pelas ruas, consumindo todo tipo de droga tentando preencher o buraco negro instalado nas nossas almas.

“Foda-se!”

Seguro a garota contra a parede fria do depósito e, sem nem mesmo perguntar seu nome, ataco sua boca com fúria, mordendo seus lábios e sugando sua língua. Ela mexe em minha calça, abre-a e retira meu pau para um tratamento especial em suas mãos macias.

— Novinho e pauzudo... — ela geme. — Cadê a balinha para deixar tudo mais divertido?

Sorrio e nego.

— Tem que merecer.

Ela sorri e, sem que eu precise sequer lhe indicar o que quero, ajoelha-se no chão grosso e toma meu pau em sua boca quente e esfomeada. Gemo, gostando da carícia, seguro-a pelos cabelos e a forço a engolir o máximo que consegue.

Tenho quase 17 anos, mas aposto com quem quer que seja que nenhum desses caras daqui tem a metade da experiência sexual que eu. E não, não “tiro onda” com isso, afinal, quem é filho de Nikkós Karamanlis não tem muita escolha sobre quando vai começar a trepar, ele simplesmente impõe, e comigo isso aconteceu quando eu tinha 11 anos de idade.

Afasto o pensamento pestilento sobre meu pai e curto a chupada gostosa que a garota ajoelhada me dá. Ela lambe, chupa, suga com força, arranha com os dentes – coisa que me excita “pra caralho” – e segura minhas bolas com vontade. Percebo que ela quer fazer o serviço completo com a boca, mas definitivamente ela não me conhece.

Ergo-a de uma vez só e a ponho de cara contra a parede. Procuro a camisinha no bolso da calça – uma coisa que se aprende quando se começa a vida sexual trepando com putas é que preservativos nunca podem faltar –, plastifico meu pau e levanto o vestido dela.

Bunda gostosa, magra, mas gostosa “pra cacete” com uma calcinha de cor forte – não sei se vermelha ou rosa; não divago muito sobre a cor, mesmo porque é irrelevante –, afasto a peça e esfrego os dedos em sua boceta depilada.

Ela ofega, rebola gostoso na minha mão. Vou penetrando-a devagar com os dedos, recolhendo um pouco da umidade de dentro de sua vagina para usá-la exatamente no ponto onde quero. Massageio seu clitóris até que ela se contraia em gozo e volto a molhar seu rabo com a lubrificação que solta.

Ela fica tensa quando encaixo a cabeça do meu pau em seu ânus apertado.

— Alex...

— Psiu... — falo devagarzinho em seu ouvido, lambendo sua orelha enquanto vou me afundando no canal estreito, sentindo meu corpo todo reagir à pressão de um local nunca ou pouco explorado. — Eu disse a você. — Ela arfa quando me encaixo por completo em seu rabo. — Os demônios com cara de anjo são os piores!

Meto com força e continuo estimulando seu clitóris, beijando e mordendo seu pescoço, até que ela explode em um orgasmo foda, e eu me deixo ir na camisinha, ainda sentindo as contrações do seu corpo. Quando ela se vira para me beijar, estico minha língua com sua recompensa na ponta. A garota sorri e chupa a drágea com vontade, enquanto eu engulo a outra.

A noite só começou!

 

Paro a moto em frente ao prédio onde Konstantinos mora. Fico parado olhando para o alto, invejando a liberdade de meu irmão, a coragem que teve ao se libertar assim que pôde do nosso pai. Ele estuda no Largo de São Francisco, vai ser um advogado e, mesmo que tenha tentado disfarçar, ficou contente quando contei que havia passado em todos os vestibulares para os quais havia prestado.

— Vai para algum lugar longe da cidade? — Kostas não escondeu sua preocupação.

— Não, vou ficar aqui — respondi com sinceridade, mesmo que minha vontade fosse ir para o mais longe possível deste inferno de lugar. — Vou continuar no apartamento de Nikkós, pelo menos até a Kyra fazer 18 anos.

Ele respirou fundo, e nossa conversa por telefone acabou aí. Nós não precisávamos externar nossa preocupação um para o outro, sabíamos do que nosso pai era capaz e do perigo que Kyra corria estando sob o mesmo teto que ele. Kostas saiu de casa, pois nunca soube lidar com Nikkós, ao contrário de mim.

O grego maluco tentou fazer comigo o mesmo que fazia com o meu irmão, porém nunca pensou que não me afetaria, então mudou de tática. O desgraçado tentava me acertar no único ponto que realmente me doía, mas ainda assim eu resistia em demonstrar alguma dor, então ele me fazia sentir na carne.

Esfrego a mão no ombro esquerdo, quebrado há dois anos no que todos acreditaram ser um acidente enquanto eu andava de skate, sem saber que quase tive o braço arrancado pelo homem louco, bêbado e drogado a quem todos respeitavam como um exemplo de pai, criando seus filhos sozinho depois de ter sido abandonado pela mulher.

Farsante dissimulado! Nunca amou ninguém, nunca se preocupou ou se dedicou a ninguém, nem a si mesmo. Eu só não entendo o motivo pelo qual ele não deixou que a puta que me gerou abortasse ou mesmo por que não me deixou com ela.

Eu sou um covarde! Rio, ligando a moto de novo.

Meu maior sonho é vê-lo morto, desejei e planejei isso tantas vezes, de tantas maneiras diferentes, que sei todos os passos de cor. No entanto, nunca tive coragem... Respiro fundo.

Pelo menos até essa madrugada!

Não faço ideia de como cheguei a casa, estava doidão, alto demais, cheirava a cerveja, maconha, sexo e perfumes variados. Não sei nem com quantas garotas trepei à noite, sei que algumas só mamaram meu pau, mas, com outras, a coisa foi mais louca.

Não consigo me lembrar de muita coisa. Só tenho sensações ruins de quando cheguei ao apartamento e percebi que Nikkós havia voltado. Nas memórias, há gritos, choro, mas nenhuma imagem. Tudo o que tenho nítido na cabeça foi o que aconteceu depois que acordei.

Estava deitado na sala principal do apartamento, minhas roupas sujas de sangue, rasgadas, um hematoma no olho e um corte no canto da boca já me incomodando. Não sabia nem onde estava, só sentia dor, confusão, e vomitei ali mesmo, no tapete da sala.

Ao meu lado vi uma faca suja de sangue. Gelei, sem saber o que tinha feito e de quem era o líquido viscoso e vermelho que cobria toda a lâmina. Foi nesse momento que saí do torpor em que me encontrava, peguei o objeto e comecei a correr pela enorme cobertura, entrando em todos os cômodos.

— Kyra! — gritava, mesmo com a cabeça explodindo. — Kyra!

Minha irmã não estava em lugar algum, nem mesmo a Nívea, a senhora que cuidava dela, eu pude encontrar. Meu desespero só aumentou. Liguei para o telefone dela, mas estava dando na caixa de mensagens.

Comecei a soluçar, mesmo não derramando uma só lágrima, e entrei no local proibido da casa, o santuário satânico de Nikkós Karamanlis: seu quarto.

Estanquei quando vi seu corpo enorme e nu jogado sobre a cama king size. Notei os cortes em seus braços, bem como o movimento de respiração, seguido dos roncos altos. O filho da puta não estava morto! Apertei a faca em minha mão com mais força, pensando que esse seria o momento certo para livrar a todos de sua existência.

Andei até ele devagar, os nós dos dedos brancos de tão firme que segurava a faca. Medi suas costas, imaginando que seria muito fácil perfurar seu pulmão com uma só estocada no lugar certo e que ele morreria afogado em seu próprio sangue lentamente, em uma morte digna dele.

Ergui a faca, fechei os olhos, parei de tremer e me lembrei de todos os anos de abuso e de tortura, do que ele fazia ao Kostas, do que fazia comigo e do que poderia fazer a Kyra.

Respirei fundo, concentrei a força e desci a faca, mas parei a milímetros de sua pele quando ouvi soar a campainha. Joguei a arma para longe e saí correndo daquele cômodo pestilento, descendo as escadas disparado para atender a porta, torcendo para que fossem Nívea e Kyra.

— Alexios? — a voz de Samara me fez prender o fôlego. — Alexios, você está aí?

Abri a porta sem pensar duas vezes e desmontei ao ver minha irmã ao lado da minha melhor amiga. Kyra, minha pequena princesa, linda como uma pintura, seus olhos enormes e verdes cheios de lágrimas e os lábios trêmulos.

— Ainda bem! — exclamei aliviado, puxando-a para meus braços. — Ainda bem!

— Alexios, você precisa de ajuda? — Samara questionou, olhando tudo em volta. — Ontem à noite a senhora Nívea pediu que Kyra ficasse comigo e...

Segurei o rosto de minha irmã, desgostoso por saber que ela mal fala por conta do monstro que temos em casa, sequei as lágrimas que escorriam por seu rosto miúdo e assustado e perguntei:

— O que houve?

Ela deu de ombros.

— Ele voltou mais cedo, estava bêbado, mandou Nívea embora. — Sinto um arrepio de frio percorrer minha coluna. — Os dois discutiram. — Ela soluçou. — Ele bateu nela, ela desmaiou...

— E você, onde estava?

Kyra desviou os olhos, e eu senti como se um soco acertasse a boca do meu estômago. Olhei para Samara em busca de uma resposta, mas minha amiga apenas deu de ombros, indicando que minha irmã também não falou com ela.

— Quando ela acordou, me levou para o apartamento da Malinha, e aí eu fiquei lá. — Kyra olhou em direção ao corredor. — Ele ainda está...

Assenti.

— Vá para o seu quarto, tranque a porta, tome um banho; daqui a pouco vou me encontrar com você. — Ela tentou sorrir em agradecimento para Samara, mas depois desistiu, seguindo diretamente para seu quarto. — Samara...

— Vocês precisam denunciar isso! — Ela tocou meu rosto. — Você é só um garoto, Alexios, não pode proteger vocês dois.

— Posso! — afirmei cheio de raiva. — Você sabe muito bem que, se uma denúncia for feita, ela será tirada de nós. Eu ficarei um ano em algum abrigo, mas e ela?

— O Tim não pode...

Neguei.

— Não acho que o deixariam cuidando de dois adolescentes, ele só tem 20 anos! — Fechei os olhos, cansado, com medo, sem saída e senti quando ela me abraçou apertado.

— Onde você esteve ontem à noite?

— Fui me divertir...

— Não. — Seus olhos lindíssimos encararam os meus. — Você não se diverte, Alexios, você tenta se matar. — Passou a mão pelo meu rosto. — Quanto usou?

Dei de ombros, não querendo discutir isso com ela. Nunca termina bem!

— Isso não ajuda ninguém. Nem a você, muito menos à sua irmã. — Tentou sorrir para disfarçar o sermão, seus dentes cheios de plaquinhas do aparelho ortodôntico, o rosto redondo de menina fazendo covinhas, coisa que ela sempre teve e sempre achei lindo. — Eu sei que só tenho 15 anos, mas...

— Eu agradeço que você tenha feito companhia a Kyra, mas agora preciso resolver tudo aqui. — Apontei para a sala. — Ficou tudo bem com seus pais?

— Sim, não acharam nada estranho que Kyra dormisse lá em casa, afinal, somos amigas.

Ri amargamente.

— Essa amizade é aceitável para os Schneiders, não é? — Samara ficou vermelha. — Kyra é uma boa menina, não um porra-louca como eu, filho de uma puta e...

Samara pôs a mão sobre minha boca.

— Você é meu melhor amigo, apenas isso deveria te bastar para calar qualquer outra coisa que meus pais possam pensar de você.

Abracei-a forte, a consciência pesada por falar mal de sua família, pois sei quanto ela os ama, depois me despedi e tratei de limpar a sala, jogar a roupa que usava fora e fiquei até há pouco com minha irmã, ambos trancados no seu quarto.

Só saí para espairecer, para processar tudo o que aconteceu na madrugada passada, pois mais uma vez Samara agiu como um anjo e convidou minha irmã para assistir à final da Copa do Mundo com ela e depois terem uma noite de meninas, com direito a festa do pijama.

Entro na garagem do prédio, mando uma mensagem para Samara informando-a de que cheguei e que estou indo buscar minha irmã. Sinceramente eu não sei como vou fazer até encontrar outra pessoa de confiança para deixar com Kyra quando eu não estiver em casa, pois Nívea disse que nunca mais colocará os pés no nosso apartamento, depois de ter recebido uma boa quantia para que não denunciasse o que se passa dentro de nossa casa, pois entendeu que prejudicaria Kyra.

Não importa! Kyra precisa de mim, e, nem se eu precisar mudar toda minha rotina por causa dela, a terei protegida.


São Paulo, tempo atuais.


Acordo com uma dor de cabeça filha da puta, ressacado, tão zonzo que tropeço ao sair da cama, e a primeira coisa que me vem à cabeça nesta manhã (ou será nesta tarde?) é que hoje é véspera de Natal. Foda-se! Sou ateu, esses feriados religiosos não significam nada para mim.

Sigo pelo corredor em direção à cozinha, com muita sede, louco para tomar um analgésico para exterminar a dor de cabeça. Não vou tomar! Não tomo remédios para dor há anos, aprendi a conviver com as pontadas, com as ardências. A dor me tornou mais forte, resiliente, aprendi há muito que nada é capaz de me ferir mais do que eu mesmo.

A maioria dos meus ossos trazem lembranças de como superei, as marcas no meu corpo também, porém, nenhuma dessas cicatrizes é mais forte do que o vazio dentro de mim.

Encho um copo d’água até transbordar e o bebo em um só gole. A cabeça martela ainda mais por conta da bebida gelada, mas ignoro-a por completo. Não há remédio para o que sinto, não há cura para toda a raiva que carrego dentro de mim, então posso, sim, conviver com umas horas de pontadas no cérebro.

Olho para a porta fechada na área de serviço. Os cômodos dali eram a tal dependência de empregados, mas, como eu nunca tive nenhum, aproveitei-os para outros fins. Inspiro, os cheiros tão familiares chegando às minhas narinas. A raiva natural com que acordo todos os dias se aplaca; não some, apenas se recolhe, dando lugar às sensações de prazer.

Confiro as horas e xingo ao perceber que já estamos no meio da tarde. Sinceramente, não sei por que Kyra inventou essa ceia de Natal, não depois de todos esses anos. Não entendo minha irmã, sinceramente. Há muito convivo com seu gênio forte, sua determinação, mas ainda não sei quem é ela. A garota divertida da infância se tornou uma adolescente quieta e taciturna, uma jovem inteligente e ajuizada e, por fim, uma adulta completamente misteriosa. Eu a acompanhei em todas as fases de sua vida, mas ainda assim não sei quem é a verdadeira Kyra Karamanlis.

Assim que ela completou 18 anos, abandonamos a luxuosa cobertura de Nikkós e fomos morar em um cafofo velho e caindo aos pedaços. Eu estudava como um louco no meu último ano de faculdade, e, como ela passou para uma universidade pública também, tínhamos que morar próximo de uma das duas universidades. Preferi ficar próximo da dela e me fodia andando de bicicleta até a minha todos os dias.

Nessa época eu estagiava na Novak Engenharia e, com a bolsa do estágio, eu mal conseguia pagar o aluguel do quarto e sala que aluguei. Ela nunca soube, mas quem bancava nossa alimentação, transporte e outras despesas era o Kostas. Meu irmão e eu nem éramos amigos, na verdade mal nos falávamos, mas todo mês o dinheiro aparecia na minha conta, e eu sabia que vinha dele.

Formei-me e já fui efetivado na Novak. Trabalhei com o Nicholas, com quem aprendi demais e construí uma amizade forte, assim como com seu irmão Bernardo. Os tempos de bagunça, baladas, drogas e bebidas acabaram quando nos libertamos da prisão daquele apartamento e da convivência maligna de Nikkós.

Kyra estudava muito, era extremamente aplicada em tudo o que fazia, e, irritada por não conseguir conciliar seu horário de estudos com um emprego, começou a fazer doces e salgados dentro do nosso pequeno apartamento e vendê-los na faculdade.

Rio ao pensar que foi assim que nasceu a promoter de eventos, em uma cozinha de seis metros quadrados, com um forno capenga, um fogão com só duas bocas funcionando e uma geladeira que parecia um monomotor, de tanto barulho que fazia. Em pouco tempo ela estava fornecendo encomendas para festas e pequenos eventos, depois começou a fazer projetos de decoração, então, quando se formou, foi trabalhar em um grande e caríssimo bufê da cidade, auxiliando a cerimonialista com os projetos.

Hoje ela é a dona de uma empresa especializada em produções de eventos diversos, bem-sucedida, com um negócio em progressão geométrica de crescimento. Tenho muito orgulho dela, principalmente por ser a única que não ficou agarrada ao cordão umbilical familiar dentro da Karamanlis.

Agora qual a necessidade da porra de uma ceia de Natal para comemorar a expansão de seu negócio? Vou ter que ficar com um maldito sorriso no rosto, carinha de anjo, lidando com o caralho da minha gastrite me corroendo ao pensar na hipocrisia do mundo.

Respiro fundo e decido combater a ressaca e a dor de cabeça com mais bebida. Pego uma cerveja na geladeira, abro-a na beirada da pia e entro no outro ambiente, a sala, integrada ao outro cômodo, separados apenas por uma enorme bancada.

Eu mesmo projetei esse prédio, há alguns anos, ainda trabalhando na Novak. Bernardo Novak é meu vizinho de porta, e Nicholas foi o primeiro dono da cobertura duplex que toma todo o último andar, hoje habitada por um casal e uma menininha. Comprei o apartamento pensando em vir morar com minha irmã, mas qual não foi minha surpresa quando ela anunciou que só sairia do cafofo para seu próprio lugar?

Pois é, vim sozinho, ocupo apenas a suíte principal, e os outros dois quartos estão praticamente vazios. A sala foi decorada – pela própria Kyra –, bem como a cozinha, mas nunca mandei fazer os móveis da sala de jantar, pois não vejo nenhuma função para eles. Eu como sozinho no balcão da cozinha, assistindo a TV ou ouvindo música.

Resgato meu celular, seleciono uma das minhas muitas playlists, e a caixa de som já liga automaticamente, deixando o som pesado do Matanza ecoar pelos ambientes. Sorrio ao ouvir “Bom é quando faz mal”, as recordações das loucuras da faculdade, de toda a merda que eu fazia. Não tenho vontade alguma de fazer de novo, mas também não posso dizer que me arrependo. Era o meu jeito de extravasar, tresloucado, admito, mas ainda assim muito mais normal do que o que eu vivia dentro de casa.

Preparo qualquer coisa para comer, balançando a cabeça e cantando as músicas de várias bandas de rock, algumas famosas, outras nem tanto, mas que marcaram minha vida de alguma forma.

O telefone toca, e a chamada atrapalha minha diversão musical. Bufo, jogo o pano de prato sobre a pia e pego o aparelho.

— Oi, Millos — atendo meu primo.

— Boa tarde, Alexios. Animado com a reunião de hoje à noite?

— Ô, tão quanto eu estaria para fazer um exame de próstata. — Millos gargalha. — Ela convidou você também?

— E o Kostas. — Isso me surpreende, pois, até onde eu sei, não temos nenhuma convivência com ele. — Bom, liguei para dizer que irei viajar na virada do ano, por isso preciso que você não deixe de ir ao baile dos Villazzas.

Gemo ao pensar em vestir um smoking.

— Porra, Millos, não fode! Aposto que Theodoros vai, afinal Frank e ele são quase um casal! — Millos ri do meu deboche acerca da amizade entre meu irmão mais velho e o CEO da rede Villazza de hotéis. — Não tenho a mínima...

— Konstantinos confirmou presença também.

Puta que pariu!

Preciso me sentar depois dessa informação, pasmo só em imaginar Kostas com alguma puta, sentado na mesma mesa de Theodoros. Vai dar merda!

— Eu não tenho companhia — tento me justificar. — E você poderia adiar a sua viagem só por uns...

— Não, não posso, já fiz todos os arranjos, reservas em hotéis, o cronograma da viagem! Você tem que ir para evitar que os dois prejudiquem a imagem da empresa.

Reviro os olhos ao pensar na imagem da empresa. Millos é doido ao pensar que temos uma imagem a zelar. Todos nesta maldita cidade, neste meio asqueroso no qual vivemos, sabem que somos todos fodidos e que nosso pai cagou em nosso nome com a sucessão de merdas que fez.

E olha que a maioria não o conheceu de verdade, não soube o monstro que ele era, escondido por detrás de uma fachada bonita e um sorriso de conquistador barato! Um lobo em pele de cordeiro, um demônio com a face de um anjo... assim como eu.

Bufo de raiva.

— Cadê aquela sua amiga? — Franzo a testa, sem acreditar que ele está se referindo à Samara. — Vocês viviam para cima e para baixo juntos, ela te acompanhou em um dos primeiros eventos dos Villazzas e...

— A Samara mora em Madri há mais de três anos, Millos. — Decido não entrar em detalhes e contar a ele que nos afastamos por algum motivo idiota que eu não consigo lembrar. — Vou ter que ligar para alguma...

— Isso, ligue — ele me corta. — Mulher nunca foi seu problema, aposto que você tem um caderninho cheio de telefones.

— E daí? — afronto-o. — Gosto de sexo, nunca escondi isso, diferente de você, que nunca foi visto com nenhuma mulher além daquela sua amiga motoqueira. — Decido provocá-lo: — Millos, acho que está na hora de sair do armário, porra!

O filho da puta ri alto.

— Eu não teria problema algum em sair se fosse o caso. Ainda mais agora, que Dimitrios saiu, e o pappoús continuou vivo e... — Millos para.

É sempre assim quando algum assunto referente à família na Grécia vem à tona. Eu não conheço ninguém, nunca fui à Grécia, nem tenho a mínima vontade de ir. Não conheço o tal pappoús, nem primo algum além de Millos, que só conheci quando veio morar no Brasil.

Sou o Karamanlis renegado, indigno do sobrenome.

— Vou ligar para alguém e convidar a ir comigo — encerro o assunto constrangedor. — Mas não garanto atuar de mediador como você.

— Você, mediador? — Millos se surpreende. — Alexios, se eu não tivesse interferido, você teria criado uma situação com Theodoros na festa de final de ano da Karamanlis. Eu só quero que você vá com alguém e iniba um pouco aqueles dois.

Bufo e concordo.

— Eu vou.

— Obrigado. — Estou prestes a desligar, quando ele me chama de novo: — Ah, Alexios, não encha a cara, senão você vai falar merda para o Theo, e o Kostas vai se aproveitar disso.

— Vai se foder, Millos! Eu já vou, porra, não diga o que tenho que fazer.

Desligo irritado, perco a fome e a vontade de terminar o que estava preparando.

Mesmo puto, preciso admitir, Millos tem razão sobre eu perder a cabeça com Theodoros, principalmente quando bebo. Eu não odeio meu irmão mais velho como sei que Kostas o faz, apenas ele não significa mais nada para mim.

Convivo bem com ele, pelo menos no sentido profissional, mas não quero nenhum tipo de ligação mais pessoal. Ele perdeu o timing quando, depois de toda a merda que ajudou a fazer, nunca mais quis saber de nós. Era como se nem existíssemos! Ele excluiu Nikkós de sua vida, mas acabou nos descartando junto. Nunca se preocupou em saber de nenhum de seus irmãos, muito menos de sua adorada Kyra, a mais vulnerável de todos nós.

Então, sim, eu perco a cabeça com ele, principalmente com seu jeito esnobe, intocável, como se somente ele importasse e mais ninguém. E foi por isso que nos estranhamos na festa de final de ano da Karamanlis, porque, simplesmente, este ano a festa não foi Theocrática1.

Millos e eu nos reunimos com alguns gerentes e coordenadores para entender o que os funcionários da Karamanlis gostariam de ter em uma festa de encerramento do ano. Depois, contratamos todos os serviços – sem ser da Kyra, pois neste ano ela se livrou de nós na cara dura – e fizemos a festa focada nos funcionários.

Aparentemente, isso chocou e desagradou ao CEO com síndrome de deus, e sua cara fechada e seu olhar de desprezo não ficaram nada disfarçados.

— Ei, irmãozinho! — Eu o parei, enquanto andava como um deus do Olimpo visitando terráqueos. — Aproveitando a festa?

— Espero que não tenha vindo de moto! — o filho da puta tentou me repreender como se estivesse preocupado com minha segurança, e isso, juntamente a toda cerveja que eu já tinha tomado, irritou-me.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já muito bêbado para me conter. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos2!

Theodoros franziu o cenho com meu deboche, comparando seu nome à palavra deus em grego. Estava prestes a dizer algo, mas se conteve quando de repente fui abraçado pelos ombros. Nem precisei olhar para saber que nosso interventor havia chegado.

— Alex, que festança, não? — Millos comentou. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — Theodoros pareceu perplexo. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Gargalhei ao confirmar que ele era mesmo um grande egocêntrico, incapaz de perceber a diferença da festa deste ano à do ano passado por estar focado nos detalhes e não no que realmente importava: as pessoas.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — respondi como se estivesse sóbrio, mesmo não estando. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos me cortou.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — Theodoros perguntou ao Millos, apontando o dedo em minha direção como o grande babaca que sempre foi.

— Fui! — respondi. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Tentei demonstrar com gestos o que dizia, abri os braços de repente, e meu punho bateu no peito do Millos, que chegou para trás. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — olho para um grupo dançando e vários outros conversando, comendo e se divertindo — você está vendo alguém ir?

Ele ficou um tempo olhando em volta como se notasse, pela primeira vez desde que chegou, que realmente os funcionários estavam adorando a descontração deste ano.

Eu só não esperava que ele tentasse ser condescendente comigo:

— Bom trabalho! O pessoal parece realmente estar gostando!

Só faltou dar umas batidinhas em minha cabeça como se eu fosse a porra do seu cãozinho de estimação. Meu sangue ferveu, travei os punhos e não me contive:

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos interrompeu-me e me abraçou novamente pelos ombros. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Mal acabou de falar, seguiu para o outro lado, levando-me consigo.

— Porra, moleque, não tem como ser menos reativo não? A festa está um sucesso graças ao seu feeling, ao modo como você conhece e percebe as pessoas, para que estragar isso batendo boca ou — ele me encarou —, como percebi que queria fazer, enchendo a cara do Theo de porrada? Sai dessa!

Concordei com meu primo e respirei fundo. Depois disso tomei quase um litro de café amargo, ele me pôs em um Uber, e eu vim para casa, onde continuei a beber, desmaiei no sofá e, no outro dia, fui correr ainda um tanto trôpego, sendo desclassificado no teste do bafômetro.

Perdi minha última corrida do ano, grande fracassado que sou!

Volto a ligar minha playlist, e a música que toca é exatamente a que eu preciso para sair da fossa dessas lembranças todas:

— Eu não tenho nada pra dizer. Também não tenho mais o que fazer. Só para garantir esse refrão, eu vou enfiar um palavrão: cu!3


Entro no showroom da A??p?4 – a empresa de eventos de Kyra – e já admiro o trabalho dela com a decoração do local. A enorme mesa com vários lugares ocupa o centro do enorme salão, com castiçais, flores, louças e talheres milimetricamente colocados, junto a taças de cristal e guardanapos de linho.

No restante do salão, há mesas altas para apoiar drinques, sofás e poltronas brancas, com almofadas e outras coisas de decoração seguindo a paleta de cores da festa: verde, vermelho e dourado.

Clichê! Mas é Natal, tem como não ser?

Dou de ombros e vejo Kyra de costas, junto à belíssima morena que trabalha com ela desde que abriu a empresa e as duas chefes de cozinha que conheceu ainda quando trabalhava no outro bufê e as roubou na cara dura quando resolveu estabelecer seu próprio negócio. Uma delas, acho que é a doceira – Mari, como todos a chamam – me vê e logo cutuca minha irmã.

— Ah, Alex! — Kyra abre um enorme sorriso, entrega para a morena – como é mesmo o nome dela? – os penduricalhos de Natal com os quais enfeitava o enorme pinheiro e vem até mim. — Que bom que chegou, tenho uma coisa para você!

Ah, puta que pariu! Ela me comprou um presente? Fico imediatamente sem jeito, pois não comprei absolutamente nada para ela. Eu nem imaginava que iríamos trocar lembranças, nunca fizemos isso!

Alívio toma conta de mim quando ela vem com uma caixinha pequena e claramente de doces.

— Quando experimentei, lembrei logo de você. — Ela tira um doce dourado de dentro da caixa. — Prove!

Franzo o cenho e abro a boca. Mastigo devagar, emitindo sons de prazer, adorando o contraste de texturas e o sabor doce e... picante. Abro um sorriso.

— Chocolate com pimenta! — Termino de comer. — Perfeição!

— Bombom Helênico. — Faço careta para o nome, não combina em nada. — Eu sei, é péssimo, mas as meninas quiseram fazer uma homenagem para a Helena, então... — Dá de ombros.

Helena!, minha mente grita ao lembrar o nome da morena gostosa, mas que nunca sorri e mal fala comigo quando apareço aqui.

— Hum... gostosa! — Começo a rir quando noto que falei alto. Kyra me olha séria. — O quê?

— Nem pense, ela está comprometida!

Ergo as mãos em minha defesa.

— Não falei nada!

— Não precisa! Sua fama de embusteiro conquistador te precede! — Faço careta, e ela ri. — Estive com saudades de você.

— Então por que não foi me ver ou me ligou? — pergunto sem enrolação.

— Não sei.

Respiro fundo. Ela se fecha, é sempre assim e não só comigo. Ela se empolga, vibra, deixa as pessoas se aproximarem, mas nunca demais. Quando chega a seu limite, simplesmente retrocede com a mesma rapidez e naturalidade com que atraiu alguém. É por isso que suas amizades ou mesmo seus relacionamentos amorosos nunca duraram muito.

Porém o que faço eu aqui, julgando-a?

— Alexios Karamanlis! — Viro-me ao ouvir a voz de Millos.

Meu primo – filho de uma égua! – carrega uma enorme caixa de presente toda embrulhada e com laços. Kyra abre um enorme sorriso e vai saltitante até ele, abraça-o pelo pescoço – coisa que não faz nem comigo – e agradece o regalo.

— É para decorar sua sala de empresária fodona — ele brinca com ela, e Kyra gargalha ao tirar uma estátua toda colorida de um unicórnio. — Eu me lembrei daquela sua fantasia no dia das bruxas...

Kyra para de boca aberta.

— Millos, eu tinha quatro anos! — ela recorda e, de repente, parece lembrar também que, naquela época, tudo parecia realmente possível, mágico e feliz.

Meu primo a abraça forte e fala algo em seu ouvido, baixinho. Kyra assente, e eu fico paralisado vendo a troca de carinho entre eles. Parece normal, não é? Mas, creiam-me, não é. Millos evita qualquer contato físico com outras pessoas. Ao cumprimentá-las, ele prefere baixar a cabeça do que dar um aperto de mãos; o máximo que o vi fazer até hoje foi tocar no ombro de alguém, mas somente quando julga necessário. Até comigo, o máximo que ele fez até hoje foi me abraçar para evitar um embate entre mim e Theo. Então assistir aos dois se abraçando é realmente algo inédito.

— Feliz Natal, pesménos ángelos5.

Mostro o dedo do meio para ele.

— Ah, pesquisou! — Ri debochado, mas logo para ao aceitar o chope que Kyra nos oferece. — É um absurdo você não saber nada da nossa língua.

— Não tenho interesse algum por nada que venha de lá — justifico e bebo. — Kyra também não sabe!

— Quem disse? — Ela começa a rir. — Anóito6.

— Quando foi que você se interessou por essa porra? — questiono-lhe surpreso.

— Você leu o nome da empresa dela na fachada? — é Millos quem retorna minha pergunta. — Está em grego!

Millos e Kyra engatam uma conversa, enquanto eu ainda estou paralisado com essa nova informação. Não é exagero, mas eu pensei que ela, assim como eu, desprezasse qualquer coisa que tenha relação com Nikkós. No entanto, ao contrário de mim, ela sempre foi aceita por todos os Karamanlis como parte da família, então é natural que tenha algum apreço por eles.

— Ah, mais convidados estão chegando!

Kyra deixa-nos a sós e vai até um grupo que não conheço.

— Ela parece feliz — comento com Millos.

Meu primo dá de ombros.

— Há pessoas com o dom de demonstrar apenas o que querem que vejam. — Bebe o resto de seu chope e me encara. — Já resolveu o assunto do baile dos Villazzas?

— Ah, Millos, não fode mais a minha noite! — Vejo duas lindas mulheres adentrarem ao salão e abro um sorriso. — Pode ser que ela esteja começando a melhorar.

Millos ergue uma de suas sobrancelhas, e eu o deixo sozinho, caminhando em direção ao meu mais novo alvo da noite, que, neste exato momento, cumprimenta minha irmã.

— Kyra, eu gostaria de... — finjo interromper-me quando as desconhecidas me olham. — Desculpem-me. — Kyra rola os olhos, mas suas convidadas não desviam o olhar do meu rosto. — Millos estava falando do chope, e nós fizemos uma pequena aposta, mas posso ver isso depois, atenda seus convidados. — Abro novamente meu melhor sorriso na direção delas.

— Valéria e Priscila, esse é meu irmão, Alexios Karamanlis — Kyra faz nossa apresentação, e eu sei que depois irá jogar na minha cara que eu estou lhe devendo por isso.

— Um prazer, Valéria! — Aproximo-me para cumprimentá-la e logo depois saúdo a outra: — Prazer, Priscila.

— O prazer é meu, Alexios — Priscila responde, sorrindo, e vejo a mão de Valéria tocar suas costas num gesto um tanto territorialista. Perfeito! Trocamos beijos no rosto em cumprimento. — Eu já te vi em algumas revistas especializadas em engenharia e arquitetura, principalmente quando o conselho dessas classes era o mesmo.

— Arquiteta? — tento adivinhar, mas ela nega e aponta para sua amiga.

— Valéria é, eu sou designer industrial. — Faço cara de surpresa, mesmo sem achar nada de mais. — É, eu sei, a maioria das pessoas que me conhece acha que sou modelo ou estilista, mas você quase acertou. — Seu sorriso é claramente de quem se sente lisonjeada. — Trabalho conceitos para grandes marcas.

— Incrível! — Olho-a de cima a baixo, e Kyra bufa. — Você também parece incrível, Valéria. — Sorrio, e ela relaxa.

— Alexios, chegaram outros convidados, você poderia fazer companhia a elas? — Ela pega na mão das amigas. — Vocês não se importam, não é?

— Claro que não, você é a anfitriã da noite! — Valéria diz, e sinto seu olhar brilhar em minha direção. — Nós ficaremos em boa companhia com seu irmão, afinal, é o anjo rebelde dos Karamanlis.

Puta que pariu!

 

CONTINUA

Com um passado nebuloso, marcado por traumas, rejeições e violência, há anos Alexios Karamanlis busca entender a si mesmo e, para isso, começa uma caçada sem fim pelo destino de sua mãe biológica, junto a sua melhor amiga, Samara Schneider.
Amigos desde tenra idade, Alexios sempre tentou não a notar como mulher por temer perder sua amizade e apoio, e Samara sempre sonhou com o dia em que o garoto problemático e rebelde se apaixonaria por ela.
Juntos em busca de respostas sobre a verdadeira história do nascimento de Alexios, os dois mergulharão no sujo passado do pai dele, Nikkós Karamanlis, revelarão segredos muito bem guardados e, por fim, descobrirão que não há como reprimir mais a paixão e o desejo que sentem um pelo outro.

 

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O país todo está enlouquecido!, penso ao passar por mais uma blitz policial sem nenhum problema, acelerando a moto ao máximo, capacete preto espelhado impossibilitando qualquer um de ver que quem pilota essa máquina é um garoto, não um homem.

Eu não sou um homem! Não sou! Se fosse, não estaria aqui neste momento, mas sim na delegacia, gritando por aí, fazendo qualquer coisa que não apenas dar uma de burguesinho filho da puta endinheirado, acelerando uma moto que custa o mesmo que um apartamento popular, mesmo sem ter habilitação para isso, apenas para esquecer os problemas.

Eu sou um merda! E sou isso por causa “dele”!

Caralho! A Paulista está fechada por conta das comemorações do pentacampeonato. É, o Brasil conseguiu mais uma estrela no futebol, o país está eufórico como se não houvesse crianças na rua, assassinos à solta, a corrupção impedindo todo o sistema público de funcionar. Foda-se, somos penta!

Faço uma manobra rápida com a moto, deixando marcas dos grossos pneus no asfalto e sigo para outra direção, à procura de mais uma avenida extensa e reta para que eu possa extravasar todo o ódio dentro de mim indo ao limite da velocidade.

Paro a moto de repente e quase sou arremessado para frente. Meus músculos começam a tremer, meus olhos se enchem de lágrimas, sinto frio, meus dentes batem um no outro. Engulo em seco. Não vou chorar! Não choro mais, não há muitos anos.

Cada soco, cada pontapé, cada xingamento e mentira secaram minhas lágrimas. Elas até se instalam em meus olhos, porém não caem. Sufocam-me, quebram meu coração, desequilibram-me.

Caio no chão em um baque só, gemo de dor por causa do peso da moto sobre minha perna esquerda, mas não choro. Respiro fundo para controlar a dor, parar de tremer, diminuir os batimentos do meu coração. Estou acostumado a essa rotina de tentar não sentir dor, de tentar não sentir mais nada.

Levanto-me calmamente, sinto calafrios, manco, mas volto a subir na moto, acelerando-a, fazendo o motor girar e um ruído alto e potente se misturar aos sons das comemorações pelas ruas da cidade. Respiro fundo várias vezes e, quando não sinto mais nada, tiro o pé do chão e deixo a máquina me levar.

Eu queria poder fugir para o mais longe possível desta cidade, mas não dá, infelizmente não posso ir a lugar algum, estou preso, revivendo o mesmo inferno todos os dias, aceitando meu destino com resignação até poder livrar a mim e a Kyra do demônio que nos formou.

Eu poderia pedir ajuda ao Tim, mas sei que ele tem a própria merda para lidar e que conseguiu sair há pouco do inferno. Sei que precisava ir. Meu irmão estava por um fio, assim como eu, e, se ficasse lá conosco, seria para morrer ou matar, e, como não é da sua natureza matar, iria perecer aos poucos, como Nikkós gostaria que acontecesse.

Então ele foi, e eu fiquei incumbido de uma missão que nós aceitamos sem nem mesmo combinar nada, apenas porque sabíamos do que nosso pai era capaz e decidimos que não o deixaríamos chegar a ela.

Soluço na moto.

Eu falhei!

Eu falhei!

Eu falhei?!

Eu não sei! Simplesmente não sei o que aconteceu ontem! Acelero a moto, pegando uma rodovia, ainda tentando processar todos os acontecimentos e os flashes de memória que tenho.

Cometi um erro na noite passada, fui imprudente e agora preciso lidar com tudo o que aconteceu, mesmo sem entender direito o que houve. Enquanto piloto a moto, tento repassar cada momento de ontem, mesmo sabendo que já fiz isso várias e várias vezes sem nenhum êxito.

Nikkós finalmente viajou a trabalho – ou o que quer que ele tenha ido fazer –, e eu consegui relaxar um pouco. Mantenho constante vigilância sobre minha irmã, uma adolescente de 14 anos de idade, e evito ao máximo deixá-la sozinha com nosso pai. Não há muito que eu possa fazer para protegê-la das loucuras dele, mas o que está ao meu alcance, faço.

Por conta disso, desde que ingressei na universidade – no começo desse ano –, desdobro-me ao máximo para curtir com meus amigos e proteger a Kyra. A babá anterior era a mesma desde quando minha irmã e eu nascemos, totalmente devota ao nosso pai, então, assim que Konstantinos tomou posse de sua herança, demos um jeito de nos livrar dela, e, assim que outra foi contratada, meu irmão se encarregou de pagar uns extras para ela manter os olhos em Kyra.

Nikkós sempre foi um filho da puta covarde, ele nunca iria deixar um serviçal ver o que ele é capaz de fazer aos filhos, por isso tinha seus próprios lugares para executar suas torturas em Kostas e em mim.

Noite passada, uma galera mais velha da universidade fechou uma boate e me convidou para festejar com eles. Estávamos entrando de férias e queríamos muito desopilar o fígado, relaxar, curtir e esquecer todas as pressões dos estudos.

Como Nikkós não estava em casa, e a babá estava por lá com Kyra, por que não ir? Foi esse meu erro!, penso ao relembrar.

 

— O grande Alexios Karamanlis! — Alberto Bragança me saúda assim que entro na boate. — Achei que você não vinha mais, mano!

Ele me entrega uma caneca de 500ml de chope e um cartão para o restante do consumo, e logo vejo os outros caras em uma mesa no fundo do salão. A música alta, tocando um “batestaca” qualquer, não chama minha atenção. Sigo, então, na direção do pessoal e, mal chego lá, peço mais uma rodada de chope para todos.

Meu pai é um grande filho da puta, torturador desgraçado, mas, para manter as aparências, deixa-nos usar cartão sem limites e nos entrega uma mesada gorda. Bebo, sentindo o gosto do chope se tornar mais amargo que o normal, consciente de que essa porra toda é dele, comprada com o seu maldito dinheiro.

— Jefinho está na área! — alguém grita comemorando. — Vamos começar a diversão! Quem vai?

Sou um dos primeiros a me levantar, viro o resto da bebida e sigo com mais cinco amigos para o banheiro, atrás do traficante oficial da turma. Vejo cada um pegando “no bufê do Jeff” sua viagem preferida e pego um pino de “coca” para começar bem a noite.

“Foda-se, Nikkós Karamanlis!”

Cheiro.

“Foda-se, Sabrina Karamanlis!”

Aspiro mais um pouco.

“Foda-se, Theo Karamanlis!”

Faço outra carreira com o restante do pó.

“Foda-se, Geórgios Karamanlis!”

Seguro a narina fechada, mantendo tudo dentro de mim, sentindo já meu corpo girar, o cérebro acelerar e todas as sensações de abandono e dor se esvaírem como num passe de mágica. Só existe prazer, nenhuma dor, tudo é maravilhoso!

Compro mais três pinos de cocaína e alguns comprimidos de êxtase. Essa noite não quero dormir, quero aproveitar, dançar, zoar, pegar umas universitárias e esquecer quem sou.

Começo a rir de mim mesmo, da piada que acabei de pensar. Esquecer quem sou só seria possível se eu soubesse quem sou.

“Eu não sou ninguém!”

Meu Nokia vibra com a chegada de uma mensagem, confiro ser de Samara, minha única e melhor amiga, e volto a colocá-lo no bolso ao perceber a aproximação de uma gostosa do quarto ano.

— Eu não acredito que você é menor de idade, Alex! — A garota, com luzes nos cabelos e vestido com apenas uma alça, passa a mão no meu peito. — Você não parece ser um garoto, mesmo com esse rostinho angelical.

Respiro fundo para não perder a paciência, pois, se há algo que me irrita muito, é quando dizem que eu pareço um anjo. Aproximo-me dela e a puxo pela cintura.

— Posso provar que não sou um anjo! — Pego sua mão e a levo até a frente da minha calça. A garota arregala os olhos. — Os demônios com cara de anjo são os piores, gata!

— Uau! — Ela lambe meu pescoço. — O que você tomou?

— Coca, mas tenho “bala” no meu bolso. — Ela ronrona, e eu me animo. — Vem comigo!

Levo-a para uma área nos fundos da boate, uma espécie de depósito que se encontra aberto, uma vez que a casa está funcionando apenas para um bando de playboys endinheirados que preferem não se misturar com a ralé e, assim, fazer suas merdas longe dos olhos curiosos da plebe.

Claro! Afinal de contas, aqui estão reunidos os filhos dos maiores empresários, advogados, médicos, juízes e a porra toda elitizada desta cidade decadente. Bando de fodidos! A maioria desconta, como eu, a falta de afeto e atenção em casa gastando dinheiro, promovendo rachas pelas ruas, consumindo todo tipo de droga tentando preencher o buraco negro instalado nas nossas almas.

“Foda-se!”

Seguro a garota contra a parede fria do depósito e, sem nem mesmo perguntar seu nome, ataco sua boca com fúria, mordendo seus lábios e sugando sua língua. Ela mexe em minha calça, abre-a e retira meu pau para um tratamento especial em suas mãos macias.

— Novinho e pauzudo... — ela geme. — Cadê a balinha para deixar tudo mais divertido?

Sorrio e nego.

— Tem que merecer.

Ela sorri e, sem que eu precise sequer lhe indicar o que quero, ajoelha-se no chão grosso e toma meu pau em sua boca quente e esfomeada. Gemo, gostando da carícia, seguro-a pelos cabelos e a forço a engolir o máximo que consegue.

Tenho quase 17 anos, mas aposto com quem quer que seja que nenhum desses caras daqui tem a metade da experiência sexual que eu. E não, não “tiro onda” com isso, afinal, quem é filho de Nikkós Karamanlis não tem muita escolha sobre quando vai começar a trepar, ele simplesmente impõe, e comigo isso aconteceu quando eu tinha 11 anos de idade.

Afasto o pensamento pestilento sobre meu pai e curto a chupada gostosa que a garota ajoelhada me dá. Ela lambe, chupa, suga com força, arranha com os dentes – coisa que me excita “pra caralho” – e segura minhas bolas com vontade. Percebo que ela quer fazer o serviço completo com a boca, mas definitivamente ela não me conhece.

Ergo-a de uma vez só e a ponho de cara contra a parede. Procuro a camisinha no bolso da calça – uma coisa que se aprende quando se começa a vida sexual trepando com putas é que preservativos nunca podem faltar –, plastifico meu pau e levanto o vestido dela.

Bunda gostosa, magra, mas gostosa “pra cacete” com uma calcinha de cor forte – não sei se vermelha ou rosa; não divago muito sobre a cor, mesmo porque é irrelevante –, afasto a peça e esfrego os dedos em sua boceta depilada.

Ela ofega, rebola gostoso na minha mão. Vou penetrando-a devagar com os dedos, recolhendo um pouco da umidade de dentro de sua vagina para usá-la exatamente no ponto onde quero. Massageio seu clitóris até que ela se contraia em gozo e volto a molhar seu rabo com a lubrificação que solta.

Ela fica tensa quando encaixo a cabeça do meu pau em seu ânus apertado.

— Alex...

— Psiu... — falo devagarzinho em seu ouvido, lambendo sua orelha enquanto vou me afundando no canal estreito, sentindo meu corpo todo reagir à pressão de um local nunca ou pouco explorado. — Eu disse a você. — Ela arfa quando me encaixo por completo em seu rabo. — Os demônios com cara de anjo são os piores!

Meto com força e continuo estimulando seu clitóris, beijando e mordendo seu pescoço, até que ela explode em um orgasmo foda, e eu me deixo ir na camisinha, ainda sentindo as contrações do seu corpo. Quando ela se vira para me beijar, estico minha língua com sua recompensa na ponta. A garota sorri e chupa a drágea com vontade, enquanto eu engulo a outra.

A noite só começou!

 

Paro a moto em frente ao prédio onde Konstantinos mora. Fico parado olhando para o alto, invejando a liberdade de meu irmão, a coragem que teve ao se libertar assim que pôde do nosso pai. Ele estuda no Largo de São Francisco, vai ser um advogado e, mesmo que tenha tentado disfarçar, ficou contente quando contei que havia passado em todos os vestibulares para os quais havia prestado.

— Vai para algum lugar longe da cidade? — Kostas não escondeu sua preocupação.

— Não, vou ficar aqui — respondi com sinceridade, mesmo que minha vontade fosse ir para o mais longe possível deste inferno de lugar. — Vou continuar no apartamento de Nikkós, pelo menos até a Kyra fazer 18 anos.

Ele respirou fundo, e nossa conversa por telefone acabou aí. Nós não precisávamos externar nossa preocupação um para o outro, sabíamos do que nosso pai era capaz e do perigo que Kyra corria estando sob o mesmo teto que ele. Kostas saiu de casa, pois nunca soube lidar com Nikkós, ao contrário de mim.

O grego maluco tentou fazer comigo o mesmo que fazia com o meu irmão, porém nunca pensou que não me afetaria, então mudou de tática. O desgraçado tentava me acertar no único ponto que realmente me doía, mas ainda assim eu resistia em demonstrar alguma dor, então ele me fazia sentir na carne.

Esfrego a mão no ombro esquerdo, quebrado há dois anos no que todos acreditaram ser um acidente enquanto eu andava de skate, sem saber que quase tive o braço arrancado pelo homem louco, bêbado e drogado a quem todos respeitavam como um exemplo de pai, criando seus filhos sozinho depois de ter sido abandonado pela mulher.

Farsante dissimulado! Nunca amou ninguém, nunca se preocupou ou se dedicou a ninguém, nem a si mesmo. Eu só não entendo o motivo pelo qual ele não deixou que a puta que me gerou abortasse ou mesmo por que não me deixou com ela.

Eu sou um covarde! Rio, ligando a moto de novo.

Meu maior sonho é vê-lo morto, desejei e planejei isso tantas vezes, de tantas maneiras diferentes, que sei todos os passos de cor. No entanto, nunca tive coragem... Respiro fundo.

Pelo menos até essa madrugada!

Não faço ideia de como cheguei a casa, estava doidão, alto demais, cheirava a cerveja, maconha, sexo e perfumes variados. Não sei nem com quantas garotas trepei à noite, sei que algumas só mamaram meu pau, mas, com outras, a coisa foi mais louca.

Não consigo me lembrar de muita coisa. Só tenho sensações ruins de quando cheguei ao apartamento e percebi que Nikkós havia voltado. Nas memórias, há gritos, choro, mas nenhuma imagem. Tudo o que tenho nítido na cabeça foi o que aconteceu depois que acordei.

Estava deitado na sala principal do apartamento, minhas roupas sujas de sangue, rasgadas, um hematoma no olho e um corte no canto da boca já me incomodando. Não sabia nem onde estava, só sentia dor, confusão, e vomitei ali mesmo, no tapete da sala.

Ao meu lado vi uma faca suja de sangue. Gelei, sem saber o que tinha feito e de quem era o líquido viscoso e vermelho que cobria toda a lâmina. Foi nesse momento que saí do torpor em que me encontrava, peguei o objeto e comecei a correr pela enorme cobertura, entrando em todos os cômodos.

— Kyra! — gritava, mesmo com a cabeça explodindo. — Kyra!

Minha irmã não estava em lugar algum, nem mesmo a Nívea, a senhora que cuidava dela, eu pude encontrar. Meu desespero só aumentou. Liguei para o telefone dela, mas estava dando na caixa de mensagens.

Comecei a soluçar, mesmo não derramando uma só lágrima, e entrei no local proibido da casa, o santuário satânico de Nikkós Karamanlis: seu quarto.

Estanquei quando vi seu corpo enorme e nu jogado sobre a cama king size. Notei os cortes em seus braços, bem como o movimento de respiração, seguido dos roncos altos. O filho da puta não estava morto! Apertei a faca em minha mão com mais força, pensando que esse seria o momento certo para livrar a todos de sua existência.

Andei até ele devagar, os nós dos dedos brancos de tão firme que segurava a faca. Medi suas costas, imaginando que seria muito fácil perfurar seu pulmão com uma só estocada no lugar certo e que ele morreria afogado em seu próprio sangue lentamente, em uma morte digna dele.

Ergui a faca, fechei os olhos, parei de tremer e me lembrei de todos os anos de abuso e de tortura, do que ele fazia ao Kostas, do que fazia comigo e do que poderia fazer a Kyra.

Respirei fundo, concentrei a força e desci a faca, mas parei a milímetros de sua pele quando ouvi soar a campainha. Joguei a arma para longe e saí correndo daquele cômodo pestilento, descendo as escadas disparado para atender a porta, torcendo para que fossem Nívea e Kyra.

— Alexios? — a voz de Samara me fez prender o fôlego. — Alexios, você está aí?

Abri a porta sem pensar duas vezes e desmontei ao ver minha irmã ao lado da minha melhor amiga. Kyra, minha pequena princesa, linda como uma pintura, seus olhos enormes e verdes cheios de lágrimas e os lábios trêmulos.

— Ainda bem! — exclamei aliviado, puxando-a para meus braços. — Ainda bem!

— Alexios, você precisa de ajuda? — Samara questionou, olhando tudo em volta. — Ontem à noite a senhora Nívea pediu que Kyra ficasse comigo e...

Segurei o rosto de minha irmã, desgostoso por saber que ela mal fala por conta do monstro que temos em casa, sequei as lágrimas que escorriam por seu rosto miúdo e assustado e perguntei:

— O que houve?

Ela deu de ombros.

— Ele voltou mais cedo, estava bêbado, mandou Nívea embora. — Sinto um arrepio de frio percorrer minha coluna. — Os dois discutiram. — Ela soluçou. — Ele bateu nela, ela desmaiou...

— E você, onde estava?

Kyra desviou os olhos, e eu senti como se um soco acertasse a boca do meu estômago. Olhei para Samara em busca de uma resposta, mas minha amiga apenas deu de ombros, indicando que minha irmã também não falou com ela.

— Quando ela acordou, me levou para o apartamento da Malinha, e aí eu fiquei lá. — Kyra olhou em direção ao corredor. — Ele ainda está...

Assenti.

— Vá para o seu quarto, tranque a porta, tome um banho; daqui a pouco vou me encontrar com você. — Ela tentou sorrir em agradecimento para Samara, mas depois desistiu, seguindo diretamente para seu quarto. — Samara...

— Vocês precisam denunciar isso! — Ela tocou meu rosto. — Você é só um garoto, Alexios, não pode proteger vocês dois.

— Posso! — afirmei cheio de raiva. — Você sabe muito bem que, se uma denúncia for feita, ela será tirada de nós. Eu ficarei um ano em algum abrigo, mas e ela?

— O Tim não pode...

Neguei.

— Não acho que o deixariam cuidando de dois adolescentes, ele só tem 20 anos! — Fechei os olhos, cansado, com medo, sem saída e senti quando ela me abraçou apertado.

— Onde você esteve ontem à noite?

— Fui me divertir...

— Não. — Seus olhos lindíssimos encararam os meus. — Você não se diverte, Alexios, você tenta se matar. — Passou a mão pelo meu rosto. — Quanto usou?

Dei de ombros, não querendo discutir isso com ela. Nunca termina bem!

— Isso não ajuda ninguém. Nem a você, muito menos à sua irmã. — Tentou sorrir para disfarçar o sermão, seus dentes cheios de plaquinhas do aparelho ortodôntico, o rosto redondo de menina fazendo covinhas, coisa que ela sempre teve e sempre achei lindo. — Eu sei que só tenho 15 anos, mas...

— Eu agradeço que você tenha feito companhia a Kyra, mas agora preciso resolver tudo aqui. — Apontei para a sala. — Ficou tudo bem com seus pais?

— Sim, não acharam nada estranho que Kyra dormisse lá em casa, afinal, somos amigas.

Ri amargamente.

— Essa amizade é aceitável para os Schneiders, não é? — Samara ficou vermelha. — Kyra é uma boa menina, não um porra-louca como eu, filho de uma puta e...

Samara pôs a mão sobre minha boca.

— Você é meu melhor amigo, apenas isso deveria te bastar para calar qualquer outra coisa que meus pais possam pensar de você.

Abracei-a forte, a consciência pesada por falar mal de sua família, pois sei quanto ela os ama, depois me despedi e tratei de limpar a sala, jogar a roupa que usava fora e fiquei até há pouco com minha irmã, ambos trancados no seu quarto.

Só saí para espairecer, para processar tudo o que aconteceu na madrugada passada, pois mais uma vez Samara agiu como um anjo e convidou minha irmã para assistir à final da Copa do Mundo com ela e depois terem uma noite de meninas, com direito a festa do pijama.

Entro na garagem do prédio, mando uma mensagem para Samara informando-a de que cheguei e que estou indo buscar minha irmã. Sinceramente eu não sei como vou fazer até encontrar outra pessoa de confiança para deixar com Kyra quando eu não estiver em casa, pois Nívea disse que nunca mais colocará os pés no nosso apartamento, depois de ter recebido uma boa quantia para que não denunciasse o que se passa dentro de nossa casa, pois entendeu que prejudicaria Kyra.

Não importa! Kyra precisa de mim, e, nem se eu precisar mudar toda minha rotina por causa dela, a terei protegida.


São Paulo, tempo atuais.


Acordo com uma dor de cabeça filha da puta, ressacado, tão zonzo que tropeço ao sair da cama, e a primeira coisa que me vem à cabeça nesta manhã (ou será nesta tarde?) é que hoje é véspera de Natal. Foda-se! Sou ateu, esses feriados religiosos não significam nada para mim.

Sigo pelo corredor em direção à cozinha, com muita sede, louco para tomar um analgésico para exterminar a dor de cabeça. Não vou tomar! Não tomo remédios para dor há anos, aprendi a conviver com as pontadas, com as ardências. A dor me tornou mais forte, resiliente, aprendi há muito que nada é capaz de me ferir mais do que eu mesmo.

A maioria dos meus ossos trazem lembranças de como superei, as marcas no meu corpo também, porém, nenhuma dessas cicatrizes é mais forte do que o vazio dentro de mim.

Encho um copo d’água até transbordar e o bebo em um só gole. A cabeça martela ainda mais por conta da bebida gelada, mas ignoro-a por completo. Não há remédio para o que sinto, não há cura para toda a raiva que carrego dentro de mim, então posso, sim, conviver com umas horas de pontadas no cérebro.

Olho para a porta fechada na área de serviço. Os cômodos dali eram a tal dependência de empregados, mas, como eu nunca tive nenhum, aproveitei-os para outros fins. Inspiro, os cheiros tão familiares chegando às minhas narinas. A raiva natural com que acordo todos os dias se aplaca; não some, apenas se recolhe, dando lugar às sensações de prazer.

Confiro as horas e xingo ao perceber que já estamos no meio da tarde. Sinceramente, não sei por que Kyra inventou essa ceia de Natal, não depois de todos esses anos. Não entendo minha irmã, sinceramente. Há muito convivo com seu gênio forte, sua determinação, mas ainda não sei quem é ela. A garota divertida da infância se tornou uma adolescente quieta e taciturna, uma jovem inteligente e ajuizada e, por fim, uma adulta completamente misteriosa. Eu a acompanhei em todas as fases de sua vida, mas ainda assim não sei quem é a verdadeira Kyra Karamanlis.

Assim que ela completou 18 anos, abandonamos a luxuosa cobertura de Nikkós e fomos morar em um cafofo velho e caindo aos pedaços. Eu estudava como um louco no meu último ano de faculdade, e, como ela passou para uma universidade pública também, tínhamos que morar próximo de uma das duas universidades. Preferi ficar próximo da dela e me fodia andando de bicicleta até a minha todos os dias.

Nessa época eu estagiava na Novak Engenharia e, com a bolsa do estágio, eu mal conseguia pagar o aluguel do quarto e sala que aluguei. Ela nunca soube, mas quem bancava nossa alimentação, transporte e outras despesas era o Kostas. Meu irmão e eu nem éramos amigos, na verdade mal nos falávamos, mas todo mês o dinheiro aparecia na minha conta, e eu sabia que vinha dele.

Formei-me e já fui efetivado na Novak. Trabalhei com o Nicholas, com quem aprendi demais e construí uma amizade forte, assim como com seu irmão Bernardo. Os tempos de bagunça, baladas, drogas e bebidas acabaram quando nos libertamos da prisão daquele apartamento e da convivência maligna de Nikkós.

Kyra estudava muito, era extremamente aplicada em tudo o que fazia, e, irritada por não conseguir conciliar seu horário de estudos com um emprego, começou a fazer doces e salgados dentro do nosso pequeno apartamento e vendê-los na faculdade.

Rio ao pensar que foi assim que nasceu a promoter de eventos, em uma cozinha de seis metros quadrados, com um forno capenga, um fogão com só duas bocas funcionando e uma geladeira que parecia um monomotor, de tanto barulho que fazia. Em pouco tempo ela estava fornecendo encomendas para festas e pequenos eventos, depois começou a fazer projetos de decoração, então, quando se formou, foi trabalhar em um grande e caríssimo bufê da cidade, auxiliando a cerimonialista com os projetos.

Hoje ela é a dona de uma empresa especializada em produções de eventos diversos, bem-sucedida, com um negócio em progressão geométrica de crescimento. Tenho muito orgulho dela, principalmente por ser a única que não ficou agarrada ao cordão umbilical familiar dentro da Karamanlis.

Agora qual a necessidade da porra de uma ceia de Natal para comemorar a expansão de seu negócio? Vou ter que ficar com um maldito sorriso no rosto, carinha de anjo, lidando com o caralho da minha gastrite me corroendo ao pensar na hipocrisia do mundo.

Respiro fundo e decido combater a ressaca e a dor de cabeça com mais bebida. Pego uma cerveja na geladeira, abro-a na beirada da pia e entro no outro ambiente, a sala, integrada ao outro cômodo, separados apenas por uma enorme bancada.

Eu mesmo projetei esse prédio, há alguns anos, ainda trabalhando na Novak. Bernardo Novak é meu vizinho de porta, e Nicholas foi o primeiro dono da cobertura duplex que toma todo o último andar, hoje habitada por um casal e uma menininha. Comprei o apartamento pensando em vir morar com minha irmã, mas qual não foi minha surpresa quando ela anunciou que só sairia do cafofo para seu próprio lugar?

Pois é, vim sozinho, ocupo apenas a suíte principal, e os outros dois quartos estão praticamente vazios. A sala foi decorada – pela própria Kyra –, bem como a cozinha, mas nunca mandei fazer os móveis da sala de jantar, pois não vejo nenhuma função para eles. Eu como sozinho no balcão da cozinha, assistindo a TV ou ouvindo música.

Resgato meu celular, seleciono uma das minhas muitas playlists, e a caixa de som já liga automaticamente, deixando o som pesado do Matanza ecoar pelos ambientes. Sorrio ao ouvir “Bom é quando faz mal”, as recordações das loucuras da faculdade, de toda a merda que eu fazia. Não tenho vontade alguma de fazer de novo, mas também não posso dizer que me arrependo. Era o meu jeito de extravasar, tresloucado, admito, mas ainda assim muito mais normal do que o que eu vivia dentro de casa.

Preparo qualquer coisa para comer, balançando a cabeça e cantando as músicas de várias bandas de rock, algumas famosas, outras nem tanto, mas que marcaram minha vida de alguma forma.

O telefone toca, e a chamada atrapalha minha diversão musical. Bufo, jogo o pano de prato sobre a pia e pego o aparelho.

— Oi, Millos — atendo meu primo.

— Boa tarde, Alexios. Animado com a reunião de hoje à noite?

— Ô, tão quanto eu estaria para fazer um exame de próstata. — Millos gargalha. — Ela convidou você também?

— E o Kostas. — Isso me surpreende, pois, até onde eu sei, não temos nenhuma convivência com ele. — Bom, liguei para dizer que irei viajar na virada do ano, por isso preciso que você não deixe de ir ao baile dos Villazzas.

Gemo ao pensar em vestir um smoking.

— Porra, Millos, não fode! Aposto que Theodoros vai, afinal Frank e ele são quase um casal! — Millos ri do meu deboche acerca da amizade entre meu irmão mais velho e o CEO da rede Villazza de hotéis. — Não tenho a mínima...

— Konstantinos confirmou presença também.

Puta que pariu!

Preciso me sentar depois dessa informação, pasmo só em imaginar Kostas com alguma puta, sentado na mesma mesa de Theodoros. Vai dar merda!

— Eu não tenho companhia — tento me justificar. — E você poderia adiar a sua viagem só por uns...

— Não, não posso, já fiz todos os arranjos, reservas em hotéis, o cronograma da viagem! Você tem que ir para evitar que os dois prejudiquem a imagem da empresa.

Reviro os olhos ao pensar na imagem da empresa. Millos é doido ao pensar que temos uma imagem a zelar. Todos nesta maldita cidade, neste meio asqueroso no qual vivemos, sabem que somos todos fodidos e que nosso pai cagou em nosso nome com a sucessão de merdas que fez.

E olha que a maioria não o conheceu de verdade, não soube o monstro que ele era, escondido por detrás de uma fachada bonita e um sorriso de conquistador barato! Um lobo em pele de cordeiro, um demônio com a face de um anjo... assim como eu.

Bufo de raiva.

— Cadê aquela sua amiga? — Franzo a testa, sem acreditar que ele está se referindo à Samara. — Vocês viviam para cima e para baixo juntos, ela te acompanhou em um dos primeiros eventos dos Villazzas e...

— A Samara mora em Madri há mais de três anos, Millos. — Decido não entrar em detalhes e contar a ele que nos afastamos por algum motivo idiota que eu não consigo lembrar. — Vou ter que ligar para alguma...

— Isso, ligue — ele me corta. — Mulher nunca foi seu problema, aposto que você tem um caderninho cheio de telefones.

— E daí? — afronto-o. — Gosto de sexo, nunca escondi isso, diferente de você, que nunca foi visto com nenhuma mulher além daquela sua amiga motoqueira. — Decido provocá-lo: — Millos, acho que está na hora de sair do armário, porra!

O filho da puta ri alto.

— Eu não teria problema algum em sair se fosse o caso. Ainda mais agora, que Dimitrios saiu, e o pappoús continuou vivo e... — Millos para.

É sempre assim quando algum assunto referente à família na Grécia vem à tona. Eu não conheço ninguém, nunca fui à Grécia, nem tenho a mínima vontade de ir. Não conheço o tal pappoús, nem primo algum além de Millos, que só conheci quando veio morar no Brasil.

Sou o Karamanlis renegado, indigno do sobrenome.

— Vou ligar para alguém e convidar a ir comigo — encerro o assunto constrangedor. — Mas não garanto atuar de mediador como você.

— Você, mediador? — Millos se surpreende. — Alexios, se eu não tivesse interferido, você teria criado uma situação com Theodoros na festa de final de ano da Karamanlis. Eu só quero que você vá com alguém e iniba um pouco aqueles dois.

Bufo e concordo.

— Eu vou.

— Obrigado. — Estou prestes a desligar, quando ele me chama de novo: — Ah, Alexios, não encha a cara, senão você vai falar merda para o Theo, e o Kostas vai se aproveitar disso.

— Vai se foder, Millos! Eu já vou, porra, não diga o que tenho que fazer.

Desligo irritado, perco a fome e a vontade de terminar o que estava preparando.

Mesmo puto, preciso admitir, Millos tem razão sobre eu perder a cabeça com Theodoros, principalmente quando bebo. Eu não odeio meu irmão mais velho como sei que Kostas o faz, apenas ele não significa mais nada para mim.

Convivo bem com ele, pelo menos no sentido profissional, mas não quero nenhum tipo de ligação mais pessoal. Ele perdeu o timing quando, depois de toda a merda que ajudou a fazer, nunca mais quis saber de nós. Era como se nem existíssemos! Ele excluiu Nikkós de sua vida, mas acabou nos descartando junto. Nunca se preocupou em saber de nenhum de seus irmãos, muito menos de sua adorada Kyra, a mais vulnerável de todos nós.

Então, sim, eu perco a cabeça com ele, principalmente com seu jeito esnobe, intocável, como se somente ele importasse e mais ninguém. E foi por isso que nos estranhamos na festa de final de ano da Karamanlis, porque, simplesmente, este ano a festa não foi Theocrática1.

Millos e eu nos reunimos com alguns gerentes e coordenadores para entender o que os funcionários da Karamanlis gostariam de ter em uma festa de encerramento do ano. Depois, contratamos todos os serviços – sem ser da Kyra, pois neste ano ela se livrou de nós na cara dura – e fizemos a festa focada nos funcionários.

Aparentemente, isso chocou e desagradou ao CEO com síndrome de deus, e sua cara fechada e seu olhar de desprezo não ficaram nada disfarçados.

— Ei, irmãozinho! — Eu o parei, enquanto andava como um deus do Olimpo visitando terráqueos. — Aproveitando a festa?

— Espero que não tenha vindo de moto! — o filho da puta tentou me repreender como se estivesse preocupado com minha segurança, e isso, juntamente a toda cerveja que eu já tinha tomado, irritou-me.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já muito bêbado para me conter. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos2!

Theodoros franziu o cenho com meu deboche, comparando seu nome à palavra deus em grego. Estava prestes a dizer algo, mas se conteve quando de repente fui abraçado pelos ombros. Nem precisei olhar para saber que nosso interventor havia chegado.

— Alex, que festança, não? — Millos comentou. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — Theodoros pareceu perplexo. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Gargalhei ao confirmar que ele era mesmo um grande egocêntrico, incapaz de perceber a diferença da festa deste ano à do ano passado por estar focado nos detalhes e não no que realmente importava: as pessoas.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — respondi como se estivesse sóbrio, mesmo não estando. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos me cortou.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — Theodoros perguntou ao Millos, apontando o dedo em minha direção como o grande babaca que sempre foi.

— Fui! — respondi. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Tentei demonstrar com gestos o que dizia, abri os braços de repente, e meu punho bateu no peito do Millos, que chegou para trás. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — olho para um grupo dançando e vários outros conversando, comendo e se divertindo — você está vendo alguém ir?

Ele ficou um tempo olhando em volta como se notasse, pela primeira vez desde que chegou, que realmente os funcionários estavam adorando a descontração deste ano.

Eu só não esperava que ele tentasse ser condescendente comigo:

— Bom trabalho! O pessoal parece realmente estar gostando!

Só faltou dar umas batidinhas em minha cabeça como se eu fosse a porra do seu cãozinho de estimação. Meu sangue ferveu, travei os punhos e não me contive:

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos interrompeu-me e me abraçou novamente pelos ombros. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Mal acabou de falar, seguiu para o outro lado, levando-me consigo.

— Porra, moleque, não tem como ser menos reativo não? A festa está um sucesso graças ao seu feeling, ao modo como você conhece e percebe as pessoas, para que estragar isso batendo boca ou — ele me encarou —, como percebi que queria fazer, enchendo a cara do Theo de porrada? Sai dessa!

Concordei com meu primo e respirei fundo. Depois disso tomei quase um litro de café amargo, ele me pôs em um Uber, e eu vim para casa, onde continuei a beber, desmaiei no sofá e, no outro dia, fui correr ainda um tanto trôpego, sendo desclassificado no teste do bafômetro.

Perdi minha última corrida do ano, grande fracassado que sou!

Volto a ligar minha playlist, e a música que toca é exatamente a que eu preciso para sair da fossa dessas lembranças todas:

— Eu não tenho nada pra dizer. Também não tenho mais o que fazer. Só para garantir esse refrão, eu vou enfiar um palavrão: cu!3


Entro no showroom da A??p?4 – a empresa de eventos de Kyra – e já admiro o trabalho dela com a decoração do local. A enorme mesa com vários lugares ocupa o centro do enorme salão, com castiçais, flores, louças e talheres milimetricamente colocados, junto a taças de cristal e guardanapos de linho.

No restante do salão, há mesas altas para apoiar drinques, sofás e poltronas brancas, com almofadas e outras coisas de decoração seguindo a paleta de cores da festa: verde, vermelho e dourado.

Clichê! Mas é Natal, tem como não ser?

Dou de ombros e vejo Kyra de costas, junto à belíssima morena que trabalha com ela desde que abriu a empresa e as duas chefes de cozinha que conheceu ainda quando trabalhava no outro bufê e as roubou na cara dura quando resolveu estabelecer seu próprio negócio. Uma delas, acho que é a doceira – Mari, como todos a chamam – me vê e logo cutuca minha irmã.

— Ah, Alex! — Kyra abre um enorme sorriso, entrega para a morena – como é mesmo o nome dela? – os penduricalhos de Natal com os quais enfeitava o enorme pinheiro e vem até mim. — Que bom que chegou, tenho uma coisa para você!

Ah, puta que pariu! Ela me comprou um presente? Fico imediatamente sem jeito, pois não comprei absolutamente nada para ela. Eu nem imaginava que iríamos trocar lembranças, nunca fizemos isso!

Alívio toma conta de mim quando ela vem com uma caixinha pequena e claramente de doces.

— Quando experimentei, lembrei logo de você. — Ela tira um doce dourado de dentro da caixa. — Prove!

Franzo o cenho e abro a boca. Mastigo devagar, emitindo sons de prazer, adorando o contraste de texturas e o sabor doce e... picante. Abro um sorriso.

— Chocolate com pimenta! — Termino de comer. — Perfeição!

— Bombom Helênico. — Faço careta para o nome, não combina em nada. — Eu sei, é péssimo, mas as meninas quiseram fazer uma homenagem para a Helena, então... — Dá de ombros.

Helena!, minha mente grita ao lembrar o nome da morena gostosa, mas que nunca sorri e mal fala comigo quando apareço aqui.

— Hum... gostosa! — Começo a rir quando noto que falei alto. Kyra me olha séria. — O quê?

— Nem pense, ela está comprometida!

Ergo as mãos em minha defesa.

— Não falei nada!

— Não precisa! Sua fama de embusteiro conquistador te precede! — Faço careta, e ela ri. — Estive com saudades de você.

— Então por que não foi me ver ou me ligou? — pergunto sem enrolação.

— Não sei.

Respiro fundo. Ela se fecha, é sempre assim e não só comigo. Ela se empolga, vibra, deixa as pessoas se aproximarem, mas nunca demais. Quando chega a seu limite, simplesmente retrocede com a mesma rapidez e naturalidade com que atraiu alguém. É por isso que suas amizades ou mesmo seus relacionamentos amorosos nunca duraram muito.

Porém o que faço eu aqui, julgando-a?

— Alexios Karamanlis! — Viro-me ao ouvir a voz de Millos.

Meu primo – filho de uma égua! – carrega uma enorme caixa de presente toda embrulhada e com laços. Kyra abre um enorme sorriso e vai saltitante até ele, abraça-o pelo pescoço – coisa que não faz nem comigo – e agradece o regalo.

— É para decorar sua sala de empresária fodona — ele brinca com ela, e Kyra gargalha ao tirar uma estátua toda colorida de um unicórnio. — Eu me lembrei daquela sua fantasia no dia das bruxas...

Kyra para de boca aberta.

— Millos, eu tinha quatro anos! — ela recorda e, de repente, parece lembrar também que, naquela época, tudo parecia realmente possível, mágico e feliz.

Meu primo a abraça forte e fala algo em seu ouvido, baixinho. Kyra assente, e eu fico paralisado vendo a troca de carinho entre eles. Parece normal, não é? Mas, creiam-me, não é. Millos evita qualquer contato físico com outras pessoas. Ao cumprimentá-las, ele prefere baixar a cabeça do que dar um aperto de mãos; o máximo que o vi fazer até hoje foi tocar no ombro de alguém, mas somente quando julga necessário. Até comigo, o máximo que ele fez até hoje foi me abraçar para evitar um embate entre mim e Theo. Então assistir aos dois se abraçando é realmente algo inédito.

— Feliz Natal, pesménos ángelos5.

Mostro o dedo do meio para ele.

— Ah, pesquisou! — Ri debochado, mas logo para ao aceitar o chope que Kyra nos oferece. — É um absurdo você não saber nada da nossa língua.

— Não tenho interesse algum por nada que venha de lá — justifico e bebo. — Kyra também não sabe!

— Quem disse? — Ela começa a rir. — Anóito6.

— Quando foi que você se interessou por essa porra? — questiono-lhe surpreso.

— Você leu o nome da empresa dela na fachada? — é Millos quem retorna minha pergunta. — Está em grego!

Millos e Kyra engatam uma conversa, enquanto eu ainda estou paralisado com essa nova informação. Não é exagero, mas eu pensei que ela, assim como eu, desprezasse qualquer coisa que tenha relação com Nikkós. No entanto, ao contrário de mim, ela sempre foi aceita por todos os Karamanlis como parte da família, então é natural que tenha algum apreço por eles.

— Ah, mais convidados estão chegando!

Kyra deixa-nos a sós e vai até um grupo que não conheço.

— Ela parece feliz — comento com Millos.

Meu primo dá de ombros.

— Há pessoas com o dom de demonstrar apenas o que querem que vejam. — Bebe o resto de seu chope e me encara. — Já resolveu o assunto do baile dos Villazzas?

— Ah, Millos, não fode mais a minha noite! — Vejo duas lindas mulheres adentrarem ao salão e abro um sorriso. — Pode ser que ela esteja começando a melhorar.

Millos ergue uma de suas sobrancelhas, e eu o deixo sozinho, caminhando em direção ao meu mais novo alvo da noite, que, neste exato momento, cumprimenta minha irmã.

— Kyra, eu gostaria de... — finjo interromper-me quando as desconhecidas me olham. — Desculpem-me. — Kyra rola os olhos, mas suas convidadas não desviam o olhar do meu rosto. — Millos estava falando do chope, e nós fizemos uma pequena aposta, mas posso ver isso depois, atenda seus convidados. — Abro novamente meu melhor sorriso na direção delas.

— Valéria e Priscila, esse é meu irmão, Alexios Karamanlis — Kyra faz nossa apresentação, e eu sei que depois irá jogar na minha cara que eu estou lhe devendo por isso.

— Um prazer, Valéria! — Aproximo-me para cumprimentá-la e logo depois saúdo a outra: — Prazer, Priscila.

— O prazer é meu, Alexios — Priscila responde, sorrindo, e vejo a mão de Valéria tocar suas costas num gesto um tanto territorialista. Perfeito! Trocamos beijos no rosto em cumprimento. — Eu já te vi em algumas revistas especializadas em engenharia e arquitetura, principalmente quando o conselho dessas classes era o mesmo.

— Arquiteta? — tento adivinhar, mas ela nega e aponta para sua amiga.

— Valéria é, eu sou designer industrial. — Faço cara de surpresa, mesmo sem achar nada de mais. — É, eu sei, a maioria das pessoas que me conhece acha que sou modelo ou estilista, mas você quase acertou. — Seu sorriso é claramente de quem se sente lisonjeada. — Trabalho conceitos para grandes marcas.

— Incrível! — Olho-a de cima a baixo, e Kyra bufa. — Você também parece incrível, Valéria. — Sorrio, e ela relaxa.

— Alexios, chegaram outros convidados, você poderia fazer companhia a elas? — Ela pega na mão das amigas. — Vocês não se importam, não é?

— Claro que não, você é a anfitriã da noite! — Valéria diz, e sinto seu olhar brilhar em minha direção. — Nós ficaremos em boa companhia com seu irmão, afinal, é o anjo rebelde dos Karamanlis.

Puta que pariu!

 

CONTINUA

Com um passado nebuloso, marcado por traumas, rejeições e violência, há anos Alexios Karamanlis busca entender a si mesmo e, para isso, começa uma caçada sem fim pelo destino de sua mãe biológica, junto a sua melhor amiga, Samara Schneider.
Amigos desde tenra idade, Alexios sempre tentou não a notar como mulher por temer perder sua amizade e apoio, e Samara sempre sonhou com o dia em que o garoto problemático e rebelde se apaixonaria por ela.
Juntos em busca de respostas sobre a verdadeira história do nascimento de Alexios, os dois mergulharão no sujo passado do pai dele, Nikkós Karamanlis, revelarão segredos muito bem guardados e, por fim, descobrirão que não há como reprimir mais a paixão e o desejo que sentem um pelo outro.

 

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O país todo está enlouquecido!, penso ao passar por mais uma blitz policial sem nenhum problema, acelerando a moto ao máximo, capacete preto espelhado impossibilitando qualquer um de ver que quem pilota essa máquina é um garoto, não um homem.

Eu não sou um homem! Não sou! Se fosse, não estaria aqui neste momento, mas sim na delegacia, gritando por aí, fazendo qualquer coisa que não apenas dar uma de burguesinho filho da puta endinheirado, acelerando uma moto que custa o mesmo que um apartamento popular, mesmo sem ter habilitação para isso, apenas para esquecer os problemas.

Eu sou um merda! E sou isso por causa “dele”!

Caralho! A Paulista está fechada por conta das comemorações do pentacampeonato. É, o Brasil conseguiu mais uma estrela no futebol, o país está eufórico como se não houvesse crianças na rua, assassinos à solta, a corrupção impedindo todo o sistema público de funcionar. Foda-se, somos penta!

Faço uma manobra rápida com a moto, deixando marcas dos grossos pneus no asfalto e sigo para outra direção, à procura de mais uma avenida extensa e reta para que eu possa extravasar todo o ódio dentro de mim indo ao limite da velocidade.

Paro a moto de repente e quase sou arremessado para frente. Meus músculos começam a tremer, meus olhos se enchem de lágrimas, sinto frio, meus dentes batem um no outro. Engulo em seco. Não vou chorar! Não choro mais, não há muitos anos.

Cada soco, cada pontapé, cada xingamento e mentira secaram minhas lágrimas. Elas até se instalam em meus olhos, porém não caem. Sufocam-me, quebram meu coração, desequilibram-me.

Caio no chão em um baque só, gemo de dor por causa do peso da moto sobre minha perna esquerda, mas não choro. Respiro fundo para controlar a dor, parar de tremer, diminuir os batimentos do meu coração. Estou acostumado a essa rotina de tentar não sentir dor, de tentar não sentir mais nada.

Levanto-me calmamente, sinto calafrios, manco, mas volto a subir na moto, acelerando-a, fazendo o motor girar e um ruído alto e potente se misturar aos sons das comemorações pelas ruas da cidade. Respiro fundo várias vezes e, quando não sinto mais nada, tiro o pé do chão e deixo a máquina me levar.

Eu queria poder fugir para o mais longe possível desta cidade, mas não dá, infelizmente não posso ir a lugar algum, estou preso, revivendo o mesmo inferno todos os dias, aceitando meu destino com resignação até poder livrar a mim e a Kyra do demônio que nos formou.

Eu poderia pedir ajuda ao Tim, mas sei que ele tem a própria merda para lidar e que conseguiu sair há pouco do inferno. Sei que precisava ir. Meu irmão estava por um fio, assim como eu, e, se ficasse lá conosco, seria para morrer ou matar, e, como não é da sua natureza matar, iria perecer aos poucos, como Nikkós gostaria que acontecesse.

Então ele foi, e eu fiquei incumbido de uma missão que nós aceitamos sem nem mesmo combinar nada, apenas porque sabíamos do que nosso pai era capaz e decidimos que não o deixaríamos chegar a ela.

Soluço na moto.

Eu falhei!

Eu falhei!

Eu falhei?!

Eu não sei! Simplesmente não sei o que aconteceu ontem! Acelero a moto, pegando uma rodovia, ainda tentando processar todos os acontecimentos e os flashes de memória que tenho.

Cometi um erro na noite passada, fui imprudente e agora preciso lidar com tudo o que aconteceu, mesmo sem entender direito o que houve. Enquanto piloto a moto, tento repassar cada momento de ontem, mesmo sabendo que já fiz isso várias e várias vezes sem nenhum êxito.

Nikkós finalmente viajou a trabalho – ou o que quer que ele tenha ido fazer –, e eu consegui relaxar um pouco. Mantenho constante vigilância sobre minha irmã, uma adolescente de 14 anos de idade, e evito ao máximo deixá-la sozinha com nosso pai. Não há muito que eu possa fazer para protegê-la das loucuras dele, mas o que está ao meu alcance, faço.

Por conta disso, desde que ingressei na universidade – no começo desse ano –, desdobro-me ao máximo para curtir com meus amigos e proteger a Kyra. A babá anterior era a mesma desde quando minha irmã e eu nascemos, totalmente devota ao nosso pai, então, assim que Konstantinos tomou posse de sua herança, demos um jeito de nos livrar dela, e, assim que outra foi contratada, meu irmão se encarregou de pagar uns extras para ela manter os olhos em Kyra.

Nikkós sempre foi um filho da puta covarde, ele nunca iria deixar um serviçal ver o que ele é capaz de fazer aos filhos, por isso tinha seus próprios lugares para executar suas torturas em Kostas e em mim.

Noite passada, uma galera mais velha da universidade fechou uma boate e me convidou para festejar com eles. Estávamos entrando de férias e queríamos muito desopilar o fígado, relaxar, curtir e esquecer todas as pressões dos estudos.

Como Nikkós não estava em casa, e a babá estava por lá com Kyra, por que não ir? Foi esse meu erro!, penso ao relembrar.

 

— O grande Alexios Karamanlis! — Alberto Bragança me saúda assim que entro na boate. — Achei que você não vinha mais, mano!

Ele me entrega uma caneca de 500ml de chope e um cartão para o restante do consumo, e logo vejo os outros caras em uma mesa no fundo do salão. A música alta, tocando um “batestaca” qualquer, não chama minha atenção. Sigo, então, na direção do pessoal e, mal chego lá, peço mais uma rodada de chope para todos.

Meu pai é um grande filho da puta, torturador desgraçado, mas, para manter as aparências, deixa-nos usar cartão sem limites e nos entrega uma mesada gorda. Bebo, sentindo o gosto do chope se tornar mais amargo que o normal, consciente de que essa porra toda é dele, comprada com o seu maldito dinheiro.

— Jefinho está na área! — alguém grita comemorando. — Vamos começar a diversão! Quem vai?

Sou um dos primeiros a me levantar, viro o resto da bebida e sigo com mais cinco amigos para o banheiro, atrás do traficante oficial da turma. Vejo cada um pegando “no bufê do Jeff” sua viagem preferida e pego um pino de “coca” para começar bem a noite.

“Foda-se, Nikkós Karamanlis!”

Cheiro.

“Foda-se, Sabrina Karamanlis!”

Aspiro mais um pouco.

“Foda-se, Theo Karamanlis!”

Faço outra carreira com o restante do pó.

“Foda-se, Geórgios Karamanlis!”

Seguro a narina fechada, mantendo tudo dentro de mim, sentindo já meu corpo girar, o cérebro acelerar e todas as sensações de abandono e dor se esvaírem como num passe de mágica. Só existe prazer, nenhuma dor, tudo é maravilhoso!

Compro mais três pinos de cocaína e alguns comprimidos de êxtase. Essa noite não quero dormir, quero aproveitar, dançar, zoar, pegar umas universitárias e esquecer quem sou.

Começo a rir de mim mesmo, da piada que acabei de pensar. Esquecer quem sou só seria possível se eu soubesse quem sou.

“Eu não sou ninguém!”

Meu Nokia vibra com a chegada de uma mensagem, confiro ser de Samara, minha única e melhor amiga, e volto a colocá-lo no bolso ao perceber a aproximação de uma gostosa do quarto ano.

— Eu não acredito que você é menor de idade, Alex! — A garota, com luzes nos cabelos e vestido com apenas uma alça, passa a mão no meu peito. — Você não parece ser um garoto, mesmo com esse rostinho angelical.

Respiro fundo para não perder a paciência, pois, se há algo que me irrita muito, é quando dizem que eu pareço um anjo. Aproximo-me dela e a puxo pela cintura.

— Posso provar que não sou um anjo! — Pego sua mão e a levo até a frente da minha calça. A garota arregala os olhos. — Os demônios com cara de anjo são os piores, gata!

— Uau! — Ela lambe meu pescoço. — O que você tomou?

— Coca, mas tenho “bala” no meu bolso. — Ela ronrona, e eu me animo. — Vem comigo!

Levo-a para uma área nos fundos da boate, uma espécie de depósito que se encontra aberto, uma vez que a casa está funcionando apenas para um bando de playboys endinheirados que preferem não se misturar com a ralé e, assim, fazer suas merdas longe dos olhos curiosos da plebe.

Claro! Afinal de contas, aqui estão reunidos os filhos dos maiores empresários, advogados, médicos, juízes e a porra toda elitizada desta cidade decadente. Bando de fodidos! A maioria desconta, como eu, a falta de afeto e atenção em casa gastando dinheiro, promovendo rachas pelas ruas, consumindo todo tipo de droga tentando preencher o buraco negro instalado nas nossas almas.

“Foda-se!”

Seguro a garota contra a parede fria do depósito e, sem nem mesmo perguntar seu nome, ataco sua boca com fúria, mordendo seus lábios e sugando sua língua. Ela mexe em minha calça, abre-a e retira meu pau para um tratamento especial em suas mãos macias.

— Novinho e pauzudo... — ela geme. — Cadê a balinha para deixar tudo mais divertido?

Sorrio e nego.

— Tem que merecer.

Ela sorri e, sem que eu precise sequer lhe indicar o que quero, ajoelha-se no chão grosso e toma meu pau em sua boca quente e esfomeada. Gemo, gostando da carícia, seguro-a pelos cabelos e a forço a engolir o máximo que consegue.

Tenho quase 17 anos, mas aposto com quem quer que seja que nenhum desses caras daqui tem a metade da experiência sexual que eu. E não, não “tiro onda” com isso, afinal, quem é filho de Nikkós Karamanlis não tem muita escolha sobre quando vai começar a trepar, ele simplesmente impõe, e comigo isso aconteceu quando eu tinha 11 anos de idade.

Afasto o pensamento pestilento sobre meu pai e curto a chupada gostosa que a garota ajoelhada me dá. Ela lambe, chupa, suga com força, arranha com os dentes – coisa que me excita “pra caralho” – e segura minhas bolas com vontade. Percebo que ela quer fazer o serviço completo com a boca, mas definitivamente ela não me conhece.

Ergo-a de uma vez só e a ponho de cara contra a parede. Procuro a camisinha no bolso da calça – uma coisa que se aprende quando se começa a vida sexual trepando com putas é que preservativos nunca podem faltar –, plastifico meu pau e levanto o vestido dela.

Bunda gostosa, magra, mas gostosa “pra cacete” com uma calcinha de cor forte – não sei se vermelha ou rosa; não divago muito sobre a cor, mesmo porque é irrelevante –, afasto a peça e esfrego os dedos em sua boceta depilada.

Ela ofega, rebola gostoso na minha mão. Vou penetrando-a devagar com os dedos, recolhendo um pouco da umidade de dentro de sua vagina para usá-la exatamente no ponto onde quero. Massageio seu clitóris até que ela se contraia em gozo e volto a molhar seu rabo com a lubrificação que solta.

Ela fica tensa quando encaixo a cabeça do meu pau em seu ânus apertado.

— Alex...

— Psiu... — falo devagarzinho em seu ouvido, lambendo sua orelha enquanto vou me afundando no canal estreito, sentindo meu corpo todo reagir à pressão de um local nunca ou pouco explorado. — Eu disse a você. — Ela arfa quando me encaixo por completo em seu rabo. — Os demônios com cara de anjo são os piores!

Meto com força e continuo estimulando seu clitóris, beijando e mordendo seu pescoço, até que ela explode em um orgasmo foda, e eu me deixo ir na camisinha, ainda sentindo as contrações do seu corpo. Quando ela se vira para me beijar, estico minha língua com sua recompensa na ponta. A garota sorri e chupa a drágea com vontade, enquanto eu engulo a outra.

A noite só começou!

 

Paro a moto em frente ao prédio onde Konstantinos mora. Fico parado olhando para o alto, invejando a liberdade de meu irmão, a coragem que teve ao se libertar assim que pôde do nosso pai. Ele estuda no Largo de São Francisco, vai ser um advogado e, mesmo que tenha tentado disfarçar, ficou contente quando contei que havia passado em todos os vestibulares para os quais havia prestado.

— Vai para algum lugar longe da cidade? — Kostas não escondeu sua preocupação.

— Não, vou ficar aqui — respondi com sinceridade, mesmo que minha vontade fosse ir para o mais longe possível deste inferno de lugar. — Vou continuar no apartamento de Nikkós, pelo menos até a Kyra fazer 18 anos.

Ele respirou fundo, e nossa conversa por telefone acabou aí. Nós não precisávamos externar nossa preocupação um para o outro, sabíamos do que nosso pai era capaz e do perigo que Kyra corria estando sob o mesmo teto que ele. Kostas saiu de casa, pois nunca soube lidar com Nikkós, ao contrário de mim.

O grego maluco tentou fazer comigo o mesmo que fazia com o meu irmão, porém nunca pensou que não me afetaria, então mudou de tática. O desgraçado tentava me acertar no único ponto que realmente me doía, mas ainda assim eu resistia em demonstrar alguma dor, então ele me fazia sentir na carne.

Esfrego a mão no ombro esquerdo, quebrado há dois anos no que todos acreditaram ser um acidente enquanto eu andava de skate, sem saber que quase tive o braço arrancado pelo homem louco, bêbado e drogado a quem todos respeitavam como um exemplo de pai, criando seus filhos sozinho depois de ter sido abandonado pela mulher.

Farsante dissimulado! Nunca amou ninguém, nunca se preocupou ou se dedicou a ninguém, nem a si mesmo. Eu só não entendo o motivo pelo qual ele não deixou que a puta que me gerou abortasse ou mesmo por que não me deixou com ela.

Eu sou um covarde! Rio, ligando a moto de novo.

Meu maior sonho é vê-lo morto, desejei e planejei isso tantas vezes, de tantas maneiras diferentes, que sei todos os passos de cor. No entanto, nunca tive coragem... Respiro fundo.

Pelo menos até essa madrugada!

Não faço ideia de como cheguei a casa, estava doidão, alto demais, cheirava a cerveja, maconha, sexo e perfumes variados. Não sei nem com quantas garotas trepei à noite, sei que algumas só mamaram meu pau, mas, com outras, a coisa foi mais louca.

Não consigo me lembrar de muita coisa. Só tenho sensações ruins de quando cheguei ao apartamento e percebi que Nikkós havia voltado. Nas memórias, há gritos, choro, mas nenhuma imagem. Tudo o que tenho nítido na cabeça foi o que aconteceu depois que acordei.

Estava deitado na sala principal do apartamento, minhas roupas sujas de sangue, rasgadas, um hematoma no olho e um corte no canto da boca já me incomodando. Não sabia nem onde estava, só sentia dor, confusão, e vomitei ali mesmo, no tapete da sala.

Ao meu lado vi uma faca suja de sangue. Gelei, sem saber o que tinha feito e de quem era o líquido viscoso e vermelho que cobria toda a lâmina. Foi nesse momento que saí do torpor em que me encontrava, peguei o objeto e comecei a correr pela enorme cobertura, entrando em todos os cômodos.

— Kyra! — gritava, mesmo com a cabeça explodindo. — Kyra!

Minha irmã não estava em lugar algum, nem mesmo a Nívea, a senhora que cuidava dela, eu pude encontrar. Meu desespero só aumentou. Liguei para o telefone dela, mas estava dando na caixa de mensagens.

Comecei a soluçar, mesmo não derramando uma só lágrima, e entrei no local proibido da casa, o santuário satânico de Nikkós Karamanlis: seu quarto.

Estanquei quando vi seu corpo enorme e nu jogado sobre a cama king size. Notei os cortes em seus braços, bem como o movimento de respiração, seguido dos roncos altos. O filho da puta não estava morto! Apertei a faca em minha mão com mais força, pensando que esse seria o momento certo para livrar a todos de sua existência.

Andei até ele devagar, os nós dos dedos brancos de tão firme que segurava a faca. Medi suas costas, imaginando que seria muito fácil perfurar seu pulmão com uma só estocada no lugar certo e que ele morreria afogado em seu próprio sangue lentamente, em uma morte digna dele.

Ergui a faca, fechei os olhos, parei de tremer e me lembrei de todos os anos de abuso e de tortura, do que ele fazia ao Kostas, do que fazia comigo e do que poderia fazer a Kyra.

Respirei fundo, concentrei a força e desci a faca, mas parei a milímetros de sua pele quando ouvi soar a campainha. Joguei a arma para longe e saí correndo daquele cômodo pestilento, descendo as escadas disparado para atender a porta, torcendo para que fossem Nívea e Kyra.

— Alexios? — a voz de Samara me fez prender o fôlego. — Alexios, você está aí?

Abri a porta sem pensar duas vezes e desmontei ao ver minha irmã ao lado da minha melhor amiga. Kyra, minha pequena princesa, linda como uma pintura, seus olhos enormes e verdes cheios de lágrimas e os lábios trêmulos.

— Ainda bem! — exclamei aliviado, puxando-a para meus braços. — Ainda bem!

— Alexios, você precisa de ajuda? — Samara questionou, olhando tudo em volta. — Ontem à noite a senhora Nívea pediu que Kyra ficasse comigo e...

Segurei o rosto de minha irmã, desgostoso por saber que ela mal fala por conta do monstro que temos em casa, sequei as lágrimas que escorriam por seu rosto miúdo e assustado e perguntei:

— O que houve?

Ela deu de ombros.

— Ele voltou mais cedo, estava bêbado, mandou Nívea embora. — Sinto um arrepio de frio percorrer minha coluna. — Os dois discutiram. — Ela soluçou. — Ele bateu nela, ela desmaiou...

— E você, onde estava?

Kyra desviou os olhos, e eu senti como se um soco acertasse a boca do meu estômago. Olhei para Samara em busca de uma resposta, mas minha amiga apenas deu de ombros, indicando que minha irmã também não falou com ela.

— Quando ela acordou, me levou para o apartamento da Malinha, e aí eu fiquei lá. — Kyra olhou em direção ao corredor. — Ele ainda está...

Assenti.

— Vá para o seu quarto, tranque a porta, tome um banho; daqui a pouco vou me encontrar com você. — Ela tentou sorrir em agradecimento para Samara, mas depois desistiu, seguindo diretamente para seu quarto. — Samara...

— Vocês precisam denunciar isso! — Ela tocou meu rosto. — Você é só um garoto, Alexios, não pode proteger vocês dois.

— Posso! — afirmei cheio de raiva. — Você sabe muito bem que, se uma denúncia for feita, ela será tirada de nós. Eu ficarei um ano em algum abrigo, mas e ela?

— O Tim não pode...

Neguei.

— Não acho que o deixariam cuidando de dois adolescentes, ele só tem 20 anos! — Fechei os olhos, cansado, com medo, sem saída e senti quando ela me abraçou apertado.

— Onde você esteve ontem à noite?

— Fui me divertir...

— Não. — Seus olhos lindíssimos encararam os meus. — Você não se diverte, Alexios, você tenta se matar. — Passou a mão pelo meu rosto. — Quanto usou?

Dei de ombros, não querendo discutir isso com ela. Nunca termina bem!

— Isso não ajuda ninguém. Nem a você, muito menos à sua irmã. — Tentou sorrir para disfarçar o sermão, seus dentes cheios de plaquinhas do aparelho ortodôntico, o rosto redondo de menina fazendo covinhas, coisa que ela sempre teve e sempre achei lindo. — Eu sei que só tenho 15 anos, mas...

— Eu agradeço que você tenha feito companhia a Kyra, mas agora preciso resolver tudo aqui. — Apontei para a sala. — Ficou tudo bem com seus pais?

— Sim, não acharam nada estranho que Kyra dormisse lá em casa, afinal, somos amigas.

Ri amargamente.

— Essa amizade é aceitável para os Schneiders, não é? — Samara ficou vermelha. — Kyra é uma boa menina, não um porra-louca como eu, filho de uma puta e...

Samara pôs a mão sobre minha boca.

— Você é meu melhor amigo, apenas isso deveria te bastar para calar qualquer outra coisa que meus pais possam pensar de você.

Abracei-a forte, a consciência pesada por falar mal de sua família, pois sei quanto ela os ama, depois me despedi e tratei de limpar a sala, jogar a roupa que usava fora e fiquei até há pouco com minha irmã, ambos trancados no seu quarto.

Só saí para espairecer, para processar tudo o que aconteceu na madrugada passada, pois mais uma vez Samara agiu como um anjo e convidou minha irmã para assistir à final da Copa do Mundo com ela e depois terem uma noite de meninas, com direito a festa do pijama.

Entro na garagem do prédio, mando uma mensagem para Samara informando-a de que cheguei e que estou indo buscar minha irmã. Sinceramente eu não sei como vou fazer até encontrar outra pessoa de confiança para deixar com Kyra quando eu não estiver em casa, pois Nívea disse que nunca mais colocará os pés no nosso apartamento, depois de ter recebido uma boa quantia para que não denunciasse o que se passa dentro de nossa casa, pois entendeu que prejudicaria Kyra.

Não importa! Kyra precisa de mim, e, nem se eu precisar mudar toda minha rotina por causa dela, a terei protegida.


São Paulo, tempo atuais.


Acordo com uma dor de cabeça filha da puta, ressacado, tão zonzo que tropeço ao sair da cama, e a primeira coisa que me vem à cabeça nesta manhã (ou será nesta tarde?) é que hoje é véspera de Natal. Foda-se! Sou ateu, esses feriados religiosos não significam nada para mim.

Sigo pelo corredor em direção à cozinha, com muita sede, louco para tomar um analgésico para exterminar a dor de cabeça. Não vou tomar! Não tomo remédios para dor há anos, aprendi a conviver com as pontadas, com as ardências. A dor me tornou mais forte, resiliente, aprendi há muito que nada é capaz de me ferir mais do que eu mesmo.

A maioria dos meus ossos trazem lembranças de como superei, as marcas no meu corpo também, porém, nenhuma dessas cicatrizes é mais forte do que o vazio dentro de mim.

Encho um copo d’água até transbordar e o bebo em um só gole. A cabeça martela ainda mais por conta da bebida gelada, mas ignoro-a por completo. Não há remédio para o que sinto, não há cura para toda a raiva que carrego dentro de mim, então posso, sim, conviver com umas horas de pontadas no cérebro.

Olho para a porta fechada na área de serviço. Os cômodos dali eram a tal dependência de empregados, mas, como eu nunca tive nenhum, aproveitei-os para outros fins. Inspiro, os cheiros tão familiares chegando às minhas narinas. A raiva natural com que acordo todos os dias se aplaca; não some, apenas se recolhe, dando lugar às sensações de prazer.

Confiro as horas e xingo ao perceber que já estamos no meio da tarde. Sinceramente, não sei por que Kyra inventou essa ceia de Natal, não depois de todos esses anos. Não entendo minha irmã, sinceramente. Há muito convivo com seu gênio forte, sua determinação, mas ainda não sei quem é ela. A garota divertida da infância se tornou uma adolescente quieta e taciturna, uma jovem inteligente e ajuizada e, por fim, uma adulta completamente misteriosa. Eu a acompanhei em todas as fases de sua vida, mas ainda assim não sei quem é a verdadeira Kyra Karamanlis.

Assim que ela completou 18 anos, abandonamos a luxuosa cobertura de Nikkós e fomos morar em um cafofo velho e caindo aos pedaços. Eu estudava como um louco no meu último ano de faculdade, e, como ela passou para uma universidade pública também, tínhamos que morar próximo de uma das duas universidades. Preferi ficar próximo da dela e me fodia andando de bicicleta até a minha todos os dias.

Nessa época eu estagiava na Novak Engenharia e, com a bolsa do estágio, eu mal conseguia pagar o aluguel do quarto e sala que aluguei. Ela nunca soube, mas quem bancava nossa alimentação, transporte e outras despesas era o Kostas. Meu irmão e eu nem éramos amigos, na verdade mal nos falávamos, mas todo mês o dinheiro aparecia na minha conta, e eu sabia que vinha dele.

Formei-me e já fui efetivado na Novak. Trabalhei com o Nicholas, com quem aprendi demais e construí uma amizade forte, assim como com seu irmão Bernardo. Os tempos de bagunça, baladas, drogas e bebidas acabaram quando nos libertamos da prisão daquele apartamento e da convivência maligna de Nikkós.

Kyra estudava muito, era extremamente aplicada em tudo o que fazia, e, irritada por não conseguir conciliar seu horário de estudos com um emprego, começou a fazer doces e salgados dentro do nosso pequeno apartamento e vendê-los na faculdade.

Rio ao pensar que foi assim que nasceu a promoter de eventos, em uma cozinha de seis metros quadrados, com um forno capenga, um fogão com só duas bocas funcionando e uma geladeira que parecia um monomotor, de tanto barulho que fazia. Em pouco tempo ela estava fornecendo encomendas para festas e pequenos eventos, depois começou a fazer projetos de decoração, então, quando se formou, foi trabalhar em um grande e caríssimo bufê da cidade, auxiliando a cerimonialista com os projetos.

Hoje ela é a dona de uma empresa especializada em produções de eventos diversos, bem-sucedida, com um negócio em progressão geométrica de crescimento. Tenho muito orgulho dela, principalmente por ser a única que não ficou agarrada ao cordão umbilical familiar dentro da Karamanlis.

Agora qual a necessidade da porra de uma ceia de Natal para comemorar a expansão de seu negócio? Vou ter que ficar com um maldito sorriso no rosto, carinha de anjo, lidando com o caralho da minha gastrite me corroendo ao pensar na hipocrisia do mundo.

Respiro fundo e decido combater a ressaca e a dor de cabeça com mais bebida. Pego uma cerveja na geladeira, abro-a na beirada da pia e entro no outro ambiente, a sala, integrada ao outro cômodo, separados apenas por uma enorme bancada.

Eu mesmo projetei esse prédio, há alguns anos, ainda trabalhando na Novak. Bernardo Novak é meu vizinho de porta, e Nicholas foi o primeiro dono da cobertura duplex que toma todo o último andar, hoje habitada por um casal e uma menininha. Comprei o apartamento pensando em vir morar com minha irmã, mas qual não foi minha surpresa quando ela anunciou que só sairia do cafofo para seu próprio lugar?

Pois é, vim sozinho, ocupo apenas a suíte principal, e os outros dois quartos estão praticamente vazios. A sala foi decorada – pela própria Kyra –, bem como a cozinha, mas nunca mandei fazer os móveis da sala de jantar, pois não vejo nenhuma função para eles. Eu como sozinho no balcão da cozinha, assistindo a TV ou ouvindo música.

Resgato meu celular, seleciono uma das minhas muitas playlists, e a caixa de som já liga automaticamente, deixando o som pesado do Matanza ecoar pelos ambientes. Sorrio ao ouvir “Bom é quando faz mal”, as recordações das loucuras da faculdade, de toda a merda que eu fazia. Não tenho vontade alguma de fazer de novo, mas também não posso dizer que me arrependo. Era o meu jeito de extravasar, tresloucado, admito, mas ainda assim muito mais normal do que o que eu vivia dentro de casa.

Preparo qualquer coisa para comer, balançando a cabeça e cantando as músicas de várias bandas de rock, algumas famosas, outras nem tanto, mas que marcaram minha vida de alguma forma.

O telefone toca, e a chamada atrapalha minha diversão musical. Bufo, jogo o pano de prato sobre a pia e pego o aparelho.

— Oi, Millos — atendo meu primo.

— Boa tarde, Alexios. Animado com a reunião de hoje à noite?

— Ô, tão quanto eu estaria para fazer um exame de próstata. — Millos gargalha. — Ela convidou você também?

— E o Kostas. — Isso me surpreende, pois, até onde eu sei, não temos nenhuma convivência com ele. — Bom, liguei para dizer que irei viajar na virada do ano, por isso preciso que você não deixe de ir ao baile dos Villazzas.

Gemo ao pensar em vestir um smoking.

— Porra, Millos, não fode! Aposto que Theodoros vai, afinal Frank e ele são quase um casal! — Millos ri do meu deboche acerca da amizade entre meu irmão mais velho e o CEO da rede Villazza de hotéis. — Não tenho a mínima...

— Konstantinos confirmou presença também.

Puta que pariu!

Preciso me sentar depois dessa informação, pasmo só em imaginar Kostas com alguma puta, sentado na mesma mesa de Theodoros. Vai dar merda!

— Eu não tenho companhia — tento me justificar. — E você poderia adiar a sua viagem só por uns...

— Não, não posso, já fiz todos os arranjos, reservas em hotéis, o cronograma da viagem! Você tem que ir para evitar que os dois prejudiquem a imagem da empresa.

Reviro os olhos ao pensar na imagem da empresa. Millos é doido ao pensar que temos uma imagem a zelar. Todos nesta maldita cidade, neste meio asqueroso no qual vivemos, sabem que somos todos fodidos e que nosso pai cagou em nosso nome com a sucessão de merdas que fez.

E olha que a maioria não o conheceu de verdade, não soube o monstro que ele era, escondido por detrás de uma fachada bonita e um sorriso de conquistador barato! Um lobo em pele de cordeiro, um demônio com a face de um anjo... assim como eu.

Bufo de raiva.

— Cadê aquela sua amiga? — Franzo a testa, sem acreditar que ele está se referindo à Samara. — Vocês viviam para cima e para baixo juntos, ela te acompanhou em um dos primeiros eventos dos Villazzas e...

— A Samara mora em Madri há mais de três anos, Millos. — Decido não entrar em detalhes e contar a ele que nos afastamos por algum motivo idiota que eu não consigo lembrar. — Vou ter que ligar para alguma...

— Isso, ligue — ele me corta. — Mulher nunca foi seu problema, aposto que você tem um caderninho cheio de telefones.

— E daí? — afronto-o. — Gosto de sexo, nunca escondi isso, diferente de você, que nunca foi visto com nenhuma mulher além daquela sua amiga motoqueira. — Decido provocá-lo: — Millos, acho que está na hora de sair do armário, porra!

O filho da puta ri alto.

— Eu não teria problema algum em sair se fosse o caso. Ainda mais agora, que Dimitrios saiu, e o pappoús continuou vivo e... — Millos para.

É sempre assim quando algum assunto referente à família na Grécia vem à tona. Eu não conheço ninguém, nunca fui à Grécia, nem tenho a mínima vontade de ir. Não conheço o tal pappoús, nem primo algum além de Millos, que só conheci quando veio morar no Brasil.

Sou o Karamanlis renegado, indigno do sobrenome.

— Vou ligar para alguém e convidar a ir comigo — encerro o assunto constrangedor. — Mas não garanto atuar de mediador como você.

— Você, mediador? — Millos se surpreende. — Alexios, se eu não tivesse interferido, você teria criado uma situação com Theodoros na festa de final de ano da Karamanlis. Eu só quero que você vá com alguém e iniba um pouco aqueles dois.

Bufo e concordo.

— Eu vou.

— Obrigado. — Estou prestes a desligar, quando ele me chama de novo: — Ah, Alexios, não encha a cara, senão você vai falar merda para o Theo, e o Kostas vai se aproveitar disso.

— Vai se foder, Millos! Eu já vou, porra, não diga o que tenho que fazer.

Desligo irritado, perco a fome e a vontade de terminar o que estava preparando.

Mesmo puto, preciso admitir, Millos tem razão sobre eu perder a cabeça com Theodoros, principalmente quando bebo. Eu não odeio meu irmão mais velho como sei que Kostas o faz, apenas ele não significa mais nada para mim.

Convivo bem com ele, pelo menos no sentido profissional, mas não quero nenhum tipo de ligação mais pessoal. Ele perdeu o timing quando, depois de toda a merda que ajudou a fazer, nunca mais quis saber de nós. Era como se nem existíssemos! Ele excluiu Nikkós de sua vida, mas acabou nos descartando junto. Nunca se preocupou em saber de nenhum de seus irmãos, muito menos de sua adorada Kyra, a mais vulnerável de todos nós.

Então, sim, eu perco a cabeça com ele, principalmente com seu jeito esnobe, intocável, como se somente ele importasse e mais ninguém. E foi por isso que nos estranhamos na festa de final de ano da Karamanlis, porque, simplesmente, este ano a festa não foi Theocrática1.

Millos e eu nos reunimos com alguns gerentes e coordenadores para entender o que os funcionários da Karamanlis gostariam de ter em uma festa de encerramento do ano. Depois, contratamos todos os serviços – sem ser da Kyra, pois neste ano ela se livrou de nós na cara dura – e fizemos a festa focada nos funcionários.

Aparentemente, isso chocou e desagradou ao CEO com síndrome de deus, e sua cara fechada e seu olhar de desprezo não ficaram nada disfarçados.

— Ei, irmãozinho! — Eu o parei, enquanto andava como um deus do Olimpo visitando terráqueos. — Aproveitando a festa?

— Espero que não tenha vindo de moto! — o filho da puta tentou me repreender como se estivesse preocupado com minha segurança, e isso, juntamente a toda cerveja que eu já tinha tomado, irritou-me.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já muito bêbado para me conter. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos2!

Theodoros franziu o cenho com meu deboche, comparando seu nome à palavra deus em grego. Estava prestes a dizer algo, mas se conteve quando de repente fui abraçado pelos ombros. Nem precisei olhar para saber que nosso interventor havia chegado.

— Alex, que festança, não? — Millos comentou. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — Theodoros pareceu perplexo. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Gargalhei ao confirmar que ele era mesmo um grande egocêntrico, incapaz de perceber a diferença da festa deste ano à do ano passado por estar focado nos detalhes e não no que realmente importava: as pessoas.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — respondi como se estivesse sóbrio, mesmo não estando. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos me cortou.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — Theodoros perguntou ao Millos, apontando o dedo em minha direção como o grande babaca que sempre foi.

— Fui! — respondi. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Tentei demonstrar com gestos o que dizia, abri os braços de repente, e meu punho bateu no peito do Millos, que chegou para trás. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — olho para um grupo dançando e vários outros conversando, comendo e se divertindo — você está vendo alguém ir?

Ele ficou um tempo olhando em volta como se notasse, pela primeira vez desde que chegou, que realmente os funcionários estavam adorando a descontração deste ano.

Eu só não esperava que ele tentasse ser condescendente comigo:

— Bom trabalho! O pessoal parece realmente estar gostando!

Só faltou dar umas batidinhas em minha cabeça como se eu fosse a porra do seu cãozinho de estimação. Meu sangue ferveu, travei os punhos e não me contive:

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos interrompeu-me e me abraçou novamente pelos ombros. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Mal acabou de falar, seguiu para o outro lado, levando-me consigo.

— Porra, moleque, não tem como ser menos reativo não? A festa está um sucesso graças ao seu feeling, ao modo como você conhece e percebe as pessoas, para que estragar isso batendo boca ou — ele me encarou —, como percebi que queria fazer, enchendo a cara do Theo de porrada? Sai dessa!

Concordei com meu primo e respirei fundo. Depois disso tomei quase um litro de café amargo, ele me pôs em um Uber, e eu vim para casa, onde continuei a beber, desmaiei no sofá e, no outro dia, fui correr ainda um tanto trôpego, sendo desclassificado no teste do bafômetro.

Perdi minha última corrida do ano, grande fracassado que sou!

Volto a ligar minha playlist, e a música que toca é exatamente a que eu preciso para sair da fossa dessas lembranças todas:

— Eu não tenho nada pra dizer. Também não tenho mais o que fazer. Só para garantir esse refrão, eu vou enfiar um palavrão: cu!3


Entro no showroom da A??p?4 – a empresa de eventos de Kyra – e já admiro o trabalho dela com a decoração do local. A enorme mesa com vários lugares ocupa o centro do enorme salão, com castiçais, flores, louças e talheres milimetricamente colocados, junto a taças de cristal e guardanapos de linho.

No restante do salão, há mesas altas para apoiar drinques, sofás e poltronas brancas, com almofadas e outras coisas de decoração seguindo a paleta de cores da festa: verde, vermelho e dourado.

Clichê! Mas é Natal, tem como não ser?

Dou de ombros e vejo Kyra de costas, junto à belíssima morena que trabalha com ela desde que abriu a empresa e as duas chefes de cozinha que conheceu ainda quando trabalhava no outro bufê e as roubou na cara dura quando resolveu estabelecer seu próprio negócio. Uma delas, acho que é a doceira – Mari, como todos a chamam – me vê e logo cutuca minha irmã.

— Ah, Alex! — Kyra abre um enorme sorriso, entrega para a morena – como é mesmo o nome dela? – os penduricalhos de Natal com os quais enfeitava o enorme pinheiro e vem até mim. — Que bom que chegou, tenho uma coisa para você!

Ah, puta que pariu! Ela me comprou um presente? Fico imediatamente sem jeito, pois não comprei absolutamente nada para ela. Eu nem imaginava que iríamos trocar lembranças, nunca fizemos isso!

Alívio toma conta de mim quando ela vem com uma caixinha pequena e claramente de doces.

— Quando experimentei, lembrei logo de você. — Ela tira um doce dourado de dentro da caixa. — Prove!

Franzo o cenho e abro a boca. Mastigo devagar, emitindo sons de prazer, adorando o contraste de texturas e o sabor doce e... picante. Abro um sorriso.

— Chocolate com pimenta! — Termino de comer. — Perfeição!

— Bombom Helênico. — Faço careta para o nome, não combina em nada. — Eu sei, é péssimo, mas as meninas quiseram fazer uma homenagem para a Helena, então... — Dá de ombros.

Helena!, minha mente grita ao lembrar o nome da morena gostosa, mas que nunca sorri e mal fala comigo quando apareço aqui.

— Hum... gostosa! — Começo a rir quando noto que falei alto. Kyra me olha séria. — O quê?

— Nem pense, ela está comprometida!

Ergo as mãos em minha defesa.

— Não falei nada!

— Não precisa! Sua fama de embusteiro conquistador te precede! — Faço careta, e ela ri. — Estive com saudades de você.

— Então por que não foi me ver ou me ligou? — pergunto sem enrolação.

— Não sei.

Respiro fundo. Ela se fecha, é sempre assim e não só comigo. Ela se empolga, vibra, deixa as pessoas se aproximarem, mas nunca demais. Quando chega a seu limite, simplesmente retrocede com a mesma rapidez e naturalidade com que atraiu alguém. É por isso que suas amizades ou mesmo seus relacionamentos amorosos nunca duraram muito.

Porém o que faço eu aqui, julgando-a?

— Alexios Karamanlis! — Viro-me ao ouvir a voz de Millos.

Meu primo – filho de uma égua! – carrega uma enorme caixa de presente toda embrulhada e com laços. Kyra abre um enorme sorriso e vai saltitante até ele, abraça-o pelo pescoço – coisa que não faz nem comigo – e agradece o regalo.

— É para decorar sua sala de empresária fodona — ele brinca com ela, e Kyra gargalha ao tirar uma estátua toda colorida de um unicórnio. — Eu me lembrei daquela sua fantasia no dia das bruxas...

Kyra para de boca aberta.

— Millos, eu tinha quatro anos! — ela recorda e, de repente, parece lembrar também que, naquela época, tudo parecia realmente possível, mágico e feliz.

Meu primo a abraça forte e fala algo em seu ouvido, baixinho. Kyra assente, e eu fico paralisado vendo a troca de carinho entre eles. Parece normal, não é? Mas, creiam-me, não é. Millos evita qualquer contato físico com outras pessoas. Ao cumprimentá-las, ele prefere baixar a cabeça do que dar um aperto de mãos; o máximo que o vi fazer até hoje foi tocar no ombro de alguém, mas somente quando julga necessário. Até comigo, o máximo que ele fez até hoje foi me abraçar para evitar um embate entre mim e Theo. Então assistir aos dois se abraçando é realmente algo inédito.

— Feliz Natal, pesménos ángelos5.

Mostro o dedo do meio para ele.

— Ah, pesquisou! — Ri debochado, mas logo para ao aceitar o chope que Kyra nos oferece. — É um absurdo você não saber nada da nossa língua.

— Não tenho interesse algum por nada que venha de lá — justifico e bebo. — Kyra também não sabe!

— Quem disse? — Ela começa a rir. — Anóito6.

— Quando foi que você se interessou por essa porra? — questiono-lhe surpreso.

— Você leu o nome da empresa dela na fachada? — é Millos quem retorna minha pergunta. — Está em grego!

Millos e Kyra engatam uma conversa, enquanto eu ainda estou paralisado com essa nova informação. Não é exagero, mas eu pensei que ela, assim como eu, desprezasse qualquer coisa que tenha relação com Nikkós. No entanto, ao contrário de mim, ela sempre foi aceita por todos os Karamanlis como parte da família, então é natural que tenha algum apreço por eles.

— Ah, mais convidados estão chegando!

Kyra deixa-nos a sós e vai até um grupo que não conheço.

— Ela parece feliz — comento com Millos.

Meu primo dá de ombros.

— Há pessoas com o dom de demonstrar apenas o que querem que vejam. — Bebe o resto de seu chope e me encara. — Já resolveu o assunto do baile dos Villazzas?

— Ah, Millos, não fode mais a minha noite! — Vejo duas lindas mulheres adentrarem ao salão e abro um sorriso. — Pode ser que ela esteja começando a melhorar.

Millos ergue uma de suas sobrancelhas, e eu o deixo sozinho, caminhando em direção ao meu mais novo alvo da noite, que, neste exato momento, cumprimenta minha irmã.

— Kyra, eu gostaria de... — finjo interromper-me quando as desconhecidas me olham. — Desculpem-me. — Kyra rola os olhos, mas suas convidadas não desviam o olhar do meu rosto. — Millos estava falando do chope, e nós fizemos uma pequena aposta, mas posso ver isso depois, atenda seus convidados. — Abro novamente meu melhor sorriso na direção delas.

— Valéria e Priscila, esse é meu irmão, Alexios Karamanlis — Kyra faz nossa apresentação, e eu sei que depois irá jogar na minha cara que eu estou lhe devendo por isso.

— Um prazer, Valéria! — Aproximo-me para cumprimentá-la e logo depois saúdo a outra: — Prazer, Priscila.

— O prazer é meu, Alexios — Priscila responde, sorrindo, e vejo a mão de Valéria tocar suas costas num gesto um tanto territorialista. Perfeito! Trocamos beijos no rosto em cumprimento. — Eu já te vi em algumas revistas especializadas em engenharia e arquitetura, principalmente quando o conselho dessas classes era o mesmo.

— Arquiteta? — tento adivinhar, mas ela nega e aponta para sua amiga.

— Valéria é, eu sou designer industrial. — Faço cara de surpresa, mesmo sem achar nada de mais. — É, eu sei, a maioria das pessoas que me conhece acha que sou modelo ou estilista, mas você quase acertou. — Seu sorriso é claramente de quem se sente lisonjeada. — Trabalho conceitos para grandes marcas.

— Incrível! — Olho-a de cima a baixo, e Kyra bufa. — Você também parece incrível, Valéria. — Sorrio, e ela relaxa.

— Alexios, chegaram outros convidados, você poderia fazer companhia a elas? — Ela pega na mão das amigas. — Vocês não se importam, não é?

— Claro que não, você é a anfitriã da noite! — Valéria diz, e sinto seu olhar brilhar em minha direção. — Nós ficaremos em boa companhia com seu irmão, afinal, é o anjo rebelde dos Karamanlis.

Puta que pariu!

 

 

                                   CONTINUA